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A441
A alma das coisas : patrimônio, materialidade e ressonância / [organização]
José Reginaldo Santos Gonçalves, Nina Pinheiro Bitar e Roberta Sampaio
Guimarães. - Rio de Janeiro : Mauad X : Faperj, 2013.
APRESENTAÇÃO 7
5. BANDEIRAS E MÁSCARAS:
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PESSOAS E OBJETOS MATERIAIS NAS FOLIAS DE REIS 123
Daniel Bitter
IMAGENS 297
APRESENTAÇÃO
As coisas no exílio
Para quem não se lembra, A alma das coisas era um antigo programa da Rá-
dio Nacional dos anos 1950, que ia ao ar todas as quintas-feiras, em horário
nobre, precisamente às oito horas da noite. Em sua apresentação, o locutor
anunciava em tom solene: “Contam histórias antigas que Deus nosso senhor
deu alma a todas as coisas que se encontram no mundo. As coisas não falam.
Se falassem ouviríamos então a alma das coisas...”. Logo em seguida, sempre
no mesmo tom de voz, anunciava o patrocinador do programa: “Através da
Rádio Nacional, a fita celulose marca Scotch tem o prazer de apresentar A
alma das coisas.” Não era um programa religioso, apesar da referência a Deus
em sua apresentação. Durava não mais que dez minutos, e nesse espaço de
tempo narravam-se histórias imaginárias cujos protagonistas eram objetos
materiais cotidianos: um bule, uma árvore de natal, etc. Eram apresentados
como se formassem verdadeiras sociedades de objetos, com relações de pa-
rentesco, vizinhança, amizade, inimizade e traços de personalidade; eram
descritos como se fossem pessoas, com capacidade similar para sentir, pen-
sar, agir, falar e emitir opiniões sobre seu destino e suas relações com o mun-
do e com o seres humanos. Correndo o risco (e já assumindo o crime) de
cometer o que os historiadores chamam de “anacronismo”, digo que A alma
das coisas talvez expressasse certa percepção imaginária do que se conhece no
jargão antropológico atual como “agência” dos objetos.
Mas esse certamente não é um tema novo. Afinal, essa percepção, de
modo periférico ou central, assumindo contornos semânticos variados, pa-
rece estar presente em qualquer sociedade humana. A natureza da relação
sujeito–objeto, tal como a modernidade ocidental veio a concebê-la, em que
os objetos servem tão somente aos propósitos e necessidades de um sujeito
soberano, não é algo evidente para a maioria das sociedades existentes no
planeta. O “espírito das coisas dadas” é um tema clássico da Antropologia,
1
“Très souvent le pot a une âme, le pot est une personne” (Mauss, 1967, p. 46).
8 Apresentação
A vida social dos patrimônios
2
Para uma discussão critica da categoria “materialidade”, ver o artigo de Tim Ingold, Materials against
Materiality, in Being Alive (2011, p. 19-32).
3
Os textos reunidos neste livro resultam de teses e dissertações produzidas, em sua quase totalidade,
no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS /da UFRJ (http://
www.ifcs.ufrj.br/~ppgsa/); e do Núcleo de Antropologia dos Objetos (Nuclao) do Departamento de
Antropologia Cultural do IFCS (www.laares-ufrj.com) e, que, por sua vez, resultaram na publicação de
artigos, capítulos de livro e livros (Gonçalves 2000; 2003 [1996]; 2003a; 2007: 175-194; 2007: 117-138;
2007: 42-63; 2005; 2007: 139-158; 2007a; 2008; 2009a; 2009b; 2009c; 2010; 2010a; 2011; 2011a; Silva,
2007; Kubrusly, 2007; Bitter, 2008; 2010; Pereira, 2009; 2011; Paiva, 2009; Goyena 2010; Nascimento,
2010; Bitar, 2010; 2011; Guimarães, 2004; 2011; Paterman, 2008; Migliora, 2010; Miguel, 2010).
4
Segundo o historiador Stephen Greenblatt: Por ressonância quero me referir ao poder de um objeto
exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no
expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o
espectador, o representante (1991, p. 42-56. Tradução de José Reginaldo Santos Gonçalves)
5
Um exemplo brilhante desse procedimento pode ser encontrado em um texto de Antonio Candido, no
qual, ao analisar a relação entre textos literários, descreve diferentes formas de ressonância de um texto
em outro, ora na forma de “inspiração”, ora da forma de “citação” (Candido, 2004).
10 Apresentação
É notório que, nas últimas décadas, a categoria “patrimônio” vem circu-
lando intensamente em diferentes meios sociais e acadêmicos, podendo evi-
dentemente assumir significados bastante variados. No entanto, é possível,
numa perspectiva mais ambiciosa, perceber uma dimensão estrutural nos usos
dessa categoria, dimensão talvez presente, sempre de modos diferenciados,
em quaisquer formas de vida sociocultural. Essa dimensão consiste no poder
de mediação exercido pelos chamados patrimônios. Sejam eles classificados,
como é o caso dos contextos ocidentais contemporâneos, como “materiais” ou
“imateriais”, sua existência se justifica pelo exercício dessas mediações entre
diversos domínios sociais e cosmológicos (Gonçalves, 2007).
É curioso que, no Ocidente contemporâneo, quando se fala mais e mais de
“patrimônio imaterial” ou “intangível”, torna-se flagrante a “materialidade”
dos patrimônios. Afinal, como separar a materialidade e a imaterialidade de
uma edificação, de uma prática culinária ou de determinadas festas populares?
Essa separação, que tão facilmente tomamos como natural, será mesmo de
validade universal? Os estudos aqui apresentados nos mostram precisamente
essa indeterminação, revelando como, em diferentes contextos socioculturais,
essa e outras oposições podem ser desenhadas de formas distintas.
O estudo assinado por Alberto Goyena analisa as polêmicas que acom-
panharam o processo de destruição, por parte dos talibãs, de duas estátuas
de Buda no Afeganistão no ano de 2001 e que haviam sido classificadas pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unes-
co) como “patrimônio da humanidade”. A partir desse caso, ele levanta alguns
questionamentos a respeito das relações entre “cultura material” e “transmis-
são de identidades coletivas”. E ressalta o caráter instável e indeterminado
das práticas inseparáveis de conservação e destruição dos patrimônios e sua
incessante ressignificação pelos atores envolvidos nesses processos.
As narrativas de passado e as formas de habitar que entraram em choque
durante o processo de construção de um “sítio histórico de origem portu-
guesa” no Morro da Conceição, Zona Portuária do Rio de Janeiro, é o tema
do artigo de Roberta Sampaio Guimarães. A autora analisa como, durante
esse processo ocorrido entre os anos de 1998 e 2000, planejadores urbanos
da prefeitura deslocaram diversos sobrados, logradouros e modos de vida de
seu contexto polissêmico cotidiano e os reordenaram discursivamente atra-
vés da categoria “patrimônio”, colocando diversos outros itens como mar-
gens do sítio histórico imaginado. Como efeito dessa ação, é demonstrado
que gerou-se não apenas a afirmação de diferentes memórias e identidades,
mas também novos processos políticos, sociais e estéticos, como a criação na
12 Apresentação
das refeições coletivas da festa como etapas primordiais do sistema ritual para
saudar os Santos Reis Magos. Através de uma descrição densa das etapas do
“evento alimentar”, o analisa de modo inseparável de relações sociais e sim-
bólicas estruturais da folia. Em especial, o autor destaca a “fartura de comida”,
segundo os devotos, como um dos critérios fundamentais para o sucesso de
uma festividade. Demonstra como a relação de dívida e dádiva estabelecida
entre os foliões, imperadores e divindades obedece uma sequência ritual que
não apenas demarca relações hierárquicas, mas constitui tais relações.
O artigo de Ana Gabriela Morim de Lima nos oferece uma diferente pers-
pectiva sobre os objetos etnográficos colecionados por museus. Propõe a
análise do caso de um machado cerimonial, o Kajré, guardado no Museu
Paulista, e que em 1986 foi reapropriado pela comunidade indígena Krahô.
Além de descrever o processo político de “repatriamento” de tal objeto, a
autora faz uma análise dos diferentes mitos de origem que possibilitam múl-
tiplas ressignificações do mesmo objeto. A autora demonstra que tal objeto
passa a ser “símbolo” também de identidade indígena perante a “sociedade
de brancos” e recebe diversas ressignificações.
Já o artigo de Clarisse Kubrusly analisa uma série de narrativas biográficas
sobre a boneca Joventina, personagem importante dos maracatus do Recife.
Nesse caso, tal objeto aparece como mediador de uma série de controvérsias
entre o Museu do Homem do Nordeste, maracatus e a antropóloga Katarina
Real. A autora explora as negociações de posse dessa boneca pelos maraca-
tus e as diferentes narrativas sobre as origens e usos desse objeto. A partir
da boneca Joventina e da experiência de Katarina Real com os maracatus, a
autora ilumina diferentes imaginários sobre o que significa um objeto como
este no museu. Aponta, assim, a característica fragmentada da biografia de
tal objeto, que se mistura com as biografias de pessoas, grupos e instituições.
Um outro ponto de vista é oferecido por Flora Moana van de Beuque em
seu estudo de objetos utilizados no bumba meu boi do Maranhão, exploran-
do a ideia da circulação de uma máscara: a “careta de cazumba”. A autora
descreve e analisa de que forma tal máscara é classificada neste contexto
festivo, focalizando as relações sociais e simbólicas envolvidas. Dentre tais
relações, destaca o papel central de um artesão responsável pela confecção da
careta de cazumba e de sua trajetória de vida. Assim, propõe o entendimento
da máscara e de seu produtor inseridos também em outros contextos que
não os festivos, como nos museus. Revela que, através do deslocamento do
contexto da festa para o museus, esse objeto e o artesão ou “artista popular”
são diferentemente classificados e ressignificados.
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14 Apresentação
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16 Apresentação
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18 Apresentação
1.
Alberto Goyena
1
Tive a oportunidade de apresentar versões preliminares deste artigo durante a 28. Reunião Brasileira
de Antropologia, em grupo de trabalho coordenado pelos professores Renata de Castro Menezes e
Ronaldo de Almeida, a quem agradeço pelos comentários e sugestões. Sou igualmente grato aos
professores José Reginaldo Gonçalves, Marcia Contins, Edlaine de Campos Gomes e Roberta Sampaio
Guimarães por suas considerações e críticas no marco do Seminário de Pesquisas Deslocamentos,
espaços e patrimônios, organizado em agosto de 2011 na Unirio, onde apresentei um primeiro esboço
deste trabalho. Foram também muito instigantes e profícuos os debates em torno deste tema com os
colegas do Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços (Laares) do PPGSA da UFRJ.
2
Segundo a enciclopédia Eastern Definitions de religiões do Oriente, “Buda” é um título, assim como,
por exemplo, o de “presidente”. Ele é dado, sob a perspectiva propriamente budista, às encarnações de
um “arquétipo que se manifesta no mundo em diferentes períodos, através de personalidades diversas,
cujas particularidades individuais não devem ser, de modo algum, levadas em consideração” (Rice,
1986, p. 76). O estudioso de religiões orientais Edward Rice comenta que discussões a respeito da
existência histórica de Sidarta foram amplamente travadas pela historiografia moderna, apresentando
razões suficientes para não ser mais colocada em questão. Os longos debates envolvendo as datas
precisas de seu nascimento e morte, acrescenta Rice, perdem qualquer importância considerando-se
que Sidarta teria, em vida, recebido o título de “Buda”.
Naquela manhã, as duas estátuas que dão propósito a este artigo acaba-
vam de ser metralhadas, bombardeadas e dinamitadas, deixando à mostra
apenas fragmentos e estilhaços em um nicho vazio. Com efeito, desde que o
regime talibã assumiu o poder no Afeganistão, no final da década de 1990,
um grande acervo material, incluindo duas estátuas do Buda esculpidas em
um penhasco, foi alvo de investidas bélico-religiosas, primeiro verbais, logo
concretas. Segundo líderes do governo talibã, esses objetos atentavam contra
os preceitos islâmicos por serem peças de “idolatria”, devendo, assim, ser
totalmente destruídos. “Como é que nós vamos nos justificar, na hora do úl-
timo julgamento, por termos deixado essas impurezas em solo Afegão?” – foi
com essa pergunta do ministro talibã da Informação que os grandes jornais
internacionais tornaram públicas as supostas motivações do regime (cf. Le
Monde, apud Pierre Centlivres, 2002, p. 75).
3
Embora seu autor seja desconhecido, essa gravura permaneceu muitas décadas guardada no acervo
do Museu Britânico, em Londres. Acredita-se que a gravura tenha sido entalhada durante as missões
artísticas financiadas pela coroa britânica no período histórico denominado The Great Game, quando
os impérios Russo e Britânico disputavam a supremacia no que hoje é o Afeganistão (Rathje, 2004).
20 Alberto Goyena
Em janeiro de 2001, quando a província separatista de Bamiyan foi reto-
mada pela terceira vez, o líder do governo talibã, o mulá� Mohammed Omar,
assinou um decreto que, além de formalizar as ameaças verbais, gerou mo-
bilização de diversos meios de comunicação, organismos internacionais, go-
vernos nacionais e instituições artísticas e culturais. Também na imprensa
brasileira ressoaram as incriminações internacionais, e a decisão talibã foi
noticiada como um “ultrajante gesto de vandalismo”, um exemplo de “fun-
damentalismo que incentiva a intolerância religiosa”, até mesmo qualificada
de “maluquice”.4
O atentado havia muito anunciado a essas estátuas, que nos anos 1970
haviam sido decretadas “patrimônio mundial da humanidade”5 ocorreu
ao longo de mais de vinte dias, em março de 2001. O gesto iconoclasta,
no entanto, não foi conduzido na surdina. Ao que tudo indica, não bastava
dinamitar as estátuas de um dia para o outro e sem prévio aviso. Quis-se
propagar a cena, assinar a obra e registrar a intervenção. E lá estiveram,
para cumprir esse propósito, as câmeras da emissora televisiva Al Jazeera,
cujas imagens logo seriam divulgadas em grandes canais internacionais.
Pretendeu-se, como veremos, adotar uma postura de afronta. Mas contra
quem? Que argumentos poderiam legitimar uma intervenção como essa?
Se as estátuas sobreviveram a tantos diferentes regimes igualmente ico-
noclastas, por que haveriam os talibãs de temer, mais que os outros, esse
“julgamento final”?
4
Segundo a revista Época: “Na quinta-feira, ignorando protestos do mundo todo, os soldados
começaram a destruir o que o Talibã classifica de “falsos deuses”. Os alvos constituem um acervo
artístico de mais de dois mil anos, síntese de culturas do Oriente e do Ocidente. [...] Ao anunciar a
campanha de demolição, o ministro da Informação do Talibã, Qudratullah Jamal, disse que as tropas
agiam em vários locais, inclusive em Bamiyan e na capital afegã, Cabul. Até o fim da semana não havia
informações sobre o total de monumentos pulverizados pelo vandalismo estatal (Vandalismo religioso,
Época, 27/05/2010). Ver também: Dias, 2001; Taleban mantém ordem de destruir estátuas, Estadão.
com, 05.03.2001; e Ramos, 2001.
5
Informação e documentação oficial a respeito da destruição das estátuas de Buda em Bamyan podem
ser encontradas no artigo Cultural Landscape and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley publicado
no site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco (Disponível em: http://whc.unesco.org/en/list/208/).
22 Alberto Goyena
larga aceitação de que é um dever passar as expressões materiais que nos vie-
ram do passado para as gerações seguintes” (Gillman 2010, p. 16), veremos
que, mediado por instituições nacionais e internacionais do patrimônio, esse
“dever” pode colidir frontalmente contra algumas sólidas barreiras culturais.
Segundo foi possível acompanhar através de informações divulgadas nos
meios de comunicação que noticiaram essa operação, a intervenção se iniciou
com disparos oriundos de armamento antiaéreo. Como os danos causados
às estátuas por esse instrumento não teriam sido suficientes para retirá-las
de seu pedestal, na etapa seguinte os responsáveis empregaram uma nova
estratégia. Alocaram minas antitanque na base das estátuas, a fim de que
elas estivessem enfraquecidas quando chegasse o momento de metralhá-las
novamente. Mas, de modo um tanto alegórico, podemos dizer, as estátuas
se empenharam em resistir. Soldados especializados tiveram então de ser
içados ao penhasco para instalar dinamite em diversos orifícios abertos nas
pedras da construção escultórica.6 Por fim, ainda teria sido lançado contra as
estátuas um míssil de alto calibre. Só então o mulá Mohamed Omar deu-se,
por satisfeito.
Em artigo que retomaremos mais adiante, o etnólogo Pierre Centlivres
esclarece que a operação transcorreu em sintonia com os preceitos islâmicos
para rituais sacrificais. Nesse sentido, acompanhou-se a demolição das está-
tuas com um sacrifício expiatório envolvendo a degola de cem vacas através
do país, cuja carne teria sido distribuída aos mais necessitados (Centlivres,
2001). Quando o duplo sacrifício foi dado por concluído (o das estátuas e o
das vacas), o ministro talibã da Informação, Qudratullah Jamal, comentou a
intervenção ao jornal Daily Times.
6
Na versão do jornalista afegão Farhad Peikar, o exercito teria contado com a “colaboração” dos
habitantes locais: “Não foram apenas as estátuas que eles destruíram, mas todo o vilarejo, povoado
pela minoria xiita hazara. Essa gente foi torturada. Os Talibãs não se deram por satisfeitos apenas em
destruir os Budas, eles fizeram com que os moradores os ajudassem, mesmo contra a vontade. Eles
tiveram de escalar as estátuas, pendurados em cordas, abrindo buracos na rocha para colocar dinamite.
Quem não o fizesse, seria preso. [...] O povo de Bamiyan não se esquece dessas atrocidades e odeia os
Talibãs (Peikar apud Carranca, Afeganistão dez anos sem os Budas de Bamiyan, 01/03/2011).
24 Alberto Goyena
da em um relevo calcário. Desdobrando mais uma etapa, lembremos que a
estátua representava uma das encarnações de um “arquétipo”. Quão irônico
ou paradoxal não será mesmo perceber que esse homem, essa encarnação do
Buda – reproduzida em pedra, madeira, lâmina de cartaz e em papel de jornal
– proferiu, como escrito no Digha Nikaya,7 a seguinte recomendação sagrada a
seus fiéis: “Apenas nos cintilantes reflexos sobre a água quero eu ver a minha
imagem reproduzida”.8
7
O Digha Nikaya é uma das escrituras budistas e quer dizer “coleção dos longos discursos” (Rice,
Eastern Definitions).
8
A questão da reprodutibilidade da imagem do Buda é assunto longamente discutido. Segundo o
arqueólogo W. L. Rathje (2004), imagens do Buda só foram feitas quatrocentos anos depois da morte de
Sidarta Gautama. Ainda assim, diz ele, as imagens eram criadas apenas para relembrar aos seguidores
sua própria natureza budista inata.
9
Segundo Rathje (2004), algumas dessas cavernas estão ocupadas hoje por refugiados da guerra no
Afeganistão. No artigo de Centlivres (2002), diz-se que guardavam armas, serviam de depósito para
várias coisas, moradia e esconderijo.
26 Alberto Goyena
Gillman relata também que essas representações escultóricas do Buda
haviam sido concebidas e entalhadas sem rosto e sem mãos. Diferentemente
do que se pensava quando as estátuas se tornaram alvo do interesse da Or-
ganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unes-
co) – o que resultou em seu tombamento oficial –, para Gillman, as estátuas
de Bamiyan não foram desfiguradas nem “amputadas” por terceiros, poste-
riormente a seu entalhe. “Essas estátuas foram pensadas assim”, sustenta o
autor. O que, contudo, não significa que os Budas não tivessem expressão
facial e gestual. Seguindo uma periodicidade ritual, monges budistas confec-
cionavam máscaras e luvas de cobre, que forjavam e dispunham nas secções
do rosto e das mãos das estátuas (Gillman, 2010, p. 19). Atribuíam assim,
ao Buda, feições e gestos diferenciados em função de calendários e precei-
tos próprios. Às estátuas, por sua vez, imprimiam uma destacada ilusão de
movimento e transformação, o que remetia justamente à ideia de imagem
refletida no curso das águas. Contornado desse modo o problema de sua
representação, um Buda que surge já desfigurado parece mesmo pôr em xe-
que qualquer tentativa de demolição: o gesto iconoclasta já havia sido, pois,
incorporado em sua própria construção.
Seu entalhe, comenta o arqueólogo americano William Rathje, fora alta-
mente custoso para a época, estando muito acima dos padrões escultóricos da
região. Podendo ser vistas a quilômetros de distância, reluzindo os raios solares
no cobre de suas máscaras e luvas, mediam precisamente 37 e 55 metros de
altura. O maior dos Budas, que teria portado tecidos vermelhos, representaria
Vairocana (ou “luz que brilha através do universo”) e o menor, de vestes bran-
cas, representaria o próprio Sidarta. Segundo esse arqueólogo, as estátuas eram
ainda símbolos centrais para o budismo mahayana, que enfatizava a habilidade
de todos, e não apenas dos monges, de alcançar a iluminação (Rathje, 2004).
A opinião de Gillman e Rathje não é, contudo, aceita por todos os arque-
ólogos voltados para pesquisas nessa região. Para Finbarr Flood, professor
de belas artes na Universidade de Nova York e especialista em iconoclasmo
islâmico,10 é igualmente possível que as estátuas tenham sido desfiguradas
10
É importante frisar o contexto político em que Barry Flood escreveu seu artigo. Publicado em 2002, logo
após os atentados contra as torres gêmeas e no contexto de ondas de anti-islamismo, o autor enfatiza
a importância de perceber essa ação como tendo sido conduzida por certos atores em determinados
contextos históricos. Em resposta à percepção difundida em jornais e colunas de opinião americanas,
Flood busca comparar esse momento a outros momentos iconoclastas. Nesse sentido “a concepção de
uma resposta monolítica ou patologicamente muçulmana à imagem deve ser substituída por uma que
leve em consideração os diferentes modos de práticas culturais e suas variações” (Flood, 2002).
Figura 1.3. Ilustração do Vale de Bamiyan com os nichos esculpidos para as estátuas
do Buda. Ilustração: Anna Thereza Menezes
28 Alberto Goyena
quais essas pessoas interagiram com tais objetos. Nas suas técnicas de de-
molição, o demolidor se comunica com um objeto e suas formas. Analisar as
particularidades dessa interação é ler o modo segundo o qual um determi-
nado grupo concebeu aquilo que um objeto “é” ou aquilo que poderia “estar
fazendo”. Cada uma dessas empreitadas se insere em contextos cosmológi-
cos diferenciados, apresentando importantes correlações com as ferramen-
tas e regras presentes nos rituais e intervenções aplicados também sobre
os corpos das pessoas. Enterros, julgamentos, nascimentos ou casamentos
são marcados assim não só por transformações em corpos, mas também em
objetos. Nos países e épocas em que se arrancavam, com alicates oficiais, as
mãos ou dedos de infratores, encontrar uma estátua assim mutilada não é,
pois, um dado menor.
Da ocupação islâmica
30 Alberto Goyena
Ao menos do ponto de vista de suas práticas sociais, notamos que os
iconoclastas muçulmanos da linhagem de Mahmud al-Ghazni não eram nem
tão avessos à iconofilia nem tão iconofóbicos assim. Em outras palavras, com
graus variantes de receio, colecionavam imagens figurativas eles também.
Tudo dependia de uma questão de contextos, do espaço preciso em que se situ-
avam segundo as categorias classificatórias nativas. Já do ponto de vista teoló-
gico, as prescrições dos religiosos eram, realmente, mais rígidas. Ainda assim,
como escreve o antropólogo Jean-François Clément – pesquisador das socieda-
des magrebinas – os quatro califas pelos sunitas considerados os companheiros
do profeta, muito embora condenassem a criação de imagens de Deus, respei-
tavam aquilo que denominavam pela categoria “tesouro do passado”.
Em seu artigo “The Empty Niche of the Bamiyan Buddha”, Clément (2002)
destaca que a teologia muçulmana fora sempre, de forma geral, crítica a repre-
sentações humanas de divindades, por percebê-las como rivais de Deus. Em
diversas passagens dos Hadiths (palavras dos profetas), diz ele, vê-se a figura
divina desafiando os humanos criadores de formas a soprar uma alma em suas
criações. O pesquisador pondera, contudo, que são apenas algumas linhagens
mais radicais na sucessão de sultões que veem, em sua leitura dos Hadiths,
uma necessidade concreta de promover empreitadas destrutivas. Historica-
mente, sunitas e xiitas circunscreveram a questão iconoclasta aos atos de criar
e adorar. Os objetos e as imagens em si foram percebidos, ao longo dos diversos
sultanatos, como meros “tesouros antigos” ou coisas de outros povos – “certa-
mente ignorantes” – que valia mais não provocar em demasia... Afirma o autor:
A presença das estátuas no Afeganistão era vista pelos talibãs como uma
impureza. Mas não só isso, era uma impureza da qual o regime deveria se
livrar. Desse modo, passados mais de oito séculos desde a primeira ocupação
islâmica, e após uma guerra civil que resultou na tomada do poder pelo regi-
me talibã, seu líder, o mulá Mohammed Omar, assinou, em 26 de fevereiro de
2001, um decreto ordenando a eliminação de toda iconografia e arquitetura
não islâmica em solo afegão, evento noticiado em manchete do jornal francês
Le Monde no início de março daquele ano. Observemos o texto do decreto:
32 Alberto Goyena
que os objetos sejam coisas vivas. E isso não parece estar em sintonia com
os sagrados preceitos.
Menos de dez dias depois da divulgação do decreto do mulá Omar, a
Unesco enviou uma delegação de diplomatas para o Afeganistão.11 Um dos
documentos centrais no conjunto de escritos sobre o caso das estátuas de
Bamiyan é o relatório do embaixador francês Pierre Lafrance, publicado na
revista Critique Internationale (2001). Diplomado nas línguas árabe e persa, o
embaixador atuou em importantes negociações na região e serviu em vários
países muçulmanos, incluindo o Paquistão, o Irã e o próprio Afeganistão, no
período de 1973 a 1975.
Seu papel na querela sobre os budas foi de fato destacado. Em março de
2001, ele foi o emissário escolhido pela Unesco para a missão diplomática
que tentaria salvar as estátuas. Nas oito páginas do documento, Lafrance
narra os bastidores de uma complexa teia de argumentações e personagens
que resultou no fracasso da missão. De alguma maneira, o relatório é um
pedido de desculpas. Mas a quem? Quem era o “proprietário” das estátuas?
O diplomata abre o texto declarando que a decisão do regime fora recebi-
da com grande surpresa. Embora houvesse comentários de que Cabul estaria
enrijecendo suas interpretações do Corão, o regime “parecia saber que as
estátuas já não eram, há quase um milênio, mais do que vestígios arqueoló-
gicos” (Lafrance, 2001). O embaixador explica também que o regime havia,
até pouco antes de iniciar o processo de demolição, “anunciado seu interesse
pelo patrimônio histórico de seu país e dado prova disso” (Lafrance, 2001),
já que os museus de Cabul permaneceram abertos ao longo dos anos de
1999 e 2000. Motivos ligados à política das relações internacionais, afirma o
diplomata, teriam disparado a engrenagem que resultou no que chamou de
“une catastrophe!”. Em outras palavras, o embaixador acredita que as razões
centrais devam ser extraídas – e esse é justamente seu “campo” – das rela-
11
O Embaixador francês da Unesco não foi o único diplomata a sentar com líderes talibãs para tratar das
estátuas. Também autoridades chinesas, japonesas, indianas, tailandesas e cingalesas se empenharam
na sua preservação. Considerando que os budas eram “seus”, propuseram ainda algumas soluções
que mencionaremos rapidamente. Uma delegação de parlamentares japoneses, por exemplo, ofereceu
ajuda humanitária e compensações financeiras. Representantes da Tailândia e do Sri Lanka propuseram
que os budas fossem cobertos com cimento e areia. O material e a mão de obra seriam, até, enviados
por esses países. Os budas ficariam assim cobertos por um “véu de cimento” na esperança de que,
passada a soberania do regime talibã no Afeganistão, se pudesse retirar o emplastro. Da China, teriam
vindo ainda ofertas de compra e translado das estátuas, com a retirada de “pedra por pedra”, que seriam
posteriormente reencaixadas em lugar a ser definido. Falharam também essas missões. Talvez o mulá
Omar não quisesse mesmo ser associado a um “negociador” de imagens.
12
Em dezembro daquele ano de 2000, ele relembra, o Conselho de Segurança da ONU negou plenos
direitos ao regime talibã e não lhe permitiu que ocupasse a cadeira do Afeganistão na Assembleia
Geral da ONU. Embora o regime controlasse mais de 90% do território nacional afegão, quem estava
naquele lugar, na cadeira do Conselho de Segurança, ainda era o presidente deposto pelos talibãs,
Burhanuddin Rabbani. Com o intuito de reverter a opinião internacional a seu respeito, semanas antes
da efetiva demolição, o regime talibã havia mandado um emissário a Paris para tratar da questão.
Relata Lafrance: “O ministro da Saúde Afegão veio a Paris pedir para que a condição do talibã fosse
normalizada. Eu mesmo o recebi. Ele afirmou que o regime tinha interesses pacíficos e sublinhou a
importância da ajuda às populações nos campos de refugiados. Falou também dos interesses do regime
pela proteção do patrimônio afegão e insistiu em que a extradição de Osama Bin Laden fosse tratada
como questão sui generis, devendo ser discutida independentemente das outras. [...] Como imaginar
que eles tomariam uma iniciativa que iria declaradamente tão de encontro à opinião pública, já que,
aparentemente, esforçavam-se bastante para saná-la? (Lafrance, 2001)
13
O código de leis do islamismo.
34 Alberto Goyena
trole e os talibãs estariam supondo que uma afronta dessas dimensões traria
a força necessária para renovar-lhes a legitimidade política. Dito de outro
modo, um tanto jocosamente, é como se os ulemás estivessem acusando o
líder talibã de querer ser mais muçulmano que os muçulmanos.
Como podemos supor, o embaixador foi mandado para essa missão porque
a demolição em questão era, da perspectiva da Unesco, uma agressão a “seu”
patrimônio da humanidade e não, ou não apenas, uma afronta à legitimidade
político-religiosa dos ulemás paquistaneses. Ainda assim, Lafrance preferiu,
talvez para que não houvesse mal-entendidos entre ele e o regime talibã, ar-
quitetar uma estratégia política de negociação que recorresse aos argumentos
teológicos. A Unesco e o Embaixador apostaram então no poder de influência
desse corpo de sábios muçulmanos sobre o mulá Omar. Logo após o encontro
de Islamabad com os líderes religiosos paquistaneses, Lafrance declarou estar
convencido da estratégia diplomática que empregaria na escala seguinte da-
quela viagem, Candaar. Era preciso chegar ao Afeganistão, escreveu, com bons
argumentos teológicos para impedir o “massacre” das estátuas.
Quando chegou a Candaar, cidade afegã situada a mais de quatrocentos
quilômetros de Bamiyan, para o esperado encontro com o mulá Mohammed
Omar, Lafrance fora informado de que o mulá não estava mais recebendo
delegações de não muçulmanos e que só excepcionalmente se reuniria com
muçulmanos de nacionalidade outra que não a afegã. Assim sendo, a nego-
ciação teve de ser travada com o ministro de Relações Exteriores do regime,
que transmitiria o ponto de vista de Mohamed Omar e colheria, do diploma-
ta, as proposições da Unesco. Como planejado, os representantes versaram
argumentos teológicos, ou melhor, debateram a respeito da procedência, ou
não, da demolição das estátuas segundo os sagrados preceitos islâmicos. Eis
aqui, segundo relatado pelo próprio embaixador, uma síntese dos argumen-
tos apresentados por ele na recepção de Candaar:
36 Alberto Goyena
representavam. Pensava-se, adianta Centlivres, que eram as figuras de um
homem e de uma mulher, provindas de antigas lendas muçulmanas.
14
Informação e documentação oficial a respeito da destruição das estátuas de Buda em Bamyan podem
ser encontradas no artigo Cultural Landscape and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley
publicado no site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco (Disponível em http://whc.unesco.org/
en/list/208/).
38 Alberto Goyena
Omar, essa proposta se desmanchou por obra de mais uma ironia desse caso.
A proposta para um museu no exílio colidia, justamente, contra a Convenção
de 1970 da Unesco que versa sobre a importância de manter o objeto patri-
monial em seu “contexto original”. Como explica Derek Gillman, inúmeras
disputas – como as que envolveram organizações patrimoniais da Grécia e
o Museu Britânico no caso dos mármores do Parthenon – teriam levado a
Unesco a ditar regras e mecanismos de controle às exportações de bens desse
gênero. Sem documentos para poder entrar na Suíça, essas peças – pra não
falar nos refugiados – eram reféns, no país que as condenava, das leis inter-
nacionais sobre a propriedade de bens culturais.
O episódio que, aos olhos da Unesco, foi considerado uma catástrofe pa-
trimonial teve múltiplas e labirínticas causas envolvendo, fundamentalmen-
te, distintas concepções culturais a respeito das propriedades que um objeto
é capaz de portar. Espero ter levantado até aqui razões suficientes para per-
cebermos mais nuanças na entranhada rede de disputas implicadas no caso
dos budas de Bamiyan e para considerarmos sua demolição de outros modos.
Muito embora tenha pesado sobre o regime talibã uma forte acusação de
“vandalismo”, “fanatismo” e “ódio às diferenças”, o acompanhamento mais
detalhado dessa trama de acontecimentos, que remonta a vários séculos na
história do vale sagrado, nos mostra quão diversas e mesmo contraditórias
são as concepções que se podem ter da ideia de “patrimônio”. Segundo suas
diferentes perspectivas, tipos e graus de envolvimento, observamos que cada
40 Alberto Goyena
um dos atores imbricados nessa longa querela se referiu a um conjunto pró-
prio na série de camadas de significado que pesavam, e ainda pesam, sobre
essas duas estátuas. A intenção de demoli-las, assim como a de preservá-las,
mostrou-se, pois, uma disputa muito mais antiga do que poderia parecer.
Intenções essas que estão, como se viu, inseridas no seio da construção mes-
ma de representações do Buda. Nesse sentido, ao abrir parte do leque de
mitos, contos e relatos históricos que pesam sobre a biografia das estátuas,
pudemos percebê-las ligadas a uma lógica própria, imersas em um processo
constante de transformações intercedidas por ações e retaliações, negocia-
ções complexas e resultados provisórios. Contudo, resta-nos ainda saber o
que ao menos alguns budistas teriam a dizer sobre tudo isso.
Dez anos depois do ocorrido, em janeiro de 2011, quando o caso dos bu-
das já era para muitos um capítulo encerrado, tive a oportunidade de visitar
o templo budista de Borobodur, localizado em uma província separatista da
ilha de Java, na Indonésia. País hoje de grande maioria islâmica, a Indonésia
foi ocupada, entre os séculos VII e XIV – especificamente em Java – por rei-
nos hindus e budistas, em cuja região obras e templos ainda se fazem muito
presentes. Borobodur encontra-se aos pés de um vulcão, o Merapi, em uma
zona altamente sísmica. As pedras do templo foram extraídas das camadas
superficiais da rocha que se forma por arrefecimento do magma expelido
pelo Merapi. Diversas vezes destruído por terremotos e em seguida recons-
truído, Borobodur está hoje tombado como patrimônio da humanidade.
Nas paredes externas dessa construção piramidal, cuja planta é uma man-
dala, o visitante encontra formas esculpidas em baixo relevo que vão, com a
progressiva subida em espiral, tornando-se cada vez menos ornamentadas.
As complexas e elaboradas talhas em rocha vulcânica dos andares inferiores,
que retratam diversos episódios de viagens, encontros e ensinamentos do
Buda, vão dando lugar às formas cada vez mais abstratas e às linhas retas
e simples dos níveis superiores. Ao chegar no último andar, o visitante en-
contra-se em uma superfície circular pontuada por sete esculturas do Buda
em posição de lótus. No centro desse espaço repousa uma cúpula vazada
em forma de sino. Esperava eu encontrar nesse cimo um altar, com certa
imagem do Buda meditando, talvez deitado, talvez em pé... Lá não havia,
contudo, absolutamente nada. Nem roubado, nem tombado, negociado,
negado ou demolido, o espaço vazio é precisamente o ensinamento mais
sagrado de um templo dedicado a transmitir uma mensagem: o desapego
aos bens materiais.
42 Alberto Goyena
Engana-se quem pensa que, com a demolição dos budas, as falésias de
Bamiyan deixaram de fazer parte das listas do patrimônio da humanidade.
Demovidas as estátuas, pôde-se ver o que havia por trás delas. Não sem
espanto, funcionários da Unesco que viajaram para o vale à procura dos frag-
mentos e estilhaços de pedra calcária na esperança de recompor o gigantesco
quebra-cabeça, se depararam com cavernas até então desconhecidas, repletas
de pinturas, entalhes e afrescos dos monges budistas que as ocuparam an-
teriormente ao início da construção das estátuas. Uma missão arqueológica
está hoje trabalhando nessas cavidades onde foram encontradas também ins-
crições de mercadores romanos quando dos primórdios do estabelecimento
da rota da seda.15
Se “construir” ou “preservar” não são tarefas simples, tampouco o é
demolir. Vimos aqui que essa atividade pode se revelar altamente regrada,
hierarquizada e burocratizada. Proceder à retirada de uma estátua de seu pe-
destal é, se não conhecer profundamente um objeto escultórico, abrir novos
campos para sua investigação. Muito embora a intenção aqui nunca tenha
sido a de defender ou encorajar indistintamente a prática da demolição – des-
considerando a relevância de práticas e políticas patrimoniais –, quis apenas,
por um lado, sugerir, mediante a apresentação de um caso tão labiríntico
quanto emaranhado e contraditório, que os processos de demolição podem
estar fortemente impregnados com uma surpreendente capacidade de desve-
lar novas histórias e novos objetos que ficaram presos ou esquecidos dentro,
por trás ou entre os elementos de uma construção. Talvez haja também o que
aprender sobre as coisas, quebrando-as.
Por fim, se a demolição de patrimônios culturais costuma ser vista sob
enfoques melancólicos, como se de esquecimentos e perdas irreparáveis se
tratasse sempre, creio que se colocarmos o imperativo de um julgamento
moral em suspensão será possível, ao olhar de perto para os detalhes de uma
intervenção da sorte, além de encontrar valiosas indicações sobre as particu-
laridades materiais dos objetos em questão, ampliar os debates e definições
a respeito dos chamados “patrimônios culturais”. Não é para todos e em
toda parte que a transmissão de uma identidade cultural se faz por meio da
preservação de bens materiais. A demolição, assim como a construção e a
restauração, tem mesmo seu vocabulário e gramática próprios e parece-me
15
Ver: G. Toubekis et al. Preservation and Management of the Unesco World Heritage Site of
Bamiyan: Laser Scan Documentation and Virtual Reconstruction of the Destroyed Buddha Figures
and the Archaeological Remains, 2001. Disponível em: http://cipa.icomos.org/fileadmin/template/doc/
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46 Alberto Goyena
2.
1
Este artigo foi elaborado a partir de trabalho de campo desenvolvido entre os anos de 2007 e 2009,
baseado em observação participante, entrevistas, consulta a arquivos públicos, produção fotográfica e
filmográfica de eventos e espaços, leitura de bibliografia especializada e análise de produtos midiáticos.
Os resultados dessa pesquisa foram publicados pelo PPGSA/IFCS da UFRJ, na tese de Doutorado A
utopia da Pequena África: os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca (Guimarães, 2011). Em
2011, essa pesquisa foi ampliada durante o projeto A patrimonialização da cidade: espaço, memória e
urbanismo na Zona Portuária do Rio de Janeiro (Pós-Doutorado Junior/CNPq, PPGSA/IFCS da UFRJ).
Agradeço aos comentários e sugestões feitos ao artigo por José Reginaldo Santos Gonçalves, João
Paulo Macedo e Castro e Nina Pinheiro Bitar.
2
O Porto Maravilha foi viabilizado juridicamente através da Lei Municipal 101/2009. As informações
fornecidas no artigo sobre esse plano foram retiradas de seu site oficial: www.portomaravilha.com.br.
3
Estão em fase de construção o Museu de Arte do Rio de Janeiro, na Praça Mauá, e o Museu do
Amanhã, no Píer Mauá, ambos em parceria com a Fundação Roberto Marinho.
4
Considero narrativas míticas de passado as que presentificam eventos tidos como “históricos” e que
buscam reconstituir uma noção singular de totalidade social, adotando a sugestão de Lévi-Strauss de
que, “quanto ao que diz respeito às representações míticas, é menos interessante questionar-se sua
origem do que a atitude das pessoas diante de seus próprios mitos. Deles, existem sempre versões
diferentes. Ora, não escolhemos entre essas versões, não fazemos sua crítica, não decretamos que uma
delas seja verdadeira ou mais verdadeira do que a outra: aceitamo-las simultaneamente, e não ficamos
perturbados com suas divergências. Investigações feitas em diversas partes do mundo confirmam a
generalidade dessa atitude mental” (Lévi-Strauss; Eribon, 2005, p. 199).
5
Sobre a atuação de Haussmann em Paris, ver Bradbury e McFarlane (1989). Sobre suas influências
na Reforma Pereira Passos, ver Benchimol (1990).
6
Utilizado pela primeira vez em 1963 por Ruth Glass em seu estudo sobre os “bairros operários ou
populares” desvalorizados no centro de Londres, o termo gentrification foi desde então conceituado como
o processo de investimento, reabilitação e apropriação de moradias desses bairros pelas “camadas
médias assalariadas” (Bidou-Zachariasen, 2006). Há, na literatura brasileira que utiliza o conceito, duas
traduções mais correntes: gentrificação e enobrecimento.
7
O plano urbanístico Porto do Rio foi assinado em 2001 por quatro representantes do poder municipal.
Entre eles, três concederam entrevistas para a minha pesquisa no segundo semestre de 2008: Alfredo
Sirkis, que assinou o plano como Secretário Municipal de Urbanismo e presidente do Instituto Pereira
Passos; Augusto Ivan Pinheiro, como Diretor de Urbanismo; e Nina Rabha como Gerente de Urbanismo.
Desde 1993, no entanto, eles já haviam assumido funções administrativas estratégicas na Prefeitura
carioca: Alfredo Sirkis era então responsável pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente; Augusto Ivan
Pinheiro, pela Subprefeitura do Centro; e Nina Rabha, pela I Região Administrativa, que abarcava todos
os bairros portuários.
8
Do ponto de vista legal, os “bens tombados” pelas Áreas de Proteção Ambiental não podem ser
demolidos nem sofrer alterações que os descaracterizem, seja na parte externa ou interna do imóvel;
já os “bens preservados” não podem ser demolidos nem sofrer alterações nas características originais
de fachada, telhado ou volumetria, sendo permitida a realização de obras no seu interior desde que
sigam as condições preestabelecidas pelo órgão patrimonial regulador; e os “bens tutelados” podem
ser modificados ou demolidos, mas estão sujeitos a restrições do órgão de tutela, como seguir as
características e o gabarito dos prédios vizinhos que estejam tombados ou preservados.
9
No Morro da Conceição, por exemplo, o Largo da Prainha foi reformado pela Prefeitura em 1993.
Localizado em sua base, na rua Sacadura Cabral, antes da reforma o largo era utilizado como
estacionamento de carros. Depois, nele foi criado um calçamento elevado, que o dividiu fisicamente da
via de tráfego. Nessa elevação foram instalados postes de iluminação, árvores, bancos de madeira e
um grande jarrão em ferro como adorno central. Houve ainda a preocupação com sua ambiência, tendo
sido realizada a pintura de todas as fachadas do casario frontal (Rabha, 1994).
10
Entre 1996 e 1998, a Secretaria Municipal de Habitação adquiriu alguns imóveis para a realização
de contratos de ocupação, dentro do projeto Reabilitação de Cortiços. Os alvos foram os imóveis que
poderiam ser usados como habitação coletiva, com cômodos residenciais que variavam entre 11 e 20 m²
e banheiros e cozinhas de uso coletivo. A continuação do projeto recebeu o apoio da Caixa Econômica
Federal, que criou, em 2000, o Programa de Reabilitação de Sítios Históricos, buscando incentivar a
reinserção do uso habitacional nos centros históricos das cidades brasileiras e estabelecendo como
público-alvo, para o recebimento de financiamento, famílias que possuíssem renda familiar superior
a três salários mínimos. Em 1997, foi idealizado, mas não implementado, um projeto da Prefeitura em
parceria com o empresariado da construção civil e com linhas de crédito da Caixa Econômica Federal
denominado Enseada da Gamboa. Projetado para ocupar um terreno da Rede Ferroviária Federal
de 160 mil m², sua proposta era criar espaços para 2.500 unidades habitacionais, distribuídas em
edificações de uso misto. Esse terreno, no entanto, foi posteriormente destinado para a construção da
Vila Olímpica da Gamboa e da Cidade do Samba (Barandier, 2006).
11
Esse projeto foi desenvolvido entre 1996 e 2001 pela Secretaria Municipal de Habitação em parceria
com a Caixa Econômica Federal. Nele, foram criadas 150 unidades habitacionais, com 54 m² em média
e dois quartos. Em sua maior parte, essas unidades foram ocupadas por funcionários públicos com
renda familiar em torno de dez salários mínimos (Barandier, 2006).
12
Segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro, o programa Favela-Bairro foi iniciado em 1994, com a
coordenação da Secretaria Municipal de Habitação e o financiamento do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID). Seu objetivo era “integrar a favela à cidade”, através da implantação de
infraestrutura urbana, serviços, equipamentos públicos e políticas sociais nas localidades selecionadas.
Informações disponíveis em: http://www0.rio.rj.gov.br/habitacao/favela_bairro.htm.
13
No entanto, os projetos da Prefeitura, como a Cidade Oceânica – Centro Internacional da Água e do
Mar, idealizada em 1994, encontraram a insuficiência da reserva patrimonial necessária para a criação
de um fundo imobiliário. Buscando suprir essa deficiência, a Prefeitura negociou diretamente com os
ministérios da Agricultura e da Fazenda para que os imóveis federais da região fossem transferidos
para o domínio municipal. E foi oferecida à iniciativa privada a possibilidade de exploração dos novos
equipamentos e espaços urbanos que fossem por ela financiados. Como analisa Rose Compans (1998),
em 1995 a Prefeitura criou o Plano Estratégico do Rio de Janeiro para viabilizar a realização de parcerias
entre o poder público e a iniciativa privada e procurou se aliar à Associação Comercial do Rio de Janeiro,
à Federação das Indústrias do Rio de Janeiro e à autarquia federal Companhia Docas. Mas as medidas
de cooperação iniciadas com a Docas, que possuía o direito de estabelecer contratos de arrendamento
para a exploração de 500 mil m² de instalações portuárias, foram interrompidas pelas divergências
entre suas concepções urbanísticas, fazendo que cada instituição elaborasse seus próprios projetos e
tentasse agregar em torno deles os investidores privados.
Na verdade você tem uma zona antiga, com imóveis antigos, porque
são imóveis abandonados, as pessoas vão em busca de outras coisas,
em geral são ocupados por moradias coletivas, que é a maneira que
você tem de ganhar mais dinheiro com os imóveis antigos. A popula-
ção entra em um processo de decadência muito grande e a partir daí,
enfim, você tem o submundo se aproveitando também ou até emer-
gindo dessa situação. Então viram zonas muito perigosas. A Escola
[de Chicago] estudou várias situações no mundo e no geral as inter-
venções de renovação urbana quase todas se apoiavam nessa teoria.
No Rio não dá para fazer um anel concêntrico [ondas de ocupação ter-
ritorial socialmente categorizáveis, partindo dos bairros centrais em
direção à periferia] direitinho, metade do círculo é rompido pela Baía
de Guanabara, mas era possível você aplicar, de todo um pedaço que
ia da Glória até a área do porto, uma metade de circunferência rode-
ando o Centro. (Nina Rabha, entrevista concedida à autora em 2008)
14
Como sugerido por Annette Weiner (1992), em oposição ao bem alienável, um bem inalienável
é entendido como parte da herança de determinado grupo ou indivíduo, que não deve ser trocado,
vendido ou extinto, já que sua perda desencadearia uma mudança de status e posição social de seu
proprietário perante sua rede de relações.
15
Como observado por Heitor Frúgoli (2007), uma das críticas posteriores feitas à tal espacialização
do social proposta por Robert Park foi que ela estaria embasada na ideia de “ecologia humana”, cuja
polêmica inspiração darwinista oriunda das ciências naturais colocava como analiticamente central a
competição entre indivíduos pela sobrevivência e pelo espaço. Entretanto, essa interpretação ecológica
buscava responder a uma literatura eugenista e antiurbana da época e esteve presente apenas na
gênese da teoria de estrutura urbana da Escola de Chicago, tendo os resultados das suas próprias
pesquisas empíricas interpelado as concepções teórico-conceituais ecológicas.
16
No topo do morro havia a 6. Divisão Cartográfica do Exército ocupando as instalações do antigo
Palácio Episcopal e da Fortaleza da Conceição, e o Departamento de astronomia da UFRJ, instalado no
Observatório do Valongo. Mais próximo à base, havia uma igreja e duas escolas dirigidas pela Venerável
Ordem Terceira de São Francisco.
17
Classificado como “cooperação técnica”, no ProRio o governo francês disponibilizou, através
dos Ministérios do Equipamento, da Cultura e das Relações Exteriores, “consultores”, “técnicos e
especialistas” em patrimônio e reabilitação.
18
O livro foi escrito por Márcia Frota Sigaud e Claudia Maria Madureira Pinho e baseado nos estudos
da então diretora do IPP, Ana Luiza Petrik Magalhães, e da gerente de Urbanismo, Nina Rabha. Sua
elaborada produção editorial incluiu encadernação de capa dura, impressão colorida, papel couché,
diversas ilustrações, fotografias, mapas, desenhos e transparências. Tal produção indicava que seus
idealizadores visavam alcançar um público de alto poder aquisitivo e mais amplo do que o formado pelos
especialistas do Urbanismo e Arquitetura.
19
Além das observações realizados no trabalho de campo, encontrei em levantamento bibliográfico
diversas pesquisas que abordavam a ocupação dos bairros portuários pela população negra (Karacsh,
2000; Arantes, 2005; Pereira, 2007) e as narrativas de seus habitantes sobre trabalho, moradia e
recreação (Thiesen; Barros; Santana, 2005).
Figuras 2.3 e 2.4. Ladeira João Homem (à esquerda) e Largo da Santa (à direita),
parte alta do morro. Fotografias da autora, 2007
20
Vale ressaltar que a valorização de tais memórias fez parte de um contexto nacional mais amplo,
em que as políticas patrimoniais do Iphan desempenharam uma função específica. Como apontam
Gonçalves (1996) e Fonseca (2005), no período de fundação do Iphan, em 1937, o Estado tinha como
um de seus objetivos fortalecer a ideia de nação como espaço social e culturalmente coeso. Seus
investimentos voltaram-se então para a homogeneização do sistema educativo e a criação de símbolos
totalizantes, com as práticas de patrimonialização ganhando importante função na produção de um
sentimento de unidade patriótica e na recusa do que era entendido como particularismos regionais.
Essa concepção fundadora de patrimônio nacional foi encampada pelo primeiro diretor do Iphan, o
arquiteto Rodrigo Melo Franco de Andrade, e se tornou dominante no instituto até o final da década
de 1960. Nesse período, as políticas de preservação focaram o chamado “patrimônio de pedra e cal”,
e os tombamentos de bens edificados buscaram valorizar os considerados aspectos “singulares” e
“tradicionais” da nação: igrejas católicas, edificações militares e prédios de órgãos públicos.
21
Entre as instituições religiosas, a que possuía o maior número de propriedades era a católica
Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência e, entre as instituições governamentais, a
com maior propriedade no morro era a União Federal, por causa dos extensos territórios do Observatório
do Valongo da UFRJ, da Fortaleza da Conceição e do antigo Palácio Episcopal.
Figuras 2.5 e 2.6. Jardim Suspenso do Valongo, sete anos após o fim do ProRio.
Fotografias da autora, 2007
22
Existe uma ampla literatura sobre o uso corrente do termo “autenticidade” que problematiza a ideia
de verdade, de genuinidade, intimidade por ele evocado (Benjamim, 1994; MacCannel, 1976; Handler,
1985; Gonçalves, 1988; Clifford, 1994). Seja se referindo a objetos de arte, experiências turísticas ou
a bens culturais que compõem os chamados patrimônios nacionais, muitos estudiosos questionam a
utilização dessa noção como algo imanente ao próprio objeto de estudo.
23
Essa descrição é dedicada a Antonio Agenor Barbosa, morador da rua Jogo da Bola, que me abrigou
em sua casa durante os seis meses iniciais de trabalho de campo no morro e que foi um interlocutor
fundamental para as primeiras compreensões sobre seus espaços e habitantes.
24
Para uma discussão sobre a função mediadora dos objetos, coleções e patrimônios, ver Pomian
(1982) e Stewart (1984).
Figuras 2.7 e 2.8. Pedra do Sal (à esquerda, 2007) e sede do Afoxé Filhos de
Gandhi (à direita, 2008). Fotografias da autora
25
Surgiram então três ocupações de “moradores sem teto” trazendo em seus nomes referências ao
movimento abolicionista brasileiro: a Ocupação Chiquinha Gonzaga, criada em julho de 2004 em um
prédio na rua Barão de São Felix, pertencente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra); a Ocupação Zumbi dos Palmares, surgida em abril de 2005 em um edifício do Instituto Nacional
de Seguridade Social (INSS), na avenida Venezuela; e a Ocupação Quilombo das Guerreiras, realizada
em outubro de 2006 em um prédio da Companhia Docas, na avenida Francisco Bicalho.
26
A aplicabilidade do artigo foi definida apenas em 2003, através do Decreto 4.887.
27
Para uma sistematização sobre a elaboração e aplicação desse artigo, ver Arruti (2006).
28
O mito de origem do Afoxé Filhos de Gandhi narrado por seus atuais e antigos integrantes remetia
à fundação, em 1949, do Ijexá Filhos de Gandhy por estivadores de Salvador. O grupo carioca havia
surgido dois anos depois, em 1951, por iniciativa dos baianos Milton Sapateiro e Rubens Sapateiro,
que trabalhavam juntos no Palácio do Alumínio, estrutura metálica armada na Central do Brasil. Eles
e outros ofereciam nesse espaço trabalhos manuais como de pintor, pedreiro, marceneiro, carpinteiro,
ferramenteiro, chapeleiro e ourives. Assim, no pequeno grupo de homens que formou o primeiro desfile
carnavalesco do afoxé carioca, poucos eram estivadores e nem todos eram baianos: o forte elo que os
unia era serem filhos de santo.
29
Disponível em: http://portomaravilha.com.br/web/esq/projEspHeranca.aspx. Acesso em: set. 2012.
Referências bibliográficas
PATRIMÔNIO E DÁDIVA:
AS BAIANAS DE ACARAJÉ NO RIO DE JANEIRO
As baianas e o acarajé
1
Agradeço a leitura e sugestões feitas pelo professor doutor José Reginaldo Santos Gonçalves e
Roberta Sampaio Guimarães. Este artigo é fruto da dissertação defendida no PPGSA da UFRJ e sua
posterior publicação no livro Baianas de acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2011. Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq.
Figuras 3.2 e 3.3. Sônia Baiana montando o acarajé. Fotografia: Nina Pinheiro Bitar
2
Agradeço ao antropólogo Peter Fry pela sugestão de leitura do artigo em questão.
3
A expressão “patrimônio imaterial acabou prevalecendo, em detrimento de “patrimônio oral” e “cultura
popular e tradicional”.
4
Há uma rivalidade entre as baianas de acarajé evangélicas e aquelas que são adeptas das religiões
afro-brasileiras.
5
O pedido de abertura do processo do registro deverá ser coletivo, sendo as partes legítimas
para propor: instituições governamentais de cultura federais, estaduais e municipais; sociedades e
associações civis (O registro do patrimônio imaterial, p. 17).
6
“O Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) é um órgão suplementar da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia voltado para o estudo, a pesquisa e ação
comunitária na área dos estudos afro-brasileiros e das ações afirmativas em favor das populações
afro-descendentes, bem como na área dos estudos das línguas e civilizações africanas e asiáticas.”
Disponível em: http://www.ceao.ufba.br/2007/apresentacao.php. Acesso em: jan. 2010.
7
Dados do processo: Pedido de Registro aprovado na 45. Reunião do Conselho Consultivo do
Patrimônio Cultural, em 01/12/2004. Inscrição no Livro dos Saberes em 21/12/2004.
8
Pode-se dizer que o registro do “ofício das baianas de acarajé” faz parte de um processo mais amplo
de políticas de reconhecimento de “bens culturais” afrodescendentes. Para uma discussão sobre os
tombamentos de terreiros em Salvador, ver Gomes (2009). Consultar também Roger Sansi (2007) sobre
as transformações do valor museográfico dos objetos das religiões afro-brasileiras.
9
Terei o ano de 2009 como referência temporal.
[...] Há 18 anos, ela saiu da Bahia e veio para o Rio de Janeiro com
o objetivo de apresentar para os cariocas seu talento na gastronomia
com os segredos de preparo do acarajé deixados pela avó. Mãe de dois
filhos, Baiana, como gosta de ser chamada, começou a vender acarajé
em Copacabana. Seu trabalho na Zona Sul fez sucesso, porém o maior
lucro ia para a dona do negócio. Com isso, Sônia Baiana apostou em
seu potencial e começou a vender acarajé na Praça da Telemar, Mes-
quita. [...] Sônia contou com o apoio da Incubadora Afro-Brasileira,
que, segundo ela, investe em qualificação e inclusão social para dar
certo. “A Incubadora me dá base para transformar ideia em realidade.
Estou feliz por mostrar na Baixada minha cultura e vender o autên-
tico acarajé”. [...] A autêntica baiana faz questão de dizer que não é
apenas uma vendedora de acarajé. “Eu represento um segmento da
10
Foi criada com incentivo da Petrobrás para o desenvolvimento de trabalhos sobre a temática “afro”.
11
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego: “A economia solidária vem se apresentando, nos últimos
anos, como inovadora alternativa de geração de trabalho e renda e uma resposta a favor da inclusão
social. Compreende uma diversidade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de
cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre
outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas,
comércio justo e consumo solidário”. Disponível em: http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/ecosolidaria_
oque.asp. Acesso em: 16 nov. 2009.
12
Disponível em: http://soniabaiana.wordpress.com. Acesso em: 6 maio 2009.
13
Lima (2005) analisa o “culto dos santos gêmeos”, através do modelo ioruba/nagô do orixá Ibêji, dos
“santos gêmeos”, chamados também “dois-dois”. O autor aponta para a complexidade de classificações
dos santos no candomblé, que podem ser concebidos de diversas formas, como, por exemplo, apenas
um adulto – o Ibêji, como um orixá padroeiro dos dois gêmeos –; podem ser duas crianças ou adultos
de mesmo sexo ou diferentes, além de poder ser parte de um grupo de sete crianças: Cosme, Damião,
Dou, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi.
14
A presença das “tias baianas” no cotidiano do Rio de Janeiro é assinalada por Velloso (1990), que
sublinha que suas barracas e tabuleiros constituíam focos de sociabilidade, uma espécie de “bureau de
informações”: “Era ao redor dos tabuleiros que se sabia das coisas: lá que se construía toda uma rede
de relações que informava, amparava, divertia e ampliava os contatos (1990, p. 12).
15
Disponível em: http://www.misterofacaraje.com/principal.html. Acesso em: 25 nov. 2009.
16
Uma feira de artesanato no Rio de Janeiro.
17
Zelador dos orixás, quando eles “descem” nas filhas; acolita (Fonseca Junior, 1995). Todos os termos
em iorubá foram consultados por esse dicionário, indicado por meus interlocutores filhos de santo. Vale
ressaltar que utilizarei a nomenclatura iorubá para a denominação dos termos ligados ao candomblé.
Não entrarei na discussão já traçada entre as diferenciações entre as chamadas “nações” de candomblé.
A escolha, por mim, da terminologia iorubá foi decorrência do maior contato com interlocutores que
frequentavam a barraca de Ciça e que utilizavam essa língua.
18
Obaluaiê é concebido como o orixá que traz doenças e que também as cura de uma forma geral.
Para ser uma baiana de verdade mesmo, tem que ter muita fé em
Deus. Primeiro muita fé em Deus e depois você tem que ter muito axé e
acreditar muito no que você faz, no que você quer e ter muito amor
para dar, porque o povo é carente. Você tem o problema que for em
casa, mas na hora que você toma um banho, veste a roupa, bota a conta no
pescoço e amarra o torço, você esquece o problema de casa, vai para a
rua, acabou. A família você chega em casa e apanha de volta de novo.
A família que você tem é essa aqui. O povo da rua é todo seu. A sua
família aqui são eles. [...]
Aqui você tem que dar amor, você tem que ouvir. Chega um e conta
as choradeiras no seu ombro, você ouve e você não pode falar. A baia-
na é igual padre – pior do que o padre, porque o padre, o que você fala com
o padre, ele usa de sermão e ninguém sabe de quem é a história, não é? E a
baiana não pode fazer isso, a baiana tem que ouvir e levar para si. A baiana
não pode falar. O que você falar com uma baiana, vai morrer com ela. Porque
se ela falar, não é uma baiana. A baiana tem que manter segredo, é pior do que
baú: morre, mas não fala. E ela sofre muito, porque ela participa da vida
de todo mundo, não pode falar nada para ninguém. Tem que morrer
dentro dela. Às vezes ela tem resposta para dar, às vezes ela não pode
falar nada, porque se ela falar, vai lhe aborrecer, então ela não pode se
meter, ela engole, fica para si. Bota você no colo, até nina para você se
calar. Acalenta, mas não pode falar nada. Eu me sinto bem com o meu
papel. (Baiana Ciça. Grifos da autora)
19
Ela e seus clientes explicam que Iansã é a deusa dos ventos, da tempestade, da fertilidade – guerreira
e dinâmica.
20
Os exus são concebidos, geralmente, como entidades com a capacidade de transitar entre o mundo
dos homens e dos orixás, entre os vivos e os mortos, o sagrado e o profano, entre a direita e a esquerda,
entre o bem e o mal, é o comunicador dessas esferas (Negrão, 1996).
21
Ibêji e Cosme e Damião são concebidos, geralmente, como equivalentes.
O “ponto”
22
“Força, poder, bênção” (Fonseca Junior, 1995). Segundo Cascudo: “energia sagrada; força vital
do orixá: força sagrada que emana da natureza; força que está em elementos da natureza que são
sacrificados, como animais, plantas, sementes, etc. Também significa origem ou raiz familiar; ascendência
mística; conhecimento iniciático; legitimidade; carisma; poder sacerdotal; poder”. Reginaldo Prandi, Os
candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec/USP, 1991. [...] No Brasil, há uma tendência a usar a
expressão axé como forma de cumprimento, votos de bons augúrios ou uma bênção” (Cascudo, 2001).
Eu, Jay do Acarajé respeitador dessa maravilhosa cultura tombada pelo ex-
celentíssimo Sr. ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, protegendo o direito do
profissional a exercer a profissão em qualquer esquina do território brasileiro.
Hoje no Rio de Janeiro, apesar dos pesares, me orgulho cada dia mais
por ser baiano, por ser verdadeiro, por desempenhar essa culinária
Ela aponta que o registro do “ofício das baianas de acarajé” foi uma forma
de destacar e valorizar esse trabalho, pautado por uma “tradição”; ao conhe-
cimento do que consiste “ser” baiana de acarajé, passado pelas famílias por
gerações. Ao fazer parte dessa “cultura tombada”, está protegido, para ele,
o direito do profissional de exercer o trabalho em qualquer esquina. E com-
pleta: “não seria ótimo ter uma baiana em cada esquina dessa cidade? Mas a
Prefeitura não concorda”, “o sistema não reconhece”.
Segundo Jay, o acarajé é uma “cultura tombada” e ele faz parte desse pro-
cesso, mas o “sistema” não reconhece o direito de trabalhar em todo o territó-
rio nacional, tratando-o indevidamente como “ambulante”. Para ele, “ambu-
lantes” são aqueles que estão “vendendo produtos ilegais”, que têm de correr
do “rapa” (guardas municipais). Ao não concordar com o enquadramento do
“sistema”, faz uso do registro como a “prova” de que não é um ambulante.
Podemos também pensar na categoria “ambulante” como um trabalhador
sem ponto fixo, sem um referencial para a sua clientela. Ao mudar constan-
temente de ponto por causa da fiscalização dos guardas municipais, Jay teve
sua venda afetada, já que muitos dos seus clientes ficaram sem referência
de onde estaria trabalhando. Como já mostramos, “fazer o ponto” não é um
processo simples, envolve uma série de obrigações e relações de dádiva e
contradádiva com a localidade e os clientes. O ponto é fixo e é um local tam-
bém sacralizado por essas baianas, tendendo, portanto, a ser estável. Temos
aí um dos motivos da dificuldade de Jay em estabelecer o seu trabalho.
Mesmo o sistema sabendo que tem direito sobre esse produto, que é um produto
regional, que é um produto tombado, um produto resguardado pelo patrimônio
brasileiro. Então o sistema sabe que tem artigos inscritos dando direito, dando
respeito, mas o sistema simplesmente passa por cima e compara com um ambu-
Com a posse do certificado do registro, ele se baseia nele para obter in-
formações sobre a “origem” do acarajé. Jay afirma: “eles [Iphan] colocam
bastante claro quem comercializava esses produtos, que eram as escravas”.
O registro aparece, para Jay, como um instrumento de reconhecimento e de-
marcação do que é o acarajé, circunscrevendo seu significado.
Ele explica que, por ser o acarajé atualmente um produto voltado para
uma comercialização, tornou-se desvinculado dessa esfera da “tradição”.
23
Esse trecho e os seguintes são de entrevista concedida em novembro de 2009. (Grifos da autora)
24
Entretanto, posteriormente, Sônia obteve autorização da Prefeitura para vender acarajé no seu ponto
da rua do Lavradio, onde trabalha na Feira de Antiguidades, em outros dias da semana além do dia da
feira. Foi fundamental a apresentação do registro do “ofício” para ela conseguir esse ponto.
25
Até mesmo em relação a minha pesquisa sobre as baianas de acarajé me aconselharam a fazer
trabalhos para Iansã, já que ela permitiu que a pesquisa fosse realizada com sucesso.
Referências bibliográficas
BATESON, Gregory. Uma teoria sobre brincadeira e fantasia. In: Cadernos Ipub,
n. 5, p. 35-49, Rio de Janeiro, UFRJ, Instituto de Psiquiatria, 2. ed., 2000.
BECKER, Howard S. Mundos artísticos e tipos sociais. In: VELHO, Gilberto
(org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar,
1977, p. 9-26.
BITAR, Nina Pinheiro. Baianas de acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janei-
ro. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte/
São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1983.
Roger Sansi
“As pedras crescem.” Essa afirmação é comum entre os pais e mães de san-
to do candomblé baiano, como uma confirmação empírica da eficácia material
de sua prática ritual. Eles não se referem a quaisquer pedras, mas às pedras
ocultas nos terreiros, as otã ou itã. Esses são os fundamentos de sua religião.
Poucas pessoas podem olhar para essas pedras. Nem mesmo os iniciados.
Aliás, a primeira vez que pude realmente ver uma delas, não estava em uma
casa de candomblé, mas em um museu, o Museu da Cidade de Salvador,
Bahia. Já tinha ido a casas de candomblé anteriormente, mas lá tive de me
ajoelhar em frente aos fundamentos e só pude sentir a presença delas indire-
tamente, dentro de um contexto de expectativa mística, em meio a vasilhas,
embrulhos, oferendas, cheiros e canções que as rodeiam. Já no museu pude
olhar para ela diretamente. Era uma pedra grande, acinzentada e redonda.
A etiqueta ao lado indicava ser uma pedra sagrada da religião afro-brasileira
candomblé. Poder-se-ia dizer que era um objeto inteiramente comum, corri-
queiro se não estivesse exposto em um museu.
Alguns meses depois, voltei ao museu e a pedra não estava mais lá. Dessa
vez, conversei com a equipe do museu e me apresentei como um pesquisa-
dor europeu interessado na coleção afro-basileira do museu. O assistente do
diretor do museu gentilmente me contou que aquelas peças não pertenciam
ao Museu da Cidade e sim ao Museu de Medicina Legal (o museu da polícia).
Devido a uma denúncia feita pelo “Movimento Negro”, o Museu de Medicina
Legal foi obrigado a retirar a coleção afro-brasileira, que estava colocada ao
1
Tradução de Isadora Contins.
2
A presença de conflito ritualístico no candomblé foi documentada na década de 1970 no excelente
Guerra de Orixá (1972) de Yvonne Maggie. No entanto, poucos autores seguiram essa linha de pesquisa,
preferindo focalizar nos procedimentos (supostamente) normais de reprodução de casas de candomblé.
Mas na verdade pode-se argumentar que conflito ritualístico está no centro da força dinâmica do candomblé,
o que o torna não só uma “sobrevivência” folclórica, mas uma religião crescente e em expansão.
3
Esse modelo de assento é muito geral e não reflete a diversidade das casas (templos) que encontramos
nas práticas do candomblé. Mas ele corresponde ao modelo de prática ritualística que foi imposto nas
últimas décadas – nagô ketu e sua estrutura de iniciação. Já que o propósito desse artigo não é discutir
a variação e inovação em assentos do candomblé, não insistirei nessa questão. Para mais informações
sobre a variedade de assentos, veja Sansi (2007).
4
O primeiro autor a usar o termo especificamente foi Nina Rodrigues, em 1906 (Rodrigues, 1988
[1906]). Ruth Landes (1947) ainda usava os termos fetiche e fetichismo na década de 1940, mas ele foi
abandonado depois por causa das conotações negativas que os termos adquiriram.
5
Por exemplo, em um assento de Iansã: além disso, os otã lá são búzios, ides (pulseiras), colheres de
madeira, os chifres e rabo de um boi, obi e orobó (frutas secas africanas) em números específicos que
são segredo e não devo revelar.
6
De acordo com Santos, muitas das pedras que encontramos em casas de Xangô na África são pré-
históricas, em forma de machado, que, de acordo com a crença popular, caem junto com o relâmpago e
permanecem enterradas na terra (Santos, 1967, p. 88).
7
A limpeza dessas pedras é feita com materiais diferentes, dependendo do orixá: mel, sangue, óleo de
palma, mas especialmente água e amassi, que é água com folhas sagradas (ver Binnon-Crossard, 1970).
8
Na África, os potes dos assentos também podem ser cabaças. A cabaça, o pote, é um recipiente do orixá
que representa a cabeça, ori. Thompson nos fala de certos restos arqueológicos, demonstrando que as
famosas cabeças esculpidas de Ife podem ter sido altares, e mais tarde foram substituídas por cabaças e
recipientes: a crença de que a cabeça e outros avatares de axé e iwà podem convocar o espírito a um altar,
para ser concretizado por devotos de possessão, está implícita nos santuários de hoje.
9
Apesar de o ritual raspado normalmente ser associado à tradição ritualística dominante, Ketu, nem
todas as nações do candomblé o celebram, preferindo, em vez disso, batizar o iniciado. De qualquer
forma, existe uma ideia clara de que a cabeça precisa ser alimentada ritualmente e purificada.
10
A perceptiva discussão sobre idolatria através da analogia do interno e externo no livro de Gell, Art and
Agency (1998, p. 134-53), pode ser perfeitamente aplicada nesse caso.
11
Com relação aos santuários da santeria, os tronos, David Brown afirma “que o trono incorpora uma
biografia emergente espiritual e pessoal em que os próprios objetos, que são preparados e entregues
pelos mais velhos do ritual, colegas, amigos ou afilhados, têm suas próprias histórias e biografias”
(Kopytoff, 1986). Resumindo, o trono se torna tanto o foco de um processo ritualístico cíclico – um ciclo de
vida sagrado – quanto o foco estético e emocional para a produção e troca de objetos (Brown, 1996, p. 93).
12
As filhas de santo não moram necessariamente na casa de candomblé, mas precisam passar alguns
períodos lá durante a iniciação. A literatura sobre o candomblé costuma idealizar a imagem do terreiro,
a casa de candomblé onde os iniciados moram em “comunidade” (Bastide, 1978 [1960]). A realidade é
mais complexa quando consideramos os padrões de habitação, em geral das classes mais baixas na
Bahia, onde há alta mobilidade, e a criação de “famílias” de mulheres que ficam em uma casa ou grupo
de casas não é restrita a casas de candomblé. Por outro lado, essas “familias” são altamente voláteis,
pois sempre há pessoas novas entrando ou saindo do grupo.
13
A reprodução ritualística das mães de santo também pode seguir termos convencionais ou
estabelecidos através de um ritual chamado “deka”, em que a filha de santo recebe os instrumentos
do ritual para iniciar outras pessoas. Na verdade, o sucesso de uma tradição ritualística dentro do
candomblé, a nação Nagô-Ketu, indiscutivelmente se distancia da apropriação desse método de
reprodução ritualística (Sansi, 2007).
14
Isso aconteceu com um de meus informantes que, infelizmente morreu. O santo dessa pessoa,
Omulu, se recusou a sair de seu assento, e os outros iniciados tiveram de zelar por ele e alimentá-
lo. Quando não querem muito gastar seu tempo com isso e se esforçar, o fantasma de Omulu – ou a
própria pessoa, isso não é claro – aparece em sonhos para os iniciados, reclamando de sua preguiça.
E, quando as ofertas acabam, alguns tem visões de Omulu dançando.
15
Uma das cabeças encontradas na coleção pertencia ao famoso profeta Antonio Conselheiro, líder da
revolta de Canudos. Mais tarde, as cabeças do bandido Lampião e de seu bando também foram incluídas.
16
“Constituição e manutenção de um Museu Afro-Brasileiro, composto de coleções de natureza
etnológica e artística sobre as culturas africanas e sobre os principais setores de influência africana
na vida e na cultura do Brasil”. Termos de Convênio Ministério das Relações Exteriores/Ministério da
Educação/Ufba/Prefeitura Municipal de Salvador, apud Santos (2000, p. 128).
17
Ponto (i) da primeira cláusula do Convenio: “O incentivo à criação artística de temática afro-brasileira,
mediante subvenções ou concursos de natureza literária, musical, teatro e dança.”
18
IBHM conta instalação de Museu na ex-Faculdade de Medicina. Tribuna da Bahia, 08/08/1974.
19
“Considero que haverá verdadeira profanação sobretudo se amanhã, como será possível, o Museu do
Negro servirá de abrigo às práticas do candomblé, hoje já sofisticado e adulterado por aproveitadores e
improvisados etnólogos.”Tribuna da Bahia, 08/08/1974.
20
As casas de Opo Afonjá, Cobre, Casa Branca, Bate Folha, Bogum e Alaketu.
21
“Ameaça para moral pública”, Processo 27002049-5, 09/10/1996. Nos próximos parágrafos, não
poderei citá-lo diretamente, para respeitar os requerimentos dos autores do processo.
22
Arsenais de Feitiçaria. A Tarde, 20/5/1920.
23
Apetrechos bélicos. A Tarde, 03/10/1922.
24
Veja A Tarde, 20/5/1920; e A Tarde 19/4/1934. “O delegado Frederico Senna já convidou o secretário
perpétuo daquela instituição para escolher o que lhe serve dentre os troços de Pai Crescencio, entre os
quais muitas reminiscências do africanismo” (A Tarde, 12/11/1926).
Por que a otã foi parar no porão? Só podemos especular. Por um lado, as
pessoas do Movimento Negro poderiam dessacralizar o objeto e deixá-lo em
exposição no museu como símbolo de repressão ao candomblé. Mas parece
que eles acharam mais importante seu valor religioso. Por outro lado, eles
poderiam ter mandado a pedra de volta para a casa de candomblé e reincor-
porá-la à prática ritualística. Se o valor da pedra foi resultado do fato de ela
ser sagrada, como foi dito no tribunal, não deve ser difícil fazer um ritual de
purificação ou sacralização. Mas não foi isso o que aconteceu. Por quê? Tal-
vez porque não seja tão simples. A sacralização de uma pedra só pode acon-
tecer quando o elo com o iniciado dela for claramente rompido. Por exemplo,
em caso de morte do iniciado, o oráculo dirá se o santo quer ou não deixar o
assento. Mas o que fazer quando não se sabe de quem é a pedra?
O valor da otã não está relacionado somente ao resultado de um ritual ge-
nérico de consagração, mas à sua história particular. E aquela pedra tem uma
história longa e complicada; os traços de sua origem foram perdidos. Quais
agências podem ainda estar presentes na pedra? Não sabemos.
As complexidades do valor da otã não foram mencionadas no tribunal en-
tre as pessoas do candomblé. Pode ser porque acreditar na agência da pedra
soaria como algo muito irracional, muito “fetichista”. Talvez seja algo que
eles mesmos não se deem conta, já que acreditam que ainda precisam evitar
acusações de fetichismo e feitiçaria. E provavelmente estão certos.
Essa é uma das contradições da situação contemporânea da cultura afro-
-brasileira na Bahia. Ao apresentar o candomblé como cultura afro-brasileira,
a aliança entre intelectuais e líderes do candomblé se propôs a valorizar os
objetos do candomblé como símbolos culturais, representações visuais a ser
exibidas em museus e outros locais como obras de arte. Isso pode ser vis-
to como uma forma de “sincretismo” entre os valores do candomblé e os
valores da “alta cultura” institucional (Sansi, 2007). Mas esse sincretismo
tem seus limites. Existem objetos que não podem ser exibidos em museus
porque não podem ser vistos, dessa forma contradizendo o valor central de
25
Lody é um ogã na casa de Ilê Axé Opô Afonjá.
26
Na Filosofia da História, Hegel observou que faltava aos africanos o princípio que acompanha todas
as nossas ideias: a categoria de universalidade. Essa ausência é refletida no culto ao fetiche, mera
criação que expressa a escolha arbitrária de seu criador (apud Pietz, 1985, p. 7).
Essa é precisamente a questão da otã. Por que afinal a otã não pode ser
vista? Porque o‘assento da otã marca um evento singular. Uma otã não é sim-
plesmente feita por um ritual de consagração, mas, antes disso, ela é resultado
de um evento único, em que o sacerdote do candomblé, pessoa que possui um
dom, reconhece o santo na pedra. Esse ato de reconhecimento é uma visão ori-
ginal e fundadora. Ao esconder a pedra, consagrá-la, a mãe de santo tenta fixar
esse evento para que ninguém mais possa, por sua vez, se apropriar da otã. A
mãe de santo tenta controlar a historicidade potencial da pedra ao controlar
sua territorialização num relacionamento complexo, em que não é muito claro
quem serve quem, quem é o senhor e quem é o escravo; mas, no processo, tan-
to o santo quanto o sacerdote do candomblé crescem como pessoas. No entan-
to, na medida em que essa historicidade fica assim fora de controle, como em
nosso caso, quando a pedra já passou por tanta coisa, o que as mães de santo
podem fazer? Elas não podem facilmente se apropriar dela de novo.
Como no caso do fetiche, a historicidade e a materialidade da otã não
são irredutíveis aos atos de consagração ou atribuição de valor de qualquer
espécie. O valor da otã não é só atribuído arbitrariamente, e não pode ser
simplesmente subtraído pelos humanos. A densa e complicada história da
otã do Museu Estácio de Lima não pode ser rapidamente destruída e sua
presença material não pode ser facilmente apagada. Talvez seja precisamente
nessa historicidade e materialidade, nessa presença obstinada, em que pode-
mos encontrar às vezes a agência das coisas, que sua resistência seja reduzida
à condição de símbolos ou valores, ou substitutos de nossa pessoalidade.
27
Não há dúvida de que ideias surrealistas sobre o objeto e destino são ambíguas, mas ainda assim
extremamente evocativas. Se colocarmos de lado conotações estritamente psicanalíticas, podemos
apreciar como as noções surrealistas de objet trouvé e hasard objectif capturam a natureza reveladora
dos eventos cotidianos, em que o resultado nunca é só a soma de seus termos. Esses eventos marcam
um antes e um depois numa história pessoal (ou geral), já que trazem à tona algo que não era claro
antes – talvez porque era reprimido ou escondido.
Não teria sido possível escrever esse artigo sem a ajuda do professor Ordep
Serra, da Ufba, e de Mãe Madalena de Oxóssi. Esse artigo é dedicado a eles.
Referências bibliográficas
Outras fontes
Daniel Bitter1
Introdução
1
Sou grato pelas considerações feitas a esse trabalho durante um seminário de discussões conduzido
pelos organizadores deste volume em abril de 2012. Esta pesquisa contou com o apoio financeiro da Faperj.
* * *
2
A rivalidade entre diferentes grupos é uma constante, o que pode envolver a manipulação de atos
mágico-religiosos, aos quais os foliões referem-se como bruxaria. Certa vez, fora do ciclo ritual, notei
no mestre Hevalcy um estranho comportamento, tropeçando, esbarrando e derrubando coisas pelo
caminho, com frequência. Perguntei a ele o que se passava e ele respondeu: “Tem alguma coisa
atuando sobre mim, e é Folia de Reis. Tem alguém querendo me prejudicar, derrubar. Desde que eu
completei sete anos, de lá pra cá tem sido assim, barreira atrás de barreira. Mesmo os mestres mais
velhos me invejam pelo que eu consegui fazer em tão pouco tempo. O que me faz continuar é ver como
as pessoas alcançam graças.”
Figura 5.1. Preparativos rituais diante do altar da bandeira na sede da Folia Sagrada
Família. Morro da Candelária, Mangueira. Fotografia: Daniel Bitter
3
Podemos sugerir que o altar se configura como uma espécie de coleção de objetos (Pomian, 1997).
Os objetos que compõem essa coleção, seus significados e trajetórias seriam do maior interesse
etnográfico, não sendo possível, entretanto, explorá-los nos limites desse texto.
4
As jornadas são fases “liminares”, vistas em relação às ações cotidianas. Foliões consideram que
inúmeros perigos ameaçam a integridade do grupo e comprometem o êxito de sua “missão”.
5
Enquanto as velas acesas para a bandeira localizam-se num plano elevado, as dos palhaços
permanecem sempre no plano inferior. Essa topografia parece ser relevante ao indicar aspectos
relacionados à ordem cosmológica de foliões.
6
Apresenta-se de forma bastante solene, em ritmo quaternário, relativamente lenta, cadenciada e
marcada pela pulsação característica das bandas militares. Os instrumentos utilizados são sanfona,
violão, viola, cavaquinho e instrumentos de percussão, como caixa, bumbo, tarol e triângulo.
Noto que ao dizer “os três Reis do Oriente hoje vêm lhe visitar”, a folia
anuncia a chegada dos Magos, como que presentificados através da bandeira,
da música e de todo o aparato ritual que a envolve.7 Os versos rimados e
as músicas que os acompanham solenizam as trocas. Um silvo de apito do
mestre marca o final da cantoria, e assim todos podem descansar e com-
partilhar uma breve refeição no intervalo que antecede a apresentação dos
palhaços. Os residentes, nesse momento, tornam-se os principais protago-
nistas do ritual, envolvendo-se com o preparo e a oferta de alimentos, tais
como bolo, sanduíches e bebidas. A oferta de comida e bebida é um gesto
muito valorizado entre foliões, mas há casos em que ela não ocorre, quando,
por exemplo, a folia chega a uma casa de surpresa. Nessa fase, a bandeira é
então posicionada numa cadeira, mesa ou mesmo apoiada numa cama. Cos-
tuma ser alvo de muitos contatos corporais entre residentes de uma casa. O
mestre frequentemente retira fitas de seda coloridas da bandeira e as oferece
a alguns residentes, ocorrendo igualmente o inverso, quando os residentes
oferecem fitas à bandeira, sob a forma de agradecimento pelas graças alcan-
çadas. Também costuma-se levar a bandeira aos cômodos mais recônditos e
íntimos da casa.8 Tal gesto parece destinar-se a sacralizá-los, purificá-los
7
O curso da cantoria ritual é, muitas vezes, determinado pela presença de certos objetos no interior da
casa. A presença de uma bíblia, presépio ou imagens de divindades, por exemplo, pode levar o mestre
a reverenciá-los por meio de versos diretamente a eles relacionados.
8
Pereira (2011) chamou a atenção para esse ponto, entre foliões de Urucuia, Minas Gerais, observando
que naquele contexto, muitas vezes, apenas a bandeira tem o privilégio de ter acesso aos cômodos
mais íntimos de uma casa. O autor salienta que um dos sentidos da circulação da bandeira pode estar
em distinguir “o mundo íntimo da casa e seus lugares mais públicos” (p. 247).
9
O crescimento da população da Candelária e das demais favelas cariocas tem tornado o espaço
cada vez mais exíguo, levando os quintais e outras áreas de mediação com a rua, que outrora assumia
grande importância, a se reduzir drasticamente.
10
A bandeira, assim, demarca um campo de forças em torno de si. Noto ainda que ao longo dos
deslocamentos espaciais da bandeira, nenhum folião deve ultrapassá-la.
11
Considerando que boa parte das ações das folias de reis são dominadas pela presença da música
ou de preces, é notável, como nesse evento, em particular, que o ritual seja conduzido silenciosamente,
salientando ainda mais o poder e a eficácia da bandeira.
12
As fitas coloridas são classificadas de acordo com um sistema cromático que as associa a
determinados santos do panteão católico ou iorubá. Vale ressaltar que a relação de devoção ou de
identificação com determinados santos envolve subjetividades e particularidades. Renata de Castro
Menezes (2004), num interessante e cuidadoso trabalho, investiga as nuanças dessa relação, que, por
falta de espaço, não posso aqui aprofundar. Ressalto, contudo, que a bandeira pode mediar a relação de
um devoto com um santo ou um orixá específico, não se restringindo necessariamente aos Reis Magos.
Num certo sentido, as coisas fabricadas pelos homens, que mantêm vín-
culos divinos, tendem a ter sua humanidade apagada, esquecida. De qual-
quer modo, o passado imaginário das origens é sempre presentificado atra-
vés dessas formas materiais que se ligam ao “fundamento”. Como finalmen-
te sugere Godelier, e nos faz recordar, os objetos sagrados
13
Categoria de pensamento central no contexto das Folias de Reis, fundamento diz respeito a um
conjunto de práticas e saberes considerados primordiais e oriundos de um espaço-tempo imaginário que
se torna copresente através de procedimentos rituais. Designa a razão última da circulação da bandeira,
da festa, das dádivas e até mesmo do palhaço. É por meio desse conceito que se opera o controle de
todas as atividades do grupo envolvido, especialmente em sua dimensão moral (Pereira, 2004; Bitter,
2010). Pode-se dizer, por fim, que a bandeira é a materialização do fundamento.
14
Aqui, talvez seja conveniente sugerir que a representação negativa encarnada pela figura malévola
do diabo não foi, de modo algum, excluída do imaginário cristão. Ao contrário, ela está fortemente
presente e exerce uma função de reforçar, por contraste, o Bem, como uma graça suprema (Nogueira,
1986, p. 79). O autor nota que os esforços da Igreja em manter as consciências sob controle quanto
à distinção entre o Bem o e Mal acabaram por revestir o último de uma importância e de um poder
grandioso, associados a certo prazer estético.
15
Há inúmeras narrativas etnográficas que mencionam o problema da publicização da “nudez” das
imagens sagradas. João Vasconcelos relata inúmeros casos relativos a festas e romarias portuguesas,
nos quais a “nudez” de uma imagem de roca pode ser considerada um fato chocante. O autor revela
também que frequentemente a preparação de certas imagens para uma procissão é uma atividade que
deve ser exclusivamente realizada por certas mulheres em âmbito privado (1998).
16
As Folias de Reis se constituem de modo relativamente autônomo em relação à Igreja Católica, mas
ocasionalmente certos pontos de contato podem ser verificados, às vezes envolvendo conflitos.
17
No contexto de uma coleção museológica, uma bandeira ou outros objetos tenderiam possivelmente a
ser alvo de obsessivo processo de preservação material. Esse contraste parece aqui muito revelador dos
muitos sentidos que os objetos podem guardar, de acordo com enquadramento em que estão inscritos.
18
Como sugere ainda o autor, “As associações simbólicas que as pessoas compartilham, sua
‘moralidade’, ‘cultura’, ‘gramática’, ‘costumes’ ou ‘tradições’, são tão dependentes de contínua
reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes que elas percebem em si mesmas e no
mundo que as cerca” (Wagner, 2010, p. 94).
19
Eles estão mortos para o mundo social, mas vivos para o mundo associal. (Tradução do autor)
20
Guerreiro relatou-me que no dia anterior havia ido a uma igreja para realizar preces e acendido velas
para o seu anjo da guarda, em sua casa.
21
Há também outras ocasiões nas quais o palhaço deve retirar a máscara. Por exemplo, quando declama
versos de conteúdo moral ou religioso. Nessa condição o palhaço pode declamar versos diante da bandeira,
como se estivesse diante de um presépio. Na maior parte dos casos, contudo, o palhaço se apresenta
mascarado, exigindo certos cuidados para evitar demasiada proximidade com a bandeira e com os demais
foliões. Os palhaços costumam também comer separadamente durantes as refeições cerimoniais.
22
Sobre os usos e significados das máscaras e dos palhaços, ver também Wagner Chaves (2008).
23
Essa ideia tem uma notável ressonância nas reflexões de Bateson (1972) sobre a atividade
metacomunicativa em processos de interação. O autor observou que as mensagens linguísticas são
contextualizadas através de um enquadramento psicológico, de modo a complementar o processo
denotativo. A distinção entre o que está sendo comunicado através das ações envolvidas numa luta ou
num jogo (play) se dão através desses sinais metacomunicativos. Bateson observa, entretanto, que os
enquadramentos (frames) são flexíveis, permitindo, por exemplo, a passagem do jogo à luta.
24
Nossa capacidade de aceitar essa ambiguidade é também fundamental para o nosso reconhecimento
e para o sentido da mudança. [...] Nossa tomada de consciência da mudança é, portanto, essencial para
resolver a ambiguidade que é básica ao paradoxo. (Tradução do autor)
25
Van de Beuque (2010) percebeu esse aspecto entre os cazumbas, personagens mascarados do
bumba meu boi maranhense. Nesse trabalho, a autora examina os usos, a produção e a circulação da
“careta de cazumba”, uma máscara usada por esse personagem.
26
Os materiais de origem animal têm sido rapidamente substituídos pelos industriais em função das leis
de proteção. Os dados etnográficos não me permitiram extrair conclusões sobre a significação desses
materiais. Em diversas ocasiões obtive informações de que a escolha e o emprego desses materiais se
dava pelo critério da disponibilidade.
Eu era paralitico e com 8 anos foi a primeira vez que a Folia de Reis
chegou na minha casa, no Espírito Santo. Eu com medo [...] corri pra
de baixo da tarimba [...] e fiquei lá escondido. [...] quando deu o in-
tervalo que eles foram me procurar, cadê? [...] Aí depois me acharam,
me trouxeram e me colocaram numa cadeira. O mestre [da folia],
botou a bandeira em cima de mim. Aquilo me arrepiou e eu fiquei
tremendo. Ele rezou, no final, uma partida que dizia que Jesus chegou
a um templo e que encontrou um paralitico e disse pra ele: – Levanta
e anda em nome de Jesus.
27
Normalmente há mais de um palhaço numa folia, e ocasionalmente é necessária a função de mestre
dos palhaços para organizar suas ações.
Augusto1 comentava em voz alta, para que todos os que estavam perto
pudessem ouvir: “festa assim não dá, não. Ficar regulando comida não pode,
não. Festa não tem que regular, não!” O reclamante parecia ter sua razão. Ca-
pitão de folia havia quase vinte anos, ele sabia que nessas festas as refeições
desempenham, ao lado de todo um conjunto de espaços e objetos culinários
(talheres, pratos, mesas, cozinhas, barracões, etc.), um papel fundamental.
Não há festa “de santo” sem “comida”, assim como não há “boa festa de
santo” sem comida em “fartura” distribuída a todos os seus participantes.
Nas folias, oferecer e receber alimentos são maneiras de se posicionar num
extenso mundo relacional que vincula os homens entre si e entre eles e seus
santos de devoção. Nessas situações, o nome, a reputação e a devoção de
cada um dos participantes dos festejos sempre estarão em jogo.
Naquele abril de 2007, Augusto prestava serviços religiosos – junto com
seu grupo de cantadores e tocadores – a uma folia em homenagem a São
José, patrocinada pelos imperadores João e Ana, de Urucuia, Minas Gerais.
Suas queixas se voltavam contra o excessivo zelo dos donos da festa na hora
de distribuir os alimentos durante o encerramento dos festejos. A “comida”
oferecida era “pouca” e de difícil acesso, ainda que a festa fosse “pequena”,
dada a quantidade de pessoas que a ela compareciam. Minutos antes, como
eu mesmo presenciara, o dono da casa se justificava dizendo que as suas con-
dições econômicas não eram das melhores e que para a festa “vingar”, ele e
1
Todos os nomes apresentados nesta introdução são fictícios.
* * *
2
Gostaria de agradecer a todos os promotores e participantes dos festejos urucuianos que me
receberam com paciência e generosidade ao longo dos meus trabalhos de campo. Também quero
agradecer aos professores José Reginaldo Santos Gonçalves, Maria Laura Viveiros de Castro, Marco
Antonio Gonçalves, Marcia Contins e Renata de Castro Menezes pelos comentários estimulantes
durante a defesa da minha tese de doutoramento.
3
Apesar de centrar minhas atenções nos almoços e jantares, devo dizer que há diversas outras formas
de comensalidade numa folia. Além dessas refeições também encontramos, por exemplo, o “café” (a
bebida acompanhada de biscoitos e farofas), oferecido aos seus participantes durante várias etapas
das festividades.
As festas de folia
O banquete do encerramento
4
O servente é o personagem cerimonial responsável pela mesa. Além de chamar os convidados
para o jantar, ele também cuida para que os pratos e talheres estejam sempre à sua disposição. Ele
também é responsável para que as panelas e as tigelas estejam sempre cheias. O papel pode ser
desempenhado tanto por homens como por mulheres.
5
Obviamente, poderíamos observar que o tratamento dispensado aos foliões tinha relações diretas
com o trabalho que eles realizaram em nome dos imperadores: “Pro folião a gente tem que ter muito
agrado. Foi eles que cumpriu a promessa pra gente.” Não se deve pensar, contudo, que a separação
tenha conotações apenas pragmáticas. A distinção estava relacionada ao valor sagrado que separava
os foliões dos demais convidados (Bitter, 2008).
6
O cantorio é uma das principais atividades desempenhadas pelos foliões ao longo de suas viagens
cerimoniais. Ele não parece resumir-se ao simples proferimento de versos rimados e entoados sobre a base
ritmada, melódica e harmônica de uma música. Nesses contextos, o cantorio corresponde a um conceito
bastante mais estendido do que a simples ideia de poesia cantada. Ainda que os versos entoados tenham
alguma proeminência, eles precisam colocar em operação o movimento coordenado dos corpos em relação a
um verdadeiro sistema de objetos (Pereira, 2011). Não há música separada das falas nem cantos separados
de artefatos e do movimento corporal de seus participantes. Embora possa ser considerado uma espécie de
rito oral, o cantorio também mantém laços estreitos de contiguidade com os rituais manuais (Mauss, 1999).
Na folia que eu faço nunca falta nada. Às vezes a gente olha pra panela
e pensa que não vai dar. Fica preocupado: “A gente é fraquinho. E se
faltar comida pra esse povo todo, comé que fica?” Tem dia que cê num
dorme de preocupação. Mas chega no dia, dá e sobra. Todo mundo
fica satisfeito. É aquela alegria. Isso é coisa dos Magos. É um milagre
do santo. (João Canela. Caderno de campo. Urucuia, 07/01/2008)
Eu dô esmola pra São Sebastião, pra Santo Reis e não abuso eles de
jeito nenhum. Porque a gente vê muita gente abusá e vê o castigo che-
gando. Eu já vi. Se deu tá dado e não fala mais naquilo. Se eu marcá
“aquele frango ali é bão”, se eu dei pra Santo Reis ou pra São Sebas-
tião é aquele ali. Não vô tirá ele, não. É bão ou é bonito, mas é aquele
que eu dei. Se eu tirá ele e pô outro mais pequeno, e deixo ele, aquele
leva e aquele ali dentro três, quatro dia, tá morto. Morre. Já aconte-
ceu isso pra mim. Eu já comprei frango de Santo e eu nunca mais
eu compro. Eu vô comprá, eu sei que ele morre. Não era meu, era
do santo. Já aconteceu isso comigo aqui, uai. Comprei o franguinho,
paguei, tratei, e quando ele pesô dois quilo e meio morreu na porta
da cozinha, como daqui ali. Eu revirava, não achava [o frango morto].
E quando ele tava bichado, perdido, daí eu achei ele. Falei: “Eu nunca
mais eu compro”. O Santo castiga a gente. (Pedro, entrevista concedi-
da ao autor em Silvianópolis, Minas Gerais, 10/12/2002)
7
O dinheiro recolhido como esmola também é parcialmente destituído do seu valor de troca. Ele só
pode ser usado para cobrir os gastos festivos, sendo interdito seu uso para outros fins que não sejam
os de financiar as festas.
Então, essa folia minha, se não fosse por esse patrocínio, do povo dá
e essa fé, é num tinha mais folia nunca. Ninguém via nunca, que nóis
não aguentava fazer a festa. Aí, procê vê, o mistério que eu falo é isso
aí. Hoje, a festa dá o quê? Tinha mais de 40 pessoa na festa. Até 60. Aí
a noite todinha continuava essa festa, de 40 pessoa. Quando eu come-
cei, já tinha 80, 100, pessoa, e sempre tirava 2, 3 boi. E o imperador
rebocando. Hoje, eu tô tirando dez gado, oito gado, 500, 600 reais, e
vem 1000 pessoas e todo mundo come que sobra carne. Vai evoluin-
do toda a vida, né? Só hoje, nóis tem umas parte de 1000 pessoa na
festa nossa. Acho que tinha uns 40 carro de gasolina. A festa foi ali
na casa de Bastião. Eu contei uns 40 carro. Tinha ônibus. Nóis temo
Não falta aos discursos dos imperadores até certa conotação religiosa, na
medida em que o sucesso do empreendimento é sempre mediado pelo mis-
tério que pauta a relação entre homens e santos. As festividades precisam ser
descritas como o resultado de uma devoção vivida com alegria e boa vontade.
A folia emergiria como uma forma de louvação das divindades pautadas por
risos, fartura de alimentos e uma disposição de espírito baseada na entrega,
na conciliação e na harmonia entre os homens; tudo isso entremeado por
momentos de contrição e reza. O discurso dos seus produtores reafirma a
alegria da reciprocidade, através da qual o gesto de auxílio mútuo deve se
pautar, sempre, pelo prazer, em si mesmo, de ajudar, de acordo com os pre-
ceitos religiosos mais fundamentais para quem vive e crê nos Santos Reis
Magos, Jesus Cristo e na Virgem Maria. Não seria outro o sentido mais pro-
fundo da graça (Pitt-Rivers, 1992).
A comida e a mistura
8
Veja-se, por exemplo, a “sopa do divino” oferecida durante as festas do Divino Espírito Santo
produzidas por imigrantes açorianos no Brasil e nos Estados Unidos (Contins; Gonçalves, 2008).
9
DaMatta (1988) anota esse ponto na sua interpretação da expressão bem brasileira, também
observada em Urucuia, do “fazer o arroz com o feijão”, que significaria “fazer o básico”, o convencional.
10
A vela acesa, por sua vez, indica o canal de comunicação entre o alto e o baixo, apontando também
para os agentes rituais o foco de suas atividades (a presença da bandeira do santo acima da mesa
reforça esta interpretação) (Pereira, 2004; 2011).
A universalidade e a diferença
Não é todos os imperador que faz isso, não. Tem uns aí que faz a janta,
mas só serve na mesa dos folião. É maneira deles economizar na saída,
né? Não gastar os recursos da festa, né? Mas isso não tá certo, não. Meu
sistema aqui é diferente. Os folião come na mesa, mas quem quiser pode
servi também. Depois que eles levanta tá aberto pra todo mundo. Pode
servi à vontade, porque, graças a Deus e os Senhor Santo Reis, nunca
faltou nada pra ninguém. A gente tá fazendo uma coisa de devoção, né?
A gente recebeu um milagre, nóis tamo cumprindo um voto. Não pode
ficar guardando. É pouquinho que a gente dá, mas sempre sobra, graças
a Deus. (João Bertoldo, entrevista, Urucuia, Famaliá11)
11
As folias urucuianas foram objeto de registro fonográfico e visual através da atuação da ONG
paulistana Cachuêra!. O trabalho de pesquisa ocorreu entre os meses de janeiro e fevereiro de 1996,
tendo como resultado, entre outras coisas, a produção de um valioso conjunto de entrevistas. O material
me foi muito útil, sendo gentilmente cedido pela ONG para a constituição da minha pesquisa etnográfica.
12
É preciso apresentar um caso etnográfico. Estava em São Francisco, junto com outro pesquisador
(Wagner Chaves), a serviço do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). Acompanhávamos
a realização de uma Folia de São José. Durante o jantar foi oferecido após o giro de um único dia, não
havia mesas e sequer pratos para os convidados. Todos se alimentavam num mesmo tacho de comida.
A suprema intimidade, contudo, também era explicada em termos de excessiva simplicidade. Em ambos
os aspectos, os moradores supunham que eu e meu colega pesquisador não compartilhávamos daquele
momento. Fomos os únicos convidados a quem foram oferecidos pratos para o alimento festivo.
Folia sem mesa A mesa dos foliões A mesa dos foliões e Duas mesas
o barracão
Referências bibliográficas
O machado cantor
1
Gostaria de agradecer a Martinho Penõ, Martins Zezinho Ikrehohtàt, Jorge Henrique Melo, Julia
Franceschini, Julio Cesar Melatti, Júlio César Borges, Fernando de Niemeyer e Fernando Schiavini pelas
contribuições diretas e indiretas a este artigo, que constitui apenas mais uma versão da história do Kàjre.
Neste sentido, ele não tem nada de “original”, na medida em que incorpora muito das ideias e palavras
desses autores. E agradecer também aos editores do livro, pelo cuidado na correção deste artigo.
2
Renato Yahé foi o responsável pelas correções ortográficas das palavras da língua krahô.
3
Embora a história da machadinha seja bastante conhecida, ainda não foi dada a devida atenção aos
seus cantos, permanecendo a necessidade de um estudo mais aprofundado dessas artes verbais e
musicais, assim como de suas formas de transmissão; o que abriria novas portas para a compreensão
do objeto, mas depende de pesquisas de campo futuras.
Já a versão narrada por Craté e registrada por Júlio César Borges e Fer-
nando de Niemeyer em 2010 difere da de Yavu-Boaventura, trazendo outros
elementos para a reflexão.4 A seguir a versão trabalhada pelos autores e
reeditada por mim, de maneira a destacar as passagens que nos interessam
neste ensaio:
Hartãt vivia distante em sua aldeia. Naquele tempo, os mehĩ mais no-
vos iam pra caçada mas voltavam sem nada. Não chegavam com car-
ne. Onde Hartãt vivia tinha carne.
[...] Um dos rapazes que havia saído para uma caçada no mato se des-
garrou dos mentuajê [jovens caçadores que já passaram pelos prin-
cipais rituais de iniciação masculina] e lá pelas tantas, longe, ouviu
uma cantiga de Hartãt... ao longe. Ele pensou: “será que é verdade?”
Mas não fez nada, ouviu tudo de longe; ele escutava, mas não respon-
dia. Dizem que ele era wayacá. Um dia resolveu procurar aquele que
cantava, depois de tanto sua aldeia acusá-lo de feitiçaria e de mentiro-
so. Foi até onde estava Hartãt e falou com ele. Hartãt escutou e depois
reuniu todo seu povo. Ele falou: “o wayacá quer saber dos lugares que
eu canto, que eu conheço”. Logo, um grande grupo de mentuajê se
prontificou a ir. Saíram a caminhar pelo Cerrado rumo ao pé do céu.
4
Esta versão foi narrada por Craté da aldeia Serra Grande durante a VIII Feira Krahô de Sementes
Tradicionais, em setembro de 2010 (Niemeyer, 2011; Borges; Niemeyer, 2012).
[...] Hartãt: “Agora nós vamos lá pra ponta onde tem o kàjre – o ma-
chado-cantor. Arrancharam perto de onde ficava o kàjre. Anoiteceu.
Kàjre começou a cantar e cantou até de manhã. Cantava cantiga muito
bonita. “Agora vocês vão ficar. Vou lá saber do dono do Kàjre. Se ele
me der um a gente leva; se não arrumar, também não tem problema.
Vocês escutaram. Kàjre é muito respeitado. Ele canta desse jeito.” O
povo ficou esperando. Ele chegou lá e o dono do kàjre estava em pé.
Dizem os antigos que então kàjre falou: “Por onde você andou sumi-
do? Mas você sempre lembrou de mim, e então cá você chegou. Aqui
eu te esperava.” E Hartãt: “eu cheguei aqui, onde está você, que é pra
você me arrumar um Kàjre”. O dono do Kàjre ficou a pensar e depois
falou: “posso te arrumar, mas não vou te dar agora não; só amanhã de
manhã que vou te dar, ainda vou cantar até de manhã. Mas quando
você voltar pra sua aldeia, o kàjre não pode ficar só guardado, depen-
durado”. Aí, anoiteceu e ele começou a cantar de novo. Aí, ele foi.
“Tá bom. Você quer, então vou te dar um.” Jogou um bem no peito
dele e ele pegou. “Olha, é o seguinte: quem for usar, seja uma mulher,
não pode por a mão em gordura, não pode por a mão em mel, nem
em semeação ou caça – não pode ter a mão breada. Tem que ser uma
pessoa da mão asseada e que não seja ciumenta. Tem que saber ouvir,
5
Disponível em: www.fumdham.org.br.
6
Museu Paulista, disponível em: www.mp.usp.br.
O resgate do kàjre
A ausência da machadinha era cantada nas aldeias, ela nunca foi esque-
cida, dizem os Krahô. Mesmo estando no museu, seus cantos não foram
perdidos e continuavam a ser entoados, em tons de lembrança e saudade. Foi
assim que, em 1985, um antropólogo de São Paulo em trabalho de campo na
aldeia Pedra Branca ficou impressionado com a beleza de um canto que um
velho entoava no pátio, à noite, relata Fernando Schiavini (2006). Ao saber
que se tratava dos cantos da machadinha kàjre, o antropólogo anunciou que
tinha visto um objeto igual àquele no Museu Paulista, causando grande co-
moção. Através de uma foto enviada pelo técnico Paulo Cesar, que prestava
serviços à aldeia Krahô e morava em São Paulo, a notícia foi confirmada.
O kàjre tinha sido reencontrado, era preciso organizar uma expedição para
conquistá-lo novamente (Schiavini, 2006, p. 156).
Em 19 de abril de 1986, na ocasião da comemoração do Dia do Índio, um
grupo entre nove e 11 índios Krahô chega em São Paulo. O que seria oficial-
mente uma viagem pelas comemorações do Dia do Índio na Universidade de
São Paulo (USP) torna-se símbolo da luta política indígena (e indigenista)
Sem querer inferir se o objeto foi levado ao museu em função de sua sa-
cralidade, ou se tornou sagrado justamente por ter permanecido tanto tempo
no museu (provavelmente as duas coisas), o que nos interessa é chamar
Assim como Martinho Penõ, muitos Krahô se referem ao kàjre como “nos-
sa cultura”. Antes de concluir este artigo, é necessária uma breve reflexão
sobre os paradoxos contidos nas apropriações e reinvenções acerca do termo
cultura, tal como observamos na viagem de volta do kàjre. Isso porque casos
como o do kàjre não são isolados. A partir da década de 1980 ocorre uma sé-
rie de manifestações indígenas que reivindicam seus direitos sobre artefatos,
padrões gráficos, recursos genéticos e conhecimentos em geral, suscitando
uma discussão mais ampla em torno dos direitos culturais e intelectuais, que
põe em questão a maneira como se entende a cultura. Ou seria “cultura”?
Porque o velho meu pai trouxe esse kàjre de lá e não fez nada com
ele de demonstração no lugar, para quando você chegar ir lá direto e
ver. Mas não, ele está jogado aqui, sempre cheio de poeira... Aí eu fico
assim com vergonha. Do jeito que está, assim na poeira, eu não estou
gostando. Eu já falei muito para me ajudarem de fazer um museuzi-
nho, para eu colocar o conjunto do kajre: caty, xy, pydwe, buzina, pyri-
jakà, cukonre, cratre, eu queria colocar todos juntos. Não é assim de
museuzão não, é só de demonstração que eu vou colocar para quando
uma pessoa chega de fora e quer ver. Pra ver como é que faz. E pra
deixar pros netos, pros filhos, pros novos, lembrando sempre... [...]
E no tempo que o Papam [Deus] me carregar, então já deixei essas
coisas juntas de lembrança. Eu já vou ter colocado de um outro modo
para os novos lembrarem. É isso que eu estou querendo, lembrar. E
se um deles aprende mais do que eu, já fica com ela e toma de conta...
(Martinho Penõ, comunicação pessoal)
Figura 7.7. Martins Zezinho Ikrehohtàt devolvendo o kàjre para Martinho Penõ
ao terminar de cantar. Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima
Referências bibliográficas
ÁVILA, Thiago Antonio Machado. Não é do jeito que eles quer, é do jeito que nós
quer: os Krahô e a biodiversidade. Dissertação de Mestrado. Brasília: UNB,
DAN, 2004, p. 130.
AZANHA, Gilberto. A forma Timbira: estrutura e resistência. Dissertação de
Mestrado. São Paulo: USP, FFLCH, 1984, p. 81.
BORGES, Júlio Cesar; NIEMEYER, Fernando de. Cantos, curas e alimentos:
reflexões sobre regimes de conhecimento Krahô. Revista de Antropologia 55 (1),
São Paulo, USP, jan.-jun. 2012.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas e outros ensaios, capítulo
19. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 311-373.
_____. Os mortos e os outros: uma análise do sistema funerário e da noção de
pessoa Krahó. São Paulo: Hucitec, 1978.
AS MORADAS DA CALUNGA1
DONA JOVENTINA: OBJETOS, PESSOAS E DEUSES
NOS MARACATUS DE RECIFE
Clarisse Kubrusly
1
Cemitério, morto, egum, ancestral. Conhecida simplesmente como boneca, nos maracatus nação
são as bonecas esculpidas em madeira e às quais são atribuídos poderes mágico-religiosos.
2
Sobre o movimento folclórico brasileiro ver Vilhena, 1997.
3
Os “maracatus nação” ou maracatus de “baque virado”, também referidos como “nações africanas”, são
uma manifestação carnavalesca da cidade do Recife que tem como mito de origem as Instituições dos Reis
do Congo ou Instituições Mestras, associadas às irmandades que prestavam assistência aos negros nos
bairros portuários do Recife antigo. Atualmente as nações de maracatu realizam suas “saídas” (desfiles nas
ruas) com uma grandiosa Corte Real e seus personagens (rei, rainha, princesa, dama do paço, calungas,
baianas ricas, vassalos, caboclos de lança ou reiamar, escravos e catirinas ou baianas, etc.) De suas “sedes”
e terreiros saem para as ruas acompanhadas do soar de um intenso “baque virado”, executado por um
conjunto musical percussivo (instrumentos: alfaias ou bombos, gonguê, caixas, mineiros e abês).
Figura 8.1. Calunga Dona Joventina. Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj
4
Dona Maria Assunção foi a derradeira esposa do Seu Cosme (fundador do Estrela Brilhante de
Recife), e levou adiante as obrigações no Estado de catimbó do falecido marido (1955-1965).
5
Cosme Damião Tavares (1878-1955), natural de Igarassu, foi o fundador do Estrela Brilhante de
Campo Grande, em Recife, em 1906.
6
Eudes Chagas (1921-1978) nasceu em Olinda e foi para Recife ainda menino. Era babalorixá no
bairro do Pina, onde exerceu o sacerdócio até sua morte (1978). Com a colaboração de Katarina Real,
foi coroado Rei do Maracatu Nação Porto Rico do Oriente, em 1967.
7
Luiz de França dos Santos (1901-1997) era filho de Laureano Manuel dos Santos (fundador do
Leão Coroado). Cresceu no bairro de São José, “espécie de gueto de escravos libertos, local onde
aconteciam cultos africanos”. Os padrinhos de santo de seu Luiz foram Eustachio Gomes de Almeida
e Dona Santa. (Amorim, 2006). Seu Luiz foi membro da Irmandade de São Benedito da Igreja de São
Gonçalo do bairro da Boa Vista e da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos do bairro de Santo
Antônio. Tido como um dos últimos oluos de Recife, foi o mestre do maracatu Leão Coroado até sua
morte, em 1997.
8
João Batista de Jesus (seu Veludinho) foi batuqueiro das nações Estrela Brilhante, Elefante e Leão
Coroado. Na década de 1960, já tinha mais de 100 anos e ainda tocava o bombo mestre maior, mais
grave e mais pesado.
[...] aqui estou finalmente com meu povo carnavalesco. [...] E aqui
serei sempre uma força de resistência cultural contra tudo que pos-
sa prejudicar a integridade das nossas tradições carnavalescas. Para
terminar, eu preciso lhes dizer porque Katarina não quis, que é com
grande sacrifício que ela se separa de mim. Mas ela bem sabe que
serei muito bem cuidada neste maravilhoso Museu do Homem do
Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco [...] e vou ficar aguardando
sempre com muita alegria as visitas de todo o povo carnavalesco nor-
destino aqui no museu. Muito obrigada pela atenção, Katarina Real e
Dona Joventina. (Katarina Real, 1997 [1996])
Figura 8.2. Katarina Real em sua casa conhecida como a “torre do frevo” no
Recife, 1966. Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj
9
Refiro-me aqui a um conjunto de práticas e concepções bastante amplo e heterogêneo que se
comunica devido a uma “origem” comum trazida pelos escravos africanos, que por sua vez vieram de
distintos reinos e com distintas bagagens. Com o tempo, tais práticas e concepções foram incorporando
em maior ou menor grau cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo e espiritismo
europeu; transformando-se à medida que se combinavam de diferentes formas e em todas as direções.
10
Nome para os espíritos dos mortos, desencarnados. No maracatu também é chamando de egum, o
espírito do ancestral da nação presente em assentamentos do terreiro ou nas calungas.
11
“Qualquer divindade ioruba, com exceção de olóòrum (vd). Seus equivalentes fón (vd) são vuduns. A
designação do culto angola-congo que lhes correspondem é inkice (Voguel; Mello; Barro, 2005, p. 200-201).
12
Espírito mestre do estado de catimbó em Pernambuco.
13
Roberto Emerson Câmera Benjamin nasceu em 1943, em Recife. Bacharel em Jornalismo e em Direito,
é professor aposentado da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRRPE) e é o atual Presidente
da Comissão Pernambucana de Folclore. Sobre a experiência de Benjamin como colecionador e também
com calungas de maracatu, ver capítulo II da minha dissertação (Kubrusly, 2007).
14
Afonso Gomes de Aguiar Filho nasceu em Campina do Barreto, Recife, em 15/03/1948. Seu pai
tinha um peji em casa. Ao se mudarem para Águas Compridas, Olinda, em 1955, abriu um ilé (terreiro)
assumido por Afonso com a morte do pai, há 19 anos. Quando passou a tomar conta do Leão Coroado
em 1996, o maracatu foi transferido para o bairro de Afonso no qual foi comprado o terreno, em 1997.
Para saber sobre a relação de Katarina Real e Roberto Benjamim com a transferência de zeladores e a
compra do terreno do Leão Coroado, ver capítulo II da minha dissertação (Kubrusly, 2007).
15
“Estado é um centro espírita de catimbó e dos mestres. [...] Veludinho, foi ele quem me disse que
Assunção teve um estado e ele também me disse que Dona Santa teve um Estado e eu acho também
que o Estado é ligado a Jurema. Mas eu acho que essas complicações dessas religiões populares é
um grande pesadelo para o pesquisador. Porque você sabe, temos uma mistura de espiritismo branco,
de caboclo, de candomblé, de candomblé de caboclo, de jurema, dos senhores mestres, de umbanda.
E está em plena evolução de dinâmica, não é o que eu encontrei na década de 1960” (entrevista feita
pelas irmãs Barbosa com Katarina Real na CPF em 1998).
16
Nas palavras nativas ancestral é aquilo que vem “dos antigos” de tempos imemoriais, do tempo dos
africanos em recife e na africa e que permanece em uma memória física, prática, corporal e duradoura,
essencial para a fabricação dos corpos e para a manutenção e ciação da vida.
17
Dona Joventina (26min, 2010) é um Documentário etnográfico partocinado pelo edital do prêmio
Etnodoc 2009. Direção: Clarisse Kubrusly e Milena Sá. Montagem Julia Barreto Produção Murilo Saroldi.
1
O Museu Casa do Pontal está localizado no Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro. Exibe uma
coleção de “arte popular brasileira” formada por mais de 8 mil esculturas, produzidas por cerca de
duzentos artistas de vinte estados brasileiros.
2
Jacques Van de Beuque (1927-2000) nasceu em Bavey, no norte da França, e veio para o Brasil com
o término da Segunda Guerra Mundial, fixando residência no Rio de Janeiro. Formado em Belas Artes,
em Lyon, desde o início de sua estadia no Brasil, interessou-se pela chamada “arte popular brasileira”
(Mascelani, 2006).
3
Entre essaspessoas destaco especialmente a psicanalista Elisabeth Bittencourt e sua filha, a atriz e
pesquisadora, Juliana, que conhecem Abel há anos. Elas têm forte ligação profissional e pessoal com ele.
4
A descrição desse personagem mascarado da festa do bumba meu boi, que tem características
complexas, entre elas um viés cômico e outro assustador, será feita de forma aprofundada a seguir, a
partir de relatos etnográficos.
5
Foram quatro idas ao Maranhão entre 2008 e 2009. Em novembro de 2008, estive lá por uma
semana. Em 2009 estive quinze dias em fevereiro, vinte dias entre junho e julho e dez dias em setembro.
6
Entendo ritual, em primeiro lugar, como um domínio privilegiado de expressão simbólica (Giumbelli;
Cavalcanti, 2009). Também é possível pensá-lo como um momento especial, que se contrapõe ao
tempo ordinário e é instituído por diferentes mecanismos de ritualização, personagens, gestos e roupas
características (DaMatta, 1979).
7
Existe uma densa bibliografia que abordou o folguedo do boi: Andrade, 1982; Azevedo Neto, 1997;
Borba Filho, 1966; Pereira de Queiroz, 1967; Cavalcanti, 2006b, 2006c, 2000. Entre os que estudaram
mais especificamente o bumba meu boi do Maranhão, destacam-se: Albernaz, 2004; Araújo, 1983;
Bueno, 2001; Carvalho, 2005; Carvalho, 1995; Lima, 1982; Prado, 2007.
8
Modo de denominar o ato de festejar, utilizado por participantes de festas populares de vários
contextos brasileiros.
9
“A Baixada maranhense é assim denominada por ser uma região de campos baixos, possuindo
numerosos rios, lagos e campos alagados. Economicamente essa região sobrevive da agricultura e
pesca” (Matos, 2010, p. 13).
10
Diversos autores analisaram a atuação ritual do cazumba e abordaram a importância da máscara
para sua ação no contexto festivo (Bittencourt, 2009; Lody, 1995, 1999; Ferretti, 1986; Ferretti e Matos,
2010; Manhães, 2009; Matos, 2010; Mazzilo; Bitter; Pacheco, 2005). O presente trabalho se diferencia
dos demais por analisar de forma aprofundada o lugar da máscara no contexto ritual, assim como por
investigar de forma inédita a circulação desse objeto por contextos exteriores à festa.
Foi através de Abel que cheguei ao grupo Boi da Floresta, que se tornou
um dos meus espaços privilegiados de pesquisa no contexto ritual de inser-
ção da máscara. Abel participa do grupo desde que chegou à capital do estado
maranhense e é um dos principais cazumbas do grupo. Seu trabalho como
artesão de caretas é bastante reconhecido ali, mesmo que ultimamente outro
artesão, Nilson, também tenha se destacado.
O Boi da Floresta tem sua sede em um bairro popular de São Luís: Liber-
dade. O grupo tem como líder Apolônio Melônio, que fez 93 anos em julho
de 2011 e continua atuante no Boi da Floresta. Por conta de sua idade, no
entanto, sua esposa tem estado mais ativa na condução do grupo. O Boi da
Floresta tem em torno de 130 integrantes, a maioria provinda das camadas
populares e com alguns integrantes das camadas médias, que se dividem
entre os diferentes personagens. O grupo foi criado na década de 1970 e uma
Sentidos do cazumba
O negócio ali é uma fantástica que tem na boiada. Você tá aqui, fe-
chado de gente aqui, vem um cazumba por lá, vai se afastando. É
um negócio de encaretado, ninguém olha a feição dele. É um tipo de
negócio de satanás.
Suas palavras nos fazem refletir sobre uma discussão empreendida por
Daniel Bitter (2008), que assinala que em seu trabalho de campo junto a
um grupo de Folia de Reis no Rio de Janeiro, os palhaços foram associados
pelos brincantes a figurações míticas consideradas perigosas, como diabo
e exu. A partir das proposições de Victor Turner (1982), ele mostra que
diabo e exu podem ser vistos como seres ambíguos, posicionados além
da estrutura social; e pelo fato de o palhaço ser associado a essas figuras,
ocupa posição parecida. Fabriciano, ao relacionar o cazumba à figura do
satanás, outro modo de chamar o diabo, nos leva a refletir que os cazumbas
podem ocupar posição simbólica análoga à dos palhaços, exus, diabos e
outras figuras míticas.
Torres em ação
Na capital São Luís, o grupo Santa Fé, que também é considerado de sota-
que da Baixada, já utilizava torres há algum tempo, quando o Boi da Floresta
ainda não as possuía. Havia grande desejo dentro do grupo de que conseguis-
sem fazê-las, mesmo que houvesse alguma resistência entre os mais velhos
em função desse novo formato. Como mostrou Malinowski (1976), num
estudo entre os trobriandeses, na Melanésia, no ato cerimonial de troca de
colares e braceletes chamado kula os objetos desempenhavam um papel im-
portante, valorizando os indivíduos que os possuíam, já que lhes conferiam
prestígio. Tomando esse estudo como referência, é possível assinalar que as
torres desempenham papel semelhante, já que, quanto mais altas as másca-
ras, mais valorizados são os brincantes.
No Boi da Floresta, as torres de Nilson têm como base sua máscara pe-
quena, e acima dela vem uma estrutura de isopor sobre a qual ele acrescenta
outra estrutura.
Esse ano é uma de touro que eu fiz toda lilás, fazendo uma homena-
gem ao Divino do Espírito Santo. Eu coloquei duas coroas e coloquei
a pombinha no meio. Porque, quando eu faço uma careta, ela tem um
objetivo, ela tem uma forma.
Esse depoimento nos permite refletir sobre o caráter complexo dos sen-
tidos da careta. Nilson diz que sua máscara pequena revela a imagem de um
touro, mas podemos pensar que esse é um sentido aproximado. Ao olharmos
para ela, vemos características de um touro, mas também de outros animais,
assim como algumas características humanas, e outras que não remetem
a nada de conhecido na natureza. A máscara pequena parece representar
um ser fantástico que produz estranhamento, assusta, mas também atrai.
O sentido da máscara torna-se mais complexo, e mais ainda quando é posta
sobre a careta pequena uma estrutura de isopor com imagens relacionadas
ao universo religioso cristão.
As formas das máscaras estariam bastante relacionadas à construção de
sentido do personagem. Elaborariam, por exemplo, a complexidade do per-
sonagem, já que seriam compostas por signos diversos, às vezes dissonantes,
como as torres que podem reunir formas monstruosas com símbolos religio-
Antes saía, roubava coisa, ninguém falava nada, hoje não pode, já
chamam a polícia, chegava em casa às 4 horas da tarde. Hoje não tem
mais graça, o cazumba hoje em dia é luxo, é só para mostrar farda
bonita, uma careta, aquela coroazona grandona. Isso que acontece.
Antes tinha mais graça.
Nico parece opor um passado mais livre a um presente no qual esse per-
sonagem não pode exercer suas travessuras com liberdade e está mais pre-
ocupado com a exibição de sua farda e de suas máscaras grandes. É curioso
ver que a careta ocupa lugar importante nessa sua comparação. Sua crítica ao
modo de brincar no presente está relacionada, entre outras questões, ao uso
das máscaras grandes, as torres, chamadas por ele de “coroazonas”. Para ele,
as máscaras pequenas permitem uma ação ritual mais livre.
A crítica de Nico é semelhante à encontrada no Boi da Floresta (e que
também aparece com ênfase no discurso de Abel).11 Podemos perceber que
essa fala aponta para o fato de que, dependendo da máscara utilizada, os
sentidos da ação ritual do cazumba se modificam. As torres parecem estar
atreladas a um modo de ação ritual que enfatiza a exibição; o uso das más-
caras pequenas estaria relacionado a um modo de atuação mais ligado ao
lado cômico do personagem. No trabalho de campo na Baixada, percebi que
11
Essa fala pode revelar um sentimento de nostalgia.
12
Instituição dedicada a exposições de objetos de uso na vida rural maranhense.
O Museu Casa do Pontal foi criado por Jacques Van de Beuque a partir de
sua coleção particular formada durante mais de quarenta anos, desde 1950.
Aberta à visitação sob reserva desde 1976, a instituição, em 1992, abriu am-
plamente para a visitação pública e constitui uma organização privada de
interesse público. Os objetos que ali estão são classificados como “arte po-
pular”. As obras, em sua maioria, são esculturas feitas com diversos mate-
riais, como barro, madeira e metal. São mais de 8 mil esculturas, de cerca de
duzentos artistas de todo o Brasil.
A antropóloga Angela Mascelani, que dirige a instituição, discute em sua
tese de Doutorado (2001) o conceito de “arte popular”, revelando sua am-
Referências bibliográficas
A MORADA E A CASA:
MATERIALIDADE E MEMÓRIA NO PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO FAMILIAR
Introdução
1
As reflexões aqui desenvolvidas partem do processo de construção de minha dissertação de
Mestrado, defendida em 2010 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizada entre
2007 e 2009, a etnografia teve como objeto a experiência de mudança de residência de duas mulheres
e suas estratégias na eleição dos objetos e móveis a serem mantidos.
O patrimônio ambivalente:
entre as heranças paterna e materna
Os quartos ficavam nas laterais dessa sala. E eram três. Num deles havia
uma mobília que era da sua avó, um conjunto com cama, criado-mudo, pen-
teadeira, armário e uma escrivaninha. E que havia sido ocupado por sua filha
quando ela morava com Ainsley. Havia um outro quarto, ocupado pelo filho
mais novo que ainda morava com ela nessa época, e o quarto dela. Nesse úl-
timo havia a cama de ferro que tinha sido do seu pai e um armário revestido
de laca branca, além de uma penteadeira. No avarandado que ficava contíguo
à sala havia um conjunto de poltronas e uma mesa de centro; um aquário,
um grande móvel que guardava alguns livros e um conjunto de prata da avó.
Pena que agora eu já estou tirando, mas esse móvel é bem antigo,
essa penteadeira e aquele móvel, também. Tudo da vó, os Frederico
Mentz... isso aqui era dos Mentz. Eu não sei se começou com os Trein
ou começou com os Mentz [...] Essa é esposa do Frederico Mentz,
Catarina Trein Mentz – me mostra um retrato grande da “vó“ Cata-
rina pintado a óleo. Aqui é meu pai e minha filha, aqui é minha mãe
– diz, apontando-os na fotografia que pegara para me mostrar. Porque
na verdade isso era uma coisa só. Daí com a morte foram dividindo
e foi ficando uma coisa diferente. Na verdade eu sou bisneta do que
começou [...] Esse roupeiro aqui tem cem anos [...] Essas coisas nem
existem mais. [...] Esse móvel era do meu bisa, porque meu vô, como
eu te disse, ele morreu com 36 anos, é aquele ali – ela atravessa sala
e aponta para o retrato que está na parede. Têm muitas fotos aqui,
lindas as fotos. O móvel que estava com as fotos eu já embalei.
Grande parte dos móveis e objetos que ela me apresentou haviam sido
do enxoval da sua avó paterna – adquiridos por sua avó paterna ou herdado
A Oma que não discriminou assim, mas sempre houve uma discri-
minação muito grande em relação à mãe. Não tanto em relação à
questão financeira, mas muito cultural também, porque a mãe era
uma moça de fora.2 A mãe foi conhecer o mar em lua de mel, com o
pai... essas coisas... ela sempre disse: que foi o pai. O copo de cristal,
essas coisas... e ela aprendeu muito enquanto morou aqui, era uma
pessoa que comia em gamelas, assim bem simples, uma vida simples
no campo, em cima de cavalo, tirando o leite e de repente era o uso
do guardanapo de linho. Eu me lembro na nossa casa era sempre
guardanapo de linho, não tinha, não existia guardanapo de papel na
2
Do interior do Rio Grande do Sul.
3
Keim - Segundo o trabalho de Ellen F. Woortmann (1994) a categoria cultural keim pode ser traduzida
como “princípio germinativo”. Ela classifica pessoas, através de famílias, definindo-as como casáveis e
não-casáveis, segundo sejam portadoras de um “keim bom” ou de um “keim ruim” (Woortmann, 1988).
É, é porque ficou uma coisa assim, a casa... a casa, tipo eu tive que
alugar a casa para morar. Eu fui despejada da casa, da casa que um
terço era minha, quer dizer, não tem explicação. À medida que eu
assinei, assinei, foi um atestado de burrice da minha parte.
Exatamente... porque foi a perda do pai, que daí eu herdei, são as iro-
nias do destino... daí eu não passei mais a ser a filha do dono, mas sim
a dona. Então, não é a minha parte? Então vamos derrubar, vamos
pegar a patrola4 e passar por cima, e passei, e não me arrependo.
Olhando para a raiva que ela expressava nos olhos, que se misturava com
uma mágoa também muito forte, eu questionei se ela realmente não se arre-
pendia de ter demolido a casa da infância do pai.
Não. Às vezes me dá uma dor, assim, sabe... que eu acho que ela, não
só essa parte que eu derrubei, mas toda ela tem que ser derrubada.
Tem, tem espíritos ali dentro ainda, têm pessoas que não saíram dali,
eu só sentia que tinha, mas não via. E eu acho que ela tem que vir ao
chão, para bem de começar uma história nova. Eu acho. Eu acho que
querer recuperar aquilo ali, não, a casa não tem mais estrutura, ela tá
caindo, ela tá cheia de cupim. Me dói assim, porque eu ainda entro
ali... então não era o interesse dele da casa em si, do que representava
a casa, porque ele tinha uma bela casa. Então não era nem o valor
estimativo da casa, era só a intenção de me tirar dali. Porque nunca
veio arrumar? Porque ele não tá ali? Não é? É, é uma coisa assim,
tudo uma casa, que loucura... às vezes, quando eu passo ali eu olho
ela com desprezo, puxa, o que tu me fizeste passar? Ordinária! E às
vezes eu passo ali e choro.
E foi chorando que ela terminou a frase. Me pediu desculpa, e disse que
doía. Repetiu que iria passar, enquanto limpava as lágrimas do rosto com
4
Trator.
É uma casa... e olha como mexeu com todo mundo [...] ninguém acre-
ditou, a minha atitude foi de verdadeira filha de Gustavo. Ninguém,
ninguém entendeu..., mas não era para entender. Ah, é minha? Então
tá. Então vai para o chão. Porque como é que nós íamos dividir uma
casa? Parte de lá, Luli, depois ele, ela no meio, e eu!
A minha parte era a pedra, era... Então, tem as culpas, porque a pedra
era o amor do pai, porque ali a Oma trocou o primeiro beijo, então
representava muito aquela pedra ali. Mas porque também eu ia deixar
o coitado do Luli, com duas partes lá, mais aqui, e eu no meio, com-
plicado, bem complicado.
Foi uma coisa bem delicada. A mãe se separou por uma pessoa da
família. Um cunhado... Ela nunca negou. E naquela época as mulhe-
res eram julgadas, os homens não. Mas as mulheres eram julgadas e
ela foi considerada meretriz. Nós prestamos depoimento, eu tinha 13
para 14 anos. A gente teve que dizer com quem iria ficar. Na verdade
eu queria ficar com meu pai, mas eu fiquei com ela porque eu sabia
seria ela a pessoa para me criar. Eu tinha noção disso, porque o pai
era muito louco. [...] Foi muito, foi muito difícil [...] Fui testemunha
e era bem menina. [...] a partilha demorou, a mãe demorou para rece-
ber... a separação em si que foi litigiosa, eu me lembro do juiz dando
o veredicto. [...] Sim, sim, considerada meretriz, foi um choque. A
mãe não pôde mais entrar no clube que nós éramos sócios, eu fui fada
num baile e ela foi barrada, na entrada... eu entrando para ser fada das
debutantes, e ela não pôde entrar. A senhora por gentileza nos acom-
panhe, que o presidente precisa conversar com a senhora, e eu entrei
sozinha. Eu era uma criança, guria, eu tinha 13 anos. [...] Depois ela
não deu uma ênfase maior para isso, aí, sabe, ela foi nos poupando.
A traição de sua mãe com o cunhado, marido da irmã do seu pai, culmi-
nou no julgamento citado por ela. A finalização legal parece ter acontecido so-
mente nos anos 1970, época em que a justiça autorizou que os bens que eram
por partilha de divórcio de direito da mãe de Ainsley fossem de fato para ela.
Sobre essa época, Ainsley diz: ficou muito bem, a mãe ficou muito bem, ela
era uma mulher rica. Os bens e a situação econômica estável não evitaram, no
entanto, que Ainsley e o irmão passassem por constrangimentos. O status de
meretriz afastou a maioria dos familiares do lado paterno de uma aproximação
mais cotidiana. Ainsley narra apenas duas pessoas da linhagem paterna com
quem manteve boas relações depois do ocorrido: a avó paterna e uma filha do
irmão desta avó, interlocutora de Ainsley acerca das histórias da família.
5
Aportados no Brasil em 1846, os parentes distantes de Ainsley, oriundos do processo imigratório da
Europa para o estado do Rio Grande do Sul, vieram de próximas porém diferentes regiões das que hoje
compõem a Alemanha. Entre esse grupo étnico, conforme discute Woortmann, tanto para os colonos
alemães como os “novos-ricos industriais”, “o parentesco é memória” (1994, p. 13).
6
Cf. Sandra Pesavento (1986), acostumadas a riscos, essas famílias eram detentoras de bancos e
integrantes de associações de classe que foram até patrocinadores dos revolucionários de 1930, se
envolvendo em cargos políticos ou com intenções políticas a fim de manter suas fábricas em atividade
e, com isso, garantir a manutenção do seu patrimônio ligado a bens móveis e imóveis.
7
As narrativas de Carla e Ainsley nos termos das escolhas feitas por elas e suas relações com a
noção de indivíduo e de pessoa foram tratadas no capítulo 4 e 5 de minha dissertação de Mestrado
(Gutterres, 2010)
Como aconteceu com Ainsley, cheguei até Carla a partir de minha rede de
relações sociais mais próxima. Quando cheguei em sua casa, alguns cômodos
já haviam sido desmontados parcialmente e, segundo ela, a casa estava uma
bagunça. Em um terreno com quarenta metros de profundidade, a casa de
Carla era geminada a outra que pertencia à irmã de sua sogra. A casa tinha
sido presente do pai às duas e havia sido construída pelo marido da irmã,
que era engenheiro. Nos fundos havia um pequeno aclive onde cresciam ár-
vores frutíferas, e subindo uma escada se chegava até um piso onde havia
uma piscina e um espaço coberto, próprio para fazer churrasco. No fim de
semana subsequente a nossa conversa, um dos filhos de Carla havia progra-
mado uma festa de despedida da casa. Então ela estava enchendo a piscina
e cuidando da água. A parte coberta onde ficava a churrasqueira tinha uma
sala, um banheiro e um quarto, que guardava nesse dia os instrumentos
de percussão desse mesmo filho. Invenção dela, aquele espaço era um dos
que ela mais gostava em toda a casa, porque havia sido planejado por ela. A
garagem da casa, que ficava na lateral do terreno, também havia sido modi-
ficada quando o casal passou a habitar a casa. Ela foi fechada e guardava a
oficina do seu marido, que, conforme ela me contou, adorava os trabalhos
manuais. No andar de cima havia um quarto que havia sido fechado e outros
que foram adaptados pelo casal. No entanto, Carla achava que a casa ainda se
parecia muito com a casa da planta original. A morte do marido, nove anos
antes da mudança que etnografei, foi a marca que ela estabeleceu para me
narrar as reformas mais significativas da casa. Foi depois da morte dele que
Nas primeiras entrevistas que fiz na sua sala, conversamos sobre a pes-
quisa. E foi então que ela me disse que um dos seus desejos com aquela
mudança era o de conseguir jogar muita coisa fora. Não queria levar lixo para
a nova vida. Entre outras combinações, acertamos que acompanharia ela du-
rante a seleção das fotografias, feita meses antes da mudança8 acontecer.
A planta da casa tinha aproximadamente 440 metros quadrados e era
dividida em dois pisos. Embaixo havia uma sala grande com uma porta de
correr na metade, podendo ser dividida entre sala de estar e sala de jantar. A
porta era de madeira escura, assim como todos os acabamentos e detalhes
da casa: a janela, o corrimão da escada, a escada, o chão e os nichos nas pa-
redes, recortados em arco. As portas internas do andar térreo tinham formas
vazadas na madeira e continham vidro. Contígua a essa sala havia uma porta
que dava para um pátio entre as árvores frutíferas e a casa. Paralelo à sala,
um corredor levava até um lugar onde havia a mesa das refeições cotidianas,
a copa, ao lado da cozinha. Nesse lugar havia uma mesa muito especial para
8
Conforme analisei em outra ocasião (Gutterres, 2010), as escolhas feitas nos dias que antecederam
e durante a mudança tiveram motivações e ritmos diferentes. Os objetos e os cômodos a serem
desocupados seguiram um roteiro que conferiu a eles potências diferentes em relação à capacidade
de lembrança.
Isso tem uma história, é uma vida que tem aqui. Realmente, essas
coisas eu não me acho no direito de jogar fora sem que meus filhos
olhem. Só que eu dei um prazo, vocês tem que vir separar. Eu tenho
prazo para sair. É claro que certas coisas eu não vou conseguir jogar
fora: os brinquedos. Eu até já comprei umas caixas grandes dessas
de plásticos. O playmobil, a Barbie isso eu vou guardar. Levo lá para
minha casa, depois eu vejo. Livro de história também. Porque nós
tínhamos o hábito de ler histórias para eles todas as noites, sem ex-
ceção. Tem livros tão amados aqui que a gente não conseguiu dar,
alguns brinquedos mais especiais vão. Mas esses troços da faculdade
aqui, mais todos os polígrafos, todos os cadernos... não sei, eles guar-
daram porque moram em casa. Aí agora é com eles. Eles têm que vir
ai porque, se eles não derem, eu vou jogar fora. (Idem)
Ai, meu Deus, aqui tem uma tartaruga que a minha filha ganhou do
meu pai, ah, mas tá sem cabeça. Ganhou do meu pai quando fez 1
ano. (Idem)
A condição de morar em uma casa grande era ressaltada por ela como
uma possibilidade de acumular lembranças em potencial através do ajun-
tamento de objetos. Era como se, ao mexer de uma só vez – que foi como
descreveu os momentos em que revisava os objetos guardados ali –, ficasse
mais fácil descartá-los.
Tinham muitas festas. Porque a medicina tem a tal da festa dos cem
dias, adoravam a festa dos cem dias que era a fantasia. E quando eram
menores adoravam a coisa do teatro, teatros mil, na praia, aqui; fan-
tasia de todo tipo; no colégio. Mas as festas da medicina foram muito
elaboradas. Lembrança de viagem: lá o berimbau que todo mundo
traz, o chapéu do México, o bicho da Disney [...] Muito aniversário,
muito aniversário. Eram famosos. Sempre fiz janta para todo mundo,
todo mundo festejava aqui, o natal sempre foi aqui, agora festa de
aniversário deles. (Idem)
Andando com dificuldade no meio das altas e variadas caixas com fan-
tasias, roupas e chapéus, Carla reforçou ali o papel da casa como cenário
para as festas familiares, e para as festas dos filhos com os amigos. O quarto
também guardava o acervo da vida escolar dos filhos, e de suas diferentes
brincadeiras. Na época da mudança nenhum deles morava mais com ela.
Como habitavam residências menores – e a venda da casa demorou para ser
efetivada – a casa da mãe abrigou os objetos ligados a sua infância e a forma-
ção escolar vivida ali.
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Casa onde passavam as férias de inverno, na cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul.
Referências bibliográficas
Alberto Goyena
Clarisse Kubrusly
Daniel Bitter
Roger Sansi
Imagem 2: Fachada da sede do Afoxé Filhos de Gandhi (Fotografia de Roberta Sampaio Guimarães)
Imagem 3: Fritando acarajé no dendê (Fotografia de Nina Pinheiro Bitar)
Imagem 11: Martins Zezinho Ikrehothàt com o Kàjre (Fotografia Ana Gabriela Morim de Lima)
Imagem 12: Calunga Dona Joventina (Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj)
Imagem 13: Katarina Real em sua casa conhecida como a “torre do frevo” no Recife – PE 1966
(Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj)
Imagem 14: Cazumba em São Luís, MA (Fotografia de Flora Moana Van de Beuque)
Imagem 15: Cazumba e sua torre em São Luís, MA
(Fotografia de Flora Moana Van de Beuque)
Imagem 16: Fachada da casa de Carla (Frame de
imagem em vídeo. Autoria: Anelise
dos Santos Gutterres)