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José Reginaldo Santos Gonçalves

Roberta Sampaio Guimarães


Nina Pinheiro Bitar
– organizadores –
Copyright © by José Reginaldo Santos Gonçalves, Roberta Sampaio Guimarães,
Nina Pinheiro Bitar et alii, 2013

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Leticia Castello Branco Braun

Agradecimento à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo


à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj, pelo apoio recebido.

Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

A441
A alma das coisas : patrimônio, materialidade e ressonância / [organização]
José Reginaldo Santos Gonçalves, Nina Pinheiro Bitar e Roberta Sampaio
Guimarães. - Rio de Janeiro : Mauad X : Faperj, 2013.

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-85-7478-526-4
1. Etnologia. 2. Antropologia. I. Gonçalves, José Reginaldo Santos. II. Bitar, Nina
Pinheiro. III. Guimarães, Roberta Sampaio. IV. Fundação Carlos Chagas de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. V. Título.
13-0730. CDD: 306
CDU: 316.7
Sumário

APRESENTAÇÃO 7

1. O SORRISO IRÔNICO DOS BUDAS:


DEMOLIÇÃO E PATRIMÔNIO NO VALE SAGRADO DE BAMIYAN 19
Alberto Goyena

2. O ENCONTRO MÍTICO DE PEREIRA PASSOS COM A PEQUENA ÁFRICA:


NARRATIVAS DE PASSADO E FORMAS DE HABITAR NA ZONA PORTUÁRIA CARIOCA 47
Roberta Sampaio Guimarães

3. PATRIMÔNIO E DÁDIVA: AS BAIANAS DE ACARAJÉ NO RIO DE JANEIRO 79


Nina Pinheiro Bitar

4. A VIDA OCULTA DAS PEDRAS:


HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DOS OBJETOS NO CANDOMBLÉ 105
Roger Sansi

5. BANDEIRAS E MÁSCARAS:
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PESSOAS E OBJETOS MATERIAIS NAS FOLIAS DE REIS 123
Daniel Bitter

6. À MESA COM OS SANTOS:


A NOÇÃO DE “FARTURA” NAS FOLIAS DE URUCUIA (MINAS GERAIS) 155
Luzimar Paulo Pereira

7. UMA BIOGRAFIA DO KÀJRE, A MACHADINHA KRAHÔ 185


Ana Gabriela Morim de Lima

8. AS MORADAS DA CALUNGA DONA JOVENTINA:


OBJETOS, PESSOAS E DEUSES NOS MARACATUS DE RECIFE 211
Clarisse Kubrusly

9. ENTRE A RODA DE BOI E O MUSEU: UM ESTUDO DA CARETA DE CAZUMBA 231


Flora Moana Van de Beuque

10. A MORADA E A CASA: MATERIALIDADE E MEMÓRIA


NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO FAMILIAR 267
Anelise dos Santos Gutterres

SOBRE OS AUTORES 293

IMAGENS 297
APRESENTAÇÃO

As coisas no exílio

Para quem não se lembra, A alma das coisas era um antigo programa da Rá-
dio Nacional dos anos 1950, que ia ao ar todas as quintas-feiras, em horário
nobre, precisamente às oito horas da noite. Em sua apresentação, o locutor
anunciava em tom solene: “Contam histórias antigas que Deus nosso senhor
deu alma a todas as coisas que se encontram no mundo. As coisas não falam.
Se falassem ouviríamos então a alma das coisas...”. Logo em seguida, sempre
no mesmo tom de voz, anunciava o patrocinador do programa: “Através da
Rádio Nacional, a fita celulose marca Scotch tem o prazer de apresentar A
alma das coisas.” Não era um programa religioso, apesar da referência a Deus
em sua apresentação. Durava não mais que dez minutos, e nesse espaço de
tempo narravam-se histórias imaginárias cujos protagonistas eram objetos
materiais cotidianos: um bule, uma árvore de natal, etc. Eram apresentados
como se formassem verdadeiras sociedades de objetos, com relações de pa-
rentesco, vizinhança, amizade, inimizade e traços de personalidade; eram
descritos como se fossem pessoas, com capacidade similar para sentir, pen-
sar, agir, falar e emitir opiniões sobre seu destino e suas relações com o mun-
do e com o seres humanos. Correndo o risco (e já assumindo o crime) de
cometer o que os historiadores chamam de “anacronismo”, digo que A alma
das coisas talvez expressasse certa percepção imaginária do que se conhece no
jargão antropológico atual como “agência” dos objetos.
Mas esse certamente não é um tema novo. Afinal, essa percepção, de
modo periférico ou central, assumindo contornos semânticos variados, pa-
rece estar presente em qualquer sociedade humana. A natureza da relação
sujeito–objeto, tal como a modernidade ocidental veio a concebê-la, em que
os objetos servem tão somente aos propósitos e necessidades de um sujeito
soberano, não é algo evidente para a maioria das sociedades existentes no
planeta. O “espírito das coisas dadas” é um tema clássico da Antropologia,

A Alma das Coisas 7


e Marcel Mauss, em seu Ensaio sobre a dádiva, soube evocá-lo com sensibilidade
e insights duradouros. É o próprio Mauss que, em seu Manual de Etnografia, re-
comenda cautela aos pesquisadores diante de objetos materiais como um vaso
de barro: “Frequentemente, o vaso tem uma alma; o vaso é uma pessoa” (1967,
p. 46).1 São numerosas as possibilidades de conceber as formas dessa relação
entre seres humanos e coisas. Os mitos, o folclore, as narrativas populares, os
discursos cotidianos estão repletos de experiências que apontam nessa direção.
Para nós, modernos, as coisas não falam; mas para muitas culturas e para mui-
tos grupos em nossas próprias sociedades contemporâneas, o problema não é
exatamente que as coisas não falem; é que desaprendemos os idiomas em que
se expressam. Pois, se isolamos as coisas na lógica da “razão prática”, na condi-
ção de instrumentos estritamente utilitários ou ornamentais, nos afastamos da
possibilidade de estabelecer com elas relações de comunicação. Ao atribuir-lhes
uma alma, mesmo que imaginariamente, resgatamos essa possibilidade.
É preciso também não esquecer que, enquanto portadoras de uma “alma”,
de um “espírito”, as coisas não existem isoladamente, como se fossem en-
tidades autônomas; elas existem efetivamente como parte de uma vasta
e complexa rede de relações sociais e cósmicas, nas quais desempenham
funções mediadoras fundamentais entre natureza e cultura, deuses e seres
humanos, mortos e vivos, passado e presente, cosmos e sociedade, corpo e
alma, etc. Essa possibilidade nunca desapareceu completamente de nosso
horizonte moderno. E, nesse aspecto, Bruno Latour oportunamente nos faz
lembrar uma lição clássica dos antropólogos, que, em seus estudos, assina-
laram a permanência no mundo contemporâneo do chamado “pensamento
selvagem” (Lévi-Strauss) e das formas de vida não modernas: realmente,
“nunca fomos modernos” (Latour, 2006). Pelos menos, não no sentido de
que o processo de secularização teria varrido definitivamente as modalidades
do pensamento mágico, através das quais nos conectamos significativamente
com a ordem cósmica e social. As coisas podem não falar como nas histórias
imaginárias daquele programa radiofônico. Nesse sentido, elas parecem vi-
ver uma espécie de exílio. Mas, a exemplo dos deuses pagãos exilados pelo
cristianismo e cujos rastros Heinrich Heine (2009 [1835]) encontrava no
mundo moderno, é provável que a alma das coisas ainda nos afete secreta-
mente. Sob ângulos diversos, os dez estudos reunidos neste livro nos fazem
perceber os efeitos de sua humilde e poderosa presença em nossa vida indi-
vidual e coletiva.

1
“Très souvent le pot a une âme, le pot est une personne” (Mauss, 1967, p. 46).

8 Apresentação
A vida social dos patrimônios

É vasta a literatura antropológica recentemente dedicada à “cultura mate-


rial” (Appadurai, 2008; Tilley et al., 2006; Henare; Holbraad; Wastell, 2007).
Os antropólogos anglo-americanos usam a expressão “material turn” para
diagnosticar a renovação do interesse por essa área de pesquisa. Um dos tra-
ços dessa nova configuração intelectual é o uso da palavra “materialidade”,
seja no singular ou no plural (Miller, 2005). Evidentemente, quando aqui
a utilizamos, não pretendemos designar um dado natural ou um atributo
intrínseco aos objetos e lugares descritos e analisados. Trata-se de uma cate-
goria e, portanto, compreensível na medida em que se possam entender os
diversos contextos socioculturais em que é usada e de que forma específica.2
Podemos ampliar essa discussão para a conhecida distinção entre patri-
mônios “materiais” e “intangíveis”, que deve ser entendida nos limites his-
tóricos e semânticos dos seus usos pela modernidade ocidental, sem que se
possa assumir apressadamente a sua universalidade como um dado. O que
pode ser percebido como universal é a relação de oposição entre esses polos
(o material e o imaterial), relação essa que varia entre uma demarcação on-
tológica radical e uma perspectiva em que se explore a relação de “simetria”
entre eles (Latour, 2009) ou seu entendimento através de uma “antropologia
reversa” (Wagner, 2010).
Embora resultem de pesquisas realizadas em diferentes contextos sociocul-
turais (no meio urbano, em povoados rurais, em aldeias indígenas), os es-
tudos aqui reunidos3 mantêm entre si uma evidente afinidade: a descrição
etnográfica minuciosa e a análise de diferentes usos de objetos materiais
e formas espaciais na vida social: representações materiais de divindades,
máscaras rituais, culinária religiosa, espaços urbanos, arquiteturas, casas,
imagens. Eles realizam um esforço coletivo de reflexão sobre a natureza da

2
Para uma discussão critica da categoria “materialidade”, ver o artigo de Tim Ingold, Materials against
Materiality, in Being Alive (2011, p. 19-32).
3
Os textos reunidos neste livro resultam de teses e dissertações produzidas, em sua quase totalidade,
no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS /da UFRJ (http://
www.ifcs.ufrj.br/~ppgsa/); e do Núcleo de Antropologia dos Objetos (Nuclao) do Departamento de
Antropologia Cultural do IFCS (www.laares-ufrj.com) e, que, por sua vez, resultaram na publicação de
artigos, capítulos de livro e livros (Gonçalves 2000; 2003 [1996]; 2003a; 2007: 175-194; 2007: 117-138;
2007: 42-63; 2005; 2007: 139-158; 2007a; 2008; 2009a; 2009b; 2009c; 2010; 2010a; 2011; 2011a; Silva,
2007; Kubrusly, 2007; Bitter, 2008; 2010; Pereira, 2009; 2011; Paiva, 2009; Goyena 2010; Nascimento,
2010; Bitar, 2010; 2011; Guimarães, 2004; 2011; Paterman, 2008; Migliora, 2010; Miguel, 2010).

A Alma das Coisas 9


relevância desses objetos e espaços nos processos de produção sensível de
diversas formas de autoconsciência individual e coletiva. Buscam, desse
modo, desvendar o seu papel na vida cotidiana de diferentes segmentos so-
cioculturais e, sobretudo, descobrir de que modo nos ajudam a nos tornar
o que somos. Esses estudos descrevem e analisam os usos, deslocamentos,
transformações e destruição desses itens, mostrando como esse processo
repercute de modo eficaz na experiência corporal e no pensamento de in-
divíduos e coletividades. Revelam, assim, o quanto somos dependentes,
como coletividades e indivíduos, desses processos de produção, circulação,
consumo e destruição de objetos materiais e espaços que usamos e fre-
quentamos em nosso dia a dia. Dependentes não apenas quando os con-
sideramos do ponto de vista estritamente utilitário; nem apenas quando
os consideramos emblemas de nossas identidades; mas sobretudo depen-
dentes na medida em que neles reconhecemos “poderes de agência” (Gell,
1998), cujo efeito consiste precisamente na constituição sensível de nossas
formas de autoconsciência.
Em cada um desses estudos perpassam, explicita ou implicitamente, os
usos diversos da categoria “patrimônio”, explorando suas concepções nati-
vas. Eles mostram que aquilo que poderíamos designar a “vida social” dos
“patrimônios” inclui necessariamente as diversas formas de recepção e usos
de objetos e espaços, assim como seus efeitos sobre aqueles que os classi-
ficam na vida cotidiana. Podemos qualificar essas formas de recepção por
intermédio da noção de “ressonância”, de Stephen Greenblatt.4 No entanto,
podemos ir além da estimulante proposição desse autor e qualificarmos a
própria noção de “ressonância”, mostrando seus diferentes significados.5 A
partir dessa perspectiva, é possível perguntar: de que formas os lugares, edi-
ficações e objetos materiais oficialmente reconhecidos como “patrimônio”
podem ser experimentados por seus usuários no cotidiano? Como uma es-
pécie de herança exemplar transmitida pelo passado? Como um instrumento
de reconstrução presente de suas identidades individuais e coletivas? Como
algo a ser negado e destruído (uma espécie de ressonância negativa)?

4
Segundo o historiador Stephen Greenblatt: Por ressonância quero me referir ao poder de um objeto
exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no
expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o
espectador, o representante (1991, p. 42-56. Tradução de José Reginaldo Santos Gonçalves)
5
Um exemplo brilhante desse procedimento pode ser encontrado em um texto de Antonio Candido, no
qual, ao analisar a relação entre textos literários, descreve diferentes formas de ressonância de um texto
em outro, ora na forma de “inspiração”, ora da forma de “citação” (Candido, 2004).

10 Apresentação
É notório que, nas últimas décadas, a categoria “patrimônio” vem circu-
lando intensamente em diferentes meios sociais e acadêmicos, podendo evi-
dentemente assumir significados bastante variados. No entanto, é possível,
numa perspectiva mais ambiciosa, perceber uma dimensão estrutural nos usos
dessa categoria, dimensão talvez presente, sempre de modos diferenciados,
em quaisquer formas de vida sociocultural. Essa dimensão consiste no poder
de mediação exercido pelos chamados patrimônios. Sejam eles classificados,
como é o caso dos contextos ocidentais contemporâneos, como “materiais” ou
“imateriais”, sua existência se justifica pelo exercício dessas mediações entre
diversos domínios sociais e cosmológicos (Gonçalves, 2007).
É curioso que, no Ocidente contemporâneo, quando se fala mais e mais de
“patrimônio imaterial” ou “intangível”, torna-se flagrante a “materialidade”
dos patrimônios. Afinal, como separar a materialidade e a imaterialidade de
uma edificação, de uma prática culinária ou de determinadas festas populares?
Essa separação, que tão facilmente tomamos como natural, será mesmo de
validade universal? Os estudos aqui apresentados nos mostram precisamente
essa indeterminação, revelando como, em diferentes contextos socioculturais,
essa e outras oposições podem ser desenhadas de formas distintas.
O estudo assinado por Alberto Goyena analisa as polêmicas que acom-
panharam o processo de destruição, por parte dos talibãs, de duas estátuas
de Buda no Afeganistão no ano de 2001 e que haviam sido classificadas pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unes-
co) como “patrimônio da humanidade”. A partir desse caso, ele levanta alguns
questionamentos a respeito das relações entre “cultura material” e “transmis-
são de identidades coletivas”. E ressalta o caráter instável e indeterminado
das práticas inseparáveis de conservação e destruição dos patrimônios e sua
incessante ressignificação pelos atores envolvidos nesses processos.
As narrativas de passado e as formas de habitar que entraram em choque
durante o processo de construção de um “sítio histórico de origem portu-
guesa” no Morro da Conceição, Zona Portuária do Rio de Janeiro, é o tema
do artigo de Roberta Sampaio Guimarães. A autora analisa como, durante
esse processo ocorrido entre os anos de 1998 e 2000, planejadores urbanos
da prefeitura deslocaram diversos sobrados, logradouros e modos de vida de
seu contexto polissêmico cotidiano e os reordenaram discursivamente atra-
vés da categoria “patrimônio”, colocando diversos outros itens como mar-
gens do sítio histórico imaginado. Como efeito dessa ação, é demonstrado
que gerou-se não apenas a afirmação de diferentes memórias e identidades,
mas também novos processos políticos, sociais e estéticos, como a criação na

A Alma das Coisas 11


região de um “memorial” e um “circuito histórico e arqueológico” dedicado
à herança africana.
O artigo de Nina Pinheiro Bitar aborda a relação entre pessoas e deter-
minado tipo de comida, o acarajé, através da análise do processo de registro
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do “ofí-
cio das baianas de acarajé” e a posterior reapropriação nativa de tal política
pública. E o faz problematizando a noção de “patrimônio”, entendendo-a
não apenas em termos jurídicos, mas em sua formulação cotidiana por tais
baianas no contexto da cidade do Rio de Janeiro. Focalizando o “sistema
culinário” envolvido no ofício, a autora então explora a hipótese de que os
objetos materiais não atendem apenas a funções utilitárias; e nem são apenas
suportes identitários; mas mediadores e constituidores da vida social, não
existindo separadamente dos sujeitos.
No artigo seguinte, Roger Sansi analisa, no contexto das religiões afro-
-brasileiras, as relações entre iniciados e cultura material. Explora especifica-
mente suas relações com determinado tipo de objeto que, de certo modo, é
inseparável do corpo dos iniciados: as pedras ocultas nos terreiros, os “otã”.
Para tanto, explica como essa pedra incorporou diversos e por vezes contra-
ditórios valores dos objetos do candomblé, na Bahia do século XX: desde
armas de feitiçaria e sintomas de patologia racial até peças de arte erudita. E
tece considerações mais gerais com relação ao papel das noções de “histori-
cidade” e “materialidade” como instrumentos fundamentais para entender a
vida e a ”agência” desse objeto.
No artigo de Daniel Bitter são apresentados a produção e os usos sociais e
simbólicos das “bandeiras dos santos” e das “máscaras” no contexto do em-
preendimento festivo das Folias de Reis no Rio de Janeiro. O autor demons-
tra como tais objetos rituais envolvem amplas teias de reciprocidades sociais
através do estabelecimento de um intenso campo de interações e agencia-
mentos: seja no caso da bandeira, considerada detentora de poderes supra-
mundanos, trazendo “bênçãos” e “graças” a quem a recebe em sua casa; seja
no caso da máscara, portadora de significados moralmente negativos ao ser
usada pelo personagem do “palhaço”, tipo marcadamente liminar, cômico
e ambíguo. Por serem simultaneamente objetivos e subjetivos, materiais e
imateriais, o autor mostra como tais objetos caracterizam-se por uma pro-
funda ambivalência, sendo capazes de realizar mediações entre os domínios
natural, social e cósmico.
O estudo de Luzimar Paulo Pereira nos mostra o papel central da comen-
salidade nas Folias de Reis em Urucuia, Minas Gerais. Ressalta os momentos

12 Apresentação
das refeições coletivas da festa como etapas primordiais do sistema ritual para
saudar os Santos Reis Magos. Através de uma descrição densa das etapas do
“evento alimentar”, o analisa de modo inseparável de relações sociais e sim-
bólicas estruturais da folia. Em especial, o autor destaca a “fartura de comida”,
segundo os devotos, como um dos critérios fundamentais para o sucesso de
uma festividade. Demonstra como a relação de dívida e dádiva estabelecida
entre os foliões, imperadores e divindades obedece uma sequência ritual que
não apenas demarca relações hierárquicas, mas constitui tais relações.
O artigo de Ana Gabriela Morim de Lima nos oferece uma diferente pers-
pectiva sobre os objetos etnográficos colecionados por museus. Propõe a
análise do caso de um machado cerimonial, o Kajré, guardado no Museu
Paulista, e que em 1986 foi reapropriado pela comunidade indígena Krahô.
Além de descrever o processo político de “repatriamento” de tal objeto, a
autora faz uma análise dos diferentes mitos de origem que possibilitam múl-
tiplas ressignificações do mesmo objeto. A autora demonstra que tal objeto
passa a ser “símbolo” também de identidade indígena perante a “sociedade
de brancos” e recebe diversas ressignificações.
Já o artigo de Clarisse Kubrusly analisa uma série de narrativas biográficas
sobre a boneca Joventina, personagem importante dos maracatus do Recife.
Nesse caso, tal objeto aparece como mediador de uma série de controvérsias
entre o Museu do Homem do Nordeste, maracatus e a antropóloga Katarina
Real. A autora explora as negociações de posse dessa boneca pelos maraca-
tus e as diferentes narrativas sobre as origens e usos desse objeto. A partir
da boneca Joventina e da experiência de Katarina Real com os maracatus, a
autora ilumina diferentes imaginários sobre o que significa um objeto como
este no museu. Aponta, assim, a característica fragmentada da biografia de
tal objeto, que se mistura com as biografias de pessoas, grupos e instituições.
Um outro ponto de vista é oferecido por Flora Moana van de Beuque em
seu estudo de objetos utilizados no bumba meu boi do Maranhão, exploran-
do a ideia da circulação de uma máscara: a “careta de cazumba”. A autora
descreve e analisa de que forma tal máscara é classificada neste contexto
festivo, focalizando as relações sociais e simbólicas envolvidas. Dentre tais
relações, destaca o papel central de um artesão responsável pela confecção da
careta de cazumba e de sua trajetória de vida. Assim, propõe o entendimento
da máscara e de seu produtor inseridos também em outros contextos que
não os festivos, como nos museus. Revela que, através do deslocamento do
contexto da festa para o museus, esse objeto e o artesão ou “artista popular”
são diferentemente classificados e ressignificados.

A Alma das Coisas 13


O artigo de Anelise dos Santos Gutterres nos desloca para eventos co-
tidianos. Explora como a biografia de uma casa pode nos levar a pensar as
relações de parentesco e projetos de vida. A autora dialoga com duas in-
terlocutoras da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, que relatam as
transformações de espaços a partir de suas histórias de vida. Através das nar-
rativas de “mudanças de casa”, dos espaços da casa e de objetos guardados,
aborda a visão de mundo constituída por suas interlocutoras. A autora ob-
serva, assim, os esforços simbólicos de controlar a transformação, implícitos
no ato de guardar ou não guardar objetos materiais ligados à vida familiar.

Rio de Janeiro, verão de 2013

José Reginaldo Santos Gonçalves


Roberta Sampaio Guimarães
Nina Pinheiro Bitar

Bibliografia

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A Alma das Coisas 15


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A Alma das Coisas 17


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18 Apresentação
1.

O SORRISO IRÔNICO DOS BUDAS:


DEMOLIÇÃO E PATRIMÔNIO NO VALE SAGRADO
DE BAMIYAN

Alberto Goyena

Começo por um incidente ocorrido na Praça Beauboug.1 No segundo dia de


abril de 2001, um edifício dos arquitetos modernistas Renzo Piano e Richard
Rogers amanheceu portando um chamativo cartaz de 28 x 10 metros. Via-se,
em parte da fachada do Centro Georges Pompidou de Arte e Cultura, uma
figura humana com ares de divindade oriental. Mais de um pedestre que lá
estivesse teria reconhecido a imagem de um antigo príncipe asiático nascido
no sopé dos Himalaias por volta do século V a.C. Pertencente ao clã dos Gau-
tama e descendente de uma família da casta dos guerreiros, lá estava a figura
de Sidarta, homem reconhecido por ter recebido, em vida, o título de Buda.2

1
Tive a oportunidade de apresentar versões preliminares deste artigo durante a 28. Reunião Brasileira
de Antropologia, em grupo de trabalho coordenado pelos professores Renata de Castro Menezes e
Ronaldo de Almeida, a quem agradeço pelos comentários e sugestões. Sou igualmente grato aos
professores José Reginaldo Gonçalves, Marcia Contins, Edlaine de Campos Gomes e Roberta Sampaio
Guimarães por suas considerações e críticas no marco do Seminário de Pesquisas Deslocamentos,
espaços e patrimônios, organizado em agosto de 2011 na Unirio, onde apresentei um primeiro esboço
deste trabalho. Foram também muito instigantes e profícuos os debates em torno deste tema com os
colegas do Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços (Laares) do PPGSA da UFRJ.
2
Segundo a enciclopédia Eastern Definitions de religiões do Oriente, “Buda” é um título, assim como,
por exemplo, o de “presidente”. Ele é dado, sob a perspectiva propriamente budista, às encarnações de
um “arquétipo que se manifesta no mundo em diferentes períodos, através de personalidades diversas,
cujas particularidades individuais não devem ser, de modo algum, levadas em consideração” (Rice,
1986, p. 76). O estudioso de religiões orientais Edward Rice comenta que discussões a respeito da
existência histórica de Sidarta foram amplamente travadas pela historiografia moderna, apresentando
razões suficientes para não ser mais colocada em questão. Os longos debates envolvendo as datas
precisas de seu nascimento e morte, acrescenta Rice, perdem qualquer importância considerando-se
que Sidarta teria, em vida, recebido o título de “Buda”.

A Alma das Coisas 19


Tratava-se, mais especificamente, de uma gravura – ou melhor, de uma
reprodução ampliada de uma gravura do final do século XIX3 – em que o
Buda é representado em rara posição corporal: em pé. Não havia, contudo,
nesse centro parisiense de arte e cultura, como seria talvez de se esperar,
nenhuma exposição propriamente dita da qual o cartaz fosse referência. Em
outras palavras, não estavam aqueles pedestres, apenas e como de costume,
diante de um instrumento museográfico de divulgação.
Segundo relatado em nota do jornal francês Libération e na revista La Vie,
a exposição desse cartaz na fachada principal do edifício fora uma demons-
tração pública contra um episódio ocorrido algumas semanas antes, no vale
de Bamiyan, no atual Afeganistão. Idealizada pelo presidente do Centro Ge-
orges Pompidou e financiada pelo diretor da empresa Yves Saint-Laurent,
a imagem em questão estava lá para ser vista, afirmou o periódico francês,
como um “cartaz de manifestação política”.

A imagem ficará dois meses exposta. É um gesto de protesto contra o


fanatismo e o ódio às diferenças. Ele é também um sinal de esperança
já que, apesar de destruídos, os budas de Bamiyan não deixarão de fazer
parte do patrimônio imaterial da humanidade. (Cazenave, 2001, p. 9)

Naquela manhã, as duas estátuas que dão propósito a este artigo acaba-
vam de ser metralhadas, bombardeadas e dinamitadas, deixando à mostra
apenas fragmentos e estilhaços em um nicho vazio. Com efeito, desde que o
regime talibã assumiu o poder no Afeganistão, no final da década de 1990,
um grande acervo material, incluindo duas estátuas do Buda esculpidas em
um penhasco, foi alvo de investidas bélico-religiosas, primeiro verbais, logo
concretas. Segundo líderes do governo talibã, esses objetos atentavam contra
os preceitos islâmicos por serem peças de “idolatria”, devendo, assim, ser
totalmente destruídos. “Como é que nós vamos nos justificar, na hora do úl-
timo julgamento, por termos deixado essas impurezas em solo Afegão?” – foi
com essa pergunta do ministro talibã da Informação que os grandes jornais
internacionais tornaram públicas as supostas motivações do regime (cf. Le
Monde, apud Pierre Centlivres, 2002, p. 75).

3
Embora seu autor seja desconhecido, essa gravura permaneceu muitas décadas guardada no acervo
do Museu Britânico, em Londres. Acredita-se que a gravura tenha sido entalhada durante as missões
artísticas financiadas pela coroa britânica no período histórico denominado The Great Game, quando
os impérios Russo e Britânico disputavam a supremacia no que hoje é o Afeganistão (Rathje, 2004).

20 Alberto Goyena
Em janeiro de 2001, quando a província separatista de Bamiyan foi reto-
mada pela terceira vez, o líder do governo talibã, o mulá� Mohammed Omar,
assinou um decreto que, além de formalizar as ameaças verbais, gerou mo-
bilização de diversos meios de comunicação, organismos internacionais, go-
vernos nacionais e instituições artísticas e culturais. Também na imprensa
brasileira ressoaram as incriminações internacionais, e a decisão talibã foi
noticiada como um “ultrajante gesto de vandalismo”, um exemplo de “fun-
damentalismo que incentiva a intolerância religiosa”, até mesmo qualificada
de “maluquice”.4
O atentado havia muito anunciado a essas estátuas, que nos anos 1970
haviam sido decretadas “patrimônio mundial da humanidade”5 ocorreu
ao longo de mais de vinte dias, em março de 2001. O gesto iconoclasta,
no entanto, não foi conduzido na surdina. Ao que tudo indica, não bastava
dinamitar as estátuas de um dia para o outro e sem prévio aviso. Quis-se
propagar a cena, assinar a obra e registrar a intervenção. E lá estiveram,
para cumprir esse propósito, as câmeras da emissora televisiva Al Jazeera,
cujas imagens logo seriam divulgadas em grandes canais internacionais.
Pretendeu-se, como veremos, adotar uma postura de afronta. Mas contra
quem? Que argumentos poderiam legitimar uma intervenção como essa?
Se as estátuas sobreviveram a tantos diferentes regimes igualmente ico-
noclastas, por que haveriam os talibãs de temer, mais que os outros, esse
“julgamento final”?

4
Segundo a revista Época: “Na quinta-feira, ignorando protestos do mundo todo, os soldados
começaram a destruir o que o Talibã classifica de “falsos deuses”. Os alvos constituem um acervo
artístico de mais de dois mil anos, síntese de culturas do Oriente e do Ocidente. [...] Ao anunciar a
campanha de demolição, o ministro da Informação do Talibã, Qudratullah Jamal, disse que as tropas
agiam em vários locais, inclusive em Bamiyan e na capital afegã, Cabul. Até o fim da semana não havia
informações sobre o total de monumentos pulverizados pelo vandalismo estatal (Vandalismo religioso,
Época, 27/05/2010). Ver também: Dias, 2001; Taleban mantém ordem de destruir estátuas, Estadão.
com, 05.03.2001; e Ramos, 2001.
5
Informação e documentação oficial a respeito da destruição das estátuas de Buda em Bamyan podem
ser encontradas no artigo Cultural Landscape and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley publicado
no site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco (Disponível em: http://whc.unesco.org/en/list/208/).

A Alma das Coisas 21


Figura 1.1. Nota publicada no jornal
Libération, 2 de abril de 2001, p. 39

Das estátuas retiradas de seu pedestal

Posto que se trata aqui de um esforço para qualificar uma demolição,


notemos logo de início que o verbete demolitio do dicionário Félix Gaffiot
(2000), traz uma definição para o verbo que se perdeu no uso corrente do
português. Em latim, é apenas em seu sentido figurado que demolir é sinô-
nimo de “destruir”, como aponta o verbete: “demolitio, onis, f. (demolior),
1. ação de descender uma estátua de seu pedestal, retirar do nicho. 2. [fig.]
destruir, reverter”.
Em sintonia com essa definição introdutória, o episódio que passo agora
a comentar pode ser tido como uma demolição no sentido mais estrito da
palavra. Será a partir desse caso que levantarei alguns questionamentos a
respeito das relações entre “cultura material” e “transmissão de identidades
coletivas”. Se é verdade que há hoje, como destaca Derek Gillman, “uma

22 Alberto Goyena
larga aceitação de que é um dever passar as expressões materiais que nos vie-
ram do passado para as gerações seguintes” (Gillman 2010, p. 16), veremos
que, mediado por instituições nacionais e internacionais do patrimônio, esse
“dever” pode colidir frontalmente contra algumas sólidas barreiras culturais.
Segundo foi possível acompanhar através de informações divulgadas nos
meios de comunicação que noticiaram essa operação, a intervenção se iniciou
com disparos oriundos de armamento antiaéreo. Como os danos causados
às estátuas por esse instrumento não teriam sido suficientes para retirá-las
de seu pedestal, na etapa seguinte os responsáveis empregaram uma nova
estratégia. Alocaram minas antitanque na base das estátuas, a fim de que
elas estivessem enfraquecidas quando chegasse o momento de metralhá-las
novamente. Mas, de modo um tanto alegórico, podemos dizer, as estátuas
se empenharam em resistir. Soldados especializados tiveram então de ser
içados ao penhasco para instalar dinamite em diversos orifícios abertos nas
pedras da construção escultórica.6 Por fim, ainda teria sido lançado contra as
estátuas um míssil de alto calibre. Só então o mulá Mohamed Omar deu-se,
por satisfeito.
Em artigo que retomaremos mais adiante, o etnólogo Pierre Centlivres
esclarece que a operação transcorreu em sintonia com os preceitos islâmicos
para rituais sacrificais. Nesse sentido, acompanhou-se a demolição das está-
tuas com um sacrifício expiatório envolvendo a degola de cem vacas através
do país, cuja carne teria sido distribuída aos mais necessitados (Centlivres,
2001). Quando o duplo sacrifício foi dado por concluído (o das estátuas e o
das vacas), o ministro talibã da Informação, Qudratullah Jamal, comentou a
intervenção ao jornal Daily Times.

Este trabalho de destruição não é tão simples quanto as pessoas po-


dem acreditar. Não foi possível demolir essas estátuas derrubando-as
ou escavando em seu relevo. Tivemos de empreender um trabalho
custoso e complexo, já que as estátuas tinham sido entalhadas em
uma falésia e estavam firmemente atreladas à montanha. (Hasan,
2006. Daily Times, 19 de março de 2006)

6
Na versão do jornalista afegão Farhad Peikar, o exercito teria contado com a “colaboração” dos
habitantes locais: “Não foram apenas as estátuas que eles destruíram, mas todo o vilarejo, povoado
pela minoria xiita hazara. Essa gente foi torturada. Os Talibãs não se deram por satisfeitos apenas em
destruir os Budas, eles fizeram com que os moradores os ajudassem, mesmo contra a vontade. Eles
tiveram de escalar as estátuas, pendurados em cordas, abrindo buracos na rocha para colocar dinamite.
Quem não o fizesse, seria preso. [...] O povo de Bamiyan não se esquece dessas atrocidades e odeia os
Talibãs (Peikar apud Carranca, Afeganistão dez anos sem os Budas de Bamiyan, 01/03/2011).

A Alma das Coisas 23


As impressões do ministro Jamal são deveras surpreendentes. Falam-nos
das propriedades materiais das estátuas, de sua solidez e qualidade cons-
trutiva, mas sob um prisma negativo. Para quem esperava algum pedido de
desculpas, o registro no qual o ministro comentou a intervenção não terá
parecido nada apropriado. Mas seu comentário chama a atenção para uma
característica central das estátuas, quer seja, sua relação com outro objeto,
uma sorte de “pedestal”. As estátuas do Buda estavam esculpidas e fundiam-
-se, precisamente, com uma montanha que lhes dava suporte.
De fato, se colocarmos o gesto iconoclasta em suspensão, abandonando,
mesmo que provisoriamente, a necessidade de produzir um julgamento so-
bre a demolição dos Budas de Bamiyan, será possível encontrar, nas diversas
declarações a seu respeito, indicações sobre as particularidades materiais dos
objetos em questão. Como veremos mais adiante, há certamente muito que
aprender sobre as coisas ao incorporarmos – aos conhecimentos e interpre-
tações de historiadores, arqueólogos e estudiosos das belas artes – as per-
cepções e saberes daqueles que as demoliram. A demolição, assim como a
construção e a restauração, tem mesmo seus vocabulários próprios e parece-
-me central levá-los em consideração ao empreendermos um estudo sobre
objetos. Como escreveu o antropólogo Tim Ingold, “o foco – na Antropolo-
gia, Arqueologia e nos estudos sobre cultura material – tendeu a privilegiar a
materialidade dos objetos em detrimento dos materiais e suas propriedades”
(Ingold, 2011, p. 15). Aprenderíamos também sobre as coisas, postula o
antropólogo, se tratássemos mais

[...] diretamente dos materiais, acompanhando-os em seus desloca-


mentos, em suas fusões com outros objetos e em seus processos de
solidificação e dissolução. Processos esses que constituem a formação
de coisas mais ou menos duráveis. (Ingold, 2011, p. 16)

Antes de prosseguir, voltemos ao cartaz na Praça Beaubourg para perce-


ber uma contradição central. Quero dizer com isso que, para além da decisão
do regime talibã e da indignação dos diretores do Centro Pompidou, havia
um problema muito anterior envolvendo a escolha do pedestal apropriado
para as estátuas quando de sua construção.
Notemos, pois, a volumosa cascata de imagens e materiais que pesavam so-
bre aquele cartaz: na matéria de jornal reproduzida acima foi impressa uma
fotografia contendo a imagem de um cartaz que era, por sua vez, a ampliação
de uma das cópias de uma gravura. Vimos que se tratava de uma gravura do
século XIX, onde um gravurista havia tido por modelo uma estátua esculpi-

24 Alberto Goyena
da em um relevo calcário. Desdobrando mais uma etapa, lembremos que a
estátua representava uma das encarnações de um “arquétipo”. Quão irônico
ou paradoxal não será mesmo perceber que esse homem, essa encarnação do
Buda – reproduzida em pedra, madeira, lâmina de cartaz e em papel de jornal
– proferiu, como escrito no Digha Nikaya,7 a seguinte recomendação sagrada a
seus fiéis: “Apenas nos cintilantes reflexos sobre a água quero eu ver a minha
imagem reproduzida”.8

Da chegada dos Budas ao Afeganistão

Segundo Deborah Klimburg-Salter (2011), historiadora da arte asiática,


uma série de estátuas do Buda foi entalhada durante a dinastia Tang da Chi-
na, no século VI d.C., nas falésias de arenito que circundam Bamiyan, cidade
localizada no centro de um vale que separa as cadeias montanhosas do Hin-
dukush e do Kuh-i-Baba.
Durante esse período, a China havia logrado a reunificação entre os ter-
ritórios do norte e do sul, atingindo a maior expansão territorial de sua his-
tória e chegando até o Mar Cáspio, na Ásia Central. A cidade de Bamiyan,
situada a cerca de três mil metros acima do nível do mar, foi fundada em um
vale por onde passava a lendária Rota da Seda. Bamiyan era um lugar de pou-
so para comerciantes, viajantes e peregrinos que transitavam entre a China e
o Império Romano. Durante cinco séculos, foi importante referência para o
budismo, sendo eleita por seus monges um dos mais importantes centros de
oração e práticas cerimoniais da cultura budista pancontinental. As numero-
sas cavernas e aberturas naturais no penhasco teriam servido, escreve ainda
a historiadora, de hospedaria para forasteiros, de esconderijo para infratores,
de depósito de mercadorias e mesmo de cômodos para os monges da região9
(Klimburg-Salter, 2011).

7
O Digha Nikaya é uma das escrituras budistas e quer dizer “coleção dos longos discursos” (Rice,
Eastern Definitions).
8
A questão da reprodutibilidade da imagem do Buda é assunto longamente discutido. Segundo o
arqueólogo W. L. Rathje (2004), imagens do Buda só foram feitas quatrocentos anos depois da morte de
Sidarta Gautama. Ainda assim, diz ele, as imagens eram criadas apenas para relembrar aos seguidores
sua própria natureza budista inata.
9
Segundo Rathje (2004), algumas dessas cavernas estão ocupadas hoje por refugiados da guerra no
Afeganistão. No artigo de Centlivres (2002), diz-se que guardavam armas, serviam de depósito para
várias coisas, moradia e esconderijo.

A Alma das Coisas 25


Peregrinos chineses, como o celebrado monge Xuan-Zang – relata Derek
Gillman (2010), historiador de arte especializado em estudos chineses –,
deslocavam-se até Bamiyan para meditar diante dessas estátuas colossais
que chegavam a medir em torno de 60 metros de altura. Muito embora a
data precisa de sua construção seja desconhecida e alvo de disputas, Xuan-
-Zang é apontado como um dos primeiros a testemunhar, por escrito e no
século VII d.C., a existência de tais obras, que observou quando se dirigiu
à região em busca de cópias dos Sutras originais do ensinamento budista,
perdidos na China.

Figura 1.2. Ilustração mostrando a aparência dos Budas


de Bamiyan no final do século X. As partes avariadas
em períodos posteriores foram aqui ressaltadas em azul.
Ilustração: Anna Thereza Menezes

26 Alberto Goyena
Gillman relata também que essas representações escultóricas do Buda
haviam sido concebidas e entalhadas sem rosto e sem mãos. Diferentemente
do que se pensava quando as estátuas se tornaram alvo do interesse da Or-
ganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unes-
co) – o que resultou em seu tombamento oficial –, para Gillman, as estátuas
de Bamiyan não foram desfiguradas nem “amputadas” por terceiros, poste-
riormente a seu entalhe. “Essas estátuas foram pensadas assim”, sustenta o
autor. O que, contudo, não significa que os Budas não tivessem expressão
facial e gestual. Seguindo uma periodicidade ritual, monges budistas confec-
cionavam máscaras e luvas de cobre, que forjavam e dispunham nas secções
do rosto e das mãos das estátuas (Gillman, 2010, p. 19). Atribuíam assim,
ao Buda, feições e gestos diferenciados em função de calendários e precei-
tos próprios. Às estátuas, por sua vez, imprimiam uma destacada ilusão de
movimento e transformação, o que remetia justamente à ideia de imagem
refletida no curso das águas. Contornado desse modo o problema de sua
representação, um Buda que surge já desfigurado parece mesmo pôr em xe-
que qualquer tentativa de demolição: o gesto iconoclasta já havia sido, pois,
incorporado em sua própria construção.
Seu entalhe, comenta o arqueólogo americano William Rathje, fora alta-
mente custoso para a época, estando muito acima dos padrões escultóricos da
região. Podendo ser vistas a quilômetros de distância, reluzindo os raios solares
no cobre de suas máscaras e luvas, mediam precisamente 37 e 55 metros de
altura. O maior dos Budas, que teria portado tecidos vermelhos, representaria
Vairocana (ou “luz que brilha através do universo”) e o menor, de vestes bran-
cas, representaria o próprio Sidarta. Segundo esse arqueólogo, as estátuas eram
ainda símbolos centrais para o budismo mahayana, que enfatizava a habilidade
de todos, e não apenas dos monges, de alcançar a iluminação (Rathje, 2004).
A opinião de Gillman e Rathje não é, contudo, aceita por todos os arque-
ólogos voltados para pesquisas nessa região. Para Finbarr Flood, professor
de belas artes na Universidade de Nova York e especialista em iconoclasmo
islâmico,10 é igualmente possível que as estátuas tenham sido desfiguradas

10
É importante frisar o contexto político em que Barry Flood escreveu seu artigo. Publicado em 2002, logo
após os atentados contra as torres gêmeas e no contexto de ondas de anti-islamismo, o autor enfatiza
a importância de perceber essa ação como tendo sido conduzida por certos atores em determinados
contextos históricos. Em resposta à percepção difundida em jornais e colunas de opinião americanas,
Flood busca comparar esse momento a outros momentos iconoclastas. Nesse sentido “a concepção de
uma resposta monolítica ou patologicamente muçulmana à imagem deve ser substituída por uma que
leve em consideração os diferentes modos de práticas culturais e suas variações” (Flood, 2002).

A Alma das Coisas 27


ou mutiladas por ordem de uma linhagem específica de sultões medievais. Flood
explica que durante os governos dos seguidores de Mahmud al-Ghazni, uma
série de imagens foi alvo dos mais variados tipos de iconoclasmo (Flood, 2002).

Figura 1.3. Ilustração do Vale de Bamiyan com os nichos esculpidos para as estátuas
do Buda. Ilustração: Anna Thereza Menezes

Embora não chegue a negar a possibilidade de que os budas tenham sido


representados já sem rosto nas falésias da cadeia montanhosa, Barry Flood
pondera que a prática do desfiguramento era muito comum no século XII,
sendo realizada por iconoclastas muçulmanos, mas também por cristãos e
judeus. Especialista em formas, técnicas e práticas medievais de “neutra-
lização” de imagens, os estudos desse pesquisador nos despertam para a
grande complexidade material presente em ações desse gênero. Não se pode,
escreve Flood, considerar todas as demolições por igual. Há, historicamen-
te, quem tenha quebrado o nariz de uma estátua para que ela não pudesse
respirar; quem tenha furado seus olhos com uma faca para que o objeto
não pudesse ver; quem tenha traçado uma linha preta sobre o pescoço das
imagens figurativas para indicar que não estavam animadas; ou quem tenha
arrancado seus dedos com alicates para infligir alguma punição nesse tipo de
representações figurativas.
Investigar as técnicas que determinados povos empregaram para demolir
imagens é, paralelamente, perceber algo a respeito dos modos através dos

28 Alberto Goyena
quais essas pessoas interagiram com tais objetos. Nas suas técnicas de de-
molição, o demolidor se comunica com um objeto e suas formas. Analisar as
particularidades dessa interação é ler o modo segundo o qual um determi-
nado grupo concebeu aquilo que um objeto “é” ou aquilo que poderia “estar
fazendo”. Cada uma dessas empreitadas se insere em contextos cosmológi-
cos diferenciados, apresentando importantes correlações com as ferramen-
tas e regras presentes nos rituais e intervenções aplicados também sobre
os corpos das pessoas. Enterros, julgamentos, nascimentos ou casamentos
são marcados assim não só por transformações em corpos, mas também em
objetos. Nos países e épocas em que se arrancavam, com alicates oficiais, as
mãos ou dedos de infratores, encontrar uma estátua assim mutilada não é,
pois, um dado menor.

Da ocupação islâmica

Com a chegada e o estabelecimento de tribos islâmicas no Afeganistão no


início do século XI, as fronteiras chinesas na Ásia Central recuaram para o
oriente, as rotas comerciais e os sistemas tributários foram remanejados e os
monges budistas, forçados a deixar o vale de Bamiyan. Embora a confecção
periódica de máscara e luvas para as estátuas tenha sido doravante abando-
nada, as estátuas em si não foram percebidas como uma grande ameaça para
o vitorioso sultão Mahmud al-Ghazni. Ele teria, inclusive, encomendado ao
sábio muçulmano medieval al-Biruni um tratado sobre elas. Com o crescente
avanço do islã no oriente, era importante para o sultão conhecer bem as prá-
ticas culturais dos povos da Índia e China. Aos olhos de Mahmud al-Ghazni,
estudar a relação desses povos com seus objetos era uma estratégia de guer-
ra. Para conquistá-los, era central saber, em sua percepção, como “neutra-
lizar” suas linga (do árabe, “estátuas que incorporam divindades”) (Flood,
2002). Preservar os budas era assim, para o sultão, duplamente importante.
Se por um lado as estátuas eram vistas como “armas”, por outro eram tam-
bém troféus de guerra, “reféns” exibidos em plena rota da seda (Flood, 2002;
Klimburg-Salter, 2011).
Não obstante, mesmo que o sultão al-Ghazni não tenha ordenado a de-
molição das estátuas sagradas, ele era, sim, escreve Barry Flood, um reco-
nhecido iconoclasta. Transformou templos budistas em mesquitas e palácios
por meio da decapitação ou recontextualização de todas as figuras humanas
e animais presentes. Conta-se também que, em vez de desperdiçar esforços

A Alma das Coisas 29


de destruição, ele teria arquitetado estratégias de negociação de peças figu-
rativas com mercadores europeus, asiáticos e até mesmo com comerciantes
muçulmanos que, de diversos modos, puderam fazer uso de seus materiais.
A partir de certo momento, contudo, sua relação teria começado a levantar
suspeitas e, escreve Flood, o sultão teria passado a ganhar a injuriosa fama
de “negociador de imagens”. Foi necessário fazer prova do contrário.

Em 1025 Mahmud al-Ghazni invadiu a cidade de Somnath [no Pa-


quistão] e saqueou seus principais templos. Segundo contam algu-
mas lendas, os monges brâmanes ofereceram generosas quantias
como pagamento pelo resgate das estátuas do templo. Mahmud recu-
sou a oferta, repudiando a visão popular de que ele era um negociador
de imagens [image broker] e afirmando-se como um negador de imagens
[image breaker]. (Flood, 2002)

Segundo as pesquisas do arqueólogo, na prática, conquanto não ocupas-


sem os recintos sagrados de casas e palácios, as estátuas figurativas pré-
-islâmicas foram, sim, empregadas na ornamentação de exteriores, jardins
ou áreas ditas impuras, como os salões de exposição de relíquias de guerra.
Existe até uma categoria árabe de classificação de objetos, a ruh, que descreve
um objeto “neutralizado” ou cuja alma fora retirada em função da disposição
na qual o objeto é apresentado. Colocados de cabeça para baixo, no chão sem
tapete ou de acordo com uma composição expositiva que denotasse claramente
sua condição de estátua despida de poderes (estátua pisoteada), os objetos da
iconografia pré-islâmica encontrados pelos muçulmanos em Bamiyan quan-
do de sua ocupação continuaram a encher, ainda segundo o arqueólogo Barry
Flood, os novos palácios públicos e privados de vários sultanatos. De fato, até
mesmo os tecidos com motivos figurativos encontrados pelos muçulmanos
em Bamiyan foram transformados em ruh, mediante seu corte e recostura. Ser-
viram assim de almofada de chão ou tapete de áreas impuras das residências
islâmicas. Recontextualizados, os objetos impuros puderam assim se infiltrar,
de formas lícitas e ilícitas, na cultura pós-budista de Bamiyan.

Um investimento considerável de energia e de recursos se fez presen-


te tanto na destruição de templos budistas e hinduístas quanto em
sua conversão em mesquitas, reutilizando os elementos arquitetôni-
cos dos primeiros. Nesse sentido, os determinantes do iconoclasmo
não são apenas políticos ou religiosos, mas também econômicos. O
processo iconoclasta podia ser, no contexto islâmico medieval, alta-
mente demorado, calculado e burocratizado. (Flood, 2002)

30 Alberto Goyena
Ao menos do ponto de vista de suas práticas sociais, notamos que os
iconoclastas muçulmanos da linhagem de Mahmud al-Ghazni não eram nem
tão avessos à iconofilia nem tão iconofóbicos assim. Em outras palavras, com
graus variantes de receio, colecionavam imagens figurativas eles também.
Tudo dependia de uma questão de contextos, do espaço preciso em que se situ-
avam segundo as categorias classificatórias nativas. Já do ponto de vista teoló-
gico, as prescrições dos religiosos eram, realmente, mais rígidas. Ainda assim,
como escreve o antropólogo Jean-François Clément – pesquisador das socieda-
des magrebinas – os quatro califas pelos sunitas considerados os companheiros
do profeta, muito embora condenassem a criação de imagens de Deus, respei-
tavam aquilo que denominavam pela categoria “tesouro do passado”.
Em seu artigo “The Empty Niche of the Bamiyan Buddha”, Clément (2002)
destaca que a teologia muçulmana fora sempre, de forma geral, crítica a repre-
sentações humanas de divindades, por percebê-las como rivais de Deus. Em
diversas passagens dos Hadiths (palavras dos profetas), diz ele, vê-se a figura
divina desafiando os humanos criadores de formas a soprar uma alma em suas
criações. O pesquisador pondera, contudo, que são apenas algumas linhagens
mais radicais na sucessão de sultões que veem, em sua leitura dos Hadiths,
uma necessidade concreta de promover empreitadas destrutivas. Historica-
mente, sunitas e xiitas circunscreveram a questão iconoclasta aos atos de criar
e adorar. Os objetos e as imagens em si foram percebidos, ao longo dos diversos
sultanatos, como meros “tesouros antigos” ou coisas de outros povos – “certa-
mente ignorantes” – que valia mais não provocar em demasia... Afirma o autor:

As teologias muçulmanas muito raramente mostraram interesse nas


imagens como tais durante o seu desenvolvimento. Em contraparti-
da, comentaram extensivamente sobre a situação daqueles que são
enfrentados a imagens. Ao longo de sua história, eles questionaram o
observador e não o objeto em si. (Clément, 2002)

Recapitulando alguns argumentos levantados até aqui, percebemos que,


ao tratar da demolição de estátuas, tanto o “pedestal” quanto o “lugar pre-
ciso” e “contexto social” em que uma estátua se encontra são fatores indis-
pensáveis a levar em consideração. A ação de demolir não deve, pois, ser re-
duzida apenas a um mero “destruir”. Trata-se recorrentemente de uma nova
disposição, em outro pedestal, de outro modo. Aprofundar-se na gramática
da demolição e salientar suas nuanças e complexidades é compreender que,
mais que destruir, demolir pode e deve ser entendido como um ato de “de-
moção”, deslocamento ou recontextualização em dado espaço regrado.

A Alma das Coisas 31


O gesto iconoclasta supõe assim uma série de conhecimentos sobre os
objetos – mediados por regras e práticas sociais – que vão de seu valor de
troca a seu valor de uso e, poderíamos agregar, de seu valor estratégico bélico
a seu valor expositivo. Como “objeto-refém”, “objeto neutralizado”, “objeto
do passado” ou “objeto pisoteado” (ruh ou linga), as recontextualizações são
também formas de destruição. Com essas considerações em mente, volte-
mos para o mês de março de 2001.

Estratégias teológicas e narrativas políticas

A presença das estátuas no Afeganistão era vista pelos talibãs como uma
impureza. Mas não só isso, era uma impureza da qual o regime deveria se
livrar. Desse modo, passados mais de oito séculos desde a primeira ocupação
islâmica, e após uma guerra civil que resultou na tomada do poder pelo regi-
me talibã, seu líder, o mulá Mohammed Omar, assinou, em 26 de fevereiro de
2001, um decreto ordenando a eliminação de toda iconografia e arquitetura
não islâmica em solo afegão, evento noticiado em manchete do jornal francês
Le Monde no início de março daquele ano. Observemos o texto do decreto:

Em virtude da fatwa de estudiosos afegãos proeminentes e do veredic-


to da Suprema Corte Afegã, foi decidido destruir todas as estátuas/
ídolos presentes nas diferentes partes do país. Isso porque esses ído-
los foram deuses dos infiéis, que os adoraram, e esses são respeitados
até hoje e talvez possam se tornar deuses novamente. O verdadeiro Deus
é somente Alá, e todos os outros falsos deuses devem ser removidos.
(Flood, 2002, grifos nossos)

Fazendo eco ao conceito cunhado por Bruno Latour de iconoclash, Jean-


-François Clément e Pierre Centlivres comentam o documento sinalizando
um paradoxo. Ao postular a ameaça de que os “deuses poderão voltar”, os
talibãs estariam fazendo prova de fé, como se acreditassem, eles também,
em algum “poder” proveniente dessas estátuas. Se, como declarou Qudra-
tullah Jamal para justificar o gesto, as estátuas “não são grande coisa: são
apenas objetos feitos de barro e pedra” (Bearak, 2001), perguntam-se os
pesquisadores, por que “temê-las?” Quem é, no fim das contas, o “verdadei-
ro” iconoclasta? Aquele que “destrói”, aquele que “negocia” ou aquele que
“nega”, logo de início, o pressuposto segundo o qual os objetos podem estar
“animados”? Talvez, ao se empenhar em destruir os budas, os talibãs se co-
locam, ainda que o neguem, do lado daqueles que creem na possibilidade de

32 Alberto Goyena
que os objetos sejam coisas vivas. E isso não parece estar em sintonia com
os sagrados preceitos.
Menos de dez dias depois da divulgação do decreto do mulá Omar, a
Unesco enviou uma delegação de diplomatas para o Afeganistão.11 Um dos
documentos centrais no conjunto de escritos sobre o caso das estátuas de
Bamiyan é o relatório do embaixador francês Pierre Lafrance, publicado na
revista Critique Internationale (2001). Diplomado nas línguas árabe e persa, o
embaixador atuou em importantes negociações na região e serviu em vários
países muçulmanos, incluindo o Paquistão, o Irã e o próprio Afeganistão, no
período de 1973 a 1975.
Seu papel na querela sobre os budas foi de fato destacado. Em março de
2001, ele foi o emissário escolhido pela Unesco para a missão diplomática
que tentaria salvar as estátuas. Nas oito páginas do documento, Lafrance
narra os bastidores de uma complexa teia de argumentações e personagens
que resultou no fracasso da missão. De alguma maneira, o relatório é um
pedido de desculpas. Mas a quem? Quem era o “proprietário” das estátuas?
O diplomata abre o texto declarando que a decisão do regime fora recebi-
da com grande surpresa. Embora houvesse comentários de que Cabul estaria
enrijecendo suas interpretações do Corão, o regime “parecia saber que as
estátuas já não eram, há quase um milênio, mais do que vestígios arqueoló-
gicos” (Lafrance, 2001). O embaixador explica também que o regime havia,
até pouco antes de iniciar o processo de demolição, “anunciado seu interesse
pelo patrimônio histórico de seu país e dado prova disso” (Lafrance, 2001),
já que os museus de Cabul permaneceram abertos ao longo dos anos de
1999 e 2000. Motivos ligados à política das relações internacionais, afirma o
diplomata, teriam disparado a engrenagem que resultou no que chamou de
“une catastrophe!”. Em outras palavras, o embaixador acredita que as razões
centrais devam ser extraídas – e esse é justamente seu “campo” – das rela-

11
O Embaixador francês da Unesco não foi o único diplomata a sentar com líderes talibãs para tratar das
estátuas. Também autoridades chinesas, japonesas, indianas, tailandesas e cingalesas se empenharam
na sua preservação. Considerando que os budas eram “seus”, propuseram ainda algumas soluções
que mencionaremos rapidamente. Uma delegação de parlamentares japoneses, por exemplo, ofereceu
ajuda humanitária e compensações financeiras. Representantes da Tailândia e do Sri Lanka propuseram
que os budas fossem cobertos com cimento e areia. O material e a mão de obra seriam, até, enviados
por esses países. Os budas ficariam assim cobertos por um “véu de cimento” na esperança de que,
passada a soberania do regime talibã no Afeganistão, se pudesse retirar o emplastro. Da China, teriam
vindo ainda ofertas de compra e translado das estátuas, com a retirada de “pedra por pedra”, que seriam
posteriormente reencaixadas em lugar a ser definido. Falharam também essas missões. Talvez o mulá
Omar não quisesse mesmo ser associado a um “negociador” de imagens.

A Alma das Coisas 33


ções do Afeganistão com a Organização das Nações Unidas (ONU) e com a
Organização das Conferências Islâmicas (OCI).12
No dia primeiro de março de 2001, Lafrance foi enviado primeiramen-
te ao Paquistão no intuito de tentar conversar com pessoas que pudessem
exercer influência sobre os autores do decreto talibã. O Paquistão alberga
uma das sedes do Conselho de ulemás (teólogos muçulmanos especializados
em leis e religião), instância hierarquicamente superior ao título de mulá.
Segundo Lafrance, os ulemás teriam dado seu inteiro apoio à causa do diplo-
mata, justificando a postura talibã sob um prisma teológico: acreditavam que
toda a questão girava em torno da interpretação que o regime talibã fazia da
Charia,13 especificamente no mandamento que regula a proibição da adora-
ção. Apontavam então para uma antiga divergência entre sultanatos mais
ou menos ligados aos preceitos do anteriormente citado sultão Mahmud al-
-Ghazni. Por outro lado, mostraram-se preocupados com as retaliações que a
demolição dos budas poderia instigar nos países orientais de minorias islâmi-
cas. Há séculos, de fato, budistas – e sobretudo hinduístas – se veem em uma
histórica vendetta com muçulmanos, em que mesquitas são destruídas para
vingar saques feitos em templos, que por sua vez teriam sido impulsionados
por depredações em mesquitas... (Flood, 2002). Percebido assim, em maior
extensão histórica, o “episódio” de Bamiyan começa a ganhar contornos que
o tornam menos arbitrário do que se poderia imaginar. Seria pois a demo-
lição conduzida pelos Talibãs uma resposta a alguma mesquita vandalizada
na Índia? Casos não faltariam, ao menos para justificar uma empreitada tal.
Por outra parte, segundos os ulemás do Paquistão, o poder político e reli-
gioso do regime talibã sobre o Afeganistão começava a escapar de seu con-

12
Em dezembro daquele ano de 2000, ele relembra, o Conselho de Segurança da ONU negou plenos
direitos ao regime talibã e não lhe permitiu que ocupasse a cadeira do Afeganistão na Assembleia
Geral da ONU. Embora o regime controlasse mais de 90% do território nacional afegão, quem estava
naquele lugar, na cadeira do Conselho de Segurança, ainda era o presidente deposto pelos talibãs,
Burhanuddin Rabbani. Com o intuito de reverter a opinião internacional a seu respeito, semanas antes
da efetiva demolição, o regime talibã havia mandado um emissário a Paris para tratar da questão.
Relata Lafrance: “O ministro da Saúde Afegão veio a Paris pedir para que a condição do talibã fosse
normalizada. Eu mesmo o recebi. Ele afirmou que o regime tinha interesses pacíficos e sublinhou a
importância da ajuda às populações nos campos de refugiados. Falou também dos interesses do regime
pela proteção do patrimônio afegão e insistiu em que a extradição de Osama Bin Laden fosse tratada
como questão sui generis, devendo ser discutida independentemente das outras. [...] Como imaginar
que eles tomariam uma iniciativa que iria declaradamente tão de encontro à opinião pública, já que,
aparentemente, esforçavam-se bastante para saná-la? (Lafrance, 2001)
13
O código de leis do islamismo.

34 Alberto Goyena
trole e os talibãs estariam supondo que uma afronta dessas dimensões traria
a força necessária para renovar-lhes a legitimidade política. Dito de outro
modo, um tanto jocosamente, é como se os ulemás estivessem acusando o
líder talibã de querer ser mais muçulmano que os muçulmanos.
Como podemos supor, o embaixador foi mandado para essa missão porque
a demolição em questão era, da perspectiva da Unesco, uma agressão a “seu”
patrimônio da humanidade e não, ou não apenas, uma afronta à legitimidade
político-religiosa dos ulemás paquistaneses. Ainda assim, Lafrance preferiu,
talvez para que não houvesse mal-entendidos entre ele e o regime talibã, ar-
quitetar uma estratégia política de negociação que recorresse aos argumentos
teológicos. A Unesco e o Embaixador apostaram então no poder de influência
desse corpo de sábios muçulmanos sobre o mulá Omar. Logo após o encontro
de Islamabad com os líderes religiosos paquistaneses, Lafrance declarou estar
convencido da estratégia diplomática que empregaria na escala seguinte da-
quela viagem, Candaar. Era preciso chegar ao Afeganistão, escreveu, com bons
argumentos teológicos para impedir o “massacre” das estátuas.
Quando chegou a Candaar, cidade afegã situada a mais de quatrocentos
quilômetros de Bamiyan, para o esperado encontro com o mulá Mohammed
Omar, Lafrance fora informado de que o mulá não estava mais recebendo
delegações de não muçulmanos e que só excepcionalmente se reuniria com
muçulmanos de nacionalidade outra que não a afegã. Assim sendo, a nego-
ciação teve de ser travada com o ministro de Relações Exteriores do regime,
que transmitiria o ponto de vista de Mohamed Omar e colheria, do diploma-
ta, as proposições da Unesco. Como planejado, os representantes versaram
argumentos teológicos, ou melhor, debateram a respeito da procedência, ou
não, da demolição das estátuas segundo os sagrados preceitos islâmicos. Eis
aqui, segundo relatado pelo próprio embaixador, uma síntese dos argumen-
tos apresentados por ele na recepção de Candaar:

1. O budismo é, justamente, o contrário de uma idolatria. As estátuas,


em si mesmas, não são objetos de culto, mas apenas uma recordação
da virtude de um ensinamento, de uma lei, de um saber; qualificá-las
como ídolos seria insultar o budismo;

2. Os vestígios do Afeganistão antigo se tornaram puros objetos de


pesquisa científica. É contrário aos preceitos islâmicos entravar o tra-
balho dos sábios de todas as disciplinas;

3. Os dirigentes mais consagrados do mundo muçulmano respeita-


ram, desde a fundação do Islã, esses vestígios;

A Alma das Coisas 35


4. Os vestígios foram sempre considerados uma Ibra – em árabe, uma
lição de fé para os fiéis. O papel das Ibras é benéfico para a tradição
islâmica. (Lafrance, 2001)

“Meu interlocutor”, escreveu ainda o diplomata, “esforçou-se para res-


ponder a essas considerações, ponto por ponto”. Contudo, diz ele, o minis-
tro talibã se evadia as discussões teológicas e buscava enfatizar argumentos
“humanitários”, insistindo, pois, em que já não havia mais budistas no país e
que, do contrário, as estátuas seriam preservadas, posto que “há que se per-
mitir o exercício da fé de outrem... e quanto à leitura da Charia, o Afeganis-
tão tem seu próprio corpo de sábios e o assunto será tratado internamente”
(Lafrance, 2001). Enquanto o embaixador buscava levar o tom da discussão
para argumentos teológicos, o ministro talibã insistia em uma justificativa
que passava pela sua visão sobre o que seriam valores “democráticos e de
representação”.
Dois dias depois desse encontro, para “alívio” da Unesco, o xeique egíp-
cio Youssouf Al Qardhaoui, membro e líder do Conselho de Ulemás, anun-
ciou a esperada posição final da Organização da Conferência Islâmica sobre
o assunto: contrária à demolição. Se a missão diplomática parecia dar sinais
de grande êxito, uma inesperada reviravolta ainda estava por vir.

Colocando-se no lugar de mais sábio e mais piedoso do que os com-


panheiros do profeta, e dos califas bem dirigidos que haviam respeita-
do os vestígios históricos, os talibãs estão manifestando orgulho ím-
par [...] Essa vontade destrutiva é contrária aos princípios da Charia.
(Lafrance, 2001, grifos nossos)

Da perspectiva local: os hazara

Na leitura do etnólogo Pierre Centlivres (2002), os emissários da Unesco


trataram com o regime talibã a partir de uma perspectiva demasiadamente
clerical. Nesse sentido, é como se tivessem embarcado em uma duvidosa
necessidade de fazer compreender aos talibãs as distinções, tanto práticas
quanto teóricas, entre “idolatria” e “exemplaridade”, “ídolo” e “ícone”, “ad-
miração” e “culto”.
Por outra parte, o etnólogo sublinha a importância de considerar a opi-
nião dos habitantes do vale, os hazara. O autor relata que, entre os habitantes
locais, não se sabia ao certo o que ou quem, no fim das contas, as estátuas

36 Alberto Goyena
representavam. Pensava-se, adianta Centlivres, que eram as figuras de um
homem e de uma mulher, provindas de antigas lendas muçulmanas.

A ideia segundo a qual os budas são diferenciados sexualmente existe


há muito na tradição afegã. Os viajantes europeus do século XIX já havia
notado que, para a população local, uma das duas estátuas apresentava
atributos femininos. Os habitantes de Bamiyan de fato afirmaram que os
budas formavam um casal; o mais alto sendo um homem e o outro uma
mulher, chamados por vezes de Lât e Manât. (Centlivres, 2008)

Convivendo há séculos com esses objetos, existem certamente entre os


povos hazara importantes vozes a incluir ao debate. Em artigo que dedicou
à querela sobre os budas de Bamiyan, o arqueólogo William Rathje nos traz
outro dado sobre a maneira como esses povos se apropriaram, historica-
mente, das estátuas. Segundo afirma, expedições arqueológicas conduzidas
na região, já em meados do século XIX, tinham identificado a presença de
pedras extraídas das estátuas do Buda nas habitações locais. Estreitamente
relacionados com suas casas, Lât e Manât – e não os budas Vairocana e Sidarta
– eram importantes símbolos da identidade hazara. Além do mais, acrescenta
o arqueólogo, não se pode esquecer que, na época, Bamiyan era uma base de
oposição ao regime talibã. O presidente deposto do Afeganistão, Burhanu-
ddin Rabbani, era justamente considerado o principal líder hazara.
É mesmo razoável supor que, após tantos anos de convívio com essas
estátuas colossais às portas de suas casas, os hazara tenham incorporado,
de um modo ou de outro, tais imagens à iconografia local, atribuindo-lhes
novos sentidos e significados. Como pude comprovar, ao ler os documentos
e registros da Unesco sobre o tombamento das estátuas,14 há reproduções
do Buda em selos e cartões-postais afegãos desde antes dos anos 1950. As
estátuas estavam mesmo presentes no imaginário local como símbolos polí-
ticos do país – não só regionais, mas também nacionais. Selos comemorati-
vos atestam igualmente a importância internacional que as estátuas ocupa-
vam nos roteiros oficiais veiculados pela Organização Mundial do Turismo
(OMT). Assim posicionado no mapa dos grandes sítios históricos mundiais
a se visitar, o vale de Bamiyan gerava mais do que importantes recursos co-
merciais para os hazara.

14
Informação e documentação oficial a respeito da destruição das estátuas de Buda em Bamyan podem
ser encontradas no artigo Cultural Landscape and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley
publicado no site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco (Disponível em http://whc.unesco.org/
en/list/208/).

A Alma das Coisas 37


Nesse sentido podemos entender a demolição de outro modo, como for-
ma de humilhar – não os budistas, não os ulemás, não a Unesco, mas os povos
hazara, para quem as estátuas eram símbolos de identidade reivindicados por
forças rebeldes para o estabelecimento de um sonhado Hazaristão. A impor-
tância de objetos tidos como símbolos de identidade é, de fato, questão mui-
to presente em estudos sobre o estabelecimento da ideia de nação a partir de
objetos tornados “patrimônios”.

As narrativas nacionais sobre o patrimônio cultural estão estrutu-


ralmente articuladas por essa oposição entre transitoriedade e per-
manência, sendo que as práticas de resgate, restauração e preserva-
ção incidem sobre objetos que podem ser pensados como análogos
a ruínas, quando não se constituem literalmente em ruínas. Como
tais, esses objetos estão sempre em processo de desaparecimento, ao
mesmo tempo que provocando uma permanente reconstrução. Esse
interminável jogo entre desaparecimento e construção é que move
as narrativas nacionais sobre patrimônio cultural em sua busca por
autenticidade e redenção. (Gonçalves, 2002, p. 28)

Percebemos então que, dinamitando as estátuas, os talibãs cortavam im-


portantes receitas para o Hazaristão vindas da indústria do turismo, mas que
também mostravam sua força simbólica e presença na região, e ainda, quase
colateralmente, obrigavam a ONU – que por mais de um ano negara os pe-
didos de ajuda aos refugiados no país – a rever suas posições humanitárias
na região.

Não me parece razoável que o Japão tenha enviado uma delegação de


parlamentares para oferecer ajuda humanitária em troca do translado
das estátuas para outro país. Como bem escreveu o jornalista He-
bah Abdalla no dia 2 de março: “Não houve espanto internacional ou
acusações de ultraje quando oficiais das Nações Unidas anunciaram
que mais de 260 pessoas haviam morrido em campos de refugiados
no norte do Afeganistão, onde mais de 110 mil pessoas vivem em
condições de miséria. Talvez o único consolo em tudo isso é que esses
refugiados nunca saberão o quanto o mundo se preocupou por duas
estátuas e o quão pouco se interessou por eles. (Rathje, 2004)

Se é verdade que havia hazaras em campos de refugiados, também havia


aqueles que, exilados na Europa, apoiaram as iniciativas de instituições mu-
seológicas suíças para a criação de um Museu do Afeganistão no Exílio, na
cidade de Bubendorf. Em tramitação desde muito antes do decreto do mulá

38 Alberto Goyena
Omar, essa proposta se desmanchou por obra de mais uma ironia desse caso.
A proposta para um museu no exílio colidia, justamente, contra a Convenção
de 1970 da Unesco que versa sobre a importância de manter o objeto patri-
monial em seu “contexto original”. Como explica Derek Gillman, inúmeras
disputas – como as que envolveram organizações patrimoniais da Grécia e
o Museu Britânico no caso dos mármores do Parthenon – teriam levado a
Unesco a ditar regras e mecanismos de controle às exportações de bens desse
gênero. Sem documentos para poder entrar na Suíça, essas peças – pra não
falar nos refugiados – eram reféns, no país que as condenava, das leis inter-
nacionais sobre a propriedade de bens culturais.

O “Museu do Afeganistão no Exílio” foi derrotado em suas tentativas


de salvar as estátuas, paradoxalmente, por trâmites burocráticos e
tecnicalidades que impediram a entrada de artefatos afegãos em ter-
ritório suíço: a Convenção de 1970 da Unesco relativa às Medidas a
Adotar para Proibir e Impedir a Importação, a Exportação e a Transfe-
rência Ilícitas da Propriedade de Bens Culturais. Em março de 2007,
as pouco mais de 14 mil peças levadas para a Suíça tiveram de ser de-
volvidas ao Afeganistão e depositadas no Museu Nacional de Cabul,
onde acabaram sendo destruídas. (Gillman, 2010, p. 12)

Para Gillman, que além de pesquisador de arte oriental é também o pre-


sidente da Fundação Norte-Americana Barnes de Belas Artes, o caso é exem-
plar para um problema que se faz cada vez mais presente entre instituições
internacionais do patrimônio. Trata-se dos limites de uma ideia de “patrimô-
nio da humanidade”. O autor acredita que apelar à categoria pode ser politi-
camente eficaz para evitar a destruição de certos bens materiais, mas expõe
problemas decorrentes de reivindicações dissonantes quanto aos contornos
e às definições de outra ideia fundamental, a de “propriedade”.

O patrimônio afegão compreende o patrimônio de todos aqueles que


em algum momento ocuparam esse território? Ou apenas o patri-
mônio de quem habita esse espaço no presente? Ou o patrimônio
de alguns entre aqueles que o habitam? Está claro que os talibãs não
consideraram que os budas pudessem fazer parte de seu patrimônio.
De fato, tibetanos, budistas e japoneses poderiam pensar, o que é
razoável, que os budas eram sobretudo parte de suas culturas. Assim,
levanta-se a questão sobre o grau em que o “patrimônio de outras
pessoas” é também parte do próprio. (Gillman, 2010, p. 24)

A Alma das Coisas 39


Figura 1.4. Nicho vazio nas falésias de Bamiyan.
Ilustração: Anna Thereza Menezes

Da perspectiva budista: considerações finais

O episódio que, aos olhos da Unesco, foi considerado uma catástrofe pa-
trimonial teve múltiplas e labirínticas causas envolvendo, fundamentalmen-
te, distintas concepções culturais a respeito das propriedades que um objeto
é capaz de portar. Espero ter levantado até aqui razões suficientes para per-
cebermos mais nuanças na entranhada rede de disputas implicadas no caso
dos budas de Bamiyan e para considerarmos sua demolição de outros modos.
Muito embora tenha pesado sobre o regime talibã uma forte acusação de
“vandalismo”, “fanatismo” e “ódio às diferenças”, o acompanhamento mais
detalhado dessa trama de acontecimentos, que remonta a vários séculos na
história do vale sagrado, nos mostra quão diversas e mesmo contraditórias
são as concepções que se podem ter da ideia de “patrimônio”. Segundo suas
diferentes perspectivas, tipos e graus de envolvimento, observamos que cada

40 Alberto Goyena
um dos atores imbricados nessa longa querela se referiu a um conjunto pró-
prio na série de camadas de significado que pesavam, e ainda pesam, sobre
essas duas estátuas. A intenção de demoli-las, assim como a de preservá-las,
mostrou-se, pois, uma disputa muito mais antiga do que poderia parecer.
Intenções essas que estão, como se viu, inseridas no seio da construção mes-
ma de representações do Buda. Nesse sentido, ao abrir parte do leque de
mitos, contos e relatos históricos que pesam sobre a biografia das estátuas,
pudemos percebê-las ligadas a uma lógica própria, imersas em um processo
constante de transformações intercedidas por ações e retaliações, negocia-
ções complexas e resultados provisórios. Contudo, resta-nos ainda saber o
que ao menos alguns budistas teriam a dizer sobre tudo isso.
Dez anos depois do ocorrido, em janeiro de 2011, quando o caso dos bu-
das já era para muitos um capítulo encerrado, tive a oportunidade de visitar
o templo budista de Borobodur, localizado em uma província separatista da
ilha de Java, na Indonésia. País hoje de grande maioria islâmica, a Indonésia
foi ocupada, entre os séculos VII e XIV – especificamente em Java – por rei-
nos hindus e budistas, em cuja região obras e templos ainda se fazem muito
presentes. Borobodur encontra-se aos pés de um vulcão, o Merapi, em uma
zona altamente sísmica. As pedras do templo foram extraídas das camadas
superficiais da rocha que se forma por arrefecimento do magma expelido
pelo Merapi. Diversas vezes destruído por terremotos e em seguida recons-
truído, Borobodur está hoje tombado como patrimônio da humanidade.
Nas paredes externas dessa construção piramidal, cuja planta é uma man-
dala, o visitante encontra formas esculpidas em baixo relevo que vão, com a
progressiva subida em espiral, tornando-se cada vez menos ornamentadas.
As complexas e elaboradas talhas em rocha vulcânica dos andares inferiores,
que retratam diversos episódios de viagens, encontros e ensinamentos do
Buda, vão dando lugar às formas cada vez mais abstratas e às linhas retas
e simples dos níveis superiores. Ao chegar no último andar, o visitante en-
contra-se em uma superfície circular pontuada por sete esculturas do Buda
em posição de lótus. No centro desse espaço repousa uma cúpula vazada
em forma de sino. Esperava eu encontrar nesse cimo um altar, com certa
imagem do Buda meditando, talvez deitado, talvez em pé... Lá não havia,
contudo, absolutamente nada. Nem roubado, nem tombado, negociado,
negado ou demolido, o espaço vazio é precisamente o ensinamento mais
sagrado de um templo dedicado a transmitir uma mensagem: o desapego
aos bens materiais.

A Alma das Coisas 41


Figura 1.5. Planta do Templo de Borobodur, Indonésia.
Ilustração: Anna Thereza Menezes

Em uma pequena escola de música a poucos quilômetros do templo, em-


preendi uma longa conversa com um monge budista a respeito de minha in-
cursão a Borobodur. Contou-me que quando vira nas manchetes dos jornais
indonésios que o regime talibã havia dinamitado as estátuas de Bamiyan,
pôs-se a organizar festividades...

Autor.: Como? Vocês comemoraram a destruição das estátuas?

Monge Ridwan: Claro! Nós somos budistas! Nosso maior patrimônio


é a prática do desapego. Você esteve no templo e deve ter visto que no
ponto mais alto há um sino, vazio, é o nada. [...] Nossos problemas
são justamente as memórias que ressoam em nós. Quando experi-
mento memórias que trazem problemas, tenho de fazer uma escolha:
posso permanecer amarrado ao problema ou posso me libertar. Esse
é o caminho da transmutação. É quando você restaura sua mente,
enviando-a a seu estado original, ao zero, ao nada. É a liberdade:
quando estamos livres das memórias, somos infinitos. (Borobodur,
janeiro de 2011)

42 Alberto Goyena
Engana-se quem pensa que, com a demolição dos budas, as falésias de
Bamiyan deixaram de fazer parte das listas do patrimônio da humanidade.
Demovidas as estátuas, pôde-se ver o que havia por trás delas. Não sem
espanto, funcionários da Unesco que viajaram para o vale à procura dos frag-
mentos e estilhaços de pedra calcária na esperança de recompor o gigantesco
quebra-cabeça, se depararam com cavernas até então desconhecidas, repletas
de pinturas, entalhes e afrescos dos monges budistas que as ocuparam an-
teriormente ao início da construção das estátuas. Uma missão arqueológica
está hoje trabalhando nessas cavidades onde foram encontradas também ins-
crições de mercadores romanos quando dos primórdios do estabelecimento
da rota da seda.15
Se “construir” ou “preservar” não são tarefas simples, tampouco o é
demolir. Vimos aqui que essa atividade pode se revelar altamente regrada,
hierarquizada e burocratizada. Proceder à retirada de uma estátua de seu pe-
destal é, se não conhecer profundamente um objeto escultórico, abrir novos
campos para sua investigação. Muito embora a intenção aqui nunca tenha
sido a de defender ou encorajar indistintamente a prática da demolição – des-
considerando a relevância de práticas e políticas patrimoniais –, quis apenas,
por um lado, sugerir, mediante a apresentação de um caso tão labiríntico
quanto emaranhado e contraditório, que os processos de demolição podem
estar fortemente impregnados com uma surpreendente capacidade de desve-
lar novas histórias e novos objetos que ficaram presos ou esquecidos dentro,
por trás ou entre os elementos de uma construção. Talvez haja também o que
aprender sobre as coisas, quebrando-as.
Por fim, se a demolição de patrimônios culturais costuma ser vista sob
enfoques melancólicos, como se de esquecimentos e perdas irreparáveis se
tratasse sempre, creio que se colocarmos o imperativo de um julgamento
moral em suspensão será possível, ao olhar de perto para os detalhes de uma
intervenção da sorte, além de encontrar valiosas indicações sobre as particu-
laridades materiais dos objetos em questão, ampliar os debates e definições
a respeito dos chamados “patrimônios culturais”. Não é para todos e em
toda parte que a transmissão de uma identidade cultural se faz por meio da
preservação de bens materiais. A demolição, assim como a construção e a
restauração, tem mesmo seu vocabulário e gramática próprios e parece-me

15
Ver: G. Toubekis et al. Preservation and Management of the Unesco World Heritage Site of
Bamiyan: Laser Scan Documentation and Virtual Reconstruction of the Destroyed Buddha Figures
and the Archaeological Remains, 2001. Disponível em: http://cipa.icomos.org/fileadmin/template/doc/
KYOTO/185-2.pdf.

A Alma das Coisas 43


central levá-los em consideração ao empreendermos um estudo sobre a alma
das coisas. Afinal, é também demolindo que lembramos e, preservando, que
esquecemos. Em sintonia com autores como Tim Ingold (2011), Dario Gam-
boni (2006) e Bruno Latour (2002), ressalto por último a importância de
considerar os objetos segundo uma perspectiva em que prevaleça um fluxo
contínuo de imagens, em que nada comece ou termine bruscamente em mo-
mentos mensuráveis, em que as coisas sejam percebidas em seu indefectível
movimento, sempre em contínua construção ou, se se preferir, é claro, des-
construção e decomposição.
Do alto de sua mais remota heterotopia, em sua eterna ausência e irrepre-
sentabilidade, fugidio e esporádico nos cintilantes reflexos sobre as águas, ao
Buda restará quiçá, diante de todo esse mal-entendido patrimonial, um tanto
ironicamente, sorrir.

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46 Alberto Goyena
2.

O ENCONTRO MÍTICO DE PEREIRA PASSOS COM A


PEQUENA ÁFRICA:1 NARRATIVAS DE PASSADO E
FORMAS DE HABITAR NA ZONA PORTUÁRIA CARIOCA

Roberta Sampaio Guimarães

Em 2009, a aprovação do Rio de Janeiro como uma das cidades brasi-


leiras integrantes do circuito da Copa do Mundo de 2014 e como sede dos
Jogos Olímpicos de 2016 provocou o substancial aumento de investimentos
em projetos urbanísticos pelos governos municipal, estadual e federal. Um
conjunto deles foi especialmente idealizado pela Prefeitura para os bairros
portuários e recebeu o nome de Porto Maravilha – Operação Urbana Consor-
ciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio
de Janeiro.2 Com esse plano, foram iniciadas diversas transformações na
região, como a construção de redes de água, esgoto e drenagem, coleta sele-
tiva de lixo, incremento da iluminação pública, alteração das vias de tráfego
e apoio à construção de dois museus.3

1
Este artigo foi elaborado a partir de trabalho de campo desenvolvido entre os anos de 2007 e 2009,
baseado em observação participante, entrevistas, consulta a arquivos públicos, produção fotográfica e
filmográfica de eventos e espaços, leitura de bibliografia especializada e análise de produtos midiáticos.
Os resultados dessa pesquisa foram publicados pelo PPGSA/IFCS da UFRJ, na tese de Doutorado A
utopia da Pequena África: os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca (Guimarães, 2011). Em
2011, essa pesquisa foi ampliada durante o projeto A patrimonialização da cidade: espaço, memória e
urbanismo na Zona Portuária do Rio de Janeiro (Pós-Doutorado Junior/CNPq, PPGSA/IFCS da UFRJ).
Agradeço aos comentários e sugestões feitos ao artigo por José Reginaldo Santos Gonçalves, João
Paulo Macedo e Castro e Nina Pinheiro Bitar.
2
O Porto Maravilha foi viabilizado juridicamente através da Lei Municipal 101/2009. As informações
fornecidas no artigo sobre esse plano foram retiradas de seu site oficial: www.portomaravilha.com.br.
3
Estão em fase de construção o Museu de Arte do Rio de Janeiro, na Praça Mauá, e o Museu do
Amanhã, no Píer Mauá, ambos em parceria com a Fundação Roberto Marinho.

A Alma das Coisas 47


Em março de 2011, diante dos olhos espantados da mídia, a Prefeitura
divulgou ainda uma “descoberta” realizada durante as obras urbanísticas:
o encontro por arqueólogos do Museu Nacional de lajes de pedra do antigo
Cais do Valongo. Por ele, escravos africanos haviam aportado na cidade en-
tre os anos de 1750 e 1831. Posteriormente, o espaço foi remodelado pelo
projeto arquitetônico de Grandjean de Montigny e ganhou a denominação
Cais da Imperatriz. Após as escavações, os objetos desenterrados (búzios,
miçangas, cachimbos, anéis, cristais, etc.) passaram então por um tratamen-
to patrimonial, com a realização de ações de salvaguarda pelos planejadores
urbanos em conjunto com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan).
Além da preservação desses objetos, a Prefeitura também reordenou ur-
banisticamente o espaço onde existira o cais, exibindo seus vestígios ma-
teriais em um “memorial”. E o integrou ao subprojeto Circuito Histórico
e Arqueológico da Herança Africana, que objetivava sinalizar e divulgar de-
terminados pontos da Zona Portuária associados à memória da “diáspora
africana”: a Pedra do Sal, o Jardim Suspenso do Valongo, o Cemitério dos
Pretos Novos, o Centro Cultural José Bonifácio e o Largo do Depósito (atual
Praça dos Estivadores).
Apesar do tom eufórico que esses vestígios materiais receberam da im-
prensa, o encontro dos planejadores urbanos municipais com a memória
afro-brasileira dos bairros portuários não era inédito nem fortuito. Do ponto
de vista dos eventos recentes da região, a patrimonialização do cais portava
ambiguidades em sua interpretação, pois podia ser compreendida como uma
tentativa tanto de afirmar como de negar ou acomodar simbolicamente as
formas de habitar de alguns grupos sociais que haviam protagonizado confli-
tos na região desde 2001 (ano em que foi divulgado o Porto do Rio – Plano
de Recuperação e Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro, plano
urbanístico que antecedeu e criou as diretrizes do Porto Maravilha). Já do
ponto de vista das narrativas míticas4 sobre o passado da região, podia ser

4
Considero narrativas míticas de passado as que presentificam eventos tidos como “históricos” e que
buscam reconstituir uma noção singular de totalidade social, adotando a sugestão de Lévi-Strauss de
que, “quanto ao que diz respeito às representações míticas, é menos interessante questionar-se sua
origem do que a atitude das pessoas diante de seus próprios mitos. Deles, existem sempre versões
diferentes. Ora, não escolhemos entre essas versões, não fazemos sua crítica, não decretamos que uma
delas seja verdadeira ou mais verdadeira do que a outra: aceitamo-las simultaneamente, e não ficamos
perturbados com suas divergências. Investigações feitas em diversas partes do mundo confirmam a
generalidade dessa atitude mental” (Lévi-Strauss; Eribon, 2005, p. 199).

48 Roberta Sampaio Guimarães


ainda compreendida como a busca por produzir uma nova versão, talvez re-
dentora em sua opção política e estética pela monumentalidade, das cíclicas
interações entre os planejadores da cidade e aqueles que se autoidentifica-
vam como afrodescendentes.
Assim, este artigo traz como tema narrativas de passado e formas de
habitar que entraram em choque durante a última década na Zona Portuária
carioca. E o faz à luz de dados etnográficos coletados entre os anos de 2007
e 2009 em um espaço portuário que havia se tornado foco obsessivo de or-
denamento urbano dos planejadores municipais: o “sítio histórico de origem
portuguesa” do Morro da Conceição.
Os projetos de urbanização para esse morro, assim como para os demais
espaços da região, haviam sido concebidos pelos planejadores municipais
do Instituto Pereira Passos (IPP). Criado em 1998, o instituto homenageava
em seu nome o engenheiro civil e prefeito da cidade que realizou diversas
obras nos bairros portuários e do Centro entre 1903 e 1906, que ficaram co-
nhecidas como Reforma Pereira Passos. Suas concepções foram diretamente
influenciadas pelo plano de urbanização implantado pelo prefeito parisiense
Georges Haussmann entre 1853 e 1870, autointituladas “modernizadoras”,
“embelezadoras” e “saneadoras”. Mas, para alcançar tal modelo de urbani-
dade, encampou a demolição de inúmeros cortiços, a construção do “porto
moderno” e a vacinação compulsória da população, o que foi apontado por
diversos autores como uma reforma desejosa de higienizar física e moral-
mente espaços e habitantes (Abreu, 2006; Lamarão, 1991; Carvalho, 2001;
Sevcenko, 2010; e Challoub, 1996).5
O imaginário retomado pelo planejamento urbano da Prefeitura aludia
assim a tal modelo e seus ideais de progresso e civilidade, embora fosse uma
versão presentificada desse passado de Pereira Passos. No entanto, no desejo
de moldar espaços e habitantes, esses planejadores provocaram desestabili-
zações locais, como as que pesquisei no Morro da Conceição. Nele, os espa-
ços não eram únicos, mas heterotópicos (Foucault, 2006), abarcando diversos
grupos e indivíduos cujos posicionamentos refletiam e designavam uns aos
outros, movimentando sistemas específicos de espacialidade e temporalida-
de que, muitas vezes, se sobrepunham.
Assim, as memórias e formas de habitar concebidas pelos planejadores se
distinguiam de outras tantas, e cada pedra ou sobrado por eles modificado

5
Sobre a atuação de Haussmann em Paris, ver Bradbury e McFarlane (1989). Sobre suas influências
na Reforma Pereira Passos, ver Benchimol (1990).

A Alma das Coisas 49


era capaz de mobilizar diferentes subjetividades, contranarrativas e conflitos.
Como efeito de seus imaginários e intervenções, emergiram então no morro
outros imaginários a eles associados e contrapostos. Dois espaços localiza-
dos em sua base foram particularmente entendidos por parte dos habitantes
como marcos da memória afro-brasileira. Um deles era o antigo Mercado do
Valongo, contíguo ao Cais do Valongo e onde havia funcionado um ponto de
engorda e venda de escravos até o século XIX, posteriormente destruído por
Pereira Passos para a construção do Jardim Suspenso do Valongo. O outro
era a Pedra do Sal, formação rochosa que havia sido ocupada residencial e
religiosamente por africanos e baianos até o início do século XX.
No início do século XXI, integrantes do bloco carnavalesco Afoxé Filhos
de Gandhi e da Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Pedra do
Sal se posicionaram então como “herdeiros” desses espaços para se afirmar
diante das modificações espaciais e sociais que estavam sendo implantadas
direta ou indiretamente pelas obras da Prefeitura. E, a partir da catego-
ria nativa “Pequena África”, ambos operaram uma narrativa de passado
totalmente distinta da que estava até aquele momento sendo organizada
pelos planejadores, pautada em um ideal afrodescendente que valorizava a
sociabilidade do samba, do trabalho portuário e do candomblé e as formas
de habitar onde diversos núcleos familiares cooperavam cotidianamente
entre si.
Ao apresentar nesse artigo as narrativas e práticas sociais dos planejado-
res urbanos municipais e desses herdeiros da Pequena África sobre o Mor-
ro da Conceição, busco então explorar a hipótese de que todo processo de
imaginação de um “sítio histórico”, seja ele de “origem portuguesa” ou de
“origem africana”, passa por uma ação colecionadora e exibicionária, em que
determinados bens, logradouros e modos de vida são deslocados de seus
contextos polissêmicos e idealizados como “autênticas” representações de
um passado e forma de habitar; mas que, justamente por serem materializa-
ções de imaginários, são sempre passíveis de afetar a autoconsciência dos ha-
bitantes da cidade, gerando não apenas a afirmação de diferentes memórias
e identidades como também novos processos políticos, sociais e estéticos,
como a criação em 2011 do Memorial do Cais do Valongo e do Circuito His-
tórico e Arqueológico da Herança Africana.

50 Roberta Sampaio Guimarães


A construção social de um patrimônio do urbanismo carioca

Desde a década de 1990, a conjugação de práticas de urbanização de am-


plos espaços das cidades brasileiras com as de valorização de seu “patrimô-
nio” tem sido abordada nos estudos de cientistas sociais (entre eles, Arantes,
2000; Magnani, 2002; Guimarães, 2004; Frúgoli; Andrade; Peixoto, 2006;
Leite, 2007; Gonçalves, 2007; e Eckert, 2010). Tais estudos apontam que,
assumindo a forma discursiva de “áreas de interesse histórico, paisagísti-
co e cultural” ou de “sítios históricos”, a criação desses espaços destinados
à exibição da alteridade incentiva sua mercantilização turística, valorização
imobiliária e/ou gentrificação.6
Na cidade do Rio de Janeiro, um dos espaços que mais recebeu projetos
de urbanização e patrimonialização nos últimos anos foi a Zona Portuária.
Buscando compreender como estavam sendo concebidos esses projetos, re-
alizei entrevistas com três planejadores que haviam idealizado o Porto do
Rio.7 A principal ação citada por eles para demarcar suas atuações na região
foi a decretação municipal, em 1988, da Área de Proteção Ambiental Sagas,
acrônimo dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Tal área havia mo-
dificado o status jurídico de diversos espaços e de cerca de 2 mil bens, então
classificados como “tombados”, “preservados” ou “tutelados”.8 Os efeitos
do Sagas, no entanto, não se limitaram à alteração das relações patrimo-

6
Utilizado pela primeira vez em 1963 por Ruth Glass em seu estudo sobre os “bairros operários ou
populares” desvalorizados no centro de Londres, o termo gentrification foi desde então conceituado como
o processo de investimento, reabilitação e apropriação de moradias desses bairros pelas “camadas
médias assalariadas” (Bidou-Zachariasen, 2006). Há, na literatura brasileira que utiliza o conceito, duas
traduções mais correntes: gentrificação e enobrecimento.
7
O plano urbanístico Porto do Rio foi assinado em 2001 por quatro representantes do poder municipal.
Entre eles, três concederam entrevistas para a minha pesquisa no segundo semestre de 2008: Alfredo
Sirkis, que assinou o plano como Secretário Municipal de Urbanismo e presidente do Instituto Pereira
Passos; Augusto Ivan Pinheiro, como Diretor de Urbanismo; e Nina Rabha como Gerente de Urbanismo.
Desde 1993, no entanto, eles já haviam assumido funções administrativas estratégicas na Prefeitura
carioca: Alfredo Sirkis era então responsável pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente; Augusto Ivan
Pinheiro, pela Subprefeitura do Centro; e Nina Rabha, pela I Região Administrativa, que abarcava todos
os bairros portuários.
8
Do ponto de vista legal, os “bens tombados” pelas Áreas de Proteção Ambiental não podem ser
demolidos nem sofrer alterações que os descaracterizem, seja na parte externa ou interna do imóvel;
já os “bens preservados” não podem ser demolidos nem sofrer alterações nas características originais
de fachada, telhado ou volumetria, sendo permitida a realização de obras no seu interior desde que
sigam as condições preestabelecidas pelo órgão patrimonial regulador; e os “bens tutelados” podem
ser modificados ou demolidos, mas estão sujeitos a restrições do órgão de tutela, como seguir as
características e o gabarito dos prédios vizinhos que estejam tombados ou preservados.

A Alma das Coisas 51


niais vigentes na região, se estendendo nos anos subsequentes ao conjunto
de suas relações urbanísticas, econômicas, morais, sociais e estéticas.
No início da gestão do prefeito César Maia (1993-1997), suas classifica-
ções passaram a ser utilizadas para propagar a necessidade de segmentar as
medidas de “revitalização urbana” da Zona Portuária, com orientações espe-
cíficas para as formas de exploração econômica e de ordenamento de seus es-
paços. Segundo relato de Nina Rabha, planejadora que assumiu a direção da
I Região Administrativa (bairros portuários) entre os anos de 1993 e 2000,
três linhas de intervenção foram desenvolvidas na região.
Nos morros da Conceição, da Saúde, do Livramento e do Pinto, consi-
derados de alto valor histórico, paisagístico e cultural e onde ficaram lo-
calizados todos os bens patrimonializados pelo Sagas, foram incentivados
o turismo e a atração residencial da classe média. Em suas áreas planas
circundantes, foram implantados diversos mecanismos de disciplinamen-
to de usos: a retirada de moradias construídas embaixo de viadutos; a
criação ou reforma de praças e largos para que se tornassem pontos ur-
banos de referência; a restrição espacial de vendedores ambulantes, etc.9
Foram realizadas ainda ações para a recuperação física das casas de ar-
quitetura colonial, divididas em medidas de identificação de “vazios” e
“imóveis arruinados” para serem reabilitados para uso residencial, como
no caso do projeto Reabilitação de Cortiços,10 e de construção de novas

9
No Morro da Conceição, por exemplo, o Largo da Prainha foi reformado pela Prefeitura em 1993.
Localizado em sua base, na rua Sacadura Cabral, antes da reforma o largo era utilizado como
estacionamento de carros. Depois, nele foi criado um calçamento elevado, que o dividiu fisicamente da
via de tráfego. Nessa elevação foram instalados postes de iluminação, árvores, bancos de madeira e
um grande jarrão em ferro como adorno central. Houve ainda a preocupação com sua ambiência, tendo
sido realizada a pintura de todas as fachadas do casario frontal (Rabha, 1994).
10
Entre 1996 e 1998, a Secretaria Municipal de Habitação adquiriu alguns imóveis para a realização
de contratos de ocupação, dentro do projeto Reabilitação de Cortiços. Os alvos foram os imóveis que
poderiam ser usados como habitação coletiva, com cômodos residenciais que variavam entre 11 e 20 m²
e banheiros e cozinhas de uso coletivo. A continuação do projeto recebeu o apoio da Caixa Econômica
Federal, que criou, em 2000, o Programa de Reabilitação de Sítios Históricos, buscando incentivar a
reinserção do uso habitacional nos centros históricos das cidades brasileiras e estabelecendo como
público-alvo, para o recebimento de financiamento, famílias que possuíssem renda familiar superior
a três salários mínimos. Em 1997, foi idealizado, mas não implementado, um projeto da Prefeitura em
parceria com o empresariado da construção civil e com linhas de crédito da Caixa Econômica Federal
denominado Enseada da Gamboa. Projetado para ocupar um terreno da Rede Ferroviária Federal
de 160 mil m², sua proposta era criar espaços para 2.500 unidades habitacionais, distribuídas em
edificações de uso misto. Esse terreno, no entanto, foi posteriormente destinado para a construção da
Vila Olímpica da Gamboa e da Cidade do Samba (Barandier, 2006).

52 Roberta Sampaio Guimarães


unidades residenciais, como no Projeto Habitacional da Saúde.11
O Sagas, porém, pode ser mais bem compreendido quando observados
também os espaços contíguos aos patrimonializados, que foram excluídos
da ação preservacionista. O Morro da Providência, embora tenha sido inclu-
ído na área tutelada da Gamboa, não teve bens individualmente preservados
como os demais morros. E nenhum espaço ou bem do bairro portuário do
Caju foi preservado. Para eles, no entanto, foram em seguida idealizadas
intervenções urbanísticas específicas, como o programa Favela-Bairro,12 ime-
diatamente implantado no Caju e com extensão prevista ao Morro da Provi-
dência, considerado mais difícil de intervir por ser extenso e populoso. Por
sua vez, os 3,5 quilômetros da orla da baía de Guanabara correspondentes
a esses bairros, onde estavam instalados galpões, armazéns e ramais ferro-
viários pertencentes à retroárea portuária parcialmente desativada, também
foram excluídos da medida preservacionista, abarcando a terceira linha de
intervenção: a exploração imobiliária de seus amplos terrenos.13
Assim, ao classificar bens e logradouros como preservados e não preser-
vados, o Sagas demarcou as fronteiras de uma nova modalidade de inter-
venção para a Zona Portuária. Pois, operando distinções como “histórico”
e “não histórico”, ou “culturais” e “não culturais”, tal medida patrimonial

11
Esse projeto foi desenvolvido entre 1996 e 2001 pela Secretaria Municipal de Habitação em parceria
com a Caixa Econômica Federal. Nele, foram criadas 150 unidades habitacionais, com 54 m² em média
e dois quartos. Em sua maior parte, essas unidades foram ocupadas por funcionários públicos com
renda familiar em torno de dez salários mínimos (Barandier, 2006).
12
Segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro, o programa Favela-Bairro foi iniciado em 1994, com a
coordenação da Secretaria Municipal de Habitação e o financiamento do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID). Seu objetivo era “integrar a favela à cidade”, através da implantação de
infraestrutura urbana, serviços, equipamentos públicos e políticas sociais nas localidades selecionadas.
Informações disponíveis em: http://www0.rio.rj.gov.br/habitacao/favela_bairro.htm.
13
No entanto, os projetos da Prefeitura, como a Cidade Oceânica – Centro Internacional da Água e do
Mar, idealizada em 1994, encontraram a insuficiência da reserva patrimonial necessária para a criação
de um fundo imobiliário. Buscando suprir essa deficiência, a Prefeitura negociou diretamente com os
ministérios da Agricultura e da Fazenda para que os imóveis federais da região fossem transferidos
para o domínio municipal. E foi oferecida à iniciativa privada a possibilidade de exploração dos novos
equipamentos e espaços urbanos que fossem por ela financiados. Como analisa Rose Compans (1998),
em 1995 a Prefeitura criou o Plano Estratégico do Rio de Janeiro para viabilizar a realização de parcerias
entre o poder público e a iniciativa privada e procurou se aliar à Associação Comercial do Rio de Janeiro,
à Federação das Indústrias do Rio de Janeiro e à autarquia federal Companhia Docas. Mas as medidas
de cooperação iniciadas com a Docas, que possuía o direito de estabelecer contratos de arrendamento
para a exploração de 500 mil m² de instalações portuárias, foram interrompidas pelas divergências
entre suas concepções urbanísticas, fazendo que cada instituição elaborasse seus próprios projetos e
tentasse agregar em torno deles os investidores privados.

A Alma das Coisas 53


indicou quais espaços e bens deveriam ser considerados inalienáveis e quais,
em contrapartida, estavam sendo alienados, fosse para sua transformação ou
para sua venda.14
Na percepção de Nina Rabha, compartilhada também pelos demais ide-
alizadores do Porto do Rio, tais medidas de revitalização urbana seriam ne-
cessárias por causa do processo de “abandono” e “decadência” do “núcleo
histórico” da cidade, composto pelos bairros portuários e do Centro. Em sua
interpretação, nesse processo teria ocorrido uma progressiva expansão da
malha urbana carioca, acarretando o surgimento de bairros de classe média e
alta distanciados desse núcleo, e sua desocupação por famílias em ascensão
social, tendo como consequência os usos de seus antigos imóveis como mo-
radia coletiva e sua falta de conservação física. Para ela, tal quadro teria feito
que a população residente ou atraída para esses bairros passasse a conviver,
ou mesmo a conformar o “submundo” de uma “zona perigosa”.

Na verdade você tem uma zona antiga, com imóveis antigos, porque
são imóveis abandonados, as pessoas vão em busca de outras coisas,
em geral são ocupados por moradias coletivas, que é a maneira que
você tem de ganhar mais dinheiro com os imóveis antigos. A popula-
ção entra em um processo de decadência muito grande e a partir daí,
enfim, você tem o submundo se aproveitando também ou até emer-
gindo dessa situação. Então viram zonas muito perigosas. A Escola
[de Chicago] estudou várias situações no mundo e no geral as inter-
venções de renovação urbana quase todas se apoiavam nessa teoria.
No Rio não dá para fazer um anel concêntrico [ondas de ocupação ter-
ritorial socialmente categorizáveis, partindo dos bairros centrais em
direção à periferia] direitinho, metade do círculo é rompido pela Baía
de Guanabara, mas era possível você aplicar, de todo um pedaço que
ia da Glória até a área do porto, uma metade de circunferência rode-
ando o Centro. (Nina Rabha, entrevista concedida à autora em 2008)

A caracterização socioespacial da Zona Portuária carioca feita pela plane-


jadora havia se baseado, portanto, no conceito de zona degradada elaborado
por Robert Park no âmbito da Escola de Chicago dos anos 1920. Em sua de-
finição, tal conceito compreendia a cidade a partir de duas dimensões cons-

14
Como sugerido por Annette Weiner (1992), em oposição ao bem alienável, um bem inalienável
é entendido como parte da herança de determinado grupo ou indivíduo, que não deve ser trocado,
vendido ou extinto, já que sua perda desencadearia uma mudança de status e posição social de seu
proprietário perante sua rede de relações.

54 Roberta Sampaio Guimarães


titutivas – uma organização física e uma ordem moral – e buscava circuns-
crever bairros residenciais marcados pela homogeneidade e pela significativa
articulação entre sociabilidade e vizinhança.15 Mas, na narrativa da planeja-
dora e na prática das intervenções propostas pela Prefeitura na região, esse
conceito desconsiderava a composição social dos bairros portuários e cen-
trais, e utilizava forte carga normativa, conduzindo à conclusão de que havia
aspectos sociais negativos na Zona Portuária e maus usos de seus espaços.
Nas observações realizadas durante minha pesquisa sobre as práticas dos
usuários desses espaços e suas formas de narrá-los, no entanto, era evidente
a variedade de classificações, cosmologias e formas de habitar que neles co-
existia. Assim, para alguns – como parte dos planejadores urbanos, comer-
ciantes, agentes de segurança pública e representantes da Igreja Católica –,
tais espaços eram percebidos como fisicamente “degradados” e possuidores
de habitações “insalubres”, “vazias” ou “invadidas”, além de socialmente
“marginalizados” ou “criminosos” por causa de sua associação com a “pros-
tituição” e o “tráfico de drogas”. Mas, para outros – como a maioria de seus
moradores e dos envolvidos com movimentos sociais e recreativos –, esses
mesmos espaços eram quase sempre percebidos a partir de nuanças valorati-
vas pautadas por relações afetivas e de vizinhança.
Tal diversidade de percepções ressaltava o caráter criativo desses es-
paços, já que eles eram capazes de ser inventados, assim como de inventar
subjetivamente seus múltiplos habitantes (Wagner, 1981). Não eram, por-
tanto, espaços moldáveis a partir somente de ideais urbanísticos. Embora
tais ideais tivessem um grande poder de agência, havia outros imaginá-
rios também capazes de produzir diferentes classificações, interpretações
de passado e narrativas de tradição, demarcando fronteiras identitárias e
territoriais próprias.

15
Como observado por Heitor Frúgoli (2007), uma das críticas posteriores feitas à tal espacialização
do social proposta por Robert Park foi que ela estaria embasada na ideia de “ecologia humana”, cuja
polêmica inspiração darwinista oriunda das ciências naturais colocava como analiticamente central a
competição entre indivíduos pela sobrevivência e pelo espaço. Entretanto, essa interpretação ecológica
buscava responder a uma literatura eugenista e antiurbana da época e esteve presente apenas na
gênese da teoria de estrutura urbana da Escola de Chicago, tendo os resultados das suas próprias
pesquisas empíricas interpelado as concepções teórico-conceituais ecológicas.

A Alma das Coisas 55


Os projetos urbanísticos para o Morro da Conceição
e seus efeitos locais

Elevação geográfica de dimensões modestas, encravada na fronteira entre


a Saúde e o Centro da cidade, entre 2007 e 2009 o Morro da Conceição apre-
sentava em sua base vias amplas, um intenso trânsito de carros, ônibus, vans
e pessoas e o predomínio de sobrados de dois ou três andares ocupados pelo
pequeno comércio (pastelarias, lojas de sucos, bares, restaurantes, lojas de
materiais e serviços para escritório, depósitos de bebidas, oficinas, etc.). Já o
acesso às suas partes médias e altas era possibilitado por vias estreitas, em
sua maioria de paralelepípedos ou pedras portuguesas, e caracterizado pela
ausência de transporte coletivo e tráfego de apenas poucos carros e motos.
Ocupacionalmente, todos os imóveis dessas partes médias e altas eram so-
brados utilizados de forma residencial, com exceção de três pequenos bares
de propriedade de moradores e de edificações amplas, mas horizontalizadas,
pertencentes ao Exército, à Igreja Católica e à Universidade.16
Juntos, esses aspectos materiais produziam sensorialmente a diminuição
dos ruídos e a desaceleração do ritmo fisiológico, conduzindo à sensação de
passagem para um outro tempo e espaço da cidade. Mas essa sensação não
resultava de um “esquecimento” daquela “ilha urbana” pelas ações governa-
mentais, como diversas vezes escutei de habitantes e especialistas em plane-
jamento urbano como explicação para a suposta manutenção das caracterís-
ticas físicas das vias e sobrados das partes médias e altas do morro ao longo
dos anos. A pesquisa que realizei apontou que tal espacialidade havia sido
contínua e ativamente construída, tanto através das práticas cotidianas de
seus habitantes quanto das diversas e muitas vezes contraditórias políticas
de ordenamento e gestão das sucessivas prefeituras. E que, como resultado
desse processo de moldagem, o Morro da Conceição estava se consolidando
como um “sítio histórico de origem portuguesa” na virada do século XXI.
Entre 1998 e 2000, um grande projeto urbanístico da Prefeitura foi re-
alizado no morro e reforçava justamente esse imaginário que apresentava
seus espaços como “cristalizados” e de “passado português”: o Programa
de Recuperação Orientada (ProRio), conjunto de estudos e ações patrimo-

16
No topo do morro havia a 6. Divisão Cartográfica do Exército ocupando as instalações do antigo
Palácio Episcopal e da Fortaleza da Conceição, e o Departamento de astronomia da UFRJ, instalado no
Observatório do Valongo. Mais próximo à base, havia uma igreja e duas escolas dirigidas pela Venerável
Ordem Terceira de São Francisco.

56 Roberta Sampaio Guimarães


niais, arquitetônicos e urbanísticos elaborado em associação com o gover-
no francês.17
Suas propostas e resultados foram logo em seguida difundidos pelo livro
Morro da Conceição: da memória o futuro,18 em que explicavam que o objetivo
do programa era criar diretrizes de gestão do espaço construído e da paisa-
gem para que fossem valorizados o patrimônio urbanístico, paisagístico e ar-
quitetônico de “setores da cidade em processo de degradação que tenham es-
pecificidades destacáveis” (Sigaud; Pinho, 2000, p. 13). Em seu relato, Nina
Rabha apontou que havia ainda entre os idealizadores do programa outra
motivação para a intervenção, que era a percepção da existência de inúmeras
semelhanças entre o morro e o bairro lisboeta de Alfama.

Era muito igual, tanto a arquitetura parecida quanto o conteúdo so-


cial original. É da mesma área dos ocupantes de Alfama e isso não sou
eu que digo, é o diretor de Reabilitação Urbana de Lisboa, o Felipe
Lopes. Eu conheci o Felipe em um seminário em Santos, fiquei louca
com o que ele mostrou em Alfama, achei que tinha tudo a ver com o
Morro da Conceição. Fui a Alfama, fotografei ladeira, casa, pórtico, os
miradouros, que é como eles chamam aqueles larguinhos lá em Por-
tugal, no morro, para a população mais velha tomar sol, criança brin-
car e tal. E voltei e fiz ângulos iguaizinhos no Morro da Conceição.
Então era um conjunto de slides que mostrava um lugar em Alfama e
as semelhanças e ausências de tratamento, que tipicamente é só uma
ausência de tratamento, seja do espaço público, seja do espaço priva-
do. As casas aqui estão decadentes, as casas lá estão todas conserva-
das. A ladeira aqui não tem nem corrimão e lá tem aquele corrimão
bonito, de designer e tal, tudo pavimentado, não tem água escorrendo
pela pedra, não tem esgoto clandestino. Então era um trabalho que
visava entrar no morro e dotar a área inteira de qualificação. (Nina
Rabha, entrevista concedida à autora em 2008)

17
Classificado como “cooperação técnica”, no ProRio o governo francês disponibilizou, através
dos Ministérios do Equipamento, da Cultura e das Relações Exteriores, “consultores”, “técnicos e
especialistas” em patrimônio e reabilitação.
18
O livro foi escrito por Márcia Frota Sigaud e Claudia Maria Madureira Pinho e baseado nos estudos
da então diretora do IPP, Ana Luiza Petrik Magalhães, e da gerente de Urbanismo, Nina Rabha. Sua
elaborada produção editorial incluiu encadernação de capa dura, impressão colorida, papel couché,
diversas ilustrações, fotografias, mapas, desenhos e transparências. Tal produção indicava que seus
idealizadores visavam alcançar um público de alto poder aquisitivo e mais amplo do que o formado pelos
especialistas do Urbanismo e Arquitetura.

A Alma das Coisas 57


A comparação do morro com Alfama havia feito, assim, que suas supos-
tas “ausências” ficassem ressaltadas, e não suas características e contextos
sociais concretos. Mas, entre as afirmações de que faltavam conservação dos
imóveis, equipamentos como corrimão, boa pavimentação e rede de abaste-
cimento e esgoto, Nina Rabha havia também identificado algumas “seme-
lhanças”: a arquitetura e o conteúdo social “original”. Ou seja, a planejadora
havia indicado que a fonte simbólica para a construção do sítio histórico do
morro não estava calcada no presente, mas na idealização de um passado
comum entre as duas localidades.
Assim, no livro que divulgava os dois anos de execução do ProRio, o casa-
rio, os logradouros e a população do Morro da Conceição foram organizados
através dessa lógica que afirmava ser seu passado caracterizado por constru-
ções e moradores provenientes de Lisboa, presença que seria visível também
nas igrejas, fortificações, armazéns, mercado de escravos, pequenos aterros
e trapiches da Zona Portuária. Na narrativa construída pelos planejadores,
apenas depois da expansão urbana, no final do século XIX, outros grupos
sociais haveriam contribuído com suas heranças, como os escravos recém-
-libertos, os imigrantes europeus e a classe trabalhadora em geral.
E tanto o final do passado da região quanto do morro foram delimitados
nessa narrativa pelas obras de urbanização realizadas pelo prefeito Pereira
Passos na virada do século XX. Os planejadores então postularam que teria
havido uma diferença nas formas de ocupação de seus espaços: a área aterra-
da da orla da baía da Guanabara teria se transformado continuamente depois
da construção do “porto moderno”, com seus galpões, armazéns, fábricas e
ramais ferroviários, configurando um espaço funcional voltado para as ativi-
dades portuárias, industriais e comerciais; e os morros teriam se configurado
como espaços “cristalizados” fisicamente e “foco de resistência residencial”.
Assim, foi sugerido um movimento de oposição entre tais espaços: no trans-
correr de todo o século XX, a área aterrada teria se mantido em constante
mudança e os morros, em constante permanência.
Se, porém, as informações fornecidas sobre as áreas aterradas e os morros
pararam nessa virada de século, determinados eventos ligados aos projetos
urbanísticos e patrimoniais subsequentes à Reforma Pereira Passos foram
detalhados na narrativa do livro com o auxílio de mapas. Foram mostradas
as classificações da Zona Portuária e do Morro da Conceição instituídas pe-
los planos Agache (1930), Doxiadis (1965), Urbanístico Básico da Cidade
do Rio de Janeiro (1977) e Diretor (1992). Especificamente sobre o morro,
foram citados ainda os tombamentos individuais realizados pelo Iphan em

58 Roberta Sampaio Guimarães


1938, como a Fortaleza da Conceição, a Igreja de São Francisco da Prainha,
o Palácio Episcopal e o Jardim Suspenso do Valongo, bem como assinalados
os tombamentos da Pedra do Sal pelo governo estadual em 1987 e de um
cortiço e um sobrado pela Prefeitura em 1988.
Ou seja, com a idealização do passado português, a citação detalhada dos
planos urbanísticos e patrimoniais implantados no último século e a não
abordagem das dinâmicas sociais e culturais locais, foi posta como central
nessa narrativa a atuação dos próprios planejadores urbanos na região e no
morro e seus imaginários, como se apenas os eventos a eles ligados possuís-
sem historicidade.
Mesmo nessa narrativa que enfatizava as noções de tempo, espaço e ur-
banidade dos planejadores municipais, não foi, no entanto, apresentada uma
reflexão sobre como as diferentes intervenções governamentais dialogavam
entre si e quais os efeitos sociais provocados sobre os espaços portuários
e seus habitantes. A área aterrada do porto, por exemplo, além de aspec-
tos funcionais, econômicos e utilitários, tinha produzido vínculos afetivos
e sociais, como os dos movimentos sindicais e empresariais. A progressiva
transferência das atividades portuárias para outros espaços da cidade e do
estado resultou no uso, por escolas de samba, de vários galpões desativados.
E os diversos terrenos e edifícios públicos abandonados ao longo dos anos
também haviam sido informalmente ocupados por grupos familiares e ven-
dedores ambulantes de atuação local.19
Da mesma forma, as diferentes e sucessivas políticas urbanísticas e patri-
moniais incidentes na região produziram relações dialéticas entre suas áreas
elevadas, planas e aterradas. No trabalho de campo que desenvolvi no Morro
da Conceição, pude observar os desdobramentos sociais causados pelo in-
centivo às atividades portuárias na divisão de seus sobrados em casas de cô-
modos para abrigar operários e funcionários da Marinha e na presença de mi-
grantes brasileiros e estrangeiros que visavam trabalhar no Centro da cidade
ou no porto; bem como a concentração dos usos residenciais em suas partes
médias e elevadas e de sua base como área limítrofe de desenvolvimento de
atividades industriais, de negócios e do pequeno comércio, divisões também
impostas por planos urbanísticos.

19
Além das observações realizados no trabalho de campo, encontrei em levantamento bibliográfico
diversas pesquisas que abordavam a ocupação dos bairros portuários pela população negra (Karacsh,
2000; Arantes, 2005; Pereira, 2007) e as narrativas de seus habitantes sobre trabalho, moradia e
recreação (Thiesen; Barros; Santana, 2005).

A Alma das Coisas 59


Figuras 2.1 e 2.2. Largo da Prainha (à esquerda, 2007) e rua do Acre (à direita, 2009),
base do morro. Fotografias da autora

Figuras 2.3 e 2.4. Ladeira João Homem (à esquerda) e Largo da Santa (à direita),
parte alta do morro. Fotografias da autora, 2007

No referente à produção das memórias do morro, as primeiras políticas


patrimoniais haviam difundido durante anos o imaginário que associava seus
espaços exclusivamente a um passado português, católico, militar e urbanís-
tico/arquitetônico.20 E, posteriormente, sua classificação como “área de pre-

20
Vale ressaltar que a valorização de tais memórias fez parte de um contexto nacional mais amplo,
em que as políticas patrimoniais do Iphan desempenharam uma função específica. Como apontam
Gonçalves (1996) e Fonseca (2005), no período de fundação do Iphan, em 1937, o Estado tinha como
um de seus objetivos fortalecer a ideia de nação como espaço social e culturalmente coeso. Seus
investimentos voltaram-se então para a homogeneização do sistema educativo e a criação de símbolos
totalizantes, com as práticas de patrimonialização ganhando importante função na produção de um
sentimento de unidade patriótica e na recusa do que era entendido como particularismos regionais.
Essa concepção fundadora de patrimônio nacional foi encampada pelo primeiro diretor do Iphan, o
arquiteto Rodrigo Melo Franco de Andrade, e se tornou dominante no instituto até o final da década
de 1960. Nesse período, as políticas de preservação focaram o chamado “patrimônio de pedra e cal”,
e os tombamentos de bens edificados buscaram valorizar os considerados aspectos “singulares” e
“tradicionais” da nação: igrejas católicas, edificações militares e prédios de órgãos públicos.

60 Roberta Sampaio Guimarães


servação ambiental e paisagística” e consequente tutela patrimonial também
havia garantido, pelo menos em parte, a dita “cristalização” física de seus
sobrados e logradouros, viabilizando e legitimando a própria proposta de
realização do ProRio.

O ProRio e seu sistema de autenticidade


sobre espaços e habitantes

Como indicava o título do livro Morro da Conceição: da memória o futuro,


porém, as narrativas dos planejadores do ProRio não estavam exatamente in-
teressadas em produzir uma reflexão sobre o passado do morro. A principal
preocupação do programa parecia ser o estabelecimento, no tempo presente,
de conexões entre o passado que eles haviam imaginado sobre o morro e o
que seria de seu “futuro”. Assim, logo após a seleção desses eventos tidos
como históricos, foram apresentadas as pesquisas arquitetônica, socioeconô-
mica, fundiária, arqueológica e de organização comunitária que haviam sido
desenvolvidas no âmbito do programa e que buscavam identificar os aspec-
tos construtivos do espaço e as características de seus habitantes.
Nos dados fornecidos, os planejadores apontaram que no morro habi-
tavam cerca de 2 mil pessoas e que 48% dos domicílios eram ocupados por
inquilinos, 27,4% por proprietários e os domicílios restantes estavam “fe-
chados”, “vagos” ou “vagos em reforma”. A pesquisa fundiária identificou
ainda que os imóveis pertenciam a particulares e a instituições religiosas e
governamentais,21 mas que havia sido mais difícil delimitar os tamanhos dos
lotes entre os proprietários particulares, por causa do que consideraram ser
uma constante indefinição entre área “pública” e “privada”.
O que para os planejadores era uma indefinição, no entanto, para muitos
dos habitantes do morro era apenas outra forma de conceber seus espaços,
onde a oposição público e privado não era tão significativa ou se encontrava
fundida a outras lógicas de classificação. Na observação que realizei dos usos
das partes médias e elevadas do morro, por exemplo, percebi serem corren-
tes os conflitos e constrangimentos provocados pela circulação de “pessoas
de fora” em alguns logradouros que, embora classificados pela Prefeitura

21
Entre as instituições religiosas, a que possuía o maior número de propriedades era a católica
Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência e, entre as instituições governamentais, a
com maior propriedade no morro era a União Federal, por causa dos extensos territórios do Observatório
do Valongo da UFRJ, da Fortaleza da Conceição e do antigo Palácio Episcopal.

A Alma das Coisas 61


como vias públicas, eram utilizados como extensões das moradias para ativi-
dades recreativas ou domésticas. Essa característica dos usos era produzida
e reforçada ainda pelos aspectos físicos e construtivos dessas próprias partes
do morro, que possuíam ruas onde eram pouco nítidas as separações entre
as fachadas dos sobrados, as estreitas calçadas e o pequeno espaço de tráfe-
go dos carros, fazendo que moradores, pedestres e os poucos motoristas se
observassem cotidianamente.
A pesquisa de prospecção arqueológica foi a única que não se ateve ape-
nas ao estudo e planejamento de ações, resultando em uma intervenção di-
reta dos planejadores do ProRio na materialidade do morro. Foi então eleito
por eles o Jardim Suspenso do Valongo, espaço onde percebiam haver um
“abandono” físico e social causado pelo soterramento de entulho e lixo, in-
vasão de vegetação, danificação por “vandalismo” e frequência de “mendigos
e desocupados”.

Figuras 2.5 e 2.6. Jardim Suspenso do Valongo, sete anos após o fim do ProRio.
Fotografias da autora, 2007

Após a intervenção, o jardim foi considerado retornado ao seu estado


“original”. No entanto, esse termo dizia respeito unicamente a uma concep-
ção dos planejadores urbanos, excluindo outras percepções sobre o mesmo
espaço. Isso porque o passado do jardim remetia à atuação da Prefeitura, por
ter sido uma das construções “embelezadoras” da gestão de Pereira Passos.
Mas também remetia às narrativas de passado de uma parte dos habitantes
do morro, que considerava o espaço significativo por ter abrigado o antigo
comércio de escravos africanos.
Naquele momento de concepção das ações do ProRio, no entanto, a au-
sência dessa memória afro-brasileira não havia sido uma falta de conheci-
mento dos planejadores da Prefeitura sobre o seu passado escravista, e sim a

62 Roberta Sampaio Guimarães


materialização de um processo seletivo de memórias. Pois, ao apresentar no
livro suas proposições de ordenamento do morro, eles construíram narrati-
vamente um contraponto à ocupação considerada positiva de seus espaços
por instituições religiosas, militares e governamentais: afirmaram que, ape-
sar da instalação de “instituições prestigiadas”, o morro teria sido obrigado
a conviver com “equipamentos indesejados”, como o mercado de escravos e
as atividades de exploração de pedreiras, comerciais, portuárias e ligadas aos
estaleiros, fundições, serralherias e ferrarias. E que tais atividades teriam
atraído uma população e suas formas de habitar também percebidas como
inadequadas: operários fabris e trabalhadores portuários que se abrigavam
em “casas de cômodo” e “cortiços”.
Assim, foi partindo de um sistema valorativo específico que os planeja-
dores construíram suas noções de autenticidade, em que evocaram a ideia de
que haveria determinados espaços e habitantes portadores de uma ligação
supostamente verdadeira e genuína com o morro, em detrimento de outros
“conjunturais”. Ou seja, eles postularam haver uma autenticidade imanente
ao próprio Morro da Conceição, que uniria narrativas de passado, formas
construtivas e determinadas identidades.22 E, partindo dessa idealização,
identificaram o que e quem deveria ser preservado, em contraste com o que
e quem deveria ser modificado ou disciplinado.
Os planejadores denominaram então de “áreas sem uso ou de uso pre-
cário” os espaços que seriam o foco prioritário de atuação dos projetos de
transformação urbana. Também identificaram as “áreas utilizadas para la-
zer”, os “pontos de visadas panorâmicas” do morro, os “elementos da pai-
sagem natural” e os “perfis das vias” com a intenção de definir novos parâ-
metros urbanísticos. E, com essas classificações, agiram de maneira própria
sobre tais espaços, visando, entre outros efeitos, ordenar as noções de pú-
blico e privado e produzir formas construtivas consideradas atraentes para a
habitação de famílias de classe média e para a visitação turística.
Mas essas classificações não correspondiam às tantas outras classifica-
ções que seus habitantes possuíam. Em tal diversidade de percepções, por
exemplo, muitos dos espaços entendidos pelos planejadores como “arruina-
dos”, “precários”, “sem uso”, “invadidos” ou “insalubres” eram considera-

22
Existe uma ampla literatura sobre o uso corrente do termo “autenticidade” que problematiza a ideia
de verdade, de genuinidade, intimidade por ele evocado (Benjamim, 1994; MacCannel, 1976; Handler,
1985; Gonçalves, 1988; Clifford, 1994). Seja se referindo a objetos de arte, experiências turísticas ou
a bens culturais que compõem os chamados patrimônios nacionais, muitos estudiosos questionam a
utilização dessa noção como algo imanente ao próprio objeto de estudo.

A Alma das Coisas 63


dos por parte dos habitantes experiências habitacionais positivas de moradia
de famílias ligadas ao porto e ao comércio pequeno ou informal. Os mesmos
sobrados podiam ser ainda narrados de forma ainda mais negativa por outros
habitantes, que os denominavam “cabeças de porco”, “terrenos baldios”,
“pontos” de prostituição e drogas e “abrigos” de mendigos.
Assim, pautados por seus próprios sistemas valorativos, os planejadores
propuseram haver uma relação entre o estado de conservação física dos imó-
veis e o perfil socioeconômico de seus habitantes. E defenderam a criação de
um monitoramento da atuação do mercado imobiliário após a implantação
do ProRio, para que fosse garantida a manutenção de seus “ocupantes origi-
nais”, identificados na pesquisa sobre a “organização comunitária”.
Nessa pesquisa, espaços e habitantes foram ordenados em cinco “seg-
mentos das dinâmicas socioespaciais”. A primeira categoria ocuparia o
“eixo cume morro” e seria composta predominantemente por proprietários
de imóveis, “moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e es-
panhóis”, que possuiriam uma “relação afetiva intensa” com o espaço. A
segunda categoria ocuparia o “flanco norte” do morro, composto predomi-
nantemente por locatários, “moradores recentes, migrantes nordestinos em
sua grande maioria” que possuiriam “uma relação meramente conjuntural”
com o espaço. E a terceira categoria social foi identificada como ocupante do
“sopé comercial” e seria composta por “comerciantes instalados na base do
morro”, sem necessidade “de transitar por seu interior, de frequentar seus
espaços nem de compartilhar das mesmas expectativas” dos moradores do
morro. Nas palavras dos próprios planejadores:

A população estimada do morro é de 2 mil habitantes. Aí estão in-


cluídos os moradores antigos, muitos descendentes de portugueses
e espanhóis, que tradicionalmente estiveram ligados às atividades
portuárias e cuja relação afetiva com a área é intensa, traduzindo-se
numa forte identidade socioespacial.
No entanto, a área vem sofrendo marcante processo de degradação,
físico e social, dada a proximidade com a Zona Portuária e todas as
implicações que ela acarreta. Com isso, a população original vem sen-
do substituída por migrantes de outros estados do país. Aqueles que
têm condições e desprendimento para abandonar a área, o fazem.
Os moradores recentes, migrantes nordestinos em sua grande maio-
ria (35% segundo pesquisa socioeconômica), têm uma relação com
o morro meramente conjuntural. Eles se instalam aí por sua proxi-

64 Roberta Sampaio Guimarães


midade com o mercado de trabalho, pelos baixos preços do mercado
imobiliário e pelo conforto proporcionado pela disponibilidade da in-
fraestrutura urbana.
Há ainda a categoria dos comerciantes, que estão principalmente insta-
lados na base do morro, cujos trajetos não implicam a necessidade de
transitar por seu interior, de frequentar seus espaços nem de compar-
tilhar das mesmas expectativas. Esta categoria está muito mais voltada
para as relações com a cidade do que com o próprio morro. Essas são
basicamente as três grandes categorias sociais identificadas no morro.
Os moradores antigos, geralmente ocupando as residências no cume
do morro, são os próprios proprietários e não tem grande afinidade
com os moradores mais recentes, estes estabelecidos, sobretudo, na
vertente norte do morro, e são, em grande parte, locatários.
Grande parte da tensão social existente no morro, portanto, gira em
torno dessas duas categorias, de suas aspirações, suas identidades, de
seus valores, que acabam por gerar uma certa relação de hostilidade
entre ambas as partes.
Apesar dessa fragmentação visível nas relações de vizinhança, existe
um tecido social pronto para interagir toda vez que o equilíbrio in-
terno dessas relações for ameaçado. Como em todo o projeto, este
também introduz elementos novos que geram um certo desconforto
nas relações internas e demandam tempo para se acomodar. (Sigaud;
Pinho, 2000, p. 58)

A classificação dos planejadores sobre a “comunidade” do morro foi ba-


seada, portanto, em uma gradação entre os que eram percebidos como au-
tênticos/ puros/ genuínos, até os percebidos como inautênticos/ impuros/
conjunturais. E pautada principalmente pelo tempo de moradia, relação eco-
nômica com o imóvel, local de origem e tipo de uso do espaço, a partir dos
dualismos “morador antigo” x “morador recente”, “proprietário” x “locatá-
rio”, “português e espanhol” x “nordestino”, “morador” x “comerciante”.
Mas havia também localmente uma ampla possibilidade de classificações
identitárias que essa segmentação não contemplava. No cotidiano do morro,
uma mesma pessoa poderia ter sua identidade definida de acordo com seu
local de moradia, afinidades religiosas, atuação profissional, frequência de
determinado bar, estado civil, time de futebol, etc. Assim, por exemplo, um
morador, além de ser “recente”, “locatário” e “nordestino”, também se iden-
tificava e/ou era identificado pelos demais moradores como “elite da parte

A Alma das Coisas 65


alta”, “filho de católicos”, “arquiteto”, “frequentador do bar do Sérgio”, “se-
parado” e “botafoguense”.23 A importância de tais demarcadores identitários
oscilava entre os diferentes contextos de interação e os deslocamentos desse
morador, estivesse ele na pracinha brincando com sua filha, realizando uma
visita guiada com turistas pelas ruas do morro, assistindo a um jogo de fute-
bol no bar do Geraldo, negociando o aluguel com o senhorio, etc.
Além dessas classificações dos planejadores sobre os moradores do mor-
ro, que forneciam uma falsa percepção de estabilidade e rigidez identitária,
chamava também atenção que os habitantes do “flanco sudeste”, setor onde
estava localizado o Jardim Suspenso do Valongo e a Ladeira Pedro Antônio,
não tivessem sido por eles descritos ou citados. Eram, no entanto, esses es-
paços que haviam sido classificados como de grande potencial para as opera-
ções de reabilitação, por ter a maior quantidade de imóveis “vazios”, “vazios
em reforma”, “fechados”, “invadidos”, “insalubres” e “com risco estrutural”.
A não identificação desses habitantes na pesquisa produzia, assim, a percep-
ção indireta de que eram inexistentes.
O que a análise do livro de divulgação dos resultados dos dois anos de
ProRio demonstrou, portanto, foi que os planejadores, ao vincular determi-
nados atributos sociais, morais, estéticos e urbanísticos aos diferentes espa-
ços e habitantes do Morro da Conceição, buscaram inventar o tal “sítio histó-
rico de origem portuguesa” e legitimar seus próprios ideais de “revitalização
urbana”. Segundo eles, através desse sítio histórico os habitantes da cidade
teriam acesso a uma “memória ímpar”, que seria portada pelos objetos, lo-
gradouros e modos de vida por eles classificados como autênticos e como
possuidores de propriedades mediadoras com as experiências do passado.24
No entanto, ao proceder dessa forma, os planejadores também lograram pro-
duzir, como efeito no presente, uma identificação de quais espaços e habitan-
tes deveriam ser preservados, disciplinados e transformados.

23
Essa descrição é dedicada a Antonio Agenor Barbosa, morador da rua Jogo da Bola, que me abrigou
em sua casa durante os seis meses iniciais de trabalho de campo no morro e que foi um interlocutor
fundamental para as primeiras compreensões sobre seus espaços e habitantes.
24
Para uma discussão sobre a função mediadora dos objetos, coleções e patrimônios, ver Pomian
(1982) e Stewart (1984).

66 Roberta Sampaio Guimarães


Da imaginação urbanística de um sítio histórico
ao retorno da Pequena África

Através da criação de uma narrativa de passado histórico português, da


valorização de intervenções urbanísticas e preservacionistas governamentais
e da proposição de um novo tratamento construtivo para sobrados e logra-
douros, o ProRio buscou, como dito anteriormente, incentivar a valorização
imobiliária e o desenvolvimento turístico do Morro da Conceição. Mas, como
desde seu nascimento a noção de turismo está vinculada à construção de com-
plexos exibicionários da diversidade cultural (Kirshenblatt-Gimblett, 1998),
em que o turista busca por uma experiência diferente da que vivencia em
seu cotidiano, os espaços destinados a esse fim precisaram ser ancorados em
uma narrativa específica, como a organizada sobre o passado do morro e sua
ocupação social e construtiva de “origem portuguesa”.
Assim, apesar de as ações propostas pelo programa não terem sido ple-
namente executadas, tanto por sofrerem adaptações em sua gestão quanto
por terem deparado com resistências locais, elas produziram a difusão de um
imaginário próprio: o do “sítio histórico” do morro. E produziram, conse-
quentemente, a suposta necessidade de planejar, ordenar e disciplinar deter-
minados modos de vida e formas de habitar considerados inadequados, para
que a idealização desse espaço fosse agenciada e assegurada.
O controle do “submundo” e da “zona perigosa”, que Nina Rabha e de-
mais planejadores municipais atuantes na Zona Portuária postularam ter
sido a motivação das intervenções urbanísticas, ganhou então uma forma
material. E, discursivamente, os legitimou como os “técnicos” capazes de
“civilizar” os habitantes e convertê-los ao que consideravam uma urbanida-
de positiva, como havia desejado um século antes o prefeito Pereira Passos.
Mas, como o morro era socialmente múltiplo, as ações dos planejadores mu-
nicipais provocaram a movimentação de inúmeras memórias e identidades
locais excluídas das narrativas de passado do ProRio.
Durante meu trabalho de campo, não por coincidência encontrei a noção
de “patrimônio” operada de forma mais organizada, principalmente pelos ha-
bitantes que não haviam sido contemplados na “organização comunitária”
identificada pelos planejadores municipais, e para cujos espaços estavam sendo
concebidas as principais ações urbanísticas. Nesse processo tanto de formação
de grupos quanto de autoconsciência do que seria uma tradição e identidade
singulares, tais habitantes passaram a protagonizar conflitos em busca de reco-
nhecimento social e de acesso ou permanência em relação aos espaços do morro.

A Alma das Coisas 67


A categoria nativa de Pequena África foi uma das narrativas de passado,
que mobilizou diferentes interpretações e demandas em torno do que seria
no presente a memória da ocupação pelos “negros” e pelo “povo do santo”
de diversos espaços não só do morro, mas de toda a Zona Portuária. Alguns
movimentos sociais de “moradores sem teto”, por exemplo, acionaram sím-
bolos da escravidão para reivindicar uma política habitacional popular.25 Um
centro de memória e pesquisa sobre o tráfico de escravos, o Instituto Pretos
Novos, foi também criado em um sobrado da Gamboa após seus proprie-
tários descobrirem a existência de um cemitério de africanos enterrados a
poucos palmos do piso. E a escola de música Instituto Batucadas Brasileiras
se instalou em um sobrado na Praça dos Estivadores, buscando promover e
articular grupos de música percussiva do “Atlântico Negro”, noção que alu-
dia à rota de países envolvidos na escravidão africana. E, no Morro da Con-
ceição, dois grupos narraram especificamente o passado escravista da região,
movimentando a noção de Pequena África: a Comunidade de Remanescentes
do Quilombo da Pedra do Sal e o grupo carnavalesco Afoxé Filhos de Gandhi.

Figuras 2.7 e 2.8. Pedra do Sal (à esquerda, 2007) e sede do Afoxé Filhos de
Gandhi (à direita, 2008). Fotografias da autora

25
Surgiram então três ocupações de “moradores sem teto” trazendo em seus nomes referências ao
movimento abolicionista brasileiro: a Ocupação Chiquinha Gonzaga, criada em julho de 2004 em um
prédio na rua Barão de São Felix, pertencente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra); a Ocupação Zumbi dos Palmares, surgida em abril de 2005 em um edifício do Instituto Nacional
de Seguridade Social (INSS), na avenida Venezuela; e a Ocupação Quilombo das Guerreiras, realizada
em outubro de 2006 em um prédio da Companhia Docas, na avenida Francisco Bicalho.

68 Roberta Sampaio Guimarães


O primeiro grupo havia se formado em decorrência de um conflito habita-
cional entre moradores de alguns sobrados na base do morro e dirigentes da
Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (VOT), entidade ca-
tólica proprietária dos imóveis. Em 2001, mesmo ano de divulgação do plano
urbanístico Porto do Rio, tal entidade começou um processo de retomada de
posse de diversos imóveis, alegando desejar expandir os projetos assistenciais
e educacionais que possuíam na região. E nos quatro anos que se seguiram,
mais de trinta famílias que eram inquilinas ou moravam informalmente em
sobrados do morro com a anuência da entidade, tiveram seus aluguéis reajus-
tados a preço de mercado, foram realocadas para outros imóveis ou despeja-
das. Nos casos em que houve a contestação dos moradores das medidas que
estavam sendo tomadas pela VOT, a entidade movimentou processos judiciais
em que as categorias acusatórias de “invasores” e “inadimplentes” foram acio-
nadas para justificar a mobilização de força policial de desocupação.
Duas das famílias que estavam entre os citados nas ações de despejo,
no entanto, já moravam havia muitos anos na Zona Portuária e atuavam no
Movimento Negro Unificado. Com vínculos afetivos de longa data estabele-
cidos na vizinhança e também vínculos políticos em órgãos governamentais
federais e regionais, elas conseguiram agrupar outras três famílias do morro
para resistir aos despejos. Em comum, todas essas famílias eram de prati-
cantes do candomblé e haviam interpretado as medidas da VOT como um
rompimento por parte de seus administradores das relações “filantrópicas”
até então estabelecidas.
Como forma de paralisar os despejos, no final do ano de 2005 essas cinco
famílias acionaram o artigo 68 do Ato dos Dispositivos Constitucionais Tran-
sitórios da Constituição Federal e solicitaram à Fundação Cultural Palmares
(FCP), órgão do governo federal, o reconhecimento de dezenas de imóveis
na base do morro como território étnico do Quilombo da Pedra do Sal. Em
sua aplicabilidade,26 esse artigo qualificava como comunidade quilombola
passível de receber o título de um território de uso coletivo pelo Estado os
grupos que se autoatribuíam como “étnico-raciais”, que possuíam “trajetó-
ria histórica própria”, “relações territoriais específicas” e uma “ancestralida-
de negra” relacionada com a “resistência à opressão histórica sofrida”.27
A autoatribuição das famílias do morro como grupo étnico-racial fez
então que a FCP emitisse uma certidão de reconhecimento e iniciasse o

26
A aplicabilidade do artigo foi definida apenas em 2003, através do Decreto 4.887.
27
Para uma sistematização sobre a elaboração e aplicação desse artigo, ver Arruti (2006).

A Alma das Coisas 69


processo de regularização fundiária no Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra). No centro da argumentação do pedido de titula-
ção do território, foi apresentada a necessidade de salvaguarda da Pedra do
Sal por seus “legítimos herdeiros”, em uma referência ao seu tombamento
como monumento histórico e religioso afro-brasileiro em 1987 pelo Institu-
to Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). Assim, vinte anos depois, esse
tombamento patrimonial tornou-se, junto com a presentificação da noção de
Pequena África, um mecanismo simbólico central na formação do Quilombo
da Pedra do Sal.
Mas, como dito anteriormente, a maior parte dos imóveis da base do
morro apresentavam um uso comercial. Assim, nas proximidades da Pedra
do Sal, além de sobrados usados como moradia por famílias com diferentes
autopercepções identitárias, havia também os que eram voltados para servi-
ços diversos, como restaurante, bar, oficina de reciclagem de papel, depósito
de bebidas, etc. Tal multiplicidade de usos tornava esse espaço extremamen-
te polifônico e fazia, portanto, que o “território étnico” tivesse de ser sensí-
vel e ciclicamente produzido pelas famílias pleiteantes.
Alguns demarcadores temporais foram então vinculados por essas famí-
lias à Pedra do Sal, através da elaboração de um calendário ritual que produ-
zisse a suspensão provisória de seus usos cotidianos e potencializasse sim-
bolicamente suas autoconsciências como famílias pertencentes a um grupo
e território étnico-racial. Tais eventos festivos passaram a operar, portanto,
como ritos de calendário (Van Gennep, 1960), por meio dos quais era inaugu-
rado um tempo concentrado de circulação intensa de pessoas e suas trocas
de dádivas com orixás, mortos, humanos e não humanos.
Foram escolhidas para ser comemoradas com grandes festividades as da-
tas de São Jorge (23 de abril), da Consciência Negra (20 de novembro) e do
Samba (2 de dezembro). Nessas comemorações algumas ações rituais espe-
cíficas eram realizadas, como a “lavagem” da Pedra do Sal por praticantes do
candomblé, com especial participação do Afoxé Filhos de Gandhi; a oferta de
comida de santo para os falecidos e notórios sambistas, portuários e filhos
de santo que no passado frequentaram a pedra; a distribuição para os con-
vidados de comidas associadas aos hábitos alimentares dos escravos, como
feijoada ou frango com quiabo; e a apresentação de grupos cuja base musical
eram os instrumentos percussivos.
Em torno dessas festividades, além do envolvimento de amigos e vizi-
nhos, se congregavam integrantes do movimento social em prol da moradia
popular, do movimento negro, intelectuais, agentes do Estado e jornalistas,

70 Roberta Sampaio Guimarães


presenças consideradas importantes na legitimação do pleito étnico. Nessas
comemorações, no entanto, não eram afirmados apenas os aspectos jurídicos
e políticos do patrimônio da Pedra do Sal; sua eficácia era principalmente
baseada em noções identitárias e religiosas, a partir do pertencimento dos
pleiteantes aos “afrodescendentes” e ao “povo do santo”.
O outro grupo social que articulou no morro a noção de Pequena África foi
o composto pelos integrantes do Afoxé Filhos de Gandhi, bloco carnavalesco
que se organizava socialmente através de sua diretoria e de seus desfilantes.
No cotidiano, eram quase todos trabalhadores do setor de serviços, como ta-
xistas, funcionários públicos, professores, inspetores escolares, merendeiras,
faxineiras, músicos, enfermeiras, donas de casa e aposentados. A diretoria era
composta por cerca de quinze pessoas que se responsabilizavam pela manu-
tenção dos preceitos religiosos do candomblé e pela presença do grupo em
eventos organizados por institutos, órgãos públicos ou movimentos sociais
para a valorização e o reconhecimento da “cultura negra” e dos “cultos afros”.
E os desfilantes eram todos aqueles que trajavam a fantasia do Gandhi durante
o Carnaval e cujas unidades sociais de participação eram as casas de candom-
blé, onde se identificavam como ialorixás, babalorixás, ekedis, ogans e iaôs.
Para realizar seus ensaios carnavalescos e reuniões, a diretoria do Gandhi
havia se apossado desde 1997 de um sobrado vazio pertencente ao governo
estadual e localizado na rua Camerino, ao lado do alto muro do Jardim Sus-
penso do Valongo. Apesar de a sede estar localizada na Zona Portuária, quase
todos os seus frequentadores moravam na Baixada Fluminense ou nos su-
búrbios da cidade. Mas a localização da sede de ensaios em espaços da região
central ou portuária era considerada, desde a fundação do grupo em 1951,28
essencial para aglutinar os participantes das diferentes casas de candomblé
e criar o coletivo mais amplo do “povo do santo”, em que os vínculos locais
dos bairros se dissipavam.
As constantes iniciativas de retomada de posse do sobrado pelo governo
estadual e sua classificação como “ruína” pelos planejadores urbanos da pre-

28
O mito de origem do Afoxé Filhos de Gandhi narrado por seus atuais e antigos integrantes remetia
à fundação, em 1949, do Ijexá Filhos de Gandhy por estivadores de Salvador. O grupo carioca havia
surgido dois anos depois, em 1951, por iniciativa dos baianos Milton Sapateiro e Rubens Sapateiro,
que trabalhavam juntos no Palácio do Alumínio, estrutura metálica armada na Central do Brasil. Eles
e outros ofereciam nesse espaço trabalhos manuais como de pintor, pedreiro, marceneiro, carpinteiro,
ferramenteiro, chapeleiro e ourives. Assim, no pequeno grupo de homens que formou o primeiro desfile
carnavalesco do afoxé carioca, poucos eram estivadores e nem todos eram baianos: o forte elo que os
unia era serem filhos de santo.

A Alma das Coisas 71


feitura fizeram, no entanto, que os integrantes do Gandhi não conseguissem
regularizar juridicamente a sede e reformá-la. Assim, entre os anos de 2008
e 2009, essas ainda eram as principais preocupações de sua diretoria, que
passou a organizar eventos políticos em sua sede e articular uma narrativa
que associava a importância de todo o espaço do entorno à sua “energia”, já
que ali tinha funcionado o mercado de escravos do Valongo e, defronte, havia
sido fundado o primeiro sindicato do país, o dos estivadores.
O Gandhi então elaborou o projeto Centro de Cidadania Afoxé Filhos de
Gandhi, com o apoio de outro grupo que se considerava herdeiro da Pequena
África, o Instituto Batucadas Brasileiras, instalado em frente à sede do grupo,
na Praça dos Estivadores. Tal projeto, que não chegou a ser implantado, pre-
via a reforma do sobrado, ações voltadas para a geração de trabalho para a po-
pulação local e a divulgação do Gandhi como “patrimônio imaterial carioca”.
Nessa proposta de patrimonialização, havia a intenção de criar um “centro
de memória” com um acervo sobre o grupo; instalar um “memorial” sobre
a abolição na Praça dos Estivadores, composto por painéis com imagens e
textos sobre a contribuição das etnias negras na formação da sociedade bra-
sileira, e por uma concha acústica para a apresentação de shows de música;
e instalar ainda um “monumento” nessa praça, comemorativo ao trabalho
portuário. Em todas essas ações, era defendida a criação de “símbolos positi-
vos” que se sobrepusessem ao que consideravam ser uma memória negativa
dos tempos da escravidão.
Assim, através de formas particulares, tanto o Quilombo da Pedra do Sal
quanto o Afoxé Filhos de Gandhi se posicionaram contra as propostas urba-
nísticas da Prefeitura para o Morro da Conceição e a Zona Portuária no início
do século XXI, movimentando um imaginário próprio em torno da noção
de Pequena África. As famílias pleitearam o reconhecimento de um territó-
rio étnico, argumentando a existência de um patrimônio negro e exigindo
uma reparação não apenas simbólica, mas territorial, do que interpretaram
como sendo eventos traumáticos ligados à escravidão. E o bloco carnavales-
co interpretou esses mesmos eventos a partir de um patrimônio do santo e
buscou a redenção da memória escravista através de sua monumentalização
e musealização. Mas, em comum, ambos narravam a região e o morro como
intrinsecamente relacionados ao candomblé, onde uma pedra, a esquina de
uma rua ou um “morador sem teto” eram inseridos em uma hierarquia pau-
tada por valores mágicos.
* * *

72 Roberta Sampaio Guimarães


Com os dados levantados na pesquisa, foi possível observar que as ações
disciplinadoras das políticas urbanísticas são capazes, entre tantos efeitos,
de produzir ou presentificar narrativas de memória e de formar uma auto-
consciência dos habitantes em relação aos espaços da cidade. Pois, passando
a se diferenciar subjetivamente em relação às experiências vivenciadas por
outros grupos e indivíduos, eles iniciam a construção ativa de uma iden-
tidade capaz de ser afirmada e valorizada perante as outras, produzindo a
emergência na esfera pública de suas demandas de reconhecimento social.
Assim, o que os desdobramentos do processo de imaginação do Morro da
Conceição como “sítio histórico de origem portuguesa” apontaram foi para
o fato de que nem todos os espaços e memórias urbanas podem ser ideolo-
gicamente construídos e economicamente viabilizados pelas políticas gover-
namentais. Pois, quando se trata do passado de objetos, espaços e pessoas,
diferentes e desestabilizadoras lógicas podem ser movimentadas, como a da
Pequena África, trazendo à tona memórias sempre passíveis de ser reconta-
das como a versão não exibida da patrimonialização da cidade.
Os eventos recentes em torno da criação do Memorial do Cais do Valongo
e do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana, com o reconhe-
cimento e oficialização pela Prefeitura dos marcos espaciais que os grupos
que se contrapunham até então a seus projetos urbanísticos relacionavam à
noção de Pequena África, apontam no entanto para as ambiguidades ineren-
tes a todos os processos de produção e valorização de memória. Segundo o
material de divulgação desse “projeto especial” pelos planejadores do Porto
Maravilha:

Nas últimas décadas, em particular, após o início das obras do Porto


Maravilha, estudos e escavações arqueológicas trouxeram à tona a
importância histórica e cultural da Região Portuária do Rio de Janeiro
para a compreensão do processo da Diáspora Africana e da formação
da sociedade brasileira. Achados arqueológicos motivaram a criação,
pelo Decreto Municipal 34.803, de 29 de novembro de 2011, do Gru-
po de Trabalho Curatorial do Circuito Histórico e Arqueológico da
Herança Africana, para construir coletivamente diretrizes para imple-
mentação de políticas de valorização da memória e proteção deste
patrimônio cultural.
Cada um dos pontos indicados pelo decreto remete a uma dimensão
da vida dos africanos e seus descendentes na Região Portuária. O Cais
do Valongo e da Imperatriz representam a chegada e o comércio de

A Alma das Coisas 73


africanos. O Cemitério dos Pretos Novos mostra o tratamento indig-
no dado aos restos mortais dos povos trazidos do continente africano.
O Largo do Depósito era área de venda de africanos escravizados.
O Jardim do Valongo simboliza a história oficial que buscou apagar
traços do tráfico negreiro. Ao seu redor, havia casas de engorda e um
vasto comércio de itens relacionados à escravidão. A Pedra do Sal era
ponto de resistência, celebração e encontro. E, finalmente, a antiga
escola da Freguesia de Santa Rita, o Centro Cultural José Bonifácio,
o maior centro de referência da cultura negra da América Latina,
remete à educação e à cultura como instrumentos de libertação em
nossos dias. Esses marcos receberão sinalização oficial de ponto do
Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana
e atenção especial do Porto Maravilha Cultural. O Grupo de Trabalho
do Circuito estabeleceu, além da sinalização, ações para ampliar o
conhecimento desta parte da história da Diáspora Africana. A pro-
posta prevê visitas guiadas, publicações e atividades de divulgação.
[...] Hoje o Cais é candidato ao título de Patrimônio Histórico da Hu-
manidade, reconhecimento da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).29

Algumas perguntas ficam, assim, em aberto para posterior pesquisa e


análise. Essa afirmação e redenção da memória da escravidão trouxe o reco-
nhecimento social daqueles habitantes que, poucos anos antes da “descober-
ta” do Cais do Valongo, se colocavam como herdeiros da Pequena África? Ou
a lógica das políticas de patrimônio e urbanização manteve apartados passa-
do e presente, produzindo apenas mais uma forma de ordenar e disciplinar
os espaços da cidade com suas “visitas guiadas, publicações e atividades de
divulgação”? Ou, como provoca Huyssen (2000), a monumentalização das
memórias traumáticas não traria embutida um processo ativo de esqueci-
mento dessas mesmas memórias?
Sem uma pesquisa etnográfica sobre os atuais conflitos sociais na Zona
Portuária decorrentes de sua urbanização, não é possível responder com se-
gurança a nenhuma dessas questões. Permanece assim uma dúvida interpre-
tativa se o memorial então construído pelo Porto Maravilha estaria criando,
ou destruindo, um ícone escravista. Pois, como sugere Latour (2008), o icono-
clash inerente à criação de tais ícones portaria a ideia de um choque sucessivo
entre imagens, o que traria em si uma hesitação. Ou seja, a necessidade de

29
Disponível em: http://portomaravilha.com.br/web/esq/projEspHeranca.aspx. Acesso em: set. 2012.

74 Roberta Sampaio Guimarães


uma investigação pormenorizada para descobrir o que a recente monumen-
talização da memória da escravidão apresentaria de destruição, construção,
subversão, entretenimento, acomodação, etc. das interações sociais entre os
planejadores urbanos da Prefeitura e aqueles habitantes que se autoatribuem
uma identidade afro-brasileira.

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78 Roberta Sampaio Guimarães


3.

PATRIMÔNIO E DÁDIVA:
AS BAIANAS DE ACARAJÉ NO RIO DE JANEIRO

Nina Pinheiro Bitar

A rua continua, matando substantivos, transformando a


significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras
que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos
léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado todo
o conforto humano.
(João do Rio, A alma encantadora das ruas)

As baianas e o acarajé

A antropóloga Janet Hoskings, em seu livro Biographical Objects (1998),


demonstra a importância de certos objetos como constituidores e metáforas
da noção de pessoa no contexto da Indonésia oriental. Segundo a autora,
as histórias de vida que apreendeu foram construídas a partir da interação
das pessoas com objetos específicos, que chama biographical objects, e não
lhe foram “dadas” pelos seus interlocutores. Ela ressalta que na medida em
que seus interlocutores falavam de um objeto, estavam narrando sua vida.
A autora aponta que é possível examinar identidades individuais não como
essências unificadas, mas como local móvel de contradições e falta de uni-
dade, pois, no contexto analisado, certos objetos são usados para reificar
características de personalidade.
A partir de tal perspectiva, abordo neste artigo a relação entre pessoas e
uma comida específica, chamada acarajé. São muitas as suas classificações:
“comida de santo”, uma “comida típica”, um “quitute baiano”, um “meio
de sobrevivência”, uma “comida africana”, uma “comida de rua”. Segundo
Câmara Cascudo, o acarajé consiste em:

A Alma das Coisas 79


Iguaria da cozinha afro-baiana. Bolinhos feitos de massa de feijão-
-fradinho temperada com cebola e sal. Depois de frito no azeite de
dendê, cada bolinho é cortado ao meio e preenchido com recheio feito
de camarão seco frito no azeite de dendê, cebola e gengibre ralado.
(Cascudo, 2001)

O acarajé é vendido nas ruas de cidades como Salvador e Rio de Janeiro


e, por isso, também é associado a certas “comidas de rua”. Os horários de
consumo são bem variados, mas geralmente é consumido no final da tarde,
depois do trabalho. As pessoas, em sua maioria mulheres, que preparam e
vendem a iguaria são chamadas popularmente de “baianas de acarajé”. Ven-
dem a comida no denominado “ponto”, em torno do qual os “fregueses” se
aglutinam de maneira específica, tornando-o local de encontro de grupos e
propiciando algumas redes de relações entre os frequentadores.
O presente artigo é resultado da pesquisa que desenvolvi sobre a for-
mação sociocultural da categoria “baiana de acarajé” no contexto da cidade
do Rio de Janeiro (Bitar, 2011).1 Meu objetivo foi entender o processo de
tornar-se baiana de acarajé, através da descrição etnográfica do cotidiano de
quatro baianas (três mulheres e, excepcionalmente, um homem), focalizan-
do o seu “sistema culinário” (Gonçalves, 2002; Mahias, 1991; Verdier, 1969):
acompanhamento desde a escolha dos ingredientes, o preparo, a venda e o
desfazer dos restos, além participar de outros contextos informais, longe
dos “pontos”. Tal concepção apreende a comida como parte de um conjunto
social e cultural, enfatizando as relações sociais e simbólicas em que ela está
inserida e nas quais desencadeia efeitos. Pode-se dizer que o sistema culi-
nário é um dispositivo inconsciente, em que os alimentos, de certo modo,
mais que serem por nós escolhidos,... “nos escolhem” (Gonçalves, 2002).
Segundo esse autor:

Na verdade não somos nós que escolhemos os alimentos; são os ali-


mentos que nos escolhem. Isso porque, quando escolhemos um de-
terminado alimento, já estamos operando dentro de um dado “sistema
culinário” com seus princípios e regras inconscientes. Somos, aliás, já
constituídos social e culturalmente por esse sistema. (2002, p. 9)

1
Agradeço a leitura e sugestões feitas pelo professor doutor José Reginaldo Santos Gonçalves e
Roberta Sampaio Guimarães. Este artigo é fruto da dissertação defendida no PPGSA da UFRJ e sua
posterior publicação no livro Baianas de acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2011. Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq.

80 Nina Pinheiro Bitar


Outro aspecto que focalizei na pesquisa foi o fato de o “ofício das baianas
de acarajé” ter sido registrado como “patrimônio imaterial brasileiro” pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no ano de
2004. Minha principal indagação era: por que, em determinado momento,
uma comida foi considerada “patrimônio”. Por um lado, procurei compreen-
der como as baianas entendiam a recente patrimonialização de sua atividade.
Por outro, analisei as recentes políticas públicas de preservação patrimonial,
com o intuito de problematizar a categoria “patrimônio”.
Percebi, ao longo da interlocução com as baianas de acarajé, que podemos
ampliar o entendimento de tal categoria para além de sua formulação em ter-
mos jurídicos. O patrimônio, segundo a sugestão de Gonçalves (2003), pode
ser concebido como categoria de pensamento, ampliando, assim, seus usos
e significados, que não se restringem à sua denominação jurídica. A partir
dessa perspectiva, podemos pensar como tal conceito pode ser elaborado em
termos nativos pelos agentes em questão, as baianas de acarajé.
Ao explorar a ideia do “patrimônio” como categoria de pensamento, bus-
quei entender como as baianas estavam constituindo essa noção no seu dia a
dia. O ponto de partida da pesquisa foi a descrição e análise da relação entre
pessoas e objetos focalizando o “mundo” (Schuetz, 1945; Becker, 1977) das
baianas de acarajé: as diferentes relações e cadeias de atores que as envolvem.
É interessante observar quais são os múltiplos significados das baianas e dos
seus objetos, e compreender como agem. Exploro aqui a hipótese segundo a
qual os objetos materiais não atendem apenas a funções utilitárias, nem são
apenas suportes identitários, mas mediadores e constituidores da vida social,
não existindo separadamente dos sujeitos. Assim, penso esse “mundo” das
baianas por meio das histórias de vida relacionadas a essa comida. Tais histó-
rias também se misturam ao meu percurso da pesquisa, e eu sou parte delas,
na medida em que foram compostas a partir de nossa interação.
Percebi ainda, ao longo do trabalho de campo, que as baianas narravam
suas vidas a partir de sua interação com a comida que produzem; é o marco
na vida delas e a partir dessa relação constroem a narrativa sobre suas vidas.
Era em relação a seu trabalho com esse produto que explicitavam os cami-
nhos e escolhas que seguiram. Assim, essas histórias foram constituídas de
uma forma específica, através da ligação das baianas com o acarajé. Ao expli-
car o que é esse objeto, de “onde” ele veio, o que “significava” essa comida,
estavam também falando de si. Ao interagir cotidianamente com esse objeto
(e com a rede de objetos articulada por eles, como os ingredientes e as rou-
pas), estavam também formando-se como baianas de acarajé.

A Alma das Coisas 81


Cascudo (2001), por exemplo, descreve o traje utilizado pelas baianas de
acarajé por meio da categoria “baiana”. Ou seja, “baiana” é a denominação
tanto da pessoa que prepara e vende o acarajé quanto de sua roupa:

1) Indumentária que caracteriza a negra, a mestiça da capital baia-


na. Divulgado por meio de fotografias, desenhos, teatro e citações
literárias, o traje tornou-se tradicional. A baiana usava chinelas nas
pontas dos pés, pano-da-costa, saia de seda e cabeção de crivo; braço
e pescoço desnudos, cheios de pulseiras e cordões de ouro; pendente
da cintura, uma enorme penca de miçangas de prata. Torso branco
à mouresca; bata (blusa branca engomada) em geral de algodão, às
vezes de seda. Brincos de turquesa, coral, prata ou ouro. O balagandã,
hoje quase desaparecido, era o principal ornamento. O traje da baiana
tornou-se o mais típico como expressão brasileira. [...]. (2001, p. 39)

Trata-se, portanto, de um processo tanto metafórico, em que o acarajé


significa algo e representa algo, quanto metonímico (Bateson, 2000), na me-
dida em que as baianas estão construindo a si mesmas ao fazer e vender o
acarajé de determinada forma.

Figura 3.1. Baiana Ciça na porta de sua


casa. Fotografia: Nina Pinheiro Bitar

82 Nina Pinheiro Bitar


Através desse viés, o acarajé aparece como desafio no sentido de buscar
entender o motivo pelo qual essa comida especificamente, e não outra qual-
quer, é escolhida e, com isso, qual é o valor que assume. Pode-se dizer que
há uma extensa rede social e simbólica envolvendo as baianas de acarajé, em
que os objetos que as constituem não podem ser separados de determinada
noção de pessoa (Mauss, 2003).
O acarajé não é uma comida formal, uma “refeição”. Ele também se dife-
rencia do fast food, tanto no tempo de sua “pré-produção”, em casa, como pelo
tempo de preparo para o consumo na rua. Em geral, o preparo do acarajé dura
cerca de dois dias. Em casa é feita a massa de feijão-fradinho e os complemen-
tos do acarajé (vatapá, caruru, camarão seco e salada de tomate). Cada baiana
tem uma receita para esses complementos, porém, o que invariavelmente apa-
rece em todas as receitas é o azeite de dendê em grandes doses. Na esfera da
rua, a massa será batida e frita, e a baiana “monta” o acarajé.

Figuras 3.2 e 3.3. Sônia Baiana montando o acarajé. Fotografia: Nina Pinheiro Bitar

O antropólogo Peter Fry2 sublinha que num artigo de Vivaldo da Costa


Lima (apud Rial, 1995) o autor faz uma a comparação da relação dos clientes
com as baianas de acarajé e o comportamento usual em restaurantes, ob-
servando que, diferentemente do que ocorre nos restaurantes, na venda do
acarajé quem se curva é o cliente; ao contrário do garçom – uma inversão que
indica quase reverência do cliente à baiana de acarajé, ao se inclinar diante
dela. Também é comum os clientes abraçarem ou beijarem a mão da baiana,
pedindo a sua benção. No caso de baianas ligadas à esfera das religiões afro-
-brasileiras essa relação com os clientes é mais marcada.

2
Agradeço ao antropólogo Peter Fry pela sugestão de leitura do artigo em questão.

A Alma das Coisas 83


Algumas baianas de acarajé possuem uma relação de “conselheira” com
seu público. Elas dão opinião quando solicitadas e muitos de seus clientes
passam a ser seus amigos, compartilhando sua vida com elas. Entretanto, o
acarajé também pode ser consumido de forma rápida, sem que haja necessa-
riamente uma ligação entre o cliente e a baiana.
Por meio da concepção de “biografia dos objetos” (Kopytoff, 1986), pode-
mos problematizar o dualismo pelo qual as relações entre objetos e sujeitos
são usualmente pensadas. Ao explorar essa ideia, inferimos que as mesmas
perguntas feitas às pessoas devem ser feitas às coisas, levando em considera-
ção que todas as biografias são parciais. Não obstante, as perguntas formu-
ladas não são dadas, elas seguem paradigmas específicos de cada contexto e
época, tornando relevantes certas questões em detrimento de outras.
Pode-se ampliar essa perspectiva para a atenção às perguntas relevantes
para os nativos, ou seja: quais são as perguntas que fazem para o objeto e
como respondem a essas questões. Ao pensarmos a baiana de acarajé e essa
comida como agentes, possuidores de uma biografia, podemos apreender
seus múltiplos significados por meio do acompanhamento das redes de rela-
ções que os envolvem. As baianas de acarajé, figuras que se articulam direta-
mente com a venda dessa comida, revelam, assim como os consumidores, a
complexa ação simbólica mediada pelo acarajé.

As baianas, o patrimônio e a dádiva

Ao entendermos o “patrimônio” como categoria de pensamento pode-


mos compreender os contornos semânticos que ela pode assumir em con-
textos socioculturais específicos (Gonçalves, 2003). O processo de formação
de “patrimônios”, segundo esse autor, pode de certo modo ser traduzido
pela categoria “colecionamento”, o que implica a demarcação de um domínio
subjetivo em oposição a um “outro” por meio da atividade de reunir objetos
móveis e imóveis. Muitas vezes essa categoria pode ser confundida com a de
propriedade. No entanto, a ideia de que a acumulação de objetos materiais
em torno de um indivíduo ou de um grupo, concebendo a identidade como
riqueza, não é universal (Gonçalves, 2007; Clifford, 1988). Significativas et-
nografias apontam que as posses também são acumuladas para serem redis-
tribuídas ou simplesmente destruídas. Desse modo, a noção de patrimônio
pode ser usada comparativamente em outras experiências socioculturais, nas
quais a categoria não aparece individualizada e com fronteiras nitidamente

84 Nina Pinheiro Bitar


delimitadas. Em outros contextos ela assume diferentes significados, poden-
do não ser separada dos seus proprietários ou constituindo sua extensão
moral (Gonçalves, 2007).
O evento do registro do “ofício das baianas de acarajé” realizado em 2004
pelo Iphan pode ser entendido como parte de uma estrutura (Sahlins, 2004).
Segundo o autor, há sempre uma estrutura prévia que é atualizada e recon-
figurada com o acontecimento de eventos. Tais eventos, portanto, não ocor-
rem sem diálogo com a estrutura. Dessa forma, podemos dizer que o evento
do registro do “ofício das baianas de acarajé” como “patrimônio imaterial
brasileiro” é resultado de um processo de ações políticas de um órgão públi-
co, o Iphan e, sobretudo, fruto da atuação das próprias baianas de acarajé.
Ou seja, o registro do “ofício” foi um evento gerado pelas baianas – elas
não foram passivas nesse processo –, além de ser um resultado de políticas
públicas. O registro do “ofício” como um “patrimônio imaterial” é parte de
um processo mais abrangente, no qual a dimensão jurídica desse termo ga-
nha destaque. Pode-se dizer que há, atualmente, um diálogo do Iphan com
o discurso da Antropologia, ao buscar formular uma ideia de patrimônio
diferenciada do chamado “patrimônio de pedra e cal”, os bens “históricos”,
“materiais” (Gonçalves, 2002).
A categoria “patrimônio imaterial” veio a ser adotada pela política patri-
monial brasileira, e a elaboração desse conceito encontrou expressão jurídica
no Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial como patrimônio cultural brasileiro. A re-
cente política do Iphan é de valorização de elementos de cultura popular,
classificados como “bens culturais”, e não apenas aqueles bens classifica-
dos como de “pedra e cal” (Gonçalves, 2002). Os conceitos de “patrimô-
nio imaterial”, ou “patrimônio intangível”, ou “bem cultural de natureza
imaterial”3 ressaltam a

[...] importância que, nesse caso, têm os processos de criação e ma-


nutenção do conhecimento sobre o seu produto (a festa, a dança, a
peça de cerâmica, por exemplo). Ou seja, procuram enfatizar que in-
teressam mais como patrimônio o conhecimento, o processo de cria-
ção e o modelo, do que o resultado, embora este seja sua expressão
indubitavelmente material. A principal crítica a essas expressões é

3
A expressão “patrimônio imaterial acabou prevalecendo, em detrimento de “patrimônio oral” e “cultura
popular e tradicional”.

A Alma das Coisas 85


que estas levam a desconsiderar o resultado da manifestação e suas
condições materiais de existência. Não dão conta, portanto, de toda a
complexidade do objeto que pretendem definir. (O Registro do Patrimô-
nio Imaterial, 2000, p. 13)

Há, portanto, um reconhecimento dos limites do emprego da categoria


“patrimônio imaterial”. No processo de conceituação dessa categoria há um
diálogo com conceitos antropológicos de cultura para o tratamento de seus
objetos. O registro do “ofício das baianas de acarajé” é um exemplo desse
diálogo, pois não é propriamente um registro do acarajé ou da baiana, mas de
um “sistema cultural” que envolve a sua totalidade (Vianna, 2004).
Exploro aqui a ideia de que, antes mesmo da ocorrência desse registro, a
categoria “patrimônio”, de certa forma, já era produzida pelas baianas, em-
bora estas não entendam a categoria exatamente do mesmo modo que os
agentes do Iphan, nem circunscrevam sua compreensão a uma noção estri-
tamente “jurídica”. A concepção de patrimônio formulada pelas baianas é
produzida por sua autopercepção na vida cotidiana através da relação com os
processos de produção e circulação do acarajé.
A ideia de “patrimônio imaterial” utilizada pelo Iphan, um termo jurí-
dico, diferencia-se, de certa forma, da noção de patrimônio formulada pe-
las baianas de acarajé. Nesse caso, as apropriações do espaço público pelas
baianas exibem o modo pelo qual elas estabelecem uma relação de dádiva e
contradádiva com determinadas divindades através de uma série de “obri-
gações”. Pode-se dizer que elas elaboram um sentido específico para a rua,
numa espécie de sacralização.
Ao analisar a forma como elas incorporaram, a partir do registro pelo
Iphan, a categoria “patrimônio” em termos jurídicos, e como entenderam o
processo de patrimonialização desse “bem imaterial”, podemos pensar o que
vem a ser, para as baianas, o “ofício das baianas de acarajé”.
O registro desse “bem imaterial” se configurou como demarcação de
fronteiras entre as baianas e os seus “outros”: mais amplamente, com os
ambulantes e, mais especificamente, no caso da cidade de Salvador,4 com
os evangélicos e o seu “acarajé de Jesus”. Com o surgimento do “acarajé de
Jesus”, os evangélicos estariam “descaracterizando” o acarajé ao associá-lo
a Jesus e à Igreja Evangélica, opondo-se à esfera religiosa do candomblé.

4
Há uma rivalidade entre as baianas de acarajé evangélicas e aquelas que são adeptas das religiões
afro-brasileiras.

86 Nina Pinheiro Bitar


Nesse contexto de divergências religiosas, a ressignificação do acarajé, com o
acarajé de Jesus, é objeto de discordância entre as baianas pertencentes às re-
ligiões afro-brasileiras, que reivindicam a “origem” do acarajé nos terreiros.
Para elas, tornar-se “patrimônio” significou marcar uma alteridade, ora
associando o acarajé às religiões afro-brasileiras, ora ao que entendem por
“tradição”. No entanto, para além da demarcação de uma alteridade, é neces-
sário considerar que esse “patrimônio” é incorporado em seu sistema cos-
mológico através de relações de dádiva e contradádiva (Mauss, 2003).
O patrimônio, mais que se configurar como expressão emblemática de um
grupo social ou nação, é também um processo de construção e reconstrução
social e simbólica através das experiências sensíveis, individuais e coletivas.
Essas concepções do patrimônio, seja como forma de expressão de uma “iden-
tidade”, seja como espécie de extensão da experiência, devem ser entendidas
levando-se em conta o fato de as baianas se inserirem em uma complexa rede
social e simbólica inseparável da esfera pública. É dentro dessa rede que se
pode perguntar: como pessoas, lugares e objetos tornam-se “patrimônio”?

Baianas de acarajé e espaço público

O pedido de registro5 do “ofício das baianas de acarajé” como “bem ima-


terial” foi proposto pela Associação das Baianas de Acarajé, Mingau, Recep-
tivos e Similares (Abam), pelo Terreiro Ilé Axé Opô Afonjá e pelo Centro
de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia (Ceao).6 Foi
inscrito no Livro dos Saberes do Patrimônio Imaterial como “patrimônio cul-
tural brasileiro” em 2004.7
Aqui temos, como os proponentes do registro, a conjugação de uma asso-
ciação civil que organiza as baianas de acarajé; um centro de estudos da Fa-

5
O pedido de abertura do processo do registro deverá ser coletivo, sendo as partes legítimas
para propor: instituições governamentais de cultura federais, estaduais e municipais; sociedades e
associações civis (O registro do patrimônio imaterial, p. 17).
6
“O Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) é um órgão suplementar da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia voltado para o estudo, a pesquisa e ação
comunitária na área dos estudos afro-brasileiros e das ações afirmativas em favor das populações
afro-descendentes, bem como na área dos estudos das línguas e civilizações africanas e asiáticas.”
Disponível em: http://www.ceao.ufba.br/2007/apresentacao.php. Acesso em: jan. 2010.
7
Dados do processo: Pedido de Registro aprovado na 45. Reunião do Conselho Consultivo do
Patrimônio Cultural, em 01/12/2004. Inscrição no Livro dos Saberes em 21/12/2004.

A Alma das Coisas 87


culdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia;
e um terreiro de candomblé tombado pelo Iphan em 2000,8 onde o então
ministro da cultura Gilberto Gil foi “iniciado”.
Para buscar entender por que, em dado momento, registraram tal “ofí-
cio”, entrevistei em 2008 a presidente da Abam (Associação das Baianas de
Acarajé e Mingau da Bahia), Rita, na sede da associação. Ela revelou ser a
atual reivindicação das baianas de acarajé o reconhecimento dessa atividade
como profissão, já que agora eram reconhecidas como “patrimônio” pelo
Iphan. Ela afirmou que não queria mais preencher, nos formulários, o campo
profissão como “cozinheira”, e sim como “baiana de acarajé”, explicando
que “cozinhar, eu cozinho em casa”. Para Rita, a atividade da venda de aca-
rajé está vinculada à rua e não ao espaço doméstico. Segundo Rita, para ser
baiana de acarajé é necessário estar nas ruas vendendo. E essa venda deve ser
também regrada: precisam vestir os trajes apropriados. Pode-se dizer que a
dimensão pública e performativa da atividade das baianas de acarajé se tor-
nou uma questão importante a ser acompanhada no cotidiano das baianas.
O chamado “ponto”, local de venda do acarajé, é fundamental para essas
baianas, e “fazer o ponto” revelou-se um procedimento complexo e muitas
vezes malsucedido. Foi possível observar, a partir da pesquisa, que “fazer o
ponto” envolve desde relações com a prefeitura local (para a legalização des-
se trabalho informal), conquista de uma clientela e relações com entidades
das religiões afro-brasileiras. Assim, ser baiana de acarajé é estar vinculada
à esfera pública.

Baianas de acarajé no Rio de Janeiro

Para explorar esse aspecto, apresentarei as baianas que participaram da


pesquisa, obedecendo a sequência de meu contato com elas. A primeira baia-
na que conheci foi Sônia Baiana, que trabalha na Feira de Antiguidades da rua
do Lavradio, no Centro do Rio de Janeiro. A baiana, que vive há mais vinte
anos na cidade,9 “fez o seu ponto” a partir de sua relação com o “movimento

8
Pode-se dizer que o registro do “ofício das baianas de acarajé” faz parte de um processo mais amplo
de políticas de reconhecimento de “bens culturais” afrodescendentes. Para uma discussão sobre os
tombamentos de terreiros em Salvador, ver Gomes (2009). Consultar também Roger Sansi (2007) sobre
as transformações do valor museográfico dos objetos das religiões afro-brasileiras.
9
Terei o ano de 2009 como referência temporal.

88 Nina Pinheiro Bitar


negro”, através de cursos de capacitação da Incubadora Afro-Brasileira10 e
do projeto de Economia Solidária.11 Assim, sua rede de relações consiste em
pessoas que trabalham com a temática “afro”, afirmando ser uma represen-
tante, com a venda do acarajé, da “culinária afro”.
Sônia reelabora a ideia da Economia Solidária por meio de uma concep-
ção de trabalho pautada na “cooperação dos quilombolas”. Ou seja: pressu-
põe que haja uma ajuda mútua entre as pessoas que fazem parte da sua rede
de relações. Ao perguntar-lhe sobre como começou a vender acarajé, Sônia
sempre narra o início da venda associado à Economia Solidária e à Incuba-
dora Afro-Brasileira. Explica ainda que já trabalhava com a venda de acarajé;
contudo, com o suporte da incubadora, aprendeu a gerir seu negócio: “gas-
tronomia afro-brasileira”. É, como afirma, contra o “sistema capitalista” e
“neoliberal”, e articula a tais ideais uma atitude de cooperação entre pessoas
que trabalham com atividades relacionadas à temática “afro”, pois para ela
ser baiana de acarajé é mais do que um meio de vida, é uma forma de vida
vinculada às “raízes étnicas” africanas. No seu site,12 podemos ler:

[...] Há 18 anos, ela saiu da Bahia e veio para o Rio de Janeiro com
o objetivo de apresentar para os cariocas seu talento na gastronomia
com os segredos de preparo do acarajé deixados pela avó. Mãe de dois
filhos, Baiana, como gosta de ser chamada, começou a vender acarajé
em Copacabana. Seu trabalho na Zona Sul fez sucesso, porém o maior
lucro ia para a dona do negócio. Com isso, Sônia Baiana apostou em
seu potencial e começou a vender acarajé na Praça da Telemar, Mes-
quita. [...] Sônia contou com o apoio da Incubadora Afro-Brasileira,
que, segundo ela, investe em qualificação e inclusão social para dar
certo. “A Incubadora me dá base para transformar ideia em realidade.
Estou feliz por mostrar na Baixada minha cultura e vender o autên-
tico acarajé”. [...] A autêntica baiana faz questão de dizer que não é
apenas uma vendedora de acarajé. “Eu represento um segmento da

10
Foi criada com incentivo da Petrobrás para o desenvolvimento de trabalhos sobre a temática “afro”.
11
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego: “A economia solidária vem se apresentando, nos últimos
anos, como inovadora alternativa de geração de trabalho e renda e uma resposta a favor da inclusão
social. Compreende uma diversidade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de
cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre
outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas,
comércio justo e consumo solidário”. Disponível em: http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/ecosolidaria_
oque.asp. Acesso em: 16 nov. 2009.
12
Disponível em: http://soniabaiana.wordpress.com. Acesso em: 6 maio 2009.

A Alma das Coisas 89


cultura Afro, que é a gastronomia. Falar que sou apenas uma ven-
dedora de acarajé é muito pouco. O que faço é um resgate cultural”,
afirmou. (Baiana Ciça. Grifos da autora)

Sônia relaciona a “origem” do acarajé à África, o que veremos mais à frente


não ser o caso, em comparação com outras baianas que vinculam essa comida
às religiões afro-brasileiras. O acarajé, para ela, é uma “comida africana”, tra-
zida pelos escravos para o contexto da Bahia. Ao partir para o Rio de Janeiro,
ela traz esse produto como uma baiana “autêntica” – que nasceu na Bahia – e
que possui uma ligação com os antepassados africanos por meio do acarajé.
Já Ciça, a outra baiana que conheci durante o trabalho de campo, foi indi-
cada pela Abam, pois é associada. Por ser uma baiana que promove diversas
atividades ao longo do ano, foi aquela com quem mais tive contato. Ciça mora
há dez anos no Rio de Janeiro e fez seu ponto na rua do Mercado, perto da Pra-
ça XV de Novembro, também no Centro da cidade. Ao narrar como escolheu
seu ponto de venda, relatou que foi levada pelos santos Cosme e Damião.13

Eu passei ali de ônibus, quinta-feira. Eu vi do ônibus este ponto. Vi-


nha eu e meu marido. Perguntei: “Tem ponto [de ônibus] aqui?”, ele
disse: “tem, ali”. Eu falei: “Desce”, “para quê?”, respondi: “eu quero
ver o ponto”. Ele: “que ponto, menina?!” Eu desci doida. Aquele pré-
dio [Bolsa de Valores] ainda estava no chão, não tinha nada ali, tinha
uns mendigos, sei lá o que foi. E eu olhando para um lado e para ou-
tro. Ele disse: “o que é que você quer?”, respondi: “quero esse ponto”,
e ele: “mas não tem nada aqui, o ponto está morto”, falei: “a gente
ressuscita ele”. Ele riu. Ressuscitei ou não ressuscitei? Aqui não para-
va quase ninguém, eu tinha quatro banquinhos. Esse prédio [da Bolsa
de Valores] não tinha. Eu chegava aqui onze horas do dia, saía daqui
oito horas da noite. Às vezes vendia tudo, às vezes não vendia, porque
eu estava fazendo o ponto. (Baiana Ciça. Grifos da autora)

Para conseguir a autorização da Prefeitura, Ciça pediu para Cosme e Da-


mião irem na sua frente para “amansar”, “preparar” a pessoa com quem iria
conversar, responsável por lhe dar a licença de trabalho na rua. Afirmou que

13
Lima (2005) analisa o “culto dos santos gêmeos”, através do modelo ioruba/nagô do orixá Ibêji, dos
“santos gêmeos”, chamados também “dois-dois”. O autor aponta para a complexidade de classificações
dos santos no candomblé, que podem ser concebidos de diversas formas, como, por exemplo, apenas
um adulto – o Ibêji, como um orixá padroeiro dos dois gêmeos –; podem ser duas crianças ou adultos
de mesmo sexo ou diferentes, além de poder ser parte de um grupo de sete crianças: Cosme, Damião,
Dou, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi.

90 Nina Pinheiro Bitar


conseguiu tudo o que queria, e que ainda renovou a permissão para o traba-
lho no local apesar das várias mudanças de governo. Por consequência, todo
ano, no dia 27 de setembro, ela oferece o “Caruru de Cosme” (distribuição
de comida) no meio da Praça XV de Novembro, na frente do seu ponto, atu-
alizando com os santos gêmeos uma relação de reciprocidade (Mauss, 2003).

Figura 3.4. Baiana Ciça e seu Caruru de Cosme, Praça XV

O seu ponto revelou-se um local de encontro do “povo de santo”,14 pesso-


as relacionadas às religiões afro-brasileiras. Ciça promove, ao longo do ano,
além do cumprimento de sua promessa com Cosme e Damião, a “lavagem
da rua do Mercado”, antes do Carnaval; o almoço de Sexta-Feira Santa, em
sua casa; e o Festival de Acarajé da Baiana Ciça, no Clube Internacional de
Regatas, no Centro da cidade, em outubro.

O “baiano” de acarajé e a baiana “antiga”

Durante o trabalho de campo vim a conhecer Jay do Acarajé. Sua posição


é diferente das demais baianas estudadas, por ser um homem que trabalha
como “baiano de acarajé”. Durante os três anos em que vive no Rio de Ja-
neiro, não conseguiu ainda a legalização de seu ponto junto à Prefeitura.

14
A presença das “tias baianas” no cotidiano do Rio de Janeiro é assinalada por Velloso (1990), que
sublinha que suas barracas e tabuleiros constituíam focos de sociabilidade, uma espécie de “bureau de
informações”: “Era ao redor dos tabuleiros que se sabia das coisas: lá que se construía toda uma rede
de relações que informava, amparava, divertia e ampliava os contatos (1990, p. 12).

A Alma das Coisas 91


Provisoriamente, atua na rua Siqueira Campos, em Copacabana. Ele narra,
a partir de seu blog,15 as dificuldades para exercer suas atividades na cidade.
Fugir do “rapa” (guardas municipais) e ter de morar nas ruas foram algumas
de suas rotinas como baiano de acarajé.
A sua principal queixa é a de ser tratado como um “ambulante”, e ter de
fugir dos guardas municipais. Diferentemente das baianas incluídas na pes-
quisa, Jay, por ter uma situação instável, utiliza como “tabuleiro” uma “car-
roça” (como ele denomina), configurando uma forma de venda do produto
diferente das outras baianas: é móvel, de quatro rodas e assemelha-se a uma
carroça utilizada para o comércio de pipoca, tapioca ou cachorro-quente. Tal
“carroça” possibilita a sua locomoção no caso de ser abordado pelo “rapa”.
Finalmente, conheci Nicinha, a primeira baiana de acarajé a ter barraca na
Feira Hippie de Ipanema,16 na qual trabalha há quarenta anos. Ela foi indicada
por um pai de santo que conheceu as baianas “antigas” do Rio, como Esmeral-
da, uma falecida baiana do Rio de Janeiro que é a mãe de Nicinha. Através de
Nicinha, percebi que seu ponto articula uma ampla rede de parentescos entre
baianas que vieram para a cidade na década de 1940. Ela revelou uma forma
de fazer o ponto ligada ao processo de migração dos baianos. Nicinha, assim
como sua mãe Esmeralda, é ekedi17 de Obaluaiê,18 que é o “dono da barraca”.

“Fazer o ponto”: entre a casa e a rua

Fazer o “ponto” de venda de acarajé significa conquistar um público, os


clientes, que se tornam amigos, dispostos até a ajudar as baianas sempre que
necessário. Um cliente de Ciça, por exemplo, é seu contador; um outro, seu ad-
vogado. Foi através de um cliente que ela conheceu um funcionário da Prefeitura
que a ajudou a conseguir a autorização para o seu “ponto”. Eles são chamados
de “o meu povo” pela baiana. Assim, para Ciça há uma confluência entre diver-

15
Disponível em: http://www.misterofacaraje.com/principal.html. Acesso em: 25 nov. 2009.
16
Uma feira de artesanato no Rio de Janeiro.
17
Zelador dos orixás, quando eles “descem” nas filhas; acolita (Fonseca Junior, 1995). Todos os termos
em iorubá foram consultados por esse dicionário, indicado por meus interlocutores filhos de santo. Vale
ressaltar que utilizarei a nomenclatura iorubá para a denominação dos termos ligados ao candomblé.
Não entrarei na discussão já traçada entre as diferenciações entre as chamadas “nações” de candomblé.
A escolha, por mim, da terminologia iorubá foi decorrência do maior contato com interlocutores que
frequentavam a barraca de Ciça e que utilizavam essa língua.
18
Obaluaiê é concebido como o orixá que traz doenças e que também as cura de uma forma geral.

92 Nina Pinheiro Bitar


sas relações: inicialmente com os santos Cosme e Damião, depois com a rua,
com o ponto, com os clientes, com a esfera jurídica, entre outras. Mas o fator
fundamental, que organiza todas as suas relações, é sua ligação com Cosme e
Damião e Iansã – pois muitas baianas de acarajé são “filhas” de Iansã.19
Segundo Ciça:

Para ser uma baiana de verdade mesmo, tem que ter muita fé em
Deus. Primeiro muita fé em Deus e depois você tem que ter muito axé e
acreditar muito no que você faz, no que você quer e ter muito amor
para dar, porque o povo é carente. Você tem o problema que for em
casa, mas na hora que você toma um banho, veste a roupa, bota a conta no
pescoço e amarra o torço, você esquece o problema de casa, vai para a
rua, acabou. A família você chega em casa e apanha de volta de novo.
A família que você tem é essa aqui. O povo da rua é todo seu. A sua
família aqui são eles. [...]
Aqui você tem que dar amor, você tem que ouvir. Chega um e conta
as choradeiras no seu ombro, você ouve e você não pode falar. A baia-
na é igual padre – pior do que o padre, porque o padre, o que você fala com
o padre, ele usa de sermão e ninguém sabe de quem é a história, não é? E a
baiana não pode fazer isso, a baiana tem que ouvir e levar para si. A baiana
não pode falar. O que você falar com uma baiana, vai morrer com ela. Porque
se ela falar, não é uma baiana. A baiana tem que manter segredo, é pior do que
baú: morre, mas não fala. E ela sofre muito, porque ela participa da vida
de todo mundo, não pode falar nada para ninguém. Tem que morrer
dentro dela. Às vezes ela tem resposta para dar, às vezes ela não pode
falar nada, porque se ela falar, vai lhe aborrecer, então ela não pode se
meter, ela engole, fica para si. Bota você no colo, até nina para você se
calar. Acalenta, mas não pode falar nada. Eu me sinto bem com o meu
papel. (Baiana Ciça. Grifos da autora)

A baiana Ciça realiza todo ano um almoço da Sexta-Feira da Paixão em


sua casa e convida seus clientes, especificamente os “de casa”, para a esfera
doméstica. Nesse momento, a distinção entre “clientes” – pessoas classifica-
das como “da rua” – e os “de casa” aparece de modo ostensivo. Os clientes
são aqueles que apenas comem o acarajé e vão embora; podem até conversar
com ela, mas não possuem uma ligação com nenhuma rede de relações das
pessoas da barraca, são isolados. Já os “de casa” conhecem a família de Ciça,

19
Ela e seus clientes explicam que Iansã é a deusa dos ventos, da tempestade, da fertilidade – guerreira
e dinâmica.

A Alma das Coisas 93


conhecem outras pessoas que também frequentam sua barraca, e geralmente
ficam no ponto por mais tempo, conversando entre si e com ela. São aque-
les que pedem conselhos à baiana. Na esfera dos “de casa”, eles podem ser
distinguidos também entre os “de casa” e os “filhos que Iansã lhe deu”. O
“filho”, além de receber conselhos, tem maior proximidade com a esfera do-
méstica e com a família da baiana.
Entre os “da rua”, há também uma diferenciação entre “clientes” e o
“povo da rua” – meninos e moradores de rua. O povo da rua está distante de
sua casa, local onde reside, mas se aproxima de sua “casa de candomblé”, ao
associar os moradores de rua a Exu20 e os meninos de rua a Ibêji.21 São eles
que protegem o seu trabalho e, portanto, devem ser respeitados. É para eles
que Ciça oferece o Caruru de Cosme, como promessa por ter conseguido o
ponto e a autorização de trabalho.
É importante assinalar que há um grande respeito das baianas pelo “povo
da rua”. Elas lhe oferecem acarajé, e o consideram os “protetores” de seu traba-
lho, diretamente associados à entidade Exu. “Despachar a rua” através de suas
entidades protetoras é fundamental para a boa relação com o espaço público.
Antes da venda, oferecem acarajés para Exu, a fim de garantir a paz no traba-
lho. Exu é o primeiro a comer nas religiões afro-brasileiras. Ele é concebido
como uma das entidades mais poderosas, capaz de abrir ou fechar caminhos.

Figura 3.5. Baiana Ciça


na lavagem da rua do
Mercado, Rio de Janeiro,
2009. Fotografia: Nina
Pinheiro Bitar

20
Os exus são concebidos, geralmente, como entidades com a capacidade de transitar entre o mundo
dos homens e dos orixás, entre os vivos e os mortos, o sagrado e o profano, entre a direita e a esquerda,
entre o bem e o mal, é o comunicador dessas esferas (Negrão, 1996).
21
Ibêji e Cosme e Damião são concebidos, geralmente, como equivalentes.

94 Nina Pinheiro Bitar


É interessante observar que a categoria “rua”, nesse contexto, é pensada
através das relações com entidades das religiões afro-brasileiras. Na esfera
da rua, o espaço público transfigura-se numa espécie de “casa”, sendo “do-
mesticado” através de atitudes cuidadosas em relação aos “preceitos” (as
obrigações religiosas a serem seguidas), como o preparo dos sete pequenos
bolinhos de acarajé para Iansã, uma vez que são primordiais o respeito e a
aprovação de Iansã para a venda do acarajé. No caso de Ciça, a relação de dá-
diva com Ibêji ou Cosme e Damião, os “meninos” que “agilizam as coisas”,
e com Exu, que protege a rua, é extremamente importante. Já para Nicinha,
além de Iansã e Ibêji, tem de agradar também Obaluaiê, “dono da barraca”
e de “sua cabeça”, pois ele é seu “pai”. Ela sempre coloca em sua barraca na
Feira Hippie a pipoca de Obaluaiê.
Desse modo, a rua aparece associada à cosmologia das religiões afro-
-brasileiras, guiando a relação de tais baianas com seu trabalho, seus clientes
e a rua. Pode-se dizer que há uma sacralização do espaço público, em que a
“comida é a essência”, segundo meus interlocutores. Nesse sentido, o ponto
aparece também como espécie de “terreiro de rua” ou, mais especificamente,
“casa de candomblé” de rua, articulando os santos e seus filhos.

O “ponto”

A denominação do local de trabalho das baianas de acarajé como “ponto”


também pode ser associada aos pontos de candomblé, que são as canções ou
“toques” dos atabaques. Outra maneira de conceber o termo “ponto”, muito
utilizada pelas baianas de acarajé, é o “ponto da massa”. Nesse caso, “dar o
ponto” envolve tanto a forma de fazer a massa – branca, “sem os olhinhos
pretos” do feijão fradinho – como a forma de bater, dando a textura necessá-
ria para ficar crocante e leve. Concebem também que é através dessa massa
que o axé22 da baiana será passado.
A categoria “ponto” se mostrou fundamental nesse contexto. As baianas
se referem ao ponto como o local de trabalho que, como vimos, necessita

22
“Força, poder, bênção” (Fonseca Junior, 1995). Segundo Cascudo: “energia sagrada; força vital
do orixá: força sagrada que emana da natureza; força que está em elementos da natureza que são
sacrificados, como animais, plantas, sementes, etc. Também significa origem ou raiz familiar; ascendência
mística; conhecimento iniciático; legitimidade; carisma; poder sacerdotal; poder”. Reginaldo Prandi, Os
candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec/USP, 1991. [...] No Brasil, há uma tendência a usar a
expressão axé como forma de cumprimento, votos de bons augúrios ou uma bênção” (Cascudo, 2001).

A Alma das Coisas 95


de uma série de fatores para o “fazer”: relações com o comércio em torno,
com os clientes, com o povo de rua e com as entidades. A escolha do ponto
pelas baianas nas esquinas também está relacionada a Exu, entidade ligada
às “encruzilhadas”, um local de “poder e de perigo” (Douglas, 1976), em
que as baianas “fazem o ponto”. Como dissemos, Exu é o primeiro a comer
nas religiões afro-brasileiras, por ser uma entidade que faz as mediações e,
portanto, é perigosa, por estar nas fronteiras (Douglas, 1976). Não por aca-
so, o local dessa entidade é a esquina, a intercessão entre uma rua e outra,
não pertencendo a nenhuma delas, e ao mesmo tempo fazendo parte delas.
Assim, “fazer” o ponto é, nos casos estudados, ter atenção a todas as ações
necessárias para a permissão e o sucesso de sua venda.

“Porque não somos ambulantes”:


interpretações e usos do “ofício” pelas baianas de acarajé

Em determinado nível, o registro do “ofício” aparece, para as baianas,


como um instrumento de legitimação do seu trabalho, diferenciando-as pri-
meiramente dos “ambulantes”. Ele também demarca a diferença entre as
baianas de acarajé vinculadas às religiões afro-brasileiras e as evangélicas.
Mas em outras ocasiões há uma preocupação das baianas de acarajé pela
“utilidade” do registro. Na maioria dos casos, ele é acionado por elas para
vencer dificuldades de legalização do ponto. Não obstante, para além de uma
concepção estritamente jurídica de patrimônio, há também uma incorpora-
ção dessa noção à sua cosmologia.
No caso de Jay, essa relação é ambígua, pois afirma que o registro não lhe
garantiu uma condição melhor para a venda. Entretanto, num dia em que
nos encontramos, ele me deu de presente o certificado do registro do “ofício
das baianas de acarajé”, afirmando: “eu sou parte disso”. Perguntei o que era
o documento, ao que respondeu ser o “registro do tombamento do acarajé”.
Ele ainda ressaltou que nunca sofreu nenhum tipo de preconceito por ser
homem, já que “o registro está se referindo a “filhos e filhas de santo”. Em
seu site, podemos ler:

Eu, Jay do Acarajé respeitador dessa maravilhosa cultura tombada pelo ex-
celentíssimo Sr. ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, protegendo o direito do
profissional a exercer a profissão em qualquer esquina do território brasileiro.
Hoje no Rio de Janeiro, apesar dos pesares, me orgulho cada dia mais
por ser baiano, por ser verdadeiro, por desempenhar essa culinária

96 Nina Pinheiro Bitar


com dedicação, mostrando ao público carioca e turistas essa culinária
de forma interessante, distribuindo pedaços ou miniaturas do pro-
duto para degustação ou não do cliente, assim, quebrando tabus sob
vários aspectos envolvendo essa culinária.
Acarajé é uma comida dos Deuses, trazido da África pelos escravos.
Na Bahia foi requintado com sabores e temperos afrodisíacos, passan-
do assim a fazer parte da culinária brasileira – Direcionada culinária
baiana.

É um quitute feito de massa de feijão-fradinho, cebola e sal, frita em


azeite de dendê e servido com molho de pimenta opcional.

Ela aponta que o registro do “ofício das baianas de acarajé” foi uma forma
de destacar e valorizar esse trabalho, pautado por uma “tradição”; ao conhe-
cimento do que consiste “ser” baiana de acarajé, passado pelas famílias por
gerações. Ao fazer parte dessa “cultura tombada”, está protegido, para ele,
o direito do profissional de exercer o trabalho em qualquer esquina. E com-
pleta: “não seria ótimo ter uma baiana em cada esquina dessa cidade? Mas a
Prefeitura não concorda”, “o sistema não reconhece”.
Segundo Jay, o acarajé é uma “cultura tombada” e ele faz parte desse pro-
cesso, mas o “sistema” não reconhece o direito de trabalhar em todo o territó-
rio nacional, tratando-o indevidamente como “ambulante”. Para ele, “ambu-
lantes” são aqueles que estão “vendendo produtos ilegais”, que têm de correr
do “rapa” (guardas municipais). Ao não concordar com o enquadramento do
“sistema”, faz uso do registro como a “prova” de que não é um ambulante.
Podemos também pensar na categoria “ambulante” como um trabalhador
sem ponto fixo, sem um referencial para a sua clientela. Ao mudar constan-
temente de ponto por causa da fiscalização dos guardas municipais, Jay teve
sua venda afetada, já que muitos dos seus clientes ficaram sem referência
de onde estaria trabalhando. Como já mostramos, “fazer o ponto” não é um
processo simples, envolve uma série de obrigações e relações de dádiva e
contradádiva com a localidade e os clientes. O ponto é fixo e é um local tam-
bém sacralizado por essas baianas, tendendo, portanto, a ser estável. Temos
aí um dos motivos da dificuldade de Jay em estabelecer o seu trabalho.

Mesmo o sistema sabendo que tem direito sobre esse produto, que é um produto
regional, que é um produto tombado, um produto resguardado pelo patrimônio
brasileiro. Então o sistema sabe que tem artigos inscritos dando direito, dando
respeito, mas o sistema simplesmente passa por cima e compara com um ambu-

A Alma das Coisas 97


lante. O ambulante, a gente passa a ficar correndo de rapa, em uma situação
ilegal, como se a gente estivesse vendendo produtos ilegais e não é. E é uma
situação muito feia, é uma forma muito feia de se ver o vendedor de
acarajé como um ambulante, muito feio. Eu não consigo me enquadrar
nessa situação, eu não consigo me conformar com essa situação. É ver-
gonhoso para o meu trabalho. Em uma breve comparação, os índios,
esses ocupam o calçadão da forma que eles acham conveniente e com
todos os produtos deles, com toda a matéria-prima deles, com o direito
que resguarda ele, porque ele é tombado pelo patrimônio também, federal.
Então eu estava olhando semanas atrás, eles estavam tocando, comer-
cializando um CD. O personagem do acarajé tem direito na Constituição.23

Jay considera o acarajé um legado “africano”, dos “escravos”, que con-


quistou o comércio passado pelos seus antepassados e por isso foi consagra-
do como patrimônio, “tem direito na Constituição”.

Acarajé é comida de deuses africanos, onde na Bahia as pessoas aper-


feiçoaram esse alimento, mas não chegaram a modificar a intenção do que é
acarajé. Passou a ser um dos quitutes mais comercializados em esqui-
nas, em cantos, em lugares onde eram lembrados, onde era comerciali-
zada essas comidas [sic] pelos antepassados, pelas escravas, na verdade
o acarajé, eles colocam bastante claro quem comercializava esses produtos, que
eram as escravas. Quando o acarajé se transformou em um prato mais focado
em termos de comercialização, então as pessoas que protegem essa culinária como
consagrada como patrimônio cultural brasileiro, tiveram sempre a atenção de
proteger como é exatamente esse alimento, não deixando a transformação diante
do tempo, que tudo muda, perder a qualidade, além da direção do que é o acarajé.
Então o acarajé é um bolinho de feijão frito em dendê, comida de Xan-
gô e Iansã. Xangô seria o acarajé feito com característica diferente, o
formato diferente do que é de Iansã. (Jay do Acarajé. Grifos da autora)

Com a posse do certificado do registro, ele se baseia nele para obter in-
formações sobre a “origem” do acarajé. Jay afirma: “eles [Iphan] colocam
bastante claro quem comercializava esses produtos, que eram as escravas”.
O registro aparece, para Jay, como um instrumento de reconhecimento e de-
marcação do que é o acarajé, circunscrevendo seu significado.
Ele explica que, por ser o acarajé atualmente um produto voltado para
uma comercialização, tornou-se desvinculado dessa esfera da “tradição”.

23
Esse trecho e os seguintes são de entrevista concedida em novembro de 2009. (Grifos da autora)

98 Nina Pinheiro Bitar


Para ele, foi necessária a “ação de proteção dessa culinária como patrimônio
cultural brasileiro”. Proteger, segundo ele, é não deixar, sobretudo, que se per-
ca a “direção do que é o acarajé”. Tal “direção” é o que ele chama de “intenção
do que é o acarajé”, classificada por ele como uma comida de deuses africanos.
Assim, para ele, o registro permite que essa “direção” não seja modifica-
da. Apresenta o registro, então, como uma forma de evitar a “perda”. Garan-
tiria a permanência do modo de fazer, além do “sentido” do acarajé.

“A lei que protege a baiana”

É possível perceber que, além de o registro do “ofício das baianas de aca-


rajé” ser uma forma de reconhecimento e legitimação, as baianas reelaboram
seus significados e usos conforme a cosmologia a partir da qual pensam e
agem. No site de Sônia há as seguintes informações: “o acarajé foi consagra-
do patrimônio nacional desde 1 de dezembro de 2004 por decreto do então
ministro da Cultura Gilberto Gil. O samba de roda da Bahia já foi considera-
do também patrimônio cultural nacional”. E a “dica sugestiva: experimente
trocar o hambúrguer por um autêntico acarajé!”.
Sobre o processo de registro do “ofício das baianas de acarajé” como bem
imaterial, Sônia considera que o “tombamento” do acarajé ainda não teve
repercussão no Rio, mas na Bahia, sim. Para ela, o fato de a baiana ser “tom-
bada” não é reconhecido no contexto do Rio de Janeiro.
Ela afirma, entretanto, que “hoje o acarajé é patrimônio”: a Prefeitura
não pode agir contra as baianas. Para Sônia, o fato de o “acarajé” ser hoje
considerado “patrimônio” destaca essencialmente a sua diferença em relação
aos ambulantes. Por ela ser parte do “movimento negro”, considera que não
comercializa um produto qualquer, mas uma comida ligada a uma “etnicida-
de”, e por isso não é possível qualquer pessoa ser baiana de acarajé.
Ao encontrar dificuldades para a legalização do ponto, Sônia fez uso do
certificado do registro do “ofício das baianas de acarajé”. Ela o levou para a
Prefeitura local, onde solicita a legalização do seu ponto. A baiana foi infor-
mada no local que, contrariamente ao que esperava, esse registro se refere
às baianas de acarajé apenas na Bahia, e não teria nenhuma validade no Rio
de Janeiro. Sônia contestou: “mas não foi feito pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional? Tem de valer em todo território nacional”.
Ressaltou que exige o respeito ao seu direito de trabalho, como “patrimô-
nio”. Assim, afirmou que vai fazer uma cópia do certificado e pregar em sua

A Alma das Coisas 99


barraca. Sônia alega que não está na ilegalidade, não tem por que se preocu-
par, pois “o acarajé foi tombado”. Para ela, com a lei, passa a ter o direito de
trabalhar, porque “agora, o acarajé é patrimônio imaterial”.24
Ao falar do registro, Sônia utiliza tanto as expressões “o acarajé foi tom-
bado”, quanto “o acarajé é patrimônio imaterial”. Refere-se também ao “tom-
bamento” ou ao “registro da baiana”. Aqui, pode-se observar que há diversas
concepções do que é esse patrimônio imaterial: é tanto a baiana quanto o
acarajé. Também se refere a registro e tombamento como equivalentes. As-
sim, nesse contexto, expressa-se a problemática de definir algo como mate-
rial ou imaterial, e as diferenças entre o que é registro e tombamento.

Obrigações das baianas de acarajé

É interessante também observar em que medida, do ponto de vista na-


tivo, o “código de santo” (Maggie, 2001) é incorporado ao patrimônio. Ou
seja: como esse reconhecimento é incluído em determinada cosmologia par-
tilhada pelas baianas. Pude observar que a categoria “patrimônio”, para al-
gumas baianas, acaba repercutindo para o santo por intermédio do trabalho.
Para muitas delas, o fato de serem filhas de Iansã influencia a escolha
em trabalhar com acarajé. As baianas recebem, de certa forma, os benefícios
dados por Iansã, assim como a obrigação de agradá-la. Se as vendas de aca-
rajé diminuem, então, fazem “trabalho” para Iansã, pedindo sua melhora.
No caso de ter boas vendas, também é de se fazer algum trabalho em agra-
decimento.25 É importante entender essa lógica da dádiva e da contradádiva
entre a baiana e Iansã, ou seja, como esse trabalho está baseado em relações
de troca entre pessoas e divindades. A categoria trabalho aqui assume dois
sentidos: o de vender o acarajé e o sentido de agradar um santo e, nesse caso,
um complementa o outro. Segundo tal lógica, o trabalho só é bem-sucedido
se for consentido por Iansã; se obtiver sucesso, agrada a ela; e se as vendas
não estão boas, faz-se um trabalho para que ela ajude.
Segundo as baianas, o fato de, “agora, a baiana ser patrimônio” deveria

24
Entretanto, posteriormente, Sônia obteve autorização da Prefeitura para vender acarajé no seu ponto
da rua do Lavradio, onde trabalha na Feira de Antiguidades, em outros dias da semana além do dia da
feira. Foi fundamental a apresentação do registro do “ofício” para ela conseguir esse ponto.
25
Até mesmo em relação a minha pesquisa sobre as baianas de acarajé me aconselharam a fazer
trabalhos para Iansã, já que ela permitiu que a pesquisa fosse realizada com sucesso.

100 Nina Pinheiro Bitar


ajudar a melhorar as condições de trabalho. Entretanto, para além de ser
uma forma de ascensão, ou de melhorar seu poder aquisitivo (e não negamos
a importância disso), também há uma relação de dádiva estabelecida com
orixás que protegem e permitem seu trabalho. Assim, essa noção econômica
não está desvinculada da relação com as entidades. Ao desempenhar bem sua
função, seu trabalho como baiana de acarajé, por sua vez, articula uma vasta
rede de reciprocidades com os santos, na medida em que é também agradan-
do a eles que realizam o seu trabalho.
Dessa forma, pode-se dizer que a categoria jurídica “patrimônio” também
é incorporada ao seu sistema cosmológico. Tal noção pode ser entendida como
parte mediadora do mundo das baianas de acarajé e não deve, portanto, ser
considerada somente em termos jurídicos. Ou seja, o fato de as baianas, “ago-
ra, serem patrimônio” não significa apenas um reconhecimento “identitário”,
como artifício para obter reconhecimento e lucro. A categoria “patrimônio” é
construída por elas segundo sua cosmologia, que envolve desde relações com
o povo da rua, com os clientes, com a esquina, com políticas públicas, até en-
tidades e orixás, articulando uma extensa rede de trocas sociais e simbólicas.
As baianas de acarajé no contexto das políticas públicas de patrimoniali-
zação nos mostram que, além de ser as protagonistas desse processo, estão
interpretando e fazendo uso do “ofício” de forma específica, intrinsecamente
vinculada a sua forma de atuar na esfera pública.

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104 Nina Pinheiro Bitar


4.

A VIDA OCULTA DAS PEDRAS: HISTORICIDADE E


MATERIALIDADE DOS OBJETOS NO CANDOMBLÉ1

Roger Sansi

“As pedras crescem.” Essa afirmação é comum entre os pais e mães de san-
to do candomblé baiano, como uma confirmação empírica da eficácia material
de sua prática ritual. Eles não se referem a quaisquer pedras, mas às pedras
ocultas nos terreiros, as otã ou itã. Esses são os fundamentos de sua religião.
Poucas pessoas podem olhar para essas pedras. Nem mesmo os iniciados.
Aliás, a primeira vez que pude realmente ver uma delas, não estava em uma
casa de candomblé, mas em um museu, o Museu da Cidade de Salvador,
Bahia. Já tinha ido a casas de candomblé anteriormente, mas lá tive de me
ajoelhar em frente aos fundamentos e só pude sentir a presença delas indire-
tamente, dentro de um contexto de expectativa mística, em meio a vasilhas,
embrulhos, oferendas, cheiros e canções que as rodeiam. Já no museu pude
olhar para ela diretamente. Era uma pedra grande, acinzentada e redonda.
A etiqueta ao lado indicava ser uma pedra sagrada da religião afro-brasileira
candomblé. Poder-se-ia dizer que era um objeto inteiramente comum, corri-
queiro se não estivesse exposto em um museu.
Alguns meses depois, voltei ao museu e a pedra não estava mais lá. Dessa
vez, conversei com a equipe do museu e me apresentei como um pesquisa-
dor europeu interessado na coleção afro-basileira do museu. O assistente do
diretor do museu gentilmente me contou que aquelas peças não pertenciam
ao Museu da Cidade e sim ao Museu de Medicina Legal (o museu da polícia).
Devido a uma denúncia feita pelo “Movimento Negro”, o Museu de Medicina
Legal foi obrigado a retirar a coleção afro-brasileira, que estava colocada ao

1
Tradução de Isadora Contins.

A Alma das Coisas 105


lado de armas de homicídio, cadáveres embalsamados e fetos monstruosos.
As peças foram temporariamente colocadas no Museu da Cidade, que já pos-
suía uma grande variedade de coleções de arte – desde bonecas do século
XIX e pinturas acadêmicas até ex-votos. No entanto, essa foi uma solução
temporária: ainda não era claro para onde a coleção seria destinada.
Eu já sabia disso tudo por ter conversado com pessoas do Movimento
Negro, na verdade com um grupo de antropólogos e líderes do candomblé.
Eu também sabia que um dos principais argumentos deles contra o Museu
de Medicina Legal era que essa coleção afro-brasileira era resultado de apre-
ensões violentas da polícia. O que eu não sabia era que a pedra não estava
mais em exibição. Então, perguntei ao assistente do diretor, que me disse
que eles haviam removido a peça porque pessoas do “Movimento Negro” ha-
viam reclamado especificamente disso. Eles disseram que a otã é um símbolo
sagrado do candomblé, um objeto muito respeitado naquela religião e que
nunca é mostrado em público. As otã são sempre ocultas. Sendo assim, o fato
de o objeto estar exposto em um museu era uma grande falta de respeito ao
candomblé. Foi então que ele foi retirado, escondido de novo. O que signifi-
cava dizer que o objeto foi escondido? Será que ele foi levado de volta à casa
de candomblé de onde veio? O assistente do diretor não sabia ao certo, mas
imaginava que estava simplesmente arquivado no porão.
Achei que o porão era local um tanto inadequado para uma pedra de
tamanha complexidade. Essa pedra merecia mais, poderia ser o personagem
principal ou agente de um artigo. Nas páginas seguintes, irei explicar como
essa pedra incorporou diversos e por vezes contraditórios valores dos objetos
do candomblé na Bahia do século XX; desde armas de feitiçaria, sintomas de
patologia racial até peças de arte erudita. Essa discussão irá nos levar a algu-
mas considerações mais gerais com relação ao papel das noções de historici-
dade e materialidade como peças-chave para entender a vida e “agência” desse
objeto e possivelmente outros objetos também. Primeiramente, porém, devo
começar descrevendo o valor da otã no candomblé: por que essas pedras são
ocultadas e de que forma elas crescem.

Santos, pedras e corpos

Tradicionalmente, muitos iniciados do candomblé afirmam que não en-


traram no culto por vontade própria, mas devido a uma entidade espiritual, o
“santo” que exigiu sua devoção (chamada de obrigação). O santo pode causar

106 Roger Sansi


aflições físicas, mentais e sociais caso as pessoas por ele escolhidas não cum-
pram com seus deveres. Sendo assim, elas precisam passar por uma iniciação
sob os cuidados da “mãe de santo”, para aí se tornarem “filhas de santo”. O
processo de iniciação é chamado literalmente de “fazer o santo”.
Fazer o santo é um processo concreto e material, não só um ensinamento
de mitos, canções e orações. Fazer o santo tem essencialmente que ver com
aprender a lidar com o santo, entender suas exigências e satisfazê-las. Por
esse motivo, o iniciado precisa aprender uma série de técnicas de ritual, in-
cluindo técnicas corporais essenciais para a incorporação do santo, fazendo
oferendas e construindo templos. É um processo dialético de objetificação e
apropriação, em que o santo é construído, tornado real no templo e no corpo.
Pode-se dizer que, através da iniciação, o santo não é construído somente
no corpo e no templo, mas também na pessoa da filha de santo. O processo
dura muitos anos, numa troca em que pessoa e santo ajudam a se construir,
pois fazer o santo, na verdade, também é se fazer a si mesmo. No final do
processo, que muitas vezes nunca acontece, o iniciado encontra total harmo-
nia com o santo. É nesse momento que o iniciado pode se tornar ele mesmo
mãe de santo e ajudar outros a fazer seus santos. De certa forma, o processo
de iniciação transfere a agência do santo para o iniciado, de um momento
inicial em que a pessoa é somente um paciente, subordinado ao desejo do
santo, que quer possuir o corpo do iniciado, até que ele passa a conseguir
controlar seu relacionamento com ele e possa ajudar outras pessoas.
Nesse sentido, a iniciação pode ser visto como um processo de constru-
ção da pessoa. Segundo Goldman (1984), podemos ver o candomblé como
um sistema dinâmico que constrói pessoas. Além de tentar classificar as pes-
soas por meio de arquétipos ou mostrar um ego reprimido, como as inter-
pretações psicológicas de possessão costumam dizer, suas práticas ritualísti-
cas produzem novas pessoas sociais. Se vemos a pessoa como um processo
aberto, podemos pensar que os santos são elementos ativos que colaboram
precisamente na construção da pessoa que está sempre em formação.
Nem tudo, porém, se aprende na iniciação. Nenhum ritual, receita ou
método prescritivo é suficiente para construir uma pessoa. Existem coisas
que não podem ser precisamente determinadas: por exemplo, nem todas as
pessoas são chamadas para fazer o santo; menos pessoas ainda são chamadas
para se tornar mãe de santo. É preciso uma iniciação ortodoxa e rigorosa, mas
também um dom particular, uma capacidade inata de reconhecer e se comunicar
com o santo (Boyer, 1996). O candomblé não é só uma fórmula, mas uma arte.

A Alma das Coisas 107


Além disso, a iniciação envolve não somente o relacionamento pessoal
entre santo e iniciado, mas também uma terceira entidade: a mãe de san-
to. Nos primeiros passos de iniciação, é preciso que a filha de santo aceite
a autoridade da mãe de santo e a obedeça como ao próprio santo. Mas os
iniciados com um “dom” particular podem aproveitar, desde o início, um
relacionamento privilegiado com o seu santo. Dessa forma, eles sobem ra-
pidamente os degraus do poder ritualístico, gerando conflitos em relação às
duas mães de santo. Conflitos entre mães e filhas não são raros; na verdade,
são tão frequentes que são quase uma regra.2
Os altares de candomblé são os assentos ou assentamentos. A palavra
assento faz referência ao ato de se sentar, fixando o santo a uma coisa, trans-
formando um evento em um objeto. A estrutura geral3 do assento consiste
numa plataforma coberta de alguidares e vasilhas, cobertas a sua volta de pa-
nos, enfeites, presentes e objetos relacionados como os santos. As vasilhas e
alguidares contêm os fundamentos que personificam os santos dos iniciados.
Esses objetos foram identificados como fetiches pelos pesquisadores de reli-
giões afro-brasileiras,4 influenciados pela literatura sobre cultos fetichistas
da África Ocidental. Os fundamentos podem ser diferentes coisas,5 mas as
pedras (otã) são um dos elementos mais comuns. Cada orixá tem otã e funda-
mentos particulares. Os assentos de Oxum e Iemanjá, por exemplo, são con-
chas e pedras encontradas nas águas, já que esses são os elementos desses
orixás, a água doce e a água salgada, com nuanças que correspondem às cores
desses orixás (amarelo ou ouro para Oxum, branco ou prata para Iemanjá).

2
A presença de conflito ritualístico no candomblé foi documentada na década de 1970 no excelente
Guerra de Orixá (1972) de Yvonne Maggie. No entanto, poucos autores seguiram essa linha de pesquisa,
preferindo focalizar nos procedimentos (supostamente) normais de reprodução de casas de candomblé.
Mas na verdade pode-se argumentar que conflito ritualístico está no centro da força dinâmica do candomblé,
o que o torna não só uma “sobrevivência” folclórica, mas uma religião crescente e em expansão.
3
Esse modelo de assento é muito geral e não reflete a diversidade das casas (templos) que encontramos
nas práticas do candomblé. Mas ele corresponde ao modelo de prática ritualística que foi imposto nas
últimas décadas – nagô ketu e sua estrutura de iniciação. Já que o propósito desse artigo não é discutir
a variação e inovação em assentos do candomblé, não insistirei nessa questão. Para mais informações
sobre a variedade de assentos, veja Sansi (2007).
4
O primeiro autor a usar o termo especificamente foi Nina Rodrigues, em 1906 (Rodrigues, 1988
[1906]). Ruth Landes (1947) ainda usava os termos fetiche e fetichismo na década de 1940, mas ele foi
abandonado depois por causa das conotações negativas que os termos adquiriram.
5
Por exemplo, em um assento de Iansã: além disso, os otã lá são búzios, ides (pulseiras), colheres de
madeira, os chifres e rabo de um boi, obi e orobó (frutas secas africanas) em números específicos que
são segredo e não devo revelar.

108 Roger Sansi


As pedras de Xangô caíram do céu, já que Xangô é o deus do trovão.6
É importante notar que a otã tem de ser encontrada. Um de meus informan-
tes principais, uma mãe de santo, comentou comigo, rindo, sobre como outra
mãe de santo de São Paulo perguntou para ela onde ela havia comprado as lindas
pedras que ela possuía. Ela respondeu: “um orixá é encontrado, não comprado”.
Em outro momento, ela me contou como encontrou seu Exú, por acaso. Depois
de uma forte chuva, a casa de sua irmã desabou. Passando do lado, ela escutou
uma voz fraca vindo das ruínas. Ninguém mais tinha ouvido. Ela parou e come-
çou a olhar debaixo das ruínas enquanto a voz ficava mais clara e alta, pedindo
que ela a tirasse dali de dentro. Finalmente, encontrou uma pedra estranha,
com a forma de uma caveira de bode. Ela a levou para casa e colocou a pedra na
posição do assento do Exú, atrás da porta de ingresso do barracão.
Essa história conta algo básico sobre a otã e os fundamentos em geral: as
pedras não são compradas ou feitas, mas encontradas, porque elas querem ser
encontradas. É interessante assinalar esse fato com relação a viajantes euro-
peus na África Ocidental tecendo considerações sobre o absurdo dos fetiches.
Um dos pontos no qual eles insistiam, com desprezo, era que os africanos
“adoravam a primeira coisa que encontravam em seu caminho” (Pietz, 1985).
No caso do candomblé, certamente existe o elemento do hasard objectif, “acaso
objetivo”, para usar a expressão surrealista, em que é a pedra que está pedindo
para ser encontrada. Há reconhecimento da agência personificada nas pedras
antes de sua consagração, apesar de essa agência só ser reconhecível no mo-
mento certo e pela pessoa certa – ela aparece como dom do objeto para essa
pessoa. Esse é um ponto básico e retornarei a ele mais tarde, na conclusão.
Na medida em que essas pedras são encontradas, elas passam por um
ritual de consagração, em que são assentadas nos altares. Lá elas serão lava-
das ritualmente7 e alimentadas com oferendas e sacrifícios, haverá pessoas
rezando e implorando por ajuda sobre elas, sempre com atitude de extremo
respeito e submissão. Elas nunca devem ser olhadas diretamente, são escon-
didas em quartos escuros, dentro de vasilhas cobertas de panos. O assento
não é a imagem, mas a casa do orixá; uma casa assentada, fixada, permanen-
temente, idealmente por toda a vida do iniciado.

6
De acordo com Santos, muitas das pedras que encontramos em casas de Xangô na África são pré-
históricas, em forma de machado, que, de acordo com a crença popular, caem junto com o relâmpago e
permanecem enterradas na terra (Santos, 1967, p. 88).
7
A limpeza dessas pedras é feita com materiais diferentes, dependendo do orixá: mel, sangue, óleo de
palma, mas especialmente água e amassi, que é água com folhas sagradas (ver Binnon-Crossard, 1970).

A Alma das Coisas 109


O assento fica escondido e coberto, e sua vida é um mistério latente, um
sopro abafado; fechado em um alguidar, envolto em um pano e trancado em
um quarto que só a mãe de santo pode ousar abrir. As camadas e camadas de
invisibilidade do assento são construídas precisamente para intensificar sua
força, como argumenta David Brown (2003, p. 247), multiplicando os poderes
de sua presença ao torná-lo perceptível apenas indiretamente. De certa forma,
uma exibição muito evidente é evitada para que haja certo degrau de intimi-
dade do assento e um segredo, indispensável para a continuidade de sua força
misteriosa. Essa força eventualmente irá explodir no corpo humano, por meio
de possessão.
A intimidade do assento só é desafiada em oferendas e sacrifícios. As ofe-
rendas despertam a força viva do templo, o axé para “ligar’’ os canais espiri-
tuais que trazem os santos para os corpos dos iniciados, culminando no ritual
público de incorporação. Na dança, o espírito toma conta do corpo do devoto.
O relacionamento entre o assento e o corpo do iniciado tem nuanças
sutis. Thompson (1993) já discutiu como cabaças e outros potes usados em
rituais iorubá são vistos como análogos da cabeça.8 Na verdade, é para o
santo entrar dentro da cabeça do iniciado, no ori, um órgão que o acolhe. O
ritual de iniciação inclui as importantes cerimônias de raspar e dar de comer
à cabeça.9 Pode-se dizer que a cabeça e o corpo, em geral, são representados
pelo ori como os assentos representam o otã.10
Acredito que a analogia do corpo/ori e assento/otã é extremamente im-
portante, já que são os dois estados opostos em que o santo se apresenta.
É no assento que o santo senta no corpo humano que ele dança. O santo é
alimentado no assento em segredo. Mas quando o santo é incorporado pelo
iniciado, ele se mostra em público, e oferece uma festa com comida e bebida
para os convidados. No assento, o santo é escondido, isolado e ocultado.
Dentro do corpo do iniciado, o santo é público, vibrante e triunfante.

8
Na África, os potes dos assentos também podem ser cabaças. A cabaça, o pote, é um recipiente do orixá
que representa a cabeça, ori. Thompson nos fala de certos restos arqueológicos, demonstrando que as
famosas cabeças esculpidas de Ife podem ter sido altares, e mais tarde foram substituídas por cabaças e
recipientes: a crença de que a cabeça e outros avatares de axé e iwà podem convocar o espírito a um altar,
para ser concretizado por devotos de possessão, está implícita nos santuários de hoje.
9
Apesar de o ritual raspado normalmente ser associado à tradição ritualística dominante, Ketu, nem
todas as nações do candomblé o celebram, preferindo, em vez disso, batizar o iniciado. De qualquer
forma, existe uma ideia clara de que a cabeça precisa ser alimentada ritualmente e purificada.
10
A perceptiva discussão sobre idolatria através da analogia do interno e externo no livro de Gell, Art and
Agency (1998, p. 134-53), pode ser perfeitamente aplicada nesse caso.

110 Roger Sansi


Ao longo do tempo o assento acumula os restos dessa vida de troca ritu-
alística: oferendas, presentes de flores, perfumes, imagens, panos e roupas
usadas em danças, incorporando uma biografia espiritual e pessoal.11 É dito, e
de forma bastante literal, que pedras crescem. E por que não devemos aceitar
isso? A constante troca ritual cria um relacionamento altamente determinado
e determinante entre assento e iniciado, a ponto de a otã se tornar quase um
órgão exterior do corpo dela, parte de sua “pessoa distribuída” (Gell, 1998).
Os assentos são organizados em ordem hierárquica: o alguidar central
corresponde à mãe de santo. Os outros – às vezes ao redor, às vezes abaixo
desse pote central – pertencem às filhas de santo. Eles são todos relaciona-
dos pelo parentesco ritual: o assento de cada iniciado é para o assento da mãe
de santo, mesmo que a iniciada é para a mãe de santo, mãe para filha.
Nem sempre, entretanto, a prática segue a teoria, e até as melhores famí-
lias têm suas brigas. Quando as filhas de santo brigam com a mãe de santo,
normalmente elas tentam sair de casa,12 mas isso não é algo fácil, porque
os assentos delas estão lá, sob o controle da mãe de santo, que é dona da
casa e cuida delas – ela é zeladora dos santos. Para saírem de casa de vez é
preciso retirar seus assentos, e muitas vezes só podem fazer isso longe da
mãe da santo, que consideraria isso um roubo – já que parte de seu poder
ritualístico, seu axé, também envolve esses assentos. Poderíamos dizer que
ela considera esses assentos parte de sua pessoa distribuída. Sendo assim, é
comum que o cordão umbilical que une mãe e filha, através de seus assentos,
só seja cortado através da violência e do “roubo”.13

11
Com relação aos santuários da santeria, os tronos, David Brown afirma “que o trono incorpora uma
biografia emergente espiritual e pessoal em que os próprios objetos, que são preparados e entregues
pelos mais velhos do ritual, colegas, amigos ou afilhados, têm suas próprias histórias e biografias”
(Kopytoff, 1986). Resumindo, o trono se torna tanto o foco de um processo ritualístico cíclico – um ciclo de
vida sagrado – quanto o foco estético e emocional para a produção e troca de objetos (Brown, 1996, p. 93).
12
As filhas de santo não moram necessariamente na casa de candomblé, mas precisam passar alguns
períodos lá durante a iniciação. A literatura sobre o candomblé costuma idealizar a imagem do terreiro,
a casa de candomblé onde os iniciados moram em “comunidade” (Bastide, 1978 [1960]). A realidade é
mais complexa quando consideramos os padrões de habitação, em geral das classes mais baixas na
Bahia, onde há alta mobilidade, e a criação de “famílias” de mulheres que ficam em uma casa ou grupo
de casas não é restrita a casas de candomblé. Por outro lado, essas “familias” são altamente voláteis,
pois sempre há pessoas novas entrando ou saindo do grupo.
13
A reprodução ritualística das mães de santo também pode seguir termos convencionais ou
estabelecidos através de um ritual chamado “deka”, em que a filha de santo recebe os instrumentos
do ritual para iniciar outras pessoas. Na verdade, o sucesso de uma tradição ritualística dentro do
candomblé, a nação Nagô-Ketu, indiscutivelmente se distancia da apropriação desse método de
reprodução ritualística (Sansi, 2007).

A Alma das Coisas 111


Na medida em que possam pegar os seus assentos, as filhas de santo
podem reconstruir um templo em suas próprias casas e se tornar mães de
santo por si próprias.
Quando a filha de santo morre, ocorre um ritual especial não só para en-
terrar seu corpo mas para resolver o que é preciso ser feito com o assento. Na
maioria das vezes, o santo aceita ir embora junto com o corpo e os alguidares
são quebrados, mas às vezes ele se recusa a sair de seu assento e permanece
na casa, pedindo para que os outros iniciados tomem conta dele. Nesses
eventos, às vezes, imagens assombradas do santo e da pessoa que morreu
aparecem de forma estranhas.14
No candomblé, a vida das pessoas e das pedras estão intimamente liga-
das além do formulismo ritualístico. Esse é um ponto importante a lembrar
quando considerarmos as interpretações e transformações no valor desses
objetos para além das casas de candomblé, como veremos mais adiante.

Armas de feitiçaria e obras de arte

Voltemos agora à nossa pedra – aquela escondida no porão do museu.


Como disse, essa otã, em particular, pertencia a coleção do Museu de Antro-
pologia de Medicina Legal. Não sabemos ao certo a origem da pedra. Resta-
-nos imaginar, olhando para a história da coleção em que ela permanece des-
de as últimas décadas.
Esse museu herdou a coleção de objetos que Raymundo Nina Rodrigues
começou a expor, na Faculdade de Medicina, no início do século XX. Rodri-
gues foi o fundador de Medicina legal na Bahia. Naquela época, a Faculdade
de Medicina era a única instituição de educação superior no estado, e patri-
mônio das elites locais. Não é de estranhar que muitos alunos e professores
de Medicina tivessem interesse em assuntos de ordem pública. A Medicina
legal parecia corresponder a esse interesse, como forma estendida da Crimi-
nologia, com aspirações a se tornar uma Ciência Social totalizante baseada
no positivismo e no racismo científico (Corrêa, 1983).

14
Isso aconteceu com um de meus informantes que, infelizmente morreu. O santo dessa pessoa,
Omulu, se recusou a sair de seu assento, e os outros iniciados tiveram de zelar por ele e alimentá-
lo. Quando não querem muito gastar seu tempo com isso e se esforçar, o fantasma de Omulu – ou a
própria pessoa, isso não é claro – aparece em sonhos para os iniciados, reclamando de sua preguiça.
E, quando as ofertas acabam, alguns tem visões de Omulu dançando.

112 Roger Sansi


Rodrigues foi o primeiro etnógrafo de candomblé. Na época, o candom-
blé era publicamente desprezado como superstição e privadamente temido
e considerado feitiçaria pelas elites locais (Maggie, 1992; Rio, 1951 [1904]).
Rodrigues foi o primeiro a olhar o candomblé cientificamente, descreven-
do os rituais de possessão não como feitiçaria mas como manifestações de
doenças mentais. Ele colecionava objetos relacionados ao candomblé como
instrumentos de pesquisa. Como cientista, Rodrigues tentava não olhar para
esses objetos somente como instrumentos de feitiçaria e provas de crime,
como a polícia ou os jornalistas de seu tempo, e sim como sintomas de pato-
logia. Ele estava até pronto para admitir que eram formas de arte, uma arte
primitiva produzida por uma raça inferior, mas ainda assim arte (Rodrigues,
1988 [1906]). Na verdade, Rodrigues, por seu trabalho etnográfico, manti-
nha uma boa relação com os pais de santo do candomblé. Ele se tornou pa-
drinho (ogan) de uma das casas mais importantes de candomblé, o Gantois.
A coleção de Nina Rodrigues, no entanto, juntou objetos que para nós,
hoje, podem parecer incomensuráveis ou simplesmente monstruosos. Além
dos “objetos de análise racial”, como instrumentos de candomblé, ele pos-
suía peças de interesse para especialistas em autópsia, como uma coleção
de cadáveres, de moscas e objetos de análise frenológica, como cabeças de
criminosos famosos.15 Para Rodrigues, todos esses objetos eram elementos
de pesquisa médica, sintomas de doença e degeneração racial.
A coleção foi herdada pelos sucessores de Rodrigues na Faculdade de
Medicina Legal. Naquela época, quando a repressão ao candomblé crescia, é
possível que o museu tivesse começado a receber objetos de culto, apreen-
didos pela polícia junto com coleções de armas de homicídio e outras provas
de crime. Em 1926, Estácio de Lima herdou a direção do museu e manteve
esse cargo até o momento em que a instituição foi fechada formalmente, em
1967, para ser “renovada” (Lima, 1979).
Nesse período de cinquenta anos, as atitudes das elites brasileiras e baia-
na com relação ao candomblé haviam mudado. Desde o final da década de
1940, uma nova elite intelectual de escritores, artistas e antropólogos enfa-
ticamente rejeitaram o racismo da Escola de Medicina, valorizando a cultura
afro-brasileira da Bahia. A nova Universidade Federal da Bahia (Ufba) abriu
um Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) que olhava para as culturas
africanas de uma perspectiva antropológica moderna. O Ceao treinou acade-

15
Uma das cabeças encontradas na coleção pertencia ao famoso profeta Antonio Conselheiro, líder da
revolta de Canudos. Mais tarde, as cabeças do bandido Lampião e de seu bando também foram incluídas.

A Alma das Coisas 113


micamente algumas importantes figuras das casas de candomblé da Bahia,
transformando os “nativos” em antropólogos. Ao mesmo tempo, antropó-
logos, escritores e artistas se tornavam iniciados em casa de candomblé. O
resultado foi o surgimento de uma classe de intelectuais praticantes do can-
domblé e até mesmo pais de santo (Sansi, 2007).
No início da década de 1970, o Ceao projetou o Museu Afro-Brasileiro com
premissas completamente diferentes das do Museu de Criminologia. Seria um
museu moderno, “composto de coleções de natureza etnológica e artística so-
bre culturas africanas e sobre os principais setores de influência africana sobre
a vida e a cultura do Brasil”.16 Além disso, o museu também deveria ser um
“incentivo à criação artística com conteúdo afro-brasileiro, através de bolsas
ou prêmios de literatura, música, artes visuais, cinema, teatro e dança”.17
O projeto do Museu Afro-Brasileiro chocou as elites mais velhas e con-
servadoras de discípulos de Nina Rodrigues, particularmente porque, segun-
do o projeto, o museu ocuparia o antigo prédio da Escola de Medicina no
centro de Salvador. O professor de Medicina Raymundo de Almeida Gouveia
declarou que era uma ideia estranha e ruim colocar o Museu Afro-Brasileiro
na “primeira faculdade de Medicina brasileira”.18 Ele argumentou que have-
ria “verdadeira profanação, sobretudo se amanhã, como será possível, o Mu-
seu do Negro servir de abrigo às práticas do candomblé, hoje já sofisticado e
adulterado por aproveitadores e improvisados ‘etnólogos’”.19
Esse penoso debate entre médicos e antropólogos culturais continuou até
a abertura do Museu Afro-Brasileiro em 1980. Aliás, a reabertura do Museu
de Medicina Legal em 1976, chamado dessa vez de Museu Estácio de Lima,
precisa ser colocada no contexto desse confronto cultural.
Em agosto de 1996, um grupo de intelectuais, artistas e casas de
candomblé,20 organizados como Sociedades de Proteção e Defesa de Cultos

16
“Constituição e manutenção de um Museu Afro-Brasileiro, composto de coleções de natureza
etnológica e artística sobre as culturas africanas e sobre os principais setores de influência africana
na vida e na cultura do Brasil”. Termos de Convênio Ministério das Relações Exteriores/Ministério da
Educação/Ufba/Prefeitura Municipal de Salvador, apud Santos (2000, p. 128).
17
Ponto (i) da primeira cláusula do Convenio: “O incentivo à criação artística de temática afro-brasileira,
mediante subvenções ou concursos de natureza literária, musical, teatro e dança.”
18
IBHM conta instalação de Museu na ex-Faculdade de Medicina. Tribuna da Bahia, 08/08/1974.
19
“Considero que haverá verdadeira profanação sobretudo se amanhã, como será possível, o Museu do
Negro servirá de abrigo às práticas do candomblé, hoje já sofisticado e adulterado por aproveitadores e
improvisados etnólogos.”Tribuna da Bahia, 08/08/1974.
20
As casas de Opo Afonjá, Cobre, Casa Branca, Bate Folha, Bogum e Alaketu.

114 Roger Sansi


Afro-Brasileiros, decidiu processar o museu por “ameaça à moral pública”.21
Durante o julgamento, a promotoria tentou argumentar que belas criações de
arte sagrada negra não deveriam ser exibidas com um discurso ideológico ra-
cista e perverso, em que essas obras de arte negra sagradas são expostas como
objetos de interesse criminológico e patológico. Retoricamente, eles pergunta-
ram que valor educacional esses objetos poderiam ter como documentação da
civilização negra quando mostrados junto com armas criminais e aberrações
da natureza. Ainda, esses objetos eram mantidos de forma inapropriada, sem
considerações aos procedimentos museográficos. Em meio a essa discussão,
a promotoria pediu que os objetos fossem levados para outra instituição e
expostos com mais dignidade, tendo em mente que não existe nenhuma refe-
rência clara com relação à origem e significado desses objetos, e que a maioria
deles foi colecionada durante um período de repressão policial ao candomblé.
O que os representantes das casas de candomblé estavam pedindo, no
fim das contas, era precisamente que o material de cultura do candomblé
fosse reconhecido em pé de igualdade com a arte ocidental. Eles não estavam
exigindo que os objetos retornassem para as casas de candomblé; queriam
que os objetos fossem reconhecidos como arte sagrada e expostos em mu-
seus de arte junto com as obras de arte históricas e contemporâneas, e não
em um museu policial. Em outras palavras, eles reconheciam os museus
como instituições apropriadas para guardar esses objetos: mas no museu
apropriado e da forma certa.
Um dos problemas-chave surgidos nesse caso foi: de onde esses objetos
vêm realmente? Será que eles são mesmo resultado de saques policiais? Essa
é uma das perguntas que a diretora do Museu de Medicina Legal buscou
negar em sua resposta ao requerimento. Primeiramente, ela argumentou
que mesmo que alguns objetos tivessem uma conotação religiosa, isso não
significa serem necessariamente sagrados. Depois alegou que essas coleções
não vieram da polícia, foram dadas a Nina Rodrigues e a Estácio de Lima
ou foram compradas por eles. Esses argumentos poderiam ser parcialmente
verdadeiros. Tanto Nina Rodrigues quanto Estácio de Lima eram ogan ou
padrinhos no Gantois, e é muito possível que algumas das peças expostas no
museu tivessem sido, na verdade, compradas por Estácio de Lima.
Não é difícil, porém, pensar que os objetos do candomblé apreendidos
pela policia, assim como outros materiais como armas homicidas, também

21
“Ameaça para moral pública”, Processo 27002049-5, 09/10/1996. Nos próximos parágrafos, não
poderei citá-lo diretamente, para respeitar os requerimentos dos autores do processo.

A Alma das Coisas 115


acabariam no museu. As expedições da polícia às casas de candomblé estão
bem documentadas na imprensa da década de 1920 e 1930 (Lühning, 1996).
Esses jornais mencionam roubos de objetos de candomblé e definem tais ob-
jetos como “arsenais de feitiçaria”22 ou “apetrechos bélicos”.23 Os jornais tam-
bém mencionam, com frequência, o envio desses objetos apreendidos ao Insti-
tuto Histórico e Geográfico.24 A coleção de Nina Rodrigues não é mencionada,
mas parece plausível pensar que um museu dedicado à Criminologia também
receberia esses “arsenais de feitiçaria”. Infelizmente, os arquivos do museu
não foram preservados: eles se queimaram misteriosamente há alguns anos.
Um dos casos que demonstram a origem policial de alguns dos objetos
na ação foi a pedra otã. Os reclamantes argumentaram que um praticante do
candomblé jamais entregaria um pedra consagrada a ninguém. Além disso,
afirmaram que a exibição de tal pedra é um sacrilégio e que seu comércio é
proibido. Seria o equivalente a vender o Espírito Santo – seria uma profa-
nação. Em outras palavras, os reclamantes argumentaram que a otã não só
tinha conotações religiosas, mas era realmente sagrada. Ela não poderia ser
vendida ou dada a Nina Rodrigues ou Lima, já que uma pedra considerada
sagrada nunca poderia ser vendida ou dada.
Os representantes das casas de candomblé e do museu chegaram a um
acordo final antes de irem para o tribunal e foi decidido que a coleção seria
temporariamente colocada no Museu da Cidade. Esse museu, que basica-
mente abriga coleções artísticas e históricas, é reconhecido pelo Movimento
Negro como um lugar correto para expor esses objetos, com exceção de um
caso: a otã. A otã não pode ser exposta em local público. Diferentemente dos
outros objetos, não é uma obra de arte, não é um artefato, e seu poder ima-
nente deve ser respeitado – a pedra deve ser escondida e não pode nem ser
vista. De certa forma, mesmo se os representantes do candomblé assumis-
sem os valores culturais que o museu representa e tivessem se apropriado
deles, ainda há alguns objetos não ligados a essas considerações do museu.
Esse não é um caso isolado; por exemplo, o antropólogo Raul Lody fez um
catálogo da coleção do Instituto Histórico com fotos de todos os objetos nela
contidos (Lody, 1985). Ele mencionou a otã presente naquela coleção, mas

22
Arsenais de Feitiçaria. A Tarde, 20/5/1920.
23
Apetrechos bélicos. A Tarde, 03/10/1922.
24
Veja A Tarde, 20/5/1920; e A Tarde 19/4/1934. “O delegado Frederico Senna já convidou o secretário
perpétuo daquela instituição para escolher o que lhe serve dentre os troços de Pai Crescencio, entre os
quais muitas reminiscências do africanismo” (A Tarde, 12/11/1926).

116 Roger Sansi


não tirou fotos. Pode ser relevante mencionar que Lody não é só antropólo-
go, mas também do candomblé. 25

Conclusões: a vida oculta das pedras

Por que a otã foi parar no porão? Só podemos especular. Por um lado, as
pessoas do Movimento Negro poderiam dessacralizar o objeto e deixá-lo em
exposição no museu como símbolo de repressão ao candomblé. Mas parece
que eles acharam mais importante seu valor religioso. Por outro lado, eles
poderiam ter mandado a pedra de volta para a casa de candomblé e reincor-
porá-la à prática ritualística. Se o valor da pedra foi resultado do fato de ela
ser sagrada, como foi dito no tribunal, não deve ser difícil fazer um ritual de
purificação ou sacralização. Mas não foi isso o que aconteceu. Por quê? Tal-
vez porque não seja tão simples. A sacralização de uma pedra só pode acon-
tecer quando o elo com o iniciado dela for claramente rompido. Por exemplo,
em caso de morte do iniciado, o oráculo dirá se o santo quer ou não deixar o
assento. Mas o que fazer quando não se sabe de quem é a pedra?
O valor da otã não está relacionado somente ao resultado de um ritual ge-
nérico de consagração, mas à sua história particular. E aquela pedra tem uma
história longa e complicada; os traços de sua origem foram perdidos. Quais
agências podem ainda estar presentes na pedra? Não sabemos.
As complexidades do valor da otã não foram mencionadas no tribunal en-
tre as pessoas do candomblé. Pode ser porque acreditar na agência da pedra
soaria como algo muito irracional, muito “fetichista”. Talvez seja algo que
eles mesmos não se deem conta, já que acreditam que ainda precisam evitar
acusações de fetichismo e feitiçaria. E provavelmente estão certos.
Essa é uma das contradições da situação contemporânea da cultura afro-
-brasileira na Bahia. Ao apresentar o candomblé como cultura afro-brasileira,
a aliança entre intelectuais e líderes do candomblé se propôs a valorizar os
objetos do candomblé como símbolos culturais, representações visuais a ser
exibidas em museus e outros locais como obras de arte. Isso pode ser vis-
to como uma forma de “sincretismo” entre os valores do candomblé e os
valores da “alta cultura” institucional (Sansi, 2007). Mas esse sincretismo
tem seus limites. Existem objetos que não podem ser exibidos em museus
porque não podem ser vistos, dessa forma contradizendo o valor central de

25
Lody é um ogã na casa de Ilê Axé Opô Afonjá.

A Alma das Coisas 117


visibilidade em objetos da “alta cultura”. Então a pedra é retirada do armá-
rio, escondida mais uma vez, mas de forma diferente do que era na casa de
candomblé, num estado de indeterminação.
Nesse artigo, observei o processo histórico pela perspectiva de um ob-
jeto. Ao ver os diferentes valores que foram atribuídos à pedra – desde um
abrigo divino, a arma de feitiçaria, a obra de arte –, busquei explicar alguns
dos conflitos, mudanças e contradições nos sistemas de valor, os “torneios
de valor”, segundo os termos de Appadurai (1986), que aconteceram na
Bahia no século XX. No entanto, existem elementos nessa história que fo-
gem do discurso sobre “valor”, ou melhor, um discurso sobre a contingência
social dos valores atribuídos às coisas, dependendo do contexto, cultura, etc.
Parece que essas coisas, ou pelo menos essa coisa, não são somente suportes
de valores ou significados que podem ser rapidamente substituídos quando
uma forma de dominação ou uma cultura se sobrepõe a outra. Como Miller
claramente argumentou (1987), não podemos reduzir objetificação a reifi-
cação. Particularmente, no final da história, quando a pedra é retirada do
museu, as pessoas do movimento negro ficam em uma situação um pouco
desconfortável, já que é preciso deixar a pedra numa espécie de limbo, por-
que ela não pode ser nem uma coisa nem outra, obra de arte ou pedra de altar
mais uma vez: ela não pode simplesmente incorporar um valor ou outro.
Acredito que essa não é só uma questão de hibridismo ou superposição de
valores. Existe algo mais fundamental: o fato de que a pedra, apesar de seu valor,
existe como coisa. Mesmo se ela for escondida, ela ainda está lá, em algum lugar,
“assentada”, testemunha muda e imóvel de sua própria história, não só como
sinal de assuntos humanos. Isso não é só para dizer que as coisas têm uma agên-
cia, mas que esse poder não é só resultado de atos de consagração humana, em
que mentes humanas colocam sua agência nas coisas intencionalmente, como
diria Alfred Gell (1998). Em alguns casos, parece que a agência das coisas
não vem dos humanos, e sim de sua presença nos eventos. Vem de sua irre-
dutível materialidade, como afirma Pietz em relação ao fetiche (Pietz, 1985).
Para Pietz, a vida e o valor do fetiche, tal como descritos nos espaços de
troca da África Ocidental por viajantes europeus, não podem ser entendidos
apenas como extensão da pessoa dos humanos: são também o resultado de
sua historicidade e de sua territorialidade. Por um lado, a irredutível materia-
lidade do fetiche, que não é só um símbolo ou ícone de uma divindade mas
uma “entidade autocontida” com uma força ativa, introduz a questão da po-
sição do objeto no espaço e no tempo, como objeto “territorializado” (Pietz,
1985, p. 12). A “vida” do fetiche é condicionada por restrições no espaço

118 Roger Sansi


e no tempo: sua inabilidade em mover-se fisicamente o torna estritamente
dependente de seus humanos associados; sua inscrição num lugar concreto
e específico como um templo, onde é protegido.
A reflexão sobre essa territorialização ou materialidade, como também
a poderíamos chamar, pode trazer à tona o que Gell (1998) definiria como
uma teoria externalista da agência, em que a agência é reconhecida através
de prática social – independentemente do fato de que vem de uma “mente
interna” realmente existente. Mas, indo um pouco além de Gell, eu diria que
essa abordagem externalista para a agência pressupõe a noção de uma mente
externa. De fato, não acho que precisamos falar sobre mentes, menos ainda
sobre “psicologia intencional pressuposta” para falar sobre agência. Em certos
casos, a agência das coisas não deriva da “abdução” de uma mente, a atribui-
ção de pensamento, mas da prova de sua presença física e sua relação dialética
com o corpo humano. Não é porque eles têm uma mente, mas porque elas
têm um corpo, e esse corpo é radicalmente diferente do corpo humano, que
as coisas são agentes de forma radicalmente diferente dos humanos. No caso
do candomblé, corpos humanos dançam enquanto pedras “sentam”. O corpo
dançante do devoto é, na verdade, a verdadeira imagem pública do orixá, mas é
efêmero, enquanto o assento é sua presença silenciosa, escondida e constante.
Voltando à questão sobre o fetiche: Pietz observa que “o fetiche é sem-
pre uma fixação significante de um evento singular; acima de tudo ele é um
objeto ‘histórico’, a forma material e força durável de um evento que não se
repete” (Pietz, 1985, p. 12). A historicidade radical do fetiche, que surge de
um evento único, é o que mais perturbou Hegel e o que o convenceu a co-
locar a África fora da História.26 O que Hegel interpretou como capricho ou
escolha arbitrária é de fato o reconhecimento dos valores singulares gerados
pelos eventos. Esses novos valores, como diz Latour (2001), não podem ser
reduzidos à lista de elementos que fazem parte do evento antes de ele acon-
tecer. Através do evento, os atores sociais envolvidos gagnent en definition, nas
palavras de Latour (2001, p. 131); eles são modificados e mais definidos como
pessoas sociais, poderíamos dizer, uns em relação aos outros. Encontrar um
fetiche é um evento imprevisível: um acontecimento único, no qual as pes-
soas encontram algo imprevisto por elas reconhecido como fazendo parte
delas, algo que se torna personificado, apropriado, que se adiciona à pessoa.

26
Na Filosofia da História, Hegel observou que faltava aos africanos o princípio que acompanha todas
as nossas ideias: a categoria de universalidade. Essa ausência é refletida no culto ao fetiche, mera
criação que expressa a escolha arbitrária de seu criador (apud Pietz, 1985, p. 7).

A Alma das Coisas 119


Pietz explica esse ponto maravilhosamente, fazendo referência a Michel Lei-
ris e à noção surrealista do objet trouvé,

[..] momentos de crise de um encontro singular e de uma troca indefi-


nível entre a vida própria e aquela do mundo, que ficam marcados nas
coisas e nos lugares, enquanto memórias pessoais que retêm um poder
peculiar de mobilizar-nos profundamente. (Pietz, 1985, p. 12)27

Essa é precisamente a questão da otã. Por que afinal a otã não pode ser
vista? Porque o‘assento da otã marca um evento singular. Uma otã não é sim-
plesmente feita por um ritual de consagração, mas, antes disso, ela é resultado
de um evento único, em que o sacerdote do candomblé, pessoa que possui um
dom, reconhece o santo na pedra. Esse ato de reconhecimento é uma visão ori-
ginal e fundadora. Ao esconder a pedra, consagrá-la, a mãe de santo tenta fixar
esse evento para que ninguém mais possa, por sua vez, se apropriar da otã. A
mãe de santo tenta controlar a historicidade potencial da pedra ao controlar
sua territorialização num relacionamento complexo, em que não é muito claro
quem serve quem, quem é o senhor e quem é o escravo; mas, no processo, tan-
to o santo quanto o sacerdote do candomblé crescem como pessoas. No entan-
to, na medida em que essa historicidade fica assim fora de controle, como em
nosso caso, quando a pedra já passou por tanta coisa, o que as mães de santo
podem fazer? Elas não podem facilmente se apropriar dela de novo.
Como no caso do fetiche, a historicidade e a materialidade da otã não
são irredutíveis aos atos de consagração ou atribuição de valor de qualquer
espécie. O valor da otã não é só atribuído arbitrariamente, e não pode ser
simplesmente subtraído pelos humanos. A densa e complicada história da
otã do Museu Estácio de Lima não pode ser rapidamente destruída e sua
presença material não pode ser facilmente apagada. Talvez seja precisamente
nessa historicidade e materialidade, nessa presença obstinada, em que pode-
mos encontrar às vezes a agência das coisas, que sua resistência seja reduzida
à condição de símbolos ou valores, ou substitutos de nossa pessoalidade.

27
Não há dúvida de que ideias surrealistas sobre o objeto e destino são ambíguas, mas ainda assim
extremamente evocativas. Se colocarmos de lado conotações estritamente psicanalíticas, podemos
apreciar como as noções surrealistas de objet trouvé e hasard objectif capturam a natureza reveladora
dos eventos cotidianos, em que o resultado nunca é só a soma de seus termos. Esses eventos marcam
um antes e um depois numa história pessoal (ou geral), já que trazem à tona algo que não era claro
antes – talvez porque era reprimido ou escondido.

120 Roger Sansi


Agradecimentos

Não teria sido possível escrever esse artigo sem a ajuda do professor Ordep
Serra, da Ufba, e de Mãe Madalena de Oxóssi. Esse artigo é dedicado a eles.

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Outras fontes

Jornal A Tarde (Bahia)


Jornal Tribuna da Bahia
Processo n. 27007049-5, 9/10/96, Tribunal de Justiça Civil da Bahia.

122 Roger Sansi


5.

BANDEIRAS E MÁSCARAS: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE


PESSOAS E OBJETOS MATERIAIS NAS FOLIAS DE REIS

Daniel Bitter1

Introdução

Um grupo de cantores e tocadores ricamente paramentados com impe-


cáveis e reluzentes uniformes ruma morro acima pelas estreitas vielas do
morro da Candelária, numa de suas muitas peregrinações devocionais. A
“bandeira”, luminosa e sublime, segue à frente dos peregrinos, graciosamen-
te empunhada pela bandeireira, abrindo caminho e anunciando publicamen-
te o tempo das festas dedicadas aos santos Reis Magos. Tempo de alegria,
fartura, de renovação das benesses divinas e dos laços sociais e cósmicos.
Tempo também de pagamento de promessas por graças alcançadas, de obri-
gações rituais, de trabalho dedicado aos santos, da retribuição de bens mate-
riais e simbólicos e do estabelecimento de hierarquias, honrarias, prestígio
e reputação entre as pessoas. Um estado de forte exaltação contagia a todos:
foliões de Reis, moradores, vizinhos, homens, mulheres, crianças, jovens e
idosos. Uma verdadeira algazarra toma conta da localidade e a paisagem so-
nora é, então, dominada pelos intensos e vibrantes toques percussivos que
ensejam uma marcha militar. Os “palhaços”, com suas máscaras grotescas
e monstruosas e vestes multicoloridas de chitão, seguem saltitantes atrás
do grupo, vociferando interjeições características que os tornam ainda mais
assustadores e eficazes guardiões da bandeira e do grupo de foliões. Alardes
entusiasmados e gritos de crianças misturam-se ao som das tevês, que proje-
tam, através das janelas e portas, sua irremediável presença. A certa altura, o

1
Sou grato pelas considerações feitas a esse trabalho durante um seminário de discussões conduzido
pelos organizadores deste volume em abril de 2012. Esta pesquisa contou com o apoio financeiro da Faperj.

A Alma das Coisas 123


mestre Hevalcy Ferreira da Silva para diante da porta de uma casa, enxuga o
suor do rosto com sua toalha cerimonial e, com o sinal de seu apito, indica que
é hora de silenciar. O mestre, agora tomado por forte tensão, novamente sopra
o apito de metal pendurado no pescoço por uma corrente de prata e, do alto de
sua autoridade, dá partida para o início da cantoria de uma “toada de chegada”.
O som da bateria torna-se menos presente e já se podem ouvir a sanfona e os
instrumentos de cordas dedilhadas ressoarem no ambiente. O mestre profere
versos rimados de caráter religioso e o coro de vozes os repete de forma ex-
tremamente solene. A porta de madeira envelhecida pela pátina do tempo se
abre e os residentes, tomados por intensa emoção, vêm receber a folia. Uma
senhora de idade avançada e cambaleante se aproxima da bandeira. Os versos
cantados por foliões anunciam a chegada e recepção da bandeira, enquanto a
bandeireira transfere o objeto de maior valor ritual e simbólico para foliões e
devotos para as mãos da dona da casa. Tudo se passa como numa cena rigoro-
samente coreografada, em que cada mínimo gesto tem um sentido profundo
e revelador. A bandeira é beijada, demoradamente reverenciada e finalmente
entronizada na casa, seguida dos demais foliões, à exceção dos palhaços, que
permanecem do lado de fora. A partir de agora, nada será como antes. A entra-
da da bandeira e dos foliões na moradia de familiares e vizinhos protagoniza
uma experiência radicalmente transformadora e significativa.

* * *

Venho realizando trabalho de campo e observações etnográficas em torno


das festividades dos Reis Magos em diversas localidades do estado do Rio de
Janeiro desde 2004, concentrando-me no morro da Candelária, uma das sub-re-
giões do Complexo da Mangueira, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Nessa
localidade, tenho acompanhado as ações cotidianas e rituais dos integrantes da
Folia de Reis Sagrada Família em interação com uma ampla “comunidade” de
devotos. Convidado pelo “mestre” da folia para integrar o grupo como tocador,
passei a realizar minhas observações na qualidade de participante, no período de
2005 a 2007, o que produziu uma significativa mudança nas relações estabeleci-
das com meus interlocutores, bem como na percepção do contexto.
Neste texto apresento algumas explorações em torno do universo ritual
e festivo de foliões e devotos, particularmente sobre o lugar que alguns ob-
jetos materiais ocupam nesses sistemas de “trocas de dons” (Mauss, 2003).
Apresento observações etnográficas não apenas relativas à circulação dos ob-
jetos na vida social, mas também sua circulação cósmica, a forma que podem

124 Daniel Bitter


assumir de dons e contradons, promessas e sacrifícios. O foco de análise está
na circulação e nas mediações sociais e simbólicas da “bandeira” e da “más-
cara” entre foliões de Reis e uma ampla rede de pessoas. A bandeira pode ser
sumariamente descrita como um suporte sobre o qual são ostentadas imagens
de santos católicos e representações pictóricas de narrativas bíblicas, como os
Reis Magos e a Sagrada Família. Considera-se que ela seja detentora de poderes
especiais, sendo capaz de trazer bênçãos e graças, proteção e benesses materiais.
A máscara, por sua vez, é usada por um personagem das folias, comumente
chamado de palhaço. Trata-se de um tipo marcadamente liminar, cômico e am-
bíguo, e sua máscara, de aparência grotesca, opera significativas transformações,
o que se revela no fato de o palhaço ter de retirá-la do rosto e revelar sua iden-
tidade em certos momentos do ritual. A máscara revela-se indissociável de seu
proprietário, assumindo significados moralmente negativos em contraste com
a bandeira. Podemos dizer, seguindo a sugestão de Roy Wagner (2010), que a
máscara “inventa” o palhaço, que a ela são atribuídas, do ponto de vista nativo,
determinadas qualidades de poderes (o que equivale a nos referirmos aos seus
poderes de agência), o mesmo valendo para a bandeira. Nesse sentido, esses
objetos não são apenas suportes materiais de um processo social ou ritual. De
certo modo, eles produzem, desencadeiam esses processos. Vale ressaltar que,
embora esses objetos se apresentem de forma contrastiva, ambos compartilham
a propriedade de ser fortemente associados ao corpo, às pessoas que os mani-
pulam coletivamente. São objetos que se aproximam pela capacidade de realizar
mediações, bem como de produzir efeitos sobre as pessoas, revelando-se ambi-
valentes; simultaneamente materiais e imateriais, objetivos e subjetivos.
Nesse sentido, os objetos são adotados como um ponto de vista para
olhar o mundo de uma ampla rede de pessoas e entidades espirituais, consti-
tuindo-se como uma estratégia metodológica e teórica. As preocupações que
movem esse estudo se inscrevem, portanto, num renovado interesse pela
análise dos objetos materiais, considerando seu relevante potencial analítico.

Festejando os Reis na Candelária, Complexo da Mangueira

A Candelária, uma das sub-regiões do Complexo da Mangueira, formou-


-se por volta dos anos 1940, quando a área foi ocupada principalmente por
famílias migrantes da zona da Mata de Minas Gerais e do interior do estado
do Rio de Janeiro. Hoje abriga cerca de 3 mil habitantes. Parte desse contin-
gente veio integrar a força de trabalho de uma fábrica de cerâmica instalada

A Alma das Coisas 125


no local. Foram os migrantes mineiros e de certas áreas rurais do estado do
Rio de Janeiro que atualizaram a memória dos ritos e das festas dedicadas
aos santos Reis Magos, bem como o compromisso selado com esses santos.
Na Candelária, um modo particular de socialidade se desenvolve, em meio a
parentes que vivem como vizinhos, por um lado, e vizinhos que vivem como
parentes, por outro. Nesse quadro, as festas de Reis parecem assumir signifi-
cativa importância no fortalecimento de laços e pertencimentos sociais, bem
como na criação de novas relações (Pereira, 2011) em um contexto marcado
por intensos processos migratórios.
As Folias de Reis são manifestações populares difundidas em grande par-
te do território brasileiro, apresentando inúmeras variantes e denominações.
Trata-se de grupos de cantores e tocadores que realizam visitas às casas de fa-
miliares e amigos, distribuindo bênçãos em troca de ofertas destinadas à rea-
lização de uma grande festa em louvor aos Reis Magos do Oriente: Melquior,
Baltazar e Gaspar. As visitas rituais, denominadas “jornadas”, inspiradas nas
peregrinações míticas dos Magos, acionam uma ampla circulação de bens
materiais e simbólicos: bênçãos, graças, visitas, refeições, dinheiro, favores,
cantos religiosos, divertimento, etc. Em verdade, não apenas bens e ações
considerados moralmente positivos circulam entre as pessoas e divindades,
mas também os negativos, envolvendo rivalidades, vinganças e conflitos, si-
nalizando os aspectos agonísticos do ritual festivo.
A literatura referente aos “estudos folclóricos” associa fortemente es-
sas festividades, marcadas pelo signo da solidariedade, ao mundo rural, de
onde teriam se originado. Nessa perspectiva, as Folias de Reis estabelecidas
nas grandes cidades apontariam para formas residuais de um modo de vida
“tradicional”, centrado nas trocas de dons e numa “solidariedade mecânica”
(Durkheim, 2010). Nesse estudo, argumento que essas festividades não são
sobrevivências em meio a um contexto metropolitano fragmentário onde,
supostamente, predominariam relações sociais mais impessoais e individua-
listas. Contrariamente, proponho que as sociabilidades assentadas em prin-
cípios morais de reciprocidade convivem com as trocas mais impessoais do-
minantes no âmbito do mercado e da relação entre o Estado e os indivíduos. Essas
festividades, entretanto, são acontecimentos de vital importância para se for-
mularem os preceitos morais e religiosos compartilhados pelas pessoas que
nelas se engajam, renovando e transformando os próprios vínculos sociais
e permitindo o restabelecimento de hierarquias fundamentais. Argumento
igualmente que, embora as folias tenham em seu horizonte a produção de
uma communitas festiva (Turner, 1974), com sua consequente dissolução de

126 Daniel Bitter


diferenças sociais, esses rituais se configuram como processos muito confli-
tuosos, podendo envolver intensas disputas pessoais por poder e prestígio.
As Folias de Reis são frequentemente originadas em decorrência do pa-
gamento de “promessas” por graças alcançadas, inscrevendo-se no quadro
interativo das “trocas de dom”, teorizadas originalmente por Mauss (2003).
O autor teria descoberto uma regra social básica, assentada na tríplice obri-
gação de dar, receber e retribuir. A categoria “promessa” parece ocupar um
lugar importante nas relações de comprometimento e de trocas, por meio
das quais se estabelecem laços fundamentais entre foliões e santos. Chamo,
entretanto, a atenção para o fato de que esses sistemas de troca são em-
preendimentos que guardam certa dimensão de perigo e incerteza. Como
bem notou Caillé (2002), o dom é precisamente o gesto que se realiza no
quadro da aposta e, portanto, do risco e da incerteza. Ao se estabelecerem
vínculos com divindades e antepassados, lidam-se com forças incontroláveis,
com expectativas de uma possível retribuição, num espaço de tempo. Tal
como observou Bourdieu (1996), há um intervalo temporal entre o dom e o
contradom que torna ainda mais saliente a ambiguidade da lógica das trocas,
apoiada simultaneamente numa generosidade incondicional e num caráter
impositivo e custoso. O paradoxo do dom não se restringe às trocas com
entidades espirituais, ela é intrínseca às ações que cercam os processos de
criação de vínculos sociais entre as pessoas.
O mestre da folia muitas vezes assume um compromisso individual com
os santos, mas depende do auxílio dos demais foliões para cumprir a pro-
messa de realizar o circuito ritual da folia pelo período de sete anos, confor-
me os “fundamentos” religiosos da festa. É ele quem detém o conhecimento
ritual necessário para conduzir o grupo, assumindo muitas vezes a responsa-
bilidade por suas condições materiais. Sua posição, entretanto, é sustentada
por meio de alianças e depende de uma delicada negociação em meio a uma
estrutura organizacional fortemente hierarquizada. O mestre vê-se frequen-
temente envolvido em situações de conflito e disputas em torno de notorie-
dade, reputação e poder dentro de seu próprio grupo, mas principalmente
em relação a outros grupos. Esses aspectos revestem os rituais de um forte
caráter agonístico.2 Além do mestre, a folia conta ainda com contramestre,

2
A rivalidade entre diferentes grupos é uma constante, o que pode envolver a manipulação de atos
mágico-religiosos, aos quais os foliões referem-se como bruxaria. Certa vez, fora do ciclo ritual, notei
no mestre Hevalcy um estranho comportamento, tropeçando, esbarrando e derrubando coisas pelo
caminho, com frequência. Perguntei a ele o que se passava e ele respondeu: “Tem alguma coisa
atuando sobre mim, e é Folia de Reis. Tem alguém querendo me prejudicar, derrubar. Desde que eu

A Alma das Coisas 127


bandeireiro, cantores, tocadores e palhaços em sua estrutura organizacional.
São homens e mulheres de idades muito diferenciadas que ocupam uma di-
versidade de atividades na vida cotidiana: estudantes, porteiros, empregadas
domésticas, técnicos, pedreiros, cozinheiras, etc. As crianças ocasionalmente
também fazem parte desses rituais, o que aponta para certa vitalidade das
formas de reprodução e continuidade dessas práticas.
A Folia Sagrada Família, comportando aproximadamente 15 a 20 compo-
nentes, empreende um longo circuito de visitações às casas de devotos. As
“jornadas” realizam-se a partir do dia 25 de dezembro até o dia 20 de janeiro,
preferencialmente nos fins de semana, e constituem um importante período
de ritos preparatórios para a chamada “festa de arremate”. A cada jornada
diária chegam-se a visitar cerca de oito a dez casas, o que totaliza, ao final
de todo um ciclo de jornadas, aproximadamente 45 visitas, envolvendo di-
retamente cerca de 160 pessoas. Essas visitas são também realizadas fora da
Candelária, em regiões mais distantes, como o Morro Chapéu Mangueira, no
Leme, ou a Vila Cruzeiro, na Penha, o que revela uma ampla rede de relações
sociais, não restritas à localidade da Candelária. Finalmente o circuito de
visitações é encerrado com a promoção da festa de arremate, uma grande e
ostentosa cerimônia celebrada em agradecimento pela receptividade e pelos
donativos ofertados, que passam então de sua acumulação à sua redistribui-
ção cerimonial, marcando o fim do ciclo ritual e o retorno das pessoas à vida
ordinária.

O circuito ritual da Folia de Reis

Conforme observei em inúmeras ocasiões, as jornadas se iniciam


com a reunião dos foliões na sede da folia, onde se encontram a bandei-
ra, os uniformes e os instrumentos. A retirada da bandeira do altar pelo
bandeireiro, auxiliado pelo mestre e na presença dos demais foliões,
é um acontecimento ímpar que obedece a uma série de ações rituais,
incluindo o canto de versos, preces e acendimento de velas. A bandeira
mantém-se guardada, ao longo do ano, no interior de um altar, privado,
cuidadosamente preparado para esse fim, na sede da folia. O altar é, por
sua vez, ornamentado com lâmpadas coloridas, imagens, fitas, etc., o

completei sete anos, de lá pra cá tem sido assim, barreira atrás de barreira. Mesmo os mestres mais
velhos me invejam pelo que eu consegui fazer em tão pouco tempo. O que me faz continuar é ver como
as pessoas alcançam graças.”

128 Daniel Bitter


que vem acentuar sua sacralidade e sua eficácia.3

Figura 5.1. Preparativos rituais diante do altar da bandeira na sede da Folia Sagrada
Família. Morro da Candelária, Mangueira. Fotografia: Daniel Bitter

O início e o término das jornadas parecem ser particularmente importantes,


pois se caracterizam como “ritos de passagem” (Van Gennep, 1978), visando
realizar a transposição entre tempos-espaços diferenciados. Os ritos dedicados
à retirada da bandeira do altar marcam a passagem do tempo-espaço cotidiano
para o tempo-espaço mito-mágico dos Reis Magos, e visam também conferir
proteção espiritual aos componentes do grupo, que agora se engajam num
empreendimento considerado perigoso.4 É também nesse momento que se
realizam ritos especialmente dedicados aos palhaços, pois se crê precisarem
de mais proteção que os demais, por serem associados a representações nega-
tivas. Durante esses rituais os palhaços retiram sua máscaras, aproximam-se
de joelhos do altar e acendem velas colocadas no chão, para seus anjos da

3
Podemos sugerir que o altar se configura como uma espécie de coleção de objetos (Pomian, 1997).
Os objetos que compõem essa coleção, seus significados e trajetórias seriam do maior interesse
etnográfico, não sendo possível, entretanto, explorá-los nos limites desse texto.
4
As jornadas são fases “liminares”, vistas em relação às ações cotidianas. Foliões consideram que
inúmeros perigos ameaçam a integridade do grupo e comprometem o êxito de sua “missão”.

A Alma das Coisas 129


guarda.5 Esses procedimentos realizam-se ao som dos toques e cantos exe-
cutados pelos foliões, e a própria bandeira tem um papel proeminente nesse
processo. A música6 ocupa lugar central nesses rituais, propiciando formas
de interação entre foliões, devotos e demais participantes, uma vez que precisa
ser performada coletivamente, exigindo conhecimentos específicos.
O mestre procede à leitura de uma prece invocando proteção para os
foliões e auxílio para o cumprimento de sua missão. Em seguida, dá partida
aos versos rimados (profecias), repetidos pelo coro de vozes anunciando os
gestos que a bandeireira e os foliões devem realizar sincronicamente. Foliões
fazem um recuo de costas em direção à rua, de modo a permanecer sempre
de frente para a bandeira, que é a última a sair. Observa-se uma relação
hierárquica entre a bandeira e os foliões, uma vez que aquela inspira gran-
de respeito e reverência. Todo esse acontecimento é acompanhado por uma
assistência que, em última instância, participa do ritual. Amigos, parentes
e vizinhos reúnem-se na sede e a partida da folia em jornada suscita uma
emoção semelhante à que se verifica entre pessoas que se separam em razão
de uma longa viagem. A imagem da jornada, portanto, designa precisamente
uma viagem, aquela que os Reis Magos teriam feito para adorar o menino
Deus, guiados por uma estrela divina.
Retirada a bandeira da sede, ela entra em circulação pelas vias públicas da
localidade em direção às casas de familiares, amigos e vizinhos, retornando
sempre para o altar no fim de cada jornada diária, que costuma durar mais
de 12 horas, atravessando a madrugada, a manhã e parte da tarde. Na me-
dida em que a bandeira deixa o altar e entra em circulação, ela ganha uma
dimensão pública, quando é exibida aos olhos dos transeuntes e pode ser
tocada pelas pessoas. Nesse espaço-tempo especial, a bandeira parece desen-
cadear sensivelmente uma autoconsciência individual e coletiva de natureza
hierárquica. Afinal, nem todos podem ter o privilégio de seu contato. Apenas
alguns são, por assim dizer, visitados pelos Reis Magos. Os deslocamentos
realizados pela folia em sua localidade, e nas demais, revela um mapa das
relações sociais estabelecidas entre foliões e devotos, indicando quais são
as casas e seus residentes mais importantes a serem visitados e a qualidade

5
Enquanto as velas acesas para a bandeira localizam-se num plano elevado, as dos palhaços
permanecem sempre no plano inferior. Essa topografia parece ser relevante ao indicar aspectos
relacionados à ordem cosmológica de foliões.
6
Apresenta-se de forma bastante solene, em ritmo quaternário, relativamente lenta, cadenciada e
marcada pela pulsação característica das bandas militares. Os instrumentos utilizados são sanfona,
violão, viola, cavaquinho e instrumentos de percussão, como caixa, bumbo, tarol e triângulo.

130 Daniel Bitter


das relações estabelecidas. O roteiro de visitação é traçado com antecedência
pelo mestre por meio de negociações diretas, mas pode ser alterado ao longo
das jornadas em função de imprevistos ou dificuldades enfrentadas, como a
chuva ou a necessidade de visitar uma pessoa muito enferma, por exemplo.
A folia realiza uma sequência básica de ações durante a visita a uma casa,
envolvendo chegada, distribuição de bênçãos, refeição, brincadeira do palhaço,
agradecimento e despedida, configurando-se como um “processo ritual” (Tur-
ner, 1974) que se desenrola no espaço e no tempo. Na porta da casa de um devo-
to, a bandeira é transferida para as mãos de um dos familiares que vem receber
a folia. Todos os gestos e movimentos corporais envolvendo a manipulação da
bandeira costumam ser comedidos, em contraste com os gestos bem mais acen-
tuados dos palhaços. A bandeira é muitas vezes louvada e beijada pelos residen-
tes, que é geralmente mantida nas mãos enquanto se desenrola a cantoria no
interior da casa onde os familiares estão reunidos para receber bênçãos. Chamo
a atenção para a ideia de que a entrada da bandeira, dos foliões e de sua música
transforma o interior da casa. A realidade é ressignificada e reenquadrada por
meio da performace ritual. A casa, que a essa altura também pode ser considera-
da um objeto ritual, parece converter-se no próprio espaço mítico onde os Reis
Magos teriam encontrado a Sacra Família. Como a bandeira e a máscara, a casa
também realiza mediações importantes. A presença dos Reis Magos e sua ação
são, nesse contexto, sentidas e celebradas entre os residentes e foliões, como
uma realidade concreta e não como uma realidade imaginada.

Figura 5.2. Devota oferecendo donativos à bandeira. Morro da Candelária,


Mangueira. Fotografia: Daniel Bitter

A Alma das Coisas 131


Na madrugada do dia 25 de dezembro de 2005, noite de Natal, registrei
a seguinte sequência de versos declamados pelo mestre, na entrada de uma
das casas visitadas:

Encontrei a porta aberta. É sinal de alegria./Já pegou nossa bandeira.


Recebeu nossa folia./Bendito louvado seja nesta hora de alegria./Eu
peço licença a Deus pra rezar a profecia./Um raio brilhou no Oriente.
Surgiu a estrela guia/anunciando à humanidade que o menino Deus
nascia./Nasceu num berço de pobre, numa grande estrebaria./Numa
pobre manjedoura aonde o gado dormia./Os pastores quando soube-
ram partiram para Belém./À procura de um menino que nasceu pro
nosso bem./Os três Reis do Oriente hoje vêm lhe visitar./Vêm buscar
suas ofertas pro seu dia festejar.

Noto que ao dizer “os três Reis do Oriente hoje vêm lhe visitar”, a folia
anuncia a chegada dos Magos, como que presentificados através da bandeira,
da música e de todo o aparato ritual que a envolve.7 Os versos rimados e
as músicas que os acompanham solenizam as trocas. Um silvo de apito do
mestre marca o final da cantoria, e assim todos podem descansar e com-
partilhar uma breve refeição no intervalo que antecede a apresentação dos
palhaços. Os residentes, nesse momento, tornam-se os principais protago-
nistas do ritual, envolvendo-se com o preparo e a oferta de alimentos, tais
como bolo, sanduíches e bebidas. A oferta de comida e bebida é um gesto
muito valorizado entre foliões, mas há casos em que ela não ocorre, quando,
por exemplo, a folia chega a uma casa de surpresa. Nessa fase, a bandeira é
então posicionada numa cadeira, mesa ou mesmo apoiada numa cama. Cos-
tuma ser alvo de muitos contatos corporais entre residentes de uma casa. O
mestre frequentemente retira fitas de seda coloridas da bandeira e as oferece
a alguns residentes, ocorrendo igualmente o inverso, quando os residentes
oferecem fitas à bandeira, sob a forma de agradecimento pelas graças alcan-
çadas. Também costuma-se levar a bandeira aos cômodos mais recônditos e
íntimos da casa.8 Tal gesto parece destinar-se a sacralizá-los, purificá-los

7
O curso da cantoria ritual é, muitas vezes, determinado pela presença de certos objetos no interior da
casa. A presença de uma bíblia, presépio ou imagens de divindades, por exemplo, pode levar o mestre
a reverenciá-los por meio de versos diretamente a eles relacionados.
8
Pereira (2011) chamou a atenção para esse ponto, entre foliões de Urucuia, Minas Gerais, observando
que naquele contexto, muitas vezes, apenas a bandeira tem o privilégio de ter acesso aos cômodos
mais íntimos de uma casa. O autor salienta que um dos sentidos da circulação da bandeira pode estar
em distinguir “o mundo íntimo da casa e seus lugares mais públicos” (p. 247).

132 Daniel Bitter


ou afastar maus espíritos. Nesse sentido, a casa é alvo de uma significativa
transformação nesse momento, quando se colocam em evidência dimensões
fortemente morais (DaMatta, 1994). É, afinal, na casa que se tecem signifi-
cativas teias sociais, o que justifica a importância dos ritos nela executados
e a ela dedicados.
Enquanto essas ações se desenvolvem no interior da casa, os palhaços
permanecem do lado de fora, assustando as crianças e passantes na rua com
suas máscaras grotescas, aguardando o momento de sua exibição lúdica, a
que chamam de brincadeira. Sua performance se desenrola quase sempre na
rua ou no quintal, mas pode também se realizar ocasionalmente no interior
da residência, em razão da exiguidade de espaço.9 Nesse caso, sua entrada
na casa é feita gradualmente e requer insistentes pedidos de licença feitos
ao residente que recebe a folia. Muitas vezes a bandeira é retirada do espaço
onde o palhaço irá realizar sua apresentação. Outras vezes, ela é apenas co-
berta com um pano, o que indica que a visibilidade desse objeto é uma via
privilegiada para a manifestação de seus poderes. Ainda assim, a presença
da bandeira e sua proximidade são aspectos que garantem sua eficácia, visto
que os palhaços não devem se aproximar demasiadamente dela, a não ser
que estejam sem suas máscaras, como também não devem afastar-se muito,
pois necessitam de sua proteção.10 A razão desse perigo potencial e desses
interditos pode ser encontrada em exegeses mitológicas a partir das quais o
palhaço é percebido como uma representação negativa, como o Diabo ou He-
rodes, o rei da Judeia, ou ainda seus soldados, que teriam perseguido o meni-
no Jesus para matá-lo. Há também quem os associe a Exu, o que evidencia o
forte trânsito de foliões entre cultos afro-brasileiros e religiões mediúnicas,
particularmente no estado do Rio de Janeiro. Com sugeri anteriormente, o
palhaço é um personagem ambivalente, e se por um lado ele representa o
mal, por outro está sujeito a uma conversão simbólica, ritual e religiosa.

9
O crescimento da população da Candelária e das demais favelas cariocas tem tornado o espaço
cada vez mais exíguo, levando os quintais e outras áreas de mediação com a rua, que outrora assumia
grande importância, a se reduzir drasticamente.
10
A bandeira, assim, demarca um campo de forças em torno de si. Noto ainda que ao longo dos
deslocamentos espaciais da bandeira, nenhum folião deve ultrapassá-la.

A Alma das Coisas 133


Figura 5.3. Palhaço Guerreiro executando sua performance. Morro da
Candelária, Mangueira. Fotografia de Daniel Bitter

O palhaço declama versos de memória ou de improviso, de acordo com


as circunstâncias do momento. Seu caráter é fortemente cômico, tendo mui-
tas vezes o público, mas principalmente o próprio dono da casa como alvo
de suas brincadeiras. Seu jogo está em divertir os espectadores e conseguir
tirar proveito do dinheiro ofertado pela assistência, que é jogado ao chão. Os
ganhos, assim, dependem de uma negociação permanente entre palhaço e
público, na qual trocam-se versos ou bailados por dinheiro. Vale aqui ressal-
tar que, em contraste com os donativos ofertados à bandeira, integralmente
destinados a custear a festa, esse dinheiro é em geral de usufruto próprio.
Em muitos sentidos, o palhaço representa e dramatiza a contraface dos dons
positivos, aproximando-se possivelmente de um tipo específico de “dom
agonístico”.
No final da apresentação dos palhaços, os foliões se reúnem novamente
no interior da casa para cantar os agradecimentos pela receptividade e pelos
donativos. É nesse momento que os residentes costumam fazer ofertas em
dinheiro à bandeira. As notas são fixadas no véu ou nas fitas pela bandeireira
e são ostentadas publicamente, sendo retiradas e guardadas somente no re-
torno da folia à sede. Aqui a bandeira realiza uma de suas muitas mediações,
nesse caso, operando uma espécie de purificação do dinheiro recebido.

134 Daniel Bitter


Figura 5.4. Detalhe da bandeira exibindo o dinheiro ofertado por devotos.
Fotografia: Daniel Bitter

Versos de despedida anunciam


que a bandeira continuará sua jorna-
da, e mais uma vez gestos e cantos
rituais são realizados para que a ban-
deira seja devolvida à bandeireira, na
saída do grupo. No final de muitos
dias de árduas jornadas, os foliões de-
vem se despedir da bandeira para que
ela retorne a seu altar e volte a cir-
cular no próximo ano. Na Candelária,
o ritual de “entrega da bandeira” se
realiza na casa do mestre, em meio a
uma intensa emoção, diante do altar,
onde foliões e palhaços são chamados
nominalmente, através dos cantos,
a se despedir dela. Nessa condição,
Figura 5.5. Folião no ritual de entrega da
cada um, por sua vez, aproxima-se da
bandeira. Fotografia: Daniel Bitter
bandeira, retira o chapéu coroado e
se ajoelha para beijá-la. Em seguida, a bandeireira benze o folião, passando
a bandeira sobre sua cabeça. Os palhaços são os últimos a se despedir: se
aproximam da bandeira de joelhos e sem suas máscaras.

A Alma das Coisas 135


A benção dos palhaços assume aspectos particulares: eles se deitam de
bruços no chão e a bandeireira pousa a bandeira sobre suas costas, realizan-
do um movimento em forma de cruz. Para os foliões esse gesto é a expressão
do pedido de perdão que os palhaços devem à bandeira. Trata-se, afinal, de
um ritual de transformação religiosa. O palhaço, em princípio associado ao
mal, está sujeito a uma inversão simbólica, e daí decorre sua acentuada am-
bivalência e eficácia como operador ritual. Nessa nova condição, os palhaços
juntam-se aos foliões como adoradores dos Magos.

A bandeira, seus usos, mediações e sentidos

A bandeira constitui-se de um suporte, em geral de aparência muito atra-


ente, destinado a ostentar imagens relacionadas aos Reis Magos, à Sagrada
Família, a São Sebastião e a outros santos. As imagens são cobertas com nu-
merosas fitas coloridas, enfeites natalinos, flores, espelhos e um véu protetor.
A bandeira é deslocada ao longo dos cortejos realizados pelas Folias de Reis,
sempre conduzida pelo bandeireiro, envolvendo saberes específicos e gestos
altamente codificados, na forma de “técnicas do corpo” (Mauss, 2003).
De acordo com minhas observações, a bandeira parece realizar inúmeras
mediações, e é isso que parece lhe conferir certos poderes, na perspectiva de
foliões e devotos. De muitas formas, a bandeira liga esferas e domínios tais
como passado e presente, vivos e mortos, homens e mulheres, casa e rua,
homens e deuses e assim por diante (Pomian, 1997; Pereira, 2004; Contins;
Gonçalves, 2009).
Um exemplo etnográfico que gostaria de expor parece evidenciar o papel
mediador central que a bandeira desempenha, não apenas entre as pessoas e
suas divindades, mas também entre elas e seus antepassados.
A folia seguia sua jornada no morro da Candelária quando um folião so-
licitou ao mestre que a bandeira fosse entronizada em sua própria casa, jus-
tificando seu pedido pelo fato de sua mãe ter falecido havia poucas semanas
(Bitter, 2010). Apenas o mestre, a bandeireira e o referido folião entraram
na casa, que se encontrava vazia, permanecendo os demais do lado de fora.
Como de costume, a bandeira entrou na frente e, no mais absoluto silêncio,
a bandeireira iniciou um “benzimento” da casa, realizando um movimento
de aproximação da bandeira aos cantos de cada cômodo, desenhando linhas
diagonais invisíveis e formando um sinal de cruz. Após esse longo ritual,
o folião residente ofertou uma imagem emoldurada de Nossa Senhora ao

136 Daniel Bitter


mestre em retribuição pela visita e os serviços religiosos.11 O que parece
evidenciar-se nesse caso é que há uma conexão direta entre o lugar e o espí-
rito da falecida. Segundo a sugestão de R. Hertz (1990), os espíritos não se
descolam do mundo dos vivos com tanta facilidade e, portanto, os ritos vêm
ajudar a conduzir o espírito do morto para um lugar adequado, de modo a
que não se venham produzir novos malefícios para os vivos.
Como sugeri anteriormente, a bandeira é intensamente tocada em certos
momentos do ritual. O contato corporal com a bandeira é pensado como
forma direta de obtenção de benefícios de natureza supramundana. Além
disso, a bandeira é o ponto focal de uma ampla circulação de outros obje-
tos como fitas de seda,12 santinhos, crucifixos, fotografias e dinheiro. Esses
objetos são oferecidos por devotos aos santos, ou então são ofertados pelos
santos aos devotos. Nesse último caso, o mestre protagoniza um ato ritual
de retirada de alguns desses objetos da bandeira em oferecimento aos devo-
tos. Bilhetes, pedidos e mensagens são também comumente endereçados aos
santos através da bandeira.

Todas estas coisas são certificados da presença divina na vida diária


das pessoas, na medida em que são oferecidas em pagamento de pro-
messas. Estão ali para serem exibidas publicamente, reiterando e va-
lidando a influência dos santos sobre o mundo. (Bitter, 2010, p. 157)

O poder e eficácia agentiva da bandeira constitui-se e revela-se, do ponto


de vista nativo, através das narrativas ontológicas a ela referidas. A origem
da bandeira é frequentemente mencionada a partir de exegeses nativas como
tendo sido costurada por Maria e oferecida aos Reis Magos para que seguis-
sem viagem sob proteção divina, e estes, por sua vez, a teriam dado aos
homens. Desse modo, a bandeira e a folia são entendidos como dons divinos
dos Magos do Oriente, intermediários entre Deus e os homens. Eis uma das
versões do mito de origem da bandeira e da Folia de Reis. A bandeira, assim,

11
Considerando que boa parte das ações das folias de reis são dominadas pela presença da música
ou de preces, é notável, como nesse evento, em particular, que o ritual seja conduzido silenciosamente,
salientando ainda mais o poder e a eficácia da bandeira.
12
As fitas coloridas são classificadas de acordo com um sistema cromático que as associa a
determinados santos do panteão católico ou iorubá. Vale ressaltar que a relação de devoção ou de
identificação com determinados santos envolve subjetividades e particularidades. Renata de Castro
Menezes (2004), num interessante e cuidadoso trabalho, investiga as nuanças dessa relação, que, por
falta de espaço, não posso aqui aprofundar. Ressalto, contudo, que a bandeira pode mediar a relação de
um devoto com um santo ou um orixá específico, não se restringindo necessariamente aos Reis Magos.

A Alma das Coisas 137


é vista como sendo de origem supramundana. Por outro lado, ela é feita pelos
homens, reproduzida no tempo presente, por meio de conhecimentos e, so-
bretudo, do “fundamento”.13 Nesse sistema de ideias, a bandeira é também
percebida como herança transmitida por antepassados, os primeiros homens
que a receberam das mãos dos Magos (Godelier, 2001). Mauss havia notado,
a propósito dos objetos preciosos que circulam entre os Kwakiutl, que:

O conjunto dessas coisas constitui o legado mágico; este é geralmen-


te idêntico tanto ao doador quanto ao recipiendário, e também ao
espírito que dotou o clã desses talismãs, ou ao herói fundador do clã
a quem o espírito os deu. Em todo caso, o conjunto dessas coisas é
sempre, em todas as tribos, de origem espiritual e de natureza espi-
ritual. (2003, p. 255)

Num certo sentido, as coisas fabricadas pelos homens, que mantêm vín-
culos divinos, tendem a ter sua humanidade apagada, esquecida. De qual-
quer modo, o passado imaginário das origens é sempre presentificado atra-
vés dessas formas materiais que se ligam ao “fundamento”. Como finalmen-
te sugere Godelier, e nos faz recordar, os objetos sagrados

[...] se apresentam como fabricados diretamente pelos deuses e pelos


espíritos, ou pelos homens sob indicação dos deuses ou dos espíritos,
mas em qualquer caso os poderes neles presentes não foram fabrica-
dos pelos homens. São dons dos deuses ou dos ancestrais, dons de
poderes presentes doravante no objeto. (2001, p. 206)

Bandeiras são adquiridas ou construídas e, de acordo com foliões, podem


ser herdadas de antepassados ou mesmo das próprias divindades. É assim
que, por exemplo, a bandeira, assim como a folia, é transferida pelas mãos
de um velho mestre em vias de encerrar suas atividades devido à idade avan-
çada. Chamo a atenção também para o fato de a transferência da bandeira
de um mestre a outro poder envolver certos procedimentos rituais, uma vez
que esses objetos são vistos como extensões de seus proprietários ou mesmo
como propriedades dos santos –como sugere Mauss, os deuses são os ver-

13
Categoria de pensamento central no contexto das Folias de Reis, fundamento diz respeito a um
conjunto de práticas e saberes considerados primordiais e oriundos de um espaço-tempo imaginário que
se torna copresente através de procedimentos rituais. Designa a razão última da circulação da bandeira,
da festa, das dádivas e até mesmo do palhaço. É por meio desse conceito que se opera o controle de
todas as atividades do grupo envolvido, especialmente em sua dimensão moral (Pereira, 2004; Bitter,
2010). Pode-se dizer, por fim, que a bandeira é a materialização do fundamento.

138 Daniel Bitter


dadeiros proprietários de tudo o que existe (2003). Um folião da Mangueira
relatou-me que, certa vez, um membro de outra folia tomou a bandeira e
os instrumentos de uma folia parada, sem autorização e sem passar pelos
rituais exigidos. Em sua primeira visita a uma casa, ele teria ficado mudo e
caído no chão. Esse acontecimento foi interpretado pelos meus interlocuto-
res como consequência de uma falta ritual cometida pelo folião, uma vez que
consideram-se as divindades não apenas benfazejas, mas também punitivas.
Construídas ou herdadas, bandeiras podem passar por rituais de consa-
gração, ser benzidas, receber nomes, cuidados especiais, véus e flores; e é
também esse conjunto de ações que as individualiza e as torna eficazes entre
os homens comuns. Um aspecto que merece ser comentado é o fato de as
imagens pintadas ou fixadas na bandeira serem cobertas por numerosas fitas
e um véu, que as invisibilizam parcialmente. Considerei plausível a explica-
ção de um informante, sugerindo que esse procedimento era uma forma de
proteger os santos da ação malévola dos palhaços. A distância entre a bandei-
ra e o palhaço inclui também o registro da visibilidade.14
Bandeiras costumam ter uma “vida” longa, e, em alguns casos, podem
mesmo ser centenárias. Em contraste com a máscara do palhaço, muito mais
efêmera, a bandeira enraíza-se no tempo, é feita para perdurar e esse é um
dos aspectos que polarizam tais objetos e seus significados. Ainda assim, as
bandeiras são perecíveis, e de tempos em tempos precisam ser reformadas
ou mesmo substituídas, o que só pode ser feito à luz do “fundamento”. O
mestre da Folia Sagrada Família, auxiliado pela bandeireira, faz anualmente
uma reforma na bandeira, quando ela é desmontada e realiza-se a troca de
certas partes, como as fitas e o véu.
Em 2010, quando voltei a fazer trabalho de campo na Mangueira, tive a
rara oportunidade de acompanhar esse procedimento e registrar fotografica-
mente suas várias etapas, fora do ciclo festivo. A bandeireira Eliane Cristina
da Silva iniciou o procedimento retirando o véu da bandeira. Em seguida
procedeu à retirada das flores, fitas de seda, imagens e demais partes, de-
positando-as cuidadosamente numa sacola. No final, restou retirar a capa
contendo a imagem pintada dos Reis Magos, que envolve a estrutura de ma-

14
Aqui, talvez seja conveniente sugerir que a representação negativa encarnada pela figura malévola
do diabo não foi, de modo algum, excluída do imaginário cristão. Ao contrário, ela está fortemente
presente e exerce uma função de reforçar, por contraste, o Bem, como uma graça suprema (Nogueira,
1986, p. 79). O autor nota que os esforços da Igreja em manter as consciências sob controle quanto
à distinção entre o Bem o e Mal acabaram por revestir o último de uma importância e de um poder
grandioso, associados a certo prazer estético.

A Alma das Coisas 139


deira. Ao começar a tirar a capa da bandeira, como quem tirasse o vestido
de uma mulher, Eliane encontrou dificuldades em fazê-lo, notando que esta
encontrava-se muito justa. Diante disso ela acrescentou jocosamente: “Ué,
não me lembrava que esta capa estava tão apertada assim. Acho que essa
bandeira engordou uns quilinhos.” Esses comentários evidenciam um as-
pecto notável para o qual venho chamando a atenção ao longo deste texto:
a bandeira é tratada como uma “pessoa”, e, ao que tudo indica, do gênero
feminino.
No final do processo de desmonte, restou apenas uma estrutura de ma-
deira, o esqueleto da bandeira, que, segundo meus interlocutores, não deve
se tornar público.15 Na ocasião o mestre Élcio comentou que faria uma re-
forma na estrutura, reforçando-a. Ele observou também que a capa em tecido
contendo a estampa pintada (a “roupa” da bandeira) deve ser cuidadosamen-
te lavada e, antes de vestir novamente a estrutura de madeira, deve ser entre-
gue a um padre para ser benzida.16 Seria necessário aprofundar esse ponto
para sugerir análises mais conclusivas, mas tudo indica que o desmonte da
bandeira já é uma transformação simbólica, uma dessacralização. Tive a forte
impressão de que a estrutura de madeira foi tratada como um objeto qual-
quer destituído dos poderes normalmente conferidos à bandeira, e aqui faço
menção à semelhança com o caso de uma bandeira descartada pelo mestre da
Folia Belém do Norte, que apresento logo a seguir.
Torna-se relevante também ressaltar que, segundo o mestre Hevalcy,
não se devem reaproveitar materiais na manutenção da bandeira. As fitas
de seda coloridas, por exemplo, são sempre adquiridas novas no comércio,
em embalagens rigorosamente invioladas. A explicação para esse cuidado
me foi dada com as seguintes palavras: “se já foi usado, trás o suor da pes-
soa e as fitas têm de estar fechadas, sem o risco de alguém ter tocado ou
usado”.
Como se pode notar, introduz-se aqui o tema da “impureza” e dos seus
malefícios contagiosos (Douglas, 1976). Esses aspectos fazem lembrar de
perto as descrições que Malinowski faz com relação aos procedimentos ri-

15
Há inúmeras narrativas etnográficas que mencionam o problema da publicização da “nudez” das
imagens sagradas. João Vasconcelos relata inúmeros casos relativos a festas e romarias portuguesas,
nos quais a “nudez” de uma imagem de roca pode ser considerada um fato chocante. O autor revela
também que frequentemente a preparação de certas imagens para uma procissão é uma atividade que
deve ser exclusivamente realizada por certas mulheres em âmbito privado (1998).
16
As Folias de Reis se constituem de modo relativamente autônomo em relação à Igreja Católica, mas
ocasionalmente certos pontos de contato podem ser verificados, às vezes envolvendo conflitos.

140 Daniel Bitter


tuais envolvidos na construção de canoas trobriandesas, e mesmo a tabus
referentes a canoas já construídas. Escreve o autor:

[...] qualquer tipo de profanação decorrente do contato de alguma


substância impura com o tronco escavado da canoa pode fazer que
ela se torne vagarosa e inadequada; se alguém caminhar por cima do
tronco de uma canoa, ou nele ficar de pé, o resultado será igualmente
desastroso. (1976, p. 118)

Por outro lado, materiais diversos são livremente reaproveitados na con-


fecção das fardas de foliões e palhaços, bem como nas máscaras destes úl-
timos. Todos esses procedimentos rituais e o fundamento que os atravessa
garantem a validação dos poderes e significados atribuídos às bandeiras, per-
mitindo, enfim, sua permanência e continuidade no tempo.
Uma bandeira pode, contudo, também ser descartada ou substituída de
modo surpreendente a qualquer um que considere que são os atributos in-
trínsecos aos objetos que os tornam eficazes. Um exemplo aqui pode ser elu-
cidativo. O mestre da Folia Estrela Belém do Norte de São Fidélis, Rio de
Janeiro, confeccionou uma nova bandeira para o grupo. Solicitei a ele que me
mostrasse a antiga bandeira, e para minha surpresa ela havia sido depositada
sem qualquer cuidado especial junto a outros objetos velhos, sujos e empoei-
rados no fundo de uma garagem. Essa nova condição da bandeira revela que
ela, agora, é apenas uma carcaça, inteiramente desvinculada do sistema vivo
de trocas e mediações em que estivera inscrita. A bandeira foi deliberadamente
descartada e algumas de suas partes foram aproveitadas na confecção da nova
bandeira, por sua vez reinvestida de poderes.17 O que isso parece nos revelar
é que há uma dinâmica própria das associações simbólicas por meio das quais
a realidade é objetificada numa forma reconhecível; nesse caso em particular, o
conhecimento a que se denomina “fundamento”, pelo qual esses mesmos ob-
jetos são produzidos, parece ocupar um lugar central. Esforço-me, entretanto,
por não reificar nem os objetos nem o conhecimento, evitando representá-los
como entidades cristalizadas e estabilizadas no tempo e no espaço. Trata-se
mais de elementos de um processo dialético entre “invenção” e “convenção”,
envolvendo interdependência e contradição (Wagner, 2010). De acordo com
esse autor, aliás, “essa dialética é o cerne de todas as culturas humanas” (2010,

17
No contexto de uma coleção museológica, uma bandeira ou outros objetos tenderiam possivelmente a
ser alvo de obsessivo processo de preservação material. Esse contraste parece aqui muito revelador dos
muitos sentidos que os objetos podem guardar, de acordo com enquadramento em que estão inscritos.

A Alma das Coisas 141


p. 96).18 Chamo, portanto, a atenção para as interações entre sujeitos e ob-
jetos e para o modo como são pensadas e acionadas por foliões e devotos. A
ideia fundamental aqui é que sujeitos não se configuram independentemente
dos objetos, assim como o pensamento e a ação não se desenvolvem fora da
materialidade. A transmissão de certos conhecimentos e ideias não prescinde
da presença material dos objetos, para que sirvam de mediadores sensíveis.
Muito ainda se poderia tratar a respeito da bandeira, de seus usos e significa-
dos. Entretanto, estaríamos muito limitados, caso não nos remetêssemos com
mais atenção à relação que esta estabelece com a máscara, objeto sobre o qual
passamos a nos deter.

A máscara e sua liminaridade

Ao sinal do toque acelerado da sanfona e dos instrumentos de percussão,


uma extensa roda de espectadores se forma, aguardando ansiosamente a entrada
do palhaço, personagem mascarado da Folia de Reis. O palhaço pede licença ao
dono da casa para iniciar sua apresentação espetacular, a que todos chamam de
“brincadeira”, na qual esse personagem de aparência e gestos assustadores decla-
ma versos rimados e cômicos conhecidos como as “chulas”, como os seguintes:

Quem é bom já nasce feito


Eu tento fazer o que pode
Me dá licença meu povo
que eu tô dentro do pagode
você vai me dar os dois real
eu posso falar do seu bigode?

Eu gostei do seu bigode, meu filho


porque ele é uma coisa correta
Tem duas curvas no meio
tem outra curva na reta
Você parece que engoliu
Três guidões de bicicleta
Palhaço Criolo (José Vicente)

18
Como sugere ainda o autor, “As associações simbólicas que as pessoas compartilham, sua
‘moralidade’, ‘cultura’, ‘gramática’, ‘costumes’ ou ‘tradições’, são tão dependentes de contínua
reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes que elas percebem em si mesmas e no
mundo que as cerca” (Wagner, 2010, p. 94).

142 Daniel Bitter


Como observei anteriormente, o contraste entre as ações dos palhaços e
dos foliões é muito marcante. Enquanto a atitude dos foliões se caracteriza
pela formalidade, os palhaços parecem estar mais ligados à dimensão lúdi-
ca, criativa e transgressora da folia. Há, nas folias, um forte contraste entre
palhaços e foliões, como também entre máscara e bandeira, reforçada por
outros contrastes simbólicos correlatos, como o existente entre rua e casa,
sério e cômico, etc. De fato, a atitude dos palhaços é, em muitos aspectos,
oposta à dos foliões, como já havia sido notado por Brandão (1977). Esses
contrastes acabam por produzir um equilíbrio entre os elementos lúdicos e
formais. Tais oposições, no entanto, parecem ser relativas, complementares,
podendo ainda ser intercambiadas, conforme indico mais adiante. Como su-
geri anteriormente, a figura negativa do diabo e seus congêneres, encarnada
pelo palhaço, não está ausente da cosmologia de foliões e devotos, exercendo
um papel fundamental ao salientar, por contraste, o domínio do Bem (No-
gueira, 1986).
O palhaço pode ser caracterizado como um ser liminar, transicional, mar-
ginal, vivendo de sua própria indefinição. Como propõe Turner, na sua defi-
nição do liminar, “Não estamos diante de contradições estruturais quando
discutimos a liminaridade, mas diante do que é essencialmente não estru-
turado (do que está ao mesmo tempo, desestruturado e preestruturado)”
(2005, p. 142). As “personas liminares” são dotadas de uma invisibilidade
estrutural e, no caso dos palhaços, ela é acentuada pelo uso da máscara. Isso
os torna desobrigados a cumprir certas normas sociais, o que os coloca em
estreita relação com os poderes não sociais ou associais da vida e da morte.
Como escreve, “They are dead to the social world, but alive to the asocial
world”19 (Turner, 1982, p. 27). Os palhaços, entretanto, estão não apenas
ligados às noções de perigo e desordem, mas podem ser vistos também como
portadores de ideias não oficiais que apontam para uma ordem diferencia-
da do mundo. Nessa visão cosmológica, predominam a heterogeneidade, a
aproximação de esferas e dimensões díspares e normalmente separadas e o
rompimento de certas convenções (Bakhtin, 1993, p. 30).
A ambiguidade, em certos contextos, é interpretada como uma fonte
constante de perigos, ameaçando a “ordem” e sua estabilidade. Regras rela-
cionadas à “poluição”, por exemplo, estão fortemente associadas a coisas e
situações ambíguas, de acordo com Douglas (1976). Essa ambiguidade não é
fonte apenas de perigos e contágios, mas também de poder e de criatividade.

19
Eles estão mortos para o mundo social, mas  vivos para o mundo associal. (Tradução do autor)

A Alma das Coisas 143


Como sinaliza Turner, as situações liminares são particularmente propícias à
emergência de novos padrões, modelos, símbolos e paradigmas, que por sua
vez são como que entronizados no “centro” da arena de domínios econômi-
cos e políticos, fornecendo aspirações, incentivos, modelos estruturais, etc.
(Turner, 1982, p. 28). Tal criatividade se expressa também em formas lúdi-
cas, no “jogo”, na dissolução da oposição entre trabalho e lazer, entre outras
oposições. Nessa perspectiva, Valeri (1994) propõe que a categoria “rito”
se confunde, assim, com “jogo” e “arte”, nas quais também se introduzem
comportamentos lúdicos e estéticos similares. O autor escreve

[...] o que é especificamente ritual, ou pelo menos é um dos seus aspec-


tos fundamentais, não passa de uma variante particular numa família
de fenômenos em que cabem também o jogo e a arte. (1994, p. 354)

Por encontrarem-se num estado de liminaridade e lidarem concretamen-


te com forças perigosas, os palhaços devem realizar inúmeras preparações
rituais antes de se vestir e usar suas máscaras. Observei o palhaço conhe-
cido como Guerreiro, por exemplo, passar sua farda ainda dobrada entre
suas pernas diversas vezes, realizando um movimento em forma de oito em
torno de seus pés. Tal procedimento visa à proteção contra ações malfazejas
que dizem ser comuns em situações em que palhaços de diferentes folias se
encontram, suscitando conflitos, ameaças e rivalidades.20 É relevante obser-
var que se fardar e assumir o papel de palhaço é um ato realizado de forma
ritualizada e, portanto, de modo bem marcado, como um “rito de passagem”.
Essas fronteiras formais, contudo, não contrariam a ideia de que experimentar
o papel de palhaço não se esgota ou não se limita à sua concretização ritual.
O que parece se evidenciar é que essa prática se articula aos demais papéis
assumidos pelo sujeito nos mais diversos contextos. Assumir o papel de pa-
lhaço é um ato que produz reflexos na vida diária do indivíduo que se dedica a
essa prática. Vale notar que o exercício da função de palhaço se estende a um
conjunto de práticas, tais como criar e memorizar versos e confeccionar más-
caras. Todas essas práticas se ligam diretamente às ações rituais do palhaço de
modo extensivo e contribuem para a construção de uma concepção singular
de pessoa. Constitui-se, assim, um self, que em grande medida tem na função
de palhaço seu eixo organizador, a partir do qual se percebe e se experimenta
subjetivamente uma identidade pessoal, heterogênea e complexa.

20
Guerreiro relatou-me que no dia anterior havia ido a uma igreja para realizar preces e acendido velas
para o seu anjo da guarda, em sua casa.

144 Daniel Bitter


Também contribui para caracterizar a ambiguidade e ambivalência desse
personagem a noção de que o palhaço, mais que qualquer outro, necessita
da proteção da bandeira, de seus poderes divinos. Se por um lado está impe-
dido de aproximar-se da bandeira, por outro não pode distanciar-se demais.
Segundo o palhaço Gigante, essa distância não deve ultrapassar 50 metros,
sob o risco de se perder a proteção da bandeira. No relato do mestre Hevalcy
e de muitos foliões, palhaços desaparecem ou são severamente castigados
quando se afastam da bandeira e do grupo. Esses relatos apontam para o fato
de que os objetos são eficazes, produzindo efeitos sobre os indivíduos e suas
relações.
Lembro que o palhaço é um “símbolo dominante”, sujeito a inversões
entre seus polos de significação, e isso está diretamente ligado à presença ou
ausência da máscara nas diversas fases dos rituais. Conforme mencionei, o
palhaço é normalmente associado a representações negativas, como os sol-
dados de Herodes que teriam perseguido o menino Jesus. Entretanto, sugeri
que durante os rituais há um momento em particular no qual os palhaços de-
vem retirar as máscaras e passar por um rito de conversão simbólica. Trata-se
de uma performance acompanhada de um comentário moralizante, visando
confirmar determinada concepção de ordem cosmológica.21
O conjunto de ações rituais produz mudanças simbólicas com reflexos
na experiência concreta dos sujeitos. Essas ações se desenvolvem na forma
de um “processo ritual” e incluem retirar a máscara, ajoelhar-se, realizar
determinado deslocamento espacial, prostrar-se diante da bandeira, beijá-la.
Acrescento que todos esses gestos estão inseridos num contexto ritual mais
amplo, envolvendo muitos outros elementos como música, palavras, senti-
mentos obrigatórios e presença da audiência.
A máscara, portanto, mostra-se eficaz ao produzir transformações, e no
contexto da performance do palhaço parece efetuar um intercâmbio entre
personalidades, criando efetivamente um “outro”, um “duplo”, através de
processos miméticos.22 Poderíamos também sugerir que, se por um lado
a aparência grotesca e monstruosa da máscara refere-se simbolicamente a
seres maléficos e à sua presença, por outro ela parece funcionar como uma

21
Há também outras ocasiões nas quais o palhaço deve retirar a máscara. Por exemplo, quando declama
versos de conteúdo moral ou religioso. Nessa condição o palhaço pode declamar versos diante da bandeira,
como se estivesse diante de um presépio. Na maior parte dos casos, contudo, o palhaço se apresenta
mascarado, exigindo certos cuidados para evitar demasiada proximidade com a bandeira e com os demais
foliões. Os palhaços costumam também comer separadamente durantes as refeições cerimoniais.
22
Sobre os usos e significados das máscaras e dos palhaços, ver também Wagner Chaves (2008).

A Alma das Coisas 145


espécie de amuleto contra essas mesmas potências negativas. Parece haver
uma correlação ambivalente entre a expressão de medo que a máscara induz
e a expressão oposta de agressão (Napier, 1986). A máscara, desse modo,
funciona tal qual um talismã, assim como no caso das carrancas monstruosas
de embarcações, objetos que visam a afastar maus espíritos. O caráter pro-
fundamente ambíguo das máscaras é o que as torna fascinantes e eficazes.
Isso se dá precisamente porque a máscara produz uma ilusão, um disfarce,
operando na esfera das aparências, das convenções e no modo como são in-
terpretadas. A percepção do paradoxo está, de certo modo, relacionada com a
aceitação de que coisas devem parecer o que não são.23 Como sugere Napier:

Our ability to accept this ambiguity is also fundamental to our recognition


and signification of change. [...] Our awareness of change is, thus, essen-
tial for resolving the ambiguity that is basic to paradox.24 (1986, p. 1)

Figura 5.6. Palhaço Trinca-Ferro. Morro da Candelária, Mangueira.


Fotografia: Daniel Bitter

23
Essa ideia tem uma notável ressonância nas reflexões de Bateson (1972) sobre a atividade
metacomunicativa em processos de interação. O autor observou que as mensagens linguísticas são
contextualizadas através de um enquadramento psicológico, de modo a complementar o processo
denotativo. A distinção entre o que está sendo comunicado através das ações envolvidas numa luta ou
num jogo (play) se dão através desses sinais metacomunicativos. Bateson observa, entretanto, que os
enquadramentos (frames) são flexíveis, permitindo, por exemplo, a passagem do jogo à luta.
24
Nossa capacidade de aceitar essa ambiguidade é também fundamental para o nosso reconhecimento
e para o sentido da mudança. [...] Nossa tomada de consciência da mudança é, portanto, essencial para
resolver a ambiguidade que é básica ao paradoxo. (Tradução do autor)

146 Daniel Bitter


A máscara, portanto, associada a outros elementos, é responsável por
produzir uma transformação radical da pessoa, num jogo que envolve si-
multaneamente revelar e ocultar. A caracterização formal do palhaço abre
caminho para a construção de um personagem, no sentido teatral da palavra,
não se limitando a ela. A primeira forma de conhecimento do personagem é
através de sua aparência. Essa mudança visual é acompanhada de alterações
no timbre e na entonação da voz, nos gestos e no andar. A ideia de persona-
gem “performático” aparece de forma viva para os palhaços quando eles se
percebem diferentes ao estar fardados e mascarados. Ocultos pela máscara,
sentem-se mais à vontade para declamar versos debochados sem que sejam
reconhecidos.25 Como bem notou Mauss (2003), tanto a máscara como o
nome são elementos usados para a personificação em numerosas sociedades.
O autor revela também que a máscara, entendida como imagem superpos-
ta, está de fato na origem da noção de “pessoa”. A categoria “pessoa” vem,
muito provavelmente, de persona, que significa máscara que dá voz ao ator.
Historicamente, a origem da palavra se encontra na Roma antiga, em que as
máscaras eram utilizadas nos rituais fúnebres e nos enterros, sinalizando a
importância do morto. Entretanto, é preciso enfatizar que a ideia de pessoa
para Mauss, como a que se constrói entre os palhaços, não se esgota na no-
ção de um personagem teatral pura e simplesmente.
Em todo caso, o sentido pleno da máscara só pode ser alcançado quando
vestido e posto em movimento por uma pessoa, um brincante. Aliás, é pre-
ciso acrescentar que quase sempre as máscaras estão associadas a uma in-
dumentária, denominada farda, que geralmente cobre inteiramente o corpo.
Tudo isso indica serem a máscara e a indumentária uma extensão do corpo.
Esses objetos são vistos como indissociáveis de seus proprietários e de seus
corpos. As máscaras são pessoais e evita-se que sejam transferidas a outros.
São verdadeiramente dramáticos os relatos de casos nos quais utilizam-se
indevidamente os pertences de outro palhaço. Por essa razão os palhaços,
mas também os foliões, devem ser extremamente cuidadosos com seus obje-
tos rituais (instrumentos, chapéus, máscaras, toalhas), uma vez que podem
ser apropriados indevidamente por foliões de outros grupos e usados como
mediadores privilegiados para ações mágico-religiosas. Como me informou
o mestre Hevalcy, uma pequena distração pode levar alguém a cortar fitas
da máscara ou dos instrumentos para uso em feitiços, com possibilidade de

25
Van de Beuque (2010) percebeu esse aspecto entre os cazumbas, personagens mascarados do
bumba meu boi maranhense. Nesse trabalho, a autora examina os usos, a produção e a circulação da
“careta de cazumba”, uma máscara usada por esse personagem.

A Alma das Coisas 147


produzir efeitos desastrosos contra os foliões. Conforme venho gradualmen-
te mostrando ao longo do texto, os rituais festivos das Folias de Reis são
empreendimentos perigosos e arriscados e essa dimensão é particularmente
visível na atuação dos palhaços.
Tenho chamado a atenção para o fato de que tais objetos são cercados de
regras, prescrições ou interdições. No caso da máscara, trata-se de um objeto
a ser evitado, pois produz contágios e poluições a quem deliberadamente os
toca. Contrastivamente, a bandeira é alvo de intensos contatos corporais. A
farda e a máscara são, por outro lado, indissociáveis de seus proprietários,
meios eficazes para a realização de procedimentos “mágico-religiosos”, e por
essa razão devem ser cuidadosamente resguardados. São objetos “impuros”,
visto serem como que “margens corporais”, sujeitos a produzir contamina-
ção desencadeada pelas ações humanas. Nessa perspectiva, todos esses ob-
jetos fortemente ligados à experiência e ao corpo tendem a ser vistos como
extensões morais e sociais de seus usuários. Nesse sentido, vale ainda acres-
centar que quando um palhaço vem a falecer, frequentemente sua farda e
máscara são considerados despojos, que precisam ser eliminados adequada-
mente. Isso é feito por familiares, que costumam mergulhá-los num rio para
que a água os leve, sem deixar nenhum rastro de sua presença.
As máscaras usadas por palhaços de Folias de Reis apresentam-se com
inúmeras variantes. Utilizam materiais de origem animal, como couro de
diversos tipos (especialmente de capivara, preguiça, quati, tamanduá), crinas
e presas, assim como materiais industriais, espuma, espelhos, EVA, etc.26
Ressalto que, ao contrário da bandeira, as máscaras e as fardas dos palhaços
são frequentemente confeccionadas com materiais reaproveitados. Esse as-
pecto aponta para outra característica da “materialidade” da máscara, que se
diferencia acentuadamente em relação à da bandeira. A máscara tende a ser
efêmera, enquanto a bandeira é alvo de certos cuidados que a torna, muitas
vezes, objeto de longa duração. Não há, portanto, uma preocupação tão acen-
tuada com a perenidade das máscaras e com sua transmissão.

26
Os materiais de origem animal têm sido rapidamente substituídos pelos industriais em função das leis
de proteção. Os dados etnográficos não me permitiram extrair conclusões sobre a significação desses
materiais. Em diversas ocasiões obtive informações de que a escolha e o emprego desses materiais se
dava pelo critério da disponibilidade.

148 Daniel Bitter


Figura 5.7. Palhaço Pimentinha em ação. Candelária, Complexo da Mangueira.
Fotografia: Daniel Bitter

Em sua diversidade de formas, materiais e estilos, as máscaras têm em


comum a aparência grotesca, disforme e monstruosa. São simultaneamente
assustadoras e cômicas. Essas características se evidenciam no exagero for-
mal e deformidade de certas partes como boca, dentes, nariz, olhos e orelhas.
Há uma ênfase caricata nessas partes, nos seus orifícios, os sinais visíveis
da mediação do corpo com o mundo, ou do corpo individual com o corpo
coletivo (Douglas, 1976). Para a autora, os orifícios simbolizam os pontos de
maior vulnerabilidade, por onde são expulsas as matérias marginais. Como
notei anteriormente, a máscara e a farda do palhaço são consideradas mar-
gens corporais por estar em contato direto com o corpo, com sua persona-
lidade, e são tidas, portanto, como fonte de poluição e de magia. Tudo isso
indica que esses objetos, além de funcionar efetivamente como extensão de
seus usuários, também os constituem como pessoas.

A Alma das Coisas 149


Considerações finais

Procurei mostrar ao longo desse texto como os objetos adquirem senti-


dos diversos em seu contexto, mediando e criando relações entre pessoas e
entidades espirituais. Explorei a relação que as pessoas estabelecem com as
coisas, mas também como os objetos se articulam num sistema de signifi-
cados que tem relação direta com as ações humanas. A bandeira, a máscara
e, extensivamente, a casa parecem desempenhar um papel fundamental nos
rituais de Folias de Reis, e a análise de seus usos e significados aponta, afinal,
para o modo como foliões dão curso às trocas de dons dentro de uma ordem
cosmológica particular. Observei a materialidade específica desses objetos e as
relações de visibilidade e distância espacial que entre eles se estabelecem, che-
gando a um paradoxo: a máscara e a bandeira são ritualmente incompatíveis;
entretanto, elas e as pessoas que as manipulam devem manter um vínculo
regulado por determinada distância. Ambos os objetos exercem uma ação de
proteção mútua, reforçando, por contraste, seus atributos morais negativos ou
positivos, respectivamente. Entretanto, esse vínculo não parece ser simétrico.
A bandeira assume uma posição central, hierarquicamente superior. É ela que
segue à frente, conduzida pela bandeireira, e se constitui em foco de múltiplas
interações. O paradoxo está precisamente numa ambígua relação que envolve
simultaneamente distância e proximidade entre esses objetos e os persona-
gens rituais que os manipulam. Um dos aspectos notáveis na caracterização
do palhaço é que este deve ser um profundo conhecedor dos fundamentos da
Folia de Reis. Deve deter tanto conhecimento quanto o mestre, tendo o poder
de substituí-lo numa eventualidade, exigindo-se, nesse caso, que o uniforme
seja trocado. Aqui mais uma vez revela-se a capacidade de reversibilidade sim-
bólica do palhaço. Para finalizar este texto, gostaria de expor um último caso
etnográfico narrado pelo palhaço Malagueta, que aponta para a complexa tra-
ma que se estabelece entre o palhaço, sua máscara e a bandeira.

Eu era paralitico e com 8 anos foi a primeira vez que a Folia de Reis
chegou na minha casa, no Espírito Santo. Eu com medo [...] corri pra
de baixo da tarimba [...] e fiquei lá escondido. [...] quando deu o in-
tervalo que eles foram me procurar, cadê? [...] Aí depois me acharam,
me trouxeram e me colocaram numa cadeira. O mestre [da folia],
botou a bandeira em cima de mim. Aquilo me arrepiou e eu fiquei
tremendo. Ele rezou, no final, uma partida que dizia que Jesus chegou
a um templo e que encontrou um paralitico e disse pra ele: – Levanta
e anda em nome de Jesus.

150 Daniel Bitter


E aí me estalou os ossos. E ainda por cima, ele, um homem muito
velhinho... E aí eu fiquei olhando pra ele e fiquei espantado, porque
ele disse: – Levanta e anda em nome de Jesus.
E eu, como criança, pensei assim: – Bom falou pra eu levantar e andar,
eu vou levantar e andar.
Foi quando eu botei a mão no banco e comecei a puxar o corpo. Aí eu
levantei. Foi um milagre de uma bandeira sagrada. E quem brincava
de palhaço nesta folia era o meu padrinho que eu não sabia. [...] A
minha mãe era tão devota que quando ela viu a graça ela disse: –
Agradeço ao meu Deus e os três Reis do Oriente pela graça alcançada
no dia de hoje. O meu filho está entregue à sua bandeira. Faça do meu
filho o que vocês quiserem.
E aí o paralítico começou em 1958 a pular de palhaço... eu brinquei aqui
no Rio de Janeiro em muitas Folias de Reis e sempre fui vitorioso. (Pa-
lhaço Malagueta – Jorge Antonio Severino, em depoimento ao autor)

A narrativa apresentada coloca em foco a centralidade da relação entre


mito e rito em meio aos foliões. Ressalto o fato de a mãe de Malagueta ter
oferecido seu filho na forma de um “dom” para a bandeira, para os Magos.
Malagueta tornou-se um palhaço, desafiando sua condição física, e investiu-
-se da missão de proteger a bandeira, tornando-se também um “mestre dos
palhaços”.27
O que parece mais ou menos evidente a partir dos fatos etnográficos aqui
expostos é que esses objetos produzem uma diversidade de pessoas e rela-
ções e parecem estar ligados a uma moralidade das ações. A necessidade de
agrupar e separar adequadamente as coisas parece refletir também uma per-
cepção do cosmos na qual as forças tanto benéficas quanto as maléficas lhe
são igualmente inerentes e perigosas. Através dos ritos e de sua sistemática
articulam-se formas de autoconhecimento em que se inscrevem dimensões
objetivas e subjetivas da cultura. Como procurei mostrar também, esses ri-
tuais festivos são ocasiões excepcionais em que os indivíduos formulam sua
noção de pessoa e conduzem suas ações práticas e políticas mais estritas,
estabelecendo vínculos sociais informados por noções de hierarquia, honra,
prestígio e reputação. Os casos aqui apresentados apontam, afinal, para a
força e o poder que a bandeira e a máscara têm de agir sobre as pessoas e
transformar o mundo.

27
Normalmente há mais de um palhaço numa folia, e ocasionalmente é necessária a função de mestre
dos palhaços para organizar suas ações.

A Alma das Coisas 151


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154 Daniel Bitter


6.

À MESA COM OS SANTOS: A NOÇÃO DE “FARTURA”


NAS FOLIAS DE URUCUIA (MINAS GERAIS)

Luzimar Paulo Pereira

Augusto1 comentava em voz alta, para que todos os que estavam perto
pudessem ouvir: “festa assim não dá, não. Ficar regulando comida não pode,
não. Festa não tem que regular, não!” O reclamante parecia ter sua razão. Ca-
pitão de folia havia quase vinte anos, ele sabia que nessas festas as refeições
desempenham, ao lado de todo um conjunto de espaços e objetos culinários
(talheres, pratos, mesas, cozinhas, barracões, etc.), um papel fundamental.
Não há festa “de santo” sem “comida”, assim como não há “boa festa de
santo” sem comida em “fartura” distribuída a todos os seus participantes.
Nas folias, oferecer e receber alimentos são maneiras de se posicionar num
extenso mundo relacional que vincula os homens entre si e entre eles e seus
santos de devoção. Nessas situações, o nome, a reputação e a devoção de
cada um dos participantes dos festejos sempre estarão em jogo.
Naquele abril de 2007, Augusto prestava serviços religiosos – junto com
seu grupo de cantadores e tocadores – a uma folia em homenagem a São
José, patrocinada pelos imperadores João e Ana, de Urucuia, Minas Gerais.
Suas queixas se voltavam contra o excessivo zelo dos donos da festa na hora
de distribuir os alimentos durante o encerramento dos festejos. A “comida”
oferecida era “pouca” e de difícil acesso, ainda que a festa fosse “pequena”,
dada a quantidade de pessoas que a ela compareciam. Minutos antes, como
eu mesmo presenciara, o dono da casa se justificava dizendo que as suas con-
dições econômicas não eram das melhores e que para a festa “vingar”, ele e

1
Todos os nomes apresentados nesta introdução são fictícios.

A Alma das Coisas 155


sua esposa precisariam agir com parcimônia. “Senão”, completava, “chega na
hora da janta não sobra comida pra ninguém”. Os argumentos não pareciam
convencer a maioria dos convidados. Ao meu lado, um cantador que ouvia
atentamente as desculpas do imperador comentava baixinho: “se não tem
condição, por que que faz a festa, então?”.
João e Ana poderiam responder à pergunta do convidado argumentando
que eles não tinham efetivamente escolha. Eles eram, então, aquilo que se
poderia definir em Urucuia como “imperadores permanentes” (Pereira, 2011).
Entra ano e sai ano, o casal realizava suas festas em nome de São José, a quem
dedicavam devoção eterna – “de vida inteira”, na linguagem dos urucuianos.
Nessa condição, João e Ana não podiam esperar melhores “condições” para a
produção dos seus festejos. Eles não poderiam “deixar” a festa para o ano que
vem, nem para o mês que vem. A obrigação de um “imperador permanente” –
que deseja manter intacto esse seu prestígio – é a de realizar suas folias todos
os anos. Esse prestígio não faltava ao casal. Quando cheguei pela primeira
vez em Urucuia, em 2005, os festejos organizados por João e sua esposa fo-
ram reiteradamente citados por diversos devotos da cidade como um dos mais
importantes e conhecidos do município. Eles tinham sua “fama”. A folia em
homenagem a São José patrocinada pelo casal era suficientemente importan-
te – do ponto de vista dos meus interlocutores – para ser apresentada como
referência a ser indicada a alguém “de fora” que deseja conhecer o universo
urucuiano das festividades. Há, então, um certo risco em ser considerado “im-
perador permanente” em Urucuia. Fonte de prestígio para seus imperadores,
as festas cobravam – para sua continuidade – compromissos constantes e es-
forços anuais. E nada garantiria de antemão o sucesso dos empreendimentos.
Em 2007, era a primeira vez que assistia à Folia de São José patrocinada
pelo casal João e Ana. Antes disso, nunca tinha ouvido reclamações a res-
peito da festa e dos seus organizadores (reclamar das folias é uma atividade
comum entre os urucuianos, como viria a perceber depois). Talvez os convi-
dados tivessem sido mais compreensivos com esses imperadores nos anos
anteriores. Nunca pude saber disso. No entanto, o descontentamento que eu
testemunhava parecia ter algumas justificativas, que vale a pena destacar. A
festa que acompanhei em 2007 tinha um componente novo, que complicava
ainda mais as coisas para o casal de imperadores. Os foliões estavam efetiva-
mente com “fome” naquele dia. Durante toda a madrugada que antecedeu a
festa de encerramento da Folia de São José, os cantadores e tocadores circu-
laram pela localidade rural em que viviam nossos imperadores. Foram cerca
de 12 visitas, realizadas entre as 8 da noite e 6 da manhã. Por problemas que

156 Luzimar Paulo Pereira


eu não soube avaliar corretamente quais eram – não naquele momento –, ne-
nhuma das casas visitadas parecia preparada para receber os foliões. Alguns
moradores, de fato, revelavam-se surpresos quando percebiam que o grupo
de cantadores batia na porta de suas residências no meio da noite. Eu tentava
me informar sobre esse fato aparentemente excepcional. Um folião me dizia
que o imperador estava “brigado” com seus vizinhos, que, em troca, “des-
contaram” sua insatisfação nos viajantes – no que ele completava, censuran-
do: “São José não tem a ver com a briga deles; nem a gente, né?” Outro folião
dizia que a insatisfação dos moradores era resultado do erro de planejamento
do velho imperador. O descontentamento dos seus vizinhos se deu porque,
semanas antes da folia começar, ele havia deixado saber a todos os habitantes
da localidade do bairro que a jornada da folia priorizaria o pequeno centro
urbano de Urucuia. A comunidade à qual ele estava vinculado ficaria de fora.
Segundo fiquei sabendo depois, os moradores da localidade rural se sentiram
desprestigiados, porque acreditavam que a opção pelo “giro” na “cidade”
fora tomada por interesses bastante condenáveis: o imperador, pensavam
eles, esperava arrecadar mais “esmolas” (dinheiro, alimentos, etc.), mais do
que deveria receber na localidade. Daí a resposta negativa durante as visitas.
Havia uma última versão que tentava explicar o que acontecera: a ideia de
realizar as visitas na cidade foi do capitão Augusto Teles, o que justificaria a
resposta nada amistosa dos moradores aos seus foliões.
Seja qual for a razão – e todas as razões apontavam para conflitos reais ou
fictícios entre imperadores, capitão e moradores –, o certo é que os cantadores
ficaram sem “comer” ao longo da jornada. Como escrevi noutro lugar, uma
visita de folia implica sempre oferecer “agrados” diversos aos cantadores (Pe-
reira, 2004; 2011). A “comida”, nesses momentos, deve ser abundante e bem
distribuída: farofas de carne de gado ou de frango, cachaças, café, biscoitos.
Come-se muito numa folia. E ninguém pode ficar sem “comer”. Durante os
anos de 2001 e 2002, por exemplo, ao fazer as pesquisas que redundaram na
minha etnografia de Mestrado, eu mesmo engordei quase 5 quilos depois dos
trabalhos. A “fartura”, como se diz, deve ser a tônica das festividades. Naquela
noite de abril de 2007, entretanto, o que se viu foi outra coisa: a “escassez”. As
discussões, desculpas e julgamentos que testemunhei na casa dos imperadores
na manhã da festa de encerramento da Folia de São José eram consequência
inevitável de uma sucessão de eventos que levaram a “fome” e a “escassez” a
um universo que deve ser vivido como “regalo” e “fartura”. Não que isso seja
incomum. Fazer folias em Urucuia é uma atividade arriscada justamente por
isso. No final, alguma coisa pode não dar certo.

A Alma das Coisas 157


Como resultado, a festa do casal João e Ana redundou “fraca”. Durante os
dias que se seguiram à sua realização, ouvi diversos comentários desabona-
dores a seus realizadores. Alguém mais exagerado previu o “fim do império”
de São José do casal. Não é possível prever isso, claro. Mas o comentário
indicava algo importante: o risco de uma festa é sua continuidade. Nada é
eterno no mundo das folias urucuianas. Como resultado complementar, o ca-
pitão Augusto Teles ainda planejou e executou uma “resposta” à comunidade
que ele julgava ter recebido – a ele e a seus foliões – tão mal naquela noite de
abril: numa folia realizada meses depois, ele deliberadamente excluiu a lo-
calidade do roteiro das suas visitações. “Se eles não quiseram receber antes,
não querem receber agora”, falava. Da próxima vez, continuava Augusto, se
os moradores do lugar quisessem que sua folia passasse por lá, eles que o
procurassem.

* * *

A distribuição generalizada de alimentos em longos repastos coletivos é


um traço marcante de diversos festejos populares no Brasil. Nas folias, em
especial, as refeições adquirem feições verdadeiramente rituais, para demar-
car a cuidadosa passagem simbólica de uma época de escassez para um perí-
odo de fartura (Bitter, 2008; Pereira, 2004; 2011). Não se trata, em absoluto,
de considerá-las destinadas a suprir uma exigência fisiológica supostamente
universal, revelando, de acordo com uma cosmologia ocidental moderna, a
imagem de uma natureza humana imperfeita, repleta de carências e neces-
sidades materiais (Sahlins, 2007). Os banquetes coletivos, com seus cardá-
pios e formas de preparação, seus modos à mesa e regras de distribuição,
suas rezas e “cantorios” cerimoniais, são, na verdade, culturalmente loca-
lizados e “parte inseparável de um sistema articulado de relações sociais e
de significados coletivamente partilhados” (Gonçalves, 2007, p. 163). Nas
folias, os eventos alimentares – food events, na conceituação de Mary Douglas
(1999) – emergem como uma espécie de idioma social e cultural, por meio
do qual valores, visões de mundo e modelos de relações sociais podem ser
expressos, ao mesmo tempo que contribuem para a constituição de formas
de autoconsciência individuais e coletivas.
Alimentar-se é, noutros termos, uma atividade necessariamente social e
cultural. A escolha do cardápio, as formas de obtenção dos seus ingredien-
tes, os processos de preparação dos alimentos, os saberes culinários envolvi-
dos na sua produção, os modos de apresentar e servir os pratos, as técnicas

158 Luzimar Paulo Pereira


corporais necessárias ao seu consumo, as situações nas quais os repastos
são servidos (no cotidiano ou em momentos rituais), entre outros elemen-
tos, são partes fundamentais de um sistema culinário, cujas operações fa-
zem interagir técnicas, relações sociais e representações (Mahias, 2005).
O conjunto de processos por meio dos quais os homens transformam os
produtos em seu entorno em alimento e os modos pelos quais eles são con-
sumidos articulam classificações associadas a um ordenamento simbólico
do mundo, a toda uma cosmologia que vincula a pessoa, a sociedade e todo
o universo. Comer, em outras palavras, assegura ao homem sua conduta e
seu lugar no cosmos.

No se come qualquier cosa, em cualquier lugar, em cualquier momento,


com qualquiera. Toda cocina implica una dietética, corpus de conoci-
mientos y de preceptos en los que el alimento mediatiza las relaciones
del hombre com el mundo, mediante una serie de correlaciones entre
estaciones, climas, tierras, enfermedades, cuerpos y temperamentos
humanos, individuos y grupos sociales. (Mahias, 2005, p. 170)

Neste artigo, proponho descrever e analisar o papel desempenhado pelas


refeições coletivas ocorridas durante a realização das folias urucuianas.2
Em especial, quero destacar, por meio de um material etnográfico recolhido
entre os anos de 2005 e 2008, os sentidos da noção de fartura, associada às
formas de produção e distribuição dos jantares servidos durante as festivi-
dades de encerramento de uma folia.3 A “entrega” – como são conhecidas
as festividades de encerramento – indica o acontecimento mais público de
todo o empreendimento da folia. Realizada na casa dos imperadores, ela é a
abertura máxima do espaço de sua moradia para a chegada de todo um con-
tingente de pessoas. Resultado de um longo processo de produção, que en-
volve a participação de uma ampla coletividade mobilizada através das redes
de auxílio mútuo e devoções religiosas, a “entrega” imprime sua marca aos
festejos. É a partir de sua realização que os devotos avaliam todo o sucesso

2
Gostaria de agradecer a todos os promotores e participantes dos festejos urucuianos que me
receberam com paciência e generosidade ao longo dos meus trabalhos de campo. Também quero
agradecer aos professores José Reginaldo Santos Gonçalves, Maria Laura Viveiros de Castro, Marco
Antonio Gonçalves, Marcia Contins e Renata de Castro Menezes pelos comentários estimulantes
durante a defesa da minha tese de doutoramento.
3
Apesar de centrar minhas atenções nos almoços e jantares, devo dizer que há diversas outras formas
de comensalidade numa folia. Além dessas refeições também encontramos, por exemplo, o “café” (a
bebida acompanhada de biscoitos e farofas), oferecido aos seus participantes durante várias etapas
das festividades.

A Alma das Coisas 159


da folia. Uma “boa” entrega, “bonita”, “devota”, “cheia”, “alegre” ou “ani-
mada”, é o sinal cabal de uma festa bem-sucedida; é o indício certo de que
os festejos foram bons e serão lembrados por muitos anos por aqueles que
tiveram o privilégio de participar deles. Pelo contrário, se é “fraca”, “desani-
mada”, “com pouca gente” ou “bagunçada”, muito provavelmente será usada
para indicar o fracasso do empreendimento. Por isso, os imperadores e seus
ajudantes trabalham na perspectiva de que tudo seja memorável. A “fartura
de comida”, como se fala entre os devotos, é um dos critérios fundamentais
para o sucesso de uma festividade.
Os alimentos são parte integrante da cultura material (Gonçalves, 2007).
Na medida em que circulam permanentemente na vida social, eles podem
ser descritos e analisados em seus movimentos e transformações pelos mais
diversos contextos sociais e simbólicos. “Acompanhar o deslocamento dos
objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses contextos”, escreve
Gonçalves, “é em grande parte entender a própria dinâmica da vida social e
cultural, seus conflitos, ambiguidades e paradoxos, assim como seus efeitos
na subjetividade individual e coletiva” (2007, p. 15). Nas folias, os alimentos
constituem os homens e suas relações, na mesma medida em que são pro-
duzidos e consumidos por eles em longos circuitos de trocas cerimoniais.
Nesse contexto, as refeições são fundamentais para o estabelecimento de
dada comunidade de fiéis. Não se trata aqui, no entanto, de pensarmos a co-
letividade festiva apenas como communitas, no sentido turneriano do termo:
uma forma de relação social que surge em períodos liminares como espécie
de “comunidade”, ou mesmo uma “comunhão” de indivíduos iguais (Turner,
1974). As formas de distribuição e as regras de acesso aos alimentos também
implicam, nesse contexto, a constituição de hierarquias e regimes de contro-
le. Nas folias, a comunhão evoca igualmente a “estrutura”. Pode-se comer de
diferentes modos numa festa, cada um deles articulando diversas posições
sociais e religiosas no interior de uma verdadeira hierarquia cósmica e social.

As festas de folia

Como em outros lugares do país, o vocábulo folia também evoca, no mu-


nicípio de Urucuia, a realização de longos deslocamentos festivos, quando
grupos de cantadores e instrumentistas visitam, durante um período de tem-
po determinado pelo calendário religioso, as casas, as fazendas, os cemité-
rios e as igrejas de um território previamente estabelecido. As jornadas são

160 Luzimar Paulo Pereira


conhecidas como giros. Neles os grupos se deslocam para coletar, em nome
de cada um dos santos para os quais os festejos são organizados e de seus
principais patrocinadores, as oferendas necessárias e obrigatórias para o cus-
teio de uma reza a ser realizada no dia dedicado à divindade homenageada.
Em troca do que é recolhido – dinheiro, velas, fogos de artifício, sacas de
arroz, feijão, animais de criação, etc. – eles distribuem bênçãos aos doadores,
além de auxiliá-los no cumprimento de suas promessas e contribuindo para
que almoços, jantares e bailes sejam oferecidos em suas passagens. As folias
se conformam como extensos rituais de trocas sociais e simbólicas (Pereira,
2011; Brandão, 1981; Bitter, 2008; entre outros). Nelas, homens e divinda-
des, personagens cerimoniais e pessoas comuns, vivos e mortos, famílias e
indivíduos, todos, enfim, encontram-se presos a uma extensa rede pela qual
bens e serviços morais, religiosos, econômicos, estéticos, entre outros, são
trocados, dados, recebidos e retribuídos (Mauss, 2003).
As folias podem ser descritas como formas específicas de peregrinação
(Pereira, 2011; ver também Brandão, 1989; Veiga, 2002). A rigor, qualquer
santo do panteão católico pode ser homenageado com a realização dos fes-
tejos. Há, no município, as Folias dos Santos Reis, as de São Sebastião, as
de São José, de Bom Jesus da Lapa, de Nossa Senhora Aparecida e de Santa
Luzia, citando apenas as mais importantes. Todas elas se realizam em épocas
precisas, de acordo com o calendário religioso que estabelece dias específicos
para cada entidade: 6 de janeiro (Santos Reis), 20 de janeiro (São Sebastião),
19 de março (São José), 10 de agosto (Bom Jesus da Lapa), 12 de outubro
(Nossa Senhora Aparecida) e 13 de dezembro (Santa Luzia). Centradas na
viagem cerimonial dos foliões, as peregrinações implicam a “saída” de um
lugar familiar (a casa do imperador), a “passagem” por lugares distantes (o
território do giro) e um “retorno”, final, ao mundo familiar onde tudo co-
meçou (a casa do imperador). Ao modo dos rituais de passagem descritos e
analisados por Van Gennep (1978), os festejos possuiriam, então, três fases
distintas e complementares, denominadas pelos seus próprios participantes,
respectivamente, retirada (1), giro (2) e entrega da folia (3). Os deslocamentos
ocorrem num ambiente de clara liminaridade (Turner, 2008).
A retirada demarca o início das peregrinações. Realizada na casa dos seus
principais produtores (os imperadores), ela se destaca pela realização de certos
cerimoniais de “sacralização” ou “separação”. Os trabalhos necessários à sua
produção, a execução de rezas propiciatórias, o deslocamento das pessoas à
moradia dos imperadores, o uso de certos objetos entendidos como eminente-
mente religiosos (a bandeira, as toalhas e os instrumentos musicais retirados

A Alma das Coisas 161


do santuário montado na casa do imperador) e os festins de comida demar-
cam a passagem ao tempo extraordinário característico da viagem ritual. O
giro é a viagem no seu sentido estrito, quando os foliões se deslocam, de
um a 12 dias, por um amplo território. Os deslocamentos podem ser feitos
a pé, com carros ou a cavalo (a preferência dos foliões de Urucuia). Como
um todo, os giros representam o “estado marginal” por excelência, em que
encontramos a própria noção de sagrado em atuação. As pessoas morais per-
manecem num estado de suspensão durante sua realização. Os trabalhos
cotidianos são temporariamente encerrados e os participantes da folia vivem
a experiência de se congregar entre si em torno de um santo devocional. A
entrega é realizada na casa dos imperadores para demarcar o encerramento de
todo o ciclo ritual. Ápice do empreendimento festivo, ela propõe uma grande
concentração de gentes e coisas. Como “saída” ou “rito de dessacralização”,
a retirada também implica o retorno ao mundo secular-cotidiano. Com rezas,
cantos, festins de dança e repastos coletivos, ela prepara o retorno renovado
dos indivíduos e de toda uma sociedade ao fluxo ordinário de suas existências.
Na sua integralidade, uma jornada de folia engendra atividades que po-
deriam ser, a princípio, definidas como a repetição contínua de uma mesma
série em três atos: uma preparação (os trabalhos coletivos que antecedem
todas as ações rituais), uma apresentação (os cerimoniais comandados pelos
foliões) e um arremate (a distribuição de comida e, às vezes, a realização
de bailes ocorridos depois das apresentações) (Pereira, 2004). Verdadeiro
fato social em movimento, as festividades seriam marcadas por grandes al-
terações espaciais, comportamentais, emocionais, fisiológicas e pelos usos
de certos objetos materiais; tudo para erigir simbolicamente uma delicada
e progressiva separação em prol de uma época extraordinária. Os encon-
tros com as divindades inauguram um período de intensa vida coletiva, de
gastos conspícuos de bens econômicos e da presença constante do sagrado
(Pereira, 2011). Essa nova qualidade de tempo, como no caso das festas do
Divino descritas e analisadas por Contins e Gonçalves (2009), tem conse-
quências “significativas sobre a vida individual e coletiva dos devotos” (p.
16). As trocas são mais intensas, os espaços condensados e os encontros
mais frequentes. A exemplo das variações sazoneiras na sociedade esquimó,
descritas por Boas (1911) e analisadas por Mauss (2003), as festas de folia
estabelecem – ao longo de sua vigência – uma visão distinta acerca da vida,
das pessoas e das relações entre elas. O tempo dos festejos, em oposição ao
tempo cotidiano, vem a ser marcado por um estado de exaltação religiosa
contínua. A vida ganha um brilho diferente, e as oposições entre o alto e o

162 Luzimar Paulo Pereira


baixo, o passado e o presente, o nós e os outros, a casa e a rua, homens e
mulheres, entre outras, são parcialmente desfeitas ou, pelo menos, momen-
taneamente mediadas.

O banquete do encerramento

No início de 2008, assisti a um festejo de folia dedicado aos santos Reis


Magos na pequena comunidade da Fazenda Alegre, nas divisas dos municí-
pios de Urucuia e Pintópolis, em Minas Gerais. A localidade era habitada por
quase 25 famílias, distribuídas em pequenas e médias propriedades rurais. A
Folia de Reis que acompanhei era destinada ao pagamento de uma promessa
realizada por um casal de imperadores (os produtores e organizadores das
festividades) em nome de um dos seus filhos, que adoecera anos antes. A
festa promovida nesse ano de 2008 foi a última de um total de três que o
casal deveria patrocinar como forma de saldar sua dívida com os Santos Reis
Magos (a primeira fora realizada em 2006). Depois de três dias de festivida-
des, nos quais um grupo de foliões circulou pelas moradias da localidade, um
jantar oferecido aos convidados demarcava o final das atividades. A “janta”
foi preparada na propriedade dos seus organizadores com o auxílio de di-
versas pessoas (mulheres e homens, parentes, vizinhos e amigos dos impe-
radores), distribuídas segundo claras regras de divisões de tarefas (Pereira,
2004; 2011).
Na noite do dia 16 de janeiro, a comida e o local onde seria realizada
a refeição estavam prontos. Da sala, os especialistas religiosos da folia (os
foliões) se preparavam para dar início à “alvorada”. Realizado toda vez que
se faz uma refeição numa folia, o cerimonial tinha o objetivo de tirar momen-
taneamente a bandeira do santuário dedicado aos Santos Reis Magos para
levá-la, em cortejo, ao lugar onde estava montada a “mesa dos foliões” (onde
se daria o repasto). Para realizar a “alvorada”, os cantadores formaram um
círculo diante do local sagrado e deram início a um pequeno cortejo musica-
do. Depois de dar três voltas pelo cômodo onde estava o santuário, o grupo
atravessou a divisória que separava a cozinha da sala e seguiu para os fundos
da propriedade, onde encontrou, já preparada, a mesa dos foliões. O cortejo
realizou, então, outras três voltas em torno da mesa, antes de estancar num
ponto indicado pelo cerimonial. A alvorada terminou com uma saraivada de
fogos de artifício do lado de fora da residência e a reza de um pai-nosso e
uma ave-maria.

A Alma das Coisas 163


Tão logo os devotos terminaram de rezar, a bandeira dos Três Reis Magos
foi afixada acima da mesa, num dos esteios do telhado do alpendre. Os donos
da casa, junto com seus serventes, incitaram, então, os foliões a comer.4 So-
bre a mesa, os talheres, pratos e copos estavam cuidadosamente ordenados,
para facilitar a retirada dos alimentos. Os foliões entravam pelo lado direito
da mesa, de modo a realizar uma volta completa ao seu redor, após terem
feito seus pratos. Os cantadores pareciam não ter problemas na hora de es-
colher o cardápio (uma versão potencializada e mais diversificada do que é
servido no dia a dia dos urucuianos). A mesa estava completa: panelas de
feijão e arroz, de carne de vaca, frango e porco, de macarrão, bandejas com
verduras, batatinhas, farofa; litros e litros de pinga, água e refrigerante. Tudo
era cuidadosamente colocado nos pratos. Primeiro, vinha o feijão e a farinha.
Ambos os ingredientes eram misturados para que sobre eles fosse colocado
o arroz. A “mistura” (saladas, as leguminosas, as raízes e as carnes, sempre
as mais valorizadas entre os alimentos) era colocada por cima da “comida”.
Depois de se servirem, os foliões se sentaram à mesa. Mas havia aqueles que
preferiram comer com os pratos à mão, encostados numa parede ou nos ban-
cos próximos ao local da refeição. Em vários momentos, essas atitudes eram
desencorajadas pelos moradores, que tentavam de toda forma convencê-los
a se sentar à mesa dos foliões.
Após todos os foliões encherem seus pratos, os imperadores mandaram
servir os demais convidados. O “povo da festa”, no entanto, não comia do
mesmo alimento nem no mesmo lugar dos cantadores e seus acompanhan-
tes. Para atendê-lo, os donos da casa construíram, no fundo do terreiro, um
pequeno barracão. Diferentemente do que ocorria na mesa dos foliões, ali
não eram os que chegavam que colocavam os alimentos nos pratos. Cada um
dos convidados era servido por um dos ajudantes da festa, separadamente
da multidão, que formava uma fila por uma pequena bancada de madeira.
O cardápio destinado ao povo da festa também era menos variado do que
aquele oferecido aos foliões. Em vez da diversidade encontrada na mesa dos
cantadores, víamos que cada prato era servido com uma combinação de três
ou quatro tipos de alimentos: o arroz, o feijão, a carne de vaca e algumas
cenouras e verduras. A distinção entre foliões e “povo da festa” era evidente.
A preeminência na hora de se servir, os lugares onde se servir e se alimentar

4
O servente é o personagem cerimonial responsável pela mesa. Além de chamar os convidados
para o jantar, ele também cuida para que os pratos e talheres estejam sempre à sua disposição. Ele
também é responsável para que as panelas e as tigelas estejam sempre cheias. O papel pode ser
desempenhado tanto por homens como por mulheres.

164 Luzimar Paulo Pereira


e até o cardápio indicavam uma hierarquia entre os convidados.5

Figura 6.1. Caminho percorrido entre a


sala e a mesa dos foliões

Durante a refeição, os imperadores e seus ajudantes caminhavam com


satisfação por entre os convidados. A todo tempo perguntavam sobre a qua-
lidade e a quantidade do que era oferecido e os incentivavam a comer mais.
Diante da recusa de algumas pessoas, eles reforçavam a ideia de que “a comi-
da dá e sobra” para “todo mundo”. Além disso, diziam, muito mais alimen-
tos estavam sendo preparados na cozinha improvisada no fundo do terreiro.
Ao longo do jantar, os imperadores e os serventes (geralmente familiares dos
donos da casa) enchiam, de tempos em tempos, as panelas e vasilhas coloca-
das sobre a mesa e disponibilizadas no barracão. Ninguém poderia ficar sem
comer. No final dos festejos, provavelmente, muita coisa sobraria (e de fato
sobrou). Mas, segundo o próprio imperador, durante um jantar era preferível
sobrar do que faltar: “imagina a vergonha da gente se falta comida pro povo
nessa hora?”.
Por volta das 11 horas da noite, o “dono da festa” procurou o líder dos
foliões (o capitão) para que tivesse início o encerramento do jantar e fosse

5
Obviamente, poderíamos observar que o tratamento dispensado aos foliões tinha relações diretas
com o trabalho que eles realizaram em nome dos imperadores: “Pro folião a gente tem que ter muito
agrado. Foi eles que cumpriu a promessa pra gente.” Não se deve pensar, contudo, que a separação
tenha conotações apenas pragmáticas. A distinção estava relacionada ao valor sagrado que separava
os foliões dos demais convidados (Bitter, 2008).

A Alma das Coisas 165


realizada a “saudação da mesa”, uma espécie de ritual efetuado diante do res-
to da refeição e que consiste num cantorio, seguido da reza de um pai-nosso
e de uma ave-maria.6 Com a equipe de foliões novamente agrupada, o capitão
pediu ao imperador que a mesa fosse arrumada para o cerimonial. As mulhe-
res que ajudavam na cozinha da festa retiraram os potes com o resto dos ali-
mentos, as panelas e os talheres, deixando sobre o tampo apenas uma vasilha
vazia, uma garrafa com água, uma cumbuca com farinha e outra com molho
de pimenta (em outros banquetes que pude observar, quando não é possível
retirar todas as panelas da mesa, elas são cobertas com toalhas de modo que
só se possa ver a água, a farinha e a pimenta). Os devotos dizem que nessa
hora tais elementos representam a água, o pão e o vinho presentes na santa
ceia ocorrida na véspera do calvário de Jesus Cristo. Uma vela acesa também
foi colocada sobre a mesa, quando um dos foliões tomou a bandeira em suas
mãos e os demais cantadores e tocadores se posicionavam em seu entorno.

Figura 6.2. Os foliões se servem à mesa.


Fotografia do autor

6
O cantorio é uma das principais atividades desempenhadas pelos foliões ao longo de suas viagens
cerimoniais. Ele não parece resumir-se ao simples proferimento de versos rimados e entoados sobre a base
ritmada, melódica e harmônica de uma música. Nesses contextos, o cantorio corresponde a um conceito
bastante mais estendido do que a simples ideia de poesia cantada. Ainda que os versos entoados tenham
alguma proeminência, eles precisam colocar em operação o movimento coordenado dos corpos em relação a
um verdadeiro sistema de objetos (Pereira, 2011). Não há música separada das falas nem cantos separados
de artefatos e do movimento corporal de seus participantes. Embora possa ser considerado uma espécie de
rito oral, o cantorio também mantém laços estreitos de contiguidade com os rituais manuais (Mauss, 1999).

166 Luzimar Paulo Pereira


Com a indicação do líder dos foliões, teve início o “agradecimento da
mesa”. Depois de cantar o “bendito louvado seja” que compõe o cabeçalho
de todos os cantorios de folia urucuianos, o capitão começou efetivamente
o ritual. A saudação era, antes de tudo, um agradecimento. Os versos que
se seguiram indicavam cada um dos personagens que deveriam receber as
bênçãos, emitidas como contradádivas do alimento oferecido aos convida-
dos. Primeiro, o capitão citou a “senhora dona da casa”, a quem se atribui
primordialmente o que foi oferecido aos foliões. Em seguida, mencionou
os serventes e as cozinheiras, responsáveis, respectivamente, por servir o
alimento e prepará-lo para a ocasião. Trata-se, efetivamente, de considerar-
mos o cantorio o termo final de uma troca de dons (Brandão, 1981), em que
o alimento oferecido era retribuído através de bens morais e religiosos de
grande valor para os devotos.

Peço licença a senhora Que todos preste atenção


Vem lhe saudar Os foliões e os serventes
Deus lhe pague a bela mesa Ele será recompensado
Que vós fez com alegria Nos pés de nosso senhor [...]

Deu o pão que deu sustento Deus vos salve as cozinheiras


O pão nosso de cada dia E também a bela luz
Deus lhe pague a bela janta Quem salva o dono da casa
Que vós deu em vosso nome É quem morreu por nós na cruz

Dando água a quem tem sede (FOGOS)


Dando pão a quem fome
Aqui que estão todos irmãos
Filho de Deus onipotente

A saudação terminou com uma ave-maria e um pai-nosso. Durante a reza,
os foliões que estavam em torno da mesa colocaram as mãos para o alto, em
claro sinal de devoção. Alguns dos convidados, que estavam de fora desse
primeiro círculo de fiéis, repetiram o gesto. Geograficamente, podíamos ver
dois grandes círculos concêntricos que partiam da mesa. No final das ora-
ções, “vivas” foram dados aos santos, aos donos da festa, aos serventes, às
cozinheiras, aos foliões e aos convidados.

A Alma das Coisas 167


Da escassez à fartura

Nos banquetes festivos de uma folia, as noções de fartura e escassez evo-


cam categorias totais (Mauss, 2003), orientando transformações importan-
tes em direção a um tempo renovado de generosidade em que a sociedade,
o cosmos e a natureza “oferecem seus frutos” (Contins; Gonçalves, 2009,
p. 26). No discurso dos seus promotores, a preocupação com a quantida-
de dos alimentos preparados, apresentados e oferecidos sinaliza, com muita
frequência, o sentido da graça religiosa, por meio do qual eles se sentem de
alguma maneira abençoados pelas santidades.

Na folia que eu faço nunca falta nada. Às vezes a gente olha pra panela
e pensa que não vai dar. Fica preocupado: “A gente é fraquinho. E se
faltar comida pra esse povo todo, comé que fica?” Tem dia que cê num
dorme de preocupação. Mas chega no dia, dá e sobra. Todo mundo
fica satisfeito. É aquela alegria. Isso é coisa dos Magos. É um milagre
do santo. (João Canela. Caderno de campo. Urucuia, 07/01/2008)

A fartura evoca, assim, o milagre divino. Desde que estejamos falando de


uma ética compartilhada por agricultores camponeses, pequenos produtores
rurais, trabalhadores assalariados, boias-frias e carvoeiros, pertencentes, de
um jeito ou de outro, ao estrato subalterno da sociedade brasileira, mineira
e urucuiana, supõe-se aqui que a distribuição abundante da comida seja um
contraponto à escassez que demarcaria o cotidiano imaginário e – muitas
vezes real – das pessoas. O sucesso de uma empreitada festiva, dessa forma,
é interpretado pelos seus próprios participantes como uma concessão espe-
cial dos santos aos devotos. Uma boa festa indica aos outros, àqueles que
comparecem à sua realização e àqueles que só ouvem falar dela, um sinal de
distinção religiosa e social.
Os conceitos de fartura e escassez, entretanto, não se resumem apenas
à quantidade de alimentos oferecidos em festa. As pessoas também contam
nesse processo, e as redes de reciprocidades fundadas em torno dos orga-
nizadores das festas e do santo para o qual tudo é direcionado são muito
importantes. Uma folia é produzida através de diversos eixos de complemen-
taridades. O imperador começa tudo praticamente sozinho, constituindo
cuidadosamente uma pequena poupança com a qual dá início ao seu empre-
endimento festivo (Pereira, 2004; 2011). Nesse primeiro momento, apenas
ele e seu grupo doméstico estão intrinsecamente vinculados às folias. Em
seguida, no entanto, o imperador também precisa se abrir para círculos cada

168 Luzimar Paulo Pereira


vez mais ampliados de relações, que possam agregar seus parentes distantes,
compadres, vizinhos, amigos, meros conhecidos e, às vezes, desconhecidos
que por uma razão ou outra participam da produção dos festejos. A festa
tende ao mundo exterior, para o qual os seus principais patrocinadores e
organizadores precisam sempre se voltar.
A expansão máxima da folia ocorre com o giro dos foliões, quando os can-
tadores e tocadores são os responsáveis por comandar o recolhimento das
“esmolas” (Pereira, 2011; Brandão, 1981). A passagem dos foliões pelas ca-
sas dos moradores de determinado território contribui para o recolhimento
de bens dotados, a princípio, de valores de uso e de troca – dinheiro, frangos,
leitões, gado, feijão, arroz, velas, etc. –, mas que, ofertados, se transformam
em objetos imbuídos de alguma qualidade religiosa. As esmolas tornam-se
propriedades dos santos, interditas, em certo sentido, para o uso comum e
particularizado dos homens.

Eu dô esmola pra São Sebastião, pra Santo Reis e não abuso eles de
jeito nenhum. Porque a gente vê muita gente abusá e vê o castigo che-
gando. Eu já vi. Se deu tá dado e não fala mais naquilo. Se eu marcá
“aquele frango ali é bão”, se eu dei pra Santo Reis ou pra São Sebas-
tião é aquele ali. Não vô tirá ele, não. É bão ou é bonito, mas é aquele
que eu dei. Se eu tirá ele e pô outro mais pequeno, e deixo ele, aquele
leva e aquele ali dentro três, quatro dia, tá morto. Morre. Já aconte-
ceu isso pra mim. Eu já comprei frango de Santo e eu nunca mais
eu compro. Eu vô comprá, eu sei que ele morre. Não era meu, era
do santo. Já aconteceu isso comigo aqui, uai. Comprei o franguinho,
paguei, tratei, e quando ele pesô dois quilo e meio morreu na porta
da cozinha, como daqui ali. Eu revirava, não achava [o frango morto].
E quando ele tava bichado, perdido, daí eu achei ele. Falei: “Eu nunca
mais eu compro”. O Santo castiga a gente. (Pedro, entrevista concedi-
da ao autor em Silvianópolis, Minas Gerais, 10/12/2002)

Uma esmola se transforma na propriedade de uma divindade e não pode


ser trocada, vendida ou comprada para os usos cotidianos dos homens.7
Em nome dos santos, as coisas do dia a dia são elevadas à qualidade de ob-
jetos sagrados, partes significativas de uma coleção que serve de mediadora
cósmica e social (Pomian, 1987; Clifford, 1994). Ainda que também sejam

7
O dinheiro recolhido como esmola também é parcialmente destituído do seu valor de troca. Ele só
pode ser usado para cobrir os gastos festivos, sendo interdito seu uso para outros fins que não sejam
os de financiar as festas.

A Alma das Coisas 169


acumulados em nome de um casal de imperadores, os bens nunca são de
sua exclusiva propriedade. Os patrocinadores são apenas os gerenciadores
dos recursos ajuntados, como os representantes legítimos das divindades.
Acontecimentos terríveis podem pesar sobre aquele que toma para si o que
é uma legítima propriedade das entidades sagradas. Acidentes, doenças e
“atraso de vida” são alguns dos exemplos citados para reforçar e controlar o
gerenciamento dos bens materiais acumulados. O destino do que foi recolhi-
do para a festa do santo é a suprema publicização, é sua distribuição a todo
um conjunto de convidados.
Nos banquetes, contudo, não são as esmolas que são expostas. Naquele
contexto, elas se apresentam como os elementos materiais da própria folia: o
alimento nas panelas, os enfeites que embelezam os santuários, o barracão,
etc. O que foi recolhido como donativo está concretizado na própria festa,
concretamente produzida a partir do que foi oferecido aos imperadores. A
passagem da “esmola” à “festa” é, então, importante, ocorrendo quando os
donativos são transformados através do trabalho coordenado de homens e
mulheres (Pereira, 2004; 2011). Nesse sentido, além de prezar pela quanti-
dade de coisas recolhidas para a sua festa, os imperadores gostam de reafir-
mar o caráter coletivo dos empreendimentos. A conspicuidade dos banque-
tes não deve ser medida apenas pela quantidade de esmolas acumuladas,
mas principalmente pelo conjunto de pessoas que se envolvem no processo
de transformar as ofertas numa verdadeira festa de folia. Sem a mediação do
trabalho “não há como chegar à fartura” (Contins; Gonçalves, 2009, p. 32).
O reconhecimento das limitações iniciais de um imperador se transforma
numa necessidade tenaz de exibir os resultados positivos das festas como
evidência da capacidade diferenciada do seu organizador e produtor de unir
e juntar pessoas e coisas ao seu redor.

Então, essa folia minha, se não fosse por esse patrocínio, do povo dá
e essa fé, é num tinha mais folia nunca. Ninguém via nunca, que nóis
não aguentava fazer a festa. Aí, procê vê, o mistério que eu falo é isso
aí. Hoje, a festa dá o quê? Tinha mais de 40 pessoa na festa. Até 60. Aí
a noite todinha continuava essa festa, de 40 pessoa. Quando eu come-
cei, já tinha 80, 100, pessoa, e sempre tirava 2, 3 boi. E o imperador
rebocando. Hoje, eu tô tirando dez gado, oito gado, 500, 600 reais, e
vem 1000 pessoas e todo mundo come que sobra carne. Vai evoluin-
do toda a vida, né? Só hoje, nóis tem umas parte de 1000 pessoa na
festa nossa. Acho que tinha uns 40 carro de gasolina. A festa foi ali
na casa de Bastião. Eu contei uns 40 carro. Tinha ônibus. Nóis temo

170 Luzimar Paulo Pereira


aqui uma comissão de trabalhador, são dez pessoa pra trabalhar, pra
organizar, sem ganhar um centavo. Só na boa vontade. Trabalha na
maior alegria, umas cinco mulher e uns cinco homem. Vai buscar boi,
outro vai buscar o arroz, onde tiver, né? (Jonas, entrevista, Chapada
Gaúcha, 11/01/2005)

Não falta aos discursos dos imperadores até certa conotação religiosa, na
medida em que o sucesso do empreendimento é sempre mediado pelo mis-
tério que pauta a relação entre homens e santos. As festividades precisam ser
descritas como o resultado de uma devoção vivida com alegria e boa vontade.
A folia emergiria como uma forma de louvação das divindades pautadas por
risos, fartura de alimentos e uma disposição de espírito baseada na entrega,
na conciliação e na harmonia entre os homens; tudo isso entremeado por
momentos de contrição e reza. O discurso dos seus produtores reafirma a
alegria da reciprocidade, através da qual o gesto de auxílio mútuo deve se
pautar, sempre, pelo prazer, em si mesmo, de ajudar, de acordo com os pre-
ceitos religiosos mais fundamentais para quem vive e crê nos Santos Reis
Magos, Jesus Cristo e na Virgem Maria. Não seria outro o sentido mais pro-
fundo da graça (Pitt-Rivers, 1992).

A comida e a mistura

O alimento oferecido aos convidados durante os banquetes de folia é uma


versão potencializada do cardápio cotidiano dos almoços e jantares urucuia-
nos. Não se observa, ali, como em outras festas religiosas brasileiras ou por-
tuguesas, por exemplo, ingredientes especiais ofertados exclusivamente nos
momentos extraordinários de um ritual.8 Os alimentos servidos são sem-
pre os mesmos consumidos durante os repastos cotidianos (a exceção talvez
seja a carne de gado, obrigatória ao festejo e relativamente pouco consumida
no dia a dia). A rigor, os almoços ou jantares se constituem em torno de uma
oposição básica entre “comida” e “mistura”. O vocábulo “comida” evoca o
dueto primordial da culinária urucuiana, sua estrutura mínima (Douglas,
1999): o arroz e o feijão. Não há “almoço” e “janta” sem a presença desses
ingredientes fundamentais. Sempre consumidos como um par, os alimentos
formam, na verdade, uma única entidade: a “comida”. Além do arroz e do

8
Veja-se, por exemplo, a “sopa do divino” oferecida durante as festas do Divino Espírito Santo
produzidas por imigrantes açorianos no Brasil e nos Estados Unidos (Contins; Gonçalves, 2008).

A Alma das Coisas 171


feijão, o almoço e o jantar urucuianos também contam com a “mistura”.
Complementar à “comida”, o conceito de “mistura” se refere a uma espécie
de acompanhamento composto pelas carnes, que podem ser a carne de gado,
de frango, de porco e, às vezes, de peixe (numa posição periférica, teríamos
as verduras, os legumes e as raízes, notadamente a mandioca). A “mistura”
demarca a fartura de uma refeição. Se a “comida” é aquilo que lhe dá exis-
tência social e cultural, as carnes e, em menor valor, as verduras, os legumes
e as raízes definem a abundância do almoço ou do jantar. O sinal inequívoco
da pobreza ou da carestia, para os urucuianos, é a ausência de qualquer “mis-
tura” numa refeição.
Segundo DaMatta (1988), a “mistura” emerge como um dos elementos
centrais da culinária brasileira, sendo especialmente significativa no interior
das sociedades camponesas (Candido, 1964). Para o autor, sua presença im-
plica a ideia de alimentos consumidos simultaneamente, em vez de servidos
um depois do outro, como “pratos diferentes”. O arroz, o feijão, as carnes, as
verduras, os legumes e as raízes são consumidos em conjunto, nunca separa-
dos. A noção de “mistura” nessa formulação evocaria, então, uma oposição
à ideia de fragmentação. Nesse contexto, a farinha, em primeiro plano, e a
pimenta, em segundo, ganhariam destaque. Ambos surgem como elemen-
tos de mediação, como a argamassa e a tinta que unificam e dão colorido a
um mesmo constructo alimentar. Poderíamos dizer que a cozinha urucuiana
atualiza esse princípio da culinária relacional (DaMatta, 1988), valorizando
a mistura em detrimento da separação e da individualização. Na mesa dos
moradores de Urucuia, como em diversas outras regiões do Brasil, privilegia-
-se, então, não

[...] o prato separado (como na China e no Japão) nem a combinação


de pratos separados que são fortes e descontínuos (como na França e
na Inglaterra), mas, isto sim, a possibilidade de estabelecer, também
pela comida, gradações e hierarquias, permitindo escolhas entre uma
comida (ou prato) que é central e dada de uma vez por todas – a co-
mida principal – e seus coadjuvantes ou ingredientes periféricos, que
servem para juntar e misturar. (DaMatta, 1988, p. 63-64)

A culinária relacional dos urucuianos parece igualmente ter um papel


fundamental nos banquetes festivos das folias urucuianas. No entanto, o
conceito de mistura encontrado ali é um pouco diferente daquele expresso
na formulação de DaMatta. Mais do que em oposição à separação, a mistura
constitui uma oposição complementar à “comida” para demarcar o caráter

172 Luzimar Paulo Pereira


ritual dos banquetes. Além de servido em grande quantidade, o repasto ofe-
recido aos devotos é marcado pela diversidade de opções de misturas. As va-
riedades de carnes servidas, além da presença de verduras, legumes e raízes,
demarcam o caráter extraordinário dos empreendimentos festivos. De fato, o
arroz e o feijão não são apenas os elementos essenciais da refeição básica dos
almoços e jantares urucuianos. Eles também evocam o cotidiano, que muitas
vezes é confundido com o mais trivial.9 O destaque oferecido às misturas
no cardápio festivo, nesse sentido, indica a fartura dos banquetes. Já escre-
vi noutro lugar que os jantares de encerramento de uma festa de folia não
podem ocorrer sem a carne de gado, marca de situações extraordinárias (Pe-
reira, 2011). Devo acrescentar, contudo, que, além dela, as outras misturas
também contribuem para demarcar o tempo especial das festas, na medida
em que são servidas simultaneamente aos convidados. Comer numa folia é
comer ao mesmo tempo tudo o que se pode comer normalmente no dia a dia,
mas em tempos espaçados, aos poucos.
Na prática, a diversidade das “misturas” implica oferecer opções àquele
que come (que pode escolher esta ou aquela carne em detrimento de outra,
ou pode se servir simultaneamente das carnes de gado, frango, porco ou
peixe). Nesse sentido, o idioma simbólico estruturado pela oposição entre
comida e mistura também se articula ao estabelecimento de formas espe-
cíficas de relações sociais. A alimentação cotidiana, realizada em família e
sempre marcada por reafirmações de simplicidade (“é comida simplezinha,
viu?”), se opõe à refeição festiva, permeada pela diversidade e pela grande
quantidade de alimentos oferecidos. É como se as várias opções de mistura
(que agrega, relaciona) abrissem espaço para a diversidade de gostos diferen-
tes, associados a pessoas (“o gosto de cada um”), gêneros e grupos sociais
distintos. A rigor, para agradar os convidados, um banquete festivo precisar
levar em conta, por exemplo: o gosto daqueles que preferem a carne de fran-
go à carne de gado (geralmente é o caso de algumas mulheres); a opção de
outros que evitam comer carne de porco fora de casa; os problemas de saú-
de de um “velho”, impossibilitado de consumir comidas mais pesadas, etc.
Nesse sentido, o sucesso de uma refeição coletiva não é medido apenas pelo
oferecimento de uma grande quantidade de alimentos, mas também pela di-
versidade de misturas servidas numa única festa, capaz de agradar o universo
também diversificado de convidados.

9
DaMatta (1988) anota esse ponto na sua interpretação da expressão bem brasileira, também
observada em Urucuia, do “fazer o arroz com o feijão”, que significaria “fazer o básico”, o convencional.

A Alma das Coisas 173


Figura 6.3. A mesa durante os agradecimentos. Fotografia do autor

A oposição entre comida e mistura pode igualmente ser notada no caráter


altamente ritualizado dos banquetes, em especial nos momentos em que é
efetuada a seção de agradecimentos ocorrida após a refeição. Em contra-
posição à conspicuidade do que é oferecido, os “agradecimentos da janta”
são marcados por uma ostensiva frugalidade. Se no momento crucial das
refeições os pratos, as panelas, as tigelas, os potes e as garrafas estão cheios
e espalhados sobre a mesa, durante a “saudação” eles são substituídos pelo
prato vazio, pela garrafa com água, pelo pote de farinha e por uma vela acesa.
Nas exegeses nativas, o prato vazio, a farinha e a garrafa são signos do pão
e da água, os elementos mais simples e básicos da alimentação humana,
segundo os devotos.10 Trata-se, então, de considerarmos o “agradecimento”
como que voltado ao tema da escassez, valorizando a ideia de “alimento”
capaz de matar a fome. Vivida como eminentemente festiva e coletiva, com o
“paladar” se sobrepondo à mera alimentação do corpo, a refeição é, no entan-
to, agradecida como o “pão nosso de cada dia”. Ou, como dizem os versos do

10
A vela acesa, por sua vez, indica o canal de comunicação entre o alto e o baixo, apontando também
para os agentes rituais o foco de suas atividades (a presença da bandeira do santo acima da mesa
reforça esta interpretação) (Pereira, 2004; 2011).

174 Luzimar Paulo Pereira


“cantorio” ritual: “Dando água a quem tem sede/Dando pão a quem fome”.
Em certo sentido, poderíamos dizer que, numa verdadeira inversão simbóli-
ca, o caráter eminentemente coletivo do empreendimento é destacado tendo
em vista a frugalidade dos elementos observados sobre a mesa.
Um outro aspecto do ritual deve ser levado em consideração. O que é
exposto nos agradecimentos são alimentos marcados pelo poder de media-
ção simbólica. A farinha, a pimenta e a água são os ingredientes que ligam
os elementos do prato. São eles que relacionam o arroz e o feijão (cozidos),
e ambos às misturas (invariavelmente elas também são cozidas). O sentido
dos ingredientes nos agradecimentos, além de apontar para o mito da fome
original (Sahlins, 2007), expresso nas ideias de pão e água, também parece
codificar, como verdadeiros símbolos dominantes, o valor da comida relacio-
nal. São as relações entre os homens, mediadas pelas figuras sagradas, que
importam e são destacadas. Não por acaso, é diante da água, da farinha e da
pimenta que se agradece aos ofertantes da comida (santos e imperadores) e
seus auxiliares (cozinheiras e serventes), responsáveis pela refeição. O senti-
do dos rituais parece agrupar conjuntos de ideias por meio das quais a escas-
sez surge não apenas como a fome pautada pela falta das “necessidades bási-
cas”, mas como a ausência das relações de complementaridade social e cos-
mológica (Contins; Gonçalves, 2009). A água, a farinha e a pimenta evocam
a fome, como as formas mais básicas de combatê-la, mas simultaneamente
lembram que somente através das relações entre sujeitos igualados por sua
condição humana e submetidos ao poder divino pode emergir a fartura.

A universalidade e a diferença

A fartura implica também a distribuição indiscriminada de alimento para


o “povo da festa” que comparece a um banquete coletivo. Não basta, pois,
que a comida seja muita ou variada; ela precisa ser também bem distribuída.
Trata-se, então, de avaliar sua universalidade, na medida em que o aspecto
de renascimento e renovação do banquete festivo só se completa quando a
conspicuidade e a diversidade de “misturas” se associam à livre distribui-
ção (Bakhtin, 1999). Para alcançar seu papel transformador, a refeição deve
obrigatoriamente atender e reunir todos os convidados. Não há nada mais
preocupante para um imperador urucuiano do que o risco de ver sua festa
fracassar por não conseguir satisfazer as vontades dos seus participantes.
Por isso a insistência com que eles chamam os convidados para retornar fre-

A Alma das Coisas 175


quentemente à mesa, solicitando ou quase ordenando que repitam mais uma
vez o prato que acabaram de comer. Como regra, nem toda coleção é feita
para ser exclusivamente guardada e exposta ao olhar. Algumas precisam ser
destruídas ou distribuídas. Um imperador de Urucuia explicava o significado
da distribuição:

Não é todos os imperador que faz isso, não. Tem uns aí que faz a janta,
mas só serve na mesa dos folião. É maneira deles economizar na saída,
né? Não gastar os recursos da festa, né? Mas isso não tá certo, não. Meu
sistema aqui é diferente. Os folião come na mesa, mas quem quiser pode
servi também. Depois que eles levanta tá aberto pra todo mundo. Pode
servi à vontade, porque, graças a Deus e os Senhor Santo Reis, nunca
faltou nada pra ninguém. A gente tá fazendo uma coisa de devoção, né?
A gente recebeu um milagre, nóis tamo cumprindo um voto. Não pode
ficar guardando. É pouquinho que a gente dá, mas sempre sobra, graças
a Deus. (João Bertoldo, entrevista, Urucuia, Famaliá11)

A “mesa” desempenha um papel importante nesse processo. Centro das


atenções, ela delimita o espaço do banquete, atraindo para o seu entorno toda
uma coletividade. A mesa instaura a sociabilidade festiva, transformando-se
num local de brincadeiras, encontros e conversações. Na medida mesma em
que reforça o caráter coletivo e ritual das refeições, ela estabelece a oposição
ao mero gesto individualizado e cotidiano de “comer” (Gonçalves, 2004).
A mesa ajudaria a desfazer algumas diferenças e cancelar as mais drásticas
oposições. Os pratos e copos sobre ela parecem superar o individualismo
simbólico, propondo um compartilhamento formal que não admitiria ne-
nhum tipo de individualidade; totalmente uniformes, eles são, por princípio,
igualmente distribuídos a todos os convidados. Ao lado da comida em co-
mum, tais elementos também estão por detrás do gesto coletivo e certamen-
te sagrado de alimentar-se. Sua presença implica o reconhecimento de que
todos os que estão sentados a sua volta são partes de um mesmo todo, que se
transforma com as refeições festivas. Ali, os objetos colecionados em nome
dos deuses e dos imperadores são consumidos, ingeridos para completar seu
papel mediador até alcançar o ponto mais íntimo do indivíduo, no seu corpo;
onde, tal como diriam Hubert e Mauss, em outro contexto, estaria havendo

11
As folias urucuianas foram objeto de registro fonográfico e visual através da atuação da ONG
paulistana Cachuêra!. O trabalho de pesquisa ocorreu entre os meses de janeiro e fevereiro de 1996,
tendo como resultado, entre outras coisas, a produção de um valioso conjunto de entrevistas. O material
me foi muito útil, sendo gentilmente cedido pela ONG para a constituição da minha pesquisa etnográfica.

176 Luzimar Paulo Pereira


uma “comunhão alimentar que leva ao mais alto grau de intimidade” com o
sagrado, com Deus e com a sociedade (1999, p. 183).
Materializando uma espécie de communitas festiva (Turner, 1974), a mesa,
no entanto, também implica algumas hierarquizações. O acesso a esse espa-
ço sagrado parece parcialmente controlado durante as folias. A mesa institui
as regras da redistribuição e atualiza as relações hierarquizadas que os in-
divíduos mantêm entre si durante as festividades. Ela manifesta concreta-
mente certas distinções, criando gradações entre o mundo dos anfitriões (os
imperadores) e o de todos os seus convidados (os foliões e os não foliões).
Sua presença não produz apenas a comunhão entre iguais (Van Gennep,
1978), mas sempre sujeitos mais iguais do que os outros. A “estrutura” e a
“antiestrutura”, nesses termos, parecem se concretizar nas práticas das me-
sas (Turner, 1974). No mundo das folias urucuianas, essa correlação entre
hierarquia e igualdade pode ser observada pelos modos como as mesas são
apresentadas ao longo dos festejos. Há, a rigor, pelo menos quatro maneiras
distintas de se distribuir o alimento. Essas quatro possibilidades conformam
uma espécie de sistema de mesas urucuiano que articula hierarquias e dis-
tinções de todo gênero. Listo, a seguir, esses modelos:

a) As festas sem mesas. Em ocasiões cotidianas os urucuianos costu-


mam se servir diretamente no fogão (símbolo da intimidade do gru-
po doméstico). Há, claro, exceções, em que isso se repete mesmo
em situações festivas. Em todo caso, esses são exemplos que confir-
mam as regras de etiqueta nos momentos da alimentação coletiva.
Numa ocasião, eu acompanhava uma festa dedicada a Nossa Senhora
da Conceição. Durante o almoço, não havia sido montada nenhuma
mesa para os convidados. A dona da casa fazia questão de se descul-
par, argumentando que seus hóspedes não precisavam “fazer cerimô-
nia” na hora de comer, porque, na sua festa, o “pessoal tem que se
sentir à vontade”. Ela contava, inclusive, que um visitante de Montes
Claros não entendia muito bem aquilo que ela chamava de “sistema
urucuiano”. Ele esperava a comida à mesa e não conseguia pegá-la
no fogão. Para os urucuianos, dizia ela, “pegar comida no fogão” é
uma forma de ser “simples”, de um lado, e ser “de casa”, de outro. O
fogão, pois, adquire função simbólica importante. Lugar onde a natu-
reza vira efetivamente cultura (Lévi-Strauss, 2006), ele é ao mesmo
tempo tabu e communitas familiar (Turner, 1974). Aproximar-se do fo-
gão é se aproximar da intimidade de uma casa (uma das formas mais
convencionalizadas de se narrar proximidades é dizer que o visitante

A Alma das Coisas 177


“comia junto com nós sentado no fogão de lenha”). Não por acaso,
ele está localizado no espaço mais ao fundo da residência. A mesa,
em oposição ao fogão, é, nesse sentido, ao mesmo tempo hierarquia
e classificação. O cerimonial associado a ela implica a regulação e a
separação do mundo exterior.

b) A mesa dos foliões. Costumeiramente, as festas de folia contam sem-


pre com uma mesa especialmente montada para os foliões. Para mui-
tos, isso é uma obrigação e uma forma de retribuir à altura o serviço
prestado por esses personagens para todo o andamento dos empre-
endimentos. Como vimos, o acesso à mesa dos foliões é regulado. Os
cantadores e tocadores se servem primeiro (ao lado de seus parentes
próximos e alguns amigos). Muitas vezes, os demais convidados só
podem participar do jantar depois que os foliões terminaram suas refei-
ções. O controle do acesso é exercido pelos imperadores, pelos foliões e
pelos próprios convidados. Numa festa que acompanhava em Urucuia,
fui convidado a me sentar à mesa dos foliões pelo imperador. Sem saber
que eu chegava a convite do patrocinador dos festejos, um dos foliões
falou que eu não deveria estar ali, mas, sim, do “lado de fora”, junto aos
demais convidados que esperavam sua hora de comer. Antes de ser avi-
sado por outros dos seus companheiros de que eu havia sido inserido
pelo próprio imperador, ele arrematou: “O povo só come depois dos fo-
lião.” Os próprios convidados podem se sentir intimidados a se sentar
com os foliões. Numa ocasião, respondendo aos convites insistentes
de um folião para se servir, uma mulher dizia: “Mas eu só como depois
dos foliões.” O controle do acesso às mesas pode ser flexibilizado pela
ação algo personalista de alguns dos personagens mais proeminentes
da festa. Os convites expressos por eles são, então, importantes vias de
acesso às mesas, instaurando um sentido de intimidade onde havia for-
malidade e distinção. O exercício dessas prerrogativas pode estabelecer
certas tensões. Numa festa, vi um capitão urucuiano discutir com a or-
ganizadora da festa porque esta havia afastado um convidado da mesa,
argumentando que ele, primeiro, deveria esperar os foliões terminarem
de se servir, arrematando: “Se sobrasse, comia o resto.” Ao lado da dis-
tinção oferecida aos foliões, também pode haver significativas disputas
pelo controle da distribuição dos alimentos.

c) A mesa dos foliões e o barracão. Em festas nas quais os imperadores


esperam a chegada de muitos convidados (como o caso do festejo da
Fazenda Alegre), eles podem agregar à mesa dos foliões um barracão,

178 Luzimar Paulo Pereira


construído no fundo do terreiro, onde alguns serventes servem os
convidados diretamente do balcão. Embora demonstre algum respei-
to em relação aos convidados não foliões (eles não precisam esperar
para comer), a separação entre a mesa e o barracão pressupõe tam-
bém maior distinção entre os foliões e demais convidados: nos espa-
ços onde se come (os foliões ficam mais perto da casa, os demais con-
vidados nos fundos), nas formas de servir (na mesa os hóspedes se
servem, enquanto no barracão eles são servidos) e, às vezes, no pró-
prio cardápio, mais variado no caso das mesas e menos no barracão.

d) A mesa dos foliões e a mesa do povo. A montagem de duas mesas é o


exemplo máximo da boa distribuição da comida. A primeira, a dos fo-
liões, fica geralmente localizada ao lado da casa, numa varanda contí-
gua à cozinha da residência. A segunda mesa, conhecida como a mesa
do povo, por sua vez, é montada no terreiro em frente à moradia, sob
os barracões especialmente construídos para as ocasiões. A comida
servida nos dois ambientes é, de modo geral, a mesma, e os procedi-
mentos na hora de se servir também. Por outro lado, a proximidade e
a distância da cozinha indicam uma evidente hierarquização e distin-
ção entre aqueles mais próximos e que precisam ser louvados (entre
os quais são incluídos os foliões) e os mais distantes, meros convi-
dados. Num sentido mais amplo, ambas as mesas configuram dois
espaços distintos de sociabilidade festiva. Apenas os imperadores e
alguns serventes parecem circular livremente entre os dois locais.

As formas de distribuição de alimentos compõem um sistema; cada uma


delas só faz sentido se articulada com as outras. Num polo extremo encon-
tramos, então, a ausência de mesa, que é ao mesmo tempo a expressão de
maior intimidade e de maior simplicidade (“a festa é pobrezinha, mas nin-
guém faz cerimônia”). As etiquetas se tornam menos rígidas, os elementos
que separam os convidados são mínimos e todos se servem diretamente do
fogão. A intimidade, no entanto, implicaria uma perda do prestígio festivo:
a festa “sem mesas” será considerada “mais pobre”. Ao seu lado, numa zona
intermediária, encontramos folias nas quais se observa a solidão da mesa dos
foliões, onde há alguma separação e hierarquia. O que está em jogo nesse
caso não é a quantidade do alimento servido, mas as regras que estabelecem
a distinção: nesse local só se alimentam os cantadores e alguns convidados
importantes. É de se notar, também, que a mesa dos foliões institui certos
momentos em que as regras podem ser parcialmente quebradas por relações

A Alma das Coisas 179


de amizade, vizinhança e parentesco que embaralham e, às vezes, tensionam
o cerimonial (todos os presentes podem, de alguma maneira, convidar al-
guém de fora para se servir à mesa).
Também localizada numa zona intermediária, vemos as festas nas quais se
constata a existência de uma mesa e de um barracão. Aqui a intimidade começa
a dar lugar à força dos festejos, quando se entende que a festa pode ser “grande
demais” e atrair muita gente para sua realização. A distinção aumenta quando
foliões e não foliões são separados. Mas, paradoxalmente, o uso da mesa e do
barracão também tenta estabelecer certa equivalência (as pessoas podem espe-
rar menos tempo para comer). Por último, no polo oposto, há as festividades
que instituem duas mesas paralelas, a dos foliões e a do “povo”. Sua presença
caracteriza festas extremamente fortes, ao mesmo tempo quase totalmente pú-
blicas, quando pessoas de fora, desconhecidas e distantes chegam para festejar.
A distinção se radicaliza por meio da replicação dos espaços (as duas mesas são
praticamente idênticas em tudo), que, por outro lado, também separam hierar-
quicamente os foliões e os não foliões, em função de sua proximidade com os
imperadores (a mesa dos foliões fica mais próxima da casa).12

Figura 6.4. A mesa do povo. Fotografia do autor

12
É preciso apresentar um caso etnográfico. Estava em São Francisco, junto com outro pesquisador
(Wagner Chaves), a serviço do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). Acompanhávamos
a realização de uma Folia de São José. Durante o jantar foi oferecido após o giro de um único dia, não
havia mesas e sequer pratos para os convidados. Todos se alimentavam num mesmo tacho de comida.
A suprema intimidade, contudo, também era explicada em termos de excessiva simplicidade. Em ambos
os aspectos, os moradores supunham que eu e meu colega pesquisador não compartilhávamos daquele
momento. Fomos os únicos convidados a quem foram oferecidos pratos para o alimento festivo.

180 Luzimar Paulo Pereira


Um diagrama simplificado desse sistema de mesas pode ser entendido a
partir de dois eixos que estabelecem correlações entre duas noções centrais:
mais ou menos intimidade e mais ou menos força (que, em termos nativos,
expressa riqueza, poder político, social e simbólico). O sistema se completa
e se torna ainda mais complexo à medida que inserimos outros elementos,
tais como a variedade dos pratos, a diversidade da comida, etc.

Folia sem mesa A mesa dos foliões A mesa dos foliões e Duas mesas
o barracão

Total intimidade e Bastante intimidade e Pouca intimidade e Pouquíssima


pouquíssima força alguma força bastante força intimidade e
(simplicidade) força máxima

O sistema das mesas nas folias urucuianas.



Em certo sentido, as configurações de mesas urucuianas também expres-
sam as várias possibilidades de controle e classificação, por meio de uma
série que vai da maior pessoalidade ao quase total anonimato. Segundo as
leis básicas da hospitalidade (Pitt-Rivers, 1973), nas recepções cabe sempre
ao anfitrião ordenar o estrangeiro que chega para visitar. Os procedimentos
visam evitar conflitos latentes, decorrentes do perigo associado à entrada
daqueles que vêm “de fora”. A refeição, em particular, desempenha um papel
central: ao convidado deve ser garantido o lugar de precedência, e ele deve
comer em primeiro lugar. A precedência, porém, atualiza uma relação de po-
der: é o anfitrião quem define o local onde o convidado deve ficar. O repasto
festivo não é apenas uma forma de comunhão, mas também uma maneira
de ordenação do visitante, daquele que vem de fora para adentrar um espaço
doméstico e familiar.
O controle tem como contrapartida a responsabilidade de quem recebe
os convidados. O sistema de mesas não se institui numa via de mão única.
O controle através dos espaços de alimentação evoca o entendimento de que
a festa precisa agradar a todos, senão indiscriminadamente, pelo menos de
acordo com suas posições dentro do sistema classificatório. Aqui, as ideias
de força e fraqueza ganham relevo. Um convidado não folião, desconhecido
do imperador, não vai achar “ruim”, em princípio, ter de comer a comida do
barracão. O que ele vai avaliar é a refeição servida de acordo as convenções
básicas destinadas ao seu papel: ter pouca fila, com comida farta, etc. Há que
se servir bem, mas sempre em consonância com a posição dos convidados
dentro do sistema classificatório compartilhado e de certa forma aceito por

A Alma das Coisas 181


todos. Nesse sentido, o sistema de mesas também põe em jogo certos valores
relativos ao prestígio dos imperadores e às avaliações da qualidade de sua
festa. Se a ausência de mesas, num polo, implica bastante intimidade, mas
pouca força, a existência de duas mesas evoca, no polo oposto, muita força
e pouca intimidade. O segredo reside no balanceamento e na correta produ-
ção de um meio-termo que integre a todos, ao mesmo tempo que produza
prestígios e reputações. Saber avaliar de antemão o tamanho da festa pode
ser crucial para a constituição das formas de controle e distribuição dos ali-
mentos nela servidos.

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184 Luzimar Paulo Pereira


7.

UMA BIOGRAFIA DO KÀJRE, A MACHADINHA KRAHÔ1

Ana Gabriela Morim de Lima

As músicas do krahô não foram inventadas, que nem as do cupe.


Esse mito do kàjre não é uma lenda, ele é história.
E a prova disso são as próprias músicas do kàjre.
(Renato Yahé)2

O machado cantor

O kàjre (kaj = machado; re = dimin. masculino na língua Krahô) é uma


machadinha de pedra polida em formato semilunar, presa a um cabo cilin-
drico ornamentado com longos pendentes de algodão trançado (chamado ha-
crer). Alguns Krahô contam que os antigos costumavam encontrar essas ma-
chadinhas de pedra nas roças e cachoeiras, confeccionadas por outros povos,
provavelmente seus antepassados. Entretanto, na maioria das vezes em que
perguntamos sobre as origens do kàjre não é essa a explicação habitual dada
pelos Krahô. Em resposta a essa indagação, eles evocam um extenso corpus
de mitos que narram os sucessivos “roubos” e “conquistas” da machadinha –
e que, como veremos mais à frente, se misturam com acontecimentos recen-
tes da contemporaneidade Krahô. Evocam também os cantos do kàjre, que
foram “pegos” de seus antigos donos, seres desconhecidos, certos animais e
plantas que nos tempos míticos possuíam e cantavam com ele.

1
Gostaria de agradecer a Martinho Penõ, Martins Zezinho Ikrehohtàt, Jorge Henrique Melo, Julia
Franceschini, Julio Cesar Melatti, Júlio César Borges, Fernando de Niemeyer e Fernando Schiavini pelas
contribuições diretas e indiretas a este artigo, que constitui apenas mais uma versão da história do Kàjre.
Neste sentido, ele não tem nada de “original”, na medida em que incorpora muito das ideias e palavras
desses autores. E agradecer também aos editores do livro, pelo cuidado na correção deste artigo.
2
Renato Yahé foi o responsável pelas correções ortográficas das palavras da língua krahô.

A Alma das Coisas 185


O kàjre media uma série de relações com a alteridade, ao mesmo tempo
que constitui o que há de mais interno e unicamente Krahô. Está presente
em momentos de festa e alegria, sendo usado pelos cantores para “animar” o
povo, motivando atividades como caçadas, trabalho na roça e especialmente o
amjikĩn, a “festa” ou “ritual”, expressão que significa literalmente “alegrar-se”.
A machadinha representa “a união das duas metades”, dizem os Krahô, se
referindo aos partidos Wacme jê (verão) e Catàm jê (inverno) que governam a al-
deia, cada qual em sua respectiva estação. O cantor canta junto com o kàjre nos
rituais que marcam a passagem da estação chuvosa para a seca, e vice-versa.
Embora à primeira vista não seja um instrumento musical propriamente
dito, o kàjre está ligado a um conjunto de cantos específicos. Ele forma um
“grupo” de objetos musicais, junto com aqueles chamados os “companhei-
ros” do kàjre: o cuhtoj (maraca, principal instrumento percurssivo usado pelo
cantor), o xy (cinto usado pelo corredor e pelo cantor, ornamentado com
pequenas cabaças que produzem um som de chocalho), o kô po (bastão de
madeira segurado pelo cantor, também ligado à palavra, é uma antiga arma
de guerra, ornamentada com sementes, miçangas ou pequenas cabaças que
produzem som de chocalho), o pàtwy (buzina tocada pelos homens), o pyrij
jakà (apito de madeira em forma fálica tocado pelos jovens cantores), o crat
re (pequena cabaça usada pelas jovens cantoras), o hahĩ (faixa de algodão,
similar a uma tipoia de carregar criança, usado pela jovem considerada a me-
lhor cantora da aldeia), e o cuhkõn re (apito de cabaça tocado pelos homens).
Para os Krahô, o kàjre tem força própria: ele conduz o cantor, e não o
contrário (Schiavini, 2006, p. 156). Ele começa a ganhar vida ao ser todo
pintado de urucum pelo cantor e segurado pelo cabo com o braço levantado
ou cotovelo dobrado, com os pendentes de algodão caindo ao longo do corpo.
Com esses movimentos o cantor aciona o objeto, corporificando uma série
de cantos. Apenas homens cantam com o kàjre (embora numa das versões do
mito eles sejam ensinados a uma mulher). E embora qualquer pessoa possa
ter acesso aos cantos do kàjre, não é qualquer um que sabe cantá-los, apenas
alguns poucos especialistas rituais considerados grandes cantores. Martins
Zezinho Ikrehohàt, por exemplo, cantor do kàjre na aldeia Pedra Branca, cos-
tuma se referir ao longo aprendizado dos cantos e histórias da machadinha
como “fazer estudo com o kàjre, aprender com ele”.3

3
Embora a história da machadinha seja bastante conhecida, ainda não foi dada a devida atenção aos
seus cantos, permanecendo a necessidade de um estudo mais aprofundado dessas artes verbais e
musicais, assim como de suas formas de transmissão; o que abriria novas portas para a compreensão
do objeto, mas depende de pesquisas de campo futuras.

186 Ana Gabriela Morim de Lima


Figuras 7.1, 7.2 e 7.3. Martins Zezinho Ikrehothàt cantando com o kàjre. Fotografias de Ana
Gabriela Morim de Lima

Existem diferentes versões míticas que narram as conquistas e recon-


quistas do kàjre nas viagens do herói Hartãt ao extremo do mundo. Como
coloca Lévi-Strauss (1955; 1958), o mito é o conjunto de todas as suas múl-
tiplas versões que devem ser lidas sobrepostas umas às outras. A diferença
é inerente ao mito, não existe uma versão autêntica ou mais verdadeira: um
mito é sempre a versão de uma versão, e não do seu original. O mito não pos-
sui início, meio ou fim, começa em algum lugar e termina quase que à von-
tade do narrador. Apresento a seguir duas traduções sintéticas de diferentes
versões, buscando extrair alguns princípios estruturais nelas presentes.
A versão narrada por Yavu-Boaventura a Harald Schultz (1950, p. 118,
119) é resumida da seguinte forma pelo último:

Havia uma tribo valente que possuía um machado de pedra, koieré.


Essa tribo estava em guerra com os Królkamekrá. Numa das lutas o
índio que usava o machado como terrível arma de guerra foi morto
por uma flecha arremessada de um esconderijo. O índio Królkamekrá
era casado; apaixonando-se por outra mulher, abandonou a primeira.
Ao mudar-se para a casa de sua nova esposa, esqueceu-se do macha-
do, que ficou dependurado na parede de palha, em cima do seu catre
de varas. À noite o machado começou a falar: “Intxê (mãe), vamos
passear no pátio.” A mulher levou o machado consigo ao pátio. O
machado começou a cantar, ensinando-lhe muitas canções. Um ra-
paz estava acordado e ouviu o canto estranho, altas horas da noite.

A Alma das Coisas 187


Levantou-se e viu que era o machado que ensinava o canto à mulher.
O irmão do primeiro dono do koieré não se conformava com a morte
dele e a perda do objeto precioso e resolveu enviar um mensageiro
para saber do seu paradeiro. Chegando à aldeia o emissário foi levado
à presença do chefe, que mandou chamar o índio que matara o dono
do machado. O guerreiro respondeu altivo que só entregaria o koiré
àquele que o vencesse na corrida. O vencedor poderia matá-lo e levar
o machado. De volta à aldeia, o enviado comunica o que ouvira. Re-
voltados, os índios resolvem retomar o machado pela guerra. O chefe
manda que os índios confeccionem muitas flechas. De madrugada
partem oito índios e se escondem. Outros seguem. Deixam entrar no
seu esconderijo os índios com o machado. A luta é intensa. O homem
em cujo poder está o machado foge, sendo perseguido pelo melhor
corredor, que o alcança em breve. O perseguido tropeça, metendo o
pé num buraco de tatu, e cai. Logo é rodeado e morto. Tomam o koie-
ré, entregando-o ao irmão do primeiro dono. (Schultz, 1950)

Já a versão narrada por Craté e registrada por Júlio César Borges e Fer-
nando de Niemeyer em 2010 difere da de Yavu-Boaventura, trazendo outros
elementos para a reflexão.4 A seguir a versão trabalhada pelos autores e
reeditada por mim, de maneira a destacar as passagens que nos interessam
neste ensaio:

Hartãt vivia distante em sua aldeia. Naquele tempo, os mehĩ mais no-
vos iam pra caçada mas voltavam sem nada. Não chegavam com car-
ne. Onde Hartãt vivia tinha carne.

[...] Um dos rapazes que havia saído para uma caçada no mato se des-
garrou dos mentuajê [jovens caçadores que já passaram pelos prin-
cipais rituais de iniciação masculina] e lá pelas tantas, longe, ouviu
uma cantiga de Hartãt... ao longe. Ele pensou: “será que é verdade?”
Mas não fez nada, ouviu tudo de longe; ele escutava, mas não respon-
dia. Dizem que ele era wayacá. Um dia resolveu procurar aquele que
cantava, depois de tanto sua aldeia acusá-lo de feitiçaria e de mentiro-
so. Foi até onde estava Hartãt e falou com ele. Hartãt escutou e depois
reuniu todo seu povo. Ele falou: “o wayacá quer saber dos lugares que
eu canto, que eu conheço”. Logo, um grande grupo de mentuajê se
prontificou a ir. Saíram a caminhar pelo Cerrado rumo ao pé do céu.

4
Esta versão foi narrada por Craté da aldeia Serra Grande durante a VIII Feira Krahô de Sementes
Tradicionais, em setembro de 2010 (Niemeyer, 2011; Borges; Niemeyer, 2012).

188 Ana Gabriela Morim de Lima


Andaram por um longo caminho entremeado por paradas de Hartãt
para ensinar seus cantos e mostrar os lugares, os bichos e as plantas
que conhecia.

[...] O caminho de ida também reservou muitos perigos. Árvores que


expelem fogo e que matam, pântanos alagadiços, fortes ventanias e
enormes jacarés. Mas o wayacá, se transformando em animal, conse-
guia ver o modo de superá-los e foi seguindo Hartãt e seus mentuajê.
Hartãt então disse que já estavam chegando ao Khoikwakhrat, o pé do
céu. Andaram e arrancharam num lugar. De tarde, jatobá cantou sua
cantiga. Os mentuajê acharam que era gente e começaram a comentar
um com o outro. Hartãt lhes advertiu: “Calma aí. Silêncio! Agora nós
entramos na terra em que todos os bichos e até os paus cantam. Não é
mehĩ, não. É o jatobá que está lá cantando.” Alguns ainda comentavam
baixinho e Hartãt lhes advertiu novamente: “Silêncio! Quando bicho
ou pau canta assim, vocês não respondam; fica só ouvindo direito pra
saber cantar quando a gente voltar. Vocês têm que escutar o que o
bicho tá cantando.” Escutaram, pegaram a cantiga do jatobá e foram
caminhando. [Da mesma forma procederam com o mambira, uma
arara-preta e outros animais.]

[...] Hartãt: “Agora nós vamos lá pra ponta onde tem o kàjre – o ma-
chado-cantor. Arrancharam perto de onde ficava o kàjre. Anoiteceu.
Kàjre começou a cantar e cantou até de manhã. Cantava cantiga muito
bonita. “Agora vocês vão ficar. Vou lá saber do dono do Kàjre. Se ele
me der um a gente leva; se não arrumar, também não tem problema.
Vocês escutaram. Kàjre é muito respeitado. Ele canta desse jeito.” O
povo ficou esperando. Ele chegou lá e o dono do kàjre estava em pé.
Dizem os antigos que então kàjre falou: “Por onde você andou sumi-
do? Mas você sempre lembrou de mim, e então cá você chegou. Aqui
eu te esperava.” E Hartãt: “eu cheguei aqui, onde está você, que é pra
você me arrumar um Kàjre”. O dono do Kàjre ficou a pensar e depois
falou: “posso te arrumar, mas não vou te dar agora não; só amanhã de
manhã que vou te dar, ainda vou cantar até de manhã. Mas quando
você voltar pra sua aldeia, o kàjre não pode ficar só guardado, depen-
durado”. Aí, anoiteceu e ele começou a cantar de novo. Aí, ele foi.
“Tá bom. Você quer, então vou te dar um.” Jogou um bem no peito
dele e ele pegou. “Olha, é o seguinte: quem for usar, seja uma mulher,
não pode por a mão em gordura, não pode por a mão em mel, nem
em semeação ou caça – não pode ter a mão breada. Tem que ser uma
pessoa da mão asseada e que não seja ciumenta. Tem que saber ouvir,

A Alma das Coisas 189


não pode maldizer nem brigar. Tem que dormir pouco.” Hartãt ouviu,
voltou e mostrou o machado para os mentuajê, que se admiraram: “é
bonito, muito bonito”.

[...] Pegaram os cantos do kàjre e aí, viajaram, viajaram, viajaram e


anoiteceu.

[...] Viajaram e, após muita privação no caminho de volta, chegaram à


aldeia com o kàjre e seus cantos. (Borges; Niemeyer, 2012)

Enquanto a primeira versão mostra a machadinha como disputa de guer-


ra entre aldeias inimigas (uma corrida de toras com a machadinha), a se-
gunda versão conta que o herói Hartãt a conquistou após uma longa viagem
ao extremo do mundo, o “pé do céu”. Durante a viagem, os guerreiros que
acompanhavam Hartãt se encantaram com os cantos que saíam do próprio
kàjre, cujo guardião era Xàj, o pica-pau (Schiavini, 2006, p. 155). Em ambas
as versões o kàjre é mais do que um simples objeto, ele possui perspectiva
de sujeito, como nos mostra claramente a segunda versão de Crate: “Agora
nós vamos lá pra ponta onde tem o kàjre – o machado-cantor. Arrancharam
perto de onde ficava o kàjre. Anoiteceu. Kàjre começou a cantar e cantou até
de manhã. Cantava cantiga muito bonita.”
São esses cantos que são apropriados através do kàjre, e neles parece re-
sidir a importância central da posse sobre a machadinha: aprender os cantos
para animar o povo, fazer a festa. Por isso, como dizem os Krahô, ele não pode
ficar apenas guardado ou pendurado no telhado, deve estar sempre em movi-
mento, nunca parado. Enquanto a primeira versão ressalta que é o kàjre, ele
mesmo, quem ensina os cantos, na segunda quem o faz é o seu dono.
A noção do objeto como “pessoa” e, mais do que isso, como “agente
ritual”, também fica clara nas prescrições cerimoniais seguidas pelo cantor
acerca da machadinha. Antes de começar a cantar, o cantor pinta o kàjre com
urucum, da mesma forma que sua parente pintou seu próprio corpo, que
ganha cor avermelhada e vibrante, signo de beleza para os Krahô. Para cantar
com o kàjre, conta o mito, o cantor não pode pegar em gordura, em mel, em
semeação ou caça, deve ser asseado e não pode ser ciumento, deve saber
ouvir, dormir pouco e não pode brigar. Essa ações descritas no mito reme-
tem a algumas práticas de resguardo que uma pessoa deve seguir no caso de
doença, parto, luto (entre outras situações) de parentes próximos, aqueles
cujos corpos estão intimamente ligados pela troca de fluídos, substâncias,
cuidados. Podemos dizer que o cantor e a machadinha vão se “aparentando”,
pela continuidade criada entre seus corpos e vozes. Na primeira versão de

190 Ana Gabriela Morim de Lima


Yavu-Boaventura, o machado trata a mulher que o possui como “mãe”: “À
noite o machado começou a falar: ‘Intxê (mãe), vamos passear no pátio.’ A
mulher levou o machado consigo ao pátio. O machado começou a cantar,
ensinando-lhe muitas canções.”
A partir da leitura dessas versões, é possível destacar alguns princípios
gerais presentes na mitologia Jê de maneira mais ampla, que nos informam
sobre as concepções Krahô acerca da “propriedade” dos bens materiais e
imateriais, suas noções próprias de “invenção, “produção” e “circulação” do
conhecimento.
Em primeiro lugar, a experiência da viagem, a ideia do deslocamento por
caminhos na maioria das vezes tortuosos. Cabe lembrar que o processo de
sedentarização dos Krahô é recente. Antigamente eles eram povos seminô-
mades, que organizavam longas expedições de caça e coleta, viviam tempos
em andanças dentro do mato. As viagens às cidades também constituem
desde os primeiros contatos a maneira através da qual os Krahô têm acesso
às mercadorias dos brancos. Grande parte da mitologia krahô (e amazônica
de forma geral) conta sobre a origem de certos bens, práticas e saberes, res-
saltando que a apropriação é resultado desses deslocamentos por espaços-
-tempos distintos, onde moram outros povos, humanos e não humanos. É
preciso, portanto, percorrer esses caminhos desconhecidos que levam para
fora da aldeia, pelo meio da floresta, adentrando outros universos como o
mundo das águas, do céu, de povos inimigos e dos brancos.
Durante as viagens os sujeitos são passíveis de sofrer uma série de trans-
formações e metamorfoses, tão desejadas quanto perigosas, o que também
está diretamente ligado às formas xamânicas de conhecer, validar e circular
o conhecimento: o ver e o escutar (cf. Borges; Niemeyer, 2012). A figura do
“emissário” ou “mensageiro”, que diziam os Krahô antigos ser um wayaká
(“curador”), é quase uma constante nos mitos que falam sobre o “roubo
original”: Hartãt iniciou sua expedição a pedido de um wayaká; assim como
ocorre no mito de origem da Festa da Batata, em que um mensageiro é man-
dado até a roça e vê todas as plantas virando gente e fazendo a Festa da
Batata; ou ainda Tyrkre, que subiu aos céus e pegou os conhecimentos xa-
mânicos junto ao Grande Gavião e seus companheiros Urubus, entre muitos
outros exemplos. Os wajaká têm o poder de se comunicar com os espíritos
das plantas e animais em sua forma “humana”, rompendo as barreiras cor-
porais através de suas capacidades transformativas. Eles elaboram um saber
sobre esse outro, se apropriando das suas forças criativas, transformando
simultaneamente o outro e a si mesmos (Viveiros de Castro, 2002 [1996]).

A Alma das Coisas 191


O kàjre media uma série de relações com a alteridade. Não apenas por-
que, como conta a primeira versão, ele é a razão do embate com uma tribo
inimiga, mas porque os Krahô “pegaram” o objeto e seu conjunto de cânti-
cos de “outras” agencialidades não humanas – o machado-cantor, pássaros,
macacos, plantas –, os verdadeiros “donos” do machado que habitavam do-
mínios exteriores aos da sociedade mehĩ. “Isto não era do mehĩ, ele pegou (ou
aprendeu) com a onça, a planta cultivada, o povo do céu, da água”, é uma
resposta habitual que o antropólogo recebe ao perguntar sobre a origem de
certas práticas culturais. Na verdade, essa apropriação externa daquilo que
constitui (e distingue) mais internamente estas sociedades – objetos, práti-
cas, cantos, ritos, etc. – é um tema central da mitologia Timbira e Jê. Ressalto
aqui o modo Krahô de compreender a noção de “propriedade” e de “pro-
dução” do conhecimento: apropriações e reapropriações, “roubos”, “apreen-
sões” ou “trocas” que apontam, sobretudo, para a necessidade de circulação
dos bens e conhecimentos rituais por meio de redes que conectam pessoas,
sejam elas parentes, estrangeiros, inimigos, animais, plantas ou mortos (cf.
Borges; Niemeyer, 2012).
Segundo Borges e Niemeyer (2012), o exemplo do kàjre e de Hartãt ilus-
tra o que os autores denominam “não propriedade circulante”: se os bens
materiais e imateriais possuem seus “donos-mestres” num mundo de múl-
tiplos domínios, o “mestre” (especialista ritual) aparece não como proprie-
tário individual de um saber, mas como sujeito-agente que realiza as me-
diações com a alteridade plural (cf. Fausto, 2008). Ao externalizar seu co-
nhecimento, ele o faz circular, permitindo sua potencial (re)apropriação por
outrem. A categoria que condensa essa perspectiva mehĩ é justamente o verbo
apakin, “pegar” ou “furtar”, categoria acionada pelos Krahô para explicar um
aprendizado, uma apropriação “individual” de um bem de “outro”. Esta “não
propriedade circulante”, dizem os autores, se deixa ver na experiência ritual,
na performance das cantigas (que no fim pertencem às agencialidades não hu-
manas), quando virtualmente estará presente alguém que irá escutá-las e que,
se atento, capaz de bem escutar, poderá “pegá-las” para si, garantindo sua cir-
culação. O conhecimento é fundamentado pela experiência direta, isto é, nas
percepções captadas pelos sentidos, sejam eles olfativos, visuais, auditivos ou
táteis, que constituem capacidades corporais entranhadas de valores morais
e indispensáveis às aquisições de saberes (Carneiro da Cunha, 2009, p. 365).
E os rituais são momentos centrais no aprendizado, transmissão e circu-
lação desses conhecimentos, práticas e habilidades. A ação ritual é orientada
fundamentalmente para a fabricação dos “corpos de pessoas humanas”: a

192 Ana Gabriela Morim de Lima


noção de “artefatual” se estende à construção da “pessoa”, assim como esta
informa a concepção de “objeto”. Trata-se de sujeitos, capazes de assumir um
ponto de vista. Possuem agência na medida em que estão inseridos numa rede
de relações sociais, o que, no caso ameríndio, não se restringe ao parentesco
local, mas se estende para além das fronteiras da aldeia e do “social”. Pessoas
e objetos são, sobretudo, materializações de um conhecimento “encorporado”,
sendo o corpo um modelo da relação com o outro. Parece ser o que os Krahô
ressaltam quando se referem ao kàjre como a machadinha que canta, sendo ele
mesmo uma extensão corporal das pessoas que “com” e “através” dele entoam
os cantos adquiridos em lugares e tempos longínquos (Coelho de Souza, 2002;
Gell, 1998; Lagrou, 1998, 2007; Viveiros de Castro, 2002 [1992]).

A perda do kàjre para o Museu Paulista: mito e história

Um fato ocorrido na década de 1940 veio a provocar uma torção na bio-


grafia da machadinha, atualizando certos acontecimentos “míticos” no âm-
bito da “história recente”: ela foi levada da aldeia Pedra Branca para o Museu
Paulista pelo antropólogo Harald Schultz, e lá permaneceu até 1986, quando
foi reivindicada pelos Krahô. A perda e o resgate são uma espécie de reviver
do mito, uma demonstração de que mito e história se confundem na cos-
mologia indígena. Não se trata de dois tempos distintos, mas de uma série
de acontecimentos sincrônicos que, se não têm fim – como não têm começo
nem meio –, estendem-se ao cotidiano: vive-se constantemente uma orienta-
ção para o devir presente e futuro.
As condições nas quais o kàjre foi levado, comprado, trocado ou doado
ao Museu Paulista, e posteriormente recuperado, variam de acordo com os
atores participantes do processo. A principal fonte histórica e etnográfica
utilizada neste ensaio a respeito do caso é a dissertação de Jorge Henrique
Teotônio de Lima Melo intitulada Kàjre: a vida social de uma machadinha
Kraho (2010).
A exemplo do narrado por Jorge Henrique Melo (2010, p. 92, 93), Do-
mingos Crate também informou-me que o machado teria sido trocado por
um rifle calibre 22 com o “doutor Haroldo”, maneira pela qual os índios da
Pedra Branca se referem a Harald Schultz. De acordo com o site da Funda-
ção Museu do Homem Americano (Fumdham),5 foi no ano de 1945 que

5
Disponível em: www.fumdham.org.br.

A Alma das Coisas 193


Schultz teria comprado “um belo machado de pedra, em forma de âncora e
com uma espécie de alça feita de fios trançados” de um adolescente em um
momento em que a tribo passava fome. E segundo Melatti (comunicações
pessoais), os Krahô lhe disseram que quem teria trocado a machadinha foi
um Canela de nome Yavu-Boaventura (o mesmo que aparece como narrador
do mito do kàjre registrado por Schultz e apresentado anteriormente).
Todas as versões seriam justificadas pelo fato de que em situações “nor-
mais” os Krahô não a teriam entregue, não cabendo aqui buscar a mais “ver-
dadeira” (tal como um mito). Ao traçar o ocorrido não estamos acessando
uma visão uniforme e homogênea. Ao contrário, as disputas de opinião e
conflitos de interesses entre as principais lideranças Krahô ficarão evidentes
quando abordarmos mais adiante o processo de resgate da machadinha.
Por hora, tracemos um rápido panorama histórico do Museu Paulista.
O Museu Paulista, antigo Museu do Ypiranga, foi inaugurado em 7 de se-
tembro de 1895 como museu de História Natural, dedicando-se à pesquisa
etnográfica e às Ciências naturais, sendo a ideia original de construir um
monumento à independência do Brasil.6 Foi com a entrada do diretor Her-
mann von Ihering em 1895 que o museu conheceu sua “fase mais científica”,
sendo a Antropologia ainda vista como um ramo dos estudos zoológicos e
botânicos (Schwarcz, 2005, p. 127-129). Em 1917, Affonso de Taunay foi
nomeado o novo diretor do antigo Museu do Ypiranga. Em contraposição ao
pensamento “naturalista” e “enciclopédico” de Von Ihering, o primeiro dire-
tor, Taunay possuía um projeto de caráter mais histórico, permeado por uma
ideologia de integração e fortalecimento do Estado nacional (Melo, 2010).
Ao longo de sua história ocorreu uma série de transferências do acervo para
diferentes instituições, sendo que a última delas foi em 1989 para o Museu
de Arqueologia e Etnologia da USP. Atualmente o museu possui um acervo
de mais de 125 mil unidades, entre objetos, iconografia e documentação tex-
tual do século XVII até meados do XX.
Um dos maiores colaboradores para a composição do acervo etnográfico
do Museu Paulista foi justamente o antropólogo Harald Schultz, responsável
pela coleta de 130 coleções que somavam 7.057 artefatos. Schultz estudou
Etnologia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, foi discípulo do
Marechal Rondon e de Curt Nimuendajú. Em sua formação na Escola de
Sociologia e Política foi orientado por Herbert Baldus, que assumiu em 1946
a coordenação do setor de Etnologia do Museu Paulista, tornando-se respon-

6
Museu Paulista, disponível em: www.mp.usp.br.

194 Ana Gabriela Morim de Lima


sável pela organização das coleções etnográficas, trabalhando diretamente
com Schultz para a aquisição das peças para o acervo. Schultz realizou cinco
viagens às aldeias Krahô (1947, 1949, 1955, 1959 e 1965), e em todas elas
trouxe objetos para integrar o acervo do Museu Paulista, e foi em sua pri-
meira viagem que Schultz levou a machadinha para o Museu Paulista, como
parte de uma coleção de 243 artefatos (Melo, 2010, p. 56-57).
A machadinha fazia parte de uma coleção heterogênea, que projetava
uma história indígena nacional fundamentada na classificação e exposição da
cultura material. De acordo com Melo (2010), o kàjre recebeu a descrição de
“emblema de melhor cantor da aldeia” na vitrine do Museu Paulista; segun-
do Schiavini (2006) ele teria sido identificado como “arma de guerra da na-
ção Krahô”. Em 1963 a machadinha virou emblema da VI Reunião da Asso-
ciação Brasileira de Antropologia (ABA), sendo reconhecida como “símbolo
nacional” pelo então presidente da associação Herbert Baldus, que justifica
a escolha pelo fato de o machado pertencer a um grupo Jê que seria o único
“exclusivamente brasileiro” (Julio Cezar Melatti, comunicação pessoal).

Figura 7.4. Broche VI Reunião da ABA.


Fotografia cedida por Julio Cesar Melatti

De acordo com Gonçalves (1995), no final do século XIX os museus eram


por excelência espaços do “conhecimento antropológico”, e a formação da
Antropologia estava ligada a esses locais. Sendo raro o trabalho de campo, os
antropólogos analisavam os objetos e os relatos de viajantes e missionários
que eram guardados nos museus. Os objetos ilustravam teorias evolucionis-
tas e difusionistas, que percebiam a cultura como um aglomerado de objetos
e de traços culturais. Esse período, chamado de “era dos museus” por Stute-
vard (Stocking, 1985, apud Schwarcz, 2005, p. 124), termina nas décadas de
1920 e 1930, e a Antropologia passa à esfera das universidades, ocorrendo
um distanciamento em relação aos museus. Não parece ser, entretanto, o
que ocorre no Museu Paulista em 1940, que mantinha relações diretas com
a Universidade e continuava a ser um espaço de atuação dos antropólogos. A

A Alma das Coisas 195


prática de colecionamento continuava presente para os antropólogos de cam-
po como Schultz, e os objetos continuavam ilustrando as teorias antropoló-
gicas, mesmo que estas se transformassem ao longo da história da disciplina.
No contexto de Harald Schultz e seus contemporâneos, a atividade do
antropólogo pode ser entendida como um “colecionamento de culturas”. Em
sua reflexão sobre a prática do colecionamento, Clifford (1994) afirma que a
construção da identidade passa necessariamente pelo ato de colecionar, mas
para a sociedade ocidental esse colecionamento estaria relacionado a uma
acumulação sem precedentes. Existe na nossa sociedade uma concepção de
que o tempo destruiria as coisas, sendo o colecionamento uma espécie de
resgate, já que a história deterioraria a cultura, expressando a velha con-
cepção de que o “tradicional”, o “puro”, estaria ligado ao passado. É preciso
proteger esse passado da destruição pelo esquecimento, o que justifica um
acervo exorbitante de objetos e documentos da memória formando os espa-
ços sacralizados dos museus.
Roy Wagner (2010) define os museus como instituições culturais onde se
preserva e protege a cultura, no sentido antropológico do termo e referente
ao universalismo do fenômeno humano, ao mesmo tempo promovendo a
Cultura, instrução e refinamento do “espírito humano” tão valorizados em
nossa sociedade. Os museus articulam diferentes sentidos do termo (discus-
são à qual retornaremos na conclusão deste artigo): eles metaforizam, isto
é, reinventam a cultura dos outros em termos de “cultura” (com aspas) a fim
de promover Cultura.
Observamos que, ao ser levado para integrar o acervo do Museu Paulis-
ta, o kàjre passa por um processo de ressignificação, na medida em que é
percebido num outro contexto. De “machado-cantor”, “objeto-pessoa” que
incorpora uma série de conhecimentos e práticas rituais especializadas e que
devem ser constantemente atualizadas de forma a manter-se vivas (e o sig-
nificado de “vida” para os Krahô está intimamente ligado à ideia de “estar
em movimento”), o kàjre passa a ser classificado no espaço do museu como
“artefato etnográfico”, representativo de uma cultura particular, e que deve
ser devidamente guardado, preservado da ação degradante do tempo para
continuar a existir.
Já falamos na secção anterior que os objetos musicais Krahô não podem
ficar parados, guardados, apenas pendurados no telhado: eles devem sair
para o pátio, cantar, ser usados, reinventados. Além disso, certos objetos de-
vem nascer e morrer com as pessoas – ao ser enterrado o morto leva consigo
alguns dos seus bens pessoais, pois esses objetos presentificam sua intencio-

196 Ana Gabriela Morim de Lima


nalidade e desejo de, imbuído da saudade pelos parentes vivos, levá-los con-
sigo à aldeia dos mortos. E, quando “vivos”, esses objetos têm a prerrogativa
de circular: eles são oferecidos como dádivas nos rituais e passam a habitar
outras casas, até ser novamente trocados. Portanto, podemos sugerir que a
prática de “colecionamento” do museu contrasta com as noções de “movi-
mento”, “deslocamento” e “circulação” inerentes aos usos e representações
dos bens materiais e imateriais sob a ótica indígena.
Por outro lado, ao ser levado para o Museu Paulista, o kàjre cumpre seu
devir mitológico de estar em movimento, viajando pelos extremos do mun-
do, circulando entre povos diferentes, humanos e não humanos. Mesmo que
os Krahô digam que em condições “normais” ele não teria sido trocado, as
versões do mito reificam a machadinha como objeto passível de exterioriza-
ção, de relação com os não Krahô. Durante o tempo em que ficou guardada
na reserva do Museu Paulista, a machadinha não ficou inerte. Seu longo
período de ausência na aldeia e de estadia no museu fez que ela incorporasse
novos cantos, novas visões, práticas e concepções. Ela passou a ser um sím-
bolo, talvez o mais representativo e emblemático, da “cultura” Krahô, como
veremos adiante na viagem de volta do kàjre para a aldeia Pedra Branca.

O resgate do kàjre

A ausência da machadinha era cantada nas aldeias, ela nunca foi esque-
cida, dizem os Krahô. Mesmo estando no museu, seus cantos não foram
perdidos e continuavam a ser entoados, em tons de lembrança e saudade. Foi
assim que, em 1985, um antropólogo de São Paulo em trabalho de campo na
aldeia Pedra Branca ficou impressionado com a beleza de um canto que um
velho entoava no pátio, à noite, relata Fernando Schiavini (2006). Ao saber
que se tratava dos cantos da machadinha kàjre, o antropólogo anunciou que
tinha visto um objeto igual àquele no Museu Paulista, causando grande co-
moção. Através de uma foto enviada pelo técnico Paulo Cesar, que prestava
serviços à aldeia Krahô e morava em São Paulo, a notícia foi confirmada.
O kàjre tinha sido reencontrado, era preciso organizar uma expedição para
conquistá-lo novamente (Schiavini, 2006, p. 156).
Em 19 de abril de 1986, na ocasião da comemoração do Dia do Índio, um
grupo entre nove e 11 índios Krahô chega em São Paulo. O que seria oficial-
mente uma viagem pelas comemorações do Dia do Índio na Universidade de
São Paulo (USP) torna-se símbolo da luta política indígena (e indigenista)

A Alma das Coisas 197


pelo reconhecimento de sua cultura: o movimento de resgate do kàjre, que,
para além da “machadinha que canta”, torna-se a “machadinha Krahô”. Para
descrever esse processo recorro mais uma vez à pesquisa de Jorge Henrique
Melo (2010), e os detalhes a respeito das etapas de negociação provêm de
uma entrevista do autor com o antropólogo Sergio Domingues Universidade
Estadual Paulista (Unesp) e do livro De longe toda serra é azul (2006) do indi-
genista Fernando Schiavini.
Comecemos aqui por destacar o contexto político no qual a posse do
kàjre é reivindicada pelos Krahô: o momento de abertura política depois de
um longo período de ditadura militar, caracterizado por fortes mobilizações
políticas, tanto por parte de brancos quanto de índios. A Constituição de
1988 estava em andamento e reconhecia a diversidade cultural, possibili-
tando ainda mais a articulação de movimentos políticos reivindicatórios. Os
Krahô costumam chamar esse período de “rekrahôrização”, o que vai ao en-
contro do processo de emergência da afirmação étnica nos anos 1980 entre
vários povos que até então negavam a sua identidade indígena. Percebe-se
também nos anos de 1980 uma reaproximação da Antropologia com os mu-
seus em função da onda reflexiva pela qual passa a disciplina: os museus
passam a ser vistos como espaço de conflito e disputa de representação dos
grupos sociais (Gonçalves, 1995).
A expedição ao Museu Paulista para reaver a machadinha foi planejada ao
longo de meses e contou com a ajuda do antropólogo Sergio Domingues e do
técnico Paulo Cezar, responsáveis por fornecerem ao Krahô as informações
precisas do paradeiro exato da machadinha. Ela era comandada pelos líde-
res Pedro Penõ e Aleixo Po’hi, representantes de facções que historicamente
pertenciam a povos distintos, respectivamente os Kenpokateye e Mãkraré,
atualmente reunidos como “Krahô”. Em sua chegada o grupo era aguardado
pela equipe de jornalismo da Rede Globo de Televisão, que, ao fazer a cober-
tura do caso, permitiu que ele extrapolasse os limites da aldeia, do Museu
e da Universidade, caindo nas graças da grande mídia e da opinião pública
(Schiavini, 2006; Melo, 2010).
Acompanhados pelos jornalistas, o grupo encontrou-se com Orlando
Marques de Paiva, diretor do Museu Paulista, que pediu um prazo de alguns
dias para verificar a procedência da peça. No segundo encontro, entretanto,
já estava presente o reitor da USP na época, José Goldemberg, que informou
à comitiva Krahô a impossibilidade de devolução do objeto, uma vez que ele
era tombado como “patrimônio da humanidade” (Melo, 2010, p. 88). Segun-
do Schiavini, a reação de Pedro Penõ foi veemente:

198 Ana Gabriela Morim de Lima


Vocês não entendem nada! Assim vocês vão matar a machadinha, ela
não pode ficar trancada num cofre. Ela precisa ficar em movimento,
não pode ficar assim fechada, no escuro. O senhor prometeu que nos
entregaria nossa kàjre. O senhor é um velho, como eu, porque não
cumpre sua palavra? (Schiavini, 2006, p. 158)

Passaram-se dois meses entre a reivindicação e a reapropriação da ma-


chadinha no dia 11 de junho de 1986, “um verdadeiro processo kafkaniano”,
como descreve em detalhes Schiavini (2006, p. 161). Estabeleceu-se uma forte
disputa, e os debates políticos, mediados pelas coberturas jornalísticas e pelos
pronunciamentos acadêmicos oficiais, acabam por mobilizar a opinião pública
em favor do grupo indígena, que recebeu o apoio de artistas e da população
civil. Na época, até, o episódio deu origem a uma novela da emissora Globo
que tinha como um dos personagens um índio, interpretado por Stenio Garcia,
que buscava reaver um objeto sagrado, uma machadinha de sua tribo.
A discussão avançava e se tornava cada vez mais pública, o que levou a
USP a firmar uma visão oficial da instituição sobre a condição pela qual o mu-
seu obteve a posse do artefato e através da qual o devolveria. A professora de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, Eunice Ribeiro Durham, escreveu então um artigo, publicado em 2 de
maio de 1986 na Folha de S.Paulo intitulado A Universidade e a machadinha,
no qual ela se coloca a favor da devolução do objeto aos Krahô, trazendo, por
outro lado, uma série de argumentos elucidativos a respeito da posição da Uni-
versidade (Melo, 2010, p. 58-60; Franceschini, comunicação pessoal).
Eunice Durham começa por defender a importância ritual do kàjre, cha-
mando atenção para os cantos a ele relacionados, contrastando o interesse
dos índios com o da Universidade. Os primeiros, muito além de uma reivin-
dicação da propriedade, estariam interessados no resgate da tradição como
ferramenta de afirmação étnica e, nesse sentido, a expedição de reconquista
é ela mesmo central, transcendendo o espectro material. Já a Universida-
de tem o objeto como testemunho das realizações culturais de determinada
sociedade indígena, testemunho de um passado que é parte da história das
sociedades humanas.
A pesquisa, no entanto, segue Durham, torna-se incompleta se não aces-
sar os cantos e os mitos associados à machadinha. Por conta disso, o conhe-
cimento almejado pela Universidade só pode atingir seu objetivo ao reintro-
duzir o objeto no contexto ritual que lhe é intrínseco, o que será possível
devolvendo a machadinha aos índios. O interesse da pesquisa tem de ser

A Alma das Coisas 199


superior ao da propriedade, pois o segundo representaria a destruição do que
há de mais importante no objeto: seu significado.
Por fim, tal como a autora sugere no artigo, a Universidade acaba garantin-
do a propriedade da machadinha, cedendo aos índios, mediante acordo escrito,
a guarda e posse do objeto. E no que concerne à propriedade esse contrato
parte dos mesmos pressupostos da concessão de uso da terra pelos povos indí-
genas proposta na Constituição de 1988. O território é de posse da União, que
concede o uso aos povos indígenas através da demarcação de territórios espe-
cíficos. Ou seja, os índios têm a posse, mas não a propriedade da terra. Assim a
proposta de Durham para a machadinha: os índios a levariam de volta à aldeia,
porém o Museu Paulista continua tendo direitos de propriedade sob ela.
Durante a viagem de retorno do kàjre à aldeia Pedra Branca, Melatti (co-
municações pessoais) contou que foi encaminhado à Universidade de Brasília
(UnB) um pedido de auxílio financeiro para realizar um evento entre os Krahô
denominado “entronização” do machado. Esse termo é usado pela Igreja Cató-
lica quando se comemora no dia 26 de maio a “entronização de Nossa Senhora
do Sagrado Coração de Maria”. A “entronização” significa “exaltar”, “subli-
mar”, “elevar ao trono”, ou seja, colocar a imagem do “Coração de Maria” no
altar ou quadro na parede. Na linguagem bíblica, o coração ocupa um lugar
importante, assim como o “Sagrado Coração de Maria” quando está no nosso
lar. Em muitos momentos os Krahô se referem à kàjre como o “coração do
mehĩ”, uma forma de traduzir a centralidade do objeto, e o coração, de acordo
com a concepção indígena, é um órgão que sente e pensa.
O kàjre é, assim, mais uma vez ressignificado pelos contextos nos quais
se desloca e pelas redes de relações em que se insere. Ele não é mais conside-
rado a mesma machadinha que foi levada para o acervo do museu. Durante
seus 39 anos de ausência e com seu retorno, a machadinha se torna um sím-
bolo da “nossa cultura”, como afirmam os Krahô, não apenas da guerra contra
os inimigos míticos de antigamente, mas da luta de afirmação da identidade
indígena perante a sociedade dos brancos.
Mas tenhamos algumas precauções ao incorporar ao nosso debate a ex-
pressão “nossa cultura”, uma constante nos discursos indígenas nos dias de
hoje. Junto com a reconquista do kàjre, é preciso refletir sobre as apropria-
ções e reinvenções daquilo que se entende por cultura, em suas diferentes
definições, níveis de contraste e contextos. O termo é ambíguo, em seus
duplos sentidos, mobilizando diferentes princípios de inteligibilidade. Lidar
com esses paradoxos é uma tarefa para o antropólogo, que deve tomar cui-
dado com os equívocos presentes na tradução dos termos e suas intenções.

200 Ana Gabriela Morim de Lima


O retorno do kàjre

Os embates em torno da machadinha não se encerram por aqui. Ao tratar


os Krahô como uma unidade sociopolítica, obscurece-se o extremo facciona-
lismo interno que caracteriza os povos Timbira. Como já mostrou Azanha
(1984), os Timbira encontram na dissidência sua dinâmica de reprodução
social. Uma aldeia em conflito é cindida e gera uma outra aldeia, que segue
a mesma “forma Timbira” de organização social e política, mas inteiramente
autônoma em relação às outras. Da mesma maneira, o grupo que foi a São
Paulo reivindicar a machadinha marcava uma série de diferenças quanto ao
destino que deveria ser dado a ela, uma vez reempossada.
Duas correntes conduziam o impasse, revivendo uma tensão histórica
entre as duas principais facções Krahô: enquanto Aleixo Po’hi, de origem
Xerente e líder Makraré, defendia que o machado deveria circular pelas al-
deias Krahô como um objeto de integração, Pedro Penõ, o líder Kenpokateye,
manifestou o desejo de manter a peça em uma espécie de “museu da ma-
chadinha” em sua aldeia, a Pedra Branca. O kàjre acabou por permanecer na
Pedra Branca, o que pode ser atribuído ao alcance da liderança de Peno, que,
como coloca Melo (2010), tornou-se uma espécie de marco temporal da al-
deia Pedra Branca (cabe notar que uma das características mais admiradas de
Penõ como liderança é justamente seu conhecimento da cultura do branco e
sua capacidade de dialogar com eles – o que também é bastante reconhecido
em Po’hi. Após a morte de Penõ em 2002, seu filho Martinho Penõ assumiu
a responsabilidade de guardar o kàjre e dar continuidade ao projeto do pai
para o museu local.
Tendo sido um dos principais interlocutores de Jorge Henrique Melo, este
considera a visão de Martinho Penõ central para a compreender o redimen-
sionamento contemporâneo do machado na aldeia Pedra Branca, o que, se-
gundo o autor, refletiria uma “museificação do objeto” por Martinho Penõ:

[...] a posse do kàjre pelo Museu Paulista implica, na visão de Marti-


nho Peno, o reconhecimento de um valor do objeto que o leva a incor-
porar ao seu discurso, colocado para mim, pesquisador, a necessidade
da construção do museu para abrigar e exibir a machadinha. (Melo,
2010, p. 94).

Sem querer inferir se o objeto foi levado ao museu em função de sua sa-
cralidade, ou se tornou sagrado justamente por ter permanecido tanto tempo
no museu (provavelmente as duas coisas), o que nos interessa é chamar

A Alma das Coisas 201


atenção para a ressignificação do kàjre a partir da viagem ao Museu Paulista.
E reproduzindo a fala de Martinho Penõ ao antropólogo:

To querendo ver se sai algum recursinho pra fazer um museuzinho


pra pendurar o kàjre em algum lugar... O coração do mehĩ. To queren-
do fazer aqui mesmo, levantar outra casa aqui, ver se eu boto o kàjre
em cima, num quartinho, e quem vier de fora paga poré [dinheiro] pra
ver, pra tirar foto. Aí já bota um escritinho na porta dizendo o que é.
Papai falou: “Vou deixar o kàjre pra vocês pra fazer um negocinho pra
quem vier de fora, de algum país, e quiser ver” (Pedra Branca, 4 de
fevereiro de 2009). (Melo, 2010, p. 94)

Algumas lideranças da Pedra Branca buscam parcerias para o projeto do


museu. Os povos indígenas de maneira geral vêm adotando novas formas as-
sociativas que lhes permitam alegar representatividade para lidar com a “po-
lítica dos projetos”, elemento central da política indígena contemporânea.
“Fazer projeto” é um empreendimento cultural, político e econômico que
depende tanto da população local quanto de agentes externos – o que explica
os índios recrutarem constantemente os antropólogos em suas atividades
de projeto (Carneiro da Cunha, 2009, p. 335). Mas, para ser bem-sucedida,
a política dos projetos e das associações deve transcender a política local, o
que nem sempre é possível, como ocorreu nas disputas em torno do destino
da machadinha.
Atualmente existe um prédio de concreto com um grande pátio no meio,
ao lado da casa de Martinho Penõ, que é a sede “física” da associação da
aldeia, que também se chama Kàjre. Ela se confunde com o pátio central e
a casa da pensão, locais de reuniões públicas e festas. Alguns afirmam que
esse seria o lugar original do museu, o que não se concretizou. Miguelito
Cawkre explica que a Escola Kàjre foi construída em 2003 com recurso da
Funai “para ajudar a associação daqui” e que antes o museu “Era pra ser aqui
na Escola Kàjre, que eles pensaram pra ser escola só de coisa de mehĩ mesmo:
música, talvez pintura...” (Melo, 2010, p. 85, 96).
É interessante também o fato de que, com a fama que o kàjre ganhou
entre os brancos, os Krahô passaram a confeccionar pequenas réplicas em
madeira do kàjre, usados como colares ou enfeites de parede, vendidos como
“souvenir turístico” aos visitantes.

202 Ana Gabriela Morim de Lima


Figura 7.5. Colar kàjre.
Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima

Cabe ressaltar que a ideia do museu se confunde com o projeto pessoal


e com a construção biográfica da família Penõ na aldeia Pedra Branca (Melo,
2010, p. 95). Em meu trabalho de campo percebi que em outras aldeias exis-
te certa insatisfação com esse destino da machadinha, acusações de que Mar-
tinho Penõ, em seu cuidado “excessivo” com a machadinha e temendo que
se perca novamente, não a deixa circular. As únicas vezes em que presenciei
algum ritual com o kàjre fora da Pedra Branca foram em feiras e festas rea-
lizadas no espaço da associação Kapéy, que não é uma aldeia, mas um lugar
de encontro entre as aldeias que participam da associação. Essa contradição,
entre guardá-la e fazê-la circular, é percebida no próprio discurso de Marti-
nho Penõ.

[...] [a Kajre] é da nossa cultura, mas fica aí parada, sem movimento...


Tem que todo mundo ver, sair pra animar a aldeia... (Melo, 2010, p. 75)

Assim como Martinho Penõ, muitos Krahô se referem ao kàjre como “nos-
sa cultura”. Antes de concluir este artigo, é necessária uma breve reflexão
sobre os paradoxos contidos nas apropriações e reinvenções acerca do termo
cultura, tal como observamos na viagem de volta do kàjre. Isso porque casos
como o do kàjre não são isolados. A partir da década de 1980 ocorre uma sé-
rie de manifestações indígenas que reivindicam seus direitos sobre artefatos,
padrões gráficos, recursos genéticos e conhecimentos em geral, suscitando
uma discussão mais ampla em torno dos direitos culturais e intelectuais, que
põe em questão a maneira como se entende a cultura. Ou seria “cultura”?

A Alma das Coisas 203


Manuela Carneiro da Cunha traz duas noções de cultura interessantes
para nossa reflexão acerca do kàjre: a cultura (sem aspas), “esquemas interio-
rizados que organizam a percepção e a ação das pessoas e que garantem um
certo grau de comunicação em grupos sociais” (Carneiro da Cunha, 2009, p.
313); e a “cultura” (com aspas), um metadiscurso da cultura que opera em
contextos interétnicos, isto é, uma maneira de falar sobre si mesmo ao se
projetar para o branco especialmente (e levando em consideração a imagina-
ção do branco sobre si, num jogo especular).
Enquanto a antropologia contemporânea vem procurando desconstruir
a noção de “cultura”, vários povos mais do que nunca a estão exaltando; a
política acadêmica e a política étnica parecem assim caminhar em direções
contrárias (Carneiro da Cunha, 2009, p. 313). Segundo a autora, a maioria
dos povos indígenas se (re)apropria constantemente da sua cultura e pode
agora expô-la ao mundo. O que se torna, entretanto, uma faca de dois gu-
mes, já que implica que seus possuidores devem demonstrar performatica-
mente a sua “cultura” para o branco. Por um lado, os movimentos indígenas
elaboram suas reivindicações nos termos dessa linguagem de direitos domi-
nantes, tornando-as possíveis de serem reconhecidas e bem-sucedidas. Por
outro, essas declarações introduzem questões em torno das especificidades
e diferenças pertinentes ao conhecimento tradicional, em contraposição à
visão sobre o conhecimento científico.
Caberia na imaginação ocidental que esses povos aleguem ser suas cultu-
ras exógenas, apropriadas de “outros”, numa tendência indígena em atribuir
bens, práticas e saberes culturais a outros povos, humanos e não humanos,
como vimos no caso do kàjre? Já vimos que a cultura percebida como em-
préstimo e abertura para o outro é central na mitologia e nas experiências
xamânicas (Carneiro da Cunha, 2009, p. 361); o que cria um curto-circuito
na maneira como Penõ se refere à kàjre como sendo da “nossa cultura”, pois,
como vimos, os Krahô afirmam ao mesmo tempo que a “nossa cultura” é que
vem do kàjre, roubada de outros seres humanos e não humanos. A cultura e
o kàjre não foram inventados pelos mehĩ, eles foram “pegos” ou “roubados”
desses outros povos.
Portanto, o kàjre pode ser visto como um exemplo interessante dessa “re-
flexibilidade cultural” a que se refere Manuela Carneiro da Cunha, como um
ponto de articulação entre essas duas faces do mesmo conceito de cultura.
Se por um lado a cultura sem aspas esta relacionada a uma série de elementos
fundamentais da cosmologia Krahô, como vimos na primeira secção deste
artigo, vimos também como o kàjre passou a operar num novo contexto em

204 Ana Gabriela Morim de Lima


que a cultura, em toda a sua complexidade, deve ser objetificada para a so-
ciedade nacional, tornando-se o kàjre um símbolo da “cultura” com aspas. A
questão é perceber com as duas faces estão inter-relacionadas, uma servindo
de contexto para a reinvenção da outra, sem deixar de notar que existem dis-
paridades significativas aqui, pois trata-se de conteúdos que não pertencem
ao mesmo nível de discurso.
Por enquanto, o kàjre continua na casa de Martinho Penõ, talvez à espera
de uma próxima aventura. Ele fica guardado dentro de um cesto de palha
pendurado no telhado, enrolado num pedaço de pano manchado de urucum.
Martinho Penõ o retira e desembrulha cuidadosamente, deixando-o à vista
dos antropólogos curiosos, que fazem seus registros fotográficos. E repete
sua história, para que o escutem bem, sempre lembrando:

Porque o velho meu pai trouxe esse kàjre de lá e não fez nada com
ele de demonstração no lugar, para quando você chegar ir lá direto e
ver. Mas não, ele está jogado aqui, sempre cheio de poeira... Aí eu fico
assim com vergonha. Do jeito que está, assim na poeira, eu não estou
gostando. Eu já falei muito para me ajudarem de fazer um museuzi-
nho, para eu colocar o conjunto do kajre: caty, xy, pydwe, buzina, pyri-
jakà, cukonre, cratre, eu queria colocar todos juntos. Não é assim de
museuzão não, é só de demonstração que eu vou colocar para quando
uma pessoa chega de fora e quer ver. Pra ver como é que faz. E pra
deixar pros netos, pros filhos, pros novos, lembrando sempre... [...]
E no tempo que o Papam [Deus] me carregar, então já deixei essas
coisas juntas de lembrança. Eu já vou ter colocado de um outro modo
para os novos lembrarem. É isso que eu estou querendo, lembrar. E
se um deles aprende mais do que eu, já fica com ela e toma de conta...
(Martinho Penõ, comunicação pessoal)

A Alma das Coisas 205


Figura 7.6. Martins Zezinho Ikrehohtàt levando a kàjre depois de cantar.
Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima

Figura 7.7. Martins Zezinho Ikrehohtàt devolvendo o kàjre para Martinho Penõ
ao terminar de cantar. Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima

206 Ana Gabriela Morim de Lima


Figura 7.8. Martinho Peño guardando o kàjre em sua casa.
Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima

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_____. Imagens da natureza e da sociedade. In: VIVEIROS DE CASTRO, Edu-
ardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002 [1996], p.
319-344.
_____. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: VIVEIROS
DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify,
2002 [1996], p. 347-399.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010 [1975].

210 Ana Gabriela Morim de Lima


8.

AS MORADAS DA CALUNGA1
DONA JOVENTINA: OBJETOS, PESSOAS E DEUSES
NOS MARACATUS DE RECIFE

Clarisse Kubrusly

Katarina Real e a multiplicação dos


maracatus e de seus nomes

Desde o final do século XIX, intelectuais como Pereira da Costa (1908),


Mário de Andrade (1959), Mario Sette (1938), Ascenso Ferreira (1986), entre
outros ligados ao chamado “movimento folclórico brasileiro”,2 encenavam
uma “retórica da perda” (Gonçalves, 2002), profetizando o fim dos maracatus
nação, vistos por esses autores como “autênticas” tradições “afro-brasileiras”
e sob a ameaça de uma “modernidade” homogeneizante e avassaladora. Para
esses intelectuais, os maracatus de baque virado deveriam ser a todo custo
preservados, resgatados e até reconstruídos, pois representavam uma espe-
rança de futuro reverso, de retorno a uma “natureza” propriamente brasileira.
O primeiro maracatu “nação de baque virado”3 que conheci foi o Estrela

1
Cemitério, morto, egum, ancestral. Conhecida simplesmente como boneca, nos maracatus nação
são as bonecas esculpidas em madeira e às quais são atribuídos poderes mágico-religiosos.
2
Sobre o movimento folclórico brasileiro ver Vilhena, 1997.
3
Os “maracatus nação” ou maracatus de “baque virado”, também referidos como “nações africanas”, são
uma manifestação carnavalesca da cidade do Recife que tem como mito de origem as Instituições dos Reis
do Congo ou Instituições Mestras, associadas às irmandades que prestavam assistência aos negros nos
bairros portuários do Recife antigo. Atualmente as nações de maracatu realizam suas “saídas” (desfiles nas
ruas) com uma grandiosa Corte Real e seus personagens (rei, rainha, princesa, dama do paço, calungas,
baianas ricas, vassalos, caboclos de lança ou reiamar, escravos e catirinas ou baianas, etc.) De suas “sedes”
e terreiros saem para as ruas acompanhadas do soar de um intenso “baque virado”, executado por um
conjunto musical percussivo (instrumentos: alfaias ou bombos, gonguê, caixas, mineiros e abês).

A Alma das Coisas 211


Brilhante, localizado no Alto José do Pinho, bairro do Recife, cujas “calungas”
ou “bonecas” são Dona Joventina e Dona Erundina. Visitando o Museu do Ho-
mem do Nordeste (MHN), em 2001 e 2004, a boneca de um antigo maracatu
Estrela Brilhante despertou minha curiosidade, pois tinha sido trazida de volta
ao Brasil, doada por Katarina Real em 1996. Assim, a boneca Dona Joventina
serviu de inspiração para a investigação sobre a trajetória de Katherine Royal
Cate – conhecida como Katarina Real – com os maracatus de baque virado em
Recife. A boneca era um universo de intercessão entre a trajetória da pesquisa-
dora e o maracatu Estrela Brilhante com o qual eu mantinha contato.

Figura 8.1. Calunga Dona Joventina. Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj

Uma verdadeira potência envolveu Katarina Real em uma série de ações


e reações dirigidas às antigas nações de baque virado do Recife. Katarina
estabeleceu “vínculos de alma” com alguns mestres e rainhas de maracatus,
tais como: a rainha Dona Santa da nação Elefante; Dona Assunção,4 a vi-
úva de Seu Cosme,5 da antiga nação Estrela Brilhante; Eudes Chagas6 do

4
Dona Maria Assunção foi a derradeira esposa do Seu Cosme (fundador do Estrela Brilhante de
Recife), e levou adiante as obrigações no Estado de catimbó do falecido marido (1955-1965).
5
Cosme Damião Tavares (1878-1955), natural de Igarassu, foi o fundador do Estrela Brilhante de
Campo Grande, em Recife, em 1906.
6
Eudes Chagas (1921-1978) nasceu em Olinda e foi para Recife ainda menino. Era babalorixá no
bairro do Pina, onde exerceu o sacerdócio até sua morte (1978). Com a colaboração de Katarina Real,
foi coroado Rei do Maracatu Nação Porto Rico do Oriente, em 1967.

212 Clarisse Kubrusly


maracatu nação Porto Rico do Oriente; Luiz de França,7 do maracatu nação
Leão Coroado; e Seu Veludinho,8 o centenário batuqueiro que participou de
algumas nações até meados da década de 1960 (Elefante, Estrela Brilhante e
Leão Coroado). Katarina e seus interlocutores do maracatu misturavam-se
e modificavam-se a cada encontro, estabelecendo trocas de “dons” e “con-
tradons”, vínculos que perduraram ao longo dos anos de trabalho da pes-
quisadora em Pernambuco. Katarina e os mestres de maracatu mantiveram
relações de “reciprocidade” e confiança bastante estreitos, como pretendo
mostrar adiante.
A relação de Katarina com Dona Joventina e com o maracatu Estrela Bri-
lhante da década de 1960 é mediada por uma série de trocas e finalizada por
um presente. Um “dom” especial que implicou uma verdadeira “obrigação”
(Mauss, 2003). Katarina recebeu um presente que não poderia recusar, uma
oferta imposta pelo mestre espiritual da nação. Segundo a pesquisadora, foi
o “avô” da nação quem determinou que ela se tornaria a guardiã de Joventina
contra as dissidências e brigas que assolavam a comunidade de Campo Gran-
de e que se agravavam desde a morte de seu Cosme Damião (Cocó).
Quando Katarina Real recebeu Joventina de presente, uma dimensão
quase total de sua inserção no universo do Estrela Brilhante ficou aparente.
A calunga constituía um verdadeiro motivo espiritual e cosmológico para
o maracatu. A autora admirava a boneca, mas nunca poderia imaginar que
seu próprio destino fosse virar a guardiã da escultura mágica. Por mais que
tivesse se empenhado em propiciar condições para a nação continuar saindo
às ruas, ela acabou recebendo um presente que efetivamente impediria que
o maracatu continuasse com seus desfiles espetaculares, assim como com
seus rituais internos.
Joventina deixou de exercer suas qualidades mediadoras e espirituais no
maracatu em Campo Grande e passou então a figurar como “objeto” na co-

7
Luiz de França dos Santos (1901-1997) era filho de Laureano Manuel dos Santos (fundador do
Leão Coroado). Cresceu no bairro de São José, “espécie de gueto de escravos libertos, local onde
aconteciam cultos africanos”. Os padrinhos de santo de seu Luiz foram Eustachio Gomes de Almeida
e Dona Santa. (Amorim, 2006). Seu Luiz foi membro da Irmandade de São Benedito da Igreja de São
Gonçalo do bairro da Boa Vista e da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos do bairro de Santo
Antônio. Tido como um dos últimos oluos de Recife, foi o mestre do maracatu Leão Coroado até sua
morte, em 1997.
8
João Batista de Jesus (seu Veludinho) foi batuqueiro das nações Estrela Brilhante, Elefante e Leão
Coroado. Na década de 1960, já tinha mais de 100 anos e ainda tocava o bombo mestre maior, mais
grave e mais pesado.

A Alma das Coisas 213


leção particular, na casa da pesquisadora em um primeiro momento, no Re-
cife, e posteriormente nos Estados Unidos. Katarina mantinha com a boneca
uma relação afetiva que remetia a uma vivência do passado, associada ao
maracatu e ao Brasil. Katarina levou Joventina com a missão de protegê-la da
destruição e do desaparecimento que sofriam as nações de maracatu na épo-
ca (meados da década de 1960). A imagem que a pesquisadora criou em seu
discurso é a de que a boneca foi para o exílio e iria esperar até que a situação
da “cultura popular”, e em especial dos maracatus, melhorasse. Entre outros
motivos, atribuiu a decadência dos maracatus ao golpe militar de 1964, afir-
mando que, nesse contexto, o destino de qualquer tipo de associação popular
ligado a “comunidades” parecia bastante incerto. Dona Joventina foi então
para o exílio, a exemplo de alguns amigos folcloristas, intelectuais e artistas
perseguidos como “comunistas”.
Em 1996, quando trouxe de volta a calunga, Katarina preparou um dis-
curso especial para ler em voz alta, na cerimônia de doação da boneca ao
MHN. Contudo, esse discurso foi escrito “do ponto de vista da calunga” ou
melhor, Katarina escreveu um texto/discurso como se a própria calunga esti-
vesse contando sua vida tal como Katarina a narra. Esse discurso, que virou
um panfleto do MHN em 1997, é escrito em tom autobiográfico e fala sobre
a relação entre Katarina e Joventina:

Em 1968, a situação dos maracatus nação era péssima! O maracatu


Elefante, da saudosíssima Dona Santa, acabara com a morte da grande
rainha em 1962; o antigo Estrela Brilhante acabou-se em 1964; e alguns
outros maracatus estavam em condições muito precárias ameaçados
de desaparecer. [...] Mas as coisas estavam muito erradas mesmo em
1968! Tanto os maracatus nação quanto os maracatus rurais estavam
em declínio; a Federação Carnavalesca Pernambucana encontrava-se
nas mãos dos “cartolas”, que pouco se interessavam pelos problemas
do povo carnavalesco; havia uma falta de interesse alarmante pelo fol-
clore pernambucano e pela preservação de nossas tradições regionais;
e a situação política ainda pior, com o movimento de Cultura Popular
totalmente desmantelado e tantos bons amigos brasileiros presos, fo-
ragidos e até no exílio. Com muito pesar, Katarina e eu deixamos o Bra-
sil em fins de 1968, e eu fui para aquele país chamado Estados Unidos,
onde ninguém sabe o que é um maracatu, ou uma fanfarra de frevo ou
estalido seco da preaca de um caboclinho. Katarina e eu decidimos que
eu ficaria por lá, esperando que a situação melhorasse para as tradições
populares e para o povo carnavalesco. (Katarina Real, 1997 [1996])

214 Clarisse Kubrusly


Katarina se tornou guardiã de um “patrimônio” em exílio, cujos sentidos
e experiências permaneciam perdidos em um Recife de “homens pretos” de
outros carnavais. No período de 1965 até 1996, a boneca apareceu em públi-
co três vezes: a primeira foi em 1967, na cerimônia realizada na Câmara dos
Vereadores, na ocasião em que a antropóloga recebeu o título de “Cidadã de
Recife”. A segunda foi em 1968, no lançamento da primeira edição do livro
O folclore no carnaval de Recife, no Teatro Popular do Nordeste. A terceira vez
foi na exposição da coleção Katarina Real de Arte Popular Nordestina em um
museu em San Diego, na Califórnia. A pesquisadora, que ficou alguns anos
sem frequentar o carnaval pernambucano, surpreendeu-se, em 1995, com
o “ressurgimento, restauração e renovação” de tantas tradições do folclore
da região. Empolgada, resolveu trazer de volta a boneca Joventina. Disse
que, em sonho, Joventina lhe pedira para voltar. Assim, o patrimônio exilado
voltou à terra natal, sendo deslocado da coleção particular da autora para o
acervo da instituição que tanto incentivou o trabalho de Katarina no Brasil
(Museu do Homem no Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco – FJN).

[...] aqui estou finalmente com meu povo carnavalesco. [...] E aqui
serei sempre uma força de resistência cultural contra tudo que pos-
sa prejudicar a integridade das nossas tradições carnavalescas. Para
terminar, eu preciso lhes dizer porque Katarina não quis, que é com
grande sacrifício que ela se separa de mim. Mas ela bem sabe que
serei muito bem cuidada neste maravilhoso Museu do Homem do
Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco [...] e vou ficar aguardando
sempre com muita alegria as visitas de todo o povo carnavalesco nor-
destino aqui no museu. Muito obrigada pela atenção, Katarina Real e
Dona Joventina. (Katarina Real, 1997 [1996])

Em trabalho anterior (2007) busquei ressaltar o processo de colecio-


namento por meio do qual Katherine Royal Cate se torna Katarina Real,
uma especialista na arte folk de Pernambuco: como a autora constrói sua
“autoridade etnográfica” acompanhando os “últimos mestres africanos” dos
maracatus nação no Recife durante aproximadamente quatro décadas (1960-
1990). Autores como Clifford (1988), Stewart (1993), Pomian (1984), Ja-
ckins (2002), Gonçalves (2002), entre outros, buscam mostrar que o ato de
“colecionar” ou as “coleções” expressas pelas etnografias, pelos romances,
pelos filmes e, mais notavelmente pelos museus, realizam mediações. Os
objetos são deslocados e transformados em símbolos abstratos, tornando-se
metonímias da “cultura” e de suas diversas possibilidades. Esses autores

A Alma das Coisas 215


chamam a atenção para o processo do colecionamento como um lugar por
excelência da construção de subjetividades, sublinhando o papel fundamen-
tal de determinados intelectuais na colaboração e seleção de “fatos” e “acon-
tecimentos”. Podemos dizer que Katarina Real foi, sem dúvida, a coleciona-
dora que mais atuou no sentido de valorizar e pensar políticas de incentivo
aos maracatus em Recife durante a década de 1960.

Figura 8.2. Katarina Real em sua casa conhecida como a “torre do frevo” no
Recife, 1966. Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj

Os maracatus nação são uma manifestação carnavalesca da cidade do Re-


cife que têm como mito de origem as Instituições dos Reis do Congo ou Ins-
tituições Mestras, associadas às Irmandades que prestavam assistência aos
negros nos bairros portuários do Recife antigo (Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário e de São Benedito, dos bairros de Santo Antônio e São José).

216 Clarisse Kubrusly


As narrativas históricas sobre os terreiros e “afrodescendentes”9 em Recife
remetem ao Mercado São José, ao Pátio do Terço e às casas dos sacerdotes da
“seita” e da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Os-
tentam seus vínculos com alguma religião “afro” de Recife (Xangô, Catimbó e
Jurema) e se dizem “nações” devido à alegada ascendência “africana”.
No soar dos baques e no compassar dos tempos, os maracatus nação pro-
moveram intensos diálogos, intersecções, compras, vendas e doações, entre
si e entre outras agremiações carnavalescas, como escolas de samba, cabo-
clinhos e maracatus rurais, possibilitando agrupamentos e reorganizações
variadas no decorrer dos anos. Os maracatus nação misturaram-se, passando
por diferentes pessoas e lugares, dividiram-se e ainda hoje seus movimentos
de cortes e fluxos os separam e agrupam, podendo ser criadas novas nações
e recriados antigos nomes. O nome das antigas e novas nações de maracatu é
uma espécie de “bem inalienável” (Weiner, 1992), “patrimônio” fundamen-
tal que evoca a “ancestralidade africana”. Ainda assim, os nomes, objetos,
práticas e saberes que compõem e articulam o maracatu nação podem ser
vendidos, roubados, transferidos, herdados, doados, recolhidos, refeitos e,
ao mesmo tempo, em diferentes medidas e camadas, ser considerados os
“mesmos” antigos nomes associados a sacerdócios quase mitológicos, como
é o caso da famosa rainha do Maracatu Elefante, Dona Santa.
Quem cuida de um maracatu é sempre posto em xeque quanto à den-
sidade de seu conhecimento sobre as práticas litúrgicas adequadas. Certos
rituais devem ser executados para que a nação mantenha o “vínculo religio-
so”, sem perder seu caráter de “saída nas ruas da cidade. Uma verdadeira
diversão carnavalesca que exige “forma” não muito fixa, mas com uma série
de preparos especiais de proteção devido a seu “perigo” (Douglas, 1976) e
ao risco que implicam caso não sejam realizados os sacrifícios e oferendas
adequadas. Assim, um conjunto de práticas e saberes específicos e de difí-
cil acesso constitui a existência e a permanência do “mesmo” maracatu, ou
do “mesmo” nome, ou das mesmas bonecas que evocam uma origem co-
mum e “africana”. Em conjunto com o nome da nação, os nomes de eguns,10

9
Refiro-me aqui a um conjunto de práticas e concepções bastante amplo e heterogêneo que se
comunica devido a uma “origem” comum trazida pelos escravos africanos, que por sua vez vieram de
distintos reinos e com distintas bagagens. Com o tempo, tais práticas e concepções foram incorporando
em maior ou menor grau cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo e espiritismo
europeu; transformando-se à medida que se combinavam de diferentes formas e em todas as direções.
10
Nome para os espíritos dos mortos, desencarnados. No maracatu também é chamando de egum, o
espírito do ancestral da nação presente em assentamentos do terreiro ou nas calungas.

A Alma das Coisas 217


orixás,11 mestres12 e falecidos sacerdotes são igualmente preparados, evoca-
dos e alimentados em práticas de segredo.
Atualmente duas nações de maracatu atendem pelo nome de Estrela Bri-
lhante. Uma fica localizada no bairro do Alto José do Pinho, na cidade do
Recife, e a outra em Igarassu, município litorâneo dos arredores da capital.
Ambas passaram por dificuldades ao longo do século XX. O Estrela Brilhante
de Igarassu esteve pouco visível, quase inativo nos anos 1980, e reapare-
ceu na capital nos anos 1990, em parte graças ao apoio de Roberto Benja-
min.13 Com o auxílio da prefeitura, a Comissão Pernambucana de Folclore
promoveu uma coroação pública de Dona Mariú, falecida rainha, mãe de
Dona Olga, que é a atual dirigente do maracatu Estrela Brilhante de Igaras-
su. O maracatu do Alto José do Pinho se considera a continuação do Estrela
Brilhante de Campo Grande estudado na década de 1960 por Katarina Real.
Dona Joventina é uma escultura, uma boneca em madeira de aproxima-
damente 65 cm de altura, e está exposta no MHN desde meados da década
de 1990. Ficou nos Estados Unidos durante trinta anos (1965-1996), com
Katarina Real, antes de ser doada ao acervo desse museu. O remexer na
trajetória de Joventina, o evocar de seu nome após as três décadas de exílio,
somados a sua viagem de volta à “terra natal” torna possível um encontro
com outras narrativas manifestas, contrariando a “galega” dos Estados Uni-
dos. O maracatu Estrela Brilhante não apenas não deixara de sair às ruas,
mas se multiplicara. Hoje esses dois maracatus que se denominam Estrela
Brilhante reivindicam de formas distintas a posse da escultura e sua retirada
do museu. Essas esculturas sagradas são objetos de encantamento que arti-
culam mundos heterogêneos e essencialmente distintos, como o mundo dos
mortos (antigos donos da nação), o mundo dos vivos (donos e integrantes
da nação) e o mundo dos deuses do candomblé e da Jurema sagrada. Apesar
de esses maracatus terem suas respectivas esculturas sagradas, desejam a
posse de Joventina, reconhecendo nessa boneca algo de especial, poderoso
e potente.

11
“Qualquer divindade ioruba, com exceção de olóòrum (vd). Seus equivalentes fón (vd) são vuduns. A
designação do culto angola-congo que lhes correspondem é inkice (Voguel; Mello; Barro, 2005, p. 200-201).
12
Espírito mestre do estado de catimbó em Pernambuco.
13
Roberto Emerson Câmera Benjamin nasceu em 1943, em Recife. Bacharel em Jornalismo e em Direito,
é professor aposentado da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRRPE) e é o atual Presidente
da Comissão Pernambucana de Folclore. Sobre a experiência de Benjamin como colecionador e também
com calungas de maracatu, ver capítulo II da minha dissertação (Kubrusly, 2007).

218 Clarisse Kubrusly


A trajetória da boneca Joventina
em seu fluxo de criação constante

A trajetória da boneca Joventina é marcada por deslocamentos e reclassi-


ficações que lhe conferem a riqueza de concentrar possibilidades igualmen-
te verdadeiras e válidas, direcionadas a um único objeto específico. Assim,
podemos ouvir diferentes relatos sobre a boneca, pois tal calunga estabelece
relações em histórias e desejos com os diferentes sujeitos envolvidos com os
maracatus de nome Estrela Brilhante.
Em geral, do ponto de vista dos “maracatuzeiros”, quando uma calunga
de maracatu ou os objetos pessoais de rainhas e mestres consagrados são
“recolhidos” por museus, ocorre uma espécie de “morte” para a nação. O
tipo de eternização e de preservação que o museu propõe inviabiliza a qua-
lidade de “agência espiritual” que o objeto até então exercia. Como ouvi
inúmeras vezes entre os maracatuzeiros de Recife, “Uma vez no museu, para
sempre nele”. Ou seja, uma vez o objeto tornado patrimônio de alguma ins-
tituição museal e entrado no circuito de exposições, dificilmente tornará a
fazer parte de um maracatu atuante e não poderá sair nas ruas compondo a
corte e o cortejo real, muito menos exercerá seu papel de protetor da nação.
A proteção exige que se “alimente” e se “cultive” a boneca, mantendo um
contato intímo e de atenção às vontades da escultura, que dialoga com o
grupo a partir de seus dirigentes e dos guias espirituais especializados que
dominam o “jogo de búzios”, por meio do qual a boneca fala.
Os atuais mestres de maracatu presentes nesse trabalho (Dona Olga,
Dona Marivalda e Afonso Aguiar14) enfatizam o sujeito espiritual da boneca,
sua qualidade de ação e de realização mediante uma relação de devoção que
deve ser cultivada, “alimentada” e mantida. Assim, do ponto de vista nativo,
a perda da sua agência protetora é ressaltada quando uma calunga vai para
algum museu. No museu a boneca não come, não age, não fala. Sua vida fica
reduzida a uma potência que pode até ser reativada, mas que está parada,
como se fosse morta.

14
Afonso Gomes de Aguiar Filho nasceu em Campina do Barreto, Recife, em 15/03/1948. Seu pai
tinha um peji em casa. Ao se mudarem para Águas Compridas, Olinda, em 1955, abriu um ilé (terreiro)
assumido por Afonso com a morte do pai, há 19 anos. Quando passou a tomar conta do Leão Coroado
em 1996, o maracatu foi transferido para o bairro de Afonso no qual foi comprado o terreno, em 1997.
Para saber sobre a relação de Katarina Real e Roberto Benjamim com a transferência de zeladores e a
compra do terreno do Leão Coroado, ver capítulo II da minha dissertação (Kubrusly, 2007).

A Alma das Coisas 219


A questão apresentada pelo meu material empírico permite pensar de
que forma “seres encantados”, “ancestrais africanos”, esculpidos em uma
boneca de madeira são deslocados e ressignificados como “objeto de arte
popular”, como “objeto de coleção” no MHN. Para os integrantes dos ma-
racatus que hoje reivindicam a posse da escultura, Joventina é vista como
detendo forças “totais”, cosmológicas e práticas. Joventina é compreendida
como uma “entidade espiritual”, ora um mestre do estado (Mestre Canga-
russu – Katarina Real), ora um orixá (Iansã Gigan – Marivalda), ou um egum
(explicação de Afonso Aguiar), ou até como uma preta velha (explicação de
Dona Olga de Igarassú), mas, de todo modo, um verdadeiro sujeito de ação.
O que significa um maracatu ir para o museu? E para quem? É uma
das questões que recebem um olhar cuidadoso nesse trabalho. A partir da
boneca Joventina e da experiência de Katarina com os maracatus nação, pre-
tendo iluminar diferentes imaginários sobre o que significa um maracatu no
museu. Para Katarina, a presença de Joventina no MHN é justificada pela
possibilidade de divulgar, preservar e valorizar a boneca, o maracatu e a sua
própria história e inserção como pesquisadora nesse universo carnavalesco-
-religioso. Já para os integrantes de um maracatu, ir para o museu signifi-
ca dizer que a nação “parou”, “recolheu”, “morreu”, “se aposentou”, já que
seus desfiles e rituais deixam de existir para que outra forma de vida mais
contemplativa fale para um outro público sobre aquele período em que o
maracatu saía às ruas. Nesse sentido, seguindo a perspectiva maracatuzeira,
o museu é como uma morada final e sem saída, e por isso equivalente a uma
espécie de morte.
Para Katarina Real, no entanto, os sentidos de objeto e sujeito também
parecem conviver em tal boneca de forma indissociável, embora sua experi-
ência acabe priorizando o aspecto material da escultura. Em sua perspectiva,
o museu é um local que garante determinado tipo de preservação daquilo
que é material, do objeto propriamente dito. Da madeira esculpida na forma
humana e articulada em todas as juntas, do cabelo de gente, do vestido e
das bijuterias, etc. Além disso, informa e divulga ao grande público sobre
a importância de tal sujeito-objeto de valor “mágico, artístico e cultural”,
trazendo uma pretensão de “vida eterna” à boneca.
Para uns a “morte”; para outros a “vida eterna”. Ambas as ideias, em
princípio antagônicas, falam do mesmo evento: da presença de objetos-su-
jeitos, ou seja, objetos que representam entidades espirituais poderosas, tais
como as calungas de maracatu expostas no MHN. (Uma “morte”, como de-
finiu dona Olga, associada ao fim dos desfiles e das práticas rituais dirigidas

220 Clarisse Kubrusly


à boneca pela nação de maracatu; e uma espécie de “vida eterna” “objetifi-
cada”, criada pela divulgação de um rótulo estanque proposto por Katarina
Real, que foi a doadora da calunga ao museu).
A boneca passa de “totem roubado” de um maracatu muito antigo em
Igarassu, a protagonista e protetora do antigo Estrela Brilhante de Campo
Grande. Em seguida, por um presente mágico e obrigatório, passa a compor
a coleção particular de Katarina Real. Trinta anos mais tarde é doada para a
coleção do MHN. Nesse meio-tempo é replicada e passa a ser também a pro-
tetora do maracatu do Alto José do Pinho. Hoje a calunga Joventina acumula
todos esses sentidos e é como se ela fosse feita por um agregado de camadas
de significados concomitantes.
Em Igarassú ela é vista como um antigo e fundamental pertence que foi
roubado. Todos sabem de sua existência e falam de sua falta e do fato de no
passado ela ter sido roubada. No MHN ela é um dos principais objetos do
acervo da coleção afro-brasileira, foi doado por Katarina e está posicionado
no início da exposição, em um lugar de destaque. Por fim, para o maracatu
do Alto José do Pinho, ela era a antiga calunga do maracatu Estrela Brilhante
de Campo Grande que após alguns deslocamentos foi parar no Alto José
do Pinho na casa da costureira e rainha Marivalda, só que sem a escultura
mágica. A essa altura dos acontecimentos Joventina já estava sob a posse da
colecionadora Katarina Real. Assim, Marivalda, junto com seu pai de santo
(Jorge de Ogunté) fez duas novas esculturas e as preparou, consagrando Jo-
ventina e Erundina respectivamente a Iansã e a Oxum, que seriam as deusas
protetoras do maracatu de Recife.
Marivalda e Jorge contam que foram instruídos a “fazer o santo das bo-
necas”. Assim, as novas esculturas são filhas desses orixás. Após iniciadas
ritualmente, passaram a presentificar também as próprias deusas na terra
em momentos rituais específicos como nas saídas do maracatu no carnaval.
Após preparadas, as novas esculturas passaram a proteger a nação, agora
ligada a um terreiro de Xango (Ilê Omyn Ogunté) no bairro da Bomba do
Hemetério, ao lado do Alto José do Pinho.
Joventina apresenta-se assim em diferentes imagens, lembranças e histó-
rias que permitem sua existência multipla: imagens gráficas, poéticas, ma-
teriais e corporais que fluem nas possibilidades e biografias associadas à
boneca em questão. Sua trajetória engloba circuitos e classificações variadas
e, desse modo, a calunga ocupa suas diferentes moradas no espaço-tempo.
Katarina Real acompanhou o maracatu Estrela Brilhante em Campo
Grande (1963) fundado por Cosme em 1904. Durante a década de 1960 a

A Alma das Coisas 221


pesquisadora não sabia da existência de um homônimo ainda mais antigo
em Igarassu. É preciso levar em conta que no início do século XX (1904),
a distância entre as duas cidades era de fato muito maior. Recife e Igarassu
compunham universos distintos que quase não mantinham contato, e a cria-
ção de um novo Estrela Brilhante na capital não poderia ocasionar maiores
conflitos. Hoje, Igarassu faz parte do grande Recife. Muitos de seus habi-
tantes trabalham na capital e ambos os maracatus realizam apresentações
durante o carnaval, encontrando-se com cada vez mais frequência. Hoje, a
existência de dois maracatus nação de nome Estrela Brilhante é, de alguma
forma, motivo de piadas, fofocas e trocas de hostilidades em ambos os lados.
Para Katarina, Dona Joventina era a calunga do maracatu de Campo
Grande. Ficava guardada e era cultuada no estado15 do falecido Cosme, ex-
posta apenas nas mãos da dama do paço (pessoa preparada espiritualmente
para carregar a boneca) durante as saídas da nação. Joventina se misturava
ao mestre Cangarussu, um dos mestres de catimbó do centro espírita lo-
calizado na casa de Cosme, que também era a sede do maracatu. Em um
momento de extrema dificuldade para a nação, que estava sob o comando da
viúva Assunção, Katarina foi escolhida pelo próprio mestre Cangarussu para
ser a guardiã de Joventina. Trinta anos mais tarde, resolveu trazer de volta a
boneca, mas ficou confusa por não reconhecer em nenhum dos dois maraca-
tus contemporâneos de nome Estrela Brilhante a nação que pesquisou nos
anos 1960. Entregou então a boneca ao MHN-FJN, pontuando sua própria
trajetória de pesquisa com o maracatu Estrela Brilhante de Campo Grande,
que hoje só existe nas histórias variadas e controversas dos dois outros ma-
racatus também nomeados Estrela Brilhante, um situado em Recife (Alto
José do Pinho) e outro em Igarassú.
Para aqueles que são parte da nação Estrela Brilhante de Recife, o mara-
catu não parou, não acabou; “recolheu”, mas logo voltou às ruas. Marivalda
argumenta que seu maracatu é a continuação do Estrela Brilhante de Cosme,
e que sua Dona Joventina foi refeita em uma nova escultura, que é a Iansã
protetora de sua nação. No Estrela do Alto José do Pinho, a calunga Joventina

15
“Estado é um centro espírita de catimbó e dos mestres. [...] Veludinho, foi ele quem me disse que
Assunção teve um estado e ele também me disse que Dona Santa teve um Estado e eu acho também
que o Estado é ligado a Jurema. Mas eu acho que essas complicações dessas religiões populares é
um grande pesadelo para o pesquisador. Porque você sabe, temos uma mistura de espiritismo branco,
de caboclo, de candomblé, de candomblé de caboclo, de jurema, dos senhores mestres, de umbanda.
E está em plena evolução de dinâmica, não é o que eu encontrei na década de 1960” (entrevista feita
pelas irmãs Barbosa com Katarina Real na CPF em 1998).

222 Clarisse Kubrusly


aparece ora associada a um deus orixá, que é a própria Iansã Gigan, ora ao es-
pírito desencarnado de uma princesa africana, “filha de Iansã”, que é cultuada
anualmente no balé como os eguns. Para Marivalda, a escultura do MHN está
esvaziada de sentidos e seus axés foram transferidos a sua nova escultura.
O ritual da Saída das Bonecas (Joventina e Erundina) acontece no sábado
de carnaval no Ilê Omyn Ogunté, antes do primeiro desfile anual da nação.
Uma semana antes realizam um toque para Iansã e outro para Oxum, no
qual são sacrificados e oferecidos os animais que servem de alimento às deu-
sas protetoras Joventina e Erundina. Dessa forma, o nome de Joventina toma
parte em rituais distintos no centro, onde é venerada tanto como um orixá
quanto como um egum. Marivalda explica que a boneca deveria ter sido de-
volvida a ela, pois se considera a verdadeira herdeira do maracatu de Cosme.
Na lógica da rainha do Alto José do Pinho, a calunga do museu perdeu os
axés, que foram transferidos para a sua Joventina.
Segundo Dona Olga, Joventina era uma das antigas calungas do mara-
catu que foi roubada e estava desaparecida havia muito tempo. Desconhece
detalhes da história, mas argumenta que na década de 1960 só existia o seu
Estrela Brilhante em Igarassu, portanto, não poderia ser de outro maracatu a
boneca trazida pela “gringa”. Não sabe de nenhum Cosme Damião Tavares,
pescador da região, e acusa Marivalda de estar à frente de um maracatu cujo
nome e uma das calungas são antigos pertences roubados de seus antepassa-
dos. A matriarca de Igarassu acredita que a Dona Joventina trazida de terras
estrangeiras por Katarina é a sua antiga calunga e que deveria ter sido final-
mente restituída ao Estrela Brilhante de Igarassu. Para Olga, “mataram o
espírito” quando colocaram a boneca no MHN, mas se ela saísse de lá, Olga
saberia prepará-la de forma a utilizar seu poder e eficácia. É notável que,
apesar de “morta” ou “aposentada”, nas categorias nativas de Olga, ela po-
deria ser refeita, ou reativada e utilizada, reestruturando todo o sistema que
essa calunga articula. É como se seu poder pudesse a qualquer momento ser
reativado com eficácia e precisão, e é por isso que ela é desejada não apenas
por Olga, mas também por Marivalda.

Considerações e desdobramentos da pesquisa

O argumento de ambas as senhoras (Marivalda e Olga) apresenta a ideia


de que os poderes da boneca foram enfraquecidos ou extinguidos quando
guardados por uma instituição e por pessoas que não a conheciam. Segundo

A Alma das Coisas 223


elas, o museu não saberia fazer as preparações e devoções litúrgicas adequa-
das para alimentar o espírito ancestral presente na boneca. Ainda que encarada
como um “espírito morto”, “aposentado” ou “sem axé”, Joventina é desejada
pelas duas rainhas. É como se ela pudesse a qualquer momento ser reativada
e, com ela, a força e proteção que vem “dos antigos”. Essa agência exercida
pela boneca é essencialmente mediadora e estabelece uma conexão entre os
vivos (atuais donos e participantes), os mortos (antigos donos) e os deuses
ou entidades da Jurema (Oxum, Iansã, Cangarussú e a “preta veia”) através
dos sacrifícios e banhos rituais. As calungas são em geral feitas para garantir
a proteção espiritual do maracatu, assim como para mostrar os “caminhos”
a serem percorridos pelas nações de baque virado em Recife.
Nas galerias do MHN, a boneca ressalta mais a experiência da colecio-
nadora que a doou, consagrando a narrativa de Katarina e sua reputação
como pesquisadora, do que o antigo maracatu Estrela Brilhante de Campo
Grande. Em companhia dos adereços e das calungas do maracatu Elefante
de Dona Santa, Joventina também faz falar sobre uma “forma de vida”, sobre
os homens e mulheres dos maracatus, os descendentes de homens pretos do
Recife. No discurso preparado por Katarina para a cerimônia de doação da
boneca em 1996 é Joventina quem tenta justificar a escolha de Katarina, ou
Katarina que tenta justificar sua escolha através de Joventina:

Eu sou a calunga dona Joventina, do antigo Maracatu Estrela Bri-


lhante [...] Durante muitas décadas, eu saí no carnaval e dancei nas
mãos de diversas damas de paço, sempre recebendo os aplausos e a
admiração do povo pernambucano. Mas foi só em 1961 que cheguei
a conhecer a antropóloga Katarina Real, quando ela apareceu na sede
da Nação Estrela Brilhante [...] para entrevistar a dona Assunção, que
era na época presidente da agremiação e viúva do fundador [...] O
Estrela Brilhante saiu nos carnavais de 1961 a 1964, cada ano com
mais dificuldade [...] Durante muito tempo não vi mais Katarina, mas
sei que ela lutou muito para impedir que o Estrela Brilhante acabasse.
Num certo dia em 1966, exatamente há trinta anos, dona Assunção
me enrolou numa toalha e me levou para o apartamento de Katarina,
no 14. andar do Edifício Duarte Coelho, onde havia “A Torre do Fre-
vo”. Ela contou a Katarina que durante uma sessão espírita, lá na casa
dela, um mestre baixou para avisar que dona Assunção não precisava
mais botar o maracatu na rua; que ela podia vender todas as alfaias
da nação com exceção de mim – a calunga Dona Joventina – e que eu
teria que ser dada de presente a Katarina... (Katarina Real, 1996)

224 Clarisse Kubrusly


A relação de Katarina com Dona Joventina e com o maracatu Estrela Bri-
lhante da década de 1960 é mediada por uma série de encontros e finalizada
por um presente/obrigação especial, que foi a guarda da boneca. Contudo,
o maracatu Estrela Brilhante não apenas não deixara de sair às ruas, mas se
multiplicara. Ambos os maracatus de hoje reconhecem na boneca Dona Jo-
ventina substâncias e capacidades para motivações e agenciamentos essenciais
que permitem a comunicação entre o mundo dos homens (vivos), dos antigos
(homens mortos) e dos deuses e entidades protetoras de cada maracatu.
Segundo Olga, a antropóloga roubou Joventina e, arrependida, veio de-
volvê-la. Mas achou que era do outro Estrela Brilhante e não quis devolver para
Igarassu. Nas palavras de Olga, ela “matou o espírito” ao colocá-la no museu,
“ninguém pode mais tocar e usar o poder dela (da boneca)”. Olga gostaria de
ter a boneca, já que reconhece nela sua origem ligada a Igarassu, além de atri-
butos mágicos poderosíssimos. Além disso, a matriarca de Igarassú gostaria de
reativar a força que reside em potencial na escultura, mas que está enfraquecida
pela falta de conhecimento das práticas adequadas a serem feitas com a calunga
sagrada. Diz que “Katarina inventou tudo” e que por conta do nome em comum
– Estrela Brilhante – confundiu os maracatus e não quis mais devolver a boneca
para nenhum dos dois maracatus Estrela Brilhante atuantes.
O que significa um maracatu ir para o museu? E para quem? São algumas
das questões que receberam aqui um olhar cuidadoso. Para os integrantes
de maracatu, ir para o museu significa dizer que a nação “parou”, “recolheu”,
“morreu”, “se aposentou”, já que seus desfiles e rituais deixam de existir
para que outra forma de vida mais contemplativa fale para um outro público
sobre aquele período em que o maracatu saía às ruas. Apesar das respostas
ligadas à reclusão e aposentadoria de objetos e maracatus em geral, os dois
Estrelas pareciam querer saber mais, querer ir ver a boneca e visitar o MHN
para avaliar as reais possibilidades de colocar enfim Joventina em seus afaze-
res primordiais, a movimentar o mundo.
Fazendo um esforço de sistematização cronológica, o maracatu pesqui-
sado por Katarina em Campo Grande pode ter sido uma dissidência do de
Igarassú. Também foi por dissidências e descontinuidades que o maracatu de
Campo Grnade foi continuado no Alto José do Pinho.
As “biografias de objetos” (Kopytoff, 1986) podem ajudar a salientar
questões que porventura ficam obscurecidas em narrativas oficiais. O MNH
oferece uma versão limitada dessa biografia da boneca Joventina. Apresenta
a versão da antropóloga norte-americana doadora do acervo, mas não dá
conta das controvérsias e conflitos que disputam outras versões dessa mes-

A Alma das Coisas 225


ma e variada história. A riqueza das informações etnográficas sobre a boneca
revelou-se interessante também pela abundância de possibilidades (mestre
Cangarussu, Iansã Gigan, Preta Velha ou o totem roubado de Igarassu). Con-
tudo, o que é significativo nessas trocas culturais não é o fato de objetos e
ideias estranhas serem negociadas e importadas, mas sim o fato de que tais
“importações” são reclassificadas, ressignificadas, reestruturadas em seus
usos, tornando-se “próprias” do grupo que “faz”, “utiliza” de forma criativa
e única a boneca Joventina (Kopytoff, 1986, p. 67).
No imaginário maracatuzeiro os museus estão associados à noção de
“morte”, pois “recolhem”, “sem saída”. Como ressaltou Dona Olga, “uma
vez no museu para sempre nele”. Por outro lado, o mesmo museu que mata
e recolhe, marca e legitima, imortalizando uma “história oficial” sobre esses
maracatus de baque virado em Recife.
O deslocamento de objetos sagrados tais como as calungas de maraca-
tu cria um vazio de significado, uma “saudade” nos que deixam de fazer, de
prepará-los para sair às ruas, possibilitando a criação de novas nações, como
pretendi mostrar com o caso da boneca Joventina e os maracatus Estrela Bri-
lhante de Recife e de Igarassú. Assim, para os integrantes de maracatu, o mu-
seu “expropria”, “aliena” (ressignificando) aquilo que é palpável, que acaba e
que pode ser refeito, mas não aquilo mesmo que é vital e, portanto, permanece
na própria noção de ancestralidade16 presente nas práticas e cultos aos eguns,
orixás e mestres. A imaterialidade das coisas que permanecem por nature-
za própria e duradoura, como aquilo que se pretende eterno e “inalienável”
como o “ancestral”, não deixa de ser e se refazer no tempo e nas trajetórias de
deslocamentos e reelaborações de “crenças” e “objetos”. Desse modo, ambos
os maracatus continuam praticando seus rituais de caráter fechado e aberto e
mantendo entre seus segredos o culto às calungas de madeira.
O vazio e a “saudade” gerados pelo “recolhimento” criam alternativa de
refabricar aquilo que é inalienável, aquilo que, embora se modifique, não
deixa de “ser” na medida que os “antigos” estão sendo refeitos nos “novos”,
com os quais mantêm uma consubstancialidade alegada e notável. Nesse
artigo chamei a atenção para a complexidade envolvida na guarda e na ma-
nutenção das calungas de madeira, que depois de esculpidas com o objetivo
de se tornar um corpo humano perfeito, são feitas e alimentadas para agir.

16
Nas palavras nativas ancestral é aquilo que vem “dos antigos” de tempos imemoriais, do tempo dos
africanos em recife e na africa e que permanece em uma memória física, prática, corporal e duradoura,
essencial para a fabricação dos corpos e para a manutenção e ciação da vida.

226 Clarisse Kubrusly


Concebidas como verdadeiros sujeitos de ação, desestabilizam nossas no-
ções de sujeito e objeto. Tais bonecas permitem a desessencialização e a
comunicação entre mundos, relacionando vivos, mortos e divindades. São
objetos especiais e potentes, com sabedorias próprias e eficácia comprovada
pelas experiências vividas trazidas aqui pelos maracatus de nome Estrela
Brilhante de Recife, em Pernambuco.
A calunga Joventina é ainda hoje motivo de disputas e dissidências com
relação à história desses maracatus de nome Estrela Brilhante. Contudo,
recentemente esses dois grupos se juntaram diante do MHN, reivindican-
do as documentaçãoes de Katarina Real e pleiteando a possibilidade de um
repatriamento da escultura sagrada. Nessa luta política e identitária, a dife-
rença entre esses dois maracatus tão marcada por eles se dissolveu perante
a instituição do museu da Fundação Joaquim Nabuco. Os dois maracatus a
princípio rivais estão juntos desde a realização do documentário Dona Joven-
tina17 (Kubrusly; Barreto, 2010) lutando pela retirada da escultura sagrada
do museu. A disputa sobre com quem ficará a boneca parece já estar re-
solvida por eles, que até o momento concordam que a escultura deveria ir
para Igarassu, já que no Alto José do Pinho outras esculturas foram feitas e
funcionam em seus afazeres de proteção. Ainda assim, as duas nações não
parecem satisfeitas com a atual morada da calunga e permanecem em uma
luta pela retirada da escultura sagrada do MHN.

Figura 8.3. Dona Joventina acompanhada do Maracatu Leão Coroado


na Fundaj. Festa pela ocasião em que Katarina Real recebeu o título
de cidadã do Recife, 24/11/1967. Acervo iconografia Fundaj

17
Dona Joventina (26min, 2010) é um Documentário etnográfico partocinado pelo edital do prêmio
Etnodoc 2009. Direção: Clarisse Kubrusly e Milena Sá. Montagem Julia Barreto Produção Murilo Saroldi.

A Alma das Coisas 227


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230 Clarisse Kubrusly


9.

ENTRE A RODA DE BOI E O MUSEU:


UM ESTUDO DA CARETA DE CAZUMBA

Flora Moana Van de Beuque

No ano de 2006, o artesão Abel Teixeira proferiu uma palestra no Museu


Casa do Pontal1 no Rio de Janeiro, instituição dedicada à exibição de arte
popular brasileira. Esse senhor maranhense, de 72 anos, é produtor das ca-
retas do cazumba, máscaras utilizadas pelo personagem cazumba na festa do
bumba meu boi. Abel tem um duplo papel: além de artesão das máscaras,
também atua como o personagem cazumba.
Esse foi meu primeiro encontro com Abel. Mas antes da palestra já co-
nhecia suas caretas e algo sobre sua história. Meu contato com suas más-
caras se deu no mesmo Museu Casa do Pontal, espaço que frequento desde
a infância, já que foi criado por meu avô, o designer francês Jacques Van de
Beuque.2 Informações sobre Abel e as caretas também chegaram a mim por
outras fontes: pessoas próximas3 já haviam falado muito sobre ele; eu pos-
suía em minha casa uma miniatura de sua máscara; conhecia ainda um livro
sobre a careta (Mazzillo; Bitter; Pacheco, 2005).

1
O Museu Casa do Pontal está localizado no Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro. Exibe uma
coleção de “arte popular brasileira” formada por mais de 8 mil esculturas, produzidas por cerca de
duzentos artistas de vinte estados brasileiros.
2
Jacques Van de Beuque (1927-2000) nasceu em Bavey, no norte da França, e veio para o Brasil com
o término da Segunda Guerra Mundial, fixando residência no Rio de Janeiro. Formado em Belas Artes,
em Lyon, desde o início de sua estadia no Brasil, interessou-se pela chamada “arte popular brasileira”
(Mascelani, 2006).
3
Entre essaspessoas destaco especialmente a psicanalista Elisabeth Bittencourt e sua filha, a atriz e
pesquisadora, Juliana, que conhecem Abel há anos. Elas têm forte ligação profissional e pessoal com ele.

A Alma das Coisas 231


A palestra de Abel no Museu Casa do Pontal me instigou fortemente a co-
nhecer mais o universo festivo no qual a máscara se inseria, o qual conhecia
pouco e parecia ser de uma riqueza ímpar. Ao elaborar o projeto de pesquisa
cujos resultados apresento aqui, decidi por fazer um estudo antropológico
sobre a careta. Nele, optei por aprofundar meus conhecimentos sobre o uso
festivo da máscara e acerca das diversas “vidas” desse objeto (já que ele cir-
cula entre a festa, os museus e o comércio para turistas). Assim, esse artigo
é fruto de uma etnografia da produção, uso e circulação da careta de cazumba
por diferentes contextos sociais.
Para dar início ao estudo, fui à casa de Abel em São Luís no Maranhão,
em novembro de 2008. Nesse encontro pude conhecer mais profundamente
sua trajetória. O trabalho de Abel como artesão das caretas é reconhecido
no universo da festa e fora dele também. Ele nasceu em 1939 no povoado
de Santo Inácio, no município de Viana, na Baixada maranhense. Em 1978,
migrou para a capital do estado, São Luís. Em Viana era agricultor. Na capital
do estado trabalhou principalmente como vigilante no serviço público, além
de vender as caretas que produzia. Esteve sempre ligado à prática do bumba
meu boi, antes e depois da ida para a capital. Atualmente, encontra-se apo-
sentado do serviço público e é casado com Meire, sua segunda esposa, com
quem reside num bairro popular de São Luís, chamado Coroadinho.
Ele é muito procurado por pesquisadores e admiradores de sua produ-
ção, que também querem ter mais informações sobre sua atuação como
cazumba.4 Já foram feitas algumas exposições temporárias nas quais fi-
guravam suas caretas, como no Museu do Folclore Edison Carneiro, no
Centro Cultural da Caixa Econômica (ambos no Rio de Janeiro) e no Cen-
tro de Cultura Odílio Costa Filho, no Maranhão. Suas caretas compõem
o acervo de museus no Brasil (Casa do Maranhão, Maranhão; Museu do
Folclore Edison Carneiro e Museu Casa do Pontal, Rio de Janeiro; Museu
Afro-Brasileiro, em São Paulo, e outros) e no mundo (Museu da Máscara
em Bragança, Portugal).
Já nesse dia, em sua casa em São Luís, pude perceber que além de a careta
ser ressignificada nesse processo de deslocamento, Abel também parecia ter
sua identidade ressignificada à medida que participava desse novo circuito.
A posição de “artista popular” que alcançou em alguns meios o diferenciava

4
A descrição desse personagem mascarado da festa do bumba meu boi, que tem características
complexas, entre elas um viés cômico e outro assustador, será feita de forma aprofundada a seguir, a
partir de relatos etnográficos.

232 Flora Moana Van de Beuque


dos seus colegas cazumbas, que em sua maioria produziam máscaras quase
exclusivamente para uso no período festivo.
O antropólogo Igor Kopytoff (2008) diz que as coisas podem ser estuda-
das como se fossem pessoas, sendo rentável pensar a “vida social das coisas”.
Ainda segundo ele, nos grupamentos humanos de grande escala, as identida-
des em geral seriam menos estáveis, daí a possibilidade de múltiplas classi-
ficações e reclassificações, extensivas aos objetos. Inspirada em Kopytoff, fui
em busca da biografia cultural das máscaras do cazumba por seus distintos
contextos de significação.
Ao longo da pesquisa, no entanto, fui me dando conta de que Abel e
a máscara constituíam-se como uma díade inseparável, que meu trabalho
consistia não só no acompanhamento da máscara pelos distintos contextos
sociais, mas também da circulação de Abel por eles. A circulação da máscara
se dava junto com a de Abel; e, nesse processo, ambos se ressignificavam. A
pesquisa, assim, se debruçou consideravelmente sobre Abel.

Entrando no contexto festivo

No contexto festivo, o estudo concentrou-se no grupo de bumba meu boi


Boi da Floresta – grupo no qual o artesão participa como cazumba – e nos
acontecimentos vivenciados por mim nas viagens feitas à região da Baixada
maranhense junto com o artesão.5 No que identifico como universo de cir-
culação da máscara fora da festa, concentrei a pesquisa em alguns museus
(são eles os citados Casa do Maranhão, Museu de Folclore Edison Carneiro
e Museu Casa do Pontal) e em alguns atores sociais que contribuem para o
deslocamento da careta e de Abel.
Para adentrar o contexto festivo cabe uma pequena introdução ao univer-
so dos folguedos do boi e ao personagem cazumba. Esse folguedo existe Bra-
sil afora, assumindo diversas feições, envolvendo brincadeiras variadas em
torno da figura de um boi. Dependendo da região em que é realizado, pode
variar em muitos aspectos: em relação às características da ação ritual,6 da

5
Foram quatro idas ao Maranhão entre 2008 e 2009. Em novembro de 2008, estive lá por uma
semana. Em 2009 estive quinze dias em fevereiro, vinte dias entre junho e julho e dez dias em setembro.
6
Entendo ritual, em primeiro lugar, como um domínio privilegiado de expressão simbólica (Giumbelli;
Cavalcanti, 2009). Também é possível pensá-lo  como um momento especial, que se contrapõe ao
tempo ordinário e é instituído por diferentes mecanismos de ritualização, personagens, gestos e roupas
características (DaMatta, 1979).

A Alma das Coisas 233


época do ano em que se desenrola ou do nome que recebe. Apesar das va-
riações, podemos classificar todos da mesma forma, como folguedos do boi,
pois têm características fundamentais em comum. Sempre encontramos um
boi-artefato, feito em madeira ou outro material como o plástico, que é ani-
mado por um brincante, e em torno do qual está uma série de personagens
que cantam, dançam, atuam, tocam, etc. A brincadeira é associada ainda ao
mito de “morte e ressurreição do boi” (Cavalcanti, 2000).7
Não só entre os estados brasileiros existem diferenças na forma de
brincar,8 já que alguns folguedos do boi da mesma região e que recebem a
mesma denominação se expressam de maneira heterogênea entre si. É o caso
do bumba meu boi que se realiza no Maranhão. Uma classificação bastante
disseminada nesse estado divide os grupos de boi em diferentes sotaques,
que designariam estilos e/ou demarcariam regiões de origem. Existiriam
cinco sotaques predominantes: zabumba, costa-de-mão, matraca, orques-
tra e baixada (Carvalho, 1995). O cazumba é um personagem encontrado
principalmente nos grupos considerados do sotaque intitulado baixada. Esse
sotaque compreende, principalmente, aqueles grupos que estão sediados na
região da Baixada maranhense9 ou se localizam em São Luís e foram forma-
dos por pessoas que migraram daquela região.
A partir das observações possibilitadas pelo trabalho de campo, é possível
dizer, como introdução ao cazumba, que esse é um personagem ambíguo: ao
mesmo tempo que é cômico também é assustador, e comete pequenas trans-
gressões.10 Sobre sua máscara, pode-se afirmar que é muito importante para
o pleno exercício das funções rituais do personagem. No contexto pesquisa-
do, existem muitos tipos de máscaras, que podem ser feitas com materiais

7
Existe uma densa bibliografia que abordou o folguedo do boi: Andrade, 1982; Azevedo Neto, 1997;
Borba Filho, 1966; Pereira de Queiroz, 1967; Cavalcanti, 2006b, 2006c, 2000. Entre os que estudaram
mais especificamente o bumba meu boi do Maranhão, destacam-se: Albernaz, 2004; Araújo, 1983;
Bueno, 2001; Carvalho, 2005; Carvalho, 1995; Lima, 1982; Prado, 2007.
8
Modo de denominar o ato de festejar, utilizado por participantes de festas populares de vários
contextos brasileiros.
9
“A Baixada maranhense é assim denominada por ser uma região de campos baixos, possuindo
numerosos rios, lagos e campos alagados. Economicamente essa região sobrevive da agricultura e
pesca” (Matos, 2010, p. 13).
10
Diversos autores analisaram a atuação ritual do cazumba e abordaram a importância da máscara
para sua ação no contexto festivo (Bittencourt, 2009; Lody, 1995, 1999; Ferretti, 1986; Ferretti e Matos,
2010; Manhães, 2009; Matos, 2010; Mazzilo; Bitter; Pacheco, 2005). O presente trabalho se diferencia
dos demais por analisar de forma aprofundada o lugar da máscara no contexto ritual, assim como por
investigar de forma inédita a circulação desse objeto por contextos exteriores à festa.

234 Flora Moana Van de Beuque


diversos e com diferentes técnicas. De forma geral, podemos dividi-las em
dois estilos principais: as menores e as de grandes formatos. As menores,
que cobrem apenas o rosto, costumam representar um ser antropozoomórfi-
co. Feitas de madeira, pano, plástico ou papel machê, podem incluir simulta-
neamente diferentes misturas de materiais. As do segundo tipo são as maio-
res, que recebem os nomes de torre ou igreja, e costumam ser compostas de
uma máscara menor que cobre o rosto e de uma estrutura que sobe acima
da cabeça. Essa estrutura também pode ser feita em materiais diversos como
ferro ou isopor, costuma ser muito alta e é amplamente decorada.

Figura 9.1. Cazumba criança do grupo Boi da


Floresta usando máscara do tipo menor em
apresentação no período junino em São Luís,
28/06/2009. Fotografia da autora

A Alma das Coisas 235


Além da máscara, o cazumba utiliza uma veste que cobre o corpo todo e
tem também grandes nádegas. Ele leva ainda um sino, que é seu instrumen-
to percussivo, e pode ter outros acessórios como chicotes e bonecas. A ação
ritual do cazumba se dá principalmente no interior da roda do bumba meu
boi. Dentro dela o grupo de cazumbas dança, um atrás do outro, de forma
circular. Tem um aspecto que caracteriza especialmente a dança do cazumba:
o brincante que dá vida ao personagem, ao longo de sua “performance”, mexe
seu quadril para um lado e para o outro, fazendo balançar as grandes nádegas,
o que torna a cena cômica. O cazumba não precisa permanecer o tempo todo
dentro da roda, é um dos poucos personagens que pode abandoná-la. Nesses
momentos pode fazer traquinagens com os demais participantes da festa.
Ao analisarmos sua atuação durante a festa, a importância da máscara e da
indumentária na eficácia ritual do cazumba será reforçada. Esses objetos aju-
dam a produzir o cazumba, assim como seus efeitos no contexto festivo. Eles
contribuem para o personagem produzir alguns sentimentos nos participantes
da festa, como medo, curiosidade, atração e graça. Como veremos adiante, aju-
dam a construir os sentidos míticos desse personagem, o inventam. Produzem
ainda relações de rivalidade entre os cazumbas, que disputam para saber quem
tem a melhor “careta” ou “torre”. Assim, é possível afirmar que a máscara
tem agência, no sentido colocado por Alfred Gell (1998), já que ela tem uma
atuação social e é produzida para causar efeitos nas pessoas.

O Boi da Floresta em São Luís

Foi através de Abel que cheguei ao grupo Boi da Floresta, que se tornou
um dos meus espaços privilegiados de pesquisa no contexto ritual de inser-
ção da máscara. Abel participa do grupo desde que chegou à capital do estado
maranhense e é um dos principais cazumbas do grupo. Seu trabalho como
artesão de caretas é bastante reconhecido ali, mesmo que ultimamente outro
artesão, Nilson, também tenha se destacado.
O Boi da Floresta tem sua sede em um bairro popular de São Luís: Liber-
dade. O grupo tem como líder Apolônio Melônio, que fez 93 anos em julho
de 2011 e continua atuante no Boi da Floresta. Por conta de sua idade, no
entanto, sua esposa tem estado mais ativa na condução do grupo. O Boi da
Floresta tem em torno de 130 integrantes, a maioria provinda das camadas
populares e com alguns integrantes das camadas médias, que se dividem
entre os diferentes personagens. O grupo foi criado na década de 1970 e uma

236 Flora Moana Van de Beuque


de suas características é a proximidade com grupos de intelectuais e pes-
quisadores. O seu ciclo festivo desenrola-se entre os meses de março/abril
e setembro. Suas atividades se iniciam com os ensaios do grupo realizados
a partir do último dia da Semana Santa no calendário católico. No dia 23 de
junho acontece o batizado, evento no qual o boi, artefato em torno do qual se
faz a brincadeira, é habilitado simbolicamente para brincar.
Durante os meses de junho e julho o grupo é contratado prioritariamente
pelo governo para brincar em espaços públicos (arraiais) por toda a cidade
de São Luís. Também é possível se apresentarem durante o São João na porta
da casa de amigos do grupo. Suas apresentações são feitas em roda. Na parte
exterior dela, se localiza a tribo de índios, composta majoritariamente por jo-
vens que dançam em círculo de maneira vigorosa e coreografada. Em direção
ao centro da roda, dança o grupo de cazumbas. No centro da roda brincam
alguns personagens: o boi e seu vaqueiro, Pai Francisco, Catirina, a onça, a
burrinha e outros. Atrás da roda, em semicírculo, estão os baiantes, os mú-
sicos e cantadores, e entre eles o amo. A apresentação se desenrola pautada
pelas diferentes toadas, que são as músicas próprias do bumba meu boi.
Em setembro, o Boi da Floresta costuma encerrar seu ciclo festivo com a
Morte do Boi. Nessa festa, de cunho mais comunitário, é encenada a morte
do boi pelo grupo.
O número de cazumbas do Boi da Floresta varia muito. Durante o perío-
do em a pesquisa foi realizada existiam em torno de 15 pessoas que atuavam
como o personagem, de faixas etárias distintas: crianças, jovens, adultos e
idosos. As vestes e máscaras são normalmente feitas por integrantes do gru-
po e circulam intensamente entre eles. A atividade de feitura das caretas
envolve disputa entre os participantes do Boi da Floresta e com os demais
grupos. Uma particularidade dali é a presença de mulheres como cazumbas,
o que não é muito recorrente em outros contextos. Essas mulheres são nor-
malmente provindas das camadas médias.

Circulando pela Baixada maranhense

Em todas as conversas que tivemos desde que nos conhecemos, Abel


falou com bastante entusiasmo das suas atividades como cazumba quando
morava no interior maranhense. Mesmo que Abel tenha tido essas experiên-
cias há muitos anos e saiba que as festas no interior passaram por mudanças,
sempre insistiu para que eu fosse a essa região. Ele é muito crítico em rela-

A Alma das Coisas 237


ção às mudanças ocorridas no interior e o seu principal alvo são as torres,
máscaras altas bastante usadas pelos cazumbas da região. Porém, igualmente
ele afirma que além dessas práticas, que ele não valoriza, também é possível
ver na Baixada cazumbas em ações rituais especialmente interessantes.
Num estudo sobre as tradições cômicas do bumba meu boi, Carvalho
(2005) também mostrou que Betinho, seu principal interlocutor, insistia
para irem juntos para o interior maranhense. Betinho dizia que lá, sim, ele
poderia “mostrar-lhe a ‘verdadeira tradição’” (p. 77). Tanto Abel como Be-
tinho localizam no interior as brincadeiras mais interessantes, aquelas que
não poderiam ser encontradas na capital, e querem que seus interlocutores
tenham conhecimento dessa referência que tanto valorizam.
Mesmo que eu não aposte na existência de brincadeiras mais ou menos
autênticas, ir à Baixada foi de fato uma possibilidade de entender melhor,
entre outras questões, a relação de Abel com o interior. Fui duas vezes para
essa região. Na primeira ida, fui à cidade de Viana, e pude conhecer alguns
cazumbas e artesãos de careta dali. A segunda ida deu-se no mês de junho,
durante o período festivo do bumba meu boi. Dessa vez pude presenciar con-
textos rituais distintos, como um arraial no município de Matinha (quando
uma série de grupos se apresentou durante uma hora cada na praça central
da cidade); um boi de promessa no município de Viana (em que dois grupos
brincaram durante uma noite inteira, com objetivo de cumprir o pagamento
de uma promessa, e para tal ocorreu o ritual da matança); e uma festa rea-
lizada na cidade de Viana, que ocorreu durante algumas horas da noite, na
qual um grupo foi pago para brincar na porta do contratante.
Estar com Abel no interior me ajudou a entender um pouco mais sua
complexa trajetória. Na primeira ida à Baixada, em 2009, em Viana, pude co-
nhecer Onório Serra, cazumba amigo de Abel. Quando o encontramos, ele foi
logo contando que era considerado o melhor cazumba de Viana. Onório Serra,
que faz as torres, gabava-se de ter ganhado o concurso da região de melhor ca-
zumba. Esse concurso, como entendi depois, não havia existido de modo ins-
titucionalizado, mas era o jeito com que todos se referiam ao consenso geral
estabelecido entre os brincantes de que ele era o melhor. Senti que Abel estava
desconfortável por não fazer as máscaras grandes, por ter de ouvir calado que
o outro era o melhor fazedor de careta de Viana. De maneira arguta, ele justi-
ficou sua opção dizendo: “eu faço as pequenas porque elas me levaram mais
longe”. Nessa fala, Abel expressa o poder de agência das suas máscaras, reve-
lando a capacidade desses objetos por ele produzidos de promover seu des-
locamento social, seu reconhecimento como artista, etc. Percebemos, assim,

238 Flora Moana Van de Beuque


que a máscara também tem agência fora do contexto ritual (ela o levou “mais
longe”, o fez circular como artista por outros estados do Brasil, ou mesmo por
espaços fora do país). Vemos também essa agência fora da festa ser poderosa
no contexto festivo, já que é acionada por Abel na relação de rivalidade com
o outro cazumba: ter ido “mais longe” o deixa competitivo perante Onório.
Sobre a questão mais geral da competição entre os cazumbas, o estudo
de Cavalcanti (2006a) sobre desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro
pode nos ajudar a pensá-la. A autora explorou o caráter competitivo desses
desfiles, mostrando que a disputa é um modo de relacionar-se que instaura
um vínculo entre os participantes. Acredito ser possível fazer um paralelo
entre essa dimensão do universo das escolas de samba e a brincadeira dos
cazumbas. Além da conversa entre Onório e Abel, em outras situações pude
perceber que, no contexto festivo em geral, aqueles que dão vida a esse perso-
nagem mascarado disputam intensamente entre si. A competição parece ser
bastante importante na sociabilidade dos cazumbas, apresentando-se como
um modo de se relacionar, mas também como um propulsor das relações.

Reflexões sobre cazumbas e caretas no contexto festivo

Apesar das diferenças entre a festa na capital São Luís e os circuitos de


apresentação pelos quais pude transitar no interior (na região da Baixada), é
possível dizer que existem pontos em comum entre os dois contextos em re-
lação à produção, ao uso e à circulação das máscaras dos cazumbas. A seguir
darei foco nessas semelhanças, trazendo, sempre que necessário distinções
entre os contextos.

Sentidos do cazumba

Sobre os sentidos do cazumba, tanto no Boi da Floresta como na Bai-


xada, fala-se sobre sua alegria, o lado cômico, as pequenas transgressões, a
capacidade de assustar e seu mistério. Quando perguntei a alguns brincantes
quem era esse personagem, ouvi diferentes respostas: Genilson (fevereiro
de 2009), cazumba da Baixada, disse: “Na tradição ele era o cachorro, que
trazia o boi para matar.” Genilson mostra que o cazumba funciona como uma
espécie de carrasco no mito associado à festa do bumba meu boi.
Sobre o personagem, o cazumba Nico (fevereiro de 2009), também da
Baixada, afirmou: “O cazumba é um velho gagá que tinha na fazenda, o Pai

A Alma das Coisas 239


Francisco. Diziam que até virava bicho.” Em sua fala ele faz referência ao
mesmo tempo às características animalescas (bicho), humanas/grotescas
(velho gagá) e sobrenaturais (virava bicho) do personagem. Também vemos
Nico fazer uma associação entre o personagem do bumba meu boi Pai Fran-
cisco e o cazumba.
A fala dos brincantes sobre a ação ritual do cazumba também pode ser
reveladora. Sobre a sua atuação como cazumba na festa, Onório Serra (feve-
reiro de 2009) disse:

Eu enfeito muito a boiada, chama a atenção a boiada. A boiada


que estou brincando é muito aplaudida. Onde eu estiver brincando
é aplaudida a boiada, até os bailantes se animam na cantiga. Se a
brincadeira tá meio devagar, eu animo. Eu chamo a atenção. Tem um
monte que se apronta e não sabe dançar. Eles não sabem fazer a careta
e não sabem dançar.

Parece que Onório vê a realização correta da dança como um exercício


fundamental para ser um cazumba bem-sucedido, já que, durante as apre-
sentações, na maior parte do tempo o personagem está dançando. A dança
costuma agradar, entre outros motivos, pelas grandes nádegas do persona-
gem, que dão força a seu lado grotesco e, quando balançam, fazem todos rir.
Onório também aponta para o fato de que o cazumba anima a brincadeira.
Fabriciano, cazumba do Boi da Floresta, disse em julho de 2009:

O negócio ali é uma fantástica que tem na boiada. Você tá aqui, fe-
chado de gente aqui, vem um cazumba por lá, vai se afastando. É
um negócio de encaretado, ninguém olha a feição dele. É um tipo de
negócio de satanás.

Suas palavras nos fazem refletir sobre uma discussão empreendida por
Daniel Bitter (2008), que assinala que em seu trabalho de campo junto a
um grupo de Folia de Reis no Rio de Janeiro, os palhaços foram associados
pelos brincantes a figurações míticas consideradas perigosas, como diabo
e exu. A partir das proposições de Victor Turner (1982), ele mostra que
diabo e exu podem ser vistos como seres ambíguos, posicionados além
da estrutura social; e pelo fato de o palhaço ser associado a essas figuras,
ocupa posição parecida. Fabriciano, ao relacionar o cazumba à figura do
satanás, outro modo de chamar o diabo, nos leva a refletir que os cazumbas
podem ocupar posição simbólica análoga à dos palhaços, exus, diabos e
outras figuras míticas.

240 Flora Moana Van de Beuque


Como visto, os sentidos do cazumba são diversos. É possível rir do modo
como ele dança, mas também se assustar com sua imagem. É possível rir
das traquinagens que ele faz com os outros e não gostar de ser alvo de suas
brincadeiras. Ao mesmo tempo, o cazumba é um personagem que anima a
brincadeira e que traz vestes e máscaras exuberantes. No mito de “morte e
ressurreição do boi” relacionado à festa, ele é aliado do Pai Francisco (que
em algumas versões é responsável pela morte do boi), e não se sabe se é um
humano, um animal ou um ser sobrenatural. Assim, o cazumba se apresenta
como um personagem complexo, que atrai, descontrai, mas assusta. Ele se
mostra um ser liminar que pode ser tomado como símbolo “multivocal, uma
molécula semântica com muitos componentes” (Turner, 2005, p. 149).
Vimos que, de modo geral, os sentidos do cazumba na Baixada asseme-
lham-se àqueles associados ao personagem no Boi da Floresta. Porém, exis-
tem diferenças entre os contextos: na Baixada, o cazumba parece ter um
leque mais amplo de atividades rituais. Isso se mostra, por exemplo, nas di-
versas ações rituais que pude presenciar dos cazumbas em uma festa do boi
de promessa na Baixada: “sequestrando” um rapaz, dançando forró de modo
grotesco, assustando os meninos, correndo em suas direções, etc. Esse fato
não muda significativamente os sentidos do personagem, mas na Baixada
talvez seja possível perceber o conjunto de características do personagem de
maneira mais explícita. Percebi também que o cazumba tem ali suas ativida-
des mais ligadas a questões do universo rural.

Uma careta para brincar

Existem muitos modos de se obter uma careta para brincar no contexto


festivo. De modo geral, é possível que: 1) o líder do grupo compre uma más-
cara de algum artesão e passe para o brincante; 2) a pessoa compre direta-
mente do artesão; 3) alguém não queira mais utilizar uma careta e a doe ou
venda para outro; 4) seja produzida a partir de tentativas solitárias; 5) que
alguém que já saiba fazê-la ensine ou ajude novatos no processo de confec-
ção; 6) que se compre uma máscara industrializada e se enfeite.
Esses meios de obter a careta indicam que ela circula muito no contexto
festivo, através de trocas. Existem várias formas de se trocar a careta nos
grupos, e podem envolver dinheiro ou não. É possível que a troca seja reali-
zada com intuito religioso, o que foi abordado pelo cazumba Nilson (julho
de 2009), do Boi da Floresta: “Eu sempre faço uma careta e, quando acaba
a temporada, eu dou ela pra São João, que fica lá na sede, e Nadir passa pra

A Alma das Coisas 241


outro brincante.” A fala desse cazumba é bem interessante, já que Nilson
parece oferecer a máscara ao grupo numa relação de troca com o santo. A
discussão empreendida por Marcel Mauss em Ensaio sobre a dádiva (2003)
pode contribuir para refletirmos sobre o caso de Nilson. A partir de diversos
relatos etnográficos, o autor fala sobre as trocas voluntárias realizadas como
se fossem presentes gratuitamente dados, recebidos e retribuídos. Porém,
apesar de não ser explicitado pelos participantes das trocas, ele revela que
subjaz a elas a obrigatoriedade de dar, receber e retribuir. Assim, toda dádi-
va pressupõe uma contradádiva. É possível que na relação de Nilson com o
santo essa questão se apresente. Podemos pensar que, ao entregar a máscara
a ele, o artesão espere uma contradádiva em retorno.
É interessante que, mesmo que se compre a máscara de um artesão, a
receba por doação, usada ou industrial, o cazumba dificilmente deixará de
fazer algum acréscimo a ela por conta própria. Por meio do enfeite é possível
transformar uma máscara que pode ter sido de outra pessoa ou que obedeça
a determinada padronagem em algo que passa a ter as características daquele
que a utiliza. O cazumba Bruno, do Boi da Floresta, que é um adolescente, é
um exemplo, já que fez um enfeite que deixou sua careta com características
bem particulares. A careta tem o formato igual a de muitos cazumbas do
grupo, mas é enfeitada de modo singular, com o que representa uma espécie
de “cabelo” do personagem com comprimento maior que o usual.

Figura 9.2. Cazumba com máscara em


São Luís. Fotografia: Flora Moana Van
de Beuque

242 Flora Moana Van de Beuque


Essa diversificação dos formatos das máscaras estaria relacionada aos
sentidos do cazumba. Esses personagens são mais singularizados uns em re-
lação aos outros do que os demais da festa; dessa maneira, suas caretas tam-
bém precisam ser. Os cazumbas são diferentes de personagens totalmente
singularizados da festa do bumba meu boi, como o boi ou o amo, e também
fazem contraste com personagens mais homogêneos entre si, como a tribo de
índios – os cazumbas são diferentes entre si, particularizados, mas também
atuam em grupo, tendo um propósito de coletividade. Assim, a liminaridade
do cazumba, construída nas suas ações individualizadas e livres dentro da
brincadeira, é reproduzida nos aspectos formais da máscara; a singularidade
da máscara produz uma ação ritual mais efetiva do cazumba.
Além da necessidade de cada cazumba singularizar sua máscara, também
há a ideia de que esses objetos precisam ser fruto de ações inventivas e não
tradicionais. O artesão que tem criatividade individual seria então valoriza-
do nesse contexto, abrindo margem para uma inventividade sem limites. Um
exemplo dessa inventividade foi uma máscara que vi em Matinha, na Baixada,
que era totalmente diferente das demais: representava um homem em tama-
nho grande e o rosto do brincante se localizava na altura da barriga da figura.

Figura 9.3. Cazumba com


máscara que representa um
homem em Matinha, MA.
Fotografia: Flora Moana Van
de Beuque

A Alma das Coisas 243


A produção das máscaras é, ao mesmo tempo, uma atividade realizada
por especialistas e por não especialistas. Existem os artesãos reconhecidos
por fazer as máscaras muito bem e que são convidados a confeccioná-las para
terceiros, mas elas também podem ser feitas por alguém que não é conside-
rado especialista pelo grupo. No Boi da Floresta, os dois artesãos tidos como
especialistas pelos integrantes do grupo (Abel e Nilson) criaram um estilo
inconfundível de caretas e costumam vendê-las para o grupo ou individual-
mente, para brincantes. Eles também lecionaram em oficinas de produção
desses objetos nos grupos.
Como em São Luís o personagem cazumba existe basicamente em al-
guns poucos grupos de bumba meu boi cujos fundadores são oriundos da
Baixada maranhense, não existem por lá tantos artesãos da máscara. Já na
Baixada, como a quase totalidade dos grupos possuem cazumbas, existem
muitos artesãos: tanto aqueles que fazem as máscaras para uso próprio como
os especialistas que as produzem para vender a terceiros. Os artesãos com
trabalho reconhecido pelos demais brincantes na Baixada costumam enfati-
zar seu talento pessoal para a atividade. Existe a forte construção da ideia de
que são indivíduos que se destacam dos demais na produção das máscaras,
e a disputa é intensa.

Torres em ação

As torres são bastante usadas na região da Baixada, e aqueles que as


produzem participam de um intenso jogo competitivo. Todos querem exibir
suas máscaras e ser elogiados por elas. Para produzir uma torre na Baixada,
normalmente se compra de algum artesão um queixo (parte que cobre o
rosto, normalmente feita em madeira) e constrói-se uma estrutura (muitas
vezes de isopor), que é encaixada nele e ultrapassa a altura da cabeça. A ma-
deira para fazer o queixo costuma ser a paparaúba ou tapiririca, escolhidas
por serem mais macias para talhar e, muitas vezes, trazidas das partes mais
rurais da Baixada. O trabalho mais valorizado na feitura das torres é essa
estrutura que vai além da cabeça. Tenta-se fazer trabalhos com formatos ino-
vadores, usam-se até luzes para enfeitá-la, e quanto mais alta, melhor.

244 Flora Moana Van de Beuque


Figura 9.4. Torre em Matinha, MA.
Fotografia: Flora Moana Van de Beuque

Na capital São Luís, o grupo Santa Fé, que também é considerado de sota-
que da Baixada, já utilizava torres há algum tempo, quando o Boi da Floresta
ainda não as possuía. Havia grande desejo dentro do grupo de que conseguis-
sem fazê-las, mesmo que houvesse alguma resistência entre os mais velhos
em função desse novo formato. Como mostrou Malinowski (1976), num
estudo entre os trobriandeses, na Melanésia, no ato cerimonial de troca de
colares e braceletes chamado kula os objetos desempenhavam um papel im-
portante, valorizando os indivíduos que os possuíam, já que lhes conferiam
prestígio. Tomando esse estudo como referência, é possível assinalar que as
torres desempenham papel semelhante, já que, quanto mais altas as másca-
ras, mais valorizados são os brincantes.
No Boi da Floresta, as torres de Nilson têm como base sua máscara pe-
quena, e acima dela vem uma estrutura de isopor sobre a qual ele acrescenta
outra estrutura.

A Alma das Coisas 245


Figura 9.5. Abel Teixeira, na sede do Boi da Floresta, em São Luís, MA.
Fotografia: Flora Moana Van de Beuque

Sobre o processo de confecção das torres, ele disse em entrevista em ju-


lho de 2009:

Esse ano é uma de touro que eu fiz toda lilás, fazendo uma homena-
gem ao Divino do Espírito Santo. Eu coloquei duas coroas e coloquei
a pombinha no meio. Porque, quando eu faço uma careta, ela tem um
objetivo, ela tem uma forma.

Esse depoimento nos permite refletir sobre o caráter complexo dos sen-
tidos da careta. Nilson diz que sua máscara pequena revela a imagem de um
touro, mas podemos pensar que esse é um sentido aproximado. Ao olharmos
para ela, vemos características de um touro, mas também de outros animais,
assim como algumas características humanas, e outras que não remetem
a nada de conhecido na natureza. A máscara pequena parece representar
um ser fantástico que produz estranhamento, assusta, mas também atrai.
O sentido da máscara torna-se mais complexo, e mais ainda quando é posta
sobre a careta pequena uma estrutura de isopor com imagens relacionadas
ao universo religioso cristão.
As formas das máscaras estariam bastante relacionadas à construção de
sentido do personagem. Elaborariam, por exemplo, a complexidade do per-
sonagem, já que seriam compostas por signos diversos, às vezes dissonantes,
como as torres que podem reunir formas monstruosas com símbolos religio-

246 Flora Moana Van de Beuque


sos. Como as máscaras Ndembu (Turner, 2005), feitas a partir de elementos
da vida social comum, mas arrumadas de uma forma diferente (esses obje-
tos traziam membros humanos com tamanhos distorcidos, colocavam lado
a lado partes de animais e de homens, alteravam as cores da natureza, etc.),
e tinham como função simbólica permitir que os neófitos refletissem sobre
a realidade social; as caretas e suas formas enigmáticas parecem operar no
mesmo sentido, levando aqueles que se deparam com ela a colocar a realida-
de social em perspectiva. Vemos, assim, a máscara agindo no contexto ritual,
exercendo uma modalidade de poder.

“Função estética” e “função performativa”

No depoimento de alguns brincantes da Baixada encontramos um tom de


crítica em relação à atuação contemporânea dos cazumbas, principalmente
em relação ao uso das torres. Nico (fevereiro de 2009), cazumba e artesão de
caretas, residente na Baixada, mostra sua posição:

Antes saía, roubava coisa, ninguém falava nada, hoje não pode, já
chamam a polícia, chegava em casa às 4 horas da tarde. Hoje não tem
mais graça, o cazumba hoje em dia é luxo, é só para mostrar farda
bonita, uma careta, aquela coroazona grandona. Isso que acontece.
Antes tinha mais graça.

Nico parece opor um passado mais livre a um presente no qual esse per-
sonagem não pode exercer suas travessuras com liberdade e está mais pre-
ocupado com a exibição de sua farda e de suas máscaras grandes. É curioso
ver que a careta ocupa lugar importante nessa sua comparação. Sua crítica ao
modo de brincar no presente está relacionada, entre outras questões, ao uso
das máscaras grandes, as torres, chamadas por ele de “coroazonas”. Para ele,
as máscaras pequenas permitem uma ação ritual mais livre.
A crítica de Nico é semelhante à encontrada no Boi da Floresta (e que
também aparece com ênfase no discurso de Abel).11 Podemos perceber que
essa fala aponta para o fato de que, dependendo da máscara utilizada, os
sentidos da ação ritual do cazumba se modificam. As torres parecem estar
atreladas a um modo de ação ritual que enfatiza a exibição; o uso das más-
caras pequenas estaria relacionado a um modo de atuação mais ligado ao
lado cômico do personagem. No trabalho de campo na Baixada, percebi que

11
Essa fala pode revelar um sentimento de nostalgia.

A Alma das Coisas 247


nas apresentações de uma hora realizadas nos arraiais o mais importante era
exibir as torres. É possível avaliar que, nessas situações, sua “função estéti-
ca” estivesse mais ativada. Já nas festas que duravam a noite inteira, o foco
parecia estar colocado nas atividades lúdicas do personagem. Nesse caso, é
possível afirmar que sua “função performativa” estivesse mais ressaltada.
Apesar de Nico e outros cazumbas, tanto da Baixada como do Boi da Flo-
resta, fazerem um discurso de oposição entre as duas práticas, muitos vivem
essa questão de outra maneira. É comum a mesma pessoa ter duas máscaras,
uma pequena e uma grande, que podem ser usadas dependendo da situação.
Também percebi que o exercício de atividades lúdicas não se realiza em to-
tal oposição à exibição das máscaras. Mesmo que alguns contextos exaltem
mais um lado que o outro, independentemente da situação o cazumba reve-
la em algum nível seu caráter lúdico e de exibição da indumentária. Talvez
seja possível afirmar que a “função estética” e a “função performativa” sejam
duas polaridades da ação ritual do cazumba. Elas estariam sempre presentes
(sendo complementares), mas, dependendo da situação, uma função seria
mais ativada do que a outra.
Vale assinalar que, para o exercício das duas funções, os objetos do ca-
zumba (máscara e veste) são muito importantes. Na “função estética” a
agência deles é fundamental para que essa função se exerça, já que ela está
intrinsecamente ligada à questão da plasticidade. Percebemos no exercício
dessa função a máscara agindo, tanto no sentido de causar maravilhamento
com as formas como provocando disputas entre os cazumbas. Em relação à
“função performativa”, a careta e a veste também são fundamentais. Como
visto anteriormente, a partir de seus aspectos formais elas ajudam a cons-
truir os sentidos complexos do personagem e, em conjunto com a ação do
brincante que dá vida a ele, provocam efeitos naqueles com quem o cazumba
interage. Em contato com o personagem, e pela ação dos seus objetos, as
pessoas sentem medo, riem, se sentem atraídas. A máscara e a veste ajudam
ainda presentificar a figura mítica do cazumba, tornando eficaz sua “perfor-
mance” na festa.

Os objetos e a eficácia ritual do cazumba

Vale ainda aprofundar a discussão a respeito da relação entre a máscara e


outros objetos na ação do cazumba. Uma dessas relações se dá entre a careta
e o cofo (cesto colocado por debaixo da veste do cazumba, na parte traseira,
que faz que tenha grandes nádegas). A careta monstruosa causa espanto e o

248 Flora Moana Van de Beuque


cofo provoca o riso nos participantes da festa. As grandes nádegas, em con-
junto com a máscara, produziriam um monstro poderoso do qual se pode rir
(Clastres, 1978). Lembramos que o humor é muito importante na caracte-
rização do cazumba; ele assusta, transgride, incomoda, mas é tudo conside-
rado uma brincadeira. O lado cômico do cazumba permite assim que sejam
abordados, nas traquinagens que faz, assuntos considerados tabus (como o
sexo, a violência, a morte, o diabo), já que é mais fácil tomar contato com
esses temas pelo viés do humor.
Outra relação se dá entre a máscara e a farda (veste que cobre o cazum-
ba): a máscara assusta aqueles que se deparam com ele, mas o personagem
tem, muitas vezes estampada na parte traseira da farda a figura de um santo
católico. Isso reforça mais uma vez a ideia de que o cazumba é complexo em
seus sentidos, assim como os objetos que ajudam a produzi-los e pô-los em
cena, causando efeitos naqueles que interagem com o personagem.
Vemos, mais uma vez, toda a indumentária do cazumba e sua materiali-
dade sendo fundamentais para eficácia do personagem. Mas é preciso lem-
brar aqueles aspectos indispensáveis à sua ação ritual: a pessoa que dá vida
a ele e o contexto festivo propriamente dito. Os objetos festivos (a careta e a
indumentária) não têm sentido sem o brincante que dá vida ao personagem,
da mesma forma que o cazumba não se presentifica fora do espaço/tempo
festivo. Portanto, a agência dos objetos, nesse contexto, está atrelada à ação
do brincante e à moldura da brincadeira (Bateson, 1972).

Abel e a circulação da careta

Nas conversas com Abel, o universo de circulação da careta por contextos


exteriores à festa foi se delimitando. Desde nossas primeiras entrevistas, ele
já assinalou a importância da pesquisadora Zelinda Lima para sua inserção
nesse circuito. Ele contou que veio do interior do Maranhão, de Viana, para
a capital do estado, São Luís, para cobrar o pagamento de umas caretas que o
Boi da Floresta havia lhe encomendado. Chegou na semana da festa, brincou
e, no término dos festejos, resolveu tentar estabelecer-se na cidade. Apo-
lônio Melônio, que lhe encomendara as caretas por intermédio de Zelinda
Lima, que trabalhava na Secretaria de Cultura do Estado, conseguiu que ele
fosse contratado para trabalhar no serviço público. Além disso, ela, que foi
personagem relevante na formação das políticas públicas para as culturas
populares no Maranhão, contribuiu muito para a inserção de Abel num cir-

A Alma das Coisas 249


cuito de venda distinto do festivo, já que comprava sistematicamente suas
máscaras e indicava que outras pessoas as adquirissem.
Na década de 1980, Abel foi transferido por Zelinda para o Centro de
Cultura Domingos Vieira Filho, instituição do estado dedicada ao campo das
culturas populares. Lá foi contratado para atuar como vigilante e também
para restaurar peças do acervo da instituição. As pessoas entrevistadas rela-
taram que, depois de um tempo de serviço, Abel começou a usar o expedien-
te no Centro de Cultura para fazer suas caretas.
Em relação ao trabalho como restaurador, ele disse em janeiro de 2009
que não tinha gostado de realizá-lo, pois não via muito sentido na restaura-
ção de peças relacionadas às festas e às devoções populares, já que, ao fazê-lo
não poderia interferir muito nas obras. Esse detalhe é facilmente compreen-
dido se lembrarmos a dinâmica de reaproveitamentos de caretas praticada
entre os brincantes do boi. Restaurar seria, de certa maneira, imobilizar. Para
ele, as obras estariam mais ligadas ao uso. No entanto, é interessante obser-
var que a concepção de Abel sobre a musealização da máscara é ambígua.
Ao mesmo tempo que estranha o enfoque dos museus, também gosta de ver
suas obras neles expostas. Abel também tem em sua casa um museu pesso-
al: na sua sala guarda e expõe caretas antigas feitas por ele, que não vende e
não altera. A posição de Abel, transitando entre o contexto festivo e outros
circuitos sociais, parece favorecer essa dupla perspectiva.
Voltando a Zelinda Lima, podemos dizer que aparece como uma “media-
dora” importante na trajetória de circulação da careta. A noção de mediação
em estudos urbanos foi desenvolvida em diversos trabalhos para dar conta
de agentes sociais que fazem “pontes” entre contextos sociais heterogêneos,
permitindo que informações sejam trocadas entre meios diversos, e pessoas
de perfis sociológicos e com práticas culturais distintas entrem em contato
(Cavalcanti; 2006a; Velho, 2001; Velho; Kuschnir, 2001).
No caso da circulação da careta, ao longo da pesquisa fui identificando
outras pessoas que atuam como “mediadores” nesse processo. Um deles é
o antropólogo Sergio Figueiredo Ferretti, já citado, que se dedica ao estudo
das religiões afro-brasileiras. Ele fez chegar máscaras de Abel a museus, es-
creveu artigos sobre ele, etc. Além de Sergio Ferreti, outras pessoas (como a
fotógrafa Maria Mazzillo, a psicanalista Elisabeth Bittencourt, a atriz Juliana
Manhães, o pesquisador Jandir Gonçalves) são importantes para articulação
do processo que descrevo e compõem uma “rede” de pesquisadores, cole-
cionadores, profissionais liberais, servidores públicos e outros. A noção de
“rede social” foi desenvolvida por autores como Clyde Mitchell (1969), Ar-

250 Flora Moana Van de Beuque


nold Epstein (1969) e Elizabeth Bott (1976) para dar conta de um conjunto
específico de relações entre pessoas determinadas, possibilitando deduzir
das características gerais dessas relações o comportamento social das pes-
soas envolvidas. Pensar a partir das “redes” é bastante útil para o estudo de
fenômenos sociais que acontecem, como na circulação da careta, em socieda-
des complexas em que as pessoas se ligam entre si e promovem ações sociais
para além de limites institucionais. Através desse instrumental analítico e in-
terpretativo, é possível identificar uma rede de pessoas que promovem ações
num sentido comum e analisar sua atuação social.
Jandir – diretor da “Casa de Nhozim”12 – critica o fato de apenas Abel ser
reconhecido pelo seu trabalho de artesania de caretas. Segundo ele, existem
muitos artesãos no Maranhão que não têm seu trabalho reconhecido como
Abel. Ele acredita que a facilidade de acesso a Abel, por este já estar inserido
na “rede” de pesquisadores e outros indivíduos das camadas médias que se in-
teressam pela cultura popular, fazem que apenas esse artesão tenha destaque.
É interessante observar que essa “rede” continua sendo alimentada. As
pessoas apresentadas anteriormente (e outras ainda) foram fundamentais
para fazer Abel e sua máscara circularem, entre outros motivos, porque fa-
ziam chegar as máscaras do artesão a pessoas ligadas ao campo da cultura
popular e a espaços museais.
Na medida em que se inseria nesse novo circuito, Abel passou a se apro-
priar de códigos próprios a esses contextos. Sua postura quanto à sua produ-
ção vai se modificando em relação àquela adotada pela maioria dos artesãos
da festa. Não vê mais a máscara como um objeto restrito ao uso ritual. Em
entrevista (fevereiro de 2009), Abel disse que considerava sua máscara uma
“obra de arte”. A partir de determinado momento, passou a assiná-las, o que
não ocorre no universo da festa. Ao compreender que o objeto que produz
ingressa num circuito que opera com outros códigos e que lhe atribui outros
significados, vai tendo ideias que o ajudam a permanecer e a aumentar sua
circulação nesses novos meios. Tentando alcançar um público mais amplo,
na década de 1990 Abel começa a produzir miniaturas. Ele entende que com
as miniaturas seria possível atingir um público mais amplo, como os turis-
tas, já que eram mais baratas e fáceis de transportar.
As exposições feitas com as máscaras de Abel também foram importan-
tes na sua trajetória. Em exposições em outros estados, Abel, que já era bas-

12
Instituição dedicada a exposições de objetos de uso na vida rural maranhense.

A Alma das Coisas 251


tante conhecido entre os pesquisadores e os demais integrantes do circuito
de cultura popular no Maranhão, teve a oportunidade de ingressar em outros
circuitos.
Ao se tornar um representante da produção das máscaras e do cazumba,
Abel se tornou uma voz de autoridade sobre esse personagem. Em diálogo
com Lionel Trilling e Walter Benjamin, Gonçalves (2007) elabora um debate
em torno da noção de “autenticidade aurática” e afirma que esse conceito dá
conta de entender alguns objetos e pessoas valorizados socialmente por serem
considerados originais, únicos ou com genuína relação com o passado. A auto-
ridade de Abel e o valor de sua obra provêm, entre outros motivos, do fato de
o artesão e sua máscara estarem relacionados de forma original com o universo
da festa, trazendo com ele uma “autenticidade aurática”.
A partir dessas múltiplas inserções e frentes de trabalho, Abel foi se tor-
nando uma espécie de representante “oficial” fora da festa da produção de
máscaras e da arte do cazumba. Apesar de terem sido citadas pessoas físicas
que contribuíram para a circulação de Abel e da máscara, também existiram
instituições que possibilitaram que isso ocorresse, como o Centro de Cultura
Domingos Vieira Filho, em São Luís.
Através da noção de “mundos de arte”, Howard Becker (1977) explorou
a dimensão coletiva da atividade artística. Essa dimensão seria percebida
tanto na produção da obra quanto na construção de seu valor. Mesmo que a
produção de Abel não seja vista por todos como artística, a noção utilizada
por Becker é interessante para pensar sua atividade como artesão, já que esta
tem caráter fortemente coletivo, tanto na feitura das máscaras quanto na sua
comercialização e construção do valor das peças.
Percebemos então que a ressignificação de Abel e da careta é resultado de
um processo social mais amplo, no qual foi fundamental um grupo de pes-
soas e instituições que identificaram a máscara como objeto de valor capaz
de ser classificado como “obra de arte”, um “objeto representativo de uma
cultura”, ou outro enquadramento que justifique sua utilização fora da festa,
ingressando no que James Clifford (1994) identificou como a dinâmica dos
modernos sistemas de arte e cultura.
É interessante observar que dentro dessa “rede” de pessoas que contri-
buíram para a circulação de Abel, são dados enquadramentos diferentes à
máscara (“artefato cultural”, “arte popular”, “arte afro-brasileira”, artesa-
nato). Mesmo que esses atores sociais não concordem com as classificações
destinadas à obra, compartilham determinadas concepções que os levam a
agir no sentido de possibilitar a ressignificação do produtor e de sua obra.

252 Flora Moana Van de Beuque


Todos entendem Abel como alguém com valor especial (como artesão das
caretas e/ou como cazumba), e sua peça também.
Mesmo que apontemos para a importância de algumas instituições e
dessa “rede” de pessoas para a projeção do artesão fora da festa, é preciso
ressaltar, no entanto, que Abel não foi figura passiva nesse processo; pelo
contrário, teve papel ativo todo o tempo. Sempre atento, é articulado e sagaz.
Mais um fator pode ser considerado importante para a projeção de Abel:
o fato de seu trabalho ser reconhecido dentro da festa. Talvez algo do lu-
gar ritual do cazumba e de sua máscara no contexto festivo possibilite seu
deslocamento para outros circuitos. Como vimos, esse personagem é mais
individualizado na brincadeira e atua com certa liberdade em relação aos
demais. A máscara, por sua vez, mostrou-se na etnografia da festa como um
objeto que, apesar de precisar de toda a indumentária do personagem e da
ação do brincante para ter eficácia ritual, se destaca especialmente entre os
artefatos da festa.
Também pode ter contribuído para a circulação da máscara o fato de o
trabalho produzido por Abel ter “ressonância” (Greenblatt, apud Gonçalves,
2007) entre aqueles que fazem a máscara circular. Greenblatt explica: “Por
ressonância eu quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um
universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais” (1991, p. 42-56).
Esse lugar de representante é vivido, no entanto, com contradições. No
São João de 2009 estavam espalhados pela cidade de São Luís diversos ou-
tdoors com fotos do bumba meu boi. Entre as fotos, havia a de um cazumba
vestido com uma careta do estilo de Abel. Muitas pessoas vieram dizer a
Abel que era ele quem figurava nas fotos e ele mesmo achava que existiam
grandes possibilidades de isso ser verdade, porém não havia nenhuma indi-
cação no outdoor de que a máscara era sua ou de que era ele ali. Assim, ape-
sar de Abel ser uma espécie de representante do personagem e da manufa-
tura das máscaras, podemos pensar que existe um olhar sobre sua atividade
(como artesão e cazumba) que a entende como arte coletiva, o que implicaria
a existência de pouca diferenciação entre seus autores, redundando na falta
de necessidade de dar crédito a Abel. O artesão também não teve nenhum
ganho econômico com a possível exposição de sua imagem.
Abel tem se afastado do Boi da Floreta, grupo no qual brinca. No período
junino de 2009, quando estive no Maranhão, Abel passou parte do tempo no
interior, não tendo participado de muitas apresentações do grupo. Ele parece
se individualizar dentro do Boi da Floresta. Sua identidade como “artista
popular” tem se tornado cada vez mais forte para ele. Mas Abel não tem o

A Alma das Coisas 253


intuito de se desligar do contexto da festa. Ele também busca manter seu
prestígio dentro do contexto festivo, o que se revela, por exemplo, quando
entra em uma peleja velada na Baixada com Onório Serra – aquele que dizia
ser considerado o melhor cazumba de Viana. Abel parece estar “entre mun-
dos”, entre o mundo da festa e entre aquele do museu.
Assim como o cazumba, Abel também parece habitar a liminaridade. Ele
se projeta, torna-se um artesão conhecido, um “artista popular”, mas isso
não garante uma boa vida financeira. Abel precisa se esforçar o tempo todo
para continuar a vender, a circular e a ser lembrado. Abel circula entre pes-
soas das camadas médias com boa condição financeira, mas não é uma delas.
Sua condição não faz jus à noção idealizada que se tem no senso comum
sobre a vida de um artista. Assim como seu personagem cazumba, Abel tam-
bém é um ator social liminar.
Podemos vê-lo também como um “mediador”, pois ajuda uns a conhece-
rem mais o universo da festa e coloca os brincantes em contato com pessoas
de outros círculos sociais. Velho (2001) diz que nas grandes cidades os indi-
víduos estão mais propícios a transitar entre universos sociológicos, estilos
de vida e modos de percepção da realidade distintos e mesmos contrastantes.
Certos indivíduos não apenas fazem esse trânsito, mas desempenham o pa-
pel de mediadores entre diferentes mundos, estilos de vida e experiências.
Segundo Velho e Kuschnir (2001), “o estudo da mediação e, especificamente,
dos mediadores, permite constatar como se dão as interações entre catego-
rias sociais e níveis culturais distintos” (2001, p. 9).

Sobre o deslocamento das caretas para os museus

Diversos autores, como James Clifford (1994), Krzysztof Pomian (1987),


Nélia Dias (1994), Ludmilla Jordanova (1989), Barbara Kirshenblatt-Gim-
blett (1998) e Gonçalves (2007), entendem os modelos expositivos como re-
sultados de processos sociais de construção de sentidos. Assim, ao organizar
uma exibição, os museus estariam produzindo determinadas representações
sobre os objetos expostos. A partir dessa perspectiva, Gonçalves (2007) afir-
ma que:

A inserção [dos objetos] em coleções, museus e “patrimônios cultu-


rais” [...] permite perceber os processos sociais e simbólicos por meio
dos quais esses objetos vêm a ser transformados ou transfigurados em
ícones legitimadores de ideias, valores e identidades. (2007, p. 24)

254 Flora Moana Van de Beuque


A perspectiva de Gonçalves e dos demais autores permite refletir sobre a
maneira como algumas instituições museais constroem enquadramentos em
torno da careta de cazumba. No caso das instituições pesquisadas, percebe-
mos que noções de arte e cultura popular são construídas nos seus modelos
expositivos.
Nosso foco de análise incidiu em três instituições que abrigam a máscara:
a Casa do Maranhão, o Museu do Folclore Edison Cordeiro e o Museu Casa
do Pontal. A Casa do Maranhão é uma instituição do governo estadual que
surgiu no início da década de 2000 a partir de uma subdivisão do acervo total
do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, que abrigava grande
parte da coleção relacionada à área de cultura popular do estado. A Casa do
Maranhão constitui-se como o espaço que exibia elementos que fazem parte
da festa do bumba meu boi. No decorrer do trabalho de campo, em 2009, a
instituição fechou para reformas. Ainda não foi reaberta, mas fui informa-
da na ocasião que o intuito era reformular totalmente a exposição anterior.
De qualquer forma, acho válido apresentar a antiga exposição do museu,
que tive a oportunidade de conhecer na primeira ida a campo em novembro
de 2008. A exposição reconstruía cenograficamente o ambiente da festa do
bumba meu boi, valendo-se dos objetos nela utilizados. Eram apresentados
alguns momentos da brincadeira (ensaios, batizado, apresentações e morte)
e os diferentes sotaques do bumba meu boi. Numa ala eram exibidos vários
deles. Assim, parece que os objetos expostos na Casa do Maranhão estão ali
principalmente como objetos representativos de um universo cultural.
Entrevistei Maria Michol (julho de 2009), diretora da Casa do Maranhão
durante muitos anos. Seu trabalho como pesquisadora influenciou a concep-
ção da primeira exposição, da qual participou na curadoria. Na entrevista,
ela disse que os objetos da exposição tinham o objetivo de aproximar a festa
dos visitantes. As obras estariam expostas menos pela sua dimensão estética
e mais como um objeto representativo desse contexto cultural. As caretas
seriam vistas da mesma maneira. Havia algumas caretas na vitrine dedicada
ao sotaque da Baixada. Outras estavam em manequins vestidos de cazumba,
ou seja, relacionadas ao contexto de seu personagem na festa.
O Museu de Folclore Edison Carneiro, que expõe diversos objetos rela-
cionados às manifestações das culturas populares, é um museu federal que
integra a Coordenação Nacional de Folclore e Cultura Popular do Ministério
da Cultura. Ele foi criado em 1968. A partir de visita à exposição perma-
nente do museu, é possível dizer que a relação da careta com seu uso na
festa também é sua dimensão mais valorizada. A careta encontra-se numa

A Alma das Coisas 255


sala dedicada ao bumba meu boi, junto com outros objetos da festa. Silva
(2008) comparou as exposições permanentes desse museu inauguradas em
1980 e 1984 e desenvolveu uma reflexão sobre exposições como produtoras
e legitimadoras de discursos sobre o patrimônio e o folclore. Segundo ela, a
exposição permanente, que está em cartaz desde 1994 na instituição (onde
encontramos as caretas), segue o mesmo paradigma museográfico daquela
feita em 1984. Essas exposições, segundo Silva, estariam mais marcadas por
uma ótica antropológica. Nessa proposta, existe uma tentativa de relacionar
os objetos expostos ao contexto de produção.

Figura 9.6. Máscaras do cazumba em exposição no Museu Casa do Pontal.


Fotografia: Lucas Van de Beuque

O Museu Casa do Pontal foi criado por Jacques Van de Beuque a partir de
sua coleção particular formada durante mais de quarenta anos, desde 1950.
Aberta à visitação sob reserva desde 1976, a instituição, em 1992, abriu am-
plamente para a visitação pública e constitui uma organização privada de
interesse público. Os objetos que ali estão são classificados como “arte po-
pular”. As obras, em sua maioria, são esculturas feitas com diversos mate-
riais, como barro, madeira e metal. São mais de 8 mil esculturas, de cerca de
duzentos artistas de todo o Brasil.
A antropóloga Angela Mascelani, que dirige a instituição, discute em sua
tese de Doutorado (2001) o conceito de “arte popular”, revelando sua am-

256 Flora Moana Van de Beuque


biguidade, já que é produzida num circuito (popular) e legitimada por outro
(camadas médias intelectualizadas urbanas), sendo o seu conceito formu-
lado num diálogo entre diferentes contextos. Segundo Mascelani (1999), a
noção de “arte popular” seria de difícil contorno, mas é possível dizer que:

Sob o olhar de um grupo pequeno e específico, que se interessa pre-


ferencialmente pelos aspectos estéticos e formais da produção plás-
tica popular, e onde se inclui o colecionador Jacques Van de Beuque,
verifica-se a tendência para designar como arte popular brasileira es-
culturas, máscaras, xilogravuras, placas em cerâmica e demais objetos
tridimensionais feitos a partir de materiais como a madeira, o barro,
o ferro, as areias e outros, mesmo quando apresentam temáticas, for-
mas, estilos, cores e técnicas altamente diversificados. (p. 133)

Considerando-se que o Museu Casa do Pontal se dedicaria à exibição


de “arte popular” e que as dimensões estéticas e formais seriam as mais
valorizadas nos objetos entendidos assim, podemos dizer que esses seriam
os aspectos da máscara mais valorizados ali. A exposição também reflete
tal visão sobre a máscara, já que ela aparece destacada, sem a indumentária
do cazumba. São três máscaras expostas em uma parede de fundo colorido.
Porém, como ela está localizada num setor do museu dedicado às “Festas po-
pulares” – e nesse setor há textos explicativos sobre elas –, podemos pensar
que não é apenas o seu caráter artístico que é realçado, mas que se estaria
levando em consideração também o contexto social em que ela é usada.
Parece que, nas suas exposições, os museus abordados fazem um esforço
de remeter a máscara ao seu contexto de produção e uso ritual, no caso da
Casa do Maranhão e do Museu do Folclore, de forma mais explícita, e no do
Museu Casa do Pontal, de forma mais indireta, já que privilegia a dimensão
estética do objeto. Assim como o objeto é, de alguma forma, remetido ao
contexto de uso ritual no Museu do Pontal, também percebemos que a di-
mensão estética da máscara não é ignorada no Museu do Folclore e na Casa
do Maranhão. No catálogo da atual exposição do Museu do Folclore, Cláudia
Márcia Ferreira, diretora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular,
que abriga o museu em questão, afirma que:

O Museu aspirou por uma nova publicação que expressasse a maneira


como o universo do folclore/cultura popular estava sendo expressa-
do. Um mundo de objetos cuja dimensão estética é de valor indis-
cutível. Mas também um mundo que comporta outros significados.
Testemunho de modos de vida, os objetos colecionados pelo Museu

A Alma das Coisas 257


do Folclore possuem um valor documental único. São porta-vozes dos
diferentes mundos sociais que lhes dão origem. (Bisilliat e Soares,
2005)

A antiga diretora da Casa do Maranhão, Maria Michol, disse na mesma


entrevista que a dimensão estética das obras também era valorizada na expo-
sição da Casa do Maranhão. Vemos assim que, apesar de as instituições colo-
carem ênfases diferentes na dimensão estética e no valor cultural da máscara,
é possível afirmar que os dois aspectos são de alguma forma enfatizados na
exposição desse objeto nos museus citados.
De qualquer forma, percebemos que, no processo de circulação da másca-
ra, ela recebe diferentes enquadramentos, não havendo um consenso em rela-
ção às categorias nas quais ela é classificada. O mesmo ocorre com Abel, não
sendo unânimes as formas de tratá-lo, pois recebe as qualificações de “artista”,
“artesão” e outras. Cada instituição museal teria um olhar direcionado à más-
cara relacionado ao modo mais amplo como vê os objetos que compõem o seu
acervo. As instituições identificariam qualidades na máscara que permitiriam
que fosse vista a partir dos enquadramentos mais gerais que utilizam.
Parece que o Museu Casa do Pontal incorpora a careta, pois percebe nela ca-
racterísticas estéticas relevantes; já o Museu do Folclore e a Casa do Maranhão
entendem esse objeto como um importante artefato do universo da cultura
popular; o Museu Afro-brasileiro, que não analisamos mais profundamente,
a tomaria por sua ligação com o universo afro. Assim, políticas institucionais
mais amplas acabariam por orientar as ressignificações da máscara nos con-
textos museais. Também pudemos ver que os diversos “mediadores” citados,
que podem ou não ter relações com essas instituições, têm visões múltiplas
sobre a máscara e sobre Abel. A ótica desses “mediadores” poderia decorrer
de diferentes processos de formação intelectual e profissional. As instituições
pelas quais passaram podem, igualmente, ter influenciado seus olhares.

A careta em ação em distintos contextos

Comparando a inserção da máscara na festa do bumba meu boi e nos


museus, podemos dizer que, se nos museus a contemplação revelaria o seu
valor, durante a festa este só é revelado quando alguém coloca a máscara
com toda a indumentária do cazumba e executa as ações rituais do persona-
gem dentro da “moldura” (Bateson, 1972) da festa. Dessa forma, dentro da
festa a máscara se destaca ou tem como principal “função” contribuir para

258 Flora Moana Van de Beuque


que o cazumba seja eficaz no ritual (assustando, atraindo, participando de
rivalidades, chamando a atenção para a sua visualidade), e não para ser con-
templada por si só ou por seu valor estético e/ou cultural. Outra diferença é
que na festa uma mesma máscara pode passar por diversas alterações, sendo
constantemente metamorfoseada, enquanto no museu o intuito é preservar
o máximo possível a máscara do jeito como ela chegou à instituição.
Se compararmos Abel com os demais produtores da máscara que exis-
tem na festa, poderemos ver que, enquanto a produção do primeiro se dá
ao longo do ano inteiro, constituindo-se na sua profissão, entre os artesãos
da festa, mesmo entre os especialistas que vendem esse objeto para outros
brincantes, o período produtivo da careta é apenas aquele que antecede o
folguedo. O lugar social ocupado pelo artesão também é diferente. Enquan-
to nos espaços museais pesquisados destaca-se principalmente a figura de
Abel, no contexto das festas existe um grande número de artesãos, alguns
deles considerados especialistas.
Também chama a atenção o fato de o ambiente festivo possuir uma gran-
de quantidade de artesãos e Abel ser praticamente o único a se destacar
num contexto de circulação mais ampla da máscara. Uma série de fatores
presentes na trajetória de Abel reforça a ideia de que o lugar ocupado por ele
foi construído socialmente. Como vimos na etnografia, seu reconhecimento
como artista já é o resultado de uma cooperação social informal formada por
pesquisadores, colecionadores, agentes do Estado, etc. (Becker, 1977). Sobre
o lugar do artesão na festa, vimos que no contexto festivo existe a valorização
dos artesãos que concebem máscaras originais e inventivas, havendo uma
exaltação de suas particularidades. Isso nos permite problematizar a noção
corrente no senso comum de que a produção plástica popular não diferen-
ciaria individualidades, como fariam os setores do campo da arte erudita.
Também vimos que na festa a ideia de uma produção singular está atrelada
ao papel desempenhado pelo cazumba, que é mais individualizado que os
demais personagens.
É interessante observar que quando Abel tem sua máscara inserida num
circuito distinto do festivo, muitas vezes tendo seu trabalho classificado
como artístico, ele passa a repetir os mesmos modelos de careta constan-
temente. É curioso que o espaço de circulação artística – que normalmente
está associado à originalidade, à invenção – é, neste caso, um espaço que
induz à repetição, já que Abel, consagrado por sua obra, passa a reproduzir
as mesmas máscaras. Essa repetição talvez se explique pelo fato de ele ser
um chamado “artista popular” e precisar ter uma “marca registrada” para

A Alma das Coisas 259


possibilitar que venda com certa regularidade. É interessante também que
o espaço festivo popular, muitas vezes associado a uma produção “tradicio-
nal”, “que se repete”, é aquele que induz à inventividade; e o espaço artístico
aparece como aquele da repetição.
Metodologicamente foi possível pensar o contexto festivo e o de circu-
lação mais ampla da festa em separado. No entanto, não podemos ignorar
o fato de que esses universos estão amplamente interligados, dialogando
e se influenciando mutuamente. Pessoas, objetos, informações e sentidos
circulam entre eles, sendo possível entendê-los como parte de um mesmo
fenômeno social que ocorre no campo das culturas populares no contexto de
uma sociedade complexa.
É possível desestabilizar essa separação entre o contexto festivo e o de
circulação mais ampla da máscara ao retomarmos a ideia de que o lugar ritual
do cazumba e da máscara, assim como o modo como é tratado o artesão das
caretas na festa, podem ter influenciado a circulação da careta e de Abel fora
da festa.
A trajetória de Abel também permite ver que o contexto festivo e o de
circulação mais ampla da máscara estão conectados. A análise de sua história
pessoal permitiu pensar os diálogos entre esses meios, suas conexões e os
efeitos de tal contato sobre as partes. Por um lado, pudemos ver que o pres-
tígio de Abel fora da festa é valorizado dentro dela e, pelos relatos e entre-
vistas dados por ele, que seu “lugar” no contexto festivo se altera à medida
que ingressa em outros circuitos. Por outro lado, sua atuação como cazumba
e artesão de máscara para brincantes contribui para que ele seja valorizado
fora da festa, dando maior “autenticidade” à sua produção. Também vimos
que o fato de esse artesão já ter sua produção legitimada junto a seus pares
colaborou para que suas máscaras tivessem impacto junto à “rede” de cole-
cionadores, pesquisadores e outros.
A conexão entre os dois contextos também se evidencia no fato de Abel
vender suas obras tanto para brincantes como para pessoas fora da festa. Ele
entende que sua máscara pode ser usada ritualmente e também figurar em ex-
posições. No entanto, ao lidar com diversos significados, acaba tendo posturas
contraditórias. Vimos, por exemplo, sua crítica à musealização das obras, mas
seu agrado em ver suas obras em instituições museais. Também observamos
suas ações que visavam constituir uma espécie de museu pessoal.
Se considerarmos que a circulação da máscara se dá no contexto mais
amplo das culturas populares, seria possível ler esse campo como um espaço

260 Flora Moana Van de Beuque


de interação, construído socialmente, composto por pessoas de perfis socio-
culturais diversos (por produtores das manifestações festivas populares, ar-
tesãos populares, pesquisadores, funcionários das agências governamentais
de cultura, agentes de turismo, colecionadores e outros), envolvidos com a
elaboração, reflexão e circulação das manifestações culturais populares.
Acompanhando a máscara por diferentes contextos sociais, foi possível
perceber que, inserida em relações sociais e na relação com outros objetos,
ela circula produzindo efeitos distintos nos diversos enquadramentos. No
contexto festivo, sua agência é fundamental para eficácia ritual do persona-
gem, estando sua ação intrinsecamente atrelada ao brincante e à moldura
da brincadeira. Vimos também ela seduzir pesquisadores e colecionadores,
deslocando-se para contextos distintos do original. A partir da relação entre
esses atores (pesquisadores e colecionadores) e esse objeto, a máscara ganha
novos sentidos no contexto de comercialização mais ampla e nos espaços
museais, agindo de outras maneiras sobre o público desses espaços. A más-
cara também permitiu o deslocamento de Abel, como ele revela em 2009
no momento de rivalização com o cazumba Onório: “eu faço as pequenas
porque elas me levaram mais longe”.

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A Alma das Coisas 265


10.

A MORADA E A CASA:
MATERIALIDADE E MEMÓRIA NO PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO FAMILIAR

Anelise dos Santos Gutterres

Introdução

As duas mulheres com quem dialogaremos nas próximas páginas – Carla


e Ainsley – tinham pouco mais de 50 anos quando participaram desta pes-
quisa.1 Moradoras da cidade de Porto Alegre, elas viviam em casas de me-
tragem ampla, com área externa espaçosa e pátio. Com a área interna sepa-
rada em diversos cômodos, a maioria deles era recheado de móveis e objetos
que haviam pertencido a seus antepassados ou que estavam relacionados à
montagem da casa para o crescimento dos filhos. Ainsley vivia na zona sul
da cidade. Habitava uma casa à beira do rio, plantada em um terreno amplo
e arborizado, que havia servido de chácara de lazer para seus ascendentes
paternos na primeira década do século XX e de que era uma das herdeiras.
Carla vivia em uma região nos arredores do centro administrativo da cidade,
em uma área que teve sua população adensada no fim da década de 1940, pe-
ríodo em que os pais de seu marido a construíram e de quem ela e o marido
comprariam trinta anos mais tarde.

1
As reflexões aqui desenvolvidas partem do processo de construção de minha dissertação de
Mestrado, defendida em 2010 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizada entre
2007 e 2009, a etnografia teve como objeto a experiência de mudança de residência de duas mulheres
e suas estratégias na eleição dos objetos e móveis a serem mantidos.

A Alma das Coisas 267


Figuras 10.1 e 10.2. Quarto vazio na casa de Carla, e “cantinho” da sala, já sem os móveis,
no dia da mudança. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2007

A pesquisa foi realizada durante o processo em que as duas interlocuto-


ras estavam se mudando dessas para outras casas menores. E a mudança foi
o universo da etnografia que realizei com elas. É importante dizer que, no
caso de Carla, após a desocupação a casa seria destruída para dar lugar a um
prédio de apartamentos e ela se mudaria para outra cidade. No outro contex-
to, a casa também seria destruída, no entanto Ainsley permaneceria vivendo
próxima a ela. A eminência da destruição da matéria das casas de origem – e
a diferença entre o tamanho delas em relação às casas de destino – tornou o
processo ainda mais dramático para as duas. Era preciso escolher – no espaço
de tempo estabelecido pelos prazos contratuais de desocupação do terreno
– aqueles móveis, fotografias, roupas, brinquedos, objetos que seriam impor-
tantes para narrativa do que seria destruído. E o que estava sendo destruí-
do? Que história seria contada a partir daquela mudança? Que matéria seria
escolhida para integrar essa narrativa do passado? Quais fotografias, quais
objetos? O que seria lembrado? À medida que fui cúmplice na formulação
dessas questões, observei minhas interlocutoras em seus esforços simbóli-
cos de controlar a transformação – exigidos pela avaliação, escolha e risco
– implícitos no ato de guardar ou não guardar objetos ligados à vida familiar.
Corolário desse ato, a permanência – de um conjunto de sensações, ligadas
aos objetos queridos – estava em debate naquele momento.

O patrimônio ambivalente:
entre as heranças paterna e materna

Ainsley era “geniosa” e “braba”, e justificava isso pela astrologia: “leoni-


na, né!”. Gostava de cuidar dos cabelos, que eram ruivos “como os do pai”,

268 Anelise dos Santos Gutterres


a pele do rosto tinha sardas e seus olhos eram grandes e escuros. Insistia
muito em me casar com o seu filho mais velho, porém acabamos superando
esse desejo à medida que, de mulher estrangeira motivada pelas histórias da
família, fui classificada apenas como “antropóloga e amiga”.

Figura 10.3. Armário da casa de Ainsley já sem os


objetos em seu interior. Frame de imagem em vídeo.
Anelise dos Santos Gutterres, 2007

Eu fui a sua casa algumas vezes antes de ser esvaziada completamente.


Como tinha intenção de fazer um documentário etnográfico sobre a escolha
dos objetos no processo de desocupação da casa, com frequência levava a
câmera de vídeo em minhas saídas de campo. A casa ficava no centro do
terreno e tinha árvores e mato em sua volta. Dentro dos limites da proprie-
dade – que ficava entre uma pequena rua e o rio Guaíba – havia uma garagem
coberta que foi transformada na cozinha coletiva da casa, a que chamavam de
“o cozinhão”. Era nela que todo mundo assistia à televisão, fazia as refeições
e sentava para conversar de forma mais íntima. Do lado da casa tinha uma
construção de dois cômodos que funcionou como lavanderia por um tempo,
mas que na ocasião acomodava o caseiro; no outro cômodo se alojava tem-
porariamente o filho mais velho desde que havia voltado de uma viagem à
Austrália. No limite do terreno que ficava próximo à rua havia um chafariz
em ruína, tomado pelo mato, e ao lado dele uma enorme pedra. “A torre” –
como a família se referia ao conjunto de peças e escadas construído em cima
e no entorno dessa pedra – era o “xodó” de Ainsley. E ela sempre me narrou
com muita dor o fato de a pedra ter ficado nos limites da parcela do terreno
que cabia ao primo, não na sua. Subi muitas vezes nessa torre e dela podia-se
ver o rio ao entardecer. Como o pôr do sol no rio Guaíba é uma das imagens
mais fortes para a memória coletiva do morador de Porto Alegre, vê-lo da-
quela torre era considerado um acontecimento e um privilégio.

A Alma das Coisas 269


Parece mentira que ainda tem dentro de Porto Alegre, né? Um espaço
assim... aqui que eles trocaram o primeiro beijo, é a história que eu
sei, meu avô, né... mais ou menos por aqui – Ainsley para na frente
da escada e mostra o local do beijo – [...] Daí ele fez essa torre, que
tem 94 degraus, tem um primeiro lance depois tu sobe por dentro.
Ela contou isso para minha mãe, que ela tinha 13 anos na época. E
aí, ele achava ela muito bonita (a minha vó tinha os olhos violeta que
nem da Elizabeth Taylor). Ele com olhar brejeiro disse: quando tu
cresceres eu vou casar contigo. E quando ele pediu ela em casamento
para o meu bisa, ele chamou a minha vó para comunicar e perguntou
o que ela achava daquele pedido. Ela disse que já sabia. Claro... ela
guardou aquilo [...] Ela era de 1900. De 1900. Ele morreu com 36
anos. De acidente de avião. Vamos? – me convida a subir até o alto da
pedra – aqui é uma pedra inteiriça, aquela árvore tombou – e aponta
para uma imensa árvore que estava caída fazia alguns anos – quer
dizer, a natureza também sofre. Aqui eu me lembro quando criança
que eram servidos uns chás de muita pompa, sabe? Guardanapos de
linho, no final de tarde.

Ao descer da torre chegava-se a um largo onde havia espaço para os carros


fazerem retorno, em volta de um círculo limitado por concreto onde antiga-
mente havia flores. Dali tinha-se acesso a uma das duas entradas ao interior
da casa, de uso cotidiano. A outra, que ficava num avarandado de frente para
o rio, se utilizava menos. A casa tinha uma sala larga em forma retangular.
Sala de jantar e de estar ficavam divididas por um sofá, nesse mesmo cômo-
do. De um lado uma mesa de madeira escura também retangular. Junto às
paredes havia cristaleiras que guardavam os bibelôs de Ainsley, os copos e
as louças para ocasiões especiais. Nas mesinhas de centro e em cima do bal-
cão, os bibelôs e os porta-retratos. Os móveis eram todos de madeira escu-
ra e com formas levemente arredondadas. Penduradas nas paredes estavam
pinturas feitas por sua avó paterna, um retrato desse avô que morreu num
acidente de avião, uma certidão da casa redigida em alemão, além de retratos
dela com os filhos. A casa era arejada e clara, e era comum as portas e janelas
estarem sempre abertas.

270 Anelise dos Santos Gutterres


Figura 10.4. Um documento da casa de Ainsley.
Frame de imagem em vídeo.
Anelise dos Santos Gutterres, 2007

Os quartos ficavam nas laterais dessa sala. E eram três. Num deles havia
uma mobília que era da sua avó, um conjunto com cama, criado-mudo, pen-
teadeira, armário e uma escrivaninha. E que havia sido ocupado por sua filha
quando ela morava com Ainsley. Havia um outro quarto, ocupado pelo filho
mais novo que ainda morava com ela nessa época, e o quarto dela. Nesse úl-
timo havia a cama de ferro que tinha sido do seu pai e um armário revestido
de laca branca, além de uma penteadeira. No avarandado que ficava contíguo
à sala havia um conjunto de poltronas e uma mesa de centro; um aquário,
um grande móvel que guardava alguns livros e um conjunto de prata da avó.

Pena que agora eu já estou tirando, mas esse móvel é bem antigo,
essa penteadeira e aquele móvel, também. Tudo da vó, os Frederico
Mentz... isso aqui era dos Mentz. Eu não sei se começou com os Trein
ou começou com os Mentz [...] Essa é esposa do Frederico Mentz,
Catarina Trein Mentz – me mostra um retrato grande da “vó“ Cata-
rina pintado a óleo. Aqui é meu pai e minha filha, aqui é minha mãe
– diz, apontando-os na fotografia que pegara para me mostrar. Porque
na verdade isso era uma coisa só. Daí com a morte foram dividindo
e foi ficando uma coisa diferente. Na verdade eu sou bisneta do que
começou [...] Esse roupeiro aqui tem cem anos [...] Essas coisas nem
existem mais. [...] Esse móvel era do meu bisa, porque meu vô, como
eu te disse, ele morreu com 36 anos, é aquele ali – ela atravessa sala
e aponta para o retrato que está na parede. Têm muitas fotos aqui,
lindas as fotos. O móvel que estava com as fotos eu já embalei.

Grande parte dos móveis e objetos que ela me apresentou haviam sido
do enxoval da sua avó paterna – adquiridos por sua avó paterna ou herdado

A Alma das Coisas 271


de seus pais e avós. Alguns móveis Ainsley havia comprado ao longo do seu
casamento e poucos objetos haviam sido de sua mãe, que possuía uma outra
propriedade perto do centro da cidade, onde morou até ficar doente e onde
vivia a filha de Ainsley. A família nuclear dos pais de Ainsley havia vivido
pouco tempo naquela casa, seu pai é que vivera a infância e a juventude ali
junto dos irmãos. Após o casamento da mãe e do pai de Ainsley, o casal se
mudou para uma outra casa nos arredores do bairro. Quando aconteceu a
separação deles a mãe partiu para o centro com os filhos; e o pai, após alguns
anos, voltou a viver na casa em que havia crescido. Quando o pai de Ainsley
adoeceu ela retornou. Com o marido e os filhos, ela voltou a viver com o
pai. Após o falecimento dele, ela segue no gerenciamento da casa, função
que assumiu desde que ele ficou enfermo. É no centro dessas relações de
parentesco, configuradas entre suas idas e vindas para a casa, que Ainsley
assumiu o papel de guardiã da memória da família paterna, cuidando dos
objetos e móveis de seus antepassados. De acordo com Halbwachs (2006,
p. 39), os eventos vividos, as cenas lembradas variam de indivíduo para in-
divíduo; porém, quando as lembranças dos outros, apesar de diferentes, nos
dão a sensação de possuir o mesmo sentido das nossas, há uma conexão que
faz a memória coletiva. Guardiã da memória familiar (Lins de Barros, 1989,
p. 34), Ainsley assume a compreensão de marcas do passado, por onde ela
como narradora se orienta e se guia, num deslocamento constante e também
cíclico no tempo. Observando suas descontinuidades no processo vivido,
Ainsley estabelece uma ordem e um contexto para essas marcas: as idas e
vindas da casa, a morte do pai, a separação e, a partir delas, reinventa a sua
permanência no tempo e o lugar da casa na memória da família.
Quando a conheci, a mudança de casa já estava com data marcada e ela
só estava acontecendo – me contou ela e o filho mais velho – por causa da
ganância e da avareza de um dos primos, filho da irmã do pai de Ainsley.
Durante a desocupação da casa ela embalou cada objeto, cada quadro, cada
bibelô, fiscalizou para que cada móvel fosse deslocado com cuidado e retira-
do com segurança do interior da casa para fora dela. Evitando a perda de um
objeto, ela tomava cuidado para que nada fosse quebrado. Ela dizia e repetia
aos carregadores – seus filhos e amigos deles – no processo de desmonte dos
cômodos: “vai tudo”.
As medidas do novo imóvel foram pensadas para que a casa pudesse aco-
modar o mobiliário grandioso. E ele coube no interior do imóvel. Cobrindo
as paredes inteiras e também o centro dos dois ambientes da nova casa.
Foram acomodados de tal maneira que ao olhar para o interior das cristalei-

272 Anelise dos Santos Gutterres


ras, para cima da mesa principal, das duas outras mesinhas e do balcão, era
difícil imaginar que eles tinham sido desmontados para serem transportados
até ali. O arranjo era muito semelhante ao da antiga casa, de modo que eles
reconstituíam perfeitamente a forma com que estavam dispostos nela. A mo-
rada paterna parecia resgatada.

Figura 10.5. Móvel sendo esvaziado na Casa de


Ainsley. Dia da mudança. Frame de imagem em
vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2007

Construída ao lado da peça ocupada pelo filho e pelo caseiro, na porção


do terreno destinada a ela na partilha, a casa nova tinha um quarto, uma sala
e um banheiro. Os móveis e objetos que foram retirados da casa de origem
foram acomodados temporariamente no cozinhão e também em uma área
coberta ao lado dele, onde foram embalados para que não sofressem danos
com a chuva e a umidade da rua. Após um mês nessa condição, eles foram
então desembrulhados e distribuídos entre a sua casa – que a essa altura já
estava pronta – e a casa dos dois filhos, o cozinhão e a casa da praia. Ela me
disse que nesses lugares “tudo bem”, não achava que os filhos se desfariam
do mobiliário. No entanto, em relação ao terreno que ela havia herdado nes-
sa partilha, e que após a sua morte seria herdado pelos filhos, ela foi cate-
górica. Botaria uma cláusula na relação de bens da família que os proibia de
vendê-lo.
Questionada sobre a guarda desses objetos e móveis num espaço tão di-
minuto em comparação com o anterior, Ainsley respondeu que sabia que
havia ficado um pouco apertado, mas que não se importava com isso. Além
dos objetos e móveis, ela transferiu as janelas e portas do avarandado, “com
vidro em bisotê”, para a casa nova antes que a velha fosse destruída. Uma pia
pequena que havia em um dos quartos foi retirada e guardada; e uma outra,

A Alma das Coisas 273


guardada de uma reforma anterior, foi transferida para o novo banheiro. No
dia em que a mudança foi feita ela estava muito agitada e ansiosa, buscando
controlar a saída e a chegada dos móveis. Todos pareciam importantes. Entre
as poucas pausas que tínhamos – numa peça esvaziada, na soleira de uma
porta enquanto juntávamos alguns papéis caídos de cima de armários, ou
recolhendo peças que caíam do interior de alguma caixa –, conversávamos.
Não era raro ela perguntar “não sei o que tu acha, tu que está vendo tudo de
fora...” e eu respondia que ainda estava tentando entender por que era tão
difícil para ela abandonar aqueles objetos e aquela casa. E ela me respondia
“é difícil de entender, é complicado... tem muita coisa aqui dentro dessa
casa”. Muitos meses depois, quando já havia finalizado o vídeo e a casa nova
já era a casa principal, propus que ela me falasse dessas complicações por
meio de uma entrevista. Quando fizemos essa conversa a casa paterna ainda
estava no mesmo lugar, porém completamente arruinada, consumida pelas
chuvas e pelo mato, já não parecia uma casa. Separada por um muro feito
para limitar o terreno de Ainsley, a ruína, no entanto, parecia incorporada
ao conjunto dos imóveis novos: a casa dela e a casa do filho mais novo. Para
que pudessem ir até o cozinhão todos passavam cotidianamente pela ruína,
através de um pequeno portão junto ao muro. O cozinhão permanecia em
funcionamento no mesmo lugar, só que agora estava na parcela do terreno
que pertencia a um dos outros dois herdeiros – filho de um irmão do seu pai
– e com quem ela tinha mantinha relações mais estreitas.
No dia dessa entrevista ela se sentou no sofá, sentei junto à mesa onde
apoiei a câmera. E ali – entre os móveis, cristais, pratas, retratos, bibelôs,
mesas e pinturas da família paterna – ela narrou sua relação com eles, de
outra maneira.

A Oma que não discriminou assim, mas sempre houve uma discri-
minação muito grande em relação à mãe. Não tanto em relação à
questão financeira, mas muito cultural também, porque a mãe era
uma moça de fora.2 A mãe foi conhecer o mar em lua de mel, com o
pai... essas coisas... ela sempre disse: que foi o pai. O copo de cristal,
essas coisas... e ela aprendeu muito enquanto morou aqui, era uma
pessoa que comia em gamelas, assim bem simples, uma vida simples
no campo, em cima de cavalo, tirando o leite e de repente era o uso
do guardanapo de linho. Eu me lembro na nossa casa era sempre
guardanapo de linho, não tinha, não existia guardanapo de papel na

2
Do interior do Rio Grande do Sul.

274 Anelise dos Santos Gutterres


nossa casa, o pai não permitia. Eu me lembro assim, as toalhas, os
guardanapos tudo quarando naquelas bacias grandes... Eu tenho essa
lembrança. E o pai assim, até bem tarde, depois ele resolveu abolir,
mas eram os famosos guardanapos de linho. A mesa com toalha de
tecido, tudo isso. Então esse choque acho que incomodou um pou-
co... e sei também... tem uma conversa assim: que a Oma testou os
sentimentos dele, porque ele era novo e ela também, eram duas crian-
ças. O pai tinha 21, fez em agosto, e a mãe faria 21 em dezembro,
30 de dezembro [...] E aí a Oma, que é vó em alemão, ela fez uma
pergunta para ele. Que ela daria uma viagem de volta ao mundo para
ele, durante um ano, se ele não casasse com a mãe. Lindo, né? (e ri)
e aí ele não aceitou, não aceitou. E a Oma diz que isso foi para testar
os sentimentos dele.

As diferenças étnicas, econômicas e “culturais”, como disse Ainsley, entre


a mãe e a família do pai foram ressaltadas por ela nas imagens de contraste:
entre a moça da roça e o rapaz da cidade. A oposição na polidez e os hábitos
civilizados do uso do banheiro são destacadas; e a noção da civilização (Elias,
1993, p. 18), aliada aos bons costumes à mesa, constrói uma diferença quase
antagônica entre um lado e outro da aliança formada entre o pai e a mãe de
Ainsley.
Na época do casamento, o lado paterno da família de Ainsley já gozava de
prestígio na sociedade porto-alegrense, sua descendência já havia promovido
a limpeza ideológica que privilegiava a europeização do seu passado (Woort-
mann, 1994, p. 3), esquecendo sua trajetória inicial no Brasil, mais vincula-
da ao contexto colonial. Integrantes de álbuns comemorativos da cidade de
Porto Alegre e usufruindo do status de burguesia industrial estabelecida, a
família dos guardanapos de linho não aceitou de início a ideia do casamento.
Moça “sem estudo”, a mãe de Ainsley tinha um keim3 ruim (1994, p. 12) se-
gundo os padrões de aliança da família do noivo, cuja geração era a primeira a
contrair casamento com uma pessoa completamente desconhecida das redes
familiares. A traição da mãe – aliada a uma ascendência que não estava de
acordo com a rede, e os padrões econômicos e étnicos da família paterna do
cônjuge – parece ter contribuído para que Ainsley também fosse vinculada ao
keim ruim de sua mãe. Com base nisso perguntei a ela, na sequência de nossa

3
Keim - Segundo o trabalho de Ellen F. Woortmann (1994) a categoria cultural keim pode ser traduzida
como “princípio germinativo”. Ela classifica pessoas, através de famílias, definindo-as como casáveis e
não-casáveis, segundo sejam portadoras de um “keim bom” ou de um “keim ruim” (Woortmann, 1988).

A Alma das Coisas 275


conversa, se a destruição da casa não havia sido uma tentativa de extinguir
a matéria, para extinguir também as lembranças ruins dessa relação. Depois
de uma longa e nervosa risada ele me respondeu:

É, é porque ficou uma coisa assim, a casa... a casa, tipo eu tive que
alugar a casa para morar. Eu fui despejada da casa, da casa que um
terço era minha, quer dizer, não tem explicação. À medida que eu
assinei, assinei, foi um atestado de burrice da minha parte.

O contrato a que Ainsley se refere é um contrato de aluguel – assinado


entre ela e o filho da irmã do seu pai – para que ela pudesse viver na casa
após a morte dele.

Exatamente... porque foi a perda do pai, que daí eu herdei, são as iro-
nias do destino... daí eu não passei mais a ser a filha do dono, mas sim
a dona. Então, não é a minha parte? Então vamos derrubar, vamos
pegar a patrola4 e passar por cima, e passei, e não me arrependo.

Olhando para a raiva que ela expressava nos olhos, que se misturava com
uma mágoa também muito forte, eu questionei se ela realmente não se arre-
pendia de ter demolido a casa da infância do pai.

Não. Às vezes me dá uma dor, assim, sabe... que eu acho que ela, não
só essa parte que eu derrubei, mas toda ela tem que ser derrubada.
Tem, tem espíritos ali dentro ainda, têm pessoas que não saíram dali,
eu só sentia que tinha, mas não via. E eu acho que ela tem que vir ao
chão, para bem de começar uma história nova. Eu acho. Eu acho que
querer recuperar aquilo ali, não, a casa não tem mais estrutura, ela tá
caindo, ela tá cheia de cupim. Me dói assim, porque eu ainda entro
ali... então não era o interesse dele da casa em si, do que representava
a casa, porque ele tinha uma bela casa. Então não era nem o valor
estimativo da casa, era só a intenção de me tirar dali. Porque nunca
veio arrumar? Porque ele não tá ali? Não é? É, é uma coisa assim,
tudo uma casa, que loucura... às vezes, quando eu passo ali eu olho
ela com desprezo, puxa, o que tu me fizeste passar? Ordinária! E às
vezes eu passo ali e choro.

E foi chorando que ela terminou a frase. Me pediu desculpa, e disse que
doía. Repetiu que iria passar, enquanto limpava as lágrimas do rosto com

4
Trator.

276 Anelise dos Santos Gutterres


uma das mãos. Olhando para mim e para o alto, ela secou os olhos com a
ponta dos dedos e bateu no peito duas vezes com o punho fechado. Ainda
um pouco molhada, sorriu.

É uma casa... e olha como mexeu com todo mundo [...] ninguém acre-
ditou, a minha atitude foi de verdadeira filha de Gustavo. Ninguém,
ninguém entendeu..., mas não era para entender. Ah, é minha? Então
tá. Então vai para o chão. Porque como é que nós íamos dividir uma
casa? Parte de lá, Luli, depois ele, ela no meio, e eu!

Conforme ela conta, houve negociação entre os primos para a preserva-


ção da casa e repartição do terreno. Inicialmente Ainsley queria ficar com a
parte da pedra e com a casa, pois a considerava a matéria mais importante
para a lembrança da família paterna. Mas isso acabou não acontecendo.

A minha parte era a pedra, era... Então, tem as culpas, porque a pedra
era o amor do pai, porque ali a Oma trocou o primeiro beijo, então
representava muito aquela pedra ali. Mas porque também eu ia deixar
o coitado do Luli, com duas partes lá, mais aqui, e eu no meio, com-
plicado, bem complicado.

Dois anos antes dessa entrevista – período em que eu comecei a etno-


grafar a casa de Ainsley –, recebi uma ligação do seu filho mais velho.
Pelo telefone ele me contou que a mãe havia contratado um operador de
retroescavadeira e que estava ordenando a derrubada de parte da antiga
casa da família e que eu deveria ir lá acompanhar. Após desligar o telefo-
ne, saí rapidamente em direção ao bairro dela a tempo de acompanhar a
demolição. Sem entender as razões daquela demolição, estive presente no
evento junto com Ainsley. Conforme ela me contaria na situação de en-
trevista, no momento em que decidiu destruir a casa a materialidade dela
passou a expressar outro valor. Já que não seria possível se apossar dela
inteiramente, ela se apossou de um pedaço, destruindo-o. Destruindo ela
conseguiu expressar que era dona de um pedaço daquela casa e que possuía
um pedaço do seu pai. A pedra, os objetos, o rio, o entardecer, os móveis, o
avarandado, as flores, a casa, as ervas, isso tudo era o seu pai. Destruindo,
ela configurou o patrimônio da família paterna para além da materialidade
da casa (Gonçalves, 2005).

A Alma das Coisas 277


Figura 10.6. Objetos e documentos esperando
encaixotamento para a mudança.
Frame de imagem em vídeo.
Anelise dos Santos Gutterres, 2007

Conforme foi destacado na entrevista que transcrevi anteriormente, Ains-


ley tinha uma relação difícil com um dos primos. Após a morte do pai, quando
ela decidiu não pagar mais aluguel, esse primo moveu uma ação para que ela
fosse despejada da casa. Filho da irmã do pai de Ainsley e do homem com
quem a mãe dela acabou se relacionando concomitantemente ao casamento,
esse primo era um dos três herdeiros da propriedade. O terceiro herdeiro, Luli,
nos contou, em uma conversa que tivera com seu pai, que os irmãos certa vez
haviam se encontrado e que nesse dia teriam decidido que a casa tinha “valor
zero”, o que importava era o terreno. Esse acordo definia que não haveria ne-
nhum motivo judicial para uma disputa por essa casa, já que a propriedade se-
ria dividida igualmente entre os três herdeiros designados a receber uma parte
do lote. Entre esses herdeiros estava o pai de Ainsley, o pai de Luli e a mãe
desse outro primo, que por direito sucessório herdaram esse bem dos pais.
Após a morte do pai de Ainsley, no entanto, o processo contra ela foi iniciado.
Durante a retirada do mobiliário do interior da casa, no prazo determina-
do pela justiça, a situação entre os herdeiros estava tensa. Havia um fio de
náilon com estacas limitando uma parte do terreno. Ele partia do muro pró-
ximo à rua e, para chegar até a outra extremidade, teria de atravessar a casa,
cortando-a quase ao meio. Por algumas semanas o destino dela foi discutido,
e seu valor não era mais zero. O filho da irmã do pai de Ainsley começava
a demonstrar interesse na casa, alegando que ela deveria ficar na família, e
portanto teriam de ajustar o corte sugerido pelo fio. A decisão de destruir
ou não destruir estabeleceu outra relação entre os envolvidos na querela e a
casa. Se de acordo com Pitt-Rivers “a essência da honra é a vontade” (1992,

278 Anelise dos Santos Gutterres


p. 20), a conduta de honra de um dos primos se expressou através de um
processo judicial. A posição de Ainsley foi outra. Para ela a honra da família
não estava mais relacionada à manutenção da casa, mas em sua destruição.
Nessa disputa de honra, os vivos e os mortos tinha estatuto semelhante na
construção da memória do parentesco.5

Foi uma coisa bem delicada. A mãe se separou por uma pessoa da
família. Um cunhado... Ela nunca negou. E naquela época as mulhe-
res eram julgadas, os homens não. Mas as mulheres eram julgadas e
ela foi considerada meretriz. Nós prestamos depoimento, eu tinha 13
para 14 anos. A gente teve que dizer com quem iria ficar. Na verdade
eu queria ficar com meu pai, mas eu fiquei com ela porque eu sabia
seria ela a pessoa para me criar. Eu tinha noção disso, porque o pai
era muito louco. [...] Foi muito, foi muito difícil [...] Fui testemunha
e era bem menina. [...] a partilha demorou, a mãe demorou para rece-
ber... a separação em si que foi litigiosa, eu me lembro do juiz dando
o veredicto. [...] Sim, sim, considerada meretriz, foi um choque. A
mãe não pôde mais entrar no clube que nós éramos sócios, eu fui fada
num baile e ela foi barrada, na entrada... eu entrando para ser fada das
debutantes, e ela não pôde entrar. A senhora por gentileza nos acom-
panhe, que o presidente precisa conversar com a senhora, e eu entrei
sozinha. Eu era uma criança, guria, eu tinha 13 anos. [...] Depois ela
não deu uma ênfase maior para isso, aí, sabe, ela foi nos poupando.

A traição de sua mãe com o cunhado, marido da irmã do seu pai, culmi-
nou no julgamento citado por ela. A finalização legal parece ter acontecido so-
mente nos anos 1970, época em que a justiça autorizou que os bens que eram
por partilha de divórcio de direito da mãe de Ainsley fossem de fato para ela.
Sobre essa época, Ainsley diz: ficou muito bem, a mãe ficou muito bem, ela
era uma mulher rica. Os bens e a situação econômica estável não evitaram, no
entanto, que Ainsley e o irmão passassem por constrangimentos. O status de
meretriz afastou a maioria dos familiares do lado paterno de uma aproximação
mais cotidiana. Ainsley narra apenas duas pessoas da linhagem paterna com
quem manteve boas relações depois do ocorrido: a avó paterna e uma filha do
irmão desta avó, interlocutora de Ainsley acerca das histórias da família.

5
Aportados no Brasil em 1846, os parentes distantes de Ainsley, oriundos do processo imigratório da
Europa para o estado do Rio Grande do Sul, vieram de próximas porém diferentes regiões das que hoje
compõem a Alemanha. Entre esse grupo étnico, conforme discute Woortmann, tanto para os colonos
alemães como os “novos-ricos industriais”, “o parentesco é memória” (1994, p. 13).

A Alma das Coisas 279


O desejo público de reparação e de dignidade perdidos com a traição e a
relação sexual entre os concunhados eram sempre indiretamente ressaltados
por Ainsley. Mais do que a separação, a manutenção de relações sexuais com
o homem da irmã do seu marido transformou a mãe de Ainsley numa mere-
triz. A consanguinidade que compunha o parentesco do pai com as crianças
foi, com isso, rompida; e somente uma das consanguinidades (Fox, 1986, p.
38) envolvidas na geração das crianças tomou destaque: a da mãe. Os filhos,
portanto, foram considerados no mesmo status de filhos bastardos, o que
era muito grave dentro de uma moral étnica e aristocrática6 constituinte da
linhagem de parentesco paterna de Ainsley.
O isolamento promovido pela traição da mãe pareceu evidenciar o “não
fazer gosto” que desde o início rondou a aliança dos dois por parte da família
de origem dele. A autonomia e a escolha pessoal, características dos casais
modernos (Velho, 2006, p. 27) e que promoveram a escolha de seu pai por
construir um laço de parentesco com uma família que os pais não conheciam
ou consideravam pouco convencional, chocou-se depois com a autonomia
de Noeli, que rompeu a rede de relações construídas através do casamento
em troca de uma opção no âmbito de uma noção individualista7 e moderna,
a paixão. A materialidade da casa e os objetos nela guardados carregavam
essas histórias. As lembranças evocadas por eles foram construídas sobre
um novo arranjo no processo de mudança da casa. A partir dela as relações
familiares foram ressignificadas e organizadas numa nova narrativa.

6
Cf. Sandra Pesavento (1986), acostumadas a riscos, essas famílias eram detentoras de bancos e
integrantes de associações de classe que foram até patrocinadores dos revolucionários de 1930, se
envolvendo em cargos políticos ou com intenções políticas a fim de manter suas fábricas em atividade
e, com isso, garantir a manutenção do seu patrimônio ligado a bens móveis e imóveis.
7
As narrativas de Carla e Ainsley nos termos das escolhas feitas por elas e suas relações com a
noção de indivíduo e de pessoa foram tratadas no capítulo 4 e 5 de minha dissertação de Mestrado
(Gutterres, 2010)

280 Anelise dos Santos Gutterres


A casa como depósito das lembranças

Figura 10.7. Caixas preparadas para a mudança.


Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos
Gutterres, 2008

Como aconteceu com Ainsley, cheguei até Carla a partir de minha rede de
relações sociais mais próxima. Quando cheguei em sua casa, alguns cômodos
já haviam sido desmontados parcialmente e, segundo ela, a casa estava uma
bagunça. Em um terreno com quarenta metros de profundidade, a casa de
Carla era geminada a outra que pertencia à irmã de sua sogra. A casa tinha
sido presente do pai às duas e havia sido construída pelo marido da irmã,
que era engenheiro. Nos fundos havia um pequeno aclive onde cresciam ár-
vores frutíferas, e subindo uma escada se chegava até um piso onde havia
uma piscina e um espaço coberto, próprio para fazer churrasco. No fim de
semana subsequente a nossa conversa, um dos filhos de Carla havia progra-
mado uma festa de despedida da casa. Então ela estava enchendo a piscina
e cuidando da água. A parte coberta onde ficava a churrasqueira tinha uma
sala, um banheiro e um quarto, que guardava nesse dia os instrumentos
de percussão desse mesmo filho. Invenção dela, aquele espaço era um dos
que ela mais gostava em toda a casa, porque havia sido planejado por ela. A
garagem da casa, que ficava na lateral do terreno, também havia sido modi-
ficada quando o casal passou a habitar a casa. Ela foi fechada e guardava a
oficina do seu marido, que, conforme ela me contou, adorava os trabalhos
manuais. No andar de cima havia um quarto que havia sido fechado e outros
que foram adaptados pelo casal. No entanto, Carla achava que a casa ainda se
parecia muito com a casa da planta original. A morte do marido, nove anos
antes da mudança que etnografei, foi a marca que ela estabeleceu para me
narrar as reformas mais significativas da casa. Foi depois da morte dele que

A Alma das Coisas 281


ela realmente mudou tudo. Trocou o branco de uma parede da sala pela cor
laranja. Quebrou uma parede da cozinha, pintou-a de vermelho e a separou
da copa com um balcão ao estilo de cozinha americana. Sobre a cozinha, ela
me disse que quando olhou o resultado se pôs a pensar por que não havia
feito a reforma antes.

Figura 10.8. Fachada da casa de Carla. Frame de


imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2008

Nas primeiras entrevistas que fiz na sua sala, conversamos sobre a pes-
quisa. E foi então que ela me disse que um dos seus desejos com aquela
mudança era o de conseguir jogar muita coisa fora. Não queria levar lixo para
a nova vida. Entre outras combinações, acertamos que acompanharia ela du-
rante a seleção das fotografias, feita meses antes da mudança8 acontecer.
A planta da casa tinha aproximadamente 440 metros quadrados e era
dividida em dois pisos. Embaixo havia uma sala grande com uma porta de
correr na metade, podendo ser dividida entre sala de estar e sala de jantar. A
porta era de madeira escura, assim como todos os acabamentos e detalhes
da casa: a janela, o corrimão da escada, a escada, o chão e os nichos nas pa-
redes, recortados em arco. As portas internas do andar térreo tinham formas
vazadas na madeira e continham vidro. Contígua a essa sala havia uma porta
que dava para um pátio entre as árvores frutíferas e a casa. Paralelo à sala,
um corredor levava até um lugar onde havia a mesa das refeições cotidianas,
a copa, ao lado da cozinha. Nesse lugar havia uma mesa muito especial para

8
Conforme analisei em outra ocasião (Gutterres, 2010), as escolhas feitas nos dias que antecederam
e durante a mudança tiveram motivações e ritmos diferentes. Os objetos e os cômodos a serem
desocupados seguiram um roteiro que conferiu a eles potências diferentes em relação à capacidade
de lembrança.

282 Anelise dos Santos Gutterres


Carla, “o primeiro móvel que levaria para a casa nova”, disse. Nela seu filho
havia feito um desenho quando era pequeno que lhe rendeu uma bronca do
pai, mas estava lá até agora e ela lembrou de me contar sobre ele. Havia em
cima da mesa um relógio que o marido havia ganho de uma tia e que ela
também disse que ia levar com ela. Em torno da mesa havia um banco intei-
riço que acompanhava o ângulo reto da parede. Na ocasião em que olhamos
as fotografias, Carla me mostrou pelo menos dois álbuns com fotos tiradas
exclusivamente naquela mesa. Ela disse que a sogra, quando se mudou, tam-
bém tinha uma mesa como aquela, mas havia levado com ela. Aquela ela
tinha trazido quando o casal voltou do Rio de Janeiro, local onde haviam
morado durante o Mestrado e Doutorado do marido.

Figura 10.9. Interior da casa de Carla, no dia da


mudança. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos
Santos Gutterres, 2008

A aliança com o marido foi promotora de uma rede de sociabilidade (Ve-


lho, 2006, p. 27) que ela fazia questão de fortalecer à medida que cunhava
o espaço da casa como local para encontros entre o grupo de parentesco e
os amigos, através de festas de aniversário, natais, formaturas, ano novo.
Muitas dessas festas aconteciam em torno daquela mesa e no espaço da sala.
A mesa era o espaço em que ela “fazia absolutamente questão” de que todos
estivessem reunidos nos almoços e nos jantares diários.

O meu casamento foi aqui. O meu casamento foi aqui. Fizemos a


festa aqui, aqui era a sala de jantar, tinha aquele balcão, tinha a crista-
leira, mesa com as cadeiras, sala de jantar, que também não usava, só
em ocasiões especialíssimas. Aqui era a copa e aqui é que eles viviam
todas as refeições. [...] Tem um banco aqui, essa mesa fica com um
banco aqui, e eu tenho foto de todos, os meus filhos eu criei ao redor

A Alma das Coisas 283


dessa mesa, eu sempre digo isso e a mesa eu vou levar comigo. Porque
eu criei meus filhos aqui, a gente nas refeições conversava, brigava, eu
fazia absolutamente questão de todo mundo junto durante muito tem-
po. Essa aqui eu comprei no Rio e ela tem trinta anos e ela não tem um
cupim, eu tenho foto dos aniversários dos meus filhos em volta dessa
mesa, de toda a vida. Foto de aniversário de todo mundo eu tenho uns
dois três álbuns só de gente ao redor dessa mesa, a família se criou aqui.

Além dos aniversários dos cinco integrantes da casa, amplamente foto-


grafados a cada ano, ela me mostrou fotos das brincadeiras das crianças na
sala, das brincadeiras delas no chão; das brincadeiras deles em uma pequena
mesa baixa de centro; dos lanches deles na mesa da copa; dos teatros e in-
venções que faziam com o pai. Todas essas fotos foram guardadas e segui-
riam para a casa nova. Também foram guardadas as fotos tiradas em frente
da escada e da lareira – as fotos posadas. Na frente da lareira ela guardou as
fotografias com os instantes que mostravam seus filhos pequenos e jovens;
e aqueles instantes em que os filhos de sua sogra também apareciam, nes-
se mesmo lugar. Guardou as fotografias que mostravam diferentes gerações
numa mesma fotografia, também em frente à lareira. Na escada e no pátio
as fotos eram das crianças: elas entre os primos; aquelas que registravam o
primeiro dia da escola; e também as deles um pouco mais velhos, batidas
antes de as meninas saírem para festas com os amigos.
Ainda no andar térreo havia, depois da cozinha, uma área onde fica-
vam as lixeiras e a máquina de lavar roupa; era uma peça com saída para a
rua. Após esse espaço havia ainda um quarto pequeno e um banheiro. No
fim da escada que ligava os dois pisos havia um hall, e a partir dele, à di-
reita, ficavam dois dos quartos cujas janelas davam para a frente da casa,
área em que o marido da sogra de Carla havia plantado um flamboyant.
No centro do hall, um corredor direcionava até outros dois quartos. À
esquerda ficava um banheiro e um outro corredor que levava até uma pe-
quena área externa que havia sido fechada e a um outro quarto, que Carla
chamava de quartinho.

Aqui tem um quartinho, é muita bagunça, Anelise, tu vai dizer para


o pessoal do teu filme que eu estou me mudando. [...] se tu tivesse
vindo dois meses atrás, tu teria visto a casa montada, foi pena que a
gente não se conheceu, porque tu teria visto a casa montada e agora
tu teria visto o processo de mudança que tá acontecendo. (Conversa
gravada em vídeo)

284 Anelise dos Santos Gutterres


Foi nesse lugar que ela me narrou com mais veemência suas angústias em
relação à materialidade da memória. Sobre o risco que estava em jogo ali: de
que os filhos perdessem lembranças na ausência de alguns daqueles objetos,
ficando sem uma parte do patrimônio da família.
Ao entrar no quartinho, o tempo de escuta foi outro. Os prazos, con-
tratos, acertos e escolhas urgentes, e que preocupavam Carla nas nossas
conversas, ali foram esquecidos: escolher um serviço de mudança, comprar
sacos de lixo, conseguir algumas caixas, cancelar algumas contas, trocar en-
dereço junto às lojas, receber os funcionários da empreendedora que havia
comprado o terreno.
O quartinho seria um dos últimos cômodos a passar pelo processo de
seleção. Ali dentro a casa nunca havia sido montada. O quartinho era por
excelência um lugar que acomodava o desmonte, a bagunça. A bagunça como
arranjo era uma condição que fazia dele um lugar muito difícil de ser classifi-
cado por Carla, pois nele havia objetos que poderiam servir a uma infinidade
de memórias. Objetos coletados por anos e anos, que iam e voltavam do
quarto, mas nunca recebiam dentro dele uma ordenação específica. Era na
bagunça que eles se constituíam como agentes da lembrança. E eram agentes
dos mais poderosos. Eles haviam sido descartados ao acaso para que ficas-
sem justamente longe do alcance cotidiano dos cômodos mais utilizados.
Eram em si mesmos um risco ao cotidiano, pois remetiam a viagens longas,
por vezes doloridas. Quando chegamos, foi preciso que ela destrancasse a
porta com uma chave para que pudéssemos ingressar no cômodo.

Isso tem uma história, é uma vida que tem aqui. Realmente, essas
coisas eu não me acho no direito de jogar fora sem que meus filhos
olhem. Só que eu dei um prazo, vocês tem que vir separar. Eu tenho
prazo para sair. É claro que certas coisas eu não vou conseguir jogar
fora: os brinquedos. Eu até já comprei umas caixas grandes dessas
de plásticos. O playmobil, a Barbie isso eu vou guardar. Levo lá para
minha casa, depois eu vejo. Livro de história também. Porque nós
tínhamos o hábito de ler histórias para eles todas as noites, sem ex-
ceção. Tem livros tão amados aqui que a gente não conseguiu dar,
alguns brinquedos mais especiais vão. Mas esses troços da faculdade
aqui, mais todos os polígrafos, todos os cadernos... não sei, eles guar-
daram porque moram em casa. Aí agora é com eles. Eles têm que vir
ai porque, se eles não derem, eu vou jogar fora. (Idem)

A Alma das Coisas 285


Carla falava e ia mexendo nas coisas mais aparentes, em cima de caixas e
nas prateleiras das duas estantes de ferro que cobriam uma das paredes do
cômodo. Eram brinquedos, objetos, inteiros ou parte deles.

Ai, meu Deus, aqui tem uma tartaruga que a minha filha ganhou do
meu pai, ah, mas tá sem cabeça. Ganhou do meu pai quando fez 1
ano. (Idem)

A condição de morar em uma casa grande era ressaltada por ela como
uma possibilidade de acumular lembranças em potencial através do ajun-
tamento de objetos. Era como se, ao mexer de uma só vez – que foi como
descreveu os momentos em que revisava os objetos guardados ali –, ficasse
mais fácil descartá-los.

Tinham muitas festas. Porque a medicina tem a tal da festa dos cem
dias, adoravam a festa dos cem dias que era a fantasia. E quando eram
menores adoravam a coisa do teatro, teatros mil, na praia, aqui; fan-
tasia de todo tipo; no colégio. Mas as festas da medicina foram muito
elaboradas. Lembrança de viagem: lá o berimbau que todo mundo
traz, o chapéu do México, o bicho da Disney [...] Muito aniversário,
muito aniversário. Eram famosos. Sempre fiz janta para todo mundo,
todo mundo festejava aqui, o natal sempre foi aqui, agora festa de
aniversário deles. (Idem)

Andando com dificuldade no meio das altas e variadas caixas com fan-
tasias, roupas e chapéus, Carla reforçou ali o papel da casa como cenário
para as festas familiares, e para as festas dos filhos com os amigos. O quarto
também guardava o acervo da vida escolar dos filhos, e de suas diferentes
brincadeiras. Na época da mudança nenhum deles morava mais com ela.
Como habitavam residências menores – e a venda da casa demorou para ser
efetivada – a casa da mãe abrigou os objetos ligados a sua infância e a forma-
ção escolar vivida ali.

Esse lugar tá abandonado, porque aqui está fechado sempre. E cai


uma coisa lá de cima. Uma fuligem, está vendo? Eu acho que é um
tipo de formiga que faz isso. É cor de barro. Ou cupim. Esse quarto
aqui ficou como um guardado, eu considero como se fosse um só-
tão, tá tudo aqui, e aqui a gente entra pouco. Quando tu faz uma
arrumação, quando a gente fazia uma arrumação em qualquer ar-
mário... Tchuf... jogava para cá. As coisas que tu não queria jogar
fora, ao invés de jogar fora na hora, fomos amontoando ao longo

286 Anelise dos Santos Gutterres


dos anos. E eu vou te dizer, isso acontece principalmente para quem
mora em casa, quem tem apartamento não tem nada disso. Mas
quem mora em casa tem essa possibilidade. E daí tu começa, come-
ça, começa. Eu tenho posto fora ao longo dos anos uma quantidade
inacreditável de coisas e mesmo assim parece que não botei nada
fora. Livros, eu te disse, três ou quatro carros cheios; jogos – dei
uma caixa para essa minha amiga que tem uma creche, um centro
social...; livros infantis, também dei para ela. Uma que trabalha com
crianças eu dei as fantasias. Meu Deus, eu já dei muita, muita coisa.
Eu já botei sacolas de papel fora e tu olha para cá e parece que não
botei nada fora. (Idem)

No interior do quartinho, ela me provoca a pensar nos objetos acumu-


lados ali ao longo dos anos: transferidos da circulação e do uso, das gavetas
e dos armários – para aquela peça. A trajetória desses pequenos objetos da
vida dos filhos – os brinquedos, o souvenir de viagem, os cadernos, as car-
tas da namorada, a roupa das bonecas, o berimbau comprado na viagem à
Bahia –, do repouso nas gavetas até o repouso no quartinho, seria alterada
com a mudança de casa. A solidão (Bachelard, 1988, p. 41) deles no quar-
to abandonado estava ameaçada pela mudança, pelos novos arranjos que
Carla estava propondo aos filhos. Sugerindo uma ressonância (Gonçalves,
2005), ela os intima a ingressar naquele lugar para que façam a eleição do
seu patrimônio.
As fotografias que olhamos na sala antes da mudança saíram desse quar-
tinho dentro de grandes caixas plásticas. Dentro das caixas, a maioria dessas
fotos estava solta ou organizada em pequenos álbuns como aquele montado
só com fotos de eventos ocorridos em torno da mesa da copa. Ainda havia
álbuns de aniversários; de veraneios; da casa de Gramado;9 da praia; da
formatura da escola. As fotografias soltas estavam relacionadas a sua família
de ascendência. Havia muitas fotos de sua mãe, do seu pai, separadamente;
havia fotos da sua infância, de sua juventude, da juventude de sua mãe, da
juventude de seu pai. Fotos acolhidas por ela após a morte deles, quando
teve de desocupar a casa onde moravam.

9
Casa onde passavam as férias de inverno, na cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul.

A Alma das Coisas 287


Figura 10.10. Carla mostrando fotografias.
Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos
Gutterres, 2008

Remexendo essas caixas, ela encontrou fotografias da família de ascen-


dência do seu marido, que remetiam a situações da infância dele, e da época
em que a residência havia sido construída; fotos dos irmãos do marido ainda
pequenos nos arredores da casa. As fotos da década de 1980 eram a grande
maioria: filhos brincando, posando, jogando videogame, sozinhos, com os
primos, na sala, no pátio, na mesa. Condicionadas em álbuns pequenos ou
soltas, essas fotografias enchiam três caixas plásticas médias. Além delas
ainda havia os álbuns grandes de capa dura em que a trajetória das crianças
estava organizada por idade ou por local. Eram os móveis, objetos e brinque-
dos que apareciam nessas fotos que ela levaria para a casa nova. A recorrên-
cia deles nas fotografias era usada por Carla para justificar a escolha deles.
Algumas das fotografias soltas continham furos de alfinete nas pontas,
o que sugeria que elas já haviam composto algum mural, organizadas con-
forme a narrativa de cada filho. À medida que ia reconhecendo as pessoas
nas fotos, ou quando encontrava alguma foto da casa – antiga ou atual –,
Carla a virava e mostrava para mim, acrescentando algum detalhe. A partir
desses detalhes ela narrou as lembranças de situações que não estavam nas
fotografias, mas que partiam do que estava nelas. Uma foto ia completando a
lembrança provocada por outra, das centenas que ela foi retirando de dentro
da caixa. A grande maioria dos personagens ali eram seus conhecidos, e ela
foi construindo relações entre eles a fim de que eu compreendesse o que ela
estava chamando de família e a relevância da casa na construção dela.

288 Anelise dos Santos Gutterres


Figura 10.11. Destroços da casa de Carla, no dia
de sua destruição. Frame de imagem em vídeo.
Anelise dos Santos Gutterres, 2008

Apenas aquilo que tem razões para recomeçar

Ao chegar à residência de cada uma das interlocutoras eu já sabia de


antemão que a casa seria desocupada (em um dos casos sabia, também, que
seria demolida). Essa condição etnográfica demarcou temporalmente nossa
interlocução pela excepcionalidade (Pollak, 1990, p. 10) desse evento. Nesse
circuito de agenciamentos (Latour, 2008, p. 293) – entre humanos, ante-
passados e contemporâneos; objetos guardados ou jogados fora –, as casas
produziram conexões que foram significadas por Carla e Ainsley na experi-
ência da mudança. Essa experiência foi espaço privilegiado para a construção
das recordações, cosidas e descosidas pela condição do presente (Bachelard,
1988, p. 38), e que só foram passíveis de compreensão como construções do
processo vivido pela mudança.
Na qualidade de narrativa, a morada também se construiu na escuta do
antropólogo – que assegurou momentaneamente a possibilidade de sua re-
produção (Benjamin, 1994, p. 210) – e que integrou, na experiência da mu-
dança, o circuito dos agenciamentos. Além da escuta do pesquisador, havia
a incerteza de que as conexões ali estabelecidas e que configuravam a mora-
da fossem reproduzidas pelos filhos. Integrantes do mundo dos sucessores
(Schutz, 1979, p. 219), os filhos e as relações que seriam produzidas por eles
eram completamente indetermináveis; e fugiam do controle das narradoras.
Buscando a ressonância dos objetos familiares junto aos seus descendentes,
Carla e Ainsley tinham apenas a expectativa de construção de um patrimônio
da família através da mediação dos objetos, não a certeza. Guardando ou des-

A Alma das Coisas 289


fazendo-se desses objetos, essas mulheres tornaram-se dependentes deles
para se perceberem numa teia de relações entre vivos e mortos. Carregados
de testemunhos de contextos de significado (Schutz, 1979, p. 213) – ou seja,
contextos que elas não haviam vivido na contemporaneidade –, os objetos e
a casa como morada fizeram a mediação entre predecessores e sucessores;
estabelecendo relações sociais que configuraram aquilo que para elas tinha
razões para recomeçar. As relações de parentesco foram se configurando nas
escolhas dos objetos e móveis que iam sendo guardados, em meio às rup-
turas nos laços parentais e às transformações nas relações sociais de cada
família ao longo do tempo. A casa e os objetos operaram como agentes me-
diadores entre relações indiretas e diretas – de pessoas que elas conheceram
ou não conheceram, vivas ou mortas – e que, configuradas na experiência da
mudança, constituíam, todas elas, a suas redes de relações.

Referências bibliográficas

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antropológico das narrativas e trajetórias sociais de núcleos familiares e redes
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A Alma das Coisas 291


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292 Anelise dos Santos Gutterres


SOBRE OS AUTORES

Alberto Goyena

Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de


Janeiro (PPGSA/IFCS, UFRJ). Mestre em Antropologia pela UFRJ
(PPGSA/IFCS). Bacharel em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Bolsista
de Doutorado sanduíche pelo CNPq na Universidade de Aberdeen,
Escócia. Pesquisador na área de Antropologia cultural: Espaços e
patrimônios em contextos urbanos. Tem interesse acadêmico pelos
seguintes temas: intervenções urbanas, discursos do patrimônio cul-
tural e memória, formas arquitetônicas e procedimentos de demoli-
ção. Atualmente é pesquisador vinculado ao Laboratório de Antropo-
logia da Arquitetura e Espaços (Laares/PPGSA/ IFCS, UFRJ).

Ana Gabriela Morim de Lima

Possui Bacharelado em Ciências Sociais (2003-2007) e Mestrado em


Sociologia e Antropologia (2008-2010), ambos pela UFRJ, e atual-
mente faz Doutorado no PPG em Sociologia e Antropologia da Uni-
versidade do Rio de Janeiro. Possui experiência na área de Antropo-
logia, atuando principalmente nos temas relativos à Etnologia ame-
ríndia, Conhecimentos tradicionais e biodiversidade, Antropologia da
arte, Patrimônio e Cultura material. Desde 2004 realiza pesquisa com
os Krahô, etnia indígena que habita o estado do Tocantins.

Anelise dos Santos Gutterres

Possui graduação em Comunicação Social (2002) pela PUCRS e Mes-


trado em Antropologia Social (2010) pela UFRGS. Atualmente é dou-
toranda em Antropologia Social pela UFRGS, atuando nos seguintes
temas: Antropologia da política, Antropologia do trabalho e Antropo-
logia urbana; pesquisa sobre as trajetórias de grupos populares, espa-

A Alma das Coisas 293


ço urbano, conflito e crise na vida metropolitana. Atualmente desen-
volve pesquisa a partir das redes contestatórias às obras preparatórias
para a Copa do Mundo e Olímpíada no Brasil, no contexto de Porto
Alegre e do Rio de Janeiro.

Clarisse Kubrusly

Doutoranda em Antropologia Social no PPGAS-MN, UFRJ. Pesquisa


as danças de possessão e a construção da pessoa nos cultos afro-bra-
sileiros em Pernambuco, Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais
e Mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA-IFCS, UFRJ
(2007). Sua dissertação sobre o universo dos maracatus de Recife ga-
nhou primeiro lugar no Prêmio Mário de Andrade (Iphan/Demur)
em 2008. Esse trabalho foi publicado em 2011 e serviu de argumento
para o documentário Dona Joventina, contemplado pelo Etnodoc 2010.

Daniel Bitter

Doutor em Antropologia pelo IFCS-UFRJ e Mestre em Artes Visuais


pela EBA-UFRJ (2000) com Estágio no Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa ISCTE-Lisboa. Atualmente é professor ad-
junto 2 do Departamento de Antropologia da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
vinculado a esse departamento. Tem atuado nas áreas de Ritual e sim-
bolismo, Antropologia do dom, Antropologia dos objetos e Etnomusi-
cologia. Desde 2004 é membro da Associação CulturaL Caburé, ONG
dedicada à pesquisa e difusão da cultura brasileira através de projetos
artísticos e culturais. Sua tese de Doutorado recebeu o primeiro lugar
no Prêmio Silvio Romero de monografias, do Centro Nacional de Fol-
clore e Cultura Popular/Iphan, publicada com o título de A bandeira e
a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis, pela Editora
7 Letras e o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP)/
Iphan em 2010.

294 Sobre os autores


Flora Moana Van de Beuque

Mestre em Sociologia e Antropologia (2010) e graduada em Ciências


Sociais (2006), ambas pela UFRJ. Tem experiência de pesquisa na área
de Antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas: cultu-
ra popular, colecionamento, festas populares, arte popular e objetos.
Por sua Dissertação de Mestrado, recebeu a Primeira Menção Honrosa
no Prêmio Silvio Romero (2011), concedido pelo Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular (CNFCP). 

José Reginaldo Santos Gonçalves

PhD em Antropologia Cultural pela Universidade de Virginia, Char-


lottesville, Estados Unidos (1989). Pesquisador 1 do CNPq. Profes-
sor/Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e An-
tropologia do IFCS e do Departamento de Antropologia Cultural do
IFCS, ambos da UFRJ. Pesquisador, dirige o Laboratório de Antropo-
logia da Arquitetura e Espaços (Laares) e o Núcleo de Antropologia
dos Objetos (Nuclao) no âmbito do PPGSA e do DAC/IFCS, UFRJ.
Autor de A retórica da perda: os discursos do Patrimônio Cultural no
Brasil, em segunda edição pela Editora da UFRJ/Iphan. Organizador
de A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX
(textos de James Clifford), atualmente em quarta edição pela Editora
da UFRJ. Seu último livro, Antropologia dos objetos: coleções, museus e
patrimônios, foi publicado pelo Iphan.

Luzimar Paulo Pereira

Doutor em Antropologia pelo PPG em Sociologia e Antropologia da


UFRJ. Possui graduação em Ciências Sociais pela UFRJ (2000) e Mes-
trado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universida-
de Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) (2004). É bolsista pós-
-doutor júnior ligado ao Departamento de Antropologia Cultural do
IFCS da UFRJ, onde atua como professor e pesquisador do Laares. Em
2011, publicou o livro Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre
folias em Urucuia/MG. Realiza pesquisas sobre rituais, campesinato,
objetos, espaço, festas, reciprocidade e comunidades.

A Alma das Coisas 295


Nina Pinheiro Bitar

Mestre e doutoranda do PPG em Sociologia e Antropologia da UFRJ.


Possui bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais, também na
UFRJ, e experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antro-
pologia Urbana. Integra o Laares e o Núcleo de Antropologia dos Ob-
jetos (Nuclao) PPGSA, UFRJ. Autora do livro Baianas de acarajé: comi-
da e patrimônio no Rio de Janeiro, pela Editora Aeroplano. Primeira
colocada no Prêmio IPP-Rio Maurício de Lima Abreu 2011.

Roberta Sampaio Guimarães

Professora-adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Univer-


sidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Doutora e mestre em An-
tropologia Cultural pelo PPG em Sociologia e Antropologia do IFCS,
UFRJ. Desenvolve pesquisa principalmente sobre os temas dos ob-
jetos e patrimônios, projetos urbanísticos e formas arquitetônicas e
cultura e memória afro-brasileiras. Atualmente, prepara para publi-
cação a tese de Doutorado A utopia da Pequena África: os espaços do
patrimônio na Zona Portuária carioca (FGV/Faperj).

Roger Sansi

Professor de Goldsmiths (University of London) e pesquisador na Uni-


versitat de Barcelona. Tem trabalhado extensamente sobre religiões
afro-brasileiras e arte. Suas publicações incluem Fetishes and Monuments:
Afro-Brazilian Culture in the 20th Century (Berghahn, 2007) e Sorcery
in the Black Atlantic (Chicago University Press, 2011, editado com Luis
Nicolau).

296 Sobre os autores


Imagens
Imagem 1: Pedra do Sal vista de cima (Fotografia de Roberta Sampaio Guimarães)

Imagem 2: Fachada da sede do Afoxé Filhos de Gandhi (Fotografia de Roberta Sampaio Guimarães)
Imagem 3: Fritando acarajé no dendê (Fotografia de Nina Pinheiro Bitar)

Imagem 4: Montando o acarajé (Fotografia de Nina Pinheiro Bitar)


Imagem 5: Altar de Oxum (Fotografia de Madalena do Vale)
Imagem 6: Bandeira da Folia Sagrada Família (Fotografia de Daniel Bitter)
Imagem 7: Palhaço Trinca-ferro. Morro da Candelária, Mangueira, RJ (Fofografia de Daniel Bitter)
Imagem 8: Os foliões se servem à mesa
(Fofografia de Luzimar Paulo Pereira)

Imagem 9: A mesa durante os agradecimentos (Fofografia de Luzimar Paulo Pereira)


Imagem 10: Martins Zezinho Ikrehothàt com o Kàjre (Fotografia Ana Gabriela Morim de Lima)

Imagem 11: Martins Zezinho Ikrehothàt com o Kàjre (Fotografia Ana Gabriela Morim de Lima)
Imagem 12: Calunga Dona Joventina (Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj)
Imagem 13: Katarina Real em sua casa conhecida como a “torre do frevo” no Recife – PE 1966
(Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj)
Imagem 14: Cazumba em São Luís, MA (Fotografia de Flora Moana Van de Beuque)
Imagem 15: Cazumba e sua torre em São Luís, MA
(Fotografia de Flora Moana Van de Beuque)
Imagem 16: Fachada da casa de Carla (Frame de
imagem em vídeo. Autoria: Anelise
dos Santos Gutterres)

Imagem 17: Destroços da casa de Carla, no dia


de sua destruição (Frame de imagem
em vídeo. Autoria: Anelise dos Santos
Gutterres)
Características deste livro:
Formato: 15,5 x 23,0 cm
Mancha: 13,3 x 18,8 cm
Tipologia: IowanOldSt BT 9,5/13,9
Papel: Ofsete 90g/m2 e couchê fosco 115g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Impressão: Sermograf
1ª edição: 2013

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