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SÃO DANIEL COMBONI

ESCRITOS
1 – 3699
1850

N.o 1 - A JOSEFINA BERTOLDI


ACR, A, c. 14/1

Verona, 27 de Dezembro de 1850

Estimadíssima Senhora,

1
Não pode certamente compreender quanto lamento não ter feito o que era meu vivo desejo, ou seja, de-
volver o mais rápido possível o livro que a senhora fez o favor de me emprestar. Sim, minha senhora, no
mesmo dia em que seu irmão me trouxe o segundo volume das cartas escolhidas de Mme. Sévigné, eu havia
preparado o primeiro, com uma breve nota, para lho enviar: mas vendo que se antecipou, sinto-me na obri-
gação de lhe pedir desculpa pela minha negligência, certo de que a sua generosa bondade a levará a perdoar-
me. Estou-lhe muito grato pelo grande favor que me fez e, vendo-me notavelmente favorecido acima dos
meus méritos, e ao mesmo tempo honrado com uma nova prova do seu bom coração, rogo-lhe que aceite a
oferta do meu, que está verdadeiramente cheio de reconhecimento para com a sua distinta pessoa, isto é,
peço-lhe que aceite o meu mais sincero obrigado, que apresento a quem generosamente se digna multiplicar
as suas gentilezas para com este que lhe ficará sempre agradecido.
2
Li, quase por completo, o primeiro volume das cartas francesas e encontrei com que inebriar sobremanei-
ra o meu espírito de um inefável prazer, acima das minhas expectativas; porque, se bem que se deva preferir
a língua da própria pátria às estrangeiras, no tocante a cartas, todavia, vejo-me obrigado a admitir que nunca
encontrei uma pena italiana que me tenha sido tão agradável como a francesa com a qual teve o prazer de me
honrar. Por isso, visto a língua francesa ser muito importante sobretudo para quem, em conversações brilhan-
tes, pretende fazer boa figura e mais ainda pela nobre elegância que é própria desta língua, permita-me que a
exorte a aperfeiçoar-se profundamente no conhecimento da mesma, dado que o estudo das línguas é hoje
uma parte necessária a uma educação distinta. Daí esta sugestão do seu devoto servidor e, ao mesmo tempo,
para ser favorecido por si nesta ocasião, peço-lhe que aceite os mais sinceros sentimentos de gratidão que,
desde o primeiro momento em que tive a honra de falar consigo, me preocupei muito em lhe exprimir, na
esperança de lhos renovar, na próxima vez que tiver a honra de ver a sua digna pessoa.
Conceda-me outrossim o favor de apresentar os meus melhores obséquios a seu pai, enquanto, reiterando
os meus pedidos, aproveito a feliz oportunidade para lhe testemunhar os meus respeitosos sentimentos de
estima e de alta consideração, que conservarei ao longo da minha vida.

O seu humilde servidor


Daniel Comboni, sacerdote

Original francês
Tradução do italiano
1851

N.o 2 (1191)
ASSINATURA NO REGISTO DA PARÓQUIA DE LIMONE
APL (Arq. Paroq. de Limone)

1854

N.o 3 (1192) - À CÚRIA EPISCOPAL DE VERONA


ASCV, Património (1854) Comboni

1855

N.o 4 (2) - A PIO IX


PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO
PARA LER LIVROS DO ÍNDICE
ACR, A, c. 21/18 n.o 6

N.o 5 (3) - ASSINATURAS DAS MISSAS


CELEBRADAS EM ST.o ESTÊVÃO, VERONA
ASSV

N.o 6 (4) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM S. JOÃO BAPTISTA IN SACCO, VERONA
AMV

1856

N.o 7 (5) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM ST.o ESTÊVÃO, VERONA
ASSV

N.o 8 (6) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM S. JOÃO BAPTISTA IN SACCO, VERONA
AMV
1857

N.o 9 (7) - P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/36

Verona, 4 de Julho de 1857

Muito rev.do e estimado sr.,

3
A confiança expressa na sua carta impele-me a dar-lhe a conhecer o verdadeiro estado em que me encon-
tro. Antes, conforta-me grandemente revelar-lhe a perturbação que neste momento agita o meu espírito. Co-
mo creio ter-lhe dito outra vez, estou inclinado a percorrer o árduo caminho das missões e, concretamente,
desde há mais de oito anos, o das missões da África Central, que têm sido objecto de parte dos meus estudos.
O superior, consciente das minhas intenções, contou sempre comigo para me utilizar na fundação da sua
missão naquelas desertas e ardentes solidões; e para tal fim, decidiu já desde o ano passado enviar-me até lá
com a próxima expedição, que terá lugar em finais do próximo mês de Agosto ou princípios de Setembro,
desde que consiga resolver os muitos assuntos da missão, tanto em Roma como em Viena. Em relação a
estes, já terminou quase tudo, pelo que, já quando do meu regresso de Limone, me avisou que me preparasse
para a empresa, resolvendo assuntos familiares e quanto me diz respeito. Eu há muito que suspirava por este
momento com mais ardor que um casal de namorados apaixonados suspiram pelo momento do casamento.
Mas eis que entretanto me assustam duas graves dificuldades; são enormes e sem a sua solução eu, por certo,
não me decido a partir para a missão.
4
A primeira é a preocupação de abandonar dois pobres pais que nesta terra não têm outra consolação senão
a de um único filho; mas esta é fácil de superar, já que a nossa missão é de tal natureza que, atendendo ao
rigor do clima e aos assuntos que a ligam à Europa, nos vemos obrigados a vir aqui todos os anos ou, pelo
menos, cada dois, e, por conseguinte, não existiria um abandono total. Seria como se estivesse um ano ou
dois sem vê-los; além disso, o constante relacionamento poderia amenizar todo o afastamento. Mas isto,
como dizia, não me provoca tanto pesar, tanto mais que já me escreveram dizendo que se colocam nas mãos
da Providência e que se sujeitam, naturalmente com dor, à momentânea separação. A outra dificuldade é que
quero, antes de partir, que lhes seja assegurada uma cómoda existência, a qual eu obteria com o pagamento
de todas as dívidas.
Com efeito, eu creio que, quando o meu pequeno terreno estiver livre de todos os ónus resultantes das
tristes circunstâncias passadas, com o primeiro salário, com o rendimento do pequeno campo, e com as mis-
sas que eu poderei celebrar na missão, segundo as intenções de uma certa pessoa que entregará as correspon-
dentes esmolas a meus pais (e espero, incluídas também as viagens, poder celebrar duzentas ao ano), eles
poderão viver comodamente.
5
Mas, de momento, o que fazer para obter tudo isto? Eu, por agora, não tenho meios, nem quero arranjá-
los de maneira mesquinha ou audaz. Por conseguinte, não sei que irá acontecer. Certo é que, sem ter resolvi-
do tudo isto, não quero partir para a missão africana. E na minha situação está também o P. e Melotto; de
modo que não se sabe o que sucederá. O certo é que esta incerteza, e muito mais para mim a preocupação de
me afastar ainda que momentaneamente de meus pais, a viverem nas actuais circunstâncias familiares, como
sabe (e especialmente pensando na minha mãe), produz em mim um grande transtorno.
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Resolvidas, porém, as duas ora citadas dificuldades, estou decidido a partir; mas a ideia da dor de meus
pais, o isolamento em que irão encontrar-se, eis o que me perturba. Eu não tenho medo nem da vida, nem das
dificuldades da missão, nem de nada; mas o que diz respeito aos meus dois velhos faz-me tremer. Assim, por
esta incerteza e consternação do meu ânimo, decidi fazer os exercícios para implorar a ajuda do Céu. Se eu
abandonar a ideia de me consagrar às missões estrangeiras, serei mártir por toda a vida de um desejo que
nasceu no meu espírito há mais de 14 anos, e sempre cresceu, à medida que fui conhecendo a sublimidade do
apostolado.
7
Se eu abraçar a ideia das missões, torno mártires dois pobres pais. Nem sequer é válido o pensamento de
que, mortos os pais, pensarei então nas missões. Poderia eu desejar-lhes a morte? Essa ideia não é de cristão
nem de sacerdote, mas de vândalo ou de canibal; e eu sempre desejei e desejarei morrer primeiro que eles.
Por outro lado, se não se for para as missões antes dos tinta anos, é melhor abandonar essa ideia, pois, avan-
çada um pouco a idade, não será possível aprender as diversas línguas ainda desconhecidas das tribos de
África para onde iremos; além disso, a experiência ensina que aventurar-se naquelas regiões com uma idade
superior à mencionada traz consigo uma rápida morte.
8
Portanto, não sei dizer-lhe nada ao certo nem de concreto: só que ora estou inquieto ora cheio de esperan-
ça; ora me assaltam ideias sedutoras ora desencorajadoras. Se consulto quem sempre dirigiu a minha consci-
ência, sou encorajado a decidir-me pela partida; se olho para a família, fico aterrorizado; se penso no mundo,
aceitando o empenho, vou contar com a maldição de quem conhece as minhas circunstâncias de família e
pensa como o mundo; se penso no meu coração, ele sugere-me que sacrifique tudo e que corra para as mis-
sões, desprezando ditos e mexericos. Imagine a tempestade da minha alma, a luta, o conflito que me pertur-
ba.
9
Assim, neste contraste universal das minhas ideias, acho oportuno o projecto de fazer os exercícios, de
consultar a religião e Deus; e Ele, que é justo e tudo governa, saberá tirar-me desta ansiedade, combinar tudo
e consolar meus pais, se me chamar a dar a vida sob o estandarte da cruz na África; ou então, se não me
chamar, saberá levantar tamanhos obstáculos, que me seja impossível a realização dos meus planos. Por isso,
o melhor é exclamar com Samuel: loquere Domine, quia audit servus tuus: e, resolvido tudo conforme o
divino beneplácito, repetir com Job: sicut placuit Domino, ita factum est: sit nomen Domini benedictum.
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Lamento, por um lado, por não ter passado por Toscolano: mas, por outro lado, para Limone é muito me-
lhor, porque assim esta terra participa da benéfica influência da sua presença. O retrato do superior está ainda
a ser feito: ou, por outra, há mais de um mês que nem eu nem os outros colegas sacerdotes temos dele notí-
cias. Apenas seja posto à disposição do inst.to, a primeira coisa que farei será mandar-lhe uma cópia. Do
Margotti, desde que cheguei a Verona que já estavam esgotados os exemplares, pelo que já se começou a
fazer outra edição milanesa, que de um dia para o outro virá a lume; apenas saia, mandar-lha-ei. No que res-
peita ao meu Breviário, levar-lho-ei logo que for a Limone.
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Eis o essencial do conflito que agora se agita no meu coração. Eu não sei que partido tomar: se a Provi-
dência se mostrar favorável aos meus desejos, combinando tudo, assegurando a meus pais uma subsistência
cómoda, correrei alegre para a grande empresa; se Deus não quiser de mim essa obra, baixarei a cabeça e
bendirei dolorosamente a vontade do Céu. Sed hoc sub sigillo secreti, inter nos, por favor! Escreva-me algo
de belo, console habilmente os meus pobres pais e console-me também a mim: escreva-me. Ah, como são
agradáveis as palavras de um amigo que está longe! Aqui, no inst.to, só me atrevo a falar claramente com
dois ou três bons amigos. Eles consolam-me e fazem sentir-me pequeno! O que, porém, me dá conforto é ter
um companheiro preocupado com os mesmos problemas: é o P.e Melloto. Este tem o mesmo desejo que eu,
quiçá não tão ARDENTE, porque há naturalmente menos fogo na Lombardia que no Véneto... encontro-o
mais resignado que eu. Pelo que necessito de ser recordado no grande Sacrifício, quando em Limone, na
igreja de S. Bento, levantar a hóstia pacífica da consolação.
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Espero, por outro lado, dar-lhe notícias concretas até meados de Agosto. Seja o que deus quiser; devemos
adaptar-nos em tudo. Beltrame já escreveu a sua viagem através do Barel-Azek: é um volume como o de
Tiboni e será imediatamente impresso em [...] pelo Comité das Missões em Viena, depois em Verona.
Entretanto, receba saudações de todos os irmãos sacerdotes e especialmente os do perturbado

Seu af.mo amigo e s.


Daniel Comboni, sac.

N. B. A quinta folha da carta está um pouco deteriorada.


N.o 10 (8) - A P.e PEDRO GRANA
ACR, A, c.15/41

Verona, 13 de Agosto de 1857

Meu reverendo P.e Pedro,

13
Terminei finalmente os santos exercícios; e depois de me ter aconselhado com Deus e com os homens,
concluí que a ideia das missões é a minha verdadeira vocação: o sucessor do grande servo de Deus P.e Ber-
toni, o padre Marani, respondeu-me até que, fazendo um quadro da minha vida, das circunstâncias passadas e
actuais, assegura-me que a minha vocação para as missões da África é das mais claras e evidentes; e, por
isso, apesar das condições de meus pais, que nesta ocasião com toda a franqueza lhe apresentei, disse-me:
“Vá, que eu dou-lhe a minha bênção e confie na Providência, pois o Senhor, que lhe inspirou este magnâni-
mo projecto, saberá consolar e cuidar de seus pais”. Por isso, estou absolutamente decidido a partir no pró-
ximo mês de Setembro.
14
O supracitado superior dos estigmatinos disse-me que fizesse compreender bem aos meus pais a natureza
do plano do nosso superior, a saber: 1.o, parte-se e regressa-se (si non moriemur - sile); 2.o, que, por agora,
se trata de uma experiência e que vamos tentar, a ver se resulta; se não resultar, regressa-se imediatamente.
Agora peço-lhe encarecidamente que use todo o seu engenho e diplomacia, e mais com a ajuda de Deus e de
Maria, para convencer os meus desolados pais, escolhendo a hora, o momento, em uma ou duas vezes, até se
mostrarem resignados à vontade do Senhor.
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Oh, quanto me custa o sacrifício que os meus pobres pais fazem ao separar-se de mim! A que sacrifícios
sujeita o Senhor esta vocação! Mas foi-me assegurado que Deus me chama e eu parto seguro disso. Sei que
atrairei a maldição e as imprecações de muitos que não vêem mais além de um palmo; mas nem por isso eu
quero deixar de seguir a minha vocação. Além do mais, confio em Deus, na Virgem Imaculada e na sua soli-
citude, Sr. Reitor; terá, por isso, larga recompensa.
16
O superior anulou o projecto de nos enviar para Bolonha; não sei porquê: fiat voluntas Dei. É o castigo
por eu falar e apresentar as coisas como realizadas antes que se cumpram. Terça ou quarta-feira espero ir a
Limone. O projecto de levar meus pais a Veneza assusta-me, dado que os meus companheiros e especial-
mente P.e Beltrame me asseguram que seria mais doloroso para eles e para mim; por isso tentam persuadir-
me a seguir o conselho que o senhor me deu em Limone, de não pensar em Veneza.
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Não sei como fazer para me despedir deles pela última vez. Eu ficarei em Limone até ao dia quatro ou, o
mais tardar, até ao dia cinco de Setembro. Agora estou a preparar os trezentos táleres para meus pais; temo
bastante ir a Limone sem dinheiro, mas se for preciso, deixo em Verona quem me substitua, porque nos pri-
meiros do mês quero ter pago todas as minhas dívidas; de contrário deixo de pensar na África.
Entretanto, receba a minha reverência, reze por mim ao Senhor e creia-me de coração

Seu af.mo servo e amigo


Daniel C.

18
Esta manhã celebrámos a cerimónia da partida para a África com a nossa despedia dos diversos grupos do
inst.to. P.e Beltrame cantou missa, P.e Melotto fez de diácono, eu de subdiácono, P.e Dalbosco de cerimo-
niário e P.e Oliboni pronunciou o discurso. Foi uma celebração emocionante, que fez correr as lágrimas a
todos, incluindo alguns amigos do Instituto que participaram.
N.o 11 (9) - A P.e NICOLAU MAZZA
AMV, cart. “Missione Africana”

Verona, 4 de Setembro de 1857

Amat.mo sr. superior,

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A fim de seguir a minha vocação das santas missões, sendo-me necessárias 75 (setenta e cinco) peças de
20 francos para as necessidades da minha família, serviu-se o Senhor proporcionar-mas a título gratuito,
dando-me agora 50 (cinquenta) peças de vinte francos e guardando as outras vinte e cinco peças para as fazer
chegar, dentro de um ano, a meu pai ou a minha mãe, que vivem em Limone, prov. de Bréscia. Apresentan-
do-lhe os mais cordiais agradecimentos e pronto a passar-lhe um recibo legal no caso que o exija, subscrevo-
me

Vosso obdmo. filho


Daniel Comboni sac.

N.o 12 (10) - AO DR. BENEDETTO PATUZZI


ACR, A, c.15/167

Alexandria do Egipto, 20 de Setembro de 1857

Meu caríssimo doutor,

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Embora até agora não tenha nenhuma notícia concreta sobre o Sr. João Baptista Massimiliano Arvedi, não
perco o grande prazer de aproveitar o correio para não deixar privado de notícias minhas o meu muito queri-
do compadre e amigo, com o qual e com cuja família contraí uma amizade tão afectuosa e uns sentimentos
fraternos tão profundos, que só na sepultura terão o seu fim temporal. Eis, no entanto, as diligências por mim
levadas a cabo para saber algo sobre o defunto Arvedi.
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Aqui, em Alexandria, contam-se pelos dedos os que conhecem os negócios do conde Scopoli. Ele é um
aristocrata rude, que não revela a ninguém os seus interesses; conversa sempre com pessoas de alta condição,
mas nem sequer essas sabem coisa alguma: assim o conheci na viagem de Trieste a Alexandria. Por outro
lado é considerado como uma pessoa justa e de acertado conselho; e é precisamente nesta actividade que em
Alexandria ganha mais que um comerciante.
22
Ora as pessoas que rodeiam o conde Scopoli, por quanto entendi e eu creio, são: o Sr. Ferrighi, engenhei-
ro; o I. R. cônsul-geral austríaco; Francisco Gronchi conhece-o intimamente; o conde Inácio Frish creio que
o conhece muito de perto, pois ele e o cônsul são unha com carne; o P.e Cipriano, que foi quem o assistiu
continuamente na sua doença. Há mais um ou outro, mas se houve alguma irregularidade, penso que será
difícil descobri-la; os dois médicos que assistiram mais assiduamente o defunto exagerarão a assistência
prestada. Assim, nós ficamos na mesma.
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Do conde Scopoli não consegui arrancar nada, apesar de falar com ele todos os dias no barco. Quanto ao
cônsul austríaco, para falar verdade, apenas soube que era íntimo do conde, perdi a coragem para lhe fazer
alguma pergunta. A respeito de Ferrighi, tenho a dizer que recebeu de Scopoli como oferta um relógio de
ouro em recompensa pela assistência prestada ao defunto e, por isso, não pode senão proteger o sr. conde
Francisco Gronchi, em quem nós, missionários, temos toda a confiança, pelo muito que se preocupa pela
nossa missão; ele disse-me que sobre o assunto de Arvedi e os seus acordos com o conde Scopoli não sabe
nada. Ainda não me foi possível falar com o conde Inácio sobre este assunto, porque estivemos muito ocupa-
dos com ele por causa da nossa missão, uma vez que é ele o nosso procurador no Egipto: amanhã falarei
muito com ele sobre Arvedi.
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Por outro lado, ainda não pude conversar com os médicos, dado que, nos poucos momentos livres de que
disponho ou não os encontro ou acontece alguma outra coisa. O padre franciscano que o assistiu assegurou-
me que esteve doente durante mais de um mês, que foi servido e teve uma assistência insuperável, que rece-
beu todos os sacramentos, e morreu com uma resignação cristã verdadeiramente edificante; e que, finalmen-
te, o conde Scopoli lhe fez um funeral sumptuoso, em que intervieram muitos frades e seculares. Isto é, pois,
o que pude saber de Arvedi. De resto, eu fico todo este mês em Alexandria e terei talvez oportunidade de
conseguir informação mais exacta. A verdade é que me têm dito que o conde Scopoli é uma pessoa de gran-
de estima, probidade e justiça; portanto, não tenho argumentos suficientes para acreditar que ele tenha actua-
do com dolo; certamente que é um advogado ou uma espécie de advogado e, portanto, se gastou, de um mo-
do ou doutro, um cêntimo com Arvedi, deve tê-lo metido na conta a cargo dos irmãos. Mas voltemos a nós.
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A minha viagem de Trieste a Alexandria foi muito boa: só de Trieste a Corfu é que tivemos um vento
contrário fortíssimo, que provocou um enorme mal-estar em todos os passageiros que iam a bordo. O resto,
depois das ilhas Jónicas, foi muito delicioso. Eu fiquei pasmado ao contemplar a beleza das risonhas ilhas da
Grécia, Cefalónia, Zante, Ítaca, Cândia, e milhares de outras do arquipélago; e muito mais embevecido fiquei
reflectindo nas grandes memórias que representam.
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A minha admiração cresceu espantosamente quando cheguei à portentosa cidade de Alexandria, pátria de
tantos heróis, terra carregada de memórias tão antigas. Eu teria mil coisas para contar sobre a minha estadia
em Alexandria: sobre os costumes dos muçulmanos, dos gregos, dos beduínos, dos coptas e de tantos outros
povos emigrados que povoam Alexandria e os seus arredores, etc., etc. , mas os afazeres e ocupações cha-
mam-me ao trabalho. Sobre as minhas viagens escrever-lhe-ei algo do Cairo, de Assuão, de Cartum, de
Bahar el-Abiad. Escreva-me e console-me com as suas notícias. Dê por mim um beijo à minha querida co-
madre Anita, a quem sempre trago no coração, ao Vítor, ao Caetano e a todos os outros filhos e filhas. Apre-
sente os meus respeitos ao P.e Battistino e ao P.e Bartolo e creia-me de todo o coração

Seu af.mo comp.o e amigo


Comb. Daniel

Eu estou de perfeita saúde; no mar não tive o mínimo enjoo. Encontro-me melhor que na Europa, apesar
do calor.

N.o 13 (11) - AOS SEUS PAIS


ACR, A, c. /14/115 n.º 1

Jerusalém, 12 de Outubro de 1857

Queridíssimos pais,

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Vou contar-vos brevemente a minha viagem à Palestina, onde permaneci cerca de duas semanas. Vós não
estáveis pessoalmente a acompanhar-me nestes lugares santos, mas eu, em espírito, estava sempre convosco,
de tal maneira que, nesta minha peregrinação religiosa, não dei um único passo sem imaginar que me encon-
trava convosco. Como sabeis, partindo de Alexandria do Egipto no passado dia 29, e uma vez atravessado o
mar que separa a Ásia da África a norte do Egipto, passando Cesareia, chegámos felizmente a Jaffa, que é
um porto importante da Ásia e o primeiro lugar na Palestina onde se pode obter indulgência plenária.
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Logo que nós, os dezasseis religiosos, demos graças ao Senhor na Igreja de S. Pedro, cantando o Te
Deum, entrámos no convento dos Franciscanos, que nos proporcionaram uma caritativa hospitalidade. Esta
hospitalidade é concedida indistintamente a todos os europeus, sejam católicos ou não, e a todos os ortodo-
xos orientais de qualquer rito. Pelo que nestes conventos se acolhem príncipes e pobres, seculares e regula-
res, não havendo na Terra Santa nenhuma hospedaria nem lugar seguro para acolher os viajantes; é tudo fru-
to das piedosas esmolas dos católicos da Europa que costumam recolher-se na Semana Santa.
29
Enquanto os padres franciscanos estavam ocupados para nos arranjarem um meio de transporte para a Ci-
dade Santa, eu ia meditando sobre os acontecimentos que tornaram célebre esta cidade, que é a antiga Joppe
da Sagrada Escritura. Era aqui que Salomão fazia desembarcar das jangadas os cedros do Líbano, que devi-
am servir para a construção do Templo; aqui onde o profeta Jonas embarcou para Tarso em vez de ir para
Nínive pregar a penitência; aqui teve S. Pedro a célebre e misteriosa visão do lençol; aqui ressuscitou a cari-
dosa Tabita; aqui recebeu os embaixadores de Cornélio que o convidavam a ir a Cesareia para o baptizar a
ele e a toda a sua família; aqui embarcou nossa Senhora com S. João quando, depois da morte de Jesus, na-
vegou para Éfeso; aqui esteve algum tempo S. Luís, rei de França; aqui atracaram muitos milhares de santos,
que acudiam a venerar os Lugares Santos.
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Depois do almoço, tendo-nos despedido dos missionários que ficavam em Jaffa, bem como de um prínci-
pe polaco, que encontrámos no barco e com quem almoçámos, nós, em companhia de um missionário da
China, um outro das Índias Orientais, dois missionários da Companhia de Jesus e Mons. Ratisbonne, de Pa-
ris, que, convertido do judaísmo à nossa fé em Roma, por obra do Sumo Pontífice, se dirige a Jerusalém para
fundar um instituto gratuito de educação cristã, saímos às duas horas para Ramle com a ideia de, a cavalo,
chegar a Jerusalém durante a noite do dia seguinte. Eu estava maravilhado ao pensar que, pela primeira vez
que viajava a cavalo, me cabia em sorte percorrer os montes da Judeia. Por isso, como novato a cavalgar,
pedi o cavalo mais velho e lento, sendo imediatamente atendido.
31
Ao sair de Jaffa, caminha-se ora por estradas flanqueadas aqui e ali por densas sebes de sicômoros, que
escondem laranjais, limoais, bem como plantações de romãzeiras, bananeiras, damasqueiros e outras árvores
de fruto, ora por campos sem vegetação alguma, ora através de pequenas colinas que têm aqui e além uma
oliveira meio queimada pelo sol. Sempre sob um céu que, durante o dia, queima com o seu calor o pobre
viandante. Atravessados estes lugares, encontrámo-nos diante das agrestes charnecas dos filisteus, de onde
tivemos oportunidade de contemplar os montes da Judeia, que vão à esquerda juntar-se com os da Samaria,
os quais oferecem um aspecto triste a quem pensava que estava a viajar na Terra Prometida, onde corre leite
e mel.
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Antes da noite, no meio da planície, fomos alcançados por dois beduínos a cavalo armados de lança e de
pistolas. Mas, ao verem-nos em maior número, não nos atacaram. Interrogados por nós sobre quais eram as
suas intenções, responderam-nos que estavam a vigiar o caminho por ordem do Governo turco, a fim de as-
segurar a passagem aos peregrinos.
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Mons. Ratisbonne, assustado, procurou conquistá-los com um generoso bacchiss (gorjeta) de 20 piastras.
Chegámos já noite avançada a Ramle, segundo S. Jerónimo a Arimateia do Evangelho, terra de José de Ari-
mateia, isto é, aquele decurião que pediu a Pilatos o corpo crucificado de J. C. e o enterrou num sepulcro
novo escavado na rocha, que ele havia preparado para si mesmo num jardim que possuía no Gólgota. Esta foi
a primeira cidade conquistada pelos cruzados na Palestina; era fortíssima. Agora vêem-se apenas torres der-
rubadas e ruínas antigas, entre as quais sobressai a torre dos 40 mártires de Sebaste e a casa de Nicodemos,
na qual conto celebrar missa quando voltar de Jerusalém.
34
Recebida uma generosa hospitalidade, na manhã seguinte, pelas quatro, saímos de Ramala e, atravessada
a belíssima e fértil planície de Saron, chegámos ao sopé das montanhas da Judeia; para as atravessar gastá-
mos um dia inteiro sob um Sol ardente. Esta viagem é, com efeito, muito fatigante, seja porque, sendo aque-
las montanhas ásperas, escarpadas e estéreis, o Sol castiga continuamente, sem possibilidade de defesa de-
baixo de uma árvore qualquer, seja porque a estrada é péssima, cheia de calhaus por toda a parte e de quando
em quando rochas.
35
Mas a ideia de que ia para Jerusalém punha-me asas nos pés e no coração e não me fazia sentir o cansaço
da viagem. A meio do caminho encontram-se: o castelo do Bom Ladrão, aquele que mereceu o Paraíso por
ter compaixão de J. C. na cruz; o deserto de Abu-Gosci, um assassino que por estes sítios fez muitas vítimas,
acabando finalmente por ser morto; a Igreja de Jeremias; o cimo do vale de Terebinto; a cidade de Colónia e
os restos de muitos lugares famosos nas Escrituras. Finalmente, ao anoitecer, depois de atravessadas cinco
cadeias de montanhas, chegámos à vista de Jerusalém. Então Mons. Ratisbonne mandou que todos desmon-
tássemos dos cavalos e, prostrados por terra, adorámos o Senhor e venerámos aqueles santos lugares tantas
vezes pisados por J. C. Depois, deixámos os cavalos em poder dos miior, ou guias, e descemos à Cidade
Santa.
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Oh! Que grande impressão me fez Jerusalém! O pensamento de que cada palmo daquele terreno sagrado
representa um mistério fazia-me tremer e ocorriam-me estas ideias: aqui talvez tenha estado J. C.; aqui, a
Virgem Maria; por aqui passaram os Apóstolos, etc.
Depois de cumpridas as formalidades com o Reverend.mo da Terra Santa e com os cônsules francês e
austríaco, retirámo-nos para o convento, onde repousámos. Para falar verdade, estávamos todos mortos de
cansaço pela viagem. Eu admirava-me em relação aos outros missionários, habituados à fadiga. Quanto a
mim, já esperava, pois nunca tinha andado a cavalo, e a primeira vez que andei tocou-me logo viajar dia e
meio, sem parar, pelas planícies dos Filisteus e pelas montanhas da Judeia!
37
Na manhã seguinte, dia 3 do corrente, comecei a visitar os Lugares Santos. Primeiramente fui ao templo
do Santo Sepulcro. Este templo, construído por St.a Helena, mãe de Constantino, é o primeiro santuário do
mundo, porque encerra o Santo Sepulcro de J. C. e o monte Calvário em que morreu. Cheio destas ideias
religiosas, fiquei assombrado ao ver o átrio deste templo ocupado pelos turcos, que fazem aí mercado, a por-
ta e o primeiro recinto guardado por turcos que fumam, comem e se maltratam uns aos outros; os gregos e os
arménios ortodoxos que gritam, que se agarram, se batem e praticam ali mil irreverências.
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O templo do Santo Sepulcro compreende: 1.o) O Santo Sepulcro; 2.o) A coluna da flagelação, que foi le-
vada até lá desde a casa de Pilatos; 3.o) A Capela de St.a Helena; 4.o) A Capela da Invenção da Cruz, isto é,
onde a Cruz foi encontrada, e foi identificada entre as dos dois ladrões crucificados com J. C. mediante o
milagre da ressurreição de um morto; 5.o) A Pedra da Unção, onde foi ungido e embalsamado por José e
Nicodemos o Corpo de Jesus Cristo, antes de o meterem no Santo Sepulcro. 6.o) A capela onde foi crucifica-
do J. C. 7.o) O lugar onde foi levantada a Cruz, no qual existe o buraco onde ela foi colocada; ao beijá-la,
como a todos estes lugares erigidos em capelas, ganha-se indulgência plenária. 8.o) O lugar ou capela onde
estava a V. Maria, quando J. C. se achava na cruz, e recebeu em seus braços o seu divino filho morto. 9.o) A
capela onde estava a V. M. quando J. C. foi pregado na cruz; 10.o) o cárcere onde J. C. esteve na noite que
antecedeu a sua morte; 11.o) A capela da divisão das vestes; 12.o) A coluna dos impropérios, onde J. C. foi
cuspido, batido, etc., antes de ser condenado à morte, a qual estava na casa de Caifás e depois foi trazida para
a aqui; 13.o) A capela da aparição a St.a Madalena; 14.o) A capela onde, segundo a tradição, J. C. ressusci-
tado apareceu à Virgem Maria, como diz S. Jerónimo. Cada vez que se visita estes Lugares Santos ganha-se
indulgência plenária.
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Este magnífico templo abarca todo o monte Calvário, ao qual está anexo o sepulcro de S. Nicodemos,
que este mandou escavar depois de ceder o seu a J. C. Não tenho palavras para exprimir a grande impressão,
os sentimentos que em mim despertaram todos estes preciosos santuários que recordam a paixão e morte de
J. C. O Santo Sepulcro fez-me ficar extasiado e a pensar comigo mesmo: aqui, portanto, esteve 40 horas Je-
sus Cristo?! Esta é a sagrada tumba que teve a sorte de encerrar em si o Criador do Céu e da Terra, o Reden-
tor do mundo?! Esta é a tumba que beijaram tantos santos, diante da qual se prostraram tantos monarcas,
tantos príncipes e bispos em todos os séculos depois da morte de J. C.?!
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Eu beijei e voltei a beijar várias vezes aquela sagrada tumba, prostrei-me repetidamente a adorá-la e sobre
aquela tumba, ainda que indigno, rezei por vós e pelos nossos amados parentes e amigos; tive a consolação
de rezar lá duas missas: uma por mim, por vós e pela minha missão; a outra por vós, queridos pais.
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Depois desta visita, que foi breve a primeira vez, porque um grego ortodoxo me fez sair, subi ao monte
Calvário, trinta passos mais acima do Santo Sepulcro, beijei aquela terra sobre a qual esteve a cruz, sobre a
qual esteve estendido e pregado J. C. ; evoquei na minha mente aquele momento doloroso em que neste lu-
gar, assinalado por uma laje de mármore em mosaico, esticaram e deslocaram os braços a J. C., a fim de as
mãos chegarem aos furos dos pregos em que foi crucificado; fiquei com o coração comovido por muitos
sentimentos, amor, etc.
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A um passo e meio do lugar da crucifixão, à esquerda, fica o lugar onde esteve a V. Maria, quando J. C.
gemia na cruz; também isso fez em mim grande impressão; quando, depois, a dois passos de distância, che-
guei ao sítio onde foi levantada a cruz e o superior dos franciscanos do S. Sepulcro me disse que aquela era a
cavidade em que fora erguida a cruz, desatei a chorar copiosamente e afastei-me por um pouco; em seguida,
quando os outros já haviam beijado, aproximei-me também eu e beijei muitas vezes aquela cavidade bendita;
e vieram-me à mente estes pensamentos: então é este o Calvário!
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Ah! eis o monte da mirra, eis o altar da Cruz, onde se consumou o grande sacrifício. Eu encontro-me
mesmo no cimo do Gólgota, mesmo no lugar onde foi crucificado o Filho Unigénito de Deus: aqui se efec-
tuou o resgate humano; aqui foi dominada a morte, aqui vencido o Inferno, aqui fui eu redimido. Este mon-
te, este lugar tingiu-se com o sangue de J. C.; estas penhas ouviram as suas últimas palavras; este ambiente
acolheu o seu último suspiro: ao morrer abriram-se os sepulcros, rasgaram-se os montes; a poucos passos do
lugar onde foi levantada a cruz vê-se uma enorme abertura duma profundidade incalculável que, segundo
uma constante tradição, se produziu quando da morte de J. C.
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Venerei igualmente a Coluna da Flagelação, a Pedra da Unção, a prisão de J. C., a Coluna dos Impropé-
rios, a Capela da Invenção Cruz, etc. E para dizer-vos algo sobre o templo do Santo Sepulcro, ele está em
poder dos turcos, dos gregos ortodoxos e dos Padres Observantes Franciscanos.
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Os turcos têm as chaves do templo, que abrem, a pedido do intérprete europeu ao serviço dos católicos e
ortodoxos, duas vezes ao dia, ou seja, às 6 da manhã, ficando aberto até às 11, e às 3, ficando até às 6; e para
que o abram há que dar ao porteiro turco, por ordem do Governo turco, duas piastras, que equivalem a 60
cêntimos. Os turcos ocupam-se apenas da guarda e das chaves do templo. O Santo Sepulcro está nas mãos
dos gregos e dos arménios ortodoxos; os católicos podem apenas celebrar três missas, uma delas cantada, e
estas das quatro às seis. Se a missa cantada não estiver terminada antes das seis, entram no Sepulcro os gre-
gos e, aos murros e bastonadas, expulsam o sacerdote celebrante, tenha ou não terminado a missa; por essa
razão foram tantas vezes feridos e até mortos no Santo Sepulcro os padres católicos.
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No Calvário, a capela onde foi levantada a cruz é domínio exclusivo dos gregos ortodoxos: lá nenhum ca-
tólico pode celebrar missa, sob pena de morte. O lugar onde esteve a Virgem Maria, que fica dois passos à
esquerda da cavidade, e o lugar da crucifixão, que dista um passo e meio da Capela da Virgem, a três passos
e meio da supradita cavidade, são domínio exclusivo dos católicos e aqui celebrei duas missas: a primeira, no
lugar onde Nossa Senhora esteve durante as três horas de agonia, celebrei-a por vós, querida mãe; a segunda,
no lugar da crucifixão, foi por vós, querido pai.
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Na capela onde Maria esteve quando J. C. era estendido e pregado na cruz, que fica a cinco passos à es-
querda da cavidade cruz, celebrei pelo Eustáquio, pelo tio José, César, Pedro e toda a sua família, especial-
mente pelo Eugénio, para que M.a Ssma. o proteja na sua perigosa educação. Todos os outros lugares estão
na mão dos católicos: todos, porém, estão abertos à veneração, seja dos gregos seja dos católicos. Por isso
todas as tardes, às quatro, os padres franciscanos fazem procissão, recitam orações em público e incensam no
Santo Sepulcro, no Calvário e em todos os lugares acima referidos. Eu também participei na procissão e,
como sacerdote, ofereceram-me a vela do Santo Sepulcro, que eu vos mando dividida em três partes, como
direi mais adiante.
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Para celebrar missa no Santo Sepulcro, fiquei fechado duas noites inteiras dentro do templo, para estar
pronto para às 4 iniciar a missa. Estas duas noites foram para mim muito agradáveis, porque tive oportunida-
de de venerar todos os santuários deste santo templo, de fazer as minhas preces, indignas mas fervorosas,
pela minha missão, por vós e por todos aqueles que de algum modo me são chegados.
É verdade que se está sujeito a um ou outro insulto, especialmente da parte dos gregos, que nos são mais
hostis que os turcos; mas o que é um insulto neste lugar onde J. C. recebeu tantos e foi crucificado? Devo
dizer que o templo do S. Sepulcro, que é o primeiro santuário do mundo, é também o mais profanado do
mundo: de facto, todos os anos há feridos e mortos; todos os dias há gritos, escândalos e pancadaria; e os
gregos, cujos sacerdotes são casados, chegam até ao ponto de consumar o matrimónio junto ao Sepulcro e ao
Calvário, e cometem as maiores irreverências – que eu calo por pudor e por não poder exprimir por palavras
– das quais ninguém pode fazer uma ideia, se as não vir com os próprios olhos. Mas basta.
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Depois de visitar o S. Sepulcro e o Calvário, a minha primeira ideia foi percorrer e visitar a Via Dolorosa,
que começa no pretório de Pilatos e termina no Calvário. Esta é a via percorrida por J. C. quando, depois de
condenado à morte, carregou a cruz para o Gólgota. Nesta fiz a via crucis, detendo-me a recitar as estações,
como estão naquela que começa com a palavra Crucifigatur, nos mesmos lugares onde aconteceram os 14
mistérios que se contemplam na Via Crucis. O trajecto tem cerca de 820 passos. O pretório de Pilatos, situa-
do sobre o monte Acra, foi primeiramente convertido numa igreja, depois passou a quartel militar, função
para a qual ainda hoje serve; mediante uma gorjeta pode visitar-se: nesse pretório eu vi o lugar onde J. C. foi
condenado à morte, o lugar onde foi flagelado e lá celebrei missa pela minha missão, por vós e pelos nossos
parentes; por estas intenções apliquei todas as outras missas celebradas na Terra Santa.
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Vi o Lithostrotos e todos os lugares onde, neste palácio, sofreu J. C. Esse está agora dividido nas seguin-
tes partes: 1.o) O lugar onde J. C. foi sentenciado à morte. 2.o) A sala dos impropérios, na qual J. C. foi acu-
sado de blasfemador, criminoso, desobediente a César, usurpador do nome de Deus; quantas acusações, ig-
nomínias, calúnias, humilhações, vitupérios, insultos e tormentos não suportou aqui J. C.! Aqui cobriram o
seu rosto de escarros, despojaram-no das suas vestes e revestiram-no de um surrado trapo de púrpura; aqui
foi condenado às mais cruéis flagelações, foi coroado de pungentíssimos espinhos, puseram-lhe na mão uma
reles cana em vez dum ceptro real; fazendo chacota, saudaram-no como um rei, e foi preferido a Barrabás.
3.o) O palácio de Pilatos compreende a Igreja da Flagelação, o lugar onde o Senhor foi amarrado a uma co-
luna e cruelmente flagelado; 4.o) O Lithostrotos, ou seja, a galeria de onde Pilatos apresentou ao povo Jesus
coroado de espinhos e coberto com um farrapo de púrpura, proferindo as palavras: Ecce homo; esta galeria
hoje atravessa a Via Dolorosa à guisa de ponte e está reduzida a um quartel de soldados. Deste palácio eu
parti para fazer a via crucis; desce-se daqui para a rua, onde se faz a 2.a estação, isto é quando J. C. recebeu
a cruz sobre os ombros. A escada que do Pretório de Pilatos conduz à rua foi levada para Roma.
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Continuando a Via Dolorosa, chega-se ao lugar da 1.a queda, que é assinalada no chão por duas colunas.
Dois passos adiante fica a Igreja do Espasmo, que foi erigida no sítio em que a V. Maria se encontrou com
seu divino Filho que carregava a cruz às costas. Os turcos transformaram-na em casa de banho. Até aqui a
rua é plana; começa a subir no lugar em que J. C. foi ajudado pelo Cireneu a levar a cruz.
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A casa da Verónica é indicada por uma porta que dá para um estábulo. Diz-se que era onde ela vivia, mas
os escritores mais críticos dizem que é o lugar onde a Verónica limpou o rosto de Jesus. Andando um pouco
adiante, chega-se à porta judiciária que dá para o Calvário que, no tempo de Xto. ficava cerca de 400 metros
fora de Jerusalém, enquanto hoje fica dentro. Por esta porta passou J. C. quando foi morrer por nós, e chama-
se precisamente judiciária porque por ela passavam os condenados à morte; nesta mesma porta foi fixada a
sentença de morte emanada contra ele da parte de Pôncio Pilatos. Várias vezes foi destruída; mas é ainda
aqui conservada de pé, perto da porta, a coluna onde é tradição que esteve fixada a iníqua sentença.
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O lugar da segunda queda não se conhece com exactidão. Por isso, faz-se esta estação da via crucis entre
a porta judiciária e o lugar onde se encontrou com as mulheres de Jerusalém, que fica a cem passos dessa
porta; a terceira queda sucedeu 10 passos antes do lugar da crucifixão e é assinalado por um penedo da rocha
do Calvário, o qual, por desprezo aos cristãos, é cuspido pelos muçulmanos.
As outras estações fazem-se dentro do templo, no Calvário, como podeis deduzir do que vos disse sobre o
Calvário. Esta via crucis – disseram-mo em Jerusalém os padres franciscanos – fê-la também o arquiduque
Maximiliano, governador do reino Lombardo-Véneto; e fê-la de joelhos, derramando lágrimas de ternura,
para edificação da toda a cidade de Jerusalém.
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Depois da Via Dolorosa, visitámos o monte de Sião, sobre o qual se encontra o Santo Cenáculo. Quão
sublime é o monte de Sião! Sublime pela sua excelsa posição, sublime pelos seus profundos mistérios; fica
situado a sudoeste de Jerusalém e domina o vale de Geena, a Aceldama e o vale dos Gigantes. Foi para o
monte de Sião que David transportou a Arca do Aliança, trazendo-a desde a casa de Obededon; aqui foi
sepultado o próprio David; aqui J. C. celebrou a sua última Páscoa, lavou os pés aos Apóstolos, instituiu o
sacramento da Eucaristia; aqui ordenou os primeiros sacerdotes e os primeiros bispos da sua Igreja.
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Era neste monte que se encontrava o palácio de Caifás, aonde foi levado Jesus na noite em que foi preso;
aqui Pedro renegou três vezes o seu Divino Mestre, estremeceu ao canto do galo, chorou amargamente a sua
culpa; aqui passou Jesus a sua última noite no fundo de uma prisão; aqui foi acusado por falsas testemunhas,
acusado de blasfemo, cuspido no rosto e esbofeteado e julgado réu de morte; e tendo sido depois crucificado,
aqui, após a sua Ressurreição, apareceu pela primeira vez aos Apóstolos reunidos no Cenáculo e conferiu-
lhes o poder de perdoar os pecados, instituindo o sacramento da Penitência; aqui lhes apareceu de novo, es-
tando as portas fechadas, oito dias depois e fez tocar as suas sacratíssimas chagas ao incrédulo Tomé. Aqui
fez a sua última aparição sobre a Terra antes de subir aos Céus no dia da Ascensão.
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Foi ao monte de Sião que regressaram os discípulos, depois de havê-Lo acompanhado na sua viagem glo-
riosa até ao cimo do monte das Oliveiras; aqui perseveraram todos em oração durante mais de dez dias a fim
de se prepararem para receber dignamente o Divino Paráclito, o Espírito Santo; aqui se juntou Matias ao
colégio apostólico em lugar do traidor Judas; aqui, ao terminarem os dias de Pentecostes, desceu sobre eles o
Espírito Santo em forma de línguas de fogo; aqui foram eleitos os primeiros sete diáconos; aqui se realizou o
primeiro concílio da Igreja, presidido por S. Pedro; aqui foi nomeado S. Tiago Menor primeiro bispo de Je-
rusalém; aqui os apóstolos dividiram entre si o mundo que iriam evangelizar; aqui, segundo a opinião mais
corrente, teve lugar a passagem de Nossa Senhora desta vida para a outra; aqui repousaram por muito tempo
os ossos do protomártir St.o Estêvão; aqui, finalmente, dormem o sono da morte muitos cristãos de Jerusa-
lém e muitos mártires da Igreja que neste lugar testemunharam com o seu sangue a origem divina da nossa
religião.
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Visitei quase todos os lugares notáveis que há no monte de Sião, e o primeiro de todos foi o Santo Cená-
culo, onde J. C. instituiu o sacramento da Eucaristia; fica perto do túmulo de David, o qual, com a sua parte
superior, chega ao Cenáculo. Este sublime santuário está já há três séculos em poder dos muçulmanos, que o
utilizam para dormitório dos soldados; não se pode lá entrar, mas nós, com boas maneiras e generoso
bacshish, entrámos com um missionário da Terra Santa; e eu pude adorar aquele sagrado legado da antigui-
dade, sem porém descer ao fundo do mesmo para ver o túmulo de David, porque há pena de morte para
quem lá entrar. Não pude celebrar lá a missa, para não correr o risco de receber um gracioso beijo de alguma
bala muçulmana, que me teria sido tão agradável. No Cenáculo há indulgência plenária.
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Outras indulgências ganham-se noutros lugares do mesmo Cenáculo e fora dele, a saber: onde foi prepa-
rado o cordeiro pascal para a ceia do Senhor; onde J. C. lavou os pés aos seus apóstolos; onde desceu o Esp.
Santo sobre os apóstolos; no alto do Sepulcro de David que dá para o Cenáculo; no lugar onde a sorte recaiu
sobre Matias; onde o apóstolo S. Tiago foi eleito bispo de Jerusalém; onde os apóstolos se separaram para
irem pregar o Evangelho por todo o mundo. Tudo isto se obtém no Cenáculo.
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Visitei também o palácio de Caifás, que esteve quase completamente em ruínas mas foi reconstruído pe-
los turcos. Aqui há quatro indulgências, ou seja, no lugar onde o Senhor passou a sua última noite na prisão,
onde Pedro o renegou, onde o mesmo apóstolo ouviu o canto do galo e onde permaneceu Nossa Senhora
após ter tomado conhecimento da prisão do seu divino Filho. Oh, quantos insultos e ignomínias não suportou
J. C. neste palácio, além de Pedro O ter renegado, de o terem cuspido, de lhe terem vendado os olhos, etc. ;
aqui os que o haviam açoitado incitavam-no a adivinhar quem é que de entre eles o tinha feito, etc., etc.
Do palácio de Caifás passa-se ao lugar para onde foi transferido o corpo de St.o Estêvão, ao lugar onde é
tradição ter S. João Evangelista celebrado a santa missa na presença da Virgem Maria, ao lugar onde Nossa
Senhora morou, depois da ascensão de Jesus ao Céu e depois de, com S. João, ter voltado de Éfeso; aqui
morreu e os hebreus, enquanto ia a sepultar, tentaram roubar o seu corpo; aqui obtém-se indulgência plená-
ria. Alguns passos depois, está o palácio de Anás, onde, com uma luva de ferro, lhe deram um tremendo bo-
fetão.
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Que sentimentos despertaram em mim estes lugares sagrados, agora tão profanados, só Deus e aqueles
que visitam Jerusalém podem compreendê-lo. Existe ainda em Jerusalém a Igreja do Santo Salvador, onde
habitam os padres franciscanos, que contém três antiquíssimos retábulos que foram para aqui trazidos do
Cenáculo, quando este se tornou quartel dos turcos.
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O palácio de Herodes fica sobre o monte Abisade; embora esteja quase destruído, gostei de o visitar, por-
que recorda a paixão de Nosso Senhor. Além destes sítios, em Jerusalém visitei a prisão onde esteve S. Paulo
quando apelou a César, a Igreja de S. Tiago, que é uma das mais esplendorosas de Jerusalém. Está em poder
dos arménios ortodoxos e nela me foi mostrado o lugar onde o apóstolo foi decapitado por ordem do rei
Agripa. Visitei igualmente a casa de Maria, mãe de João Marcos, que está nas mãos dos sírios ortodoxos, a
qual é celebre porque nela se venera o lugar onde S. Pedro foi bater quando foi libertado da prisão pelo anjo.
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Entrei ainda no cárcere onde S. Pedro esteve encerrado por ordem do rei Agripa; e foi precisamente aqui
que, no silêncio da noite, foi libertado pelo anjo. Os cristãos dos primeiros séculos haviam-na convertido em
igreja. Agora podem ver-se lá bastantes restos que servem de oficina a alguns curtidores de peles: aquilo
exala um tal cheiro que só por espírito religioso se consegue lá entrar. A casa do Fariseu fica sobre o monte
Abisade: consiste nos muros de uma igreja dedicada a S. Maria Madalena em memória da sua conversão, que
teve lugar nesta casa; agora está em poder dos turcos.
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O templo da Apresentação da Nossa Senhora tinha sido construído em memória deste mistério no lugar
onde Salomão erguera o palácio com madeira das florestas do Líbano; hoje é uma mesquita. E que direi do
Templo do Senhor? Foi construído no mesmo sítio que ocupou o Templo de Salomão e dele não resta nem
uma pedrinha; é indicado, contudo, o lugar exacto onde ficava e há aí indulgência plenária. Sobre ele edifi-
cou um magnífico templo o califa Omar, segundo sucessor de Maomé, depois da conquista de Jerusalém. Os
cruzados, no século XI, converteram-no numa igreja; porém, Saladino declarou-o de novo mesquita (templo
de Maomé) e assim continua até hoje. É o edifício mais majestoso que existe em Jerusalém e é de estilo mou-
risco. É proibido entrar lá dentro sob pena de morte, porque, além de ser templo de Maomé, encerra o harém
das concubinas do paxá de Jerusalém.
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Eu, porém, consegui passar todo o átrio na companhia de dois padres missionários da Companhia de Je-
sus; mas, apesar de um forte muçulmano seguir os nossos passos, pusemo-nos imediatamente em fuga,
quando vimos os soldados armados. Abaixo do Templo de Salomão, há uma piscina probática que é um das
ruínas mais antigas que existem em Jerusalém; data nem mais nem menos do tempo de Salomão; embora
muito deteriorada, o seu nome basta para recordar a prodigiosa cura daquele paralítico que jazia doente havia
38 anos e que aqui foi curado pelo Redentor.
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Antigamente servia para lavar as vítimas que se iam imolar no Templo. Actualmente está cheia de
sicômoros e de outros arbustos; comunica com o templo da Apresentação de Nossa Senhora de que vos falei
acima. Este tem enormes pedras que, segundo os eruditos escritores da Terra Santa, serviram certamente para
os muros da antiga Jerusalém. À volta destas pedras, os hebreus vão lamentar-se todas as sextas-feiras, ao
pôr-do-sol; é um espectáculo digno de ser visto!
Estes são os lugares notáveis que visitei em Jerusalém. Há muitos outros; porém, a alguns deles muitos
esclesiásticos de devoção pouco esclarecida [beatices?] querem dar-lhes celebridade, e como eu não acredito
nela, pois não tenho conhecimento fundamentado, prefiro passá-los em silêncio. Aos que vos descrevi e des-
creverei dou todo o crédito, uma vez que a sua autenticidade se baseia na mais antiga tradição reconhecida
pelos maiores escritores e pela autoridade da Igreja, que outorga indulgência plenária cada vez que se visi-
tam.
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Agora saiamos de Jerusalém, e contemplai comigo os lugares dignos da consideração de um cristão. E
primeiro, saindo pela porta de St.o Estêvão, deixa-se 40 passos à esquerda a porta Áurea, que está fechada
com um muro. Chama-se porta Áurea por excelência em memória da entrada solene que J. C. fez no dia de
Ramos.
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Também Heráclio, depois de vencer Cosroe, rei da Pérsia, entrou por essa porta com o reconquistado tro-
féu do lenho da cruz. É a mais bela e arquitectónica que existe em Jerusalém; e eu nunca vi uma melhor. Mas
os turcos fecharam-na e muraram-na porque existe entre eles uma antiga tradição, segundo a qual os francos
(assim se chamam no Oriente os europeus) conquistariam Jerusalém e entrariam triunfantes por essa porta.
Depois, descendo para o vale (de Josafat) pela ladeira do monte Moria, antes de chegar ao fim da descida, há
uma rocha muito informe, onde foi lapidado St.o Estêvão; treze passos mais acima fica o lugar onde estava
Saulo (que mais tarde foi o apóstolo S. Paulo) a guardar as roupas dos lapidadores; e à mão esquerda se mos-
tra o lugar onde a imperatriz Eudóxia mandou edificar um templo ao glorioso protomártir. Uma vez no fundo
do vale, atravessa-se a torrente de Cedron, que divide o vale de Josafat, e entra-se em Getsémani.
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Eu lancei o meu olhar para este vale, contemplando várias vezes o seu comprimento e largura; será aqui –
perguntava a mim mesmo – que um dia serei julgado pelo Eterno Juiz? Será aqui que se juntarão todos os
povos da Terra no Juízo Final? Ditar-se-á aqui a inapelável sentença da vida ou da morte eterna para todos
aqueles que existiram, existem e existirão? Aqui a Terra abrirá os seus profundos abismos para tragar os
réprobos destinados ao inferno, e daqui voarão os eleitos para o Céu?
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Ó vale, terribilíssimo vale! Estende-se entre o monte das Oliveiras e o Moria e não se gasta nem um quar-
to de hora a percorrê-lo em comprimento; começa no Sepulcro da Virgem e vai terminar no túmulo de Josa-
fat, rei de Judá, a qual se conserva intacto por estar escavada na rocha viva. O vale de Josafat é percorrido
pela agora seca torrente de Cedron e está todo cheio de ruínas de Jerusalém. O seu comprimento é, mais ou
menos, o alcance de um tiro de espingarda.
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A norte deste vale, há o sepulcro de Nossa Senhora, o qual faz parte do Getsémani; esse sepulcro é um
templo quase todo debaixo da terra, ao qual se desce por uma majestosa escadaria de 47 degraus. Neste se-
pulcro esteve Maria Virgem três dias, antes da sua assunção ao céu com o corpo. Tendes conhecimento do
facto dos Apóstolos e de Tomé, que não teve a graça de ver Maria morta. O sepulcro é aproximadamente
como o de J. C., e está em poder dos gregos ortodoxos, que todos os dias celebram longos ofícios. Neste
mesmo templo subterrâneo encontram-se ainda os sepulcros de S. José, de St.a Ana e de S. Joaquim; enquan-
to nestes últimos há indulgência parcial, no de Nossa Senhora há indulgência plenária.
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Passado este lugar e entrando em Getsémani, encontra-se a gruta da agonia, porque aí se retirou o Senhor
a rezar ao eterno Pai na noite que precedeu a sua morte; aí se sentiu oprimido por uma tristeza tão mortal que
entrou em agonia e suou sangue vivo. À distância de uma pedrada desta gruta, fica o horto de Getsémani
propriamente dito; tanto a gruta da agonia como o sepulcro de Nossa Senhora e outro lugar de que falarei
pertencem a Getsémani; mas os frades fecharam com um muro parte de Getsémani, que eles chamam horto
de Getsémani, para proteger oito oliveiras antiquíssimas, cujos troncos – reza a tradição – existiam no tempo
de J. C. Não sei se isso é verdade; certo é que têm um tronco mais [...] vezes maior que o das nossas olivei-
ras.
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O lugar onde Cristo se separou dos seus discípulos está indicado fora da cerca do Getsémani propriamen-
te dito; a sete passos de distância, fica o lugar onde Judas com um beijo atraiçoou J. Cristo. Voltando depois
ao vale, quase ao fundo, e caminhando pelas margens da torrente seca de Cedron, vê-se um sinal de um joe-
lho impresso num duro penedo no meio do leito da torrente. Diz-se que este sinal impresso na pedra foi dei-
xado por J. C. na noite em que, preso no horto de Getsémani, empurrado a golpes pelos soldados, caiu nesse
lugar. Quem beija este sinal do joelho de J. C. obtém indulgência plenária, o mesmo acontecendo no horto de
Getsémani e na gruta da Agonia, onde eu celebrei missa mesmo no lugar onde J. C. suou sangue, onde há um
belíssimo altar que está em poder dos católicos.
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A pouca distância do sinal do joelho de J. C. há uma grande caverna, onde, depois da morte do Divino
Mestre, se retirou S. Tiago apóstolo, com o firme propósito de não mais comer nem beber até que O não
visse ressuscitado. Antes de chegar a esta caverna, há o sepulcro do rei Josafat, que é feito de uma só peça, e
é como a Igreja de S. Roque, em Limone; também é ali o sepulcro do rebelde Absalão, que ele mandou cons-
truir para si em vida com a esperança de lá repousar quando morto; mas enganou-se. É uma maravilha: eu
estive lá no meio; está a seguir a urna de Zacarias e mil lápides sepulcrais que guardam as cinzas daqueles
infelizes judeus que, de todas as partes do mundo, vieram terminar seus dias a Jerosolima, a fim de que os
seus ossos descansassem à sombra daquele templo que não existe, nem existirá nunca, a não ser na sua ima-
ginação.
74
Tudo isto se situa no vale de Josafat, que está no sopé do monte das Oliveiras. Oh! Que querido é o monte
das Oliveiras! Quão esplêndida vista se goza do cimo do seu elevado cume! Que consoladores são os misté-
rios onde tudo está assinalado! Este monte foi o oratório do Senhor, a cátedra dos seus divinos ensinamentos,
o testemunho das suas profecias sobre Jerusalém e serviu-Lhe de escada para subir ao céu. Agora eu condu-
zir-vos-ei como pela mão a contemplá-lo com a vossa imaginação, pois é digno da contemplação de um fer-
voroso cristão.
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O monte das Oliveiras eleva-se a leste de Jerusalém em frente do Moria, pelo que domina o vale de Josa-
fat. Atravessada, pois, a torrente de Cedron junto ao sepulcro de N. Senhora, e passando a norte rente ao
horto de Getsémani, encontra-se, no início da subida, um penhasco duríssimo, o qual recorda o lugar onde se
sentava triste e meditabundo o inconsolável Tomé, quando a divina Mãe, já subida ao Céu, lhe atirou a sua
faixa, como contam, entre outros, Nicéforo e Juvenal, bispo de Jerusalém.
A meio do monte e voltando à mão direita um tiro de fuzil, chega-se ao lugar onde J. C. chorou sobre Je-
rusalém, o qual está assinalado por uma torre derrubada, outrora campanário de um templo aqui construído
em memória do pranto que J. C. derramou sobre a cidade prevaricadora. Daqui vê-se Jerusalém inteira: eu
contemplei-a; oh, como me pareceu desolada, triste, esta cidade que era a mais célebre do mundo! Oh! Como
perdeu a sua beleza esta filha de Sião! Caiu em tamanha desolação, que leva até às lágrimas os corações mais
duros, pensando naquilo que era no tempo da redenção.
76
Subindo um pouco mais, há uma caverna perfurada na rocha dentro das entranhas do monte das Oliveiras,
que serve de vestíbulo a uma fila de sepulcros subterrâneos chamados dos Profetas. Mais acima destes se-
pulcros está o lugar onde J. C. esteve sentado quando predisse a seus discípulos as muitas tribulações, as
guerras sangrentas, as perseguições de toda a espécie, a abominação e a desolação que precederiam o último
dia, o do Juízo Universal. Detive-me aqui por uns instantes e, contemplando o aspecto do subjacente vale de
Josafat, imaginei o imponente espectáculo que oferecerá todo o género humano reunido neste vale para rece-
ber a sentença final. Cinquenta passos antes de chegar ao cimo, fica o lugar onde os Apóstolos se retiraram
para compor o Credo, antes de se dispersarem pelo mundo; neste lugar há uma cisterna, dentro da qual esta-
vam escavadas 12 pequenas abóbadas, em memória dos 12 apóstolos congregados.
77
A pouca distância encontra-se o sítio onde J. C. ensinou o Pai-nosso aos doze apóstolos e onde em tempos
houve uma igreja. Finalmente, eis-me no cimo do monte das Oliveiras; mas onde está o lugar donde J. C.
subiu ao Céu? Há aqui muitas casitas pobres e no meio um templo bastante bem conservado. No meio deste
templo fica o sítio da ascensão.
Mediante generosa gratificação, um asceta turco abriu-nos a porta de um pátio, no meio do qual está este
templo sem portas. No pavimento vi um pequeno quadrado de pedra, que rodeia um duro penhasco, no qual
está impressa a planta do pé esquerdo de um homem, voltada para ocidente. Esta marca deixou-a J. C. quan-
do subiu ao céu. Eu beijei e voltei a beijar reverentemente este último vestígio que imprimiu na Terra o Di-
vino Redentor, para ganhar a indulgência plenária que é concedida. A 70 passos deste lugar, caminhando
pelo cimo do monte das Oliveiras, visitei o lugar chamado Viri Galilei, que corresponde ao sítio onde esta-
vam os Apóstolos, quando, regressando desse monte e tendo parado estáticos a olhar para o céu, lhes apare-
ceu um anjo.
78
Pelo outro lado, à direita, está Betfagé, povoação em ruínas, situada no lugar onde o Senhor mandou a
seus discípulos que desatassem o potro que estava junto a um castelo vizinho, para fazer a sua entrada triun-
fal em Jerosolima no dia de Ramos. Daqui contempla-se perfeitamente o monte onde J. C. jejuou quarenta
dias, a vastíssima planície de Galgala, o rio Jordão, o mar Morto, onde surgia a Pentápolis, o monte dos
Francos, as alturas de Ramatzaim Sophim (Jericó) e muitos outros lugares famosos na Escritura, que depois
visitarei mais de perto.
79
Queria mandar-vos uma garrafa de água do Jordão com os terços; mas como estes vão chegar cerca de um
mês depois da Páscoa, como vos direi mais adiante, e se estragaria, mudo de ideia e levo-a a uma pessoa de
Alexandria que me pediu uma pequena garrafa.
Tomando agora o caminho do sepulcro de Josafat em direcção ao sul de Jerusalém, chega-se à piscina de
Siloé, famosa porque J. C. curou nela o cego de nascença; eu bebi dela e admirei o fluxo e refluxo de suas
águas sem conseguir absolutamente perceber porquê. Não muito longe da piscina de Siloé, subi pelas raízes
de uma antiquíssima amoreira situada no meio do caminho, que indica o sítio onde foi serrado ao meio o
profeta Isaías com uma serra de madeira, por ordem do rei Manasés.
80
Vinte passos mais abaixo deste lugar, vi o poço de Neemias que tem mais de 300 pés de profundidade e
uma água fresquíssima. Chama-se assim porque Neemias, depois da escravidão de Babilónia, mandou tirar
deste poço água densa com a qual aspergiu a lenha e as vítimas já colocadas sobre o altar para o sacrifício, as
quais se incendiaram prodigiosamente ao nascer o Sol, como diz a Escritura.
81
Neste poço esconderam os sacerdotes o fogo sagrado, quando da destruição da Cidade Santa por Nabu-
codonosor. Aqui o vale de Siloé une-se com o de Ben Hinnom, que é a Geena do Evangelho. Este vale é
escuro, profundo, solitário, triste e melancólico, pavoroso; Jesus Cristo fê-lo símbolo do Inferno; eu percorri-
o todo e vi o sítio onde foi erigido o ídolo de bronze, Moloc, que tinha no cimo um buraco, onde se lançavam
as crianças vivas para queimá-las em honra de Moloc. Neste vale há lojas cavadas na rocha viva, onde os
Apóstolos se esconderam quando viram o seu Divino Mestre feito prisioneiro no horto de Getsémani.
82
Depois fui a Aceldama, aquele campo que foi comprado com o preço do sangue de J. C. É um espaço on-
de cabem duas oliveiras. Saindo pela porta de Efraim, encontra-se a gruta de Jeremias, onde se retirou o
compungido profeta depois da destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, a chorar sobre as crepitantes
cinzas da sua querida cidade, e chorando compôs aquelas patéticas lamentações e profecias que se lêem na
Semana Santa.
83
Abaixo desta, encontra-se o cárcere do mesmo Jeremias: uma cisterna, para onde é tradição que o profeta
foi atirado por ordem do rei Sedecias, por castigo de ter falado livremente ao povo de Israel da parte de
Deus. Dirigindo-me a ocidente, subi o monte Gion, memorável porque sobre ele foi ungido e sagrado o rei
Salomão. Descendo por detrás da muralha de Jerusalém, vê-se um tanque muito grande e magnífico de 240
passos de comprimento, 105 de largura e 50 de profundidade, todo cavado na rocha viva. Chama-se piscina
de Betsabé, porque Salomão a mandou construir em honra dela e para seu serviço.
84
Muitas outras coisas vos poderia contar sobre Jerusalém e arredores, mas já chega, porque estou cansado
de escrever. Citei-vos só alguns monumentos religiosos autenticados e confirmados pela Igreja, que fez de
todos os que vos descrevi fontes das mais amplas indulgências. Jerusalém, hoje, não é maior que duas vezes
Bréscia. As suas ruas são estreitas, íngremes, sujas: faz pena! É sede de muitos bispos ortodoxos, de um
paxá turco e do patriarca que nos acolheu muito gentilmente. Está fortificada, mais que Verona, e permite
fazer uma grande ideia do que foi em tempos.
85
Há oitenta missionários católicos e mais de cem entre gregos e arménios ortodoxos. Agora chegaram os
russos protestantes e os judeus; os primeiros têm até um bispo. No meio desta confusão de cultos, não se
pode fazer nada pela conversão; porque se trata dos turcos, há pena de morte para quem se converter; e os
outros hereges, com abundância de dinheiro, impedem os seus seguidores de se tornarem católicos. Por isso,
acontece que alguns infelizes católicos, quando não conseguem dos missionários o dinheiro ou sustento que
pretendem, convertem-se ao protestantismo, como aconteceu este ano.
Todos os católicos da Palestina são pobres e a maior parte são mantidos pelos conventos dos franciscanos.
Mais à frente, falar-vos-ei de outros lugares que visitei na Palestina, que merecem a vossa atenção e conside-
ração.

(P.e Daniel Comboni)

N.o 14 (12) - A EUSTÁQUIO COMBONI


AFC

Jerusalém, 12 e Outubro de 1857

Meu querido primo,

86
Oh, já me parece que há mil anos não falo contigo, que não converso contigo, de ti, do Eugénio e dos
meus caríssimos primos! Quantas vezes entre o bramido dos ventos e o flutuar das ondas sinto no coração o
peso da separação de vós! Quantas vezes, subindo as íngremes e escarpadas montanhas da Judeia, me vinha à
mente quando contigo, com os caríssimos Eugénio e Hermínio, etc., subíamos as encostas de Dalco e as
suaves rochas de Prealzo! Neste momento encontro-me na Cidade Santa e digo-me a mim mesmo: oh, se eu
tivesse aqui os entes queridos que me estão ligados pelos vínculos mais sagrados do sangue! Quando escre-
veres ao Eugénio, não te esqueças de recomendar-lhe o que eu lhe disse antes da minha partida; se tiver tem-
po, vou escrever-lhe.
87
Fica a saber que no monte Calvário celebrei missa por ti, pelo Eugénio, pelo tio e por toda a família cha-
mada irmãos Comboni e celebrei-a naquele lugar onde estava a Virgem Maria quando o seu divino Filho era
estendido e pregado na cruz; igualmente tive o prazer de fazer o Memento por todos vós, especialmente pelo
Eugénio, em todos os santuários de Jerusalém e de Belém e em todos os lugares da Terra Santa, pelo que, no
futuro, não poderei nunca esquecer-vos sempre que celebrar; digo-vos isto, não para que vós devais ter muito
em conta as minhas orações, pois conheceis a minha insignificância diante do Senhor; mas digo-vo-lo para
obrigar-vos a rezar uma ave-maria, especialmente pelo bom êxito da minha missão. Depois da Páscoa, rece-
bereis de Jerusalém algumas lembranças, que mando para ti, para a Hermínia e para os demais.
88
Agora que hei-de dizer-vos? É meu grande desejo, meu querido e amável Eustáquio, que tu e todos os
meus primos, etc., vos esforceis por salvar a vossa alma. Deus cobriu-te de bênçãos, fazendo prosperar a tua
casa; Deus concedeu-te outrossim um bom número de filhos para educar e orientar pelas sendas da virtude;
Deus deu-te também uma mãe, a minha querida falecida tia Paula, que, desde que nasceste, te ensinou sãos
princípios religiosos, pelo que entre os comerciantes te distingues pela honestidade, justiça e rectidão.
89
Permite-me, porém, que te fale como verdadeiro irmão. Louvo o esforço que fazes para conquistar e asse-
gurar uma condição cada vez melhor, tanto mais que tens uma família numerosa; mas parece-me que esse teu
afã é excessivo: primeiro, tens uma alma a salvar, a qual tem muito a perder com a demasiada agitação pelas
coisas do mundo; tens uma saúde corporal a conservar, que é ainda muito preciosa para o bem dos teus fi-
lhos; portanto, moderação nas tuas actividades! Não te peço mais. Desejaria, isso sim, que os três tivésseis
sempre gravado na mente que se salvardes a alma, salvareis tudo, que, se a perderdes, perdereis tudo, e que
em breve nos encontraremos diante do tribunal de Deus, o mais tardar dentro do breve espaço de cinquenta
anos; mas estou certo de que o fareis.
90
Quero recomendar-te algo mais: os meus pobres pais. Tu sempre ajudaste a minha pobre família; disso te
fico grato até à morte, e nem queria estar a lembrar-te o que estás sempre disposto a fazer sem recomenda-
ções; mas é o carinho que coloca na minha boca esta recomendação; e tu, que és filho e pai, saberás descul-
par: olha pelos meus pais e muito obrigado por tudo. Deus fará de maneira que participes também do bem
que Ele fará provir da nossa grande missão. Peço-te que me escrevas muitas vezes, como eu farei também;
mantém-me informado acerca de meus pais, do Eugénio, da Hermínia, do bom do Henrique, do César, do
Pedro, do tio e de todos vós, bem como de como correm os teus negócios, etc., etc.
Saúda da minha parte a todos os que me são queridos e recebe um afectuoso beijo deste que se declara de
todo o coração

Teu af.mo primo


Daniel C.

N.o 15 (13) - AO P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/37

Jerusalém, 12 de Outubro de 1857

Meu caríssimo e amável P.e Pedro,

91
Não quero partir da Cidade Santa sem fazer-lhe saber que eu guardo doce e grata recordação de quem
com tanta diligência apascenta a multifacetada grei de Limone e que tanto me ajudou. Quando chegar ao
Cairo talvez não tenha tempo de escrever. Saiba, portanto, que três de nós viemos aqui a beijar, prostrados
por terra, o túmulo do Salvador e venerar os lugares do seu nascimento, da sua vida e da sua morte, enquanto
P.e Beltrame e P.e Oliboni foram ao Cairo preparar as muitas coisas que não conseguimos em Alexandria.
92
Partimos de Alexandria rumo a Jaffa, cidades que distam 42 horas de vapor. Das ruínas da antiga Joppe,
seguimos em direcção a Jerusalém, empregando dia e meio a cavalo; passámos por montanhas que nada têm
que ver com as nossas de Limone, enquanto, porém, nalguns sítios são mais escarpadas e íngremes e há que
transpô-las a cavalo. Uma vez aqui em Jerusalém, a dizer a verdade, quem vem com a ideia de ver a antiga
Jerusalém, com vontade de admirar os monumentos profanos, certamente que fica desiludido; porém, quem
chega com intenção de venerar os mais preciosos monumentos e lugares onde tiveram lugar os grandes acon-
tecimentos da Redenção, asseguro-lhe que encontra uma satisfação inimaginável, porque cada passo assinala
um mistério.
93
Entre outras coisas observei nesta santa e maldita cidade, cúmplice e autora do maior dos delitos, uma
tristeza, uma taciturnidade que deprimem o espírito quando se entra. Enquanto noutras cidades e especial-
mente no Egipto, os turcos, os gregos, os arménios, os coptas fazem muito ruído, gritam, vociferam, aqui, ao
invés, cada um está fechado em si mesmo, trabalha, vende, faz tudo sem falar; enfim, parece que esta cidade
ainda sente o remorso de ter dado a morte a um Deus.
94
Não acontece o mesmo em Belém, que inspira uma indescritível alegria em quem chega. Pode dizer-se
que ainda se conservam quase todos os monumentos da nossa religião e, em relação aos que já não existem,
conhecem-se muito bem os lugares; isto porque em todos eles, desde a pregação dos Apóstolos, se erigiram
igrejas, santuários, monumentos; e, em caso de destruição, foram edificados de novo; e também porque aqui
tem muita importância a tradição dos maometanos, dos judeus, dos gregos e dos autóctones, que é – pode
dizer-se – a primeira coisa que aprendem, para poderem mostrar essas coisas e informar os peregrinos e via-
jantes que aqui afluem aos milhares, coisa incrível.
95
Queria fazer-lhe uma pequena descrição do que vi e observei; mas dar-lhe-ei notícia disso a partir do
Egipto, quando estiver mais livre. Como está entretanto o meu caríssimo reitor? Espero encontrar no Cairo
alguma das suas ansiadas cartas. Naturalmente que tanto eu como o senhor devemos ser pontuais em cumprir
o que reciprocamente prometemos. Desejo-lhe muitas felicidades e recomendo-lhe os meus velhos, a quem
nada interessa a não ser a religião. Aqui em Jerusalém deixei uma pequena lembrança para si, para sua mãe,
sua irmã, bem como para o Sr. Pedro e seu tio, o sr. B.o Carboni; consiste num terço de Jerusalém, benzido
no túmulo de N. S. e no Calvário, que permite ganhar indulgência plenária cada vez que se recita, e outra
indulgência plenária cada vez que se beija o respectivo crucifixo.
96
Entretanto apresento-lhe as minhas cordiais saudações; apresente os meus cumprimentos mais sinceros ao
amável sr. Pierino, ao sr. José e a Júlia Carettoni, ao velho P.e Ognibene, à família do sr. L. Patuzzi e especi-
almente ao sr. arcipreste, para o qual vai também um desses terços.
Aceite os saudações e os sentimentos mais cheios de afecto

Do seu af.mo P.e Daniel

Cumprimentos de todos os meus companheiros.

N.o 16 (14) - AO DR. BENTO PATUZZI


ACR, A, c. 15/168

Jerusalém, 12 de Outubro de 1857

Meu caríssimo e amável doutor,

97
Então haveria eu de deixar Jerusalém sem escrever uma linha e exprimir os meus sentimentos de afecto
para com a sua estimada família? Isso nunca. Mas antes façamos uma digressão.
Sobre o falecido G. B. Maximiliano Arvedi escrevi-lhe alguma coisa de Alexandria. Agora quero contar-
lhe mais coisas que vim a saber. A doença dele durou mais de um mês; e antes desta, que foi a última, teve
uma outra, que o levou às portas da morte. Em ambas as doenças foi assistido com um desvelo e atenção que
classificaria de heróicas; tanto que o P.e Cipriano, que o assistiu longamente até à morte, me assegurou ter
ficado maravilhado e me disse: “Descobri então que os autênticos italianos são verdadeiros irmãos”. A sua
resignação em receber a morte das mãos de Deus foi admirável; por isso diz-me o mesmo P.e Cipriano que,
em tantos anos de missionário no Egipto, nunca sentiu tanto contentamento como ao assistir este, a quem
antes julgava meio perdido.
98
As condições do acordo com o conde Scopoli são desconhecidas; sei que era simples agente de firma, não
de comércio, porque o conde Scopoli não se dedica aos negócios, mas faz de advogado apoiando-se apenas
na boa-fé que Alexandria inteira tem dele.
Por outro lado, estou firmemente convencido de que todas aquelas despesas que o conde Scopoli apresen-
tou ao irmão do falecido são verdadeiras; antes, segundo posso deduzir, são até inferiores às que ele pagou.
Efectivamente, durante mais de dois meses de doença, o conde Scopoli prestou uma assistência mais que de
irmão, não olhando a gastos. Em Alexandria um medicamento custa quatro vezes mais que na Europa; só o
gelo, que é trazido de barco da Grécia e da Inglaterra, custa três francos cada oca, ou seja, um pouco mais de
três libras; e todos os dias eram necessárias muitas ocas. Ele consultou muitos médicos e ninguém pode
calcular quanto custa uma doença em Alexandria, já que todos correm atrás da fortuna, servindo-se de todos
os meios para arranjar dinheiro.
99
Por conseguinte, eu aconselharia o irmão do falecido Arvedi a viver em paz, sem proceder a mais inda-
gações, de modo a não levar Scopoli a aperceber-se da sua secreta desconfiança; porque se quisesse tirar
tudo a limpo através de um ofício ou de outro meio governamental, enganar-se-ia por certo, pois o Governo
não dispõe de outro meio além do cônsul-geral, o qual tem como primeiro conselheiro o conde Scopoli.
Efectivamente não se realiza uma sessão sem a presença de Scopoli, como pude verificar nos 15 dias que
estive em Alexandria. Também um seu amigo, que visitava Arvedi todos os dias, e que não simpatiza propri-
amente com o conde Scopoli, por o cônsul preferir os serviços deste aos seus, me assegurou que do conhe-
cimento que ao longo dos anos teve dele lhe advieram os mais sólidos argumentos para provar a sua honesti-
dade e justiça; fazia até muitas coisas, como a visita àquele doente, por sentimento religioso e para agradar
ao conde Scopoli, o qual agia verdadeiramente como um pai. Sobre isto não lhe digo mais nada, porque,
quando me asseguraram aquilo que lhe expus, eu não me preocupei muito em investigar sobre os outros as-
suntos contidos na carta que Arvedi me entregou, coisas difíceis de compreender sem falar em termos técni-
cos.
100
Mas agora falemos de nós. Quereria fazer-lhe uma descrição da minha viagem à Palestina, mas agora não
tenho tempo. Aqui em Jerusalém deixei algumas pequenas lembranças para a sua família, para os seus tios
padres, para o Luís e para as sr.as Faccioli, Salvotti, etc.; mas das margens do Nilo voltarei ao assunto noutra
carta, tanto mais que essas pequenas lembranças, que consistem nalguns terços e crucifixos benzidos no San-
to Sepulcro, chegarão já depois da Páscoa.
Apresente as minhas melhores saudações à minha muito estimada sra. Anita, Vitória, Caetano, P.e Battis-
tino, P.e Bortolo, sr. Luís e família, enquanto com todo o afecto me subscrevo

P.e Daniel

N.o 17 (15) - AOS SEUS PAIS


ACR, A, c. 14/115 n.o 2

A bordo do Marsey, vapor francês,


que me transporta de Jaffa a Alexandria do Egipto,
16 de Outubro de 1857

Queridos pais,

101
Fiquei cerca de sete dias em Jerusalém; os outros empreguei-os em viagem por diversas partes da Judeia,
sempre a cavalo, geralmente sob um sol abrasador, pelo que se tornou uma viagem muito fatigante. Visitei
muitos lugares, mas os mais importantes e de edificação são aqueles de que falei. De Emaús existe apenas o
lugar, mas sem o castelo, em que entrou J. C. depois da ressurreição e se deu a conhecer a dois discípulos na
fracção do pão.
102
Fiz um passeio a Betânia, saindo pela porta de St.o Estêvão; atravessado o vale de Josafat a sul, fomos ao
monte do Escândalo, onde se enforcou o desgraçado Judas, depois de vender o seu Divino Mestre. Chama-se
monte do Escândalo devido aos gravíssimos escândalos que Salomão deu ao seu povo, ao mandar construir
sobre ele altares em honra de todos os ídolos das suas mulheres estrangeiras. Este monte, que recorda a apos-
tasia do mais sábio dos homens, surge defronte do Templo de Jerusalém; e Salomão escolheu este monte
precisamente em frente do Templo quase para comparar a adoração dos ídolos à que prestava ao Deus vene-
rado no Templo.
103
A pouca distância, num pequeno campo, encontra-se o lugar da figueira que J. C. amaldiçoou, porque não
tinha frutos mas só folhas. Nestas paragens, como em Belém, não há senão figos, que têm metade do tama-
nho dos nossos. Mas há feno em Betânia. Da casa de Marta, de Maria Madalena e de Simão, o Leproso, não
existem nem sequer as ruínas; apenas o que resta de um magnífico mosteiro de beneditinas, que aqui viveram
muito tempo, em honra de St.a Maria Madalena.
104
O sepulcro de Lázaro ressuscitado consiste numa profunda cavidade, à qual se desce através de vinte e oi-
to degraus. Está dividida em dois pequenos aposentos, no primeiro dos quais se deteve Jesus quando disse:
«Lazare, veni foras»; o outro é o sepulcro propriamente dito. Nós entrámos todos à luz da vela; lemos o
Evangelho de S. João que fala da ressurreição de Lázaro e encontrámos as coisas tão idênticas que, mesmo
que não tivéssemos a garantia da tradição de tantos séculos, dos autores e da Igreja, que concede indulgência
plenária a quem o visitar, teríamos entendido a veracidade do facto por termos visto o lugar. Deste sepulcro
recebereis uma pequena pedra, como também uma outra do lugar situado a uns duzentos passos do sepulcro
de Lázaro, onde J. Cristo, quando ia ressuscitar Lázaro, se deteve, antes de entrar em Betânia e onde foram
chamá-Lo Marta e St.a Maria Madalena. Actualmente, Betânia não tem mais que 200 habitantes.
105
Descemos de Betânia para ver o Jordão e o mar Morto; a este último porém, não pudemos chegar, porque
está cheio de árabes beduínos, que roubam e matam quase sempre; entre outras coisas, assaltaram há pouco
uma caravana de franceses e ingleses e mataram, entre outros, dois missionários franceses; e tendo um inglês
sido roubado por um beduíno, este apercebeu-se depois de que ele tinha dentes postiços de ouro; atirou-o
então ao chão, abriu-lhe a boca, arrancou-lhos, estragando-lhe o resto da dentadura para ver se encontrava
mais. Em Jerusalém falei com o chefe dos beduínos e, à razão de 100 piastras (30 esvâncicas) por cabeça, ele
ofereceu-se para nos conduzir sem perigo ao mar Morto; mas tinha um par de olhos que me agradavam pou-
co e, por isso, respondemos-lhe que voltasse quinze dias depois, que talvez combinássemos algo. Ao cabo
desses quinze dias, porém, eu estarei no Cairo.
106
Fiz outra excursão, na qual empreguei dois dias. Saindo de Jerusalém pela porta de Belém, chegámos ao
vale do Abismo, famoso porque aí o Anjo matou 185 000 soldados de Senaquerib. Em cima, antes de descer
a este vale, está o monte do Mau Conselho, assim chamado porque nele se reuniram os príncipes dos sacer-
dotes com os anciãos do povo e decretaram a morte de Jesus. No sopé deste pequeno monte, começa uma
vasta planície chamada nas sagradas páginas vale de Rafaim ou dos Gigantes. Foi neste vale onde acampa-
ram duas vezes os filisteus, travando batalha com David, o qual, após consultar o Senhor, os derrotou. A uma
milha de distância há uma árvore de terebinto que marca o lugar onde descansou a Sagrada Família quando
ia para Jerusalém; mas aí não se ganha indulgência.
107
Depois de outros cem passos, encontra-se a cisterna dos três Magos, denominada assim em memória da-
queles três reis que foram os primeiros entre os gentios que acorreram a adorar o Menino Jesus. Os quais,
chegados a este lugar, viram aparecer sobre eles a brilhante estrela que lhes havia servido de guia na sua
viagem até Jerusalém e que tinha desaparecido. Nesta cisterna, como em todos os lugares de que vos falarei,
há indulgência quase sempre plenária. Quatro milhas mais à frente, encontra-se o mosteiro dedicado ao pro-
feta St.o Elias; está nas mãos dos gregos.
108
Cerca de meia milha à direita deste, encontram-se as ruínas de uma antiga igreja, que foi construída no sí-
tio onde se encontrava o profeta Abacuc, quando um anjo o agarrou pelo cabelo e o transportou a Babilónia
sobre o covil dos leões, na qual estava encerrado Daniel; em seguida trouxe-o de volta a este mesmo lugar.
Caminhando cerca de meia hora, aparecem os restos de uma antiga torre, chamada Torre de Jacob, onde se
deteve este patriarca quando do seu regresso da Mesopotâmia.
109
Ali também estiveram Abraão e Isaac. Já me esquecia de vos dizer que no Moria é mostrado o lugar onde
Abraão recebeu ordem de Deus para sacrificar seu filho Isaac. Uma hora antes de chegar a Belém, vi o se-
pulcro de Raquel, no qual os lavradores guardam agora os seus bois. Já perto de Belém, visitei a cisterna de
David, de cujas águas teve sede esse rei, quando, encerrado na espelunca de Odolan, desejava um copo de
água da cisterna que estava junto das portas de Belém e, depois de a receber, vendo sedentos os seus solda-
dos, quis lançá-la fora para partilhar das suas necessidades. Aqui observei também os alicerces da casa de
Jessé, pai de David, e os lugares onde David passou a sua juventude dedicado à pastorícia.
110
Antes de entrar em Belém, fomos também à cidade de Betgialla para visitar o patriarca de Jerusalém, que
aqui se encontra, no seu seminário, a passar um pouco o Outono. Recebeu-nos amavelmente e queria reter-
nos com ele alguns dias; porém, como éramos oito, declinámos o convite. Entre outras coisas, disse-me que
conhecia bem o bispo de Bréscia, com o qual fora sagrado bispo em Roma em 1850.
111
Finalmente, à tardinha chegámos a Belém. Meu Deus! Mas onde quis nascer J. C.? Contudo eu quis nessa
mesma tarde descer à afortunada gruta que viu nascer o Criador do mundo. Entrei, e embora o nascimento
seja mais alegre que a morte, fiquei mais comovido que no Calvário ao pensar na complacência de um Deus
que se humilhou até ao ponto de nascer num estábulo. A gruta de Belém onde nasceu J. C. mede de compri-
mento uns dez passos e cerca de metade dela é tão larga como o vosso corredor, a outra metade como a vossa
cozinha. Há três altares: um, onde a Virgem Maria deu à luz o divino Menino e que está ao cuidado dos ar-
ménios e dos gregos ortodoxos; outro, dois passos mais abaixo, que é o lugar da santa Manjedoura, onde a
Virgem Maria reclinou o Menino e cujo governo cabe aos católicos; o outro, a um passo de distância, que é o
sítio onde se ajoelharam em adoração os três Reis Magos e que está nas mãos dos frades.
112
Eu celebrei lá missa na noite seguinte e foi-me muito grato ficar até de manhã nessa bendita gruta que é a
delícia do Céu. Como me deliciei nessa gruta, no meio do silêncio da noite, repetindo muitas vezes a oração
que compôs S. Jerónimo e que rezava amiúde: «Oh, alma minha, nesta pequena abertura da Terra nasceu
aquele que criou o Céu; aqui foi envolto em pobres paninhos; aqui foi colocado sobre um pouco de palha
numa manjedoura de animais; aqui chorou a Criancinha no rigor da estação invernal; aqui foi aquecido pela
vaca e pelo burro; aqui o encontraram os vigilantes pastores; aqui foi assinalado por uma estrela; aqui foi
adorado pelos Magos; aqui cantaram pela primeira vez os Anjos: Gloria in excelsis Deo et in Terra pax ho-
minibus bonae voluntatis.
113
Mil vezes ditoso tu, que, embora miserável pecador, te tornaste digno de ver o que desejaram ardentemen-
te e não viram os Patriarcas e os Profetas e contemplas com teus olhos este inefável lugar cuja visão não é
concedida a tantas almas justas que se encontram agora no mundo», etc. Assim falava S. Jerónimo. Entre o
sítio dos Magos e o da manjedoura (que se encontra em Roma) está o lugar onde se sentou a Virgem Maria
depois de recostar o Menino na manjedoura. Eu também me sentei e depois beijei mil vezes aquele lugar.
Beijei quase toda a gruta e não conseguia sair dela, pois, na verdade, fazia-me reviver aquele feliz momento
em que tiveram lugar nesta gruta os mistérios da Natividade de N. S. J. C.
114
Através de uma pequena abertura, a gruta de Belém continua noutro subterrâneo muito comprido, que
termina na gruta de S. Jerónimo, conhecida como Oratório de S. Jerónimo e que é onde ele explicava a Escri-
tura e fazia penitência batendo no peito com uma pedra. Nela celebrei e rezei o ofício nocturno. Entre a gru-
ta de S. Jerónimo e a de J. C., ao longo de uma espécie de corredor, encontram-se o altar de S. José, onde
aquele santo estava enquanto a Virgem Maria dava à luz J. Cristo, o sepulcro dos Inocentes, onde se encon-
tram os ossos das crianças a quem, por ordem de Herodes, mataram em Belém, o sepulcro de St.o Eusébio,
os de St.a Paula e St.o Eustóquio e o de S. Jerónimo.
115
Perto da gruta há outras duas igrejas muito grandes, mas estão nas mãos dos ortodoxos. A vinte compri-
dos passos da gruta, fica a escola de S. Jerónimo, na qual estão cavalos turcos. A cidade de Belém não tem
mais de quatro mil habitantes, dos quais dois mil são católicos: formam a comunidade cristã mais numerosa
da Palestina. Em Jerusalém, com cerca de cinquenta mil almas, há apenas uns mil católicos. Belém está sem-
pre cheia de beduínos, que, com ameaças de morte, tentam obter os mantimentos que exigem: há sempre
assassínios. Respeitam apenas os seus, um dos quais é seu juiz; e cuidado a falar-lhes em obediência ao sul-
tão ou ao paxá; preferem morrer a mostrar respeito ao porteiro. Na noite em que nós chegámos a Belém, um
beduíno matou um grego.
116
No dia seguinte, visitámos os lugares notáveis fora dos muros, a saber: 1.o a gruta do Leite, convertida
em igreja, na qual a Virgem Maria amamentou o Menino ao fugir para o Egipto (aqui dizem também que,
enquanto a Virgem Maria dava o peito ao Menino Jesus nesta gruta, uma gota de leite caiu por terra e a gente
destes lugares utiliza essa terra para fazer com que as mulheres que o não têm o venham a ter; 2.o a casa de
S. José, da qual não se vêem mais que os alicerces; 3.o a povoação dos pastores que adoraram o Redentor
recém-nascido, que fica a meia hora de caminho; 4.o o vasto campo de Boaz, onde a moabita Rute andava às
espigas atrás dos ceifeiros daquele rico proprietário; neste campo estava antigamente a Torre do Rebanho,
onde Jacob, filho de Isaac, atraído pela abundância das pastagens, levantou os seus acampamentos, depois da
morte da bela Raquel.
117
No meio deste campo fica a gruta onde os vigilantes pastores estavam durante a noite a cuidar dos reba-
nhos, quando lhes apareceu o Anjo do Senhor e, ofuscando-os com o celestial esplendor, lhes anunciou a
alegre notícia de que tinha nascido o Messias desejado. Eu beijei o sítio onde apareceu o Anjo e aquele em
que estavam os pastores, no qual se ganha indulgência plenária. Nestes lugares há dois altares que, como a
chave da gruta, estão em poder dos gregos ortodoxos. Um pouco abaixo da gruta dos Pastores, fica a caverna
de Engadi, que recorda o facto ali acontecido entre David e Saul.
118
À direita e à distância de uma hora a cavalo, encontra-se o monte dos Francos, sobre o qual se elevava o
castelo Herodion, construído por Herodes, «o Grande», a quem serviu de lugar de enterro. No ano de 1200
havia ali quatrocentos cruzados que mantiveram o lugar inexpugnável durante quarenta anos, apesar de todos
os esforços dos sarracenos para os expulsar.
119
Durante a noite voltámos cansados a Belém, onde planeámos a viagem do dia seguinte. Depois de voltar a
beijar e venerar a santa gruta, saímos ao amanhecer do dia dez em direcção a Ain el-Qarem, que é S. João da
Montanha, para visitar os santuários do Precursor, viagem em que, com o regresso a Jerusalém, empregámos
dois dias.
120
O primeiro lugar de destaque que encontrámos e percorremos foi o Horto Cerrado de que se fala no Cân-
tico dos Cânticos e onde se criavam pequenas árvores para serem transplantadas para outros lugares: horto
verdadeiramente cerrado pela Natureza entre dois montes, e, segundo a Igreja, símbolo e figura da Grande
Virgem Mãe. A sua vegetação é uma maravilha e tem duas milhas de comprimento; comprou-o um protes-
tante. Vêm depois os famosos Tanques de Salomão, que se encontram no começo do Horto Cerrado e têm
570 passos de comprimento e uma enorme profundidade. Mais acima está a Fonte Selada, a Fons Signatus
do Cântico dos Cânticos, símbolo e figura da Virgem, como quer a Igreja, a qual lança as suas águas nos
mencionados tanques construídos por Salomão; estas águas seguem para um aqueduto, que antigamente as
conduzia até ao Templo de Salomão, em Jerusalém, quer dizer, a uma distância de cinquenta milhas; chama-
se Fonte Selada porque era selada com o selo do rei.
121
Pouco depois de passar três montanhas, às duas da tarde, chegámos à Fonte de S. Filipe, onde o diácono
S. Filipe baptizou o eunuco da rainha Candace. Parámos para retemperar as forças com pão, fruta e água.
Sentados nesta famosa fonte evangélica, pusemo-nos a falar de Deus e de J. C. a uma multidão de muçulma-
nos que nos rodeavam. Escutavam curiosos; porém, ao oferecermos a um deles um pouco de vinho que tí-
nhamos numa garrafa, ele respondeu que não queria bebê-lo porque Maomé o proibia; os outros, ao invés,
teriam bebido um barril, por mais que a sua religião o proibisse.
122
À tarde, chegámos à terra de S. João Baptista, chamada pelos turcos Ain-Qarem. Na manhã seguinte cele-
brei missa na habitação subterrânea onde nasceu, a qual é uma maravilha, devido aos tesouros que contém,
oferecidos ao longo dos séculos pelos monarcas e pessoas ricas que visitaram a Palestina. A uma distância de
dez minutos do lugar do nascimento está a casa de Isabel e Zacarias, pais do Precursor, onde receberam a
virgem Maria, quando foi visitá-los e esteve com eles três meses. Foi precisamente aqui onde o Magnificat e
o Benedictus foram compostos. E aqui, no mesmo lugar onde foram compostos, os rezámos.
123
Depois da missa, fomos ao deserto de S. João; dista da cidade três horas a cavalo. Ao cabo de uma hora
de marcha, encontra-se uma fraga junto do caminho, à qual J. Baptista subia a pregar o reino dos Céus e o
baptismo de penitência às multidões que se aglomeravam à sua volta. Beijei essa rocha que ninguém jamais
foi capaz de partir. Tendo um turco conseguido, por desprezo, desprender um pedaço, lançou-o num forno
para o calcinar; porém, permaneceu sempre intacto e conserva-se junto do templo do nascimento; também o
beijei.
124
Descendo pelos montes, chegámos ao fundo de um vale semeado de plantas aromáticas e mato. No fundo
desse deserto, tudo respira silêncio, recolhimento, penitência. Um habitáculo irregularmente escavado numa
duríssima rocha, à qual se tem acesso por uma pequena escadaria aberta no mesmo penhasco, e uma límpida
nascente, que brota das fendas de um rochedo e corre para uma pequena represa feita de terra aos pés desse
lugar solitário e recôndito, anunciavam-nos que tínhamos alcançado o umbral do que foi a morada do Precur-
sor de Cristo. Entrámos trepando; que encontrámos?
125
Um despido banco de pedra que servia de cama ao penitente morador dos desertos e uma pequena abertu-
ra de onde se avista o subjacente vale de Terebinto: isto é tudo o que encontramos naquela gruta. Porém,
aqueles espinhos, aquelas águas, aqueles penhascos, aquele horror... Oh, quantas ideias sublimes me acudiam
à mente! Parecia-me até ver S. João Baptista vestido de pele de camelo com uma correia de couro à cintura,
alimentando-se de mel e gafanhotos. Eu imaginava ouvir a sua voz, ao pregar no deserto: “Preparai o cami-
nho do Senhor, endireitai as suas veredas”. Mais acima vi os sepulcros de St. a Isabel e S. Zacarias; igual-
mente vi os restos do castelo de Modin, que foi a terra dos intrépidos Macabeus.
Regressámos em seguida pelo vale de Terebinto, famoso porque nele o pastor David matou o arrogante
gigante Golias. Vi os lugares onde acamparam Saul e os Filisteus, o vale onde David apanhou as sete pedras;
e imaginámos o sítio onde mais ou menos caiu Golias.
126
À tarde voltámos a Jerusalém por Santa Cruz, que é uma igreja construída no lugar onde foi cortada a ár-
vore da Cruz para fazer morrer nela Jesus Cristo. Há aí um magnífico mosteiro e noviciado dos gregos orto-
doxos, que visitámos inteiramente: é como três vezes o palácio Bettoni e tem todas as comodidades possíveis
para facilitar o caminho para a casa do diabo a esses malditos ímpios. E é pela última vez que vamos ficar
em Jerusalém. Daqui, resolvidos todos os nossos assuntos e, após nos despedirmos dos Lugares Santos, dos
amigos, dos superiores e de todos os que, de algum modo, nos tinham ajudado, partimos às 13 horas sob os
escaldantes raios do sol; assim à meia-noite pudemos chegar a Rama mais mortos que vivos. De manhã cedo,
depois de celebrar missa na Capela de S. Nicodemos, iniciámos a viagem pela planície de Saron e alcançá-
mos Jaffa antes do meio-dia. Nesta viagem treinei-me bastante a andar a cavalo: tendo-me casualmente cabi-
do em sorte um cavalo maníaco, aprendi a montá-lo bem à minha custa, de modo que, juntamente com o Pe.
Dalbosco, um estupendo cavaleiro, cheguei a Jaffa uma hora antes dos outros.
127
Ali, visitada a igreja onde S. Pedro teve a visão do lençol, subimos para bordo do Marsey, que agora nos
leva a Alexandria, a qual fica já em frente a nós. Tivemos um mar não diria tempestuoso mas agitado, espe-
cialmente em frente da foz do Nilo.
128
Antes porém, de deixar o assunto da minha visita à Palestina, quero dizer-vos que esta era a Terra Prome-
tida e, de facto, antigamente, era a parte mais fértil da Ásia. Agora, com excepção do Horto Cerrado, do vale
de Terebinto e da vasta planície de Saron, a Palestina transformou-se numa terra desolada, coberta de pedras,
cinzas e mato e não digo nenhuma asneira se afirmar que, agora, é a parte mais estéril da Ásia, depois da
Sibéria.
129
Quero dizer-vos também que iniciei uma grande amizade com Monsenhor Ratisbonne. Esta alma, verda-
deiramente angélica, foi convertida do judaísmo à fé católica pelo Santo Padre. E como é um homem com
meios, mais que milionário, acaba de fundar em Jerusalém um instituto de monjas, às quais chamou Irmãs do
Monte de Sião por o instituto se encontrar no monte do mesmo nome.
A sua finalidade é a conversão de judeus, gregos protestantes, arménios ortodoxos e todos os não católi-
cos do Oriente. Ele acolhe as jovens, sustenta-as e instrui-as gratuitamente e desde muito cedo procura incul-
car-lhes os sentimentos religiosos. Presentemente já tem sessenta bem preparadas; e está tão encantado com
a nossa missão da África Central, que quer estabelecer connosco uma perpétua relação de reciprocidade. No
momento da nossa partida de Jerusalém, assegurou-nos que, a partir do monte Sião, dos lábios das suas mon-
jas, se elevariam a Deus fervorosas preces por nós e pela nossa missão; vai impor isso como regra às suas
monjas. A três de nós ele deu de lembrança um singular crucifixo, de excelente feitura, o qual, benzido sobre
o Santo Sepulcro, eu adoptei como meu crucifixo de missionário. Rezai pela sua obra que é para grande gló-
ria de Deus. Tem como protectora da sua obra a princesa Dalla Torre, com quem jantámos juntos em Jaffa.
130
Agora já estou no Cairo. Saí ontem pela manhã de Alexandria e ao meio-dia chegámos de comboio, que
corre velocíssimo; cruzámos o Nilo de barco e voltámos a apanhar o comboio, de modo que ontem pela tar-
de, bem derreados, chegámos ao Cairo. Aqui abraçámos felizmente os nossos queridos companheiros P.e
Oliboni e P.e Beltrame, que, para não perder tempo, sacrificaram a viagem a Jerusalém, indo só nós os três,
ou seja, P.e Dalbosco, P.e Ângelo e eu.
131
Entretanto, adeus, queridos pais, isto é mais ou menos o essencial da minha viagem à Terra Santa. Isto
está um pouco confuso e com muito má letra; porém, imaginai a pressa com que escrevi, sempre de noite
quando tinha necessidade de descanso e no mar entre o fragor das ondas. Espero, contudo, que, com os ócu-
los, consigais compreender. É demasiado comprido; mas é precisamente quando se tem pressa que sempre se
acaba por prolongar. Com excepção dos santuários do Santo Sepulcro, do Calvário, de Belém e de S. João
da Montanha, dos quais vos fiz alguma menção, não disse quase nada sobre o resto; pelo que, depois de tudo
o que tendes lido sobre esta viagem, podeis dizer que eu vi dez vezes mais do que aquilo que vos escrevi e
ainda mais.
Aceitai o mais carinhoso beijo do

Vosso af.mo Filho


Daniel sac. Comboni

N. B. Já não tenho tempo para rever e corrigir esta carta: estará cheia de disparates. Desculpai-me, tenho
demasiada pressa.
Daniel

N.o 18 (16) - A SEU PAI


AFC

Cairo, 18 de Outubro de 1857

Queridíssimo pai,

132
Em Alexandria encontrei uma carta tua, acompanhada de uma da mãe, as quais me deram um certo con-
solo. Digo um certo consolo, porque vejo que estais os dois muito pesarosos pela minha separação. Mas não
sabeis que não dou um passo sem vos levar no meu coração? Quer escreva, caminhe, passeie ou coma, pare-
ce-me estar sempre ao vosso lado; e necessito de pensar para crer que estou materialmente separado de vós.
Ânimo, pois! O pior já passou; agora só tendes que dizer ao Senhor: «Fiz o grande sacrifício e Vós deveis
manter-me sempre com os mesmos sentimentos que tinha no momento em que vos entreguei meu filho».
Assim, pois, sede fortes! No Calvário celebrei por vós, como noutros lugares. Lamento a morte de Marietta:
[...].
[Aqui há algumas palavras rasuradas]
133
Depois, no Cairo, encontrei as cartas com datas de 23 de Setembro, as quais me são de maior consolação.
Espero notícias da colheita deste ano.
Depois de amanhã saímos do Cairo rumo a Korosko. Esta viagem levar-nos-á um mês através do Nilo.
Em Korosko começa o grande deserto da Núbia, que atravessaremos em dezasseis dias; depois, em treze dias
chegaremos a Cartum. Nesta viagem aproveitarei todas as oportunidades para vos escrever, porém, sabei que
geralmente é difícil. Assim, não vos preocupeis connosco. Se não receberdes carta durante esse tempo, não
temais, que será por falta de tempo.
134
Nós estamos todos de perfeita saúde; os incómodos sofridos pelo caminho na minha viagem à Terra San-
ta, que não foram poucos, fortaleceram-me sobremaneira. Esperemos sempre no Senhor: se Ele quer que eu
morra, fiat voluntas Dei. Em qualquer caso, digamos sempre: bendito seja o Senhor. Não será assim o mundo
para o homem justo?
135
Em Jerusalém, entreguei a um frade os seguintes objectos para que vo-los mandasse. Não vos chegarão às
mãos antes de um mês depois da Páscoa, porque vão por meio do portador franciscano de Veneza, que leva
todos os anos as esmolas para Jerusalém; este padre entregá-los-á a P.e Mazza, que depois vo-los enviará. Os
objectos são:

1.o Dois terços grandes, enfiados, para vós os dois.


2.o Dois crucifixos de madeira de Getsémani, os quais têm por trás as 14 estações da Via Crucis da mesma
matéria que os lugares das estações; por exemplo: a estação em que J. C. foi ajudado pelo Cireneu está
marcada por um pouco de terra do lugar onde o Cireneu ajudou J. C. a levar a Cruz. Dos outros dois,
um entregá-lo-eis a Mons. Tiboni e o outro ao tio José.
o
3. Dois crucifixos de metal para vós os dois, benzidos in articulo mortis, com os quais podeis fazer a Via
Crucis e ganha-se cada vez indulgência plenária; também há indulgência plenária cada vez que se bei-
jam.
N.B.: Todos os terços que vos mando também para os outros têm anexa indulgência plenária cada vez
que se rezam; igualmente os crucifixos de madrepérola e os de coral têm indulgência plenária: comuni-
cai-o a todos a quem envio algum.
136
À excepção dos vossos terços, os outros estão todos por enfiar e alguns sem medalha. Gostaria que antes
de os entregar os mandásseis enfiar – o que custa muito pouco –, porque assim a lembrança é mais apresen-
tável.
4.o Um terço para o Eugénio; um para o tio José (em cujos embrulhos estão apontados os nomes, como em
muitos outros); oito para cada um dos nossos parentes Comboni; um grande para o sr. reitor; um para o
arcipreste de Tremosine; dois para os srs. Santiago e Teresa Ferrari, nossos antigos patrões; quatro para
Teresa, a ama do senhor Santg. Ferrari, Meneghina, criada dos nossos, em Minico e Maria, em Riva;
dois para os srs. Pedro Ragusini e Bartolo Carboni (recordai que é preciso mandá-los enfiar; e como há
poucos crucifixos, procurai que primeiro sejam colocados nos rosários dos nossos parentes Comboni e,
depois, nos de quem mais convier, como Rag., etc.); três para P.e Giordani, P.e Fogolari e Luís Prati, o
inglês (estes três mando-os ao P.e Giordani); sete para Biset e sua esposa Nina, seu pai e sua mãe, Mar-
tin Fedrici e sua esposa, e Baptista de Odol; um para a Sra. Minica; um para Virgínia, o outro para a sua
irmã Moneghina, a bresciana; um para P.e Rovetta; dois para os tios Luís e Pedro. Há alguns mais que
podeis distribuir como quiserdes, por exemplo aos parentes de Bogliaco e a alguém de quem eu me não
recorde...
137
Junto com os vossos enviei bastantes ao dr. Bento, que os mandará, após havê-los enfiado, aos padres Pa-
tuzzi, ao sr. Luís G. Garettoni, etc. Todos estes rosários têm indulgência plenária cada vez que se rezam:
foram todos benzidos, como os crucifixos, no S. Sepulcro e metidos na cavidade onde foi levantada a cruz
sobre o Calvário, etc., etc. Os rosários que vos mando a vós, o do tio José, os crucifixos e o pano branco que
envolve tudo o que vos envio a vós, o qual vai bem cosido (e isso confirmar-me-eis), tocaram, além do S.
Sepulcro, o Calvário e a cavidade, todos os outros santuários e lugares de veneração que visitei na Terra San-
ta; e o mesmo em relação ao terço do Sr. Reitor e do Eugénio.
138
As velas que vão em três pedaços e que procedem de Belém, obtive-as na procissão que se faz todos os
dias à manjedoura, etc. Tocaram todos os lugares de Belém e foram benzidas no sítio onde J. C. veio ao
mundo. Estas mando-as a nossos primos, para que as acendam quando suas mulheres, minhas primas, derem
à luz. As outras três que, além do S. Sepulcro, tocaram o Calvário, o monte das Oliveiras, Getsémani, etc.,
são uma para ti, outra para a mãe e a outra para o tio José, a fim de que quando estiverdes em agonia no leito
de morte e quando o tio José morrer (o que acontecerá antes de cem anos), as possais acender. Se eu morrer,
então nada, mas se eu voltar à Europa, depois de uns anos, e se Deus vos mantiver aos três com vida, eu
mesmo vos levarei outras de Jerusalém.
139
Vai também um terço grande que dareis a um dos nossos patrões. Se não for do seu agrado... fazei com
ele o que quiserdes, resolvei como vos parecer. Também vão umas pedrinhas do vale de Josafat, do sepulcro
de Lázaro, da gruta dos Apóstolos, etc., etc. Com as medalhas de madrepérola fazei o que quiserdes.
Aqui está uma verdadeira barafunda: escrever-lhe-ei mais, claro já de Cartum, até porque antes que eu
chegue a Cartum não recebereis os terços. Desculpe, mas não tenho tempo.
Escreva-me, mas extensamente, ainda que, penso, não necessite de mais que um volume para expressar os
vossos sentimentos para comigo. Querido pai, eu compreendo-vos; não temais por mim. Amo-vos de uma
forma indizível; fazei o mesmo em relação ao vosso af.mo filho

Daniel

N.o 19 (17) - A EUGÉNIO COMBONI


AFC

Cairo, 22 de Outubro de 1857

Querido Eugénio,
140
Tu estarás agora em Innsbruk e terás começado já o ano escolar. Que importante empresa começaste! A
empresa de te tornares homem. Talvez não compreendas em todo o seu alcance essa grande coisa; porém, a
tua maturidade ter-te-á permitido compreender grande parte. Se te portares bem e corresponderes às esperan-
ças que todos depositam em ti, os resultados serão excelentes; porém, se imitares o comportamento da juven-
tude moderna, que será de ti? A vida de estudante é uma grande aventura para quem sabe aproveitá-la bem;
mas para quem durante ela pensa só no prazer e na diversão, descurando ou atendendo muito pouco aos seus
deveres, os estudos são uma desgraça.
141
Eu penso muitas vezes em ti e alegro-me de ter um primo que promete muito; mas, por outro lado, tenho
medo de te ver quase entregue a ti mesmo, sem a protecção constante de uma vigilância cristã e receio não
que tu mesmo corras ao encontro da libertinagem e corrupção da juventude moderna, mas que esta, pouco a
pouco, consiga apanhar-te, infelizmente, na sua engrenagem.
142
Então, querido Eugénio, que podes fazer para te defenderes e permaneceres livre de tanto mal? Tens que
recordar os conselhos que eu te dei antes de partir de Limone. Deves escolher o professor S. Pider como
director espiritual, que, estou certo, será para ti um pai, um conselheiro, tudo: basta que desconfies de ti e
não te permitas fazer nada sem o seu conselho ou a sua aprovação. Saúda-o da minha parte e diz-lhe que
também eu te recomendo; eu não o conheço, mas basta ser amigo do venerável Mitterrutzner para ter dele
absoluta estima. Lembra-te de frequentar os sacramentos, que são o melhor meio para te preservares da cor-
rupção moderna; foge das más companhias, que são a peste dos bons; e lembra-te de rezar por mim alguma
ave-maria, que eu fiz outro tanto por ti, especialmente na minha viagem à Palestina, a Jerusalém, etc.
Reiterando-te as minhas recomendações, me declaro

Teu af.mo primo


Daniel Comboni
Missionário apostólico da África Central

N.o 20 (18) - A SEUS PAIS


AFC

Siut, 30 de Outubro de 1857

Queridíssimos pais,

143
Como já vos escrevi, saímos do Cairo na tarde do dia 22; e depois de uma muito agradável viagem, che-
gámos esta noite à capital do Alto Egipto, onde pensamos deter-nos meio dia para logo partirmos de novo
rumo a Assuão. Porém, antes de deixarmos esta agradável cidade, quero contar-vos uma cena que aconteceu
na gigantesca capital de todo o Egipto, o Cairo.
144
Todos os anos, os grandes ministros da religião muçulmana, em nome do Governo do Egipto, costumam
enviar a Meca um grande véu do mais fino damasco, bordado a ouro e pedras preciosas, para que toque no
sagrado túmulo de Maomé. Esse véu permanece um ano em Meca, até que no ano seguinte mandam do Cai-
ro outro véu para retirar o tocado pelo sagrado túmulo, o qual, como sabeis, dizem os muçulmanos que está
suspenso no ar no grande templo de Meca, onde há pena de morte para quem entrar sem ser muçulmano.
Geralmente, quem coloca o véu sacralizado é uma distinta personagem. Este ano coube à irmã do rei do
Egipto, a qual regressava com grande aparato precisamente no dia seguinte ao da minha chegada ao Cairo.
Pois bem, agora vereis o que aconteceu nos três dias posteriores à minha chegada e do que fui testemunha.
145
Este véu é trazido por um camelo, que por esse facto se torna sagrado, de tal modo que a sua sacralidade
contagia todos os que o tocam. No primeiro dia da sua chegada, o véu é exposto no templo, o maior e mais
reputado do Cairo. Entrei nele com P.e Ângelo e P.e Alexandre, mas só depois de nos fazerem calçar umas
sandálias de pano alvíssimo, após uma generosa bachsis ao vigilante da entrada. Esse véu é beijado e tocado
primeiro pelos grandes e depois pelo povo. Ao terceiro dia, o camelo, sacralizado por ter trazido o véu de
Meca, é conduzido com adornos de ouro à grande praça do Cairo, chamada Esbichieh, e os que querem tor-
nar-se santos, sabeis o que fazem? Estendem-se nus de bruços ou de costas no chão, no meio da praça, e o
camelo passeia-se durante três horas seguidas por cima desses corpos nus; a um parte-lhe um braço, a outro
estropia-lhe um olho, a outro esmaga-o, a outro parte-lhe uma perna, etc. E é uma maravilha ver as pauladas
e bofetadas que dão uns nos outros, as rixas que acontecem, porque todos queriam para si a grande honra de
receber as pisadelas do camelo sacralizado.
146
Depois desta cena de três horas, os pobres feridos, que se tornam santificados, são levados em procissão à
Qalaa, que é a mesquita do rei e são como oráculos para o povo... (até que ponto chega o fanatismo!!).
O camelo é em seguida alimentado, cuidando-se dele com toda a solicitude; há pena de morte para quem
o utilize para qualquer uso, por mais nobre que seja. A festa do regresso de Meca da irmã do grande paxá
durou sete dias. Só em pólvora e trabalhos, fogo-de-artifício, etc. calcula-se que gastaram um milhão de
francos, sem contar o esplendor dos convites, que implicam gastos consideráveis, porque nisto os orientais
não conhecem limites. Nos cinco dias que estive no Cairo, visitei o palácio do grande paxá e o templo de
Qalaa, construído por Mehmet Ali, cuja riqueza e magnificência não posso descrever: é todo de alabastro; as
pérolas são inumeráveis como também o ouro e as pedras preciosas. É uma maravilha de mesquita, grande
como duas vezes a catedral de Bréscia; porém, a sua preciosidade e a sua forma, que é uma só cúpula e cons-
trução arredondada, impressionaram-me mais que os templos de Florença, Veneza e Jerusalém.
147
O Cairo, segundo o recenseamento do ano passado, tem um milhão e meio de habitantes. Possui quatro-
centas e cinquenta soberbas mesquitas (templos maometanos), com outros tantos elegantíssimos minaretes
(espécie de torres), muitos dos quais superam em altura a torre de Verona, e junto a elas há apenas (dói-me
dizê-lo) uns quatro mil católicos e três igrejas cristãs, nas quais oficiam os maronitas, os coptas, os gregos, os
arménios de sorte que, especialmente em duas destas, se gera uma autêntica Babel.
148
Visitámos várias vezes o bispo do Cairo, que vive no convento dos franciscanos, e teve a gentileza de nos
oferecer um estupendo rapaz nascido de uma concubina moura e de um adúltero branco toscano. Este jovem
levamo-lo connosco para regiões desconhecidas e parece prometer muito, apesar do mau ambiente em que
nasceu e foi educado. Não vos falo dos escândalos que ocorrem nas praças, nas ruas, nos próprios bazares
(mercados), porque não quero manchar a pena descrevendo tantas ofensas públicas a Deus. Porém, quero
deixar esta desgraçada cidade, que segundo um autor é a verdadeira Babilónia moderna: tem vinte e sete
milhas de circunferência. E eis-me aqui nas nossas dahhabias (pequenos barcos do Nilo).
149
Os cinco operários vão no primeiro, que é o maior e aquele em que os piolhos mais abundam; nós cinco
missionários, o rapaz e o nosso servente nubiano vamos no mais pequeno, que é mais elegante que o anterior
e tem menos piolhos, mas está cheio de ratos, percevejos e moscas que picam como demónios e que todos
nos fazem companhia, ora alegre ora triste. A nossa viagem pelo Nilo é deliciosa; nas suas margens crescem
em grande número as palmeiras doces, as tamareiras, as bananeiras, etc.; nos campos vizinhos são abundan-
tes a durah e os cereais. Aqui e além vêem-se povos e aldeias, todos eles com casas cuja altura não chega à
de um homem, feitas de barro, que com um murro se derrubam. Os meninos, os jovens e a maior parte dos
homens andam nus e trabalham nus ao sol. Todos os dias descemos a terra durante mais ou menos um quarto
para nos abastecermos de caça: rolas, pombos, perus, que ali andam aos milhares.
150
Já conheceis os meus dotes de caçador; pois eu mesmo me sinto frustrado quando só consigo matar um
pombinho ou uma rola com um tiraço. Quantas vezes, a partir do barco, abatemos perus e patos que pesam
de 16 até 20 libras cada peça, os quais são tão deliciosos como os da Europa. Caçam-se às dezenas, às cente-
nas, na areia nua de algumas pequenas ilhas; ao ruído de um disparo, muitos dos que não caem ficam ali
quietos, de modo que dá tempo para carregar de novo a espingarda e matar outros. Vem-me à memória
quando em Dalco eu ia com Eustáquio e ficávamos tão contentes quando podíamos comer quatro ou cinco
tordos caçados com a espingarda (por ele, não por mim!).
151
Mas basta. Qual é a vida que levamos no barco? Antes de mais, deveis saber que agora navegamos Nilo
acima; o Nilo vem do centro da África e desagua no Mediterrâneo perto de Alexandria. Contudo, vamos com
as velas enfunadas, à velocidade com que deslizam os nossos barcos sobre o Garda, quando vão com a vela
de tal maneira que a custo se mantém inteira. O Nilo tem duas vezes a largura do Pó e às vezes é como de
Reamolo a Navene; é profundíssimo em certos lugares e noutros é bastante baixo, correndo o risco de enca-
lhar. E de facto encalhámos por três vezes, uma ontem à tarde, em que conseguimos com dificuldade libertar
a embarcação.
[Há algumas palavras rasuradas]
152
[...] pois esta é a nossa vida: de manhã erguemo-nos ao alvorecer, não da cama, porque para nós deitar-
se consiste em pôr debaixo da cabeça um embrulho de roupa para lavar ou outra peça de roupa e estender-se
sobre as tábuas do barco. Quantas vezes me vem à mente a preocupação da mãe para me fazer uma cama
fofa! Eu consentia para não ser desagradável e por apreciar o seu desvelo, mas desejava-a dura para me habi-
tuar. Agora estou habituado, mas, como todas as manhãs nos levantamos com as costas como se tivéssemos
levado uma sova, o P.e João pensou em arranjar uma almofada para deitar a cabeça, a fim de pormos debaixo
do corpo o que antes púnhamos debaixo da cabeça; e, de facto, chegados no dia 28 à cidade comercial de
Minieh, comprámos pano; já no barco, cada um cortou a sua parte de pano e fizemos para cada um uma al-
mofada. Eu gastei meio dia a coser e quanto nos rimos! Dizíamos ao P.e Checco que era professor do Liceu
de Verona: “Se os seus alunos o vissem a trabalhar de alfaiate!...”
153
A mim vinha-me à mente a minha boa mãe, que calmamente teria feito numa hora aquilo que eu fiz com
dificuldade em meia jornada. Em relação ao resto do dia, depois de cumpridos os nossos deveres religiosos
em comum, isto é, a meditação, o ofício, a oração oral, a lição espiritual, o exame de consciência, o terço,
conversamos sobre as coisas da Europa e fazemos registo de ocorrências no próprio diário, ao observar a
sempre crescente beleza das margens do Nilo, a disparar sobre os pombos, etc. Sucede-nos, por vezes, que,
nadando, nos aparecem a bordo homens nus, de cabeça rapada, à excepção de um rabicho no meio, os quais
com uma lamúria que gera compaixão e repulsa nos pedem pão, dinheiro, que depois metem na boca; e insis-
tem tanto, mesmo depois de receberem a esmola que temos por vezes de os afastar com o bastão. Sabeis
quem são? São monges e sacerdotes copta-cristãos cismáticos que vivem nas montanhas próximas e vivem
de esmolas. E quando passamos perto de alguma gruta, eles atiram-se do alto dela, às vezes de tão alta como
a igreja de Limone e mais ainda, e saltam para a barca completamente nus; e depois atiram-se ao rio, nadan-
do.
154
A noite, mais ou menos até às 11, passamo-la a cantar, a conversar especialmente sobre a nossa missão e
sobre o modo de nos introduzirmos pela primeira vez nas regiões incógnitas da África Central. Para vos falar
verdade, sofre-se, mas também se goza, pensando que vamos propagar o reino de Xto. Eu estou mais saudá-
vel e robusto que quando me encontrava na Europa. Estamos alegres e tranquilos e às vezes rimo-nos, recor-
dando situações engraçadas que me aconteceram convosco. Coragem, pois, meus queridos; oração e resigna-
ção à vontade de Deus.
155
Desculpai-me se não posso contar-vos tudo o que passo, que vejo, etc. É o cabo dos trabalhos escrever
sobre a barca a baloiçar; e se achardes a letra má, lembrai-vos que não temos as carteiras de S. Carlos ou de
Limone; escreve-se em cima da mala, sobre os joelhos ou estendidos por terra, além de que, para escrever
tudo, seria preciso um livro de cada vez. Agora, que estamos prestes a entrar no porto de Siut, as ondas são
fortíssimas.
O Nilo aqui está mais cheio de barcos que o mar; todos os dias se encontram mais de 120 embarcações
sem vela e muitas vezes as que vão rio acima, como a nossa, colidem e rasga-se a vela, como aconteceu há
poucos dias com a nossa maior, ficando meio dia parada para concertar a vela menor.
156
Adeus, meus queridos pais; agradeço-vos sentidamente por me haverdes dado o generoso consentimento
de eu percorrer o caminho da missão; comprazei-vos e estai tranquilos, que os trabalhos da vida são sempre
pequenos e breves, quando se trata de evitar as penas do inferno e ganhar o Paraíso.
157
Adeus querido pai, adeus querida mãe; vós estais e viveis sempre no meu coração. Eu amo-vos e estimo-
vos muito, pois soubestes realizar uma obra heróica que os grandes e os heróis do mundo não sabem cum-
prir. Que o mundo fale quanto quiser, que faça troça de vós, que diga que sois uns estúpidos; vós obtivestes
uma vitória que vos assegurou a vida eterna.
158
Depois da chuva que apanhei convosco em Verona, não vi cair nem sequer uma gota de água. O céu do
Egipto está sempre brilhante. Dai saudações minhas aos parentes de Limone e de Riva; sinto muito por Ma-
rietta; apresentai os meus cumprimentos ao senhor patrão e à senhora patroa, ao Sr. Tiago e Teresa Ferrari,
ao sr. reitor, aos párocos de Tremosine, aos jardineiros de Supino e Tesolo, ao sr. José e Júlia Carettoni, ao
sr. Luís Prudenza, ao P.e Ben, a Ragusini, a Vicente Carettoni, a Minica, a Virgínia, etc., etc., ao cabo, a
Rambottini, etc., enquanto me declaro de coração
Vosso af.mo filho
e
P. Daniel Comboni
Missionário apostólico

159
N.B. Esquecia-me da ocorrência mais crítica da nossa viagem. O Nilo, no monte Abu-Feda, é ladeado por
duas altas montanhas que ao longo de três milhas não lhe permitem nenhuma saída. Essa passagem é perigo-
síssima e frequentemente sucedem naufrágios, devido à força e irregularidade dos ventos. Logo que entrá-
mos com os nossos dois barcos nesse labirinto, um vento fortíssimo rasgou a vela maior, partiu em muitos
pedaços o costado do barco e os seis marinheiros do nosso pequeno barco não sabiam mais que fazer, porque
a um caiu sobre a cabeça uma trave, enquanto os dois barcos chocavam. Nesses apertos, P. e João e eu tirá-
mos os sapatos e a roupa, à excepção da camisa e das calças, prontos a atirar-nos ao rio, cheio de remoinhos
nesse sítio. O P.e Francisco agarrou-se a uma trave, o P.e Alexandre a uma tábua e o P.e Ângelo, sem fazer
mais nada, abraçou o crucifixo. Enquanto rezávamos a ave-maria e nos preparávamos para nos darmos reci-
procamente a absolvição, o vento atirou-nos para um banco de areia e assim ficámos a salvo. Descemos a
terra e cantámos duas alegres canções sagradas; agora encontramo-nos alegres em Siut, onde amanhã espe-
ramos celebrar missa. Bendito o Senhor e bendita Maria, que estão sempre connosco; por esse lugar passa-
ram outros, nós também!

N.o 21 (19) - A SEU PAI


AFC

Korosko, Núbia, 27 de Novembro de 1857

Querido pai,

160
Eis-me desde há bem doze dias no vasto reino da Núbia, onde sinto um pouco que estou longe de vós.
Mas percebei bem o que é que eu entendo pela palavra longe. Se penso na distância material, nos reinos, nos
países que percorri depois do último adeus a Itália, sinto que estou longe de vós, embora esteja só a meio do
trajecto até ao lugar de destino. Se porém, reflicto na continua e imediata relação que tenho convosco, ao
afecto que vos tenho, ao meu pensamento que se ocupa sempre de vós, oh!, então eu estou sempre ao vosso
lado, falo sempre convosco, comunicamo-nos os nossos recíprocos sentimentos de afecto, estou sempre uni-
do a vós, porque o amor não conhece distâncias nem limitações de tempo.
161
Sim, meu querido pai, minha querida mãe, por mais variados e diferentes que sejam os objectos que me
circundam, em vez de me suscitarem ideias relacionadas com a sua natureza, despertam-me, pelo contrário, a
vossa querida recordação; sim, porque eu vos vejo sobre as margens encantadoras do Nilo e entre as cálidas
areias do deserto e na tenda e em todo o lugar em que me encontre. Por isso, tirai da vossa mente aquele fal-
so provérbio, que talvez tenhais aprendido com a vossa avó enquanto fiava, isto é, «longe dos olhos, longe
do coração»; porque quando o amor é verdadeiro, cristão, filial, não há distância que o possa diminuir; eu
sinto-o de facto assim.
162
Quando estava no colégio, passava um dia ou outro sem pensar em vós, no muito que de vós recebi e no
que vos devo; agora não há hora ou momento em que não pense em vós, no que fizestes por mim, naquilo
que o vosso amor paternal estaria disposto a fazer e sobretudo no heróico consentimento que me destes, o
qual não pode partir senão duma alma que teme a Deus, que desprezando todo o prazer terreno, se volta ape-
nas para a herança dos santos. Nós falamos quase todas as noites de vós e sempre é para nós objecto de ad-
miração o vosso grande ânimo, que é superior sem comparação à nossa não pequena resolução de nos arris-
carmos à nossa grande missão. Nós por isso encontramo-nos muito contentes com a nossa condição; agrade-
cemos sempre a Deus que, apesar dos nossos defeitos, nos chamou a servi-Lo tão de perto; e eu, em particu-
lar, vos agradeço e sempre vos agradecerei, amantíssimos pais, por me terdes concedido que eu seguisse a
minha vocação.
163
Quanto à nossa saúde, eu não sei como é: desde o dia da nossa partida do Cairo, dormimos sempre ou so-
bre um pedaço de tábua no barco ou numa pequena tenda sobre uma frágil esteira, sempre expostos ao sabor
dos ventos, do pó, das moscas que são inumeráveis e de tal maneira maçadoras, que parecem as bisnetas das
que no tempo do faraó foram uma praga do Egipto, comemos sempre pão fresco comprado no Cairo, o qual
nos durará ainda mais meses e suportamos outros incómodos próprios das longas e difíceis viagens. Contudo,
devemos confessar que, pela graça de Deus, nos encontramos todos em melhor estado de saúde que quando
estávamos na Europa. Eu, de manhã, não tenho o mau sabor de boca que tinha em Verona; P.e Ângelo raras
vezes agora sofre da sua inseparável dor de cabeça; P.e Alexandre quase deixou de ter ardor intestinal. Até
agora não podemos lamentar-nos do calor, pois debaixo da tenda não ultrapassa os 32 graus, agora que é
Inverno; e no próximo deserto, que estamos para atravessar, não ultrapassa agora os 43. o; mas devíamos
ressentir-nos com os outros incómodos ligados à nossa actual situação. Portanto, devemos agradecer a Deus
que nos presta uma assistência especial.
164
Mas vós desejareis saber algo da nossa viagem: eis-me a satisfazer a vossa legítima curiosidade. Ultrapas-
sadas as imponentes cataratas de Assuão a 15 do corrente, entrámos contentes na Núbia, que oferece um
aspecto muito diferente do do Egipto. As margens do Nilo são quase sempre ladeadas de imensas montanhas
de granito, raramente de bosques de tamareiras e palmeiras; o céu é lindíssimo; os habitantes têm uma cor
como a das negras de pele mais clara do nosso Instituto, um ânimo mais cavalheiresco que o egípcio e um
pouco menos submisso ao Governo tirânico do grande paxá, que administra a Núbia (vasto reino que é como
uma vez e meia e mais todo o império austríaco, ainda que menor em população) por meio dos mudir, encar-
regados de recolher não já os impostos, mas sim todos os produtos da terra nuba, para levar tudo para os
armazéns do Cairo, deixando o povo mais pobre, que se alimenta quase sempre de tâmaras e às vezes de um
pouco de sorgo.
165
É uma coisa verdadeiramente lastimosa ver estes povos mergulhados na miséria e nas maiores privações;
e, mesmo assim, darem todos os dias graças a Maomé que exige isso!
[Aqui Comboni detém-se numa descrição do ambiente]
166
Visitada brevemente a famosa ilha de Filé, célebre por um grande templo, construído por Ptolomeu Fila-
delfo, rei do Egipto, após uma navegação muito favorável, chegámos a Korosko, lugar situado às portas do
grande deserto de onde vos escrevo.
167
Levantadas as nossas tendas debaixo de uma tamareira, a um quarto de milha fora de Korosko, perto da
margem do Nilo, o nosso primeiro pensamento foi celebrar a santa missa; para isso, com duas caixas, er-
guemos na nossa tenda um elegante altarzinho, adornado com flores do nosso Instituto. Não tenho palavras
para exprimir a consolação que experimentámos ao oferecer o augusto sacrifício nesta infeliz terra, onde
talvez, segundo nos informaram, nunca a hóstia pacífica da nossa redenção fora imolada. Já há cerca de três
semanas que não celebrávamos; antes de partir, pensamos fazer uma inscrição com um cálice pintado por
cima, para lembrar aos vindouros o fausto acontecimento.
Na primeira noite após a nossa chegada, fomos acordados e forçados a pegar em armas contra uma hiena,
que se aproximou da nossa tenda; e na segunda noite caiu um pouco de chuva: era a primeira que eu via des-
de a minha partida de Verona e – o que é mais digno de registo – a primeira que caía em Korosko, pois, se-
gundo a memória do lugar, nunca se vira cair ali uma pinga de chuva.
168
Nesta cidadela, estamos à espera de cerca de 60 camelos para atravessar o grande deserto; esperamos par-
tir dentro de quatro dias; esta passagem do deserto é um dos troços mais imponentes da nossa viagem; mas
pensais que sofreremos alguma doença como quase sempre acontece com os europeus que passam daqui?
Podeis estar certos de que não; uma carta minha de Cartum confirmará isso mesmo. Deus está connosco;
embora estejamos sempre preparados para a morte, todavia temos o pressentimento de que devemos chegar a
Cartum, depois de atravessarmos o grande deserto, que se estende de Korosko a Berber, sem ter uma dor de
cabeça; e digo isto porque o grande troço do deserto nós o atravessaremos, enquanto acontecem as festas de
S. Francisco Xavier, nosso protector, que é a 3 de Dezembro, e a da Imaculada Conceição – dia oito –, ela
que é a protectora da nossa missão. Entretanto estamos a preparar as nossas coisas; e ao P.e João e a mim
fazem-nos com frequência perguntas sobre algumas doenças.
169
Outro dia veio ter comigo um capitão da milícia egípcia para me pedir conselho sobre uma doença nos
órgãos genitais. Como se tratava de um problema de sífilis, entre outras coisas prescrevi-lhe a abstinência
sexual, não só com mulheres em geral, mas também com a sua própria esposa; doutro modo, que se prepa-
rasse para ir ter com Maomé; ao que ele me respondeu. «Que quer que eu faça com tantas mulheres? Tenho
dez em casa que são minhas esposas; assim tenho já bastantes sem necessidade de procurar outras».
170
A poligamia aqui está muito difundida entre todos aqueles que têm posses. Nós, colocados no meio des-
tes cavalheiros, ficamos muitas vezes magoados por ver tantos miseráveis filhos de Adão, vítimas da mais
deplorável escravidão, os quais, depois de terem sofrido tanto na terra, vão depois sofrer penas maiores no
inferno. A religião foi aqui pregada no século V por São Frumêncio, enviado aqui por Santo Atanásio, patri-
arca de Alexandria. Cerca de dois séculos depois, vieram os maometanos, que destruíram tudo, também a
religião de J. C. De então para cá, e já lá vão mil e cem anos, nunca mais a religião cristã penetrou na Núbia,
onde até hoje há pena de morte tanto para quem prega como para quem abraça a nossa fé. Só em 1848 Mons.
Knoblecher, actual pró-vigário apostólico, pôde fundar com o P.e Vinco uma missão em Cartum, onde po-
dem prover não tanto ao bem dos maometanos, mas sim ao dos escravos negros.
171
Mas basta, que estareis cansados. Estou impaciente por chegar a Cartum, onde espero encontrar muitas
cartas vossas. O correio chega lá primeiro que nós, porque, do Egipto para Cartum, vai por meio de drome-
dários que, dia e noite, correm a grande velocidade.
172
Entretanto, ficai alegres, tranquilos, confiados em Deus, que tudo vê, que tudo pode e que nos ama. Tende
presente que nós rezamos por vós, nos lembramos sempre de vós e estamos sempre gratos ao vosso grande
ânimo. Depositastes toda a vossa confiança em Deus e ele saberá recompensar-vos dignamente. Oh, a Divina
Providência é a base de toda a esperança de um pobre missionário, que, tendo desprezado quanto de lisonjei-
ro apresenta o mundo, se aventura, sob as suas asas protectoras, em terras estrangeiras para promover a gló-
ria e o reino de Jesus Xto.
173
Recomendo-vos que cuideis bem de vós, que nada poupeis para o vosso bem-estar físico; para o Senhor
fizestes tudo. Espero que tenhais arranjado uma boa empregada; ai de vós, se não a tendes! Obrigar-me-íeis a
mandar-vos uma negra feia da África Central que vos serviria como deve ser. Adeus querido pai, querida
mãe; escrevei-me frequentemente e em especial sobre coisas da vossa vida; mantende-vos alegres, repito, e
constantes no caminho do Calvário, pois, de 820 passos que há do Pretório de Pilatos ao Calvário, vós já
andastes 800. Quereis assustar-vos por apenas 20 passos que faltam? Isso nunca!
174
Peço-te que por mim sejas padrinho do pequeno Tiago, meu afilhado, filho de Carlos e Ana Maria. Estou
pesaroso por não ter estado em Riva a saudar os nossos queridos parentes; apresentai a cada um os meus
cumprimentos; saudai-me também o tio José, que por certo reza por mim, o Eustáquio, a Hermínia, os pe-
quenos, o sr. Conselheiro, nosso patrão, o seu irmão e cunhada de Riva, o sr. reitor, P.e Ben, o sr. Beppo e
Júlia Carettoni, a família de Luís e Prudenza Patuzzi, as boas senhoras Minica, Virgínia, Gigiotta que prome-
teram rezar por mim e que certamente o farão, o médico David, o dr. Fantini, o amigo António Risatti, Ram-
bottini, o cabo (também em nome do P.e Ângelo), o sr. Vicente Carettoni e os seus parentes de Bogliaco, os
nossos parentes de Bogliaco, de Maderno, os jardineiros de Supino e Tesolo, o sr. Maestro, o Cândido, o
pároco de Voltino e todos os que perguntarem por nós, dando a mais cordial saudação ao sr. Pedro Ragusini
e, através dele, ao sr. Bortolo Carboni que me ajudaram: são belas almas; saudações também àqueles para
quem fui ocasião de desgosto e especialmente a ti e à querida mãe, a quem, dando a minha bênção, me subs-
crevo de todo o coração

Vosso af.mo filho


P.e Daniel Comboni

N.o 22 (20) - A SUA MÃE


AFC

Korosko, Núbia, 27 de Novembro de 1857

Querida mãe

175
Estou muito contente, querida mãe, de dar-te a conhecer que eu estou de boa saúde, que penso em vós,
que rezo por vós, e embora longe de vós, vivo sempre para vós. Quantas vezes, cada dia, penso no grande
sacrifício que por mim fizestes ao Senhor! Para mim este é um gesto grande que nunca deixarei de admirar e
sempre vos agradecerei pela graça que me concedestes, da qual era inteiramente indigno; nós recordamo-nos
sempre de vós.
176
Em Verona, em Jerusalém e em muitos outros lugares há muitas pessoas, mosteiros inteiros que rezam
por nós e pela nossa missão; mas, para te ser sincero, eu conto mais com alguma ave-maria tua, porque sai
de um coração que se sacrificou pela glória de Deus. Sê pois constante na tua generosidade; está sempre
alegre e a cada ligeira tentação de pouca confiança ou de outra coisa, volta o pensamento para a Mãe Doloro-
sa ao pé da cruz. Nós também estamos sempre alegres; e quando o inimigo da salvação nos faz vir à mente a
dor que sentimos na nossa separação e o que sentistes vós (nunca o esquecemos) pensamos no sofrimento de
J. Cristo, bem como no de tantos apóstolos e missionários; e então sentimo-nos confortados.
177
Oh, se visses a miséria que há nestas paragens! Se tivesses cem filhos, dá-los-ias todos a Deus para virem
trazer conforto a estas pobres almas. Agradece porém ao Senhor, porque te deu a graça de lhe entregares
tudo o que tinhas.
Entretanto eu te saúdo de todo o coração: estiveste talvez doente até agora? Vá, escreve-me, querida mãe!
Cumprimentos a teus irmãos e cunhada; diz ao tio Luís que se se confessar três vezes por ano, eu mando-lhe
refinadíssimo tabaco africano e ao tio Pedro, se fizer o mesmo, enviar-lhe-ei uma ou outra garrafa de vinho
egípcio, melhor que o que bebe, quando apanha aquelas pielas que lhe fazem ver os objectos em duplicado.
Saudações também para as tuas comadres, Pirola, a boa empregada dos nossos parentes; abençoando-te, de-
claro-me de todo o coração

Teu af.mo filho


P.e Daniel

P. S. Saúdam-te cordialmente todos os meus companheiros e exortam-te a rezar por nós.

N.o 23 (21) - A SUA MÃE


AFC

Korosko, 9 de Dezembro de 1857

Minha querida mãe,

178
Para te ser sincero, parecer-me-ia cometer um crime se perdesse uma única oportunidade de te manifestar
os verdadeiros e afectuosos sentimentos do meu coração. Ah, se soubesses quanto te amo e quanto aprecio e
estimo a tua generosa decisão! A cada momento me parece ver-te concentrada na tua dor, ora alegre por uma
esperança futura, ora tomada de uma inexplicável incerteza, ora toda absorvida na confiança em Deus. O
coração humano é assim, querida mãe. Deus agora não faz mais que brincar, porque te ama.
179
Ah, se pudesses compreender com que agrado Deus aceita a tua aflição, estou certo que o resto da tua vi-
da se tornaria num paraíso! Sim, querida mãe, és sumamente querida a Deus; e eu vanglorio-me de te ter
como mãe. E se não me esforçasse por trabalhar e consumir toda a minha vida para a glória de Deus, segui-
ria muito mal os generosos exemplos de meus pais, que me precederam na gloriosa empresa de sacrificar
tudo por amor de J. Cristo.
180
Coragem, portanto! Recomendo-te com todo o coração o meu velho Simeão; compadece-te dos seus de-
feitos, corrige-o, ama-o por amor de Deus e por meu amor. Vivei em recíproca caridade e harmonia. Deus
tem um trono preparado para ti no Céu; ele recompensará infinitamente todos os trabalhos da tua vida.
Dá um abraço da minha parte ao velho Simeão; saúda em meu nome as senhoras Miniche e crê-me de co-
ração

Teu af.mo filho Daniel


N.o 24 (22) - A SEU PAI
AFC

Korosko, 9 de Dezembro de 1857

Meu querido e bom pai,

181
Tendo disposto a divina Providência que não chegassem até agora camelos suficientes para nós, com as
nossas coisas, podermos fazer a travessia do deserto, fomos obrigados a permanecer em Korosko até este
momento e, por isso, antes da minha partida, creio oportuno escrever-te, esperando que até meados de Janei-
ro tenhas recebido a carta.
182
Que fazemos nós, entretanto? Passamos os dias entre a esperança e a dúvida. Um dia tínhamos uma notí-
cia das caravanas que voltavam do deserto; noutro vinham barcos com presos amarrados que tinham de usar
os camelos recém-chegados para irem cumprir a sua pena um pouco mais além de Cartum, no Bahar el-
Azrek, tal como se faz na Rússia, onde os delinquentes condenados a prisão perpétua são enviados para a
Sibéria, para que, pouco a pouco, morram de frio, como estes presos egípcios morrerão, pouco a pouco, de
calor. Depois de amanhã projectávamos atravessar Dongola e ir até Cartum pelo deserto de Baiuda, que é
muito menos perigoso que o da Núbia que vamos atravessar; mas havia o inconveniente de ter de levar cerca
de três ou quatro meses por causa da passagem de Wady-Halfa e de outras sete cataratas do Nilo.
183
Finalmente, após mais de duas semanas, quis Deus que chegasse uma caravana de Berber, e com os seus
camelos sairemos amanhã de Korosko para o deserto, tendo-se feito já o contrato e antecipado ao habir da
nossa caravana um importância correspondente a pouco mais de 200 táleres.
184
Porém, entretanto, sabes, querido pai, que pensamentos ocupavam a minha mente? O generoso sacrifício
que vós os dois fizestes é para mim objecto de meditação; e creio no fundo da minha alma que pais mais
afortunados que vós há poucos no mundo. Porque, quais são os pais que melhor desempenham e cumprem a
sua missão? Napoleão dizia: os que dão mais filhos ao Estado; e o mesmo dizia um antigo filósofo: os que
dão mais filhos à pátria. Mas a nossa santa religião, pelo contrário, afirma que cumprem mais perfeitamente
a sua missão os pais que criam filhos para o Céu. Pois bem, acaso não pertenceis vós a estes últimos?
185
A vossa sorte é até ainda maior. Porque o vosso filho não só foi por vós encaminhado para o Céu, como
foi chamado por Deus para a conversão dos infiéis e, portanto, a um estado em que tudo está orientado para
mandar para o Céu outras almas, que agora se encontram nas trevas e nas sombras da morte. E este filho, que
era todo o vosso património na Terra, consagraste-lo completamente a Deus, não reservando para vós mais
que o perene sacrifício do seu afastamento e até da sua perda por amor de J. Cristo.
186
E quem há no mundo que tenha feito isto com tanta generosidade? Só os chamados por Deus a grandes
coisas, como St.a Felicidade, a mãe dos Macabeus, e outras almas que foram especialmente queridas de
Deus.
E não digais que, ao fim e ao cabo, este vosso filho, que haveis dado, é um pobre idiota, ignorante, inútil,
incapaz de empreender algo, porque, ainda que seja verdade que eu sou assim, vós, porém, sacrificastes-me
como se eu fosse um Salomão, um Apóstolo S. Paulo. De modo que ainda que eu seja um servo inútil e inca-
paz, não tenha nada, me tornasse apóstata (o Senhor me proteja!) – é uma maneira de dizer –, vós ganhastes
diante de Deus tanto mérito como se tivésseis dado à Igreja um St.o Agostinho, um Xavier, um S. Paulo,
porque Deus não tem em conta a grandeza das coisas, que são menos que zero comparadas com Ele, mas
sim ao afecto com que se dão, como foi do grado de J. C. que S. Pedro deixasse todas as suas coisas para O
seguir, as quais consistiam apenas num barquito todo partido e furado e em poucas redes esburacadas; po-
rém, S. Pedro deixou tudo e o Evangelho elogia-o como se tivesse deixado um reino; porque o pobre campo-
nês aprecia tanto o seu modesto e rústico lar como o monarca a sua capital.
187
Pois bem, vós sois dos que deram tudo por Jesus Cristo. Nem me digais tão-pouco que são felizes os pais
que vivem junto de seus filhos. Ah, estes têm na Terra parte do seu Paraíso e no leito de morte, quando as
delícias passadas já se não saboreiam e se conhecem demasiado bem as coisas na sua essência, no leito de
morte, digo, terão o amargo pesar de não ter feito nada pelo Senhor, enquanto vós, então, gritareis cheios de
júbilo: bendito o Senhor que me guiou pelo caminho da cruz e agora me devolve uma recompensa centupli-
cada!
188
Ânimo, pois, meu querido pai! Eu tenho o coração sempre voltado para vós, falo convosco todos os dias,
sou parte dos vossos afãs e saboreio de antemão as delícias que Deus vos reserva no Céu. Coragem, portanto.
Seja Deus o centro de comunicação entre vós e mim. Ele guie os nossos empreendimentos, os nossos assun-
tos, os nossos destinos e alegremo-nos, que temos um bom amo, um fiel amigo, um pai amoroso.
189
Lembra-te sobretudo de confiar neste bom Pai e de ser humilde, porque as graças que o Senhor te fez e fa-
rá não são concedidas pelos teus méritos, mas por sua misericórdia.
190
Eu encontro-me de perfeita saúde, como todos os meus companheiros, que são também meus superiores,
aos quais nem sequer sou digno de servir como criado, porque é tal a sua bondade que em comparação com
ela as minhas acções são delitos. Eles saúdam-vos aos dois e desejam que rogueis ao Senhor pela nossa mis-
são. Esperamos chegar pela Epifania a Cartum, de onde, ainda em Janeiro, partiremos para Bahar el-Abiad.
191
Dá uma carinhosa saudação à mãe, a qual te recomendo de todo o coração; tem paciência com ela e des-
culpa os seus defeitos, que ela desculpará os teus. Ao lado de Deus, todos estamos cheios de defeitos. Portan-
to, paciência e caridade, para que Deus também seja indulgente para connosco. Dá-lhe um carinhoso beijo da
minha parte, procurando que seja assistida em todas as coisas, não poupando nem os campos nem nada: Deus
proverá a tudo.
Muitos cumprimentos a Eustáquio, a Hermínia, ao tio José, aos nossos parentes de Riva, Limone, Boglia-
co e Maderno; ao sr. reitor, ao sr. Beppo Carettoni, a Patuzzi e família, ao avô P.e Ben, ao sr. Ragusini, a
Vicente, ao Médico, a Risatti, a Rambottini, ao nosso patrão e a todos. Saúda igualmente o agente do vapor
Meneghelli, correspondendo às suas saudações; tenho a impressão de que é um homem de bem e um bom
cristão. Adeus!! Adeus!!

Teu af.mo filho Daniel

N.o 25 (23) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM S. JOÃO BAPTISTA DE SACCO, VERONA
AMV

N.o 26 (24) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM STº. ESTÊVÃO, VERONA
ASSV

N.o 27 (25) - AO P.e SERAFIM O. F. M.

Deus meus et omnia!

N.B. Palavras de Comboni na última página do livro “De ascensione mentis in Deum” de Belarmino, ofere-
cido ao P.e Serafim por Comboni.
1858

N.o 28 (26) - A EUSTÁQUIO COMBONI


AFC

Cartum, 12 de Janeiro de 1858

Querido Eustáquio,

193
Foi verdadeiramente grande o prazer que senti ao ler a tua estimada carta, datada de 16 de Novembro;
mas teria sido muito maior se me tivesses dito alguma coisa sobre os progressos do pequeno Emílio. Sei que
o Eugénio e o Henriquito vão bem e congratulo-me muito de ver sempre confirmada a boa impressão que
conservo deles; mas o facto de não me terdes falado daquele que nem sempre se comportou de forma louvá-
vel como os outros dois faz-me nascer a natural suspeita de que também em Roveredo ele esteja a fazer as
judiarias que fazia em Limone, se bem que, por outro lado, espero que globalmente o seu comportamento
seja aceitável. Escrevei-me, pois, outra vez, falando-me de todos, sem exceptuar nenhum, contando-me o
bem e o mal, os progressos e as falhas, porque prefiro saber positivamente um pequeno defeito a ter suspeita
de maiores que não existem.
194
De qualquer maneira, consola-me muito que esteja sob a imediata e sábia direcção do nunca bastante elo-
giado P.e Giordani, cujo carinho e preocupação por teus bons filhos conheço talvez melhor que tu. Como
está a amável e minha querida Hermínia? Que doces e agradáveis recordações me traz a grata memória que
guardo dela no meu coração! Dá-lhe por mim cem, mil beijos e diz-lhe que a grande distância que dela me
separa não diminuiu minimamente o grande afecto que lhe tenho; diz-lhe que não me desagrada absoluta-
mente tê-la há tantos anos no número daqueles a quem dedico carinho especial, que nunca me sinto arrepen-
dido de a ter amado, antes, que, mesmo longe dela, me apraz mandar-lhe dizer que a trago no coração.
195
Sim, querido Eustáquio, ainda que para seguir a voz de Deus, confirmada pelos sinais mais certos e os in-
dícios mais seguros, eu tenha tido que fazer um completo holocausto e sacrifício do meu coração, afastando-
me dos mais queridos, com os quais estou unido pelos mais sagrados vínculos do sangue, contudo o meu
espírito passeia-se incessantemente entre vós, ocupa-se de vós – indignamente, é certo –, mas reza por vós e
gosta de ser posto ao corrente de tudo o que vos diz respeito.
196
Gostei de saber que o meu caro Eugénio está obrigado a dar conta das suas matéria escolares em língua
alemã: verás que progressos fará em pouco tempo. Isso é só um pequeno obstáculo para o seu talento: uma
ninharia para ele; estou certo que com a sua conduta e aplicação aos estudos deixará muito satisfeitos os seus
superiores, honrará a família e formará parte do teu paraíso na terra. Mantém-te também em boa relação com
ele e em contacto com Mitterutzner, que vos poderá ajudar muito, mesmo depois de terminados os estudos
em Innsbruck, tanto na Alemanha como na Ilíria, na Itália, na França e em toda a parte.
197
Através de meu pai terás recebido notícias da minha viagem até agora e do que estou para empreender en-
tre as tribos do Centro da África. A que sacrifícios tem de se sujeitar o pobre missionário! Meu pai e minha
mãe são felizes e afortunados diante de Deus, que já tem marcada a salvação das suas almas; mas a sua dor
por mim é o maior dos sacrifícios que me impõe a Divina Providência, pois que tudo recai sobre o meu cora-
ção e me pesa mais que cem mortes, sofridas na maior atrocidade para testemunho da fé. Mas Deus, que
requer de mim este grande sacrifício, terá piedade deles e prestar-lhes-á a prodigiosa assistência que cada dia
peço para eles.
198
Adeus, querido irmão e amável primo: recomendo-te os meus pobres pais; trata deles em meu lugar, que
Deus te cobrirá abundantemente de suas bênçãos; recomendo-te o meu caro Eugénio, em cujo destino estou
comprometido como tu. Recomendo-te o bom Emílio que, coitado [...], foi um pouco desafortunado na sua
pueril escolha dos estudos. Recomendo-te o pequeno Henrique, o qual espero que siga um caminho bastante
melhor que o de todos vós. Saúda-me muito encarecidamente a minha querida Hermínia, o sr. José Carettoni,
a Júlia, vossa boa criada, e toda a família, enquanto, na esperança de não ficar desiludido pelas tuas cartas, te
abraço, te dou mil beijos e me assino de todo o coração
Teu af.mo irmão
P.e Daniel

N.o 29 (27) - A P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c.15/38

Cartum, 15 de Janeiro de 1858

Meu caro e amável P.e Pedro,

199
Causou-me grande aflição a notícia que me deu meu pai em carta datada de 6 de Novembro de que o se-
nhor com certeza vai deixar Limone. Pobre povo! Privado de quem lhe enxugou tantas lágrimas e o cumulou
de tantos bens, agora estará sem pastor e sem esperança de voltar a gozar das delícias do passado. Quanto o
sinto, quanto o sinto, meu caro P.e Pedro, embora não saiba se realmente abandonou a minha pobre terra.
Mas basta de falar de desgraças.
200
Terá recebido uma carta que lhe enviei de Jerusalém e, ainda que meu pai o tenha informado das minhas
viagens, com receio de que haja já meses que não está em Limone, quero fazer-lhe um resumo. Tendo saído
a 23 de Outubro do Cairo, a bordo de duas grandes dahhabieh, depois de 20 dias de feliz navegação, chegá-
mos a Assuão, contemplando de fugida as famosas pirâmides e as gloriosas ruínas de Denderah, Keneh, Te-
bas, Karnak, Luxor, Esneh, etc. Evitadas as cataratas mediante a travessia a camelo de um pequeno deserto,
retomámos o Nilo em Schellal, lugar situado no começo da Núbia, sob os trópicos; e, alugadas duas novas
barcas, chegámos felizmente a Korosko, povo que fica nos limites do terrível deserto da Núbia.
201
A palavra deserto aterroriza quem já experimentou o que realmente é. Contudo, embora o deserto ofere-
ça mil perigos, incómodos, privações e miséria, nós, tendo também a estação propícia do Inverno, passámo-
lo muito felizmente em vinte e dois dias, contra tudo o que esperávamos. Formavam a nossa caravana 47
camelos, sob o comando de dois competentes habir, contratados, a expensas nossas, pelo grande chefe do
deserto. Primeiro viaja-se através de grandes montanhas abrasadas pelo sol, em cujo sopé há estratos de cal,
formados pelo grande calor do Verão.
Ao cabo de dois dias entra-se num imenso espaço de areia ardente que lembra a vastidão do mar, excepto
que é açoitado por 38, 40 e até 43 graus Réaumur [47,5; 50 e 53,75 graus Celsius] agora que é Inverno e
sopra menos o vento de fogo. O fatigante e molesto balancear do camelo que produz dores agudas na coluna;
a escassez de comidas quentes; a esteira estendida no chão, sobre a qual se descansa e outras incomodidades
fazem sobremaneira temível este deserto, que não sei em quantos anos devorou ao menos noventa e oito
caravanas e fez grande quantidade de vítimas, como nos dizia o habir e se vê pelos muitos ossos dos que
morreram e pelos milhares de esqueletos de camelos, que constituem o único alimento das hienas e o princi-
pal sinal para conhecer o caminho.
202
Em Korosko colhemos do Nilo 26 odres de água para o deserto; ao cabo de dois dias, tomou a cor e o
sabor da pele de cabra putrefacta de que é feito o odre e isso fez crescer o nosso mal-estar; e isto sem contar
outras privações não menores que acompanham a quem viaja no deserto. Mas eis que vários bandos de dife-
rentes aves se distinguem ao longe, acompanhadas do estrondoso bramido dos hipopótamos, que povoam o
Nilo que corre para a Núbia, anunciando que está próxima a cidade de Berber, capital do território deste no-
me. Alugadas de novo duas embarcações e abraçado o paxá Wood el-Kamer, famoso matador do grande
Scheikh, que queimou em 1822 o paxá Ismail, filho do imortal Mehmet Ali V, rei do Egipto, depois de oito
dias de favorável navegação, chegámos felizmente a Cartum, quatro meses e seis horas depois da nossa saída
de Verona.
203
Cartum está situada nos confins com a África Central; e agora precisamente estamos a preparar-nos para a
perigosa expedição. A nossa intenção, por agora, é ir por Bahar el-Abiad até pouco mais além do equador, e,
depois de realizar cuidadosas explorações, tentar introduzir-nos numa tribo que seja grande e que tenha uma
língua bastante difundida. Aqui, em Cartum, contam-se coisas horríveis que este ano fizeram os habitantes
de do Bahar el-Abiad; porém apercebemo-nos de que recebem demasiadas provocações dos aventureiros,
que ali tentam arranjar dentes de elefante. Nós confiamos em Deus que nos chamou a tão alta empresa.
Mas basta, meu querido P.e Pedro. Espero que ainda se encontre em Limone e me console com alguma
carta sua. Nós estamos os cinco de perfeita saúde e, às vezes, falamos de si e do seu sistema liberal quando
estava no colégio. Muitos cumprimentos ao sr. Pedro Ragusini, à sua boa mãe, irmãos e irmãs Elisa e Marie-
tta, enquanto de todo o coração sou

O seu af.mo P.e Daniel Comboni

Os meus companheiros mandam-lhe saudações.

N.o 30 (28) - AO DR. BENTO PATUZZI


ACR, A, c. 15/87

Cartum, 15 de Janeiro de 1858

Meu querido e amável compadre,

204
... Em Korosko, depois de alugarmos 43 camelos e de os carregarmos com 27 odres de água, entrámos no
terrível deserto da Núbia. A nossa caravana era composta ao todo por 47 camelos, porque se juntou a nós um
capitão turco e vinham também dois habir ou chefes de caravana, que o grande chefe do deserto tinha colo-
cado à frente dela, como responsáveis por qualquer sinistro acontecimento. O grande chefe é o senhor abso-
luto desta comprida e perigosa paragem e descende do famoso xeque Abd el-Qader, que viveu há muitos
séculos e o qual, por ter sido o primeiro a atravessar o deserto, é considerado um profeta à altura de Maomé,
pelo que o nosso grande chefe é tido por um santarrão e quando quer pode fazer perecer todas as caravanas
no deserto, sem que ninguém, nem o grande paxá, possa dizer uma palavra...
[Aqui descreve a travessia do deserto, realizada com êxito, sem dano para a saúde de nenhum dos seus
companheiros]
205
Finalmente, ao fim de vinte e um dias, chegámos sãos e salvos a Berber no último dia do ano, depois de
ter celebrado missa no dia de Natal em Abuhhammed, onde nunca em presença real tinha sido adorado o
Criador do universo. Em Berber veio visitar-nos à nossa tenda o paxá Wood el-Kamer, famoso por ter morto
o paxá Ismail, filho do grande Mehmet Ali. Fretados dois barcos, retomámos o Nilo e depois de uma olhade-
la às pirâmides de Meroe, antiga capital do famoso reino etíope que floresceu ainda antes do egípcio, ladea-
dos por grandes crocodilos, que às dezenas, vintenas, trintenas se vêem nos ilhéus vizinhos e atroados os
ouvidos com o estrondoso bramido dos hipopótamos, chegámos felizmente a Cartum no dia 8 do corrente,
aos quatro meses certos.
Os missionários receberam-nos cortesmente nesta longínqua estação. Dentro de três dias, sairemos para o
interior da África.

No post scriptum, Comboni diz ter recebido uma carta enviada pelo médico de Limone na qual ele lhe
comunica uma grave doença de sua mãe. Fala também Comboni de que na manhã desse dia 15 foi recebido
juntamente com os seus companheiros pelo patriarca copta da Abissínia, que se dirigia ao Cairo na quali-
dade de embaixador junto do grande paxá-Vice-rei.

N.o 31 (29) - A SEUS PAIS


AFC
Da Stella Mattutina
Cartum, 18 de Janeiro de 1858

Queridíssimos pais,

206
Eis-me aqui já no barco prestes a abandonar Cartum para nos dirigirmos aonde estão as tribos centrais do
Bahar el-Abiad. Este barco em forma de dahhabia é o maior e o mais forte que existe no Sudão e é proprie-
dade da missão de Cartum, a qual lhe pôs o nome italiano Stella Mattutina, quase como dedicando-o à Vir-
gem Maria, a fim de que com a sua luz seja verdadeiramente estrela da manhã para os pobres negros, envol-
tos ainda nas trevas da ignorância e da idolatria.
207
Todos nós ardemos no desejo de chegar à ansiada meta da nossa longa e penosa peregrinação; e confi-
amos no Senhor que conseguiremos semear a boa semente, apesar das graves dificuldades que começamos a
vislumbrar. Trata-se de que a missão de Cartum, que está dividida em três estações, foi fundada há dez anos,
trabalham nela 24 missionários, gastou muitos milhões de francos, fez bastante para ser temida por turcos e
negros dos arredores para poder pregar livremente o Evangelho... mas, quanto ao resto, só conseguiu con-
quistar umas 120 almas e quase todos jovens, a quem, para os conservar na fé, a missão se vê obrigada a
sustentar, dando-lhes comida, roupa e habitação. São incríveis as dificuldades e incómodos que esta missão
proporciona.
208
Mas talvez nós tenhamos mais probabilidades, porque somos mais pobres e as nossas necessidades serão,
portanto, menores. Pelo que pudemos deduzir até agora, a tarefa é mais árdua do que se pensa na Europa;
ainda assim, continua a crescer a nossa confiança em Deus, o qual só [...] poderá fazer-nos susceptíveis de
receber os benéficos influxos da graça divina.
209
Entretanto, vós não tenhais nenhum temor por nós: Deus está connosco, a Virgem Maria Imaculada está
connosco; S. Francisco Xavier é nosso padroeiro e, confiados nestas sólidas colunas, temos debaixo dos pés
[...] e a morte e os mais cruéis sofrimentos e incómodos. Apoiados nestes preciosos baluartes de Deus, da
Virgem Maria e S. Francisco Xavier, encontramo-nos mais seguros do que se nos apresentássemos diante das
tribos da África Central com um exército de cem mil soldados franceses; assim, pois, não temais por nós, não
tenhais nenhuma preocupação com o que nos pode acontecer.
210
Basta que rezeis por nós e que estejamos unidos com o coração, tendo sempre Deus como centro. Pode
acontecer que passem meses sem que recebais cartas minhas, mas, mesmo assim, estai alegres. Já vos disse
que vos escreverei dentro de mês e meio, no regresso da Stella Mattutina. Porém, vós dai-me notícias vossas
duas vezes por mês, sem falta; quer dizer, não deixeis de me escrever sempre que o vapor saia de Trieste
rumo a Alexandria. Porque ainda que receba vossas cartas cinco ou seis de cada vez, desejo estar completa-
mente ao corrente do que vos diz respeito e à família, e, portanto, quero informação regular, de quinze em
quinze dias, pela qual poderei com mais elementos de juízo conhecer o vossos estado e todas as vossas coi-
sas; portanto não deixeis de me escrever cada quinze dias, dirigindo as cartas como vos disse, que até agora
chegaram-me todas.
211
No tocante ao receber cartas da Europa, eu tenho sido até agora mais afortunado que os meus companhei-
ros, porque a correspondência que lhes mandam a eles ou é pouca ou se extraviou. Esta manhã visitámos o
patriarca da Abissínia, que é como o papa dos coptas heréticos e que vai à corte do rei do Egipto como em-
baixador do imperador da Abissínia. Estava acompanhado de um prelado ajudante e um general do exército e
protegido por guardas egípcios. Estava majestosamente reclinado sobre ricos tapetes de finíssimo damasco e
seda; acolheu-nos magnificamente. É o papa dos coptas e à morte destes recebe um quarto dos seus bens; por
isso, é dos homens mais ricos que existem. Ofereceu-nos skibuk e chá de canela. Falando da nossa missão,
explicámos-lhe que, ao entrar no país, arriscamos a vida. «E porque o fazeis?», perguntou-nos. «Para os sal-
var com as suas almas – respondemos – porque também Nosso Senhor J. C. deu a vida por nós». «Ah, está
bem, respondeu». Então um dos missionários de Cartum falou-lhe de Jesus Cristo e, como movidos por
Deus, todos os homens baixaram a fronte ante a cruz e adoraram J. C. «Sim, esperamo-lo», disse, e mudou
de assunto pondo-se a falar do imperador da Abissínia.
212
Hoje veio visitar-nos ao nosso barco, o Stella Mattutina, e ficou admirado de ver com quanta dedicação
nós professamos a religião, porque viu a capela que há a bordo, onde nós rezaremos missa todas as manhãs;
finalmente foi-se embora maravilhado, dizendo-nos que traria sempre na memória este dia, para ele muito
feliz. Anda majestosamente vestido e está muito longe de pensar em tornar-se católico; a mim veio-me à
mente persuadi-lo a ir a Roma, onde verá grandes coisas. Mas basta. Estai alegres, queridos pais. Eu vou
partir e embora tivesse outras coisas para vos dizer, não tenho tempo para continuar a escrever, porque o
Stella Mattutina está prestes a sair de Cartum.
213
Nós vamos alegres e contentes, ainda que tenhamos de habituar-nos à ideia de que temos de trabalhar
muito sem ver grandes frutos. Isto é, a nossa tarefa será muito fecunda se conseguirmos preparar e predispor
aquelas almas, deixando que outros colham os frutos. Deus é grande e n’Ele pomos toda a confiança. Vós
estai sempre com Deus; lembrai-vos de fazer tudo para a sua maior glória e não outra coisa.
214
Adeus, queridos pais; eu pensarei sempre em vós e vós procurai oferecer a Deus algum sacrifício. Um
santo missionário de Cartum, que agora está aqui no nosso barco, dizia-me no outro dia que, embora tivesse
abandonado o pai e uma família rica, onde poderia ter todas as comodidades e ainda que tivesse trabalhado
tanto na sua missão, se daria por satisfeito se Deus o mandasse para o Purgatório, porque diz ser tão pecador,
que teme ir parar ao Inferno, porque até agora não sofreu nada que o faça digno do Paraíso.
215
Já vedes quanto há que padecer pelo Paraíso. Consolai-vos, pois, queridos pais, que tendes a sorte de so-
frer muito por Xto.; e é por isto que vós já estais certos de ir para o Céu. Saúdo-vos de todo o coração dando-
vos um carinhoso abraço. Saudai-me todos os parentes, amigos, etc., e à espera de vossas cartas, vos abraço
cem vezes e vos dou a bênção, declarando-me

Vosso af.mo filho


Daniel

N.o 32 (30) - A SEU PAI


AFC

Da tribo dos Kich


5 de Março de 1858

Queridíssimo pai,

216
Não podes imaginar o consolo que senti ao receber as tuas queridas cartas de 21 de Novembro de 1857.
Bendito seja o Senhor e sua adorável Providência que, a seu tempo, sabe confortar os seus servos mais mes-
quinhos, ainda que miseráveis pecadores! Se queres saber a verdade, parti de Cartum com o espinho no cora-
ção de que a mãe estava gravemente doente; e esse espinho, por providente disposição divina, foi-me dilace-
rando continuamente, de modo que a cada passo me parecia estar a assisti-la no leito de morte, por mais que
o coração me dissesse que ela não havia voado para o descanso eterno, e que certamente se iria restabelecer
de novo.
217
E então, facto bastante insólito, através de um barco nubiano, recebi a tua carta, juntamente com outra
bastante comprida da mãe, as quais, na verdade, não esperava. E estas, graças a Deus, tiraram-me todas as
preocupações do coração e encheram a minha alma de doce alegria. Ah, queridos pais, que agradáveis são as
cartas, as palavras, as notícias dos pais que estão longe! Vós podeis senti-lo tanto como eu!
218
O missionário deve estar disposto a tudo: à alegria e à tristeza, à vida e à morte, ao abraço e à despedida.
E a tudo isso estou disposto também eu.
219
Porém, Deus quer dar-me esta cruz de sentir de um modo insólito a dor por ti e pela mãe; e Deus quer
que sinta também a alegria do seu discretamente favorável estado de saúde actual. Eu estou em cada momen-
to convosco, e sinto no coração o peso que vós sentis pela nossa separação física. Quantas vezes eu não te
acompanho nas tuas voltas a Supino, a Tesolo, a Riva, nas tuas lides diurnas e nocturnas com a mãe! E quan-
do desligo o meu pensamento de Deus, sinto tal peso no coração, que me vejo obrigado a voar ao Céu com as
minhas ideias e a pensar que vós tendes um apoio mais sublime, seguro e infalível que o meu, que estais
mais protegidos sob a custódia de Deus do que sob a minha.
220
Em cada dia e em cada hora eu me dirijo a Deus e vos encomendo a ambos. Ele me consola, porque tenho
a certeza de que o Senhor e nossa querida Mãe Maria Imaculada têm especial cuidado de vós. E não importa
que, de vez em quando, haja entre vós disputas, rixas e desgostos: Deus serve-se destas coisas para brincar
com os homens e mostrar que, entregues a nós mesmos, somos vítimas das nossas fraquezas humanas; mas,
no fim de contas, vós, com as vossas tribulações (que são também minhas), recebeis do Céu especial atenção
e sois ambos objecto das mais agradáveis delícias dos Anjos e de Deus.
221
Proclame o mundo futilidades à sua vontade, diga que dois pobres pais são infelizes porque não têm fi-
lhos; no Céu, porém, pensa-se de outro modo, lá escreve-se com outras letras. A doutrina de J. C., o seu
Evangelho, estão em total desacordo com as máximas do mundo. O mundo proclama felicidade, delícias e
contentamentos; o Evangelho preconiza pesar, misérias, dor. O mundo pensa tudo para o momento e para
esta vida mortal, para o corpo; o Evangelho remete o pensamento para a eternidade, para a vida futura, para a
alma. É bem claro que o Evangelho e alma apontam para ideias completamente diferentes das do mundo e
dos sentidos corporais. Assim, pois, mostremo-nos tranquilos, alegres, corajosos e generosos por J. Cristo.
222
Eu sou mártir por amor às almas mais abandonadas do mundo e vós tornais-vos mártires por amor a Deus,
sacrificando ao bem das almas um único filho. Mas coragem, queridos pais; Deus pode permitir que eu mor-
ra em breve, como foi o caso de 15 missionários da missão de Cartum: um deles expirava nos braços do Se-
nhor poucos dias antes da nossa chegada; Deus pode permitir que morrais vós: tudo está nas suas mãos. Po-
rém, Deus também nos pode fazer viver a mim e a vós, reservando-nos para a glória de nos voltarmos a
abraçar de novo e de gozarmos em santo alvoroço e santa companhia bastantes meses ou até alguns anos
dentro dos confins da nossa formosa Itália.
223
O nosso superior insiste em cartas que um de nós regresse de seguida com raparigas e rapazes negros e
que cada ano façamos o mesmo; e nós estamos obrigados a fazê-lo, embora este ano nos seja completamente
impossível, uma vez que não podemos fazer agora uma adequada e criteriosa selecção dos indígenas da tribo
para o meio da qual vamos. O próximo ano, porém, um de nós voltará certamente à Europa com uma expedi-
ção; e isto, um ano ou outro, calhar-me-á também a mim, se for vivo. Lancemo-nos, pois, com ânimo gene-
roso sob as benéficas asas as Providência Divina e ela melhor que nós disporá tudo.
224
A imensa distância que nos separa não é, todavia, tanta que me faça esquecer a nossa pátria e os costu-
mes familiares. Muitas vezes passo meio dia entre esta gente sem me lembrar que estou longe de minha casa
e de vós e preciso de me pôr a pensar que estou no Centro da África, em terras desconhecidas.
225
Quando, com o crucifixo ao peito, me coloco no meio da multidão de indígenas nus, armados de lança,
arco e flechas e lhe dirijo alguma palavra da fé de J. C., ao ver-me só ou com outro rodeado desta gente fe-
roz, que com um golpe poderia atirar-me morto ao chão, então apercebo-me de que não estou na Europa
entre vós. Mas, por outro lado, mesmo então tenho-vos diante dos olhos e parece-me que estais prostrados
diante de Deus para Lhe suplicar que torne eficazes as nossas palavras.
226
Estais pois a ver que estamos sempre unidos com o coração, ainda que fisicamente a tantas milhas de dis-
tância, até ao ponto de ter de pensar que verdadeiramente estou longe de vós. Bendito seja o Senhor que sabe
aplicar a toda a ferida o bálsamo da consolação.
Espero que não te aborreça uma informação sumária da nossa perigosa viagem até às tribos da África
Central mais para lá de Cartum. Gostaria de te satisfazer por completo, mas é-me absolutamente impossível
fazer-te uma descrição de tudo o que nos sucedeu e o que foi objecto das nossas observações; não tenho tem-
po nem oportunidade, porque importantes ocupações e outros impedimentos que acompanham o missionário
nestas regiões mo impedem.
227
Se pudesse sentar-me a uma mesa, tendo as devidas comodidades como tu podes ter, verias como te es-
creveria um livro sobre a minha viagem de Cartum à tribo dos Kich, de onde te escrevo; mas quando para
escrever duas linhas tenho que fazê-lo acocorado debaixo de uma árvore ou numa obscura cabana, deitado no
chão como os negros, ou acomodado de joelhos sobre o meu baú, a verdade é que, depois de escrever duran-
te meia hora, doem-me as costas e os ossos e sinto a necessidade de caminhar um pouco para levantar um
pouco o ânimo.
228
Portanto contenta-te com uma breve referência; e os outros de Verona e de outros lugares a quem escre-
verei que se conformem com uma saudação. A distância que vai de Cartum ao território dos Kich não é mais
do que mil e poucas milhas, mas os acidentes que ocorrem neste terrível e perigoso trajecto são inumeráveis.
229
Mas antes de iniciar a descrição da nossa viagem pelo Nilo Branco, devo explicar que o Nilo, pelo qual
viajamos desde Cartum, é formado por dois grandes rios, que os árabes conhecem com o nome de Bahar el-
Azrek, ou Nilo Azul, e Bahar el-Abiad, ou Nilo Branco, os quais se juntam em Ondurman, perto de Cartum,
formando o Nilo propriamente dito, que, após percorrer milhares de milhas através da Núbia e do Egipto,
desagua no Mediterrâneo, não muito longe de Alexandria.
230
As nascentes do Nilo Azul conhecem-se já desde a Antiguidade e ficam no lago Dembea, na Abissínia,
perto de Gondar. Por este Nilo Azul viajou o P.e Beltrame até aos 10 graus, a fim de encontrar um lugar
conveniente para uma missão adequada ao plano do nosso superior; porém, não encontrando apropriado este
rio, por bem justas razões, depois de aturada reflexão e depois de consultarmos o nosso superior de Verona,
resolvemos tentar introduzir-nos noutras tribos mais adequadas do Nilo Branco.
231
Embora o rio Nilo esteja classificado pelos geógrafos como o quarto rio do mundo, agora tem-se por certo
que é o mais comprido do planeta; porque se bem que os geógrafos o considerem um prolongamento do rio
Azul, conhecido, como dizíamos, desde a antiguidade, contudo o que se deve considerar como pai do Nilo é
o Nilo Branco, que supera em mais de mil milhas o comprimento do Nilo Azul. Pelo que, calculado só o rio
que nós até agora percorremos, o Nilo ultrapassa em mais de quatrocentas milhas o rio mais comprido do
mundo.
232
Àquilo que percorremos há que acrescentar as nascentes do rio Branco, o Bahar el-Abiad, que são desco-
nhecidas até agora; com elas fica claro que o Nilo é o rio mais comprido do mundo em bastantes centenas de
milhas. Devo também esclarecer que, até certo ponto, outros percorreram o referido rio e especialmente o
nosso falecido irmão P.e Ângelo Vinco, do nosso Instituto, pelo que as suas margens são em parte conheci-
das. Porém, nunca ninguém se aventurou muito pela terra dentro; pelo que, embora se conheçam muitas das
tribos que vivem mais no interior da África Central (que são as do Nilo Branco), todavia não se sabe nada
dos seus costumes, da sua índole, etc.
233
Para fazeres uma ideia mais aproximada, supõe que o reino da Lombardia-Véneto fosse desconhecido e
que nós tentássemos conhecê-lo para aí pregar o Evangelho: imagina que Riva é Cartum, donde nós partí-
amos para entrar no reino Lombardo-Véneto e que o lago de Garda é o Nilo Branco; imagina além disso que
já alguém percorreu o lago de Garda até Gargnano e Castelletto, como até certo ponto Vinco percorreu o
Nilo Branco. Então, indo tu de Riva a Gargnano e a Castelletto, sabes que existe o reino Lombardo-Véneto,
porque os de Gargnano te dirão que são lombardos e os de Castelletto que são vénetos, porque Gargnano
pertence à Lombardia e Castelletto ao Véneto.
234
Ora bem, por teres estado em Gargnano e Castelleto podes dizer que conheces o reino Lombardo-Véneto?
Não, porque para isso terias de ir a Milão, Veneza, etc. Por outro lado, sabes que existe o reino Lombardo-
Véneto pelo facto de teres ido a Gargnano e a Castelletto. Do mesmo modo, as margens do Nilo são habita-
das por diversas tribos que se estendem até regiões completamente desconhecidas, porque nunca ninguém se
aventurou pela terra dentro, embora se saiba o nome delas, pois chegam até junto do rio.
235
Eu estou na tribo dos Kich; porém, nada ou pouco sei dela, porque se estende muito até ao interior, onde
ninguém penetrou. Contudo, sei que estou na tribo dos Kich e sei que esta existe. Explicado isto, dir-te-ei
que a nossa intenção é começar a pregação do Evangelho numa destas vastas tribos das terras desconhecidas
da África Central, começando pelas margens do Nilo Branco, para, a pouco e pouco, irmos avançando até à
sua capital e depois passar a outras tribos conforme Deus quiser.
236
Com este fim, ao amanhecer do dia 21 de Janeiro, depois de trocar abraços com o nosso caro companhei-
ro P.e Alexandre Dalbosco, que ficou em Cartum na qualidade de nosso procurador, saímos dessa cidade nós
os quatro: P.e João Beltrame, chefe da missão, P.e Francisco Oliboni, P.e Ângelo Melotto e eu, incumbido de
fazer uma exploração no Nilo Branco, para fundar uma missão entre os negros, segundo o grande plano do
nosso superior de Verona, P.e Nicolau Mazza.
237
A embarcação que nos iria transportar nesta perigosa e audaciosa viagem era a Stella Mattutina, proprie-
dade da missão de Cartum e dotada de uma tripulação de 14 bons marinheiros, à frente dos quais estava um
valoroso e experimentado rais (capitão), que antes tinha feito uma vez esta viagem; e viemos a conhecer por
experiência quão hábil e perito era na arte de navegar por este grandioso e interminável rio. Depois de um
terrível encontro com as ondas contrárias do Nilo Azul, dobrada a última ponta de Ondurman, onde conflu-
em os dois grandes rios, chegámos ao Bahar el-Abiad que se espraia diante de nós em toda a sua beleza. Um
forte vento empurra-nos para estas águas revoltas e agitadas, que pelo seu caudal, largura e imponência, pa-
recem, mais que um rio, um lago a correr dentro do antigo Éden.
238
As margens distantes estão pitorescamente cobertas de vegetação variada, que um sol ardente e uma per-
pétua Primavera fecundam em cada tempo e estação do ano. O Stella Mattutina parece sorrir a estas ondas
furiosas e voa majestosamente pelo meio do grande rio com a rapidez com que os vapores sulcam o nosso
lago de Garda, apesar de o Stella Mattutina ir contra a corrente. A primeira tribo que se encontra mais além
de Cartum, cidade situada no grau 16 de latitude N. (Verona está entre os graus 45 e 46 ), é a dos Hassanieh,
que se estende sobre as duas margens do Bahar el-Albiad e é formada pelas raças negra e nuba, gente que se
dedica à pastorícia, sua principal fonte de recursos.
239
Os Hassanieh andam sempre armados com lança; e como os núbios deste e do outro lado do deserto tra-
zem sempre atado ao cotovelo uma afiada faca, que utilizam para seu serviço e defesa. E foi precisamente
nesta tribo que nos detivemos o segundo dia a fim de comprar um boi para nós e a nossa tripulação. Nada te
posso dizer desta grande tribo a não ser que é uma tribo nómada, movendo-se as suas famílias para cá e para
lá, conforme as pastagens para os seus rebanhos são mais ricas e abundantes. Ela, por quanto nos consta,
estende-se entre os graus 14 e o l6 de lat. N. e os graus 29 e 30 de longitude, segundo o meridiano de Paris.
240
As aldeias e povos desta tribo encontram-se algo afastados do rio uns à direita outros à esquerda do seu
curso e são Fahreh, Malakia, Abdalas, Ogar, Merkedareh, Tura, Waled Nail, Uascellay, Raham, Mokabey,
Gulam Ab, Husein Ab, Scheikh Mussah, Salahieh, Tebidab, Mangiurah, Eleis, etc., etc.; enquanto para as
tribos nómadas qualquer terreno é uma cidade, não parando nunca de modo fixo em nenhum lugar. Dentro
dos limites desta tribo, elevam-se, embelezando esta espécie de paraíso terrestre, os pequenos montes de
Gebel Auly, Menderah, Mussa, Tura e Kirum, depois dos quais, à excepção das pequenas montanhas dos
Dincas desde o grau 12 ao 7, tudo é uma perfeita planície.
241
Para lá do grau 14 de lat. ficam outras duas pequenas tribos: a de Schamkak à esquerda e a de Lawins à
direita; delas, porém, não sabemos nada, a não ser que são gente muito aguerrida e que, por se encontrarem
perto dos Hassanieh e dos Bagara, os seus costumes são mais ou menos semelhantes. A 25 de Janeiro entra-
mos nesta vasta tribo dos Bagara, que à esquerda se estende entre os 14o e 12o de lat. e à direita entre os 13o
e o 12o, encontrando-se no espaço compreendido o 13o e 14o, à direita, a tribo nómada dos Abu-Rof, cujos
costumes são aproximadamente como os dos Hassanieh.
242
Aqui precisamente realiza-se uma mudança total na cena da nossa comprida peregrinação. Para lá da tribo
dos Hassanieh, ao começar a dos Bagara, as cidades, as aldeias e as habitações desaparecem e as últimas
ramificações do tipo árabe-núbio dão lugar definitivamente à valorosa raça dos negros. Arriscar-me a des-
crever o espectáculo que nos manteve absorvidos bastantes dias ao longo das margens do Nilo Branco, lade-
adas pelas imponentes selvas dos Bagara, seria tentar o impossível; e creio que o maior escritor dos nossos
tempos não seria capaz de apresentar uma ideia da beleza, imponência e feitiço de uma virgem e nunca con-
taminada natureza, na qual sorriem estes jardins encantados.
243
As margens baixas deste rio compridíssimo e majestoso estão cobertas de uma assombrosa e exuberante
vegetação, nunca tocada nem alterada pela mão do homem. Por um lado, imensos bosques impenetráveis e
até agora nunca explorados, formados por gigantescas mimosas e verdejantes nebak (árvores de extraordiná-
rio porte e idade, porque nunca foram tocadas por mão humana), que, juntando-se umas às outras, formam
uma imensa e variegada floresta encantada, a qual oferece o mais seguro refúgio a imensas manadas de gaze-
las e de antílopes, e a tigres, leões, panteras, hienas, girafas, rinocerontes e outros animais selvagens, familia-
rizados com as imensas savanas com serpentes de todas as espécies e tamanhos. Pelo outro lado, mostram-se
outras florestas de mimosas, tamarindos, ambalós, etc., revestidas de verbena e de certas ervas densas e tre-
padoras que formam como cabanas naturais, onde certamente se estaria protegido de intensas chuvadas.
244
Centenas de ameníssimas ilhas, férteis, grandes e pequenas, belamente esmaltadas de verde, cada uma
mais formosa que as outras, parecem, de longe, esplêndidos jardins. Estes belos ilhéus recebem sombra de
uma série de soberbas mimosas e acácias, onde os raios ardentes do Sol africano a custo penetram e formam,
ao longo de mais de 200 milhas, um arquipélago que oferece o aspecto mais encantador.
Enormes bandos de aves de toda a espécie, tamanho e cor, pássaros perfeitamente dourados e outros pra-
teados, etc., esvoaçam calmamente, sem nenhum temor, pelas árvores acima e abaixo, entre a erva, pelas
margens, sobre o cordame do barco. Íbis brancos e negros, patos selvagens, pelicanos, abuseines, grous reais,
águias de todas as espécies, papagaios, marabus e outras aves voavam e passeavam para cima e para baixo
nas margens, olhando para o céu, de tal maneira que pareciam bendizer a benéfica Providência que os criou.
245
Grupos de macacos correm ao rio a beber, sobem e descem das árvores e brincam alegremente fazendo as
mais ridículas caretas próprias da sua natureza. Centenas de antílopes, gazelas vão pastando por aquelas sel-
vas, onde nunca ouviram o tiro de uma espingarda ou experimentaram a astuta arte dos caçadores a arma-
rem-lhe ciladas para as matarem. Enormes crocodilos, deitados nas pequenas ilhas ou nas margens; espanto-
sos hipopótamos lançando jactos de água, especialmente pela tarde, atroam os ares com os mais tremendos
rugidos que, ecoando na floresta, num primeiro momento inspiram terror, despertando em seguida a ideia
mais sublime de Deus.
246
Que grande e poderoso é o Senhor! A nossa embarcação avança, pode dizer-se, sobre os lombos dos hi-
popótamos, os quais, por terem quatro vezes o tamanho de um boi e serem numerosos, porque são às cente-
nas, poderiam afundar-nos num instante. Porém, Deus faz com que esses animais tão ferozes fujam ao ver-
nos. Pirogas e barcas de africanos nus e armados de escudo e lança, poderiam atacar-nos num lugar tão soli-
tário; e em troca, apenas dão conta que avançamos sem temor, lançam-se numa fuga precipitada, esconden-
do-se debaixo dos ramos das árvores gigantescas que crescem em ambas as margens do rio e que, pela sua
enorme grandeza, se estendem para além dos limites do mesmo.
247
Outros homens, alcançada a margem, desembarcam e entram na floresta. Deleitando deste modo o nosso
olhar e bendizendo o Senhor, chegámos à passagem Abu-Said-Mocadah, lugar onde o rio se torna muito
largo e baixo e onde o barco encalha. Todos os marinheiros se vêem obrigados a saltar para o rio e, arrastan-
do a embarcação com enorme esforço, conseguem libertá-la ao fim de algumas horas. O encalhe de um barco
é uma coisa séria.
248
Mais de cem vezes nos encontramos em sítios onde o rio se alarga sobremaneira e a fundura é de um pé.
Então os marinheiros descem ao rio e, à força de puxões e empurrões, arrastam a embarcação durante mais
de uma milha até o rio ser mais fundo e o barco, com a ajuda do vento, poder mover-se por si mesmo. Para lá
de Abu-Said vemos na margem alguém escondido entre as árvores, com a lança na mão, observando furtiva-
mente o Stella Mattutina. Outros apercebem-se de que os vimos e desaparecem a fugir. Nesse momento, o
barco choca com um escolho e nós sentimos de repente uma forte sacudidela. Todas as circunstâncias pare-
cem indicar-nos que o barco se partiu; mas afinal os danos não foram grandes, embora durante o resto da
viagem meta água de modo pouco habitual. Pirogas de indígenas permanecem escondidas entre as altas ca-
nas, que escondem alguma ilha.
249
Destacam-se de entre estas ilhas, pela sua beleza e tamanho, as de Assal, Tauwoat, Genna, Sial, Schebes-
ka, Gubescha, Hassanieh, Dumme, Hassaniel Kebire, Mercada, Inselaba e Giamus. Até agora percorremos o
espaço situado ao longo dos confins dos Bagara propriamente ditos. Bagara significa na nossa língua vaquei-
ros e são chamados assim pela sua especial predilecção pela criação de animais de chifres, de preferência
vacas, as quais para eles desempenham a mesma função que entre nós fazem os animais de carga e as caval-
gaduras. Têm muitíssimas destas vacas, que constituem toda a sua fonte de riqueza.
250
Os Bagara estão divididos em várias tribos, conhecidos no Centro de África com os nomes de Bagara
Hasawana, Bagara Selem, Bagara Omur e Bagara Risekad; e eu creio que talvez estejam assim divididos
pelas rixas dos grandes e ricos ganadeiros, que, ao crescer o número de suas vacas, foram em busca de novas
pastagens, tornando-se chefes de outras tantas tribos. Sendo muito ricos em gado, os Bagara estão em guerra
permanente com a poderosa tribo dos Schelluk, os quais vêm roubar suas riquezas – como direi mais adiante
– e com a tribo do Gebel Nuba, à qual pertence o negro Miniscalchi que agora se encontra em Verona e que
tu também conheces. Sobre o governo e a religião dos Bagara, nada te posso dizer. Só que esta tribo, como a
dos Hassanieh, por muitas e boas razões, não entra por agora nos nossos planos.
251
Por isso seguimos adiante e, ao aproximarmo-nos desses homens, que de há algum tempo nos observam,
eles põem-se rapidamente em fuga. Manadas de búfalos, touros e vacas vêem-se nas longínqua pradarias;
abunda a selva na margem esquerda e menos na direita. Foi um espectáculo ver numa ilha que, assustados
pelo nosso barco, correram para o canal para atravessar para a outra margem. Em vão os seus guardiões ten-
tavam impedi-los com as lanças; por fim também estes atravessaram o rio montados nos seus búfalos, de
modo que parecia ver um exército entregue a precipitada fuga. Já o Stella Mattutina voa sobre a água, quan-
do num troço perto do banco de areia Mocada el-Kelb encalhamos de novo. É meia-noite; à direita, vêem-se
as fogueiras dos indígenas, que, apoiados em seus escudos e de lança na mão, nos observam. Estes são Din-
cas.
À esquerda, estão ancoradas doze ou quinze pirogas, parecidas às gôndolas venezianas, só que mais tos-
cas, enquanto os respectivos barqueiros estão com suas mulheres e filhos nus no bosque vizinho, à volta da
fogueira (fazem estas fogueiras pegando fogo a juncos que se encontram por ali na mata).
252
Estamos entre os Schelluk e os Dincas. Alguns Schelluk passam de barca rente à margem, olhando assus-
tados para o nosso Stella Mattutina. Também alguns Dincas passam e afastam-se receosos. Nós saudamos o
chefe e ele, respondendo à saudação, foge. Essa noite são inúteis os nossos esforços de arrancar o nosso bar-
co do lodo e da areia. Dois tripulantes fazem guarda para nos despertarem, em caso de se acercarem barcas
de indígenas com intenções hostis. Deus protege-nos. Não acontece nenhum incidente desagradável.
253
A nossa situação é bastante crítica. Estamos no meio do Nilo Branco, tendo de um lado os Dincas, que o
ano passado mataram alguns passageiros da embarcação de um certo Latif, de Cartum, e cometeram outras
atrocidades; do outro lado estão os Schelluk, uma das mais poderosas e ferozes tribos da África Central, que
vive de roubos e assaltos.
254
Nós não nos podemos mover: temos dez fuzis, mas o missionário deixa-se matar cem vezes antes de pen-
sar defender-se com grave dano do inimigo. J. C. nunca o teria feito. O capitão do barco, abatido, diz-nos que
não sabe que fazer. Se aqueles homens quisessem, aniquilavam-nos em dez minutos. Sabes qual era a nossa
ideia?
255
Entre outras coisas, depois de examinar e reexaminar cada opção, assentámos em que, se os Schelluk nos
assaltassem armados, nós, levando ao peito o nosso invulnerável crucifixo, lhes entregaríamos tudo, até o
barco. Eles, claro, levar-nos-iam como escravos até ao rei dos Schelluk, talvez para sermos castigados. Po-
rém, com a graça de Deus, com o exercício da caridade e na qualidade de médicos, cedo ganharíamos o afec-
to daquela gente, permanecendo ali sem procurar outro campo da vinha de Cristo, em que iríamos suar até
implantarmos a cruz e a missão.
256
Era esta a nossa situação, mas tínhamos uma arma muito poderosa para não temermos nada. No Stella
Mattutina há uma formosa capela que tem uma belíssima imagem de Maria. Como nossa boa Mãe, a cujos
pés tínhamos colocado a nossa missão, iria Ela ver-nos sofrer e, em grave aperto, não nos socorreria? Pela
manhã celebrou-se missa. Oh, que doce foi naquela difícil circunstância ter entre as mãos o Senhor de todos
os rios e de todas as tribos da terra e pedir-lhe por nós e por nossas necessidades, pelos que estavam em peri-
go junto a nós, por vós, pelos que não o conhecem, por todo o mundo!
257
Sim, meus queridos pais, a mais consoladora oração naquele momento foi em favor dos Schelluk e dos
Dincas, em cujas terras jamais cintilou a luz do Evangelho. Se nos fizessem prisioneiros e nos levassem al-
gemados perante o seu rei, talvez isso fosse a salvação daquela feroz gente; porém, nem nós nem tão-pouco
eles mereceriam tão grande graça. Pela manhã, os nossos marinheiros descem ao rio e durante muitas horas,
com indizível esforço e fadigas, tentam tirar o barco do banco de areia; porém, a embarcação não se move.
Que fazer em tal conjuntura?...
258
Resolvemos entre nós chamar em ajuda aqueles homens. Gritando até mais não poder, indicamos-lhes
que nos acudam, quase a troco de prendas. Depois de gritarmos uma hora, de bater palmas e fazer toda a
espécie de ruído, e muito mais, uma piroga com doze Schelluk e um chefe sai da margem e vem até nós ar-
mada de lanças, arcos e escudos; entretanto, as demais vão-se preparando com gente armada para acorrer em
ajuda da primeira.
259
Quando os temos a bordo do Stella Mattutina, com gestos e gritos indicamos-lhes que queremos a sua
ajuda para libertar a nossa embarcação. Eles dão-nos a entender que, antes de fazê-lo, precisam de voltar à
margem para combinarem com o seu chefe quantas missangas hão-de receber por isso. Não lho permitimos.
Então, depostas as armas, à excepção da lança, atiram-se à água para ajudar os marinheiros. Mas foi tudo em
vão. Então fizemos-lhe entender que deviam ir a terra chamar os outros e que depois nós lhe pagaríamos
bem. «Não» – responderam. «Queremos – disseram – dois ou três chefes vossos (como tais nos considera-
vam aos sacerdotes) para os levarmos connosco e retê-los até que nos deis missangas».
260
Enquanto o capitão discutia e dizia que não, nós combinávamos quem devia ir como refém. Queríamos ir
os quatro e, no fim, enquanto cada um de nós apresentava as suas razões para ir, eles afastaram-se e, em me-
nos de um quarto de hora, apresentaram-se outras três pirogas com homens armados como os anteriores,
que, com toda a força, se deram ao trabalho de tentar mover o nosso barco. Depois de não pequeno esforço, a
embarcação moveu-se e, nós, alegres, pusemo-nos todos a animá-los. Porém, eles, ao verem que se movia,
pararam e, lança em riste, exigiram-nos as missangas. Nós mostrámos-lhas, sem pensar ainda em dar-lhas;
mas quando as viram em suas mãos, eles desapareceram rapidamente, deixando-nos sós e com a embarcação
mais afundada que antes.
Em seguida, vimo-los já em terra reunirem-se em grande número e repartirem as missangas. Assim pas-
sou todo aquele dia. Nós em cada momento observávamos os nossos amigos Schelluk; e na verdade o vai-
vém de pirogas, a aparição de outras, o afastamento dos Dincas na outra margem do rio (e sabemos que os
Dincas temem muito os Schelluk, de modo que quando se juntam muitos Schelluk por um lado, os Dincas
fogem por outro), tudo nos fazia suspeitar se não tentariam apoderar-se do nosso barco e fazer connosco uma
boa patuscada.
261
Caída a tarde e chegada a noite, reunimo-nos para tratar o modo de sair daquele aperto. Há propostas,
discussões e reza-se. Porém, já to disse antes, nunca se pode mostrar medo, quando se pensa que temos uma
Mãe amorosa e poderosa que vela por nós.
262
A Virgem Maria, precioso alívio do missionário, essa Virgem é a verdadeira Rainha da Nigrícia, a Mãe
da Consolação, não podia abandonar os seus quatro servos, que tentavam dá-la a conhecer, com seu divino
Filho, também a essas gentes idólatras. Ela vinha em nosso auxílio, ao sugerir-nos o modo de sair dessa situ-
ação. Durante a noite, voltámos a colocar sentinelas e custou-nos muito trabalho negar aos marinheiros o
fuzil. Porém, tivemos que fazer isso para que não acontecesse algum incidente e se armasse alguma rixa com
os indígenas; porque os nossos tripulantes são maometanos e para eles é uma virtude matar outros.
263
Passa a noite, e pela manhã, põe-se em marcha a execução do plano acordado, que consistia no seguinte:
com os 16 remos do barco (que são quatro vezes mais grossos que os das nossas embarcações do Garda)
construir uma jangada num lugar onde o rio fosse fundo e sobre esta jangada pôr 30 caixas daquelas cujo
conteúdo não se deteriorasse em contacto com a água, como ferramentas, garrafas, quinquilharias, etc., a fim
de aligeirar o barco, que sem dúvida flutuaria um pouco mais e assim os marinheiros poderiam empurrá-lo
mais facilmente até um lugar com suficiente profundidade. A ideia foi executada com exactidão e celeridade.
Carregar a jangada, empurrar o barco e voltar a carregar levou umas dez horas; e é incrível a fadiga que, sob
um sol de 38 graus, os tripulantes tiveram de passar para efectuar os carregamentos.
264
Deus abençoou o plano e depois de 42 horas de penosa demora naquele terrível banco de areia, favoreci-
dos por um vento forte, continuámos a viagem, dando graças à Providência que, naquele dia, tinha suavizado
a belicosidade dos Schelluk, os quais nunca deixam escapar semelhantes ocasiões para fazer presas ou des-
pojos. Contentes por ter deixado atrás esse perigo, avançámos rapidamente e com muita cautela. Cada quarto
de hora o Stella Mattutina encalha de novo e é libertado com dificuldade; amiúde choca com escolhos e ban-
cos de areia. E é para admirar que esta embarcação, ainda que a maior e mais forte do Sudão, porque está
toda reforçada com ferro, tenha conseguido trazer-nos até aqui, entre os Kich, sem ficar destruída.
265
Nas margens esquerda e direita abundam os homens armados de lança, escudo, arco e flechas. À esquerda
estão o Schelluk; à direita os Dincas que, quando se apercebem de que os Schelluk são muitos, se escondem
na floresta e só aparecem quando a margem esquerda está menos povoada de Schelluk. É surpreendente ver
terras cobertas de gado, ao longo de muitas milhas, com vacas, touros, e ver nuvens de milhares e milhões de
aves (não exagero nada) de toda a espécie, cor e tamanho, que nos escondem a luz do Sol.
266
Imaginai florestas e prados, onde nunca se estenderam armadilhas a pássaros. Os indígenas não fazem na-
da para apanhar os pássaros, que, pelos vistos, não é um alimento apreciado por eles. Quanto mais se avança,
diminuem, andam sempre mais nos matagais, até que deixam de se ver; de tal modo que as margens até ao
7o grau são cobertas apenas de juncos, papiros, pequenas mimosas e só de quando em quando surge, como
um gigante, o Bamboas, que é a espécie de árvore mais grossa e alta do mundo. Antes de chegarmos à capital
dos Schelluk, onde paramos com o Stella Mattutina, quero dar-te alguma informação das duas grandes tribos
dos Schelluk e dos Dincas. A tribo dos Schelluk, uma das maiores e mais poderosas tribos da África Central,
estende-se de 12o ao 9o grau de lat. N.
267
Pelas informações que temos, não têm nenhuma religião: apenas reconhecem e crêem num espírito invisí-
vel que tudo criou, o qual, às vezes, desce a visitá-los sob a aparência duma lagartixa, dum rato ou de uma
ave. Dado que os Schelluk não têm suficientes manadas de vacas para combinar os seus casamentos e viver,
andam em contínua guerra com a vizinha tribo dos Bagara, de tal modo que agora estão muito ricos devido
às rapinas que fazem a estes. Todos os anos, quando os ventos sopram do Sul, a parte de povoação Schelluk
que se encontra em apertada pobreza junta-se em numerosas grupos, comandados por um dos seus chefes; e
nas suas velozes pirogas descem pelo rio mais de duzentas milhas e escondem-se nas pequenas ilhas cobertas
de mato de que eu antes te falei.
268
Quando se dispõem a explorar os lugares onde os Bagara levam os seus gados a beber, juntam-se em gru-
pos de trinta, quarenta pirogas que, por serem velozes, compridas e baixas, podem navegar à noite sem serem
vistas e desaparecerem rapidamente atrás da erva das margens. Quando os animais chegam e se lançam se-
dentos à água, os Schelluk, escondidos, caem com a lança em punho sobre os espantados guardiões e levam
as vacas, os carneiros, os touros, etc., e regressam às suas ilhas, antes que, de seus longínquos acampamen-
tos, os Bagara possam partir em socorro dos seus irmãos atacados: os quais, sem terem nenhuma barca ou
outro meio de perseguir os ladrões, não podem fazer senão ameaçar de longe o inimigo espoliador.
269
Mas há ocasiões em que os Bagara se vingam dos Schelluk. Às vezes, informados da chegada e dos hostis
propósitos dos Schelluk, esperam-nos emboscados no mato da margem e caem sobre eles no momento em
que vão a apanhar o gado. Separam-nos de suas embarcações e, fazendo-os prisioneiros, vendem-nos como
escravos aos mercadores núbios, convertendo-se assim em objectos de comércio nos mercados de Cartum.
270
O governo dos Schelluk é despótico e o seu trono está ensanguentado de lutas entre facções e de crimes
entre herdeiros. Embora tenhamos passado em frente da capital dos Schelluk, não vimos a residência do rei,
porque se encontra a três milhas de distância. Está construída, segundo me disse um indígena que sabia ára-
be, em forma de labirinto. A vida do rei está ameaçada de manhã à noite e ele vive oculto, não dormindo
duas noites seguidas na mesma habitação.
271
Todos os povoados desta vasta tribo estão submetidos a uma contribuição anual de muitas vacas, segundo
a riqueza ou o número de habitantes. Além disso, o rei tem direito à terça parte de todos os roubos que seus
súbditos cometem fora da tribo e castiga com a perda de tudo ou quase tudo a quem roubar e não lhe levar a
sua parte da presa. Como todas as tribos de África, praticam a poligamia, podem ter quantas mulheres quise-
rem e deixá-las quando lhes apetecer. Sobre a caça que fazem aos hipopótamos, a forma das suas cabanas,
etc., como são idênticas às das outras tribos de África que temos visto no nosso trajecto, dir-te-ei algo quan-
do delas te falar.
272
Teremos mais ocasiões de conhecer e de observar esta gente. Fisicamente são altos e vigorosos e vi mui-
tos de estatura gigantesca. Os homens, como todos os de África que temos visitado, andam completamente
nus; o mesmo acontece com as mulheres, à excepção das casadas, que se cingem do lado direito ou esquerdo
com uma pele de cordeiro ou de cabra. As mais ricas trazem uma pele de tigre, porém, elas pouco se interes-
sam em cobrir aquilo que deve andar coberto; e, pelo que vi, quase me inclino a crer que isto não o fazem
por sentimento de pudor, mas por vaidade. A fantasia dos Schelluk manifesta-se especialmente nos adornos
do cabelo. Cortam-no de mil maneiras: fazem cristas de galo, barbas de bode; às vezes cortam-no, deixando
que forme como que orelhas de carneiro ou de tigre. Nem eu seria capaz de te indicar em pormenor o que de
bizarro tem esta classe de adornos, em que gostam de caprichar.
273
Esta seria uma tribo adequada para o nosso plano de missão, porém, por motivos que já te direi, descar-
támo-la. E eis que estamos na sua capital, Denab e Kako. Esta cidade está situada no rio Branco e tem mais
de uma milha de comprimento. O rei nunca concede audiência a ninguém, salvo a três ou quatro confidentes
seus e às suas inumeráveis mulheres quando quer servir-se delas.
Quando esses seus confidentes se aproximam, têm de arrastar-se como serpentes, receber as ordens de
rosto em terra e, depois, voltar atrás arrastando-se; em suma – e permite-me que use a expressão veronesa
para me fazer entender – quando se apresentam ao rei, devem entrar dentro da sua cabana gatinhando. À
vista da capital dos Schelluk, desfrutamos de um espectáculo surpreendente. Quando o Stella Mattutina pára
em frente dela, surge uma multidão de variadas raças e costumes, que instalam um mercado na margem.
Havia uma raça de homens completamente vermelhos, como sangue vivo, iguais aos que vi perto de Halfaya.
274
Havia nómadas de cor avermelhada; havia gentes de Abu-Gerid, cor de tijolo cozido; havia indivíduos
amarelados, parecidos aos Hassanieh; havia gente de Cordofão, de cor pardo-escura; e nativos Schelluk, que,
como todos os negros da África Central, andam sempre armados de lança (cuja forma varia segundo as tri-
bos), de escudo de couro de forma alongada, de arco e de flechas. E estas armas trazem-nas sempre (à excep-
ção do escudo que às vezes depõem), quer andem a apascentar os rebanhos quer estejam a comerciar ou sem
fazer nada. Todas as tribos que visitámos usam a lança para se defender ou atacar, para cortar as coisas de
que precisam, para pescar, caçar, etc.
275
Tanto os homens como as mulheres trazem fiadas de colares de missangas, que põem ao pescoço, ou à
cintura como nós pomos a faixa, ou na fronte; e o que tiver mais missangas é considerado o mais belo. Vi o
filho de um chefe que tinha contas de vidro até na barriga e andava como se fosse o dono do mundo.
276
O rei, certamente, crê-se o maior monarca da terra, com excepção do da Abissínia e, por isso, não conce-
de audiência a ninguém, salvo ao rei da Abissínia, se ele vier. Em Kako, que é uma cidade dos Schelluk,
situada no grau 10, tentei comparar a língua do meu amigo Bahhit Miniscalchi com a local; mas encontrai-as
diferentes. Por outro lado, estou convencido de que por Kako se pode penetrar com muita facilidade nas tri-
bos de Karco e Fanda, isto é, Gebel Nuba, sem passar o deserto de Bagara, o Cordofão e Dongola, que é o
caminho que seguiu o negro Miniscalchi. Também essa tribo seria adequada ao nosso plano, porém, opõem-
se a isso as razões de que te falarei. Em toda a margem esquerda dos Schelluk até ao grau 9 e meio abundam
os guerreiros armados, como te disse, que caminham com bastante dificuldade, andando com os calcanhares
voltados para fora.
277
Mas passemos aos Dincas. É a maios tribo da África Central, ao que consta; e esta é a razão pela qual
desde há muito tempo pensamos escolhê-la como ponto central das nossas fadigas e como campo dos nossos
suores. Sobre o estado desta tribo, o seu governo, religião, etc., não se sabe nada de concreto: até os seus
confins se ignoram. Antes, contudo, de nos decidirmos definitivamente por ela, queremos visitar outras tri-
bos para escolhermos com maior segurança e elementos de juízo. Os Dincas, que andam nus, como todas as
tribos que temos visto, cobrem de cinza todo o corpo, incluindo a cabeça e os olhos; e isto, segundo nos foi
dito, fazem-no para se protegerem dos mosquitos, que em número infindo, de diversas espécies, atormentam
a quem vive na África Central.
278
As suas margens estão infestadas de crocodilos e hipopótamos: um dia, observando de longe, vi como
que um grande e comprido escolho, que eu pensei ser de granito vermelho: era, afinal, uma ilha formada por
enormes hipopótamos juntos. Os Dincas, como todos os negros da África, trazem braceletes de marfim no
antebraço e nos pulsos. Esfregam as suas flechas com uma certa erva venenosa, tornando-as assim mortais.
Os que pertencem a esta tribo distinguem-se das outras raças de negros: têm a fronte espaçosa e protuberan-
te, o crânio achatado e inclinado até às fontes, o corpo comprido e delgado.
279
Vendo esses homens com a lança na mão, apoiando preguiçosamente todo o corpo no escudo, tem-se a
impressão de estar diante da encarnação da vida ociosa e indolente; e eles, desde que tenham bebida alcoóli-
ca para se embriagarem, leite para se sustentarem e mulheres para se satisfazerem, não desejam mais nada.
Porém, a luz do Evangelho brilhará aos seus olhos e, penetrando nas suas mentes e no seu coração, com a
graça divina mudarão os seus pensamentos, índole e costumes. A sua língua estende-se a outras tribos de
África; e, pelo que me parece, não passa duma amálgama de monossílabos. As povoações dos Dincas são
bastante miseráveis, contrastando com o aspecto das cidades dos Schelluk, as quais são maiores, mais espa-
çosas e cómodas.
Todas as cidades são um conjunto de aldeias juntas, que se distinguem por um espaço intermédio de 30
passos. As povoações compõem-se de cinquenta, cem, trezentas ou mais cabanas, construídas em forma de
cone. O seu perímetro é circular, a sua parede tem uns sete pés de altura e é de barro; sobre ela assenta uma
cobertura de canas bastante elegante. Observai a figura n.o 1, que dá uma ideia de Kako. Mas deixemos os
Dincas (1): mais tarde, se Deus quiser, quando conseguirmos entrar no interior desta vasta tribo, poderei dar-
vos notícias mais abundantes.
280
Porém, antes de continuar, quero contar-vos como nos detivemos em Hano para comprarmos um touro.
Aqui, no Stella Mattutina, recebemos o velho chefe (scheik) dessa cidade, o qual, com os seus cabelos bran-
cos, com os membros a tremer, nu, metia dó. Fizemo-lo entrar na formosa capela e surpreendido pela mara-
vilha, soltou um grande grito e recuou como fulminado; tendo-o levado diante de um grande espelho do ca-
marote do barco... é melhor não contar as coisas estranhas e curiosas que fez. Ao ver a sua figura no espelho
(falava com ele próprio, respondia, gritava), desatava em grandes gargalhadas e, finalmente, talvez por ter
visto algo no espelho, pôs-se a fugir. Nós detivemo-lo; ele proferiu tanto palavreado acompanhado de movi-
mentos, que parecia querer entregar-nos em mão o seu poder. Finalmente foi para terra num batel feito de
canas de ambai, composto de sarmentos ou feixes, com que os Schelluk costumam atravessar o Nilo.
281
Aquela povoação ou cidade estava rodeada de formosas palmeiras de Doleb, que são como as tamareiras,
porém, com a diferença de que na parte média do tronco são mais grossas que em cima e em baixo. Poucas
milhas depois de Hano, abrem-se majestosas as bocas do rio Sobat, que levam ao interior do território dos
Dincas e que estão ainda vermelhas, por assim dizer, dos que tentaram entrar por elas; estes pagaram porque
se apresentaram com ânimo hostil, ameaçando aos indígenas se não lhes entregassem os dentes de elefante
que possuíam. Nós, já na Europa, havíamos decidido penetrar no território dos Dincas pelas bocas do Sobat e
talvez levemos a cabo este projecto. Mas agora, desde Assuão, decidimos percorrer os locais para nos asse-
gurarmos melhor aonde quer Deus que comecemos a nossa missão.
282
Estas bocas formam como que um delicioso lago cercado de exuberante vegetação. Chegado a este ponto,
o rio vira bruscamente para ocidente, banhando à esquerda a tribo dos Yangueh, à direita o imenso pântano
dos Nuer, que é uma verdadeira ilha, circundada de um lado pelo rio Branco, do outro pelo canal dos Nuer, e
tem a a circunferência de mais de 400 milhas. Não te digo nada da pequena tribo dos Yangueh, salvo que
nela há uma infinidade de plantas de papiro, que os antigos usavam em vez do papel para escrever e que
outrora abundava no Egipto. Esta útil planta é como a do milho, salvo que as suas folhas caem como cabelos,
graciosamente, à maneira de melena.
Aqui saudamos os indígenas desta tribo que, de uma forma grosseira, mas cordialmente, respondem com
gritos à nossa saudação, exultantes por terem morto um grande hipopótamo, cuja carne, feita em pedaços,
haviam posto ao sol para a comerem assim, crua, como fazem os negros.
283
Em terras dos Yangueh vemos muitos baobás de tamanho mediano e imensas manadas de búfalos selva-
gens, grandes como bois, com os cornos monstruosamente retorcidos para a frente, aos quais aquela gente dá
caça. Pelas montanhas de Tkem e Kira, que ficam muito no interior a ocidente, há imensas girafas que che-
gam com o pescoço até uma altura de 25 pés. A margem esquerda, passado o território dos Nuer, oferece-nos
o espectáculo de um rebanho de grandes elefantes, abundantes nesse imenso pântano, que pastavam no ca-
minho até ao rio onde iam beber. Há ali muitos rinocerontes, um dos quais foi morto anteontem perto da
nossa estação provisória.
Foi depois da vista destes elefantes que um vento impetuoso rasgou a vela maior do nosso barco, de modo
que nos vimos obrigados a permanecer naquele pântano meio dia, perto do lugar onde um núbio da missão
de Cartum, que se afastara da margem, foi morto pela lança de um Nuer.
284
Aí, enquanto o P.e Beltrame dava caça a um hipopótamo, eu quis seguir um bando de abusin, que são
aves do tamanho de um cabrito. Mas, diante dos disparos do P.e João, que é um bom caçador, o hipopótamo
nem se dignava mover-se, porque só a sua pele tinha a grossura de 4 dedos; e, aos meus disparos, os abusin
apenas se davam ao trabalho de voar quatro passos para mais longe, desprezando os meus esforços como
inúteis. Eu nunca atirei com bala. Reparada a vela, prosseguimos viagem com ela embrulhada (puxada para
cima) e o barco, sem velas despregadas, avança rapidamente como um vapor. Dois dias depois da nossa vi-
ragem a ocidente, chegámos à foz de outro enorme rio da África Central: o Bahar el-Gazal, o rio dos veados.
O aspecto da paragem onde se juntam o rio Branco e o El-Ghazal é o de um lago encantado, rodeado de
imensos e ameníssimos jardins de mimosas, ambalós e baobás, formados pela natureza e que nunca mão de
homem ousou tocar.
285
Neste ponto, que se encontra no grau 9, virámos exactamente para o meio-dia, sempre percorrendo os
imensos confins da tribo dos Nuer, que habita em ambas as margens. Desde aqui até aos Kich, o rio efectua
mais de 40 mudanças de direcção, virando ora para sul, ora para norte, ora para oriente e ocidente, de modo
que durante mais de um dia os marinheiros tiveram que rebocar o barco (tirar l’anzana, como dizeis vós no
lago de Garda) debaixo dum sol abrasador; e como os Nuer dão pouco valor à vida do homem, cada vez que
os tripulantes desciam a terra tinham que ir armados. A dificuldade aumentava naqueles lugares onde, com
vento contrário, não se podia descer a terra, por causa do matagal que estende os densos ramos até bem den-
tro do rio; então lançávamos a âncora e esperávamos até ter o vento favorável. Mas lançar a âncora no Nilo
Branco não é como fazê-lo num lago, porque aqui o rio corre impetuoso. Neste decurso, gozámos ao anoite-
cer um surpreendente espectáculo de hipopótamos e íbis. A partir de Cartum, vimos milhares e milhares de
hipopótamos e também de íbis.
Com um tamanho igual a 4 vezes o de um boi, o hipopótamo tem uma cabeça desmesurada, parecida na
forma à de um vitelo e na sua boca cabe um homem, o seu lombo é como o de um cavalo e as patas são cur-
tas como as do porco, se bem que proporcionadas; o seu mugido normal é como o do boi, ainda que mais
sonoro e grave. O hipopótamo vive de dia na água e de noite sai do rio e alimenta-se de erva; nos lugares
onde há cereais e sorgo, como na Núbia, devasta um campo numa só noite. Ao entardecer, o hipopótamo
costuma sair precipitadamente da profundidade do rio para a superfície, bufando e mugindo e dando saltos
como os de cavalos e logo imergindo novamente, revolvendo toda a água como numa tempestade. A nossa
embarcação passou mais de uma vez sobre o lombo dos hipopótamos; muitas outras vezes tivemos de supor-
tar golpes tremendos, produzidos pela passagem de um hipopótamo; precisamente no Stella Mattutina, há
uns anos, enquanto o cozinheiro estava no seu trabalho, foi projectado para a água por um hipopótamo e
devorado de uma só vez.
286
Pois bem, naquele entardecer, encontrávamo-nos no meio de milhares de hipopótamos que bufavam, mu-
giam e corriam precipitadamente, como se à nossa volta se desencadeasse uma batalha entre estes temíveis
anfíbios. Esta cena durou até à manhã seguinte e muitas vezes teve que se mover a embarcação de um lado
para o outro do rio para evitar este temíveis animais quando estavam em grupos, formando outras tantas
ilhas. Também naquela tarde percorremos um bom troço admirando na margem esquerda uma fileira de al-
tíssimas árvores, durante três milhas, todas cobertas de íbis.
287
O íbis tem um tamanho equivalente a duas vezes o nosso peru, com pescoço comprido, bico de pato e be-
líssimas plumas. O íbis era na antiguidade um dos maiores deuses do Egipto e o seu nome também foi agora
adoptado em Verona por uma sociedade científica, que imprime um boletim com o nome de Íbis. Imagina
agora o que é percorrer três milhas junto de uma fileira de árvores todas cobertas não de moscas, mas de
centenas de milhares destes preciosos voláteis que, sem temor, observavam a passagem do Stella Mattutina.
288
Aquilo foi um motivo para exaltar a grandeza de Deus que com tanta sabedoria e poder pensa também
nesses animais. Para fazer ainda mais bela aquela tarde e aquela noite, contribuíram também as inumeráveis
fogueiras dos Nuer, que, para abrir passagem desde o interior até ao rio, incendeiam o alto capim de toda a
planície, o qual é um espectáculo digno de se ver. A vasta região dos Nuer oferece-nos, além disso, o espec-
táculo de manadas de antílopes, de búfalos e de muitos outros animais. Passada a extensa cidade de Goden,
descobrimos com grande surpresa que os negros cultivam sorgo. As suas cabanas são muito semelhantes às
dos Schelluk, porém, distanciadas umas das outras e, em volta de cada cabana, há sementeira de sorgo do
qual se alimenta essa família.
A tribo dos Nuer é a mais laboriosa de todas as que temos visto e, portanto, a meu ver, a mais rica. Tive
ocasião de conhecer algo deste povo, por nos termos detido em Fandah-el-Eliab, que é como que a capital e o
mais importante mercado das tribos.
289
Quero agora fazer uma pequena digressão. Já na Europa, pelos livros, etc., e, depois, pelos relatos trágicos
que ouvimos em Cartum, tínhamos formado uma ideia terrível sobre os Nuer: que matam, que massacram,
que comem pessoas, etc., etc.; e sobre isto houve insistências especialmente em Cartum, onde nos aconselha-
ram a armar-nos de muitos fuzis para resistir aos ataques dos negros. Mas desde a tribo dos Hassanieh vimos
sempre que os negros fugiam ao ver-nos. Os Bagara, os Schelluk, os Dincas, os Nuer, etc., ou respondiam às
nossas saudações ou fugiam. Em resumo, embora nos encontremos sempre no meio de tanta gente armada de
lanças, escudos, flechas envenenadas e grossos varapaus, devo chegar à conclusão de que eles têm mais me-
do de nós do que nós deles; por isso, ao apresentarmo-nos diante dos negros, vamos resolutos e sem nenhum
temor e eles, ao verem-nos assim, fogem se não os convidarmos a permanecer connosco.
290
E isto pu-lo em prática quando, chegado a Fandah, fui por entre lanças a um mercado dos Nuer, que, à
medida que nos aproximávamos, nos abriam passagem como quando entre nós passa um imperador. Nessa
altura, tive ocasião de admirar a fantasia dos homens e das mulheres Nuer. Muitos tinham o cabelo empasta-
do de barro, de cinza ou de sorgo e caía-lhes em pequenas tranças; outros tinham-no todo coberto de peque-
nas pérolas e missangas à semelhança de um capacete militar; outros, com o cabelo eriçado bruscamente na
vertical, pareciam os diabos que se costumam pintar entre nós; outros trazem pedaços de latão e de cobre na
fronte; outros tinham o cabelo em forma de prato; outros traziam ao pescoço tiras de pele de tigre; e todos
com dois, três, e até cinco braceletes de marfim nos braços. Adornadas de tal modo, essas figuras nuas, em-
pastadas de cinza, para te dizer a verdade, pareciam-nos demónios.
Maior era contudo a extravagância das mulheres, que traziam nas orelhas duas, três, dez e até quinze
anéis de cobre; havia-as que tinham as orelhas completamente cobertas de missangas e vidros coloridos;
outras tinham a barriga toda adornada de fiadas de anéis, contas, etc., e muitas com uma fiada de contas,
vidros, ou anéis de cobre enfiados no lábio superior, sobressaindo para cima.
291
Enfim, era um espectáculo vê-los entre as lanças, os escudos e as flechas. O aspecto das mulheres é mons-
truoso. Com os seus compridos e brancos dentes, com a pele enrugada pela cinza, com o corpo todo cheio de
lodo, digo a verdade: quase fazem vomitar. Esta grande tribo dos Nuer seria um campo muito adaptado para
o nosso trabalho; mas o seu território pantanoso é mortal para o europeu, e, o que é pior, tem contra uma
razão que te direi depois. Em Fandah recebemos no barco o chefe desta tribo, o qual deu as mesmas mostras
de assombro que o de Huao; mas este era mais corajoso e resoluto.
292
Perto de Meha, vemos no rio o cadáver de uma mulher e apercebemo-nos de que estamos na tribo dos
Kich, onde têm o mau costume de atirar os mortos ao rio. Aqui um caucasiano Koschut veio visitar-nos jun-
tamente com outros três ao Stella Mattutina e conta-nos muitas coisas da tribo dos Angai, que fica muito no
interior e cujo chefe comprou há pouco um formoso jovem por dezassete bois e logo o matou. Encontramos
o chefe da tribo sujo como um porco e furioso porque os Nuer tinham vindo e lhe tinham roubado todos os
rebanhos. Vemos as sórdidas cabanas dos Kich, que nos revelam bastante em que miséria se encontram esses
pobres africanos. Passando junto a uma aldeia, onde estava um dos chefes, este põe-se a correr atrás do nosso
barco dizendo “nosso senhor veio” e gritando cham-cham, que significa «tenho fome». Demos-lhe uns bis-
coitos, e ele, armado, quer vir atrás de nós pela margem, como para nos proteger dos ladrões na nossa passa-
gem, os quais existem ali em grande número; pode-se até dizer que todos os Kich são ladrões, ainda que
tímidos e pouco astutos.
293
Depois de deixarmos para trás a povoação de Abu-Kuka, ajudados por negros que rebocavam a embarca-
ção, chegámos, finalmente, à estação de Santa Cruz, onde agora nos encontramos, que fica na terra chamada
Pa-Nom. A nossa chegada teve lugar a 14 de Fevereiro, vinte e cinco dias depois da nossa partida de Cartum,
que dista mil milhas desta cidade, segundo cálculos precisos e restritos. Pa-Nom está situada a sete graus de
lat. N. e é um magnífico ponto central e mais seguro que os outros para iniciar explorações.
Por isso detemo-nos aqui; e, se não aparecer nada que o impeça, estamos decididos a implementar o plano
do nosso superior e cumprir as suas ordens de encontrar uma tribo adequada aos seus fins. Eis o que pensa-
mos fazer: através de todas as explorações e averiguações levadas a cabo até agora, pudemos certificar-nos
de que a língua dos Dincas é a mais difundida em toda a África banhada pelo Bahar el-Abiad; e é falada e
entendida não só pelos Dincas, mas também pelos Nuer, pelos Yangueh, pelos Kich, pelos Tuit, assim como
pelos Schelluk, que habitam a margem esquerda, em frente dos Dincas.
294
Agora ficamos aqui entre os Kich para aprender a língua dos Dincas e igualmente para explorar a zona
para termos um melhor conhecimento do que Deus quer que façamos. Aprendida a língua, poderemos em
seguida escolher entre muitas tribos, onde se fala o dinca; assim disporemos de mais tempo para consultar a
vontade do Senhor.
295
A nossa actual estação provisória está situada a pouca distância do rio, no início de uma selva inexplora-
da, cheia de elefantes, tigres, leões, hienas, búfalos, rinocerontes e outras feras e animais selvagens. Todas as
noites elefantes, leões e outras feras passam pela nossa estação e vão ao rio beber. Três dias depois da nossa
chegada à tribo dos Kich, um leão arrastou um burro para fora do curral e dilacerou-lhe o lombo; dois dias
mais tarde passaram mais de duzentos elefantes junto a nós (que estávamos metidos nas nossas cabanas) para
irem ao rio. No passado domingo, o P.e Ângelo e eu penetrámos na selva durante meia hora para ver se en-
contrávamos árvores pequenas para fazermos uma cabana e descobrimos grande número de árvores derruba-
das pelos elefantes e o rasto de búfalos e leões, mas não vimos animais ferozes, porque Deus nos protegia.
Prometi-te antes contar-te algo sobre a caça aos elefantes e hipopótamos, mas não tenho tempo. Basta que
saibas que o elefante é o animal terrestre maior que se conhece, que, com a sua tromba, derruba enormes
árvores; que, tendo dois dentes, cada um pesa três, quatro e até cinco arrobas; e que no Cairo cada dente de
elefante se paga a cem táleres o qintâr (umas 4 arrobas).
296
Queridos pais, vejo que estou num mundo totalmente diferente do da Europa. [...] Parece-me, por outro
lado, que os relatos dos viajantes sobre a África são exagerados. É verdade que estes homens matam e mas-
sacram, mas só quando provocados.
297
Nós viemos aqui com o ósculo da paz, a fim de lhes trazer o maior bem que existe: a religião. Eles nunca
nos deram motivos de desgosto: trazem-nos lenha, palha e tudo o que há; nós, em troca, damos-lhe sorgo ou
missangas e eles vão-se todos contentes. Não temais, meus queridos: com o crucifixo ao peito e com a pala-
vra de paz, amansam-se as bestas mais ferozes; também é verdade que se tem necessidade da graça de Deus,
mas esta nunca falta. Teremos que trabalhar, suar, morrer; porém, a ideia de que se sua e se morre por amor
de Jesus Cristo e pela salvação das almas mais abandonadas do mundo é demasiado doce para desanimarmos
de levar a cabo a grande empresa.
298
O primeiro esforço que Deus quer que façamos é aprender a língua dos Dincas. Quando se dispõe de
gramáticas, de dicionários e de bons professores, não é tão difícil aprender uma língua estrangeira. Mas o
nosso caso é bem diferente. A língua dos Dincas nunca foi conhecida, pelo que não existem nem gramáticas,
nem dicionários, nem professores. A gramática e dicionário da língua dos Dincas vamos fazê-los nós. E, para
o efeito, teremos de colher todas a palavras dos lábios destes indígenas, que não conhecem nem a nossa lín-
gua nem o árabe. Vede quantas dificuldades!
299
E uma vez que se disponha de um discreto reportório de palavras, à força de raciocínio e de deduções te-
remos que chegar às regras gramaticais, à formação dos tempos, ao modo de construir frases e similares.
Sim, tudo isto terá de ser feito por nós. Por outro lado, para pregar, não podemos estar à espera de conhecer a
língua na perfeição. Apenas saibamos balbuciar quatro pequenas frases, aí nos vereis no meio duma multidão
de homens armados, a tentar dar-lhes uma ideia de Deus, de Jesus Cristo e da religião. Já começamos aqui a
reunir os Kich. Que Deus comova os seus corações!
300
O que ainda nos dá pena é ver esta gente deploravelmente ociosa. Há aqui planícies de centenas de milhas
que têm uma terra com a qual na Europa se fariam milagres e eles deixam-nas incultas. Passam fome e não
pensam em semear. Carecem, é certo, de ferramentas e de tudo; mas o engenho que lhes permitiu fabricar
lanças e flechas deveria tê-los ensinado também a fazer enxadas, pás, picaretas e ferramentas de corte. Mas
sobre eles não quero dizer-vos nada até os conhecer melhor. Até agora não vos falei nada da religião desta
gente, nem da ideia que têm de Deus. Nós, para escolhermos segundo um bom critério um lugar de missão,
temos que nos informar de tudo, inclusive de coisas que aparentemente nada têm a ver com a religião. Mas
tempo virá em que escreverei também sobre esta. Os que vivem perto do rio dedicam-se à pesca.
301
O Nilo está cheio de grandes peixes; não se pode comparar a abundância da pesca do nosso lago com a do
Nilo, especialmente entre estas tribos; e deduzo isto pela maneira de pescar destes indígenas; não têm anzóis
nem redes, apenas uma comprida cana, na ponta da qual há uma flecha. Com este arpão montam nas suas
pirogas e percorrem, por exemplo, um trecho de cem passos a cravarem-no continuamente na água, sem to-
marem o peixe de mira; e é curioso ver a quantidade de peixe que conseguem pescar em pouco tempo. As
suas pirogas são do comprimento das nossas barcas, mas muito estreitas, não ultrapassando os três palmos,
pelo que apenas cabe uma pessoa. Os Schelluk constroem estas pirogas com tiras de casca de árvore que
unem umas às outras e aqui entre os Kich são de uma peça única, feitas de um tronco escavado à força de
arpões.
302
Mas basta, queridos pais. Eu teria outras coisas para vos dizer, gostaria de estar sempre a falar-vos para
vos consolar, para vos repetir que estejais satisfeitos e tranquilos. Não vos queixeis nem do abandono nem da
separação; deixai que chorem a separação os que não têm religião; e ainda supondo que não nos voltaríamos
mais a ver neste mundo, não é uma sorte abandonarmo-nos na Terra para nos encontrarmos para sempre
felizes no céu?
303
A despedida, a distância, o abandono podem chorá-lo os mesquinhos e infelizes que não conhecem outro
mundo além deste, nem outra união além da união material das pessoas. Mas nós sabemos pela fé que há um
Paraíso, onde se reúnem todos os verdadeiros filhos de Deus; ali se juntam todas as preces dos homens, vin-
das de todos os rincões da terra. Por isso, ainda que vós estejais numa parte do mundo e eu noutra, estamos e
estaremos sempre unidos, porque convergimos para um só ponto – Deus – que é centro de comunicação en-
tre vós e mim.
304
Porém, sabeis porventura o que a Providência determinou? Talvez nos voltemos a ver. O clima de África
é terrível, mas não tanto como se crê. Não vos parece uma maravilha que, de seis que somos, nenhum de nós
tenha perecido na viagem? Para vossa consolação, devo dizer-vos, além disso, que a posição em que nos
encontramos é muito melhor que a de Cartum e é saudável. Já nos habituámos ao calor, as febres vão e vêm,
mas acabam por desaparecer. Morrerei, Deus o sabe, mas eu até agora estou são e os cinco gozamos de es-
plêndida saúde. Dêmos graças ao Senhor, mas com a condição de que nos mande outras tribulações, se não
nos quiser mandar enfermidades e mortes.
305
Enfim, queridíssimos pais, o Senhor vos abençoe primeiro na alma e depois no corpo. Lembrai-vos que
vos trago sempre no coração. Os meus companheiros saúdam-vos cordialmente, enviam-vos a sua santa bên-
ção e desejam ser por vós recordados. Rogai por eles e pela missão. Quando menos o esperardes, Deus vos
consolará. E, além disso, será que eu não serei capaz de consolar-vos com as minhas cartas? É verdade que
são pobres e escassas de substância, mas pensai que, estando escritas embora grosseiramente, são escritas
pelo vosso filho que vos ama.
306
Eu conservo as vossas como uma relíquia. Logo que as recebo, guardo-as por ordem e quando um natural
sentimento de dor por vós me oprime, leio-as e consolo-me, porque sinto que vivo na vossa recordação. Fa-
zei vós também o mesmo; quando as coisas correrem mal (o que é sinal de que estamos neste mundo) leiam
algumas páginas destas toscas cartas que de quando em quando vos mando e vereis como vos sentireis alivi-
ados. E quem sabe que alegrias vos tem Deus preparadas nesta Terra! Vós, porém, procurai sempre as do
Céu, desprezando as temporais. Deus vê tudo! Deus pode tudo! Deus nos ama; rezai pela conversão da Áfri-
ca!
307
Enquanto vos abraço a ambos, saudai cordialmente da minha parte Eustáquio, Hermínia, o tio José, César,
Pedro, Vienna e a todos os parentes, não vos esquecendo de dar um beijo por mim a Eugénio, quando voltar
gloriosamente de Innsbruck. Apresentai os meus respeitos ao sr. conselheiro, ao patrão, à sra. Lívia, e através
deles, a Adolfo e aos senhores Santiago e o Teresa Ferrari, de Riva. Também ao novo ecónomo espiritual,
dizendo-lhe que, como seu paroquiano, também tenho o direito à sua solicitude pastoral; porém, como ele
está num hemisfério e eu noutro e, encontrando-me tantas milhas longe de seus olhos, não pode exercer so-
bre mim o seu paternal cuidado; mas ao menos tenho direito a participar nessa pastoral solicitude por meios
das orações. E já que o seu múnus implica rezar ao Senhor pelo seu povo, e nas festas celebrar missa pro
populo, eu desejo participar dos seus pastorais cuidados, participando das suas orações. Numa palavra, dizei-
lhe que reze ao Senhor por mim, que sou sua ovelha, embora extraviada.
308
Em meu nome apresentai saudações ao sr. José e à sra. Júlia Carettoni, ao sr. Pedro Ragusini e a Bartolo
Carboni; à família Patuzzi, velhos e jovens, a P.e Ben, às três sras. Parolari-Patuzzi, aos srs. Giraldi, quer
dizer, às senhoras Nina e Tita, ao sr. João, a Ventura, etc.; ao médico, a todos os Luchini, ao amigo António
Risatti, ao sargento, também em nome do P.e Ângelo; ao pintor, aos jardineiros de Supino e Tesolo, a Ram-
bottini e Barbera, ao bom Pedro Roensa, com sua família e filha empregada dos nossos. E quanto à nossa
criada, estamos entendidos; saudai também a sra. Cattina Luchini, Sassani, etc., etc. Mandai as minhas cor-
diais saudações ao arcipreste de Pieve, ao P.e Luís, ao P.e Pedro, ao pároco de Voltino, ao dr. David e a essa
boa mulher que é a velha Mariana Perini.
309
Em resumo, cumprimentai da minha parte a todos os que frequentam a nossa casa, a Minico, o de Riva,
aos nossos parentes de Bogliaco e Maderno e a todos os patrícios de Limone. Dizei aos habitantes de Limone
que vos abandonei com a minha pessoa, mas nunca com o espírito. Nunca é tão doce a lembrança da própria
terra como quando se está longe dela. Dizei-lhes que rezem ao Senhor por um conterrâneo seu que, ainda que
afastado, sente afecto por eles. As minhas saudações ao invulnerável Pirele, a sua esposa, a pudibunda Maria.
Enfim, adeus, queridos pais. Compraz-me repetir-vos que gozo da melhor saúde; o mesmo espero de vós. Ao
receberdes esta, suponho que já vos terá chegado a encomenda de Jerusalém. Dizei a quem mando lembran-
ças que se recordem de mim, mas diante de Deus.
Recebei o mais carinhoso abraço e, além disso, a santa bênção do

Vosso af.mo filho


Daniel Comboni
Missionário apostólico na África Central

(1) Os Dincas arrancam os dois dentes incisivos à idade de 7 anos.


N.o 33 (31) - A EUSTÁQUIO COMBONI
AFC

Tribo dos Kich, no 7o lat. N.,


5 de Março de 1858

Querido primo,

310
Não me recordo se na minha última, que te escrevi de Cartum, te fiz uma queixa justificada; mas mesmo
que o tenha feito, quero repeti-la. Ao abrir agora a tua carta, não encontrei notícias do pequeno Hermínio...
enfim, já me entendes. Quero que me dês informações não só do meu querido Eugénio mas também dos
outros. Espero que te encontres bem e do mesmo modo o tio.
311
Ouvi dizer que o tio quer fazer uma viagem a Jerusalém: seria uma óptima coisa, pois estou certo que, de-
pois, não se importaria de morrer. Mas, para falar verdade, não o aconselharia a realizar essa viagem, não
tanto pelas duas mil milhas que teria que percorrer no mar, mas especialmente pela passagem das montanhas
da Judeia, que nem sempre são seguras. Além disso, requere-se uma força juvenil, uma vez que terá de sofrer
incomodidades e outras dificuldades, incompatíveis com os seus sessenta anos. E muito menos o aconselha-
ria a fazer a viagem com os frades, os quais, por estarem acostumados a sofrer, não lhes será excessivamente
pesado passar um mês num barco sujo e pestilento.
Porém, se, chegada a Páscoa, o tio decidisse fazer essa viagem, é preferível que vá ao Lloyd austríaco e
que tu, então, me escrevas em seguida para eu poder recomendá-lo em Alexandria, em Jaffa, ao cônsul fran-
cês em Jerusalém e em todas as cidades da Palestina, onde eu tenho úteis correspondentes. Advirto-te de
novo de que nem todos os frades são convenientes; sei-o por experiência própria. Quanto à língua, quem não
estiver habituado, desembaraça-se com o italiano, porque na Palestina há mais de cem missionários italianos.
Passemos a outro assunto.
312
A minha actual situação, as minhas ocupações, impedem-me de te dar um breve relato da minha viagem
ao Centro da África. Podes ler o confuso emaranhado de ideias que escrevi ao meu pai. Que mudanças se
produzem na vida! Há seis meses encontrava-me entre gente civilizada, culta, entre cristãos; agora não posso
dar uma volta sem me encontrar com uma chusma de pobres indivíduos, que, na sua língua, com a expressão
cham-cham (tenho fome) nos pedem o baksis. Na Europa vivíamos em casas de alvenaria, comíamos em
mesas e dormíamos em camas. Aqui vivemos em toscas cabanas de canas e juncos, comemos gostosamente
sobre um dos nossos caixotes de viagem, dormimos sobre uma tábua ou sobre um catre feito de cordas de
tamareira.
313
Na Europa não se viam senão cães, cabras, bois, burros; aqui estamos quase familiarizados com os elefan-
tes de tromba comprida, com os búfalos de cornos bifurcados, com os hipopótamos de bocas enormes, com
os crocodilos, as hienas, os leões e com outros animais ferozes que, de noite, se acercam das nossas cabanas.
Em todo o caso, encontro-me muito satisfeito, porque, ainda que não veja como será possível converter estas
pessoas e desconfie por completo dos meios humanos, tenho confiança num acto prodigioso da graça de
Deus.
314
A nossa vida, a vida do missionário, é uma mistura de dor e gozo, de preocupações e esperanças, de so-
frimentos e consolações. Trabalha-se com as mãos e com a cabeça, viaja-se a pé e em piroga, estuda-se, sua-
se, sofre-se, goza-se: é isto o que de nós quer a Providência.
315
Ontem, recebemos a visita do chefe dos Abukuk, a quem queremos comprar uma barca; tendo-lhe nós fa-
lado de Deus e do Céu, perguntou se nesse Céu havia vacas e brincos de cobre. Ele tem 10 mulheres, cerca
de mil vacas e três caixotes de missangas; no entanto, pediu-nos de comer, pois tinha fome; e veio mais ve-
zes pedir-nos esmola. Aqui há uma só estação. O tempo mais quente é de Novembro a Abril, altura em que
temos o Sol na vertical sobre a cabeça; e de Abril a Novembro faz menos calor devido às chuvas. Mas basta;
lê devagar o pequeno relato da viagem enviado a meu pai.
316
Espero que estejais de boa saúde e que as convulsões dêem poucas vezes à minha boa prima Hermínia.
Muitos cumprimentos para ela. Recomendo-te de todo o coração o meu querido Eugénio. Quando o orienta-
res, aconselhares, cuidares dele (e sei com muito gosto que o farás com solicitude), pensa mais na religião
que no interesse e nas vãs ideias de grandeza do mundo. Se conseguir sair-se bem em Innsbruck, isto é, se
não se deixar contaminar no convívio com maus companheiros (o que me causa grande preocupação, devido
à corrupção da juventude moderna), verás a satisfação que te dará o bom Eugénio.
317
Recomendo-te também Hermínio: procura mantê-lo distante de certas companhias pouco recomendáveis
e grosseiras. E como, por natureza, é um pouco orgulhoso, convirá sobremaneira mantê-lo à rédea curta e em
vigilância, procurando, isso sim, fazer-lhe compreender que tendes esperança de que se emendará; doutro
modo desanimará e deixar-se-á levar pelo seu mau feitio.
318
Recomendo-te, além disso, o pequeno Henrique. Embora menos astuto e perspicaz, seguirá o caminho de
Eugénio: cultiva nele a ideia da religião. Procura igualmente que os filhos de César sejam educados. Deus
pôs-te em condição de o fazeres: aproveita. Certas ideias grosseiras adquiridas pelo contínuo contacto com
más-criações crónicas, não me agradam; entendes-me... A educação é o mais precioso património do homem
e da mulher e é mais estimável diante de Deus e dos homens do que muitos recursos patrimoniais; agora
implica gastos, mas amanhã, ao fim e ao cabo, também faz crescer a bolsa.
319
Despedindo-me de ti, querido Eustáquio, peço-te que me escrevas. As tuas cartas consolam-me muito e
são-me muito agradáveis. Oh, como são tão afectuosas as palavras das pessoas queridas e distantes. Que me
escrevam também teus filhos. Dá-me notícias deles, de meus pais, de [...] de Pedro, de César, de todos. Apre-
senta os meus respeitosos cumprimentos ao patriarca Beppo e à tagarela da sua esposa, a Sra. Júlia.
320
Diz-lhe que gostaria de saber fazer o pão como ela, porque assim não teria de comer tanto sorgo, que se
parece com massa consistente. Mas bendito seja Deus. Os meus cumprimentos também aos Srs. Santiago e
Teresa Ferrari; e, naturalmente, a todos os nossos de Riva com os respectivos criados. Enquanto, com todo o
coração e dando-te um carinhoso abraço, me declaro

Teu af.mo primo


Daniel Comboni

321
Lembranças ao tio, dizendo-lhe que os nossos acordos devem ser firmes. Manda também as minhas es-
peciais saudações a P.e Giordani e P.e João Bertanza.

N.o 34 (32) - A P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/39

Da tribo dos Kich, a 7o lat. N.


9 de Março de 1858

Querido P.e Pedro,

322
A sua estimadíssima de 21-11-57, que me chegou há poucos dias de Cartum, proporcionou-me simultane-
amente dor e prazer. A dor proveio do facto de pensar que a minha pobre terra natal, com a sua saída, fica
privada do mais sábio dos seus pastores – o que é um mal e presságio de quem sabe quantas desventuras! O
prazer, que foi grande, senti-o ao saber que o senhor foi, finalmente, eleito para o importante cargo de arci-
preste de Toscolano; e quanto a isto, não sei se terão sentido mais júbilo em seu coração os afortunados tos-
colanenses ou este seu amigo distante, no momento em que o portador núbio lhe entregou a carta que trazia a
feliz notícia.
323
Não, não, meu querido P.e Pedro; não era por o senhor ser pároco de Limone ou o consolo de meus isola-
dos pais ou por outro motivo secundário que eu, unanimemente consigo, resolvia manter estreita relação,
apesar da grande distância que nos separava.
324
Era o afecto; era a feliz circunstância de dois corações que se uniam como se de um só se tratasse; era,
pois, a mais estreita amizade o que nos movia a mantermo-nos unidos, mesmo de longe, mediante leal e recí-
proca correspondência. Portanto, embora não esteja em Limone, embora agora seja arcipreste de Toscolano,
não está em causa a ruptura da nossa relação epistolar; eu continuarei com ela, não a fazendo depender do
êxito da nossa grande missão. P.e Pedro, continue, pois, a consolar a minha solidão com longas cartas, em
que me informe de si e das suas coisas, da sua família, de Toscolano, etc., porque serão para mim notícias
agradabilíssimas.
325
Saberá, como lhe escrevi de Cartum, que P.e João, P.e Francisco, D. Ângelo e eu partimos dessa cidade a
21 de Janeiro, depois de trocarmos abraços com o nosso irmão P.e Dalbosco, a quem deixámos como procu-
rador e como elo de ligação entre nós e a Europa, se bem que em Alexandria disponhamos de outro procura-
dor, este secular, na pessoa do conde Frisch de Viena, excelente italiano. Dobrada a ponta extrema de On-
durman, no 16o de latitude N., lugar onde se juntam os dois grandes rios Bahar el-Azrek e Bahar el-Abiad,
formando o Nilo, o nosso barco entra majestoso no Bahar el-Abiad, que se abre diante de nós com toda a sua
grandiosidade e beleza.
326
Este grande rio, embora menos profundo, é muito mais largo que o Nilo; e avançando embora contra a
sua corrente, o barco em que viajamos corre por aquelas agitadas águas com a celeridade dos nossos vapores
do Garda, graças a um vento favorável e forte. As tribos que encontrámos para lá de Cartum, que está situada
num lugar fronteiriço, são os Hassanieh, os Lawin e os Bagara, que são nómadas por causa da sua principal
actividade, a pastorícia, e, por isso, têm de se deslocar constantemente para os lugares onde a pastagem para
o seu gado é mais abundante. Passadas estas tribos, encontram-se as dos Dincas na margem direita do rio, as
dos Schelluk na esquerda. E é antes de chegarmos a estas duas tribos que gozamos do espectáculo de uma
natureza entregue a si mesma, nunca travada nem adulterada pela mão do homem.
327
As margens do rio estão cobertas por uma vegetação exuberante e viçosa que durante um largo percurso
parece um Éden encantado. Grupos de centenas de ilhéus revestidos de verde intenso, que salpicam o rio ao
longo de quase duzentas milhas, oferecem o aspecto de aprazíveis jardins. Bosques virgens e florestas impe-
netráveis de gigantescas mimosas, de verdes nábac, de espinhosas acácias, de papiros, tamarindos e outras
árvores frondosíssimas de todo o tamanho, estendem-se consideravelmente terra adentro, tanto a oriente co-
mo a ocidente e oferecem o mais seguro refúgio a milhares de antílopes, gazelas, girafas, leões e outros ani-
mais selvagens que se passeiam e vagueiam sem temor por aquelas paragens virgens, nunca tocadas pela
mão do homem.
Imensos bandos de aves de todas as espécies, tamanhos e cores esvoaçam livremente por aquelas rama-
gens, enchendo o ambiente de desgarrados mas agradáveis cantos: os íbis, as águias reais, os patos selvagens,
os airós, os abusin, os abumarkub, os papagaios de plumas de ouro, os pelicanos, etc., etc. andam e voam
pelas margens em imensos bandos e, de longe, confundem-se facilmente com os macacos, que vão saltando
pelas árvores, vêm beber ao rio e fazem caretas à nossa passagem. Em suma, parece ver-se uma floresta am-
bulante.
328
A este espectáculo acrescenta-se depois o fragoroso mugir de centenas de milhares de hipopótamos que,
soprando, levantam da água a sua cabeça monstruosa e que com seu lombo sacodem a embarcação, enquanto
nas ilhas se vêem a descansar grupos de crocodilos que, à nossa passagem, arrastando-se uns atrás dos ou-
tros, se refugiam na água. O hipopótamo é quase quatro vezes maior que o boi e a sua boca pode engolir um
homem inteiro, como nos disseram que já aconteceu mais que uma vez. Nós vemo-los amiúde com a enorme
boca aberta e é um espectáculo. O maior crocodilo que encontrámos media, pelos nossos cálculos, vinte pés;
mas há-os até de trinta pés. Os hipopótamos nadam agrupados às centenas, aos milhares e à nossa passagem
mergulham nas ondas.
329
No território dos Nuer, a nossa embarcação avançou durante quatro milhas, de velas enfunadas, sempre
sobre lombos de hipopótamos. As primeiras vezes mete medo, mas, depois, uma pessoa habitua-se, ainda
que o cozinheiro do nosso barco tenha sido atirado ao rio por um hipopótamo e devorado. Passados os 10o
de latitude, a natureza mostra-se mais pálida, diminui a vegetação, as margens ficam cobertas de juncos e
assim se continua até aos 7 graus. Não falo de muitas peripécias desta viagem, das manadas de elefantes, de
búfalos selvagens, de antílopes, etc. que víamos do barco. Também não falo dos territórios dos Dincas, dos
Nuer, dos Yangueh, etc. que percorremos, nem das inúmeras impressões que nos deixaram estas imensas
paragens, porque seria demasiado prolixo como fui numa longuíssima carta escrita a meu pai sobre esta via-
gem. Contudo, mesmo assim, de passagem, vou narrar-lhe uma aventura que tivemos com a tribo dos
Schelluk.
330
No dia 30 de Janeiro, o nosso barco vai parar a um banco de areia em Mocada el-Kelb. No Nilo e no Nilo
Branco encalhámos mais de mil vezes, por o rio em muitos locais ser pouco fundo; mas aqui o vento empur-
rou o barco com tanta força que nem os braços dos nossos 15 valentes marinheiros foi capaz de o libertar.
Normalmente, quando a embarcação encalha, os marinheiros descem à água e, com os ombros, ajudam o
ímpeto do vento e põe-na a flutuar. Na noite de 29, depois de repetidos esforços, o nosso capitão diz-nos que
não consegue libertar o barco. E encontramo-nos num sítio em que temos os Dincas à direita e os Schelluk à
esquerda, que vivem de assaltos, tendo que dar ao rei a terça parte do produto roubado. Na praia vemos uma
fila de dez barcas de Schelluk, todos armados de lança, arco, flechas, varapaus e escudos.
331
Em Cartum tinham-nos feito horríveis descrições dos Schelluk e o capitão confirmava tudo. Ao anoitecer
pomo-nos a deliberar sobre o modo de sair daquele pântano, mas não surge nenhuma ideia que nos satisfaça.
Finalmente decide-se chamar os Schelluk para ajudarem os marinheiros, prometendo-se-lhes missangas,
pequenas pérolas e prendas. Nós, entretanto, a custo conseguimos impedir que os marinheiros peguem em
armas.
332
O missionário deve preferir morrer que iniciar a pregação do Evangelho matando o inimigo para se de-
fender. Por outro lado, que podiam fazer 11 fuzis que nós trazemos para nos defendermos das feras? À noite
decidimos chamar em ajuda os Schelluk; e se eles aparecessem com ar hostil, entregar-lhe-íamos o barco
com todo o conteúdo; e se não nos matassem, tentaríamos implantar a cruz naquela tribo, onde nunca brilhou
a luz evangélica.
333
De manhã, à força de gritos, de levantar a bandeira da nossa missão, etc., demos a entender àqueles ho-
mens da margem que viessem até junto de nós. De repente aproxima-se uma canoa com 12 indígenas, de
gigantesca estatura, armados como atrás ficou descrito; tendo-lhes feito compreender que queríamos que
ajudassem os marinheiros a tirar o barco, respondem que dois de nós deviam subir como reféns para a sua
piroga e acompanhá-los à margem, onde tratariam com o seu chefe o preço em missangas que nós pagarí-
amos pelos seus serviços. Enquanto o capitão se negou a isso, nós os quatro estávamos na disposição de ir
como reféns. Foi difícil entender-nos mutuamente, pois cada qual queria ser escolhido como refém.
334
Enquanto nós assim falamos, os homens começam a ajudar os marinheiros. Mas depois de muitos esfor-
ços, vendo que o barco não se move de modo nenhum, tentamos fazer-lhes entender que devem chamar ou-
tros dos seus irmãos para que venham em nossa ajuda. (Talvez os Schelluk pensassem que, uma vez tirado o
barco do banco de areia, iriam levá-lo consigo.) Em menos de meia hora eis que aparecem outras três barcas
armadas; e todos, em número de 50, se põem a empurrar o barco. Logo que começou a mover-se, todos pa-
ram e pedem missangas. Nós mostramos-lhas, mas eles, desconfiados, querem que lhas dêmos de imediato;
apenas lhas entregamos, num instante afastam-se do nosso barco e fogem.
Este episódio sucedeu no dia 30. Às últimas horas da tarde, chamamos uma e outra vez pedindo ajuda,
mas ninguém acorre. Que fazer no meio do rio entre duas poderosas tribos? O nosso problema era sério. Po-
rém, no barco (que é propriedade da missão de Cartum) há uma belíssima capela, adornada com uma ima-
gem de Maria. Poderia a nossa boa Mãe deixar desamparados a quatro filhos seus, que procuram dá-la tam-
bém a conhecer juntamente com seu Filho a estes pobres povos? Não; a boa Mãe vinha em nossa ajuda suge-
rindo-nos um modo de sair daquela situação.
335
Na manhã do dia 31, com os 15 remos da embarcação improvisámos uma jangada e sobre ela colocámos
mais de 30 caixotes, a fim de aligeirar o barco. Depois, à força de empurrões dados por aqueles incansáveis
marinheiros núbios, foi finalmente arrastada para um lugar onde a água era profunda. Carregado de novo o
barco, com grande esforço, o que nos levou dez horas, partimos, dando graças ao Senhor e a Maria, e dei-
xando desiludidos os Schelluk, entre os quais notávamos um vaivém que nos agradava pouco. Bendito seja o
Senhor que nos assistiu maravilhosamente em todas as nossas viagens.
336
Desde Cartum até ao território dos Kich, todos os homens e mulheres andam completamente nus, à ex-
cepção das casadas – ou melhor grávidas – que cingem os flancos com uma pele de cabra ou de tigre. Dor-
mem estendidos na cinza, besuntam todo o corpo com cinza e andam sempre armados de lança, arco, flechas,
escudo, etc., etc. Nós averiguámos através das nossas explorações que a língua mais difundida nas regiões
incógnitas da África Central é a dos Dincas, a qual é falada não só por essa tribo mas por mais umas dez ou
doze; por isso ficamos aqui entre os Kich, para estudar esta língua e ao mesmo tempo fazer explorações até
ao equador. Depois, na tribo que julgarmos mais conveniente, começaremos a pregação do Evangelho, se-
gundo o grande plano do nosso superior, P.e Mazza.
337
Eu comecei também a exercer a medicina e agora tenho como clientes todos os doentes que há por estas
redondezas. Quando estão curados, vêm ver-me e cospem para cima de mim, mas sobretudo tomam-me as
mãos e cospem-me nelas, em sinal do mais profundo agradecimento. Da língua dos Dincas balbucio 522
palavras, bom, 523, porque neste momento acabo de aprender que a-gnáo significa gato. É um trabalho indi-
zível aprender uma língua tomando cada palavra dos lábios dos indígenas. Mas basta, meu P.e Pedro. Por
esta folhinha, não pode fazer a menor ideia do que foi objecto das nossas observações; mas escrever-lhe-ei...
Os meus companheiros saúdam-no cordialmente, congratulando-se por a Providência o ter chamado a cuidar
de tão considerável grei.
338
Compraz-me também comunicar-lhe que, apesar dos incómodos de uma comprida peregrinação e do
abrasador sol africano, gozamos de uma saúde maravilhosa. De 22 missionários da missão de Cartum, que
tem dez anos de existência, morreram 16 e quase todos nos primeiros meses. Nós estamos a todo o momento
preparados para a morte; mas, à parte o clima, muitas das mortes devem-se à falta de médicos e de medica-
mentos. Mas glória ao Senhor. Saúdo-o do coração; com a primeira expedição chegar-lhe-á algum objecto do
Centro da África. Os meus cumprimentos à sua mãe, à bondosa Elisa, a toda a sua família, aos seus sacerdo-
tes, a cujas orações me encomendo, a Júlia Pomaroli, e ao Engenheiro Mastela e esposa, quando escrever
para Modena. E creia-me de coração

Seu af.mo Daniel Comboni

339
N.B. Na próxima semana tentaremos uma exploração entre a aguerrida tribo dos Tuit, que se acha no 6o
de lat. Mandámos vir aqui, à tribo dos Kich, o chefe dessa outra tribo; e depois de lhe oferecer um embrulho
de missangas, cruzinhas, etc., disse-nos que fôssemos à sua tribo quando quiséssemos, que ele se encarrega-
ria de preparar os seus súbditos, mas fez-nos uma advertência: que não entrássemos nas suas cabanas, porque
havia lá um espírito que devorava os homens. Nós assegurámos-lhe que o espantaríamos. “Não – respondeu
–; ele devora tudo!”
Veremos. Agora que começamos a balbuciar esta língua, já podemos meter-nos no meio destes indígenas
armados e falar-lhe de Deus. Bastantes vêm já à missa pela manhã, outros vêm para ser instruídos e muitos
estão a adquirir o costume de se benzerem. O exercício da caridade, especialmente a assistência aos doentes,
contribui muito para fazer crescer a estima por nós.
340
Aqui, tanto os vivos como os moribundos, jazem no chão cobertos de cinza: este é o seu único remédio. É
deplorável toda a espécie de miséria que reina entre todas as tribos de África Central. Ah, se tantos bons
sacerdotes da diocese de Bréscia, que agora estão apáticos e ociosos entre as paredes da sua casa, vissem
tantos milhões de almas que se encontram nas trevas e sombras da morte! Se num voo se transportassem para
estas regiões incógnitas, estou certo que se converteriam em outros tantos apóstolos da África! No entanto
espero que a Providência de Deus há-de mover também o generoso coração dos sacerdotes brescianos; o
pensamento de que são tão ardentes e magnânimos para com a pátria leva-me à persuasão de que o serão
ainda mais pela causa de Deus, pelo incremento do seu Reino; mas para isso era preciso uma faísca...
341
Oh! Espero que o exemplo dos missionários do Instituto Mazza de Verona e o do seminário de S. Caloce-
ro de Milão incite os fervorosos e magnânimos corações dos meus irmãos e conterrâneos de Bréscia a entre-
garem-se a grandes empresas para a difusão do Reino de Deus. Rogo-lhe apresente o meu humilde respeito a
sua Ex.a o senhor bispo de Bréscia. Enfim, meu caro P.e Pedro, escreva-me. Quando se está longe sabem
melhor as palavras das pessoas queridas. E caras me serão as notícias da sua actual situação, do importante
cargo a que foi chamado, etc., etc. e de tudo. Adeus!

N.o 35 (33) - AO DR. BENTO PATUZZI


ACR, A, c. 15/88
Tribo dos Kich
África Central, ao 7o lat. N.
15 de Março de 1858

Dilecto compadre e amigo,

342
Que grande descoberta fez neste dia o seu amigo distante! Hoje apercebi-me quão depressa passa o tem-
po... E sabe porquê? Porque hoje descobri que me estou a tornar rapidamente velho. Ah, meu amigo, hoje
faço 27 anos e parece-me que ainda ontem era um jovem! Parece-me que ainda ontem, menino, aprendia no
regaço de minha mãe a fazer o sinal da cruz ou quando pelo famoso tesólico vale, onde respirei os primeiros
hálitos da vida, ia sozinho e me apresentava na sua excelente e patriarcal família para aprender os rudimentos
da leitura italiana por obra do celebérrimo gramático P.e Pedro, seu querido tio, que, com uma paciência de
Job e uma constância de alemão e amiúde com uma não muito agradável reguada, pelo considerável impor-
tância de 75 cêntimos por mês, se ocupava energicamente da minha instrução.
343
Ó inocentes e doces recordações dos tempos que já lá vão! Mas também o senhor, meu caro Bento, avan-
ça a passos largos para a idade da velhice dos seus veneráveis antepassados. E portanto como nós vamos
envelhecendo tão rapidamente, quero que dediquemos este dia a recordar as vicissitudes da nossa juventude,
o mesmo que agora fariam dois gloriosos veteranos de Napoleão que, encontrando-se juntos, passariam mui-
tas horas a recordar as fadigas, as viagens, as batalhas e os triunfos passados; só que desta vez farei eu de
protagonista. Efectivamente, começarei a entretê-lo, contando-lhe as minhas aventuras e o senhor, quando as
tiver ouvido, fará o mesmo com as suas. Mas não vou abordar todas as circunstâncias das minhas peripécias
passadas; far-lhe-ei apenas um pequeno resumo da minha viagem por Bahar el-Abiad, esperando que lhe
agrade ouvir as coisas que aconteceram a um sincero amigo seu que, naqueles jocosos momentos, pensava
também em si e, às vezes, até lhe parecia que era por si acompanhado, partilhando mutuamente as múltiplas
e variadas impressões recebidas.
344
Porém, antes de abordar a breve exposição da minha viagem através do Bahar el-Abiad, tenho de expli-
car que o Nilo, pelo qual naveguei do Cairo a Korosko e de Berber a Cartum, é formado por dois grandes
rios conhecidos pelos árabes com os nomes de Bahar el-Azrek, o Nilo Azul, e Bahar el-Abiad, o Nilo Bran-
co, assim chamado precisamente pela cor das suas águas, os quais se juntam em Ondurman, perto de Cartum,
formando assim o Nilo propriamente dito que, depois de um curso de bastantes milhares de milhas através da
Núbia e do Egipto, desagua, por diversos braços, no Mediterrâneo.
345
As nascentes do Nilo Azul conhecem-se desde a Antiguidade e ficam nas montanhas da Abissínia, não
muito longe do lago Dembea, as quais sempre foram erroneamente consideradas como as nascentes do ver-
dadeiro Nilo. Por este rio viajou em 1875 o nosso P.e João Beltrame até ao 16o de lat. N., com o objectivo de
procurar um lugar apto para uma missão, segundo o grande plano do nosso superior P. e Nicolau Mazza. Mas
tendo-se considerado, por muito válidas razões, impróprio qualquer ponto ao longo do Nilo Azul, o superior
decidiu que, mediante a nossa expedição, se tentasse a realização do seu plano no Nilo Branco.
346
Antes devo esclarecer também que este rio, muito mais largo, caudaloso e comprido que o Azul, foi ante-
riormente percorrido por outros e especialmente pelo missionário P.e Ângelo Vinco, do nosso Instituto. Por
isso as suas margens são até certo ponto conhecidas; porém, nunca ninguém se aventurou muito terra aden-
tro, onde, em contrapartida, se estendem as suas grandes tribos. De maneira que, embora se saiba o nome
destas, porque um dos seus confins chega até ao rio, pode dizer-se que as tribos do misterioso Nilo Branco
são desconhecidas, porque não se sabe nada ao certo sobre os seus costumes, população, governo, religião e
coisas do género.
347
Estando assim as coisas, a nossa intenção é realizar o plano do nosso superior numa das tribos da África
Central que se considere mais adequada, começando pelas margens do Nilo Branco. Nesta obra ser-nos-ão
muito úteis os dois Institutos de negros e negras que o grande homem de Deus vai formando em Verona,
como importante viveiro para a implantação das missões na África Central.
348
Com esse fim, ao amanhecer do dia 21 de Janeiro, depois de abraçarmos o nosso caro companheiro P.e
Alexandre Dalbosco, que ficou em Cartum na qualidade de nosso procurador e elo de ligação entre a Europa
e as tribos onde nós contávamos estabelecer-nos, saímos desta cidade nós os quatro, ou seja, P.e João Bel-
trame (o chefe da missão), P.e Francisco Oliboni, P.e Ângelo Melotto e eu, acompanhados por P.e Mateus
Kichner, missionário da estação de Cartum, a quem o vigário apostólico, que recentemente se deslocara à
Europa, tinha encarregado de ir visitar em seu lugar as estações de St.a Cruz e Gondokoro.
349
O barco que nos devia transportar nesta perigosa viagem era o Stella Mattutina, propriedade da missão de
Cartum e um dos maiores e, sem dúvida, o mais elegante de quantos até então haviam sulcado as caudalosas
águas do Nilo Branco. Levava uma população de 14 valentes marinheiros, à frente dos quais estava um mui-
to experimentado rais (capitão), que já tinha feito outra vez esta mesma viagem; e nós experimentáramos
anteriormente, de forma directa, até que ponto este capitão era perito e hábil na arte de navegar por este
grande rio. Depois de uma não leve luta com o vento do Norte e de ter passado o Nilo Azul até à ponta ex-
trema de Ondurman, onde se juntam os dois grandes rios (embora cada um conserve por cerca de quatro
milhas as cores que lhe são próprias), abriu-se diante de nós o Nilo Branco, mostrando-se em toda a sua es-
plêndida grandiosidade e beleza.
350
Um vento muito forte leva-nos rapidamente por essas águas agitadas e revoltas, as quais, apesar de a cor-
rente nos ser contrária, parecem retirar-se humilhadas à passagem do Stella Mattutina, que avança majestoso
quase com a velocidade dos nossos vapores do lago de Garda. As suas margens distantes estão pitorescamen-
te cobertas de um variada vegetação, onde pastam rebanhos de bois e cabras; e mais para o interior elevam-se
ao céu os ramos de gigantescas mimosas, sobre as quais esvoaçam livremente numerosos bandos de belíssi-
mas aves.
351
A primeira tribo que fica além de Cartum é a dos Hassanieh, que se estende por ambas as margens do rio.
Os seus habitantes dedicam-se à pastorícia, que é a sua principal fonte de alimentação. Estes nómadas andam
sempre armados de lança e como os núbios, que habitam neste e no outro lado do deserto, trazem sempre
atado ao braço nu, junto ao cotovelo uma afiada faca que utilizam sempre que precisam. E foi precisamente
no território desta tribo, em Uaschellai, onde no segundo dia nos detivemos para adquirirmos um boi, porque
o nosso rais nos avisou que durante muitos dias não encontraríamos onde conseguir comida para nós e para a
nossa tripulação. Não lhe posso contar nada desta tribo, a não ser que é nómada, de modo que a maior parte
dos seus membro – embora haja uma ou outra aldeola – vão de um lugar para outro, conforme encontram
melhores e mais abundantes pastagens para o gado.
352
Para lá do 14o de lat., encontram-se outras pequenas tribos: a dos Schamkab, à esquerda do rio, e a dos
Lawins, à direita. Passadas estas, começa, em direcção ao sul, a grande tribo dos Bagara que, à esquerda, se
estende entre os 12o e 14o de lat. N. e, à direita, entre os 13o e 12o; no espaço intermédio, entre os 12o e
13o, fica a tribo nómada dos Abu-Rof, da qual apenas posso dizer que existe. Precisamente aqui, ao longo
das margens habitadas pelos Bagara e em parte pelos Schelluk, a paisagem torna-se mais interessante e ma-
ravilhosa; as aldeias e as cabanas começam a desaparecer: tudo é silêncio. A nossa dahhabia (o Stella Mattu-
tina) é a única embarcação que navega por estas águas tranquilas e nós, da ponte do barco, observamos com
o maior assombro o espectáculo duma natureza virgem e nunca contaminada, que sorri nesta parte encanta-
dora do rio.
353
Durante um longo trajecto, as suas margens estão revestidas de uma imponente e exuberante vegetação
nunca obstruída nem alterada pela mão do homem. Densos e imensos bosques impenetráveis e até agora
inexplorados, formados por gigantescas mimosas e verdejantes nabak, avançam por longos espaços, forman-
do uma interminável e variegada selva encantada, que oferece o mais seguro refúgio a grandes manadas de
gazelas e antílopes e a alguns animais ferozes, que nós vemos vaguear livremente, sem temor de ciladas ini-
migas. Estes bosques das margens, por vezes, aparecem graciosamente adornados de verbenácias e de certa
erva espessa e trepadeira, as quais formam como que pequenas cabanas naturais, debaixo das quais se estaria
resguardado da mais intensa chuva. Centenas de ameníssimas ilhas, qual delas mais esplêndida, sucedem-se
umas às outras, encantadoramente esmaltadas de verde, oferecem de longe o aspecto de ubérrimos jardins.
Dá sombra a estas pequenas e preciosas ilhas um série de acácias e mimosas que, por vezes, apenas deixam
penetrar algum raio do ardente sol africano e formam ao longo de quase duzentas milhas um arquipélago de
maravilhosa fertilidade e beleza.
354
Bandos infinitos de aves de toda a espécie, tamanho e colorido (íbis de plumagem branca e negra e bico
longo e curvo, pelicanos de branco e majestoso pescoço, papagaios de penas douradas, águias reais, patos
selvagens, abusin, grous reais, marabus, etc. esvoaçam sem temor por cima e por baixo dos ramos, ao longo
das margens ou entre a erva espessa, olhando amiúde para o céu como a bendizerem ao Deus dos rios e dos
bosques que os criou.
Macacos de toda a espécie brincam entre o arvoredo, trepam pelos troncos, assomam com a cabeça entre
a folhagem, correm ao rio beber, lançam gritos, avançam, param... Grandes crocodilos, tranquilamente es-
tendidos nas margens ou na areia nua de alguma pequena ilha, procuram, à nossa passagem, alcançar o rio
para se esconderem, arrastando-se com muita dificuldade. Imensos hipopótamos, que, às centenas, resfole-
gando, mostram a sua enorme cabeça e lançam fragorosos mugidos, às vezes, chocam com os pesados dorsos
contra o barco e, ruidosamente, voltam a mergulhar.
355
Em suma, meu caro, eu não seria capaz de dar-vos nem uma pálida ideia daquele maravilhoso espectáculo
de que fomos testemunhas durante alguns dias entre as tribos dos Bagara e dos Schelluk. A nossa dahhabia,
entretanto, avança rapidamente sobre as brancas águas sulcadas umas vezes por algumas pirogas de africanos
armados de lança, que, à nossa passagem, se dão a precipitada fuga ou se escondem entre a densa folhagem
das árvores que se espraiam muito além de margem, ou descendo a terra desaparecem na selva; outras vezes
por alguma pequena barca dos Bagara que, furtivamente, nos observam ocultos entre as canas de lança na
mão; e outras com algum schelluk, que, depois de nos saudarem com a palavra de ordem gabarah, foge rapi-
damente e enfia-se na selva. Foi uma cena bastante curiosa ver numa ilha uma manada de bois que, assusta-
dos à passagem do nosso barco, correram a lançar-se no canal para passar à margem; em vão os guardiães
tentaram impedi-los com as lanças; eles mesmos, montando nos lombos dos bovinos, atravessaram precipita-
damente o rio.
356
Mas eis que aqui o nosso Stella Mattutina choca com um escolho; e depois, logo que reparada, chegamos
à passagem de Abuzeit, onde, pelo facto de o rio ser muito largo e pouco profundo, encalha ligeiramente e os
marinheiros se vêem obrigados a saltar ao rio e mover o barco à força de empurrões. É incrível o esforço e
suor que custa a esses infatigáveis núbios arrancar a embarcação de um banco de areia, sobretudo quando
este se estende por várias milhas.
Graças a um vento forte, seguimos viagem já com as velas enfunadas, mas com muita lentidão devido aos
bancos arenosos, chocando às vezes com alguma rocha escondida no rio. E deixados para trás os confins da
vasta tribo dos Bagara, encontramo-nos rodeados pelos territórios de outras grandes tribos: os Dincas, à di-
reita do rio, os Schelluk à esquerda.
357
Os Bagara, que na nossa língua se chamariam Vaqueiros, e que recebem esse nome pela especial predi-
lecção destes povos pela criação de vacas, as quais lhes fazem o mesmo serviço que a nós os animais de car-
ga e de tiro, estão frequentemente em guerra com a poderosa tribo dos seus vizinhos Schelluk. Estes, não
tendo bastantes vacas para os dotes de casamento ou para manter as suas famílias, juntam-se em grandes
grupos e, a bordo das suas velozes pirogas, escondem-se sob os grandes ramos que desde as contíguas ilhas
se estendem sobre a água; aí ficam à espreita até que os Bagara levam o seu gado a beber ao rio e então lan-
çam-se sobre este, apanham-no e afastam-se antes que os infelizes guardiães possam pedir socorro aos seus
acampamentos vizinhos.
358
Depois os Bagara, às vezes, vingam-se dos Schelluk fazendo-os escravos e vendendo-os nos mercados de
Cordofão e de Cartum. Encontramo-nos, pois, ao lado da poderosa tribo dos Schelluk. Estes andam sempre
armados de lança e de um grosso varapau de ébano. Fisicamente, são musculosos e de estatura alta, às vezes
gigantesca. Muitos dedicam-se ao roubo, sendo forçados a dar um terço do furto ao rei, que vive escondido
não muito longe de Danab, numa povoação feita à maneira de labirinto e nunca dorme duas noites consecuti-
vas na mesma cabana.
Sobre a crueldade desta gente dizem-se e escrevem-se coisas terríveis. Mas nós, graças a Deus, não so-
fremos nenhum dano ao passarmos pelo seu território, apesar de nos terem podido destroçar.
359
Isso aconteceu especialmente um pouco mais para lá do vau de Mocada el-Kelbonde o nosso barco foi
empurrado por um vento fortíssimo contra um banco lamacento e os tripulantes, apesar dos reiterados esfor-
ços, não conseguiram libertá-lo. Era a noite do dia 27 para 28 de Janeiro quando divisámos as fogueiras ace-
sas na margem esquerda dos Schelluk, que estavam a descansar em companhia das suas mulheres e com as
pirogas ancoradas na margem do rio. Na margem direita havia muitos Dincas que, ao verem o nosso barco e
sobretudo os Schelluk, se retiraram terra adentro.
360
Na manhã do dia 28, os marinheiros atiram-se ao rio e tentam mover o barco, mas de nada valem os seus
esforços. Decide-se então chamar em ajuda os vizinhos Schelluk. O rais põe-se a gritar para onde eles estão,
mas ninguém se move. Repetem-se os gritos altos e sonoros; e eis que então se desloca da margem uma pi-
roga com 12 indivíduos armados de lanças e varapaus e em menos de cinco minutos temo-los a bordo da
nossa dahhabia.
À força de gritos, faz-se-lhe compreender que queremos que nos ajudem a tirar a embarcação. Eles res-
pondem que, antes, querem voltar à margem para combinarem com o seu chefe quanto vão levar pelo serviço
e para isso pedem que dois de nós os acompanhemos como reféns. Perante um repetido «não» do rais, por
um punhado de missangas e pequenas pérolas de vidro, esses Schelluk começam a empurrar o barco; porém,
por terem pouca destreza nessa operação, de nada valem os seus esforços.
361
Então o rais dá-lhes a entender que devem chamar outras barcas e outros irmãos em nossa ajuda e que re-
ceberão generosa recompensa. Em menos de um quarto de hora aparecem outras três barcas com homens
armados, os quais se precipitam em massa e sem ordem a ajudar os tripulantes na árdua tarefa de desencalhar
o barco; finalmente conseguem movê-lo. Porém, em vez de continuarem com os empurrões a obra começa-
da, eles, homens desconfiados, param e pedem o preço em missangas. Nós mostramos-lhas, incitando-os a
trabalhar, mas eles negam-se.
Finalmente entregamos-lhas. Mas eles, vendo as pequenas pérolas em seu poder, num instante afastam-se
de nós e retiram-se para a margem, onde se reúnem todos para repartir avidamente a gratificação consegui-
da, deixando-nos a nós em maior apuro que antes. Os marinheiros tentam repetidamente mover a embarca-
ção, mas nada. Assim passou todo aquele dia.
362
Já depois de anoitecer, realizamos entre nós uma espécie de conselho sobre o modo como libertar o barco,
mas não chegamos a uma conclusão satisfatória. Para falar verdade, a nossa situação é muito crítica: encon-
tramo-nos no meio de duas aguerridas tribos, uma delas mais rapace e temida que a outra. Parte da tribo dos
Schelluk vive do assalto, com a obrigação de dar ao rei a terça parte dos despojos, como disse antes, e está
sempre em guerra: dificilmente os Schelluk perderão esta oportunidade de melhorar a sua condição. A pas-
sagem do Stella Mattutina atrai sempre grande número de observadores, por ser o mais bonito jamais visto
no Sudão. Acrescente a tudo isto as trágicas cenas que, sobre os Schelluk, nos tinham descrito em Cartum e
diga-me que pensámos nós naquele aperto...
363
A ideia de ser feitos prisioneiros, de ser assaltados e conduzidos perante aquele soberbo rei que crê ser o
maior monarca do mundo, depois do da Abissínia, longe de nos desmoralizar, fazia surgir-nos a ideia de
podermos fundar uma missão entre os Schelluk. Nunca se pode ter medo quando vela por nós com piedoso
afã Aquela que se denomina Rainha dos Apóstolos. E como estaria de braços cruzados a nossa Mãe e não
havia de socorrer quatro filhos seus que procuram dá-la conhecer e amar por aquelas bárbaras gentes, entre
as quais jamais brilhou a luz da verdade e nunca foi implantada a Cruz de seu divino Filho?
364
Na manhã seguinte, dirigimo-nos confiados a esta grande Mãe. Celebra-se a missa na belíssima capela
que fica na proa do Stella Mattutina, consagrada precisamente a Maria. Depois pensa-se, decide-se. E eis o
modo como se tenta tirar a embarcação do fundo lamacento: com os remos da mesma, muito grossos e em
número de 16, com tábuas e outra madeira, constrói-se uma jangada; posta a flutuar na água, carregam-se
nela as caixas de objectos que não se estragam ao molhar-se, até que o barco fique aligeirado, de modo a que
as forças reunidas dos marinheiros consigam levantá-lo, movê-lo e retirá-lo inteiramente daquele banco.
Depois, tendo-o virado e levado para um sítio onde o leito é bastante profundo, voltam a carregar-se com
indizível esforço as coisas colocadas na jangada e às cinco da tarde, quarenta e três horas depois do perigoso
encalhe, com o júbilo de quem obteve um triunfo, desfraldamos as velas perante uma multidão dos Dincas,
que em fila junto à margem se mostram contentes do nosso sucesso.
365
Então os Schelluk fogem e não sabemos concretamente porquê. Uma hora depois de sair do vau de Mo-
cada el-Kelb, encalhamos de novo; mas em seguida conseguimos sair com a ajuda de um fortíssimo vento.
Mais de uma vez o Stella Mattutina choca com escolhos e retrocede; mais de uma vez também, estando sen-
tados na borda ou sobre uma tábua, retrocedemos de repente e caímos, de modo que, por uns dias, fica-nos a
marca num joelho, num braço ou num pé.
366
Continuamos a nossa viagem pelas margens dos Schelluk e, depois de deixar para trás uma ilha, vemos
uma longa cadeia de povoações, umas a seguir às outras, por mais de quatro milhas e que distam mais de
meia milha do rio. Todos estão bem construídas, com cabanas em forma de cilindro, de terra ou de canas, e o
tecto, de palha, em forma de cone alongado. Todo aquele conjunto constituía uma vista belíssima; e aquela
simplicidade de vida fazia-nos crer que os habitantes daquelas cabanas, que mantêm algum comércio com
Senaar e com o Cordofão, deveriam ser felizes; mas não são, porque esses desditosos estão privados do co-
nhecimento d’Aquele que é fonte da verdadeira felicidade.
Este enorme número de aldeias forma a grande cidade de Kako, em frente da qual parámos. A gente aper-
cebe-se da nossa chegada e em menos de dez minutos temos diante de nós numerosos homens, mas sobretu-
do mulheres e raparigas que trazem consigo grandes recipientes de barro cozido e outros mais pequenos de
barro seco ou de cabaça, esteiras de palha ou de junco, cestas, canastras, sorgo, lentilhas, sésamo, legumes,
ovos, galinhas e outros produtos para vender. Deste modo, em pouco tempo, toda a praia estava cheia de
gente e havia-se formado um considerável mercado.
367
O que, além disso, tornava atractiva aquela vista era a variedade daquela multidão, constituída por pesso-
as de muitas raças, que se distinguiam pelas diferentes cores de pele e pelas feições do rosto. Ali estava, com
efeito, o negro dos Dincas e dos Schelluk, o mulato das gentes de Cordofão e dos Bagara, o cobre-
avermelhado dos Abu-Gerid, o amarelado dos Hassanieh. Junte a tudo isto as diferentes maneiras de se ador-
nar e pintar a pele, especialmente a cara e a cabeça; depois os gritos, o vozear ruidoso, o entrechocar de cor-
pos, o vaivém contínuo e pode fazer uma ideia de como era o mercado de Kako.
368
Depois de os marinheiros e o nosso criado se ocuparem do abastecimento das coisas mais necessárias,
abandonamos com ânimo preocupado aqueles infelizes, pensando no deplorável estado em que se encontram
por estarem privados da luz da verdade. Havia já dias que cessara aquele encanto da natureza de que falei
antes. A margem esquerda do rio começava a mostrar-se quase desértica e só de longe distinguíamos à es-
querda as cada vez mais raras acácias, mimosas e tamarindos, a que se juntava alguma majestosa palmeira de
doleb, que se elevava junto às povoações e algum gigantesco baobá, que estendia soberbo os seus ramos no
meio de uma interminável planície.
369
Já se tornavam a ver na margem os Schelluk armados, que se cobrem de cinza ou pintam caprichosamente
de cor avermelhada mais ou menos intensa a cara e todo o corpo, e besuntam o cabelo com cinza e lama, de
modo que parecem espantosos fantasmas. No início de Fevereiro, avançando lentamente, porque um vento
fortíssimo não permitia ter a vela desfraldada, vimos alinhar-se perante nós outra cadeia de talvez umas trinta
aldeias, conhecida com o nome de Denab. Diz-se que uma delas, afastada três milhas do rio, é a residência
do grande rei dos Schelluk, o qual vive escondido e nunca passa duas noites seguidas numa mesma habitação
ou cabana, por medo de que súbditos rebeldes o matem.
370
Ele pensa ser o maior rei da terra, depois do da Abissínia, e não concede audiência a ninguém, a não ser a
esse da Abissínia, o qual, por outro lado, não sabe que existe a tribo e menos ainda o rei dos Schelluk. Ape-
nas as suas mulheres e algum ministro destinado a recolher os impostos são admitidos à sua presença, mas
não podem apresentar-se diante dele sem se arrastarem de joelhos, rastejando de boca para baixo. Os
Schelluk são altos de estatura; (1) fisicamente bem formados, robustos e belicosos. Andam armados de lança
e escudo e dispostos a [Desde “Os Schelluk são altos...” até “a” as palavras aparecem um pouco rasuradas
pelo próprio Comboni] travar combate e roubar.
Mas deixemos esta poderosa tribo. À direita, em frente da imensa margem dos Schelluk, habitam os Din-
cas, que, embora mais inteligentes, são em contrapartida mais fracos. Por isso mantêm-se o mais possível
longe dos rapaces e assassinos Schelluk, que se entregam a toda a espécie de roubos, especialmente de mu-
lheres e crianças, que depois vendem aos jilabas, os quais, por sua vez, fazem com eles comércio nas cidades
da Núbia.
371
Os Dincas são uma grande tribo da África; distinguem-se facilmente dos das outras tribos pela fronte es-
paçosa e saliente, pelo crânio achatado e inclinado em direcção às têmporas, pelo corpo comprido e delgado.
Das línguas faladas pelas tribos da África Central do Baharel-Abiad, a sua é a mais difundida e por isso na
Europa foi esta a tribo que nós tomámos em consideração.
372
Mas agora queremos fazer primeiro cuidadosas explorações, e depois, a seu tempo, também nas áridas
terras da tão desconhecida tribo dos Dincas brilhará a luz do Evangelho. Perto do [rio] Sobat, em Huae, deti-
vemo-nos para comprar um touro e convidámos o chefe da aldeia a subir ao barco. Como vinha receoso e
inseguro, fizemo-lo subir mostrando-lhe todos os sinais de amizade, com o que pareceu ficar confiante; já
dentro dos nossos aposentos, olhava para todo o lado atónito, avançava em bicos de pés e com o braços le-
vantados. Mostrámos-lhe a capela, elegantemente adornada e pareceu magnetizado; e, como deslumbrado,
retrocedeu com as mãos na cara. Pusemo-lo diante de um espelho: são indescritíveis as caretas, as contor-
ções, os gritos, os gestos e as risadas loucas a que se entregou ao ver a sua figura.
373
Partiu dali, claro, tão maravilhado pelas coisas vistas, que parecia que tinham vindo do Céu. Avançámos,
velas desfraldadas, e ainda naquela noite passámos na foz do Sobat, considerável afluente do Nilo Branco e
maior, sem dúvida, que o nosso Pó. A sua origem é desconhecida, sabendo-se unicamente que desce desde os
cinco graus em direcção paralela oriental à do Nilo Branco, no qual lança todo o seu caudal. E é precisamen-
te nesta foz onde o grande Bahar el-Abiad vira de maneira brusca completamente para ocidente pelo espaço
de mais de 150 milhas, nos 9 graus e 15 minutos de latitude. E este trajecto é flanqueado à esquerda pelo
território dos Yangueh e à direita pelo grande pântano dos Nuer, em cujos contornos nós percorremos mais
de 350 milhas. Foi neste rápido trajecto que nós avistámos uma manada de enormes elefantes que, tendo
vindo ao rio beber, se infiltrava de novo na floresta.
374
À nossa passagem, vemos fugir milhares de búfalos selvagens, do tamanho de um boi, que se assemelham
a exércitos precipitados em fuga. Uma hora depois, um golpe de vento despedaça-nos a vela maior, pelo que
nos vemos forçados a determo-nos junto a uma ilha de trezentos hipopótamos que nos ensurdecem e amea-
çam com os seus furibundos e espantosos mugidos.
375
Tendo partido ao anoitecer, depois de os marinheiros repararem a vela, na manhã seguinte encontramo-
nos diante da foz do caudaloso Ghazal, onde conflui com o Nilo Branco. No ângulo da sua confluência for-
ma-se uma linda lagoa cujas margens, todas verdejantes de juncos e de bosques de papiro, realçam com sua
beleza a plácida tranquilidade das suas águas. Referi-me ao papiro, que o senhor conhece bem, porque os
antigos utilizavam a sua casca para escrever. Pois bem, o caule desta planta tem uma altura de cinco a sete
pés e é de forma triangular, mais que redonda; na raiz tem uma grossura de três dedos e no cimo a de um; é
encimado por um verde penacho, como verde é também o fuste; a ponta é semelhante à do nosso funcho.
Vimos também, junto a ilhas inteiras, bosques destes papiros, que parecem gostar da proximidade da água e
dos terrenos pantanosos.
376
O resto da viagem tornou-se um pouco aborrecida, especialmente pelo avanço lento, por causa das fre-
quentes e grandíssimas curvas do rio que, deixando-nos contra o vento, obrigava os marinheiros a agarrar os
cabos e a rebocar o barco. O aspecto das margens tornava-se cada vez mais triste e desolado; desapareciam
os deliciosos bosquezinhos de ambalós e de papiros, sendo substituídos por enormes charnecas cobertas de
canas secas e queimadas. Amiúde, até ao anoitecer, contemplávamos os famosos fogos nocturnos, porque os
negros Nuer pegam fogo a vastíssimas planícies cobertas de juncos muito altos e densos, a fim de prepara-
rem a terra para novos rebentos antes das chuvas.
O fumo denso e abundante, puxado pelo vento, cobria as plantas de toda a floresta e dava-lhe o aspecto
duma longínqua cadeia de montanhas que coroavam o nebuloso horizonte. As chamas do incêndio provoca-
do ora se elevavam majestosas ora se arrastavam e se empurravam como rápidas vagas à procura de nova
mecha; e, pegando-se o fogo a outros bosques de juncos, elas voltavam a elevar-se, maiores e mais intensas,
silvando, crepitando, estalando pavorosamente.
377
Nós passámos bastantes noites no meio deste maravilhoso espectáculo, do qual talvez apenas os heróis do
maior dos guerreiros modernos puderam ter uma pálida ideia sob as muralhas de Moscovo incendiada. E
parecia-me como se o Deus dos exércitos inclinasse os céus, descesse apoiado no denso nevoeiro, arremes-
sando do Céu aos seus inimigos os raios da sua divina ira. A monotonia desta viagem depois do Ghazal era
todavia interrompida, de quando em quando, por nuvens imensas de milhões de aves que, à sua passagem,
obscureciam, e não por pouco tempo, a luz do Sol, como quando de repente em pleno meio-dia rebenta uma
forte tempestade. Às vezes, enormes bandos de grous reais, pelicanos e íbis que, aos milhares, assomavam à
margem, ensurdeciam-nos com o seu esvoaçar barulhento e o pouco agradável grasnido. E não quero silenci-
ar que uma noite passámos durante três milhas junto de uma grande extensão de bosques de ambalós, reple-
tos de íbis.
378
O que também nos maravilhou foi vermos uma grande manada de milhares de búfalos selvagens que, as-
sustados à nossa passagem, corriam pela vastíssima planura, lançando nos ares a escura cinza das canas
queimadas, escurecendo com ela o horizonte. Além disso, foi aqui, no 8 o grau, onde vimos o maior número
de hipopótamos: era um espectáculo ver centenas, milhares de hipopótamos muito corpulentos que sopravam
e lançavam fragorosos e roucos mugidos, e que, tirando e metendo a sua enorme cabeça na água, produziam
nesta gorgolejos e remoinhos como quando no mar se avizinha uma forte tempestade. Às vezes acercavam-se
do barco, como em atitude de ameaça, e outras deixavam que lhes passasse por cima, dando-lhe golpes e
fazendo-o oscilar com os seus férreos dorsos.
O hipopótamo é um animal disforme e desmesurado: o seu tamanho é quatro vezes o do nosso boi. Tem a
cabeça, em proporção, semelhante à do touro, os dentes duríssimos e enormes, sobretudo os incisivos, que
são algo desproporcionados e muito brancos. O resto do corpo é parecido na sua forma ao do porco; porém,
exceptuando a cauda, não cerdoso mas liso. A sua pele tem uma grossura de dois ou três dedos e, portanto, à
excepção de uma pequena parte da garganta, é impenetrável às lanças, aos arpões e às balas de fuzil. O seu
sopro lembra a descarga de muitos arcabuzes ouvidos de longe; o mugido é tão sonoro que faz ribombar as
margens e ouve-se de muito longe; o movimento do seu pescoço e cabeça ao aparecer fora da água é seme-
lhante ao arranque de um veloz corcel para a corrida; talvez isso tenha sido a razão para o chamar hipopóta-
mo, quer dizer, cavalo do rio.
379
Depois vi alguns que os negros tinham caçado. Além do uso de arpões para caçar estes enormes habitan-
tes do Nilo Branco, os indígenas escavam profundas covas, que cobrem de ervas; depois, esperam que à noi-
te o hipopótamo saia do rio para se alimentar de erva; este, acreditando ter encontrado comida suficiente
onde está a cova, acaba desgraçadamente por cair nela; depois, um bom número de negros com lanças e ar-
pões trespassam a infeliz vítima.
380
A imensa tribo dos Nuer, que se estende desde a foz do Bahar el-Ghazal até ao 7o, além da ilha anterior-
mente citada, que fica à nossa esquerda, ocupa também um grande espaço de terreno a ocidente do rio. E foi
precisamente nesta margem, em Fandah-Eliab, onde desfrutámos de um espectáculo mais estranho que o de
Kako. Os Nuer cultivam sorgo e outras leguminosas em quantidade suficiente para as comercializarem com
os seus vizinhos. Por isso, ainda que mais baixos que os Dincas e os Schelluk, alimentam-se melhor e fisi-
camente são mais bem constituídos; a sua vida, menos ociosa e folgazã, fá-los mais vivos e despertos.
A sua intensa actividade comercial proporciona-lhes meios para satisfazer o seu génio caprichoso de en-
feitar o seu corpo de inúmeras e bizarras formas. Daí que, embora totalmente nus, tragam diversos adornos
como colares e braceletes, argolas nos pés e pequenos anéis nas orelhas; outros, ao cobrirem todo o corpo de
cinza, tingem de um modo estranho a cara e as têmporas; há quem ande de cabelo rapado, com uma tira ou
faixa de conchinhas de mar à volta da cabeça: há quem recolha o cabelo no alto da testa e o pinte de verme-
lho, dispondo-o em forma de coroa realçada; há também quem cubra a cabeça com uma peruca de caulino ou
com uma mistura de cabelos e cinza e desta peruca fazem sair, por trás, como que um corno dobrado para
baixo, o que é verdadeiramente motivo de riso.
381
Entre as mulheres, contudo, abundam mais os adornos curiosos, e além de utilizarem os mesmos que os
homens, menos a peruca, algumas trazem nas bordas da pele de cabra ou de tigre com que cingem os flancos
correntes pequenas de ferro ou de cobre que sacodem ao caminhar, como os nossos arlequins do Carnaval.
Outras enfeitam as orelhas com dezenas de anéis enfiados na carne; outras trazem grandíssimos aros arame
que, desde as orelhas, lhes caem sobre os ombros; e algumas, perfurando o lábio superior, enfiam nele um
arame, fazendo-o cair para a frente meio palmo ou mais e ornando-o com contas de vidro azul, de modo que,
quando falam, este arame azulado sobe e desce com o movimento do lábio. Imaginem-se ainda outras extra-
vagâncias ainda mais bizarras, pois já me dá enfado descrevê-las. As mulheres parecem almas do purgatório
ou pior ainda.
382
Mas basta, pois seria cansativo de ler, como o é de escrever. Deixada para trás a tribo dos Nuer e entrados
na dos Kich, detemo-nos no 7o de lat. N., donde lhe escrevo. Pelas observações que fizemos, concluímos que
a língua mais difundida que se conhece é a dos Dincas, a qual é falada não só pelos Dincas, mas também por
muitas tribos do Centro da África, como os Nuer, os Kich, os Tutuit, os Eliab, os Arol, os Yok, etc.; por isso,
agora paramos aqui em St.a Cruz, onde há um missionário de Cartum. Com ele esforçar-nos-emos por
aprender da boca dos indígenas a língua dos Dincas, enquanto iremos fazendo explorações; posteriormente,
iremos às tribos que nos parecerem mais convenientes para plantar nelas a Cruz de Cristo.
383
Espero que o senhor se encontre de excelente saúde, como nós. Saúdo-o em nome de todos os meus com-
panheiros e especialmente de P.e Oliboni. Com ele vou algumas vezes, pela tarde, ao bosque procurar líque-
nes para o digníssimo prof. Massalongo, ocupação que nos proporciona um pouco de descanso nas nossas
fadigas diárias. Devo também dizer-lhe que não tem sido pequena a utilidade da preciosa recordação que me
deixou, o tratado de medicina de Buchan, ao qual recorro amiúde; e não posso servir-me dele sem que me
venha à mente a querida recordação do meu amigo Bento e da sua amável família.
384
Adeus, meu caro; tinha mil coisas para lhe dizer, mas o cansaço tirou-mas da mente. Além disso, é um
pouco molesto escrever, porque aqui não temos mesas e cadeiras, nem os escritórios que o senhor tem; temos
que nos deitar no chão ou ao pé de uma árvore ou, quando se pode e há luz, um caixote é o nosso mais có-
modo escritório. Desculpe, portanto, as muitas incoerências que lhe tornarão difícil a leitura deste escrito.
385
Ponha os óculos e leia esta folha sem ter ao lado, como tónico estomacal, uma dessas garrafinhas que
abriu o ano passado, depois da procissão do Carmine, para honrar a presença do excelente Prof. Massalongo
e do amável P.e Bartolo. Basta; as minhas saudações a todos vós e saibam que nunca deixarei de ser

Vosso af.mo Daniel Comboni

386
N.B. Com esta carta não procurei fazer-lhe um relato extenso da minha viagem pelo Nilo Branco,
nem explicar-lhe tudo o que foi objecto das nossas observações, o que se tornaria demasiado longo: só quis
dar-lhe uma ideia. Da tribo onde estamos não lhe falo, reservando-me até ter suficientes conhecimentos di-
rectos; então dar-lhe-ei informação mais completa sobre estes costumes selvagens.
Por outro lado, até agora não lhe dei a conhecer o meu pensamento sobre a África Central, mas sim as
minhas impressões de viajante. A partir de agora, ver-me-á como missionário e receberá notícias, espero, de
missionário. Adeus, caríssimo amigo. Como médico, gostará de saber quais são as doenças dominantes nesta
terra amaldiçoada pelo pai de Cam. De momento não exponho a minha opinião, porque até agora é contrária
à dos viajantes.
387
Dizem estes que em África não há senão febres, disenterias e escorbuto. Coitados! Também na Europa
não há senão febres: de facto, o tuberculoso morre de febre, quem tem uma pericardite morre de febre, quem
tem uma hepatite morre de febre, porque a febre é inerente a estas doenças. Porém, quais são as causas que
produzem essa febre? Pois a tuberculose, a hepatite, etc. Portanto, entende qual é o meu sentimento, mas,
como disse, reservo-me até ter mais elementos para ajuizar; então darei a minha opinião, se Deus me der
vida.
Apresente os meus respeitos ao P.e Battistino, ao P.e Bartolo, ao prof. Massalongo e a todos e considere-
me

Seu af.mo Daniel Comboni


Missionário apostólico

388
Saúde atenciosamente, da minha parte, a sra. Marietta, a sra. Angelina e o sr. Horetzki.

(1) Repeti sem dar conta, porque esta parte escrevi-a hoje, 16/3...

N.o 36 (34) - AO DR. BENTO PATUZZI


ACR,A, c. 15/89

Da tribo dos Kich, 27 de Março de 1858

Caríssimo amigo,

389
Quando eu escrevia a carta aqui junta, todos nós gozávamos de perfeita saúde. Quem poderia imaginar
que o mais forte de nós iria falecer daí a poucos dias, deixando-nos no meio da dor? P.e Francisco Oliboni,
que há poucos dias me pedia para o saudar, foi afectado por uma fortíssima e velha úlcera gástrica complica-
da com uma moderada inflamação do peito. Tendo-se transformado estas duas doenças numa doença mali-
gna, expirava nos braços de Deus completamente resignado e contente, ontem, pela tarde, às cinco. Nós sen-
timos o maior pesar por esta perda, porque era de grande ajuda para a nossa missão.
390
Mas bendito seja o Senhor. Nós, longe de perder o ânimo por isso, não nos pouparemos nem a fadigas
nem a suores para cooperarmos na conversão da África e realizarmos o plano do nosso superior, que é a for-
ma mais adequada para tirar das trevas e das sombras da morte esta gente, sobre cuja cabeça pesa ainda a
maldição lançada pelo mais antigo dos Patriarcas aos filhos de Cam, ainda que haja que rever esta forma de
actuar no lugar da sua aplicação.
391
Por outro lado, estou a imaginar o falatório que em Verona surgirá acerca da morte do nosso irmão P.e
Francisco. «Era muito melhor dirão que continuasse a ser professor, ganhando 700 florins ao ano, do que ir
para a África Central para lá deixar a vida». E quem sabe quantas coisas mais acrescentarão. Mas há que
deixar que o mundo fale à sua vontade. Depois de as coisas terem acontecido, fala-se do que se devia ter
feito primeiro. Sim, então é que se fala bem... Nós porém, raciocinamos de um modo completamente dife-
rente.
392
Deus, que dirige o destino do homem, chamava-o a África e queria que aqui não fizesse nada pela mis-
são. Ele pensava nisso há mais de dez anos, tinha pedido conselho, etc., etc. e foi-se deste mundo com o
sorriso nos lábios e a alegria no coração, dando graças ao Céu que o tinha feito digno de morrer por Cristo.
Bendito seja eternamente o Senhor.
393
Eu teria muito que contar, mas a morte de P.e Checco lançou sobre meus ombros um peso maior, que eu
porém, carrego de bom grado, e o senhor saberá desculpar-me, considerando que, devido ao ânimo um pouco
conturbado, as coisas se me esbatem na memória. Fui eu o primeiro a adoecer, no barco, quando íamos pelo
território dos Schelluk: foi uma febre muito forte, mas Deus quis preservar-me. O segundo a ficar doente foi
P.e Francisco e morreu; o terceiro foi P.e Beltrame e agora está bem; o quarto foi Isidoro, nosso operário,
que agora se acha convalescente. A todos, em suma, nos afectou o clima africano; porém, bendito seja Deus.
Espero que o senhor, toda a sua família e a amável sra. Anita se encontrem bem.
394
Tinha intenção de escrever ao muito estimado P.e Bartolo, mas, por agora, não posso. Apresente-lhe en-
tretanto as minhas considerações. Quando me escrever, não sele as cartas, porque, de qualquer modo, o nosso
procurador em Cartum tem de pagar o mesmo. Eu também não as mando franquear, porque, de toda a manei-
ra, terá o senhor de pagar. Assim bem entendidos, escreva-me amiúde; oxalá o Senhor o inspire a fazê-lo
sempre que o vapor, a 10 e 27 de cada mês, sair de Trieste.
Adeus, meu caríssimo, tenha a certeza de que serei sempre

Seu af.mo amigo


Daniel Comboni

N.o 37 (35) - A P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/40

Da tribo dos Kich, 27 de Março de 1858

Meu caríssimo P.e Pedro,

395
Quando escrevia a carta aqui junta, encontrávamo-nos todos sãos e fortes. Quem teria pensado que ontem
faleceria o mais forte de nós? P.e Francisco Oliboni, depois de ter suspirado durante dez anos por esta bendi-
ta África, cai vítima da primeira febre que o atacou. Bendito seja para sempre o Senhor. Morreu muito resig-
nado e com a alegria que brilha no rosto de quem está a ponto de ser admitido nas bodas eternas do Paraíso.
O primeiro a apanhar febre fui eu, porém, com a ajuda do Céu e com o método preventivo, superei-a mais de
três vezes.
396
O segundo foi P.e Oliboni; o terceiro P.e Beltrame e receio que a febre lhe dure ainda mais de um mês:
está já habituado! O quarto é um nosso artífice e está agora convalescente. Bendito seja o Senhor. Desejo
notícias da sua actual situação. O Senhor o faça prosperar, o abençoe e cubra de bênçãos seu amado rebanho.
Tais são os votos de

Seu af.mo amigo


Daniel

N.o 38 (36) - A SEU PAI


AFC

Da tribo dos Kich, África Central,


29 de Março de 1858

Querido pai,

397
Até ao dia 26 do corrente, a todos a quem escrevi para a Europa disse-lhes sempre com sinceridade que
todos nós desfrutávamos da mais perfeita saúde, e já dávamos graças a Deus por isso. Agora devo apresentar
outro panorama e usar outro tom, porque o Senhor, Deus de misericórdia, começou a tratar-nos como autên-
ticos servos e apóstolos seus. Bendito seja eternamente o Senhor!
398
Certo é que fui eu o primeiro a apanhar a terrível febre africana, no barco, ao atravessarmos o território
dos Schelluk; ao cabo de seis dias fiquei curado; o mesmo, é verdade, sofreu também o P.e João e o ferreiro
Isidoro, os quais felizmente também a superaram. E nós tivemos sorte, porque muitos missionários da Socie-
dade de Maria pereceram ao primeiro ataque de febre, habitualmente o mais letal. Mas aprouve a Deus visi-
tar-nos mais de perto.
399
Não te assustes, querido pai; a bela alma do P.e Francisco Oliboni voou a juntar-se ao seu Deus, pelo qual
tinha abandonado o pai, a pátria e uma das mais notáveis cátedras do liceu de Verona. Bendito seja para
sempre o Senhor. Na tarde do dia 19, dedicado a São José, sentiu a cabeça pesada e um estranho mal-estar
no estômago; parecia coisa sem importância e só quis tomar um pouco de magnésio e tamarindo. No dia 20,
não registando melhoras, teve que tomar um pouco de óleo de rícino, sentindo-se como curado. Mas o seu
pulso bem como a sua respiração não me agradavam nada.
Já desde o dia 19 ele estava absolutamente convencido que ia morrer; de facto, dispôs todas as suas coisas
e assuntos como se fosse morrer no dia seguinte. No dia 22 sofreu um fortíssimo ataque de febre que o levou
às últimas; sentindo assim o seu mal agravado, pediu os santíssimos sacramentos.
400
Logo pela manhã confessou-se e comungou. Antes de receber a Unção dos Enfermos, chamou-nos a to-
dos junto ao seu catre, que lhe servia de leito, e com a sua natural eloquência e com a força e veemência que
o Espírito de Deus lhe dava no momento da morte dirigiu-nos uma alocução. Pediu-nos que permanecêsse-
mos firmes e constantes na empresa de levar a cabo o grande plano do superior; que mostrássemos o nosso
amor ao superior não fraquejando na realização dos seus planos para a glória de Deus; que não nos poupás-
semos a esforços para redimir almas para o Céu, etc., etc.
401
«Adeus – dizia; não voltaremos a ver-nos na Terra, mas eu estarei sempre convosco em espírito, rezarei a
Deus por vós, pela nossa missão e seremos sempre irmãos inseparáveis em espírito. Adeus!» Depois, corajo-
so, ele mesmo respondeu às preces da Igreja e recebeu os santos óleos, depois do que lhe passou a febre e
esteve bastante bem. A ele nunca lhe tinham feito uma sangria na vida e, por isso, sempre se negara ao nosso
pedido para a fazer, crendo que morreria. Mas quando, no dia 22, se sentiu mal, ele mesmo a pediu; antes,
contudo, quis receber os santos óleos.
Eu, sabendo que ele tinha desde há tempo uma pequena inflamação de peito, causada especialmente pelos
incómodos da viagem, a que se juntava uma úlcera gástrica de que sofria há muitos anos, consenti, embora
fosse já um pouco tarde e, imediatamente depois dos santos óleos, fiz-lhe a primeira sangria, depois do que
lhe cessou a febre; e na manhã seguinte fiz-lhe a segunda.
402
O dia 23 passou-o bastante bem e nós éramos incapazes de persuadir-nos de que o íamos perder. E ele di-
zia: «Seja como for, mas eu tenho de morrer.» No dia 24 atacou-o de novo a febre, agora com mais força que
no dia 22, e à tarde demos-lhe a bênção papal, depois da qual melhorou, mas a febre já não cessou, antes
começou uma erupção saramposa que eu combati com todos os meios que a arte médica recomenda; mas o
doente continuava a alternar as melhoras com as recaídas, até que na manhã do dia 26 se sentiu o pior possí-
vel. Mas como aliviá-lo, como baixar-lhe a febre, sem ter gelo, de que necessitaria, além disso, para controlar
a erupção saramposa?
403
Mas Deus chamava-o a si. Nós, aflitos, começamos a encomendá-lo a Deus, se bem que a sua perda nos
trouxesse o maior dano, uma vez que agora a grande empresa que Deus nos tinha confiado recaía sobre os
débeis ombros de nós os três. Mas Deus tudo pode: bendito seja! Tendo piorado ainda mais ao meio-dia,
enquanto os três o assistíamos, começou a delirar, estado em que se manteve por cerca de duas horas. Depois
entrou em mortal agonia e, na presença dos três, depois de o confortar de todas as maneiras e de derramar
muitas lágrimas, expirou nos braços de Deus às cinco da tarde do dia 26 de Março, aos 33 anos menos três
dias.
404
Perfeita resignação, viva fé, firme confiança, piedade admirável, ardente desejo de se unir inseparavel-
mente ao seu Deus foram os sentimentos e os afectos com que se preparou para a última viagem. Quem o
conheceu em vida, quem conhecia os dotes e virtudes que embelezavam o seu espírito, pode imaginar quanta
dor e dano nos causou a sua perda. Mas faça-se eternamente a divina vontade.
405
Ele quase nunca dormia mais que três horas por noite, passando o resto na oração e meditação. Submetia-
se a duros jejuns: passou todo o deserto da Núbia com um simples café sem açúcar, que bebia pela manhã, e
com o jantar pela noite, sem beber mais água nem outro alimento de espécie alguma. Além do seu breviário,
rezava diariamente os salmos penitenciais, os salmos graduais, o ofício do dia, sem contar o resto das ora-
ções que fazia em comum connosco. Era o mais pacífico de nós, sempre afável, sempre doce; em suma, era
um santo. Até teve a sorte de morrer como J. C. nasceu, num estábulo, porque ao chegar à tribo dos Kich não
nos deram mais que um estábulo destinado às vacas, onde estivemos os cinco desde 18 de Fevereiro até 26
de Março.
406
Pela manhã do dia 27, P.e Ângelo e eu lavámo-lo e vestimo-lo, metemo-lo num caixão que pregámos.
Feitos os funerais, acompanhámo-lo a enterrar numa campa que mandámos escavar na floresta próxima; e
escrita uma breve biografia, metemo-la numa garrafa bem selada e esta noutra maior e bem selada também;
sepultámo-lo, colocando-lhe uma cruz sobre a campa. Depois de várias noites, em duas ocasiões as hienas
removeram a terra até chegarem ao caixão para o devorar; porém, como a madeira era dura, não puderam
fazer nada. Morreu, pois, um irmão nosso, querido pai; mas a sua morte, longe de nos fazer desanimar, in-
funde-nos, pelo contrário, mais ânimo para nos mantermos firmes na grande empresa.
407
Não duvides, querido pai: vim como missionário para trabalhar para a glória de Deus e consumir a vida
pelo bem das almas, e ainda que visse cair todos os meus companheiros, quando a prudência ou outras cau-
sas não me aconselhassem o contrário, eu ficarei firme e farei todo o esforço para realizar o grande plano do
superior. Por outro lado, prometo-te – e é a regra que temos nós missionários – que se virmos, de forma cla-
ra, que é fisicamente impossível resistir nestes climas, regressaremos com alguma comitiva para trabalhar no
nosso país. Mas o Senhor que disponha. Entretanto, mantém-te alegre e não temas: uma vítima entre nós
quatro era de prever. Faça-se a vontade de Deus.
408
Chamámos o chefe da tribo dos Tuit, para tentarmos granjear a sua simpatia e o sondarmos no sentido de
nos estabelecermos na sua tribo. Oferecemos-lhe prendas e ele responde que vamos à sua tribo quando qui-
sermos e a todas as cabanas, excepto às suas. «E porque é que – perguntámos-lhe – não queres que vamos às
tuas?» «Porque – responde – nas minhas há um espírito que devora os homens.» «Nós livrar-te-emos dele» –
assegurámos-lhe. «É impossível – afirma –, ele devora tudo.» Já veremos; desde que estamos entre os Kich,
comecei a exercer a medicina. E sabes qual é o cumprimento que recebo desta gente a cada momento? Ape-
nas tomado o remédio, estes negros agarram-me as mãos e cospem-me nelas; depois, gentil e graciosamente,
cospem-me nos ombros e nos braços. E uma vez em que me neguei, uma mulher lançou-me um tal olhar que
parecia querer fulminar-me.
Estas cuspidelas são o mais vivo sinal de gratidão entre este povo. Aqui há uma imensa quantidade de
mosquitos que nos atormentam bastante, mas será pior na época das chuvas. É assombrosa a destruição que
aqui fazem as formigas; uma cabana não pode durar mais de um ano, porque elas a destroem. O primeiro dia
em que deixámos as nossas caixas na cabana, sofreram logo o ataque das formigas; e se nós, com diligência
contínua, não destruíssemos os ninhos que fazem na madeira, a estas horas já nos teriam devorado as caixas.
Basta dizer-te que em todas as planícies dos Kich, numa extensão de mais de 400 milhas, há montículos de
terra da altura do quarto onde vós dormis, feitos pelas formigas, e estes são centenas de milhares, porque há
um a cada dez passos.
409
Quanto a esta tribo, devo dizer-te que é muito medrosa, indolente e extravagante. As suas planícies têm
um terreno muito fértil; nas mãos de uma colónia europeia poderia ser um paraíso terreal; mas assim apenas
produzem espinhos, pois os seus habitantes não as cultivam: os Kich preferem sofrer uma fome indizível a
trabalhar. As manadas de vacas são só de alguns proprietários. Eles, os Kich, vivem unicamente de uns frutos
de árvores, bastante mais ásperos que as nossas amoras. Estão, sob este calor, três e quatro dias sem comer e,
depois, saciam-se com estes frutos e com o produto de algum roubo praticado. Repara na miséria a que estão
sujeitos os que não foram iluminados pela fé. E sempre se vê esta gente sem fazer nada, de lança na mão.
Aqui há, além do mais, aranhas e escorpiões. No mesmo dia em que morreu P.e Francisco, caiu-me do
tecto um escorpião e deu-me uma valente picadela num dedo. Eu tomei a lanceta, dei um corte no sítio onde
me tinha picado o escorpião, deitei amoníaco e ao fim de dez minutos estava curado. Vou dizer-te outra coi-
sa: gosto tanto de leite, mas raras vezes posso tomá-lo, porque, apesar de tantos milhares de vacas que há
aqui, apenas produzem leite suficiente para os seus novilhos, que são amamentados ano e meio. Penso que a
causa deve ser a escassez de erva: é tudo espinhos e deles se alimentam as vacas.
410
Aqui, no Centro da África, são impressionantes os temporais e os tufões. São tão terríveis os temporais,
que se levantam num instante, que, às vezes, derrubam árvores, cabanas, etc. Do mesmo modo formam-se
turbilhões de poeira, a modo de cilindros, que rodopiam velozmente. Mas basta. Querido pai, reza ao Senhor
por mim e por nós; certamente que o Senhor te abençoará. Deves saber que o Senhor só premeia os seus
servos e tu é-lo, pois abraçaste a sua cruz. Abraça-a, aperta-a contra ti, beija-a, que é o mais precioso tesouro.
Quanto ao mais, procura estar alegre, tranquilo, divertir-te. Mais, peço-te encarecidamente que continues a
tocar, porque quando voltar a Verona, se não morrer, quero ouvir-te tocar.
411
Foram cinco as febres que superei e que, a dizer a verdade, não me agradaram muito, mas faça-se a von-
tade de Deus. Digo-te para não ficarem preocupados se, por acaso, estiver muito tempo sem poder enviar-vos
cartas por falta de oportunidade. Talvez a encontre se alguma embarcação núbia passar por aqui, porém,
poderia ser que não; o Senhor que decida. Eu leio sempre as cartas que tu desde o princípio me mandaste
para ganhar ânimo; tu lê as minhas anteriores e será como se as tivesses recebido agora.
412
É para mim um grande prazer que vos tenhais alegrado muito por causa da minha visita à Terra Santa. Eu,
querido pai, também tenho sempre na mente essa terra de mistérios e com o pensamento passeio sempre por
aqueles lugares; e especialmente agora, que é Semana Santa, tenho presentes no espírito todos os lugares dos
mistérios da Paixão de Jesus Cristo.
413
Basta que te diga que não se pode exprimir com palavras o que se sente ao pisar aquela terra santificada
pela presença adorável do Redentor! E agora, querido pai, adeus; estai sempre alegres, pensai em mim que
eu penso sempre em vós e no vosso belo sacrifício. Lede as cartas que vos mando e, depois, selai-as e man-
dai-as para o seu destino. Para não [...] vos fazer pesar a despesa do correio, muitas cartas mandei-as para
Verona, donde as recebereis.
414
Mandei-as à sra. Rosina Faccioli, de Sartori in Cittadella, em Verona, que pode pagar e paga com gosto.
O resto fica por vossa conta e lamento que o maço acabe por ser demasiado grosso. Mas faça-se a vontade de
Deus. Adeus, querido pai; dá saudações a todos os parentes e amigos; apresenta as minhas considerações ao
conselheiro, ao ecónomo espiritual, etc., etc. E enquanto vos dou aos dois a santa bênção, recebei também
mil beijos de amor de
Vosso af.mo filho Daniel Comboni
Missionário apostólico na África Central
N.B. Participo-vos que nós os três nos encontramos maravilhosamente de boa saúde e esperamos estar
também no futuro, porque já começam as chuvas. Até agora tendes visto o vosso filho como simples viajan-
te; para o futuro vê-lo-eis como missionário e vos dará contínuas notícias da nossa missão. Adeus.

N.o 39 (37) - A SEU PAI


AFC

Da tribo dos Kich, 20 de Novembro de 1858

Meu doce e muito querido pai,

415
Havia já sete meses que não podia escrever-vos e enviar-vos umas linhas, dado que os ventos do sul im-
pediam os barcos dos comerciantes de Cartum de transpor a impenetrável barreira das espessas selvas que
dividem as regiões de domínio egípcio na Núbia das tribos dos negros, no meio das quais nos encontramos
nós. Quando eis que um barco a vapor, que já em 1857 havia saído do Cairo – quando nós estávamos ainda
em Alexandria –, conduzido por Monsieur Lafarque, comerciante francês de marfim, sulcando pela primeira
vez as águas do Nilo Branco, trazia-nos um grande embrulho de cartas da Europa, entre elas a tua estimadís-
sima que me anunciava a morte da minha querida mãe...
416
Ah! Então a minha mãe já não existe?!... Portanto a inexorável morte truncou o curso dos dias da minha
boa mãe?... Assim, ficaste sozinho depois de outrora teres à tua volta uma feliz coroa de sete filhos, acaricia-
dos e amados por aquela que Deus escolheu para companheira inseparável de teus dias?... Sim: pela divina
misericórdia, é assim. Bendito seja o grande Deus que assim o quis. Bendita seja a providente mão que se
dignou visitar-nos nesta terra de exílio e pranto.
417
Oh, meu querido pai! Com que língua devemos dar graças à Divina Misericórdia que, apesar das nossas
falhas, se digna estar connosco, de nos visitar e nos cumular de benefícios?... Minha alma ficou sobremaneira
consolada quando, ao ler, vi a tua resignação cristã ante a vontade divina, que quis separar-nos de quanto no
mundo constituía a tua felicidade. Sei que em certos momentos a fraqueza da natureza humana nos faz su-
cumbir sob o peso duma grave tristeza; porém, sei também que a graça do Senhor, a preciosa ajuda da Vir-
gem Imaculada e a eficaz palavra das almas piedosas que te têm verdadeiro afecto te elevam a mais nobres
pensamentos e até te fazem louvar e bendizer essa mão que, benfazeja, se dignou visitar-te.
418
Graças, pois, ao Altíssimo, porque os teus pensamentos e os meus felizmente coincidem! Deus nos deu
esta boa mãe e esposa, Deus no-la tirou. Façamos, pois, dela um generoso sacrifício ao Senhor e seja grande
o nosso gozo porque Deus quis chamá-la para junto de Si, para lhe dar um prémio bem merecido pelos so-
frimentos e sacrifícios que ela suportou ao longo da sua vida e porque piedosamente quis dar-nos a nós uma
feliz ocasião de sofrer algo por Seu amor. Sim, meu pai, ela deixou de chorar nesta terra; e agora encontra-se
por fim na posse da glória do Céu, partilhando com seus seis filhos da ventura de um paraíso que nunca aca-
bará e à espera que nós, vencedores na luta desta peregrinação temporal, vamos juntar-nos a eles.
419
Eu exulto de alegria porque agora tenho-a mais perto que antes; e alegra-te tu também, que o Senhor quer
escutar os férvidos votos dos nossos entes queridos que agora rogam por nós e pela nossa salvação diante do
trono de Deus. Exultemos os dois e quase diria gloriemo-nos mutuamente, porque Deus, em sua infinita mi-
sericórdia, parece que se digna fazer-nos sentir e mostrar-nos os sinais infalíveis de que Ele nos ama como a
seus ternos filhos e nos predestinou para a sua glória. Somos sumamente afortunados, pois Deus se mostra
pródigo connosco e bondosamente nos oferece meios e ocasiões de sofrer por amor d’Ele.
420
Para nos certificarmos, basta olhar para a ordem da Providência, para o modo como ele trata os seus fiéis
servos que predestina para a eterna bem-aventurança. A Igreja de Cristo começou na Terra, cresceu e propa-
gou-se no meio da dor e sacrifício de seus filhos, com as perseguições e o sangue dos seus mártires e pontífi-
ces. O seu próprio Chefe e Fundador J. C. expirou sobre um infame patíbulo, vítima de uma nação cruel e
ímpia; e os seus Apóstolos sofreram o mesmo que o seu Divino Mestre.
421
Todas as missões onde se difundiu a fé foram implantadas, cresceram e tornaram-se grandes no mundo
entre o furor de príncipes, entre os patíbulos, as perseguições que aniquilavam os crentes. Não se lê na histó-
ria de nenhum santo cuja vida não tenha decorrido entre espinhos, sofrimentos e adversidades. Entre as pró-
prias almas justas que nós conhecemos, não há uma única que não tenha tido uma vida atribulada, que não se
tenha visto aflita e desprezada. Não, a palma do céu não se pode alcançar sem penas, aflições e sacrifícios; e
aqueles a quem é concedida esta espécie de favores celestiais podem com todo o direito chamar-se felizes
nesta Terra, pois gozam da bem-aventurança dos santos, que consideraram suma delícia sofrer muito pela
glória de Cristo.
422
E estes especiais favores, estas sublimes prerrogativas com as quais Deus quer marcar os seus servos para
distingui-los entre a multidão inumerável dos filhos do século, que põem todo o seu empenho em conseguir
nesta terra a sua plena felicidade, estes favores e prerrogativas, digo, Deus em sua misericórdia compraz-se
em outorgá-los também a nós. Nós, porém, querido pai, não somos dignos de tão grandes dons; não somos
dignos de padecer pelo amor de Cristo.
423
Mas Deus, que é o Senhor de todas as coisas, quer beneficiar-nos para além de todos os nossos méritos.
Coragem, pois, meu querido pai. Agora estamos no campo de batalha entre os combatentes desta mísera
terra; agora somos atacados pelos nossos mais tremendos e furibundos inimigos. A miséria humana quer
induzir-nos a procurar cá em baixo uma felicidade perecedoira e nós, lutando como heróis, abraçamos com
ânimo generoso as adversidades, os sofrimentos, os padecimentos, a separação.
424
A miséria humana esforça-se por nos tirar a paz do coração e a esperança de uma vida melhor; e nós, ao
lado de J. C. crucificado, que padeceu por nós, exultamos no meio da má sorte, mantendo intacta essa paz
preciosa que só ao pé da cruz e no pranto pode encontrar o verdadeiro servo de Deus. Estamos no campo de
batalha, repito, e é preciso lutar como valentes. Os grandes prémios e triunfos não se alcançam senão por
meio de grandes fadigas, pesar e sofrimentos. Sirva-nos, pois, de acicate e de consolação a grandeza do pré-
mio que nos espera no Céu e não nos perturbe nem atemorize a grandeza e dificuldade do combate.
425
Temos a nosso lado o mesmo Cristo que luta e sofre por nós e connosco, de modo que, acompanhados e
assistidos por tão magnânimo e poderoso Capitão e Senhor, não só podemos suportar com alegria e constân-
cia as penas e sofrimentos que o Senhor nos manda mas também será nosso exercício permanente pedir-Lhos
maiores, porque só assim e com o desprezo das coisas terrenas se podem conquistar os louros do Céu.
426
Coragem, sempre te repetirei que já nos resta pouco de vida; que o palco vão e ilusório deste mundo não
tardará a apagar-se dos nossos olhos e estamos prestes a entrar no interminável palco da eternidade que nos
espera. Para corroborar o que te estou a dizer, eis aqui três frases de santos, com as quais quero convencer-te
de que nós somos afortunados nesta Terra, especialmente agora que Deus quer que aproximemos os lábios
do cálice da adversidade e das penas.
427
Santo Agostinho afirma que é indício de estar predestinado à glória dos eleitos padecer muito por J. C. e
ter aflições nesta vida: “Coniectura est, cum te Deus immensis persecutionibus corripit, te in electorum suo-
rum numerum destinasse.”
428
São João Crisóstomo diz que é uma graça realmente suprema ser considerado digno de sofrer algo por
Cristo; e é uma coroa verdadeiramente perfeita e uma recompensa não inferior ao prémio do Paraíso: “Est
gratia vere maxima dignum censeri propter Christum aliquid pati: est corona vere perfecta, et merces futura
retributione non minor.”
429
S. Pedro de Alcântara, por seu lado, depois de ter passado toda a sua vida entre mortificações e espinhos,
poucos dias depois de expirar nos braços do Senhor, apareceu a St.a Teresa em Espanha e assim lhe falou:
«Ó feliz penitência, ó doces sofrimentos e pesares, que tanta glória me valeram!» O felix poenitentia, quae
tantam mihi promeruit gloriam! Assim se expressam os filhos de Deus, assim pensam os verdadeiros segui-
dores de Cristo.
430
Pensemos nós assim também; lancemo-nos totalmente nos braços amorosos da Providência divina e lute-
mos valorosamente até à morte à sombra da gloriosa bandeira da cruz e a preciosa coroa da recompensa eter-
na será para nós.
431
No momento em que te escrevo, encontro-me em perfeito estado de saúde. Desde 6 de Abril até meados
de Agosto, o Senhor dignou-se visitar-me com dores de cabeça muito fortes e prolongadas, que me deixaram
muito fraco; mas desde o começo da segunda metade de Agosto fui-me restabelecendo, de modo que em
Setembro pude empreender uma viagem às terras dos Gogh, a ocidente do Nilo Branco, no interior. No dia
seguinte àquele em que recebi correspondência da Europa, ou seja, a 14 do corrente, fui atacado por uma
fortíssima febre, que me durou cinco dias seguidos e bem pensei que entregava alma ao Criador.
432
Mas também desta vez Deus não me quis com Ele. Ao nosso caríssimo P.e Ângelo aconteceu-lhe o mes-
mo que a mim. Já P.e Beltrame, nosso superior, à excepção de poucas e ligeiras febres sofridas no começo
das chuvas, gozou e goza de perfeita saúde. Bendito seja o Senhor. Agora estamos os três realmente com
saúde e preparados para trabalhar, com a ajuda da divina graça, pela glória de Cristo.
433
Teria muitas coisas para te dizer sobre este país e sobre o que fizemos e projectamos fazer no futuro. Mas
sobre isso escrever-te-ei com mais calma quando as nossas ocupações me permitirem fazê-lo. Por agora te
comunico simplesmente que morreram em quatro meses cinco missionários, entre eles o pró-vigário apostó-
lico P.e Inácio Knoblecher e P.e José Gostner, director da estação de Cartum, mortes que deixaram muito
diminuído o número de obreiros evangélicos destas missões; as circunstâncias chamam alguns de nós e tal-
vez a todos a Cartum, cuja missão agora se apoia nos ombros do nosso procurador P.e Alexandre.
434
Morreu também o ferreiro que trouxemos de Verona. Bendito seja o Senhor. Não te assustes. A nossa vi-
da está nas mãos de Deus e que Ele faça o que quiser; nós, em irrevogável entrega, sacrificámo-la a Ele.
Bendito seja. Aqui uma pessoa morre da noite para o dia, sem tempo de se preparar para morrer: é preciso
estar sempre preparado. Em poucas horas, uma febre deixa uma pessoa no último grau de fraqueza, à beira
da morte. Por isso, roga por nós, que nem sempre podemos estar na graça de Deus e preparados para morrer
de um momento para o outro.
435
A 13 do corrente, recebi todas as tuas cartas e as da mãe desde Dezembro do passado ano até 7 de Agosto
do presente. Também me chegaram duas cartas do pároco de Voltino, uma de António Risatti, outra do cabo,
etc., e umas gentis linhas do Sr. Pedro Ragusini, cartas que me foram todas muito gratas. Saúda-os cordial-
mente da minha parte, que quando tiver tempo, escreverei a todos. P.e João e P.e Ângelo enviam-te sauda-
ções cordiais; amiúde falamos de ti.
436
Ah, a tua sorte de poderes sofrer por Cristo é verdadeiramente invejável! Saúda e apresenta os meus res-
peitos à família Patuzzi, a P.e Bem especialmente ao sr. Luís, ao sr. Beppo, ao amigo António Risatti, ao
doutor, ao sr. Cândido, ao muito gentil sr. Pedro e ao seu tio, o sr. Bartolo Carboni; a Checcho e Bárbara
Rambottini, a quem recordo sempre com agrado; ao pintor; ao sr. conselheiro e sua família, de quem recebi
carta; ao arcipreste de Tremosine; a P.e Luís; ao pároco de Voltino, a quem vou certamente escrever; à sra.
Mariana Perini; a Bettanini de Bassanega; aos jardineiros de Tesolo e de Supino; à sra. Minica e filhas; às
boas famílias de Pedro Roensa, Carlos e ao sr. Vicente Carettoni; a P.e Pedro Grana; aos nossos parentes de
Limone por parte da mãe, de Bogliaco e de Maderno; ao famoso cabo, a quem saúdam também P.e Ângelo,
etc., etc.; a Salsani, etc., etc.
437
Adeus, querido pai. O Senhor esteja sempre contigo. Tais são os votos de quem te ama; tais os suspiros
daquele que, abraçando-te e dando-te mil beijos com todo o carinho, se declara

Teu af.mo e agradecidíssimo filho


Daniel Comboni
Servo dos negros na pobre África Central

438
N. B. Espero que gostes das estampas de santos que te mando e que escolhi como minha recordação, com
as quais te consagrei à Padroeira e Rainha da Nigrícia, a Imaculada Virgem Maria. Em suas mãos estás me-
lhor que se estivesses sentado no trono de um grande império. Ela te conforte sempre.
O outro santo negro que vai junto dá-o ao tio José. Comunico-te também que celebrei por ti e pela pobre
mãe cinquenta e seis missas, em mérito de vossas almas. E como tinha o pressentimento de que a mamã ia
morrer, desde 17 de Julho apliquei por ela em particular dezassete missas, do que agora me alegro. No dia
seguinte à chegada das cartas da Europa, P.e João quis que todos nós celebrássemos a missa por alma da
mãe. Deixa que eu me encarregarei de a cobrir de missas, quando pudermos celebrar. Mas aplico-as sob con-
dição, no caso de que ela tenha necessidade, porque de outro modo quero que as minhas missas sejam em
teu benefício e das almas dos nossos familiares defuntos. Ela está no Paraíso rogando por nós. Adeus, mil
vezes adeus, em nome de Jesus Cristo.
439
Quanto ao imprimir as nossas informações, como por algumas cartas percebi que alguém deseja fazer, é
inútil, já que o nosso Instituto manda imprimir tudo, como até agora tem vindo a fazer com tudo o que escre-
vemos e que tem alguma importância.
440
Quando houver uma ocasião propícia, mandaremos para o Instituto um dente de marfim de elefante. Os
elefantes são animais de tamanho desmesurado, como nunca se viu. O elefante que tinha este dente foi caça-
do no território dos Gogh, aonde P.e João e eu viajámos em Setembro passado. Este dente pesa 121 rolos que
correspondem a mais de 6 pesos brescianos [aproximadamente 107 quilos]. Oh, a quantidade de feras e de
caça que se vêem por aqui! Certamente que o Sr. Ventura Girardi se sentiria no paraíso no meio destas soli-
dões, ele que sonha sempre com aves e pássaros.

441
N. B. Deixo-te ainda uma lembrança e é uma famosa e verdadeira sentença de Cristo. Medita-a sempre e
trá-la sempre na mente, que bem merece a nossa veneração. E é esta: BEATI QUI LUGENT: felizes os que
choram.

N.o 40 (38) - A EUSTÁQUIO COMBONI


AFC

Da tribo dos Kich, 24 de Novembro de 1858

Querido primo,

442
Meu bom Eustáquio! Fiquei sem mãe!... tinha-a... mas já a não tenho! Bendito seja o Deus da misericór-
dia, que quis lembrar-se de mim! Embora eu tenha resolutamente virado as costas ao mundo a fim de assegu-
rar a salvação da minha alma, consagrando-me a um estado de vida totalmente semelhante ao de Cristo e dos
Apóstolos; e ainda que com a graça divina tenha vencido a natureza, separando-me de quanto mais amava no
mundo para servir com maior liberdade o Senhor, contudo, senti vivamente os rebates da frágil condição
humana e chorei amargamente a grande perda.
443
Mas bendito seja eternamente o Senhor! Ele assim o dispôs: eu adoro humildemente os seus divinos de-
cretos. Ele quis chamar para junto de si a minha pobre mãe, da qual recordo o carinho que me dedicou e o
quanto a pobrezinha sofreu e se sacrificou por mim. Ele quis deixar em dolorosa solidão o meu bom pai, que,
ainda que resignado à vontade divina, devido à sua grande sensibilidade, se vê arrastado para uma profunda
melancolia.
444
Mas Deus o quer assim: bendito seja. A morte de minha mãe e a solidão de meu pai perturbam-me bas-
tante. Mas, ó minha alma, sacode o teu letargo e eleva ao céu o olhar, que o homem não é feito para esta
terra! Este doce pensamento, caríssimo Eustáquio, não só faz evaporar do meu espírito toda a perturbação,
mas também enche a minha alma de inefável alegria.
445
Sim, agradeço ao Senhor que me visitou a mim e a meu pai. Não abandonei eu o mundo para servir o Se-
nhor? E meu pai não deu o seu generoso consentimento, com o único objectivo de obedecer à vontade de
Deus e ter assim uma nova ocasião de sacrificar o seu espírito a Deus para salvar a sua alma? Por acaso não é
a via da aflição, do sofrimento, da negação de si mesmo o caminho mais recto e seguro para conseguir a sal-
vação da alma, sacrificando a Deus todos os ídolos do próprio coração?
446
Sim, meu querido primo, essa viril sentença do Salvador – “Quid prodest homini, etc.: «De que serve ao
homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma? E se a perde, que poderá o homem dar em troca para
a recuperar?...»; essa viril sentença, digo, que significou o triunfo de tantas almas que antes estavam apega-
das às coisas deste mundo, que salvou da morte a tantos idólatras dos bens e das riquezas do século; esta
sentença que, repito, mudou o coração a tantas almas que queriam construir a felicidade nesta terra e que
ganhou tantas almas para a cruz, esta sentença, pronunciada pela infalível verdade eterna, vestida com os
míseros despojos da natureza humana para nos indicar o caminho do céu, é a que dá alento ao meu espírito, é
a que o eleva acima das coisas desta terra, pondo em minha alma desejos de novas adversidades, porque es-
tou convencido de que estas são o melhor meio para triunfar do mundo e ganhar a Deus.
447
Seja, pois, bendita a mão que nos purifica no crisol da mortificação, as calamidades e aflições desta míse-
ra vida, que ao fim de contas não é mais que um sopro que rápido se desvanece. Pouco nos fica já para viver
a mim e a meu pai e se queres que te diga, também a ti: somos já velhos e em breve ter-se-á que dar contas
dos talentos que o Senhor nos deu. Toda a minha confiança está, portanto, em Deus, que vê tudo, que pode
tudo e que nos ama.
448
Porém, não penses que, porque atribuo tudo a Ele, não aprecio as solícitas preocupações que os homens
têm e tomam por amor de Deus. O Senhor serve-se dos homens como de causas secundárias para levar a
cabo os seus desígnios divinos. Sim, querido primo, o Senhor serve-se de ti e da tua família para confortar a
desolada alma de meu pai.
449
Oh, como ficou comovida a minha alma por sentimentos de afecto e gratidão para contigo e para com os
teus, quando percebi, pelas cartas de meu pai, o tratamento carinhoso que vós usastes para com ele nos mo-
mentos mais críticos da perda que eu e ele ...

[carta incompleta]

N.o 41 (39) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/2

Santa Cruz, 3 de Dezembro de 1858

Meu estimado e rev.do P.e Francisco,

450
De quanta alegria foram portadoras as suas gratíssimas cartas! Quantas boas notícias do Instituto mascu-
lino, do progresso dos jovens, do seu entusiasmo e constância no bem e no estudo, da incansável actividade
do seu estimado reitor, do brilhante festival, etc., etc.! Asseguro-lhe que estas coisas nos causaram a mais
viva impressão e o nosso ânimo ganhou nova força e vigor para corresponder, por quanto estiver nas nossas
mãos, às magnânimas intenções e planos do nosso venerável e amadíssimo pai e superior.
451
Agradeço-lhe de todo o coração quanto fez para aliviar e confortar os meus queridos pais e quanto faz e
fará para consolar meu pobre pai. É tremendo para mim ter perdido a minha mãe e que meu pai tenha ficado
sozinho. Mas bendito seja eternamente o Senhor! Deus quis assim para o maior bem: dou-lhe graças de cora-
ção. Meu pai sente ao vivo a amarga perda; mas, para meu grande alívio, sei que ele está totalmente resigna-
do à vontade divina. Uma ou outra cartinha que lhe chegue às mãos, escrita por um ministro do Céu, é o
meio mais eficaz para o confortar e o que exerce maior impressão no seu ânimo para lhe elevar o espírito a
mais altos e alegres pensamentos.
452
Incluo nesta carta um santinho, que peço aceite de um pobre solitário da África Central. Quase me enver-
gonho de o mandar, mas perdoe-me a fraqueza.
Recebi cartas de P.e Valentinelli, de P.e Clerici, Carrè e Lucchini, com um post scriptum de P.e Dorigotti,
as quais me foram muito agradáveis. Mas agora não posso responder; assim, peço-lhe, saúde a todos da mi-
nha parte, eu mais tarde escrever-lhes-ei.
453
Percebi que a sra. Faccioli levou ao superior alguns livros árabes que me ofereceu. Espero que o sr. supe-
rior os tenha guardado para o colégio. À sra. Faccioli já lhe mandei uma carta no passado mês de Março e
não obtive resposta, de modo que não penso escrever-lhe. Dê-lhe muitos cumprimentos da minha parte e
também ao seu marido e a Checchino. (Ao dr. Patuzzi escrevi-lhe de Cartum e de Santa Cruz, dando-lhe um
pequeno relato da nossa viagem; mas, depois de ter recebido essas cartas, ele não mais me escreveu. Eu por
isso não vou gastar mais tempo a escrever-lhe.) Peço-lhe que o saúde em meu nome a ele e à sua família (no
caso de o ver, entenda-se). E o meu Vítor, que faz? E Luchini como vai?
454
Peço-lhe que faça chegar as minhas saudações a P.e Tomba, a P.e Fochesato, P.e Fuksneker, P.e Fiumi,
P.e Bonomini, P.e Galbiero, P.e Brighenti e a todos os sacerdotes, clérigos e postulantes do Instituto mascu-
lino. Também em nome de todos a P.e César, às sras. Lucrécia e Helena, à sra. Tia, a Betta, à auxiliar, a M.a
Azzolini e a todas as mestras e meninas negras do instituto feminino.
455
Igualmente, em nome de todos, a P.e Bendiolini, Marani, Fedelini, Lenotti e a todos os padres estigmati-
nos, aos Irmãos de S. João de Deus, aos professores do liceu, e, de minha parte, especialmente ao prov. Ste-
gagnini, a P.e Biadego, a P.e Angi, a Aldri, Bianchi e Ronconi, ao sr. Toffaloni e a P.e Tomás que nos é tão
querido, à família Farina, aos P.e Bresciani, Artini e Peretti, ao pároco de St.o Estêvão, aos sac. Vignola, P.e
Guella, Paiola, (Zamboni!!!), ao dr. Recchia, etc., etc., a todos os homens da cozinha, especialmente ao céle-
bre [...] e ao escriturário Gioan, etc., enquanto, renovando os meus sentimentos de gratidão, estima e afecto,
passo a subscrever-me de todo o coração

Seu humilde e af.mo


Daniel Comboni
1859

N.o 42 (40) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/3

Cartum, 6 de Abril de 1859

Estimado P.e Francisco,

456
Não quero ocultar-lhe que, desde os primeiros dias do passado mês de Dezembro e durante toda a viagem
até Cartum, fui tão maltratado pelas febres e fiquei com o estômago em tão más condições, que não me res-
tava senão um prognóstico funesto sobre a evolução da minha saúde. Agora encontro-me em estado extre-
mamente débil, cheio de dores, com umas angústias muito penosas e cheio de todos os sintomas que anunci-
am que está próximo o fim da vida. Bendito seja eternamente o Senhor. Ontem fiz-me uma sangria. O sangue
estava estragado como lixívia; contudo devo confessar que obtive algum alívio; portanto não devo perder a
esperança.
457
O Senhor disponha como melhor lhe aprouver: estamos em suas mãos e portanto demasiado bem guarda-
dos. Faça-se, pois, o que Deus quiser. Muito obrigado, amável P.e Francisco, pelas suas atenções para com
meu pai. Também a respeito disso, faça-se o que Deus quiser. Oh, quanto nos consolou, à nossa chegada a
Cartum, conhecer as boas notícias do Instituto masculino!
458
Mas vou concluir, porque já me faltam as forças. Obrigado de todo o coração. Beije por mim as mãos ao
nosso muito amado pai, o superior. Os meus respeitos a P.e Tomba e ao Colégio Fundamental. Encomendo-
me às suas orações e creia-me sempre

Seu agradmo. e af.mo Daniel Comboni

N.o 43 (41) - A P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/42

Wady-Halfa, na Núbia, 30 de Julho de 1859

Meu caríssimo e estimadíssimo P.e Pedro,

459
Quando do meu regresso da tribo dos Kich, recebi em Fandah Eliab, entre os Nuer, a sua gratíssima do
dia 15 do passado Setembro, pela qual tomei conhecimento, com grande satisfação, da alegria e paz de que
desfruta na sua nova sede, do abundante fruto que espera obter da sua numerosa grei, do desejo de receber de
mim notícias do Centro da África e de muitas outras coisas. Congratulo-me muito consigo pela sua feliz
situação actual e tenho plena confiança de que o céu coroará com sucesso os seus trabalhos e esforços em
favor das suas ovelhas.
460
Eu tinha decidido satisfazer o seu desejo de conhecer as tribos de negros por nós visitadas, apresentando-
lhe informações sobre elas, os seus costumes, guerras, comércio, religião, etc., etc., pois tinha matéria vasta,
uma vez que, apesar de atormentados pelas febres, fizemos muitas observações a fim de escolher o lugar
mais adequado para a realização do plano de missão do nosso amado superior P.e Mazza. Mas que quer? As
febres altíssimas e disenterias que me fizeram por várias vezes experimentar as tremendas dores que sofrem
os que se abeiram da morte tiraram-me de tal maneira as forças, que, à excepção de um ou outro intervalo,
em que mandei algumas cartinhas a meu pai, eu não escrevi a ninguém, nem respondi a muitíssimos dos que
haviam feito o favor de me escrever.
461
Já saberá que, devido à morte dos missionários de Cartum, P.e João decidiu que nós os três nos transferís-
semos para lá, a fim de dar assistência àquela estação principal, que estava a cargo do nosso procurador P.e
Alexandre, de saúde muito abalada; ao mesmo tempo, por outro lado, após uma acurada exploração na zona
do Sobat, contávamos arranjar o necessário para estabelecer a missão idealizada, tendo já encontrado um
lugar apto na aguerrida tribo Acien.
462
Nesta viagem que, extenuado pela febre, iniciei a 8 de Janeiro e que durou 87 dias numa barca incómoda,
eu fui o alvo das minhas caríssimas e inseparáveis amigas, as senhoras febres; e chegado a Cartum, no dia 4
de Abril, apesar do esforço para me curar, fui atacado por outras febres e por uma tão violenta disenteria, que
todos, com pesar meu, me aconselharam a abandonar a África Central ao menos por algum tempo, confiados
de que, se pudesse fazer a viagem, ao menos até passar o trópico do Câncer, no Alto Egipto, poderia readqui-
rir em parte a saúde perdida; e tal esperança era maior se chegasse a alcançar a pátria.
463
Em Cartum, depois de ter morrido o nosso robustíssimo ferreiro Isidoro, expirava nos braços do Senhor,
atingido por uma repentina febre cerebral, o nosso amado companheiro P.e Ângelo Melotto, o qual se sentia
cheio de forças e há muitos meses que não sofria o mínimo incómodo. Por isso, partido eu de Cartum, fica-
ram apenas dois dos seis que tínhamos saído de Verona: P.e João, forte e robusto, que deve a sua condição
saudável a Deus e a um contínuo fluxo hemorroidal que o purga continuamente, e P.e Dalbosco, bastante
fraco, que, embora tenha só pequenas febres, por serem frequentes, muitas vezes fica incapaz de trabalhar.
464
Que deveríamos, pois, fazer, meu caro P.e Pedro? Unicamente resignarmo-nos com bom ânimo à vontade
de Deus, bendizer para sempre as suas adoráveis disposições, regressar por agora à pátria e esperar novos
movimentos do espírito de Deus, sempre dispostos a sacrificar e vencer tudo para seguir e realizar a vontade
do Senhor.
465
Parti, pois, de Cartum no dia 17 do passado mês de Junho num barco da missão até Ondurman e, dali, de
camelo, atravessei o deserto de Bayuda em catorze dias. Alugada uma barca em Abudom, numa semana
alcancei Dôngola, onde parei alguns dias para esperar o resto da caravana. Em dromedário, através do deser-
to que ladeia as grandes cataratas do Nilo e em três dias cheguei a Wady-Halfa. Aqui tenho apalavrada outra
embarcação e espero, em quatro dias, tocando Korosko, poder alcançar o trópico, na última catarata de As-
suão.
466
Tendo o Grande Paxá do Egipto proibido a passagem pelo grande deserto da Núbia – que nós atravessá-
mos em 1857 – por ser demasiado árduo e perigoso, tive de fazer uma viagem mais longa. Atravessar os dois
desertos exigiu-me um enorme esforço, dado o meu precário estado de saúde, embora, ao contrário do que
aconteceu no grande Atmur, nestes se encontre água cada dois dias. Deu-me a febre onze vezes sobre o ca-
melo e uma vez a disenteria, pelo que me vi obrigado a parar a caravana. Contudo, apesar de estar desfeito
pela fadiga, pelo mal-estar, pelo excessivo calor tropical e as privações, que a travessia do deserto traz consi-
go, espero estar já fora de perigo, após ter realizado a parte mais difícil da viagem.
467
Descendo pelo Nilo numa dahhabia através de todo o Egipto, chegarei ao Cairo. Em Alexandria apanha-
rei o vapor francês e pela rota de Malta, costeando a Itália, ou pelo Piemonte ou pelas Legações [Bolonha e
Romanha], espero chegar à minha terra, antes de meados de Setembro. Naturalmente quero ir uns dias à sua
nova sede e passar consigo uns bons momentos conversando...
Entretanto, receba a minha mais cordial saudação, saúde da minha parte a sua família, peça por mim ao
Senhor e creia-me de todo o coração

Seu af.mo Daniel C.

N.o 44 (42) - A P.e PEDRO GRANA


ACR,A, c. 15/43

Limone, 26 de Outubro de 1859

Mui rev.do arcipreste e caro P.e Pedro,


468
Desde o dia do 18 do corrente, enviei de Bréscia, por meio de Mazzoldi, um baú selado e dirigido a si, pa-
ra fazer o favor de mo mandar para Limone quanto antes. Como agora vai um barco a Toscolano, peço-lhe
mo envie. Estamos cheios de pasmo, maravilha e contentamento ao ver bem encaminhadas as nossas espe-
ranças. Deus proteja (espero) a religião. Entendamo-nos que eu sou ainda um homem que cumpre a sua pala-
vra.
469
Hoje vou a Verona e dentro de poucos dias voltarei a Limone e depois quero passar um dia ou dois com o
meu sempre caríssimo e recordado. P.e Pierino, na sua sede. Entretanto, adeus. Eu manterei a minha palavra,
levando-lhe uma pequena recordação da África Central. Saudações a sua família, a P.e Baldinello, etc., etc. e
creia-me sempre, com toda a expressão de meu coração sempre sincero, constante e italiano

Seu af.mo amigo Daniel

N.o 45 (43) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 6, ff. 403-404

Verona, 30 de Outubro de 1859

Eminência reverendíssima,

470
Logo que cheguei a Verona, exprimi ao meu superior, rev.do Nicolau Mazza, o desejo que alimenta V.
Em. Rev.ma de pôr por escrito as pequenas observações que fizemos durante a nossa estada na missão da
África Central. E dado que o superior, para satisfazer os desejos dos benfeitores da missão, fez publicar as
informações há pouco recebidas de África, compraz-se em enviar-lhas em primeiro a V. Em. Rev.ma, com a
viva esperança de que as acolherá com a indulgência e benignidade que tanto adornam o seu espírito, todo
fogo e amor pelas missões.
471
Neste fascículo, que é o terceiro dos que já foram enviados a V. Em. Rev.ma encontrará o que com reite-
rada experiência foi constatado directamente em solo africano, quando estudávamos a índole, os costumes e
as ideias religiosas dos negros, a fim de aplicar os meios mais eficazes para levar àquelas gentes a fé e a prá-
tica do Evangelho, reservando-nos de fornecer informações de muitas mais coisas que observámos, mas cuja
verificação requer mais tempo e exame.
472
Oxalá o Senhor e a Virgem Imaculada, Rainha da Nigrícia, dirijam o seu benévolo olhar para aquelas tri-
bos que ainda se encontram nas trevas e sombras da morte e constituem o centro das nossas preocupações.
473
O dicionário da língua dos Yen, ou Dinca, a gramática correspondente e um volumoso Catecismo já fo-
ram compostos e aperfeiçoados na medida do possível, sobretudo por obra do missionário João Beltrame; e
nos finais deste ano chegarão a Verona. Um meu outro companheiro, P.e Alexandre Dalbosco, tem a seu
cargo a direcção dos pequenos negros de Cartum e a economia de toda a missão da África Central. Ambos,
tal como o rev.mo pró-vigário Kirchner, gozam de uma razoável saúde.
Digne-se aceitar, ó Em.mo e Rev.mo Príncipe, os humildes e respeitosos cumprimentos do meu superior
P.e Mazza, ao mesmo tempo que me inclino reverente a beijar a sagrada púrpura

De V. Em. Rev.ma
hummo., devotmo. e obrigmo. servidor
Daniel Comboni m. a.

N.o 46 (44) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM STº ESTÊVÃO, VERONA
ASSV
1860

N.o 47 (45) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Génova, 28 de Novembro de 1860

Rev.mo sr. superior,

474
Lamento não poder despedir-me de si na manhã da minha partida. Contudo, segunda-feira, à tarde, che-
gámos a Milão, onde pernoitámos, alojando-nos no seminário das Missões Estrangeiras. O superior Marinoni
manda-lhe os melhores cumprimentos. Ontem à tarde cheguei a Génova, e esta manhã, apesar do grande
número de viajantes que se dirigiam para Nápoles por causa do rei, pude estabelecer um excelente acordo
com a companhia marselhesa que faz essa rota marítima, obtendo o desconto de um terço nos bilhetes dos
negros, pelo que esta noite, às dez, partimos para Nápoles, onde chegaremos sexta-feira.
475
Poderia ter economizado ainda mais, esperando pelo barco da companha anglo-sarda, mas preciso de me
apressar para chegar com tempo suficiente para coincidir com o vapor que parte para o Egipto. Os jovens
estão bem, menos Tomás, que sente, mais que de costume, o mal-estar na espinha dorsal; e é também por
este motivo que apresso a viagem. Encomendo-me a si, sr. superior, para que rogue ao Senhor que eu não
cometa erros na empresa que me foi confiada, da qual, sem dúvida, advém grande glória para Deus. Em
Monza, sem eu nada pedir, um padre barnabita deu-me dois napoleões de ouro.
476
Transmita as minhas saudações a P.e Bricolo e a todos os sacerdotes, aos jovens e às africanas do Institu-
to, enquanto, beijando-lhe respeitosamente as mãos, nos Corações de Jesus e de Maria me declaro

Seu obedmo. filho, Daniel Comboni

N.o 48 (46) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Nápoles, 1 de Dezembro de 1860


Estimadíssimo sr. superior,

477
Ontem, à tarde, às cinco, cheguei felizmente a Nápoles. Os quatro jovens enjoaram bastante no mar; eu
nada. O P.e Ludovico acolheu-nos muito amavelmente; esperava-nos com ansiedade. Ele nada sabe nem
saberá para onde me dirijo. Disse-me que é impossível trazer negros pela parte do Egipto, devido à excessiva
vigilância da polícia turca e inglesa. Mas eu não me assusto. A obra do P. e Olivieri chegou a seu termo: to-
dos os consulados do Egipto estão contra. Precisamos da máxima prudência, para não correr a mesma sorte
que ele.
478
É preciso permanecer quatro ou cinco dias em Nápoles para saber do P.e Ludovico a história do P.e Verri
e como atraiu a indignação de todas as delegações do Egipto, para eu poder evitar o que me pode prejudicar e
procurar o que me pode servir de ajuda. É preciso por certo que obtenha a protecção de alguma potência
europeia.
Antes de sair de Nápoles, informá-lo-ei sobre o que tiver feito em relação ao bom andamento do assunto
que me foi confiado. O P.e Ludovico e todos os negros de Nápoles beijam-lhe as mãos. Rogue ao Espírito
Santo por

Seu indigmo. filho


Daniel Comboni m. a.
N.o 49 (47) - A P.e NICOLAU MAZZA
AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 21 de Dezembro de 1860

Muito rev.do e amat.mo superior,

479
Espero que tenha recebido duas cartas que lhe mandei de Nápoles, na última das quais lhe expunha os
motivos que me induziram a ir a Palermo. Eu cheguei a Nápoles suficientemente a tempo para dali, sem tar-
dança, me dirigir ao Egipto. Porém, tendo-me informado bem da dificuldade, ou melhor, da impossibilidade
de passar jovens negros para o Egipto sem altas e poderosas recomendações, resolvi esperar pela saída do
vapor seguinte para aquele país e, entretanto, procurar importantes apoios para assegurar o êxito da empresa.
480
Os dois consulados do Egipto que mais renitentes se mostram à passagem de negros são o inglês e o sar-
do; assim sendo, decidi prover-me de muito importantes recomendações para estes dois tribunais inquisitori-
ais. E tendo ido a Palermo (onde estava a corte de S. M. Sarda) e a Roma (onde o embaixador inglês é bom
católico), pude obter uma carta de recomendação de ordem do rei para o cônsul sardo no Egipto; mais duas
cartas para o cônsul inglês: uma do embaixador inglês em Roma, outra de Lorde Pope Hennesy, que é uma
alta personalidade britânica, o qual, estando prestes a voltar a Inglaterra, me deu a direcção para recorrer a
ele em caso de necessidade e conseguir protecção mais firme.
481
O conde Fabrizi, ministro de Vítor Emanuel, a quem eu, como súbdito sardo, implorei protecção perante
o meu cônsul sardo do Egipto, aconselhou-me a que me apresentasse em pessoa ao rei, pintando-me o rosado
panorama de que Vítor Emanuel, como impulsionador das missões, além da recomendação, me ajudaria com
generosas esmolas. Mas eu amavelmente recusei-me.
482
Como súbdito sardo, não há nenhum mal em implorar protecção, como foi o caso da missão da África
Central, que solicitou e obteve de um inimigo da fé, como é o Paxá do Egipto, protecção para Assuão. Mas a
coisa muda quando se trata de se comprometer com um rei perseguidor da Igreja, para conseguir dinheiro. Se
eu tivesse aceite dinheiro de Vítor Emanuel, sem dúvida que me teria comprometido a mim mesmo, ao Insti-
tuto e à missão. Porque, ao ler-se nos jornais austríacos que um missionário do Instituto Mazza tinha recebi-
do uma importância de um rei inimigo da Igreja e do Governo austríaco, ter-se-ia atribuído uma determinada
opção político-religiosa não só a mim mas também ao Instituto; e teriam caído sobre nós os olhares da Pro-
paganda, de Roma, do Governo austríaco e da Sociedade de Maria, de Viena, e eu teria comprometido o
Instituto e o sucesso da missão. Por isso, recusei a entrevista com o rei, contentando-me com uma poderosa
recomendação que pude pedir e obter sem se pressupor nenhum inconveniente; esperando que, do mesmo
modo que saí de Verona com os negros sem Vítor Emanuel, possa regressar com os negros sem ele.
483
Não obstante, antes de me servir das recomendações, tanto sardas como inglesas, abrirei bem os olhos no
Egipto e secretamente, de forma aturada, indagarei se é conveniente. Monsenhor Nardi, verdadeiro amigo da
nossa missão e do nosso Instituto, ajudou-me muito em Roma a conseguir as recomendações inglesas. O
aspecto económico também influenciou a minha vinda a Roma, dado que a embaixada francesa em Nápoles
me negou a passagem grátis nos vapores franceses, sem ordem expressa da Propaganda.
484
Pelo que, tendo-me dirigido ao cardeal Barnabó, prefeito da Sagrada Congregação de Propaganda Fide,
Sua Eminência dignou-se entregar-me três cartas, numa das quais me declara missionário apostólico e nas
outras duas se dirige às embaixadas francesa e austríaca; e declarando que sou missionário apostólico, supli-
ca a passagem gratuita tanto em vapores franceses para ir a Alexandria, como no Lloyd austríaco para o re-
gresso de Alexandria a Trieste. Pelo que estou contente, pois o ter esperado a próxima saída de vapores para
o Egipto deu como fruto valiosas recomendações para o sucesso da empresa e poupei mais de cem táleres ao
prover-me das cartas da Propaganda.
485
Hoje fui recebido em audiência por Sua Santidade Pio IX. Foi muito rápida e deu-me a impressão de que
o Papa está envelhecido. Eu pedi-lhe a bênção para si, sr. superior, para os institutos masculino e feminino,
para a África, para meu pai e para mim. «Sim, meu filho – disse-me com um coração generoso que abarca o
universo –, eu dou a bênção a todos, a todos.» Saí consoladíssimo por ter contemplado o Vigário de Cristo;
parecia-me um ser sobre-humano. Em Roma é tudo calmo; em Nápoles há uma grande confusão. O clero e
grande parte do povo simpatizam com o rei Borbón; tudo ao contrário da Sicília. Aqui em Roma ama-se o
Papa e o Governo pontifício.
486
Ao passar de Nápoles a Roma, senti a mesma impressão que experimentaria quem fosse de Babilónia para
Jerusalém; e o mesmo sucedeu a P.e Luciano, de Lonigo, que me acompanhava.
487
A obra do P.e Olivieri, como me disse o superior do Instituto dos Negros de Nápoles, está totalmente pa-
ralisada. A polícia dos consulados egípcios anda a observar com olhos bem abertos para ver se há negros que
passam. Devo, pois, evitar a mínima aparência de contacto com ele. Quando pude, observei o colégio de
Nápoles e vejo-o bem encaminhado quanto à piedade e conduta moral; mais discretamente quanto ao pro-
gresso nos estudos. Há ali quem estude filosofia.
488
O P.e Ludovico idealizou um plano substancialmente semelhante ao seu. Vê-se que é o Senhor que faz
voltar os olhares para a África. Ele tem muitas artes e ofícios no seu Instituto: mercearias, oficinas de carpin-
taria, serralharia, sapataria, alfaiataria, etc., e mestres e instrutores em cada uma destas artes; tem, além disso,
uma grande quinta, onde se pratica a agricultura. Em suma, parece-me bem encaminhado.
Agora tem seis leigos preparados para enviá-los para a África. Fundou outros institutos: um de negras,
que, depois de educadas, serão devolvidas à África; outro de missionários para a Itália, outro para a instrução
dos pobres, outro para a reabilitação dos incapacitados e outro para a reforma, como o do Beato Leonardo de
Porto Maurício. Ele financia tudo, pedindo esmolas, como também o sr. superior faz. O rei Francisco II sen-
tia adoração por ele e é também estimado pelo Governo sardo, que mandou o P. e Ludovico a Roma para
chamar à sua sede de Nápoles o cardeal-arcebispo.
489
Tanto Garibaldi como Vítor Emanuel mostraram grande simpatia pelas obras do P. e Ludovico e especi-
almente pelo Colégio de Negros; mas o P.e Ludovico lamenta a sorte de Francisco II e dirige fervorosas ora-
ções ao Senhor para que volte ao seu trono de Nápoles, porque o jovem rei – disse-me – era verdadeiro pai
dos negros.
490
Aqui em Roma tenho andado à procura de livros para aprender a língua abexim, a qual poderá ser facil-
mente necessária no nosso Instituto africano; mas só encontrei alguma coisa e pouco na Propaganda. Agora
está a imprimir-se uma gramática e o cardeal prometeu-me que, logo que esteja pronta, ma enviará para Ve-
rona. No Oriente procurarei conseguir tudo o necessário para esta língua.
491
Não tendo podido, pelas razões expostas, partir para o Egipto no barco anterior, mandei uma carta ao pre-
feito apostólico de Adem, recomendando-lhe os jovens negros. Seria meu desejo, dados os muitos obstáculos
que o Inferno poderia suscitar contra a santa empresa que temos em mãos, que o senhor, estimado superior,
ordenasse que os institutos masculino e feminino rezassem à Virgem Maria Imaculada ou a S. Francisco
Xavier uma ave-maria e um gloria patri “ad hoc”; porém, faça, sr. superior, o que melhor lhe parecer.
492
Amanhã saio de Roma para Malta e Alexandria do Egipto, onde, se a borrasca invernal não for demasiado
forte, espero chegar por volta do dia 27 do corrente. Entretanto, peça ao Senhor e a Maria para eu não fazer
disparates. Depois, dê o seu juízo como especialista nestas lides e diga-me claramente toda a falha ou erro
que eu possa ter cometido; e suas ordens e conselhos serão para mim normas para actuar. Receba a bênção
do Papa, assim como as saudações do cardeal Barnabó; de Monsenhor Nardi; do P.e Pagani, Geral do Institu-
to da Caridade, e do P.e Luís de Pueker; mais os sentimentos mais autênticos e cordiais de respeito e amor de

Seu indigmo. e af.mo filho


Daniel Comboni

493
N. B. Rogo-lhe que apresente as minhas saudações a P.e Pedro Albertini, a Monsenhor Canossa, a P.e Cé-
sar, às professoras, aos sacerdotes e às alunas; e diga à professora Lucrécia que fiz um fervoroso memento
pelo seu S. Caetano, no dia em que celebrei missa no seu túmulo de Nápoles.
494
N. B. Acabo de ter uma nova entrevista com mons. Nardi, que me diz que o acima referido Lorde Pope
Hennesy é membro do Parlamento inglês, em Londres, e pede-me que lhe envie uma saudação especial. A
recomendação vem de Russel. Agora, ao chegar a casa, encontro uma carta do mesmo Lorde Pope Hennesy,
que gentilmente me escreve que se surgir qualquer dificuldade no Egipto, lhe telegrafe para Londres, para a
Câmara dos Comuns, que ele fará junto dos ministros do Governo e da rainha Vitória tudo o que eu quiser
para a obra a que me consagrei. Sua Em.a o cardeal Barnabó aconselhava-me a que, quando trouxesse os
negros do Egipto para a Europa, os passasse dois a dois.
495
Outra pessoa importante de Roma, minha conhecida, que esteve vinte anos no Oriente como sup. do Insti-
tuto de S. José de Jerusalém e é conhecedora dos enredos dos ingleses no Oriente, aconselhava-me a trazê-
los para a Europa pela rota do deserto do Suez e Constantinopla. Eu tinha pensado ir pelo cabo da Boa Espe-
rança, no caso de encontrar dificuldades no Egipto. Espero, no entanto, não ter de recorrer a estes meios,
apoiado nas recomendações de Lorde Russel e Pope. Reze ao Senhor, que eu usarei todas as cautelas neces-
sárias. Creio estar consciente de quanto diz respeito a este assunto, de modo que tudo há-de correr bem. Im-
plorando a sua bênção, confesso-me

Seu af.mo Daniel

Saio imediatamente de Roma.

N.o 50 (48) - ASSINATURA DA MISSA CELEBRADA


EM ST.o ESTÊVÃO, VERONA
ASSV

N.o 51 (50) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM S. JOÃO BAPTISTA DE SACCO, VERONA
AMV
1861

N.o 52 (50) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/4

Alexandria, 2 de Janeiro de 1861

Mui rev.do e amat.mo sr. reitor,

496
Eu tinha a ilusão de que, quando chegasse a Alexandria, encontraria cartas de Verona que me contariam
algo sobre o Instituto e sobre o nosso venerável e velho pai, que tem um grande coração e pensa muito, mas
escreve bastante pouco. Mas as minhas esperanças foram vãs. Pelo que, como estou em jejum de notícias de
Verona, quero afastar-me um pouco do meu estilo lacónico que até agora tenho mantido consigo nas três
cartas que lhe escrevi de Nápoles, Palermo e Roma e explicar-lhe de algum modo as circunstâncias que
acompanharam a minha viagem de Verona ao Egipto, assegurando-lhe que se anteriormente não lhe contei
tudo em pormenor foi porque sempre estive muito ocupado em arranjar tudo do melhor modo e levar a bom
termo o importantíssimo assunto que a Providência me tinha confiado.
497
O senhor conhece bem o resultado incerto e não demasiado feliz da expedição que fizemos à África Cen-
tral, quando em número de cinco missionários e um leigo partimos de Verona em 1857; e sabe também as
funestas peripécias das várias expedições organizadas pela Propaganda e pela Sociedade de Maria, de Viena,
desejosas de fundar nas regiões incógnitas da África Central uma missão católica para fazer brilhar a luz da
fé de Cristo naquelas vastas regiões ainda envoltas nas trevas e sombras da morte.
498
Pois bem, por estes desfechos vê-se claramente quão sublime e sábio se torna cada vez mais o grande pla-
no imaginado pelo nosso venerável e estimado superior que, em Fevereiro de 1849, decretou a criação de um
clero indígena e a educação de rapazes e raparigas africanos ministrada nos nossos colégios da Europa, para
que estes indígenas, formados no seio do catolicismo no espírito da nossa santa fé e instruídos na religião e
nos conhecimentos da civilização, voltassem depois a suas terras de origem e aí cada um, segundo a sua vo-
cação e profissão, pudesse comunicar e ensinar à sua gente os bens e conhecimentos, tanto religiosos como
civis, que adquiriram na Europa e para assim ser possível, pouco a pouco, fazer das tribos dos africanos ou-
tras tantas nações civilizadas e cristãs.
499
Actuando segundo este plano sublime e sábio, o mais oportuno e adequado que até agora se conhece para
a conversão da África e que foi concebido segundo o espírito da Igreja – a qual, não com outro objectivo,
fundou na capital do Cristianismo o Colégio Urbano de Propaganda Fide, no qual ingressam jovens escolhi-
dos de todas as partes do mundo, que, depois de receber a sua educação eclesiástica, são devolvidos à sua
terra natal, a fim de que implantem e promovam aí a civilização e a religião –, actuando, dizia, segundo este
grande plano do nosso querido superior, vim a saber, pelas informações de um missionário de Malabar que
voltava da Índia, em meados de Setembro passado, que nas costas da Abissínia tinha sido apresado um barco
com jovens escravas e escravos africanos, que os raptores queriam levar através do Mar Vermelho para as
costas desertas da Arábia. Os ingleses, autores da captura, levaram esse carregamento de negros para as suas
possessões do Oriente para os utilizarem nos trabalhos do café e das especiarias, entregando parte deles aos
missionários católicos de Adem.
500
Esta operação dos ingleses foi conforme o tratado de 1856 assinado no Congresso de Paris, onde, reuni-
das as grandes potências da Europa com o objectivo de regulamentar as questões do Oriente, se proclamou a
abolição da escravatura e do tráfico de negros. Determinação sábia, caritativa e cristã que proíbe o infame
tráfico de carne humana, uma actividade que avilta e degrada a humanidade e que reduz à vil condição de
animais criaturas humanas providas, como nós, da luz da inteligência, que é um resplendor da divindade e
uma forma émula da Augustíssima Trindade.
501
Seria algo horripilante se me pusesse a contar a maneira indigna e desapiedada como arrebatam os pobres
negros do seio de suas famílias e os põem à venda nos mercados de Cordofão e da Núbia; porém, nada disto
conto. Só direi que a circunstância acidental de um navio inglês apresar no Mar Vermelho um carregamento
destes pobres negros e os levar para as possessões britânicas pareceu ao grande servo de Deus, nosso venerá-
vel superior, uma favorável disposição da Providência, com a qual lhe oferecia um meio e lhe abria um ca-
minho para levar para os nossos Institutos de Verona raparigas e rapazes negros, coisa sumamente difícil,
desde a abolição da escravatura. Por isso ele, como quem se abandona sempre nos braços da divina Provi-
dência, sem desanimar devido às graves dificuldades que hoje se encontram para obter generosas e importan-
tes esmolas, decidiu enviar-me a Adem para que fizesse uma boa selecção destas criaturas africanas, disper-
sas pelas várias possessões britânicas.
502
Dando-se, além do mais, a circunstância – dentro das providenciais medidas de quem cuida solícito e com
piedosa dedicação dirige o nosso instituto masculino – de que convinha conduzir a Nápoles quatro jovens
africanos que não suportavam o rigoroso clima de Verona, era o momento oportuno de levar a cabo o citado
projecto.
503
Por isso, tendo tido êxito a minha ida a Veneza, onde obtive de Sua Excelência o lugar-tenente das pro-
víncias Vénetas, o barão Togenburg, passaporte para os quatro negros, na manhã do dia 26 do passado mês
de Novembro, eu deixava o Colégio e Verona e depois de atravessar a fronteira dos Estados Austríacos e a
parte que marca o confim do lago de Garda, enviando um profundo suspiro às margens de Limone, onde
respirei os primeiros hálitos de vida, detive-me em Bréscia na ilusão de abraçar e de me despedir do meu
velho e bom pai, a quem desejava ver e confortar, dado que ia empreender uma viagem um pouco mais com-
prida que a de Verona a Avesa.
Mas, ai, as minhas esperanças foram defraudadas: tendo-se levantado no dia anterior uma furiosa borrasca
no lago de Garda, não foi possível de nenhum modo efectuar o trajecto entre Limone e Gargnano. O Senhor
seja sempre bendito!
504
Às cinco da tarde, apresentados os meus cumprimentos respeitosos ao bispo de Bréscia, a Mons. Tiboni e
ao meu grande amigo, o Dr. Pelizzari, parti para Milão, onde nessa mesma noite fui cordialmente acolhido
com os quatro jovens e P.e Luciano no Seminário das Missões Estrangeiras de S. Calocero. Aí o meu cora-
ção embriagou-se da mais doce alegria ao conversar com aquela alma santa que é o reitor do seminário e ao
encontrar-me entre tantos queridos irmãos, sacerdotes e alunos daquele florescente jardim de caridade evan-
gélica, onde se formam no zelo e nas virtudes dos apóstolos e dos mártires tantas almas desprendidas, que,
cortados os vínculos da natureza e do sangue, calcando com pé generoso o fausto da humana prosperidade e
da grandeza, que uma posição desafogada e uma mente dotada lhes teriam podido oferecer, abandonando a
alegria dos seus lugares de origem, se espalharão pela face da Terra para levantar o estandarte da Cruz em
tantos reinos submetidos ao império de Satanás, para sacudir do profundo letargo tanta gente miserável sobre
a qual nunca brilhou o luminosíssimo astro da fé e para a levar à adoração da Cruz.
505
Produziu em mim, além disso, grande consolação o facto de saber que a um destes jovens missionários
aconteceu, como a mim, ter de abandonar o campo aberto das suas apostólicas fadigas na Oceânia; agora,
totalmente resignado às adoráveis disposições do Céu, dedica-se com zelo incansável à pregação, em forma
de missões, e ao exercício do ministério sacerdotal. Ao amanhecer do dia seguinte, eu já me encontrava em
Monza, no colégio dos padres barnabitas, onde saudei alguns deles, os quais me entregaram uma pequena
amostra da sua amizade e do seu interesse pela obra a que estou consagrado.
506
Às dez estava em amena conversa com o nosso dilecto amigo, o P.e Calcagni, barnabita, vice-reitor do R.
Colégio Longoni, o qual me pregou uma partida que não me deu muita graça: pediu-me a carta que mons.
Ratisbonne, milagrosamente convertido do judaísmo à fé, me tinha escrito de Jerusalém no passado mês de
Agosto; e eu deixei-lha na condição de ma enviar à uma da tarde para o Seminário das Missões Estrangeiras;
mas com grande consternação minha, mandou-me não o original da carta, mas uma cópia, acompanhada de
uma peça de 20 francos e de uma nota em que me desejava boa viagem.
507
Eu já lhe perdoei, mas com a promessa de lhe pregar uma muito maior; às três da tarde, depois de me ter
despedido dos missionários, apanhei o comboio e depois de ver passar rapidamente os campos de Magenta e
a ponte do Ticino e de deixar para trás Novara e Alexandria, às 10 estava já a jantar com os meus africanos
no hotel Cristóvão Colombo, em Génova.
508
Na manhã do dia 28, celebrado o Divino Sacrifício na Igreja da Anunciação, a mais bela e magnífica da
capital da Ligúria, e deixados os jovens ao cuidado de P.e Luciano, pus-me a percorrer as agências com va-
pores directos até às duas Sicílias para ver se encontrava algo que me conviesse. E estava a negociar um van-
tajoso contrato com a companhia marselhesa Fraissenet et Frères, em que conseguia um desconto de quase
metade da importância da viagem; mas, perante a incerteza de quando chegaria a Génova o barco que devia
levar-nos a Nápoles, decidi-me por fazer um contrato com a companhia Zuccoli que, nessa mesma noite,
enviava a Nápoles um vapor-correio e consegui para os seis um abatimento de um terço do preço de cada
passagem. Deste modo, às nove da noite, subimos para o Stella d’Italia, excelente vapor italiano, a bordo do
qual, à clara luz da lua, contemplámos o maravilhoso espectáculo que oferece a capital da Ligúria vista do
mar.
509
Defendida por terra e mar por vastas fortificações naturais ou construídas pelo homem, esplêndida pela
sua admirável situação e pelos seus formosos edifícios, a cidade é embelezada por um porto de forma circu-
lar, bastante extenso e provido de dois grandes molhes, para lá dos quais se ergue um gigantesco farol que
serve de guia aos pilotos. Este porto franco, frequentadíssimo, constitui um armazém muito considerável de
toda a classe de mercadorias e é um dos grandes centros de comércio da Europa. Despedimo-nos destas
amenas costas da Ligúria e ao cabo de três horas deixámos à esquerda as risonhas praias do magnífico golfo
de La Spezia. Na manhã seguinte encontrávamo-nos no porto de Livorno. Eu desci a terra e depois de cele-
brar missa na suja catedral, procurei a Virgem do clássico P.e Giravia (como me disseram os padres seus
companheiros); mas a ele não o vi, porque o Governo da Itália o tinha desterrado para Pisa já há alguns me-
ses.
510
Ao meio-dia, o Stella d’Italia zarpava do porto de Livorno. Mal tínhamos chegado ao alto mar, levantou-
se contra nós um vento que durou mais de 25 horas; de modo que os quatro jovens negros não puderam co-
mer nada e inclusivamente tiveram que lançar ao mar o ordinário tributo. Não foi esse o meu caso, pois,
estando já acostumado às viagens do Oriente e a passar meses inteiros sobre as águas, deu-me um tal apetite
que comi as rações dos meus indispostos companheiros de viagem. Vimos surgir no horizonte as formosas
ilhas de Capraia e Gorgona e passamos perto do Porto Ferraio, na árida e sinistra ilha de Elba que ofereceu
uma sórdida e triste hospedagem ao grande Napoleão.
511
A umas duas milhas da sombria morada do ilustre prisioneiro encontrámos o Zuavo de Palestro, vapor
sardo no qual viajavam mil e duzentos voluntários de Garibaldi, os quais iam reunir-se às suas famílias no
Piemonte e na Lombardia para se refazerem da fadiga passada em Calatafimi, em Palermo, em Milazzo e em
Cápua. A um oficial de Garibaldi, o duque Salvador Mungo, que se encontrava a bordo connosco e que era
um dos que tinham ficado dos mil desembarcados em Marsala, pedi-lhe notícias de Prina, ex-aluno do nosso
Instituto e fez-me grandes elogios dele, como sendo um valoroso oficial. Disse-me que não era coronel, mas
que se tinha distinguido em Milazzo. Este homem regressava (!!??) da ilha de Caprera, onde tinha estado
com o seu duque e assegurou-me que era intenção de Garibaldi ir primeiro à Hungria que a Veneza, a qual só
sacudiria o seu jugo ao fim de alguns anos.
512
Com esta e muitas outras conversas que mantive com o garibaldino, chegámos ao estreito que separa a
famosa ilha de Procida da de Ischia, para lá das quais se abre em forma de maravilhoso anfiteatro o esplêndi-
do golfo de Nápoles. Nós, às cinco da tarde, já tínhamos tratado das questões com a direcção marítima da
capital Partenopea; e já com os passaportes visados, fomos recebidos com bastante cordialidade no Instituto
da Palma pelo P.e Ludovico de Casoria, fundador do Colégio Africano. Embora eu já o conhecesse desde o
ano passado, quando desembarquei em Nápoles, pude, no entanto, agora, nos vários dias que aqui estive,
apreciar este bom padre e persuadir-me de que é um desses homens extraordinários que, de vez em quando, a
Providência suscita em benefício da humanidade e para a difusão e incremento da glória de Deus.
513
Segundo me contou um padre de La Palma, o P.e Ludovico, embora pertencesse à ordem franciscana, não
era um perfeito observador das suas regras, porque procurava rodear-se de muitas das comodidades da sua
folgada casa paterna, era bastante renitente à subordinação que deve ter um religioso e mantinha amizades
mundanas com muitos de elevada condição que viam com maus olhos um dos seus rebaixado à humilde con-
dição de apagado franciscano. Além disso não era nada inclinado ao esforço e dedicação da vida de francis-
cano e só se deleitava com os estudos filosóficos e com as matemáticas, nas quais havia feito grandes pro-
gressos, e das quais durante muitos anos tinha sido professor.
Atingido por uma grave doença, o seu guardião aproveitou a ocasião para lhe fazer ver a sua conduta pas-
sada, não muito conforme ao espírito do instituto seráfico, sugerindo-lhe que renegasse a sua antiga maneira
de viver em religião e que prometesse a Maria reformar os seus costumes e conduta, segundo o espírito do
Instituto no qual, por vocação, se tinha incorporado, no caso de Deus querer devolver-lhe a saúde. Então o
P.e Ludovico entrou em si mesmo e na humildade do seu coração ofereceu-se a Deus, disposto a qualquer
árdua empresa a que o Senhor o chamasse. Então a graça de Deus derramou-se abundantemente no coração
do bom servo de Deus; esvaziando-se do que tinha sido e afastando-se de tudo o que fosse do mundo e não
conforme à sua religião, passou uns anos em perfeito retiro. Depois, entre muitas outras obras, levou a cabo
as seguintes:
514
1.o Instituiu uma reforma da província de Nápoles, algo deteriorada, mais ou menos como fez o B. Leo-
nardo de Porto Maurício, quando criou o retiro de S. Boaventura em Roma.
2.o Fundou o Instituto dos Missionários Indígenas, que acolhe sacerdotes de todas as partes de Itália, os
quais se formam na escola das missões e exercícios espirituais e depois se espalham por toda a Itália para dar
as missões gratuitamente, dependendo em tudo do Instituto, podendo apenas em nome do Instituto exercer o
ministério apostólico.
3.o Criou um grande refúgio para os pobres em Nápoles; depois, outro para instruir os ignorantes.
4.o Criou uma grande enfermaria para todos os franciscanos de Nápoles.
5.o Finalmente, fundou e promoveu os Institutos africanos: um masculino, dirigido pelos franciscanos e
outro feminino, ao cuidado das Irmãs Estigmatinas, exclusivamente consagradas à educação das negras.
515
As despesas com estas cinco grandes obras estão a cargo do P.e Ludovico, que é tão transparente em to-
das as suas actuações como o nosso superior e que as mantém pedindo esmolas diariamente, como ele. Uma
palavra sobre os colégios africanos.
516
Instituído sob a protecção do defunto rei Fernando II e com especial autorização da direcção-geral da or-
dem seráfica, o Colégio dos Negros, com sede em La Palma, onde reside o prefeito da reforma, tem por fina-
lidade resgatar da escravidão e da miséria em que jazem e educar e instruir na fé, na ciência católica e nas
diversas artes civis os jovens negros que se recolherem dos países de África, a fim de que bem educados,
instruídos e formados no espírito católico, regressem já adultos a seus países para propagar aí, cada um se-
gundo a sua profissão, a fé de J. C. e a civilização cristã.
517
Os jovens negros, que serão instruídos na fé cristã e baptizados conforme forem chegando de África, ves-
tirão todos o hábito franciscano, como jovens alunos e, enquanto tais, observarão o comportamento e a disci-
plina de jovens religiosos e aplicar-se-ão, com discreta direcção, aos usos da religião seráfica, aos estudos e
às artes. Ficará a cargo do padre prefeito de La Palma, após prévio exame e conhecimento da índole e capa-
cidade dos jovens negros, a tarefa de os classificar nos estudos elementares, que, até aos 18 anos, todos deve-
rão frequentar sob a direcção de professores idóneos que o prefeito lhes atribuir, quer sejam religiosos da
ordem, quer seculares de comprovada ciência e bondade, ainda que estes últimos tenham de ser habilitados
pela província ou pelo ministro geral.
518
Completada a instrução elementar aos 18 anos, os jovens negros são distribuídos em três classes, segundo
a sua capacidade e vocação, a saber: clérigos para o sacerdócio; leigos professos para artesãos; e seculares da
Ordem Terceira (como Tacuso) de S. Francisco, também artesãos e livres de abraçar o estado conjugal. As
duas primeiras classes professarão servatis servandis a regra da Ordem dos Menores. Para o noviciado regu-
lar destes, sob prévia autorização da S. Sé Apostólica, em lugar apartado, dentro do mesmo colégio, sob a
direcção e critério da comunidade religiosa de La Palma, serão adaptados apartamentos como lugares de
noviciado, onde receberão a educação religiosa adequada segundo as regras da ordem.
Quanto aos da primeira classe em idade de se ordenarem, serão apresentados ao respectivo ordinário com
as promissórias do provincial. Isso é assim, dado que os jovens negros começam como filhos da Ordem dos
Menores, destinados especialmente às missões da África, a cujas necessidades proverá o geral da ordem.
Finalmente, os da terceira classe que ficarem na Europa, vestidos e professos da Ordem Terceira de S. Fran-
cisco, ajudarão nas actividades do colégio e aperfeiçoar-se-ão nas artes.
519
Recebidas depois as necessárias instruções e instituições, sacerdotes negros menores, leigos negros meno-
res e terciários de S. Francisco negros – com conhecimento e informação tanto do provincial como do prefei-
to e em obediência ao ministro geral da ordem – à medida que for necessário irão para as missões de África.
Os sacerdotes, como verdadeiros missionários de Cristo, propagadores da fé cristã; os leigos professos, ao
serviço dos sacerdotes e também como catequistas e instrutores dos infiéis que se converterem a Cristo; os
terciários, espalhando-se mais livremente entre aqueles povos, sob a orientação dos missionários seus irmãos
e exercendo as artes e ofícios que tiverem aprendido no colégio para os utilizar à luz da fé.
520
Partirão e permanecerão sempre em número de dois, às vezes até em grupos de três – nunca sozinhos. E
será segundo esta ordem: um sacerdote e um leigo ou um sacerdote, um leigo e um da Ordem Terceira. Na
profissão religiosa, todos farão promessa sob juramento de ir para África, mas da partida efectiva ficarão
excluídos os escolhidos e hábeis para professores do colégio de La Palma, os oficiais destinados a prestar
serviço no dito colégio e os que não puderem ir por motivos razoáveis e graves reconhecidos como tais pelos
superiores. O padre prefeito, pondo todo o seu empenho, cuidará que, pouco a pouco, os jovens negros de
qualquer classe realizem bons progressos no conhecimento das ciências ou das artes e sejam capazes eles
mesmos de serem professores no colégio, onde se lhes atribuirão as disciplinas que se coadunam com as suas
capacidades.
521
E deve procurar empregados, como prefeitos, cozinheiros, ajudantes, porteiros, despenseiros, etc., para
que o colégio seráfico de La Palma se converta num coro uniforme de negros. E os negros, sejam eles sacer-
dotes, leigos ou terciários, que tenham ido para as missões de África e tenham por longos anos suportado
fadigas por J. C. e não possam continuar a prestação de serviço às missões por velhice, doença ou por outra
gravíssima razão, postos ao corrente disso, os superiores da província e do colégio, terão acolhimento e des-
canso no mesmo colégio de La Palma.
522
Este é, em traços largos, o plano do instituto dos negros de La Palma. Agora estes são já 52, incluídos os
4 que eu trouxe. Fiquei muito contente ao ver dez ou doze oficinas de carpintaria, alfaiataria, sapataria, tece-
lagem, serralharia, agricultura, etc., etc., e uma bela farmácia com dois mestres em medicina e farmácia.
Além disso, há junto a La Palma uma ampla horta, dividida em múltiplas parcelas, destinadas a cultivar dife-
rentes produtos do país e coloniais; aí vão os negros todos os dias, divididos em classes para, reunidos em
volta do respectivo mestre, aprenderem a trabalhar em cada sector da agricultura.
Com regras adequadas as negras, cujo número chega já a 22, são educadas para as missões de África. Ma-
ravilharam-me os seus progressos nos estudos e nos lavores femininos. O ano passado, muitos trabalhos das
negras foram admitidos na Exposição Urbana de Nápoles e ganharam prémios. Porém, deste Instituto falarei
noutra ocasião.
523
Fiquei muito satisfeito com a instrução dos negros de La Palma. Seis deles estudam humanidades e retóri-
ca (menos grego), quatro filosofia e o resto a secundária elementar. Mas o que mais me impressionou foi a
ordem, o silêncio nos devidos momentos, a total disciplina, a inclinação aos exercícios de piedade e o desejo
de se tornarem santos e de sacrificar a sua vida em benefício de seus irmãos, pelos caminhos que a obediên-
cia e a vocação lhes mostrarem. «É possível – perguntava um dia o P.e Ludovico –, é possível que os negros
de La Palma sejam todos bons? Não creio, porque, pelo que pude ver na breve experiência que tive com os
negros, muitos são bons, mas outros não parecem dados à piedade nem à perfeita observância da nossa ssma.
religião.»
524
«Oh!, escute, meu caro irmão – respondeu-me o padre. Eu fundei o meu colégio para fazer do inferno um
paraíso, para que os jovens de maus se tornem bons. Quando os africanos entraram em La Palma, eram dia-
bos e eu quase desesperava por me considerar incapaz de conduzi-los ao bem; mas, graças à paciência, à
contínua vigilância diurna e nocturna e ao incansável esforço dos meus educadores, hoje são todos bons. E
eu tenho que agradecer a Deus que não há um mau, nem sequer um.»
525
Mas não devemos assustar-nos se, ao princípio, os vemos maus: com a graça de Deus e com uma incan-
sável e paternal solicitude, tudo se vence. E, de facto, em cada dormitório há dois prefeitos, um dos quais
vigia toda a noite. Quando há um jovem que mostra uma má inclinação, contra ela se dirigem todas as armas
da prudência cristã e não se desiste até ver completamente erradicado esse defeito; de modo que por fás ou
por nefas, a bem ou a mal, de bom grado ou à força, tem que abandonar esse vício.» Mas deixemos este te-
ma. Foram muitas as coisas que observei sobre a direcção desse Instituto; mas já estará cansado de ler, como
eu de escrever, assim que khalás.
526
Falemos agora um pouco de coisas profanas. E para lhe dizer algo sobre Nápoles, creio que é impossível
que imagine a sua singular e esplêndida situação e o soberbo panorama que oferece de qualquer parte que se
contemple. A cidade está situada a sudeste na encosta de uma longa fila de colinas e ao redor de um golfo de
mais de cinco léguas de largura e outras tantas de comprimento, tendo ao lado dois promontórios cobertos de
verdejante vegetação. A ilha de Capri a um extremo e a de Procida a outro parecem fechar o golfo, embora
entre estas ilhas e os dois promontórios se possa divisar uma imensa extensão de mar.
527
A cidade é como a coroa deste majestoso golfo. Uma parte dela, para ocidente, ergue-se como um anfitea-
tro sobre as colinas de Polisippo e de Antignano; a outra estende-se a oriente sobre um terreno mais plano,
coberto de formosas vilas e casinos até ao monte Vesúvio que, de noite, é como um sol vivíssimo, cuja luz
está concentrada em sete bocas que expelem continuamente lava e betume. No meio destes magníficos mon-
tes rochosos, totalmente cobertos de laranjeiras e limoeiros e de toda a espécie de verdura, ergue-se, perto de
La Palma, Capodimonte, onde surge o palácio de Verão do rei. Segundo a opinião dos grandes viajantes, este
é a mais bela vista do mundo, e não há nada comparável à beleza de tal panorama.
528
Se a tudo isto se acrescentar a suavidade do clima, a fertilidade dos campos, a beleza dos arredores, a
grandiosidade dos edifícios e a magnificência das suas ruas todas cobertas de grandes lajes de pedra, como a
nossa Piazza dei Signori, convencer-se-á de que Nápoles é um dos mais esplêndidos e agradáveis lugares do
mundo. A Rua de Toledo, que se estende ao longo de milha e meia em perfeita linha recta; a da Chiaia, que
ladeia por um largo trecho a Vila Real – que se estende sobre a praia, onde oferece uma magnífica vista e é
flanqueada, do lado da terra, por um elegante gradeamento, interrompido aqui e além por altos e variegados
pilares, os quais, formando a noroeste uma grande semielipse, encerram centenas de estátuas de mármore,
feitas à imitação dos melhores modelos antigos – figuram entre as mais formosas da Europa.
529
As igrejas são, em geral, belíssimas e surpreendentes e revelam ao observador atento a fervorosa piedade
do povo napolitano que as frequenta e a daqueles que as construíram. A de S. Francisco de Paulo, de arqui-
tectura moderna, na parte exterior, voltada para o palácio real, é rica em obras de famosos artistas modernos.
É flanqueada por dois pórticos sustidos por quarenta e quatro grandes colunas e embelezada com estátuas
colossais da religião, S. Francisco e S. Luís, as quais se encontram no vestíbulo, formado por dez grandes
colunas e outros tantos pilares. O interior, perfeitamente redondo, é uma imitação do Panteão de Roma.
530
Magníficos templos são também o de S. Martinho, no cerro de S. Telmo, ao pé do castelo, que domina a
cidade, em situação estupenda; o de Jesus Novo, todo incrustado de mármore, que guarda o sepulcro de S.
Francisco de Jerónimo, sobre o qual celebrei missa; o seu corpo está encerrado numa urna de prata e o sepul-
cro está bordado de pérolas e pedras preciosas; e o de S. Caetano, em cuja cripta se conserva o corpo do san-
to, sobre o qual também celebrei missa.
531
Porém, S. Januário, ou seja, a catedral, é a mais bela igreja de Nápoles. O interior consta de três naves,
sustentadas (entre outras) por 18 pilares com colunas que pertenceram a ídolos do paganismo. Deixando de
lado as inúmeras obras de arte, limitar-me-ei a mencionar a capela do santo padroeiro da cidade, chamada o
tesouro, que tem na parte exterior duas grandes estátuas de S. Pedro e S. Paulo e um belíssimo gradeamento
de bronze. O interior é em forma de cruz grega, com as paredes incrustadas de mármores finíssimos e com
42 colunas de brocatelo e 19 de bronze; todos os frescos são de Domenichino. Detrás do altar-mor, de pórfi-
ro, guardam-se em duas capelinhas forradas de prata e com portinhas do mesmo metal, a cabeça de S. Januá-
rio e duas ampolas que contêm parte do seu sangue, o qual costuma liquefazer-se de duas a quatro vezes por
ano, quando é posto em frente da cabeça do santo, ou seja, nas três festas de Maio, Setembro e Dezembro,
que se celebram em honra do santo com as respectivas oitavas.
532
Este milagre que é observado por inúmeros protestantes e infiéis, foi causa, e continua a sê-lo até ao dia
de hoje, de grande número de conversões à fé de Cristo. Segundo ouvi dizer à minha passagem por Nápoles,
a última vez que se deu o milagre – quinze dias antes – como o aparecimento se deu uma meia hora antes do
costume, ouviram-se gritos no templo: «Olha, olha que S. Januário gosta da república e não te quer, Vítor
Emanuel.» Aqui, a propósito de S. Januário, quero contar-lhe a extravagante cena que tem lugar no dia em
que o milagre ocorre. Baseando-se numa vaga e incerta tradição, os napolitanos pretendem saber que tais e
tais famílias pobres são descendentes da estirpe do santo padroeiro, por isso é crença entre a plebe que o
milagre não se realiza sem a presença de um ou mais indivíduos destes descendentes de S. Januário.
533
Os vagabundos são os primeiros a marcar presença na capela taumaturga: proferem inumeráveis impropé-
rios e infâmias antes do milagre. Ouvem-se, entre outras, as seguintes expressões: «S. Januário, não queres
fazer o milagre? Claro, como roubaste o título de santo, que não merecias... E porque troças dos que te hon-
ram? Não serves para nada. Pareces um caracol... Não vales uma palha. E que fazes aí a enganar a pobre
gente? És um impostor que nos andas a intrujar... Olha, olha que caretas que faz! E faz troça de nós e chas-
queia! Seria melhor nós troçarmos de ti, que tu de nós! Não és capaz de fazer o milagre, não vales uma pa-
lha, desce desse pedestal (virando-se para a estátua). Que fazes aí, seu impostor? Tu nem és santo, nem estás
no céu, nem prestas para nada, desce... desce... » e assim sucessivamente.
534
Esses patifes proferem outras frases mais estranhas, cuja enumeração seria demasiado comprida e que eu
esqueci. Na verdade, a mim, se me contassem tais coisas, não acreditava; mas a quem visitou Nápoles e viu
o atraso em que se encontra esse reino, viu a inclinação à piedade, mas um pouco supersticiosa, não lhe custa
a crer. Estas e outras coisas semelhantes soube-as de pessoas dignas de crédito.
535
Em Nápoles, com P.e Luciano, visitei as coisas mais notáveis, entre elas as catacumbas, mais amplas mas
mais curtas que as de Roma, o Museu Nacional, o segundo do mundo, depois do Vaticano, segundo a opini-
ão dos entendidos, e quanto ao oferecer uma perfeita representação material dos costumes dos antigos, o
primeiro do mundo. Mas para isso seria preciso um caderno... Estivemos na gruta de Polisippo, um impressi-
onante subterrâneo, onde se encontra o túmulo de Virgílio com as luzes acesas, etc.; visitámos Pompeia e
Herculano, etc., mas falarei disto noutra minha, se dispuser de espaço; como também contarei em pormenor
a minha viagem a Palermo e a Roma. Agora não tenho tempo, porque acabam de me anunciar que chegou a
Suez, procedente de Calcutá, o vapor da Companhia das Índias e partirá novamente dentro desta semana. Eu
parto amanhã para o Cairo e para Suez. Escreverei de Adem, mas na condição de não ficar em jejum de car-
tas suas.
536
Mando uma afectuosa saudação a todos os jovens, prefeitos e clérigos do nosso Instituto e encomendo-me
às suas orações, pois a minha luta com os ingleses vai ser dura. Porque, para não mencionar o resto, diante da
alfândega turca, nos divãs [chancelarias turcas] e nos consulados europeus, está afixado um aviso em que se
proíbe aos cônsules e ao governador de Alexandria permitir a passagem de escravos ou negros sem indagar
ou conhecer a sua procedência e sem que seja legalizada. Quero transcrevê-lo esta tarde antes de partir de
Alexandria. Preciso, pois, ajuda do alto; mas não se deve ter medo. A cabeça de Xto. é mais dura que a de
Satanás. E se Deus quer a obra, não há ingleses, nem turcos, nem diabo que se possam opor.
537
Apresente os meus respeitosos cumprimentos a P.e Tomba, P.e Fochesato, P.e Fukesneker, P.e Donato,
P.e Clerici, P.e Urbani, P.e Lonardoni; a Toffaloni e ao filho e a todos os sacerdotes do Instituto; aos mar-
queses Carlotti; aos condes Cavvazzoca, Parisi, Morelli; igualmente ao Sr. Bispo, etc., etc. E eleve sempre
uma oração aos Ssmos. Corações de J. e M.a por

Seu af.mo amigo Daniel

538
Especiais saudações ao meu afilhado Vítor, sobre o qual desejo notícias. As minhas saudações à fam. Pa-
tucchi e a Biadego, Fontana, etc. Receba os cumprimentos de J. Scaùi, que está bem e, pelo que me dizem os
padres missionários, se porta bastante bem. Três furiosas tempestades enfraqueceram-me um pouco a saúde,
mas já estou muito bem.

N.o 53 (51) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Alexandria, 2 de Janeiro de 1861

Mui rev.do e amat.mo sr. superior,

539
Cheguei felizmente ao Egipto. Antes de mais nada, devo comunicar-lhe que em Roma me esqueci de lhe
escrever que S. Em.a o cardeal Barnabó me disse que o mês passado recebeu uma carta do pró-vigário da
África Central, na qual, não directamente mas em substância, Kirchner escrevia de uma tal forma que dava a
entender que estava disposto a voltar à Europa e abandonar a missão, apenas o cardeal desse indicação; de-
pois disse-me Barnabó que o pró-vigário está muito abatido. Depois, já no Egipto, soube que um dos dois
franciscanos destinados à missão se cansou e retrocedeu até Negade, no Alto Egipto, onde se associou à mis-
são dos reformados, dizendo que não queria mais saber da África Central. O P.e João (não sei se o nosso se o
franciscano que ficou) partiu de viagem pelo Nilo Branco.
540
O P.e Ludovico disse-me em Nápoles que decidiu dar uma volta por toda a Europa com o fim de recolher
todos os negros e levá-los para o seu convento de La Palma; e uma vez aquietados os assuntos políticos, quer
ir a Paris e apresentar-se a Napoleão para lhe suplicar a graça de que não só favoreça o resgate dos negros,
mas que se dirija a todas as potências da Europa a fim de que determinem e ordenem aos respectivos consu-
lados do Egipto que tutelem, favoreçam e ajudem todos os que vão à África e ao Oriente à procura de negros
para os trazerem para a Europa com o objectivo de os educar para a missão africana. O rei Francisco II apro-
vava e favorecia esta ideia e prometeu pôr em campo toda a sua autoridade real para recomendar o projecto
ao imperador dos franceses e às potências da Europa.
541
No Egipto há agentes expressamente encarregados pelo Governo do Paxá e pelos consulados de vigiar se
se leva algum negro para a Europa. Eu li um aviso oficial afixado num divã de Alexandria e nas chancelarias
de todos os consulados europeus, no qual se proíbe absolutamente tanto às autoridades turcas como consula-
res favorecer a saída dos negros. Três negras do P.e Olivieri, quando iam do convento das Filhas da Caridade
para a estação ferroviária do Cairo, foram detidas e encarceradas. Não podem sequer ir de Alexandria para o
Cairo e vice-versa.
542
O pró-vigário apostólico do Egipto, que reside em Alexandria, diz-me que é absolutamente impossível
levar negros para a Europa. Mas nós não devemos desanimar. Com a ajuda de Deus e com a protecção de
Russel, obtida em Roma, graças a Lorde Pope Hennesy, espero, depois de grandes dificuldades, alcançar a
meta desejada. Em Alexandria ninguém conhece o objectivo da minha viagem. Todos crêem que vou para a
nova estação de Alexandria. Considerei oportuno confiar o assunto só ao pró-vigário do Egipto, homem pru-
dentíssimo, conhecedor de todos os enredos e segredos do P.e Olivieri e que sabe guardar um segredo (coisa
rara entre os frades, em nenhum dos quais me fio). Ele, que me acolhe no seu convento, que me vê ir e vir de
Alexandria, que me estima, é bom que o saiba; não pode senão dar-me ideias, favorecer-me e indicar-me as
maneiras mais convenientes de iludir os inimigos da obra.
543
A pessoa que escolhi como nosso correspondente em Alexandria, para o envio de dinheiro, é o sr. Ângelo
Albengo, homem de bom senso, prudente, bom cristão e que desfruta também da absoluta confiança de P. e
Beltrame. O sr. superior mandará o dinheiro ao cavalheiro Napoli, de Trieste; este, por meio do Lloyd Aus-
tríaco, sem depender do consulado da Áustria, enviá-lo-á directamente ao Sr. Ângelo Albengo, o qual, ser-
vindo-se dos vapores da Companhia das Índias, mo fará chegar a Adem.
544
Creio oportuno deixar totalmente fora deste assunto o cônsul austríaco de Alexandria, que é contrário à
nossa empresa, pelo que me disse o pró-vigário do Egipto. Prova de que partilha das ideias dos outros cônsu-
les do Egipto é o facto de, no caso dos quatro negros do P.e Olivieri, se ter desculpado dizendo não poder
favorecer ninguém, dadas as leis egípcias vigentes, apesar de uma carta de recomendação do imperador da
Áustria. Isto disse-mo o P.e pró-vigário. Por isso recomendo-me às suas orações e às do Instituto.
545
Amanhã parto para o Cairo e três dias depois irei de Suez a Adem. Junto com esta mando-lhe uma carta
para o cavalheiro Napoli: depois de a ler, remeta-lha, se quiser. Encontrará o modo de enviar cartas e dinhei-
ro.
Entretanto, apresente os meus respeitosos cumprimentos ao sr. bispo, a mons. Canossa, a P.e Albertini, a
P.e César, às professoras Cavattoni e a todos os membros dos institutos masculino e feminino. Receba senti-
mentos de veneração e afecto de
Seu indigno filho
Daniel Comboni

Peço-lhe que saúde por mim o farmacêutico Caetano Sommacampagna.

Direcção das cartas que me enviem:


To most Reverend Sir Daniel Comboni
Apostololic Missionary in Adem
Dirigida sob registo ao
Cônsul-Geral Austríaco de Alexandria

Direcção para envio do dinheiro:

546
Enviará o dinheiro ao ilustríssimo cavalheiro sr. Luís Napoli; o qual, por meio de Lloyd Austríaco, o
mandará directamente para Alexandria ao sr. Ângelo Albengo, a fim de que este o faça chegar, segundo as
instruções recebidas, a Daniel Comboni, missionário apostólico em Adem.

547
N. B. Quando mandar o dinheiro ao cavalheiro Napoli, de Trieste, convirá que escreva imediatamente
uma carta para Alexandria ao sr. Ângelo Albengo e outra a mim para Adem, comunicando-nos o envio.
Creio que será bom abster-se de fazer letras de câmbio endossáveis em Alexandria, porque aqui há muitos
burlões e não poucas firmas desonestas. O dinheiro é mais seguro. Depois, em Alexandria, convertem-se em
guinéus ingleses.
Daniel Comboni

N.o 54 (52) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

A bordo do Candy, no mar Vermelho


6 de Janeiro de 1861

Mui rev.do sr. superior,

548
Espero que tenha recebido as minhas cartas de Alexandria e as dos nossos queridos missionários da Áfri-
ca Central. Chegado ao Cairo a 4 do corrente, tive a consolação de encontrar o pró-vigário apostólico P.e
Mateus Kirchner, com o qual me entretive aquela noite até à hora de partir para Suez. Ele goza de saúde e
comunicou-me que P.e Dalbosco está óptimo; P.e Beltrame passa razoavelmente, embora tenha emagrecido
consideravelmente e tenha envelhecido de forma que se lhe dariam uns 45 anos. Nós falámos sempre sobre a
missão da África Central. Eis as notícias, que o sr. superior terá já lido nos relatos informativos dos nossos
missionários.
549
P.e Alexandre e P.e João estão grandemente ansiosos por não terem recebido carta de Verona há mais de
um ano. Ambos saíram de Cartum no nosso barco, Stella Mattutina, e, depois de passarem todas as cataratas,
chegaram, no passado mês de Setembro, a Schellal, onde se encontra a nova estação. Aí está já terminada a
casa, que é habitada pelos missionários que aí há actualmente e pelos rapazes da missão, que se exercitam
incansavelmente no trabalho e na agricultura.
550
Desde o passado mês, encontram-se em viagem pelo Nilo Branco três missionários chefiados pelo P.e
Morlan, já director da longínqua estação dos Bari, para lá de S. Cruz. Mas – disse-me o pró-vigário – certa-
mente não chegarão ao fim da sua viagem, devido à guerra dos comerciantes com os negros; guerra atroz que
induziu o Governo turco a defender os que não têm razão, ou seja, os comerciantes europeus e muçulmanos,
e na qual já foram feitos três mil prisioneiros escravos, que são vendidos nos mercados de Cordofão, Sennar
e Dôngola e forçados aos trabalhos mais vis. P.e Beltrame já terminou o trabalho do dicionário, da gramática
e do catecismo dinca, mas não o enviou com medo de que se perdesse junto com as cartas. Escrevi-lhe do
Cairo para que o mandasse para lá e avisei disso o pró-vigário; eu recolhê-lo-ei à minha passagem.
551
O pró-vigário tem pouca fé na conversão da África. «Se eu olho para a Europa – diz –, tudo é bonito; po-
rém, se considero as coisas na África, onde está a realidade, vejo tudo preto, perco a esperança.»
552
Além disso, com grande surpresa minha, não vê com muito bons olhos o projecto de educar rapazes e ra-
parigas africanos na Europa, porque lá são educados demasiado delicadamente, estudam demasiado as ciên-
cias e pouco a agricultura e os ofícios. Ele pensa, ao invés, levar um bom número desses jovens para a nova
estação e fazê-los trabalhar de dia, dando-lhes à noite a instrução religiosa. «Para Nápoles – dizia-me – man-
do o menor número possível.» Pagou todas as dívidas da missão com dinheiro recebido da sua família, a qual
fica como fiadora do sr. pró-vigário. Ele agora permanece no Egipto, esperando o conselho da Propaganda
sobre dois pontos, a saber:
1.o Se se deve continuar a construir a estação para acolher outros missionários.
2.o Se se deve estabelecer e consolidar a união da missão com a Ordem Franciscana.
553
Esta Ordem mandou três frades: um deles morreu no Cairo; o outro abandonou a missão e retirou-se para
junto dos seus na prefeitura apostólica do Alto Egipto; o terceiro continua firme no seu posto em Schellal,
mas já está quase cansado. O geral dos franciscanos parece alheado da ideia de se unir à missão da África
Central. Por isso temo que a união da missão com a Ordem Franciscana não trará nenhuma vantagem. O pró-
-vigário está disposto a ir a Roma para acertar tudo, mas por agora espera carta do cardeal. Parece-me ter
bastante bom ânimo e não ser tal como Barnabó mo descreveu.
554
Tanto em Alexandria como no Cairo inteirei-me de que há um grande número de negros espalhados pelas
Índias. A escravidão está em pleno auge na Arábia, onde se fazem numerosos leilões destes pobres negros; e
um fulano disse-me que num leilão conseguiu três negras a 60 táleres cada uma. Em Alexandria soube que
de Massaua e de Suakin, cidades da Abissínia nas costas do mar Vermelho, saem de noite embarcações com
escravos para as costas da Arábia, onde o tráfico de negros não está abolido. E foi em tais circunstâncias que
o vapor inglês, que liga Suez a Adem, se apoderou de um desses barcos negreiros. Portanto espero poder
fazer em Adem uma escolha conforme as suas intenções. Basta que faça rezar pelo êxito desta empresa.
555
Há já um dia e uma noite que me encontro a bordo do Candy aqui no mar Vermelho. Somos cerca de 680
passageiros. Para este trajecto de Suez a Adem consegui, como por favor, uma passagem de segunda, não
obtendo dos ingleses nenhum desconto. Assim tive que pagar o preço de tarifa, isto é, 19 libras esterlinas,
equivalente a quase 25 napoleões de ouro.
556
Dei ordem ao nosso correspondente em Alexandria de cambiar todos os napoleões de ouro por libras in-
glesas, coisa que talvez devesse ser feita em Trieste. Mas sobre isto hei-de informar-me; porque sucede que
no Oriente a libra esterlina vale um quarto por cento mais que a peça de 20 francos; assim, em Adem, de
cada mil táleres com os napoleões de ouro perdem-se cerca de quarenta táleres. Portanto há que pensar. O
senhor envie ao cavalheiro Napoli, de Trieste, napoleões de ouro e ele fará o que lhe escrever a modo de
informação. Eu estou bem. Dentro de 8 dias chegarei a Adem. Peço-lhe a sua bênção, enquanto me subscre-
vo

Seu obedmo. filho


D. Daniel

N.o 55 (53) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/5

Adem, 13 de Janeiro de 1861


Meu caro P.e Francisco,

557
Por agora não mando mais que uma simples saudação. Nas seis horas que estive no Cairo, tive oportuni-
dade de ver o pró-vigário, que me deu excelentes notícias dos missionários que estão em Schellal. A mãe de
Carré entregou-me dois guinéus turcos e um inglês para os seus filhos de Verona. Fale com o superior ou dê-
as o senhor mesmo a Carré, que, quando eu regressar a Verona, acertaremos contas. Às cinco saí de Suez no
Candy, vapor da Companhia das Índias, com 680 passageiros, a maior parte ingleses e orientais, sem contar a
tripulação. Na noite do dia 10, passado o estreito de Bab-el Mandel, entrámos no oceano Índico e cheguei a
Adem ao entardecer do dia 12. Cumprimentos a todos, a quem peço rezem pelo
Seu af.mo D. Daniel

N.o 56 (54) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africane»

Adem, 13 de Janeiro de 1861

Amat.mo sr. superior,

558
Partido de Alexandria na manhã de 4 do corrente mês, cheguei a Suez de comboio na tarde do dia 5. Aqui
tomei um vapor da Companhia das Índias, o Candy, junto com outros 680 passageiros, ingleses e orientais e,
depois de sete dias de navegação, pelo mar Vermelho, com uma boa tempestade nos últimos três, especial-
mente ao entrar no oceano Índico, cheguei a Adem, onde agora me encontro em perfeita saúde.
559
Que no Cairo vi o pró-vigário, anuncia-o a minha anexa de 6 do corrente, escrita a bordo do Candy. Ao
que nela expus devo acrescentar que o pró-vigário levou agora para o Cairo, no Stella Mattutina, algumas
jovens negras trazidas de Sta. Cruz por P.e Beltrame. Entre elas está uma tal Zenab, da tribo dos Dincas, que
eu conheço muito bem. Como domina o árabe e o dinca, foi ela, depois de um negro chamado Cachual, a
pessoa que mais nos ajudou em Sta. Cruz e especialmente a P.e Beltrame, a compor o dicionário e a gramáti-
ca dinca. Esta negra tem grande talento e bondade. E agora – pensando no plano que o senhor idealizou para
a África Central – a jovem Zenab podia ser muito útil para introduzir no nosso Instituto Africano de Verona
o conhecimento e a verdadeira pronúncia da língua dinca. Por isso, ainda que o pró-vigário se mostre um
pouco renitente em mandar negros para Verona, estou certo que, perante uma carta sua, ele faria espontane-
amente tudo o que o senhor quisesse. Pelo que me atreveria a sugerir-lhe, sr. superior, que escrevesse para o
Cairo ao pró-vigário, pedindo-lhe que lhe ceda a bondosa Zenab, para o bem do seu Instituto de Verona, com
a promessa de que no fim do seu período educativo ficará à disposição da missão. Ela agora encontra-se com
as monjas do Bom Pastor, no Cairo. A carta pode endereçá-la assim:

Ao mui rev.do sr. P.e Mateus Kirchner pr.


No domicílio do cavalheiro Fathala Mardrus
Dirigida sob registo ao I. R. cônsul de Áustria
No Cairo (Egipto)

560
Em caso de uma resposta afirmativa (do que não tenho a menor dúvida), escreva-me mandando a carta
para o Cairo, para o domicílio do cavalheiro Fathalla Mardrus.
561
Sobre a minha missão a Adem, eis o que até agora lhe posso dizer. O P.e Juvenal, espanhol, prefeito apos-
tólico de Adem, quando passou por ali o P.e Luís, carmelita, tinha 16 negros de ambos os sexos. Porém, dado
que, apesar dos seus reiterados rogos, ninguém na Europa queria tomá-los a seu cargo, distribuiu-os por di-
versas famílias. Agora só lhe restam três (os mais dóceis e de maior capacidade) que ele tinha pensado confi-
ar a um comerciante; quando lhe chegou às mãos a carta que lhe escrevi de Veneza, reteve-os em sua casa e
procurou que lhe devolvessem alguns dos que havia distribuído, mas sem resultado até ao momento.
562
Hoje visitei sete dos que estão com as famílias. E embora me reserve até examiná-los dentro de dois me-
ses, durante os quais estudarei a sua índole e inteligência, contudo posso calcular com bastante segurança
que levarei comigo pelo menos seis. Porém, tenha a certeza, sr. superior, de que porei o máximo cuidado em
escolhê-los segundo as suas intenções, exigindo especialmente a docilidade. Até agora, nada posso dizer-lhe
nem das meninas negras nem de algum rapaz ou rapariga já crescidos que possam servir de guia aos outros.
Os seis aos quais deitei o olho são todos rapazes.
563
Mas parece que a Providência prepara as coisas de modo que possamos conseguir negros e negras para os
educar na Europa. Vou explicar-lhe o assunto e o que penso sobre ele, remetendo-me completamente à sua
vontade e às suas ordens, qualquer que seja a sua decisão depois do que lhe vou expor. No Egipto tomei co-
nhecimento de que no Madagáscar há um grande número de negros e negras que se venderiam ao preço de
100 francos, ou menos. Sobre isto poderá ler o fascículo de Setembro de 1860 dos Anais da Propagação da
Fé, no qual (disseram-me) o P.e Finnaz, prefeito apostólico das missões do Madagáscar, numa carta escrita
em Mayotte, no arquipélago das Comores, se dirige à caridade europeia para resgatar.
564
Pois bem, entre os muitos viajantes que iam a bordo do Candy, havia bastantes que, segundo as minhas
averiguações, eram indígenas da ilha Reunião ou Bourbon, submetida à França, da qual é uma rica colónia. E
entre eles havia um excelente católico, o Sr. Emuabal Robert, natural de S. Bennoit, a mais rica província de
Reunião, o qual é um negociante muito rico e que, por ter casas de comércio na costa do Madagáscar, na ilha
de S. Maurício e de Reunião, possui um exacto conhecimento de todos os países da África Meridional. De-
pois de tratar uns dias com esta excelente personagem indígena da Reunião a fim de conhecê-lo a fundo,
cheguei à conclusão de que é a pessoa mais indicada para me dar a conhecer a situação dos negros do Mada-
gáscar.
565
Para isso encarreguei-o de procurar a mais exacta e recente informação sobre o que eu lhe pedia e de levar
pessoalmente ao bispo de Reunião, que reside na capital, St. Denis, uma carta na qual, depois de lhe expor
em francês o plano da criação em Verona de Institutos de educação femininos e masculinos para africanos
negros, me dirigia a ele para obter informação exacta sobre os negros do Madagáscar no respeitante aos se-
guintes pontos:
1.o Quantos meninos e meninas negros de 6 a 10 anos estariam à minha disposição e a que preço os pode-
ria eu resgatar no caso os encontrar dóceis e dotados de todas as qualidades que o meu Instituto exige (expus-
lhas na carta).
2.o Se, uma vez comprados, poderiam ser levados de Madagáscar para a ilha de Reunião.
3.o Se em Reunião se poderia fazê-los declarar súbditos da França por meio do Governo da ilha, a fim de
evitar as dificuldades que se encontram para passá-los para a Europa, desde a abolição da escravatura, esta-
belecida pelo Congresso de Paris.
4.o Que me indicasse os meios para aprender a língua do Madagáscar, no caso de os negros trazidos de lá
serem adequados para a missão da África Central.
5.o Que se pusesse em contacto com o corpo de missionários a ele subordinado e dele dependente, encar-
regado das missões do Madagáscar.
566
No caso de todo o exposto resultar conforme as minhas intenções, depois de pedir conselho ao meu supe-
rior e de ouvir o seu parecer, eu estaria disposto a viajar até Reunião e, se o bispo o considerasse oportuno,
também até Madagáscar, para eu próprio escolher os rapazes e as raparigas, conforme me permitissem o
superior e a bolsa. Ora este assunto, sr. superior, merece toda a atenção. Todas as causas pelas quais vim a
Adem buscar jovens abissínios estão a favor dos de Madagáscar, sempre que resultem positivas as respostas
às três primeiras perguntas feitas ao bispo de Reunião. Além disso, Madagáscar oferece-nos um viveiro de
negros, de modo a provermos com abundância os nossos institutos de Verona. Por isso, eu seria de opinião
que se fizessem estas duas coisas:
1.o Viajar até Reunião, a fim de observar a índole dos negros de Madagáscar, conhecer as diligências a
efectuar perante o despótico governo da rainha malgaxe e perante o governo francês da ilha de Reunião e
examinar tudo o que concerne ao sucesso da nossa obra, a respeito dos jovens de Madagáscar. O bispo de
Reunião e da Maurícia seriam os meus apoios.
2.o Dentre os negros que nos sejam oferecidos, escolher ou seis ou doze, como o senhor quiser, metade
rapazes e metade raparigas e levá-los comigo para Verona, para ver se são aptos para o Plano da Conversão
da África.
567
Esta é, sr. superior, a minha ideia. Eu submeto-a a si e espero uma rápida decisão. Pelo que vejo, medi-
tando sobre este meu plano, eu não me demoraria nem um dia a pô-lo em prática; porém, isto é um assunto
que pertence às altas esferas; por isso, espero ordens suas, em conformidade com as quais actuarei sempre,
mas espero-as o mais rápido possível.
568
A ilha de Reunião dista de Adem 14 dias de vapor. Fica situada no oceano Índico, um grau e meio antes
do Trópico de Capricórnio. Todos os meses parte um vapor de Suez para a ilha e vice-versa. O gasto seria de
300 táleres. Num mês e meio podia fazer tudo. Se empreendesse a viagem a Reunião e Madagáscar, então
seria bastante provável que fizesse o regresso à Europa pelo cabo da Boa Esperança. Já me pus em contacto
com duas companhias do Oriente para fazer um contrato. No caso de poderem ir pelo menos 18 pessoas,
teria duas vantagens ao contratar uma viagem de Reunião a Marselha: a primeira é, espero, um menor custo
da passagem; a segunda e mais importante é que evitaria graves problemas que, apesar das recomendações,
espero encontrar no Egipto. Em qualquer caso eu pensarei sobre isso e encarregar-me-ei de o resolver. O
senhor reze e faça rezar por mim, que só Deus há-de ser meu guia.
569
Não receio nenhuma dificuldade, incómodo, sofrimento, clima, quando tenho esperança de agir a favor do
seu Plano para a Conversão da África. O senhor encarregue-se de dar-me ordens sobre o referido projecto e
em mandar-me rápido o dinheiro que puder, mas que não ultrapasse os 500 napoleões de ouro nem seja me-
nos de 100 dessas moedas. Ordene aos nossos correspondentes de Trieste e de Alexandria que procedam
depois ao envio e a este último que o cambie logo em guinéus ingleses. Não lhe digo, por agora, a importân-
cia da viagem por pessoa, por não ter decidido por onde farei o regresso. Mas o sr. superior ensinou-me a não
ter medo destas coisas. A única coisa que desejo com esta viagem é assegurar ao Plano um meio de ter sem-
pre negros e negras adequados para a missão da África.
Espero que tenha entendido o meu projecto. Eu expu-lo mal, primeiro por falta de capacidade e depois
porque tenho que apressar-me, porque hoje sai para Suez o correio das Índias.
570
Em Adem, que se encontra nos mesmos graus de latitude norte que os Dincas, faz muito calor e apanham-
se valentes febres: hoje, ao meio-dia estávamos com 29 graus Réaumur. Aqui encontram-se o prefeito apos-
tólico e um leigo capuchinho. Outro padre capuchinho, missionário em Adem, voltou à Europa castigado
pelas febres. Eu estou bem, alegre e cheio de esperança de obter bons resultados. Não tenho oportunidade de
falar em italiano. Aqui em Adem fala-se árabe, inglês, espanhol e português, todas elas línguas que entendo e
nas quais terei de tratar os meus assuntos. Entretanto, comecei a interessar-me pelas línguas abexim e malga-
xe e espero que no fim da Primavera, quando chegar a Verona, não as ignorar totalmente, pois podem ser
úteis para o nosso Instituto e para o seu Plano.
571
Apresente os meus respeitosos cumprimentos a todos os sacerdotes e professoras do Instituto, a P.e Cé-
sar, ao bispo, a P.e Albertini, a Mons. Canossa, e muitas, muitas saudações aos sr. tio Paiola. Conceda a sua
bênção a

Seu indigmo. filho


Daniel

572
Dentro de quarenta dias receberei certamente a resposta que dará à minha carta o bispo de Reunião, mons.
Montpoint.

N.o 57 (55) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Adem, 23 de Janeiro de 1861


Rev.mo sr. superior,

573
A sublime Providência que no governo de todas as coisas procede gradualmente e com ordem sapientís-
sima e que, jamais actuando inutilmente, dirige todas as coisas para a realização dos seus amorosos desígnios
mediante um regular encadeamento de vicissitudes, incitava-o, querido superior, a enviar-me a Adem para
procurar um bom número de rapazes e raparigas negros, adequados aos santíssimos fins do seu grande Plano
para a conversão da África.
574
Aqui, permitindo o Senhor que, de entre bastantes jovens por mim examinados, não me fosse possível es-
colher senão alguns rapazes Gallas, compraz-se, em troca, por sua divina misericórdia, em abençoar mais
generosamente a minha viagem, pondo diante de mim e fazendo-me conhecer claramente um canal eficacís-
simo e seguro para fazer chegar aos nossos Institutos Africanos de Verona o número de indivíduos jovens de
ambos os sexos que é necessário para a execução do Plano por si sabiamente concebido, segundo o espírito
da Igreja, que com tal objectivo fundou há séculos, em Roma, o Colégio Urbano de Propaganda Fide, no
qual ingressam jovens escolhidos de todas as partes do mundo, a fim de que, depois de recebida a instrução
adequada, regressem a suas terras de origem para comunicar a seus conterrâneos todos os bens da civilização
e da religião, com os quais se enriqueceram à sombra do augusto estandarte da cruz no centro do catolicismo.
575
Vou contar-lhe brevemente o que, a respeito disso, me indicaram pessoas bem informadas (entre elas o
distinto sr. Boaventura Mas, homem rico de negócios, espanhol, excelente católico e grande conhecedor de
todos os países da África Oriental, onde possui muitas casas de comércio e de quem se serve o bispo de Reu-
nião, encarregado das missões de Madagáscar e ilhas adjacentes, para manter a necessária correspondência
com as mesmas e proporcionar-lhes eventuais ajudas). E vou explicar-lhe este canal, propondo-lhe os meios
que me parece descobrir e dos quais nos poderemos servir em benefício da missão da África Central; e o sr.
superior, entendido e considerado tudo, decidirá, agirá e fará tudo conforme lhe parecer oportuno.
576
Depois do Congresso de 1865, em que as grandes potências da Europa, reunidas em Paris para regular os
assuntos do Oriente, aboliram a escravatura e o tráfico de negros, a França e a Inglaterra sempre mantiveram
frotas de vapores que percorrem o mar Vermelho e a parte do oceano Índico, com o qual a África austro-
oriental confina, para vigiar e proteger o cumprimento dos decretos acordados contra o infame tráfico. Po-
rém, estes dois países, a fim de prover de trabalhadores as colónias que necessitam de braços para cultivar os
terrenos, promulgaram uma lei segundo a qual são fixados certos países ou ilhas a eles sujeitas, onde os res-
pectivos governadores europeus estão autorizados a fazer os chamados engagés, quer dizer, a declarar livres
todos os escravos negros que lhes são apresentados pelas pessoas munidas de um documento passado pelo
Ministério dos Negócios Estrangeiros, mediante o qual ficam autorizados a procurar negros para o seu servi-
ço.
577
A França estendeu esta lei a todas as suas colónias da África Oriental, porém, devido a enormes abusos
por parte de muitos, que, sob a aparência de fazerem engagés, exerciam, de facto, o infame tráfico de negros,
teve de ser limitada a apenas três ilhas francesas situadas no oceano Índico, junto a Madagáscar, ou sejam,
Mayotte, Nos-beh e Ste. Marie, cuja localização corresponde na longitude sul e na latitude este, segundo o
meridiano de Paris, como se segue:

Ilhas submetidas a França Lat. sul Long. este de Paris

Mayotte 12o 30’ 43o


Nos-Beh 13o 46o
St. Marie 17º 48o

578
Portanto, no caso de nos ser possível obter do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França esse do-
cumento a autorizar-nos a arranjar o número de rapazes e raparigas que actualmente são necessários para os
nossos Institutos Africanos de Verona, eu poderia percorrer os mercados públicos do arquipélago das Como-
res, da ilha de Madagáscar e de outros pontos das costas da África Oriental, escolher esse número de negros
e negras que o senhor deseja – mesmo que fossem mil – resgatá-los mediante o preço estabelecido no contra-
to – que é de 50 a 100 francos por indivíduo – e depois apresentá-los ao governador de uma das três ilhas:
Mayotte, Nos-Beh ou St. Marie, a fim de serem declarados livres e súbditos da França. E posteriormente,
uma vez providos de passaporte regular francês, conduzi-los à Europa pelo cabo da Boa Esperança, nos bar-
cos que me ofereceu o distinto senhor D. Boaventura Mas, que todos os anos envia oito ou dez navios a Mar-
selha, depois de os ter carregado nas Índias orientais e nas costas de África.
579
Depois de examinar e ponderar tudo, vejo com bastante clareza que este canal, que lhe expliquei, é um
meio que a Providência nos indica para, no decurso de um ano, obtermos para os nossos Institutos Africanos
de Verona o número de rapazes e raparigas que o senhor deseja; deste modo, poderemos recuperar o conside-
rável tempo perdido até agora durante bastantes anos, nos quais não foi possível aos nossos missionários
trazer para os nossos colégios de Verona jovens africanos para a execução do seu projecto. His positis:
«Proponho-lhe, rev.mo superior, fazer uma expedição à África Oriental para resgatar 100 ou pelo menos
50 indivíduos entre rapazes e raparigas para os nossos Institutos Africanos de Verona.»
580
Para tal fim, penso regressar dentro de pouco tempo à Europa com os jovens que me foi possível recolher
em Adem, para tratar e preparar consigo este importantíssimo assunto, obter em Paris a autorização, antes
mencionada, do Ministério dos Negócios Estrangeiros de França, e dispor tudo para a futura expedição à
África Oriental, no caso de o senhor estar de acordo com a minha ideia.
581
Para obter essa autorização – supondo que o senhor não tem outros meios melhores ou mais imediatos e
normais –, eu pensaria ser conveniente apresentar-me eu mesmo nas assembleias centrais estabelecidas em
Lião e em Paris para a propagação da fé ou algum dos seus membros principais, como seria mons. Coulin,
provido das credenciais de missionário apostólico que me outorgou em Roma a Sagrada Congregação de
Propaganda Fide e de uma carta sua. Deste modo, ser-me-ia viável obter acesso ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros de França, onde, exposto com toda a franqueza o objecto da nossa petição, não duvido de que se
satisfariam plenamente os nossos desejos.
582
No meu regresso de Paris, eu passaria por Marselha para, na Casa Vidal, da qual é membro principal o sr.
Mas, tratar da época e dos meios para transportar os negros para a Europa.
Regressado a Verona, entre outras coisas que trataríamos de viva voz, estaria o dar-me como companhei-
ro um sacerdote do Instituto, para com ele partilhar as fadigas da expedição. E isto é necessário para que, em
caso de morte de um dos dois, o sobrevivente possa continuar a obra segundo o mesmo espírito; e também
porque se as circunstâncias na África Oriental nos obrigassem a servir-nos de dois barcos para ir para Marse-
lha, em cada um deles haveria um sacerdote para assumir a direcção e responsabilidade do respectivo grupo
de jovens africanos.
583
De entre os sacerdotes do nosso instituto, o que a mim me parece mais apto para me servir de companhei-
ro na difícil expedição é P.e Bartolomé Clerici, sacerdote muito sensato, de excelente critério e virtudes,
dotado de robusta saúde e que sabe algo de árabe e está muito habituado aos africanos, cuja índole e tendên-
cias conhece e, portanto, poderia ser de inestimável ajuda ao fazer uma boa escolha; e voltando a Verona,
poderia associar-se ao digníssimo reitor dos colégios masculinos, P.e Francisco Bricolo, na direcção do colé-
gio africano, na qualidade de vice-reitor.
584
Além deste excelente sacerdote, conviria que o sr. superior, de entre as senhoras dos nossos institutos fe-
mininos, escolhesse uma a quem pudesse encarregar da custódia, direcção e necessidades das raparigas even-
tualmente resgatadas; naturalmente deve ter as seguintes qualidades: costumes inatacáveis, idade canónica,
amante da discrição, corajosa, robusta e o mais feia possível (como, por exemplo, a ex-ecónoma Borgato). E
isso deveria fazer-se também no caso de eu encontrar aqui uma negra com os requisitos que o senhor exige,
segundo o que me pediu antes da minha partida de Verona.
585
Quanto aos meios económicos necessários para esta expedição, calcule que os gastos com a viagem dos
dois sacerdotes e da tal senhora, mais a compra e transporte dos rapazes e raparigas negros até Verona, as-
cenderiam a 5000 táleres, no caso de levar 50 indivíduos; e a 8000 táleres no caso de serem 100 indivíduos.
Nesta soma incluo também um módico preço que a casa Mas-Vidal me poderia levar pelo transporte dos
negros desde Madagáscar até Marselha, embora o P.e Juvenal de Tortosa, prefeito apostólico da missão de
Adem, me assegure e me faz esperar que, dada a estima e o afecto que me tem o sr. Mas (não sei por que
méritos e qualidades), eu não teria que pagar por toda a viagem até França mais que a comida. Em todo o
caso, creio que o senhor, amantíssimo superior, que viu tantos gestos admiráveis da divina providência, não
deve preocupar-se muito com os gastos.
586
O senhor junte todo o dinheiro que puder. E se Deus não quer que essa importância chegue a ser suficien-
te para esta grande expedição, não desanimarei, porque não é improvável que a Providência nos abra uma
nova via, que agora não lhe comunico por não dispor de tempo para aduzir as razões em que me baseio. Por-
tanto, comece a juntar todo o dinheiro que lhe vier às mãos; e o que não nos puder dar à nossa partida, pode-
rá enviar-no-lo uns meses depois para Marselha, para o Instituto das Irmãs de S. José da Aparição, segundo o
que hei-de combinar de Verona com a superiora geral dessa ordem, residente em Roma, à qual estou ligado
com laços da mais santa amizade.
587
Quanto à língua nativa dos indivíduos que resgatarmos na África Oriental, embora isso seja secundário,
durante a nossa estada ali esforçar-nos-emos, com os meios que a Providência nos proporcionar, por chegar
ao seu conhecimento e domínio, de maneira que, posteriormente, se for necessário, possamos introduzi-la
nos nossos institutos.
588
Ora bem, como entre os contratempos que poderiam surgir para dificultar o nosso projecto se poderia
contar o caso de a França, contrariada pelos contínuos abusos que ocorrem contra a lei promulgada em favor
das suas colónias, eliminar também em Mayotte, Nos-Beh e Ste. Marie o privilégio de fazer engagés, como
sucedeu há dois anos na mais florescente das suas colónias, a ilha de Reunião, que antes gozava dos mesmos
privilégios que essas outras três ilhas, creio, pois, oportuno realizar o mais rápido possível a mencionada
expedição, antes de nos fecharem o caminho de arranjar jovens para formar nos institutos africanos.
589
Portanto, eu seria partidário de empreender a expedição dois ou três meses depois de eu chegar à Europa.
Segundo os meus cálculos, demorar-se-ia um ano ou dois a levá-la a cabo e durante esse tempo poder-se-iam
preparar, tanto em Canterane como em S. Carlos, locais adequados para alojar os jovens que resgatássemos,
os quais estariam por completo separados dos outros Institutos, a fim de lhes dar uma educação totalmente
própria e adaptada ao plano da missão da África Central.
590
Assim, para a Primavera ou quando muito para o Verão do próximo ano de 1862, teríamos ocasião de ver
em Verona a serem implantados dois nutridos Colégios africanos, que devemos considerar como o prelúdio
da conversão da África. E assim poderíamos esperar, não em vão, a chegada do tempo pelo qual tanto suspi-
ramos, no qual finalmente se verá brilhar um fulgurante raio da divina luz da fé de Cristo nalguma tribo dos
vastos países dos míseros negros, que estão curvados sob o jugo de Satanás, sentados ainda nas trevas e
sombras da morte.
591
Não é óbice para nada disto que nas missões da África Central, que se estendem entre o equador e o trópi-
co de Câncer, nos sirvamos de pessoas procedentes de países compreendidos entre o trópico de Capricórnio e
o equador, uma vez que o clima, os costumes, o carácter e a capacidade de assimilar os ensinamentos que
têm os indivíduos nascidos entre ambos os trópicos são os mesmos. Igualmente não é obstáculo a diversidade
de línguas que existe entre as várias nações dos dois trópicos, dado que esta dificuldade justamente foi até
agora desprezada, tratando de arranjar rapazes e raparigas muito jovens, como sabiamente o senhor deseja e
ordena, dos quais se pode obter, como sabemos por experiência, óptimo resultado mediante uma sábia e for-
mal educação.
592
Finalmente, tão-pouco são obstáculo as severíssimas leis existentes agora no Egipto, que proíbem a ex-
portação de negros e negras; porque para iludir as capciosas e severas indagações das polícias do Governo
egípcio e dos consulados de Alexandria, idealizei a árdua e longuíssima viagem através da rota do cabo da
Boa Esperança, através do oceano Atlântico, tentando com ela evitar também o perigo de comprometer o
futuro das missões da África; pois que poderia ser que sobreviessem tempos favoráveis, em que do Nilo
Branco se pudessem mandar para a Europa indígenas dincas ou kich ou indígenas das estações que se funda-
rem na África Central, e se nós passássemos agora pelo Egipto com uma grande multidão de negros, os go-
vernos poderiam promulgar leis ainda mais severas que as agora vigentes, as quais constituiriam um perpé-
tuo obstáculo para a continuação do plano sublime da criação de institutos africanos na Europa.
593
Assim pois, amat.mo padre superior, aqui fica sucintamente exposto o eficacíssimo canal que a Providên-
cia nos abriu para a criação dos Colégios Africanos em Verona e também, esquematicamente delineados, os
meios para utilizá-lo em benefício das missões da África. Mais adiante, conforme as ideias e as circunstân-
cias que o Senhor sobre o assunto nos for oferecendo, poder-se-ão fazer as modificações oportunas. Segundo
vejo as coisas agora, parece-me que Deus, para quem o tempo não existe, permitiu que se protelasse a execu-
ção do seu grande plano, porque não necessita da colaboração do homem, apesar dos esforços deste; e do
mesmo modo me parece que Deus, sem o nosso concurso, nos traçou o caminho para ressarcir-nos do tempo
perdido.
594
Por isso, quanto mais medito no projecto que lhe expus, mais vejo nele um obra da qual resultará uma
grande glória para Deus e muitas almas ganhas para Cristo. De modo que, da minha parte, estou disposto a
fazer qualquer sacrifício e a suportar as mais duras fadigas e incómodos – inclusivamente parecer-me-ia mui-
to leve e suave o sacrifício do meu sangue e da minha vida – para ajudar na realização desta santa obra; na
condição, isso sim, de que o sr. superior queira. De maneira que todo o importantíssimo assunto está nas suas
benditas mãos.
595
Tanto se o aprovar em toda a sua extensão, como se o desaprovar em parte, como se o rejeitar por com-
pleto, o sr. superior constituirá sempre o centro dos meus olhares e anseios, a regra pela qual pautarei meus
actos; verei como vontade de Deus tudo aquilo dispuser. E se o plano que propus de uma expedição à África
Oriental fosse uma ideia estúpida que me veio à mente ou um desvario, um delírio, em tal caso teria a conso-
lação de cometer um gravíssimo erro não à vista do público, com notável prejuízo para o Instituto e a sua
reputação, mas perante um pai amantíssimo que, na minha queda, pode estender-me uma mão e levantar-me.
596
Suplico-lhe encarecidamente que eleve ao céu fervorosos votos para que só Deus guie os meus passos e
dirija as minhas acções, de tal modo que eu corresponda fielmente às inspirações e impulsos divinos, en-
quanto implorando a sua paternal bênção, com todo o carinho e veneração me declaro nos Sagrados Cora-
ções de Jesus e de Maria

Seu obedmo. e indigmo. filho


Daniel Comboni m. a.

N.o 58 (56) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Adem, 24 de Janeiro de 1861


Amat.mo sr. superior,

597
Participo-lhe que, de entre bastantes jovens que tenho vindo a examinar, até agora só escolhi cinco, nos
quais pude encontrar indícios fiáveis de que possuem as qualidades exigidas pelo nosso Instituto; entre elas,
parece-me que o Senhor lhes concedeu tal docilidade que poderemos moldá-los como quisermos. A estes
cinco rapazes, depois de terem aprendido o catecismo em inglês, foi-lhes administrado o baptismo, o que vai
contra as leis da Igreja, porque da língua inglesa só sabem, e mecanicamente, as palavras do catecismo, tal
como lho ensinou um soldado irlandês, sem compreender nada do significado.
598
Por isso comecei a estudar a língua dos Gallas e esforço-me por lhes ensinar os mistérios principais e as
verdades centrais mais necessárias com a ajuda de um pouco de árabe, galla e indostânico. Creio que os dois
jovens gallas do missionário carmelita estarão nas mesmas condições.
599
Cheguei a Adem num momento bastante crítico, por causa do antagonismo e do conflito que existe entre
o prefeito apostólico de Adem e o Governador. As coisas chegaram a tal ponto que de duas uma: ou se vai
embora o Governador ou tem que partir o chefe da missão católica. Eu aproveitei a ausência temporária do
Governador para implorar do seu substituto um passaporte para os cinco jovens escolhidos e expus em plena
assembleia as razões pelas quais o Governo inglês está obrigado a proteger a liberdade destas pessoas; po-
rém, no substituto e nos assessores não encontrei mais que uma pusilânime frieza. Finalmente, chegou ontem
de Bombaim o Governador, acérrimo inimigo do P.e Juvenal, prefeito apostólico de Adem; e exposto o as-
sunto mais sob aspecto civil que religioso, encontrei nele tanta amabilidade, que se ofereceu para dar passa-
porte aos que eu quisesse.
600
Eu, que no princípio só lhe falara de dois para não chamar demasiado a atenção, hoje apresentei-lhe os
cinco e ele emitiu os respectivos passaportes para a Europa; mais, pediu-me que lhe deixasse um dos rapazes
para lhe tirar uma fotografia, arte de que é grande entusiasta, e, depois, fê-lo acompanhar gentilmente até à
missão.
601
Os nomes dos cinco até agora escolhidos são: Francisco Amam, Baptista Âmbar, Luís Jéramo, Pedro
Bullo e José Eianza, todos da tribo dos Gallas e aptos para as estações do Nilo Branco, onde eu vi muitíssi-
mos desta tribo que se estende entre os 7.o e 13.o de lat. N. A respeito das negras, a verdade é que até agora
me foi impossível conseguir alguma. Examinei três, uma das quais serviria; mas ela não quer ir, ainda que os
seus patrões portugueses, seduzidos pela santidade da obra, fizessem o sacrifício de ma ceder. Mas, pelo que
vejo, não é conveniente forçar as coisas demasiado; assim que será provável que de Adem não leve nenhuma
rapariga para Verona.
602
Penso ficar aqui até certificar-me se devo levar ou não comigo outros dois jovens. Estou à espera das in-
formações do bispo de Reunião e quanto antes me for daqui, melhor; não vá acontecer que o único missioná-
rio e prefeito apostólico de Adem se veja obrigado a partir e me toque a mim a sina de ficar provisoriamente
encarregado da missão de Adem até que a Propaganda mande outro.
Ontem expus-lhe o plano de uma expedição à África Oriental. Durante a minha estada em Adem procura-
rei obter dados o mais exactos possível e sobre o assunto darei as necessárias informações.
603
Até agora penso regressar pela rota do Egipto e em tal caso creio que estarei em Verona até meados de
Março. Porém, poderia acontecer que se me oferecesse uma favorável ocasião de apanhar um vapor francês
que no próximo mês de Fevereiro passa por Adem e se dirige a Marselha pelo cabo da Boa Esperança; nesse
caso, se pudesse conseguir um contrato mais vantajoso do que para Trieste, via Egipto, procuraria não des-
perdiçá-lo, dado que no percurso se tocam alguns lugares onde poderia obter informação e ver com os meus
próprios olhos certas ilhas onde haveríamos de conseguir os negros. Em suma, fazendo escala em Reunião,
Madagáscar ou Mayotte, poderia até trazer daí algum nativo e, o que é mais importante, empreender algumas
diligências oportunas para a nossa futura expedição, caso o senhor decida levá-la a cabo.
604
E aqui termino, porque o vapor de Calcutá para o Suez parte imediatamente. Esperava poder descrever ao
digmo. sr. reitor P.e Bricolo a dolorosa história da captura dos negros roubados pelos traficantes abissínios;
mas fá-lo-ei quando passar o próximo vapor. Estou triste, porque desde a minha partida de Verona até agora
não recebi nenhuma notícia de si nem do Instituto. Ainda que P.e Bricolo não me escreva, diga-lhe que eu
sou fiel às minhas promessas e sempre o serei.
605
Meus respeitosos cumprimentos ao sr. bispo, a P.e Pedro Albertini, a mons. Canossa, a P.e César, ao tio
Paiola, a todos os sacerdotes e membros dos institutos masculino e feminino, assim como aos senhores Ber-
toldi e Beppino, aos srs. Festa, ao pároco de Santa Eufémia, etc., etc., enquanto com todo o respeito me de-
claro
Seu obedmo. filho Daniel

N. B. Esquecia-me de lhe dizer que tanto os cinco jovens que tenho comigo como os dois que estão em
Verona são gallas e não abissínios.

N.o 59 (57) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Adem, 2 de Fevereiro de 1861

Mui rev.do sr. superior,

606
Esta manhã, às sete, o Senhor concedeu-me a graça de poder baptizar solenemente uma jovem negra adul-
ta da tribo dos Suakin, situada na linha equinocial. Trata-se de uma escrava comprada por uma família espa-
nhola na ilha de Zanzibar. Trazida para Adem, ninguém se ocupava dela, apesar de ter excelentes disposições
de espírito e estar ao cuidado de uma família católica. Tendo contactado sobre o assunto o prefeito apostólico
de Adem e os patrões da rapariga, eu mesmo fui encarregado de a instruir. Entreguei-me ao trabalho com
energia e em dez dias o prefeito encontrou-a apta para o baptismo; eu mesmo, por ordem do dito superior,
lho administrei esta manhã, com grande alegria da neófita.
607
Hoje, às quatro da tarde, parto de Adem com sete rapazes a bordo de uma fragata francesa procedente da
China e que se dirige para Suez. Apesar do antagonismo que existe entre o chefe da missão católica de Adem
e o governador inglês, eu fui por este gentilmente tratado, concedendo-me uma carta de alforria também para
os dois últimos rapazes. Parece que este prefeito apostólico se dispõe a partir de Adem para se refugiar em
Gidá, na Arábia. Para evitar que por acaso me toque ficar em Adem até às calendas gregas, quer dizer, até
Roma enviar outros missionários em substituição do actual superior, um tanto injustamente perseguido pelo
Governo inglês, eu aproveitei a ocasião propícia da passagem de uma fragata da Armada francesa para me ir
embora com os sete rapazes. Já dificilmente teria podido apanhar outro barco.
608
Tenho comigo sete bons jovens que, na opinião deste prefeito apostólico são muitíssimo dóceis. Quatro
deles têm uma inteligência fora do comum, o quinto tem uma boa capacidade e os outros dois um talento
normal. Creio que todos eles são aptos para o seu projecto. Eu esforcei-me por escolhê-los conforme as suas
intenções. Deus fará o resto. Assim pois, a bordo do Duchellas, no qual viaja o embaixador francês na China,
eu devo chegar no dia 10 a Suez. No Cairo, interpretando a sua vontade, pedirei ao pró-vigário P.e Mateus
Kirchner a jovem Zenab, que sabe bem o árabe e o dinca, sobre a qual já lhe escrevei outra vez. Se errar em
tal circunstância, como em todas as demais, peço-lhe me dê uma boa lavagem à minha chegada e que seja
sempre uma norma para o futuro.
609
Quanto ao dinheiro, industriei-me em pedir emprestadas 60 libras esterlinas, correspondentes a 1500 fran-
cos, mais a perda de 88 francos sobre os 75 napoleões de ouro. Ao todo pedi emprestados 317 táleres e meio,
com a obrigação de os devolver logo que chegue a Verona. Achei conveniente fazer isto também para que os
rapazes não ficassem a minhas expensas, dada a pobreza da missão católica de Adem.
610
Deter-me-ei em Alexandria até 20 do corrente para solucionar os problemas que vou ter com o Governo
turco e com os consulados europeus, até poder fazer valer a poderosa recomendação de Russel, que obtive
em Roma de Lorde Hennesy Pope; de maneira que, sem dúvida, no fim do presente mês de Fevereiro estarei
em Verona. Apresso a minha partida para começar a preparar de seguida tudo o que for necessário para a
expedição à África Oriental, no caso de o senhor aprovar e ordenar a realização do projecto.
611
Espero que tenha recebido as minhas cartas, nas quais eu lhe expunha o eficacíssimo meio para criar dois
nutridos Institutos Africanos em Verona. Tendo exposto a minha ideia (isto é, o que julguei oportuno para
sondar e indagar as suas intenções) a S. E. o visconde Henriot de Langle, almirante da frota francesa de Reu-
nião e da África Oriental, ele não só a aprovou como me ofereceu a sua protecção e ajuda no caso de se rea-
lizar. De Adem até Suez viajo com o embaixador francês procedente da China.
612
Em razão das circunstâncias e segundo o grau de confiança que me outorgar e as intenções que nele des-
cobrir, poderei indagar sobre a autorização que deveremos obter do Ministro dos Negócios Estrangeiros da
França para fazer engagés nas ilhas da África Oriental pertencentes a esse grande Império. Bem entendido
que, não conhecendo eu até agora a sua vontade, não posso avançar para obter mais esclarecimentos. Reco-
lha muito dinheiro para esta obra, que poderá produzir grande glória a Deus; do resto ocupar-se-á a Provi-
dência.
Na esperança de voltar a vê-lo dentro de um mês, peço-lhe saúde da minha parte P.e Bricolo, todos os sa-
cerdotes e Caetano, boticário em S. Sebastião. Entretanto, pedindo a sua santa bênção, subscrevo-me com
todo o afecto e veneração

Seu indigmo. filho


Daniel

N.o 60 (58) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Cairo, 18 de Fevereiro de 1861

Rev.mo sr. superior,

613
Por causa de uma forte tempestade, que o nosso vapor, o Du Chayla [Duchellas], suportou durante os no-
ve dias seguidos que gastámos de Adem a Suez, eu não cheguei a tempo para combinar todos os meus afaze-
res no Egipto e partir para Trieste com o actual vapor austríaco; por isso, aconselhado também pelo sr. pró-
vigário P.e Mateus, vou esperar a outra carreira do Lloyd. Estes quinze dias de intervalo são-me necessários
para resolver todas as dificuldades que irei encontrar em Alexandria. O pró-vigário é de opinião que será
difícil que eu consiga fazer sair os negros de Alexandria; e isto, entre outras coisas, pela razão de que a agên-
cia do Lloyd recebeu ordem do Ministério de Viena para não receber a bordo nenhum negro. A mesma coisa
se diz dos vapores inglês e francês. Eis a grande utilidade da minha recomendação junto do cônsul-geral
inglês de Alexandria.
614
Os jovens fi-los declarar súbditos ingleses; portanto o consulado inglês deve proteger a liberdade dos seus
súbditos. O documento de cidadania inglesa, porém, só o apresentarei à representação inglesa em caso de
graves obstáculos; primeiro seguirei os processos ordinários. Em todo o caso, tenho necessidade de uma
especial assistência divina. Amanhã, com o senhor pró-vigário, irei de novo ter com o cônsul-geral de Ale-
xandria, que está no Cairo, para obter recomendações para o Lloyd austríaco. Esta sociedade – diz-me P.e
Biagio Verri – companheiro do P.e Olivieiri, não concederá a negros nenhum desconto, no caso de o cônsul
austríaco dar instruções para a embarcação dos negros, pelo que terei que gastar muito.
615
Eu tenho comigo sete negros trazidos de Adem, mais Zenab, a rapariga dinca que ajudou P. e Beltrame a
compor o dicionário, catecismo e gramática da língua dos Dincas. O pró-vigário, à minha primeira pergunta,
deu um não absoluto; mas, voltando à carga, depois de passada a conturbação e depois de lhe expor o benefí-
cio que resulta para o nosso Instituto com a introdução, por meio dela, da verdadeira pronúncia dinca, resol-
veu-se a ajudar-me. Encontrei um grave obstáculo na superiora das monjas do Cairo, que gostava dela. Mas,
no fim de tudo, está agora à minha disposição. Preparem-se, pois, as nossas professoras para o estudo do
dinca.
616
Para conduzir estes oito indivíduos a Verona, se não me fizerem nenhum desconto, querem-me 500 tále-
res; eu tenho apenas 300, que pedi emprestados em Adem. No caso de o sr. superior não me ter até agora
mandado nenhum dinheiro, rogar-lhe-ia que, se receber esta carta antes do dia 25 do presente mês, mande ao
cavalheiro Napoli de Trieste 50 napoleões de ouro, pedindo-lhe que, se ainda houver tempo, mos envie ime-
diatamente para Alexandria no vapor do dia 27 do corrente. No caso de esta carta chegar depois de 25 do
corrente, mande os 50 nap. ao cav. Napoli antes do dia 5 de Março, solicitando-lhe que mos entregue à mi-
nha chegada a Trieste. Se porém, já tiver mandado dinheiro para Alexandria, então fique tranquilo e espere-
me em Verona antes de meados do próximo mês de Março. Em todo o caso existe a Providência; industriar-
me-ei.
617
O cônsul-geral austríaco de Alexandria, que regressou de Assuão, disse-me esta manhã que P.e Beltrame
e P.e Dalbosco estão bem e entregou-me um pacote de cartas dirigidas a si para que lhas leve para Verona.
Mas, dado que hoje decidi com o pró-vigário esperar pelo barco seguinte, amanhã devolverei o pacote ao
Cônsul para que ele mesmo lho envie para a vice-intendência de Veneza e assim ficará mais certo que lhe
chegarão prontamente às mãos.
Até agora, os jovens que escolhi têm-me dado muitos motivos de satisfação. Espero que nisto o próprio
Deus me tenha guiado.
618
Saúde da minha parte a P.e Bricolo e a todos os sacerdotes e colégios; enquanto imploro a sua bênção,
nos Ssmos. Corações de Jesus e de Maria, me declaro com todo o respeito

Seu af.mo e indigmo. filho


Daniel

Receba cumprimentos de P.e Mateus Kirchner, que em breve partirá para Assuão.

619
N.B. O cônsul-geral austríaco de Alexandria, S. E. Schreiner, obteve de Sua Alteza o Vice-Rei do Egipto
autorização para construir um caminho de ferro entre Suakin e Berber para unir o mar Vermelho com o Nilo
e o N. Branco, o que contribuirá muito para a civilização e conversão da África. Deus o queira.

N.o 61 (59) - A PIO IX


PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA BENZER
OS PARAMENTOS SAGRADOS
ACR, A, c. 21/18 n.o 12

Maio de 1861
N.o 62 (60) - A PIO IX
PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA CELEBRAR
ANTE AURORAM E POST MERIDIEM
ACR, A, c. 21/8 n.o 13
Maio de 1861

N.o 63 (61) - A P.e FÉLIX PERLATO


BCV, sez. Carteggi, b. 131 (Netti-Perlato)

Lonigo, 5 de Junho de 1861, 21 horas

Rev.mo sr. reitor,

620
Para minha grande consternação, esta tarde esqueci-me de avisar P.e Bricolo que mande quem me substi-
tua amanhã e sexta-feira. É só culpa minha. Quinta-feira, penso que a afluência de sacerdotes de paróquias
rurais suprirá a minha ausência; mas para sexta-feira, dia do Sagdo. Coração de Jesus, fiz solicitações a P.e
Bricolo para que mande um substituto. Peço-lhe desculpa, sr. reitor. Continuo a ir a Emaús, mas a doença é
crónica, estou receoso.
621
Assim, pois, peço-lhe que, sem me nomear, envie o sacristão a P.e Bricolo para que este mande um sacer-
dote. Mas, por favor, não diga a ninguém que estou fora, em Lonigo, e menos ao sacristão; é coisa combina-
da com P.e Bricolo e ai se P.e Mazza o viesse a saber!
Renovando as minhas desculpas e pedidos, nos Sagdos. Corações de J. e M. me declaro

Seu af.mo serv.


Daniel Comboni

N.o 64 (62) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC AFR. C., v. 7, ff. 168-170v

Verona, 8 de Julho de 1861


Eminentíssimo Príncipe,

622
Devo confessar sinceramente a minha culpável negligência por, até hoje, ter demorado a dar a V. Em.a
Rev.ma informações sobre a minha viagem ao Oriente; nem o facto de ter estado mais de um mês muito in-
disposto por causa dos incómodos sofridos no passado Inverno, nem as muitas ocupações que sobre mim
pesam são razões suficientes para justificar o meu desleixo. Por isso, imploro fervorosamente da bondade de
V. Em.a Rev.ma um benévolo perdão.
623
Obtida em Roma uma valiosa recomendação para o cônsul-geral inglês do Egipto, nos primeiros do pas-
sado mês de Janeiro cheguei ao Cairo, onde felizmente encontrei o pró-vigário apostólico da África Central,
P.e Mateus Kirchner, com quem falei sobre tudo o que V. Em.a desejava; dele deve ter recebido depois essa
informação. Depois continuei a minha viagem até Adem, onde com não pouco esforço consegui sete jovens
negros provenientes das vastas tribos dos Gallas, que eu escolhi com grande cuidado de entre dezasseis. E
em benefício deles, apesar da profunda inimizade e confrontação que havia entre o governador inglês e o P. e
Juvenal de Tortosa, prefeito apostólico daquela missão, consegui ganhar a confiança e amizade do primeiro,
que me concedeu tudo aquilo que desejava para proteger a assumida tutela dos jovens e provê-los de passa-
portes regulares e cidadania britânicos.
624
Depois, dado que nessa altura aportou a Adem a fragata a vapor francesa Du Chayla, tive o atrevimento
de pedir a S. Ex.a o barão Gros, embaixador extraordinário da França na China, passagem gratuita para mim
e para os sete jovens de Adem até Suez, a qual me foi gentilmente concedida pelo digno representante dessa
nação, que é a verdadeira protectora do Cristianismo no Oriente. Chegado ao Cairo e apresentada ao exmo.
sr. Colgahoon, cônsul-geral de S. M. Britânica no Egipto, a recomendação que tinha conseguido em Roma de
Lorde John Pope Hennesy, recebi uma carta de recomendação, mediante a qual o cônsul-geral inglês, inimi-
go da obra do P.e Olivieri, ordenava a S. Ex.a Sir Sidney Smith Launders, cônsul inglês de Alexandria para
os assuntos comerciais, que fizesse as diligências necessárias perante o Paxá, a fim de facilitar a saída dos
meus jovens para a Europa. Em dois dias arranjei tudo, tanto com Sidney Smith como com Raschid Paxá,
governador de Alexandria. Porém, na manhã de 6 de Março, quando cheguei ao porto para embarcar no va-
por francês, que, graças à gentil mediação do cônsul-geral da França no Egipto, me ia levar a mim e aos jo-
vens até Génova por apenas 420 francos, detiveram-nos a todos na alfândega.
625
É inútil estar a referir em pormenor a V. Em.a os obstáculos, a fiança e a áspera discussão que sustive em
nove encontros com Raschid Paxá de Alexandria. O Governo egípcio, suspeitando que eu fora companheiro
do P.e Olivieri, desprezou os meus documentos e passaportes ingleses que declaravam os jovens súbditos
britânicos das Índias, o que contrastava com a cor dos rapazes, que foram tomados por abissínios. Todo o
divã do Paxá se pôs contra mim, que sempre mantive inflexivelmente que os jovens eram indianos. De facto,
à sorte de ter conseguido em Adem que os declarassem súbditos britânicos, juntava-se o facto de eles falarem
um pouco a língua indostânica.
626
Depois do meu áspero conflito com o Paxá e o chefe da alfândega, tomou a palavra um effendi, funcioná-
rio egípcio, que com franqueza se expressou assim diante do Paxá: «Estes jovens não são indianos, mas abis-
sínios. Eu estive nas Índias e nunca vi gente desta cor; os indianos são quase brancos de cara, enquanto estes
são negros.» Ao que eu respondi: «Tu terás estado nas Índias, acredito; mas as Índias são vastíssimas e não
estiveste em toda a parte. Talvez apenas tenhas estado nos portos: em Bombaim, Mangalore, Madrasta, Cei-
lão, Calcutá, mas não no interior. Não terás estado em... (e aqui improvisei dez ou doze nomes inventados
que naturalmente não figuram em nenhum livro de geografia)». «Tens razão – respondeu – não estive nos
lugares que nomeaste. Então o Paxá estendeu-me a mão, fez-me sentar no sofá e mandou trazer-me café e
um cachimbo. «Vejo – disse – que tens razão e que teus documentos estão perfeitamente de acordo com as
tuas palavras.» E imediatamente deu ordem ao chefe da alfândega, o qual fervia de raiva, para que deixasse
sair os meus jovens de Alexandria.
627
Graças ao Senhor, desde a altura em que assumi a tutela destes jovens em Adem, não sofreram nunca a
mais pequena indisposição. Por outro lado, prometem ser muito adequados para o fim da missão. Mais: já
não posso afirmar: veremos. Trouxe também do Cairo uma jovem dinca de grande talento, que nos serviu em
St.a Cruz para compor, o melhor que pudemos, um dicionário da língua dinca. Eu pedi-a ao pró-vigário com
a ideia de introduzir nos nossos institutos africanos de Verona a genuína pronúncia desta língua, necessária
para o exercício do ministério apostólico naquela perigosa missão.
628
Agora estou a ensinar árabe e italiano aos nove rapazes gallas que já temos no nosso Instituto; mas co-
nhecendo eu pouco, e por prática, a língua dos Gallas, peço a V. Em.a o favor de me enviar por meio do ofi-
cial P.e Filipe Torroni a gramática e o dicionário inglês-galla que creio ter visto na tipografia da Propaganda.
O sr. Torroni entregá-los-á depois no sítio que eu lhe indicar. Perdoe V. Em.a o meu atrevimento; mas confio
na bondade que demonstrou quando obtive a graça de me encontrar convosco.
629
O meu superior, P.e Nicolau Mazza, apresenta-lhe respeitosos cumprimentos. Por um milagre quase con-
tínuo, agora tem que lutar com a indigência causada pelas actuais circunstâncias políticas e tem que ser en-
genhoso para manter gratuitamente bastantes pobres no Instituto, que é constituído por 200 pessoas, e no
Instituto feminino em que há 400 raparigas. Porém, as maravilhas dessa Providência, que o sustém desde há
quarenta anos – ainda que às vezes se mostre de rosto carregado –, mantém-no sempre firme nas suas obras
de cristã filantropia.
630
Para não cansar a V. Em.a Rev.ma não lhe escrevi um extenso relato da minha pequena mas difícil expe-
dição, como fiz a mons. Nardi e a S. E. o cav. De-Hurter, presidente da Sociedade de Maria, de Viena. Pare-
ceu-me suficiente mencionar-lhe só o meu feliz regresso de Adem, pensando que depois poderá ler tudo nos
nossos Anais.
631
Em cartas escritas do Alto Egipto, Kirchner pedia que eu voltasse rapidamente para a África para fazer a
expedição pelo Nilo Branco, subindo o rio com o Stella Mattutina até ao território dos Bari. Porém, necessi-
tando-me para dirigir o Instituto africano e para instruir os gallas recém-chegados de Adem, o superior recu-
sou-se a mandar-me, considerando que, por agora, podem bastar os outros missionários de Verona que há em
Schellal.
Implorando a sua benigna indulgência, passo a beijar-lhe a sagrada púrpura e a subscrever-me com toda a
atenção

De V. Em.a
Humilmo., obedmo., e indigmo. serv.
Daniel Comboni

N.o 65 (63) - A P.e FILIPE TORRONI


AP SC afr. C., v. 7, f 169

Verona, 8 de Julho de 1861

Mui rev.do sr.,

632
Se S. Eminência achar bem pedir-lhe que me procure a gramática galla em inglês ou o dicionário inglês-
galla, ou ambos, na Tipografia da Propaganda, pediria a gentileza de os fazer chegar às mãos de mons. Nardi,
auditor da Sagrada Rota, que se encontra perto da Propaganda, no palácio Torlonia, na Rua Boca de Leão.
Com a certeza de alcançar o implorado favor, antecipo-lhe a expressão de agradecimento e declaro-me
com todo o respeito

De V. S. Rev.ma devotmo. serv.


Daniel Comboni
Ex-missionário apostólico da África Central

N.o 66 (64) - AO CONDE GUIDO DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Verona, 10 de Julho de 1861

Meu caro Guido,


633
Não pense que por ter estado até agora calado me esqueci de si. De modo algum: escolhi-o como amigo e
sempre o trago no coração. Porém, se até agora, por variadas circunstâncias, não pude cumprir este grato
dever de amizade, não aprenda comigo a manter-se em silêncio, porque é meu mais ardente desejo que se
estabeleça entre nós uma perene comunicação epistolar, que nos mantenha ao corrente um do outro, dos nos-
sos afectos, do que fazemos, de tudo.
634
Eu conservo no meu diário e leio com agradável complacência o belo soneto que improvisou à nossa pas-
sagem pela antiga mãe dos heróis; e amiúde me acodem à mente as suas magníficas criações poéticas, que
são dignas de público conhecimento e elogio. Recordo com prazer as nossas agradáveis conversas, nas quais
fez do seu mais sincero amigo o depositário das suas confidências e das dolorosas e queridas recordações da
cidade dos Césares; nelas conheci a sua alma ardente e generosa, e ganhou meu coração. Por isso pode com-
preender quão vivo é o meu desejo de receber as suas cartas e de ter a sua plena, ilimitada e sincera confian-
ça e amizade, como eu lhe asseguro que tem a minha. Oh, que gratas são as palavras de um amigo distante!
635
Mas passemos a outra coisa. Eu pensava escrever à princesa-mãe, de quem recebi tantas gentilezas. Mas,
dado que lhe escreve uma das minhas freiras, que teve a sorte de conhecer em Trieste, e sendo escasso o
tempo, desta vez abstenho-me, deixando para outra ocasião. Entretanto, renove o meu sincero agradecimento
à digna princesa, a quem trarei sempre no coração e por quem rogarei a Deus para que lhe conceda o confor-
to que faça mais ditosa a sua preciosa vida. A primeira vez que me escrever, diga-me o seu nome. Gostaria
de escrever ao sr. conde D..., seu querido e digno tio, mas não tenho tempo. Apresente-lhe a minha conside-
ração e diga-lhe que gostaria de entrar em seu coração e consolá-lo; e bendigo o Senhor porque os graciosís-
simos e queridos jovens Estanislau e Casimiro lhe suscitam justificadas e sublimes esperanças e se mostram
dignos dele.
636
Eu estou aqui orgulhoso de ter sido elevado à excelsa dignidade de professor das primeiras letras de ára-
be. Que remédio! Entre outros, tenho nove alunos gallas, aos quais ninguém, a não ser eu, pode ensinar, por-
que, embora no meu Instituto haja quem sabe árabe, ninguém sabe o indostânico e o galla que eu balbucio
um pouco. Ao mesmo tempo, dedico-me à pregação e mantenho correspondência com a África Central.
637
Tive uma ocasião em que quase estive para ir a Roma; mas consegui resolver os meus assuntos por carta.
Falei muitas vezes de si à princesa Maria Ghigi Giovanelli; dei-lhe a conhecer amplamente o seu talento para
a poesia e que em breve serão publicadas bastantes das suas belíssimas criações. Ela conhece seu pai. Se
tivesse podido ir a Roma, não teria deixado de visitar a sua nobre família e de lhes falar de si, da nossa estada
no Egipto e da nossa poética viagem que, no furor da borrasca, se tornou prosaica. Mas haverá outras ocasi-
ões. Entretanto espero ansioso o momento de o ver em Verona. Ah, meu bom amigo Guido, a quem tanto
estimo e quero, virá até aqui? Poderei dar-lhe um abraço e gozar da sua companhia? Faça o possível e conso-
le um amigo que lhe tem tanto afecto.
638
Porém, por agora e antes de tudo, escreva-me. Faça-me saber o seu estado de saúde e de ânimo. Oh, como
se tornam doces e agradáveis as efusões de uma alma irmã, que encontra um eco no coração capaz de com-
preender o amigo! Passeou nestes três meses do setentrião pelos plácidos cerros do Parnaso? Talvez as re-
centes vicissitudes da Polónia e a situação em que se encontra de saber imediatamente essas notícias incita-
ram a sua musa a irromper em apaixonados versos?
639
Termino estas breves linhas assegurando-lhe que, se na presente ocasião fui lacónico e estéril, não o serei
no futuro. Conserve-se em boa saúde, divirta-se e sobretudo aprecie a companhia de seus familiares, com os
quais tive a dita de partilhar os temores da tempestuosa navegação pelo Adriático e pelo Mediterrâneo; esses
seus familiares são espelho da verdadeira nobreza. Apresente a todos eles os meus respeitosos cumprimen-
tos; e enviando-lhe um forte abraço, passo a declarar-me com toda a estima e afecto

Seu fidelmo. amigo


Daniel Comboni m. a.

640
Os meus sete gallas mandam-lhe cumprimentos. Sobretudo Luís está aqui a insistir que mande saudações;
levando as mãos ao queixo, diz-me: “sellem ala abu dagn min andi: saúda-me o senhor padre da barba.
Adeus novamente.

N.o 67 (65) - A P.e FÉLIX PERLATO


BCV, sez. Carteggi, b. 131 (Netti-Perlato)

S. Carlos, Verona, 28 de Agosto de 1861

Rev.do sr. reitor,

641
Amanhã é-me impossível ir a La Scala para a santa missa, dado que não pude opor-me à vontade dos
meus superiores, que por uma circunstância extraordinária querem mandar-me à vizinha igreja de S. Tomio.
Apresentando-lhe as minhas desculpas, declaro-me com todo o respeito
Seu humilmo. serv.
Daniel C. m.a.

N.o 68 (66) - A SEU PAI


AFC

Viena, 8 de Outubro de 1861


Queridíssimo pai,

642
Comunico-te que estou bem e que os meus assuntos correm maravilhosamente. O filho do jardineiro está
em contacto com as mais altas personalidades de Viena, acolhido cordialmente por todos. As coisas vão de-
masiado bem: é impossível que durem. Aqui, com grande dor da minha parte, devo reprimir meus sentimen-
tos para com a minha amada pátria e ficar calado perante expressões mais contrárias ao senso comum. Mas
basta; eu estou a encontrar a máxima gentileza e grande espírito religioso entre as pessoas importantes, que
admiram o missionário e dão esmola para a missão africana sem ninguém pedir. Adeus; cumprimentos ao
Eugénio e a todos os parentes; acredita que te ama
Teu filho Daniel

N.o 69 (67) - AO P.e LUDOVICO DE CASORIA


AFBR, c. Africa-Moretti

Viena, Outubro de 1861

Breve carta de De Hurter e de Comboni.

N.o 70 (68) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 25 de Dezembro de 1861

Mui rev.do superior,

643
Logo que cheguei a Roma, não quis que passe mais um instante sem lhe escrever. Saído de Verona na
passada segunda-feira, dia 16, no dia 19 pela noite, ou seja, quinta-feira, já tinha entrado no porto de Nápo-
les. O P.e Ludovico de Casoria, superior do Instituto dos negros, acolheu de muito boa vontade os três ne-
gros que eu levava, apesar das suas precárias condições físicas; e agora está ainda mais contente, porque três
professores de medicina lhe disseram em minha presença que seguramente dentro de um ano estarão perfei-
tamente curados.
644
Nasri, o nosso negro e ex-clérigo, foi quem me deu mais problemas; não querendo de nenhum modo ficar
em Nápoles, pediu-me para voltar a Verona. E o P.e Ludovico também me pediu encarecidamente que lho
permitisse.
645
Não houve, não há, nem haverá forma de fazer-me mudar de opinião. E entre outras coisas, para conven-
cer o P.e Ludovico das razões da minha negativa, expus-lhe os maus sentimentos, manifestados diante do P.e
Ludovico, que Nasri tem contra mim e contra o Instituto. Em suma, às vezes, parece-me um pequeno demó-
nio; e sempre volúvel, porque um dia queria ser sacerdote, outro frade, depois médico, em seguida artista,
etc., etc.
646
Espero, sr. superior, que não irá pensar admiti-lo. Já pode imaginar como ele deitaria a perder os nossos
novos e bons negros. O P.e Ludovico não tem outro remédio senão deixá-lo ir embora de La Palma. E depois
da minha rejeição, decidiu mandá-lo a suas expensas, para onde o jovem quisesse, excluído o nosso Instituto
de Verona.
647
Eu encontro-me muito bem, apesar da tremenda tempestade desta noite no vapor francês de Nápoles a Ci-
vitavecchia. P.e Bonomini já está colocado de forma fixa no instituto de La Palma, depois de acordadas umas
condições muito favoráveis. Expliquei francamente ao P.e Ludovico que ele não pertence ao nosso Instituto e
é totalmente livre e que, portanto, podia actuar segundo o seu critério, sem sentir-se de maneira nenhuma
obrigado a fazer excepções por consideração para com o nosso Instituto. Assegurei-lhe, isso sim, que P.e
Bonomini será rigoroso em ensinar às horas estabelecidas e que possui o conhecimento teórico de algumas
línguas.
648
Esta carta foi a primeira coisa que fiz em Roma, porque acabo de chegar. Amanhã irei para o meu aloja-
mento de costume; espero ter uma longa audiência com o Santo Padre, porque até depois da Epifania são
férias das Congregações. Espero despachar em poucos dias as muitas coisas que tenho que fazer em Roma e
estar em Verona na próxima Epifania.
649
Entretanto, receba as minhas respeitosas considerações. (Vejo que se preparam grandes coisas para a
África.) Saudações a P.e Bricolo, a P.e Tomba, ao nosso futuro bispo Canossa, aos professores e professoras,
e a P.e Donato, a Tregnani, etc., e a Festa, enquanto me declaro nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria

Seu indigmo. e obmo. filho


Daniel Comboni

N.o 71 (69) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 29 de Dezembro de 1861

Meu rev.do superior,

650
Seguindo as instruções que me deu em Verona em relação à minha passagem por Roma, fiz saber tanto à
Propaganda como ao P.e Geral dos Franciscanos que é sua intenção, sr. superior, continuar a obra das mis-
sões africanas e realizar a seu tempo o plano que concebeu há mais de doze anos. A Propaganda respondeu-
me que está perfeitamente disposta a aceder a seus santos desejos, na condição de que se entenda com os
Franciscanos; e o geral respondeu-me que não só está disposto a acolher os missionários de Verona em Áfri-
ca, mas até tinha convidado o ex-pró-vigário Kirchner a deixar que ficassem na missão os nossos P.e Beltra-
me e P.e Dalbosco e a voltar para lá também ele, se quisesse.
651
Porém, Kirchner, que estava desanimado e abatido, querendo abandonar a missão com honra e triunfo,
arbitrariamente chamou os nossos missionários, quase para legitimar triunfalmente a sua partida de África
com o facto de que os outros o seguiam. Isto tirei-o como conclusão certa de duas longas conversas que man-
tive até agora com S. Em.a o card. Barnabó. Isso transeat. Confirmou-me também que Kirchner não via com
muito agrado a associação do nosso Instituto à missão de África.
652
O que agora me parece muito conveniente é o seguinte: o Cardeal Barnabó está actualmente disposto a
entregar-nos um campo de missão em África. Do mesmo modo, o actual geral dos franciscanos está disposto
a aceder aos desejos do nosso Instituto. Mas ele permanecerá em seu cargo só até ao próximo mês de Março,
altura em que será eleito um novo geral; e quem sabe se o futuro geral terá as mesmas boas intenções do
actual, que, por ter sido também missionário, tem muito amor às missões? A observação não é minha, mas
do Cardeal Barnabó, que, fazendo-me objecto, ainda que indigno, da sua confiança, me fez compreender que
nos conviria tratar com o actual geral e, depois, submeter tudo à Propaganda.
Sendo assim as coisas, eu pensaria ser oportuno que o sr. superior redigisse imediatamente os artigos so-
bre os quais se basearia a nossa futura cooperação na África Central e juntar a estes um pedido ao geral dos
Franciscanos, em que solicite cooperar na conversão dos negros.
653
Enviar-me-ia tudo isso para Roma e eu apresentá-lo-ia ao geral, reservando-me para lhe sugerir depois as
diligências perante a Propaganda, segundo as indicações que me desse o próprio prefeito, o card. Barnabó.
Creio que tudo isto deve ser feito com rapidez, enquanto está este geral, sem confiar no futuro na poderosa
influência de Mons. Nardi, o qual está totalmente ocupado na política e a compor opúsculos. Depois, uma
vez obtida a necessária autorização da Propaganda e dos Franciscanos, podemos ir fazendo calmamente,
pouco a pouco, os nossos preparativos e, seja quando for, mesmo ao cabo de muitos anos, realizar o seu pla-
no de missão.
Por isso, até nova ordem sua, fico em Roma com a esperança de que, tendo a sua autorização como lhe
indiquei acima, até meados do próximo mês de Janeiro, possa, com tudo já solucionado, voltar a Verona.
Envie-me as suas ordens assim:

A P.e Daniel Comboni, missionário apostólico


Irmãs de S. José da Aparição
Praça Margana – Roma

654
O Cardeal Barnabó disse-me que nomeou pró-vigário apostólico da África Central o P.e João Reinthaller,
aquele a quem o senhor viu em Verona neste passado Outono.
Para que as cartas não façam o percurso da Suíça, dirija-as a Desenzano, a casa do sr. Polidoro, irmão do
monsenhor, a quem encarreguei de me enviar as minhas cartas para Roma: isto para ganhar uma semana.
Espero ter idealizado algo conveniente, com o qual estaria justificado o meu atraso. No caso de isso não ser
oportuno, repreenda-me e chame-me burro, que tem razão.
655
Rogo-lhe comunique a mons. Canossa que o cavalheiro Sassi já enviou para Verona o Breve para ser sa-
grado bispo no dia 23 de Janeiro; e que se desejar alguma coisa, além daquilo de que já me encarregou, só
tem que pedi-lo, enquanto eu me encontrar em Roma até meados do próximo mês de Janeiro. Mons. Nardi e
o Cardeal Barnabó enviam-lhe as suas distintas saudações. Igualmente o príncipe de Carpegna, em cuja casa
como e bebo. Quarta-feira serei recebido em audiência por Pio IX.
656
Em Roma há uma extraordinária tranquilidade. O Papa goza de perfeita saúde. O Cardeal Cagiani, prefei-
to da Sagrada Congregação do Concílio, disse-me hoje que, há dias, o Papa, no conselho de cardeais, pro-
nunciou estas palavras: «Eu preparo-me para a mais terrível perseguição: se sois dignos do nome que trazeis,
deveis seguir-me e acompanhar-me na dor, enquanto eu sofro os primeiros golpes», etc., etc.
Cumprimentos a P.e Bricolo, a P.e Cavattoni, a Canossa bispo e potestade, e a todos os do Instituto, en-
quanto me declaro

Seu af.mo filho


Daniel Comboni m. a.

N.o 72 (70) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 30 de Dezembro de 1861

Estimadíssimo sr. reitor,

657
Infelizmente, eu tenho de ficar em Roma até meados do próximo mês de Janeiro, porque, à parte os as-
suntozitos que a isso me obrigam, existe o amável convite que me fez o Cardeal Barnabó para assistir à festa
da Propaganda, que se realiza no domingo compreendido na oitava da Epifania, na qual se faz gala de com-
posições elaboradas em mais de 40 línguas, recitadas pelos respectivos indígenas. P.e Bonomini está coloca-
do em La Palma. Tem por obrigação fazer o que puder para instruir os negros e dão-lhe comida, alojamento e
roupa lavada, e a missa diária com a esmola de dois carlinos. Por agora só tem a seu cargo a instrução dos
três que eu levei. Ele está contente, bem como o P.e Ludovico. Ficou contente da viagem e diz que eu o tratei
muito bem. A sua mudança custou-me 90 francos. Tendo eu recebido dele apenas 50, sucede que o sofá, o
escritório, as duas cómodas, etc. vêm a custar-me tudo junto 40 francos. A minha consciência está plenamen-
te tranquila, porque se tivesse de pagar tudo, teria perdido dinheiro. O ganho é fruto das minhas habilidades.
658
O chefe da África Central é João Reinthaller, o que veio a Verona. Eu estou em Roma como um príncipe.
Tenho um quarto na Minerva e o almoço e jantar tomo-os em casa do príncipe de Carpegna; e como hoje
disse que fico em Roma até meados de Janeiro, estão a preparar um apartamento que amanhã irei habitar. A
vida com os nobres de Roma é enfadonha, cheia de formalidades, de etiquetas e de hipocrisia. Eu aborreço-a;
e os membros da família Carpegna, ainda que a pratiquem com os outros, não a exigem de ninguém e detes-
tam-na. Mons. Nardi manda que lhe apresente saudações; às vezes vem a casa de Carpegna. Eu, sob o pre-
texto de afazeres, decidi fazer das quatro até às dez exercícios espirituais com um santo missionário benedi-
tino, pois já há 19 meses que não os faço.
659
Amanhã, às 4 da tarde, tenho a audiência com Sua Santidade Pio IX, que, pelo que me disse S. Em.a o
card. Cagiani, pref. da Sagr. Cong. do Concílio, dirigiu uma tremenda alocução aos cardeais, advertindo-os
de que se devem preparar para furibundas perseguições, cujo alvo será o Pontífice. Em Roma há uma calma
considerável, mesmo incomparável. Desfruto todos os dias da grata companhia do príncipe Giovanelli e
amigo como sou de muitas congregações de freiras francesas (que gozam da minha simpatia), elas competem
entre si para levar-me a celebrar missa nos seus conventos. Em Nápoles estive todos os dias em companhia
de Aldigheri e de Spezia, em casa dos quais comi mais de uma vez. Cumprimente em meu nome e no da
família Spezia-Aldigheri P.e Alexandre e os outros professores de S. Jorge. Cumprimentos a todos os sacer-
dotes do colégio, sem excluir o meu estado-maior e a minha Corte e especialmente ao gobbeto omnibus.
Apresente particularmente as minhas saudações à família Parisi, recorrendo ao meu obediente secretário
Vitichindo. Receba as minhas afectuosas saudações.

Seu af.mo Daniel

N.o 73 (71) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM S. JOÃO BAPTISTA DE SACCO, VERONA
AMV
1862

N.o 74 (72) - A P.e NICOLAU MAZZA


ACR, A, c. 15/58

Roma, 4 de Janeiro de 1862

Estimadíssimo sr. superior,

660
Sua Eminência Rev.ma o Cardeal Sforza, arcebispo de Nápoles, que, devido às circunstâncias políticas,
reside agora em Roma, homem de muito saber, empreendedor e de grande coração, ao descrever-lhe eu o
nosso Instituto, que acolhe distintos engenhos de condição humilde e, mediante oportuna instrução, os prepa-
ra para um dia serem úteis à religião e à sociedade, pediu-me insistentemente que lhe facultasse as regras do
nosso Instituto e o plano que o sr. superior seguiu ao fundá-lo. Mostrou o maior interesse e parece que con-
cebeu o propósito de fundar um em Nápoles para acolher, de toda a sua extensa diocese e populosíssima
cidade, rapazes abandonados, que se destaquem pela inteligência.
661
Segundo eu vejo as coisas, que agora me acorrem à mente, essa ideia do arcebispo e cardeal de Nápoles
será de grande proveito para todo aquele reino e também para o nosso Instituto das missões. Oxalá a Provi-
dência se digne multiplicar as filiais do nosso Instituto, que bem falta nos fazem. O interesse com que S.
Em.a me recomenda lhe faculte as regras é grande. Por isso, à minha chegada a Verona espero que tenha já
feito reunir os vários escritos que se imprimiram, como Malzeta, etc. O seu opúsculo com o qual convidava
os senhores veroneses a associarem-se para resgate das negras não basta. Espero que tal desejo seja satisfei-
to. Melhor seria ainda se se fizesse outro opúsculo, onde se indique e descreva a estrutura e o plano de todos
os nossos institutos.
662
Receba saudações do card. Barnabó; do card.-arcebispo de Nápoles; de mons. Nardi; da madre geral do
Instituto de S. José; do P.e Alfieri, que me faz objecto de tantas gentilezas, e do príncipe Giovanelli, que
amanhã partirá para Nápoles. Eu estou à espera de suas cartas e das suas intenções. Permanecerei em Roma
até meados do corrente, para chegar a Verona antes do dia 23, dia da sagração de mons. Canossa, ao qual
peço apresente meus respeitosos cumprimentos. Saudações a P.e Bricolo e a todos os dos institutos masculi-
no e feminino, e a P.e César, da parte de mons. Profili, reitor do Seminário Romano, que o conheceu com
Tognetto Bertoldi. Entretanto anuncio-lhe que o Papa está muito bem e que no último dia do ano vi-o na
Igreja de Jesus a assistir ao Te Deum e a uma grande demonstração na praça, na qual uma imensa massa de
povo, espontaneamente, gritou: Viva Pio IX Pontífice e Rei; depois vi-o assistir ao pontifical do primeiro dia
do ano na Capela Sistina, na presença de 36 cardeais e 108 bispos, onde mons. Nardi, como um acólito, le-
vava a cruz. Contudo, não obtive a audiência, porque até à Epifania são férias. Depois da Epifania assistirei à
festa da Propaganda, onde se recitam composições em mais de 40 línguas.
Invocando sua bênção, passo a subscrever-me, nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria como

Seu indigmo. filho


Daniel C.
Mons. Besi está em Verona.

N.o 75 (73) - INSCRIÇÃO DE COMBONI


ACR

Roma, 6 de Janeiro de 1862

Junto a uma estampa que representa os Reis Magos diante do Menino Jesus, Comboni pôs a seguinte
inscrição:

Hanc imaginem
Accepit in Collegio Urbano de Propaganda Fide,
die 6 Jan.ri 1862
D.us D.l Comboni M.us Ap.us

N.o 76 (74) - AO CONDE GUIDO DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Verona, 9 de Fevereiro de 1862

Mui querido e estimado Guido,

663
Passaram 26 dias desde que tive a alegria de ver a tua querida família e já me parece que há cem anos que
não ouço notícias vossas. Posso assegurar-te que não passa uma hora que não me venha à mente a vossa gra-
ta lembrança. E devo confessar com rubor que quem teve tanta força para abandonar para sempre uns pais
amorosos, de quem era filho único, a fim de voar a juntar-se com africanas gentes em lugares remotos e em
regiões curvadas sob o domínio de satanás, mergulhadas nas trevas e sombras da morte, no passado dia 15
partiu de Roma com o coração oprimido pela mais profunda dor, ao separar-se de ti e da nobre família Car-
pegna, que trarei eternamente gravada na minha alma e escrita com caracteres indeléveis no mais íntimo do
meu espírito.
664
Para não falar de muitas outras coisas, ainda hoje me impressiona a recordação das observações feitas a
teu respeito pelo prefeito de Roma dois dias antes da minha partida e suspiro pelo agradável momento em
que me dirijas umas linhas. Sim, meu dilecto amigo, todos vós estais gravados no meu coração. Estimo a
todos com ternura, embora deva lamentar não ser digno de vós. O vosso querido nome é pronunciado com
afecto e veneração pelos meus mais íntimos amigos, repetem-no os lábios inocentes de alguns dos meus jo-
vens negros e, sobretudo, está nos lábios de meus irmãos sacerdotes do Instituto que o pronunciam com cari-
nho, gratidão e respeito. Vejo-te a ti e ao singelo Pippo com efusão do coração e com orgulho, como queri-
dos irmãos.
665
Sei que não devia dizê-lo, dada a minha obscura e humilde condição comparada com a nobreza da vossa
linhagem, mas sois de ânimo tão nobre, que sabereis conceder-me um generoso perdão. Ao conde de Carpe-
gna considero-o como meu pai; e a essa alma sublime e generosa que é a flor das heroínas polacas, a quem vi
cheia de nobres sentimentos e pletórica de ideias magnânimas, essa alma angelical que vos deu à luz com o
coração e que vos traz dentro de si com afecto mais que maternal, a essa alma contemplo-a como minha mãe.
666
Eu tinha uma mãe amorosa, mas perdi-a em 1858, enquanto deambulava pelos ardentes desertos da África
Central; e agora, que conheço quão precioso era o tesouro perdido, atrever-me-ia a escolher como mãe aque-
la que vos gerou também a vós não já quanto ao corpo, mas num modo mais nobre e elevado com o espírito,
de tal modo que também eu convosco possa olhá-la como mãe com o coração. Depois, o professor, o meu
caro P.e Luís, vejo-o também como um irmão e gosto muito dele, porque sei que foi, é e será o verdadeiro
amigo da casa Carpegna e ficou a vosso lado só para, de algum modo, vos ser útil, porque vos ama com afec-
to sincero. Desculpai estas expressões que não são dignas na boca e no coração de um missionário apostóli-
co; porém, são as mais contidas de uma alma que vos professa um ardente carinho.
667
Alegra-se-me o espírito quando, ao contemplar no meu álbum os vossos retratos, reconheço neles os ami-
gos mais queridos do meu coração. E quando, cada manhã, no sacrifício do altar, tenho ocasião no Memento
de rezar uma oração por vós, oh, então sinto uma alegria inefável e parece-me que nesses felizes instantes o
meu espírito se enche totalmente da mais plena devoção, porque vejo em Deus o centro de comunicação
entre vós e mim, porque, ainda que afastados fisicamente, estais unidos a mim na religião, na fé e no cora-
ção. Agora que eu vos conheço bem e vós me conheceis bem a mim, não me hei-de atrever a esperar vossas
cartas? E vós ousareis deixar que passe um mês sem me escrever, falando-me de vós, um por um, mantendo
assim entre nós uma comunicação epistolar? Ah, espero que não deixareis penar uma alma que por vós sus-
pira e que não deixa de recordar-vos nem um momento.
668
Apresentai meus respeitosos cumprimentos a mons. Besi, a mons. Nardi, ao extraordinário professor
Massoni da clínica ocular, a Giovanelli, a Macchi e a todos os que frequentam a vossa casa e que sabeis que
eu conheço e que não nomeio por serem muitos.
669
Depois de sair de Roma, detive-me em Pisa e depois em Turim, onde fui duas vezes ao Parlamento; isto é,
uma vez à Câmara dos Deputados e outra à dos Senadores e isto graças a Ricasoli. Já em Verona, encontrei
uma graciosa carta de Pélagie, que me dava notícias dos vossos que foram nossos companheiros de viagem
do Egipto até Trieste. Pélagie é uma dessas almas polacas que abrigam nobres sentimentos e com seu critério
sabe conjugar, como ainda em maior medida o faria mamã, religião e pátria, fé e progresso. Permiti que vos
transcreva um fragmento acerca da Polónia, que é digno de uma alma polaca: «Não esqueça tão-pouco a
Polónia em suas orações. Se viu Guido, ele ter-lhe-á contado aquilo de que foi testemunha em Varsóvia no
dia 8 de Abril e recentemente quando lá esteve. Os jornais não contam nem metade. Isto clama por vingança
e, apesar disso, toda a Europa fecha os olhos e tapa os ouvidos! Pode ser que Deus tenha piedade deste infe-
liz país, dividido entre três poderosos e cruéis inimigos, que matam os seus filhos ou mandam-nos para a
prisão como castigo por desejarem a liberdade. Onde estão, portanto, os campeões da justiça? Este sangue
não será derramado em vão: Deus terá piedade dos que sofrem, porque esperam n’Ele.»
670
Oh, que grande é a minha veneração por estas almas polacas! Mas basta, meu caro Guido. A meu superior
contei tantas coisas de vós e dessa bela alma de mamã, cuja generosidade de coração lhe valeu ser libertada
das trevas do cepticismo grego e entrar na união católica. Ele manda as suas expressões de gratidão e as suas
saudações. Mostrou-me vontade de querer possuir o belo crucifixo que me ofereceu a querida família Carpe-
gna; mas teve de mim uma solene negativa, porque vai ser um precioso talismã que me dará força nas difi-
culdades e nos extremos perigos e um monumento do meu afecto por vós.
Mas basta, repito. Já estarás aborrecido de ler. Compendio numa só frase o que vos desejaria escrever: Es-
timo-vos, lembrai-vos de mim. Transmite as minhas mais afectuosas saudações ao papá, a mamã, a Pippo, a
P.e Luís, enquanto me declaro nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria

Teu af.mo irmão


Daniel Comb. m. ap.

N.o 77 (75) - AO CONDE GUIDO DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Verona, 23 de Fevereiro de 1862

Meu adorável e estimadíssimo Guido,

671
Para dizer-te sinceramente o que sinto, devo exprimir uma ousada verdade. De entre as diversas corres-
pondências que mantenho dentro e fora da Europa, a mais apreciada é a que espero estabelecer contigo e com
essa bendita casa Carpegna: já podes imaginar quão grata me foi a tua carta de 10 do corrente. Mas passemos
a outra coisa.
Dado que és poeta, e como, pelas composições que me leste sobre as praias da Grécia inspiradora do an-
tigo Orfeu, prevejo que a pátria terá a seu tempo um digno cultivador da literatura italiana, quero enviar-te
um trabalho poético de um amigo meu, aluno do meu Instituto, o padre Vicente Romazzini, intitulado a
Criação, que o meu Instituto dedica hoje a mons. Canossa, por ocasião da sua tomada de posse como bispo
de Verona. Esta composição é constituída só por sete sonetos, sobre os quais desejo a tua opinião. A seu
tempo mandar-tos-ei impressos e espero que seja neste Verão, por meio do bispo. Ah, se pudesse ver publi-
cados os teus trabalhos, como me alegraria! Mas dêmos tempo ao tempo e com a evolução das circunstâncias
tudo chegará.
672
Atrevo-me a pedir-te outro favor. Um dos mais importantes naturalistas da Europa e grande literato amigo
meu, o Dr. Pedro Paulo Martinati, colecciona autógrafos de homens ilustres nas ciências e nas artes e deseja-
ria possuir um autógrafo de Passaglia: não serias capaz de me conseguir um? Ou uma carta ou um escrito
teológico ou outra coisa. Creio que a ti, nobre romano, antigo discípulo seu no Colégio Romano e na Sapi-
enza, não te seria difícil. Fá-lo sem pressas e não deixes escapar esta ocasião se ela se te apresentar.
Na primeira carta dá-me a tua opinião sobre a Criação, etc.
673
Falemos agora de nós. Li e tenho pensado reflectidamente em quanto me dizes na tua preciosa carta. En-
tre as bênçãos da tua casa, compraz-me saber que o processo Falconieri se desenrola rapidamente a vosso
favor. Bendito seja Deus que não poucas vezes, mesmo cá em baixo, quer cumular de bênçãos aqueles que o
temem. Alegro-me como se a sorte me favorecesse a mim. Senti-me enormemente aliviado ao saber que não
fizeste caso dos comentários do monsenhor a teu respeito. Eu nutro por ti alta estima, pela tua sensatez, pela
tua moderação, pela tua prudência, pela tua calma, de modo que nunca chegarás a comprometer o teu nome.
Sê generoso e magnânimo, suportando certas exuberâncias do próximo, que não se coadunam com a tua ma-
neira de ser nobre e reflectida.
674
Às vezes surgem-me dúvidas no fundo do espírito, ao pensar naquela tardia divagação sobre a situação na
Polónia na presença do embaixador moscovita; porém, pondo outras coisas do lado da tua prudência, persua-
do-me de que nunca te mostrarás irreflectido, mas sereno e judicioso em tudo. Retribui os cumprimentos ao
exímio cirurgião oculista Mazzoni e diz-lhe que recordo com complacência a feliz ocasião em que assisti
àquelas magníficas operações. Alegra-me saber que aquele cego vê agora muito bem. É prodigioso! Aquele
pobre entrou no hospital privado da inefável faculdade de ver e saiu como um extático admirador das mara-
vilhas do universo! Diz-lhe (ao professor) que lhe mandarei uma foto minha em memória da sua amabilidade
em me ter admitido àquelas magníficas operações; a mim, que apenas sei rezar o Breviário.
675
Como está mamã? Fala-me dela; em tuas cartas diz-me sempre algo especial sobre ela. Alegro-me de sa-
ber que estão bem S. Ex.a Monsieur papá, o meu querido Pippo e o seu digno preceptor e meu amigo P.e
Luís. Lembra-te que, embora reconheça que o meu poder no Céu é nulo, sempre peço ao Senhor por vós,
pela vossa felicidade, pela vossa harmonia, por vossas almas, por vossos corpos. É a prece mais espontânea e
sincera que me pode sair do coração.
676
Hoje S. Ex.a o rev.mo mons. Canossa, descendente ilustre da célebre princesa Matilde, faz a entrada sole-
ne como bispo de Verona. O meu superior P.e Nicolau Mazza retribui as tuas saudações e agradece a tua
gentileza; ele lembra-te, pois eu falo-lhe com frequência de ti e sabe que fomos companheiros de viagem na
breve travessia de Alexandria a Trieste. Todos os rapazes negros apresentam respeitosos cumprimentos ao
gentilíssimo Abu-Dagn. O pobre Luís está muito mal por ter tido um desenvolvimento demasiado precoce.
Com doze anos está alto como eu. Quando se restabelecer, mandarei fazer-lhe um retrato e mandar-te-ei al-
gumas cópias. Espero impaciente pela tua foto, bem como pela de mamã; eu também farei o mesmo. Das
senhoras polacas que conhecemos não recebi más notícias. Há pouco que me escreveram e serei afortunado
se puder ter notícias três ou quatro vezes por ano, Aqui reinam a impaciência, a dúvida e o temor. Deus es-
tenda a sua mão aos infelizes!
677
Apresenta a cada um dos que conheci em tua casa os meus respeitosos cumprimentos: a Mazzoni, a mons.
Besi, Nardi, Bernini, etc.; as minhas saudações especiais a Giovanelli e às princesas, esposa e mãe. Mas an-
tes de tudo, beija a mão por mim à venerada e querida mamã, anjo tutelar de tua casa, e transmite os meus
mais afectuosos cumprimentos ao papá, ao meu cândido e querido Pippo, ao meu dilecto amigo P. e Luís, de
quem espero algumas linhas e a quem mais tarde também escreverei. Entretanto, assegura-te sua eterna esti-
ma e afecto

Teu indigmo. fidelmo. e af.mo


Daniel

Apercebo-me de que estou a ser demasiado prolixo e insípido.


Peroni, o veronês com quem foste de Turim a Génova, pede que te apresente os seus respeitosos cumpri-
mentos.

N.o 78 (76) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C. v. 7, f. 298v

Verona, 8 de Março de 1862


Eminentíssimo Príncipe,

678
Mal chegado a Verona, expus ao meu superior, P.e Nicolau Mazza, a boa ideia de V. Em.a Rev.ma de
atribuir ao meu Instituto uma porção da vasta missão da África Central, independente dos padres francisca-
nos, logo que tenhamos apresentado à Sagrada Congregação da Propaganda Fide os meios materiais e for-
mais com que o Instituto conta para enfrentar o sublime encargo. Não refiro o efeito que produziu a determi-
nação de V. Em.a Rev.ma no ânimo do meu venerável ancião; só lhe manifesto que no dia em que V. Em. a
assinar o ansiado decreto dará mais dez anos de vida à preciosa existência do homem de Deus. Por isso, nós,
logo que cheguem a Verona os nossos missionários P.e João Beltrame e P.e Alexandre Dalbosco, determina-
remos os pontos da missão que pensamos cultivar e os respectivos meios. Então exporemos tudo a V. Em. a
Rev.ma e lançar-nos-emos em seus braços amorosos, dispostos a realizar tudo o que nos ordene a Santa Igre-
ja por meio de V. Em.a Ilma. e Rev.ma, que é o seu verdadeiro canal.
V. Em.a Rev.ma terá visto o paramento sagrado que a Áustria ofereceu ao nosso amantíssimo Santo Pa-
dre, cujo valor, segundo A Harmonia, é de 36 000 escudos. Pois foi feito pelas jovens pobres do nosso Insti-
tuto feminino; e os bordados a ouro foram quase todos executados pelas meninas africanas, as quais estão
destinadas à vinha do Senhor que nos atribuir a Sagrada Congregação da Propaganda Fide.
679
Atrevo-me a suplicar-lhe o alto favor de obter uma audiência de Sua Santidade Pio IX para os padres de
S. Camilo de Lellis, um dos quais foi aluno do meu Instituto; e isto por meio de Mons. o secretário.
Aceite as distintas saudações do meu superior e de quem, beijando-lhe a sagrada púrpura, se declara com
todo o respeito

De V. Em.a Rev.ma indigmo. serv.


Daniel Comboni

N.o 79 (77) - AO CONDE LUÍS DE CARPEGNA


APCV, 287/88

Verona, 8 de Março de 1862


Excelência ilma. e meu caro amigo,

680
Sendo o senhor todo bondade e gentileza para comigo, espero que conceda aos revmos. padres Girelli e
Tomelleri (este último aluno do meu instituto) o mesmo favor que me fez a mim no passado mês de Janeiro:
solicitar de mons. Pacca uma audiência privada de Sua Santidade, para tratarem assuntos da sua ordem. Logo
que tiver um momento livre, terei todo o gosto em lhe mandar uma longa carta em resposta à sua prezada e
gratíssima que me chegou há quatro dias. Os meus melhores cumprimentos à condessa, ao Guido, ao Pippo,
a P.e Luís e a V. Ex.a ilustríssima de

Seu af.mo e indigmo


Daniel Comb. M. A.

N.o 80 (78) - AO CAVALHEIRO CAETANO SASSI


APVC, 287/89

Verona, 8 de Março de 1862


Il.mo cavalheiro,

681
Não duvido que terá recebido uma grande encomenda de pastorais de mons. Canossa, que há dias lhe en-
viei pela rota da Toscana.
Utilizando antecipadamente a bondade que me mostrou em Roma, peço-lhe apoie os dois revdos. pp. mi-
nistros dos enfermos, Girelli e Tomelleri, que vão a Roma por assuntos da sua congregação. Talvez precisem
da sua ajuda em muitas coisas, de que não têm prática aqueles que não tiveram a sorte de nascer e viver na
Santa Cidade. Sem dúvida, o senhor poderá indicar-lhes a melhor maneira de terem acesso às diversas con-
gregações com as quais tenham assuntos para resolver, para conseguir a audiência com o Sumo Pontífice e
para ver as coisas mais importantes de Roma. Sei do seu bom coração, bem como do de seu filho; recomendo
estes padres à sua bondade.
682
O bispo encontra-se muito bem. Falamos amiúde do cavalheiro Sassi, a quem Sua Excelência e eu ofere-
cemos a nossa distinta consideração.
Saúde da minha parte afectuosamente a seu filho e creia que sou com todo o respeito

Seu humilmo serv. e am.


Daniel Comboni
Missionário apost. da África Central

N.o 81 (79) - A P.e NICOLAU OLIVIERI


APCV, 287/90

Verona, 8 de Março de 1862

Rev.mo padre,

683
Há já muito tempo que não tenho nenhuma notícia de P.e Biagio. Sei que saiu do Cairo. O P.e Ludovico
escreveu-me de Nápoles dizendo-me que as três últimas negras chegadas a Roma estão já no colégio da capi-
tal partenopea, com o que me congratulo muitíssimo. Querido P.e Nicolau, será possível que não possamos
realizar uma expedição às costas da África Oriental para resgatar 500 almas? Estou impaciente por vê-lo em
Verona com P.e Biagio para falar sobre o assunto.
684
Os padres Girelli e Tomelleri, da ordem de S. Camilo de Lellis, de Verona, devido a mui santos assuntos
da sua congregação, necessitam de se entrevistar com S. Em.a o cardeal-vigário, Patrizi. Creio que ao menos
o santo purpurado tem influência na Sagrada Congregação dos Bispos Regulares. Por isso atrever-me-ia a
rogar-lhe que, uma vez que é o braço direito de Sua Eminência, tomasse a peito apresentar os ditos bons
padres ao cardeal-vigário, que, sendo todo bondade para as ordens religiosas, poderá favorecer a ordem de S.
Camilo, que há tantos anos vem fazendo um grande bem nas províncias do Véneto.
Reiterando-lhe as minhas súplicas de conduzir estes bons padres à presença de S. Em.a, peço-lhe que saú-
de da minha parte a P.e Biagio e à famosa velha heroína e que rogue a Maria Santíssima por quem se declara
nos Sagdos. Corações de J. e M.

Seu indigmo. serv e am.


Daniel Comboni m.a.

Receba cordiais cumprimentos de P.e Nicolau Mazza.

N.o 82 (80) - À MADRE EMILIE JULIEN


APCV, 287/91

Verona, 8 de Março de 1862

Reverendíssima madre,

685
Espero que tenha recebido a minha carta de Veneza com a minha fotografia e que tenha a consolação de
ver amiúde na sua casa o conde Tomás. Espero também que se tenha restabelecido por completo e que no
próximo Outono possa empreender a viagem a Jerusalém para regressar a Roma ainda como madre geral.
Espero também continuar a receber suas cartas. Que Deus mo conceda.
686
Vou pedir-lhe, madre, um favor que me pode fazer e que é o seguinte: dois padres da Congregação de S.
Camilo de Lellis, os padres Girelli e Tomelleri (este último ex-aluno do meu Instituto), necessitariam de ser
apresentados à Congregação dos Bispos Regulares. A madre pode apresentá-los a qualquer bispo amigo seu,
a fim de que ele os ajude em suas diligências. Eles querem unir as diversas casas de Veneza, agora depen-
dentes directamente de Roma, numa província; ou seja, querem fazer uma província com diferentes casas.
Faça-me o favor de pô-los em contacto com bispos do seu conhecimento. Estas coisas são-lhe conhecidas,
pois fundou tantas casas, especialmente em Roma.
Perdoe-me, madre. Cumprimentos da minha parte à Ir. Sofia; igualmente a mons. Serra, bispo de Perth, e
reze por mim

Seu indigmo. ser.


Daniel Comb.

N.o 83 (81) - AO CARDEAL ANTÓNIO CAGIANI


APCV, 287/92

Verona, 8 de Março de 1862


Eminentíssimo príncipe,

687
A exímia bondade com que V. Em.a me acolheu no passado Janeiro em Roma e o empenho que pôs em
favor das Irmãs Clarissas Sacramentinas, de Verona, anima-me a recomendar à solicitude de V. Em.a
Rev.ma os portadores da presente, os padres camilianos Girelli e Tomelleri, que são enviados a Roma por
causa de assuntos da sua ordem. Têm por objectivo obter da Sagrada Congregação de Bispos Regulares a
faculdade de que as diversas casas religiosas que têm no Lombardo-Véneto e que independentemente umas
das outras são governadas por Roma, sejam constituídas em província, ficando unidas entre si sob as ordens
de um superior provincial dependente do geral dos revdos. padres ministros dos enfermos de Roma. Para este
fim, necessitam de oração, recomendações e ajudas.
688
Os padres da ordem de S. Camilo de Lellis, de Verona, e das nossas províncias, são, como as demais cor-
porações religiosas do Véneto, um exemplo para todos: observam as suas regras com o mais estrito rigor.
Devo dizer, por amor à verdade, que, se em Roma brilha nalgumas almas religiosas a mais esplêndida luz da
perfeição, nas nossas províncias do Véneto, geralmente falando, os religiosos de ambos os sexos observam
as regras com maior perfeição que em Roma e que nas outras províncias da Itália – que visitei na sua maio-
ria. Por isso, a ajuda que V. Em.a Rev.ma prestar com seus conselhos e com a sua protecção, será eminente-
mente recompensada com a satisfação resultante de saber que V. Em.a Rev.ma favorece um bom grupo de
almas justas e santas que encheram as nossas terras de obras benéficas, especialmente no que se refere a diri-
gir e atender numerosos hospitais de algumas cidades lombardo-vénetas. Recomendo, pois, estes bons padres
camilianos à paternal atenção de V. Em.a Rev.ma, na firme confiança de que, graças aos seus conselhos e à
sua guia, triunfarão nos seus nobres propósitos.
689
A madre superiora das Sacramentinas Clarissas de Verona, a quem visitei ontem, manda-lhe as mais ele-
vadas saudações. Peço-lhe desculpa de ter-me atrevido a falar em favor destes meus amigos a V. Emª.
Rev.ma, que tanto sabe destes assuntos. E enquanto lhe beijo humildemente a sagrada púrpura, passo a de-
clarar-me nos Sagdos. Corações de J. e M.

De V. Em.a Rev.ma, Hum.mo., devot.mo e indig.mo serv.


Daniel Comboni, Mission. ap. na África Central
N.o 84 (82) - A P.e LUÍS FRATINI
PCV, 287/93

Verona, 8 de Março de 1862

Meu caro P.e Luís,

690
O senhor dirá que tardo, que não escrevo nunca. Sim, tem razão; mas saberei remediar a tempo a minha
negligência, e o senhor a sua. O objectivo destas poucas linhas é pedir-lhe que, quando puder, como fez co-
migo, leve os portadores da presente, os meus amigos revdos. padres camilianos Girelli e Tomelleri, a ver
algumas maravilhas de Roma. Recomendo-os a sua gentileza. Lembre-se de mim, apresente as minhas sau-
dações e reverências a todos os membros da casa Carpegna e considere-me

Seu sincero amigo


Daniel Comboni, m.a.

Os meus respeitosos cumprimentos a mons. Besi.


O magnífico paramento de igreja oferecido pela Áustria a Pio IX está avaliado em 36 000 escudos e é
obra das jovens do meu Instituto; nele trabalharam também as meninas negras. Se o for ver, terá ocasião de
admirar um magnífico trabalho, todo feito à mão.

N.o 85 (83) - AO P.e GERMAN TOMELLERI


APCV, 287/93 bis

14 de Abril de 1862
[É uma breve nota]

N.o 86 (84) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Collegio Africano – Verona

Verona, 17 de Abril de 1862


Em.o Príncipe,
691
O cónego mons. Polidoro, actual deão da catedral de Verona, ex-confessor de S. Majestade I. R. A. a im-
peratriz Mariana de Áustria, chamado entre nós o S. Ligório de Verona, encontra-se agora, aos setenta e qua-
tro anos de idade, afectado de grave e lenta doença crónica que em poucos meses o levará ao túmulo. Sendo
devotamente dedicado à Santa Sé e ao Sumo Pontífice e desejando ardentemente uma especial bênção do
supremo pastor da Igreja, dirigiu-se a mim, que o fui visitar, para encontrar o canal seguro para obter essa
grande satisfação. Por este motivo, atrevo-me a importunar a bondade de Sua Em.a Rev.ma para que, quinta-
feira, aproveitando a sua ida aos pés de Sua Santidade, se digne pedir-lhe uma bênção para mons. Polidoro, a
qual lhe tornará gozosas as dores da sua avançada idade e da sua extrema doença. Se a tudo isto V. Em. a
acrescentasse uma bênção para o pobre Instituto Mazza, ser-lhe-ia mais grata que todos os elogios que recebe
da imprensa periódica, frequente órgão da mentira.
À espera de uma só linha de conforto para o santo ancião, nosso amigo, que anuncie a bênção que lhe en-
via o Santo Padre, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me com toda a veneração e respeito

De V. Em.a Ilma. e Rev.ma


Hum.mo e indig.mo serv. e filho
Daniel Comboni

N.o 87 (85) - À CONDESSA LUDMILA DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Verona, 1 de Junho de 1862

Nobilíssima sra. condessa,

692
Com a mão ainda trémula e convulsa, porque acabo de descer do púlpito, apresso-me a escrever-lhe este
par de linhas para lhe manifestar a minha enorme surpresa, a intensíssima alegria do meu coração e o meu
mais sentido agradecimento ao acabar de receber a sua estimadíssima carta do passado dia 20, escrita do
ameno lugar de Vigna. Na verdade, sempre tinha o desejo, mas nunca a esperança, de que encontrasse o
tempo e a vontade de me escrever, tendo-me já advertido de que não costuma escrever a ninguém, excepto à
sua piedosa irmã e a algum outro parente próximo. Por isso, ter diante de mim a sua estimada e prezada car-
ta, monumento da doce recordação que guardo de si e de toda a venerada família Carpegna, objecto de tantos
suspiros e doces emoções do meu coração, asseguro-lhe que constitui para mim um acontecimento de verda-
deira alegria, que não acabará mais, e que nunca serei capaz de lhe mostrar suficientemente o meu mais vivo
agradecimento.
693
Sinto que está prestes a ocorrer na dilecta família um acontecimento doloroso, que é a separação por al-
gum tempo do meu querido e inocente Pippo, separação que eu sinto no mais fundo da alma, porque enquan-
to ele estava em Roma podia esperar vê-lo mais amiúde e, em contrapartida, não tenho agora ocasião de ir à
Bélgica. Contudo, penso que, depois de tudo, uma viagem à Bélgica é para mim como o passeio que a sra.
condessa fará amanhã de Vigna até La Sapienza, segundo me escreve; por isso, se ele ficar lá alguns anos,
como o carinho sabe vencer todos os obstáculos, hei-de encontrar a oportunidade de ir também à Bélgica
para o abraçar.
Entretanto, peço-lhe que da minha parte imprima dois afectuosos beijos nesse querido rosto e anuncie-lhe
que, quando eu souber a direcção, lhe escreverei para estabelecer imediata comunicação epistolar entre os
dois, desejoso de ser informado de quanto lhe diz respeito e de lhe fazer sentir o grande afecto que lhe tenho.
Vejo que a senhora e sua família guardam grata recordação de mim. Se dissesse que passa uma hora sem que
eu recorde afectuosamente todos os membros de sua casa, diria uma solene mentira: sempre, sempre et sans
cesse vos trago no meu coração, vos recordo a todos e às vezes, sem dar conta, ponho-me a falar de vocês a
quem me rodeia; serve-me de ânimo e de suave conforto na nossa distância o recordar-vos a Deus no santo
sacrifício da missa, o que não deixo de fazer cada manhã que subo ao altar.
694
Sim, o Deus da paz e da misericórdia não tardará em derramar sobre a nobre família o bálsamo da alegria
e da concórdia e dissipará todas as nuvens com que o inimigo da felicidade humana perturba as delícias de
uma família que é digna de especiais considerações por parte de Deus e da sociedade.
Entretanto, deixe descansar o seu espírito na tranquilidade, na esperança, nas disposições que esse Deus
que olha com especial predilecção e afecto para os quatro membros da querida família. Nenhuma prece sai
do meu coração tão espontânea, fervorosa e cheia de consolação como nos felizes momentos em que cada
dia elevo o olhar ao Senhor para encontrar n’Ele o centro de comunicação entre mim e a sempre amada famí-
lia Carpegna, a qual possui todo o meu coração.
Diz-me também que pelo dia 12 deste mês partirá com o conde e com o Guido para Carpegna. Oh!, ale-
gra-se o meu coração, porque se aproxima de Verona e este faz-me esperar que talvez tal proximidade me
proporcionará a ocasião de fazer uma excursão outonal até lá, porque grande é o desejo que me arde no peito
de ver a todos, de falar longamente, de deleitar-me com a sua querida presença. Quem sabe se Deus não me
tem este consolo reservado! Eu gosto de ter notícias em particular de cada um dos queridos cinco membros
da família. E o bom do Guido só me fala de passagem de alguns; mas eu escrever-lhe-ei a dizer-lhe que que-
ro saber notícias de todos e de cada um e por extenso. Lamento que depois da minha partida de Roma (que
foi porventura a separação mais dolorosa de minha vida, por ter de me afastar dos que me eram queridos e
por certas concomitâncias que eu entrevia) a senhora tenha estado mal.
695
Espero que os banhos de Rimini a restabeleçam por completo. Trate de curar-se totalmente desse pequeno
resto de tosse, que não saberia dizer-lhe se é uma leve irritação na mucosa ou o indício de alguma pequena
infecção do aparelho respiratório. E procure vigiar pela sua saúde e dedicar-lhe especiais cuidados, pois é tão
preciosa para a sua família e para outros. E que faz o meu caro conde Luís? Diga-lhe que o tenho sempre na
memória, que penso nele, que o estimo muito (para isso tenho razões muito poderosas), que lhe dedico um
afecto muito sincero. Se em Maio não tivesse estado enormemente ocupado, ter-lhe-ia escrito; mas desejo
fazê-lo muito em breve. Entretanto, saúde-o da minha parte, enquanto eu rezo por ele. Quanto ao mais, os
meus rapazes e raparigas negros estão bem, menos o Luís, que era o predilecto do Guido e que, por ter cres-
cido demasiado rapidamente, contraiu uma tuberculose que o levará ao túmulo. Comuniquei esta manhã ao
meu superior as suas saudações; ele agradece de coração e retribui cumprimentos. Ele, que é um santo, reza
por si e pela família Carpegna.
696
As nossas 400 raparigas, embora no meio dos mais terríveis apuros destes tempos difíceis, estão bem; e
igualmente estão bem os 200 rapazes do meu colégio, que, dentro de pouco, farão uma função na cidade. Por
outro lado, o nosso superior, já septuagenário, que vive comendo apenas algumas poucas hortaliças uma vez
ao dia, sem nenhuma espécie de fundos, apoiado na Providência, dirige e provê à subsistência desta enorme
quantidade de pessoas, sempre alegre e tranquilo e sempre agradecido ao Senhor. Eu, por agora, estou sem
nenhum destino, pelo que tenho a esperança de que nos vamos ver em breve. Por isso suspira o meu coração.
Cumprimente da minha parte o prof. Mazzoni, do qual guardo agradável recordação; e não me maravilho do
bom resultado das suas operações, depois de ter admirado a sua ciência e perícia, que fazem dele um grande
cirurgião.
De resto, não sei encontrar palavras para mostrar-lhe a minha gratidão ao ver-me recordado por si. Eu cer-
tamente voltarei a escrever-lhe, mas não ouso pedir-lhe que faça o mesmo alguma vez. Longe de crer dema-
siado longa a sua carta, devo dizer-lhe que me sinto tão feliz em ter diante os seus caracteres, que os contem-
plo como um prezado tesouro e quanto mais os vejo grafados até baixo, como Deus quer, tanto mais eles me
são agradáveis, porque mais espontâneos e cordiais. Ah!, por favor, esteja alegre e tranquila. A alegria de ver
um esposo tão solícito para consigo e dois filhos que trouxe ao mundo com amor e que a amam muito mais
que a uma mãe, como a senhora é também mãe sem par para eles, constitui um conforto que deve dissipar-
lhe toda a sombra de aflição. É o que o meu coração almeja.
697
Este passado mês de Maio fiz 33 pregações formais, todas sobre a Ssma. V. Maria e, enquanto exaltava as
suas grandezas, na colecta recomendava todas as noites ao meu numerosíssimo auditório três ave-marias
segundo a minha intenção; e a minha intenção era a felicidade espiritual e temporal da família Carpegna.
Ah!, Maria derramará a torrente de suas bênçãos e o rio da sua paz no coração da venerada condessa Ludmi-
la, do conde Luís e sobre toda a sua querida família.
Lembre-se sempre de mim e aceite as expressões de verdadeira estima e afecto que lhe oferece de todo o
coração

Seu af.mo Daniel C. m. a.

N.o 88 (86) - À CONDESSA LUDMILA DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Verona, 4 de Julho de 1862

Nobilíssima sra. condessa,

698
Que agradecido lhe estou pela sua carta de 1 do corrente! Como satisfaz, senhora, os meus desejos ao fa-
lar-me de si e de todos os membros da querida família Carpegna, à qual quero mais que a mim mesmo! Sim,
venerada sra. condessa: cada vez que a senhora me escreve e também quando o meu querido Guido me es-
creve, asseguro-lhe que é para mim um acontecimento que me serve de total consolação e faz dissipar-se em
mim toda a pena e ansiedade. Dou-lhe graças de todo o coração e não saberia expressar-lhe suficientemente
o afecto que lhe tenho e a todas os membros da sua família. Asseguro-lhe que todas as aflições que agora
oprimem a sua alma, e que benevolamente me expõe, chegam directamente ao mais íntimo do meu coração;
eu quereria não somente partilhar estas aflições (que todas as suas adversidades e da casa de Carpegna são
também minhas), mas até seria feliz se pudesse lançá-las todas sobre mim e sofrê-las eu sozinho.
699
Já pode imaginar com quanto afecto tenho todos os dias a alegria de rezar, especialmente na Santa Missa,
por si e por todos os seus. A dizer a verdade, conhecendo um pouco as coisas de Roma, estou convencido de
que fez muito bem em meter no colégio de Bruxelas o meu querido Pippo e que actuou como uma verdadeira
mãe cristã ao ter sabido sacrificar-se afastando de si o seu querido filho para procurar o seu bem futuro.
Admirável, sra. condessa. Como me dá gosto ver esses seus rasgos de generosidade, que fazem crescer a
estima e o afecto que sinto por si. Até ao ponto que quero congratular-me disso com o sr. conde, a quem
escreverei amanhã. Tenho a convicção – e por isso deve cobrar ânimo – de que fez algo de grande, mesmo
muito grande, dados os obstáculos que teve que superar; a seu tempo será feliz ao ver os frutos deste mag-
nânimo sacrifício.
700
Peço me mande a direcção para me poder corresponder com Pippo, porque desejo incutir nele normas e
recordações que o ajudem a crer na virtude, para honra e dignidade da sua família e da sociedade. Entre pa-
rêntesis, digo-lhe (peço-lhe que guarde silêncio sobre isso, porque por agora será útil e a seu tempo verá os
resultados) que mantenho correspondência com o conde Luís e trocamos algumas cartas. Digo-lhe que até
agora estou contentíssimo. Roguemos, pois, com fervor aos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria. (Repito-
lhe que guarde silêncio. Eu não devia ter-lho dito, mas tenho-a em tanta estima e respeito, que por si não
temo quebrar o segredo.) Sinto muito a doença da sua irmã que vive na Polónia.
701
Esta manhã rezei missa ao Sagrado Coração por si e pedirei orações pela pobre doente ao meu superior e
a outras almas piedosas. Porém, qualquer que seja o desenlace, trazemos connosco, minha respeitável con-
dessa, a cruz de Cristo. Supliquemos primeiro que Deus abençoe a sua alma e depois o seu corpo, dispostos
sempre a aceitar das mãos de Deus o sacrifício. Compraz-me que me fale da sua irmã Anita, de Pélagie, do
seu irmão e de todos os que têm estreito parentesco e amizade consigo e com a adorada família Carpegna.
Porque a todos eles dedico a minha estima por causa da sua relação com o augusto nome de Carpegna. Soli-
cito-lhe a gentileza de saudar em meu nome o seu irmão, Pélagie e os seus quatro bons rapazes. Pélagie es-
creveu-me uma vez depois do meu regresso de Roma e eu respondi-lhe nas passadas festas da Páscoa. De-
pois não voltei a ter notícias das bondosas polacas.
De novo muitas saudações a todos. Mandei uma carta de censura aos meus dois companheiros missioná-
rios, a quem pedi que fossem visitar a família quando chegassem a Roma e depois me escrevessem. Esses
tratantes, ao invés, esperaram vinte dias e depois não me escreveram nada, limitando-se a ver por pouco
tempo a família sem me nomearem ninguém. Também por isso fiquei com grande pena. Porém, devo estar-
lhe agradecido a si, sra. condessa, que me proporcionou um grande conforto ao dar-me notícias suas e dos
outros. Guido, esse malandreco, há três meses que me não escreve; verdadeiramente é um pouco cruel com
um amigo que gosta dele. Passado o transtorno provocado pela partida de Pippo, vai-mas ouvir! Mas falemos
um pouco mais intimamente.
702
Embora eu não tenha sabido mais que dez por cento dos problemas que afligem a adorada família Carpe-
gna, todavia o amor, que é sempre inquieto e que se lança em qualquer sítio onde um raio do bem das pesso-
as amadas o transporta, o afecto – digo eu – revelou-me noventa por cento. Eu calculo tudo. Poderia repetir
ad litteram tudo o que me saltou à vista, me veio à mente sobre si, o conde, Guido, Pippo e P.e Luís. Vejo na
família tribulações não pequenas. Deus quer dar a beber o fel também a quem poderia ser plenamente feliz.
703
Adoremos as disposições de Deus; mas da nossa parte devemos afastar tudo o que possa perturbar a nossa
paz. Ah!, sim, a venerada condessa Ludmila foi quem bebeu o cálice mais amargo! Imagino-o, e imagino
também o heroísmo da sua virtude, os sacrifícios que teve que suportar. Porém, ânimo, minha querida con-
dessa: essas angústias, essas preocupações, essas penas não as sofreu em vão. A conta desses sofrimentos já
está a fazê- la quem os tinha que calcular. É impossível que tantos sacrifícios e tantas penas como os que a
senhora suportou não devam ser coroados por uma era de paz, por uma torrente de consolação que a espera.
Coragem, pois, por agora; esteja tranquila, esteja sempre alegre. Esses dois queridos filhos, aos quais ama
com amor de mãe sem par, devem também confortá-la e fundadamente em todo o acontecimento adverso.
704
O conde – posso dizê-lo com segurança – conhece a sua virtude e sabe que sofreu. Mas basta, porque ago-
ra não quereria ir demasiado adiante. Esteja tranquila, alegre e pense alguma vez também em Verona, onde
há sítios onde se fala de si, de Guido, e dos outros, como em Roma. Alguns amigos meus perguntam-me
amiúde pelos Carpegna. Lembre-se de mim, sra. condessa, que eu sempre me lembro de si e trago o seu ve-
nerado nome e a sua imagem gravados no coração. Reze por mim e que Deus seja o centro de comunicação
entre si, a sua querida família e mim. Peço-lhe que me escreva de novo durante a sua estada em Pesaro e
diga-me quanto tempo a senhora, o conde e Guido ficarão em Carpegna, para eu me poder orientar. Oh!, se
soubesse quanto desejo vê-los! E se no Outono ainda por lá estiverem, é muito provável que lhes faça uma
visita de alguns dias.
Escreva-me, Condessa, que as suas cartas são como verdadeiro bálsamo restaurador para o meu espírito.
E, por favor, lembre a Guido, a quem escreverei depois de o ter feito ao conde, que não seja tão avaro em
escrever, porque as cartas dele são-me demasiado gratas. Se escrever ao Pippo e a P.e Luís, dê-lhe lembran-
ças minhas. Imagino que P.e Luís irá à Exposição de Londres; pois, no regresso, diga-lhe ao ouvido e sugira-
lhe – como o faço a si – que passe por Verona. Porque terei muito prazer em vê-lo e uma longa cavaqueira
com ele poderia ser muito útil para o que roule dans mon esprit.
705
Entretanto, condessa, apresento-lhe a minha veneração. Faça bem os banhos e procure que sejam úteis
para conservar e restabelecer a sua preciosa saúde. Divirta-se, esteja alegre e de bom ânimo; saúde-me o
Pippo e escreva-me, falando-me de si e das suas coisas, que são como minhas, assim como de Guido e do
conde, que têm o meu afecto: enfim, dos quatro, que todos os dias contemplo no meu grande álbum, que
nunca abro, à excepção de três ou quatro vezes ao dia para ver a larga imagem da venerada família Carpegna.
Aceite as expressões da minha estima e respeitoso carinho, com que me declaro de todo o coração

Seu af.mo serv.


Daniel Comboni M. A.

Receba as saudações que neste momento o meu superior pede que lhe mande.

N.o 89 (87) - À CONDESSA LUDMILA DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Verona, 1 de Agosto de 1862

Nobilíssima sra. condessa.

706
Enquanto permanece em Pesaro, quero escrever-lhe mais uma vez, sabendo quão boa e gentil é ao ler gos-
tosamente as minhas palavras. Recebi a sua última preciosíssima do dia 19 passado que, por um lado, me
inundou a alma de imenso prazer e, por outro, me deixou o coração aflito.
Quero dizer-lhe que recebi uma deliciosa carta de Bruxelas, na qual o meu querido Pippo me põe em
pormenor ao corrente da situação actual. Que belo coração tem esse rapaz! Diz-me que, da sua parte, faz
tudo para obter bons resultados e triunfar no seu propósito para dar consolação aos seus pais. Tem tanto ape-
go à sua família que tudo o demais o aborrece; de modo que vive sempre retirado, entregue a seus estudos,
para corresponder com o êxito neles a tantas preocupações de seus queridos pais. Pede que console com al-
guma carta ao papá e à mamã. E como o papá se opunha, quer, com os seus bons progressos, dar-lhe tanta
alegria ou mais do que foi a sua dor ao dar o seu consentimento. Deus abençoe esse bom filho e abençoe a
P.e Luís que cuida dele como um verdadeiro pai! Foi para mim uma grande alegria receber, pela primeira
vez, carta de P.e Luís. Pelos vistos, ficará em Bruxelas por todo este ano. Parece-me estar a ver Pippo tão
dedicado aos estudos, tão desejoso de que tudo vá bem, que este filho, cuja momentânea separação tantas
lágrimas custou, de tal modo consolará o coração de seus bons pais, que honrará a nobre família. Por outro
lado, esse rapaz parece-me tão bem encaminhado, que não contrairá nenhum vício dos que eventualmente
possa haver num colégio militar, e tanto mais que o de Bruxelas goza de boa fama.
707
Alivie-se, pois, o seu coração, minha bondosa condessa, que o seu sacrifício produzirá a felicidade e o
bem dessa alma. Devo confessar também o importante papel que nisso desempenhou o conde. Ele não queria
de nenhum modo dar o seu consentimento, mas acabou por o dar. Lamenta-se, grita, vai murmurando a sua
discordância, mas deixa-o em Bruxelas. De alguma maneira, adapta-se à vontade dos demais. Não a enten-
dendo bem, outro teria mantido firme a sua postura e teria negado a sua aprovação. Mas o conde cedeu e
nisto demonstrou ser um homem que se sacrifica. Coitado! Compreendo todo o esforço que fez e espero que
esteja já calmo. Porque, ainda que não tivesse outros motivos, a irrepreensível conduta do filho, o seu incan-
sável amor e aplicação ao estudo e o seu desejo de corresponder aos vossos sacrifícios deveriam bastar para
consolar um pai.
Confio que os banhos lhe tenham feito bem e que o Outono terminará de restabelecer sua saúde. Estará
consolada pela presença de meu amigo Guido, que, com a sua exuberante fantasia, lançará das praias do
Adriático o olhar sobre aquele tempestuoso mar da Albânia, onde o ano passado suportámos uma feroz tem-
pestade que nos obrigou a procurar refúgio em Corfu. Suspiro por ir passar uns dias a Carpegna, mas ainda
não estou certo de o poder fazer.
708
Os seus gentis convites fazem-me voar até aí: estou impaciente por vê-los aos três. Em qualquer caso, fa-
rei o possível para que o superior me dê autorização. E se, no meu empenho de ir a Carpegna, todos os meus
propósitos falharem, penso roubar os 15 dias que nos dão para irmos aos nossos lugares de origem e voar aos
montes de Urbino e Maceratiani. A minha terra, que fica na Lombardia, junto ao lago de Garda, já me teve o
passado Outono, onde preguei as santas missões. O meu pai, a única coisa que me incita a ir lá, já esteve
comigo 20 dias no colégio no passado Julho. Assim, espero poder efectuar uma rápida escapada a St.o
Arcângelo e, pelo caminho de St.a Marina, empreender a subida dos montes.
Estou muito bem e ocupadíssimo: à parte a correspondência com as missões, a pregação e aulas diárias de
árabe, tenho diversas actividades filantrópicas. A semana passada, mediante uma carta escrita ao imperador
de Áustria, Deus concedeu-ma a graça da libertação de dois presos condenados, que eram inocentes. Reze
por mim, condessa; a senhora tem lugar fixo nas minhas orações, no meu coração. No meio das minhas ocu-
pações, o que me deu mais ânimo foi receber as suas cartas, assim como as do conde, de Guido, de Pippo e
de P.e Luís. Quase todos os dias me chegam cartas das sete partidas do mundo; sei que tenho o afecto de
muitos, especialmente em Verona; mas o meu coração está fixo na boa família Carpegna e não sei porquê.
Recorde-se de

Seu af.mo Daniel C.

O meu superior apresenta-lhe os seus respeitosos cumprimentos e reza por si.

N.o 90 (88) - AO PRESIDENTE DA SOCIEDADE DE COLÓNIA


PARA A AJUDA AOS MENINOS AFRICANOS
«Jahresbericht des Vereines zur Unterstützung
der armen Negerinnen» 12 (1062), pp. 46-68

Verona, 1 de Agosto de 1862

Reverendo senhor,

709
A Divina Providência, que nunca abandona os que nela confiam, dispôs que eu viesse a saber da existên-
cia em Colónia de uma piedosa sociedade que se propõe como fim promover e apoiar a obra missionária do
resgate, educação e instrução dos pobres meninos negros. O P.e Ludovico de Casoria, em Nápoles, como
também o presidente da Sociedade de Maria, em Viena, o sr. Dr. Fr. von Hurter, foram os que me fizeram
despertar a minha atenção.
Quando do meu regresso da África Central, foi-me confiada a direcção da secção do Instituto Mazza onde
se educam e instruem os meninos negros.
710
O rev.mo sr. P.e Nicolau Mazza, faz agora 50 anos (veja-se mais mais pormenorizadamente no nosso in-
formativo anual), fundou um instituto de educação para meninos pobres de eminente talento e provada mora-
lidade, a fim de fazer deles hábeis sacerdotes para o serviço da Igreja ou homens capazes para a sociedade
humana.
A este instituto veio a juntar-se uma segunda criação de P.e Mazza: uma casa que devia servir de refúgio
às jovenzinhas que, sem protecção da sociedade, correriam o risco de perder a sua inocência, para fazer delas
em todos os aspectos excelentes mulheres para a vida civil. Nestes dois institutos encontram-se acolhidos na
actualidade, separadamente, cerca de seiscentos alunos. Os dois institutos não possuem capital e P.e Mazza
sente-se cada dia abandonado ao arbítrio da Divina Providência. Em 1849, a esses institutos juntou-se um
terceiro, cuja finalidade são as missões da África Central. Ele tomou a seu cargo o mantimento, a educação e
a instrução de certo número de meninos negros resgatados, dos quais esperava servir-se mais tarde (segundo
o plano do P.e Ludovico de Casoria) para a conversão dos próprios compatriotas na África.
711
Actualmente temos só 12 meninos negros, que eu mesmo resgatei o ano passado na costa de Zanzibar
(costa oriental da África) e em Adem; além disso, temos 13 raparigas negras que foram trazidas do Egipto.
Agora foi-me confiada a direcção e administração deste Instituto. Com dificuldade consigo viver o dia-a-dia,
tanto mais que, pelos funestos anos de guerra, as fontes de beneficência brotam escassamente por toda a par-
te. Por este motivo, atrevo-me a pedir com a maior insistência à presidência da Sociedade de Colónia que me
proporcione novas ajudas. Sei com quanta abundância ajudam cada ano o P.e Ludovico e o P.e Olivieiri,
ambos meus amigos, com os quais convivi em Nápoles, em Roma e no Egipto; e se me dirijo a essa piedosa
Sociedade é porque me encontro numa deplorável carência.
712
Contudo, antes de decidir se sou digno de ajuda, tenham a bondade de obter informações sobre mim do
presidente da Sociedade de Maria, de Viena, o sr. dr. Von Hurter; de S. Em. a o card. Barnabó, prefeito da S.
Congregação da Propaganda; do P.e Ludovico, a quem já levei em bastantes ocasiões meninos negros; ou do
rev.do Nicolau Olivieri e do rev.do pró-vigário Mateus Kirchner, com quem eu, como missionário apostóli-
co, viajei até ao interior da África.
Deus escute as minhas preces, etc.

Daniel Comboni
Missionário apostólico
Director do Colégio Mazza para os negros

Original alemão
Tradução do italiano

N.o 91 (89) - AO CONDE LUÍS DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Limone, 10 de Outubro de 1862


Meu caríssimo conde,

713
Não quero deixar a minha terra natal, Limone, sem lhe dirigir umas linhas que renovem as minhas especi-
ais expressões de gratidão e façam saber o grande afecto que lhe tenho e à sua estimada família. Sim, querido
conde: desde o momento que deixei Carpegna, não sei passar um instante sem pensar em si e sem ver em si,
em Guido e na condessa, uma fonte da minha felicidade. Não posso demonstrar-lhe com palavras quão pre-
ciosa foi a sua confiança ao admitir que eu tome conhecimento do que acontece na sua família. Mas dei-
xemos agora isto, que será objecto da nossa futura correspondência.
Fico contente em enviar-lhe as minhas mais sinceras felicitações para o dia 18 do corrente, aniversário do
seu faustíssimo casamento com a condessa Ludmila. Que Deus, caríssimo amigo, esteja convosco em cada
instante e vos guie incessantemente pelos caminhos da felicidade, da ordem, da religião! São tema quotidia-
no dos meus suspiros.
714
Transeat sobre todas as coisas por agora e, permita, querido conde, que lhe fale de mim. O vosso avô,
Ex.a Illma., cometeu, como vós me assegurastes, grandes embrulhadas. O senhor mesmo, Excelência tam-
bém Ilma., confessou-me ter cometido algumas torpezas. Mas, se o senhor soubesse! Por minha parte, eu
cometi uma de tal calibre, algo que nunca tinha feito nas minhas longas e difíceis viagens, que me estalará o
coração se não lha contar. No caminho que vai de Rimini ao monte Cerignone, perdi uma bolsa dourada ori-
ental que continha 5 moedas de 20 Fr. e 9 de 10 Fr. Que quer? A alegria de estar entre vós e convosco fez
com que me esquecesse de escrever logo para S. Marino para os procurar. A minha consciência perturbada
pela torpeza desta solene negligência não me deu a coragem de dizer-vo-lo de viva voz. Só nos últimos dias,
quando me vi na necessidade de partir, apenas tive a coragem suficiente para o dizer a Ludmila, que foi para
mim como um anjo tutelar, porque essa bela alma me emprestou 30 escudos. Sim, caro conde, todos fazemos
disparates! Já sabe também a estupidez em que incorri. Agora estou contente. Permita que lhe expresse a
minha estima.
Lembre-se de mim, que me é grato viver na sua memória e declarar-me com todo o afecto
Seu sincero amigo
Daniel

N.o 92 (90) - AO PRESIDENTE DA SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 12 (1862), pp. 49-49

Verona, 22 de Outubro de 1862

Reverendo senhor,

715
Com a presente notifico-o de que, graças à sua bondade e por meio da casa Fratelli Smania, no dia 21 de
Outubro recebi 370 fr. de ouro. Estou-lhe infinitamente agradecido por este amor, plasmado em factos em
favor dos meus negros. E bendigo a Providência que em seus imperscrutáveis decretos nunca abandona os
que só nela confiam. Os nossos meninos negros rezam todos os dias pelos membros da sua pia sociedade.
Este ano morreram na África Central dezasseis missionários, que eu embarquei o ano passado em Trieste.
Educando na Europa e no Cairo meninos negros para os fins da missão, esperamos compensar as duras per-
das de missionários.
Reitero-lhe os meus cordiais agradecimentos e peço a Deus, etc.

Daniel Comboni
Missionário apostólico

P.S. Neste momento devo ocupar-me dos exercícios espirituais; apenas esteja livre, informá-lo-ei ampla-
mente sobre os resultados e progressos dos alunos confiados à minha direcção.

Original alemão
Tradução do italiano

N.o 93 (91) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM S. JOÃO BAPTISTA DE SACO, VERONA
AMV
1863

N.o 94 (1237) - A UM COMENDADOR


APT – Bréscia

Verona, 22 de Abril de 1863


Il.mo sr. comendador,

716
A gentileza e a bondade com que V. Ex.a se dignou receber-me no passado Outono, quando o mui ilustre
cav. Negri, director superior do Ministério dos Negócios Estrangeiros me encaminhou para si, para que lhe
expusesse algumas súplicas minhas em favor e apoio do preclaro arcipreste de Toscolano, tão benemérito
para nós, quer no tocante à religião quer no que diz respeito a pátria, afectado até há pouco de várias manei-
ras pelos abusos episcopais e os acontecimentos que recentemente o têm afligido, depois de várias ameaças
da cúria de Bréscia, com grande pesar da sua culta e numerosa população que merecidamente o estima e
aprecia, impulsionam-me a dirigir-lhe de novo e por escrito os meus pedidos, a fim de que se digne acolher
favoravelmente as queixas que o dito digníssimo arcipreste, P.e Pedro Grana, se dispõe a fazer-lhe e que
respeitam ao que é competência do departamento de V. Ex.a Il.ma, suplicando-lhe ao mesmo tempo se sirva
protegê-lo e mostrar-lhe por escrito que acolhe propiciamente as suas súplicas e o resultado das mesmas.
Agradecendo-lhe, rogo de sua magnanimidade perdoe os incómodos que lhe causo, na certeza de que en-
contrará no meu recomendado a gratidão e correspondência que é própria de uma pessoa bem nascida e na-
tural de uma terra tão generosa.
Aproveito esta ocasião para o saudar e declarar-me com todo o respeito

De V. Ex.a ilma. hum.mo e dev.mo serv.


Daniel Comboni, miss. ap. da África C.

N.o 95 (92) - AO CÓNEGO JOÃO C. MITTERRUTZNER


ACR, A, c. 15/60

Verona, 10 de Maio de 1863


Il.mo e mui rev.do senhor,

717
É necessário que desta vez peça perdão pelo meu excessivo atraso em comunicar-lhe tanto a recepção das
cartas geográficas, que muito lhe agradecemos, como por não lhe ter podido enviar até agora as fotografias.
Logo que recebi a sua primeira carta, mandei um clérigo fotógrafo do nosso Instituto ao estúdio de Lotze,
com o dinheiro necessário para conseguir a foto. Lotze pai pôs-se a procurar entre os negativos, mas ao não
encontrar o seu, decidiu esperar que voltasse o seu filho, que estava ausente, e que foi quem lhe tirou a foto-
grafia. Entretanto vieram as festas pascais e eu, depois de fazer os sermões da Quaresma em S. Zeno e termi-
nada a oitava da Páscoa, fui descansar um pouco à minha terra, na Lombardia.
718
Tendo regressado para o mês de Maria, em que prego em St.a Anastásia, mandei o dito clérigo pedir ao
filho de Lotze que procurasse o negativo. Enquanto eu estava à espera das seis ou sete cópias, soube só on-
tem, depois de perguntar, que o dito clérigo, P.e Bettanini, já foi, devido a doença, para sua casa, em Veneza;
assim, eu mesmo hoje fui ter com Lotze e soube só agora que nem sequer o filho tem o negativo, porque foi
destruído. Esta é a verdadeira história da causa do meu atraso. Em todo o caso, confesso-me culpado, pois
devia escrever a acusar a recepção da sua carta, do dinheiro e das cartas geográficas; mas espero um benevo-
lente perdão, prometendo que doravante porei mais empenho em escrever. Quanto às fotografias, vou preo-
cupar-me em tirá-las de um álbum meu, onde o senhor está vestido de árabe e quando estiverem prontas
mando-as.
719
Perdão, perdão: lamento muito não ter sido merecedor da sua indulgência e ter abusado da sua bondade.
O superior, depois de seis meses de pouca saúde, encontra-se um pouco melhor. Espero que o senhor esteja
bem. Os africanos estamos bem e a trabalhar, graças a Deus, porque, à parte as multíplices ocupações, P.e
Beltrame e eu rebentamos com o peito a pregar. Aceite as saudações especialíssimas do meu bom velho que
tem tanto amor ao piedoso Pio, que desejaria morrer por ele. Não sabemos nada de África; só que o Ir. José
está de regresso à Europa. Recorde-me na santa missa; receba de todos nós os mais cordiais cumprimentos.
Apresente saudações respeitosas ao santo bispo de Brixen e creia-me como me declaro para toda a vida, nos
Sagrados Corações de Jesus e de Maria

Seu af.mo amigo


Daniel Comboni

N.o 96 (93) - À CONDESSA LUDMILA DE CARPEGNA


AFVG

Verona, 15 de Março de 1863

Minha nobre senhora condessa,

720
A infinita majestade de Deus, cuja natureza é a plenitude do ser que tudo criou e não precisa absoluta-
mente das coisas criadas; esse Deus poderoso e terrível que realiza maravilhas no Céu e na Terra, que cami-
nha sobre o dorso dos ventos e faz dobrar as colinas do mundo sob os caminhos da Sua eternidade, que no-
meia as coisas que não são como as que são, que tudo gera com a palavra da sua virtude, que faz um gesto e
que o universo se inclina perante o seu gesto, que toca os montes e os montes fumegam, que olha a terra e a
terra palpita, que grita ao mar e o mar se retira espantado; sabedoria infinita que tudo vê na vertigem do futu-
ro; que tudo penetra nos recantos do presente; perscrutador de corações que escreve e imprime a caracteres
indeléveis o diário da vida humana; este Deus providente e misericordiosíssimo em sua imensa caridade
tinha estabelecido, entre seus decretos eternos, que no belo mês de Maio, que é o sorriso da natureza, se es-
crevesse, há mais de 30 anos, no livro da vida o nome venerado de uma alma predestinada; que no dia 21
viesse a respirar sobre a terra os primeiros hálitos de vida nas imensas landas do gélido setentrião; e que essa
alma, abandonando depois, por disposição da Providência, a alegria das regiões pátrias, viesse ao centro do
catolicismo abjurar as falsas doutrinas de Fócio, para inclinar com prazer a fronte perante o túmulo do pes-
cador da Galileia e consumir seus dias entre gozos e sofrimentos ao serviço do Senhor.
721
Senhora condessa! O dia 21, aniversário do seu precioso nascimento, é dia bendito, dia santo, dia de pre-
destinação, que recorda a misericórdia de Deus. Pelo que, se Deus me der vida, me alegrarei de participar
também eu na festa com que a querida família Carpegna celebrará o seu felicíssimo nascimento. E como eu
estarei longe de Roma e não poderei participar pessoalmente na alegria da família, não obstante, imagino que
vou participar nessa festa como se estivesse presente; porque Deus, que é o centro de comunicação entre
nossos corações, que nos une, ainda que distantes, com o sagrado vínculo da mais leal amizade, do mais vivo
afecto, acolherá as minhas felicitações e parabéns, que são expressão do que com o coração inteiro lhe desejo
para toda a vida. E para que estes meus sentimentos sejam santificados pela religião, nesse dia faustíssimo eu
celebrarei o Santo Sacrifício ao Sagrado Coração por si, a fim de que a Providência se digne derramar sobre
a sua cabeça a torrente das suas divinas graças, o rio das suas terrenas bênçãos.
722
Aproveito esta ocasião para lhe pedir que quando lhe for cómodo e sempre que não prejudique a sua sa-
úde, me escreva longamente sobre si e sobre a família e acerca da cronologia deste ano. Sei que tenho que
escrever-lhe muitas coisas, também em resposta às suas queridas cartas, as últimas suas que recebi este ano,
que me são tanto mais preciosas quanto foram por si escritas quando o seu estado de saúde era pouco satisfa-
tório; mas não posso fazê-lo de seguida, pois estou ocupadíssimo. Lembranças, com toda a efusão do cora-
ção, ao meu querido conde, a Guido, a P.e Luís, a Manucci, aos familiares, a Mazzoni, etc., etc., enquanto no
meio das minhas quotidianas pregações tenho o prazer de me manifestar «eternellement»

Seu devotíssimo
Daniel
N.o 97 (94) - A P.e PEDRO GRANA
ACR, A, c. 15/44

Verona, 19 de Maio de 1863

Meu caro P.e Pedro,

723
À malandreca da Elisa pedi-lhe que se informasse da moça do advogado Bernardi, agora residente em Sa-
ló, mas ainda não recebi nada. Paciência! Peço-lho a si, quando lhe calhar.
Mando-lhe a fotografia de Passaglia. Lembro com muito agrado o belo dia passado com os toscolaneses e
com o seu digno pastor.
724
Fazendo apelo à sua amizade, venho pedir-lhe algo urgentíssimo, que deve tomar a peito como se fosse
sua ou mais. Em Março último mandei despachar por correio, em Bogliaco, uma encomenda que eu dirigia a
mons. Limberti, arcebispo de Florença. Essa encomenda continha os documentos e escritos da defunta mar-
quesa de Canossa, fundadora do Instituto da Caridade, que seu neto, o bispo de Verona, me confiou para que
os enviasse para Roma a fim de se dar início à sua causa de beatificação, ela que morrera em 1835 em odor
de santidade. Já vê que se trata de um assunto grave. Pois bem, a encomenda não chegou a Florença e o ar-
cebispo escreve-me a dizer que talvez algum maldito polícia italiano tenha querido fazer figura, tentando,
inutilmente, fazer-lhe mal. O pacote foi entregue em Bogliaco, como verá pelo recibo e como consta também
do recibo da agência que há em Limone.
725
Eu agora quero oficiar para as agências. Depois, caso não o encontre, recorro ao ministério e vários irão
parar à prisão, porque eu mesmo farei passar todos os postos de Bogliaco a Florença. Escrevi ao Ministério
de Turim e o cav. Rizzi respondeu-me que primeiro obrigue o posto de correios de Bogliaco a reclamar em
linha recta até Florença. Se nada se conseguir, o ministério ordenará o inquérito ex officio. Aqueles estúpidos
de Limone, para não gastar oito francos, dirigiram-se à Recovagem Mazzoldi, a qual talvez se sirva da Fran-
chetti e não do correio estatal para a distribuição da correspondência. Muitos sofrerão, se não encontrar a
minha encomenda! Já sabe que tenho as mãos compridas e que não me assustam nem as distâncias nem as
despesas.
726
Peço-lhe, pois, que vá o senhor mesmo ou que encarregue do assunto uma pessoa de confiança, por ex.
e
P. Bortolino. Solicito-lhe, dizia, que vá a Bogliaco com o recibo, aqui incluído, ter com João Bertamini e
lhe peça que imediatamente se ponha a percorrer em cadeia, um por um, todos os postos até Florença para
localizar a encomenda; mas que o faça rápido e sempre socorrendo-se dos respectivos registos. Se me fizer
este favor e me informar com presteza do êxito, ficar-lhe-ei sumamente agradecido. Portanto, deixo-lhe o
assunto entregue. Eu caminho sobre brasas e ainda não disse nada ao bispo. Espero por resposta. Adeus.
727
Saudações a Elisa, ao francês, ao presidente da Câmara e a todos os bons conhecidos de Toscolo, especi-
almente aos sacerdotes. Recordações também à sua empregada; considere-me sempre de coração

Seu af.mo P.e Daniel

O recibo incluído, após o ter mostrado à Agência Mazzoldi, guarde-mo.

N.o 98 (95) - A P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/45

Verona, 27 de Maio de 1863

Meu estimado P.e Pedro,

728
Deu-me uma grande alegria com a sua carta ao assegurar-me que a minha encomenda não se perdeu. Fez
bem em selá-la e espero que já esteja nas mãos do bispo. Porém, quero que me mande o recibo. Quanto ao
dinheiro do selo, reembolsá-lo-ei na próxima ocasião. Convença-se porém, que o arcebispo não o recebeu e,
se acaso a encomenda chegou a Florença, o seu pessoal recusou-a. Mas a encomenda foi desviada, porque,
de contrário, não compreendo como é que estava em Turim, quando devia ter voltado a Bogliaco. Obrigado
de coração. A pupila de P.e Castelini está doente. Espero que se cure. Mas não me lembro se devo continuar
por sua conta a fornecer-lhe dinheiro. Até Março dei-lhe um florim. Em Abril e Maio duas libras austríacas.
Pergunte, por favor, a P.e Bartolo se devo continuar, porque entre tantas preocupações não me lembro das
ordens recebidas. Lembre a Elisa que me dê essas informações, porque se deixarmos as coisas para as calen-
das gregas, é tudo inútil.
Lembre-se de

Seu af.mo am.


Daniel

N.o 99 (96) - A P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/46

2 de Junho de 1863

Breve nota.

N.o 100 (97) - A P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/47

Verona, 8 de Junho de 1863

Meu querido P.e Pedro,

729
Até 5 do corrente, o arcebispo de Florença não recebeu a minha encomenda. O próprio arcebispo me es-
creveu a dizer que nunca recusou nada que lhe fosse dirigido. É homem de grande caridade. Por meio de um
amigo meu de Florença fiz averiguar nos postos de correio e de recovagem se alguma vez chegara uma en-
comenda dirigida ao arcebispo e disseram-lhe que não. Já vê, amigo P.e Pedro, a impostura dos senhores
Mazzoldi. E agora pergunto-lhe a si: porque é que a encomenda, em vez de retroceder para Bogliaco, de
onde saiu, foi levada para Turim? Porque – respondo – houve entre os empregados algum amigo de Satanás,
que, para ganhar o favor do Governo, cometeu um grave abuso, violando a segurança do correio. Mas o Go-
verno foi mais prudente e delicado e parece, se é verdade o que me escrevem de Turim, que a encomenda
está intacta. De qualquer modo, preciso do recibo que lhe enviei a si e que me foi passado em Bogliaco, o
recibo de franco e meio que deram a P.e Bartolo; com eles e com o outro que tenho vou em seguida a Turim
e resolverei a questão.
730
Há dois meses que fiz o envio, antes três, e ainda não está em Florença. Por isso, por favor, mande-me es-
ses dois recibos. Desculpe por tantos incómodos. O arcebispo está surpreendido por se recorrerem a estas
armas vis. A minha encomenda vale mais de um milhão, pois contém os documentos de uma santa, como o
era a marquesa de Canossa. Alguém terá que relatar as coisas ao Governo italiano; e se a causa não é prote-
gida como eu quero, a França assumirá a tutela. Há-de desmascarar-se o canalha que ousou retardar o envio.
731
Espantam-me os empregados da Recovagem Mazzoldi, a qual goza de crédito bem merecido pela rapidez
e bom serviço! Algum deles vai para a rua, pois eu, de certeza, não me calo, e tenho dinheiro para enfrentar o
que for.
732
Isto digo-o a si: se a encomenda chegar e o arcebispo mo comunicar logo, então, em vez de me dirigir
imediatamente ao ministério, irei aos pontos de expedição. Mas a esse sem-vergonha quero encontrá-lo. En-
tretanto, por favor, avise o empregado de Bogliaco que se apresse a reclamar pela cadeia de expedição, a fim
de que a encomenda vá para o seu destino e nos saibam dar uma resposta não mentirosa, como a de que o
arcebispo o recusou, mas verdadeira, porque eu não vou em cantigas!
Cumprimentos a P.e Bártolo e a Elisa e considere-me

Seu af.mo amigo


P.e Daniel

N.o 101 (98) - A P.e PEDRO GRANA


ACR, A, c. 15/48

Verona, 12 de Junho de 1863

Meu caríssimo P.e Pedro,

733
Ontem escreveu-me o arcebispo de Florença, dizendo-me que recebeu a encomenda que trouxe louca tan-
ta gente e especialmente a mim. Descobri como se deu o atraso. Já tenho debaixo de olho quem mandou a
encomenda para Turim; e como em parte teve malícia e em parte ingenuidade, acabando por ser sincero,
perdoo tudo e dou por encerrado o assunto. Só devo dizer em abono da verdade que a Agência Mazzoldi
efectuou com a maior fidelidade, como sempre, o regular envio; e por isso, se o senhor reclamou a encomen-
da, conforme lhe escrevi, suspenda a questão, porque tudo chegou ao seu destino, É certo que o arcebispo
recusou a primeira vez a encomenda; porém, nas circunstâncias em que se encontra, «não sabendo eu (são
suas palavras) que ia receber nenhuma encomenda desse lugar e ao ignorar o seu conteúdo, por não acreditar
no que se encontrava escrito na folha de envio, ou seja, que havia dentro alguns Agnus Dei, suspeitei que se
tratasse de alguma velhacaria ou engano e decididamente recusei-o». A falha, porém, foi minha, pois em vez
de enviar previamente uma carta ao arcebispo, avisando-o de que ia receber a encomenda, escrevi a um ami-
go meu de Florença, pedindo-lhe que o dissesse ao arcebispo e o muito simpático não o avisou. Eu tinha
escrito depois ao arcebispo dentro da encomenda. Fiat. Tudo passou.
734
Diga a P.e Bartolo que tudo se arranjará. Até Março, inclusive, entreguei à sua recomendada um florim;
depois, duas esvâncicas cada mês. Eu escrevia-lhe a ele, mas não tenho tempo e o senhor está mais à mão
que o correio. Entregue-lhe este santinho e diga-lhe que reze por mim. Agradeça muito a Elisa pela sua ad-
mirável gentileza em me proporcionar as informações pedidas. Se todos os meus correspondentes fossem
assim, poderia retirar-me para o tesólico vale (Teseul), onde respirei os primeiros hálitos de vida e levar uma
vida solitária e de anacoreta, porque não teria nada que fazer no mundo.
Recorde-se do seu

Sinceríssimo amigo
P.e Daniel

N.o 102 (1193) - A P.e AGOSTINHO TURRINI


ACL

13-06-1893

Autógrafo numa estampa.

N.o 103 (99) - AO CONDE GUIDO DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Verona, 11 de Julho de 1863


Caríssimo Guido,
735
Oh, que doce alegria inunda o meu coração ao ler a tua estimada carta recém-chegada de Carpegna! En-
tão, em breve vou poder abraçar-te? É certo? Estou a sonhar ou vai ser uma realidade, uma grandíssima feli-
cidade? Oh, querido Guido, não me defraudes. Creio que virás; não vai ser um sonho, não. E agora mesmo
passo a explicar-te como se vem de Bolonha para Verona. Se tomares a rota Ferrara-Rovigo-Pádua-Verona, é
a mais curta e um pouco mais económica, mas pouco. A rota de Milão é algo mais cara, mas mais cómoda e
mais longa. Ao dizer curta e longa refiro-me à distância, pois quanto ao tempo são iguais; portanto, faz o
que quiseres. Porém, eu aconselhar-te-ia a de Milão, porque é sempre de comboio, enquanto entre o Pó, Ro-
vigo e Pádua viaja-se em diligência. Caro Guido, vem, vem! E se receberes a nota que te mandei de Roma,
rasga-a, porque escrevi aquilo pensando que, como me escreveste, vinhas a Verona depois do teu regresso da
Bélgica.
736
Portanto, fico à tua espera. E se pudesse saber o trajecto que vais realizar, iria receber-te à estação: Porta
Nova, se de Milão; Porta Vescovo, se de Pádua. Não te vou repreender pelo teu longo silêncio, porque a tua
vinda a Verona cura todas as feridas e elimina todas as queixas. Por isso veni, dilecte mi, sponsa mea, amica
mea, surge et veni.
Cumprimentos ao Gabriel, ao pároco, a P.e António, a Ducci et omnes, etc., e considera-me

Tuissimus in corde
Daniel

N.o 104 (100) - À CONDESSA LUDMILA DE CARPEGNA


AFVG
(?) Agosto de 1863

Minha bondosa e venerada condessa,

737
Ainda que a estas horas Guido tenha escrito, visto que eu lhe entreguei no meu pequeno quarto pena, pa-
pel e tinta (menos pó secante que a si não agrada e com razão), contudo, tendo recebido a sua grata, gratíssi-
ma carta do dia 7 do mês passado e terminados esta tarde os meus fatigantes trabalhos de pregação, apresso-
me a dar-lhe notícias do Guido. Eu mordo agora os dedos por não lhe ter escrito, como queria, logo que che-
guei da estação do comboio, à qual acompanhei o meu bien ami! Posso dizer-lhe que nunca na minha vida vi
o Guido tão gordo, corado e de aspeco saudável, nem em Roma, nem em Carpegna, nem no Egipto, nem em
Trieste, e tendo-me eu mostrado maravilhado, o malandraco acrescentou: «Viste, meu caro, como sem os
teus remédios eu estou bem e engordo?» Bem – respondi-lhe – desejo que todos os meus maus agoiros sobre
ti resultem assim. Verdadeiramente o malandro está muito bem e de um humor amabilíssimo; deixou entre
nós uma maravilhosa e inesquecível recordação e o seu nome estará para sempre no coração dos meus cole-
giais. Apresentei-o ao meu superior, P.e Mazza, homem santo, douto, de uma faculdade intuitiva tão admirá-
vel que conhece um homem à primeira vista; viu nele o mais puro fundo de religião católica, um engenho
extraordinário, uma visão e capacidade de conhecer as coisas e o mundo superior à sua idade, sensato, ma-
duro e uma das melhores esperanças para a sociedade.
738
P.e Mazza nunca se enganou em seus juízos; além disso, falou assim não só na minha presença, mas dian-
te de todos os outros sacerdotes. E P.e Mazza é um santo dos mais extraordinários pela caridade e penitência;
é esforçado defensor do poder temporal, assim que não posso compreender como é que Guido é mal julgado
por alguns benditos romanos. Gostaria que me aparecessem pela frente esses tais, que eu os ensinaria a julgar
melhor e dar-lhes-ia boas lições do Evangelho, de caridade cristã e de humildade. Também o apresentei a
meus companheiros, a quem não sou digno de atar os cordões dos sapatos e que são profundos conhecedores
da literatura e das ciências divinas e professores no seminário e nos liceus; ficaram assombrados de ver reu-
nidas num jovem tantos conhecimentos, especialmente de literatura clássica. E alguns, a quem eu talvez já
tinha cansado por amiúde lhes descrever Guido como erudito e provido de mil outras qualidades, tiveram que
me confessar depois de terem passado algumas horas com ele: «Não só conhece a literatura, como também já
é um autor graúdo. Tu tinha-lo louvado muito, mas nós encontramo-lo muito superior aos teus louvores, pois
disseste menos do que ele é na realidade».
Em suma, estão enamorados e pasmados com o Guido e agora não fazem outra coisa senão falar dele. E
bastantes homens importantes, como um Martinati, um Angeloni, etc., perguntaram-me porque não os avisa-
ra da vinda de Guido; com o pretexto de fazer-me uma visita, teriam acudido a conhecer o nobre e admirável
romano que veio honrar-me e fazer-nos tanto bem com a sua grata presença. Admiraram também a sua admi-
rável condescendência, dignando-se tratar com gente de classe humilde como nós, vendo nele quem realmen-
te é: o primogénito da ilustre família dos condes de Carpegna e príncipes de Scavolino. Quando recebi a
carta que Guido me escreveu de Carpegna, pus à disposição dele o meu quarto, que é o menos mau do pau-
pérrimo lugar onde resido; P.e Mazza autorizou-me isso de boa vontade. Porém, tendo-o sabido P.e Beltra-
me, director dos sacerdotes, que esteve em Roma em casa dos Carpegna, falou com os outros e disse-lhes
que se tratava de uma alta personagem, de um patrício romano e aperceberam-se de que teria sido uma ver-
gonha fazer vir uma pessoa nobre para a alojar numa pobre casa.
739
Eu, que conheço o Guido, a sua bondade e condescendência, opus-me a todos, dizendo que ele estivera no
Oriente também com os frades (embora eles, em comparação connosco, sejam riquíssimos); porém, foi tudo
inútil. Concluíram que era afronta submeter uma alta personagem a tanta miséria e a um albergue tão vil
como é o conjunto das nossas casitas, que, à força de sebes, foi convertido num instituto cheio de veredas e
passeios. A senhora condessa pode bem imaginar o desgosto que senti ao conduzi-lo a um dos principais
hotéis de Verona, no qual foi devorado pelos mosquitos, mas onde não esteve mais que duas brevíssimas
noites. Pode imaginar quanto aquilo me entristeceu, depois das gentilezas que recebi na casa Carpegna por
parte de todos e do conde Luís, que trarei sempre gravadas no coração. Contudo, tirando essas breves noites
e hora e meia pela tarde, quando eu ia pregar, gozei continuamente da companhia do seu Guido, mostrei-lhe
os meus institutos e quanto de bom há em Verona.
740
Oh, minha boa condessa! A partida do Guido deixou-me uma verdadeira ferida no coração, quase igual à
que me produziu a minha partida de Carpegna no ano passado e que ainda me dura; sofri então mais que
aquela vez que abandonei os sagrados lares pátrios para ir para o Centro da África. Mas basta, porque temo
que o pequeno ser que traz dentro de si proteste. Entretanto diga ao meu estimado e venerado conde Luís que
exulte e se orgulhe de ter um filho que é a sua honra e a glória da sua casa e que também será a glória de
Roma e da Itália, se Deus, como espero, lhe der saúde. Diga-lhe centenas de coisas da minha parte; que lhe
entreguei a sua carta e que lamento imensamente que esteja indisposto. Apresente-lhe as minhas saudações
mais cordiais. E, embora com esta me dirija também a ele, diga-lhe que gosto dele como de meu pai e que,
logo que tenha um pouco de tempo, desejo escrever-lhe. Oh!, o Céu abençoe os dois! Rogo-lhe, senhora
condessa, que não me escreva mais antes de dar à luz; mas, depois do parto, quando estiver restabelecida e o
puder fazer sem perigo, então sim, por favor. Entretanto dar-me-ei por satisfeito se conseguir saber notícias
suas por outro lado. Não podendo ajudá-la agora mais que com a oração, tenha a certeza de que, embora
grande pecador, rezarei e celebrarei um bom número de missas por si até me chegar a notícia do felicíssimo
parto.
741
E agora deixo-a; quero escrever ao conde. Cumprimentos a Mazzoni e a Manucci. Coragem na ausência
de Guido; o anjo tutelar acompanha-o amorosamente. Com a alegria de reverenciá-la e saudá-la com todo o
coração, declaro-me eternamente

Seu af.mo Daniel

P. S. O meu superior apresenta-lhe os seus respeitosos cumprimentos; o mesmo os meus companheiros


missionários.

N.o 105 (101) - AO PRESIDENTE DA SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 11 (1863), pp. 59-76

Verona, 4 de Outubro de 1863

742
Na esperança de que tenha recebido a minha carta de 29 de Setembro, na qual prometia comunicar-lhe os
progressos dos nossos jovens negros e do nosso esforço pela sua educação, apresso-me a expressar-lhe os
meus sentimentos de gratidão aos sócios da Sociedade de ajuda aos pobres negros. Em primeiro lugar, dou-
lhe informação sobre o Instituto de meninos negros e depois sobre o das meninas negras.
743
No Instituto para os meninos negros estão agora acolhidos 11 rapazes:

1) João Faragiallah, de uns 13 anos, nascido em Malamoh, entre os povos Gallas.


2) Salvador Badassa, de 12 anos, nascido em Oromoh, entre os Gallas.
3) Pedro Bulloh, de 12 anos, nascido em Goragui, entre os Gallas.
4) Baptista Olmbar, de 13 anos, nascido em Kafa (Galla).
5) António Dobale, de 11 anos, nascido em Marago (Galla).
6) Caetano Baratola, de 13 anos, nascido em Maggia (Galla)
7) Francisco Amano, de 12 anos, nascido em Kafa (Galla).
8) José Ejamza, de 9 anos, nascido em Maggia (Galla).
9) Miguel Ladoh, de 16 anos, nascido em Gondokoro, entre os Bari (4o 40’ de lat. N.), junto ao Nilo
Branco.
10) Fernando Said, de 17 anos, nascido em Tegali (11o de lat. N.), junto ao Nilo Branco.
11) Francisco Schubbe, de 14 anos, nascido em Gondokoro, entre os Bari.
744
Os oito meninos Gallas trouxe-os eu para Verona das Índias (orientais) em 1861. Miguel Ladoh veio o
ano passado com P.e João Beltrame. Fernando Said veio em 1853 com o P.e Jeremias, de Livorno, missioná-
rio franciscano no Egipto. Francisco Schubbe chegou de África só o mês passado com o sr. Francisco Mor-
lang, missionário apostólico. Sobre ele não posso dar-lhe informações, pois ainda não começámos a educá-
lo. Concretamente, encontra-se ainda em Bressanone com o sr. Morlang que o trará para Verona até finais
deste mês.
745
Quanto a Fernando Said, limito-me a comunicar-lhe que, depois de ter sido convenientemente instruído
na religião, na história da Igreja, na matemática e nas línguas italiana e árabe, agora trabalha na agricultura e
como sapateiro e na próxima expedição partirá para África. Infelizmente também lhe posso dizer pouca coisa
sobre outro rapaz negro, Luís Maraghi, de 12 anos, de Marago, filho de um dos mais terríveis chefes gallas,
que, além de uma inteligência destacada e uma extraordinária pureza de coração, tinha uma maravilhosa
beleza e uma abnegação heróica. Trouxe-o comigo de Adem, onde era escravo de um homem de negócios de
Goa. Num ano tinha aprendido bem o árabe e o indiano e bastante bem também o italiano; era o primeiro da
escola. Depois morreu no passado mês de Julho, depois de 4 meses de doença. Nunca conheci uma alma que
tanto desejasse padecer e que aspirasse tanto a sofrer as dores do nosso Salvador. Morreu como um anjo,
depois de ter incitado de uma maneira comovente os seus irmãos a implorar de Deus a conversão da África.
746
O fundador dos nossos Institutos, P.e Nicolau Mazza, criou em Verona em 1837 uma obra para meninos,
na qual acolhe os meninos pobres que por falta de meios não podem receber uma educação completa. Eles
devem ser absolutamente pobres e ter uma excelente inteligência, critério sólido, bom coração e bons costu-
mes. A tais meninos proporciona-lhes uma instrução completa, conforme a sua vocação, que eles devem
escolher deliberadamente e por si mesmos, e mantém-nos e educa-os até ao momento em que se integram na
sociedade para trabalhar como sacerdotes ou como médicos, advogados, engenheiros, pintores, escultores,
etc. Já tivemos assim várias centenas de sacerdotes, professores, juristas, engenheiros, etc., que trabalham
para si, para a sua família, para o Estado e para a Igreja. Alguns, por seu próprio desejo, até foram enviados
como missionários para a África Central.
747
Um pouco mais tarde, teve lugar a fundação do Instituto para as Raparigas, que são muito pobres e cor-
rem perigo de perder a sua inocência. Nele são formadas como hábeis donas de casa. Às que têm aptidão
para isso é também ministrado o ensino de trabalhos manuais femininos, como bordar, fazer arranjos de flo-
res; ensina-se-lhes também pintura, matemática e línguas estrangeiras. Os nossos trabalhos em seda e os
nossos bordados receberam em 1855 a medalha de primeira classe na exposição de Paris. Os paramentos
para a missa que o imperador e a imperatriz da Áustria ofereceram o ano passado ao Santo Padre foram pre-
parados, por encomenda da imperatriz, no nosso Instituto. Estão decorados com 14 quadros de Rafael e de
outros mestres clássicos e estão confeccionados na maneira mais perfeita com seda Nadelin. «La Civiltà
Cattolica» e «L’Armonia» avaliam esses ornamentos em 36 000 táleres. Também as meninas negras mostra-
ram nesta bela obra a sua habilidade artística.
No Instituto masculino há agora 184 rapazes e 32 clérigos, que são os que já têm uma ordenação eclesiás-
tica. O Instituto feminino conta com 412 raparigas. Toda esta gente é mantida pela caridade dos fiéis, que o
nosso fundador tenta atrair dia após dia. Doutro modo não temos nada, nem propriedades, nem capitais para
manter com vida os Institutos.
748
Estes dois institutos deram depois origem a um terceiro – o orientado para a missão na África Central. P.e
Mazza tinha enviado muitos sacerdotes do seu Instituto à África Central. Mas tendo-se apercebido bem cedo
que os missionários, que a custo suportavam o clima, tinham que ser ajudados nos seus trabalhos pelos indí-
genas, tomou a decisão de fundar na Europa dois Institutos orientados para este fim: um para os rapazes ne-
gros e outro para as raparigas negras. Posto em execução este plano, confiou a direcção dos rapazes à direc-
ção do masculino e confiou a direcção das raparigas à do Instituto feminino.
Estes meninos negros devem ser instruídos na religião, nas artes, na agricultura e, especialmente, em tudo
o que é necessário para a vida. Quando estes jovens tiverem adquirido uma sólida formação, serão enviados
para a África Central, onde ajudarão os missionários na propagação da fé.
749
Quanto aos negros que mostram vocação para o estado eclesiástico, são instruídos em tudo aquilo que po-
de fazer deles bons sacerdotes; porém, a ordenação sacerdotal só a recebem depois de terem passado na Áfri-
ca sete ou oito anos. Depois destas observações preliminares, passo agora a mostrar os progressos dos jovens
negros.
750
Os oito rapazes gallas, que sabiam a sua língua e a abexim, e que durante a sua estada na Índia e em
Adem haviam aprendido também o indiano, tinham de aprender, além disso, outra língua que se conhecesse
no nosso instituto. Por isso, apenas chegaram comigo a Verona, tive de tratar de lhes ensinar o árabe. Assim,
dedicámos o ano passado ao ensinamento da religião cristã, que ministrávamos em língua galla e em abexim
ou em indiano, conforme os rapazes podiam entender ou nós fazer-nos entender por eles; ao mesmo tempo
dedicámo-nos ao ensino da escrita árabe e da língua árabe vulgar, como é falada nas regiões do Nilo, e ao
ensinamento dos princípios fundamentais do árabe escrito. Tinham cada dia cinco horas de escola e outras
cinco de estudo individual; mas estas dez horas eram ocupadas assim só cinco dias por semana. Na quinta-
feira tinham só estudo, bem como aos domingos durante três horas.
751
Neste curso foi possível ministrar o ensino regularmente. As matérias foram as seguintes:
Religião: explicou-se a fundo a doutrina cristã do card. Belarmino (impressa em árabe pela Propaganda
em Roma). Explicaram-se em árabe os principais mistérios, o sinal da cruz e o credo.
Língua árabe: escrita, exercícios de leitura, regras gramaticais da formação dos verbos regulares de três
letras, tabelas sobre as seis classes de verbos regulares triliterais.
Língua italiana: escrita, a pequena gramática de Soave, exercícios progressivos de análise, composição de
fábulas e pequenos relatos.
Aritmética: principais exercícios com todos os números, mas em maior escala com os ordinais e fraccio-
nários.
História do Antigo Testamento: desde a criação até ao cativeiro da Babilónia.
Todas estas coisas foram ensinadas aos rapazes em árabe. Nas horas livres de repouso e nas férias do Ou-
tono pratica-se a agricultura.
752
A Miguel Ladoh, que chegou o ano passado dos Bari (negros) e que tinha aprendido o árabe dos dongole-
ses, negociantes do Nilo Branco, durante quatro meses teve ensino individualizado e depois integrou-se no
mesmo nível dos gallas. Em 1862-1863 distinguiram-se especialmente:
João Faragiallah, que conseguiu o primeiro prémio
Miguel Ladoh, que obteve o segundo, e
Salvador Badassa, que ganhou o terceiro.
753
Os primeiros cinco rapazes, incluindo Miguel Ladoh, têm um talento acima do comum e muito especial
aptidão para a pintura e para as ciências especulativas. Nós esperamos muito deles. Todos possuem uma
extraordinária abnegação e são muito dóceis e obedientes. Os dois prefeitos que foram destinados à sua vigi-
lância e que tinham sido prefeitos dos jovens italianos do meu Instituto, asseguraram-me que preferiam ter a
seu cargo cem negros a dez italianos. Por isso, espero que também se venham a converter em instrumentos
dóceis para ajudar a infeliz missão da África Central, cujo clima nos rouba quase todos os missionários e
cuja única esperança está depositada nos negros que recebem educação na Europa.
754
O nosso Instituto para meninas negras é constituído pelas seguintes 13 raparigas:

1) Rosa Fedelkarim, de 15 anos, nascida na tribo dos Humus, a oriente do Nilo Branco.
2) Anita Scibacca, de 16 anos, nascida em Tegali, a oeste da tribo dos Schilluk, no 11o de lat. N.
3) Domitila Bakhita, de 15 anos, nascida em Mady entre os Dincas, ou seja, em Ahien, a este do Nilo
Branco, entre os 10o e 11o de lat. N.
4) Fortunata Quascé, de 18 anos, nascida em Tongojo, em Gebel Nuba, abaixo do 10o de lat. N.
5) Isabel Haua, de 19 anos, nascida na tribo dos Fertiti, a este do Nilo Branco.
6) Justina Bahar el-Nil, de 13 anos, nascida em Libi, no Gebel Nuba.
7) Luísa Mitherah, de 14 anos, nascida na parte oriental do reino de Darfur.
8) Isabel Kalthumach, de 16 anos, nascida em Darfur.
9) Maria Zareah, de 16 anos, nascida em Tekem, a oeste do Nilo Branco.
10) Regina Zarifa, de 15 anos, nascida entre os Yangseh, no 9o de lat. N., a oeste do Nilo Branco, onde
este recebe o Ghazal.
11) Francisca Bakhita, de 12 anos, nascida em Colongo, no Gebel Nuba.
12) Catarina Zenab, de 12 anos, nascida em Ajel, na tribo dos Hogh, a oeste do Nilo Branco, no 7o de lat.
N.
13) Madalena Zenab, de 16 anos, nascida em Bellagross, na tribo dos Barta, no 10o de lat. N., a este do
Nilo Branco.
755
As primeiras onze, como a última, foram trazidas para Verona em 1853 pelo P.e Jeremias, de Livorno,
que as comprou no Cairo. Catarina Zenab, a quem eu conheci ainda muito pequena na tribo dos Kich, no 7o
de lat. N., depois do meu regresso à Europa foi trazida pelos meus irmãos para o Cairo e eu trouxe-a para
Verona, quando, do meu regresso da Índia, me detive no Cairo. Possui muito talento, sabe muito bem o árabe
e o dinca e no Nilo Branco ajudou-nos muito na preparação de um dicionário, uma gramática e um catecismo
em língua dinca, que é a que mais se fala na parte este da África Central.
No Instituto feminino o ensino às negras também é ministrado em árabe, que dezoito italianas do meu
Instituto conhecem bastante bem. Essa instrução abrange estudo e trabalhos manuais femininos. Em primeiro
lugar, este ano dividimos as raparigas em três classes, que correspondem às três classes elementares da Eu-
ropa. Na primeira está Madalena Zenab; na segunda, Catarina Zenab, que obteve o primeiro prémio, mais
Francisca Bakhita e Regina Zarifa.
756
À terceira pertencem todas as demais e entre elas obtiveram prémio: Rosa Fedelkarim, o primeiro; Anita
Scibacca, o segundo, e Domitila Bakhita, o terceiro. A primeira classe ocupa-se das seguintes matérias: ru-
dimentos do catecismo de Belarmino, leitura e escrita do árabe e do italiano, e exercícios de cálculo nas qua-
tro operações.
757
As matérias da segunda são:
Leitura e escrita do italiano e do árabe. Pequena gramática destas duas línguas. Matemática: as quatro
operações de uma maneira mais profunda. Pequenos relatos e fábulas na duas línguas. História do Antigo e
Novo Testamentos.
A terceira classe ocupa-se dos princípios fundamentais da literatura árabe, da história do Novo Testamen-
to e da história da Igreja, especialmente da de África.
Geografia: ideias gerais, geografia particular de África.
Aritmética: regra de três, números positivos e negativos, simples e compostos, ordinais e cardinais.
Religião: o credo, a oração em geral, o pai-nosso e a ave-maria, em árabe, explicados segundo Belarmino.
Ideias gerais de farmácia e de medicina.
758
Os lavores femininos dividem-se em quatro classes. A primeira abarca a preparação de meias, vestidos,
camisas, remendos e trabalhos correntes; a segunda, bordados em branco; a terceira, bordados a várias cores;
e a quarta, bordados em seda e ouro. À primeira classe pertence só, no momento, Madalena Zenab; à segun-
da, Catarina Zenab, Regina Zarifa e Justina Bahar el-Nil; à terceira, Francisca Bakhita, Isabel Kalthuma e
Maria Zareah; à quarta, todas as demais. Rosa Fedelkarim sabe, além disso, bordar mesmo figuras, até ao
ponto de fazer com elas retratos. Este ano receberam prémios: na primeira classe, Madalena Zenab; na se-
gunda, Catarina Zenab; na terceira Isabel Kalthuma; na quarta, Rosa Fedelkarim, Anita Scibacca e Domitila
Bakhita.
As primeiras seis alcançaram tal destreza, que cada uma pode dirigir sozinha uma escola na África Cen-
tral. Estão totalmente imbuídas da religião e desejam com todo o ardor voltar a África para converter a sua
gente à fé católica. Com as que exteriorizam o desejo de se tornarem freiras é preciso maior prudência e um
largo período de prova; devem fazer um noviciado de ao menos dez anos.
759
As nossas negras adultas, embora sejam bondosas e devotas, não têm já aquela docilidade que mostravam
em meninas: há que dirigi-las com maior perspicácia e deixar-lhes passar algumas faltas. Mas por agora es-
tamos contentes com os seus progressos. É tudo o que agora lhe posso dizer dos meus negros e negras. Que-
ro, além disso, contar-lhe algo da conversão de uma negra muçulmana, que foi por mim instruída em Verona
e que foi baptizada há um ano, como também do baptismo de Miguel Ladoh, que foi administrado pelo bispo
de Verona, e da festa em que os nossos negros receberam a sagrada confirmação.
A negra de quem acabo de falar, à qual pusemos o nome de Maria, é originária, pelo que me parece (ela
mesma não sabia nada sobre isso), do país situado entre o reino dos Darfur e o Cordofão, onde pertencia a
um traficante de escravos que a trouxe ainda muito jovem para Alexandria. Nesta cidade viveu sete anos
escrava de um muçulmano, em consequência do que abraçou a religião islâmica. Depois mudou bastantes
vezes de amo, até que chegou a Constantinopla e depois a Salonica, onde começou a servir em casa do côn-
sul espanhol. Este cedeu-a a sua filha, que estava casada com o nobre conde Conti, dedicado aos negócios
em Salonica. A devota senhora, que desejava proporcionar à pobre negra já de vinte e oito anos o maior dos
dons, confiou-a com essa finalidade, em Salonica, às irmãs da caridade para instrução religiosa; porém, com
grande dor da sua parte, encontrou-a renitente em fazer-se cristã e resolvida a seguir a falsa religião.
760
Trataram Maria com toda a doçura e ela correspondia às atenções da sua jovem ama. Tendo a Providência
chamado a Itália o conde e sua esposa, por assuntos de negócios, a negra chegou a Veneza em companhia
deles. Aí a condessa ouviu dizer que em Verona havia um instituto africano e missionários que sabiam as
línguas orientais, pelo que veio a Verona e me pediu que admitisse a pobre negra. Maria visitou as negras do
instituto, falou com elas, viu os bordados e os seus progressos nos ensinamentos recebidos e mostrou desejo
de aprender tudo isso.
Porém, como consegui-lo, quando faltam o talento e a aptidão? Em resumo, o conde desejava que eu a
instruísse e empreguei dois meses e meio a ensinar-lhe os mistérios da fé. Depois ela mesma pediu o baptis-
mo; mas eu pu-la à prova por mais dois meses e só então concordei que se lhe administrasse o sagrado bap-
tismo. Assim, em Agosto do ano passado, o pároco de S. Eufémia, P.e Ferrari, baptizou-a na nossa igreja de
S. Salvador e posteriormente o reverendíssimo bispo deu-lhe a confirmação. Agora está contentíssima e
tranquila e sempre recebo boas notícias dela de Salonica, onde vive novamente em casa do cônsul espanhol.
761
Digna de nota é a conversão de Miguel Ladoh, que passo a narrar. Nele, a graça de Cristo fez prodígios.
Aos dez anos, Ladoh, que tem mais um irmão e duas irmãs, perdeu os seus pais. Possui um temperamento
muito dócil e não há forma de provocar a sua ira. Agora é já seis dedos mais alto que um homem normal. É
preto como o carvão, proporcionado na sua boa estatura, forte e imponente. Estando ainda entre os negros
bari, tinha conhecido o P.e Ângelo Vinco, do meu instituto, e ouvido a pregação do Evangelho da boca dos
missionários, ao mesmo tempo que os ensinamentos dos negociantes muçulmanos núbios, que percorriam o
Nilo Branco fazendo trocas para conseguirem marfim e coisas similares. «E porque te não fizeste muçulma-
no»? – perguntei-lhe um dia. «Porque – respondeu – quando entrou nos meus ouvidos e no meu coração a
palavra de um missionário católico, foi-me impossível acolher outras palavras. A pregação do catolicismo é
mais forte e mais poderosa que todas as línguas dos mortais e com a pregação de um sacerdote católico uma
pessoa não pode não persuadir-se da verdade da fé em Jesus Cristo».
762
O senhor deve recordar-se que o ano passado foi provisoriamente abandonada a missão entre as tribos Ba-
ri, em parte pela impossibilidade de dilatar lá a religião e em parte pela falta de missionários. Porém, dado
que para evitar muitos problemas, que eram previsíveis, P.e Beltrame e P.e Morlang abandonaram a estação
sem os negros saberem, só um mês depois é que Ladoh se apercebeu de que os missionários não voltariam
mais à sua terra. Então pensou seguir os seus passos e juntar-se a eles. Por isso, quando soube que Soleiman,
um nativo de Berber, agente do sr. Lafarque no Nilo Branco, se dispunha a partir para Cartum com as suas
embarcações carregadas de dentes de elefante, pediu para viajar com ele como grumete.
Soleiman não teve nenhum inconveniente em admiti-lo, porque lhe pareceu um marinheiro hábil e forte.
Depois de dois meses de viagem pelo Nilo Branco, chegou a Cartum, onde nós tínhamos a estação central
para a África. Não encontrando lá nenhum dos missionários que tinha conhecido na sua terra, foi a Berber,
onde pediu ao sr. Lafarque que lhe permitisse ir até ao Cairo com os seus homens. Lafarque respondeu-lhe
que não. Então ele foi sozinho de Berber a Abu-Hammed, onde pediu ao agente de Lafarque que o admitisse
entre a sua tripulação. O agente, que havia perdido um dos seus cozinheiros, admitiu-o como ajudante de
cozinha. Desta maneira chegou ao Cairo, onde, sem ter pedido nenhuma recompensa, foi direito à igreja ca-
tólica. Aí encontrou P.e Beltrame e P.e Dalbosco e pediu para ser admitido na Igreja. P.e Beltrame pensou
que não podia aceder ao seu desejo, porque estava prestes a regressar à Europa; porém, depois, não pôde
resistir às súplicas do negro e levou-o consigo. Assim Ladoh, depois de passar por Jerusalém e Constantino-
pla, chegou a Verona a 8 de Maio, festa da aparição de S. Miguel, cujo nome tomou ao ser baptizado.
763
Os missionários Beltrame e Dalbosco já o tinham instruído na viagem. Porém, embora o encontrasse per-
feitamente preparado, quis todavia instruí-lo eu para ver se permanecia constante em seus sentimentos; de
modo que no dia 27 de Junho, festa do Sagrado Coração de Jesus, estava preparadíssimo para receber os
santos sacramentos do baptismo e da confirmação e esta última ia ser administrada também aos outros rapa-
zes gallas e a Catarina Zenab. Não posso descrever-lhe a alegria que nos proporcionou esta festa. Como pa-
drinhos dos negros figuraram as personagens mais importantes da cidade. O conde António Pompei era o
padrinho de Ladoh e a condessa Adelaide, sua consorte, a madrinha de Catarina Zenab. Uma multidão de
gente aglomerava-se na Igreja de St.a Eufémia e o bispo de Verona, o marquês Luís de Canossa, administrou
o baptismo. A igreja estava engalanada com os mais belos adornos de seda e ouro e as suaves melodias de
uma numerosa orquestra acompanhavam as santas e significativas cerimónias do baptismo de adultos. La-
doh, vestido primeiro de preto e depois de branco, com o seu porte atraente e com o seu rosto da cor do car-
vão, era objecto de admiração geral.
764
O bispo, o povo e sobretudo o piedoso e religioso conde, choravam ao ver a devoção, a modéstia e o reco-
lhimento do negro. Terminadas as cerimónias do baptismo e da confirmação e recebida pelos dez a sagrada
comunhão, o bispo pronunciou um emotivo discurso sobre a chamada à fé católica e coroou a festa dando a
bênção apostólica. Miguel Ladoh mostra-se ainda igual ao momento do baptismo. Dotado de uma singularís-
sima inclinação para a virtude, com o seu temperamento agradável e a sua extraordinária abnegação, é moti-
vo de admiração para todos aqueles que o conhecem e modelo para os nossos jovens. Ele já não tem vontade
própria e está pronto para tudo. A mim diz-me sempre que, depois de ter recebido a graça do baptismo, já
não tem nenhum desejo das coisas terrenas e que está em qualquer momento disposto a morrer para poder
unir-se ao seu Salvador.
765
Tudo isto quanto ao nosso Instituto de Verona. No que respeita ao P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles,
ele mesmo é um milagre de caridade. Eu vi bastantes vezes os seus institutos africanos e penso poder afir-
mar-lhe que não podem estar mais bem dirigidos. Viu a necessidade de fundar este instituto na Europa e
fundou-o; dotou-o de bons professores e professoras e realizou admiravelmente os seus objectivos e planos.
766
A obra do P.e Olivieri foi de grande utilidade para a religião e continuará a sê-lo. Não pode haver católico
que lhe negue a sua admiração, se se considerar o grande número de almas que este santo homem já salvou.
A sua obra foi muito prejudicada pelo Tratado de Paris, mediante o qual, por ocasião da guerra do Oriente,
foi proibido o tráfico de negros. Por causa desta lei, o Governo egípcio já não permite o transporte de negros
de Alexandria para a Europa. Contudo, em 1859, durante a minha estada no Cairo, ainda passou bastantes
meninos. Este ano o P.e Olivieri, por meio de P.e Biagio Verri, digno herdeiro do seu espírito e com a ajuda
das Irmãs de S. José da Aparição, pôde trazer para a Europa algumas meninas negras. E continuará a salvar
almas e a ajudar poderosamente a obra do P.e Ludovico, porque ele fornece de alunos o seu Instituto de Ná-
poles.

(Daniel Comboni)
Original alemã
Tradução do italiano
1864

N.o 106 (102) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff, 454-455v

Verona, 2 de Fevereiro de 1864

Eminentíssimo Príncipe,

767
Recorro cheio de confiança ao verdadeiro pai dos missionários para ser ajudado na pequena mas árdua
missão que agora empreendi de salvar uma alma das mãos dos protestantes de Saxónia, seguindo o conselho
e a ordem de Sua Em.a o card. Reisach, de P.e Mazza e do bispo de Verona.
768
No ano passado Emília Julien, geral de S. José, enviou-me para Verona Maria Kessler, convertida havia
três anos, em Albano, da Confissão Augustana para a nossa santa fé, para que eu a colocasse. Consegui a
sua admissão no meu Instituto feminino, onde, embora contente com a Instituição, estava muito triste, porque
não tinha meios para ir à Saxónia arrancar das mãos dos protestantes, como lhe tinha ordenado Sua Em.a, um
filho que ela tivera dez anos antes, quando ainda pertencia à falsa religião de Lutero. E como muitas vezes,
na presença da geral Emília Julien, o Card. Reisach lhe prometera ajuda custeando-lhe tudo, M. Kessler en-
viou três cartas ao mesmo solicitando apoio; escreveu outras tantas ao barão Carbonelli, ministro do rei de
Nápoles, que às vezes a tinha favorecido. Porém, nem o cardeal nem o ministro responderam, embora eu
saiba que ambos receberam e leram as cartas.
769
Como também o card. Reisach, uma vez em que estive em Trento, me tinha pressionado e manifestado a
urgência de mandar imediatamente à Saxónia a recém-convertida buscar o rapaz, porque ultrapassando os
dez anos de idade seria impossível salvá-lo, então eu, a conselho do meu superior, P.e Mazza, parti, no pas-
sado mês de Outubro, para Dresden. Aí, com grande surpresa minha, soube que o bispo vigário apostólico, a
pedido do cardeal, havia seis meses que tentava com grande esforço libertar o menino, mas sem resultado. E
a razão disso estava no facto de um tal Will, a quem o bispo tinha encarregado de reclamar o menino em
Meissen à família com a qual ele vivia, para induzi-la a cedê-lo sem pagar o sustento, disse que o Papa e
Roma queriam absolutamente o rapaz, como me assegurou a pessoa que o tinha. Esta foi a causa de toda a
hostilidade que encontrei.
770
Sendo esta obra também do interesse das missões, suplico a Sua Em.a leia a carta junta dirigida ao card.
Reisach, onde verá as graves dificuldades que encontrei para salvar o menino que, por três vezes, me foi
roubado pelos ministros do protestantismo, que naturalmente suspeitavam que eu tinha ido à Saxónia para
fazer prosélitos e ficará a saber que, pela graça de Deus e da Virgem Maria, consegui salvá-lo e agora tenho-
o comigo em Verona. Depois de lida a carta junta, peço a V. Em.a Rev.ma que a sele e, quando lhe der jeito,
a faça chegar às mãos de Sua Eminência.
771
Todo este gasto suportei-o eu mesmo, pedindo emprestado o dinheiro, sempre na esperança de que o car-
deal quereria ajudar-me, juntamente com outros benfeitores meus. Porém, ao regressar a Verona, no passado
dia 25 de Janeiro, encontro uma carta de madre Emília que se exprime assim: «Entreguei as cartas da Kessler
a S. Em.a o card. De Reisach; mas creio que não fará nada, porque a mim prometeu-me muitas vezes pagar
por ela dote, enxoval e pensão e na realidade nunca cumpriu a sua promessa». Isto dizia-mo também Kess-
ler, mas eu não acreditava. Agora começo a duvidar. Contudo, como nunca se deve deixar de confiar no bem,
pedi a Kessler que escrevesse em alemão uma humilde carta ao cardeal e eu da minha parte escrevo-lhe ou-
tra; nelas solicitamos ao seu bom coração que nos preste ajuda. Eu, naturalmente, nada podia exigir ao car-
deal; mas quando madre Emília, em nome dele, me recomendou Kessler, eu encontrei-me na encruzilhada de
ou me desembaraçar de Kessler, remetendo-a a Roma, ou de assumir a responsabilidade de ajudá-la. Pelo
desejo de salvar uma alma e confortado pelo bispo de Verona e por P.e Mazza, optei pela segunda alternativa
e fui à Saxónia; mas sempre tive a esperança de que o cardeal nos ajudasse na empresa. Todo este assunto foi
com o conhecimento do card. Reisach e da madre Emília.
772
Mas perdoe agora Sua Em.a se tomei a filial confiança de me dirigir a si pedindo-lhe que leia a carta junta
e depois, quando lhe der jeito, entregá-la em mão ao cardeal Reisach; e que se tiver ocasião e julgar oportu-
no, escreva uma palavras a meu favor, a fim de que, dos 500 táleres que se gastaram, ele participe com uma
boa parte. Espero que o coração verdadeiramente santo e caritativo desse em.o purpurado acudirá em ajuda
de um pobre sacerdote, que, embora indignamente, nesta viagem exerceu o seu ministério. Certamente, no
meio de tantos obstáculos dos astutíssimos protestantes, Deus abençoou a minha obra, porque além de salvar
aquela alma, espero ter atraído a Cristo outras cinco: duas que espero em Verona e três que recomendo ao
zelo de mons. o vigário apostólico da Saxónia.
Por agora não falo do que se está a preparar para a África e que submeteremos a Sua Em. a; limito-me a
apresentar-lhe os cumprimentos de P.e Mazza, os de Kirchner, que vi em Bamberg, e os profundíssimos
daquele que é de Sua Em.a

Hum., dev. e agrad. filho


Daniel Comboni, Ex-mission. ap. da África C.

N.o 107 (103) - A P.e NICOLAU OLIVIERI


AISM, Savona

Insto. Mazza, Verona, 20 de Maio de 1864

Reverendíssimo padre,

773
Mons. Ortalda, cónego da Catedral de Turim, manda que lhe comunique, caríssimo padre, que mons.
Massaia, bispo dos Gallas, desejaria muito encontrar-se consigo para tratar de coisas que dizem respeito à
sua missão. O bispo está actualmente em Roma, mas mudar-se-á dentro de pouco para Turim; igual desejo
teria o grande promotor e patrocinador das missões mons. Ortalda. Por isso, peço-lhe que me faça saber a
mim ou ao mesmo Ortalda quando é que teria ocasião de passar por Turim. Se desejar entrar em contacto
com o cón. mons. José Ortalda, basta que envie a carta para Turim, via seminário. Se agora, pelo contrário,
se encontrar em Roma, tenha a bondade de se dirigir à Concepção, à residência de mons. Massaia.
774
Quando fui enviado à Alemanha para arrancar das mãos dos protestantes um menino e duas jovens, estive
em Colónia em visita ao nosso amigo, o dr. Sticker II, e aos membros da Sociedade; fiquei surpreendido de
que V. P. rev.ma nunca tenha visitado essa Sociedade. Estou certo que aumentaria ainda mais o fervoroso
zelo dos seus membros em promover o bem da África; e seria acolhido com sumo respeito e veneração.
Também o P.e Ludovico esteve em Colónia.
775
Sei que V. P. passou por Verona com o meu caro P.e Biagio e que estiveram em bastantes casas, sem vir à
nossa. Porque não se lembra dos pobres missionários da África Central? Todos nós trabalhamos para o mes-
mo fim, a salvação dos negros; porque é que então não há-de haver entre nós uma cordial comunicação?
Verdadeiramente suportei com pouca resignação que o senhor e P.e Biagio não tenham vindo ver-me ou que,
ao menos, não me tenham feito saber onde se encontravam. Por acaso parece-lhe difícil que a obra das mis-
sões da África que nós empreenderemos possa coadunar-se intimamente com a sua? Não importa se no pas-
sado as ideias do meu p. P.e Mazza não concordaram, no acessório, com as suas: creio que a obra de Deus
nos aproximará. Mas sobre isto basta. Espero que noutra ocasião venha ver-me, porque eu também desejo
falar e aconselhar-me consigo sobre muitos assuntos. Entretanto, faço votos ao Deus do Exércitos e à Rainha
da Nigrícia para que possa salvar muitas almas e para que seja conservada por muitos anos a sua preciosa
vida e a de P.e Biagio Verri, a quem mando muitas saudações e o voto de que salve muitas almas. Receba os
cumprimentos do meu superior.
776
Na esperança de em breve ter notícias da sua grande empresa, recomendo-me às suas fervorosas orações e
às de P.e Biagio, verdadeiro herdeiro do seu espírito. Entretanto, nos Sagrados Corações de Jesus e Maria,
beijo-lhe respeitosamente as mãos e peço-lhe a sua bênção.
De V. P. hum.mo s.
Daniel Comboni
mission. apostólico

N.o 108 (104) - A P.e FÉLIX PERLATO


BCV, sez. Carteggi, b. 131 (Netti-Perlato)

Montebello, 4 de Julho de 1864

Breve nota.

N.o 109 (105) - À CONDESSA LUDMILA DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Turim, 25 de Julho de 1864

Minha bondosa e venerável condessa,

777
Queria ter-lhe escrito ontem às onze da noite, quando cheguei de Pinerolo; mas estava demasiado excita-
do e inebriado do prazer de ter passado um felicíssimo dia com o nosso caro e amabilíssimo Pippo. Hoje,
pois, ponho-me à secretária para escrever umas linhas à minha veneranda Lulu e para lhe falar do nosso
Pippo. De Veneza recebi uma carta enviada de Turim por um amigo meu, na qual me contava que Pippo
tinha estado um pouco indisposto. Despachando eu os meus assuntos ao voltar de Viena, apressei a minha
viagem para Turim e ontem dei um salto a Pinerolo. E que aconteceu? Fiquei maravilhado com a robustez do
rapaz.
778
Tinha estado uns dias na enfermaria e portanto forçado a não sair, porém, eu encontrei-o tão ágil, robusto,
forte, alegre e contente que me tranquilizei por completo. Basta dizer-lhe que de manhã à noite, sob o sol,
excepto um quarto de hora ao café e duas horas ao almoço, passeámos pelos campos de Pinerolo, subindo
colinas, descendo vales, no picadeiro, no Campo de Marte, estivemos juntos até às nove; eu já esfalfado, sem
forças, e o incansável Pippo sempre firme. Deve ter sido uma indisposição insignificante. Além do mais, o
capitão Sapelli, o tenente De Carlini e o coronel deram-me as melhores informações sobre a sua docilidade,
bondade e obediência e regular disciplina.
Pode imaginar o empenho afectuoso que utilizei para o recomendar aos seus cuidados e fazer com que te-
nham atenção para com ele, sobretudo pensando que, habituado às comodidades de um distinta família, sou-
be submeter-se à normal disciplina militar. Apercebi-me de que gostam muito dele, que lhe dedicam especial
consideração, e que fecham os olhos quando alguma vez lhe custa estudar. Até o capitão que tem sobre
Pippo imediata jurisdição me assegurou e prometeu que lhe dedicará toda a atenção e que o tratará como
filho. Pippo está contente e alegre e a ideia de que, a partir de meados de Setembro, terminará todos os estu-
dos do ano e verá nos confins romanos a sua Maria, a mamã, o papá?? e o Guido tem-no sobremaneira entu-
siasmado. Sim, condessa, passei um dia no paraíso! E como vou ficar por aqui toda a semana, irei de novo
vê-lo. Além disso, com modos adequados, interroguei-o, examinei-o e pode dizer-se que me fez uma confis-
são geral: desgosta-o o facto de o pai estar pouco satisfeito com ele.
779
Eu dei-lhe toda a espécie de conselhos, como um verdadeiro pai, irmão e amigo, e encontrei-o muito dó-
cil. Sem discutir a oportunidade ou inoportunidade do passo que deu, trocando a Bélgica por Pinerolo, o
certo é que Pippo está contente e alegre. Mas peço-lhe que nunca deixe de lhe escrever cartas de verdadeira
mãe, sem nunca se cansar, pois isso far-lhe-á muito bem. Pippo é demasiado mandrião para escrever, mas
ama e venera a sua querida mãe. O mesmo diria a Guido, ou seja, quereria que ele escrevesse amiúde a Pippo
e que lhe fizesse contínuas recomendações, porque Pippo tem em muita estima o seu irmão, a quem ama e
respeita. Isto é oportuno porque, qualquer que seja a índole dócil de Pippo, o certo é que a milícia e o colégio
militar, apesar dos seus regulamentos, nem sempre são escola de moralidade e religião, e o que não fez podia
tê-lo feito.
Fiquei satisfeito ao ver que os seus superiores o estimam muito. Um deles disse-me que a tença que rece-
be da família é demasiado pequena. Pippo não se queixa, mas pensa o mesmo. Eu quereria ter milhões para
os dar ao meu Pippo; mas conhecendo os pagamentos de seu pai e os consideráveis sacrifícios que a senhora
faz, com a ajuda da condessa Baldini (verdadeira segunda mãe para ele), digo que é suficiente para passar
discretamente e não apanhar vícios. Já sabe como é Pippo: há que tê-lo sempre sob controlo, porque, de con-
trário, faria como muitos, porque ele é daqueles que, se lhe mandarem 20 000 francos ao ano, gasta tudo.
780
Isto fique somente entre nós dois, Lulu: falo com o coração, mas também com a cabeça. Além disso, eu
tenho um canal bastante bom para conhecer os pequenos instantes de respiro do meu Pippo. Portanto, embo-
ra agora se porte bem e ganhe verdadeiramente o afecto dos seus superiores pela sua bondade e docilidade,
devemos estar sempre em cima dele, pois agora anda mais solto do que quando estava em Roma.
Por isso a senhora, Guido, eu, assim como P.e Luís, a quem Pippo está agradecido, e a condessa Adelaide
Baldini, devemos sempre, de maneira conveniente, cada um segundo a sua posição e a relação que tem com
ele, devemos sempre, digo, estar em cima dele, não perdê-lo nunca de vista e ajudá-lo. Dir-lhe-ei que o en-
contrei gordo, com boa cor, sincero, aberto com quem sabe abordá-lo, robusto, ágil e contente. Certamente
nunca será um bom cavaleiro, mas aprende quanto necessita para a sua futura carreira. O capitão assegurou-
me que se sairá bem dos exames, embora eu, conhecedor de Pippo e da multiplicidade das matérias e da per-
da de quatro meses de estudo, porque veio com o curso já começado e esteve um pouco indisposto, tenha
algumas dúvidas. Porém, tenhamos esperança e rezemos sempre por ele e confiemos em Deus que saberá
escutar sempre as nossas súplicas. Além disso, tenho em Pinerolo um excelente amigo na pessoa do sr. Da
Vico, major da Guarda Nacional, homem excelente, honrado e muito bom, o qual tem muitas atenções para
com Pippo.
781
O curioso é que prometi a Pippo escrever sobre o aumento da mesada. Porém, depois de pensar bem,
creio não ser isso oportuno, pelo que disse antes. Enfim, estou como se me tivesse saído a lotaria; e ainda
mais que se me tivesse saído a lotaria, estou contente por ter visto e abraçado Pippo; e quinta-feira farei outro
tanto. Depois, no domingo, voltarei a Verona e trabalharei para o seu polaco. Quanto ao mais, não passo um
instante em que não tenha no coração a minha querida família Carpegna. Quero conhecer essa senhora con-
dessa Baldini e amanhã irei vê-la. Vai-me parecer estar em Roma, pelo que imagino, falando com a cond.
Bald. Às vezes vem-me a ideia de escrever ao conde; mas não creio oportuno falar-lhe de Pippo. De qualquer
modo, dê-me o seu conselho. Vejo que seria pior, mas diga-me a sua opinião.
Pippo assegurou-me, além disso, que escreveu ao conde pelo dia do seu onomástico. Ainda que tenha as
minhas dúvidas, não deixa de ser fácil que a carta se tenha extraviado. Se, por exemplo, a pessoa que foi
despachá-la ficou com o dinheiro da franquia (coisa fácil), a carta não chegou ao seu destino, porque as diri-
gidas a Roma têm que ir franqueadas até à fronteira; de outro modo não se enviam, segundo lei recente. Por-
tanto também quanto a isso fiz recomendações a Pippo.
782
Enfim, faça chegar ao conde as minhas saudações mais cordiais; escreva-me longamente para Verona; dê
cem beijos por mim a Guido e à pequena Maria, que amo de todo o coração e fale-me de Anita, que talvez
esteja em Roma. Amanhã – parece-me vê-la – será um dia como do Paraíso, pois é a festa da Santa Mãe de
Maria. Reze por mim, que eu sempre faço e farei o mesmo por si, minha cara condessa Ludmila e nos
Sagdos. Corações de J. e de M. tenha-me por seu

Fidelmo. e af.mo am.


P.e Daniel

N.o 110 (106) - À CONDESSA LUDMILA DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Génova, 9 de Agosto de 1864

Nobilíssima condessa,

783
Se lhe tivesse menos afecto a si e à família Carpegna, manter-me-ia calado e não entraria no santuário das
coisas mais delicadas, causando talvez maior dor depois por não remediar a tempo os males que daí se po-
dem seguir. Se bem se pensar, minha venerável Ludmila, certas coisas que num primeiro momento se nos
apresentam como relevantes, são, no grande cenário do mundo, coisas pequenas, pontos matemáticos. A
juventude está sujeita a certas crises inevitáveis, não nos devemos admirar; chegado o tempo da maturidade,
as coisas acalmam-se. Talvez não seja esta uma linguagem digna de um ministro da Igreja; porém, é sem
dúvida a de alguém que conhece o que se passa no mundo. Por outro lado, guardar silêncio poderia causar
maior prejuízo e impediria de prevenir os danos, podendo fazê-lo. Minha cara Ludmila, Deus sabe com que
trabalho e depois de que conflitos interiores me ponho a escrever-lhe; mas temeria não ser verdadeiro e leal
amigo se tivesse algum segredo para Ludmila. Por este preâmbulo, pensará que tenho algo muito importante
para lhe revelar. Contudo, se se pensar bem, trata-se de uma pequena coisa, considerando os tempos em que
estamos e a natureza do homem. Nós, porém, por carinho e por dever, temos que evitar também as pequenas
coisas. Se no que lhe vou dizer não usar o devidos modos ou se faço mal em lho contar, peço-lhe me dê um
solene raspanete, que me será caro, vindo de si.
784
Quando voltei de Pinerolo descrevi-lhe o aspecto físico do nosso querido Pippo; ou seja, a sua perfeita
saúde e o afecto que lhe têm os seus superiores. Eu disse a verdade e a coisa é verdadeiramente assim; nessa
carta prometia escrever-lhe de Verona. Porém, os afazeres, a ida, o regresso e essa natural retracção que afec-
ta quem não é dado a dizer coisas pouco agradáveis, obrigaram-me a suspender até hoje as minhas cartas. De
Verona tencionava descrever-lhe a parte moral de Pippo, a qual não é demasiado satisfatória para a nossa
delicadeza. Certamente, desde que Pippo ficou por algum tempo em Génova com o filho do marquês... pre-
feito... anda um pouco desenfreado e deixa algo a desejar nas coisas religiosas; não fiquei lá muito satisfeito
com os seus sentimentos neste aspecto, ainda que os princípios fundamentais religiosos sejam indeléveis e os
guarde. Também a moralidade andava um pouco à solta.
A senhora é demasiado perspicaz e tem demasiado talento e agudeza, para não se ter apercebido de que a
indisposição física de Pippo foi efeito de alguma escapadela. Eu, que o examinei a fundo, tive a satisfação de
o encontrar sincero, confessando-me vida e milagres. Está arrependido dos três ou quatro deslizes que teve
em Turim e em Pinerolo; lamenta-os muitíssimo. Sabe que é mal e causa demasiada dor a sua mãe. A si esta-
ria disposto a confessar-se; mas são coisas que se puderem manter-se ocultas, faz-se de boa vontade. Eu co-
nheço a milícia e, embora no Colégio de Pinerolo haja grande severidade e todas as semanas cada jovem seja
rigorosamente consultado, dou-me por satisfeito ao pensar que foram só três ou quatro tropeços, nos quais
contraiu a infecção, da qual já há muito está perfeitamente curado. E é tudo.
785
Contei-lhe isto, minha amável condessa, da maneira mais confidencial. Não quero que ninguém, nem
Pippo, nem Guido, nem o Conde saibam que eu escrevi. Pobre de mim se se chegasse a saber. Eu tenho as
informações mais fidedignas sobre Pippo por meio de um prelado nascido em Pinerolo que, a meu pedido,
cada semana ou cada quinze dias obtém notícias de um eclesiástico de Pinerolo e este sabe tudo. Espero que
disto também resultem benefícios para Pippo. Mas para corrigi-lo e evitar maiores desordens, é preciso que a
senhora saiba tudo, a fim de aplicar mais sabiamente os meios que livrem Pippo de todo o mal. Se merecer
alguma repreensão, dê-ma. Mas o Conde não deve saber nada, para não juntar maiores motivos de irritação
contra o filho.
No meu entender, a senhora deve continuar a mandar-lhe, com mais frequência, cartas e recomendações:
farão eco no coração de Pippo; digo-o com conhecimento. Depois, eu imporia maior controlo sobre o dinhei-
ro, que ele utiliza mal. Se der mil escudos a Pippo, num ano ele contrai outro tanto de dívidas. Também nisto
digo com dor a verdade. Por isso, conviria obrigar Pippo a justificar os gastos até ao centavo e não fiar-se
nele, mas sim nos papéis, Rechnung, etc. dos outros e, portanto, exigir-lhe as facturas.
786
Não sei, porém, suponho que pensará que está tudo pago no colégio; creio que ainda faltam 450 francos.
Em terceiro lugar, como Guido tem grande poder sobre o coração de seu irmão, é preciso que lhe faça de pai,
tutor, mestre e de tudo. Desejo falar com Guido antes de ir a Pinerolo. Eu fico dois dias em Génova e depois
vou a Turim talvez por duas semanas. Como gostaria de pô-lo a ele ao corrente de tudo! Embora já me abra
algo com a condessa Adelaide Baldini e combinemos, Guido será informado de tudo.
Não creia, no entanto, que dou a isto tanta importância como parece. É inevitável, estimada condessa: a
juventude é débil neste ponto e devemos dar-nos por contentes se só houver um ou outro deslize. Falando do
assunto entre nós, vê que devemos fechar um olho; devemos fazer disso caso para prevenir no futuro este
mal ou talvez outro maior. Nós sabemos que por isto não cai o mundo e seria pretender milagres que o fi-
lho... de um romano se mantivesse imaculado. Mas em relação a Pippo devemos dar grande importância e
estar-lhe sempre ao lado para levá-lo a abandonar este vício, depois de ter feito o disparate de passar tão de-
pressa da Bélgica para a Itália.
787
Por isso, peço-lhe que não se aflija demasiado. Contei-lhe todo o mal que há. E se houvesse mais, dir-lho-
ia, porque de Pippo sei tudo e mantenho uma correspondência especial para saber tudo e assim remediar,
cumprindo os deveres do afecto, da amizade e do ministério. Assim estão as coisas, minha amável Ludmila.
Por amor de Deus, que ninguém saiba que lhe escrevo sobre Pippo e muito menos ele, porque me veria obri-
gado a calar-me no futuro e a não fazer o que me dita o grande afecto que sinto por si, por Pippo e pelos Car-
pegna. E com Pippo não é preciso exagerar nem fazer excessivas ameaças; ele deixa-se dominar pelo lado do
coração. De mim e dos amigos poderá rir-se, mas acredite que a sua mãe e Guido ainda têm todo o poder
sobre o coração de Pippo.
Estou quase certo de ir a Roma no Outono. Então teremos demoradas conversas e profundas reflexões so-
bre o assunto. Pode contar que, se no futuro Pippo incorresse em novas escapadelas, eu não deixaria de pô-la
ao corrente, sempre que me tivessem chegado informações seguras.
788
Em Pinerolo é quase impossível fazer essas escapadelas. É nas ocasiões em que vai a Turim, quando um
jovem judeu o leva ao Casino. Por isso, em Turim, deveria estar sempre com pessoas de confiança, como a
família Baldini, etc.
Desculpe, cara condessa; escreva-me rapidamente para Turim, para a pensão do Bue Rosso, onde costumo
alojar-me. Tenho que ficar lá 15 dias. Domingo ou segunda-feira irei a Pinerolo. Não sei se Pippo lhe escre-
veu sobre isto. O certo é que há quinze dias estava em suspenso, porque não perdeu absolutamente nada da
sua confiança e carinho por si.
Por favor, esteja alegre e dê-me notícias suas e de toda a família. Um beijo a Maria, da parte de

Seu af.mo e fiel am.


P.e Daniel

N.o 111 (107) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACVVV, XVII, 5, B

Turim, 14 de Agosto de 1864

Il.mo e rev.mo monsenhor,

789
O meu amat.mo reitor P.e Bricolo ter-lhe-á manifestado o motivo pelo qual me encontro em Turim. A
Providência destinava-me ao mesmo tempo a cooperar na obra que lhe vou mencionar.
Será conhecido de Sua Ex.a Il.ma como o “desgoverno” de Itália publicou a providencial Lei da Igualda-
de, com que obriga os clérigos ao recrutamento militar, tirando assim o privilégio da isenção de que antes se
gozava, para incremento do clero italiano. O zeloso cón. mons. Ortalda, director da Pia Obra da Propagação
da Fé em Turim, excogitou a ideia de empreender uma campanha com a venerável falange dos missionários
italianos espalhados pelos dois mundos, composta por cerca de 35 bispos e 1500 missionários, a fim de abo-
lir a iníqua lei. Estes, como combatentes da milícia de Cristo, a fim de assegurar sucessão a todos os campos
das suas actividades, vão apresentar, por nosso meio, no próximo mês de Outubro, uma alegação ao Senado
(do qual lhe mando um esboço impresso); esta alegação tem até agora a aprovação de cento e tal bispos e do
Em.o De Angelis (que, sem querer, o Governo do Piemonte colocou em situação de fazer mais que em Fer-
mo, sendo o anjo do conselho de todas as dioceses da média e alta Itália, sujeitas ao Gov. ital.). A alegação
será, depois, por meu intermédio, feita chegar ao Card. Barnabó e ao Papa para ratificação. Em anexo ao
elenco dos bispos e missionários italianos, virá a lista dos agentes e missionários diplomáticos que terminei
há pouco com a ajuda do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
790
Tendo-se decidido inserir no elenco dos bispos e missionários italianos no estrangeiro também os de Ro-
ma e Veneza, com a aprovação de De Angelis e de todos, eu estou encarregado de recolher, entre outros,
também os do Véneto, Trento e Trieste. Por isso, com mons. Ortalda, ficou decidido dirigirmo-nos a Sua
Ex.a rev.ma, para obtermos os dados de todos os missionários do Véneto, Tirol e Triestino; a maior parte
pertencem a ordens religiosas, a cujos provinciais podem os bispos requerer o nome e apelido, a terra natal e
a missão a que eles estão agregados.
Portanto, pedimos-lhe, monsenhor, que preste este serviço à santa causa, que favorece também a parte da
diocese que está sujeita ao Governo de Turim. Quando Sua Ex.a tiver o elenco requerido, solicito-lhe a bon-
dade de mo entregar a mim ou, na minha ausência, a P.e Bricolo. Pedir-lhe-ia que desse rapidamente as or-
dens oportunas e transmitisse o aviso aos bispos do Véneto e a S. A. de Trento, para que possam sem demora
fazer o elenco.
791
O Card. De Angelis fala comigo muitas vezes do seu antigo pregador e impõe-me que lhe ofereça os seus
obséquios. Se desejar algo do Piemonte e da Lombardia, é só dizer-mo.
Quinta e sexta-feira passadas, com o cón. Ortalda e o cón. Anglesio, companheiro do ven. Cottolengo e
director do [...], fui a Génova para o envio de cinco missionários para a China. Estive presente na sagrada
função, com a viúva Brignole, a marquesa Durazzo Negroni, prima da marquesa Clélia. Esta envia cumpri-
mentos à sua cunhada marquesa.
792
Estes dias, com a graça de Deus e com a ajuda de D. Bosco e da condessa Glória, camareira da defunta
marquesa Barolo, pude apanhar no laço de Cristo a sra. Antonieta Manca, de 25 anos, uma das favoritas,
entre muitas dezenas, de S. M. Vítor Emanuel II, rei de Itália, a qual estava hospedada na minha pousada Bue
Rosso. Está sob a protecção da condessa Glória, que a instalou numa vila sua; depois de fazer os exercícios
espirituais e de ser confessada por um santo sacerdote, será enviada para Cagliari, para casa da sua mãe. Para
esse fim, já avisei o competente vigário-geral, que procurará devolvê-la a seu marido (se este quiser). Veja,
monsenhor, que coisa inaudita. Antonieta Manca foi, há anos, ter com o rei para obter a transferência de seu
marido de Turim para Cagliari, seu lugar de origem. Ela valde pulchra placuit regi e aquela esposa foi deita-
da a perder. Abandonou o marido e tinha uma pensão de 500 francos ao mês, além de muitos títulos de 1000
francos da dívida pública que lhe dava amiúde o rei. Ela mesma mo contou e está arrependida das suas faltas.
A condessa Glória, que me foi recomendada por D. Bosco, continuará a santa obra. Apresente os meus res-
peitos ao mons. vigário-geral, ao marquês Octávio, às marquesas cunhada e mãe e a P.e Vicente; e beijando-
lhe as sagradas vestes, declaro-me com todo o respeito,

De S. Ex.a Rev.ma e Ilma.


Hum. e dev. serv. e filho
P.e Daniel Comboni

Solicitamos as listas tanto dos missionários que estão actualmente no estrangeiro como dos que já regres-
saram.

N.o 112 (108) - À CONDESSA LUDMILA DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Turim, 15 de Agosto de 1864

Nobilíssima sra. condessa,

793
Hoje, sob a protecção de Maria, quero voltar a falar-lhe do nosso amado Pippo. E em primeiro lugar dir-
lhe-ei que, desde que lhe escrevi de Génova, o meu coração tem estado sempre a palpitar com o temor de que
a minha carta lhe pudesse causar algum desgosto, ao dizer francamente e sem nada ocultar a falta desse que-
rido jovem. Estimada Lulu, eu tive as melhores intenções. Duvidei muito, estive vacilante, pensei-o vezes
sem conta e rezei com fervor antes de escrever, sabendo que a senhora é mãe e mais que mãe. Mas, ao mes-
mo tempo, parecia-me atraiçoá-la se não lhe revelasse tudo; e isto para lhe proporcionar os meios para impe-
dir ulteriores desacertos, pela grande estima em que tenho a senhora, o meu Pippo e a honra da família Car-
pegna. Se me enganei, peço-lhe que tenha a mesma confiança que eu tive consigo. Que quer? A suspeita de
que a mãe está informada da sua falta afectou tanto Pippo, que fez mil promessas de não fazer nunca nada
que possa desgostá-la.
794
Ontem escrevi a Adelaide encarregando-a de fazer por ele a sua confissão à sua terna mãe. Ele não tem
coragem e está muito envergonhado: espero que isto lhe sirva de solene lição de que se recorde por largo
tempo. Por isso deve tratá-lo com doçura; se recorrer às ameaças, não consegue nada, porque pode imaginar-
se que orgulho e que espírito de independência a instituição militar produz. Advirto-a, além disso, que não
diga que eu lhe escrevi a contar-lhe a sua falha. A senhora deve sempre insistir no ponto de verdade que lhe
escreveu Anita, como ontem me disse a condessa Baldini; porque Pippo, sendo ainda jovem, está fortemente
irritado contra quem a pôs ao corrente e ai se soubesse que fui eu a fazê-lo!
Quando depois lhe chegar a carta de Adelaide, então ser-lhe-á mais fácil ocultar o meu nome; porque no
futuro quero continuar a informá-la de tudo. Agora que encontro Pippo profundamente tocado, antes ainda de
Guido chegar (que tem muita ascendência sobre o coração de Pippo), parece-me oportuna uma visita minha a
Pinerolo, na qual espero que Adelaide esteja disposta a acompanhar-me. Ela, de facto, prometeu que faria
todo o possível para ir comigo quinta-feira ou domingo, e espero que não vá ser inútil a admoestação feita
por uma excelente mulher, como é Adelaide, e por mim, humilde pessoa. Adelaide faz as suas vezes excelen-
temente em Turim, cara Ludmila. Parece-me que não se preocuparia mais por um filho seu do que por Pippo
e isto pelo carinho que tem por ele e por si. Se a tivesse visto ontem, sem dúvida que ficaria persuadida do
que estou a dizer.
795
De resto, trate de exigir exacta prestação de contas do dinheiro que manda a Pippo, dando-lhe a ele e a
Adelaide instruções oportunas. E isso é também um meio de impedir alguma escapadela, já que a Pippo cus-
ta-lhe dez francos cada vez, como me confessou. Eu, para lhe arrancar tudo, preciso de uma prudente tole-
rância, levando-o a abrir o coração em confidências. Não sabe o pobre e querido rapaz que, para o seu maior
bem, me comprazo em informá-la a si de tudo. Antes, disse-lhe que o ocultasse a todos o mais que pudesse,
prometendo-me ele, sob palavra de honra, que não o faria mais. Por outro lado é uma escapadela que, falan-
do entre nós, devemos perdoá-la a Pippo, tendo em conta o seu temperamento e os companheiros que o ro-
deiam. E digo a verdade: vejo que ele tem muito pudor e é incipiente em tal desordem, visto que agora tanto
lamenta e tanta vergonha tem de contá-lo à sua mãe, a qual é para ele um escudo fortíssimo para não voltar a
conhecer semelhantes acções. A companhia do jovem Gualtério não é conveniente para Pippo, o qual, por
outro lado, crê poder cirandar mais do que lhe é possível e passar a vida a divertir-se. Seja oportunamente
carinhosa com Pippo, mas firme e inamovível em suas meditadas e suaves ameaças. Dê instruções a Adelai-
de sobre tudo o que pode gastar, dando-lhe porém, a faculdade de suprir naquelas circunstâncias em que
Pippo corresse risco de fazer má figura.
796
Peço-lhe que me escreva para aqui para Turim, para a pensão do Bue Rosso, agora que, pelas duas cartas,
conhece as minhas sinceras impressões; quer dizer, esta e a que lhe escrevi quinta-feira passada de Génova.
Fale-me do seu estado de ânimo, se sentiu muita dor por Pippo, etc., etc., ainda que eu, minha venerada con-
dessa, lhe leia no coração como se esquadrinhasse a sua alma com o microscópio.
Dê por mim um carinhoso beijo a Maria, à qual espero em breve dar beijocas a meu bel-prazer e reze por
quem lhe professa uma verdadeira, leal, ardente e cristã amizade perpétua.

P.e Daniel

Peço-lhe que saúde da minha parte P.e Luís Fratini e me diga onde se encontra, porque lhe escrevi muitas
vezes e ele não me respondeu.

N.o 113 (109) - A P.e BIAGIO VERRI


AISM, Savona

Génova, 9 de Setembro de 1864

Rev.do e caríssimo P.e Biagio,

797
Esperava vê-lo a si e ao P.e Olivieri em Roma e ouço dizer que ambos se encontram em Marselha. Mas o
sr. Casamara dá-me a esperança de que dentro deste mês os poderei encontrar em Roma, onde chegarei de-
pois de amanhã. Em Colónia desejam ardentemente informações pormenorizadas sobre o progresso da santa
obra do resgate dos negros. O alemão, por natureza, quer ver retratos, ler, saber, etc., e depois dá dinheiro em
abundância. Aquela Sociedade faz grandes progressos e adiantaria mais e reuniria mais donativos se nós lhe
fornecêssemos mais notícias. A Sociedade encarregou-me de me pôr em contacto consigo e com o P.e Olivi-
eri, incitando-os a escrever mais e com mais frequência. Creio que os senhores têm superabundância de ma-
terial para lhes agradar. O ideal seria que o senhor e o P.e Olivieri, vindo ao Norte, visitassem Colónia. Sem
dúvida que isso seria vantajoso para a obra.
798
Eu estou com grande vontade de vê-los e de falar da nossa querida África. Sinto-me desolado de ver o
pouco que nós e os franciscanos fizemos pela África Central. Certamente que a sua obra de Resgate fez mais
pela África que nós e com menos sacrifícios; disto estou convencido, como disse abertamente em Colónia, a
P.e Mazza e a Barnabó. Agora, entre outras coisas, quero falar largamente com a Propaganda sobre o modo
de beneficiar mais a África fazendo menos sacrifícios.
799
Mons. Canal, tempos atrás, deu-me quatro exemplares da vida de uma negra morta havia pouco e escrita
pela Marovich. Vamos, meu caro P.e Biagio, escreva-me para Roma e faça-me saber notícias sobre o pro-
gresso da obra e se posso esperar ver os dois em Roma. Os meus rapazes negros morreram quase todos; as
jovens negras estão todas bem e impacientes por voltar para ajudarem a gente da sua terra, pois já terminou a
sua educação. Porém, aonde enviá-las se estão dificultados os assuntos da pobre missão africana? Deus dis-
porá o que for melhor para elas. Outro dia, em Verona, veio ver-nos Kirchner; e, dos meus companheiros,
apenas um está são e disponível para a África. Gostaria de saber se cessaram as dificuldades para a saída de
negros a partir Egipto ou se ainda são necessários os santos ardis da caridade evangélica para trazer os ne-
gros para a Europa. Quereria saber mil coisas e falar muito sobre a África. Rogo-lhe apresente os meus res-
peitos ao santo ancião, verdadeiro pai dos negros e lhe peça que reze por mim. Saúde também da minha parte
a empregada, a clássica Madalena, e tenha-me presente nas suas orações. Receba também a expressão da
minha mais elevada estima e amizade

Seu dev. e af.mo


e
P. Daniel Comboni m. a.

N.o 114 (110) - O PLANO


ASC

RESUMO DO NOVO PROJECTO


da
SOCIEDADE DOS SGDOS. CORAÇÕES DE JESUS E MARIA
PARA A CONVERSÃO DA ÁFRICA
PROPOSTO
à
S. CONGREGAÇÃO DE PROPAGANDE FIDE
por P.e Daniel Comboni
do Insto. Mazza
1864

Roma, 18 de Setembro de 1864

800
Um nevoeiro de mistério envolve ainda hoje aquelas remotas regiões que a África Negra na sua vasta ex-
tensão encerra. Governos civilizados e sociedades privadas esforçaram-se em diversa épocas para conseguir
que se levassem a cabo explorações naquelas imensidões, organizando para esse efeito bem equipadas expe-
dições. Contudo, apesar dos inumeráveis esforços e dos maiores sacrifícios, jamais foi possível arrancar o
impenetrável véu ali estendido ao longo de tantos séculos.
801
Ora, enquanto os intrépidos exploradores se ocuparam até aos nossos dias daquela parte inexplorada do
globo, trabalhando sem pausa para chegar ao fim das suas pesquisas com a solução dos problemas geográfi-
cos e a descoberta dos tesouros escondidos para enriquecer a história natural e o comércio, o filantropo cris-
tão, dirigindo o seu olhar para as condições espirituais e sociais daqueles povos, curvados sob o jugo de Sa-
tanás, difundiu, por sua vez, os efeitos da fraterna comiseração e a eficácia da sua cooperação para o melho-
ramento da sua triste sorte. E, na verdade, até hoje, estes piedosos sentimentos receberam de várias partes
poderosos e eficazes impulsos, fizeram-se também continuamente coisas louváveis para tirar a infeliz estirpe
dos negros da sua deplorável condição, orientando-a para viver segundo a luz da verdade cristã.
802
À parte as múltiplas e diferentes expedições de zelosos missionários que bastantes ordens religiosas e so-
ciedades eclesiásticas empreenderam nos passados séculos, sob a autorização da Sagrada Congregação de
Propaganda Fide, com o fim de levantar o estandarte da cruz nas ardentes planícies habitadas pelos negros, o
Pontífice Gregório XVI, de veneranda memória, fundava a missão da África Central; e o imortal Pio IX,
gloriosamente reinante, confirmando os decretos do seu predecessor, enviava para lá os missionários, os
quais, batendo a via do Nilo, em 1848 penetravam no novo vicariato apostólico, o mais vasto do mundo, que
abrangia uma superfície maior que o dobro de toda a Europa. Neste campo vastíssimo, aberto ao zelo da
caridade do Evangelho, fizeram inauditos esforços muitos dignos sacerdotes da Alemanha austríaca e bávara,
e sobretudo do Tirol alemão, congregados pelo excelso comité da Sociedade de Maria e pelo fervoroso zelo
do benemérito professor Mitterrutzner; depois, os missionários do Instituto Mazza de Verona; e, por último,
um numeroso grupo de franciscanos. Esta falange eleita da milícia de Cristo, depois de tremendos obstáculos
e enormes sacrifícios, conseguia fundar ao longo das margens do majestoso Nilo, que corre entre o Trópico
do Câncer e o Equador, quatro estações importantíssimas, determinando como centro de comunicação a me-
trópole do Sudão egípcio, cujas condições políticas e situação geográfica a destinavam a ser o último apoio
dos europeus que viajam para aqueles remotos lugares.
803
Mas todas estas generosas tentativas da caridade do Evangelho, todos estes nobilíssimos esforços de mais
de três lustros se desfaziam ao chocar com os escolhos que lhe erguiam insuperáveis um torpe egoísmo, a
caterva de incómodos e a inclemência do clima daquelas desventuradas terras, letal para o europeu; e com o
sacrifício da vida de mais de três quartos dos atletas de Cristo consagrados àquela árdua empresa compra-
ram-se a alto preço os escassos frutos de limitadas e pouco firmes conversões.
804
Nós, que por algum templo explorámos aquelas remotas tribos e que na medida em que no-lo permitiram
as terríveis doenças que, várias vezes, nos levaram à beira da sepultura, estudámos a natureza, os costumes e
as condições sociais, compreendemos, entre outras coisas, que, para além do primeiro obstáculo que se nos
opunha à conversão dos negros, ou seja, a inclemência do clima, havia a falta de um centro vital que fosse
capaz de perpetuar a obra da Propagação da Fé na África Central.
805
Qualquer missão, para que se possa garantir a sua perpetuação, precisa de ter um centro seguro donde
emane incessantemente o espírito de vitalidade, que se estenda vigoroso pela sua superfície a fim de conser-
var nela os preciosos rebentos, a existência e o ministério; um centro vital que lhe forneça e possibilite per-
manentemente o recrutamento anual, com o qual se nutram as fileiras dos missionários continuamente dimi-
nuídas pela inclemência climática, as fadigas e o martírio. Este centro de vitalidade mostra-se oportuno, em
geral, nos institutos e seminários da Europa, em benefício das missões da Ásia, da América e Oceânia, ao
haver entre a Europa e estas três partes do mundo certa homogeneidade de índole, costumes e clima, ou, ao
menos, entre uma e as outras um poder de comunicar e uma capacidade de receber de maneira permanente e
estável as mágicas impressões da vida, que nos corpos da sociedade humana costuma infundir o espírito do
Evangelho.
806
Porém, tal centro benéfico do qual brote esse espírito de vitalidade tão necessário para a conservação e
perpetuação das missões estrangeiras não pode ser, aqui na Europa, oportuno nem eficaz para a conversão
dos negros. Porque a experiência demonstrou claramente que o missionário europeu não pode trabalhar na
sua obra de redenção naquelas abrasadas regiões da África interior, funestas para a sua vida; que ele não
pode suportar a dureza das fadigas, a multiplicidade dos incómodos e a inclemência do clima. E igualmente a
experiência demonstrou que o negro não pode receber na Europa uma completa instrução católica, de modo
que, depois, seja capaz, por um contínuo bem-estar físico e de ânimo, de promover na sua terra natal a pro-
pagação da fé; porque ou não pode viver na Europa ou, ao regressar a África, se revela inadequado devido
aos quase inevitáveis costumes europeus adquiridos no centro de educação, os quais favorecem a rejeição e
são nocivos nas condições da vida africana.
807
Nós somos testemunhas oculares dos terríveis estragos que causaram nos mais robustos missionários as
fadigas, os incómodos e o deletério clima africano. Isso era de tal maneira que os que sobreviviam à perigosa
viagem ao Nilo Branco, logo que, pela aprendizagem da língua de uma tribo onde se implantara uma estação
católica, ficavam em condições para evangelizar os africanos, sucumbiam quase logo a uma morte repentina,
deixando sempre estéril o fruto da obra da conversão dos negros, os quais, pelas sempre contínuas e reitera-
das baixas entre os missionários, gemem ainda sob o domínio do mais degradante feiticismo. Por outro lado,
a Propaganda, que tem conhecimento de todas as instituições que na Europa empreenderam a educação de
indivíduos de raça negra, está em grau de confirmar a verdade da ineficácia e inoportunidade da criação de
um clero indígena formado em terras europeias e destinado a evangelizar o centro de África.
808
Assim, pois, tendo a experiência claramente demonstrado que o sistema seguido até agora, ainda que uti-
líssimo para a conversão dos infiéis das outras partes do globo, é em contrapartida totalmente inadequado
para a regeneração da África interior, porque, ao não poder o missionário europeu viver naquelas escaldantes
regiões, não conseguirá nunca implantar e perpetuar ali a fé, e porque o indígena africano formado na Europa
se torna, pelas razões acima apresentadas, incapaz de exercer o ministério na sua terra natal, a S. Congrega-
ção de Propaganda Fide está na terrível alternativa de decretar a extinção da importante missão da África
Central ou de solicitar a elaboração de um projecto que inspire mais fundadas esperanças de êxito na conver-
são dos negros.
809
Mas a desoladora ideia de ver suspensa, talvez por muitos séculos, a obra da Igreja em favor de tantos mi-
lhões de almas que ainda gemem nas trevas e na sombra da morte, deve ferir profundamente e dominar de
forma indomável o coração de todo o devoto e fiel católico inflamado pelo espírito da caridade de Jesus Cris-
to. Por isso, para seguir o impulso desta sobre-humana virtude e para afastar para sempre do filantropo cris-
tão a angustiosa ideia de deixar no poder do paganismo e da barbárie essas imensas e povoadas regiões, sem
dúvida as mais necessitadas e abandonadas do mundo, é preciso abandonar o caminho até agora seguido,
mudar o antigo sistema e criar um projecto que conduza mais eficazmente ao almejado fim. Esta é a razão
pela qual, em nossa pequenez, tratámos de encontrar um caminho provável, senão seguro, a fim de começar a
dar os passos necessários para a regeneração futura dessas almas abandonadas, a cujo bem estiveram sempre
dirigidos todos os pensamentos da nossa vida e pelas quais derramaremos o nosso sangue até à última gota.
810
E eis que nos vem à mente um projecto que, se não apresenta todas as vantagens susceptíveis de se encon-
trarem nos concebidos em favor doutras partes do mundo, talvez seja válido para produzir uma considerável
melhoria na infeliz condição dos negros, de sorte que, pelas vias traçadas pela Providência, cheguem a parti-
cipar pouco a pouco dos frutos inefáveis da redenção do Homem-Deus.
811
Não somente os negros da África interior, mas também os das costas e de todas as outras partes da grande
península, embora divididos em milhares de tribos diferentes, são marcados mais ou menos pela mesma ín-
dole, hábitos, tendências e costumes que aqueles que há muito se ocupam do seu bem conhecem; e portanto,
parece-nos que a caridade do Evangelho pode fornecer-lhes remédios e ajudas comuns, que permitam comu-
nicar à grande família dos negros as preciosas vantagens da fé católica. Assim, nós consideramos oportuno e
quase diríamos necessário que, de entre as múltiplas ideias que se podem levar à prática para a regeneração
dos negros, se escolha aquela que reúna em si uma absoluta unidade de concepção, a par de uma simplicida-
de de aplicação.
812
E tal nos pareceria precisamente o projecto que idealizámos para a conversão dos negros; projecto que,
embora vasto na sua extensão e árduo na sua completa realização, se nos apresenta, contudo, uno e simples
na sua concepção e na sua aplicação.
813
Este projecto, por isso, não se restringiria aos antigos limites traçados para a missão da África Central,
que vimos fracassar pelas razões supraditas, mas abarcaria toda a estirpe dos negros; e por isso desdobraria
e estenderia a sua actividade a quase toda a África, cujos países são habitados pela raça negra.
814
Ora, embora a S. Sé Aplica. não tenha conseguido implantar estavelmente a fé nas mais vastas tribos da
Nigrícia central, dispensa as suas benéficas atenções às ilhas e costas que rodeiam a grande península africa-
na, onde fundou doze vicariatos, nove prefeituras apostólicas e dez dioceses, que se apresentam mais ou me-
nos florescentes:
815
A setentrião, os dois vicariatos apostólicos do Egipto e da Tunísia e as três prefeituras apostólicas do Al-
to Egipto, Trípoli e Marrocos.
816
A poente, os cinco vicariatos apostólicos de Senegâmbia, Serra Leoa, Daomé, Guinés e Natal e as três
prefeituras apostólicas do Senegal, Congo e das ilhas Ano Bom, Corisco e Fernando Pó.
817
A meio-dia, os dois vicariatos apostólicos dos Distritos Oriental e Ocidental do cabo da Boa Esperança.
818
A sudeste, o vicariato apostólico de Madagáscar e as três prefeituras apostólicas de Zanzibar, das ilhas
Seychelles e das ilhas Nossibé, Sta. Maria e Mayotte.
819
A nordeste, os dois vicariatos apostólicos de Abissínia e dos Gallas.
820
Por outro lado florescem entre as dez dioceses especialmente: a setentrião, a de Argel e a sudeste, a de S.
Dinis, na ilha de Reunião, no oceano Índico. É, portanto, natural que, para realizar o projecto idealizado, seja
necessário solicitar a ajuda e cooperação destes vicariatos, prefeituras e dioceses já estabelecidos à volta de
África, os quais, contemplando mais de perto a lastimosa miséria e a extrema necessidade das imensas popu-
lações do interior, sobre as quais ainda não brilhou o luminosíssimo astro da fé, poderão concorrer valida-
mente com a sua autoridade, o seu conselho e as suas obras, para auxiliar e facilitar a realização da grande
empresa de regenerar as vastas e populosas tribos da Nigrícia inteira.
821
O Projecto, portanto, que nos atreveríamos a submeter à S. Congr. de Prop. Fide seria a criação de inu-
meráveis institutos de ambos os sexos que deveriam rodear toda a África, estrategicamente situados em lu-
gares oportunos, à menor distância possível das regiões interiores da Nigrícia, dentro de zonas seguras e algo
civilizadas, nas quais pudesse viver e trabalhar tanto o europeu como o africano.
822
Estes institutos masculinos e femininos, cada um colocado e erigido segundo as normas das constituições
canónicas, devem acolher rapazes e raparigas de raça negra, a fim de os instruir na religião católica e na civi-
lização cristã, para criar com eles dois corpos, um de cada sexo, destinados, cada um por seu lado, a avançar
pouco a pouco e estender-se pelas regiões interiores da Nigrícia para implantar aí a fé e civilização recebidas.
823
Para dirigir estes institutos seriam chamadas ordens religiosas e instituições católicas masculinas e femi-
ninas, aprovadas pela Igreja ou reconhecidas ou permitidas pela S. Congr. de Prop. Fide, com o beneplácito
desta e o acordo recíproco com os chefes e superiores gerais dessas ordens e instituições. Além disso, sob
mandato da Propaganda, poder-se-ão fundar com o mesmo fim novos seminários para as missões africanas,
constituídos segundo o plano dos seminários das missões estrangeiras já existentes, com a aplicação de todas
as normas que a experiência revelasse convenientes para a África.
824
Estes institutos seriam colocados sob a jurisdição dos vicariatos e prefeituras apostólicas já existentes nas
costas de África ou dos que a S. Cong. de Prop. Fide decidisse fundar, segundo os progressos da obra do
novo Projecto.
825
O pessoal da direcção destes institutos governaria os respectivos corpos de alunos atendo-se às regras e ao
espírito da própria instituição, com adaptação à conveniência e às necessidades da África interior; e teria
como objectivo específico obter a manutenção e o bom funcionamento dos institutos de negros e negras, mas
sem deixar de promover e realizar todo o bem que puder nas terras onde os institutos estiverem localizados.
826
A formação que deverá dar-se a todos os indivíduos de ambos os sexos pertencentes aos institutos que ro-
deiam a África consistirá em infundir nas suas almas e fazer com que nelas se enraízem o espírito de Jesus
Cristo, a integridade de costumes, a firmeza na fé, as regras da moral cristã, o conhecimento do catecismo
católico e os primeiros rudimentos do saber humano de primeira necessidade. Além disto, cada um dos va-
rões será instruído na ciência prática da agricultura e uma ou mais artes de primeira necessidade; do mesmo
modo, as mulheres serão instruídas nas tarefas domésticas de primeira necessidade. E isto, a fim de que os
primeiros se convertam em homens honrados e virtuosos, úteis e activos, e as segundas cheguem a ser, por
seu lado, virtuosas e hábeis mães de família. Cremos que esta activa aplicação ao trabalho, a que desejamos
submeter todos os membros dos institutos africanos, pode redundar grandemente no bem moral e espiritual
dos indivíduos de raça negra, muito inclinada à preguiça e à inacção.
827
Quando os alunos de ambos os sexos tiverem completado a sua educação religiosa e civil, a direcção do
respectivo Instituto favorecerá o mais possível cada indivíduo que saia da sua jurisdição, prestando-lhe ajuda
e conselho para que se encontre em condições de conservar os sãos princípios de religião e de moral que lhe
foram inculcados com a formação recebida.
828
Cada um destes institutos que rodearem a grande península africana dará origem ao respectivo corpo
masculino e feminino, destinado a introduzir-se gradualmente nas regiões da Nigrícia central, a fim de iniciar
e estabelecer nesses lugares a obra salvífica do catolicismo e criar aí estações que difundam a luz da religião
e da civilização.
829
O corpo de jovens negros, formado pelos indivíduos que se considerem aptos para o grande fim, será
constituído:
1.o Por hábeis catequistas, a quem será dado um amplo conhecimento das ciências sagradas
2.o Por hábeis professores, a quem se instruirá quanto possível nas ciências de primeira necessidade.
3º. Por hábeis artesãos, a quem se ministrará o ensinamento prático das artes necessárias e mais úteis nas
regiões centrais, para formá-los como virtuosos e hábeis agricultores, médicos, sangradores, enfermei-
ros, farmacêuticos, carpinteiros, alfaiates, pedreiros, sapateiros, etc.
O corpo das jovens negras, formado igualmente pelas que se mostrarem mais aptas para o grande fim, se-
rá constituído:
1.o Por hábeis catequistas, que serão o melhor possível instruídas na religião e na moral católica, a fim de
que difundam as suas regras e a sua prática na degradada sociedade feminina africana, da qual, como
entre nós, depende absolutamente a regeneração da grande família dos negros.
o
2. Por hábeis professoras e donas de casa, que promoverão a instrução feminina, a ler, escrever, fazer
contas, fiar, coser, tecer, cuidar dos doentes e exercer as tarefas femininas mais úteis nos países da Ni-
grícia central.
830
Entrando, pouco a pouco, estes dois grandes Corpos nos diversos povos do interior, por meio de cada um
dos diferentes Institutos que rodearem a África, cada indivíduo, enquanto trabalhar na propagação da religião
e da civilização, função em que ele foi instruído, e na promoção da agricultura nas terras virgens de livre
ocupação, poderá abraçar o estado de vida para o qual se sinta mais inclinado.
831
Da classe dos catequistas integrada no corpo dos jovens negros formar-se-á uma secção com os indiví-
duos mais distintos pela sua piedade e saber, nos quais se descobrir uma provável inclinação para o estado
eclesiástico; e esta será destinada ao exercício do ministério divino. Na instituição desta secção privilegiada
excluir-se-á a multiplicidade de matérias a que estão sujeitos os alunos dos seminários da Europa; a instrução
limitar-se-á às disciplinas teológicas e científicas de primeira necessidade, suficientes para as necessidades e
exigências daqueles países. E tendo em conta o precoce desenvolvimento físico e intelectual do indígena
africano, não quereríamos que esta instrução durasse doze e mais anos, como está estabelecido na Europa;
parece-nos suficiente ser limitada a uma duração de seis a oito anos.
832
Contudo, a especial condição de inconstância e indolência que marcam a índole e o carácter da raça negra
deverá impor a mais rigorosa cautela ao determinar, para os aspirantes ao sacerdócio, a época da sua promo-
ção às ordens sagradas. E nós estamos plenamente convencidos de que é absolutamente necessário estabele-
cer que não as recebam senão depois de bastantes anos de provada firmeza e castidade, passados no novicia-
do de uma vida exemplar e activa e no ministério da comunicação da palavra divina, exercido nas estações
já implantadas no interior da Nigrícia, em condições de um severo e irrepreensível celibato.
833
Do corpo das jovens negras, de entre as que não se sintam inclinadas ao estado conjugal, criar-se-á, do
mesmo modo, a secção das virgens da caridade, formada por aquelas que se distinguirem por sua piedade e
conhecimento prático do catecismo, das línguas e lavores femininos. Esta secção privilegiada constituirá a
mais selecta falange do corpo feminino, destinada a dirigir as escolas de meninas, a realizar as funções mais
importantes da caridade cristã e a exercer o ministério da mulher católica entre as tribos da Nigrícia.
834
Deste modo, graças ao importantíssimo ministério do clero indígena e das virgens da caridade, secunda-
do pela acção benéfica dos catequistas, dos professores e dos artesãos, assim como das catequistas e das
professoras e mães de família, formar-se-ão pouco a pouco numerosas famílias católicas e surgirão flores-
centes sociedades cristãs e a nossa santa religião, estendendo a sua saudável influência sobre a família afri-
cana, alargará pouco a pouco o seu benéfico domínio à vasta extensão das inexploradas regiões da Nigrícia
inteira.
835
Tendo a experiência demonstrado que só a continuada permanência nos países do interior e não uma es-
tada temporal é perigosa e até fatal para o europeu, as fundações de missões e de cristandades que, com o
andar do tempo, se constituírem nos países da África Central serão iniciadas e postas a funcionar pessoal-
mente por missionários europeus, enviados para tal fim pelos respectivos vigários e prefeitos apostólicos.
Eles deverão determinar, de entre os catequistas e sacerdotes indígenas de provada idoneidade, o pessoal a
quem será confiada a direcção permanente das estações e cristandades do interior, já iniciadas e postas a
funcionar pelos missionários europeus.
836
Por outro lado, as estatísticas das missões africanas provaram que a mulher europeia, dada a vantajosa
elasticidade do seu físico, a índole da sua moral e os hábitos da sua vida doméstica e social, resiste bastante
mais que o missionário europeu à inclemência do clima africano. Por isso, em conformidade com o juízo e o
mandato dos respectivos vigários ou prefeitos apostólicos, poderão estabelecer-se institutos regulares femi-
ninos da Europa nos países do interior da África menos letais para o europeu, a fim de prestar com eficácia
os maravilhosos e importantes serviços da mulher católica em favor da regeneração da grande família dos
negros.
837
Como a índole e o carácter dessa raça é extremamente variável e inconstante, achamos oportuno e neces-
sário que a S. Cong. de Prop. Fide autorize os vigários e prefeitos apostólicos, em sua legítima e correspon-
dente jurisdição, a decretar frequentes visitas apostólicas às missões e cristandades estabelecidas no interior,
com o intuito de corrigir, fortalecer e melhorar as condições do catolicismo naquelas perigosas terras, onde
amiúde um egoísmo mesquinho e o fanático fervor do Islamismo corrompem e desfazem a obra do sacerdó-
cio cristão, onde o teor de vida, o clima e outras especiais circunstâncias contribuam para debilitar, a par do
corpo, o espírito e relaxar a disciplina eclesiástica com grave perigo da fé. Com essa finalidade, enviariam
missionários europeus idóneos, que, sem risco absoluto da vida, pela razão antes exposta, poderiam, com
grande proveito, levar a cabo a sua importante missão.
838
Com o objectivo de cultivar as inteligências que eventualmente se tenham destacado na secção dos missi-
onários indígenas, para os formar como hábeis e iluminados chefes das cristandades do interior da Nigrícia, a
sociedade destinada a regular o novo Projecto, vistos os progressos das suas grandes obras, poderá fundar
para esse fim quatro grandes universidades africanas teológico-científicas nos quatro pontos mais importan-
tes da periferia da África, que seriam, em nossa opinião: Argel; Cairo; St. Denis, na ilha Reunião, no oceano
Índico; e uma das cidades mais importantes das costas ocidentais da África, no oceano Atlântico.
839
Nestes quatro centros universitários, como também noutros pontos de grande importância das ilhas e cos-
tas que circundam a África, poderiam fundar-se, com o passar do tempo, grandes estabelecimentos artesa-
nais de aperfeiçoamento para os jovens negros da classe dos artesãos considerados mais aptos para recebe-
rem uma instrução mais profunda, a fim de que, com a introdução de artes que melhorem as condições mate-
riais das vastas tribos da Nigrícia, os missionários encontrem facilitada a sua tarefa de implantar aí mais pro-
funda e estavelmente a fé.
840
Para pôr em prática e dirigir o novo Projecto constituir-se-á numa das capitais da Europa um comité,
composto por hábeis e activos prelados, eclesiásticos e distintos seculares, dependente da S. Cong. de Prop.
Fide. O comité, dirigido por um presidente, receberá o nome de Comité da Sociedade dos Sagrados Cora-
ções de Jesus e de Maria para a Conversão da Nigrícia.
841
A missão específica deste comité será:
1.o Por meio de um procurador estabelecido em Roma manter contactos com a S. Congr. de Prop. Fide e
tratar sobre cada um dos empreendimentos mais importantes da nova sociedade.
o
2. Tratar com os centros gerais das ordens e congregações masculinas e femininas da fundação dos insti-
tutos africanos e manter correspondência com os ditos centros, com os vicariatos e prefeituras apostó-
licas da África e com as direcções dos institutos de negros.
o
3. Proporcionar os meios pecuniários e materiais para a realização do novo Projecto, com o beneplácito
da Sagrada Congregação de Propaganda Fide.
o
4. Fundar institutos, seminários e estabelecimentos artesanais nos centros mais adequados da Europa e da
América para as missões da África.
5.o Criar um corpo de cultos e diligentes missionários europeus, para tratar pessoalmente com os vigários
e prefeitos apostólicos da África e com os chefes dos institutos sobre as coisas que forem do interesse
da nova sociedade e explorar as costas e os pontos mais importantes da África, onde estabelecer os
institutos de negros.
o
6. Estudar e aplicar os meios mais eficazes para melhorar o modo de realização do novo projecto.
7.o Recolher e publicar anualmente em várias línguas os progressos das obras da nova sociedade e extrair
conhecimentos da experiência prática para melhorar a condição dos institutos e cristandades africanos
em proveito da regeneração da Nigrícia.
842
Temos a firme esperança de que este projecto da Sociedade dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria
para a Conversão da Nigrícia, no caso de ser acolhido favoravelmente pela Santa Sé Apostólica, obterá a
cooperação de todas as santas instituições que até agora se dedicaram ou tentaram promover o melhoramento
espiritual da raça negra e receberá também protecção e ajuda dessas pias sociedades que fornecem meios
pecuniários e materiais às santas obras instituídas para a propagação da fé de Jesus Cristo.
843
Finalmente, sorri-nos na alma a mais doce esperança de que a unidade, a simplicidade e a utilidade do
novo projecto da Sociedade dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria para a Conversão da Nigrícia satisfa-
rão a mente e o coração do nosso Ss.mo Padre, o imortal Pontífice Pio IX, do Emo. Cardeal-Prefeito Geral e
dos Emos. e dos Revmos. Componentes e Consultores da Sagrada Cong. de Prop. Fide e que, ao mesmo
tempo, encontrará um eco de aprovação e um ponto de favor e de ajuda no coração dos católicos de todo o
mundo, identificados e incluídos no espírito dessa sobre-humana caridade que abarca essa imensa vastidão
do universo e que o divino Salvador veio trazer à Terra: ignem veni mittere in Terram et quid volo nisi ut
accendatur?
844
Se a S. Sé Apostólica sorrir benignamente ao novo Projecto da Sociedade dos Sagdos. Corações de J. e de
M. para a Conversão da Nigrícia, nós estaremos contentes de consagrar as nossas débeis forças e toda a nos-
sa vida para cooperar, na nossa pequenez, na grande obra. Temos a firme certeza do seu feliz resultado, por-
que nos mostrará a suprema vontade do Céu; e o grande Deus das misericórdias eliminará para sempre a
tremenda maldição que há tantos séculos pesa sobre os míseros filhos de Cam, e a bênção estender-se-á pací-
fica e perpetuar-se-á na grande família dos negros.
845
E se a S. Sé Apostólica não julgar oportuno aprovar este novo Projecto, nós também ficaremos contentes
de nos submetermos totalmente às sempre adoráveis disposições da Divina Providência e teremos um novo
motivo para, com toda a razão, exclamarmos com o Apóstolo: servi inutiles sumus.

846
Louvor e glória aos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria,
A S. José, aos Stos. Apóstolos, a S. Francisco Xavier,
Ao B. P.e Claver e à B. M.a Alacoque.

P.e Daniel Comboni


Do Insto. Mazza
Mis. ap. da África Central

Roma, 18 de Setembro de 1864


Dia da Beatificação
De Sóror M.a Alacoque da Visitação

847
P. S. A Santidade de N. S. Pio IX dignou-se encorajar a execução deste novo projecto para a conversão da
Nigrícia; e Sua Em.a o Cardeal Barnabó, prefeito geral da S. Congregação de Propaganda Fide, quer que
conte com a assistência da Pia Obra da Propagação da Fé de Lião e de Paris.
848
Como corolário deste novo projecto, resultará a realização do Plano do muito Rev.do P. e Nicolau Mazza,
a cujo Instituto será atribuído um vicariato ou uma prefeitura apostólica na África Central, assistida pela
Sociedade de Maria de Viena.

P.e Comboni
N.o 115 (111) - A P.e BIAGIO VERRI
AISM, Savona

Roma, 28 de Setembro de 1864

Caríssimo P.e Biagio,

849
Tomei conhecimento com suma dor que está muito doente o nosso santo padre Olivieri. Esperemos em
Deus que se cure. Em Roma teremos muito que falar da nossa querida África.
Os três recém-convertidos de Constantinopla vão a França para conseguir um trabalho. Estão munidos de
mil cartas de recomendação e pedem-me uma também a mim; peço-lhe que os favoreça no que puder. Sába-
do apresentarei ao Papa a ordem do Cardeal Barnabó. Aqui em Roma está o sobrinho do P. e Ludovico.
Apresentei à Propaganda o meu plano de criação de bastantes institutos que deverão rodear toda a África.
Em Roma falaremos. Apresente os meus respeitos ao P.e Olivieri e as minhas saudações a Madalena.
Rogue aos Sagdos. Corações de J. e de M. por seu

Af.mo serv.
e
P. Daniel Comboni M. A.

N.o 116 (112) - A P.e GODOFREDO NOECKER


«Jahresbericht...» 12 (1864), pp. 85-86

Roma, 28 de Setembro de 1864

Reverendo senhor,

850
Recebo agora de Verona a notícia de que o banco veronês Fratelli Smania tem preparada para mim e para
os meus pobres negros a importância de 1 472 fr. Não sei expressar-lhe com palavras os meus sentimentos de
gratidão. Creio que nunca se arrependerá de me ter socorrido.
851
Desde há uns dias que se encontra em Roma um sacerdote espanhol, vindo para obter a aprovação de uma
obra de beneficência para a África. O Card. Barnabó enviou-o a mim para que me expusesse o assunto e eu
decidisse. Parece que a Propaganda quer subordinar ao meu Plano e fazer passar por minhas mãos todas as
obras em favor dos negros.
E mais ainda: antes de lhe conceder a aprovação, o cardeal quer ouvir a minha opinião sobre o novo pro-
jecto do P.e Ludovico referente à fundação de duas casas no Egipto e em conformidade com a minha indica-
ção se estabelecerá depois o acordo com o delegado apostólico do Egipto. O P.e Ludovico espera-me em
Nápoles para acertar as coisas comigo. O Papa e a Propaganda mostram-se muito condescendentes e satisfa-
zem de boa vontade as minhas propostas e os meus desejos. Demos por isso graças a Deus e roguemos para
que se cumpra a divina vontade para o maior bem da África.

P.e Daniel Comboni


Original alemão
Tradução do italiano

N.o 117 (113) - A P.e GODOFREDO NOECKER


«Jahresbericht...» 12 (1864), pp. 44-85

Roma, Setembro de 1864


Reverendo senhor,

852
Lamento muito não poder comunicar-lhe este ano nenhuma notícia alegre sobre os meus negros; porque,
à excepção de Miguel Ladoh e do pequeno António, todos os demais contraíram uma má doença africana,
que, apesar de todos os cuidados que a caridade cristã nos levou a prestar-lhes, tomou uma forma maligna
nos pobres africanos e para bastantes deles terminou numa morte impressionante. Embora estejamos abatidos
por estas desgraças que nos tiram a esperança de poder educar na Europa os meus negros em benefício da
missão da África Central, contudo a vida angelical destes queridos meninos que nos foram confiados e a sua
comovedora morte enche-nos de inefável conforto, o qual também deve atingi-lo a si pelos sacrifícios que
fez em favor do negros de Verona.
853
Esta vez quero falar-lhe do nosso Pedro Bullo que, depois de uma vida exemplar, teve uma morte de anjo.
Mas antes devo dizer como obtive este rapaz e informá-lo finalmente da viagem que fiz ao mar Vermelho, a
fim de reunir um considerável número de alunos para o nosso instituto africano.
854
Em Setembro de 1860, recebi carta da Índia do rev.mo sr. Celestino Spelta, vigário apostólico de Yupe e
visitador geral da China (eu tinha conhecido este senhor no ano anterior na minha viagem do Cairo a Roma e
tinha-o posto ao corrente da finalidade do meu instituto); nessa carta comunicava-me que em Adem havia
um grande número de meninos negros, os quais eram precisamente adequados para o nosso Instituto de Ve-
rona. Disse-o a meu superior P.e Nicolau Mazza, o qual quis antes de tudo assegurar-se de um modo mais
preciso da verdade desta informação e só depois tomar uma decisão. Mas como obter dados mais precisos,
isso ainda não sabia. Nem tão-pouco a Divina Providência nos mostrou muito rapidamente a sua adorabilís-
sima vontade. No dia 10 de Outubro desse mesmo ano, um missionário carmelita trouxe-nos para Verona
dois negros que o rev.do P.e Juvenal de Tortosa, prefeito de Adem, lhe confiara quando o seu barco, proce-
dente de Malabar, aportou a Adem. O prefeito tinha pedido a esse missionário da Índia que levara consigo
bastantes outros desses meninos; mas, como tinha pouco dinheiro, não pôde levar senão dois. Nós examiná-
mos os dois rapazes e encontrámo-los muito adequados e dispostos para os nossos fins. Então o meu superi-
or, sem pensar mais tempo, mandou-me ir ao Oriente.
855
Todavia recordo que P.e Mazza me pediu um orçamento dos gastos da viagem e das compras dos negros
e, pensando eu encontrar de 40 a 50 rapazes, calculei que necessitaria uns 25 000 francos. O meu superior
olhou bem para a sua bolsa e disse-me: «Não tenho mais que 13 florins.» «Então terei que ficar em Verona»,
respondi-lhe. «Nada disso – replicou ele – dentro de três dias sairás para o Oriente.»
856
Para mim foi uma sorte não ter-me obstinado na minha ideia. Fui a Veneza buscar os passaportes para os
meninos negros que tinha que levar para Nápoles e ao terceiro dia P.e Mazza abençoou a minha partida, deu-
me 2000 francos (que recebera do conde José Giovanelli e de sua devota esposa, a qual ofereceu 900 fr.) e
disse: «Vai igualmente. Toma 2000 fr., pois agora não te posso dar mais. Pede a Deus que me faça encontrar
mais dinheiro, porque eu quero ajudar-te. Mas tu desenvencilha-te de qualquer maneira.»
Duas horas depois deixava eu Verona e dirigia-me ao Instituto da Palma para entregar ao P.e Ludovico de
Casoria quatro rapazes que não podiam suportar o clima veronês.
857
Conversando com o P.e Ludovico, vim a saber que a obra do P.e Olivieri era objecto de uma terrível hos-
tilidade, tanto por parte dos turcos como de bastantes cônsules europeus.
858
No ano anterior, quando regressava ao Egipto vindo do centro da África, eu mesmo fui testemunha das
aflições de P.e Biagio Verri, com quem foram encarceradas cinco negras, as quais, depois das informações
de uns senhores do consulado inglês, que se tinham mostrado sempre contrários aos progressos do catolicis-
mo, o Governo egípcio considerou como escravas.
Depois da guerra do Oriente, nas estipulações do Tratado de Paris tinha ficado proibida a escravatura e o
tráfego de escravos e esta lei justa, que tinha sido promovida pela sociedade europeia e pelo Evangelho, foi
manipulada, mal interpretada e mudada pelos turcos. Deste modo, consideraram P.e Olivieri e o seu compa-
nheiro P.e Biagio Verri como esclavagistas, porque estes adquiriam com dinheiro as pobres negras das mãos
dos jilabas (negociantes de escravos). Por outro lado, eu já tomara conhecimento de que os mais implacáveis
inimigos do P.e Olivieri eram os senhores do consulado inglês de Alexandria, os quais tinham assegurado ao
Paxá que os sacerdotes católicos praticavam o comércio de escravos e que havia que pôr fim a essa desor-
dem. Essas falsas informações dos ingleses e a errónea interpretação que o Governo egípcio fazia do resgate
de escravos causaram a P.e Verri grandes desgostos e inumeráveis dificuldades. Conhecendo tudo isto e ten-
do ouvido dizer que a luta contra a obra do P.e Olivieri continuava, decidi ir a Roma, onde esperava encon-
trar boas recomendações para o consulado inglês do Egipto.
859
Deus realizou o meu desejo. Mons. Nardi, amigo e benfeitor do meu Instituto, conduziu-me até Lorde
Hennesy Pope, membro da Câmara dos Comuns de Londres, o qual, sabido o objectivo da minha viagem, me
proporcionou uma carta de recomendação de Odo Russel, embaixador britânico em Roma, mediante a qual
solicitava ao cônsul-geral de Sua Majestade britânica no Egipto que me outorgasse plena protecção e me
obtivesse do paxá do Egipto autorização para trazer de Alexandria para a Europa todos os negros que eu lhe
apresentasse, os quais, a partir de então, não seriam já escravos, mas indivíduos totalmente livres. Ao enviar-
me esta carta, Lorde Hennesy Pope escreveu-me também que, em caso de encontrar no Egipto dificuldades
por parte do consulado inglês ou do Governo egípcio, me podia dirigir a Londres, à Câmara dos Comuns,
onde ele se comprazeria em conceder-me protecção para que eu pudesse levar a cabo a minha empresa.
860
Recebida a bênção do Santo Padre, com esta carta de recomendação e com bastantes outras que me podi-
am ser úteis em muitos consulados do Egipto, deixei a Cidade Eterna e em Civitavecchia apanhei o Carmel,
barco francês que me levou até Malta. Esta viagem no Carmel correu melhor que a que havia realizada a
bordo do Stella d’Italia de Génova a Nápoles, no qual os meus quatro negros se sentiram muito mal. Porém,
mais perigosa ainda foi a viagem de Malta a Alexandria no vapor francês Euphrat, que parecia naufragar por
causa duma terrível tormenta, que nos meteu grande medo. Com a ajuda de Deus chegámos à costa africana,
em frente de Alexandria.
861
No Cairo tive a sorte de falar com o P.e Anastásio, polaco, que acabava de chegar da Índia. Tinha-se in-
teirado de que tanto em Bombaim como nas costas do Malabar havia um grande número de negros que eu
poderia adquirir com grande facilidade. Também a ele lhe tinham oferecido bastantes desses negros, mas não
tinha podido aceitá-los por não saber que fazer com eles. Não querendo deter-me mais no Egipto, apanhei o
comboio para Suez, onde embarquei no Nepual, um vapor da companhia inglesa de navegação peninsular
oriental. Por uma passagem de segunda tive de pagar 450 fr.
Depois de sete dias de perigosa viagem por todo o mar Vermelho, cheguei a Adem.
862
Abstenho-me de falar da minha breve visita a Bombaim e às costas de Zanzibar, porque essas incursões
não tiveram sucesso, já que todos os negros que encontrei ou estavam a trabalhar para os indianos ou com os
católicos portugueses ou não me foram entregues. Vou deter-me apenas no que de interessante me aconteceu
em Adem.
863
Creio necessário explicar o facto de se encontrarem tantos negros na costa da Arábia. Nos começos de
1860 muitos jilabas (traficantes de escravos abissínios) percorreram o seu país e as extensas regiões dos
Gallas, Tigré, Dobbi, Ammaya, Sodo, Nono, Sima, etc. e capturaram mais de quatrocentos escravos, homens
e mulheres. É horrível a maneira como estes ladrões se apoderam dos pobres negros. Serviram-se da hospita-
lidade encontrada em algumas famílias gallas para conhecerem com precisão as futuras presas e de noite
roubaram os jovens, fizeram-nos montar sobre os seus cavalos e dromedários e fugiram para o Sul. Muitos
pais que compreenderam o perigo em que se encontravam os seus filhos foram assassinados ao opor-se ao
monstruoso roubo.
864
O nosso pobre Pedro Bullo tinha sido roubado de forma similar. Tinha-se afastado um pouco do tukul,
onde vivia com seus pais, para brincar com os outros meninos, quando recebeu de um jilaba, Haymin Badas-
si, uns frutos do bosque e foi conduzido cada vez para mais longe da casa, junto com a maioria dos seus
companheiros de brincadeiras. Mas, de repente, os jilabas apoderaram-se dele e dos outros rapazes, fazendo-
os montar nos seus cavalos. Para impedirem que gritasse, amordaçaram-no solidamente e além disso envol-
veram-lhe a cabeça com vendas de algodão, tirando-lhe assim toda a possibilidade de ver e de gritar. Porém,
isto não evitou os gritos dos outros meninos que haviam sido raptados, e quando a mãe de Pedro correu na-
quela direcção e entre lamentos reclamou seu filho, caiu morta no chão com um golpe de lança.
865
Durante três meses, os jilabas viajaram sempre para o Sul. Depois, reuniram-se todos nas costas de Zan-
zibar, onde carregaram quatrocentos negros, na sua maior parte crianças, em três barcos à vela e zarparam
até ao golfo Pérsico e Mascate, em cujos mercados, como também nos do interior da Arábia, pensavam ven-
der os jovens. Há que dizer que as potências europeias não vigiam nestes países o tráfego de escravos, pelo
que pode ser praticado neles sem medo de castigo. Não posso expressar quanto sofreram as pobres criaturas
na viagem de Zanzibar para o cabo de Guardafui. Em Adem fiquei a saber por muitos que tinham ido nesses
barcos árabes que os jovens tinham recebido de comer uma vez cada três dias e que alguns que sucumbiram
à fome ou que morreram em consequência de maus tratos ou de outros sofrimentos tinham sido lançados ao
mar. Bastantes deles morreram também na viagem entre o país dos Gallas e as costas de Zanzibar.
866
Além disso, quando os três barcos dobravam o cabo de Guardafui, foram assaltados pelos somalis. Esses
habitantes dessas costas, embora também negros, tinham recebido do Governo inglês o encargo de vigiar o
tráfico de negros e de denunciar ao governador de Adem todos os que fossem apanhados com negros e se
tornassem suspeitos de exercer o tráfico de escravos nas costas do seu vasto país. Apoderaram-se dos jovens
e dos traficantes deste infame tráfico, os quais, sem conseguirem os seus intentos, tinham previamente trata-
do de instigar contra eles os negros, sobretudo os mais fortes que havia nos barcos, dizendo-lhes que os so-
malis os iam matar a todos. Então os somalis abordaram as embarcações, amarraram os esclavagistas e os
rapazes mais perigosos e fizeram-se à vela em direcção a Adem. Ao aproximarem-se desta cidade, saiu-lhes
ao encontro um grupo de soldados ingleses. Os traficantes e os donos dos barcos, que temendo ter incorrido
em pena de morte tremiam de medo, fizeram os últimos esforços para incitar os rapazes à rebelião contra os
seus captores, assegurando-lhes novamente que estes os matariam à força de sofrimentos e maus tratos e que
antes os alimentariam abundantemente para, uma vez mortos da maneira antes referida, os prepararem como
comida.
E os rapazes, com efeito, rebelaram-se e lançaram alguns somalis ao mar, mas ao mesmo tempo tiveram
de lamentar a morte e os ferimentos de bastantes dos seus companheiros. O nosso pequeno Pedro não teve
que sofrer nenhuns dos maus tratos a que haviam sido submetidos. Finalmente chegaram a Adem e desem-
barcaram. Aí foram cercados pelos soldados ingleses e conduzidos a uma grande praça, onde tiveram que
permanecer mais que um dia.
867
Não digo nada da devassidão que na viagem de Zanzibar a Adem pôde reinar entre aquela massa de po-
bres rapazes e raparigas que nos barcos iam fortemente atados juntos como cabras e que estavam abandona-
dos ao arbítrio de homens imorais bestiais que os guardaram e acompanharam durante mais de um mês. Não
posso dizer que sorte tiveram os esclavagistas, esses instrumentos de injustiça, pois sobre isso não consegui
saber nada em Adem. Sei unicamente que os jovens, dias depois da sua chegada a Adem, foram dispostos em
fila indiana no meio de uma grande praça, onde depois rapazes e raparigas foram emparelhados de maneira
definitiva segundo a estatura. Num só dia celebraram-se mais de um centena desses matrimónios. Depois, os
ingleses puseram-nos todos em liberdade. Muitas destas parelhas de negros, que eram fortes e aptos para o
trabalho, foram embarcadas e levadas para Bombaim e para as costas do Malabar.
868
Certo número de rapazes que, pela sua pouca idade, não estavam ainda aptos para o casamento ficaram
em Adem. Aí, catorze rapazes e três raparigas foram colocados com um comerciante espanhol para limpar o
café nos seus grandes armazéns. Este comerciante era o Sr. Boaventura Mas, a quem tinham em grandíssima
estima tanto a missão como o superior da mesma, um capuchinho espanhol. Entretanto ninguém se tinha
ocupado dos pobres negros. Ninguém pensou em lhes proporcionar o maior benefício, a maior bênção do
céu, a fé católica.
869
Porém, a Divina Providência, sempre abundante em misericórdia, mandou-lhes a Adem um anjo de paz,
na pessoa do mons. Spelta, bispo de Hu-pe, visitador apostólico da China, que, na sua passagem por Adem,
se deteve aí umas seis horas. Tendo-se inteirado da história destes meninos, induziu o prefeito apostólico de
Adem, o P.e Juvenal de Tortosa, a interessar-se por eles, a instruí-los, a fazê-los participar nos trabalhos da
estação missionária e enviá-los à Europa, onde bastantes institutos se encarregariam da sua educação e sabe-
riam orientá-los pelo bom caminho. O P.e Juvenal seguiu o conselho do bispo e distribuiu os jovens pelas
casas dos católicos, ficando ele com três para o serviço da sua casa. Todas as noites se reuniam na casa da
missão. Aí, com extraordinário zelo, um soldado irlandês ensinava-lhes mecanicamente o catecismo inglês
que os meninos aprendiam de cor de modo não menos mecânico. E como tinham grande talento, aprenderam
também muito depressa a língua indiana, falada em Adem como o árabe.
870
À minha chegada a Adem encontrei doze rapazes e duas raparigas (gallas) nas condições mencionadas. O
meu primeiro pensamento foi ocultar o objectivo da minha viagem a todos, mesmo ao P. e Juvenal; depois,
por meu próprio interesse, preocupei-me sobretudo de não levantar suspeitas no Governo nem no clero in-
glês, já que este último olha desconfiado a chegada de qualquer estrangeiro, e mais se é sacerdote. Por isso, o
P.e Juvenal, crendo que eu estava de passagem, contou-me abertamente toda a história dos meninos. Procurei
estudá-los bem e para tal fim fui vê-los às suas habitações. Já tinha tido um primeiro contacto com eles na
casa da missão, uma noite em que se tinham reunido para aprender as orações e o catecismo católico. Final-
mente, pus os olhos em 9 meninos, entre os quais estava também o nosso Pedro Bullo, que, embora fosse um
dos mais pequenos, revelava uma inteligência extraordinária e uma rara docilidade, unida a uma grande
submissão à graça de Jesus Cristo; podia esperar-se que ele chegasse a ser um católico fervoroso e útil. Os
outros rapazes não me pareciam adequados para a finalidade do meu instituto e as raparigas recusavam-se a
seguir-me.
871
Nessa altura expus os meus planos ao P.e Juvenal, o qual me ajudou a conseguir o meu intento. Foi visitar
os amos dos rapazes e induziu-os a entregar-mos. Naturalmente eu procurei por todos os meios ganhar o
coração dos jovens. E todos, excepto António Dubale, se decidiram a seguir-me para a Europa.
O nosso Pedro, que vivia em casa de um médico indiano, era incapaz de estar longe de mim mais de duas
horas. Declarou depois a seu amo que já não lhe pertencia a ele, mas a mim e quis, além disso, viver comigo
na casa da missão. Em vão pedia o médico indiano que continuasse com ele até ao dia da minha partida,
altura em que ele lhe daria autorização para me seguir; Pedro não quis e veio comigo. E armou tal algazarra
por minha causa, que no seu entusiasmo pôs também a meu favor o filho do médico; o pequeno indiano, de
doze anos, vinha frequentemente ver-me à casa da missão e pedia-me que o aceitasse também a ele para os
colégios da Europa; e, apesar de eu me negar sempre, ele não deixava de me suplicar a cada instante que o
levasse comigo para a Europa. Um dia, depois de ter insistido de novo longamente, eu disse-lhe: «Não te
posso levar porque tu não és negro e o meu instituto foi fundado só para negros». «Então – respondeu –,
tentarei pintar-me de negro com tinta e poderei ir e ficar contigo; deixo com gosto o meu pai para te seguir a
ti», respondeu.
872
Tive que suar as estopinhas para conseguir o João e o Baptista, mas ao fim, com a ajuda do P. e Juvenal,
pude obter mais de oito rapazes. Agora restava-me superar as dificuldades mais graves, que temia da parte do
Governo inglês da Índia, dado que é sempre contrário ao catolicismo. Nisso o P.e Juvenal não podia ajudar-
me, porque tinha más relações com o governador que o tinha obrigado a pagar os 4% de imposto pela igreja
e considerava como coisa privada o mobiliário da igreja e os paramentos sacerdotais.
873
Cheio de confiança em Deus, que morreu também pela África, apresentei-me ao governador e pedi-lhe
que perguntasse aos dois rapazes, que levava, se queriam seguir-me para a Europa. Supliquei-lhe, além disso,
que, se via que eles tinham de própria vontade a tal decisão, os pusesse em liberdade, lhes desse um passa-
porte e fizesse o favor de os inscrever como súbditos anglo-indianos. Embora no princípio pusesse algumas
reticências, depois concedeu-me o que desejava. Isso deu-me ânimo e pensei trazer-lhe também os outros
seis jovens gallas; mas ele não queria saber nada disso. Contudo, à força de o pressionar com as minhas sú-
plicas, induzi-o a pedir conselho aos membros da junta do Governo, entre os quais estava também o pastor
inglês. Discutiram o assunto e avançaram a suspeita de que eu viera fazer prosélitos; além disso, declararam
que eu agia contra a lei, que proíbe o comércio de escravos.
874
Decidiram, portanto, não satisfazer o meu pedido. Então eu declarei na assembleia que me dirigiria ao
próprio Governo central para obter protecção para esses pobres meninos, que queriam fazer uso pleno da sua
liberdade e, seguindo o seu desejo, vir comigo para a Europa. Mas era tudo inútil. Demonstrei então ao go-
vernador que ele estava obrigado a proteger a liberdade daqueles rapazes que estavam em território britânico
e que, se ele lhes desse autorização de me seguirem, não fazia senão proteger a sua liberdade. Expus-lhe
também outras razões e argumentos para obter a protecção inglesa e, por fim, decidiu examinar os rapazes.
Apresentei, portanto, ao governador, conselheiro municipal Playfair, os jovens, a quem antes tinha instruído
bem sobre o modo como deviam responder. Ele examinou-os a todos, um por um, deu a todos a declaração
de liberdade e um passaporte indiano e inscreveu-os como súbditos britânicos. Com esses três documentos,
eu estava certo de poder levar comigo os oito meninos gallas.
875
Agora faltava António, que, embora por seu gosto quisesse ir comigo, não se tinha, todavia, ainda decidi-
do a fazê-lo, porque o seu amo, um inglês, de nome Greek, que o tratava muito bem, não queria deixá-lo ir.
Este, quando se apercebeu de que eu queria levar o pequeno, o que ele temia, devido aos excelentes serviços
que o rapaz lhe prestava em casa, proibiu-o de frequentara a casa da missão. Porém, António, inteligentíssi-
mo como era, compreendeu que, se ficasse em casa do seu amo, não poderia abraçar o catolicismo e decidiu-
se a seguir-me contra a vontade dele. Quando o sr. Greek (funcionário do Governo) descobriu a intenção do
seu negrito, já não o deixava um momento sozinho; levava-o sempre consigo para o seu escritório, com me-
do de que eu, aproveitando a sua ausência, convencesse o rapaz a seguir-me. E certamente tinha razão. Eu fui
mais de uma vez a casa do sr. Greek e pedi-lhe que me cedesse o rapaz, mas todas as minhas súplicas foram
inúteis. Então mandei o P.e Juvenal a casa do funcionário inglês; porém, este respondeu-lhe que, se o sr.
Comboni continuasse a insistir em levar o pequeno e a pedi-lo ao governador, podia bem acontecer que vies-
se a perder também os outros rapazes.
876
O P.e Juvenal trouxe-me esta resposta, que eu interpretei num sentido favorável para mim. Dois dias de-
pois fui ao seu escritório, que ficava na casa do governador, e falámos de política, de comércio, da gloriosa
história da Inglaterra, das suas conquistas, da influência que exerceu na civilização da América e da Austrá-
lia. Depois de termos estado a falar assim uma hora, chegou gente ao escritório para resolver os seus assun-
tos. O sr. Greek parecia disposto a despedir-me, mas eu fingia não dar conta. Deixei entrar muita gente e
retirei-me um pouco para trás para observar os quadros e os mapas geográficos naquela parte da sala onde
estava o António. Quando observei que o sr. Greek estava muito ocupado com as pessoas que tinham vindo
vê-lo, fui-me aproximando devagar da porta, fiz sinal a António para que me seguisse e com ele abandonei o
escritório sem que o inglês desse conta. Fui imediatamente ter com o sr. Playfair, apresentei-lhe António e
disse-lhe: «Este é outro rapaz que quer ir comigo; tenha a bondade de falar com ele e se verdadeiramente vir
que ele deseja ser aluno do meu instituto de Verona, declare-o livre, conceda-lhe o passaporte e inscreva-o
no registo dos súbditos britânicos». O governador acedeu a todas as minhas petições.
877
Quando regressei à casa da missão, disse ao prefeito apostólico: «Aqui está o rapaz desejado. Vá visitar o
sr. Greek e diga-lhe que segui a sua sugestão. Diga-lhe que, por meio de si, me fez compreender que, se que-
ria obter o rapaz, devia dirigir-me ao governador. Agora tenho o rapaz precisamente porque fui ter com o
governador, que me concedeu tudo como pode ver por estes papéis.» O prefeito foi visitar o sr. Greek e con-
tou-lhe tudo. O sr. Greek estava furiosíssimo; veio à casa da missão, ameaçando bater-me e fazer-me perder
todos os outros rapazes.
878
Queria tirar-me à força o pequeno António, mas eu disse-lhe: «Senhor, com a sua conduta está a com-
prometer-se, actuando contra a vontade do negro, que quer ir comigo. Se se apoderar do menino à força, vai
contra a lei e torna-se culpado do delito dos jilabas e merecedor do mesmo castigo deles. O governador não
pode mover um dedo contra mim nem contra o rapaz, porque tenho em meu poder a autorização legal escrita,
que mostrarei ao Governo de Londres, caso ele ouse exigir-me os documentos. Vós e o governador recebe-
reis então o castigo pela vossa injustiça.» Estas minhas palavras e os argumentos do prefeito apostólico de-
sarmaram o sr. Greek, que acabou por beber connosco um par de garrafas de Porter (cerveja inglesa) e fize-
mo-nos amigos.
879
Em Adem podia contar só com 9 rapazinhos; este número, evidentemente, era demasiado pequeno para o
objectivo da minha viagem. No Napaul soube por um missionário, que ia a um congresso de missionários
que ia realizar-se no Sueste do Madagáscar, que no canal de Moçambique havia um grande número de escra-
vos negros, que eram vendidos a 50 fr. cada um. O sr. Mas, de Adem, que tinha estado muitas vezes em Mo-
çambique e tinha um intenso comércio com as ilhas adjacentes Mayotte, Nos-Beh e as Comores, confirmou-
me a veracidade dessa informação. Prometeu-me a sua protecção e o transporte gratuito dos negros desde
Mayotte até Marselha nos seus próprios barcos, que deviam tomar a rota do cabo da Boa Esperança e atra-
vessar o oceano Atlântico. Mas como pôr em execução este plano, uma vez que só me restavam 600 fr.?
Antes da minha partida, o meu superior, P.e Mazza havia-me dado 2000 fr. dizendo-me: «Toma este dinhei-
ro; é tudo o que tenho. Pede ao bom Deus que faça com que me chegue mais e então mandar-te-ei uma outra
boa soma.» Supliquei ao Senhor com insistência e constância, mas o Senhor não ouviu a minha oração, por-
que o meu superior em toda a minha viagem não me mandou nem um centavo.
880
Então decidi adiar a realização de todo o meu plano, ir à Europa e tratar com o P.e Olivieri da compra dos
negros de Moçambique. De facto, no Cairo propus este assunto a P.e Biagio Verri, que me parecia muito
disposto a seguir-me à costa sueste de África. Porém, quando me aconselhei com o P. e Olivieri, o santo an-
cião confessou-me que não se sentia em condições de pôr em prática esse imenso plano, nem de lutar contra
as imensas dificuldades e perigos que seriam de esperar-se à volta do Cabo e pelo oceano Atlântico.
Fiquei pois em Adem com os meus nove rapazes e com os 600 fr. que me restavam e com tal importância
não sabia mesmo como arranjar transporte para a Europa. Mas a Providência sempre vem em ajuda quando
se trata de executar obras que redundam em sua glória. Cedo chegou a Adem uma fragata francesa, a Du
Chaila, comandada pelo capitão Tricault, o actual secretário-geral da marinha francesa em Paris. A fragata
vinha da China e dirigia-se a Suez; levava a bordo S. Ex.a o barão Cross, embaixador extraordinário nas
cortes do Japão e da China. O barão Cross tinha concluído um tratado comercial entre a França e o Celeste
Império. Apresentei-me ao comandante e ao embaixador e falei-lhes da África Central e do objectivo da
minha empresa; disse-lhes também que eu podia desempenhar o ofício de capelão do barco, dado que este
caíra doente em Ceilão. O barão Cross e o sr. Tricault foram tão generosos que concederam a passagem e
alojamento gratuitos na fragata desde Adem até Suez, não só a mim mas também aos meus nove negros.
881
A viagem através do mar Vermelho foi realizada em onze dias; porém, entre Moka e Suakin, surpreen-
deu-nos uma furiosa tempestade que culminou por alturas de Dieddah. Finalmente, a 25 de Março, chegámos
a Suez; dezanove salvas de canhão saudaram a presença do embaixador francês em solo egípcio. No dia 26
chegámos ao Cairo juntamente com Said Paxá, vice-rei do Egipto, o qual voltava de uma peregrinação a
Meca. Os meus negros encontravam-se muito bem. Apenas chegado ao Cairo, fui visitar imediatamente S.
Ex.a o sr. Colquehonn, agente e cônsul-geral de Sua Majestade britânica no Egipto, para lhe entregar a carta
de recomendação do sr. Odo Russel, embaixador inglês em Roma. Nessa carta pedia-se ao Governo inglês
que deixasse passar de Alexandria para a Europa todos os rapazes que eu trazia comigo.
O cônsul-geral recebeu-me com muita cortesia e fomos juntos visitar o Paxá. Tendo-lhe mostrado os pas-
saportes e o documento em que os meninos eram declarados súbditos britânicos da Índia (porque Adem está
sob a jurisdição do governador-geral de Bombaim), passaram-me um documento, assinado pelo Paxá, no
qual se ordenava ao chefe da alfândega de Alexandria que deixasse passar os pequenos indianos que acom-
panhavam Daniel Comboni. Então, ao sair-me tão bem deste assunto, o sr. Kirchner, pró-vigário apostólico
da África Central, confiou-me uma jovem chamada Catarina Zenab.
882
Catarina vivia com as Irmãs do Bom Pastor e, tempos atrás, tinha-nos ajudado a compor um vocabulário,
quando trabalhávamos entre os Kich, que se encontram junto ao Nilo Branco, a 6.o de latitude norte.
Depois, parti para Alexandria com os nove rapazes e pedi às Irmãs do Bom Pastor que me levassem den-
tro de dois dias também a negra Catarina Zenab. Encontrando-me em graves apuros pecuniários, a primeira
coisa que fiz foi procurar uma viagem grátis para a Europa. A Providência ajudou-me de novo: nos escritó-
rios do vice-almirante francês foi-me concedida a viagem de Alexandria a Marselha, tendo eu apenas que
pagar 400 fr. pela comida. Então fiz com que o governador de Alexandria, Rashid Paxá, me subscrevesse o
documento. Do cônsul-geral austríaco obtive também para Catarina Zenab um documento mediante o qual
era declarada súbdita austríaca, como proveniente da casa da missão austríaca de Cartum. Quatro horas antes
da partida do Marsey, dirigia-me com os nove rapazes ao porto para embarcarmos; antes, tinha encarregado
duas Irmãs da Caridade que duas horas mais tarde me trouxessem ao barco a negra.
883
No ano anterior tinham detido o P.e Olivieri com cinco negros e agora suspeitou-se que eu podia ser um
seu ajudante e que tivesse comprado negros para trazê-los para a Europa. Por isso obrigou-se-me a entrar
com os rapazes nos escritórios do chefe da alfândega para me explicar melhor sobre o assunto dos escravos.
Os meus negros tinham-nos por abissínios (e de facto os gallas têm a mesma tez e idêntica fisionomia). Tirei
do bolso o documento do Paxá e o chefe, ou melhor, o xeque leu-o, observou atentamente as caras dos meni-
nos e exclamou: «Estes rapazes não são indianos, vêm mas é da Abissínia. O Paxá não os viu – continuou –,
porque, de contrário, não teria certamente passado este documento». Então eu saquei dos papéis do governa-
dor de Adem, enquanto lhe fazia ver que se os meninos não fossem indianos, o governador de Adem não me
teria passado nenhum passaporte. Eu insistia em que os meninos eram realmente súbditos do Governo inglês.
O xeque fez-nos rodear de guardas, a quem ordenou que nos levassem a uma dependência do edifício do
cárcere, onde se guardavam os acusados antes da condenação.
884
Todos os meus protestos de inocência foram vãos, ineficazes todas as razões que aduzia para levá-los a
deixar-me partir com os rapazes para o barco francês. Pelo contrário, ordenou-se que nos conduzissem à
prisão. Preocupei-me sobretudo por reaver do xeque todos os meus papéis, porque mais tarde poderiam ser-
vir para fazer valer a minha inocência, e além disso fiz chegar uma carta às boas Irmãs da Caridade, em que
lhes pedia que retivessem a negra até novas notícias. Depois fomos levados para a prisão. Lá ficámos um par
de horas, durante as quais os oficiais turcos da guarda fizeram aos meninos mil perguntas. A mim ameaça-
ram-me disparar-me três tiros no peito. Eu sorria, sem responder nada, enquanto em indiano, que no Egipto
não é compreendido, ordenava aos rapazes: «Tanda Makkaro, chiprausap boito – estai quietos e guardai
silêncio –, daiman chiprau daiman chiptau – guardai silêncio e não respondais».
885
Depois de um par de horas, eu disse a um dos oficiais: «Chamai-me o chefe da alfândega ou conduzi-me
a ele.» Repeti com energia esta petição e então ele decidiu ir ter com o xeque e trazê-lo até mim. Quando
entrou, eu disse-lhe: «O senhor está a reter-me aqui dentro; não sabe que sou europeu? O seu delito custar-
lhe-á caro!» Ele respondeu-me: «O senhor comprou abissínios no Cairo ou em Alexandria e, a fim de poder
levá-los de Alexandria para a Europa, o que por si é proibido, subornou alguns funcionários do consulado
inglês para conseguir os papéis com que os meninos são declarados indianos. Mas eu sei muito bem distin-
guir os indianos dos abissínios, porque os negros têm o passaporte na sua cara. Estes são abissínios que com-
prou, apesar da recente proibição de Said Paxá; por isso pagará cara a sua infracção.»
886
O meu intento de lhe provar que os meninos eram indianos e não abissínios e que vinham da Índia (de
facto, Adem, quanto ao Governo, depende da Índia) não teve êxito. Com igual resultado lhe provei que o
Egipto teria de dar contas a Inglaterra pelo abuso que um dos seus aduaneiros cometia contra um europeu e
contra súbditos da Coroa Britânica, todos possuidores dos necessários passaportes. Finalmente disse-lhe com
tom severo: «Não sabe que sou europeu? Não sabe que tendo-me na prisão, apesar de todos os meus papéis
estarem em regra, comete um delito? Se dentro de três horas não me tiver posto em liberdade, garanto-lhe
que não estará seguro de conservar a sua cabeça; saberei fazer de modo que seja castigado com a morte por
ter metido um europeu na prisão. Ainda que eu fosse culpado dos mais graves delitos, não seria lícito man-
ter-me prisioneiro; deveria então conduzir-me ao representante da minha nação, ao cônsul, porque somente
ele teria o direito de me julgar; eu conheço as vossas leis melhor que o senhor. Ai de si, se não me põe em
liberdade!»
887
Estivemos a falar de modo animado certamente outro quarto de hora; entretanto, o xeque deixou-se no-
vamente tomar de um grande temor. Preparava-se para se ir embora, quando, depois, voltou atrás a pôr-me
em liberdade. Antes de o seguir, ordenei em indiano aos meninos que não falassem em árabe, nem em abis-
sínio, nem em galla, mas que guardassem o mais rigoroso silêncio, porque, de contrário, corria risco a sua
cabeça. Ao sair do cárcere disse em árabe ao xeque: «Hoje tocou-me a mim, amanhã a ti!», palavras que lhe
meteram um grande medo.
888
Fui ter imediatamente com o sr. Sidney Smith Launders, cônsul comercial em Alexandria, a quem compe-
tia tratar do meu problema, dado que no Egipto é considerado como um assunto de comércio. Entreguei-lhe
uma carta que, do Cairo, o cônsul-geral inglês Colquehonn lhe tinha escrito para mim e expliquei-lhe a situa-
ção em que me encontrava. O cônsul tratou-me muito amavelmente, mas ficou surpreendido com o meu pe-
dido e negou-me toda a sua ajuda; é que sucedera que já outras vezes tivera de se imiscuir nestes assuntos de
negros do P.e Olivieri, o que lhe tinha criado muitos problemas, porque, tratando-se de negros, tinha encon-
trado o Governo egípcio sempre hostil. Supliquei-lhe com lágrimas nos olhos que, mesmo assim, me prestas-
se apoio perante o Paxá de Alexandria e que fizesse valer perante ele o documento do vice-rei Said, que con-
tinha ordens. Mas ele, lamentando, negou-me a sua ajuda. Então eu disse-lhe com toda a energia: «O senhor
é obrigado a interessar-se perante o Paxá por estes negros, que já não são escravos mas súbditos britânicos. O
Governo egípcio, ao metê-los na prisão e ao não deixá-los partir de Alexandria, abusou do seu poder, lesou
os direitos dos homens livres e ofendeu o Governo inglês, desprezando o selo e a assinatura de um governa-
dor britânico. O senhor, em Alexandria, representa a Inglaterra, por isso deve vingar a afronta cometida con-
tra ela e as suas autoridades.»
Então o cônsul reconheceu qual era o seu dever e quis prestar-me a sua protecção; porém, custava-lhe
imiscuir-se neste assunto. Muito ansioso por isso, disse-lhe: «Se não se convence que o nome do Governo
inglês foi gravemente ofendido pelo Governo egípcio ao negar-se a deixar partir de Alexandria para a Europa
esses meninos, súbditos de Sua Majestade a Rainha Vitória, possuidores de passaportes britânicos, sinto-me
obrigado a ir eu mesmo a Londres e expor o assunto ao próprio Governo inglês, um passo que certamente
não redundará em seu louvor. Compreenda que, devido ao seu cargo, está obrigado a proteger esses meninos
e a impedir que o nome da Inglaterra seja desprezado.»
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Sir Sidney apercebeu-se por fim do que tinha que fazer e quando fui ter com Rashid, o governador de
Alexandria, deu-me o seu intérprete. As minhas ameaças tinham produzido no chefe da alfândega uma im-
pressão tal, que imediatamente depois da minha libertação do cárcere se tinha apresentado ao Paxá, contan-
do-lhe à sua maneira o assunto dos negros. Chegados ao divã, perante o Paxá Rashid tomei a palavra e disse
ao Paxá: «Porque é que os seus funcionários da alfândega não permitiram que os meus pequenos indianos
passassem pelo porto de Alexandria até ao barco francês, apesar de terem os passaportes em ordem e o do-
cumento do effendina (=nosso senhor) o vice-rei do Egipto?» «Os meus funcionários cumpriram o seu dever
– respondeu o Paxá –, porque esses meninos não são indianos, como o senhor declarou perante o effendina
Said. Estou convencido que são escravos abissínios que o senhor comprou no Cairo ou em Alexandria e que,
para poder levá-los para a Europa, corrompeu alguns funcionários do consulado inglês, os quais, depois,
abusaram do selo e do visto do cônsul, tendo declarado que os meninos não eram abissínios, mas procediam
da Índia. Os indianos não são negros e esses meninos são-no. O vice-rei deixou-se enganar pela declaração
dos funcionários ingleses e concedeu-lhes um documento sem ter visto os meninos. E o senhor cometeu um
grave delito, que lhe custará muito caro; asseguro-lho pelo Deus misericordioso e bom: bism Allah errahmán
errahim».
A esta acusação era fácil responder.
890
Respondi a Rashid Paxá: «Estes meninos não são abissínios mas indianos e aquele que lhe disse que os
comprei no Cairo ou em Alexandria é um mentiroso: são indianos que vêm directamente da Índia. Para isto
pode dirigir-se ao cônsul francês, que ouviu falar muito de mim e dos meus rapazes e ao embaixador francês
na China, que passou por Alexandria há uma semana. Isso podem confirmar-lho três senhores que actual-
mente se encontram na cidade. Também pode mandar telegrafar para Suez, onde se encontra o Du Chayla,
que me trouxe para o Egipto com os rapazes. Além disso, deve dar valor ao documento do vice-rei e aos
documentos e passaportes que me foram entregues nas Índias. O senhor é um homem justo, um filho do Pro-
feta, com olhos puros, que não se deixam ofuscar pelas nuvens da impiedade. Exerça, pois, a justiça e cum-
pra o seu dever: bism Allah errahmán errahim».
891
Rashid Paxá parecia convencido. As suas dúvidas, porém, não o deixavam de todo em paz, porque me
disse: «Quem pode garantir-me que esses meninos não são abissínios? Quem pode provar-me, em nome de
Deus, que são indianos e que não os comprou no Egipto?» «Estes documentos – respondi eu, mostrando-lhe
os passaportes assinados em Adem – demonstrar-lhe-ão que o que lhe digo é verdade. Se não deixa passar os
meus rapazes, despreza o selo da nação inglesa e juro-lhe, por Deus, que a Inglaterra lhe pedirá uma satisfa-
ção: bism Allah.»
Discutimos assim animosamente durante meia hora; o Paxá tinha uma ladainha de objecções e eu outros
tantos argumentos para lhe deixar bem claro que os meninos eram súbditos do Governo anglo-indiano. O
chefe dos funcionários da alfândega, que estava presente, sussurrou ao ouvido do governador que a tez dos
rapazes era de cor negra; então o Paxá quis vê-los, prometendo que, se fossem brancos, os poria em liberda-
de, mas em caso contrário os manteria na prisão. Então as coisas estavam a pôr-se-me difíceis, porque os
meninos eram negros, circunstância muito perigosa para mim, se bastasse para induzir ainda mais o Paxá a
seguir o conselho e a opinião do xeque. O Paxá mostrou repetidas vezes a vontade de ver os meninos, dizen-
do: «Apresente-me esses meninos; se forem brancos, ponho-os em liberdade, se não, ficam na prisão». «Para
resolver a questão, não é preciso ver os meninos: o documento do vice-rei e os passaportes ingleses bastam».
892
«Mas eu quero ver os escravos», insistia ele. Neguei-me quatro vezes a apresentar os meninos, porque me
parecia muito arriscado. Mas, por fim, tive de ceder às ordens do Paxá e, acompanhado de dois guardas, fui
buscá-los. Eles estavam cheios de medo e na prisão tinham sofrido muito. Disse-lhes que os ia apresentar ao
grande Paxá, diante do qual não deviam falar nem árabe nem abissínio, mas apenas indiano; doutro modo
jogavam a cabeça. Repeti-lhe isto muitas vezes em indiano e exortei-os a confiar em Deus que os salvaria.
Depois, com os meninos e os guardas, fui até Rashid Paxá. Logo que entrámos no Grande Divã, no qual
estavam reunidas mais de vinte e quatro pessoas, todos exclamaram: “Homma, Hhabbaih Kollohom (são
todos abissínios)”. Eu dizia que não, porque, embora a fisionomia dos gallas fosse como as dos abissínios, os
gallas não são abissínios. Mas continuavam a dizer que eram abissínios e eu sozinho a sustentar que eram
indianos. Depois de uma longa discussão, dirigi-me ao paxá e disse-lhe: “Bem, se os meus meninos devem
absolutamente ser abissínios, mande chamar algum dos abissínios que vivem em grande número em Alexan-
dria. Ordene-lhes que façam perguntas aos meus rapazes e ver-se-á claramente: se eles falarem ou percebe-
rem o abissínio, o senhor tem razão e poderá mantê-los na prisão; mas se não perceberem o abissínio, deve
pô-los em liberdade”.
893
A minha proposta foi aceite por todos os membros do Grande Divã. Mandaram-se chamar em seguida três
abissínios que, apenas viram os meninos, disseram entre si: “Estes meninos são da nossa terra”. E pergunta-
ram-lhes: “De onde vindes? Quem vos comprou? Onde vistes pela primeira vez o vosso amo”? Todas estas
perguntas eram muito insidiosas, mas os meninos não deram resposta; ao invés, a cada uma delas, dirigiam o
olhar para mim que, em indiano, os mandava estar calados. Um abissínio disse aos meninos: “Vamos, res-
pondei, ó filhos do Profeta; o vosso senhor manda que respondais”. Mas eles guardavam silêncio. Assim os
abissínios declararam que os meus rapazes claramente não entendiam o abissínio, pelo que não pertenciam à
sua nação. Em resumo, direi que o paxá mandou vir uns indianos que estavam empregados no consulado
inglês. Dirigiram aos meninos toda a espécie de perguntas e eles responderam bastante bem. Os indianos
declararam que os meninos falavam apenas um pouco de indiano; mas eu afirmei que o sabiam bem.
894
No diálogo, o pequeno Bullo por pouco não me comprometeu, ao responder uma vez que era galla. Mas,
por sorte, a resposta, pronunciada timidamente não foi percebida e, com a ajuda de Deus, pude reparar o mal
que me podia advir, dirigindo a palavra ao João, que sabia muito bem o indiano. Então, por fim, os indianos
declararam ao paxá que os meninos eram indianos. “Agora reconheço que são verdadeiramente indianos”,
disse ele, e ordenou que os meninos fossem postos à minha disposição e que nos deixassem partir livremente
para a Europa. Apenas o paxá deu esta ordem, o xeque ficou pálido. Recordando-se da frase que eu lhe tinha
dito – “Se não me puser os meninos em liberdade dentro de três horas, juro pelas palavras do Profeta, que
não voltará a estar seguro da sua cabeça” –, pensava que tinha chegado a hora da minha vingança; e por isso
queria chegar ao ponto de me tornar inofensivo. Totalmente fora de si pelo medo, aproximou-se do paxá e
disse-lhe com decisão: “Effendina (senhor nosso), juro-lhe pelo Profeta que estes meninos não são indianos,
mas abissínios. Eu estive muitas vezes na Índia e nunca vi indianos desta cor. Os indianos são quase brancos,
enquanto estes rapazes são negros”. E na verdade tinha razão, porque a cor dos indianos é diferente da dos
abissínios. Então o paxá ordenou que justificasse aquilo.
895
Eu encontrava-me num sério aperto. Nunca tinha invocado com tanto fervor Deus e a Santa Virgem, Rai-
nha da Nigrícia como nesta conjuntura, em que todos os meus esforços podiam ir por água abaixo. Reco-
brando ânimo, lancei um olhar de fogo ao xeque e disse-lhe na presença do paxá: “Pode muito bem ser que o
senhor tenha visitado a Índia muitas vezes, mas não acredito que tenha estado em toda a Índia, porque, de
contrário, teria, sem dúvida, visto indígenas desta cor. A Índia é muito grande e, como é verosímil, o senhor
nas suas viagens teria como meta os portos, tal como Madrasta, Calcutá, Bombaim, Mangalore, etc.; mas
certamente não visitou o interior da Índia, onde há muitos territórios e cidades que o senhor só conhece de
nome. Como pode, pois, sustentar que conhece as populações da Índia e manifestar a convicção de que os
meus meninos não são indianos”?
896
Perante estas palavras, o pobre xeque caiu na maior consternação e viu-se completamente perdido. “Sim,
o senhor tem razão” – respondeu abatido –; nunca estive no interior da Índia nem dos territórios indianos de
que fala. Encontram-se porventura perto do cabo de Gal”? “Oh, não – repliquei – esses territórios estão ainda
muito mais distantes que o cabo de Gal”.
O senhor pode imaginar quão contente fiquei ao ver o xeque tornar-se tão humilde e como agradeci de co-
ração ao Senhor pela sua rápida ajuda. Depois desta violenta discussão, o paxá levantou-se do seu assento,
tomou as minhas mãos nas suas e disse-me: «Oquod esteriahh (sente-se, descanse). Vejo claramente que o
senhor tem razão e que estes meninos são indianos; as suas palavras estão em perfeita consonância com os
seus documentos; de modo que nem sequer vou observar os seus papéis, porque me basta a sua palavra. O
senhor é homem de verdade e de justiça; a sua boca tem só que se abrir para ordenar à minha que faça cum-
prir a sua vontade».
Depois de me dizer estas palavras, mandou trazer jibbuk e café. Fumei e bebi à saúde do paxá, o qual me
fez as mais lisonjeiras promessas de amizade. Entretanto, eu procurei dar outra volta ao discurso e disse-lhe
que era um homem justo e que Alexandria inteira ressoava com os seus louvores. Isto era verdade. Depois,
despedindo-me com o salam alek, saí com os meus rapazes. Logo que acabei de descer a escadaria do palá-
cio, aproximou-se de mim o xeque e disse-me: «Sua Alteza encontrou a justiça que merecia; eu pensava que
os meninos eram abissínios, mas agora estou convencido que são indianos. Oxalá a sua cara resplandeça e a
sua boca só fale de paz: la Allah ila Allah ou Moahhomed rassielallah (não há Deus fora de Deus e Maomé
é o seu Profeta)». Então olhei-o com olhos de fogo e respondi-lhe: «Se eu fosse muçulmano e filho do Profe-
ta, como o senhor, vingar-me-ia de si e a sua maldade custar-lhe-ia cara. Mas eu detesto o Profeta e o seu
Alcorão, que ordena a vingança; eu sigo o Evangelho de Jesus Cristo, que quer que se perdoe ao inimigo. Por
isso eu lhe perdoo de todo o coração e quero esquecer todo o mal que me fez. Os meus olhares são de paz e a
minha boca disse as palavras do perdão».
897
Apenas pronunciei estas palavras, o xeque lançou-se-me aos pés e beijou-me a orla da capa, dizendo: «A
felicidade more sempre em si; bendita seja a barba de seu pai e os olhos de sua mãe; oxalá conheça seus fi-
lhos e netos até à terceira e quarta gerações; oxalá seja eternamente feliz na chaallah», etc. Depois, levantou-
se e trocados os “salamaleks”, encaminhei-me para a casa onde alojara os meus rapazes à nossa chegada a
Alexandria.
As disputas duraram até ao pôr-do-Sol; e, entretanto, o barco francês que nos devia levar até Marselha
havia zarpado. Porém, dois dias depois tomei o vapor do Lloyd austríaco, tendo decidido navegar até Trieste
por Corfu. A embaixada francesa teve a bondade de me emprestar o dinheiro. Obtive emprestados 60
guinéus e procurei partir, pois tinha medo que os inimigos do catolicismo denunciassem ao Governo que os
meus meninos não eram indígenas da Índia. Tendo chegado a um acordo com o agente do Lloyd austríaco
para pagar 1210 fr. pela passagem de Alexandria a Trieste, embarquei no Neptuno com os meu nove negros e
com a negra Catarina Zenab.
898
Chegados ao porto de Alexandria, encontrámos o xeque que tinha pronta uma cómoda barca que nos le-
vou grátis ao vapor austríaco. A travessia durou não cinco, mas oito dias, devido a termos sido surpreendidos
por uma tremenda tempestade, a mais furiosa que o capitão tinha visto nos vinte anos em que ele navegava
no Mediterrâneo. Os meninos ficaram atónitos ao contemplar os montes da ilha Cândia todos brancos; nunca
tinham visto a neve. O Neptuno, que era comandado por um dos melhores capitães do Lloyd austríaco, teve
que regressar a Corfu, ao longo da costa dálmata. Contudo, esta tempestade não foi a mais tremenda das 8
(oito) que eu suportei nas viagens que a realização deste pequeno projecto me tinha obrigado a fazer. Mas
Deus protegeu-me visivelmente até à nossa feliz chegada a Verona, que teve lugar a 14 de Abril de 1861. A
Providência também me ajudou a pagar rapidamente as dívidas contraídas em Alexandria. Louvado seja
Deus eternamente!
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Durante a estada dos meus negros em Alexandria, os muçulmanos tinham-lhes contado que os europeus
compravam os negros para os engordar e depois comê-los. A cabeça dos meninos não se livrou mais desta
patranha, tanto mais que já a tinham ouvido antes aos muçulmanos de Zanzibar e de Adem; o mais assustado
de todos era Pedro Bullo.
900
Uma vez, em Alexandria, através de uma janela que dava para a sua habitação, um árabe tinha-lhes asse-
gurado que os europeus matavam os negros e que com as suas cabeças, depois de lhes terem retirado o cére-
bro, preparavam um assado esquisito. Ao ouvir semelhante coisa, o pequeno Pedro fugiu de casa e só depois
de aturadas buscas consegui encontrá-lo num mercado de Alexandria. Quando no Neptuno ele se viu diante
de uma mesa repleta de variados manjares, não tive maneira de fazer com que comesse. Olhou-me várias
vezes de olhos esbugalhados e depois disse-me: «Sei bem porque nos põe tantas coisas diante; o senhor quer
engordar-nos para depois nos comer». Porém, na viagem de Trieste a Verona consegui persuadi-lo do contrá-
rio.
Tendo-se-me apresentado uma ocasião propícia, um dia disse-lhe: «Ouve, meu Pedrinho, sabes quanto me
custaste de Adem até aqui?» «Muito», respondeu-me. «Sabes por acaso – continuei – quanto custa uma vaca
no teu país?» «Muito pouco», pensou. «Pois bem, com os cem táleres que me custaste, eu no teu país poderia
ter comprado vinte vacas; se eu efectivamente te tivesse comprado com a intenção de te comer, teria, sem
dúvida, sido um maluco, porque com vinte vacas teria muito mais de comer que contigo, que és mais peque-
no que uma só vaca». Este arrazoado convenceu-o, como também aos outros meninos; já não pensaram mais
que eu os comprara para os comer.
901
O pequeno Pedro tinha qualidades extraordinárias. Quando foi raptado pelos jilabas, sabia só o galla e o
abissínio; mas na viagem desde os Gallas a Adem e de Adem a Verona aprendeu bastante o árabe e precisa-
mente a língua pura do Iemen. Durante a sua estada entre os indianos de Adem, aprendeu bastante bem o
indiano e, seis meses depois da sua chegada a Verona, falava quase fluentemente também o italiano. Na es-
cola fazia grandes progressos; era de uma perspicácia extraordinária e queria saber sempre a causa e o por-
quê das coisas. Nas escolas públicas da Europa poderia ter obtido um sucesso mais brilhante que os alunos
mais dotados. Mas era de relevar especialmente o seu modo de sentir estritamente católico e o seu sublime
conceito da moral cristã. Ultimamente estava tão gravada no seu coração que detestava o pecado de uma tal
maneira que deixava uma pessoa estupefacta.
902
Preferia as conversações devotas e entretinha-se prioritariamente com a vida de Jesus Cristo, dos seus
santos e sobretudo dos seus mártires. Além disso desejava ardentemente o martírio por Cristo Jesus; manifes-
tou-me este desejo mais de uma vez. Era por natureza colérico, mas, para o acalmar, bastava só lembrar-lhe o
Salvador crucificado. Que tinha uma grande inclinação para a piedade, pode-se inferir de tudo o que temos
dito. Rezava com um fervor ardente e o toque da campainha a chamá-lo para cumprir os seus deveres religio-
sos era a coisa mais agradável que podia ouvir. Não me é possível descrever a devoção e o recolhimento com
que duas vezes por semana se acercava da sagrada comunhão. Embora os rapazes do instituto de Verona
costumassem só confessar-se cada 15 dias, o Pedro e a maioria dos seus compatriotas faziam-no todos os
sábados, e nas festas principais acercavam-se para receber os santos sacramentos. O Pedro, o João e o Bap-
tista eram modelos de piedade para todos os alunos e para os próprios superiores, que, mais de uma vez,
afirmaram preferir educar duzentos gallas a educar uma dúzia de italianos e europeus em geral.
O nosso Pedrito aborrecia de modo especial a mentira. Escutei amiúde a confissão de suas culpas e das
acções que ele considerava pecaminosas, mas nunca se acusou de uma só mentira. Sou da opinião que isso se
deve em parte ao carácter dos gallas, que nisto se diferenciam dos outros africanos, que nunca dizem a ver-
dade e adulam a gente. Em contrapartida, os gallas amam a verdade e Pedro não diria uma mentira, nem que
com ela salvasse a sua vida. Além disso, possuía em alto grau as virtudes da abnegação e da humildade; tinha
sempre medo de agir mal e costumava perguntar aos seus superiores se isto ou aquilo era lícito.
903
Não vou mencionar as outras virtudes que adornavam a sua formosa alma, inclinada à meditação e à soli-
dão. Nos últimos meses da sua doença estava muito tranquilo e procurava de modo muito particular o reco-
lhimento; creio que isto tinha o seu porquê na doença que o atingira. Quando em Outubro do ano passado fiz
uma viagem à Alemanha, antes da minha partida veio mais uma vez ao meu quarto e disse-me: «O senhor
vai-se, meu pai, mas não me verá mais, porque, quando voltar, eu já terei morrido; sinto que vou morrer». No
Verão havíamo-lo libertado dos estudos e enviado a Roveredo, onde passou três meses sob os cuidados de
um insigne médico e onde esteve alojado junto de uma família que o estimava muito e o tratava com delica-
deza maternal. Voltou a Verona curado e recomeçou os estudos; porém, em Setembro a sua doença voltou a
atacá-lo e, ainda que tenha recuperado um pouco, a sua vida aproximou-se do ocaso.
904
Em Novembro, todos os gallas, à excepção do António, foram atingidos por uma doença contagiosa que
eu tinha visto apenas em África.
Foi-me assegurado que Pedro a suportou com admirável paciência, até com alegria. Eu mesmo, em Se-
tembro passado, lhe ouvi dizer no meio das dores mais atrozes: «Ainda mais, meu Deus; faz-me sofrer ainda
mais, porque tu morreste por mim na cruz.» Com tais sentimentos e depois de receber o Santo Viático, fale-
cia em Janeiro de 1864, resplandecente de glória celestial.

[Esta informação de Comboni ia acompanhada da seguinte carta:]

905
Junto com esta envio a minha informação que, incluída nos Anais, ajudará a promover a boa obra a que
estamos consagrados.
Antes de tudo devo anunciar-lhe que, na passada quinta-feira, 19 de Setembro, o Santo Padre me recebeu
em audiência. Assim pude falar com Sua Santidade sobre a sua Sociedade e do Santo Padre obtive para ela, e
em especial para os membros da presidência, uma bênção que lhe enviou mediante a presente. Informei Sua
Em.a o Card. Barnabó, Prefeito da S. Congregação da Propaganda Fide, do muito bem que a sua Sociedade
vai fazendo e também ele abençoou o seu nobre e difícil trabalho. Depois tive carta de Marselha, na qual P.e
Biagio Verri me comunica que P.e Olivieri está gravemente doente e que vai morrer.
906
Pude recolher muitas notícias sobre a vida deste santo homem. Dois sacerdotes da idade de Olivieri, que
conviveram com ele desde a sua infância até 1840, deram-me abundante informação sobre a sua vida antes
do começo da sua obra para o resgate dos negros. Casamara, padre trinitário de Roma, e várias outras respei-
táveis personalidades, proporcionaram-me muitos dados sobre a história da sua actividade missionária e ain-
da me darão mais. Assim, embora o trabalho não seja fácil, com um pouco de paciência, espero poder redigir
uma biografia completa deste homem extraordinário.
907
Durante a minha ausência de Verona, substitui-me P.e Francisco Bricolo, director do Instituto Mazza.
Agora, por meio dele, tomo conhecimento de que também António Dubale, que à minha partida de Verona
estava de muito boa saúde (como dizia no princípio da minha informação), foi afectado pela mesma doença,
pelo que já só resta com saúde Miguel Ladoh.
908
A Francisco Amano tive que lhe amputar a perna direita. Porém, posso afirmar-lhe que todos são verda-
deiros modelos de abnegação e de piedade. O Baptista, a quem se teve de amputar grande parte das coxas,
dizia ao cirurgião e aos que o ajudavam: «Perdoem-me se lhes causo tantos incómodos; agradeço-lhes de
coração pelo carinho e paciência que têm comigo.» E durante a operação não deixou nunca de rezar.
Salvador, Caetano e Pedro morreram.
909
No que respeita ao colégio das negras, vai muito bem. Quando chegarem os exames finais deste ano e se
atribuírem os prémios, nomear-lhe-ei as que mais se tiverem distinguido.
A inegável realidade, por um lado, de que os negros não podem viver na Europa, como dolorosamente o
comprovámos em Nápoles, em Roma e ultimamente em Verona, e, por outro lado, o facto de os missionários
europeus não suportarem o clima da África Central fazem-me pensar continuamente no remédio e impelem-
me a pôr em execução as ideias que me ocorreram o ano passado durante a minha estada em Colónia. Actu-
almente encontro-me precisamente em Roma para tratar com a S. Sé, e em especial com a S. Congregação da
Propaganda Fide, de um novo plano sobre a missão africana. Este plano, que pus por escrito e submeti à
Propaganda, não se limita só à velha missão da África Central, mas estende-se a toda a grande família dos
negros, abrangendo assim toda a África.
910
Antes que este plano obtenha a aprovação eclesiástica, devo fazer uma viagem, por encargo do card. Bar-
nabó, a fim de me pôr em contacto com todas as sociedades e companhias religiosas que até hoje têm traba-
lhado para a missão africana; e portanto com o P.e Olivieri, com P.e Mazza, com o P.e Ludovico de Casoria,
com a Sociedade da Propagação da Fé de Lião e de Paris, com a ordem franciscana, com as sociedades espa-
nholas, etc.
911
O Santo Padre, a quem expus o meu plano, encontra-o muito do seu agrado e abençoa-o. Ele, como me
disse, deseja convocar para uma batalha geral todas as forças que trabalham pela conversão da África, a fim
de que “viribus unitis” tomem de assalto a cristianização dos negros. Creio que o Plano que expus a Barnabó
responde bem a tal fim. Naturalmente, quando eu conhecer as opiniões e deliberações de cada uma das soci-
edades e tiver uma ideia precisa das condições da África e particularmente da situação nos diferentes pontos
das missões, apresentar-lhe-ei o meu plano. Depois, quando, com a ajuda e o conselho de muitos homens
peritos, se derem os primeiros passos, Deus mostrar-nos-á o caminho adequado para a reabilitação da raça
negra.
912
O que o S. Padre e a S. Congregação têm em mente é simples: não se limitar a uma parte da África, mas
abrir-se a toda a raça negra; tendo todos os povos desta os mesmos costumes, os mesmos hábitos e defeitos e
a mesma natureza, pode-se ir ao encontro de todos eles com os mesmos meios e os mesmos remédios.
Se o meu plano for aprovado, a Sociedade de Colónia, à qual desejo uma constante expansão, de um ri-
beiro transformar-se-á num grande rio.
913
Entretanto, roguemos ao Senhor e à Rainha da Nigrícia que me abençoem a mim, que me consagrei in-
condicionalmente à conversão da África, e abençoem e propaguem o meu plano, que estará destinado a pro-
porcionar os meios para a realização deste projecto.
Receba o senhor e todos os membros da Sociedade as mais sinceras expressões de agradecimento, estima
e afecto.

Seu af.mo
Daniel Comboni miss. ap.

Original alemão
Tradução do italiano

N.o 118 (114) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, f 655
Roma, 20 de Outubro de 1864

Eminentíssimo Príncipe,

914
Com base no projecto da Sociedade dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria para a Conversão da Ni-
grícia, do qual apresentei recentemente a V. Em.a um esboço, atrever-me-ia a propor-lhe já que, daquela
porção do antigo vicariato apostólico da África Central, que os missionários alemães e austríacos, os de P.e
Mazza e os franciscanos tentaram evangelizar, se formassem dois vicariatos ou prefeituras, chamadas uma
do Nilo Oriental, outra do Nilo Ocidental, para se confiar uma ao Insto. Mazza de Verona e a outra à provín-
cia reformada da ordem seráfica de Nápoles, conforme V. Emº. julgasse oportuno.
915
Os meios pecuniários e materiais para sustentar ambas as missões obter-se-iam da Sociedade de Maria, de
Viena.
É sabido de V. Em.a que esse ex.mo comité, por causa dos últimos insucessos verificados na missão afri-
cana desde que foi confiada à Ordem Seráfica, queria entregar o dinheiro ao Insto. Mazza, no caso de este
mandar os seus missionários para a África (em parte porque o Instituto está sob o domínio da Áustria, de
onde provêm todas as esmolas), sem dependerem dos padres franciscanos, como resulta duma comunicação
havida entre esse comité e o P.e Ludovico de Casoria. Ora, para persuadir esse ex.mo comité a socorrer as
missões propostas, além de não faltarem meios à autoridade de V. Em.a Rev.ma, eu mesmo me empenharia
para obter tal fim, na íntima convicção de que, repartindo desse modo as ajudas entre as duas congregações,
proviria um maior bem à infeliz Nigrícia.
916
Consequência desta determinação seria: 1.o, a rápida formação de dois institutos masculinos e dois femi-
ninos no Egipto por parte de Verona e de Nápoles; 2.o, a reintegração da estação de Schellal, de Assuão; 3.o,
uma próxima criação da estação de Cartum, que seria a primeira fundação estável das duas missões. Parecer-
me-ia oportuno que, para a realização deste importante assunto, V. Em.a contactasse directamente com o
rev.mo geral de Ara Coeli e que, para tratar com Viena e com o Insto. Mazza, V. Em.a me autorizasse com
uma carta; e eu, ou antes ou depois da minha ida a França, aplicar-me-ia com empenho a esse venerado en-
cargo.
Sempre alegre de fazer e pensar o que mais for do agrado de V. Em. a Rev.ma, fico à espera das suas ve-
neradas disposições.

P.e Daniel Comboni.

N.o 119 (115) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 20 de Outubro de 1864


Caríssimo superior,

917
A dor que sinto na alma ao saber que o meu muito querido superior está ainda magoado comigo é tal, que
tenho extrema necessidade de romper o silêncio e correr, como o filho pródigo, para os braços do pai. Eu não
sei precisamente de que delito sou culpado de modo a causar tanto aborrecimento ao meu querido superior.
Porém, a ideia de que ao tratar tantos assuntos e ao realizar tantas coisas depois do meu regresso de África
embora procurasse sempre a glória de Deus e a salvação das almas , terei certamente cometido erros e serei
culpado perante Deus e perante si, faz-me compreender a sua justa ira contra mim e, por isso, lanço-me a
seus pés e imploro-lhe um benévolo e generoso perdão. Ah, meu querido pai! Se pudesse comprar com o
meu sangue o consolo para o seu coração, fá-lo-ia. Mas o pensamento de que causei tanta dor ao meu amado
superior, a ideia de que o coração do meu querido pai está aflito por minha causa é o mais tremendo de todos
os castigos: creio que os últimos quatro meses de sofrimento e dor que passei, desde que soube que o meu
superior está entristecido por minha causa, devem bastar para pagar qualquer delito.
918
Diga pois, meu amado pai, uma palavra de conforto a um desolado filho seu; diga-me uma palavra de paz
e de amor, que me será mais grata que todas as delícias do mundo. O benigno acolhimento do Santo Padre; o
trato cortês e confidencial, como de pai a filho, com que me honra o Card. Barnabó; os seculares e damas; a
estima que, embora indigno, me é dedicada em toda a Europa, não podem absolutamente envaidecer o meu
coração nem diminuir em nada o carinho que sinto pelo meu Instituto e pelo meu superior; tudo desprezo por
amor do meu Instituto e do meu bom velho, pelo qual tudo sacrifiquei, até o meu pai natural. E ouvir agora
que terei de abandonar para sempre o meu Instituto e ir-me embora, é mais do que posso suportar. O que eu
sofro no coração desde há quatro meses, repito, é suficiente para purificar de qualquer crime.
919
Pense bem, querido pai, que é impossível trabalhar e realizar muitas coisas sem incorrer na desaprovação
de alguém. Tenha em conta que o mundo é mau e que entre as paredes do santuário também há malvados.
Pense que os que lhe falaram mal de mim não se guiam certamente pelo espírito da caridade de Jesus Cristo.
O Evangelho diz: corripe primo inter te et ipsum solum. Por Deus, a mim ninguém me disse nada; mas ime-
diatamente, sem preâmbulos, efectuaram o dic Ecclesiae. O ministério sacerdotal está estabelecido para cor-
rigir o vício e edificar a virtude. Eu estou nas mãos de Deus e do meu querido superior. De ambos imploro e
espero ajuda.
920
Por isso, suspiro por ver sereno e consolado o venerável rosto do meu encanecido pai; suspiro por ver
alegres os meus irmãos do Instituto; suspiro por trabalhar pela glória de Deus e do Instituto e por receber da
parte do meu amado superior uma palavra de conforto e de perdão.
921
Vamos, por piedade, meu querido pai! Diga essa consoladora palavra para mim a P.e Bricolo e liberte-me
deste penoso purgatório que, embora o suporte com resignação, me enche de dor. Espero que rapidamente
P.e Bricolo me console da parte do meu velho pai e superior.
922
O meu novo plano da Sociedade dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria para a Conversão da Nigrícia
obteve o beneplácito geral. Consultei 14 cardeais, 6 arcebispos, o geral dos Jesuítas, juntamente com outros
dos mais distintos membros da companhia e encontrei a aprovação de todos. Parece que o Card. Barnabó
quer, como consequência, regular todas as fundações de toda a África de acordo com este plano. É seu desejo
que, imediatamente após o meu regresso a Verona, eu vá a França pôr-me de acordo com a Propaganda de
Lião e de Paris, para obrigá-los em nome da Santa Sé a entregar todas as ajudas pecuniárias que seriam ne-
cessárias. Depois é necessário que me ponha de acordo com as casas centrais dos 13 vicariatos de todas as
costas da África; depois, ao regressar a Roma nesta Primavera, o Papa dará o breve de decreto. Comunicar-
lhe-ei tudo isto pessoalmente, meu querido superior, de quem receberei os conselhos, as ordens e tudo o que
considerar oportuno.
923
O card. Barnabó queria persuadir-me a estabelecer o Comité da Sociedade dos Sagrados Corações de J. e
de M. em Paris. Eu, por agora, respondi com um rotundo não. Quero que o novo plano não viva sob a influ-
ência de nenhum poder político. A França e a Áustria são demasiado zelosas e, cada uma por seu lado, trata-
ria de submeter à sua influência todas as obras católicas, como o mostram claramente os exemplos da Pia
Obra de Paris e Lião e de Viena. Mantendo a autonomia de cada uma das estações que se fundarem na Áfri-
ca, segundo os progressos do novo projecto, pretendo que o centro vital conserve uma absoluta liberdade de
acção, o que se obterá estabelecendo o Comité numa cidade livre. Por agora não decidi nada, embora o meu
pensamento se oriente para a cidade de Colónia, que é grande, católica e, por outro lado, sujeita a um gover-
no protestante.
924
Como corolário do meu Plano, amado superior, quero conseguir, dentro de poucos meses, a criação de um
vicariato apostólico na África que seja total e exclusivamente confiado ao Insto. Mazza, de modo que não
dependa de ninguém, salvo Roma. Este é o desejo que o meu querido superior teve durante tantos anos e que
se conseguirá no espaço de uns breves meses. O superior geral do insto. será ou o pró-vigário ou o subprefei-
to da dita missão. Imbuí desta ideia o Cardeal ao propor-lhe que o antigo vicariato fosse dividido em dois, a
saber: o do Nilo Oriental e o do Nilo Ocidental. O meu amado superior escolherá o que quiser e eu ocupar-
me-ei de o conseguir, depois de me ter posto de acordo com as sociedades benfeitoras.
925
O cardeal, que me encarregou de reunir todas as forças e instituições para operar viribus unitis em África,
pensa que o meu plano regulará a África Negra por muitos séculos e que só este plano será capaz de implan-
tar estavelmente a fé no centro da África. Nós encontraremos mil dificuldades, mas com a ajuda dos Sagdos.
Corações de J. e de M. tudo se conseguirá. Será mister muita sagacidade para iludir a vigilância e os esforços
da Inglaterra protestante; porém, se Deus nos der vida, tudo se alcançará e as forças do Diabo enfraquecerão.
926
Creio que este plano é obra de Deus, porque me veio à mente a 15 de Setembro, enquanto fazia o tríduo à
Bta. Alacoque; e no dia 18, em que essa serva de Deus foi beatificada, o card. Barnabó terminava de ler o
meu Plano. Trabalhei nele quase 60 horas seguidas. Apesar de tudo isto, antes de solicitar a sua aprovação
pela Santa Sé, imprimirei muitos exemplares para o apresentar a todas as sociedades para África e aos mais
distintos prelados do mundo. Eu escutarei os conselhos e as sugestões de todos para o melhorar e, assim
aperfeiçoado, propô-lo-emos à Santa Sé. Eu creio que é oportuno, porque o plano abrange toda a África,
habitada quase toda pela raça negra.
927
Se algum cardeal ou arcebispo me disser que não gosta, responderei como fiz a um bispo doente de Ro-
ma: «Dê-me e proponha-me um Plano melhor, que eu rasgarei imediatamente o meu». Dentro de dez dias
estarei em Verona.
Senhor superior, prepare-se para mandar gente para a África a partir da próxima Primavera, que o mesmo
combinei, há pouco, em Nápoles com o P.e Ludovico. Apresente os meus respeitos ao bispo.
Um perdão, uma palavra de paz e amor.

Ao seu indigmo. filho P.e Daniel

P. S. O facto de o Instituto tomar a seu cargo uma missão em África, custeada pelos fundos da Sociedade
da Propagação da Fé, talvez seja uma excelente e prudente medida para a conservação e perpetuação do
mesmo Instituto.
P.e Daniel

N.o 120 (116) - O PLANO


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 667-674v

Roma, 24 de Outubro de 1864

ESBOÇO DO PROJECTO
da
SOCIEDADE DOS SAGDOS. CORAÇÕES DE J. E DE MARIA
PARA A CONVERSÃO DA NIGRÍCIA

Não o transcrevemos porque é semelhante ao N.o 114, com pequenas variantes.

N.o 121 (117) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Florença, 31 de Outubro de 1864

Amat.mo sr. superior,

928
Espero que tenha recebido a minha última carta, de há dez dias. Nesta repito-lhe tudo o que lhe disse na
anterior, pois guardo sempre os mesmos sentimentos para com um pai a quem devo tudo o que sou.
Nesta conto-lhe, além disso, que quinta-feira, por meio do cardeal Barnabó, fui chamado à presença do
Santo Padre, que me recebeu nos seus aposentos, onde estive uma hora e dez minutos. Durante três quartos
de hora falei do novo Plano de África; depois li uma belíssima carta que a pequena Matilde de Canossa es-
creveu ao Papa. Oh!, que belos sentimentos manifestava essa menina angelical. Ao Santo Padre agradou
também muito e encarregou-me de lhe dar a bênção.
929
Falei largamente de si, meu querido superior, do Instituto e do paramento. «Como está o meu bom velho
Mazza?» perguntou-me o Santo Padre. «Diga-lhe que o estimo e o abençoo de coração»., etc. Depois, falan-
do do paramento, disse-me: «Esplêndido, esplêndido; asseguro-lhe que nunca vi um trabalho tão estupendo.
Como o card. Barnabó o utilizou no Verão passado em S. Filipe e o molhou um pouco com o suor, ordenei
que não se usasse mais no Verão para o não estragar: quero que seja conservado no palácio pontifical como
precioso monumento de arte. Mando ao meu bom Mazza uma bênção especial». Em suma, o Papa gosta do
Insto. e especialmente do seu chefe.
930
Quanto à África, estou contente por ver que o Pontífice acolhe favoravelmente as minhas ideias. «Alegro-
me – disse-me – por se ocupar da África. Agora vá a Paris e apresente o plano à presidência da Pia Obra da
Propagação da Fé; depois, conforme a ajuda que a França lhe prestar a si, o card. Barnabó mandará uma cir-
cular a todos os vigários e prefeitos apostólicos da África e eu farei o decreto de aprovação. Encarrego-o de
estudar a maneira de associar ao Plano todas as instituições e sociedades. Dou-lhe a minha bênção, etc.
Labora sicut bonus miles Christi». Estas últimas palavras ressoaram no fundo do meu coração. O P.e Rossi,
confessor de Antonelli, o card. Barnabó e muitos outros, disseram-me que o meu plano era o único meio de
implantar a fé no centro da África.
931
Meu amado superior, eu não tenho nenhum mérito. Quando cheguei a Roma, não tinha nem a mais remo-
ta ideia do Plano. A Providência guiou a minha mente, o meu coração. Eu deveria ter consultado o meu supe-
rior antes de o fazer. Mas, ao pensar que com uma carta pouco resolveria e que o superior que actua com
prudência só me teria dado a sua opinião ao cabo de longo tempo, segui o impulso do meu coração. E pare-
ce-me ter acertado. Além do imenso bem que o plano trará à África e de vir a regular por vários séculos as
empresas africanas, terá como corolário a realização do seu plano. Com efeito, o card. Barnabó na sexta-feira
assegurou-me que, depois dos acordos a que chegar em Paris, decretará a criação de dois vicariatos ou prefei-
turas apostólicas e confiará uma, à minha escolha, ao Insto. Mazza. E dado que P.e Beltrame gostou em geral
do território dos Dincas, Agnarquai, etc., por ele explorados e bem descritos, poderei fazer com que seja
atribuído ao Insto. Mazza o Nilo Oriental. Mas sobre isto ouvirei o seu parecer. Com o meu Plano, além
disso, estou certo que o instituto terá muita gente e que, com a manutenção da missão, o mesmo insto. se
perpetuará.
932
Tenho uma carta em alemão, recebida há 20 dias, de um membro do Comité de Viena, o qual me diz: «Se
o senhor não acudir à missão, ela afundar-se-á». Não muito seguro, dei em substância a conhecer ao Comité
as minhas intenções. O cardeal e o P.e Ludovico revelaram-me o que trataram com Viena. Contar-lhe-ei de
viva voz. O geral dos franciscanos solicitou por todos os meios ao cardeal e ao Papa a obtenção da absoluta
jurisdição sobre a África. O bispo do Egipto era nomeado pró-vigário.
933
O meu Plano lançou por terra os seus projectos e eliminou para sempre o pior obstáculo que impedia o
nosso instituto de realizar o plano concebido em 1849. É verdade que o cardeal tinha prometido dar a tribo
do deserto proposta por P.e Beltrame. Mas aquela não era constituída por negros e, por isso, com ela não
podia haver nenhuma relação por parte dos institutos de negros de Verona. Além disso, com esse sistema não
teríamos podido receber ajuda de Viena. Como consequência do meu plano, eu farei, ao invés, entregar ao
Instituto uma das duas partes do Nilo, a Oriental ou a Ocidental, que se estendem entre o trópico do Câncer e
o equador, quer dizer, de Assuão a Schellal, até quase às fontes do Nilo. Estude bem isto, querido superior, e
verá como fui guiado por esse Deus que do mal sabe tirar o bem e que, sob a inspiração da beata Alacoque,
agi segundo as suas intenções e desígnio.
934
Secundando essas intenções, cumpro a ordem do card. Barnabó. E como devo apresentar o Plano a diver-
sas sociedades da Alemanha, França e Espanha, imprimo alguns exemplares para obter o parecer, as obser-
vações e as modificações dos mais destacados homens e prelados da Europa católica, a fim de na próxima
Primavera poder ser publicado. O senhor superior disponha as coisas de modo a enviar para o Egipto negros,
negras e missionários. Já no próximo Verão devem florescer no Cairo duas casas para a África Central de-
pendentes do Insto. Mazza.
935
Estou certo que alguns dos nossos jovens sacerdotes se associarão à missão. Com o sistema anterior, ne-
nhum dos jovens sacerdotes o teria feito. Além disso, o Papa declarou-me abertamente que não daria a bên-
ção a nenhum missionário para se ir estabelecer sem mais na África Central; e o próprio Papa estava decidi-
do a suprimir o vicariato. Espero ter redigido o meu Plano de modo que se entenda. Agora, que o Papa me
disse esse bendito labora sicut bonus miles Christi, já não temo nada. O Deus da misericórdia anulará a tre-
menda maldição que desde há tantos séculos pesa sobre os míseros filhos de Cam.
Lembre-se, meu querido superior, do grande afecto que lhe dedico e que desejo não ser indigno de ser

Seu verdadeiro filho


P.e Daniel

N.o 122 (118) - AO P.e LUDOVICO DE CASORIA


AFBR

Florença, 31 de Outubro de 1864

Rev.mo P.e Ludovico,

936
Não lhe escrevi de Roma, porque soube pelo card. Barnabó que o padre geral lhe ia comunicar a resposta
favorável do vigário apostólico do Egipto. Por isso, estabeleça entretanto os dois Institutos no Egipto e eu
ocupar-me-ei de que lhe seja confiado um vasto campo na África Central e de fazer com que o comité de
Viena lhe conceda uma soma anual. O que o comité lhe escreveu a si, sobre o que se tratou com o Insto.
Mazza, escreveu-o também a Barnabó. Porém, eu posso assegurar-lhe que o meu Instituto, exceptuado eu,
não teve nenhuma comunicação com Viena: fui apenas eu quem se dirigiu a eles e eles falaram e escreve-
ram-me só a mim. Eu tomarei as coisas com grande interesse.
937
Apresentei a Barnabó a minha ideia sobre o modo de obter proveito para a África. Ele acolheu favora-
velmente o meu Plano e ordenou-me, em nome do Papa, que em seguida vá a Paris e depois a Viena. Não vai
passar meio ano, meu bom padre, sem que Viena atribua uma boa soma anual para as suas grandes obras.
Falo-lhe de maneira confidencial. Deixei uma nota à Propaganda, na qual propus que fosse confiada uma
grande parte da África à província reformada franciscana de Nápoles, chamada La Palma; fiz isto apenas
chegado de Nápoles. Antes de deixar Roma, o cardeal disse-me que, alcançado o acordo com a Propaganda
de Paris, atribuirá ao padre Ludovico e aos seus sucessores a desejada missão. Devagar se vai ao longe. Es-
tou certo de conseguir que o cardeal apoie a minha proposta em Viena a favor de La Palma, no caso de lá me
negarem (o que não creio).
938
Enfim, P.e Ludovico, o senhor sabe que as obras de Deus têm que encontrar obstáculos no mundo: Deus
ajudar-nos-á pela nossa querida África. Eu não caibo em mim de contente. Quinta-feira estive 70 minutos
com o Papa. Encorajou-me a ocupar-me da África, mostrou-se favorável ao meu Plano e na despedida disse-
me: «Labora sicut bonus miles Christi». Agora não há poder humano que me faça retroceder um passo. Deus
quer que trabalhemos pela África. La Palma é como o modelo pelo qual há que regular substancialmente
todas as outras instituições. O meu plano exclui em geral a educação de negros na Europa; mas o senhor, P.e
Ludovico, faça o que o Senhor lhe inspirar: em primeiro lugar porque é guiado por Deus e depois porque as
condições de Nápoles são excepcionais, em relação a Verona e ao resto da Europa. As minhas saudações aos
negros e a P.e Francisco e rogue por

Seu af.mo
e
P. Daniel C.

N.o 123 (119) - AO CÓN. JOÃO C. MITTERRUTZNER


ACF, A, c. 15/61

Verona, 8 de Novembro de 1864

Meu caríssimo professor,

939
Amanhã, quarta-feira, pela manhã, parto de Verona com o primeiro comboio, para à tarde chegar a Bres-
sanone. Desejo que estudemos juntos o novo Plano para a África que apresentei à Sagrada Congregação de
Prop. Fide. Em quatro audiências, mas especialmente na de 28 de Outubro passado, o Papa encorajou-me a
ocupar-me da África, fazendo-me ressoar nos ouvidos: «Labora sicut bonus miles Christi». Sua Em.a o card.
Barnabó, com a aprovação do Papa, manda-me ir de seguida a Lião e Paris para me pôr de acordo com a Pia
Obra de Prop. da Fé. Empreenderei essa viagem dentro de 15 dias; antes, porém, quero combinar consigo,
para fazer com que resulte como corolário do meu Plano a rápida reintegração da missão da África Central,
segundo o desejo do ex.mo comité de Viena e, para esse fim, já apresentei propostas a Barnabó, às quais se
dará pronta execução ao meu regresso de Paris.
940
Os franciscanos e especialmente o geral, sem se aperceberem, foram levados ao ponto – mercê duma ma-
nobra política que realizei no momento e lugar oportunos – de suspirar pela rápida execução das minhas
negociações de Paris e ceder metade da jurisdição sobre a África Central.
Tudo isto fique entre nós. Entender-nos-emos melhor de viva voz. Deus sabe tirar o bem do mal. É minha
intenção utilizar os serviços dos excelentes missionários alemães e de associar Kirchner à minha obra.
Apresente os meus respeitos a S. A. o bispo da parte do seu

Af.mo amigo
P.e Daniel

N.o 124 (120) - A P.e GODOFREDO NOECKER


«Jaresbericht...» 12 (1864), pp. 86-91

Bressanone, 9 de Novembro de 1864

Honorabilíssimo senhor,

941
Espero que tenha recebido as duas cartas que lhe enviei de Roma. Na primeira dava-lhe uma breve infor-
mação e na outra a ideia de um novo projecto para a conversão dos negros.
Ficará admirado de eu estar sempre em viagem e de agora me encontrar em Bressanone. Porém, deve sa-
ber que a África e os pobres negros se apoderaram do meu coração, que vive só para eles, sobretudo depois
que o representante de Jesus Cristo, o Santo Padre, me encorajou a trabalhar pela África; e por este motivo
perdoar-me-á até por abandonar os meus poucos negros – os quais, contudo, estão em boas mãos – para tra-
balhar em benefício de toda a sua estirpe.
942
Segundo as últimas notícias, a missão da África Central está quase morta. Actualmente permanecem em
Cartum apenas um padre e um irmão franciscanos. A zona do Nilo Branco está completamente abandonada e
igualmente a estação missionária de Schellal.
A presidência da Sociedade de Maria, de Viena, que trabalhou com tanto afinco e tanto sacrifício na ma-
nutenção da missão da África Central, trata por todos os meios de revitalizá-la. A própria Propaganda de
Roma se inclinava, de momento, a abandoná-la completamente, uma vez que não podia ser posta em funcio-
namento por missionários europeus. Apenas cheguei a Roma e falei do novo Plano, concebido em Colónia e
desenvolvido na minha mente na viagem de Colónia para Mogúncia, o cardeal encarregou-me de pôr por
escrito essas ideias e de unir e utilizar no meu Plano todos os que trabalham em favor da África.
943
O Plano agradou ao Papa e ao card. Barnabó; porém, a sua realização terá que chocar com inúmeros obs-
táculos, porque o espírito do amor de Jesus Cristo falta em muitas classes e instituições, especialmente por
causa da política.
944
A obra deve ser católica, não espanhola, francesa, alemã ou italiana. Todos os católicos devem ajudar os
pobres negros, porque uma nação só não pode socorrer toda a raça negra. As iniciativas católicas, como a do
venerável Olivieri, a do Instituto Mazza, a do P.e Ludovico, a da Sociedade de Lião, etc., fizeram, sem dúvi-
da, muito bem a um número de indivíduos negros; porém, até agora, ainda não se começou a implantar o
catolicismo na África e a fazê-lo arreigar aí para sempre. Pelo contrário, com o nosso Plano, nós aspiramos a
abrir a via da entrada da fé católica em todas as tribos de todo o território em que vivem negros. E para obter
isto, parece-me, devem unir-se todas as obras até agora existentes, as quais, tendo desinteressadamente pe-
rante os olhos o nobre fim, deverão deixar de lado os seus interesses particulares.
945
O senhor está a compreender que esplêndido futuro se depara à sua Sociedade de Colónia, que em certo
modo concebeu o novo projecto, dado que a ideia do plano só me ocorreu depois da conversa com os senho-
res da presidência. De Roma enviei-lhe um esboço do Plano, ao qual juntei um prospecto com os vicariatos e
prefeituras que rodeiam a África. Depois referi-me mais em pormenor à fundação de quatro quase-
universidades e de bastantes escolas de belas-artes em torno da grande península de África e, por último,
falei da grande missão do comité central, que fundaremos numa grande cidade europeia.
946
De Lião, para onde me dirijo agora, irei mandar-lhe todo o Plano, como está agora. Peço-lhe que, antes da
minha chegada a Colónia, o leia e examine com os distintos membros da presidência e com outros homens
prudentes.
947
Eu estou aqui em Bressanone, em casa do incansável dr. Mitterrutzner, que tanto fez pela missão africana.
Ele aprova o meu plano e considera-o necessário para melhorar a situação das missões costeiras e para pene-
trar por todas as partes no interior da África.
Espero que o primeiro êxito da minha iniciativa para a recuperação das estações missionárias destruídas
seja uma realidade dentro de poucos meses. Estou a falar precisamente disso com Mitterrutzner, que intervirá
em meu favor junto da Sociedade de Maria, de Viena, enquanto eu, por encargo do card. Barnabó, submete-
rei o Plano à direcção da Propagação da Fé de Lião e Paris. Depois, de Paris irei a Colónia. E na minha via-
gem através do Piemonte tratarei de informar-me de tudo o que diz respeito à morte do venerado Olivieri e
das consequências da mesma, para depois poder expô-las em Colónia.
948
Permita-me uma vez mais agradecer à Sociedade de Colónia pela grande ajuda que recebi em Verona pa-
ra os meus negros. Não pode imaginar o alcance dessa acção benfeitora. Quero, por isso, tentar dar-lhe uma
pequena ideia, a fim de que o senhor e os sócios saibam quão grande é o seu mérito diante de Deus.
949
Os nossos Institutos têm que manter 600 jovens: 200 rapazes e 400 raparigas, incluindo os negros e as ne-
gras. Nós não temos nenhum rendimento, se se exceptuar um pequena extensão de terreno e algumas casas,
cujo arrendamento poderia manter ao máximo uma dúzia de pessoas. O rev.do fundador Mazza deu ao seu
Instituto tudo o que possuía e não quer que se fale de dinheiro, porque diz sempre que só a Providência é o
fundamento e o sustento do seu Instituto. Ele é um milagre de confiança, congruência e abnegação. Desde
que, doze anos atrás, foram roubados ao Véneto e à Lombardia o vinho e a seda, que eram as maiores rique-
zas do país, cessou a beneficência e se a Providência nos manda para a comida de hoje, não sabemos se te-
remos algo amanhã. Portanto, pode compreender facilmente como amiúde a comida dos meninos é escassa.
950
Quanto ao vestuário, antes proporcionava-o todo P.e Mazza; mas desde há uns anos que lhe faltam tam-
bém meios para isso. As raparigas europeias ainda têm o pai e a mãe, o tio e a tia, o tutor ou o protector que
lhes enviam ajudas. Porém, ninguém pensava nas pobres africanas (as quais, como sabe, se encontram no
Instituto desde muito antes dos rapazes negros), excepto as professoras do Instituto, que amiúde cediam às
pobres negras a sua comida. P.e Mazza via tudo isto e sofria terrivelmente sem poder remediar.
Desde o meu regresso de África trabalhei muito para ajudar as pobres negras e dedicava a isso até o meu
estipêndio e o que obtinha com as pregações. Finalmente, a Providência fez com que tivesse conhecimento
da Sociedade de Colónia; pedi ajuda à mesma e fui atendido. Desde então, as coisas melhoraram para os
negros: estão vestidos e aprendem, despreocupados, a não duvidar do auxílio da Providência. Roupa, aque-
cimento, lenha, tecido, pão duas vezes ao dia, bebidas, carne três vezes por semana, papel, livros, remédios,
uma comida melhor para os doentes, tudo o que precisam é comprado com o dinheiro que recebi de Colónia.
Porém, a espantosa doença que os atingiu a todos, que os reteve na cama todo o ano e pela qual morreram
três, afectou a bolsa de modo particularmente forte. Sem a ajuda de Colónia, não teria sabido como superar o
problema, e muitos mais, com o andar do tempo, teriam morrido.
951
A Sociedade de Colónia é, pois, a verdadeira protectora e o bom pai dos negros de Verona. Está a ver
agora os grandes méritos da sua Sociedade? Portanto, Deus abençoe a presidência, os sócios e os benfeitores.
O Senhor lhes agradeça por isso, porque eu sou demasiado indigno para lho agradecer na medida dos seus
méritos. Agora, o último que estava são, Miguel Ladoh, adoeceu. É uma vítima da caridade, porque se fati-
gou demasiado no serviço dos seus irmãos doentes. Temi muito pela sua vida. O bom rapaz não sabia ainda o
que era o pecado.
As negras gozam de boa saúde. O seu aproveitamento vai exactamente a par e passo com o meu plano do
ano passado. Os prémios foram os mesmos de então. Agora estão à espera de partir brevemente para a Áfri-
ca, para levar a luz da fé católica às gentes da sua terra. Espero que rapidamente se cumpram os seus desejos.

P.e Comboni

Original alemão
Tradução do italiano

N.o 125 (121) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/6

Lião, 23 de Dezembro de 1864

Caríssimo reitor,

952
A minha viagem de Turim a Lião foi muito difícil por causa da neve, que impedia o nosso avanço. Tive
como companheiro o príncipe Sartorinsky, que me deixou em Culoz. De Susa, numa carruagem puxada por
vinte e dois cavalos, subimos o Moncenisio. Depois de seis horas de subida, como a neve nos impedia de
continuar, montámos em trenós, cada um puxado por 14 cavalos. Não tenho tempo para descrever esta cena
nocturna, que é o contrário das vividas no deserto de África. Depois de um incrível trabalho para superar
barrancos e precipícios enormes, às duas da manhã alcançámos o outro lado da montanha; fomos atenciosa-
mente hospedados pelos Eremitas de S. Bernardo (os quais foram respeitados até pelo primeiro Napoleão);
aqueceram-nos e deram-nos a comer uma saborosa sopa de feijão, nabo e lentilhas, pão e chèvrin, que é um
delicioso queijo fresco de cabra. Ao amanhecer, voltámos a montar nos trenós e, depois de vinte e duas horas
através de neves geladas, chegámos a St. Michel. Aí tomámos de novo o comboio e, atravessando Chambery,
toda a Sabóia e o ameníssimo lago de Borgex, chegámos às quatro da tarde a Lião. Não digo nada do resul-
tado da minha conversação, porque ainda não sei; e haverá atraso nisso também pela doença do card. Bar-
nabó, o único dos de Roma que quero que mantenha correspondência com Lião e Paris.
953
O senhor deve ter recebido seis exemplares do meu Plano que mandou imprimir o cónego Ortalda, ou me-
lhor, eu, por seu conselho. Meu Pai enviar-lhe-á outras dez cópias. Queria que entregasse uma a Tregnaghi e
uma a Martinati, e que o fizesse ler a Garbini. Porém, o que urge é rezar a Deus e a Maria pelo seu êxito. Por
consequência, mande uma cópia ao P.e Perez, rogando-lhe que estimule os filipinos a rezar; um exemplar aos
estigmatinos; um a P.e Miguel Falezza; um ao reitor de La Scala, ao pároco de St.o Estêvão e às pessoas que
rezam, em suma; mande também um aos nossos sacerdotes de S. Jorge e saúde-os da minha parte. E Farina-
to? Ah! Aborrece-me! Não me importa o dinheiro; o que não suporto é o engano. Lamento, porque lhe quero
bem, mas já não me fio. Vou mandar-lhe o número de vezes que se compraram massas, feijões, etc., que é só
uma ou duas vezes por mês; o resto, sempre nada mais que pão, uma vez cada dois dias. Mas basta: aborrece-
me.
954
Quando entre os frades franceses de Moncenisio comi os feijões, veio-me à mente o que tive de pagar a
Farinato por feijões e massas, sem se terem comido. Mas deixemo-lo... Diga a Hans que me escreva. Saúde
da minha parte o superior e diga-lhe que penso sempre nele, que quero que se levem a cabo as suas ideias a
respeito da África e que reze e mande rezar pelo bom resultado. Cumprimentos a P.e Beltrame, em suma, aos
nossos sacerdotes e jovens. Faça rezar aos nossos pelo êxito dos meus assuntos africanos. Escreverei muitas
coisas, mas agora vou dormir. Depois do Natal, será tratado no Senado o recrutamento dos clérigos e o pro-
jecto de supressão Vacca. Não perdi uma única sessão do Senado e tive o prazer de passar umas horas com
Manzoni, que estava acompanhado pelo pároco de S. Miguel. Cumprimentos às Urbani; também às minhas
duas protestantes, com o pedido de que me escrevam; vá vê-las. O meu porteiro depois guardará bem o meu
castelo, como faz com o piano e não com o seu quarto. Os meus respeitos ao bispo.
Seu af.mo P.e Daniel

955
Peço-lhe que me escreva sobre quanto diz respeito ao Instituto e não uma só página, mas três, quatro, etc.
Ninguém mais me escreve, por isso, não falhe e conte-me muitas coisas. Eu estou alojado no Seminário das
Missões Africanas de Lião. Mons. Planque é o superior e gosta muito de mim. Encontrarei imensas dificul-
dades ao princípio e muitas depois; porém, as obras de Deus são assim. Faça rezar muito ao Senhor e ânimo.

N.o 126 (122) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff 675-675v; 683-683v

Lião, 26 de Dezembro de 1864

Eminentíssimo Príncipe,

956
Quando saí de Roma, fui a Verona, onde o meu superior P.e Mazza, tendo lido e estudado o assunto do
Plano para a Conversão da Nigrícia, se mostrava contentíssimo: o bom velho parecia rejuvenescer com a
esperança de ver em breve realizado algo estável para o bem da África interior. Em verdade, creio que a
substância do Plano deve produzir o efeito desejado por V. Em.a: o de unir e conservar vivos e florescentes
os recursos e as instituições já existentes para o bem da Nigrícia, o que, sem que me demore a prová-lo, o
senhor verá bem claramente pelo Plano.
957
Este Plano, que foi lido e meditado por muitas personagens distintas e por alguns bispos, entre eles o de
Verona, recebeu a aprovação de todos, o que me animou a consagrar toda a minha vida para levá-lo a cabo.
Com efeito, apoiado na graça de Deus, sinto-me totalmente capaz de suportar impassível todos os obstáculos
que certamente se apresentarão à grande obra.
Porém, a aprovação e o estímulo dos demais pouco me importarão e para nada servirão, se não contar
com os de V. Em.a Rev.ma, que, neste assunto, é o órgão directo da vontade divina. Desculpar-me-á se tenho
o atrevimento de lhe expor o que o Santo Padre me disse na tarde do passado dia 29 de Outubro:
958
«Fico muito satisfeito por o senhor se ocupar da África interior e abençoo os seus esforços e intenções.
Eu falarei disso ao em.mo cardeal prefeito geral: consulte-o e siga as suas ordens, porque o Cardeal Barnabó
é muito, muito arguto; espero que fareis bem à África». Para me tirar o demasiado trabalho de tanto escrever
e copiar, imprimi alguns exemplares do Plano, que envio a V. Em.a para que o conheça todo. Corte e elimine
tudo o que não lhe agradar no Plano, porque o que não agradar a V. Em.a Rev.ma não me agradará nunca,
nunca a mim; e aprove o que lhe parecer. Além disso, sabe bem que eu e todos os que se associarem à obra
(e já o fizeram alguns, entre os quais tenho a firme esperança de contar com o excelente Kirchner) não pode-
remos nunca fazer nada, nem tomar nenhuma iniciativa, sem a expressa aprovação e o estímulo de V. Em.a
Rev.ma.
959
Se for manifesto o agrado e o beneplácito da Igreja, teremos dinheiro e gente e valiosa cooperação e tudo;
o Plano tomará um bom rumo. De contrário, os meus esforços e os dos outros valerão menos que zero. Po-
nho-me nas mãos de V. Em.a Rev.ma, que dirigirá as coisas de modo que seja iniciada felizmente a Obra, a
qual tem por objectivo cancelar o tremendo anátema que pesa desde há tantos séculos sobre os míseros filhos
de Cam e de implantar pouco a pouco, estavelmente, a fé nas imensas regiões da África interior, nas quais
nunca brilhou a luz do Evangelho.
960
Seguindo as ordens de V. Em.a Rev.ma, apresentei-me a este conselho da Pia Obra da Propagação da Fé
de Lião; e sem ter sequer tempo de expor os meus desejos, obtive esta resposta: «Nós não temos nenhuma
jurisdição. A nossa obra é puramente católica e ajudamos, sem atender a nacionalidades e na medida dos
nossos recursos, todas as missões e instituições do estrangeiro que forem aprovadas pela Propaganda e nos
forem por ela recomendadas; nunca demos um centavo a uma missão que previamente não nos tenha sido
recomendada pela Propaganda. Nenhuma recomendação, nem sequer do imperador, poderia fazer-nos mudar
o nosso sistema, que é a base da nossa actuação. Não conhecemos outras ordens a não ser as de Roma e os
nossos recursos distribuímo-los de acordo com a vontade de Roma.
961
«Nós só escrevemos a Roma para responder aos seus venerados escritos e só nos pomos em comunicação
com as missões estrangeiras para atribuir aos respectivos chefes as nossas esmolas. Se a propaganda nos
recomendar as suas obras e os seus institutos estabelecidos em África, nós ajudá-los-emos, como ajudamos
todas as outras missões e como fizemos em Trípoli com uma instituição para a África Central». Quanto ouvi,
vi e observei nesta Pia Obra de Lião e nas pessoas que a ela estão consagradas, tudo inspira santidade, catoli-
cismo, integridade. É uma obra essencialmente católica e os seus dignos membros, isentos de todo o espírito
de parcialidade e de autonomia, são os mais aptos para dirigi-la. V. Em.a Rev.ma bem sabia de antemão que
resposta me iam dar em Lião.
962
Portanto, estou muito satisfeito. Como tudo depende do que dispuser a Propaganda, tenho a certeza de
que, decretando V. Em.a a medida de que o Plano se vá realizando nas costas que rodeiam a África, receberá
da Pia Obra de Lião e Paris a ajuda que oferece a outras missões. Por isso, os meus actuais esforços devem
ser dirigidos à iniciação da obra; e estou certo do efeito que se produzirá, quando contar com o estímulo
formal de V. Em.a Rev.ma.
Entretanto, permaneço sem me mexer de Lião, à espera das suas veneradas ordens e instruções, as quais
serão a base da minha actuação na obra africana e a norma pela qual terei de me guiar para tratar com o sa-
cerdote espanhol enviado a Roma pelo bispo de Amiens, como indicava V. Em.a
Suplico a V. Em.a que me peça uma bênção ao Santo Padre, pelo qual quereria dar mil vezes a vida. E
beijando-lhe a sagrada púrpura, declaro-me com filial reverência e respeito

De V. Em.a Rev.ma
Hum. e devot.mo serv.
P.e Daniel Comboni

N.o 127 (123) - O PLANO


ACR, A, c. 25/9 n 1

Dezembro de 1864

Primeira edição impressa em Turim, com pequenas variantes em relação ao N.o 114.

N.o 128 (1194) - ASSINATURA DE PERTENÇA


SOBRE UM ESTOJO DE BINÓCULOS
ACE
1865

N.º 129 (124) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/7

Lião, 5 de Janeiro de 1865

Caríssimo sr. reitor,

963
Tinha escrito uma carta pormenorizada para o superior e já preparava outra mais comprida para si, quan-
do me chegou a sua do dia 1 do corrente; digo-lhe, de verdade, que já não tenho força nem ânimo para escre-
ver. Suspendo, pois, o envio da carta ao superior, que certamente não se dignaria lê-la e suspendo a que esta-
va a escrever ao meu caro reitor, porque realmente falta-me a força moral e, ao invés, deixo abertas as duas
cartas dirigidas a Canossa e a Pompei; leia-as ambas e leia-as a quem dos nossos companheiros do Instituto
me tem afecto e, depois, feche-as e mande-as para o seu destino. (Com Farinato acertaremos as contas
aquando do meu regresso. É inútil que vá ter com Tregnaghi, que não dará nada, porque seria uma dívida que
eu não reconheceria.) De Paris mandarei notícias mais pormenorizadas. Confio em Deus e na B. Virgem. Eu
pedi dinheiro para o superior?
964
Eu recebi dinheiro de Giovanelli e não o dei ao superior? Ele, caro reitor, sabe que uma fonte me fornece
dinheiro para os negros e sabe que devo usá-lo em consciência. Ao superior nunca mandariam nada, nem
nunca me disseram para lho entregar; eu é que pedi, viajei e o encontrei para a finalidade; e eu devo pensar
em fazer o que devo. O superior não tem nenhum direito, salvo mandar que não me envolva pelos negros e
negras; e em tal caso, se mo tivesse ordenado, o meu dever seria obedecer. Porém, sobre o dinheiro, não tem
nenhum direito: só eu devo gastá-lo, segundo as instruções recebidas. Teria mil argumentos mais, mas não
me sinto com ânimo para escrever.
965
Embora o bom velho se mostre agora comigo não como pai, mas como tirano, a causa do meu abatimento
é precisamente porque esse bom velho sofre por mim, e sofre por nada, sem razão. Agora, mais que nunca,
sinto a graça de ser católico e a fé é a única coisa que me consola em sofrer por amor de Cristo; de outro
modo, um peito não confortado por Cristo teria que sucumbir; responderei em pormenor à sua estimada car-
ta, mas mais tarde. Estou verdadeiramente abatido. O superior teria que deixar-se destas coisas. São momen-
tos em que eu preciso mais de ânimo que de desalento. O superior deveria ter-me dito algo em Verona; vê-se
que alguém espera a minha ausência para o influenciar. Mas tanto perto como longe eu sou o mesmo e sinto
as coisas com a mesma intensidade nos quatro cantos do globo. O superior nunca poderá repreender-me de
coisas pelas quais eu mereça ser afastado do instituto.
966
Caro reitor, escreva-me para Paris posta restante, de onde lhe responderei com mais calma e reze por
mim. Terá recebido de meu pai os dez exemplares, um deles para P. e Vertua. Uma afectuosa saudação ao
superior, aos nossos queridos professores e sacerdotes dos quatro cursos e aos clérigos e jovens, assim como
às professoras, de entre elas em especial a Cavattoni. Aceite as expressões da mais viva gratidão e afecto de

Seu P.e Daniel

N.o 130 (125) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/8

Paris, 15 de Janeiro de 1865

Caro reitor,

967
Até agora não resolvi nada sobre a África. São coisas árduas, nas quais se precisa de uma ampla visão, de
meios, de valor e de especial assistência de Deus. O card. Bernabó mandou-me observar todas as fundações
africanas de França, ou seja, tudo o que de sagrado e profano há sobre a África e especialmente em Lião,
onde está o Seminário das Missões Africanas. Fui cordialmente recebido pelo superior, mons. Planque, ho-
mem de eminentes qualidades e muito estimado em toda a França. Quem o creria? Deus dispôs que, caindo
nas mãos dele, caísse nas mãos de um santo, mas acérrimo inimigo. Ele, com santíssimos fins, lançou por
terra os meus planos e, o que é mais, correu a visitar os membros do conselho central da Obra da Propagação
da Fé e o card. De Bonald e predispô-los contra. Não conseguindo eu compreender a razão de tal procedi-
mento por parte de um santo e excelente varão, tive com ele muitos encontros: assegurou-me que é um plano
inconsistente, prejudicial para as missões africanas; um plano que nunca será aceite nem subsidiado, um
plano que terá sempre a sua oposição.
968
Falei com bastantes membros do conselho, com muitos antigos missionários, com alguns bispos e com o
cardeal-arcebispo de Lião e todos conheciam o meu plano. Finalmente encontrei a explicação de todo este
enigma e é bem simples. O Seminário das Missões Africanas de Lião foi fundado pelo sr. bispo Bresillac, ex-
vigário apostólico de Comboïtur, nas Índias, e confiado a mons. Planque, o qual é vigário apostólico do
Daomé, na África Ocidental. O plano de Planque e do defunto monsenhor (que morreu a meio do caminho
com todos os missionários) tem como objectivo penetrar no Centro da África pela parte ocidental. O meu
plano opõe-se à entrada directa para o centro, como se pratica nas outras missões e estabelece o princípio:
regeneração da África com a África.
969
Daqui que Planque diga que o meu Plano vai fazer cessar as vocações, porque nele se diz que o europeu
morre na África, daí que tenha dito ao conselho de Lião que não se morre em África, como resulta claro da
missão Gallas; ele combate, pois, a substância do Plano. Nega igualmente que o negro seja susceptível de se
tornar catequista, professor, artista e muito menos sacerdote; e ele fundou um colégio de negros em Cádis
para fazer deles sacerdotes e artistas. Em relação ao comité, considera-o um embaraço, uma complicação,
etc. Sobre isto suponho que tem razão, embora eu persista em querer fundá-lo; simples, sim, mas quero fun-
dá-lo. O sr. Planque assegurou-me que sobre o assunto escreveria à Propaganda. Em suma, em Lião, este
homem (que o card. Barnabó queria que eu unisse a todos os outros) é o inimigo principal. Por isso é que
planeei ir para Lião e acabar com o campo de batalha de Paris.
970
Entretanto escrevi para Paris a mons. Massaia, que me respondeu rapidamente. Pude também encontrar-
me com o conde de Hércules, fundador da Pia Obra da Propagação da Fé (e encontrei-me com ele graças a
amplas recomendações de algumas das minhas damas, com as quais terei eterna amizade, porque a mulher
católica é tudo); ele é um velho venerando e santo; ganhei a sua amizade e expus-lhe em francês um resumo
do Plano. Convidou-me para jantar; com a maior surpresa minha também tinha sido convidado o presidente
do conselho central. Tive o cuidado de falar muito da África, do que eu vi e do que observaram os outros.
Eles acharam-me muito instruído nas coisas africanas. Foi-me agradável ser interrogado sobre todas as ob-
jecções aduzidas por mons. Planque, e vezes sucessivas; e eu, sem mostrar estar informado das opiniões de
Planque apresentadas ao conselho, com a máxima calma e moderação, como se fosse uma questão per acci-
dens discutida à mesa, respondi a todas as suas perguntas.
971
Creio ter deixado as melhores impressões nos ânimos daqueles bons velhos. Tanto mais que repeti várias
vezes e eles aperceberam-se de que eu estou convencido que não quero empreender nada sem o placet da
Igreja e que o que não agrada à Igreja também não me agrada a mim, e que se não agradar ao Papa, je vais
déchirer mon plan. O conde de Hércules então deu ao presidente um exemplar do meu Plano, dizendo-lhe.
«O Plano do sr. Comboni é um grande Plano qui me plaît beaucoup, il a été dans le Centre de l’Afrique, il a
vu mourir ses camarades, il connaît beaucoup l’esprit africain». Então acrescentei que me alegrava por ser
conhecido pelo presidente, porque a seu devido tempo receberia de Roma instruções a respeito disso; e parti
de Lião, estabelecendo correspondência com o conde de Hércules, às escondidas de mons. Planque. Esta
circunstância e este encontro feliz servir-me-ão de muito a seu tempo. Entretanto, aceitando o convite de
mons. Massaia, vim a Paris, onde estou há quatro dias. Hoje vamos a Versalhes, onde estaremos uma semana
e depois regressaremos a Paris. Espero que este veterano bispo de África me seja muito útil. Quero ir muito
devagar, pensar, consultar, porque o assunto não é para brincadeiras. Estou alojado no convento dos capu-
chinhos com mons. Mas-saia, capuchinho também, que me quer sempre a seu lado e que tem um coração tão
grande como toda a região este do Nilo, da qual é fervoroso apóstolo.
972
Que quer que lhe diga de Paris? Estamos noutro mundo, caro reitor; mais adiante escrever-lhe-ei uma pá-
gina sobre Paris. É a cidade dos prazeres mundanos e das obras eminentemente católicas; sedutora para os
seguidores do mundo e de Deus. Eu, em quatro dias de estada, sinto-me contente, porque aqui em Paris en-
contrei muitas pessoas gratas, entre elas mons. Spaccapietra, arcebispo de Esmirna, mons. Sohier, vigário
apostólico da Cochinchina, etc., assim como o barão Gros, embaixador na China, etc. As Irmãs do Sagrado
Coração de Jesus receberam-me com entusiasmo. A irmã da marquesa Canossa Durazzo recebeu das minhas
mãos a encomenda mandada pelo marquês Octávio; ela falou com as cento e tal irmãs do Sagdo. Coração,
todas nobres; tomaram a África como centro das suas mais fervorosas orações.
973
Celebrei missa e a fundadora vai ordenar a todas as casas da Europa, que dela dependem, que rezem todos
os dias pela execução do meu Plano. O mesmo o Insto. de Maria Reparadora. Quando tiver tempo, dedicarei
algumas páginas às 190 instituições da França, desconhecidas na Itália, as quais se dedicam às obras de pie-
dade e caridade. Entre elas figura o Bom Socorro, que é uma instituição espalhada por toda a França, cujas
irmãs se distribuem uma por uma pelas casas, para ajudarem nas tarefas do lar e cuidarem dos anciãos (até
em casa do conde de Hércules, em Lião, há uma delas: senta-se à mesa com a família, etc.); fazem votos e
andam vestidas como as irmãs do hospital. Mas basta, porque me lembro que tenho que ir a Emaús. Embora
tivesse muitas coisas para contar, por agora basta.
974
Nada digo dos meus problemas com o superior: só digo que em todas as coisas tem que haver filosofia,
uma filosofia evangélica. Declaro, olhando o céu e a terra, que nada daquilo de que sou acusado é verdade.
Eu nunca recebi nada de Giovanelli que não o tenha dado ao superior. Desde 1852, que foi a última vez em
que ele, por meio de mim, mandou dinheiro ao superior, eu não recebi de Giovanelli nem sequer um centavo,
nem para mim, nem para o superior. Eu nunca pedi dinheiro em nome do superior, nunca; e digo nunca.
Pedi a pessoas distantes dinheiro para os negros, quando era vice-reitor e não sabia como vesti-los e cuidar
deles. E recebi algumas importâncias, que me enviavam para os negros e que religiosamente gastei com os
negros, porque eu tinha pedido sem nunca nomear P.e Mazza; e não lhe entreguei o dinheiro a ele, porque,
desse modo, seria gasto com as negras. Em consciência agi assim e assim farei sempre, enquanto eu aceitar
dinheiro. Portei-me nisso com toda a delicadeza e escrúpulo. Se o superior está convencido de outra coisa,
faça-se a vontade de Deus; rezarei aos Sagdos. Corações de J. e de M. por ele: nada mais posso fazer. Gosto
muito dele, mas estou um pouco aborrecido com o seu procedimento, que poderia prejudicar a minha obra.
975
Asseguro-lhe, querido reitor, que estou escandalizado de certos santos. Mas Deus é bom. Os Sagdos. Co-
rações de J. e M. são o meu grande conforto e o eixo da minha filosofia.
976
Sou pecador e estou cheio de defeitos; existe, porém, o perdão e ajuda de Deus. O procedimento do supe-
rior é tal, que poderia muito bem fazer descarrilar quem não estivesse bem seguro. Ainda que eu tivesse mor-
to um padre, esse não é o meio de converter e reconduzir ao bom caminho uma pessoa desencaminhada. Eu
estimá-lo-ei sempre e ser-lhe-ei eternamente grato, porque, se agora estou em condições de fazer o bem,
devo-o a esse querido velho. Mas é mister que eu desembuche tudo, para que tenhamos os olhos abertos e
não me venha prejuízo nem a mim, nem às minhas obras, nem a ele, nem aos nossos institutos. O nosso bom
velho tem ideias magnânimas e gigantescas, adequadas ao verdadeiro progresso; mas, por desgraça, não tem
modo, não tem prudência; e poderiam advir-lhe desgostos, como eu estou na iminência de ter, se ele prosse-
guir no mesmo caminho. Eu, por agora, não lhe escrevo e vivo como se nada se passasse. Porém, não creio
ser tão imbecil que não veja as consequências. Basta. Eu rezo pelos nossos caros institutos; rezem em Verona
por mim, que Deus é o centro das nossas relações.
977
Saúde-me muitíssimo o superior, o bispo, P.e Beltrame, P.e Tomba, P.e Brighenti, P.e Fochesato, o meu
porteiro (a quem pedirei severamente contas do meu castelo: se tiver cumprido o seu dever, receberá alguns
dos doze pássaros que farei chegar de Fransele), o meio padrezito, todos os nossos caros sacerdotes e cléri-
gos, os jovens, etc., etc. Rezem todos ao Senhor pelo pobre parisiense. E o senhor lembre-se de escrever
mais extensamente e de tudo, porque as notícias da rainha do Ádige tornam-se mais que nunca importantes
nas margens do Sena. Quando porventura for a Canterane, apresente cumprimentos meus às minhas duas
protestantes e a Hans.
978
A propósito da francesa, escrevi ao bispo de Genebra, pedindo-lhe que indague sobre a irmã de De la Pi-
erre. Respondeu-me gentilmente que fará todo o possível. Isto, em segredo. Espero nesta viagem trazer para
o seio da Igreja Católica também a irmã. Agora porém, só estou no começo; não falarei disso a não ser a si,
estimado reitor; os outros sabê-lo-ão apenas quando o assunto estiver concluído. O bispo de Genebra, mons.
Marmillod, é meu amigo e em Roma tive notícias do assunto de Dresden. Escreve-me que cet apostolat ca-
ché attire toutes mês sympaties, etc.
Seu af.mo P.e Daniel

Em toda esta viagem, só recebi uma carta sua em Lião.

N.o 131 (126) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/9

Paris, 22 de Janeiro de 1865

Estimado reitor,

979
Enquanto transmito a Scarabello um importante documento sobre os estudos científicos, dos quais é ilus-
tre pioneiro, escrevo-lhe duas linhas para lhe dizer que estou bem e que em Paris encontro melhor terreno
que em Lião. Escreva-me.
980
Uma só anedota por agora e basta. Fui visitar Aug. Nicolas para falar com ele sobre o meu Plano e pedir-
lhe que me desse uma ideia, como perito das grandes instituições. «Antes de me encontrar com os membros
do Conselho de Paris – disse- o-
deriam prejudicar e desagradar ao Conselho; depois irei apresentar-me».
Recebeu-me muito bem e com gentileza prestou-se a ajudar-me. Já lá fui duas vezes e está a ser-me muito
útil. Adivinhe como?... Hoje, num jantar para o qual fui convidado, no qual estavam oito bispos, entre eles
Massaia, o arcebispo de Esmirna, dois da China, um da Austrália, etc., ouvi dizer que Nicolas é um dos oito
membros do Conselho de Paris; e esta noite afirmou o mesmo o provincial dos Capuchinhos. Eu ajo como
quem não está informado e continuo a ir a sua casa.
981
Todas as manhãs celebro missa com o cálice do P.e Ventura. Não posso descrever a minha felicidade ao
encontrar-me agora em Paris para tratar das coisas da África: aqui estou em contacto contínuo com os maio-
res homens do catolicismo que conhecem as missões ou nelas trabalharam. Também o Governo, ao qual fui
apresentado por mons. Massaia, me acolhe bem. Globalmente, a minha presença em Paris é interessante:
todos me olham com entusiasmo e observo que a missão da África Central é a mais interessante do mundo.
Por isso trato de não fazer má figura. Grandes e ricos me obsequeiam.
982
Se soubessem que sou membro do instituto mais pobre do mundo (não acreditam na extrema pobreza do
nosso insto.), que em Verona me sustento de polenta, que nasci no Teseul e que no momento em que lhe
escrevo só possuo 37 francos com 45 cêntimos, mais uma nota de 1 florim, e ai de mim, se a Providência me
não socorrer! Se soubessem, digo, tudo isto, eu não despertaria tanto entusiasmo, até ao ponto de ser visitado
por bispos, embaixadores e contra-almirantes. As minhas saudações ao superior, aos nossos queridos irmãos
sacerdotes e clérigos, aos jovens, a Hans, às protestantes. E escreva-me longamente.

P.e Daniel Comboni

N.o 132 (127) - AO CONDE GUIDO DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Paris, 25 de Janeiro de 1865


13 Rue de la Santé

Meu caríssimo Guido,

983
Embora com o coração angustiado pela incerteza em que me encontro devido ao estado de saúde de Ma-
ria, sinto no entanto um doce consolo ao escrever-te também a ti, querido Guido, tanto mais que há tanto
tempo te não escrevo nem te vejo. Vivo com a alegre ilusão de te encontrar à minha chegada a Roma, que
será pela Páscoa, com um estado de ânimo muito diferente do que tinhas a última vez; isto é, espero que uma
plácida serenidade brilhe na tua fronte, em virtude dos benéficos efeitos que o ter ganho o pleito Falconieri
produzirá certamente na economia doméstica e na paz familiar. Ninguém deseja mais a tua felicidade, caro
Guido, que o teu amigo africano.
984
Resolvido o essencial das coisas familiares, deves pensar em encontrar uma bonita donzela que faça a tua
felicidade e a da família. Ora o teu fiel africano aconselha-te e pede-te que escolhas uma jovem demoiselle
que tenha todas as boas qualidades do mundo, as quais se compendiam em quatro B, como se diz em Vene-
za, ou seja, deves procurar uma moça buona, bella, brava, brezzi [rica]. As três primeiras condições não
precisam de explicação; pede a explicação da quarta ao nosso caro e veneradíssimo conde Beppi, príncipe
Giovanelli, porque é palavra veneziana. Estas quatro qualidades suscitam, aumentam e aperfeiçoam o amor,
que é o essencial da felicidade matrimonial. Quando tiveres posto os olhos sobre alguma, lembra-te de me
informar, para que, sem tê-la visto, comece também eu a amá-la como se fosse minha esposa, porque vai ser
tua mulher. Entretanto, pedirei ao Senhor que te guie em todo o momento e te permita fazer uma boa esco-
lha. Isto deve fazer culminar a tua felicidade e trazer uma benéfica influência sobre a família Carpegna.
985
Deus provou-vos com muito rigor no passado, fazendo-vos quase pagar il-kathaia abuk; é hora de vos dar
grandes alegrias. À tempestade segue-se a bonança, à noite o dia: tais são os desígnios de Deus. Desejo-o de
coração.
986
Dir-te-ei, caro Guido, que estou contente por ter conhecido a tia Anita. É uma mulher que me edifica: é
uma santa e corajosa como poucas; sempre terei para com ela uma estima e veneração especial. Porém, devo
dizer-te que Pélagie me toca mais o coração e muito mais ainda a mamã. Estas duas mulheres singulares
sinto-as mais perto e, enfim, agradam-me mais; bem pode ser que a natural reverência à idade me impeça de
ter a mesma confiança em relação à tia Anita; o certo é que as outras duas me agradam mais.
987
Há dezassete dias que estou em Paris, ou melhor, em Paris e Versalhes. Aqui procedo a consultas e estudo
as grandes instituições, para equilibrar a obra que congeminei para a África. Como vês, a obra é árdua e
grandiosa; mas se Deus der uma ajuda, vai realizar-se. Mas se Deus não ajudar, então nem Napoleão III, nem
os mais poderosos monarcas, nem os mais sábios filósofos da terra poderão jamais fazer alguma coisa. Por
isso, deixe-se que Deus faça e, então, eu, o último dos filhos dos homens, terei êxito. Tu e eu somos ricos, S.
Francisco Xavier e eu somos santos, Napoleão III e eu somos poderosos e eu e o Senhor-Deus somos tudo.
Portanto, alegres! Dir-te-ei que em Lião, onde estive vinte dias, encontrei grandes obstáculos numa per-
sonagem de enorme influência, valia e poder, um dos Confessorum Pontificum, o qual pode muito bem faire
écouler l’oeuvre. Eu apressei-me a improvisar perante ele um diferente aspecto para a minha viagem a Fran-
ça e mudei-me para Paris, onde encontro melhor terreno para preparar a obra. Esta é de uma tremenda enver-
gadura e difícil. Porém, eu não me assusto; já me parece ser dono da África.
988
O Plano já foi impresso em Turim e mandei vários exemplares dele a mamã, para que, por sua vez, dê um
exemplar ao prof. Giovanelli e a mons. Nardi. A estas horas já lho terá lido e terá exclamado que P.e Daniel
Comboni está louco varrido. Pois ouve isto, Guido: eu tenho uma confiança extraordinária em Deus e ponho
em prática o sapientíssimo audaces fortuna juvat, que em língua cristã é a Providência. Peço-te que apresen-
tes os meus respeitos ao príncipe Beppi e a Maria Giovanelli, a D. Mário e a sua esposa a princesa e aos teus
amigos que conheço. Reza por mim e dedica-me sempre um pensamento afectuoso, como faz por ti

O teu af.mo
P.e Daniel

Por favor, faz da minha parte as mais respeitosas saudações ao papá e fala-lhe do grande afecto que lhe
tenho. Também lhe escreverei umas linhas.

N.o 133 (128) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR,A, c. 14/10

Paris, 5 de Fevereiro de 1865


Meu caríssimo reitor,

989
Já recebi a sua estimadíssima carta do passado dia 20, pela qual fiquei a saber que os sentimentos do su-
perior para comigo não melhoraram. Vejo que o que sofro e o que sofri até agora não é por isso senão o pre-
lúdio de uma tormenta mais forte, de uma aflição mais terrível. Pôr-me a lutar abertamente com um santo
velho não faria mais que multiplicar os rancores e provocar maiores males, porque eu, uma insignificância ao
lado de um P.e Mazza, sairia sempre a perder. Por outro lado, examinando bem a minha consciência, ainda
que cheio de defeitos e de fraquezas, não vejo que haja algum motivo pelo qual eu mereça ser afastado do
instituto. Compreendo que o facto de ter estado implicado em incumbências graves e delicadas, embora com
idade não avançada, o ter viajado muito, o ter frequentemente vivido em países estrangeiros em plena liber-
dade, só com o testemunho de Deus, poderá fornecer a quem me quer mal argumentos ou suspeitas de ter
merecido do superior tão grave castigo, sem que eu possa aduzir argumentos em minha defesa. Vejo, em
suma, a minha posição perante o nosso bom velho.
990
Pois bem, o Deus que é testemunha das minhas acções, dos meus sentimentos, do meu coração, esse ama-
do e amável Jesus encarregar-se-á de me defender ou de me dar forças para suportar o peso da minha aflição.
991
Sigo, pois, o seu conselho e o do nosso querido e venerado amigo P.e Calza, modelo de grande e verda-
deira amizade, e calo-me. Lanço-me nos braços da Providência, que me conduzirá sempre por seus adoráveis
caminhos. Entrego a Jesus Cristo e à Rainha dos Mártires e nestes dois Corações Sacratíssimos ponho a mi-
nha esperança e o meu conforto.
992
Que o bom velho vá dizendo que eu já não pertenço ao instituto no fundo da encosta, na praça, em Cante-
rane, ao bispo e ao Papa; que Fulano, Sicrano e Beltrano pensem e digam o que quiserem de mim: nada me
importa. Jesus e Maria, que sofreram pelos justos e pelos pecadores, terão piedade e cuidado de mim; e se o
bom velho me abandonou, por certo que Jesus e Maria me não abandonarão. Guardarei sempre a mais viva
gratidão para com o superior e o instituto e também para com os que me perseguem e rezarei sempre ao Se-
nhor por todos.
993
É bom sinal quando Deus açoita neste mundo: quanto mais se sofre cá, menos se padecerá lá. As tempes-
tades são necessárias para se tornar o coração mais forte para as batalhas.
994
Talvez o Senhor queira que eu sofra nas minhas coisas de África, para mais denodadamente lutar contra
as dificuldades que se me apresentam na realização dos meus projectos. E se nada disso quisesse de mim o
Senhor, saberei, com a sua ajuda, abraçar a dor e a humilhação, porque as tomarei como desconto das minhas
culpas e porque Jesus sofreu, Maria sofreu, S. Paulo sofreu, S. Francisco Xavier sofreu e os pecadores con-
vertidos sofreram. Venha o que Deus quiser: sempre bendirei ao Senhor e sempre exclamarei com S. Agosti-
nho: hic ure, hic seca,... etc. (entende-me, não me recordo)...
995
Não lhe vou contar nada dos meus assuntos. A Propagação da Fé, a Santa Infância, a Obra das Escolas do
Oriente, quando forem vendo que se torna realidade uma obra em África, acorrerão na medida das suas pos-
sibilidades em ajuda de cada uma das obras que se empreenderem nas várias missões. A Propaganda nunca
toma a iniciativa de uma obra, porque ela declina sempre toda a responsabilidade. A minha viagem a França
é utilíssima, porque despertará grande interesse a favor da África e a seu tempo produzirá frutos.
996
Entre outras coisas, pensei pedir ao Papa que dirija uma alocução ao consistório dos cardeais, para incita-
rem os católicos de todo o mundo a favor da África; já escrevi ao cardeal sobre isto. Espero persuadir mon-
senhor Massaia e os padres do Espírito Santo, que têm a Senegâmbia, a Serra Leoa, as Guinés, o Senegal e
Zanzibar a fazerem o mesmo. Para dar um empurrão ao plano geral que procuro pôr em marcha, o difícil é
convencer os diferentes chefes de todas as missões africanas que nomeiem um representante em Roma para
se comunicarem mutuamente os ensinamentos da experiência prática. Pouco a pouco impulsionarei a forma-
ção de um comité e tratarei com o Papa da criação de uma congregação especial para a África, presidida por
um cardeal e dependente do prefeito geral, que presentemente é Barnabó, tal como agora é constituída a
Congregação para os Ritos Orientais.
997
Parece-me necessário e utilíssimo para concentrar em Roma um maior interesse em favor da África. A
África pode definir-se – como escrevi de Paris para Roma –, como a raça negra invadida ou ameaçada de
invasão pelo Islamismo, condição bem deplorável, em que nenhuma outra parte do mundo se encontra. Pare-
ce-me, pois, útil, e quase diria necessário, a pouco e pouco aplicar a isto os meus esforços; e serão necessá-
rios muitos anos. Entretanto, dedicar-me-ei a empreender e promover o pouco, deslocando o centro da acção
especialmente para a metade oriental da África. De momento, nada se pode fazer pelo centro, a partir da
parte ocidental, do equador a Gibraltar, porque as atrocidades das nações católicas no século passado, quan-
do, com toda a espécie de violência, se levaram mais de catorze milhões de escravos para trabalharem nas
minas americanas, deixaram um tal ódio contra os brancos, que não só os brancos mas também os negros da
Senegâmbia, da Serra Leoa, do Daomé e das Guinés que penetrarem 50 léguas no interior são logo mortos.
As colónias portuguesas do Oeste e do Este de África carecem de obreiros evangélicos por causa do antago-
nismo existente entre Roma e Portugal devido à eleição dos bispos; e o núncio apostólico de Lisboa, encar-
regado da reconciliação, nada conseguiu e talvez nunca consiga nada, porque a sociedade está já invadida
pela maçonaria.
998
Os meus esforços, portanto, concentrar-se-ão em promover operações na parte oriental, nas quais, se Deus
quiser, o instituto tomará parte importante.
No dia de S. João Crisóstomo, protector da Obra das Escolas do Oriente, fomos a uma grande festa a No-
tre Dame des Victoires. Mons. Massaia era o celebrante, eu o ajudante, o arcebispo de Esmirna o pregador. A
igreja, onde foi fundada a arquiconfraria do Coração de Maria, estava repleta de gente, na sua maioria da alta
sociedade. Depois da pregação do arcebispo, levantou-se mons. Soubiranne, director da obra e apontando o
apóstolo dos Gallas e o missionário da África Central, pronunciou uma comovedora alocução de três quartos
de hora, que deixou os assistentes tocados sobretudo pelos desastres da África Central. De tarde recebemos
visitas de todas as partes e ficámos convencidos do grande interesse que se tem por África. Esse dia celebrei
missa pelo marquês Octávio de Canossa.
999
Fiz uma grande amizade com Aug. Nicolas e com os seus nove filhos e sua esposa. É um grande católico,
com um carinho pela religião e pela Igreja como nunca vi igual. Ofereceu-me a sua última obra escrita contra
Renan e quer que vá visitá-lo amiúde. Estudou o meu Plano e deu-me a sua opinião: para conseguir óptimos
resultados era preciso uni-lo à fundação de uma congregação para esse efeito. «A Igreja – dizia-me ele quin-
ta-feira, todo comovido – sempre teve quem dévouement complet s’immole et se sacrifique para difundir a
sua fé: o senhor preparou este Plano, que revela o seu dévouement à l’Eglise e conseguirá ganhar para ela
muitos filhos entre os africanos. Mas mesmo que todos os seus esforços resultassem vãos, o mero facto de
propor tal Plano fá-lo benemérito perante a Igreja e a sociedade».
1000
Isto conforta-me muito, embora o meu coração não ficasse nada satisfeito se o resultado fosse nulo. Cer-
tamente, a opinião deste insigne católico e apologista serve-me de grande estímulo para continuar a obra
empreendida. Nicolas mostrou-me a fotografia do pároco dos Santos Apóstolos, P.e Caprara, e disse-me:
«Aprecio muito este sacerdote: embora seja mediante a nossa correspondência e ele me escreva em italiano e
eu a ele em francês, vejo todavia que deve ter uma alma muito bela e deve estar tout dévoué à son minis-
tère». Digo-lhe que a amizade de Nicolas me é muito grata e me cala fundo no coração. E os seus filhos têm
os mesmos sentimentos. O que é abade já há cinco anos é dominicano. É uma boa conquista de Lacordaire,
diz-me Nicolas.

Versalhes, 5 de Fevereiro de 1865

1001
Tanto os capuchinhos de Paris como os de Versalhes gostam muito de mim. Eu continuo a ser compa-
nheiro inseparável de mons. Massaia; há vinte e cinco dias que estou com ele e vejo e compreendo que é um
santo varão. O seu apostolado entre os Gallas é um dos mais interessantes da Igreja. Esteve oito vezes encar-
cerado, foi duas vezes condenado à morte, duas vezes exilado: em suma, para mim é um portento de zelo e
sabedoria. Convenci-o a ir a Verona e irá ver o superior e a gente do instituto. Ele dará muitas ideias ao supe-
rior e a P.e Beltrame para a missão da África. Estou certo que o nosso bom velho, P.e Beltrame e todos os do
instituto se alegrarão com a sua visita. Ele tem o nosso instituto em grande estima e vai apoiá-lo muito na
Propaganda; depois de ter falado com o superior, poderá, onde este o julgar necessário, fazer ressaltar o pla-
no do superior. Acordei com ele que, uma vez que se tenha despedido de Roma, farei com que o cardeal o
chame.
1002
Peço-lhe que promova em Roma a Obra das Escolas do Oriente. O seu director tomou África muito a sé-
rio e encarregou-se de suscitar um grande interesse por ela nos anais da sua obra. Ele vai escrever ao seu
correspondente de Milão, ordenando-lhe que lhe envie fascículos; leia-os e verá que é uma obra eminente-
mente católica. Quereria que o senhor fizesse uma centena de sócios em Verona e diocese. Eu preocupar-me-
ei em difundi-la em todo o Véneto. É obra que, com o tempo, alcançará as mesmas proporções da obra de
Lião e Paris. Eu incorporei-me nela. O director, que é para mim como um irmão, disse-me: «Doravante, a
África será a meta dos meus esforços». Compreenderá que, a seu tempo, a África terá na Oeuvre des Ecoles
d’Orient um grande apoio material.
1003
Estou contente por ter feito amizade também com Teodoro Ratisbonne, o autor da vida de S. Bernardo.
Vem ver-me amiúde. No final deste mês, chegará de Jerusalém também Afonso e ficarei contente de voltar a
abraçá-lo, depois de catorze meses sem vê-lo. Encontrei-o o ano passado em Frankfurt. Não faço referência
às muitas consolações que Deus me dá em Paris. Estou muito relacionado com o P.e Geral do Espírito Santo
e com mons. Etienne, geral dos Lazaristas. Fui duas vezes com mons. Massaia visitar o bispo de Paris, mas
ele é um galicano ferrenho.
Foi-me muito grato receber uma cartinha da bondosa De la Pièrre. Vejo que conserva bons sentimentos e
está cheia de gratidão. Não assim a alemã, que desde a minha partida de Verona nunca me escreveu e nem
sequer me mandou saudações por ninguém.
1004
O bem deve ser sempre feito só para glória de Deus e pelo bem das almas; depois esperar porrada dos be-
neficiados. Mas não importa. O bispo de Genebra ainda não me enviou a informação sobre a irmã de De la
Pièrre. Porém, escreveu-me a dizer que tomou o assunto com interesse.
1005
Saudações ao sr. bispo e diga-lhe que o bispo de Bayeux teve um ataque de apoplexia, mas já está fora de
perigo e em recuperação. O cónego Dò vai ajudar-me a conseguir documentos do seu venerável Antepassa-
do.
1006
Sinto grande pesar pela desgraça ocorrida ao nosso querido P.e Beltrame. Quanto sinto não estar em Ve-
rona para lhe aliviar por um instante a dor. Recordo com afecto e gratidão o piedoso ofício de consolador que
exerceu comigo na África Central, quando me chegou a notícia da morte da minha mãe. Naqueles dias, P.e
João foi a minha consolação. Saúde-o da minha parte de todo o coração e diga-lhe que celebrarei pelo seu pai
uma missa e duas em Notre Dame des Victoires. Cumprimentos também ao meu caro P.e Jerónimo, a quem
tanto aprecio.
1007
A respeito de Farinato, eu creio que por dizer faremos as contas não o ofendi. Diga-lhe que tenha paciên-
cia; quando eu chegar a Verona, não perderá nada. Ele sacará das suas anotações, eu das minhas e, chegados
a um acordo, será reembolsado de tudo. Lamento este dissabor, especialmente por sua mulher, que tão bon-
dosa é connosco e tão boa foi comigo.
1008
Dói-me saber que as coisas do instituto vão mal e, se pudesse, eu acorreria em sua ajuda. Porém, que vou
fazer se não tenho um cêntimo no bolso? A Providência encarregar-se-á: confiemos em Deus!

Seu af.mo P.e Daniel

1009
[À margem] Não estou disposto a ir-me embora do instituto. Os quatro de S. Jorge não desempenharam
um papel digno. O Senhor disporá: fiat.

N.o 134 (129) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 707-710v

Paris, 25 de Fevereiro de 1865

Eminentíssimo Príncipe,
1010
A venerada carta que V. Em.a se dignou enviar-me para Lião refere-se a três pontos: 1.o, o meu Plano pa-
ra a Regeneração da Nigrícia apresenta muitas dificuldades para a sua execução; 2.o, é preciso que os supe-
riores das várias missões das costas africanas se ponham de acordo e façam o Plano para o centro da África;
3.o, não se vê a necessidade ou utilidade de um novo comité.
Partindo do princípio que eu acolho com sincera veneração e com total submissão o juízo de V. Em. a
Rev.ma, apoio-me em sua exímia bondade, que inspira ânimo e verdadeira confiança e permito-me expor-lhe
algumas pequenas observações.
1011
Em primeiro lugar, eu estou convencido de que o Plano apresenta muitas dificuldades. O problema, que
eu ouso abordar, é por si mesmo muito difícil: dezoito séculos ainda o não resolveram. Porém, como este
grande problema é da maior importância e digno de todo o dévouement do sacerdote católico, e precisamente
também pelas suas dificuldades, eu sinto-me estimulado a redobrar os esforços para meditar sobre ele, procu-
rar que os maiores homens o adoptem, despertar o máximo interesse para com ele e conseguir que os bons
elevem as suas mais fervorosas preces para obter de Deus a graça de ver alguma luz e encontrar alguma via
de solução. A deplorável miséria dos pobres negros pesa imensamente no meu coração e não há sacrifício
que eu não me sinta disposto a aceitar pelo seu bem. Se V. Em.a não aprovar um plano, farei outro; se tão-
pouco aprovar esse, prepararei um terceiro e assim até à morte.
1012
O coração de V. Em.a, que mais que qualquer outro no mundo está inflamado de amor pelas missões e
especialmente pela África (provam-no eloquentemente as missões africanas fundadas por V. Em.a no último
decénio), será tão bom que desculpará a minha insistência. Talvez eu venha a conseguir alguma vez abando-
nar a etérea esfera das ideias para baixar ao concreto de uma experiência prática. Não espero ver nunca um
plano para a conversão da África Central que não ofereça grandes dificuldades. Se todos os projectos das
grandes Obras são, como demonstra a História, sempre acompanhados de alguma utopia, hei-de esperar ver
um projecto sobre a África, problema dificílimo, livre dela? Parece-me que para uma obra de tanta enverga-
dura não é inoportuno tentar algo, mesmo através de grandes dificuldades.
1013
Para conseguir este objectivo, eu propunha, entre outras coisas, a cooperação mais ou menos activa dos
vicariatos e prefeituras apostólicas já existentes nas costas de África também habitadas por gente de raça
negra, porque, além de outras inúmeras vantagens, se poderiam encontrar pontos limítrofes com o interior
que se revelassem adequados para estabelecer novas missões, onde se poderiam concentrar forças mais enér-
gicas para aí formar sólidas cristandades. Compreendo que, para conseguir esta cooperação tão eficaz, V.
Em.a, em sua sabedoria, seja de opinião que, tratando-se de negros, obra na qual devem participar todas as
missões das costas de África, confiadas a diversas corporações religiosas e com a cooperação de sacerdotes
de diversas nações, é conveniente que os superiores se ponham de acordo entre eles e elaborem o plano.
1014
Se os superiores das missões africanas pudessem pôr-se de acordo e unir-se espontaneamente, e fizessem
um plano, não haveria nada melhor no mundo. Porém, eu temo que esses superiores, que já têm bastantes
problemas com as suas próprias missões, em cuja gestão concentram os seus mais generosos pensamentos,
não se unirão nunca espontaneamente sem serem convidados a isso por V. Em.a Rev.ma e pela Propaganda.
Se uma pessoa particular os estimular a fazer um plano e a pôr-se de acordo entre eles, em benefício de uma
obra tão árdua para as missões do interior, sobre as quais não têm jurisdição, esses superiores, com toda a
razão, negar-se-iam. Só V. Em.a pode inspirar esse acordo e essa união ou confederação, condição absolu-
tamente necessária para realizar algo positivo pela Nigrícia central; nesse caso, creio que prestariam a sua
valiosa cooperação.
1015
Segundo o meu curto alcance, o mais oportuno seria, estou convencido, que quem suou durante alguns
anos na África Central e tem melhor conhecimento daqueles remotos países apresentasse um plano para a
regeneração da Nigrícia. Em tal caso, parece-me que, antes de a Propaganda decidir algo, não seria inconve-
niente que convidasse a examinar o Plano para a regeneração dos povos negros do interior os vários superio-
res das missões das costas africanas, os quais, trocando ideias e observações, fruto de uma larga experiência
com a raça negra, poderiam elucidar grandemente um problema tão árduo e talvez propor o meio mais segu-
ro para uma útil realização. Tenho a certeza de que V. Em.a saberá, em sua benevolência, perdoar que eu lhe
expresse esta minha opinião.
1016
Por outro lado, enquanto lhe manifesto a minha impressão de que a salvação da Nigrícia depende da im-
plantação da fé nas costas da África e da unidade de método utilizado em todos os pontos adequados para
organizar as obras preparatórias para as missões do interior, atrevo-me a recordar que V. Em.a Rev.ma me
fez nascer em Roma a esperança de que, com tal fim, mandaria uma circular aos chefes das missões de Áfri-
ca (e em tal caso seria melhor enviar a circular só às missões do continente africano e não às das ilhas, como
às Seychelles, Madagáscar, Mayotte e Fernando Pó) e isto depois de V. Em.a se assegurar de que conta com
os meios pecuniários e materiais. A mim parece-me que V. Em.a poderia já fazer a mencionada circular.
Estou certo de que actualmente se poderiam proporcionar à grande obra bens materiais para a fundação de
muitos institutos nas missões, porque é grande e admirável o interesse que se está a despertar para com toda
a África e que afecta de modo particular a Obra da Propagação da Fé de Lião e Paris. Disto tenho provas
irrefutáveis. Além disso, tenho também a esperança de que participe a Santa Infância, que já ajuda bastantes
missões da África. A Obra das Escolas do Oriente assegurou-me a sua especial cooperação.
1017
A Sociedade de Colónia, obra aprovada pela Igreja para a educação dos negros, com carta de 6 do corren-
te, sem eu a ter pedido, apenas conhecidos os meus projectos por meio de outros, ofereceu-me especialmente
a sua total protecção. A Sociedade de Maria, de Viena, que sempre se inclina a ajudar os austríacos e as
obras católicas austro-africanas, prestar-se-ia bastante e, promovendo maior movimento no Império Austría-
co e no Véneto, tornar-se-ia muito útil para o Plano. Para provar a S. Emª tudo isto, não ouso, nem me parece
conveniente que eu induza estas pias obras a fornecer-lhe documentos especiais. Está nas suas mãos infor-
mar-se, caso a colaboração deles interesse. Eu apenas lhe posso apresentar o documento da Sociedade de
Colónia.
1018
Entretanto, estou convencido de que nunca se poderá organizar nenhuma obra estável e duradoira para a
conversão do centro da África, sem contemplar de uma maneira geral e total a raça negra, formando uma
espécie de confederação entre as várias missões das costas africanas para que se prestem recíproca ajuda e
estabelecendo uma unidade de método aplicável nos diversos pontos que inspire a obra das missões do inte-
rior; unidade que só a Propaganda pode suscitar e promover. Creio que a deplorável situação moral da África
se pode definir assim: «A raça negra curvada sob o jugo do feiticismo, a qual está em parte invadida e em
parte ameaçada de invasão pelo Islamismo». A Propaganda conhece por experiência quão difícil é ganhar
um negro já feito vítima da infame lei do Alcorão. Além disso, devo acrescentar que a propaganda muçul-
mana estende continuamente o seu império no centro de África e tudo o que perde na Europa ganha-o entre
os negros. Por isso quanto mais se demorar a propagação da verdadeira fé na África Central, tanto maiores e
insuperáveis se farão as dificuldades no futuro para lá implantar o catolicismo.
1019
Por isso, reflectindo sobre esta especial e crítica situação da África, certamente a parte mais infeliz e
abandonada do mundo, como também a mais difícil de evangelizar pelas particulares circunstâncias que se
opõem à sua conversão, parece-me que é necessário fazer, no que lhe diz respeito, as mais sérias e especiais
considerações e chamar sobre ela as atenções do mundo católico: creio que para a África deve fazer-se uma
obra especial.
1020
Ora um novo comité, formado por membros entusiastas e activos, o qual, respeitando a integridade da ju-
risdição de cada uma das missões e a total e exclusiva influência das pias obras já existentes, que ajudam
aquelas, concentre a sua actividade na preparação de obras para coadjuvar de mil maneiras a propagação da
fé na vasta extensão da África Central, promova aí o interesse e o espírito da Europa e tenda a criar novos
meios e novas forças para o mesmo fim, sob uma só inspiração, parece-me não só oportuno mas também
utilíssimo.
Talvez a Sagrada Congregação pudesse ter um meio mais seguro para obter melhores resultados que um
comité extra urbem: seria temerário que um pobre e inepto sacerdote como eu pretendesse fazer sugestões a
uma autoridade tão elevada e iluminada, que é guiada pela sabedoria e caridade sobrenaturais. Eu apenas
posso falar do comité que ousei propor, o qual, além de promover entre os católicos o interesse pela África,
procurar ajudas suplementares para as missões da mesma e formar bons missionários e artesãos na Europa
para aquelas lugares, desenvolveria uma grande energia nos sítios mais oportunos e sobretudo na parte orien-
tal dos países do interior situados entre a Núbia e Zanzibar que, pela considerável elevação do terreno sobre
o nível do mar, têm pontos importantíssimos com um clima temperado, onde se poderiam cultivar boas se-
mentes e formar apóstolos para o centro.
1021
Certo é que, por razões justas, vejo a necessidade de modificar as atribuições do comité e sobretudo:
1) O artigo 3.o, em que o comité se deve limitar a prover os meios pecuniários e materiais para as obras
preparatórias da Europa, como seria a fundação de pequenos seminários e pequenas escolas de ofícios, para
fornecer às missões e aos institutos de África missionários e bons artesãos, deixando às pias obras para a
propagação da fé (as quais, por isso, teriam maior desenvolvimento no mundo católico) a ajuda às missões
que se fundariam na África e aos institutos que se fundariam nas missões já existentes (tendo dados certos de
que a Obra da Propagação da Fé e as outras obras concederiam ajudas especiais ad hoc).
2) O artigo 5.o, que não é necessário.
3) O artigo 7.o, que é inútil, já que agora se está tratando aqui em Paris de instituir uma sociedade en-
carregada de publicar uma Revue des Missiones Etrangères, para suprir a escassez de notícias dos Anais da
Prop. da Fé (sociedade que agora é mais bem vista pelo conselho central de Lião e de Paris, com o qual se
está a tratar).
1022
Por outro lado, agradeço a V. Em.a Rev.ma que sabiamente me sugeriu que viesse a França, onde os estu-
dos que levei a cabo e as observações que estou a realizar sobre várias obras africanas e instituições católicas
me ajudam a ver mais claro o que se poderá fazer para conseguir algo positivo em favor da Nigrícia.
1023
Perdoe-me V. Em.a se também eu me atrevo a fazer-lhe o pedido que dias atrás lhe fez mons. Massaia,
sobre a ideia de propor ao Santo Padre que pronuncie uma alocução no consistório a favor da África. Que
admirável espectáculo nos impressionou recentemente! O Sumo Sacerdote da Nova Aliança, ameaçado por
toda a parte e acossado por seus ferozes inimigos, no momento mais crucial, quando parece que o furor das
forças do abismo conseguia aniquilá-lo e vencê-lo, então, tranquilo e arrojado, quase rindo-se das ameaças
dos seguidores de Satanás, até, diria, quase compadecendo-se deles, levanta a sua voz apostólica que é ouvi-
da em todo o mundo e com a sua famosa encíclica confirma os seus irmãos na fé, instrui os seus filhos na
pureza da perfeita doutrina e condena os erros da moderna sociedade dos ímpios que, com sacrílego intento,
procuram romper a inconsútil veste dessa majestosa Rainha, vencedora dos reis e das nações, que vê passar
os séculos maravilhados perante si, cuja voz ressoa do Oriente ao Ocidente e cujo manto cobre os povos,
como o dossel dos céus cobre o mundo!...
1024
Que impressão se produziria no coração de todos os fiéis se a mesma voz do imortal Pontífice, que forta-
leceu e instruiu os seus filhos, fizesse ouvir uma palavra de compaixão e de paz a favor de tantos milhões de
outros filhos seus que jazem mergulhados nas trevas e na sombra da morte, pronunciando uma comovedora
alocução em favor da África? Certamente que se provocaria um grande interesse pelos pobres negros; acen-
der-se-iam novas luzes; suscitar-se-iam novas ideias; empreender-se-iam novas empresas e, ao mesmo tem-
po, o mundo católico, assombrado, teria um novo motivo para se persuadir de que ao leme da grande nau de
Pedro, sacudida pelos ventos malignos dos espíritos infernais e entre os vagalhões do borrascoso oceano das
paixões humanas, vigia o mais experimentado piloto, que procura levar directamente ao porto da salvação a
preciosa herança da Igreja de Cristo, todas as nações do mundo: dabo tibi gentes hereditatem.
Cheio de respeito e em absoluto acatamento das suas ideias, beijo a sagrada púrpura e me declaro

De V. Em.a Rev.ma
Hum. e indig.mo filho
P.e Daniel Comboni

1025
O Santo Padre, que falou em favor da Polónia e por outros fins de menor importância, acolheria sem dú-
vida o pedido de V. Em.a Rev.ma, que advoga a causa de seus filhos de África.

N.o 135 (130) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, C. 14/11
Paris, 7 de Março de 1865

Caro reitor,

1026
Por agora, só uma saudação. Incluo-lhe aqui uma carta em língua galla, escrita por mons. Massaia aos
quatro jovens negros, na qual lhes envia a sua bênção como pai dos Gallas. Procure que a leiam tanto o de
Zevio como o do hospital e os dois de Veneza e que escrevam uma cartinha em galla ao monsenhor.
Já comecei a aplicar as missas de que, com grande prazer da minha parte, me encarregou. Até agora cele-
brava missa pelo Papa. Aponte tudo, que em Verona acertaremos contas.
1027
Tenho muitas coisas que escrever, mas falta-me tempo. Eu estou muito bem. Trabalhei muito e preguei
aqui em Paris e vejo um agitado mas belo futuro para a África.
Encomende-me às orações dos nossos sacerdotes e clérigos e às dos jovens do instituto. Agradeço-lhe as
muitas notícias que me deu na sua última carta. Escreva-me longamente.
Mande ao meu porteiro que me compre na Praça Navona dois guarda-chuvas de tela de algodão a três es-
vâncicas cada um. No dia 15 de Fevereiro, ao voltar das Tulherias, onde estive presente na abertura das câ-
maras e ouvi ao imperador pronunciar o seu discurso, perdi o meu guarda-chuva de seda. Nunca mais guar-
da-chuvas de seda!!
Rogue a S. José por mim

Seu af.mo
P.e Daniel Comb.

N.o 136 (131) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/12

Paris, 22 de Março de 1865

Caríssimo sr. reitor,

1028
O Senhor submeteu-me a uma pequena prova. Apanhei uma fortíssima gripe, que ainda não me passou, e
tenho na cara as marcas da terrível febre que tive e me atormentou a semana passada: fiat! Quando Deus
quiser, passará tudo. Tenho o conforto de estar aqui com um santo varão, que me quer como a um filho, me
rodeia de mil atenções e até me faz de enfermeiro. Quanto mais estudo e convivo com este santo homem,
mais admirável me parece. Se desde o princípio tivesse apontado o que ele me diz (já que todas as nossas
conversas são sobre a África e sobre tudo o que com ela se relaciona), teria agora um pequeno tesouro e po-
deria escrever coisas interessantes e edificantes. Ele foi bastantes vezes encarcerado, muitas vezes amarrado
com cadeias, oito vezes desterrado e outras tantas condenado à morte.
1029
Na Abissínia, Abba Selama pregou em nome do imperador a cruzada contra ele, como primeiro bispo que
entrou na Abissínia e na tribo dos Gallas. E em 1863 compareceu amarrado perante o imperador Teodoro,
que estava disposto a condená-lo à morte, depois de o ter procurado inutilmente durante oito anos; contudo,
depois de uma longa conferência, o imperador tremeu e cumulou-o de honrarias. Naquelas circunstâncias,
esteve dois meses amarrado, noite e dia sob o céu aberto, e amiúde passou a noite sob chuva e na lama. O
bispo, mirabile dictu, andou quinze anos descalço, sem nunca calçar nem sapatos, nem meias, nem sandálias,
nada!
1030
A mim, que conheço a África, onde não há caminhos e só espinhos e abrolhos, isto impressiona-me
enormemente. Este homem, de admirável simplicidade, mas muito culto, levou a vida mais santa, da qual
conheço muitos dados. Conservo as suas toscas sandálias que trouxe calçadas nos seus três anos na Abissí-
nia, quando lá foi para sagrar bispo mons. De Jacobis: roubei-lhas e agora guardo-as como uma relíquia.
Tem uma impressão muito boa das minhas ideias. Não se atreve a emitir um juízo sobre o Plano em geral;
mas diz que é o plano que ele apresentou a Roma em 1850. Em qualquer caso, mons. Massaia é um homem
que me pode favorecer. Por isso, tendo-me pedido que o ajudasse na publicação do seu catecismo e gramáti-
ca galla, de cuja publicação se ocupa a imprensa imperial, sem que monsenhor gaste um centavo, fico em
Paris com ele por algum tempo.
1031
Quanto aos meus assuntos com a Propagação da Fé e outras sociedades, já me informei e tratei de tudo. A
questão do dinheiro é de menor importância. À medida que se forem lá estabelecendo os institutos, haverá os
necessários recursos pecuniários para a África. O difícil é pôr-se de acordo com os regulares, tanto sobre as
fundações da Europa, como especialmente sobre as pessoas. Isto vai ocupar-me muito no futuro. O certo é
que consegui despertar em França grande interesse a favor da África. Já está dado o primeiro passo: espere
agora que o Papa fale no consistório quando julgar oportuno e verá o efeito que produz a palavra do Vigário
de Cristo. Estou certo que dentro de alguns anos haverá uma grande actividade em prol da África. Ofereci a
minha empresa aos pés de Maria em Notre Dame des Victoires, que tem vinte milhões de sócios. O Sagrado
Coração de Maria concertará o que nós só sabemos estragar.
1032
Peço-lhe que vá a S. Peretto falar com o vigário ou com P.e Francisco Zamboni, para anotar o número
exacto de sócios da Confraria de Verona (creio que são 200 000) e que, depois, me mande esse número para
Paris: é uma solicitação do director de Notre Dame. Eu, por meu lado, escrevi nos Anais, que saem duas
vezes por mês, um artigo sobre P.e Zecchini, promotor da obra em Verona.
1033
Tive alguns colóquios com Montelambert, a quem encontrei em casa do barão Du Havelt; agrada-me
muito mais o meu querido Nicolas, com quem estreitei uma grande amizade. Tenho uma carta do vig. do
cardeal Wisemen, em que me assegurava que o cardeal ia promover na Inglaterra a obra da África. Mas o
cardeal morreu: requiescat in pace.
1034
Escrevi ao superior dia 10 de Março, dia do seu aniversário; além disso, transcrevi-lhe uma carta que
mons. Massaia escreveu sobre mim ao cardeal Barnabó. Quando me escrever, faça-o de forma extensa e
sobre muitas coisas. Eu estou sempre contente e já consagrado a Deus, disposto a tudo o que Ele quiser de
mim. Certamente, a obra de África encontrará dificuldades de todo o género. Ajudado pela graça, procurarei
agir sempre segundo a inspiração de Deus, para em tudo fazer a sua divina vontade e cooperar, se Deus qui-
ser, nos desígnios da sua misericórdia para com os pobres negros.
1035
Encomende-me às orações dos bons. As minhas saudações ao superior e a todos os sacerdotes. Volte a es-
crever-me sobre como vão os assuntos dos Bettanini com as Hermann e saúde P.e Tilino. Cumprimentos
também a Hans e diga-lhe que o seu tio se lembra sempre dele. Mando-lhe um retrato de mons. Massaia com
um autógrafo dele, desejaria mandar um igual ao superior, fazendo com que o bispo pusesse uma inscrição
análoga, como por ex., viribus unitis, trabalhemos pela África, etc., mas temo que o recuse desdenhosamen-
te. Em todo o caso, diga-me a sua opinião; e se o superior aceitasse este, a si, meu caro reitor, mandar-lhe-ia
logo outro. Haec inter nos.
1036
Lembranças a Trenaghi, a quem escreverei dentro de pouco dias, a P.e Brighenti, P.e Fochesato, P.e
Tomba e a todos os sacerdotes, clérigos e jovens, assim como a Farinato e a sua mulher, ao meu porteiro, às
minhas protestantes, etc., etc. Quantas coisas interessantes lhe poderia escrever sobre Paris e a sua posição
perante a Igreja! Mas não tenho tempo nem força, etc. Dê-me notícias do meu afilhado Vítor: saúde-mo.

Seu af.mo P.e Daniel

N.o 137 (132) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/13

Paris, 5 de Abril de 1865

Meu caríssimo reitor,

1037
Esperava com ânsia uma carta sua, mas as minhas esperanças ficaram defraudadas: bendito seja para
sempre o Senhor. Tenho a certeza de que este silêncio não é motivado por nada que indique diminuição de
afecto para comigo. Estou certo de viver na sua memória, como o senhor, o nosso bom velho superior e to-
dos os membros do instituto (sem excluir o meu porteiro) vivem e reinam no meu coração. Teria muito que
escrever sobre coisas muito interessantes, mas, tendo um assunto importante para mim, deixo tudo e debru-
ço-me sobre ele.
1038
Entre parênteses: terá recebido uma nota das obras impressas pelo célebre abade Migne. No que se refere
a tratados sagrados e eclesiásticos, a imprensa Migne é a primeira do mundo. Tendo eu acordado com o aba-
de Migne um contrato para o capítulo da Catedral de Turim, ao visitar as suas imensas oficinas, onde há doze
milhões de francos somente em placas de caracteres, veio-me a vontade de equipar o nosso instituto com
todas as obras eclesiásticas. Depois de pensar e estudar o modo de levar a cabo esta ideia, falei com o abade
Migne e pareceu-me que poderemos ter sem problemas uma bela e utilíssima biblioteca, mediante as corres-
pondentes aplicações de missas. O ab. Migne aceitaria essas aplicações, mesmo que fossem cinquenta mil, e
daria toda a sua biblioteca; simplesmente com duas mil aplicações dá toda a patrologia, que são todos os
padres gregos, latinos, etc.
1039
Agora o superior tem trinta aplicações cada dia, as quais, por falta de esmolas, vão sempre para o Papa.
Não podia o senhor falar com o velho? Não lhe diga que foi por mim que soube isto, porque com a pouca
simpatia que presentemente gozo perante ele, poderia dar um não rotundo; faça como se tivesse recebido esta
notícia de outras fontes. Pense, fale e escreva-me.
1040
Agora passo ao assunto que quero desenvolver nesta carta e que lhe parecerá estranho, como me pareceu
a mim. Adoro nisto os desígnios da Providência e bendigo a Jesus, que sofreu sendo inocente, enquanto, ao
fim e ao cabo, eu sou um pobre pecador. Sua Eminência o card. Barnabó, escrevendo ao meu caro mons.
Massaia, bispo de Cassia, declarou que Comboni já não pertence ao Instituto Mazza de Verona. Monsenhor
ficou estupefacto e eu também, porque não acreditava que as coisas se tivessem posto de tal ordem que che-
gassem até Roma, com a qual agora tenho que tratar assuntos muito delicados e importantes, com perigo de
haver repercussões pouco gratas. Meu querido reitor, isto é assim: o bom velho, por razões e fins sem dúvida
bons, que eu sempre respeitarei, fez saber a Roma, directamente ou por meio de outros, que eu já não sou do
Insto. Mazza.
1041
Embora sempre disposto a reconhecer e confessar a minha indignidade de pertencer ao Insto. Mazza, es-
tou muito surpreendido por este acontecimento. Segundo o que o senhor, meu caríssimo reitor, me disse (já
que o nosso venerável velho nunca me falou disso nem de viva voz nem por escrito), a primeira vez que fui
informado de que o superior estava desgostoso comigo foi no Verão passado, quando me encontrava em
Turim. Nesta minha ausência houve muitas conversas entre o reitor e o superior. Eu, seguindo o seu sábio
conselho, escrevi ao bom velho, de modo que, quando, em princípios de Setembro, regressei a Verona e me
encontrei com o superior, guardou-se um perfeito silêncio e não se viu esta implacável hostilidade contra
mim.
1042
Nos primeiros de Setembro fui a Roma e estive lá dois meses. Neste tempo voltou a animosidade, o pobre
velho ficou desgostoso, houve colóquios entre o reitor e o superior, eu renovei os actos de obediência e hu-
mildade e restabeleceu-se a calma. Tudo parecia esquecido. Quando depois regressei a Verona, antes de vir
para França, falei muitas vezes com o superior, estando a sós com ele e não me manifestou nenhum sinal de
contrariedade; antes, encorajou-me para a empresa africana e prometeu-me rezar e fazer rezar por isso. Parto
de Verona, venho para França e de novo se acende a chama da discórdia. Assim, sem me avisar de nada, me
dar tempo para me defender, enquanto estou longe, quando tenho com Roma assuntos importantes, sem legal
discussão nem processo, escreve-se a Roma dizendo que eu não pertenço ao Insto. Mazza. Não sei que ma-
neira de proceder é essa. Fulmina-se com uma sentença decisiva, sem comunicar nada ao condenado! Bendi-
to seja mil vezes o Senhor.
1043
Tenho observado que se me faz a guerra quando estou longe e me encontro na impossibilidade de me de-
fender. Quando estou perto, tudo sorri paz ao meu redor. Tendo o assunto chegado a Roma, apercebo-me de
muitas coisas, querido reitor. Eis aqui, mais ou menos, algo do que me vem à mente: 1.o Nos momentos mais
importantes, quando necessito de muita confiança por parte de Roma, com a qual estou a tratar de assuntos
do maior relevo, escreve-se a Roma dizendo que já não pertenço ao Insto., com risco de deitar definitivamen-
te por terra os meus projectos, fazendo com que tudo se malogre, e de comprometer para sempre a minha
pessoa e o meu futuro!!
1044
2.o Em Roma, na França, em Viena, no Véneto, em Bressanone, na Prússia, em Turim, na Inglaterra, on-
de tenho profundos relacionamentos e onde chegou o Plano de África, no qual aparece impresso que eu sou
do Insto. Mazza, crêem-me, com toda a razão, pertencente ao mesmo. Ora, vendo o cardeal Barnabó, o Papa
(que leu do princípio ao fim o meu Plano) e todos os demais que é afirmado em Roma por outros e não por
mim que eu não sou do Insto., enquanto pelo meu silêncio se deve supor que eu lhe pertenço, todas estas
distintas personagens, das quais dependem as coisas que eu estou a tratar a favor da África, têm o direito de
pensar que eu sou um mentiroso, um impostor, um farsola...
1045
De facto, o meu amigo mons. Massaia ficou petrificado ao ler a carta do cardeal; e cada um tem o direito
de desconfiar de mim.
3.o Quais serão as consequências deste facto para os projectos que em minha insignificância estou a fazer
e a tratar para o bem da África e qual o prejuízo para mim e para o meu futuro? Eu reconheço-me completa-
mente inábil para tratar dos interesses da glória de Deus; porém, tinha um grande ânimo, porque a sombra de
um venerável Insto. me protegia na minha debilidade. 4.o Em Roma terei que me justificar: a minha consci-
ência, os interesses da glória de Deus segundo os meus planos para os pobres negros, até o amor-próprio,
porque sou miserável e cobarde, obrigam-me a isso. E que ganhará o Insto. se, para me justificar, me vejo
obrigado a descobrir à Propaganda e talvez ao Papa e àqueles a quem se referir a coisa os falhanços do Ins-
to., que todos conhecemos, e certas coisas menos admiráveis do nosso caro superior?
1046
Mas isto não me causa grande preocupação, porque espero que Deus me dê a graça de triunfar de mim
mesmo e de ser tão forte de modo que nunca prejudique o insto.; antes, pô-lo-ei sobre as nuvens, como sem-
pre fiz, especialmente em Roma. 5.o Um coração não frio, como é o meu, ligado ao Insto. por vínculos do
mais caloroso afecto e gratidão, que tremenda comoção não sofrerá ao separar-se?... Submeto à sua conside-
ração, caro reitor, estas primeiras cinco reflexões, para que sopese as suas consequências. Mais à frente ex-
por-lhe-ei outras.
1047
Mergulhado em tais pensamentos, confesso-lhe francamente que me entrego a sérias meditações. E devo
também confessar que jamais meu coração se sentiu tão unido a Jesus e Maria como agora: nesta terrível
incerteza sobre o futuro dos meus projectos e sobre o meu próprio, encontro uma imensa felicidade em ser
católico e sacerdote e torna-se-me palpável que Deus é infinitamente bom e que nunca abandona aos que
nele esperam. Não sei se é imbecilidade ou força recebida de Deus, porém não sinto a minha triste situação
e, no mais íntimo, encontro-me seguro e contente. Oh, que bons são Jesus e Maria!
1048
Preocupa-me, contudo, o facto de que entre o superior e os membros do Insto. fundamental não vejo um
nexo que una e inter-relacione os deveres e os direitos dos ditos membros com o superior, enquanto se me
oferece o espectáculo de um membro do Insto. fundamental, ligado à casa há 23 anos, que, sem ser ouvido
nem uma vez, e sem ser julgado como dispõe o regulamento, contra a opinião do reitor imediato e de quase
todos os membros, enquanto está longe e não se pode defender, sem lhe dar nenhum aviso nem alegar o mí-
nimo motivo, e nos momentos mais delicados e importantes, dos quais depende o êxito de tudo o que pode
fazer para a glória de Deus, e quando num recente opúsculo declarou que é do Insto. Mazza, nessas circuns-
tâncias, se declare excluído do Insto. e se faça chegar a notícia até Roma!! O que hoje se passa comigo, ama-
nhã passar-se-á consigo e com outros, meu caro reitor! Encoragemo-nos todos mutuamente, que se antes o
meu vínculo com os demais consistia em sermos todos filhos do mesmo Pai, o que nos vai unir no futuro será
o sermos filhos do mesmo destino.
1049
Confesso que não entendo nada. Porém, a tranquilidade da minha consciência e o saber que Deus realiza
no homem os desígnios da sua misericórdia me dão a força de bendizer de todo o coração a divina Providên-
cia por este acontecimento. Embora a minha mente seja incapaz de ver através do nevoeiro do futuro, aventu-
ro-me nele com serenidade e confiança, sem me preocupar com as conclusões que disso possa tirar o mundo.
Dou graças com toda a alma aos Corações de Jesus e de Maria que me concederam a honra e a graça de ser
admitido a beber um amargo cálice, firme na esperança de que ajudará à minha salvação. Bendigo mil vezes
aos que contribuíram para me fazer sofrer esta tribulação e rezarei sempre por eles. Venero e respeito esse
santo velho, que me fez tanto bem durante vinte e três anos; e querer-lhe-ei até à morte, embora por sua parte
tenha tratado de me ferir sem piedade e ferido estaria se Deus misericordioso me não tivesse ajudado: pater
meus... dereliq... Dominus autem assumpsit me. Lanço-me cheio de confiança nos braços da Providência,
disposto a tudo e sempre impávido e confiante, aconteça o que acontecer; mas sempre firme na decisão de
me não declarar separado do Insto., enquanto não vir mais claro e não estiver mais seguro de que tal é a von-
tade de Deus.
1050
Examine bem este assunto, meu caro reitor, e conserve sempre para comigo o seu precioso afecto. Sinto
uma viva dor na alma ao pensar que o nosso superior talvez tenha sofrido e venha a sofrer muito por minha
causa. Por isso julguei oportuno apresentar-lhe numa carta o meu acto de submissão; rogo-lhe considere se é
da sua aprovação e, se assim for, feche a carta e leve-a ao superior. Em suma faça tudo o que Deus lhe inspi-
rar para consolar o bom velho, a quem eu talvez tenha causado tanta dor. De resto, em tudo fiat, fiat!
1051
Estou muito pesaroso por ter silenciado até agora ao nosso amado bispo de Verona um assunto para mim
tão relevante. Verdadeiramente sou ingrato, depois de tanta bondade que ele me demonstrou. Não deveria
ocultar-lhe um caso desta natureza: o dever e a gratidão obrigam-me a pô-lo ao corrente de tudo. Mas que
quer? Pensei que daria um desgosto ao superior se descobrisse ao nosso amado pastor o que está a suceder.
Contudo, quero ainda esperar pela opinião e conselho do meu estimado reitor. Por agora, não vou escrever
nem a Roma, nem a mons. Canossa. E no caso de que me decidisse a fazê-lo, a primeira manifestação que
faria seria que quero que a misericórdia seja deixada de lado e que só a justiça presida a este assunto. Ben-
dito seja sempre o Senhor.
1052
Mil respeitosos cumprimentos ao nosso caro superior e ao sr. bispo. Outras mil saudações e recordações a
P. Tomba, a P.e Beltrame, a P.e Fochesato, a P.e Brighenti, Lonardoni, etc., assim como a todos os sacerdo-
e
tes e clérigos, aos jovens, às professoras, às protestantes e a Hans. Também a Tregnaghi, a M. P [...], etc.
Encomende-me às orações de todos e especialmente às das Urbani, dando-lhes lembranças minhas. Às suas
orações encomendo sobretudo dois importantes assuntos: um tenho que tratá-lo dentro da quinzena pascal e o
outro depois da oitava da Páscoa, em Amiens, onde irei com mons. Massaia, que me ajuda com a sua autori-
dade e o seu ascendente perante aquele venerável bispo, a quem o cardeal Barnabó escreveu que a obra dos
escravos deve unir-se a Comboni para se obter mais facilmente o fim que ambos se propuseram.
1053
Apresente a minha homenagem de afecto ao santo velho, que me afastou de si, mas a quem estimarei
sempre até à morte. Diga-lhe que faça o que lhe parecer, porém, eu sempre o chamarei e considerarei como
um pai até à morte. Mantenha cumpridor o meu porteiro e diga-lhe que o príncipe tem grandes projectos para
ele, pois corre o perigo de que lhe entregue para sempre o castelo. Cumprimentos a P.e Dalbosco e mande a
aqui incluída a P.e Luciano e a P.e Beltrame. Apanhei uma forte gripe que me estragou todo o mês de Março,
agora estou melhor. Bendito seja o Senhor e os Sagrados Corações de J. e de M., em cujo nome me declaro
pour à jamais
Seu af.mo P.e Daniel

N.o 138 (133) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, C. 14/14

Paris, 9 de Abril de 1865

Meu caro reitor,

1054
Ontem recebi a sua estimada carta de 30/03. Ocupadíssimo, esta vez tardei em ir ao correio. Se ao reitor,
que se tem esgadanhado pelo insto., o nosso bom velho o tem por um que recebe e utiliza as esmolas indevi-
damente, que fará comigo que, no passado, em países distantes e mediante meus serviços particulares, pedi
ajuda para os negros? Não espero que pouco: fiat. O Senhor fará o melhor para mim e para o Insto., ao qual
livrará de um peso inútil.
1055
O meu venerado mons. Massaia manda ao superior a fotografia junta. Pense que não foi por acaso que
nos fotografámos juntos, mas sim para indicar a perfeita unanimidade que reina entre nós quanto às opera-
ções conjuntas em África entre o instituto e os vigários apostólicos. Por agora ficamos calados; não é o mo-
mento oportuno. Porém, quando o monsenhor for a Verona, o superior e este grande apóstolo da África com-
preender-se-ão até à medula. Deseje umas felizes festas em nome de mons. Massaia e no meu ao superior;
igualmente ao sr. bispo, a todos os do insto., à nobre família Pompei e a todos os que conheço. Saúde
Tregnaghi, P.e Donato, M.a Helena, P.e César e rogue-lhes que rezem por mim. Saudações também a Garbi-
ni... Felizes e santas festas pascais a P.e Aldegheri, a Angeleri, a Bianchi e a Ronconi. As minhas saudações
e felicitações igualmente a Bolconi, a quem mandará o cartão-de-visita.
Esta vez deu-me muitas notícias interessantes. Há três dias escrevi-lhe uma longa carta: espero que a te-
nha recebido. Entregue a fotografia com a anotação anexa ao superior.
1056
Reze por mim, meu caro reitor. Levar-lhe-ei umas obrazitas sobre educação. Como nisto não sou entendi-
do, pedirei orientação e conselho a mons. Dupanloup, bispo de Orleães, com quem mantenho excelentes
relações, para escolher as melhores. Estive duas vezes fora de Paris: uma em Orleães e outra na Bretanha.
Não duvide do afecto, gratidão e dévouement de

Seu af.mo P.e Daniel

[No dorso do sobrescrito lê-se a anotação:]

Desejo que os negros respondam em galla à carta de mons. Massaia, ou ao menos que o senhor, reitor, me
escreva algo. Parece como se não se tivesse em consideração um bispo que se digna escrever primeiro.

N.o 139 (134) - AO P.e LUDOVICO DE CASORIA


AFBR

Colónia, 15 de Abril de 1865

Rev.mo e amabilíssimo padre,

1057
Estranhará que, recebendo uma carta de Colónia, seja eu quem escreve. Porém, assim são as coisas. Já lhe
deveria ter escrito de Paris, onde estive três meses e aonde voltarei outra vez a próxima semana para tratar de
fazer algo pela África negra; porém, atrasei-me, porque o assunto é longo e ainda está por concluir. Agora
que a nossa Sociedade benfeitora me encarrega de lhe escrever algo em seu nome, acrescento ao que ela quer
que lhe diga aquilo que eu desejo comunicar-lhe.
1058
Em nome desta Sociedade, que ama e ajuda sobretudo a santa obra do P.e Ludovico para a conversão da
África (que certamente é até agora a mais segura esperança da Igreja e também a minha esperança para a
regeneração da África), manifesto-lhe que o Senhor chamou para si a bela alma do sr. Kratz, membro deste
comité, que trabalhava com grande dedicação para o desenvolvimento desta Sociedade. Requiescat in pace.
O sr. Vosen, de quem sou hóspede, lembra-lhe a promessa que o senhor fez de rezar pelos defuntos da obra e
compraz-se em exprimir-lhe o agradecimento desta Sociedade por essa sua santa decisão. O comité nomeou
para o lugar do defunto o sr. Closset, farmacêutico, a quem o senhor conheceu em Nápoles o ano passado,
quando ele foi visitar os negros: homem de cérebro e coração, que contribuirá muito para o bem da obra.
1059
O comité sente com dor a morte daquele excelente irmão negro e lamenta que em Nápoles, embora sendo
o jardim da Itália, o clima não se revele o mais adequado (apesar de ser o melhor da Europa); por isso, rece-
beu com sumo agrado a sua determinação de abrir duas casas no Egipto. Todos os membros, juntamente com
o seu presidente, o sr. Noecker, enviam-lhe cumprimentos, rezam por si e farão um grande esforço para de-
senvolver a Sociedade, para aumentarem as esmolas. E esta é uma das minhas esperanças, quanto aos meios
materiais para a África: à medida que se fizerem progressos na África, crescerão as esmolas; e não me estra-
nharia que, ao cabo de vinte anos, esta Sociedade se tornasse mais florescente que a de Viena e que a Obra
das Escolas do Oriente, de Paris. Rezemos ao Senhor por tal fim.
1060
Em Paris estou alojado no convento dos padres capuchinhos, 13 Rue de la Santé, em companhia de mons.
Massaia, bispo de Cassia e vigário apostólico dos Gallas, o qual, aprovando sobremaneira o fundamental do
meu Plano só no que diz respeito à parte oriental, me ajuda com a sua autoridade e experiência a empreen-
der a realização. O meu plano foi impresso em Turim, de onde lhe mandei um exemplar. Depois de ter visto
na França todas as obras desse tipo e de ter estudado o espírito dos que devem colaborar nela, considero que
me vai ser muito difícil a sua realização.
1061
O cardeal Barnabó escreveu-me para Paris, dizendo que agisse de tal maneira, que, antes de tudo, os supe-
riores das missões das costas de África, confiadas a diversas ordens religiosas e assistidas por sacerdotes de
diversas nações, se reúnam, tanto para decidir se querem cooperar na obra como para dar a sua autorização
para a criação dos pequenos institutos idealizados. Além disso deu-me a entender que era necessário consul-
tar a Pia Obra da Propagação da Fé de Lião e de Paris para ver se quer contribuir para esse fim especial. Es-
tou a achar difícil realizar uma e outra coisa. Em todas estas sociedades francesas existe verdadeiramente o
espírito de Deus, mas também o espírito nacionalista. Se os corações da maior parte dos superiores fossem
como o do P.e Ludovico e reinasse o que se chama amor e caridade de Cristo em grau eminente, poderiam
associar-se em breve, formando uma falange invencível – sem prejuízo da jurisdição e dos direitos de cada
vicariato apostólico –, de modo que em poucos anos se veriam os frutos em favor da raça negra. Mas Deus
não o quer ainda: faça-se a sua vontade.
1062
Se o Plano proposto não se levar a efeito, farei outro; depois um terceiro e um quarto e assim até à morte.
É claro que, não tendo demasiada experiência, encontrarei dificuldades que outro superaria facilmente. Peço-
lhe, meu caro padre, que estude o meu Plano e o simplifique. Quereria fazer com que todo o mundo lançasse
uma mão à África e reunir todos os elementos adequados ao fim, não só entre o clero regular mas também
entre o secular. Parece-me que se poderia reunir uma grande falange nas vastas tribos dos Gallas, onde o
clima é melhor do que em Nápoles e, em pouco tempo, seria possível passar à África interior pela parte ori-
ental.
1063
Entretanto, o senhor prossiga (é a vontade de Deus) o plano começado: verá como rapidamente a Socie-
dade de Viena virá em sua ajuda e poderá estender-se pelo Nilo e entre os negros. Espero que, uma vez che-
gado a Roma com mons. Massaia, iremos a Nápoles para falar com o senhor sobre uma infinidade de coisas.
Este santo bispo e mártir franciscano foi muitas vezes desterrado, condenado à morte, amarrado com alge-
mas, levado perante o imperador Teodoro, etc. E, o que é assombroso, andou treze anos de pé descalço, em
países onde não há caminhos, mas sim muitos espinhos e abrolhos; o bispo andou sempre a pé, alimentou-se
sempre parcamente, etc.
1064
Recolhi de seus lábios mais coisas que, sem ele saber, escrevi no meu diário e que a seu tempo serão pu-
blicadas. Pelo que me parece, fez coisas prodigiosas; numa palavra, admiráveis. Perseguido por Abba Sela-
ma, procurou penetrar no território dos Gallas (onde só em 1863 tomou conhecimento da definição do dogma
da Imaculada Conceição) e foi a Cartum na qualidade de viajante secular. Só o P.e Pedemonte, a quem ele se
confessava, sabia o segredo. Mons. Massaia pediu-me que lhe escrevesse a si para averiguar se está em Ná-
poles o P.e Pedemonte da C. de J. e que mo comunicasse para Paris. Portanto, caro padre, em Paris, aonde
regressarei dentro de poucos dias, espero carta sua.
1065
Contei ao monsenhor muitas coisas de si, especialmente sobre as suas santas instituições para a África;
por isso veio-lhe a vontade de ir a Nápoles; será necessário que o faça, porque este santo bispo tem muitas
coisas para falar consigo. Eu, que as conheço em grande parte, sei que lhe agradarão; noutra carta falar-lhe-ei
especialmente delas. A Propaganda comunicou ao bispo de Amiens que não se opõe a que o sacerdote espa-
nhol enviado funde a Obra dos Escravos. Depois da oitava, irei com o monsenhor a Amiens para nos pormos
de acordo, como Barnabó escreveu a esse bispo. Também dali o P.e Ludovico e eu obteremos muitos recur-
sos para a África. A obra encontrou dificuldades desde o princípio por culpa de Lião; mas nós combinaremos
para que se implante em Espanha, onde não há nenhuma obra. Mas também sobre isto falaremos noutra oca-
sião.
O meu director escreve-me sobre os três negros que irão para Nápoles! Há dois anos que pedi ao meu su-
perior para os levar para aí, quando estavam sãos e podiam ser muito úteis. O meu santo velho decide-se só
em situação extrema: fiat!
1066
Enfim, peça ao Senhor por mim e que Deus abençoe os meus esforços. Sem uma espécie de confederação
de todas as missões entre os negros, para se comunicarem reciprocamente as ideias e os ensinamentos obti-
dos de uma experiência prática, nunca, no meu entender, se poderá estabelecer o catolicismo em todo o cen-
tro da África. Creio-o assim, entre outras muitas razões, pelos estragos e pelos progressos que faz em toda a
parte a propaganda muçulmana. Se a caridade de Cristo conseguir unir todos os corações, aumentará a cons-
tância, o valor, o conhecimento dos lugares e das pessoas e far-se-á mais. Em Nápoles sorri a mais bela espe-
rança para a África. Dir-lhe-ei, além do mais, que Barnabó, em Roma, se mostrava muito favorável às mi-
nhas ideias, mas nos seus escritos vejo-o mais duro. Admiro a prudência e a constância da Propaganda de
Barnabó.
Saúde da minha parte todos os negros, o nosso querido P.e Francisco e os queridos irmãos, cheios do es-
pírito de Deus, e mande a sua bênção a

Seu indig. servidor


P.e Daniel Comboni

N.o 140 (135) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/15

Londres, 23 de Abril de 1865

Meu caro reitor.

1067
Na minha última carta pedia-lhe que me recomendasse ao Senhor e a Maria por duas coisas importantes: a
primeira devia realizar-se dentro da quinzena pascal; a segunda depois da oitava da Páscoa e era um acordo
com o bispo de Amiens, segundo a ordem do cardeal Barnabó. Saiba, caro reitor, que as suas orações pela
primeira coisa foram escutadas. Domingo de Ramos, pela rota de Reims e do Reno, fui à Prússia, onde os
membros do comité central e bastantes importantes personagens me fizeram passar dez dias de delícias: via-
gens em vapor pelo Reno – que sem dúvida é o mais belo rio do mundo –, alegres companhias, bons vinhos,
excelente cerveja, ambiente cordialíssimo, etc. E arranjei a favor da África o que exponho a seguir.
1068
Que lhe parece? É pouca coisa, mas consistente e bom presságio para a iniciação do meu Plano. Trata-se
do rendimento de 100 000 francos, postos a coberto da chuva, neve e tempestades e que não se tornam poro-
sos pelos impostos de governos vorazes. Ora bem, se o requeresse a maior glória e o maior bem dos negros,
consideratis considerandis, eu estaria disposto a ceder in perpetuo cinco mil francos anuais ao nosso bom
velho e pai, o superior, como ligeiro tributo de afecto e devoção a quem me fez tanto bem; tributo muito
pequeno e não último e que não é nada em comparação com o que o meu coração desejaria. Cinco mil fran-
cos ao ano, firmes, nas mãos do nosso estimado P.e Beltrame, rendem mais que 50 000 nas unhas do solícito
e venerável Knoblecher: não seria uma bofetada. Comunique isto ao velho e faça-me saber, de maneira con-
fidencial, se em verdade está escrito nos decretos da Providência que, de um velho a quem tanto quero, terei
que receber tanta rejeição.
1069
Em todo o caso, faça-se sempre a vontade divina. No consideratis considerandis entraria também o pie-
doso desejo de que a fundação do Insto. fosse iniciada este ano e melhor dentro do Outono.
1070
Da Prússia, pela rota de Aix-la-Chapelle, Liege, Lovaina, Malines, Bruxelas, Amberes, Gand e Ostende
passei à Inglaterra, a Dover, e já me encontro em Londres. Decidi modificar as atribuições do comité e deli-
near melhor o meu Plano, porque estou a aperceber-me de que na edição de Turim não está claramente ex-
posto. Por isso vou fazer uma edição francesa em Paris. Porém, antes, quero ouvir o conselho de mons. Mas-
saia e de muitos outros. Não posso descrever os obstáculos que encontrei em França. A minha estada na
Alemanha tonificou-me e agora sinto-me tão forte que já não me rendo mais.
1071
Se o Papa, a Propaganda e todos os bispos do mundo me fossem contrários, baixaria a cabeça por um ano
e depois apresentaria um novo Plano: mas desistir de pensar na África, jamais, jamais! A mim não me desa-
nimam nem o cum quibus, nem o santo amor próprio das congregações a quem estão confiadas as 21 mis-
sões de África. Sobretudo porque, a seu devido tempo, conseguirei o dinheiro: quaerite primum, etc., e por-
que o nosso velho, com a eloquência do seu exemplo, repete o haec omnia adiicientur vobis. Jesus Cristo diz
no Evangelho: petite et accipietis.
1072
As qualidades de um bom empreendedor e mendicante são três: prudência, paciência e impudência. A
primeira, falta-me; mas, caramba, compenso-a de sobra com as outras duas e em especial com a terceira.
Esperemos.
1073
Sexta-feira estarei em Paris de regresso de Londres, para ir no sábado a Amiens com mons. Massaia, onde
espero arranjar tudo numa semana e depois ficarei em Paris de modo permanente até nova decisão. Nada sei
de definitivo até agora quanto às minhas relações com o superior. Espero que o senhor e o velho me tenham
escrito em resposta às minhas últimas cartas. Portanto em Paris, sexta-feira à tarde, lerei a minha sentença:
ou de vida ou de morte.
1074
Se for sentença de vida e não houver mais cenas como as passadas, será o complemento da minha felici-
dade também nesta Terra; se for sentença de morte, fiat; porém, tenham a certeza de que não morrerei, nem
cairei, se Deus me sustiver na tremenda sacudidela. Tenho os nervos demasiado duros e mais alma que todo
o Purgatório. Direi sempre com o coração: bendito seja o Senhor: sicut placuit Dno. ita factum est. A Provi-
dência guiará os meus passos pela árdua senda em que me colocou.
1075
His positis, lamento não me encontrar no festival de Dante: fiat! Exprima os meu agradecimento às Urba-
ni pela sua oração por mim e a todos os que por mim rezaram: espero que continuem a fazê-lo.
1076
Na ocasião do festival, apresente os meus respeitos ao sr. bispo e diga-lhe que ao meu regresso de Amiens
irei a Bayeux, como escrevi a Sa Grandeur de Bayeux. Saudações ao marquês Octávio, ao conde Pompei
Minischalchi, a Martinatti, De Betta, Parisi, Tregnaghi e Tiolo; a P.e Vertua e ao velho Farina, a Faccioli,
Burri e ao pároco de St.o Estêvão, a P.e Guella; muitos a P.e Toffaloni e irmão; a Morelli, ao dr. Recchia,
Festa, Cavazzoca, etc. e a todos os meus professores, Salvaterra e amigos. Ao superior, in primis, mil lem-
branças e a P.e Beltrame e aos sacerdotes e clérigos, aos meninos e meninas, às protestantes e ao Hans. Nos
Sagdos. Corações de J. e M. declaro-me

Seu af.mo P.e Daniel

Segue a declaração da Sociedade Prussiana.

N.o 141 (136) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/16

Paris, 4 de Maio de 1865

Meu caro reitor,

1077
Li a sua carta de 30 de Abril ao meu querido mons. Massaia, o qual ficou admirado da sua constância em
manter-se firme na brecha, embora à custa de tanto sacrifício. O P.e Guiscardini deu um sábio e santo conse-
lho. «Vais fazer-me o favor – são palavras de mons. Massaia dirigidas a mim – de escrever a esse bom reitor
Bricolo, dizendo-lhe que devo louvar a sua conduta e a sua adesão a um velho santo que tem tantos méritos
diante de Deus e diante dos homens e ao qual é necessário desculpar alguma debilidade atribuível à idade.
Diz-lhe que é sobejamente claro que ele (o reitor) age só para glória de Deus e o bem do insto. e, por isso,
quaisquer que sejam as tempestades e tribulações que suportar, que permaneça firme no seu posto e continue
a vida de abnegação e sacrifício».
1078
Esta é a maneira de fazer um verdadeiro bem ao Insto. e de consolar um velho que se esforçou toda a vida
por ajudar o seu semelhante, etc. e disse-me que lhe comunicasse muitas outras coisas mais ou menos neste
estilo; e terminou ordenando-me que, da sua parte, o saudasse de todo o coração. Diga também a P.e
Brighenti que resista firme: no exercício do seu cargo de ecónomo levou uma vida de sacrifício. Admiro o
nosso caro P.e Donato e quero-lhe como a um irmão. Sobre a sua cabeça pesam todas as injúrias e maldições
dos credores e a filosofia que ele mostra é uma grande virtude; em suma, eu sou de opinião que P. e Donato
ganhou tantos ou mais méritos que os missionários de África. Ânimo, pois, aos dois.
1079
Eu, por minha parte, enquanto vir que tal é a vontade de Deus, mantenho-me firme no meu posto e não
abandono o Insto. desde que não seja violentamente expulso. Estou certo de que o bom velho, quando co-
nhecesse as coisas melhor que agora, se arrependeria de ter cometido uma espécie de injustiça. Até o Papa
sabe que P.e Mazza já me não considera do Insto., mas não me importa. Se o velho me fustigar, eu dou-me
por feliz e honrado com os seus golpes, mas sempre no instituto. Se me repreender, eu humilhar-me-ei; se
falar mal de mim pela encosta abaixo ou escrever a Roma que já não sou do Insto.: fiat; Deus está comigo.
Se perco o crédito entre os homens (do qual muito preciso nas actuais circunstâncias), fiat; estou disposto a
tudo, porque vejo claro que assim o quer Deus. Se o superior me expulsar pela porta principal, eu voltarei a
entrar no Insto. pela parte da igreja; se me escorraçar pelo portão que dá para a antiga loja da velha, entrarei
pela parte de Belloria; se me enxotar pelo quintal do Insto. fundamental, entrarei pela parte do moinho e as-
sim por diante.
1080
Apresente muitas saudações ao bom velho e diga-lhe que, apesar do que mandou escrever ou escreveu pa-
ra Roma ao cardeal Barnabó, eu sou e serei do seu Insto., porque amo o instituto e o velho.
1081
No meio disto, da desconfiança que o velho tem de mim, eu sou a pessoa mais feliz do mundo. É incrível
a alegria que sinto aqui em Paris, onde estou com a crème, não com a boue. Quase todas as tardes mons.
Massaia e eu vamos presidir a obras católicas; três ou quatro vezes por semana almoçamos com o núncio
apostólico ou com o arcebispo de Paris ou com mr. dr. o ministro dos Negócios Estrangeiros Drouin de
Louis ou com a duquesa de Valência ou com algum lorde inglês, que passa a Primavera em Paris (Paris é
agora um verdadeiro paraíso terreal), etc. Não é pela sumptuosidade do almoço, Deus me livre, mas porque
dessa maneira estabeleço estreita relação com distintas personagens, cuja influência pode ser vantajosa para a
África. Nesta reuniões, o tema principal é, cada vez mais, a África; e de todos sou eu quem mais fala.
1082
Bendito seja o Senhor. Em Paris acredita-se que o Insto. Mazza é o primeiro e o melhor do mundo. Sê-lo-
ia, se não tivesse tantos problemas económicos não dependesse do arbítrio de um só.
1083
Ao ler a sua carta de 30 do corrente, surpreende-me não ver nela nenhuma referência às duas cartas que
na semana passada lhe escrevi de Paris. Numa ia a fotografia de mons. Massaia, que o santo bispo mandava
ao superior com a seguinte nota escrita de seu próprio punho: «Torcular vineae africanae calcabo solus?... O
pater Mazza!!! Viribus unitis quidem.
† Fr. G. Massaia, bispo de Cass., V. Al. Gall.», etc.

1084
Na segunda carta, expunha-lhe como obter sem dores de cabeça os padres gregos e latinos para o Insto.,
totalidade dos seus livros e também todos os livros religiosos da famosa imprensa do abade Migne, etc. Além
disso, escrevi uma carta ao superior, como um filho deve a um pai, a qual ia aberta para que, antes de a en-
tregar ao velho, a lesse o senhor. Nela, como naquela que lhe escrevi, exprimia a minha surpresa ao ler numa
carta do cardeal Barnabó, dirigida a mons. Massaia estas palavras: «Comboni não pertence já ao Insto. Maz-
za; o projecto que me apresentou para a conversão dos negros é verdadeiramente produção sua e não de
Mazza».
1085
Deus sabe que consolações e conforto me deu ao suportar este golpe, que podia ser fatal para o meu futu-
ro. Mas parece que a Virgem Maria me assistiu e que a confiança que Roma tinha em mim não diminuiu de
maneira nenhuma. Fiat. Agora peço-lhe encarecidamente, estimado reitor, que me escreva sobre este assunto
na volta do correio, comunicando-me se recebeu as minhas duas cartas, etc. Tenho um argumento que me
leva a crer que as recebeu, mas não estou certo; diga-me, mesmo confidencialmente, que não produziram
efeito nenhum: eu apoio-me na Providência e espero tudo de Deus. Se não recebeu nada, escrevo-lhe de novo
e ao superior. Espero resposta sobre este assunto na volta do correio.
1086
Quanto ao resto, agradeço ao meu estimado reitor o favor e a protecção que me concede, do que me sinto
orgulhoso. Dou-lhe a minha palavra de honra de que nunca se arrependerá e que, a seu tempo, Deus lhe mos-
trará a sua divina recompensa por ter defendido a verdade. Isto une-me imensamente a si e ao Instituto. Ago-
ra cabe-me sofrer, mas Deus conceder-me-á a calma. Coragem, reciprocamente! O saber que não estou só na
luta é um grande conforto. Além disso, Deus está connosco e abençoará a seu tempo os que nos perseguem.
As coisas estão a tornar-se cada vez mais claras; os mistérios vão-se desvendando: rezemos. Receba a ex-
pressão da minha mais viva gratidão. Agradeço a P.e Beltrame a carta que me escreveu sobre o P.e Justo.
Chorando, monsenhor beijou e voltou a beijar essa cartinha, que mandará em seguida ao card. Barnabó; é
escrita por um verdadeiro missionário e serviu de grande conforto ao santo prelado. Saudações a todos os
sacerdotes e clérigos, a Canterane, à Cavattoni e a P.e César, etc.; nos Sagrados Corações de J. e de M., saú-
de da minha parte P.e Beltrame

P.e Dan. Comboni

N.o 142 (137) - AO CARD. BARNABÓ


AP SC Afr. C., c. 7, ff. 711-716v

Paris, 9 de Maio de 1865

Em.mo Príncipe,

1087
Permito-me comunicar a V. Em.a Rev.ma algumas coisas que, sem dúvida, serão do seu agrado. Na pas-
sada quinzena da Páscoa estive na Prússia renana, a fim de ver que papel activo pode desempenhar a Alema-
nha católica em favor da África negra. Espero não me enganar: nesta culta parte da Europa há algo muito
ténue, como em gérmen, que desenvolvendo-se com o tempo e com contínuo cuidado, produzirá copiosos
frutos em favor da raça africana. Em Colónia, que é a Roma da Alemanha, existe uma pequena sociedade, da
qual, desde há três anos, sou membro correspondente, enformada de um espírito verdadeiramente católico, a
qual, dado o entusiasmo de que está animada, tem todas as probabilidades de se desenvolver maravilhosa-
mente.
1088
O comité desta sociedade, protegida pelo Em.mo Card. Geissel de f. m., decidiu usar o seu dinheiro de
modo que traga mais benefícios para a regeneração dos negros. E dentro de pouco, uma vez que se tenha
posto de acordo com o futuro arcebispo, estabelecerá comunicação regular com V. Em. a, sob cujo conselho e
arbítrio tratará de agir da melhor maneira possível. Na Declaração que lhe junto e no fascículo XII dos seus
Anais, que lhe entregarei pessoalmente, V. Em.a verá um bom princípio de apoio, ainda que pequeno, às
minhas pobres ideias para a regeneração da Nigrícia.
1089
Mas o mais importante que me parece que fiz na Prússia foi ter inspirado a fundação, em Colónia, de um
pequeno seminário para as missões africanas, destinado a abrir caminho às vocações para a África dos ecle-
siásticos germânicos (sem incluir os da Áustria, para a qual tenho outros projectos ou em Verona ou em Ve-
neza). Revelei a ideia primeiramente ao presidente da sociedade, que é um pequeno D. Bosco de Turim, ho-
mem de grande iniciativa, fundador de um outro instituto, a quem expus o meu desejo de criar quatro luga-
res, no seminário episcopal ou no seu instituto, para quatro eclesiásticos que sintam inclinação para as mis-
sões de África.
1090
Ele e alguns outros acolheram bem isto, intimamente persuadidos de poderem assim lançar as bases do
seminário idealizado. Verdadeiramente é demasiado cedo para mostrar segurança no desejado sucesso; mas
tenho grande confiança nele, conhecendo a natureza do espírito germânico, quando é eminentemente católi-
co, e espero que, dentro de poucos anos, a Propaganda possa confiar ao seminário de Colónia uma missão na
África Central. Também é demasiado cedo para lhe explicar a táctica e os pontos da Europa, onde penso
promover a fundação de outros pequenos seminários para as missões africanas. É preciso desenvolver todas
as forças morais do catolicismo e dirigi-las realmente em favor da África, para o que julgo nocivo todo o
estrépito: fazer e calar; falar só quando é útil e necessário é a máxima que devo seguir.
1091
V. Em.a Rev.ma, no passado mês de Janeiro, dignou-se escrever-me a comunicar-me que o Plano por
mim proposto apresentava muitas dificuldades. E depois das que eu encontro para promover um acordo entre
os superiores das diversas missões africanas, estou convencido da verdade da sua observação e de que o se-
nhor só de uma olhadela vê mais do que a minha curta vista poderia alcançar meditando toda a vida. Com
efeito, no modo como eu expus o meu Plano, vou ferir muitas susceptibilidades que me impedirão de seguir
em frente. Para obter bons resultados, é na verdade necessário, previamente, o mútuo acordo entre os superi-
ores das missões africanas e invocar a cooperação especial da Pia Obra de Lião e Paris. Com o intuito de
diminuir gradualmente as dificuldades e facilitar a consecução do ansiado acordo, pensei modificar a organi-
zação do Plano, como em poucas linhas e na melhor maneira possível me permito expor-lhe.
1092
Assente que é necessário ater-se ao sistema estabelecido no meu Plano de rodear a África de pequenos
institutos de jovens negros e negras, confiados às ordens religiosas ou congregações eclesiásticas, sob a ju-
risdição de vigários ou prefeitos apostólicos e destinados a formar um clero indígena e toda a classe de traba-
lhadores de ambos os sexos, também indígenas, que gradualmente se deverão introduzir nas regiões da Ni-
grícia central para implantar nelas a fé; estabelecido o princípio de que cada superior forme e eduque os ne-
gros e negras a seu modo, segundo o espírito da própria instituição, sem que ninguém se imiscua nesse as-
sunto, parece-me sumamente útil a criação de um comité selecto, em Roma e em Paris, formado por indiví-
duos idóneos por sua mente, seu coração e sua grande capacidade de trabalho, procedentes sobretudo das
ordens e corporações, às quais estão confiadas as diversas missões de África.
1093
Este comité assim constituído, que teria como finalidade principal desencadear e accionar a favor da Áfri-
ca todos os meios de qualquer tipo do catolicismo, os quais actualmente faltam para a regeneração dos po-
bres negros e estimular e desenvolver os elementos já existentes para o mesmo fim, poria em marcha uma
aproximação e comunicação – e talvez uma confederação – entre os diversos superiores das missões africa-
nas, recolheria as ideias e os resultados de uma experiência prática e lançaria novas luzes para procurar obter
melhores resultados em todas as missões do infeliz continente. A análise do que sabiamente fez a Igreja para
dirigir e concentrar uma especial actividade sobre os assuntos orientais, obra certamente de menor relevo que
a regeneração de toda a raça negra de África, faz-me crer que não acharia estranha a proposta de um simples
comité para a regeneração da África Central.
1094
O comité não se ocuparia absolutamente dos meios pecuniários e materiais para a manutenção dos institu-
tos em questão e para subsidiar as obras de África em curso. Quando tais projectos fossem postos em marcha
com a autorização e aprovação da Propaganda, caberia às pias sociedades existentes, e especialmente à Obra
de Lião e de Paris, subsidiá-los a pedido da Propaganda ou dos superiores das missões sob cuja jurisdição
estivessem colocados os institutos e as obras.
1095
O comité encarregar-se-ia de proporcionar, na medida dos próprios recursos e habilidades, os meios mate-
riais às obras da Europa preparatórias para as missões africanas, como seria a fundação de pequenos seminá-
rios e escolas de ofícios. A Providência concedeu às ordens religiosas a alta missão de exercer o apostolado
em África e de ganhar com ele as mais augustas palmas. Para obter maiores resultados, é muito útil abrir o
caminho do apostolado em África a todas as vocações do clero secular, tão eficazes nas missões, como o
demonstram eloquentemente os resultados dos diversos seminários das missões estrangeiras e especialmente
o de Paris.
1096
A tal obra se prestaria o comité que proponho, por meio de santos homens muito activos, que abundam na
Igreja: fundaria pequenos seminários para as missões africanas. Nem me assusta nada a ideia de criar sete
pequenos seminários em sete pontos muito importantes da Europa, quando se estabelece por base o sistema
evangélico da pobreza, como fizeram Cottolengo e D. Bosco em Turim, por ser esse sistema muito económi-
co e se apresentar como o mais adequado para formar apóstolos que hão-de ir para a África, onde dormirão
sobre uma esteira e se alojarão em pobres cabanas de juncos. Confio que, pouco a pouco, não faltando a gra-
ça de Deus e uma indefectível constância, alcançaremos com o tempo este objectivo.
1097
Como, em princípio, é bastante difícil um acordo entre os superiores das missões africanas, a não ser que
a própria Propaganda o promova, por isso, o comité, cada vez que vir preparado o pessoal para um instituto e
depois de se ter assegurado de que as pias obras concedem o necessário subsídio ad hoc, tratará com o supe-
rior da missão da África onde pensa criar os estabelecimentos para a educação dos jovens negros e negras e
para a residência dos missionários. Este procedimento de se dirigir aos vigários ou aos prefeitos apostólicos
toties quoties para obter a faculdade de implantar os institutos parece-me que é mais prático que o baseado
no acordo de todos os superiores das missões africanas; o que, por agora, não é necessário para alguns pon-
tos das costas de África, dos quais é impossível penetrar no interior, como são as missões da Senegâmbia,
Serra Leoa, Daomé e as Guinés, porque, como sabe V. Em.a, o facto de que nos dois séculos anteriores ca-
torze milhões de escravos foram arrancados das costas ocidentais da África para serem levados para a Amé-
rica a trabalhar nas minas irritou tanto as populações do interior que não só um europeu, mas até um negro,
que desde as costas se aventurasse para o interior seria imediatamente morto.
1098
Talvez a Providência abra mais tarde o caminho também a partir destas regiões ocidentais. Mas, por isso,
os primeiros esforços do comité hão-de dirigir-se à África Oriental e do Nordeste e especialmente ao grande
planalto etíope, onde há um clima muito agradável e as populações são susceptíveis de receber o catolicismo
e uma cultura europeia.
1099
Vossa Em.a Rev.ma perguntará se é possível a formação de tal comité; e eu respondo-lhe que, se o pro-
jecto é em substância algo justo, razoável e bem concebido, o comité pode ser uma realidade, porque em tal
caso estou seguro que V. Em.a Rev.ma estenderá as asas da sua protecção. Eu dou a mais alta importância ao
comité, que desejaria ver formado no modo exposto, como o elemento destinado a mover os ânimos, a in-
flamar o entusiasmo e a promover no mundo católico o máximo interesse em favor da raça negra, a mais
abandonada da Terra. Se a Providência dispusesse que o comité em questão fosse abençoado por Roma, oh!,
quantos benefícios proviriam disso para a África, no meu modo de ver!
1100
Produzir-se-ia, a pouco e pouco, uma aproximação anímica entre os superiores, o que daria azo a uma
comunicação de ideias, de critérios, de esforços e assim, viribus unitis, atingir-se-ia mais rápida e facilmente
o alvo. Além disso, todas as obras já existentes, cujo objectivo é favorecer os negros, todas obras de Deus,
as quais, separadas umas das outras, produzem frutos escassos e incompletos; pelo contrário, unidas e dirigi-
das ao único fim de implantar estavelmente a fé na África interior, obteriam maior vigor, desenvolver-se-iam
mais facilmente e tornar-se-iam grandemente eficazes para alcançar a meta desejada.
1101
Não faço referência à obra do P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles, onde subsistem materiais muito con-
sistentes para a África, e à pequena obra do meu querido superior P.e Nicolau Mazza. Ouso recordar a V.
Em.a Rev.ma a proposta que lhe fiz no passado Outubro de atribuir as estes dois institutos as duas missões
do Nilo Oriental e Ocidental, tendo como limites a primeira a norte o Egipto e a sul o rio Ghazal. Para tal
objectivo pedi ao cónego Mitterrutzner, de Bressanone, que se ponha de acordo com a Sociedade de Maria
de Viena, para a ajuda a ambas as obras. A do Insto. Mazza, como austríaca que é, seria sem dúvida subsidi-
ada: sobre isso tive resposta positiva. O cónego não obteve ainda resposta quanto à obra de Nápoles, da qual
a África trará certamente imensas vantagens.
1102
Não falo da pequena sociedade de Colónia, que, à medida que progredissem as obras das missões africa-
nas, engrandecer-se-ia imenso. Quando o alemão lê e vê que se trabalha e se fazem coisas, mostra-se genero-
so. Nos seus primeiros oito anos, a Sociedade de Colónia não falava nos seus Anais senão da compra de es-
cravos, da sua colocação em conventos da Europa, da morte das jovens negras e da sua profissão religiosa;
por isso teve pouco desenvolvimento. O seu crescimento, porém, foi maior nos últimos anos, em que se falou
nos anais da missão africana e da conversão dos negros.
1103
Tão-pouco falo da obra dos escravos, que o abade Capella, da diocese de Amiens, está a tentar fundar. A
este chamei-o há uns dias a Paris e, seguindo o conselho de mons. Massaia, concluímos que, antes de alcan-
çar um acordo com a Pia Obra de Lião, se dê uma volta por Espanha, onde, sob a protecção de algum arce-
bispo, ele, que é espanhol, deve examinar se é possível fundar lá a obra com muita vantagem e esperança de
êxito. A Obra de Lião não obtém quase nada da Espanha. Neste aspecto é menos difícil que ele consiga pôr-
se de acordo com a Obra de Lião. Eu decidi não intervir de nenhum modo em tal acordo perante Lião, por-
que me seria prejudicial.
Em troca, no modo como combinámos com o abade Capella, tenho a firme confiança de que a obra dos
escravos será levada a cabo. O bispo de Amiens está muito decidido a isso.
1104
Digo só uma palavra sobre a obra do defunto P.e Olivieri, a qual se tornaria muito útil e produziria gran-
des frutos, sempre e quando fosse orientada para colaborar com as missões de África e as obras para a rege-
neração da Nigrícia. Se a referida obra, em vez de gastar enormes somas de dinheiro a comprar negros em
África e trazê-los para a Europa, no meio de mil dificuldades por parte do Governo egípcio e dos consulados
europeus, se limitasse a resgatar os jovens negros e depois os confiasse aos institutos de África que têm por
objectivo a educação da juventude negra, para formar obreiros para a conversão da Nigrícia, estou certo de
que maior seria o seu desenvolvimento e mais vantajosa se faria para a Igreja. Dado que a dita obra está in-
corporada e unida à Ordem dos Trinitários, como consta dum decreto da S. Congreg. de Bispos e Regulares,
de 21 de Março de 1855, a Providência poderia chamar de algum modo ao apostolado de África alguns reli-
giosos dessa santa ordem, cuja finalidade primitiva, pela divina misericórdia, deixou de existir há já uns sé-
culos.
1105
Eis aqui um resumo do que desejaria submeter ao critério de V. Em.a Rev.ma e que me parece útil para
fazer algo mais em favor dos negros. Creio que o plano assim concebido é mais simples que o primeiro. Se o
sábio juízo de V. Em.a Rev.ma não considera oportuno admitir o substancial desta modificação do Plano,
bendirei ao Senhor e redobrarei os meus esforços para pensar e idealizar um plano mais simples e realizável.
Sem dúvida que o problema que eu procuro resolver é extremamente difícil; mas, quando penso que até hoje
a Igreja teve da África fracas consolações e que a raça dos negros é a mais desgraçada do mundo e que,
quanto mais avançarmos no tempo, mais árdua se tornará a regeneração da Nigrícia, nenhuma dor me que-
branta, nenhuma fadiga me desencoraja, nenhuma dificuldade me detém. Até a morte me pareceria grata se
pudesse ser de alguma utilidade aos negros. Deus inspire a V. Em.a Rev.ma a decretar o que for mais vanta-
joso para a empresa.
1106
Mons. Massaia, com o qual convivo desde há mais de quatro meses, manifestou-me que V. Em.a lhe fez
saber que eu já não pertenço ao Insto. Mazza. Verdadeiramente fiquei surpreendido, uma vez que não recebi
nenhuma comunicação sobre isso, nem antes da carta de V. Em.a nem depois. Escrevi muitas vezes ao meu
santo velho fundador e recebi muitas cartas do director do meu Insto., e nunca me foi comunicado que já não
pertenço ao Insto. Mazza. Eu teria que ter um grande descaramento para fazer constar no meu Plano que sou
do Insto. Mazza, não o sendo. Quando, vindo de Roma, regressei a Verona, o meu velho superior recebeu-me
como ao filho mais querido e encorajou-me a ocupar-me da África.
1107
Durante a minha estada em França, o meu director só me escreveu que o bom velho tinha dito estas pala-
vras. «Com os seus projectos, P.e Comboni estorva os meus», o que não está em sintonia com o acolhimento
que me dispensou em Verona. Antes de ir a Roma, passarei por Verona para esclarecer este assunto, que
ainda não conheço. Do meu velho P.e Mazza recebi uma segunda vida: teria um grande pesar se, depois de
23 anos que estou com ele, ele estivesse magoado comigo. O bispo de Verona, que conhece o insto., o santo
velho fundador e o mais indigno dos membros que a ele pertence, examinadas as coisas, se for necessário e
se houver matéria suficiente, comunicará ao senhor as suas veneradas disposições, às quais eu me submeto
de todo coração.
Asseguro a V. Em.a Rev.ma que a minha viagem a França se revelará positiva e que me fez ver muitas
coisas que não via. De viva voz lhe demonstrarei que, inspirando-me a ideia de vir a França, V. Em.a me deu
um sábio e útil conselho.
1108
As relações entre mons. Massaia e o Governo francês correm desde há um mês maravilhosamente: quase
se decidiu a criação de uma embaixada junto do imperador da Abissínia, em sentido católico, conforme aos
desejos do monsenhor. Se isto se realizar, vejo um feliz futuro para a África Central pela parte oriental. Isto
em segredo.
Perdoe-me V. Em.a se fui demasiado prolixo; nunca sou capaz de expor as minhas ideias em poucas pala-
vras. Espero ter-me explicado bastante.
1109
Na esperança de que Deus abençoe pouco a pouco os meus esforços pela África Central, confiado nos
Sagdos. Corações de J. e de M. e no Apóstolo S. Paulo, que, destinado a converter as gentes, não terminou
ainda a sua missão, mas a continuará em favor dos povos africanos, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me
com toda a veneração

De V. Em.a Rev.ma
Hum. e devot. filho
P.e Daniel Comboni

Segue a declaração da Sociedade de Colónia.


N.o 143 (138) - AO P.e LUDOVICO DE CASORIA
AFBR

Paris, 15 de Maio de 1865

Rev.mo P.e Ludovico,

1110
A sua carta do dia 28 de Abril passado encheu-me de alegria, porque vejo nela uma caritativa disposição
de ânimo para me ajudar na difícil empresa com os seus venerados conselhos e com a sua valiosa coopera-
ção. Estou certo de que compreendeu o que está na base dos meus sentimentos. Jovem inexperiente, eu não
pensava encontrar obstáculos numa espécie de união e confederação entre os diversos superiores das missões
africanas. Agora estou convencido da imensa dificuldade; mas jamais, até à morte, deixarei de pensar e fazer
algo pela África. Seguindo o seu sapientíssimo conselho e o do santo bispo mons. Massaia, com o qual estou
a conviver há quatro meses, começaremos, pouco a pouco, até que mais tarde se obtenha o desejado acordo,
que deve ser a origem de uma nova era para a África.
1111
O senhor já empreendeu a criação de dois estabelecimentos no Egipto; siga em frente, na certeza de que
não faltarão os meios pecuniários; e eu, com a graça de Deus, espero contribuir muito, se Deus me der vida,
para que o dinheiro lhe chova. Lembre-se de que as suas obras de Nápoles, sobretudo as dos jovens negros e
negras e da escola de ofícios, são o mais sólido fundamento para a missão da raça negra em África.
1112
Eu, na minha mente, congeminei o meu plano assim: «Assente o princípio de rodear a África de pequenos
institutos de jovens negros e negras, sob a jurisdição dos vigários ou prefeitos apostólicos, destinados a for-
mar trabalhadores evangélicos de todas as classes que devem introduzir-se gradualmente, cada um por seu
lado, nas regiões interiores da Nigrícia para aí implantar a fé; assente igualmente o princípio de que cada
chefe de instituto e superior de missão poderá formar e educar nos seus institutos a seu modo, segundo o
espírito da própria instituição, sem que ninguém possa imiscuir-se nesses assuntos, parece-me vir a ser útil
um pequeno comité (oxalá os seus membros procedessem sobretudo das ordens e congregações, a quem es-
tão confiadas as várias missões de África), formado por homens de grande iniciativa, o qual teria por objecti-
vo accionar em favor da África todos os meios do catolicismo, que actualmente faltam, para a regeneração
dos negros e desenvolver os elementos já existentes com o mesmo fim. Este comité teria como sede Roma ou
Paris; e se, por agora, não fosse possível formá-lo, eu procuraria que se me associassem dois ou três sacerdo-
tes e, a pouco e pouco, pôr-nos-íamos a trabalhar sobre um ponto. Nós faríamos o comité.
1113
Encontrado o pessoal para criar um pequeno instituto e assegurados os meios para mantê-lo por parte das
sociedades existentes, dirigir-nos-íamos ao superior, sob cuja jurisdição se encontrasse o lugar onde quisés-
semos fundar o instituto, para obter a sua autorização. Este processo de nos dirigirmos aos superiores das
missões africanas, toties quoties, é mais simples do que a utopia de querer pôr de acordo todos os superiores
das missões africanas, como é desejo de Roma. Se o senhor me apoiar na minha fraqueza, também eu espero
poder fazer alguma coisa. Desde que o Santo Padre me encorajou a trabalhar pela África, não penso olhar
para trás, antes, o meu pensamento e a minha intenção será lutar pela África até à morte.
1114
Desejaria saber se a Sociedade de Maria, de Viena, lhe concedeu ajuda para as suas obras do Egipto. Já
em Novembro fui a Bressanone e encarreguei mons. Miterrutzner, braço direito de Viena, de procurar que o
comité lhe desse a si ao menos metade das suas avultadas esmolas. Não tive nenhuma resposta sobre este
assunto. No caso de até agora o comité de Viena não se ter explicado sobre isso, eu procuraria a mediação de
outra personagem para alcançar o intento. No começo do próximo mês de Junho, penso ir a Roma; mas se,
contra o que espero, o comité não tivesse tomado nenhuma resolução, eu iria a Verona e talvez a Viena e
teria bastantes razões para mover o comité a ter mais em conta as suas obras. Quereria que me escrevesse
sobre isto aqui para Paris, dentro do presente mês.
1115
A Sociedade de Colónia entregou-me uma declaração que mostra a importância que deu aos meus pobres
projectos para a África. Esta sociedade é, por agora, pequena; mas dá impressão que vai ser ainda maior que
a de Viena. Tudo depende de nós, rev.mo padre, e do que pudermos fazer em África. Se fizermos muito e
dermos notícias, não necessitaremos de ninguém. A sociedade, dado o grande interesse que agora tem por
África, fará uma chamada a todos os católicos germânicos (menos aos austríacos) e verá como em poucos
anos esta sociedade se fará colossal. Viajei muito por Colónia com os cinco membros do comité: o clero está
muito entusiasmado. Roguemos a Deus que concede à primeira sede da Alemanha um arcebispo comme il
faut, e verá quantos benefícios daí advirão para a África.
1116
A Pia Obra da Propagação da Fé de Lião e Paris é obra de Deus, ainda que nelas haja uma grande com-
ponente humana: a de se opor a todas as obras do mesmo género. Contudo, tratando com os vários membros
em Lião e aqui em Paris, aprendi a maneira de obter dinheiro, quando as missões ou os institutos estão já
fundados com o consentimento de Roma. Se a Áustria não cooperar, conseguiremos que o faça a Obra de
Lião e Paris. Sobre isto tenho muita coisa para lhe dizer de viva voz.
1117
A Sociedade da Santa Infância não pode conceder nada por este ano, porque as petições da China se mul-
tiplicaram. Asseguro-lhe que, no próximo ano, terá ajudas para Alexandria e para o Cairo. Seja por palavra,
seja por escrito, indicar-lhe-ei a táctica a seguir com esta sociedade, da qual se obterá algum benefício.
1118
A Obra das Escolas do Oriente prometeu-me o mais consistente apoio para a África. Fiz-lhes uma peque-
na mas interessante descrição das obras de La Palma e solicitaram-me que lhes descrevesse especialmente o
que dizia respeito à missão da África. Eu prometi-lhe que se lhes enviariam de Nápoles todos os documentos
impressos. Do fascículo escrito a Capponi, que eu lhes dei, não puderam colher muita informação estes fran-
ceses. Se o senhor preparasse uma bela descrição das de La Palma, à qual acrescentasse uma breve explica-
ção dos institutos de Alexandria e do Cairo, asseguro-lhe que já este ano lhe concederão uma pequena soma,
que iria aumentando de ano para ano. Eu estou em excelentes relações com o ilustre director, Mr. l’abbé
Soubiranne, homem de grande talento e actividade, que está entusiasmado com a África. De toda a maneira
asseguro-lhe que os seus institutos poderão em breve ter algum apoio da Oeuvre des Ecoles d’Orient.
1119
Quando me encontrava em Roma, um pároco da diocese de Amiens, de nacionalidade espanhola, veio a
Roma enviado pelo seu bispo, para fundar a Obra dos Escravos. O cardeal escreveu ao bispo a dizer que o
tal espanhol se pusesse de acordo comigo. Tenho diante dos olhos a carta da Propaganda. Quando regressei
de Colónia, ele veio fazer-nos uma visita a Paris. Mons. Massaia, ele e eu acordámos que fosse fundar a sua
obra a Espanha, onde a Obra de Lião e Paris não faz nada, exactamente pelo estilo francês que a enforma.
Espero que, dentro de três anos, havemos de receber grandes ajudas, porque cheguei a um acordo confiden-
cial mediante o qual todas as esmolas serão destinadas ao meu Plano. Por essa razão, a maior parte dessas
esmolas fá-las-ei chegar aos seus instos. da África e às missões que as obras de La Palma empreenderem.
1120
Todas estas coisas são futuras; mas o tempo voa, caro padre, e espero que tudo isto se realizará. Como
estou convencido que a África se há-de converter sob os auspícios de S. Francisco de Assis, neste santo mês
de Maria comecei o meu noviciado da Ordem Terceira em Paris e espero fazer a minha profissão aos pés do
P.e Ludovico. Rogue, meu padre, à grande alma do seráfico pai comum, a fim de que ele me obtenha de
Deus uma chispa da caridade e humildade que possuiu na Terra, porque sou tíbio e muito orgulhoso.
1121
De Roma irei a Nápoles, espero que com mons. Massaia; vai conhecer um verdadeiro apóstolo de J. C.
Para não falar de muitas outras virtudes que lhe admirei nos quatro meses que com ele convivo, imagine que,
sendo bispo, andou quinze anos completamente descalço em África, por caminhos cheios de espinhos, etc.
Eu possuo as sandálias com que passou quatro anos na Abissínia e consagrou a mons. de Jacobis, napolitano.
As minhas saudações ao amável P.e Francisco, a José Habaes, aos irmãos e a todos os negros e negras; e
encomende-me às orações das estigmatinas.
Beijando-lhe respeitosamente as mãos, declaro-me com todo o afecto

Seu indig.mo serv.


P.e Daniel Comboni

1122
Levar-lhe-ei para Nápoles o anuário de Colónia de 1864. Verá um compêndio da nossa Sociedade de Co-
lónia. Peço-lhe faça chegar ao P.e Pedemonte a carta que junto. Mons. Massaia manda-lhe uma foto de
mons. De Jacobis, nap., bispo e vigário da Abissínia, a quem ele sagrou bispo e que, falecido em odor de
santidade, é famoso por muitos milagres.
N.o 144 (139) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ
AP SC Afr. C., v. 7, ff. 744-745

Paris, 19 de Maio de 1865


Em.mo Príncipe,

1123
O il.mo e rev.mo mons. vigário apostólico dos Gallas teve a bondade de me comunicar o que em sua ve-
nerada carta V. Em.a se dignou fazer-lhe saber, ou seja, que eu não pertenço já ao Insto. Mazza. É uma coisa
de que estou muito surpreendido. As cartas do meu Insto. de Verona, tal como me têm chegado, tenho-as
mostrado sempre todas a mons. Massaia; e isto desde há mais de quatro meses, o tempo que tenho tido a
sorte de conviver com ele e de lhe abrir completamente o meu coração com a confiança de um filho para
com seu pai.
1124
O rev.mo P.e Francisco Bricolo, reitor dos institutos masculinos fundados por P.e Mazza e, por conse-
quência, meu director imediato, escreve-me amiúde. Falou-me, é certo, de bastantes desavenças havidas no
interior do instituto entre seus membros, dos quais eu sou um deles (misérias todas devidas à extrema pobre-
za do instituto que, salvo a integridade de uma regular disciplina, carece absolutamente dos meios materiais
de primeira necessidade); porém, nunca me fez saber que eu já não pertenço ao Insto. Mazza.
1125
O mesmo P.e Mazza, meu querido superior, que me recebeu com toda a sua paternal bondade ao meu re-
gresso de Roma, nunca me comunicou nada, nem me manifestou que eu já não pertenço ao seu instituto,
apesar de duas cartas que lhe escrevi, depois da primeira de S. Em.a a mons. Massaia, nas quais lhe pedia
que me exprimisse em termos técnicos se é verdade que eu já não pertenço ao seu instituto, como parece foi
comunicado a Roma. Não consigo compreender este procedimento do meu caro superior, nem persuadir-me
de que o meu venerável velho, sem me comunicar nada, nem exprimir motivo nenhum, queira afastar-me
desse Insto., onde entrei aos dez anos e ao qual pertenço há vinte e três, durante os quais, sob as ordens ou
com a aprovação do mesmo superior, exerci de mil maneiras o meu ministério sacerdotal, sem desmerecer,
espero, a bondade dos superiores, como podem testemunhar os três últimos bispos de Verona, especialmente
o meu venerado bispo actual, mons. Canossa.
1126
Como é possível que agora, quando preciso do seu apoio moral para a minha fraqueza na obra que trato
de promover em favor dos pobres negros, possa o meu velho pai (pois tal verdadeiramente foi para mim du-
rante 23 anos) abandonar-me a mim mesmo? Eminência, não entendo nada!
1127
Por isso, adorando sempre os desígnios da Providência, que tudo dispõe para a maior glória de Deus e o
bem das almas, e sempre disposto a sofrer qualquer humilhação e amargura, onde o Senhor quiser, decidi,
seguindo também o conselho do monsenhor, ir a Verona dentro de duas semanas, para pessoalmente me in-
teirar do que se passa; e depois, dado que, ao que parece, o monsenhor quer confiar-me um importante e
delicado assunto para apresentar em Roma, pois não é prudente expô-lo por escrito, alegrar-me-ei de lhe
comunicar pessoalmente a verdadeira história desta desagradável comédia, da qual o próprio mons. Massaia,
que me parece mais interessado nela do que eu, está altamente surpreendido e que nenhum de nós consegue
explicar.
1128
No que toca à finalidade da minha viagem a França, não tenho nada a acrescentar ao que lhe expus na úl-
tima carta que lhe escrevi ao regressar da Prússia. No Ss.mo Coração de Maria, a quem veneramos neste belo
mês, confio que através de todas estas dificuldades e outras mais graves, com a graça de Deus e com o escu-
do da protecção de V. Em.a Rev.ma, em breve conseguirei empreender algo de útil para a desditosa Nigrícia,
conforme lhe escrevi na minha última carta.
Rogando ao Senhor que o conserve longos anos para o bem das santas missões, sobretudo da África, bei-
jo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me com toda a veneração

De V. Em.a Rev.ma
Hum.mo e indig.mo filho
P.e Daniel Comboni

N.o 145 (140) - AO SR. ANTOINE D’ABBADIE


BNP, Nouv. Acq. Fr. 23852, f. 440

Paris, 31-05-1865
Breve aviso.

N.o 146 (141) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Paris, 31 de Maio de 1865


Sr. superior,

1129
Amanhã saio de Paris em direcção ao Atlântico, até Bayeux, para levar a cabo a incumbência do nosso
querido bispo, mons. Canossa, de recolher documentação sobre o célebre bispo Canossa; depois regressarei a
Paris e em seguida a Verona.
1130
No domingo passado tive o prazer de ser recebido numa audiência privada de 35 minutos de duração por
Sua Majestade a imperatriz dos franceses, em companhia de mons. Massaia. Eu falei longamente sobre a
África. O santo bispo, verdadeiro confessor da fé, queria falar de mais coisas, relacionadas com a actual polí-
tica de Napoleão III para com a Igreja; mas a imperatriz estava demasiado impressionada com a África. Eu
tive o cuidado de dirigir a sua atenção e prepará-la para receber a palavra de um apóstolo: mas não me ocor-
reu falar directamente.
Contudo, o santo bispo fez-lhe compreender que a prosperidade do império e o futuro do seu filho, o
príncipe imperial, depende do bom entendimento da França com o Papa e que a vida de seu filho está em
perigo onde a maçonaria triunfar. Mons. Massaia é um verdadeiro apóstolo.
A imperatriz foi muito gentil connosco e recebeu do monsenhor como oferta um objecto religioso da
Abissínia. Em cinco meses que tenho vivido ao lado deste bispo fui testemunha das mais sublimes virtudes.

P.e Comboni

N.º 147 (142) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/17

Paris, 1 de Junho de 1865

Meu caro reitor,


1131
Já comecei a aplicar as 60 missas de que me falava na sua gratíssima carta de 8 de Maio. Espero que o
festival tenha sido esplêndido.
Pela sua última carta vejo que as coisas no instituto estão mais sérias que nunca e que reina a discórdia
entre superiores e inferiores, culpa do equivocado procedimento que o nosso querido velho adoptou de se
rodear de gente falsa, não franca e aberta.
1132
Bendigamos ao Senhor, que tudo dispõe da melhor maneira para o nosso bem. Embora Deus me tenha
dado um temperamento alegre, de tal modo que eu gozo e estou sempre contente, e talvez haja poucos no
mundo mais felizes do que eu, contudo estas coisas produzem-me muita impressão e uma grande dor no
coração. Dado que em Roma ainda se crê que já não pertenço ao Instituto e que talvez eu tenha sido expulso
do mesmo, como consta de uma carta do cardeal Barnabó ao núncio apostólico de Paris, mons. Chigi, e visto
não ter recebido nenhuma comunicação directa do superior, como reclamava numa carta junta depois do meu
regresso da Prússia, pensei deixar Paris e ir a Verona ver o que se passa.
1133
Pode imaginar, meu caro reitor, o dano que sofreria perante a Propaganda, se se dissesse: «A P.e Combo-
ni expulsaram-no do Insto. Mazza» e eu a única coisa de certo que sei é que o superior disse ao meu reitor
que, sob um pretexto qualquer, abandone o Instituto; e, fora isso, nada. Bendito seja sempre o Senhor. Como
vê, caro reitor, sou tratado, pelas costas, com pouca caridade e gentileza, e, sem nada me ser comunicado,
escreve-se assim a Roma. Fiat semper voluntas Dei in omnibus. Só tenho o doce conforto de uma consciên-
cia que não se sente culpada disto.
1134
Na semana que vem, partirei de Paris e dentro de dez ou doze dias espero estar em Verona. Os meus as-
suntos com a Obra da Propagação da Fé vão muito bem. Estreitei laços da mais íntima amizade – na qual sou
correspondido mais do que se possa imaginar, porque se trata de uma alma grande – com o ilustre escritor
Nicolas, que é um dos membros mais activos da Obra. Expus-lhe os meus pensamentos e, depois, pouco a
pouco, aproximei-o de mons. Massaia, que não cabe em si de gozo por ter conhecido uma alma tão grande e
tão devota. Em resumo, estes dois grandes homens apresentaram-me ao Conselho de Paris em plena sessão
extraordinária e o presidente, depois de um larga discussão sobre as minhas ideias, assegurou-me que a Obra
da Propagação da Fé, à medida que eu encontrar o pessoal, etc., ajudará com especial predilecção a África.
Também travei amizade com os seguintes membros da Propagação da Fé, todos eles grandes homens:
1.o Mr. Boudin, presidente da Obra das Conferências de S. Vicente de Paulo de todo o mundo;
2.o Mr. Cochin, grande escritor católico e senador do reino;
3.o Mr. Le Recteur du Seminaire de S. Sulpício (o primeiro seminário da França);
4.o Mr. Theyr, senador;
5.o Mr. Doulquay, etc., etc. Em suma, quanto ao material e ao dinheiro para o meu Plano não terei ne-
nhuma dor de cabeça, porque juntarei o dinheiro necessário para qualquer fundação que eu empreenda.
1135
Igualmente a Obra das Escolas do Oriente e a da Santa Infância darão uma contribuição anual para cada
instituto cuja fundação eu promover. Falo de todas as obras que se hão-de realizar em África. Tenho que
pensar nas obras da Europa, como a fundação de pequenos seminários, etc., e no pessoal; isto dar-me-á gran-
des preocupações, mas confio levá-lo a cabo com a ajuda de Deus. Dentro de dois anos verá surgir um semi-
nário para as missões africanas num lugar que já escolhi; e tenho lançado o olhar sobre homens de acção e
iniciativa. Por certo, vou atrasar-me consideravelmente por causa dos meus assuntos com o superior e o ins-
tituto, no qual o mais fraco, que sou eu, ficará sempre a perder e terá que sofrer, mas confio que Deus me
dará força para superar tudo. Pessoalmente, falaremos de muitas coisas. Até à vista, em Verona. Deter-me-ei
dois dias em Turim. Saúde os sacerdotes, P.e Beltrame, o meu porteiro, P.e Bolm, P.e Lonardoni, etc., P.e
Fochesato, etc., Hans e tenha-me presente no seu coração como o senhor está no meu.
1136
Encomende-me às orações dos bons e das sras. Urbani. Cumprimente as minhas protestantes. Gostaria
que me escrevesse para Turim. Em Verona desejo ver definidos, especificados, postos bem a claro, os meus
problemas com o superior. Onde se vir que sou faltoso e culpado, estou disposto a sofrer o que mereço, como
também estou disposto a sofrer o que não mereço, porque diante de Deus sou um grande pecador. Por deli-
cadeza, até agora nada disto escrevi nem insinuei ao bispo, porque sei que em geral o superior está contra
ele; mas, neste caso, é necessário que o bispo seja juiz. O bispo escutará as minhas palavras e dar-lhe-á cer-
tamente o valor que merecerem. Veremos, porque está para rebentar alguma coisa. O Senhor esteja com o
pobre

P.e Comboni

Receba as mais cordiais saudações de mons. Massaia.


1137
Domingo passado, mons. Massaia e eu fomos recebidos pela imperatriz Eugénia numa prolongada audi-
ência privada. Eu falei longamente; o santo bispo, com ardor apostólico, disse à imperatriz uma coisa que lhe
contarei pessoalmente. A imperatriz foi amável com ambos.

N.o 148 (143) - A P.e NICOLAU MAZZA


AMV, Cart. «Missione Africana»
Paris, 1 de Junho de 1865

Meu amadíssimo superior,

1138
A Propaganda atribui ao P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles, a estação de Schellal na África; parece
que os franciscanos tentam continuar a missão da África Central com o sistema delineado no meu Plano.
Como a Sociedade de Viena não proporciona ajudas ao P.e Ludovico, não sei se os Franciscanos cederão a
outros, sem mais, uma parte da missão. Contudo, creio ter a chave para superar todos os obstáculos e conse-
guir que, ainda dentro do Outono, seja confiada ao nosso instituto a direcção duma missão na África Cen-
tral, como o senhor quer, sem depender senão da Propaganda. O P.e Ludovico, de Nápoles, escreveu-me a
dizer que tem intenção de que as suas obras formem parte do meu Plano e pede-me que o assista com ajudas
pecuniárias. Com todo o fundamento, eu prometi-lhe a minha colaboração.
1139
A Sociedade da Santa Infância e a obra das Escolas do Oriente prometeram-me ajuda para qualquer fun-
dação em África. Após uma carta do card. Barnabó ao bispo de Amiens, na qual lhe ordenava que se pusesse
de acordo comigo para a fundação da obra dos escravos, anuí, com o conselho de mons. Massaia, a que se
façam as primeiras tentativas em Espanha. O bispo de Amiens destinou para tal fim o santo sacerdote Capel-
la, que em breve se porá a trabalhar sob os auspícios do arcebispo de Tarragona. Espero que dentro de dois
anos a obra esteja fundada. Quase todo o dinheiro da mesma está destinado ao Plano idealizado para a rege-
neração da África.
1140
Mons. Massaia apresentou-me ao Conselho de Paris, reunido em sessão extraordinária no dia 24. Contan-
do eu com o apoio do ilustre apologista Nicolas, membro do Conselho, o presidente prometeu assegurar a
Roma o especial concurso da Obra da Propagação da Fé de Lião e Paris em favor de todas as fundações da
África. Creio que o Senhor abençoou os meus passos.
1141
P.e Bricolo ter-lhe-á comunicado a minha ideia de pôr perpetuamente à sua disposição, se o considerar
oportuno, uma verba proveniente do rendimento de cem mil francos, que me outorga a Sociedade prussiana.
Não me chegou nenhuma resposta sua.
1142
Mitterrutzner escreveu a dizer que a Sociedade de Viena (que agora está um pouco desanimada) tem cer-
tamente uma boa disposição para como nosso Insto. e para consigo. Portanto, sr. superior, pode estar certo de
ter uma missão à sua disposição dentro deste Outono. Basta que queira e que disponha de um pequeno pes-
soal.
1143
Por outro lado, seguindo o conselho de mons. Massaia, que tem além disso importantíssimos assuntos pa-
ra me confiar para o Santo Padre, como lhe escreverá, penso regressar em seguida a Verona e, depois, com a
sua autorização, ir a Roma, onde combinarei com o Card. Barnabó algo em favor da África, com base no
que, por conselho dele, realizei. Que feliz seria eu se o senhor erigisse uma casa no Egipto ou noutro sítio da
África que quisesse neste Outono!
1144
Não me tendo respondido à minha última que escrevi, espero que tudo tenha terminado e que serei consi-
derado de novo como seu filho. Em verdade, não posso viver muito tempo sem poder depender do meu bom
pai, ao qual tanto quero. Seria uma grande dor para mim se agora que cheguei a uma idade em que posso ser
útil ao instituto e devolver-lhe o bem que me fez ao longo de tantos anos, tivesse que sair dele. Não, não
posso viver longe do coração do meu pai, nem longe da sua autoridade. Se me lançasse fora pela porta do
Instituto, eu entraria pela janela. Por isso, meu caro velho, até à vista, dentro de poucos dias. Bata-me, mal-
trate-me, castigue-me, mas não me mande embora. Eu quero estar até à morte no seu coração e ser

Seu fidelmo. Filho P.e Daniel Comboni

1145
Rogo-lhe dê saudações a P.e César, à professora Helena e a Tregnaghi.
N.o 149 (144) - AO SR. ANTOINE D’ABBADIE
BNP, Nouv. Acq. Fr. 23852, f. 452

Paris, 8-06-1865

Breve recomendação em favor do prof. Conrad Urbansky.

N.o 150 (145) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 753v

Verona, 23 de Junho de 1865

Em.mo Príncipe,

1146
Dentro de poucos dias, terei a dita de me encontrar em Roma para tratar alguns assuntos de grande impor-
tância com V. Em.a, como consequência do meu Plano. Apesar de ter partido de Roma e de Verona sem
nenhuma espécie de recomendação, ainda que cheio de confiança em cumprir a vontade de Deus, pude orga-
nizar algo para o bem da África. Tenho pronta uma selecta falange de respeitáveis missionários do meu que-
rido insto., todos distintos professores do seminário ou fervorosos trabalhadores evangélicos, versadíssimos
no santo ministério, instruídos nas línguas orientais, todos ardentes de zelo, dispostos a voar à conquista dos
nossos queridos negros, quando V. Em.a, a pedido do meu superior, se dignar atribuir-lhe um terreno para
cultivar em África na base do meu Plano. À cabeça de todos eles o meu superior poria o mui solícito P.e
Beltrame, o qual é venerado no Egipto e na África, conhece os costumes e o país e exerceu lá o ministério
evangélico durante dez anos. Conto com os meios necessários não só para iniciar a obra, mas também para
perpetuá-la. Eu sempre pertenci e pertenço ao Insto. Mazza, como lhe escreverá o seu fundador, o qual nunca
me indicou que eu tinha sido separado da instituição.
1147
Isto não é mais que uma pequena coisa entre as muito importantes e úteis que tenho para lhe comunicar.
Encomendo-me à protecção de V. Em.a Rev.ma, a fim de que possa continuar em favor da África a obra que
tenho em mente e que neste ano terá um florido começo.
Enquanto suplico cada dia ao divino Redentor que guarde por muitos anos a preciosa vida de V. Em. a pa-
ra o maior bem da África, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me com todo o respeito

De V. Em.a Rev.ma
Hum. e indig. filho
P.e Comboni

N.o 151 (146) - A MARIE DELUIL MARTINY


AVBB

Nápoles, 5 de Julho de 1865

Minha estimada irmã em J. C.,

1148
A sua carta de 13 de Junho, viva expressão do terno amor que tem pelo Divino Coração de Jesus, li-a du-
rante a minha viagem de Bourg a Genebra e só posso agora responder-lhe, porque, chegado a Verona, tive
que ir a Viena, na Áustria; depois a Roma, onde cheguei na véspera de São Pedro e finalmente a Nápoles.
Nesse espaço de tempo tive demasiadas ocupações que me impediram de lhe escrever. Antes de mais, estou-
lhe profundamente agradecido pela bondade que teve ao enviar-me em diversos pacotes um Cadron grande e
um pequeno, a Notícia, jornais, impressos para donativos e algumas medalhas da Guarda de Honra do Sagra-
do Coração de Jesus e sobretudo por me ter concedido o diploma de director honorário da obra.
1149
Devo exprimir-lhe a alegria que causou em mim o facto de encontrar em si uma digna irmã, que me as-
sociou à alta honra de promover a glória do Sagrado Coração nos países da África Central, assim como o
prazer de manter correspondência consigo para tratar sobre o que interessa à glória do Divino Coração, que é
o centro de comunicação entre nós e que deve arder de amor pela salvação da almas. A Providência parece
ter-me escolhido para o muito difícil e perigoso apostolado dos negros. Eu procurarei corresponder à alta
missão com todos os esforços possíveis, disposto a sacrificar a vida pela salvação da África. Mas que sorte,
minha boa irmã, me traz com a ajuda da obra da Guarda de Honra do Sagrado Coração! Com indizível ale-
gria admiro a mais devota protectora da dilecta Guarda de Honra do Sagrado Coração, cujo glorioso aposto-
lado é a poderosa força que me alenta na grande empresa, a que o Deus de Israel, apesar de eu ser indigno,
me destinou.
1150
A obra que estou prestes a fundar e que espero já iniciar este ano com a criação, por parte da S. Sé, de
dois grandes vicariatos apostólicos na África Central, segundo o meu Plano para a Regeneração da África,
que consagrarei aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, entrelaça-se intimamente com a bela obra da
Guarda de Honra do Sagdo. C. de Jesus, da qual a senhora é a fervorosa zeladora. Já vê, cara irmã, a profun-
da união que deve haver entre si e mim. Por isso, tê-la-ei informada de todos os progressos da grande obra,
que deve ser também sua, como a sua é minha. Recomende esta obra aos sócios para multiplicar as orações
em favor da conversão da África, do mesmo modo que eu promoverei a obra da Guarda de Honra do Sagra-
do Coração não só em África, mas em todo o mundo. O Sagrado Coração de Jesus esteja connosco e nós
sejamos fiéis e felizes na consagração da nossa vida aos interesses da Sua glória.
1151
Quando tiver impresso o meu Plano para a Regeneração da África em francês, enviar-lho-ei logo; desejo
que o conheça, para que aumentem as preces. Sua Em.a o card. de Angelis, arcebispo de Fermo, relegado
para Turim, ele que no conclave de 1846 obteve o maior número de votos para ser papa, depois de Pio IX,
disse-me: «Se colocou a sua obra sob a protecção do Sagrado Coração, não tema, levá-la-á a bom porto». O
amor ardente do Sagrado Coração de Jesus queimará o paganismo e o feiticismo da raça africana e construir-
se-á o reino de Jesus Cristo. Outra coisa: como desejo introduzir nos países eslavos a obra da Guarda de
Honra do Sagdo, Coração, rogo-lhe que me envie para Roma um diploma de director honorário da obra para
o rev.do P.e Vicente Basile, da Companhia de Jesus, célebre missionário que vive há vinte e cinco anos nos
países eslavos, para que possa introduzir a devoção e a obra nesses vastos países.
1152
Pelo mesmo motivo, peço-lhe outro diploma para o Rev.do P.e João Beltrame, superior da extensa missão
do Nilo Oriental, a qual se converterá num vicariato, que, de acordo com o meu Plano, a S. Sé quer erigir
este mês. Peço-lhe também outro diploma para o superior da missão do Nilo Ocidental da Ordem dos Re-
formados de S. Francisco de Assis, vicariato que também será instituído este mês, segundo o meu Plano. De
Roma dar-lhe-ei notícias precisas, depois do meu informativo à S. Congregação de Propaganda Fide acerca
destas duas missões.
1153
Mil saudações às santas Irmãs da Visitação de Bourg em Bresse, à sra. Eugénia Cabuchet e à sua boa
amiga. Escreva-me para Roma e encomende-me ao Sagdo, Coração de Jesus, rogando-lhe que me ajude na
minha grande empresa.
Asseguro-lhe que serei sempre
Seu humilde amigo e irmão
P.e Daniel Comboni
Missionário apostólico
Original francês
Tradução do italiano

N.o 152 (147) - PROJECTO


SOBRE A MISSÃO DA ÁFRICA CENTRAL
AFBR
Nápoles, Julho de 1865
Projecto de P.e Comboni
missão da África Central

1154
Quanto à parte da missão da África Central que os missionários austríacos tentaram evangelizar, o Insto.
Mazza e a ordem franciscana, ficou estabelecido entre o P.e Ludovico de Casoria e P.e Daniel Comboni fa-
zer a seguinte divisão, que se submete humildemente ao rev.mo P.e geral.
Vicariato apostólico do Nilo Oriental, que se confiaria ao Insto. Mazza, teria os seguintes limites:
Ao norte, o trópico do Câncer
A este, os vicariatos da Abissínia e dos Gallas e o mar Vermelho
A sul, o equador
A oeste, o Nilo e o Nilo Branco.
Vicariato apostólico do Nilo Ocidental, que se confiaria ao Instituto de La Palma:
A norte, o vicariato do Egipto
A este, o Nilo e o Nilo Branco
A sul, o equador
A oeste, as regiões desconhecidas existentes entre o 25º grau de longitude segundo o meridiano de Paris.
Ainda que a estação de Cartum pertença ao Nilo Oriental, concordou-se em dividi-la entre os dois vicaria-
tos do Nilo.
A estação de Schellal pertence ao Instituto de La Palma, porque assim o dispôs já a S. Congregação da
Propaganda Fide.
(P.e Comboni)

N.º 153 (1144) - NOTA


AP SC Afr. C., v. 7 f. 900

Roma, Julho (?) de 1865

N.o 154 (1145) - SÚPLICA A PIO IX


ACR, A, c. 20/42 n. 1

Roma, Julho de 1865

Comboni pede uma bênção para a família de Augusto Nicolas.

N.o 155 (148) - AO P.e LUDOVICO DE CASORIA


AFBR

Roma, Via del Mascherone, 55


8 de Agosto de 1865

Meu caríssimo e rev.do P.e Ludovico,

1155
Dois desgostos afligem profundamente o meu coração. Um é a morte do meu querido superior, P.e Nico-
lau Mazza, ocorrida a 2 do corrente mês. A desolação que reina em Verona e sobretudo nos meus Institutos é
grande, embora todos estejam animados do mesmo espírito de fazer tudo pela glória de Deus. O santo velho
teria sido feliz se tivesse podido falar consigo; faça-se a divina vontade: é duro, mas fiat.
1156
O outro desgosto é o mau resultado dos nossos acordos, anteriormente estabelecidos em Nápoles e em
Roma sobre a divisão africana. É-me muito penoso manifestar a impressão que me faz ver que o efeito de
tudo não é conforme aos nossos acordos. Eu bendirei sempre ao Senhor em tudo. E em nome do Senhor,
antes de dar um passo em Roma e em Viena, peço a graça de me escrever claramente o que decidiu fazer.
Examine bem o acordo que fizemos e as esperanças que me deu antes da minha vinda para Roma e diga-me
o que está acordado, porque agora não vejo claro. Previno-o de que, sem a certeza de que será confiada uma
missão em África ao meu instituto, não se fará nada e os meus companheiros missionários não deixarão Ve-
rona.
1157
Pense na perdição de tantas almas que será causado por um culpável atraso, porque os meus missionários
estão preparados para trabalhar na desolada vinha africana. Por minha parte bendirei sempre a Providência,
porque sei que em consciência tentei tudo para melhorar as condições da missão e continuarei a fazer isso até
à morte. O senhor conhece as minhas ideias: faça-me chegar uma explicação clara do que foi estipulado,
porque aqui em Roma percebo pouco.
1158
Não deixarei Roma antes de ter esclarecido o assunto e dado os passos que julgar oportunos para o bem
da nossa África. Para o mais espero-o em Verona para efectuarmos à Áustria a viagem de que tínhamos fala-
do.
Igualmente continuo sempre disposto a satisfazer o seu desejo de o acompanhar ao Egipto, a Schellal, a
Cartum e onde quiser, como combinámos. Gostaria que o senhor escrevesse ao card. Barnabó sobre este seu
desejo, porque assim ser-me-ia mais fácil obter a permissão de Verona. Se o meu superior vivesse, a coisa
seria certa, mas agora não sei. Por outra parte, creio que será bom para os dois que vamos juntos a África e
juntos regressemos à Europa.
1159
Não escrevo mais, porque o meu coração está demasiado aflito pelas duas razões expostas, Reze por mim,
caro padre, e conforte-me com uma longa e pormenorizada carta. Envio uma saudação a todos os de La Pal-
ma, enquanto nos Sagdos. Corações de J. e de M. lhe peço a sua santa bênção e me declaro com toda a vene-
ração

Seu fiel e af.mo filho


P.e Daniel

Escrevi ao comité de Colónia para que mandassem dinheiro para Nápoles, a fim de que à hora de os mis-
sionários partirem para Messina não haja preocupações.

N.o 156 (149) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/18

Roma, 17 de Agosto de 1865

Meu caro P.e Francisco,

1160
A carta sem data que me escreveu do Tirol chega-me agora, depois de ter percorrido a Alemanha e a
França, o que se deve ao facto de não ter sido franqueada com 13 soldos, mas sim com 10. Com a franquia
completa, ter-me-ia chegado em 4 dias, como me chegam as de Mitterrutzner, e assim, além de ter de pagar a
multa de 4 francos (o que não me importa), recebo-a demasiado tarde. Transeat.
1161
Ninguém mais que eu sentiu com tanta dor o seu momentâneo afastamento do Insto. e os graves desgos-
tos que sofreu e até agora me parece um pesadelo e não saberia adaptar-me a ver o nosso amado insto. (don-
de me queriam expulsar também a mim) sem o meu querido reitor P.e Bricolo. Com o bispo estudei um pro-
jecto, que eu lhe apresentei, segundo o qual se arranjariam as coisas bastante bem durante o Outono. O bispo
aprovou-o com sumo prazer e deste modo caía por terra a pouco grata ideia, que me havia comunicado o
bispo, de receber em pensionato 15 rapazes e ocupar deste modo aquele que com tanta honra e satisfação
universal dirigia um grande instituto. Este novo projecto, dada a morte do bom velho, precisa de algumas
modificações, que faremos no meu próximo regresso a Verona. Além disso, tenho outras ideias, caso se ve-
nha a malograr o que está projectado; mas comunicar-lhas-ei de viva voz. Eu adoro sempre as disposições da
Providência, que do mal sabe sempre tirar o bem. Deus estará connosco.
1162
Quando, vindo de Paris, cheguei a Verona, fiquei petrificado ao ouvir dizer que se tinha ido um homem
de tanta importância como o reitor do instituto, cuja ilimitada abnegação estava consagrada por enormes e
dificilmente apreciáveis sacrifícios e era literalmente sinónimo do próprio instituto. Foi uma pílula que ainda
não pude digerir. Encontrei-me desconcertado, sem saber com quem desabafar a minha alma. Só P.e Francis-
co tinha um coração no qual podia depositar as minhas preocupações, certo de ser compreendido. Fui ver o
velho e disse-lhe que não lhe perguntava sequer porque queria afastar-me do Instituto; só lhe pedia que, se tal
fosse o seu desejo, se dignasse pô-lo por escrito assim: «Eu, P.e Nicolau Mazza, declaro que o sacerdote P.e
Comboni, desde há vinte e três anos membro do meu Insto., já não pertence a ele».
1163
Depois de uns segundos, o velho lançou-se-me ao pescoço e beijou-me, dizendo-me: «Tu és meu filho».
Então expus-lhe que estava prestes a ir a Roma, como ele sabia por uma carta que lhe tinha escrito mons.
Massaia, o qual, juntamente com o núncio apostólico de Paris, mons. Chigi, arcebispo de Mira, me tinha
encarregado de assuntos muito importantes para tratar com o Papa e o card. Antonelli; ele, depois de ter fala-
do com P.e Beltrame, deu-me uma carta para o card. Barnabó, na qual solicitava para o instituto um vicariato
na África Central. Assim, vim para Roma como filho do insto., como o superior declarou ao cardeal.
1164
Quanto ao mais, não sei, meu caro P.e Francisco, porque lhe vieram suspeitas sobre a minha lealdade e
fez bem em afastá-las como uma má tentação. Ainda que me tenham faltado atitudes audazes, só a minha
gratidão me teria confirmado no meu antigo afecto para com o meu reitor. Quando for a Verona, pergunte ao
nosso bispo, aos nossos amigos e também aos inimigos para ver se eu sou fácil de enganar.
1165
A minha amizade para com as pessoas queridas é forte, eterna e não se pode esfriar pelos maiores sacrifí-
cios; até se se tratasse de sacrificar o êxito do meu Plano, eu nunca aceitaria perder nem uma chispa do afec-
to que lhe dedico, nem seria capaz de me retractar das minhas ideias, nem sequer diante dos tribunais de
Nero. Se fui tardio em escrever, isso é algo bem estudado e deliberado, sempre com o fim de devolver ao
Insto. uma jóia perdida. Pessoalmente, serei mais claro, porque agora não tenho tempo e não é coisa que se
lance no papel.
1166
Guardo para com o insto. o mesmo afecto e o mesmo dévouement de sempre e falo a quem é testemunha
da minha constância. Eu poderia ter mil meios de ser feliz e, ainda que indigno, realizar uma grande carreira;
mas o meu afecto e gratidão para com o insto. fazem-me desprezar tudo. De modo que pelo insto. farei tudo
o que for possível na minha fraqueza, firme na esperança de que poderei fazer o bem. Chegarei a Verona nos
últimos deste mês, para esperar o P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles, a quem acompanharei a Viena, pas-
sando por Bressanone.
Estou sobremaneira oprimido com o temor de que muitos bons jovens do insto. sejam mandados embora.
Ainda que talvez as disposições do novo superior geral e do fundamento venham a fazer certas regras mais
perfeitas, que antes dependiam do critério de um só velho. Rezemos ao Senhor para que ordene bem as coi-
sas.
1167
A segunda vez que fui ver o Santo Padre, pedi-lhe uma bênção especial para si. Je vienne de recevoir à
present une lettre do meu querido e do meu venerado amigo parisiense, o célebre apologista francês Augusto
Nicolas, que é conselheiro da Obra da Propagação da Fé. Prestei-lhe alguns bons serviços, entre eles o de
cumprir a incumbência que me deu de apresentar a Pio IX a sua última obra. Além disso, fiz uma súplica ao
Santo Padre, na qual, nomeando todos os seus filhos, lhe pedi a bênção apostólica. Depois, indo novamente
ver o Santo Padre, com a minha costumada audácia, forcei-o a escrever com seu próprio punho, letra e nome,
algumas linhas que o Papa dedicou de boa vontade ao grande homem. Entre as muitas coisas que o ilustre
escritor me escreve, está o seguinte:
1168
«É um monumento doméstico que deve ser emoldurado e conservado no santuário da família como pro-
tecção da graça celestial, tanto mais apreciado se se unir à angelical memória do nosso Augusto (a obra e a
vida do seu filho Augusto), que foi a oportunidade dele e que parece consagrá-la. Permita-me acrescentar
que esta lembrança da sua benévola amizade, à qual nós o devemos, lhe ficará sempre unida e estabelecerá
entre si e nós um desses laços, que o tempo e o espaço, que provavelmente nos separarão, não farão mais que
consolidar, porque é formado no seio do próprio Deus, por mão do Seu augusto Vigário e que constitui entre
os laboriosos méritos do seu Apostolado e as nossas provas, uma sociedade de graças, na qual estamos de-
masiado interessados, para lhe sermos infiéis... Agradeço-lhe infinitamente os preciosos pormenores da bon-
dade do Santo Padre a respeito da minha obra e também os termos tão lisonjeiros com que o senhor compôs
a súplica que precede a bênção. Eles aumentam, por assim dizer, o valor desta, porque fazem ressaltar uma
maior consideração e lhe imprimem um cunho pessoal. É certo que estou longe de merecê-los, mas é o se-
nhor, meu estimado e venerado amigo, que tem a responsabilidade e eu aceito-os como um efeito e um refle-
xo da sua inestimável benevolência... Ficar-lhe-ei muito agradecido por todas as notícias que nos puder dar
sobre a África; temos quase direito a isso, porque a sua boa amizade a enxertou na minha família...

A. Nicolas».

1169
Este grande homem é um dos membros mais activos da Obra da Propagação da Fé. Ele vai favorecer o
meu Plano grandemente, por o ter encontrado prático e belo. Escreve-me quatro belíssimas páginas, das
quais as palavras anteriormente citadas são só uma pequena amostra.
1170
Tenho um monte de coisas, e boas, para lhe comunicar pessoalmente; Deus pede-me que sofra, para de-
pois me dar conforto imenso. Rogue por mim aos Sagrados Corações. Saudações ao meu querido P.e Anato-
le, cuja carta me foi muito grata e a quem não respondo por me encontrar bastante fraco: tive que ir duas
vezes a Nápoles. Este ano tomei dois banhos em Nantes, no oceano Atlântico, quatro no Sena, em Paris, um
em Colónia, no Reno, dois em Genebra, no lago do mesmo nome, dois em Nápoles, quatro em Ischia, dois
em Porto d’Anzio, um no Tivoli e mais de meia dúzia em Roma. Vou continuar e tomar mais um par deles
em Veneza. Isto é positivo e menciono esta circunstância para o fazer rir nas costas do vagabundo que lhe
escreve. Em Trento apresente recordações a S. A. o estimado mons. Riccabona.
1171
Há vinte dias que estudo o português; e a minha professora é Sua Alteza Real D. Maria Assunção de Bra-
gança, filha do antigo rei de Portugal, que tem a bondade e a paciência de me receber durante 4 e até 6 horas
por dia. Grande bem reverterá em favor da África de tão grata e valiosa relação. Esta santa jovem de 32 anos,
l’enfant gatée do Papa, de Antonelli e do card. Patrizi, é de uma rara piedade e tem um coração imenso; e o
seu camareiro disse-me que eu sou o amigo mais estimado desta virtuosa princesa, que será na Europa como
um apóstolo para favorecer o meu plano. Esta preciosa amizade serve-me de muito conforto e nela tenho um
grande exemplo de desapego do mundo.
P.e Daniel

N.o 157 (150) - AO P.e LUDOVICO DE CASORIA


AFBR
Roma, 17 de Agosto de 1865
Via del Mascherone, 55

Meu rev.do e amat.mo P.e Ludovico,

1172
Há mais de dez dias que lhe enviei uma carta, à qual espero, com ânsia uma resposta, se bem que até ago-
ra em vão. Envio-lhe, pois, esta segunda, rogando a sua bondade que me responda de imediato.
As coisas sobre que versava a primeira carta referem-se ao que foi objecto das nossas conversas em Ná-
poles e em Roma.
Eu vim a Roma para tratar da divisão da África Central. Parecia que o senhor, o P. e Geral e eu estávamos
inteiramente de acordo. Agora, se não me engano, creio que não me foi claramente explicado o que se deci-
diu. Suplico-lhe, P.e Ludovico, que me escreva dizendo-me que decisão se tomou e que devo fazer. A si
comuniquei-lhe com toda a franqueza e confiança as minhas ideias, assim como a incumbência que me fez o
meu defunto superior e o que pretendo fazer pela África. Já lhe disse que em Verona há muitos missionários
prontos a salvar almas na África, todos eles gente preparada e diligente com vontade de se sacrificar pelos
nossos negros. Quid agere debeo? Peço-lhe me responda a isto, porque confio muito nas luzes e na caridade
do P.e Ludovico; peço-lhe também que me responda ao que lhe expus na minha carta anterior.
1173
Quanto ao mais, comuniquei a Viena o acordo a que chegámos de irmos ambos visitar aqueles bons se-
nhores do comité, que sem dúvida nos hão-de dispensar um bom acolhimento. Logo que me responder, eu
irei para Verona, onde aguardarei pela sua chegada juntamente com o nosso Fr. Boaventura; compraz-me
dizer-lhe que é lá esperado com muito prazer, como uma bênção de Deus.
1174
À sua partida de Roma, comuniquei a Colónia aquilo em que nós estávamos de acordo e a verdadeira e
real situação do assunto, tal como estava então, dependendo sempre da decisão definitiva por parte das auto-
ridades competentes. Lá esperam com impaciência a resolução das coisas como o senhor, P.e Ludovico, e eu
tínhamos combinado.
Que Deus nos faça conhecer cada vez mais a sua vontade, que em tudo desejo cumprir com o sacrifício da
minha. Rogue por mim, padre, a S. Francisco, para que me dê um pouco do seu espírito. E pedindo-lhe a sua
bênção e rogando-lhe que saúde da minha parte o P.e Boaventura, novo apóstolo de África, o Fr. Boaventura,
P.e Francisco e todos os jovens negros, declaro-me com toda a veneração

Seu af.mo filho P.e Daniel

N.º 158 (151) - AO P.e LUDOVICO DE CASORIA


AFBR, Cart. «Africa-Moretti»

Roma, 20 de Agosto de 1865

Meu venerado e caro padre,

1175
A sua prezada carta de 13 do corrente não responde de forma categórica às duas minhas precedentes; e ao
não proporcionar-me esta satisfação, vejo-me obrigado a escrever-lhe de novo. Com efeito, o senhor diz-me
que se a minha congregação quer tomar a seu cargo uma missão na África, o chefe dela tem de tratar direc-
tamente com a Propaganda ou ao menos dar-me a mim poderes para isso.
1176
Parece que o meu bom P.e Ludovico duvida de que o meu instituto queira encarregar-se de uma missão
na África, depois de tanto sangue derramado e dezasseis anos de prova. Pois bem, vou repetir-lhe por escrito
o que lhe disse mais de uma vez de viva voz, a saber:
1.o O meu superior deu-me poderes para isto, isto é, entregou-me uma carta para o card. Barnabó, medi-
ante a qual lhe pedia a missão do Nilo Oriental, encarregando-me de tratar deste assunto com quem de direi-
to.
2.o Com base nessa carta, o card. Barnabó mandou-me tratar com o Rev.mo P.e Geral, que com uma carta
me acompanhou a Nápoles para termos consigo uma reunião, na qual chegámos a acordo sobre a divisão.
Tendo o senhor e eu vindo a Roma, na presença do geral e do Emm.o Barnabó congratulámo-nos os dois ao
ver o acordo perfeito. Isto sem falar nos sublimes rasgos de bondade do P.e Ludovico, mediante os quais me
mostrava esta união e acordo mais íntimos que nunca.
3.o A Propaganda, a quem compete erigir e sancionar as missões, por um gesto de consideração para com
a Ordem Seráfica, manifestou sabiamente o seu critério de que a missão da África Central devia ser dividida
entre o Insto. Mazza e a ordem franciscana, com pleno acordo entre ambos. Deste modo, eu, como represen-
tante do Instituto Mazza e o senhor, como representante da ordem seráfica, devíamos pôr-nos de acordo. E o
acordado era que ambos fôssemos ao Egipto e a Schellal e, feita a divisão, se submetesse o tratado ao rev.mo
P.e geral, o qual faria as negociações oportunas com a Propaganda, até que se promulgassem os dois decretos
apostólicos para a criação das duas missões.
1177
Depois de tudo isto, como é possível que o meu caro P.e Ludovico pretenda mandar-me de novo a mim
ou ao chefe do meu Insto. tratar com a Propaganda? Depois de o senhor partir para Nápoles, fui visitar o
rev.mo P.e geral, a fim de receber as ordens e o escrito do acordo, para depois ir para Verona. O geral res-
pondeu-me: «Visto que dei plenos poderes ao P.e Ludovico, dirija-se a ele». E com razão, porque a crítica
situação das suas grandes obras de Nápoles, ameaçadas por tempos lutuosos, poderia originar, quer no tocan-
te ao tempo da partida para África, quer quanto a outros pontos, alguma modificação sobre o que está estabe-
lecido.
1178
Escrevo-lhe pedindo que ponha por escrito o que foi combinado, para que seja possível comprovar, por
parte do meu instituto, o acordo alcançado e assim esperá-lo a si em Verona, e o senhor manda-me tratar de
novo com a Propaganda, quando as necessidades da missão africana são tão urgentes e reclamam um rápida
cooperação de todas as forças disponíveis.
1179
Como tenho que agir pelo seguro, duvidando até de mim mesmo, que talvez não tenha compreendido o
resultado das nossas negociações, fui ter com o card. Barnabó e dei-lhe a ler a sua carta. Sua Emm.a leu-a
toda e disse: «O nosso bom P.e Ludovico não entendeu o que se fez, porque na sua carta exprime-se em de-
sacordo com o determinado, especialmente ao remeter o vosso Insto. para a Propaganda. Por isso responda-
lhe imediatamente e diga-lhe:
1.o Que eu disse, na presença dele e na sua, que ambas as partes vão ao lugar em questão ou ao Egipto pa-
ra fazer essas divisões e depois que mas apresentem a mim, que eu farei as práticas necessárias com Viena e
Verona, antes de promulgar os decretos.
2.o Que falei com o P.e Geral e nisto estamos de total acordo.
3.o Que vi que o P.e Geral, o P.e Ludovico e o senhor estão perfeitamente de acordo.
4.o Que é preciso que ambas as partes combinem e vão ao território que se há-de dividir e, consequente-
mente, o senhor e o P.e Ludovico preparem o projecto da divisão».
1180
Sua Eminência ordenou-me que lhe escrevesse assim. Omito recordar-lhe a história da missão desde o P.e
Ryllo até à cessação desta pela obra seráfica em 1861, que ambos sabemos de cor e que ouvimos mais de
uma vez da boca do cardeal.
Portanto, agora espero do senhor uma carta, onde me diga a forma de nos pormos de acordo para a parti-
da, porque Setembro aproxima-se. No dia 25 parto para Verona. É necessário, meu padre, que o senhor vá
até lá, porque a sua presença nos consolará a todos da dolorosa perda que sofremos com a morte do nosso
fundador; é também preciso que vá a Viena e que aqueles nobres senhores vejam as duas partes, especial-
mente o senhor, cuja presença rectificará bastantes ideias. Por isso, escreva-me; logo que receber a sua carta,
mandar-lhe-ei o itinerário de Roma a Verona, que prepararei esta semana, porque agora não disponho do
horário.
1181
O P.e geral falar-lhe-á de uma visita que deve fazer a uma alta personagem que perguntou por si e que lhe
quer falar, como me manifestou um confidente seu. Depois venha a Verona e juntos iremos a Viena e a Áfri-
ca.
Confio muito na assistência do P.e Ludovico para uma parte da execução do seu plano; Deus aceitará o
nosso completo sacrifício pelo bem dos negros. Cumprimentos ao nosso caro P.e Francisco, a quem, embora
nesta ocasião não tenha escrito tão bem, ou melhor, tanto ao meu gosto como das outras vezes, quero e sem-
pre quererei bem, porque ama verdadeiramente a África. Dê a sua paternal bênção a este

Seu afmo, e pobre filho


P.e Daniel Comboni

N.o 159 (152) - A PIO IX


«Jahresbericht ...» 13 (1865), pp. 6-7

Roma, 30 de Agosto de 1865

Petição da bênção apostólica para os membros da Sociedade de Colónia.

N.o 160 (153) - AO CÓN. JOÃO MITTERRUTZNER


ACR, A, c. 15/62

Verona, 18 de Setembro de 1865


Meu caro professor e amigo,

1182
Envio-lhe a encomenda de mons. Gassner e o sobrescrito incluído que me foi entregue em L’Anima. Fiz
expedir de Riva aquela caixinha de retratos, etc., dirigidos ao rev.mo João Stippler, capelão da corte em Bri-
xen, pelos quais tive problemas em Nunziatella e em Pontelago Scuro, até ao ponto de me não deixarem pas-
sar para a Áustria, de modo que, uma vez que me deixaram em liberdade, tive que regressar a Bolonha e, a
partir de Milão e Limone, entrar nos Estados austríacos. Mas que gosto sofrer perseguições por ser papista; é
um prazer que compensa todo o desgosto.
Tenho comigo a biografia de Mezzofanti.
1183
Encontrei no insto. um desânimo inaudito por causa da morte do bispo; até se tinha decidido abandonar a
ideia da missão, propósito em que ainda se persiste. Mas Comboni não é dessa opinião. Dentro de poucos
dias vou escrever e quero convencer por completo o superior P.e Tomba e os outros para que aceitem o pla-
no tal como o quis P.e Mazza, que me mandou a Roma para tomarmos a nosso cargo a missão do Nilo Orien-
tal. Deus dispôs oportunamente que não se desse uma definição formal a Roma antes de que as duas partes, o
nosso instituto e o P.e Ludovico, fossem ao local da missão. Por isso mantenho-me firme na primeira ideia e
em breve lhe comunicarei que me dirijo com o P.e Ludovico a Viena, por Bressanone, e que juntos iremos a
África e criaremos os projectados institutos.
1184
Tenho uma imensa confiança nos Sagrados Corações de J. e de M.; reze-lhes fervorosamente e prepare o
negro para ir comigo ao Cairo. Estou afogado em ocupações e por isso agora não escrevo mais.
1185
Grave na sua mente que Comboni não pode viver senão para a África e para o que se relaciona com a
África; encomendo-me à sua protecção e aos seus sentimentos de fraternidade e amizade. É preciso que as
obras de Deus encontrem dificuldades; assim levam a adorável marca da Providência e, além disso, que
grande prazer é sofrer pela África! Mas o Plano será levado a cabo, apesar de todos os obstáculos. Confio em
si; não estamos sós nesta grande obra: contamos com Deus, com a Virgem e com muitos poderosos mortais
que desejam a sua realização. Si Deus nobiscum, quis contra nos?
Os meus cumprimentos ao bispo, ao amo do negro e ao meu caro amigo Mitterrutzner.

Tuiss., P.e Daniel

N.o 161 (154) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/38

Verona, 20 de Outubro de 1865

Il.mo e rev.mo monsenhor,

1186
Recebi em Veneza a sua preciosa carta de recomendação para Camerini. Como vinha aberta e era muito
bela, atrevi-me a copiá-la para mim, porque, em todo o caso, é sempre um monumento da estima e do afecto
que o bispo de Verona tem para com o instituto e o seu fundador. Além disso, estou-lhe tão agradecido como
se o comendador Camerini me fosse entregar uma grande soma de dinheiro, porque a carta de recomendação
não pode ser mais expressiva e mais solicitante. Não tenho, monsenhor, palavras bastantes para lhe agradecer
e espero que nunca se venha a arrepender de me prestar a sua valiosíssima protecção, que me é necessária.
1187
D. Bosco, o santo de Turim, telegrafou-me de Lonigo para Veneza. Estive lá um dia com ele em casa da
condessa Soranzo. Tinha-o convencido a que se detivesse meio dia em Verona, a fim de lho apresentar, certo
de lhe proporcionar com isso uma grande alegria. Mantém gratuitamente 1200 pessoas, cada ano dá à Igreja
mais de sessenta sacerdotes e muitos missionários. Goza de especial relação com Deus, faz milagres e muitas
vezes tem o conhecimento dos mais recônditos pensamentos de outras pessoas. Mas que quer? Vendo que se
ia demorar um dia e pressionado por um telegrama que lhe chegou dirigido a mim, partiu ontem para Turim.
1188
Dentro de dois dias, vem a Verona o P.e Ludovico de Casoria, o novo São Vicente de Paulo de Nápoles,
fundador desse famoso insto. que terá chegado a acolher mais de 24 000 mendigos, etc., etc. Roma designou-
nos a ele e a mim para estabelecermos os limites da divisão do grande vicariato da África Central. Vem para
se encontrar comigo e juntos seguiremos para Viena e depois para a África.
1189
Eu ponho-me ao seu serviço para Viena e farei o possível para induzir o santo homem a vir a Grezzan, a
fim de o obsequiar junto da nobre família.
Rogo-lhe me mande a sua santa bênção. Apresente os meus respeitos ao marquês Octávio e a todos os da
família. Permito-me enviar-lhe o Plano agora impresso em Veneza e verá que Deus começa a abençoar os
meus pobres esforços.
Beijando-lhe o santo anel, declaro-me com toda a veneração e gratidão

De V. Ex.a Rev.ma
Humilmo., obed.mo e resp. filho
P.e Comboni

N.o 162 (155) - AO CÓN. JOÃO C. MITTERRUTZNER


ACR, A, c. 15/63

Verona, 26 de Outubro de 1865

Meu caro amigo,

1190
Amanhã, com a primeira, o P.e Ludovico de Casoria, o padre fr. José Habasci, dois frades negros e eu
partiremos de Verona para estar em Bressanone antes do anoitecer. Dirigimo-nos a Viena e pouco depois do
dia 5 partiremos de Trieste para a África. Tudo isto é precipitado, mas o P.e Ludovico tem demasiada pressa.
Tenho que falar com o senhor de muitas coisas. Os franciscanos, como me foram contrários a mim, são-no
igualmente ao insto.; mas o Papa e Barnabó querem absolutamente confiar a missão ao Insto. Mazza e tais
são também as instruções que recebeu o P.e Ludovico.
De viva voz, muitas mais coisas. Mil lembranças a S. Alteza

Tuissimus in J. C.
P.e Comboni

N.o 163 (156) - AO CÓN. JOÃO C. MITTERRUTZNER


ACR, A, c. 15/64

Alexandria do Egipto, 20 de Novembro de 1865

Meu caríssimo amigo,

1191
O facto de estarmos ocupados na procura do necessário para fazer a nossa pequena expedição a Schellal
fez-nos demorar a escrever. Com toda a emoção do nosso coração, não temos palavras para lhe agradecer
sobretudo a si e a esse excelentíssimo bispo pelo generoso donativo de 20 francos, que nós recebemos bei-
jando-os, como fazia o nosso querido P.e Nicolau. Ao mesmo tempo, a Sociedade de Colónia enviava-me
200 táleres da Prússia, o arcebispo de Salzburgo, a quem apresentei o meu Plano, oferecia-me 50 florins e
alguma outra pequena esmola. Veja a admirável Providência de Deus: com isto já estamos no Cairo, porque
já lá se encontram nove pessoas e amanhã chego eu com todas as coisas e provisões.
1192
O comité não nos deu um centavo, assegurando-nos mil vezes que não têm em caixa nem um florim e que
o pouco que há é para Cartum. Nós agradecemos-lhe nobremente e, cheios de confiança em Deus, levaremos
a cabo todos os nossos assuntos. Os franciscanos, à excepção do P.e Mazzeck, nem quiseram ver o P.e Lu-
dovico. Na missa, o guardião proibiu que ajudassem os negros e, embora o P.e Ludovico e o P.e Boaventura
celebrassem missa bastantes vezes na igreja do convento, não lhe falaram nunca, nem lhe ofereceram sequer
um café. De modo que fomos os cinco para a pensão do Angheresc Corona.
1193
Eu, como amigo do cav. Noy, obtive bilhete gratuito para o comboio até Trieste. Aí fiz um contrato com o
Lloyd austríaco e, por 220 florins, nós cinco e Miguel Ladó viajámos em segunda classe até Alexandria.
Surpreendeu-nos uma terrível tempestade e no arquipélago grego um furacão que matou 48 grandes bois e
algumas pessoas. O P.e Ludovico sofreu dores de morte. Confessámo-nos e apertámo-nos bem juntos. A
borrasca durou 64 horas, vindo a parar numa ponta da ilha de Cândia: estamos vivos por milagre. Eu já me
resignara a morrer. Mas Deus quis que chegássemos salvos a Alexandria. Aí pedimos emprestados 100 napo-
leões de ouro, com os quais esperamos chegar a Assuão, abastecer a estação para seis meses e voltar ao Cairo
o P.e Ludovico e eu.
1194
Aqui encontramos ânimos sem esperança no que toca à África, mas com paciência, constância e resigna-
ção tudo será superado. Ainda que o P.e Ludovico tenha certas ideias opostas às minhas, vamos trabalhar
juntos para o bem da África. Ao santo homem falta-lhe o rasgo de P.e Mazza e a experiência da África, mas
é um santo, embora, como todos os santos, cabeçudo. Queria que tudo fosse franciscano e só acha bem o que
é dos frades. Por exemplo, o negro Ludwich, de Bressanone, parece-lhe um jovem sem espírito, porque fuma
e bebe cerveja fora das refeições. Mas são tudo coisas sem importância: o essencial é que é um santo, que
ama a África e que por ela fará grandes coisas. Não obedeço ao desejo que ele tem de que eu vista o hábito
cinzento de frade; mas tenho-lhe e sempre lhe terei afecto. Quando me encontrar tranquilo no barco através
do Alto Egipto, escreverei cartas de cristão; perdoe-me se agora escrevo mal, mas faço-o de todo o coração.
Apresente os meus mais profundos respeitos a S. A. o senhor bispo e exprima-lhe o meu sentido agrade-
cimento por sua bondade para comigo. No memento da missa rezo sempre por ele e pela sua diocese, a fim
de que Deus, como no passado, suscite gente de Bressanone para a África. Muitas lembranças a todos os
meus conhecidos de Brixen e mil afectuosas saudações a si. Cumprimentos também ao negro, que espero
seja para mim. Reze aos Sagrados Corações de J. e de M. pelo que é

Todo seu no S., P.e Daniel

N.o 164 (157) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Cairo, 27 de Novembro de 1865

Amat.mo sr. superior,

1195
Depois de deixar Trieste, sofremos uma tremenda tempestade até Corfu. No arquipélago grego, um terrí-
vel furacão empurrou-nos até à ilha de Gozzo, depois de andarmos 44 horas à deriva. Em suma, o P.e Ludo-
vico jurou nunca mais subir a um barco; demo-nos mutuamente a absolvição muitas vezes. Quarenta e oito
bois foram vítimas do furacão, que destroçou as portas de ferro e a popa. Estamos vivos por milagre. Graças
a Deus, ao fim de sete dias, desembarcámos em Alexandria.
1196
Arranjei alojamento para o Miguel junto das Irmãs de S. José, do hospital do Cairo, onde é tratado como
um filho. O guardião do Cairo cedeu-me por dois meses um lugar, ao qual a Terra Santa tem direito. Fiz com
que os médicos examinassem o rapaz e encontraram vazio o pulmão na sua parte superior. Parecendo-me
difícil a cura, decidi confiá-lo às Irmãs de S. José: eu sou grande amigo da madre geral.
1197
A irmã de Emília Caré, que era postulante nas clarissas, morreu vítima de cólera no passado Verão. Caré
está em Suez com toda a família. Sciaui está em Zagazig, onde montou um negócio de algodão.
1198
O P.e Ludovico e eu partiremos quinta-feira próxima para Schellal. Fiz um contrato de ida e volta com o
mesmo barco. Em Alexandria combinámos com o bispo ir primeiro a Schellal e depois organizar no Cairo a
colocação das nossas negras. Eu sou da opinião de que não se faça saber a ninguém, nem sequer a Roma, que
o instituto não pode tomar a seu cargo a missão. Deus ajudar-nos-á a pagar as dívidas rapidamente; depois,
seguiremos em frente.
1199
Apresente os meus respeitos ao bispo, Mons. Canossa, assim como a P.e César, a P.e João Beltrame, a
Poggiani e a todos. Do Nilo escreverei extensamente sobre muitas coisas. Entretanto peço ao Senhor que o
assista para continuar a obra sublime do nosso santo fundador. Deus deve abençoar a sua grande obra. Era
um grande velho. O P.e Ludovico é pouca coisa (embora um santo homem) em comparação com o superior.
Saudações também às duas protestantes, Kessler e De La Pierre. O P.e Jeremias está doente no Cairo: tor-
nou-se meio maluco. Mande-me a bênção

Seu af.mo filho


P.e Daniel

Peço-lhe envie saudações a Pompei e a toda a nobre família.

N.o 165 (158) - A MONS. GUILHERME MASSAIA


AMEP, Arch. Dipl. Aff. Div., c. 22

Cairo, 30 de Novembro de 1865

Il.mo e rev.mo monsenhor,

1200
Só duas palavras para lhe comunicar o que faço. Sou culpado diante de si por desde há muito lhe não es-
crever e o senhor chamar-me-á ingrato. Tem razão nisso; mas foi tal o trabalho e os passos dados para o ins-
tituto depois da morte do meu santo superior, que nem meu próprio pai, de quem sou filho único, sabe onde
me encontro: não imagina que estou no Egipto.
1201
A partir do Nilo, por onde navegarei 20 dias até Assuão, escrever-lhe-ei longamente. Baste-lhe, por agora,
saber que viajo com o P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles, e acompanho-o até Schellal com outras sete
pessoas. Ao mesmo tempo pomo-nos de acordo sobre as demarcações que há que estabelecer entre o Insto.
Mazza e o Insto. de La Palma, de Nápoles. Depois iremos a Roma, após o que regressarei por um mês ao
Cairo, a fim de preparar um insto. de negras sob a protecção francesa. Por isso escrevi a Mr. Faugère a pedir-
lhe uma consistente recomendação para o cônsul-geral francês no Egipto. Suplico de sua bondade que rogue
a Mr. Faugère me conceda essa recomendação.
Imprimi a sua carta que me deixou em Paris. Causou imensa impressão na Alemanha e no Egipto e mui-
tos bispos e vigários choraram: é a carta de um apóstolo. Dei ordem para que lhe fosse enviada.
1202
Fathalla Madrus saúda-o. Eu disse-lhe que mons. Massaia não se vai de Paris sem ter feito por ele o que
pensou. Quanto me serviu também a mim agora este bom católico! Procure conseguir-lhe o que diz.
Desculpe-me a pressa; mas digo-o a quem é veterano em expedições. Das plácidas margens do Nilo es-
crever-lhe-ei mais longamente e melhor. Imprimi também uma magnífica carta que me escreveu Nicolas.
Peço-lhe que o saúde da minha parte, bem como à sua família.
1203
Que devo dizer ao P.e Domingos, o provincial? Sou culpado, mas repararei: em Verona está a ser feito
para ele um relicário de todos os santos das ladainhas, etc. Apresente os meus respeitos ao ex.mo provincial e
a todos os padres. Muitas lembranças ao barão e à baronesa de Havelt, a Mr. e Mme. d’Abaddie, à duquesa
de Valência e a todos os conhecidos. Espero vê-lo em breve.
No Cairo e em Alexandria fala-se com entusiasmo de si. Ao Cairo veio um galla que dizia ser sacerdote
seu. Mostrei-lhe o retrato de 15 bispos e ao ver o seu gritou logo: «Este é Abuna Massaia!»
Basta. Lembre-se de que no mundo, depois do meu falecido superior, nunca encontrei para mim um pai
como mons. Massaia. Digo depois de P.e Mazza, para não falar dele. Confirme-me a sua protecção e afecto,
que tanto estimo e que me são preciosos e úteis.
Beijo as suas mãos.

Seu af.mo filho


P.e Daniel

N.o 166 (159) - O PLANO


BNVER (Misc. B. 1238.1)

Segunda edição impressa em Veneza (1865), com pequenas variantes em relação ao N.o 114.

N.o 167 (160) - APONTAMENTOS SOBRE MASSAIA


ACR, A, c. 18/15

N.o 168 (161) - NOTAS SOBRE A MISSÃO DOS GALLAS


BNP, Nouv. Acq., Fonde d’Abbadie, n.13851, ff. 1-25

N.o 169 (162) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


Em «Notre Dame des Victoires» de Paris
ANDP, Registo de Missas

N.o 170 (163) - AO CAV. CÉSAR NOY


AUTÓGRAFO SOBRE UMA FOTO COM MASSAIA
AFCR

N.o 171 (1146) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


Em St.a Catarina, em Alexandria, no Egipto
ASCA, Registo de Missas

N.o 172 (1195) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


Em «Notre Dames des Victoires» de Paris
ANDP. Registo de Missas

N.o 173 (1196) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


Direcção sobre um exemplar do «Plano»
ACL

N.o 174 (1197) - A P.e JOAQUIM TOMBA


Direcção sobre um exemplar do «Plano»
AMV
1866

N.o 175 (164) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/19

Schellal (Núbia Inferior)


7 de Janeiro de 1866

Meu caríssimo P.e Francisco,

1204
Quem sabe o que terá dito, ao ver que eu nunca lhe escrevo! Tenho andado tão assoberbado com ocupa-
ções, que só uma vez escrevi ao superior P.e Tomba desde que abandonei a Europa. Com isto creio que fico
justificado. Quero contar-lhe um pequeno abrégé da minha viagem até Schellal. Quando saí de Vicenza,
onde realmente passei um dia feliz, num ambiente de verdadeira amizade, dirigi-me a Verona. Aí, a 26 de
Outubro, apresentou-se-me o P.e Ludovico, acompanhado de José Habachy, já sacerdote regular, e dois ne-
gros terceiros, vestidos de frade, com a ordem expressa da Propaganda de me virem buscar, para irmos à
África, ocupar Schellal e combinar comigo a divisão do vicariato apostólico da África Central. Sem rodeios,
o P.e Ludovico dirigiu-me esta afirmação: «Eu não tenho nem um centavo: encarrega-te tu de conduzir o
grupo a Viena e ao Cairo, que do resto me ocuparei eu». «Obrigado pela lisonjeira incumbência» disse para
comigo; benzi-me e respondi: «Está bem»! Eu não tinha dinheiro, apenas algumas pequenas dívidas.
1205
Tregnaghi e alguns outros negaram-se a fazer-nos empréstimos. O marquês Octávio Canossa, sem eu lhe
dizer nada, bem como o velho Vertua, entregaram-me uma esmola; e recebida a bênção do superior e do
bispo (o qual aprovou a minha proposta de fundar no insto. um seminário para as missões africanas, no qual
se acolheriam os postulantes sacerdotes de todo o Império austríaco), parti no dia 26 para Brixen. Mitter-
rutzner deu-me dinheiro para ir até Viena e o bispo de Brixen e o arcebispo de Salzburgo entregaram-me 100
florins. Visitei S. A. a imperatriz Carolina, esposa do falecido Franc. I e no Dia de Todos os Santos estáva-
mos em Viena. O comité negou qualquer ajuda ao P.e Ludovico, pelo que me vi embaraçado; por isso em
Viena afadiguei-me por obter, e obtive, a viagem gratuita para todos até Trieste. Telegrafei para Colónia e
escrevi a Mitterrutzner; assim vieram-me ter às mãos rapidamente 60 napoleões de ouro. Em Trieste fiz um
contrato com o Lloyd austríaco; o presidente, o hebreu Morpurgo, deu-me uma generosa esmola: reduziu
para 220 os 660 florins necessários para a passagem de todos nós e a do negro Miguel. Assim, no dia 12,
zarpámos de Trieste, onde tinham vindo P.e Beltrame com o negro e a baronesa Hermann.
1206
Não posso explicar com palavras o horror de seis dias seguidos de tempestade entre Trieste e a ponta da
ilha de Cândia. No arquipélago grego levantou-se um terrível furacão, que matou 48 grandes bois, rompeu o
costado esquerdo, de ferro, do Aquila Imperiale, vapor enorme, e destroçou a popa. O P.e Ludovico perma-
neceu 28 horas com umas náuseas atrozes; fizemos o sacrifício da vida e uma oblação ao Senhor. Eu estive
mais de 30 horas separado do P.e Ludovico, porque sair do meu camarote equivalia a perder a vida. Mais de
cem vezes encomendei a minha alma e o P.e Ludovico e Habaschy deram-se mutuamente a absolvição. O
capitão confessou que aquilo já não tinha remédio e sugeriu-me que me mantivesse bem firme na ponte da
proa para alcançar a lancha e salvar-me com ele. Ainda agora me invadem continuamente tremuras e sinto
horror da tempestade, que me deixou bastante mal. Fiat. O P.e Ludovico vê como um dom extraordinário de
Deus o que lhe restar de vida e diz sempre que prefere a morte a suportar outra borrasca como aquela. Final-
mente, mais mortos que vivos, chegámos a Alexandria no Egipto, onde nos juntámos a outros quatro que
tinham partido de Nápoles um mês antes.
1207
No Cairo fretei um barco fluvial para ir a Assuão pelo preço de quatro mil piastras (32 nap. de ouro) e em
32 dias de infeliz navegação, subindo o Nilo, chegámos a Assuão. Ontem chegámos aqui a Schellal. Satura-
dos daquela embarcação, decidimos, com o P.e Ludovico, romper o contrato e regressar ao Cairo num vapor
do Governo turco. Para tal fim, desci até Esneh, de onde depende Assuão, e, apresentando-me ao paxá, pedi-
lhe que fizesse o necessário para conseguir para mim, para o P.e Ludovico e para o seu sobrinho P.e Francis-
co, passagem num vapor do Governo. E, coisa admirável, o paxá respondeu-me que, dentro de poucos dias,
três vapores chegariam a Assuão e ele ordenar-lhes-ia para que nos levassem aos três gratis. De facto, deu-
nos uma carta para o governador de Assuão e ordenou-lhe que reservasse três lugares bons para três padres
austríacos, para que pudéssemos voltar ao Cairo quando quiséssemos.
1208
No dia em que chegámos a Assuão, chegou também o paxá, que renovou a ordem ao governador, nos fez
uma visita e nos cumulou de gentilezas. Por isso, dentro de poucos dias voltarei ao Cairo, onde me deterei
um mês ou mais. Temos mais protecção dos turcos que do Governo italiano, dos austríacos e de Vítor Ema-
nuel. Que governo europeu presta tanta ajuda ao missionário católico? Peço-lhe tenha a bondade de apresen-
tar os meus respeitos ao sr. bispo de Vicenza, a mons. Dalla Vecchia, ao prefeito do ginásio e a todas essas
boas pessoas que eu conheci; saudações ao B. de P.e Tilino e aos bons clérigos do nosso insto. Gnoato, Ra-
vignani e Angelina. Do Cairo irei a Nápoles, a Roma e a Verona: escreva-me para o Cairo. Adeus. Creia na
eterna amizade de

Seu af.mo P.e Daniel Comboni

N.o 176 (165) - AO CÓN. JOSÉ ORTALDA


«Museo delle Missioni Cattoliche» IX (1866), pp. 145-147

Schellal (Núbia Inferior), 8 de Janeiro de 1866

1209
Apresenta-se-me uma ocasião propícia para enviar correio para Itália e eu aproveito-a para lhe escrever
duas linhas que, unidas às mais afectuosas saudações, lhe levem notícias das nossas missões.
Alegro-me por lhe poder dizer que se conseguiu fazer algo para levar a efeito o plano publicado no Mu-
seo do ano passado, ou seja, tentar regenerar a África com a própria África. Por vontade do Em.mo Cardeal-
Prefeito da Propaganda, acompanhei o P.e Ludovico de Casoria, o benemérito fundador do Instituto que é
admirado no convento de La Palma, em Nápoles, onde centenas de jovens negros e negras são educados na
civilização e na religião cristã.
1210
O objectivo da nossa viagem foi proceder a uma divisão do vicariato da África Central, o mais extenso do
mundo, igual a duas vezes pelo menos à nossa culta e civilizada Europa, e atribuir uma parte aos beneméritos
filhos da família franciscana, à qual pertence o mencionado P.e Ludovico, e a outra parte ao Instituto Mazza,
de Verona, do qual sou membro. A proposta que fiz com tal fim ajustava-se ao desejo expresso pelo já fale-
cido superior e fundador.
1211
Deixámos o Cairo no dia 2 de Dezembro passado e em trinta e dois dias de navegação chegámos às pri-
meiras cataratas do Nilo; depois, após atravessarmos um pequeno deserto, alcançámos Schellal, de onde lhe
escrevo. O P.e Ludovico, que só ficou comigo um dia e meio, voltou a partir a bordo de um vapor turco e
regressou ao Cairo, de onde esperava chegar a Nápoles dentro de um mês.
A pressa não me permite entrar em pormenores, mas não tardarei a mandar-lhe um informativo da nossa
viagem. Esta foi muito interessante, pois deu-nos oportunidade para muitas observações e ocasião para tratar
de muitas coisas com o dito padre, que parece só pensar e viver para a sua querida família africana.
1212
Dentro de pouco, espero regressar também eu ao Cairo. E uma vez abertos alguns institutos de acordo
com o plano apresentado à Propaganda, voltarei a Itália, se Deus quiser, e darei uma saltada a Roma para dar
conta de tudo o que foi realizado. Entretanto, compraz-me poder comunicar-lhe que em Schellal se abriu
uma casa e um instituto para educar cristãmente estes negros, os quais, por sua vez, levarão o mesmo benefí-
cio a seus irmãos que vivem no interior.
1213
O director do instituto é um padre franciscano da província de Nápoles; depois há um sacerdote de Car-
tum, que esteve seis anos a formar-se em Verona e cinco em Nápoles, razão pela qual veste o hábito francis-
cano; a eles juntam-se dois irmãos leigos e dois jovens artesãos. Espero abrir outros dois institutos ao longo
do itinerário que fizemos na nossa viagem, segundo o modelo deste.
Em Cartum circulam rumores da fundação de uma missão protestante prussiana, mas nunca poderá com-
petir com a católica. O paxá do Egipto criou três províncias no Nilo Branco. Esta organização provincial
tornar-se-á vantajosa para a difusão do Evangelho, porque se multiplicarão as relações.
1214
A todos os missionários que encontrei no Egipto e ao longo do Nilo dei a ler a memória que o senhor
apresentou ao Senado em favor deles e todos se uniram a mim para dar graças ao Senhor, que se dignava
cumprir os nossos desejos e dissipava a tormenta que ameaçava eliminar a isenção do serviço militar ao jo-
vem clero, o que representaria um golpe mortal para as missões. Em toda a parte se reza e se faz com que os
bons neófitos rezem para que se não dispersem as famílias religiosas que fornecem um tão numeroso contin-
gente de obreiros às missões.
1215
Quereria ter à minha disposição cem línguas e cem corações para falar em favor da pobre África, que é a
parte do mundo menos conhecida e mais abandonada e, em consequência disso, a mais difícil de evangelizar.
Mas os Sagdos. Corações de J. e de M. bastarão para todos e espero milagres por sua mediação. São necessá-
rios muitos sacrifícios, mas qualquer sacrifício vale a pena pela África cristianizada. As muitas vidas dos
meus companheiros, imoladas nas explorações que, faz agora dois lustros, fizemos até aos dois graus de lat.
N., foram aceites por Deus e serão, espero, semente fecunda de novos apóstolos e de muitos cristãos. Saúde
de minha parte d. Bosco e o cón. Anglesio e diga-lhes que se apressem na preparação de jovens corajosos,
habituados a toda a espécie de agruras, mortificações e sacrifícios: tal deve ser o apóstolo da África, o qual
deve pôr-se inteiramente nas mãos da Providência.
Na esperança de o ver no meu regresso a Itália, encomendo-me à caridade das suas orações, reiterando-
me nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria

Seu af.mo P.e Daniel Comboni


Missionário ap. da África Central

N.o 177 (166) - AO P.e VENÂNCIO O. F. M.


«Jahresbericht...» 14 (1866). pp. 7-76

Vinte e seis de Janeiro de 1866


Veja-se o escrito n.o 188, pp. (389-415).

N.o 178 (167) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v.7, ff. 827-828

Cairo, 6 de Fevereiro de 1866


Em.mo Príncipe,

1216
Saberá V. Em.a que o dia da Epifania chegámos a Schellal e que o P.e Ludovico tomou posse daquela es-
tação. No meu regresso visitei pela quarta vez as estações católicas do Alto Egipto, no intuito de examinar se
esta prefeitura se presta para formar nela eficazmente elementos para a conversão dos negros. Com este fim e
também para ajudar esta missão egípcia, o P.e Venâncio acolheu de boa vontade um pequeno e viável projec-
to, ao qual já os missionários mais velhos do Alto Egipto me tinham dado a sua aprovação.
1217
No caso de ser do agrado de V. Em.a, nós resolver-nos-íamos a começar com um pequeno instituto femi-
nino em Negadeh, a estação mais próxima da Núbia, da qual não dista mais que umas 50 léguas e que tem
uma população de 4000 habitantes, dos quais 170 são católicos e 3000 coptas heréticos. O chefe destes, que é
muito influente e me confessou abertamente a verdade das duas naturezas de Cristo, não está muito longe de
dobrar a cerviz sob o suave jugo da nossa fé. Onde se introduzisse a acção poderosa da mulher católica, des-
conhecida nessas paragens, veríamos em poucos anos grandes progressos. A casa para o dito instituto pode-
ria estar disponível após uns pequenos arranjos. Começar-se-ia em seguida com três irmãs, a cada uma das
quais eu faria uma atribuição de 500 francos, retirando-os do meu legado da Sociedade de Colónia; e isto até
se conseguir obter para as irmãs essa mesma importância da Propagação da Fé de Lião, quando a obra já
estivesse em marcha. Às irmãs de Negadeh eu juntaria duas ou três jovens negras de Verona muito bem ins-
truídas no árabe e nos lavores femininos.
1218
Quanto ao instituto de irmãs, esperamos a decisão de V. Em.a Rev.ma. Eu tinha escrito à superiora geral
das Irmãs de S. José. Porém, como mons. Pascoal me diz que presentemente madre Emilie não dispõe de
pessoal, se isto é verdade, eu atrevo-me a propor a V. Em.a as Irmãs do Bom Pastor. Este instituto tem aqui
no Cairo vinte e duas irmãs e a superiora está disposta a colaborar na obra com a aquiescência de V. Em. a; e
o mons. delegado protege com toda a razão estas pias e laboriosas irmãs. Por isso, quando V. Em.a se dignar
pronunciar-se sobre o assunto referido, tudo se organizará rapidamente.
1219
Com a sua perspicácia, V. Em.a compreende bem as imensas vantagens que trará para a prefeitura do Al-
to Egipto a formação de pequenos institutos, masculinos e femininos, nas suas diferentes estações, os quais
formarão também bons elementos de raça negra de ambos os sexos para as missões que depois se criarão na
África Central. Ainda que a erecção destas missões venha a ter lugar mais tarde, convém ir preparando já os
braços necessários, sem os quais é estéril a obra do missionário.
1220
Com o objectivo de prover de negras estes institutos, tornar-se-ia utilíssimo o concurso da obra do P.e
Olivieri. Cada negra custa 100 escudos e, embora o negro morra também no Egipto, ele sobrevive o dobro ou
mais que na Europa. Cada jovem negra levada para a Europa custa 200 escudos. A obra de Olivieri, ainda
que santa, é incompleta e não goza nada da simpatia dos bispos nem dos fiéis; por isso, antes ou depois, deve
cair.
1221
Se a referida obra, mantendo intacto o seu programa do resgate de negros para salvar as suas almas,
acolhendo-os nos institutos religiosos, fornecesse aos institutos religiosos estabelecidos nas costas de África
os negros de ambos os sexos, ela teria um grande desenvolvimento, seria benéfica para a regeneração da
Nigrícia e a própria obra se perpetuaria. Esta cooperação da obra do P. e Olivieri, no modo indicado, só é
susceptível de se alcançar facilmente através de V. Em.a, persuadindo pouco a pouco o em.mo cardeal-
vigário, que detém muito poder, a dar protecção à obra do resgate. Aqui há 21 negras com as irmãs italianas
e já comecei a tratar de obter algumas.
1222
Dou a conhecer a V. Em.a os seguintes factos: começou a ser construída uma via férrea do Cairo a As-
suão, que dentro de oito ou dez anos será prolongada até Cartum; outra linha férrea entre Suakin e Berber
unirá o mar Vermelho com o Nilo. Os turcos invadiram o Nilo Branco, onde estão organizando três vastas
províncias. Em Siut, capital do Alto Egipto, estabeleceu-se uma grande escola anglicana e em Cartum flores-
ce uma escola luterano-prussiana. Pelo que pude saber, nas sociedades heterodoxas fervilha a ideia de uma
propaganda em toda a região do Nilo.
1223
Mons. Vuicic considera prudente manter a neutralidade no tocante às operações no Alto Egipto; por isso,
está-se à espera do que V. Em.a dispuser.
Pedindo-lhe dê lembranças ao monsenhor secretário, beijo-lhe a sagrada púrpura.

Seu humilmo. e devot.mo P.e Daniel Comboni

N.o 179 (168) - AO CONDE GUIDO DE CARPEGNA


AFC, Pesaro

Cairo, 17 de Fevereiro de 1866


Meu amável e caríssimo Guido,

1224
Não podes imaginar quão pesaroso estou por não receber notícias nem de ti nem da família. Já há tempos
que escrevi à mamã e ao papá, mas nenhum deles deu sinais de vida. É tido por certo o provérbio longe da
vista, longe do coração. Eu nunca o acreditarei, nem a teu respeito nem da família. Compreendo que a minha
condição de vagabundo impossibilita a indicação de um endereço preciso; mas tu, que viajaste pelo Oriente,
sabes seguir perfeitamente a minha pista. Desde que parti de Roma não voltei a receber notícias vossas, nem
ninguém mas deu.
1225
Aqui no Cairo estou com frequência naquela sala onde tive o grande prazer de te ver pela primeira vez e
onde se acendeu a chama daquele afecto que devia unir-nos para sempre pela amizade. A casa dos Rossetti
está agora ocupada pelo cônsul-geral austríaco, excelente pessoa; e naquela mesma sala fumo com frequên-
cia o saibbuki e faço em segredo um brinde por ti: essa sala, caro Guido, tornou-se-me grata por tua causa.
No Cairo, já não se fala da família Rossetti, que foi um dos elementos que impulsionaram o engrandecimento
de Mahhamed Aly; graças a ela, a sua dinastia reina agora gloriosa no trono do Egipto. Desapareceu da terra
como uma nuvem diante do Sol.
1226
Estive na Núbia Inferior e atravessei o Egipto pela quarta vez em toda a sua longitude. Oh, que deliciosas
são as margens do caudaloso Nilo, que fecunda o solo egípcio e faz desta clássica terra uma das mais belas
do mundo! Voltei a contemplar as gigantescas moles de Karnak e de Luxor, os famosos templos de Dendera,
de Edfu e de File; e pisei a sagrada terra, santificada por tantos anacoretas e agora profanada pelos sacrílegos
filhos do árabe profeta que ocupam as vetustas ruínas. Finalmente, num vapor do Paxá, voltei ao Cairo, onde
criei um instituto baseado no meu Plano para a Regeneração da África.
1227
Sei que em Roma se encontram suas altezas o príncipe e a princesa Giovanelli. Peço-te que lhes faças
uma visita por mim e de saudar e apresentar os meus respeitos ao príncipe José, que recebe o amor dos véne-
tos e dos institutos de beneficência e é a mais brilhante honra da nobreza véneta; diz-lhe que o lembro com
frequência e o trago no coração. Diz também à princesa muitas coisas em meu nome e faz-te intérprete do
respeito e veneração que lhe dedico.
Que dirás à mamã, ao papá e à pequena Maria? Tu podes imaginá-lo: a esperança de os ver no próximo
mês consola-me; espero ver a Maria já crescidinha e cheia de juízo. Dá-me notícias de Pippo, a quem darás
uma carinhosa saudação. Escreve-me para o Cairo, para o Convento da Terra Santa, com carta certificada
para o cônsul austríaco do Cairo.
Por favor, saúda Manucci e toda a sua família. E tu que fazes? Foste preparando as coisas para o teu futu-
ro?... Algo de positivo deve haver já a estas horas. Lembra-te dos quatro B... Saúda também o dr. da família
e irmão e a todos os amigos da casa. Recorda-te que te estima muito e te tem sempre presente

Teu fiel e af.mo amigo


P.e Daniel

N.o 180 (169) - AO CÓN. JOÃO MITTERRUTZNER


ACR, A, c. 15/65

Cairo, 20 de Fevereiro de 1866

Meu caro e venerado amigo,

1228
Tenho imensas coisas para lhe escrever e não sei por onde começar. Já há mais de três semanas que voltei
ao Cairo, mas uma secreta repugnância se apoderou de mim, de maneira que não consegui pegar na pena. E a
causa da minha aversão em lhe escrever é o juízo que formei do P.e Ludovico e da sua instituição, que muito
me custa expor. Mas finalmente decidi-me, porque o senhor é um verdadeiro amigo, um protector, o mais
esforçado colaborador no apostolado dos negros e conhece o fundo do meu coração: eu desejaria ver cente-
nas de instituições a repartirem entre si a África Central, para trazê-la toda para o catolicismo. Se lhe dou o
meu juízo sobre o P.e Ludovico é porque estou convencido do que digo, embora me sentisse muito feliz em
retractar-me e saber que me enganei. Digo-o a si, que não permite que lhe dêem gato por lebre e que antes ou
depois chegaria por si mesmo a saber a verdade. Deus queira que me engane! Mas Deus que é a verdade sabe
que eu não quero enganar ninguém; por isso vou contar-lhe o que sinto no fundo da minha alma.
1229
O P.e Ludovico é homem de grande caridade, verdadeiro filho de S. Francisco no cumprimento das regras
da sua ordem e modelo de observância religiosa. Mas a sua cabeça não tem a mesma relação com o seu cora-
ção e não é claro e recto na sua maneira de agir. O P.e Samuel, de Negadeh, velho missionário do Alto Egip-
to, reformado franciscano, que nos acompanhou a Schellal, definiu o P.e Ludovico como uma mistura de
ignorância, de caridade, de piedade, de hipocrisia e falsidade e de virtudes. De viva voz, dar-lhe-ei a conhe-
cer um monte de provas e factos; agora limito-me a dizer-lhe apenas isto. O director de Schellal, o P.e Boa-
ventura de Casanova e o próprio José Habaschy e todos os missionários franciscanos napolitanos, que vi no
Egipto, dizem que o P.e Ludovico é um santo a seu modo. O director de Schellal e o nosso Habaschy expli-
caram-me bem a substância real da sua instituição; eu confrontei-a com as explicações do P.e Ludovico e
com uma carta que ele escreveu aos frades Bigi, que eu traduzi para latim, porque ordenou que se lesse uma
vez por semana em plena comunidade; e tudo isto, unido ao que vi no P.e Ludovico, leva-me a emitir o se-
guinte juízo: «A instituição do P.e Ludovico não poderá fazer nada em África, sem ser dirigida e governada
pela primeira ordem franciscana». Probatur.
1230
Os irmãos Bigi são um amontoado de seculares de todas as classes e profissões, que se mostram inclina-
dos à piedade e que o P.e Ludovico vestiu de franciscanos para dirigirem e ensinarem ofícios à juventude.
Desde que dêem provas de piedade, rezem terços e façam genuflexões, ele entrega-lhes o hábito e põe-nos a
trabalhar nas obras; e com a mesma facilidade lhes retira o hábito e os põe na rua. Ele às vezes recebe seis
que veste de irmãos leigos e partem sete que regressam à condição de seculares. O P. e provincial de Nápoles
e todos os frades são contrários ao P.e Ludovico, que faz tal embrulhada tanto na política como na comuni-
dade, que compromete perante o público a ordem franciscana. A instituição do P. e Ludovico pode ter sacer-
dotes terciários, mas até agora não formou nem um; por isso precisa de franciscanos da primeira ordem, sem
os quais o Instituto não pode funcionar. Mas foram-se uns atrás dos outros: nenhum se pôde acomodar às
ideias do P.e Ludovico, o qual pretende que só a sua instituição dirija as obras com o nome franciscano.
1231
O facto é que agora tem 42 artesãos na Europa e na África e, sem depender da primeira ordem, quer go-
vernar as obras de Nápoles e de África. Não digo nada da formação, que não se conhece em La Palma. O P. e
Boaventura, de Cartum, que é a pessoa mais instruída que a instituição do P.e Ludovico deu, confessou-me
saber pouco mais do que aquilo que aprendeu em Verona; não sabe nada nem de dogmática nem de moral. O
bom homem, depois de umas pequenas provas, mete os recém-chegados a trabalhar nas obras, nas missões e
põe-nos em risco de perderem a alma. Venhamos agora à África. Em tempos passados, ele enviou para lá 12
dos seus: dois morreram, um – o senhor sabe – anda a acender o gás nas ruas públicas de Nápoles e todos os
demais desertaram das suas bandeiras. Dois destes que estão aqui no Cairo asseguraram aos frades que nunca
mais voltarão para a instituição do P.e Ludovico. Passemos agora à nossa expedição. Em Schellal deixámos
o pessoal seguinte:

P.e Boaventura de Casanova, director


P.e Boaventura de Cartum
Frei Pedro, carpinteiro, procurador
Frei Inocêncio, enfermeiro
Frei João, negro, e
Frei Ludovico, artesãos, a quem em Trieste vestimos de seculares.
1232
O director, que é da primeira ordem e não quer saber nada da instituição do P.e Ludovico, é um bom fra-
de, mas não o convencem nem a cabeça nem as obras do P.e Ludovico e ele julga-o bem.
1233
Fr. Pedro foi soldado durante sete anos e lutou muito contra Garibaldi em 1860; depois trabalhou como
carpinteiro: era o director das oficinas de Capodimonte no instituto do P.e Ludovico, um dos melhores ele-
mentos de La Palma.
Fr. Inocêncio é verdadeiramente bom, o melhor de todos os de Schellal. Sabe assistir bem os doentes e ar-
ranja-se a sangrar e dar medicamentos.
Os outros viu-os o senhor em Brixen.
1234
Agora, em Schellal, o P.e Ludovico ordenou que se siga a mesma vida que em La Palma: coro, silêncio,
solidão, etc. (não são mais que dois os padres) e proibiu ao director que mantenha comunicação com a Pro-
paganda, com o geral ou com provincial, sob pena de o abandonar e de não lhe mandar provisões. Ora bem,
escute!... No dia 15 do corrente, com enorme surpresa, vejo que se me apresenta aqui no Cairo Frei Pedro, o
procurador de Schellal. Fico espantado. Jurou não voltar a pôr os pés em Schellal: após uma vocação de
apenas 28 dias, foi-se. Em suma, entre os dois padres reina uma tremenda discórdia. O director não sabe uma
única palavra de árabe e José Habaschy, ainda que subordinado, é quem tem de tratar os assuntos. Ora bem,
pelo que diz aos frades Frei Pedro, parece que o nosso Habasky se envaideceu pelo bom acolhimento e ami-
zade que lhe dispensam os de Schellal e procura criar um partido para empurrar o director e converter-se ele
em superior de Schellal. Nunca foi ao coro, arrenda terrenos sem falar com o superior e escreveu-me a pedir
dinheiro. Abre as cartas ao superior e até possui dinheiro, que pediu emprestado, contra o disposto pelo P. e
Ludovico, que lhe proibiu de tocar em dinheiro. Em suma, aquilo em Schellal é uma Babilónia.
1235
Eu, pelo que vi, dava um espaço de seis meses até os frades entrarem em confronto; o P.e Samuel só dois
meses, mas, na realidade, a paz entre eles não durou nem 15 dias. Em seguida escrevi ao director aconse-
lhando-o a manter-se firme no seu lugar, segundo as ordens do P.e Ludovico, e mandei uma carta terrível a
Boaventura, de Cartum, na qual lhe falava como verdadeiro pai. Espero que dê resultado. Depois, ao enviar
para Nápoles a carta do director, escrevi outra, como bom amigo, ao P.e Ludovico, repetindo-lhe os conse-
lhos que lhe dei no Nilo para não se precipitar demasiado em ordenar sacerdotes negros e não empenhar a
sua instituição em grandes empresas, sem provar amplamente a vocação do pessoal. Dentro de pouco – diz
Fr. Pedro – escaparão também os dois negros. É inútil: sem a primeira ordem, a instituição do P.e Ludovico
não faz nada. O P.e provincial de Nápoles, conhecendo a fundo as coisas, disse ao P.e Ludovico: «Se quer
missionários para dirigir a estação de Schellal, eu dar-lhe-ei os elementos melhores e mais capazes da pro-
víncia».
1236
O P.e Ludovico recusou. E sabe porquê? Ele mesmo o disse: porque quer apresentar um ou dois factos
positivos à S. Congr. dos Bispos e Regulares, para que ela aprove o seu instituto e assim o rei de Nápoles
seja protector do mesmo. Porém, nem a Congr., nem o Definitório dos franciscanos, nem o provincial de
Nápoles querem saber nada. Ora bem, eu digo com muitos: «Este homem não procura o bem da África, mas
a glória do seu instituto». Em África poderíamos ter muitos e óptimos missionários franciscanos e o P. e Lu-
dovico impede-o. A sua instituição, que não tem ainda um único sacerdote, está atrasada; e será um milagre
se conseguir manter-se de pé Schellal, porque não dispõe de pessoal: só tem artesãos sem vocação. Mas dei-
xemos isto, pois há ainda outra coisa que o espantará.
1237
O inimigo principal do meu Plano é o P.e Ludovico. E, o que conta mais, é acérrimo adversário de que a
Propaganda conceda um pedaço da África ao instituto. Estou plenamente informado e J. Habaschy é teste-
munha auricular de que o P.e Ludovico em Roma fez todo o possível perante a Propaganda para impedir a
divisão e até solicitou com insistência ao card. Barnabó que impedisse que eu continuasse em África; mas o
cardeal respondeu: «Não; quero que Comboni vá contigo, ordeno-o, e quero a divisão». Em Nápoles tinha-
me dito: «A Palma e eu queremos ser teus servidores e cooperadores do teu Plano». Foi a Verona e manifes-
tou a vontade da Propaganda a P.e Tomba, dizendo-lhe querer ajudar o instituto, etc. O senhor pode sabê-lo
em pormenor de Verona. Foi a Brixen e lembrar-se-á de como ele falou.
1238
Deslocámo-nos a Viena e, enquanto eu estive ausente por dois dias em Praga a visitar S. E. o arcebispo
de Schwartzenber, ele apresentou ao P.e Matzek o vosso belíssimo projecto sobre a divisão e pediu-lhe que
exercesse a sua influência sobre o comité para se opor à mesma, dizendo: «Se nós podemos fazer o bem no
Cairo e Cartum, porque ceder aos outros as tribos do Nilo Branco? O melhor, por agora, é negar ao Insto.
Mazza uma parte da África». É o que de facto decidiu. Isto referiu-mo ad litteram José de Cartum, testemu-
nha auricular. Eu não acreditava, mas factos posteriores convenceram-me de que é assim.
1239
Em Trieste, chegados ao barco e após termos partido, o P.e Ludovico falou-me assim: «Meu filho, eu
penso ser prudente que, no Egipto, nem com o bispo, nem com os frades, nem com ninguém se fale de divi-
são, porque todos se ririam de nós. Vamos a Schellal e no nosso regresso falaremos com o bispo». Ao que eu
acrescentei: «Como justificar perante os franciscanos a minha presença consigo? Têm porventura os francis-
canos necessidade de padres para as suas missões?» Então ele respondeu-me: «Direi que me acompanhaste
como amigo e conhecedor das obras de La Palma e também para me prestares ajuda, uma vez que tu conhe-
ces bem a África». Anuí ao seu desejo, na condição de no nosso regresso de Schellal nos determos algum
tempo a falar com o bispo, segundo a ordem da Propaganda.
1240
Omito a maneira de lançar algumas frasezitas de descrédito contra o meu Plano, dizendo: «O Plano de
Comboni é bom em teoria; na prática, impossível»; e disse isto às pessoas mais importantes. Calo o facto de
ele estar cheio de recomendações para cônsules, personalidades, etc. do Egipto, nunca teve o gesto de amiza-
de de me apresentar a algum deles, apesar de lho pedir a respeito de um; enquanto eu, ao invés, o apresentei
a todos os benfeitores da missão que conhecia, desde Verona até Viena, passando por Trieste. Calo outros
inumeráveis pormenores indignos que teve comigo e que me dá vergonha citar; talvez de viva voz lhe conte
algum, ainda que seja só para nos rirmos. Calo a sua maneira de falar dos anteriores missionários da África
Central; o seu maior elogio de Knoblecher foi este: «Oh, era um homem endinheirado... As missões devem
ser feitas com humildade e não com dinheiro», etc. Passemos a Schellal.
1241
No dia da Epifania abrimos Schellal. Tendo chegado ali o príncipe António de Hohenzollern Sigmatin-
gen, ele, na tarde do dia 8, obteve a passagem gratuita no vapor até ao Cairo. Ele tinha que partir pela manhã
do dia 9 e pela tarde chamei o P.e Samuel, de Negadeh, que nos acompanhou a Schellal e, com P.e Francis-
co, o sobrinho do P.e Ludovico, entrámos no quarto deste e falei-lhe assim: «O motivo pelo qual a Propa-
ganda quis que eu viesse consigo a Schellal e ao Egipto era pôr-nos de acordo sobre como dividir o vicariato
apostólico da África Central e tratar com o mons. delegado apostólico do Egipto. O senhor parte amanhã e,
quando chegar ao Cairo, regressará com o primeiro vapor, de maneira que já não poderemos tratar do impor-
tantíssimo assunto da divisão. «Que assunto? – perguntou ele. Eu não sei de nada»! Repliquei-lhe: «Então,
que nos disse aos dois o card. Barnabó? Que lhe disse a si quando passou por Roma para vir a Verona? Não
mandou que fôssemos os dois juntos a África, etc.?» «Eu não sei de nada» – disse ele. «Que queres que tu e
eu, que somos pó, que temos os nossos superiores, decidamos sobre um assunto tão importante? Que o façam
os nossos superiores; eu não sei de nada. Onde estão os papéis, etc. nos quais se diga que estamos autoriza-
dos a fazer esta divisão de que falas? Eu não sei nada»... Numa palavra, meu amigo, negou tudo. Cobriu-me
de uma verborreia hipócrita, elogiando os missionários de P.e Mazza, mas que não há dinheiro, etc.
1242
Quando depois lhe mostrei a sua carta, na qual propôs sabiamente a divisão em merid. e set., etc., então
disse: «Está bem, se a Propaganda mo pede, eu apresentarei este projecto». Prometeu que me esperaria no
Cairo para falar com o bispo, a fim de evitar que a Propaganda, por nós não termos falado com o delegado
apostólico, nos obrigasse novamente a vir ao Cairo ex professo. Porém, o facto é que, quando chegou ao
Cairo, não fez a menor alusão dele ao bispo e partiu para Nápoles. Disse que na África Central se requer a
humildade e a pobreza de S. Francisco. As suas teorias são bonitas e boas, mas os factos são diferentes: é o
eclesiástico mais egoísta que vi na minha vida e o que me dará maiores problemas quando se tratar de intro-
duzir em África outras instituições.
Ele, que ad litteram não tem nenhum pessoal (salvo algum artesão que já entrou preparado no seu institu-
to), pretende nada menos que ninguém vá para a África. E paciência, se só o impedisse ao Inst. Mazza; mas o
facto é que fez um acordo com o geral para que não entre nela nenhum franciscano que não seja de La Pal-
ma. Isto, meu amigo, é só a décima parte do muito que vi e que lhe contarei do P. e Ludovico. Só lhe quero
falar do falaz programa que apareceu nos jornais católicos Un Nuovo Indirizzo, etc. Pois bem, caro amigo, ou
eu fui um joguete do card. Barnabó, do Papa e do geral, pois os três prometeram-me uma missão para o ins-
to. e com esse objectivo fui enviado a África, ou o P.e Ludovico é um impostor. Pense neste novo rumo dado
às missões africanas e julgue.
1243
Apesar de todos estes desgostos, eu passei com o P.e Ludovico, de 26 de Outubro a 8 de Janeiro, dias
muito pacíficos, sem a menor sombra de disputa, como passaria um amoroso filho com seu pai. Apesar do
procedimento do P.e Ludovico para comigo e para com todos os que trabalham pela África, eu sempre lhe
farei bem no que puder; apenas devido ao bem de África, quero ter uma boa conversa com o P. e geral dos
franciscanos. A si digo-o como sinto, para que não seja enganado como eu fui todas as vezes que estive em
Nápoles. Mas agora que tratei com o homem e vi o que tem de positivo, e ouvi o que dele me contaram os
bons frades napolitanos, só agora, com toda a dor do meu coração, abri os olhos. Eu ficaria feliz se me enga-
nasse, pois a África teria uma boa ajuda no P.e Ludovico, mas temo que a África vai obter pouco dele: co-
nheci-o a fundo e basta. Passemos a Cartum.
1244
Falei com nove ou dez comerciantes de Cartum e todos em coro criticam a conduta moral do P. e Fabião.
Tem vinte e duas escravas fugidas dos muçulmanos. Alguns amos, por meio do cônsul austríaco, reclamam-
lhe as suas escravas; mas ele, nada! Não se incomoda com o exterior, embebeda-se de aguardente de manhã
à noite, etc. e vive com as suas escravas à muçulmana. Este é o falatório dos hipócritas dos comerciantes a
respeito do P.e Fabião. Eu não creio em nada; considero o P.e Fabião inocente. Mas o certo é que o cônsul
Hansal enviou um tremendo relatório ao cônsul-geral do Egipto, o qual me mostrou tudo, incluída a débil
defesa que o padre fez de si mesmo.
Agora o cônsul-geral vai enviar ao Ministério de Viena uma comunicação contra o missionário. Diz-me o
cônsul que na missão, ou seja, nas casitas do jardim onde estão as escravas, vieram ao mundo três crianças
mulatas e Cartum inteira acredita... O P.e Fabião escreve ao cônsul-geral a dizer que se precisam na missão
algumas escravas para fazer o pão. O facto é que é um padre sozinho, exposto a estas calúnias, sem poder
confessar-se desde há muito tempo, etc. Escrevo-lhe estas coisas a si, como padre das missões que é, para
que, se lhe for possível verificá-las, remediá-las e ajudar o P.e Fabião, o faça. Supliquei ao cônsul que não
escreva a Viena, mas que se ponha em contacto com o bispo do Egipto.
1245
Já começou a ser feita a via férrea do Cairo a Assuão e, dentro de poucos anos, estará pronta de Assuão
até Cartum. Outra via férrea entre Suakin e Berber unirá o Nilo com o mar Vermelho. Num só mês vai-se
agora do Cairo a Cartum pela rota de Suakin. Partiram outros três mil soldados para o Sudão, e vão-se criar
três grandes províncias egípcias no Nilo Branco. Está florescente em Cartum a escola protestante prussiana,
muito mais frequentada do que a católica pela colónia europeia. Em Siut há outra escola anglicana. Que con-
sequências terão para a fé estes factos? Escrevi sobre isso um pequeno relatório a Barnabó.
1246
Estou convencido e comigo todos os missionários do Egipto, de que a aplicação do Plano para a Regene-
ração da África no Alto Egipto é um dos meios mais adequados para ajudar a África Central. Como a história
da divisão será um pouco mais longa (e certamente será feita segundo a sua ideia, como a mais sábia e justa),
eu penso que será útil erigir dois pequenos institutos, um feminino em Negade, outro masculino em Kenne,
com o duplo objectivo de ajudar a juventude copta egípcia e de preparar ao mesmo tempo elementos para os
negros.
1247
Com tal finalidade visitei diligentemente todos os pontos do Alto Egipto onde há uma missão católica; e
no meu regresso ao Cairo apresentei um pequeno projecto ao prefeito apostólico do Alto Egipto, no qual lhe
propunha fortalecer essa missão com a aplicação do meu Plano para a Regeneração da África. O prefeito,
solicitado por todos os seus missionários, aceitou a proposta e submeteu-a ao card. Barnabó; por isso, escre-
veu uma bela carta ao cardeal, na qual, entre outras coisas, lhe pedia autorização para que eu fundasse um
pequeno instituto em Negade, instalando nele as irmãs que fossem do agrado de Sua Eminência.
No Cairo farei surgir um outro pequeno grupo de jovens negras sob a direcção das irmãs que aqui estão.
Porém, sobre este ponto, mandar-lhe-ei uma carta pormenorizada no próximo vapor.
1248
Mandar-lhe-ei igualmente um pequeno informativo sobre a nossa viagem a Schellal, com a famosa e inte-
ressante conversa que tive com Lesseps, que me deu sábios conselhos sobre o modo de aplicar o Plano, etc.
O P.e Ludovico chegou a Nápoles no dia 27 de Janeiro. Pensa abrir uma casa de ofícios no Cairo Velho, à
frente da qual porá o seu sobrinho sacerdote, o que choca com os frades aqui do Cairo. Conseguiu uma casa
perto do cemitério, tendo em contrapartida apenas que celebrar uma missa por semana. O mestre de estudos
será o negro Morsal, que eu levei a Nápoles em 1862. Mas dar-lhe-ei depois mais amplas notícias sobre isso.
1249
O P.e Presidente de Schellal rogou-me que lhe mandasse dinheiro, pois o P.e Ludovico tinha-o deixado
com cinco napoleões de ouro. Do Cairo, P.e Francisco mandou-lhe trinta táleres. Um dos motivos pelo qual
aquele director se manterá firme no seu posto é a esperança de que lhe não há-de faltar o necessário. Portan-
to, assisti-lo é de capital importância para a missão. Se se ajudar, ficará lá, mesmo sozinho. Portanto, se pu-
der, faça com que lhe prestem assistência quanto antes; mas é melhor que o faça directamente por meio do
cônsul e de Fathalla, porque existe o risco de a ajuda ficar em Nápoles, como aconteceu no Outono passado.
Contou-me o director que em Nápoles foram distribuídos várias centenas de novos endereços e que Habas-
chy e ele pregaram nas igrejas, e se recolheram 500 escudos. Estes foram misturar-se – disseram-mo os dois
sacerdotes de Schellal – com as obras do ensino para artesãos do P.e Ludovico. Era o defeitozinho do nosso
caro superior de Verona. Portanto, o director recomendou-me: «Se puder prestar-me ajuda, faça-ma chegar
directamente e eu dar-lhe-ei contas de tudo».
1250
Eu fico no Cairo até meio da Quaresma e depois vou a Verona, passando por Roma, onde tenho que falar
com a Propaganda. Em Verona recolho as negras e trago-as para o Egipto. Por isso recomendo-lhe o nosso
negro Locwis, que juntamente com Cachiual quereria trazer para o Egipto. Mas antes tenho de esvaziar no
seu coração tudo o que tenho cá dentro e agir segundo os seus conselhos.
1251
Não quero perder tempo; quero trabalhar e viver somente para a África e para a conversão dos negros.
Espero que Deus me assista e me conceda grandes graças e que o senhor seja sempre meu pai, conselheiro,
amigo, mestre e tudo.
Não temo nada, confio em Deus. Mil saudações a S. Alt. Rev.ma, a seus secretários, ao amo do negro, ao
negro, etc.

Tuissimus in corde et opere


P.e Daniel Comboni

N.o 181 (170) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AQMV, Cart. «Missione Africana»

Cairo, 20 de Fevereiro de 1866

Amat.mo e venerado superior,

1252
No meu regresso ao Cairo, não encontrei nenhuma carta de Verona. Não pode imaginar, meu caro superi-
or, a minha pena por ter falta de notícias do nosso querido instituto desde que P. e João foi a Trieste! Confio
em Deus que todos estejam bem e que o instituto vá de vento em popa.
Empregámos 32 dias para ir do Cairo a Schellal. Na festividade da Epifania entrámos na casa e no dia se-
guinte o P.e Ludovico partiu precipitadamente para Nápoles num vapor do Governo. O P.e Samuel, de Ne-
gadeh, e eu partimos sete dias depois. Visitei diligentemente todas as estações católicas do Alto Egipto; e,
animado por todos os missionários, no Cairo pude obter do prefeito apostólico a fundação de um pequeno
instituto feminino em Negadeh, onde tenho a casa à minha disposição, para o confiar às Filhas da Caridade,
se a Propaganda de Roma o considerar oportuno. Esperamos com impaciência a autorização da Propaganda.
1253
Apresentei um projectinho ao pref. apl.co do Alto Egipto para fortalecer a sua missão, mediante a aplica-
ção do Plano para a Regeneração da África; mas explicar-lho-ei de viva voz. Isto é utilíssimo para o Alto
Egipto e para as missões da África Central. Todos estes missionários se alegraram com ele e me encoraja-
ram. Como a divisão do vicariato apostólico da África Central poderia arrastar-se, creio útil e necessário
entretanto preparar auxiliares, com a formação de pequenos institutos que seriam confiados às irmãs da cari-
dade, aos Irmãos da Doutrina Cristã, etc., instituições que se comprometem a vir para África dar apoio aos
missionários. Falaremos pessoalmente.
1254
As nossas negras, que o insto. punha à minha disposição com uma carta dos finais de Outubro passado, eu
confiá-las-ia às Irmãs do Bom Pastor, que as aceitam de bom grado, mesmo já, se eu decidir. Porém, como
não sei que congregação me atribuirá a Propaganda para Negadeh, vale mais demorar um pouco a resolução,
até ao meu regresso a Verona, e assim ouvirei o que o senhor com a sua sabedoria julga oportuno. Em todo o
caso, dentro de dois ou três meses, o instituto será desonerado da gente africana.
1255
Voltarei a Verona, passando antes por Roma, onde tenho que falar com a Propaganda sobre muitas coisas.
Apenas colocadas as negras, desejo que o senhor me destine (sempre que seja do seu agrado) a libertar paula-
tinamente o instituto das suas dívidas, com o objectivo de que possa estar em condições de aceitar uma mis-
são em África. E espero que, dentro de um ano, tudo esteja concertado, porque, ajudado com a força moral
do Insto., não faltarão meios para conseguir o propósito, tanto mais que não se trata de grandes coisas.
1256
Não lhe escrevo outras coisas, porque tenho a cabeça tão transtornada que não consigo coordenar as idei-
as. Entre as muitas coisas que lhe direi pessoalmente, uma é que temo que a obra do P. e Ludovico faça uma
trapalhada em Schellal. Ontem, um dos seis que levámos para Schellal regressou ao Cairo, após uma vocação
de 28 dias pela África Central. Acontece que o frade José Habaschy criou uma facção em Schellal e ameaça
nada menos que expulsar o frade director para ele ficar como superior. Os dois leigos negros, que o senhor
conheceu em Verona, têm intenção de fugir.
1257
Por outro lado, o P.e Ludovico disse-me que, logo que chegasse a Nápoles, pediria a dispensa por idade e
faria ordenar sacerdote um negro e diáconos outros dois. Aqui no Cairo há muito cepticismo em relação à
obra do P.e Ludovico. A mim, pelo que vi, parece-me que entre a cabeça e o coração do P.e Ludovico não há
a necessária harmonia. Embora ele tenha dito que no nosso instituto feminino viu muitas criadas, parece que
os próprios frades do Cairo afirmam que só o Insto. Mazza poderá fazer alguma coisa na África Central e
verbalmente todos aprovam o Plano para a Regeneração da África. Em suma, creio que o nosso instituto,
depois de ter passado por tanta coisa, é um dos mais perfeitos e melhores do mundo; nele reina verdadeira
caridade unida à ciência e à autêntica piedade, que não consiste na fachada. Por isso estou apegado a ele com
a cabeça e o coração.
1258
Muitas saudações ao nosso querido P.e João, que aqui no Cairo e por todo o lado deixou uma venerável
recordação. Saúdam-no (P.e Beltrame) o bispo, que está no Cairo, o P.e Venâncio, do Conventinho, o P.e
Samuel, de Negadeh, o cônsul-geral austríaco, Schreiner e todos os frades. Aqui tem-se uma excelente opini-
ão do insto. De viva voz exprimir-lhe-ei o desejo do bispo mons. Vuicic a respeito de uma obra de grande
utilidade para o Egipto, de muita honra para o insto. e de nenhum sacrifício, que abre caminho ao favoreci-
mento do instituto.
Receba os meus respeitosos cumprimentos e dê mil lembranças a P.e Beltrame, a P.e César, a P.e Donato,
a P.e Fochesato, a P.e Poggiani, bem como a Tregnaghi, a Garbini, ao pároco de St.o Estêvão, às professoras
e às duas protestantes Marias, enquanto com todo o coração me proclamo

Seu obed.mo e af.mo filho


P.e Daniel

N.o 182 (171) - AO CAV. CÉSAR NOY


BQB, Sez. Autografi, Cart. 380, fasc. 1

Cairo, 26 de Fevereiro de 1866

Il.mo sr. cavalheiro,

1259
Depois de ter recebido tantos favores, o meu coração sentia uma grande necessidade de o pôr ao corrente
do que na minha fraqueza faço para o bem desta África negra, sobre a qual pesa desde há tantos séculos o
tremendo anátema de Cam e pela qual, estou certo, o senhor eleva do seu coração eminentemente católico e
caritativo as mais fervorosas preces a esse Deus, que quis morrer na cruz também pelos negros. Por isso da
Núbia mandei-lhe uma carta no dia 7 de Janeiro passado. Mas – coisa insólita! – a minha carta, junto com
muitas outras, permaneceu quase um mês no saco do nosso procurador, no Cairo, pelo que, ao chegar aqui,
retirei-a junto com uma carta a S. E. o núncio apostólico e uma a mons. Mislin.
1260
Graças às recomendações obtidas em Viena, pudemos pagar só a terça parte da passagem no Lloyd austrí-
aco e partimos de Trieste no dia 12 de Novembro. Em tantas viagens que fiz pelo Mediterrâneo, Atlântico,
mar Vermelho e oceano Índico, nunca conheci nenhuma tempestade tão terrível como a que me atingiu desde
Corfu a Alexandria, na qual, a todo o momento, durante 37 horas, estivemos na iminência de naufragar. No
nosso trajecto entre Zante e a ponta extrema de Cândia desencadeou-se sobre o nosso barco o mais impetuo-
so furacão; romperam-se as barras de ferro do flanco esquerdo, esfacelou-se uma parte da popa, caíram mor-
tos 48 bois húngaros e a nave, ao sabor dos ventos, era de tal maneira agitada, que fiquei 37 horas separado
do P.e Ludovico: não pude mover-me para não correr o risco de ser projectado ao mar. O P.e Ludovico afir-
ma que prefere mil vezes morrer a suportar uma borrasca como aquela; ele diz que considera como um dom
especial de Deus o resto de seus dias e prometeu ao Senhor que nunca mais voltará a ir a África. Finalmente,
mais mortos que vivos, e depois de termos arrojado os bois ao mar, chegámos a Alexandria.
1261
No Cairo fretei uma dahhabia, ou barco fluvial, com a qual fomos até às primeiras cataratas. Saudadas as
famosas pirâmides, que deixámos à direita, subimos o Nilo envolvidos por uma esplêndida Primavera que
sorri nas margens e nos campos do histórico Egipto; depois de passarmos junto às imponentes ruínas de Te-
bas, a das cem portas, em cujos arredores se estendem os desertos santificados um dia por milhares de anaco-
retas e agora, ai!, manchados pelas sacrílegas profanações dos filhos do profeta árabe, em 33 dias de aborre-
cida navegação, lançámos âncora em Assuão. Finalmente, depois de cruzarmos um pequeno deserto, entrá-
mos na Núbia e abrimos a casa de Schellal, que é a primeira estação do vicariato apostólico da África Cen-
tral.
1262
Dois dias depois da nossa chegada, o P.e Ludovico partiu num vapor do Governo e, acolhido até ao Cairo
pelo príncipe de Hohenzollern Sigmaringen, viajou para Nápoles. Eu parti mais tarde e visitei diligentemente
todas as estações do Alto Egipto para ver se é possível aplicar ali o Plano para a Regeneração da África. De
facto encontrei não só lugares adequados como também a aprovação de todos os missionários, que me solici-
taram para cooperar desse modo também para o bem da sua missão. Agora resolvi erigir um instituto para
negras em Negadeh, perto de Tebaida; em Maio instalarei aí as irmãs da caridade, as quais, além do imenso
bem que farão à juventude egípcia, educarão um certo número de negras; a casa já está em restauro à minha
custa. Igualmente já combinei fundar outro instituto no Cairo com as Irmãs Missionárias do Bom Pastor, de
Angers.
1263
Sua alteza o paxá vice-rei do Egipto concedeu 7 feddan de terreno num dos mais belos lugares do Cairo,
no caminho de Schubra. Por isso parto no dia 9 para Roma para conseguir a autorização e depois vou a Ve-
rona para levar as negras já educadas, que deixarei repartidas entre o Cairo e Negadeh, no Alto Egipto, para
reforçar esses institutos. Dentro do presente ano, espero ter estabelecido um instituto de negras em Kenne, no
Alto Egipto. Com isto, procuro preparar auxiliares, que nunca houve anteriormente na África interior. Por
isso, recomendo-me às suas orações e às dos bons.
Ora como estão a sua esposa e as suas queridas meninas? Rogo-lhe apresente os meus respeitos à primeira
e dê lembranças às segundas. Não se passa um dia sem recordar a sua devotíssima família no Memento.
1264
Quanto ao sr. cavalheiro, parece-me vê-lo em conversa com alguns, exercendo o apostolado com os que
não amam a Igreja Católica e defendendo com peito impávido o Papa e a justiça dos seus direitos. A palavra
de um homem do século é certamente mais eficaz que a do eclesiástico, eu digo que me comove mais o dis-
curso de um secular do que o de um bispo, quando se trata de defender o Papa. O Senhor apoiará e abençoará
a sua palavra franca e o seu apostolado nestes tempos de orgulho e de cegueira, em que se ignora a autorida-
de e em que o mundo se entrega a uma cega e desenfreada liberdade. Para lhe mostrar a diferença que há
entre os turcos e herejes e os nossos modernos livre-pensadores, vou contar-lhe um pequeno facto.
1265
Aborrecidos da longa viagem no barco e tendo o P.e Ludovico pressa de voltar para Nápoles, onde as su-
as obras estão em perigo, uma vez chegados a Esne, apresentámo-nos dois de nós ao Paxá da província, a
que pertence Schellal, e pedimos-lhe autorização para abrir a casa de formação para negros e que nos con-
cedesse um lugar livre no vapor do Governo para ir de Assuão ao Cairo quanto antes. É indiscritível a bon-
dade e gentileza com que nos recebeu e eram 9 da noite. Fez despachar por escrito a autorização para abrir a
casa, prometeu ir visitar-nos, ofereceu-se para nos proporcionar tudo o que precisássemos e cumulou-nos de
amabilidades. Além disso, veio ele mesmo a Assuão, fez com que nos atendessem em tudo e mandou dar-nos
três passagens de primeira no vapor do Governo para voltarmos ao Cairo quando quiséssemos. Imagine que é
um turco aquele que assim sabe tratar a quem propaga a fé católica com ódio ao Islamismo.
1266
Mais ainda, em Negadeh há três mil coptas heréticos. Eu mantive largas conversações com o chefe destes,
que é o mais rico e influente. Depois de longos debates, confessou-me a verdade das duas naturezas de Cristo
e também que não estava longe de se tornar católico. Espero que as obras e a influência da mulher católica e
das Filhas da Caridade acabem por convertê-lo, bem como aos outros três mil. Ora bem, falei com ele, que
não é nada ignorante, sobre o Papa e perguntou-me porque é que ele está agora em guerra. Respondi-lhe que
é pelo facto de quererem despojá-lo dos seus bens temporais. «Tem razão em defender-se – disse ele – e
conservar os seus direitos». Ora os barrabás dos nossos mações pretendem tirar ao Papa o seu domínio tem-
poral e arrancar do coração dos fiéis o amor ao chefe da Igreja! Cristo é mais obstinado que o Diabo: portae
inferi non prevalebunt.
1267
Em Roma pedirei ao Papa uma bênção especial para si e sua família. Faça-se intérprete dos meus senti-
mentos e apresente os meus respeitos à pessoa verdadeiramente evangélica que é S. E. o núncio, a mons.
Capri, a Leonard e a todos os demais da Nunciatura; naturalmente mil saudações a sua bondosa esposa e
receba as minhas mais cordiais e sinceras expressões de afecto.

Seu af.mo
P.e Daniel Comboni

N.o 183 (172) - AO CARDEAL PATRIZI


« Jahresbericht...» 14 (1866), pp. 7-76»

Fevereiro de 1866

Como no escrito n.o 188, § 1357-1365.

N.o 184 (173) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 25 de Março de 1866

Meu amat.mo superior,

1268
À minha chegada a Roma, encontrei a sua prezada carta, que, embora curta e magrinha, me causou grande
prazer por me trazer notícias suas e do nosso querido instituto, que me faltavam desde Novembro, quando
P.e Beltrame veio a Trieste. Desejo-lhe a si e a todos do instituto, incluído o meu credor Tregnaghi, umas
felicíssimas festas pascais e rogo aos Sagdos. Corações de J. e de M. os guardem a todos para o bem do insti-
tuto e da África.
1269
O card. Barnabó disse-me que lhe escreveu a si uma carta e comunicou-me o seu conteúdo. Eu informei-o
de viva voz com base na carta que o Instituto fundamental me enviou para Viena. Parece que lhe dói bastante
um demasiado longo adiamento; mas depois disse-me: «Após tantos anos de espera, pode-se ter paciência e
esperar um pouco mais, só que desejaria ser informado com certeza se o instituto naquela altura aceitará a
missão».
Sua Eminência ordenou-me que redigisse um relatório sobre a nossa viagem a Schellal, tocando estes três
pontos:
1.o O que tínhamos de fazer o P.e Ludovico e eu.
2.o O que é que efectivamente se fez.
3.o O que é que considero oportuno fazer hic et nunc em favor do vicariato apostólico da África Central.
1270
Depois, ordenou-me que fizesse uma exposição sobre os progressos do catolicismo e sobre o trabalho
apostólico que observei na delegação do Egipto e na prefeitura apostólica do Alto Egipto, explicando o que
mais me parece que se deveria fazer em favor de todo o Egipto.
Tendo-me negado a isso por justas razões, respondeu-me: «Não; quero que me faça a confissão geral,
porque não lhe devem ter escapado as razões pelas quais o Egipto não está suficientemente provido para aí se
desenvolver a Fé, etc.». Reze, pois, ao Senhor e faça rezar para que eu possa fazer um relatório verdadeiro,
consciencioso e útil, porque deve ser lido na Congregação.
1271
Rogo-lhe apresente os meus respeitos ao sr. bispo e saúde todos os sacerdotes do insto. e P.e César e as
protestantes, enquanto de todo o coração desejo que resolvamos bem todos os nossos assuntos, paguemos as
dívidas, etc. Quanto às negras, está tudo pronto: resta-me arranjar o dinheiro para a viagem. Por isso, tendo o
Senhor provido para o mais, proverá para o menos, e tornar-se-á fácil realizar tudo.
1272
Em Roma há grande número de estrangeiros, incluindo a rainha de Saxónia. E entre eles também um
apoiante meu de Paris, o barão Havelt, protector da Terra Santa.
Eu encontro-me bem, à parte um pouco de cansaço que aumentará na Semana Santa. Muitos cumprimen-
tos a P.e Poggiani e mande-me a sua paternal bênção, em troca da qual pedirei ao Papa uma amplíssima bên-
ção para si.

Seu obed.mo e af.mo


P.e Daniel Comboni

N.o 185 (174) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/20

Roma, 18 de Abril de 1866

Meu caríssimo P.e Francisco,

1273
Só duas linhas, porque estou afectado pelas febres periódicas, que me enfraqueceram muito. No Cairo re-
cebi uma carta sua, que poderia ter sido mais longa e mais abundante em notícias e que me foi muito agradá-
vel. Do Cairo fui a Alexandria, Malta, Messina, Nápoles e Roma, onde cheguei no dia 15 do mês passado,
quinta-feira anterior ao Domingo de Ramos. Não lhe falo das emocionantes cerimónias da Semana Santa,
nem da bênção e do pontifical do dia de Páscoa. Escrevo só por uma coisa que me interessa.
1274
Partiu de Roma para o Véneto Mr. Abbé Nicolet, amigo meu de Chambery, ex-mestre preceptor do prín-
cipe Tomás, duque de Génova; foi este homem excelente quem traduziu para francês o meu Plano. Foi a
Veneza e depois deslocar-se-á a Vicenza para visitar o reitor do Colégio Cordellina. Todas as gentilezas que
fizer a esse amigo meu fá-las-á a mim e ficar-lhe-ei agradecido por elas. Se por um dia ou dois que ele vai
ficar em Vicenza lhe cedesse um pequeno quarto, ele sentir-se-ia mais à vontade aí que na corte de Turim,
onde viveu muitos anos. Leve-o a visitar o bispo, faça com que lhe mostrem o que de bom tem Vicenza e
monte Berico. Além disso, estando eu sem fôlego, far-me-ia um favor se o recomendasse imediatamente em
Veneza a P.e Clerici ou a algum outro para lhe mostrarem as maravilhas venezianas. Ele fica alojado em
Calla del Ridotto, casa Fumagalli, aonde eu mesmo o dirigi. Enfim, recomendo-lhe este meu amigo.
1275
Eu estou aqui com as minhas febres. É provável que passe 15 dias em Frascati, onde os ares são bons; não
há outro modo de me livrar delas. Tenho que redigir um relatório para a Propaganda, a pedido de Barnabó,
sobre tudo o que observei durante a minha viagem. O bispo de Verona escreveu-me a dizer-me que, munido
de uma recomendação sua, alguém do nosso insto. vá a Viena para obter a isenção do imposto de radicação.
Os meus respeitos mais distintos ao sr. bispo de Vicenza, a Dalla Vecchia, ao prefeito, etc. Saudações a P. e
Tilino e aos outros nossos bons clérigos carlistas.

Seu af.mo P.e Daniel

N.o 186 (175) - APONTAMENTOS DE P.e J. TOMBA


DE UMA CARTA A MONS. CANOSSA
AMV, Cart. «Missione Africana»

25 de Abril de 1866

N.o 187 (178) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 15 de Maio de 1866

Amat.mo sr. superior,

1276
Escrevo-lhe para lhe dar notícias minhas. Posso dizer-lhe que actualmente estou bem. As febres romanas,
o quinino e outros transtornos deixaram-me muito fraco, de modo que durante um mês não fiz nada e, de-
pois, fiz pouco. Mas agora trabalho com uma maior vontade fazendo o relatório que o cardeal Barnabó me
pediu. Sua Eminência comunicou-me a resposta que o instituto deu acerca da assunção de uma missão em
África.
1277
Seja sempre bendita a vontade do Senhor. Quando Deus quiser, o insto. pensará na África. Agora Deus
não quer: devemos resignar-nos, mas eu não posso dissimular a minha dor por tal facto. Porém, a bondade de
Deus, no meio dos meus graves desgostos, reservou-me uma grande consolação, porque na semana passada
recebi a sagrada comunhão das mãos do Santo Padre. E falando com Sua Santidade, pedi-lhe uma bênção
especial para si, uma para P.e Poggiani e uma para todos os membros dos nossos institutos masculinos e
femininos.
1278
No meio do grito de guerra que soa à sua volta, o Papa está cheio de paz e de confiança em Deus; o Vigá-
rio de Cristo é assistido por uma força superior e os poderes do mundo não poderão abalá-lo. Roma é o refú-
gio da paz, a cidade está tranquila. O mês de Maria está a celebrar-se com grande pompa e devoção em cem
igrejas e todas elas se acham repletas de fiéis que elevam as suas preces à Rainha do Céu. Dá impressão que
Deus não determinou ainda a época da chamada à fé dos pobres africanos, mas confiemos e rezemos por
eles. Monsenhor Massaia já está no Egipto. O bispo do Egipto foi chamado a Roma e terá outra destinação.
1279
Como o nosso caro P.e Beltrame me não escreve nem me responde, deduzo que já se não encontra na ca-
pital do império, onde certamente terá obtido de S. M. I. R. Apostólica a graça implorada. Se por acaso tiver
regressado, saúde-o cordialmente. Apresente os meus respeitos a monsenhor o bispo e ao marquês Octávio e
envie os meus obséquios à família Pompei. Lembranças a P.e Fochesato, a P.e Donato, a Lonardoni e a todos
os membros do instituto, assim como a Garbini, a Tregnaghi, às senhoras professoras, às negras e às protes-
tantes.
Dê-me a sua bênção e, nos Sagdos. Corações de J. e de M., tenha-me por

Seu obemo. e af.mo


P.e Daniel

1280
Sua Em.a o card. Barnabó teve muita pena de o instituto não aceitar a missão na África. Contudo, espe-
remos que, passados alguns anos, o Senhor disponha.

N.o 188 (177) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 873-890v

RELATÓRIO
Da minha breve viagem a África
De 1865-1866

Roma, 30 de Junho de 1866

RELATÓRIO
Enviado à S. Congregação da Propaganda F.
Em Junho de 1866
Emm.o Príncipe,

1281
Convidado por V. Em.a Rev.ma a redigir um relatório sobre os resultados da viagem que recentemente fiz
com o M. R. P.e Ludovico de Casoria a Schellal, meto imediatamente mãos à obra e, de acordo com as suas
directrizes, exporei.
1.o Que devíamos fazer o P.e Ludovico e eu na nossa viagem a África.
2.o Que fizemos realmente.
3.o Que seria oportuno fazer, hic et nunc, com os elementos e forças já existentes, para melhorar a situa-
ção do vic. apostólico da África Central.
1282
E antes de mais, deixando em silêncio a história da missão africana anterior à época da nossa viagem a
Schellal, porque é já conhecida de V. Em.a Rev.ma, direi só que, como consequência da carta de 24 de Junho
de 1865 do meu falecido superior P.e Nicolau Mazza, na qual pedia à Propaganda uma missão para o seu
insto. na África interior, V. Em.a Rev.ma me mandou falar com o rev.mo P.e geral da ordem seráfica para
combinar um projecto de divisão do vicariato da Afr. Centr., a fim de que tanto os franciscanos como o Insti-
tuto Mazza pudessem desenvolver com mais eficácia a sua obra em favor dos negros.
1283
Eu cumpri fielmente a ordem recebida, falando com o rev.mo P.e geral, que se mostrou favorável a uma
divisão. E munido de uma carta do seu punho e letra, pela qual encarregava o P. e Ludovico de se pôr de
acordo comigo para determinar os limites territoriais, fui a Nápoles, onde diligentemente se discutiu o assun-
to. No meu regresso a Roma, ouvido o P.e geral, combinou-se entre nós o que o Pe. Ludovico, em minha
presença, declarou a V. Em.a Rev.ma, ou seja, apresentar o seguinte projecto de divisão:
1284
1.o Missão do Nilo Oriental, que se confiaria ao Instituto Mazza com os seguintes limites territoriais:
Ao norte, o trópico do Câncer
A este, os vicariatos da Abissínia e dos Gallas
A sul, o equador
A oeste, o Nilo e o Nilo Branco
2º Missão do Nilo Ocidental, que estaria a cargo da ordem seráfica e teria os seguintes limites:
A norte, o vicariato do Egipto
A este, o Nilo e o Nilo Branco
A sul, o equador
A oeste.... in infinitum.
1285
Embora me incline a crer que o rev.mo P.e geral tenha sempre estado disposto a ceder uma parte daquele
vicariato ao Insto. Mazza, que pelo espaço de 15 anos trabalhou e fez grandes sacrifícios por aquela missão,
contudo, cedo me apercebi de que o respeitável definitório de Ara Coeli e o próprio P.e Ludovico de Caso-
ria, opondo-se ao projecto, fizeram fracassar a divisão proposta. E tive depois a plena convicção disso quan-
do, ao mesmo tempo que V. Em.a Rev.ma declarava abertamente a sua vontade de repartir o vicariato entre a
Ordem Seráfica e o Insto. Mazza, eu lia num jornal católico o artigo que junto e cujo conteúdo foi pregado
em Setembro do ano passado pelos frades do Pe. Ludovico em S. Pedro ad Aram e noutras igrejas de Nápo-
les. Uma nova orientação, etc.
1286
De facto, perante as queixas da Ordem Seráfica, V. Em.a Rev.ma não julgou oportuno emitir decisão al-
guma sobre a divisão proposta, embora na sua alta sabedoria tenha determinado que, quando o P.e Ludovico
se deslocasse a África para tomar posse da estação de Schellal, um ou dois representantes do Instituto Mazza
o acompanhassem naquela viagem, a fim de que o assunto se discutisse em pormenor pelas duas partes no
lugar e, depois, ouvido o parecer do vicário apostólico do Egipto, a quem havia mais de três anos tinha sido
confiada interinamente a direcção do vicariato da Áfr. Centr., se conseguisse formar melhor um projecto de
divisão equitativo e oportuno para ambas as partes, que depois seria apresentado à S. Congr. de Propaganda
Fide.
1287
Com base nesta determinação, o P.e Ludovico, depois de ter mandado à África pela rota de Messina qua-
tro leigos, acompanhados do P.e Boaventura, de Cartum, e de dois negros terciários com hábito franciscano,
no dia 10 de Outubro deixava Nápoles e, após uma breve paragem em Roma, chegava a Verona. Aí encon-
trou-se com o meu novo superior, P.e Joaquim Tomba, e foi acordado que só eu o acompanhasse a África. E
sem hesitações, no dia 26 de Outubro partimos do meu instituto para a Alemanha, passando por aquelas ci-
dades nas quais eu tinha pensado apresentar o P.e Ludovico para o pôr em contacto com os mais distintos
benfeitores da missão africana.
1288
Vive em Bressanone um homem de raros talentos, a quem a África é devedora de grandes serviços. Trata-
se do piedoso e capaz prof. João Crisóstomo Mitterrutzner, cónego regular lateranense da Ordem de Stº
Agostinho, doutor em Sagrada Teologia, membro de diversas academias e do comité da Sociedade de Maria
de Viena, etc., etc., o qual, tendo realizado estudos profundos sobre a África Central, seguiu todas as fases da
missão africana, cujos acontecimentos e história publicou posteriormente. Até 1850 juntou cada ano para a
missão bastantes milhares de escudos e proporcionou à África Central quase metade dos missionários que
naquele vasto território anunciaram o Evangelho antes dos franciscanos, e com a pena e as obras acendeu em
terras germânicas o entusiasmo pela missão africana, que em todas as circunstâncias encontrou nele o seu
mais fiel amigo, o seu mais valioso protector. Ultimamente, valendo-se dos manuscritos que lhe deram os
missionários (sobretudo P.e João Beltrame e mons. Mateus Kirchner) e com a ajuda de alguns indígenas
negros que teve consigo em Bressanone conseguiu compor um dicionário e uma gramática na língua dos
Bari e publicou, para uso de alemães e italianos, um dicionário, uma gramática, um catecismo e alguns diá-
logos na língua dos Dincas e traduziu para essa língua todo o Evangelho de S. Lucas e os evangelhos de to-
dos os domingos e festas do ano, fornecendo deste modo aos novos missionários o material necessário para
exercer o ministério apostólico no imenso espaço compreendido entre os 13o e 1o de lat. N., nas regiões do
Nilo Branco.
1289
Considerando eu que o P.e Ludovico (que não conhecia em absoluto a terra africana e nunca tinha estado
no vicariato em questão) não poderia efectuar por si só uma divisão justa e conveniente para ambas as partes,
a fim de evitar qualquer pretexto de falta de dados que pudesse impedir tal operação por parte dos francisca-
nos, aconselhei-o a dirigir-se ao exímio professor Mitterrutzner, como o homem hoje em dia mais capacitado
para aconselhar em tal matéria, e a pedir-lhe que preparasse um projecto de divisão do vicariato da África
Central. Acedeu a isso o padre e discutimos minuciosamente o assunto com o mencionado prof. Mitter-
rutzner. Aceitando este o encargo, decidiu-se que ele redigiria o projecto que lhe parecesse mais adequado
para as duas instituições, a de P.e Mazza e a do P.e Ludovico e prometeu que em poucos dias no-lo mandaria
para Viena. De facto, aí o recebemos no dia 1 de Novembro, exposto na seguinte carta em latim dirigida ao
P.e Ludovico, que fielmente aqui transcrevo:
[Original latino, traduzido do italiano] Rev.mo padre:
1290
Na verdade dilatou-se-me o coração quando há poucos dias tive a oportunidade de o conhecer, rev.mo
padre, que desde há muito tempo seguia com suma admiração e interesse, pelo seu zelo apostólico em prol
da nossa África e pela sua admirável obra de caridade. Realmente vi-o não só a si, verdadeiro filho de S.
Francisco, mas também o fruto da nossa missão: o P.e Boaventura, que há cerca de nove anos trouxe do
Egipto. O senhor elevou-o à dignidade sacerdotal e agora leva-o como apóstolo para a sua pátria. Para maior
alegria, junto consigo veio o meu mui dilecto P.e Comboni, que já há muitos anos se esforça grandemente
pela regeneração da África para Cristo. A ele, entre outras coisas gratas, haverá que atribuir o facto de que a
missão católica para a África Central, que se pode considerar quase extinta, floresça de novo.
1291
Soube dos lábios dos senhores que a S. Congr. de Propaganda Fide de Roma está pestes a dividir o vicari-
ato apostólico da África Central entre a família franciscana e o instituto dessa vítima de caridade, P.e Nicolau
Mazza. Ora bem, o senhor perguntou-me o que penso dessa divisão; e como não posso não satisfazer a sua
solicitação, vou expor-lhe a minha opinião, aberta e sinceramente. Entre outras coisas, sublinho a minha
convicção de que esta missão, verdadeiramente muito difícil, deve ser totalmente católica, o que sem dúvida
sentem todos os benfeitores que de qualquer modo contribuíram para sustentar aquela missão. Cristo há-de
ser pregado e as almas devem ser conquistadas para Cristo, sem estarmos a ver se isso é levado a cabo com
sacerdotes regulares ou seculares, por meio de italianos ou de alemães. Os missionários da África Central
devem ser verdadeiros apóstolos e homens de Deus.
1292
Como já conheço as coisas que até agora o senhor, rev.mo padre, preparou para a África e o que o ínclito
Instituto do venerável P.e Mazza realizou e pode realizar no presente, penso que é uma ideia excelente divi-
dir o vicariato actual, de modo que a parte setentrional, quer dizer, o vicariato do Egipto desde aproximada-
mente os 24o até aos montes dos Dincas (Gebel Nuba ou Gebel Nyuemati), ou seja, até perto do 12º, atribuí-
do à família franciscana, lhe corresponda a si, rev.mo padre. Em contra-partida, a parte meridional, desde os
montes dos Dincas até ao equador e mais além, seja atribuído ao instituto mazziano.
1293
O que assim me leva a pensar pode deduzir-se das seguintes razões:
1.o A estação missionária de Schellal foi entregue a si, rev.mo padre, pela S. Congregação da Propaganda
Fide e isto se realizará dentro de poucos dias.
2.o O método que o senhor segue para a regeneração da África, baseado nas obras da caridade, no ensino
artesanal e na educação dos jovens, é o que me parece mais idóneo sobretudo para aqueles lugares em que
desde há tempo se encontra o Islão. Por isso, a sua instituição dará muitos e mui capazes ministros para tal
fim.
3.o Além disso, não é de pouca importância o facto de que desde Schellal até aos montes dos Dincas há
uma só língua, o árabe, pelo que não será necessário instruir os adolescentes em muitas línguas, mas poderão
com o tempo empenhar-se e aprender os idiomas que em Schellal, Cartum, etc. interessam mais.
1294
Os motivos pelos quais quereria atribuir ao ínclito instituto de P.e Nicolau Mazza a parte meridional são
os seguintes:
1.o Frequentemente aquele venerável velho que foi P.e Nicolau Mazza, quando se falava da missão afri-
cana, afirmava rejeitar para os seus missionários os lugares habitados por maometanos. Pois bem, precisa-
mente a partir dos montes dos Dincas começam as tribos dos negros, com o que se cumprem os desejos da-
quele santo varão.
1295
2.o Já muitos missionários apostólicos deste instituto trabalharam naquelas regiões com os Dincas; de en-
tre eles, são de destacar P.e João Beltrame e P.e Daniel Comboni, os quais, por isso, instruídos pela experi-
ência, evitarão muitas coisas inconvenientes para a missão.
3.o Os mesmos missionários trabalharão com muito mais facilidade, também onde se falarem línguas
completamente diferentes do árabe, uma vez que estão habituados à língua dos Dincas que os negros usam
do 12o ao 5.o. O rev.mo P.e Beltrame já escreveu em língua dinca.
1296
Eu também sei utilizar uma e outra língua, a das meninas africanas educadas no instituto veronês, que fa-
lam o dinca.
A fim de satisfazer plenamente o seu desejo, junto-lhe também o mapa que mostra as regiões da missão
católica no Nilo Branco.
Receba, pois, o que pediu: use-o adequadamente!
Rogo-lhe me tenha presente nas suas orações.

J. C. Mitterrutzner

1297
Em Viena, o ex.mo comité da Sociedade de Maria, que cedeu ao P.e Ludovico todos os móveis e utensí-
lios existentes na estação de Schellal, declarou não poder dispor de nenhuma ajuda pecuniária para a nossa
expedição; daí que tivéssemos que ocupar-nos seriamente em arranjar os meios para a viagem à África. Ten-
do-nos S. E. o núncio apostólico posto em contacto com a nova Sociedade da Imaculada Conceição, fundada
pelo famoso historiador do império austríaco, o conselheiro áulico Fedde Hurter e que tem por objectivo
socorrer os católicos dispersos pelos domínios turcos, solicitámos ajuda à mesma. Mas como não estava ain-
da bem reorganizada, depois da morte do seu ilustre presidente, e como se não encontravam na capital os
seus membros activos, responderam-nos que na próxima reunião seria a nossa petição submetida ao comité e
que, se o resultado fosse positivo, a ajuda seria concedida ao rev.mo delegado apostólico do Egipto. Ao não
obter o efeito desejado um telegrama que o P.e Ludovico enviou para Roma, a S. M. o rei de Nápoles, no
qual implorava ajuda rápida, resolvemos dirigir-nos ao citado prof. Mitterrutzner e à ínclita Sociedade de
Colónia.
1298
O primeiro, que já nos tinha dado o dinheiro para a viagem dos cinco de Bressanone a Viena, mandou-nos
imediatamente o seu óbolo de 400 francos e a segunda fez-nos logo chegar às mãos uma esmola de 200 tále-
res. Depois, tendo conseguido do il.mo cav. Noy, conselheiro dos caminhos de ferro austríacos, bilhetes gra-
tuitos até Trieste e obtido um considerável desconto nas passagens do Lloyd austríaco, zarpámos desse porto
no dia 12 de Novembro. Depois de uma furiosa tempestade no Mediterrâneo, chegámos a Alexandria, no
Egipto, onde nos juntámos com os outros quatro frades que nos haviam precedido e os nove partimos para o
Cairo. Aí, pedido de empréstimo algum dinheiro, munidos de uma carta de recomendação do cav. Schreiner,
cônsul-geral austríaco, eficientemente ajudados pelo cav. F. Mardrus e fretada uma dahhabia, saímos de
Bulaco. Solicitada em Kenneh a ajuda do P.e Samuel d’Accadie, presidente de Negadeh, que nos acompa-
nhou até ao nosso lugar de destino, prestando-nos serviços muito úteis, após trinta e dois dias de navegação
pelo Nilo, chegámos à primeira catarata; e protegidos pelas autoridades governativas de Esneh e de Assuão,
pudemos tomar tranquilamente posse da estação de Schellal no dia 6 de Janeiro de 1866.
1299
Schellal é a primeira povoação da Núbia Inferior. É habitada por cerca de mil muçulmanos e está situada
na margem direita do Nilo, a duas milhas de distância da última cidade do Alto Egipto, da qual é separada
pelas cataratas de Assuão. O actual vice-rei, logo que subiu ao trono, ordenou ao effendi de Assuão que vigi-
asse os missionários de Schellal, a fim de que não perturbassem a fé dos crentes do Islão com o proselitismo
católico. A casa da missão, situada de fronte da ilha de Filé, é sólida, cómoda e actualmente está bem equi-
pada com utensílios domésticos e ferramentas; tem uma elegante capela no interior e pode servir como lugar
de descanso para os missionários da África Central na sua viagem de ida ou de regresso, além de se prestar
perfeitamente para formar um grande colégio para africanos. O clima é bastante saudável; mas por causa da
extrema aridez do solo e da pobreza do povoado, é preciso abastecer-se de víveres na vizinha Assuão ou
melhor no Cairo ou na Europa, e, no tempo em que estamos, a manutenção desta Estação exige pesados gas-
tos.
O P.e Ludovico deixou aí dois sacerdotes franciscanos, dois leigos terciários e dois terciários negros e,
dois dias após a nossa chegada, partiu para o Cairo e regressou a Nápoles.
1300
Que é que fizemos realmente o P.e Ludovico e eu na nossa viagem a África? Nada do que devíamos fa-
zer. Nós devíamos estabelecer o projecto de divisão do vicariato da África Central, trabalhá-lo com o rev.mo
delegado apostólico do Egipto e, com a legítima mediação dos nossos superiores, transmiti-lo à Propaganda,
ficando depois à espera da decisão desta. Isto era o que nós tínhamos que fazer, porque tal era a ordem de V.
Em.a Rev.ma E o facto de ele ter ouvido dizer em Trieste que o meu instituto não pode por alguns anos acei-
tar missões na África não o eximia de tratar daquela divisão, porque eu acompanhava-o a África com o pleno
consentimento do meu superior, que com ele mesmo se tinha posto de acordo para tal fim.
Mas o bom P.e Ludovico é em absoluto contrário a que instituição alguma, fora a sua, passe a partilhar
com os filhos de S. Francisco o apostolado da África Central; e somente depois de larga discussão, sem nun-
ca ter falado sobre o assunto com o rev.mo vigário apostólico do Egipto, limitou-se a dizer-me, ao separar-
mo-nos em Schellal, que, caso V. Em.a Rev.ma lhe perguntasse pelo plano da ordenada divisão, ele lhe apre-
sentaria o do prof. Mitterrutzner, que expus anteriormente.
1301
Por isso, vendo fracassada a principal finalidade da minha viagem a África e desejando ser útil aos pobres
negros, apliquei-me diligentemente a examinar as estações católicas do Alto Egipto, para ver se me era pos-
sível estabelecer algum instituto masculino e algum feminino, para neles acolher rapazes e raparigas negros
com o objectivo de preparar gente para as missões do interior da África com base no meu Plano.
1302
De facto, fiquei convencido de que, se em cada estação do Alto Egipto que é ocupada por um só francis-
cano, com uma ajuda anual de apenas 300 francos, eu pudesse colocar duas ou três irmãs da caridade para a
educação das meninas coptas e dois ou três Irmãos da Doutrina Cristã ou membros de alguma recente insti-
tuição para a educação dos meninos coptas, teria como resultado não só a prestação de uma valiosa ajuda à
prefeitura apostólica do Alto Egipto mas também, com a introdução de negros e negras nestes diversos insti-
tutos, poderia, com o tempo, formar catequistas, artesãos e bons elementos para as missões do interior da
África, que se iriam criando entre os negros, fosse qual fosse a instituição a que se confiassem.
1303
De facto, a pequena cidade de Negadeh, situada a cem milhas de Schellal e a duas léguas das ruínas de
Tebas e que é povoada por cento e cinquenta católicos e mais três mil coptas heterodoxos, cujo chefe me
assegurou não estar longe de abraçar a nossa fé, pode tornar-se adequada para o primeiro instituto feminino
segundo o meu Plano. Tendo pronta a casa anexa à igreja, tendo a esperança de que a eficaz acção da mulher
católica pudesse ser útil não só para o sector feminino mas também para a conversão dos hereges, combinei
com o presidente estabelecer em Negadeh três irmãs com a atribuição anual de 500 francos para cada uma,
que é o máximo que a Pia Obra da Propagação da Fé costuma dar. Assim, chegado ao Cairo, apresentei ao
M. R. P.e Venâncio, prefeito apostólico, a seguinte petição, que oferece uma breve informação sobre o esta-
do geral daquela pobre missão:

«Muito reverendo padre:


1304
A prefeitura apostólica do Alto Egipto, desde há mais de um século confiada aos rev.dos padres m. re-
formados, tem por objectivo assistir a Igreja copta ortodoxa dispersa por muitas cidades e povos do Egipto, a
fim de conservar e desenvolver o sagrado depósito da verdadeira fé entre os crentes, rodeados do fanatismo
muçulmano e amiúde ameaçados e maltratados pelo furor dos hereges. A ordem seráfica, apesar da escassez
dos obreiros evangélicos e a insuficiência dos subsídios pecuniários, pôde manter nas principais cidades do
Alto Egipto, onde se encontram coptas católicos, missionários muito solícitos que, com uma abnegação ad-
mirável e à força de sacrifícios, conseguiram cumprir a sua difícil missão.
1305
Ora, tanto pela difusão do comércio como pelo incremento da colónia europeia nas fertilíssimas terras
egípcias, como pela celeridade com que se estabeleceram comunicações entre o Baixo e o Alto Egipto, quer
com barcos a vapor, quer com caminhos de ferro que se vão construindo rapidamente entre o Cairo e Assuão,
aumentou a necessidade de reforçar o ministério sacerdotal na prefeitura a que o senhor preside. E isto im-
põe-se tanto mais quanto a propaganda protestante vai estendendo a sua actividade por todo o Alto Egipto e
estabeleceu uma rica escola anglicana em Siut, com grande dano para a fé católica. É, pois, mister que Deus,
sempre amoroso nos desígnios da sua Providência, se digne em caso tão grave lançar o olhar de comiseração
sobre as terras do Alto Egipto e estenda a mão piedosa para coadjuvar a obra do missionário, dotando-o de
auxílios poderosos não só para conservar intacto o depósito da fé entre os coptas católicos mas também para
lhe fornecer meios com os quais possa chamar para o caminho da verdade os dissidentes, que desde há mais
de catorze séculos dormem no erro.
1306
Tendo no meu regresso da Núbia examinado diligentemente pela quarta vez as estações do Alto Egipto,
pareceu-me ter compreendido bem a situação do apostolado católico e as urgentíssimas necessidades que
existem naquelas regiões confiadas ao seu cuidado. Por isso, desejoso de lhe oferecer o meu óbolo para na
minha fraqueza o ajudar no seu ministério e preparar a seu tempo elementos importantes para as missões da
África Central, dirijo-me a V. P. rev.da pedindo-lhe autorização para fundar pequenos institutos masculinos e
femininos nas principais estações do Alto Egipto, sempre na condição de que, no que se refere ao funciona-
mento externo, estejam sempre sob a dependência do superior local e sob a jurisdição do chefe da missão.
1307
Ora, dispondo eu de poucos meios pecuniários e tendo chegado já a um acordo com o respectivo presi-
dente, que me cede um local adequado para este fim, suplico-lhe me conceda autorização para criar um pe-
queno instituto feminino em Negadeh; para esse fim colocaria lá, por agora, três irmãs de uma congregação
religiosa que fosse do agrado de V. P. e da Propaganda, às quais juntaria algumas jovens negras, instruídas
na fé, nas línguas e nos trabalhos domésticos no meu instituto de Verona. Este pequeno grupo encarregar-se-
ia de educar as donzelas coptas e praticaria as obras de caridade em favor dos hereges nessa importante esta-
ção. Por outro lado, como tenho intenção de preparar também pessoal para a conversão dos negros com base
no meu Plano, desejaria que as irmãs, ajudadas pelas referidas negras, se comprometessem simultaneamente
a educar na religião e nos lavores todas as negras que, conforme os recursos económicos, eu pudesse forne-
cer a tal instituto. E isto no intuito de, terminada a sua aprendizagem, serem enviadas para a missão da África
Central mais do agrado da Propaganda, sempre com a preferência do Insto. Mazza, caso nessa altura lá tives-
se uma missão».

Daniel Comboni

1308
Sumamente satisfeito com esta proposta, o rev.do prefeito do Alto Egipto mostrou-se muito disposto a sa-
tisfazer o meu desejo e imediatamente escreveu a V. Em.a Rev.ma para obter a necessária autorização.
Com a aprovação do rev.mo delegado apostólico, a superiora provincial das Irmãs do Bom Pastor, do Cai-
ro, e eu concordámos em fundar um pequeno instituto africano com algumas negras já educadas em Verona e
com outras novas que estou a comprar. Será confiado à Congregação do Bom Pastor, que criará como que
uma secção para as negras num local expressamente destinado a este fim e anexo ao seu convento.
1309
Não perco a esperança de conseguir também negras da obra do P.e Olivieri, que estão com as monjas
franciscanas do Cairo.
Isto foi o que procurei fazer e que espero ultimar dentro do presente ano, com o objectivo de que seja fru-
tífera a minha breve viagem a Schellal.
1310
Que seria conveniente fazer hic et nunc com o pessoal e os meios já existentes, para melhorar a situação
do vicariato apostólico da África Central?... Este é um problema bastante difícil de resolver. Esforçar-me-ei
por apresentá-lo bem, a fim de que possa entrar em vias de solução, embora em pequena parte.
1311
Os limites territoriais desta missão, conforme o decreto apostólico de Gregório XI, são: a oriente, o vica-
riato do Egipto e a prefeitura da Abissínia; a ocidente, a prefeitura das Guinés; a setentrião, a prefeitura de
Trípoli, o vicariato de Tunes e a diocese de Argel; a sul, os montes Gamar, chamados também os montes da
Lua (Anais da Propagação da Fé, f. 20, n.o 121, pág. 293).
Ora, tirado o espaço que ocupam as missões que se fundaram depois, resulta que o vicariato da África
Central abarca a extensão que medeia entre os 5o de lat. sul e o 24o de lat. norte, compreendida entre os 10o
e os 35o de longitude E., segundo o mesmo meridiano de Paris, o que equivale a dizer que o vicariato da
África Central é quase vinte vezes maior que a França.
1312
Desde a época em que se criou este vicariato, ainda não se ocupou dele mais que uma parte da Núbia e as
margens do Nilo Branco até aos 4o da latitude norte, entre o espaço de pouco mais de um grau de longitude,
pelo que resulta que não se ocupou nem a vigésima parte do vicariato. Acrescente-se a isto que, segundo os
recentes cálculos dos geógrafos acreditados perante as mais reputadas sociedades geográficas da Europa, a
África Central propriamente dita tem como limite oriental o Nilo e o Nilo Branco, pelo que a missão da Áfri-
ca Central desenvolveu até agora a sua actividade especialmente na margem direita do Nilo e do Nilo Bran-
co, ou seja, no limite nordeste da África Oriental. E da África Central ocupou-se apenas uma porção do terri-
tório dos Kich (estação de Sta. Cruz, entre os 6o e 7o lat. N.), abrangendo uma superfície menor que a quarta
parte do actual património de S. Pedro.
1313
Portanto, distingamos mais precisamente a pergunta e digamos: «Que considero eu que é oportuno fazer
com os elementos agora existentes em favor do vicariato apostólico da África Central, que se tentou evange-
lizar desde 1846 a 1866?» Reservar-me-ei pois a dar uma ideia sumária sobre a maneira como se poderia
tentar a regeneração do resto do vicariato, até agora totalmente desconhecido dos missionários.
1314
V. Em.a Rev.ma sabe bem o que se fez em África sob o governo dos três pró-vigários apostólicos Ryllo,
Knoblecher e Kirchner, que se pode compendiar nisto: «Fundaram-se quatro estações, a saber:
1.o Cartum, na Núbia superior, entre os 15o e 16o lat. N.
2.o Gondokoro, na tribo dos Bari, entre os 4o e 5o lat. N.
3.o Sta. Cruz, na tribo dos Kich, entre os 6o e 7o lat. N.
4.o Schellal, na Núbia inferior, no trópico do Câncer.
1315
Além disso, foram baptizados cerca de 100 infiéis, entre meninos e adultos; aprenderam-se bem a língua
dos Bari e dos Dincas, compuseram-se os respectivos dicionários, gramáticas e catecismos, traduziram-se
muitos trechos da Sagrada Escritura, etc., e publicou-se com os senhores de Brixen esse importantíssimo
livro para a língua dinca por obra do benemérito prof. Mitterrutzner. Conheceu-se, além disso, bem aquele
país, a índole dos seus habitantes, os costumes de muitas tribos de negros e o modo menos difícil de evange-
lizá-los». Tudo isto foi feito pelos missionários jesuítas germano-austríacos e pelos do Insto. Mazza, especi-
almente sob o governo do rev.mo Knoblecher.
1316
A estes seguiu-se em 1861 a ordem seráfica, que para lá destinou sessenta dos seus membros entre sacer-
dotes e leigos. Quais foram os resultados do seu labor?... Perdeu-se quase tudo o que de bom se tinha feito
antes. V. Em.a Rev.ma sabe que as estações de Sta. Cruz e de Gondokoro, que constituíam o verdadeiro
campo e o músculo da missão e produziam o maior fruto, foram abandonadas. A estação de Cartum está há
mais de três anos ocupada por apenas um missionário franciscano, o P.e Fabião, e pelos leigos. O padre aco-
lheu em várias vezes uma vintena de escravas que tinham fugido aos seus amos. Alguns deles reclamaram as
suas negras perante o cônsul austríaco; o P.e Fabião não julgou oportuno cedê-las, pelo que se apelou ao I. R.
cônsul-geral austríaco no Egipto. Embora este não aprove a conduta do P.e Fabião e na colónia europeia haja
falatório sobre as suas relações com as ditas escravas, que não vivem já em sua casa, mas em casinhas situa-
das no recinto do jardim da missão, ainda assim quero crer que é inocente. A verdade é que o cônsul-geral
austríaco no Egipto redigiu um relatório para o I. R. Ministério de Viena contra o P. e Fabião, coisa que não
honra em nada o missionário.
1317
Por outro lado, eu não aprovaria nunca o procedimento de deixar um missionário só, privado do meio de
se proteger com o escudo do sacramento da penitência; e isto durante mais de três anos, num lugar tão remo-
to quanto perigoso, onde surgiu há algum tempo uma rica escola protestante luterana da Prússia, que atrai
quase toda a colónia europeia e estende o seu proselitismo por Sennar e pelas principais povoações da Núbia.
Por último, o P.e Ludovico ocupou a estação de Schellal, que estava há oito meses abandonada.
1318
Expostos estes preliminares, vejamos o que se pode fazer em favor dessa parte do vicariato apostólico da
África Central, que até agora se tentou evangelizar, recorrendo aos elementos hic et nunc existentes... Estes
elementos estão agora concentrados na Ordem Seráfica. Não falo aqui do Insto. Mazza, porque este, embora
tenha firme intenção de entrar posteriormente no difícil apostolado da África, declarou que, por agora, não
pode assumir nenhuma missão entre os povos negros.
1319
Em 1861 a ordem seráfica lançou, por meio de uma circular, um apelo a muitas províncias religiosas, a
fim de reunir uma poderosa falange de obreiros evangélicos para partirem para a missão da África Central.
Apesar dos graves sacrifícios padecidos, reiteraram-se as tentativas: mais de 22 pessoas sucumbiram naque-
las terras ardentes sem obter nenhum resultado positivo. Finalmente, feitos todos os esforços, esta ínclita
Ordem decidiu implementar a instituição do benemérito P.e Ludovico de Casoria.
Que é esta instituição dos frades Bigi, que surgiu não há muito tempo em La Palma, Nápoles?... Pela se-
guinte carta que das margens do Nilo o P.e Ludovico escreveu a seus filhos, a qual, segundo me declarou ele
próprio, compendia o essencial do novo instituto e é como que o testamento do seu piedoso fundador, que se
lê todas as semanas nas suas casas com a comunidade reunida em plenário, V. Em.a Rev.ma fará uma justa
ideia da nascente instituição, destinada a governar o instituto dos negros e a dirigir as obras africanas.

1320
Ǡ Ave Crux, etc.

Do Nilo, 17 de Dezembro de 1865

Meus queridos frades Bigi:

O Senhor chamou-vos do século para a religião da terceira ordem seráfica; à primeira ordem fui chamado
também eu do século. Pobres de nós se não aproveitarmos esta infinita graça de Deus! Vós e eu temos os
nossos deveres, além dos mandamentos da lei de Deus e dos da Igreja católica, apostólica e romana: eu por
obrigação de verdadeira profissão solene, vós por obrigação duma profissão simples; eu pelo ministério sa-
cerdotal, vós pelo ministério da caridade, eu para salvar as almas, vós para instruir as almas. Um e outro
ministério são divinos: de sacerdote um, de sacerdote de caridade o outro. Estes dois ministérios estão inti-
mamente relacionados: o primeiro não pode salvar as almas se o segundo as não prepara. O Senhor inspirou-
me a mim, um pobre frade, a criação desta instituição, para atrair o século corrupto até Jesus Cristo, tanto
com o exemplo como com a caridade. S. Francisco é o santo pai deste instituto, a fim de que reine e governe
a altíssima pobreza não só de espírito mas também a pobreza externa praticada por J. C., por S. Francisco e
por todos os seus verdadeiros filhos.
Esta ordeno-a, por obediência, a todos os frades Bigi; aos que a não quiserem abraçar, porque pesada, or-
deno-lhes, por meio dos superiores dos frades Bigi que voltem ao século e vivam como bons cristãos ou ter-
ciários seculares. Esta obra difundir-se-á enormemente se os que a governam não se apartarem deste tesouro
celestial, amado por J. C., que quis nascer pobre, viver pobre e morrer pobre. Aquele que governa com a
pobreza governa com a caridade e com a humildade de Cristo: vida comum com todos, em tudo e por todos,
sem nenhuma singularidade, nem por títulos, nem por dignidades, à excepção dos doentes, imagens vivas de
J. C., os quais serão objecto de todas as excepções e dispensas, enquanto durar a sua doença, separados po-
rém da comunidade, pois estarão todos na enfermaria. Recomendo-vo-los encarecidamente: usai de miseri-
córdia para com eles, prestai-lhes serviço de caridade espiritual e temporal até aos últimos momentos da
vida.
Os frades Bigi que se apartarem da vida comum tendo consigo bens e dinheiro, sejam imediatamente ex-
pulsos como possuidores e ricos; os que não tiverem necessidade de tocar dinheiro não o toquem; os que têm
necessidade, toquem-no, mas entreguem-no logo ao procurador da casa. Rogo aos frades que não durmam
nem pernoitem onde houver dinheiro, para evitar que, vindo a irmã morte de improviso, se encontre este
diabo na cela. Recomendo-vos muito cuidado, repito-vos muito cuidado, no uso do dinheiro, meus caríssi-
mos irmãos.
A ordem dos frades Bigi pode ter também sacerdotes Bigi, mas com as mesmas regras e com a mesma
grande pobreza dos frades Bigi não sacerdotes. Porém o seu número deve ser muito pequeno, suficiente para
constituir, segundo a regra do insto., um governo residente na casa-mãe que dirija e governe o insto. dos
frades Bigi. Os referidos sacerdotes não poderão pregar, nem confessar seculares externos e todo o seu traba-
lho consistirá em propagar a instituição, manter a regra, visitar as casas e promover o bem dos pobres de J.
C.
Recomendo a todos os frades a meditação e a oração mental, pela manhã e à noite, sobre a paixão de J. C.
Meditai sobre ela como se estivesse presente perante os vossos olhos aquilo que se lê e medita. De que serve
meditar sobre J. C. sem humildade e caridade para com o irmão, sem obediência ao superior, sem sofrer uma
injúria ou um desprezo? De que serve meditar sobre J. C. sem a indulgência de um irmão para com outro
irmão? Chorar Jesus crucificado significa amar o irmão e sofrer com ele. Se no intervalo entre uma medita-
ção e outra, ou seja, entre a manhã e a noite, no decurso do dia, sabeis suportar a fraqueza de outro irmão
pecador como vós, podeis dar graças a J. C. na meditação da noite pelo fruto obtido da meditação da manhã.
Actuai e dirigi com o exemplo e com a caridade: todos vos estimarão e se mostrarão amáveis e obedientes
convosco. Amai, caros irmãos, o silêncio: falai pouco, fugi às questões: «sim, sim, não, não» e escapai. Por-
tai-vos como se fôsseis os últimos na casa; e se sois superiores, com maior razão estais obrigados a isso,
porque sois servos dos servos do Senhor.
O vosso sustento quotidiano venha do vosso trabalho manual. E se não for suficiente para as obras de ca-
ridade, os frades vão de porta em porta pedindo esmola por amor de Deus, tomando tudo o que a divina Pro-
vidência lhes mandar para eles e para os pobres. Quer sejam meninos ou doentes. Rogo aos frades que este-
jam sempre aos pés dos sacerdotes, especialmente dos padres, perante os quais quero que se mostrem humil-
des e submissos, porque são a figura real e verdadeira de J. C.; e deveis querer bem àqueles que não vos es-
timam; se vos desprezarem, não faleis mal deles, mas desculpai-os e favorecei-os, porque eles desprezam os
vossos pecados. Quando encontrardes sacerdotes pobres e doentes, podendo, dai-lhes hospitalidade e curai
seus males.
O vosso hábito cinzento seja sempre uniforme, segundo a regra da terceira ordem seráfica; sandálias nos
pés nus, excepto os doentes, que podem usar meias e ceroulas de linho, cíngulo de corda, túnica de lã e o
rosário à cintura. Seja tudo pobre; durma-se com o hábito e se, por doença, não for possível, peça-se dispensa
ao superior local. Recomendo que haja limpeza nos oratórios, nos dormitórios, nas celas e nos próprios fra-
des. Os frades sacerdotes dirão o ofício divino, servindo-se do ordinário franciscano da primeira ordem. Os
frades não sacerdotes que souberem ler dirão o ofício da Paixão de S. Boaventura e os que não souberem ler,
o pater noster, etc. Recomendo aos frades que jejuem todas as sextas-feiras do ano, além das quaresmas
prescritas na regra dos frades Bigi. É proibido aos frades serem padrinhos de alguém e isto para seguir o
espírito do santo pai. Quando entrardes na igreja, dizei. «Adoramos-Te, Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas
as tuas igrejas que existem no mundo e bendizemos-te porque a tua santa cruz remiu o mundo».
Rogo-vos, suplico-vos e exorto-vos, por amor de Deus e pela vossa perfeição, que estas e todas as outras
coisas contidas em vossas regras e constituições as observeis e façais observar com o exemplo e com a pala-
vra. O Senhor J. C. seja a vossa mente, o vosso coração e as vossas obras. Eu, pequeno irmão vosso, estarei
sempre convosco: se não me amais, eu amar-vos-ei; se não me quereis bem, eu querer-vos-ei. Não desprezeis
o que vos escrevi, porque o escrevi perante J. C., com o qual deveis viver e morrer e reinar pelos séculos dos
séculos. Assim seja.
Peço que se façam cópias desta carta e se mande uma a todos os superiores dos frades Bigi, com a obriga-
ção de a ler uma vez por semana à comunidade plenamente reunida. Roga-se a Frei Diego que se encarregue
disso.

Frei Ludovico de Casoria»

1321
Considerando a substância desta carta, os frutos produzidos pelas casas dos frades Bigi, como observei
em Nápoles, e o resultado obtido pelos indivíduos que, vindos de La Palma, foram para África, parece-me
dever deduzir que a instituição do P.e Ludovico de Casoria, dada a sua natureza, por si só não pode de modo
algum tomar a seu cargo uma missão. Mas se for apoiada e dirigida pela Ordem Seráfica, então confio que
pode ser muito útil às missões da África.
1322
Com efeito, esta instituição não criou até agora senão artesãos e não produz nenhum sacerdote. E ainda
que com o tempo formasse sacerdotes, que poderão fazer pelo apostolado, se estão proibidos de pregar e
confessar o povo e exercer o ministério exterior e toda a sua missão é governar o interior das casas e dirigir
os artesãos? Sem a ciência necessária, sem uma larga e sólida formação moral, como se pode empreender
uma missão?
Por si mesma, esta instituição não o poderá fazer nunca, mesmo pressupondo que chegasse a desenvolver-
se e a prosperar segundo o pensamento e os desejos do seu pio fundador. E se a isto junto a tendência que
este bom padre tem para amontoar no seu instituto toda a classe de indivíduos, frequentemente apenas com o
pré-requisito de rezar um rosário ou conhecer um ofício artesanal, e se tiver em conta a imprudência com que
costuma lançá-los nas obras e nos perigos da mais difícil missão, sem a preparação e a vocação devidas, en-
tão afirmo que a sua instituição poderia tornar-se prejudicial para a África. Para não falar do que às vezes
acontece em algumas das suas casas de Nápoles, passemos às provas no campo da missão africana.
1323
Entre 1861 e 1862, o P.e Ludovico em duas levas enviou para a África os seguintes oito membros da sua
instituição:
1.o Frei Pedro, 2.o Frei Ziario, 3.o Frei Mariano, 4.o Frei José Maria, 5.o Frei Gerardo, 6.o Frei Boaven-
tura, 7.o Frei Romualdo e 8.o Frei Conrado.
1324
Destes, os primeiros dois morreram em Cartum; o terceiro teve uma morte bastante boa no Cairo, em casa
de mons. o delegado apostólico; o quarto está em Belém e o quinto em Ismailia no canal de Suez (a estes
dois não os conheço); porém o 6.o e o 7.o, que vivem no convento do Cairo, asseguraram aos franciscanos da
Terra Santa que nem eles nem os outros voltarão jamais à África Central, nem a pertencer ao insto. do P.e
Ludovico. O oitavo, Frei Conrado, que estava em Schellal, depois de se ter abandonado a acções reprováveis,
para escapar às repreensões do seu superior, que agora faz de guardião em Belém, apresentou-se a um em-
pregado do Governo do Egipto para se fazer muçulmano, indicando-lhe que lhe agradava a liberdade dos
seguidores do Islão. Bom para ele o facto de aquele oficial egípcio, guiado pelo princípio de que não é bom
abandonar a religião dos próprios pais, conduziu-o ao guardião de Alexandria que imediatamente o fez
acompanhar até Nápoles, onde, depois de estar ainda cinco meses em casa do P.e Ludovico sem o hábito,
abandonou voluntariamente o instituto. Agora desempenha com competência o ofício de acendedor de gás na
Rua da Chiaia, em Nápoles.
1325
Portanto, dos oito primeiros frutos que a instituição dos Frades Bigi amadureceu para a África, três mor-
reram e os outros cinco desertaram das suas fileiras.
Passemos à última expedição a Schellal, feita há pouco.
1326
Os indivíduos que o P.e Ludovico destinou a esta estação foram os seguintes:
1.o O P.e Boaventura de Casanova, presidente. Não é da instituição do P.e Ludovico, mas pertence à pro-
víncia reformada de Nápoles e desde há cerca de dois anos está associado às obras de La Palma. É um bom
frade e conhece bastante bem o seu trabalho. Foi guardião em Caserta e, embora de horizontes curtos, creio
que é capaz de dirigir bem o interior da casa. Mas no exterior pouco poderá fazer, não conhecendo nada dos
costumes do país e ignorando por completo a língua árabe. Este diz que não existe o menor entendimento
entre o P.e Ludovico e o provincial e os frades de Nápoles, os quais não vêem com muito bons olhos a sua
instituição, que temem comprometa a família franciscana. Recebeu do P.e Ludovico ordem muito severa de
nunca falar a partir de Schellal sobre os assuntos da missão nem com o delegado apostólico do Egipto, nem
com o provincial de Nápoles, nem com o geral, nem com a Propaganda, sob a ameaça de ser privado dos
víveres; e rogou-me que comunicasse isto aos seus superiores, provincial e geral e a V. Em.a Rev.ma, peran-
te quem me limito a cumprir o encargo.
1327
2.o O P.e Boaventura, de Cartum, a quem, depois de ter estado mais de quatro anos no meu insto. de Ve-
rona, eu levei a Nápoles nos finais de 1860. Trata-se do melhor elemento que jamais saiu de La Palma. É um
devoto jovem, com muito zelo, critério e capacidade e promete muito, embora não esteja totalmente despro-
vido do temperamento ardente dos orientais. Sem ter feito os necessários estudos de teologia, da qual tem só
uma ligeira ideia, fez a sua profissão religiosa vai para dois anos e foi ordenado sacerdote no dia 8 de Outu-
bro do ano passado, partindo dois dias depois, o dia 10, para Roma e para a África. Como conhece a língua
árabe e o país, adquiriu em Schellal grande ascendente sobre o povo, donde nasceu uma profunda cisão com
o presidente; e penso que o P.e Ludovico só poderá pôr remédio a isto com uma total separação entre um e
outro.
1328
3.o Frei Pedro, procurador de Schellal. Foi sete anos soldado e em 1860 lutou em Cápua contra Garibaldi.
Alguns anos depois, foi aceite pelo P.e Ludovico, que, ao cabo de uns meses, o pôs à frente dos artesãos de
Capo Di Monte por se tratar de um bom carpinteiro. Foi connosco a África e embora iletrado e desconhece-
dor da língua árabe, foi feito procurador em Schellal. Esteve lá 28 dias: como consequência da cisão mencio-
nada, partiu sozinho e veio para o Cairo, onde declarou aos frades que não voltaria mais à missão, nem ao
P.e Ludovico.
4.o Frei Inocêncio, sangrador e enfermeiro. É um jovem bom, cheio de caridade e utilíssimo na estação.
5.o Frei Ludovico.
6.o Frei Joãozinho. São ambos negros, sabem algo de música e são uns bons rapazes, embora lhes pese o
hábito e a vida franciscana. Do resultado que derem estes, poder-se-á obter um critério sobre os frutos de um
negro educado na Europa como frade e regressado a África como secular.
1329
Também estava connosco P.e Francisco Palmentieri, sobrinho do P.e Ludovico. Este jovem e activo sa-
cerdote, bastante instruído nas coisas de Deus e não falto de sagacidade, está cheio de zelo por todas as obras
de La Palma e é o melhor braço de que dispõe o P.e Ludovico, a quem, desde há oito anos, presta mui úteis
serviços. Agora partiu outra vez para África com um novo frade Bigio, substituirá o antigo procurador e leva
víveres à estação de Schellal. Talvez prepare um novo centro de artesãos africanos no Cairo Velho, na casa
que o P.e Jeremias de Livorno obteve para o P.e Ludovico do piedoso intérprete do consulado inglês.
1330
Para expor o que em consciência penso do P.e Ludovico, direi que é um homem de grande coração, va-
lente ao aventurar-se a grandes obras, amante da pobreza, da oração e da observância regular, da qual é mo-
delo. Limitados são os seus talentos, a sua instrução, o seu conhecimento do mundo europeu e africano e, em
geral, a sua mente não guarda correspondência com o seu coração. É muito persistente nas suas ideias e dá
muita importância às aparências e à exterioridade. A caridade e a humildade não estão nele isentas de fra-
quezas humanas: não é aberto na sua forma de falar e muitos não verão claro o seu modo de proceder. Difi-
cilmente a Propaganda saberá por ele a autêntica verdade do que acontece na missão, a não ser que as coisas
corram às mil maravilhas. Não obstante isto, o P.e Ludovico fez um bem extraordinário à classe pobre e so-
fredora. Amado e respeitado tanto pela nobreza como pelo povo de Nápoles, está a desenvolver diante de
Deus e dos homens uma sublime carreira, que fará o seu nome imortal entre os campeões da beneficência
napolitana.
1331
Por tudo isto, que eu expus na presença de Deus com pleno conhecimento de causa e por dever de consci-
ência e que poderia corroborar com mil outras provas, julgue V. Em.a Rev.ma que resultados pode obter a
Propaganda para a África da instituição do P.e Ludovico de Casoria. Não há dúvida de que em Nápoles a
mesma é benéfica e espero e desejo que o tempo, a experiência e as provas a tornem adequada para prestar
também bons serviços à África. Mas presentemente estou convencido que, por si só, pode fazer muito pouco
e que precisa de apoio e da direcção da Ordem Seráfica para dar frutos em benefício das missões. Portanto,
parece-me prudente que por agora a Propaganda reconheça e nomeie responsável das operações africanas só
a ordem seráfica e se abstenha de confiar estações e missões exclusivamente à Instituição do P.e Ludovico, o
qual, apesar dos factos que acabo de referir, alimenta nada menos que a esperança de obter para o seu institu-
to a jurisdição absoluta sobre todo o vicariato da África Central.
His positis, eis o que me parece oportuno fazer para tornar mais eficaz o apostolado franciscano nos paí-
ses centrais da África.
1332
É preciso que a Propaganda atribua à ordem seráfica a porção do vicariato da África Central que estiver
em condições de assumir; e é necessário que a dita ordem faça renúncia formal ao resto, a fim de aplanar o
caminho para outras instituições que quiserem trabalhar naquelas regiões. Ora, penso ser conveniente que a
ordem franciscana permaneça nos países limítrofes das suas missões egípcias, quer dizer, a Núbia, cuja su-
perfície alcança 18 975 milhas quadradas, tão extensa, portanto, como quase duas vezes a França e que a S.
Congregação da Propaganda Fide poderia constituir em prefeitura apostólica. A Núbia está hoje dividida nas
seis grandes províncias de Dôngola, Cordofão, Berber, Taka, Cartum e Fazoglo e povoada por menos de dois
milhões de habitantes, entre eles mais de oitenta mil negros e um pequeno número de coptas heterodoxos,
dirigidos por um bispo residente em Cartum. No caso de a Propaganda considerar demasiado extensa esta
região para a Ordem Seráfica, poderia atribuir-lhe toda a parte direita do Nilo, compreendida entre o trópico
do Câncer e o Nilo Azul ou toda a parte esquerda do Nilo até aos 16. o de lat. N., na qual se encontram as
vastas províncias de Berber, Taka, Dôngola e Fazoglo, com uma população de mais de um milhão de habi-
tantes.
1333
Ora bem, eu estou convencido de que a ordem seráfica poderia assumir e dirigir a prefeitura da Núbia,
contanto que esta fosse provisoriamente associada à do alto Egipto, nomeando o prefeito do Alto Egipto
subprefeito interino da Núbia, dependente do vigário apostólico do Egipto e delegado e isto até ao momento
em que, seja pela sucessiva melhoria e desenvolvimento da instituição do P.e Ludovico, seja pelo aumento
dos obreiros evangélicos franciscanos, possa a ideada prefeitura reger-se por si só.
1334
Objectar-me-á V. Em.a Rev.ma: «Como poderá a prefeitura do Alto Egipto, tão escassa em meios e que
não se basta a si mesma, estender a sua acção até à Núbia?» Em primeiro lugar, certamente a Ordem Seráfica
pode e deve fazer o possível para reforçar o Alto Egipto com um maior número de missionários. Entretanto
as duas prefeituras do Alto Egipto e da Núbia, provisoriamente unidas, ajudando-se reciprocamente, cada
uma dá à outra as suas vantagens e concorrem mutuamente para desenvolver para benefício comum o minis-
tério apostólico. Isto aparecerá claro pelas seguintes observações.
1335
Os obreiros evangélicos do Alto Egipto são menores reformados e menor reformado é também o P.e Lu-
dovico e todos os frades a ele associados.
Por outro lado, a prefeitura apostólica do Alto Egipto, sem falar de Suez, tem uma casa central no Cairo
equipada com os necessários meios e comodidades para que os novos missionários se possam formar no
conhecimento do árabe e dos costumes orientais e na qual reina o espírito religioso. Além disso, no Alto
Egipto, dispersos por seis estações, há seis franciscanos versadíssimos no árabe, muito capazes e cheios de
zelo e abnegação pela salvação das almas.
1336
O P.e Frederico, chamado pelos árabes abuna Botros, responsável de Siut, que já foi prefeito há bastantes
anos, e o P.e Samuel d’Accadia, responsável de Negadeh, são dois homens de mérito, capazes de dirigir uma
missão. Este último é um profundo conhecedor da índole e costumes orientais; e ainda que perseguido pelo
ódio dos sacerdotes hereges e de alguns coptas católicos, que em vão atentaram contra a sua fama, é aquele
que mais que qualquer outro ajudou a missão e produziu maiores frutos entre os egípcios. Em 26 anos de
apostolado, no meio das mais graves dificuldades, construiu três igrejas, fez concluir as estações de Negadeh
e de Farshiut e conduziu à fé várias centenas de hereges e alguns negros e maometanos. Gozando do respeito
do vice-rei, de todas as autoridades muçulmanas, dos cônsules europeus e sobretudo do representante geral
austríaco, tem em todo o Alto Egipto um grande ascendente sobre os coptas católicos e heréticos e sobre os
próprios maometanos, e tem a confiança dos seus irmãos franciscanos, que encontram nele um sábio e expe-
rimentado conselheiro e um valioso e temido defensor nas mais difíceis circunstâncias perante o Governo
turco e os insidiosos enganos dos hereges. E quase todos são da opinião de que, se o P.e Samuel estivesse à
frente da missão, a prefeitura do Alto Egipto mudaria de aspecto e produziria melhores frutos.
1337
O P.e Serafim de S. Antimo, responsável de Kenneh e o P.e Afonso de Cava, responsável de Kackmin,
são dois bons missionários, que desde há oito anos trabalham com grande entusiasmo e prometem muito
mais para o futuro. Muitas conversões conseguiu também o P.e José de Nápoles nos 22 anos em que vive em
Tahhata; e, cheio de abnegação, teve que sofrer muito o P.e André, responsável de Girgeh. Estes bons e es-
forçados missionários vivem longe um do outro, cada um atarefado no lugar a que a obediência o destinou, e
em geral passam muitos anos sem se verem.
1338
Ora o missionário no Alto Egipto, ao encontrar-se realmente só na sua estação, com todo o seu zelo e ca-
pacidade, não pode fazer muito em favor da fé, porque lhe faltam braços para fazer florescer as escolas mas-
culinas e femininas e promover os ofícios entre a classe abandonada. Consequentemente, a prefeitura apostó-
lica do Alto Egipto é um corpo moral que, embora dotado de cabeça na pessoa dos seus missionários, tem
debilidades ou faltam-lhe os membros para o ajudar e reforçar. Ao invés, a instituição do P. e Ludovico,
transplantada para a Núbia, é um corpo sem cabeça; porém, embora carecendo de homens aptos para dirigir a
missão, possui numerosos braços e elementos materiais que, dirigidos sabiamente, podem tornar-se muito
úteis. De facto o P.e Ludovico tira dos colégios de Nápoles toda a espécie de artesãos e catequistas, tanto
brancos como negros; e do insto. das estigmatinas, que ele levou de Florença para Nápoles, para a educação
das negras, obtém religiosas europeias e africanas instruídas na religião e nos lavores femininos. Por isso,
parece-me que, associando-se provisoriamente as duas prefeituras sob a influência do espírito de uma mesma
instituição, podem favorecer-se mutuamente e uma proporcionar à outra a cabeça para dirigir e esta, por sua
vez, fornecer à primeira os braços para trabalhar. Claro que dependerá muito da prudência do prefeito apos-
tólico saber tirar frutos copiosos, tanto dos seus religiosos reformados como da instituição do P.e Ludovico.
1339
Além disso, devido ao princípio irrevogável estabelecido pelo P.e Ludo-vico (como ouvi muitas vezes ao
próprio e ao rev.mo P.e geral), segundo o qual nenhum franciscano reformado poderá jamais aspirar às mis-
sões africanas se não tiver sido educado no colégio de La Palma, ficarão excluídos do apostolado da África
Central todos os bons religiosos das províncias da Alemanha, da Áustria e do Véneto (que são as mais distin-
tas quanto à aptidão e observância das regras). Em consequência disso, a África não só se veria privada das
vantagens que implica um maior número de obreiros evangélicos, mas também dificilmente obterá o espon-
tâneo apoio da Sociedade de Maria de Viena, que nunca abandonou o desejo de que se dê preferência aos
alemães para o apostolado da África interior.
1340
Pelo contrário, com a união provisória das duas prefeituras, a Ordem seráfica poderá obter bons missioná-
rios alemães, do império austríaco, onde não se extinguiu de maneira nenhuma o entusiasmo pela missão
africana. Em tal caso participariam nela alguns missionários franciscanos que não confiam muito nas obras
africanas do P.e Ludovico, entre eles o distinto P.e Mainrado, prussiano, que já esteve na África Central e
que agora desempenha com muito zelo o ministério sacerdotal em Alexandria, onde goza de plena confiança
sobretudo da colónia alemã.
1341
Para facilitar o trabalho franciscano no Alto Egipto e na Núbia contribuirá sobremaneira a construção da
via férrea entre o Cairo e Assuão, já iniciada, e que dentro de uns seis anos, segundo o cálculo de S. A. o
vice-rei do Egipto, deve ir através do deserto de Korosko a Cartum.
Se a S. Congreg. não julgasse oportuno adoptar o meu projecto de unir provisoriamente o Alto Egipto e a
Núbia, então será necessário que a Ordem Seráfica escolha nas suas missões do Oriente alguns missionários
mais experimentados para dirigirem as missões da África e que se renuncie ao processo seguido até agora de
aventurar novos e não experimentados superiores no difícil apostolado daquelas perigosas regiões.
1342
Não convém à minha pessoa cheia de limitações dar conselhos sobre o modo de efectuar pouco a pouco
esta nova organização da actividade franciscana nas margens do Nilo. Parece-me que se tornará menos difícil
se se começar a realizar antes de o vicariato apostólico do Egipto entrar nessa nova fase para a qual parece
encaminhar-se.
1343
Se dentro de algum tempo o Insto. Mazza não aceitar a missão do Nilo Branco, espero não tardar muito
para apresentar eu um projecto para introduzir naquelas terras (onde o Governo egípcio criou já a mudirié
dos Schilluk e vai organizando outras províncias) um corpo de missionários de outra instituição com a qual
já comecei a falar.
1344
Eis o que me parece que se pode fazer para o bem daquela parte do vicariato apostólico da África Central
que se tentou evangelizar desde o início da sua erecção até hoje com os elementos e com as forças hic et
nunc existentes. Até agora não se falou senão da vigésima parte desta vasta missão. Que poderei eu dizer
sobre a maneira de evangelizar o resto deste vicariato, que nunca foi visitado nem conhecido pelos missioná-
rios e que compreende quase todo o centro da península africana, abrangendo uma superfície maior que a de
toda a Europa?
1345
Este é um problema ainda mais difícil de resolver. Como não podemos avançar com segurança ao tratar
tão importante e difícil assunto, devemos dar-nos por satisfeitos caminhar vacilantes e limitar-nos a propor o
que é razoável e justo como ideia, embora a sua concretização seja apenas provável; e isto até que alguém se
apresente com mais sólidos argumentos, que ofereça motivos mais poderosos para tentar a conversão das
tribos desconhecidas da África. A Propaganda não ignora as forças que podem fornecer para este fim as cor-
porações religiosas e os seminários para as missões estrangeiras e sabe quantas e quais podem prestar-se para
tão difícil empresa. Mas, a julgar pelo panorama que hoje em dia se abre perante nós, todos estes viveiros do
apostolado não dão o contingente necessário para regenerar o centro da África. Dever-se-á então pôr de lado
toda a preocupação e abandonar à sua sorte aqueles infelizes países povoados por sessenta milhões de almas?
É preciso experimentar todos os meios e arriscar todos os sacrifícios razoáveis, confiando n’Aquele que vê
tudo, pode tudo, ama e vult omnes homines salvos fieri.
1346
Por isso, cada vez mais convencido da sua eficácia, não hesito em propor o meu Plano para a Regenera-
ção da África, impresso em Veneza em 1865, que concebi com base na extensão do vicariato estabelecido
por Gregório XVI na época da sua criação. O referido Plano, apresentando para a evangelização da África
um processo simples, justo e prático, adaptado às necessidades das imensas tribos da Nigrícia central, e sen-
do, se não me engano, aprovado por todos, tende a pôr em jogo em favor da África todos os elementos e
forças já existentes do catolicismo e criar mais, sobretudo com a instituição de novos viveiros de apostolado
no centro das diversas nações católicas, o que, por si, despertará um religioso entusiasmo para com a parte do
mundo mais abandonada e infeliz e produzirá missionários e donativos.
1347
Se tivesse tido que conceber um plano para uma só corporação, teria medido as suas forças e os seus mei-
os, preparando assim um projecto adaptado à mesma. Porém, como um só insto. não pode abarcar a desme-
surada extensão do vicariato da África Central, que confina com quase todas as missões que circundam aque-
la grande península, julguei conveniente propor um Plano grandioso, porém de grande simplicidade, que sob
a égide da Propaganda e com a colaboração dos vigários e prefeitos apostólicos das costas africanas que qui-
serem prestar-se a isso, serve poderosamente para abrir a numerosas falanges o caminho do apostolado da
África e para iniciar uma nova era de salvação naquelas virgens e desventuradas nações, sobre as quais pesa
ainda a tremenda maldição de Cam.
1348
A fim de que se me torne mais fácil fazer algo em favor dos negros, não peço por agora a V. Ex.a Rev.ma
mais que uma só graça: «Uma carta de apoio a P.e Comboni, na qual V. Emª. Rev.ma o exorte e anime a pôr-
se com energia a realizar o que há de bom, justo e prático no seu Plano para a Regeneração de África (com
abstracção do que nele é inconsistente e irrealizável, mostrando que os seus pobres esforços são do agrado do
Santo Padre e da Propaganda).
1349
Confio que V. Em.ª. Rev.ma se dignará atender esta minha humilde súplica, porque a substância do Plano
é em geral válida. O que há nele mais de irrealizável não é senão acessório. Se nos pomos à espera de uma
época melhor e mais facilitada, com meios para converter a Nigrícia, desceremos à terra sem termos feito
nada. Tudo o que diz respeito à África Central é difícil. A história das suas missões ensina-nos que até agora
foram ineficazes todos os processos e tentativas. O meu Plano, à medida que se for realizando, trará grandes
vantagens aos vicariatos e prefeituras apostólicas onde se aplicar. É certo que a experiência demonstrou que
uma mesma missão não deve ter duas diferentes instituições. Porém, quando uma só corporação não basta
para satisfazer as necessidades das almas, como o caso em que se encontra o vicariato apostólico do Egipto,
parece-me um mal menor que uma governe e trabalhe e as outras trabalhem subordinadas a ela. Na África,
onde tudo é sacrifício, será menos fácil que se rompa a paz entre corpos heterogéneos, sobretudo se como
braços auxiliares se escolhem instituições recentes não dadas a contaminar-se com questões de egoísmo de
casta e entre as quais reine e floresça o espírito de J. C. e o zelo pela salvação das almas.
1350
Em qualquer caso, uma carta de apoio de V. Em.a Rev.ma produzirá sempre bom fruto, porque me ajuda-
rá grandemente a conseguir os meios para realizar pouco a pouco o meu Plano, tanto na Europa como na
África, que são o pessoal e o dinheiro, e facilitar-me-á a maneira de ganhar exclusivamente para a regenera-
ção da Nigrícia a Obra do Resgate fundada pelo falecido P.e Olivieri.
1351
Pelo que respeita ao pessoal, uma carta de V. Em.a Rev.ma:
1.o Abre-me o caminho para mover as novas instituições a trabalhar em prol da África. Eu dou muita im-
portância às vantagens que estas oferecerão para a formação de pequenos institutos de jovens negros e negras
nos vicariatos e nas prefeituras da África que queiram prestar-se a esta obra inclusive pelos benefícios que
daí derivarão para as suas missões. Se, a modo de exemplo, nos vicariatos do Egipto e dos Gallas se introdu-
zissem alguns sacerdotes do insto. de D. Bosco ou de Cottolengo de Turim, os menores observantes e os
capuchinhos não teriam que temer em absoluto que estes aspirassem às conquistas dos seus vicariatos e mui-
to menos pensando nas condições que ali se estabeleceriam segundo a organização do Plano. Alguns superio-
res das missões africanas serão contrários a colaborar nesta obra, para manter distante quem poderia fazer-
lhes observações... e informar Roma. Espero que V. Em.a Rev.ma se mostre favorável a esta obra, até porque
se torna adequada para despertar uma santa emulação na África e para garantir melhor o bom funcionamento
das missões.
1352
2.o Facilita-me a criação de alguns pequenos seminários para as missões africanas nos principais centros
da Europa. As vocações para o apostolado multiplicam-se em proporção aos instrumentos e meios com que
se suscitam ideias para uma fidelidade tão sublime. A França dá a maior quantidade de dinheiro e de missio-
nários para a causa das pias obras para a propagação da fé e do Seminário das Missões Estrangeiras de Paris,
que ali florescem. Verona e Bressanone deram mais missionários para a África do que todo o império austrí-
aco, devido às obras do Insto. Mazza e do prof. Mitterruztner. Se isto se faz na Alemanha, Inglaterra, Brasil,
Espanha, etc., nestas cultas nações se suscitará um interesse maior pelo apostolado.
3.o Servirá de poderoso estímulo às congregações que têm missões na África para reforçarem o seu mi-
nistério com maior números de trabalhadores evangélicos, preparando pessoal com o qual expandam pouco a
pouco as suas actividades no interior e assumam ali novas missões. Da força das missões das costas de Áfri-
ca dependem muito os benefícios que daí derivem para o centro. Além disso, outras ordens religiosas pode-
rão tomar a seu cargo novas missões na Nigrícia.
Quanto ao dinheiro, há que ter em conta que se precisa para as obras preparatórias da Europa e também
para as que se devem realizar na África. Uma carta de V. Em.a Rev.ma facilitar-me-á a consecução do di-
nheiro para ambos os objectivos.
1353
Para criar as obras preparatórias da Europa destinadas a formar pessoal para as missões da África, como
são os pequenos seminários para as missões africanas, os centros de formação artesanal, etc., pensei fundar
uma pia associação estruturada segundo as regras da Pia Obra da Propagação da Fé, que empreenderei no
Véneto e que, quando estiver bem encaminhada e aprovada pelos bispos, darei a conhecer a V. Em.a Rev.ma.
Só na Alemanha católica há mais de cem associações deste tipo para diferentes fins. Espero ter êxito neste
obra tão vantajosa, que unirá num mesmo espírito, estabelecendo uma utilíssima confederação entre elas,
todas as instituições que trabalham em favor da África e que têm seminários e colégios na Europa.
1354
Quanto ao dinheiro para as obras que se hão-de empreender na África, as pias sociedades já existentes pa-
ra a propagação da fé oferecerão o necessário para a sua manutenção:
1.o A Sociedade de Colónia para o resgate e a educação dos negros está enformada de um espírito emi-
nentemente católico e totalmente isento desse egoísmo de nacionalidade, cujas marcas se encontram em al-
gumas obras de carácter similar. O presidente do comité, o rev.mo P.e Noecker, que é fundador de um gran-
de insto. aprovado pelo falecido card.-arcebispo Geissel, é um homem de grande coração, prudência e capa-
cidade, que começa a conseguir que esta obra seja bem-vista por parte do episcopado alemão. E o membro
P.e Sticker II, benemérito por ter promovido sempre as obras da religião, foi, na qualidade de secretário, a
pessoa que mais contribuiu para o estabelecimento desta ínclita Sociedade, a qual, adoptando o Plano para a
Regeneração da África, na convicção de que resultará útil para os pobres negros, me atribuiu o produto de
quase todos os seus donativos, com a firme promessa de aumentar cada ano as suas contribuições na medida
das suas forças e segundo os resultados da obra empreendida. Esta Sociedade é pequena por agora; porém,
com o progresso da obra em África, tornar-se-á cada vez mais forte na Alemanha católica e desenvolver-se-á
sobretudo quando vir apoiado por V. Em.a Rev.ma o Plano que ela avalizou com a sua protecção (Carta da
Sociedade de Colónia, Veneza 1865, p.12).
1355
2.o O sr. Berard de Glajeux, presidente do Conselho de Paris, em plena assembleia e na presença de
Mons. Massaia, ordenou-me assegurar a V. Em.a Rev.ma que a Obra da Propagação de Fé prestará especial
assistência às missões, institutos e colégios da África Central, desde o momento em que se disponha dos
trabalhadores evangélicos e esteja determinado o lugar da missão, instituto ou colégio em África.
3.o A Obra das Escolas do Oriente e da Santa Infância, estabelecidas em Paris, e a Sociedade da Imacula-
da Conceição, radicada em Viena, prometeram-me ajuda para os institutos que se fundarem em África.
Confio que se conseguirá desenvolver a pequena obra para a redenção dos escravos, que um pároco de
Amiens está a fundar agora em Espanha.
1356
Finalmente a ansiada carta de V. Em.a aplanará o caminho para conseguir que a Obra do Resgate colabo-
re exclusivamente na regeneração da Nigrícia.
Para atrair ao meu projecto esta santa obra, falei com o meu rev.do P.e Biagio Verri, sucessor do P.e Oli-
vieri, e no passado mês de Maio respondeu-me de Marselha a dizer que estudará a maneira de nos ajudarmos
mutuamente, quando se puserem em andamento os pequenos institutos de negras no Egipto. [...] [“no Egip-
to” está sobreposta a uma palavra que termina em rà e continua com uma clara dobra que...] Por isso fiz
chegar a S. Em.a o card. vigário de Sua Santidade em Roma, que olha como protector a obra do P.e Olivieri,
o seguinte memorando, que me apresso a expor a V. Em.a Rev.ma para que se convença das vantagens que a
Nigrícia terá desta obra, desde que, modificando o seu antigo programa de trazer as suas resgatadas para a
Europa, concorra para ajudar a nossa empresa fornecendo novos institutos africanos.

Memorando dirigido
a
A S. Em. o Card. Patrizi, vig. de Roma

1357
«A obra de admirável caridade do falecido P.e Olivieri tem por objectivo resgatar do seio da barbárie me-
ninos negros de ambos os sexos e proporcionar-lhes refúgio em lugar seguro para salvar as suas almas. Até
agora pôs-se em prática esta obra comprando no Egipto os jovens negros e negras, trazendo-os para a Euro-
pa, onde foram repartidos por vários mosteiros e estabelecimentos da Itália, França e Alemanha. O imenso
bem derivado disso ficou limitado aos indivíduos objecto de resgate, não se estendendo à raça negra; e para
isso gastaram-se grandes quantias de dinheiro e realizaram-se imensos esforços tanto por parte do fundador e
dos promotores da obra como dos institutos onde os jovens foram acolhidos. Além disso, por causa do Trata-
do de Paris de 1856, que proibiu a escravidão, e pela absoluta vontade do vice-rei do Egipto e dos represen-
tantes das potências europeias, que proibiram a exportação de negros, a obra, tal como está concebida, só se
pode realizar de maneira clandestina, isto é, comprando as jovens negras, retendo-as por algum tempo num
instituto do Egipto e levando-as sob sigilo para a Europa, duas a duas ou três a três, acompanhadas por irmãs,
pela sinuosa rota da Síria.
1358
Se o director da obra do P.e Olivieri em vez de levar para a Europa os negros resgatados, decidisse que,
uma vez comprados no Egipto, fossem confiados aos institutos masculinos e femininos que existem e aos
que se vão fundando no Cairo e no Alto Egipto para formar elementos destinados à conversão da África Cen-
tral, a dita obra teria as seguintes vantagens:
1.o Cada jovem negra trazida para a Europa custa actualmente à obra do P.e Olivieri uns 400 escudos,
porque se precisam de 100 escudos para a comprar, cerca de uns outros 130 para a manter no Egipto até que
chegue o momento propício para a transferir para a Europa e uns 130 escudos mais para a sua viagem para a
Europa, acompanhada das freiras pela rota da Síria. Em contrapartida, se imediatamente após a sua compra
se confiasse a resgatada aos instos. do Egipto, não custaria mais de 100 escudos à obra, porque os institutos
se encarregariam de tudo o resto. E assim com os 400 escudos que custa uma jovem negra poder-se-iam res-
gatar quatro, salvando deste modo quatro almas em vez de uma só. O cálculo é matemático.
1359
2.o A obra do P.e Olivieri não se limitaria a ajudar as pessoas individuais dos resgatados, mas também fa-
ria destes outros tantos instrumentos para salvar muitas mais almas e seria imensamente benéfica para as
missões da África Central. Tendo a experiência demonstrado que o missionário europeu não pode viver entre
as tribos dos negros e que do mesmo modo o negro não pode viver na Europa, vai-se agora pôr em execução
o plano de estabelecer institutos masculinos e femininos no Egipto, nos quais se instalem jovens negros e
negras para os formar na fé e lhes ensinar ofícios, a fim de fazer deles elementos para as missões africanas.
Assim, a obra do P.e Olivieri é útil e necessária para a conversão da Nigrícia central.
1360
3.o A obra do P.e Olivieri, por ter que levar clandestinamente os negros para a Europa, está em todo o
momento ameaçada de extinção. Pelo contrário, se acudisse em ajuda dos institutos da África, poderia operar
abertamente no Egipto, desenvolver-se-ia de forma maravilhosa e teria assegurada a sua perpetuação.
1361
4.o Por levar os negros para a Europa, a obra do P.e Olivieri não agrada nem aos bispos nem aos fiéis, que
vêem com melhores olhos a minha proposta de modificação. Nas minhas viagens por toda a Europa, mais de
quarenta bispos, arcebispos e cardeais, entre eles o Em.mo De Angelis, mostraram-se-me desta opinião; e o
mesmo a maior parte dos benfeitores da obra, inclusive a Sociedade de Colónia.
1362
5.o É moralmente impossível que as oitocentas resgatadas pelo P.e Olivieri sejam chamadas ao celibato e
à vida claustral. O conhecimento que adquiri da natureza ardente da raça africana nos quinze anos que tenho
dedicado à obra dos negros e a minha experiência na África e na Europa convencem-me do contrário. Colo-
cadas as negras nos institutos de África, ver-se-iam livres de tão fatal coacção e encaminhar-se-iam, sob a
direcção das freiras, para o estado a que o Senhor as chamasse.
1363
6.o A obra actualmente incompleta do P.e Olivieri, melhorada (quanto ao pessoal cooperante) e orientada
para um objectivo mais pleno (como o anteriormente mencionado), conseguiria muitas mais ajudas dos fiéis
da Europa.
1364
Por estas e muitas outras razões, estou convencido de que a obra do P.e Olivieri ficaria aperfeiçoada se se
adoptassem as modificações sugeridas, o que seria enormemente valioso para a conversão dos negros. É este
o motivo pelo qual suplico que a dita obra venha em auxílio dos institutos masculinos e femininos africanos,
que sob a égide dos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria espero fundar nas costas de África, seguindo o
meu Plano para a conversão da Nigrícia».

1365
Utilizei as minhas pobres capacidades, Emm.o Príncipe, para lhe expor neste breve relatório o que penso
que se pode fazer para conseguir a conversão da África Central; e isto para obedecer às veneradas ordens de
V. Em.a Rev.ma com a única finalidade de promover a maior glória de Deus e a salvação dos negros, aos
quais consagrei a minha vida. No caso de V. Em.a desejar esclarecimentos mais pormenorizados sobre os
pontos que não soube explicar bem, bastar-me-á uma só indicação para o satisfazer. Entretanto, ficando sem-
pre à espera das suas ordens, aproveito esta ocasião para lhe beijar a sagrada púrpura e para me declarar com
todo o respeito

De V. Em.a Rev.ma
Humilmo. devot.mo e obed.mo serv.
P.e Daniel Comboni, do Insto. Mazza

N.o 189 (178) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione AfricanA»

Roma, 5 de Julho de 1866

Amadíssimo superior,

1366
Espero que P.e Beltrame tenha recebido as cartas que lhe enviei antes do dia 24 do mês passado. Espero
também que esta que mando, via França. lhe chegue bem a si. Eu encontro-me de perfeita saúde e desejoso
de receber notícias do nosso querido instituto e sobretudo de si. Agora devo falar-lhe do pequeno Hans.
1367
Informei-me de que na Propaganda de Roma admitem meninos quando procedem de nações hereges e in-
fiéis, por isso numa destas tardes, tendo rogado a S. Em.a o Cardeal Barnabó que aceitasse Hans, se julgasse
oportuno, respondeu-me afirmativamente, até já para o novo curso escolar de 1866-1867. Penso que isso
seria um grande bem para o rapaz e para mim e o insto. poderia beneficiar outro em seu lugar. Isto digo-o só
a si para que em sua prudência decida o que melhor lhe parecer e persuada Maria Kessler a fazer este bem ao
seu sobrinhito. Peço-lhe que me faça saber algo a respeito disso e também que me comunique quer por meio
de P.e João, ou de outro que julgue oportuno, em que nível de estudos se encontra Hans, a fim de que eu
possa comunicá-lo à Propaganda dentro do corrente mês e ver se para Novembro está suficientemente adian-
tado para ingressar no Colégio Urbano da Propaganda Fide.
1368
Terminei o trabalho que Barnabó me mandou sobre o que se pode fazer pela África Central com os meios
hic et nunc existentes. Falando do Instituto, disse que, por agora não está em condições de aceitar uma mis-
são; mas deixei brilhar a esperança de que ao cabo de uns anos, mudando as circunstâncias, talvez o insto.
possa retomar as suas actividades na África e aceitar uma missão. Deus queira.
1369
Estou sempre preocupado consigo e com a sua saúde. P.e Beltrame escreveu-me pedindo-me que visse a
maneira de poder ajudar o instituto. Com o tempo, penso que poderei fazer algo: importam-me sobremaneira
os interesses e o bem desse instituto, ao qual devo uma segunda vida. Como lhe disse a partir da África, da
minha parte darei quanto permitirem as minhas pobres forças. Alegra-me ouvir dizer que se trabalha com
grande empenho para consolidar o instituto e que o nosso P.e Beltrame é nisso um valioso instrumento. Terá
sofrido a sua família em Valeggio com os acontecimentos de 24? Imagino como se hão-de encontrar agora
em Verona! Eu rezo todos os dias ao Senhor por si e pelo instituto; peço-lhe rogue aos Sagdos. Corações de
J. e de M. por mim. Aqui em Roma encontra-se o bispo do Egipto, a quem a Propaganda tirou desse vicariato
para o destinar à Bósnia. O novo delegado do Egipto é mons. Luís Ciurcia, nascido em Ragusa em 1818,
Menor Observante, feito bispo de Lesh e depois de Shkodër em 1853. No meu regresso a Verona, transfe-
riremos as negras para o Egipto.
1370
Rogo-lhe apresente os meus respeitos ao sr. bispo, ao marquês Octávio e a Tregnaghi; mas saúde epeci-
almente P.e Beltrame, P.e Brighenti, P.e Poggiani, P.e Bolner, P.e Fochesato, P.e Lonardoni, etc., etc. e Fai-
loni Bevilacqua, etc., e às protestantes, etc. Mande a bênção a

Seu af.mo P.e Daniel

N.o 190 (179) - A P.e JOÃO BELTRAME


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 5 de Julho de 1866


Meu caro P.e João,

1371
Embora lhe tenha escrito outras vezes, quero meter dentro da carta do superior duas linhas também para
si. Saúda-o mons. Vuicic. Gostaria de ter notícias suas e também de Valeggio. Estou a imaginar que se deve
ter lá produzido um grande transtorno. Eu sempre o recordo e sabe que lhe guardo afecto. Conhece o que
penso e alegra-me imensamente saber o que o senhor faz pelo nosso querido instituto. Espero que, chegado a
Verona, não será inútil a minha total cooperação. Sabe as minhas intenções. Por favor, escreva-me dando-me
notícias do instituto e de Verona, via Alemanha e Marselha: espero uma longuíssima carta. E diga-me com
vai a mão do superior. Receba cumprimentos de mons. Nardi, a quem agora vejo muito amiúde. Dê os meus
a P.e Jerónimo, a sua família e apresente os meus distintos respeitos à família Pompei e a P. e Beltrame, o
pregador. Adeus.
1372
Oh, que deliciosas gargalhadas quero que soltemos quando voltar! Não pode imaginar quão impaciente
estou por me ver no instituto! Quantas mudanças! Todo um mundo novo! Sem dúvida que me vai parecer
estranho ter outras ideias, outra vida, outras coisas, outras pessoas, poucos padres, nenhum clérigo, poucos
rapazes! Depois vermo-nos confinados em cima, na casa Zenati, como os ermitões! Imagine a impressão que
me vai causar a mim, que em mais de dois anos só vi o instituto durante alguns dias, uma vez que tenho esta-
do sempre em viagem, pelas capitais, etc.! Ah! Mas quero que estejamos alegres – caia o mundo – e que
passemos divertidas noitadas falando sem parar com o nosso P.e Brighenti, o doutor e companhia. Saúde
também Baschera e Betta e se lhe restar tempo, também a essas protestantes que nunca me escreveram a
mim, que, creio, me preocupei com elas.
Adeus, meu caro P.e João. Mantenha-se são, alegre, rejuvenesça, brinque, para que possa estar também
alegre

O seu af.mo e como irmão


P.e Daniel

N.o 191 (180) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 11 de Agosto de 1866


Amadíssimo superior,

1373
Ontem à tarde chegou-me a sua estimadíssima carta de 28 do mês passado, a que me apresso a responder,
agradecendo cordialmente pela mesma e abrindo-lhe submissamente o meu coração sobre o assunto das nos-
sas negras. Conste, em primeiro lugar, que diante de Deus me declaro merecedor de qualquer humilhação,
como também de si, como meu superior, recebo de boa vontade qualquer mortificação que julgue necessário
fazer-me sofrer e declaro merecê-la, ainda que ignore em parte a razão; quanto o senhor fizer, até para humi-
lhar o meu amor-próprio e quanto julgar oportuno que se faça no instituto, tudo para mim é objecto de vene-
ração. Confio, não obstante, que o senhor seja tão bom que permita que eu faça algumas observações sobre o
assunto das negras.
1374
Na carta de 30 de Outubro de 1865, que a partir do instituto fundamental me foi remetida para Viena, en-
quanto se me dizia que não assumisse nenhum compromisso em nome do instituto perante o excelentíssimo
comité da Marienverein, acrescentou-se: «Não obstante o já dito, podes fazer algo mesmo agora em favor
desses pobres negros de África, oferecendo as nossas jovens negras em ajuda a algumas instituições que tu
creias conveniente para a África». Deste fragmento da carta do insto. fundamental deve deduzir-se que se me
concedeu a faculdade de decidir a que instituições se podem confiar as nossas jovens negras. Valendo-me
desta faculdade, chegado ao Egipto, e depois de ter meditado bem sobre o modo de utilizar melhor essas
jovens em favor da África, cheguei a acordo com as Irmãs do B. Pastor do Cairo e com as clarissas italianas
(reservando-me sempre a final aprovação do meu superior) mediante o qual os referidos institutos acolheri-
am as nossas negras e a cem mais, se as houvesse.
1375
Depois das cartas de P.e Beltrame, de Abril e de Junho passados, em que me falava das negras mais ou
menos no mesmo sentido, confirmei às irmãs, na minha correspondência com o Cairo, as mesmas intenções.
Por isso, qual não foi a minha surpresa quando na sua última estimada carta li estas palavras: «A respeito das
negras, oferece-se-me colocá-las segundo o seu desejo e tudo será efectuado quanto antes». A mim ter-me-ia
parecido adequado que, antes de o senhor chegar a um compromisso, falasse com quem teve do instituto
fundamental a faculdade de as colocar onde o achasse mais conveniente para o bem da África e para atender
aos desejos delas.
1376
Agora que se falou destas jovens no Cairo e com a Propaganda e até com o Santo Padre, como vou ficar
eu perante todas estas pessoas? Sobre o que tinha combinado no Cairo, escrevi muitas vezes tanto da África
como de Roma. E não importa se tardei excessivamente em libertar o instituto das negras, porque isso não
depende de mim, mas de Deus, que permite que as coisas respeitantes à sua glória avancem lentamente.
Além disso permito-me fazer aqui outra observação. Nas cartas que me escreveu o nosso querido P.e João,
nunca me disse ter respondido à Propaganda que o instituto não pode tomar a seu cargo a missão, etc.: foi
necessário que o próprio cardeal me informasse disso. E agora o senhor, meu caro superior, diz-me que en-
controu a maneira de colocar as raparigas e não me indicou como. Conceder-me-á, senhor superior, que esta
não é uma pequena mortificação para um membro do instituto que não é o último a preocupar-se pelos inte-
resses dos pobres negros e que fez o que estava nas suas mãos para salvar alguns africanos e promover o bem
da África. Sei bem que não gozo de nenhuma consideração no meu instituto, ao qual, contudo, estarei sempre
unido com o coração e procurarei ajudar da melhor maneira possível, se lhe aprouver. Temo muito que o
senhor tenha cedido as negras ao P.e Ludovico. Em tal caso teria que deplorar um erro involuntário, sim, mas
fatal para as pobres raparigas; porque, entre outras razões, perante a Propaganda e em toda a parte, ele faria o
que fez com os negros, o que representaria uma perda de crédito para o instituto.
Não é oportuno pôr por escrito o que lhe quereria dizer sobre esse benemérito e bom homem.
1377
Ora, para que o senhor fique bem com quem vai receber as jovens negras e para que eu não faça uma tris-
tíssima figura no Egipto, proponho-lhe o meio de matar dois pássaros com um só tiro: dê-me a mim quatro
ou cinco ou ao menos três das raparigas e leve as demais à instituição com quem já combinou. Mas bem
entendido que quero as três ou quatro mais saudáveis, melhores, mais capazes e de maior utilidade para a
África. A fim de se justificar relativamente às que me deixar, sempre pode aduzir que tais jovens negras não
querem ir, mas ficar no instituto e à minha disposição, etc. Enfim, se o senhor quiser, pode fazer-me esse
favor. Eu espero-o e rezo por isso neste mês consagrado ao Coração de Maria, confiando obter a graça. Pe-
ço-lhe isto encarecidamente, com a confiança de que atenderá a minha súplica. Quereria quatro delas e ficar-
lhe-ia muito agradecido.
1378
Quanto a Hans, hoje fui ter com o cardeal com os dados por si facultados. Ele dirigiu-me a mons. Capelli,
secretário, que me explicou que ninguém pode entrar no Colégio da Propaganda sem, pelo menos, ter supe-
rado a ianua latinitatis, que entre nós seria como o 1.o de latim. Pelo que o senhor fez muito bem em não
dizer nada a Maria. Pensei que o rapaz estivesse mais adiantado.
Eu estou discretamente bem. Ando a tratar de um assunto respeitante à África, que estou a resolver com o
geral dos mínimos de S. Francisco de Paula e espero solucioná-lo rapidamente. Estou impaciente por voltar a
Verona e desde que as coisas se iniciem, terminadas ou não, eu vou até aí.
1379
Perdoe-me se me pronunciei um pouco azedamente nesta carta. Isso não tira que eu tenha absoluta vene-
ração e afecto pelo meu superior e que não esteja disposto a aceitar tudo das mãos de Deus, Ele que tudo
dispõe para o maior bem. Lembre-se de que, pagas as dívidas e estabilizada a economia, o instituto pode
continuar o programa do nosso fundador a respeito da África. Espero que P.e Beltrame tenha recebido uma
carta que lhe mandei há poucos dias. Estou preocupado pelas circunstâncias políticas e pelas futuras desven-
turas das comunidades eclesiásticas e religiosas.
Envio-lhe as mais cordiais saudações: cumprimente da minha parte o bispo, P.e Beltrame, Poggiani e a
todos, enquanto, beijando-lhe a mão, me declaro com todo o respeito

Seu humilmo. e af.mo


P.e Daniel

N.o 192 (181) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 10 de Setembro de 1866


Anivers. do s. padroeiro do nosso superior
Amadíssimo superior,

1380
Recebi com sumo agrado a sua muito prezada carta do passado dia 22 e agradeço a sua bondade para co-
migo. Não tenho nenhuma queixa de si nem do instituto e alguma observação que lhe fiz na minha última
não entra na categoria de queixas. Para dizer o que sinto no fundo do meu coração, a mim mesmo não me
causa boa impressão que eu, sendo membro do insto., esteja tanto tempo longe da vista do meu superior; até
esperava que o senhor me desse alguma justa repreensão por não ir a Verona. Mas é algo que não depende de
mim, mas da Providência, que assim dispôs. Daí, estando eu algo preocupado com isso, o il.mo e rev.mo
arcebispo de Petra, mons. Castellaci, vice-gerente de Roma e ordinário da Cidade Eterna, que me deu autori-
zação para confessar e pregar aqui e é meu conselheiro e um amigo verdadeiramente conhecedor de todas as
minhas condições, há dois dias pensou escrever ao sr. bispo de Verona para que ele lhe assegurasse a si que
deve estar tranquilo a meu respeito, e parece que lhe quer expor as razões principais que me obrigam a ficar
em Roma, ainda que só por algum tempo. No tocante às negras, não me preocupo, porque quer eu volte rapi-
damente quer não, o senhor terá a bondade de manter o seu programa de conservar o que de valioso o insto.
tem e estou certo de que as três ou quatro que reservar para mim serão as melhores, as mais capazes e saudá-
veis. Por minha parte, vou expor-lhe os três motivos principais pelos quais permaneço em Roma, submeten-
do-os ao seu juízo com o único objectivo de fazer a sua vontade se neles não encontrar suficiente justifica-
ção.
1381
O primeiro é a formação de um pequeno insto. feminino no Cairo ou em Negadeh, para onde levaria as
três ou quatro raparigas. Quer dizer, as Irmãs do B. Pastor, num local anexo ao seu convento do Cairo, toma-
riam a seu cargo a educação das negras que eu pudesse arranjar-lhes para as formar como donas de casa e
depois as mesmas irmãs encarregar-se-iam de as levar para a África Central, pondo-as ao serviço de alguma
missão. O mesmo vale para Negadeh. As jovens entrariam nesta casa para ajudar as irmãs, que para esse fim
lhes procurariam marido e as colocariam fora em condições de professar a nossa fé e viver como cristãs, se
tal fosse a sua vontade. Mas acontece que a Propaganda não se encarrega de decidir sobre isto, mas remete o
assunto ao novo delegado apostólico do Egipto, mons. Ciurcia, arcebispo de Irenópolis, como fez connosco
quando nos remeteu para o pró-vigário Knoblecher. Este novo delegado da Albânia, onde era bispo em
Shkodër, virá para Roma dentro do corrente mês.
1382
Em segundo lugar, estou a tratar com o geral dos mínimos de S. Francisco de Paula para um insto. mascu-
lino e talvez para fazer com que a sua ordem tome a seu cargo uma missão na África Central. Com o geral
está tudo concertado; com a Propaganda, contudo, nada, porque antes de tudo é necessário que me ponha de
acordo com as sociedades sobre os meios e ver se algo que agrada e é aceite. Embora este assunto não apre-
sente excessivas dificuldades, tenho de manter correspondência com muita gente, necessariamente a partir de
Roma, para estar sempre em condições de consultar a Propaganda e as partes comprometidas, de modo que
seria prejudicial se tivesse de me afastar daqui.
1383
O terceiro é uma jogada que quereria fazer em favor do instituto perante o octogenário rei S. M. Luís da
Baviera, que se espera em Roma no mês de Outubro. Aqui tenho muitos que me ajudarão e que me apresen-
tarão para falar em favor de uma instituição como é a nossa. O rei Luís é um homem extravagante, quase
como Camerini, cheio de virtudes e defeitos; e entre as virtudes tem a da beneficência: deu quantias enormes
para igrejas e institutos e fundou a Sociedade de S. Ludovico para as missões alemãs da América. Eu vou
experimentar; se conseguir, glória a Deus e vantagem para nós, e se não o conseguir, bendito seja Deus que
premiará a nossa intenção. Claro que conto com bons apoios em Roma, os quais não poderia ter na Baviera,
se se exceptuar a nunciatura apostólica.
1384
Estes são os três assuntos principais que me retêm em Roma. Mas, por outro lado, que poderia fazer eu
indo para Verona, com a confusão que deve reinar nos ânimos, etc.? O momento é totalmente inoportuno.
Propus ao cardeal Barnabó um projecto meu para ver se se consegue a ajuda de Camerini e pedi-lhe uma
carta de recomendação para o conde, a quem o Papa fez duque há três meses, pelo muito que beneficiou a
Banca Romana e pelas centenas de milhares de escudos que manda à Propaganda. O Cardeal, depois de falar
com o Papa, deu-me uma resposta negativa, dizendo que não é cortês importunar com petições um homem
que espontaneamente ajuda a Propaganda. Esperava que esta ideia vingasse, porém Deus não quis. Ora bem,
como tenho relacionamentos com o card. Ugolini, antigo legado de Ferrara e amigo de Camerini e que se
ofereceu para me ajudar em tudo o que eu quisesse, estou certo de conseguir deste cardeal uma carta de re-
comendação para Camerini, a quem se suplicará que socorra o instituto. Mas Barnabó diz-me que este duque
dificilmente cederá a novas petições, porque ele gosta de dar como quer e para o que quer.
1385
Não são estas as únicas tentativas importantes que fiz pelo insto. Mas em geral é difícil que um homem
endinheirado, um príncipe ou um soberano, dêem somas consideráveis para o estrangeiro, quando no próprio
país há sempre necessidades.
1386
Ao P.e Ludovico morreram-lhe de cólera 37 negras, 14 delas num só dia e agora está no cárcere pelo de-
lito de elas lhe terem morrido!
Mons. Vuicic, ex-bispo do Egipto, partiu para o seu novo vicariato da Bósnia. O Santo Padre está muito
bem de saúde, não assim o card. Antonelli. Tenho sempre na mente a actual situação do Véneto e o que pode
acontecer em Verona. Prevejo tempos difíceis para os sacerdotes que foram fiéis ao seu divino ministério:
creio que nós padres vamos de mal a pior.
1387
Lembranças a P.e Beltrame, que me escreve muito raramente e cartas curtíssimas: não tem muita imagi-
nação para escrever; também a P.e Fochesato, a Tregnaghi e a P.e Brighenti. Que alguém do instituto finan-
cie as negras do mesmo sem que tudo dependa do superior é um sarilho...Estou impaciente por pôr fim a essa
desordem. A bolsa vazia é o pecado capital que reina entre nós. Sobre isto não posso senão pedir-lhe perdão.
O problema com as negras e as minhas contribuições vêm de circunstâncias especiais dos tempos do nosso
fundador, que não podia socorrer as negras na medida das suas necessidades. Basta, terminará também esta
dificuldade.
As minhas saudações a todos os sacerdotes, às professoras, a P.e César, etc. Pede a sua bênção

Seu af.mo e devot.mo P.e Daniel

N.o 193 (182) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c, 14/21

Roma, 13 de Setembro de 1866


Via del Mascherone, n.o 55

Caríssimo P.e Francisco,

1388
Com grande satisfação recebi a sua estimada de 16 do corrente. Não respondo às suas dúvidas sobre o que
terei mudado, porque as mesmas são uma afronta à minha lealdade. Embora saiba que nas coisas humanas há
sempre uma parte de nós mesmos em que estão envolvidas pequenas paixões, contudo sempre conservei
respeito ao instituto e a si todo o afecto e admiração. Longe de analisar o ocorrido, levantei os olhos ao céu,
adorei os desígnios da Providência e guardei para o meu amigo P.e Francisco os meus mais sinceros senti-
mentos e afecto, esquecendo talvez alguma fraqueza que houve de uma e de outra parte e detestando o pro-
cedimento dos que certamente não tiveram toda a caridade de Cristo na grave questão que tanto dilacerou o
instituto.
1389
Eu conservo para com o meu amigo P.e Francisco os mesmos sentimentos de estima, gratidão e afecto
que tinha antes: Je suis le même. Depois de receber a sua prezada carta no Cairo, escrevi-lhe a si duas vezes
de Roma; e embora nunca tenha recebido resposta, não me passou pela cabeça que P. e Francisco não seja o
mesmo que antes. Tanto assim é que, como tinha que partir de Roma antes da guerra, a ideia da minha via-
gem era passar por Ferrara, Rovigo e Pádua e deter-me um par de dias em Veneza, no seu colégio; mas, sa-
bendo haverem surgido certas dificuldades, tive que ficar em Roma. Eu sou e serei sempre o mesmo; mas
não me espanta que tenha tido a tentação de duvidar de mim, porque, metido como estou no mundo, conheço
quão rara é a lealdade. Para sua orientação, saiba que P.e Daniel mantém para consigo intactos os seus bons
sentimentos.
1390
Sobre as coisas de África, teria um sem-fim de acontecimentos que contar, por isso reservo-me para lhos
contar pessoalmente. Esperanças, muitíssimas; tenho muito que sofrer; engano dos que se opõem aos meus
projectos; apoios grandes, alegrias em abundância e confiança em Deus toda. O que sei ao certo é que o Pla-
no é vontade de Deus: Deus quere-o para preparar outras obras para a sua glória. O que sei ao certo também
é que, entre os obstáculos que irei encontrar, está a circunstância dos tempos difíceis... Espero estabelecer
dentro de pouco no Cairo um instituto para as jovens negras e talvez também outra casa para rapazes negros
no Egipto. Certo é também que Deus me deu uma ilimitada confiança n’ Ele, de maneira que nenhuma difi-
culdade me fará abandonar a empresa e que, sem dúvida, dentro de não muitos anos, começará uma nova era
de salvação para a África Central. Em Outubro espero conseguir algo de bom para o instituto (fique entre
nós: só o sabe o bispo e P.e Tomba) do velho rei da Baviera, que vem a Roma.
1391
Deixemos, por agora, tudo o demais e falemos do insto. Bem entendido que confidencialmente, porque se
no insto. se soubesse que nós correspondemos tratando de assuntos referentes a ele, alguém talvez não ficas-
se muito satisfeito. Eu tive poucas notícias de lá. P.e Beltrame e P.e Tomba escreveram-me uma ou outra
carta muito curtas, as notícias sobre o insto. eram sempre compendiadas desta forma: «As coisas do insto.
vão mais ou menos como quando o senhor deixou Verona». P.e Poggiani escreveu-me duas breves cartas,
porém afectuosas. Quem me deu notícias mais pormenorizadas foi P.e Bolner, a instâncias minhas. É preci-
so, pois, que eu rogue ao meu caríssimo P.e Francisco que me dê notícias exactas do insto. Pergunte sobretu-
do ao bispo e a P.e Guella. Mais que tudo desejaria saber a situação do insto. perante o bispo. E espero essas
notícias não numa carta de uma só página, como é o normal, mas de oito ou dez páginas.
1392
As minhas relações com o insto. são muito pacíficas; sobretudo a última carta de P. e Tomba, ainda que
curta, revela afecto por mim. Contudo, no geral, parece que não revelam muita confiança nem estão muito
seguros das minhas intenções. Não nos entendemos muito claramente. Por outro lado, o facto de eu estar
longe do instituto e de não me esforçar para lhes explicar as coisas relativas às missões, depois que respon-
deram ao cardeal Barnabó que o instituto não se acha em condições de aceitar uma missão, portanto, não
estando de pleno acordo no respeitante à África, não nos tratamos com toda a confiança. Em resumo, não fiz
com eles como fazia consigo de Paris, Londres, Roma, etc. Por isso é preciso que me escreva contando-me
tudo, tudo, de acordo?
1393
Apresente os meus respeitos ao bispo de Vicenza e ao de Verona, assim como a todas aquelas personali-
dades que tive a honra de conhecer em Vicenza. Dê-me notícias de P.e Tilino e da sua família. Em Verona,
lembranças à sra. Amália Parisi (a quem escrevi uma carta da África), à família Cavazzoca, às Urbani e a
todos os que conheço. Saúde, pedindo-lhes que me tenham presentes nas suas orações, o arcipreste de S.
Estêvão, P.e Guella, o reitor do seminário, etc. E ao meu porteiro (embora o tenha durante seis meses sus-
pendido do seu ofício pela odiosa missão que me disseram ter levado a cabo em Trento) diga-lhe que o seu
amo gosta dele e se digna contemplá-lo com olhares de bondade e de complacência. Mando-lhe uma cordial
saudação.
1394
Um milhão delas a P.e Luciano e a P.e Dalbosco. Nós aqui em Roma estamos bastante calmos. E o santo
ancião do Vaticano está impávido. Só o assunto da moeda inquieta a todos: é uma jogada iníqua dos banquei-
ros... Eu passo a maioria do tempo em Roma, embora vá com frequência a Frascati, a casa do príncipe Fal-
conieri e, às vezes, a Albano. Na próxima semana estarei uns dias a descansar com o embaixador Sartiges e
família, que me cumulam de gentilezas. O resto do tempo dedico-o ao meu trabalho. Todos os meus senti-
mentos de afecto são para P.e Francisco, que deve rezar muito por
Seu af.mo P.e Daniel

Dê-me notícias de Hans. As protestantes que vão à... nunca me escreveram: prefiro não voltar a saber de-
las.

N.o 194 (183) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/39
Setembro de 1866

Ao il.mo e rev.mo sr. bispo de Verona


Sob segredo de confissão

Gloria SS.mae Trinitati

1395
Margarida rezava nas últimas noites do mês de Agosto ao Irmãozinho (o Menino Jesus) que enviasse
muito rapidamente aqueles que deve mandar para a salvação das almas. Ao mesmo tempo viu um homem
que, a julgar pelo seu aspecto, devia ser missionário (dias depois, tendo ido P.e Daniel, ela reconheceu-o
perfeitamente). Ele tinha a seu lado um belo personagem (o Menino Jesus) que se voltou para o missionário e
lhe disse mostrando-lhe uma multidão de negros: «Vai ganhar-me todas essas almas. Sai do teu instituto ou
não poderás fazê-lo. Vai buscar o meu amigo (o P. F...) e dá início à minha obra. Eu mostrar-te-ei a minha
regra, porém tu não a darás a conhecer a ninguém, porque o tempo ainda não é favorável. Agora é preciso
actuar com prudência e energia. Fundai uma casa de missionários para os negros. Vós dar-lhes-eis o espírito
do Bom Pastor e fazei observar somente as regras estabelecidas pelo Código Canónico para os sacerdotes
que vivem em comunidade.
Meu filho, tem cuidado em não recusar esta graça. Manifestei-ta de improviso, é verdade, mas tu és forte
e eficaz. Compete-te a ti corresponder, sem te deteres nas dificuldades. Não penses que foste escolhido pelos
teus méritos, mas pelos méritos da minha paixão e morte. Até agora tudo o que fizeste foi grato ao meu Co-
ração: já tenho a coroa preparada. Porém lembra-te do que escrevi: será coroado aquele que perseverar até ao
fim. E a minha vontade é que tu contribuas para formar essa companhia no que depender de ti e eu to mani-
festar como minha vontade. Se Deus estiver contigo, quem estará contra ti? Se te negares a cumprir a minha
vontade, tem em conta que saberei encontrar outro. Eu sou aquele que é».
O «Irmãozinho», voltando-se para Margarida, disse-lhe: «Dá a este missionário a minha regra». «Eu não
a conheço, meu Irmãozinho, não quero ir contra o que vós dizeis no Evangelho que há que lançar a semente
na boa terra para que frutifique entre espinhos e sobre o caminho». «Não, não minha Margarida, não temas;
és uma boa terra, contudo, se quiseres». «Bem, meu Irmãozinho, já que vós o quereis, fá-lo-ei, uma vez que
não quero ser infiel, embora espere ainda grandes sofrimentos; porém eu ofereço-os também pela salvação
da almas».
1396
Como Margarida temia ainda que fosse um engano de Satanás, participou na Santa Missa e comungou pa-
ra pedir a Deus que lhe desse a conhecer realmente a sua vontade. Então viu o «Irmãozinho» sair da hóstia e
lançar sobre o missionário um raio que formava a Trindade sobre o seu peito. O «Irmãozinho» disse-lhe a
ele: «Tu deves ser o filho da Trindade: vai conquistar todas estas almas (e mostrou-lhe uma multidão de ne-
gros). Depois, dirigindo-se a Margarida, disse-lhe: «Bem vês que é a minha vontade. Ajuda-me, portanto: di-
lo a este missionário».

-------

A primeira vez que lá foi P.e Daniel (a 6 de Setembro de 1866 às seis da tarde), Margarida reconheceu-o
e de novo lhe exprimiu a vontade de Deus acerca dele. Como P.e Daniel não parasse de insistir que pedisse
ao «Irmãozinho» que lho confirmasse, ela pôs-se a rezar ao «Irmãozinho», que lhe respondeu: «Sim, minha
irmã, eu outorgo-te muitas graças; diz-lhe que me corresponda, que do mais me encarrego eu». No mesmo
momento, o «Irmãozinho» falou e disse: «Daniel, meu filho, avante! É a minha vontade».

-------
8 de Setembro de 1866

Durante a santa missa, Margarida rezava por P.e Daniel. Então viu um Irmãozinho belo, belíssimo! En-
contrava-se no meio de um esplêndido sol e, da Hóstia que tinha no meio de um triângulo formado no seu
peito, saía um raio que, depois de dar em P.e Daniel, era projectado em direcção aos negros. O Irmãozinho
disse-lhe a ele: «Meu filho, cuidado, não vás recuar! Abri-te um imenso campo para cultivares e concedo-te
as graças necessárias para isso. Não temas as dificuldades, os obstáculos, pois as minhas obras devem ser
assim submetidas a provas. Lembra-te do que disse aos meus apóstolos: se vos rejeitarem numa cidade, ide
para outra. Do mesmo modo, se não te quiserem receber com o teu projecto, que é o meu, vai a outra parte
para cumprir a minha vontade, que hoje é tempo que empreendas o que os outros rejeitam, para não abando-
nares a messe que te ofereci para este objectivo. Os meus desígnios para o futuro devem permanecer secre-
tos: seriam contestados e os homens só apresentariam obstáculos. Olha a minha vinda à terra: esteve oculta e
ignorada durante trinta anos. De igual modo tenho oculto aquele que me quiser servir e deve continuar des-
conhecido, porque não convém meter as pérolas que saem do meu coração na boca dos cães. Não penses
tanto; realiza a tua obra, que é a minha, porque fui eu quem ta inspirou. Permanece na humildade, porque o
que se exalta será humilhado e o que se humilha será exaltado».
1397
Mostrou-lhe uma formosa coroa, que, por um lado estava completa, porque até agora ele fez a vontade de
Deus, e da outra parte saíam raios que iam em direcção aos negros. Isto significa que se P. e Daniel faltar à
sua vocação, à qual foi chamado por Deus, esses raios ficarão aí inactivos e a coroa não se completará. O
Irmãozinho disse-lhe: «Começaste bem, segundo a minha vontade; mas isso não é suficiente: agora quero de
ti este acto de reciprocidade, pondo em prática a obra que se deve perpetuar até ao fim do mundo», e aben-
çoou-o. P.e Daniel mostrou que seria fiel à sua graça. Louvados sejam Deus e Maria.

-------

1398
1) Margarida. Assim chama o Menino Jesus à religiosa que é sujeito principal desta revelação. Esta gran-
de alma, realmente favorecida pela graça e que amiúde tem comunicações íntimas e realmente extraordiná-
rias com Deus, é chamada também pelo Menino Jesus «irmãzinha». A revelação aqui exposta é considerada
autêntica e proveniente de Deus pela autoridade dos bispos: um deles é o ordinário da diocese para onde
Margarida, por obediência, se transferiu para residir.
2) Pétit Frère (Irmãozinho). Assim é chamado o Menino Jesus.
1399
3) Este primeiro encontro de P.e Daniel com Margarida (6-09-1866) teve lugar na presença do arcebispo
ordinário onde a santa filha se encontra, o qual, desde a sua residência, acompanhou P.e Daniel no seu carro
ao convento de clausura, permaneceu com ele sempre durante o encontro com Margarida e a superiora do
convento e depois acompanhou-o a sua casa no mesmo carro. Depois de 6 de Setembro, tendo sido autoriza-
do a entrar livremente no claustro da clausura, P.e Daniel teve abundantes e longas conversas com esta santa
mulher, na qual pôde ver, além do espírito de Deus e a mais eminente e extraordinária caridade, coisas mara-
vilhosas e dons extraordinárias, sobretudo no tocante à doutrina teológica, apesar de nunca a ter estudado.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 195 (184) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione AfricanA»

V. J. M.
Boulogne sur Mer, 7 de Outubro de 1866
Amadíssimo superior,

1400
No dia anterior ao da minha partida, encontrei em Roma, detida nos correios, a sua estimada carta, na
qual, entre outras coisas, me dizia que as negras me dão dois meses de espaço para tomar uma decisão a res-
peito delas, sempre que esta seja do agrado do instituto. Pois bem, quando regressar a Roma, dentro de quin-
ze ou vinte dias, passarei por Verona, discutiremos bem o assunto e farei o que o senhor, estimado superior, e
o que o nosso bom Deus determinarem. O motivo que me trouxe a França e que dentro de uns dias (estou só
a quatro horas de distância) me levará a Londres, está muito relacionado com as coisas africanas. Explicar-
lhe-ei bem tudo quando nos virmos.
1401
Eu encontro-me muito bem e espero que igualmente se encontrem o senhor, P.e Beltrame e a nossa queri-
da gente do instituto. Em apenas quatro dias e meio, dormindo cinco horas em Basileia, vim de Roma a Bou-
logne, passando por Ancona, Parma, Milão, Lucerna, Mulhouse, Estrasburgo, Nancy, Paris e Amiens e fa-
zendo 23 horas seguidas de diligência pelo monte nevado de S. Gotardo, entre Mendrísio e o lago dos Quatro
Cantões. Descansei muito bem em Boulogne e agora estou perfeitamente. Depois de três dias em Londres,
irei até Paris.
Entretanto, encomendo-me às suas orações. Rogando-lhe que saúde da minha parte todos os sacerdotes do
nosso instituto, assim como as professoras e Tregnaghi e pedindo-lhe a bênção, declaro-me nos Sagdos.
Corações de Jesus e de Maria
Seu hum. e dev. filho
P.e Daniel Comboni.

N.o 196 (185) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/22

Frankfurt, 28 de Outubro de 1866

Meu muito estimado P.e Francisco,

1402
Verdadeiramente estou um pouco angustiado e até quase aborrecido, porque desde que lhe escrevi de
Roma não me responde nem me manda as informações que lhe pedi. Porquê? Porventura cometi algum erro
que o leve a não me escrever? Deixemo-lo. Agora, após uma paragem no Grão-Ducado de Baden, vou a
Limone e depois a Verona e Roma, passando por Vicenza. Se me mandar para Limone uma longa e porme-
norizada carta (e sabe a alegria que as suas me dão), ao passar por Vicenza detenho-me para lhe fazer uma
visita, com ideia de passar mais de três horas com o meu querido P.e Francisco; de outro modo, sigo para
Pádua, Rovigo, Bolonha, Florença e Roma. Diga-me muitas coisas do nosso insto. de Verona, porque nin-
guém me dá notícias, salvo uma pessoa respeitável. Habeo multa tibi dicere.
Visitei, por assuntos da glória de Deus e da salvação das almas, a França, a Inglaterra, a Bélgica e a Prús-
sia. De Wurzburgo talvez dê um salto de três horas a Bamberg. Não é a altura de lhe escrever o que fiz, por-
que me falta tempo e tenho frio. De viva voz, muitas coisas. O que lhe digo é que P. e Daniel é para P.e Bri-
colo o que sempre foi e que nunca mudará. Isto é tudo.
Muitas saudações a P.e Tilino et aliis. Também ao sr. bispo. Encomende-me aos Sagdos. Corações de Je-
sus e de M. Eu encomendo-o a Notre Dame des Victoires de Paris e a N. D. de Boulogne sur Mer. Adeus.

Seu af.mo amigo


e
P. Daniel Comboni
N.o 197 (186) - LISTA DE PESSOAS
Enviadas pelo P.e Ludovico à África Central
ACR, A, C. 18/17

N.o 198 (1147) - ASSINATUIRAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM SANTA CATARINA DE ALEXANDRIA, NO EGIPTO
ASCA, Registo de Missas

N.o 199 (187) - INFORMAÇÃO À SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 14 (1866), pp. 7-76

Roma, 1866

Este escrito em alemão repete quase os mesmos argumentos do n.o 188, com variantes. Oferecemos aqui,
traduzida do italiano, a variante seguinte:

1403
A obra da regeneração dos negros é uma obra de Deus: chegou o tempo da graça designado pela Provi-
dência para chamar todos estes povos para se colocarem à sombra pacífica do redil de Cristo. Já há bastantes
anos que a voz profética dos heróis Libermann, Olivieri e Mazza, herdeiros do zelo apostólico do beato Cla-
ver, ressoou na Igreja universal por meio das suas obras de eminente caridade em favor dos negros; e quando
responderam a esta chamada as admiráveis obras de Viena, de Colónia, de Paris e de Lião, as longínquas
terras de África foram regadas com o suor e o sangue dos novos apóstolos de Jesus Cristo.
1867

N.o 200 (188) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 8 de Janeiro de 1867

Amat.mo superior,

1404
Ainda que o novo vigário apostólico do Egipto, mons. Ciurcia, arcebispo de Irenópolis, se reserve em dar
o seu juízo sobre as obras que são empreendidas seja por quem for dentro dos limites da sua jurisdição, mos-
trou-se-me muito favorável a que as jovens negras sejam levadas para o Egipto e confiadas tanto ao Instituto
do Bom Pastor, como às freiras italianas do Cairo. Para tal fim, mantenho contacto com Viena para dispor de
cobertura nas viagens tanto por terra como por mar. Portanto rogo-lhe que trate solicitamente de arranjar os
passaportes das jovens negras que são capazes de subir os barcos e descer deles sem bengala, etc., para que
quando eu for estejam prontas para a viagem. Igualmente lhe peço que, por favor, se chegar alguma carta
dirigida a mim, ma faça enviar para Roma e isto até 18 do corrente. As cartas que chegassem depois do dia
18 guarde-mas e à minha chegada poderá entregar-mas. Estive ocupadíssimo até ao dia da Epifania a escre-
ver sobre coisas africanas, com o intuito de conseguir uma boa ajuda de Colónia para a viagem das jovens
negras. Agora que terminei estou contente.
1405
Agradeça em meu nome a P.e Beltrame pela bela, longa, engraçada e substanciosa carta que me escreveu
e que me foi sumamente grata. Confio que neste novo ano o Senhor derramará sobre o insto. a torrente das
suas bênçãos. Entretanto, rezemos. Aqui em Roma reina grande tranquilidade. Parece que a missão de Tone-
llo está a ir muito bem no que respeita aos bispos da Itália; tudo o que se fizer pela Igreja estará bem. Quanto
às pretensões do Governo italiano, em Roma reina o non possumus e o quod scripsi, scripsi e assim será
sempre. O facto é que há aqui uma paz absoluta. O que não há é confiança. Muitos dizem (e são os santar-
rões) que Roma não será tocada; muitíssimos, ou quase todos, temem que os soldados italianos a invadam
temporariamente e que o Papa abandone Roma para depois regressar triunfalmente; e há alguns que desejam
uma mudança. Entretanto, sabemos que perto do Capitólio, a cinquenta passos, está a Rocha Tarpeia.
1406
Por causa das minhas ocupações e também por culpa minha não lhe escrevi antes, de modo que já esta-
mos dentro do novo ano. Ainda assim, desejo-lhe toda a sorte de felicidades espirituais e temporais, bem
como a todos os do instituto. Mons. Nardi manda cumprimentos a P.e Beltrame. Da minha parte, saudações a
todos os do instituto, sacerdotes, professoras e jovens negras e às duas protestantes. Lembranças também a
P.e César e a Festa. O Papa goza de perfeita saúde. Tive ocasião de o ver, entre outras ocasiões, quando veio,
no último dia do ano, à Igreja de Jesus para o Te Deum. Foi ovacionado e recebeu vivas espontâneos, que o
aclamaram como Pontífice e Rei: era um espectáculo, como quando Vítor Emanuel entrou em Verona.
Pedindo-lhe perdão por ter estado tanto tempo sem lhe escrever, rogo-lhe tenha presente em suas orações

Se af.mo e obed.mo
P.e Daniel Comboni

N.o 201 (189) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 14 de Fevereiro de 1867

Amat.mo superior,

1407
Na próxima terça-feira, 19 do corrente, pela manhã, abandonarei a Cidade Eterna para ir a Verona em
busca das jovens negras. Espero que tenham estado calmas até agora, apesar do atraso sobre o que combiná-
mos a respeito delas; porém, se é verdade que o tempo é nosso, a disposição dele está nas mãos de Deus.
Pelo que me escrevem de Verona, creio que a maravilha dos novos acontecimentos, de poética que era, se
tornou prosaica e parece que, mais ou menos, a religião é maltratada como por toda a parte. Confiemos em
Deus, que tudo pode. Como a missão de Tonello teve êxito na eleição de bispos, esperemos que para já traga
algum benefício. Aqui em Roma há uma tranquilidade geral. Na noite do nono aniversário da república veri-
ficaram-se alguns estampidos de petardos perto do Quirinal... mas pólvora embrulhada em papel não faz
nada. Todos estão indignados e Roma tranquila.
1408
Ontem pela tarde estive com o Papa, que manda uma bênção especial para si e para os nossos institutos.
No domingo passado foi a beatificação do Beato Bento de Urbino, capuchinho, parente da família Carpegna,
amiga minha. Houve uma função comovedora no Vaticano.
1409
Estive mais vezes com o octogenário rei Luís da Baviera, mas está surdo que nem um penedo; ao conver-
sar, discorre saltando sozinho de ninharia para ninharia, e não há meio de tratar assuntos com ele, porque não
compreende nada, embora sobre muitas coisas se revele inteligentíssimo.
Manda-lhe cumprimentos o seu antigo companheiro de escola, P.e Steccanella, agora na Civiltà Cattolica.
Estou impaciente por ir a Verona em busca das negras. Lembranças a P.e Beltrame, a P.e Donato, a P.e César
Cavet e a todos os sacerdotes e professoras, assim como às protestantes, às negras, a Betta, etc.
Até nos vermos em meados da próxima semana reze por

Seu af.mo e obed.mo


P.e Daniel Comb.

Os meus cumprimentos também à sua velha tia.

N.o 202 (190) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/23

Veneza, 5 de Março de 1867

Caríssimo P.e Francisco,

1410
Há dez dias que cheguei a Verona, vindo da Cidade Eterna. Se antes de deixar o Véneto no passado mês
de Novembro não pude ir a Vicenza, desta vez isso não vai acontecer, espero, porque quero estar dois ou três
dias na sua querida cidade. P.e Guella tinha-me criado a ilusão de o encontrar em Verona, onde tinha que ir
com um bom grupo de colegiais; porém, as minhas esperanças ficaram defraudadas. P.e Clerici está fora;
doutro modo tenho a certeza que me pediria que lhe mandasse cumprimentos. Saí de Roma às oito da tarde
de quinta-feira, dia 21 de Fevereiro, e às nove e meia da noite de sexta-feira, dia 22, ou seja, em vinte e cinco
horas e meia, chegava eu a Verona. O nosso colégio recebeu uma importante herança de Fregoso: quatrocen-
tos campos e cerca de trinta mil florins. O instituto, diz P.e Tomba, tem o futuro assegurado. Porém, custará
muito tomar posse de tudo; deixemo-lo em metade e graças! Porque, como diz o refrão, de dinheiro e santi-
dade, a metade da metade! Mas, em todo o caso, é uma fortuna.
1411
O instituto vai andando discretamente. Eu vou levar as negras para a África, para o Cairo, passando antes
por Roma, onde ficarão um mês, porque vou receber outras de Veneza e da França e desejo apresentá-las
todas ao Papa. Estou um pouco desgostoso porque não me querem conceder uma professora por apenas dois
meses: pretende-se que eu pague tudo e que o instituto não gaste nem um centavo. Não se entende nada.
Quanto ao resto P.e Tomba é muito bom para comigo. Vamos ver o que acontece quando eu tiver levado as
negras. De viva voz contar-lhe-ei muitas outras coisas. Lembranças a P.e Tilino e aos demais. Meus respeitos
ao sr. bispo, etc., e a todos os meus conhecidos. Com todo o coração, um abraço de

Seu af.mo amigo


P.e Daniel
N.o 203 (191) - A P.e JOAQUIM TOMBA
AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, segunda-feira de Páscoa


Noite do dia 22 de Abril de 1867

Amat.mo sr. superior,

1412
Estou muito preocupado porque ainda não chegaram os caixotes, enquanto os de Pádua, das negras de
Veneza, seguindo a mesma direcção, chegaram a Roma já no sábado passado pela manhã. Portanto, rogo-lhe
encarecidamente que os mande quanto antes para o Mosteiro da Imaculada Conceição, Via dell’Arco di S.
Vito, em Roma, porque doutro modo as negras não poderão mudar de roupa. Hoje visitámos com elas o con-
de Vimercati, viúvo da ex-rainha da Saxónia, cunhada do doutíssimo monarca actual da Saxónia. Este é um
grande benfeitor.
Solicitando-lhe vivamente o rápido envio dos caixotes, peço-lhe que saúde a todos da minha parte e me
considere sempre

Seu af.mo, P.e Daniel

N.o 204 (192) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 7 de Maio de 1867

Amat.mo superior,

1413
Hoje as doze jovens negras, junto com o conde Vimercati, o arcebispo vice-gerente de Roma e eu, que as
acompanhávamos, fomos recebidos pelo Santo Padre nos jardins do Vaticano e estivemos com S. S. uma
hora e três quartos. Não lhe posso descrever que bem que se sentiram as raparigas. O Santo Padre, depois de
as admitir às cerimónias do beija-pé e de dar a cada uma um ramo de flores, uma laranja e uma medalha de
prata, dirigiu-lhes umas palavras acerca da missão a que se destinam; e como eu disse que não partirão até
Setembro, acedeu ao conde Vimercati, viúvo da ex-rainha da Saxónia, de que tirasse um retrato com todo o
grupo formado por toda a minha caravana e por mim, mais o conde e o arcebispo, retrato que será feito pelo
fotógrafo do Papa quando eu regressar a Roma.
Depois, o Papa, tendo-nos os três ao lado, e seguido das jovens negras, mostrou-lhes as fontes, com os re-
puxos e jogos de água, assim como as vistas, etc. e muitas raparigas ficaram molhadas. Não posso descrever
as variadas cenas desses sete quartos de hora. Enquanto as negras fugiam a gritar perante os esguichos de
uma nau de guerra de bronze que parecia sulcar o mar numa fonte e que, com os seus trinta e quatro peque-
nos canhões, disparava água em breves jactos como se de balas se tratasse, o Papa voltando-se para mim,
disse-me: «Parecem-me doze almas do Purgatório, porém, das que ainda não terminaram de cumprir a pena».
Foi uma recepção mais íntima e familiar que a que o Santo Padre costuma dispensar a uma soberana. Ele
manda-lhe a bênção a si e aos institutos. Falou muito do falecido superior, de quem disse ter sido um santo
homem.
1414
No sábado espero estar em Verona. As negras mandam em conjunto uma saudação a todas as do instituto.
Muitas lembranças a P.e Beltrame e aos padres; até que nos vejamos, se Deus quiser, dentro de quatro dias.

Seu af.mo em Jesus


P.e Daniel

1415
Na semana depois da oitava, dei os exercícios espirituais às negras, que os fizeram duma maneira muito
edificante. Creio que estão contentíssimas.

N.o 205 (193) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 1118 e 1121

Verona, 11 de Junho de 1867

Em.mo Príncipe,

1416
Tenho o prazer de anunciar a V. Em.a Rev.ma que o il.mo mons. Canossa abriu em Verona um seminário
para as nossas queridas missões africanas, que em tempos melhores tomará o nome de Instituto do B. Pastor
para a Regeneração da África; como também abriu um instituto feminino para formar boas missionárias, às
quais se dá uma preparação adequada de modo exclusivo às particulares necessidades do apostolado africa-
no, que é a mais apropriada para o mesmo. Utilizar para a África um instituto feminino já existente, pressu-
põe pagar o mantimento de doze freiras para se servir só de duas ou três, porque as outras, por falta da neces-
sária instrução, ficam a maior parte das vezes um número supranumerário inútil.
1417
Graças à obra do bispo, associou-se-me o devoto capaz ex-missionário P.e Alexandre Dalbosco, meu an-
tigo companheiro. Pelo programa que lhe envio, V. Em.a conhecerá a obra que se erigiu canonicamente em
Verona para manter os mencionados institutos e os que se criarem mais adiante noutros lugares com a mes-
ma finalidade africana. Dados os terríveis tempos que correm, em que é provável que o fervor e a boa dispo-
sição dos benfeitores particulares dos institutos diminua perante o receio de que os seus actos de beneficên-
cia se tornem inúteis por culpa dos autores de iníquas confiscações e supressões, julguei oportuno tirar pro-
veito do espírito de associação que domina a nossa época para obter meios de subsistência para os referidos
institutos; tendo também com isso a finalidade de dar a conhecer a África, despertar interesse para a sua con-
versão e obter do corpo místico da Igreja e dos países católicos boas vocações para o apostolado africano.
Confio que o que já se encetou em Verona para a África encontre a aprovação de V. Em. a que não vive se-
não para as missões.
1418
Cheio de confiança na sua bondade, atrevo-me a rogar a V. Em.a que anime o digníssimo bispo de Vero-
na a que prossiga em me conceder a sua benévola protecção. Além de uma grande preocupação pela África,
ele tem uma rara prudência, uma firme constância no bem e um profundo conhecimento do espírito que deve
enformar um instituto de homens apostólicos. Ousaria humildemente suplicar a V. Em.ª que acrescentasse
algumas palavras de alento para reforçar a boa disposição do meu bispo, na certeza de que será maravilho-
samente correspondido. É de uma boa raça. Com efeito, faz agora um mês, a tia de mons. Canossa realizou
em Veneza um milagre dos mais clamorosos, ela que o trouxe nos braços e lhe inspirou os mais sublimes
sentimentos de piedade e de religião.
Reiterando-lhe o meu pedido, e a esperança de em breve ter a honra de lhe apresentar pessoalmente os
meus respeitos, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me com toda a veneração

De V. Em.a Rev.ma
Hum. obed. e resp. serv.
P.e Daniel Comboni

N.o 206 (194) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


APVC, N. 1458 /21

Verona, Junho de 1876

Caro P.e Estanislau,


1419
Causaram-me grandíssima consolação os seus sentimentos para com o venerado P.e provincial e vejo que
o senhor se mostra digno dos altos destinos a que a Providência o chamou. Afianço-lhe que serei intérprete
perante o bispo dos seus sentimentos a respeito do P.e Artini. Sempre tive estima e veneração por essa digna
personalidade e nunca acreditei, como também nunca o bispo acreditou, que seja antipapista. Parece-me
impossível que tenha havido, como o senhor diz, quem o tenha julgado como tal. Não, a inocência deve ser
conhecida. Defeitos todos temos; porém, os méritos desse homem honrado cobrem toda a nódoa. Tenha a
certeza de que será objecto de muitas conversas minhas com o bispo, tanto aqui como em Roma.
1420
De uma vez por todas, asseguro-lhe que cumprirei ad litteram quanto disse de palavra; confirme-o tam-
bém ao P.e Zanoni, a cuja formosa e cortês carta pensava responder o monsenhor. Os nossos desejos, bem
como os seus, a respeito dele foram plenamente satisfeitos: dêmos graças ao Senhor. Rogue e rogue muito ao
B. Pastor e ao Sagdo. Coração de Maria: si Deus pro nobis, quis contra nos? Cumprimentos a todos, a quem
abraço no SS.mo Crucificado. Charitas Christi urget nos: si isti et illi, cur non ego? Christus pro omnibus
mortuus est iacta curam tuam in Domino, etc. São os sentimentos que nos devem inspirar. Adeus.

Seu af.mo
P.e Daniel

N.o 207 (195) - MINUTA DO DECRETO DIOCESANO


«MAGNO SANE PERFUNDIMUR GAUDIO» DE CANOSSA
ACR, A, c. 25/14 n. 5

Verona, Junho de 1867

Escrito de Comboni.
Segue o «Programa e estatutos da pia Obra do Bom Pastor»

N.o 208 (196) - AO P.e JOÃO BAPTISTA CARCERERI


APVC, n. 1458/31

Roma, 20 de Julho de 1867

Caríssimo,

1421
Já tenho as respostas dos quatro, ou seja, do seu irmão Estanislau, de Tezza, de Zanoni e de Franceschini.
Cada resposta vem redigida nos seguintes termos:
Ex Audientia SS.mi habita ab infro D. Secretario S. Congregationis Episcoporum et Regularium sub die 5
Juli 1867 = Sanctitas Sua, attenta Religiosorum dispersione, benigne annuit arbitrio Episcopi Veronen. pro
facultate Oratorum in enuntiato Seminario dumtaxat ad proximum quinquennium retinendi sub sua absoluta
dependentia ac iurisditione etiam in vim Voti obedientiae: Contrariis quibuscumque non obstantibus.
Romae.
A. Card. Quaglia Praef.s
L. Svegliati Sec.rius

(Sacra Congreg. Episcop. et Regularium)


1422
Rogo-lhe comunique aos quatro a graça alcançada. A seu tempo se obterá in perpetuum. Deixo à sua dis-
crição arranjar de um modo prudente a saída do instituto dos Camilianos para ir para o novo seminário.
Combinei a partida para África para o início do próximo Setembro. O Santo Padre, mediante resposta de seu
punho e letra, concedeu à Pia Obra do B. Pastor para a Regeneração da África seis indulgências plenárias
anuais in perpetuum. Está certamente a reparar com quanta celeridade a Igreja aprovou esta obra.
Saudações e abraços cordiais para os meus quatro queridos irmãos e os meus respeitos a P. e Peretti. Deus
sabe quanta pena me causa a dor que o nosso venerado P.e Artini vai sentir: mas o amor pelas africanas gen-
tes torna-me superior a tudo. Adeus, meu caríssimo; reze pelo

Seu af.mo amigo


P.e Daniel C.

Eu parto de Roma na segunda metade da semana que vem e passo por Abano para falar com o bispo.

N.o 209 (197) - AO SR. DE LAMENIE DE BRIENNE


«Annales de l’Institut d’Afrique» 27 (1867)

Verona, Missão Apostólica da África Central


22 de Agosto de 1867

1423
Sua Ex.a mons. Canossa, bispo de Verona, acaba de me entregar o programa do Instituto de África, que
lhe enviou o ano passado.
Com viva satisfação, tomo conhecimento da existência e do nobre objectivo desta instituição filantrópica.
Lendo o seu programa, convenci-me ainda mais da verdade que a experiência me tem ensinado: onde houver
um grande fim humanitário, lá encontra-se sempre a França. Além de a Providência ter disposto que essa
grande nação fosse a protectora da Igreja no mundo inteiro, destinou-a também para levar a chama do catoli-
cismo e da civilização às regiões ainda imersas nas trevas da morte e favorecer os missionários apostólicos,
humildes instrumentos desta grande obra, religiosa e humanitária.
1424
Não me é possível exprimir suficientemente a minha alegria ao ver que o objectivo desse instituto é o de
civilizar a África, a parte do mundo mais infeliz e desventurada. Imagine a minha satisfação, dado que já há
dezassete anos estou consagrado à África e não vivo nem respiro senão pelo seu bem! Desde 1857 estive em
diversas tribos da África Central na qualidade de missionário apostólico, especialmente no Nilo Branco, on-
de muitas vezes me encontrei à beira da morte. Aí, vendo a miséria e a infelicidade desses pobres africanos,
pode compreender-se a nobreza da grande meta que o Instituto da África a si mesmo se impôs. Pelo que, ao
acharem-se os meus pobres esforços na mais íntima conexão com a finalidade desse instituto, do qual o se-
nhor é digno secretário, permito-me apresentar o meu Plano para a Regeneração da África, exposto neste
opúsculo que tenho a honra de lhe enviar.
1425
O Plano está baseado neste princípio: regenerar a África por meio da própria África.
Permita-me enviar-lhe também o meu programa da Obra do Bom Pastor para a Regeneração da África,
que o Papa Pio IX acaba de aprovar.
1426
Com o apoio de S. E. o bispo de Verona, pudemos abrir em Verona dois institutos: um masculino e outro
feminino, destinados a preparar pessoal para as missões da África. Espero que a Providência abençoe estas
pequenas casas.
1427
Entretanto, durante o mês de Outubro, empreenderei uma expedição muito importante e interessante para
a África, com o objectivo de fundar no Cairo duas casas para o centro da África, uma para os homens e outra
para as mulheres, com base no meu Plano e em consonância com ele. Formarão esta expedição sete missio-
nários, quatro irmãs e catorze professoras negras. Estas últimas, procedentes todas elas do Nilo Branco e das
tribos vizinhas, estão há dez anos na Europa, foram instruídas em todos os lavores femininos e têm a forma-
ção das professoras da França. Estão destinadas a ensinar no Egipto às negras e a passar depois para o seu
país natal a fim de comunicarem àquelas tribos as vantagens e benefícios da civilização, que elas receberam
da cultura europeia.
1428
O meu Plano é preparar na Europa missionários capazes, boas mulheres missionárias e artesãos de valor
que se estabeleçam nas regiões limítrofes da África, onde o clima é suportável para os europeus e para os
indígenas. Formaremos missionários, boas donas de família e hábeis artesãos negros destinados a transferir-
se, concluída a sua instrução, para as suas terras de origem para estabelecer aí a civilização segundo o pro-
cesso traçado no meu Plano.
1429
Tal é o laço que me une com todo o afecto ao Instituto da África. À medida que as minhas pequenas casas
de África forem fazendo progressos, esforçar-nos-emos por ser úteis ao seu instituto, pois tenho a esperança
de que nos possamos ajudar reciprocamente na luta comum pela regeneração da África.
Por isso, pedir-lhe-ia que me fizesse chegar os Annali dell’Istituto d’Africa, agora a Verona e, depois do
mês de Outubro, ao Cairo.

P.e Daniel Comboni

N.o 210 (198) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/40

Verona, 15 de Setembro de 1867


Excelência rev.ma,

1430
Envio-lhe o esquema da carta para Vimercati. Espero que aprove que se peça ao conde um donativo de
mil escudos, depois de lhe ter dado a entender que o senhor se conforma com um empréstimo. É o menos que
deu aos outros institutos e ao seminário de Milão.
1431
Confie na Providência, monsenhor! E esteja certo de que, ao abrigo da sua autoridade, encontraremos to-
do o dinheiro que for necessário. Temos uma associação aprovada por Pio IX; temos língua para falar, caneta
para escrever, ânimo para receber recusas: tudo o que está contido no famoso petite para obter com toda a
segurança o accipietis.
É uma graça especial de Deus que mons. o vice-gerente se tenha retirado; ele não teria dado nada, mas
apenas antecipado dinheiro, para depois obter proventos sobre o rendimento da associação. Esse favor sair-
nos-ia caro. Nada menos que ser escravos das suas ideias, não sempre conformes ao perspicaz e recto juízo
de V. Ex.a Rev.ma
1432
Além disso teria redundado em prejuízo para a África, porque mons. o vice-gerente é absolutamente con-
trário a que mais adiante se chamem outras instituições a fim de multiplicar os braços para desenvolver a
obra de África. Tem por artigo de fé que o instituto inspirado em Teresa é o único no mundo destinado a
salvar todas as almas e a surgir como um gigante sobre as ruínas do resto das instituições, as quais, diz, deve-
rão cair na sua totalidade. Não; Deus é o autor de todas as instituições aprovadas pela Igreja e todas, segundo
o seu próprio espírito, contribuem para fundar, manter e realizar na terra o Reino de Deus.
1433
O único obstáculo que mons. o vice-gerente nos pode pôr é só a denominação da Obra do B. Pastor, que
eu tinha chamado dos Sagdos. Corações de J. e de M. e que monsenhor me obrigou a mudar para a do B.
Pastor. Caso realmente nos pusesse algum obstáculo, poderíamos obter do Santo Padre que a nossa obra se
chamasse:
«Pia Obra dos Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo, etc.». Seria uma homenagem aos príncipes dos
apóstolos no solene acontecimento do XVIII centenário do seu glorioso martírio; seria a obra por excelência
da grande época do mais esplêndido triunfo de Pedro e Paulo; seria como o selo das graças obtidas para a
Igreja e para a África neste ano de glória e de triunfo pelo sublime poder dos príncipes dos apóstolos, os
quais seriam a todos os títulos protectores especiais da grande obra do apostolado da África.
Submeto estas reflexões à sua sabedoria e entretanto beijo-lhe as sagradas vestes e declaro-me de todo o
coração

Seu indigmo. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 211 (199) - AO DUQUE DE ACQUAVIVA


«Annales de l’Institut d’Afrique» 27 (1867)

Verona, Instituto das Missões


23 de Setembro de 1867

Senhor presidente,

1434
Com muito interesse e agradecimento aceito o muito honroso título que o senhor teve a bondade de me
outorgar no Instituto de África, essa instituição de eminente caridade que foi inspirada ao pé do Calvário.
1435
Educado para o apostolado de África e consagrado até à morte à regeneração da raça negra, pela qual tra-
balho desde há dezoito anos, sinto-me feliz por ser membro honorário do Instituto da África e espero conse-
guir com os meus pequenos esforços responder ao nobre e generoso objectivo que se propõe.
Li com muito interesse os Anais que o senhor teve a bondade de me enviar e estou convencido de que esta
grande instituição que a França criou em favor da regeneração da parte do mundo mais abandonada e esque-
cida conseguirá despertar a consciência do universo inteiro para que colabore na redenção dos negros. E com
a sua constância e admirável entrega conseguirá alcançar o objectivo filantrópico e humanitário que se pro-
pôs. Por isso estou orgulhoso de poder partilhar, na minha pequenez, as suas nobres aspirações e durante
toda a minha vida procurarei dar o meu contributo para esta grande obra.
1436
Como percorri uma grande parte da África Central e das costas, onde estudei profundamente a raça negra,
onde fui testemunha do abuso que a humanidade cometeu em relação a ela, e mais que uma vez me converti
em pequeno instrumento para impedir o tráfico dos escravos, espero – quando tiver o tempo livre das múlti-
plas ocupações que constantemente me oprimem – poder dar-lhe também notícias muito interessantes sobre a
África interior e sobre o modo de conseguir a abolição da escravatura e obter a civilização para a África. Por
isso permito-me propor três membros que, desde há muitos anos, consagraram a sua força, o seu talento, a
sua influência e as suas horas de descanso a lutar pelo bem da África.
1437
Eis aqui os nomes:
1.o O senhor Godofredo Humberto Nöcker, pároco de Santiago em Colónia (Prússia renana), presidente
do comité da Sociedade para o resgate e educação dos pobres jovens negros e fundador de um grande institu-
to para os pobres de Colónia.
2.o O senhor Martinho Stickern, doutor em medicina, homem de instrução muito elevada, o qual foi um
dos mais entusiastas fundadores dessa útil Sociedade para a educação dos negros e que na qualidade de se-
cretário e depois membro do comité é um dos mais poderosos promotores em Colónia.
3.o O senhor João Crisóstomo Mitterrutzner, cónego regular lateranense da Ordem de S. Agostinho,
membro da Academia da Religião Católica de Roma, membro de diversas sociedades científicas, doutor em
teologia, bom poliglota e professor em Bressanone (Tirol alemão), onde reside. Este homem admirável, de
mui raro talento, a quem a África deve os mais notáveis serviços e sobre a qual ele realizou os mais profun-
dos estudos, recolheu somas consideráveis para sustentar a missão da África Central, à qual proporcionou
mais de vinte missionários e artesãos e, com os manuscritos que nós lhe enviámos, compôs e publicou em
Bressanone dois grossos volumes sobre as duas línguas principais da África Central, absolutamente desco-
nhecidas para a ciência. Trata-se de:
1) O dicionário e a gramática da língua dos Bari (tribo situada entre os 5 e 1 graus de lat. N.), bem como o
catecismo na mesma língua.
2) O dicionário e a gramática dinca, mais o catecismo e o Evangelho de S. Lucas nesta mesma língua, a
qual é falada por dezasseis tribos que se estendem entre os 13 e 5 graus de lat. N., no Nilo Branco. Com este
importante trabalho, o senhor Mitterrutzner proporcionou aos missionários da Nigrícia o material necessário
para exercer com mais facilidade o seu ministério apostólico na vasta extensão compreendida entre os 13 e 1
graus.
Estou convencido de que, sendo a África objecto de grande preocupação para eles, estas três personalida-
des aceitarão de muito boa vontade ser membros do Instituto da África e sentir-se-ão muito animados a pros-
seguir as suas nobres empresas, contribuindo poderosamente para o grande fim humanitário do mesmo. Por
isso, peço que lhes conceda a eles a graça que teve a bondade de me outorgar.
1438
Fico-lhe muito agradecido pela honra de que me fez objecto e asseguro-lhe que, como só vivi para a Áfri-
ca, só pela África hei-de morrer.
Permito-me mandar-lhe o programa da obra que acabo de fundar em Itália para a regeneração da África.

P.e Daniel Comboni


Original francês
Tradução do italiano

N.o 212 (200) - AO C. JOÃO MITTERRUTZNER


ACR, A, c. 15/66

V. J. M.
Verona, 23 de Setembro de 1867

Dulcissime rerum,

1439
Acabo de receber de S. Pedro Incarnario, de Valpolicella (eu resido em S. Pedro Incarnario, em Verona),
o livro e a sua grata carta de 20 do corrente. Também chegou às minhas mãos, no mesmo dia em que o se-
nhor passou por Verona, o livro dos Bari; porém, nunca fui informado de que passaria por Verona, nem que
avisara com antecedência a sua chegada. Naqueles dias, fui visitar P.e Tomba quase todas as tardes e P.e
Beltrame, até disse a este que esperava que o senhor viesse a Verona. Ele porém, nunca me disse que o se-
nhor ia passar por aqui no dia 31 de Julho. Se o tivesse sabido, não só teria acorrido à Porta Vescovo, como
também sem dúvida tê-lo-ia induzido a permanecer um pouco em Verona para conversar com o bispo sobre a
África ou tê-lo-ia acompanhado um pouco na sua viagem até Veneza. P.e Beltrame tem tanto que fazer e
sacrifica-se tanto pelo instituto feminino, que certamente se esqueceu de mo dizer. E eu, aquela tarde, pen-
sando que o senhor ia a Veneza para consultar algum códice, escrevi-lhe para lá uma carta para a posta res-
tante.
1440
Recebi uma carta do nosso caro Kirchner, na qual me convidava a ir a Innsbruck, onde me poderia encon-
trar com o senhor e com Jeram. Asseguro-lhe que estive tentado a fazê-lo; mas verdadeiramente não tinha
tempo. Como as superioras dos conventos de Beuerberg e de Seligenthal me solicitam que tome a meu cargo
três jovens negras, assim não é de todo improvável que em vez de as mandar vir para Verona, seja eu a ir
buscá-las. Por isso, pode acontecer que vá a Brixen. Digo-o não como algo já decidido, mas bem possível.
Em todo o caso, a ver vamos.
1441
Kirchner não tem nenhuma esperança de sucesso relativamente aos meus assuntos de África. Porém, meu
amigo, eu quero tentar com todos os meios. Um grande número de bispos e o arcebispo vicário apostólico do
Egipto aprovam o meu plano. E o passo que dei de erigir dois institutos no Cairo tem a aprovação do menci-
onado delegado apostólico e da Propaganda. Pouco a pouco ir-se-á avançando. Por isso eu tento com todos
os meios. Se não conseguir nada, Deus contentar-se-á com a boa intenção. Claro que não me pouparei a fadi-
gas, nem a viagens, nem a vida para que a empresa vingue: eu morrerei com a África nos lábios. As cruzes
que sobre mim caem são inúmeras, mas eu tenho mais ânimo que nunca. O Governo, depois de ter feito duas
buscas ao meu instituto feminino, deu-me a entender que no prazo de 24 horas desalojasse as minhas religio-
sas, uma de Paris, outra de Roma. Depois de consultar o bispo, mandei-as para Roma com as postulantes.
Fiat.
1442
Mons. Kirchner diz-me que a Sociedade de Maria se dissolveu. Estará ele certo? Lamentaria muito, pois
nunca tive nenhuma sociedade que ajudasse tanto as missões como esta. Por favor, obtenha-me a certeza
sobre isso. Agradeço-lhe muito o donativo que me fez de quarenta francos. Se o cav. Napoli não tivesse
mandado já para o Egipto essa preciosa esmola, eu desejaria que ma enviasse para Verona. Se considerar isso
viável, peço que lhe escreva.
1443
Vou dizer-lhe uma coisa e espero que não chegue aos ouvidos das superioras da Baviera que me oferece-
ram as jovens negras. Se as aceito, penso obrigar essas irmãs a pagarem a viagem das raparigas até ao Cairo.
Mas, com carta de 19 de Agosto, eu escrevi uma carta ao marquês Moustier, ministro dos Negócios Estran-
geiros da França, a solicitar passagem grátis nos vapores franceses até Alexandria do Egipto. Oh, maravilha!
O ministro, mediante comunicado de 6 do corrente, que o ministro Lavalette me fez chegar, concedeu-me
passagem grátis até Alexandria do Egipto para 24 pessoas nas Transportadoras Imperiais; e isto desde Marse-
lha, se quiser viajar já, ou de Civitavecchia, se esperar pela altura em que a cólera tenha cessado em Messina,
onde agora os vapores franceses não aportam.
1444
Por outro lado, após a deliberação do seu conselho superior, no dia 2 de Setembro fui nomeado vice-
président d’honneur do Institut d’Afrique. Esta sociedade, a que preside o duque d’Acquaviva e conta com
membros em todo o mundo, pode ser-me útil porque tem como objecto a abolição do tráfico de negros e a
civilização da África. E como vi que muitos bispos e cardeais dela são membros, aceitei. Desejo que o Insti-
tut d’Afrique o nomeie membro também a si e para esse fim quero escrever ao presidente; porém, conviria
que o senhor mandasse um exemplar das duas gramáticas, etc., bari e dinca e algum outro dos seus escritos
sobre a África. Escreverei um destes dias. Peço-lhe outra coisa.
1445
Tendo eu que realizar agora uma expedição tão importante, não haveria sociedades na Alemanha a quem
se poderia pedir ajuda? Há a de Salzburgo, a Leopoldina de Viena, a de S. Ludovico de Munique: não pode-
ria o senhor estudar a maneira de obter dinheiro destas sociedades? Deixo o assunto nas suas mãos. O meu
bom bispo protege-me moralmente; contudo todos os gastos, tanto em Verona, como os relativos à África,
estão por minha conta. Mas confio na Providência e sabe quantas vezes o senhor foi a Providência para mim,
para o Insto. Mazza e para a África.
1446
O delegado do Egipto contou-me que o frade José Habachy, o P.e Boaventura, estão em Jerusalém. Pare-
ce que se portou mal também no Egipto e que o vigário apostólico confinou-o à Palestina. Queria informar-
me bem, para ver mais tarde a maneira de utilizá-lo para a África Central. Como pude conseguir do Papa que
quatro bons camilianos fossem destinados a vir comigo para o Cairo, também a seu tempo poderia fazer ou-
tro tanto com Habachy e muito mais facilmente, uma vez que é africano. Cogita et loquere. Escrevi a Jeram
para lhe pedir o seu costumado pequeno óbolo, mas desta vez não me respondeu: não quereria ser o senhor
bom e dizer-lhe uma palavrinha? Domine, adiuva me! Mil respeitosas saudações ao anjo de Brixen S. A. M.
Gasser, et tibi mille et mille

Ex tuissimo P.e Daniel Comboni


Gratias pro Opusculo Coloniensi.

N.o 213 (201) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÒ


AP SC Afr. C., v. 7, f. 1165

Verona, 25 de Setembro de 1867

Em.mo Príncipe,
1447
Depois que mons. Ciurcia, mediante carta escrita ao bispo de Verona, consentiu formalmente na fundação
no Cairo de dois pequenos institutos destinados a preparar pessoal para o apostolado na África interior, diri-
gi-me de maneira directa ao ministro dos Negócios Estrangeiros da França para obter passagem gratuita com
as Transportadoras Imperiais a favor das minhas negras, as irmãs e alguns missionários. Foi assim que S. E.
o ministro Lavalette, encarregado interinamente dos negócios exteriores, por ordem do ministro Moustier,
através de um venerado comunicado de 16 do corrente, enviado de Paris, me concedeu passagem grátis para
vinte e quatro pessoas até Alexandria.
Como o número de componentes da minha próxima expedição talvez não chegue a vinte e quatro, se não
lhe parecer mal, ponho à disposição de V. Em.a, a favor de quem julgar oportuno, todos os lugares que não
forem ocupados pelo meu grupo. Penso que a minha humilde proposta poderia talvez tornar-se útil a algum
missionário ou irmã que não fossem agraciados com a passagem gratuita até ao Egipto.
1448
Três das minhas negras, as melhores que tenho, que agora residem no conhecido mosteiro das Viperescas,
mediante uma carta ditada ou sem dúvida inspirada por essas freiras vision... acabam de me declarar que
desde há muito estão resolvidas a tornar-se religiosas; e por isso negam-se a seguir com as outras para o
Egipto. Eu, que conheço a fundo a raça negra em geral e a essas boas raparigas em particular, depois de con-
sultar o bispo, como responsável da obra, e ao superior do Insto. Mazza, que foi reitor imediato delas durante
13 anos, estando decidido a não permitir tal coisa por muitas e poderosas razões, tenho a confiança de achar
em V. Em.a apoio e ajuda, no caso de encontrar sérias dificuldades por qualquer motivo ou por parte de
quem fosse.
Hucusque satis...
Digne-se V. Em.a receber as respeitosas saudações do meu venerado bispo e deste que tem a honra de lhe
beijar a sagrada púrpura e declarar-se com toda a veneração

De V. Em.a Rev.ma
Hum. e devoto filho em J. C.
P.e Daniel Comboni

N.o 214 (202) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/41

V. J. M.
S. Pedro Incarnario, 4 de Outubro de 1867

Il.mo e rev.mo. monsenhor,

1449
A resposta negativa do cde. Vimercati não me provocou nenhuma dor. A Providência, sempre amorosa,
dispôs as coisas de tal modo que a nossa obra está segura. As insídias, as batalhas, as provas farão com que
se manifeste como obra de Deus.
1450
Temos à nossa absoluta disposição os quatro camilianos. O P.e Zanoni, o mais velho, é um precioso dom
do Senhor. A superiora das canossianas fará o possível para nos proporcionar três irmãs e está decidida a
realizar o projecto de criar na casa-mãe a secção de missionárias. Com os missionários, as irmãs e as negras,
já temos duas casas no Cairo. E estando a nossa obra já em andamento no Egipto, encontramo-nos em porto
seguro. Ainda que por alguns anos não tivéssemos em Verona mais que P.e Dalbosco e um leigo, a empresa
seguiria em frente. Com uma pequena parte que se retire da contribuição de Colónia e com o provento já
existente na associação, P.e Dalbosco vive e trabalha para o desenvolvimento da Obra, e eu, entretanto, no
meu regresso do Egipto, ocupar-me-ei com a provisão de meios e a promoção do estabelecimento da pia
associação nas diversas dioceses.
É essencial pôr-se em contacto com Colónia, onde suspeito que mons. o vice-gerente terá tentado algum
imbróglio. Convém que V. E., como responsável da obra, se certifique de tudo. Preparei-lhe uma carta para
aquele presidente. Está em cima da sua mesa.
1451
Duzentos e quarenta sócios puseram recentemente à minha disposição a soma necessária. As diligências
da devota princesa Maria Assunção para formar o conselho de Roma e multiplicar aí os sócios entre as gran-
des famílias e os prelados, a adesão do Emm.o Card. De Pietro, as esperanças positivas em relação a Espa-
nha, os mil e quinhentos francos que me foram atribuídos para acompanhar três negras desde a Baviera até
ao Egipto, os muito estimulantes contactos que a obra mantém, etc., etc., tudo reclama a rápida formação do
conselho da pia associação.
1452
Em Roma, as beatas fazem-me uma guerra encarniçada. Enredos secretos, ilusões, enganos, mentiras, ins-
tigações culpáveis... A verdade e a justiça combatidas sempre triunfaram. Tenho uma confiança inabalável
nesse Deus que é o único pelo qual expus e exponho a vida, trabalho, sofro e morrerei. Creio que perdemos o
Frei Jerónimo por causa dos enganos e ilusões dessas mulheres... Fiat! Escreveu-me uma carta escandalosa.
O espírito de sincera humildade, caridade, reverência e moderação regulou as minhas relações com o vice-
gerente, como deve fazer um sacerdote com um bispo. Além disso, tive com ele a lealdade de um verdadeiro
amigo, como a de quem está grato ao seu benfeitor. Contudo, temo que seja verdadeiro o juízo do ven. P.e
Fradin e do bispo de Poitiers: ser essa rapariga possedée quelques fois par le Diable e que às vezes comuni-
que com o espírito da superiora e de mons. o vice-gerente. Sem dúvida, a bondade de Deus há-de livrar-me
desta prova tão dura e tremenda. A Rainha de África há-de ajudar-me.
1453
Quanto ao resto, ânimo, monsenhor: as recusas, as batalhas, as cruzes manifestam que a nossa obra é toda
de Deus. O grão da mostarda foi lançado: é necessário que brote entre abrolhos e espinhos. Crescerá entre os
ventos e tormentas das perseguições; porém, sempre produzirá no campo da Igreja copiosos frutos, porque o
Divino Lavrador o defenderá e o cobrirá com o escudo da sua protecção. Em tudo eu confio em Jesus, na
rectidão, sabedoria e constância do senhor, meu veneradíssimo pai. Si Deus pro nobis...
Urge que eu parta para a África e que V. E. dedique um pouco de tempo a determinar e organizar o mo-
vimento da obra. Beija a sua sagrada mão de todo o coração

P.e Daniel Comboni

N.o 215 (203) - A MONS. PEDRO CASTELLACCI


AGTR

V. J. M.
Roma, 21 de Outubro de 1867

Excelência rev.ma,

1454
Apenas recebi em Verona o mandato de V. E. e da superiora de vir a Roma recolher as negras, teria cum-
prido as suas ordens se tivesse o dinheiro da viagem para mim e para elas. Ao invés, tive que suar e ir à Ale-
manha à procura de meios; e logo que pude obtê-los, deixei Verona para me dirigir a Roma. Chegado a Ter-
mi, tive que retroceder devido aos iníquos enredos dos garibaldinos, que cortaram a passagem e as comuni-
cações com Roma. Voltei a Florença e finalmente, por Orbetello e Montalto, foi-me possível entrar em Ro-
ma. Ontem estive todo o dia ocupado a encontrar maneira de sair com as negras dos Estados Pontifícios e a
tratar assuntos urgentes que não podiam esperar. E esta manhã fui a sua casa com o vivo desejo de lhe beijar
a mão, acertar as nossas contas e determinar, segundo seu venerado desejo, a partida das doze negras; porém,
não tive a sorte de o encontrar, por estar ausente de Roma até esta noite. Sinto muito.
1455
E como, ao chegar esta noite, V. E. estará cansado e encontrará outros assuntos inerentes ao seu importan-
tíssimo ministério e dado que não considero prudente sair de casa de noite nestes tempos tão calamitosos,
rogaria a sua bondade que preparasse por escrito os assuntos a tratar ou as nossas contas para amanhã, em
que eu com satisfação irei visitar V. E., também para acordar quando me será viável, com a sua autorização,
levar do mosteiro todas as negras.
Manifestando-lhe os meus sentimentos de veneração e gratidão, beijo-lhe reverentemente as mãos e de-
claro-me

De V. E. Rev.ma
Hum. e dev. servidor
P.e Daniel Comboni

N.o 216 (204) - COMPOSIÇÃO DO CONSELHO CENTRAL


DA PIA OBRA DO BOM PASTOR
ACR, A, c. 25/13

Outubro de 1867

N.o 217 (205) - NOTAS PARA UMA MEMÓRIA


ACR, A, c. 14/42 n.2
Outubro de 1867

N.o 218 (206) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/42 n.1
V. J. M.
Roma, 5 de Novembro de 1867

Excelência rev.ma,

1456
Vejo-me na necessidade de lhe pedir a si, que tem tido tanta paciência e bondade por amor da África, que
chegue na sua generosa iniciativa ao cúmulo de escrever uma carta ao Papa ou ao card. Patrizi, vigário de S.
S., para que ordenem a mons. o vice-gerente que me entregue as três negras que dizem querer tornar-se frei-
ras. Escreva uma carta sobre este assunto como a que escreveu a Barnabó. Foi o card. Barnabó que me disse
que o fizesse. Igualmente este cardeal, que me tem dirigido em todos os passos que tive que dar, encorajou-
me a telegrafar e a escrever desde o dia 28 do mês passado; mas os cortes do telégrafo e das vias férreas
impediram-mo. E porque é que – dirá V. E. – deve o bispo de Verona escrever ao cardeal vigário ou ao Papa
sobre um assunto do qual já escreveu ao card. Barnabó?...
1457
Respondeo: em Roma, como cada um é cioso pela sua jurisdição, também tem cuidado em não tocar na
jurisdição alheia. O Superior do Vice-gerente é o Papa e o Card.-Vigário Barnabó é tudo para nós e para a
nossa missão; porém, «conhecendo a obstinação do vice-gerente (são palavras suas) e sendo eu juiz... etc.,
digo-te que te dirijas de forma directa ao card.-vigário e ao Papa e, ao mesmo tempo, que escrevas ao bispo
de Verona, de quem dependem as negras por ser chefe da Obra, suplicando-lhe que rapidamente escreva ou
telegrafe ao Papa ou ao card. vigário para que todas as raparigas te sejam entregues».
1458
Os factos provaram o acerto do conselho de Barnabó. O cardeal Patrizi e o Papa responderam à minha pe-
tição, convidando-me a tratar com o vice-gerente. Mas como tratar com o vice-gerente, se ele nem me quer
ver? Fui ter com ele mais de vinte vezes e outras tantas se recusou a receber-me. E no mosteiro a superiora
também me não quis receber e só uma vez me mostrou as negras.
1459
Em resumo: primeiro seis negras escrevem ao Cardeal Barnabó manifestando-lhe que de nenhuma manei-
ra querem vir comigo. Depois apresenta-se ao card. Barnabó um padre mandado pelo vice-gerente e declara
que as negras, todas elas, se negam a vir comigo por justos motivos... O cardeal insiste em que devo recla-
mar todas as negras... Finalmente, à força, pode dizer-se, nove conseguiram deixar o mosteiro e vir comigo.
Eu coloquei-as nas Irmãs de S. José, Instituto protegido por Barnabó. A superiora desse ínclito Instituto le-
vou as moças ao cardeal, as quais declararam:
1.o Que a superiora do mosteiro onde estavam antes (a Senhora Mariana) assegurou às negras que P.e
Comboni não tem no Egipto nem casa, nem dinheiro para as manter.
2.o Que P.e Comboni é um louco, que não se deve confiar nele, que é volúvel e caprichoso.
3.o Que P.e Comboni é um ladrão e que progride à custa do que rouba aos outros.
4.o Que é um monstro de ingratidão para com o vice-gerente, etc.
Imbuídas destas ideias e assustadas, as pobres negras, seguindo o conselho das irmãs, escreveram ao car-
deal. Parece que as três que querem tornar-se freiras escreveram ao Papa no mesmo sentido.
1460
O cardeal ordenou-me que não partisse de maneira nenhuma, enquanto não tivesse as outras três. Agora
as nove jovens negras estão felizes e contentes e asseguram-me que as três não têm vocação, que apenas
foram induzidas pelas freiras. As mesmas raparigas disseram-me e asseguraram-me que Jerónimo Manfrini
vive no convento, que durante um mês dormiu de noite dentro da clausura, no quarto onde V. E. foi recebido
e que desde o dia 12 de Outubro está a dormir no segundo piso, sempre dentro da clausura, num quarto perto
das freiras. Eu lamento este jovem, que era tão bom quando estava com os estigmatinos e connosco.
1461
Portanto, monsenhor, escreva quanto antes ao Santo Padre, incluindo a carta aberta ao Emm.o Card. Vi-
gário. Este é o melhor modo. Paciência, meu venerado e amadíssimo pai. Se soubesse o que sofri aqui em
Roma, o seu bom coração ficaria comovido. Para o Emm.o Barnabó isto é sinal claro que Deus quer a obra.
Temo que o pobre vice-gerente, que se propôs destruir tudo e que é autor de todas as astúcias, intrigas, ca-
lúnias, mentiras e embrulhadas contra mim, vá passar um mau bocado. E estou convencido de que com isto a
obra vai sair beneficiada, pelo interesse que por ela está a tomar o cardeal. Tendo-lhe exposto tudo, deixei-
me em tudo guiar por ele e, graças a Deus, estou contente. Temos um grande protector, ainda que, temo, para
já não me dê dinheiro.
1462
Quanto à protestante, que esteve três meses com as negras, agora entrou no noviciado das Ursulinas de
Ripetta e vai muito bem. Lembre-se, monsenhor, que ela fez a sua abjuração nas suas mãos na Madonna del
Popolo.
Estou contente, porque recebi notícias de Marselha do P.e Zanoni. Uma pessoa que V. E. estima estava
presente e foi testemunha auricular quando monsenhor o vice-gerente disse a Vimercati que não desse nada
ao bispo de Verona porque... (de viva voz ou em perífrases noutra ocasião).
Mil respeitosas saudações ao marquês Octávio e família

Seu obemo. filho P.e Daniel Comboni

N.o 219 (207) - A MONS. PEDRO CASTELLACCI


AGTR

V. J. M.
Roma, 5 de Novembro de 1867

Excelência rev.ma

1463
Desde Maio passado, é sabido de V. E. Rev.ma que, tendo-me o senhor oferecido gentilmente o emprés-
timo gratuito de mil e quinhentos escudos e havendo eu aceite o cortês favor, redigi com meu punho e letra, a
seu pedido, uma obrigação formal, na qual eu declarava ter recebido de V. E. Rev.ma a referida soma, com a
obrigação de a devolver quando a pia associação, por si conhecida, se tivesse desenvolvido consideravelmen-
te; sabe igualmente como, depois de o senhor me ter assegurado que no dia seguinte me entregaria o corres-
pondente dinheiro no mosteiro das Viperescas, eu, totalmente confiado na sua lealdade, entreguei nas mãos
de V. E. Rev.ma a dita obrigação.
1464
É-lhe conhecido também que, tendo eu ido a esse mosteiro no dia marcado para receber a quantia combi-
nada, V. E. Rev.ma, na presença de duas freiras residentes no mosteiro das Viperescas, a saber, da actual
superiora, Sóror Maria Angélica do Sagdo. Coração de J. (que quando estava em La Puye, diocese de Poiti-
ers, na qualidade de mestra de noviças no Insto. das Filhas da Cruz, se chamava – creio – Sóror Maria Sera-
fina e em Verona tinha o nome de Mariana Borie) e de Sóror Maria Serafina dell’Ostia (que quando era
freira das Filhas da Cruz se chamava – creio – Sóror Maria Angélica e em Verona usava o nome de Teresa
de Angelis), V. E. Rvma. – dizia eu – declarou-me que era vontade de Deus que eu não recebesse o dinheiro.
1465
E, instando eu para que ou me fosse entregue o dinheiro ou me fosse restituída a minha obrigação, en-
quanto a chamada Sóror Maria Serafina dell’Ostia, ou Teresa de Angelis, tendo nas mãos o dinheiro que V.
E. Rev.ma tinha levado para o mosteiro para me entregar, declarava explicitamente que eu nunca teria ou
receberia a referida quantia, mas que só a teriam as duas mencionadas freiras, V. E. Rev.ma assegurava-me
ser absoluta vontade de Deus que eu não recebesse o dinheiro (porque – dizia-me V. E. – não é ela, Sóror
Maria Serafina dell’Ostia, quem fala, mas o Menino Jesus). Pelo que, vendo que nem se me entregava o
dinheiro nem se me devolvia a minha obrigação escrita por meu punho e letra, só me acalmei (e direi que
convencidamente) depois da promessa que o senhor me fez de que, chegados a Verona, o dinheiro seria en-
tregue ao digníssimo bispo mons. Canossa, o qual disporia as coisas de modo que todos ficássemos contentes
e satisfeitos.
1466
Sabe igualmente que, não tendo eu nunca recebido a importância declarada no meu documento, mons.
Canossa lembrou a V. E. Rev.ma a necessidade e o dever em que se encontrava de me devolver a obrigação
ou de me fazer receber o dinheiro equivalente e recebeu como resposta de V. E. Rev.ma que nunca me viria
nenhuma moléstia ou problema por causa da dita obrigação; de modo que, no fim de contas, não recebi nem
o dinheiro nem o documento. Exposto tudo isto, como V. E. ou eu podemos morrer e como o senhor ou os
seus herdeiros com base na tal obrigação escrita pelo meu punho e letra poderiam reclamar de mim ou dos
meus herdeiros o pagamento da importância indicada no mencionado documento, a qual eu nunca recebi,
apelo respeitosamente à consciência de V. E. Rev.ma para lhe rogar que me devolva rapidamente a dita obri-
gação manuscrita à direcção das Irmãs de S. José da Aparição, na Praça Margana, ou que me faça chegar a
essa mesma direcção uma declaração formal manuscrita de que V. E. rasgou a minha obrigação.
1467
Até agora, por respeito a V. E. Rev.ma e em consideração pela gentileza e cortesia que teve comigo, não
reclamei perante as autoridades competentes o direito que me assiste, nem dei a conhecer oficialmente este
assunto. Vejo-me, porém, obrigado a adverti-lo de que, se dentro de dois dias V. E. Rev.ma me não fizer
chegar o meu documento, nem atender à minha súplica, me verei obrigado, com pesar meu, a converter em
acto legal esta minha intimação ad litteram, fazendo-a registar nas repartições das autoridades competentes
aqui em Roma.
1468
Por outro lado, quanto ao arranjo amistoso da nossa questão pecuniária, isto é, a respeito da importância
que o senhor me exige pelo dinheiro que me dispensou para estampas e outras pequenas coisas e por objectos
sua pertença que estão em meu poder, bem como a respeito da compensação pecuniária que com toda a justi-
ça eu, da minha parte, lhe exijo pelos gravíssimos danos sofridos por mim, por V. E. R. ter culpavelmente
impedido a minha partida no devido tempo, como consta claramente a respeitáveis pessoas (caso não che-
guemos a entender-nos por meio dos nossos advogados, os srs. Nuboli e Alfonsi, como tem acontecido até
agora), eu remeto-me inteiramente ao juízo de três personalidades eclesiásticas escolhidas por nós ou pelo
vicariato de Roma ou pela S. Congregação dos Bispos e Regulares.
1469
Finalmente, quanto às três negras que V. E. Rev.ma ainda insiste em não querer pôr à minha disposição,
anuncio-lhe que não partirei de Roma enquanto não me forem entregues, uma vez que é essa a absoluta von-
tade do meu venerado bispo, responsável pela obra africana, e mo aconselham muito prudentes e altas perso-
nalidades da Igreja de Deus.
Renovando-lhe os meus sentimentos de sincera gratidão e respeito, beijo-lhe as sagradas vestes e declaro-
me

De V. E. Rev.ma hum. e dev. servidor


P.e Daniel Comboni
Mission. Apost. da África Central

N.o 220 (208) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/43

V. J. M.
Roma, 8 de Novembro de 1867

Excelência rev.ma,

1470
O Senhor, na sua infinita misericórdia, oferece diariamente sinais cada vez maiores que nos servem para
conhecer que a nossa obra africana é totalmente sua. Um terrível atentado infernal para a destruir foi a guerra
aberta contra ela por parte do V. G. e das duas beatas. O Senhor guiou-me maravilhosamente fazendo com
que eu não desse um passo sem o conselho do Em.mo Barnabó; e dei alguns de capital importância em defe-
sa de mim mesmo, da minha razão na questão com o V. G. e a obra. Isto contribuiu admiravelmente para
ganhar todo o afecto, o apoio e a protecção do Em.mo Barnabó, o qual ontem falou ao cardeal De Pietro de
mim e da obra em sentido muito favorável.
1471
Enquanto o V. G., guiado por aquela que ele crê inspirada por Deus (não por seu coração, que é bom) po-
dia fazer um grande mal, fez, ao invés, um grande bem. Dou graças primeiro a Deus e depois ao meu vene-
rado bispo, que com o seu crédito e nome e com a sua última carta (que o card. Barnabó quis que eu copiasse
com boa letra para a apresentar ontem à tarde ao Santo Padre) advogou a entrega das jovens negras e mos-
trou que me fazia objecto do seu inestimável apoio. Confie em Deus, monsenhor, e na minha esmerada dili-
gência, que eu espero não cometer erros – mesmo pequenos ou pontuais – que possam comprometer a sua
obra ou a sua valiosa e necessária contribuição para ela.
1472
As cruzes são inevitáveis; inimigos suscitados pelo dragão do abismo havê-los-á sempre; teremos que so-
frer muito. Mas Deus, a sua graça e a Virgem Imaculada serão suficientes contra tudo e estarão sempre con-
nosco. A pouco e pouco escrever-lhe-ei a história da pesadíssima cruz que tive que carregar em Roma: ficará
impressionado e estupefacto. Não tenho palavras para dar graças ao Senhor. Ontem, por exemplo, chamado
ao tribunal criminal do vicariato de Roma, seguindo o conselho do card. Barnabó, fui lá disposto a não ceder
à intimação para sair imediatamente de Roma; quando cheguei (na noite anterior tinha escrito uma carta de-
cisiva ao V. G.), tendo o juiz reconhecido um abuso de poder e talvez persuadido de que a base da acusação
era falsa, pediu-me desculpas, dizendo-me que tinha havido um erro, e mandou-me ir com todas as honras.
Eu, com plena aprovação do card. Barnabó, mandei ao Papa a carta de intimação para comparecer naquele
tribunal. Mas deixemos, por agora, este assunto.
1473
Agradeço-lhe a carta ao card. De Pietro. Faça à letra o que lhe respondeu, porque, segundo pude infor-
mar-me, estes são os normais trâmites burocráticos. De Pietro é e será um valioso protector. Hoje recebi a
carta escrita pelo P.e Zanoni ao card. De Pietro e telegrafei logo para Marselha. Duas horas depois, recebi
outra carta do mesmo padre e mandei um novo telegrama para Marselha, autorizando Zanoni a recolher uma
carta minha de Colónia, que contém uma letra cambial de 3000 francos, e a cobrar a dita importância. Só
desde esta manhã o telégrafo funciona entre Roma e a França pela linha de Nápoles; até esta manhã esteve
sem funcionar. E as cartas de Marselha tardaram nove dias. Em suma, quem sabe a ansiedade daqueles po-
bres padres. Mas Deus qui-lo assim. Fiat! Eu fui-me informando todos os dias nos correios e no telégrafo.
Imagine o meu pesar.
1474
O card. Barnabó escrever-lhe-á depois da minha partida. A devotíssima e bondosa princesa preocupou-se
muito por fazer sócios e de formar o conselho da Obra do B. Pastor em Roma. Quer ver se consegue que
mons. Franchi, arcebispo de Tessalónica, seja o presidente. Acaba de regressar a Roma vindo da Inglaterra.
Por si ele não aceita, está a pensar noutra pessoa. De modo que a obra vai consolidar-se em Roma, o que
contribuirá para a sua difusão noutras dioceses.
1475
Eu julgo que vou partir muito em breve, porque espero que não tardem a entregar-me as três negras. Es-
crevi ao P.e Zanoni que partirei segunda-feira. De qualquer forma, peço a V. E. que me faça o favor de es-
crever igualmente ao Santo Padre. Se então já me tiverem sido entregues as negras, será uma razão a mais
para que o Papa veja que fez bem em atender a minha súplica.
Mil saudações de Barnabó, Antonielli, Pacifici, Monaco, Vimercati (o qual me assegurou que dará...). D.
Bosco voltou a Verona? Os meus respeitos ao marquês Octávio, etc. Beija as suas vestes

Seu obed.mo P.e Comboni

N.o 221 (209) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/44
V. J. M.
Roma, 10 de Novembro de 1867

Excelência rev.ma,

1476
Apesar das reiteradas informações que mons. o V. G. dirigiu ao Santo Padre e ao card. vigário para impe-
dir que me fossem entregues as três negras, contra a sua vontade, expressa na venerada de carta ao cardeal
Barnabó, hoje o Santo Padre assinou com seu punho e letra a ordem de que sejam postas à minha disposição.
O Em.mo cardeal Barnabó, que com verdadeiro coração paternal dirigiu todos os meus passos, está conten-
tíssimo. Mais adiante contar-lhe-ei os pormenores e verá quanto o Senhor abençoa este seu pobre filho, ainda
que seja totalmente indigno disso.
1477
Como não estou a tempo de partir amanhã de manhã, sairei de Roma na quinta-feira, por não haver antes
outro barco que parta de Civitavecchia para Marselha. Este atraso causado por mons. o vice-gerente trouxe-
me um prejuízo de algumas centenas; mas o Deus que tão milagrosamente cuidou de nós desde que mons. o
V. G. nos abandonou se encarregará de prover a todas as necessidades. Depois de agradecer a Deus e a V. E.,
dou graças a S. Expedito, mártir, que, invocado por mim e por outros com bastantes tríduos, nos ouviu. É
protector especial para que saiam bem os negócios e as viagens. Hoje Barnabó disse-me que esta minha de-
mora em Roma me beneficiou, porque, se tivesse partido sem solucionar este assunto, me teria caído sobre
os ombros um fardo do qual levaria anos a desembaraçar-me.
1478
Fico muito agradecido à caridade de V. E., que me amparou com a sua protecção. A mim compete-me
corresponder fielmente, para melhor conseguir a glória de Deus e a salvação das almas.
Ontem fui visitar a protestante que está a fazer os exercícios espirituais: responde admiravelmente à graça
e a superiora assegura-me que será uma verdadeira esposa de Cristo.
Apresente os meus respeitos ao marquês Octávio, a P.e Dalbosco e a P.e Vicente e rogue por

Seu indigmo. filho


P.e Daniel Comboni

Hoje vi o Papa de perfeita saúde no funeral do card. Roberti. Apesar dos esforços da revolução, o nosso
adorado Pontífice-Rei triunfa, e prevalece e prevalecerá sempre o princípio da justiça que o santo Papa-Rei
propugna.

N.o 222 (210) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/45

V. J. M.
Roma, 21 de Novembro 1867

Il.mo e rev.mo monsenhor,

1479
Não tenho palavras capazes para louvar e dar graças ao nosso querido e bom Jesus por ter protegido e de-
fendido com singular providência e amor este pobre e indigníssimo filho seu que escreve a V. E. Depois de
me ter tido por sua misericórdia entre os espinhos e a cruz, o Senhor consolou-me com prodigalidade, fazen-
do triunfar a sua causa e a sua obra contra os formidáveis atentados de um poderoso inimigo, pelo qual supli-
co a V. E. que em sua caridade reze, como eu na minha fraqueza faço.
1480
Calando centenas de coisas, bastará que lhe diga (segundo contou o Santo Padre ao nosso verdadeiro pai,
o card. Barnabó) que aquela chamada ao tribunal criminal do vicariato era para me encarcerar e depois ex-
pulsar de Roma. Ainda bem que, pela manhã, seguindo instruções do card. Barnabó, fui ter com o cardeal
vigário, juiz ordinário de Roma, o qual ordenou que me deixassem partir imediatamente e que me fossem
pedidas desculpas por me terem mandado comparecer. O juiz mandou-me realmente ir embora, dizendo que
tinha havido um erro.
1481
Mais ainda: apesar de um relatório contra mim que o V. G. fez ao Santo Padre; apesar dos confessores
que se apresentaram ao card. vigário enviados por... para dizerem que em consciência não podiam permitir
que as raparigas viessem comigo; apesar das cartas de nove negras ao cardeal vigário, ao Papa e a Barnabó,
rogando que lhes fosse concedido não me acompanharem, o Santo Padre ordenou que todas as jovens negras
fossem entregues às Irmãs de S. José. Gastou-se toda a semana passada a examinar, a meu pedido, todas as
negras, uma por uma. Por disposição do Papa, coube-lhes ser examinadas por um homem cheio de espírito, o
P.e Capello, barnabita, encarregado e pároco de S. Carlos, em Catinari, e intervieram dois distintos domini-
canos. O resultado apresentado ao Santo Padre e ao cardeal vigário foi de que nem sequer um cabelo se pode
tocar ao missionário Comboni; e por cima veio a ordem peremptória do Santo Padre de que me fossem en-
tregues todas as negras. O cardeal vigário disse depois ao cónego Zerlati, com quem convive há 40 anos:
1482
«Sempre observei que todas as obras de Deus, no seu nascimento e no seu desenvolvimento, são marcadas
pela cruz e pela perseguição: vejo que também esta (a nossa obra) é verdadeiramente obra de Deus». Muitos
outros homens respeitabilíssimos falaram-me em termos idênticos. Imagine-se o efeito que pode ter produzi-
do no V. G. este triunfo. O pobre homem ainda não compreende que os seus actos não foram inspirados por
Deus. O cardeal Barnabó portou-se comigo como um verdadeiro pai, porque, ainda que admirando a actua-
ção divina que quase sem nenhuma outra intervenção defendeu a inocência, me prodigalizou os seus pruden-
tes e sapientíssimos conselhos. Em resumo, o assunto das negras terminou.
1483
Barnabó não quis que partisse sem resolver o assunto dos mil e quinhentos escudos e sem fazer apagar
dos registos do tribunal criminal que eu fui intimado a comparecer, porque isso é sempre uma mancha para
um missionário que deve tratar em tão larga escala os assuntos da glória de Deus. Quanto a esta última coisa,
fui apresentar as minhas queixas ao card. vigário, que me assegurou que ele mesmo, compreendendo isso, se
havia adiantado e ordenara o cancelamento, etc., mas tinha verificado que o meu nome só aparecia escrito na
carta de intimação, a qual mandada por mim ao Papa e chegada às suas mãos, ele mesmo a tinha rasgado.
1484
Quanto aos mil e quinhentos escudos (depois de com muitas cartas e com a mediação de monsenhores e
prelados ter resultado vã a tentativa de me fazer devolver a obrigação), o card. vigário aconselhou-me a
apresentar a causa no tribunal para os assuntos eclesiásticos e ele mesmo me mandou ir ter com mons. Gas-
paroli. Além disso, Barnabó comunicou-me ontem que o card. vigário lhe tinha dito que devo sem falta citar
o V. G. naquele tribunal. Como se faz? Fui ter com mons. Gasparoli, o qual me ordenou que lhe enviasse o
meu procurador, o sr. Nuboli, curial da Santa Rota (a quem eu escolhi com a aprovação do card. Barnabó)
para estudar o assunto. Depois o card. Barnabó ordenou-me que escrevesse uma carta ao V. G., na qual lhe
manifeste que, se dentro de vinte e quatro horas, me não enviar o meu documento, citá-lo-ei judicialmente.
Vou fazê-lo esta noite. Mas eu, escolhido o meu procurador, posso partir.
1485
É-lhe fácil imaginar quantas diligências e gastos me custou o facto de perder um mês em Roma, para
além da pagamento de dois paolos por dia por cada negra ao Convento de S. José, o que perfaz a soma de 52
escudos e oitenta. Pois bem, veja, meu veneradíssimo monsenhor e pai, o que fez o nosso querido Jesus e
quão bom Ele é. O príncipe D. Alexandre Torlonia, só ao ler o nosso Programa, deu-me 30 escudos. E o
conde de Sartiges, embaixador em Roma, proporcionou-me ontem a passagem grátis, de Civitavecchia até
Marselha, para mim, duas freiras e doze negras. Como a viagem em segunda classe custa 96 francos por
pessoa, o embaixador francês, ao conceder-me tal favor nos Transportadores Imperiais (que só há oito dias
restabeleceram o serviço nas costas de Itália), ofereceu-me 1440 francos.
1486
Não é um homem de bem o Senhor? E não são estas coisas sinais de que Deus protege a obra? Dêmos
graças ao Senhor que é tão bom.
1487
Ontem fui visitar Vimercati, que, depois de me dizer que está certo que Deus protege a obra com a graça
e a protegerá com os meios, me disse que tem muito interesse por ela. Depois perguntou-me se as irmãs Vi-
perescas tinham dado às negras a roupa, os lençóis, etc. que tinha comprado para elas. Eu tive que lhe dizer
a verdade: nem sequer um fio! Estranhou muito, pois numas e noutras coisas tinha gasto mais de 400 escu-
dos. «Paciência! – disse o pobre velho –, o Senhor castiga-me porque tive demasiado prazer ao fazer essa
obra de caridade». Fiat voluntas Dei.
Mas deixemos este tema: corramos uma cortina. Dou graças ao Senhor porque a tempestade levantada pe-
lo V. G. serviu para fazer apreciar a obra e para me proporcionar a mim em Roma o crédito e a estima que de
nenhuma maneira mereço. Veja quão bom é o nosso bom Deus.
No passado sábado, o card. vigário, segundo me disse ele próprio, levou a sua carta ao Papa, que a leu e
agradeceu muito.
1488
Que dizer da carta que V. E. escreveu ao cardeal Barnabó agradecendo-lhe por me ter prestado tão boa
ajuda? Fez um grande bem. O cardeal agradeceu-a enormemente e comprazeu-se muito em ver quanto V. E.
se preocupa pelo bem da África.
Pela minha parte, não tenho palavras para lhe exprimir o meu agradecimento pela preciosa carta que me
escreveu e que ontem Sua Eminência me entregou. É para mim um monumento da sua exímia bondade, uma
regra de conduta em relação à África, uma clara e preciosa manifestação da vontade divina por meio da legí-
tima autoridade instituída pelo céu. Asseguro-lhe que com a graça de Deus procuraremos todos, e eu em
primeiro lugar, observar à letra os seus preceitos. Mas a resposta a esta carta tão preciosa reservo-a para ou-
tro dia, pois já me alarguei demasiado. Só lhe recomendo que as canossianas se apressem, porque Barnabó
gostaria muito que fossem elas as destinadas à nossa obra; e eu disporei nesta base as coisas no Cairo. O
senhor, como responsável da obra, Barnabó como prefeito da Propaganda e o Papa como Vigário de Cristo
sorriem às canossianas. É conveniente que S. José estabeleça as suas filhas lá onde o grande patriarca viveu
sete anos. Basta. Espero que em breve possa mandar duas ou três delas.
1489
Como pode ter acontecido que o V. G. tenha escrito uma carta ao vicário apostólico do Egipto contra a
nova expedição, eu julgaria oportuno que, quando pudesse, escrevesse uma boa carta de recomendação para
todos nós. É esta a direcção:

A S. E. rev.ma mons. Luís Ciurcia, arceb. de Irenópolis


vigário e delegado apostólico do Egipto
Alexandria do Egipto

1490
Amanhã mandar-lhe-ei as respostas para os camilianos Zerlini, Parozzi, Benigni e Motter. Paguei-os à S.
Cong. de B. e Reg. por um total de 28 francos e 80 cêntimos. Procure a melhor maneira de fazer com que lhe
dêem tal soma, ou seja, 7,20 francos cada um. Procurei, ou melhor dito, procuraram os da Congregação a
petição do P.e João Batta Carcereri, mas não apareceu. Conviria que o dito bom padre a renovasse, enviando-
a directamente a mons. Svegliati.
Agradeço-lhe de todo o coração e com toda a veneração de um filho também por ter mandado ao card.
Barnabó, que verdadeiramente me fez de pai, a carta de agradecimento, a qual fez crescer nele a vontade de
ser protector da obra. Verá quanto bem faz também à obra o card. De Pietro. Tenho de elogiar a perspicácia
que teve P.e Vicente que tão bem soube conhecer mons. o vice-gerente. Mil respeitosas saudações ao mar-
quês Octávio, etc. Louvados sejam J. e M. eternamente, assim seja.
Beijando-lhe com todo o afecto as sagradas mãos, declaro-me

Seu hum. e ind. filho


P.e Daniel Comboni

Domingo, pela manhã, saio com catorze pessoas de Civitavecchia; e segunda-feira estaremos em Marse-
lha; sexta-feira partiremos para Alexandria.
Muitas lembranças a P.e Dalbosco

N.o 223 (211) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/46

V. J. M.
Marselha, 29 de Novembro de 1867

Excelência rev.ma,

1491
No dia 24 saí de Roma com doze negras e duas Irmãs de S. José. Dado que, a pedido da devota Maria As-
sunção, a boa alma de mons. Ferrari e a marquesa Brígida, sua irmã, me tinham recomendado ao seu primo
mons. Bisleti, bispo de Civitavecchia, ao chegar à estação encontrei o secretário e duas Irmãs do Preciosís-
simo Sangue. O primeiro conduziu-me ao palácio episcopal, onde passei a noite; as segundas levaram as
catorze para o seu convento. Fomos recebidos e tratados como familiares. Pela manhã partimos no Posilippe
e na tarde do dia 26 chegámos sãos e salvos a Marselha.
1492
Aqui recebi outra rapariga negra, de 23 anos, devota, bondosa, muito instruída, que vale por duas irmãs.
O nosso digno P.e Zanoni, que a conheceu há um mês, porque os nossos três bons missionários levaram uma
vida retiradíssima, saindo só de casa para ir à Igreja ou ao Insto. de S. José, onde eu os havia recomendado,
assegura-me que é uma jóia. Portanto as negras são dezasseis. Foi-nos possível conseguir três Irmãs de S.
José da Aparição para conduzir e proteger as raparigas até ao Cairo, onde as ditas religiosas têm um estabe-
lecimento. De modo que a nossa expedição é composta por 23 pessoas. Temos tudo preparado e disposto e
dentro de duas horas (às duas da tarde) zarparemos do porto de Marselha alegres e contentes, porque vimos a
mão de Deus e a sua adorável Providência em muitas coisas, que por falta de tempo não posso expor. Portan-
to, reze também muito pela boa viagem. Quando receber estas linhas já nos encontraremos no alto mar entre
a Grécia e a África.
1493
Li as suas duas preciosas cartas aos nossos três camilianos: oh, quanto nos consolou a palavra de V. E.,
nosso venerado pai! Não viveremos nem respiraremos a não ser por Jesus e para lhe ganhar almas. Levo
comigo quanto nos recomendou, assim como as cartas de S. Francisco Xavier e faremos tudo com a graça de
Deus. Nós os quatro temos uma só alma. Nos três dias que estou a viver com estes padres, convenci-me de
que possuem eminentes virtudes e um grande espírito apostólico.
1494
E como me sinto confundido ao seu lado! É uma nova graça que Deus me dá. Neles tenho uma escola on-
de aprender em abundância: rogue ao Senhor que saiba aproveitar, porque estou muito longe de poder imitar
as suas virtudes. Vamos para o Egipto dispostos a sofrer muito, embora tenhamos diante de nós um horizonte
muito prometedor. Mas, para que a obra de Deus avance, são necessárias as tribulações e as cruzes. As cartas
de V. E., que nos prepararam para as mesmas, dão-nos já forças para suportar tudo.
1495
E eis aqui uma dessas cruzes: Pedro Bertoli, o leigo que veio para Marselha com os padres, deu-lhes um
desgosto. Ele carece de espírito: tal foi a primeira impressão que me deixou em Roma e V. E. é testemunha
disso. Junto-lhe uma carta que me escreveu. Após fervorosas preces a Jesus e sérias considerações, decidi-
mos fazê-lo voltar para trás; e para tal fim dei-lhe o necessário para a viagem até Verona, onde certamente
não regressará. Isto é um grande sacrifício de amor-próprio; mas na missão ele seria um obstáculo para a paz
entre nós, que temos um só coração. Fiat! Espero que o nosso venerado pai aprovará a nossa determinação.
Agora Bertoli pede-me a chorar que o autorize a ir connosco; mas, embora o meu coração esteja comovido, a
minha consciência não cederá jamais.
1496
A segunda e mais dolorosa cruz: inteirei-me de que o P.e Guardi (e estou convencido disso) tenta e luta
por fazer com que o Santo Padre anule a resposta. A Barnabó não lhe agradou tudo o que V. E. escreveu a
respeito do P.e Artini e do P.e Guardi. Temo que o cardeal e o P.e Guardi (que são amigos) tenham tido con-
versações e antes de falar ao Papa tenham acordado recorrer à doçura para induzir o bispo de Verona a que
retire também os três que já partiram; e receio também que depois a resposta do cardeal a V. E. sobre este
assunto seja dura e crua. Eu, uma vez que me apercebi desta jogada, fui logo ter com mons. Svegliati para o
sondar. Encontrei-o de excelente disposição e prometeu-me que fará tudo para convencer o geral para que dê
a bênção também a Tezza. Expliquei-lhe as nossas intenções e quanto nos alegra que continuem todos a ser
verdadeiros camilianos, etc., o que o deixou muito satisfeito. Portanto, ânimo monsenhor: não se assuste
nada com a carta que Barnabó lhe escreverá, o qual, por outro lado, se mostra muito favorável à missão e foi
o meu escudo na passada cruz.
1497
No que respeita aos três, eu seria da opinião – sempre subordinada à de V. Excelência – que se seguisse a
teoria dos factos consumados: estes três sentem-se os mais felizes e contentes do mundo pela decisão que
tomaram e seriam mártires se os forçassem a regressar; por outro lado, para nós são-nos necessários. Quanto
a Tezza, creio que se deveria deixar fazer a Svegliati e não insistir mais; antes, chegada a altura, recorrer à
doçura também com o P.e Artini. Barnabó não gostou que o senhor falasse mal deste padre. Em Roma, to-
dos os cardeais e prelados têm uma sensibilidade especial quanto ao fazer respeitar as suas próprias atribui-
ções e não se imiscuir na jurisdição alheia. No P.e Artini mandam o geral, a Congreg. de Bispos e Regulares
e o Papa: fora destes ninguém se ocupará de qualquer reclamação. A arma que usarão o P.e Guardi e a ordem
camiliana é terrível, bem concebia, astutíssima; é esta: «O bispo de Verona e P.e Comboni subornaram e
seduziram os quatro camilianos para que abandonem a sua ordem: eles roubaram-nos a ordem». O senhor
sabe bem que isso é mentira, mas o certo é que se vai usar esta arma. Coragem! Não se assuste nem recue na
decisão tomada. O senhor usou a maior delicadeza com os quatro e mostrou o devido respeito à Igreja. A
verdade e a justiça hão-de triunfar: ânimo!
1498
Em Marselha, chegaram-me da Áustria oitenta missas com a esmola de 350 florins em notas e de Colónia
trezentas com a esmola de 300 francos em ouro. Ponho-as todas à sua disposição: o senhor tem a faculdade
de reduzi-las à svancica e meia. Atribua-nos a nós as que quiser e deixe as que entender para os sacerdotes
da diocese. Depois, peço-lhe sobre isto uma benévola resposta.
Quando escrever para o Egipto, pode mandar todas as cartas a P.e Dalbosco, o qual no-las fará chegar às
mãos.
1499
Organizei com um ilustre escritor amigo meu, advogado em Marselha, a aparição de uma nova folha
mensal cujo tema é a Guarda de Honra do Sagrado Coração e a África. Deus abre belos caminhos.
Uma máxima a seguir no futuro, segundo o sábio conselho de Barnabó, é que é preferível não admitir
nunca religiosos sem o consentimento formal da respectiva ordem. Porém, quanto aos nossos quatro, o Se-
nhor nos ajudará a conservá-los para o apostolado africano.
1500
O P.e Zanoni e todos nós rogamos a bondade de todas as noites nos dar a sua bênção. Será para nós um
grande conforto.
Desde Civitavecchia que lhe tinha preparado uma carta e nela lhe enviava as quatro respostas. Depois,
com a azáfama do embarque, esqueci-me de a despachar.
1501
Mando-lhe, pois, as quatro respostas, mas, por favor, faça de maneira que ninguém se aperceba de que fui
eu quem os retirou, porque isso tornar-me-ia odioso ao P.e Artini. Incluído o correio, custam trinta francos,
que eu paguei. Peço que tenha a bondade de os receber como pagamento à conta de missas que fará celebrar
a sacerdotes que delas precisem.
Receberá de Roma seis grandes fotografias das jovens negras, que foram entregues ao Santo Padre. P.e
Dalbosco mandará duas delas para Colónia e uma das seis é para si. As restantes, incluídas as duas de Coló-
nia, peço-lhe que as faça chegar a P.e Dalbosco.
1502
Vimercati ajuda-nos em tudo. Autorizou-me a reclamar do vice-gerente a roupa da cama e tudo o que deu
para as negras, ou seja, cerca de quinhentos escudos. Barnabó ordenou-me que desse a correspondente ordem
ao meu procurador, escrevendo para este fim uma carta ao V. G. com a reclamação.
O Senhor concedeu-me em Roma graças imensas: a vitória e o benefício obtidos são grandes. Deus é
bom, porque, em vez de perder, ganhei: triunfaram a verdade e a inocência.
Tenho que concluir, porque é preciso subir para bordo do Peluse, o vapor que nos leva para Alexandria.
1503
Muitas respeitosas saudações ao marquês Octávio, à marquesa, a P.e Vicente, a mons. o vigário, a Perbel-
lini, etc.
Seus filhos ajoelham-se para lhe pedir a santa bênção. É nosso empenho sacrificar tudo por amor de Deus,
para pôr em andamento a sua obra.

Seu hum. e ind. filho


P.e Daniel Comboni.

Mil e mil graças por tudo e em especial pelas cartas enviadas a Roma, que me apoiaram poderosamente e
que foram causa de que [...] Barnabó me apoiasse.
[No fim da quarta página, a lápis]: no momento de partir recebo a sua de 26 de Agosto. Quão agradável é
ela!!! Obrigado!

N.o 224 (212) - A MONS. LUÍS CANOSSA


ACR, A, c. 14/47

V. J. M.
Messina, do Vapor Peluse
1 de Dezembro de 1867, 17 horas

Excelência rev.ma,

1504
Quase nunca me aconteceu fazer uma viagem tão boa como esta. Estamos a bordo de um dos vapores
maiores e mais seguros: nenhuma das vinte e três pessoas que compõem a nossa interessantíssima expedição
se sentiu mal e espero que a viagem vai continuar bem até Alexandria.
No barco li a sua preciosa e apostólica carta de 25 do corrente aos nossos três dignos missionários. Nela
V. E. escreveu literalmente o que realmente aconteceu e o gozo que nós sentimos ao vermo-nos e ao contar-
mo-nos mutuamente as lutas, as cruzes e as alegrias. E quando ouviram aquelas sublimes expressões repas-
sadas do Espírito de Deus e aquelas salutares admonições e frases de alento, etc... Oh, não posso descrever-
lhe a emoção dos três, não acostumados a receber tanto conforto. Derramaram abundantes lágrimas e o mais
velho, o P.e Zanoni, chegou a exclamar: «Ah, que bom é o Senhor, que sabe consolar nesta terra e tornar
gratas as cruzes! Este é o remédio mais suave. É a bênção de Deus que se nos comunica por meio do nosso
venerado bispo e amadíssimo pai». Agradecemos de coração a sua bondade, a sua caridade. Não há momento
de prazer comparável a tanto gozo.
1505
Dir-lhe-ei que me encontro cada vez mais satisfeito e contente de ter tomado a decisão de despedir o leigo
Pedro Bertoli. É um homem de bons costumes, de excelente coração, atinado e senhor de conhecimentos
como médico sangrador; porém a sua dose de orgulho e amor-próprio era demasiado grande para ser compa-
tível com a humildade e docilidade necessárias numa missão tão difícil. O bom P.e Zanoni repetiu-me muitas
vezes: «Se eu for Jonas, lance-me ao mar». Fui inamovível na minha decisão de o despedir. Na quinta-feira à
tarde e à noite, Bertoli lançou-se aos meus pés e aos pés dos outros, chorando, pedindo perdão; esteve toda a
noite a bater à minha porta. Causava espanto e compaixão, pois desejava absolutamente ir.
1506
Deus sabe quanto sofreu a minha alma ao persistir na negativa; mas o dever de consciência e a glória de
Deus têm que estar acima de todas as exigências do coração. Nós vamos fundar uma missão e novos estabe-
lecimentos em países onde a própria virtude será criticada e atacada: ai se o veneno da discórdia se introduz
entre nós! É necessário que as primeiras impressões da nova missão no Egipto sejam boas; é preciso que
imperem a honra e o respeito e que os interesses da glória de Deus sejam tratados com todo o decoro e a
santidade do ministério. Desde o princípio, tudo depende de um feliz e bom começo. Por isso fechei o cora-
ção à compaixão e decididamente fi-lo regressar, dando-lhe o dinheiro necessário até Verona.
1507
Nós os quatro formamos um só coração, uma só alma. Cada um esforça-se por fazer bem aos outros. Eu
sei e estou convencido que não sou digno nem sequer de beijar os pés aos meus companheiros; mas eles são
tão bons e caritativos que não só se mostram indulgentes comigo como até me tratam com o respeito e amor
devidos a um superior. Estão conscientes da altura da divina missão que vão realizar e penso que no Egipto
honrarão o sacerdócio veronês e o venerado sucessor dos Apóstolos que preside à grande obra. Recomendo a
V. E. Rev.ma valor e firmeza para fazer frente aos que no-los quereriam arrebatar; não fique dúvida de que
com estes homens se iniciará magnificamente a obra. Estou certo de que o senhor saberá resistir e fazer ver a
Roma que nos limitámos a secundar a vocação destes dignos religiosos, os quais teriam sido infelizes na sua
Província, dadas as críticas condições políticas do “desgoverno” revolucionário.
1508
Ao P.e João Batta Carcereri, que agora está em Verona, o Papa não deu o consentimento, porque faltava o
assentimento do procurador-geral da ordem camiliana, como, ao invés, se verificava em relação aos outros
quatro.
1509
Desde há muitos anos mantenho correspondência com a donzela Marie Deluil Martiny, de Marselha. É a
fundadora e propagadora da Guarda de Honra do Sagdo. Coração de Jesus, obra que desde 18 de Março de
1863, altura em que foi fundada, ganhou milhares de almas para a fé e a piedade. Mademoiselle Martiny (que
só tem 24 anos e que em Lião induziu milhares de soldados a irem todas as noites adorar o Ss.mo Sacramen-
to na hora da sua guarda de honra) difundiu nas cinco partes do mundo a sua obra, que conta com mais de
um milhão de subscritores. Deseja que o senhor institua a mesma em Verona e nas comunidades religiosas. É
coisa fácil: não se paga nada e só se estabelece uma hora em que se faz o propósito de oferecer em expiação
pelos pecados do mundo os méritos da lançada que trespassou o Coração de Jesus Cristo. Mademoiselle Mar-
tiny enviar-lhe-á as medalhas (que são muito bonitas) com as cartinhas.
1510
É uma obra de grande louvor para Deus. Basta fazer o propósito de consagrar ao Sagdo. Coração as ac-
ções da hora fixada, quer se coma, quer se beba, quer se trabalhe, etc. O pai desta alma grande e eu acordá-
mos fundar uma publicação mensal, na qual se tratará da glória de J. C. e da sua dignidade contemplada na
sua doutrina e nos seus exemplos. Será como uma publicação que dará a conhecer ao público a Obra para a
Regeneração da África e a Guarda de Honra do Sagdo. Coração.
1511
Dei a Mademoiselle Martiny a direcção de V. E. para que mande as medalhas e os Quadrants e para esta-
belecer correspondência. P.e Dalbosco pode servir-lhe de grande ajuda, pois ela manterá também contacto
com ele. O redactor da publicação é o pai de Mlle. Martiny, grande advogado de Marselha e muito rico.
Apresentei a esta devotíssima jovem os nossos missionários e ficaram surpreendidos por tanta piedade e
ciência teológica ao falar do Sagdo. Coração; é espiritualmente dirigida por um padre jesuíta, que é seu con-
fessor há dez anos. Ela já faz rezar todos os dias pela nossa obra.
1512
O P.e Zanoni e os outros dizem que a nossa obra é obra de Deus e que eles viram e vêem milagres. Deus
o queira. Mas eu, por meu lado, direi também a V. E. Rev.ma como meu chefe e pai: «Se eu for Jonas, lance-
me ao mar».
Beijamos-lhe reverentemente as mãos e rogamos-lhe que nos assista com as suas preciosas cartas, que são
para nós a expressão da vontade de Deus e nosso conforto. Mil saudações a Octávio, a P. e Vicente, ao vigá-
rio, a Perbellini, etc.

Seu hum. e obed. filho


P.e Daniel

1513
P. S. Para mostrar a V. E. quanto Deus nos protege, dir-lhe-ei que recebo dinheiro de muitos sítios. Feitas
as contas dos gastos realizados desde Roma até Marselha (12 negras, 2 irmãs e eu) e desde Marselha até
Alexandria (16 negras, 3 irmãs e 4 missionários) e calculado tudo o que teria tido de gastar se mediante
mons. Moustier, mr. de Sartiges, etc., não tivesse obtido a passagem grátis, resulta que o Governo francês me
ajudou entre Civitavecchia, Marselha e Alexandria com a vistosa soma de 542 napoleões de ouro; de modo
que, sem a ajuda da França, eu teria tido que desembolsar mais 542 napoleões do que gastei. Vê, monsenhor,
como Deus nos assiste? Coragem, pois, que nenhum obstáculo nos espante: nas barbas de S. José escondem-
se muitos napoleões de ouro e libras esterlinas. Ele dar-no-los-á quando precisarmos.
1514
Em Marselha, a minha boa madre sóror Emilie Julien, superiora das Irmãs de S. José da Aparição (deno-
minação devida a uma visão que teve a fundadora Mme. de Viallar, que quis honrar S. José quando o anjo
lhe apareceu e lhe disse: surge, accipe puerum...etc. et fuge in Aegyptum), não somente foi uma mãe assistin-
do os nossos missionários no Egipto, mas até nunca quis receber nada pelas negras que ela mantinha alber-
gadas.
Fundadora de doze institutos na Ásia e na África, foi a primeira freira que se estabeleceu em Jerusalém
desde as Cruzadas. Deu-me três irmãs para levar para o Egipto para junto das negras: uma francesa, outra da
Áf. do Sul, que sabe quatro línguas, e a outra armena, de Erzerum, que também sabe quatro línguas. Espero
que iremos fundar uma bela missão. Madre Emilie é em Roma a presidente da Obra Apostólica das Damas
do Evangelho, que nos fornecerá os paramentos sagrados para o Cairo. Gostaria que lhe escrevesse uma car-
ta de agradecimento pelo bem que nos tem feito. É uma incondicional do Papa, de Barnabó e de Antonelli.
Foi ela quem há três anos conseguiu para mim 200 escudos do card. Reisach.

N.o 225 (213) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/18

V. J. M.
Cairo, 10 de Dezembro de 1867

Excelência rev.ma,

1515
Chegámos os vinte e três felizmente ao Cairo. Por um telegrama que eu enviei para aqui, consegui, por in-
tercessão de S. José e St.o Expedito, transporte gratuito desde Alexandria até ao Cairo, para nós e os caixo-
tes, o que representa uma poupança de 53 napoleões de ouro. É a primeira vez que umas negras, que são tão
desprezadas entre os turcos, viajam a expensas do paxá nos vagões onde vão os senhores. Veja quanto nos
protege a Sagda. Família. Em Alexandria, mons. Ciurcia recebeu-nos estupendamente. Aqui no Cairo, tanto
as irmãs clarissas e do B. Pastor como os frades nos olham com desconfiança (inter nos); chegaram até a
causar-nos problemas. Mas tendo já posto o pé no Cairo, será preciso muito, mas muito, para nos criarem
sérias dificuldades. Sendo de Deus, a obra triunfará. Deus inspira-me toda a confiança. Si Deus pro nobis,
quis contra nos?
1516
Espero dinheiro de Colónia, porque fiquei só com oitenta napoleões de ouro. Porém, S. José foi pobre pa-
ra remediar outros. Julgaria conveniente que V. E. fizesse menção da nossa obra na Unità Cattolica e, se lhe
parecer, no Veneto Cattolico: isto produzirá um efeito favorável entre os bispos e os bons fiéis, e a Obra do
B. Pastor terá mais aceitação. Em tal caso, pode V. E. ordenar a P.e Dalbosco que mande a essas redacções o
Plano, o programa e a folhinha das indulgências. Também pode realizar, segundo a sua comodidade, o que
me escreveu acerca do card. De Pietro.
1517
Lembre-se de que na gruta da Ssma. Virgem e aqui, na antiga Mênfis, todos os dias se reza fervorosamen-
te por Verona e pelo seu venerado anjo e nosso pai. Faça no Memento outro tanto por nós e peça as orações
das Canossianas (para as quais preparamos o terreno) e das boas almas.
Desta vez não lhe escrevo mais, porque estou muito cansado. As minhas lembranças ao veneradíssimo
marquês Octávio e a toda a família, assim como a mons. o vigário, a Perbellini, a P.e Vicente, à superiora de
S. José, etc.
Os nossos três bons missionários camilianos, que estão felizes e cheios de ardor para se consagrarem à
salvação das almas, beijam as mãos a V. E. com filial afecto e profunda veneração. As três boas irmãs, jun-
tamente com as dezasseis negras e dois negros, também lhe beijam as mãos. Todas as noites, antes de se
deitar, dê-nos a todos a sua santa e paternal bênção pastoral.

Seu hum. e indigmo. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 226 (214) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/49

V. J. M.
Cairo, 18 de Dezembro de 1867

Rev.mo monsenhor,

1518
Todos nós, seus filhos, lhe desejamos que tenha felizes e santas festas e um bom Ano Novo. Ainda não
posso escrever-lhe sobre tudo o que se refere à nossa instalação, por estar demasiado ocupado. Só lhe digo
que aluguei aos frades maronitas o seu convento do Cairo Velho por sete napoleões de ouro ao mês. Tem
uma igreja mais bonita que a de S. Carlos do Insto. Mazza e duas casas anexas à igreja, mas separadas entre
si. Numa ficarão as freiras com as negras, na outra nós. No meio das secretas tormentas que aqui se agitam e
que não podiam escapar ao nosso olhar, nós encarregar-nos-emos muito bem de estabelecer e desenvolver
bons institutos para a África Central. Em princípio, aqui no Egipto, onde em geral as coisas vão mal, diviso
um horizonte muito prometedor para a nossa obra: a explicação para mais adiante.
1519
Não devolva nada nem dos móveis nem do dinheiro (creio que são 10 napoleões de ouro) que as freiras
lhe deram, até que o processo não esteja concluído. Atendo-nos à mais estrita justiça, eu sou, como se cons-
tatou em Roma, credor em relação a mons. o vice-gerente. Assim opinam cardeais, monsenhores, advogados
e canonistas que consultei em Roma, e também a minha consciência. Como lhe escrevi, espero que mons.
Gasparoli conduza o assunto de modo amistoso.
Junto à gruta da Sagrada Família, nós rezámos por si e pela sua diocese, que são coisas nossas. O senhor
reze por nós e abençoe-nos todas as noites.
1520
Depois das santas festas, esperamos o delegado apostólico, mons. Ciurcia. Coitado! Aqui aguardam-no
muitos espinhos, muitos pesares; e será uma grande graça se sair bem!
Receba as mais respeitosas saudações de todos nós, que lhe beijamos as sagradas vestes. Apresente distin-
tos cumprimentos dos demais e meus a mons. o vigário, a Perbellini, ao reitor do seminário e a P.e Vicente e
apresente lembranças e saudações da minha parte a P.e Alexandre Aldegheri e a toda a sua família. Prostrado
imploro a sua bênção.
Seu hum., dev. e resp. filho
P.e Daniel Comboni

N.o 227 (215) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/50

V. J. M.
Cairo, 20 de Dezembro de 1867

Excelência rev.ma,

1521
Na tarde de ontem instalámo-nos todos na nossa espaçosa residência, onde, desde há uma semana, tinha
mandado os nossos três bons missionários e as freiras com seis das negras mais velhas. Arranjaram muito
bem a casa. Como o P.e Zanoni parece feito expressamente para estas coisas, deixei tudo nas suas mãos,
enquanto eu me ocupei das compras que a nossa pequena bolsa permite. Parece que o Senhor nos abençoa
abundantemente.
1522
Ontem pela manhã, encontrando-me no convento dos Franciscanos, comunicaram-me que tinha nos cor-
reios uma carta para mim. E como espero com ânsia dinheiro de Colónia, deixei tudo e fui aos correios. Pelo
caminho ia pedindo ao Senhor que fosse uma carta de Colónia e já antegozava a satisfação. Quem acredita-
ria? Quando tive nas minhas mãos e abri e li a sua estimadíssima carta, a alegria do meu coração foi mil ve-
zes maior ao conhecer o conteúdo dela e as boas disposições do P.e Artini. Mandei logo a carta por um nosso
jovem negro ao Cairo Velho; e a verdade é que os três não cabem em si de alegria.
1523
Até agora somos 25, porque recebemos dois negros: um é Ambar, farmacêutico, que esteve oito anos em
Verona e a quem, depois, em 1860, eu levei para Nápoles; o outro é João, que o ano passado apresentei à
imperatriz Carolina, de Salzburgo, e que veio para África comigo. É organista, carpinteiro, etc. Os dois são
bons rapazes. Há outros dois negros que frequentam a casa, mas não pensamos admiti-los.
Obrigado pelos salutares conselhos que me dá. Asseguro-lhe que são muito valiosos e na minha debilida-
de procurarei pô-los em prática. Continue a confortar-nos com as suas cartas tão apreciadas. Oh, não pode
imaginar quanto bem nos fazem!
1524
Escreveremos um pormenorizado relatório sobre a nossa viagem e a instalação aqui. Vou fazer tudo o que
me diz na sua carta. Quanto a Tezza, apenas possa partir, mande-o a Marselha, onde se apresentará na Cape-
leta à superiora geral de S. José da Aparição e receberá todas as instruções. No próximo vapor vou mandar-
lhe uma carta para a direcção das Messageries Imperiales a fim de obter a sua passagem grátis até Alexan-
dria, onde eu ou um de nós acorreremos a recebê-lo. Tenho direito a uma passagem totalmente gratuita para
completar as vinte e quatro que o ministro me concedeu. Por meio de Tezza, esperamos quatro calendários e
uma cópia da parte dos santos veroneses.
1525
Hoje chega ao Cairo mons. Ciurcia, que me disse ter recebido uma longa carta de V. E. Rev.ma Agrade-
cemos-lhe de coração; e um dia a África, convertida, ser-lhe-á devedora da iniciativa da obra: digitus Dei est
hic! Oh, quantas almas vejo cada dia irem para o Inferno! É uma coisa que dói muitíssimo!
1526
Dentro de poucos dias, escreverei ao ministro Moustier para obter o desconto de 50% no envio de fardos
que encomendei e encomendarei no futuro na França. Há uma grande poupança trazendo de lá víveres e rou-
pa. Um assunto muito delicado é o da protecção europeia no Egipto e especialmente na situação dos nossos
dois institutos. A Áustria tem direito a isso, a ser a protectora do vale do Nilo; a França tem o direito pela
ajuda que me concedeu nas passagens e por aquilo que fará; a Itália tem direito pelo facto de nós sermos
italianos. Os cônsules destes três países tratam-me com gentileza. Porém, eu até agora tenho-me mantido e
espero vir a manter-me por muito tempo numa respeitosa e amistosa independência.
Implorando uma especial bênção (além da de cada noite), beijo-lhe a mão.

Seu obemo. e afortunadmo. filho P.e Daniel


Mons. Ciurcia saúda-o cordialmente. Os três escreveram ao P.e Artini.

N.o 228 (216) - HORÁRIO


ACR, A, c. 13/6

Cairo, 25 de Dezembro de 1867

HORÁRIO QUOTIDIANO
ACR, A, c. 13/6
1527
Para o Instituto de Educação das Negras no Cairo Velho

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Às 5.00 horas De Março a Nov., e às 5h30 de Nov. a Março:


Levantar-se, limpeza do quarto e pessoal em silêncio.
Meia hora depois Exercício da manhã e oração mental durante meia hora. Missa e exercício íntimo de de-
voção.
Às 7 horas: Pequeno-almoço e tempo livre.
Às 8 horas: Instrução religiosa ou laboral. Desempenho de encargos especiais.
Às 11.45 horas: Lição espiritual em árabe e em italiano separadamente.
Às 12.00 horas: Almoço, recreio em comum e trabalhos no jardim para entretenimento.
Às 14. 00 horas: Terço do rosário e depois exercício e instrução também sobre ler e escrever.
Às 18.00 horas: Recreio no jardim
Às 18.45 horas: Visita à igreja.
Às 19.00 horas: Jantar e recreio com exercício de canto ou de música.
Às 20.00 horas: Exercício da noite e depois exame de consciência.
Às 21.00 horas: Dormir.
1.o N.B. Os exercícios de piedade que requerem leitura fazem-se separadamente em duas secções, uma
italiana e outra árabe.
2.o N.B. A instrução das catecúmenas fica a cargo das negras mais instruídas, sob a direcção do sacerdote
indicado e da superiora.
3.o N.B. Nos domingos e dias festivos, a superiora, de acordo com o padre director, dispõe as coisas de
maneira que o tempo seja ocupado especialmente na instrução catequética e em algum passeio ou entreteni-
mento útil.
P.e Comboni

N.o 229 (217) - AO PRESIDENTE DA SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 15 (1867), pp. 40-46

Cairo, 27 de Dezembro de 1867

Relatório do ano de 1867


A primeira colónia negra da África Central
aos pés de Pio IX

1528
A obra da renovação espiritual da África devia ter a sua primeira consagração sobre o túmulo dos Prínci-
pes dos Apóstolos no momento solene do triunfo da Igreja, quando de todas as partes do mundo o episcopa-
do católico se apressava a ir à Cidade Eterna, para aí celebrar a comemoração, dezoito vezes secular, do glo-
rioso martírio dos Príncipes dos Apóstolos. Muito oportunamente, a Divina Providência tinha disposto que a
primeira expedição de pregoeiros indígenas da fé, formados para o apostolado entre os negros no centro do
catolicismo, recebessem força e entusiasmo aos pés do sagrado representante d’Aquele que mediante a pre-
gação do Evangelho tinha chamado ao caminho da vida eterna todas as nações da terra: «euntes in mundum
universum, praedicate Evangelium omni creaturae».
1529
As várias razões e circunstâncias que determinaram a viagem a Roma das primeiras negras preparadas pa-
ra a missão não creio que venham aqui ao caso. Na Quarta-Feira Santa de 1867 saía eu do Instituto Mazza
com nove jovens negras, acompanhadas por uma devota professora e da senhora Maria De La Pièrre. Esta
última, nascida em Aubonne, junto ao lago de Genebra, na fé de Calvino, tinha 17 anos quando a conheci
(ainda era protestante) no Véneto, em casa de um alto oficial do exército austríaco. Eu encarreguei uma de-
vota senhora que falasse com ela sobre o catolicismo, porém, logo à primeira tentativa ela declarou que sen-
tia grande aborrecimento por uma fé que não considerava superior à sua. E portanto, a princípio havia pouca
esperança de convertê-la a uma religião que lhe proibia de se entregar perdidamente às vaidades do mundo,
ela que, embora jovem, estava abandonada aos mil perigos das diversões que frequentava e dos prazeres da
vida mundana.
Porém, a graça, que já triunfou em tantas almas rebeldes, não conhece dificuldades e, no seu poder infini-
to, ela esperava também aquela jovem até ao momento fixado pela Providência para triunfar na sua alma. Eu
tinha decidido mais de uma vez levar a menina De La Pièrre às mais belas igrejas, para fazer com que assis-
tisse às solenes e imponentes cerimónias. De facto, a imponência do nosso culto externo fala com assombro-
sa força ao coração e já fez grandes conquistas para o catolicismo. Era Sexta-Feira Santa de 1864 quando a
menina De La Pièrre entrava numa igreja católica.
1530
Durante as comovedoras cerimónias da paixão do nosso Salvador, ela estava profundamente comovida, as
lágrimas banhavam as suas faces e de todas as outras cerimónias viu bem pouco por causa do pranto e dos
soluços. Em breve: imediatamente depois era recebida em Verona pelo meu venerado superior P.e Nicolau
Mazza, no seu instituto, e dezassete meses depois ela emitia a sua solene profissão de fé perante o rev.mo sr.
bispo de Verona, marquês de Canossa. Maria de La Pièrre partiu para Roma com as negras e aí foi confiada
aos cuidados da superiora das Irmãs de St.a Doroteia. No Colégio da Providência fiz com que a examinassem
os padres da Companhia de Jesus para ver e provar a sua vocação ao estado religioso e, tendo ela entrado
como postulante no convento das ursulinas, antes do seu ingresso no noviciado foi-me pedida a minha apro-
vação. Que Deus faça uma santa daquela que se pôs à sombra do santo altar.
1531
Em Pádua, o meu grupo aumentou com três negras, que acolhi de boa vontade, acedendo à recomendação
de S. Em.a o patriarca Trevisanato e à petição das Irmãs de St.a Doroteia, de Veneza, para fazer com que
participassem na minha expedição. Sexta-Feira Santa chegámos a Roma e as catorze raparigas entravam no
Convento da Imaculada Conceição, junto a Santa Maria Maior.
Aproveitei a ocasião da nossa estada na cidade dos Papas para apresentar as negras a S. Em. a o card. Bar-
nabó, que as recebeu com singularíssima benevolência e pediu muitas vezes que fosse permitido apresentá-
las a vários outros cardeais e a diversos prelados, príncipes e princesas de Roma; e todos ficavam entusias-
mados. O meu insigne e querido amigo, o senhor barão Von Gmainer, coronel e ajudante geral do grande
mecenas o rei Luís I da Baviera, que tinha passado o Inverno no seu palácio Vila Malta, depois de uma visita
ao interessante grupo de raparigas negras, foi tão cortês que as apresentou a Sua Majestade.
1532
No dia anterior à sua partida para a Alemanha, o ilustre ancião recebeu-as com muita gentileza no seu pa-
lácio. Até se dignou entreter-se bastante longamente com as negras, fazendo a cada uma delas várias pergun-
tas, mostrando-lhes a famosa palmeira tamareira que se erguia tão majestosa no seu jardim e contando-lhes a
sua viagem à Argélia. A bondosa Catarina Zenab, que é filha de um chefe, de um pequeno rei negro, teve a
honra de ser interrogada por esta insigne personagem sobre a sua proveniência. Mas a pobre rapariga, intimi-
dada pela dignidade e nobreza do velho monarca, não deu resposta a várias perguntas. Foi uma bela jornada
para aquelas pobres criaturas africanas, que quando um dia tiverem regressado às suas tranquilas e modestas
cabanas, falarão por muito tempo das excelentes impressões dos agradáveis dias passados na Cidade Eterna.
Em Roma vive também uma nobre personalidade cujo nome os pobres e grande número de institutos re-
ligiosas abençoam.
1533
Muitos conventos, asilos, colégios, hospitais e outras instituições de beneficência são testemunhos elo-
quentes da excelente caridade cristã desse santo ancião, do sr. conde Vimercati, viúvo de uma princesa Bor-
bon. De tão insigne benfeitor da humanidade disse-me um dia mons. Pacifici, quando aquele jazia gravemen-
te doente: «Se o conde Vimercati morresse, seria uma desgraça para Roma. Não conheço nenhum leigo no
mundo que tenha recebido de Deus tanta piedade verdadeiramente sólida nem que tenha conseguido viver
com tanta perfeição cristã como este virtuoso senhor». O poder da graça de Jesus Cristo fez milagres nesta
alma dócil, com a ajuda das iluminadas sugestões dos reverendos padres jesuítas, que assumiram há já mui-
tos anos a direcção da sua alma e que lhe devolvem centuplicados os meios de subsistência que dele recebe-
ram, isto é, os heróicos sentimentos de piedade, entrega e caridade extraídos dos seus ensinamentos e incul-
cados profundamente no seu coração, com os quais lhe asseguram as inefáveis riquezas da vida eterna.
1534
Como protector do Convento da Imaculada Conceição, onde iam ser acolhidas as negras, o conde Vimer-
cati correu a visitar o Santo Padre (que gosta dele e o estima como merece) para o informar de que estava
prestes a chegar a Roma um novo grupo africano, destinado a constituir no Cairo a base de um instituto, que
se propunha, além disso, iniciar a realização do «Plano para a Regeneração da África».
Sua Santidade, depois de ter afirmado ao conde que o proposto processo para a conversão dos negros da
África Central lhe parecia o mais seguro, o mais consonante com o objectivo e o mais prático, expressou-lhe
a sua grande complacência pela viagem das negras para Roma e desejou ver de perto toda a expedição negra
à sua chegada à Cidade Eterna. Mas, dado que na Semana Santa e também durante as festas da Páscoa, o
Santo Padre esteve ocupado com as solenes funções pontificais, que atraem a Roma tantos cristãos de todas
as partes do mundo, decidi que solicitássemos no Vaticano uma audiência para imediatamente depois da
oitava da Páscoa.
1535
Foi na segunda-feira depois do domingo in albis que o Santo Padre se dignou conceder-nos todo o tempo
do seu passeio vespertino, para receber nos magníficos jardins do Vaticano o novo grupo da África Central,
que se apressava a ir aos pés de Pio IX, para solicitar ao Vigário de Cristo a infusão do verdadeiro espírito
da sua nobre obra da conversão entre as tribos negras e para receber dele o regular mandato da Igreja. Eram
as quatro e meia da tarde quando S. E. mons. Castellacci, arcebispo de Petra, vice-gerente de Roma e superi-
or do Convento da Imaculada Conceição, com o seu séquito, e eu, chegámos aos jardins papais.
Aí encontrámos as nossas doze negras com duas irmãs do convento que as acompanhavam. Minutos de-
pois apareceu o conde Vimercati com o seu digno mordomo, o sr. Lourenço Pardini. Nós dispusemos em fila
as raparigas negras na bela avenida que se estende ao largo da Biblioteca do Vaticano e depois, o sr. conde,
mons. Castellacci e eu colocámo-nos ao pé da escadaria da Biblioteca para esperar o Santo Padre. O nosso
coração palpitava de alegria ao pensarmos no júbilo de que a divina bondade nos queria fazer participantes.
1536
Estávamos ali para recebermos uma infusão de fervor dos santos lábios de Pio IX, o Papa da Providência,
o verdadeiro amigo da humanidade, o iluminado salvador da sociedade moderna, o grande protector da intei-
ra civilização, o valoroso guerreiro e modelo de paciência do séc. XIX, a quem a presente geração venerará
como santo nos altares, o herói imortal, a glória e gala da cátedra de Pedro, cuja força, sabedoria, valor, fé,
piedade e firmeza aparecem tão radiantes na sua luta contra os furiosos ataques do Inferno, aquele que con-
duzindo habilmente a barca de Pedro a ele confiada socorre, salva, glorifica a Igreja Católica e contribui
assim para o cumprimento da promessa do Evangelho: «Portae inferi non praevalebunt».
Às cinco em ponto, o Santo Padre descia a escadaria acompanhado de mons. Negrotti e de outro prelado
doméstico. Nós ajoelhámo-nos no chão diante dele para lhe beijar os pés, que como os do Divino Redentor
caminham só para fazer o bem e para salvar. Porém, na sua extraordinária bondade, fez-nos levantar, esten-
deu-nos a sua mão para o beijo e abençoou-nos. Depois de uma amistosa saudação ao sr. conde Vimercati,
dirigiu o olhar ao grupo de raparigas africanas, que o esperavam de joelhos, e perguntou-nos: «Esta é, por-
tanto, a interessante expedição?... Alegra-me muito vê-la... São estas as negras educadas em Verona? ...
Bem, bem! Obteve-se em relação a todas o resultado que a sua educação se propunha?» «Sim, Santo Padre»
– respondeu mons. Castellacci.
«Ponho nelas a minha esperança – continuou Sua Santidade – e estou sobremaneira contente que com es-
tas meninas não se tenham feito esforços em vão, porque geralmente quanto mais bem se faz a um negro,
mais ingrato ele se costuma mostrar... Na minha juventude, na América, encontrámos uma vez três negros.
Nós estávamos bem fornecidos de víveres, não nos faltava nada e tratávamos bem os nossos servidores ne-
gros; mas eles, em paga, roubavam-nos sempre, mostravam-se ingratos e eram capazes de nos dizer que o
verde era branco e o vermelho, negro; de modo que durante muito tempo nos mantivemos bastante desconfi-
ados em relação a eles, apesar do bem que sempre lhes tínhamos feito. Isto é o que se chama prestar ajuda
esforçadamente, mas em vão; eram muito ingratos». Na África Central os negros são ladrões, mentirosos e
ingratos como na América?»
1537
«Santo Padre – respondi eu –, todos somos homens. Não é só o negro que tem defeitos, talvez o branco
fosse até mais ingrato, ladrão, mentiroso e velhaco que o negro, se se visse na triste condição de escravo,
como este último, que parece existir só para atender às mil impertinências e muitas vezes aos caprichos
cruéis e bizarros dos seus malvados amos. Se o negro recebesse desde a sua infância a educação que recebe o
branco, talvez tirasse dela mais proveito. Só com grande paciência, muita caridade cristã e uma sólida instru-
ção cristã se poderá obter destes meninos o que se pretende». «Na realidade – disse comovido o conde Vi-
mercati –, estas negras fizeram grandes progressos na piedade e na instrução. Estão apenas há catorze dias no
convento e a superiora disse-me que lhe parecem já como as noviças».
Discorrendo assim, chegámos ao sítio onde as negras estavam de joelhos. O olhar do Papa, cheio de bon-
dade e de benevolência, pousava com grande interesse nessas criaturas negras, cujas almas no baptismo se
tinham tornado mais brancas do que a neve.
«Sede bem-vindas, minhas filhas – disse –, estou contente de vos ver. Quantas sois?» «Doze» – responde-
ram elas como em coro. «Aproximai-vos» – pediu-lhes .
1538
O Papa sentou-se num cadeirão que lhe tinham preparado enquanto falava com as negras. À sua esquerda
tomámos assento o conde Vimercati, depois mons. Castellacci, a seguir eu, mons. Negrotti, outro prelado e
finalmente o sr. Pardini. Era um desses magníficos dias de Primavera, em que a natureza faz gala de todo o
seu encanto e beleza. Graciosas árvores se erguiam até ao céu e formavam como um esplêndido dossel, sob o
qual se sentava o Papa, todo vestido de branco e com um chapéu vermelho, que entregou logo a mons. Ne-
grotti. À direita de Sua Santidade colocou-se uma pequena mesa com adornos de ouro; sobre ela havia graci-
osos ramos de flores dos jardins do Vaticano e uma grande cesta de laranjas.
«Levantai-vos, caras filhas» – disse. «Arranjai-vos e ponde-vos em fila. Assim; estais todas agora? Uma,
duas, três, quatro... doze. Muito bem! Portanto quereis voltar aos vossos países de África? Mas por que moti-
vo quereis voltar à vossa terra»?
Duas ou três negras responderam assim: «Para ensinar aos nossos compatriotas a fé de Jesus Cristo e in-
dicar-lhes o caminho do Céu... Queremos fazer as nossas irmãs participantes dos bens que recebemos na
Europa». «Quereis torná-las brancas, não é verdade»? – inquiriu o Santo Padre. «Sim, Senhor» – responde-
ram as negras. «Mas como ides conseguir isso, se vós mesmas sois tão negras»? – voltou a perguntar o Santo
Padre. Maria Zarea respondeu em nome de todas: «Queremos torná-las brancas de alma». «Certo, certo –
prosseguiu o Papa –, brancas de alma como vós... Vós sois meio brancas... E quantas almas de vossas irmãs
pensa cada uma de vós ganhar para o Redentor e guiar ao Céu? Uma dúzia»? «Mais de doze – disse eu to-
mando a palavra. Muitas mais, Santo Padre». «Muitas mais» – repetiram em uníssono as jovens negras.
«Bem, bem!» – aprovou Pio IX. «E que ireis lá dizer a vossas irmãs? Falar-lhe-eis de tudo o que vistes na
Europa, das lindas igrejas e palácios, dos belos edifícios e das grandes cidades»? «Sim – respondeu Maria
Zarea –, contar-lhe-emos tudo e além disso far-lhe-emos conhecer também Nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo».
1539
«A quem adoram as gentes de lá»? – perguntou o Santo Padre. «São idólatras». Enquanto eu explicava a
Sua Santidade que as várias tribos negras tinham crenças díspares e costumes supersticiosos variados e, em
poucas palavras, lhe expunha a idolatria das populações da zona do Nilo Branco, uma negra interrompeu-me
dizendo ao Santo Padre: «Lá falaremos do Santo Padre à gente e dir-lhe-emos que o vimos e que lhe beijá-
mos os pés». «Bem» – disse ele. «E como lhe ides descrever o Papa, minha filha?» «Diremos – respondeu
Maria – que é o representante de Deus, o chefe da Igreja, que quer muito também aos negros e manda os
missionários à sua terra para os salvar e lhes indicar o caminho do Céu». «Bem, muito bem!» – disse Sua
Santidade. Nesse momento abriu um pacote que mons. Negrotti lhe tinha trazido e que continha bonitas me-
dalhas de prata da Imaculada Conceição. Dirigindo-se à superiora, disse com a sua habitual amabilidade:
«Avante, a madre mais reverenda!»
1540
A superiora ajoelhou-se diante do Santo Padre e beijou-lhe os pés, após o que recebeu dele uma medalha,
um ramalhete de flores, uma laranja e a sua bênção e voltou ao seu lugar. Assim recebeu também a mesma
prenda a outra religiosa. Depois, Sua Santidade dirigiu-se às negras e mandou que se aproximasse a maior
delas.
1541
Isabel Caltuma ajoelhou-se aos pés do Santo Padre, enquanto ele lhe perguntava: «Serás tu também uma
mãe para as pequenas jovens negras?» «Sim, Santo Padre, esforçar-nos-emos por tratar estas pequenas como
as nossas educadoras nos trataram a nós.»
Nesta altura, como apresentavam cicatrizes em vários sítios da cara, o Papa perguntou-lhe: «De que são
essas cicatrizes?» Isabel respondeu que algumas negras faziam aquelas cicatrizes para melhor fazer ressaltar
a sua beleza. «Bah! – exclamou o Santo Padre e riu com vontade.
Contudo tais marcas são feitas pelos esclavagistas para poder distinguir entre si os escravos ou para indi-
car as diferentes tribos a que pertencem.
«Porém, qual é a razão dos sinais que tens na cara?» – insistiu o Papa. «Estas cicatrizes ficaram-me de
uma doença» – respondeu a rapariga. Então expliquei ao Santo Padre que os negros costumam fazer uma
incisão no sítio em que sentem dor, para fazerem com que o sangue saia.
«Com todas estas marcas, querida filha minha, irás para o Paraíso e aí farão a beleza da tua alma, muito
mais radiante que a beleza do teu corpo, não é verdade?» – disse o Santo Padre e sorriu.
1542
Ela recebeu também a medalha, o ramalhete de flores e a laranja e, depois de lhe beijar os pés, retirou-se.
Em seguida aproximou-se Domitila, que é a que tem a tez mais negra de todas. Destaca-se também por dois
dentes mais brancos que o marfim, que se sobrepõem, de modo que o de cima aparece também com a boca
fechada. «Ah! Ah! Que tens aí, minha filha? Como é que o dente sai assim para fora?» «Creio que é uma
brincadeira da natureza» – respondi eu. Domitila baixou o olhar e sorriu, pelo que apareceram os dois dentes
encavalitados. O Papa olhou para ela e disse-lhe sorrindo. «Tu és muito negra, minha filha; mas a tua alma,
espero, é mais branca que esses teus dentes... Toma!» E fez-lhe a mesma oferta que às outras. Depois, apro-
ximou-se a terceira rapariga, chamada Fortunata, à qual o Santo Padre perguntou: «Que aprendeste em Vero-
na? Sabes coser, fazer meia, bordar?» «Sim, Santo Padre» – respondeu ela. Nesse momento o conde Vimer-
cati fez saber ao Papa que precisamente aquelas negras tinham preparado todos os bordados em ouro que
havia nos paramentos sacerdotais oferecidos a Sua Santidade por Sua Majestade a imperatriz Maria Ana, de
Áustria.
Então o Papa confessou que nunca tinha visto paramentos tão belos nem tão preciosos como aqueles, que
na Exposição Mundial de Paris tinham sido premiados com a medalha de primeira classe. O conde, além
disso, explicou ao Papa que as jovens conheciam bem toda a espécie de lavores de agulha e que sobretudo
sabiam fazer belíssimos bordados em ouro e seda. Maravilhado disto, o Papa dirigiu-se de novo a Fortunata e
disse-lhe: «Mas no teu país não farás mais estes bordados. Lá basta fazer meia, remendar, fiar. coser. Muito
bem, minha filha!» E falando assim entregou-lhe as suas prendas, para logo chamar a quarta jovem negra,
chamada Luísa, que, embora ainda pequena, era a mais instruída de todas.
1543
«Oh, tu és uma mulherzinha – disse-lhe. Que sabes fazer tu, minha filha? Sabes ler e escrever?» «Sim,
Santo Padre, árabe e italiano» – respondeu Luísa. «Bem, então tu vais ensinar as tuas irmãs a ler e a escre-
ver». «Sim, Santo Padre» – respondeu ela.
À pergunta do Pontífice sobre os sinais gráficos dos africanos, eu respondi-lhe que os negros que vivem
no interior da África não conhecem sinais gráficos e que até nem têm palavras para exprimir os conceitos de
leitura e escritura e que, por isso, os missionários tinham adoptado sinais gráficos característicos aproximati-
vos e, mais tarde, o alfabeto latino, como o mais cómodo para os missionários e para os alunos...
Aqui o Santo Padre chamou por ordem de fila todas as restantes negras. Fez a cada uma perguntas e ob-
servações, que revelavam claramente o interesse que ele tinha por elas e a alegria que a sua presença lhe
proporcionava e deu a cada uma as suas prendas. Quando a última se aproximou (que era também a mais
jovem), mons. Castellacci explicou ao Papa que se chamava Pia e que tinha tomado este veneradíssimo nome
em memória de Sua Santidade. O Papa pegou na mão da menina e perguntou-lhe: «Como te chamas?»
«Chamo-me Pia» – respondeu ela. «Mas sabes o que significa esse nome?» – perguntou de novo. «Pio IX» –
foi a resposta. O Papa riu-se divertido e nós também. Depois perguntou-lhe: «Sabes quem é Pio IX?» «É o
senhor!» – disse ela com grande candura. «E que é Pio IX?» – perguntou ele mesmo. «O Papa» – respondeu
a menina. «Mas, o que é o Papa?» «É o representante de Jesus Cristo» – respondeu ela. «Muito bem, muito
bem!» – exclamámos todos ao mesmo tempo. «Se tu soubesses, minha filha – disse o Santo Padre dirigindo-
se a todos nós em tom sério –, se soubesses o que se quer fazer hoje com Pio IX e com o Papa!! Adeus, mi-
nha pequena. Vais rezar muito também por Pio IX, não é verdade»? «Sempre, Santo Padre» – respondeu ela.
E, recebidas as prendas, voltou para o seu lugar.
O Santo Padre deu depois uma medalha também a cada um de nós. Tendo-lhe sobrado no pacote ainda
três, pegou numa e ofereceu-ma com estas palavras: «Mais uma para ti, porque tu és missionário». Ao rece-
ber das suas mãos a medalha, agradeci-lhe de coração e disse-lhe: «Como sobram a Sua Santidade outras
duas medalhas, permito-me pedir-lhe também que me conceda essas duas, porque eu saberei bem como usá-
las». «Então, meu filho – respondeu –, para Pio IX fica só o papel do pacote... Toma, toma!» E, enquanto
mas entregava, atirou ao chão o papel. Eu apanhei-o dizendo: «Se Vossa Santidade me permite, eu levarei
também o papel como outra preciosa recordação de Pio IX». «Toma-o, toma-o, para envolveres as meda-
lhas» – respondeu-me.
1544
Eu prostrei-me a seus pés e agradeci-lhe por aquelas preciosas lembranças da sua bondade. Depois, o
Santo Padre mandou ajoelhar as negras para receberem a bênção. Nós ajoelhámo-nos também. Então Sua
Santidade dirigiu às raparigas uma comovedora alocução, na qual as convidava a dar graças pelo favor que
lhes tinha sido concedido com preferência a muitas outras negras, que ainda estavam nas trevas do paganis-
mo.
Entre outras disse as seguintes palavras: «Deus vos abençoe, minhas queridas filhas. Ele vos acompanhe
no vosso caminhar, porque tendes pela frente uma obra difícil. Se corresponderdes sempre à graça que vos
foi concedida, sereis sempre felizes e podereis realizar então coisas que até agora tantos missionários não
foram capazes. Sim, ganhareis almas, se cada uma de vós o procurar com solicitude. Recordai os princípios e
os ensinamentos que recebestes dos vossos bons superiores; mostrai-vos sempre gratas para com eles; rezai
pelos que vos fizeram bem; rezai também por mim, que já sou velho e que vos acompanho com o espírito.
Abençoo-vos de todo o coração, minhas filhas: Dominus vos benedicat et ab omni malo defendat et vos om-
nes perducat ad vitam aeternam. Ame
1545
Após o Papa ter abençoado as negras, levantámo-nos para lhe exprimirmos os nossos agradecimentos e
para nos despedirmos. Mas ele, com grande bondade, convidou-nos ainda a acompanhá-lo um pouco no seu
passeio pelos jardins do Vaticano e, dirigindo-se às meninas, disse: «Vinde, vinde também vós, minhas fi-
lhas; quero ensinar-vos outras coisas bonitas de toda a espécie, que ainda não vistes no vosso país». E levan-
tou-se. Mons. Negrotti deu-lhe o seu chapéu, que ele pôs. O conde Vimercati acompanhava-o pela direita e
mons. Castellacci, que estava à direita deste, teve a gentileza de me deixar a esquerda do Papa. Imediatamen-
te atrás de nós vinham os dois prelados e o sr. Pardini. As negras, em duas filas, seguiam o nosso grupo a
seis passos de distância.
Enquanto eu caminhava junto do Papa com o chapéu na mão, ele disse-me com grande amabilidade:
«Cobre-te, meu filho, ou apanhas uma constipação». Eu pus o chapéu e continuei cheio de emoção ao lado
de Pio IX, que me perguntava se as negras tinham visto já as maravilhas de Roma, as igrejas, as basílicas e S.
Pedro. Tendo-lhe respondido eu afirmativamente, acrescentou: «Quanto tempo ficareis ainda em Roma?»
Respondi que facilmente podíamos ficar até Setembro, porque para a orientação definitiva do seminário afri-
cano de Verona e para a consolidação da Associação do B. Pastor para a Conversão da África, eu precisava
de três a quatro meses.
1546
«Óptimo – disse voltando-se para o conde Vimercati –, então teremos ocasião de ver de novo as negras,
não?» «Se Vossa Santidade desejar – respondeu o conde –, para mim será uma honra trazê-las de novo». E
acrescentou que tinha intenção de que as negras fossem fotografadas em grupo pelo sobrinho de um velho
bispo toscano, a quem o Papa tinha manifestado o desejo de ter uma cópia. De facto, em Julho, o conde
mandou fazer uma grande foto de todo o nosso grupo, da qual mandou uma cópia a Sua Santidade, que a
recebeu com alegria e se dignou pendurá-la sobre a mesa de um quarto vizinho da sala das embaixadas. Nes-
sa foto apenas falta a negra Isabel Caltuma, que então estava doente.
Passeando, o Papa teve a bondade de conversar connosco sobre vários temas. Entre outras coisas falámos
da África, da política actual e da missão de Tonello. Nesta circunstância declarou-me: «Eu estava a preconi-
zar os bispos para as sedes da desventurada Itália, mas a certa altura detive-me, porque via demasiado nevo-
eiro». Não pude ficar sem lhe perguntar se esperava que veríamos em breve a Igreja triunfar e o Papado re-
cuperar as províncias que lhe tinham tirado os seus inimigos, como todo o mundo católico tão ardentemente
desejava.
«Certamente, respondeu-me, a Igreja vencerá, mas presentemente não vejo o mais pequeno raio de espe-
rança, humanamente falando. Por agora, tudo o que o horizonte nos mostra está contra nós, mas a minha
esperança repousa unicamente em Deus». «Ah, Santo Padre – interrompi-o – Vós não vedes réstia de espe-
rança sob o Sol, e eu ao invés estou convencido de que Vossa Santidade está também certo de ver o triunfo
da Igreja e talvez esse momento ardentemente desejado esteja muito próximo». «Se isso fosse tão certo, meu
filho – respondeu o Santo Padre –, onde estaria a fé?... Rezemos, rezemos, e então Deus estará connosco».
1547
O Papa interrompeu duas ou três vezes a nossa conversação para chamar a nossa atenção para diversas
maravilhas dos jardins do Vaticano e para nos mostrar bastantes lugares famosos que se ofereciam ao nosso
olhar. De facto havíamos então chegado a um lugar onde se abria ante nossos olhos um belíssimo panorama:
de um lado, a cadeia de montanhas da Sabina e do Lácio; do outro, as planícies sem vida onde, como cidade
do deserto, está situada a grande Roma. Esta vê-se daí com quase todas as suas ruínas e as suas inumeráveis
igrejas, que lançam ao céu os seus campanários e cúpulas de modo tão encantador que os falsos profetas, que
vêm para zombar, se vêem obrigados a ficar estupefactos e a irromper em louvores. Aí, muito perto, ergue-se
o palácio Vaticano, a residência dos Papas. Este é o refúgio misterioso onde, à sombra venerada da cúpula de
S. Pedro, o Supremo Pastor tem nas suas mãos o leme da Igreja e onde ele, como chefe do povo crente, con-
densa em si a história do mundo. O homem desaparece aqui debaixo da sublimidade da sua vocação.
A augusta solidão deste palácio obriga a um profundo respeito e o cristão não pode escapar a um alto sen-
tido de veneração em presença da majestade do sacerdote a quem Cristo chama Seu Vigário e diante do qual
o universo dobra os joelhos. A admiração que causam as antiguidades de Roma transfere-se desta para o
Papa, e a magnífica impressão experimentada no Vaticano é a mesma que se sente aos pés do Pontífice.
Estávamos diante do miradouro. No meio do prado, que se estende até à muralha, há um pequeno lago,
orlado por pedras e cujo centro é constituído por uma graciosa fonte de bronze, em forma de elegante barco
de guerra, cujos canhões de bronze lançam jorros de água quando se faz funcionar uma máquina escondida a
três passos do lago. Esta obra de arte remonta ao começo deste século. O Papa explicou o engenho e depois
ordenou que nós nos afastássemos e que as meninas se aproximassem. Como eu me detive ainda um instante
para observar melhor aquilo, o Papa deu-me uma pancada no ombro, dizendo com um afável sorriso: «Va-
mos, meu filho, retira-te e faz que com se aproximem as negras».
Eu retrocedi e as raparigas avançaram.
«Observai – disse-lhes – os bonitos peixes que nadam na água». Então, enquanto as jovens olhavam para
dentro com grande curiosidade e falavam entre si, o Papa fez um sinal ao jardineiro para que ligasse a ma-
quinaria. E, enquanto lhes dizia «olhai, olhai», os canhões dispararam os seus jactos de água e molharam as
negras, que fugiram a gritar com os véus a flutuar e só pararam a dez passos de distância, silenciosas. O Papa
observou muito atento as raparigas a fugirem e depois disse-nos com evidente hilaridade: «Estas negras pa-
recem doze almas do purgatório... mas das que ainda não cumpriram as suas penas, claro». E acrescentou
sorrindo: «Daquelas às quais ainda lhes resta muito que sofrer no purgatório». Não consigo neste momento
descrever a hilaridade de Pio IX nem tão-pouco o contentamento que todos sentimos com ele. Quando as
meninas se acalmaram de novo, continuámos até um belíssimo jardinzinho, que tinha uma vintena de cantei-
ros e renques de plantas sempre verdes.
1548
Passeámos por sendas entre esses canteiros e divertimo-nos com os engenhos hidráulicos postos em mo-
vimento, que de todos os lados lançavam jactos de água até nós. O Papa ria-se a bom rir e brincava à custa
do conde Vimercati que tinha ficado molhado. Cruzámos lentamente duas vezes o jardim e chegámos à esca-
daria da Biblioteca do Vaticano. O Papa estava muito alegre e expressava-nos o seu grande contentamento e
agrado por ter passado com tanta satisfação na companhia das negras o seu tempo de espairecimento da tarde
e agradeceu de modo particular ao conde Vimercati.
1549
De repente aproximaram-se duas negras, Isabel Caltuma e Maria Zarea; ajoelharam-se perante o Papa e
disseram-lhe: «Santo Padre, encomendamos ao seu coração amoroso as nossas infelizes irmãs e irmãos ne-
gros do coração da África; ainda não conhecem o verdadeiro Deus e podem vir todos a perder-se». Ao dize-
rem as últimas palavras desataram a chorar. O Papa acolheu esta súplica com visível emoção e recomendou-
lhes que rogassem à Virgem concebida sem pecado, a quem deveriam amar e venerar como Mãe. Depois deu
a bênção novamente a todos, dirigiu algumas palavras de amizade ao conde Vimercati e a Castellacci e en-
quanto nos exprimia o prazer que teria em nos ver uma vez mais com ele, subiu a escadaria acompanhado de
dois prelados e retirou-se para os seus aposentos.
Nós tínhamos tido a sorte de estar junto de Pio IX durante mais de hora e meia. Para as negras, esse dia
será o mais ditoso das suas vidas e ficará escrito de maneira indelével também na minha alma. Eu considerei-
o como um singularíssimo favor que me concedeu a Providência divina, como uma graça cuja recordação
será para mim, em todas as situações difíceis da minha procelosa peregrinação terrena, um escudo espiritual
de força e conforto.
1550
Alongaria demasiado o meu relatório se lhe contasse qual foi a participação das nossas jovens negras na
solenidade do XVIII Centenário do Martírio de Pedro. Basta lembrar que no dia 29 de Junho, precisamente o
dia de tão gloriosa festa para a Igreja, nas imponentes cerimónias que tiveram lugar na basílica vaticana, as
nossas doze raparigas ocuparam um lugar eminente que lhes proporcionou mons. Borromeu, chefe de proto-
colo de Sua Santidade. Assim, a primeira expedição negra da África Central assistiu à festa mais solene que
o culto externo da Igreja ofereceu aos olhos do mundo no 18.o século da sua existência.
Concluo o meu relatório pedindo desculpa por ter referido com demasiado pormenor as palavras do Papa,
as nossas, as mais insignificantes circunstâncias da nossa audiência com o Santo Padre. A eloquência da
verdade é tal que só requer o adorno da simplicidade. Mas eis aqui as minhas razões:
Na nossa considerável conversa com Pio IX tivemos ocasião, por um lado, de admirar a personalidade
mais destacada do universo: aquele diante do qual os mais poderosos e grandes monarcas se humilham reve-
rentes, aquele a quem a sua vocação divina eleva acima da esfera das mais nobres e brilhantes iniciativas
humanas; por outro lado, tivemos a ocasião de apresentar uns seres humanos que se encontram entre os mais
humildes e míseros: as pobres negras, cuja história de suas vidas poderia oferecer dados que a civilização
deveria meditar com horror.
1551
Porém, a figura de Pio IX com as negras a seus pés eleva o nosso espírito acima da terra. Representa-nos
dois dos principais momentos da vida do Divino Redentor, os quais nos descobrem dois lados sublimes do
seu carácter: Jesus Cristo que se faz pequeno com os pequenos e os chama a si: «Sinite parvulos venire ad
me», e Jesus Cristo que dá aos seus primeiros Apóstolos a missão de pregar o Evangelho ao mundo: «Euntes
in mundum universum praedicate Evangelium omni creaturae».
Pio IX também se faz pequeno com os negros, chama-os a seus pés, digna-se falar com eles, faz-se ins-
truir por eles sobre as suas tribos, os seus países, as suas condições de vida, as suas irmãs e irmãos perdidos.
Encontra a sua alegria precisamente nisto: derramar sobre eles as suas graças, as suas bênçãos, os seus bene-
fícios, a sua bondade. Conforta-os, anima-os, indica-lhes o caminho da verdadeira vida e dá-lhes plenamente
o exemplo admirável do Evangelho: «Sinite parvulos venire ad me.» Nas cicatrizes daquelas raparigas, Pio
IX viu o estado de muitas tribos e de grandes povos que gemem ainda sob uma bárbara escravidão e nas
sombras da morte, e sobre os quais pesa ainda a tremenda maldição de Cam.
1552
Os olhares delas revelam-lhe sinais de inteligência, de espírito e de abnegação; a sua atitude respeitosa,
modesta, recolhida, manifestam-lhe a educação religiosa e secular que receberam dentro da Igreja Católica e,
como consequência dela, a vocação ao apostolado para o qual a Providência as preparou. Ele vê nelas os
primeiros mensageiros da fé entre as tribos negras, o pessoal mais adequado para a civilização do seu país, os
instrumentos mais válidos para a conversão dos seus abandonados irmãos, as primeiras heroínas do apostola-
do entre os negros. Por esta razão, o grande coração de Pio IX, com a sua preocupação imensa pela salvação
das almas, que abraça todo o universo, nestas doze negras abençoa as primeiras mestras dos negros, enche as
suas almas de alento, de confiança, de zelo, de amor, de abnegação; eleva sobre a terra os seus sentimentos,
aquece os seus corações com o seu fogo profético, fortalece a sua missão, repete a estas novas apóstolas da
África, por assim dizer, as palavras do Divino Redentor: «Ide... e pregai o Evangelho».
Considere bem estes dois pontos focais e pense, à sua luz, na figura de Pio IX ao receber a seus pés a
primeira expedição negra da África Central.
1553
Pode estar certo de que não foi só o interesse pela grande obra da regeneração da África o que me fez
compor este pequeno relatório, mas também, e em primeiro lugar, o sentimento de gratidão, de veneração e
de amor que eu queria manifestar ao Vigário de Cristo e o meu desejo de destacar mais uma vez a sua bon-
dade, a sua amabilidade, assim como a preocupação que pela salvação das almas sente este Pontífice, a quem
os séculos futuros venerarão como a encarnação do amor católico e como um modelo perfeito e uma imagem
viva d’Aquele que disse:
«Sinite parvulos venire ad me» e «Euntes in mundum universum praedicate Evangelium omni creaturae».

P.e Daniel Comboni

Original alemão
Tradução do italiano

N.o 230 (218) - O PLANO


ACR, A, c. 25/9 n. 2

Terceira edição, Tipografia da Propaganda Fide, Roma, com pequenas variantes.

1867
N.o 231 (219) - ELENCO DE UMA LISTA DE NOMES
ACR, A, c. 18/18

N.o 232 (1198) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


NA IGREJA DO CAIRO
ACR, A, c. 24/1

N.o 233 (220) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


NA IGREJA DOS INSTITUTOS DO CAIRO
ACR, A, c. 24/1

N.o 234 (1149) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM ST.a CATARINA, ALEXANDRIA DO EGIPTO
ASCA, Registro Messe
1868

N.o 235 (221) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV

Janeiro de 1868

N.o 236 (222) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/51

V. J. M. J.
Cairo, 1 de Fevereiro de 1868

Excelência rev.ma,

1554
Estive ocupadíssimo; este o motivo do atraso em escrever. Enviamos-lhe uma relação sobre a nossa expe-
dição; faça V. E. o que quiser com ela. Se para a publicar lhe parecer oportuno escolher a Unità Cattolica,
penso que isso contribuirá em maior medida para dar a conhecer a nossa obra e para facilitar a difusão da
Obra do B. Pastor. Espero que encontre muito acertada a nossa escolha de encarregar da redacção o nosso
caro P.e Estanislau. Este jovem missionário liga o espírito e a unção apostólica à facilidade e propriedade da
expressão e à fecundidade de ideias; sente outrossim intensamente a sublimidade do seu ministério. Cabe,
pois, a V. E. fazer as modificações que lhe parecerem oportunas.
1555
O bom P.e Estanislau falou com demasiado encómio do papel que eu, por graça de Deus, desempenhei na
obra. Eu até sinto vergonha, porque conheço em parte as minhas misérias; ai se as conhecesse todas! Positi-
vamente certo é que se o grande coração de V. E. se não tivesse posto à frente desta obra, não existiriam nem
o pequeno seminário de Verona, nem a Obra do B. Pastor, nem se teria levado a cabo a nossa importante
expedição. A obra africana teve todas as bênçãos depois que V. E. a tomou nas suas mãos. Todas as cruzes
que ela há-de encontrar e encontrou são a marca da graça de Deus, que a associa às suas obras; são um mo-
mento de bênção a favor dos seus instrumentos; e isto leva-me a agradecer à mão que mortifica e vivifica,
enquanto põe à prova a própria obra e os seus agentes. Continue a mostrar-nos a sua benevolência, reze e
faça rezar por nós.
Com o máximo prazer recebemos a sua venerada carta do dia 29 do passado mês de Dezembro.
1556
É-me muito grato que se tenha combinado com o conde Campagna o aluguer à razão de 200 florins por
ano. Antes de concluir o aluguer do convento dos maronitas, estive a passar revista a muitas casas. Falava-se
de duzentos, trezentos napoleões de ouro por ano. Tive que me agarrar a este convento por haver lá uma
igreja, pelo seu pátio grande e, o que é mais importante, por permitir a absoluta separação dos dois institutos,
que é necessária para nos protegermos dos comentários do público. Embora o vice-rei do Egipto esteja carre-
gado de dívidas e não pague há mais de um ano aos seus empregados, vamos estudar a maneira de ele nos
ceder gratuitamente alguma casa sua e assim poderemos poupar a renda. Por muitíssimas razões, o momento
não é nada oportuno. Por toda a parte se fala mal do Paxá e há um geral descontentamento entre os seus súb-
ditos e entre os europeus.
1557
Gastou milhões e milhões de libras esterlinas ao comprar ao sultão o direito de sucessão ao trono do Egip-
to para a sua família e sucessores: agora compete aos egípcios pagar tudo. O comércio encontra-se estagna-
do, o algodão está em baixo devido à guerra da América. Em suma, o Paxá, que como primeiro homem de
negócios registou a maior perda, está retirado, mantendo longe de si o mais que pode os europeus e os que
vivem à sua custa e já não mostra a liberalidade de antes. Bendito seja o Senhor! Eu decidi conseguir casa e
alimento grátis e com este fim comecei a movimentar-me. Rezemos, façamos novenas; e se não é hoje será
amanhã, o ano que vem ou no próximo lustro que conseguiremos os nossos intentos. Reze por este fim e
obteremos a graça.
1558
Considero conveniente que V. E. Rev.ma e P.e Dalbosco (muito conhecidos na Sociedade de Colónia) se
ponham em contacto com esse comité; mais, é uma necessidade. Porém, não creio oportuno que peçam ajuda
para o pequeno seminário de Verona, porque com certeza lhes será negada, por não ser essa a finalidade da
Sociedade, mas sim a de educar os negros nas costas da África. Quando o ano passado fui a Colónia, per-
guntei se a Sociedade contribuiria para a fundação do planeado seminário. Obtive como resposta um não,
razão pela qual concebi a fundação da associação ad hoc que depois chamámos do Bom Pastor. Quando a
Sociedade de Colónia for mais forte, então conseguiremos que faça alguma excepção, como consegui que
fizesse ao dar dinheiro para a viagem. Tudo depende do bom andamento dos institutos do Egipto, pois fará
com que aumentem os recursos de Colónia. De resto esteja certo que a Obra do Bom Pastor se consolidará.
Antes de os bispos poderem dar resposta, é preciso ver se a obra pode ganhar raízes na diocese: geralmente
passa um ano. A grande dificuldade está no começo.
1559
A Obra das Escolas do Oriente, a de Colónia, a Propagação da Fé no princípio não fizeram quase nada.
Confiemos em Deus e na bênção emanada do seu Vigário e verá como tudo se consegue. Espero não demo-
rar muito a dar-lhe boas notícias também da Obra do Bom Pastor em bastantes dioceses da Europa e da Amé-
rica. A seu tempo, quando aparecer o primeiro boletim dos Anais, verá como o interesse desperta. É certo
que os tempos são maus e que a sociedade humana está desordenada e agitada; porém, mesmo assim, é certo
que manus Dei non est abbreviata e que, enquanto o Inferno se dedica a destruir, a mão do Altíssimo conse-
gue edificar. Devemos partir os cornos ao Diabo e a graça não faltará.
1560
P.e Dalbosco escreve-me acerca da menina negra de Novara. As negras educadas com êxito nos conven-
tos são-nos muito úteis: agrada-me, portanto, que a aceite. Porém, permito-me sugerir-lhe a este respeito uma
norma oportuna. Nós precisamos de negras educadas nos conventos; mas nós fazemos a estes também um
favor, acolhendo as suas negras como seres heterogéneos em relação às freiras que estão na Europa. Por isso
conviria pedir com gentileza que os conventos que oferecem negras se encarregassem de dar o dinheiro para
a viagem. Assim me ensinou a dura necessidade, que pelas negras da Alemanha saquei mil francos por cada
uma e pelas de Veneza trezentas esvâncicas. Quando a delicadeza das relações de V. E. com quem oferece
negros não o impedir, poderá fazer com que lhe paguem a viagem. Se a negra de Novara for por Marselha, é
melhor que fique em Novara até à altura da partida. Esta é uma opinião sempre subordinada à sua. Além
disso, tudo o que V. E. faz está sancionado in coelo et in terra.
1561
Quanto ao Institut d’Afrique, penso ser útil que aceite a presidência honorária e que a obra africana da
qual o senhor é chefe envie os vinte e cinco francos anuais: asseguro-lhe que a próxima vez que eu for a Pa-
ris o senhor não terá que pagar nada. O Institut d’Afrique deseja também ajudar-nos, mas quando o instituto
estiver muito desenvolvido; agora não pode. Sendo o senhor presidente honorário, tem um título para, a seu
tempo, procurar conseguir ajuda para os nossos institutos africanos. Tudo o que arranja o Institut d’Afrique
absorvem-no agora a correspondência e o actual movimento americano. Quando, mais tarde, estivermos em
condições de fundar um seminário em Paris, teremos no Institut d’Afrique válidos apoios contra a intempe-
rança do egoísmo, quer este seja nacionalista quer religioso.
1562
Responderei ao importantíssimo assunto das canossianas e das Filhas da Caridade de S. Vicente, de que
me fala P.e Alexandre. Mas hoje não tenho tempo. Os nossos dignos missionários beijam-lhe a mão. Nós
estamos num éden de paz: o que está bem para um está bem para os outros. E a causa disso é que estes três
excelentes homens, que foram habituados a suportar tantos doentes, sabem ter comigo, moralmente doente,
muitas atenções e bondade. O P.e Zanoni é a alma do interior da casa e mostra grande caridade com os doen-
tes de fora. É, além disso, o médico de casa, o mestre, o carpinteiro, o serralheiro, o engenheiro, o pedreiro, o
pintor: tudo. Cheio de habilidade, paciência e actividade, está em toda a parte disponível para tudo. Não con-
sigo de nenhum modo explicar a antipatia que lhe tinha Pedro Bertoli, a quem decididamente despedi em
Marselha. Sem dúvida, uma grande dose de orgulho dominava aquele coração.
1563
Somos felizes no meio da cruz que o Senhor nos manda de ainda não termos recebido as ajudas de Coló-
nia. Porém, a nossa felicidade será a dobrar no dia em que pudermos abraçar o nosso caro P. e Tezza. As ir-
mãs têm muita abnegação: a superiora é um anjo de solicitude, bondade, humildade. As dezasseis negras,
que graças a Deus se encontram todas bem, estão muito instruídas na piedade. Porém, as mais úteis para nós
são as educadas no Insto. Mazza, que, além de terem recebido uma instrução melhor e mais ampla, são capa-
zes de sofrer mais, pelo que se adaptam com maior facilidade às dificuldades, às fadigas, ao trabalho. E se se
trata de economia doméstica, vale mais uma do Insto. Mazza que as sete que temos de quatro mosteiros.
Porém, a piedade das sete negras é tal que podemos estar certos de que se manterão firmes e constantes nos
bons costumes.
Suplicamos da sua bondade nos proporcione a Unità Cattolica e a Civiltà Cattolica. Sabemos pouco do
que se passa no mundo e, por isso, ficaremos contentes ainda que nos cheguem depois de lidas e relidas.
Escrevi sobre isso a P.e Alexandre; porém, rogo-lhe a si que fale sobre isso com alguém, e alguma boa alma
veronesa acederá aos nossos desejos. Também o Veneto Cattolico seria muito do nosso agrado: em suma,
deixamos isso nas suas mãos. Quando eu puder, enviar-lhe-ei um relatório completo de tudo: da administra-
ção, do nosso actual regulamento interno e externo, etc. Mas antes é necessário que Colónia nos faça cantar
de alegria.
1564
No passado dia 12, S. Em.a o card. De Pietro teve uma reunião para estabelecer a Obra do B. Pastor em
Roma; lá há muitos membros e espero que esteja já formado o conselho de Roma. Também em Marselha a
alma sublime de Mlle. Martiny está a trabalhar para criar o conselho diocesano e tenho boas notícias. Bourg
en Bresse, na diocese de Beley, aumentou os seus 120 sócios, por obra de Mlle. Eugenie Cabuchet. Até agora
não recebi nenhuma boa notícia mais. Confiemos em Deus que é santo e velho.
O Santo Padre, se é verdade o que me escrevem de Roma, nomeou um visitador apostólico para o Mostei-
ro das Viperescas de M. V., o qual está desoladíssimo. Ele (M. V.) declarou que, como o seu mosteiro teve
grandes gastos e prejuízos por causa das negras, me faz um favor contentando-se com exigir-me só mil e
quinhentos escudos. Quando muito, cederá alguns lençóis dos que deu Vimercati. Parece que comprou o
meu procurador, mas de tal modo torna mais perigosa a sua posição. Pobre M. V. ! Razão tinha S. Filipe em
rezar ao Senhor para que não o soltasse da mão, porque de contrário se faria turco.
1565
Apresente os meus respeitos ao marquês Octávio e família. Se a marquesa Matilde desejar outros selos de
correio, eu mando-lhos. Saúde da minha parte a mons. o vigário, a Perbellini. a P.e Vicente e a P.e Al. Alde-
gheri e ao bom e elegante Joãozinho com todos os familiares.
Creio que conviria mandar o decreto, o programa, o Plano e tudo o que se imprimir sobre a obra a S. M. a
Imperatriz, esposa de Fernando, junto com a folha das indulgências do Santo Padre. Parece-me que V. E.
está em condição de fazer de S. M., a piedosíssima imperatriz, uma auxiliar da obra muito valiosa. Todos nós
lhe beijamos respeitosamente a mão: abençoe-nos todos os dias e aceite o nosso coração por inteiro, como o
de seus afectuosíssimos filhos e o do mais indigno, mas não menos fervoroso filho

P.e Daniel Comboni

Envio-lhe uma imagem, em que aparece um irmã com o hábito que trazem as que temos no Cairo Velho
dedicadas à nossa obra. O P.e Zanoni repete o pedido para que escreva a mons. Cavriani.

N.o 237 (223) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/52

Louv. J. M. in aet. Assim seja.

Cairo, 10 de Fevereiro de 1868

Excelência rev.ma,

1566
Espero que tenha recebido o nosso relatório acompanhado de uma carta minha. O nosso digníssimo P.e
Alexandre anunciou-me que já foi formado o conselho geral da obra e que já se realizou a primeira reunião,
na qual houve duas deliberações muito oportunas. Nós responderemos à segunda, que nos diz respeito, com
todo o coração e com a maior exactidão.
1567
Entretanto, rogamos a V. E. que expresse ao seu incomparável irmão, o sr. marquês Octávio, e a todos os
ilustríssimos e rev.mos membros do conselho a nossa gratidão, felicitação e complacência, por ter aderido a
uma obra toda de Deus para a salvação de tantas almas. Sim, meu veneradíssimo Pai: creio que é obra de
Deus e que nela está verdadeiramente a mão de Deus. Não lhe posso contar com palavras as angústias que
tenho sentido desde há mês e meio, ao encontrar-me de repente à frente de duas famílias de vinte e oito pes-
soas aqui na imensa cidade do Cairo, onde tudo custa o dobro ou o triplo que na Europa e onde não há di-
nheiro e todos entram em falência. Para não falar de outras coisas, basta dizer-lhe que os muçulmanos se
negaram a trazer-nos água (pela qual lá se nos vai um franco por dia). Rezamos muito e fazemos novenas e
tríduos; mas a angústia pesava toda sobre o meu coração.
1568
Graças a Deus, nunca faltou nada nem à casa, nem aos missionários, nem às freiras e às negras, embora só
para comida se me fossem quarenta francos por dia. Pois bem, no dia 5 do corrente chegou-me uma letra
cambial de duzentos e cinquenta napoleões de ouro, com uma carta do presidente de Colónia, cheia de genti-
leza e carregada de esperança de novos envios de dinheiro. Tudo isto nos encheu de ânimo e cantámos o Te
Deum. Agradeça por nós a Deus, pois somos seus filhos e bendiga a Providência, porque o Senhor é um ver-
dadeiro gentil-homem.
1569
No dia 5 do corrente chegaram-me, além disso, boas notícias de Roma. Parece que mons. o vice-gerente
está disposto a devolver-me o recibo dos mil e quinhentos escudos e a deixar-me tudo o que há em Verona.
Porém, mostra-se inflexível em não me querer restituir as camas e a roupa que o conde Vimercati deu para as
negras, no montante de 500 escudos. Ainda que os prejuízos que sofri sejam gravíssimos, dei ordem ao meu
procurador em Roma (que incitado por um amigo meu tratou o assunto com justiça e me protegeu) de que
quando chegar ao seu poder o meu recibo e uma declaração do V. G. de renúncia a toda a pretensão sobre os
objectos de Verona, termine com toda a demanda e chegue a um acordo amistoso com monsenhor, renunci-
ando a tudo o mais propter amorem Domini.
1570
O conselho de Roma vai perder o seu presidente, mons. Franchi, que vai destinado a Espanha como nún-
cio apostólico, para substituir mons. Barili, arcebispo de Tiana, o qual vai ser feito cardeal junto com outros
oito que, como o senhor saberá, são: mons. Borromeu, mons. Berardi, mons. Ferrieri, núncio apostólico em
Lisboa, mons. Bonaparte Luciano, mons. Gonella, bispo de Viterbo, mons. Monaco, mons. Capalti e mons.
Moreno, arcebispo de Valhadolide, bom protector da nossa obra. Porém, antes de partir para Espanha em
Março próximo, mons. Franchi organizará bem o conselho. Alegro-me igualmente de que o card. Consolini
seja nomeado prefeito de Economia da Propaganda Fide, em lugar do em.mo Sacconi. Consolini promete ter
especiais atenções para com a obra africana.
1571
Entretanto, coragem, monsenhor! O senhor sabe quão maus são os princípios das boas obras. Deus digna-
se, em sua imensa misericórdia, marcar a nossa obra com o adorado selo da cruz; reze e faça rezar para que o
Senhor mantenha firme o leme e não teremos receio dos mais tempestuosos oceanos.
Nós estamos de perfeita saúde. Hoje chega-me do hospital turco uma negra muçulmana doente. Deus
chamou-a a morrer católica no nosso instituto. Outras duas negras virão até nós receber instrução para se
tornarem católicas. Espere um pouco e verá... Saudações ao marquês Octávio e família, a P.e Vicente, etc.
Beija-lhe as mãos

O seu hum. filho


P.e Daniel

N.o 238 (1199) - ASSINATURA NO REGISTO


DOS BAPTISMOS – CAIRO
ACR, V, c. 24/3

Cairo, 11 de Fevereiro de 1868

N.o 239 (224) - A P.e GODOFREDO NOECKER


«Jahresbericht...» 16 (1869) pp. 2-3

Cairo, 22 de Fevereiro de 1868


P. P.
1572
Confesso que não sei como lhe agradecer. Porque, onde encontrar palavras para a sua bondade? Que lín-
gua saberia exprimir os sentimentos do meu coração ou do dos meus? Na verdade, com o seu generoso dona-
tivo, o senhor tornou-se a nossa vida. Fez ricos os pobres, lançou os fundamentos dos nossos institutos, le-
vantou uns ânimos que já iam a pique!
Com efeito, tínhamos chegado a tal extremo que, por falta de dinheiro, não só já não nos traziam víveres
mas nem sequer a água do Nilo. Eu tinha contraído empréstimos, tinha-me carregado de dívidas, envergo-
nhava-me de sair à rua. Tristes eram para mim os dias, de insónia as noites. A minha preocupação pelos
meus aumentava cada vez mais. Fazíamos continuamente tríduos e novenas na nossa igreja, onde, sob a pres-
são da amargura e da tristeza, viveu seis anos a Sagrada Família de Jesus, Maria e José. A 9 deste mês recebi
a sua carta e o seu dinheiro! Foi-nos dada uma nova vida e uma nova esperança! Deus cumule o senhor e
essa cara Sociedade de louvores, bênçãos e recompensas, que nós lhe agradecemos e fazemos as mais fervo-
rosas preces. O senhor deve querer abundantes notícias sobre a nossa obra. Tem direito a isso e eu ou os
meus colaboradores fornecer-lhe-emos semestralmente relatórios sobre a Obra da Regeneração da África,
indicando em cada um os correspondentes dados cronológicos.
1573
Entretanto, tenha por bem recomendar a todos a nossa obra, o que é verdadeiramente urgente, porque é
bem sabido que por agora contamos somente com as ajudas da Sociedade. Mas para que o nosso instituto
possa lançar raízes sólidas e robustas neste solo, precisamos cada vez mais da sua caridade, pois doutro mo-
do rapidamente murchará e morrerá. A salvação dos negros está na suas mãos. E para que não pareça que nós
esbanjamos os recursos que nos são mandados e que fazemos gastos inúteis, oferecemo-nos para prestar con-
tas deles anualmente e todas as vezes que nos for pedido. Assim cada membro da sociedade estará a par do
modo como são usados os seus contributos.
Reiterando de coração o nosso agradecimento e pedindo a Deus que com a sua graça o assista agora e na
eternidade a si e a todos os sócios e benfeitores da Sociedade, congratulo-me de me chamar e de ser agora e
sempre seu humílimo servidor e amigo.

P.e Daniel Comboni


Sup. dos instos. para os negros e
Director-geral da Obra do Bom Pastor
para a Regeneração da África
Original francês
Tradução do italiano

N.o 240 (225) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/53

V. J. M.
Cairo, 23 de Fevereiro de 1868

Excelência rev.ma,

1574
O seu paternal coração alegrar-se-á com a primeira flor que a nossa obra ganhou. Que força tem a graça
de Cristo! Não posso exprimir-lhe quanto sofreu a pobre Mahbuba nos últimos dois dias e três noites, depois
que a baptizei. Porém, que heróica foi a sua resignação!
Não tenho tempo para lhe escrever mais; apenas lhe digo que estamos bem e esperamos fazer o bem com
a graça de Deus, porque a presença de negros indígenas no Cairo é como uma rede para apanhar tordos.
Porém, precisamos de avançar com grande prudência, para evitar os ataques dos inimigos que não quere-
riam...
Um dos exemplares do Primeira Flor, escrito tão bem pelo nosso P.e Estanislau, mandá-lo-ei eu mesmo
ao Museu das Missões de Turim, para obter com isso o perdão de Ortalda por nunca lhe ter escrito desde que
parti da Europa.
1575
Mil respeitosas saudações ao marquês Octávio e família, assim como a mons. o vigário, a P. e Vicente, a
P.e Alexandre, etc.
Apressadamente beijo-lhe a sagrada veste. O vigário apostólico, monsenhor Ciurcia, escreveu-me uma
bela cartinha pela conquista da primeira flor: parece-me um gentil-homem aquele monsenhor.

Seu indigmo. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 241 (226) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Egipto, v. 20, ff. 1225-1226v

Cairo, 12 de Março de 1868

Emm.o Príncipe,

1576
Parecendo-me que Deus, na sua infinita misericórdia, se digna derramar a sua bênção sobre a recém-
iniciada obra para a regeneração da Nigrícia baseada no meu Plano, considero conveniente apresentar a V. E.
Rev.ma uma breve informação sobre o seu andamento e sobre as esperanças do seu começo.
1577
Em finais do passado Novembro, eu deixava Marselha com três missionários, três Irmãs de S. José e de-
zasseis negras, pelo que éramos ao todo 23 pessoas. Obtida do paxá de Alexandria a passagem gratuita nos
caminhos de ferro egípcios, chegámos felizmente ao Cairo na véspera da Imaculada Conceição. Na viagem
desta numerosa expedição, que levava consigo 46 volumes de bagagem e provisões, o Governo francês fez
com que poupasse 2168 escudos e o Governo egípcio, 324: ao todo 2492 escudos.
1578
Aluguei por 336 escudos por ano o convento dos maronitas do Cairo Velho, o qual tem anexa uma casa
antiga e está situado a cem passos da gruta da Ssma. V. M., onde é tradição que viveu a Sagrada Família
durante o seu exílio no Egipto. Nas duas casas, que uma igreja bastante cómoda separa, abri e iniciei dois
pequenos institutos, que com a graça de Deus vão muito bem. Nestes dois estabelecimentos recém-abertos,
os missionários encarregam-se da direcção, sobretudo espiritual, do estudo das línguas africanas e dos cos-
tumes do Oriente, e do exercício da caridade para com os doentes. Dados os actuais litígios entre algumas
instituições, bastante complicados, que talvez o nosso sagaz delegado apostólico consiga pôr em ordem, de-
cidi que a nossa acção nunca saia da esfera dos nossos entendimentos.
1579
O nosso objectivo é muito concreto: o apostolado da raça negra. O instituto feminino vai-se desenvol-
vendo admiravelmente; e por obra de algumas das negras, que são verdadeiras Filhas da Caridade, já se fize-
ram algumas conquistas para o Céu. É sabido de V. Em.a Rev.ma que a principal finalidade destes nossos
institutos é educar e instruir na fé e nas artes práticas os negros e as negras, no intuito de que, uma vez termi-
nada a sua educação, se introduzam nos países da Nigrícia e sejam apóstolos da fé e civilização para a gente
da sua terra.
Parece que a Providência quer acrescentar a este objectivo primário um acessório de não pouca importân-
cia: a conversão de um bom número de almas. A existência de dois corpos de negros no Cairo educados na fé
e na civilização cristãs é um importante elemento de apostolado a favor dos negros não católicos que vivem
no Egipto. Só de verem as nossas boas negras, só de conversarem com elas ou as ouvirem cantar, muitas
outras ainda infiéis sentiram nascer a vontade de se tornarem católicas.
1580
E como é preciso proceder com grande cautela e prudência, dada a susceptibilidade do fanatismo muçul-
mano e a vigilância da maçonaria, que mediante três lojas conseguiu difundir o seu mortal veneno de ódio à
nossa santa religião entre pessoas de todas as classes e raças, precisamos de estudar e aproveitar o momento
providencial para admitir as aspirantes à comunhão católica.
1581
Entretanto, de momento, penso que não nos é muito difícil ganhar para Jesus Cristo muitos dos negros
que, na qualidade de escravos ou de serviçais, vivem nas casas dos bons católicos, onde, previsivelmente,
uma vez convertidos, é mais fácil que perseverem na fé. Ocorreu-me levar a cabo esta importantíssima ope-
ração após observar, com plena certeza, que aqui é ainda habitual que a servidão, mesmo em famílias muito
cristãs, está praticamente abandonada a si mesma. Interessar-se por ela é considerado degradante; e, com a
excepção de poucas e singulares famílias, mantém-se ainda em vigor o lamentável abuso de não cuidar da
instrução religiosa dos negros, que, precisamente porque não têm mais que um miserável rudimento de reli-
gião, seriam os mais aptos para receber a fé.
1582
É frequente, ao invés, terem a desgraça de cair sob o despotismo de alguma velha criada muçulmana, que
facilmente lhes impõe as suas próprias superstições, sem que isso importe grande coisa aos patrões. Conhe-
cemos alguns destes escravos, que, desta maneira, se tornaram maometanos na mesma casa dos seus amos
eminentemente católicos. Como consequência destas observações, sorri-nos a esperança de que talvez se
abra um belo campo de acção secundária dos institutos dos negros; em confirmação disso, permito-me co-
municar a V. Em.a Rev.ma a recente conquista de uma negra de dezoito anos, que é como que a primeira
flor que o nosso estabelecimento tem a feliz dita de ter dado à Igreja e ao Paraíso.
1583
Há cinco anos chegou ao Cairo uma jovem e robusta negra de nome Mahbuba, raptada junto com muitas
outras da tribo dos Dincas pela desumana artimanha dos esclavagistas. O único que possui o grande segredo
de tirar o bem do mal contava já então com a obra do nosso instituto feminino africano, a fim de predestinar
para uma felicidade eterna a pobre Mahbuba, precisamente quando, sob o ponto de vista humano, parecia
convertida num dos seres mais desgraçados da terra. Depois de ter sido vendida e revendida muitas vezes a
amos muçulmanos, Deus dispôs que fosse comprada por uma católica e devota senhora grega do Cairo, da
qual aprendeu, pela primeira vez, a pronunciar os adorados nomes de Jesus e de Maria, os únicos nos quais
podemos esperar a salvação.
1584
O Espírito Santo deve ter-se posto a actuar desde então nessa alma, uma vez que cedo se mostrou seduzi-
da por uma certa ideia vaga do Cristianismo, que, quase como quem não quer a coisa, lhe ia dando a conhe-
cer a sua patroa; mas isso, por outro lado, não era suficiente para lhe criar aquela força que em breve teria de
demonstrar na luta que sustentou contra as tentações fanáticas do Islamismo. Passou algum tempo, e Mahbu-
ba adoeceu de um mal que lentamente degenerou numa tísica. Isto contribuiu para que caísse de maneira
mais directa nas mãos dos muçulmanos, que se dedicaram com maior vigor a comunicar-lhe e fazer-lhe pra-
ticar os falsos dogmas. Porém, Deus velava por essa alma. Ela só sabia pela sua ama algumas palavras isola-
das da nossa fé; contudo, compreendeu por si mesma que à santidade desta não correspondia em nada a ins-
trução que recebia do resto da servidão muçulmana; e, portanto, não pôde nunca condescender e ficar satis-
feita com os seus ensinamentos; mas ninguém lhe ministrava outros melhores, pelo que vivia triste e descon-
solada.
Despeitados, os seus mestres começaram a mostrar-se duros com ela, ameaçando-a e dando-lhe maus tra-
tos. E ao ocorrer qualquer preceito de observância do Alorão, obrigavam-na a cumpri-lo junto com eles; as-
sim, ainda que a inexorável doença da tuberculose já se tivesse manifestado nela, a jovem, contudo, ao che-
gar o Ramadão, tinha que jejuar como os demais até ao pôr-do-sol. A infeliz Mahbuba sentia o vazio do
Deus da verdade: sem sabê-lo, a sua alma suspirava incessantemente por Ele, e, de quando em quando, pu-
nha nos seus lábios as poucas palavras que tinha aprendido com a sua ama: Jesus, Maria, cristã, baptismo,
paraíso, etc. E embora ignorasse os divinos objectos que indicavam, só em repeti-las experimentava um sen-
sível conforto. Como bem se pode supor, tais palavras eram outros tantos espinhos para os que a queriam
muçulmana a todo o custo. Pensaram pois que, isolando-a por completo, acabariam por levar a sua avante.
Conseguir o seu isolamento não era nada difícil, dado que a tísica de que estava afectada era uma doença que
no Oriente era muito temida, quase como uma espécie de peste; quanto a isso, eles convenceram a patroa a
mandá-la para uma quinta que ela tinha, onde Mahbuba se encontrou no poder de novos verdugos muçulma-
nos já adestrados pelos anteriores.
1585
Com o pretexto de curá-la com certos meios que eles conheciam, mas na verdade para lhe acelerar a mor-
te antes de ela se poder tornar cristã, acendiam grandes fogos e obrigavam-na a estar perto deles durante
horas e, às vezes, mantinham-na enterrada durante boa parte do dia debaixo de areia escaldante; assim, em
pouco tempo, Mahbuba ficou muito grave. Então os seus inimigos, com o mesmo pretexto da tísica, conse-
guiram obter da ama que ela fosse transportada para um hospital turco. Eles exultavam com o infernal triun-
fo. Porém, precisamente nessa altura, Deus quis humilhá-los, dispondo que naqueles dias a senhora grega
tivesse notícia do nosso recém-fundado instituto de negras. A sua consciência, que não podia estar, nem es-
tava, tranquila, fez com que me pedisse rapidamente a sua admissão.
No mesmo dia em que eu soube dela, fui visitá-la ao hospital turco e, posteriormente, a sua ama enviou-
ma. Mahbuba já era das nossas. A sua alma parecia entrever a sorte que Deus lhe reservava no meio de nós:
ao ver as negras que eu pus a seu lado para a assistirem e ensinarem a benzer-se e a trazer consigo a medalha
recebida do Santo Padre, disse: «Também eu quero ser cristã como vós». E como era da tribo dos Dincas,
pus, entre outras, uma negra dessa origem; e, em poucos dias, teve ocasião de me repetir em árabe e em din-
ca os principais mistérios da fé e os sacramentos. Mahbuba bebia com avidez a ciência da sua salvação eter-
na; não encontrava a menor dificuldade em crer e repetia a cada momento com as suas companheiras-irmãs
os dogmas da nossa religião.
1586
Conhecido o adorável significado que encerravam os santos nomes de Jesus, Maria e José, não cessava de
beijar as suas veneráveis imagens, nem de pedir-lhes a eles e a nós o santo baptismo; assim que, depois de
consultados os companheiros, decidi não diferir tal graça para lá do dia 11 de Fevereiro. Eram as nove da
noite e o quarto de Mahbuba estava iluminado pelas velas do altarzinho que as jovens negras tinham impro-
visado. Quando me paramentei, todos se prostraram a rezar devotamente. A jovem compreendeu que tinha
chegado o ansiado momento e saudou-nos com um extraordinário sorriso de alegria, que nós notámos no seu
rosto, nos seus olhos, nos seus lábios. Era emocionante, enternecedor, vê-la concentrada e recolhida acompa-
nhando a nossa oração.
Quando sentiu correr a água da regeneração, tinha a cara extraordinariamente alegre e, com uma sensação
de enorme alegria, exclamou: Ana Maryam – eu sou Maria; com efeito, quisemos pôr-lhe tal nome para con-
sagrar à Mãe divina da nossa obra essa primeira flor da mesma. Em poucas palavras: a jovem sofreu dores de
mártir, mas que força tem a acção da graça! Ainda queria sofrer mais e encontrava um conforto indizível ao
beijar o crucifixo. A 14 de Fevereiro voou para o Paraíso a rezar pela conversão dos negros.
1587
Sua Ex.a o delegado apostólico trata-nos com especial bondade e deu-nos a honra de nos visitar. Virá de
novo depois da festa de S. José fazer algumas confirmações à paróquia do Cairo Velho, onde há pároco que é
franciscano, piedoso e bom, com o qual me pus devidamente de acordo sobre o baptismo da feliz Mahbuba.
Não tenho palavras capazes para agradecer a V. Em.a Rev.ma pela paternal assistência que me prestou no
terrível litígio que tive em Roma com mons. o vice-gerente. Depois de Deus, é a si que devo a feliz conclu-
são daquele desagradável assunto e espero que, com a graça do Senhor, não me tornem a acontecer outros de
carácter semelhante.
Beijando-lhe a sagrada púrpura, declaro-me de V. Em.a Rev.ma

Hum., devot. e resp. serv.


P.e Daniel Comboni

N.o 242 (227) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Egipto, v. f. 1227

Cairo Velho, 13 de Março de 1868

Eminentíssimo Príncipe,

1588
Estando os dois institutos recentemente fundados no Cairo Velho para a conversão dos negros totalmente
desprovidos de paramentos sacerdotais e de todos os objectos de culto, aquele que abaixo assina dirige-se
humildemente a V. Em.a Rev.ma para lhe pedir encarecidamente nos conceda paramentos, vasos sagrados e
objectos de culto exterior que a Obra Apostólica de Roma produz e cuja distribuição tem lugar no corrente
mês de Março.
Na esperança de alcançar esta graça, tenho a honra de lhe beijar a sagrada púrpura e de ser

De V. Em.a rev.ma
Hum.mo, resp. e obed.mo serv.
P.e Daniel Comboni
Superior dos institutos dos negros
N.o 243 (228) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA
ACR, A, c. 14/54

Cairo, 29 de Março de 1868

Resumo de uma carta de P.e Comboni

N.o 244 (229) - A P.e ALEXANDRE DALBOSCO


ACR, A, c. 38/24 n. 4

2 de Abril de 1868

1589
«...Os nossos missionários não estão nada contentes com mons. Girard. E isto porque ele faz sua a obra, o
Plano, etc.
Deixemos as coisas nas mãos do Senhor. Eu escreverei a Girard, animando-o a ter mais interesse pela
obra dos negros. Mas serei parco em elogios: 1.o, porque é um pouco exaltado, ou melhor, tem fama de ser
exaltado; 2.o, porque no seu jornal disse algo contra os franciscanos, no sentido de que a sua obra não basta
ao apostolado da Terra Santa e do Egipto (e nisto Girard tem razão); porém, como nós nos encontramos aqui
entre os franciscanos, com os quais estou e me mantenho na maior paz e acordo e até me protegem, e como o
delegado é um franciscano que fala com pouco entusiasmo de Girard, estimo prudente medir os elogios a
este. Quanto ao mais, nós devemos servir-nos no que for possível da sua ajuda, porque nos pode abrir o ca-
minho para obter da França imensas vantagens...»

N.o 245 (230) - A P.e ALEXANDRE DALBOSCO


ACR, A, c. 14/133

10 de Abril de 1868

Resumo de uma carta de Comboni.

N.o 246 (231) - A P.e ALEXANDRE DALBOSCO


ACR, A, c. 38/24 n.5

18 de Abril de 1868

Resumo de uma carta de Comboni.

N.o 247 (232) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/55

Louvados sejam J. e M. In aet. Assim seja

Cairo, 1 de Maio de 1868

Excelência rev.ma,

1590
Na minha última esqueci-me de lhe comunicar que o nosso jovem negro Jerónimo Rihhan, a quem acolhi
aqui desde o princípio, no dia 2 de Abril entrou no eterno descanso, assistido por todos os sacramentos e
certo de ir para o Céu. É uma alma salva da perdição, porque era um dos onze jovens negros educados em
Nápoles, de onde foram expulsos e, chegados ao Egipto, entregaram-se a uma vida muito má, convivendo
uns com mulheres turcas, outros com hereges, dedicando-se outros ao roubo, etc. Como este estava tísico,
acolhi-o na esperança de que morreria convertido. Foram precisos dois meses para o levar a confessar-se: a
graça triunfou nele e agora, sem dúvida, está salvo.
1591
No domingo passado, consagrado ao B. Pastor, a nossa casa desfrutou de uma festa do Paraíso. Baptizá-
mos solenemente uma negra de dezoito anos, a quem instruímos bem e demos o nome da marquesa sua cu-
nhada: Maria Clélia. Coisas como esta são um verdadeiro gozo para um missionário; por isso determinei
que, como partilhamos as penas, desfrutemos todos da alegria. E uma alegria é poder baptizar: desta vez
tocou ao P.e Zanoni.
Quando o P.e Carcereri tiver redigido o relatório, seguindo o modelo do Primeira Flor, mandar-lho-ei lo-
go, porque estou certo que Deus será glorificado com ele e, além disso, proporcionará gozo ao coração de V.
E. Parece que nos fazem guerra os frades da Terra Santa, que não querem ver com bons olhos o pouco de
bem que nós realizamos. Aqui, no Cairo Velho, há uma paróquia da Terra Santa e o frade que nela desempe-
nha as funções de pároco é um verdadeiro missionário.
1592
Não somente agi de acordo com ele mas até ele mesmo assistiu ao último baptismo que fizemos, depois
de obter o seu pleno consentimento. E depois do baptismo redigi uma breve informação sobre ele para o
monsenhor delegado de Alexandria. Estou, pois, totalmente legal com o pároco local e com o delegado. Pelo
que, depois de consultar o dito pároco e os nossos missionários, ordenei que se fizesse o baptismo, apesar
dos protestos do convento do Grande Cairo, que queria que todas as nossas convertidas só fossem baptizadas
no seu templo cairota e pelos frades e depois de eles serem ouvidos. Deixo este ponto, sobre o qual haveria
muito a dizer, mas não quero ser longo.
1593
Nós procedemos com toda a cuidado e com toda a prudência possíveis. Com o passar do tempo, Deus
conceder-nos-á a graça de superar um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento do nosso apostolado
no Egipto em favor dos negros: as intrigas dos frades da T. S. Entretanto, confio poder consagrar a Maria
neste seu mês (com palestras todas as noites, às quais demos início ontem) duas novas conversões, estas de
duas negras de dezasseis anos. Temos de as instruir em segredo, porque, se se chegar a saber, haverá quem
insinue aos patrões que não se fale de catolicismo às negras e procure persuadi-los de que não nos sejam
confiadas. Mas, coragem, monsenhor, as obras de Deus devem entrar em conflito com o demónio: é com a
força da cruz que se ganha a palma e se triunfa.
1594
A mim oprime-me tanta cruz, por todo o lado, que já nem tenho vontade de continuar a escrever. A supe-
riora continua irritada e não sei se lhe passará. À parte isso, temos ainda quatro doentes graves. No tocante a
mim, só desde ontem é que ando levantado. Tive febre desde o domingo in albis e contudo só estive três dias
sem celebrar. Bendito para sempre seja Jesus.
1595
Permita-me dizer-lhe só uma palavra acerca de um ponto sobre o qual me escreve essa santa alma de P.e
Dalbosco, o qual quer entender algo que realmente nós não pensamos de Mr. Girard. Diz que ele e o bispo de
Verona sabem que nós desejamos que se cortem relações com Mr. Girard e que eles e eu estamos enojados
porque o bom do Mr. Girard faz seu o Plano de P.e Comboni. Pois, bem, afirmo a V. E. Rev.ma que é falsa
tanto a primeira como a segunda afirmação: declaro-lhe, com a mesma veracidade e sinceridade com que me
vou confessar, que não só é falso tudo isso mas que até nunca me passou pela cabeça; antes, por certos pro-
jectos meus para o futuro, é-me de sumo agrado que Mr. Girard esteja em óptimas relações com o responsá-
vel da obra da regeneração da África e que faça seu o nosso Plano como o fizeram seu os de Colónia; porque
por eles tivemos e teremos recursos, sem os quais os mais belos planos dão em nada.
1596
Quem pode negar que a cem outros ocorreu o meu plano? O que em Mr. Girard nos pareceram fanfarro-
nices é a sua afirmação de que ele encontrou a casa dos maronitas no Cairo Velho, como me disseram os
frères. E sobre isso demos uma gargalhada com os frères, porque foi pura casualidade poder eu conseguir
esse convento por noventa napoleões de ouro por ano. Como consequência disto e do sombrio retrato que os
franciscanos nos ofereceram de Girard (que diz grandes verdades), não formámos uma ideia muita favorável
deste homem. Mas nunca nos molestou minimamente que ele tenha feito seu o nosso Plano, nem que mante-
nha relações estreitas com V. E. Rev.ma
1597
Assim o digo em consciência e assim, pelo que consta, pensam os meus companheiros. E se algum deles
escreveu para Verona algo diferente do que eu afirmo, então é água doutro moinho: eu não sei de nada. O
meu pensamento verdadeiro é-lhe agora manifesto: e este pensamento deve tê-lo visto claramente nas minhas
cartas. Antes, para secundar, dir-lhe-ei que também nós nos pusemos em contacto com Mr. Girard: escrevi-
lhe com toda a gentileza e gratidão e talvez V. E. tenha lido já impressa a minha carta sobre a Terra Santa. E,
em minha humilde opinião, parece-me prudente não fazer nenhuma declaração com Mr. Girard, nem dizer-
lhe que não nos misture com questões estranhas à nossa obra, porque isso não serve de nada em relação aos
franciscanos, que, por princípio, são contrários no Oriente a qualquer instituição heterogénea e, por outro
lado, poderia resfriar Mr. Girard, que é francês e que cada vez está mais animado a trabalhar pela causa de
Deus, desde que à amizade que travou com todos os bispos e patriarcas do Oriente se juntou a de um bispo
da família Canossa.
1598
Nós somos responsáveis unicamente pelos nossos escritos. No caso de os franciscanos me dizerem que
Mr. Girard publicou que o bispo de Verona e os seus missionários adoptaram as suas opiniões, eu convidaria
os franciscanos, ou quem fosse, a verificá-lo nas nossas cartas e escritos: então, ao considerar somente aquilo
que foi redigido por nós, ficariam convencidos. Esta é a razão pela qual na minha última carta expus a V. E.
a minha preocupação para que medíssemos as nossas expressões na correspondência com Mr. Girard, o qual,
por outro lado, além de poder ser-nos útil, tem grande zelo.
1599
Queria escrever ao marquês Octávio para lhe dizer que se pôs o nome de Clélia à afortunada Fedelkarim.
Esta é uma alma eleita pela graça e de um candura admirável. Faça-o o senhor da minha parte.
Estamos à espera do P.e Tezza: esperamo-lo porque devia vir já com os outros e, portanto, há já bastante
tempo; esperamo-lo também porque P.e Dalbosco me escreveu há mais de um mês, dizendo que ele está à
nossa disposição. Portanto nós pedimo-lo, julgando que tal é também o desejo do nosso veneradíssimo pai,
que sempre se havia expresso nesse sentido.
Mande-me uma generosa bênção, porque estou triste; receba as respeitosas saudações de todos. Espera-
mos Bajit. Diga ao conde Luís, esse santo ancião, que serei fiel à promessa. A todos... tudo.
Beijo-lhe as mãos.

P.e Daniel Comboni

N.o 248 (233) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 1268-1269v

V. J. M. J.
Cairo, 15 de Maio de 1868

Em.mo Príncipe,

1600
Ao dar a conhecer a V. Em.a Rev.ma quão enormemente grato foi para mim receber a sua estimadíssima
do dia 22 do mês passado, tenho o imenso prazer de lhe exprimir os meus sentimentos de agradecimento e de
lhe assegurar que nunca me permitirei fazer nada de alguma importância sem depender por completo do úni-
co representante da S. Sé no Egipto e na África Central, nosso veneradíssimo vigário apostólico, na convic-
ção de que só actuando desta maneira poderei esperar as bênções do céu, ao trabalhar em prol da santíssima
obra para a conversão dos negros.
Tendo obtido do mesmo sr. vigário apostólico a permissão de me dedicar à procura das almas pertencen-
tes à estirpe negra, a fim de ganhá-las para Jesus Cristo, sempre com a condição subentendida de fazer isso
com toda a prudência possível, sem nos comprometermos, e quando haja a certeza moral de que poderão
perseverar na fé na situação em que se acham, estou em condições de anunciar a V. Em.a Rev.ma que encon-
trei muitíssimas em diversas famílias católicas estabelecidas no Egipto; almas que ou são ainda pagãs ou
abraçaram já o Islamismo.
1601
O motivo desta calamidade que aqui no Oriente padece a infeliz raça dos negros é a tradicional negligên-
cia dos amos católicos, os quais, geralmente, ou não se preocupam em absoluto da salvação dos seus servi-
dores de cor ou não querem de nenhum modo que estes se tornem católicos, pelo grande temor de que, como
ao abraçar a nossa fé deixam de ser escravos, pode acontecer que depois se furtem ao seu domínio absoluto;
e não pensam, em sua estultícia, que esses servidores, com a graça de Jesus Cristo, se tornam muito mais
fiéis e subordinados aos seus senhores, como ensina a experiência diária. Não procurando eu, embora bem
miserável em todos os aspectos, outra coisa que não a glória de Deus e a salvação das almas, sinto-me obri-
gado a repetir a V. Em.a Rev.ma, encarregado de todas as missões do mundo, o que por amor de J. C. me
permiti afirmar confiadamente ao nosso digníssimo vigário e delegado apostólico: que a razão de tantos mi-
lhares de almas negras se perderem radica no facto de os missionários ou sacerdotes dos diversos ritos católi-
cos do Egipto não terem certamente inculcado com ardor nos chefes e nas mães das respectivas famílias ca-
tólicas a obrigação sacrossanta de cumprirem o quarto mandamento do Decálogo, que entre outras coisas
contém o dever absoluto de buscar o verdadeiro bem da própria servidão, que é a salvação da alma.
1602
Para um chefe de família católico, o mais fácil do mundo é ganhar para a verdadeira fé os escravos e es-
cravas que comprou; porque tal dever dos patrões é algo reconhecido como um direito tanto pelos próprios
escravos como pelo governo muçulmano, que em tais circunstâncias, supondo que venha a ter conhecimento,
nunca põe nenhuma espécie de obstáculos.
1603
Teria muito que lhe dizer sobre a maneira de actuar no exercício desta parte importante do apostolado
egípcio, que poderia constituir o trabalho secundário dos institutos de negros e sobre as dificuldades superá-
veis que surgem de diversos lados, até da parte de alguns ministros sagrados.
Mas, para me não alargar demasiado, limito-me a dizer-lhe que todas as observações que eu possa fazer
sobre isso, assim como tudo o que eu puder discernir de oportuno em benefício da nossa santa religião (ex-
ceptis excipiendis, porque a sua posição [do vig. aplo.] é delicadíssima, uma vez que ele também pertence à
Ordem Seráfica), expô-lo-ei submissamente ao nosso estimado monsenhor o vigário apostólico.
1604
Passando agora a falar brevemente dos frutos da nossa obra, alegro-me de comunicar a V. Em.a Rev.ma
que no dia 2 do passado mês de Abril voou para o Céu um negro de 20 anos, Jerónimo Rihhan, a quem desde
Dezembro último eu tinha acolhido já tísico no nosso instituto, com a firme confiança de o ver morrer no
seio da Santa Igreja – como de facto aconteceu –, salvando assim a sua alma. No dia 26 de Abril, domingo
consagrado ao B. Pastor, com o prévio consentimento do digno pároco franciscano do Cairo Velho, que as-
sistiu à cerimónia, administrámos o baptismo na nossa capela a outra negra de dezoito anos da tribo dos Din-
cas, a qual, como conhecia a sua língua materna muito melhor que a árabe, foi antes bem instruída sob a
minha direcção por uma das nossas negras da mesma tribo. Pus-lhe o nome de Maria Clélia. Ela vive agora
com a sua bondosa patroa e nós estamos contentes de admirar nesta boa alma predestinada os verdadeiros
portentos da graça.
1605
Estamos igualmente a instruir na fé uma jovem negra de dezasseis anos, baptizada numa cidade do Orien-
te há um mês, depois de ter aprendido somente e de maneira maquinal o pai-nosso, a ave-maria e o credo
numa língua completamente desconhecida para a rapariga; estava totalmente desconhecedora das noções da
Ssma. Trindade e de Cristo.
Quando eu tiver comprovado tudo e em especial o motivo pelo qual esta negra foi expulsa à pancada do
insto. católico que poucos meses antes a tinha admitido ao baptismo, expondo-a a perder-se entre os muçul-
manos, comunicarei por carta o assunto ao respectivo responsável da missão. Até agora tem-me sido impos-
sível levar à prática do catolicismo um abexim de dezassete anos que o cônsul da Bélgica me confiou no
Cairo, a quem eu pedi que me deixasse o rapaz como para o curar de doença, mas com o fim de o chamar à
fé. Quando acorri à cabeceira deste negro, embora estivesse muito doente, estava a guardar o jejum do Ra-
madão dos muçulmanos. O cônsul cedeu-mo de boa vontade, dizendo-me que o curasse, pois pertencia à
nossa santa religião. O certo é que nem conhece o sinal da cruz, nem a Trindade, nem nunca tinha ouvido
falar de Cristo.
1606
Fiquei a saber que, logo que comprado por um grego católico, foi levado à igreja católica grega e solene-
mente baptizado. Depois, como acontece aos pobres escravos, o pobre rapaz foi abandonado à mercê do des-
potismo da servidão muçulmana. Caso muito diferente é estoutro. Numa boa família católica grega encontrei
duas jovens negras, ainda pagãs, que, ao verem depois as nossa jovens, se lançaram a meus pés e com lágri-
mas me pediram o baptismo, dizendo que tal era o seu desejo desde há muito tempo. A sua devota ama, que
conhecia a bondade das duas escravas, consentiu em ceder-mas alternativamente, uma após outra, pelo tem-
po necessário a uma adequada instrução. Porém, teve que deixar isto para mais tarde, porque o respectivo
pároco grego considerou ser demasiado cedo e que elas são demasiado jovens (ambas têm dezasseis anos).
Não obstante, confio em persuadir este pároco (que goza de muita estima entre os seus compatriotas) de
que entretanto é oportuno instruir as duas catecúmenas, as quais não são demasiado jovens, e de que, após
uma preparação conveniente, não é demasiado cedo para as baptizar, podendo elas manter-se bem na fé sob
os cuidados da devota senhora e da boa família, que as consideram como filhas. Por outro lado, com a coope-
ração do mui diligente vigário apostólico dos coptas, pude conhecer e acolher no instituto masculino um
excelente jovem do reino amárico, de dezanove anos, pertencente aos hereges da Abissínia. Ao longo do mês
que está connosco, tem bebido com avidez os ensinamentos cristãos e oferece-nos fundadas esperanças de
termos nele um fervoroso católico e um hábil catequista.
1607
Finalmente, com a especial assistência da nossa querida Mãe Maria, no dia 8 deste seu mês impedimos a
um empregado católico de um rito oriental, por ganância de uma boa soma de dinheiro, vender aos turcos
uma negra dinca de dezoito anos, muito alta e de porte singular, muito cobiçada pelos tratantes daqui. Esta
negra, quando viu a sua amiga Maria Clélia (a quem baptizámos no dia do B. Pastor) a receber instrução
entre nós, suplicou-me que a baptizasse; e desde esses primeiros dias observa rigoroso jejum e é exemplo
para todas as demais. O facto é que, por uma providencial série de coisas, que não sei explicar, esse patrão
deu-me a mim a rapariga, contentando-se apenas com que o nosso insto. se encarregue de instruir uma outra
abexim, que ele comprará, e de lhe ensinar o que as nossas negras sabem, para que sirva de ajuda e compa-
nhia à sua esposa. Eu confiei a jovem a uma devota senhora maronita; na próxima festa da Ascensão ingres-
sará no nosso instituto para ser instruída e baptizada e depois voltará à casa onde agora está, para viver na
observância prática da lei de Deus, como faz a senhora.
1608
Tais são, pois, os pequenos frutos que até agora se puderam recolher por obra dos dois nascentes institu-
tos de negros no Egipto. Confio que estes, apesar de todas as dificuldades, progridam a este ritmo também no
futuro e possam levar ao redil de Cristo muitas dentre as centenas de negras que eu vi, visitei e exortei e que
estão ao serviço de famílias católicas dos diversos ritos. Por tudo isto, V. E. Em. a compreenderá a sabedoria
do nosso vigário apostólico ao recomendar prudência.
Até agora falei de alegrias; noutra ocasião referir-me-ei aos espinhos. Beijo-lhe a sagrada púrpura e decla-
ro-me cheio de gratidão e respeito

De V. Em.a Rev.ma, Hum., devot. e resp. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 249 (234) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A c. 14/56

Cairo Velho, 18 de Maio de 1868

Resumo de uma carta de Comboni redigido por P.e Dalbosco.

N.o 250 (235) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 1274-1276

V. J. M. J.
Cairo, 25 de Maio de 1868

Em.mo Príncipe,

1609
Com a data de 15 do corrente dirigia eu uma carta a V. Em.a Rev.ma, em que lhe expunha as pequenas
alegrias do meu pobre apostolado e assinalava-lhe que mais à frente lhe daria conta das minhas cruzes. Sim,
Em.mo Príncipe, tenho cruzes gravíssimas que provêm da bondade de Deus; porém, foi-me destinada uma
que tem a sua origem no Diabo. E esta cruz inesperada que me leva a escrever a V. Em. a Rev.ma antes da-
quilo que pensava. Permita-me que comece por lhe falar desta que é de um novo cunho, reservando-me para
depois tocar nas outras ao de leve.
Desde há bastantes dias, alguns vinham-me sussurrando ao ouvido que eu tinha sido nomeado Cavaleiro
da Coroa de Itália e que isso se encontrava nalgumas publicações italianas e egípcias; e tive quem por levi-
andade ou brincadeira me chegasse a felicitar. Eu não dava muito crédito ao assunto, porque sei que desde há
uns anos a imprensa periódica tornou-se na Itália o órgão da mentira e não da verdade. O caso é que ontem,
quando algumas cartas de Verona e de outras partes da desditosa península me anunciavam que aquilo era
verdade, que se encontrava publicado na Gazzetta Ufficiale del Regno d’Italia e que tinha sido precedido por
um decreto ministerial, concebido em termos que respiram religião e catolicismo, parecendo até um breve
pontifício, quis ir pesquisar, curiosíssimo por ver este novo e interessantíssimo breve florentino. Depois de
muito procurar e folhear, foi-me possível encontrar na Gazetta: La Nazione a seguinte nota:
1610
«Sua Majestade, querendo dar público testemunho da sua especial benevolência para com alguns dos mis-
sionários mais beneméritos... da religião... e recordar-lhes que... estão sempre presentes no pensamento da
pátria e do rei..., nomeou... comendadores Valerga... cavaleiros da Coroa de Itália... Comboni sacerdote Da-
niel, etc...»
Não quero perder o tempo a comentar palavra por palavra esta soleníssima palhaçada do Governo Me-
nabrea, que é uma contradição dos factos levados a cabo. Confesso, Eminência, que se tivesse sido eu só o
nomeado para a Croce della Corona d’Italia, teria ficado muito aflito, porque tal nomeação é um ataque à
minha reputação, uma injúria solene infligida a um pobre sacerdote da Santa Igreja Católica, Apostólica e
Romana. Ao ver porém, incluídos na mesma resolução patriarcas venerados, arcebispos, bispos e missioná-
rios que me são pessoalmente conhecidos pela sua inquebrantável adesão à Santa Sé e a sua grande devoção
in omnibus ao Papa-Rei, lanço um suspiro de alívio e olho tal acontecimento como uma simples cruz que me
é lançada em cima e da qual me é possível escapar com a eficacíssima oração: sed libera nos a malo. Amen.
1611
A Coroa de Itália!!! Basta semelhante enunciado, pronunciado nesta época, para ler a perfídia e as ma-
quinações dos inimigos do Papado.
Tiram ao Santo Padre até a camisa (perdoe-me a expressão, pois falo com confiança) e depois têm a cora-
gem de dar como vestimenta uma cruz de ouro a alguns dos seus filhos que o adoram e o reverenciam... Pro-
vocam a paralisia das missões católicas, exterminando as santas instituições que constituem o viveiro e as
esperanças do apostolado e subtraindo-lhes os meios económicos e têm, depois, a desfaçatez de atirar o pó
dourado duma condecoração aos olhos do missionário que chora a sorte que está reservada à querida vinha
dos seus suores... O Governo de S. M. o rei da Sardenha, depois de ter maltratado encarniçadamente a religi-
ão, perseguido os seus bispos e sacerdotes e dispersado os seus mais generosos defensores, tem a ousadia de
vilipendiar com homenagens enganosas alguns dos mais beneméritos pelos serviços prestados a favor desta
mesma religião?
Isto é uma farsa desavergonhada, isto é a lógica dos mentirosos filhos das trevas; isto é uma política da
casa do Diabo; isto é uma cruz que também me cai em cima por parte de Satanás. Por isso, quando, num
destes dias, me for apresentada a Cruz da Coroa de Itália (acabada de trazer de Florença pelo próprio cônsul-
geral) que irreflectidamente pensou destinar-me a desavergonhada camarilha que impera na Itália, terei o
prazer de a recusar com uma declaração explícita, como convém a sacerdote e missionário católico, que está
disposto a sacrificar mil vezes a vida para defender a menor das verdades e declarações emanadas do Vigário
de Cristo, a quem venera na sua condição de Pontífice e Rei. Estou certo de que agindo deste modo terei a
honra de seguir o exemplo dos outros veneradíssimos bispos e missionários, que comigo foram “crucifica-
dos” pela chamada Coroa de Itália.
1612
Passando agora às cruzes provenientes de Deus, quero referir-me a elas sumariamente, embora sejam
muito mais interessantes e um dom da infinita misericórdia.
Além de nove gravíssimas doenças que houve no insto. feminino e que me causaram grandes despesas,
tenho há dois meses gravemente doente a superiora, a qual terá ainda para dois meses. A varíola invadiu as
casas maronitas onde estamos e atacou quatro negras e um religioso. Em apenas 15 dias, este mês enterrámos
duas raparigas negras de vinte anos educadas na Baviera. Temos a experiência de que o convento dos maro-
nitas, rodeado de sepulturas, não é saudável. Seguindo o conselho de muitos, tenho de abandoná-lo e fá-lo-ei
quando regressar de Jerusalém mons. Ciurcia, o vigário apostólico.
1613
Outra cruz (que vem de Deus – temo de mim) é mons. o vice-gerente. Depois de quatro meses de silêncio,
nos quais tinha sido mil vezes exortado a falar, escreveu ao bispo de Verona e mandou dizer ao meu procu-
rador, o sr. Nuvoli, que estava disposto a restituir o recibo dos 1500 escudos, depois de ter acertado as con-
tas comigo. Porque é que não as acertou quando eu estava em Roma, apesar dos meus repetidos convites
para isso? Isto não é nada. O mês passado fez saber ao meu procurador que de nenhuma maneira está dispos-
to a ceder o meu documento, porque já não é superior das Viperescas. Disse que ele desembolsou 1500 escu-
dos: o que se fez deles e onde foram parar, nem o sabe, nem o quer saber, nem está obrigado a sabê-lo. E
acrescentou que vai tratar de recuperá-los. Eu perdoo-lhe, mas esse homem é um imoral.
1614
A Igreja sabe o que faz; é prudentíssima. A mim tocar-me-á sofrer muito, porque em Roma ninguém, nem
secular, nem eclesiástico, se atreve a assumir nem defender a causa de um sacerdote contra um bispo. Escre-
ve-se, convida-se a responder, reclama-se justiça e a justiça silencia: responde-se com profundo silêncio, fiat!
O Deus que me protegeu em Roma sob a inspiração de V. Em.a Rev.ma tratará de me proteger no futuro até
que termine este desagradabilíssimo pleito. Parece que está agitado esse mosteiro das Viperescas, cuja supe-
riora disse às três últimas negras que o Papa é um velhaco, que Pio IX não tem autoridade para tirar o V. G.
desse convento e que as Irmãs de S. José são varredoras de rua.
Cito isto a V. Em.a para descargo da minha consciência, declarando-lhe sob juramento que as jovens ne-
gras mo confessaram a mim e a um nosso sacerdote. Mas suponho que em Roma coisas como estas serão às
dezenas. Perdoe-me por me ter deixado levar por este desafogo de dor.
1615
Finalmente, em sua bondade, Deus dá-me a cruz das graves preocupações económicas que me oprimem.
De Colónia, que se comprometeu a dar-me 5000 francos, recebi até agora 8300. Deixando de lado uma dis-
creta soma entregue ao bispo para o pequeno seminário de Verona e os gastos que me provocou o vice-
gerente ao ter mantido um mês em França parte da minha expedição, etc., chegaram às minhas mãos 7000
francos, que me deram benfeitores de França, Itália e Alemanha. Porém, os gastos ascendem até agora a 17
600 francos. Não sei como seguir adiante. Já limitei o número de pessoas nos dois institutos às que actual-
mente temos e decidi mantê-lo estacionário enquanto não houver assegurado os meios de subsistência às
mesmas, considerando, por outro lado, que nestes dois pequenos institutos há já elementos suficientes para
exercer uma discreta actividade católica em favor dos negros residentes no Egipto.
1616
No meio destas tribulações, sinto-me cheio de ânimo e de confiança em Deus: a importância destes dois
primeiros institutos é capital para a obra da conversão dos negros e as graças especiais e extraordinárias, que
vejo, fazem-me estar certo de que Deus virá em socorro da sua obra.
Porém, V. Em.a está bem a ver que o meu pobre coração precisa de conforto; e um grande conforto seria
para mim que V. Em.a Rev.ma fosse tão bondoso que obtivesse do Santo Padre a sua taumatúrgica bênção
apostólica para mim e para os meus dois institutos do Egipto. Essa bênção será eficacíssima para me confor-
tar!
1617
Ontem morria no hospital sóror Xaviera Jobstreibizer, após vinte dias da sua chegada da Toscana ao Cai-
ro. A pia arménia sóror Madalena, que tomou hábito e fez os votos aos pés de V. Em. a, porta-se como ver-
dadeira Filha de S. José e progride na perfeição. Os meus bons companheiros estudam árabe. Monsenhor
Massaia escreveu do reino de Choa ao cav. Madrus, do Cairo.
As minhas casas, quanto ao espírito, vivem como qualquer insto. dos mais observantes da Europa.
Pedindo-lhe desculpa por esta carta demasiado longa, tenho a honra de lhe exprimir a minha mais profun-
da veneração e de lhe beijar a sagrada púrpura, declarando-me

De V. Em.a Rev.ma
Hum. resp. e dev. filho
P.e Daniel Comboni

N.o 251 (236) - A CLAUDE GIRARD


AGB

V. J. M. J.
Cairo Velho, 26 de Junho de 1868

Meu caro e venerável amigo,


1618
Permita-me enviar-lhe por agora somente um par de linhas, pois na actualidade estou muito atarefado:
mudei de casa para ter melhores ares e quartos mais amplos para a comunidade.
Não tenho palavras para lhe agradecer suficientemente pelo seu bom coração, pela sua generosidade e por
quanto faz pelos negros e pela fé. Estou-lhe também sentidamente agradecido pela sua estimada carta de 6
de Junho, que me foi muito grata. Aceite todo o meu afecto. A glória de Jesus Cristo e a salvação das almas é
o precioso vínculo que fará eterna a nossa amizade; e sendo a França o esteio do apostolado da Igreja, bem
como a protectora do poder temporal do Soberano Pontífice, sinto-me ainda mais unido a si porque é filho da
filha mais velha da Igreja Católica.
1619
De agora em diante, manteremos duas correspondências: uma secreta entre si e mim, e a outra pública, ou
seja, que poderá dar a conhecer na sua apreciada publicação, a qual é desdenhada por alguns, porque contém
verdades (muito impressionantes) que causam impacto.
Esta carta é secreta.
1620
Peço-lhe mil vezes perdão por não lhe ter podido enviar algumas cartas minhas; tinha-lhe muitas prepara-
das, tinha-o dito ao nosso querido amigo Ildefonso e escrito a mons. Canossa, mas nunca, nunca encontrei o
momento de as mandar. Contudo, o senhor é muito bom e amável e continuou a mandar-me a sua admirável
revista (que eu procurarei difundir e divulgar para multiplicar os sócios, sobretudo em Roma).
1621
Se me pusesse a descrever-lhe as cruzes que tenho, não chegaria um livro. Mons. Canossa não as conhece
todas. Mesmo assim, meu estimado amigo, não vou desanimar, com a graça de Deus. Antes de atrair mons.
Canossa para a obra (há já quinze meses), sofri muito pela que eu queria fundar para a África; por isso estou
acostumado às batalhas. Mesmo que ficasse só, sem apoios, continuaria a Obra que Deus me mostrou que
vem d’Ele. A incorporação de mons. Canossa é vantajosa: o seu nome, a sua preocupação pela salvação das
almas, o seu enorme entusiasmo pelas grandes empresas tornam-se muito úteis para a obra. Ele pertence a
uma das mais nobres, célebres e antigas famílias de Itália. Descende directamente da condessa Matilde de
Canossa, a qual deu uma parte do poder temporal aos Papas. Além disso é sobrinho de Madalena de Canossa,
que fez muitos milagres e que dentro em breve será venerada nos altares: ela trouxe-o nos seus braços e dela
recebeu monsenhor a inspiração. Seu irmão, o marquês Octávio (fica entre nós) talvez seja em muitos aspec-
tos melhor que o bispo; porém, os dois são admiráveis. O episcopado católico sente grande veneração por
monsenhor, que, além disso, goza do afecto do Papa. Eu tive em conta tudo isso e pareceu-me que seria mui-
to adequado para presidir e dirigir a obra da África, digna do seu coração tão inflamado pela salvação das
almas.
1622
Francês como o senhor, foi Ludovico de Canossa, em 1512, um dos mais célebres bispos de Bayeux, que
pertencia a esta família, na qual são tradicionais a piedade, a fé, a adesão ao Pontificado e a caridade. A fa-
mília Canossa é a mãe dos veroneses católicos e, por isso, os maus e os mações detestam-na.
Não respondo agora à sua carta. Somente lhe declaro que não posso seguir o seu conselho onde me diz:
«Aconselho-o a não me apoiar, a não falar de mim na presença daqueles que são pouco inteligentes...» Isso
nunca. Eu sou sincero, não posso mentir, devo dar o mérito a quem o tem: ou não falo ou digo a verdade.
Esses pouco inteligentes conhecem-me perfeitamente. Falarei bem de si, como o fiz, ou não falarei. Sei bem
o que é oportuno. Esteja, pois, certo de que diz grandes verdades. Pode acontecer que seja censurado de ser
mais francês que católico, mas tão-pouco isso está certo. O senhor defende abertamente o Papa e deseja tudo
o que é bom para a regeneração do Oriente. A si não lhe agrada (também a mim não) que no Egipto e que na
Terra Santa se monopolizem as almas: as ordens religiosas são os braços da Igreja, mas não todo o corpo.
Entende-me...
1623
Quanto a mim, exponho-lhe as minhas grandes necessidades. Tenho trinta pessoas e nem um centavo.
Deus sabe como trabalho. Para a minha capela, para celebrar uma missa, tenho o que é preciso: duas casulas,
etc.; mas não para dizer duas, nem para dar a bênção, etc. Pela carta de mons. Canossa, parece que o senhor
tem dinheiro para me mandar. Eu agradecer-lhe-ei mil vezes.
Escrever-lhe-ei sobre as minhas viagens pela África Central e desde o mar Vermelho às Índias, etc. e
também sobre os reais progressos dos meus dois Institutos.
Saúda-o com todo o coração

P.e Daniel
Original francês
Tradução do italiano

N.o 252 (237) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 1277-1278

V. J. M. J.
Cairo, 29 de Junho de 1868

Em.mo Príncipe,

1624
Recebi com sumo prazer a sua estimadíssima carta do dia 4 do corrente, com a qual V. Em. a Rev.ma se
dignava comunicar-me a venerada declaração de Sua Santidade de que os galardoados pela chamada Coroa
de Itália devem rejeitar a condecoração. Embora V. Em.a Rev.ma a estas horas já saiba pela Unità Cattolica
que já cumpri perfeitamente o desejo de S. S., não creio fora de lugar dar-lhe conta da minha actuação em tal
circunstância.
1625
No dia 4 do corrente, o cônsul italiano enviava ao M. R. P. guardião da Terra Santa no Cairo um maço de
papéis dirigido a mim. Quando no dia seguinte me foi entregue, vi que se tratava do Diploma Real do Grau
de Cavaleiro, acompanhado de uma carta muito amável do dito cônsul. Temendo eu que, se devolvesse o
diploma ao próprio cônsul, este não viesse depois a mandar para Florença, por ter também outros afazeres,
fui imediatamente a Alexandria para ter uma consulta com mons. o vigário apostólico, para combinar com
ele a maneira mais segura e conveniente de enviar quanto antes a minha renúncia com o diploma ao Minis-
tério de Florença. Porém, não tendo lá encontrado S. E. Rev.ma, que tinha ido a Port Said, enviei ao bispo de
Verona o real decreto com a respectiva carta de renúncia, encarregando-o de mandar tudo para Florença e
rogando-lhe que fizesse inserir na Unità Cattolica a dita carta, e isso rapidamente.
1626
Teria desejado fazer ao Governo de Florença uma declaração muito em consonância com o que corres-
ponde a um verdadeiro filho da Igreja e do Papa; porém, ao serem outorgadas condecorações similares a
muitos bispos, por respeito aos mesmos, pareceu-me conveniente manter-me na minha humildade, não me
destacar sobre eles e limitar-me a redigir esta simples declaração dirigida ao Sr. Cibrario, conselheiro de
Estado e chefe da Nova Ordem de Cavalaria:
1627
«Excelência:
Não convindo ao meu carácter de sacerdote católico, nem à minha qualidade de missionário apostólico, a
honra da cruz de Cavaleiro da Coroa de Itália que S. M. se dignou conceder-me, permito-me remeter a V. E.
o diploma da minha nomeação para cavaleiro desta nova Ordem Equestre, que o ex.mo sr. agente e cônsul-
geral de S. M. no Egipto teve recentemente o desvelo de fazer chegar às minhas mãos no Cairo; asseguran-
do-lhe ao mesmo tempo que procurarei comportar-me sempre em todo o lugar e circunstância como católico
italiano, da maneira que corresponde a um verdadeiro sacerdote e missionário da Santa Igreja Católica,
Apostólica e Romana e a um fiel súbdito do meu amado Soberano.
Suplicando a V. E. se sirva apresentar ao trono de S. Majestade as minhas humildes expressões de agra-
decimento e fazer-se o intérprete dos meus profundos sentimentos de veneração para com a sua augusta pes-
soa, tenho a honra de me subscrever com todo o respeito

De V. E. hum. e dev. servidor


P.e Comboni»

1628
Como, além disso, os verdadeiros sacerdotes de Cristo devem manifestar do melhor modo possível, com
palavras e obras, o seu apego aos sãos princípios em tempos tão cheios de calamidades e despropósitos, tanto
para própria satisfação como para dar bom exemplo aos demais; e como um destes modos é dar o óbolo de S.
Pedro, embora me encontre em extrema pobreza, enviei à Unità Cattolica (por meio do bispo de Verona) o
meu modesto donativo de vinte liras, com a demasiado longa, mas oportuníssima seguinte declaração:
1629
«Grande Cairo (Egipto) – P.e Daniel Comboni, missionário apostólico, ao imortal Pontífice e Rei, o sumo
sacerdote da Nova Aliança, o Sucessor dos Apóstolos, o Príncipe dos Bispos, o Pastor dos Pastores, Pio IX, a
quem Deus concedeu o primado de Abel, o domínio de Noé, o patriarcado de Abraão, a ordem de Melquise-
dec, a dignidade de Aarão, a autoridade de Moisés, a jurisdição de Samuel, o valor de David, o poder de
Pedro, a unção de Jesus Cristo, e fez dele o centro da unidade católica, a pedra fundamental da sua Igreja, o
testemunho sincero da sua revelação, o depositário fiel da sua doutrina, o intérprete infalível dos seus orácu-
los, o protector impávido dos seus altares, o justo vingador da sua lei, o propagador legítimo da sua santa
religião. Saúdo em Vós, ó Ss.mo Padre, o verdadeiro amigo da humanidade, a glória do supremo pontificado,
o protector da justiça e do direito, o salvador da sociedade moderna, o campeão da civilização universal, o
terror da hidra multiforme da impiedade, o fortíssimo atleta, o mártir ilustre, o herói do século XIX, que a
actual geração venerará sobre os altares, o santo cuja fé, sabedoria, valor, fortaleza, piedade e constância
apoiam, sustêm, defendem, salvam, exaltam e glorificam a veneranda esposa de Jesus Cristo contra o furor e
os ataques dos poderes infernais que em vão procuram aniquilá-la e que nunca conseguirão rasgar a inconsú-
til vestimenta desta gloriosa rainha, que, vencedora das nações e dos reis, vê passar perante si estupefactos os
séculos; que faz soar a sua voz do Oriente ao Ocidente e que cobre com seu manto os povos, como o dossel
dos céus cobre o mundo.
1630
Derramai, ó Ss.mo Padre, a vossa taumatúrgica bênção sobre mim, vosso pobre filho, sobre os meus que-
ridos companheiros missionários, sobre a Obra do B. Pastor para a regeneração da África e sobre os dois
nascentes institutos de negros, que se encontram a poucos passos da santa gruta onde morou a Sagrada Famí-
lia no seu exílio do Egipto e que estão destinados a formar poderosos elementos para a conversão da infeliz
Nigrícia. É melhor sofrer convosco que gozar com o século: a cruz e as dores suportadas convosco por amor
de Deus são mil vezes mais doces e agradáveis que as honras do mundo e que todas as prosperidades da
Terra. Aceitai a pequena oferta de vinte liras, que é a esmola de uma missa celebrada no referido Santuário
da Sagrada Família e que eu vos dedico a vós, Pontífice e Rei, como humilde homenagem do meu coração».
1631
Ao mesmo tempo que lhe anuncio a conquista de outra alma, pertencente à seita dos coptas hereges da
Abissínia, a qual estou a instruir no catolicismo, agradeço-lhe pela carta mencionada no princípio e beijo-lhe
a sagrada púrpura, declarando-me

De V. E. Rev.ma hum. e dev. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 253 (238) - A CLAUDE GIRARD


AGB

V. J. M. J.
Marselha, 15 de Julho de 1868

Meu caro e venerável amigo,

1632
Ficará surpreendido em me ver de repente na França. É natural. Um homem em apuros, como eu estou,
deve procurar sair do aperto.
Pelo que, com o consentimento de mons. Ciurcia, decidi ir onde possa encontrar dinheiro. Depois deslo-
car-me-ei a Colónia, mas antes de tudo quero aproveitar esta ocasião favorável para fazer uma visita ao meu
mui venerado e estimado sr. Girard, em Grenoble, para desabafar e tratarmos juntos sobre os interesses da
raça mais infeliz e abandonada.
1633
Em todo o caso, estou feliz por ver que a cruz de Jesus Cristo me cerca e agradeço ao bom Deus pelos es-
pinhos com que aflige a minha existência. Isto conforta-me e dá-me mais ânimo que todas as riquezas da
terra, porque são sinal do amor divino e de que a obra na qual trabalhamos é uma obra de Deus.
Dentro de dois ou três dias terei a honra de o ver em Grenoble, aonde lhe levarei uma carta do nosso que-
rido Ildefonso.
Honra-me ser nos Sagdos. Corações de Jesus e Maria
Seu afmo. amigo
e
P. Daniel Comboni

Não vi P.e Biaggio Verri, que está em Verona.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 254 (239) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/57

Louvados J. e M. Eternamente, assim seja

Marselha, 16-07-1868
Excelência rev.ma,

1634
Depois de tomar a nova e belíssima casa e de pagar o aluguer de três meses, encontrei-me sem dinheiro
com novas necessidades imperiosas e sem esperança de ajuda, nem das sociedades, que emudeceram, nem
dos benfeitores privados, que por agora não existem. Tendo os quatro examinado bem a situação, resolvemos
que um de nós fosse a Colónia. E exposta por mim a urgência do caso ao delegado em Alexandria, o bom
monsenhor achou muito acertada a nossa decisão. Assim, depois de me entregar uma carta de recomendação
aberta e outra fechada (que previamente me leu) para o presidente da Propagação da Fé de Lião, em Paris,
parti com a sua bênção às quatro da tarde a bordo do Said rumo a Marselha. Onde cheguei hoje felizmente.
Amanhã, se a febre me deixar, irei a Grenoble visitar o nosso querido Mr. Girard e depois a Colónia. De lá
deslocar-me-ei a Paris, depois a Verona e finalmente irei para o Egipto, espero que acompanhado dos camili-
anos Tezza e Sávio e com o missionário postulante de Placência, si ita placebit a V. E. Rev.ma
1635
Vejo, pelas cruzes que o Senhor manda e pela protecção que a obra recebe do delegado apostólico do
Egipto, que é uma obra de Deus. Por isso, ânimo, monsenhor! Antes de embarcarmos na empresa, previmos
as cruzes; agora que chegam, havemos de nos amedrontar? Vir-nos-ão outras com as quais não contávamos,
mas nisso eu encontro grande conforto. Apesar de tudo, o Demónio ficará frustrado e Jesus triunfará.
1636
Em Marselha, procurei P.e Biaggio Verri para nos pormos de acordo sobre o que expus ao card. Patrizi
há dois anos e que se encontra publicado no anuário de Colónia de 1866, ou seja, ajudar-nos mutuamente, o
que tornaria muito mais úteis os nossos esforços para a conversão da África. Mas ele foi a Verona e temo que
pouco aí vá fazer, pois esperam-no em Marselha, onde vão chegar do Cairo, da Síria, Ásia Menor, Esmirna e
Grécia doze negras que ele mandou comprar no Cairo.
1637
Já não posso continuar, porque tenho um pouco de febre fria. Acompanhe-me com a sua bênção e preces.
O P.e Zanoni exerce agora as minhas funções no Cairo, ajudado pelo muito estimado P.e Carcereri, que é
realmente bom.
Desejaria saber onde está Mme. Therèse; mas em Paris procurarei sabê-lo. Entretanto reze e faça rezar por
mim. Apresente os meus respeitos ao marquês Octávio e a toda a família, assim como a todos os do conse-
lho, a P.e Vicente e também ao pequeno João.
Beijando-lhe a sagrada veste, declaro-me nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria

Seu afmo. filho


P.e Daniel

N.o 255 (240) - CONSAGRAÇÃO DA NIGRÍCIA


A NOTRE DAME DE LA SALETTE
«La Terre Sainte» (1868)
La Salette, 26 de Julho de 1868

«Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ámen.

1638
Virgem Imaculada de La Salette, reconciliadora dos pecadores, eis-me aqui a teus pés, prostrado diante de
Jesus Cristo no teu santuário privilegiado para patrocinar uma causa tão difícil, a mais árdua que jamais exis-
tiu e contudo a mais importante do apostolado católico: a da raça maldita de Cam, dos pobres negros que
vivem nas imensas regiões, ainda inexploradas, da África Central.
1639
Chamado pela divina Providência há muitos anos para este laborioso apostolado, a ti eu devo, ó Maria,
não ter ainda morrido, como tantos missionários, devido às grandes fadigas e privações que sofremos nesses
ardentes países e ter até podido estudar a maneira de superar os obstáculos que, até hoje, têm impedido a
evangelização daquelas populações que povoam o equador. Foste tu, divina Mãe, que me inspiraste o novo
Plano para a Regeneração da África Central, que o Vigário de Cristo e muitos bispos aprovaram como o mais
sábio e adequado.
E com a autorização da S. Sé também me dediquei, com meus generosos companheiros, à conversão dos
negros ainda infiéis, apesar dos esforços da Igreja, se bem que o sangue de Jesus Cristo os tenha resgatado e
tu, Maria, os tenhas adoptado como filhos no Calvário.
1640
Profundamente comovido pela tua aparição para convidar os homens à expiação e anunciar a reconcilia-
ção da Terra com o Céu, venho a esta santa montanha para te implorar, Virgem divina, que aqui choraste
pelos males da humanidade e vieste aqui para transformar a justiça em misericórdia, venho, digo, lançar até
ti um grito de desespero extremo que tu converterás em grito de esperança e de salvação.
Inumeráveis são os males que desde há séculos oprimem os pobres negros e horríveis as superstições e os
crimes que os degradam... Mais de cem milhões de almas estão oprimidas sob o jugo de Satanás... Mas o
terrível anátema de quarenta séculos deve ser por fim afastado.
1641
Ó Virgem Imaculada de La Salette, regeneradora do género humano, foi aqui que desceste para proclamar
ao mundo esta grande nova, aqui onde ordenaste que fosse dada a conhecer a todo o povo e aqui onde cada
dia manifestas os prodígios do teu poder e da tua bondade. Aqui revelas-te verdadeiramente nossa Rainha
para dominar, mas também nossa Mãe para nos obterdes graças e perdão, porque és realmente um novo Cal-
vário, outro altar de expiação. Ó Maria, refúgio dos pobres pecadores, mostra-te também rainha e mãe dos
pobres negros, porque também eles são teu povo. Eu quero dar-lhes a conhecer esta grande notícia que pro-
clamaste do alto desta sagrada montanha.
1642
Sim, boa mãe de misericórdia, tu és a Mãe dos negros. Neste momento eu, seu pai e seu missionário, co-
loco-os todos a teu pés para que tu os metas todos no teu coração; mostra-te Mãe! Sei que te peço um grande
milagre. Porém, divina mãe, tu não vieste chorar a estes lugares senão para multiplicares os teus milagres.
Eu, por meu lado, choro contigo para obter um em favor dos meus negros: mostra-te Mãe!
O Oriente já se voltou para esta montanha. Vemos filhos de Sem entre os de Jafet. Nesta solenidade ve-
nho para juntar os filhos de Cam, de maneira que todo o género humano seja consagrado à Virgem do perdão
e da salvação.
1643
Ó minha divina mãe, tu sabes quantas almas boas e corações generosos encontrei, graças a ti, naquelas
tribos de África... Sim, nestas primícias da minha missão, que coloco de novo sob a tua protecção, tenho a
certeza de que chegou o tempo em que a humanidade inteira, que é o povo de Deus e o teu, já não deve for-
mar mais que um só rebanho sob o cajado do Bom Pastor. Pois bem, Virgem da reconciliação, faltaria algo à
tua glória e ao teu triunfo e o da Igreja seria incompleto, se a raça de Cam continuasse ainda afastada do
banquete do Pai de família. Países homicidas dos pobres negros travaram o impulso dos missionários católi-
cos; mas, enquanto os orientais cismáticos se converterão principalmente por meio dos orientais católicos, eu
compreendi, graças a uma inspiração tua, que é preciso trabalhar sobretudo para a conversão dos negros por
meio dos próprios negros. Ó Maria, realiza esta maravilha. Eu consagro-tos, confio-tos, para que os laves das
suas sujidades e lhe tires essa terrível maldição que ainda pesa sobre eles: assim se tornarão dignos de todo o
teu amor.
1644
Então, como te proclamou o meu venerável pastor, o bispo de Verona, como te proclamou o Pontífice da
tua Imaculada Conceição, serás sempre a Rainha da África, a Rainha da Nigrícia. Faz de modo que, quanto
mais eles sejam libertados da desgraça, mais sejam inundados, por meio de ti, pelas alegrias da fé, da espe-
rança e da caridade. Ó Maria, és muito poderosa e posto que Deus pode fazer das pedras filhos de Abraão, eu
te peço a graça, Filha do Altíssimo, de tornar filhos de Abraão estes desditosos filhos Cam, de modo que
então a Igreja lhes aplique este elogio que de ti faz o Espírito Santo: “Sois negra, mas bela, filha de Jerusa-
lém”. Ámen».

P.e Daniel Comboni


Missionário Apostólico da África Central

Original francês
Tradução do italiano

N.o 256 (241) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/58

(La Salette) 27 de Julho de 1868

Il.mo e rev.mo monsenhor,

1645
Da sagrada montanha, onde me encontro há quatro dias com o nosso querido Mr. Girard, com mons. Mil-
los, arcebispo de Acra, e mons. Salzano, bispo napolitano, encarregado pontifício, residente em Nápoles,
para a assistência às trinta e seis dioceses vacantes daquela região, escrevo-lhe apenas algumas palavras. Não
lhe posso exprimir a impressão que me produziu a sagrada montanha; é maior que a experimentada na visita
aos Santos Lugares da Palestina. Convido V. E. a visitar La Salette, que mons. Millos chama a Terra Santa
do Ocidente. Para aqui chegar, parte-se de Grenoble às seis da manhã num carro puxado por três cavalos.
Antes de alcançar Corps, muda-se quatro vezes de cavalos; na segunda vez põem-se seis cavalos, na terceira,
cinco e na quarta, quatro. Nós chegámos a Corps às quatro e meia da tarde; às seis, a cavalo, partimos para
efectuar a subida da montanha e às sete e meia chegámos ao santuário. É um espectáculo de devoção e pie-
dade que enternece. Não tenho tempo de lhe descrever a nossa função de ontem, em que mons. Millos con-
sagrou a Caldeia e eu os pobres negros. A Terre Sainte informará sobre o nosso acto de consagração.
1646
Ontem, após as vésperas de pontifical, presididas por mons. Salzano, eu subi ao púlpito e falei da impor-
tância do acto que estávamos a realizar e fiz uma clara exposição do apostolado da Caldeia e da África Cen-
tral. Quando desci do púlpito, fomos todos ao altar-mor. Mons. Millos leu em caldeu o seu acto de consagra-
ção e seguidamente o superior dos Missionários de La Salette leu do púlpito o mesmo acto de consagração
em francês. Depois, eu ajoelhei-me diante da Virgem, rodeado dos dois bispos, de Mr. Girard e de outro
senhor, quais representantes na França dos interesses do Oriente, e li em voz alto o meu acto de consagração
em francês. A emoção atingiu o auge. A função terminou com a bênção do Santíssimo. Pela noite, subi de
novo ao púlpito e falei dos negros e da Nigrícia. Estavam presentes muitíssimos sacerdotes e senhoras e se-
nhores peregrinos. Em suma, defendi a causa dos negros e dos caldeus e o piedoso superior dos Missionários
de La Salette disse-me: «É preciso que a Santíssima Virgem escute a sua oração; aqui rezaremos sempre por
isso. E creio que vai partir já atendido».
1647
O facto é que pela manhã, depois de celebrar, procuravam-me por aqui e por ali para receberem a bênção.
Eu dei-a a todos e em troca recebi-a de muitos, porque um deu-me dez francos, outro vinte, outro trinta e um
cinquenta. Assim, em menos de uma hora em que estive a dar a bênção, eu recebi a bênção de 220 francos,
que, logo que chegue a Grenoble, mandarei para o Cairo, com outros cinquenta francos recebidos do geral da
Cartuxa de Grenoble. Hoje deixamos a sagrada montanha, porque amanhã tenho uma pregação em Grenoble,
onde também preguei na quarta-feira passada. É absolutamente preciso que o veneradíssimo pai da África
venha a La Salette. De viva voz contar-lhe-ei o espectáculo da sagrada montanha e como é impossível que
alguém venha aqui e não se converta ou não melhore. Maximino está em Versalhes: falarei com ele; não
correspondeu lá muito às graças de Maria, da qual, por outro lado, é muito devoto. Melania está num mostei-
ro de Castellamare, perto de Nápoles.
1648
Em Chambery fiquei alojado na residência do cardeal-arcebispo, onde dormi. Apressei-me a ir ao Sagra-
do Coração à procura de Mme. Teresa Durazzo: mas já há dois anos que partiu para Paris, onde irei procurá-
la.
Regressando à nossa obra, confie na Virgem de La Salette, que o êxito será completo: não temamos, nem
pela falta de meios nem por nada. Oh!, quanto agradeci a Maria sobre a sagrada montanha por ter chamado a
reger o destino dos negros um bispo sobrinho de uma santa! Quanto agradeci também pela preocupação que
o senhor, nosso pai, tem pela obra de Deus e pela causa da Nigrícia! Do alto desta montanha, Maria abençoa-
rá o senhor, Verona, a sua família, o marquês Octávio e a África.
1649
Disse-o do púlpito, onde terminei assim o meu sermão: «Antes de te deixar, minha mãe, tenho de te dizer
ainda uma palavra dolorosa. Bem sei que vou ferir o teu coração, porém, tu choraste sobre esta montanha
pelo sofrimento do teu povo... Pensa, minha mãe, que os cem milhões de negros que te ofereci estão todos,
todos, condenados à perdição eterna: todos cairão no abismo se não acorreres a socorrê-los. Suportarás isto,
minha queridíssima mãe? Oh, não! Pensa, repito-to, pensa que na África cem milhões de negros, que são teus
filhos e que estendem os seus braços chorando, te dizem: “Rainha da África, salva-nos! Cairemos todos,
todos, no Inferno se não vieres em nossa ajuda”, etc.». Coragem, monsenhor, não nos assuste nenhum obstá-
culo. Deixemos tudo nas mãos dos Corações de J. e M., nas mãos da Virgem de La Salette.
1650
Mr. Girard tem um coração imenso e uma piedade singular: é um católico de primeira. Com o vapor de 9
do corrente mandou-me trezentos francos e aqui deu-me outros cem, além de me pagar tudo. Os Missioná-
rios de La salette (que são um grupo de santos destinado a tornar-se notável na Igreja) acolheram-me (graças
a Mr. Girard) grátis na montanha e em Grenoble. O superior vai fazer colectas para os nossos Institutos.
Quinta-feira parto para Lião e Colónia.
1651
Lembre-se do que tantas vezes lhe disse e escrevi: as canossianas devem ser apóstolas dos negros, porque
têm o espírito de Jesus Cristo e uma grande abnegação. Encomende tudo a Deus, à Virgem e a sua santa tia,
à qual, com o andar do tempo, elegeremos como uma das padroeiras da África; antes, desde agora como tal
a invoco no meu coração. Oh, que bom é Jesus! Que boa e amável Maria!
Mil respeitosas saudações ao marquês Octávio, a mons. o vigário, a Perbellini, etc., bem como a todos os
membros do conselho, a P.e Vicente, etc. Não tenho tempo para escrever ao meu caro irmão P.e Alexandre:
baste-lhe esta pequena estampa, que tocou no lugar da aparição. Beijo-lhe a S. V. e as mãos, declarando-me

Seu hum. e afmo. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 257 (242) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ – LIÃO


APEL, Repertoire des lettres des années 1868-1881,
p. 278: à Egypte

5 de Agosto de 1868
Pedido de ajudas

N.o 258 (243) - A CLAUDE GIRARD


AGB

V. J. M. J.

Lião (Rue des Deux Cousins)


7 de Agosto de 1868

Meu caríssimo amigo,

1652
Era meu desejo escrever-lhe logo nos primeiros dias da minha chegada a Lião, mas esperei para lhe poder
contar algo sobre o resultado das minhas diligências, especialmente na Propagação da Fé. Dir-lhe-ei que os
membros me receberam com muita bondade. Se bem que por agora não receba nada, porque já foram entre-
gues as atribuições, posso esperar um pequeno subsídio para o próximo ano, porque o conselho examinou
com muito interesse o meu relatório O vicariato apostólico da África Central e os dois institutos de negros
no Egipto, que tive de apresentar a fim de que a minha petição pudesse chegar ao conselho. Se o conselho de
Paris se mostrar também favorável, ser-me-á dada alguma coisa neste ano.
1653
A senhora condessa de Starane é uma verdadeira mulher do Evangelho; estou-lhe muito agradecido a si
por me ter recomendado à sua protecção. O cardeal-arcebispo de Lião recebeu-me com muita bondade, como
também o venerado conde de Herculais. Eu janto sempre em casa da condessa e do conde de Herculais. Aqui
ouvi falar com muito entusiasmo e apreço de mons. Millos e aproveitei esta circunstância para manifestar a
alguns membros do conselho a minha opinião de que, para ajudar a Caldeia, a melhor maneira é apoiar mons.
Millos, o qual, no meu entender, representa actualmente a esperança da Igreja da Caldeia. Eu farei com que
estes senhores considerem seriamente tal verdade.
É supérfluo, porque óbvio, agradecer-lhe a si pela bondade do seu coração, grande como o universo e que
só aspira à glória de Deus e à salvação das almas. No meu regresso desta pequena viagem, escrever-lhe-ei
uma carta digna de ser publicada na sua revista.
1654
Rogo-lhe me envie a mesma para Colónia, onde espero chegar dentro de quatro ou seis dias.
Escreva também a mons. Canossa. Faça-lhe entender que sinto a mais viva gratidão pela preocupação e
amor que ele tem pela África e faça ressaltar sobretudo o que eu lhe disse (e disso estou absolutamente con-
vencido), ou seja, que se a obra se iniciou foi porque ele a tomou a peito e fez dela uma aspiração do seu
coração. E ele sabe melhor que eu que lhe exprimo os meus verdadeiros sentimentos. Pela sua parte encora-
ge-o muito, porque, de facto, a obra de Deus será levada a cabo em favor da África, apesar de todos os obstá-
culos das potências infernais. O senhor sabe que, depois da graça, tudo depende da nossa constância, sabedo-
ria e entrega.
1655
Quanto ao resto, coragem, meu caro amigo, amigo incomparável; Deus está connosco, porque nós dese-
jamos unicamente a sua glória. É hora de mover todos os corações do universo para amar a Deus, a Igreja, o
seu chefe, as missões e sobretudo os mais abandonados.
Estive em Ars e gostei muito.
1656
Envie as revistas à senhora Leonia Castillon para San Vallier Drome: ela escreveu-me há pouco a dizer
que as espera; depois, também para Roma ao cavaleiro Da Gama e à princesa Falconieri. O senhor mandou-
as também para Cremona à condessa Carolina Mocanigo Soranzo. Se os interessados não lhe remeterem a
importância, ponha tudo na minha conta, mas envie-lhas. Por outro lado, eu encarregar-me-ei de arranjar
muitos assinantes.
Agradeça muitíssimo por mim à superiora de La Salette. Eu escrever-lhe-ei quando estiver mais calmo.
Mil cordiais saudações à sra. Girard e aos seus queridos e bons filhos.
Incondicionalmente seu

P.e Daniel Comboni

1657
P. S. Escrever-lhe-ei ainda de Lião antes de partir, o que não farei antes da próxima segunda-feira. Deve-
rá enviar a caixa com os paramentos para Marselha ao senhor Lourenço.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 259 (244) - DO REGISTO DOS PEREGRINOS DE ARS


AA – Registre des Pélerins – ARS

Ars, 7 de Agosto de 1868

N.o 260 (245) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 1281-1282v

V. J. M. J.
Lião, 10 de Agosto de 1868

Em.mo Príncipe,

1658
Para que os dois pequenos institutos de negros e negras fundados no Cairo tenham sólida base, precisam
de estar dotados de suficientes rendimentos e ter pelo menos a estabilidade que pode garantir a caridade das
associações católicas. E como o legado perpétuo que me outorgou a Sociedade de Colónia não é suficiente,
dirigi-me por escrito, tanto directa como indirectamente, às fontes que sustentavam o vicariato da África
Central, fazendo notar que o fim último dos novos institutos é a evangelização da Nigrícia interior.
1659
Obtendo as minhas súplicas escasso efeito, e encontrando-me oprimido por múltiplos problemas, abri o
meu coração ao veneradíssimo vigário apostólico do Egipto, o qual, após madura reflexão, resolveu munir-
me de uma carta de recomendação para o conselho de Lião, a fim de que fosse eu falar pessoalmente a favor
da minha causa, recordando a grande verdade de que quem quer vá e quem não quer mande.
1660
Cheio de confiança em Deus, apresentei-me a este conselho de Lião e num breve relatório intitulado O vi-
cariato apostólico da África Central e os dois nascentes institutos do Cairo, expus as minhas pequenas recei-
tas fixas, bem como os gastos de primeira e urgente necessidade a que devi e devo fazer frente para a funda-
ção e manutenção dos dois institutos. Embora todos os membros tenham revelado grande interesse pela mi-
nha causa e desejem de verdade ajudar-me, todavia, pelo que vejo, tudo me faz deduzir com certeza que o
conselho irá consultar V. Em.a Rev.ma e, após a sua venerada resposta, tomará uma resolução.
1661
Embora tenha manifestado claramente (porque o Conselho já conhecia a sua existência) que a pia Obra
do Redentor tem como único objectivo manter o pequeno seminário de Verona, parece-me que estes senho-
res a consideram uma obra de ajuda aos dois nascentes institutos do Cairo, o que não é nem nunca será ver-
dade. E daí resulta que a pequena Sociedade de Colónia é até agora o único apoio certo com que posso con-
tar.
1662
Encontrando-me nesta situação, dirijo a V. Em.a Rev.ma uma humilde e veemente súplica, para que, em
virtude dessa caridade da qual está inflamado o seu coração e do zelo que lhe arde no peito pela salvação das
almas mais abandonadas da Terra, pelas quais trabalhei e sofri muito até agora e sacrificarei a vida inteira, se
digne prestar-me o seu valioso apoio perante o Conselho da Propagação da Fé, o qual, como lhe indiquei, me
faz conceber boas razões para crer que deseja vivamente vir em meu auxílio, quaisquer que sejam o sentido e
a forma com que consulte a Propaganda.
Enquanto se efectua este trâmite, eu vou a Paris para obter alguns benefícios do ministro dos Negócios
Estrangeiros, para voltar imediatamente ao Cairo, conforme o entender do veneradíssimo superior local,
mons. o vigário apostólico.
1663
Leio nos jornais franceses estas palavras textuais: «Le Pape vient de confier à mgr. Lavigerie archev.
d’Alger un territoire de 25.000 lieues carrées, un territoire grand comme l’Europe, qui comprend le Toua-
rik, le Sahara et l’intérieur de Afrique jusq’au Senegal». Esta missão receberá o nome de Vicariat ap.lique
de Sahara. Embora o génio francês seja um pouco inclinado ao exagero, parece-me que neste o jornalismo se
tenha excedido demasiado. Sinto-me contente e feliz de que, pouco a pouco, se comece a pensar nesta pobre
África Central, cujos confins são imensos, em conformidade com o decreto de erecção do vicariato da África
Central, emanado de Gregório XVI. Parece-me mais exacto denominar a nova missão do arcebispo de Argel:
vicariato apostólico do Sara Ocidental, porque o Sara confina com o Oriente do Senegal, mas também com a
Líbia e a Núbia.
Confiando numa poderosa recomendação perante o conselho de Lião, beijo-lhe a sagrada púrpura e decla-
ro-me

De V. Em.a Rev.ma
Hum. e obed.mo filho
P.e Daniel Comboni.
Lião, residência dos missionários.

N.o 261 (246) - A TERESA COMBONI


ACR, A, c. 14/131

Colónia (Prússia), 17 de Agosto de 1868

Breve nota.

N.o 262 (247) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, a, c. 14/59

Louvados J. e M. eternamente. Assim seja.

Colónia, 18 de Agosto de 1868

Excelência rev.ma

1664
Há dois dias chegou-me do Cairo a sua estimadíssima do dia 3 do passado Julho, a qual me encheu de
conforto, porque nela se exprimia como o faria um santo Inácio aos seus filhos e asseguro-lhe que me senti e
me sinto cada vez mais desejoso de sofrer e levar a cruz: a que ponto as suas palavras cheias de unção e do
espírito do Divino Pastor têm poder sobre o meu coração. Na verdade, precisava dessa apreciada carta sua,
que beijei e voltei a beijar muitas vezes, para dispor o meu espírito a suportar com firme resignação e por
amor a Jesus Cristo o terrível golpe que me trouxe a sua sempre caríssima de 15 de Agosto, que recebi esta
manhã, à qual me apresso a responder com aquela tranquilidade de ânimo, sinceridade e veracidade que deve
mostrar um missionário e um homem de Deus para com o seu superior e um filho para com seu pai.
1665
O instituto feminino, como sempre lhe escrevi, funcionou como qualquer bom instituto da Europa. Desde
o primeiro dia, de pleno e mútuo acordo entre nós, estabeleci a separação que a estreiteza do lugar permitia e
que bastava para garantir o decoro e a boa reputação nossa e das mulheres, separação maior que a que vi em
Lião nos dois respeitabilíssimos seminários para as missões africanas e diocesanas, nos quais as irmãs tratam
da cozinha e estão ao serviço da economia dos missionários. Porém, como no Egipto vi que devia precaver-
me e temer mais dos franciscanos que do povo (pois aqueles não vêem com bons olhos as instituições hete-
rogéneas), em tudo chamei o muito venerável P.e Pedro, franciscano, pároco do Cairo Velho, e só fiquei
tranquilo após a sua plena aprovação. Submeti tudo a ele, também para me salvaguardar perante o vigário
apostólico.
1666
Desde o princípio estabeleci que o P.e Zanoni, por ser o mais velho e ter a barba branca, fosse o que de
forma imediata superintendesse ao instituto feminino. O facto de ter sido prefeito da sua ordem em Mântua,
de ter gozado sempre de estima e reputação no Véneto e de ter a barba branca pareceram-me motivos sufici-
entes para confiar nele e assim atender eu mais aos assuntos exteriores e vigiar os outros mais jovens. Penso
que qualquer homem sensato teria agido assim no meu lugar. Porém, veneradíssimo pai, eu e todos os de-
mais nos enganámos.
Como a visita de um médico ao Cairo Velho vale um napoleão de ouro e como o P. e Zanoni sabe muito
de medicina, depois de consultar o rev.mo pároco (este mesmo havia chamado mais de uma vez o P.e Zanoni
e também a freiras clarissas e gente de fora, solicitando ajuda médica), permiti-lhe exercer a medicina nos
nossos dois pequenos institutos, o que comuniquei imediatamente a mons. Ciurcia.
1667
Até Maio reinou entre nós uma harmonia invejável: tudo corria muito bem, em consonância com a huma-
na prudência e o espírito de J. C. Porém, o Senhor permitiu que uma catadupa de doenças nos visitasse no
Egipto, incluindo a terrível varíola. Então, como é natural, teve que se fechar os olhos em relação à severida-
de de algumas regras estabelecidas. Ao permitir ao P.e Zanoni a prática da medicina, pretendia-se, natural-
mente, que a exercesse como convém a um religioso. porém, o pobre homem abusou um pouco de mais e
permitiu-se confidências bastante indecentes. Já em Junho, tendo eu observado algumas irregularidades no
seu agir, avisei-o imediatamente e fi-lo com a caridade de J. C., até que cheguei a restringir-lhe a autoriza-
ção.
Vê-se que o pobre homem não estava muito habituado a semelhantes coisas, porque, perante a minha ad-
vertência, querendo negar e desculpar-se, cometeu tais imprudências e infantilidades que me forneceu argu-
mentos para confirmar o meu juízo. Como com toda a prudência sondei o P.e Carcereri e ambos estivemos
de acordo, Zanoni suspeitou que Carcereri fazia de espia contra ele e tomou-lhe um ódio mortal, chegando
até a deixar de lhe falar. Numa palavra, descobrimos tudo, que aqui resumo em duas palavras: “Zanoni, com
a desculpa da assistência médica (o que eu jamais permitiria nem sequer a um médico, ainda que me custasse
a vida), tocou in verendis et in pectore algumas negras muito bondosas, às quais, hesitantes, ele mostrou o
crucifixo, etc.”. Tendo-nos mudado de casa, em muito pouco tempo se remediou tudo e agora o instituto vai
muito bem, guiado por um muito oportuno regulamento que submeti à aprovação do pároco e que o senhor
verá.
1668
Já há tempos, Zanoni me avisava ter Franceschini alguma ternura simpática para com a bondosa e devo-
tíssima Petronila. Além de encarregar Estanislau de o vigiar nas ocasiões em que podiam ver-se na igreja, eu
mesmo andava com cem olhos. Asseguro-lhe, monsenhor, que não houve nem há nada. Franceschini é um
piedoso e excelente jovem, muito dócil, bom e cheio de espírito religioso, que um dia chegará a ser um ver-
dadeiro missionário camiliano. Quanto ao P.e Estanislau (no que toca aos assuntos internos, porque a diplo-
macia só se aprende com a experiência) mostrou em tal circunstância uma alma, um juízo e um coração de
santo. Monsenhor, eu tenho tendência a santificar os demais, mas o que aqui digo é com verdadeiro conhe-
cimento de causa: Estanislau é um verdadeiro sacerdote e religioso e tudo o que em sentido contrário disser
Zanoni é falso.
1669
As coisas tinham sido tratadas em família e todas terminadas com a máxima prudência. Como se tratava
de assunto sério, queria saber bem tudo antes de lhe escrever e já tinha redigido uma longa carta, quando
sofri tão terrível conjuntivite que julgava perder a vista. Apenas convalescente, como o P.e Zanoni viu rebai-
xada a sua reputação no instituto e vê que com o pessoal actual nunca as coisas lhe poderão correr bem, pe-
diu-me autorização para ir a Jerusalém e depois à Europa. Como eu estava de bolsos vazios, pedi a Zanoni
que ficasse até ao meu regresso (porque em sete meses partirem os dois missionários mais velhos, teria cha-
mado demasiado a atenção, etc.). Foi por isto que decidi esperar até eu ir a Verona, abrir-lhe a si o meu cora-
ção e combinar juntos as medidas prudenciais sobre o quid agendum no futuro e então fazer regressar o P.e
Zanoni de uma maneira airosa para ele e para o instituto.
1670
Com o intuito de justificar o seu regresso, parece que este pobre padre vai exagerando as coisas e a po-
breza do instituto. Vê-se que, para se salvar a ele, pretende arruinar os outros. Porém, o Senhor vela pela
inocência e pela obra, toda sua. É completamente falso que as dívidas nos vão fazer encalhar. Eu gozo de
grande crédito no Egipto e poderia contrair os empréstimos que quisesse. Porém, como tenho medo das dívi-
das e não quero que as haja na nossa obra, só contraí algumas com pessoas bondosas e de confiança. No
momento em que estamos, no Egipto não tenho nem um centavo de dívidas, porque, com os três mil francos
que mandei ontem, sobra ainda para viver durante um mês. Com este que tenho e com o que receberei das
sociedades – como é minha absoluta esperança –, as necessidades dos dois pequenos institutos do Cairo fi-
cam cobertas. Colónia deu-me agora cinco mil francos e para lhe mostrar qual é o meu real estado de crédito
em Colónia, mando-lhe o Anuário deste ano.
1671
Não digo mais por agora, porque estou num oceano de dor. A sua carta, o conteúdo da mesma são novos
espinhos para o meu coração, já dilacerado por outras cruzes. Fiat! Eu agradeço-lhe de coração, porque além
de o venerar como a um verdadeiro pai, tenho sorte de ter em si um médico sábio. Jesus Crucificado, Maria
Dolorosa estes são o meu caro conforto. Como Deus lhe deu a si uma imensa preocupação pelas almas, espe-
ro que não lhe falte ânimo nesta santa e dificílima empresa, que nos trará cruzes ainda maiores que estas que
temos.
Abençoe, monsenhor, este pobre

Afmo. e aflitmo. filho


e
P. Daniel Comboni m. a.
Já pensei nas missas. Carcereri escrever-lhe-á. Os nossos institutos ganharam mais almas em seis meses
que os franciscanos em dois anos (haec inter nos). O P.e Artini conhece a fundo Zanoni.

N.o 263 (248) - AO PADRE LUÍS ARTINI


APCV, 1458/151

V. J. M. J.
Colónia (Prússia renana)
20 de Agosto de 1868

Revmo e amat.mo padre,

1672
Surpreende-me sobremaneira que ainda se não tenha obtido de Roma a graça mediante a qual o nosso
bom P.e Franceschini possa ser promovido quanto antes ao sacerdócio. Na minha perspectiva, inclino-me a
pensar que algum motivo induziu o nosso pai, o bispo de Verona, a diferir a petição. Conhecendo eu muito a
fundo este jovem e digno filho de S. Camilo, que está cheio de espírito religioso e podendo em consciência
responder por ele, permito-me rogar-lhe que dirija fervorosas súplicas ao monsenhor para que se digne
apressar-se a obter da Santa Sé a concessão da graça, a fim de que em breve possa ser ordenado sacerdote
por mons. o vigário apostólico do Egipto. Franceschini merece tal graça; não há nenhuma circunstância ou
motivo que justifiquem que lhe seja retardada.
1673
Parece que o Senhor em sua infinita bondade lhe preparou uma espinhosa mortificação, que desde há al-
gum tempo angustia também o meu espírito. O inimigo do género humano está sempre disposto a perturbar
as obras de Deus. Porém, ânimo, meu caro padre. O Homem-Deus nunca mostrou de melhor maneira a sua
sabedoria do que fabricando a cruz: esta é o verdadeiro conforto, o esteio, a luz, a força das almas justas e é
a que forma as almas grandes e as torna aptas para suportar e realizar grandes coisas pela glória de Deus e a
salvação das almas.
1674
Levante, pois, o espírito sobre o adorável altar da cruz e pense que ainda que V. R. P. não tivesse feito ou-
tra coisa que formar na religião e educar no espírito de J. C. um Estanislau Carcereri (e creio poder acrescen-
tar um Tezza), o senhor teria feito bastante. Estou em condições de poder exprimir esta afirmação. Conheço
o suficiente os seus três filhos, com os quais tive a dita de partilhar as fadigas do apostolado egípcio.
1675
Tenho a certeza de que também o senhor conhece a fundo o P.e Zanoni; por isso abstenho-me de exprimir
a minha opinião sobre ele. Se devo acusar-me de algum equívoco (e todos estamos sujeitos a errar) é o de ter
depositado nele demasiada confiança. Porém, até nisto tenho uma desculpa, porque V. R. P. não ignora quão
fácil é enganar-se com uma barba branca e mais sabendo que Zanoni gozou durante anos da confiança de
muitas e distintas personalidades e desempenhou honrosos cargos na ínclita província Lombardo-Véneta da
veneranda Ordem dos Padres Camilianos. Levantando os olhos ao Céu e apertando contra o peito o dulcíssi-
mo tesouro da cruz de J. C., prepare o nosso querido P.e Tezza e o bondoso Sávio para uma próxima partida
para o Egipto.
1676
Confie no grande Deus crucificado e na nossa Mãe, Rainha da África e Mãe da Consolação, para que, a
despeito do dragão do abismo, que se assanha nesta desditosa Itália contra as mais veneráveis instituições,
não esteja longe a época em que a cruz de S. Camilo brilhe luminosa entre as tribos da infeliz Nigrícia, que
vivem ainda nas trevas e sombra da morte. A cruz sustentará o ânimo contra os golpes das vicissitudes hu-
manas. Carcereri, Tezza e Franceschini serão três valorosos campeões do apostolado africano que conforta-
rão eficazmente o grande coração de V. R. P., que está destinado a gozar dos frutos destas plantas seleccio-
nadas do seu jardim, digno objecto dos seus paternais cuidados.
1677
Desejaria que, por agora, a minha alusão a respeito do P.e Zanoni permanecesse entre si, o sr. bispo, o P.e
Tomerelli e, se o julgar conveniente, o bondoso Tezza. Mais adiante, de viva voz, dir-lhe-ei o resto como mo
ditam a minha consciência e um suficiente conhecimento de causa, ainda que o nosso caro P. e Estanislau o
mantenha bem informado das coisas.
Enquanto lhe peço que saúde o P.e Peretti, Tomelleri, Tezza, Sávio et omnes, beijo-lhe as mãos e subs-
crevo-me com todo o respeito e veneração

De V. R. P.
Hum. e afmo. serv. e filho
e
P. Daniel Comboni mission. ap.

N.o 264 (249) - AO PADRE LUÍS TEZZA


APCV, 1458/159

Rosenheim, 17 de Setembro de 1868


Meu caríssimo P.e Luís,

1678
Faça-me o favor de mandar uma carta a Estanislau pelo primeiro vapor italiano, pedindo-lhe que me
mande imediatamente para Paris a lista de tudo quanto a nossa capela precisa. Eu disse tudo em França, es-
pero; ainda assim, é melhor comprová-lo.
1679
O senhor, Sávio, Ferroni e Rolleri estejam prontos para o mês que vem, que juntamente com três negras,
iremos provar as tâmaras novas no Cairo. Temos, caro amigo, uma sublime missão a realizar, digna dos au-
tênticos sacerdotes de Cristo e dos verdadeiros filhos do heróico S. Camilo. Coragem, pois! Não nos dei-
xemos abater pelo vento de alguma tempestade. Temos o genuíno espírito de J. C., e só desejamos a sua gló-
ria e a salvação das almas; portanto, avante! As cruzes serão nossas companheiras, porém, sofreremos com
Cristo e com S. Camilo.
1680
Estou ansioso de chegar a Paris para ler as pormenorizadas e longas cartas de Estanislau e talvez de Za-
noni e ter notícias do Cairo. Parto esta manhã e não ficarei mais que duas horas em Estrasburgo. Beije por
mim a mão ao venerado e caro P.e provincial, dê lembranças a Tomerelli, Peretti, Bresciani, Carcereri, etc., e
receba o mais afectuoso abraço do

Seu amigo P.e Daniel

N.o 265 (250) - A MONS. LUÍS CIURCIA


AVAE, c. 23

V. J. M. J.
Paris, 19 de Setembro de 1868

Excelência rev.ma

1681
Com o próximo vapor francês mandarei a V. E. Rev.ma uma carta pormenorizada, porque com o actual é
impossível: cheguei a Paris só esta manhã, vindo de Bamberg e de Munique.
Embora na Alemanha as coisas me tenham corrido bastante bem e tenha conseguido 400 napoleões de ou-
ro, tenho a alma um pouco magoada pelas notícias que encontrei em muitas cartas que encontrei em Paris na
posta restante. A mais grave é o procedimento triste e iníquo do P.e João Baptista Zanoni, que, graças ao
Céu, finalmente partiu. Reservando-me para lhe dar conta de tudo com o outro vapor, por agora limito-me a
remetê-lo ao nosso venerado P.e Pedro que está ao corrente do essencial das coisas e a pedir-lhe humilde-
mente perdão por não ter exposto a V. R. Rev.ma em Alexandria o que de facto acontecia e o que naquele
ponto se podia prever. Queria e estava disposto a explicar-lhe todo o assunto do irreflectido P.e Zanoni; mas
não tive coragem de o fazer quando me apercebi de que V. E. estava ocupadíssimo.
1682
Entretanto, como houve quem escrevesse a Roma a dizer que não estabeleci uma adequada separação en-
tre o insto. feminino e nós, e como o cardeal Barnabó me avisou disso com uma carta que me enviaram do
Egipto e que recebi esta manhã, considero necessário arrendar metade do convento dos maronitas, que o
novo superior e pároco ofereceu. Por isso ordenei ao P.e Carcereri que consultasse sobre isso o P.e Pedro e,
se fosse necessário, V. E. Rev.ma, para realizar essa mudança. Isto apesar de que tanto nas casas dos maroni-
tas como na actual ter havido uma separação adequada, semelhante à do Seminário das Missões Africanas de
Lião e à que havia no insto. das Irmãs de S. José da Aparição, de Roma, quando a madre Emilie Julien desde
1856 até 1861 ocupou com as suas freiras o 1.o e 2.o andares da residência Castellacci e no 3.o vivia monse-
nhor com o seu irmão e os nove filhos deste.
1683
Sua excelência mons. o arcebispo de Munique (que graças à sua poderosa recomendação me deu 1000
francos) apresenta-lhe os seus respeitos, como também os senhores Baudri e o sócios do S. Sepulcro de Co-
lónia.
Renovando as minhas súplicas de um generoso perdão e de uma especial assistência moral na actual tor-
menta que parece manifestar-se nos dois pequenos institutos nascentes, cheio de confiança nesse adorável
Jesus para cuja glória pretendo unicamente trabalhar e sofrer, beijo-lhe as sagradas vestes e declaro-me com
toda a gratidão e veneração

De V. E. Rev.ma
Hum. e obed.mo filho
P.e Daniel Comboni

N.o 266 (251) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., c. 7, ff. 1307-1310v

Paris, 22 de Setembro de 1868

Em.mo Príncipe,

1684
Tendo eu calculado que o presidente da O. P.e de Lião, para se pôr em comunicação com a S. C., tardaria
algo em tomar uma decisão sobre o meu pedido, decidi aceitar o convite que me foi feito para intervir no
Congresso Geral dos Católicos da Alemanha, em Bamberg, a fim de lá tratar com o meu irmão P. e Alexan-
dre Dalbosco a causa dos negros.
1685
Chegado só ontem a Paris, encontrei as estimadíssimas cartas N.os 3, 4 e 5 que V. Em.a Rev.ma se dig-
nou enviar-me. Enquanto lhe agradeço vivamente pelas úteis e preciosas advertências que as três contêm e
que pro-curarei aproveitar eficazmente, respondo-lhe sobre os dois pontos capitais a que faz referência a sua
última sempre veneradíssima: 1.o, a resposta que V. Em.a deu ao presidente de Lião; 2.o, a minha convivên-
cia e dos meus companheiros com as irmãs e as negras, de que lhe deram notícias e à qual V. Em.a, com
trato especial e paternal bondade, se dignava fazer alusão já no dia 4 do passado Agosto.
1686
O primeiro ponto constitui para mim uma cruz muito mais pesada que a me queria endossar Vítor Ema-
nuel e da qual muito dificilmente me poderei livrar, como fiz com aquela. Tenho justos motivos para supor
que a resposta que V. Em.a deu ao presidente acabou com a minha reputação perante esse ínclito conselho e
me fez aparecer como um verdadeiro embusteiro, de maneira que no futuro não terei nem a coragem de me
aproximar dele nem a esperança de receber jamais socorro algum. E o que aumenta ainda a minha angústia é
que tal resposta tenha feito ficar em má posição também o meu venerado superior, o digníssimo vigário
apostólico do Egipto, que me tinha apoiado calorosamente com uma carta especial de recomendação.
1687
V. Em.a Rev.ma julgou seu dever declarar em Lião o verdadeiro estado das coisas. E qual é o verdadeiro
estado das coisas declarado?... Em verdade sou mesmo infeliz, Em.mo Príncipe, porque sem saber, nem que-
rer, V. Em.ª. declarou especialmente duas coisas que são por completo alheias à verdade. Todos os meus
actos se nortearam sempre pela sinceridade e verdade e nunca deixei de dar conta dos meus passos a V.
Em.a, nem sequer quando temia não agir com sabedoria e prudência. Parece-me impossível que a sua exce-
lente memória tenha esquecido as informações que lhe dei sobre a Obra do B. Pastor. São estas as duas coi-
sas:
1688
Ad primum. V. Em.a confirma a opinião errónea do presidente de Lião de que a Obra do Bom Pastor esta-
ria destinada a manter os Institutos do Cairo; e confirma-o de tal maneira, que se digna depois acrescentar-
me: «Se a S. C. deseja a civilização da Nigrícia, não pode permitir que se obtenham meios em detrimento da
benemérita pia obra». Basta que V. Em.a se digne repassar o artigo 1.o do estatuto geral da O. do B. P. para
se convencer de que esta tem como fim manter e multiplicar as obras preparatórias da Europa; quer dizer,
hic et nunc, o pequeno seminário de Verona, que é totalmente alheio à esfera da caridade da Santa Obra da
Propagação da Fé (que ajuda só os estabelecimentos de missão in partibus infidelium), como alheios são a
ela os seminários das missões estrangeiras de Milão, Lião, Paris, Londres, etc. O seminário de Paris tem bens
próprios, o de Lião sustenta-se com colectas diárias e o de Londres com uma colecta extraordinária feita na
América.
1689
Ao fundar o de Verona, tive em conta que, nos tempos difíceis que correm, os benfeitores privados nunca
dotarão estabelecimentos eclesiásticos, pelo justo temor de que, no torvelinho de uma revolução, fique tudo
absorvido pelas leis de confiscação. Por isso, servindo-me do direito de associação reconhecido teoricamente
também pelos governos liberais, congeminei a Obra do B. Pastor, que tem como fim sustentar seminários na
Europa que sirvam para formar eclesiásticos para o apostolado da Nigrícia, como o de Paris forma apóstolos
para a Índia, China e Japão.
Falei de tal fundação no meu relatório de 1866 à S. C., feito a convite de V. Em. a Antes de fundar esta
obra, andei dois anos a reflectir sobre ela, consultei eminentíssimas personalidades, bispos e homens muito
versados em obras similares e de todos recebi palavras de encorajamento. O mesmo aconteceu a mons. Ca-
nossa, que foi muito encorajado; e parece-me que também V. Em.a me mostrou mais de uma vez que era
muito do seu agrado. Por tudo isso, pode ver V. Em.a que a Obra do B. Pastor não tem nada a ver com a O.
P. de Lião e Paris, nem pode prejudicá-la de nenhum modo, como tão-pouco têm nada a ver com ela as cin-
quenta e três obras de carácter parecido abençoadas pela Igreja, que florescem na Alemanha, Bélgica e Fran-
ça. Espero no Senhor que a Obra do B. Pastor venha a contribuir para, dentro de poucos lustros, dar bons
apóstolos à Nigrícia central.
1690
Ad secundum. V. Em.a declarou ao presidente de Lião que a Obra do B. Pastor está apenas dotada de qua-
renta dias de indulgência pelo bispo de Verona, sem recordar que foi enriquecida pelo Santo Padre com seis
indulgências plenárias e isto mediante uma carta de seu punho e letra, que, chegada às minhas mãos às qua-
tro da tarde de um dia de Julho de 1867, creio que no dia 25, pela noite tive a honra de a apresentar a V.
Em.a, que a leu na sua totalidade e se mostrou muito agradado. Tendo depois impresso em Verona a pagela,
só agora lha incluo; eu até hoje julguei tê-la apresentado a V. E. em Novembro passado; mas, vendo agora
que não fez dela menção alguma, estou a pensar que, perturbado então pela tempestade que o vice-gerente
me obrigou a suportar, certamente me esqueci de lha dar a conhecer: peço perdão.
1691
A estes dois pontos acrescento outra dolorosa observação. V. Em.a declarou ao presidente de Lião que o
Programa foi impresso na Propaganda sem o seu conhecimento e que eu tratei de um modo particular com o
cav. Marietti; e alargou-se noutros pormenores de maneira que, do conjunto da sua apreciada narração, pare-
ce depreender-se que eu não agi rectamente nesse assunto e que me vali de subterfúgios para a impressão. A
pura verdade é que, tendo que se imprimir os Programas com alguma modificação acessória em relação à
edição veronesa, eu mesmo sugeri ao vice-gerente que se imprimissem em Roma, apresentando-lhe como
razão que as coisas impressas em Roma têm mais crédito no exterior. Por outro lado, eu tinha um motivo
ainda mais poderoso para recorrer à imprensa romana: nesse caso não seria eu, mas o vice-gerente, quem
arcaria com os gastos da impressão, como me tinha prometido. E, de facto, foi o próprio monsenhor quem
me deu o dinheiro para pagar a Marietti.
1692
Todas estas coisas, juntamente com outros pormenores que V. Em.a julgou conveniente expor e citar ao
presidente de Lião, onde fui muito bem acolhido, causaram-me um grande prejuízo, como também me preju-
dicou e prejudica muito que de vez em quando V. Em.a repita que P.e Comboni é um louco, um louco a atar
com 14 cordas, etc., pois isso fez parar alguns insignes benfeitores que estavam dispostos a ajudar-me e res-
friou muitíssimos que anteriormente tinham dado boas razões para crer que era muito do seu interesse a obra
por mim concebida. Isto não é uma queixa que lhe faço, Em.mo Príncipe. É apenas um desabafo de profunda
dor, por ver que, depois de tantas fadigas e perigos da vida a que me expus, depois de tantos estudos, viagens
e gastos suportados por mim só, sem recorrer à Propaganda, depois de 15 anos de contínuos sofrimentos e
trabalho numa obra por si dificílima, que tantos abandonaram (e ainda admitindo que também eu não tenha
feito nada, embora o sacrifício tenha sido constante), parece-me que V. Em.a me trata com certa severidade.
1693
Eu mereço mais do que isto, porque sou grande pecador e tenho dívidas a pagar a Deus, de modo que lhe
agradeço de todo o coração, porque V. Em.a (que noutras circunstâncias me ajudou), como chefe de todas as
missões, é assistido e guiado por Deus. Esta é a razão pela qual, ao exprimir-lhe a minha sincera gratidão, me
comprazo de repetir: hic ure, hic seca, hic non parcas ut in aeternum parcas.
1694
Depois de tudo isto, permito-me acrescentar-lhe que se, na sua profunda sabedoria, V. Em.a considerar
conveniente esclarecer o presidente de Lião sobre os pontos antes expostos e até animá-lo a proporcionar-me
já alguma ajuda para os dois pequenos estabelecimentos do Cairo e recomendar-lhe que os ajude no futuro
por meio do vigário apostólico como obra diocesana do Egipto, do mesmo modo que são ajudados os frères,
as clarissas e as Irmãs do B. Pastor do Cairo, far-me-á um enorme favor e assistir-me-á em momentos de
grande necessidade.
1695
Pense quantas cruzes sofri num ano: não sei como pude resistir; a graça de Deus é grande. Pense que o
Insto. salvou almas: só neste último Agosto foram baptizados três adultos e um menino muçulmano in arti-
culo mortis. Porém, se V. Em.a não julgar oportuno atender a minha humilde súplica, fico-lhe igualmente
agradecido: é sinal de que Deus não quer. Pois faça-se a sua santíssima vontade, que Deus se encarregará de
me livrar doutro modo de tantas angústias: Maria adiuvabit.
1696
Ao segundo ponto, que diz respeito à nossa pretensa convivência com as irmãs e as negras, responder-
lhe-ei amanhã. Enquanto os meus inimigos particulares se dirigirem à Propaganda não tenho nada que temer,
porque a Igreja não se deixa enganar e mais tarde ou mais cedo chega a saber a verdade.
Pedindo-lhe perdão por quanto lhe ousei expor nesta carta, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me com
todo o respeito

De V. Em.a Rev.ma, Hum. indigmo. e aflictmo. filho em J. C.


P.e Daniel Comboni

N.o 267 (252) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, ff. 1311-1313v

V. J. M. J.
Paris, 25 de Setembro de 1868

Em.mo Príncipe,

1697
Pela presente quero falar-lhe da pretensa convivência minha e dos meus companheiros com as religiosas e
as negras, sobre a qual V. Em.a, num rasgo de paternal bondade, se dignou chamar-me a atenção nas suas
últimas e veneradas cartas, que só outro dia recebi em Paris.
1698
Chegado com a minha expedição ao Cairo na véspera da Imaculada Conceição do ano passado, instalei as
freiras e as negras no hospital europeu com as Irmãs de S. José, enquanto nós recebemos a caritativa hospita-
lidade dos padres franciscanos e dos Irmãos das Escolas Cristãs, a qual durou dez dias, até arrendar o con-
vento dos maronitas do Cairo Velho.
O convento é formado por duas casas, uma situada na parte oriental da igreja e a outra na ocidental; am-
bas as casas estão totalmente separadas entre si e têm saída para o deserto. Em 1838 os maronitas compraram
outra casa no lado ocidental da igreja, que uniram ao convento com um grande muro. Esta casa tem saída
própria para ocidente, pela parte diametralmente oposta à saída das outras duas casas. Nela tinham vivido já
freiras orientais. Estas três casas comunicam com a igreja por meio de outras tantas portas, que dão para um
grande pátio. Na primeira casa hospedam-se os maronitas quando vão ao Cairo Velho, na segunda vivi eu
com os meus companheiros, na terceira as irmãs e as negras, as quais, para ir ao pátio, tinham que atravessar
a porta interior, fechada à chave, e depois seguir por um corredor do rés-do-chão, também fechado.
1699
Embora eu não estivesse satisfeito com esta divisão, porque sou italiano e não francês, contudo (como se
tratava de algo provisório) chamei e consultei o nosso pároco franciscano, o P.e Pedro de Taggia, homem
venerável, ancião e de consciência escrupulosa e ele assegurou-me que aquilo podia passar sem problemas
de nenhum tipo. De facto há tanta separação entre estas duas casas como a que existe no seminário africano
de Lião e em muitíssimos outros estabelecimentos de muito boa reputação que visitei, nos quais as irmãs
preparam a comida, como no-la preparavam a nós as nossas irmãs e negras.
1700
Nessas duas casas vivemos até ao dia 15 de Junho, em que arranjei outra maior que as anteriores, perten-
cente ao sr. Bahhari Bey. Esta tem dois grandes apartamentos e dois pisos, os quais dão para uma grande
escadaria que leva a um jardim, ao qual está anexo, separado por um alto muro, outro jardim mais pequeno
com tamareiras, onde fica a capela. No primeiro piso estavam as irmãs e as negras, no segundo, nós. Às Ir-
mãs pertencia-lhes o primeiro jardim, com saída para o lado do Nilo, a nós, o segundo jardim, para o lado da
cidade.
Se bem que a nossa estada fosse absolutamente provisória, até nós conseguirmos arranjar uma residência
para nós, também desta vez, antes de nos instalarmos na casa de Bahhari Bey, chamei o franciscano P.e Pe-
dro e o pároco copta para verem se era conveniente que nós vivêssemos ali mesmo de forma provisória; a
ambos pareceu muito bem. Na realidade, havia mais separação entre os missionários e as irmãs que a que
havia em Roma, quando as Irmãs de S. José ocupavam os primeiros pisos da residência de Castellacci, en-
quanto no último viviam monsenhor o arcebispo de Petra e a numerosa família de seu irmão.
1701
Finalmente, como o novo superior dos maronitas nos ofereceu o seu convento numas condições muito
vantajosas, eu aceitei de boa vontade. E agora as irmãs e as negras continuam na casa de Bahhari Bey, en-
quanto o colégio masculino e os meus companheiros se encontram no convento dos maronitas, de modo que
a distância entre elas e eles é como a existente entre a Propaganda e Piazza di Venezia.
1702
Desde que tive a ideia de erigir estes institutos, sempre foi minha intenção organizá-los segundo o espírito
do Senhor e como convém a uma obra de Deus para que alcance o alto objectivo proposto. Os começos de
uma fundação são sempre árduos e duros, e sempre se precisa de tempo para conseguir que funcione regu-
larmente. O que se faz no primeiro ano é sempre algo provisório: a acção do tempo, como ocorre com o grão
de mostarda, desenvolve paulatinamente a obra de Deus. Durante esta situação provisória e após haver re-
flectido sobre o assunto, eu permiti três coisas:
1.o Sendo tudo caro no Egipto, especialmente a mão-de-obra, os meus companheiros e eu, com o devido
modo, fizemos de pedreiros, serralheiros, carpinteiros, pintores, etc., também na casa feminina para a restau-
rar e tirá-la do seu estado degradado.
2.o Dado que a visita de um médico custava no Cairo Velho oito escudos e que o camiliano P.e Zanoni ti-
nha bons conhecimentos de medicina, a qual ele tinha estudado e praticado nos grandes hospitais, etc., per-
miti ao mesmo que a exercesse no Insto. feminino unicamente no tocante à prescrição de algum remédio;
nunca naquelas condições que não se prestassem à dignidade de sacerdote e religioso, porque em tais casos
veio sempre um médico idóneo do hospital turco. Disto dei conta ao delegado. Frades, sacerdotes coptas e
irmãs Clarissas, vieram muitas vezes à consulta de Zanoni, que também atendeu a muitos turcos pobres:
nisto o seu nome é abençoado por todos.
3.o Confiei ao P.e Zanoni a inspecção imediata do insto. feminino, porque tinha a barba branca e quarenta
e nove anos, tinha sido outras vezes director de freiras, tinha ocupado durante vinte anos honrosos cargos na
província véneta dos camilianos e durante outros sete o de prefeito da casa camiliana de Mântua, e porque no
Véneto em geral gozava de boa fama. Qualquer homem prudente teria agido assim no meu caso.
1703
Tendo estabelecido desde o princípio o oportuno regulamento, entreguei-me à mais assídua vigilância,
observando tudo, inclusive o P.e Zanoni (porque, eminência, nestas alturas já não confio em ninguém, nem
em meu pai, depois de me terem enganado até arcebispos e frades). Assim as coisas correram muito bem e os
dois pequenos institutos gozaram – e gozam ainda – de grande crédito quanto à moralidade, assim como de
uma excelente reputação, quer entre os cristãos quer entre os turcos; e, tendo sido visitados por leigos, sacer-
dotes, frades, freiras e bispos, ninguém me fez jamais a mais ligeira observação. Em todo o caso, eu não me
teria sentido nunca satisfeito até não ter duas casas distantes meia milha uma da outra.
1704
Em Março, caiu-nos em cima o torvelinho das doenças e sobretudo a varíola, que nos assolou até Julho e
todas as irmãs e quase todas as negras, dois rapazes, o P.e Franceschini e eu fomos afectados. A superiora
esteve três meses de cama e um em convalescença, três negras e um negro morreram. Como é natural, em tão
grande desconcerto, os regulamentos observaram-se até certo ponto e eu estive muito ocupado, atendendo a
tudo.
1705
Foi nesta altura calamitosa que o P.e João Baptista Zanoni (que sempre gozou de boa saúde) abusou da
sua posição de confiança. Aproveitando os momentos em que eu ia ao Cairo devido a assuntos económicos,
ele, uma a uma e em diversas ocasiões, fez desnudar algumas negras, sob o pretexto de as curar e salvar da
morte. E, ao negarem-se ou ao saírem fugindo, detinha-as e, com o crucifixo na mão (coisa inaudita!), pedia-
lhes em nome de Deus que, por amor àquele Crucificado e para sua própria salvação, se deixassem exami-
nar. De facto, conseguiu fazer tal exame a partes que não é conveniente nomear. Tinha especial afecto para
com Maria Zarea, uma das negras que queria tornar-se freira, afecto que se converteu em ódio quando ela,
compreendendo tudo, não quis tornar a vê-lo.
Apesar dos seus 49 anos e da sua astúcia e não obstante as condições excepcionais em que se encontrava
o insto. feminino, Zanoni não pode escapar à minha vigilância. Com toda a precaução possível, fiz as mais
escrupulosas indagações; pus em campo também a vigilância do P.e Carcereri, religioso muito consciencioso
e iluminado; e constatei a absoluta verdade do exposto. Só Deus sabe quanto me pesou esta cruz. Chamado
Zanoni ao rede rationem, teve a ousadia de me negar tudo, mas com argumentos tão pueris, que me teriam
convencido, se não o estivesse já, da realidade dos factos. O mesmo constatou o P.e Carcereri.
1706
Foi então que aluguei a casa de Bahhari e, ocupada do modo acima exposto, estabeleci um regulamento
adequado que tornasse impossíveis tais inconveniências. Zanoni, apercebendo-se perfeitamente da sua situa-
ção, da reputação perdida e da impossibilidade de permanecer no meu instituto, e ainda mais exasperado ao
ver os seus dois camilianos inclinarem-se para a verdade, quer dizer, aprovarem a minha actuação e desapro-
varem totalmente a sua conduta, para se salvar a si mesmo concebeu o insano projecto de desacreditar os
dois institutos e atingi-los com um golpe mortal, bem como a mim, a Franceschini e a Carcereri. A este
guarda-lhe uma aversão e ódio mortais, ainda que Carcereri o trate como a um irmão.
1707
Não sei que passos deu realmente Zanoni. Creio que procurou insinuar as suas ideias a mons. o delegado,
a alguns padres franciscanos e ao padre que dirige as Irmãs de S. José, no hospital, com o qual pouco me
entendo: parece-me que escreveu as coisas à sua maneira ao P.e Guardi e talvez também a V. Em.a; creio
que tenha escrito para Verona a muitos e tenha feito crer que regressa por não haver meios suficientes.
1708
Qualquer coisa que ele tenha feito, eu pus toda a minha confiança em Deus: Jesus é o único amigo dos
aflitos. Se tivessem caído em falta os outros missionários mais jovens, teria remorso, temendo ter sido negli-
gente em estabelecer a devida separação, mas um velho de 49 anos!!! Não; creio que Zanoni não chegou a
isto de repente. À iniquidade chega-se gradualmente. O certo é que partiu do Cairo, após fazer com que lhe
passassem certificados médicos falsos e cometer outras trapaças. Foi o mais saudável e robusto de todos. O
insto. feminino agora vai muito bem, goza de óptima reputação entre os cristãos e os turcos e prossegue a sua
missão de tirar das trevas almas infiéis; e no dia da Assunção receberam o baptismo três negras, das quais já
vinha fazendo referência a V. Em.a desde Junho passado.
1709
Sobre o caso Zanoni voltarei a escrever-lhe. O passado é sempre uma escola para o futuro. Monsenhor o
delegado terá esclarecido a S. C. sobre o sucedido. Como V. Em.ª pode ver, também nesta nova tormenta o
inimigo da salvação humana procurou causar-me dano. Com tantos pesares a oprimir-me, compreenderá que
é um milagre eu poder resistir a tantas cruzes. Porém, eu sinto-me tão cheio de força, de coragem e de confi-
ança em Deus e na SSma. Virgem Maria, que estou certo de superar tudo e de me preparar para outras cruzes
maiores ainda por vir.
1710
Já vejo e compreendo que a cruz me é tão amiga e a tenho sempre tão perto, que desde há tempo a escolhi
por esposa inseparável e terna. E com a cruz como amável companheira e mestra sapientíssima de prudência
e sagacidade, com Maria minha mãe queridíssima e com Jesus todo meu, não temo, Em.mo Príncipe, nem as
tormentas de Roma, nem as tempestades do Egipto, nem os redemoinhos de Verona, nem as nuvens de Lião
e Paris; e certamente, com passo lento e seguro, andando sobre os espinhos, chegarei a iniciar estavelmente e
a implantar a ideada obra da regeneração da Nigrícia central, que tantos abandonaram e que é a obra mais
difícil e fatigante do apostolado católico. Naturalmente encomendo-me a V. Em.a Rev.ma embora indigno de
ser atendido: o senhor seja para mim chefe, médico, mestre e pai. Eu não tenho outra preocupação por agora
que a de estabelecer bem o pequeno seminário de Verona e os dois pequenos institutos do Cairo. P.e Alexan-
dre Dalbosco, que é uma pérola para o seminário veronês, diz-me que P.e Rolleri é um bom missionário:
pouco a pouco faremos tudo. Vejo verificar-se na prática o que V. Em.a teve a bondade de me dizer pesso-
almente e por escrito: tempo, calma, prudência, oração, e eu acrescento também a cruz; mas uma cruz que
venha de Deus, não que seja resultado da própria falta de juízo, parece-me ouvir acrescentar a V. Em.a
Rev.ma
Receba, para terminar, as minhas expressões da mais profunda veneração. E enquanto lhe peço perdão
por tudo, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me

De V. Em.a Rev.ma
Hum., obed.mo e resp. filho
P.e Daniel Comboni

Envio esta carta por meio do núncio apostólico porque faz referência a coisas delicadas.

N.o 268 (253) - A CLAUDE GIRARD


AGB

Paris, 5 de Outubro de 1868

Meu caríssimo amigo,

1711
Uma circunstância extraordinária impediu-me de lhe escrever até hoje. Alegro-me de saber que vai a Or-
leães, porque é o motivo mais forte que me pode lá levar; mas ocupado como tenho estado até hoje a assistir
a venerável condessa de Havelt, não pude decidir a minha viagem àquela cidade. Agora, que a senhora está
no Céu, creio que já posso. O dia em que o senhor chegar a Orleães, escreva-me logo para Paris, indicando-
me onde o posso encontrar, porque irei sem falta. Preciso de si, da sua orientação, pois até agora, desde o
meu regresso da Alemanha, não ganhei um centavo e não tenho nada para gastar. Adeus. A toda a sua famí-
lia, todo o meu afecto.

Seu afmo. amigo Comboni

1712
É horrível a guerra do P.e Zanoni. Escreveu para Roma, etc., etc. Mas Deus atingi-lo-á. Com as mais vis
mentiras só se pode fazer triunfar a injustiça. Tentou desacreditar-me em Roma e em Verona e também pe-
rante o delegado apostólico. E tudo porque realizei um acto de justiça, cumprindo o meu dever ao declarar
que ele tinha feito mal e agido mal. Porém, meu amigo, Comboni não tem medo de nada: nem das tormentas
de Roma, nem dos temporais do Egipto, nem as nuvens de Verona. Tenho do meu lado os corações de Jesus
e de Maria e isso me basta. O que sofri e o que me resta sofrer não é suficiente para abater o meu ânimo: a
obra da conversão e regeneração dos negros será fundada, apesar de todos os obstáculos do inferno, porque a
cabeça de Cristo é mais dura que a do Diabo. Coragem e Deus estará connosco.
Adeus, meu amigo

Seu devot.mo amigo Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano
N.o 269 (254) - A MONS. LUÍS CIURCIA
AVAE, c. 23

V. J. M. J.
Paris, 8 de Outubro de 1868

Excelência rev.ma,

1713
Quando recebi em Paris uma carta de S. Em.a o cardeal prefeito, que tratava da resposta dada ao em.mo
conselho de Lião e das notícias que lhe tinham chegado sobre a minha convivência e a dos meus companhei-
ros com as religiosas e as negras, pensei enviar a V. E. Rev.ma uma cópia das minhas observações a Sua
Eminência acerca destes importantes pontos. Mas agora, considerando as mesmas demasiado longas, consi-
derei que será mais do agrado de V. E. um pequeno resumo, deixando para o meu próximo regresso a ocasi-
ão de lhe expor tudo, dando-lhe conta exacta da minha actuação.
1714
A respeito do primeiro ponto, isto é, a resposta de S. Em.a a Lião, temo que não tenha apoiado lá muito a
minha causa, porque confirmou a opinião errónea que o conselho tinha de que a Obra do B. Pastor tem como
objectivo manter os institutos de negros do Cairo e, ainda por cima, declarou ao presidente que a dita obra
não tem a aprovação de Roma e só conta com os quarenta dias de indulgência a ela aplicados por mons. Ca-
nossa. A este erro respondi que basta com que Sua Em.a examine o Programa da dita Obra e a folha das in-
dulgências plenárias concedidas mediante documento papal passado por Pio IX, por seu punho e letra (cujas
cópias eu mesmo pus nas mãos do cardeal no passado Outubro de 1867), para se convencer de que a Obra do
B. Pastor tem como fim sustentar o pequeno seminário de Verona e que foi enriquecida com seis indulgên-
cias plenárias por S. S. Pio IX. Quanto ao mais, segundo o que me disse um dos mais activos membros do
Conselho de Lião, o rev.mo De Georges, superior do ínclito seminário da cartuxa, a Obra de Propagação da
Fé terá sempre em conta a venerada carta de V. E. Rev.ma e apoiará o meu instituto como obra diocesana do
Egipto, porque o conselho sabe bem que o nosso respeitabilíssimo cardeal está num erro.
1715
Quanto ao segundo ponto, o da pretensa convivência, fiz a S. Em.a uma exacta descrição, tanto das duas
casas que formam o convento dos maronitas como da nova residência Bahhari, que ocupámos no passado dia
18 de Junho, e fiz-lhe ver que na casa maronita havia mais separação entre os missionários e as irmãs que a
que houve e há actualmente no respeitável seminário de Lião – onde as freiras, estando na mesma casa, com
a correspondente separação, cozinham, etc. para os alunos do dito seminário – e mais separação que a exis-
tente em quase todos os conventos femininos da Alemanha, nos quais o confessor e o capelão vivem no
mesmo convento e na mesma casa, apenas com uma separação de portas. E se se trata da casa, a separação é
maior entre os seus dois extensos pisos do que a que há em Roma na residência Castellacci, onde entre 1856
e 1862 a madre geral e as irmãs ocupavam o primeiro piso e o segundo, enquanto o monsenhor, com seu
irmão e os nove filhos e filhas deste, viviam no terceiro.
Fiz observar a V. Em.a que a nossa actual situação era provisória, porque sempre foi minha intenção to-
mar – quando os tempos fossem melhores – duas casas distantes ao menos uma milha da outra; mas que,
encontrando-me nos começos da fundação, se podia seguir assim, na altura, com toda a prudência humana.
1716
Quem semeou esta cizânia – consta-me com certeza – foi o pobre P.e Zanoni, que, vendo a sua reputação
de rastos e conhecendo a absoluta impossibilidade de continuar no meu instituto (pelo que fez, o que levou o
P.e Carcereri a repreendê-lo, causando-me a mim a mais viva dor), procurou justificar a sua saída infligindo
um golpe ao meu instituto, a mim e aos outros dois, desacreditando-nos em Roma, em Verona e onde lhe foi
possível. Fez isso depois da minha partida, escrevendo ao P.e geral dos camilianos, P.e Guardi, íntimo amigo
do nosso cardeal. E como ele expôs as coisas à sua maneira e com toda a malícia, eu tive que sofrer muito da
parte de Sua Eminência, que com toda a razão não me deu o seu apoio perante o conselho de Lião.
1717
Tenho que me repreender a mim mesmo pelo facto de não ter aberto imediatamente o meu coração a V.
E., falando-lhe do P.e Zanoni. O senhor teria remediado logo a situação e as coisas teriam ido bem. Mas não
fui capaz de me decidir, por um lado, porque a partida súbita do P.e Zanoni teria impedido a minha, que sem
dúvida era bem necessária, por outro, porque falar do assunto que devia afastar o P. e Zanoni era uma coisa
muito dura ao meu coração oprimido. Espero que o coração mais que paternal de V. E. me conceda benevo-
lente perdão, porque doravante não deixarei que nenhuma contrariedade me faça parar e encontrará em mim
um filho.
Quanto ao resto, estou impaciente por voltar ao Egipto. Aqui em Paris as coisas prolongam-se, porque to-
dos estão no campo. Em qualquer caso, espero deixar a Europa nos princípios do próximo mês.
1718
Se o Senhor me ajudar, confio receber um subsídio da Santa Infância, uma pequena ajuda de mons. Sou-
biranne e outra do ministério, dos fundos destinados ao Oriente, mais alguma coisa do Institut d’Afrique, do
qual sou presidente honorário desde o ano passado. A duquesa de Valência manda-lhe cumprimentos e o
barão de Havelt – de quem sou hóspede – como grande patrocinador das missões apresenta-lhe os seus res-
peitos.
Beijo-lhe o sagrado anel e, encomendando-me ao seu coração, que para mim foi mais que paterno, subs-
crevo-me

De V. Rev.ma dev. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 270 (255) - A MADAME A. H. DE VILLENEUVE


AFV, Versailles

V. J. M. J.
Paris, 9 de Outubro de 1868

Minha caríssima e venerada senhora,

1719
Encontro-me desde há uns dias em Paris e não penso de nenhum modo ir-me embora sem a ver. Esperava
que viesse a Paris durante o mês de Outubro, mas dizem-me que vai ficar em Quimper também durante o
mês de Novembro. Pois bem, eu irei visitá-la no presente mês. Alegra-me saber que está aqui a sra. Maria, a
quem procurarei visitar hoje.
Eu lembro-me sempre de si, do meu bom amigo Augusto e da sua querida família.
1720
Recentemente prestei assistência à sra. Havelt, da qual recolhi o último suspiro. Antes disso, passei mui-
tas noites junto à sua cabeceira, dei-lhe a bênção papal e dezoito vezes a absolvição. Foi para o Céu.
Alegra-me receber, por meio do sr. Désiré, boas notícias do meu caríssimo Augusto. Uma mãe única e in-
comparável como a senhora deve ser escutada por Deus. A sua abnegação e amor maternais chegam mais até
Deus do que qualquer prece. Contudo, continuemos com as nossas orações.
Rogo-lhe que saúde da minha parte o sr. Augusto e o jovem Urbansky, do qual também me dá boas notí-
cias Désiré.
Adeus, minha venerada senhora; estou impaciente por a ver e passar um dia consigo e com o meu carís-
simo Augusto. Com estes sentimentos, tenho a honra de me dizer no Sagrado Coração de Jesus

Seu afmo. P.e Comboni


Original francês
Tradução do italiano

N.o 271 (256) - A MONS. LAVIGERIE


APBR, B. I, 468

Paris, 22 Rue des Saints Pères


15 de Outubro de 1868
Excelência rev.ma,

1721
Consagrado desde há quinze anos ao apostolado da África Central, no qual decidi gastar a vida inteira,
apesar de tantas dificuldades e perigos como os que eu suporto nas tribos do equador e do deserto, que eu
atravessei por quatro vezes, não posso ficar indiferente perante a sorte e as esperanças que me parece con-
templar a respeito da África, a parte do mundo mais desgraçada e mais abandonada por causa dos enormes
obstáculos que lhe tem colocado o Islamismo; não posso estar indiferente perante os triunfos que a coragem
e a constância católicas conseguiram. O senhor, monsenhor, foi objecto da minha admiração e do espanto
quando, no Cairo, fui informado pela imprensa católica de que teve a força e a coragem apostólicas de de-
fender e proteger os sublimes interesses de uma parte desta querida África que a Providência divina, median-
te a autoridade do Vigário de Cristo, confiou ao seu grande zelo, à sua perspicaz inteligência, numa palavra,
ao seu coração episcopal, que porfia com o coração do ilustre bispo de Milão, Santo Ambrósio.
1722
V. E. triunfou, monsenhor, contra a hidra multiforme da impiedade que guiava o seu rebanho; o senhor,
pastor incomparável, soube proteger as suas queridas ovelhinhas contra os ataques dos lobos maus, e a sabe-
doria e o coração do imperador, com a graça de Deus, atribuíram-lhe a vitória. Na minha pequenez de pobre
e modesto missionário, que só vive para o bem e a felicidade da África, atrevo-me a render-lhe homenagem e
a congratular-me de todo o coração, tanto mais que a Santa Sé e o ilustre Vigário de Cristo, que é guiado
pelo Espírito Santo, souberam escolher a pessoa mais capaz e activa para empreender a obra muito difícil,
mas muito importante, da evangelização de uma grande parte da África Central que desde há tantos séculos
se acha ainda nas trevas e sombra da morte.
O vicariato apostólico do Sara é um novo repto ao seu grande zelo de apóstolo, que estabelecerá uma no-
va era de salvação para os infelizes africanos. E isto constitui uma das maiores alegrias da minha vida, por-
que os seus esforços e os seus cuidados proporcionarão muita luz para encontrar pouco a pouco o meio mais
conveniente e prático de evangelizar os indígenas e as populações nómadas da África interior.
1723
Eu já tive a sorte de o ver algumas vezes com mons. Massaia e conversar consigo em Paris por ocasião da
sagração episcopal do bispo de Chalons; também tive a honra de lhe falar em Roma [...] seu apostolado de
Nancy e Toul. Porém, como não podia prever que se ia transformar em apóstolo da África, nunca aproveitei
a ocasião para o consultar sobre a pequena obra que empreendi para a conversão da Nigrícia. E quando o ano
passado promovi em Roma uma reunião de bispos, e, sobretudo dos chefes das missões africanas, fui procu-
rá-lo ao seu hotel em Roma e lamentei muito não o encontrar, porque no dia anterior tinha partido para Fran-
ça. Essa reunião tinha por objectivo concretizar a fundação dos dois primeiros institutos com base no meu
plano; de facto escolheu-se o Cairo, onde os fundei recentemente sob a protecção de mons. Ciurcia, arcebis-
po de Irenópolis, vigário e delegado apostólico do Egipto.
1724
Recomendo a minha obra às suas orações e desejo que se estabeleça um centro de comunicação entre nós,
no Coração de Jesus. É minha intenção informá-lo sobre o andamento da minha obra, a fim de que no futuro
possa obter luzes da sua experiência prática para melhor alcançar o objectivo de estabelecer a fé católica no
centro da África, que confina com a parte oriental do seu grande vicariato. Quero dar a V. E. notícias sobre o
estado actual da minha obra, que está ainda no seu início.
1725
Desde 1848 a 1861 tivemos trinta e nove missionários que percorreram a África Central entre os 23 e os 4
graus de latitude norte. Fundámos quatro estações: Schellal nos 23o, Cartum nos 15o, Santa Cruz nos 6o e
Gondokoro nos 4o Compusemos um dicionário e uma gramática em duas línguas e aprendemos a numeração
de mais de 20 línguas. Porém, morreram 32 missionários e eu mesmo estive onze vezes prestes a perder a
vida. Em seguida chamámos os franciscanos, que enviaram sessenta pessoas entre sacerdotes e leigos da sua
ordem; mas regressaram todos eles, à excepção de um que está em Cartum.
1726
Não creia, monsenhor, que se morre tão facilmente. Nós fomos os primeiros a ir até lá; a maior parte dos
missionários eram alemães, muito capazes, muito santos, mas queriam alimentar-se segundo o costume ale-
mão e isso é prejudicial naqueles países. Eu entendo que com prudência e as precauções necessárias se pode
viver lá, sobretudo no deserto, onde o ar é puro e saudável. Basta que se faça segundo o espírito católico e a
moderação e sobriedade que a Igreja nos recomenda e que são necessários para viver. Um dos nossos caros
companheiros, o P.e Pedemonte, um jesuíta napolitano de sessenta anos, esteve muito tempo em Cartum e
entre os Bari, nos quatro graus, até que o chamaram para Nápoles, onde vive ainda.
1727
A Propaganda, porém, vendo a morte de tantos missionários, entregou-se a uma séria reflexão. O card.
Barnabó encarregou-me de fazer um relatório sobre o estado da missão da África Central e de lhe propor um
Plano, mediante o qual expusesse os meus pontos de vista sobre a maneira de implantar o catolicismo naque-
las tribos centrais. Este Plano é geral, porque a própria propaganda é que devia efectuá-lo, uma vez que conta
com a influência e o poder de convidar congregações religiosas, etc.
1728
Como sistema prático e geral, este plano foi julgado muito oportuno por um grande número de bispos que
consultei e pelo próprio Papa, que o leu todo. Entre outras coisas, estabelece-se nele o princípio de encarre-
gar os vigários e os bispos que residem nas zonas costeiras das missões do centro para uma válida direcção
das mesmas, o que a Propaganda já começou a pôr em prática. Pela minha parte, na minha pequenez, fiz
nascer as obras seguintes, depois de ter rogado a mons. Canossa, bispo de Verona e a quem conhecia desde a
minha infância, que fosse chefe e presidente:
1.o Criou-se em Verona um seminário para as missões da África Central e a Obra do Bom Pastor para o
manter. Se Deus abençoar este seminário e nos for possível fundar outros, espero que possamos ser úteis
também ao seu grande apostolado.
2.o Fundei há pouco no Cairo um instituto para negros e outro para negras com algumas religiosas france-
sas. Estes funcionam muito bem e já converteram muitas almas, porque tenho dezasseis mestras negras que
conhecem quatro línguas e todos os lavores femininos. Algumas destas negras apresentámo-las o ano passa-
do ao Papa, que nos jardins do Vaticano passou duas horas com elas, assim como com mons. Castellacci, o
conde Vimercati e eu, que as acompanhávamos; permito-me enviar a V. E. umas fotos tiradas na altura. No
Cairo constatei que, sempre que alguma jovem negra pagã vê as minhas negras ou as ouve falar ou cantar na
igreja, pede para se tornar católica e eu já preparei e baptizei muitas este ano. O mesmo acontece com os
rapazes. Contudo, para escolher as pessoas que hão-de ser apóstolos dos outros, é melhor admiti-las de tenra
idade e então haverá mais garantias de sucesso.
1729
Como vê, monsenhor, a minha obra está ainda na sua infância. Recomendo-a às suas santas preces. Pela
minha parte, farei rezar todos os dias pela prosperidade de V. E. e pela sua grande obra. Pelo que pude com-
preender, estou convencido de que o senhor terá muito sucesso na generosa obra que empreendeu e que Deus
lhe confiou, porque com a graça de Deus nada lhe será impossível.
Enquanto me felicito consigo, peço-lhe perdão por ousar escrever-lhe esta carta e sinto-me honrado de lhe
beijar as suas santas mãos e de me subscrever com os mais profundos sentimentos de veneração e respeito

De V. E. hum. e devot.mo servidor P.e Daniel Comboni


Missionário Apostólico da África Central
Superior dos instos. de negros do Egipto

Apresenta-lhe os seus respeitos o barão de Havelt, de quem sou hóspede. Apenas esteja impresso em
francês, enviar-lhe-ei o meu Plano para Conversão...

Original francês
Tradução do italiano

N.o 272 (257) - A MARIE DELUIL MARTINY


AFCI, Berchem Anvers

Vive + Jésus!
Paris, 15 de Outubro de 1868

Muito venerável irmã,

1730
Por ocasião da minha viagem à Alemanha para intervir no Congresso Geral dos Católicos, celebrado em
Bamberg, falei muito da nossa estimada Guarda de Honra, procurando propagá-la, e distribuí todas as meda-
lhas e impressos que me deu a venerada primeira zeladora. No célebre Santuário de Nossa Senhora de Altöt-
ting há um magnífico convento das Damas Inglesas que é a casa-mãe de outros oito conventos espalhados
pela Baviera. Os conventos acolhem a elite das jovens da Alemanha e da Áustria e uma infinidade de alunos.
Agora eu acordei com a superiora geral implantar a Guarda de Honra em todas as suas instituições e nas
paróquias e dioceses onde se encontram. Esta veneranda superiora geral tem um zelo admirado e um espírito
eminentemente religioso. As regras desta congregação são as dos padres jesuítas.
Ela tem a seu lado uma irmã de notável santidade e bom senso, que conhece muitos idiomas e é como
francesa para a iniciativa de uma obra.
1731
Mas, para ter êxito nisto, é necessário que a senhora envie para Altötting tudo o que puder: medalhas,
quadros, livros, etc. Mande-os também em latim, para que a obra se enraíze entre os redentoristas e o piedoso
clero de Passau. Ao enviar para lá todos estes objectos, ponha-se em comunicação com o vigário. A senhora
irá fundar um posto de apostolado para a Guarda de Honra, que será muito do agrado de Jesus.
Esta é a direcção que deve pôr:

Rev.da Madre Maria Xavier de Königer


Directora e mestra de noviças
Convento das Damas Inglesas
Altötting (Baviera)

Como Loreto na Itália, Altötting é um dos primeiros santuários da Alemanha, onde chegam cada dia mais
de dois mil peregrinos. Aí haverá também quem propague a Guarda de Honra.
1732
Peço-lhe que reze e faça rezar por mim e pela nossa obra, porque tenho tantas cruzes que é um milagre se
eu conseguir continuar a viver. Porém, Jesus é omnipotente. E a Guarda de Honra constitui para mim uma
fonte de tanta força e alento que o Diabo ficará frustrado, porque é só por Jesus que trabalhamos. Além dis-
so, as mesmas terríveis cruzes que me oprimem são para mim o maior conforto, porque Jesus sofreu, Jesus é
uma vítima, Jesus escolheu a cruz, Jesus disse: «Os que semearem com lágrimas, colherão com alegria...».
Ah, esse coração bendito, que não bate senão pelas almas, que é uma vítima contínua e que foi ferido por
uma lança, é uma grande ajuda para nós... Ah, que feliz sou com as minhas penas! Tenho-as de todas as es-
pécies, no Egipto e na África Central, em Roma e em Verona e até na França. Porém, sou feliz porque na sua
Guarda de Honra o Sagrado Coração de Jesus me assiste poderosamente.
1733
Eis aqui traduzido em francês o que estou para escrever ao Card. Barnabó, prefeito da Sagrada Congrega-
ção da Propaganda Fide, o qual é meu chefe: «Deve saber, Eminência, que desde há algum tempo a cruz me
é tão amiga e tão continuamente próxima que a escolhi por estimadíssima esposa, até ao ponto de ter decidi-
do viver sempre com ela até à morte e, se fosse possível, na eternidade. Sabe, Eminência, que o Coração de
Jesus foi ferido pela lança na cruz, quando Ele estava morto e que essa lançada horrível trespassou o Coração
da nossa Mãe Maria; esse golpe de lança terá repercussões também na África.
1734
Pois com a minha cruz levei para a África a Guarda de Honra do Coração trespassado de Jesus, que talvez
V. Em.a não conheça, mas que terei a sorte de lhe dar a conhecer. Sabe que força proporciona ao meu espíri-
to esta Guarda de Honra na qual venero o Coração de Jesus e a ferida da lança? Ela dá-me a força de levar a
minha cruz com alegria, como se tivesse conseguido uma fortuna para as missões. E com a cruz, minha ca-
ríssima esposa e mestra de prudência e de sabedoria, com a Santíssima Virgem, minha querida Mãe, e com
Jesus, meu Tudo, não temo Eminência, nem as tempestades de Roma, nem as perseguições do Egipto, nem o
furor da Nigrícia, nem as nuvens escuras de Verona, nem Diabo do Inferno, porque sou o mais feliz dos ho-
mens e estou na situação mais desejável.
1735
Oh, o meu Jesus mostrou uma sabedoria profundamente divina quando, depois de ter criado o universo,
fabricou a cruz! Ora com a cruz, que é uma sublime efusão da caridade do Coração de Jesus, tornamo-nos
poderosos. Tenho um esclarecimento a fazer aqui e é que estou convencido de ser um grande pecador. Não
me envergonho nada de lhe confessar a minha insignificância, minha boa irmã, porque, por outro lado, pos-
suo um grande remédio. Uma vez que Jesus veio salvar os pecadores, veio salvar-me também a mim e, como
se digna dar-me a sua cruz, é o sinal mais certo de que me quer salvar. Veja a bondade do Bom Jesus! En-
quanto me dá tantas cruzes, faz com que realizem tanto bem os meus institutos, que há pouco fundei no
Egipto, junto à gruta da Sagrada Família.
Acaba de me chegar a notícia de que há uns dias três negras de vinte anos receberam o baptismo das mãos
dos meus missionários e que outras três estão à minha espera para que eu as baptize. Uma morreu com a
pagela da Guarda de Honra sobre o coração, três dias depois de ter sido baptizada.
1736
Reze, portanto, e mande rezar pela conversão das almas mais abandonadas da terra, os pobres negros da
África Central. Parece-me que, nestes tempos em que os cristãos conspiram contra o Senhor e o seu Cristo, o
Coração de Jesus deve derramar de modo redobrado o seu amor sobre os que estão ainda mergulhados nas
trevas e nas sombras da morte. Desejo enviar-lhe o meu Plano para a Regeneração da África, que sairá do
prelo dentro de poucos dias e que concebi no Vaticano no dia 18 de Setembro de 1864, enquanto assistia à
beatificação de Margarida Maria Alacoque. Na primeira edição de 1864 aparece escrito também o dia da
beatificação. Espero, pois, que a bem-aventurada me assista, dado que ela amava muito o Sagrado Coração
de Jesus.
Tenha-me presente nas suas orações e escreva-me. No meu regresso irei a Bourg. Viva Jesus no seu Sa-
grado Coração!

P.e Daniel Comboni.

Passei um dia em Bamberg, perto de Munique, no convento das Irmãs da Visitação, que me entregaram
uma jovem negra. Entre elas está implantada a Guarda de Honra. Peço-lhe que apresente os meus respeitos à
mui reverenda madre superiora.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 273 (258) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, a, c. 14/60

Sejam louvados J. e M. eternamente, ámen.

Paris, (22 Rue des Saints Pères)


15 de Outubro de 1868

Excelência rev.ma,

1737
Tardei em escrever porque estive ocupadíssimo; os assuntos em Paris prolongam-se e passei muitas noites
a velar, assistindo doentes de importância. Recebi cortês alojamento do il.mo barão de Havelt, protector da
Terra Santa e comissário pontifício para a Exposição Universal, o qual, para me ajudar, convida para almoçar
as personagens que me podem ser favoráveis, como Druin de Luís, o ministro da Marinha, o presidente da
Propagação da Fé, etc. Apesar disso, os afazeres são longos; eis os principais:

1.o Solicitar ajudas das seguintes obras:


a) Propagação da Fé
b) Santa Infância
c) Oeuvre des Ecoles d’Orient
d) Oeuvre Apostolique (objectos de culto)
e) Oeuvres des Tabernacles
o
2. Cartas de recomendação para o paxá do Egipto e outros mandatários influentes.
3.o Algum subsídio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dos fundos destinados ao Oriente.
4.o Passagens e transporte de provisões gratuitos a partir de Marselha.
5.o Sondar o terreno no instituto de África para ver que vantagens podemos obter.
6.o Carta especial de recomendação do ministro dos Negócios Estrangeiros, Moustier.
7.o Fontes de onde obter missas para V. E.
8.o Visita a alguns insignes benfeitores. Hic et nunc, quase todos estão no campo. Por isso, um pouco de
paciência.
1738
Antes de deixar a Baviera, explorei a adequada fonte no Ministério do Culto, para procurar obter alguns
milhares de missas de Altötting. O caminho a seguir, que me foi sugerido no dito ministério, é o seguinte: V.
E. deve escrever a mons. Henrique Hofstätter, bispo de Passau (Baviera), expondo-lhe que os seus missioná-
rios e grande número de sacerdotes da sua diocese, etc... tudo o que puder dizer... e pedindo-lhe que o autori-
ze a receber o ónus de sete ou oito

(P.e Daniel Comboni)


Carta incompleta.

N.o 274 (259) - A MADAME A. H. DE VILLENEUVE


AFV, Versalhes

Paris, 22 Rue des Sts. Pères


Mansão do barão de Havelt
20 de Outubro de 1868
Senhora,

1739
Não sei exprimir-lhe a alegria que me proporcionou com a sua estimada carta. Acaba de me chegar às
mãos com o resto da correspondência, pois havia muito que não passava pelo Hotel das Missões Estrangei-
ras, uma vez que estava alojado em casa do barão de Havelt.
A sua grande bondade incita-me a ir visitá-la, porque desejo vê-la a si, bem como ao sr. Augusto, meu es-
timado amigo, e exprimir-lhe o meu agradecimento por tanta bondade que teve para com o jovem Urbansky.
Recebi de Dresden notícias sobre o bem que fez a esse jovem; parece que os seus solícitos cuidados o salva-
ram da morte. A senhora cumula-me de bondade e eu sinto-me ingrato a seu respeito.
1740
Embora tenha saído do Cairo de improviso, contudo consegui juntar objectos da madre Rosa, muito inte-
ressantes para o nosso querido Augusto. À minha chegada a Alexandria, estava tudo partido, mas ainda con-
segui encher uma pequena bolsa de viagem. O conteúdo desta, por sua vez, sofreu na viagem à Alemanha, de
maneira que ficou pouca coisa. Pedi a Cartum (a dois meses de viagem do Cairo) uma colecção de armas dos
negros, porém, ainda não chegaram ao Cairo.
Hoje escrevi a Verona para que me mandem relíquias; este cofrezinho que tenho é para si. Agora estou
muito ocupado; quando ficar livre, irei a sua casa. Espero que para essa altura esteja terminada a impressão
do meu Plano, que está a ser feita em Paris, para lhe levar alguns exemplares.
Muitas saudações a Augusto e a Désiré, etc., do

Seu afmo. P.e Daniel Comboni


Original francês
Tradução do italiano

N.o 275 (260) - A AUGUSTO DE VILLENEUVE


AFV, Versalhes

Paris, 20 de Outubro de 1868


Breve nota

N.o 276 (1150) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


AGCR, 1964/54

Paris, 20 de Outubro de 1868


1741
Se os camilianos têm uma missão que antepõem ao seminário de Verona, a qual implica “non quaero glo-
riam meam sed eius qui misit me”, eu tenho anualmente, fixos, dez mil francos, mais o que consigo arranjar.
Cedo cinco mil deles (com o compromisso de conseguir outros tantos) aos camilianos, desde que sejam satis-
feitos os desejos do meu caro Estanislau.

P.e Daniel Comboni

N.o 277 (261) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, C. 38/10

Paris, 21 de Outubro de 1868

1742
Aproveito esta ocasião para lhe enviar os meus respeitosos e filiais cumprimentos. No nosso estimado P.e
Calisto encontramos um homem que busca unicamente a glória de Deus, a salvação das almas e a verdadeira
honra da ínclita ordem trinitária, à qual, tendo cessado a escravidão dos cristãos, compete uma parte do apos-
tolado dos negros.
Quanto às diligências que se deverão realizar com a Propaganda, o vigário apostólico do Egipto e os fran-
ciscanos, para ajudar a ordem trinitária a participar no importantíssimo apostolado da África Central, estuda-
remos e examinaremos as coisas com serenidade, em Verona, após vermos os resultados do actual pleito com
os camilianos.
1743
Entretanto, confiemos em Deus e n’Aquela que V. E. Rev.ma teve a honra de ser o primeiro a proclamar
Rainha da África e receba a afectuosa expressão deste seu filho que lhe é todo devoto

P.e Daniel

N.o 278 (262) - A CLAUDE GIRARD


AGB

Paris, 31 de Outubro de 1868

Meu caríssimo amigo,

1744
Espero que venha a Paris e que me escreva antes de ir a Orleães. Saúdo-o afectuosamente, rogando-lhe
que apresente os meus respeitos à senhora Girard e aos seus queridos filhos. Se me escrever, dirija as cartas
para «22 Rue des Saints Pères», onde estou alojado.
Depois de amanhã sairá da encadernação o meu Plano; metade já foi publicada no Apostolat. Se vier, será
para mim como que ressuscitar. Não voltei a receber a sua publicação. Adeus, meu amigo, até à vista. O nos-
so querido e estimado P.e Calisto é um amigo do tipo do rev.do Girard, quer dizer, incomparável; prestou-me
muitos serviços. Adeus.
Do Cairo, boas notícias: baptismos, etc.
O P.e Zanoni, graças a Deus, foi-se embora. Fez mal, mas não importa nada.
A caixa com o ostensório já chegou ao Cairo.

P.e Daniel Comboni

N.o 279 (263) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/64
Louvados J. M. eternamente. Ámen

Paris, início de Novembro de 1868

Excelência rev.ma,

1745
Qui confidit in Domino non confundetur. A Propagação da Fé de Lião e Paris atribuiu-me definitivamente
ontem a quantia de cinco mil francos, a levantar imediatamente em Lião. Comunicaram-mo esta manhã Ni-
colas, Cochin e o octogenário presidente, que me leu o relatório do Conselho de Lião e a carta do Em.mo
card. Barnabó, o qual recomendou de modo especial a nossa obra e P.e Comboni. Isto é uma graça extraordi-
nária de Deus e um sinal de que é Ele quem actua e não o homem. Deus põe remédio aos meus desatinos
com a sua graça. Todos os membros de Lião e Paris tiveram comigo especiais mostras de atenção: nunca dão
dinheiro a não ser na distribuição geral de Maio, nem concedem importâncias em dinheiro de forma imediata
a não ser aos vigários e prefeitos apostólicos. Como os pagamentos destinados à África são feitos pelo caixa
de Lião, será lá que levantarei o dinheiro. Sou levado a esperar que a dotação para o próximo ano venha a ser
maior. Bendigamos ao Senhor e contemos sobretudo com a Providência de Deus, mesmo quando parece
estarmos abandonados. Agora já não temo a falta de meios.
1746
Além disso, a Obra do S. Sepulcro atribuiu-me quinhentos francos. O ano que vem receberei mais. Por
outro lado, estou a organizar um comité de senhoras e amanhã, às quatro, serei recebido pela princesa Clotil-
de, à qual talvez rogue que seja a presidente: é o momento oportuno, agora que o príncipe Napoleão está em
Inglaterra.
É provável que consigamos formar um comité masculino em Paris. Porém, antes é preciso estudar a sus-
ceptibilidade da Prop. da Fé, cujos conselheiros não querem que lhes façam sombra.
1747
Encarreguei monsieur l’abbé Cloquet, director do Apostolado, de formar um conselho diocesano da Obra
do B. Pastor e aceitou. Só me disse que o nome não agrada em França, porque com esta denominação aqui só
se pensa num comité para socorrer mulheres perdidas.
Amanhã chegará a Paris Mr. Girard. Escreveu-me ontem à tarde de Orleães, dizendo-me que virá com o
superior dos gregos de Constantinopla e acrescentava: «Tachez de nous faire admettre à votre table chez Mr.
le baron du Havelt, ou vous êtes logé». Veremos.
1748
Conviria que V. E. Rev.ma respondesse ao P.e Calisto, dizendo-lhe que quando eu for a Verona se falará
sobre a maneira de atender os seus desejos e que V. E. ficaria feliz e contente de cooperar na introdução da
ínclita ordem trinitária no apostolado dos negros. Acrescente ao mesmo tempo que, tendo ouvido de P.e
Comboni que ele entregou muitas esmolas de missas (500), lhe pede que se ocupe deste assunto, porque tem
centenas de sacerdotes sem esmolas. O P.e Calisto, só através das freiras trinitárias de França, poderá arran-
jar a V. E. bastantes milhares delas. Já lhe recomendei isto. Porém, tem mais força a petição de V. E., de
quem espera ser favorecido nos seus desejos africanos.
Espero subsídios também da Santa Infância e da Obra das Escolas do Oriente. Muito grande é o bem que
o meu caro barão de Havelt me está a fazer e seria meu desejo que, quando V. E. me escrevesse, tivesse ex-
pressões de agradecimento para com ele, porque convida ministros e outras importantes personagens só para
me ajudar.

Seu indigmo. filho


P.e Daniel

Mando-lhe o opúsculo que elaborou o Apostolado. Esta tarde receberei cartas do Egipto. Saudações ao
marquês Octávio, etc.

N.o 280 (264) - A MONS. LUÍS CANOSSA


ACR, A, C. 14/61

Paris, 13 de Novembro de 1868


Festa de St.o Estanislau Koska

Excelência rev.ma,

1749
Mme. Terèse, a quem vi ontem e que se encontra muito bem, manda que lhe apresente os seus respeitos.
Saúda a marquesa Clélia e toda a família. É zeladora da nossa obra nas Damas do Sagrado Coração. É uma
alma que reza.
1750
Enquanto nós invocamos a ajuda do céu para a obra de África, o Senhor quer a nossa cooperação. Sua
Eminência o cardeal Barnabó, com a sua famosa circular, tornou ineficaz a nossa carta manuscrita do Santo
Padre e declarou ilegítima a nossa actuação. Além do mais, baseou-se no falso princípio de que a Obra do
Bom Pastor serve para manter os institutos do Cairo e deu a entender que o fundamento da sua proibição
reside nos conselhos da Propagação da Fé. Sem muitas explicações, por amor à brevidade, anuncio-lhe o
facto que estou a pôr em execução e que paralisa os esforços do cardeal. Nós fazemos isto pelo bem da Áfri-
ca e por respeito ao Papa, que com pontifício documento manuscrito concedeu indulgências à obra.
1751
Estou a criar em Paris um comité com as personalidades católicas mais distintas de França, que tem como
finalidade recolher esmolas para o seminário de Verona e para outros que viermos a fundar. Pertencem a este
comité três dos mais distintos e activos membros do conselho da Propagação da Fé de Paris e são:
Mr. Baudon, presidente das Conferências de S. Vicente de Paulo;
Mr. Cochin, do Instituto e Academia de França;
Mr. Nicolas (Augusto), conselheiro da corte imperial e autor dos Etudes Philosoph.
Estes aceitaram e aderiram também:
O barão de Havelt, em cuja casa estou hospedado, o qual é fundador da Obra da Peregrinação à Terra
Santa e comissário pontifício para a Exposição Universal;
Mr. Faugère, ministro plenipotenciário e director do Ministério dos Negócios Estrangeiros;
Mr. le Cte. de Courcelles, antigo embaixador francês em Roma;
Mr. le prince Boglie, da Academia Francesa;
Mr. le Cte. de Mèrode, irmão de Mgre;
Mr. le Cte. de Segur, irmão de Mgre;
Mr. de Valette, cónego de Notre Dame de Paris;
Mr. de Reineval, vigário na Madalena e irmão de um antigo embaixador em Roma;
1752
Mr. Edmond Lefont, presidente do Óbolo de São Pedro.

Tenho outras personalidades e membros do clero. Eu sou da opinião de não dizer nada a Roma deste co-
mité, nem sequer depois de estar fundado (coisa de uma ou duas semanas). Depois convém que V. E. lute
com as armas de que dispõe; e no caso de o cardeal triunfar (o que me parece impossível), a existência do
comité de Paris, composto de homens da máxima categoria, será a arma que decidirá a vitória. Não me alar-
go a expor as múltiplas razões pelas quais é útil este comité.
1753
Recebi de Viena uma carta esplêndida e muito afectuosa do duque de Modena, na qual me diz palavras de
encorajamento.
Estabeleci estreitas relações com Carlos VII e com a sua esposa, filha da duquesa de Parma. Se subir, co-
mo espero, ao trono de Espanha, bom para a África. Visito amiúde estes dois devotíssimos jovens.
Espera a aprovação e bênção de V. E. Rev.ma

O seu hum. e indigmo. filho


P.e Daniel Comboni

Por respeito ao cardeal, não consenti que o Apostolat publique o decreto de erecção canónica do B. Pastor
sem a sua prévia autorização.

N.o 281 (265) - A MADAME A. H. DE VILLENEUVE


AFV, Versailles
Paris, 22 Rue des Sts. Pères
15 de Novembro de 1868

Senhora,

1754
Logo que recebi a sua carta, embora estivesse muito ocupado, andei de Herodes para Pilatos, de Anás pa-
ra Caifás, para obter informações sobre Conrad e cumprir assim o que a sua eminente caridade me tinha or-
denado. Porém, enquanto fazia isto, eis que chega o “lupus in fabula”, ou seja, o polaco. Encontro-o muito
bem de aspecto, porque está bem alimentado e repousado.
1755
Disse-me que encontrou em si uma verdadeira mãe e que recebeu muito de si, de Augusto e de Désiré.
Em todo o caso, teria gostado que ele tivesse seguido em tudo os seus maternais conselhos, tanto mais que
Augusto o estima muito. Mas a juventude é sempre juventude. O medo de perder o ano – diz ele – fê-lo deci-
dir vir a Paris, o que não creio, porque no que se refere à escola, tenho todos os conhecimentos possíveis.
Como estou muito ocupado, não pude ir recebê-lo e ver bem as coisas, uma vez que tem uma óptima saúde.
Contudo, não terei palavras suficientes para lhe agradecer tanta bondade que teve para comigo. Seria meu
desejo ficar um ano a seu lado e ocupar-me com afecto do meu caro Augusto, comunicando-lhe tudo o que
possuo de talento e ciência; mas, ai, impõe-se o meu regresso ao Egipto. Só poderei passar consigo alguns
dias. Todavia, vou estabelecer o centro da minha obra em Paris e espero no futuro vir a ficar frequentemente
em sua companhia.
1756
Vou fundar em Paris um comité de damas patrocinadoras e é meu grande desejo que a senhora e Maria
façam parte dele. Diga-me, por favor, até que dia vai ficar fora de Paris. Dê-me notícias suas e dos seus esti-
mados filhos. Eu vou enviar-lhe uns opúsculos.
1757
Estou ainda na sua quarentena de orações. No oitavário dos defuntos celebrei uma missa pelo seu querido
esposo. Se vir a Senhora de Poysson, apresente-lhe os meus respeitos.
Expressando-lhe todo o meu agradecimento e sentimentos de grande afecto, tenho a sorte de me declarar

Seu devotíssimo P.e Daniel Comboni

Madre Emilie está muito bem. Escreveu-me recentemente.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 282 (266) - A AGUSTIN COCHIN


APFP, Boîte G-84

Paris, 26 de Novembro de 1868


Senhor,

1758
Acabo de acusar a recepção da carta através da qual o senhor teve a honra de me informar do que se falou
a respeito da minha obra na última reunião dos membros da Propagação da Fé. Estou-lhe infinitamente agra-
decido. Permita-me que lhe exponha sobre o assunto algumas observações.
Quanto à revista do sr. Cloquet, tinha-me sido dada uma ideia favorável e, por isso, não pensava que a
publicação desagradasse à Obra da Propagação da Fé. Se confiei ao Apostolat a publicação do meu Plano
para a Regeneração da África, foi unicamente por razões económicas, para não ter a meu cargo os gastos da
impressão; porém, nunca tive a intenção de fazer do Apostolat o órgão da minha obra em Paris. Pelo contrá-
rio, seria para mim um prazer e um dever de gratidão dar, seja aos Annales seja ao Journal des Missions
Catholiques, a informação sobre a missão da África Central e sobre os meus institutos do Egipto.
1759
No que toca à formação de um comité em Paris, houve certamente um mal-entendido sobre as atribuições
e o objectivo que deveria ter. Pensou-se que estaria destinado a criar recursos para as missões da Nigrícia
interior e para os meus institutos da África; porém, o certo é que a sua finalidade é somente proporcionar à
minha obra em Paris uma casa onde possa reunir e formar pessoal francês destinado a participar na minha
missão. Algo parecido ao já existente em Verona, onde a Obra do B. Pastor, abençoada e louvada pelo Papa
Pio IX e dirigida por mons. o bispo de Verona, sustenta, com as esmolas que recolhe, um seminário para os
nossos missionários italianos. Uma casa similar é verdadeiramente indispensável em Paris, tanto por causa
das minhas relações com o Governo francês, cuja influência é tão grande no Oriente, como por se encontra-
rem em França mais facilmente pessoas que se dediquem às missões.
1760
Julguei não poder contar, para esta fundação, com a Propagação da Fé, porque me tinham dito que os seus
recursos estavam exclusivamente destinados às missões estrangeiras. Porém, se tiver a certeza de me ter en-
ganado nisso, renuncio desde este momento e para sempre a preocupar-me eu mesmo, tanto do sustento do
meu seminário de Verona como da fundação do de Paris. Quanto ao mais, a verdade dos meus sentimentos é
que, com a formação do comité em questão, não queria, de nenhuma maneira, desgostar a Propagação da Fé;
tanto é assim que me dirigi precisamente às pessoas que já fazem parte do conselho desta obra capital, que
me obrigarei sempre a apoiar e fomentar eu mesmo, como já fiz no passado.
1761
Não empreenderei nunca nada sem previamente me ter dirigido ao conselho da Propagação da Fé.
Ficar-lhe-ei muito reconhecido, senhor, se, a todos os actos de bondade que lhe devo, acrescentar o de
querer fazer-se intérprete dos meus devotos e respeitosos sentimentos para com todos os membros da Propa-
gação da Fé.
Aceite, senhor, as expressões do mais profundo respeito de quem com todo o seu agradecimento se honra
de declarar-se

Seu devoto servidor


P.e Daniel Comboni
Missionário Apostólico
Original francês
Tradução do italiano

N.o 283 (267) - À OBRA DA SANTA INFÂNCIA


AOSI, Parigi

Paris, 29 de Novembro de 1868

Aos sr.os membros do comité da Santa Infância

Senhores,

1762
A benevolente colaboração que os senhores prestam aos missionários dedicados à educação dos meninos
nos países infiéis encoraja-me a expor-lhes quais são, neste aspecto, a situação e as necessidades da minha
missão.
1763
Consagrado desde há doze anos ao apostolado na África Central, para alcançar esse objectivo, tive que
fundar, primeiramente no Cairo, com a autorização da Propaganda, dois institutos, onde os jovens negros,
rapazes e raparigas, são educados nos princípios da fé católica, após o que passam a converter-se em úteis
auxiliares para a conversão dos povos do Centro da Nigrícia.
Este sistema, que apresentei a Sua Santidade Pio IX e a um grande número de bispos e de superiores de
missões africanas, foi considerado o único capaz de conseguir a salvação dos nativos da África Central.
1764
O instituto para rapazes fundado no Cairo é dirigido por quatro missionários do meu seminário de Verona
e conta, no momento, com uma dezena de alunos.
O instituto para raparigas, sob a direcção das Irmãs de S. José da Aparição, de Marselha, e de muitas mes-
tras negras já formadas no Insto. Mazza, de Verona, tem na actualidade 17 alunas. Estas fizeram já progres-
sos notáveis na piedade e na instrução e cultivam com sucesso todos os lavores próprios do seu sexo, a fim
de chegarem a ser boas donas de casa.
1765
Os meninos que educamos representam para nós um grande encargo financeiro, tanto para os comprar
como para os educar e manter. Às vezes, encontramo-los fracos e doentes, elanguescendo nos caminhos ou
nas encruzilhadas; porém, não duvidamos tomá-los a nosso cargo, porque fundámos junto de cada um dos
mencionados institutos uma enfermaria e uma farmácia, tendo aprendido que a caridade com os doentes é um
poderoso meio de ganhar almas para Cristo. Os senhores compreenderão facilmente quão gravoso é o fardo
que com eles assumimos e quão grande é a necessidade de sermos socorridos.
Por outro lado, ao dirigir-lhes esta petição, eu não sou mais que o intérprete das intenções de mons. Ciur-
cia, vigário e delegado apostólico do Egipto e encarregado «ad interim» da direcção do vicariato da África
Central, o qual quis entregar-me para este fim uma carta de recomendação.
1766
À medida que a minha obra se desenvolve, como tenho todas as razões para esperar, chamarei em minha
ajuda sucessivamente outros religiosos franceses, pois pude verificar a especial aptidão das gentes da sua
nação para as obras de apostolado. Para terminar, senhores, desejo salientar-lhes que do sucesso dos dois
institutos, pelos quais tive a honra de a vós me dirigir, depende sem dúvida a conversão de um bom número
de tribos da África Central. E estou certo que esta oportunidade de procurar a glória de Deus e a salvação das
almas vai levá-los a atender aos desejos deste que, cheio de esperança na sua caridade, tem a honra de se
dizer

Dos senhores hum. servidor


P.e Daniel Comboni
Missionário Ap. da África Central
Superior dos instos. de negros do Egipto

Original francês
Tradução do italiano

N.o 284 (268) - A UMA SENHORA ESPANHOLA


ACR, A, c. 15/139

Paris, 22 Rue des Saints Pères


3 de Dezembro de 1868

Estimadíssima senhora,

1767
Embora não tenha o prazer de a conhecer pessoalmente, sei quão bons são os seus sentimentos religiosos
e a sua proverbial generosidade, pelo que tomo a liberdade, que me quererá desculpar, de lhe escrever esta
carta para pedir em favor duma obra essencialmente católica, a regeneração da África e a propagação da
nossa santa religião naquelas vastas regiões, uma esmola, que Deus prometeu “recompensar generosamente”
quando se dá por seu amor.
1768
Trata-se de salvar milhares de almas e Santo Agostinho assegura que “quem salva uma alma salva a sua”.
Que recompensa maior haverá?
O Santo Padre abençoou repetidamente esta obra e ajudou com seus limitados recursos, concedendo, por
outro lado, aos seus benfeitores graças e indulgências.
1769
Pobre por vocação e por necessidade, sacrifico toda a minha existência para socorrer os meus irmãos em
Cristo. E como sacerdote missionário da África Central, que conhece as necessidades daquela nascente soci-
edade cristã, suplico ao seu benevolente e caritativo coração que se interesse por tantos infelizes que jazem
mergulhados nas trevas e na mais horrenda idolatria.
1770
Nunca teria querido incomodá-la. Mas, sabendo quão bondosa e compreensiva é perante as desgraças
alheias, estou certo que não permanecerá insensível diante dos males dos infelizes africanos; males tanto
mais graves quanto podem ser eternos, se a caridade cristã não proporcionar os missionários e os meios para
os resgatar, convertendo-os em seres felizes que eternamente bendirão os seus generosos benfeitores católi-
cos.
Desculpe esta liberdade que tomei e considere-me seu reconhecido e afectuoso servidor e capelão

S. M. B.
e
P. Daniel Comboni

Original espanhol
Tradução do italiano

N.o 285 (269) - A MADAME A. H. DE VILLENEUVE


AFV, Versailles

Paris, 5 de Dezembro de 1868

Caríssima senhora,

1771
Anteontem recebi a sua estimada carta. Quantas coisas teria para lhe dizer! A mais agradável é que sei
que no dia 12 ou 13 a senhora chegará a Paris e eu estou decidido a esperá-la. A ideia da minha viagem a
Quimper e a Prat-en-Raz, no meio de tantas ocupações como tive, fazia-me estar indeciso, pois ir teria sido
um prazer imenso; porém, agora sinto-me feliz, porque dentro de uma semana terei a sorte de a ver aqui.
1772
O Egipto espera-me, porém, eu espero a senhora De Villeneuve, o meu amigo Augusto e os seus estima-
dos filhos, aos quais quero muito bem; se tivesse feito a viagem a Prat-en-Raz, ficaria com remorso pelo
gasto, porque, em consciência, não me é permitido gastar um centavo para o meu próprio prazer. Ainda as-
sim, eu teria ido a Prat-en-Raz, caso a senhora não viesse a Paris.
1773
No tocante a Urbansky, falaremos pessoalmente. Ele fez uma grande asneira ao deixá-la a si e ao Augus-
to. E, com muita razão, está arrependido, agora que lhe disse umas quantas coisas, de forma paternal, mas
com clareza. Quando a senhora me pediu que falasse com o seu médico e com os seus superiores do colégio,
fui a todo o lado. Apesar do muito esforço que despendi para obter notícias do patronato, do colégio, etc.,
não pude encontrar as pessoas que tinha de consultar. Neste momento ele chegou a Paris, porém, parece-me
que já não tem o bom aspecto que apresentava quando veio da outra vez. É ainda um rapaz que não reflecte o
suficiente, embora seja um bom rapaz. Eu arranjei-lhe um confessor, pois quase não frequenta os sacramen-
tos; parece que se submete.
1774
Quando a senhora pensar em seu caro esposo, não deve ter nunca essas ideias que exprime. Tenha em
conta que a misericórdia de Deus é infinita e que é impossível que ele não tenha encontrado graça junto de
Deus, depois de tantas orações e tanta entrega por parte da senhora, que foi uma esposa admirável e é uma
mãe como nunca encontrei outra igual na Terra. Deus é caridade. A cólera de Deus transforma-se em doçura
perante a caridade.
1775
Creio que Deus – estou disso convencido – teve em conta a sua caridade e a admirável abnegação que te-
ve para com ele, antes e depois da sua morte. Pense que seu marido era um homem excelente, que honrava a
sociedade; era um homem honesto. A sua única falta era não ser praticante, que pode ter sido devido à sua
educação ou a estar mergulhado nos negócios. Porém, sei que foi um homem caridoso e que fez bem ao pró-
ximo. Portanto esta virtude não pode ficar sem recompensa. Além disso, mediante o matrimónio cristão, o
homem torna-se um só ser com a mulher e, como a senhora fez muito bem antes e depois da sua morte, acho
nisto uma razão a mais para esperar na misericórdia de Deus. Confie, pois, no bom Deus, na certeza de que
teve compaixão de seu esposo. Continue a rezar por ele, esteja calma e consagre todos os meses de Novem-
bro da sua vida em seu sufrágio, porque é um mês de graça e de misericórdia.
1776
Quanto às indulgências da Grã-Cruz de Jerusalém, se a senhora tiver o crucifixo, pode ganhar indulgência
plenária cada vez que fizer a via crucis. Às relíquias não está ligada nenhuma indulgência. Todos os objectos
que tocaram no Santo Sepulcro de Jerusalém – asseguraram-me os padres da Terra Santa – têm indulgência
cada vez que se beijam, na condição de se estar confessado e se ter ido à comunhão, etc. E sem dúvida há
indulgência plenária em transe de morte. De resto, para assegurá-la de tudo, escrever-lhe-ei mais adiante,
quando tiver consultado a pagela das indulgências de Jerusalém.
1777
Há muito tempo que não recebo cartas da princesa Maria, ou seja, desde 8 de Novembro, altura em que
me dizia que tinha estado doente. Se não lhe escreveu, é sinal de que não recebeu a sua carta, pois tem-lhe
muito afecto e estima. Portanto escreva-lhe, pois agrada-lhe muito receber as suas cartas e fale-lhe de Augus-
to e da senhora Maria. Hoje mesmo vou escrever-lhe de si. Peço-lhe que apresente os meus respeitos à sra.
Poysson, que gostaria muito de voltar a ver.
1778
Espero com impaciência a vossa chegada a Paris. O Augusto ou a senhora sejam tão amáveis que mo fa-
çam imediatamente saber: irei imediatamente à estação ou a sua casa.
Reze por meu pai, que está doente. Ele retribuirá a suas orações, porque desde há muitos anos reza oito ou
nove horas por dia. É um homem justo e um pouco escrupuloso: todo ao contrário do seu filho.
Aceite a minha expressão da mais elevada estima e afecto.

P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 286 (270) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/62

V. J. M. J.
Paris, 14 de Dezembro de 1868
16 horas

Excelência rev.ma,

1779
Sicut placebit Domino ita fiat: sit semper nomen Domini benedictum. Acabo de receber neste momento
um telegrama concebido nestes termos: «Dalbosco não viverá, temo, até à noite. Responda. – Tommasi».
Ontem chegou-me uma carta anunciando-me que meu pai está gravemente doente há trinta e seis dias. A isto
acrescente as muitas cruzes que a bondade de Deus se compraz em mandar-me. O nosso querido Jesus é
muito bom: é um convite verdadeiramente amoroso que nos move a amá-lo de verdade. Não tenho palavras
para agradecer devidamente a Deus e não só porque estou confuso, mas muito confuso.
1780
Se P.e Dalbosco partisse para o Paraíso (coisa que sinto como certa), como faremos para acertar a condu-
ção dos assuntos do pequeno seminário de Verona? Enfim, monsenhor e meu pai veneradíssimo, lancemo-
nos nos braços de Jesus, que tem muita caridade, talento e sabe conduzir bem as coisas: sit nomen eius bene-
dictum in saecula.
1781
Eu estou a organizar a minha ida a Verona: obtive bilhete gratuito para mim desde Susa a Verona e para
oito desde Verona a Génova. Espero conseguir o bilhete de Paris a S. Michel e do Mónaco, Nice e Marselha
para o grupo. Além disso estou certo de que o Ministério dos Negócios Estrangeiros me irá conceder passa-
gem gratuita de Marselha a Alexandria; porém, ainda não pude deixar isto resolvido, por o ministro se en-
contrar em Compiègne. A minha ideia é esperar por ele, ir a Lião receber os cinco mil francos, passar por
Turim para falar com D. Bosco... e correr a Verona. Se V. E. considerar que devo alterar este plano, é só
indicar-mo e seguirei as suas estimadas ordens.
1782
Quanto ao mais, confiemos em Jesus: estou imensamente feliz por Ele me honrar com tantas cruzes, pois
são preciosos tesouros da sua divina graça. Assim como nós trabalhamos para a conversão das almas mais
abandonadas da Terra e tentamos trabalhar unicamente para fazer a sua divina vontade, seja sempre bendito
Jesus in prosperis et adversis, nunc et in saecula.
Se o Senhor nos deixar com vida o nosso P.e Alexandre, bendizê-lo-emos; se chamar para o Paraíso esta
alma eleita, teremos mais um advogado no Céu.
Beijo-lhe as sagradas vestes e declaro-me nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria

Seu hum. e indigmo. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 287 (271) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/63

Louvado J. e M. eternamente. Assim seja

Paris, 20 de Dezembro de 1868

Il.mo e rev.mo monsenhor,

1783
Tivemos uma grande perda; mas não perdemos Jesus e portanto possuímos tudo. Até a própria perda é
talvez uma conquista, porque P.e Alexandre Dalbosco, que foi um santo, lá do alto dos Céus rogará ao dador
de todo o bem e com a sua intercessão ajudar-nos-á na grande luta. Dominus dedit, Dominus abstulit...sit
nomen Domini benedictum.
1784
Eu com certeza dentro de três ou quatro dias parto de Paris. Já apresentei saudações a Mme. Terèse, que
se encontra muito bem. Descobri uma diocese que dispensa 20 mil missas ao ano: é Nimes. O bispo foi aluno
dos cartuxos de Lião, cujo superior, membro desde há trinta anos da Propagação da Fé de Lião, é meu ami-
go: alojo-me em sua casa. Procurarei pressioná-lo para que lhe mande muitas missas.
De Lião irei a Turim e a Verona.
1785
Qualquer que seja a embrulhada em que nos encontremos, ponhamos toda a confiança em Deus e na Rai-
nha da África. Homens e dinheiro, dinheiro e homens, são duas coisas de absoluta necessidade. V. E., mon-
senhor, por meio da pastoral, eu a bordo de comboios e barcos, cruzando países e oceanos, encontraremos
dinheiro e homens. Paciência, confiança, ânimo e constância, nos Corações de Jesus e de Maria, far-nos-ão
implantar a obra e salvar grande número de almas. A rainha de Espanha recomendou-me a sua filha e o con-
de de Girgenti, que irão ao Egipto. Eu planeei-lhes a viagem.
1786
Na minha dor pela morte de P.e Alexandre tenho um grande conforto: o de ver que Jesus me manda cru-
zes. Se todas as obras de Deus foram fundadas na cruz, pretenderemos nós fundar a da África de vento em
popa?... Não; beijemos a cruz e confiemos em Jesus.
Beijo-lhe as sagradas vestes; receba todo o coração do

Seu indigmo. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 288 (272) - O PLANO


APFP

1868
Edição francesa.

N.o 289 (273) - À SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 17 (1869), pp. 20-61

1868
NOTÍCIAS BIOGRÁFICAS
dos missionários, irmãs e professoras negras
da expedição de P.e Daniel Comboni ao Egipto para a fundação
de escolas para os negros no Cairo no ano de 1867
João Baptista Zanoni
1787
Zanoni é filho de uma família muito respeitável e abastada de Verona, onde nasceu no ano de 1820. Na
sua juventude dedicou-se aos estudos e no ensino secundário adquiriu bons conhecimentos da literatura itali-
ana e latina; mais tarde, porém, inclinou-se para a mecânica e a hidráulica, ramo a que se dedicou com muito
empenho. Nela se exercitou por vários anos na sua cidade natal e adquiriu tal perícia que o seu nome se tor-
nou rapidamente conhecido até ao ponto de ser considerado, depois do famoso professor Avesani, seu mes-
tre, como o primeiro nessa arte. Foi ele quem, em 1838, mostrou pela primeira vez ao Imperador Fernando
da Áustria um modelo de máquina ferroviária a vapor, para a qual tinha inventado um novo condensador, o
qual acumulava uma considerável quantidade de vapor – que sem ele se perderia –, a fim de proporcionar
maior energia à locomotiva. A invenção valeu a Zanoni uma menção de honra por parte do imperador e uma
medalha de mérito na Exposição de Veneza. Mais tarde, teve também a satisfação de ver introduzido o seu
condensador em vários países da Europa, especialmente na Inglaterra.
No ano de 1844 voltou-se para o estado religioso, entrando na Ordem de S. Camilo de Lelis, chamada dos
Clérigos Regulares Ministros dos Enfermos. Tinha intenção de se dedicar ao cuidado dos doentes como sim-
ples irmão leigo, porém, os superiores reconheceram logo nele um homem de talento e cheio de autêntica
piedade e persuadiram-no não só a continuar os seus estudos literários mas também a que encetasse os estu-
dos filosóficos e teológicos com vista a tornar-se sacerdote. Nos anos de 1850-1851, ele e eu estudámos jun-
tos teologia dogmática no seminário de Verona, onde ocupávamos o mesmo banco. Eu sentava-me a um lado
de Zanoni e no outro ficava o piedoso P.e Ângelo Melotto, que mais tarde, como missionário na África Cen-
tral, visitou comigo as tribos dos Kich e Eliab no Nilo Branco e morreu em Cartum nos meus braços. Foi
naquela época que Zanoni teve a ideia de ir para a África para se dedicar à conversão dos negros e abriu a
sua alma àquele venerável e sábio missionário, agora falecido, a quem estimava com especial afecto.
1788
No tempo em que exerceu o ministério sacerdotal no convento, Zanoni não descurou a sua velha especia-
lização, a mecânica e o que lhe é afim, nem a arquitectura e a pintura, às quais se dedicara com muita dili-
gência enquanto leigo; e como passava a maior parte do tempo nos hospitais que estavam a cargo dos irmãos
da sua ordem, entregou-se também aos estudos científicos e práticos da medicina, cirurgia e farmácia, nas
quais, através de um vasto exercício, fez muitos progressos. Além disso é experiente também na agricultura e
não lhe são estranhos muitos ramos de artesanato: é um hábil fundidor, ferreiro, relojoeiro, pedreiro, carpin-
teiro, etc. E é extraordinariamente activo. Como eclesiástico, mostra-se bom pregador, excelente religioso e
muito hábil enfermeiro. Domina as línguas italiana, latina e francesa e agora anda a estudar árabe.
Em diversas ocasiões, os seus superiores deram-lhe cargos importantes. Assim, foi director espiritual em
vários conventos, em 1858 foi nomeado prefeito do convento camiliano de Mântua e em 1862 foi enviado a
Roma para tomar parte na eleição do superior geral da sua ordem.
1789
Era ainda prefeito do convento de Mântua, quando, por meio da diabólica lei do 7 de Junho de 1866, se
suprimiu a sua ordem. Este foi o motivo pelo qual, após conhecer o nosso Plano para a conversão da África,
solicitou insistentemente autorização à Santa Sé para se dedicar a esta obra, para a qual ele sentia inclinação
desde o início da sua vida religiosa. Com grande júbilo da sua alma obteve a referida autorização, que lhe foi
concedida mediante despacho de 7 de Julho do mesmo ano.
Onde quer que tenha estado, deixou notáveis mostras de todos os ramos do seu saber: em Verona, em Pá-
dua, em Veneza, em Mântua e finalmente em Marselha. Entre elas há a mencionar: a Igreja de Nossa Senho-
ra (Auxilium Christianorum); S. Julião, em Verona; o coro e outros elementos pertencentes à Igreja de Santa
Ana, no asilo de velhos e pobres de Pádua; dois modelos de máquinas a vapor com o condensador, na Aca-
demia de Ciências de Veneza; o convento e a capela de S. José, em Mântua, com vários quadros e esculturas
e um magnífico projecto para a construção de um hospital, preferido a todos os outros e premiado pelo muni-
cípio; por fim, o orfanato da ordem em Mântua e dois grandes quadros pintados em Marselha no passado
Novembro para a casa-mãe das Irmãs de S. José da Aparição.
Os seus anteriores superiores doeram-se muito de o ver partir para se juntar à nossa expedição ao Egipto.
Tenho a convicção de que a obra da regeneração da África será muito beneficiada pelo seu zelo apostóli-
co, pelos seus conhecimentos matemáticos e pela sua habilidade na mecânica e nas belas-artes, bem como
pela sua capacidade como superior e administrador.

Estanislau Carcereri

1790
Nasceu no ano de 1840, no seio de uma família camponesa, pobre mas temente a Deus, em Cerro, uma
pequena aldeia da diocese de Verona, torrão natal também de P.e Ângelo Vinco, que encontrou a morte no
Nilo Branco, abaixo dos quatro graus de latitude norte. Aos onze anos, servindo-se de um privilégio apostó-
lico por causa da sua tenra idade, entrou na Ordem dos Clérigos Regulares de S. Camilo de Lélis. Dotado de
eminente talento, fez tal progresso nas literaturas italiana e latina, bem como nas ciências filosóficas e teoló-
gicas, que os seus superiores o encarregaram do ensino de várias matérias.
Educado desde a sua juventude na escola da sabedoria cristã, cultivou neste sagrado ambiente de forma
tão intensa o espírito de piedade, que se distinguiu entre os alunos de S. Camilo pelo exercício de todas as
virtudes como modelo de uma vida do agrado de Deus.
1791
Em 1859 enfrentou muito honrosamente o severo exame estatal para obter o título de doctor philosophiae
no liceu de Verona; porém, atingido por uma grave doença, não pôde completá-lo. Mais tarde, numa escola
de Santa Maria del Paradiso, ensinou História Universal, Geografia, Estatística, Literatura Latina, Filosofia,
Religião, Direito Canónico, Teologia Dogmática e Moral. Em 1862 ocupou o cargo de secretário provincial
da província Lombardo-Véneta e o de arquivista e, por último, foi superior do convento de Marzana, perto de
Verona.
É dotado de uma inteligência viva, elevada espiritualidade e zelo pelas almas e é um conselheiro espiritu-
al muito valioso. Como sacerdote, é bom pregador e de grande competência na explicação do catecismo e na
assistência espiritual aos religiosos, aos sacerdotes e ao povo. Domina perfeitamente as línguas latina e itali-
ana, tem bastantes conhecimentos de grego, alemão e francês e agora dedica-se ao estudo do árabe.
1792
A ideia de se associar às missões católicas tivera-a já em 1857. Após os primeiros indícios de supressão
das ordens religiosas na Itália, no início de 1867, no seu desejo de se tornar missionário para trabalhar entre
os infiéis, dirigiu-se aos seminários de Milão e de Lião e recebeu uma resposta favorável, no caso de a sua
ordem ser efectivamente extinta.
No início da Quaresma do ano passado, em circunstâncias providenciais, ofereceu-se-me a ocasião de co-
nhecer as generosas aspirações de que estavam animados ele e os seus irmãos Zanoni, Tezza e Franceschini.
Apressei-me, pois, a conquistar estes quatro homens. O bispo de Verona, mons. Canossa, fez tudo para con-
seguir este objectivo e eles dirigiram os seus olhares para a parte do mundo mais desditosa e necessitada de
ajuda. Deus abençoou a obra da sua Providência ao escolher Estanislau Carcereri como apóstolo dos negros.
1793
Apesar do breve de S. S. Pio IX, os seus superiores não queriam dar-lhe autorização para partir e ofereci-
am-lhe repetidamente acolhimento na casa generalícia de Roma. Porém, resistiu e a autorização que com
grande rapidez lhe outorgou o Vigário de Jesus Cristo foi para ele um novo sinal da vontade de Deus, que o
chamava para a África, onde somente – assim o sentia – a sua alma iria sentir-se satisfeita. Por isso, abando-
nou tudo: as esperanças prometedoras e até o seu velho pai, que confiou aos cuidados do seu irmão mais
velho, um excelente e piedoso religioso de S. Camilo de Lélis. Agora tem a consolação de receber a bênção e
votos de sucesso dos que antes procuraram dissuadi-lo da sua determinação, na qual deviam ter visto a von-
tade do Céu. Sente-se muito feliz na sua vocação, pelo que dá graças a Deus todos os dias.

José Franceschini

1794
Franceschini é filho de uma família muito temente a Deus. Nasceu no ano de 1846 em Treviso e, mais
tarde, quando o seu pai conseguiu um lugar de porteiro nos escritórios governativos austríacos de Veneza,
mudou-se com ele para essa cidade, onde frequentou com muita aplicação as aulas dos rev.dos padres da
congregação de S. Filipe. Ali repleto pelo espírito de autêntica piedade, nasceu a sua vocação ao estado reli-
gioso e junto com seis companheiros seus, que depois ingressaram em várias ordens religiosas, dedicou-se à
vida monástica. Este jovem subdiácono possui um talento extraordinário, tem um grande espírito e é activo e
empreendedor.
Em 1860 entrou na ordem de S. Camilo de Lélis, onde o seu comportamento lhe granjeou o afecto de to-
dos. Desde o princípio da sua vida religiosa teve uma forte inclinação para as missões e pôs grande empenho
a preparar-se dignamente para elas. Para este fim, entregou-se com interesse extraordinário não só aos estu-
dos mas também à aprendizagem das artes e ofícios que são necessários para a vida missionária. Entre outras
coisas, sabe cozinhar muito bem e conseguiu uma habilidade discreta como alfaiate, carpinteiro, sapateiro e
até como enfermeiro. Como é muito activo e tudo lhe sai bem no momento, congemina grande quantidade de
coisas que nos são tão necessárias e que nos tiram de tantos apuros. Conhece perfeitamente as línguas italia-
na e latina, discretamente o francês e sabe um pouco de alemão. Agora dedica-se ao estudo do árabe. Embora
seja apenas subdiácono, realizou todos os estudos teológicos com muito êxito.
1795
Mediante o breve de Pio IX de 5 de Julho recebeu autorização para vir connosco para a África e aqui che-
gou à meta dos seus mais ardentes desejos. Promete óptimos resultados, graças às suas grandes virtudes, ao
seu espírito de piedade e à sua abnegação, que nele existem de maneira extraordinária, assim como os seus
talentos e actividades, tudo em proveito e em favor dos negros.

A congregação das Irmãs


de S. José da Aparição

1796
Dado que a primeira congregação religiosa escolhida pela Providência para a conversão dos negros – quer
dizer, para a direcção dos institutos femininos, destinados a formar pessoal para as missões da África Cen-
tral, segundo o plano que nós elaborámos para este fim – foi a das Irmãs de S. José da Aparição, chamadas
Irmãs da Caridade Cristã, convém dá-la a conhecer aos nossos devotos colaboradores e generosos benfeitores
da Alemanha católica.
A congregação das Irmãs de S. José da Aparição foi fundada em 1829 pela senhora De Vialar, que fundou
a primeira casa em Gaillac, no departamento de Tarn, no Languedoc, com meios próprios. Os seus estatutos
foram aprovados pelo arcebispo de Albi. Esta santa fundadora, ardente de caridade cristã e de zelo pela sal-
vação das almas, também se preocupou com a preparação de pessoal para as missões estrangeiras, com o que
tentou consagrar a sua vida e o seu instituto a esta obra. A educação das moças jovens, a instrução gratuita
dos pobres, a direcção de asilos, o cuidado dos doentes, os serviços domésticos aos presos, as visitas domici-
liárias aos anciãos e pobres e a conversão dos infiéis são as finalidades desta congregação, que muitos bispos
e vigários apostólicos introduziram nas suas dioceses e missões e que o sábio Papa Gregório XVI elogiou
muito nas suas cartas apostólicas do ano de 1840, publicadas pela S. Congregação dos Bispos e Regulares.
1797
O novo instituto estendeu-se em poucos anos por bastantes dioceses da França e, ao ver-se a sra. De Via-
lar rodeada de um considerável grupo de virgens que ela mesma tinha formado para a vida apostólica, em
1836 partiu para a Argélia em companhia de sóror Emilie Julien (creio que foram as primeiras freiras a ir
para aquele país depois da sua conquista pelo exército francês) e fundou aí dois estabelecimentos. É difícil
descrever os milagres de caridade cristã e a abnegação destas irmãs nas mais perigosas circunstâncias, entre
doenças contagiosas, a peste e a cólera, que assolam essas infelizes regiões e os sofrimentos, fadigas e perse-
guições que nos primeiros anos tiveram que sofrer pelo amor de Deus.
1798
Porém, de igual modo que o Divino Salvador e a sua dilecta esposa, a Igreja, cuja história é uma sucessão
de sofrimentos e adversidades, esta obra estava destinada por Deus a nascer e a crescer aos pés da cruz, no
meio das mais duras provas. Do mesmo modo que à paixão e morte de Jesus Cristo se seguiu a ressurreição e
que o martírio e perseguição da Igreja tiveram sempre como resultado o triunfo desta, assim também as pro-
vas e perseguições da congregação de S. José da Aparição acabaram na sua expansão até Tunes e Trípoli e
pela Berbéria e outros países da África setentrional, onde fizeram muito bem.
1799
A senhora De Vialar regressou a França para visitar as várias casas da congregação e para fundar uma ca-
sa-mãe em Marselha, como um centro muito adequado para a direcção do instituto e ponto de partida das
Irmãs para as diferentes missões do estrangeiro. E com ajuda das veteranas mais capazes e cheias de abnega-
ção, teve a sorte de fundar em poucos anos numerosos outros estabelecimentos: em Malta, na Grécia, na
parte oriental do Adriático, na Ásia Menor, na Arménia, no Oriente, na Índia e na Austrália.
O primeiro contacto que eu tive com este instituto foi no ano de 1857, em Jerusalém, onde visitei a sua
casa situada nas proximidades do Santo Sepulcro, dirigida pela reverenda Irmã Jenech, uma maltesa, e tive
ocasião de ver os múltiplos frutos da abnegação das filhas de S. José.
Mais tarde, nas minhas viagens pelos países europeus e por outras partes do mundo, onde a Providência
se serve destas generosas irmãs como instrumentos para a salvação de muitos milhões de almas, que agora
gozam da visão de Deus no Céu, encontrei em abundância provas da sua actividade.
1800
A primeira heroína desta congregação no campo do apostolado é sóror Emilie Julien, a actual superiora
geral. Conheço-a desde o ano de 1860 e em repetidas ocasiões ajudou-me muito a fazer bem às almas. De-
pois de uma gloriosa actividade cheia de cruzes e de sacrifícios na África setentrional, onde desde a idade de
21 anos foi durante seis anos superiora de várias Casas, em 1846 foi para a Síria com as suas irmãs e com o
ver. P.e Maximiliano Ryllo S. J., o qual, após passar aí dezasseis anos como missionário apostólico, morreu
em Cartum como pró-vigário da África Central. Ela foi a primeira a fundar, desde o tempo das Cruzadas, um
estabelecimento de freiras na Cidade Santa, na terra em que aconteceram os grandes mistérios da nossa re-
denção.
1801
Com a fundação do primeiro convento de freiras, levantou dentro dos muros de Sião o estandarte da cari-
dade cristã, da qual estavam animadas as mulheres do Evangelho e semeou aí os lírios da santa virgindade
para o bem dos infiéis. Foi ela também quem fundou as casas de Belém, Jaffa, Saida e Alepo, assim como a
de Chipre e outras que florescem no Oriente e dirigiu-as todas na qualidade de superiora provincial do Orien-
te com residência em Jerusalém.
1802
Depois da morte da sra. De Vialar, em Marselha, sóror Emilie Julien foi eleita superiora geral de toda a
congregação. Voltou à Europa, mas mudou a sua residência para Roma, onde fundou um noviciado. Fundou
ao mesmo tempo a obra apostólica, a que preside desde 1863 e que, conforme a de Paris, consiste numa reu-
nião de piedosas senhoras, mesmo da mais alta sociedade, as quais se ocupam dos ornamentos da Igreja e
abastecem os objectos necessários para o culto externo às missões estrangeiras.
Nos onze anos em que está a viver em Roma, a madre Emilie ganhou a estima e admiração do nosso Pa-
pa, o glorioso Pio IX, bem como do card. Barnabó, prefeito geral da S. Congregação da Propaganda e de
muitos outros príncipes da Igreja e igualmente de numerosos príncipes e princesas reais das diversas casas
europeias e da nobreza romana.
1803
Uma caridade sublime, uma admirável prudência, uma inteligência profunda e privilegiada que sabe de
homens e negócios e de como tratá-los, uma nobre coragem, uma confiança heróica na Providência e total
abandono à vontade de Deus são as notas fundamentais da personalidade desta mulher segundo o Evangelho,
que tantos serviços tem prestado à Igreja e às missões. Teve que sofrer tremendas dificuldades e provas de
todo o género; a sua paciência, porém, a sua resignação e a sua virtude mantiveram nela uma serenidade
maravilhosa: dir-se-ia que com o «fiat», que sempre tem nos lábios, sabe enfrentar todos os males.
Além da província da Toscana, composta de oito casas, ela fundou, a partir de Roma, outros estabeleci-
mentos em várias partes do mundo, entre eles, em 1864, o hospital do Cairo. Também foi durante o generala-
to de sóror Emilie Julien que o nosso Santo Padre o Papa Pio IX, com data de 31 de Janeiro de 1863, por
recomendação de vários ordinários nos países nos quais o instituto tem casas e em consideração pelos copio-
sos frutos obtidos, o confirmou como congregação de votos simples e ao mesmo tempo os seus actuais esta-
tutos, colocando-a sob a jurisdição dos ordinários, segundo as normas dos sagrados cânones e das constitui-
ções apostólicas e, por meio da Secretaria de Estado, nomeou seu protector o card. Barnabó.
1804
Não devemos admirar em tudo isto a adorável Providência que escolheu precisamente as filhas de S. José
como as primeiras directoras do nosso primeiro instituto para a conversão da África? Uma série de circuns-
tâncias providenciais fez nascer esta obra na famosa terra dos faraós, a poucos passos da santa gruta, onde
aquele grande patriarca viveu com a Sagrada Família. A sua presença ali durante sete anos conseguiu derru-
bar os ídolos do Egipto, estabelecendo em lugar deles a fé em Jesus Cristo e um seminário da vida religiosa
que produz heróis para o Céu e, mediante a sua difusão por toda a parte, embelezou a Igreja Católica de
abundantes modelos de virtude. Por meio das suas obras maravilhosas e das suas gloriosas conquistas em
todo o universo, coroou a Igreja de triunfos em todos os tempos e coroá-la-á até ao fim do mundo.

Sóror Maria Bertholon


superiora do instituto das irmãs, no Cairo

1805
A Ir. Maria nasceu em 1837, em Lião, filha de uns pais honrados. Apesar de ter estudado desde a idade
dos sete anos com grande interesse e não sem proveito no Colégio das Irmãs do Ss.mo Sacramento, cuja
casa-mãe se encontra em Autun, na sua juventude mostrou pouca inclinação para a vida religiosa. Somente
aos dezassete anos, após a leitura dos Anais da Propagação da Fé e depois de ter ouvido a pregação de um
jesuíta, lhe veio a ideia de entrar para uma congregação dedicada às santas missões. Escolheu o convento de
Jesus e Maria, rejeitando com grande abnegação um convite das Pias Irmãs do Santíssimo Sacramento, pelas
quais tinha sido educada. Tudo estava disposto para o seu ingresso na ordem, quando os conselhos de um
digno missionário de volta da Síria, onde tinha sido testemunha do grande bem que lá faziam as Irmãs de S.
José da Aparição, a decidiram a entregar os seus esforços a este instituto.
Tinha vinte anos ao iniciar o seu noviciado na casa-mãe, em Marselha, sob a direcção da Ir. Clotilde De-
las, então mestra de noviças. Tinha que ser precisamente aquela veterana e estupenda missionária, que esteve
durante catorze anos em Tunes e Argel (actualmente é superiora da Toscana, onde eu a visitei várias vezes),
a formar Maria na sua determinação e a cultivar na sua alma o espírito de negação de si mesma e da entrega
das antigas mulheres do Evangelho. A Providência que a tinha chamado a ser uma boa mãe das negras, ti-
nha-a feito também idónea para desenvolver esses trabalhos que não são menos importantes no serviço das
missões. Durante quatro anos esteve em Requista, no departamento de Aveyron, onde lhe tinha sido confiada
a segunda classe de uma escola. Depois foi enviada para a África, para a diocese de Rodez, onde desempe-
nhou todas as tarefas de casa, visitou doentes e ajudou pobres de todas as classes em seus domicílios.
1806
As notas fundamentais do carácter da Ir. Maria Bertholon são uma caridade eminentemente cristã e entre-
ga verdadeira, uma sincera humildade e grande actividade. Fala só a sua língua materna e um pouco de itali-
ano, mas é muito competente nos diferentes tipos de trabalhos domésticos. Educada na escola de uma pieda-
de autêntica, adquiriu em grau eminente a virtude da abnegação e da renúncia à própria vontade e, graças a
isto, foi-lhe mais fácil o sacrifício de fazê-la voltar às missões, que eram a meta da sua vocação.
Quando chegámos a Marselha, estava destinada a Malta, porém, conseguimos que nos fosse atribuída
como uma das irmãs que deviam acompanhar as negras ao Cairo. A sua alma estava cheia de alegria quando
a superiora lhe disse simplesmente: a irmã irá para o Egipto. Não sabia que ela mesma ia ser superiora e com
grande surpresa e tristeza ouviu de nós, à sua chegada ao Cairo, a notícia do destino a que Deus a tinha cha-
mado. Não queria acreditar que tinha sido eleita para um cargo tão importante, para o qual, na sua profunda
humildade, se considerava indigna e incapaz.
1807
Apesar das nossas objecções, ela queria ser subordinada de uma outra ou renunciar ao seu trabalho de
missão, que todavia tanto desejara. Teve que intervir a superiora geral, recordando-lhe o voto de obediência,
para que desse o seu consentimento. Só para fazer a vontade de Deus está agora a cumprir na perfeição os
deveres de superiora e empreendeu com muito entusiasmo o estudo da língua árabe. Nos três meses em que
está connosco deu-nos provas suficientes de estar à altura da sua missão, que será de grande utilidade para o
interior da África.

Sóror Isabel Cambefort

1808
A Ir. Isabel tem trinta e cinco anos. Nasceu numa família abastada em Montauban. Aos seis anos foi con-
fiada ao pensionato das Irmãs do Santo Nome de Jesus, onde permaneceu só dezoito meses, porque a morte
da sua mãe obrigou-a a voltar para a família; porém, foi-lhe permitido continuar a assistir à escola do con-
vento.
Já nessa altura pensava consagrar-se à vida religiosa. Teve que superar muitos obstáculos que a família
lhe colocou para, por fim, poder entrar na Congregação de S. José da Aparição, a qual lhe tinha sido aconse-
lhada pelo rev.do P.e Blancart, missionário da Congregação do Monte Calvário, que conhecia o seu desejo
de se dedicar às missões estrangeiras. Ingressou no noviciado de Marselha, sob a direcção da Ir. Clotilde
Delas, que mais tarde foi para Montelupo, na Toscana, onde permaneceu oito anos ao serviço dos presos e do
asilo para jovens transviadas. No passado Novembro foi chamada a Marselha e aí deu-se-lhe o destino de ir
com as negras para o Cairo.
A Ir. Isabel, que, além da sua língua, fala muito bem o italiano, agora estuda também o árabe. É muito
versada em todos os lavores domésticos e um modelo de piedade.

Sóror Madalena Caracassian


1809
Uma certa manhã de Julho de há uns anos, estava eu sentado no meu alojamento do quarto piso, em Ro-
ma, quando, silenciosamente, entrou para me ver um venerável e ancião sacerdote, acompanhado de uma
velha senhora, vestida de negro. Pelo seu rosto radiante de alegria, era fácil compreender que o agitava um
acontecimento extraordinariamente feliz e também os olhos vivamente fulgurantes da velha senhora manifes-
tavam uma alegria íntima. Aquele sacerdote era o P.e Nicolau Olivieri, que gozava da veneração de todos e
agora se encontra no Paraíso e a senhora era a sua empregada, a velha Madalena.
O motivo da sua presença ali era pedir-me que os acompanhasse numa visita às jovens negras recém-
chegadas da Síria, que ele no Egipto tinha resgatado da escravidão e que agora estavam alojadas no convento
das Irmãs de S. José da Aparição. É sabido quanto estas irmãs ajudam a obra do resgate de escravos. As ne-
gras, que vêm do Egipto, duas a duas ou três a três, são conduzidas primeiro para a Palestina, para a casa das
irmãs, e de lá trazidas para a Europa.
1810
Descemos à rua, seguidos da Madalena. O santo ancião tinha uma tremenda tosse e adivinhava-se que já
não iria viver muito. Chegados à Praça Farnese, virámos à direita e alcançámos a Praça da S. Trinità dei Pel-
legrini. Aqui, antes de entrar na Praça del Monte di Pietà, debaixo de um arco, há uma imagem milagrosa da
Virgem muito venerada. O piedoso Olivieri tinha por costume ajoelhar-se perante esta imagem e rezar todas
as manhãs, quando, do seu alojamento no mosteiro dos trinitários em S. Crisógono in Trastevere, se dirigia
aos correios. Em mais de uma ocasião eu tinha-o acompanhado neste percurso de um quarto de hora e tinha
visto quantos suspiros saíam da sua alma pelas pobres negras e com quanto fervor e quantas lágrimas as en-
comendava à Santíssima Virgem.
Esta vez, ajoelhado no solo nu, depois de rezar escapou-se-lhe repentinamente, no seu fervor, talvez sem
dar conta: «Obrigado, mãe, muito obrigado!»
1811
Seguimos adiante e, passando de S. Carlos à Praça dei Catinari e a S. Catarina dei Funari, chegámos por
fim à Praça Margana, onde está o convento das Irmãs de S. José. Mal nos tínhamos sentado no locutório,
entraram umas jovens negras acompanhadas de duas irmãs; estas eram seguidas por três jovens arménias que
estavam vestidas de negro e tinham a cabeça coberta com um belo gorro do seu país. Davam a impressão de
descender de famílias abastadas e de ter recebido uma boa educação. Tinham chegado de Constantinopla
juntamente com as negras.
Num primeiro momento prestei pouca atenção a estas três brancas, porque tinha-a toda posta nas peque-
nas africanas e, mais ainda, no nosso estimado Olivieri, que as contemplava cheio de felicidade, como tam-
bém na admirável velha Madalena, que tinha estado dezasseis vezes no Egipto e de novo sentia vontade de
voltar lá mais uma vez, como se ainda fosse jovem. Ao fim de um quarto de hora, entrou o arcebispo da Ar-
ménia, mons. Hurmy, e esta circunstância fez com que, por fim, a nossa atenção se dirigisse às raparigas
arménias. Uma delas era a nossa Ir. Madalena, em cuja fronte se lia a inocência e sinceridade.
1812
Quem teria pensado então que esta jovem ia ser uma das primeiras a ser como uma mãe para as negras e
que me iria seguir para o Egipto, consagrando-se permanentemente à nossa obra para a regeneração da Áfri-
ca?
Sóror Madalena tem dezanove anos e descende de uma rica família de comerciantes de Erzerum. Seu pai,
o sr. João Caracassian, faleceu poucos meses depois de ela nascer. Sua mãe, de nome Serpuis (que em armé-
nio significa santa), era muito devota. Tendo enviuvado aos vinte e um anos, recebeu muitas propostas van-
tajosas para contrair novo casamento; mas ela rejeitou-as, dizendo que o trabalho de formar três almas para o
Céu já lhe dava bastante que fazer. Assim dedicou-se completamente à educação dos seus filhos: a filha Ca-
tarina, agora casada e mãe, por sua vez, de três filhos; Gregório, o único varão, na actualidade um comerci-
ante de vinte e um anos e a nossa pequena Madalena.
Sob a direcção prudente da mãe, esteve desde a sua infância imbuída do espírito de piedade e como mos-
trava muita capacidade e engenho, o seu tio materno, o P.e Serafim Pagia, um piedoso sacerdote do culto
católico-arménio, assumiu a tarefa de a educar diligentemente na religião e nas ciências elementares, com
grande proveito. Com a idade de oito anos entrou no colégio das Irmãs de S. José da Aparição de Erzerum.
Aí aprendeu muito bem, além dos lavores femininos, as línguas arménia, turca e francesa sob a direcção da
Ir. Accaba Akccia, arménia, e da Ir. Maria, de origem francesa. Esta última tem sido a sua mestra no que toca
a todos os lavores do lar.
Já desde os sete anos Madalena tinha pensado dedicar-se à vida religiosa; mas só quando cumpriu os treze
se decidiu levá-lo a cabo, contra todo o obstáculo que se opusesse, no instituto das Irmãs de S. José da Apa-
rição.
1813
A graça vence sempre a natureza. Madalena amava ternamente a sua boa mãe e esta nunca tinha pensado
ver-se um dia, talvez para sempre, separada desta filha, à qual dedicava um carinho muito especial. Não sei
qual das duas, a mãe ou a filha, mostrou maior fortaleza e generosidade em mais de um ano de contínuas e
dolorosas lutas. O certo é que a sra. Serpuis Caracassian seguiu o belo exemplo de tantas mães animadas de
verdadeiro espírito cristão e, oferecendo a sua filha, fez a S. José um sacrifício completo; e Madalena, para
poder consagrar-se de todo a Deus, separou-se para sempre de sua mãe, que amava tão ternamente.
Partiu de Erzerum. Após uma viagem de oito dias a cavalo, chegou a Trebisonda, na Anatólia, onde em-
barcou num navio que fazia serviço postal no mar Negro e foi para Constantinopla. Aqui, na capital do impé-
rio turco, alojou-se no convento das Irmãs da Caridade de S. Vicente de Paulo. Depois, passou os Dardanelos
e, pela rota da Grécia, Messina e Nápoles, chegou a Roma. Aqui ingressou logo no noviciado, sob a supervi-
são da superiora geral.
A rev.da superiora reconheceu perfeitamente o seu talento e o espírito que a animava e fez com que fosse
instruída em todos os ramos do saber necessários para a converter numa mulher apostólica.
1814
Pode-se dizer que a Ir. Madalena nasceu para a vida religiosa. Durante o tempo que permaneceu na Cida-
de Eterna foi admirada como modelo de todas as virtudes religiosas. Não tem vontade própria; a sua é a von-
tade de Deus que lhe é manifestada pelos superiores e é a de cumprir sempre o seu dever em qualquer coisa
que lhe seja mandada. A sua inocência, a pureza da sua alma, a sua obediência, juntamente com uma inteli-
gência rápida e penetrante, são os preciosos dotes que a graça divina derramou abundantemente sobre ela.
O seu confessor era mons. Arsénio Avek-Wartan Angiarakian, da ordem dos conventuais arménios, arce-
bispo de Tarso. Mais tarde, quando este digno prelado se mudou para o Oriente para se ocupar da eleição do
patriarca, foram os padres Villefort e Franco, da Companhia de Jesus.
Domina as línguas arménia, turca, francesa e italiana e agora dedica-se com muito êxito ao estudo do ára-
be.
1815
Na sua profissão religiosa pronunciou os votos perante o cardeal Barnabó e no dia 24 de Novembro foi-
me confiada a mim. Eu levei-a com as negras de Roma para Marselha, onde a superiora geral a encarregou
de acompanhar as negras, mandando-a com destino ao nosso estabelecimento do Cairo. As suas virtudes, as
suas excelentes qualidades e a esperança que nós depositamos nela induziram-nos a pedir à superiora geral
que nos fizesse uma promessa formal de não a afastar já da nossa empresa. Em consequência disso, a madre
Julien passou-me uma declaração conforme os nossos desejos e agora procuramos que a Ir. Madalena se
instrua nas línguas abissínia, dinca, bari, galla, etc., assim como em medicina e cirurgia e, em suma, em to-
das as matérias susceptíveis de a converter numa mulher segundo o Evangelho e segundo as necessidades da
nossa obra para a regeneração da África.
Espero que Deus faça desta jovem uma verdadeira filha da caridade cristã, uma apóstola dos negros.

Apontamentos biográficos sobre as mestras negras


do primeiro instituto do Cairo, no Egipto.
Porquê estas biografias?

1816
Entre tantos males que afligem os infelizes povos da África Central, um dos mais deploráveis, que eu
mesmo presenciei amiúde nas tribos no Nilo Branco, é o rapto violento ou clandestino de pobres seres hu-
manos – que possuem uma alma tão preciosa e um coração tão nobre como podemos ter nós – e especial-
mente de crianças de ambos os sexos. Esta tremenda aberração moral, este esquecimento de toda a humani-
dade, é em parte efeito das frequentes guerras de tribo contra tribo, de região contra região e mesmo de po-
voado contra povoado, e em parte resultado da infame ânsia dos mais fortes e poderosos para melhorar a sua
situação mediante o comércio de escravos.
Agora, no momento em que falo destas coisas, há centenas de milhares de pessoas que, por causa da guer-
ra e das artimanhas dos traficantes, são arrancadas à sua pátria, expostas a toda a espécie de males e conde-
nadas a não voltar a ver os seus pais, nem o lugar onde nasceram e a ter que suspirar toda a sua vida sob o
peso cruel da mais dura escravidão.
1817
As guerras são muito frequentes, quase contínuas, naqueles países. Nascem, geralmente, do ódio tradicio-
nal entre famílias, entre povoados e entre tribos, e também se devem a roubos de gado ou de crianças ou à
ocupação ilegítima de uma região amiga. O negro vê nisto uma lei natural e necessária e, ao vingar-se do seu
inimigo, mostra-se furioso como um tigre. Sacrifica tudo à vingança, até a sua vida e a dos membros da sua
família.
O rapto de crianças pratica-se naquelas paragens entre amigos e inimigos, e assim a escravidão e o co-
mércio de seres humanos está muito desenvolvido. Um pai e uma mãe não venderiam jamais os seus filhos,
porque o amor dos pais é demasiado grande e verdadeiro entre os negros; antes arriscariam a sua própria
vida. Nestes assuntos faz excepção o matrimónio: este é um verdadeiro acordo comercial entre o pai e o pre-
tendente sobre um preço, o qual é estipulado em função da situação do pai e das belas qualidades da rapariga.
1818
Quando estávamos entre os negros do Bar el-Abiad no interior da África, eles tinham-nos muita estima e
afecto e distinguiam-nos completamente dos outros brancos, quer fossem turcos quer comerciantes europeus,
aos quais os negros temiam, desprezavam e consideravam como inimigos. Por isso permitiam que os meni-
nos nos visitassem e escutassem os nossos ensinamentos. Contudo, nunca no-los confiaram para que os edu-
cássemos em Cartum ou na Europa: os pais nunca teriam consentido que os seus filhos fossem afastados da
sua família nem da sua região.
Porém, como é possível que ainda agora sejam postos à venda todos os anos tantos milhares de negros,
em parte publicamente e em parte de maneira clandestina, nos mercados de Cartum, Cordofão, Dôngola,
Suakin, Gedda, Berber, Cairo e outras cidades da costa africana? Deve-se aos roubos violentos e aos seques-
tros sub-reptícios de pessoas que praticam os muçulmanos, os quais alimentam e exercem ainda o horrível
comércio de escravos. E isto é assim porque o Islão favorece a escravidão, esta vergonha da humanidade,
apesar de todos os acordos entre os governos civilizados, apesar das severas mas ineficazes leis do Governo
turco e apesar da boa vontade de Ismail Paxá, o vice-rei do Egipto. Ainda anteontem, 17 de Março, chegou
secretamente aqui ao Cairo um numeroso grupo de pobres escravos negros, arrancados à força da sua pátria.
E como costuma acontecer quando estes infelizes seres humanos são transportados em embarcações através
do Nilo, vinham acondicionados como arenques no fundo do barco e cobertos de madeira. Naturalmente,
depois de serem transportados desta maneira, frequentemente sucede que alguns chegam mortos.
1819
Os Bagara e outras numerosas etnias muçulmanas que emigraram da Arábia entre os séculos VII e XIV da
era cristã e que, depois de terem percorrido gradualmente a África oriental e setentrional, se estabeleceram
no interior e levaram a essas terras a superstição e o fanatismo do Islão; estes muçulmanos que vivem nas
regiões limítrofes com as dos negros e até possuem algumas como feudo são, digo, os que em geral roubam
às escondidas ou à força os pobres meninos às suas famílias. Depois vendem-nos como ovelhas ou bois a
outros muçulmanos e estes revendem-nos aos jilabas, os quais têm como ofício a compra e venda de escra-
vos.
Os pobres negros passam assim de mercado em mercado, de patrão para patrão. E após terem passado as
maiores e extenuantes fadigas de viagens perigosas, caminhando amiúde descalços pela abrasadora areia do
deserto, em que uma parte deles morre de uma morte cruel, chegam às costas de África para serem vendidos
a amos terríveis, que os tratam como cães e que, sob a protecção iníqua da despótica lei de Maomé, lhes dão
uma vida miserável, uma vida que os leva prematuramente à morte eterna.
1820
Somente Aquele que com o seu sacrifício glorioso sobre o Gólgota quis que fosse extirpada para sempre
da terra a escravidão; Aquele que anunciou aos homens a autêntica liberdade, chamando todas as nações e
todo o indivíduo do género humano a tornar-se filho de Deus, a quem o homem regenerado pela verdadeira
fé pode chamar Abba Pater, somente ele poderá livrar a África do estigma da escravidão. Somente o Catoli-
cismo poderá devolver a plena liberdade a uma grande parte da família humana, que ainda suspira sob o ver-
gonhoso jugo da mais cruel escravidão. Precisamente nisto radica a grande importância da nossa santa obra
para a regeneração da África, abençoada pelo nosso venerável Papa Pio IX, mesmo que se considerasse co-
mo uma obra exclusivamente filantrópica. Temos o grande objectivo de levar a luz da fé a todas as regiões
da África Central ainda habitadas por povos primitivos, de a implantar solidamente e para sempre, de levan-
tar o luminoso estandarte da liberdade do Filho de Deus e devolver assim a vida a muitos milhares de almas
que ainda dormem na sombra da morte.
1821
Tal é o fim pelo qual se distingue a nobre obra da Sociedade de Colónia para ajudar os pobres meninos
negros; porque esta Sociedade é a alma da grande empresa. Foi ela que sugeriu, votou e fundou esta obra de
redenção, que com a bênção de Deus poderá converter-se na mais grandiosa obra de apostolado do século
XIX, para a salvação do continente mais abandonado, para a redenção das populações mais desditosas e des-
prezadas da sociedade humana.
1822
Depois desta sumária exposição, compreender-se-ão facilmente os sérios motivos que me levaram a es-
crever estas brevíssimas biografias das nossas estimadas negras, destinadas a converter-se nas primeiras
apóstolas dos negros residentes no interior do país. Nove delas foram cumuladas de benefícios pela nossa pia
Sociedade de Colónia e outras quatro receberam o espírito da nossa santa religião no seio da Alemanha cató-
lica. Os nossos venerados colaboradores e estimados benfeitores, por meio destas pequenas biografias, por
meio destes simples mas verídicos relatos da cruel rapina de que foram vítimas estas primeiras mestras indí-
genas, chegarão a:
1. Obter uma verdadeira ideia da triste situação das tribos da Nigrícia, em cuja regeneração espiritual
eles são colaboradores e promotores por meio das suas esmolas.
2. Ter um justo e alto conceito da grande obra da qual felizmente são membros, com o que se sentirão
animados a fazer os sacrifícios necessários para ajudar com todas as forças esta obra também no futuro.
3. Encontrar nestas minibiografias uma boa e santa leitura, adequada para alimentar a piedade e dar um
novo impulso à sua compaixão.
4. Achar um dos argumentos mais convincentes para demonstrar que a nossa obra da regeneração de
África, segundo o nosso Plano, é o meio radical que a razão humana vê como o mais válido para converter os
negros ao Catolicismo.
5. Conhecer e apreciar ainda mais o grande zelo de que estavam imbuídos o rev.do P.e Nicolau Olivie-
ri, de santa memória, e a sua obra de sublime caridade cristã, sustentada tão eficazmente pela nossa venerada
Sociedade de Colónia.
Começo com as biografias das negras que foram educadas nos mosteiros da Alemanha católica.

I – Petronila Zenab

1823
Petronila tem cerca de vinte e um anos. É interessante conhecer brevemente por que caminhos a Provi-
dência a conduziu ao seio do Catolicismo. Segundo o que, em poucas palavras, me contou na sua língua ma-
terna durante a viagem ao Egipto, pude saber que nasceu no reino de Kafa e precisamente entre os Gallas.
Um esclavagista abissínio levou-a à força, uma vez que estava sozinha em casa dos pais. Com ele realizou a
pé uma viagem de três meses através dos reinos de Enarea e Shoa até à costa do mar Vermelho, e do Iémen,
por mar, foi levada com outras quinze meninas numa embarcação árabe até Meca e daí até Medina.
Nestas cidades sagradas para os muçulmanos esteve um ano e meio, até que um turco, que tinha ido como
peregrino a Meca, a comprou e a conduziu de Gidá ao outro lado do mar Vermelho e depois, atravessando o
deserto de Suez, ao Cairo. Aqui, junto com outras quatro negras, foi vendida a um tal Omar, um turco a
quem o nobre cônsul-geral da Sardenha, o sr. Cerrutti, a comprou para o P.e Olivieri. Este confiou-a no Cairo
à bondosa sra. Rossetti, com a qual esteve catorze dias, levando-a, depois, a Alexandria, de onde, sob a pro-
tecção da velha Madalena, com outras treze negras, passando por Trieste e Verona, chegou a Milão, para,
depois, ser conduzida, pelo Tirol e Munique, a Salzburgo. Chegou a este último lugar em fins de Fevereiro
do ano de 1856. Passou um dia e uma noite com as ursulinas, acabando finalmente no mosteiro das benediti-
nas, cuja superiora, Hildegunda, se ocupou muito dela e a admitiu entre as jovens pensionistas.
1824
Depois da morte de Hildegunda, também a superiora que lhe sucedeu, com autêntico espírito cristão, fez
de mãe para com a nossa jovem negra. Confiou-a à directora do pensionato, Ir. Maria Wenefrida, que lhe
dedicou um grande carinho e pela qual Petronila conservou vivos sentimentos de gratidão pelos muitos bene-
fícios com que ela a cumulou.
Empregou quase meio ano na preparação para o baptismo. Ministrava-lhe ensinamento o arcebispo de
Salzburgo, o rev.mo mons. Maximiliano José Tarnoczy, e foi madrinha a senhora Francisca Schider, esposa
do médico pessoal da imperatriz Carolina. Petronila teve em várias ocasiões a honra de comparecer perante a
imperatriz, que lhe mostrou muita benevolência.
1825
Devo exprimir o meu mais vivo agradecimento às beneditinas de Salzburgo por terem educado esta meni-
na no espírito da nossa fé e numa autêntica piedade, por terem feito dela uma verdadeira filha da caridade
cristã. A educação que as negras receberam na Alemanha foi, em geral, muito sólida. As irmãs instruem as
alunas de cor não só na religião mas também em todos os lavores da vida ordinária. Cuida-se delas até mais
que o necessário, até ao ponto de que, regressadas a África, encontram dificuldades para se habituar às po-
bres condições da sua pátria. Porém, sobretudo não se deixa nunca que lhes falte o essencial: uma fé firme e
um espírito de piedade, e por isso os mosteiros da Alemanha têm um destacado papel no desenvolvimento da
nossa obra.
1826
Sendo o clima de Salzburgo demasiado frio, as bondosas irmãs decidiram experimentar se o de França era
mais adequado para Petronila. Em Setembro de 1863 encarregaram o rev.do sr. Leandro Capella que levasse
a negra para Paris, arcando elas com os gastos. Ali permaneceu mês e meio com as Filhas da Santa Cruz.
Porém, também o clima de Paris era frio de mais para a pequena africana, pelo que foi decidido mudar Pe-
tronila para sul. Assim, a Madre Xaviera, superiora das Irmãs de S. José na Síria, levou-a consigo para Mar-
selha, onde esteve na casa-mãe até Novembro do ano passado.
1827
Petronila teve oportunidade de ver o P.e Olivieri quatro vezes em Salzburgo e de o assistir na sua última
doença, que o atacou em Marselha. Ela viu-o quando na última hora, em atenção a seus rogos, foi levantado
da cama e deixado sobre o chão nu, no qual morreu como um santo. Não consigo pensar nestes sinais admi-
ráveis da santidade desse homem sem que as lágrimas me saltem. Olivieri entregou a alma na terra nua, sus-
tentado, entre outros, pela nossa querida e bondosa Petronila, a qual ele havia ganho para Cristo. De resto,
entre o nu pavimento e o seu leito, que eu vi em Marselha, não há grande diferença. É a mesma cama onde
agora dorme normalmente P.e Biagio Verri, animado de idêntico espírito de abnegação, de penitência e de
caridade cristã.
1828
Petronila pertence a uma das melhores tribos da África. É de carácter calmo e sério, confiada, discreta-
mente inteligente e devota. Parece que tem grande desejo de se dedicar à conversão das negras infiéis. Depo-
sitámos nela muitas esperanças. Petronila compreende bastante bem o alemão e o francês e agora ocupa-se
do árabe. É muito versada em todos os lavores femininos. Tudo isto unido a uma capacidade de juízo muito
sólida e uma constância viril nos deixa esperar que fará muito bem em África. Tenho a absoluta confiança de
que vai ser muito adequada para levar a África à regeneração por meio da própria África.

II – Amália Amadu

1829
Amália, que tem agora uns dezanove anos, nasceu no grande reino de Bornu, na África Central. Um dia
estava a brincar com outros meninos num prado, quando uns muçulmanos a cavalo se aproximaram deles e
os raptaram a todos. Tendo-os amordaçado com trapos de algodão e carregado em dois cavalos, açoitavam-
nos sempre que tentavam gritar. Depois, dirigiram-se ao interior do país e, logo, com a protecção da noite e
sem que ninguém os perseguisse, chegaram a uma cabana que podia estar a meia jornada de distância da
aldeia dos meninos.
Amália foi vendida mais tarde a um jilaba, o qual, com mais de cem jovens negras e quatro pequenos ra-
pazes, viajou continuamente durante quatro meses. Assim se viu conduzida através do Sara e outras regiões
inóspitas, sempre sobre areias ardentes, até chegar ao Cairo.
1830
Aí, exposta no grande mercado de escravos, foi revendida a um tal Abraham Hut, com o qual esteve, jun-
tamente com outras quatro, mais de meio ano, sem ter ocupação especial. Depois, comprou-a um turco, ao
qual foi adquirida por um cristão por encargo do P.e Olivieri. Foi entregue à velha Madalena e pouco depois
viajou com o P.e Olivieri, pelo Mediterrâneo, até Trieste, para passar por Milão, o Tirol e Munique – lugar
onde se deteve três dias no mosteiro das Filhas das Escolas Pias – e chegar à povoação de Beuerberg, na
Baviera, nos fins de 1856. Aí foi confiada ao mosteiro da Ordem da Visitação de Maria.
1831
Seguindo o modelo de S. Francisco de Sales, aquelas bondosas irmãs esforçaram-se por fazer de Amália
uma genuína filha de Maria. E obtiveram sucesso: a jovem negra tornou-se bondosa, obediente e conhecedo-
ra de todos os lavores femininos, mostrando-se, além disso, cheia de boa vontade e de autêntica piedade. Foi
baptizada a 19 de Junho de 1857 pelo arcebispo de Munique, o rev.mo mons. Gregório Scherr, e a sua ma-
drinha foi a princesa Amália Adalbert, da Baviera. Recebeu a Confirmação no dia 1 de Julho de 1858 das
mãos do mesmo arcebispo, tendo como testemunho nesta ocasião a condessa Arco-Valley.
1832
Amália conserva uma carinhosa e agradecida recordação das bondosas freiras de Beuerberg e da sua su-
periora, Ir. Maria Carolina von Pelkhoven, e sente a mesma gratidão e afecto para com a Ir. Luísa Regis, à
qual deve a sua habilidade nos lavores femininos.
Em Setembro, mons. Kirchner – ao qual a missão da África Central deve gratidão por tantos serviços e
sacrifícios e no qual teve, além disso, um digno promotor apostólico – escreveu-me para ver se eu podia in-
cluir Amália na expedição ao Egipto, que estava a ser preparada. À minha resposta afirmativa, a superiora do
mosteiro de Beuerberg mandou-a em Outubro para Munique, onde se juntou a duas negras no mosteiro das
beneditinas. Desse lugar partiram as três para Verona, acompanhadas do rev.do sr. Estêvão Reger, inspector
e confessor de Selingenthal, perto de Landshut. Ali permaneceram catorze dias no convento das Filhas da
Caridade Cristã, as chamadas canossianas, congregação de que foi fundadora a marquesa Madalena de Ca-
nossa, tia do bispo de Verona. Depois partiram sob a protecção dos missionários e de uma piedosa senhora, a
minha compatriota Margarida Bettonini-Tommasi, e chegaram a Marselha no dia 27 de Outubro, de onde, a
29 de Novembro, zarpámos todos para o Egipto.
A piedade autêntica de Amália, a sua obediência, a sua extraordinária compreensão permitem-me esperar
que se poderá fazer dela um hábil instrumento para a conversão da África e mais agora que goza de boa saú-
de; porque, segundo me escreveu a superiora de Beuerberg, no tempo da sua estada na Baviera, esteve algu-
mas vezes doente. Ela é a única das negras que sobreviveu. A superiora de Beuerberg mandou-me em Outu-
bro uma discreta quantia para que eu a empregue em favor de Amália.

III – Amália Katmala

1833
Amália Katmala, a quem, no nosso instituto, para a distinguir de Amália Amadu, chamamos Emília, anda
pelos vinte anos. Nasceu em Bego, povoado que se encontra a uma jornada da fronteira sueste do grande
reino de Darfur, cuja travessia é proibida aos europeus sob pena de morte.
Um comerciante muçulmano de goma arábica, no seu regresso de Darfur, deteve-se em Bego para reco-
lher goma e encontrou em casa da nossa negrita uma hospitalidade da qual ele se aproveitou durante meses.
A família deu-lhe confiança, tratando-o como um amigo e ele aparentava sê-lo; porém, era do tipo de amigos
que recebem, mas não dão.
1834
Este muçulmano, que se comportava como um nubiano, estava contudo animado de um invencível desejo
de melhorar a sua situação económica por qualquer meio e decidiu roubar a filha do seu anfitrião juntamente
com o irmãozito dela. Talvez mediante prendas secretas, conseguiu convencer uma amiga de Emília, mais
velha que ela, que fosse com os dois irmãos para o bosque apanhar lenha e tal ocasião ocorreu rapidamente.
Quando, levando a lenha à cabeça, as três crianças regressavam a casa, saiu-lhes ao encontro o cruel co-
merciante de goma, ordenando-lhes que deixassem a lenha e o seguissem. Arrebatou-lhes os feixes da cabe-
ça, agarrou-os pelas mãos e levou-os consigo. Quando os meninos começaram a gritar, atirou-os brutalmente
ao chão, tirou da manga esquerda uma grande faca e ameaçou matá-los se opusessem o mínimo de resistên-
cia. Profundamente amedrontados e angustiados, calaram-se e durante três horas seguiram pacientemente o
sequestrador, até chegarem a uma cabana, onde foram encerrados. Permaneceram nela oito dias; Emília du-
rante estes oito dias recusou-se a comer, mas por fim foi obrigada.
1835
Na semana seguinte três homens levaram os prisioneiros para Darfur, onde estiveram 14 dias. Durante es-
te tempo mantiveram Emília separada do irmão. Ele foi vendido e desde então ela nunca mais viu nem o
irmão nem a amiga que a tinha levado ao bosque. Emília viajou mais tarde com um jilaba, em companhia de
três rapazes e grande número de negras para Cordofão. Esta viagem, que tiveram que fazer a pé, sempre sob
os ardentes raios do Sol, pisando descalços a areia abrasadora, durou três meses. Em todo este tempo não
receberam outro alimento senão a chamada belilla (grão de sorgo meio cozido ou milho negro). Em Cor-
dofão foi vendida a um nubiano, que, num camelo carregado com peles de vaca, a levou para Dóngola.
De Dôngola continuaram pelo deserto ao longo da margem esquerda do Nilo, passando por Wadi-Halfa e
Hint, até chegarem ao Cairo, viagem em que empregaram outros três meses.
No Cairo, Emília foi vendida a um eunuco negro, dono de um harém turco, e este entregou-a a uma mu-
lher que se ocupava da educação de jovens negras para o harém do paxá. Aqui se manifestaram os impers-
crutáveis desígnios da Divina Providência. Emília tinha que ter sido educada para se converter no infeliz
instrumento do pecado, das obscenidades do muçulmano, porém, na sua bondade, Deus tinha-a destinado
para si mesmo. Ficou doente e devolveram-na como inútil ao eunuco.
1836
Este, por meio de um árabe, fê-la vender juntamente com outras três rejeitadas. Assim chegou às mãos de
um senhor europeu, o qual, tendo-a comprado por encargo do P.e Olivieri, a entregou a uma católica que
vivia na casa alugada para este fim por aquele apóstolo dos negros e fundador da obra do resgate de escra-
vos. Aí esteve oito dias com outras sete negras e, depois, foi mudada para o convento das Irmãs de S. Vicen-
te de Paulo, onde conheceu Alexandra Antima. No Inverno de 1856 embarcou com esta para Trieste, em
companhia também do P.e Olivieri, de um trinitário, da velha Madalena e de muitas outras negras.
1837
De Trieste, Emília e Alexandra foram para Verona, alojando-se nas Canossianas; depois para Milão, onde
estiveram com as Irmãs da Misericórdia de Lovere e daí passaram ao convento das Irmãs Visitadoras de
Saló; depois estiveram em Arco, com as Irmãs das Sete Dores, e finalmente em Trento, outra vez com as
misericordiosas Canossianas. Tendo passado de tal maneira um ano, foram levadas – passando por Munique,
onde numa estada de oito dias puderam conhecer o capelão Müller, da corte real – para o mosteiro das ber-
nardas de Selingethal, na diocese de Ratisbona.
Emília obteve um lugar entre as jovens pensionistas do mosteiro.
A Ir. Maria Ângela Zetl foi quem a ensinou a ler e a escrever, e a Ir. Engelberta Hälk instruiu-a nos lavo-
res domésticos. Estas religiosas incutiram nela umas sólidas bases de piedade e de moralidade, que eu tive
oportunidade de admirar suficientemente por ocasião do nosso primeiro breve encontro. Também tem uma
grande dívida de gratidão para com a Ir. Inácia Steckmüller e por isso estima-a ainda agora com um afecto
totalmente especial.
Emília permaneceu mais de um ano no mosteiro, antes de receber na capela do mesmo o sagrado baptis-
mo das mãos do bispo de Ratisbona, o rev.mo mons. Senestrey, no dia 3 de Abril de 1859, tendo como ma-
drinha a senhora Amália, esposa do conselheiro governativo da Baviera, Kalchgruber. Foi-lhe administrada a
santa Confirmação uns dias depois, a 7 de Abril, pelo mesmo bispo e foi testemunha a senhora Francisca
Simson, de Munique.
1838
Parece que Emília prefere os trabalhos domésticos aos intelectuais, ainda que também neste aspecto tenha
uma discreta instrução. Está muito capacitada para os lavores do lar e sabe tornar-se útil especialmente na
cozinha, tendo estado três anos e meio a trabalhar na do mosteiro. Para levar a civilização à África, tudo se
torna útil, de modo que também a nossa Emília, pela sua boa educação moral e pelo seu amor ao trabalho,
prestará valiosos serviços no apostolado de África.
No passado mês de Setembro, o prior do mosteiro das bernardas, mons. Afonso Brandt, solicitou-me que
tomasse Emília e Alexandra para a nossa obra. Ao mesmo tempo mandou-me uma boa quantia para os gastos
da viagem, dinheiro que era fruto da beneficência do mosteiro de Seligenthal e da Sociedade de S. Ludovico,
de Munique.

IV – Alexandra Antima

1839
Esta jovem negra, originária de Darfur, terá talvez dezanove anos. Raptaram-na quando brincava com ou-
tras meninas, após o que a levaram para Cordofão e Cartum e de lá, através do deserto de Bayuda e o situado
a ocidente do Nilo, para o Cairo. Esta viagem durou mais de três meses. No Cairo, chegou às mãos de um
turco, que a teve consigo meio ano, e depois levou-a a Alexandria, onde a vendeu a uma senhora árabe. A
esta comprou-a o P.e Olivieri.
A partir deste momento, a história de Emília é também a sua. Alexandra chegou, como sabemos, ao mos-
teiro das cistercienses de Seligenthal. Ao princípio foi sua mestra a falecida Ir. Gotfrida e depois a Ir. Maria
Luísa; ambas se dedicaram com muito empenho a ensiná-la a ler e a escrever em alemão. Nos trabalhos do-
mésticos foi instruída com o mesmo grande empenho pela Ir. Ida.
1840
Também foi baptizada a 3 de Abril de 1859 pelo bispo de Ratisbona, no mosteiro de Seligenthal, e depois
confirmada. Como madrinha de baptismo teve a princesa Alexandra, da Baviera, que se fez representar pela
Sra. Ana Neuhuber, de Landshut, e testemunha da sua confirmação foi a senhora Teresa Hunger, de Muni-
que.
Alexandra passou oito anos em Seligenthal e três em Wadsassen, perto de Eger. Especiais atenções teve
com ela a Ir. Hildegarda Smith, a irmã da superiora, pelo que Alexandra se sente unida com laços de grande
predilecção e agradecimento a esta alma boa. As irmãs bernardas fizeram arreigar no coração de Alexandra
sobretudo um profundo sentido moral, o qual constitui a força principal para resistir a todos os perigos que
ameaçam a mulher que quer dedicar-se ao trabalho espinhoso do apostolado no interior da África Central.

(Daniel Comboni)

Original alemão
Tradução do italiano
N.o 290 (274) - EPISÓDIO MAÇÓNICO
De «La Voce Cattolica» (Novembro de 1874), nn. 130-131

Paris, 1868

TRAGÉDIA MAÇÓNICA NARRADA


POR UM MISSIONÁRIO DA ÁFRICA CENTRAL

1841
Na noite de 22 de Dezembro de 1868 encontrava-me em Paris, onde estava a recolher esmolas para os ne-
gros e aonde tinha sido enviado para recompor a saúde. Naquele dia o assunto dos meus rapazes tinha corri-
do bem e eu tinha voltado a casa cansado mas dando graças a Deus. E eis que, quando estava a rezar o bre-
viário, aí pelas dez, alguém bate à porta do meu quarto. Surpreendido por ser procurado a uma hora tão tar-
dia, pego numa vela acesa e eu mesmo vou ter com quem está a chamar, perguntando-lhe o que quer de mim.
O visitante, um cavalheiro vestido com elegância e de distintas maneiras, responde inclinando-se:
«Perdoe-me, senhor, que o incomode a estas horas. Vim pedir-lhe que acuda a um moribundo, que deseja
falar consigo antes de morrer». «Mas – pergunto-lhe surpreendido – porque me pede assistência espiritual a
mim, um estrangeiro, em vez de ao seu pároco?» «O moribundo pediu expressamente a sua ajuda e não a de
nenhum outro. Se quer atender o último desejo de alguém que está às portas da morte, não tem tempo a per-
der.»
Então, sem mais, sigo o desconhecido escadas abaixo. Na rua está uma magnífica carruagem. Com o ges-
to cortês, o cavalheiro convida-me a subir e ele senta-se na parte da frente. Para minha grande surpresa, a
iluminação da rua permite-me distinguir outros três homens no carro, com umas caras tão suspeitosas que eu
faço menção de saltar para fora. Mas nesse instante um deles agarra-me com uma mão, enquanto com a outra
me põe um punhal ao peito e os outros apontam-me os revólveres, de modo que já não posso pensar em fu-
gir. Eles prometem-me que, se não opuser resistência, nada me acontecerá. Mas que posso eu temer desses
homens misteriosos?
Enquanto me deixo vendar os olhos, penso que a minha hora chegou e peço ao Todo-Poderoso que tenha
piedade de mim.
Após um percurso de quase duas horas, paramos, fazem-me descer e entramos numa casa muito grande:
escadas por um lado e por outro, corredores e movimento de gente por toda a parte. Tiram-me finalmente a
venda dos olhos e o mesmo desconhecido fecha a porta atrás de mim. Encontro-me então numa magnífica
sala, arranjada com toda a elegância: móveis de palisandro, relógios dourados, cadeirões e sofás com tapetes
bem fofos... Em vão, porém, procuro uma cama com um doente. Não sei que dizer ou pensar.
1842
Mas eis que numa elegante poltrona vejo um respeitável cavalheiro, são e nutrido, em toda a força da ida-
de, que com um gracioso gesto me convida a aproximar-me dele. Eu respondi que me tinham chamado à
cabeceira de um moribundo, porém, apercebo-me que se trata de uma farsa, uma vez que ele respira saúde,
se os olhos me não enganam.
«Tem razão, reverendo padre, a saúde do meu corpo não deixa nada a desejar, mas vou morrer dentro de
uma hora e queria que me preparasse para uma morte cristã. Em poucas palavras, dir-lhe-ei que sou membro
de uma sociedade secreta, na qual fui promovido a um dos mais altos postos, porque era apreciada a minha
influência no Estado e na sociedade, assim como a minha firme decisão em levar a cabo as mais difíceis em-
presas. Audaz e voluntarioso, cumpri durante mais de vinte oito anos os objectivos da nossa sociedade.
Quando, há pouco, fui designado pela sorte para tirar a vida a um venerável prelado estimado por todos,
rejeitei resolutamente essa incumbência, embora estivesse certo de que tal negativa me custaria a vida, se-
gundo os nossos rigorosos estatutos. A sentença foi pronunciada: vou morrer dentro de uma hora. Quando
entrei na sociedade, não quis prestar o juramento de recusar a ajuda espiritual na vida e na morte, porém,
apesar disso, admitiram-me, porque podia ser para eles um membro útil; por isso, agora aceitaram a minha
petição de que viesse um sacerdote. E recorreram a si, um estrangeiro, para evitar qualquer suspeita, ao tra-
tar-se de uma pessoa com poucas relações nesta cidade.»
Diz-me também que vão executar a sua sentença cortando-lhe as duas veias da garganta junto à clavícula;
assim, não ficará nenhuma ferida aberta. E acrescenta que matou muitos deste modo, por faltarem à sua pa-
lavra ou por outras razões.
«Esta sentença – explica-me – cumprir-se-á inexoravelmente: as teias secretas da nossa sociedade esten-
dem-se por todo o mundo».
1843
Depois, pede-me que o confesse logo, pois o tempo é limitado. Nunca na minha vida tinha eu dito com
mais fervor: «O Senhor esteja em teu coração e em teus lábios, a fim de que me confesses bem os teus peca-
dos».
Ainda não tinha passado uma hora, quando a porta se abriu bruscamente e se apresentam três homens pa-
ra o levar. Ele, angustiado, pede meia hora mais para acabar a sua confissão. Os outros recusam e agarram-
no. Porém, invocando ele a promessa que lhe havia sido feita de lhe deixar liberdade para se preparar para
morrer e unindo-me eu aos seus rogos, concedem-lhe mais vinte minutos. Então termina de confessar os seus
pecados, mostrando o maior arrependimento e, recebida a absolvição, beija-me agradecido a mão, na qual cai
uma lágrima furtiva.
Não posso ministrar-lhe a comunhão, tanto porque me falta a autorização do pároco como porque os pati-
fes não me vão dar tempo para isso; porém, tirando do pescoço uma relíquia da santa cruz, metida num reli-
cário de prata, dou-lha, dizendo-lhe que invoque até ao último momento Aquele que não se envergonhou da
ignomínia da cruz para nos salvar dos nossos pecados. Ele toma-a com fervor, beija-a e põe-na ao pescoço
por baixo da roupa.
1844
Pergunto-lhe se não tem alguma incumbência a fazer-me. Então diz-me que deseja pedir perdão à sua es-
posa, a mulher mais virtuosa do mundo, pelos erros que o levaram a um deplorável fim e acrescenta que tem
uma filha religiosa no Sagrado Coração, a qual o ama tão profundamente, que ficará feliz por ouvir dizer que
ele teve uma morte cristã. Eu preciso de lhes demonstrar de algum modo que realmente tive um encontro
com ele, pelo que peço-lhe que escreva no meu caderninho alguma coisa para elas. Com um lápis traça estas
linhas:

«Minha querida Clotilde: no momento de deixar este mundo, peço-te que me perdoes o grande desgosto
que te causo com a minha morte! Saúda a minha querida filha e consolai-vos uma à outra com a certeza de
que morro reconciliado com Deus e espero ver-vos lá em cima. Rezai muito pela minha pobre alma!
Teu Teodoro»
Já conheço, pois, o nome do condenado que me suplica que lhe infunda ânimo e força. Apenas pude dizer
algumas palavras, uma vez que a porta se abre e entram quatro homens para o agarrar. Eu imploro-lhes, com
tudo que de mais comovedor lhes posso dizer, que perdoem a vida a um esposo e a um pai tão querido.
Vendo que todas as minhas palavras são inúteis, atiro-me a seus pés, pedindo-lhes que me matem a mim
em seu lugar. Como única resposta, recebo um pontapé. Amarram a sua vítima, que no momento de sair se
volta para mim e me diz:
«Deus lhe pague, padre, todo o bem que me fez. Lembre-se de mim no Santo Sacrifício!»
Depois disso, levam o condenado e eu fico como que paralisado pelo terror. Com lábios trémulos rogo a
Deus que tenha com aquele desditoso a misericórdia que já não encontra entre os homens. O que eu sofri
nessa hora só o sabe Aquele que tudo conhece.
Mas não é este um barulho? Sim, cada vez mais próximo: são passos de gente que se aproxima. A porta
abre-se e vejo diante de mim os terríveis verdugos. Que são aquelas sinistras manchas que trazem nas mãos?
1845
Sangue fraterno! Agora – penso – é a minha vez! Sem me dizerem nada, apresento-lhes as mãos para que
mas amarrem; mas eles fazem-se desentendidos e apenas me vendam os olhos. De novo uma série de escadas
e de corredores e movimento de pessoas. Aqui um perfume refinado a delicadas essências, ali, um cheiro de
podridão que me chega até à medula.
Finalmente tiram-me a venda e encontro-me numa sala ricamente iluminada e mobilada com grande luxo.
Sobre a mesa, coberta com uma rica toalha de damasco, há travessas a transbordar de pastéis, de frutas do
Sul e de toda a espécie de guloseimas; sobre o aquecedor a álcool, um recipiente de prata deixa sair, fume-
gante, o genuíno aroma do chá da China; inumeráveis garrafas de diversas formas, cores e rótulos fazem
pressentir ali uma sumptuosidade digna de Lúculo. Algumas senhoras acercam-se e oferecem-me refrescos.
Não os aceito, alegando que tenho que celebrar missa pela manhã e já é mais de meia-noite. Porém, a verda-
de é que não consigo libertar-me de uma terrível suspeita: o veneno e o punhal são irmãos.
Então exprimo o meu desejo de partir. Alguns senhores, mas não os de antes, acompanham-me depois de
me terem vendado os olhos. Descemos muitas escadas e finalmente metem-me no carro.
Depois de um percurso de várias horas, a carruagem pára. Silenciosos, os meus acompanhantes fazem-me
descer e depois de uns passos sentar-me sobre um objecto de ferro. Tratar-se-á de uma guilhotina ou de um
instrumento de tortura? A cada momento penso que a minha cabeça vai ficar separada do meu corpo ou que
um punhal vai cravar-se no meu coração. Passo uma hora numa angústia de morte. Ao não ouvir ninguém,
procurei levantar um pouco a venda dos olhos e vejo que me encontro num campo bem cultivado, onde flo-
res e hortaliças dormem ainda o sono do Inverno.
Ponho-me de pé para ver a forma de sair para o caminho. Chamo a uma porta e abre-me uma mulher jo-
vem, surpreendida por receber visitas tão de madrugada. Eu desculpo-me dizendo que venho de assistir um
moribundo, porque não quero contar nada do sucedido, por temor de que esta família estivesse de acordo
com os maçónicos.
Diz-me que estou a três horas de caminho de Paris e que, se quiser ir para lá, como o seu marido vai para
Paris levar flores e verduras, ele poderá levar-me no carro. Aceito agradecido a oferta e encaminhamo-nos
para Paris.
1846
Aquela manhã não celebrei, porque estava demasiado nervoso. A missa do dia seguinte, que ofereci pela
vítima da sociedade secreta, celebrei-a na igreja do mosteiro do Sagrado Coração. Depois tive que falar com
a superiora e, ao ver-me tão agitado, ela quis a todo o custo saber a razão.
Contei-lhe tudo, recomendando-lhe que guardasse segredo. Explicou-me que realmente uma das suas frei-
ras era filha daquele infeliz; ela rezava muito pelo seu pai, cuja pertença à sociedade secreta conhecia e que
se sentiria muito consolada com a notícia da sua conversão. Porém, eu proibi-lhe de, por enquanto, lho dizer.
Dois dias depois, festa de Natal, lançando uma vista de olhos a um jornal de Paris, vi que na lista dos
mortos figuravam alguns por identificar e que estavam depositados na morgue. Fui lá, mas entre os seis ca-
dáveres que havia não reconheci o infeliz que procurava. De repente, pendurada na parede, vi a preciosa
relíquia da cruz verdadeira. Emocionado, examinei melhor o cadáver que estava mais próximo dela: meu
Deus! Era realmente ele! Embora desfigurado pela morte, os seus traços característicos eram reconhecíveis.
Para maior segurança, descobri-lhe o pescoço e os ombros. No pescoço viam-se dois buracos: as veias do
pescoço tinham sido abertas. Já não havia dúvida: era ele mesmo.
1847
No dia seguinte fui de novo celebrar ao Sagrado Coração, como tinha prometido. Terminada a missa, veio
à porta uma freira que me disse entre suspiros e soluços: «Suplico-lhe que na missa e nas suas orações reze
pelo meu pobre pai». «Posso perguntar-lhe que aconteceu a seu pai?» Ah, respondeu ela, temo tê-lo perdido
nesta vida e para a eternidade!... Se ele tivesse sofrido a morte em estado de graça, poderia resignar-me à sua
perda; mas morrer tão cedo depois de uma vida longe de Deus... é terrível e doloroso! Ah, se eu pudesse
salvar a alma de meu pai! Quereria sofrer todas as doenças e penas desta terra, até suportar os próprios tor-
mentos do Inferno, contanto que salvasse a sua alma!»
«Console-se, irmã! O Salvador teve também piedade do bom ladrão. As suas orações por seu pai terão
dado fruto». «Duvido, porque o meu pai pertencia a uma sociedade secreta, cujos membros recusam à hora
da morte todo o conforto espiritual». «E se o seu pai tivesse recebido o conforto da religião?»
1848
A freira olhou-me duvidosa e sem esperança. Então eu tirei do bolso o meu caderninho e mostrei-lhe a úl-
tima página. Os seus olhos transfiguraram-se. Levou aos lábios e beijou aquelas palavras escritas e, caindo
de joelhos com os braços levantados, olhou para o céu a chorar e exclamou com voz comovida: «Graças a
Deus eternamente! O meu pai salvou-se!»

(P.e Daniel Comboni)

N.o 291 (1200) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM «NOTRE DAME DES VICTOIRES», EM PARIS
ANPD, Registo de missas

N.o 292 (1201) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


NA IGREJA DO CAIRO
ACR, A 24/1

N.o 293 (275) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


NA IGREJA DOS INSTITUTOS DO CAIRO
ACR, A, 24/1
N.o 294 (276) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS
EM «NOTRE DAME DES VICTOIRES», EM PARIS
ANPD, Registo de missas

N.o 295 (1151) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM ST.a CATARINA, EM ALEXANDRIA DO EGIPTO
ASCA, Registo de missas
1869

N.o 296 (277) - A CLAUDE GIRARD


AGB

V. J. M.
Limone, 16 de Janeiro de 1869

Meu muito estimado amigo,

1849
A morte do nosso querido P.e Dalbosco causou-me uma grande dor. Lamento muito ter-me visto na abso-
luta impossibilidade de me deter um dia em Grenoble, como tinha pensado. Somente o fiz em Chambery, em
casa do nosso bom amigo, o senhor Bouchat, a quem disse o que tinha que fazer. Ele será o meu intérprete
quando o senhor visitar mons. Canossa. Tem um grande interesse pela obra! Em Lião falei com as nossas
damas, que lhe mandaram uma caixa ou duas para mim: peço-lhe que as envie de imediato para Marselha, ao
sr. Laurent, 35 Boulevard National. Oh, prepararam umas coisas preciosas para as minhas negras e para a
minha capela; porém, é para com o senhor que tenho uma verdadeira dívida de gratidão. O senhor conhece-
me no profundo do coração. Enviar-lhe-ei alguns dados sobre a vida de P.e Dalbosco, que era um santo. No
dia 25 estarei em Marselha. Do Egipto, escrever-lhe-ei muito, porém, não diga nunca que sou eu...
O sr. Bouchat explicar-lhe-á tudo. Lembre-se de que o meu coração, a minha amizade e a minha devoção
para com a sua pessoa continuam a ser os mesmos: o senhor conhece-me a fundo, como eu o conheço a si. O
seu coração é incomparável. Adeus, meu amigo. Expresse os meus sentimentos de respeito e agradecimento
ao superior e aos padres de La Salette. Mande-me também para Marselha as velas de La Salette e muitas
coisas.
Saudações à senhora Girard e aos seus queridos filhos e creia-me sempre

Seu af.mo amigo


e
P. Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 297 (278) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/65

Vivat + Jesus
Viena, 25 de Janeiro de 1869

Excelência rev.ma,

1850
Apesar dos resultados pouco brilhantes, não vim inutilmente à Áustria. A sociedade a que preside o car-
deal-arcebispo e a presidida por mons. Kutchkar não estavam em condições de me dar nada, porque a primei-
ra é exclusivamente para a América do Norte e a segunda, muito escassa de meios, atende só Cartum.
Contudo, S. Em.a ofereceu-me francos 100
e a Sociedade de mons. Kutchkar “ 50
o conde de Chambord “ 60
Mons. Bragato “ 100
e a Sociedade da Imac. Conceição “ 1000

Total de francos em ouro 1310

1851
O duque de Módena deu-me uma boa carta escrita pelo seu punho e letra, dirigida ao paxá, na qual lhe so-
licita uma casa para nós no Cairo. E tendo sido muito bem recebido pelos reverendos da corte de Praga, redi-
gi uma petição formal a Suas Majestades Fernando e Maria Ana; e há a perspectiva de uma próxima e impor-
tante importância em dinheiro, uma vez que conto com o apoio de Negrelli e Bragato, os quais me disseram
que a nossa obra é das mais importantes do catolicismo. Para não perder tempo, só estive quatro horas em
Praga. Receba as considerações mais distintas do nosso querido duque de Módena (também para o marquês
Octávio), assim como do card.-arcebispo, de mons. o núncio apostólico, de mons. Kutchkar, de mons. Mis-
lin, de Negrelli, de Bragato, etc, etc., e abençoe o seu indigno mas af.mo filho

P.e Daniel Comboni

1852
Amanhã à noite deixo Viena, quatro horas em Veneza e depois Verona.
P. S. Teremos a graça de levar Tezza para o Egipto? Por favor, faça tudo o que estiver em suas mãos!
Carcereri, Franceschini e eu ficaremos contentes. Porém, haveria que fazê-lo sem irritar o card. Barnabó. A
sua qualidade de responsável da obra, de visitador apostólico dos camilianos vénetos, mais as respostas do
Santo Padre, são três motivos que deveriam persuadir o cardeal. Ah, Guardi e Artini decaíram muito, em
minha opinião! Deus os abençoe sempre e fiat voluntas Domini.

N.o 298 (279) - AO PRESIDENTE


DA PROPAGAÇÃO DA FÉ – LIÃO
APFL, Cart. 1869, Pacchetto Egypte, Lett. N.1

V. J. M. J.
Marselha, 19 de Fevereiro de 1869

Senhor presidente,

1853
A morte do rev.do P.e Dalbosco, superior do meu seminário de Verona e a doença muito grave durante
oitenta e sete dias de meu pai, de quem sou filho único, constituem os motivos pelos quais o meu caro bispo,
mons. Canossa, com pesar meu, me reteve em Verona. Graças a Deus, parti de lá no dia 15 e amanhã às qua-
tro da tarde sairei no Saïd para Alexandria com seis membros da minha missão.
1854
Aqui recebi do sr. Moutte mil e quinhentos francos, que o senhor teve a bondade de me fazer chegar. Não
tenho palavras para mostrar a minha gratidão pela máxima delicadeza e extraordinária caridade que teve para
comigo, à minha passagem por Lião, ao entregar-me, na noite da minha partida, a importância de mil e qui-
nhentos francos. Razão de sobra para que me esforce por corresponder à sua bondade com uma maior entre-
ga à conversão dos negros, porque nada pode tornar mais gratos os seus desvelos pela Propagação da Fé do
que um bom resultado nos esforços dos missionários.
1855
Não disponho de tempo para lhe escrever mais extensamente, senhor presidente. Rogo-lhe que apresente
os meus afectuosos respeitos ao sr. abade Des Georges, a quem escreverei do Cairo, ao sr. redactor do jornal,
ao sr. Maynis, etc. e seja intérprete do meu agradecimento para com todos os da Propagação da Fé.
Aceite, sr. presidente, receber a afirmação da minha mais alta estima.

Seu devotíssimo
e
P. Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 299 (280) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Egitto, v. 21, p. 28r
Marselha, 20 de Fevereiro de 1869

Em.mo Príncipe,

1856
Só duas linhas para lhe comunicar que hoje parto de Marselha em direcção ao Cairo com um sacerdote
membro do nosso pequeno seminário de Verona e com outras quatro pessoas (duas boas mestras negras, um
catequista e artesão e uma mestra de lavores).
Do Cairo mandar-lhe-ei um relatório verídico sobre o estado das minhas duas pequenas casas, aprovado
pelo nosso venerando pai, mons. Ciurcia.
Invoco a caridade de V. Em.a Rev.ma para lhe suplicar que me atribua alguns objectos da Obra Apostóli-
ca na próxima distribuição de Março.
Na confiança de ser escutado, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me

De V. Em.a hum. e dev. filho


P.e Daniel Comboni.

N.o 300 (281) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR,A, c. 14/66

Marselha, 20 de Fevereiro de 1869

Excelência rev.ma,

1857
Hoje às quatro da tarde parto com todos para Alexandria do Egipto no gigantesco vapor Saïd. Em Marse-
lha consegui passagem grátis só para os cinco cujo nome eu tinha dado em Paris; por isso telegrafei ao minis-
tro e ontem recebi um despacho no qual se me comunicava a concessão da passagem para os outros dois:
Stampais e Valério. Combinei (com a madre geral, entenda-se) confiar Stampais à Ir. Eufrásia, visitadora do
Oriente, que agora se encontra no Cairo; parece que fará o noviciado em Jerusalém, depois de uns meses de
prova no Cairo. Não pude conseguir mais da madre geral, que, por sua parte, despertou nela o entusiasmo
pela vida religiosa e apostólica. O terreno é bom.
Nós rezamos sempre por V. E. Rev.ma que tem sido e é nosso autêntico pai e verdadeiro amigo e protec-
tor dos pobres negros.
Apresente os meus respeitos ao marquês Octávio e família e a mons. Perbellini, Crosatti, etc.
Beijo-lhe o sagrado anel, cheio de eterno agradecimento. Tenho muito boas notícias do Cairo.

Seu obediente filho


P.e Daniel Comboni

N.o 301 (282) - HORÁRIO PARA O INSTITUTO MASCULINO


ACR, A, c. 13/6

Cairo, 5 de Março de 1869

N.o 302 (283) - REGULAMENTO PARA OS MISSIONÁRIOS


ACR, A, c. 25/5

Cairo, 15 de Março de 1869

REGULAMENTO
Para os missionários dos institutos de negros do Egipto
1858
Seguindo o exemplo de Jesus Cristo, dos Apóstolos e das principais associações católicas que têm como
sublime tarefa a evangélica regeneração dos povos infiéis, também os missionários dos institutos de negros
do Egipto, chamados a cooperar na medida das suas forças na regeneração da infeliz Nigrícia, segundo as
normas do Plano para a Regeneração da África, à espera de formular um regulamento estável e perpétuo
para submeter à aprovação da S. C. de Propaganda, conforme os resultados da prova e de uma suficiente
experiência local, a título experimental deram a si próprios e seguem desde há mais de um ano, como direc-
trizes da sua vida apostólica no ditos institutos, as normas seguintes:
1859
1.a Os nossos missionários, quer sacerdotes quer leigos, vivem juntos como irmãos na mesma vocação –
sob a direcção e dependência daquele que fosse nomeado como superior local do instituto, a que são destina-
dos pela autoridade competente –, sem rivalidades nem pretensões, inclinados a fazer aquilo que se lhes
manda, dispostos a compreenderem-se e a ajudarem-se mutuamente, sempre respeitosos para com outros
missionários do lugar, com os quais procurarão viver sempre em perfeita harmonia, inclusive no exercício do
ministério.
1860
2.a Ainda que não obrigados por voto, professam ao superior uma religiosa e filial obediência em tudo,
por amor de Deus, da boa ordem e do verdadeiro progresso da obra a que se consagraram. E a dependência
dele abrange o próprio exercício do ministério, o desempenho dos diversos cargos do instituto, o modo e a
forma da educação a ministrar aos negros, as saídas de casa e a assunção de incumbências da parte de estra-
nhos, de maneira que cada um trabalha de acordo com ele, com o seu consentimento e licença.
1861
3.a Por sua parte, ele considera-se pai e irmão a respeito deles. Mostra-se aberto a secundar no que puder
o seu zelo e os seus justos desejos e a prover às suas necessidades; distribui as diversas tarefas atendendo à
habilidade, à inclinação e à força de cada um; procura, em caso de doença, que o doente recupere da melhor
maneira possível e rapidamente a saúde, procurando, além disso, os meios que ajudam a conservá-la e evita
recorrer a disposições demasiado severas, sem grave e urgente necessidade.
1862
4.a O superior é responsável do instituto e dos que formam parte dele. É da sua competência directa o go-
verno e a administração do mesmo e a vigilância sobre cada um, assim como a representação perante todas
as autoridades locais e igualmente lhe cabem todas as demais funções inerentes ao cargo de responsável do
instituto. Porém, nos assuntos de maior importância, pede a opinião dos mais prudentes e experimentados
entre os seus irmãos, sobretudo quando houver motivo para temer perigosas consequências.
1863
5.a Ninguém manda relatórios ou cartas destinados a ser impressos, nem mesmo às sociedades benfeitoras
dos nossos institutos, sem receber o encargo ou a prévia aprovação do superior.
1864
6.a Todos levam uma vida em comum, contentes tanto com a comida como com a roupa, os móveis, os
livros e demais coisas que o instituto pode fornecer, na medida dos seus recursos. Só aos sacerdotes é permi-
tido usar para suas necessidades particulares o que receberem dos seus familiares ou dos seus próprios pro-
ventos; porém, abstêm-se de administrar directamente os bens particulares que possuírem na sua pátria e
cedem em favor do instituto as esmolas para aplicações de missas ou funções religiosas, etc., etc.
1865
7.a A principal ocupação dos missionários nos institutos é a de colaborar com o superior na direcção dos
mesmos, naquilo em que ele requer a cooperação de cada um; e isto entende-se especialmente no que respei-
ta à educação dos negros nas ciências e artes principais, no catecismo, no cuidado com os doentes, etc., se-
gundo as normas especiais de cada instituto. Quanto aos sacerdotes, segundo as disposições particulares da
autoridade competente, têm a seu cargo a direcção espiritual nos institutos masculino e feminino, assim co-
mo o ministério da pregação e instrução religiosa também em ambos os institutos e onde, a juízo do superior,
se precisar da sua colaboração.
1866
8.a Os sacerdotes nunca abandonam o estudo, tão necessário para cumprir devidamente as obrigações do
apostolado entre os infiéis e especialmente perante inveteradas superstições e às vezes ministros afectos a
seitas e religiões perversas. Por isso, o superior procura, se for possível, que cada dia, à excepção dos festi-
vos, tenham em comum uma hora de estudo e de prática da língua do país. E todas as segundas, quartas e
sextas-feiras os sacerdotes, por turnos, propõem para discussão um caso de moral, um de dogmática, um de
direito canónico ou liturgia e um terceiro de controvérsia, tendo este último especialmente como tema os
erros dominantes no lugar onde se acha o instituto. O proponente expõe os seus casos um dia antes, no lugar
previamente acordado, a fim de que no dia e hora fixados para a discussão todos estejam prontos para res-
ponder. Neste exercício podem participar também os sacerdotes e missionários do lugar, mesmo que sejam
de outro rito, a juízo do superior. A proposição dos casos faz-se em língua latina.
1867
9.a Os exercícios de piedade são o pão diário dos nossos missionários, reconhecendo-se a sua enorme im-
portância para manter a chama da vocação nestes países, onde infelizmente é fácil esquecer-se de Deus e dos
deveres religiosos. Portanto, todos os dias celebram ou assistem à missa, rezam o terço e fazem leitura às
refeições, o exame de consciência, além das orações orais em comum ou individualmente, segundo o horário
diário estabelecido em cada um dos institutos.
1868
Todas as semanas se participa nos Ssmos. Sacramentos, todos os meses se faz o retiro de um dia, e todos
os anos um curso de exercícios espirituais. Todos os dias festivos se faz, pela manhã, a explicação do Evan-
gelho ou de qualquer aspecto de moral prática e, à noite, explica-se o catecismo e dá-se a bênção com a sa-
grada píxide. Na 1.a sexta-feira de cada mês faz-se o exercício da Guarda de Honra do Sagdo. Coração de
Jesus. Celebram-se os meses de Março e Maio, as novenas ou tríduos das festas principais e das do instituto
com pregações e exercícios particulares de devoção.
1869
10.a Como o objectivo dos nossos institutos é o de acelerar a conversão da pobre Nigrícia, os nossos mis-
sionários, tal como os nossos negros e negras, rezam todos os dias publicamente para este fim, e todas as
quartas-feiras se realiza, por parte de todos, uma pública adoração ao Ss.mo Sacramento e se aplica uma
missa pela conversão da Nigrícia.
1870
11.a Nas relações com as pessoas de fora, cada um tem em conta o único fim pelo qual abandonou a pá-
tria, a família e tudo, que é o de ganhar almas para Cristo. Portanto, embora os nossos institutos e a nossa
missão particular determinem como devem actuar os nossos missionários com os pobres negros, contudo – e
mais ainda os sacerdotes – aproveitam as ocasiões propícias para fazer a todos indistintamente o maior bem
possível, recordando que foram consagrados ministros d’Aquele que padeceu e morreu por todos. Tratando-
se, todavia, de conversões de adultos, cada um procede de acordo com o superior, que, segundo os casos, se
dirigirá ao vigário apostólico e à autoridade competente. Aos meninos moribundos não católicos só se admi-
nistrará o baptismo quando se encontrarem em evidente perigo de vida e sempre com as devidas cautelas.
Estes baptismos registam-se à parte, com a indicação da morte do menino, quando ocorrer.
1871
12.a Quanto aos nossos institutos femininos, nenhum dos missionários vai visitá-los ou exercitar neles
qualquer obra de caridade ou de ministério, sem ser encarregado pelo superior ou obter, vez a vez, a sua au-
torização, salvo em casos de necessidade repentina, na ausência do superior. O que fica dito vale também
para as famílias particulares e considera-se grave o não cumprimento desta norma.
1872
13.a Nos nossos institutos observa-se a devida clausura, consagrada pelo seu uso constante em todas as
associações eclesiásticas e religiosas e regulada nas missões pelas circunstâncias e pela prudência do superi-
or. As mulheres só podem ser introduzidas na sala comum de visitas, fora as excepções que o superior julgar
oportunas por ocasião de visitas extraordinárias ou de piedosas benfeitoras.
1873
14.a Nos institutos femininos, as irmãs directoras regem-se pelas suas próprias regras e constituições e as
normas particulares da sua fundação.
1874
15.a Por último, sob a direcção dos missionários e das irmãs, os negros e as negras dos institutos masculi-
nos e femininos são preparados para a prática do apostolado na sua pátria, segundo apropriados e particulares
regulamentos e horários, que serão aperfeiçoados com o desenvolvimento da obra.

O superior, P.e Comboni


N.o 303 (284) - MENSAGEM A PIO IX
«L’Unità Cattolica» 79 (1869), p.551

Cairo, 19 de Março de 1869

Beatíssimo Padre,

1875
Não todos italianos de nacionalidade, mas todos católicos de coração e, quanto ao afecto para convosco,
Santo Padre, émulos ardentes entre os mais fervorosos, o superior com os missionários e missionárias, alunos
e catecúmenos dos dois institutos de negros do Cairo, por Vós várias vezes paternalmente abençoados, ao
concluir felizmente sob a protecção do glorioso Patriarca S. José os exercícios anuais, unem-se para aplaudir
com toda a alma a mensagem de amor e de fé que a verdadeira juventude católica italiana promoveu e que o
mundo católico vos vai oferecer no dia 11 de Abril próximo.
1876
Se uma calorosa expressão de amor filial vos pode consolar um instante que seja nas vossas muitas amar-
guras, apressamo-nos a oferecer-vo-la exultantes, assegurando-vos que, continuamente, desde as margens do
Nilo, desde o pé das pirâmides, desde os requeimados areais do deserto, vos dirigimos, quais filhos obedien-
tes, a atenção como ao Mestre infalível, o olhar como a exemplar perfeito, o coração como a Pai amoroso e
todo o sentimento da alma como ao adorado Pontífice do povo de Cristo, injustamente perseguido, iniqua-
mente caluniado, sacrilegamente ofendido, grande nos triunfos, supremo nas desventuras, pródigo com os
ingratos, clemente com os inimigos, justo, generoso e piedoso para com todos, assombro dos próprios infiéis.
1877
Tristíssimos sempre de saber-vos aflito, saudamos com alegria aquele dia de puríssimo gozo, que Deus
vos prepara na celebração do quinquagésimo aniversário do vosso santo sacerdócio e fazemos votos fervoro-
sos para que essa dita se prolongue por muitos anos.
Naquele dia sagrado para nós, festa do patrono Bom Pastor, entre os recintos da santa capela, venerado
refúgio no Egipto da Sagrada Família, ao fugir da perseguição de Herodes, rogaremos especialmente por vós,
Pastor dos Pastores, a fim de que no iminente Concílio Ecuménico o Céu escute o vosso piedoso desejo de
ver reunidas todas as ovelhas de Cristo no mesmo redil, sob um só pastor.
Unimos a estas expressões de profundíssima devoção o óbolo da nossa pobreza, constituído por 25 liras,
na certeza de que Vós querereis abençoar o afecto com que nós desejaríamos multiplicá-lo à medida das
grandes necessidades da vossa augusta penúria.

P.e Daniel Comboni


Missionário apostólico
Superior dos institutos dos negros

N.o 304 (285) - A CLAUDE GIRARD


AGB

V. J. M. J.
Cairo, 19 de Março de 1869

Meu caro amigo,

1878
Não recebendo a Revista da Terra Santa e lendo a carta que enviou para Marselha ao sr. Laurent, pergun-
to-me se perdi o seu favor e a sua amizade e a isso me persuade ainda mais o seu mau projecto de desviar o
caritativo envio que me destinou a sra. Duphies para o oferecer ao nosso caro amigo, o P. e Calisto, sem pen-
sar que eu tenho trinta negras carenciadas de roupa e o P.e Calisto nenhuma. Eu porém, não levo isso a mal,
porque conheço o seu coração: pode zangar-se por um instante, mas quando se toca a caridade de que está
cheio o seu coração, não pode subtrair-se e a zanga acabou. Envie-me, pois, rapidamente, peço-lhe a caixa da
sra. Duphies, porque as minhas negras estão meio nuas e prepare outra para quando o P.e Calisto vier para
África. Já celebrei as missas segundo a intenção das de Lião, que deram as ofertas e se nos haviam recomen-
dado.
Na caixa há:

2 paramentos novos, um vermelho, outro branco, etc.


1 paramento branco
1 alba grande
2 toalhas para o altar
38 túnicas para as negras
1879
Peço-lhe que a tudo isto acrescente muitas coisas, candeeiros, etc.; estou numa extrema pobreza; mande-
me muitas coisas, mas depressa, já, porque tenho muita necessidade.
Lamento sabê-lo doente. Há que ter ajudas, um comité, porque é demasiado uma revista inteira para as
suas forças. Por favor, escreva-me, contando-me porque está zangado comigo. Tem de dizer-me todos os
motivos, porque quero responder-lhe e justificar-me. O meu caro amigo Girard não pode continuar irado.
Nós trabalhamos todos para a glória de Deus e não é preciso afogar-se num copo de água.
Mande-me a revista e quanto às assinaturas que lhe propus, mande-me a conta, que eu lhe pagarei. Escre-
ver-lhe-ei ainda para lhe desejar uma boa Páscoa a si, à sra. Girard, a seus filhos, ao superior dos missioná-
rios de La Salette e a todos os padres.
1880
O bispo de Grenoble tinha-me convidado a ir visitá-lo no meu regresso, mas não pude, porque um tele-
grama me chamou a Verona. O sr. Bouchat deve ter-lhe explicado tudo. Apresente-lhe também os meus res-
peitos. O que disse ao sr. Bouchat foi o que fiz, é o que um amigo tem que fazer: o seu coração de apóstolo
deve dar-me toda a razão.
Conte-me tudo. Nós queremos ir para o Paraíso como verdadeiros missionários e há que não tratar-se as-
sim.
Envio ao P.e Calisto a resposta de sua Em.a o card. Barnabó ao bispo de Verona a respeito dos Trinitá-
rios. Leia tudo e mande-o logo para Roma ao P.e Calisto.
Adeus, caro amigo. Mande-me a caixa da Sra. Duphies e uma caixa sua, porque estou muito necessitado.
Também me dirigi à dita senhora. Adeus.

Seu eterno amigo


e
P. Daniel Comboni

Rogo-lhe me envie também um missal.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 305 (1202) - ASSINATURA NO REGISTO


DE BAPTISMOS – CAIRO
ACR, A,c. 24/3

Cairo, 27 de Março de 1869

N.o 306 (286) - À ABADESSA MARIA MICHAELA MÜLLER


AMN, Salzburgo

V. J. M. J.
Cairo, 4 de Abril de 1869

Reverenda madre,

1881
Escrevo-lhe, minha reverenda madre, com o coração cheio de dor, para responder à sua estimada carta de
16 de Fevereiro.
Os seus temores eram justificados: a nossa querida Petronila Zenab está no céu! Foi receber o prémio das
suas virtudes, que a madre lhe tinha inculcado e que ela conservou bem impressas na sua alma. Morreu con-
fortada pelos santos sacramentos, depois de a assistirem dia e noite as minhas freiras, as Irmãs de S. José (da
Aparição) e dois dos meus sacerdotes missionários.
1882
Desde o momento em que saiu de Marselha, fiz com que se prestassem todas as atenções possíveis, por-
que o merecia e muito mais porque eu via nela um instrumento especial nas mãos de Deus para o apostolado
da Nigrícia.
Tinha uma piedade admirável, que a própria madre lhe tinha incutido no coração, um discernimento mui-
to recto e uma educação tão distinta que me senti impulsionado a publicar sobre ela uma larga nota nos Anais
da Sociedade para o Socorro dos Pobres Meninos Negros, editados em Colónia, nos quais tinha já feito pu-
blicar uma breve história da sua libertação da escravidão, falando também de tanto amor e cuidados que ela
tinha recebido da bondosa Ir. Wenefrida, da qual me falava amiúde.
1883
Em resumo, a madre educou uma jovem que sem dúvida se encontra agora junto de Deus e formou-a para
o ministério apostólico. Durante o tempo em que ela esteve no meu instituto do Cairo, comportou-se sempre
como se fosse uma verdadeira religiosa. Já tinha aprendido bastante bem o árabe e instruiu e preparou duas
negras para o santo Baptismo. Infundia-nos grandes esperanças de que podia chegar a ser uma autêntica mis-
sionária para a África Central.
1884
Em Julho do ano passado deixei o Cairo para ir a França e Alemanha. Estive até em Munique e Altötting,
e, chegado a Traunstein, tinha já a intenção de me aproximar de Salzburgo para a visitar a si, assim como S.
E. o príncipe-arcebispo e sua majestade a imperatriz Carolina, quando o meu companheiro de viagem P. e
Alexandre Dalbosco adoeceu, morrendo depois em Verona. Era o superior do meu seminário para a missão
africana de Verona.
1885
Eu fui a Paris e antes da minha partida para o Egipto chegou-me a notícia da nossa Petronila. Ela tinha si-
do aqui o consolo da minha superiora e agora será nossa protectora no céu, onde se encontra junto da Santís-
sima Virgem e S. José, a quem amava e venerava intensamente. O seu corpo descansa no jazigo das minhas
negras, a doze passos da gruta ou santuário do santo refúgio da Sagrada Família, lugar em que Jesus, Maria e
José viveram durante os sete anos da sua estada no Egipto, a seguir à perseguição de Herodes.
1886
Rogo-lhe que eleve ao Senhor fervorosas preces pela obra da conversão da Nigrícia. Aqui no Cairo, ape-
nas a poucos passos da santa gruta, fundei dois estabelecimentos para negros. Este ano temos tido conversões
verdadeiramente singulares. A quase todas as negras convertidas do paganismo ou do Islamismo fizemos
vestir para o momento do Baptismo o vestido branco que envergou Petronila em Salzburgo quando foi bapti-
zada pelo próprio rev.mo sr. príncipe-arcebispo, vestido que, com todo o cuidado, conserva aqui a minha
superiora...
1887
Reze, madre, pelas minhas irmãs e pelos meus missionários! No Sábado Santo celebrámos um Baptismo
especialmente consolador e esta semana é a vez do baptismo de duas turcas convertidas, que agora se encon-
tram no meu instituto recebendo instrução.
Reze também pela nova casa, que tenho intenção de fundar no decurso deste ano, se conseguir superar as
inúmeras dificuldades.
1888
Na França, Bélgica, Alemanha e Itália tenho mais de duzentas casas religiosas que rezam a Deus para que
eu consiga levar a luz da santa fé ao interior da África, onde já estive várias vezes às portas da morte e onde
mais de trinta missionários, entre eles muitos alemães, de facto morreram.
Até agora, na sua infinita misericórdia, Deus tem-me ajudado e espero, antes, estou certo, que Ele fará
que eu consiga fundar uma casa para a conversão da Nigrícia. Porque sem dúvida sabe, minha boa madre,
que a palavra de Jesus Cristo tem mais valor que a dos soberanos desta terra; assim, o que está escrito no
Evangelho «pedi e dar-se-vos-á, chamai e abrir-se-vos-á» é muito mais seguro que o que figura no Tratado
de Viena de 1815 ou no de Paris de 1856 ou no outro de... de 1866 ou no Acordo de Paris de 15 de Setembro
de 1864, etc., etc., etc.
1889
De facto, quando a madre reza por mim, une-se às muitas casas religiosas de todo o mundo e a oração de
tantas almas tem que encontrar resposta no Coração Sacratíssimo de Jesus com um dar a quem pede e um
abrir a quem bate.
1890
A obra da conversão da África encontra-se entre as mais importantes do nosso tempo. É muito difícil, mas
Deus ajudará. Por favor, reze e faça rezar por ela, que o Senhor retribuirá a cem por um.
Como a madre, pelo facto de ter educado Petronila, participou de modo considerável nesta obra de con-
versão, permito-me enviar-lhe um exemplar do último número da «Sociedade de Colónia», que tem um arti-
go sobre a minha expedição ao Cairo, no qual também se nomeia Petronila; depois segue algo sobre o nosso
primeiro estabelecimento no Cairo...
Certamente lhe interessará muito. Depois de o ter lido, peço-lhe que o faça chegar às mãos de sua majes-
tade a piedosa imperatriz Carolina. Há uns meses mandei-o também ao rev.mo sr. príncipe-arcebispo de
Salzburgo. Estou certo de que encontrará nestas breves notícias motivo e estímulo para a oração. No primei-
ro fascículo publicado pela sociedade, que aparecerá em Colónia este mês, deve vir uma ampla informação
sobre Petronila.
1891
Peço-lhe novamente que exprima a minha mais profunda veneração a sua alteza o rev.mo sr. príncipe-
arcebispo de Salzburgo, a quem tenho a honra de conhecer desde há bastante tempo. Ia escrever-lhe a ele
para o notificar da morte de Petronila; porém, dado que entretanto tive a sorte de receber a sua apreciada
carta, decidi enviar-lhe a si o meu escrito.
Para a obra da África devemos contar também com os beneditinos, que noutros tempos converteram a Eu-
ropa; tenho já a promessa do rev.mo P.e Casaretto (ex-superior dos missionários beneditinos), em Roma, de
que, apenas eu tenha a obra suficientemente organizada em duas estações, mandará em minha ajuda um pe-
queno grupo tirado de entre as fileiras dos filhos do patriarca S. Bento.
Agora, minha reverenda madre, digne-se aceitar de novo a expressão da minha profunda veneração.

P.e Daniel Comboni


Missionário apostólico

Original alemão
Tradução do italiano

N.o 307 (287) - À SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 17 (1870), pp. 71-73

Cairo, 8 de Abril de 1869

Notícias várias procedentes das cartas de Comboni.

N.o 308 (288) - A ANTÓNIO D’ABBADIE


BNP (Fonde d’Abbadie), Nouv. Acq.

14 de Abril de 1868

É uma direcção de carta.

N.o 309 (289) - A VIRGINIA D’ABBADIE


BNP, Nouv. Acq. 23852

Cairo, 16 de Abril de 1869

Minha caríssima e venerada senhora,


1892
Sempre que tenho a sorte de escrever ao nosso caríssimo e venerado sr. D’Abbadie, o meu coração palpi-
ta. Ele é o «Pater Patriae», o herói de África, o pai, o amigo, o apóstolo da Etiópia. E a senhora? A senhora
é a sra. d’Abbadie e isto basta para ter direito ao nosso respeito e afecto.
A razão que me leva a escrever-lhe agora é a circunstância de ter aqui no Cairo os príncipes abissínios.
Vieram a fim de obterem do patriarca copta um bispo para a Abissínia. Obtiveram-no e já foi sagrado há uns
dias. É o abuna Atanásio. Estes príncipes (príncipes da Abissínia: assim são chamados no Cairo e, como tais,
hospedados no palácio do paxá) vi-os com o paxá nos dias do Grande Bairam, onde junto com o patriarca
copta e os chefes de todas as religiões fui render homenagem a Sua Alteza, e igualmente por altura do casa-
mento da filha do vice-rei. Agora, tendo estado em contacto com o patriarca, conheci aquele que escreveu ao
sr. António e ao sr. Miguel. É um homem de talento, que conhece toda a família do sr. d’Abbadie – a sua
mãe, os seus irmãos, etc. – e que esteve em Paris e na quinta do sr. D’Abbadie.
1893
Pediu-me que pusesse a data na sua carta, ou seja, a de anteontem. Ele fica ainda no Cairo com os seus
príncipes por mais um mês, depois saem para Tigré. Portanto, se o sr. António quiser escrever ou responder,
só tem que dirigir-me a correspondência ao Cairo, que eu me encarrego de lha fazer chegar às mãos.
1894
De monsenhor Massaia correu por duas vezes o boato de que tinha sido assassinado por muçulmanos no
reino de Shoa, mas depois a notícia foi desmentida. Estes príncipes falam muito mal do imperador Teodoro:
afirmam que era mau. Dizem-me eles que tudo vai bem na Abissínia, que o actual rei, Kassa, eleito por una-
nimidade, tem 34 anos e é descendente dos mais antigos monarcas da Abissínia e que o povo está orgulhoso
dele. Dizem-me também que na Abissínia nunca os ingleses mandarão e que, depois da morte de Teodoro,
eles retirarão atrás do representante do povo abissínio. Falaram-me, além disso, da veneração e da boa recor-
dação que a Abissínia conserva dos senhores António e Miguel d’Abbadie.
Quanto a mim, senhora, encontro-me no Cairo à frente de dois Institutos que me custam vinte mil francos
ao ano.
1895
Tenho muita esperança; temos feito conquistas não indiferentes para a Igreja. Lamento ter tido que deixar
Paris de improviso, antes de ir vê-la e visitar também o sr. Bebieh, como era minha intenção. Peço-lhe que
me envie notícias suas para o Cairo, que expresse todo o meu afecto ao sr. D’Abbadie e que aceite os senti-
mentos mais devotos e afectuosos do

Seu amigo
P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 310 (290) - A MONS. LUÍS CIURCIA


AVAE, c. 23

V. J. M. J.
Cairo Velho, 10 de Maio de 1869

Excelência rev.ma,

1896
Tendo hospedado até agora no meu instituto feminino do Cairo Velho a rev.da madre Catarina Rosa Valé-
rio, ex-terciária professa claustral de S. Francisco, de Verona, a qual, expulsa do seu Convento em força da
lei de supressão civil do Reino de Itália, eu conduzi ao Egipto em fins de Fevereiro último, por ordem de S.
E. rev.ma o bispo de Verona, para ingressar no instituto das rev.das madres clarissas, no qual tinha sido acei-
te desde o ano passado.
Tendo-a várias circunstâncias, por si conhecidas, impedido de levar a cabo o seu louvável propósito: por
ela estar convencida da santidade e importância da obra da conversão da Nigrícia, sentindo-se já muito dis-
posta a consagrar-se inteiramente a esta obra, onde pode tanto manter o espírito da própria vocação como ao
mesmo tempo concorrer com as suas forças para a salvação das almas mais abandonadas do mundo; e tendo-
me eu entretanto podido convencer de que ela está provida de insignes dotes, de modo a tornar-se útil a esta
santa obra dos negros.
1897
Exigindo o meu Plano ser desenvolvido para o estabelecimento de ulteriores institutos filiais, que se
aproximem cada vez mais da Nigrícia Central.
E constatando que o instituto das Irmãs de S. José da Aparição pode proporcionar-me novo pessoal válido
para este fim, dirijo-me a V. E. rev.ma para lhe suplicar que tenha por bem conceder-me autorização para
associar a dita rev.da madre Catarina Valério à nossa obra, no meu propósito de me valer por agora do bene-
plácito de V. E. rev.ma, para lhe confiar a direcção de uma escola feminina no Cairo Velho, que, à falta de
outros institutos, estaria disposto a abrir, como filial do meu primitivo instituto feminino, a benefício desta
população.
Confiando alcançar esta graça, antecipo-lhe a minha expressão de gratidão; e implorando para todos nós a
sua paternal bênção, passo a beijar-lhe o sagrado anel e a declarar-me nos Sagdos. Corações de J. e de M.

De V. E. Rev.ma
Hum., devot.mo e obrig.mo filho
e
P. Daniel Comboni, miss. apost.co

N.o 311 (291) - A MONS. MAXIMILIANO TARNOCZY


AKS, 2 A 5010

V. J. M. J.
Grande Cairo, 7 de Junho de 1869

Alteza rev.ma,

1898
A rev.da madre Maria Micaela, abadessa das religiosas beneditinas do mosteiro de Nonnberg, em Salz-
burgo, fez-me a honra de me manifestar com a sua carta de 21 de Maio passado o desejo de V. Alteza rev.ma
de que eu aceitasse no meu instituto feminino do Cairo uma jovem negra, Josefina, educada no convento das
ursulinas de Salzburgo, a fim de que no seu regresso a África possa consagrar-se a trabalhar em favor do seu
povo. E embora tenha rejeitado mais de quarenta destas pobres negras educadas em diversos conventos da
Itália, França e Alemanha, porque tenho suficiente pessoal indígena para, a seu tempo, constituir diversas
casas na África Central, não obstante, como um simples desejo de V. Alteza rev.ma é para P.e Comboni uma
ordem absoluta, declaro-lhe que é para mim uma honra e um prazer admitir no meu instituto do Cairo a dita
negra Josefina. Estou certo de que por ter sido educada nos conventos da Alemanha e especialmente na sua
exemplaríssima arquidiocese primacial, estará tão bem formada no espírito de piedade e na fé, de modo a ser
só com o seu bom exemplo um elemento de apostolado para as suas irmãs infiéis, como o foi a bondosa e
devotíssima Petronila, educada com as beneditinas de Nonnberg.
1899
Quanto à altura de mandar essa negra para o Cairo, V. Alteza rev.ma decidirá o momento oportuno, até
imediatamente, se lhe parecer. O porto de saída mais conveniente é Trieste, onde está o procurador das mis-
sões católicas, o il.mo cav. Napoli, que prestará a ajuda que for necessária para o embarque até Alexandria.
Se lhe parecer melhor esperar que eu prepare a expedição de duas irmãs em Agosto próximo, ou talvez
antes, que sairão de Trieste, então eu obrigar-me-ei a avisar com a devida antecedência V. Alteza, sobre a
altura concreta da viagem.
1900
Declarando-me sempre disposto a cumprir o desejo de V. Alteza rev.ma, suplico-lhe que reze e faça rezar
pelo feliz êxito da obra da regeneração da África Central e dos três primeiros institutos que recentemente
fundei no Egipto, que com a ajuda do céu estão a fazer muitas conversões. A empresa é das mais difíceis do
mundo: porém, eu estou disposto a morrer mil vezes para a levar a bom fim e consegui-lo-ei com a ajuda
dessa mão divina quae nondum abbreviata est, graças ao novo plano que propus à Santa Sé e que foi elogia-
do por inumeráveis bispos e por todos os encarregados das missões africanas.
1901
A nossa chorada Petronila contribuiu para fazer várias conversões de negras infiéis. Era profundamente
piedosa e temente a Deus e deu-me uma clara ideia do sucesso do respeitável mosteiro que a acolheu e edu-
cou.
Suplicando-lhe que me conceda a sua bênção pastoral, beijo-lhe as sagradas mãos e declaro-me com todo
o respeito, gratidão e veneração

De V. Alteza rev.ma hum. e dev. serv.


e
P. Daniel Comboni Mis. Ap. da África Central
Sup. dos instos. de negros do Egipto

N.o 312 (292) - À ABADESSA MARIA MICAELA MÜLLER


AMN, Salzburgo

Cairo, 9 de Junho de 1869

Minha rev.ma madre,


1902
Recebi o seu grato escrito de 21 de Maio, a que pela presente me disponho a responder, passados já uns
quantos dias.
Precisamente agora escrevi a S. A. o rev.mo arcebispo de Salzburgo para lhe dizer que admito no meu
instituto a negra de que me fala, pois não posso negar nada a um príncipe da Igreja tão digno de veneração.
1903
A nossa querida Petronila foi para o Céu no dia 31 de Janeiro de 1869, às seis da tarde. Em seu sufrágio
celebrámos 58 (digo cinquenta e oito) santas missas, cinquenta das quais foram celebradas pelos meus queri-
dos companheiros Estanislau Carcereri e Franceschini, que juntamente com a superiora das Irmãs de S. José
e com as minhas negras a assistiram à hora da morte.
Petronila foi, sem dúvida, para o Céu! Asseguro-lhe que estamos profundamente entristecidos pelo seu fa-
lecimento. Ela ainda contribuiu para a conversão de muitas negras. O seu branco véu baptismal serviu-nos, à
nossa chegada ao Egipto, para cobrir o tabernáculo e o seu branco vestido baptismal já nos serviu duas vezes
para enfeitar as recém-convertidas no dia do seu santo baptismo, como também no da sua primeira sagrada
comunhão.
Ela sentia uma devoção extraordinariamente grande pelo Santíssimo Sacramento e pelo Sacratíssimo Co-
ração de Jesus, pela Virgem Maria e por Santo Estanislau.
Por outro lado, conservou sempre um infinito agradecimento para com o seu mosteiro e foi precisamente
ela quem assistiu o P.e Olivieri no momento da sua morte, quando morreu no chão desnudo. Sempre ficou
profundamente comovida por aquele último acto de amor e piedade do seu P.e Olivieri.
1904
Envio-lhe três números dos Anais da Sociedade de Colónia. Quereria rogar-lhe que fizesse chegar o últi-
mo destes números, o correspondente ao ano XV, a S. M. a imperatriz Carolina, depois de a madre e rev.mo
sr. arcebispo o terem lido. Peço-lhe que leia também os outros, por exemplo, a página 7 e a seguinte do nú-
mero correspondente ao ano XIV. Aí fala-se de Salzburgo e nomeia-se o P.e Olivieri, etc.

P.e Daniel Comboni m. ap.

Oh, reze intensamente por mim! Pense que no dia 10 de Junho abri o meu terceiro instituto.

Original alemão
Tradução do italiano

N.o 313 (293) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/67

Louv. J e M. eternamente, ámen.


Cairo Velho, insto. de negros
9 de Junho de 1869

Excelência ilustríssima e rev.ma,

1905
Permita, monsenhor, que, ao aproximar-se o faustíssimo dia da festa onomástica de V. E. Ilma., os seus
filhos de África se mostrem desejosos de revelar também este ano os seus sentimentos de amor e gratidão
filial, desejando que lhe seja portador de todos os bens e celestiais confortos, acima do que alguma vez possa
desejar. Na confiança de que também a nossa voz, saindo das queimadas fauces do ardente Sara, possa fazer-
se ouvir junto do trono de Deus e na certeza de que o Altíssimo, que não faz distinção entre pessoas, con-
templará não menos benigno o nosso rosto bronzeado nesta terra de negros, elevamos-lhe confiados a súpli-
ca de que derrame sobre o nosso amorosíssimo pai toda a felicidade e toda a bênção divina. Sob os paternais
auspícios de V. E. ilma. e rev.ma, a pobre Nigrícia conta já com dois institutos que se ocupam do seu verda-
deiro bem e dentro de poucos dias vai ter um terceiro.
1906
Alguém pôde dizer que vivemos num ócio aborrecido, mas sob a protecção de V. E. já pudemos enviar
para o Céu quatro infelizes que de outro modo se teriam condenado; outros estão a preparar-se aqui numa
vida de méritos, que doutra maneira teria sido uma vida de culpa; outros, enfim, suspiram nos seus dias de
preparação e de prova pela graça do baptismo, que antes consideravam como a maior desventura. Se Deus,
como nós pedimos, der a V. E. a boa saúde, o vigor, a actividade e o zelo que teve nestes dois anos, quem
sabe quão maior não será o bem que poderá advir disso para a nossa tão desditosa Nigrícia. Nós, portanto,
desejamos a V. E. rev.ma tudo isso e rogamos para que alcance tudo o mais que Deus sabe que pode contri-
buir para a sua verdadeira felicidade e o maior bem desta nossa missão dos negros.
1907
Desculpar-nos-á se neste voto que elevamos há uma nota de egoísmo; mas como o coração sente, assim
fala a língua. E nós sabemos que, felicitando-o pelo bem desta pobre África, fazemos algo que lhe é grato, já
que o interesse que pôs em patrocinar a regeneração mostra que esta não ocupa um lugar irrelevante no seu
paternal coração. Ah, que o Senhor nos escute na nossa súplica de poder felicitá-lo por muitos mais anos,
alegremente, desde qualquer ponto do equador onde formos conduzidos, se Deus quiser, depois de termos
percorrido, na nossa aborrecida ociosidade, toda a infeliz Nigrícia, em nome de Jesus, com a sua graça e a
seu lado, «benefaciendo et sanando omnes». Quanto ao mais, monsenhor, não pretendemos em absoluto
excluir da presente felicitação onomástica todas as restantes coisas, embora não queiramos especificar ne-
nhuma, porque queremos abarcá-las todas. Interiores e exteriores, presentes e futuras, temporais e eternas. E
invocamos todas as graças e bênçãos divinas em favor das santas intenções e empresas em que V. E. se en-
contra ocupado para maior glória de Deus.
Digne-se V. E. ilma. e rev.ma aceitar estas humildes e devidas expressões, juntas ao afecto com que as
acompanhamos e, renovando-nos a sua inestimável e paternal bênção, queira crer-nos como aqueles que,
com toda a reverência e profundo respeito e com o beijo do sagrado anel, temos a honra de nos afirmarmos

De V. E. Ilma. e Rev.ma
Hum., obed., obrig. servidores e filhos
P.e Daniel Comboni
Estanislau Carcereri d. M. I. I. miss. apost.
Bartolomeu Rolleri miss. apost.
José Franceschini d. M. I. I. miss. apost.
Fr. Santiago Rossi cat.
Os dois catecúmenos iletrados

1908
P. S. Alojei no nosso instituto dois santos bispos da Índia, um capuchinho e outro jesuíta. Ficaram muito
satisfeitos de como vão os nossos institutos. O bispo capuchinho, que é de Cesena, disse-me espontaneamen-
te que quer falar com Barnabó para que faça com que a Propaganda Fide me preste assistência. O jesuíta,
prussiano, vai dirigir-se de modo semelhante ao arcebispo de Colónia e àquela Sociedade. Acompanhei-os às
Pirâmides e partiram, depois de dizer ao P.e Pedro: «Já vimos bastante, nós vamos encarregar-nos de falar a
favor disto». Eu contei-lhes misérias, mas tratei-os bem. O capuchinho é um modelo de humildade; o jesuíta
é um homem distinto.
A carta está escrita por outra mão; o post scriptum é de Comboni, que data a carta no fim: 10-06-1869.

N.o 314 (294) - A MONS. LUÍS CIURCIA


AVAE, c. 23

V. J. M. J.
Cairo Velho, 10 de Junho de 1869

Excelência rev.ma,

1909
Peço perdão à extrema bondade de V. E. rev.ma por ter tardado tanto em lhe escrever, contra o que devia.
No dia 29 recebi a sua estimada carta acompanhada da letra cambial de 1000 francos, o qual era o com-
plemento da atribuição de cinco mil francos que me concedeu a Propagação da Fé para 1868, mercê da cari-
tativa intercessão de V. E. rev.ma e dou-lhe mil graças por isso.
1910
Recebi igualmente o seu veneradíssimo escrito, com o qual se digna autorizar-me, a título experimental, a
abrir a nova escola. Já antes o meu reverendo P.e Pedro e nós tínhamos realizado activas indagações para
encontrar uma pequena casa adequada; porém, entre várias que vimos, demos preferência à Terra Santa, ane-
xa à residência paroquial, por estar mais perto e à vista do P.e Pedro. Como esta necessitava de consideráveis
reparações, pusemo-nos a trabalhar com todo o empenho e agora as obras estão a chegar ao seu fim; de modo
que, dentro da semana que vem, a M. Catarina poderá instalar-se com umas jovens negras e abrir a escola.
1911
Com o próximo vapor francês, sem Deus quiser, sairá para Marselha a irmã Maria Defiche, a quem a ma-
dre ajudante do hospital procurava colocar como superiora no nosso instituto do Cairo Velho. Com toda a
paciência, calma e discrição, pudemos convencer a madre ajudante a livrar-nos desse cataplasma que não era
apto para a nossa obra. Como sem dúvida não é do agrado da madre ajudante que eu fale a V. E. deste tema,
faço-o confidencialmente, porque nada deve ocultar-se ao nosso veneradíssimo pai e pastor, deixando para
uma ocasião posterior pormenorizar-lhe todos os motivos que me induziram a procurar o afastamento desta
irmã, o primeiro dos quais é a falta nela do espírito religioso.
Agradeço a V. E. a suma bondade, indulgência e caridade que nos mostra. Nós trataremos de correspon-
der-lhe com todo o empenho. Logo que estejam concluídas as obras da nova casa, escrever-lhe-ei para pô-lo
ao corrente de tudo, tanto do que acordarmos com o P.e Pedro sobre a casa como do colocação em andamen-
to da escola.
Apresentando-lhe os filiais respeitos de todos nós, que nos encontramos muito bem, invoca para todos a
sua santa bênção este seu ínfimo e devotíssimo filho

P.e Daniel Comboni

N.o 315 (295) - AO PADRE LUÍS ARTINI


AGCR, n. 1700/13

V. J. M. J.
Cairo, 10 de Junho de 1869

Meu rev.mo e estimado pai,

1912
Ao aproximar-se a sua festa onomástica não posso não seguir o impulso do meu coração, que leva a ofe-
recer-lhe os meus votos mais sinceros e os desejos de verdadeira e perene felicidade que me agrada partici-
par-lhe. Se bem que as potências infernais, desencadeadas contra a esposa de Cristo, aplicaram um golpe
tremendo ao seu coração com a iníqua lei do dia 7 de Julho de 1866, o Senhor proporcionar-lhe-á novas e
superabundantes alegrias, quando a seu tempo vir surgir mais florido e brilhante o edifício religioso que lhe
custou tantas preocupações e suores. E não será a última dessas satisfações ver surgir dentro de pouco na
clássica terra do Egipto (o que é objecto dos meus ardentes suspiros) uma casa de S. Camilo, a qual será
apoio de uma generosa missão que os filhos de S. Camilo empreenderão para salvar das garras do dragão do
abismo milhões de almas da África interior. Os nossos queridos Estanislau e Franceschini, verdadeiros filhos
de S. Camilo, só suspiram por esta meta. O Senhor, conservando no seu coração todo o espírito do seu gran-
de santo fundador, comunicou-lhes o do meu querido S. Francisco Xavier. Deus chamou-os a ser camilianos
missionários da Nigrícia.
1913
Quanto a empresa é maior na sua dificuldade e extensão mais digna é das suas almas, dos seus corações e
da heróica vocação camiliana. Portanto, meu caro padre, confio em que o senhor e o sagacíssimo e devotado
P.e Guardi, movidos por Deus e por S. Camilo, secundarão esta obra, preparando pouco a pouco novo pesso-
al que acuda em socorro da África e mandando frequentes bênçãos a estes dois irmãos do meu coração. Ain-
da que a aparição de alguma nuvem em Roma, na Propaganda, tenha perturbado o ânimo de algum, não fez a
mínima mossa no espírito destes dois queridos filhos seus e irmãos meus. Conhecendo por experiência que o
que Cristo manifestou é mais seguro que os acordos dos soberanos do mundo e que o tratado de 1815 e o de
1856 e até que a convenção de 15 de Setembro de 1864, etc., etc., eles inclinaram-se para acolher o «tratado»
do petite et accipietis, pulsate et aperietur vobis com as devidas cláusulas da fé, confiança, glória de Deus,
etc. Nós rogamos agora e rogaremos sempre por este fim, que estamos certos e seguros de alcançar, porque
Cristo é homem de palavra.
Pedindo-lhe que apresente saudações da minha parte aos padres Bresciani, Perretti, Tomelleri e a todos,
assim como a Bonzanini (a quem peço que reze pelo nosso objectivo), beijo-lhe afectuosamente a mão e
declaro-me

Seu hum. e devot.mo


P.e Daniel Comboni

N.o 316 (296) - A MONS. LUÍS CIURCIA


AVAE, c. 23

V. J. M. J.
Cairo Velho, 20 de Junho de 1869

Excelência rev.ma,

1914
Não tenho palavras bastantes para exprimir a minha sincera e profunda gratidão e a dos meus companhei-
ros para com V. E. rev.ma por me ter comunicado a resposta da S. C. de Propaganda e enviar-me a sua vene-
rada carta de 13 do corrente, que é um novo monumento da sua caridade incomparável para connosco.
Seguindo a sua prudente ideia de tomarmos tempo e amadurecer bem com os meus companheiros a res-
posta que devo dar a todos os pontos sobre os quais V. E. se digna pedir-me profunda e exacta informação,
limito-me por agora a declarar:
1.o Que no espaço de vinte dias sairemos todos da casa de Bahhari, na qual agora nos encontramos, e,
com a total aprovação do nosso veneradíssimo P.e Pedro, o instituto masculino se instalará numa pequena
casa situada a umas centenas de passos do insto. feminino, a que presidem as Irmãs de S. José.
1915
2.o Que nunca fiz nenhuma diligência com a ínclita ordem de S. Camilo. No entanto, de há um tempo a
esta parte, o andamento das coisas em Roma parece levar-me a concluir que talvez seja conveniente fazer
alguma mais adiante; porém, só quando V. E. rev.ma o julgar oportuno e se aprovar o que, depois de madura
reflexão, nós passarmos a expor-lhe, sempre para o maior bem do apostolado da Nigrícia.
1916
3.o Que o bispo de Verona, que eu saiba, nunca fez nenhuma diligência com a mencionada ordem. So-
mente sei que com base no seu acordo verbal com o próprio Papa Pio IX, bem como no breve pontifício de 5
de Julho de 1867, conhecido de V. E., o qual permitia aos padres Carcereri, Tezza e Franceschini dedicarem-
se à nossa obra, e na sua qualidade de visitador apostólico da província lombardo-véneta dos ministros dos
doentes, ele teve de tratar com o rev.mo P.e Guardi para que pudesse ter pleno efeito o breve pontifício a
favor do digníssimo P.e Tezza.
1917
Quanto ao resto, espero totalmente nesse Deus, que teve tanta sabedoria ao criar o universo como ao fa-
bricar a cruz, que, fortalecidos pelo poderoso e generoso apoio de V. E., conseguiremos vencer todos os obs-
táculos que a Providência no seu infinito amor colocou no nosso caminho e que sob as asas do seu valioso
patrocínio e estimulados pela cruz de Jesus, veremos um dia a nossa obra assente em bases firmes e sólidas.
1918
Ao celebrar-se amanhã a festa de S. Luís Gonzaga, a do seu onomástico, comprazer-nos-emos em pedir
de modo especial ao Dador de todo o bem que derrame todas as bênçãos espirituais e temporais sobre a vene-
rável cabeça de V. E. rev.ma; nós ofereceremos o divino sacrifício e as irmãs e as negras a sua sagrada co-
munhão pelo nosso muito amado e venerado pai, a cuja valiosa caridade, depois de Deus, devem os nossos
pequenos institutos a sua existência e conservação.
Fazendo-me também intérprete dos sentimentos dos meus caros companheiros, suplico-lhe nos conceda a
sua bênção pastoral; e beijando-lhe respeitoso o sagrado anel, tenho a honra de me declarar nos Sagrados
Corações de J. e de M.
De V. E. rev.ma
Hum., af.mo e indig.mo filho
P.e Daniel Comboni Missionário ap.

1919
P. S. A nossa bondosa madre franciscana Catarina Valério une-se a nós para lhe desejar que tenha uma fe-
licíssima festa onomástica, e igualmente o nosso caro P.e Pedro. Permito-me juntar duas cartas, uma da supe-
riora e a outra das negras e, além disso, outra do digníssimo P.e guardião de Alexandria.

N.o 317 (297) - A MONS. MAXIMILIANO TARNOCZY


AKS, 2 A 5010

V. J. M. J.
Cairo, 2 de Julho de 1869

Alteza rev.ma,
1920
Dado que a expedição que tive a honra de lhe mencionar na última carta se vai prolongar até ao fim do
ano, julgo oportuno comunicar a V. A. rev.ma que nos envie a jovem negra das irmãs ursulinas quando lhe
parecer melhor ou mesmo já. Só rogo a V. A. rev.ma que mo faça saber com uma semana de antecedência,
quando ela sair de Trieste, a fim de eu poder mandar duas das minhas irmãs recebê-la a Alexandria.
1921
Vou escrever à superiora das beneditinas, Maria Micaela, com o objectivo de lhe dar as instruções neces-
sárias para a viagem da bondosa negra.
Imploro da bondade de V. A. a mercê de rezar e fazer rezar pela obra da conversão da Nigrícia interior.
Em apenas 18 meses, Deus deu-me a graça de poder fundar três pequenos institutos, que já estão a fazer boas
conversões. Espero que seja verdadeiramente obra de Deus.
Beijo-lhe o sagrado anel e, pedindo a sua santa bênção, assino, declarando-me nos Sagdos. Corações de
Jesus e de Maria

De V. A. Rev.ma Hum., obed.mo e dev. servidor


e
P. Daniel Comboni Miss. ap. dos instos. dos negros

N.o 318 (298) - À ABADESSA MARIA MICAELA MÜLLER


AMN, Salzburgo

Cairo, 3 de Julho de 1869


Minha rev.da madre,
1922
Acabo de escrever a S. A. rev.ma para enviar imediatamente para o Egipto a jovem negra, porque a expe-
dição de que eu lhe falei só terá lugar mais adiante. Há que escrever ao nosso activo agente das missões em
Trieste, o sr. Luís Napoli, que está à frente de S. Gregório Magno, a fim de que recomende a negra ao capi-
tão do Lloyd e a alguma piedosa senhora ou freira que a acompanhe até Alexandria, onde irão recebê-la as
irmãs do Egipto para a levarem ao nosso instituto do Cairo. É necessário que eu saiba com uma semana de
antecedência em que dia a negra partirá de Trieste. Os barcos do Lloyd austríaco partem de lá todos os do-
mingos para Alexandria. Depois há outros pormenores necessários.
1923
Estou-lhe muito agradecido pelas suas preces e pelo óbolo que me prometeu. A madre poderá prestar um
grande serviço à minha missão, que é das mais importantes do catolicismo, se invocar em meu favor a ajuda
de algum benfeitor insigne, como sua majestade a imperatriz Carolina, o convento das ursulinas onde se en-
contra Josefina, etc.
Saberá que tenho no Egipto três institutos muito importantes:
1.o O Instituto do Sagrado Coração de Jesus (missionários)
2.o O Instituto do Sagrado Coração de Maria (Irmãs de S. José)
3.o O Instituto da Sagrada Família, que fundei há pouco, onde há uma escola a que assistem muitos
cismáticos, muçulmanos e infiéis, na qual as professoras negras ensinam a religião católica.
1924
A tudo, também ao seminário de Verona para as missões da África, deve prover este pobre P. e Comboni,
que amiúde se encontra em grandes apuros. Por isso, encomendo-me à sua intercessão. Nas barbas do Pai
Eterno há muitos napoleões de ouro. Jesus Cristo manteve sempre a sua palavra. Ele disse: «Pedi e dar-se-
vos-á.» Pois bem, nós rezamos incansavelmente para que sejam eficientes a sua intercessão e as suas diligên-
cias.
Saúde da minha parte todas as suas filhas religiosas e eu encomendo-me às suas incessantes orações.
Lembre-se de que o nosso sagrado vínculo radica no Coração de Jesus e foi consagrado pela vida e pelo sa-
crifício da nossa cara Petronila, a quem a madre deu a vida espiritual, que eu conservei com esmero até ela
chegar perante o trono de Deus.
Queira aceitar as mais respeitosas saudações do

Seu devot.mo P.e Daniel Comboni

Seria conveniente que Sua Alteza rev.ma recomendasse também a negra ao sr. bispo de Trieste, que é
muito bom.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 319 (299) - A P.e JOÃO FOCHESATO


AMV, Cart. «Missione Africana»

V. J. M. J.
Cairo, 9 de Julho de 1869

Meu estimado P.e João,


1925
Aproveito uma ocasião propícia para lhe enviar a si as minhas saudações, bem como a todos os membros
do Instituto de São Carlos e de Canterane. Desde que deixei Verona escrevi duas vezes ao Instituto, mas
ninguém me respondeu: notei muito a perda de P.e Dalbosco, que me fornecia frequentes notícias dos meus
velhos amigos. Diga a P.e Poggiani que em breve me lembrarei dele e de Hans. Também lhe rogaria que
refrescasse a memória a P.e Tomba ou a P.e Beltrame sobre a sua promessa de me mandarem a cópia das
viagens que fizemos pelo Nilo Branco: promissio boni viri, est obbl... Lembre-se de dar cordiais saudações
da minha parte à generosa e boa família Morelli e assegure a esse homem excelente que não me esqueci dele
um único dia.
1926
Quanto a mim e à minha obra, dir-lhe-ei que sofri, gozei e trabalhei muito nela e que o Senhor a vai aben-
çoando perante os meus olhos. O que me dá uma imensa satisfação é o terceiro instituto que recentemente
fundei por ordem de S. E. rev.ma o arcebispo de Irenópolis e delegado apostólico do Egipto, instituto que faz
um grande bem no meio dos vinte e cinco mil habitantes que povoam o Cairo Velho. Esta escola feminina,
que é dirigida pela M. Catarina Valério com a ajuda de quatro professoras negras, entre elas Domitila, é fre-
quentada por jovens de todas as religiões, inclusive muçulmanas, que aprendem o catecismo e a moral cris-
tãs.
1927
À parte o trabalho que desenvolvem as professoras negras, esta escola produziu grande impressão no Cai-
ro precisamente pela cor das professoras: é um modo de melhorar a reputação da raça negra, pisada por to-
dos. Não falo das frequentes conversões, nem das almas que todas as semanas alcançam o paraíso ou se
convertem por obra dos três institutos, aos quais pus os seguintes nomes:

Ao 1.o, masculino, Instituto do Sagrado Coração de Jesus.


Ao 2.o, feminino, Instituto do Sagrado Coração de Maria.
Ao 3.o, Instituto da Sagrada Família.
1928
Desde o passado Fevereiro até ontem, feito o cálculo, gastei 116 000 piastras ou o seu equivalente em na-
poleões de ouro. Tenho a consolação de receber protecção do eminente arcebispo que é nosso delegado apos-
tólico, o qual, vendo os frutos, está encantado com os três institutos e defendeu-os contra os ataques e a guer-
ra de que foram objecto por parte de mal-intencionados, que chegaram a criar insídias contra mim na Propa-
ganda e até junto do Papa. Porém, eu sou como aquele alemão que dizia: «Chegarei, ainda que morto.» As
palavras de Cristo são mais firmes e seguras que os tratados de todos os soberanos do mundo; portanto, o
petite et accipietis, etc. é mais fiável que os tratados de Viena, Paris, Londres, Nikolsburgo, Praga e até que a
Convenção de 15 de Setembro. Atque mais de duzentos mosteiros e institutos rezam pelo sucesso da minha
obra; ergo sic eu terei êxito nela e nenhum poder do mundo, nem sequer Satanás, poderá fazer-me fracas-
sar... Sei ou não sei dessa maldita filosofia?... Claro que tenho a meu lado um apoio no P.e Estanislau Carce-
reri, que compreende o meu Plano melhor que eu mesmo e que tem uma constância e um espírito como a
Propaganda não encontrará iguais. Deus mo conserve!
1929
Cumprimentos a P.e Tomba, a P.e Beltrame, a esse b... P.e Poggiani, a Filipozzi, ao pároco de Santo
Estêvão, a P.e Guella, ao sr. Luís, a P.e Aldegheri, a todos, a todos; também a Betta, Rubelli, etc. Receba os
respeitos das negras, que me encarregaram de lhos apresentar em modo especial, e rogue pelos meus institu-
tos e pelo

Seu af.mo no Senhor


P.e Daniel

Recebi a visita de dois bispos da Índia, um deles de Bombaim, jesuíta, a quem hospedei por dois dias e
depois levei a visitar as Pirâmides. Muito satisfeitos com o andamento dos institutos, disseram que iam falar
deles ao Papa e à Propaganda. Hoje tenho em casa três bispos: um da Índia e dois da China.

N.o 320 (300) - HORÁRIO PARA O INSTITUTO


DA SAGRADA FAMÍLIA – CAIRO
ACR, A, c. 13/6

Cairo, 20 de Julho de 1869

N.o 321 (301) AO P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»
V. J. M. J.
Cairo, 30 de Julho de 1869

Amat.mo e rev.do P.e Joaquim,

1930
Umas linhas para lhe dar notícias nossas e pedir-lhe que lembre a P.e Beltrame a promessa que me fez de
me mandar a cópia das informações que ele enviou de Cartum e do Nilo Branco para Verona, com excepção
da última que está em minha posse. Prometeu-mo também na sua presença. Já lhe escrevi uma vez, mas nec
unum verbum. Por isso recorro aos seus bons ofícios, a fim de poder dispor dos ditos relatórios, que me são
necessários neste momento. Diga ao nosso estimado P.e Beltrame que, embora esteja ocupadíssimo, promis-
sio boni viri est obbligatio.
1931
Desejaria receber notícias do instituto, tanto de S. Carlos como de Canterane, mas não tenho sorte: nin-
guém do instituto me escreve.
Quanto às negras do insto. de Verona, estão todas a ir bem, até Caltuma, e são verdadeiramente boas. Es-
tão tristes, porque já não recebem notícias das suas mestras, tias, madres e superioras. Que lhe vamos fazer?!
Consolar-nos-emos mutuamente e, cara alegre!
Pelo que me diz respeito, os meus três institutos vão muito bem. No dia da Assunção baptizarei cinco ne-
gras de dezassete a vinte e um anos. Não tenho tempo de lhe descrever as boas conquistas que eles fazem
continuamente. Os meus institutos foram difamados em todo o Véneto pelo infeliz P.e Zanoni, que perdeu a
cabeça e que escreveu ao bispo de Verona, à Propaganda e ao arcebispo e delegado do Egipto falando contra
mim e contra os seus companheiros. Eu respondi com a paciência, com breves palavras e com os factos.
1932
Tal perseguição representou para os meus institutos um avanço de dez anos, pois granjeou-me a amizade
íntima e o favor do nosso delegado e do pároco local. Monsenhor o delegado ordenou-me que fundasse um
terceiro instituto e agora tenho três grandes casas, duas pagas por um ano e uma por sete; em tão pouco tem-
po, dotei os meus institutos de vinte mil francos anuais de renda e guarneci-os de móveis, roupas de cama,
etc., no valor de mais de 20 mil francos. Tenho neles suficientes alimentos, bebidas, tenho sabão, açúcar,
café, azeite de Niza e manteiga da Morávia para ano e meio; estou gordo, maciço, grande, forte, robusto,
branco e corado, não beato e mais alegre do que Napoleão III, etc. Portanto tenho motivos para dar graças a
Deus e confiar na sua bênção para o futuro. Os nomes dos três Institutos são:
1.o Casa do Sagrado Coração de Jesus (missionários); 2.o Casa do Sagrado Coração de Maria (Irmãs de
S. José da Aparição); 3.o Casa da Sagrada Família (Ir. Catarina Valério T. F., de Verona), a qual mantém
uma escola à qual assistem muçulmanas e hereges de todas as classes e que entre as suas cinco mestras conta
com Luísa e Domitila.
Reze pelo pobre P.e Comboni e pelos seus institutos. Temos 38 graus; saudações a todos, homens e mu-
lheres.

Seu af.mo
e
P. Daniel Comboni

N.o 322 (302) - A MONS. LUÍS CIURCIA


AVAE, c. 23

V. J. M. J.
Cairo, 2 de Agosto de 1869
Excelência rev.ma,

1933
Tardei em responder à sua venerada carta de 13 de Junho, primeiramente para amadurecer o conteúdo,
seguindo o seu sábio conselho. E depois porque julguei necessário responder com obras ao ponto mais im-
portante, o de encontrar e preparar uma casa separada, o que me exigiu uma infinidade de passos, de despe-
sas e esforços que, graças à ajuda do Céu, foram coroados de um feliz resultado.
Penso que conseguirei dar uma resposta completa aos quatro pontos que me assinalava na sua carta, co-
mentando algumas observações que V. E. teve a suma bondade de me comunicar que lhe tinham sido feitas
pela Sag. Congr. da Propaganda Fide.
1934
E em primeiro lugar não me parece demasiado exacto o juízo do Em.mo card. Barnabó de que o meu ins-
tituto carece de sólidas bases. V. E. rev.ma sabe perfeitamente que as suas bases são as mesmas que têm a
maior parte das instituições religiosas nos começos, menos a propriedade de imóveis, quer sejam edifícios
quer terrenos; e alimenta a mais firme esperança de que tal base, assente no amplo regaço da Providência,
que é dona dos acontecimentos e dos tempos, esteja para se tornar sólida. De facto, assenta primeiramente na
paternal protecção de V. E. rev.ma, cujo consentimento na existência do mesmo e cuja firmeza e caridade em
proteger a sua conservação são a mais segura garantia de que tem uma boa base.
1935
Em segundo lugar, sabe V. E. quanta e qual é a protecção de que goza do Governo de S. M. a imperatriz
da França. Em terceiro lugar, a sua forma e o fim que persegue é tal que não pode nem deve provocar sus-
ceptibilidades nem sérios temores em nenhum dos outros corpos morais existentes no lugar, os quais até
agora prodigalizaram uma benévola indulgência. O seu objectivo está perfeitamente definido: a evangeliza-
ção da raça negra. Isto quanto ao exterior.
1936
No que respeita à direcção interna, o insto. feminino baseia-se na cooperação das Irmãs de S. José da
Aparição, cuja regra foi aprovada pela Igreja e cujo protector é o próprio Em.mo cardeal-prefeito da Propa-
ganda. O masculino tem agora quatro jovens sacerdotes de boa vontade e saúde, que não carecem dos dotes
necessários para cumprir as obrigações do seu ministério.
E no caso de eu morrer ou de o pequeno seminário de Verona não poder fornecer em quantidade suficien-
te novo pessoal, se se considerasse oportuno, poder-se-ia contar com o concurso da ordem camiliana para
prosseguir a obra.
1937
Por outro lado, o meu instituto teve sempre os seus regulamentos e horários ajustados às normas dos ou-
tros institutos, mas com as particularidades que se adequam à sua finalidade. E começou e continua o seu
trabalho em favor dos pobres negros abandonados a todas as misérias.
1938
Quanto aos meios de subsistência, o meu insto. apoia-se nas mais sérias e intensas simpatias das pias as-
sociações aprovadas pela Igreja para ajudar o apostolado católico e de ilustres e poderosos benfeitores do
meu conhecimento particular:
1.o A Sociedade de Colónia para o Resgate dos Negros obrigou-se por escrito a entregar anualmente
5000 francos, verbalmente, a dar 10 000; e, de facto, em ano e meio, contribuiu com 18 300 francos.
2.o A Propagação da Fé de Lião e Paris (graças à eficacíssima intervenção de V. E.), atribuiu 5000
francos, com a promessa de aumentar esta importância à medida do desenvolvimento da obra.
3.o Tenho esperança de ajudas das sociedades de São Ludovico, de Munique (deu duas vezes 1500
francos), da Imaculada Conceição para o Oriente, de Viena (deu 100 francos), do Santo Sepulcro, de Coló-
nia (deu 500 fr.), das Escolas do Oriente, de Paris (deu 200 fr.), da Santa Infância, de São Francisco de Sa-
les e da Obra Apostólica, de Roma, Lião e Paris, etc., etc.
4.o Tenho as aplicações das missas quotidianas dos sacerdotes missionários, que agora são quatro.
1939
5.o Consegui obter em pouco tempo, quase sem pedir, 9642 francos de benfeitores privados, de en-
tre os quais sobressaem S. M. a imperatriz Maria Ana em Praga, S. A. o príncipe real da Saxónia e sua au-
gusta esposa, o príncipe de Löwenstein (o que no dia 11 de Abril depositou aos pés do Santo Padre um mi-
lhão), o príncipe D. Alexandre de Torlonia, o barão de Havelt, o cardeal-pr. De Schwarzenberg, o card.-
arcebispo de Viena, o príncipe-arcebispo de Salzburgo, a infanta de Portugal, etc., etc., etc.
6.o Do Governo francês, que nas minhas duas expedições de 1867 e 1869 me proporcionou a pou-
pança de mais de 11 000 francos graças à concessão gratuita de passagens e do transporte de caixotes, espero
uma forte subvenção a cargo do fundo oriental, esperança que alguns chefes do Departamento dos Estrangei-
ros me fazem nascer.
7.o Os institutos dispõem de mobiliário, utensílios domésticos, rouparia e objectos de culto num
valor superior a 20 000 francos.
1940
Quanto à casa, sabe V. E. os passos que tive que dar para a conseguir gratuitamente de S. A. o vice-rei,
munido como estava de válidas recomendações. Apesar de tantos obstáculos e recusas e do ambiente desfa-
vorável que em geral predomina contra os pobres negros, tenho esperança de conseguir dentro de algum
tempo duas casas ou da generosidade do Governo egípcio ou com o dinheiro que a Providência saberá depo-
sitar nas minhas mãos. Em todo o caso, hic et nunc, os institutos dispõem de duas casas pagas por um ano e
de uma terceira paga por mais de seis anos. A casa masculina (que nós chamamos do Sagdo. Coração de
Jesus) está a mais de oitocentos passos de distância do instituto confiado às Irmãs de S. José (a que nós cha-
mamos Casa do Sagdo. Coração de Maria) e a cento e setenta e cinco passos da escola dirigida pela M. Ca-
tarina Valério T. F. (que nós denominamos Casa da Sagrada Família). Quando, a seu tempo, os institutos
puderem estender o seu campo de acção à África Central, a que estão especificamente destinados, espero que
V. E. nos fará desfrutar de uma das casas já existentes nesse vastíssimo vicariato.
A tudo isto devo acrescentar que existem em muito mais abundância e numa esfera maior fontes de subsí-
dios com as quais posso seriamente contar para o futuro, no caso de a obra se desenvolver como é devido.
1941
Entretanto, dado que sempre desejei as cruzes como salutares e necessárias para a prosperidade das obras
santas e dado que o bom Jesus mas deu em abundância, apesar da minha indignidade, sinto-me ditoso por
adorar com total resignação as disposições da Providência, a qual permitiu que o nosso venerado Em.mo
card.-prefeito, com donaire, produzisse um detrimento não pequeno nos meus recursos, porque ao ir dizendo
aos ouvidos de muitos que Comboni é um m..., um t... que se deve atar com catorze cordas, etc., tal comentá-
rio estendeu-se por Roma, percorreu a Itália e França e talvez tenha chegado à Alemanha, esfriando ou dei-
xando alguns receosos e teve o poder de me dissuadir de dar certos passos que só na minha última viagem à
Europa me teriam permitido ter angariado mais de cem mil francos.
1942
A julgar por estes dados e expectativas, não me parece que se deva concluir que o meu instituto carece de
bases sólidas. Não poucos estabelecimentos de outras missões contam com bases menos sólidas que o meu
instituto, que ao fim e ao cabo tem dezoito meses de vida e, em tão curto espaço de tempo, suportou tantas e
tais tormentas que, se as suas bases não fossem suficientemente sólidas, já há tempos se teria afundado.
1943
E nem tão-pouco me parece demasiado exacta a outra afirmação do em.mo cardeal, isto é, que por falta
de uma regular organização houve os inconvenientes que em geral lhe foram referidos. A organização do
meu instituto, attentis specialibus circumstantiis, foi regularíssima. Desde o princípio tive regulamentos mui-
to adequados, adaptados ao lugar e às finalidades, assim como horários tanto quotidianos como para o tempo
dos exercícios espirituais, dos retiros mensais, etc.; e estes regulamentos e horários foram observados. Pos-
suo uma carta autografada que me escreveu o tal Zanoni, o qual foi o único autor dos deploráveis inconveni-
entes, na qual declara insuportável, demasiado severa e de cartuxos a organização interna e regular do meu
instituto.
1944
Se a falta de uma regular organização tivesse sido o motivo dos problemas havidos, estes teriam surgido
não num velho religioso de 49 anos, mas mais provavelmente num jovem de 28 anos e noutro de 22. Porém,
destes dois bons companheiros meus, quem foi capaz de dizer uma palavra desfavorável sobre a sua conduta,
à excepção do infeliz Zanoni, que se reconheceu indigno de viver com eles e há pouco menos de um ano se
afastou da maneira que V. E. sabe? Não houve, pois, falta de regular organização: o que houve foi uma da-
quelas artes malvadas que Deus permite ao Demónio experimentar nas suas obras, para que elas ganhem
solidez e o Inferno seja vencido. Judas no colégio apostólico, Fr. Elias ao lado do seráfico patriarca, as apos-
tasias no seio da Igreja e das ordens religiosas, etc., podem considerar-se problemas surgidos por falta de
organização regular?
1945
É-me doloroso ver que, em certo modo e em geral, se atribuem ao meu instituto as culpas de um indiví-
duo. Existiram os problemas, mas no acusador, não nos acusados. Por isso, desejaria que Sua Em.a visse aqui
um caso totalmente diferente, como o é de facto. E, em vez de lançar repetidamente a culpa ao instituto, de-
veria ver a real inocência do mesmo, ao lado de uma indigna perfídia, que lança como calúnia sobre ele aqui-
lo do que ela só é culpável. O Em.mo cardeal-prefeito nem sequer pode acusar-me de imprevidência por eu
ter confiado a Zanoni a vigilância imediata do insto. feminino. Esse velho, com 49 anos às costas, tinha a
barba branca e tinha desempenhado durante mais de quinze anos cargos de importância e ocupado o lugar de
prefeito numa das casas da sua ordem, em Mântua. Segundo a minha opinião, isso era garantia suficiente
para ter confiança em Zanoni; e, a dizer a verdade, eu teria duvidado mais de mim mesmo do que dele. Po-
rém, bendito seja sempre o Senhor, que quis dar-me com isso uma grande lição, a qual me será muito útil
para aprender a agir mais cautelosamente no futuro.
1946
Por fim, passando às explicações que V. E. rev.ma tem a bondade de me pedir sobre o P. e Guardi, a or-
dem camiliana e os meus dois caros companheiros, Carcereri e Franceschini, aos quais se referem as estima-
das observações e insinuações que lhe dirigiu S. Em.a, eis aqui os factos verdadeiros.
Em Março de 1967, tal como todas as outras ordens, também a dos ministros dos doentes foi suprimida.
Não querendo os padres Carcereri e Franceschini voltar, como fizeram outros, ao seio das suas famílias, jun-
tamente com dois companheiros pediram para ir para as missões estrangeiras, desejo que alimentavam há
muito tempo. O P.e Guardi, então procurador-geral, acatou a vontade do provincial, que tinha esperanças
postas nestes religiosos, e negou-lhes por então a autorização, aconselhando-os a que esperassem os aconte-
cimentos.
1947
Entretanto, mons. o bispo de Verona, informado das intenções dos quatro, pensou aproveitá-los para a
África e apoiou o pedido que eles fizeram ao Santo Padre por meio da S. Congr. de Ob. e Rel., não sem in-
formar explícita e exactamente Sua Santidade da recusa que os peticionários tinham obtido do seu geral.
Este pedido foi atendido mediante pont. breve de 5 de Julho, que pôs os referidos padres sob a jurisdição do
bispo de Verona ad quinquennium. Os seus superiores opuseram-se ainda à partida e até tentaram várias
vezes reclamá-los depois da sua chegada ao Egipto. O próprio Em.mo cardeal Barnabó, induzido pelo P.e
Guardi, do qual é íntimo amigo, insinuou a Carcereri e Franc. o regresso com carta de 15 de Setembro do ano
passado. Em vista de tanta insistência do estimadíssimo cardeal-prefeito e do P.e Guardi, convertido no vigá-
rio-geral dos camilianos, assaltaram-me sérios temores de perder para a África não só estas duas pessoas que
compreendem tão bem a importância da nossa obra como também outras da mesma ordem, que possuem
iguais dotes e disposições para se encarregarem do difícil apostolado da África Central.
1948
Por isso pus-me a meditar e estudar seriamente, juntamente com o nosso querido P.e Estanislau, para en-
contrar a maneira de conciliar o bem da Nigrícia e os interesses da minha obra nascente com as insistentes
declarações do em.mo card.-prefeito e com os razoáveis desejos do P.e Guardi. Pensámos, portanto, que, no
caso de parecer bem a V. E. rev.ma, seria muito conveniente que, pouco a pouco, se criasse dentro do recinto
do instituto masculino, ou a pouca distância dele, uma pequena casa camiliana in adiutum dos institutos de
negros, que se atendesse especialmente aos doentes, com o objectivo de que, desenvolvendo-se bem esta
obra, se pudesse confiar mais tarde à Ordem dos Ministros dos Doentes a evangelização de uma entre as mil
tribos dos negros da África Central. Para essa finalidade seria fácil à nossa obra atribuir uma parte dos seus
recursos.
1949
E esta, monsenhor, foi a ideia a que pensava aludir numa das cartas que lhe escrevi ultimamente. Depois
de a termos submetido a cuidadosa reflexão, fomos de opinião que poderia levar-nos a uma solução muito
razoável e feliz e ser fecunda em grandes benefícios para a pobre Nigrícia. Porém, é isso: uma ideia. O P.e
Carcereri mencionou-a no princípio deste ano ao P.e Guardi e, depois, não se disse nem fez mais nada. Não
vejo, pois, por que motivo o P.e Guardi fala de iniciativa, que nunca lhe foi pedida, e de comprometer a sua
ordem, à qual nunca ninguém se dirigiu de forma oficial, nem da parte dos meus institutos nem da missão.
1950
Quanto aos padres Carcereri e Franceschini, em nenhum momento se consideraram separados da sua or-
dem, antes, apoiados na sua resposta, lutaram com o P.e Guardi, que ameaçava considerá-los como tais; nem
por mim, nem pelo bispo de Verona, nem por ninguém que eu saiba, foram ou são olhados como separados
da sua ordem. Por isso, encontro-me em idêntica situação que Sua Eminência: a de não saber sobre que base
nem por quem Carcereri e Franceschini são considerados como desligados da sua ordem.
Além disso estou em condições de assegurar a V. E. que nem o bispo de Verona nem eu fizemos diligên-
cia alguma sobre isso com essa ínclita ordem.
1951
Nós vivemos da graça de Deus e da paternal protecção de V. E. rev.ma Por difícil que seja a empresa em
que estamos embarcados e que procuramos levar a bom porto, por mais furibundas que sejam as tempestades
que nos possam surpreender; apoiados no Senhor e em V. E. não temeremos nada. Entretanto, insistimos na
oração. As palavras de Cristo são mais sólidas e seguras que todos os tratados das potências do mundo; por
isso o petite et accipietis é mais sólido e seguro que o Tratado de Viena de 1815, que o de Paris de 1856, que
o de Nikolsburgo e Praga de 1867 e até que a Convenção de 15 de Setembro de 1864, etc. Atque roga-se pela
nossa obra em toda a parte, ergo alcançaremos um resultado feliz no nosso desígnio, non obstantibus mundo
et diabolo.
Digne-se V. E. rev.ma acolher benignamente as minhas mais sentidas expressões de agradecimento, tam-
bém por sua gratíssima carta de 19 do mês passado. Todos nós lhe pedimos a sua bênção pastoral, enquanto
com sentimentos da mais profunda veneração e gratidão passo a subscrever-me

De V. E. Rev.ma
Hum., devot.mo e indig. filho
P.e Daniel Comboni

N.o 323 (303) - A MGR. DE GIRARDIN


AOSIP. Afrique Centrale

V. J. M. J.
Cairo, 7 de Agosto de 1869

Monsenhor,

1952
No passado mês de Dezembro, encontrando-me em Paris, tive a sorte de lhe dar a conhecer num pequeno
relatório a importância dos meus institutos do Egipto, no tocante à preparação de pessoal para a conversão da
Nigrícia interior. Também lhe apresentei a carta de recomendação de mons. Ciurcia, arcebispo de Irenópolis,
vigário apostólico do Egipto e superior do vasto vicariato da África Central, a fim de solicitar à Obra da San-
ta Infância que venha em ajuda de uma obra da qual depende por certo a conversão de tantos povos da Nigrí-
cia Central.
1953
O senhor teve a bondade de me fazer esperar boas ajudas na próxima partilha geral das esmolas da obra;
porém, embora nós continuemos a resgatar da morte eterna muitos meninos infiéis, sobretudo de raça negra,
que foram rejeitados e abandonados e ficaram doentes, até agora, monsenhor, não recebi nada. É meu desejo,
pois, renovar a minha humilde petição, rogando-lhe que rapidamente acorra em ajuda das três casas que fun-
dei no curto espaço de tempo de dezoito meses com enormes sacrifícios. Como compreenderá, é sobretudo
nas fundações que se precisa de maiores recursos, a fim de que o mais rápido possível nos possamos lançar,
com os elementos formados no Egipto, no centro da África para ir em ajuda das populações mais infelizes e
mais abandonadas da Terra.
1954
Tive ocasião de lhe explicar duas vezes o alcance, a importância e a história da missão da África Central,
erigida por Gregório XVI. Limito-me agora a dizer-lhe umas breves palavras sobre os meus institutos do
Egipto, que se destinam a formar missionários negros dos dois sexos para se tornarem depois apóstolos nos
seus países do centro.
O primeiro instituto é de missionários e chama-se Casa do Sagrado Coração de Jesus. Compõem-no qua-
tro missionários, um leigo e três negros. Os primeiros ocupam-se de tudo o que diz respeito ao ministério
sacerdotal e sobretudo da instrução dos alunos negros e das catecúmenas. Também se ocupam da direcção
espiritual dos outros dois institutos.
1955
O segundo instituto, o das professoras negras, chama-se Casa do Sagrado Coração de Maria e para ele
chamei as Irmãs de S. José da Aparição. É formado por três irmãs e dezassete professoras negras. A sua fina-
lidade é formar boas professoras negras para a educação e o apostolado das nativas da África Central. Anexa
a esta casa está a enfermaria, um pequeno hospital para as negras doentes e para os meninos abandonados.
1956
O terceiro é chamado Casa da Sagrada Família, porque se encontra a vinte e cinco passos da santa gruta,
onde a Sagrada Família, exilada no Egipto, viveu durante sete anos. O seu pessoal é constituído por duas
irmãs da Ordem Terceira, claustrais, que trouxe de Verona depois da supressão das ordens religiosas na Itá-
lia, e por cinco professoras negras, que ensinam em árabe, italiano, francês e dinca. Esta escola é frequentada
por hereges e infiéis e goza de renome por serem negras as que ensinam.
1957
Compreende, sr. director, que, para edificar três casas, dotá-las de tudo o que precisam e manter nelas
mais de cinquenta pessoas, é preciso muito dinheiro. Pense que estas três casas são o centro de propagação
do apostolado da África Central. E esta constitui a missão mais difícil e importante do catolicismo, dado que
o Evangelho nunca penetrou nestas populações, que ultrapassam o número de cem milhões de infiéis. Falo-
lhe com todo o conhecimento de causa, porque fui um dos missionários que atingiram, depois de seis meses
de contínua viagem, até aos quatro graus de latitude. De trinta e nove missionários, só ficámos seis – dos
quais eu sou o único que trabalha; os outros trinta e três morreram naqueles países abrasadores.
Depois de doze anos do mais difícil apostolado, peço-lhe uma ajuda muito forte, porque tenho uma ex-
trema necessidade dela. Sei que ajuda não só a China mas também a pobre África. Peço-lhe com lágrimas
nos olhos que me favoreça. Deus recompensará o seu zelo e as pias associações serão abençoadas por uma
multidão de almas salvas.
Receba, monsenhor, a afirmação da minha mais alta estima e a expressão do meu agradecimento para
com a sua pessoa, da qual serei sempre

Seu devot. servidor


P.e Daniel Comboni
Miss. ap. da África Central
Superior dos instos. de negros do Egipto

Original francês
Tradução do italiano

N.o 324 (304) - AUTÓGRAFO NUMA FOTO


AFV, Versailles

Cairo, 7 de Agosto de 1869

N.o 325 (306) - CONTRATO DE ARRENDAMENTO


ACR, A, c. 18/34

Cairo Velho, 9 de Agosto de 1869

N.o 326 (307) - A CLAUDE GIRARD


AGB

V. J. M. J.
Cairo, 27 de Agosto de 1869

Meu caríssimo amigo,

1958
Rogo-lhe que fale no Terra Santa sobre a distribuição dos prémios das escolas cristãs: foi verdadeiramen-
te magnífica. Faça um belo artigo, mas não diga que fui eu quem lhe escreveu; eu estou ainda nos inícios e
convém-me andar com um certo cuidado aqui no Egipto. Eis um resumo:
«O dia 23 de Agosto foi um dos dias mais belos para a capital do Egipto e para os católicos. Quem de tar-
de tivesse percorrido as ruas do Cairo ter-se-ia deparado com uma afluência extraordinária de toda a sorte de
pessoas, provenientes não só dos muito extensos bairros da cidade mas também da periferia: Bulai, Cairo
Velho, Scubra, etc.
A meta desta extraordinária afluência era a grandiosa instituição dos Irmãos das Escolas Cristãs, onde a
juventude mais distinta do Egipto e da colónia europeia dava a prova anual do seu aproveitamento nos estu-
dos.
1959
Aqui onde em tempos antigos os sábios da Grécia vinham aprender a sua ciência, aperfeiçoar as suas leis;
aqui onde os restos de tantos monumentos seculares revelam ainda o imenso desenvolvimento do génio artís-
tico dos antepassados, porém, onde agora reina desde há tantos séculos a mais deplorável ignorância consu-
mada sobre as leis do Alcorão; aqui, dizia, ouvir as mais graciosas récitas efectuadas de uma maneira muito
distinta e com uma espontaneidade admirável e, ainda por cima, simultaneamente em três ou quatro línguas,
como o árabe, o francês, o turco, o italiano, o inglês, o grego e o hebraico; presenciar uma dramaturgia au-
têntica, engenhosa, livre, nobre e original; escutar concertos de coros musicais, acompanhados a piano e a
instrumentos de corda e de sopro, em que eram executantes alguns dos maiores mestres da arte, com uma
segurança, uma espontaneidade e uma precisão muito acuradas; recrear-se com as exposições ao público de
pinturas e desenhos encantadores, de mapas, de belíssimas e raras caligrafias de todo o tipo, de cópias e ori-
ginais, de colecções de geologia, botânica e mineralogia, de belas formas de arquitectura e de mil produções
mais do talento que não são fáceis de descrever e tudo realizado por uns rapazes geniais, pertencentes às
cinco classes e onze subdivisões do colégio e por meninos da escola gratuita, dividida em duas classes e cin-
co subdivisões, todos eles com idades entre os seis e quinze anos, foi um espectáculo que surpreendeu e ar-
rebatou tanto os orientais como os europeus.
1960
Saudamos com muita alegria esta época em que se desperta no Egipto o amor à ciência, de que é mostra o
acto a que assistimos com profunda emoção. O admirável zelo dos Irmãos das Escolas Cristãs, à frente das
quais está o incomparável Ir. Ildefonso, merecia em absoluto esta aprovação solene que lhe deram toda a
classe de cidadãos, os chefes de todos os institutos da capital, os bispos, bem como personalidades ilustres da
vida civil e militar e europeus.
Esta maravilhosa distribuição de prémios foi presidida pelo digno representante da França no Cairo, Mr.
Franco, acto a que assistiram, além disso, os cônsules de Inglaterra, Bélgica, Pérsia, Grécia, Espanha, Prús-
sia, etc., assim como muitos dignitários do Governo egípcio, como SS. EE. o paxá Haffiche, o Paxá Arekf,
Hussein Bey, prefeito da polícia e muitas outras personalidades da casa do vice-rei e do Governo.
1961
O instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs é um dos elementos mais importantes do apostolado católico e
da civilização cristã e europeia no Egipto. Aqui se admiram e se aprendem todos os progressos dos estudos
europeus. O bem que fazem estes generosos filhos do venerável De La Salle, cuja influência atinge já o uni-
verso inteiro, pelo qual propagam a civilização com as suas 1300 casas, é algo que se comprovará no futuro.
Todavia, o instituto dos irmãos deu já grandes frutos no Egipto. Muitos dos que nele terminaram com louvor
os seus estudos ocupam já importantes cargos no regime e estão presentes com a sua acção em diversos ga-
binetes do Governo.
1962
É um prazer para nós dirigir os nossos elogios mais justos e sinceros a estes verdadeiros iniciadores da ci-
vilização moral e intelectual do Egipto e congratularmo-nos com eles. A França, essa generosa protectora e
propagadora da civilização europeia, encontra uma boa recompensa nos irmãos, porque, por meio deles, es-
tende a sua influência no Oriente. Ela merece-o, pois onde houver uma causa católica e humanitária, lá está
sempre a França. Porém, os irmãos servem sobretudo a causa da Igreja, mediante o admirável exemplo que
dão aos povos com a sua santa e ordenada vida e com as sublimes máximas de moral e do espírito que im-
primem nos corações dos seus alunos, etc.»
1963
Meu caro amigo, com estas sugestões, faça o senhor mesmo um esplêndido artigo para o Terra Santa.
Asseguro-lhe que raramente se vê na Europa, nem sequer em Paris, tão estupenda e solene cerimónia da dis-
tribuição de prémios como a do Cairo.
Apresente os meus respeitos a sua esposa e filhos e aos padres de La Salette, etc.

Seu amigo para sempre


P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 327 (308) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/68

Louvados J. e M. eternamente, ámen.


Cairo, 2 de Setembro de 1869

Excelência rev.ma,

1964
Estamos impacientes por receber umas estimadíssimas linhas, porque há já mais de dois meses estamos
em jejum delas. Monsenhor o delegado está há um mês em Damasco a retemperar a saúde. Durante todo o
Verão tivemos um calor sufocante: em casa estavam uns 40 a 45 graus e à nossa porta, ao sol, uns 60 a 66. E
isto desde o meio-dia até às três da tarde. O nosso querido P.e Bártolo passou um mau bocado por causa
disso, mas já está melhor. Se eu tivesse cinquenta missionários como ele, converteria meia África. Contra o
que eu esperava e contra o seu aspecto externo, tem qualidades eminentes e próprias de um missionário. Que
Deus no-lo conserve muito tempo, para nossa edificação e para o bem da Nigrícia!
1965
O P.e Zanoni escreveu-me oferecendo-se para regressar. Disse-me que tinha o projecto de fundar noutra
localidade, segundo o nosso Plano, um novo instituto e ofereceu-se-me de corpo e alma. Nós sabemos positi-
vamente que não exporia a sua ideia a ninguém, nem ao bispo de Verona. Só abriu o seu coração à sra. Mar-
garida Tommasi, a qual, por outro lado, esquecendo o ocorrido entre ela e mim, quer, de acordo com Zanoni,
trabalhar para a obra. Eu adoptei o processo da abstenção, aprovado por V. E. e nunca escreverei a Zanoni. E
junto com os meus companheiros, seria de opinião de não nos comprometermos nem pouco nem muito com
a sra. Tommasi, que, com a sua imprudência e loquacidade, só traria descrédito à obra, poria em perigo a
dignidade da mesma e quereria ficar com o dobro do que recolhesse e viver da obra, abusando do cargo de
cobradora para prover às suas necessidades. Se por acaso se apresentasse a V. E. por este motivo, peça-lhe a
relação específica das pessoas e dos países de onde recolheu os donativos do ano passado, uma vez que é
dever de uma boa administração prestar contas de tudo. Verá como não há nada que fazer.
1966
As nossas três casas vão bem. Monsenhor o delegado escreveu-me a dizer que tinha feito um novo relató-
rio para o cardeal, em tudo favorável a nós; e como eu lhe tinha preparado um relatório sobre as nossas casas
antes da sua ida para a Síria, voltou a escrever ordenando-me que lhe fizesse uma cópia do mesmo para a
mandar à Propaganda. Monsenhor, confiemos nesse Deus que quer que a nossa obra nasça ao pé da cruz. No
dia de S. Caetano, o duque de Módena mandou-me uma bonita carta escrita por seu punho, na qual incluía
gentilmente uma letra cambial da Banca Austríaca no valor de quinhentos francos. Confiemos em Deus.
1967
Nós rogamos e suplicamos ao seu coração paterno para que nos envie com o P.e Ângelo de Pirano a pro-
fessora Ângela Degani, que a madre Valéria formará como missionária da África. Não tenho mais papel para
explicar a V. E. quão útil e necessária nos pode ser. O P.e Carcereri, a M. Catarina e eu suplicamos-lhe in
visceribus Christi que nos escute e nos mande a professora Degani.
Temos muitos assuntos para tratar na época do concílio. Nós preparamo-nos para ele com oração e com
as cruzes, duas coisas que nos são muito queridas.
As minhas considerações mais distintas ao marquês Octávio, a P.e Vicente e a mons. o vigário

De seu hum. e devot.mo filho


P.e Daniel Comboni

Receba os respeitosos cumprimentos de todos nós, que pedimos a sua santa bênção.
O outro dia baptizei in articulo mortis uma menina infiel; há duas horas Carcereri baptizou outra.

N.o 328 (309) - A MONS. LUÍS CANOSSA


ACR, A, c. 14/69

Louvados J. e M. eternamente, ámen.

Grande Cairo, 8 de Setembro de 1869

Excelência rev.ma,
1968
Talvez V. E. se encontre no sagrado retiro dos santos exercícios e não duvido que rezará pelos seus filhos
de África. Quão generoso é o Senhor nas suas bênçãos e quão abundante é igualmente nas suas cruzes, que
se revelam como meio absolutamente necessário para levar a cabo as suas obras. Estou a escrever-lhe usando
só um olho, porque o outro está com dores, afectado de conjuntivite egípcia.
1969
Lembre-se de recomendar ao piedoso clero veronês que eleve fervorosas orações por nós quando estiver
recolhido nos santos exercícios no seminário. Nós faremos outro tanto. A omnipotência da oração é a nossa
força.
Embora no espaço de quarenta dias as Sociedades de Colónia me tenham mandado cinco mil francos, no
dia de S. Caetano (em que S. A. o duque de Módena me enviou uma bela carta, juntando uma pequena letra
cambial sobre o Rotschild de Paris) escrevi a esse presidente pedindo-lhe que me mandasse outros cinco mil,
porque, com outro dinheiro que tenho, quero comprar, por bom preço, uma pequena casa. Eis aqui a resposta,
assinada pelo presidente e por todos os demais membros da ínclita sociedade:

(Original francês, traduzido do italiano)

«Colónia, 19 de Agosto de 1869

Muito rev.do padre,


1970
Recebemos a sua carta, que contém relatórios muito interessantes sobre a sua obra e por bondade da Di-
vina Providência reunimo-nos hoje todos os membros do nosso comité em sessão extraordinária, para sub-
meter a deliberação e discussão as propostas que nos mandou. Compreendemos bem que seria de grande
importância possuir uma casa para os seus institutos, em vez de pagar tão elevadas somas pelo aluguer. Até
agora confiámos tudo ao seu admirável zelo e à sua grande sagacidade; depositamos igualmente em si a res-
ponsabilidade dos gastos extraordinários que vai realizar.
1971
Estamos convencidos de que o senhor age conscienciosamente no interesse da nossa obra e, por isso, de-
cidimos conceder-lhe a soma de dez mil francos (quinhentos napoleões de ouro), que pomos inteiramente à
sua disposição e que receberá do nosso banqueiro A. Schaffhausen, de Colónia.
Mons. Meurin, da Companhia de Jesus, bispo de Bombaim, na Índia, que o viu no Cairo, deu-nos muito
boas notícias dos seus institutos no discurso muito eloquente pronunciado na Burgergesellschaft, no domin-
go passado. Estas boas notícias não podem senão aumentar o nosso interesse pela sua santa obra e animar-
nos a ajudá-lo no que for possível.
Avisamo-lo de que a imperatriz de França se dispõe a partir para o Egipto, etc., etc.
Aceite a manifestação do nosso profundo respeito e creia na sincera devoção que lhe dedicam todos os
membros do comité da Sociedade de Colónia para a Conversão dos Pobres Negros.

(seguem-se as assinaturas do presidente e de todos os membros)


1972
Monsenhor, dez mil francos com as declarações de uma tão bonita carta destes senhores que, tendo-se
obrigado a passar-me só cinco mil francos por ano, me deram, ao invés, 28 300 francos em vinte e um meses,
é tudo menos uma bofetada. Outro membro da mesma sociedade escreveu-me uma carta em inglês com o
resumo do discurso do mencionado bispo sobre o Plano e a obra e o pobre P.e Daniel. Pois bem, eu fico
vermelho com os elogios formulados por esse bispo jesuíta, porque estou profundamente convencido de não
os merecer e de ser o servo mais inútil da terra. Porém, aceito-os por interesse pecuniário. O dinheiro é uma
grande tentação de Nosso Senhor Jesus Cristo!
1973
O mesmo bispo, junto com um outro, falou no mesmo sentido na reunião do conselho da Propagação da
Fé, em Lião; noutra carta transcrever-lhe-ei a carta desse presidente. O ab. Negrelli comunicou-me de Reich-
stadt que mons. Bragato tem as minhas petições preparadas para, no momento oportuno, as apresentar a SS.
MM.
1974
Os nossos bons missionários estão muito bem de saúde. O P.e Carcereri nunca esteve mal, nem sequer
uma hora, por efeito do sol africano. A Casa do Sagdo. Coração de Maria vai bem, porém, tive lá duas irmãs
muito doentes. Um bom médico do Cairo, por lhe ter dado só uma moeda de 20 francos pela visita, não vol-
tou mais. É um italiano de Pisa. Pelo contrário, o meu médico turco, bastante capaz, que desde há ano e meio
vem quase todos os dias, nunca quer um centavo: apenas a minha amizade. Reza diariamente a Maomé por
nós e diz que não há sobre a Terra homens semelhantes. Porém, são raros estes muçulmanos bons.
Apresente os meus respeitos ao marquês Octávio e a toda a nobre família, e a mons. o vigário, a Perbellini
e P.e Vicente. Encomende-nos às orações do sr. reitor do seminário o M. R. P. Dorigotti, etc., etc. Foi-nos
muito grato ler a carta da superiora das canossianas na China; temos que formar uma liga de orações.
Beijo-lhe o sagrado anel, declarando-me nos sagdos. Corações de J. e Maria

De V. E. Rev.ma
Hum. e obed.mo filho
P.e Daniel Comboni

A madre Catarina e a Casa da Sagrada Família vão muito bem.

N.o 329 (310) - MENSAGEM A PIO IX


«L’Unità Cattolica» n.232 (1869), p. 1076

Cairo, 19 de Setembro de 1869

Beatíssimo Padre,

1975
Neste dia, consagrado a honrar as dores maternais da Virgem Imaculada, recordando-nos das que sofreis
diariamente pela mais santa das causas, é uma grande alegria para nós unirmo-nos a toda a ordem de pessoas
que, de todas as partes do mundo católico, se dispõem a dar-vos testemunho do seu afecto de filhos também
na faustíssima circunstância do concílio ecuménico, no último dos esplêndidos acontecimentos do vosso
glorioso Pontificado.
Destas inóspitas areias reiteramos o conforto dessa homenagem de amor filial e de fé ilimitada, que, há
poucos meses, nos levou aos vossos pés para nos congratularmos com a nobre e católica juventude italiana
do solene quinquagésimo aniversário do vosso santo sacerdócio e consolar-vos das muitas amarguras que
vos causam tantos irmãos nossos irreflectidos, enquanto manifestamos a mais terna e decidida adesão à causa
que vós representais e sustentais tão valorosamente.
1976
Lançados pela vontade divina e pela vossa santa palavra para estas lonjuras, não só não diminuiu em nós
o afecto e a veneração que na pátria sempre nos gloriámos de vos professar mas até podemos afirmar que vós
vos tornais cada dia para nós algo mais sagrado, uma maravilha mais surpreendente, uma alegria mais forte.
Na triste solidão que nos cerca, o vosso nome é a mais doce das nossas recordações; a vossa imagem, a mais
grata das nossas companhias; a vossa história, o objecto mais frequente das nossas conversações. Cada dia
rezamos por vós, falamos de vós, pensamos em vós, sofremos convosco e jamais nos surpreende a noite sem
ter obtido dos nossos alunos um suspiro e uma oração por vós.
1977
Adorado Pontífice e Rei, que o Céu vos guarde por largos anos para glória da Igreja, para defesa da justi-
ça, para conforto da sociedade, para apoio dos bons e para prosperidade das missões católicas, já que em Vós
se compendiam todos os interesses espirituais e sociais da pobre humanidade: todo o mundo, mesmo sem
querer, vos olha a vós e hoje, perante vós, todos ou tremem ou esperam. Nunca o pontificado católico foi tão
importante para o mundo inteiro como convosco, nem nunca nenhum romano pontífice exerceu a representa-
ção de Deus sobre a Terra tão amplamente como vós.
Desejamos que possais ver coroada de êxito essa grande obra do solene concílio ecuménico, que, sem dú-
vida por supremo conselho, empreendeste e gozar dos salutares efeitos, que convosco nos é grato esperar
dele, na emenda de tantos transviados e na reforma da transtornada sociedade. Apresentando-vos como ho-
menagem e ajuda para o concílio a pequena mas cordial oferta de vinte e cinco liras italianas, prometemo-
vos desde agora da nossa parte uma absoluta obediência de vontade e intelecto às decisões que nele se toma-
rem, dispostos a ensiná-las e defendê-las até com o sangue e com a morte como expressas revelações de
Deus.
1978
Ao mesmo tempo permitimo-nos suplicar-vos humildemente que nessa circunstância solene façais que se
tenham especialmente em conta, além dos interesses e necessidades de todas as outras missões, os das mis-
sões da nossa tão infeliz Nigrícia, necessidades que são nela, sem comparação, as maiores que houve até
agora e além disso infelizmente as mais desesperadas. E também entre os negros, Santo Padre, há ovelhas
que pertencem ao vosso rebanho; também entre os negros há corações capazes de Vos amarem; também
entre os negros – e regozijamo-nos de podê-lo afirmar por nossa experiência – Deus tem preparadas grandes
alegrias para a Igreja e para vós, Seu Vigário. A hora da salvação parece ter soado também para esta nação
duplamente feliz. O grito comovedor das suas seculares desventuras já encontrou resposta no vosso paternal
coração. E é nosso desejo que os pastores do mundo católico participem numa centelha da vossa caridade
para com a Nigrícia, prometendo-nos com isso umas boas fileiras de diligentes apóstolos, uma cooperação
eficaz e unânime e o cumprimento da profética palavra do que, movido pelo Espírito Santo, prenunciou a
salvação dos negros dizendo: «Coram illo procedent aetiopes».
1979
Este é o voto dos missionários, das irmãs e das professoras, que são os que dirigem a educação dos negros
e das negras dos nossos institutos e a escola feminina do Cairo Velho, enquanto vos oferecem quatro novos
neófitos adultos, hoje mesmo arrebatados às trevas da infidelidade e regenerados na água baptismal. E tal é o
desejo e a oração destes neófitos que, juntos com outros que os precederam na graça do baptismo, fizeram
hoje a sua primeira comunhão por vós. E é também a esperança que a vossos pés depositam os nossos cate-
cúmenos, que suspiram pelo momento de vos poder chamar pai.
A vossa santa bênção para estes ardentes anelos dos nossos corações fará com que a redimida Nigrícia
não seja a última entre as gloriosas pedras preciosas da vossa preciosa coroa.

P.e Daniel Comboni

[Seguem-se as assinaturas dos membros do instituto]

N.o 330 (311) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/70

Louvados J. e M. eternamente, ámen.

Cairo, Setembro de 1869

Excelência rev.ma,

1980
Graças ao Senhor o calor passou; estamos já no Outono e agora nas nossas casas não temos mais que 27
ou quando muito 28 graus Réaumur e isto apenas do meio-dia às três da tarde. Contudo, sentimos o peso do
prolongado silêncio do nosso veneradíssimo pai e superior, bispo e pastor, que durante três meses não nos
comunica nada, nem sequer por interposta pessoa.
Aproveitei a ocasião de quatro solenes baptismos, que administrei na nossa capela do Sagdo. Coração de
Maria a duas idólatras de mais de vinte anos, a uma muçulmana de vinte e cinco anos e a um jovem negro de
quinze, no domingo passado, festa das Sete Dores e dia de indulgência plenária do B. Pastor (contra o que o
nosso amat.mo card. Barnabó escreveu em Lião, isto é, que a nossa obra só tinha 40 dias de indulgência em
Verona), aproveitei, dizia, a ocasião desta terna cerimónia e de algumas primeiras comunhões de outros con-
vertidos anteriormente, para apresentar a Sua Santidade Pio IX, em homenagem e ajuda do concílio ecumé-
nico, uma mensagem e uma pequena mas sentida oferta dos nossos três institutos para a regeneração da Áfri-
ca; mandei tudo ao nosso venerado P.e Margotti para que, se lhe parecer, o publique na L’Unità Cattolica. A
cerimónia do baptismo durou três horas. Todos chorámos. Não lhe posso expressar a ânsia e a sede que, so-
bretudo as três convertidas, tinham do baptismo.
1981
Ao Evangelho fiz a homilia em árabe e também fiz em árabe as práticas antes e depois da comunhão. En-
tre as presentes havia uma muçulmana, que, a seguir, quis converter-se à nossa fé, mas os pais impediram-na.
Ela frequenta a nossa escola. Na segunda-feira seguinte, admiti no instituto uma negra idólatra de 27 anos,
que havia mais de dois meses andava atrás de nós, por causa da impressão que lhe tinha feito o ano passado
uma das nossas convertidas que agora está no Alto Egipto.
1982
Vê, monsenhor e nosso caríssimo pai, vai-se bicando, como se diz em Verona. Porém, a bicada será mai-
or quando agarrarmos os trezentos mil francos que vamos recolher na América.
A imperatriz Carolina, de Salzburgo, enviou-me 150 florins por meio da Sociedade de Colónia. Mas o
malandreco do Mr. Girard manda coisas e objectos de culto a todos menos a mim. Manda-os a quem não os
precisa, como os arménios e, não há muito, enviou uma caixa de casulas e ornamentos brancos a um padre
secularizado de Alexandria, o qual os vende no mercado a preço reduzido para pagar os gastos do envio. Mas
eu dei-lho a saber numa carta que lhe escrevi recentemente. Envie-nos a sua bênção, apresente os nossos
respeitos ao marquês Octávio e receba as reverências de todos junto com as do

Seu devot.mo
P.e Daniel

N.o 331 (312) - AUTÓGRAFO NUMA FOTO


ACR, Sez. Fotografie

Cairo, 13 de Novembro de 1869

N.o 332 (313) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/71

V. J. M. J.
Cairo, 26 de Novembro de 1869

Excelência rev.ma,

1983
Estou pesaroso pela morte da superiora das canossianas de Hong Kong. Escrevem-me de lá a dizer que
aquela santa mulher foi levada à última morada acompanhada de muitas lágrimas.
O nosso estimado delegado apostólico parte amanhã para Roma. Leva consigo o coração de todos; porém,
sou eu quem mais lamenta a sua separação, porque sinto o mais profundo agradecimento para com ele. Se ao
seu amor à verdade e à justiça este digno e venerável prelado não tivesse acrescentado uma grande bondade e
caridade para connosco, os nossos institutos teriam dado em nada. Se agora existem e prosperam, devemo-lo
ao Céu e à caridade de mons. Ciurcia, em quem tivemos e temos, apesar de estar sobrecarregado com uma
missão importante e dificílima e ser muito delicada a sua situação no Egipto, um pai e protector muito solíci-
to. O nosso estimado P.e Pedro pediu-lhe para nós a casa de Schellal e ele vai fazer em Roma as diligências
necessárias. Sobre este assunto mandar-lhe-ei carta para Roma no próximo vapor, dirigindo as minhas cartas
à princesa Maria Assunção, até saber com certeza a sua residência na Cidade Eterna.
1984
Com respeito à minha viagem a Roma para acertar assuntos e pela colecta na América, escrever-lhe-ei
com o próximo vapor o que me parece conveniente fazer. Entretanto, saiba V. E. que, para me mover do
Egipto, preciso não só da autorização de mons. o delegado como também do da Propaganda, por eu ser supe-
rior de estabelecimentos, como me escreveu o ano passado o cardeal Barnabó.
1985
His positis, é preciso que V. E. tome a iniciativa como coisa e ideia sua, e demonstre sobretudo que para
a obra da África e de Verona se necessita de dinheiro, que hic et nunc nos fazem falta pelo menos cinquenta
mil escudos; que é absolutamente imprescindível encontrá-los e consegui-los e que para isso o senhor precisa
de P.e Comboni (ainda que ele seja um inútil e só arme confusões). Além disso, eu tenho que reclamar em
Roma roupa branca, camas, etc. do convento suprimido, que Vimercati deu às negras e que à força as freiras
de mons. o vice-gerente retiveram.
1986
Logo que V. E. tenha obtido isso da Propaganda, irei a Roma e concertaremos tudo. E vamos conseguir
também cem mil táleres, apesar dos tempos difíceis e de choverem estocadas, porque Deus quer a obra.
Quanto a Mr. Girard, não se exceda demasiado, nem em elogios nem em prestar-lhe atenção. É conhecido
em Roma e mons. o delegado, mons. o patriarca de Jerusalém e muitos bispos franceses poderiam falar lon-
gamente sobre ele. Ainda o ano passado mandou circulares a todos os bispos da França a favor do B. Pastor,
mas não recolheu nem um centavo, porque na França o nome de Mr. Girard tem pouco peso e nós temos as
provas. Em todo o caso creio ser prudente que V. E. esteja de acordo com mons. o delegado. Ontem baptizei
duas negras adultas; foram acompanhadas à pia baptismal por duas negras e por Atílio Miniscalchi e Bajit,
que chorava de emoção.
Coragem, monsenhor; apresente os meus respeitos e os de todos ao Santo Padre e dê-nos a sua bênção.

Seu hum.mo e de votmo. filho


P.e Daniel Comboni

O conde Miniscalchi com seu filho e Bajit vão partir para o Alto Egipto e Assuão.

N.o 333 (314) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Egipto, v. 21, ff. 183-184v

V. J. M. J.
Cairo, 3 de Dezembro de 1869

Em.mo Príncipe,

1987
Depois de um ano de respeitoso silêncio, apresento-me de novo perante V. Em.a Rev.ma, neste dia con-
sagrado à glória do nosso ínclito protector S. Francisco Xavier, na certeza de encontrar o magnânimo cora-
ção de pai que o senhor guarda para com o mais insignificante dos obreiros que trabalham para as santas
missões.
1988
Perante certos acontecimentos da vida, convém-nos muitas vezes adorar e calar: a Providência divina sabe
cumprir até à última sílaba o diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum. Ainda que desde o meu come-
ço na vida apostólica estivesse preparado com absoluta resignação para suportar tudo pela glória de Deus e
pela salvação dos povos negros, nunca pude imaginar que, depois da famosa tormenta que levantou contra
mim Mons. C..., ex-V. G., teria de surpreender-me pouco depois na missão a borrasca provocada contra a
minha pessoa por quem edebat panes meos, quique magnificavit super me supplantationem. Ambas as tem-
pestades pretendiam atingir a nascente obra da regeneração dos negros.
1989
Porém, como antes na de Roma, também na do Egipto me lancei nos braços amorosos da Providência,
disposto a fazer e a sofrer o que mais fosse do agrado do Senhor, com a certeza total de que se cumpriria à
letra a vontade de Deus; porque se o primeiro conflito devia resolver-se mediante o infalível magistério da
Sagrada Congregação do Santo Ofício, no segundo deviam emitir o seu juízo V. Em.a e o meu estimadíssi-
mo vigário apostólico, que com a sua sabedoria e prudência poderiam dispersar as trevas e fazer brilhar e
triunfar a verdade dos factos.
1990
Alegre pelo que eu mesmo, os meus solícitos companheiros camilianos e a nascente obra suportámos e
sofremos, bendizendo sempre o Senhor, e disposto a suportar e a sofrer cem vezes mais no futuro pela salva-
ção dos pobres negros, depois de tão longo silêncio, ponho-me nestes dias tão solenes e sagrados para o cato-
licismo a escrever-lhe estas breves linhas para lhe recomendar fervorosa e encarecidamente a parte da huma-
nidade mais pobre, mais necessitada e mais abandonada do mundo, a infeliz Nigrícia, e suplicar-lhe que fa-
voreça na sua sabedoria todos os razoáveis esforços dos que se dedicam a cooperar no apostolado da mesma.
1991
Em que ponto se encontra a minha obra nascente, qual a sua importância, quais a suas dificuldades e es-
peranças, sabê-lo-á V. Em.a pelo nosso incomparável e veneradíssimo vigário apostólico mons. Ciurcia, a
cuja sabedoria e protecção é devido tudo o que, através de tantos obstáculos e dolorosas vicissitudes, se fez
com a graça divina. Eu acrescento que esta obra, apesar da oposição que encontra em toda a parte, lançará
firmes raízes e progredirá enormemente se a Providência nos conservar muito tempo este eminente prelado,
que mais que ninguém compreendeu na sua extensão e variedade de elementos a importante e delicada mis-
são do Egipto, onde goza do respeito e da consideração não só de todas as autoridades governativas e consu-
lares, mas até do próprio vice-rei, apesar do espírito anticatólico e maçónico que reina por aqui.
1992
Serão precisas uma grande abnegação, prudência e longanimidade para vencer os seculares preconceitos e
todas as dificuldades que no Egipto se opõem à redenção dos pobres negros; porém, com a graça de Deus,
há-de conseguir-se. E tanto mais se a Propaganda dedicar especial atenção tanto às missões da África Cen-
tral como à tristíssima situação dos negros no Egipto, para os quais veríamos totalmente oportuna a criação
de um apostolado especial, que, a seu tempo, daria frutos muito consideráveis.
V. Em.a compreende bem quão importante é o êxito e o desenvolvimento da obra nascente, a qual, orga-
nizada segundo o projecto estabelecido, deve produzir um feliz resultado tanto pelo seu fim essencial e pri-
mário, isto é, a evangelização das imensas tribos da África Central, como pelo seu fim acessório e secundá-
rio, ou seja, o apostolado dos negros no Egipto. Até este fim, nada mais que acessório e secundário, do qual
actualmente se ocupa a obra, dentro dos limites da mais prudente discrição, constitui por si só uma missão
importante.
1993
Não creio ser inútil chamar a atenção de V. Em.a para algo que está para suceder e que pode ter sérias
consequências para o futuro interesse do catolicismo na África Central. Sir Samuel Baker, anglicano, desco-
bridor de uma parte das nascentes do Nilo, recebeu o encargo do vice-rei do Egipto (e crê-se que também do
sultão) de organizar uma expedição ao Nilo Branco e às tribos do interior da Nigrícia para submeter esses
povos ao Egipto. O quedive quer fazer crer à Europa que empreende tal conquista para abolir a escravatu-
ra(?!!) naqueles lugares. Este célebre viajante partiu anteontem do Cairo, depois de me ter assegurado que
tinha à sua disposição sete grandes vapores, muitíssimos barcos pequenos, armas, canhões e 3600 soldados e
dinheiro em abundância. Foi nomeado paxá e governador das tribos negras conquistadas e a conquistar.
1994
Termino esta carta com uma súplica. Dado que a obra nascente é muito pobre em objectos de culto, im-
ploro de V. Em.a a graça de me conceder algo da Obra Apostólica de Roma e especialmente das generosas
ofertas de tal género que na próxima abertura do concílio oferecerão para as missões ao Santo Padre algumas
sociedades de damas da Bélgica, Holanda, Irlanda, Canadá, etc., como anunciaram bastantes jornais católi-
cos. Confio que, a tornar-se isso realidade, V. Em.a atenderá a minha humilde petição.
Nós fazemos os mais ardentes votos pela feliz abertura do concílio ecuménico e pela sua venturosa reali-
zação. Será fecundo em imensos benefícios e trará um salutar remédio para esta lacerada sociedade moderna.
As nossas filiais preces elevam-se de modo especial por V. Em.a, que tão importante papel terá neste santo
sínodo.
Aceite entretanto V. Em.a os respeitos que, com toda a humildade e deferência, lhe apresento com os
meus caros companheiros Carcereri, Rolleri e Franceschini, enquanto, beijando-lhe a sagrada púrpura, tenho
a honra de me subscrever nos Sagdos. Corações de J. e M.

De V. Em.a Rev.ma
Hum.mo, obed.mo e indig.mo filho
P.e Daniel Comboni, miss. ap.

N.o 334 (315) - À ABADESSA MARIA MICAELA MÜLLER


AMN, Salzburgo

Cairo, 8 de Dezembro de 1869

Minha rev.ma madre,

1995
Deverá mostrar-me grande indulgência para me poder conceder perdão novamente. A madre teve a gran-
de bondade de me enviar de Salzburgo, por meio de Josefina Condé, tantas prendas e uma carta tão bonita e
eu... sem lhe ter escrito uma palavra sobre o assunto. Peço-lhe insistentemente que me perdoe.
Estive sobrecarregado de ocupações e, além disso, doente; porém, devo acrescentar que, embora não lhe
tenha escrito, tenho rezado muito, tanto por si como pelo seu santo mosteiro. Ainda estou muito ocupado e
este é o único motivo pelo qual ainda não escrevi em alemão: deveria empregar várias horas para o fazer,
dado que essa formosa língua ainda me é difícil.
1996
Não tenho palavras bastantes para lhe agradecer pela enorme generosidade e bondade com que recolheu
esmolas para nós, ajudando-nos ainda por cima com os seus próprios meios. Com isto tornou-se colaborado-
ra e co-redentora dos povos negros. Estou-lhe infinitamente agradecido por tudo o que me escreveu na sua
preciosa carta. Oh, que bem que compreendeu a participação missionária da mulher católica e da verdadeira
esposa de Jesus Cristo! Por isso, uma vez mais, lhe expresso a minha gratidão!...
Tudo o que a madre puder dar ou conseguir obter de outros em favor da divina obra da conversão dos ne-
gros, peço-lhe que o faça chegar directamente ao rev.mo pároco de Santiago, em Colónia, presidente da So-
ciedade para o Socorro dos Pobres Meninos Negros, para que ele mo envie todo fielmente para o Cairo.
1997
Receba também o agradecimento de todas as minhas pequenas casas. Todos nós rezamos muito não só
por si com também por suas filhas, que nos educaram tão bem a nossa cara Petronila e que continuamente
fazem o que fazia Moisés, enquanto Josué travava as batalhas do Senhor. No aniversário da morte de Petro-
nila, dia 31 de Janeiro, faremos uns ofícios fúnebres com missa cantada. Ela já se encontra no Céu e por isso
deve interceder por nós e pelos negros.
Sentimo-nos muito edificados pelo comportamento no Egipto de sua majestade o imperador. Com o seu
bom exemplo levou a cabo uma verdadeira missão entre os turcos. Mostrou-se cristão em todos os aspectos.
Tanto em Suez como no Cairo, a sua primeira visita foi à igreja, assistindo à santa missa; em Jerusalém pros-
trou-se naqueles lugares sagrados e confessou-se precisamente ao P.e Heriberto, franciscano. Além disso,
recebeu-nos perante todo o corpo diplomático.
O bom exemplo do nosso insigne senhor foi digno de admiração, enquanto a imperatriz francesa deixou
no Egipto uma não muito grata recordação. Ela, de facto, não visitou nenhum dos piedosos estabelecimentos,
nunca visitou uma igreja, nem sequer a própria catedral de Alexandria, dedicando ao invés as suas visitas às
mesquitas, aos haréns, aos lugares de baile e a todos os outros monumentos profanos.
O coração e o espírito de S. M. o imperador mostram-se dignos do título de majestade apostólica; espe-
remos que faça valer de novo as leis correspondentes a este título!
1998
Desde a chegada de Josefina já baptizei muitas negras, sete das quais são mais velhas que esta bondosa
menina. Espero escrever-lhe a propósito disso alguns dados interessantíssimos. Por hoje, limito-me a desejar-
lhe que tenha umas Boas Festas de Natal e um feliz Ano Novo.
Expresse a minha veneração também a suas santas filhas e diga-lhes que me tenham presente nas suas
preces.
No Sacratíssimo Coração de Jesus fica seu servidor

P.e Daniel Comboni


Missionário apostólico
Original alemão
Tradução do italiano

N.o 335 (316) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/233

V. J. M. J.
Cairo, 10 de Dezembro de 1869

Meu caro rev.mo P.e provincial,

1999
Não pretendo com estas quatro letras dar resposta à sua muito estimada carta, à qual responderei a seu
tempo e com calma, mas sim desejar-lhe a si e a todos os seus filhos um Feliz e Santo Natal. À repetida peti-
ção dos nossos caros Estanislau e Beppi para fazerem uma peregrinação à Terra Santa, houve por bem res-
ponder com um sim, porque os dois merecem esta satisfação: trabalharam, suaram e está bem que agora re-
fresquem o seu espírito no berço e no túmulo de Cristo, para recobrarem novo vigor que os ajude a continuar
a sacrificarem-se pela salvação das almas. Eu experimentei isto em 1857 com o falecido P. e Melotto. Jerusa-
lém é um centro de ardor por Cristo. O senhor, que é um bom pai, subscreverá a minha decisão. Concedi-lhes
vinte dias.
2000
Não lhe digo mais senão que com toda a minha alma lhe recomendo que colabore na redenção da África.
Temos poderosos e furibundos inimigos, mas Cristo é mais forte que eles: caçoamos de todos. Estanislau
compreendeu a verdadeira situação. Acaso S. Pedro e S. Paulo quando iam a caminho de Roma encontravam
só amigos? Nós seguimos as pegadas dos Apóstolos e converteremos a África. São Camilo, que demonstrou
ser um grande homem (apesar do P.e Guardi e do desditoso Zanoni, o estado de cuja alma me provoca muito
receio), será um poderoso colaborador; e, enquanto trabalha pela África, conquistar-nos-á também o P.e
Guardi, que, por outro lado, tem muitos méritos e a quem professo grande veneração.
2001
Parece que agora também se mostra compreensivo o nosso estimado Barnabó, a quem, em seu devido
tempo e lugar, expus as minhas justas razões. Passei uns dias na capital do Istmo de Suez, em Ismaília, com
o nosso muito estimado P.e Bern. Girelli. Está tão contente que me assegurou que se as coisas se mantiverem
assim um pouco mais, vai morrer de satisfação. Os franciscanos estimam-no muito e faz honras à ordem
camiliana. Passámos noites muito alegres e dormimos no mesmo quarto.
Agora encomendo-me ao seu coração apostólico. A África é a mais necessitada e abandonada do mundo:
merece, pois, todos os sacrifícios. Haverá que trabalhar muito tanto em África como em Paris, Constantino-
pla e Roma, mas com a assistência divina superaremos todos os obstáculos. Contanto que Deus nos ajude a
pati, contemni et mori pro Jesu, tudo está em ordem. Ao P.e Germano, a Regazzini, ao meu caro Bonzanini,
a todos e especialmente ao reverendo P.e Fundador, saudações e Festas Felizes. A si todo o afecto do
Seu indig.mo P.e Comboni

N.o 336 (317) - AO P.e AFONSO M. RATISBONNE


ADSP

V. J. M. J.
Cairo, 15 de Dezembro de 1869

Mui reverendo padre,

2002
Recordará, meu estimado e venerado padre, as felizes circunstâncias do mês de Outubro de 1857, quando
com dois missionários da África Central, os rev.dos padres Soragna e Fene, jesuítas, tive a sorte de viajar
consigo até Jerusalém e de visitar as suas santas filhas, as Irmãs de Sião, às quais, revelando eminente cari-
dade, fez sempre elevar fervorosas preces pelo apostolado da África Central. Agora que a divina Providência
determinou que dois dos meus missionários vão à Terra Santa a fim de, no Sepulcro do Senhor e no presépio
do Menino, obterem a força necessária para sacrificarem toda a sua vida pela conversão e salvação dos des-
ditosos filhos de Cam da África interior, renovo os meus humildes pedidos ao seu coração de apóstolo, na
certeza de que as suas santas orações e as das suas dignas filhas serão escutadas.
No Inverno passado tive a honra de visitar mais de uma vez o seu digno e sábio irmão, o rev.do P. e Teo-
doro, ilustre e piedoso autor da História de S. Bernardo e do Seu Século, bem como as veneráveis Irmãs de
Sião.
2003
Quanta emoção não sentiu o meu débil coração! Lá encontrei a obra de Deus, o milagre em favor dos po-
bres filhos de Abraão, neste século de erros. Eu estou convencido da verdade dos factos e de que, por um
conjunto de factos que se evidenciam na nossa época, se aproxima o Reino de Deus para os infelizes judeus,
bem como estou convencido de que as Obras de Deus levadas a cabo pelos veneráveis irmãos Ratisbonne são
os seus mais poderosos instrumentos para isso, sua feliz iniciativa, e de que N. D. de Sião é o apóstolo dos
descendentes dos seus antepassados, do povo eleito.
Com a mais viva emoção e a maior felicidade, abro-lhe o coração, meu mui reverendo padre, para lhe di-
zer que num tempo em que tantos cristãos conspiram contra o Senhor e o seu Cristo me parece que o Sacra-
tíssimo Coração de Jesus se vai derramando com duplo amor naqueles que dão a sua vida para restabelecer o
Reino dos Céus entre os nossos pais pervertidos. Uma vez que tantos povos que receberam o santo baptismo
e a vida o rejeitam e crucificam de novo, o Senhor volta-se com a abundância das suas graças para os povos
ainda mergulhados nas trevas da morte.
2004
Os institutos que estenderam a sua santa obra a França, Inglaterra, Constantinopla e Terra Santa são pode-
rosos instrumentos da caridade divina, porém, o que sobretudo representa um bálsamo para o espírito da fé
católica é esse sublime foco ardente de preces e de obras expiatórias que o senhor fundou no santuário do
Ecce Homo. Sim, as santas Filhas de Sião obterão perdão e graças para os filhos do antigo povo de Deus, ao
levar a cabo o desejo do nosso querido Jesus no mesmo lugar em que os judeus pediram que o seu sangue
caísse sobre eles e sobre a cabeça de seus filhos. Elas realizam a grande missão que o divino Salvador atribu-
iu às santas mulheres do Evangelho no caminho da cruz: «Chorai por vós e pelos filhos do meu povo.» Eu
faço votos e rezo sempre para que o senhor veja cumpridos os santos desejos que lhe inspirou a Mãe de
Deus. Chegam os tempos.
2005
Rogo-lhe que mostre aos meus queridos irmãos, o rev.do P.e Estanislau Carcereri e o P.e Franceschini,
os seus institutos de Jerusalém e de S. João da Montanha. Ficarão felizes de admirar estas obras de Deus, que
evidenciam uma época gloriosa na Igreja na conversão dos judeus e no apostolado. Ao mesmo tempo supli-
co-lhe que insista para que as santas religiosas Filhas de Sião, no seu zelo ardente, elevem contínuas orações
pela conversão dos infelizes negros da África Central. É escusado falar-lhe desta, pois terão notícias dela
pelos meus caros irmãos missionários.
Em Paris visitei mais de uma vez a rainha Isabel, de Espanha, e o seu marido, S. M. Francisco de Assis,
que me falaram com grande interesse e entusiasmo de si e da sua obra. El-rei, a primeira vez que me viu,
saudou-me dizendo: «Oh, seja bem-vindo, meu reverendo padre! Recordo-me bem tê-lo visto na corte de
Madrid. Sou feliz de lhe expressar a minha simpatia por si e pela sua obra; é uma tarefa difícil», etc.
2006
Depois de lhe ter confirmado que tive a honra de lhe render homenagem em Madrid, etc., depois de oito
ou dez minutos de cumprimentos e de se falar sobre a revolução de Espanha, etc., o rei, em presença da rai-
nha, que chorava, disse-me: «Como seguem as suas boas obras de Jerusalém?» «Majestade, eu não tenho
casas em Jerusalém; as minhas obras estão no Cairo», etc. «Porém, meu padre, não é o senhor o muito reve-
rendo Ratisbonne?» ‘Seria muito ditoso, majestade – respondi –, se pudesse ter a milésima parte das grandes
virtudes do P.e Ratisbonne. Eu sou um pequeno missionário da África Central e chamo-me Comboni», etc.
«Ah, peço-lhe desculpas, meu venerado reverendo Comboni, porém, eu conheço-o». Em duas palavras: co-
mo vi em sua majestade uma grande simpatia e um entusiasmo verdadeiramente notável por si e pelas suas
santas obras, no dia seguinte corri a visitar o muito reverendo P.e Teodoro para o informar daquilo que o rei
me tinha dito e sugerir-lhe que lhe fizesse uma visita, na certeza de que seria bem recebido por ele e pela
rainha e com a possibilidade de obter muitos benefícios para as suas obras.
2007
Encontrei-o frio a este reverendo padre, o qual, como eu insistisse novamente, me respondeu: «Meu ami-
go, não tenho muita confiança nas boas disposições desta corte. O meu querido irmão foi a Espanha e rece-
beu um amável acolhimento, mas até hoje não obteve nenhuma vantagem.» E tinha muita razão, porque estas
duas augustas pessoas me acolheram bem também a mim e até me encorajaram muito para a difícil obra da
conversão da Nigrícia, contudo, creio que doravante será mais difícil obter deles algo tangível.
Peço-lhe que reze ao Senhor para que conceda ao apostolado da África Central santos e activos obreiros
evangélicos, tanto europeus como indígenas e permanecemos sempre unidos no eterno amor de Jesus e de
Maria.

Seu devot.mo e ind. irmão


P.e Daniel Comboni
Original francês
Tradução do italiano

N.o 337 - À SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 18 (1870), p. 12
Cairo, 17 de Dezembro de 1869

Breves notícias.

N.o 338 - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Central Dossier

V. J. M. J.
Cairo, 23 de Dezembro de 1869

Minha caríssima e reverenda madre,

2008
A sua carta de 29 de Novembro foi-me entregue esta manhã. Tinha nutrido a esperança de que a senhora
me concedesse a Irmã Josefina de Tiberíades e, ao invés, a madre, afinal, estaria disposta a tirar-me a Irmã
Maria Bertholon.
A senhora é uma irmã muito bondosa; ajudou-me nos momentos difíceis para a minha obra; sem si, um
bom número de almas não teria entrado na Igreja nem no Céu por meio da minha obra; foi uma verdadeira
mãe para Daniel Comboni e para a Nigrícia e o agradecimento que sinto por isso durará toda a vida; mas, por
amor de Deus, seja nossa mãe e nossa protectora hoje e no futuro. A obra vai admiravelmente. Mons Ciurcia,
o delegado apostólico, levou a Roma todo o interesse por ela. Conseguiu tornar o cardeal amável e é preciso
que a casa principal da minha obra, confiada às Irmãs de S. José, adquira uma solidez notável.
2009
É por isso que preciso de irmãs e sobretudo uma boa e capaz irmã árabe. A Ir. Maria Bertholon suportou
com uma abnegação admirável os trabalhos mais fadigosos da fundação. Cheia de zelo, de entrega e de paci-
ência; muito devota, muito activa, muito caridosa, trabalhou maravilhosamente e ganhou o coração das jo-
vens negras, que lhe têm muito afecto, apreciando muito os seus desvelos. Como poderia eu suportar que
fosse substituída por outra e afastada de uma obra tão útil e tão difícil na qual colaborou tão bem? Minha boa
madre, eu não lhe falei a ela das suas intenções, nem lhe disse que lhe escrevi. Ao contrário, peço-lhe enca-
recidamente que lhe dirija uma boa carta de encorajamento, a fim de que continue a entregar-se à salvação
das almas mais abandonadas. Anda muito triste, porque a senhora nunca lhe escreve. A boa irmã sofre, ainda
que raramente o seu espírito reflicta algum pequeno desalento. Nunca o Sol se põe sem que o bom Deus a
console. Graças a Ele, todas as nossas negras são devotas e de bons costumes. Nós poderíamos deixá-las
num quartel à mercê dos soldados: morreriam mártires. Mas há uma ou outra que de vez em quando perde a
cabeça e durante esse tempo mostra-se ingrata. É então que a Irmã Maria e eu sentimos menos coragem e ela
diz: «É triste ser pagos com a ingratidão!» Mas isso passa depressa.
2010
Em mais de cem cartas, que as negras escreveram para Verona às suas antigas directoras, fazem mil elo-
gios das Irmãs e especialmente da Ir. Maria e da Ir. Madalena e declaram expressamente que nas freiras en-
contraram verdadeiras mães. Rev.da madre, sabe bem que isto acontece nas missões e nas comunidades. De
resto a Ir. Maria está muito bem. É difícil poder encontrar duas irmãs tão bondosas, tão devotas e tão pacien-
tes como as irmãs Maria e Madalena. Esta última é um anjo: muito piedosa, muito dócil, muito sacrificada e
sempre alegre e satisfeita. Sem ela saber, adoram-na a superiora e as negras. A Ir. Madalena é o retrato de
S.to Estanislau Koska. Portanto permita-me rogar-lhe que não sonhe jamais retirar-me estas duas dignas
irmãs. Acompanharam a obra nos momentos mais difíceis e estou muito interessado em conservá-las para
sempre. Escreva, por favor, às duas uma bonita carta: consideram-na a si como a Jesus Cristo.
2011
Posto como princípio que estas duas irmãs, sóror Maria e sóror Madalena, permanecem no meu instituto,
porque me é impossível encontrar duas religiosas mais generosas, encomendo-me à sua maternal caridade
para obter uma irmã árabe, que seja altruísta e esteja bem preparada para ler e escrever árabe. Precisa-se de
uma professora indígena que seja religiosa. Será útil para as negras e também para sóror Maria e sóror Mada-
lena. Além disso falta uma irmã para a limpeza. A Ir. Maria faz muito. É muito organizada e asseguro-lhe
que nas condições em que nos encontrámos até fez de mais; porém, não pode estar em toda a parte. Se a ma-
dre pensasse que a Ir. Verónica serviria bem, eu ficaria feliz em recebê-la em nossa casa. Somente faço a
seguinte observação: sóror Maria é muito humilde, não tem interesse em ser superiora. Contudo penso que
não convém tirar-lhe o cargo de superiora, salvo quando a madre puder conceder-nos uma superiora entre as
de mais idade do instituto, como, por exemplo, a superiora do Hospital de Jerusalém, a madre assistente, etc.
Enfim, deixo isso ao seu critério. Pense, minha madre, seria adequada para o nosso instituto essa santa religi-
osa, a superiora actual do Hospital de Jerusalém? Ela é bastante idosa e está cansada. No Cairo Velho há uns
ares magníficos e para ela seria um descanso. Sóror Maria e as jovens negras têm-lhe grande veneração. A
sua presença far-nos-ia imenso bem. O instituto do Cairo Velho está a tornar-se muito importante. Sob a sua
direcção, sóror Madalena chegaria a ser uma superiora muito capacitada para dirigir as outras casas para
negras que penso fundar.
2012
Tudo considerado, com as minhas receitas fixas actuais, posso assegurar-lhe para sempre: 1) casa paga e
mobilada; 2) quatro mil francos por ano. Com um pouco de esforço poderia aumentar muito esta soma. A
senhora sabe que as negras trabalham. Pois bem, se aceitar por agora estas modestas condições, nós alegrar-
nos-íamos por interferirmos apenas na direcção espiritual, desinteressando-nos de outras coisas, sobretudo da
administração que nos tira tempo. Se lhe parecer bem que nós acertemos isso, eu encarrego-me de levar a
cabo em pouco tempo todas as diligências perante monsenhor o delegado. Naturalmente há que dirigir as
negras para que cheguem a ser apóstolas na sua nação com base no meu Plano, que é reconhecido por mons.
o delegado e por todos como o sistema mais adequado para evangelizar a África Central. Enfim, minha ma-
dre, venha em minha ajuda. A Ir. Isabel está em nossa casa. Sóror Maria não tem nenhuma observação a
fazer; fica com muito prazer com as jovens negras. Sobre esta irmã (que quanto ao demais é boa) só falare-
mos depois de termos acertado o assunto da freira árabe e do que acabo de dizer. A superiora actual do hos-
pital parece-me muito bondosa, prudente e religiosa. Lamento muito a partida da Irmã Eufrásia, a assistente.
A nossa madre Catarina Valério, de Verona, franciscana, está em Jerusalém. Não posso dizer-lhe nada acerca
do que fará. Naturalmente, não me é possível contar com uma só religiosa. Não posso prever no momento
presente o que decidirão dela, porque não conheço as suas intenções. Também o P.e Estanislau e o P.e José
estão em Jerusalém.
Aceite as felicitações para estas festas e os melhores votos para o ano novo, que todos nós lhe mandamos.
Faça-os chegar da nossa parte também à Ir. Celeste, à Ir. Rafaela e a todas.

Seu devot.mo filho


P.e Daniel Comboni
Original francês
Tradução do italiano

N.o 339 (319) - AO P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

V. J. M. J.
Cairo, 25 de Dezembro de 1869

Meu caríssimo P.e Joaquim,

2013
Não quero deixar que Bajit parta sem ter escrito uma linha para lhe desejar a si e aos institutos masculino
e feminino muitas felicidades nestas festas e no ano novo. Não lhe dou notícias minhas, pois saberá tudo por
Bajit. Só me encomendo às suas orações e às de todas e de todos os do instituto. Com a graça de Deus, as
nove alunas do insto. de Verona, sem exceptuar nenhuma, vão bem e são verdadeiramente boas. E ainda que
de quando em quando, isso sim, alguma delas sofra algum desnorte passageiro, mostram-se alegres e entusi-
asmadas com a missão. Distinguem-se entre as demais Zenab, Justina, Quascé, Caltume e Zarifa, mas a me-
lhor de todas talvez seja Luísa, pela sua sensatez, e também Domitila. Nos três institutos há 42 bocas para
alimentar, o que me dá quebreiras de cabeça; porém, vejo que é certo o que dizia o nosso chorado velho, isto
é, que Cristo é um cavalheiro e não um trapaceiro.
2014
Parece-me ter a obra bem alicerçada em África, enquanto na Europa me resta ainda muito caminho para
percorrer; mas chegarei. Fiz um pacto com o meu ecónomo S. José, ou melhor, dei-lhe um ultimatum: em
três anos quero absolutamente cem mil táleres, a bem ou a mal. Penso que Beppo irá pensar e acabará ceden-
do. No primeiro ano levá-lo-ei às boas, como se faria com uma menina; no segundo ano entrarei pela políti-
ca, recorrendo à via diplomática; e se, ao fim de dois anos, não me tiver dado mais de metade daquilo que lhe
peço, então será forte e feio... logo veremos. Peça também a este bom velho que me ajude, pois da minha
parte mais de uma vez lhe aqueci as orelhas para que o ajudasse a si.
2015
Devo recordar-lhe que eu sou membro da Associação de S. Carlos, e por força disso, todo o membro do
Insto. Mazza que morrer tem direito a uma missa dos demais que ainda vivem. Advirto-o, pois tenho absolu-
to e pleno direito de pertencer a ela e de obter, à minha morte, as missas de todos os que me sobreviverem,
tendo eu já celebrado missa por todos os já falecidos. Por isso, peço-lhe que, quando morrer alguém, me
avise, para eu celebrar a missa, escrevendo-me para o Cairo, de onde a carta me será enviada para qualquer
ponto do planeta onde eu me encontrar.
Saúde da minha parte Trenaghi, P.e Donato, P.e Fochesato, P.e Beltrame, Betta, a mamã Regina, a tia
Zara e todos e todas e apresente os meus cumprimentos a P.e César Cavattoni.
Nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria

O seu hum. e af.mo servidor


P.e Daniel Comboni

N.o 340 (320) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


NA IGREJA DOS INSTITUTOS DO CAIRO
(do registo de missas)

N.o 341 (1203) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


NA IGREJA DO CAIRO
ACR, A, 24/1

N.o 342 (1153) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


EM SANTA CATARINA. EM ALEXANDRIA DO EGIPTO
ASCA, Registo de missas
1870

N.o 343 - (321) À MADRE EMILE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

Cairo, 18 de Janeiro de 1870

Minha caríssima e rev.da madre,

2016
Não posso exprimir-lhe a dor que sinto ao ver-me obrigado a deixar partir para Jerusalém sóror Maria
Bertholon. Será impossível encontrar uma irmã tão bondosa e tão disponível. Desde este momento declaro-
lhe que não vou renunciar a sóror Maria. Deixo-a partir para ela cumprir a obediência relativamente à ordem
que mandou, pois de contrário temo que no futuro a Congregação de S. José não satisfaria os meus pedidos
para obter mais religiosas. A Ir. Maria dedicou-se muito à minha obra: nunca poderei pagar-lhe todo o bem
que fez no meu instituto. Com uma constância admirável suportou todos os sacrifícios que são inseparáveis
duma obra nos seus começos. Há uma consternação muito grande por causa da sua partida. Não se come, não
se cozinha e as negras estão inconsoláveis. Ela ficaria de muito boa vontade; porém, como é uma boa religio-
sa, não quer faltar à obediência. Deixo, pois, que se vá, na esperança de que me vai prometer numa carta que
voltará a mandar-ma rapidamente. Ela pediu sempre para não ser superiora, mas nunca pediu para abandonar
as minhas jovens negras. É tão humilde que ficaria muito feliz de permanecer aqui sob a direcção da Ir. Ve-
rónica.
2017
Portanto, lembre-se, minha boa irmã: eu fico com a Ir. Isabel para sempre, mas com a esperança de que
sóror Maria seja concedida ao meu instituto. A Ir. Verónica não a conheço, mas pelo que tenho visto nos
poucos dias em que ela está entre nós agrada-me e ganhou a simpatia das negras. Espero que seja a superiora
de que preciso. Portanto, por favor, guarde a Ir. Maria para mim e não a destine para outro sítio. Agora vai a
Jerusalém, mas peço que a conceda ao meu instituto quando a pedir. Primeiro que tudo a obediência, mas
depois recomendo-lhe a caridade. Peço-lhe uma boa e capaz irmã árabe: espero-a depois da festa de S. José.
Assim teria quatro religiosas e, mais tarde, com a Ir. Maria, cinco; já ficaria contente. E porquê cinco religi-
osas? Porque não tardarei a partir para o Alto Egipto (com clima melhor que o da Europa); então, ou será
necessário ir para lá ou, com a ajuda de S. José, pôr em andamento a escola das raparigas no Cairo Velho,
onde actualmente está a Ir. Catarina, cuja destinação ignoro por completo.
2018
Tenho uma grande estima pela Ir. Maraval, a assistente, mas parece-me que algo lhe subiu à cabeça, ti-
rando-me a Ir. Maria. Não posso perdoar-lhe. Toda a minha confiança está em si, minha boa madre, que tan-
to bem me tem feito e espero que volte a fazer nestas circunstâncias. Estou-lhe muito grato por me ter conce-
dido sóror Verónica, que me parece, como já disse, muito idónea para nós; porém, o meu agradecimento será
ainda maior se me conceder também a Ir. Maria e uma boa Irmã árabe. Responda-me sobre este assunto, a
par do qual já pus o P.e Estanislau. Quando receber a sua resposta, pôr-me-ei de acordo com o delegado (que
agirá de acordo com o meu desejo) e o assunto será concluído.
Apresente os meus respeitos à Ir. Celeste e à senhora de Villeneuve e reze pelo seu humílimo filho

P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 344 (332) - À MADRE EUFRÁSIA MARAVAL


Assgm, Afrique Centrale Dossier

V. J. M. J

Cairo, 25 de Janeiro de 1870


Minha muito rev.da madre,

2019
É com grande amargura que deixo partir a Ir. Maria. Se não fosse o receio de ficar de mal com a congre-
gação e de desgostar a madre geral, não permitiria a partida de uma irmã a quem, como a madre sabe, muito
estimo e aprecio. Porém, declaro-lhe que não vou renunciar a ela: mais para diante reclamá-la-ei para a mi-
nha obra, a qual, pelo desenvolvimento que está a tomar, precisa de, pelo menos, cinco irmãs. Comuniquei à
madre geral e ao cardeal Barnabó que, a seu tempo, reclamarei a Ir. Maria, pela sua maneira de tratar com as
negras. Ela pediu que a libertassem do cargo de superiora, não que a mudassem. Sóror Maria é humilde e
poderia ser que pela sua humildade fosse feliz submetendo-se a uma nova superiora. Mas ela preocupa-se
sobretudo com a obediência: quer obedecer e, por isso, torna-se ainda mais estimável.
A madre poderia ter-me mandado a Ir. Verónica (que me parece muito bondosa, muito capaz e nos agrada
muito a mim e ao P.e Pedro) e deixar-me além disso a Ir. Maria; poderia ter-me evitado um desgosto tão
grande. Porém, perdoo-lhe, na condição de que apoie a minha causa perante a madre geral, a fim de que me
seja concedida de novo a Ir. Maria, mais uma boa irmã árabe. Necessito das religiosas para duas casas.
2020
Confidencialmente comunico-lhe que o card. Barnabó me chamou a Roma por causa de assuntos da mis-
são. Ele deu-me um grande raspanete cardinalício por ter levado as Irmãs de S. José para o Egipto sem uma
regular autorização dele, como prefeito da Propaganda e protector, e por não lhe ter escrito todos os meses.
Eu não fiz senão rir e digo-lhe que ganhei uma indulgência plenária fazendo a minha santíssima vontade. O
cardeal fará com que me seja concedida também sóror Maria, e a madre geral (que estará em Roma) será
muito bondosa comigo. Não penso partir até finais do próximo mês; porém, por favor, não fale disto a nin-
guém, porque um precioso silêncio nunca originou escritos...
2021
Rogo-lhe apresente os meus respeitos à superiora do hospital e à prima do meu caríssimo amigo, o céle-
bre jesuíta maltês P.e Fenek. Agora reina a tristeza na nossa casa devido à partida da Ir. Maria. Acaba de sair
o nosso médico, depois de ter invocado Maomé como testemunha do seu pranto e da sua infelicidade pela
partida da Ir. Maria, porque – disse – não há no mundo uma mulher como ela. Fiat! O bom Deus conceder-
no-la-á de novo.
Aceite a expressão da minha estima e dor.

Seu af.mo
e
P. Daniel Comboni
Mis. ap.
Original francês
Ttradução do italiano

N.o 345 (323) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/242

V. J. M. J.
Cairo, 27 de Janeiro de 1870

Meu rev.mo P.e provincial,

2022
Há muito tempo preparei-lhe uma longa carta que ainda está sobre a minha mesa e que não lhe cheguei a
enviar, nem sequer por meio de Bajit. Hoje, finalmente, apesar de assoberbado com mil ocupações, decidi
escrever-lhe de novo. Sinto remorso e pesar de ter apenas concedido 20 dias aos dois peregrinos para a ida e
volta de Jerusalém. Concedi-lhes vinte para que tomassem quarenta; mas eles foram incrivelmente exactos,
cem vezes mais que Comboni e, contra o que eu esperava, voltaram para casa, felizes e contentes, no dia 7 de
Janeiro. Nunca tinha visto na minha vida tanta exactidão. São lições do Paraíso: mais uma magnífica lição do
Paraíso.
2023
Obtive, finalmente, da delegação apostólica o P.e Bernardino que do dia 2 ao dia 22 de Fevereiro comerá,
beberá, dormirá e trabalhará em minha casa, enquanto do dia 2 ao dia 11 estiver a dar os exercícios às mi-
nhas mestras negras e de 11 a 21 às minhas religiosas. Estanislau trouxe uma de Jerusalém que é uma pérola.
No dia 22, com um magnífico passeio num barco à vela, encerrar-se-á a nossa reunião do Paraíso. Entende-
se que o P.e provincial é o protagonista da cena. Hoje, por exemplo, o P.e Bernardino, segundo disse, passou
um bom dia. O P.e Estanislau não estava, porque ontem, pela manhã, mandei-o a Alexandria.
2024
Os seus caros filhos Estanislau e Beppi são duas jóias de missionários. Estão a preparar-se para a Nigrícia
e já sabem muito, como se fossem veteranos das missões. Que digo a verdade é um facto e podê-lo-á com-
provar o P.e Bernardino, depois de viver connosco vinte dias. Além disso, monsenhor o arcebispo estima
muito o P.e Estanislau: apercebi-me disso nas minhas conversas com ele. Portanto, é preciso arranjar as coi-
sas de modo que não só estes dois se consagrem à Nigrícia, mas que também vão outros mais. Trataremos
isto pessoalmente. Diga ao P.e Tita Carcereri, do hospital, que tinha razão ao escrever a seu irmão que o
concílio ecuménico não se podia celebrar sem P.e Comboni. De facto, outro dia escreveu-me o bispo e ontem
Sua Em.a o cardeal a comunicarem-me que vá lá para tratar de coisas da missão.
2025
Eu não partirei do Egipto antes de 19 ou 29 de Fevereiro, porque tenho que fazer aqui e também porque,
ao regressarem do Alto Egipto, suas altezas imperiais os arquiduques Rainieri e Ernesto e a arquiduquesa
Maria Carolina virão aos nossos institutos para apadrinhar no seu baptismo quatro negros. Já nos vieram
visitar quinta-feira passada e o P.e Estanislau falou muito com eles. Além disso, como combinei com o ar-
quiduque Rainieri tentar um golpe mágico com o Paxá, o mais provável é que passe todo o mês de Fevereiro
no Egipto. Mas o que mais me consola é que mons. o bispo de Verona entendeu-se perfeitamente com o P.e
Guardi. Isto é algo que V. R. deve saber. O bispo não me dá mais explicações; limita-se a dizer-me que, por
meu lado, mande ao P.e Estanislau que escreva uma carta humilde ao P.e Guardi. Eu obedeci e o P.e Estanis-
lau prometeu-me fazer o mesmo por sua parte. Por isso reze e faça rezar para que tudo se arranje para a gló-
ria de Deus e a salvação da Nigrícia. Isto quer Deus, isto deseja Comboni e por isso rezam os dois filhos
africanos de S. Camilo. Se rezarmos, tudo será feito, porque Cristo cumpre como cavalheiro. O P. e Bernar-
dino hoje comeu muita polenta. É a primeira vez que a come no Oriente. Continua a ser aquele alegre e caro
padre Bernardino do Paraíso; e desde o hábito à barba, por fora não mudou absolutamente nada.
2026
Também S. Camilo é um cavalheiro; muitos ajudaram-me com palavras, S. Camilo, com factos. Não fica-
rei satisfeito, meu rev.do padre, até trazê-lo a si para a África. Aqui viveria dez anos mais. Vejo, porém, que
é demasiado necessário na Europa. Chorei de alegria ao ler o álbum das comunhões, etc. Esta é obra dirigida
e levada a cabo pelo P.e Artini. Deus deve abençoar o P.e Artini, porque tem o coração segundo o de Deus.
Receba respeitosas saudações de nós todos e mande uma boa bênção para este seu

pobre, crucificado, porém sempre


alegre seu
e
P. Daniel Comboni

N.o 346 (324) - A MONS. LUÍS CIURCIA


RELAÇÃO HISTÓRICA
SOBRE O VICARIATO APOSTÓLICO DA ÁFRICA CENTRAL
AVAE, c. 23

Cairo, 15 de Fevereiro de 1870

Vicariato apostólico da África Central

2027
Foi o muito reverendo P.e Maximiliano Ryllo, polaco de nascimento e membro da Companhia de Jesus, o
primeiro que concebeu a nobre ideia de fundar a missão da África Central. Nos seus muitos anos como supe-
rior dos jesuítas na Síria – onde trabalhou com zelo infatigável e obteve um grande êxito no meio de obstácu-
los e guerras horríveis, sobretudo na época das conquistas de Mahhammed Ali, vice-rei do Egipto –, travou
conhecimento com um homem de negócios cristão que tinha feito considerável fortuna no Sudão com o co-
mércio dos dentes de elefante e que lhe contou pormenores muito interessantes sobre a situação e os costu-
mes dos negros, cuja disposição para ser civilizados tinha podido constatar, ao ver dois rapazes escravos que
tinham sido levados para Cartum.
Homem eminentemente instruído, cheio de zelo e coragem, e impelido por Deus para se lançar às empre-
sas mais árduas e perigosas para glória da Igreja, o P.e Ryllo foi nomeado reitor do Colégio Urbano, da Pro-
paganda Fide, na época em que os jesuítas estavam encarregados de dirigir aquele glorioso cenáculo de após-
tolos e de mártires do universo inteiro; apressou-se a propor à S. Congregação o plano de erigir uma missão
no interior da Nigrícia.
2028
E, de facto, a Propaganda, impressionada pela importância desta santa empresa destinada a trazer para o
redil de Cristo a parte do mundo mais desgraçada e abandonada, na sessão de 26 de Dezembro de 1845 de-
clarou a África Central vicariato apostólico, o que, no seu enorme zelo pelas missões estrangeiras, Gregório
XVI confirmou com um breve de 3 de Abril de 1846. Os limites deste grande vicariato, segundo decreto
apostólico, eram:
a oriente, o vicariato do Egipto e a prefeitura da Abissínia;
a ocidente, a prefeitura das Guinés;
a setentrião, a prefeitura de Trípoli, o vicariato de Tunes e a diocese de Argel;
a sul, os montes Qamar, chamados também montes da Lua; (1)
Para empreender o cultivo deste vasto campo evangélico, a Propaganda escolheu estes primeiros venerá-
veis obreiros:
1.o S. E. mons. Casolani, de Malta, bispo de Mauricastre i. p. i. e vigário apostólico.
2.o O rev.do P.e Maximiliano Ryllo, da Companhia de Jesus.
3.o O P.e Emanuel Pedemonte, de Génova (outrora oficial do império de Napoleão I).
4.o P.e Inácio Knoblecher, de S. Cantien (diocese de Laybach), doutor em Teologia e aluno do Colé-
gio da Propaganda, de Roma.
5.o P.e Ângelo Vinco, de Cerro (diocese de Verona), aluno do Insto. Mazza.
2029
Estes valorosos missionários tinham-se proposto a nobre empresa de converter os povos negros, de impe-
dir o tráfico de escravos negros, onde quer que existisse, e de ocupar-se de alguns católicos que, por motivos
de comércio, se encontravam dispersos por aquelas longínquas regiões. O caminho que aqueles homens de-
viam seguir, a sede que deviam escolher, não lhes tinham sido determinados.
A vontade da Providência e a experiência dos missionários deviam decidir. Mons. Casolani era da opinião
de tomar o caminho de Trípoli e de Fezzan, atravessar com camelos o grande deserto do Sara em oitenta e
quatro dias e estabelecer-se no vasto império de Bornu. O P.e Ryllo, ao invés, estava convencido de que seria
prudente seguir a rota do Nilo e da Núbia, dado que era um itinerário mais seguro, conhecido dos viajantes e
percorrida pela expedição egípcia quando Mahhammed Ali empreendeu em 1822 a conquista do Sudão Ori-
ental. Foi esta última ideia que prevaleceu.
2030
Antes de o grupo se poder pôr a caminho, morreu Gregório XVI; O augusto Pio IX, porém, animado do
mesmo zelo pela conversão da Nigrícia, confirmou os decretos do seu glorioso predecessor e abençoou a
santa empresa e os novos apóstolos da África Central. Mas como os preparativos desta expedição requeriam
ainda tempo e monsenhor o vigário apostólico tinha que esperar uns meses para resolver certos assuntos de
família, decidiu-se que Knoblecher, com o P.e Pedemonte e P.e Ângelo Vinco, deixassem Roma no dia 3 de
Julho de 1846 para se deslocarem para o convento dos maronitas da Síria, a fim de aí se habituarem a uma
vida oriental que tivesse alguma relação com os costumes dos povos da Núbia e do Sudão, para onde deviam
ir. Esta estada foi de oito meses, que eles aproveitaram também para estudar a língua árabe, a qual é falada
até ao grau 13 de latitude norte. Visitaram Jerusalém e os Santos Lugares, memoráveis pela vida e milagres
do Divino Salvador.
2031
Na Primavera seguinte, todos os missionários se reuniram em Alexandria, mas com mudança na direcção
da missão, por motivos que não vale a pena referir aqui.
Mons. Casolani acompanhava como simples missionário a santa expedição, à cabeça da qual estava o P.e
Ryllo, que tinha sido nomeado pró-vigário da África Central por decreto apostólico de 18 de Abril de 1847.
O grupo estava provido de cerca de 50 000 francos, dos quais a Propaganda tinha dispensado 37 634,41
(7000 escudos romanos).
Foram empregues cinco meses em Alexandria e no Cairo para fazer os preparativos; durante esse tempo
os missionários tiveram oportunidade de conseguir que a informação sobre o Sudão fosse mais exacta, graças
ao engenheiro francês sr. Arnaud, o qual tinha visitado a Núbia e algumas tribos do interior e guiado a expe-
dição egípcia ao Nilo Branco.
2032
O P.e Ryllo, que conhecia a fundo as características do espírito turco, teve a coragem de se apresentar
pessoalmente a S. A. Mahhamed Ali e ao seu valoroso filho Ibraim Paxá. Este, alguns anos antes, na Síria,
tinha prometido uma considerável soma a quem lhe trouxesse a cabeça do valoroso jesuíta, por ele ter enco-
rajado os cristãos do monte Líbano e os maronitas a resistir ao orgulhoso conquistador que queria apoderar-
se do seu país, contra o desejo do seu senhor, o grande sultão de Constantinopla.
O P.e Ryllo, que falava perfeitamente o árabe, soube comportar-se tão bem na corte egípcia que ganhou a
confiança do ilustre guerreiro, bem como a do vice-rei do Egipto, que cumulou de favores o seu antigo ini-
migo e lhe passou um documento assinado em que garantia a protecção dos missionários por parte dos go-
vernantes e chefes do Sudão, até aos mais afastados limites do território sob o domínio do Egipto. Assim,
favorecidos pela Providência, os missionários deixaram o Cairo para subirem o Nilo em direcção ao Alto
Egipto e à Núbia. O seu plano era chegar às tribos dos negros a partir de Cartum, a capital das novas con-
quistas egípcias no Sudão, situada a duas milhas da ponta do triângulo da península de Sennar, lá onde o Nilo
Branco e o Nilo Azul se juntam para formar o Nilo entre os graus 15 e 16 de latitude norte.
2033
Até finais do mês de Outubro, a santa caravana fez a sua primeira entrada nos confins do vicariato da
África Central, para lá da primeira catarata, na célebre ilha de Filé, junto ao Trópico do Câncer, onde o bap-
tismo de um menino muçulmano moribundo representou a primeira flor deste importante apostolado e a pri-
mavera do seu difícil e perigoso ministério.
Que vasto campo por evangelizar se apresentava aos nossos zelosos missionários! Não falarei aqui da
enorme quantidade de territórios e povos desta grande missão, nem tão-pouco das numerosas línguas e dia-
lectos falados, tanto pelas populações como nas tribos que ocupam esta imensa extensão que a geografia não
pôde ainda classificar senão com o nome genérico de regiões desconhecidas da África.
2034
Direi apenas uma palavra em geral sobre a vasta extensão deste imenso vicariato, pois que, excluindo
embora o espaço ocupado pelas missões que foram fundadas depois da erecção do mesmo e calculando os
seus limites meridionais dos montes da Lua (caso existam realmente) situados entre o 5o de latitude sul e o
equador, mais ou menos lá onde os famosos viajantes Speke e Grant descobriram com muita probabilidade,
em 1858, o Nyanza Vitória entre o 3o de latitude sul e o equador, isto é, o lago que forma a primeira nascen-
te do Nilo e o lugar onde Sir Samuel Beker constatou em 1864 a existência da grande bacia que constitui a
segunda nascente do dito rio, ou seja, o Nyanza Alberto ou Louta N’Zige no equador (2), resulta que esta
grande missão abrande aproximadamente a extensão que existe entre os graus 5o de lat. sul e os 24o norte,
compreendida entre os 10o e os 35o de longitude este do meridiano de Paris.
Além disso, abrange o espaço que medeia entre os 10o e os 29o de lat. norte, e entre os 9o de long. este,
segundo o dito meridiano. Isto leva-nos à conclusão de que o vicariato da África Central, depois do decreto
de erecção, é quase vinte vezes mais extenso do que a França. E, conquanto a Propaganda tenha tirado de-
pois, em 1868, uma parte considerável desta grande missão, a oeste, para formar a prefeitura apostólica do
Sara, confiada ao arcebispo de Argel, há todavia que reconhecer que o vicariato da África Central é o maior
do globo.
2035
Contudo, é verdade que a S. Sé, tendo erigido esta imensa missão, enviou estes primeiros obreiros evan-
gélicos a fim de formar outros vicariatos e prefeituras apostólicas, conforme a esperança e os resultados que
a acção do catolicismo pudesse alcançar, conforme as diversas congregações religiosas ou sociedades ecle-
siásticas que o Vigário de Cristo destinasse para cooperarem na regeneração religiosa e civil desta extensa
parte do mundo que ainda jaz envolta nas trevas da morte.
Durante a viagem pela Núbia inferior, o P.e Ryllo sofreu uma forte disenteria, o que obrigou a caravana a
abandonar a rota directa do deserto de Korosco e Abu-Hammed, para seguir o caminho mais longo de Wady-
Halfa e de Dôngola, percorrendo assim o braço do arco que o curso do Nilo descreve através das cataratas da
Núbia. Depois de muitas fadigas e sofrimentos e até muitas despesas, chegaram finalmente a Cartum no dia
11 de Fevereiro de 1848.
2036
Esta cidade era então formada por cabanas e pequenas casas de palha ou de tijolo cozido ao Sol, de um só
piso, que a chuva frequentemente destruía e cujo espaço reduzido não dava para acolher senão uma parte dos
seus habitantes, tendo os outros que dormir em pequenas tendas ou, frequentemente, debaixo das estrelas. A
população, de apenas 15 000 almas, era constituída em grande parte por escravos de muito diversas classes e
cores, arrancados violentamente de todas as tribos da Nigrícia. Todos os nossos missionários, instalados em
modestas tendas nas margens do Nilo Azul, se encontravam doentes pelas fadigas e duros esforços de uma
longa e perigosa viagem. O P.e Ryllo tinha piorado. Os víveres e as provisões estavam quase esgotados. O
dinheiro diminuía de forma alarmante. Era impossível continuar a viagem. Por outro lado, a cidade de Car-
tum era a última estação do comércio europeu, a metrópole do Sudão egípcio, o último sítio onde se efectua-
va o intercâmbio com o Egipto, e o ponto de partida e de comunicação para os negócios entre o Cairo e o
interior da Nigrícia. Aos missionários nenhum lugar pareceu mais conveniente para ter uma comunicação
segura com os indígenas da África Central e chegar até a conceber projectos sólidos e positivos sobre o pro-
cesso e o modo de exercer o seu futuro ministério, e poder preparar-se para estudar o género de vida, as
crenças, as superstições e os costumes do país, assim como as diversas línguas dos escravos que eram neces-
sárias para bem cumprir os deveres do seu estado. Enfim, para se habituarem, pouco a pouco, ao clima do
Sudão, tão diferente do da Europa, e para estabelecerem aí um lugar de repouso para os pobres missionários
que, depois de estarem dispersos pelas diferentes tribos, levando-lhes a Palavra de Deus, pudessem por fim
reunir-se para se restabelecerem um pouco e suportarem melhor depois as fadigas e trabalhos do seu santo
ministério.
2037
Decidiu-se, pois, erigir uma estação em Cartum. Um senhor turco, Cherrif Hassan, que já tinha oferecido
aos missionários generosa hospitalidade em Dôngola, querendo cumprir um dever de gratidão para com uns
padres maronitas do monte Líbano que lhe tinham salvo a vida no tempo da expedição guerreira do vice-rei
do Egipto à Síria, proporcionou-lhes também nesta cidade tropical generosa ajuda e uma benévola protecção.
Porém, aos 17 de Junho de 1848, o mui rev.do P.e Ryllo, cheio de méritos e vítima dos mais atrozes so-
frimentos, entregou a sua alma ao Criador, depois de ter cedido o título de pró-vigário a Inácio Knoblecher.
Foi sepultado no meio da praça, que pouco depois foi transformada num amplo jardim. Aí foi erigido um
modesto mausoléu, onde desde então se reúnem os alunos todos os dias, antes do pôr-do-sol, para rezarem o
terço.
2038
Depois da morte do P.e Ryllo, mons. Casolani ficou num tal estado de fraqueza que era quase impossível
restabelecer-se. Que destino para estes pobres missionários enviados para além do deserto, sem meios e atin-
gidos pelas mais terríveis doenças! Em vez da ajuda que tanto haviam solicitado à Europa, recebiam, pelo
contrário, terríveis notícias. A tempestade da revolução tinha invadido a Europa inteira. Tudo o que até ali
fora objecto de honra e veneração era calcado aos pés e a santa fé e as bases da ordem social destruídas. Ata-
cavam-se e perseguiam-se os pregadores da divina palavra, as pias instituições para a conversão e propaga-
ção da fé e até o Soberano Pontífice: tudo estava em ruína.
Quem é que, com semelhante convulsão, podia ainda pensar na longínqua missão da África Central? Co-
mo podiam os mensageiros da fé esperar ajuda em favor da sua empresa tão difícil? A Propaganda de Roma,
que tinha sofrido os golpes mais terríveis da revolução, declarava solenemente que já não se encontrava em
condições de ajudar os missionários e autorizava-os a regressar à Europa para serem destinados a outras mis-
sões.
2039
Porém, o venerável dr. Knoblecher não se assustou e inspirou coragem aos seus estimados companheiros.
Sem Knoblecher, a missão da África Central teria decaído a partir de 1848 e já não existiria mais.
Durante o seu mandato, o P.e Ryllo tinha comprado um terreno em Cartum, nas margens do Nilo Branco.
O dr. Knoblecher transformou-o num jardim, mandou construir nele uma pequena residência com uma cape-
la muito pobre e estreita, mas suficiente para as estritas necessidades dos missionários. Eles puderam assim
oferecer quotidianamente o santo sacrifício da missa, dar graças ao Divino Salvador pelos benefícios da re-
denção e pedir todos os dias a sua assistência e bênção, num país que até então só havia conhecido os erros
do paganismo e a cegueira do Islamismo, a fim de que estes diferentes povos entrassem no seio da Igreja,
único porto de salvação eterna.
2040
Havia em Cartum um grande mercado de escravos. Esses infelizes prisioneiros da África Central, arran-
cados às suas famílias pela violência e à força, eram postos à venda agrilhoados como vis animais. Entre
esses prisioneiros viam-se frequentemente delicadas crianças, que iam parar às mãos de quem os comprava a
alto preço.
Os missionários adquiriram neste mercado muitos rapazes que pareciam muito inteligentes e que ofereci-
am sinais inequívocos de bom resultado. Também encontraram aí alguns filhos de pai europeu, amiúde
abandonados sem piedade por este, os quais tinham caído no paganismo das suas mães. Estes meninos foram
acolhidos na casa da missão. Começou-se a instruí-los nas coisas mais simples que podiam ser-lhes úteis na
sua terra, porém, sobretudo nas verdades da nossa santa religião.
Esses deveriam vir a formar a primeira comunidade cristã na África Central e um dia deviam tornar-se li-
vres. Por caminhos seguros, eles deviam voltar à sua terra de origem, e, no meio dos seus patrícios, serem
para eles apóstolos, tornando-se também apoios activos e firmes dos missionários. Animados de um grande
zelo, esses jovens acolhiam favoravelmente a divina palavra. O seu amor para com Deus era vivo, os seus
costumes suaves e tranquilos e sentiam um cordial afecto pelos missionários. Em pouco tempo os primeiros
deles puderam receber o santo baptismo, que lhes foi administrado no Dia de Todos os Santos.
2041
Na noite da véspera do grande dia, quando o pró-vigário, como de costume, visitava o dormitório dos ra-
pazes para se certificar de que tudo estava em ordem, viu os catecúmenos reunidos e ajoelhados em oração.
Perguntou-lhes que faziam: «Rezamos à Santíssima Virgem, nossa boa Mãe – responderam – para que nos
consiga de Deus a graça de chegarmos amanhã, o feliz dia em que nos faremos cristãos». Quanta fé nos pri-
meiros jovens da África Central!
Por outro lado, Knoblecher e seus companheiros eram, por sua vez, discípulos dos seus alunos, porque, na
medida do possível, procuravam aprender a língua das diferentes tribos a que eles pertenciam e também se
preocupavam por conhecer todos os factos que pudessem dar-lhes a conhecer os seus usos e costumes e
quanto lhes pudesse servir para conhecerem as condições das suas terras de origem. Isto com o fim de obter
mais tarde um melhor resultado no apostolado que se propunham empreender nelas. Quando tardava em
chegar a ajuda da Europa, o zelo não diminuía por isso e a actividade era sempre a mesma. Aos alunos nada
faltava, porque os missionários se submetiam a si mesmos a privações para acorrer às suas necessidades.
2042
Tudo era suportável para estes dignos ministros de Jesus Cristo que não procuravam senão a glória de
Deus e a salvação das almas mais abandonadas. Na pequena comunidade de Cartum reinavam a paz, a ordem
e o espírito de Jesus Cristo. Porém, o dr. Knoblecher, embora confiante na Divina Providência, estava preo-
cupado pela situação económica da missão e aproveitou o regresso de P.e Ângelo Vinco à Europa para pedir
ajuda na Itália. Mons. Casolani, não podendo suportar mais o deprimente clima de Cartum, nem as grandes
fadigas da missão, regressou a Malta com intenção de não mais voltar.
2043
O pró-vigário apostólico encarregou P.e Vinco de acompanhar o monsenhor ao Egipto e de ir depois para
a Itália a fim de angariar esmolas para a missão. A 19 de Janeiro de 1849 aquele valente missionário chegava
a Verona, ao instituto que lhe dera a preparação para o serviço de Deus e a formação para o apostolado. E,
embora, infelizmente, não tenha obtido o objectivo principal da sua viagem, por causa da revolução e dos
deploráveis acontecimentos daqueles dias, o seu regresso a Itália tinha sido sobejamente frutuoso ao conse-
guir, sem sequer se aperceber, um grande êxito para o futuro da missão. A Providência tinha-o conduzido à
cidade eminentemente católica e fiel, que foi cenário dos insignes trabalhos e do apostolado de um dos maio-
res santos e mártires africanos: S. Zeno, padroeiro de Verona, é africano. Tinha-o conduzido lá onde os devo-
tos veroneses veneram desde há séculos as relíquias do seu primeiro padroeiro, S. Zeno, para suscitar a pri-
meira centelha da vocação apostólica que mais tarde, aí, em Verona, abraçaram muitos membros do venerá-
vel instituto do ilustre professor P.e Nicolau Mazza.
2044
Tendo contado com todo o entusiasmo da sua alma múltiplos pormenores muito interessantes aos qui-
nhentos alunos dos seus institutos de São Carlos e Canterane, e dado muitas explicações sobre a deplorável
situação dos infelizes jovens da raça camita, acendeu o fogo daquela caridade divina que arrasta para o ca-
minho da entrega total e do sacrifício pela salvação dos infiéis.
Os relatos de P.e Vinco produziram grande impressão no espírito ardente daquele prodígio de caridade e
de sabedoria que foi P.e Nicolau Mazza, digno émulo dos gloriosos campeões da Igreja S. Vicente de Paulo e
S. Carlos Borromeu. Animado de um fogo sobrenatural pela salvação dos africanos e vendo alguns dos seus
alunos dispostos a secundá-lo no seu zelo, aquele venerável fundador decidiu-se a cooperar no apostolado da
Nigrícia com os seus dois institutos que floresciam em Verona, o primeiro dos quais podia proporcionar fer-
vorosos missionários e o segundo autênticas mulheres do Evangelho para a conversão da África Central.
2045
Com este nobre pensamento na mente, P.e Nicolau Mazza dizia para consigo: «O meu instituto masculi-
no, que dá cada ano bons sacerdotes à diocese de Verona, poderá bem oferecer à África bons missionários e
educar rapazes africanos, susceptíveis de ser, com o tempo, os apóstolos da sua terra; e o meu instituto femi-
nino, que instrui e mantém, dia após dia, mais de trezentas raparigas, bem poderá formar na moral e na reli-
gião cristã algumas pobres negras, a fim de que possam chegar a ser úteis às suas pátrias.» É pelos elementos
de apostolado destes dois institutos de Verona que se poderá empreender, com autorização da S. Sé, uma
missão na África Central para a propagação do Evangelho.
Tal era a ideia do ilustre fundador Mazza. De facto, mediante a activa cooperação do rev.do P. e Jeremias,
de Livorno, missionário franciscano no Egipto, introduziu nos seus institutos de Verona muitos africanos de
ambos os sexos para os educar na fé e civilização cristãs e começou a preparar sacerdotes e bons colaborado-
res para empreender a sua obra.
2046
Entretanto, P.e Inácio Knoblecher, como se encontrava sozinho em Cartum com o P.e Pedemonte, por
meio deste tinha solicitado missionários ao padre geral da Companhia de Jesus. Obteve assim o P.e Luís
Zara, de Verona, com outro padre e outros jesuítas leigos.
Em meados de 1849, quando a necessidade tinha atingido o máximo, chegou de Laybach ajuda oportuna
para ajudar a missão na sua miséria. Estas ajudas conseguidas por meio de cartas a particulares, testemunha-
vam que a fé e a participação nas obras para a propagação do Evangelho ainda se não haviam extinguido na
Europa e deixavam alguma esperança para o futuro. Todo o sofrimento suportado até então parecia doce e
suave aos generosos corações daqueles lutadores pela salvação dos africanos, porque estavam animados pela
feliz confiança que nunca falta nas almas dos que se colocam nas mãos de Deus.
2047
Depois do regresso de P.e Ângelo Vinco a Cartum, o dr. Knoblecher resolveu controlar a execução do
grande projecto da missão e penetrar, na medida do possível, no interior da África para melhor conhecer o
campo dos seus futuros trabalhos. Todos os anos, em Novembro, quando os ventos do Norte começavam a
soprar, o governador-geral do Sudão mandava de Cartum numerosos barcos para subirem o Nilo Branco,
com o fim de prover às necessidades dos súbditos egípcios estabelecidos ao longo do rio e de fazer intercâm-
bio com os negros, dando-lhes missangas de vidro em troca de dentes de elefante. O dr. Knoblecher decidiu
unir-se a esta expedição. Um comerciante muçulmano ofereceu-lhe o dinheiro com condições bastante pesa-
das. Ele tinha-se proposto explorar com cuidado a região, para encontrar um lugar seguro, saudável e provido
de lenha e água, para estabelecer nela uma estação católica.
2048
Na firme esperança de triunfar no seu projecto, em Novembro de 1849 empreendeu a sua viagem pelo Ni-
lo Branco. Após sessenta e quatro dias de navegação para sul, a sua embarcação lançou âncora aos pés do
pequeno monte de Lagwek, entre os Bari. Foi tão bem acolhido por esses povos, que lhe foi impossível o
regresso sem lhes prometer que voltaria no ano seguinte. Depois de ter examinado bem a zona, empreendeu a
exploração das regiões vizinhas dos Bari. Tendo observado tudo, convencido de que a tribo dos Bari era um
ponto seguro e adequado para instalar uma missão católica, regressou rapidamente a Cartum.
2049
Agora, o campo para cultivar estava encontrado. Mas tudo aquilo que parecia necessário para o sucesso
da obra, isto é, o número dos companheiros de trabalho, os meios de mantimento, os colaboradores necessá-
rios para dar educação moral e cristã aos povos que se deviam converter, e para salvaguardá-los, bem como à
missão, dos ataques inesperados dos seus vizinhos, tudo isso faltava. Todas as tentativas feitas na Europa
junto da S. Congregação da Propaganda e pias sociedades que ajudavam as santas missões não tinham dado
nenhum resultado, mesmo para as coisas de primeira necessidade. Por isso, julgando absolutamente necessá-
ria uma viagem à Europa, depois de ter encarregado os reverendos padres jesuítas da direcção da missão,
pôs-se a caminho da Alemanha.
2050
Chegado a Laybach, na sua pátria, procurou e encontrou rápidas ajudas para manter por algum tempo a
casa de Cartum. Depois, pôs-se a pensar no modo de conseguir os meios para a sua futura empresa no Nilo
Branco e conseguiu-os. As coisas correram-lhe bem sobretudo em Viena, onde, na corte imperial, encontrou
um apoio sem igual. O dr. Knoblecher, numa pequena nota, expôs claramente, em poucas palavras, o pro-
grama da sua obra e apresentou-o a S. Majestade Apostólica.
O imperador Francisco José I, que tinha recebido o pró-vigário com muita amabilidade, mostrou o maior
interesse por aquela nobre empresa; e, pondo-se à cabeça do movimento suscitado na Áustria em favor da
missão da África Central, deu ele mesmo do seu bolso a soma de 25 000 libras austríacas (20 835 francos).
Todos os membros da família imperial, os arquiduques, os príncipes e as princesas, como também os minis-
tros católicos do império e os altos cargos dos diversos ministérios, cada um segundo as suas possibilidades,
procuraram ser úteis à missão. As mais nobres damas da capital e do império acorriam a entregar ao pró-
vigário consideráveis ajudas monetárias e a dar-lhe apoio moral.
2051
Também lhe dispensaram acolhimento favorável os bispos e o clero austríacos. Pouco depois, teve exor-
tações e cartas pastorais dos ordinários, nas quais recomendavam a nova missão aos fiéis das suas dioceses,
solicitando os seus donativos. O mais notável foi que de toda a parte se apresentavam notáveis eclesiásticos e
piedosos leigos, que, por amor de Deus e pela salvação do próximo, desejavam empreender uma viagem a
África para colaborarem na grande obra da missão. Não era preciso trabalho para os estimular nem atrair
para colaborarem na empresa. A aparição do venerável dr. Knoblecher produziu um santo entusiasmo: a sua
presença arrebatava todos os corações, atraindo-os irresistivelmente para a sua obra.
2052
Parecia, pois, que a missão tinha o necessário para a estação de Cartum e para a nova fundação nas terras
dos Bari. Mas que aconteceria depois? Sem a esperança de que as ajudas continuassem no futuro, as funda-
ções de Knoblecher seriam construídas sobre a areia. O começo mais brilhante não produz grandes resulta-
dos numa obra sem o selo da perpetuidade, que garanta a continuação e o aperfeiçoamento da mesma.
Por isso, o dr. Knoblecher, seguindo as recomendações de um venerável bispo, seu compatriota, mons. A.
Meschutar, conselheiro áulico e chefe de departamento do Ministério dos Cultos, formou um comité consti-
tuído por pessoas muito distintas e influentes do império austríaco e, com aprovação do Governo imperial,
fundou-se a Associação de Maria para a Missão da África Central, de cuja direcção se encarregou primeira-
mente o referido mons. Meschutar.
2053
Obtida a aprovação da S. Sé, mediante um breve de 15 de Dezembro de 1852, a associação foi colocada
sobre a protecção de S. Em.a o card.-príncipe Frederico de Schwarzenberg, arcebispo de Praga, e sob a pre-
sidência de S. E. o conselheiro áulico Frederico Hunter, historiador do império de S. M. Apostólica e do
império austríaco.
Esta personagem era um dos mais brilhantes prodígios da graça do séc. XIX. Após uma circular dirigida a
todos os bispos do império, pelo alto comité da associação, esta estabeleceu-se em todas as suas dioceses e
durante muitos anos recolheu enormes somas para a África Central. Sua majestade pôs a missão sob a sua
protecção e conseguiu para ela um decreto do grande sultão, em que este lhe assegurava todos os direitos e
privilégios na totalidade das possessões do vice-rei do Egipto, às quais as missões católicas pertencessem,
segundo os tratados relativos às outras províncias do império otomano. Em Cartum criou-se expressamente
um consulado austríaco para proteger os direitos e os interesses da missão.
2054
Tendo deixado tudo bem concertado em Viena, o dr. Knoblecher dirigiu-se, por Munique, a Bressanone,
no Tirol, para recomendar os interesses da sua empresa ao coração magnânimo de um dos seus mais estima-
dos amigos, a quem havia conhecido em Roma em 1845, e que o compreendia perfeitamente. Era ele um
ilustre e sábio professor, o dr. J. C. Mitterrutzner, cónego regular da Ordem de St. o Agostinho, homem de
raro talento, que foi o amparo da missão e a quem o vicariato da África Central deve os maiores serviços.
Direi apenas que ele recolheu todos os anos somas ingentes para a missão, à qual, além disso, mandou um
bom número de sacerdotes, quase todos do Tirol alemão.
2055
Utilizou também toda a espécie de meios, mas sobretudo a pena, para cooperar na grande empresa. E, fi-
nalmente, valendo-se dos manuscritos que os missionários lhe haviam oferecido e com a ajuda de dois indí-
genas africanos, que chamara a Bressanone, conseguiu compor dicionários, gramáticas e catecismos nas lín-
guas mais importantes e mais difundidas na missão: o dinca e o bari. Com isso proporcionou aos futuros
missionários da África os elementos e materiais necessários para exercer o ministério apostólico nos vastos
territórios que se encontram entre o 13o de latitude norte e o equador, nas regiões do Nilo Branco.
2056
Knoblecher recebeu muito favorável acolhimento por parte de monsenhor Gallura, príncipe-bispo de
Bressanone, e do seu piedoso e sábio clero. Foi recebido com entusiasmo em Verona e em Monza, pela rota
de Génova, dirigiu-se a Roma a dar conta à Santa Sé dos assuntos da missão. Porém, na Cidade Eterna surgi-
ram grandes obstáculos. A Propaganda, após as queixas de mons. Casolani, que se apoiava sobretudo na falta
de meios económicos necessários para a empresa – meios que S. Ema o card. Fransoni declarava não poder
fornecer –, tinha decidido abandonar a missão. Já estava assinado o decreto de supressão e dada a ordem para
chamar os missionários de Cartum para os destinar a outras missões.
Com o relatório da sua viagem a terras dos Bari e dos felizes resultados que tinha conseguido na Áustria,
Knoblecher conseguiria parar o terrível golpe. Porém, só depois de muitos trabalhos e dificuldades.
2057
Pio IX escutou-o com muita atenção e vivo interesse numa audiência privada. Knoblecher foi nomeado
pró-vigário apostólico da África Central e recebeu de novo o encargo de dirigir a missão. Em Agosto de
1851, foi a Trieste para recolher as abundantes provisões que lhe tinham dado na Alemanha e para receber os
novos missionários, com os quais partiu para o Egipto.
Eis aqui os nomes desses fervorosos mensageiros da fé:
R. P. Bartolomeu Mozgan
“ “ Martinho Doviak
“ “ Otão Tratan todos eslavos
“ “ João Kociiancic
“ “ Mateus Milharcic
2058
Estes eram acompanhados por numerosos leigos consagrados à missão e úteis pela sua aptidão para as ar-
tes e ofícios.
Chegados à capital do Egipto, os missionários viram-se obrigados a permanecer mais tempo do que o
previsto. O dr. Knoblecher, como dissemos, estava munido de um decreto de Constantinopla para a protec-
ção do vicariato perante o governo do Sudão egípcio. Mas, infelizmente, os direitos e os privilégios da nova
missão deviam ser reconhecidos pelo vice-rei, pois o pouco entendimento que, desde havia muito, existia
entre a Sublime Porta e o divã do Cairo, levavam a pensar que tais ordens não obteriam no Egipto toda a
obediência desejada. O dr. Knoblecher foi muito bem recebido na audiência com o vice-rei e o divã até rece-
beu ordem de ditar disposições no sentido expresso no decreto para os plenipotenciários do Sudão. Contudo,
apesar de todos os protestos possíveis, não conseguiu que lhe fosse entregue o decreto do Grande Paxá.
2059
As astúcias e as intrigas que o insolente muçulmano se permitiu usar e a experiência que ele tinha do pas-
sado, tinham convencido Knoblecher de que, sem a posse desse documento, os seus esforços poderiam ser
facilmente iludidos e tornar-se vãos. Foi então que enviou uma nota ao Grande Divã, na qual declarava que
se via forçado a pedir a Constantinopla outro decreto e mandar acrescentar nele que o mesmo decreto ficas-
se em poder da missão.
A resposta foi que ele se enganava em esperar as disposições de S. A. o Grande Paxá, e no breve espaço
de quarenta e oito horas recebeu do Governo egípcio uma cópia do decreto constantinopolitano, assinado por
S. A. o próprio vice-rei.
2060
Antes de abandonar a capital, o pró-vigário pensou dotar a missão de uma embarcação bastante cómoda
para transportar as provisões e os missionários, e para fazer visitas apostólicas no Nilo Branco. Adquiriu,
pois, um pequeno barco fluvial do tipo que os árabes denominam por dahhabia, que S. A. Heiraldin Paxá lhe
cedeu a um módico preço. Era uma elegante embarcação, reforçada com ferro, de três velas, que a 15 de
Outubro o pró-vigário benzeu solenemente, pondo-lhe o nome de Stella Mattutina. A cerimónia foi muito
emocionante. A última das três divisões era verdadeiramente adequada para uma capela. O harmónio acom-
panhando o canto do Ave Maris Stella e a devoção dos piedosos católicos participantes tornaram o acto mui-
to interessante, celebrado nas margens do Nilo e ao pé das pirâmides.
2061
O Stella Mattutina tornou-se famoso na África Central. Era saudado com imensa alegria pelas numerosas
populações do Nilo Branco, e todos os negros da região compreendida entre Berber e Gondokoro o conside-
ravam como um presságio de boa sorte. Da mesma maneira, o nome de Abuna Soliman (Nosso Pai Príncipe
da Paz), com o qual sempre foi chamado o dr. Inácio Knoblecher, era sentido e pronunciado com grande
veneração por todas as pessoas de qualquer classe desde Alexandria até ao equador.
A 18 de Outubro toda a expedição saiu do Cairo a bordo do Stella Mattutina para subir o Nilo até ao Alto
Egipto e Núbia. Em Korosko (21o lat. N.) o grupo dividiu-se. O pró-vigário, com quatro missionários e al-
guns leigos, tomou o caminho do deserto de Atmur, chegando a Cartum nos finais do ano. O P. e Kociiancic
passou com o Stella Mattutina as grandes cataratas de Dôngola e a 29 de Março lançou a âncora em Cartum.
2062
Desde o Outono de 1850 que P.e Ângelo Vinco, com a aprovação dos padres jesuítas, que dirigiam a mis-
são, tinha empreendido uma viagem pelo Nilo Branco. O sr. Brun Rollet, homem de negócios saboiano resi-
dente no Sudão, tinha posto à sua disposição uma das suas embarcações. Em pouco tempo, P.e Vinco apren-
deu a língua do país, percorreu demoradamente numerosos lugares da tribo dos Bari e foi o único missioná-
rio que visitou a tribo dos Beri, a sueste de Gondokoro. Na esperança de que os seus companheiros viriam
depois estabelecer-se ali, começou um verdadeiro apostolado entre aqueles povos. A paciência, a abnegação,
a caridade de que estava imbuído, e sobretudo a sua valentia, converteram-no rapidamente no homem mais
importante e venerado daquela zona. Pôs-se a instruir crianças e baptizou algumas «in articulo mortis». Dei-
xou as populações bem-dispostas a receberem os missionários com verdadeiro amor.
2063
A sua reputação aumentou ainda mais pelo seguinte facto: num povoado dos Bari havia um enorme leão
que destroçava tudo e devorava pessoas, em especial crianças. Habituado desde a sua juventude à caça nas
montanhas de Cerro, sua terra natal, pôde, não sem esforço e confiando em Deus, matar com uma carabina o
terrível animal. Não é fácil imaginar os gritos de alegria e de agradecimento que aquelas gentes lhe prodiga-
lizaram: chamavam-lhe filho do trovão e levavam-lhe bois e outras ofertas consideráveis, em sinal de uma
veneração extraordinária. O seu nome era famoso entre os negros.
2064
O P.e Pedemonte visitou os Bari e esteve com eles algum tempo fazendo o bem, enquanto o piedoso P.e
Zara ficou em Cartum, deixando aí belas recordações. Ambos trabalharam para educar na fé e moral católi-
cas crianças coptas; e abriram um caminho no jardim da missão de que tinham cuidado bem. Os padres eram
abençoados na África Central, mas tiveram que a abandonar porque a Companhia de Jesus, tendo-se restabe-
lecido bastante dos males da revolução de 1848, depois das felizes diligências de Knoblecher, retirou os seus
sacerdotes desse vicariato.
O P.e Zara foi destinado a Ghazier, na Síria, onde uns anos mais tarde entregou a alma ao Criador. Os ou-
tros foram chamados a Roma e o P.e Pedemonte foi para Nápoles, onde coroou a sua carreira apostólica com
uma santa morte. Em 1864 este grande missionário, já septuagenário, declarou-me que o maior sacrifício que
tinha feito em toda a sua vida fora o de ter de abandonar a missão da África Central, para a qual concebera as
maiores esperanças.
2065
Depois da chegada dos novos missionários a Cartum, Kociiancic e Milharcic foram destinados a esta es-
tação, enquanto todos os outros deviam partir para o Nilo Branco. O pró-vigário apostólico escrevia em 1852
nestes termos: (3)
«A estação de Cartum oferece-nos, desde o nosso regresso, a imagem de uma vida muito activa. Nós es-
tamos divididos e classificados conforme as diferentes ocupações a que nos dedicamos. O rev.do P. e Milhar-
cic, dotado de todas as qualidades necessárias para a boa direcção de rapazes, ocupa-se da escola dos jovens.
Esta tem, desde que os coptas cismáticos nos confiam os seus filhos, mais de quarenta alunos, que dão aos
educadores muito trabalho. Nas nossas oficinas artesanais trabalha-se de manhã à noite e assim vamos che-
gando, pouco a pouco, à possibilidade de construir os móveis mais necessários. O talento do P.e Milharcic
surpreende-nos de vez em quando com a invenção de novos objectos úteis».
2066
Na festa de Todos os Santos alguns rapazes negros da escola receberam o baptismo. Tinham sido com-
prados no mercado de Cartum. Noutra altura falarei da escravidão na África Central. É suficiente, por agora,
dizer algumas palavras sobre o mercado de Cartum, como o descreveu o dr. Knoblecher (4): «Não há nada
que rasgue mais o coração do que passar sexta-feira (dia consagrado pelos turcos ao culto divino) pelo mer-
cado de escravos de Cartum e verificar o abuso infame que se comete com toda a indiferença, entre uma
multidão de homens, mulheres, rapazes, raparigas e crianças. Estes infelizes, antes de serem cedidos aos
compradores, sofrem um vexante exame de muitas partes do seu corpo. É verdadeiramente doloroso para
uma alma cristã ser testemunha ocular de todas as infâmias que se fazem sofrer a estes pobres e infelizes
irmãos nossos em Jesus Cristo.
2067
Com que indiscrição os compradores, antes de fechar o vil negócio, põem as suas mãos sacrílegas nestas
inocentes vítimas e observam a cada uma os dentes, a língua, a garganta e lhes apalpam com toda a naturali-
dade as mãos, o pescoço, as orelhas, os pés, etc. É irritante ver como estes vendedores ambulantes públicos
correm de cá para lá, como se grita, como se tratam os pobres escravos, e sem ninguém pensar que quem está
a ser submetido a tudo aquilo é seu irmão ou sua irmã! Eu vi ao mesmo tempo, a um canto do mercado,
algumas mães aturdidas e angustiadas: tinham-lhes arrebatado filhos e filhas, os quais certamente já não vol-
tariam a ver sobre a terra. Aquelas pobres mães esperavam seguir de um momento para o outro a mesma
sorte dos seus filhos. Porém, o que me impressionou terrivelmente foi ver uma jovem mãe com três filhos, o
mais pequeno dos quais talvez tivesse uns dois dias, sentada no chão toda dobrada, apoiando a cabeça no
braço direito, enquanto com a esquerda apertava o pequenino contra o peito.
2068
Assim mergulhada na sua dor, contemplava os seus dois filhos mais crescidos que se agarravam a ela com
um olhar tão tocante e um sentimento tão vivo, como se intuíssem a separação iminente. De repente, ouviu-
se gritar: “Quanto quereis por esta família?” A estas palavras, a angustiada mãe levantou o olhar; mas eu não
tive coragem de presenciar o final. Só de longe pude ouvir estas palavras: “Setecentas piastras” (182 fran-
cos). Meu Deus! Uma família, uns seres resgatados pelo sangue de Jesus Cristo, por tal preço! Assim absorto
nos meus pensamentos, fui-me aproximando do lugar onde se procedia à venda dos homens. Estes pareciam
aceitar a sua sorte com mais tranquilidade. Olhando em seu redor, esperavam o seu turno de leilão. Porém,
não ignoravam que, ao menor murmúrio, receberiam o castigo de violentas chicotadas ou seriam amarrados a
pesadas cadeias.»
2069
O mui reverendo pró-vigário apostólico resolveu os assuntos em Cartum e partiu no Stella Mattutina pelo
Nilo Branco, na companhia dos revdos padres Mozgan, Dociak e Trabant. Nesta viagem, todos sofreram
muito com as febres. O pró-vigário foi de tal modo por elas atingido que se viram obrigados a administrar-
lhe os últimos sacramentos. Depois de muitas fadigas e sofrimento, chegou pela segunda vez ao território dos
Bari, a 3 de Janeiro de 1853. Aí encontrou P.e Ângelo Vinco doente de uma insolação e de uma violenta
febre, que degenerou em tifóide.
Alguns dias depois, este corajoso missionário, após um curto e laborioso apostolado, assistido nos seus
últimos momentos pelo seu venerável superior, que lhe administrou todos os sacramentos dos enfermos,
entregou a alma ao Criador, em Mardiuk, na tribo dos Bari: era o primeiro apóstolo e mártir da fé e da civili-
zação cristãs no Nilo Branco. O nome de P.e Ângelo Vinco é venerado ainda entre os povos Chir, Beri e
Bari, que em certas ocasiões lhe dedicam cantos na sua língua, os quais se tornaram populares no Nilo Bran-
co para lá do 7o grau de lat. norte.
2070
Em Gondokoro (4o 40’ lat. N. e 37o 47’ long. este do meridiano de Paris), o dr. Knoblecher pensou
comprar um terreno para uma casa com jardim. Alguns ricos proprietários fizeram-lhe ofertas e sobretudo
um velho chamado Lutweri ofereceu-se para lhe vender uma parte considerável da sua propriedade. O negó-
cio foi discutido na presença de muitos chefes, entre os quais se encontrava Niguila, o famoso chefe dos Be-
ri. Esta é uma tribo muito aguerrida estabelecida a sueste de Gondokoro.
Para tal fim, o pró-vigário mandou instalar a tenda que uns piedosos benfeitores da Europa lhe tinham
oferecido para situações similares e deu a cada chefe uma comprida túnica azul com um tarbusc (barrete
vermelho) para a cabeça. Depois ele envergou um traje branco, levando na mão uma lança em forma de cruz,
símbolo da nossa redenção (5), em vez de uma lança ou espada homicida. Assim, acompanhado por muitos
chefes, entrou na tenda; aí todos se sentaram. A certa altura, um deles levantou-se para fazer uma alocução;
outros se seguiram e assim todos tomaram a palavra.
2071
Os seus discursos giravam sobre este ponto. «O estrangeiro deve comprar para si e para os seus irmãos
um terreno para nele plantar árvores e para instruir os meninos e como estes senhores não têm nada em co-
mum com os ladrões e assassinos estrangeiros, para que ninguém moleste os seus irmãos na posse do seu
terreno, os chefes obrigam-se a vigiá-lo. Depois de todos falarem, o pró-vigário, com a ajuda do seu intérpre-
te, fez-lhes um discurso sobre a sua missão divina. Todos os chefes se puseram de pé para mostrar a sua
aprovação, tendo ficado muito satisfeitos e comunicaram-lhe que as suas palavras os tinham convencido e
que tinham muita confiança nele. Por sua parte, o pró-vigário assegurou-lhes que ele e os seus irmãos se
dedicariam com todas as forças à sua missão, em benefício daquela zona, assim como de todas as suas gen-
tes.
Então o chefe Niguila levantou-se pela segunda vez para falar ao grupo, dizendo que só aqueles que esta-
vam perto da missão deviam proteger os missionários contra as ofensas e os ataques do inimigo e que os que
viviam mais longe só de vez em quando visitariam a casa e o jardim da missão.
2072
A reunião deu-se por encerrada e o terreno foi considerado propriedade da missão. Porém, foi difícil de-
terminar os limites. Feito isso, o pró-vigário chamou o vendedor, o qual, acompanhado de dois chefes, o
seguiu até ao Stella Mattutina levando meia cabaça vazia e seca que, com grande satisfação sua, o pró-
vigário lhe encheu de missangas de vidro de várias espécies. O contrato de venda, redigido em língua bari,
foi lido aos chefes, cada um dos quais tomou com grande respeito entre os seus dedos a pena do pró-vigário e
marcou com ela uma cruz junto ao seu nome. Knoblecher repartiu entre eles contas de vidro e todos se foram
embora contentes.
2073
Comprado o terreno, houve que pensar na construção de uma capela para o serviço de Deus, uma residên-
cia para os missionários e um quintal para as necessidades da missão. Faltavam porém obreiros capazes de
executar os trabalhos. Cheios de vontade de se sacrificarem por estes povos, o pró-vigário e os seus missio-
nários estavam abertos a tudo e a todos, pelo que meteram mãos à obra com ânimo heróico. Devemos ter
presente que, como era necessário exercer uma grande influência entre os Bari e nas tribos vizinhas, era im-
prescindível contar com uma sede estável, onde pudessem aprender as diversas línguas para poderem cum-
prir melhor os deveres da sua vocação, instruindo a juventude e ensinando ofícios a um povo até então primi-
tivo. Por isso, interrogaram-se: «Onde encontrar (mesmo dispondo de materiais suficientes) pedreiros, serra-
lheiros, carpinteiros, lavradores, ferreiros, etc. para os trabalhos?»
2074
Os missionários deviam prover a tudo isso, se quisessem arranjar um lugar estável nestas regiões, onde os
pobres negros, com um pouco de palha e barro, constroem hoje as suas cabanas, que no dia seguinte, por
causa de uma pouca de chuva caída durante a noite, se verão obrigados a reconstruir. Grande embaraço devi-
am sentir ali os missionários quando, olhando em redor, descobriam tantas cabeças e mãos incapazes de exe-
cutar a sua obra. Viram-se pois forçados a recorrer aos seus próprios meios e todos os conhecimentos técni-
cos que tinham adquirido nos seus tempos livres, durante os recreios no colégio, foram-lhes úteis neste mo-
mento. Depois da santa missa, pegava-se, por amor de Deus, ora na colher de pedreiro, ora na serra, ora no
machado; enquanto um empunhava um martelo, outro uma machada, uma enxada ou uma pá, etc., todos
mostravam aos que os rodeavam a maneira de fazer estes novos trabalhos e encorajavam-nos a imitá-los.
Deste modo, com o suor na fronte, conseguiu-se o prodígio de se erguer, entre aquela gente, uma casa para a
glória de Deus. E a obra prosperou admiravelmente, porque, dois anos depois, quando o pró-vigário regres-
sou a Gondokoro, deu desta estação os seguintes dados: (6)
2075
«No meio do território da orgulhosa tribo dos Bari, lá onde as margens do rio misterioso se elevam a uma
altura como não se vê em nenhuma outra parte do seu percurso, encontra-se um conjunto de construções que
contrasta surpreendentemente com todos os povoados indígenas. Da parte norte e da parte do rio, vê-se já de
longe, sobre uma suave lomba, uma construção quadrada, enquanto as casas dos indígenas, no seu tipo mais
genuíno, são redondas com um tecto em forma de cone. Da parte oeste, até ao rio e para sul, depara-se à vista
uma avenida de árvores e de plantas que se não encontram em parte nenhuma do país e que foram trazidas de
uma região muito distante. No meio dessa extensão de terreno levantam-se, sobre diques, pequenos fortes
construídos com a madeira de árvores de uma altura considerável, com as quais se fazem também os mastros
para as embarcações do Nilo.
2076
Hoje, a parte mais alta está encimada com uma cruz metálica, que brilha de longe ao nascer e pôr-do-sol e
anuncia aos africanos próximos do equador a chegada da salvação e da redenção. Aos pés da cruz, ondeia,
de vez em quando, uma bandeirola branca com uma estrela azul, que anuncia às gentes dos arredores as fes-
tas de Nosso Senhor e as da Santa Virgem que a Igreja Católica celebra. É este o aspecto que apresenta desde
o exterior N. S. de Gondokoro, no Nilo Branco, para cuja construção e decoração os nossos caríssimos ir-
mãos da Europa forneceram o necessário».
2077
Deixando como superior da estação de Gondokoro o rev.do P.e Bartolomeu Mozgan, Knoblecher, acom-
panhado do príncipe dos Beri, Niguila, regressou a Cartum, onde tinha que se preparar para ir ao Egipto fazer
umas compras consideráveis e para esperar novos mensageiros da fé, cuja chegada lhe tinha sido anunciada
havia pouco e cujos nomes eram:
1.o Luc Jeram, da Carnia
2.o Joseph Lap
3.o Jospeh Gostner, do Tirol
4.o Luís Haller
5.o Inácio Kohl, da Baixa Áustria
(Na margem direita está escrito) Havia também um excelente leigo de Viena, Martinho Hansal, pro-
fessor e excelente músico.
2078
Nos inícios de Setembro de 1853 chegaram a Alexandria, onde os esperava o pró-vigário apostólico. O
chefe dos Beri, como dissemos, tinha acompanhado Knoblecher na sua longa viagem pelo 27o de lat. norte.
O senhor Gostner escrevia assim de Alexandria ao ilustre professor Mitterrutzner acerca do seu encontro
com Knoblecher e o seu principesco acompanhante Niguila que tinha ainda o nome de “Mougha”: «Por fim,
apareceu o próprio venerável pró-vigário entre árabes, turcos, judeus, gregos, etc., e dava ordens para todo o
lado, não sei em quantas línguas. Todos tinham um grande respeito a Abuna Soliman. Quando chegámos ao
Hotel do Norte, os outros foram jantar, mas a mim Knoblecher levou-me ao convento do padres francisca-
nos, onde ele recebeu generosa hospitalidade e lá jantámos. Depois, o pró-vigário chamou Mougha e, como
um relâmpago, o príncipe dos Beri correu de um bloco de pedra, onde se tinha recostado e apresentou-se
perante mim. Estendeu-me a mão e saudou-me cordialmente, dizendo-me: “Como está?”. À minha resposta
respondeu. “Bem”.
2079
Só se expressa na sua língua, que ninguém conhece, salvo Knoblecher, que, como parece, fala correcta-
mente com o chefe dos Beri. Este tem 25 anos e mede seis pés (Knoblecher diz que é um dos mais baixos da
sua raça); é magro e ágil, negro como carvão. Nos seus movimentos e no seu porte há espontaneidade, po-
rém, não desconsideração. Não se sente bem no quarto, quer liberdade de movimentos e estar ao ar livre.
Traz ao pescoço uma série de colares de contas de vidro de diferentes tamanhos e cores, e nas mãos e pés
uma quantidade de braceletes e anéis de prata, ferro e marfim. São a sua alegria e o seu prazer. Numa mão
segura sempre uma varinha de madeira e na outra mão ou no ombro, um engraçado banquinho de madeira,
no qual se senta logo que chega a um sítio. Não tem barba e nos seus cabelos, amarrados no alto da cabeça,
traz plumas de avestruz. Aqui chama muito a atenção... mas os senhores e senhoras importantes interessam-
se muito por esta alteza negra. Nós vamos vê-lo frequentemente e ele aperta-nos a mão dizendo: «Doto?»
(como está?) e esforça-se para conseguir que aprendamos a contar até dez.
2080
Diz que a sua gente não queria deixá-lo ir à terra dos brancos, porque estes cortam as orelhas aos negros e
até os comem... O comandante da fragata austríaca Bellona convidou o pró-vigário e sua alteza negra para
um jantar a bordo. O bom do príncipe não parava de se admirar com as coisas que via no barco; encontrando-
se ainda à mesa a jantar, o seu bom coração levou-o a excessos: tomou o copo do comandante, ofereceu-lho
pedindo que lhe deitasse água na mão, com a qual o aspergiu... e o fez rei à maneira dos Beri...
Quando o pró-vigário se afastou da fragata Bellona, treze tiros de canhão anunciaram à cidade de Alexan-
dria quanto se estimava e venerava o chefe da missão da África Central. O senhor Chaevalier Huber, cônsul-
geral da Áustria, e muitos outros senhores, acorreram no dia 17 de Setembro a despedir-se dos missionários.
2081
Então Mougha, com ar régio, pôs-se no meio do grupo e disse: (o dr. Knoblecher fazia de intérprete): «Os
europeus poderão visitar sempre o nosso país; os árabes, ao invés, devem ficar fora, porque eles vêm só para
incendiar, matar, saquear e fazer revolução.» E ao dr. Kerschbaumer, professor em S. Pölten, que devia re-
gressar à Áustria, Mougha encarregou-o de saudar da sua parte e de apresentar os seus respeitos a todos os
amigos do seu padre Abuna Soliman, o pró-vigário apostólico.
2082
Em Alexandria e no Cairo, o dr. Knoblecher comprou abundantes provisões e fez algumas aquisições im-
portantes para as estações de Cartum e Gondokoro. Nos princípios de Outubro, a grande expedição abando-
nou a capital do Cairo para subir o Nilo. Chegados ao trópico do Câncer, levantaram as suas tendas em frente
da ilha de Filé, enquanto em Korosko se preparavam setecentos camelos para atravessar o Atmur até Berber.
2083
Foi em Korosko que dois missionários, educados no Insto. Mazza, de Verona, se juntaram a esta carava-
na. Foram eles os rev.dos P.e João Beltrame, de Valeggio (diocese de Verona) e o P.e António Castagnaro,
de Montebello (Vicenza). P.e Nicolau Mazza, continuando o seu nobre intento de ir em ajuda dos pobres
negros, tinha feito muitos preparativos para realizar o seu projecto. No seu instituto masculino havia sacerdo-
tes já dispostos para a missão e se dedicavam a educar jovens negros com o fim de os preparar para a santa
empresa.
No instituto feminino havia piedosas e bondosas professoras que sabiam muitas línguas e, dominando
perfeitamente o árabe, ocupavam-se a educar jovens negras com o objectivo de formá-las para o apostolado
da Nigrícia. Vendo que todos os esforços prometiam bons resultados para o futuro, julgou chegado o mo-
mento oportuno para submeter o seu plano à S. C. da Propaganda para obter autorização de o levar a cabo.
Encarregou o seu antigo discípulo, mons. Besi, bispo de Canopo e ex-administrador apostólico de Nanquim,
na China, de apresentar em Roma o seu projecto.
2084
Sua Em.a o card. Fransoni, prefeito da Propaganda, respondeu que era necessário dirigir-se ao chefe da
missão da África Central para fixar as bases da sua acção católica e determinar o lugar em que convinha
estabelecer a sua obra e que a S. Congregação interviria para dar a decisão final sobre o assunto. Foi então
que P.e Nicolau Mazza mandou a Cartum dois dos seus mais dignos missionários para tratarem da nova em-
presa. P.e João Beltrame, de Valeggio, na diocese de Verona, e P.e António Castagnaro, de Montebello, per-
to de Vicenza. Eles foram recebidos em Korosko com muita benevolência por Knoblecher que lhes exprimiu
toda a sua satisfação em lhes conceder tudo quanto solicitavam, mas que também desejava que ficassem
algum tempo em Cartum, até ao seu regresso de Gondokoro, depois do que seriam estabelecidas as bases da
obra do Instituto Mazza.
2085
Quando chegou a Cartum a notícia de que a grande caravana tinha entrado no deserto de Atmur, o P.e Mi-
lharcic, com o Stella Mattutina e outras embarcações, foi até Berber para receber os missionários e transpor-
tar todas as coisas compradas no Egipto.
2086
A cruz de Jesus Cristo nunca está separada das obras de Deus. A meia hora de Berber, Milharcic terminou
com uma santa morte a sua curta mas laboriosa carreira. A caravana, ao chegar a Cartum a 29 de Dezembro,
encontrou Kociiancic agonizante, o qual foi enterrado no jardim da missão, perto do P.e Ryllo. Nos primei-
ros dias de Fevereiro do ano seguinte, P.e Castagnaro caiu doente de disenteria. Era uma alma pura e cândi-
da, que, desde há muito, queria sacrificar-se e morrer pela salvação das almas. Quando o sacerdote lhe levou
o pão dos anjos nos seus últimos momentos, ao chegar à porta da cabana teve que parar, porque o moribun-
do, reunindo todas as forças do seu espírito, se levantou e dirigiu umas palavras ternas a Jesus Cristo, com
um amor e um desejo de morrer por Ele, que todos ficaram comovidos e choraram copiosamente. Consa-
grou-lhe todo o seu desejo de salvar as almas, ofereceu-lhe toda a sua vida e morreu vítima do seu amor no
dia 6 de Fevereiro, em Cartum, depois de ter recebido todos os sacramentos da Igreja e todo o conforto dos
moribundos.
2087
Depois de entregar a direcção da escola ao P.e Haller e de nomear o P.e José Gostner, superior da Estação
de Cartum, e seu vigário-geral, o pró-vigário, acompanhado do sr. Kohl, dirigiu-se a Gondokoro, onde veio a
saber que também os padres Doviak e Trabant tinham ido desta para melhor.
Embora Knoblecher tenha ficado muito afectado por estes terríveis golpes, na sua generosidade não cedeu
ao desalento. O seu espírito, que não vivia senão de Deus, susteve-o, pela fé, nas circunstâncias mais espan-
tosas, ele que tinha posto toda a sua confiança em Deus, seguindo o ensinamento do Espírito Santo: “jacta
curam tuam in Domino et ipse te enutriet”.
2088
Dias depois da sua chegada ao país dos Bari aconteceu um incidente que poderia ter tido as mais funestas
consequências para a missão de Gondokoro; porém, contra a vontade dos seus inimigos, redundou em seu
benefício. O pró-vigário, como os missionários, cumpria os seus deveres em relação aos católicos europeus
que, esquecendo os princípios da fé e da moral cristãs, andavam desencaminhados. Sobretudo quando esses
miseráveis se mostravam cruéis de inúmeras maneiras para com os pobres negros, os missionários protegiam
a inocência e a justiça perante o Governo turco do Sudão, o qual, instruído pela eloquência dos factos e pela
conduta dos missionários, depositava grande estima e confiança no pró-vigário e na missão.
Por isso, alguns desses infelizes europeus viam com maus olhos os missionários, porque a sua presença
era um censura contínua e uma reprovação da sua conduta. Os negros tinham aprendido a distinguir bem
entre os missionários e os outros brancos, porque viam que a missão, em vez de matar os pobres negros e de
roubar os seus filhos e filhas e as suas vacas, enxugava sempre as suas lágrimas, curava os seus doentes e
ensinava-lhes a moralidade, a justiça e o caminho do céu. Por isso, no incidente que vou contar, eles compre-
enderam bem que a missão estava muito longe do que a mais subtil malícia e perfídia queria atribuir-lhe.
Deus sempre protegeu a justiça.
2089
Entre os quarenta barcos que sob diferentes bandeiras iam e vinham pelo Nilo Branco para praticar o co-
mércio de dentes de elefante e o ignominioso tráfico de negros, encontravam-se nas proximidades de Gon-
dokoro três embarcações pertencentes ao cônsul da Sardenha em Cartum, chamado sr. Vauday. Embora esti-
vesse em boas relações com os Bari, declarou abertamente que esperava uma ocasião para lhes fazer guerra e
que queria dar-lhes uma boa lição, mesmo antes da sua partida. Dizia que tinha tudo o necessário: armas,
pólvora e homens mais que suficientes. Comunicou tudo isto ao pró-vigário na própria noite da sua chegada
(4 de Abril de 1854).
Knoblecher recomendou-lhe que fosse prudente, porém, o outro rejeitou o conselho com uma gargalhada
escarninha. A 5 de Abril, ao entardecer, um dos barcos do sr. Vauday fundeou entre a Stella Mattutina e o
jardim da missão. Parecia que se tentava comprometer esta e dar a entender aos negros que a missão partici-
pava na guerra que se lhes queria fazer.
2090
O próprio cônsul lançou a âncora mais abaixo, perto de Libo. Um jovem turco, agente do cônsul, subiu a
bordo do barco da missão e pôs-se a lamentar-se amargamente do fracasso do comércio entre os Bari. Caída
a noite, o barco deixou a margem. Nesse mesmo momento, duas carabinas bem carregadas dispararam contra
os indígenas, que estavam desarmados. Com eles, por casualidade, encontravam-se alguns marinheiros da
missão que tinham ido comprar carne. Dois rapazes negros caíram. Grossas balas de carabina roçaram o bor-
do do Stella Mattutina. O cozinheiro, que se encontrava junto ao fogão, foi ferido numa orelha e caiu des-
maiado no chão. Dos rapazes, um estava morto, o outro gemia banhado em sangue. Rapidamente, os indíge-
nas começaram a acudir de toda a parte, correndo como relâmpagos; porém, os do barco já remavam com
todas as suas forças para Libo.
Soube-se depois que a missão era um espinho para Vauday e que tinha lançado sobre os missionários to-
das as suas malvadas empresas. Agora pretendia-se arranjar vingança por esse comportamento inaudito, pro-
curava-se incitar os indígenas contra a missão, fazendo-lhes crer que era esta quem lhes fazia guerra. Os
comerciantes que voltavam a Cartum acusavam o pró-vigário de lhes ter deitado o negócio a perder, ofere-
cendo missangas aos negros...
2091
Ao longe, nas terras dos Bari, ouvia-se o rufar dos tambores de guerra. Os negros acudiam de toda a parte
lançando gritos terríveis e agitando as suas lanças e flechas. Os missionários esperavam com impaciência
que se acalmassem os ânimos. Os marinheiros da missão queriam preparar-se para a resistência, porém, o dr.
Knoblecher proibiu-lhes de carregar os fuzis e ordenou que todos subissem para o barco; somente se o vis-
sem cair, deviam remar para o meio do rio; deviam, além disso, abster-se de procurar vingança. Por sorte
para os missionários, o barco do cônsul da Sardenha, com o fogo contínuo, tinha atraído os negros enfureci-
dos. Eles tinham-no seguido tão velozmente que ao fim de poucos minutos já não se viam os seus movimen-
tos, nem sequer com o binóculo: só se sentia ao longe um surdo ruído de disparos.
2092
Antes de o Sol se pôr, o ruído redobrou e pareceu afastar-se das margens. Os missionários compreende-
ram que a batalha era muito cruel, porque os negros lhes traziam os seus feridos, um após outro.
Durante a noite podia ver-se o fogo da ponte do barco. Mas não era possível saber nada ao certo sobre os
feridos, pelo que foi mandado um funcionário e um indígena de confiança ao campo dos negros para obter
informações. Só os deixaram entrar quando souberam que eram da missão. Entretanto, um marinheiro do sr.
Vauday aproximou-se do Stella Mattutina nadando desde as ilhas próximas e pediu ao piloto que lhe conse-
guisse protecção do pró-vigário apostólico.
2093
Tremendo de frio e de medo, contou deste modo o que se tinha passado: «Quando Vauday ouviu os dispa-
ros, vendo quase ao mesmo tempo os negros a correrem em grande número, não esperou a chegada do barco
que se apressava a partir e que teria facilmente lançado âncora num lugar do rio onde as flechas não podiam
chegar, mas tomou um fuzil de dois canos, obrigou os criados que estavam a seu lado a fazerem o mesmo e
correu contra a multidão armada de lanças e flechas.
Sem pensar numa retirada, Vauday lançou-se com a sua gente contra os negros e, embora ele tivesse me-
lhores armas, foi derrotado com os seus companheiros, porque os outros eram mais numerosos.»
Todo o espaço disponível no Stella Mattutina foi utilizado para curar os feridos e os doentes. Estando es-
tes na casa da missão, os seus parentes apresentaram-se em grande número e assistiram-nos com grande afec-
to.
Como as atenções e o sacrifício dos missionários não podiam escapar aos olhares dos indígenas, a sua
confiança aumentou de dia para dia, até ao ponto de Knoblecher, referindo-se ao miserável negociante da
Sardenha, poder aplicar as palavras da Escritura: “Vós pensastes fazer-me mal, mas Deus converteu-o em
bem”. (Gn. 50,20).
2094
A estima acrescida gozada por Knoblecher e pela missão fez com que diversos chefes da zona equatorial
(sobretudo depois dos últimos acontecimentos, em que os missionários exerceram uma grande caridade)
convidassem o pró-vigário a estabelecer-se nas suas terras. Por estas circunstâncias, depois de ter confiado a
estação de Gondokoro ao sr. Kohl, o pró-vigário empreendeu uma exploração pelas numerosas cataratas do
Sul de Garbo, Gumba e Takiman, entre aquelas numerosas tribos.
Kohl sentiu-se muito contente em repartir a sua actividade sem limites entre o trabalho de ajuda aos do-
entes, a instrução das crianças e o seu aperfeiçoamento na língua dos Bari. Em pouco tempo ganhou o afecto
de todos. Porém, visitando, pela hora da canícula, um pobre doente que habitava a grande distância, contraiu
uma grave doença, a qual tomou um aspecto tão perigoso, que, quando Knoblecher regressou, se viu obriga-
do a administrar-lhe os sacramentos dos moribundos. Durante quatro dias suportou as maiores dores com
uma paciência de mártir. A 12 de Junho entregou a alma ao Criador.
2095
Esta grave perda aumentou os problemas do pró-vigário, que se viu na necessidade de se aplicar ainda
com mais intensidade à instrução dos jovens para a acelerar o mais possível, a fim de poder administrar, an-
tes da sua partida para Cartum, o santo baptismo aos mais preparados, que o pediam com ardente desejo.
Entre eles encontrava-se também o velho Lutweri, anterior proprietário dos terrenos da missão. O velho tinha
assistido todos os dias à instrução e orações dos jovens. A graça foi-lhe concedida.
A Estação de Gondokoro estava sem pessoal, porque o P.e Bartolomeu Mozgan havia algum tempo que
tinha abandonado os Bari para descer o rio e fundar a nova estação de Santa Cruz na tribo dos Kich, entre os
graus 6 e 7 de lat. norte.
2096
A 14 de Junho, depois de entregar as chaves da casa ao bom Lutweri e de o encarregar também da admi-
nistração até ao seu regresso, o pró-vigário voltou a Cartum. Aí os missionários receberam-no com grandes
demonstrações de alegria, porque tinham sofrido muito com a falsa notícia que lhes tinha chegado tempos
atrás, segundo a qual teria sido comido pelos negros.
2097
Foi por essa altura que o dr. Knoblecher pensou construir na capital do Sudão uma grande casa para a
missão, com uma igreja, que correspondesse ao fim para o qual os membros do comité de Marienverein ti-
nham dado abundantes ofertas. O rev.do P.e Gostner, vigário-geral, desde a morte do bom Kociiancic, man-
tinha intensa relação com o seu ilustre presidente para a realização dessa obra, que em 1859 custava mais de
500 000 francos.
2098
No ano de 1854 preparou-se uma nova expedição, constituída pelos seguintes missionários:

Rev.do P.e Mateus Kirchner


“ “ António Überbacher
“ “ Francisco Reiner

A eles juntaram-se, como trabalhadores leigos:

Sr. Leonardo Koch, arquitecto


“ Andrea Ladner
“ António Gostner (irmão do vig.-geral) do Tirol
“ João Kirchmair
“ José Albinger de Voralberg

2099
No dia 25 de Outubro chegaram a Cartum. Como Haller estava afectado pelas febres desde 10 de Junho
de 1854, o P.e Kirchner tomou a direcção da escola da missão. Os padres Überbacher e Reiner estavam des-
tinados à tribo dos Bari. Visto este último ter morrido pouco antes da partida, o pró-vigário levou consigo o
sr. Daminger, um excelente leigo, que prestou muitos serviços à missão.
2100
A 11 de Abril o Stella Mattutina lançou âncora a meia hora de distância de Gondokoro. Os nativos acor-
reram em massa e gritavam cheios de alegria: «O nosso barco chega! O barco dos Bari vem pelo rio!» De-
pois ouviu-se por toda a parte: “Mougha! Mougha!”. Este vestiu o seu traje vermelho de Alexandria. É in-
descritível a emoção que invadiu o pró-vigário ao ver que já de longe, das margens, a multidão o acompa-
nhava com cânticos de alegria. Os rapazes e os meninos batiam palmas e todos cantavam: «O nosso padre
chega, o nosso padre ama-nos... não nos esqueceu!»
Quando o pró-vigário desceu a terra, todos, grandes e pequenos, quiseram apresentar-se pessoalmente,
beijar-lhe a mão e exprimir-lhe aos menos com umas palavras a sua alegria pelo feliz regresso.
2101
Então o dr. Knoblecher informou-se das falsas notícias que os barcos dos traficantes tinham difundido en-
tre os Bari: que ele tinha morrido ou estava doente, que tinha deixado Cartum e regressado à Europa, que já
não gostava dos Bari e não queria mais vir ter com eles. Quanto maior era a surpresa, maior era a alegria de
todos pela sua inesperada reaparição. Foi muito interessante a longa conversa que o chefe Mougha teve com
a multidão e com os numerosos chefes que o rodeavam. Contou-lhes com grande entusiasmo as maravilhas
que tinha visto nas terras dos brancos.
A gente, acocorada ao seu redor, escutava com uma avidez extraordinária o que ele tinha visto com os
seus próprios olhos.
2102
Com uma eloquência cheia de entusiasmo contou-lhes o que lhe tinha causado mais impressão. Falou-lhes
dos imensos povoados (o Cairo e Alexandria), cujos habitantes são tão numerosos como as aves ao emigrar
na época das chuvas, falou-lhes das casas como montanhas, todas feitas pela mão do homem, do mar com os
seus imensos barcos que se elevam até às nuvens. Falou-lhes também dos costumes e usos das nações es-
trangeiras, explicando-lhes que há nelas homens muito ricos e muito importantes, como os sultões; contou-
lhes como há grande quantidade de chefes e de reis, e como viu um chefe muito grande que é o chefe desses
chefes e desses reis (o vice-rei do Egipto)...
A multidão gritava toda maravilhada: ahh! ahh! Depois falou-lhes do bom acolhimento que teve, de como
os missionários eram muito venerados pelos chefes e reis, de como tinham casas imensas que são eternas,
porque nunca se destroem e nem as chuvas nem as lanças as podem fazer cair. Finalmente comentou a sorte
dos meninos bari que eram educados numa grande casa em Cartum, onde cresciam e aprendiam como os
brancos, etc., etc. Nighila entreteve-os assim várias horas da noite. Todos ficaram encantados.
Pela manhã, o rev.do P.e Überbacher desceu do Stella Mattutina, montou numa mula e em companhia de
meninos que cantavam o Laudate Dominum, etc., e das pequenas catecúmenas, dirigiu-se para a capela.
Ao meio-dia do dia 12 de Abril chegou também o pró-vigário com o Stella Mattutina repleto de povo.
Homens, mulheres, crianças, rapazes, raparigas, grandes e pequenos seguiram o barco das margens do rio.
Parecia que naqueles lugares despontava uma nova vida.
2103
O dr. Knoblecher encontrou o país dos Bari mergulhado na carestia. As chuvas tinham destruído e arrui-
nado tudo. Os pobres ficavam contentes quando encontravam no campo ervas silvestres e raízes com que
saciar a fome. A missão fez quanto pôde naquelas circunstâncias. O pró-vigário, que tinha duas barcas de
durra (grão negro), trouxe alegria a grande número de pobres. Além destes, aos quais se fazia a distribuição
fora, havia sempre outros que comiam uma vez ao dia na missão.
As crianças apresentavam-se à porta e gritavam: «Padre, temos fome!» E partiam cheias de alegria, de-
pois de terem comido.
2104
Desenvolvendo uma actividade extraordinária, o pró-vigário pôs-se a preparar os catecúmenos e os neófi-
tos. Demonstrou claramente o conhecimento da língua do país, ao traduzir para ela o pai-nosso, a ave-maria,
o credo e as orações mais comuns dos católicos. Überbacher instruía os pequenos e o pró-vigário os adultos.
Ao cabo de vários meses, o dr. Knoblecher pôde baptizar muitos bari e deu a santa comunhão, o pão dos
anjos, a 31 cristãos.
Entre os baptizados encontrava-se o filho de sete anos (chamado Logwit) do antigo proprietário do terre-
no da missão, Lutweri, que recebeu o nome de Francisco Xavier e que, oito anos depois, foi ao Tirol, onde,
após de ter ajudado o ilustre professor Mitterrutzner na língua bari, morreu como um anjo em Bressanone. O
pró-vigário partiu mais tarde para Cartum, depois de ter entregue a missão ao rev.do Überbacher, que conti-
nuou sozinho, como um verdadeiro apóstolo, a obra tão santa mas cheia de espinhos, entre os povos da tribo
dos Bari.
2105
Enquanto P.e Beltrame estava em Cartum a ajudar a missão, procurou obter informações sobre as diversas
tribos de negros, no intuito de vir a escolher um lugar conveniente para a obra de P.e Nicolau Mazza, de
Verona. Falaram-lhe muito dos Barta e dos Berta que habitavam a oeste do Nilo Azul, entre os graus 10 e 13
de lat. norte, entre os Gallas e a península do Sennar; decidiu, por isso, falar do assunto com o pró-vigário
apostólico, na ideia que esses lugares pudessem ser adequados para uma missão segura, uma vez que fica-
vam entre o Nilo Branco e o vicariato apostólico dos Gallas. O pró-vigário acedeu à petição de P.e Beltrame,
que fez os preparativos necessários para empreender uma exploração pelos territórios dos negros situados a
sueste do Nilo Azul.
2106
O dr. Penay, médico chefe do Sudão, tinha já feito essa viagem e visitado essas regiões, assim como mui-
tos agentes civis e militares do Governo egípcio, sobretudo para procurar o pó de ouro, abundante na zona.
Igualmente o alemão Russegger se tinha infiltrado naquelas terras e feito uma descrição bastante exacta das
mesmas e do mais interessante que havia nelas, como se pode ver nos seus belos volumes, escritos com mui-
to cuidado. Também tinha realizado essa viagem um dos mais corajosos e fervorosos bispos missionários do
nosso século: mons. Guilherme Massaia, bispo de Cassia e vigário apostólico dos Gallas, cuja história é de-
masiado pouco conhecida na Europa, mas que, realmente, pode ser comparada (no que respeita ao seu traba-
lho apostólico) à história dos apóstolos e mártires da Igreja dos primeiros séculos.
2107
Uma terrível perseguição na Abissínia, instigada pelo bispo copta herético Abba Selama, forçou mons.
Jacobis e mons. Massaia a abandonarem o país, no momento em que Massaia tentava penetrar no seu vicaria-
to pela parte de Gondar, a fim de iludir as artimanhas e intrigas de Abba Selama, o patriarca herético. Então
concebeu o plano de chegar à sua missão pela rota da Núbia e do Fazogl.
Sob o nome de Khauaïa Gerghes Bartorelli (apelido da família da sua mãe) visitou todos os santuários he-
réticos dos coptas cismáticos do Egipto, nos quais se inteirou de todos os planos que os seus inimigos reali-
zavam contra si, sem que eles se apercebessem. Como o seu nome era conhecido no Nilo Azul, onde os abis-
sínios faziam o comércio da cera, café e sal, o santo prelado disfarçou-se de árabe pobre e, com valor herói-
co, ora fazendo-se passar por pequeno comerciante de açúcar, de pimenta e outras especiarias, ora cami-
nhando a pé em breves jornadas, ora misturando-se com os mendigos, em oito meses, sem a ajuda de nin-
guém, conseguiu entrar por Rosseres e Fadassi na sua missão, depois de ter tido uma longa conversa no Nilo
Azul com Abuna Daoud (que depois foi patriarca dos coptas heréticos), o qual vinha de pregar na Abissínia
contra os vigários apostólicos da Abissínia e dos Gallas.
Porém, o digno prelado não achou conveniente este caminho para ir ao país dos Gallas, porque apresenta-
va demasiadas dificuldades e perigos.
2108
Acompanhado do sr. Francisco Mustafá, convertido do Islamismo e baptizado em Milão, P.e Beltrame sa-
iu de Cartum numa embarcação do dr. Penay a 4 de Dezembro de 1854 e, pela rota de Wad-Medineh, Sen-
nar, Rosseres e Fazogl, tocando o extremo oriental do território dos Barta e dos Berta, chegou, depois de
muitas trabalhos e fadigas, a Benichangol, nas terras dos Changallas, perto de Fadassi e a oeste do Nilo Azul.
Porém, como as comunicações entre estes lugares e Cartum eram muito difíceis, não considerou prudente
fundar aí a primeira casa de uma obra tal como devia ser a de P.e Nicolau Mazza. Por isso, P.e Beltrame
voltou a Cartum com o intuito de procurar outro sítio no Nilo Branco.
Foi então que o pró-vigário manifestou o desejo de conceder ao instituto de Verona um lugar nas tribos
dos Dincas. Mas, como faltavam missionários para essa empresa, Beltrame regressou a Verona em busca de
novos mensageiros da fé, depois de ter acordado com o pró-vigário o que se contém no seguinte documento:

Vicariato apostólico da África Central


N. 10. o
2109
Encarregados pelo Vigário de Cristo de evangelizar os povos infiéis da África Central, e desejando por-
tanto, no que nos respeita, que seja efectuada quanto antes a difusão da nossa santa religião, concedemos
com sumo prazer ao rev.mo sr. P.e Nicolau Mazza, fundador de uma congregação de caridade existente em
Verona, representado pelo rev.do sr. P.e João Beltrame, membro da mesma congregação e enviado para tra-
tar do assunto, o que se segue:
1.o Abrir na nossa missão um instituto para a educação cristã dos pobres infiéis, entre aquela tribo pagã e
naquele lugar que os sacerdotes exploradores, enviados para esse fim pelo superior do dito instituto de Vero-
na, tenham por bem escolher.
2110
2.o Tendo interesse este novo instituto, segundo a expressa vontade do fundador, em manter-se com os
próprios meios comuns a ambos os institutos, isto é, o já existente em Verona e o que se abriria no nosso
vicariato, concedemos aos sacerdotes da congregação mencionada a direcção administrativa do mesmo insti-
tuto.
3.o Reservamo-nos, não obstante, como é nosso dever, os direitos garantidos pelos sagrados cânones aos
vigários apostólicos nas suas missões.
2111
4.o Por outro lado, para facilitar a necessária comunicação, tanto com o superior do vicariato como com a
Europa e promover de modo conveniente o maior bem possível dos missionários, seria nosso desejo que,
desde o princípio, residisse um sacerdote na estação principal de Cartum, onde, vivendo na casa da missão,
além de servir de procurador da sua própria missão, encontraria ocupações adequadas e suficientes, segundo
as ordens do vigário ou do superior da estação.
Entretanto, passamos a submeter o que fica exposto à S. Congregação da Propaganda Fide para a sua
oportuna ratificação.
Em fé do qual passamos este documento munido da nossa assinatura e do selo deste vicariato apostólico.
Dado na nossa actual residência de Cartum, a 3 de Agosto de 1855

Assinado: Dr. Inácio Knoblecher


Pró-vigário apostólico

2112
Enquanto o pró-vigário se encontrava no Nilo Branco, um bom grupo de missionários viajava num vapor
do Lloyd, pelo Mediterrâneo, rumo ao Egipto. Constituíam-no quatro sacerdotes, um professor e nove operá-
rios, todos do Tirol. Ardiam no desejo de se sacrificarem pelo bem de Deus e pela salvação dos negros da
África Central.
São estes os nomes dos sacerdotes, provenientes os primeiros três da diocese de Bressanone e o último da
de Trento:

1.o Rev.do P.e José Staller


2.o Miguel Wurnitsch diocese de Bressanone
o
3. Francisco Morlang
4.o Luís Pircher, de Leifers – Bolzano (Trento)

2113
Infelizmente um deles, o rev.do P.e Staller, foi obrigado a voltar à Europa por recomendação dos médi-
cos, por causa de uma grave doença. Outro, o rev.do P.e Wurnitsch, morreu umas horas depois de sair de
Korosko, no deserto, sobre a areia, e foi enterrado no começo do deserto de Korosko. Os demais felizmente
chegaram a Cartum. Morlang foi enviado para as terras dos Bari e o P. e Pircher para as dos Kich, para a es-
tação de Santa Cruz. Este era uma alma pura, um verdadeiro imitador de S. Luís Gonzaga. Morreu demasia-
do cedo, poucos dias depois de chegar ao seu destino, em 1856. Os outros, os operários, foram destinados à
estação de Cartum. Havia entre eles verdadeiros cristãos que prestaram grandes serviços à missão com o seu
bom exemplo e uma infatigável actividade na construção da casa por amor a Deus. Citaremos apenas os se-
guintes:
Sr. Fernando Badstuber (ebanista-carpinteiro), morto alguns meses depois
Sr. António Vallatscher (tecelão, sapateiro, soldador)
Sr. Gottlieb Kleinheinz (camareiro e cozinheiro)
Sr. João Juen (pedreiro e canteiro)
Sr. João Fuchs (sapateiro, etc.)

2114
Distinguia-se especialmente o professor J. Dorer, sobre o qual, de Cartum, o vigário-geral, P.e Gostner,
escreveu, após a sua morte: «Para as nossas crianças, Dorer era um pai prudente, uma mãe terna, um sábio
professor; numa palavra: todo em tudo. O seu carácter moral pode-se resumir nesta expressão: um anjo em
carne humana.»
O pró-vigário apostólico também visitou em 1856 os institutos de Santa Cruz e dos Bari. A 1 de Junho
chegou com o Stella Mattutina a Gondokoro. Os alunos saudaram-no com cantos devotos na língua dos Bari,
que se popularizaram em toda a tribo. Aí encontrou o P.e Überbacher, que tinha trabalhado com uma dedica-
ção e um proveito admiráveis e que ficou feliz por receber um novo companheiro, o P.e Morlang.
2115
Quase ao mesmo tempo o rev.mo P.e Gostner, vigário-geral, acompanhou ao Egipto oito dos alunos me-
lhores e mais inteligentes da escola de Cartum, os quais deviam ser levados para a Europa para receberem
uma educação superior. Chegados a Alexandria no dia 1 de Setembro, encontraram o prof. Mitterrutzner, que
conduzia um novo grupo de missionários da Alemanha.
A 4 do mesmo mês, o dr. Mitterrutzner, renunciando com uma abnegação admirável à visita dos monu-
mentos e da clássica terra do Egipto, voltou para a Europa com os referidos alunos de Cartum, dois dos
quais, os brilhantes Alexandre Dumont e André Scharrif, foram alojados no Colégio da Propaganda de Ro-
ma; de outros dois tomou conta o infatigável e santo amigo da missão Lucas Jeram, de Laybach (que por
duas vezes tentou chegar a Cartum, porém, por causa de terríveis doenças, a primeira vez teve de regressar
do Cairo e a segunda, de Assuão), e quatro foram para Verona, para o Insto. Mazza. São estes os nomes dos
novos missionários chegados:
Rev.do P.e António Kaufmann
Rev.do P.e José Lanz
Rev.do P.e Lourenço Gerbl, de Wasserburg, na Baviera

2116
Havia também quatro operários leigos tiroleses. Encontraram no vigário-geral um condutor expedito, sob
cuja direcção chegaram a Korosko em meados de Outubro. Aí surgiu-lhes uma contrariedade inesperada: sua
alteza real Said Paxá, vice-rei do Egipto, fez uma viagem ao Sudão e durante muitos meses todos os camelos
ficaram reservados para ele e o seu numeroso séquito, para a viagem através do deserto. Somente a 7 de Ja-
neiro de 1857 Gostner pôde deixar Korosko e em meados de Março chegou a Cartum.
Os padres Kaufmann e Lanz receberam a sua destinação: o primeiro foi para Gondokoro, o segundo para
Santa Cruz. O piedoso, fervoroso e jovem missionário sr. Gerbl ficou em Cartum. Pertencente a uma família
riquíssima, foi o primeiro fundador na Alemanha da Sociedade de Jovens Estudantes, que ainda está muito
difundida e que nos lugares onde se constituiu fez um grande bem, sobretudo quanto a preservar os estudan-
tes da universidade do veneno do racionalismo e a fazê-los praticar as normas da nossa santa religião.
2117
O P.e Gerbl chegou a Cartum, onde sempre gozou de boa saúde, com a idade de 24 anos. A 11 de Junho
de 1857 celebrou missa na igreja da missão, visitou os doentes, e ao meio-dia comeu. Na Ars (três horas da
tarde) sofreu um ataque de febre muito violento, enquanto passeava pelo jardim de Cartum com Francisco
Mustafá, discutindo sobre o modo de educar a juventude africana. Na noite desse mesmo dia, o pio Gerbl
estava já enterrado.
O dr. Knoblecher acompanhou pessoalmente Kaufmann e Lanz com o Stella Mattutina ao seu lugar de
destino. Por essa altura preparava-se em Verona a expedição de P.e Nicolau Mazza.
Este venerável fundador, depois do regresso de P.e Beltrame a Verona, tinha preparado cinco sacerdotes e
um excelente e devoto leigo para a sua empresa.
Eis aqui os seus nomes:
2118
P.e João Beltrame, de 35 anos, de Valeggio
P.e Francisco Oliboni, professor de 34 anos diocese
da diocese de Verona, S. Pietro Incariano de Verona
P.e Alexandre Dalbosco, de 27 anos, de Breonio
P.e Ângelo Melotto, de 29 anos, de Lonigo, diocese de Vicenza
P.e Daniel Comboni, de 26 anos, de Limone, diocese de Bréscia
Sr. Isidoro Zilli, de 37 anos, de Trieste, serralheiro e mecânico

Todos esperavam há tempos pela feliz altura de abandonarem a sua pátria para irem para a África e mor-
rer por Jesus Cristo. Porém, havia um terrível obstáculo: a falta de dinheiro. O dr. Mitterrutzner, à sua passa-
gem por Verona no dia 23 de Agosto de 1856 na ida para o Egipto, só parou no instituto por breves momen-
tos. Porém, ao voltar de Alexandria no dia 12 de Setembro desse mesmo ano com os quatro alunos da escola
de Cartum, de que falámos, deteve-se lá por alguns dias.
Na sua convivência durante esse tempo com os 34 sacerdotes que então havia no instituto, apercebeu-se
de que muitos deles lhe perguntavam amiúde pela missão e de que ardiam no desejo de a ela se consagrarem.
2119
Sondou bem o terreno e não compreendeu por que motivo não partiam para a África, uma vez que o dese-
javam não menos que o fervoroso fundador. Na noite de 14 de Setembro tomou à parte P.e Beltrame para lhe
dirigir algumas perguntas sobre a questão. Beltrame explicou ao seu interlocutor quanto desejava saber e
declarou que no dia em que tivessem alguns meios, partiriam todos. Guardando o segredo, Mitterrutzner
regressou ao Tirol com o firme propósito de se dirigir ao alto comité de Marienverein, em Viena, para tratar
de pôr à disposição de P.e Nicolau Mazza os meios necessários para fundar a sua obra na África Central.
Depois de muitas dificuldades, tanto por parte do comité para conceder a ajuda como por parte de P.e Ni-
colau Mazza para a aceitar, a mediação de Mitterrutzner permitiu dar por acertado o assunto em meados do
mês de Julho de 1857.
A sociedade de Viena concedeu os meios pecuniários ao Insto. Mazza para que se estabelecesse na África
Central e P.e Nicolau Mazza preparou em seguida a expedição.
2120
A 3 de Setembro Suas Altezas Imperiais Fernando Maximiliano e a sua jovem esposa, a arquiduquesa
Carlota, filha do rei da Bélgica, que mais tarde ascenderiam ao trono imperial do México, honraram-nos com
a sua visita e entretiveram-se com os nossos hora e meia, prometendo ir a Cartum dentro de seis anos (assim
mo disse o arquiduque).
No dia 5 a expedição saiu para Trieste, onde aumentou ainda com quatro piedosos operários, e a 15 de Se-
tembro, com o vapor Bombay, chegámos a Alexandria.
Três do grupo – Melotto, Dalbosco e eu – visitámos Jerusalém e os Lugares Santos. Em Novembro aban-
donámos todos os Cairo e, pelo Alto Egipto e pelo deserto, dirigimo-nos à África Central. O dr. Knoblecher
acolheu os novos missionários de Verona com uma manifestação de afecto paternal e com toda a alegria do
seu coração. Ordenou que se estabelecessem na estação de Santa Cruz, em território dos Kich, de onde pode-
riam explorar a pouco e pouco as diversas tribos dos negros para escolher o lugar onde fundar a primeira
casa da sua santa empresa.
Como é minha intenção preparar à parte um relatório sobre as perigosas viagens e as fadigas do nosso
apostolado na África Central, não saio agora do plano que aqui me propus de escrever uma simples história
abreviada do vicariato apostólico da África Central. Por isso vou cingir-me estritamente ao tema deste breve
escrito.
2121
Tendo o pró-vigário apostólico verificado que em 1857 se tinham registado menos mortes nas três esta-
ções que nos anos anteriores, e animado pela nova expedição de Verona, que reforçava a missão, decidiu
empreender uma viagem à Europa. A sua intenção era falar do vicariato à Propaganda de Roma, fazer acertos
para o futuro e sobretudo restabelecer a sua saúde, de que se tinha ressentido consideravelmente por causa
das perigosas e repetidas viagens, dos sofrimentos espirituais e corporais, e ainda mais das temíveis doenças
que tinha suportado.
Por isso, encarregou o P.e Mateus Kirchner de visitar as estações do Nilo Branco e de acompanhar os
missionários do Insto. Mazza ao lugar de destino.
2122
Deixando em Cartum o nosso querido irmão P.e Dalbosco na qualidade de procurador, com a bênção do
vigário-geral, Gostner, afastámo-nos daquela cidade pelo Nilo Branco a bordo do Stella Mattutina.
Favorecidos pelo vento do Norte, aquele famoso pequeno barco avançava à velocidade de um barco a va-
por contra a corrente do rio misterioso. Fomos deixando para trás os muito extensos territórios dos Hassa-
nieh, dos Bagara, dos Aburof, dos Schelluk, dos Dincas, dos Yangue e de outras tribos.
Nunca passava um dia sem que verificássemos com os nossos olhos o deplorável estado e a desditosa si-
tuação dos pobres negros, que me não é possível descrever aqui. Nunca passava uma noite sem que ouvísse-
mos os leões e sem que víssemos grandes grupos de elefantes, de hipopótamos, de tigres, de hienas, de leo-
pardos e de outros animais selvagens.
2123
Depois de suportar muitas fadigas e doenças, chegámos a 14 de Fevereiro à estação de Santa Cruz, onde o
bom e empreendedor José Lanz, ajudado pelos leigos Glasnik e Albinger, era o único missionário que tinha
sobrevivido. Mozgan, esgotado pelas fadigas e atingido por uma febre perniciosa, havia exalado poucos dias
antes o último suspiro.
Enquanto o Stella Mattutina levava Kirchner ao país dos Bari, todos nós (o superior P.e Beltrame, Olibo-
ni, Melotto, Comboni e Zilli) nos instalámos numa pequena cabana que até então tinha servido para guardar
vacas e que tinha uma altura de três metros e um diâmetro de quatro. Todos nós utilizávamos a modo de
cama uma tábua coberta com uma manta que tínhamos trazido do Cairo, excepto P.e Oliboni que dormia
apoiado numa pequena caixa. Não havia nada naquela terra.
2124
Antes de tudo, preocupámo-nos em aprender a língua local, o dinca, que, segundo a informação obtida,
era a mais difundida entre as tribos do Nilo Branco e das regiões limítrofes.
O primeiro que se ocupara daquela língua fora o dr. Knoblecher, mas até então só tinha escrito umas seis-
centas palavras para compreender e exprimir as coisas de primeira necessidade. Depois dele foi Mozgan
quem se dedicou a aprender essa língua tão importante; porém, apenas deixou a Lanz a herança de alguns
diálogos e uma pequena colecção de seiscentas palavras que, à nossa chegada à terra dos Kich, constituíam o
mínimo para fazer-se compreender pelos indígenas nas necessidades mais urgentes. Portanto, pusemo-nos
com uma aplicação constante e assídua a estudar essa língua.
Em primeiro lugar, tomámos o dicionário italiano e transcrevemos mais de cinco mil palavras, as mais
correntes e úteis para o nosso ministério. Depois, com a ajuda dos alunos da missão e sobretudo do menino
António Kacional e da pequena Catarina Zenab – da etnia dos Dincas, mas que também sabia bem o árabe,
língua que nós conhecíamos –, no espaço de dez meses conseguimos (Lanz, Beltrame, Melotto e eu) compor
um dicionário italiano-dinca de três mil palavras, uma pequena gramática, diálogos mais comuns, e um vo-
lumoso catecismo que continha matérias dos dogmas e da moral católica suficientes para exercer o ministério
apostólico entre os nossos muito queridos indígenas.
2125
Fizemos estudos nos povoados onde se falava o dinca e conhecemos os costumes, os usos, as crenças, os
erros e as superstições dos nativos. Para dar uma mínima ideia disto (porque seria o tema de um tratado),
direi que os negros daqueles lugares são, em geral, completamente pagãos e feiticistas. Crêem que há um Ser
Supremo, a quem chamam Dendid, que significa grande entendedor; porém, falando da criação, dizem que
foram criados como o elefante, como a vaca ou como a lua.
Há tribos que crêem que os brancos foram criados na água e os negros no carvão, e isto – dizem – explica
a razão pela qual eles são negros. Há outras que afirmam que os brancos falaram com Dendid, mas que os
negros não falaram com ele.
Podemos assegurar que a religião de Jesus Cristo nunca penetrou nestas tribos, porque jamais encontrá-
mos a menor tradição das verdades do Novo Testamento. Pelo contrário, conservam muitas tradições do
Antigo Testamento, como os sacrifícios, a lei de Talião, os anjos e os demónios.
2126
Chamam ao anjo Achiek e ao demónio Achiok. Considerando estas palavras, que não variam nada nas
consoantes, mas apenas na vogal da segunda sílaba, pode-se concluir que os Dincas crêem, como nós, que o
anjo e o diabo possuem a mesma natureza. Fazem sempre sacrifícios e para isso têm umas cerimónias muito
interessantes; mas nunca sacrificam a Deus, nem lhe prestam nenhum louvor, porque não precisa de ser soli-
citado pelos homens para fazer o bem: ele fá-lo por si mesmo. Ao contrário, oferecem sempre sacrifícios ao
diabo (Achiok) para o aplacar e ganhar os seus favores, impedindo que faça mal aos homens.
Fomos testemunhas de inumeráveis sacrifícios. Eis aqui um: entre Outubro e Novembro de 1859 viu-se
um cometa na África Central, tal como na Europa. Como eles acreditavam que aquele objecto celeste tinha
sido mandado ao céu pelo Diabo, os chefes e os tiets (adivinhos e bruxos) reuniram-se para discutir que fazer
naquela sinistra circunstância. Decretaram que se sacrificassem oito bois ao diabo. De facto, mataram sole-
nemente os oito bois e, depois de muitas cerimónias e cantos, ofereceram essas vítimas a Achiok.
2127
O cometa, porém, mostrava-se cada vez mais impressionante. Então, numa assembleia, decidiram quei-
mar uma grande quantidade de prados e pasto. Nós notámo-lo bem uma noite, em que se via a luz do incên-
dio como se fosse a do dia; perguntámos aos indígenas qual a razão daquilo. «É para queimar o cometa»,
responderam. «E por que quereis queimá-lo?» – insisti «Porque o cometa – responderam – é presságio de
desgraças e de desastres. Mas também desta vez não conseguiram queimar o cometa. Um dia vimos uma
multidão armada de lanças e de flechas envenenadas, que, bem ordenada numa planície, atirava contra o
cometa. À noite, perguntei a um chefe por que disparavam as flechas. «É para matar o cometa» – respondeu-
me. Quando, seguindo o seu curso, o errante objecto acabou por desaparecer, os indígenas fizeram uma
grande festa: cantaram, bailaram e mostraram o seu agradecimento, acabando por dizer que Achiok (o Diabo)
tinha ficado apaziguado e satisfeito.
2128
Aquele que faz os sacrifícios, ou seja, o ministro, é uma personagem muito respeitada entre os negros.
Chama-se tiet, bruxo, e reúne as funções de sacerdote, médico e sábio. Quando há um doente e ele é chama-
do, em primeiro lugar deve declarar se o doente se vai curar ou se vai morrer. Se ele entende que vai haver
cura, o doente é rodeado de muitos cuidados e muitas vezes recupera a saúde. Se, pelo contrário, declara que
o doente vai morrer, então este é abandonado imediatamente, de modo que, se não morre pela violência da
doença, sucumbe pelo abandono de todos. Ainda que os negros do Nilo Branco estejam menos avançados no
progresso que os nossos primeiros pais no tempo de Adão e Eva, nas regiões onde não penetraram nem os
muçulmanos nem os europeus têm costumes simples e puros. De facto é desconhecida a depravação. Em
pouco tempo estas gentes se converterão ao catolicismo, se for possível continuar neste ministério.
2129
Os territórios destas tribos são povoados também por numerosas manadas de elefantes. Não passa uma
noite sem se ouvir o espantoso rugido do leão, e as panteras, os leopardos e sobretudo as hienas são quase tão
comuns como os cães na Europa. Encontram-se em grande quantidade as serpentes mais colossais, assim
como crocodilos, hipopótamos, escorpiões muito maiores que os nossos, etc. Como se vê, todas estas cir-
cunstâncias concorrem para tornar muito perigosa a permanência dos missionários.
Apesar de tudo, nós éramos felizes por podermos ensinar àquela gente os preceitos e a fé do Evangelho.
O toro de uma árvore era o nosso púlpito para pregarmos e estava sempre rodeado de chefes e negros nus,
sempre armados de lanças e flechas envenenadas. Escutavam a Palavra de Deus com uma avidez extraordi-
nária e uma constância que permitiam ter muita esperança. À hora de oferecer o Santo Sacrifício, a nossa
igreja era constituída ora por uma pequena tenda ora por uma estreita cabana de cinco pés de altura, e às
vezes celebrava-se ao pé de uma grande árvore. No país dos Ghog levantámos uma cruz de trinta pés.
2130
Era a primeira vez que se pregava o Evangelho naquelas terras. Tínhamos dito aos indígenas que a cruz
era o sinal da nossa salvação e que eles deviam acorrer lá, a ela, nas suas necessidades. Fizeram-no por muito
tempo e pode bem ser que ainda o façam no presente. Contudo, como não estávamos seguros de que o nosso
ministério pudesse continuar, devido à morte de tantos missionários, não julgámos prudente administrar o
baptismo aos que no-lo pediam, depois de ter recebido uma preparação conveniente.
Quando os missionários, tanto europeus como indígenas, puderem estabelecer-se estavelmente entre os
africanos, as tribos da África Central entrarão no redil de Jesus Cristo.
2131
Na tribo dos Kich construímos até uma igreja. Custou muito suor ao infatigável Lanz e a todos os missio-
nários. Como não havia pedras naquela zona, servimo-nos de madeira de ébano, de que existem imensos
bosques. Cravámos no chão paus de ébano e com ladrilhos feitos de barro e conchas do rio construímos com
nossas mãos a casa de Deus, de doze metros de largura por vinte e dois de comprimento, solidamente coberta
de palha, tal como se cobrem as cabanas da região.
A igreja, que era uma maravilha para os negros, tinha dois altares, nos quais celebrávamos o divino sacri-
fício e as cerimónias das festas do ano com uma alegria não inferior ao júbilo que a piedade católica mostra
nas magníficas catedrais da Europa. Os chefes dos negros acorriam a ela de longe e permaneciam lá com um
respeito edificante.
2132
Mas que duras provas preparava a Providência aos pobres missionários da África Central! O rev.do P. e
Kirchner, ao chegar connosco a Santa Cruz, como dissemos, tomou conhecimento de que Bartolomeu Mo-
zgan, responsável dessa estação, acabara de morrer.
Chegado à tribo dos Bari, achou morto também o responsável de Gondokoro, Überbacher. Depois de no-
mear Morlang superior desta estação, regressou à estação de Santa Cruz, encontrando morto também o nosso
irmão P.e Francisco Oliboni. Este venerável missionário, que durante dez anos tinha sido professor no Liceu
Imperial de Verona, era um homem de eminente piedade e sabedoria.
2133
Para falar dele em poucas palavras, direi que atravessou o deserto em vinte e seis dias e durante esse tem-
po, debaixo de um calor terrível, suportou um jejum e uma abstinência muito rigorosos, porque nunca comia
nem bebia mais que uma só vez ao dia, ao pôr-do-sol. Além disso, a fim de se preparar para a festa do Natal
no deserto, ficou sem tomar nada, nem sequer água, desde o meio-dia de 23 de Dezembro até às 10 da manhã
de 25, quer dizer, quarenta e cinco horas seguidas, depois de ter passado dezoito dias sobre o camelo.
À parte as suas orações particulares, que prolongava por muitas horas do dia, recitava todas as noites de
cinquenta a sessenta salmos de David, com a respectiva meditação, e durante a sua estada entre os Kich nun-
ca se deitava, mas dormia sentado num banco ou numa pequena cadeira, apoiando o braço num caixote. So-
mente se deitou no dia 19 de Março para morrer a 26 do mesmo mês. Eu tinha-o sangrado três vezes; estava
melhor no dia 24, mas uma terrível febre venceu-o. Nos últimos momentos dirigiu-nos uma terna recomen-
dação, encorajando-nos a permanecermos constantes até à morte pela conversão dos pobres negros. Cheio de
fé e abraçando o crucifixo, entregou o seu espírito a Deus.
Chegado a Cartum, Kichner encontrou P.e Alexandre Dalbosco à frente da estação, porque o rev.mo vigá-
rio-geral, Gostner, tinha falecido. Com este valoroso missionário o vicariato da África Central tinha perdido
um grande apoio.
2134
Tendo sofrido estas graves perdas, o rev.do Kirchner apressou-se a informar o pró-vigário apostólico, que
tinha ido à Europa; porém, uma semana depois chegava a Cartum a notícia de que também o dr. Knoblecher
tinha morrido em Nápoles. Na verdade, quando o pró-vigário deixou a missão em Outubro de 1857 para se
dirigir à Europa, caiu doente na viagem pelo Nilo e, já no Cairo, encontrou a temperatura muito fria, o que
contribuiu para agravar a doença, vendo-se obrigado a ficar sempre no quarto do convento dos padres fran-
ciscanos.
Em Alexandria sentiu-se ainda pior. Na esperança de encontrar na Itália meridional meios mais seguros
para se restabelecer, a cinco de Janeiro embarcou num navio que se dirigia para Nápoles. O embaixador da
Áustria junto do rei das Duas Sicílias, o cavalheiro De Martini, visitou-o no hotel, onde tinha sofrido um
forte ataque de tosse e recebido os cuidados do dr. Zimmermann. Por mediação do núncio apostólico, mons.
Ferrari, o pró-vigário obteve um benévolo acolhimento no convento dos padres agostinhos, que lhe prodiga-
lizaram grandes atenções.
2135
No rev.mo P.e A. Eichholzer, confessor da rainha, encontrou um verdadeiro amigo. A instâncias deste, o
sr. Lucarelli, médico de renome, pôs-se a tratá-lo com grande dedicação. Porém, o doente, com uma violenta
tosse, febre contínua e fortes dores no peito, piorava de dia para dia. Bem cedo foi obrigado a ficar de cama;
cuspiu muitas vezes sangue e recebeu o sacramento dos enfermos. Contudo, os cuidados solícitos, assíduos e
inteligentes do médicos conseguiram em dois meses fazê-lo entrar numa convalescença que dava esperança
de cura.
Como o Papa Pio IX tinha declarado por essa altura um jubileu, o pró-vigário quis ganhar as correspon-
dentes indulgências. Pelo que pediu ao seu confessor, que era o P.e Ludovico, reitor do convento, que lhe
concedesse um retiro de dez dias, o qual foi para ele de grande consolação.
2136
«Quando amiúde o visitava – escreveu para a Alemanha esse padre – queria que lhe falasse somente de
temas divinos. Confessou-se com frequência e recebeu muitas vezes a comunhão. A única coisa de que se
lamentava era não poder oferecer o santo sacrifício da missa». Talvez pela sua aplicação aos exercícios do
retiro, caiu numa doença mortal. Deus chamava-o para junto de Si, para dar ao Seu grande servo a recom-
pensa digna dos seus grandes méritos. Quarenta horas antes da sua morte, estando só no quarto, quis seguir o
exemplo dos grandes santos e estender-se no chão, esperando nesta posição o seu fim. O barulho da sua que-
da alarmou os religiosos, que acorreram, meteram-no na cama e ordenaram-lhe que se submetesse à vontade
de Deus e permanecesse no leito.
Na noite antes da sua morte, mandou chamar o P.e prior. Com dores indescritíveis pediu-lhe que tirasse
do seu baú e acendesse o círio que tinha recebido na Igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém e que conservava
desde 1847, rogando-lhe que recebesse o último acto de consagração da sua vida a Deus. Ele mesmo tomou
nas suas mãos o crucifixo e fez em alta voz o sacrifício da sua vida a Deus Criador em expiação dos seus
pecados. Estas palavras pronunciou-as com tal fervor, que o prior e todos os padres não puderam conter as
lágrimas.
2137
A 13 de Abril de 1858, pelo meio-dia, o pró-vigário Knoblecher expirou aos 38 anos, 9 meses e 7 dias (ti-
nha nascido a 6 de Junho de 1819). O seu corpo foi exposto na igreja dos Agostinhos. O Alto Comité de
Viena honrou-o nessa cidade com um funeral. A que presidiu o núncio apostólico, mons. De Luca. Os restos
mortais foram depois trasladados para Laybach, onde lhe ergueram um monumento imponente. Ele deixou
muitos escritos que enriquecem a geografia, a botânica, a história natural e a filologia das línguas do Nilo
Branco. As missões perderam com Knoblecher um campeão e a Igreja Católica um dos seus mais dignos
filhos e apóstolos.
2138
Quando o pró-vigário Knoblecher empreendeu a sua viagem à Europa em 1857, as estações da missão es-
tavam florescentes. Tinham-se criado escolas em Cartum, Santa Cruz e Gondokoro e havia um pessoal apos-
tólico muito capaz, que trabalhava cheio de entusiasmo e com total entrega por amor de Deus e dos pobres
negros.
Os missionários estavam repartidos pela parte oriental da África Central, entre o Trópico do Câncer e o
equador. Porém, no ano seguinte, como dissemos, a Missão recebeu os mais atrozes golpes nas suas três
Estações e sobretudo em Cartum, onde o vigário-geral Gostner, quando da morte de Knoblecher, tinha agido
com energia e zelo apostólico, de tal modo que na Europa pensou-se com alívio que Gostner seria capaz de
suster a obra. A Propaganda apressou-se a nomeá-lo responsável desta grande missão; porém, ele não chega-
ria a receber essa notícia, porque três dias depois da morte de Knoblecher, uma febre violenta arrebatava-o
deste mundo na idade de 36 anos, em Cartum, a 16 de Abril de 1858.
2139
Quando o prefeito da S. C. da Propaganda, o cardeal Barnabó, se inteirou de todas estas perdas e sobretu-
do da morte de Gostner, disse categoricamente: «Depois de tantas perdas, depois de tantos sacrifícios, é pre-
ciso fechar aquela missão.» O ilustre professor Mitterrutzner, a quem o cardeal tinha dirigido estas palavras
no dia 6 de Setembro de 1858, permitiu-se fazer saber e observar a Sua Eminência que, se as perdas eram
grandes e igualmente grandes os sacrifícios, havia naquela missão muitos homens valorosos e capazes de
continuar a obra começada e que também se poderiam encontrar outros no futuro. Os sacrifícios tinham sido
muitos, naturalmente, mas os sucessos não podiam ser desprezados, pois existiam três escolas florescentes
nesta missão e bom exemplo disso eram exactamente os alunos do Colégio da Propaganda André Scharrif e
Alexandre Dumont.
Uma comunicação escrita de Sua Eminência fazia os maiores elogios quanto ao seu talento, piedade e juí-
zo. Este aspecto positivo foi a causa pela qual se deixou continuar a missão e se passou a procurar um novo
pró-vigário.
2140
Tanto por parte da Propaganda de Roma, como por parte do comité de Viena, a eleição recaiu no venerá-
vel missionário Mateus Kirchner. Este encontrava-se em Cartum, quando lhe chegou a carta da sua nomea-
ção como responsável do vicariato. Homem de grande humildade e assustado pelas enormes dificuldades da
santa empresa, decidiu-se a aceitar unicamente a direcção da missão depois de expor à Propaganda todos os
obstáculos que via para o bom cumprimento do seu dever, a fim de que ela dispusesse as coisas para o maior
bem da missão.
Tendo posto à frente da estação de Cartum o piedoso P.e Alexandre Dalbosco, a quem nomeou também
seu procurador para as missões do Nilo Branco, Kirchner partiu para a Europa.
Chegado a Roma, depois de larga resistência, aceitou o duro cargo de pró-vigário apostólico da África
Central. Seguindo o conselho da Propaganda, com o fim de preservar a vida dos missionários, elaborou o
projecto de fundar uma estação num ponto do vicariato onde o ar fosse bom e o clima bem suportado pelos
europeus.
2141
Nessa estação deviam reunir-se todos os missionários para restaurar a saúde e descansar das enormes fa-
digas do seu apostolado. As estações católicas de Santa Cruz e de Gondokoro deviam ser confiadas, durante
a ausência dos missionários, à guarda de um indígena seguro e fiel, e somente uma vez ao ano, na época do
vento do Norte, em Novembro, alguns missionários deviam deixar a estação em projecto para visitar as esta-
ções católicas de Cartum e do Nilo Branco e resolver os seus assuntos. A Propaganda comprometia-se a for-
necer o dinheiro necessário para a fundação desta estação, para a qual se tinha escolhido o povoado de
Schellal, que fica situado em frente da ilha de Filé, a uns cem quilómetros de Cartum e vinte de Assuão, no
limite territorial entre o Egipto e a Núbia, mais acima da primeira catarata, a 24o 11’ 34” de lat. norte e a 30o
16’ de longitude este segundo o meridiano de Paris.
Ao regressar a África, o novo pró-vigário levou consigo três padres da Ordem de S. Francisco de Assis: o
P.e João Ducla Reinthaller, de Graz, e dois italianos da província de Nápoles, um dos quais morreu já no
Cairo. O rev.do P.e Luís Vichweider, nascido em Virgl, da província tirolesa de Bolzano e da diocese de
Trento, partiu da Europa em Junho de 1858, e encontrava-se já em Gondokoro a 25 de Janeiro de 1859.
2142
Enquanto os missionários de P.e Nicolau Mazza trabalhavam muito activamente no vicariato da África
Central, tanto em Gondokoro, onde P.e Alexandre Dalbosco dirigia a estação e desempenhava as funções de
procurador-geral do vicariato, como em S. Cruz, onde P.e Beltrame, Melotto e Comboni, após terem apren-
dido a língua dinca, se ocupavam da instrução dos Kich e exploravam com muito cuidado as regiões limítro-
fes, onde se falava o dinca, Sua Excelência o card. Barnabó exprimiu ao pio fundador P.e Nicolau Mazza o
desejo de ceder aos seus sacerdotes missionários a estação de Santa Cruz, pondo assim à disposição do pró-
vigário apostólico para as outras estações o excelente missionário José Lanz, de modo que mais tarde todos
os demais fossem destinados a esta estação. Isto era o que escrevia de Verona P.e Nicolau Mazza no dia 8 de
Março de 1859:
2143
«Meus queridos filhos, Sua Em.a o card. Barnabó, prefeito da S. C. da Propaganda, de Roma, escreveu-
me a dizer que seria seu desejo confiar aos meus missionários a estação de Santa Cruz e encomendá-la tam-
bém aos meus cuidados e que me empenhe o mais possível em educar nos meus institutos africanos de Vero-
na o maior número de jovens negros de ambos os sexos para fazer deles professores e professoras, a fim de
poder formar com esse pessoal dois colégios na estação principal de Cartum, um masculino e outro feminino.
A essa carta respondi que aceito com muito gosto a estação de Santa Cruz e que farei todo o possível para
prover de mestres e mestras negros os colégios de Cartum.
2144
Parece-me que tais ideias vieram de Deus. Desta maneira, a estação de S. Cruz será para nós a principal e
com um centro donde a pouco e pouco se poderá penetrar nas tribos dos Dincas. Os dois colégios que funda-
rem em Cartum os professores educados por nós ser-nos-ão benéficos, porque, encontrando-se neles alunos
nossos, estes sentir-se-ão, sem dúvida, muito unidos à missão dos Dincas e farão o bem espiritual e temporal.
Para mim e para vós, meus queridos filhos, será uma grande alegria poder agir com todo o agrado de Ro-
ma, que é nossa única e caríssima mãe. Parece-me, além disso, que provendo nós de professores e professo-
ras os colégios de Cartum e educando negros e negras, a estação de Santa Cruz e a missão dos Dincas não
deixarão de obter vantagens, porque estou certo de que se fará uma justa distribuição dos professores e pro-
fessoras, de maneira que, sobretudo os originários de Santa Cruz e dos Dincas, serão atribuídos a essas mis-
sões.»
2145
Nós ignorávamos completamente estas disposições da Propaganda e do nosso superior geral. Por isso, se-
guindo sempre as instruções recebidas anteriormente, dedicámo-nos a pregar o Evangelho e a visitar as zonas
onde se falava a língua dinca. De facto, verificámos que esta língua estava muito difundida na África Cen-
tral, já que se falava nos seguintes lugares:

À direita do Nilo Branco:


1.o Nas tribos dos Dincas, entre os 9o e 12º lat. N., a setentrião do rio Sobat
2.o Na tribo dos Bor, entre os 6o e 7o lat. N.
3.o Na tribo dos Tuit, a norte dos Bor
4.o Na tribo dos Donguiol
5.o Na tribo dos Anharkuei
6.o Na tribo dos Abuyó
7.o Na tribo dos Ahuer
8.o Na tribo dos Abialanhe
À esquerda do Nilo Branco:
9.o Na tribo dos Eliab, para baixo do 6o lat. N.
10.o Na tribo dos Kich, entre os 6o e 8o lat. N.
11.o Na tribo dos Atuot, a sueste dos Kich
12.o Na tribo dos Gogh, a noroeste dos Atuot
13.o Na tribo dos Arols, a norte dos Gogh
14.o Na tribo dos Jangue, que vivem na margem esquerda dos Schelluk e que se estendem muito para
o interior.
2146
15.o Na grande tribo dos Nuer, a norte dos Kich, que se estende amplamente pelas duas margens do
Nilo Branco e tem língua própria, porém, entende e fala o dinca.
16. A poderosa e formidável tribo dos Schelluk, situada entre os 9o e 12o lat. N., que tem a sua pró-
o
pria língua, porém,, conhece e usa também a dos Dincas.
o
17. As tribos situadas no interior da península de Sennar, no paralelo dos montes Berta, as quais fa-
lam o dinca:
a) a tribo dos Guiel
b) a tribo dos Yom
c) a tribo dos Beer
18.o Muitas outras tribos situadas na parte superior do rio Sobat e do Bahr el-Ghazal, que falam tam-
bém o dinca. Asseguraram-me, além disso, que falavam esta língua outras tribos do interior até
ao lago Chade e ao vasto império de Bornu, mas ignoro completamente os seus nomes.
O que havia de positivo era que o infatigável P.e Beltrame, depois de regressar da Europa, além de estu-
dar e corrigir muito do que tinha escrito sobre esta língua, corrigiu bem a gramática e o dicionário. Porém,
quem prestou um serviço imenso às missões da África Central foi o ilustre Mitterrutzner. Este célebre poli-
glota, com a sua profunda ciência filológica, com os escritos dos missionários e com a ajuda de dois rapazes,
um dinca e outro bari, publicou um par de obras muito importantes sobre estas duas línguas, as mais necessá-
rias para a missão da África Central:

Die Dinka-Sprache in Zentral-Afrika


Von J. C. Mitterrutzner, Brixen 1856
e
Die Sprache der Bari in Zentral-Afrika
Grammatik, Text und Wörterbruch
von J. C. Mitterrutzner, Brixen 1867

2147
Depois das nossas longas e interessantes explorações e após enormes fadigas e penosas doenças, apres-
sámo-nos a regressar a Cartum. Chegados em frente a Denah, que nós com Kotschy pensávamos ser capital
dos Schelluk, contaram-nos que o rei tinha sido estrangulado por uns chefes parentes seus, porque entre os
Schelluk era vileza e uma vergonha morrer de morte natural. Ao fim de dois meses ainda permanecia encer-
rado na sua cabana, por enterrar, porque o seu sucessor, que devia ser o filho do seu irmão chamado Gueu,
ainda não tinha sido eleito.
A eleição dependia do povo e somente depois da chegada ao poder do seu sucessor o rei defunto devia ser
sepultado. Asseguraram-nos que o rei recebia como imposto e como retribuição a terça parte dos bens arre-
batados aos estrangeiros nos assaltos e nos roubos perpetrados pelos seus súbditos. Pelo que há que dizer que
entre os Schelluk o banditismo e a rapina são favorecidos e estimulados pelo rei. É a única tribo de negros
que tem esta lei.
2148
Parece-me que o motivo disto é que os Schelluk são o povo mais exposto aos ataques bárbaros dos nú-
bios, que são seus vizinhos. Os núbios, os dongoleses, assaltam sobretudo os Schelluk para lhes roubar os
seus filhos e filhas, que convertem no objecto do seu infame tráfico de escravos. As horríveis violências dos
jilabas núbios irritaram tanto os Schelluk, que eles mesmos se tornaram cruéis para com os estrangeiros.
Depois de muito penar, chegámos a Cartum, onde o nosso querido companheiro P.e Ângelo Melotto, que
tinha sido o anjo de sensatez e prudência na nossa pequena sociedade, esgotado pelas febres e fadigas expi-
rou nos nossos braços no dia 26 de Maio de 1859, na idade de 31 anos.
2149
O pró-vigário apostólico, P.e Mateus Kirchner, chegou a Cartum resolvido a pôr em execução as novas
disposições sobre a maneira de desenvolver a actividade futura dos missionários, conforme tinha acordado
com a Propaganda. Antes de se dirigir ao Egipto para implorar de S. A. o vice-rei a concessão de um terreno
em Schellal para construir a nova estação, o pró-vigário pediu a P.e Beltrame que fosse ao Nilo Branco bus-
car os missionários, que trouxesse os alunos negros que a prudência aconselhasse e que retirasse das estações
todos os objectos que considerasse úteis para serem levados para a nova casa.
2150
No primeiro de Dezembro, P.e Beltrame partiu de Cartum com o Stella Mattutina e três barcas. Chegado
a S. Cruz, encarregou Kaufmann de preparar todas as coisas que havia para levar para Schellal, enquanto ele
e P.e José Lanz se dirigiam à tribo dos Bari. Em Gondokoro depararam-se com o facto de que o piedoso e
entusiasta P.e Wichweider tinha morrido a 3 de Agosto de 1859, depois de dois meses de febres intermitentes
que se converteram em febre perniciosa.
Em poucos dias, as três barcas foram carregadas de objectos da missão; e, tendo confiado a casa a um dos
chefes mais fiéis, chamado Medi, os missionários voltaram a Santa Cruz, onde tudo estava pronto para ser
embarcado.
Quando os Kich se aperceberam que os missionários partiam, houve uma grande tristeza por parte de to-
dos. Diziam: «Se nos abandonais, quem nos defenderá dos soldados dongoleses quando vierem matar-nos e
roubar os nossos filhos e o nosso gado? Vós fostes até agora nossos pais, instruístes os nossos filhos e ensi-
nastes a todos o caminho do céu, socorrestes os nossos pobres e curastes os nossos doentes. Quem virá con-
solar-nos e devolver-nos a saúde?» Os Kich, embora desconfiados por natureza, sabiam distinguir perfeita-
mente entre os missionários, que iam fazer-lhes bem, e os turcos e os traficantes, que iam a suas casas rou-
bar-lhes o gado e o marfim, arrebatar-lhes as suas mulheres e os seus filhos e matá-los a eles. Só se acalma-
ram depois de os missionários lhes prometerem que voltariam no ano seguinte.
As quatro embarcações chegaram com os quatro missionários a Cartum, e pouco depois, o solícito e de-
voto P.e José Lanz, após quatro anos de laborioso apostolado, entregou a alma ao Criador.
2151
Entretanto, o pró-vigário tinha ido ao Cairo e obtido de S. A. Said Paxá um bom terreno em Schellal e
mandado lá construir uma casa, que ficou terminada em pouco tempo. Instalados já nela os missionários do
Nilo Branco e de Cartum, o Stella Mattutina, descendo o Nilo através das cataratas, após muitos obstáculos,
conseguiu ancorar no Cairo, onde o vice-rei do Egipto deu à missão uma boa soma de muitos milhares de
escudos para equipar a casa, o que foi feito em Abril de 1861.
2152
Abatido pelas novas perdas de missionários, preocupado com o futuro da missão e desejando ardentemen-
te a salvação dos indígenas, o pró-vigário decidiu pôr em execução a ideia que tinha concebido havia algum
tempo de confiar a missão a uma ordem colossal, que podia empreender e levar a bom termo esta obra tão
importante e difícil. Por mediação do cardeal Barnabó, dirigiu-se ao rev.mo P.e Bernardino de Montefranco,
geral dos Franciscanos, homem de eminente sabedoria e caridade, que de 1850 a 1856 tinha sido guardião da
Terra Santa. O padre geral, bem disposto a participar nesta grande empresa, digna da sua gloriosa ordem, que
deu à Igreja milhares de apóstolos e de mártires, e tendo visto os preparativos e as esperanças das obras para
os negros, fundadas por aquele prodígio de caridade que era o rev.do P.e Ludovico de Casoria, recebeu com
satisfação a petição de Kirchner.
2153
Para agradar ao Alto Comité de Viena, que tinha manifestado ao cardeal-prefeito da Propaganda o desejo
de que os missionários de origem germânica fossem preferidos pelo facto de os donativos para a missão vi-
rem da Áustria, dirigiu de Roma uma circular, com data de 1 de Junho de 1861, a todas as províncias francis-
canas da Alemanha, a fim de reunir um bom número de missionários da sua ordem para serem enviados para
a África Central.
Esta é a circular:

(Original em latim; tradução do italiano)

Frei Bernardino de Montefranco


da Observância Regular de N. S. P.e Francisco, etc., etc.
Ministro geral da Ordem dos Menores, etc., etc.
2154
Aos superiores e aos subordinados sacerdotes das nossas províncias germânicas, que nos são tão queridos,
saúde e seráfica bênção no Senhor.
Tendo nascido a instituição da nossa ordem seráfica do supremo ardor do ínclito fundador, o S. P.e Fran-
cisco, não só para do lodo dos pecados e dos vícios conduzir à graça da salvação, mas também e em maior
medida para a conversão das gentes ainda envolvidas nas trevas de um erro mortal, por isso, nós, emulando o
zelo do Santo Padre, dos santos sucessores seus filhos e dos nossos maiores, apenas fomos eleitos, ainda que
indignos, para a direcção de toda a ordem, frequentemente e não com poucas cartas nos empenhámos em
avivar nos nossos jovens sacerdotes, especialmente das províncias italianas, este espírito de verdadeira cari-
dade.
Ora, por isso, tendo-nos escrito do Cairo o il.mo Mateus Kirchner, pró-vigário apostólico, a fim de que
lhe pudéssemos dar uma ajuda, através dos nossos jovens sacerdotes, especialmente das províncias germâni-
cas, no cultivo dessa nova mística vinha do Senhor, que até agora tem jazido afogada nos abrolhos e espi-
nhos, nós desejamos acorrer em sua ajuda. Por isso, mediante esta breve carta, exortamos os nossos jovens
filhos sacerdotes das mencionadas províncias, a fim de que, se algum deles se sentir chamado a esta grande
obra de piedade, se apresse a escrever-nos e imediatamente lhe mandaremos as cartas de obediência, desde
que tenhamos constatado nele os requisitos necessários para exercer uma tão grande tarefa, por meio das
cartas testemunhais que os respectivos ministros provinciais nos devem mandar junto com a petição.
Entretanto, exortamos os rev.mos ministros provinciais a que não tentem impedir de modo algum que os
tais jovens, que se mostrarem cheios do verdadeiro espírito de caridade pelas almas, se consagrem a esta
missão.
Dado em Roma, em Ara Coeli, a 1 de Junho de 1861.

Frei Bernardino, ministro geral


2155
Em vista da resposta favorável do rev.mo P.e geral da ordem seráfica, no mês de Agosto o pró-vigário
Kirchner, acompanhado do P.e Reinthaller foi a Roma, onde, de acordo com a Propaganda, confiou definiti-
vamente o vicariato da África Central à ordem seráfica, sendo o rev.do P.e Reinthaller eleito superior da
missão.
Obtida a autorização do rev.mo P.e geral, o novo representante da África Central percorreu as províncias
do Véneto e da Áustria, munido de uma trintena de cartas obedienciais, assinadas pelo geral, a favor dos
religiosos que desejavam consagrar-se ao apostolado entre os negros e conseguiu reunir um grupo de 34 mis-
sionários, entre sacerdotes e leigos. No mês de Novembro de 1862, chegou à nova estação de Schellal.
2156
Uma vez instalados no vicariato da África Central, os rev.dos padres franciscanos, todos os missionários
da Alemanha e de Verona abandonaram a missão e regressaram à Europa.
O P.e Reinthaller deixou um outro padre e irmão em Schellal e com todos os outros atravessou o deserto e
chegou a Cartum, onde uma parte dos missionários ficou, enquanto o maior número deles seguiu com o pró-
vigário para sul. Alguns morreram na viagem. Na tribo dos Schelluk, o P.e Reinthaller adoeceu gravemente,
pelo que voltou a Cartum. Entretanto outros padres instalaram-se em Santa Cruz, entre os Kich, onde recebe-
ram no seio da Igreja várias crianças africanas.
2157
Em 1862 dirigiu-se a Schellal outra expedição dos filhos de S. Francisco, em número de vinte e quatro,
entre os quais se encontravam três frades do rev.do P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles (na expedição de
1861 havia cinco deles). Estes assustaram-se ao chegar-lhes a notícia de que o P.e superior Reinthaller, re-
duzido a um estado de extrema fraqueza, por causa das febres, tinha ido para Berber, onde, depois de supor-
tar grandes dores, havia entregue a alma ao Criador.
Muitos mais o seguiram para a eternidade. Outros regressaram à Europa ou foram acolhidos com particu-
lar bondade na missão dos padres da Terra Santa.
2158
Em tais circunstâncias, foi preciso abandonar as estações de Gondokoro e de Santa Cruz, que estavam
distantes e foi decidido ocupar apenas as de Cartum e Schellal. Depois da morte de Reinthaller, a S. C. da
Propaganda confiou provisoriamente a direcção do vicariato da África Central, desde 1862, ao vigário apos-
tólico do Egipto. Em pouco tempo a estação de Schellal era fechada e a de Cartum ocupada unicamente por
dois franciscanos – dos quais o superior era o P.e Fabiano Pfeifer, de Eggenthal, no Tirol – e um irmão leigo.
2159
Depois deste período, o cardeal prefeito encarregou mons. Pascoal Vuicic, bispo de Anfitello e vigário
apostólico do Egipto, de empreender uma viagem à África Central para visitar a missão e informar a Propa-
ganda sobre a oportunidade e a maneira de estabelecer naquelas regiões o apostolado católico. Porém, os
graves e importantes assuntos da missão do Egipto não lhe permitiram dispor nunca dos muitos meses que
precisava para cumprir devidamente as ordens da Propaganda.
2160
O P.e Ludovico de Casoria, digno filho de S. Francisco de Assis, animado de um grande zelo pela salva-
ção dos pobres negros, fundou, em Nápoles, em 1854, dois institutos para negros, um masculino e outro fe-
minino, o primeiro dos quais era dirigido pelos seus Irmãos Bigi (ou cinzentos, pela cor do seu hábito) da
Ordem Terceira, que ele tinha instituído para empreender as suas admiráveis obras de caridade em favor dos
pobres daquela capital. O feminino estava a cargo das Irmãs Estigmatinas Terceiras, da Toscânia, a quem
tinha chamado a Nápoles para dirigir e desenvolver outras obras de caridade que acabava de fundar para as
raparigas pobres napolitanas.
O instituto masculino era constituído por sessenta negros, que ele tinha mandado instruir, segundo a incli-
nação de cada um, nas ciências e nas artes, com o objectivo de os transferir mais tarde para o centro da Áfri-
ca, para serem úteis ao seu povo. Todos, mais velhos e mais novos, andavam vestidos com o hábito dos
Irmãos Bigi da Ordem Terceira, de Nápoles. A mesma finalidade e o mesmo sistema regulavam o instituto
feminino, que chegou a ter 120 negras. Pois bem, em 1865, tendo sido informado de que a casa de Schellal
estava abandonada e vendo a sua obra suficientemente desenvolvida para poder mandar para a África alguns
dos seus membros negros, o P.e Ludovico pediu, por mediação do rev.mo geral da sua ordem, a casa de
Schellal para o seu instituto de Nápoles. O card. Barnabó, sempre desejoso de impulsionar as obras que ti-
nham como fim a conversão dos infiéis, concedeu a dita casa ao padre geral dos franciscanos, permitindo que
este a confiasse ao instituto do P.e Ludovico.
2161
No mês de Junho do mesmo ano, P.e Nicolau Mazza, perfeitamente informado da situação em que se en-
contravam os assuntos da África Central, enviou-me a Roma munido de uma petição assinada por ele mes-
mo, com o objectivo de solicitar da Propaganda uma missão na Nigrícia para o seu instituto, em congruência
com o seu plano, de que falámos.
Foi então que o cardeal-prefeito exprimiu a sua vontade de dividir o vicariato em duas partes: a primeira
seria confiada à ordem franciscana e a segunda ao Insto. Mazza.
A pedido de Sua Eminência e seguindo as instruções do meu superior, apresentei à Propaganda este pro-
jecto de missão:
2162
1.o Missão do Nilo Ocidental, a ser confiada à ordem seráfica, com os seguintes limites:
A norte, o vicariato do Egipto
A este, o Nilo e Nilo Branco
A sul, o equador
A oeste... in infinitum
o
2. Missão do Nilo Oriental, a ser confiada ao Insto. Mazza, com os seguintes limites:
A norte, o trópico do Câncer
A este, os vicariatos da Abissínia e dos Gallas
A sul, o equador
A oeste, o Nilo e o Nilo Branco.
2163
Embora o card. Barnabó tenha recebido com entusiasmo este projecto de divisão, pensou pôr-se em con-
tacto directo com o meu superior e com o P.e geral dos franciscanos para comprovar formalmente se as duas
instituições dispunham de pessoal e dos meios económicos necessários para tomar a seu cargo estas missões.
Depois, uma vez submetido o assunto ao exame de toda a congregação, como estipulam os artigos do projec-
to, emitiria os decretos apostólicos para a erecção das duas novas missões.
Enquanto eu esperava na Cidade Eterna o resultado destes trâmites burocráticos, o ilustre fundador do
meu instituto, P.e Nicolau Mazza, entregava o seu espírito a Deus com a idade de setenta e cinco anos e o
respeitável definidor de Ara Coeli declarou ao cardeal Barnabó que naquele momento não podia aprovar
nenhum projecto de divisão, porque podia bem acontecer que ele não conhecesse bem a fundo o terreno so-
bre o qual se punha a questão e não havia indicações e dados bastantes sobre o vicariato da África Central,
para chegar ao ponto de ceder uma parte dele mesmo a outra instituição.
2164
Perante estes justos argumentos dos veneráveis padres franciscanos, o cardeal-prefeito julgou oportuno
não tomar nenhuma decisão sobre o plano de divisão proposto, mas, na sua grande sabedoria, determinou
que o P.e Ludovico, como representante da ordem seráfica, e eu, como representante do Insto. Mazza, em-
preendêssemos uma viagem a África, para in loco examinarmos o assunto em questão. Assim, depois de
submetermos as nossas ideias ao conselho e juízo do vigário apostólico do Egipto, que era o responsável do
vicariato, estar-se-ia em melhores condições de estabelecer um plano de divisão justo e conveniente para as
duas partes, o qual, em seguida, seria apresentado à S. C. da Propaganda.
2165
Esta decisão de Sua Eminência era muito sábia, porque durante o tempo que nós andássemos em África, a
direcção do meu instituto, que se vira obrigada a limitar as suas actividades por causa da morte do fundador,
teria tempo suficiente para determinar a sua posição quanto ao aceitar ou não a missão. Entretanto o P. e Lu-
dovico teria podido levar a África os primeiros membros do seu instituto e tomar posse da estação de
Schellal.
2166
A nossa partida para África estava marcada para o mês de Novembro seguinte e Sua Em.a o card.-prefeito
tinha-me concedido uma pequena soma de dinheiro para a minha viagem. Antes, em Outubro, o P.e Ludovi-
co, comigo e três irmãos negros, entre os quais se encontrava o P.e Boaventura, de Cartum, quis visitar a
capital da Áustria, a fim de implorar da Sociedade de Maria ajudas para Schellal. Passámos por Bressanone
com a ideia de consultar o ilustre professor Mitterrutzner sobre um novo plano de divisão do vicariato da
África Central, para o apresentar a Roma no nosso regresso à Europa, porque o P. e Ludovico não estava
satisfeito com o que já fora apresentado à Propaganda.
Com muita sabedoria, o ilustre professor demonstrou-nos que o melhor projecto seria dividir o vicariato
de norte a sul, em vez de este para oeste; ou seja, que conviria confiar aos franciscanos as regiões do Egipto
até às primeiras tribos negras ao 12o de lat. N., e ao Insto. Mazza desde esse ponto até ao equador. Tudo
isto, por importantes motivos expressos na carta em latim que Mitterrutzner dirigiu ao P. e Ludovico, para
Viena, a 29 de Outubro de 1865.
2167
As diligências levadas a cabo nessa capital em favor da estação de Schellal não foram inúteis, porque o
comité cedeu ao P.e Ludovico o uso de todos os objectos da missão, da capela e das oficinas dos diversos
ofícios. O comité declarou depois que os recursos da associação destinavam-se apenas à estação de Cartum,
da qual podiam unicamente ocupar-se.
Contudo, três meses mais tarde, por mediação do card.-prefeito, o alto comité atribuiu aos irmãos do P.e
Ludovico residentes em Schellal a importância de 1200 francos anuais.
2168
A 6 de Janeiro de 1866, na festividade da Epifania, chegámos a Schellal e o P.e Ludovico tomou posse
da estação católica. Três dias depois, como consequência de umas cartas urgentes que tinha recebido, o P. e
Ludovico deixou a missão para regressar a Nápoles. Deste modo, deixava-se por fazer aquilo que tinha sido a
razão da nossa viagem a África e, dois meses depois, também eu regressei à Europa.
Os irmãos do P.e Ludovico de Casoria ficaram na casa de Schellal oito meses. Depois, por falta de meios,
esta estação foi fechada e os religiosos colocaram-se sob a direcção e ao serviço da Terra Santa.
2169
Em Cartum, o P.e Fabião ficou apenas 4 anos, ajudado por um irmão leigo. Em 1868 chegou em sua aju-
da o rev.do P.e Dismas Stadelmeir, de Innsbruck, com o irmão leigo Gerardo Keller. Em Dezembro de 1869
passou pelo Cairo o rev.do P.e Hilário Schlatter, do Tirol, menor reformado, que se dirigia a Cartum para
ajudar o P.e Dismas, que, depois do regresso à Europa do P.e Fabião Pfeifer, fora eleito superior da casa.
2170
Depois do que expus neste pequeno relatório, cabe perguntar:
1.o Quais são os resultados obtidos e o bem realizado na África Central desde a sua fundação em 1846 até
1867?
2.o Por que razão a colossal ordem dos veneráveis filhos de S. Francisco não obteve os resultados que se
esperavam da sua acção católica?
3.o Qual é o sistema mais oportuno e o plano mais eficaz para empreender com êxito o apostolado da
África Central?
Respondo, dizendo:
2171
Antes de tudo, é preciso confessar que o início de um apostolado católico num povo estrangeiro tem, no
geral, resultados cuja importância raras vezes se pode apreciar na medida justa. As conquistas evangélicas
efectuam-se de modo muito diferente das conquistas políticas. O apóstolo transpira não para si, mas para a
eternidade. Dito de outra maneira: não busca a sua própria felicidade, mas a do seu semelhante. Sabe que a
sua obra não morre com ele, que o seu túmulo é berço de novos apóstolos; por isso, os seus passos não sem-
pre são à medida dos seus desejos, mas sim o necessariamente prudentes para assegurar o êxito da redentora
empresa. Ainda que os resultados de um primeiro apostolado sejam máximos, também, normalmente, são
secretos: o tempo encarrega-se de revelar alguns, mas a maioria deles só Deus os conhece. E isto, que é ver-
dade na generalidade dos casos, é-o ainda mais no caso da África Central. Os primeiros heróis da caridade
apostólica, lançados pela vontade de Deus, para as regiões equatoriais da Nigrícia, qualificada pelo antigo
provérbio como a mãe que devora os seus filhos, encontraram-se, muitos deles, demasiado literalmente sós,
no meio duma espantosa novidade.
2172
Lá onde não ousaram nunca penetrar com os seus aguerridos exércitos os célebres conquistadores da An-
tiguidade, encontraram-se eles, poucos e inermes, desconhecedores dos países e das línguas, estranhos para
os povos e seus costumes, expostos aos rigores de um clima implacável, com inúmeras necessidades impos-
síveis de satisfazer, no desconforto de não poderem encontrar à sua volta já não digo os costumes, as manei-
ras civilizadas, ao menos as mais importantes da convivência social, mas nem sequer as mais óbvias seme-
lhanças da natureza humana, receosos de ter de tratar com homens degradados. Se este primeiro encontro
não tivesse dado outro resultado que não fosse conhecer o país e traçar o caminho para nele entrar, conhecer
a natureza humana dos indígenas e a sua posição moral e política, encontrar os meios mais adequados para os
regenerar e prever as principais dificuldades, susceptíveis de aí se oporem ao apostolado, é indubitável que
eles teriam feito muitíssimo e teriam empregado sobremaneira bem a sua vida.
2173
Porém, realmente a missão da África Central obteve muito mais que isso no seu primeiro período. Conse-
guiu percorrer e conhecer, desde os 15 graus até ao equador, boa parte daquela imensa região que até há pou-
cos anos figurava nas cartas geográficas com o nome de REGIÕES INCÓGNITAS; pôde entrar em contacto
com tribos que a tradição desde há muitos séculos vinha descrevendo como antropófagas e erigir estações no
meio delas; penetrou no seio das famílias de nómadas e descobriu as suas superstições, compreendeu as suas
esperanças, investigou a sua história, estudou os seus costumes; depois, arvorada em sua benfeitora, ensinou-
lhes a distinguir o apóstolo do aventureiro, obtendo, por isso, o seu respeito, a sua estima e benevolência, e
quase diria a sua simpatia e afecto; finalmente conseguiu aprender as suas principais línguas, conhecimentos
que compendiou em trabalhosos volumes, preparando assim os primeiros e mais essenciais elementos para a
acção eficaz do futuro apostolado, e suscitando na Europa o primeiro raio de esperança na regeneração da
infeliz Nigrícia.
2174
E se esta esperança resultou infelizmente numa cruel ilusão no segundo período da missão, quando esta
foi confiada à ínclita ordem seráfica, isso deve-se a muitas causas independentes da vontade dos obreiros
evangélicos. Foi um desses episódios dolorosos que Deus às vezes permite, tanto para provar os seus servos
como para os instruir, a fim de que a Sua obra triunfe, não momentânea mas perpetuamente, no verdadeiro
interesse dos povos por regenerar. A ordem seráfica era nova na África Central e era previsível que, ao prin-
cípio, também ela tivesse de pagar as suas experiências, talvez com o preço de não poucas vítimas. Porém, se
ela tivesse sido livre na escolha do pessoal a mandar para lá, certamente não teria havido tantos inexperientes
como houve, quanto à língua, aos costumes, aos povos e ao clima da África Central. Na Palestina e no Egipto
havia velhos e distintos missionários cuja experiência e habituação a um clima mais quente que o da Alema-
nha os teria levado a dirigir de modo mais prudente os passos e ter-se-iam poupado não poucos prejuízos que
sofreu a missão.
2175
Mas quiseram impor os missionários e certas sociedades benfeitoras deram preferência aos da sua nação.
Por isso, num momento crítico, em que tinham diminuído muito os contributos caritativos dos piedosos fiéis,
tanto por causa dos acontecimentos políticos, como pelas graves necessidades sobrevindas à religião amea-
çada na Europa, a ordem seráfica não teve outro remédio senão arriscar-se a entregar a direcção da missão a
um pessoal dotado, sim, das melhores intenções do mundo e de generosidade e excelente espírito apostólico,
mas inexperiente em semelhantes empresas e demasiado inadequado para a penosa situação da Nigrícia. Que
admiração que tenha sido obrigada a retirar-se?
2176
A dizer a verdade, deu-se demasiada importância a este fracasso, porque se quis utilizá-lo como argumen-
to da impossibilidade absoluta da missão, quando talvez tivesse sido melhor dirigir a crítica à maneira como
foi posta em prática. Certamente a ínclita ordem seráfica não precisa que eu a justifique: a história de seis
séculos de glorioso apostolado entre cem nações infiéis de um e outro hemisfério é um monumento imortal
do seu poder e suas conquistas. Daí que me seja lícito exprimir as minhas mais firmes esperanças num seu
retorno mais eficaz à empresa, com um novo processo de actuação, que as passadas vicissitudes e a história
da missão aconselham como o mais oportuno e prudente para conseguir regenerar a Nigrícia central.
2177
Permita-se-me aqui expor humildemente também a minha opinião sobre o assunto, compendiando a ideia
desenvolvida no meu Plano para a Regenaração da África, que está impresso desde 1864 e que teve a honra
de receber a aprovação das distintíssimas personalidades e dos principais chefes das missões que rodeiam a
Nigrícia. Já me vinha desde 1857 pondo o problema, que quis estudar nas próprias tribos dos negros e ao
lado dos primeiros generosos apóstolos desta difícil missão. E cheguei à conclusão de que não se deve voltar
a expor aventureira e inutilmente a vida dos missionários europeus, sujeitando-os à desmesurada diferença
do clima equatorial, nem ao isolamento no meio da privação de todas as comodidades que conservam a vida:
além dos custos ingentes destas imigrações apostólicas, fica sempre incerta e periclitante a vida do missioná-
rio e consequentemente a existência da missão. Isto sem contar com que o pessoal desta obra redentora será
sempre escasso e insuficiente para as graves e urgentes necessidades da infeliz Nigrícia; e quem sabe a partir
de quando seriam recolhidos os frutos da regeneração...
2178
Por isso, eu sou da opinião de que é mais útil pugnar para que os missionários europeus se dediquem à
educação de jovens negros de ambos os sexos em diversos institutos masculinos e femininos estabelecidos
no futuro nas proximidades das fronteiras com a Nigrícia, em locais salubres, de clima médio entre o europeu
e o equatorial. Esta educação deve à partida ter o objectivo de preparar os próprios alunos para apóstolos da
Nigrícia, à qual voltarão um dia como colónias evangelizadoras, mestres dos seus compatrícios quanto às
artes manuais e às ciências mais necessárias e sobretudo quanto à fé e moral do Evangelho, sob a imediata
direcção dos seus educadores, já em boa parte aclimatados aos calores africanos. Estes educadores e missio-
nários europeus deverão alternar-se no governo imediato das missões do interior com maior ou menor fre-
quência, segundo for maior ou menor a sua capacidade em suportar as fadigas apostólicas e o clima daquelas
terras.
2179
Com este sistema consegue-se perpetuar e aumentar o apostolado regenerador da Nigrícia de modo mais
eficaz e menos mortífero; acelerar praticamente a civilização com as artes e ciências principais, com o de-
senvolvimento de um necessário comércio e com a introdução de costumes mais aprazíveis e sociais; mino-
rar as necessidades da missão e assegurar os passos e o progresso com o estabelecimento das colónias; e,
finalmente, habilitar a África para que num prazo não muito dilatado se regenere a si mesma. O que para as
outras missões católicas é um dos frutos mais doces das fadigas do apostolado, para a da África Central, no
meu entender, é o meio mais necessário e prudente de activar com eficácia o próprio apostolado. E não se
pode dizer que para este objectivo seja indiferente que os negros sejam educados também na Europa, porque
a experiência demonstrou que esse é um trabalho inútil: o clima e as comodidades da Europa não se tornam
menos fatais para o negro que o clima e as privações da África Central para o missionário.
2180
O método de acção que acabo de expor foi julgado por alguns como uma ideia utópica; mas já há mais de
dois anos que comecei a pô-lo em prática nos meus pequenos institutos de negros do Egipto e a experiência
deste período sobre a questão fortalece-me na opinião de que o meu plano para a regeneração da Nigrícia é
dos mais adequados e eficazes, como eventualmente poderei demonstrar noutra altura. Além disso, tenho a
satisfação de saber que, adoptado noutros lugares com o mesmo objectivo, produziu nos missionários esta
mesma minha convicção de um feliz resultado. Favoráveis circunstâncias destes dias, que não haviam sido
previstas, parecem ser uma garantia por parte da Providência de que a hora da salvação soou também para a
pobre Nigrícia.
2181
Só resta, portanto, meter mãos à obra com mais coragem, porque Deus está connosco. Jovens sacerdotes,
que, por vossa sublime vocação, o vosso zelo pelas almas, e pelo vosso espírito de sacrifício, estais determi-
nados a fazer-vos com Cristo regeneradores dos vossos infelizes irmãos, aí tendes cem milhões de negros
abandonados que precisam do vosso esforço. Acorram também as ordens e congregações religiosas, que são
a milícia escolhida da Igreja, a plantar louros neste vastíssimo campo, onde Satanás mantém enfileirado todo
o seu poder. E vós, que por obrigações do vosso estado não podeis partir, não negueis nem as vossas orações
quotidianas nem o óbolo da vossa caridade.
2182
Trabalhemos todos sem outra emulação que não seja a de ganhar mais almas para Cristo: dêmo-nos reci-
procamente as mãos; haja um único voto, um único fim, um único empenho por parte de todos aqueles que
amam Jesus Cristo: o de lhe conquistar a infeliz Nigrícia.

Laus Deo, Deiparae et divo Paulo Apostolo.

Dado no Cairo, Egipto, aos 15 de Fevereiro de 1870

P.e Daniel Comboni


Missionário ap. da África Central

(1) Annali della Propagazione della Fede, T. 20, N.o 121, p. 5935
(2) Proceeding of the R. Geog. Society V. X. N. 1, p. 6 etc.
The Albert N’yanza Great Bassin of the Nile, and Explanations of the Nile Sources by Samuel Baker, M.
A. F. R. G. etc. London 1867
(3) Dr. Ignace Knoblecher... Eine Lebensskize von dr. J. C. Mitterrutzner.
(4) Zweiter Jahresbericht de Marienvereins. Wien.
(5) Os chefes e os negros nunca saem das suas cabanas sem a lança e as flechas envenenadas
(6) Dr. Ignace Knoblecher Apostoliker Provicar der Katholischen Mission in Central-Afrika. Eine Le-
bensskize von Dr. J. C. Mitterrutzner.

Original francês
Tradução do italliano

N.o 347 (325) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c, 14/73

Cairo, 15 de Fevereiro de 1870

Louv. J. M. para sempre. Ámen.

Excelência rev.ma

2183
Para não fazer e enviar duas cartas separadas, mando em anexo uma carta dirigida a mons. o delegado,
rogando-lhe que leia e a envie a S. Bartolomeu, em Isola. É a última folha do meu relatório escrito em fran-
cês sobre a missão da África Central de 1847 a 1867. Este Respondeo dicendum é a conclusão de 21 folhas
que já mandei a Roma, e a resposta a três questões:
1.o Que resultados obteve a missão?
2.o Porque é que os franciscanos não obtiveram êxito nela?
3.o Qual seria o melhor modo de actuação para um bom sucesso?
Farei um outro relatório sobre os dois anos da nossa missão, isto é, até hoje. Tudo isto para o monsenhor e
para Lião.
2184
Espero partir de Alexandria no dia 1 de Março e no dia 8 estar em Roma.
Agora, que se está a discutir sobre os Assuntos do Rito Oriental e portanto das missões católicas, não se-
ria uma boa ocasião para o senhor se pôr de acordo com o card. Barnabó e com monsenhor o delegado para
levantar a voz no concílio em favor da África Central, de cem milhões de negros que jazem sepultados nas
sombras da morte? Não seria um assunto de grande relevância propor e discutir o modo de conquistar para a
Igreja a décima parte da humanidade, que tantos esforços de 18 séculos não conseguiram ganhar para Cristo?
Não seria esta a altura de agarrar o touro pelos cornos e invocar as luzes da Igreja e o apoio de todos os cató-
licos do mundo, representados pelos bispos do Concílio, para ter em pouco tempo homens e dinheiro para
apertar o cerco à Nigrícia? Ah, monsenhor e meu pai! Parece-me que este seria um tema digno do concílio.
2185
Levante V. E a voz no concílio e diga a Pio IX: «Emitte, beatissime Pater, vocem tuam et renovabitur fa-
cies Africae.» Uma palavra do Santo Padre no Concílio, uma adesão dos bispos e produzir-se-ia uma tal co-
moção em todos os católicos do mundo, que apareceria dinheiro para a África e apóstolos para a Nigrícia.
Digne-se, monsenhor, reflectir sobre esta ideia e tenha a coragem de insistir, de rogar, de importunar até
todos os rev.mos padres e sobretudo o nosso cardeal-prefeito. E não os deixe em paz até a sua levar a melhor.
Espero que a Sagrada Família me conceda esta graça, assim como aos meus companheiros, aos nossos insti-
tutos, que rezam todos os dias por essa intenção.
2186
Acontece que agora missionários protestantes e muçulmanos seguem o inglês Baker (que chegou a Car-
tum com 2600 homens) e vão pregar onde nós o fizemos no Nilo Branco. Desde Gondokoro (quatro graus), o
Governo egípcio está a construir uma estrada até Nyanza, onde se porá um vapor: e de Suakim até Berber
está-se a construir um caminho de ferro, para facilitar as comunicações com o coração da África. Quando os
não católicos avançam, iremos nós permanecer inactivos, afogando-nos num copo de água? Roguemos ao
Deus de misericórdia para que o concílio se ocupe da Nigrícia. Respeitosas saudações a mons. o delegado,

Seu hum.mo e preocupado filho


P.e Daniel Comboni
N.o 348 (326) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ
AP SC Afr. C., v. 7, ff. 1372-1373

V. J. M. J.
Cairo, 17 de Fevereiro de 1870
Em.mo Príncipe,

2187
Cheio de gratidão pelos sentimentos e desejos que V. Em.a se dignou expressar-me na sua venerada carta
do passado dia 11 de Janeiro e pela benévola recomendação que fez em meu favor a essa obra apostólica,
permito-me notificá-lo de que o sr. Baker chegou a Cartum, onde está a organizar uma forte expedição para
conquistar em nome do vice-rei do Egipto todo o curso do Nilo Branco para lá do equador. De fontes quase
oficiais pude conhecer o plano de acção de Baker (desconfio um tanto das pretensas intenções humanitárias
do quedive). Desde Cartum até à tribo dos Bari, ao longo de uma linha de 11 graus, ele estabelece uma série
de postos, dotados de um capitão e de certo número de soldados bem aguerridos, os quais tomam posse do
país e vigiam o tráfico dos negros. A partir destes postos, estendem-se pouco a pouco até ocupar as povoa-
ções do interior. Quando os soldados surpreendem uma caravana de escravos, esta cai em poder do capitão
que castiga os traficantes e distribui aos escravos extensões de terreno para cultivarem. Os soldados prote-
gem, pois, os habitantes da nova província e defendem-nos dos inimigos que ousarem molestá-los.
2188
Os pontos escolhidos são os mais importantes do Nilo Branco: os Hassanieh, Mokhada el Kelb, Hella el
Kaka, o Sobat, a foz do Bahar el-Ghazal, o território Nuer, Kich, Eliab e Gondokoro. Desde Gondokoro ao
Nyanza Alberto construir-se-á com facilidade uma estrada; e para o Nyanza Alberto (2o lat. S.) Baker leva
um pequeno vapor, cujas peças foram embarcadas no Cairo sob os olhares do quedive. A expedição está
equipada de objectos mecânicos e integram-na artesãos, colonos, médicos e demais coisas. Vão também
missionários protestantes, e muftis para islami-zarem os indígenas. Baker pretende também dar uma lição
aos Bari, porque o ano passado mataram dois missionários protestantes.
2189
Diz-se além disso que em breve se estenderá uma via férrea entre Suakin, no mar Vermelho, e Berber, no
Nilo. Se tal se verificasse, chegaria o tempo em que se poderia ir de barco de Alexandria a Suakin, de com-
boio de Suakin a Berber, novamente de barco de Berber a Gondokoro (4o 40’ de lat. N.) e em coche dos Bari
às nascentes do Nilo. Submeto estas notícias à sabedoria de V. Em. a. Que acontecerá com tudo isto?... Tal-
vez a Providência extraia disso o bem, facilitando o caminho ao pregoeiro católico para que leve até lá a fé...
Porém, se a gente de Baker se assanhar com os negros, poderia dar-se o caso que aconteceu com os negros
da África Ocidental no tempo em que a Espanha e outras potências obtinham com violência escravos para os
levarem para as minas e campos da América. Deus vele pelos pobres negros!
2190
Pela minha parte, exponho uma simples sugestão. Agora que se discute sobre os assuntos dos ritos orien-
tais e sobre as missões, não seria oportuno tratar da causa da infeliz Nigrícia e propor aos padres do concílio
que estudassem a maneira de ganhar para a Igreja cem milhões de negros que jazem sepultados nas sombras
da morte? Não seria este o momento de invocar as luzes da Igreja e o apoio dos católicos de todo o mundo,
representados pelos bispos que se reúnem no concílio para devolver a vida à décima parte da humanidade?...
Se dos lábios do Pontífice saísse uma palavra de incitação em favor de uma empresa tão capital, se ressoasse
no concílio a voz dos bispos do orbe católico em favor da Nigrícia, não surgiriam apóstolos, meios pecuniá-
rios e obras organizadas para alcançar um objectivo de importância tão grande?
2191
Perdoe, em.o príncipe, se na minha insignificância me atrevo a submeter-lhe esta ideia e suplicar-lhe que
a tome em consideração, na certeza de que tal assunto é digno da venerável assembleia, que publicum rei
christianae bonum vere respicit (bula Multiplices II). Desde o passado 8 de Dezembro tenho mandado, e
cumpre-se, que haja nos meus institutos preces especiais para que o Santo Padre e os bispos também se ocu-
pem no concílio da Nigrícia, o qual há-de redundar em seu bem. Quereria que alguns bispos, depois da invo-
cação ao Espírito Santo Adsumus, Domine, etc., se levantassem no concílio e dissessem ao nosso glorioso
Santo Padre Pio IX:
«Emitte, Beatissime Pater, vocem tuam;
et renovabitur facies Africae.»
2192
Os meus pequenos institutos vão muito bem. Da pequena enfermaria para as negras abandonadas, subi-
ram para o Céu também esta semana duas almas, a uma delas, de dezasseis anos, tinha-a baptizado dez horas
antes.
Agora que terminaram os exercícios espirituais das religiosas e tenho bem encaminhados os meus assun-
tos, cumprindo o que monsenhor o bispo de Verona me escreveu de acordo com V. Em. a e – creio – com o
venerado delegado apostólico, irei ao concílio.
Digne-se V. Em.a receber as respeitosas saudações dos meus caros companheiros e das minhas irmãs.
Creio que a madre geral Emilie me concedeu uma superiora verdadeiramente bondosa e valiosa.
Tenho a honra de lhe beijar a sagrada púrpura e de me declarar com toda a veneração

De V. Em.a Rev.ma.
hum., obrig. e indig. filho
P.e Daniel Comboni

N.o 349 (327) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/72

Louv. J. M. eternamente. Ámen!

Cairo, 25 de Fevereiro de 1870


(sexta-feira de abstinência)

Excelência rev.ma
2193
Esta manhã terminaram os santos exercícios das religiosas com o solene Te Deum e comunhão geral, pre-
cedida da clausura. O nosso P.e Girelli pronunciou 68 sermões entre meditações e instruções nos exercícios
para as negras e para as religiosas, não durando nenhum menos de uma hora e alguns atingindo até as duas
horas. A minha prima Faustina Stampais fez ambos os cursos de exercícios e seria feliz de viver sempre de
silêncio e de exercícios espirituais. Pelo que parece, o P.e Girelli (que é meticuloso) ficou contente tanto com
as irmãs como com as jovens negras.
Como lhe escrevi aproveitando o vapor francês, seguindo as observações do nosso muito venerado pró-
vigário apostólico, o P.e Elias, considerei prudente esperar a autorização formal do cardeal para ir a Roma.
Assim que, paciência, monsenhor. Corra ver o cardeal e obtenha de seu punho e letra uma linha para eu po-
der apresentar ao rev.mo pró-vigário e, num voo, ponho-me em Roma. Desejaria que fosse já, pois, nas pro-
ximidades da Páscoa, os dias não são adequados para negociações.
2194
Por caridade, promova no concílio o assunto e fale sobre a Nigrícia e sobre a maneira de ganhar para
Cristo cem milhões de almas africanas. Diga que nunca faltam na Igreja obreiros evangélicos que suspiram
pelo martírio como a mais apreciada e doce recompensa para as mais árduas fadigas. E que nós os quatro
estamos dispostos a aguentar a pé firme a morte no mais atroz dos martírios até para salvar uma única alma
da Nigrícia: para nós os calores da África são como uma brisa primaveril na Itália para o melhor pároco ve-
ronês. Se, depois, o Santo Padre ou o concílio falassem em favor da Nigrícia e se dirigissem aos católicos,
etc... nós morreríamos de consolação....
Teria que escrever também a monsenhor o delegado, mas, se não mando a presente já para o correio, não
sai nem esta. Mil respeitosas saudações da parte de todos e todas e dos padres Pedro de Taggia e Girelli.
Beija a V. E. a mão e manda lembranças para P.e Vicente, P.e João e seus teólogos

O seu obed.mo filho


P.e Daniel Comboni

N.o 350 (328) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/246
Roma, 24 de Março de 1870
Piazza del Gesù, 47

Meu estimadíssimo e venerado padre,

2195
Limito-me a enviar-lhe uma carta do P.e Bernardino, que me esqueci de lha despachar do Egipto. Quando
estiver com mais calma, escrever-lhe-ei mais extensamente. Entretanto aceite as minhas filiais mostras de
respeito e as minhas afectuosas saudações. O P.e Estanislau é, em tudo, o meu representante no Egipto: dei-
xei-lhe amplos poderes. Vi o P.e Guardi e Tezza, com os quais falei longamente. Foram muito gentis. Os
factos dir-nos-ão o que se chega a fazer. Estanislau e Franceschini são dois apóstolos da África: têm carácter,
constância e verdadeiro zelo. Foi muito bom o cardeal Barnabó, porém, eu só creio nos factos: nós trabalha-
mos unicamente para Jesus. O caminho ficar-nos-á mais plano se os superiores supremos nos ajudarem com
a sua influência. Monsenhor o bispo de Verona é um verdadeiro anjo para a África: confio muito no seu zelo.
Tem para com os seus dois filhos a consideração que merecem. Ai de quem se meter com eles! Barnabó dis-
se-me uma palavra sobre o mais novo: saltei-lhe aos olhos como um íbis: ficou contente em saber belas coi-
sas sobre ele. Eu só tenho uma coisa que ninguém me pode tirar: a consciência. Roma sabe que eu falo com
consciência.
2196
Combinei com o P.e Estanislau para que eu lhe escreva a si para lhe pedir que exponha com confiança e
clareza o assunto das casas resgatadas em Paraíso, S. Julião, etc. Conte com a ajuda de Deus, com o meu
silêncio, prudência, etc. Temos o coração de Jesus e S. Camilo que nos guiam, e S. José. O P.e Zanoni não o
vi nem procuro ver: só rezo por ele. Quanto ao P.e Girelli, nenhuma esperança de regresso, por agora. É mais
franciscano que os franciscanos. Esteve muito contente connosco e passou lá mais de 20 dias.
Beijo-lhe as mãos; quando vir o Santo Padre pedir-lhe-ei uma bênção especial para si e para o P.e Tomel-
leri. As minhas saudações ao venerável padre C. Bresciani.

Todo seu em Jesus


P.e Daniel Comboni

N.o 351 (329) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/247

Roma, 25 de Março de 1870

Muito rev.do e respeitabilíssimo padre,

2197
Peço-lhe uma graça muito especial e é preciso que ma conceda. Rogo-lhe que me envie para Roma, na
volta do correio, a Relação que o padre Estanislau lhe mandou por meio de Bajit, que trata sobre o apostola-
do dos negros no Egipto e sobre o desenvolvimento da nossa obra no segundo ano.
Como dentro de uma semana devo apresentar um relatório à Propaganda sobre a economia e o estado da
obra, esse relatório pode-me ajudar. Deixei-o no Egipto porque o P.e Estanislau, baseando-se nele e no im-
presso em Turim, deve redigir um para a Propagação da Fé de Lião e de Paris. Quando esse estiver impresso,
então imprimir-se-á o que me manda para Turim; os franceses são muito meticulosos. Logo que me tiver
servido do seu, mandar-lho-ei pelo correio ou levar-lho-ei eu mesmo, mesmo que durante a minha estada em
Roma, ou eu, ou o senhor o faça imprimir no Museu. Portanto irei todos os dias ao correio até o ter recebido,
porque me é de muita necessidade e ajuda.
2198
Esta manhã vi Tezza; deseja ardentemente ir para o Cairo. O irmão José contou-me que no coche o car-
deal lhe tinha falado favoravelmente sobre o assunto.
Hoje recebi uma longuíssima carta do P.e Estanislau, datada de 18 do corrente. Deste incomparável filho
seu fala-se muito de forma muito elogiosa aqui em Roma. E o responsável da obra, mons. Canossa, que é um
verdadeiro pai, está encantado com ele. Já verá como este ano se fazem coisas e S. Camilo nos concede
abundantes graças.
2199
Confiança em Deus e não nos homens e nos santos que comem: a Igreja, o Papa, Roma, a ânsia da glória
de Deus e uma boa consciência. Isso é o importante! O resto, tudo e todos, debaixo dos pés!
Beijo-lhe respeitosamente as mãos e com todo o respeito e filial afecto me declaro

Seu hum. e dev. serv.


P.e Daniel Comboni

N.o 352 (331) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 7, f. 1360

V. J. M. J.
Roma, Março de 1870

Emm.o Príncipe,
2200
Ignorando em que lugar da Cidade Eterna reside actualmente o nosso muito venerado vigário apostólico
da África Central, permito-me remeter a V. Em.a rev.ma o trabalho em anexo, sobre o vicariato apostólico da
África Central, que tanto me recomendou o dito prelado, meu superior. V. Em.a Rev.ma está tão cheio de
caridade que me perdoará se me atrevo a rogar-lhe que, quando lhe puder, lho faça chegar às mãos.
Apresentando-lhe os meus mais profundos respeitos, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me

De V. Em.a Rev.ma hum. e dev. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 353 (331) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/254
J. M. J.
Roma, 10 de Abril de 1870

Mui rev.do e caro padre,

2201
Agradeço-lhe infinitamente pelos relatórios que me enviou e que recebi em perfeitas condições. Leram-
nos aqui em Roma personalidades muito distintas, que sentiram admiração por um filho tão ilustre de S. Ca-
milo, como é o P.e Estanislau. Na relação que fiz para a S. C. da Propaganda Fide, senti o dever de referenci-
ar os grandes serviços que o P.e Estanislau presta à missão, dedicando uma página a elogiá-lo como merece,
o que servirá para que o cardeal o tenha muito em conta. O cardeal parece bastante diferente daquilo que se
mostrava antes. Ele tinha mil razões para estar descontente (não de fazer comentários), porque ab inimico
homine, e por causa desse também por outros, tinha a missão sido tão descreditada, que ele devia certamente
sentir receio. Porém, quando quatro bispos lhe foram dizer como são as coisas; quando muitos outros que são
testemunhas oculares lhe contaram a verdade, o cardeal revelou-me que estava contente por ver que as coisas
estavam bem e que, segundo o que pudera ver pelo meu relatório, me iria prestar ajuda.
2202
Louvado seja o Senhor, que mortificat et vivificat, etc. Desejo-lhes muitas felicidades nestas santas festas
pascais, também ao digníssimo P.e Tomelleri e a todos, e ao Ir. Bonzanini, a quem corri a saudar a S. Vicen-
te e S. Anastásio, e, em vez dele, encontrei que era o Ir. Bonomini quem estava de sacristão em Paraíso.
2203
O Ir. Bertoli encontra-se em Roma. Nós, por nossa parte, aceitamo-lo no Cairo; porém, requere-se a apro-
vação do bispo, que está com dúvidas. Monsenhor Cavriani faz-me dele grandes elogios e recomendou-mo,
mas eu gostaria de conhecer a sua opinião. Se o senhor aprovar a sua vocação para o apostolado, eu encarre-
go-me de resolver o assunto. Portanto, rogo-lhe que me exponha conscienciosamente o seu pensamento so-
bre o assunto, para saber a que ater-me.
Sexta-feira fui visitar o Papa com mons. o bispo; recebeu-me como um pai. Aludiu ao terrível incidente
do mosteiro em que estavam as jovens negras do ex-vice-gerente e arceb. de Petra, etc., etc. Depois expri-
miu-me a sua satisfação por a missão e as negras irem tão bem e disse-me: «O Senhor multiplique a santa
obra, o Senhor a multiplique»; e repetiu isso quatro vezes, etc., etc.
2204
Veio visitar-me o P.e Zanoni, que esteve comigo três horas. Falámos de coisas indiferentes, após o que se
pôs a falar-me dos projectos de ir a Trípoli e de, a partir daí, penetrar na África Central, de casar as jovens
negras, etc. Eu respondi-lhe que não precisava dos seus conselhos e que tenho outras pessoas a quem pedi-
los. Depois disse-me: «Recuperou a sensatez o P.e Estanislau?» Eu respondi-lhe, de forma seca, que seme-
lhante pergunta demonstrava que ele (o P. Z.) é que não tinha recuperado a sensatez. Perguntou-me de segui-
da: «Porque não respondeu às minhas cartas?» «Porque – respondi – não devia fazê-lo; se você soubesse o
que eu sei e estivesse no meu lugar, também não teria respondido». Ele queria continuar, mas eu cortei-lhe a
palavra. Se tem alguma coisa a dizer, que vá ter com o Papa ou a Propaganda Fide, com o bispo de Verona
ou até com o seu geral e então darei as respostas necessárias. Porém, com ele eu não me digno falar, a não
ser para o levar ao bom caminho, a confessar-se e a fazer penitência pelos seus pecados.
2205
Os nossos dois missionários do Cairo escreveram cada um ao P.e Guardi uma magnífica carta de verda-
deiros filhos e religiosos. Coloquei-as de imediato nas mãos do referido padre, que as leu com impaciência.
Mas, para dizer a verdade, ao outro dia, o bispo encontrou-o frio, frio. Pelo que não percebo nada. O P.e
Guardi e o P.e Tezza têm boas palavras, mas eu não garanto a sua sinceridade e estou de pé atrás, pois não
vejo claro em nenhum dos dois. A experiência de muitos anos ensinou-me a conduzir-me com a máxima
cautela. Não vejo nestes as qualidades dos caros padres Estanislau e Franceschini: estes, sim, são dois verda-
deiros religiosos. Eu estou acostumado a agir com lealdade. Há quem se esforce por me fazer crer que o P.e
Tezza est cor unum et anima una com o P.e Zanoni, o qual vive por sua conta aqui em Roma, na Madalena, e
vai passear muitas vezes sozinho. Vê-se que também aqui usam toda a prudência no trato com eles e fazem
bem. Veio visitar-me o sr. Girard, redactor da Terre Sainte (a quem o bispo tinha nomeado seu representante
em França); disse-me que nós estamos desacreditados em França e que algumas cartas do P.e Zanoni tinham
declarado que a nossa obra tinha caído por imoralidade. Afirmou que me podia mostrar as cartas que tem em
Grenoble. Respondi-lhe que ele era parvo juntamente com quem lhe escrevera as cartas.
2206
Na França estamos em alta; recebemos ajuda em dinheiro e em objectos: a Obra das Escolas do Oriente
dá-me dinheiro, a Propagação da Fé de Lião, que me deu 10 000 francos, escreveu-me ontem uma carta estu-
penda e magnífica e espero que, se tudo me sair bem, a Propaganda vai dar-me belas somas. Têm o meu
relatório pronto e escrevi dizendo que chegará um outro do P.e Estanislau (a quem ordenei que a partir do
essencial dos dois relatórios – o primeiro impresso em Turim, o outro o que o senhor me mandou – elaboras-
se apenas um). Descobri aqui em Roma duas tramas novas para nos destruir. Uma contá-la-ei de viva voz, a
outra ei-la em breves palavras. O redactor da Terre Sainte, a quem em Paris exprimi o meu aviso sobre a sua
revista que fala demasiado em detrimento dos franciscanos e exagera o papel dos orientais, vendo que o tinha
proibido falar da nossa obra até que fosse oportuno (porque a Propagação da Fé e a Obra das Escolas do Ori-
ente são contrárias a este homem e à sua Terre Sainte), afirmou que nos ia destruir. O seu plano era instalar
no Cairo os Trinitários e as Trinitárias de França e de nos escorraçar a nós e às Irmãs de S. José (Zanoni dis-
se muito mal das Irmãs de S. José: elas não serviriam para nada, etc. Mas eu não posso afirmar ao certo se
em França escreveu contra as irmãs).
2207
O provincial dos trinitários imprimiu um manifesto no qual declarava estar unido a P.e Comboni para a
regeneração da África e disse: «Comboni continua com a sua ideia de fundar no Cairo, etc., por isso pede
esmolas para criar uma casa central em Cerfroids, perto de Paris, e reconstruir o Convento de S. Félix de
Valois. Eu não sabia nada de tudo isto e só acreditei ao ler o programa com os meus próprios olhos. O certo é
que o padre obteve muitas esmolas e brevemente empreenderá as obras do seu convento, também com di-
nheiro dado para os institutos de negros do Egipto». Transeat. Parece que o sr. Girard escreveu ao bispo de
Verona, dizendo-lhe: «P.e Comboni é entusiasta, cheio de ímpeto (??), mas a sua prudência, a ordem, etc.
deixam a desejar». E propôs-lhe que o único homem a colocar mais tarde à frente da obra era o P.e Calisto...
responsável dos Trinitários.
2208
O bispo teve em conta as suas palavras... mas quando em Roma falou com o bom do sr. Girard, esmore-
ceu na sua opinião e não se fala mais no assunto. O P.e Calisto, por seu lado, foi por lã e saiu tosquiado. O
geral dos trinitários deixou-o actuar desde que expusesse o nome de quem não era trinitário, mas tem a inten-
ção de o mandar recolher a um convento para viver como simples frade. O sr. Girard caiu das nuvens quando
lhe expliquei que gosto de ser autónomo e que não me quero comprometer com os trinitários e que, além
disso, tenho dois santos e bons camilianos... «Como? – disse. Não me falaram muito bem deles!» Então con-
cluí que não queria compromissos nem com trinitários, nem com o sr. Girard, o qual é homem de zelo e bom
coração, mas a sua cabeça é perigosa. Ficou humilhado e rogou-me que induzisse o bispo a escrever uma
carta para a sua revista; claro que nunca o farei.
2209
Nós confiamos em Deus e estamos ligados à Propaganda. O bispo de Verona é muito solícito e, como o
senhor bem me disse, estamos muito unidos a ele. Fez um bom elogio ao Papa dos dois camilianos do Cairo
e o Santo Padre ficou muito agradado. Porém, o bispo confia pouco no P.e Guardi. Eu deixo o meu juízo em
suspenso e aguardo. Em contrapartida, estou muito contente em comunicar consigo, meu padre, em quem
acredito mais que em todos os camilianos de Roma, porque o senhor tem verdadeiro amor às missões. Eu
nunca duvidei de si, por quem sinto uma grande veneração desde que vinha a S. Carlos para aí dar os exercí-
cios. O que fez deveu-se às circunstâncias, mas eu fui sempre o mesmo para consigo. Nós, veroneses, somos
mais sinceros que os de Roma. Vale mais uma unha do P.e Estanislau que todos os padres de Roma: ele é
um verdadeiro religioso.
2210
Portanto, eu confio em Deus e conto muito com os nossos do Cairo e consigo. O bispo envia-lhe cordiais
saudações e deseja felizes festas também ao P.e Bresciani. Eu rezo por si todos os dias. Recebi ontem carta
de Estanislau com data de 1 de Abril; no Cairo estão todos bem e espero que tudo. Abençoe o seu pobre

P.e Daniel

N.o 354 (332) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

Roma, 18 de Abril de 1870

Meu estimadíssimo P.e Joaquim,

2211
Aproveito a presente ocasião para o saudar atenciosamente e desejar-lhe a si festas felizes, bem como a
todos os membros dos dois institutos. Vim a Roma por causa de assuntos da minha obra. Preparei um Postu-
latum para o concílio, a fim de chamar a atenção da Igreja sobre o modo de abrir as portas da Igreja à infeliz
Nigrícia e tenho bastantes arcebispos e bispos dispostos a, em tempo oportuno, falar disso no concílio. No
Cairo, os meus três institutos estão a ir muito bem e tenho nas minhas três casas catorze catecúmenos de
idades compreendidas entre os quinze e os trinta e oito anos. Recebo agora mesmo do Cairo cumprimentos
das jovens negras para que os transmita a si e às do instituto. Todas, absque exceptione, estão bem e anima-
das do espírito missionário e de um grande afecto pelo instituto que as educou.
Fui visitar o Papa com o nosso bispo, o qual pediu a Sua Santidade que sob os nossos paramentos exibi-
dos na Exposição Romana se pusesse um cartaz a indicar que aqueles estupendos trabalhos tinham sido rea-
lizados pelas raparigas pobres do Instituto Mazza de Verona. Tendo o Papa anuído, esse mesmo dia o bispo
levou o cartaz à exposição e eu passei a palavra a muitas altezas reais que há em Roma para que fossem ad-
mirar os ditos paramentos facultados por SS. MM. de Praga.
2212
Como o bispo não me disse que recebeu alguma coisa desse instituto (e ter-mo-ia dito), eu seria da opini-
ão, se me é lícito dar-lhe um conselho, que o senhor escrevesse uma linha de agradecimento, tanto mais que
foi ele quem forneceu os dados para o cartaz da exposição, elogiando os trabalhos e as realizadoras. Digo
isto, porque não me consta. Efectivamente, o bispo mostrou-me um bom número de cartas que tinha recebido
de diversos institutos de Verona, desejando-lhe boas-festas, porém, não ouvi nada do instituto, salvo o elogio
do indivíduo A, B ou C.
2213
Receba as minhas afectuosas saudações e faça-as chegar da minha parte também aos padres, às professo-
ras e a Betta, bem como a P.e Cavattoni. Houve choques tremendos entre os padres sobre a infalibilidade e
algum comportamento menos edificante por parte dos anti-infalibilistas. Os bispos italianos são os que mos-
tram uma maior adesão à Santa Sé; depois, são os espanhóis e a seguir os americanos; após estes, os irlande-
ses e os ingleses, etc., e, por último, os alemães..., muitos dos quais, contudo, esforçados defensores do Pa-
pado e da infalibilidade. O josefinismo, o cesarismo e o galicanismo estão na origem do problema.
Estas contendas chegaram a tal ponto, que a definição da infalibilidade se torna necessária; de contrário,
ninguém acreditaria nela.
Temos algumas dificuldades com os bispos orientais, que resistem a renunciar ao seu pretenso direito de
que, doravante, a nomeação dos seus bispos seja devolvida à Santa Sé. Haverá alguma defecção, porque os
consulados e as representações europeias favorecem o cisma. Confiemos, porém, em Deus.

Seu af.mo [...]


e
P. Daniel Comboni

N.o 355 (333) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C. v. 7, ff. 1378-1392

Roma, Abril de 1870

INFORMAÇÃO
à S. C. Propaganda Fide sobre a obra nascente
da regeneração da África por meio da própria África

Ex.mo Príncipe,

2214
Se até agora não julguei oportuno fazer a V. Em.a a exposição geral sobre a evolução da obra presidida
pelo ilustríssimo e rev.mo mons. Luís de Canossa, bispo de Verona, do qual eu, embora indigníssimo, exerço
as funções de representante, foi por considerar que, perante o supremo tribunal da Propaganda, não é perti-
nente apresentar-se com simples projectos, por muito louváveis que sejam, tendo-me a experiência ensinado
que é preciso apresentar-se com factos reais e coisas positivas. A fundação de um instituto, o seu regulamen-
to, a sua acção apostólica, os seus recursos, a sua estabilidade, necessitam de ser provados, experimentados,
assegurados, o que só se consegue com o tempo e com a maturidade necessária. Então os chefes supremos
podem calcular sobre bases sólidas, deliberar com segurança e dispor com fundamento, sem comprometer a
autoridade e a dignidade da Igreja. Por isso, depois de ter iniciado esta santa obra e após tê-la experimentado
e posto à prova para conceber razoáveis esperanças acerca do seu sucesso, apresento-me ante V. Em.a com a
lógica dos factos e com um sério fundamento.
2215
O que foi realizado até agora foi conseguido através de graves obstáculos e dificuldades, apesar dos difí-
ceis tempos que correm, e com a reserva da Propaganda, que, na sua sabedoria, considerou oportuno não
conceder-nos o seu apoio moral e formal, por a obra se encontrar apenas em vias de experimentação. A cons-
tante firmeza dos dois prelados tão solícitos que presidem em Verona e no Egipto e a feliz resposta dos
membros dos institutos, com a ajuda da graça, apoiaram energicamente a santa obra, a qual, confio, obterá
daqui para o futuro o tão suspirado apoio da S. C. de Propaganda Fide.
2216
Para dar uma ideia da evolução desta obra, que tem como fim implantar estavelmente a fé na África Cen-
tral e conduzir ao redil de Cristo a infeliz Nigrícia, falarei:

I. Sobre os seus nascentes institutos do Egipto, que surgiram sob os próvidos auspícios de mons.
Ciurcia.
II. Sobre as pequenas obras de Verona, presididas por mons. Canossa.
III. Sobre a necessidade de que as nascentes obras do Egipto e de Verona caminhem e prosperem
simultaneamente, a fim de alcançarem a pouco e pouco o objectivo que perseguem.
I. Os institutos de negros do Egipto

2217
Antes de mais, devo declarar que, depois de formalmente obtida a autorização, mediante carta escrita pe-
lo punho e letra do bispo de Verona, datada de 2 de Agosto de 1867, de estabelecer no Egipto institutos de
negros, teria sido conveniente, como era minha primeira intenção, que antes de levar missionários, irmãs e
negras até ao Egipto, eu lá fosse para arranjar duas casas e que, depois, já de volta, na Europa, conduzisse a
expedição ao Egipto e instalasse os seus membros nas duas casas preparadas. Porém, o inesperado episódio
com o antigo vice-gerente mons. Castellacci e as prementes vicissitudes que tive de suportar, que V. Em. a
bem conhece, a tal ponto de me livrar de funestas consequências, que teriam podido comprometer para sem-
pre a minha pessoa e a própria obra, obrigaram a lançar-me nos braços da Providência e a conduzir toda a
expedição ao Egipto. Despesas extraordinárias, que tive que realizar tanto em Roma, por não ter podido re-
ceber a seu devido tempo todas as jovens negras do mosteiro das Viperescas, como em Marselha, por ter que
lá manter durante quarenta dias parte da expedição que tinha sido conduzida a essa cidade, impediram-me de
ficar no Cairo com duas casas situadas a considerável distância.
2218
Em troca, a exemplo de muitos institutos da França, arrendei o convento dos Maronitas do Cairo Velho,
que é constituído por três casas separadas. Aí, instalei numa os homens e noutra as mulheres, tendo os padres
maronitas reservado a terceira para si. Dotei as duas casas de um severo e oportuno regulamento e, apesar do
flagelo de longas e temíveis doenças, as coisas correram bastante bem. Nada teria havido que dizer a respeito
delas, não fora o doloroso incidente do quinquagenário P.e Zanoni, camiliano, a quem, por graves e pruden-
tes motivos, que expliquei a V. Em.a na minha carta de 22 de Setembro de 1868, enviada de Paris, tinha con-
fiado a inspecção imediata do instituto feminino. A Providência velou com amorosa solicitude pelos pobres
institutos, já que pela divina graça, pela vigilância estreitíssima e pela muito firme e arreigada virtude das
negras, não aconteceu nenhum dos inconvenientes que aquele incauto religioso tinha provocado. Antes, pelo
contrário, foi para nós uma lição solene, um saudável aviso para nos protegermos de nós mesmos, desconfiar
de tudo e andar para o futuro com a máxima cautela.
2219
Tendo S. E. mons. o vigário apostólico, na sua sabedoria, escolhido o rev.do pároco do Cairo Velho como
seu representante junto de nós, o P.e Pedro Taggia, velho e experimentado missionário franciscano de singu-
lar piedade e zelo apostólico, encarregando-o de nos supervisionar e assistir com a sua sensatez e autoridade,
de acordo com ele, arrendei uma grande casa perto do Nilo e, feita com a aprovação dele e sob o seu olhar
uma divisão conveniente, instalei nela, em duas divisões separadas, os dois pequenos institutos e estabeleci
um oportuno regulamento, que se praticou diligentemente. Tal instalação seria apenas provisória, porque, ao
meu regresso da Europa, onde tinha ido com autorização do vigário apostólico, procurei uma nova casa para
os missionários. Nem perante a humilhante e reiterada recusa que encontrei nos turcos e hereges, os quais ou
ma negavam ou me pediam por ela até 9000 francos de renda anual, parei até encontrar uma situada a doze
minutos da primeira; e nela instalei o instituto masculino. Então estabeleci nele o regulamento Anexo A, que
na sua essência era já observado desde os começos da fundação.
2220
As regras fixas de um instituto são sempre fruto de extensas observações da experiência. As normas por
mim traçadas não são mais que o resumo essencial da forma como se devem conduzir os missionários, tendo
eu a norma e a determinação de amadurecer com a prática e longa experiência o regulamento mais adequado
ao instituto, com vistas a submetê-lo à S. C. para a suprema sanção da Santa Sé.
Desde o princípio percebi perfeitamente a minha delicada situação, tanto quanto ao exterior como quanto
ao interior dos meus pequenos institutos.
2221
Quanto ao exterior, contemplei-me a mim e aos institutos sob os olhares paternais e as acuradas observa-
ções do sagacíssimo representante da Santa Sé, cuja delicada posição naquele difícil e importante apostolado,
que abrange tantos e tão diversos elementos, entrevi e penetrei bem. Contemplei-me também frente aos reve-
rendos padres franciscanos e aos outros corpos morais da missão e igualmente frente ao Governo egípcio, as
autoridades consulares da França, Áustria e Itália, o clero dos diversos ritos orientais, as seitas protestantes e
heréticas, os muçulmanos e a poderosa maçonaria. O chefe de um novo estabelecimento deve ter o olhar
vigilante e atento sobre tudo isto e andar com pés de chumbo.
2222
Não tardei em compreender, além disso, a minha delicada posição perante as pessoas que integravam os
institutos, à cabeça das quais me encontrava: religiosos camilianos, cuja forma de instituição não é idêntica à
dos sacerdotes seculares, irmãs francesas e italianas e negras resgatadas por diversos benfeitores e educadas
com normas diferentes em diversos institutos. Todos elementos heterogéneos, que eu devia pôr em perfeita
harmonia e levar com prudência a um só pensamento, sob uma só bandeira. Estudei, pois, com diligente mi-
nuciosidade o carácter, as tendências, o grau de virtudes e capacidades de cada um, a fim de o orientar bem e
me servir dos que me pudessem valer para o bom andamento da obra.
2223
Entre eles estudei a fundo o P.e Estanislau Carcereri e verifiquei que era um homem de consciência, com
carácter, ordenado e firme, profundo conhecedor do plano da obra, diligentíssimo e capaz de dirigir bem um
instituto. E como toda a responsabilidade dos estabelecimentos pesa sobre mim, e a malícia do mundo é
enorme e a perfídia do Demónio tira inimigos até do ar que se respira, e como eu posso morrer de um dia
para o outro, nomeei este digno religioso vice-superior dos institutos e escolhi-o como testemunha da minha
acção; e, assim, segui a norma de comunicar todos os meus assuntos de alguma importância ora ao P. e Car-
cereri ora ao digníssimo representante do vigário apostólico, o ver.do P.e Pedro, por cujo conselho fui bene-
ficiado.
2224
Não deixei de submeter igualmente ao juízo dos outros companheiros sacerdotes muitas coisas relevantes
que diziam respeito aos institutos, também com o fim de preparar cada um no conhecimento e na prática dos
assuntos da obra (o que se revelará muito útil no futuro, quando a obra alcançar maior desenvolvimento); por
isso, cada passo, cada acção, tudo o que diz respeito aos institutos foi antes sempre objecto de ponderada
meditação e reflexão por minha parte, bem como objecto de consulta e discussão e, no nome do Senhor, ma-
duramente resolvido e decidido por mim. A esta providente e saudável medida devo, a seguir a Deus e à
rectidão dos meus companheiros, a unanimidade, obediência, boa ordem e harmonia (comparáveis às de
qualquer instituto regular da Europa) que reinam no meu estabelecimento, assim como a vantagem de que os
meus companheiros podem ser capazes de dirigir um instituto. Eu tenho ascendente sobre a mente e o cora-
ção dos meus companheiros; eles têm toda a minha estima e afecto. Todos partilhamos a mesma ideia, arden-
temente decididos a sacrificar a nossa vida por amor a Deus, à Igreja e à infeliz Nigrícia.
2225
Todos estamos dispostos, Eminência, até a morrer como mártires da fé; mas queremos morrer com juízo,
com o máximo juízo, quer dizer, agindo sabiamente para a salvação das almas mais abandonadas da Terra e
expondo-nos por elas aos maiores perigos de vida com a prudência, discrição e magnanimidade que convém
aos verdadeiros apóstolos e mártires de Jesus Cristo.
Expostas estas noções gerais, passo agora aos dados pormenorizados dos institutos e aos seus meios de
subsistência.
São três as pequenas casas da obra no Egipto:
1.o O instituto masculino
2.o O instituto feminino
3.o A escola feminina do Cairo Velho

2226
1.o O Instituto do S. Coração de Jesus
para a Regeneração da África

Assim chamei ao instituto masculino, cujo horário está exposto no Anexo B.


O objectivo primário deste instituto é o seguinte:
1.o Educação religiosa, moral, intelectual e artesanal dos negros, a fim de os formar na fé, na moral, nas
ciências e nos trabalhos manuais que são necessários na África Central, com a finalidade de, completada a
sua educação, voltarem para junto das tribos da Nigrícia para ser apóstolos da fé e civilização entre os povos
negros, sob a direcção dos missionários europeus.
2227
2.o Aclimatar os missionários e os irmãos coadjutores europeus, com o fim de se tornarem mais capazes
de suportar o clima e as fadigas apostólicas na Nigrícia.
2228
3.o Os missionários europeus estudam o árabe, as línguas dos negros e os outros idiomas necessários para
a missão; adquirem conhecimentos dos costumes orientais e dos hábitos dos muçulmanos, com os quais terão
sempre de tratar, até na Nigrícia; adestram-se no modo de se relacionarem com um mundo deteriorado e
corrompido, e com as autoridades governativas e consulares; aprendem um pouco de medicina e a realizar
alguns trabalhos de primeira necessidade e, sobretudo, estudam os meios mais apropriados e a prática de
ganhar almas para Deus. Numa palavra, o instituto é para o sacerdote uma escola de experimentação e de
prova para aprender bem o ofício de missionário, com o objectivo de exercer convenientemente essas fun-
ções e esse ministério na África Central.
2229
4.o O instituto constitui uma espécie de tirocínio para se assegurar de que os missionários e os irmãos co-
laboradores, a serem enviados para a Nigrícia, estão providos de um alto grau de castidade a toda a prova, da
fé, humildade, abnegação, constância, caridade e daquelas virtudes apostólicas que são necessárias para se
aventurar nas árduas e perigosas missões da África Central, a fim de que não corram o risco de ser converti-
dos... em vez de converter... ne cum aliis praedicaverint, ipsi reprobi efficiantur.
2230
Objectivo secundário do instituto é a evangelização da raça negra residente no Egipto que, segundo o
Anuário Oficial 1869-1870, de Levernay, compreende só no Cairo 25 000 indivíduos. Além disso, segundo a
autorização e faculdades que recebe do vigário apostólico, o instituto exerce o seu ministério no Egipto em
favor da colónia europeia ou dos indígenas de qualquer rito e crença.
2231
Quanto aos negros do Egipto, até agora limitámo-nos a favorecer a conversão dos que estão em famílias
católicas, deixando de lado, por agora, os negros dos hereges e dos muçulmanos, a quem não procurámos;
porém, ajudámos aqueles que a Providência guiou até aos nossos estabelecimentos, quer por terem sido
abandonados quer por se encontrarem doentes.
2232
Os negros existentes nas famílias católicas são quase todos muçulmanos ou pagãos. O motivo desta chaga
que no Egipto atinge a raça africana até à sombra do catolicismo é a secular e tradicional negligência dos
amos católicos, os quais, ou não se preocupam absolutamente nada com a salvação eterna dos seus criados
negros, aos quais consideram como coisas, ou não querem de nenhum modo que se tornem católicos. E isto
por dois principais motivos: 1.o, porque os negros, ao fazer-se católicos, tornam-se livres e, portanto, temem
perdê-los como servos (embora nós possamos provar com factos que os negros católicos se tornam mais fiéis
aos senhores); 2.o, porque, convertidos ao Catolicismo, se os amos decidem desfazer-se deles por qualquer
motivo, já não podem vendê-los aos muçulmanos e obter dinheiro por eles. Porém, sobre este apostolado
complementar, que realiza o nosso instituto, terei como dever apresentar-lhe em breve uma especial e cons-
cienciosa informação, através da qual verá V. Em.a verá a desditosa situação da raça africana no Egipto,
inclusive dos negros das famílias católicas de qualquer rito; compreenderá as dificuldades e obstáculos que lá
encontra o mais diligente e cuidadoso ministério sacerdotal, quanta prudência e discrição se necessita para lá
conseguir alguma coisa e que resultados positivos pode obter a Igreja; e chegará à conclusão, enfim, de que o
apostolado dos negros do Egipto, que não é mais que o objectivo secundário do instituto, constitui por si só
uma importante missão.
2233
O instituto masculino, em pormenor, compreende:
1.o O corpo de missionários
2.o O corpo dos irmãos coadjutores
3.o O catecumenato e os educandos negros
4.o Uma pequena enfermaria para os negros.
2234
Eis, em poucas palavras, o modo como vivem os missionários. A vida do missionário, que rompeu de
modo absoluto e determinante todas as relações com o mundo e com as coisas mais queridas por natureza,
deve ser uma vida de espírito e de fé. Consagrado pelo sentimento da fé e da caridade à conversão das almas,
é preciso que nele, para além de um sólido e verdadeiro zelo, um puro amor e temor de Deus e um controlo
bem firme das próprias paixões, predomine claramente o fervor pelas coisas espirituais e estudo da vida inte-
rior e da perfeição. Pelo que prescreve-se aos missionários do instituto de negros as seguintes práticas para
alcançar a própria santificação:
1.o Pontual observância do regulamento e horário.
2.o Missa e ofício divino diários e confissão semanal.
3.o Orações da manhã e da noite, em comum, e terço.
4.o Meditação matinal em comum. Uma hora.
5.o Exame de consciência, leitura espiritual, visita ao SS.mo Sacramento ou à capela e comunhão
espiritual em privado.
o
6. Acto de consagração ad Iesum Apostolum das próprias fadigas e da própria vida, que se faz em
comum de manhã e à noite.
o
7. Leitura diária, à mesa, do Novo Testamento e das vidas dos mártires e dos santos ou de célebres e
distintos missionários.
o
8. Exercícios espirituais anuais de dez dias, na Quaresma, e retiro mensal na sexta-feira depois do
primeiro domingo de cada mês.
o
9. Meses de Março e de Maio com práticas de piedade todas as noites, novenas, oitavários, tríduos,
frequentemente com pregações e panegíricos ao SS.mo Sacramento, ao Menino Jesus, ao Sag. Co-
ração de Jesus, à Sagda. Família, à Imaculada Conceição, às Sete Dores, ao Sagdo. Coração de
Maria, aos santos apóstolos e mártires, a S. Pedro e a S. Paulo, a S. José, a S. Francisco Xavier, a
S. Francisco de Assis, a S. António de Pádua, a S. Luís Gonzaga, a S. Camilo, a St.a Teresa, aos
santos africanos, à B. Alacoque, pela Igreja, pelo Sumo Pontífice, pela Propagação da Fé e sobre-
tudo pela regeneração da África.
10. o Exercícios particulares de piedade.
2235
Sobre o estudo da salvação das almas, prescreve-se aos missionários o seguinte:
1.o Estudo frequente da Sagrada Escritura, Teologia Dogmática, Moral, Canónica, Catecismo, Histó-
ria da Igreja e das Missões e Controvérsia.
A Controvérsia constitui um estudo especial dos missionários e versa:
a) sobre coisas de primeira necessidade e actualidade do seu ministério sacerdotal;
b) sobre os erros e superstições pagãos da África Central;
c) sobre os erros e superstições do Islamismo em geral e sobre os que são próprios dos muçul-
manos do Egipto e da Núbia e dos árabes nómadas da África Central;
d) sobre os erros dos hereges e cismáticos de todas as classes e ritos, em geral, e sobre aqueles
que, em particular, existem entre os hereges e cismáticos do Egipto, isto é, coptas, gregos,
arménios, anglicanos e protestantes, etc.
e) sobre os perniciosos preconceitos que predominam entre os católicos do Egipto, incluindo
monges orientais, preconceitos que podem ser um obstáculo ao progresso do verdadeiro Ca-
tolicismo de Roma;
f) sobre as tendências perniciosas e sobre os vícios predominantes entre os católicos do Egipto
Mediante este estudo minucioso e consciencioso determina-se e estabelece-se pouco a pouco um sistema
prático para procurar, com a graça de Deus e com toda a prudência, a salvação das almas.
2.o Estudo esmerado das línguas árabe, francesa e dinca, esta última a mais difundida na África Cen-
tral.
3.o Estudo da história, geografia, agricultura e dos costumes da Nigrícia.
4.o Estudos de medicina, flebotomia, botânica, farmácia e outras ciências e artes necessárias para a
Nigrícia.
5.o Prática de assistência corporal e espiritual aos doentes.
6.o Exercício de pregação e administração dos sacramentos nos institutos de negros.
2236
Exclusivamente para mim reservei a direcção geral dos institutos in omnibus et quoad omnia, a gestão dos
assuntos externos, especialmente com os consulados e com o Governo egípcio, bem como a correspondência
com a Europa e as sociedades benfeitoras. A supervisão imediata do instituto masculino, na minha ausência,
é exercida pelo P.e Carcereri, a quem confiei, além disso, o governo particular das três casas e a administra-
ção dos sacramentos às irmãs e às jovens negras, que sabem italiano. P. e Bartolo Rolleri, homem de grande
piedade, exactidão, ordem, sólido critério e grande espírito, está encarregado da escola nas quatro horas de
aulas por dia que os negros têm; a vigilância dos jovens fora da escola reparte-se entre ele, o P.e Fran-
ceschini, o Ir. Rossi e o excelente quarentão Domingos. Ao P.e Franceschini cabe o cuidado da capela, a
pequena administração do instituto masculino, as compras gerais e a escola de artes e ofícios dos negros.
Franceschini é um jovem missionário que dá boas esperanças. A ele dá-lhe aulas de Teologia o P.e Carcereri.
O P.e Pedro, o pároco, ensina árabe aos missionários e eu ensino-lhes francês e dinca.
2237
O instituto masculino dá assistência à paróquia do Cairo Velho em todas as coisas que ordena o mui dig-
no representante do nosso veneradíssimo vigário apostólico, o P.e Pedro de Taggia, a quem somos devedores
da mais benévola e paternal solicitude. Os caridosos e bons padres da Terra Santa também têm muitas aten-
ções para connosco, especialmente o guardião do Cairo, homem perspicaz, muito sensato e prudente; e o de
Alexandria é para connosco pródigo em caridade e em generoso afecto.
2238
A casa do insto. masculino é todo o convento dos Maronitas, constituído de três partes separadas e uma
igreja, a mais ampla e bela do Cairo Velho. Arrendei-o por três anos, ao preço de setecentos francos anuais,
com obrigação de fazer algumas obras. Dista uns dez minutos dos institutos femininos, os quais, por sua vez,
distam dez minutos um do outro.

2239
2.º Instituto do S. Coração de Maria

Assim chamei ao instituto das negras, confiado às Irmãs de S. José da Aparição, cujo horário figura no
Anexo C.
Tanto o objectivo primário deste instituto como o secundário concordam com o do instituto masculino, à
excepção das variações que correspondem à natureza e à missão especial da mulher católica destinada a co-
laborar no apostolado das pobres negras, tanto no Egipto como na Nigrícia.
2240
Este instituto compreende:
1.o O corpo das irmãs.
2.o O corpo das jovens negras missionárias.
3.o O corpo das negras aspirantes a missionárias e ajudantes.
4.o Catecumenato.
5.o Pequeno hospital para as negras.
Dado que, para realizar o seu apostolado, as nossas irmãs e as missionárias negras estão expostas a gran-
des perigos, tenho o firme propósito de ter todo o cuidado para que o seu espírito seja dotado de quantas
virtudes são próprias de cada classe de ordem regular de perfeita observância. Assim, para a actividade, de-
vem ser como perfeitas filhas de S. Vicente de Paulo; para a oração e desapego, como salesianas; para o en-
sino, como ursulinas e Filhas do S. Coração. Isso será conseguido pouco a pouco.
2241
A fim de obterem a sua própria santificação, as irmãs, das quais eu sou o superior ordinário, estão sujeitas
à observância exacta das regras do seu instituto.
Além disso, dirigem e assistem as negras de qualquer classe e especialmente as missionárias nos seguin-
tes actos, que tendem a facilitar a própria santificação:
1.o Observância exacta do regulamento
2.o Orações em comum (em parte compostas por nós em ordem à missão), de manhã, durante o dia e
à noite.
3.o Meditação em comum pela manhã. Meia hora.
4.o Exame de consciência, visita ao SS.mo Sacramento ou à capela, comunhão espiritual, leitura espi-
ritual durante o dia e, à mesa, ao pequeno-almoço, ao almoço e jantar. Tudo em comum. Depois, o
silêncio a certas horas concretas.
o
5. Confissão semanal e comunhão, conforme instruções do confessor.
6.o Explicação do Evangelho na igreja pela manhã e catecismo nas tardes dos domingos e festas de
todo o ano, a cargo de um sacerdote.
o
7. Uma hora de pública adoração ao SS.mo Sacramento todas as quartas-feiras, com missa pro con-
versione Nigritiae.
o
8. Exercícios espirituais anuais desde 10 de Março até à festa de S. José e retiro mensal, na última
quinta-feira do mês.
9.o Celebração dos meses de Março e de Maio, com sermão todas as noites, orações especiais e expo-
sição da píxide.
o
10. Celebração da guarda de honra do Sagrado Coração de Jesus, com pregação, na primeira sexta-
feira de cada mês.
o
11. Novenas, oitavários e tríduos ao divino Salvador, à Sagda. Família, à Ss.ma Virgem Maria, etc., e
aos santos de especial devoção da obra, como indiquei anteriormente.
o
12. Actos de piedade particulares, segundo a devoção de cada um.
2242
As irmãs e as negras procuram a salvação das almas e preparam-se para o apostolado da Nigrícia com as
seguintes práticas:
1.o Amplo estudo do catecismo. Esta lição dirige-a de vez em quando um missionário, que expõe as
ideias e os argumentos de prova, que já foram discutidos e objecto de reflexão no instituto mascu-
lino. Conforme as matérias, há uns exercícios de pequena controvérsia, nos quais se ensina às ir-
mãs e às negras missionárias a maneira mais eficaz de converter de qualquer crença as jovens ne-
gras e se assinalam os raciocínios e os exemplos mais práticos e fáceis para combater e destruir os
erros e as superstições das mulheres pagãs e muçulmanas.
2.o As negras missionárias ensinam as ajudantes e as enfermas nas coisas da fé e da moral cristãs e
preparam as catecúmenas para o santo baptismo.
3.o Estudo das línguas árabe e dinca.
4.o Exercício prático sobre o modo de assistir espiritual e corporalmente as doentes e um pouco de
instrução sobre medicina, farmácia, aplicação de remédios, preparação de medicamentos, etc.
5.o Aulas de trabalhos femininos de primeira necessidade, coser, tecer, trabalho na rouparia, etc., etc.
6.o Prática de cozinha, fazer pão, preparar comida com ingredientes e produtos que se podem encon-
trar na Nigrícia, graças à agricultura local ou que se devam lá introduzir.
2243
Por outro lado, as irmãs dirigem as negras nos lavores finos e de valor, encomendados de fora, especial-
mente por armazéns europeus, como também nos trabalhos com os vestidos e a roupa branca dos institutos.
Os trabalhos de cozinha, lavandaria e enfermaria ficam a cargo das negras, que os desempenham semanal-
mente, por turnos.
A instrução ao domicílio, em famílias católicas de provada reputação onde há alguma catecúmena, é efec-
tuada sempre por duas negras acompanhadas de uma irmã.
Tanto o médico como o missionário visitam as doentes do pequeno hospital do instituto acompanhados da
enfermeira negra, da superiora e de uma irmã.
O pequeno hospital está equipado de uma pequena farmácia no valor de dois mil francos, que fornece
medicamentos às outras casas e aos pobres.
2244
Entre as negras missionárias há dez de provada moralidade e capacidade, as quais estariam dispostas a
exercer convenientemente o seu ministério na África Central e se encontrariam maduras para o apostolado da
Nigrícia. Além disso, todas as jovens negras missionárias serão muito hábeis na arte de atrair ao Catolicismo
negras, tanto pagãs como muçulmanas. Um grande número de pagãs e muçulmanas poderiam ter sido ganhas
para a fé, se a prudência não nos tivesse recomendado mostrar-nos cautos com os amos, que são contrários à
conversão dos negros.
2245
A experiência convenceu-nos de que a presença de um instituto de negras é um importante elemento de
apostolado em favor da raça africana no Egipto. Pela conversa com as nossas negras, por as verem rezar e
ouvirem cantar, muitíssimas outras, pagãs e muçulmanas, sentiram vontade de se tornarem católicas. Todas
as negras – e jovens negros – que até agora se converteram, mantêm-se fiéis à fé, sem nenhuma excepção,
tanto as que permaneceram no instituto como as que foram colocadas em honestas famílias católicas. Algu-
mas conservaram – pode-se dizer – a inocência baptismal como para servir de bom exemplo às outras.
2246
As irmãs são de espírito provado e moralidade. Nada descurámos da nossa parte para as tornar tais e for-
má-las no espírito da nossa árdua e importante missão. A superiora é a Ir. Verónica Pettinati, que verdadei-
ramente está à altura do seu múnus.
2247
Até agora tenho gerido eu a administração deste instituto, dispondo em tudo o necessário e deixando à
superiora a gestão da pequena economia da casa. Isto foi uma experiência para verificar as necessidades do
instituto e o andamento económico da obra. Desde Janeiro passado tenho acordado com a Irmã Eufrásia, a
assistente geral, desembaraçar-me deste fardo e ceder a administração total às irmãs, sobre as bases do con-
trato do Anexo D; isto servirá de maior estímulo à Congregação de S. José para ajudar a obra. A madre geral
não se pronunciou até agora, esperando vir a Roma para a conclusão. Este instituto está instalado numa am-
pla casa com um pequeno jardim e capela, que arrendei ao sr. Bahhari Abut, grego católico, pelo preço de
mil e seiscentos francos ao ano. Está a dez passos do Nilo.

2248
3.o Casa da Sagrada Família
ou escola feminino da paróquia do Cairo Velho

Esta pequena casa foi aberta em Junho de 1869, segundo disposição especial de S. E. o vigário apostólico,
que me encarregou de o fazer mediante o seguinte documento, passado em Alexandria no dia 23 de Maio
anterior, em resposta à minha petição e ao desejo desse M. R. pároco.
N. 110
“M. rev. P.e Comboni:
Após considerar quanto o senhor me expôs no seu escrito de 10 do corrente, autorizo-o a abrir experimen-
talmente uma escola sucursal no Cairo Velho, confiando a direcção da mesma à Ir. Maria Catarina Rosa Va-
lério, terciária franciscana de Verona, de modo que sempre sejam salvaguardados os direitos desse m. rev.
pároco, ao qual escrevo também agora para o convidar a ter o máximo cuidado, de modo que se obtenham os
efeitos desejados.
Não podendo, ao menos por agora, estar disponíveis os locais da antiga escola, deverá o senhor encarre-
gar-se de procurar outros que, possivelmente, reúnam as condições requeridas.”

† F. Luís, arcebispo, vigário apostólico

2249
Esta escola é gerida exclusivamente pelas negras missionárias sob a direcção da Ir. Valério, que eu trouxe
de Verona, onde foi mestra de noviças no extinto mosteiro das terciárias franciscanas. Nela se ensina a fé e a
moral católicas, os elementos de instrução primária, as línguas árabe, italiana, francesa e alemã, para além
dos lavores femininos de todo o género, desde as meias aos bordados em seda e ouro.
2250
O horário especial fica exposto no Anexo E. Frequentam ordinariamente a escola de 20 a 30 alunas orien-
tais e três europeias alemãs. Causa de número tão limitado é a proibição que o recentemente falecido patriar-
ca copta cismático fez aos seus jovens correligionários de frequentar as escolas católicas. São muitas as famí-
lias coptas heréticas do Cairo Velho.
Esta casa é como um pequeno noviciado para as negras missionárias. Está situada junto da igreja paroqui-
al.
2251
A Casa da Sagrada Família, ou escola, arrendei-a à Terra Santa, por três anos, pelo preço de 360 francos
anuais.
A lista do pessoal dos três pequenos institutos de negros do Egipto, desde a época da sua fundação, em
Dezembro de 1867, até Março de 1870, figura no Anexo F.

Disto resulta que:


1.o Os neófitos dos institutos são 19
2.o Os catecúmenos actuais são 15
3.o Total do pessoal 72
O pessoal actual dos Institutos é o seguinte:
1.o Insto. do S. Coração de Jesus 1
2.o Insto. do S. Coração de Maria 26
3.o Casa da Sagda. Família 9

Total 36
2252
Economia e meios de subsistência
dos Instos. do Egipto

Passando agora aos meios pecuniários e materiais para sustentar os institutos nascentes do Egipto, tenho
mil motivos para dar graças à Providência, porque, apesar dos tempos tão duros que correm e das tremendas
dificuldades que, por disposição adorável da Providência, a obra teve que suportar, se bem que as necessida-
des económicas tenham sido reduzidas ao mínimo, os institutos nunca careceram do necessário e em muitos
aspectos foram providos até do útil e cómodo.
2253
Um grave inconveniente da obra no Egipto é não possuir ao menos uma casa própria. Porém, com a aju-
da de Deus e no caso de contar com o apoio da Propaganda, não tardarei a comprar uma casa no Cairo. Para
esta finalidade, a Sociedade de Colónia atribuiu-me dez mil francos, com uma carta (Anexo G) cujo conteúdo
mostra até que ponto esta pia associação está empenhada em ajudar com generosos donativos as pequenas
obras actuais do Egipto e as futuras da África Central.
2254
O gasto necessário para manter as três pequenas casas do Egipto com o número de pessoas que tem actu-
almente, como resulta da experiência dos dois primeiros anos, é aproximadamente de quinze a dezasseis mil
francos.
2255
A renda de que os institutos podem dispor anualmente ultrapassa a soma de 20 000 francos, entradas que
procedem das seguintes fontes:
1.o Sociedade de Colónia para os Negros Fr. 10 000
o
2. Propagação da Fé de L. “ 7000
3.o Esmolas de missas dos missionários “ 2000
4.o Obra das Escolas do Oriente “ 500
5.o Ofertas aos instos. e trabalhos das negras “ 3000
Total 22 500

As três casas estão dotadas actualmente de roupa de cama, mobiliário, remédios, objectos de culto, alfaias
domésticas, materiais e ferramentas de artes e ofícios, etc., no valor de mais de 25 000 francos. Posso apre-
sentar factura de todos os diferentes objectos, a pedido de V. Eminência.

Recursos e activo dos institutos


nos dois primeiros anos da sua fundação

Em dinheiro:
1.o Sociedade de Colónia para os Negros Fr. 28 300
2.o Propagação da Fé de Lião e Paris “ 12 000
3.o Ludwigverein de Munique “ 1500
4.o Sociedade da Im. Conceição de Viena “ 1000
5.o Obra das Escolas do Oriente “ 700
6.o Sociedade do S. Sepulcro de Colónia “ 500
7.o Insto. das Cistercienses de Landshut “ 2000
8.o Insto. das Salesianas de Beueberg “ 1260
9.o Duque de Módena “ 800
10.o Trabalhos das negras
e ofertas aos institutos do Cairo “ 3000
11.o Esmolas de missas aos missionários “ 4000
12.o Esmolas de insignes e ordinários benfeitores
privados da obra, entre eles de majestades
e altezas, etc., como SS. MM. imperiais
Fernando e a impeartriz Maria Ana de Áustria,
o príncipe Jorge da Saxónia,
o príncipe de Löwenstein, o Barão de Havelt;
pregações, etc., em França, etc. “ 17 000

72 060
Soma e segue Fr. 72 060

Em objectos e provisões:
1.o Mme. Maurin Bié, Dephies, Berthod, etc.
em Lião, em camisas, vestidos, etc. Fr. 500
2.o Família do missionário Rolleri,
em grão, comestíveis “ 350
3.o Meu pai Luís Comboni, 9 barris de azeite “ 750
4.o De muitos, em queijo, vinho,
açúcar e comest. div. “ 3500

Poupanças extraordinárias obtidas com indústria e relações parti-culares:


1.o Por viagens até ao Cairo de negras e irmãos
leigos e transporte gratuito
de 274 encomendas de Marselha até Alexandria
(o Governo francês só concede a viagem gratuita
aos missionários e às irmãs e isto nem sempre),
obtidas do Ministério dos Negócios
Estrangeiros de Paris e do Governo egípcio Fr. 12 000
2. o Mr. Talabot, Rotschild, Pointu e chefes de várias
sociedades ferroviárias concederam-me várias
viagens grátis nos caminhos de ferro
da França, Alemanha e Itália, no valor de “ 1600
Total Fr. 90 760

Gastos e passivos dos institutos


nos dois primeiros anos da sua fundação

1.o Gastos em viagens de 30 pessoas e em


transportes de fardos da Europa até ao Cairo Fr. 15 000
2.o Minhas viagens à Europa “ 2000
3.o Arrendamento de três casas e pequenas
reparações “ 5500
4.o Correio: receber e enviar “ 1500
5.o Gastos de cultos, velas, azeite, vinho,
farinha, bancos “ 2000
6.o Farmácia, médicos, pequeno hospital,
enfermaria, etc. “ 4000
7.o Alimentação, roupas, portes, deslocações
em carros, burros, barcas, camelos, etc.;
compra de algum negro ou negra; esmolas “ 30 000
8.o Camas, roupa branca, mobiliário,
alfaias de artes e ofícios e de culto, etc. “ 25 000

Total Fr. 85 000

2256
Tenho uma dívida de 5000 francos à honesta família A. Laurent de Marselha, provedora de muitas casas
religiosas, que liquidarei pouco a pouco, uma vez fundados os institutos ou quando puder, conforme acorda-
do.

Ficam actualmente em caixa:

1.o Em poder do P.e Carcereri Fr. 2000


2.o No meu “ 1000
3.o Sr. Sachman, meu banqueiro do Cairo “ 1500
4.o Complemento de 1869 da Propaganda da Fé “ 5600
5.o Créditos a cobrar “ 800
Total Fr. 10 900

TOTAIS:

Activos, entradas Fr. 90 760

Passivo, gastos “ 85 000


Em caixa actualmente “ 10 900

Total “ 95 900
Dívida a Laurent “ 5000

Fr. 900 900

2257
II – Pequenas obras de Verona

A fim de que os institutos do Egipto e as obras que se fundarem na Nigrícia tenham o selo da estabilidade,
S. E. rev.ma mons. Canossa abriu em Verona um pequeno seminário para formar sacerdotes e prover de mis-
sionários e irmãos colaboradores os institutos do Egipto e as missões da África Central e deu-lhe o cunho
canónico por meio do documento do Anexo M, propondo como seu director o piedoso e douto P.e Alexandre
Dalbosco, que foi já meu companheiro na África Central.
2258
Porém, como nos tempos que correm não se podem fazer cálculos sobre importantes entradas, provenien-
tes de grandes benfeitores, porque os rendimentos das entidades morais que pertencem à Igreja estão sempre
ameaçados pela violência e os confiscos das autoridades laicas, pensou-se apoiar o seminário na caridade
católica e no direito de associação, reconhecido por todos os tipos de governo, incluídos os revolucionários.
Por isso erigiu-se canonicamente a Pia Associação do Bom Pastor, que tem por objectivo prover de meios
pecuniários o dito seminário e outros que, com a ajuda de Deus, se fundarem noutros centros da catolicidade.
Esta obra, à qual o bispo de Verona concedeu quarenta dias de indulgência, foi em seguida enriquecida por
Sua Santidade com seis indulgências plenárias (Anexo N) mediante um documento de punho e letra do Papa,
que tive a honra de mostrar a V. Em.a Rev.ma no dia seguinte ao da obtenção da graça.
2259
Esta obra tinha começado a ir bastante bem e contava com o favor de muitos bispos da Itália e de fora,
que tinham aprovado a sua implantação nas respectivas dioceses e assegurado a mons. Canossa a protecção
da mesma com cartas especiais, das quais posso apresentar cópia a V. Em.a. Com o produto do primeiro ano
foi possível pôr em andamento o pequeno seminário e provar nele a vocação do P.e Rolleri e do irmão leigo
Rossi, os quais levei comigo para o Cairo em princípios de 1869.
2260
Uma circunstância permitida por Deus fez encalhar um pouco a santa obra. Em Julho de 1868, tendo-me
apresentado eu em Lião com uma carta especial de recomendação do vigário apostólico para pedir ajudas à
Propagação da Fé, apresentei àquele conselho, a pedido do mesmo, um relatório informativo sobre as peque-
nas obras do Egipto e de Verona, entre elas a Associação do B. Pastor. Mr. Meynis, secretário do conselho
de Lião, não compreendendo bem a obra ou mostrando não compreendê-la, pensou que a Associação do
Bom Pastor tinha como finalidade recolher esmolas para os institutos do Egipto e que, portanto, era prejudi-
cial para a Prop. da Fé. Por essa razão, falei com aquele Presidente na conveniência de escrever a respeito
disso à S. C. da Propaganda Fide. Como consequência daquela comunicação, V. Em.a Rev.ma julgou em sua
sabedoria que dar à nossa associação de Verona a mesma interpretação e a 15 de Setembro de 1868 dirigiu
uma circular aos bispos da Itália, na qual lhes proibia de admitir nas suas dioceses todas as associações ten-
dentes a socorrer uma missão especial, excepto à Propagação da Fé. O bispo de Verona teve algum receio de
que tal circular prejudicasse indirectamente a Obra do B. P.
2261
Eu ignorava este facto e, confiante na aprovação pontifícia, tratei de fundar em Paris um conselho da O.
B. P. Considerei que agiria de forma segura, consultando primeiro e invocando o apoio da Propagação da Fé.
Por isso dirigi-me a bastantes membros e expliquei-lhes a natureza da nova associação, dizendo-lhes que
tinha por objectivo manter um seminário em Verona e não uma missão especial in partibus infidelium e que,
portanto, diferia da obra geral da Propagação da Fé, a qual ajudava directamente as missões estrangeiras.
Acrescentei que, após colocar em bom andamento a associação, com o tempo e com base no de Verona, se
criaria um seminário na própria cidade de Paris, onde se formariam missionários para a Nigrícia. O ilustre
Nicolas foi o intérprete das minhas ideias no conselho.
2262
O sr. Baudon, presidente geral das Conferências de S. Vicente de Paulo e conselheiro da pia Associação
do B. P., disse-me: «São necessários, por ano, cerca de cinquenta mil francos para manter esse seminário, no
qual se formariam missionários para a África; dou o meu nome e aceito ser membro do conselho diocesano
de Paris da Obra do B. P.» Sem mais, empreendi com sucesso a constituição de um conselho diocesano da
pia associação, conseguindo que dele fizessem parte como conselheiros doze das mais ilustres personalida-
des daquela capital; entre eles, quatro dos mais activos conselheiros da Prop. da Fé. Com autorização do
bispo de Verona, criei também lá um comité de damas patrocinadoras, entre as mais ricas e ilustres de Paris.
2263
Eis senão quando, uns dias antes de realizar a primeira reunião do conselho diocesano, já convocado para
os salões do barão de Havelt, recebo de Verona a notícia da circular de V. E. rev.ma Embora essa circular
não se referisse de maneira nenhuma às associações especiais que tinham por objectivo um bem local de uma
diocese da Itália e, por consequência, não afectava a Obra do B. P., destinada a ajudar o pequeno seminário
de Verona, contudo, lendo no coração de V. Em.a, por submissão e respeito ao chefe supremo das santas
missões, decidi suspender tudo até nova ordem. Corado, despedi-me dos membros do novo conselho de Pa-
ris, comunicando-lhes que, por ter de partir para o Egipto, tinha decidido suspender ad tempus a actividade
da Obra do B. Pastor em Paris; isto depois de haver exposto francamente aos membros mais importantes o
facto e os seus verdadeiros motivos.
2264
Por conseguinte, deixei a França resignado às disposições da Providência, mas cheio de confiança de que,
mais tarde, o Senhor poria em andamento a santa obra. Inclinando a fronte perante as veneradas intenções de
V. Em.a, procedeu-se com passo bem medido também em Itália. Mons. Canossa julgou prudente não admitir
novos alunos no pequeno seminário e a obra em Verona permaneceu estacionária.
2265
Esperámos com impaciência a época do Concílio Vaticano para nos apresentarmos ante V. Em. a e rogar-
lhe cobrisse com o escudo da sua protecção toda a obra. Um seminário na Europa que forme missionários
para a Nigrícia é de absoluta necessidade e uma pia associação bem organizada é o meio mais seguro para o
sustentar e perpetuar nos nossos tempos. Por um lado, esta associação, que tem como única finalidade ajudar
o estabelecimento de Verona, não ofende, nem choca com a Obra da Propagação da Fé de Lião e Paris, cujos
recursos se destinam à ajuda das missões in partibus infidelium. Disto estão convencidos os membros dos
conselhos centrais de Lião e Paris, muitos dos quais vêem que a Obra do B. P. se tornará até útil à Prop. da
Fé, a qual terá maior incremento devido aos bons resultados das missões da África Central, que seriam as
mais interessantes, dizem, por regenerar povos novos.
2266
Se não existisse o seminário das Missões Estrangeiras de Paris, porventura existiriam na Ásia vinte e dois
vicariatos e duas prefeituras apostólicas, tudo sustentado e dirigido por esse célebre seminário? Pois bem, tal
associação (do B. P.), mantendo o seminário de Verona para a África Central, dá missionários à Nigrícia e
promove o incremento da fé nessas abrasadas regiões, sobre as quais ainda pesa o terrível anátema de Cam.
Portanto suplico humildemente à S. C. da Propaganda que secunde os santíssimos desejos de monsenhor o
bispo de Verona e seja larga e generosa com o seu precioso apoio a favor desta associação orientada para dar
apóstolos à infeliz Nigrícia.
2267
Depois de o Senhor chamar para si o fervoroso missionário P.e Alexandre Dalbosco, monsenhor o bispo
de Verona nomeou chefe do pequeno seminário de Verona o piedoso e entusiasta P.e Tomás Toffaloni (1), o
qual é digno desse importante ministério, a que foi destinado até que possamos encontrar para o mesmo al-
guém que tenha já sido missionário na África Central. E isto porque estamos profundamente convencidos de
que quando o seminário tiver adquirido duradoira consistência e nele se tenham formado durante muitos anos
agentes do apostolado, é muito conveniente que o superior e os directores espirituais sejam escolhidos entre
os próprios ex-alunos, chamando à Europa alguns deles com mais experiência e mérito, que se tenham dis-
tinguido exercendo o seu sagrado ministério na missão; esse cargo servir-lhes-á também para um digno e
merecido descanso, enquanto o seu trabalho servirá para o maior proveito e instrução dos novos aspirantes ao
apostolado da Nigrícia.

2268
III – Harmonia das obras do Egipto e de Verona

Como necessária conclusão do exposto, pode-se deduzir que é sumamente necessário que os nascentes
institutos do Egipto e as pequenas obras de Verona se dêem as mãos, caminhem e prosperem a par e passo,
prestando-se mútuo apoio, a fim de alcançarem o objectivo último, que é o de implantarem estavelmente a fé
na África Central. Eu parto do princípio muito verdadeiro, baseado na experiência prática, de que tal como
na ordem temporal dinheiro faz dinheiro, na ordem espiritual obra faz obra. Se as pequenas obras de Verona
prosperarem, darão aos institutos do Egipto e da Nigrícia bons e valiosos obreiros evangélicos que, instala-
dos no campo do seu trabalho apostólico, com a ajuda de Deus, realizarão conversões e, por sua vez, farão
prosperar os institutos do Egipto e as missões da Nigrícia. Florescendo estes sob a égide da Propaganda,
aumentar-se-á o zelo dos generosos católicos da Europa, que contribuirão para o desenvolvimento e o incre-
mento da Obra do B. Pastor, a qual se tornará forte e poderá promover vocações e manter maior número de
candidatos no seminário de Verona. De tal modo, estas santas obras alcançarão a sua última meta: a implan-
tação estável e o triunfo da fé na Nigrícia, onde nunca flutuou e se içou a gloriosa bandeira da cruz.

2269
Conclusão

Na minha pequenez e indignidade, imploro encarecidamente da apostólica caridade de V. Em. a que cubra
com o escudo da sua protecção a nascente obra da regeneração da Nigrícia. Não tenha V. Em.a nenhum cui-
dado pela constância daquele que isto subscreve, nem por tantos trabalhos e sacrifícios que teve que suportar
pela Nigrícia, pois este, que é e será sempre o mais inútil servo da Igreja, não aspira a outra coisa senão à
misericórdia de Deus para a sua alma; preocupe-se tão-só da triste situação de milhões de almas que se vão
perder. Quando os protestantes Baker e Livingstone, o muçulmano Selim e tantos outros penetram animosos
no coração da África por um bem material e talvez para embrutecê-la mais, vai o Catolicismo abandoná-la,
sem fazer nada para a salvar?
2270
Confio que a nascente obra da regeneração da Nigrícia lançará firmes raízes e conseguirá o seu objectivo,
contanto que conte com o apoio imediato da Sagrada Congregação. Se ninguém correr a salvar os negros da
África Central, eles irão para a perdição...
2271
Eu só disponho de uma vida para consagrar à salvação daquelas almas: quisera ter mil vidas para as con-
sumir nesse fim. Portanto, até ao último suspiro, nunca deixarei de suplicar a V. Em.a e a essa cátedra de
Pedro, onde tem seu assento a verdade, a caridade e a preciosa herança do nosso adorado J. C., Salvador do
género humano, que voltem piedosos o olhar para os cem milhões de almas que povoam as imensas regiões
da África Central e sobre as quais pesa ainda o terrível anátema... No caso de ter omitido pontos importantes
nesta informação e de V. Em.a se dignar fazer observações sobre isso, declaro-me disposto a responder a
tudo. A sabedoria e perspicácia de V. Em.a compreende bem as graves e múltiplas dificuldades suportadas e
a suma importância desta santa obra, que se orienta para o apostolado na parte do mundo mais abandonada e
cujo êxito depende do precioso apoio da S. C. da Propaganda Fide.

P.e Daniel Comboni


(1) Toffaloni introduziu em todas as dioceses do Véneto a Obra da Propagação da Fé e educou missi-
onários, entre eles, o falecido rev.mo Ambrosi, procurador da S. C. em Hong Kong.

N.o 356 (334) - CONTRATO COM AS IRMÃS DE S. JOSÉ


AP SC Afr. C., V. 7, ff 1376-1377

Anexo D, pág. 15
Roma, Abril de 1870

CONTRATO
Entre o Instituto Religioso das Rev.das Irmãs
de S. José da Aparição e o M. R. sr. P.e Daniel Comboni
miss. apost. da África Central, fundador e sup.
dos institutos de negros do Egipto

2272
Depois de mais dois anos de recíproca prova, querendo o M. R. sr. P.e Daniel Comboni, miss. ap. da Af.
Central, fundador e actual superior geral dos institutos de negros existentes no Egipto, perpetuar a existência
do seu instituto feminino de educação de jovens negras, para o objectivo do seu «Plano para a Regeneração
da África», o qual está actualmente situado no Cairo Velho do Egipto, e encontrando-se o instituto religioso
das rev.das Irmãs de S. José disposto a assumir definitivamente a sua direcção responsável em tudo, os abai-
xo assinados, por si e pelos seus sucessores no superiorado respectivo, expressam para o efeito o seu acordo
com cada uma das cláusulas do presente contrato, o qual, não obstante, só será obrigatório para as partes
quando tiver obtido a aprovação de S. Em.a o cardeal prefeito da S. C. da Propaganda Fide e de Suas Ex.as
il.mas e rev.mas o sr. vigário apostólico do Egipto e o sr. bispo de Verona.
2273
1.a O M. R. sr. P.e Daniel Comboni obriga-se a proporcionar gratuitamente alojamento às irmãs directo-
ras e às alunas negras por ele designadas para pertencerem ao dito instituto de educação.
2274
2.a Obriga-se igualmente a proporcionar grátis um capelão e um director ordinário mediante um dos sa-
cerdotes missionários do instituto masculino, com prévia aprovação e designação do mesmo por parte do
ordinário superior eclesiástico.
3.a Cede também para uso e propriedade do pessoal membro pro tempore o dito instituto feminino de ne-
gras, todos os móveis, rouparia, utensílios, víveres, combustíveis, etc. actualmente existentes e destinados a
seu uso na casa que no presente elas habitam.
2275
4.a Dos contributos anuais que as sociedades católicas da Europa se comprometeram a dar para os objec-
tivos gerais da obra da regeneração da Nigrícia, atribui uma pensão anual de 400 fr. (quatrocentos) a cada
irmã e de 200 fr. (duzentos) a cada aluna por ele destinada a pertencer ao instituto das negras por qualquer
motivo, até por doença ou asilo. Dado que a importância total da dita pensão será calculada em razão da ca-
tegoria, número e tempo de estada no Instituto das pessoas pertencentes ao mesmo, ela será paga em quatro
prestações anuais, no vencimento trimestral. As irmãs directoras são livres de designar por sua parte outras
negras para que se integrem no instituto, mas na condição de que os gastos sejam por sua conta. São igual-
mente livres de recorrer a outros benfeitores, sempre no entendimento de que as esmolas devem ser usadas
conscienciosamente em proveito do instituto das pobres negras, salvo o caso de serem dadas ad personam e
independentemente da ideia do instituto que dirigem ou destinadas expressamente a outro objectivo determi-
nado.
2276
5.a Entregues as mencionadas prestações, o superior geral fica isento de qualquer outra obrigação, quer se
trate de viagens, medicamentos, visitas das autoridades competentes, serviços necessários ou outros. A im-
portância é entregue na caixa comum e as irmãs devem atender com ela tanto às suas próprias necessidades
quanto às das jovens alunas e aos pertencentes pro tempore ao instituto – por ser tal a intenção dos benfeito-
res –, ficando a cargo do superior geral só as viagens das negras, que, por disposição dele, entrem no institu-
to ou saiam para outro destino.
2277
6.a O instituto masculino de negros e o instituto feminino de negras, enquanto se encontrarem na mesma
cidade, prestar-se-ão mutuamente os serviços que estiverem ao seu alcance – e que serão combinados pelos
respectivos superiores locais –, ficando sempre proibida a relação parti-cular entre os membros de ambos os
institutos.
2278
7.a O que provier dos lavores femininos das negras e dos donativos particulares por elas recebidos será
dividido a meio, constituindo uma parte o fundo do seu futuro dote, que será guardado pelo superior geral ou
seu encarregado e a outra ficará disponível a favor delas, nas mãos da directora local.
2279
8.a As rev.das Irmãs de S. José da Aparição obrigam-se à direcção responsável do instituto de negras, se-
gundo o Plano para a Regeneração da África e, em tudo, à administração económica do mesmo.
2280
9.a Dado que o instituto de negras tem a dupla finalidade de preparar as jovens para as converter em ele-
mentos de apostolado religioso e social indígena na infeliz Nigrícia, e de socorrer, em tudo o que for possí-
vel, nas suas graves misérias as pobres negras levadas à força para o Egipto, as mencionadas irmãs encarre-
gar-se-ão da educação apostólica de umas e da caritativa assistência das outras e obrigam-se a pôr em funci-
onamento, pouco a pouco, as escolas de instrução literária, religiosa, civil e de trabalhos femininos, que sir-
vam para fazer das alunas mestras de religião e de civilização no seu país de origem e a proporcionar cuidado
às doentes, órfãos, expostas, em perigo, desencaminhadas e abandonadas, sempre e unicamente pertencentes
à raça negra. Não obstante, estas actividades desenvolver-se-ão gradualmente, com a aprovação e as instru-
ções do superior geral da obra.
2281
10.a O número de irmãs directoras só pode determinar-se, portanto, à medida do desenvolvimento das di-
versas actividades acima expostas. Esta é a razão pela qual o instituto religioso das irmãs se obriga a atender
as petições do superior geral dos institutos de negros, seja quanto a aumentar o número das irmãs seja quanto
a reduzi-lo, quando prudentemente se conhecerem as necessárias para as tarefas da obra.
2282
11.a Todas e cada uma das jovens alunas do instituto estão à inteira disposição do superior geral para as
necessidades da missão: pode, por isso, decidir o seu ingresso, saída e mudança, quando, como e onde julgar
mais oportuno, sem nenhuma espécie de impedimento. E as irmãs não poderão expulsar nem deixar que se
vá nenhuma e por nenhum motivo, nem sequer para irem para freiras, sem o expresso consentimento do
mesmo superior geral.
2283
12.a Em todo o resto, as irmãs têm sobre as alunas toda a maternal autoridade. Mantê-las-ão ocupadas e
sob controlo, e não permitirão relações externas; poderão servir-se delas para as tarefas domésticas e especi-
almente para a instrução das suas companheiras mais jovens e procurarão torná-las hábeis na prática, o me-
lhor possível e quanto antes, para o objectivo da sua sublime vocação. Quanto à escolha do seu estado, deixá-
las-ão totalmente livres de se aconselharem com Deus e com o seu padre espiritual e não permitirão que vis-
tam o seu hábito sem o consentimento do superior geral. Cada ano farão com que façam os exercícios espiri-
tuais e todos os meses procurarão que tenham um dia de retiro espiritual; e tratarão, além disso, de encorajá-
las a frequentarem assiduamente os santíssimos sacramentos e os exercícios de piedade cristã, seguindo os
conselhos e as ordens do director espiritual ordinário. Por outro lado, submetê-las-ão cada ano a um exame
sobre o seu aproveitamento literário e artesanal.
2284
13.a Só as pobres negras devem ser objecto da sua maternal solicitude, ao ser tal a finalidade do instituto.
Por isso e também para evitar perniciosas rivalidades ou ciúmes, obrigam-se a não praticar qualquer activi-
dade caritativa com as brancas, salvo se forem chamadas expressamente para isso pela autoridade eclesiásti-
ca local.
2285
14.a Manterão os normais livros de registo, tanto económicos como de pessoal, dispostas sempre a res-
ponder sobre eles e sobre a observação das presentes cláusulas, em todo o caso de legítima indagação.
2286
15.a Na esperança de que o dito instituto de negras chegue um dia a obter da caridade dos fiéis ou de ben-
feitores particulares os meios que no todo ou em parte possam satisfazer as suas necessidades económicas,
para não defraudar as intenções das sociedades benfeitoras da Europa, que desejam socorrer, não enriquecer,
as instituições apostólicas entre os infiéis, lembra-se que da pensão atribuída anualmente se subtrairá no iní-
cio de cada ano a parte que segundo os livros se revelar como superavit.
Nisto convieram e a tanto se obrigam ambas as partes, assinando e selando o presente contrato.

P.e Daniel Comboni

N.o 357 (355) - A P.e FÉLIX PERLATO


BCV, sez. Carteggi, b. 131 (Netti-Perlato)

Roma, 6 de Junho de 1870

Meu mui caríssimo sr. reitor,

2287
Amanhã, à noite, Madame de Villeneuve parte de Roma. Por isso, recomendo-lhe encarecidamente que
mande pedir a P.e Corsi ou seu irmão as relíquias, porque madame irá recebê-las de si à Scala. Ela levará
também a sua proposta para o marquês Fumaroli, para as missas do Santo Natal, válido ad triennium.
2288
Peço-lhe, além disso, o favor de fazer chegar a carta junta à piedosa senhora Maria Kessler, da Saxónia, a
minha protestante, que serve como empregada em casa da condessa Ravignani e que, penso, se confessa ao
P.e Perez. Desejo que a receba logo, porque nela lhe peço que acompanhe a minha benfeitora parisiense para
ver um dia as maravilhas da rainha do Ádige.
Encomende-me à Ssma. Virgem das Dores e dê saudações da minha parte a todo o seu clero e o seu sa-
cristão, etc.
Seu af.mo P.e Daniel

N.o 358 (336) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/270

Roma, 22 de Junho de 1870

Meu caríssimo e rev.do padre,

2289
Assoberbado com inúmeras ocupações, não posso escrever por agora. Porém, aproveito esta ocasião para
lhe enviar o Postulatum. Congeminámo-lo o P.e Estanislau e eu no Cairo. O P.e Estanislau redigiu a parte
substancial; foi mudado mais de vinte vezes em Roma, porque não o aceitaram no concílio, devolvendo-o à
Propaganda; finalmente, com ajuda do card. Barnabó, que foi o meu verdadeiro guia, remendou-se tal como
está impresso e subscreveram-no sessenta e cinco, entre patriarcas, bispos e arcebispos. Como me levava
muito tempo a tratar com os bispos devido à assinatura, imprimi a carta a eles dirigida. Espero que dê resul-
tado. O senhor reze e volte a rezar.
2290
Os nossos queridos Estanislau e Beppi estiveram um pouco mal, mas agora encontram-se bem. Receberá
deles estupendas notícias. São duas jóias. O P.e Zanoni, na qualidade de superior, foi a Paris com o P.e Vige-
to abrir uma casa camiliana. Foi o que me disseram em Madalena. Pense nisto e depois tire as suas deduções.
2291
Tinha o senhor muita razão ao pensar aquilo que me escreveu; porém, roguemos que seja o melhor para a
sua alma. Talvez esteja na mente do P.e Guardi a conversão desse pobre... Pois a mim não me pareceu con-
vertido e falei com ele várias vezes: o homem é o de sempre. Parece, em contrapartida, que o P.e Guardi faz
pouco caso das cartas do P.e Estanislau, que é homem de consciência.
Em Agosto irei a Verona com o bispo. Estou muito agradecido ao seu paternal coração e é provável que
aproveite a sua bondade.
2292
Parece que é rejeitado o postulatum de S. José como protector da Igreja Universal e também o da assun-
ção da Virgem. Foi o que me disse outro dia o padre grego, que pertence à comissão examinadora dos postu-
latum. Os bispos adiantaram-se um pouco, disseram-me, porque queriam declará-lo o maior santo depois da
Virgem. Chegará a sê-lo; porém, o concílio não vai ocupar-se disso.
2293
Há quarenta dias que não vejo Tezza. Fui várias vezes procurá-lo... mas estava ocupado.
Saúde da minha parte aos padres Tomelleri e Bonzamini e a todos. Reze pela África e por este pobre pa-
dre que lhe escreve. Estou a procurar obter uma estação: vamos ver o S. Padre e também o cardeal. São bons.
Que contente ficaria eu se visse satisfeito o nosso desejo, que é o de desenvolver muito mais o apostolado da
África. Terá recebido a foto dos jovens camilianos negros. Rogue por

Seu af.mo e devot.mo


P.e Daniel Comboni

Mil e mil felicidades para o seu santo. Ontem a festa no Colégio Romano foi verdadeiramente esplêndida.
Rezou-se muito por si.

N.o 359 (337) - CARTA CIRCULAR AOS PADRES CONCILIARES


AP SC Afr. C., v. 7, f. 1323v

Roma, 24 de Junho de 1870

Eminentíssimos e reverendíssimos padres,

2294
É um acontecimento solene, de bons auspícios e de imensa alegria, reverendíssimos padres, o facto de que
no seu actual concílio, certamente mais esplêndido de quantos já foram celebrados nos passados séculos, se
achem presentes tantos bispos provenientes de longínquas regiões do mundo, dando testemunho da difusão
do reino de Cristo e da maravilhosa fecundidade da Igreja. Como padres e pastores, agora regozijam-se exul-
tantes levando os seus manípulos, enquanto outrora tiveram de derramar a sua semente de pranto.
2295
Ei-los aqui, junto a vós, como intérpretes de uma grande multidão de neófitos. Enquanto lhes anunciam
que em todo o mundo nações e povos se submeteram já a Cristo, eles manifestam as expectativas, a devoção
e a confiança dessas gentes no sagrado concílio ecuménico.
2296
Com efeito, estão presentes os chineses, os indianos, os japoneses, os australianos, os habitantes das ilhas
de todos os oceanos, das duas Américas, do Pólo Sul e do Pólo Norte, como também os indígenas de todos
os quatro extremos da África.
2297
Quase todos esses povos, depois do concílio tridentino, se puseram nas mãos de Cristo e da Igreja para se-
rem instruídos e educados nos preceitos da divina sabedoria. Hoje, nas pessoas dos seus próprios pastores,
devotíssimos a seu chefe supremo, cada um espera dele e de vós, com devoção e alegria, palavras de vida e
de felicidade eterna junto com todos os seus outros irmãos que se fizeram cristãos antes deles.
2298
Porém, entre todos os povos, há um que está absolutamente privado de sorte tão grande e que nem sequer
ainda a conhece. Trata-se do povo dos Etíopes, o dos negros da África interior, isto é, daquelas regiões da
África chamada central, que ainda se encontram quase totalmente inexploradas, as quais somam uma exten-
são maior que o dobro de toda a Europa e uma população de mais de cem milhões de habitantes, ou seja, a
décima parte de todo o género humano. Contudo, encontra-se envolta nas trevas, submetida à morte e ao
domínio cruel do Demónio.
2299
Sem dúvida, para salvar os africanos, há que enfrentar um esforço grandíssimo. Como todos sabem, a S.
Congregação para a Propagação da Fé, inspirada pela sabedoria e pelo amor de Deus, teve sempre um incrí-
vel zelo para impulsionar para esta empresa os filhos da Igreja, assim como em instituir nobres obras de
apostolado para socorrer os infiéis povos da África. A santa madre Igreja deseja ardentemente, claro está,
salvá-los e regenerá-los para uma nova vida. Contudo (e isto é de fazer chorar qualquer um) voltem, peço-
lhes, o olhar para essas populosas tribos que se estendem por regiões quase ilimitadas: todavia hoje estão
oprimidas por profundas trevas de espírito, degradando-se no culto sacrílego dos demónios e na lama vergo-
nhosa do vício. Agora pergunto-me se haverá alguém no mundo que com grande dor procura dar-lhes a co-
nhecer os sentimentos de tantos milhares de filhos da Nigrícia. Haverá alguém entre os senhores que faça de
pai para com os negros, uma voz que faça de intérprete para tantos filhos de Cam? Digam-nos, excelentíssi-
mos padres, e di-lo tu também, Roma fiel.
2300
Não obstante, é para mim um grande conforto pensar uma e outra vez que desde há dezoito séculos eles
foram libertados, por meio do sangue de Cristo, da maldição do seu pai e que, com esse sangue, os adquiriu
como herança própria Aquele do qual foi dito: dominará de um mar a outro e desde o rio até ao extremo da
terra: diante d’Ele se prostrarão os etíopes (Salmo 71).
2301
Pois bem, porque é que, então, eminentíssimos padres, só a Nigrícia do interior se encontra ainda nas tre-
vas e sombra da morte, sem pastor, sem apóstolos, sem Igreja, sem fé? Porque, entre todas as nações, só ela
não está ainda submetida ao domínio de Cristo? Nunca nenhuma maldição atacou por tanto tempo e com
maior dano a alguma gente do que a esses infelizes povos da África, excluídos do benefício da redenção. E
as causas parecem ser especialmente três. Primeira, a gravidade das fadigas e das dificuldades que têm de
enfrentar aqueles que empreendem as santas expedições a África, tanto pela inclemência do clima como pe-
los obstáculos que impiamente põem os malvados inimigos da religião católica.
2302
Em segundo lugar, a falta de apóstolos, cuja boca teria de difundir a verdade. Com efeito, a fé vem da es-
cuta. A escuta por meio da palavra de Cristo; porém, como poderão escutar, se não houver quem lhes pre-
gue? (Ro 10).
Finalmente, a falta de dinheiro, que, como todos compreendem, é absolutamente necessário nessas impor-
tantes empresas.
2303
Há muitos anos que estou consagrado a esta difícil e quase desesperada vida. Para salvar os africanos da
escravidão, decidi, com meus valorosos companheiros, enfrentar a fome, a sede, o calor e os perigos da vida.
Agora que os senhores, padres eminentíssimos e reverendíssimos, se encontram aqui reunidos perante o san-
tíssimo Vigário de Cristo, formando uma venerável e densa coroa, estou persuadido de ter aproveitado uma
ocasião maravilhosa para me apresentar ante vós, e, abraçado a vossos pés, recomendar-lhes a gravíssima
causa dos negros, suplicando-vos a vós, que sois os padres e mestres de todos os povos, a vossa misericórdia
e protecção em favor dos pobres africanos, que são os mais desditosos de todos e os mais abandonados.
2304
Eis aqui, portanto, diante de vós, excelentíssimos padres, a infeliz Nigrícia que, imersa nas trevas, cai, ex-
traviada, pelos precipícios, sem guia, sem luz, sem fé, sem Deus. Trata-se da salvação de toda a África Cen-
tral, a qual, como antes disse, compreende a décima parte de todo o género humano. Se os senhores não de-
cidem com grande benevolência pôr algum remédio, passa-se este momento levando consigo uma ocasião
tão propícia (só de pensá-lo sinto opressão na garganta), quantos séculos terão de passar antes de cessar a
desgraça dos africanos? Eia, pois, santíssimos padres, pelos cravos de Cristo, tomem a vosso cargo esta obra
e, em vossa sabedoria, examinem como e com que meios se podem salvar estes povos.
2305
Se se me permite exprimir o meu humilde desejo, suplico-lhes que façam ressoar mais fortemente a sua
voz apostólica no sacrossanto Concílio do Vaticano para apoiar eficazmente a causa dos negros da África
Central; para suscitar na Igreja de Deus o espírito de apostolado, para chamar a Nigrícia à fé, atraí-la e quase
obrigá-la com a força de uma eloquência cheia de bondade e para solicitar a oportuna ajuda de todo o povo
de Deus a fim de conseguir a sua regeneração com mais facilidade e rapidez. E quando terminado o concílio
ecuménico, a maior parte de os senhores regressarem às suas dioceses, façam de modo que alguns dos sacer-
dotes mais jovens delas, animados pelo espírito de Deus, se unam a nós na conquista da Nigrícia para Cristo.
Façam com que os fiéis se sintam animados do amor a Cristo e prestem-lhes a sua ajuda para esta nobilíssi-
ma obra de redenção, com as orações, as obras e o dinheiro.
2306
Quem abraçar o apostolado entre aquelas gentes, certamente deverá enfrentar grandes fadigas e graves di-
ficuldades. Contudo, para os que amam a Deus, o suor e as lágrimas com que regam as suas obras serão de
alegria e satisfação. Infelizmente houve e há ainda hoje, para grande indignação nossa e profunda dor dos
bons, inimigos do nome católico que, sem nenhum temor dos perigos, percorrem audaciosamente aquelas
áridas e imensas regiões, levados pelo desejo de glória humana e pela ânsia de riquezas. Quanto mais conve-
niente é que os obreiros católicos suportem as mesmas fadigas para educar na fé de Cristo as desventuradas
tribos daquelas terras e promover assim a sua salvação eterna.
2307
Portanto, imploro-lhes, reverendíssimos padres, que, uma vez reunidos nesta sede de S. Pedro para reco-
lher todas as gentes do mundo no único redil de Cristo, tenham piedade especialmente dos povos da África
Central, suscitando com as suas palavras e com os seus votos uma esperança de redenção e de vida, e conse-
guindo assim com o seu interesse que se possa dizer de verdade que o Nilo mostrou, por fim, as suas fontes
para que os povos adjacentes sejam purificados mediante o santo baptismo com as suas águas.
2308
É preciso, pois, fazer todo o esforço para que a Nigrícia se una à Igreja Católica. Pedem-no a honra e a
glória de N. S. Jesus Cristo, a cujo império ainda se não submeteu a África Central, depois de tanto tempo e
apesar de Ele ter derramado o seu sangue para a sua regeneração. Exige-o a promessa feita por Nosso Senhor
à Santa Madre Igreja: «Haverá um só rebanho sob um só pastor» (Jo.10). Requere-o também a dignidade do
ministério divino a vós confiado, a quem o Espírito Santo colocou como bispos para reger a Igreja de Deus
(Act. 20). A isto, enfim, aspira a esperança ainda não realizada deste povo, sobre o que foi dito por Sofonias:
«De para lá dos rios da Etiópia virão os meus adoradores» (Sof. 3).
2309
Por isso, eminentíssimos e reverendíssimos padres, considerando a sua grandeza de ânimo e a ardente so-
licitude do seu sacerdócio pela salvação das almas, suplico-lhes e imploro-lhes com grande fervor e humil-
dade que se dignem assinar este postulado em prol dos negros da África Central, o qual talvez seja o último a
ser proposto a este sagrado concílio, tal como o infeliz povo dos negros é certamente a última de todas as
nações.
Humildemente prostrado a vossos pés, padres deste sacrossanto concílio, recomenda ardentemente esta
causa a V. Eminências e Excelências e beija-vos a mão o vosso devotíssimo servidor

P.e Daniel Comboni


Miss. ap. da África Central
Sup. dos instos. de negros do Egipto

Festa do Santíssimo Coração de Jesus

Original em latim
Tradução do italiano

N.o 360 (338) - POSTULADO EM FAVOR DOS NEGROS


DA ÁFRICA CENTRAL
AP SC Afr. C., v 7, f. 1234

Roma, 24 de Junho de 1870

POSTULADO
AO SAGRADO CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO
EM FAVOR DOS NEGROS DA ÁFRICA CENTRAL

2310
Os padres abaixo assinados, com grande humildade e fervorosas súplicas, imploram ao sagrado Concílio
Ecuménico Vaticano que, enquanto contempla com atenção o mundo inteiro, apiedado das necessidades de
todos, se digne ao menos lançar o olhar de compaixão sobre a África Central. Porque é vítima de gravíssimos
males, supera em extensão mais de duas vezes a superfície de toda a Europa e é habitada por mais de cem
milhões de filhos de Cam, ou seja, a décima parte de toda a humanidade.
2311
O apostolado católico fez repetidamente em todo o tempo enormes esforços para fazer entrar a África na
verdadeira Igreja de Jesus Cristo e, de facto, ocupam grande parte das suas costas muitos vicariatos e prefei-
turas apostólicas e algumas dioceses. Porém, o centro da África permanece ainda quase totalmente inexplo-
rado e desconhecido e, ainda que a Sagrada Congregação da Propaganda Fide, sobretudo nos tempos mais
recentes, tenha reavivado a sua solicitude para tal causa, estas regiões da África Central debilitam-se ainda
quase abandonadas na sua miséria, sem pastor, sem apóstolos, sem Igreja e sem fé.
2312
Perante esta realidade, os padres co-signatários rogam com grande insistência ao sagrado Concílio Ecu-
ménico que se digne persuadir os bispos, com uma cortês exortação e com um acordo, a que proporcionem
dignos obreiros do Evangelho ou qualquer outra ajuda a esta abandonada vinha do Senhor. E que, se o consi-
derar oportuno, convide com a sua solene autoridade todo o mundo católico a socorrê-la, recomendando a
celestial e santa empresa e pedindo a ajuda eficaz de todo o povo cristão para que possa voltar a florescer.

Razões do presente postulado

2313
1. Sobre a desditosa cabeça dos filhos de Cam pesa ainda a mais antiga das maldições que jamais te-
nham sido lançadas contra um povo. E as ardentes regiões da África Central sentem do modo mais
terrível a força maléfica desta maldição. De facto, ainda que a santa madre Igreja tenha tentado tudo
para a esconjurar, tanto pelo número de esforços realizados, como pela grandiosidade das empresas, a
infeliz Nigrícia jaz ainda sob o espantoso domínio de Satanás.
2314
2. Uma vez que foi decretado que a solene bênção do Novo Testamento devia cancelar todas as maldi-
ções do Antigo, será uma glória nobilíssima para o Concílio Ecuménico Vaticano ter acelerado o
cumprimento desta realidade.
Oxalá a África Central possa participar da alegria solene do próximo triunfo da Igreja.
Que no diadema ornado de celestiais gemas que cingem a augusta cabeça da Vitoriosa e Imaculada Mãe
de Deus, resplandeça o povo dos negros, já conquistado para Cristo, como uma pérola morena.

[Seguem-se as assinaturas dos Em. R. padres conciliares]

Original latino
Tradução do italiano

N.o 361 (339) - A D. JOÃO BOSCO


ASR, S.1261

VV. os Sag. Corações de J. e de M.


Roma, 3 de Julho de 1870

Meu caríssimo e venerado D. João,


2315
Compreendendo a fundo o seu coração e as suas santas intenções, sem mais preâmbulos, passo a fazer-lhe
uma petição, que requer uma resposta no mais breve tempo possível.
Estaria o senhor disposto a reunir dois ou três jovens sacerdotes dos seus, com quatro ou cinco dos seus
experimentadíssimos artesãos e catequistas e colocá-los à minha disposição para eu os poder levar para o
Egipto, para o meu insto. masculino do Cairo, onde há uma comodíssima casa e uma igreja preparadas?
Formariam parte do meu instituto, sob a minha jurisdição, e eu encarregar-me-ia deles no tocante à viagem,
comida, roupa, aprendizagem de línguas e em tudo o resto; porém, entretanto, dar-lhes-ia uma adequada
autonomia, de modo que, mais adiante, ajudados e aumentados em número por outros do seu instituto turi-
nense, o meu insto. do Cairo pô-los-ia em condição de, a seu devido tempo, dirigirem uma missão especial
no centro da África, a qual seria confiada exclusivamente ao Instituto D. Bosco, de Turim.
2316
Compreende? Quereria que o seu santo instituto, com uma parte dos meios que Deus me deu, se enxertas-
se pouco a pouco na África Central. Mas como, tentando por sua conta, encontraria rapidamente obstáculos
por parte da grande ordem que tem a jurisdição do Egipto, seria necessário que no princípio aparecesse como
formando parte do meu, que já está implantado no Egipto e ao qual em breve será confiada uma grande mis-
são da África Central.
2317
Se lá para o próximo Setembro puder pôr à minha disposição esses dois ou três padres e ainda melhor
mais, com os correspondentes leigos, escreva-me de seguida, que o bispo de Verona (que é um verdadeiro
anjo para a África) e eu empreenderemos e ultimaremos as práticas necessárias aqui em Roma. Nós ocupar-
nos-emos de tudo: o senhor encarrega-se de preparar o pessoal indicado, que eu irei buscá-lo a Turim para o
levar para o Egipto, a poucos passos de onde a Sagrada Família viveu exilada sete anos na terra dos faraós.
Aguardo uma resposta. Se, como espero, for afirmativa, com a autorização do bispo de Verona, etc. fare-
mos as escrituras necessárias e, em nome de Deus, daremos início à obra concebida.
Os meus três institutos do Egipto vão muito bem. São 55 os seus membros e muitíssimas as almas arran-
cadas ao paganismo e conduzidas ao redil de Cristo.
Nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, passo a declarar-me com todo o afecto

Seu hum. e af.mo amigo


P.e Daniel Comboni

Espero que tenha recebido o meu postulatum ao concílio pro nigris Africae centralis.

N.o 362 (340) - À SR.a ANGELINA FRIGOTTO


ACR, A, c. 15/161

Roma, 18 de Julho de 1870


Estimadíssima sra. Angelina,

2318
Foi-me sobremaneira grata a sua estimadíssima cartinha e dar-lhe-ia uma resposta adequada, falando-lhe
do andamento das minhas pequenas obras, se as minhas excessivas ocupações me concedessem um pouco de
tempo. Mas, como conto ir a Lonigo no próximo mês ou o mais tardar em Setembro, deixo tudo para lhe
contar de viva voz e assim verá que, embora habituado a falar muito em línguas estrangeiras, ainda me resta
língua para lhe desbobinar as minhas notícias em bom e castiço veronês. Dir-lhe-ei apenas que tenho no Cai-
ro três institutos, um masculino e dois femininos, os quais ganham todas as semanas para Cristo almas que
habitam na sombra da morte e que no próximo ano abrirei mais duas casas a 1400 milhas do Cairo, em direc-
ção ao centro da África; dir-lhe-ei também que cada dia que vejo o Sol são-me indispensáveis cento e vinte e
cinco francos, que tenho de arranjar por todos os meios, sem calcular outras despesas, viagens, etc.; que do
pequeno hospital para negros doentes que abri no Cairo Velho voam para o céu muitas almas antes destina-
das ao Inferno; que tive que lutar com terríveis obstáculos e que, graças a Deus, a obra avança a bom ritmo.
Como manifestei a todos em Roma e fora dela, não quero nem ouvir falar de dificuldades ou impossibilida-
des. Chamaram-me louco e continuarão a chamar-me no futuro. Coisas como esta fazem-me o ângulo de
incidência igual ao da reflexão: quero seguir com a minha obra em frente, quero implantar estavelmente a fé
na África Central, mesmo que caia o universo. Portanto reze e faça rezar por esta intenção e Deus a recom-
pensará.
2319
Foi-me muito grato saber tão boas notícias sobre a sua família. Meu Deus! Deste passo, a pequena con-
verte-se em mãe de uma tribo. Apresente-lhe muitas saudações e igualmente ao meu estimado senhor doutor
e ao marido da pequena.
Porém, tanto como me alegraram essas boas novas, causou-me dor a notícia do cancro da sua mamã. Mau
há-de ser que o doutor não consiga dar-lhe as voltas e fazer de maneira que se possa extirpar. Vi curas desta
doença. Na minha insignificância, rogarei ao Senhor e antes de partir de Roma pedirei ao Papa uma nova
bênção especial para a sua mamã.
Hoje é a solene definição da infalibilidade. Às oito vou também eu ao Vaticano, como teólogo conciliar
do bispo. Será um espectáculo!
2320
Diga a P.e Luciano que não disponho de tempo para lhe escrever, mas que lhe tenho muito afecto e me
lembro bem dele. Ainda que esteja muito pobre, mando uma pequena recordação, uma medalhinha do Concí-
lio Vaticano, abençoada por Pio IX, a ele, à nossa querida pequena, às duas noivas da Casa Rosa, a Gigia de
Legnago e a Ágata Bronzini, para as quais mando muitos cumprimentos. Mando também um pequeno cruci-
fixo à sua mãe e uma medalha conciliar a P.e Luciano. Além disso, Frei Melotto deu-me dois crucifixos e
que pedi a S. S. para os abençoar e se destinam ao seu pai; a estes acrescentei eu um para o mesmo velho
Melotto, porque o frade me disse que nenhum dos dois era para ele.
Dê cumprimentos e recordações a todos os meus conhecidos de Lonigo que frequentam a Casa Rosa e a
sua e faça rezar pela conversão dos negros e por mim.
Enviei o meu postulatum italiano para Lonigo: leia-o e reze, sobretudo por este pobre africano.

Seu af.mo
e
P. Daniel Comboni

(2 p. m.) Assisti hoje à 4.a sessão do Concílio Vaticano como teólogo. Todos disseram sim, menos dois
bispos, um de 37 anos, americano, e o outro de 53 anos, napolitano. Faltaram 102, em parte por doença e em
parte para não dar o sim. Foi um espectáculo!
2321
Mando-lhe a fotografia de duas das minhas freiras do Egipto: Irmã Madalena, uma arménia, escreveu-me
agora pelo meu santo e pediu-me que lhe levasse a vida de S. Luís Gonzaga e uma relíquia de St.a Inês, ac-
crescentando: «Papá, se me trouxer estas duas coisas, prometo-lhe pôr da minha parte todo o meu empenho
para me tornar santa com a ajuda da Mamã.» Esta, quando tiver 25 anos, será uma grande missionária. Man-
dar-lhe-ia o retrato da minha superiora, mas já o não tenho.

N.o 363 (341) - A MADALENA GIRELLI


ACR, A, c. 14/135

Seminário de Verona, 22 de Setembro de 1870

Gentilíssima senhora,
2322
A sua carta de 8 do corrente chegou-me durante os santos exercícios e li-a no dia 18, logo que os mesmos
terminaram. Estou-lhe infinitamente agradecido, bem como a sua devotíssima irmã Elisa, pelos sentimentos
cheios de caridade e de espírito divino que a dita carta contém, tanto no tocante a mim quanto no que respeita
à salvação das almas, finalidade para a qual se orientam os nossos desejos. Confesso-lhe francamente que foi
para mim um grande prazer fazer-lhes uma visita e fiquei sumamente edificado com ambas. E entre o que
ouvi em Bréscia da Regra de Santa Ângela e o desenvolvimento e explicação que li sobre o mesmo tema,
concebi uma ideia sublime desta obra eminentemente católica e pia, à qual estão consagradas e que, sem
dúvida, expandirão o santo fogo que esta ínclita concidadã nossa, honra da nossa pátria, também nas abrasa-
doras regiões da África Central, onde ainda reinam a superstição e o erro e domina Satanás.
2323
É preciso que formemos uma liga de orações e que o Coração Sacratíssimo de Jesus seja o centro de co-
municação entre nós, entre Bréscia e a Nigrícia. Por elas rezaremos nós incessantemente, em comum, nos
institutos de África e as generosas filhas de Santa Ângela Merici, orientadas pelas duas irmãs, elevem fervo-
rosas orações ao Altíssimo pela conversão dos negros. Esta união de preces constituirá uma fortíssima opera-
ção de assédio que empreenderemos contra o império das trevas que oprime a desditosa estirpe de Cam e da
pátria de Santa Ângela sairá a benéfica luz que brilhará sobre as errantes e tenebrosas tribos da Nigrícia para
as conduzir a Cristo.
Hoje recebi do Cairo cartas muito consoladoras. Também esta semana se ganharam muitas almas para
Deus, entre elas uma negra de 25 anos, que morreu umas horas depois de receber o santo baptismo.
2324
A fim de que seja eficaz a nossa oração, busquemos o tesouro da cruz. Nunca a sabedoria de Deus se re-
velou com maior esplendor do que ao criar a cruz.
2325
O Filho de Deus não podia revelar-nos mais luminosamente a sua infinita sabedoria do que ao criar a
cruz. As grandes obras de Deus só nascem ao pé do calvário. Ficar-lhe-ei muito agradecido se pedir ao Cora-
ção de Jesus que me mande abundantes cruzes: será sinal de que serão seguidas de um grande número de
almas conquistadas para a fé.
2326
Eu também rezarei a Jesus que lhe mande não poucas cruzinhas. No Céu conheceremos profundamente a
filosofia da cruz. Às armas, portanto! Percorramos com passos de gigante o caminho da caridade e da cruz e
detenhamo-nos apenas no Paraíso.
Desejo que me mandem notícias vossas; eu, da minha parte, farei outro tanto. Espero que não tardarei
muito a vê-las em Bréscia. Entretanto, rezemos pelo nosso Santo Padre Pio IX. Esta é a hora do império das
trevas. Porém, após elas, virá a luz e começará o triunfo da Igreja.
2327
Na foto que lhe envio junto, a primeira é Faustina Stampais; a segunda a Ir. Maria Bertholon, de Lião; a
terceira Catarina Zenab, filha de um rei negro, à qual vi, pela primeira vez, na tribo dos Kich do Nilo Branco,
na África Central, a quem trouxe para a Europa e depois levei para o Egipto. É uma grande e habilíssima
missionária.
Entrego as duas aos Corações de Jesus e de Maria, rogando-lhes que se lembrem deste pobre servo dos
negros.

Seu dev.mo servidor


P.e Daniel Comboni, M. A.

N.o 364 (342) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/273

Verona, Setembro de 1870

Rev.mo e estimado P.e Artini,


2328
Teria que ter deixado tudo para ir ter consigo e falar longamente do importante assunto que estamos dis-
cutindo o P.e Estanislau e eu; mas já não me resta tempo até terminar os santos exercícios. Os dois escrevem-
me do Cairo, dizendo-me que estão bem, sobretudo o P.e Franceschini, que se restabeleceu totalmente com
os banhos de Alexandria. Escreve-me também o P.e Bern. Girelli, etc. que manda mil saudações.
2329
Eis do que se trata: o P.e Estanislau quer que eu ceda à ordem de S. Camilo todo o insto. masculino e o
feminino das irmãs como subsidiário, e que os meus missionários sejam como hóspedes em pensão no Cairo.
Eu, ao contrário, estou disposto a dar uma das casas do convento maronita e metade dos jovens e a fazer uma
casa camiliana, destruindo a minha. Se não cedo de modo definitivo o insto. masculino aos camilianos, Bep-
pi e Estanislau abandonam imediatamente o Egipto e regressam à Europa. Suponho que é uma brincadeira;
mas esta fantasia sobreveio ao meu bom Estanislau, de quem muito gosto e a quem estimo mais que a mim
mesmo. Eu ofereço uma das duas casas masculinas aos dois camilianos, enquanto forem dois: só quando
vierem mais camilianos lhes daria uma e outra casa. O P.e Estanislau pretende que eu actue como se tivesse
no Cairo 15 padres camilianos. É um sonhador. E Beppi escreveu-me em termos parecidos. Enfim, mando-
lhe confidencialmente a carta, sobre a qual deve guardar rigoroso segredo, pedindo-lhe que ma devolva ama-
nhã à noite, por meio de Bertoli. Quero que os camilianos tenham na África não só uma casa mas uma gran-
de missão e eu encarregar-me-ei do sustento; porém, com a sua implantação não quero destruir-me a mim
mesmo e ao meu instituto de missionários seculares.
Terminados os exercícios, irei visitá-lo para ouvir a sua opinião e os seus conselhos e estou certo de que
os apreciarei sumamente. Porém, silêncio!

Seu af.mo
P.e Daniel Comboni

N.o 365 (343) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/274

Verona, Setembro de 1870


Muito rev.do padre,
2330
Junto-lhe as duas últimas do P.e Estanislau, para que o senhor possa emitir o juízo completo que merece o
assunto em discussão com este caríssimo filho de S. Camilo. O juízo de V. P. é para mim de absoluta impor-
tância; o senhor tem inteligência e coração e pode aconselhar-nos, tanto ao P.e Estanislau como a mim. O
que não posso admitir é que o P.e Estanislau creia ou queira crer que eu impedi em Roma o acordo que o P.e
Guardi estava disposto a alcançar. O P.e Guardi e Tezza sabem e conhecem a fundo o assunto. Resumindo: o
senhor, em quem sempre cri e a quem sempre venerei, faça de modo que o P.e Estanislau continue na mis-
são, à espera de tempos melhores, tanto para a Igreja como para os recursos da missão, porque o P.e Estanis-
lau une aos seus defeitos qualidades sublimes. Com todo o coração
Se af.mo, P.e Daniel Comboni

Conserve as duas cartas do P.e Estanislau, que recolherei quando for ter consigo.

N.o 366 (344) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C, v. 7, f. 1409v

V. J. e M.
Seminário de Verona, 12 de Outubro de 1870

Em.º Príncipe,

2331
Seguindo o sábio conselho e o desejo de V. Em.a Rev.ma, empreendi a tarefa de estabelecer, de acordo
com mons. Canossa, o Colégio das Missões Africanas de Verona. Para tal fim, arranjei uma casa anexa ao
seminário episcopal, a qual, dentro de seis meses, deverá estar totalmente paga e que, por mil razões, se
adapta perfeitamente ao fim a que se destina. Além disso, graças à ajuda do sábio reitor do seminário episco-
pal, Deus permitiu-me um excelente eclesiástico veronês para colocar à frente do referido colégio. E como
seria o meu desejo que este se constituísse solidamente, inspirando-se nos mais relevantes estabelecimentos
das missões estrangeiras e no espírito da Propaganda, da qual o Colégio de Verona deve ser filho e proprie-
dade, seria muito desejável que o novo reitor passasse um ano ou mais no Colégio Urbano da Prop. Fide,
onde podia impregnar-se das normas e do sistema mais adequado para a educação apostólica, para dele tirar
tesouros para o instituto de Verona e onde, ao mesmo tempo, chegaria a conhecer bem as suas futuras rela-
ções com a S. C. de P. F. Entenda-se que para isto haveria a devida contribuição da nossa parte. O magnâni-
mo coração de V. Em.a poderia conceder esta graça quando o julgasse mais oportuno. Por agora, disponho
de dois magníficos eclesiásticos. Um deles tem trinta anos, é cónego e dirigiu durante quatro anos, de manei-
ra muito digna de encómios, uma paróquia de mais de 20 mil almas. Deus e o meu postulado ao concílio
ganharam-no para a Nigrícia. Outros três jovens sacerdotes pedem insistentemente a mesma graça; todavia,
ainda não obtivemos todas as informações.
2332
Não lhe posso exprimir por palavras a minha dor pelo enorme delito recentemente perpetrado contra o
nosso adorado Santo Padre e a Santa Sé Apostólica por parte dos mais ferozes inimigos do Papado. Exprimo
humildemente a V. Em.a Rev.ma as minhas mais profundas condolências, a fim de que, se lhe aprouver, se
digne transmiti-las a Sua Santidade, também em nome dos meus pequenos institutos do Egipto e faço votos
para que Aquele que manda no coração do Rei e no de todas as criaturas livre quanto antes o nosso Santo
Padre e a Cidade Eterna das mãos do inimigos de Cristo e abra a almejada era do grande triunfo da Igreja. Eu
ficaria feliz se me fosse dado aliviar com o sacrifício da minha vida as penas do nosso Santo Pontífice-Rei,
enxugando-lhe ao menos uma lágrima, e ofereço-me a V. Em.a em corpo e alma para esse fim, feliz de poder
sofrer e morrer pelo Vigário de J. Cristo.
Pelo movimento católico que se está a iniciar e pelo conjunto de muitas coisas, desperta em mim a mais
firme esperança de que está próximo o momento em que, após uma nuvem de passageira tribulação, o cora-
ção de Sua Santidade encontrará conforto, porque a Providência porá fim à terrível luta entre a revolução e o
Papado e a voz do Padre Eterno fará ressoar no mundo estas grandes palavras: «Feci iudicium meum et cau-
sam meam... et periit impius...Vicit leo de tribu Iuda.»
Receba os respeitos que lhe apresenta mons. o bispo de Verona e digne-se aceitar a expressão da minha
absoluta obediência e profunda veneração e gratidão, com as quais me declaro para sempre

De V. Em.a Rev.ma
humo. e dev.mo filho
P.e Daniel Comboni

N.o 367 (345) - A JEAN FRANÇOIS DES GARETS


APFL

Seminário de Verona, 23 de Outubro de 1870

Senhor presidente,

2333
Acabando de ler nos jornais que para o dia 1 de Novembro próximo os selos postais na França vão ser
substituídos por outros, permito-me enviar-lhe um bom número deles que possuo, a fim de que possam ser
úteis para a correspondência da Propagação da Fé nestes poucos dias que restam de Outubro.
Dentro de uns dias anunciarei a partida de cinco missionários para os meus instos. do Egipto.
Deus guarde essa nobre nação que criou a obra admirável da Propagação da Fé.
2334
Transmita, senhor presidente, as minhas mais respeitosas saudações à sua piedosa família, ao sr. abade
Des Georges, ao sr. abade Laverrière e ao sr. Maynis e reze pelos pobres negros e pelo

Seu devotíssimo servidor


P.e Daniel Comboni, M. A.

A minha partida está marcada para o próximo sábado.


Os selos são no valor de 108 peças de quatro soldos.
Expresso os melhores desejos pela obra das minhas missões, a obra por excelência da Propagação da Fé e
que Deus a conserve por muito tempo.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 368 (346) - À SRA. ROSA FIORE


ASC, c. 1869 –1871

Limone, 23 de Outubro de 1870

Dedicatória.

N.o 369 (347) - A MONS. LUÍS CIURCIA


AVAE, c. 23

V. J. M. J.
Seminário de Verona, 18 de Novembro de 1870

Excelência reverendíssima,

2335
Finalmente me é dado saber que V. E. se encontra no campo do seu sublime apostolado. Espero que tenha
recuperado completamente a sua preciosa saúde e que o Egipto e a Nigrícia tenham recuperado por muitos
anos ao seu veneradíssimo padre. Eu, ainda que indigno filho seu, alegro-me imensamente por isso. Agora
vou expor-lhe em poucas linhas o resumo dos meus assuntos desde a sua partida de Roma até hoje, subme-
tendo-me em tudo a V. E. e professando-lhe em cada coisa fiel obediência.
O postulatum assinado por centenas de prelados foi acolhido em geral com grande interesse não só entre
os bispos, mas também entre os cardeais e até por S. S.; e após obter a aprovação da comissão encarregada
de examinar as propostas dos padres, recebeu a assinatura do Santo Padre na tarde de 18 de Julho e uma bre-
víssima anotação de alguns bispos no Schema Constitutionis super Missionibus Apostolocis, na pág. 13, 3.a
linha. Inútil dizer-lhe que quase todos os bispos tiveram a bondade de me receber e tive a satisfação de lhes
recomendar o postulatum e de lhes pedir a sua cooperação para que proporcionem algum bom missionário
para a Nigrícia.
2336
Nas longas conversas que tive com S. Em.a o cardeal-prefeito, ele recomendou-me encarecidamente que
pusesse bem em funcionamento o Colégio das Missões Africanas de Verona, recomendação que S. Em.a
repetiu insistentemente a mons. Canossa; e com razão, porque, sem o apoio de um Instituto na Europa, se
construiria sobre areia. Com o seu grande sentido de humor, o cardeal falou-me mais de uma vez nestes ter-
mos: «Ou me trazes um atestado em que me asseguras que vais viver mais 35 anos, ou me estabeleces bem o
colégio de Verona: em ambos estes casos dar-te-ei uma missão na África Central. Por outro lado, se me não
fazes o colégio e te acontece um acidente que te leva para o outro mundo, é de temer que a tua obra morra
contigo.»
2337
Porém, como não encontrei nenhum santo que me assegure a vida de hoje para amanhã, impõe-se solidi-
ficar bem o Colégio. E, ainda que esteja plenamente convencido do servus inutilis sum, porque só sirvo para
armar sarilhos, encontro certíssimo o arrazoado de Sua Eminência. Por isso, regressado a Verona no dia 12
de Agosto com mons. o bispo, comprámos uma ampla casa anexa ao seminário episcopal, que, por mil moti-
vos, é muito adequado para o nosso objectivo e, a estas horas, não faltam senão 13 600 francos para a pagar.
Com a ajuda do muito estimado reitor do seminário, pudemos encontrar um excelente sacerdote veronês para
director do colégio, que no próximo mês de Março passará a ocupar o seu lugar, para se dedicar por comple-
to à educação dos candidatos à missão africana. Entretanto o postulatum produz bons frutos, dado que de
muitas dioceses nos chegam pedidos de bons sacerdotes que desejam consagrar-se à obra. Até agora aceitá-
mos quatro deles, que entrarão no colégio em Março, época em que a casa estará livre de todos os inquilinos.
Deste modo, espero que em pouco tempo conseguirei fazer funcionar razoavelmente o colégio. Teria gostado
de colocar na Propaganda por algum tempo o novo director do colégio; porém, S. Em. a o cardeal Barnabó,
ao não considerá-lo oportuno hic et nunc, escrevia-me assim de Roma no dia 11 do corrente mês:
2338
«Alegro-me de que tenha conseguido começar lá a obra das missões africanas, colocando vários jovens
sob a direcção do sacerdote que nomeia. Contudo, o senhor mesmo vê que estes momentos de tribulação e de
luto não é possível pensar em fazer vir a Roma o dito sacerdote, segundo o que propõe V. S., pelo que haverá
que contentar-se com o que lá se puder fazer. Por agora sirva-lhe de conforto o bem e ponha nas mãos de
Deus a causa das missões africanas, pela qual luta desde há tanto tempo. Entretanto, desejo-lhe,
etc....Barnabó.»
2339
Entretanto, na esperança de que o insto. do Cairo Velho não tenha necessidade de mim, mons. Canossa
retém-me em Verona, de onde irei a um lado e a outro por razões pecuniárias. Contudo, no caso de V. E.
julgar conveniente que eu volte ao Egipto, bastará apenas um sinal seu, conhecendo eu bem o zelo de V. E. e
sabendo que na sua sabedoria vê melhor que eu o modo e os meios de favorecer mais a obra a que estou con-
sagrado. Mr. Des Georges acaba de me escrever cheio de preocupação pelo futuro da Prop. da Fé, dados os
lutuosos acontecimentos de França. Eu estou infinitamente agradecido a V. E. pela generosa ajuda que me
foi concedida este ano.
2340
Agora passo a submeter a V. E. um assunto mais que sério, em disputa entre o P. e Carcereri e eu, e que
me causa profunda aflição. Eu peço ao Senhor todos os dias: primeiro, cruzes, que são necessárias para im-
plantar bem e tornar fecundas as obras de Deus; segundo, pessoal masculino e feminino embebido pelo espí-
rito de J. C.; terceiro, meios pecuniários e materiais para manter a sua obra. A bondade divina é sumamente
amorosa ao conceder-me especialmente a primeira graça.
2341
Desde o momento em que estes dois camilianos vieram para o Egipto munidos do breve pontifício, mani-
festaram-me o desejo de que com o tempo eu abrisse em África uma casa camiliana para ajudar as missões
da Nigrícia e para o serviço da minha obra. Eu desde o princípio e sempre pretendi responder a esse desejo,
até para o bem dos pobres negros; mas queria que isso se verificasse quando o meu instituto estivesse bem
estabelecido e razoavelmente provido de missionários seculares e quando eu pudesse dispor de meios sufici-
entes para fundar a casa camiliana, com a prévia autorização, claro está, do vigário apostólico do Egipto, do
bispo de Verona e do geral dos camilianos.
2342
Acontecendo depois que com o tempo se concedesse ao meu instituto uma missão na Nigrícia, seria mi-
nha intenção atribuir uma ou mais tribos aos camilianos que tivessem formado parte do meu insto. do Egipto,
também no caso de, aumentando o nosso pessoal de S. Camilo, quisessem ter uma missão própria sem de-
pender de nós. Exprimi-me neste sentido em todas as ocasiões, desejando sinceramente contribuir deste mo-
do para o bem daquelas almas, mas sempre com a condição de que a autoridade superior sancionasse o pro-
jecto.
2343
Durante a minha estada em Roma, o bom P.e Carcereri procurou pressionar-me com cartas nas quais me
pedia que suplicasse ao seu superior geral que desse o seu consentimento para a formação de uma casa cami-
liana no Cairo e acabou instando-me que cedesse aos camilianos o meu instituto masculino do Cairo Velho e
a direcção do feminino, ficando os meus sacerdotes seculares como em pensão com nos camilianos e sujeitos
às regras e ao superior destes. Eu percebi bem o que propunha o P.e Carcereri; e como este assunto dependia
de V. E. e da Propaganda mais que de mim, limitei-me a pedir ao P.e Guardi que abençoasse os dois camili-
anos do Egipto e lhes permitisse estarem no meu instituto, até eu poder dispor de meios para abrir uma casa
camiliana para ajuda dos negros.
2344
O P.e Guardi sempre me repetiu que lhe era impossível dispor de mais pessoal, porque tinha muita falta
dele; e todas as vezes que interroguei sobre isso o P.e Artini, seu provincial no Véneto, respondeu-me invari-
avelmente que não tinha nem um só homem para a África. Então compreendi que os únicos camilianos de
que essa ordem poderia dispor se limitavam apenas a Carcereri e Franceschini. Sendo assim as coisas, co-
mo poderia eu enfrentar o projecto de criar uma casa de dois camilianos, um dos quais, o P.e Franceschini,
tinha sido então despachado como tísico, segundo o que escrevia Carcereri? Contudo, para não contrariar
este na sua crescente insistência, com receio de perder tão bom missionário para a Nigrícia, ofereci ao P. e
geral, para os camilianos do Egipto, três mil francos ao ano e uma das duas pequenas casas dos maronitas no
Cairo Velho, com a igreja partilhada, com a prévia aprovação de V. E. Rev.ma, ainda que, no fundo, estives-
se convencido de que tal passo era ainda prematuro; e solicitei ao P.e Guardi que escrevesse aos seus dois
filhos do Cairo e os animasse com afectuosas e paternais palavras.
2345
Não sei o que lhes escreveu para o Cairo o P.e geral; só sei que, vinte dias depois, o P.e Carcereri me
mandou para Verona uma carta virulenta e ameaçadora, na qual me recriminava acerbamente por não ter
querido chegar a nenhum acordo com o P.e Guardi, por ter atraiçoado as suas esperanças e o ter enganado; e
intimava-me a mandar-lhe na volta do correio um documento no qual eu cedesse aos camilianos o meu insti-
tuto masculino, pois, de contrário, ele e o P.e Franceschini abandonariam o Cairo sem mais, e voltariam à
Europa.
2346
Essa atitude de tão pouca humildade e tão pouco religioso respeito para com o superior imediato produziu
na minha alma uma dolorosa impressão. Aceitei com calma esta cruz e convidei o P. e Estanislau a mandar-
me os nomes e apelidos dos sacerdotes camilianos de que podia dispor e a expor-me por escrito, no seu es-
sencial, as condições da cedência do meu insto. masculino, desejando assim ganhar tempo e amadurecer as
propostas que fizessem, para depois as submeter a V. E e ao bispo de Verona, no caso de serem razoáveis.
Eis aqui a cópia ad litteram do contrato que o P.e Estanislau teve a coragem de me apresentar sob a ameaça
de abandonar imediatamente o Egipto, se eu não desse o meu formal consentimento. De facto, tendo-lhe eu
respondido que nesta época tão dolorosa para a Europa e para a Propagação da Fé era impossível aceder às
suas pretensões, apresentou-me a sua demissão com a sua carta de 21 de Setembro, que é a última que me
escreveu, salvo duas linhas que me mandou com o último vapor, a transpirarem descontentamento e pouco
bom espírito. Eis o contrato:

2347
Projecto
do contrato da cedência do insto. masculino de negros do Cairo Velho à Ordem dos Clérigos Regulares Mi-
nistros dos Enfermos por parte de P.e Comboni.
O M. R. sr. P.e Comboni, como fundador do mencionado instituto, por si e seus sucessores no governo da
missão central que a S. C. da Propaganda nomear para o dito instituto, e o rev.mo P.e camiliano Guardi, co-
mo actual vigário-geral da ordem religiosa referida, por si e seus sucessores no generalato da mencionada
ordem, obrigam-se reciprocamente às seguintes condições, constitutivas do contrato de cedência acima men-
cionado.
2348
1.o A Ordem dos Ministros dos Enfermos assume: a) toda a responsabilidade; b) a obrigação de educar os
jovens negros segundo as normas traçadas no Plano para a Regeneração da África; c) a livre administração
e d) faz seu o objectivo do Instituto masculino dos negros do Cairo.
2349
2.o Assume igualmente a direcção espiritual e religiosa do instituto feminino de negras, só que no que diz
respeito à parte religiosa e moral, assim como ao serviço religioso do mesmo, tanto no tocante à celebração
ou administração dos s. mistérios como no respeitante às doentes e defuntas e similares.
2350
3.o O sr. P.e Comboni reserva-se o direito de dispor dos padres Carcereri e Franceschini para o bem geral
da missão até ao cumprimento do quinquénio estabelecido pelo breve pontifício de 5 de Julho de 1867.
2351
4.o Reserva-se outrossim o direito de dispor dos alunos negros do instituto para as necessidades especiais
e gerais da missão. Porém, a ordem não aceita a responsabilidade de educar senão aqueles para os quais seja
passado um certificado nesse sentido e isso tanto quanto aos estudos gerais como aos artesanais. Esta cláusu-
la diz respeito aos que eventualmente saírem do instituto antes de terem cumprido o tempo necessário que se
fixar para a educação.
2352
5.o Reserva-se finalmente o direito de colocar ad tempus no dito instituto os alunos seculares do seu se-
minário, tanto para os aclimatar como para os iniciar em ordem à missão central e no estudo das línguas.
Porém, durante a sua permanência no instituto do Cairo, estarão totalmente sujeitos às regras gerais do mes-
mo e mostrar-se-ão dispostos a servir o insto. como os outros religiosos, com os quais farão vida em comum.
2353
6.o A dita ordem obriga-se a não dar ou permitir aos alunos outro destino que se afaste do plano geral da
obra, sem conhecimento e aprovação do mesmo P.e Comboni. Reserva-se, por isso, a aceitar e dispor daque-
les que mantivesse a expensas próprias.
2354
7.o O sr. P.e Comboni obriga-se a proporcionar aos religiosos e alunos a conveniente habitação com igre-
ja e capela próprias e procurará que fique possivelmente situada perto da capital e que tenha jardim ou terre-
no cultivável para a instrução agrícola dos alunos.
2355
8.o Concede para uso e consumo dos mesmos religiosos e alunos tudo o que actualmente tem no instituto:
móveis, enxovais, roupas, víveres e combustíveis.
2356
9.o As reparações ou modificações reconhecidas como necessárias nos locais ficarão também a cargo de
P.e Comboni e seus sucessores, devendo estas ser sempre propriedade da missão.
2357
10.o Das esmolas que receber, o mesmo sr. P.e Comboni obriga-se igualmente a contribuir, para a alimen-
tação e roupa e como dotação, segundo o número exigido pelas leis canónicas de doze religiosos, com a so-
ma anual de 6000 (seis mil) francos, sendo metade antecipada em Janeiro e a outra metade sempre antecipa-
da em Julho. O número de religiosos que for além de 12 fica a cargo da ordem religiosa.
2358
11.o Desta soma é garante, por dez anos, a sociedade dos pobres negros estabelecida em Colónia. Neste
período obriga-se, além disso, o rev.do sr. P.e Comboni a realizar em bens imóveis o capital correspondente
(e se, como diz S. Em.a, um acidente leva P.e Comboni para ao outro mundo?!!), continuando, no entanto, os
religiosos a receber apenas o usufruto do mesmo nas proporções estabelecidas pelo art.o 1.o, e retendo a
missão a propriedade do capital – sem prejuízo de especiais acordos ulteriores.
2359
12.o Contribui igualmente para a alimentação, roupa e ensino com trezentos francos anuais para cada alu-
no que manda educar no instituto, quer se trate de missionários seculares, negros, abandonados ou de doentes
recolhidos. Fica entendido que os sacerdotes hóspedes aplicarão também a missa pelo insto., segundo as
intenções do director camiliano. As ditas pensões calculam-se em quadrimestres: quem entra ou sai quando o
quadrimestre tiver começado, paga na íntegra a cota correspondente.
2360
13.o Estas pensões pagam-se por períodos íntegros de seis meses, vencido o prazo, isto é, em Janeiro e
Julho.
2361
14.o Com estas contribuições, a ordem fica obrigada a proporcionar aos religiosos e alunos albergados a
comida, a roupa, os medicamentos, os livros e instrumentos necessários e roupa branca, assim como tudo o
que for necessário para a igreja e para a casa. É sempre livre de procurar esmolas onde quiser e aceitá-las.
2362
15.o A alimentação dos alunos consta de três refeições diárias, com prato além da sopa ao almoço, sem
obrigação de vinho e sobremesa. A dos missionários será a mesma dos religiosos in omnibus.
2363
16.o Este contrato será obrigatório e irrescindível para ambas as partes desde o dia da assinatura do mes-
mo. Antes, contudo, deverá ser formalmente aprovado pela S. C. da Prop. F., por S. E. mons. o vigário apos-
tólico e pela benemérita Sociedade de Colónia, no que a cada um deles compete no presente contrato.
2364
17.o Por último, este contrato, tanto no respeitante às contribuições como à aplicação do mesmo, entrará
definitivamente em vigor a partir do próximo dia 1 de Janeiro de 1871.

Estanislau Carcereri
Cairo, 15 de Setembro de 1870

2365
Foi este o contrato que o P.e Carcereri me propôs. Como bem vê V. E., se hic e nunc, nas lutuosas cir-
cunstâncias em que se encontram a França, a Europa e Roma, eu apresentasse ao Em. o card. Barnabó seme-
lhante do-cumento para aprovação, ele soltaria uma solene e estrondosa gargalhada e, como um louco para
ser amarrado com vinte e oito cordas, mandar-me-ia a S. Servolo de Veneza. Será por uma especial provi-
dência de Deus se este ano se conseguirem manter de forma conveniente as pequenas casas do Cairo e o
novo colégio de Verona. Por outro lado, enquanto o dito colégio tem um bom futuro, e enquanto muitos sa-
cerdotes bons e capazes pedem para entrar nele – pedidos que se multiplicam cada vez mais após o concílio –
, a ordem camiliana está na mó de baixo (V. E. pode informar-se bem pelo P.e Bernardino Girelli), dado que,
das quatro ou cinco províncias que a constituem, segundo palavras do P.e Carcereri, só as províncias véneta
e romana estão algo bem. Porém, o P.e Artini, provincial do Véneto, assegurou-me que não tem nem sequer
um que se queira consagrar à África e o mesmo me disse mais de uma vez o P.e Guardi quanto à província
romana.
2366
Que eu saiba, só P.e Tezza, de Roma, com os três ou quatro noviços que tem, estaria em condições de vir;
porém, com tudo isto, parece-me claro que, dadas as actuais circunstâncias da Europa, de Roma, da ordem
camiliana e do meu insto., será melhor deixar tudo no statu quo e avançar assim uns anos até que as coisas se
vão resolvendo e assentando e fiquem mais claras.
2367
Não diga ao P.e Estanislau que os cinco anos do breve se cumprem dentro de vinte meses. Tanto o P.e
Guardi como o bispo de Verona são razoáveis. Nestes vinte meses que faltam para a caducidade do breve,
poder-se-á ver se é viável o projecto de criar uma casa camiliana; e, em caso afirmativo, como espero, pro-
longar-se-á o breve e as coisas far-se-ão com calma e bem pensadas. Porém, ceder hic et nunc o Instituto
masculino e o feminino a dois camilianos, expondo-me ao perigo de ser abandonado pelos meus sacerdotes
seculares e com risco de que a fonte deles se seque, não me parece coisa útil e vantajosa nem para a obra,
nem para os interesses do meu Instituto e nem sequer me parece um esplêndido negócio para a ordem cami-
liana. É meu desejo e aspiração ver fundada uma casa camiliana para ajuda dos negros; mas não gostaria de
ver a minha destruída por causa dela. Quero fazer prosperar o meu insto. masculino do Cairo com os meus
sacerdotes seculares e, ao mesmo tempo, ter na missão o P.e Estanislau, que a certos defeitos une excelentes
qualidades e ver também uma ou mais casas camilianas.
2368
Expus o meu parecer e os meus pontos de vista, disposto, não obstante, a modificá-los ou a mudá-los
completamente, segundo o sábio e profundo juízo de V. E. Rev.ma, responsável da minha obra no Egipto e
pai dos meus pobres institutos. Eu seria incapaz de fazer algo contra o meu juízo e consciência, excepto se os
meus superiores forem de outra opinião e especialmente V. E. Rev.ma que vê bem no fundo das coisas e está
em condições de prever as suas consequências. O que me importa muito é conservar na missão o P.e Estanis-
lau. Tem os seus defeitos e requere-se muita suma prudência e cautela para o não contrariar em certas coisas,
dada a facilidade com que se irrita; e muitas vezes perde o respeito aos seus superiores, intimando-os a que
cumpram a sua vontade, como faz agora com o bispo de Verona, ao qual, embora sendo ele visitador da sua
ordem no Véneto e seu superior imediato pelo breve pontifício e por outros títulos, teve a ousadia de escrever
deste modo há quinze dias: «Se V. E. não me promete por carta que o instituto de negros será cedido quanto
antes aos camilianos, e se o meu geral Guardi não me escrever a dizer que V. E. fez tal promessa, regressarei
à Europa imediatamente com Franceschini.»
2369
Este é o resumo da longa carta que escreveu ao bispo, o qual está muito magoado por causa dela. Como
lhe dizia, o P.e Carcereri tem defeitos, fruto, penso, mais da pericardite, enfermidade de que sofre. Porém,
tem tão boas qualidades, virtudes, constância, realismo e abnegação que sentiria muito perdê-lo para a Nigrí-
cia. Por isso dirijo-me com ardentes instâncias ao coração magnânimo de V. E., que é pai de ambos, para lhe
pedir quanto posso e sei que me conserve o P.e Estanislau e procure aguentar ainda por algum tempo, que
Deus, admirável na sua providência, satisfará certamente os seus desejos e os meus. Até há um mês ninguém
sabia nada desta disputa entre ele e mim, excepto Franceschini e Rolleri. Porém, tendo eu informado de tudo
o P.e Pedro (por não saber onde estava V. E.), hoje também ele está ao corrente. O P. e Pedro e P.e Rolleri
acham justas as exigências de Carcereri; mas estou certo de que se ouvissem as minhas razões, as achariam
justas, como pareceram aos dois recém-chegados, o cón. Fiori e Ravignani e, além disso, Pedro Bertoli, que
foi camiliano durante 10 anos. Eu, não obstante, deixo tudo nas mãos do superior legítimo e inspirado por
Deus em virtude da sua missão, ou seja, nas mãos de V. E.
2370
Para terminar, abro-lhe o meu coração sobre um outro ponto e é a razão da minha actual permanência
momentânea na Europa.
Tanto o P.e Pedro como o superior do instituto e outros me asseguram que os institutos no Cairo Velho
vão bem; correspondência privada de membros do instituto informa-me de que tudo funciona de modo satis-
fatório nas minhas casas quando não falta o dinheiro. Por outro lado, é necessário pôr devidamente em funci-
onamento o Colégio das Missões Africanas em Verona, provê-los de meios e de gente de espírito. O cardeal-
prefeito considera este colégio de especialíssima importância para a minha obra; e tem razão, pois é o seu
eixo principal. E como a minha cooperação se torna mais necessária para o colégio de Verona do que para o
do Cairo, que dispõe de bastante pessoal, pensei permanecer aqui, seguindo o conselho de mons. Canossa.
Porém, o primeiro que manda em mim e o primeiro que tem o direito de dirigir os meus passos é V. E.
Rev.ma, como superior primário dos meus institutos do Cairo, que só existem e podem continuar a existir
por vontade e aprovação de V. E. Rev.ma
2371
Portanto é ao senhor a quem compete decidir se posso ficar ou devo voltar ao Egipto. Eu, pelas razões re-
feridas, desejaria ficar até à Páscoa, porque nessa altura vou a Viena e a Praga para operações pecuniárias,
organizo no Véneto a Obra do B. Pastor e depois ponho em andamento o colégio. Porém, se V. E., não dando
valor a estes motivos (ainda que Sua Em.a me tenha pedido que me ocupasse do Colégio de Verona), acha
oportuno e quer que eu regresse ao meu posto no Cairo, sem pensar noutra coisa que na vontade divina, eu
vou para o Cairo, cumprindo o seu desejo, o qual, sem dúvida, é o de Deus. O bispo de Verona, que goza de
pouca saúde e está cheio de tribulações e amarguras, manda a V. E. as suas mais distintas saudações e reco-
menda encarecidamente ao seu zelo o Cairo Velho.
Basta por agora. Pedindo-lhe mil desculpas, a sua bênção e que transmita ao P.e Júlio, Elias, Belga, e,
beijando-lhe com afectuosa e filial veneração a sua mão declaro-me

De V. E. Rev.ma hum. e ob. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 370 (348) - A ISABEL GIRELLI


AAB

Seminário de Verona, 22 de Novembro de 1870

Gentilíssima senhora,

2372
As minhas múltiplas ocupações têm-me impedido de dar um saltinho até Bréscia e Guzzago; contudo, te-
nho esperança de que antes da minha próxima viagem à Alemanha nos vejamos em Bréscia. No dia 29 do
mês passado embarquei em Trieste 4 missionários a bordo do Saturno com direcção ao Egipto e, felizmente,
já chegaram ao Cairo. Entre eles estava um excelente cónego da arquidiocese de Trani, de trinta anos, o qual
foi anteriormente pároco de trinta e duas mil almas e fez prodígios em duas terríveis epidemias de cólera que
na sua extensa paróquia de Corato causavam diariamente cento e cinquenta vítimas. Foi uma conquista feita
este ano num pontifical de S. Pedro, em Roma. Enquanto o Santo Padre estava no Pater Noster, o dito cóne-
go, que se encontrava entre uns bispos orientais e eu, a dez passos do Sumo Pontífice, ofereceu-se-me para a
África; e, no mesmo instante, o arcebispo de Trani, por sua vez, oferecia-o para a África ao bispo de Verona.
Nunca até então o tinha visto nem ouvido o seu nome.
A interessante anedota do nosso primeiro encontro naquele pontifical contar-lha-ei de viva voz. Tendo-o
chamado eu a Verona no dia do Rosário, lançou-se aos meus pés renunciando ao canonicato e dizendo-me:
«A partir deste momento juro-lhe perpétua obediência até à morte; utilize-me como se fosse um pedaço de
madeira.» É um santinho que salvará milhares de almas.
2373
Nunca deixei de rezar todos os dias, incluindo na missa, por si, sua irmã e filha. Mas quero que em troca
reze sempre por nós e pela África. Estamos unidos no Sacratíssimo Coração de Jesus na Terra, para depois
nos unirmos eternamente no Céu.
2374
Rogue ao divino Coração por estes três fins: primeiro, para que me conceda uma grande quantidade de
cruzes e espinhos que mal me deixem respirar, porque sem cruzes não se implantam as obras de Deus; se-
gundo, para que me proporcione um pessoal animado do espírito de Jesus Cristo e da sua caridade, tanto
masculino como feminino, para a obra; terceiro, para que me dê grande abundância de meios pecuniários, a
fim de que se mantenham as nossas obras.
2375
É mister percorrer a passos largos os caminhos de Deus e da santidade, para não nos determos a não ser
no Paraíso.
Saúde da minha parte o meu caríssimo P.e Marino Rodolfi, a quem escreverei em breve. Entretanto, em
vez da carta, mando-lhe junto a foto do meu cónego, que ele teve de fazer por pedido insistente da sua mãe.
Apresente os meus obséquios a S. Ângela Merici e os meus respeitos a sua irmã e creia-me nos Sagrados
Corações de J. e M.

Seu hum. e dev. serv.


P.e Daniel Comboni

Rogo-lhe apresente recomendações ao P.e Marino Confortola.

N.o 371 (349) - AO P.e LUÍS ARTINI


APCV, 1458/283

Seminário de Verona, 2 de Dezembro de 1870

Rev.mo padre,

2376
Parece-me encontrar um pouco de calma no P.e Estanislau; mas pouca humildade, porque não admite ter-
se enganado e sustenta que falava de coisas a realizar com os anos e em tempos melhores, enquanto em todas
as suas cartas falava de coisas imediatas, especialmente na cláusula 17 do contrato que propôs, em que diz:
«17.o Por último, este contrato, tanto no relativo às contribuições como à aplicação do mesmo, entrará
em vigor a partir do próximo dia 1 de Janeiro de 1871.» O P.e Estanislau esteve 52 dias sem me escrever.
Logo que chegaram novos missionários, etc., mandou-me uma carta com data de 8 do mês passado e depois
outra, datada de 18, que aqui junto. Também a recebida ontem do cónego. Tanto este como o P.e Ravignani
escreveram-me maravilhas do P.e Estanislau e muito bem de Franceschini; o mesmo fez o P.e Pedro, o páro-
co franciscano; isso é para mim confortável. Porém, do P.e Estanislau não recebi a mais pequena mostra de
humildade, que é a primeira das coisas. Mesmo assim, eu sempre lhe escrevi todos os oito dias, menos duas
vezes.
2377
Ele escreveu a mons. o bispo muito mal de mim e também falou muito mal de mim a uma alta personali-
dade, dizendo que o caluniei e atraiçoei, que não se pode fiar de mim e que não sou realista. Eu perdoo-lhe
tudo, porque tem muitos méritos para com a missão, para comigo, etc., menos o que faz por efeito do seu
temperamento irascível, etc. Em suma, direi consigo, o P.e Estanislau é terrível, mas é um grande gentil-
homem; e por isso faremos esforços, até sobre-humanos, para o conservar.
Receba as minhas mais atenciosas saudações. Domingo irei eu mesmo buscar as cartas incluídas.

P.e Daniel Comboni

N.o 372 (350) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/74

Verona, 17 de Dezembro de 1870

Excelência rev.ma,

2378
Previno-o em segredo que na próxima semana irá visitá-lo a Comissão de S. Nicolau para lhe apresentar o
projecto de um quadro, em esboço, para com ele glorificar S. José na festa de Março. É este o esboço: a
Ssma. Trindade em cima, S. José mais abaixo suplicando pela Igreja, a Fé a um lado e a Caridade a outro e,
ainda mais abaixo, no meio das ondas, uma barca, símbolo da Igreja. Observe V. E. que na barca talvez não
esteja Pio IX ou outro Papa. Porém, não existe Igreja sem Papa. Por isso, atrevo-me a formular-lhe a minha
opinião e é que o Papa teria que estar na barca: ubi est Petrus ibi Ecclesia. Vemos por toda a parte Garibaldi
e não vamos nós pôr o Papa na Igreja? Em N. D. des Victoires, de Paris, no altar está a Igreja com Pio IX, o
card. Antonelli, o card. Patrizi e mons. Pacca.
2379
Acabo de receber carta de P.e Ravignani. Diz que os dois camilianos se adaptam ao que for, desde que
continuem na missão. Penso que se V. E. escrever ao P.e Est. Carcereri, convém que lhe assegure que seja
qual for o rumo que tomem os assuntos na Europa, inclusive o impedimento de angariar meios para fazer
grandes coisas, V. E. fará todo o possível perante o Papa e seu geral a fim de o breve ser prolongado por
outros cinco anos, etc., etc.
Com a sublime bênção ducat, reducat et producat, espero encontrar ducados. Beija a V. E. as mãos

Seu indigmo. filho


P.e Daniel Comboni
N.o 373 (351) - À SOCIEDADE DE COLÓNIA
«Jahresbericht...» 18 (1870), pp.71-74

1870

Informação tirada de cartas de Comboni.

N.o 374 (352) - EXTRACTO DOS ANAIS DE COLÓNIA


ACR, A, c. 18/4 N.1

1870

Declaração episcopal.

N.o 375 (353) - NOTA DE RODAPÉ


AO INVENTÁRIO GERAL dos institutos do Egipto
ACR, A, c. 29/10

1870

N.o 376 (354) - APOSTILHA A UMA TRADUÇÃO DO ALEMÃO


ACR, A, c. 35/1

1870

N.o 377 (356) - AUTÓGRAFO NUMA FOTO


AFV, Versailles

1870

N.o 378 (356) - ÀS IRMÃS GIRELLI


ACR, sec. Fotografias

1870

Autógrafo numa foto.

N.o 379 (357) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


NA IGREJA DOS INSTITUTOS DO CAIRO
ACR, A, c. 24/1

1870

N.o 380 (1204) - ASSINATURAS DAS MISSAS CELEBRADAS


NA IGREJA DO CAIRO
ACR, A, c. 24/1
1870

N.o 381 (1154) - ASSINATURA DA MISSA CELEBRADA


EM SANTA CATARINA, EM ALEXANDRIA DO EGIPTO
ASCA, Registo de missas

1870
1871

N.o 382 (358) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/75

Louv. J. e M. eternamente, ámen!


Munique, 2 de Janeiro de 1871

Excelência rev.ma,

2380
Realmente é mister louvar o Senhor e o nosso bom ecónomo S. José, que efectivamente querem salvar os
negros. Vinte mil liras não são uma bofetada. É admirável a caridade dos nossos de Praga. Eu escrevi a
mons. Bragato a dizer que para a compra e restauro da casa Caobelli faziam falta 20 mil liras, pelo que pedia
que SS. MM. ajudassem a pagar a casa, enquanto, por outro lado, escrevia a Negrelli dizendo-lhe que pressi-
onasse para obter vinte mil liras, embora cá por dentro me contentasse com três mil florins. E o Menino Je-
sus, em sua bondade, concedeu-nos a soma total. Louvado seja Jesus. Bem vê V. E. que Deus quer a obra da
África.
2381
Eu seria, portanto, da opinião que V. E. avisasse o incomparável e venerado reitor do seminário, a fim de
que tome as suas medidas para que os inquilinos saiam e faça o que julgar conveniente para pagar apenas
recebido o dinheiro, havendo lugar a desconto por pronto pagamento. O rev.mo sr. reitor é habilíssimo nisso;
eu creio que das 16 600 liras pelas quais obteve a casa podíamos conseguir um desconto substancial, pagan-
do imediatamente. Entretanto, escreverei a Negrelli para ver se vai mandar o dinheiro directamente para Ve-
rona ou se devo eu ir buscá-lo a Praga. No último, caso conviria que me fosse possível depositar o dinheiro
em Viena, nalgum correspondente do agente Tezza, do qual V. E. o poderia receber sem perder um centavo.
2382
Todos os dias peço a Deus: primeiro cruzes; segundo pessoal bom; terceiro dinheiro. E resulta que o bom
Jesus, pelo bem da obra, prepara também cruzes.
2383
Eis aqui uma grande: o P.e Estanislau agora queixa-se de que eu o atraiçoei e que se vê obrigado a regres-
sar à Europa. Escreveu-me uma carta que me faz doer o coração. Prevejo que acabaremos por perder estes
dois camilianos, não porque queiramos perdê-los nós, mas sim porque eles o querem. Talvez seja melhor
trabalhar com os nossos próprios meios. Sinto muito, porque são dois bons colaboradores; mas penso fria-
mente no que mons. Ciurcia (a quem pedi que acalmasse o P.e Estanislau e o induzisse a ficar) me escrevia
há dez dias: «Não espere que eu dê um só passo ou empregue sequer uma palavra para influir na permanên-
cia de quem, ainda que tenha as melhores qualidades, carece da principal: Não sabe ser subordinado».
2384
Parece que o P.e Estanislau obteve de mons. Ciurcia papéis que autorizam o eclesiástico a confessar as re-
ligiosas. Deixou toda a administração nas mãos de Ravignani e ele vive no colégio como um estranho (assim
me escreve ele mesmo) disposto a fazer a vida que lhe apetece. Penso que, até eu voltar ao Cairo, o mais
prudente será deixar as coisas como estão, tanto perante os membros do instituto, que em geral estimam os
dois bons camilianos, como perante as sociedades, às quais falei favoravelmente dos dois.
2385
Estando assim as coisas, parece-me oportuno que nos armemos de paciência e que continuemos a tomar o
assunto com calma. Depois, se não é óbice a carta que lhe escreve o P.e Estanislau, julgaria conveniente que
V. E. escrevesse ao mesmo, antes de sábado, uma brandíssima e paternal carta exortando-o a confiar em
Deus, porque também o senhor se interessará perante o geral para que não sejam chamados à Europa, ani-
mando-o a esperar que terminem as coisas espantosas da Europa para que tudo se possa arranjar.
2386
Porém, é preciso toda a calma que Deus sempre me concede na tempestade, para mostrar a devida paciên-
cia. O geral e o provincial camilianos declararam não ter nem um sacerdote para a África e o P.e Carcereri
pretende que nós confiemos aos camilianos (depois das histórias passadas e presentes) uma obra tão impor-
tante para apenas duas pessoas e que fiquemos nós, os clérigos e sacerdotes, como em pensão entre os cami-
lianos. Falta a base: a humildade. Aí vai também uma carta do P.e Estanislau para o P.e Artini: seria bom
que, para se orientar ao escrever, V. E. pudesse saber o conteúdo substancial da carta do P.e Estanislau ao P.e
Artini, incluída, e depois, se necessário, interrogasse este último.
2387
Quanto ao resto, faça o que melhor lhe sugerir o Espírito de Deus, do qual está informado um superior
como é V. E., posto por Deus. Origem de tudo isto é o maldito egoísmo religioso e fradesco que impera em
quase todas as ordens religiosas: «A ordem e depois Cristo e a Igreja.» É uma dura mas inelutável verdade,
conhecida já desde os tempos dos Apóstolos e da qual fala S. Paulo... Não é grande coisa o bem que se faz,
diz o frade, se não provém da ordem.
2388
Antes de tudo a Igreja e depois a ordem. As ordens não são nada mais que os braços da Santa Igreja.
2389
Entretanto, no meio da minha dor, proporciona-me grande gozo que o seu paternal coração se console
com a bênção de Praga. Virão outros confortos maiores; porém, esperem-se também outras cruzes mais pe-
sadas, as quais são necessárias para fazer as coisas como Deus quer.
2390
Só esta noite cheguei a Munique. Em Bolzano, tendo-me dito aquele rev.mo prelado que havia em Mera-
no quatro membros da realeza, dirigi-me para lá. O pior foi que, após uma caminhada monte acima, desde a
cidade até ao castelo do príncipe imperial, estive com o rei de Nápoles num quarto tão quente que, ao sair
para o frio, apanhei uma constipação. Depois de meia hora de caminho, fui inclinar-me (não sem proveito)
perante a princesa de Hohenzollern Sigmaringen, tia do conhecido da Judeia, e estive com ela uma hora nu-
ma sala ainda mais aquecida. Fiquei retido na cama no convento dos bons capuchinhos de Merano e, depois,
junto com mons. Cosi, vigário apostólico de Shandong, fui hóspede por uns dias de S.a rev.ma o bispo de
Bressanone no seu magnífico palácio. Ali, com boa lenha e reconstituintes, curei-me por completo. Ontem,
pela manhã, detive-me em Innsbruck para ir visitar a condessa Spaur (que acompanhou Pio IX em 1848) e
um primo meu.
2391
Por agora, não lhe digo nada do sentimento da Alemanha católica em relação a Roma: quero averiguar
mais. Certamente não é o que nós pensamos em Verona. O P.e Curci talvez tenha dito uma grande verdade.
Confiemos em Deus e só n’Ele descansemos.
2392
Desejaria que me mandasse a carta ao bispo de Passau e a nota das missas que o sr. reitor celebrou por
Munique. Contudo, não falei com ninguém aqui em Munique, excepto com meu amigo mons. Oberkamp, a
quem expus metade dos assuntos que me trouxeram a esta cidade.
Transmita as minhas respeitosas saudações ao nosso santo e incomparável sr. reitor do seminário e a P.e
Vicente e mil cumprimentos ao marquês Octávio, ao mesmo tempo que lhe deseja muitas felicidades nestas
festas e no ano que começa

Seu hum. filho


e
P. Daniel Comboni

N.o 383 (359) - A MONS. LUÍS CANOSSA


ACR, A, c. 14/76

Louv. J. e M. eternamente, ámen.

Munique, mosteiro dos beneditinos


em S. Bonifácio, 20 de Janeiro de 1871

Excelência rev.ma,

2393
Em vão esperei a carta para o bispo de Passau, do qual depende o Santuário de Altötting. Contudo é ne-
cessária.
Não consegui chegar absolutamente a nada com o Governo bávaro. Em primeiro lugar, o ministro do In-
terior e do Culto estava em Versalhes e só veio a doze do corrente. Entretanto encontrei alojamento em casa
do meu amigo Hanegerg, abade dos beneditinos, prof. da universidade e arabista número um do mundo, o
qual me acolheu como um pai. Inquirindo do núncio, mons. Meglia, arcebispo de Damasco e do rev.mo aba-
de Haneberg informações precisas sobre o humor da best... com que devia tratar foi-me respondido uma se-
gunda vix (classif. dos nossos tempos).
2394
Contudo, chegado S. E. o ministro Luts, recebeu-me gentilmente e prometeu-me fazer todo o possível pa-
ra me agradar e com uma carta de recomendação sua mandou-me visitar o barão de Sussmayr, conselheiro de
Cultos, o qual me disse que era impossível conceder missas para o estrangeiro: primeiro por ser expressa-
mente proibido pelo Código Penal dar esmolas de missas a outros países e mostrou-me quatro parágrafos
severíssimos promulgados pelo rei Maximiliano; e segundo, porque as oitenta mil missas de Altötting não
são suficientes para socorrer as igrejas pobres da Baviera. Todavia, compreendendo que a minha viagem a
Munique era propter hoc, o conselheiro ministerial sugeriu-me que indicasse a V. E. a conveniência de apre-
sentar uma solicitação ao bispo de Passau para lhe pedir mil florins de esmolas de duas mil missas; assim, o
bispo vai dirigir-se ao chefe do Governo, S. E. o presidente Zwehl (e o próprio conselheiro de Cultos escre-
veu o nome no meu caderno) para obter a sua aprovação e crê que em tal caso dentro do corrente ano verá
satisfeita a sua petição. Espero a carta em Viena.
2395
O próprio conselheiro e o rev.mo Heneberg me dirigiram a outra fonte: um Santuário de Munique, que se-
rá um maná para o futuro. Apresentei-me ao director do Herzog Spital, rev.mo abade Meixner e recebeu-me
como a um irmão. Disse-me que tinha mandado as últimas missas para Estocolmo e Hamburgo; porém, vai-
me arranjar um bom número delas para o meu regresso e que de quando em quando também as mandará a.
V. E. Igualmente o bispo de Bressanone, mons. Gasser, me vai arranjar um bom número delas para quando
voltar.
Agora tenho à minha disposição mil missas com que o arcebispo de Munique me favoreceu, de quem re-
cebi esta manhã quinhentos florins bávaros, que também estão à sua disposição. Cada missa dá 1,10 fr. de
prata. Tenho dez folhas de cem missas cada uma, do modelo que aqui lhe incluo.
2396
Amanhã vou a Altötting, segunda-feira a Salzburgo, quarta-feira a Passau, quinta a Linz e sexta a Viena.
Se bem que aqui na Alemanha ninguém acredite numa intervenção armada da Prússia em favor do Papa,
como é o caso do bispo de Bressanone, o do núncio e o meu amigo correspondente da Unità Cattolica em
Munique (e todos eles estão certos de que a seu tempo o Papa será libertado de um modo extraordinário),
contudo, eis o que me disse o arcebispo de Munique: «Sei com certeza que o rei da Prússia desaprova so-
bremaneira a conduta do Governo Italiano a respeito de Roma: desagrada-lhe muito e tem uma grande von-
tade de fazer algo pelo Papa e de o ajudar, conforme o seu desejo. Porém, por agora, não pode fazer nada; só
quando a guerra tiver terminado.»
2397
Escrevi para Schillingfürst (Alta Francónia) ao card. de Hohenlohe, solicitando-lhe a sua recomendação
para as missas de Altötting; fui visitar o príncipe Hohenlohe, seu irmão, o célebre palhaço que queria induzir
os governos a impedir o concílio; visitei a sua esposa, a princesa Witgenstein, que é irmã da princesa de
Campagnano, esposa de D. Mário Chigi: sempre boas palavras, porém, factos, nada. Fiat.
2398
Termino a presente manifestando-lhe a dor que me causou a carta do P.e Estanislau Carcereri. Parece que
espera uma resposta decisiva do P.e Guardi para voltar à Europa com Franceschini. Assim me escreve aper-
tis verbis. Porém, não pode fazer isto sem uma carta de V. E., imediato e directo superior dos dois camilia-
nos. Nós tínhamos calculado uma permanência de cinco anos e, sem a autorização de V. E., não podem re-
gressar. Se o fizerem, então terei uma razão mais para ficar convencido que certos frades são umas BESTAS
e que, para não carregarmos com tantos desgostos, o melhor será que trabalhemos com os nossos próprios
meios. Apresente os meus respeitos ao marquês Octávio, ao rev.do reitor do seminário e a P.e Vicente e beija
as mãos a V. E.

Seu indigno filho, P.e Daniel Comboni

Em Passau trato o assunto de Altötting com o bispo: espero a carta em Viena.

N.o 384 (360) - A MONS. LUÍS CANOSSA


ACR, A, c. 14/77

V. J. M. J.
Viena, 5 de Fevereiro de 1871

Excelência rev.ma,

2399
Embora relativamente à missão consiga pouca coisa, no tocante às missas espero conseguir, em contra-
partida, algo de substancial.
Os feridos, os prisioneiros, as viúvas, os órfãos, o óbolo de S. Pedro, o total estancamento do comércio...
tudo contribui para que não se encontrem ofertas. Tomei o pulso a todos os príncipes e princesas reais da
Bavieira e ao próprio rei e apenas obtive duzentos florins. Contudo, à força de pregar e bater, espero ter as-
segurado na Sociedade Ludwig-Verein mil florins ao ano para a África, mediante prévia apresentação de um
relatório sobre o andamento da missão. Isto, em todo o caso, são palavras e promessas daquele que dirige a
Sociedade, porque até agora, em concreto, só consegui trezentos florins. Mandei tudo ao Cairo, porque de lá
têm-me pressionado com cartas. Porém, o que compreendo é que, com tanta miséria, tenha acontecido o fac-
to que o P.e Estanislau refere nestes termos: «Ontem (19 de Janeiro) chegava da Grécia o vinho comprado e
pago para todo o ano. Eram 1500 oke (mais de 2500 litros) e custava 746 francos. Deus quis que perdêsse-
mos mais de uma terça parte do mesmo diante do portão. Spectantibus omnibus, estalou o fundo de uma das
grandes cubas e o vinho jorrou a distância.
2400
Faça-se a vontade de Deus». Aqui em Viena mons. Cosi, bispo vigário apostólico de Shantong, bateu à
porta de todos os arquiduques e nem um tostão. Mons. Simor, primaz da Hungria, entregou-lhe trezentos
florins. Eu verei como me responde este monsenhor, e espero sair-me melhor com os arquiduques.
Quanto às missas, as únicas fontes delas são os santuários, onde agora há poucos peregrinos, porque duas
braçadas de neve impedem a devoção. Consegui, porém, coisas muito boas em todos os santuários que visi-
tei. Tenho dados precisos dos abades e responsáveis dos santuários, da época favorável, etc. Um mandará
duas mil missas ao ano. Em suma, verá como ao meu regresso V. E. ficará contente. Mas até agora não tenho
mais de quinhentas (além das mil de Munique), ou seja, 220 florins austríacos em notas de 44 soldos cada
um, do Santuário de Maria Plain, que me deu o abade Alberto V de S. Pedro, em Salzburgo, o qual vai dar
mais todos os anos. Tenho tudo na minha mente, também o modo de estimular a boa disposição destes mon-
senhores com melífluas missivas. Porém, fica tudo para Verona.
2401
A minha delicadeza obrigou-me a apresentar e a fazer aceitar com insistência as cartas episcopais para
missas. Como peço para a missão, convém que ofereça todos os documentos para missas, não vá pensar-se
que me sirvo das esmolas das missas dadas para a missão. Por isso só me restam duas cartas. Faça-me, pois,
o favor de pedir ao reitor do seminário que me assine mais quinze cartas, mas não tão longas, pois não as
lêem: mais breves. Faça-as preparar já e mande-mas para Viena, dirigidas ao núncio apostólico.
2402
Ao ler a sua última, em que me comunicava a pacificação dos dois do Cairo, voltei da morte à vida, cho-
rei de alegria e dei graças ao Menino Jesus (do qual trago comigo uma estatuinha milagrosa, oferta das mi-
nhas monjas de Salzburgo, que tem mais de duzentos anos e um ornamento avaliado em mais de 60 florins e
que será o Rei da Nigrícia). Mas uma hora depois, lidas as cartas do Cairo, voltou-me em boa parte a tristeza.
O P.e Guardi escreveu ao P.e Estanislau que em caso de não haver mais esperanças de um acordo no sentido
mil vezes manifestado, não veria nenhum inconveniente em que ambos voltassem imediatamente para a Itá-
lia. Portanto o P.e Estanislau decidiu partir, embora não antes da Páscoa.
Podia ser que as cartas de V. E. Rev.ma mudassem as coisas; claro que, quando um frade é casmurro,
pouco se pode esperar. Desculpe, mas tenho de ser franco com meu pai.
2403
Não há perigo de que eu me envaideça. Deus me fez e faz dobrar o pescoço perante tantas humilhações,
mortificações e rejeições que não me pode vir a tentação da soberba. Deus faz bem, pois de contrário o burro
levantaria a cabeça e...
Dê a sua benção a este

Seu hum. e indig.mo filho


P.e Daniel
Manda-lhe muitos cumprimentos o arcebispo de Salzburgo, com quem passei um bom pedaço.

N.o 385 (361) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A c. 14/78

V. J. M. J.
Convento dos Dominicanos,
Viena, 10 de Fevereiro de 1871

Excelência rev.ma,

2404
Embora as notícias do P.e Carcereri a respeito da prima de D. Falezza sejam exageradas e ainda que a
nossa superiora do Cairo, que durante treze anos esteve à frente do asilo feminino de Malta, que era o refúgio
das mal casadas, etc., etc., tenha bastante vigor e energia para manter na linha uma tontinha, se tal fosse a
prima de P.e Falezza, não obstante, para pôr remédio à desordem, se realmente existe, ou pro bono pacis
com o P.e Estanislau, se a desordem é exagerada, às duas da tarde do dia 6 do corrente mandei o seguinte
telegrama para o Cairo (que custou 19 florins e 10 kreutzer) dirigido ao P.e Estanislau:
«Se julgar necessário, ouvido o conselho do P.e Pedro e companheiros com prudência afaste já dos insti-
tutos a prima de D. Miguel.»
2405
As cartas que escrevi do seminário a D. Miguel (e ele pode mostrá-las a V. E.) dizem bastante como nas
duas ocasiões que vi essa mulher com ele, nunca descobri nela uma verdadeira conversão. Todavia, como
nós estamos no mundo para converter até o Diabo se fosse possível e tendo em conta que no Cairo eu tinha
destinado a referida mulher à casa do Sagdo. Coração de Maria, onde há uma superiora que tem uns bigodes
de capitão prussiano e que tem força quando o dever o impõe, não me pareceu inconveniente tentar fazer o
bem a essa alma. Além disso, não vejo como se pode comprometer o nosso instituto por ela se portar mal.
2406
Escrevi há tempos ao P.e Estanislau e à superiora a dizer que ela seja vigiada e que, por muitos meses,
nunca seja deixada sair, mas que passeie pelo terraço e pelo jardim e que, se quiser absolutamente sair, se
mande embora. Não compreendo que necessidade havia de alarmar o vigário apostólico e talvez os frades, lá
porque o instituto tinha dado abrigo a uma pecadora, vigiada por várias freiras. Pobre do mundo se nos as-
sustássemos por uma coisa dessas! O nosso P.e Estanislau tem boas qualidades, mas falta-lhe a experiência
do mundo e, nalgumas circunstâncias, é precipitado nos seus juízos. É esta a razão pela qual lhe recomendei
com palavras e com exemplo que consultasse sempre os seus companheiros e o P.e Pedro antes de decidir
algo importante. Em todo o caso, peço-lhe que rogue a Jesus por este assunto, que eu confiei a este querido
Rei da Nigrícia que trago comigo.
Manda-lhe saudações o núncio apostólico. Anteontem almocei em casa dele e, ontem, o pobre deu-me
100 florins com a única obrigação de rezar um pouco por ele.
Reze V. Excelência (e apresente os meus respeitos ao marquês Octávio, a P.e Vicente, a Perbellini e ao
vigário) por

Seu hum. e indig.mo filho


P.e Daniel Comboni

N.o 386 (362) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/79

Louvado seja J. e M. para sempre, ámen.

Viena, 26 de Fevereiro de 1871


Excelência rev.ma,

2407
Suplico-lhe encarecidamente, quanto sei e posso, me envie na volta do correio o famoso opúsculo do P.e
Curci, no qual diz que a S. Sé não deve esperar nada da Prússia e que suscitou tanta celeuma na Itália. É para
S. A. o duque de Módena, que tem muita vontade de o ler e me pediu hoje que lho arranje. Eu quero satisfa-
zer o seu pedido porque me prepara uma ajuda e porque se trata de um assíduo e insigne benfeitor. Espero
pois que mo mande rapidamente aqui para o convento dos Dominicanos, onde estou alojado. Terei especial
cuidado em facultar a V. E. um outro exemplar. Receba saudações do duque de Módena, que é fervoroso e
grande católico. Nos ambientes principescos dos arquiduques da Áustria há uma grande aversão para com o
imperador da Alemanha e para com a Prússia e muita simpatia para com a França privada de Bonaparte e
dona do seu destino; e espera-se que Deus, como castigou o império francês, dará dentro de não muito tempo
uma grande lição ao orgulhoso déspota da Alemanha. Reina nessas mesmas esferas um grande receio de que
o orgulhoso monarca prussiano não tarde em vir a criar problemas à Áustria.
2408
Mas agora chega, porque não tenho tempo. Recebi as doze petições de missas. Espero com impaciência o
opúsculo de mons. Curci: V. E. saberá descobri-lo, seja como for.

Entretanto, pedindo-lhe a bênção, declaro-me

Seu dev. filho


e
P. Daniel Comboni m. a.

Um italiano doou aos nossos institutos do Egipto um terreno a dez minutos do Cairo, avaliado em seis mil
francos. Isto segundo cartas recebidas ontem. Desconheço pormenores.

N.o 387 (363) - AO IMPERADOR FRANCISCO JOSÉ


ASW, Afr. C., f.27/12

Viena, 2 de Março de 1871

Majestade,

2409
Sendo débil o avanço da árdua missão da África Central e estando eu disposto a sacrificar mil vezes a vi-
da pelos mais de cem milhões de negros que naquelas abrasadas regiões ainda dormem nas trevas do paga-
nismo, a convite da S. Sé idealizei o Plano para a Regeneração da África, o qual visa implantar estavelmen-
te a fé e a civilização entre aquelas vastas tribos, segundo a magnânima intenção que teve V. M. I. ao pro-
mover aquela sublime missão e ao cobri-la com a vossa providencial e soberana protecção.
Com base neste plano e com a autorização da S. Sé, fundei três institutos de negros no Egipto – a que faz
referência o Programm der Regeneration des Negerlandes incluído –, com o objectivo de educar na fé, na
moral, nas ciências e nas artes jovens de ambos os sexos, pertencentes à raça negra, a fim de que, terminada
a sua educação, regressem aos seus países de origem para servirem de apóstolos da religião e da civilização
às gentes do seu próprio povo, sob a direcção de missionários europeus já aclimatados em terras egípcias.
2410
Desta providente instituição pode depender a salvação e a civilização da Nigrícia, que constitui a décima
parte de todo o género humano.
Para albergar os sacerdotes, as religiosas, os catequistas, os artesãos, as mestras negras e os alunos negros
de ambos os sexos dos três institutos, já felizmente a funcionar, devo pagar cada ano 2400 florins pela renda
de três casas, uma vez que não disponho da propriedade de nenhum local. Além do mais, dados os maus
tempos que correm, vejo-me muito apertado para prover ao sustento dos institutos.
Prostrado, pois, ante o trono de V. M. I. A. como augusto senhor e patrocinador que sois da Nigrícia, im-
ploro fervorosamente e com lágrimas nos olhos do vosso magnânimo coração uma generosa ajuda, destinada
a construir o estabelecimento fundamental dos negros no Cairo, para o qual possuo já um amplo terreno a
cinco minutos da estação ferroviária e alguns materiais, e a manter os institutos.
2411
Árdua, grandiosa, importantíssima é a santa obra, à qual estou consagrado. Porém, com a ajuda de Deus e
sob a gloriosa bandeira austríaca, que flutuará em toda a imensa Nigrícia, duas vezes mais extensa que toda a
Europa, triunfaremos no nosso intento. Os meus valorosos missionários e eu não vamos assustar-nos com os
perigos, dificuldades, sofrimentos e suores, mas perseveraremos constantes até à morte nesta empresa huma-
nitária de religião e civilização.
2412
Incluo o Postulatum pro Nigris Africae Centralis, que foi admitido por Sua Santidade Pio IX no Concílio
Vaticano. Entretanto, na confiança de que a minha humilde súplica será escutada, prostro-me em homena-
gem aos pés de V. M. I. R. A.

P.e Daniel Comboni


Miss. ap. da África Central
Fund. e sup. dos instos. do Egipto

N.o 388 (364) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/80
V. J. M. J.
Viena, 20 de Março de 1871

Excelência rev.ma,

2413
Estou ainda impressionado pela grande reunião da Arquiconfraria de S. Miguel, realizada ontem na gran-
de sala de Sophienbad (grande como a Igreja de S. Nicolau, com vinte e oito tribunas). Depois de ter jantado
em casa do núncio apostólico, entrámos na grande sala repleta da fina flor da nobreza vienense, onde os
príncipes, os duques, os marqueses e as princesas se misturavam num só pensamento: no amor ao Papa. Pou-
cos bispos e sacerdotes falam com tanta unção e fervor em prol da causa da Igreja e do Papa como o fizeram
os oradores. Numa palavra, declararam abertamente que a Áustria deve correr a libertar o Papa, que a Áustria
já foi grande porque era católica e agora está em perigo porque se afastou das suas tradições e que é preciso
que o imperador, a quem tanto o Papa quer, corresponda com o mesmo amor. O presidente falou como um
anjo. Falaram o príncipe de Fürstenberg, irmão do arcebispo de Omütz; os príncipes de Altgrave, de Salm
Clary e de Czerny; o dr. Graff, de Innsbruck e o conde Brandis, presidente da Sociedade Católica da Alta
Áustria. Encerrou-se a reunião, que durou quatro horas, com a bênção papal, dada por S. E. o núncio apostó-
lico. Em Viena há eminentes católicos.
2414
O cardeal de Viena deu-me uma boa esmola. Recebi outra carta que confirma o que escrevi sobre a Amé-
rica. As cartas do Cairo são melhores. Parece que a madre Catarina vai fazer-se afastar do instituto. Diz o P.e
Estanislau que é um suplício: entre outras coisas tinha instigado e incitado Domingos, de Montório, a deixar
o instituto e a fazer-se franciscano. Isto segundo o P.e Estanislau.
2415
Mil saudações dos quatro condes Thum: Francisco, Constantino, Leão e Frederico. Este último esteve de
cama um mês por causa de uma queda no gelo. O duque de Módena foi tacanho: só me deu 300 florins. Mas
Deus proverá. Após os últimos napoleões de ouro enviados para o Cairo, mandei esta manhã outros vinte e
cinco através do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
2416
Ontem foi um dia feliz, porque pude falar claro a S. José. Vejo que é preciso ser atrevidinho com este
bendito santo. O cónego conde Coudenhove (que nasceu em Verona em 1819) aconselha-me a ir à América,
onde ele foi missionário; diz que com as coisas interessantes da nossa missão e com as línguas inglesa e ale-
mã posso conseguir cem mil táleres (é muita massa!!). Em todo o caso, primeiro é preciso ver como vão os
senhores do Egipto e que eu vá até lá. Entretanto, reze, levante os braços e abençoe

O seu indig.mo filho


P.e Daniel Comboni
2417
Mando-lhe uma imagem da Virgem de Altötting com o véu milagroso e que concede graças. Apresenta-
lhe os seus respeitos P.e Carlos Tomezzoli, a quem dei uma cópia das suas cartas para missas. Procurará
encontrar algumas e, além disso, cada ano mandará duzentas ou trezentas missas que sobram à Igreja italia-
na. Disse que sobre isto se porá em contacto directo com V. E.
2418
Encontra-se comigo no convento dos dominicanos mons. Pelami, futuro superior do Seminário das Mis-
sões Estrangeiras de Roma. Irá a Verona depois da Páscoa. Esteve no conclave quando foi eleito o Papa Pio
IX. Estreitámos uma grande amizade. É um homem comme il faut. Gostaria que nos um ou dois dias em que
estivesse em Verona lhe dispensasse um bom acolhimento e o fizesse hospedar no seminário ou nalgum lu-
gar parecido. É íntimo do núncio.
Muitas saudações ao marquês Octávio, a P.e Vicente, a mons. o vigário, a mons. Perbellini, etc.

P.e Daniel

Se desejar já o dinheiro das mil e quinhentas missas, basta uma indicação sua. São:
1. 52 napoleões de ouro
2. 4 francos com 25 cêntimos
3. 220 florins em notas.
Quando sair de Viena, espero ter conseguido muitas mais.

N.o 389 (365) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/81

V. J. M. J.
Convento dos dominicanos
Viena, 23 de Março de 1871

Excelência rev.ma,

2419
Finalmente ontem pude saber como vai a petição que apresentei nas mãos de S. M., que a acolheu com
muita bondade. Como nela eu pedia que S. M. me ajudasse na construção de um instituto fundamental no
Cairo, o imperador, dando-lhe um curso favorável, transmitiu ordem ao Ministério dos Negócios Estrangei-
ros para ouvir o I. R. agente e cônsul-geral do Egipto e ver que gasto seria necessário para a dita construção;
em seguida a isso o dito ministério fará um relatório ao imperador, expondo-lhe o total. Sua Excelência o
conselheiro Gagern dos Negócios Estrangeiros trabalha energicamente a nosso favor, e igualmente S. E. o
cons. Braun, chefe do gabinete imperial privado. Em suma, parece-me ver boa disposição em todos, porque
me fiz recomendar por eminentes personalidades.
2420
Porém, o êxito depende em grande parte da informação do cônsul-geral austríaco do Egipto. E como este
se porá em comunicação sobre isso com S. E. o delegado apostólico mons. Ciurcia, escrevi procurando apoio
de um e do outro, e dei ordem ao P.e Estanislau para que conduza bem este assunto e que faça ressaltar a
importância do terreno que nos foi dado, etc. Eu diria que uma calorosa recomendação de V. E. a mons.
Ciurcia seria de grande utilidade. Portanto, rogo-lhe que escreva uma boa carta sobre este assunto a mons. o
delegado; porém, não depois de sábado, dia 25 do corrente, porque assim está ainda a tempo de que o vapor
de Bríndisi a possa levar oportunamente ao seu destino no sábado seguinte. Se obtivermos uma boa ajuda de
dez ou quinze mil florins, será outro passo em frente para a nossa santa obra. Escrevendo para Alexandria
pela rota de Bríndisi antes da meia-noite de sábado, a carta chega a tempo.
2421
Peça a mons. Ciurcia que apoie os nossos institutos, porque há quem me assegure no Ministério dos Ne-
gócios Estrangeiros que, uma vez chegada a Viena a informação do cônsul do Egipto, S. M. o imperador,
directamente ou por meio de Beust, me recomendará em termos incisivos ao vice-rei do Egipto. Então tam-
bém faremos com que o sr. quedive ou khedive (a quem a Unità Cattolica chama o mau) deixe cair uns pata-
cos para os nossos institutos: o mau não anda com brincadeiras, mas é mais generoso que qualquer soberano
europeu.
2422
Tive a possibilidade de abordar Beust. Leu com interesse o plano em alemão e disse-me: Das ist sehr in-
teressant. Falou-me como um católico, se bem que não creia em nada.
Saúde da minha parte o sr. reitor do seminário. Como nos aproximamos das calendas gregas, penso man-
dar-lhe 220 florins por 500 missas que me deu o

Rev.mo prelado mons. Alberto V Eder


Abade do mosteiro dos beneditinos
de S. Pedro, em Salzburgo.

Na próxima semana poderá escrever-lhe em italiano agradecendo-lhe e pedindo-lhe que mande mais mis-
sas no futuro.
Beijo-lhe as mãos; abençoe o

Seu pobre e indig. filho


P.e Daniel Comboni

N.o 390 (366) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/24

V. J. M. J.
Convento dos dominicanos
Viena, 29 de Março de 1871

Meu caríssimo e estimado P.e Francisco,

2423
Ou nada, ou demasiado. Prevejo que, para me fazer compreender, vou precisar de uma longa carta. Pois
seja, que é necessário que me entenda bem.
Aqui, neste convento que me concedeu cortês e generosa hospitalidade, vive um grande e doutíssimo pre-
lado, o qual me pediu que o ajude num assunto no qual, por razão de amizade e por outros muitos motivos,
cuja alusão não vem ao caso, é preciso que tenha êxito. Há que conseguir a todo o custo o que este digníssi-
mo monsenhor se propõe, qualquer que seja a impressão que possa produzir a ideia do que se trata.
2424
Aquele que deseja um feliz resultado neste assunto é um grande católico dotado de singular ciência e pie-
dade, o qual defendeu de mil maneiras e acima de tudo a causa do Papa e as normas do Evangelho com a
imprensa católica e que por mil razões é benemérito da Igreja, do Catolicismo e da causa da verdade, especi-
almente na Áustria. Trata-se de mons. Sebastião Brunner, protonotário apostólico da Santa Igreja Romana,
prelado mitrado e prelado doméstico de Sua Santidade, doutor em Teologia, doutor em Filosofia, conselheiro
do consistório da arquidiocese de Zagreb e decano dos doutores de Filosofia da Universidade de Viena,
membro da Faculdade Teológica de Salzburgo, membro da Academia Tiberina, da Sapiência e da Academia
dos Árcades de Roma, etc., etc. Com todos estes títulos, que, segundo os homens mais doutos de Viena, fo-
ram bem ganhos, creio que mons. Brunner só pode desejar uma coisa boa, útil e digna e merecedora que
homens de respeito se ocupem dela; bem entendido, além disso, que o dito respeitabilíssimo monsenhor as-
sume todas as despesas.
2425
Aquilo a que se refere a petição figura no Anexo A junto. Digamos que havia um venerável bispo de uma
grande diocese, doutíssimo, etc., a quem se procuraria que as autoridades universitárias conferissem o grau
de doutor ad honorem. Os títulos que este doutíssimo bispo possui são superabundantes e é inútil enumerá-
los aqui.
Agora há que ver a maneira de se pôr em andamento e fazer em Pádua as diligências necessárias para ob-
ter o fim em vista. Não tendo eu neste momento ninguém de plena confiança a quem encarregar do assunto,
dirijo-me a si, que está tão perto de Pádua e que em Vicenza tem monsenhores e gente douta que podem
ajudá-lo. Quando o assunto fosse possível (e eu creio que a Universidade de Pádua deveria considerar como
grande honra conferir a um grande bispo de uma grande diocese um título que dá a simples padres), o referi-
do mons. Brunner iria a seguir ao Véneto mostrar, fazer, tratar, etc. E como este é uma personalidade muito
influente e pertence às altas esferas de Viena, sempre poderia o senhor ter neste doutíssimo e respeitável
monsenhor, em qualquer circunstância ou necessidade, um amigo capaz de o servir para fazer bem ao próxi-
mo. Agora não lhe conto nada das minhas coisas. Só que já comprei em Verona e paguei com bons napo-
leões de ouro o palácio Caobelli para novo Colégio das Missões da Nigrícia. Muitos e respeitosos cumpri-
mentos a mons. o bispo, de quem fiz as vezes, como me disse, e igualmente a todos os do colégio. Creia-me
sempre seu af.mo

P.e Daniel Comboni

N.o 391 (367) - A MONS. LUÍS CANOSSA


ACR, A, c. 14/82

Louvado J. e M. eternamente, ámen.


Viva S. José
Dominikanerkloster
Viena, 2 de Abril de 1871

Excelência rev.ma,

2426
Estou um pouco preocupado por ainda não saber se V. E. recebeu os 220 florins que lhe mandei no dia 23
do mês passado. Peço-lhe, portanto, que pergunte ao bom P.e Losi se os recebeu ou não e que me escreva
logo para eu fazer o necessário em caso negativo.
Por algumas cartas de P.e Losi, parece-me deduzir que é um sacerdote honrado, boa pessoa e de mente
recta.
Uma carta de Roma de 26 do mês passado informa-me que o Em.o card. Barnabó, dois minutos depois de
ter celebrado a missa no convento das nossas irmãs da Piazza Margana, sofreu um ataque, torceu-se-lhe a
boca, perdeu uma vista e a sua vida corria perigo. A madre geral escreve-me de Marselha com a data de 30
do mesmo mês: «Nous aurons une perte à essuyer dans notre père, afin qu’il nous aide du haut du Ciel en-
core plus qu’il n’a fait sur la Terre.» Sinto muito. Ele sempre me disse que havia de morrer de um ataque
como todos os seus.
2427
Após ano e meio de reflexão, decidi dar-lhe a conhecer o que me escreveram de Colónia, na altura em que
me mandaram os dez mil francos para o Cairo, depois do discurso de mons. Meurin, arcebispo de Bombaim.
O responsável de uma obra deve conhecer não somente o mal mas também o bem. Como na Alemanha foi
anunciado por toda a parte e sobretudo nos Anais de Colónia de 1870, é mister que V. E. esteja disso infor-
mado. Para tal efeito mando-lhe junto um opúsculo que cita as últimas palavras do discurso pronunciado por
mons. Meurin no Centro Católico de Colónia, em que fala da nossa obra, da boa organização dos nossos
institutos do Egipto e dos missionários. Sobre mim diz coisas que estou convencido não merecer, como tam-
bém o estou de quem hoje dirige a diocese de Verona não é aquele corcunda entrevado, que desde 1816 é
fidelíssimo e amabilíssimo criado da casa Canossa, cujo nome não recordo. Eu sei e estou profundamente
convencido de que eu sou um zero à esquerda e além disso um pobre pecador e um servo completamente
inútil, que nunca teria feito nada se a incomparável caridade e zelo de V. E. não tivesse tomado a obra sobre
os seus ombros.
2428
Para mim nada vale o fumo da glória do mundo, que se esfuma e dissipa e ficaria muito satisfeito se, após
uma vida consagrada a Deus entre as fadigas do apostolado, pudesse pôr a salvo a minha alma e livrar-me do
Inferno. Tudo o mais carece de valor e quem se deleita com o incenso duns aplausos passageiros e fugazes é
digno de compaixão. E encontrando-me amiúde com os grandes do século, tenho sempre novos argumentos
para me convencer cada mais de que nada vale o fumo do mundo, dos elogios e da glória e de que a única
coisa importante é servir a Deus, sofrer e morrer só por Ele. Mas como o testemunho de um destacado bispo
jesuíta sobre a organização e actividade dos nossos institutos do Egipto pode confortar e assegurar o coração
paternal e a consciência de V. E. rev.ma, e dado que a minha pobre pessoa, ainda que de nenhuma importân-
cia, é com frequência objecto de ataques por todos os lados, convém que V. E., como pai, juiz e médico,
saiba tudo, tanto as coisas más como as boas, para correcção e justificação dos seus filhos. Por isso envio-lhe
o artigo anexo «Ein bischöfliches Zeugnifs» (O testemunho de um bispo), que poderá mandar traduzir ad
litteram a alguém que domine o alemão, ou a P.e Caprara, ou a Matilde, sua sobrinha, rogando-lhes discrição
e que não façam comentários com ninguém. Talvez possa solicitar a P.e Aldegheri que lho traduza.
2429
Só gostaria que o lesse, para sua satisfação, Bajit, que vive na África, ao qual junto uma cópia numa car-
tinha que deixo aberta para que, se V. E. não o considerar oportuno, o tire dela. O rei de Hannover (que é
cego) mandou ao seu secretário, o barão Jex, que escrevesse uma carta dirigida a mim, na qual faz grandes
elogios da obra e enviou-me 100 táleres. Como V. E. sabe, é protestante. Na minha presente viagem não
consegui muito: arranjei pouco mais de 3500 florins e assegurei uma contribuição anual de 3000 francos.
Mas porém, fica aberto o caminho para conseguir mais em tempos melhores. E há ainda outras esmolas no
ar.
2430
Hoje vou jantar a casa do altgrave Salm-Clary, que há trinta anos foi vice-governador da Lombardia e
que foi chefe da delegação austríaca perante o Santo Padre. Segunda-feira – contou-me ontem no meu quarto
– foi visitar S. M. o imperador para lhe dar conta de tudo o que o Santo Padre disse à comissão austríaca.
Aguardou um quarto de hora na sala de espera até sair Beust (que conhecia o motivo da audiência do altgra-
ve). Entrou depois e, exposto tudo, S. M. limitou-se a dizer-lhe que estava contente por o Papa o estimar e
que também ele o estimava. Mas não disse palavra sobre o que havia a fazer, nem se comprometeu com
nenhuma promessa, nem fez nenhuma menção ao desgosto que devia sentir pelo acontecido em Roma.
Porém, posso assegurar-lhe com absoluta certeza que S. M. o imperador da Áustria, ainda que débil de ca-
rácter, está enormemente preocupado pelos desastres da França e pelos últimos acontecimentos da república
vermelha de Paris e que pensa nisso dia e noite e que confiou a duas personalidades minhas conhecidas a
opinião de que a Áustria, para se suster, tendo tantos elementos diversos que querem ver respeitada a sua
nacionalidade, somente pode apoiar-se nos princípios católicos, etc.
2431
Além disso, S. M. disse que o que acontece na França poderia acontecer noutros sítios onde dominassem
os mesmos princípios. Por outro lado, a situação do actual Gabinete Austríaco e o Ministério Honhenwart
estão muito melhor que no passado e Beust, para se manter no lugar, inclina-se um pouco para o Gabinete.
Depois, o conde Frederico Tum (que manda as suas saudações a V. E. e ao marquês Octávio, e que só de
muletas é que anda pelo quarto uns minutos ao dia, para sair da cama) disse-me ontem que ele crê (e é da
mesma opinião que o seu irmão Leão, o qual vale ainda mais que ele, e exprimiu-mo esta manhã) que o im-
perador confia em que pouco a pouco a Câmara dos Deputados melhorará com o trabalho do Ministério
Hohenwart, até que das novas eleições saia uma câmara mais católica e, mais tarde, um ministério que, pou-
co a pouco, modifique ou mesmo invalide a Constituição e devolva a Áustria à posição de corajosa protecto-
ra da Santa Sé e então... Eu, monsenhor, estou em estreito contacto com a mais alta aristocracia de Viena e a
mais católica e ouço a muitos repetir estas ideias. Além disso, os factos que actualmente acontecem em Paris
e que também talvez se dêem na Itália e em Espanha tornam claro que com o ateísmo, a maçonaria e o mo-
derno liberalismo as coisas não se aguentam; que povos e reis se deverão convencer que é preciso apoiar-se
unicamente na verdadeira fé e que só nos salvaremos dizendo: «Domine, salva nos, perimus».

P.e Daniel Comboni

N.o 392 (368) - A MONS. LUÍS CANOSSA


ACR,A c. 14/83

V. J. M. J.
Viena, 8 de Abril de 1871

Excelência reverendíssima,

2432
O objectivo destas duas linhas é desejar umas felicíssimas festas pascais a V. Ex. a rev.ma, como pai da
Nigrícia e da nossa querida Verona; o mesmo ao marquês Octávio e família, ao rev.mo reitor do seminário, o
incomparável P.e Pedro Dorigotti, assim como a mons. o vigário, a Perbellini, etc., etc. Vale mais sofrer com
Pio IX que gozar com o mundo. Grande pensamento. O arcebispo de Paris, que no concílio anunciou em
termos bastante claros que o Governo francês abandonaria o Papa se fosse proclamada a infalibilidade, agora
está no cárcere por obra dos vermelhos e o seu patrão num exílio vergonhosíssimo. Por favor, faça com que
P.e Losi me notifique se receberam os 220 florins. A nossa obra encontra grande simpatia também entre os
protestantes: muitos vêm visitar-me, entre eles ministros sacerdotes luteranos. Terça-feira recebi cem táleres
de um desconhecido da Alta Alemanha, os quais me foram entregues pelo livreiro Sartori, que tinha a obri-
gação de guardar silêncio sobre o nome do benfeitor. Ontem mandei para o Egipto 39 napoleões de ouro,
pelo que desde cinco de Janeiro até hoje (três meses) mandei ao P.e Carcereri duzentos e cinquenta napo-
leões de ouro e duas soberanas. Confiemos em Deus, porque in pecunia, hoc tempore, abençoa-nos mais que
a tantas outras missões e vicariatos apostólicos. Felizes festas também a P.e Vicente. Beija o sagrado anel

Seu indig.mo filho


P.e Daniel Comboni

2433
Acabam de me mandar de Aix-la-Chapelle umas orações pelo Santo Padre, que se rezam por toda a Ale-
manha católica, especialmente na Prússia. É belo rezar a todos os santos que Pio IX canonizou, por Pio IX e
pela Santa Sé Apostólica, como pode ver pelas páginas 7, 9, etc. do livrinho que lhe incluo.

N.o 393 (369) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/84

V. J. M. J.
Convento dos dominicanos
Viena, 20 de Abril de 1871

Excelência rev.ma,

2434
Até ao dia 23 de Março passado, enviei-lhe 220 florins para 500 missas e pedi-lhe que me comunicasse
logo por meio de P.e Losi se os tinha recebido, uma vez que eu nunca estou seguro dos nossos ladrões do
serviço de correio, que já mais de uma vez me prejudicaram. Não recebendo resposta alguma, a 2 do corrente
mês de Abril escrevi de novo a P.e Losi, pedindo-lhe que se apresentasse de seguida a V. E.: nenhuma res-
posta. No mesmo dia escrevi a V. E. sobre o mesmo assunto: nenhuma resposta. Pensando que V. E. podia
ter mandado P.e Losi a alguma terra para ajudar nas confissões pascais, escrevi novamente a V. E. no dia 8
do corrente sobre a mesma questão: nenhuma resposta. Então, dia 14 deste mês, apresentei reclamação nos
correios: nenhuma resposta até agora. Daí que, neste momento, já começo a duvidar se o dinheiro se não terá
perdido. Temos um serviço que valha-me Deus...
2435
Mons. o delegado apostólico do Egipto, segundo o que me escreve o P.e Estanislau, tem o maior empenho
em fazer com que o cônsul-geral austríaco escreva favoravelmente para Viena sobre a casa do Cairo. Algo
providencial: a Comuna de Paris consentiu que o arcebispo escrevesse a Thiers para Versalhes, propondo-lhe
que a Assembleia regular libertasse Blanqui, ímpio revolucionário vermelho, na condição de a Comuna dei-
xar em liberdade o arcebispo. Thiers e a Assembleia disseram que não, porque Blanqui é mais prejudicial à
França que útil lhe é o bispo. Posto mons. Darboy frente a um revolucionário como Blanqui, teve-se mais em
conta este do que ele! Valha-nos Deus! E grande humilhação para o pobre arcebispo, que, depois da sua
submissão à infalibilidade, paga com enxovalho os seus erros passados.
As minhas felicitações pelo espectáculo de Sexta-Feira Santa em que V. E. fez a via crucis! Sublime pro-
testo! Abençoe

P.e Daniel Comboni, miss. ap.


N.o 394 (370) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA
ACR, A, C. 14/85

V. J. M. J.
Viena, 26 de Abril de 1871

Excelência rev.ma,

2436
Eis aqui os estatutos da sociedade católica dos operários, fundada recentemente (dia 2 de Abril), que V. E.
deseja. Deu-mos o próprio presidente, a quem conheci na reunião de 2 de Abril, a primeira que esta socieda-
de realizou. É verdadeiramente muito útil e prática. Se, por acaso, mais adiante, precisar de esclarecimentos,
ponha-se à vontade em contacto com o il.mo e rev.mo sr. abade Carlos Dittrich, conselheiro do principesco
arcebispado de Viena em Mariahilf (Mariahilferstrasse), que considerará uma honra servi-lo.
2437
Chegou-me a sua última em que me anuncia ter recebido o dinheiro, o que me alegrou. A primeira que diz
ter-me escrito não me chegou às mãos. A carta do P.e Guardi vale um tesouro, tanto para conhecer o terreno
como para saber que fazer. Depois de amanhã, entregarei a monsenhor Pelami 52 napoleões de ouro, 4 fran-
cos e 25 cêntimos com os correspondentes papéis para mil missas. Dentro de poucos dias, visitarei o Santuá-
rio de Maria Zell, onde receberei mais. Beijo-lhe o sagrado anel e V. E. abençoe

O seu indig.mo filho


P.e Daniel

Muitas respeitosas saudações ao reitor do seminário e a P.e Vicente e, está claro, ao marquês Octávio.

N.o 395 (371) - A P.e JOAQUIM TOMBA


AMV, Cart. «Missione Africana»

V. J. M. J.
Dominikanerkloster,
Viena, 30 de Abril de 1871

Meu caríssimo P.e Joaquim,

2438
O portador da presente é um distinto sacerdote que estava no conclave quando Pio IX foi eleito, que re-
formou muitos grandes institutos por ordem do Papa, como o de S. Miguel em Roma, etc., e agora é arcipres-
te do capítulo da Basílica de Santo Eustáquio, em Roma, e decano dos capelães que ajudam nas cerimónias
do Pontífice, etc., etc. Deseja ver o instituto de Canterane em S. Carlos. Em Viena alojou-se sempre comigo
nos dominicanos e viu estupendos trabalhos de bordados; espero porém, que fique impressionado com os
bordados de todas as espécies do instituto. Rogo-lhe, pois, que lhe mostre o famoso quadro e as flores, etc.
2439
Envio-lhe o opúsculo A Colónia Negra da África Central aos Pés de Pio IX: são as jovens negras de Ve-
rona. Na Alemanha causou uma óptima impressão e despertou um grande interesse pela Nigrícia. Mando-lhe
também o folheto Ein Bischöfliches Zeùgniss, que fala dos meus institutos e de mim. Eu estou profundamen-
te convencido de não merecer o menor dos elogios que nele me são feitos, inclusive quem sabe quantas con-
tas eu terei que dar a Deus; ainda assim, e ainda que me cause vergonha, atrevo-me a remeter-lho, porque
fala do bom andamento dos Institutos e o testemunho de um bispo jesuíta tem a sua importância, porque os
Jesuítas não são malucos...
2440
Os meus assuntos aqui não vão muito bem. Porém, todos os arquiduques e príncipes me deram algo. Sua
Majestade o imperador Francisco José concedeu-me uma longa audiência e mostrou muito interesse. Contu-
do, não sei o resultado, mas o certo é que mandou a esse osso do Beust que perguntasse ao cônsul-geral do
Egipto para ver em quanto podia importar a construção do meu estabelecimento. No Ministério dos Negócios
Estrangeiros diz-se que é certo que me dará uma boa soma. Além disso, possuo o terreno e tenho boas espe-
ranças para o futuro.
2441
Dir-lhe-ei também que S. M. a imperatriz, depois de repetidas cartas que lhe escrevi do Cairo, Roma e
Verona, concedeu a soma de 1000 napoleões de ouro para pagar totalmente a casa de Verona. Com efeito já
está paga e sobraram algumas centenas de táleres. Como vê, não está mal para estes tempos. Um desconhe-
cido da Alta Alemanha mandou-me cem táleres, pedindo-me que me lembrasse dele nas minhas orações. Ao
convento chegou-me um envólucro com 55 florins, acompanhado de uma nota concebida nestes termos:
«Une famille qui désire contribuer à la plus grande gloire de Dieu offre son obole a monsr. Comboni et se
raccomande a ses prières.» O rei de Hannover mandou que me escrevessem uma carta – ele é cego – cheia
de elogios e mandou-me cem táleres. É protestante, etc., etc. Há que ter em conta que os tempos são muito
difíceis em toda a parte. Portanto é Deus quem move os fios: nós somos marionetas. Mas torna-se triste ver
os horrores da depravação moderna. Aqui na Áustria melhorou-se alguma coisa, mas ainda mandam os ju-
deus.
2442
As minhas saudações às professoras, a P.e Beltrame, a Brighenti e a todos. Uma das nossas jovens negras
está a ponto de se casar com um negro muito bom. Adivinha quem é ela?... Luísa Mittera. Essa coitadinha,
coxinha, estropiadinha que só parecia pensar em Deus, porque sempre foi muito piedosa, agora pensa casar-
se. Mas eu só acreditarei quando acontecer. Ainda que bom, esse negro perdeu a cabeça.
Reze e faça rezar por

Seu af.mo e obed.


e
P. Daniel Comboni

N.o 396 (372) - APOSTILHA A UMA CARTA


ACR, A, c. 20/20

Cairo, Abril de 1871?

N.o 397 (373) - AO SR. LUÍS GRIGOLINI


ACR, A, c. 15/50

V. J. M. J.

Viena, 2 de Maio de 1871

Muito estimado e caro senhor,


2443
Não deve fazer juízos temerários e pensar que, por estar assoberbado por sérias e importantíssimas ocu-
pações, me esqueço de alguém tão gentil-homem e tão bom como o senhor, com quem, levantando os copos
cheios de delicioso espumante, na presença do nosso incomparável e veneradíssimo reitor do seminário e do
meu sempre querido professor, o mui digno arcipreste de S. Martinho, estabeleci uma firme e sólida amiza-
de. Isto significa que o seu nome nunca se apagará na minha memória e que nas minhas humildes orações
nunca me esquecerei de rezar aos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria, ao meu ecónomo S. José, aos meus
queridos S. Pedro e S. Paulo e a S. Francisco Xavier, por si e pela sua boa família. A nossa amizade, porém,
que se iniciou a saborear caça fumegante e saborosos pastéis, foi confirmada e consolidada pelos comuns
sentimentos de amor e veneração indestrutíveis para com a santa Igreja e o Papa. Oh, tendo isto, o humilde
lavrador é maior e mais digno de estima do que um soberano dono de meio mundo, o qual não respeita o
Vigário de Jesus Cristo no que ensina, pensa e ama.
2444
Quem de facto ama o Papa torna-se um apóstolo entre os seus no meio da espantosa depravação da socie-
dade moderna, se, além de professar os sãos princípios que Roma ensina, se preocupa, benevolente, dos seus
dependentes, inculcando-lhes esses santos deveres. Eu estou certo de que todos os seus subordinados amarão
o Papa como pontífice e como rei, porque ele nos ensina o magistério da Igreja e dos bispos, o que está em
conformidade com os mais sagrados interesses das almas. Viva, pois, Pio IX, o Papa rei de Roma. E nós
pensamos como ele, porque o Papa, o bispo de Verona, o reitor do seminário e o arcipreste de S. Martinho
nos ensinam a verdade mais que... um Visconti Venosta, um Lanza, um Sella e quejandos Barrabás.
2445
Para lhe dar notícias minhas, seria precisa outra reunião de três horas... entre copos de bom v...; mas direi
alguma coisa. Os meus institutos do Egipto vão muito bem. Sua Ex.a o rev.mo arcebispo vigário apostólico
da Arábia e do Egipto, mons. Ciurcia, no passado segundo domingo depois da Páscoa deve ter honrado com
a sua presença os meus institutos e, na minha igreja (nas margens do Nilo e a poucos minutos do lugar onde
a Sagrada Família viveu sete anos no Egipto), deve ter celebrado o pontifical, administrando o baptismo a
alguns infiéis convertidos pelos meus institutos e a Confirmação a muitos outros que anteriormente ganhá-
mos para a fé. Em Viena tive uma longa audiência com S. M. o Imperador de Áustria, a quem dei um bom
toque com vista a conseguir um contributo para a construção do meu novo estabelecimento na capital do
Egipto. Sua majestade acolheu favoravelmente a minha petição e ordenou ao seu ministro conde de Beust,
protestante, que obtivesse sobre isso informações oficiais do I. R. cônsul-geral do Egipto. Este, que não acre-
dita em nada e vem à igreja só para ser incensado, embora seja meu amigo de nome, podia contudo pregar-
me alguma partida. Porém, graças à Providência de Deus, induzido pelo arcebispo e por outros a quem eu
havia avisado previamente, mandou a Viena, ao imperador, um grande relatório que me era favorável, pelo
que espero desta parte uma boa ajuda... Mas não deitemos foguetes antes de a ter no saco. Também o rei de
Hannover, que é protestante, me recebeu muito bem; e depois escreveu-me por meio do seu ministro uma
carta elogiando a obra da regeneração da África e, por cima, mandou-me o seu óbolo de cem táleres. Dentro
de poucos dias saio para a Saxónia e Berlim. Peço-lhe o favor de rezar e fazer rezar por mim.
2446
Depois de saudar da minha parte a sua família, rogo-lhe que o faça também ao meu caro arcipreste de S.
Martinho e diga-lhe que reze por mim. Entretanto, nos Sagdos. Corações de J. e de M. declaro-me com toda
a estima e afecto

Seu muito sincero amigo


P.e Daniel Comboni

Se for a Lonigo, apresente os meus respeitos ao príncipe Giovanelli e às princesas esposa e mãe.

N.o 398 (374) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/86

V. J. M. J.

Viena, 3 de Maio de 1871

Excelência rev.ma,

2447
O dia do Bom Pastor, segundo domingo depois da oitava da Páscoa, S. E. o arcebispo mons. Ciurcia pas-
sá-lo-á nos nossos institutos do Cairo, onde pontificará, baptizará, crismará adultos chamados por Deus à fé
por obra dos nossos institutos. Dar-lhe-ei notícia disso na próxima semana. Até agora arrebanhei mais de
9400 francos. Passo a dizer-lhe como vai o assunto do imperador.
2448
A petição que apresentei a S. M. foi enviada ao Egipto por meio de Beust e, chegada lá, ficou a dormir
sobre a mesa do cônsul-geral. Porém, como eu tinha posto ao corrente o arcebispo, este foi na oitava da Pás-
coa visitar o cônsul e pediu-lhe que se interessasse pelo assunto. O cônsul disse: «Comboni solicitou ao im-
perador que eu pedisse ao paxá uma casa; porém, como já tentei isso uma vez (???), creio que não será con-
cedida.» Então mons. Ciurcia explicou-lhe: «Não se trata disso: Comboni pediu a Sua Majestade ajuda para
uma casa que quer construir no Cairo, para a qual já tem o terreno, etc.» O cônsul caiu das nuvens. Mandou
trazer os despachos, leram juntos a minha petição, marcada com um sinal vermelho pelo imperador e con-
venceu-se. Pediu o parecer ao arcebispo, o qual disse mostrar-se mais que favorável. «Em tal caso – respon-
deu o cônsul – escreverei a favor». Eu tinha mandado fazer o projecto da casa com a igreja e, de facto,
mons. Ciurcia disse ao P.e Estanislau que o levasse ao consulado no dia 7 do corrente; mas Deus dispôs as
coisas doutro modo. O cônsul respondeu logo a Viena de maneira favorável à minha pessoa e favorável à
obra em si, sem apresentar a S. M. o projecto. Pelo que esta manhã, reunidos os conselheiros sob a presidên-
cia de Beust, decidiram formular o relatório no seguinte teor: 1.o Propor a S. M. quanto quer oferecer da sua
caixa privada; 2.o Propor a S. M. quanto quer que dê o Ministério dos Negócios Estrangeiros dos seus escas-
sos fundos para missões do Oriente. 3.o Suplicar a Sua Majestade que ordene ao cônsul-geral do Egipto que
recomende de modo especial os institutos ao quedive do Egipto, manifestando-lhe que quanto fizer por
Comboni e pelos institutos de negros, o fará por S. M. Apostólica e pelo Governo austro-húngaro.
Este último ponto vale mais que todos os outros. Porém, há grande interesse na Áustria pela Missão. Mais
adiante, quando penetrarmos no centro da África, estarão à nossa disposição os fundos da Sociedade de Ma-
ria.
Os meus respeitos a V. E. e a sua bênção a

Seu indig.mo filho


P.e Daniel C.

Espero tenha recebido os Estatutos das Sociedades de Operários Católicos de Viena.

N.o 399 (375) - A FRIEDRICH FERNANDO VON BEUST


MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS DA ÁUSTRIA
ASW, Reg. Ammin.f.27, fasc.9

Viena, 18 de Maio de 1871

Excelência,

2449
Com a mais viva gratidão recebi a carta de 15 do presente mês que o Ministério dos Negócios Estrangei-
ros fez a honra de me enviar, na qual se digna comunicar-me o resultado das suas diligências perante Sua
Majestade o imperador e a forte recomendação que ele efectuou no Egipto em favor da minha obra para a
regeneração da infortunada Nigrícia.
Em consequência disso, tenho a honra de manifestar a V. E. o meu mais profundo agradecimento pelas
ajudas que se dignou outorgar-me e por todo o bem que me fez; asseguro-lhe que procurarei mostrar-me
sempre digno do alto favor e protecção que o Governo de Sua Majestade imperial e apostólica, em sua gran-
de sabedoria, se dignou conceder-me.
Aceite, senhor ministro, a expressão do profundo respeito com o qual me honro em me declarar

De V. E. sr. ministro
Humil. e devoto servidor
P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 400 (376) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/87

Louvado J. e M. eternamente, ámen.

Viena, 21 de Maio de 1871

Excelência rev.ma,

2450
Um pouco de paciência, se esta carta for um pouco longa, porque nela me esforço por lhe explicar o que
em sua estimada carta de 17 do corrente, de Grazzano, me referia a respeito do interior da Nigrícia e sobre o
novo terreno doado a dez minutos do nosso Estabelecimento do Cairo.
Suponhamos que o moderno Reino da Itália é toda a África, que a Toscana e o Estado Pontifício de Fer-
rara a Frosinone são a África interior, ou a Nigrícia e que o Tirol é a Europa. Segundo tal hipótese, Verona
corresponderia a Roveredo, o Cairo a Veneza, Assuão a Ferrara, Cartum a Pistóia, a tribo dos Dincas a Flo-
rença, a dos Bari a Siena e as fontes do Nilo a Roma.
2451
Objectivo da nossa obra é a conquista da África Central, ou Nigrícia, que há-de realizar-se não por assal-
to, mas por assédio, mediante os nossos institutos que são como outros tantos postos avançados para empre-
ender o grande assédio pela parte mais fraca do inimigo, que é o curso do Nilo superior.
Que fizemos até agora? Apenas um pequeníssimo passo. Abrimos na cidade de Roveredo um pequeno co-
légio para nele educarmos missionários para o Reino da Itália e sobretudo para a Toscana e os Estados Pa-
pais e estabelecemos três institutos em Veneza para aí educarmos toscanos e romanholos, a fim de que, ter-
minada a educação, vão, sob direcção de tiroleses educados em Roveredo e aperfeiçoados em Veneza, im-
plantar a fé e a civilização nas suas terras natais da Toscana e dos Estados Pontifícios. Isto, porque a finali-
dade primária dos Institutos de Veneza é a formação de apóstolos oriundos da Toscana e Romanha. A finali-
dade secundária é o apostolado dos toscanos e romanholos residentes em Veneza. Por outras palavras: no
Cairo formam-se apóstolos oriundos da Nigrícia e trabalha-se para a conversão dos negros do interior da
África residentes no Egipto, que foram para ali levados por traficantes muçulmanos, que foram raptá-los às
suas terras da Nigrícia.
2452
Que falta fazer? Devemos continuar a avançar para o nosso objectivo primário e chegar por etapas até ao
interior da África, pois alguns sacerdotes e muitas negras e irmãs já estão maduros para o apostolado da
África Central; doutro modo, as jovens negras (a parte mais útil do nosso apostolado) que já estão preparadas
(18 entre 54) vão morrer de velhas no Cairo sem terem trabalhado com maior fruto nas suas terras natais,
onde há a possibilidade de converter mil por cada cinco que se convertem no Cairo. Mas é preciso penetrar
no interior da Nigrícia, mantendo em actividade as casas fundamentais do Cairo, onde o missionário se acli-
mata, aprende as línguas e os costumes orientais e adquire a prática do ministério apostólico e onde se conti-
nua a formar novos apóstolos indígenas de ambos os sexos e se ajuda o vigário apostólico do Egipto sobretu-
do a converter os negros do Egipto dependentes da sua jurisdição.
Mas em Veneza (o Cairo) não estamos em nossa casa. Temos que depender do patriarca e da sua cúria
(ou seja, do delegado apostólico e dos frades) para aí exercer o apostolado. Pois bem, prosseguindo o nosso
caminho, que devemos fazer para nos fortalecermos cada vez mais no Egipto (Veneza) e alcançar a nossa
meta de nos estabelecermos no interior da Nigrícia (Toscana e Estados Pontifícios)? O seguinte:
2453
Devemos pedir à Propaganda e ao Papa (que tanto o desejam) que atribua ao nosso colégio de Verona e
do Cairo uma parte da Nigrícia para ser evangelizada por nós e pelos nossos sucessores e que erija esta parte
a nós atribuída em vicariato apostólico, independente de qualquer jurisdição e apenas subordinado à Propa-
ganda, como é o caso de outros vicariatos. Estas diligências requerem dois ou três anos. Suponhamos que a
Propaganda atribuía aos institutos de Roveredo e Veneza a tarefa de evangelizar a Toscana e constituía o
vicariato apostólico da Toscana. Logo a seguir nomeia um chefe para isso, sob proposta do bispo de Rovere-
do, responsável pela Obra, e consultado o vicariato apostólico de Veneza, que no papel é Superior interino da
Toscana e tem jurisdição sobre os institutos de Veneza. Suponhamos que o nomeado era P. e Ravignani. Que
fará este responsável pelo vicariato apostólico da Toscana? Digo-o aqui em duas palavras.
2454
P.e Ravignani mede as suas forças, vê mais ou menos que colaboradores pode, em dez anos, dar o colégio
de Roveredo e quantos e quais podem dar os institutos de Veneza. Faz uma exploração com alguns compa-
nheiros na Toscana e verifica que as suas forças lhe permitem evangelizar a vasta tribo de Florença e a sua
província. Instala aí os elementos masculinos e femininos já aperfeiçoados nos institutos de Veneza, depois
de ter realizado as etapas de Bolonha e Pistóia criando outros tantos institutos, para os quais, pode dizer-se
com certeza, há recursos pecuniários das Sociedades de Maria, de Viena.
Mas P.e Ravignani não só recebeu da S. Sé o encargo de ganhar para Cristo Florença e a sua província,
mas também, como vigário apostólico da Toscana, deve pensar em Lucca, Pisa, Livorno, Siena, etc.; mas
como para isto não lhe basta o pessoal que lhe fornecem os estabelecimentos de Roveredo e de Veneza,
pensa em chamar em sua ajuda algumas ordens religiosas. Portanto ou escreve ou vai falar com o responsá-
vel pela obra, o bispo de Roveredo; este faz diligências perante o Papa ou a Propaganda e as sociedades ben-
feitoras para decidir qual das ordens religiosas se deve chamar em ajuda do vicariato apostólico da Toscana.
Suponhamos, por exemplo, que nós pensamos nos Camilianos. Então entra-se em comunicação com o P.e
Guardi, calculam-se as forças com que pode colaborar esta pequena ordem e atribui-se-lhe, digamos, a tribo
de Lucca, erigindo-a em paróquia tal como se o bispo de Verona chamasse os dominicanos para lhes confiar
a paróquia de Santa Anastásia.
2455
Feito isto, é preciso pensar em Pisa, Livorno, Siena, Arezzo, etc. Então convidam-se os jesuítas, ou os
dominicanos, ou o insto. de D. Bosco, ou o de Milão, etc. para ocupar também este terreno virgem. Como V.
E. bem entende, quando se implantou o apostolado católico na Toscana, a Igreja pensará na conquista de
Perugia, Viterbo, Roma e Frosinone, por obra, conselho e ajuda das estações da Toscana.
Porém, chamadas estas ordens ao vicariato da Toscana, sucederá que elas não quererão depender dos sa-
cerdotes seculares de Florença e de um chefe, como Ravignani. Em tal caso, se P.e Ravignani vê uma boa
ajuda nos camilianos de Lucca, nos dominicanos de Pisa, etc., pedirá à Propaganda que desmembre o seu
vicariato da Toscana (que soma mais de 40 milhões de almas), para aí formar o vicariato de Lucca para os
camilianos, o de Pisa para os dominicanos, o de Livorno para os jesuítas e o de Siena para o seminário de
Milão. E quando estas ordens trabalharem por sua conta, para não dependerem mais do clero de Roveredo e
de Veneza, nós teremos obtido a graça de contribuir para a expansão do Reino de Cristo na Toscana, cha-
mando a este árduo apostolado tão valorosos campeões como os jesuítas, os dominicanos os camilianos, etc.
2456
Com estas ideias, que são o núcleo do nosso Plano, chegar-se-á a resolver a questão dos camilianos do
Cairo, e a resolvê-la legal e canonicamente. Porém, ceder a dois camilianos o nosso instituto masculino do
Cairo, fazer reformar com eles os nossos candidatos de Verona mediante a retribuição de 300 francos anuais
e a esmola da missa diária e nós, que somos um pouco livres, entregar-nos à escravidão sob aqueles que nós
mesmos chamámos como auxiliares e não como chefes, creio que V. E. não o permitirá nunca. Tal era o
projecto de Carcereri, segundo o qual eu deveria esmolar eternamente em favor do camilianos, para lhes
constituir um capital de mais de meio milhão e depender deles. Agora, porém, parece ter reconhecido o seu
erro.
2457
Fica explicado o desejo ardente das jovens negras já maduras de irem para os seus lugares de origem, e o
dos missionários de avançar no seu caminho. Fica explicada também a necessidade de que seja estável o
instituto do Cairo, o qual, além de servir para os fins acima mencionados, serve e é necessário ainda para se
ter a certeza de que o sacerdote europeu se deve aventurar no árduo e perigoso apostolado do interior, pois
que no Cairo há pequenos escândalos, meninas nuas, homens em confidências, etc., mas no interior homens e
mulheres andam completamente ou quase nus. No Cairo, onde o Inverno é primaveril e só no Verão há calor
mais intenso, come-se e bebe-se como na Europa. Porém, no interior, há que suportar e sofrer muito mais por
Cristo. Por isso, um missionário pode ser bom para o Cairo e para o Egipto e mau para a Nigrícia. Ora o su-
perior dos institutos do Cairo estuda, observa e verifica em três ou quatro anos se um sujeito se poderá aven-
turar no interior da Nigrícia, ne cum aliis praedicaverit ipse reprobus efficiatur. Porém,... e os meios? Fala-
remos em Verona. Confiemos só em Deus, procuremos o seu reino e a sua justiça, et haec omnia adiicientur
nobis. Depois, etc.
2458
Espero ter-lhe exposto claramente o assunto: é muito simples e ajusta-se aos cânones e aos conceitos e
leis de Roma. Desejo saber se entendeu bem. Eu penso que este é o seu pensamento. Há alguns anos foi jul-
gado fantasioso por alguns; agora que o vêem converter-se em realidade, dizem que era o que eles pretendi-
am, que este era o seu plano. Assim confirmam agora o nosso.
2459
Depois de tudo isto, só tenho que acrescentar uma coisa. Haverá que padecer muito por amor de Cristo,
enfrentar os poderosos, os turcos, os ateus, os maçónicos, os bárbaros, os elementos, os padres, os frades, o
mundo, o Inferno. Porém, quem confia em si mesmo, confia no maior asno deste mundo. Toda a nossa confi-
ança está n’Aquele que morreu pelos negros e que escolhe os meios mais fracos para realizar as suas obras,
porque quer mostrar que Ele é que é o autor do bem e que nós, por nossa conta, só podemos fazer o mal.
Tendo-nos Ele chamado a esta obra, com a sua obra triunfaremos do Paxá, dos maçónicos, dos governos
ateus, dos pensamentos retorcidos dos bons, das astúcias dos maus, das insídias do mundo e do Inferno e a
nossa marcha só terminará com o último suspiro. Depois, quando estivermos no Paraíso (e nós queremos
para lá ir...), então, com as nossas incessantes preces crucificaremos Jesus e Maria e rezar-lhe-emos tanto até
que por amor ou por... se veja obrigado a fazer milagres e suscitar Paulos e Xavieres como apóstolos, para
que sejam convertidos quanto antes à fé os cem milhões da infeliz Nigrícia.
2460
Não falo agora de Hohenwart, que lhe envia saudações, nem do meu príncipe Löwenstein, que se encon-
tra em Viena e está a procurar acordar com o príncipe do Liechtenstein um legado perpétuo para os nossos
institutos africanos, nem das palavras que me disse Henrique V, conde de Chambod, a 16 de Fevereiro de
1869: si jamais je me rendrai à ma place sur le trone de France, votre mission de la Nigritie ne manquera de
rien, nem da asserção do núncio de Viena, que crê que Deus vai abençoar especialmente a nossa obra e a
minha viagem à Áustria, nem das esperanças ali existentes, nem do que já foi concedido pelo Lloyd austría-
co, nem das minhas felicitações pela festa na catedral de S. José, nem dos 100 napoleões de ouro que ontem
mandei para o Cairo, nem dos 1400 francos enviados para o Cairo a partir de Lião, nem dos 12 347 (doze mil
trezentos e quarenta e sete) francos com 62 cêntimos conseguidos desde Fevereiro até agora, nem das 1347
cartas que escrevi neste período, nem do meu desejo de que se acolha mons. Pelami no seminário durante os
dois dias em que vai ficar em Verona, nem dos selos que levarei da Alemanha (incluo um precioso do Lu-
xemburgo, de uma carta que me escreveu o bispo de lá, Adames), nem do entusiasmo que de novo se gerou
na Alemanha pela África, nem da valiosa opinião que me exprimiu o cardeal-arcebispo de Viena: «Verdadei-
ramente pode-se dizer que não está perdida a esperança da conversão da África Central, graças a este sábio
e novo processo» (na Áustria tinham-na perdido e diziam-me e escreviam-me há dois meses: ad quid perdi-
tio haec, negando-me a esmola), nem do bem que me fez o núncio, nem dos testemunhos de muitos bispos,
nem das esmolas secretas que me chegam de pessoas que nunca vi e que não se dão a conhecer (fale com
mons. Pelami sobre a pessoa de Barnabó), nem do conde Thum, que já sai de casa de carro, embora ainda
com muletas, nem das saudações dele e da sua esposa a V. E., ao marquês, etc., etc. E passo agora à triste e
pouco agradável (bendito seja Deus etiam in adversis) comunicação que dia 15 me foi mandada his verbis:

«Do Ministério dos Negócios Estrangeiros

Reverendíssimo senhor,

2461
A humilde proposta deste Ministério Imperial e Real Austro-Húngaro dos Negócios Estrangeiros, Sua
Majestade imp. e real apostólica, mediante resolução de 6 de Maio do corrente ano, dignou-se graciosamente
conceder-lhe uma subvenção dos fundos ministeriais, no montante de trezentos florins em moeda austríaca
de prata.
Além disso, Sua Majestade houve por bem conceder-lhe, mediante resolução de 7 de Maio, outro subsídio
no valor de trezentos florins, em notas de banco, da sua caixa privada.
Honrando-se este I. R. Ministério em enviar a V. S. R. a presente notificação como resposta à sua solici-
tação do passado mês de Março a Sua Majestade no interesse da missão apostólica confiada a seus cuidados,
convida-o a apresentar-se neste ministério, onde receberá as importâncias referidas.
Por outro lado, no tocante ao ulterior pedido de V. S. P. relativo a fazer recomendar a sua obra a S. Alteza
o quedive do Egipto, comunica-se-lhe que o Imp. e R. Consulado-Geral do Egipto fica ao mesmo tempo
munido das instruções correspondentes ao objecto de que se trata.
Receba V. S. P. a certeza da minha absoluta estima.
Pelo ministro dos Negócios Estrangeiros

Barão Belieben, conselheiro áulico»

2462
Não gostei da astúcia de tão fria recomendação ao vice-rei do Egipto por parte do ministro Beust, depois
de tão boas palavras que me tinha dito. Para ser verdadeiramente poderosa e eficaz uma recomendação deste
tipo perante o quedive, devia fazer-se em nome do imperador. Por isso, a 16 do corrente escrevi uma carta de
agradecimento a S. M. Apostólica, na qual lhe pedia a graça. A nossa querida Mãe Maria escutou-me. Eu
mesmo levei a carta ao palácio, entregando-a a pessoa de confiança e ontem deram-me a notícia de que Sua
M. o Imperador tinha ordenado ao chefe do seu gabinete privado, o conselheiro Braun, que se escrevesse ao
cônsul-geral do Egipto dizendo-lhe que a obra devia ser recomendada em nome do próprio imperador. Lou-
vados sejam Jesus e Maria.
Pede a V. E. orações e uma bênção o seu indig.mo filho

P.e Daniel Comboni


O interesse que S. M. apostólica tomou por nós é um bem para o presente e para o futuro.

N.o 401 (377) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/88

V. J. M. J.
Convento dos dominicanos,
Viena 27 de Maio de 1871

Excelência rev.ma,

2463
Antes de passar Maio, mês em que pedi à nossa Mãe Rainha da Nigrícia para que ela mesma dirigisse este
assunto, venho expô-lo e submetê-lo a V. E. rev.ma, a fim de que o pense e o leve a cabo se o considerar
oportuno.
Mons. Coudenhove, conde nascido em Verona em 1819, que foi durante doze anos provincial dos ligoria-
nos da América e oito anos superior dos ligorianos de Viena e que, além disso, com V. E., provém dos jesuí-
tas, é agora cónego da Catedral de Viena e trata-se de um homem bom e santo em todo o sentido do termo.
Pois bem, mons. Coudenhove repete-me diariamente que vá à América esmolar. Primeiro, porque assegura
que por inúmeros motivos, pelo meu conhecimento de línguas, pela importância da obra eminentemente ca-
tólica, etc., com a graça de Deus conseguirei um resultado favorável. Segundo, porque lá posso arranjar sa-
cerdotes negros muito piedosos, formados pelos ligorianos e com alguns deles podemos fazer prova para ver
se são úteis para o apostolado da África Central, onde, como vão os sacerdotes europeus, pode ainda com
mais razão ir qualquer sacerdote negro da América.
2464
Diz, além disso, mons. Coudenhove que na América todos os católicos, bons e maus, e até os protestantes
(excepto a colónia italiana) consideram o Papa Pio IX como um grande santo e que, se morresse, seria ainda
mais estimado, pelo que seria de capital importância que a nossa colecta para a Nigrícia recebesse o estímulo
de Pio IX com uma ou duas linhas em latim que digam, por exemplo, que Deus devolverá cem no céu a
quem der um aos pobres da Nigrícia, etc., etc., sejam generosos os vossos corações com os negros, etc. Isto
fez o meu amigo Voghan de Londres para fundar o Seminário das Missões Estrangeiras nessa capital. Foi a
Roma e mons. Talbot fez com que o Papa lhe escrevesse numa folha duas ou três linhas; depois foi à Améri-
ca e juntou 300 000 francos. Mons. Coudenhove tem razão.
2465
His positis, eis aqui o que no meu entender conviria que fizesse V. E. Rev.ma para glória de Deus:
1.o Escrever numa folha de papel, num terço da página, uma petição a Pio IX, rogando-lhe que abençoe e
permita a minha viagem à América, onde tantos bispos estão dispostos a favorecer-me (e asseguraram-mo), a
fim de procurar ajudas para implantar a obra da redenção da Nigrícia, que é todo o centro da África, e cujos
começos são por agora muito prósperos. V. E. pode apresentar as razões que entender, o favor dos bispos, de
mons. Meurin, etc., e a expectativa de sucesso.
2.o Escrever uma carta muito pormenorizada a mons. Pacca, rogando-lhe que aproveite a ocasião mais
oportuna para apresentar a sua petição ao Papa e sugerir-lhe no momento da assinatura qualquer frase útil
que indique aos americanos que o próprio Pio IX autorizou essa colecta. Mons. Pacca servirá perfeitamente
para isso.
2466
Porém, se V. E. preferir limitar-se a escrever e pedir-lhe que veja a oportunidade de falar com o Papa e de
lhe apresentar uma folha de papel para que o Papa escreva nela, é o mesmo. A primeira coisa é mais fácil de
obter e a segunda mais eficaz na América, porque mostra que o Santo Padre actuou de motu proprio e como
primeiro agente neste assunto.
Se se obtiver isso, encaderna-se num livro branco a folha em que vai o escrito do Papa, e por baixo e de
seguida assinam os oferentes de primeira classe.
2467
Então eu vou a Verona, desloco-me ao Cairo para observar o andamento das coisas e dou-lhe a minha pa-
lavra de honra de que, se Deus me der vida, em dois anos (desde o meu regresso do Egipto) lhe ponho sobre
a mesa do seu salão 20 000 libras esterlinas ou seja 500 000 francos. E com esse dinheiro far-se-ão milagres
para a Nigrícia.
Mons. Coudenhove insiste em que se faça isto rapidamente, porque Pio IX é velho. Beija-lhe as mãos

Seu hum. filho


P.e Daniel

Perante os pedidos do P.e Estanislau, mandei-lhe 50 marengos. Portanto, dentro de quatro dias receberá
150 nap. de ouro.

N.o 402 (378) - INFORMAÇÃO À SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 19 (1871), pags. 10-100

INFORMAÇÃO DO REV.DO MISSIONÁRIO


DANIEL COMBONI

Colónia, 6 de Junho de 1871


....................................................................................
[Não transcrevemos aqui as págs. 10-12, por serem idênticas aos § 2171-2174 da Relação Histórica (a
mons. Ciurcia) de 15 de Fevereiro de 1870].

2468
Mas por que é que a missão da África Central, depois de esforços tão colossais, depois de vítimas tão glo-
riosas arrebatadas pela morte, quando floresciam tantas esperanças de êxito, depois de gastos tão grandes e
de tantos sacrifícios, teve que interromper a sua grandiosa e sublime obra de conquista e suspender quase por
completo o desenvolvimento da sua actividade? Por que razão em 1861 se impôs a dura necessidade de ter
que abandonar as florescentes estações do Nilo Branco, que os missionários tinham fundado no meio de mui-
tas fadigas, e que eram as mais importantes e principais do território a converter? Porque é que os missioná-
rios, reduzidos a um pequeno número, depois de terem dado provas de um zelo tão admirável, tiveram de se
retirar do centro da sua actividade e ir para o Egipto? Qual o motivo pelo qual, após 15 anos de actividade,
esta sublime missão estava incerta do seu futuro, paralisou e se viu ameaçada na sua própria existência?
2469
Toda a empresa de grande importância, orientada para um fim que enobrece a humanidade, para ser apta
para essa finalidade precisa de uma organização que responda ao objectivo proposto e que esteja dotada da
devida capacidade. Só disto depende o êxito de uma grande obra que se queira fundar. Tal organização deve
ter uma finalidade bem determinada e claramente formulada, para que o edifício que se quer construir tenha
um alicerce sólido e inabalável; deve ter um centro do qual possa dimanar a sua actividade; deve dispor dos
meios e colaboradores necessários, pois só com eles se podem prometer resultados frutíferos; e, finalmente,
essa organização deve estar marcada com o selo da continuidade e do crescimento progressivo.
2470
Certamente a missão da África Central dispunha de muitos homens bem capazes, que deram começo,
movidos pela energia dos heróis e pela mais nobre coragem. Nós conhecemos nela operários evangélicos de
maravilhoso talento, adornados de todas as virtudes apostólicos, os quais consagraram à missão todas as suas
energias, sustentaram-na e procuraram conservá-la. Tinha protectores poderosos e ajudas materiais abundan-
tes, fruto da muito generosa caridade austríaca. Contudo, faltaram-lhe os elementos que são imprescindíveis
para garantir a duração do êxito. Faltava-lhe um centro de actividade, tanto na Europa como nas costas de
África, que deveria ter-lhe proporcionado colaboradores à medida das suas necessidades: obreiros evangéli-
cos de ambos os sexos, capazes de exercer o apostolado no interior da Nigrícia. Para o repetir mais uma vez,
a organização desta missão não respondia à finalidade nem prometia bons resultados.
2471
Lá trabalharam sacerdotes excelentes em todos os aspectos, mas que provinham das dioceses do Tirol, da
Baviera, de Liubliana e das regiões frias da Alemanha e da Áustria. Desses lugares iam sem mais para as
zonas tórridas da África Central, sem se submeterem previamente a um tempo de preparação comum e igual
para todos, orientada para este fim. Estes períodos de preparação e as várias etapas, pelas quais o missionário
deveria passar antes de começar a realizar o seu trabalho, são indispensáveis. Os missionários deslocam-se
para as tórridas zonas do Nilo Branco sem antes se terem aclimatado em lugares situados entre elas e a Euro-
pa. Em primeiro lugar, teria sido urgente e necessário fundar na Europa um seminário bem preparado, onde
se formassem jovens sacerdotes para a difícil e perigosa missão da África Central. Em diversos lugares das
costas da África deviam ter-se fundado colégios, onde os missionários se habituassem ao clima e onde, além
disso, pudessem ver se estavam à altura de tão importante empresa e tornar-se assim idóneos e valiosos
obreiros para o difícil apostolado da África Central.
2472
Ainda antes deveria ter sido criada uma congregação de irmãs missionárias, por meio das quais se teria
proporcionado à missão uma ajuda poderosa e imprescindível para a difusão da fé no seio das famílias. Estas
missionárias constituem um elemento indispensável e essencial em todos os aspectos. Depois, nas costas
africanas, dever-se-iam ter estabelecido institutos onde pudessem viver e trabalhar igualmente os europeus e
os africanos e onde indígenas de ambos os sexos recebessem instrução para se converterem eles mesmos em
apóstolos da fé e da civilização entre os seus conterrâneos. A Igreja sempre considerou este o modo mais
eficaz para conduzir um povo à verdadeira fé e ao Cristianismo. A missão da África Central carecia de todos
estes elementos absolutamente necessários para assegurar a entrada da religião de Jesus Cristo nesses países
tão extensos e longínquos. Não obstante, devemos reconhecer também nisto a verdade de que as obras de
Deus, como sucede nos misteriosos processos da natureza criada, começam como uma semente minúscula,
que depois se desenvolve cada vez mais, passando do estado embrionário a uma maturidade cada vez maior e
crescendo a pouco e pouco até à perfeição. Assim deveria acontecer também a esta grande obra de redentora
caridade cristã: semeada sem ruído, como o evangélico grão de mostrada, brotaria depois, e, pouco a pouco,
cresceria para dar finalmente os seus frutos.
2473
Com respeito aos elementos preparatórios requeridos para tal fim, no meu «Plano para a Regeneração da
África» pode-se encontrar um esboço de tudo o que é necessário para erigir o grandioso edifício da evangeli-
zação da Nigrícia. Este Plano, que até algumas respeitáveis sociedades consideraram ao princípio como uma
pura utopia e ilusão, recebeu todavia plena aprovação do amadíssimo Papa Pio IX em todas as suas partes.
Um pouco de cada vez, foi também obtendo o beneplácito de algumas personalidades distintas pela autorida-
de e erudição e, sobretudo, o de muitos bispos e vigários apostólicos da África. O rev.mo mons. Lavigerie,
arcebispo de Argel, confessou-me com grande franqueza que os grandes institutos por ele fundados na sua
diocese para a prefeitura do Sara surgiram sobre a mesma base e precisamente sobre os princípios do meu
Plano.
2474
Animado pelas palavras do Vigário de Cristo e do muito solícito monsenhor de Canossa, bispo de Verona
e meu superior, e com o apoio verdadeiramente extraordinário dos honorabilíssimos membros da Sociedade
de Colónia, superei quantas dificuldades se opunham por toda a parte à realização do meu Plano, às quais
não dei importância alguma. Parecia que o inimigo do género humano se tinha empenhado na destruição da
santa obra, chegando até a ameaçar destruir o trono do nosso Santo Padre Pio IX. Porém, nas disposições da
sua Providência, Deus estabeleceu que as obras que devem servir para a sua maior glória sejam marcadas
com o selo da cruz. E por ter nascido aos pés da cruz, também elas, como a Igreja de Deus, devem suportar
neste mundo os duros golpes da perseguição e as hostilidades que contra elas o Inferno desencadeia. Mas
Deus quis salvar a sua obra!
2475
E salvou-a por meio do seu santíssimo Vigário na Terra. Graças à ajuda da sua benemérita sociedade e à
caridade da Alemanha católica, estamos a trabalhar na realização do meu Plano. Agora este não só tem o
reconhecimento do Chefe da Igreja e da vossa sociedade como muito válido para a sua finalidade e perfeita-
mente adequado para a criação de estabelecimentos na Nigrícia mas também goza já da aprovação das mais
sensatas e prudentes personalidades do século, assim como dos mais altos e distintos dignitários da Igreja,
das presidências das diversas sociedades e dos homens que têm grande experiência quanto à fundação de
grandes obras e sobretudo de obras missionários. Só a Deus, portanto, seja por isso dada glória; Ele só é o
autor do Plano! Porém, depois d’Ele, meus estimados amigos, sois vós que tendes mais mérito. Pensem, se-
nhores, que, se agora vêem a santa obra apenas começada, tempos virão em que verão os maravilhosos resul-
tados dos institutos do Egipto que lhe deram as bases e que constituem esse centro de acção, a partir do qual
a actividade apostólica se estenderá a toda a África Central. E isto é tudo obra vossa! Se, pois, a nossa poste-
ridade vir nas regiões da Nigrícia milhões de almas súbditas da cruz e exemplares de bons costumes e de
vida civil, será obra vossa, porque vós tomastes a iniciativa.
2476
É a vós e à vossa sociedade que a grande obra deve a sua existência, por meio da qual nós temos as mais
alegres e justas esperanças de conseguir a salvação da Nigrícia. Sem vós e a vossa Sociedade, a grande
obra não se poderia ter fundado e a Nigrícia, por muitos séculos, ficaria ainda entorpecida e dormiria o seu
sono de morte. Da santa cidade de Colónia, do túmulo dos três Reis Magos, primeiros apóstolos das terras
pagãs, despontou o primeiro raio de luz, que dissipará para sempre as sombras do paganismo, que, há mais
de quarenta séculos, mantêm envolto em trevas o horizonte da Nigrícia.
2477
Ora bem, para que a obra tenha continuidade também depois da minha morte, é preciso formar na Europa
um corpo de docentes constituído por sacerdotes escolhidos, solícitos e instruídos, os quais se encarregarão
da administração e direcção dos institutos do Egipto e das missões da África Central. É uma disposição do
meu Plano e também o desejo da Propaganda. Por isso, em 1867, sob os auspícios do Ex.mo bispo de Vero-
na, mons. Canossa, abri em Verona um colégio para a missão da Nigrícia, com o objectivo de formar missio-
nários europeus para o apostolado da África Central. Por falta de meios, não me foi possível adquirir uma
propriedade para este instituto e tive que pagar anualmente uma renda por uma casa provisória. Porém, fi-
nalmente, com a ajuda de Deus e de S. José, protector da nossa Igreja Católica, consegui adquirir em Verona
para o dito instituto uma adequada sede própria. Com efeito, para este fim, recebi da extraordinária munifi-
cência de Sua Majestade apostólica a imperatriz Maria Ana Pia de Áustria o importante donativo de 20 000
francos, além de outras pequenas somas enviadas pela Providência, estando assim em condições de pagar por
completo a casa. E os senhores, que tanto zelo mostram pela conversão da África, roguem a Deus para que
conserve ainda na Terra por muitos anos esta insigne benfeitora do género humano e da Nigrícia. Deus re-
compense com a sua bênção celestial esta devota soberana e o seu ilustre esposo, o Imperador Fernando I. A
vossa oração chegará ao Céu e um dia terão nesta grande alma uma intercessora imortal.
2478
Também se fundou em Verona o instituto das Virgens da Caridade, onde poderão obter as suas mestras os
institutos femininos da África. Porém, disto, bem como de outras coisas, falarei mais à frente.
2479
Expostas estas notícias gerais sobre o progresso da obra da regeneração da África, passo a dar aos bene-
méritos membros da Sociedade uma rápida informação sobre:
1. Os institutos de negros do Egipto.
2. O postulado em favor dos negros da África Central, dirigido ao S. Concílio Ecuménico do Vatica-
no.
3. A pequena expedição ao Egipto, empreendida recentemente pelo Colégio das Missões Africanas de
Verona.

2480
I – OS INSTITUTOS DE NEGROS DO EGIPTO

No Egipto há actualmente três casas ou institutos para negros:


a) A casa do Sagdo. Coração de Jesus, instituto para negros.
b) A casa do Sagdo. Coração de Maria, instituto para negras.
c) A casa da Sagda. Família, escola para negras, no Cairo Velho.

2481
a) O Instituto do Sagdo. Coração de Jesus para a conversão da África

Tem como objectivo principal:


1. A educação religiosa e moral dos jovens negros e a instrução dos mesmos em todas as ciências e ar-
tes que podem ser úteis para a África Central, a fim de que, após uma formação completa, possam
voltar às suas tribos e aí trabalhar, sob a direcção de missionários europeus, como propagadores da
fé e da civilização.
2482
2. Servir como lugar de aclimatação para os missionários europeus, professores e artesãos, com vista a
mais tarde poderem suportar melhor o clima dos países da Nigrícia e as fadigas do apostolado.
2483
3. Facilitar aos missionários europeus a aprendizagem do árabe e das línguas e dialectos das tribos negras,
assim como o conhecimento das coisas mais necessárias para a missão e dos usos e costumes dos muçulma-
nos, com os quais vão estar em contacto mesmo nas terras da Nigrícia. Aí se adestram sobre a maneira de
tratar, do melhor modo possível e com a maior cautela, com homens totalmente corruptos. Além disso,
aprendem a relacionar-se com o Governo egípcio e com as autoridades consulares das nações estrangeiras.
Adquirem algumas noções de medicina e algum conhecimento dos ofícios que são indispensáveis. Mas so-
bretudo devem estudar os métodos e a prática de ganhar, da maneira melhor e mais eficaz possível, almas
para Deus. Numa palavra, este instituto é para o sacerdote uma escola de experiência e prova que ele deve
passar para aprender a ser um bom missionário e para exercer do modo mais eficaz e conveniente o seu mi-
nistério na África Central.
2484
4. A aprendizagem neste instituto serve como período de instrução e de prova, no qual se pode chegar a
formar a mais conscienciosa convicção sobre se os referidos missionários europeus e seus colaboradores, que
se devem deslocar para as regiões da Nigrícia, são dotados de uma castidade a toda a prova, de constância na
fé, de humildade e abnegação, de capacidade de entrega generosa, de autêntica caridade e de todas as virtu-
des necessárias para o apostolado. As missões da África Central, de facto, encerram graves dificuldades e
perigos para quem tem que trabalhar directamente na obra da conversão e este severo período de prova é
necessário para que jamais se dê o caso de que aqueles que vão lá difundir as virtudes cristãs sucumbam eles
próprios à imoralidade: «Ne cum aliis praedicaverint, ipsi reprobi efficiantur».
2485
Além disso, este instituto tem como objectivo secundário a conversão ao Cristianismo da raça etíope (os
negros) residentes no Egipto, que, segundo a estatística oficial de 1869-1870, de Levernay, só no Cairo cons-
ta de 25 000 indivíduos. Por outro lado, o instituto em questão tem uma administração própria, para a qual
está autorizado pelo rev.mo vigário apostólico e, com esta autorização, pode-se fazer muito bem tanto à co-
lónia europeia como a indígenas de qualquer rito e crença. Gozando de grande autoridade e estima entre to-
das as classes da sociedade, os missionários servem-se com vantagem destes privilégios, em benefício da
missão do Egipto.
2486
No que diz respeito aos negros do Egipto, já iniciámos, com grande reserva e circunspecção, a fomentar a
conversão dos que se encontram em famílias católicas e procederemos com uma discrição e prudência ainda
maiores com os negros que se encontram com hereges e muçulmanos. Tivemos como norma esperar que a
Providência os conduzisse aos nossos institutos e na maior parte dos casos isto ocorreu quando se tratava de
doentes e abandonados.
2487
Os negros que se encontram em famílias católicas são quase todos pagãos ou muçulmanos. A razão deste
fenómeno, prejudicial para o Catolicismo, reside no facto de que até entre os católicos de costumes muito
exemplares se dá uma tradicional indiferença no que toca à salvação da alma dos seus criados negros, por
considerarem estes mais um artigo de comércio que seres humanos; e não querem absolutamente que se fa-
çam católicos, por uma dupla razão: antes de tudo, porque os negros, tornando-se católicos, adquirem, por
isso mesmo, a liberdade e temem que então não queiram continuar ao seu serviço (quando nós podemos de-
monstrar que, após se tornarem cristãos com o baptismo, dão prova de uma maior fidelidade aos seus amos!);
e, em segundo lugar, porque, se se tornam católicos e seus amos querem prescindir dos seus serviços, já não
podem ganhar dinheiro com eles, vendendo-os aos muçulmanos, porque estes não compram negros católicos,
mas só pagãos ou maometanos. A este particular apostolado egípcio dos nossos institutos já nos referimos o
ano passado num relatório do P.e Carcereri. Assim, os nossos queridos membros chegarão a conhecer a triste
situação da população negra no Egipto, sobretudo se os negros vivem com famílias católicas de qualquer
rito.
Saberão avaliar as dificuldades e obstáculos que se opõem ao mais prudente e hábil exercício do ministé-
rio sacerdotal e compreenderão quanta clarividência e discrição se precisa para conseguir algo positivo. Sa-
berão apreciar também os bons resultados que nisto conseguimos às vezes para a santa madre Igreja. E, fi-
nalmente, convencer-se-ão também de que o apostolado do Egipto, embora constituindo o objectivo secundá-
rio dos nossos institutos, se revela por si como uma parte muito essencial da missão.
2488
O Instituto do Sagdo. Coração de Jesus compreende:
1. Os missionários.
2. Os catequistas e coadjutores.
3. O catecumenato e os alunos negros.
4. Um pequeno hospital para negros.
Seguem-se, expostas brevemente, as regras de vida para os missionários dos institutos do Egipto tal como
as estabeleci, especialmente para eles, desde 1868.
2489
A vida do missionário, que rompeu absoluta e definitivamente todas as relações com o mundo e com to-
das as coisas mais queridas segundo a natureza, deve ser uma vida de total espiritualidade e de fidelidade a
Deus. Ele deve trabalhar com intenso espírito de fé e de caridade para com os homens para a salvação das
almas. E, para tal fim, é necessário que, para além de uma fidelíssima entrega ao dever e de um zelo ardente,
tenha um grande amor e temor de Deus. É preciso, além disso, que possua um domínio bem seguro das suas
paixões e deve distinguir-se por um grande amor ao estudo e pelo desejo da perfeição e da vida interior.
2490
Com este fim, prescrevi aos missionários dos institutos de negros as seguintes práticas, no intuito de con-
seguir a própria santificação.
1. Observância exacta do regulamento e do horário diário.
2. Cada dia missa e ofício divino e confissão todas as semanas.
3. Manhã e noite, orações e terço em comum.
4. Pela manhã, uma hora de meditação em comum.
5. Exame de consciência, leitura espiritual, visita ao Ss.mo Sacramento ou à capela e comunhão espi-
ritual em privado.
6. Acto de oferecimento a Jesus da própria vida e das próprias fadigas para a consagração missionária,
de manhã e à tarde, em comum.
7. Leitura diária da história do Novo Testamento e da vida dos mártires e dos santos ou dos missioná-
rios ilustres.
8. Todos os anos, na Quaresma, exercícios espirituais durante dez dias e retiro mensal na sexta-feira
seguinte ao primeiro domingo de cada mês.
2491
9. Em Março, mês em honra do Patriarca S. José, e, em Maio, em honra da Santíssima Virgem Maria,
com práticas de piedade cada dia dos dois meses; novenas, oitavários e tríduos em comum e, con-
forme corresponder, com sermões e cânticos em honra do Ss.mo Sacramento, do Sagdo. Coração
de Jesus, da Sagda. Família, da Imaculada Conceição e de outras festas da Santíssima Virgem, de
S. José, dos santos Reis Magos, dos santos apóstolos e mártires, de S. Francisco Xavier, dos santos
africanos, etc., das Almas do Purgatório, etc., pela nossa St.a Igreja, pelo chefe da nossa santa Igre-
ja, pela Propagação da Fé, pela conversão da Nigrícia e pelo bem-estar e saúde dos benfeitores da
obra da regeneração da África.
10. Todos os anos especiais práticas de piedade.
Para promover a santificação das almas, prescrevi aos missionários o seguinte:
2492
1. Estudo frequente da Sagda. Escritura, aplicação à Teologia Dogmática, à Moral, ao Direito Canó-
nico, à História da Igreja e das Missões e às doutrinas dos hereges e pagãos. Este último constitui o
principal objectivo de estudo dos missionários e versa especialmente:

a) Sobre as principais exigências do ministério sacerdotal.


b) Sobre os erros e superstições dos povos da África Central.
2493
c) Sobre os erros do Islamismo em geral e em particular sobre os muçulmanos do Egipto, da Nú-
bia e dos povos muçulmanos de origem árabe que vivem dispersos na África Central e que
conservaram os princípios da religião maometana.
d) Sobre os erros dos hereges e cismáticos de todo o género e de todo o rito em geral e as particu-
lares diferenças entre os hereges e os cismáticos do Egipto, sobretudo dos coptas, gregos, ar-
ménios, anglicanos, etc. e dos maçónicos.
e) Sobre os perniciosos preconceitos que reinam entre os católicos dos vários ritos no Egipto e
entre alguns monges e sacerdotes orientais, preconceitos que podem resultar em obstáculo para
o progresso do Catolicismo, que defende o Papa.
f) Sobre as perniciosas tendências e vícios que imperam entre os católicos do Egipto pela sua
ignorância tradicional e os meios mais adequados para lhe pôr remédio
2494
2. Estudo consciencioso das línguas árabe, francesa, dinca, berbere, bari, etc.
3. A história, a geografia, a agricultura e os usos das terras da Nigrícia.
4. Algumas noções de medicina, flebotomia e de várias artes e ofícios que são úteis aos povos da Ni-
grícia.
5. O serviço dos doentes, com assistência espiritual e corporal.
6. Pregação, explicação do catecismo, administração dos sacramentos nos institutos de negros e nas
igrejas.
2495
Os nossos missionários, tanto sacerdotes como leigos, vivem juntos como irmãos na mesma vocação, sob
a direcção e dependência de um superior. Cumprem com zelo o que se lhes manda fazer, dispostos a ajudar-
se reciprocamente. Manifestam estima aos outros missionários do Egipto e procuram viver com eles em óp-
timas relações, também no exercício dos seus ofícios especiais. A sua missão é especialmente esta: eles têm
em mira a evangelização da Nigrícia. Embora não obrigados por votos, guardam ao superior religiosa e filial
obediência em tudo, por amor a Deus, à boa ordem e aos verdadeiros progressos da obra sublime e santa a
que se consagraram. E a sua dependência dele diz respeito ao próprio exercício das funções do seu ministé-
rio, ao desempenho das diversas funções profissionais nos institutos, ao trato com os negros, à autorização
para se ausentarem do estabelecimento e à aceitação de incumbências de estranhos. Em todos estes pontos,
cada um deve agir de perfeito acordo com o superior e contando com o seu consentimento e autorização.
Este, por sua vez, comporta-se com eles como um pai e um irmão. Procura ajudá-los com cuidado nos seus
esforços e de satisfazer os seus justos desejos. E para fazer frente às suas necessidades distribui os diversos
encargos de acordo com as suas inclinações e habilidades.
2496
O superior é responsável do instituto e das pessoas que o integram. A ele compete directamente a direc-
ção e administração do mesmo, a vigilância sobre cada um, a representação perante as autoridades locais, a
gestão dos assuntos com o exterior e as outras obrigações inerentes à função de responsável do Instituto. Nos
casos de maior importância, o superior aconselha-se com seus irmãos mais experimentados e prudentes, em
especial quando se trata de evitar consequências perigosas para o instituto.
2497
Todos levam uma vida em comum, contentes com a comida, a roupa e a dotação de livros e de outros ob-
jectos, que recebem segundo as possibilidades do instituto. Só aos sacerdotes se permite usar para as suas
necessidades particulares o que recebem das suas famílias e dos seus proventos. Porém, proíbe-se a adminis-
tração directa dos bens privados que possuírem no seu país. Cedem em favor do instituto também o que re-
cebem como donativos, pelas missas, etc. Além disso, devem colaborar com o superior naquilo para que ele
requeira o trabalho de cada um, segundo a sua capacidade, na educação dos negros nas várias matérias de
ciências e de artes e em função das normas concretas que se tiverem estabelecido para cada instituto.
2498
De acordo com as disposições particulares das autoridades eclesiásticas competentes, podem confiar-se
aos sacerdotes também a direcção espiritual dos institutos de negras, o ministério da pregação e a instrução
religiosa nos institutos; porém, onde isso for requerido, deve ser concedido a juízo do superior.
2499
Nas relações com a gente de fora, o dever e a intenção de todos é ganhar almas para Jesus Cristo, pelo
qual deixaram pátria, pais e parentes, tudo, numa palavra. Se bem que a actividade dos missionários se limite
aos pobres negros nos nossos institutos e à particular natureza desta missão, ainda assim, em especial os sa-
cerdotes, aproveitam as ocasiões propícias, como indicámos, para a todos fazer indistintamente o maior bem
possível, recordando que foram consagrados ministros d’Aquele que sofreu e morreu por todos. Não obstan-
te, tratando-se da conversão de adultos, cada um actua em sintonia com o superior, o qual, quando um caso
determinado o exigir, se dirigirá ao vigário apostólico do Egipto e à autoridade espiritual que representa a
Santa Sé. Aos meninos não católicos gravemente doentes não se lhes administra o baptismo, salvo em evi-
dente transe de morte e isto sempre com as devidas cautelas.
2500
Nenhum missionário pode entrar nos institutos de negras ou realizar aí um exercício de ministério ou um
serviço de piedade; isso só se pode fazer se tiver obtido para ele faculdade do superior ou uma autorização
especial. Exceptuam-se os casos em que o requeira uma necessidade urgente e imprevista e só em ausência
do superior. Tal proibição estende-se também a todo o pessoal de serviço e o incumprimento disso considera-
se falta grave.
2501
Nos nossos institutos observa-se a clausura, que é absolutamente necessária e está consagrada pelo seu
uso constante em todas as associações religiosas. Contudo, nas missões é regulada pelas circunstâncias e, em
determinados casos, segundo a prudência do superior. As mulheres são recebidas na sala comum destinada
para o efeito, sem prejuízo das poucas excepções que o superior pode fazer para algumas piedosas benfeito-
ras ou no caso de se anunciar uma visita extraordinária.
2502
A direcção geral dos institutos in omnibus et quoad omnia, todos os assuntos externos e todas as práticas
com as autoridades civis, em particular com os cônsules europeus e com o Governo egípcio, e a correspon-
dência com a Europa e o que ali se deve fazer fica confiado apenas a mim. Na minha ausência, a direcção
dos institutos de negros e a gestão económica dos dois institutos em geral cabem ao P. e Estanislau Carcereri.
O muito piedoso P.e Bartolomeu Rolleri é professor dos alunos negros; o P.e José Franceschini é instrutor
em vários ofícios e em trabalhos manuais de diversas espécies; mons. P.e Pascoal Fiore, cónego, é director
espiritual e capelão do instituto para negras do Sagdo. Coração de Maria, e P.e José Ravignani faz a gestão
particular desse mesmo instituto. Todos partilham a vigilância dos alunos e as outras ocupações do instituto.
Pedro Bertoli dirige a farmácia e tem a seu cuidado a enfermaria e Domingos ensina agricultura.
2503
O instituto de negros ocupa todo o antigo convento maronita do Cairo Velho; possui um espaçoso pátio e
a igreja mais ampla e bela daquela zona. Com 1200 francos tomei de arrendamento esta casa por três anos;
fica adjacente à antiga construção que, como quer a lenda, serviu de residência à Sagda. Família no Egipto.
2504
As regras estabelecidas para o meu instituto são fruto de longas observações da experiência. As normas
que tracei para o mesmo não são mais que o resumo dos princípios fundamentais da conduta dos missioná-
rios. Tenho a intenção bem determinada de, mediante a prática e uma longa experiência, elaborar, de forma
amadurecida, o mais adequado regulamento para os institutos. Submeterei essas normas à S. Congregação da
Propaganda Fide e à suprema sanção da S. Sé.
2505
Desde a fundação dos institutos não houve momento algum em que me não tenha apercebido da minha di-
ficílima situação quanto às exigências que se apresentam, tanto no interior como no exterior dos meus pe-
quenos institutos.
2506
No tocante à minha posição no confronto com o exterior dos meus institutos, vi-me posto sob a protecção
e paternal benevolência do representante da S. Sé e reconheci que o desempenho dos deveres de um aposto-
lado tão importante e tão difícil como o do Egipto não é fácil se se considerarem os muito variados elemen-
tos que abrange.
2507
É preciso tratar ora com o corpo eclesiástico da missão ora com o Governo egípcio e com as autoridades
consulares da França, Áustria e Itália. Encontrava-me, além disso, entre um clero de diversos ritos orientais e
no meio de seitas de hereges e da predominante maçonaria. O responsável de um novo instituto deve ter, em
relação a este, os olhos bem vigilantes e atentos e andar com pés de chumbo. Nem tão-pouco deixei de pon-
derar bem a minha difícil posição perante os membros do instituto, à frente dos quais me encontrava. Esse
grupo humano era formado por religiosos, cuja forma de instituição diferia da dos padres seculares, por frei-
ras francesas, italianas e orientais, e por jovens negras resgatadas graças a diversos benfeitores e educadas
em vários institutos com normas diferentes.
2508
Eles eram todos elementos heterogéneos, que eu devia, em primeiro lugar, pôr em perfeita harmonia e
conduzir à unidade de propósitos e de bandeira. Com o máximo cuidado e rigor estudei o carácter, os dotes e
as aptidões de cada um, a fim de orientar bem e me servir disso em benefício do desenvolvimento e prospe-
ridade da nossa empresa. Que a graça de Deus actuava nos nossos institutos e que a sua bênção chegava até
nós, notei-o de forma palpável ao reconhecer nos meus missionários uns homens de grande consciência,
firme carácter, fidelidade à vocação, perseverança, verdadeira caridade e abnegação para com o próximo.
Nestas virtudes sobressaía entre todos o P.e Carcereri. Além disso, a Providência concedeu-nos um verdadei-
ro amigo, pai e conselheiro no rev.do P.e Pedro de Taggia, representante do vicariato apostólico e pároco no
Cairo Velho, o qual trabalha há trinta e quatro anos com grande zelo pelas missões. Já prestou excelentes
serviços ao nosso instituto; mostra para com a nossa obra um interesse cheio de afecto e, nos tempos de difi-
culdades, de cruzes e sofrimentos, é para a santa missão um autêntico conforto e uma verdadeira ajuda, pelo
que lhe estamos sumamente gratos.
2509
Deus no-lo conserve ainda por muitos anos! O mesmo posso afirmar de mons. Ciurcia, delegado apostóli-
co do Egipto, arcebispo de Irenópolis: na nossa sublime tarefa, ele serve-nos ao mesmo tempo de pai e de
guia. Rodeados assim de perto de homens tão serviçais, nos momentos difíceis da nossa missão nunca deixo
de me aconselhar com eles. Os assuntos importantes que afectam os dois institutos submeto-os também aos
nossos sacerdotes missionários, a quem peço a opinião; e isto também porque é um meio excelente para os
introduzir na gestão dos assuntos e para os pôr ao corrente de tudo o que exige a nossa sublime obra. Mais
tarde, se a mesma se desenvolver e adquirir dimensões cada vez maiores, isso tornar-se-á muito útil. Tudo
aquilo que eu fazia e empreendia pelos nossos institutos era previamente objecto de demorada reflexão e
submetido à consulta e discussão com os demais e, só depois disso, me decidia a agir em nome do Senhor.
2510
Depois de a Deus e aos nobres sentimentos dos nossos missionários, devo a esta providente e saudável
medida a humanidade, a obediência, a boa ordem e perfeita harmonia que reinam nos nossos institutos do
Egipto. Além disso, deste modo, os nossos missionários são postos em condições de governar por si mesmos
um instituto. Eu dirijo espiritualmente os meus caros companheiros missionários e sirvo de guia ao seu cora-
ção; porém, eles são também objecto de toda a minha estima e de todo o meu afecto. A todos nos anima um
ideal comum, um único e ardente desejo: sacrificar a vida, no nosso amor a Deus e à sua santa Igreja, pela
infeliz Nigrícia. Porque nós, ilustríssimos senhores da nobre Sociedade de Colónia, estamos dispostos a mor-
rer mártires pela fé! (Seguramente recordarão que os missionários de África morreram quase todos precisa-
mente no começo do seu apostolado.) Sim, estamos dispostos a morrer; mas queremos morrer com juízo,
com sábia prudência, trabalhando para uma obra grande, para salvar almas num povo que é o mais abando-
nado da Terra. Por isso nos expomos com alegria aos maiores perigos da vida, porém, com aquela prudência
e magnanimidade que convém aos verdadeiros apóstolos e mártires de Jesus Cristo.

2511
b) O Instituto do Sagdo. Coração de Maria para a regeneração da África

Assim chamei ao instituto das jovens negras, cuja direcção está confiada às Irmãs de S. José da Aparição.
Encontra-se situado nas proximidades do Nilo, frente às pirâmides, a trinta passos de distância do lugar onde
a filha do faraó encontrou na água o pequeno Moisés.
2512
Os objectivos primário e secundário deste instituto são análogos aos do anterior, salvo algumas variações
que se devem fazer por motivos da educação, que orienta sobretudo para formar jovens católicas, destinadas
a colaborar no apostolado entre as negras tanto no Egipto como na África Central.
2513
Este instituto compreende:
1. As irmãs
2. As jovens negras missionárias
3. As aspirantes e as ajudantes
4. O catecumenado
5. Um pequeno hospital para negras.
As irmãs, de quem sou o superior ordinário, estão sujeitas a observar com a máxima exactidão as regras
do seu instituto – sobre o qual darei informações noutra circunstância –, que foi fundado em 1831 pela Santa
Sé com o preciso objectivo de formar pessoal que vá em ajuda das missões estrangeiras.
2514
Sob a direcção das irmãs e com a participação das jovens negras de todas as classes do instituto, obser-
vam-se as seguintes práticas religiosas, especialmente pelas missionárias, a fim de que se fortaleçam na sua
santa vocação:

1. Cumprimento exacto de todas as prescrições.


2. Manhã, meio-dia e tarde, orações em comum (segundo a minha disposição a bem particularmente
da missão da Nigrícia).
3. Pela manhã, meia hora de meditação em comum.
4. Exame de consciência, exercícios de piedade, visita ao Ss.mo Sacramento e comunhão espiritual,
leitura espiritual ao pequeno-almoço, almoço e jantar.
5. Confissão e comunhão semanal, segundo o conselho do confessor.
6. Explicação do Evangelho pela manhã e catecismo ou doutrina cristã à tarde; domingo e festas, na
capela.
7. Todas as quartas-feiras uma hora de adoração ao Ss.mo Sacramento, com missa pela conversão da
Nigrícia.
8. Exercícios espirituais todos os anos, de 10 a 19 de Março, festa de S. José; retiro mensal na última
quinta-feira de cada mês.
9. Em Março e Maio, cada dia a santa missa e à noite pregação, orações especiais e exposição da
píxide.
10. Na primeira sexta-feira de cada mês, celebração da guarda de honra ao Sagdo. Coração de
Jesus.
11. Novenas, oitavários, tríduos em honra de Jesus Cristo, da Virgem Maria e dos santos, segundo as
devoções missionárias estabelecidas pelo instituto de negros. Especiais orações pelo triunfo da
Igreja, pela conversão da África e pelos benfeitores da obra africana.
12. Exercícios especiais de caridade cristã.
2515
As irmãs e as jovens negras que devem trabalhar pela salvação das almas preparam-se para empreender o
apostolado da Nigrícia através dos seguintes estudos:
1. Amplo estudo do catecismo e das diferenças das outras religiões, na medida em que este último
tema seja adequado ao sexo feminino católico. Uma missionária ministra-lhes de quando em quan-
do este ensino, explicando-lhes com exemplos as peculiaridades das heresias, como se faz também
nos institutos para jovens negros. Ao ensino das controvérsias religiosas acrescenta-se outro sobre
como converter melhor à nossa santa religião a população negra feminina de qualquer crença su-
persticiosa. Indica-se-lhes o modo de argumentar e os exemplos mais práticos e simples para com-
bater e destruir os erros das crenças supersticiosas das mulheres do Islão, do paganismo e das vá-
rias seitas, etc. Dado que no Oriente muito dificilmente os homens se podem aproximar das mulhe-
res e que os missionários devem ser muito circunspectos ao falar e conversar com elas, nós prome-
temo-nos grandes sucessos para a nossa santa fé católica em especial por parte das irmãs e das jo-
vens negras, com a sua influência sobre a mulher na sua qualidade de missionárias. Antes de mais,
parece-me importantíssimo e sobremaneira necessário que as jovens missionárias negras sejam ins-
truídas deste modo sobre as diferenças religiosas, porque só assim se pode ver facilitada a nossa
obra.
2. As jovens negras missionárias dão instrução às ajudantes e às doentes na fé e na moral cristã e pre-
param as catecúmenas para o santo baptismo.
3. Estudo das línguas árabe e dinca.
4. Exercícios práticos de serviço e assistência espiritual aos doentes; algumas noções de medicina e
farmácia.
5. Estudo de todos os lavores manuais femininos de primeira necessidade para a Nigrícia, especial-
mente confeccionar vestidos, coser, cozinhar, tecer.
6. Além do árabe, aprendizagem do italiano, do francês, do dinca e de alguns dialectos africanos.
7. Práticas de cozinha: fazer pão, preparar comidas com os produtos que, mediante uma agricultura
melhorada, se podem também produzir nos países dos negros. Confecção de esteiras e preparação
de cobertas com folhas de palma.
2516
As jovens negras, sob a orientação das irmãs e das mestras negras mais experimentadas, realizam todos os
trabalhos finos e de valor que são encomendados por gente de fora e especialmente por armazéns europeus;
trata-se de toda a espécie de bordados em ouro e seda. Também se ocupam a fazer vestidos, a cozinhar e a
lavar para os institutos. Os trabalhos de cozinha e de lavandaria e o serviço dos doentes levam-no a cabo as
negras por turnos semanais.
2517
Entre as missionárias negras há dezasseis de comprovada moralidade e capacidade e de sólida vocação, as
quais estão perfeitamente formadas e preparadas para exercer com óptimo resultado o seu apostolado na
África Central. Estão muito práticas e excelentemente instruídas na arte e maneira de atrair negras, a fim de
lhes tornar acessível o Catolicismo, embora estejam muito endurecidas nas suas supersticiosas crenças ou
mostrem uma fanática adesão ao Islão.
2518
A experiência convenceu-nos de que este instituto de negras é um elemento muito importante para condu-
zir ao Cristianismo a população feminina de cor, originária de tribos muito diferentes, que vive no Egipto.
De facto, sucedeu frequentemente que as negras muçulmanas ou pagãs, ao falarem com as nossas e ao verem
a boa educação e os conhecimentos destas e como cantavam bem na igreja, sentiram o desejo de também elas
se tornarem católicas. E muitas, de facto, abraçaram a nossa santa fé e perseveram nela com fidelidade. O
número de convertidas seria certamente ainda maior se elas não tivessem tido que defrontar-se com a grande
oposição dos seus amos. Ainda que muitas destas convertidas, arrancadas violentamente do seio de suas fa-
mílias, compradas e vendidas inumeráveis vezes por homens cruéis, tenham estado expostas aos perigos
mais horripilantes, contudo, recebido o santo baptismo, manifestaram uma grande pureza de costumes e con-
servaram-se na inocência baptismal. Pois bem, se vemos resultados tão esplêndidos com estas jovens missio-
nárias no Egipto, onde há tantos obstáculos a superar, quão maior não será a sua eficácia, quando forem des-
locadas para as tribos negras da África Central! Lá não haverá lutas nem contra o fanatismo muçulmano nem
contra os perigosos preconceitos de patrões inflexíveis. Estamos convencidos de que em breve as suas irmãs
negras serão ganhas para a nossa santa fé. Isto é mais uma prova sobre a oportunidade do meu “Plano para a
Regeneração da África”.
2519
O ensino nas casas das famílias católicas de excelente reputação realiza-se de modo que vão sempre duas
negras acompanhadas de uma irmã. Tal missão, que se leva a cabo em favor de uma negra pagã e muçulma-
na, geralmente, traz consigo outros frutos; de facto há outras que, em parte por curiosidade ou movidas pela
graça de Deus, chegam à firme decisão de se tornarem católicas.
2520
Permita-se-me fazer aqui uma pequena digressão e narrar aos nossos membros da sociedade um agradável
acontecimento ocorrido à jovem negra Josefina Condé. Fora educada com extraordinário cuidado e amor em
Salzburgo pelas Ursulinas, e em Setembro de 1869 o rev.mo arcebispo primaz de Salzburgo enviou-ma para
o Cairo. Nascida em Darfur, Josefina foi em Fevereiro do ano passado, acompanhada por uma das nossas
irmãs e por duas missionárias negras, a casa de um copta onde havia três negras para instruir na religião cató-
lica. Aí conheceu também uma outra negra que tinha vindo por curiosidade, para ver as nossas missionárias e
falar com elas. Estavam apenas há um quarto de hora na casa, quando ela, após olhar repetidamente para
Josefina Condé, irrompeu a chorar copiosamente. Josefina, sem saber porquê, começou também a chorar;
perante isso, as outras, impressionadas, tentaram da melhor maneira consolar as duas. De repente, a jovem
negra que chorava aproxima-se da nossa Josefina e procura-lhe na nuca uma cicatriz. Depois pergunta-lhe se
o nome de seu pai não era tal e tal. E Josefina responde-lhe que sim. Então o rio de lágrimas redobrou e não
cessavam de se olhar. A negra de fora faz novas perguntas: «Tua mãe não se chamava assim e assim? A terra
onde nasceste não era tal? Não tinhas uma irmã mais velha que tu e outra mais pequena e um irmão, e não
eram os seus nomes este, este e este?»... Josefina a tudo respondeu que sim. O pranto não cessava e final-
mente a rapariga voltou a perguntar: «Quando ainda vivias na tua terra não te chamavas assim e assim?»
«Sim, chamava-me assim e assim» «Lembras-te ainda da tua irmã mais velha e do seu nome?» «Sim, res-
pondeu Josefina, e de quanto gostava da minha irmã mais velha!» «Lembras também como os jilabas te ar-
rancaram dos braços da tua irmã?» «Lembro-me perfeitamente de tudo isso», respondeu Josefina. «Pois bem,
fica sabendo que eu sou a tua irmã mais velha.»
2521
Neste momento as duas irmãs lançaram-se uma nos braços da outra. Naquele momento Josefina ficou a
saber que, um dia depois dela, também a sua irmã foi sequestrada com a mãe de ambas. Depois de três meses
de viagem chegaram a Cordofão e ela foi vendida a um nubiano que a levou consigo para Dôngola e Siut,
onde passou a ser propriedade de um traficante turco. Este vendeu-a no Cairo a um eunuco do harém do Sul-
tão, que a mandou levar para Constantinopla, onde se converteu numa das esposas de um rico muçulmano,
ao serviço do harém imperial. Este tratou-a bem e proporcionou-lhe vestidos, pérolas e diamantes. Porém,
após a morte dele, caiu na miséria e foi vendida a um comerciante de tabaco que se dirigia para o Cairo. Um
filho seu foi vendido em Esmirna a um traficante. E foi assim que, estando no Egipto há cerca de um ano,
essa manhã foi a casa do copta e a sorte fê-la encontrar sua irmã. «Estou contente de te ter encontrado – disse
a Josefina –, mas desgosta-me ver que és cristã. Espero que te faças muçulmana como eu». «Não, querida;
pelo contrário, espero que tu te tornes cristã. Eu estive na Europa, passei muitos anos na Alemanha, onde me
cumularam de benefícios e fizeram-me conhecer o caminho que leva ao Céu. E tendo-me inculcado o amor à
Ssma. Virgem, fiz-me cristã. Tu também deves experimentar quão bom é ser cristã.» Porém, estas palavras
não agradavam à outra que, embora alegrando-se por ela ter estado na Alemanha, não queria admitir que se
tivesse feito cristã. Josefina convidou-a a fazer-me uma visita, o que ela recusou por medo de que eu a se-
questrasse e a convertesse à força. «Vem – insistiu Josefina –, vamos juntas ver o nosso padre, verás como é
bom».
2522
Porém, aquela vez ela não quis saber nada do bom padre. Veio outro dia, embora tivesse ainda muito me-
do. Desejava que eu permitisse que a sua irmã fosse a sua casa com ela, coisa que lhe neguei rotundamente.
Mas algum tempo depois, ela visitava com frequência Josefina no instituto e presentemente parece muito
disposta a abraçar o Cristianismo. Mas até agora não consegui comprá-la ao seu amo, o qual, tendo pouca
vontade de a vender, pede por ela um preço exorbitante. Roguemos à Mãe e Rainha da Nigrícia, a Virgem
Imaculada, que nos ajude para que também esta alma se salve.
O pequeno hospital do nosso instituto tem uma farmácia com dois mil francos em medicamentos, forne-
cendo também remédios a outras casas e a muitos pobres da cidade.
2523
As irmãs estão animadas de um espírito extraordinário, são exemplares na sua vida religiosa e mostram
uma enorme entrega e zelo para com a nossa obra. Nós, por nosso lado, não nos descuidamos de as fortalecer
na sua vocação, de as ajudar e aperfeiçoar.
A superiora é sóror Verónica Pettinati, de Empoli, que antes foi superiora em Malta e em Jerusalém. Está
verdadeiramente à altura da sua missão. A casa do Sagdo. Coração de Maria é uma construção ampla e sóli-
da com um pequeno quintal; tomei-a de arrendamento ao sr. Bahhari Abut, grego católico, por 1600 fr. ao
ano.

c) O Instituto da Sagrada Família

2524
No Egipto, a situação dos negros é bem lastimosa e triste. Muitos anos de experiência convenceram-me
de que não só o muçulmano e o infiel, mas também o cristão de boa índole e irrepreensível, com raras excep-
ções, considera os infelizes negros não como homens, como seres dotados de razão, mas como objectos don-
de pretendem obter lucros. Em geral, um cavalo, um camelo, um burro, um cão, uma gazela são, de longe,
mais apreciados que um negro ou uma negra. O valor destes últimos está apenas em proporção com o preço
que custaram ou com o dinheiro que eles podem proporcionar com os seus serviços e fadigas e até com as
suas baixas paixões. Aqui, o negro, como ser racional, não tem valor algum. Só uma classe de negros goza
de grande apreço e são os eunucos, os guardiões dos haréns. De cem negros, que aos sete ou oito anos de
idade são submetidos a esta bárbara operação, sobrevivem talvez uns vinte. Assim, dado que um eunuco
custa de quinhentos a mil táleres prussianos, ele é apreciado em razão do alto preço. Por isso aperceber-se-ão
os nossos estimados benfeitores alemães do grande bem que fazem quando empregam as suas esmolas em
favor dos desditosos povos negros. Estes pobrezinhos, arrebatados violentamente a seus pais, têm que fazer
duras e perigosas viagens para depois caírem nas mãos de amos bárbaros que os vendem uns aos outros oito
ou dez vezes. E depois acabam por se tornar objecto de desprezo e vítimas de crueldade. A caridade alemã,
que mantém os nossos institutos, é a mais nobre obra de civilização em favor de uma parte da família huma-
na mais sofredora e abandonada da Terra e assim os negros são elevados não só à fé cristã mas também à
civilização europeia.
2525
A Nigrícia irromperá um dia num canto de louvor e de acção de graças em honra da generosa Alemanha
católica, a quem deve a sua ressurreição.
A existência de um instituto no qual os negros são educados na fé e em todos os ramos da cultura, como
nos institutos da Europa, já fez milagres no Egipto. De facto, a muitos egípcios parecia absolutamente im-
possível que os negros pudessem ser educados na civilização e que tivessem as aptidões dos brancos. Hoje
estão convencidos de que isso se converteu numa esplêndida realidade. Pois bem, ainda que tal instituto de-
vesse ser para os muçulmanos uma prova clara e evidente disso, a actividade dele não estava orientada para o
exterior, tendo nós que utilizar excessivas precauções para não cair em perigosas contendas por causa do
fanatismo muçulmano e para não ferir a susceptibilidade das várias seitas na terra dos faraós. Pensei então
num meio para promover ainda mais a raça negra e colocá-la numa perspectiva favorável perante aqueles
homens que têm só uma sombra de civilização. O direito que a raça negra possui e que a branca lhe deve
reconhecer, deveria aparecer ainda mais evidente para os egípcios. E quis mostrar ainda mais aos povos,
provando-o com um exemplo bem expressivo, que, segundo o sublime espírito do Evangelho, todos os ho-
mens, brancos e negros, são iguais diante de Deus e têm direito às bênçãos da fé e à aquisição da civilização
cristã europeia.
2526
Dos meios em que pensei para alcançar este objectivo, o mais prático e o mais conveniente, dadas as con-
dições em que nos encontrávamos o ano passado, foi a criação de uma escola pública no Cairo Velho, na
qual apenas deviam trabalhar professoras negras. Tinha que se criar totalmente à europeia e devia ser fre-
quentada por raparigas de qualquer raça. Pensava eu que isto contribuiria muito para ter um conceito mais
alto da raça negra no Egipto. Ao mesmo tempo, as missionárias negras podiam considerar a sua obra nesta
escola como uma espécie de noviciado e um tempo de prova em que se preparavam para o futuro apostolado
de mestras e missionárias na África Central.
2527
Estas duas razões, unidas à necessidade verdadeiramente urgente de ter no Cairo Velho uma escola públi-
ca para meninas, decidiram-me a fundar um pequeno instituto dedicado à Sagda. Família. Uma vez obtida a
autorização, solicitada ao rev.mo arcebispo, vigário e delegado do Egipto, que, no dia 23 de Maio de 1869,
me fez chegar um decreto, pude abrir uma escola no centro da antiga Babilónia do Egipto, a poucos passos
da santa gruta onde a Sag.da Família de Jesus, Maria e José descansou na sua fatigante fuga.
2528
Nesta escola, na qual ensinam cinco missionárias negras, sob a direcção da Ir. Catarina Valério, francis-
cana da Ordem Terceira de Verona, e da Ir. Faustina Stampais, minha prima, de Maderno (diocese de Brés-
cia) ministra-se o ensino do catecismo e da moral cristã, bem como de todas as matérias elementares, do
árabe, francês, italiano, alemão e arménio e de todos trabalhos manuais femininos, desde os trabalhos de
malha fina até aos bordados refinados em ouro e seda. Frequentam-na raparigas orientais católicas de todos
os ritos e europeias, assim como gregas, arménias, cismáticas e muçulmanas. Porém, acontece que, como o
patriarca copta cismático proibiu às jovens da sua religião que frequentem a escola do nosso instituto, poucas
delas lá vão. Tive, por isso, uma conversa com ele, a qual não conduziu a nada. Disse-me: «Eu não quero que
as raparigas coptas frequentem a sua escola: das negras não têm nada que aprender e, além disso, temo que
se façam protestantes.» Vê-se até onde chega a sabedoria do patriarca. Em vão tentei demonstrar-lhe que a
religião protestante está mais longe da fé católica que a copta, e que os seus sacerdotes coptas se encontra-
vam em melhores condições de ensinar o protestantismo que a fé católica.
2529
Esta casa pertence aos rev.dos padres franciscanos da Terra Santa, a quem pago uma renda anual de 360
francos. O ensino escolar é gratuito. Só algumas famílias alemãs bávaras pagam mensalmente alguma coisa.

2530
GASTOS E MEIOS DE SUBSISTÊNCIA
DOS INSTITUTOS DO EGIPTO

Quanto aos meios pecuniários e materiais dos nossos institutos, tenho inúmeros motivos para dar graças à
Providência. Apesar de actualmente os tempos serem tão tristes e de, desde 1867, se terem abatido sobre os
nossos institutos contrariedades e borrascas, até agora nunca faltou neles o necessário, graças às admiráveis
disposições de Deus (ainda que seja certo que o Demónio ameaça todas as obras de bem). Nós chegámos
felizmente até aqui e esperamos continuar a trabalhar da mesma maneira, até que um dia os nossos institutos
tenham receitas próprias.
2531
Até ao presente, a ajuda mais considerável chegou-nos da Alemanha católica, representada pela benemé-
rita Sociedade de Colónia, que é a directa fundadora dos nossos institutos para negros no Egipto e a melhor
promotora da obra da regeneração da África. Deus a anime a prosseguir e a intensificar as suas esmolas! A
protectora desta grande obra é a benemérita Sociedade de Colónia: ela é verdadeiramente uma sublime obra
de Deus! As nossas súplicas ao Senhor vão no sentido de que ela se difunda cada vez mais e adquira propor-
ções sempre maiores.
2532
Um grave inconveniente consiste no facto de que os nossos institutos no Egipto não possuem nenhuma
casa que seja sua propriedade.
A renda das três casas do Egipto custa-nos 3160 francos por ano. Com as reparações, que se tornam ne-
cessárias, tal soma ascende todos os anos a 4000 francos; contudo, de agora em diante, só a 3550 fr. Uma
casa própria para a missão custaria 80 000 fr. A casa do Sagdo. Coração de Maria foi-me oferecida por 60
000 fr., porém, algumas alterações e melhoramentos requereriam mais 20 000 francos. No Egipto, as casas
são muito caras. Para possibilitar a aquisição de uma, ao menos para começar, a ilustre Sociedade de Coló-
nia, com nobre e incomparável esforço, enviou-me a importante soma de 10 000 fr. Este exemplo digno de
louvor encontrou eco num ilustre benfeitor, que destinou para este fim outros três mil francos. Certamente,
ainda nos falta muito para poder comprar uma casa própria. Deus infunda semelhante espírito de caridade
também noutros benfeitores, a fim de que esta questão relevante para a nossa grande obra fique rapidamente
solucionada.
2533
Os gastos só para as necessidades mais urgentes dos três institutos do Egipto ascendem por ano a 25 000
fr. Mesmo usando a maior parcimónia, tal soma continua a ser, todavia, uma exigência anual.
Segue-se uma breve exposição das receitas e gastos de três anos dos nossos institutos do Egipto, ou seja,
desde a sua fundação até ao presente; nela se incluem viagens, doações em dinheiro e víveres e os gastos
para o equipamento interno.

ENTRADAS E ACTIVO DOS INSTITUTOS DO CAIRO


NOS PRIMEIROS TRÊS ANOS DA SUA FUNDAÇÃO

Donativos em dinheiro
2534
1. A ilustre Sociedade de Colónia para resgate
de negros 33 050
2. A Sociedade da Propagação da Fé de Lião e Paris 1000
3. A Ludwigverein de Munique 1500
4. A Sociedade da Imaculada Conceição de Viena 1000
5. A Sociedade para as Escolas do Oriente de Paris 1200
6. A Sociedade do Santo Sepulcro de Colónia 500
7. O Instituto das Monjas Cistercienses de Landschut,
na Baviera 2000
8. O Instituto da Visitação de Beueberg, na Baviera 1260
9. Ofertas de benfeitores privados, entre os quais se
distinguem: suas majestades o imperador Fernando I
e a imperatriz Maria Ana de Áustria, Sua Alteza Real
o Duque de Módena, Francisco V, Sua Alteza Real o
Príncipe Jorge de Saxónia e consorte, Sua Alteza o
Príncipe Carlos de Löwenstein, etc., etc. 19 470
10. Fruto dos trabalhos das negras dos instos. do Cairo 3680
11. Missas dos missionários (estipêndios de missas) 5400

Doações de vários objectos úteis


2535
12. Sra. Duchene de Paris, sra. Maurin Bié, sra. Dephies,
Sociedade de Roma (Obra Apostólica de Roma):
tecidos, vestidos, camisas, etc., etc. no valor de 3640
13. Doações em café, açúcar, queijo, farinha e outros
produtos alimentícios 4000
14. Da família do missionário P.e Rolleri e das Irmãs
da Santíssima Virgem de Cremona, trigo, presunto, etc. 700
15. Nove barris de azeite dados por meu pai,
Luís Comboni. 750

Francos 89 150

Poupanças mediante a minha gestão e concessões extraordinárias


2536
16. Várias companhias ferroviárias com sede em Paris,
o sr. Pointu, director dos Caminhos de Ferro do Sul,
em Viena, o sr. Behm, director em Innsbruck, o
sr. Talabot, de Paris, etc., concederam-me viagens
gratuitas na Itália, França e Alemanha, no valor de 1600
17. Viagem gratuita ao Cairo de negras como postulantes
da missão, de irmãos leigos e operários; transporte
gratuito 274 fardos de Marselha para Alexandria, a cargo
de S. E. o ministro dos Negócios Estrangeiros da França
(o Governo francês concedeu viagem gratuita só aos
missionários, e isto não sempre, mas só nalguns casos)
e do Governo egípcio 12 000

Soma das receitas em francos 102 750

GASTOS E PASSIVO DOS INSTITUTOS DO CAIRO NOS


PRIMEIROS TRÊS ANOS DESDE A SUA FUNDAÇÃO

1. Gastos de viagem com 36 pessoas, com transporte de


equipamentos da Europa até ao Cairo 15 600
2. Minhas viagens à Europa 2200
3. Aluguer das casas do Cairo 8160
4. Cartas, expedição e recepção de encomendas, etc.
para mim e para os institutos 2600
5. Gastos com o culto: velas, azeite, vinho, farinha,
bancos, confessionários, lavatórios, etc. 2900
6. Farmácia: honorários do médico ordinário e de um
para casos especiais; pequenos gastos do hospital 4800
7. Comida, roupa e sustento de 72 pessoas;
gastos de transporte em carro, burro, etc.
e do resgate de negros e negras 39 000
8. Camas de ferro, lavabos, utensílios para artes
e ofícios, o necessário para o altar, etc.
Todos os objectos que os três institutos
possuem e que ascendem aproximadamente a 26 000

Soma dos gastos em francos 101 260

Total de receitas e activo ........................................... Fr. 102 750


Total de gastos e passivo ............................................ Fr. 101 260

Em caixa .......................................................................... Fr. 1490

2537
Não foram calculadas as esmolas necessárias que em toda a missão se devem dar aos pobres, em dinheiro
ou noutras coisas.
Assim, pois, têm o senhores, como supremos chefes, uma ideia da fundação e dos fins dos nossos três ins-
titutos de negros do Egipto, bem como das regras que neles se observam. Eles devem ser considerados como
a primeira pedra do grandioso edifício de caridade cristã e de civilização, que na sua admirável pré-
ordenação a divina Providência parece querer erigir para a conquista moral e espiritual da Nigrícia da África
Central. Ainda me restaria expor algo mais sobre os resultados primários e secundários conseguidos e que se
espera conseguir nestes institutos. Mas isso será objecto de um ulterior relatório que por agora me reservo.
2538
Quero ainda assinalar aqui que o representante da S. Sé, o rev.mo mons. Ciurcia, vigário e delegado apos-
tólico do Egipto e da Arábia, mostrou sempre grande benevolência para comigo e os meus institutos, expri-
mindo da maneira mais afectuosa a sua complacência e dando à S. Congregação da Propaganda Fide as
informações mais lisonjeiras sobre eles. Também produziram uma excelente impressão aos bispos e vicários
apostólicos da China, da Índia, da América e do Oriente, os quais, por ocasião da sua viagem para o Concílio
Ecuménico Vaticano, os honraram com a sua visita. Com particular gratidão e veneração recordo o rev.mo
mons. Leo Meurin, da diocese de Colónia, decoro do apostolado na Índia, bispo de Ascalona, vigário apostó-
lico de Bombaim e administrador interino do vicariato de Poona. Como membro da Companhia de Jesus,
possui uma acuidade especial no momento de emitir um juízo sobre um instituto missionário e sabe ver com
grande precisão se um instituto para o apostolado de recente criação dá esperanças e está na via do progresso.
Aqueles dos estimadíssimos senhores que tiveram a sorte de gozar da conversação deste insigne apóstolo da
Índia, ter-lhe-ão ouvido falar sobre os trabalhos e o progresso dos nosso institutos (cf. os Anais do ano pas-
sado). A louvável bondade que teve para connosco no Egipto, em Roma e em toda a parte não a esquecerei
jamais. Este digno filho de Sto Inácio, a quem foi confiado o apostolado da Índia, sucessor do seu glorioso
pai e predecessor S. Francisco Xavier, tornou-se imitador das suas gloriosas virtudes. A Índia e o Concílio
Vaticano devem a mons. Meurin serviços de primeiríssima importância. É para mim causa de alegria e orgu-
lho que este ilustre bispo seja natural de Colónia.
2539
O Egipto, por ocasião da solene abertura do canal de Suez, foi honrado com a distinta presença dos mais
poderosos príncipes da Europa, entre eles o glorioso príncipe da coroa da Prússia e a imperatriz Eugénia.
Para fazer honra à verdade e cumprir um dever de gratidão, falarei da conduta verdadeiramente apostólica de
S. M. o imperador da Áustria.
2540
O feliz evento da solene abertura do canal de Suez, que teve lugar em meados de Dezembro de 1869, fez
chegar o reflexo do seu esplendor às santas missões do Oriente e, em especial à do Egipto. Entre a realeza
europeia assistente às festas, que Sua Alteza o quedive do Egipto Ismail Paxá fez preparar com esplendor e
magnificência orientais, estava também S. M. o Imperador da Áustria. Esta presença no Egipto do nobre
descendente dos Habsburgo, se, do ponto de vista humano, era uma grande honra para o memorável momen-
to da inauguração de uma obra de glória e alcance mundiais, no aspecto religioso, segundo as misteriosas
disposições da Providência, foi um acontecimento sumamente feliz para o Catolicismo. De facto, tornou-se
num verdadeiro apostolado em favor das missões católicas. Quando um imperador tão poderoso não desde-
nha prostrar-se perante o sepulcro do Salvador e oferecer testemunho da sua veneração pelos Lugares Santos,
santificados pela presença do Homem-Deus durante a sua vida terrena, na Terra Santa e no Egipto dá com
isso um exemplo magnífico e eloquente. Tão-pouco deixou de manifestar a sua estima aos sacerdotes destes
santuários, que nestas terras pregam aos infiéis o Evangelho da paz e de todo o bem. Tanto é assim que, ape-
nas chegado à santa cidade de Jerusalém, o grande monarca se ajoelhou aos pés de um pobre frade francisca-
no e confessou-se para, depois, receber o pão dos anjos no Sepulcro daquele que é Rei dos Reis e Senhor dos
Exércitos. Este foi um espectáculo edificante não só para os católicos mas também para os turcos e hereges.
À sua chegada a Suez e ao Cairo, a sua primeira preocupação foi assistir à santa missa nos modestos templos
que aí existem e só depois visitou as soberbas e gloriosas maravilhas dos séculos passados.
2541
O dia 23 de Novembro será para mim uma data eternamente memorável. Esse dia Sua Majestade imperi-
al, às onze da manhã dignou-se receber o corpo diplomático e os cônsules do Egipto. Uma hora antes, o
rev.mo mons. Ciurcia reunia na sua residência os bispos dos católicos orientais unidos e os superiores dos
institutos e, às onze, apresentávamo-nos no magnífico palácio de Jazirah. Logo que S. Majestade imperial
teve notícia da nossa chegada, nós, os representantes da religião católica no Egipto, entrámos imediatamente,
sem ter pedido audiência, e o corpo diplomático teve que esperar. À breve e vibrante alocução de mons.
Ciurcia, o imperador respondeu com palavras de benevolência e de estímulo, prometendo procurar ajudar e
proteger os interesses da religião católica no Oriente. O imperador dirigiu-se depois a cada um dos bispos e
superiores dos institutos com algumas palavras amáveis. Sua Majestade Imperial dirigiu-se também à minha
humilde pessoa e com particular afabilidade expressou-me o interesse que sente pela regeneração da África
Central, da qual o imperador sempre foi valioso protector desde a fundação do vasto vicariato. Tal reconhe-
cimento e consideração que o Catolicismo e seus representantes espirituais experimentaram da parte de tão
grande monarca não deixaram de produzir sobre os turcos uma favorável impressão.
2542
Viram que um imperador professava perante todo o mundo a mais sincera estima e respeito pela sua santa
religião e que tratava todos os seus sacerdotes, a começar pelos bispos, com a mais cordial gentileza. Disso
tiraram certamente como consequência evidente que, da sua parte, não deviam pôr mais obstáculos ao apos-
tolado católico, mas conceder plena liberdade à nossa santa religião e que os missionários e representantes
desta santa religião no Oriente deviam ser respeitados; porque, doutro modo, um soberano europeu tão pode-
roso poderia denunciar a sua prepotência e injustiça. Dado que esta maneira de proceder do imperador da
Áustria teve consequências muito favoráveis para o apostolado, deve ser conservada para eterna memória
nos anais da missão e os missionários recordá-la-ão com imperecível gratidão. Entre as personalidades ilus-
tres que presenciaram a abertura do canal de Suez e que com a sua visita honraram os nossos institutos, devo
recordar também Sua Alteza Real o arquiduque Rainiero com a sua distinta consorte, assim como o arquidu-
que Ernesto, os quais se entretiveram todos amenamente com as jovens negras, interessando-se com a máxi-
ma condescendência por saberem coisas a seu respeito.

II

2543
A obra da regeneração da Nigrícia é uma tarefa difícil e urgente em grau supremo e enorme. Para realizar
em linhas gerais o projecto como o concebi e para lhe dar uma base duradoira, necessitar-se-ia da participa-
ção maciça de todos os católicos do mundo, unidos no mesmo esforço: assim se libertariam estes pobres
negros da noite do paganismo e se faria resplandecer sobre eles a luz vivificadora da fé em Jesus Cristo. De-
vemos pensar sempre que são a décima parte do género humano! Não encontro palavras para descrever a dor
que sinto e a profunda angústia do meu coração, e com que gravidade e intensidade pesa sobre mim a preo-
cupação pela desolação e pelo letargo em que esses infelizes se encontram mergulhados! Eu fui testemunha
ocular das cadeias espirituais e da profunda miséria desses desditosos. O pensamento de que uma miséria
humana tão enorme pesa sobre a minha querida Nigrícia, tira-me muitas noites o sono e de manhã levanto-
me mais cansado que quando me deitei, após um dia de intenso trabalho. E nestas noites longas e cheias de
angústia, antes de me aperceber, a minha imaginação corre até às abrasadas terras da África Central, ainda
inexploradas e cenário das condições mais deprimentes. Depois, com o pensamento, percorro toda a Europa
desenvolvida e olho à minha volta para ver se surge um raio de esperança, que possa beneficiar os meus po-
bres negros!
2544
Ah! Eu prostro-me, pois, nova e resolutamente aos pés dos monarcas e dos grandes deste mundo para lhes
suplicar com rios de lágrimas que abram a mão e gastem uma parte dos seus tesouros na salvação desses
infelizes. Deixo, depois, que o meu olhar deslize sobre a parte eleita do rebanho de Jesus Cristo, contem-
plando os mais florescentes seminários das proeminentes dioceses do mundo católico e neles quereria esco-
lher para mim os jovens mais fortes, a flor e a esperança do sacerdócio, para os incitar a que voltem com
gesto heróico as costas ao mundo, deixem a sua pátria e corram em ajuda daqueles infelizes para romper as
cadeias da sua escravidão e levar-lhes a boa nova, a fé católica.
2545
Uma noite fiquei mergulhado em tais pensamentos, pouco depois de voltar do leito de morte de um pobre
homem que vivia nas margens do Nilo, onde se encontram as famosas pirâmides que são verdadeiro símbolo
da escravidão do povo hebreu, que foi utilizado na construção destas antiquíssimas e célebres edificações e
nelas derramou o seu suor. E como um relâmpago iluminou o meu espírito a ideia de aproveitar o santo con-
cílio ecuménico e apresentar-me a todos os bispos do mundo católico, reunidos junto do túmulo de S. Pedro
para falar com o Vigário de Jesus Cristo sobre os assuntos de maior interesse para a Igreja Católica e sobre a
sua influência em todo o mundo. Durante algum tempo trouxe esta ideia no meu espírito. Depois rezei e fiz
rezar por mim os melhores entre os primeiros frutos da Nigrícia regenerada. Após ter consultado longamente
os meus companheiros de missão e depois de um reflectido exame, resolvi partir para Roma, onde, pela rota
de Messina, cheguei a 15 de Março, dia do meu aniversário. Considerado a fundo tudo o que podia favorecer
mais o meu projecto e mantidos frequentes colóquios com os mais insignes prelados do concílio ecuménico,
especialmente com o cardeal Barnabó, fui convidado a preparar um Postulatum pro Nigris Africae Centralis,
que devia possuir as qualidades necessárias para depois ser tomado em consideração pela assembleia concili-
ar.
2546
Assim, mediante singular ajuda da graça divina e com um trabalho indizível, consegui submetê-lo à co-
missão. Tive que visitar seiscentos bispos, grande parte dos quais subscreveram o Postulado. Essa comissão
era formada por cardeais, patriarcas, arcebispos e bispos e tinha sido nomeada por Sua Santidade Pio IX para
recolher e examinar as propostas dos padres do concílio. O meu Postulado foi por ela aprovado, porque o
objectivo que continha era útil à Igreja universal e por isso deu o seu consentimento para que fosse submeti-
do ao concílio. E finalmente a 18 de Julho de 1870, dia memorável para a Igreja católica, o secretário da
Comissão de Postulados, mons. Alexandre Franchi, arcebispo de Tessalónica, apresentou-o a Sua Santidade.
Pio IX dignou-se assiná-lo e determinou que no concílio fosse tratado sob a rubrica «De missionibus aposto-
licis».
2547
Em poucas palavras, não posso enumerar todos os benefícios que o Postulado trará no futuro, porque re-
comenda à Igreja universal a grande questão da Nigrícia e da África Central. Os bispos do concílio acolhe-
ram-no com grande interesse, apesar de então todos os ânimos estarem ocupados sobretudo com a capital
questão da infalibilidade, de modo que ela absorvia quase toda a atenção. Dos benefícios que o Postulado
põe em relevo, quero assinalar apenas dois:
2548
1. Logo que fosse discutido no concílio o grande problema a que alude o Postulado e com uma decisão
conciliar se emitisse uma sentença em favor do apostolado da Nigrícia, esta resposta serviria sem dúvida para
recordar eternamente o dever de proteger todos os povos negros da África Central e pelos séculos todo o
mundo católico a consideraria como algo emanado do coração do santo concílio ecuménico e como um per-
pétuo chamamento dirigido a todos os povos da cristandade católica: o de promover com zelo a conversão
dos negros e ajudar sempre as missões da África Central até que a Nigrícia se tornasse cristã.
2549
2. Uma vez sancionado solenemente pelo Concílio Ecuménico Vaticano o princípio do apostolado da Ni-
grícia, em seguida veremos os seus maravilhosos resultados. Não só sairão das dioceses católicas, para a
África Central, apóstolos e colaboradores cheios de zelo, mas também os católicos de todo o mundo, median-
te contribuições em dinheiro, apressar-se-ão a proporcionar os meios materiais necessários para que todas as
empresas que se devem pôr em andamento para a conversão da Nigrícia consigam os maiores progressos.

[Segue o Postulado e a carta com que Comboni pede aos padres conciliares a subscrição do mesmo]

III

2550
Provavelmente, o Postulado serviu também de acicate para que se levasse a cabo a última pequena expe-
dição ao Egipto, que organizei em finais de Outubro do ano passado. Nas páginas que se seguem contarei
como se deu o primeiro impulso.
Era o dia 29 de Junho, dia consagrado à comemoração dos gloriosos príncipes dos Apóstolos. A Basílica
Vaticana dispunha-se a oferecer ao mundo um espectáculo único. O chefe supremo da Igreja ia celebrar o
pontifical e ia-se fazer gala de toda a majestade, de todo o esplendor e beleza do culto externo da Igreja de
Jesus Cristo. Nunca tal cerimónia havia sido tão sublime e magnífica como prometia sê-lo nessa ocasião,
pela presença dos padres do concílio, que em número superior a seiscentos, com as suas ricas e preciosas
vestimentas, faziam a sua aparição na principal basílica do mundo.
2551
Para lhes conseguir um lugar o mais favorável possível e uma vista melhor, algumas distintas personali-
dades tinham-me pedido que as acompanhasse ao Vaticano e as colocasse junto à Confissão de S. Pedro, do
lado do Evangelho. Na realidade, não só desejavam ver bem a cerimónia do pontifical, mas também que eu
lhes dissesse o nome de cada bispo que passava a nosso lado para se dirigir ao coro de S. Pedro. Sabiam que
eu podia informá-los muito bem, porque os conhecia quase a todos, por ter tido colóquios com eles por causa
do Postulado ou por os ter conhecido nas suas dioceses ou anteriormente em Roma, noutras circunstâncias.
Quis a sorte que, enquanto passava por este lado o cortejo dos cardeais e prelados e eu dizia o nome de cada
um, muitas pessoas se acercaram e se puseram à minha volta para também ouvirem os nomes. Entre elas
estava um jovem cónego da arquidiocese de Trani, na região de Nápoles, o qual, sem eu ter reparado particu-
larmente nele, era quem prestava mais atenção às minhas palavras. Passavam um após outro tantos prelados
que aquilo parecia um nunca mais acabar. E depois de um deles ter passado ao nosso lado, o jovem clérigo
aproximou-se e perguntou-me: «Quem é esse prelado?» Respondi-lhe logo: «É mons. Bianchi Dottula, arce-
bispo de Trani, Nazaret e Barletta, e perpétuo administrador da diocese de Bisceglie.» O clérigo sorriu com
ar de aprovação e foi ter com seus amigos; então deixei de lhe prestar atenção. Nesse instante apareceu o
Santo Padre na cadeira gestatória, subiu ao trono e começou o pontifical. Eu acerquei-me dos bispos e falei
em árabe com alguns prelados orientais. Com outros que estavam à minha volta, via-me obrigado a falar
noutras línguas, porque naquela ocasião Roma era um universo.
2552
Observei então como o jovem eclesiástico me seguia passo a passo e captava cada palavra quando eu fa-
lava em latim, italiano ou francês. Dois meses mais tarde me confessaria que ele então não se atrevera a fa-
lar-me, mas que tinha pedido a um dos seus companheiros que me dirigisse a palavra. Tendo eu satisfeito o
seu companheiro com uma resposta cortês, o jovem ganhou ânimo e começou comigo o seguinte diálogo:
«Perdoe a pergunta, senhor, mas o senhor deve ter na mente um assunto muito importante para empreender
essas viagens que ouvi dos seus lábios!» «O objectivo das minhas viagens – respondi-lhe – é recolher esmo-
las e meios de subsistência para a minha missão e procurar missionários animados de verdadeiro espírito de
abnegação e zelo, que me ajudem na minha grande empresa.» Quando o clérigo ouviu esta resposta, os seus
olhos encontraram-se com os meus, num olhar cheio de vivacidade e ardor. Falei depois novamente com os
outros e disse-lhes o nome dos príncipes e princesas que estavam na tribuna dos príncipes. Porém, o meu
clérigo não tardou em voltar à carga com esta pergunta súbita: «Que missão lhe pareceria a si mais adequada
para um napolitano?» «A Missão da África» – respondi-lhe sem hesitação. Isto excitou ainda mais o jovem
clérigo. Então a minha mente iluminou-se com a ideia de ganhar este jovem para a causa da África. Separei-
me amavelmente dos outros para me dedicar de preferência a ele e sondar o terreno; ele saiu-se com uma
nova pergunta: «Oh! Diga-me, em que parte é o senhor missionário?» «No Egipto», sem me alargar a expli-
car-lhe que era missionário da África Central. O jovem clérigo não tardou a acrescentar: «Que feliz seria eu
se pudesse ser missionário sob a sua direcção! Mas o Egipto não é a missão que eu escolhi para mim, mas a
África Central, a Nigrícia; porque, tendo lido o Postulado pro Nigris Africae Centralis proposto ao concílio
por um certo abade Comboni, do qual também li o “Plano para a Regeneração da África”, apoderou-se de
mim a mais profunda simpatia por esses povos.
2553
Sim; parece-me que não existe no mundo nada mais importante nem meritório que esta sublime tarefa.
Embora eu já me tenha apresentado ao meu arcebispo e ele, por mim, se tenha posto em contacto com um
bispo lazarista da América, para que eu me possa dedicar à sua missão, eu, após ler o Postulado e o Plano,
que o meu arcebispo me havia entregue, fui tomado de um amor tão forte pela África Central, de uma simpa-
tia tão viva por esses povos, que o meu arcebispo só me disse: “Reze para que o Senhor lhe manifeste a sua
vontade.” O senhor não ouviu falar da Nigrícia e daquela grande obra missionária?» Eu não sabia o que me
acontecia, ao ouvir aquele jovem a falar assim! «Sim – respondi-lhe – conheço essa obra missionária da Ni-
grícia. Como os missionários que vão para a África Central devem passar pelo Egipto, tive ocasião de conhe-
cê-los a todos e estou muito bem inteirado do objectivo da sua missão.» Oh, como me alegro – disse o jovem
clérigo – de que esteja ao corrente de tudo isso. Então deve também conhecer aquele que trabalha para essa
obra, o abade Comboni!» Claro que sim – respondi – conheço-o muito bem.» «É com ele com quem tenho
que falar. Já perguntei ao meu arcebispo onde mora Comboni, mas não soube dizer-mo. Ele disse-me que o
conhece muito bem e aconselhou-me a que perguntasse a direcção de Comboni ao bispo de Verona, que cer-
tamente a saberia. Quando terminar o pontifical, irei ter com ele para lhe pedir essa informação. Então eu
disse-lhe: “Eu também posso dizer-lhe onde mora Comboni, se quiser. É na Piazza di Gesù, n.o 47, 3.o pi-
so”. “Muitíssimo obrigado!” – exclamou o jovem eclesiástico todo satisfeito, e tomou nota da direcção.
“Agora já não preciso de ir à procura do bispo de Verona, vou direitinho ter com Comboni.” “Meu amigo, se
pretende lá ir agora, será inútil: ele nunca está em casa. É um incorrigível vagabundo e sempre tão sobrecar-
regado de trabalho que só vai a casa para dormir. Em todo o caso, se quiser encontrá-lo, vá amanhã, às duas
da tarde, à direcção indicada. Talvez, quando voltar cansado do passeio a S. Paulo Extra Muros, o encontre
em casa.”
2554
A marcação da visita para o dia seguinte foi propositada, para ter tempo de me informar em pormenor so-
bre este homem junto do seu ilustríssimo arcebispo, antes de começar a tratar com ele e lhe dar uma resposta.
“Então amanhã às duas da tarde irei visitar o abade Comboni.”
Esta conversa tinha tido lugar enquanto Pio IX celebrava o pontifical. Quando o Santo Padre com a sua
voz sonora, que ecoava clara e perceptível pela imensa basílica, cantou o Pater Noster, o jovem clérigo, que
tinha sabido pelos circunstantes que Comboni era eu, aproximou-se de mim e disse-me: «Com que então o
senhor é o abade Comboni!» «Suponhamos que seja» – respondi. «Então – acrescentou – desde este momen-
to consagro-me à sua grande empresa e quero expor-me a todos os perigos do apostolado da Nigrícia. Dispo-
nha imediatamente de mim e trate-me, se quiser, como um pedaço de madeira. Só uma coisa lhe peço: vá ter
com o meu arcebispo e convença-o a deixar-me dedicar à sua obra. Confio que Deus, mediante mons. o ar-
cebispo, me concederá essa graça. Eu submeto-me a si para toda a eternidade e prometo-lhe a mais incondi-
cional obediência.»
2555
Que admirável disposição! E que bom és, ó meu Deus! No momento em que o jovem clérigo me prometia
solenemente entregar-se de corpo e alma à obra missionária da Nigrícia, aí, a poucos passos do túmulo dos
príncipes dos apóstolos, na presença do Vigário de Jesus Cristo e dos representantes do Catolicismo, o
rev.mo arcebispo de Trani oferecia ao bispo de Verona, para as missões de África, o jovem clérigo Pascoal
Fiore.
Terminado o pontifical, recomendei ao novo aspirante que redobrasse as suas preces a Deus e à Rainha
dos Apóstolos para poder conhecer a vontade do Céu. Tendo eu ido visitar o bispo de Verona, ele, ao ver-me,
disse-me que a Divina Providência talvez nos tivesse concedido como colaborador na obra africana um ho-
mem insigne, na pessoa de um excelente jovem clérigo, que lhe tinha sido oferecido pelo arcebispo de Trani.
E encarregou-me de falar com este e que examinasse o candidato para ver se ele tinha autêntica vocação. Isto
teria sido inútil, evidentemente, porque nos teria bastado o juízo de mons. Bianchi Dottula, prelado distinto,
profundo conhecedor do coração humano e que sabia compreender profundamente a importância e a grande-
za desta actividade missionária, à qual o novo candidato queria dedicar-se.
2556
Quando, ao anoitecer, fui visitar o arcebispo de Trani, este narrou-me toda a história da vocação de Pas-
coal Fiore ao estado eclesiástico. E confessou-me que verdadeiramente fazia um grande sacrifício ao des-
prender-se de um dos eclesiásticos mais insignes e mais zelosos da sua diocese. Porém, dado pensar que era
aquela a vontade de Deus, estava completamente disposto a isso e dava-lhe de boa vontade a sua autorização.
Contudo, antes de tomar uma decisão em coisa tão importante, foi nosso dever fazer um tríduo à Mãe de
Deus, para poder conhecer a vontade divina. Chegados ao terceiro dia do tríduo, a dois de Julho, Visitação da
Virgem, voltei a visitar o bispo, o qual, logo após uma breves palavras, disse-me que Deus tinha efectiva-
mente chamado o clérigo Fiore para o apostolado da África; e assim ficou a coisa. Fiore contou-me mais
tarde como lhe tinha surgido a vocação missionária, na qual se reconhece claramente a mão de Deus. Com-
binámos que em primeiro lugar voltasse a Nápoles para deixar regulados os assuntos da sua vasta paróquia e
da sua família. No Outono eu chamá-lo-ia para Verona, para o Colégio das Missões Africanas, e aí, o bispo
de Verona e eu encarregar-nos-íamos de lhe confiar o trabalho mais adequado para o bem da grande obra.
2557
Será certamente do vosso interesse tomar conhecimento dos pormenores que levaram Fiore a decidir-se
pela África.
O eclesiástico Fiore é um jovem sacerdote de trinta anos, cuja família, bem acomodada, vive na cidade de
Corato. A sua mãe, uma senhora distintamente devota, de quarenta e oito anos, alimentava para com o filho
um amor extraordinário e ele, por sua parte, correspondia ao amor materno com a mesma intensidade de
afecto, de modo que só vivia para Deus e para a sua mãe. A este intenso amor para com ela se deveu que no
início da sua carreira sacerdotal se não orientasse para as missões estrangeiras, pelas quais se sentia forte-
mente atraído. Em casa recebeu uma óptima educação e no seminário da sua diocese distinguiu-se de tal
maneira pela sua capacidade intelectual, pela sua piedade e pela sua afeição ao estudo, que no fim do seu
curso teológico o seu arcebispo o escolheu para resolver alguns assuntos eclesiásticos de grande importância.
Mostrou nisso tanta prudência, solicitude e habilidade, que, com apenas 26 anos de idade, lhe foi confiada a
grande paróquia de Corato, que contava com 32 000 almas. Realmente admirável foi o seu espírito de abne-
gação no tempo da cólera, que, por duas vezes, irrompeu de maneira horrível nesta cidade. Em 1867, na épo-
ca da mais violenta manifestação dessa doença em Corato, morriam todos os dias de 140 a 150 pessoas. A
grande actividade de Fiore e o zelo verdadeiramente apostólico que demonstrou nesta tribulação da sua cida-
de deram como resultado que o arcebispo, a pedido de muitos, o nomeasse cónego do capítulo de Corato e
teve, além disso, que exercer as pesadas funções de pároco e de confessor de muitas religiosas nos mosteiros
daquela região.
2558
A prática diária do seu trabalho espiritual não o impedia de mostrar à sua mãe as mais ternas provas de
afecto. Quando ao meio-dia voltava a casa, a primeira coisa que queria era ver a sua mãe e o mesmo sempre
que se dispunha para sair para a igreja: ambos pareciam incapazes de viver separados. Contudo, ao sentir de
modo cada vez mais viva a vocação de consagrar a sua vida às santas missões, a inquietação apoderou-se do
seu ânimo, temendo que este carinho intenso para com a mãe pudesse converter-se num grave obstáculo para
a realização do seu projecto. Quantas vezes esteve prestes a cortar essas ligações do sangue, fugindo assim
para um mundo longínquo para poder oferecer a sua alma só a Deus! Quantas vezes resistiu a custo à tenta-
ção de abandonar a casa para entrar num instituto missionário! Mas sempre ficava vencedor o amor pela
mãe.
2559
Encontrava-se neste estado a sua alma, quando um assunto de trabalho de particular urgência o chamou a
Roma; só com grande pesar conseguiu separar-se uns dias da sua querida mãe. À sua chegada a Roma, en-
controu um companheiro sacerdote que queria fazer os exercícios espirituais numa comunidade religiosa,
mas ainda não tinha encontrado a ocasião. Sucedeu que um dia, tendo Fiore ido celebrar aos jesuítas, viu um
aviso no qual se anunciavam os exercícios espirituais nos padres jesuítas de St.o Eusébio e a data do seu
começo. Perguntou então a um padre jesuíta se o seu amigo podia participar nesses exercícios. Tendo obtido
resposta afirmativa, logo que lhe foi possível, correu a dar a notícia ao seu companheiro. Este, por sua vez,
convidou Fiore a fazer os exercícios com ele; porém, num primeiro momento, o jovem eclesiástico negou-se
a isso, alegando que os tinha feito há pouco. Contudo, perante a insistência do amigo, decidiu-se a acompa-
nhá-lo a S.to Eusébio. Lá vieram a saber que só havia lugar para um; perante isso Fiore retirou-se triste, por-
que sentia agora que uma voz interna o incitava cada vez mais a fazer os exercícios precisamente então e
também porque se lhe havia oferecido a ocasião. Falou sobre isso com o seu arcebispo, que o aconselhou a
voltar a St.o Eusébio e a experimentar de novo a ver se o admitiam. Com insistentes súplicas, conseguiu dos
bons padres o seu intento. Dava os exercícios o célebre P.e Curci S. J. Fez cinco palestras sobre a vocação
do homem. Nelas mostrou-se um pregador tão sumamente electrizante, descreveu com tal força os argumen-
tos e tão ao vivo as vaidades deste mundo e a caducidade de todas as coisas terrenas, que o clérigo Fiore já
não titubeou um instante quanto ao abraçar a actividade das missões estrangeiras e deixar a mãe por quem
sentia tanto carinho. O amor às infelizes almas que ainda gemiam sob o jugo de Satanás e a ânsia por as li-
bertar e redimir prevaleceu sobre o amor à mãe! Então deu a conhecer totalmente o seu estado de ânimo ao
arcebispo e solicitou que lhe indicasse uma missão, onde lhe fosse possível oferecer a sua vida pela salvação
das almas. O prelado falou a tal propósito com um bispo americano e Fiore já estava prestes a tomar com ele
uma decisão definitiva, quando a Providência, como já disse, dispôs as coisas de outro modo.
2560
Deus deu-nos, além disso, outro homem insigne, cuja experiência como cura de almas nos será de grande
utilidade para a infeliz Nigrícia. Trata-se de P.e José Ravignani, de 36 anos, pároco de Povegliano, que de-
sempenhou a sua função com grande sabedoria e extraordinária entrega durante mais de onze anos e que
deixou entre os paroquianos tal recordação de bondade que nunca esquecerão o seu pároco. Muito tempo
atrás já tinha desejado dedicar-se às santas missões; porém, surgiram no seu caminho bastantes obstáculos
não previstos, que lhe fizeram protelar a decisão.
Na sua paróquia desempenhava um trabalho tão bem organizado e excelente, que era como se desenvol-
vesse na sua terra as actividades que teria querido desenvolver no estrangeiro. O seu modo de actuar era
sempre como se aquele fosse o último acto da sua vida; estava sempre impregnado de generosidade para com
os homens e com o olhar posto unicamente na salvação das almas.
2561
Em Dezembro de 1869 foi convidado a ir a Jerusalém para um assunto importante. Chegado ao Egipto,
visitou os nossos institutos e viu quanto bem se fazia neles. E depois de conhecer a fundo o espírito que aí
imperava, que outra coisa não era senão o desejo da promoção e salvação das almas dos homens mais aban-
donados e infelizes desta Terra, amadureceu nele a decisão de se dedicar ao apostolado da África Central.
Continuou a sua viagem pela Terra Santa, visitou os santos lugares, que foram banhados pelo suor e sangue
do Divino Salvador, e a sua alma, profundamente devota, à vista do calvário, do santo sepulcro, da gruta de
Belém, foi invadida pelo fervor mais intenso. No Gólgota dominou-o um ardentíssimo desejo de poder dar
ele também a sua vida pelo mesmo ideal pelo qual deu a sua e todo o seu precioso sangue um Deus em forma
humana. Depois voltou ao Cairo, apresentou-se aos nossos missionários e ofereceu-se-lhes para a missão.
Porém, como eu já tinha partido para Roma para recomendar a nossa grande causa dos negros aos represen-
tantes da Igreja, aí reunidos em concílio, também ele foi a Roma e pôs-se à disposição de mons. Canossa,
bispo de Verona, para a nossa obra missionária. Depois de um maduro exame e de nos termos informado
sobre ele, mandámo-lo naquele momento para Verona, ficando fixada para Setembro a nova expedição ao
Egipto, a que devia juntar-se Ravignani.
2562
Também Pedro Bertoli, veneziano, é um homem verdadeiramente excelente. Pertenceu bastante tempo
ao instituto dos Ministros dos Enfermos e, durante dez anos, foi enfermeiro-chefe do grande hospital de
Mântua. Possui destacadas qualidades e saúde robusta e é de uma conduta moral intocável. Se tivesse reali-
zado estudos regulares, teria tido bom sucesso também na carreira eclesiástica; mas a pobreza da sua família
era demasiado grande e viu-se obrigado a ficar em casa e a trabalhar no ofício do seu pai. Contudo, quando
este morreu, Pedro Bertoli dedicou-se a cuidar dos doentes entre os oblatos de S. Camilo. E em Mântua,
mediante uma atenção assídua aos doentes no grande hospital – onde há seiscentos doentes – e em virtude do
contacto com os médicos mais experimentados da cidade, teve a mais favorável ocasião de adquirir muitos
conhecimentos teóricos e práticos de medicina e cirurgia. Tendo-se mostrado tão útil neste campo em Itália,
não deixará de sê-lo também nas missões entre os negros, onde pode funcionar como primeiro médico afri-
cano. A sua vocação para as missões da África tinha-se manifestado havia mais de três anos, pelo que decidi
mandá-lo para o Cairo.
2563
Devo recordar também o irmão leigo Domingos Polinari; é um mestre exímio de agricultura, que domina
a fundo. Possui também outros conhecimentos úteis.
2564
De sóror Josefina falarei noutra ocasião. Nasceu em Tiberíades, junto ao histórico lago que tem um papel
de primeira importância em tantos relatos bíblicos. Entrou no noviciado em Belém da Judeia. Depois foi
chamada para um mosteiro de Jerusalém e, mais tarde, para Deir el-Zamar, na Síria, onde durante muito
tempo ensinou meninas árabes. Finalmente, a sua superiora geral, Ir. Emilie Julien, que numa ocasião a tinha
mandado para Marselha, entregou-ma a mim; teve que entrar no nosso Instituto do Sagdo. Coração de Maria.
Em fins de Outubro, eu mandei-a para o Cairo pela rota de Messina.
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Em Setembro, a nossa pequena expedição tinha que partir para o Egipto, mas faltavam os meios econó-
micos. A horrível guerra que tinha estalado entre duas poderosas nações, que apesar de tudo deviam ser
consideradas das mais civilizadas do mundo, mantinha absorvidos os ânimos e impedia-os de se interessarem
pelas nossas missões. Só Deus sabe quando haverá de novo no mundo uma paz segura e duradoira. Compre-
endo quanto tem que sofrer a generosa Alemanha pelas dolorosas consequências da guerra, desse inimigo do
género humano, ainda que tenha tocado o cume da glória e alcançado as mais brilhantes vitórias. Apesar
disso, foi a magnânima Sociedade de Colónia que me ofereceu novamente os meios para a pequena expedi-
ção ao Egipto. A bordo do Saturno, os participantes saíam no dia 30 de Outubro de Trieste, aonde eu os tinha
acompanhado, e, depois de espantosas tempestades, desembarcaram em Alexandria, para a 8 de Novembro
de 1870 chegarem ao Cairo.
2566
E eu?... Um capitão deve encontrar-se sempre onde a sua presença é mais urgente e importante para a luta
e onde a sua direcção promove melhor a grande obra. No Egipto, a obra da nossa missão arrancou esplendi-
damente; os nossos institutos, por assim dizer, podem deixar-se entregues a si mesmos. Uma só coisa lhes
falta: os meios de subsistência, o dinheiro. E porque o mundo jaz numa obscuridade geral e o horizonte apa-
rece por toda a parte fusco de modo que não se sabe onde encontrar ajudas certas para o futuro, eu permane-
ço na Europa, onde me industrio para encontrar meios como melhor posso. Porém, em condições tão tristes,
que meios posso eu encontrar na Itália ou na França? É inútil esperar uma ajuda financeira nestes países. E a
Alemanha católica? A Alemanha católica é a nova Roma: cura todas as feridas e são inesgotáveis a sua gene-
rosidade e as suas fontes de beneficência. Os senhores não diminuirão as ajudas, pelo mandato de defesa e
protecção da Nigrícia que a Providência vos confiou. Os senhores colaboraram na fundação da obra santa,
que, no meio de tempestades espantosas, da sua incerteza, se tornou realidade; os senhores contribuem para
que ela continue. Certamente que a guerra faz com que muitas fontes de ajuda se sequem, que o comércio
enfraqueça e que o óbolo da viúva e do órfão se torne cada vez mais difícil; porém, permitam-me que o repi-
ta, a generosidade da Alemanha é inesgotável! Pensem no espantoso, inaudito derramamento de sangue na
presente guerra, que devora centenas de milhares de vidas humanas: pois bem, isso não dá senão uma pálida
ideia da grande miséria em que jazem milhões de pobres filhos de Cam. Portanto, coragem: «Non pervenitur
ad magna praemia nisi per magnos labores – não se conseguem grandes êxitos a não ser com grandes fadi-
gas.» A vossa beneficência, que nunca falha, já salvou muitas almas, porque socorreu e deu vida a uma obra
que é a mais católica do mundo. A constância, a imperturbabilidade nas suas obras de caridade contribuem
também para a consolidar e engrandecer.
2567
A fim de que os institutos do Egipto e as obras missionárias, que em breve surgirão também no solo da
África Central, levem o selo de uma fundação duradoura, em 1867, sob a protecção do rev.mo mons. Canos-
sa, abri em Verona um pequeno colégio para as missões africanas, para nele se formarem sacerdotes euro-
peus, com o intuito de que os nossos institutos e a missão da África Central tenham sempre desta forma no-
vos missionários e cooperadores. Nomeei superior do colégio o piedoso e douto P.e Alexandre Dalbosco,
que antes trabalhara comigo como missionário na África Central. Não se podia pensar noutra pessoa mais
indicada para esse lugar. Um homem austero de costumes, profundo conhecedor da alma humana e dos obs-
táculos da actividade missionária na África Central, amável no trato, convincente nos seus argumentos, mui-
to versado em dogmática, moral, direito canónico, leis canónicas orientais, história e costumes do Oriente,
conhecedor também das tribos negras e das línguas árabe, italiana, alemã, francesa, inglesa, nubiana e grega.
A nós pareceu-nos que com este homem o Céu tinha dado uma prenda à obra nascente pela qual ele deu a
vida. Mas infelizmente ele sentiu-se afectado pelos estragos do apostolado da África, tanto mais que sofria
de uma doença abdominal, que começara a manifestar-se em Cartum, e que, no laborioso desempenho do seu
ministério, tinha descurado nos quatro anos passados em Legnago. Assim, ao voltar da assembleia geral de
Bamberg, caiu de cama por uns meses e a 15 de Dezembro de 1868 morreu, deixando novamente órfão o
pequeno colégio missionário de Verona, bem como a Obra do Bom Pastor, na qual exercia o cargo de secre-
tário.
2568
Esta foi uma amarga perda para o colégio de Verona. De facto é extremamente importante que os institu-
tos do Egipto e este colégio de Verona se dêem as mãos e caminhem em sintonia, completando-se recipro-
camente, a fim de que possamos alcançar o único sublime ideal, isto é, a implantação estável da fé cristã na
África Central. Por isso tive que ficar em Verona, onde permanecerei algum tempo ainda, para dar o melhor
rumo a este colégio e consolidá-lo, sobretudo por desejo do rev.mo card. Barnabó, que, com o seu peculiar
gracejo, me disse já várias vezes estas palavras: «Meu caro Comboni, de duas uma: ou me garantes por escri-
to que vais viver por mais 35 anos, ou me estabeleces solidamente esse colégio de Verona, de modo que dê
bons missionários para a África. Tanto num como noutro caso, tens possibilidade de desenvolver uma grande
actividade missionária na África Central. Porém, se não me não organizas e pões em andamento o colégio de
Verona ou se te acontece algum acidente que te leve para o outro mundo, talvez a tua bela obra acabe por se
desfazer em fumo!» Como até agora não encontrei ninguém que me assegure que vou viver outros trinta e
cinco anos e nem sequer um só dia, é mister que me esforce para consolidar o colégio de Verona. Se bem que
com toda a sinceridade do meu coração eu exclame “servus inutilis sum” e embora eu saiba muito bem que
pouco ou nada posso, contudo nisto dou perfeitamente razão ao cardeal, que é o responsável da Propaganda.
Um servo de Deus, o venerável Benaglio Corte, de Bérgamo, falecido em 1836 em odor de santidade, cuja
causa de beatificação está prestes a ser introduzida, disse: “As grandes obras de Deus não são levadas a cabo
nem por sábios nem por santos, mas por aqueles que receberam a inspiração de Deus”.
2569
Esta sentença, que também os santos padres proferem, serve-me de grande consolo, porque estou demasi-
ado certo de que me falta muito para a santidade e para uma ciência profunda e até de que careço basicamen-
te da perfeição e da prudência dos santos. E não obstante, estou convencido de cumprir a vontade de Deus,
fazendo-me promotor da obra africana. Deus, através do seu Vigário na Terra, confiou-me esta missão e eu
dou a minha vida por esta santa obra que empreendi.
Tive, portanto, que me aplicar com toda a minha energia ao colégio de Verona, porque ele tem que me
formar, para a obra da evangelização da África Central e para os institutos do Egipto, colaboradores da mais
elevada capacidade. E espero que, em seguida, esses, com a graça de Deus, no campo da sua actividade mis-
sionária, produzirão muitas conversões e que, tanto no Egipto como na Nigrícia, as nossas missões venham a
ter um verdadeiro florescimento. Se depois os magnânimos católicos da grande nação alemã se persuadirem
destes sucessos, será cada vez maior e mais fervoroso o seu zelo pelo aumento e desenvolvimento da santa
empresa e farão fluir, de modo continuamente crescente, os seus donativos para a Sociedade de Colónia, que
assim estará em condições de nos conceder ajudas cada vez mais abundantes. De tal modo, a partir de Coló-
nia e de Verona, manter-se-á igualmente em desenvolvimento a missão africana e então a meta final não
estará muito longe: ocorrerá a firme implantação e o triunfo da fé católica em todo o território da Nigrícia.
Incluo aqui ainda um breve programa de toda a actividade na nossa missão, que eu mandei imprimir em
folhas soltas na Alemanha.

PROGRAMA DA REGENERAÇÃO DA NIGRÍCIA

2570
A religião cristã, fonte de salvação e base de civilização para os povos, não obstante repetidos e heróicos
esforços realizados durante dezoito séculos, não pôde jamais lançar profundas raízes entre os povos da Áfri-
ca Central. Aproximadamente a décima parte do género humano, ou seja, cem milhões de infelizes filhos de
Adão, pertencentes na sua maioria à raça negra, jazem ainda nas trevas e nas sombras da morte.
A Europa, que tem a missão de levar a civilização a todo o mundo, depois de ter sido ela mesma libertada
pela maravilhosa força do Evangelho do jugo do paganismo, deve desenvolver com renovado zelo o seu
grande poder no nobre ideal de trabalhar para iluminar e salvar este infeliz e abandonado continente, para o
chamar a formar parte do grande rebanho do nosso pastor comum.
2571
Para o sucesso desta sublime e útil empresa é necessário que tanto na Europa como nas costas de África
se organizem todas aquelas obras que podem introduzir o apostolado católico na África Central, mediante o
processo exposto no Plano da Regeneração da África, baseado no princípio de “salvar a África com a Áfri-
ca”.
Até agora, a santa empresa abrange quanto se segue, a saber:

I . NO EGIPTO

2572
A – A casa do Sagrado Coração de Jesus, dirigida pelos membros do Colégio das Missões Africanas de
Verona. O seu objectivo é o seguinte:
1. A educação moral e religiosa dos negros e a sua instrução nas ciências e nas artes que lhes são ne-
cessárias para trabalharem como apóstolos, sob a direcção dos missionários europeus, entre as suas
tribos da África Central.
2. A possibilidade de que os missionários europeus se aclimatem e obtenham os conhecimentos ne-
cessários para um ministério prático no interior da África.
3. Enfim, a instrução religiosa e a conversão dos negros que vivem no Egipto.
A casa do Sagdo. Coração compreende:
a) os missionários
b) os catequistas e os coadjutores
c) o catecumenado e a escola para negros
d) um hospital para os negros abandonados
2573
B – A casa do Sagdo. Coração de Maria, dirigida pelas Irmãs de S. José, etc. A sua finalidade é a educa-
ção religiosa e moral das negras e a sua instrução nos lavores femininos, a fim de que, com o tempo, possam
trabalhar proveitosamente como portadoras da religião e da civilização entre as mulheres da sua terra.
Esta casa compreende
1. as irmãs
2. as negras que se dedicam às missões
3. as aspirantes e as auxiliares
4. o catecumenado e a escola
5. um pequeno hospital para negras abandonadas.
2574
C – A casa da Sagrada Família: funciona como escola pública no Cairo Velho e o seu objectivo é ins-
truir, por meio de missionárias negras (cf. B, n.o 2), moças de toda a cor e religião. O ensino centra-se espe-
cialmente na fé e moral católicas, nos elementos das ciências e nos trabalhos femininos e é ministrado em
várias línguas.
Estes institutos encontram-se sob a jurisdição de S. E. o rev.mo mons. vigário e delegado apostólico do
Egipto.

II. NA EUROPA

2575
1. O Colégio das Missões Africanas de Verona: o seu objectivo é formar clérigos e jovens sacerdotes para
o apostolado da África, bem como para provar a sua vocação e a dos catequistas e coadjutores que queiram
servir como ajudantes nas missões de África.
2. O Instituto de Missionárias para a África de Verona: o seu objectivo é a formação de irmãs piedosas e
cheias de zelo, destinadas a dirigir os institutos femininos da África Central.
2576
3. A Pia Associação do Bom Pastor, que foi canonicamente erigida em Verona e enriquecida com muitas
indulgências plenárias por S. S. Pio IX. O seu objectivo é recolher donativos e esmolas para manter o Colé-
gio das Missões Africanas de Verona e o mencionado Instituto de Missionárias para a África.
Sua Ex.a o rev.mo mons. Luís, marquês de Canossa, bispo de Verona, é o presidente da grande obra de
regeneração da África.
P.e Daniel Comboni, missionário apostólico da África Central e superior dos institutos de negros do Egip-
to, é seu vigário e o director-geral desta empresa.

P.e Daniel Comboni


Missionário apostólico da África Central
e superior dos instos. de negros do Egipto

N.o 403 (379) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


APFL, 1871 Afrique Centrale

Verona, Julho de 1871

Senhores,

2577
No número 255 do caderno de Março de 1871 houveram por bem inserir um extracto extremamente curto
mas verdadeiro do meu pormenorizado relatório sobre a história do vicariato apostólico da África Central
desde a sua erecção em 1846 até 1867, época da criação dos institutos do Egipto para os negros, fundados
com o nobre objectivo de educar indígenas de ambos os sexos, a fim de estabelecer solidamente a fé e perpe-
tuar o ministério entre as tribos da África. Vou apresentar-lhes um relatório muito sucinto do que se está a
fazer para estabelecer sobre um sistema novo e mais seguro a acção do apostolado católico nesta grande e
árdua missão.
2578
Como a experiência demonstrou que o missionário europeu não pode suportar por muito tempo este clima
e as fadigas apostólicas nestas tórridas regiões e que, por seu lado, o africano não pode viver prolongadamen-
te na Europa para receber uma educação que o ponha em condições de exercer o santo ministério, é por isso
que, depois de longa reflexão, se chegou à decisão de escolher alguns pontos nas costas de África, onde tanto
o europeu como o indígena podem viver. Isto com o intuito de formar um clero africano e preparar pessoal
de ambos os sexos que possam implantar, pouco a pouco, de maneira estável, a fé e a civilização nas vastas
tribos da África Central, onde se penetrará gradualmente, após ter instalado, até lá chegar, postos avançados
seguros nos lugares mais adequados para estabelecer missões.
2579
Para este fim, com autorização da Santa Sé, fundaram-se os institutos para negros na capital do Egipto,
lugar que o imortal Pontífice Pio IX me indicou como o ponto de partida e o primeiro centro de actividade
mais adequado para alcançar a nossa santa meta. A base e o plano sobre os quais foram organizados estes
institutos é o «Plano para a Regeneração da África» por meio da própria África. Este é o novo processo de
acção apostólica em favor da Nigrícia, que S. S. o nosso Papa Pio IX, o mui sábio vigário delegado apostóli-
co, mais de trezentos cardeais e bispos e os mais importantes chefes de missões da África, bem como um
grande número de pessoas respeitáveis e eminentes de todos os sectores da sociedade, consultados sobre o
assunto, consideraram como o mais sensato e o mais adequado.
2580
Os institutos fundamentais estabelecidos no Cairo para o apostolado da África Central são dois:
a) A escola de rapazes, dedicada ao Sagdo. Coração de Jesus e dirigida pelos missionários do Colégio das
Missões da Nigrícia estabelecido em Verona, sob os auspícios do venerável e solícito bispo mons. Luís de
Canossa.
b) A escola de raparigas, dedicada ao Sagdo. Coração de Maria e dirigida pelas Irmãs de S. José da Apa-
rição, de Marselha. Mais uma pequena casa dedicada à Sagrada Família, para as meninas do Cairo Velho, a
cargo de mestras negras. Estas casas estão sob a paternal jurisdição de mons. Luís Ciurcia, arcebispo de Ire-
nópolis, vigário e delegado apostólico do Egipto. Os institutos de negros do Egipto têm dois objectivos: um
principal e outro secundário. O primeiro concretiza-se nos seguintes aspectos:
2581
1.o Educação religiosa, moral, intelectual e artesanal dos africanos de ambos os sexos, a fim de os instruir
na fé, na moral, nas ciências e nos ofícios que são necessários na África Central, para que, terminada a sua
educação, seguindo a vocação que a Providência lhes sugerir, voltem às tribos da Nigrícia para servirem de
apóstolos da fé e da civilização aos seus patrícios, sob a direcção dos missionários.
2582
2.o Aclimatar os missionários, as irmãs e os irmãos coadjutores europeus, para que possam suportar me-
lhor o ardente clima e os trabalhos e fadigas da Nigrícia central.
2583
3.o Facilitar aos missionários e às irmãs o estudo do árabe e das diversas línguas dos africanos, assim co-
mo de outros idiomas necessários à missão. Adquirem lá, além disso, conhecimento dos costumes orientais e
dos usos e maneira de ser dos muçulmanos, com os quais será necessário sempre tratar. Ao mesmo tempo,
aprendem um pouco de medicina, cirurgia, flebotomia, química e farmácia e a realizar os trabalhos mais
necessários, mas sobretudo estudam os meios de ganhar almas para Deus. Numa palavra, os institutos do
Egipto são para o missionário uma escola de experiência e de prova, na qual se preparam para exercer bem
as funções de missionário e o santo ministério na África Central.
2584
4.o Os institutos africanos são também uma espécie de noviciado e de prova para estar seguro se os mis-
sionários, as irmãs e os irmãos coadjutores destinados ao apostolado nas regiões interiores da Nigrícia estão
munidos de castidade a toda a prova e, em alto grau, da fé, humildade, constância, caridade, abnegação e das
virtudes apostólicas que são necessárias para manter firmeza nas missões árduas e perigosas do Centro da
África, a fim de que, enquanto se esforçam por converter almas privadas da fé e de tudo, não corram o risco
de ser eles mesmos pervertidos... «ne cum aliis praedicaverint ipsi reprobi efficiantur».
2585
O fim secundário destes institutos é a evangelização da raça negra e etíope no Egipto, que, segundo o
anuário oficial de Leverney, correspondente a 1870, só na cidade do Cairo, compreende 25 000 pessoas.
Além disso, os nossos missionários exercem o seu ministério tanto para a colónia europeia como para os
indígenas de qualquer rito e isto segundo as intenções e com a autorização do venerável arcebispo vigário
apostólico do Egipto.
2586
A prática demonstrou com provas irrefutáveis que os novos institutos do Cairo são dos mais importantes
elementos de apostolado para a raça negra residente no Egipto. Só o ver as nossas alunas e sobretudo as mes-
tras negras tão bem instruídas e educadas, o sentir as conversas entre elas e ouvi-las cantar os louvores do
Senhor faz com que muitas pagãs e muçulmanas sintam desejo de se converterem ao catolicismo. Durante
estes três anos, muitos abjuraram as suas superstições e falsas crenças e entraram no seio da nossa santa reli-
gião, na qual perseveram. Em cada um dos dois institutos fundamentais há um catecumenado, a escola e uma
enfermaria para os africanos, onde muitos indígenas da África Central encontram, com a saúde do corpo, a
salvação da alma; outros passam das doenças corporais à beatitude eterna.
2587
Quanto à origem dos negros do Egipto, quase todos provêm das tribos do interior, onde foram arrancados
violentamente dos seios de suas famílias pelos assassinos nubianos chamados jilabas ou mercadores de es-
cravos. Depois de serem vítimas de sofrimento e maus tratos incríveis e após longas e desastrosas viagens
através de terras inóspitas, abrasadas e imensas regiões desérticas, chegam ao Cairo, onde são vendidos a
preços geralmente altos. Os institutos tornar-se-ão providenciais para esses infelizes e nós procuraremos,
com muita prudência e discrição, mas com a maior solicitude, a conversão dos que estão em famílias cristãs
e dos que se encontram em casas de muçulmanos. Deus abençoou grandemente os esforços do nosso institu-
to.
2588
Os negros da famílias católicas são quase todos pagãos e muçulmanos. A causa desta praga que devora a
raça negra no Egipto, até à sombra do Catolicismo, é a negligência secular e tradicional dos amos a respeito
da salvação dos seus escravos, aos quais consideram como coisas e não como pessoas. Não querem de ne-
nhum modo que se tornem católicos e isto por dois motivos: primeiro, porque os negros, uma vez católicos,
se tornam livres, e temem que se subtraiam à servidão, sem pensarem que com a graça do baptismo (e nós
provámos-lho com diversas experiências) tornam-se mais fiéis aos seus amos, mais trabalhadores e mais
úteis; segundo, porque, uma vez que os seus negros se fazem católicos, já não podem vendê-los aos muçul-
manos, que não compram escravos cristãos.
2589
Para lhes dar uma pálida ideia da grande importância desta parte secundária do apostolado dos nossos ins-
titutos do Egipto em favor da raça negra (que é, contudo, o fim secundário das nossas casas) envio-lhes uma
relação circunstanciada e conscienciosa por meio de um dos meus mais apreciados missionários, o P. e Esta-
nislau Carcereri, vice-superior dos meus institutos, a qual vai ajudá-los a avaliar a deplorável situação da
raça negra no Egipto e a compreender as dificuldades e os obstáculos do nosso ministério sacerdotal, a pru-
dência e a discrição de que necessitamos e os felizes resultados que a Igreja pode obter. Finalmente, fá-los-á
chegar à conclusão de que o apostolado dos negros no Egipto – que, repito, é o objectivo secundário dos
nossos Institutos – constitui por si uma missão importante.
2590
Dentro de pouco enviar-lhes-ei do Cairo uma relação sobre a organização e os felizes resultados dos insti-
tutos de negros do Egipto, na esperança de que, com os elementos que tenho já maduros para o apostolado da
Nigrícia e com a bênção da Santa Sé, possa abrir em breve prazo uma vasta missão na África Central.
Durante a espera, permito-me, senhores, observar que os institutos de negros do Egipto são a base do im-
portante e difícil apostolado na África Central e que para os fazer prosperar tenho todos os elementos neces-
sários, à excepção de um só de importância capital: refiro-me ao dinheiro. Os desastres da França, que influí-
ram em todas as missões do mundo, puseram-me também em graves dificuldades. Os meus institutos são
pobres e invocam ardentemente a vossa generosidade e protecção.
2591
A santa empresa progredirá em proporção aos meios económicos. E se a extraordinária caridade dos se-
nhores nos concede generosas ajudas, a Igreja de Cristo terá a grande dita e a glória de ver arvorar a bandeira
da cruz entre os povos mais abandonados e infelizes do universo, os negros da África interior, terras com
uma extensão superior ao dobro da de toda a Europa e que contém mais de cem milhões de infelizes filhos de
Cam, quer dizer, a décima parte do género humano.
2592
Não há dificuldades, calor sufocante, sofrimentos, fadigas, privações e sacrifícios que os meus bons mis-
sionários e irmãs não sejam capazes de suportar para salvar essas almas abandonadas e infelizes. Estamos
dispostos a aguentar a vida mais dura, o lento martírio, o clima equatorial da África interior e a morte mais
dolorosa para triunfar na nossa santa e fatigante empresa. Este é o único tributo, pequeno e débil, que quere-
mos oferecer a Deus pela conversão da infeliz Nigrícia. Se, por amor de Deus, a caridade dos senhores e a
dos generosos sócios da incomparável obra da Propagação da Fé acorrerem a ajudar-nos com as suas piedo-
sas esmolas, dentro de poucos anos os negros da África Central serão ganhos para a fé e a civilização cristã.
Dignem-se aceitar os meus respeitos.

P.e Daniel Comboni


Missionário ap. da África Central
Superior dos institutos do Egipto

Original francês
Tradução do italiano
N.o 404 (380) - A MONS. FRANÇOIS A. DES GEORGES
APFL, 1871 Afrique Centrale

Veneza, 3 de Agosto de 1871

Meu muito rev.do padre,

2593
Aproveitando a ocasião em que faço seguir para o senhor Lavarrière informações em italiano sobre a mi-
nha obra das missões, dirijo-me à sua grande caridade para lhe suplicar, com lágrimas nos olhos, que apoie a
minha causa no conselho. É das mais importantes do apostolado católico, porque trabalho com feliz resultado
para implantar o Cristianismo entre cem milhões de infiéis, lá onde nem as missões estrangeiras, nem as
missões africanas, nem os padres do Espírito Santo, nem os dominicanos, nem os jesuítas, nem os benediti-
nos, nem os franciscanos, etc. ousam estender a sua actividade. Impõe-se a todo o custo e contra todos os
obstáculos implantar a fé na África Central, onde desde há quarenta séculos domina Satanás.
2594
Como neste momento tenho pessoal indígena bastante preparado para empreender uma missão na África
Central, vi-me obrigado a dedicar todos os meus esforços para estabelecer bem o Colégio das Missões da
Nigrícia de Verona, condição necessária que a Propaganda e o Papa exigiram para nos concederem uma vas-
ta missão na África Central. Graças a Deus, teve sucesso. A casa de Verona está completamente paga por
Sua Majestade a imperatriz Maria Ana e chegam continuamente aspirantes cheios de zelo, de modo que den-
tro de uns meses poderei partir para o Egipto com mais missionários.
2595
Actualmente, mons. o bispo de Verona e eu, com a aprovação do incomparável e venerável mons. Ciur-
cia, preparamos os relatórios para fazer as práticas necessárias perante a S. Sé, de modo que não tardarei
muito a realizar uma expedição ao centro da Nigrícia.
2596
Eu sou o homem mais preocupado com os institutos do Egipto: aqui lhes envio a lista do pessoal desses
institutos que tive que alimentar, vestir, alojar, etc., porém, não sei como vou resolver as coisas no futuro.
Como vê, tenho de matar a fome a 102 bocas. Muitos morreram, muitos acomodei-os em famílias católicas,
um missionário regressou à Europa por motivos de saúde, uma irmã está na África do Sul. Nos institutos
ficam a meu cargo 64, os quais firmaram todos a mensagem a Pio IX. Acrescente os negros e negras ultima-
mente chegados em número de 13, o que perfaz 77 indivíduos e bocas agora e sempre em movimento.
2597
Não sabendo como fazer para manter os meus institutos, dado que a Propagação da Fé só me enviou 1400
francos (depois chegaram 3600, saldo do ano de 1870), fui à Alemanha para implorar ajudas a essas socieda-
des, como fez o Seminário das Missões Africanas de Lião, que, por meio do internúncio apostólico de Lu-
cerna, se dirigiu a Viena. Porém, infelizmente, a Sociedade de Colónia, após as minhas reiteradas súplicas,
não me deu nem um centavo, porque não tinha recolhido nada. A Sociedade de Munique concedeu-me 300
florins bávaros (614 francos) e a Sociedade de Maria para a África Central (da qual quase só existe o nome),
concedeu-me, depois de tanto pedir, 50 florins (101 francos). Visitei os meus reis, os meus príncipes, as mi-
nhas princesas, o meu caro conde de Chambord, os meus amigos: todos me deram o seu óbolo. Porém, tudo
isso se gastou e neste momento nos meus institutos não têm nada que comer. Estou certo de que Deus os
ajudará, porém, espero unicamente na Propagação da Fé.
2598
Agora, por amor de Deus, peço à Propagação da Fé dois favores:
1.o Uma ajuda muito forte par o sustento dos meus institutos dos Egipto.
2.o Que me conceda, durante estes cinco anos, uma soma anual para pagar a casa. Há uma grande casa
que custa mais de 100 000 e que eu poderia adquirir por metade do preço, mas não tenho dinheiro.
2599
Suplico-lhe que me consiga estas duas graças do conselho e que façam as seguintes reflexões:
1) Os institutos de negros do Egipto são de uma importância capital, com pode ver pelo relatório que
mandei há uns dias ao sr. Laverrière, para implantar a fé numas terras povoadas pela décima parte da huma-
nidade. Destes institutos pode depender a conversão da África Central.
2) A totalidade das pessoas (102) que constituem os meus institutos recebem absolutamente tudo de mim:
alimentação, roupa, alojamento, utensílios, etc. O arrendamento das três casas custa-me 2760 francos por
ano.
2600
3) Os alunos negros não levam nada para o instituto, a não ser a sua pele. Eu tenho que lhes dar comida,
roupa, casa, instrumentos de trabalho, etc.
4) Além de os prover de tudo, antes tenho que desembolsar dinheiro para os comprar e cada um custa de
300 a 600 francos. Eu gratuitamente só recebo os doentes: os saudáveis tenho de os comprar.
5) Os institutos dispõem de enfermaria, onde cheguei a ter até 38 doentes.
2601
Se a Propagação da Fé me der 6000 francos anuais, como os dá a muitos outros, em quinze anos prometo
fundar quatro vicariatos apostólicos na África Central e regenerar sessenta mil pagãos. Porém, não tendo
nada, pouco poderei fazer. A Propagação da Fé pode ajudar-me e fazer o que fez com outros.
2602
Deve saber que conheço perfeitamente o que se realiza no mundo e que não me engano em muitos dos
meus juízos. Deus e a obra, eis as minhas esperanças.

Assinado:
P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 405 (381) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c, 14/89

Louv. J. e M. eternamente, ámen!


Fulda, 12 de Agosto de 1871

Excelência rev.ma,

2603
Junto-lhe uns selos para os seus sobrinhos.
Recebi diversas comunicações do Cairo. Os missionários estão muito bem e realmente desejam aproxi-
mar-se cada vez mais do objectivo da santa empresa e ir para o centro da África. Isto é uma verdadeira graça
de Deus. Mas guarde-se V. E. de tomar ad litteram quanto diz o nosso bom P.e Estanislau. Deixemos que ele
fale e nós continuemos o nosso plano com cabeça fria. Quando ele se empenhava e insistia em que confiás-
semos aos camilianos a casa do Cairo com as suas rendas, então o Cairo era tudo, uma grande missão, etc.
Depois de lhe fazer compreender que nós não confiaremos nunca a ninguém os nossos Institutos fundamen-
tais, embora venhamos a ajudar todas as ordens a tomar a seu cargo uma porção da África Central, o Cairo
tornou-se numa perda de tempo e é preciso – diz ele – fazer um golpe de estado e ir até Cordofão, sem tantas
autorizações de Roma. E agora insiste em ir, em Setembro, até à Núbia, etc. Todos os outros me escrevem
como uns santos, dizendo que não têm outra vontade a não ser a dos superiores, etc. Por isso aproveitemos o
que há de excelente no P.e Estanislau, prescindamos dos exageros e deixemos que entre por um ouvido e saia
por outro.
2604
Em todo o caso, como em Setembro vai chegar uma grande caravana a Siut ou a Taka, no Alto Egipto (a
três dias de vapor do Cairo), permiti ao P.e Estanislau, após muita insistência da sua parte, que vá lá um par
de semanas com P.e Rolleri, deixando interinamente ao nosso bom cónego o cargo da direcção do instituto.
2605
Desde há dois meses, a correspondência do P.e Estanislau é uma contínua lamentação de que não tem que
comer, etc., etc. Eu, que sempre estou a mandar dinheiro, obriguei-o a prestar-me contas dos mais de 1100
napoleões de ouro que lhe fiz chegar em 15 meses. Mandou-me, finalmente, essas contas, com o total de
gastos e entradas. Levá-las-ei a Verona e verá V. E. que poucas missões em tempos tão calamitosos foram
tão favorecidas pela Providência. Eis aqui, ad litteram, os totais que me enviou o P.e Estanislau:
1.o Total verdadeiro de gastos até fins de Julho de 1871 fr. 30 292,00
2.o Total verdadeiro de entradas até Julho de 1871 fr. 28 061,50
Saldo negativo fr. 2230,50
2606
Em quinze meses gastou trinta mil duzentos e noventa e dois francos, sem calcular as caixas de provisões
que lhe mandei e o azeite (17 barris) que lhe mandou o meu pai para todo o ano, etc.
Para além dos vinte e oito mil e sessenta e um francos que lhe fiz chegar, nos primeiros de Agosto deve
ter recebido quatrocentos táleres que lhe mandei de Dresden, e trigo.
2607
Como vê V. E., em vez de se lamentar, era para cantar a Deus o Te Deum, e dar-lhe graças, quando eu sei
de outras missões nas quais há um bispo vigário apostólico e um bispo auxiliar e muitos missionários e insti-
tutos e que não receberam nem dez mil francos; e o pobre arcebispo e vigário apostólico mons. Ciurcia foi à
Bélgica e irá a Praga estender o chapéu. Os frades não sabem donde sai o dinheiro nem o suor que custa.
Comprovei-o mil vezes. Mas em Verona acertaremos tudo, contando com a sabedoria e o desejo de V. E.
Julgo que poderíamos dar a administração a P.e Ravignani durante a minha ausência e aceitar a demissão de
administrador que mais de uma vez me ofereceu o P.e Estanislau.
2608
Amanhã estarei em Colónia, onde terei que trabalhar muito durante uma semana; escreverei. De Colónia
mandarei para o Cairo mais outra letra cambial. Procuro ter o P.e Estanislau o mais apertado que posso. Ter-
lhe-ia podido mandar mais dinheiro; mas não o fiz, porque representa uma boa poupança mantê-lo só com
necessário. É pouco prudente ao escrever. Lembre-se V. E. as cenas que fez à chegada de Falezza ao Cairo.
Escreveu a V. E., escreveu ao vigário apostólico, escreveu a Roma e quem sabe a quantos mais contra a mi-
nha imprudência. Parecia que eu tivesse mandado uma serpente para arruinar os Institutos. Em troca, a supe-
riora escreveu-me repetidas vezes que está contentíssima com essa jovem. Em suma, aproveitemos as emi-
nentes qualidades do P.e Estanislau e não nos sirvamos dos seus defeitos. O bom P.e Pedro, que gosta muito
dele, vê tudo segundo o olhar do P.e Estanislau..., enquanto eu estou ausente; depois, quando estou no Cairo,
vê segundo o meu. Portanto, nós vejamos com os nossos óculos...

Benedic hunc

Indig. filium
P.e Daniel Comboni

N.o 406 (382) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 8, ff. 22-23v

V. J. M. J.
Colónia (Prússia), 15 de Agosto de 1871
Casa paroquial de Santiago

Eminentíssimo Príncipe,

2609
Fiel às instruções que V. Em.a se dignou dar-nos várias vezes, mons. o bispo de Verona e eu dedicámo-
nos com a maior energia a consolidar a fundação do COLÉGIO DAS MISSÕES DA NIGRÍCIA de Verona.
2610
Embora corram tempos muito difíceis em todos os aspectos, com a graça de Deus conseguimos adquirir a
total propriedade do estabelecimento e dotá-lo de uma renda com que manter anualmente alguns candidatos
às missões africanas. Para este fim, a devotíssima imperatriz da Áustria, Maria Ana, a quem eu me tinha
dirigido com veemente súplica, ofereceu 20 000 francos em ouro. Como a santa obra começa a ser reconhe-
cida na Europa, chegam-me petições de aspirantes à árdua empresa de toda a parte; porém, nós, por agora,
limitamo-nos a admitir só alguns dos que constituem as mais floridas esperanças e não cresceremos mais até
que a Santa Sé nos confie exclusivamente uma missão na África Central, para a qual muitos membros dos
institutos do Egipto estão já maduros. Dentro de pouco submeteremos à S. Congregação as regras e o decre-
to episcopal de erecção canónica do novo Insto. de Verona.
2611
A Divina Providência foi generosa comigo também nas suas bênçãos para fazer frente aos gastos do sus-
tento das minhas três casas do Egipto. Muitos benfeitores meus, membros da família imperial e reis e prínci-
pes da Alemanha, tomando sumo interesse pela minha Obra, supriram com os seus donativos a enorme es-
cassez das contribuições das Sociedades benfeitoras da Propagação da Fé. Estou agradecido ao Senhor. Os
institutos do Egipto vão muito bem e com grande satisfação do vigário apostólico, que é muito bom para
connosco. Sete sacerdotes missionários providos de grande espírito e excelentes qualidades estão já maduros
para do Cairo se transferirem para os ardentes territórios da Nigrícia interior e dentro de pouco tempo condu-
zirei ao Egipto outros três com alguns irmãos coadjutores. Eu preparo os materiais para a obra do edifício.
Quando aprouver a Deus e à Santa Sé, começar-se-á a construção.
2612
Permito-me suplicar a V. E. uma grande graça, isto é, que coloque aos pés de Sua Santidade as mais fer-
vorosas e respeitosas felicitações minhas e dos meus institutos do Egipto e de Verona pelo extraordinário
acontecimento que vai ter lugar na semana que vem, em que o nosso adorado Santo Padre Pio IX, único entre
todos os Pontífices, superará os anos de S. Pedro na Cátedra de Roma. Já na precedente solenidade de 16 de
Junho, os sessenta e cinco membros dos meus Institutos do Egipto e especialmente as mestras negras, priva-
ram-se de tudo para oferecerem o seu óbolo de S. Pedro e, além disso, todas as moedas que circulam no
Egipto. A Nigrícia esteve muito bem representada nas grandes festas do XXV aniversário da exaltação do
mais glorioso dos papas ao Supremo Pontificado. Vá lá! Obtenha-nos para todos nós a bênção apostólica,
que se torna num imenso conforto na árdua e laboriosa empresa a que nos consagrámos.
Assegurando-lhe não deixar nunca de rezar pela prosperidade e conservação de V. Em. a, beijo-lhe a sa-
grada púrpura e subscrevo-me com o mais profundo respeito nos Sagdos. Corações de J. e M.

De V. Em.a Rev.ma dev. e indig.mo filho


P.e Daniel Comboni

N.o 407 (383) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/90

Louvado J. e M. eternamente, ámen!

Paderborn (Vestfália), 17 de Agosto de 1871

Excelência rev.ma,

2613
Recebi a famosa carta de 27 do mês passado e um fragmento da do dia 21 dirigida a V. E. pelo P.e Esta-
nislau. Encontrando-me ainda sob os efeitos de uma forte impressão, deixo a resposta para quando me en-
contrar mais sereno. Entretanto, adoro a amorosa bondade de Deus que se digna conceder-me o benefício de
tantas cruzes e nos guia pelos escabrosos caminhos do Calvário, a cujos pés nasceu a nossa árdua e santa
empresa. E precisamente aí, no Calvário, Deus desenvolverá e engrandecerá esta obra tão apostólica, para
compensar com muitas satisfações o magnânimo coração de V. E. rev.ma, que tanto tem sofrido por ela,
talvez por causa da minha inépcia e irregularidade. Por essa cruz ser pesadíssima para o meu coração e por
conhecer um pouco as vias da Providência e a suma bondade de Deus, que constrói as suas obras ao pé da
cruz, vejo clara como a luz do Sol a aurora dos grandes consolos, com os quais preparamos a nossa débil
natureza para suportar ainda mais violentas tempestades e mais duras cruzes pela salvação da Nigrícia.
2614
Aqui dir-lhe-ei apenas uma palavra sobre a economia. Queixando-se, Carcereri deu-me conta do passivo e
do activo dos nossos institutos do Egipto desde a minha partida do Cairo até ao dia 31 de Julho passado.
O passivo, pagas as casas até aos fins de Junho de 1872, ascende a 30 292 francos.
O activo, recebido de mim ou por minha ordem, ascende a 28 061 francos com cinquenta cêntimos.
A isto devem acrescentar-se:
1.o Os 400 táleres da Prússia que lhe mandei de Dresden e Bamberg.
2.o Algumas caixas de provisões mandadas por mim para o Cairo.
3.o O azeite mandado por meu pai para todo o ano passado e para este.
4.o Mais de 3000 francos em objectos sagrados e paramentos que
enviei de Viena e que lhe fiz chegar de Marselha.
2615
Teria podido mandar mais, mas, pensando nos inconvenientes do processo do meu saudoso P.e Mazza,
procurei sempre não imitar nisso aquele santo homem. Por isso, mantenho apertados os senhores do Cairo,
para os habituar a uma saudável economia.
A julgar por este activo e passivo, devemos antes dar graças à Providência de Deus, que nos concedeu a
nós mais ajudas que a tantos pobres bispos missionários, os quais não tiveram nestes duríssimos tempos nem
metade de nós.
2616
Quanto ao exagero dos dez mil francos de dívida em Marselha, V. E. Rev.ma recebeu informação exacta
do próprio P.e Estanislau no Verão de 1869. Como as nossas irmãs de Marselha têm um crédito de mais de
30 000 francos com o meu credor, sr. Laurent, para estarem certas de ser pagas, pediram-me que eu lhes
pagasse e não o sr. Laurent; e assim combinei com a madre geral em Março deste ano. Por outro lado, como
escrevi à madre geral, não reconheço as somas exageradas de muitos artigos que me foram mandados sem eu
os pedir, mas só o que devo em consciência e justiça. Ora bem, esta dívida não ascende nem sequer a 9000
francos, dos quais já paguei 3500; e espero de Marselha as contas exactas e a solução consensual deste as-
sunto. Os frades do Cairo têm mais de 100 000 fracos de dívidas; os frères, 20 000 e todas as missões estão
hoje endividadas. Não devemos nós dar graças a Deus por, em tempos tão difíceis, devermos só quatro ou
cinco mil francos, termos mais de 30 000 francos de objectos nossos no Cairo e, além disso, termos gasto na
nossa obra mais de cem mil francos? Agradeçamos, pois, monsenhor, de todo o coração; e não cesse o argue
e o increpa para com este que é

Seu pobre e hum. filho


P.e Daniel

N.o 408 (384) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


AP SOCG, v. 1005, f. 151

Colónia, 7 de Setembro de 1871

2617
Pela última vez lhe falo dos camilianos e não quero que me responda sobre este assunto. Silêncio perfeito.
Aí está. Faça com que tal exploração resulte bem e comprove a idoneidade do Cordofão para ser o lugar on-
de nos fixaremos como segunda etapa e dentro de três anos teremos um magnífico vicariato apostólico e uma
magnífica casa camiliana nesse ponto da África onde o senhor julgar mais oportuno. O meu objectivo para os
camilianos é sobretudo a educação dos rapazes indígenas, a formação do clero indígena, regular e secular. E
a experiência de três anos ensinou-nos que, para tal fim, é mais fácil conseguir pessoal, tanto pelo custo co-
mo pela qualidade, no centro da África ou no Cairo. Conserve esta carta e verá como ao cabo de três anos, se
for vivo, não ma atirará à cara...

P.e Daniel Comboni

[É um fragmento de uma carta de Comboni transcrita pelo P.e Carcereri numa sua relação].

N.o 409 (385) - A MONS. CARLOS M. LAVIGERIE


APBR, B. I, 469

V. J. M. J.
Verona, 2 de Novembro de 1871

Monsenhor,

2618
No Boletim N.o 4, de 1871, da Obra das Escolas do Oriente li que V. E. pode dispor de alguns agriculto-
res e trabalhadores árabes que já são capazes de ensinar aos demais o que eles aprenderam e também que
seriam muito fiéis até à morte.
2619
Submeto ao seu grande coração a minha ideia. Aos 21 de Outubro enviava eu do Cairo a Cordofão, pela
rota do Cartum, quatro missionários como exploradores, com o fim de prepararem duas casas, uma para os
negros, outra para as negras, para nelas se estabelecer uma primeira expedição de pessoal indígena que já
tenho preparado nos meus institutos do Egipto. Porém, necessito de alguns mestres de agricultura e de artes e
ofícios; e se forem árabes, tanto melhor. Poderia S. E., monsenhor, pôr à minha disposição para o mês de
Março seis ou sete desses bons conversos, que sejam inatacáveis na fé e capazes de ensinar aos negros as
suas artes e ofícios? Espero, meu muito caro e venerado monsenhor, que dentro de poucos anos nos encon-
tremos com as nossas obras no deserto. O senhor virá do Norte e eu do Sul. Espero também que o senhor se
encontre em condições de nos ajudar com a sua admirável instituição dos irmãos agricultores e hospitaleiros.
E espero, além disso, visitá-lo em Argel.
2620
Ao mesmo tempo, peço, por favor, que me envie para Verona, na volta do correio, alguns exemplares das
suas admiráveis constituições do Instituto dos Irmãos Agricultores, porque o que V. E. me deu em Roma foi-
me levado por muito importantes personalidades para adquirirem conhecimentos da sua admirável empresa,
sobretudo na Alemanha.
2621
À espera da sua resposta, é preciso que um vínculo de oração nos una nos Sagdos. Corações de Jesus e de
Maria, pela identidade da missão que Deus nos confiou. No congresso geral de Mogúncia disse que a minha
última palavra será sempre: «Nigrícia ou morte». Mais fiéis e leais que Garibaldi, que se retirou vergonho-
samente de Mentana, depois de ter proclamado e dito: «Ou Roma ou morte», nós saberemos cumprir o nosso
dever.
Peço-lhe, monsenhor, que saúde da minha parte o meu bom negro Francisco Ambar. Espero que ele con-
tinue a portar-se bem. Receba mil saudações de Mons. Canossa, enquanto, beijando respeitosamente a sua
consagrada mão, tenho a honra de me declarar com a mais profunda veneração e submissão eterna

De V. E. hum. e dev. P.e Daniel Comboni


Missionário da África Central
Superior dos instos. dos negros do Egipto

Original francês
Tradução do italiano

N.o 410 (1155) - RELAÇÃO AO CONSELHO SUPERIOR


DA OBRA DO BOM PASTOR
ACR, A, c. 25/19

Verona, 21 de Novembro de 1871

N.o 411 (386) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 8, ff 47-48

V. J. M. J.
Verona, 26 de Novembro de 1871

Em.mo Príncipe,

2622
Ao agradecer-lhe efusivamente a estimada carta que V. Em.a Rev.ma se dignou enviar-me para Colónia,
no dia 7 de Setembro passado, estou em condições de lhe anunciar que no próximo Natal espero poder-lhe
apresentar o decreto da instituição do Colégio das Missões da Nigrícia fundado em Verona. O bom sacerdote
proposto para dirigir este novo cenáculo de apóstolos africanos, o rev.do P.e António Squaranti, veronês, é
dotado de sagacidade, prudência, firme critério e exemplar piedade e de todas as capacidades necessárias
para formar, sob os auspícios do bispo de Verona, bons evangelizadores para a árdua e laboriosa missão da
África Central. Espero que a Sagrada Congregação tenha dentro de não muito tempo motivos para estar satis-
feita.
2623
Como não está longe o momento em que iremos pedir a V. Em.a Rev.ma que nos conceda uma missão na
África interior, depois de ter ouvido, repetidamente, na ausência do nosso veneradíssimo mons. o vigário
apostólico, o seu digno representante no Cairo Velho, consenti que dois experimentados sacerdotes e dois
excelentes irmãos coadjutores aproveitassem a circunstância da ida a Cartum do I. R. cônsul austro-húngaro,
para fazer tranquilamente uma pequena exploração na Núbia e no Cordofão com o objectivo de obter infor-
mações exactas e seguras sobre o estado actual dos negros e sobre as presentes condições das mais importan-
tes localidades da Nigrícia, a fim de que o nosso respeitoso e humilde pedido de uma missão no centro da
África vá acompanhado e ilustrado com todos os dados exactos e esclarecimentos conscienciosos da actuali-
dade, que sirvam do melhor modo possível de orientação, para que a Sagrada Congregação pronuncie sobre
isso as suas veneradas e sempre sábias disposições. Nós apenas procuramos, da melhor maneira que está ao
nosso alcance, a glória de Deus e a salvação daquelas pobres almas.
2624
Sendo a oração o meio mais seguro e infalível para ter êxito nas obras de Deus até nas circunstâncias mais
duras e difíceis, solicitei fervorosamente a um grande número de bispos e aos mais respeitados institutos das
sete partidas do mundo a elevarem diariamente fervorosas orações aos Sagdos. Corações de Jesus e Maria e
ao ínclito padroeiro da Igreja universal pela conversão da Nigrícia. Como neste relevante assunto temos de
tratar com um autêntico cavalheiro, Deus, que mantém a sua palavra e a cumprirá eternamente, e como ao
petite e o quaerite das almas mais justas do mundo deve corresponder o seguro e infalível accipietis e inve-
nietis do amoroso Senhor nosso, que também morreu pelos pobres negros, eu sinto-me certo tanto do feliz
resultado da nossa santa obra como da especial assistência de Deus à minha fraqueza e a todos os humildes
obreiros evangélicos que o Senhor me deu e me dará na árdua e importante missão africana.
2625
Firme no propósito de seguir todas as normas e instruções que com tanta sabedoria e caridade V. Em.a se
digna dar-me a conhecer de viva voz e por escrito e desejoso de submeter ao seu sábio critério todos os pon-
tos respeitantes ao caminho que há que seguir na realização da obra, na esperança de em breve lhe apresentar
pessoalmente os meus respeitos, beijo-lhe a sagrada púrpura ao mesmo tempo que me honro de me subscre-
ver com todo o respeito e submissão

De V. Em.a rev.ma
Hum., dev. e resp. filho
P.e Daniel Comboni

N.o 412 (387) - ESCRITURA DE CEDÊNCIA DE PROPRIEDADE


ACR, A, c. 20/26

Verona, Novembro de 1871

Escritura da cedência da casa de Montório.

N.o 413 (388) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


«Les Missions Catholiques» IV (1872), pp. 60-61

Verona, Novembro de 1871

Breve artigo.

N.o 414 (389) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/25

V. J. M. J.
Seminário de Verona, 8 de Dezembro de 1871

Meu caríssimo P.e Francisco,

2626
Ao regressar de Chiesanuova e de Erbezzo, ontem à noite, encontrei a sua apreciada carta de 4 do corren-
te. Dê muitas saudações a Bernardi, a quem conheço pessoalmente, e diga-lhe por palavra ou por escrito que
aceito a negra do Cordofão e que, como a minha bolsa é pobre, veja a maneira de eu receber ajuda para a
viagem da negra, a qual irá comigo para o Egipto lá para o mês de Janeiro e também comigo do Cairo para
Cordofão, quando tiver recebido notícias dos quatro exploradores (que agora estão no deserto, se não reben-
taram) e eu partir para aqueles lugares.
No convento de Pinerolo há outras negras meio monjas que eu gostaria de ter. Porém, não quero ser eu a
pedi-las. Por isso, estude a maneira de realizar o meu desejo sem parecer que sou eu quem as pede. Escreva-
lhe a contar que agora estou a trabalhar no Cordofão, mas que dentro em breve chegarei a grande parte da
África Central, Schelluk, Tagala e Darfur, até às fontes do Nilo.
2627
Diga a mons. Bernardi que a postulante negra do Cordofão me escreva uma longa carta para Verona, dan-
do-me informações exactas de si mesma e abrindo-me o coração.
Manda-lhe saudações o bispo. mons. Pelami, a quem o bispo tinha pedido que fosse com a comissão de
Erbezzo para avaliar a autenticidade da aparição, que está a ser objecto de crença (há, por certo, algo, como
eu vi), no vale da Enguia, abaixo de Erbezzo, escorregou e magoou-se. Esteve dez dias de cama por entorse
dum pé, em Chiesanuova, de onde eu o trouxe para Verona. Agora continua aqui na cama e saúda-o.
Muitos cumprimentos da minha parte aos bons sacerdotes, a P.e Primo (tenho um belo colar seu e espero
outro oferecido) e rogue à Santíssima Virgem por

Seu af.mo in precordiis


D. Daniel

N.o 415 (390) - À SR.a LUÍSA ZAGO


ACR, A, C. 15/145

V. J. M. J.
Montório, Verona, 11 de Dezembro de 1871

Estimada sr.a Luísa Zago,


2628
Ainda que na escritura de venda, hoje realizada no cartório Ravignani, só se diga que as partes se puseram
de acordo previamente sobre os alugueres e os impostos do conjunto de construções de Verona que a senhora
me vendeu mediante o citado documento, para sua tranquilidade declaro-lhe que os nossos acordos são de
que a renda das casas n.os 5088 e 5089 antigos ou n.o 49 novo, da Via S. Nazzaro, descontados os impostos
e outras taxas, fica, por comum acordo, fixada em 2 liras (duas) italianas por dia, que deverão ser pagas por
mim e pelos meus herdeiros a si, por todo o tempo que viver, e, depois, igualmente, à sr.a Isabel Zadrich,
esposa do finado José. Disposto, por outro lado, a estipular também isto num documento regular e legal, se
tal for a sua vontade, apresento-lhe os meus respeitos declarando-me

Seu af.mo servidor


P.e Daniel Comboni

N.o 416 (1156) - ASSINATURA EM ESCRITURA NOTARIAL


ANDV, n. 1162
Verona, 11 de Dezembro de 1871

N.o 417 (391) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 8, ff. 53-54

V. J. M. J.
Verona, 21 de Dezembro de 1871

Em.mo Príncipe,

2629
Permito-me manifestar-lhe, também em nome do bispo de Verona, os mais vivos votos de felicidade para
as próximas festas de Natal e para o novo ano. E fazemos votos para que a bondade de Deus se digne guardar
V. Em.a muitos anos, para o desenvolvimento das missões de todo o mundo e sobretudo lhe conceda a suma
satisfação de ver fundadas estavelmente muitas missões na África Central e de contemplar alguns frutos das
mesmas.
2630
Espero intra octavam Epiphaniae estar em Roma com as regras e o decreto de instituição do novo Colé-
gio da Nigrícia. Além de ter comprado e pago por completo o palacete do novo seminário de Verona, tam-
bém comprei e paguei inteiramente duas grandes casas em Verona, cuja renda serve para manter anualmente
alguns candidatos para a África Central; pelo que, morrendo eu amanhã, com a graça de Deus, o colégio
subsistirá permanentemente.
2631
Quanto ao pessoal do colégio ligado de modo perpétuo a ele, além de muitos leigos e artesãos de compor-
tamento comprovado (sem contar os dois camilianos, sobre os quais ouviremos o seu geral), são de referir os
seguintes sacerdotes que, embora seculares, vivem como religiosos:

1.o P.e Daniel Comboni, superior


2.o P.e Pascoal Fiore, cónego, vice-superior dos instos. do Cairo
3.o P.e Bartolo Rolleri
4.o P.e José Ravignani
5.o P.e Elias Calis, clérigo de Teologia
6.o P.e Vicente Jermolinski

Estes estão no Cairo Velho.


7.o P.e Pedro Perinelli, meu secretário
8.o P.e João Losi, de Piacenza

Estes irão comigo para o Cairo dentro de um mês.


9.o P.e Pedro Rossi
10.o P.e Hilário Zanoni
Mais o reitor do colégio, P.e António Squaranti.
2632
Somos oito missionários no activo para a África.
Aos dois que irão ficar no colégio juntaremos outros eleitos entre os muitos aspirantes. Porém, preferimos
estar certos de que a S. Congregação nos irá confiar uma missão na África Central. Mas sobre tudo isso fala-
remos em Roma, onde escutarei as veneradas decisões de V. Em.a rev.ma.
Espero que o Deus que nos ajudou até agora no meio de tantos obstáculos nos ajudará sempre.
2633
Quanto aos dois camilianos que tenho comigo, que estão cheios de zelo pela Nigrícia e que magnanima-
mente concedeu o rev.mo P.e Guardi por todo o quinquénio ao bispo de Verona, espero que com V. Em.a e
com o rev.do P.e Guardi se decidam coisas úteis para a Nigrícia e adequadas à dignidade dessa ordem.
Recomendando a causa da pobre Nigrícia ao paternal coração de V. Em.ª Rev.ma, beijo-lhe a sagrada
púrpura e declaro-me com profundo respeito e gratidão

De V. Em.a Rev.ma
Hum., obed. e indig.mo filho
P.e Daniel Comboni

N.o 418 (392) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


Ap SC Afr. C., v. 8, ff. 55-56v

V. J. M. J.
Verona, 27 de Dezembro de 1871

Em.mo Príncipe,

2634
A venerada carta que V. Em.a se dignou enviar-me no dia 21 do corrente, longe de me desanimar, até me
encheu de ânimo, porque, por ela, vejo claramente o vivo interesse que o coração apostólico de V. Em. a tem
pela infeliz Nigrícia.
2635
Eu entreguei a minha vida, a minha vontade e todo o meu ser à Santa Sé, ou seja, ao Vigário de Cristo, ao
eminentíssimo cardeal-prefeito da Propaganda e aos seus estimados representantes e procuro trabalhar uni-
camente, diria cegamente, sob a sua sagrada direcção e autoridade. E até me negaria a converter o mundo
inteiro, se, com a graça de Deus, me fosse possível, quando não mediasse o mandato e a autorização da S. Sé
e dos seus representantes, fonte única da bênção e da vida. Para mim, a divina Providência é tão-só a autori-
dade da S. Sé, a quem foi dito: “Qui vos audit, me audit”.
2636
Quanto à exploração do Cordofão, que é coisa de muito pouco tempo, porque só se trata de ter umas idei-
as mais claras sobre as actuais condições dos negros, sem as quais não posso apresentar a V. Em.a Rev.ma
uma exacta e completa informação sobre a petição de uma missão no centro da África (certamente terei em
breve a satisfação de lhe dar a conhecer o documento autógrafo do Representante do meu veneradíssimo
vigário apostólico sobre mim e os meus institutos), os quatro exploradores chegaram felizmente ao deserto,
em óptimas condições de saúde. Eu conheço a fundo o motivo que levou a que as tentativas em relação à
África Central, realizadas desde 1847 até hoje, falhassem. Ensinados pelos erros dos nossos predecessores,
pela vasta experiência adquirida e pelos profundos estudos efectuados, com a graça de Deus e querendo a
Santa Sé, levaremos por diante com êxito a árdua empresa.
2637
Como as advertências de V. Eminência e da Propaganda, ainda que fossem as mais duras repreensões,
são-me mais gratas que todos os elogios do mundo, suplico-lhe veementemente que use comigo o argue e o
increpa do apóstolo: isso servir-nos-á a mim e a meus companheiros de salvaguarda para agir segundo a
vontade de Deus, com a máxima prudência e sob a perpétua direcção dos representantes de Deus.
2638
Pelo espírito das regras do instituto de Verona, que redigi depois de prolongados estudos, autorizadas
consultas e não escassa experiência e conhecimento da árdua obra que tenho entre mãos e que é objecto dos
meus desvelos e largos suspiros, V. Em.a estará convencido de que não se procede à ligeira, mas que se re-
flecte incessantemente e que se anda com pés de chumbo.
2639
Argue, increpa et benedic este pobre e humilde servo, porém, fiel usque ad mortem, o qual tem a honra de
se subscrever nos Sagdos. Corações

De V. Em.a Rev.ma
Hum. e indig.mo filho
P.e Daniel Comboni
N.o 419 (393) - TRADUÇÃO
DO DECRETO DE ERECÇÃO DO INSTITUTO
PARA AS MISSÕES DA NIGRÍCIA
ACR, A, c. 25/20

Dezembro de 1871

N.o 420 - AO DIRECTOR DO


«MUSEU DAS MISSÕES CATÓLICAS»
Museo delle Miss. Catt., anno XV (1872), p.8

1871

Breve artigo.

N.o 421 (394) - REGRAS DO INSTITUTO


DAS MISSÕES PARA A NIGRÍCIA
BCV, MCXIV

1871

REGRAS
DO INSTITUTO DAS MISSÕES
para a NIGRÍCIA

P.e Daniel Comboni m. a.

Prefácio

2640
Para que as regras de um instituto que deve formar apóstolos para nações infiéis sejam duradoiras, devem
basear-se em princípios gerais. Se fossem muito pormenorizadas, muito em breve a necessidade ou uma
grande ânsia de mudança minariam a base do seu edifício e poderiam resultar num áspero jugo e peso grave
para quem as houvesse de observar.
2641
Sendo sobremaneira variado e desmesurado o campo em que o candidato deve trabalhar, não pode ser
limitado a certas actividades determinadas, como nas ordens religiosas; pelo contrário, esses princípios gerais
devem enformar a sua mente e o seu coração, de modo que se saiba governar por si mesmo, aplicando-os
com sagacidade e juízo nos tempos, lugares e circunstâncias variadíssimas em que a sua vocação o põe.
2642
Portanto, para conseguir o fim a que aspira o novo Instituto das Missões da Nigrícia, estabelecem-se ape-
nas os princípios fundamentais que constituem o seu verdadeiro carácter e que estão destinados a servir de
norma aos alunos para que se desenvolvam com plena uniformidade e com aquela unidade de espírito e de
conduta exterior que permitem reconhecer os membros de uma só família.
2643
As regras aqui traçadas, ainda que emanem da mesma natureza do humilde Instituto a que são destinadas,
são o fruto de sérias reflexões, de longos estudos, de diligentes consultas e de um pleno conhecimento de
causa. Não obstante, por termos que enfrentar uma grande e colossal missão, totalmente nova e especial, será
útil esperar para ver com o tempo os resultados das mesmas na experiência prática.
2644
Entretanto, submetem-se ao sapientíssimo juízo do Sumo Pontífice e da Sagrada Congregação da Propa-
ganda Fide.
Se bem que estas regras, por si, não obriguem à obediência, nem sequer sob pecado venial, é certo, no en-
tanto, que um espírito humilde, que sinta sinceramente a sua vocação e queira ser generoso com o seu Deus,
observá-las-á com muito amor, considerando-as como a via que lhe foi traçada pela Providência, como a
manifestação da vontade de Deus a seu respeito. E por isso, certo dos louros que, observando-as, alcançará
para a outra vida, conseguidos com a abnegação e com a morte de si mesmo, considere-as ou não razoáveis,
não terá o desejo de se subtrair a elas ou a ousadia de censurá-las.
2645
Que o Senhor abençoe estas regras, as torne fecundas no coração dos filhos do seu amor com o exercício
e com o mérito das virtudes que lhe são mais queridas, e que elas se arreiguem, de modo que sejam o sua
guia em todo o tempo e lugar.

Capítulo I

Natureza e objectivo do Instituto

2646
O Instituto, ou seja, o Colégio das Missões para a Nigrícia é uma reunião de eclesiásticos e de irmãos co-
adjutores que, sem o vínculo dos votos, sem renúncia aos próprios bens, sem profissão obrigatória das regras
especiais, porém, sempre sob a absoluta dependência dos legítimos superiores, se dedicam à conversão da
África e especialmente dos pobres negros, que ainda jazem sepultados nas trevas e nas sombras da morte.
2647
O objectivo deste Instituto não sai da órbita das funções estritamente sacerdotais: é o cumprimento do
mandato dirigido por Cristo aos discípulos de pregar o Evangelho a todas as gentes; é a continuação do mi-
nistério apostólico, pelo qual todo o mundo participou dos inefáveis benefícios do Cristianismo. E tem como
finalidade específica a regeneração dos povos negros, que são os mais necessitados e abandonados do uni-
verso.
2648
Este Instituto torna-se, pois, como um pequeno cenáculo de apóstolos para a África, um ponto luminoso
que envia até ao centro da Nigrícia tantos raios quantos os solícitos e virtuosos missionários que saem do seu
seio. E estes raios, que juntos resplandecem e aquecem, revelam necessariamente a natureza do centro de
onde procedem.
2649
O Instituto está consagrado ao Sacrossanto Coração de Jesus, sob a protecção da SS.ma Virgem Imacula-
da e do seu puríssimo esposo, o patriarca S. José, como também de S. Miguel Arcanjo, dos santos Reis Ma-
gos, dos santos apóstolos Pedro e Paulo, de S. Francisco Xavier, do beato Pedro Claver, da beata Maria Ala-
coque e de todos os mártires e santos africanos.

Capítulo II

Organização do instituto

2650
O instituto, por sua natureza, depende em primeiro lugar do Sumo Pontífice e da S. C. da Propaganda Fi-
de, aos quais está total e absolutamente subordinado. Só à suprema autoridade da Santa Sé compete modifi-
car substancialmente ou mudar in omnibus et quoad omnia a organização e as regras do Instituto.
2651
O superior imediato do Instituto é o bispo de Verona, o qual é representado por um reitor eleito ordinari-
amente entre os próprios missionários membros do Instituto fundamental, já experimentados no exercício do
apostolado africano.
Ajuda o bispo de Verona nas suas funções um corpo por ele presidido, formado pelos mais prudentes e
distintos eclesiásticos e seculares da sua diocese, intitulado Conselho Central da Obra para a Regeneração
da Nigrícia.
2652
O reitor do Instituto é nomeado definitivamente pelo bispo de Verona e isto depois de ter ouvido a opini-
ão do superior das missões da África confiadas ao colégio e após ter submetido a nomeação ao em.o card.-
prefeito geral da Propaganda.
2653
O bispo de Verona ou o reitor do colégio deverão, cada cinco anos, mediante um relatório exacto, dar
conta pormenorizada à S. C. da Propaganda do andamento do Instituto em tudo o que lhe diz respeito.
Ao bispo de Verona compete o poder e a autoridade de admitir aspirantes eclesiásticos e seculares. Ne-
nhum eclesiástico será admitido no Instituto sem estar provido de um documento escrito que demonstre o
consentimento do respectivo ordinário e sem ter obtido a bênção dele.
2654
Não será admitido no Instituto nenhum eclesiástico ou secular que não se considere disposto a consagrar-
se por inteiro e até à morte à obra da regeneração da Nigrícia e que não tenha o ânimo forte e resoluto de
morrer para a sua própria vontade e de professar uma obediência perfeita aos legítimos superiores.
2655
Como está realmente consagrado à regeneração da Nigrícia tanto aquele que trabalha como mestre de pi-
edade, aquele que ensina matérias teológicas ou científicas no colégio de Verona, ou aquele que colabora de
qualquer modo no Instituto para as obras preparatórias da Europa destinadas a formar pessoal para as mis-
sões da África, quanto aquele que se dedica directamente à conversão dos infiéis na própria África, o bispo
de Verona terá especialmente em conta a vocação ou tendência do candidato, para o destinar ora às obras do
Instituto fundamental de Verona ora aos institutos ou missões da África.
2656
Não se poderá admitir no Instituto nenhum eclesiástico ou secular que por justo motivo não goze de crédi-
to e de estima ou tenha sido desonrado.
Não será admitido senão com muita dificuldade e só em caso de evidente utilidade para o Instituto aquele
que tenha pertencido a alguma ordem ou congregação religiosa.
2657
O tempo de prova do candidato no Instituto fica estabelecido entre um e três anos. Mas, dado que tal clas-
se de aspirantes são eleitos entre os indivíduos mais virtuosos, compete ao juízo e consciência do bispo a
faculdade de encurtar o tempo de preparação do candidato no Instituto para o destinar aos institutos erigidos
nas costas de África, os quais estão organizados de tal modo que efectivamente constituem outros tantos
estabelecimentos de formação e de prova para verificar a capacidade e amadurecer a vocação especial para as
difíceis missões da Nigrícia central.
2658
Compete igualmente ao bispo de Verona julgar definitivamente se um candidato é apto para a obra a que
o Instituto se destina, como também fixar a data da partida do mesmo para os institutos da África.
2659
É membro efectivo do Instituto fundamental aquele que, depois de passar algum tempo de prova determi-
nado, persiste no firme propósito de se consagrar por toda a vida ao serviço da obra da regeneração da Nigrí-
cia.
2660
É competência do bispo de Verona o direito de declarar membro efectivo do Instituto fundamental a
quem tiver vivido dois anos inteiramente consagrado às obras do colégio de Verona, sem aspirar às missões
africanas.
2661
Uma pessoa já enviada para a África só se torna membro efectivo do Instituto fundamental ao cabo de um
ano ou dois de permanência nos institutos ou nas missões da África, e o juízo sobre a sua aptidão para o Ins-
tituto fundamental compete ao superior da missão da África, o qual deverá mandar o documento oportuno ao
colégio de Verona para a sanção do bispo superior.
2662
Quando um candidato é declarado membro efectivo do instituto fundamental, tanto por parte do bispo de
Verona para os consagrados à obra na Europa como pelo superior das missões africanas para os consagrados
à obra na África, torna-se filho do Instituto fundamental, o qual toma conta dele por toda a vida.

Capítulo III

Daqueles que deixam de ser membros


do Instituto fundamental

2663
Se alguém deixa de ser membro do Instituto há a considerar se isso ocorre em Verona ou nos institutos da
África e também há a ter em conta se se retira por vontade própria ou se foi excluído por motivos justos.
2664
Se um membro do Instituto de Verona julgar ter boas razões para se retirar, comunicá-las-á quanto antes
ao reitor, o qual as ponderará com os outros membros do colégio. Se os motivos forem considerados válidos
e se durante um ano ele persiste em querer abandonar o Instituto, submeterá o assunto ao bispo, o qual, de-
pois de utilizar os meios que considere oportunos para julgar rectamente, concederá saída ao solicitante, que
para sempre deixará de ser membro do Instituto, não podendo jamais ser readmitido a qualquer título.
2665
Se um membro do Instituto de Verona por sua má conduta se tornasse indigno de continuar a pertencer a
ele, o reitor, obtido o parecer dos outros membros, submeterá o assunto ao bispo de Verona, o qual tomará as
medidas que a sua razão e consciência lhe ditarem para pôr à prova o transgressor ou o excluir imediatamen-
te e para sempre do colégio.
2666
A respeito dos membros do Instituto fundamental já missionários da África, é preciso ter presente que,
embora o sacrifício que fizeram de si mesmos desde a sua educação apostólica seja total e irrevogável, e
embora tenha suposto uma vontade disposta a sofrer todas as fadigas, todos os perigos e a mais bárbara mor-
te, ainda assim, não é raro o caso de um missionário, depois de ter suado muito pela glória de Deus e pela
salvação dos pobres negros, se encontrar em tal estado de esgotamento físico e espiritual que tem absoluta
necessidade de descanso. Poderia também suceder que, apesar de todas as cautelas adoptadas pelo Instituto,
algum tivesse errado na escolha da carreira, de modo que a sua presença seria mais de estorvo que de ajuda
para as missões africanas.
2667
Poderiam surgir ainda outras importantes razões que tornassem necessário o regresso de algum à Europa.
Em todos estes casos importa considerar as seguintes advertências:
A necessidade ou a conveniência de que um missionário regresse à Europa deverá remeter-se totalmente
ao juízo do superior. A este também competirá decidir, ponderado o caso perante Deus e sem lugar a apelo
da sua decisão, se os que devem regressar se tornaram ou não merecedores da ajuda do Instituto. Também a
falta de espírito de sacrifício nalgum reconhecida pelo superior será causa de demérito. No caso de não exis-
tir nem este nem nenhum outro motivo de demérito, eis como procederá o Instituto nos casos do regresso à
Europa.
2668
1.o Tendo o instituto fundamental necessidade de missionários veteranos, que lhe tragam os conhecimen-
tos que só a experiência pode fornecer, para a formação dos aspirantes ou para colaborar de qualquer modo
na santa obra, aquele que, por falta de saúde ou por outros motivos justos não pudesse continuar no exercício
do ministério apostólico, voltará para o instituto fundamental, onde continuará a ser membro efectivo do
mesmo sob as ordens dos superiores.
2669
2.o Se, pelo contrário, o missionário que voltar com o consentimento do superior não continua a pertencer
ao instituto como membro efectivo, porque o instituto não o permite ou porque o interessado não o deseja, a
direcção recomendá-lo-á ao ordinário a que pertencia, a fim de que se lhe facilitem os meios para que, se
estiver em condições para isso, possa exercer o ministério no seu próprio país.
2670
Se, por sua má conduta ou por outros motivos, um missionário membro do instituto fundamental se tor-
nasse indigno de continuar a pertencer ao mesmo, será excluído para sempre da missão. E se não tiver com
que pagar a viagem para a Europa, tratará disso o superior, porém, só depois de ter obtido do transgressor
uma carta redigida na devida forma em que ele se obriga a devolver, no prazo de um ano, ao reitor do institu-
to de Verona a importância concedida para o seu regresso à Europa.

Capítulo IV

Influência do instituto sobre as missões


e sobre os missionários da África

2671
A relação existente entre os membros de um mesmo corpo é a mesma que se verifica entre o instituto
fundamental de Verona e os institutos e as missões da África a ele confiados.
2672
O instituto fundamental de Verona é o centro de comunicação dos Institutos e Missões da África, o víncu-
lo que os une, a base que os sustente, o estabelecimento legal e permanente que trata dos interesses gerais e
particulares das missões africanas e dos missionários que nelas labutam, no respeitante à Santa Sé e à Euro-
pa. O superior da missão da África, depois de ser nomeado pela Santa Sé para as árduas funções do governo
da mesma, dará a conhecer à direcção do instituto de Verona, quanto antes e com a maior segurança que lhe
for possível, quais são os missionários que em consciência julga capazes de lhe sucederem no cargo em caso
de morte. Com este propósito, solicitará em segredo o parecer dos membros mais experimentados da missão.
Ao propor um ou mais membros para este fim, ter-se-ão mais em conta as virtudes e as capacidades dos can-
didatos que a sua antiguidade.
2673
A direcção do instituto fundamental guardará o mais escrupuloso segredo acerca de tudo o que o superior
das missões da África tiver considerado útil e oportuno comunicar sobre os missionários e só se servirá disso
em relação à S. Congregação da Propaganda, para, conformando-se ao desejo do superior e dos outros supe-
riores da África, fazer nomear como sucessor, logo que possível, um dos membros por eles designados.
2674
Os superiores dos institutos e das missões da África terão informada a direcção do instituto fundamental
de Verona sobre a conduta e esperanças de cada um dos missionários e sobre o funcionamento de todas as
obras das missões a eles confiadas.
2675
O superior das missões africanas comunicará ao Instituto fundamental o regulamento de cada instituto das
suas missões, como também todas as inovações que a experiência prática sobre o terreno lhes aconselhar a
introduzir, no intuito de isto servir de orientação ao reitor na preparação dos candidatos para o apostolado
africano.
2676
O instituto fundamental também se preocupará na medida do possível dos interesses temporais dos alunos
do colégio durante o exercício do seu ministério na África. Embora o Instituto não deva nunca tomar a seu
cargo nem a administração nem a representação de tais interesses, se aquele a quem estes dizem respeito
mostrar desejo disso, far-se-á de modo que o representante ou administrador legalmente designado tenha o
poder para exercer essas funções, concedido de maneira tal que de facto e de direito permita à direcção do
instituto vigiar e proteger o bom funcionamento da administração.

Capítulo V

Missão interno do instituto

2677
O instituto recebe no seu seio, sob normas fixas e adequadas ao fim, sacerdotes e clérigos de teologia ap-
tos para o ministério apostólico, bem como leigos de provada piedade e competência, principalmente com o
objectivo de fazer deles irmãos coadjutores, catequistas, docentes e mestres de artes e ofícios úteis e neces-
sários na Nigrícia. Por isso:
1.o É ao Instituto a quem compete necessariamente a missão de provar cuidadosamente a vocação dos
candidatos para a Nigrícia.
2.o Também a de cultivar as aptidões dos seus alunos, procurando que correspondam perfeitamente às re-
queridas para tão sublime vocação.
As regras e normas do instituto dimanam principalmente do espírito de tão alta e importante missão.

Capítulo VI

Da prova da vocação

2678
O primeiro e mais importante papel do instituto é a boa escolha dos obreiros destinados às tarefas apostó-
licas da Nigrícia, do qual depende o feliz arranque da missão, a sua prosperidade, a sua duração. Portanto,
nisto reside o seu máximo interesse e também o interesse dos próprios missionários e o das almas que lhe
estão confiadas. Assim pois, o bispo de Verona, o reitor e quantos de algum modo estão a cargo deles, tanto
dentro do instituto como fora, cumprirão com a máxima seriedade e o maior zelo possível o elevado encargo
de provar a vocação.
2679
Esta prova tem lugar em duas épocas:
1.o Quando alguém solicita o seu ingresso no instituto.
2.o Uma vez que o candidato já tenha sido admitido, durante a sua estada no instituto.
Capítulo VII

Normas gerais que se devem observar quando alguém


solicita o seu ingresso no instituto

2680
Quem desejar seguir Jesus Cristo nas funções da vida apostólica e aspirar a ingressar no Instituto das Mis-
sões para a Nigrícia deve antes de tudo dar a conhecer o seu desejo ao bispo de Verona e ao seu representan-
te, o reitor do colégio, cujo principal empenho é procurar distinguir as vocações verdadeiras das falsas antes
da admissão dos aspirantes. Por isso, ao apresentar-se pela primeira vez um postulante, o reitor normalmente
não lhe dá uma resposta decisiva, mas procede com lentidão, até ter usado todos os expedientes para conhe-
cer claramente a vontade divina.
2681
Estes recursos são:
1.o Oração. O reitor, antes de decidir, fará práticas especiais de piedade, encomendar-se-á a Deus na san-
ta missa, invocará a Mãe do Bom Conselho, S. José e os outros santos protectores, pedirá orações às almas
justas e verdadeiramente devotas e fará com que os próprios postulantes se comprometam também a rezar,
bem como os candidatos já admitidos e os membros do Instituto.
2.o Instruções aos postulantes. Serão advertidos das dificuldades especiais da carreira apostólica a que
aspiram e das boas qualidades requeridas para se comprometerem nela com as devidas garantias. Morrer
absolutamente para a própria vontade e sacrificar-se inteiramente a si mesmo até à morte por meio de uma
perfeita obediência aos legítimos superiores é a primeira instrução que se deverá dar aos postulantes.
2682
Não se deixará de lhes observar que, dadas as circunstância de isolamento em que se encontra o missioná-
rio africano e o perigo que encerram os costumes dos povos da Nigrícia, que ignoram as elementares normas
de pudor, é necessária sobretudo uma castidade a toda a prova. Embora se tenha de contar muito com a espe-
cial assistência de Deus aos que são verdadeiramente chamados a este árduo ministério e ainda que, sem
desanimar ninguém, se deva observar que os caracteres reflexivos são os mais idóneos, apesar de parecerem
os menos dispostos a desafiar os perigos, não se deixará de fazer a expressa advertência de que quanto dizem
os teólogos sobre o hábito da pureza, requerida como condição necessária para as ordens sagradas ou para a
profissão religiosa dos leigos, deve entender-se em sentido muito rigoroso tratando-se de aspirantes ao minis-
tério apostólico, para os quais certamente não bastariam simples propósitos num ponto tão delicado.
2683
3.o Interrogações e informações. Às instruções acrescentar-se-ão, podendo fazê-las pessoalmente, opor-
tunas perguntas. Além disso, pôr-se-á todo o cuidado em conseguir de várias fontes exactas e minuciosas
informações sobre o postulante, advertindo que se manterá a confidencialidade o máximo possível. Por outro
lado, ter-se-á bem presente a máxima de que as vocações dificilmente se decidem por quem não conhece
bem o nosso interior, e perguntar-se-á aos aspirantes se trataram bem o assunto com o seu director espiritual.
2684
4.o Consultas. O reitor pôr-se-á em contacto, na medida do possível, com as pessoas mais autorizadas pe-
la sensatez, experiência e consciência, a fim de obter ajuda mediante os seus conselhos, de modo que esteja
em grau de emitir um juízo recto sobre o postulante, na altura de propô-lo ao bispo para admissão. Consulta-
rá também os membros mais maduros do colégio, com os quais costumam aconselhar-se sobre as coisas mais
importantes do instituto.
Eis as máximas gerais que se devem ter sempre presentes:
2685
A vocação ao apostolado, segundo a generalidade dos teólogos, est actus Providentiae supernaturalis,
quo Deus aliquos prae aliis eligit ad ministerium apostolicum eosque congruis dotibus praeparat ad eius-
dem ministerii officia digne et laudabiliter obeunda.
2686
A vocação ao ministério apostólico não é sempre acompanhada de uma propensão patente e irresistível a
tão sublime carreira, porém, exige sempre uma vontade constante e generosa para se oferecer em sacrifício a
Deus, unida à aptidão para exercer a função a que se aspira.
2687
É necessário, pois, que quem se oferece para o difícil e laborioso apostolado da Nigrícia tenha uma ver-
dadeira disposição, baseada no sentimento da fé e na caridade, para se dedicar à conversão das almas mais
abandonadas do mundo e para propagar naquelas vastas e desconhecidas terras o reino de Cristo.
2688
Embora o engenho e a ciência eminentes sejam desejáveis, todavia não se excluirão os medíocres, uma
vez que, unidos aos mais capazes, podem também eles, com abnegação e caridade, exercer o seu ministério
igualmente valioso para as pobres almas da Nigrícia.
2689
Quanto à saúde e força corporal, a experiência demonstrou que na temperatura africana se podem ter ex-
celentes trabalhadores ainda que não sejam os mais robustos e que a diferença de clima pode favorecer uma
constituição mais frágil. Por outro lado, é de tanto valor um operário apostólico na África, que não se deve
desdenhar nenhum aspirante, sempre que os dotes essenciais não faltem, os quais se terão mais em conta que
o vigor do corpo. O reitor guiar-se-á por estas normas ao propor o aspirante ao bispo de Verona. Se não se
descobrem nele as disposições necessárias para o ministério a que aspira, há que dissuadi-lo da sua ideia e
manter-se firme em não aceitá-lo. Se se considera que se deve admiti-lo, convida-se a que se dirija ao ordiná-
rio da diocese a que pertence, a fim de obter a sua autorização e bênção, após o que pode ingressar no colé-
gio.
2690
No caso de um postulante, digno de ser admitido, encontrar forte resistência por parte de seus pais e pa-
rentes, o reitor informar-se-á dos motivos que a originam; e, tomando como norma a caridade ordenada pela
Igreja, a qual dispensa até os religiosos professos dos votos monásticos nas mais agudas necessidades dos
pais, de nenhum modo aceitará a petição e persuadirá o aspirante a ficar ali onde o chama a Providência.
Quando não se vir necessidade familiar, mas só choque de interesses e afectos humanos, ainda assim o reitor
exigirá do aspirante toda a prudência e delicadeza, a fim de que, ao obedecer à chamada de Deus, não deixe
de ter para com seus pais as atitudes de educação e respeito que competem a filhos bem-nascidos e obtenha,
além disso, se lha derem, o conforto da bênção paterna e materna.

Capítulo VIII

Normas gerais que se devem observar quando


o candidato já tenha sido admitido
durante a sua estada no instituto

2691
Quando o aspirante já tiver sido admitido no instituto, presume-se que reúne as condições requeridas e,
encontrando-se em certo modo em posse da carreira empreendida, não deve ter no seu íntimo dúvidas sobre
isso; pelo que, se não surgirem sinais bem claros em sentido contrário, não deve submeter mais a consultas a
sua determinação. Deve advertir-se disto, para evitar a excessiva incerteza de almas que são, às vezes, as
mais aptas e as mais claramente chamadas, a fim de que não enfraqueçam o seu espírito e gastem as forças
da vontade em exames supérfluos, mas que, considerando já passado o tempo da prova preliminar, se apli-
quem com sério empenho a cultivar as aptidões necessárias para o apostolado.
2692
Não obstante isso, com o objectivo de não descurar nenhum meio para melhor se assegurar da chamada
de Deus, realizar-se-ão as seguintes práticas:
1.o Nos primeiros dois meses da sua entrada no instituto, o candidato fará seis dias de exercícios espiritu-
ais para se preparar bem para a aprendizagem que deve empreender quanto à carreira da sua vocação; isto
sempre que não estejam próximos os exercícios anuais do colégio.
2.o Haverá anualmente exercícios espirituais durante oito dias, a fim de que, mais vivamente iluminada e
sensibilizada aos conselhos da verdade e as inspirações do céu, a alma possa descobrir mais facilmente as
ilusões da imaginação e do Demónio, no caso de se ter desviado.
3.o Na primeira semana de cada mês, os candidatos farão um dia de retiro espiritual, como preparação pa-
ra a morte.
4.o Cada aluno, ainda que tendo uma razoável liberdade na escolha de confessor para as confissões ordi-
nárias, contará também com um director espiritual, que manterá informado sobre a sua conduta, fazendo com
ele a sua confissão geral, as anuais e algumas mensais.
2693
Finalmente, no tocante a isso, servirão as disposições do reitor, sobre as quais descansarão confiadamente
os alunos. Consultando, em caso de necessidade, o bispo, prestando a devida atenção ao comportamento, ao
carácter e a todas as qualidades dos candidatos, o reitor determina definitivamente, perante Deus e segundo
as suas inspirações – submetendo depois tudo ao bispo –, os casos de vocação.
2694
Se julga ter descoberto no candidato algum defeito corrigível, recorrerá às advertências e remédios para
obter a emenda e prolonga a prova.
2695
Se a emenda não for de nenhum modo possível e o defeito se tornar incompatível com a carreira apostóli-
ca, depois de ouvir o bispo, procurará o mais rápido que a prudência e a caridade permitirem e, em todo o
caso, dentro do primeiro ano de prova, deixar o aluno livre para ir para outro lado, para se dedicar melhor a
outro ministério a que Deus o chame. Se, pelo contrário, o indivíduo for julgado válido, o instituto dedicar-
se-á a cultivar as suas aptidões para o apostolado da Nigrícia, dispondo dele mais cedo ou mais tarde, con-
forme as necessidades das missões da África.

Capítulo IX

Cultivo das disposições dos candidatos


para o ministério apostólico da Nigrícia

2696
A convivência e as boas normas do Instituto das Missões para a Nigrícia são úteis não só para estreitar os
missionários num santo vínculo de fraternidade e criar aquela unidade de método e de espírito, que é a força
dos institutos e que tanto serve para conservar e perpetuar o fruto das boas obras mas também para ajudar a
desenvolver e amadurecer as virtudes e a fornecer a série de conhecimentos, cautelas e de disposições mais
especiais que se precisam como dotes para exercer tão alto ministério. Por isso, segundo a séria consideração
do espírito da obra, as normas indicadas a seguir são convenientes:
1.o Para cultivar o espírito e as virtudes dos aspirantes ao apostolado.
2.o Para regular bem os estudos e os exercícios destinados a desenvolver o intelecto e as capacidades ne-
cessárias na prática do ministério apostólico na Nigrícia.
3.o Para cuidar do bom estado de saúde e das forças físicas dos candidatos às missões da África Central.
2697
Como resumo destas normas destinadas ao cultivo das disposições para o apostolado africano, seguirá o
regulamento particular do instituto, ou seja, o horário e distribuição das várias actividades do Instituto se-
gundo os tempos e as ocasiões.

Capítulo X

Normas específicas para cultivar o espírito e as virtudes


dos alunos do instituto

2698
A vida de um homem que de modo absoluto e definitivo chega a romper todas as relações com o mundo e
com as coisas mais queridas segundo a natureza, deve ser uma via de espírito e de fé. O missionário que não
tivesse um forte sentimento de Deus e um vivo interesse pela sua glória e pelo bem das almas, careceria de
aptidão para as suas funções e terminaria numa espécie de vazio e de intolerável isolamento.
2699
A sua obra não estará sempre rodeada dessa consideração, dessa atmosfera de favor e quase de aplauso
que se cria à volta do sacerdote que trabalha no meio de almas inteligentes e de corações sensíveis.
2700
Este conforto humano pode até alimentar um zelo pouco fundado em Deus e na caridade. Porém, o missi-
onário da África Central não pode nem deve esperá-lo. Ele trabalha entre selvagens embrutecidos pelos hor-
rores da escravidão mais desumana e que adquiriram comportamentos bestiais pela mísera situação em que a
desventura e a desumana crueldade dos seus inimigos e opressores os lançou. Esses infelizes negros estão
acostumados a que lhes arrebatem violentamente os seus filhos, para serem submetidos a dolorosa escravi-
dão, sem esperança de os voltarem a ver; vêem, por vezes, matar sem piedade familiares queridos e até os
seus próprios pais. E como os celerados autores de tão horríveis crimes em geral não pertencem à sua raça,
mas são estrangeiros, esses desventurados selvagens, habituados a que todos os atraiçoem e os maltratem da
maneira mais cruel, olham às vezes o missionário com desconfiança e terror, porque é estrangeiro. Por isso
eles manifestam-se aos olhos do mesmo como bárbaros, estúpidos, ingratos e brutais. Ele, portanto, em vez
de esperar encontrar uma lisonjeira correspondência de afectos, deve estar resignado a ver resistências hostis,
inconstâncias dolorosas e negras traições. Daí que em muitas ocasiões tenha de adiar a esperança do fruto
para um futuro remoto e incerto; e às vezes tem de se contentar com semear, no meio de infinitos suores,
privações e perigos, uma semente que só dará algum fruto aos missionários sucessores. Deve considerar-se,
portanto, como um indivíduo anónimo dentro de uma série de operários, aos quais compete não tanto esperar
os resultados da sua obra pessoal, quanto o fruto do concurso e de um conjunto de esforços misteriosamente
manejados e utilizados pela Providência.
2701
Numa palavra, o missionário da Nigrícia deve com frequência reflectir e meditar que ele trabalha numa
obra de altíssimo mérito, sim, mas muito árdua e laboriosa, para ser uma pedra escondida debaixo da terra
que talvez nunca apareça à luz e que entra a fazer parte do cimento dum novo e colossal edifício, que só os
vindoiros verão despontar do solo e elevar-se, pouco a pouco, sobre as ruínas do feiticismo, e agigantar-se
para acolher, depois, no seu interior, os mais de cem milhões da desditosa estirpe dos camitas, que desde há
mais de quarenta séculos gemem curvados sob o jugo de Satanás.
2702
O missionário da Nigrícia, despojado por completo de si mesmo, e privado de todo o afecto humano, tra-
balha unicamente para o seu Deus, para as almas mais abandonadas da Terra, para a eternidade. Com os
olhos postos unicamente no seu Deus, que lhe serve de impulso, tem em todas as circunstâncias com que
nutrir-se e alimentar abundantemente o seu coração, desde que, seja num tempo próximo ou longínquo, com
mão estranha ou com a própria, venha a recolher o fruto dos seus suores e do seu apostolado. E o seu espírito
não interroga Deus sobre as razões da missão d’Ele recebida, mas trabalha confiado na sua palavra e na dos
seus representantes, como dócil instrumento da sua adorável vontade e em todas as circunstâncias repete
profundamente convencido e com vivo regozijo: servi inutiles sumus; quod debuimus facere fecimus (Lc,
18).
2703
Pelo contrário, ai daquele que for levado a essas árduas funções por outro motivo, quer se trate de uma
passageira labareda de fervor, de ânsia de viagens exóticas ou do desejo de se distinguir abraçando uma car-
reira extraordinária! Para além de ir sucumbir nos momentos de escuridão e desalento, para além de não po-
der aguentar uma vida de fadigas e privações contínuas, sentiria as tendências da perversa natureza de um
modo mais perigosamente aliciante, e poderia cair vítima da sedução ou das mais ignóbeis paixões.
2704
Mas não se deve exagerar, nem facilmente sentenciar sobre a quantidade e a força das ocasiões perigosas
que se apresentam ao sacerdote na Europa e ao missionário na África Central.
2705
É justo considerar que o prestígio e as lisonjas, que rodeiam os nossos sacerdotes aqui na Europa, e o am-
biente mundano em que às vezes têm que actuar podem lentamente pervertê-los não menos que o confronto
sem defesas com perigos mais evidentes e formais. Também há que ter em conta que, se o missionário da
África, isolado naquelas remotas terras, carece de muitas ajudas e apoios, leva, contudo, por isso mesmo,
uma vida mais dura e necessariamente obrigada a pensamentos de ordem superior. Quando o missionário da
Nigrícia tem um coração ardente de puro amor de Deus e com o olhar da fé contempla o sumamente benéfi-
ca, grande e sublime que é a obra pela qual se afadiga, todas as privações, os esforços contínuos, os mais
duros trabalhos tornam-se para o seu coração um paraíso na Terra e a própria morte e o mais cruel martírio é
o mais caro e desejado galardão para os seus sacrifícios.
2706
Não há, pois, que exagerar os temores, mas observar que em muitos casos a mais sólida salvaguarda do
missionário da África é a sua consciência e a sua fé. Por todas estas razões e por todas as muitas outras que
deverão ser matéria de frequentes meditações para os alunos do Instituto, aspirantes ao apostolado da Nigrí-
cia, importa necessariamente que eles tenham sólidas disposições de genuíno zelo, de puro amor e temor de
Deus e que sejam fortalecidos por um seguro domínio das suas paixões. Para tal fim, mantendo-se permanen-
temente no instituto a simplicidade, a alegria e também um elevado grau de vivacidade, é preciso que domine
claramente o fervor pelas coisas espirituais, o estudo da vida interior e um desejo vivíssimo de perfeição.
2707
Além dos exercícios espirituais cada ano, um retiro todos os meses e a confissão sacramental ao menos
uma vez por semana, e, além da oração mental de uma hora pela manhã, os exames de consciência, a leitura
espiritual, a visita ao Ss.mo Sacramento e à Virgem Maria e todas as outras práticas quotidianas de piedade,
os alunos devem familiarizar-se em extremo, até se lhes tornar quase natural, com o exercício assíduo da
presença de Deus e de uma íntima e familiar comunicação com Ele, por meio de frequentes e devotas aspira-
ções, o que constituirá matéria do exame particular.
2708
Para ajuda da piedade e do espírito são úteis os exercícios de mortificação exterior, embora tenha de se
proceder com discrição, e é conveniente consultar sobre isso o próprio confessor e director espiritual, o qual
permitirá esta ou aquela abstinência ou penitência corporal, especialmente nas sextas-feiras e nas vigílias das
festas principais da Igreja e do instituto. Mas não há sobre isso regra de aplicação geral estabelecida no colé-
gio.
2709
O mais importante é que todas estas práticas de piedade e de mortificação, com o costume, não se tornem
uma formalidade material. Por isso repete-se frequentemente que nos exercícios privados de cada um e nos
realizados em comum por todos, especialmente nas conferências espirituais, a necessidade de fazer oração
válida e consistente e de actuar em espírito e verdade. Para discernir depois se é veraz ou superficial, mede-
se a piedade com o proveito da mortificação interior e especialmente das duas virtudes fundamentais da vida
interior e exterior: a humildade e a obediência.
2710
É preciso que os candidatos, com a fiel cooperação da graça divina, ponham todo o cuidado em esvaziar o
seu coração de todo o orgulho e presunção, de todo o sentimento de ambição e de pretensão, e em fazer ar-
reigar profundamente nele aquela santa disposição que nos leva a ver tudo através de Deus e a submeter-Lhe
totalmente a inteligência, a vontade, as forças, e, para Ele e por Ele, nos faz submeter tudo aos que O repre-
sentam. Em particular seja respeitada como voz de Deus: 1.o, a voz do director espiritual, ao qual se fará total
confidência de todo o interior e de todo o comportamento; 2.o, a voz do bispo e do reitor, dos quais os alunos
procurarão seguir não só as ordens mas também os seus desejos e indicações; 3.o, a voz da regra e os objec-
tivos da comunidade, para os quais estarão dispostos com a mais escrupulosa exactidão e perfeição.
2711
Se os candidatos cultivarem este espírito de sincera piedade, de humildade e de obediência até morrer es-
piritualmente para si mesmos nesta parte mais íntima do amor próprio, a divina graça ajudá-los-á a vencer e a
dominar todas as outras paixões e a adquirir todas as demais virtudes.
2712
Bastaria ter presentes e seguir estas normas gerais de perfeição. Contudo, para maior ajuda neste caminho
espiritual convirá prestar atenção em particular às seguintes virtudes, que são mais directamente necessárias
para o ministério apostólico da Nigrícia.
2713
1.o A castidade. No interior do Instituto está estabelecida a clausura para as mulheres. As visitas das fa-
miliares e de outras pessoas do sexo feminino. a quem se deva permitir a entrada por verdadeira conveniên-
cia ou por dever de função ou de caridade, recebem-se na sala comum e com todas as cautelas da modéstia e
do decoro sacerdotal.
2714
E estas cautelas observam-se também nos ministérios espirituais não só para afastar todo o perigo mas
também para não dar lugar a suspeitas e falatórios, ainda que por isso se deixe de fazer alguma boa obra.
2715
A este respeito, os alunos saberão exercitar-se conscienciosamente, de modo que, chegada a ocasião de se
encontrar no meio de perigos inevitáveis, tenham adquirido o hábito da modéstia, da pronta elevação do co-
ração a Deus e da desenvolta circunspecção, que lhes permitam fazer bem às almas alheias... sem risco de
perturbar e causar dano à própria!
2716
2.o A caridade. Pratica-se principalmente no interior do colégio mediante todo o sentimento e as demons-
trações de uma sacerdotal e cristã benevolência, excluindo as preferências, as rivalidades, as invejas, as dis-
cussões, as contendas e os modos demasiado confidenciais, com prejuízo da própria dignidade e do respeito
devido aos demais. Cada um se obriga a pedir pronta e humildemente perdão àquele a quem de alguma ma-
neira considere ter desgostado. Cada um se prestará a que lhe sejam advertidas as suas faltas e há-de procurar
que triunfe sempre a caridade, tanto na indulgência em relação aos defeitos como na oportuna protecção
fraterna.
2717
Quanto às pessoas de fora, embora haja que guardar prudente reserva também para cuidar do necessário
recolhimento e se deva evitar ir, sem necessidade, por lugares frequentados e muito mais às casas dos parti-
culares, contudo procurar-se-ão fomentar todos os bons costumes de urbanidade, autêntica afabilidade e cor-
dialidade cristãs. Atender-se-á sobretudo a ser exemplares na atitude e no hábito (que é o dos bons eclesiásti-
cos, sempre uniforme, e trazido dentro e fora do colégio e a qualquer hora do dia, também no Verão) e no
falar, onde o discurso, evitada toda a afectação, será sempre condimentado pela sabedoria do Evangelho e
será levado, quando se puder, a alguma conclusão edificante e proveitosa para as almas.
2718
Pela salvação destas, os alunos intensificarão ainda mais a caridade nos ministérios espirituais e assumi-
rão sempre com júbilo e exercerão sempre com paciência, esmero e amor, as importantíssimas funções de
confessar – sobretudo aos pobres –, de catequizar os ignorantes e os meninos, de ensinar a doutrina cristã ou
de pregar numa igreja, sempre, isso sim, com o convite do reitor e aprovação do reitor. Atendendo ao bem
das almas em todas as diversas oportunidades que se lhes oferecerem nestas circunstâncias, farão de modo
que a sua acção reflicta o fervor do espírito apostólico, de que aqui devem dar qualquer primícia.
2719
O que não puderem fazer muito com as obras, procurarão obtê-lo com a oração. Ao menos aquilo de que
os faz capazes a divina bondade. Tenham posta a mente e o coração, em todas as situações, nas míseras al-
mas do universo inteiro e especialmente nas da África Central, que jazem sepultadas nas trevas da infidelida-
de e do erro, e apliquem-se a impetrar misericórdia para elas com o pouco que puderem fazer, mediante a
graça de Deus, rezando a sua conversão na santa missa, nas jaculatórias e em todas as práticas de piedade,
interpondo os méritos e a intercessão da Santíssima Virgem Imaculada e de todos os santos protectores, re-
zando orações especiais e submetendo-se a convenientes mortificações e penitências pela conversão dos
infiéis.
2720
3.o Espírito de sacrifício. O pensamento, sempre dirigido ao grande fim da sua vocação apostólica, deve
suscitar nos alunos do instituto o espírito de sacrifício.
2721
Fomentarão em si esta disposição essencialíssima, tendo sempre os olhos postos em Jesus Cristo, aman-
do-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salva-
ção das almas.
2722
Se com viva fé contemplam e saboreiam um mistério de tanto amor, serão felizes por se oferecerem e
perderem tudo e morrer com Ele e por Ele. Ao separarem-se da sua família e do mundo, deram apenas o
primeiro passo: procurarão ir cada vez mais longe, até consumarem o seu holocausto, renunciando a todo o
afecto terreno, habituando-se a prescindir das suas comodidades, dos seus pequenos interesses, da sua opini-
ão e de tudo o que lhes diz respeito, pois até um ténue fio que permanecer pode impedir uma alma generosa
de se elevar até Deus. Por isso, será contínua a prática da negação de si mesmos, mesmo nas pequenas coi-
sas, e renovarão com frequência a oferta de si mesmos a Deus, incluída a saúde e até a vida. Para levar o
espírito a estas santas disposições, em certas circunstâncias de maior fervor farão todos juntos uma formal e
explícita entrega de si mesmos a Deus, oferecendo-se cada um, com humildade e confiança na sua graça, até
ao martírio.

Capítulo XI

Normas específicas para regular os estudos e os exercícios


destinados a cultivar o intelecto e as atitudes necessárias
na prática do apostolado africano

2723
Alguns têm uma ideia exagerada quanto à amplitude de conhecimentos e cultura intelectual de que neces-
sita um missionário; outros quereriam encontrar num instituto como o nosso uma academia de ciências e
artes, uma escola de todas as línguas. Para evitar surpresas a quem esperasse um grande aparato de estudos e
ainda mais para insinuar aos alunos a importância do recolhimento, da humildade e dirigir melhor o espírito
para esse ponto de maior importância que nenhum outro, convirá proclamar aqui a grande máxima do maior
dos missionários entre os apóstolos infiéis, o apóstolo S. Paulo: A maior ciência, antes a única verdadeira-
mente necessária é a de Jesus crucificado.
2724
Non enim – escreve o apóstolo aos Coríntios – iudicavi me scire aliquid inter vos, nisi Jesum Christum et
hunc crucifixum (1 Cor 2,2).
2725
Portanto, tida muito em conta esta máxima e tomada como norma do espírito com que devem estudar, vi-
giando-se a si mesmo – não aconteça que a excessiva intensidade da aplicação aos estudos subtraia tempo
aos exercícios de piedade ou endureça o coração ou que o êxito os torne orgulhosos –, e entendendo dirigida
ao tempo de estudo a recomendação das jaculatórias devotas, os alunos dedicar-se-ão ao estudo com a má-
xima solicitude e também farão diante de Deus a devida meditação sobre a importância dele. Pensarão na
necessidade em que se encontrarão de enfrentar os missionários protestantes, os grupos heterogéneos de he-
reges orientais, os racionalistas e incrédulos de toda a parte, os muçulmanos e os idólatras, tanto nas longas
viagens como nos campos das suas fadigas apostólicas. Pensarão também no crédito e ascendente que pro-
porciona à religião a habilidade e cultura de quem a prega e na necessidade de prontas resoluções em casos
complicados, sem ter meios de consulta, nem sequer tempo para grandes reflexões.
2726
Dado além disso que a experiência verificou que a Providência utiliza amiúde, para a conversão dos po-
vos, os conhecimentos dos missionários até de ciências puramente humanas e de artes de utilidade temporal,
antes de puro deleite, nada que se refira a este ponto, sob a direcção do reitor, julgarão inútil, nem indigno da
sua atenção e do seu empenho, que não possam oferecer para a glória de Deus e o bem futuro das almas.
Para determinar com alguma precisão o tipo de estudos que são indispensáveis aos candidatos das mis-
sões africanas, estabeleceu-se:
2727
1.o Os alunos clérigos frequentarão as aulas teológicas do Seminário Episcopal contíguo e seguirão com
diligência e assiduidade as lições de todas as matérias que nelas se ensinam, considerando que dependerá
muito do empenho com que se aplicam a este importantíssimo dever o juízo que se terá da sua vocação apos-
tólica. Nas férias outonais orientar-se-ão pelo regulamento particular dos sacerdotes, feitas as modificações
que o reitor julgar oportunas pela sua condição especial.
2.o Quanto aos alunos já sacerdotes, um regulamento preparado expressamente para eles estabelece as
matérias, a ordem e o sistema de estudos com que se preparam para a carreira apostólica.
2728
Em geral, os alunos aplicam-se de preferência aos estudos de primeira necessidade para o exercício práti-
co do ministério sacerdotal e procuram dedicar a maior parte do seu tempo e do seu esforço a adquirir sólidos
conhecimentos sobre as provas do catecismo, sobre como conhecer e combater todos os erros do feiticismo e
do Islamismo e sobre como refutar os sistemas e os sofismas de todas as heresias orientais e das seitas pro-
testantes e racionalistas. Estes estudos de controvérsia, ajudados pelos da Sagrada Escritura e da História
Eclesiástica, constituem a mais séria ocupação do Instituto.
2729
Quanto às línguas, bastará o exercício do francês e o estudo dos rudimentos fundamentais do árabe e
quem tiver mais tempo e aptidão para isso adquirirá conhecimentos das inúmeras línguas das tribos da África
Central, como a dos Dincas e a dos Bari. Porém, a experiência mostrou que neste assunto não se deve perder
tempo com exercícios dificílimos e muitas vezes inúteis, porque as línguas dos povos infiéis devem-se
aprender, regra geral, lá onde se falam.
2730
Como nas vastas tribos da Nigrícia falta quem se ocupe da saúde dos estrangeiros e dos indígenas, alguns
sacerdotes e irmãos coadjutores com mais aptidão aplicar-se-ão, sob a orientação de um experimentado e
hábil mestre, a estudar medicina prática, cirurgia, flebotomia e farmácia, tendo para isso como base o texto
de Antoniacci. Também se deverão adquirir conhecimentos de astronomia, agricultura e ciências semelhan-
tes, que contribuem poderosamente para tornar eficazes entre os negros o apostolado dos missionários.
2731
Para que estes estudos sejam menos áridos e ao mesmo tempo notavelmente mais intensos e frutuosos,
complementam-se diariamente com conferências familiares e bem reguladas e, avançando-se a par e passo
por parte de todos, e sob a orientação do mesmo autor, cada um apresenta o resumo do capítulo estudado e
propõe, sem superfluidades nem inúteis digressões, as dificuldades que encontrou em algum ponto, para as
quais desejaria uma clara solução. Além disso, por ser útil que cada um, segundo a sua capacidade, procure
aprofundar os conhecimentos na matéria, sobretudo acrescentando ao estudo do autor adoptado como guia a
leitura de tratados mais amplos e de profunda reflexão de outros autores, todos levarão à conferência o fruto
dos estudos individuais, para a comum erudição e proveito.
2732
O reitor do instituto tem o compromisso de assistir normalmente a esses colóquios, e, se alguma vez esti-
ver impedido de o fazer, delega num substituto. Ele dirige os estudos e propõe as normas que neles se devem
seguir, depois de ter consultado o bispo superior.
2733
Sobre o modo de dirigir os estudos, convém advertir que não se deve reparti-los, dividindo a atenção entre
matérias díspares, mas concluir-se-ão um após outros os tratados principais, dedicando-lhes um estudo conti-
nuado e completo.
2734
Para fazer uma aplicação da matéria estudada, os alunos redigirão composições para o ensino religioso do
povo, que submeterão antecipadamente a algum perito e que para se exercitarem lerão em voz alta na capela
do instituto e também, com prévia autorização do reitor, nas igrejas e oratórios públicos. Os alunos adestrar-
se-ão a ensinar com clareza, precisão, facilidade e graça a doutrina cristã, tanto a crianças como a adultos,
que é o exercício mais essencial e importante do missionário de infiéis. Exercitar-se-ão também a explicar o
Evangelho, a proferir discursos morais e, especialmente com meninos e ignorantes, exercitar-se-ão nas exor-
tações familiares, feitas até de modo improvisado.

Capítulo XII

Normas específicas para cuidar da saúde


e das forças corporais dos alunos
do Instituto das Missões Africanas

2735
Como na vida daquele que se prepara para o apostolado da África são necessários o exercício da mortifi-
cação e da habituação às provações, e devendo-se, por outro lado, ter grande atenção à saúde e força dos
alunos, especialmente à dos de compleição mais franzina, assim, a primeira advertência que se fará para cui-
dar da saúde será a de que se faça uma escolha prudente daqueles exercícios de mortificação que a não pre-
judicam e, mais ainda, daqueles que a favorecem.
2736
Assim, os alunos poderão satisfazer o seu fervor sem prejudicar a sua saúde:
1.o Com a prontidão e exactidão na observância das normas do Instituto. Porque, se ao regular os seus
passos e as suas acções, a regra lhes proporciona frequentes ocasiões de negação de si mesmos, não deixam
de ter cuidado da sua saúde, variando as ocupações e fazendo com que as que requerem esforço do corpo
sigam as que só exigem a ocupação do espírito.
2737
2.o Mediante a prática de uma caritativa convivência de uns com outros. Porque, estando destinados a vi-
ver entre os povos mais bárbaros, e a ter que adaptar-se aos usos, costumes e caracteres mais diversos, bem
como aos temperamentos mais diversos, exercitar-se-ão nisto convenientemente propondo-se cada um, já
desde o colégio, moldar-se à opinião, ao génio, ao carácter dos outros. Isto oferecer-lhes-á, sem dúvida, oca-
siões tanto mais preciosas e frequentes, quanto mais insignificantes e inobservadas de multiplicar os actos
inócuos de mortificação.
2738
3.o Observando a urbanidade, limpeza e bons modos que tanto poderão ajudá-los a ganhar a benevolência
no trato com pessoas de todas as nações e de todas religiões, com as quais terão de se encontrar no futuro.
Este contínuo bom governo da pessoa, das maneiras, dos discursos, do vestir e da habitação trar-lhes-á uma
série de pequenos sacrifícios e de pequenas vitórias sobre a preguiça co-natural à natureza humana.
Haverá também ocasião de se mortificar e, ao mesmo tempo, de favorecer a saúde e as forças:
2739
1.o Mantendo o domínio de si mesmo e uma circunspecção que exige uma razoável sobriedade, não só na
comida e na bebida mas também no grau de aplicação aos estudos e de empenho nas coisas louváveis e boas.
É necessário e utilíssimo também para a saúde que os alunos se autocontrolem e saibam moderar com
força o ardor cego, o ímpeto excessivo, aquela espécie de ânsia e de avidez com que às vezes actuam. Nada
mais útil que formar-se nos hábitos de calma, de ordem, de sereno e digno procedimento, que deixa ao espíri-
to a liberdade necessária para fazer o bem sem confusão nem precipitação e evita os perigos de uma tensão e
um esforço que oprimem corpo e o espírito.
2740
2.o Será muito benéfica alguma prática útil de agricultura e de ajuda nos trabalhos de construção e de res-
tauração, nos quais se poderá encontrar um entretenimento e uma preparação conveniente para as necessida-
des das missões da África, nas quais há que fazer tudo. Por outro lado, ter-se-á todos os dias um tempo livre
para algum descanso, entretenimento, como o jogo das bocce e outras distracções similares, e principalmente
um ou outro passeio pela tarde, como também em certos dias de férias extraordinárias; e, no Outono, no in-
tuito de treinar os candidatos a grandes viagens, far-se-ão passeios adequados e pequenas passeios ao campo
ou a algum santuário dos nossos arredores.

Capítulo último

Regulamento particular do instituto;


isto é, horário ou distribuição das diversas actividades,
segundo o tempo e a ocasião.

N.o 422 (395) - PLANO PARA A REGENERAÇÃO DA ÁFRICA


ACR, A, c. 25/9 n.3

PLANO PARA A REGENERAÇÃO DA ÁFRICA


PROPOSTO POR P.e DANIEL COMBONI
MISSIONÁRIO APOSTÓLICO DA ÁFRICA CENTRAL
SUPERIOR DOS INSTITUTOS DE NEGROS DO EGIPTO

QUARTA EDIÇÃO

Verona
Tipografia Episcopal de A. Merlo
1871

REGENERAÇÃO DA ÁFRICA COM A ÁFRICA

2741
Um nevoeiro de mistério envolve ainda hoje aquelas remotas regiões que a África, na sua vasta extensão,
encerra. E se é bem verdade que, para desfazer um instante o denso nevoeiro, transportando até lá uma chis-
pa da civilização de que a moderna sociedade europeia tanto se vangloria, os governos e instituições privadas
fizeram esforços, perante a insuperável barreira com que a natureza contribuiu para separar aquele inóspito
solo da cultura do resto do globo tornaram-se vãos todos os esforços de tantos corações generosos, e estéreis
os seus maiores sacrifícios. A ideia de obrigar a natureza a revelar também naquelas imensas regiões os te-
souros virgens das suas enormes produções em benefício da família humana incitou em diversas épocas a
empreender expedições para alcançar esse almejado fim; mas os perigos de toda a ordem e as dificuldades
insuperáveis em que tropeçaram os inúmeros esforços daqueles magníficos heróis minaram as suas forças e
semearam entre eles o desânimo, fazendo-os abandonar a empresa.
2742
Porém, o católico, habituado a julgar as coisas com a luz que lhe vem do alto, olhou a África não através
do miserável prisma dos interesses humanos, mas do puro raio da sua fé; e descobriu lá uma infinidade de
irmãos pertencentes à mesma família, que têm nos Céus um pai comum, ainda curvados sob o jugo de Sata-
nás e à beira do mais horrendo precipício. Então, levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com
divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu
que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras
terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus, so-
bre os quais pesa ainda o tremendo anátema de Cam.
2743
E formalmente um Papa – para não falar das diversas sociedades eclesiásticas e ordens religiosas que nos
séculos passados, abençoadas pela palavra do Vigário de Cristo e acompanhadas das felicitações e preces de
todos os bondosos, percorreram os caminhos do deserto e chegaram às abrasadas terras habitadas pelos ne-
gros, onde entraram para plantar entre aquelas gentes embrutecidas no mais nefando e lamentável feiticismo
a bandeira da cruz –, Sua Santidade Gregório XVI, de veneranda memória, no final do seu pontificado fun-
dava o vicariato apostólico da África Central, o mais vasto do mundo, que abrange uma superfície duas vezes
maior que a da nossa culta Europa. O imortal Pio IX, gloriosamente reinante, não menos entusiasta das sub-
limes obras do apostolado, confirmando os decretos do seu predecessor, enviava para lá missionários, os
quais, subindo o Nilo, penetravam em 1848 na nova missão confiada ao seu zelo e avançavam até 2.o grau
de lat. norte.
2744
Neste extensíssimo campo aberto à caridade do Evangelho, afadigando-se no meio de enormes incómo-
dos, além de três filhos de S. Inácio, muitos dignos sacerdotes da Alemanha austríaca e bávara e sobretudo
do Tirol alemão, recrutados pelo excelso comité da Sociedade de Maria e pelo fervoroso esforço do benemé-
rito professor Miterrutzner, conseguiam fundar ao longo das margens do caudaloso Nilo, que corre entre o
Trópico do Câncer e o equador, quatro estações muito importantes, estabelecendo como centro de comunica-
ção a capital do Sudão egípcio, cujas condições políticas e posição geográfica a destinavam a ser o último
ponto de apoio dos europeus que iam para aquelas regiões. Também o instituto fundado em Verona por essa
alma generosa cujo nome será sempre abençoado na Igreja de Cristo, P.e Nicolau Mazza, contribuiu para
levar o óbolo da sua caridade àqueles desditosos irmãos nossos; e os nomes das vítimas, alunos desse Institu-
to, a quem a areia africana cobre, oblações pacíficas, consumadas no altar da sua caridade, serão sempre
recordados com reconhecimento por aqueles que trilharem os mesmos caminhos. Finalmente, os francisca-
nos, família numerosa, talvez mais disposta do que outras, pelo espírito da sua vocação, a suportar as maiores
provações, passaram a trabalhar nessa desolada vinha.
2745
Não obstante, é preciso confessar que, se por um lado todos os esforços e fadigas destes valorosos cam-
peões de Jesus Cristo chegaram ao grau extremo dos mais fortes empreendimentos, os efeitos obtidos corres-
ponderam numa proporção infinitesimal, que se reduz a nada. E talvez como as pegadas deixadas no pó à sua
passagem, que se desfazem com o sopro do furacão do deserto, assim os poucos rebentos que ainda vinga-
ram, regados pelo seu suor e sangue, secaram sob o ardor do mais abrasador fogo das paixões, mais feroz
que o tórrido calor tropical que envolve a mísera Nigrícia.
2746
Nós que, tendo feito parte daquelas expedições apostólicas, somos, pela graça de Deus, dos poucos sobre-
viventes de entre cem que nos lançámos àquela árdua empresa, depois de estudarmos atentamente a natureza,
os costumes e as condições sociais daquelas remotas tribos, vimos que a missão da África Central é para o
zelo apostólico como uma bem defendida fortaleza que não se pode expugnar por assalto, mas requer ser
tomada mediante um cerco. E, certamente, o mais poderoso assalto, várias vezes repetido por bem providas
expedições católicas, terminou sempre apenas no sacrifício dos intrépidos assaltantes. É necessário, portanto,
prepararmo-nos energicamente para a táctica de um assédio e procurando estabelecer posições bem sólidas
que sirvam de fortins e de aproximações necessárias para o efeito.
2747
Para que a continuidade de qualquer missão possa ser garantida, é preciso ter um centro firme, donde di-
mane incessantemente o espírito de vitalidade, que se estenda vigoroso por todo o seu organismo, assegure a
sua existência e ajude o seu ministério; um centro vital que forneça e possibilite permanentemente a recruta
anual, com a qual se alimentem as fileiras dos missionários continuamente dizimadas pela inclemência cli-
mática, as fadigas e o martírio.
2748
Este centro de vitalidade parece oportuno, em geral, nos institutos e seminários da Europa, em benefício
das missões da Ásia, América e Oceânia, uma vez que há entre a Europa e estas três partes do mundo certa
homogeneidade de índole e costumes, ou ao menos, entre uma e as outras, um poder de comunicar e uma
capacidade de receber de maneira permanente e estável as saudáveis impressões da vida que nos corpos da
sociedade humana costuma infundir o espírito do Evangelho. Porém, um tal centro benéfico, donde brote
esse espírito de vitalidade tão necessário para a conservação e a continuidade das missões estrangeiras, não
pode mostrar-se aqui na Europa, por via directa e imediata, oportuno e eficaz para a conversão dos negros.
Visto que a experiência demonstrou claramente que o missionário europeu não pode desenvolver o seu traba-
lho de redenção naquelas abrasadas regiões da África interior, funestas para a sua vida; que não pode supor-
tar a dureza das fadigas, a multiplicidade dos incómodos e a inclemência do clima. E a experiência mostrou
igualmente que o negro não pode receber na Europa um completo ensino católico, de modo que depois seja
capaz, por uma boa disposição física e anímica contínua, de promover na sua terra natal a propagação da fé;
porque, ou não pode viver na Europa, ou no seu regresso à África mostra-se inadequado para o apostolado,
devido aos quase co-naturais costumes adquiridos no centro da civilização, que se tornam estranhos e noci-
vos nas condições da vida africana.
2749
Nós, que muitas vezes naquelas regiões deletérias fomos atacados e consumidos por inexoráveis enfermi-
dades que nos levaram à beira do túmulo, somos testemunhas oculares dos tremendos estragos que fizeram
nos mais robustos missionários as fadigas, as incomodidades e o fatal clima africano. De tal sorte que os que
tinham sobrevivido à perigosa viagem do Nilo Branco, apenas ficavam idóneos para evangelizar os africanos
com a aprendizagem da língua de uma tribo, onde se tinha estabelecido uma estação católica, sucumbiam
amiúde a uma morte quase repentina, deixando sempre estéril o fruto da obra da conversão dos negros, os
quais, pelas sempre contínuas e repetidas baixas dos missionários, gemem ainda sob o domínio do mais de-
gradante feiticismo.
2750
Por outro lado, a Propaganda, que tem conhecimento de todas as instituições que empreenderam na Euro-
pa a educação de indivíduos de raça negra, pode confirmar a verdade da ineficácia e inoportunidade da cria-
ção de um clero indígena formado nas nossas terras e destinado a evangelizar o centro da África.
2751
Perante a história destes factos, evidenciados pela experiência, a S. C. da Propaganda Fide, profundamen-
te impressionada, via-se, com pesar, na dura necessidade de abandonar a missão da África Central, se não se
tornasse possível encontrar a maneira de lhe assegurar um melhor resultado na conversão dos negros.
2752
Porém, a desoladora ideia de ver suspensa, talvez por muitos séculos, a obra da Igreja em favor de tantos
milhões de almas que gemem ainda nas trevas e na sombra da morte, deve ferir profundamente e magoar o
coração de todo o devoto e fiel católico, inflamado do espírito da caridade de Jesus Cristo. Por isso, para
seguir o impulso desta força sobre-humana e para afastar para sempre do filantropo católico a desoladora
ideia de deixar envolvidas na infidelidade e na barbárie essas imensas e povoadas regiões, sem dúvida das
mais necessitadas e abandonadas do mundo, é preciso abandonar o caminho seguido até agora, mudar o anti-
go sistema e criar um novo plano que leve eficazmente ao desejado fim.
2753
Sobre um assunto tão importante, dissemo-nos a nós mesmos: «E não se poderia assegurar melhor a con-
quista das tribos da infeliz Nigrícia, situando a nossa base de operações lá onde o africano vive e não muda e
o europeu trabalha e não sucumbe? Não se poderia salvar a África com a África?» Sobre esta grande ideia se
fixou o nosso pensamento e a regeneração da África com a África parece-nos ser o único programa que se
deve seguir para realizar tão brilhante conquista. Por isso, em nossa pequenez, julgámos lícito sugerir humil-
demente um caminho que, ao segui-lo, permita alcançar com maior probabilidade a alta meta para a qual se
orientam sempre todos os pensamentos da nossa vida e pela qual estaremos contentes de derramar o nosso
sangue até à última gota.
2754
Nós atrevemo-nos apenas numa atitude reverente a levantar-nos desta nossa insignificância para discutir-
mos tão sublime e católico problema, que talvez tenha cansado a mente dos mais profundos pensadores. Mas
perdoar-se-nos-á se o ímpeto do coração, onde manifestamos sentir forte o grito de angústia que a todos nós
enviam aqueles infelizes filhos de Adão e irmãos nossos, tiver empurrado a mente para fora da linha da ver-
dade e da certeza. O plano, que concebemos no momento de mais calorosos suspiros por aquelas desventura-
das regiões, levado à sua realização prática, se não tem a vantagem de alcançar o objectivo com a rapidez
com que noutras missões os operários apostólicos colhem os frutos do seu suor, certamente tem uma indefec-
tível orientação para o mesmo; e, na sua plena realização, não pediria outra coisa senão encurtar os dias que
Deus, sentado no trono da sua eternidade, enumerou para o alcançar.
2755
Não somente os negros da África interior mas também os da costa e de todas as outras partes da grande
ilha, embora espalhados por milhares de tribos diferentes, estão marcados mais ou menos pela mesma índole,
hábitos, tendências e costumes, bastante bem conhecidos pelos que há muito se ocupam do seu bem; portan-
to, parece-nos que a caridade do Evangelho pode fornecer-lhes remédios e ajudas comuns, que permitam
comunicar eficazmente à grande família dos negros os preciosos benefícios da fé católica. Assim, nós consi-
deramos oportuno e quase diríamos necessário que entre as múltiplas ideias que se poderiam levar à prática
para a regeneração dos negros se escolha aquela que reunir em si uma absoluta unidade conceptual, a par de
uma geral simplicidade de aplicação. E tal nos parecia precisamente o plano que nós idealizámos para a con-
versão dos negros; plano que, embora amplo na sua extensão, e árduo na sua realização completa, nos pare-
cia contudo uno e simples na sua concepção e na sua aplicação.
2756
Este novo plano, por isso, não se limitaria somente aos antigos confins traçados para a missão da África
Central, que vimos fracassar pelas razões referidas, mas abrangeria toda a raça dos negros; e por isso desdo-
braria e desenvolveria a sua actividade em quase todas as partes da África habitada pela raça negra.
2757
Ora, se bem que a S. Sé Apostólica não tenha nunca conseguido implantar estavelmente a fé nas mais
vastas tribos da Nigrícia central, todavia irradiou a sua solicitude benéfica até às ilhas e costas que rodeiam a
grande península africana, onde fundou doze vicariatos apostólicos, nove prefeituras apostólicas e dez dioce-
ses, que florescem mais ou menos esplendidamente. Efectivamente, há:
2758
A setentrião: o vicariato apostólico do Egipto, confiado aos reverendos padres menores observantes, e o
da Tunísia, confiado aos reverendos padres menores capuchinhos; as duas prefeituras apostólicas do Alto
Egipto e de Trípoli, confiadas aos reverendos padres menores reformados, e a de Marrocos, confiada aos
reverendos padres menores observantes da província de S. Diego, de Espanha.
2759
A poente: os três vicariatos apostólicos de Senegâmbia, da Serra Leoa, e das Guinés, confiados aos reve-
rendos padres do Espírito Santo e do Sagdo. Coração de Maria, e o de Daomé, confiado ao Seminário das
Missões Africanas, de Lião; as prefeituras apostólicas do Senegal e do Congo, confiadas aos reverendos pa-
dres do Espírito Santo e do Sagrado Coração de Maria, e a de Ano Bom, Corisco e Fernando Pó, confiada
aos reverendos padres da Companhia de Jesus.
2760
A meio-dia: os dois vicariatos apostólicos dos distritos oriental e ocidental do cabo de Boa Esperança,
confiados aos missionários do Reino Unido, e o de Natal, confiado à congregação dos Oblatos de Maria San-
tíssima Imaculada, de Marselha.
2761
A oriente: o vicariato apostólico de Madagáscar, confiado aos reverendos padres da Companhia de Jesus;
a prefeitura apostólica de Zanguebar, confiada aos reverendos padres do Espírito Santo e do Sagrado Cora-
ção de Maria; a de Nossibé, St.a Maria e Mayotte, confiada aos reverendos padres da Companhia de Jesus e
a das ilhas Seychelles, confiada aos reverendos padres capuchinhos da província de Saboia.
2762
A nordeste: o vicariato apostólico da Abissínia, confiado aos reverendos padres da Congregação da Mis-
são, e o dos Gallas, confiado aos reverendos padres capuchinhos da província de França.
2763
Por outro lado, entre as dioceses florescem especialmente: a setentrião, a de Argel, e a oriente, a de Port
Louis, na ilha Maurícia, e a de St. Denis, na ilha Reunião, no oceano Índico. É portanto natural que, para
realizar o plano idealizado, se necessite recorrer à ajuda e cooperação destes vicariatos, prefeituras e dioceses
já estabelecidos à volta de África; os quais, vendo mais de perto a lastimosa miséria e a extrema necessidade
das imensas populações do interior, sobre as quais ainda não brilhou o luminosíssimo astro da fé, poderão
concorrer validamente com a sua autoridade, o seu conselho e a suas obras, para auxiliar e facilitar a realiza-
ção da grande empresa de regenerar as vastas e populosas tribos de toda a Nigrícia.
2764
O plano, portanto, que nós propomos é: a criação de outros tantos institutos de ambos os sexos, que deve-
riam rodear toda a África, criteriosamente situados em lugares oportunos, à menor distância possível das
regiões interiores da Nigrícia, dentro de zonas seguras e algo civilizadas, nas quais pudesse viver e trabalhar
tanto o europeu como o indígena africano.
2765
Estes institutos masculinos e femininos, cada um estabelecido e erigido segundo as normas das constitui-
ções canónicas, devem acolher rapazes e raparigas da raça negra, com o fim de os instruir na religião católica
e na civilização cristã, para criar com eles outros tantos corpos de ambos os sexos, destinados, cada um por
seu lado, a penetrar pouco a pouco e estender-se pelas regiões interiores da Nigrícia para aí implantar a fé e a
civilização recebidas.
2766
Para dirigir estes institutos seriam chamadas ordens religiosas e as instituições católicas masculinas e fe-
mininas, aprovadas pela S. Congregação de Propaganda Fide, com o beneplácito desta e de mútuo acordo
com os responsáveis e superiores gerais dessas ordens e instituições.
2767
Estes institutos seriam colocados sob a jurisdição dos vicariatos e prefeituras apostólicas já existentes na
costa de África ou dos que a Sagrada Congregação da Propaganda Fide decidisse fundar, segundo os pro-
gressos do novo Plano.
2768
O pessoal da direcção destes institutos orientaria os respectivos corpos de alunos negros, atendo-se às re-
gras e ao espírito da própria instituição, com adaptação à conveniência e às necessidades da África interior; e
teria como objectivo específico obter a manutenção e o bom funcionamento dos institutos de negros e negras,
mas sem deixar de promover e realizar todo o bem que puder aos países onde os institutos estão situados.
2769
A fim de formar corpos de missionários europeus para dirigirem, com base nas condições recém-
mencionadas, os institutos africanos e também para assumir novas missões entre os povos negros, fundar-se-
ão na Europa pequenos colégios para as missões africanas, com o intuito de abrir o caminho do apostolado
de África a todos os eclesiásticos seculares das nações católicas que fossem chamados por Deus a tão subli-
me e importante missão.
2770
Respeitando plenamente a liberdade e o sistema de cada ordem ou congregação religiosa masculina e fe-
minina de educar os indígenas segundo as ideias do próprio instituto e de formar segundo o seu talento reli-
giosos e religiosas, nós atrevemo-nos a expor submissamente a nossa opinião de que a formação que em
geral se deverá dar a todos os indivíduos de ambos os sexos pertencentes aos institutos que rodearem a Áfri-
ca consistirá em infundir na sua alma e fazer que se arreiguem nela o espírito de Jesus Cristo, a integridade
nos costumes, a firmeza na fé, as regras da moral cristã, o conhecimento do catecismo católico e os primeiros
rudimentos do saber humano de primeira necessidade. Para além disso, os elementos masculinos serão ins-
truídos na ciência prática da agricultura e numa ou mais artes de primeira necessidade; do mesmo modo,
cada mulher será instruída nos trabalhos domésticos de primeira necessidade. E isto a fim de que os primei-
ros se convertam em homens honrados e virtuosos, úteis e activos e as segundas cheguem a ser, por seu lado,
virtuosas e hábeis mães de família. Julgamos que esta activa aplicação ao trabalho, a que desejamos subme-
ter todos os membros dos institutos africanos, pode redundar grandemente no bem moral e espiritual dos
indivíduos de raça negra, muito inclinada à preguiça e à inacção.
2771
Quando os alunos de ambos os sexos tiverem completado a sua educação religiosa e civil, a direcção do
respectivo instituto favorecerá o mais possível cada indivíduo que sair da sua jurisdição, prestando-lhe ajuda
e conselho para que se encontre em condições de conservar os sãos princípios da religião e da moral que lhe
foram inculcados com a formação recebida.
2772
Cada um desses institutos que rodearem a grande península africana dará origem ao respectivo corpo
masculino e feminino, destinado a penetrar gradualmente nas regiões da Nigrícia central, a fim de iniciar e
estabelecer nesses lugares a obra salvífica do Catolicismo e criar aí estações que difundam a luz da religião e
a civilização.
2773
O corpo de jovens negros, formado por indivíduos considerados aptos para o grande fim, será formado:
1.o Por catequistas, aos quais se dará um conhecimento mais vasto das ciências sagradas.
2.o Por mestres, que se instruirão tanto quanto possível nas ciências de primeira necessidade adaptáveis às
terras do interior.
3.o Por artesãos, a quem se ministrará o ensino prático das artes necessárias e mais úteis nas regiões cen-
trais, para os formar como virtuosos e hábeis agricultores, médicos, sangradores, enfermeiros, farmacêuticos,
carpinteiros, alfaiates, pedreiros, sapateiros, etc.
2774
O corpo de jovens negras, integrado igualmente pelas que se mostrarem mais aptas para o grande fim, se-
rá formado:
1.o Por instrutoras, que serão formadas o melhor possível na religião e na moral católicas, a fim de que
difundam as suas regras e a sua prática na sociedade feminina africana, da qual, como entre nós, depende
absolutamente a regeneração da grande família dos negros.
2.o De mestras e mães de família, as quais deverão promover a instrução feminina, quanto a ler, escrever,
fazer contas, fiar, coser, tecer, cuidar dos doentes e exercer todos os trabalhos femininos mais úteis nos paí-
ses da Nigrícia central.
2775
Entrando estes grupos, pouco a pouco, nos diversos pontos do interior, por meio de cada um dos diferen-
tes institutos que rodearem a África, cada indivíduo, enquanto trabalhar em propagar a religião e a civiliza-
ção, para o que foi instruído no instituto, e em promover a agricultura nas terras virgens, de livre ocupação,
poderá abraçar o estado de vida para o qual se sentir mais inclinado.
2776
Da classe dos catequistas formada pelo grupo dos jovens negros criar-se-á uma secção com os indivíduos
mais distintos pela sua piedade e saber, nos quais se descubra uma provável disposição para o estado ecle-
siástico; e esta será destinada ao exercício do ministério divino. Na preparação desta secção privilegiada,
excluir-se-á a multiplicidade de matérias a que estão sujeitos os alunos dos seminários da Europa e limitar-
se-á o ensino às disciplinas teológicas e científicas de primeira necessidade, suficientes para as necessidades
e exigências daqueles países. E, tendo em conta o precoce desenvolvimento físico e intelectual do indígena
africano, não quereríamos que este ensino durasse os doze e mais anos estabelecidos para a Europa, mas
desejaríamos que ficasse limitado a uma duração de seis a oito anos, conforme se julgar oportuno. Contudo,
a especial condição da inconstância e indolência que marcam a índole e o carácter da raça negra deverá im-
por a mais rigorosa cautela, ao determinar, para os aspirantes ao sacerdócio, a época da sua promoção às
ordens sagradas. Nós estamos plenamente convencidos de que é absolutamente necessário estabelecer que
não as recebam senão após bastantes anos de provada firmeza nos princípios aprendidos, e na circunstância
de um severo e inatacável celibato, vivido nas estações já existentes no interior da Nigrícia. Julgamos neces-
sária a mesma precaução para formar, de indígenas de ambos os sexos, religiosos de qualquer ordem.
2777
Do grupo das jovens negras, de entre as que não se sentirem inclinadas ao estado conjugal, criar-se-á, do
mesmo modo, a secção das Virgens da Caridade, formada pelas que se distinguirem pela piedade e conheci-
mento prático do catecismo, das línguas e dos trabalhos femininos. Esta secção privilegiada constituirá a
mais selecta falange da família feminina, destinada a dirigir as escolas de meninas, realizar as funções mais
importantes da caridade cristã e exercer o ministério da mulher católica entre as tribos da Nigrícia.
2778
Deste modo, graças ao importantíssimo ministério do clero indígena e das Virgens da Caridade, secunda-
do pela acção benéfica dos catequistas, mestres, artesãos, e das instrutoras, mestras, e mães de família, for-
mar-se-ão pouco a pouco numerosas famílias católicas e surgirão florescentes sociedades cristãs; e a nossa
santa religião, estendendo o seu saudável influxo sobre a família africana, alargará, pouco a pouco, o seu
benéfico império na vasta extensão das inexploradas regiões da Nigrícia inteira.
2779
Tendo a experiência demonstrado que só a continuada permanência nas terras do interior – e não uma es-
tada temporária – é perigosa e até fatal para o europeu, as fundações de missões e de cristandades que, com
o andar do tempo, se virão a estabelecer nos países da África interior, com prévia autorização dos respectivos
vigários ou prefeitos apostólicos, serão iniciadas e postas em andamento pessoalmente por missionários eu-
ropeus. Estes, anualmente, ou, quando muito, dentro do prazo de dois anos, deverão revezar-se em turnos no
governo imediato das diversas missões do centro da África, até que a experiência tenha demonstrado que se
podem confiar com segurança a sacerdotes e catequistas indígenas de provada idoneidade a direcção perma-
nente das estações e cristandades já iniciadas e postas em andamento pelos missionários europeus.
2780
Por outro lado, as estatísticas das missões africanas vieram a evidenciar que a mulher europeia, dada a
vantajosa capacidade de adaptação do seu físico, da índole da sua moral e dos hábitos da vida doméstica e
social, resiste bastante mais que o missionário europeu à inclemência do clima africano. Por isso, em con-
formidade com o critério dos respectivos vigários ou prefeitos apostólicos, poderão estabelecer-se institutos
religiosos femininos da Europa nos países do interior da África menos letais para o europeu, a fim de prestar
com eficácia os maravilhosos e importantes serviços da mulher católica em favor da regeneração da grande
família dos negros.
2781
Como a índole e o carácter dessa raça é muito variável e inconstante, consideramos oportuno e necessário
que a S. Congregação da Propaganda Fide autorize os vigários e prefeitos apostólicos de legítima jurisdição a
decretar frequentes visitas apostólicas às missões e cristandades estabelecidas no interior, com vistas a corri-
gir, fortalecer e melhorar as condições do Catolicismo naquelas perigosas terras, onde amiúde um egoísmo e
fanático furor do Islamismo corrompem e desfazem a obra do sacerdócio cristão; e onde o teor de vida, o
clima e outras especiais circunstâncias contribuem para enfraquecer, a par do corpo, o espírito, e a afrouxar a
disciplina eclesiástica, com grave perigo da fé. Com essa finalidade enviariam missionários europeus idó-
neos, que sem risco absoluto da vida, pela razão antes exposta, poderiam levar a cabo com grande proveito a
sua importante missão.
2782
A fim de cultivar as inteligências que se poderiam revelar mais destacadas na secção dos missionários in-
dígenas, para os formar como hábeis e iluminados responsáveis das missões e das cristandades do interior da
Nigrícia, a sociedade destinada a realizar e dirigir o novo plano, vistos os progressos da grande obra, poderá
fundar pequenas universidades teológicas e científicas nos pontos mais importantes da periferia da grande
ilha africana, que seriam, a nosso juízo: Argel, o Grande Cairo, St. Denis, na ilha Reunião, no oceano Índico;
e uma das cidades mais importantes das costas ocidentais da África, no oceano Atlântico.
2783
Nestes quatro centros universitários, como também noutros pontos de grande importância das ilhas e cos-
tas que circundam a África, poder-se-iam fundar com o passar do tempo pequenas oficinas de aperfeiçoa-
mento para os jovens negros da classe dos artesãos considerados mais aptos para receber uma mais elevada
instrução, a fim de que, com a introdução de artes que melhorassem as condições materiais das vastas tribos
da Nigrícia, os missionários encontrassem facilitada a sua tarefa para implantar lá mais arreigada e estavel-
mente a fé.
2784
Para pôr em prática e dirigir o novo plano, constituir-se-á uma sociedade formada de pessoas inteligentes,
magnânimas e muito activas, a qual tomará o nome de SOCIEDADE DOS SAGRADOS CORAÇÕES DE
JESUS E DE MARIA PARA A REGENERAÇÃO DA NIGRÍCIA, sob o patrocínio da VIRGEM IMACU-
LADA, DE SÃO JOSÉ ESPOSO DE MARIA E DOS PRÍNCIPES DOS APÓSTOLOS.
2785
A missão específica desta sociedade será desdobrar e pôr em funcionamento todas as forças do Catoli-
cismo em benefício da África. Pelo que à sociedade competiria:
1. Pôr-se em comunicação com a S. Congregação da Propaganda Fide, para tratar sobre cada uma das
empresas mais importantes da nova sociedade.
2. Entrar em contacto com os centros gerais das ordens e congregações masculinas e femininas, a fim de
combinar com elas sobre o pessoal necessário para a fundação dos institutos africanos ou para a erecção de
novos vicariatos ou prefeituras apostólicas nas regiões da África.
3. Tratar com a pia obra da Propagação da Fé e com as associações que têm a mesma finalidade, a fim de
assegurar os meios pecuniários e materiais às missões e institutos que se fundarem em terras africanas, com a
prévia autorização da S. C. da Propaganda Fide.
4. Procurar os meios pecuniários e materiais para a criação e manutenção das obras preparatórias da Eu-
ropa, destinadas a formar pessoal para as missões da África.
2786
5. Fundar, pouco a pouco, pequenos colégios para as missões africanas nos lugares mais convenientes das
diversas nações católicas, com o objectivo de abrir o caminho do apostolado da África a todos os membros
do clero secular, chamados por Deus a tão elevado ministério; e estabelecer, pouco a pouco, centros de artes
práticas para instruir gente idónea para introduzir nos institutos africanos o ensino de todos os ofícios neces-
sários de utilidade pública.
2787
6. Quando a sociedade puder dispor do pessoal necessário para a fundação de um instituto em África, e se
tiver assegurado que as pias sociedades concederão a assistência específica para o mesmo, com prévio acor-
do com o em.o card.-prefeito geral da S. Congregação da Propaganda Fide, dirigir-se-á ao vigário ou prefeito
apostólico da missão em cujo território e sob cuja jurisdição pretende estabelecer o dito instituto, com o fim
de obter a necessária autorização.
7. A sociedade pôr-se-á em comunicação directa com os vigários ou prefeitos apostólicos de todas as
missões africanas, para se informar quanto possível, sobre as mesmas quanto à sua geografia, aos seus cos-
tumes e história dos povos que as habitam e sobre o trabalho apostólico nelas realizado, a fim de estar em
condições de preparar o pessoal mais adequado para promover com a maior eficácia e na máxima extensão o
desenvolvimento e a acção do catolicismo nas tribos da África Central.
2788
8. Finalmente, estudando e empregando os meios mais eficazes para a realização do novo plano, a socie-
dade suscitará e porá em funcionamento todos os elementos do Catolicismo que actualmente faltam para a
regeneração dos negros e infundirá maior vida e vigor nos que já existem. E desdobrando de tal modo todas
as forças do catolicismo em favor da África, a sua acção será fecunda em novas ideias, novas luzes, novas
instituições, novos planos capazes de desenvolver mais ampla e eficazmente o ministério evangélico nas
vastas e inexploradas regiões de toda a Nigrícia.
2789
Tal é o nosso plano que, como assinalámos, parece mais um plano de operações para o assédio da fortale-
za até agora inexpugnável da Nigrícia. Tendo sido até agora impossível entrar lá por assalto em repetidas
expedições apostólicas empreendidas, as quais terminaram sempre só com o sacrifício dos intrépidos assal-
tantes, adoptámos a táctica do assédio; e os nossos institutos, criados nos confins da grande península africa-
na, vêm a ser como os fortins e aproximações necessários para tal fim.
2790
Sorri-nos na alma a mais doce esperança de que o novo Plano para a Regeneração da Nigrícia, que foi tão
agradável ao coração do nosso Santíssimo Padre, o imortal Pontífice Pio IX, e que foi acolhido muito favo-
ravelmente e com entusiasmo por muitos insignes prelados e bispos da Igreja Católica e pelas mais destaca-
das e sublimes inteligências do âmbito eclesiástico e civil, obterá a cooperação de todas as santas instituições
que até agora se ocuparam ou trataram de promover o bem espiritual da raça negra. Temos a esperança de
que receba a protecção e a ajuda dessas pias sociedades que fornecem os meios económicos e materiais às
obras instituídas para a propagação da fé, e de que encontre um eco de aprovação e um impulso favorável e
de ajuda no coração dos católicos de todo o mundo, identificados e fundidos com a sobre-humana caridade
que abrange a totalidade do universo e que o divino Salvador veio trazer à Terra.
2791
Esperamos, sim, esperamos que a Santa Igreja, o eco da eterna Palavra do Filho de Deus através dos sécu-
los, destinada a reinar sobre todas as nações do mundo, estenda o seu manto glorioso sobre tão considerável
parte da sua herdade e que os seus generosos filhos acorram solícitos de todos os cantos da Terra a prestar a
sua ajuda para cristianizar e civilizar as errantes tribos africanas, abrasadas pelos raios do Sol ardente, porém,
ainda não iluminadas, em quarenta séculos, nem sequer por um raio da verdadeira luz. Os apóstolos que par-
tirem para essa grande conquista não trarão para a Europa os despojos dos vencidos, mas levarão a estes o
tesouro da fé católica e da civilização europeia; não subjugarão aqueles povos a modo de bélicos conquista-
dores, mas, à imitação do Divino Pastor, tomarão, dos espinhos em que se encontravam e da opressão em
que jaziam, aquelas míseras ovelhas sobre os seus ombros para as levar em triunfo às livres e férteis pasta-
gens da Igreja. E assim os conquistados, não vencidos pela força, mas vencedores de si mesmos e da sua
natureza, serão conquistadores, mediante o baptismo, da verdadeira religião e do grande benefício da vida
civilizada.

P.e Daniel Comboni m. a.

[Reproduzimos do PLANO o primeiro manuscrito de 1864 e esta última edição como documentação das
mudanças verificadas até esta última.]

N.o 423 (396) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


«Annales de la Propagation de la Foi»
v. XLIV (1872), pp. 21-25, Lione

1871

N.o 424 (397) - EXTRACTO


DE UMA MEMÓRIA DE D. COMBONI
«Mensageiro do Sagrado Coração» 1871, v. II, pp. 33-39

1871
1872

N.o 425 (398) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/91

Início de 1872
.........................
[falta desde o começo até:]

2792
His positis, eu seria de opinião que V. E. desenvolvesse as seguintes ideias em resposta ao P. e Calisto,
remetendo-o para a Propaganda no caso de querer realizar imediatamente os seus projectos africanos.
2793
«É-me muito grato ver que o senhor se mantém firme na ideia de pressionar os trinitários franceses a que
se dediquem ao apostolado dos pobres negros; eu desejaria poder apoiá-lo validamente com todas as minhas
forças em tão santos propósitos. Agora, porém, é-me impossível fazê-lo pelos seguintes motivos:
1.o Dadas as consequências da guerra, nem a Propaganda de Lião e de Paris, nem a pequena Sociedade de
Colónia dão já aos meus institutos do Cairo as ajudas de antes; por isso, tive que enviar P.e Comboni a diver-
sas cidades à procura de esmolas para ir suprindo e só no meio de duras penas os institutos seguem em fren-
te.
2.o Depois da experiência feita com os camilianos, que estavam munidos de breve pontifício, já não estou
na disposição de aceitar regulares no meu instituto do Egipto sem o pleno acordo dos respectivos gerais,
porque isso poderia acarretar-me sérios dissabores com os mesmos e até com a Propaganda que quer tudo
conforme as regras.
3.o Por outro lado, se os meus institutos do Egipto puderam fundar-se, foi devido à especial autorização
do delegado apostólico do Egipto; e agora não seria oportuno pedir-lhe autorização para aceitar os trinitários
entre os meus, sem primeiro ter consolidado bem os meus institutos, para o que é necessário que cesse a
tempestade de tantos transtornos, se faça calma e se normalizem os piedosos donativos das sociedades ben-
feitoras.
2794
Entenda-se que isto é por agora. Depois, quando estivermos um pouco calmos e tivermos obtido da Santa
Sé uma vasta missão para os meus Institutos com jurisdição própria e imediata, o que não tardará muito a
suceder, então veremos como pôr-nos de acordo sobre o modo mais legal e oportuno de satisfazer os seus
santos desejos. Entretanto, o senhor terá tempo para arranjar bons religiosos na França, tão fecunda em voca-
ções para as obras do Céu; e tendo sucesso em tão importante assunto, já verá como os seus superiores de
Roma se resolvem a favorecer os seus magnânimos projectos.
2795
Junto-lhe uma cópia da resposta às suas cinco perguntas, a qual me foi enviada por P. e Comboni, que lhe
envia as suas mais cordiais saudações».
1.o Se é do agrado de mons. o bispo de Verona, responsável da obra, receber os trinitários entre os nossos
no Egipto, também o será do meu; se tal não agradar a S. E. rev.ma, nec mihi hoc placebit.
2.o Opino que é melhor que os trinitários vistam no Egipto como nós: o hábito dessa obra dedicada à re-
denção dos cativos é demasiado conhecido e poderia ferir a susceptibilidade dos nossos inimigos, produzin-
do com isso funestas consequências à nossa obra.
3.o Aos franceses convém-lhes sair de Marselha. Quem não tem o aval da Propaganda e da embaixada
austríaca, em Trieste recebe apenas um mesquinho desconto, que não compensa os gastos realizados na via-
gem desde a França até Trieste ou Bríndisi.
4.o O concílio não fez nada pela África, porque foi suspenso ante tempus; porém, o Papa aceitou o Postu-
latum pro Nigris Africae Centralis, permitindo que se tratasse sobre ele na secção de Missionibus Apostoli-
cis.
5.o É preciso que os trinitários estejam munidos dos papéis expedidos pelos seus superiores de Roma,
tendo-se estes posto previamente de acordo com a Propaganda. Pedindo-lhe a bênção e beijando-lhe o sagra-
do anel, declaro-me nos Sagdos. Corações de J. e de M.
Seu hum. e indig.mo filho
P.e Daniel Comboni m. a.

N.o 426 (399) - ÀS IRMÃS GIRELLI


AAB

V. J. M. J.
Seminário de Verona, Janeiro de 1872
Gentilíssimas senhoras,

2796
O ecónomo, na sua bondade e sabedoria (tendo bom coração e cabeça erguida), inspirou essa excelente
religiosa de Pádua de que lhes falava a consagrar-se à obra da Nigrícia; pelo que fui buscá-la e instalei-a,
junto com outra postulante, na casa de Montório Veronese, perto de Verona. Por isso, seria conveniente que
viesse imediatamente a boa postulante que vi em Bréscia.
2797
Dentro de pouco irei a Bréscia e falaremos longamente das nossas coisas; entretanto, recordem-se do que
lhes disse de viva voz. Numa palavra, neste caso é bem que ambas, levantados os olhos ao Céu num ímpeto
daquele ardor que impele à acção no qual a alma se exalta e, ao mesmo tempo, se humilha, repartam entre si
a Europa e a África como um campo, ficando uma com a Obra de St. a Ângela Merici, a outra com a infeliz
Nigrícia.
Ocupadíssimo como estou, desejo que este ano lhes seja felicíssimo e me mandem imediatamente a boa
postulante que vi em vossa casa. O Senhor cumule de bênçãos os vossos corações. Tais são os votos do

Vosso devot.mo e af.mo


P.e Daniel Comboni

N.o 427 (N. 1205) - A PADRE LOURENÇO NEGRONI


ACR

Verona, 13 de Janeiro de 1872

Dedica-lhe o seu Antiphonarium Romanum.

N.o 428 (400) - REGRAS E ORGANIZAÇÃO


DO INSTITUTO PARA AS MISSÕES DA NIGRÍCIA
AP SOCG, v.999, ff. 513-521

Princípio de Fevereiro de 1872

REGRAS E ORGANIZAÇÕES
DO INSTITUTO PARA AS MISSÕES DA NIGRÍCIA DE VERONA

CONSELHO CENTRAL DA OBRA


PARA A REGENERAÇÃO DA NIGRÍCIA

2798
1.o Presidente geral: S. E. rev.ma mons. Luís Marquês de Canossa, bispo de Verona.
2.o Vice-presidente: Il.mo e rev.mo mons. Luís Perbellini, cónego arcipreste da catedral de Verona.
3.o Director-geral: P.e Daniel Comboni, superior dos institutos de negros do Egipto.
4.o Vice-director-geral: P.e António Squaranti, reitor do Instituto das Missões para a Nigrícia de Verona.
5.o Secretário-geral: P.e Tomás Toffaloni, director da Propagação da Fé em Verona.
CONSELHEIROS

6.o O ilustríssimo e rev.mo mons. Estêvão Crossatti, camareiro-secretário de Sua Santidade e vigário-
geral de Verona.
7.o O ilustríssimo e rev.mo mons. dr. José Codognola, cónego penitenciário da catedral.
8.o Rev.mo P.e Pedro Dorigotti, reitor do Seminário Episcopal de Verona.
9.o S. E. ilma. o marquês Octávio de Canossa.
10.o S. E. ilma. o marquês Francisco Fumanelli.
11.o O marquês José Fumanelli
12.o O m. rev.do P.e Agostinho Mosconi, director da Igreja de Santa Clara, de Verona.

_______________

O INSTITUTO DAS MISSÕES PARA A NIGRÍCIA


DE VERONA

CAPÍTULO I
Objectivos e natureza do instituto

2799
O objectivo último do Instituto das Missões para a Nigrícia é especialmente a conversão à fé católica dos
pobres negros da África Central, as gentes mais infelizes e abandonadas do universo, que gemem nas trevas
mais profundas do paganismo.
2800
O objectivo imediato é, por outro lado, preparar e enviar àquelas regiões homens apostólicos que, com a
caridade, o ensino e os outros meios do ministério apostólico, se consagrem à regeneração dos negros da
África Central, sem excluir nenhuma outra pessoa que porventura lhes aparecesse naquelas terras.
2801
Este Instituto, que se declara no dever de estar sempre sujeito e submetido em primeiro lugar ao Vigário
de J. C., o Romano Pontífice, e à S. C. da Propaganda Fide, é um seminário dedicado a acolher, educar e
aperfeiçoar no ministério apostólico os homens chamados por Deus a esta árdua missão. É presidido e go-
vernado pelo il.mo e rev.mo bispo de Verona, com o título de presidente geral e por um conselho composto
por alguns eclesiásticos e leigos escolhidos por ele entre os mais distintos da sua diocese (denominado Con-
selho Central da Obra para a Regeneração da Nigrícia), os quais se reúnem sob a sua presidência para tratar
dos interesses espirituais do Instituto.
2802
A direcção interna do instituto está a cargo das seguintes pessoas, nomeadas pelo bispo: um superior com
o título de reitor, escolhido habitualmente entre os missionários veteranos, um mestre de noviços e director
espiritual; um ecónomo para a administração dos bens temporais e um professor de línguas estrangeiras.
Estas três últimas pessoas formam o conselho do reitor, o qual é obrigado a consultá-los nos assuntos mais
relevantes.
Uma vez que o Instituto fica contíguo ao Seminário Episcopal, utiliza os serviços dos professores do
mesmo para o ensino teológico e científico.

CAPÍTULO II
Meios para alcançar os fins do instituto

2803
Os meios para alcançar os fins do insto. são de duas espécies: formais e materiais. Primeiro falaremos dos
meios formais, que são o pessoal a enviar para a missão.
Os aspirantes a membros do instituto podem ser eclesiásticos, isto é, clérigos e sacerdotes, ou somente
leigos; mas tanto uns como os outros provenientes do estado secular.

Artigo primeiro

Qualidades dos aspirantes ao ingresso no instituto


2804
As qualidades que se exigem aos aspirantes ao ingresso no Insto. das Missões para a Nigrícia são as se-
guintes:
1.o Todo o aspirante deve ser dotado de saudável constituição física, de critério correcto e ao menos de
capacidade intelectual normal.
2.o Deve ter cumprido os dezasseis anos e não ter ultrapassado os trinta e cinco.
3.o Se é clérigo ou sacerdote, não pode ser admitido sem consentimento do seu ordinário e, se é menor de
idade, sem a autorização do seu pai ou de quem faz as suas vezes.
4.o Deve gozar de excelente fama, tanto pela piedade e integridade de costumes como compostura de ca-
rácter e contenção no seu agir.
5.º Deve ter uma firme vontade de se consagrar a Deus para a regeneração da Nigrícia nos ministérios que
por obediência lhe atribuir e isso até à morte.
2805
O reitor do instituto é obrigado a informar-se escrupulosamente sobre as qualidades do aspirante e, quan-
do estas existirem, deve propor a aceitação ao il.mo e rev.mo mons. o bispo, de quem depende unicamente a
admissão.

N. B. Quanto à idade e à possibilidade de o aspirante provir também de um estado regular (desvinculado


devidamente da sua ordem ou congregação), no caso de concorrerem qualidades e circunstâncias extraordi-
nárias, o bispo, como presidente geral, poderá conceder à oportuna dispensa.

Artigo segundo

Normas que o reitor seguirá na admissão dos aspirantes

2806
Quando se trata de admitir no instituto um aspirante, o reitor terá sempre presente a glória de Deus e o
bem das almas, sem atender nem a recomendações, nem a considerações de posição, nem a relações do aspi-
rante. E como a prosperidade da missão depende da boa escolha dos operários apostólicos, utilizará a máxi-
ma diligência ao examinar cada aspirante e ao ver se possui as qualidades referidas no artigo anterior.
2807
Em seguida, após ter-se encomendado fervorosamente a Deus e de o ter feito rezar para ter também a ne-
cessária clarividência na escolha, explicará ao aspirante a árdua e sublime empresa a que pretende unir-se, as
fadigas e incómodos a que se deverá submeter, o risco a que estará frequentemente exposto de perder a vida,
o total isolamento em que não raramente se encontrará, e igualmente os perigos a que, sem uma corajosa
virtude e constante e irrepreensível hábito de castidade, estaria exposta a sua alma devido aos costumes da-
queles povos.
2808
Deve, além disso, advertir o aspirante que cuide bem de se deixar guiar na sua pretensão por algum fim
secundário, como a glória mundana, a curiosidade de conhecer novas terras, etc., fazendo-lhe saber que nada
levará a cabo na sua missão, se não estiver disposto a ocupar o último lugar; que muitas vezes lhe caberá
trabalhar, afadigar-se e suar, sem ninguém, a não ser Deus, saber o que ele faz e sem que disso fique lem-
brança alguma; e que, além disso, em certas alturas, por causa do terreno ingrato em que trabalha, não encon-
trará nos negros, sempre receosos e justamente desconfiados dos estrangeiros, a mínima correspondência,
pelo que ficará tão abatido e num tal isolamento, que é tentado a abandonar a empresa. Em contrapartida, se
se consagrar à missão unicamente por Deus, Ele confortá-lo-á intimamente, tornando-lhe ligeira toda a fadi-
ga, doce toda a pena, enfrentando facilmente todo o perigo.
2809
Em seguida, o reitor deverá informar-se com o maior cuidado sobre o aspirante e assegurar-se de que está
munido de todas as qualidades requeridas pelo Instituto.
Deverá também consultar sobre o assunto os membros do seu conselho e outros companheiros inteligen-
tes e perguntar-lhes se, tudo ponderado, julgam em consciência que o postulante deve ser admitido.
Se este fosse um jovem com boa parte dos estudos ainda por fazer, dever-se-á adverti-lo de que não tente
ingressar no Instituto com o fim de ter meios de prosseguir os estudos de uma carreira, quer esta seja secular,
regular ou simplesmente eclesiástica, sem querer depois consagrar-se à missão, porque em tal caso estaria
obrigado a reembolsar o Instituto do gasto suportado contra a sua finalidade.
No caso de tudo estar em ordem, será dever do reitor informar de tudo o presidente geral, para que, se lhe
agradar, dê a autorização de admissão.

Artigo terceiro

Educação dos candidatos do instituto

2810
Os alunos do Insto. no primeiro mês do seu ingresso fazem dez dias de exercícios espirituais e uma con-
fissão geral com o confessor que o superior designar. Depois disto, entram no noviciado, que dura dois anos,
os quais serão dedicados a formar o espírito dos candidatos, habituando-os à oração, à mortificação, ao reco-
lhimento e àquele espírito de renúncia à própria vontade que os dispõe a realizar qualquer sacrifício, o que é
essencialíssimo ao missionário da Nigrícia.
2811
Quanto ao método de educar e aperfeiçoar os noviços, especialmente no espírito, o mestre ater-se-á em
geral às regras observadas no noviciado da Companhia de Jesus.
Terminado satisfatoriamente o noviciado e perseverando na vocação, cada um dos candidatos faz perante
o bispo a profissão de fé e pronuncia o voto de obediência a ele e aos seus sucessores e representantes, tanto
em Verona como na África. Este voto deve renovar-se bienalmente na casa onde se encontrarem.
2812
Feito o voto de obediência, os clérigos continuam os seus estudos, assistindo às aulas no Seminário Epis-
copal e os sacerdotes, quando não necessitarem de estudos ulteriores, serão enviados à casa filial do Egipto,
para onde irão igualmente os clérigos, uma vez terminados os estudos teológicos.
N. B. No caso de vocação de um aspirante que apresente características fora do comum, quer seja pela
provada virtude quer pelo exercício do ministério sacerdotal, em tais casos extraordinários o bispo, ouvido o
parecer do Conselho Geral da Obra para a Regeneração da Nigrícia, poderá dispensar de um tempo conside-
rável de Noviciado; de modo que, ao fim de alguns meses de prova, o indivíduo em questão poderá ser envi-
ado para a casa filial do Egipto.

2813
Artigo quarto

Horário quotidiano dos clérigos e alunos


que terminaram o noviciado

Manhã
5.00: Elevação da mente a Deus, sinal da cruz e levantar. Depois, faz-se a cama e faz-se a limpeza do
quarto e a higiene pessoal, sempre em silêncio.
5.30: Na capela, breves orações matutinas, o Angelus Domini, o salmo Laudate Deum omnes gentes. De-
pois disso, no próprio quarto, meditação sobre o tema proposto na noite anterior. Depois, reflexão sobre a
meditação.
6.45: Missa. Em seguida, retiro no quarto até ao pequeno-almoço. Quem comungar deve ficar um quarto
de hora na capela, após a missa. Os sacerdotes, terminada a reflexão sobre a meditação, celebrarão pela or-
dem, no lugar e no tempo que o reitor estabelecer, procurando cumprir este dever com o máximo recolhi-
mento e devoção, para o que terão um quarto de hora de preparação antes da missa e um quarto de hora de
acção de graças depois dela. Depois disso irão tomar o pequeno-almoço.
7.30: Pequeno-almoço para os estudantes, os leigos e os noviços. Depois, recreio e tempo livre.
8.00: Os estudantes aplicam-se ao estudo para depois, às nove, passar às respectivas aulas no Seminário
Episcopal até às onze e meia. Os noviços, por seu lado, dedicar-se-ão às tarefas que, segundo as respectivas
condições, lhes forem atribuídas pelo reitor ou pelo mestre de noviços, o qual, ao mantê-los ocupados todo o
dia, seguirá o método da Companhia de Jesus.
Os sacerdotes, durante todo este tempo, até às onze e meia, dedicam-se ao estudo, especialmente de lín-
guas, após terem celebrado a S. Missa, tomado o pequeno almoço, tido um pouco de recreio e rezado as ho-
ras canónicas.
11.30: Estudantes, noviços e sacerdotes têm um quarto de hora de recreio.
11.45: Exame de consciência geral e particular no próprio quarto.
12.00: Na capela, o Angelus. Depois, almoço, com leitura de uma passagem do Novo Testamento, de vi-
das de mártires e santos e dos mais famosos missionários, dos Anais da Propagação da Fé e similares, con-
forme a escolha do reitor. Posteriormente, visita ao Ss.mo Sacramento e recreio.

Tarde
13.45: No Inverno, estudo (no Verão, uma hora de sesta ou descanso) até ao momento das aulas para os
estudantes. Logo após as aulas, passeio. Em seguida, visita ao Ss.mo Sacramento na capela, leitura espiritual
e terço. Após isso, estudo até ao jantar.
No Verão, a visita e a leitura espiritual fazem-se na capela após a sesta ou descanso a seguir ao almoço e,
depois, há estudo até à hora de aulas.
Os sacerdotes, por seu lado, utilizam do seguinte modo o tempo de aulas: uma hora de estudo, a que se
segue outra de conferência, na qual dão conta ao reitor das coisas estudadas.
20.00: Jantar, visita ao Ss.mo Sacramento na capela, e depois recreio até às vinte e uma.
21.00: Na capela, exame geral e particular e proposta dos pontos de meditação para o dia seguinte. De-
pois, ida para o quarto.
21.45: Hora de dormir.

2814
Quanto ao horário dos domingos, festas e férias, o reitor, de acordo com o espírito e esquema precedente
e seguindo o critério do bispo, fará as modificações que forem adequadas às circunstâncias.
Além de dedicar a máxima vigilância para que todos pratiquem pontualmente e com verdadeiro espírito
as actividades prescritas, o reitor procurará que todos os domingos o mestre de noviços faça um sermão a
estes e aos membros do Instituto, no qual os instrua sobre os deveres do novo estado por eles escolhido e
sobre a perfeição a que devem tender com todo o esforço.
Deve animá-los especialmente a morrer totalmente para si mesmos e a adquirir uma profunda humildade,
fundamento de todas as virtudes; uma ardente caridade disposta a qualquer sacrifício pela salvação das almas
e uma obediência pronta e cega, aceitando ser governados pelo toque da campainha e pelas indicações de
qualquer superior como se fossem a voz de Deus, pelo que farão com alegria tudo o lhes for mandado e esta-
rão sempre contentes até no último lugar, na certeza de fazer sempre a vontade de Deus. Exporá, além disso,
de vez em quando, a natureza especial e a condição das árduas missões da Nigrícia e a necessidade de que
eles estejam dispostos a viver e a morrer sem ver os frutos das suas fadigas apostólicas, contentes de traba-
lhar nos alicerces de um edifício que só os vindouros verão erguer-se do solo. Procurará sobretudo habituá-
los a morrer para si mesmos e a não trabalhar a não ser para Deus e a obter satisfação apenas d’Ele.
2815
Para além das mencionadas ocupações, os alunos terão cada ano dez dias de exercícios espirituais, segun-
do o método de S. Inácio e um dia de retiro cada mês; e frequentarão, ao menos uma vez por semana, o sa-
cramento da Penitência com o confessor ordinário do Insto., excepto no tempo dos santos exercícios e no
tríduo de renovação do voto de obediência, altura em que se designará um confessor extraordinário. Os alu-
nos fazem também as novenas do Natal, da Epifania, do Sagdo. Coração de Jesus, do Sagdo. Coração de
Maria, da Imaculada Conceição, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e de S. Francisco Xavier, bem como os
tríduos dos santos protectores e, enfim, os meses de Maio dedicado à Virgem Maria e de Março a S. José, a
via crucis todas as sextas-feiras e outras devoções segundo o parecer do reitor.
2816
Quanto à educação dos irmãos leigos, destinados a serem catequistas e mestres de artes e ofícios e a aju-
dar os missionários em tudo o que for preciso, segue-se em tudo as normas prescritas para a educação dos
irmãos leigos da Companhia de Jesus.

Artigo quinto

Casa filial do Egipto


(veja-se a informação de 15 de Abril de 1870 à S. C.)

2817
O objectivo do insto. do Cairo é o seguinte:
1.o Os missionários provenientes do insto. de Verona exercem os primeiros ministérios do apostolado es-
pecialmente em prol dos negros residentes no Egipto e, com a ajuda de Deus, aprendem também a ser na
prática verdadeiros missionários.
2.o No instituto forma-se um clero indígena, bem como catequistas e mestres de artes e ofícios destinados
a converter-se depois em apóstolos da fé e da civilização para a gente da sua terra.
3.o Os missionários e irmãos coadjutores provenientes de Verona aclimatam-se no instituto, onde apren-
dem as línguas das tribos do interior, bem como os costumes orientais, etc.
4.o No insto., os missionários preparam-se para os ministérios e serviços de caridade necessários para
aquela missão que a S. C. de Propaganda atribuir no interior ao Instituto de Verona.
5.o A casa serve, além disso, para nela se estabelecerem os missionários alquebrados pelas fadigas do
centro da África.
2818
No instituto, os missionários provenientes de Verona são submetidos a uma segunda prova ou noviciado,
para verificarem a sua vocação para as missões do interior e de amadurecerem melhor as virtudes apostóli-
cas, que são necessárias em grau elevado para essa difícil e laboriosa empresa.
2819
Esta casa é governada por um superior, do qual dependem de forma imediata todos os missionários e as
casas femininas que colaboram na missão. Além disso, é presidida por um reitor, que substitui o superior na
sua ausência, tem a administração da casa e das esmolas mandadas para a ajuda da missão, sempre sob a
dependência do superior.
2820
Quando a S. C. da Propaganda tiver atribuído ao nosso instituto uma missão específica na África Central,
o superior da casa do Egipto será proposto por mons. o bispo de Verona à S. C. como chefe de toda a mis-
são. Uma vez eleito para esse cargo, ele tem a direcção de toda a obra e dele depende a escolha das pessoas
que há que mandar para um lugar ou para outro e determinar o campo e o modo de actuação, e tudo o de-
mais.
2821
É obrigação sua estar em contínua relação com o Insto. de Verona, mantê-lo informado do funcionamento
de toda a missão e, de maneira reservada, informar o bispo presidente do comportamento de cada um dos
missionários, quer se trate dos residentes no Cairo ou dos dispersos no interior da África, dando de todos as
mais exactas referências. E isto também para que mons. o bispo possa dar conta cada quinquénio à S. C. da
Propaganda do estado da missão e assim completar a informação quinquenal que deve oferecer à S. C. do
andamento do Instituto e de toda a obra.
2822
O chefe da missão, com os relatórios que deverá apresentar ao bispo de Verona sobre os indivíduos a seu
cargo, deverá propor um ou dois deles, os que ele, em consciência, julgar mais aptos e dignos, para lhe suce-
derem em caso de morte.

Artigo sexto

De como os alunos se tornam membros efectivos do instituto


e de como deixam de pertencer a ele

2823
Depois do noviciado, os alunos podem encontrar-se no instituto de Verona para continuar a sua educação
apostólica ou para se ocuparem dos ministérios inerentes ao mesmo ou então podem estar nas missões da
África.
2824
Os alunos que depois do noviciado permanecem no instituto, sempre que estiverem à altura da sua voca-
ção, serão declarados membros efectivos do instituto três anos depois de pronunciarem o voto de obediência.
E os alunos que passaram às missões de África, depois de darem dois anos de boa prova de vocação, também
serão declarados membros efectivos. Por seu lado, o reitor do insto. de Verona, como também o superior da
missão da África, devem fazer a proposta com as respectivas informações de cada aluno ao bispo de Verona,
a fim de que ele, se eles se tiverem mostrado dignos, os declare, mediante oportuno decreto, membros efecti-
vos do instituto. E este fica assim com a obrigação de se ocupar completamente deles até à morte, mesmo em
caso de incapacidade para o ministério, sempre que continuem no Instituto.
2825
Os membros efectivos do instituto podem deixar de pertencer a ele por livre vontade ou por demérito.
No primeiro caso, o membro efectivo que deseja abandonar o Instituto deve solicitar ao reitor, se se en-
contrar no insto. de Verona, ou ao superior se estiver em África, expondo os motivos pelos quais não quer
continuar a carreira empreendida. Se o reitor, ouvido o conselho, reconhecer tais motivos como justos, põe o
il.mo e rev.mo bispo ao corrente do assunto, o qual dá ao solicitante autorização para se ir embora, dispen-
sando-o do voto de obediência, se ainda estiver em vigor por não ter expirado o biénio e conceder-lhe-á os
meios para voltar ao seu lugar de origem. De modo semelhante em África, o superior da missão, no caso de
considerar justas as razões alegadas pelo peticionário, manda a correspondente informação ao bispo, o qual
ordena que se dispense o interessado e que a casa lhe forneça os meios para a viagem. Por outro lado, se o
respectivo superior não julgasse suficientes os motivos, deverá, por todos os meios, dissuadir o solicitante da
sua determinação; mas se nada o conseguisse convencer e persistisse no seu desejo de partir, então, após a
devida informação ao bispo e com a aprovação deste, procederá ao despedimento.
2826
Podem verificar-se dois casos: o membro efectivo pode encontrar-se em Verona ou na África, e, pela sua
má conduta, apesar das prévias admoestações do superior, tornar-se prejudicial para a pia obra, merecendo,
por isso, ser expulso.
2827
Se estiver em Verona, o reitor dará conta de tudo ao bispo e, conforme a decisão deste, despedi-lo-á. Se
se encontrar em África, o superior, ponderado bem o assunto diante de Deus, e depois de ouvir o seu conse-
lho, formado pelos missionários mais selectos, terá autoridade para o expulsar imediatamente, quando as
circunstâncias do caso o exigirem, e enviá-lo de regresso à Europa, dando depois informações de tudo ao
bispo de Verona. Porém, havendo possibilidade de consultar o bispo antes da expulsão, o superior deverá
esperar que ele decida.

CAPÍTULO III
Meios materiais para conseguir
os fins do instituto

2828
Além da propriedade dos seus locais de residência e do estabelecimento, o instituto está provido dos re-
cursos que se indicam na carta do bispo de Verona ao Em.o card.-prefeito da S. C., com data de 1 de Fev. de
1872.

N.o 429 (401) - A MONS. JOSÉ MARINONI


APIME, v. 28, p. 15

Verona, 3 de Fevereiro de 1872

Rev.mo monsenhor,

2829
Inúmeros assuntos impediram-me de ir a Roma; porém, já terminei e partirei quarta-feira. Quinta ou sex-
ta-feira espero poder apresentar-lhe os meus respeitos e levar-lhe as regras que me foram imensamente úteis
e que já quase sei de cor.
No meu regresso de Roma passarei por Milão ou avisá-lo-ei por carta, porque quinze dias depois partirei
para o Egipto. Estou muito contente por poder satisfazer plenamente os seus desejos sobre o que falámos. O
senhor deve dispor de mim como de coisa sua, in omnibus et quoad omnia. Se mons. o bispo estivesse aqui,
mandar-me-ia que lhe enviasse um abraço de todo o coração; mas partiu há duas horas. Saúde atenciosamen-
te da minha parte a todos os da casa, enquanto lhe renovo os meus mais calorosos sentimentos de gratidão
para com a sua caridade sem limites e de devoção para com toda a sua pessoa.

Seu hum. P.e Comboni

N.o 430 (402) - À ABADESSA SERAFINA OBERBIZER


ACR, A, c. 15/156

V. J. M. J.
Verona, 5 de Fevereiro de 1872
Rev.da madre abadessa,
2830
De Roma enviar-lhe-ei a carta para o rev.mo P.e Nicolau Negrelli, porque agora: 1) ele encontra-se na
Baviera; 2) vou estar assoberbado de ocupações até à minha partida, de modo que não poderei escrever-lhe.
Porém, como tenho o assunto da adoração presente dia e noite e como é necessário que Deus a assista a si e
às suas santas irmãs nesta obra sublime e tão útil à Igreja, estou certo de que não me vou esquecer disso; e,
para este objectivo, além disso, pedi ao meu secretário que me avise sempre. Escrever a P.e Negrelli é como
escrever à imperatriz. A madre, em todo o caso, prepare uma petição para a imperatriz para a juntar à minha,
que lhe mandarei aberta de Roma. E reze e faça rezar e obterá tudo, porque Cristo é Homem de palavra, e
disse petite et accipietis; e a Santa Clara as suas santas filhas rezam-lhe de verdade. Receba as minhas res-
peitosas saudações e reze por

Seu dev. e hum. serv.


P.e Daniel Comboni

N.o 431 (403) - À SENHORA A. H. VILLENEUVE


ACR, A, c. 15/180 n. 1

Roma, Piazza del Gesù, n.o 47, 3.o p.


16 de Fevereiro de 1872

Estimadíssima senhora,
2831
A infausta notícia que me acaba de comunicar a Ir. Catarina destroçou-me o coração. Como estou triste!
Quereria ter-me encontrado em Paris para assistir Désiré e consolá-la como incomparável mãe, minha cara
senhora. Poucas pessoas a conhecem como eu, poucas pessoas a compreendem como eu, poucas pessoas, ou
ninguém, no mundo, estão tão cheias de dor como eu por esta prova a que o Senhor a submete. Estou con-
vencido de que Deus quer fazer de si uma verdadeira santa. A vida humana só se santifica ao pé do Calvá-
rio. O bom Deus permitiu que sofra esta perda para a fazer feliz na eternidade. Lembre-se, senhora, que Cris-
to ressuscitou depois do Calvário. Deus prepara-lhe grandes venturas! Ânimo, pois, senhora. A nossa santa
religião, a nossa querida fé ensina-nos que há uma vida militante e uma vida triunfante. Os da vida triunfante
estão pela fé em comunicação perfeita com a vida militante. Deve olhar os seus entes queridos que estão no
Céu como estando presentes: eles vêem-na, escutam-na; eles contam as suas lágrimas, os seus suspiros, as
suas alegrias. Ânimo, estimada senhora!
2832
Eu desejaria estar em Paris para chorar consigo, para a consolar, para lhe testemunhar o meu afecto, eu
sinto as suas penas. Mas una essas dores às de Jesus Cristo a quem ama ardentemente. Ele quer fazer de si
uma santa. Rogarei tanto ao Sagrado Coração, que se verá obrigado a consolá-la. Por ser uma mãe incompa-
rável, Jesus e Maria estarão consigo. Deus escutará.
2833
E para o meu estimado Augusto, que tem um coração tão grande, que pena, meu Deus! Com tanto carinho
que ele professa aos seus e a Maria! Maria que ama tanto o seu marido, o seu querido Désiré. Não posso
escrever sem tremer! Mas diga a Augusto e a Maria que se lancem aos pés de Jesus Cristo; que se escondam
dentro do Coração de Jesus Cristo e aí, nessa fonte inesgotável de conforto, poderão encontrar consolo. En-
tretanto, é preciso encontrar na oração o alívio necessário. Pela nossa parte, o meu bom secretário e eu dire-
mos missa durante toda esta Quaresma por Désiré. Esta manhã celebrei-a na Igreja da Morte, onde há todos
os dias indulgência plenária pelos defuntos. Continuarei assim a pedir ao Sagrado Coração de Jesus até que a
tenha consolado. Peço-lhe, senhora, que me escreva duas linhas: parece-me respirar se vir a sua escrita. Co-
ragem, senhora, Deus consolá-la-á sem falta e dar-lhe-á também aqui na Terra o prémio pelas suas virtudes
heróicas.
Digne-se aceitar a expressão do meu eterno afecto

Seu devot.mo e af.mo


P.e Daniel Comboni
Original francês
Tradução do italiano

N.o 432 (404) - INFORMAÇÃO HISTÓRICA


SOBRE O VICARIATO APOSTÓLICO DA ÁFRICA CENTRAL
AP COCG, v. 999, ff. 522-530 v

25 de Fevereiro de 1872

INFORMAÇÃO HISTÓRICA
Sobre o VICARIATO APOSTÓLICO DA ÁFRICA CENTRAL
desde a sua fundação até hoje
apresentado à S. C. da Propaganda Fide
por P.e Daniel Comboni no dia 25 de Fevereiro de 1872

Em.o e Rev.mo Príncipe,

2834
Convidado por V. Em.a rev.ma a redigir um relatório sobre o vicariato apostólico da África Central, pas-
sarei de relance a história do mesmo desde a sua fundação até aos nossos dias e exporei humildemente o
plano de acção que, no meu entender, devem seguir os missionários do novo Insto. das Missões para a Nigrí-
cia fundado em Verona, no desempenho das suas árduas e importantes funções, no caso de a S. C. se dignar
confiar-lhes o encargo de implantar estavelmente a fé naquelas remotas terras.
2835
É um facto bem certo que nos países da África Central, que é habitada por mais de cem milhões de ne-
gros, que constituem a décima parte do género humano (como assinalei no postulado ao sagrado Concílio
Vaticano Pro Nigris Africae Centralis), jamais se estabeleceu o Cristianismo ou ao menos pode dizer-se que
actualmente não fica disso vestígio algum. As tentativas que a Santa Sé fez em diversas épocas, tanto desde a
parte meridional, por Moçambique, em 1637, como a partir da ocidental, pela Senegâmbia, mediante os
rev.dos padres capuchinhos de Espanha, em 1645, 1658 e 1660; ou a partir da parte setentrional, por Trípoli
e Salé, mediante os menores reformados, que em 1706 se estenderam até ao vasto reino de Bornu; ou, final-
mente, desde a parte oriental, quando alguns missionários, depois de percorrerem a zona meridional da Nú-
bia Superior, não conseguiram nenhum resultado a favor das regiões interiores da África. Os mais sérios e
importantes esforços da S. C. a respeito daqueles povos infiéis, curvados sob o jugo do Islamismo e do paga-
nismo, tiveram lugar durante os gloriosos pontificados de Gregório XVI e do imortal Pio IX.
Em 1844 foi apresentado à S. C. o extracto de um livro intitulado Viagens ao Cordofão, no qual se fazia
ver a oportunidade e a necessidade de enviar missionários para o interior da África, cujos habitantes pareci-
am dispostos a acolher a pregação do Evangelho.
2836
Contemporaneamente, o cónego Casolani, de Malta, ao regressar de uma viagem pelas costas setentrio-
nais da África, onde tinha falado com alguns malteses que tinham relações com as regiões situadas para além
da Berbéria e, depois de ter percorrido o Oriente, onde encontrara o P.e Maximiliano Ryllo, polaco, superior
dos jesuítas da Síria, com o qual conversou sobre a importância de uma missão no interior da Nigrícia, expôs
ao Em.o card. prefeito Fransoni as razões mais importantes para tentar implantar o Cristianismo na África
Central e o grande benefício que daí adviria para a Santa Igreja.
2837
Seguidamente, após submeter a madura reflexão o assunto, o em.o card.-prefeito ordenou que se efectuas-
sem especiais investigações para conhecer em pormenor e com precisão o estado das regiões interiores da
África, as línguas, a índole e os costumes daqueles povos, as suas relações com os estrangeiros e o funda-
mento que pudesse haver para aí erigir uma missão.
2838
Interrogado o P.e Venâncio sobre tal objectivo por parte de S. Venâncio, prefeito aplico. de Trípoli, cujo
território confinava precisamente a sul com a missão cuja fundação estava em estudo, o em.o cardeal recebeu
como resposta que era oportuno tentar a partir da Berbéria, pela rota de Gadamés, uma expedição ao outro
lado do grande deserto, onde desde 1706 se tinha estabelecido um prefeito apostólico dos menores reforma-
dos no reino de Bornu, como é possível ver nos arquivos daquela prefeitura.
2839
Tendo igualmente o em.o cardeal encarregado o dito cónego Casolani, que sabia ser possuidor de conhe-
cimentos necessários, que reunisse todas as notícias que contribuíssem para lançar luz sobre o assunto em
questão, recebeu uma interessante relação, datada de 5 de Junho de 1845, na qual se descrevia claramente a
amplitude e a fertilidade dos países situados além do grande deserto; assinalavam-se os limites geográficos,
com indicação dos principais montes, rios e lagos; explicava-se a forma de governo, as forças, o carácter, os
costumes e os usos daqueles povos, assim como os ramos da indústria e o sistema de comércio; e referiam-se
as superstições e o predomínio da idolatria e do Islamismo. Após a descrição geral da África interior, o cón.
Casolani dava notícias da sua geografia local e corroborava a opinião do prefeito apostólico de Trípoli de que
a única via de penetração naquelas terras quase completamente desconhecidas era a de Berbéria e Gadamés,
cidade situada a cem léguas a SW. de Trípoli. E concluía manifestando a conveniência de que aos limites
desta prefeitura se acrescentasse o grande deserto e toda a África Central; e que à frente de tal missão se pu-
sesse um idóneo vigário apostólico investido da categoria de bispo e bom conhecedor da língua árabe, o qual,
acompanhado de certo número de excelentes operários, tanto eclesiásticos como seculares, fosse a Gadamés
sem aparência religiosa, e começasse por granjear os favores das gentes locais, especialmente com o exercí-
cio da medicina e das artes mais úteis naquelas regiões e com a caridade cristã.
2840
O em.o cardeal-prefeito, tendo assegurado a participação activa do cónego Casolani, que se punha à dis-
posição da S. Sé e depois de umas diligências com o rev.do geral dos jesuítas, de quem obteve o supramen-
cionado P.e Ryllo para o estabelecimento da missão, à qual associou também o dr. Inácio Knoblecher, aluno
do Colégio da Propaganda, em Janeiro de 1846 apresentou aos em.mos e rev.mos cardeais componentes da
S. C. uma exposição sobre o projecto de estabelecer uma nova missão nos países da África Central, na qual
se decidiu:
1.o Enviar os rev.dos Casolani, Ryllo e Knoblecher ao interior da África e especialmente a Gadamés, a
fim de estudarem no terreno a região e as condições daqueles povos para depois estabelecer aí uma missão
regular.
2.o Pôr à frente de tal expedição o cónego Casolani, conferindo-lhe o título de vigário apostólico com ca-
rácter episcopal.
3.o Ampliar os confins da missão não só até à África Central como também ao grande deserto.
2841
Com base nestas deliberações, Sua Santidade Gregório XVI, mediante um breve de 3 do mês de Abril se-
guinte, erigia em vicariato apostólico a dita missão que, segundo as denominações actuais, teria os seguintes
limites:
Ao norte, a prefeitura de Trípoli, o vicariato de Tunes e a diocese de Argel.
A oeste, os vicariatos de Senegâmbia e das Guinés.
A este, os vicariatos do Egipto, da Abissínia e dos Gallas
A sul, os montes da Lua (que, se realmente existem, se encontram a alguns graus para lá do equador).
2842
O vicariato apostólico da África Central, retirada dele também a grande extensão que ocupa a recente pre-
feitura do Sara, confiada desde 1868 ao arcebispo de Argel, é o mais vasto e povoado do mundo.
2843
Enquanto mons. Casolani recebida a consagração episcopal, se dedicava a pôr em ordem em Malta os
seus assuntos familiares, o P.e Ryllo, informado com a exactidão do feliz resultado das expedições que S. A.
Mehmet Ali, vice-rei do Egipto, tinha feito levar a cabo pelo vale do Nilo no Sudão – e especialmente das de
1838 e de 1842, comandadas pelo sr. D’Arnaux, o qual chegara até ao Nilo Branco, até ao 5o de lat. N. –,
com muitos e sólidos argumentos persuadiu o Em.o cardeal Fransoni de que convinha penetrar na nova mis-
são mais pela parte oriental, subindo o Nilo, e fixar, como ponto de apoio, a cidade de Cartum, que, pela sua
situação geográfica e pela sua importância política, se apresentava oportuna e segura para o estabelecimento
da primeira estação católica, sendo o ponto principal das últimas conquistas egípcias no Sudão e o centro
natural de comunicações entre o Egipto e as regiões interiores da Nigrícia.
2844
Decidiu-se, por isso, abandonar o projecto de mons. Casolani, que era seguir a rota de Trípoli e de Ga-
damés. E como o bispo Casolani, discordante da nova determinação tomada, declinou a responsabilidade de
chefiar a expedição, a S. C. pôs à frente da missão o P.e Ryllo com o título de pró-vigário apostólico.
2845
Tendo como companheiros de expedição o mencionado dr. Inácio Knoblecher, o P.e Em. Pedemonte, je-
suíta genovês, P.e Ângelo Vinco, do Instituto Mazza, de Verona, e também mons. Casolani, que o acompa-
nhava na qualidade de simples missionário, o P.e Ryllo, na Primavera de 1847, embarcou para o Egipto. E
obtido do vice-rei um documento com o qual obteria protecção dos chefes do Sudão, passando por Filé e
Dôngola, dirigiu-se a Cartum, aonde chegou a 11 de Fevereiro de 1848. Era esta uma cidade de cabanas de
palha e de tijolos com 15 000 habitantes, a maior parte deles escravos arrancados à força das tribos do inte-
rior, situadas na Núbia Superior, junto ao lugar da confluência do Nilo Azul com o Nilo Branco, entre os 15
e os 16 graus de latitude norte e os 30 e 31 graus de longitude este, segundo o meridiano de Paris. Cartum
dista dois meses do Cairo.
2846
Comprado um terreno com algumas toscas cabanas, que serviam de habitação aos missionários, o P. e Ry-
llo caiu doente por causa de uma disenteria e no dia 17 de Junho voava para o eterno descanso, deixando o
governo da missão ao dr. Knoblecher.
2847
Pouco tempo depois, chegou a infausta notícia das revoluções que destroçavam a Europa. A Propaganda
fez saber aos missionários que, não podendo já prover às necessidades do vicariato, os deixava em liberdade
para regressarem à Europa para serem enviados para outras missões. Mons. Casolani, alquebrado pelas fe-
bres, regressou para sempre a Malta. O novo superior Knoblecher não desanimou por isso. Mandou cultivar
o terreno comprado pelo seu predecessor, onde construiu uma humilde casa com uma capela. Comprou, de-
pois, alguns escravos negros para os instruir; pediu e obteve do geral dos jesuítas o P. e Zara, de Verona, e
dois irmãos leigos; e, depois de ter explorado as diversas tribos do Nilo Branco até aos três graus e de deixar
como responsável da missão um dos mencionados padres jesuítas, voltou à Europa, à sua pátria. Lá obteve o
mais amplo favor da corte de S. M. Apostólica e dos bispos da Áustria, e conseguiu fundar a Sociedade de
Maria em Viena, a qual, protegida pelo imperador e dotada mediante breve de 5 de Dezembro de 1872 de
várias indulgências pelo Sumo Pontífice reinante, se encarregou de fornecer os meios necessários para o
sustento da missão. De facto, esta Sociedade, chamada Marienverein, que contava com a importante colabo-
ração do ilustre cónego o prof. Mitterrutzner, de Bressanone, proporcionou durante alguns anos abundantes
recursos ao vicariato.
2848
Tendo ido a Roma e dado conta à S. C. da sua actuação, o doutor Knoblecher foi nomeado vigário apostó-
lico na audiência de 10 de Agosto de 1851. Depois, levando consigo cinco sacerdotes eslavos, além de vários
leigos, embarcou em Trieste, rumo a Alexandria, onde chegou a 2 de Setembro; e comprada no Cairo uma
cómoda embarcação fluvial, a que pôs o nome de Stella Mattutina, em fins de Dezembro alcançou felizmen-
te Cartum. Aí deixou a estação a cargo de dois sacerdotes, Kociiancic e Milharcic, e conduziu os restantes à
tribo dos Bari, onde fundou a estação de Gondokoro, situada entre os 4 e 5 graus de latitude norte e entre os
29 e 30 graus de lat. este do meridiano de Paris.
2849
É inútil dar aqui a descrição geográfica desta parte oriental do vicariato apostólico, na qual desenvolve-
ram especialmente a sua actividade os novos missionários e os que lhes seguiram até 1861. Dispenso-me
também de falar, neste momento, da índole muito dócil e do carácter daqueles povos tão desventurados que
gemem sob o peso da mais desumana escravidão, como também do bárbaro tráfico que exercem os muçul-
manos e os jilabas da Núbia, os quais, entrando com amistosa aparência no santuário das pacíficas famílias
dos negros, arrebatam violentamente dos braços maternos meninos e meninas – às vezes ferindo e matando
sem piedade os pais que se opõem a isso – para os levarem depois como escravos para os mercados de Cor-
dofão e da Núbia e encher os haréns dos turcos. É inútil notar que, para acabar com esta chaga de tanto opró-
brio para a humanidade, de nada servirão jamais nem os repetidos tratados entre as potências europeias nem
os fingidos rigores das autoridades consulares e muçulmanas. Somente o activo apostolado católico e a pre-
gação do Evangelho conseguirão, com o tempo, vencer esta barbárie e acabar radicalmente com o horrível
tráfico de negros. Finalmente, tão-pouco vem ao caso falar da extraordinária fertilidade do solo, dos lugares
visitados pela missão, das várias superstições, das tradições do Antigo Testamento, dos costumes dos povos
que habitam a zona do Nilo Branco, da idolatria e do feiticismo que neles impera, dos estragos da propagan-
da muçulmana entre essas tribos e da feliz disposição dos negros para abraçarem o Cristianismo, especial-
mente por parte dos jovens; repito, não é a ocasião de referir tudo o que levaram a cabo os trinta e dois mis-
sionários chegados à Nigrícia em sete diferentes expedições e que trabalharam sob a sagaz e activa direcção
de Knoblecher, a maior parte dos quais morreram vítimas da caridade pela salvação daquelas almas. Um
brevíssimo extracto de uma relação minha, sobre a história do vicariato desde a sua fundação até aos nossos
dias, foi publicado nos Anais da Propagação da Fé em Março de 1871.
2850
Limitar-me-ei, pois, apenas a compendiar em duas palavras o que se obteve de positivo sob o governo de
Knoblecher, que durou até Abril de 1858.
1.o Fundou-se a estação de Cartum. A casa, muito grande, com a pequena igreja, mais o amplo quintal
que produz boas receitas e que está rodeado de um muro, todo ele construído segundo nova planta pela mis-
são, que custou mais de sessenta escudos romanos.
2.o Fundou-se a estação de Gondokoro, para chegar à qual, a partir de Cartum, se gastam dois meses de
viagem. Lá construiu-se uma casa com uma bela capela e jardim, que custou à missão cerca de trinta mil
escudos.
3.o Fundou-se a Estação de Santa Cruz na tribo dos Kich, entre os 6 e 7 graus de lat. norte e os 28 e 29
graus long. este de Paris, que está a uns quarenta dias de Cartum e a vinte de Gondokoro. Formada por uma
vintena de cabanas e uma igreja de juncos totalmente construída com as nossas próprias mãos, custou umas
centenas de escudos.
2851
4.o Conheceram-se todas as tribos que se estendem à direita e à esquerda do Nilo Branco, entre as quais
se destacam as dos Schelluk, Dincas, Yangué, Nuer, Kich, Tuic, Gog, Eliab e Bari. Estudaram-se as supersti-
ções, a índole, o carácter e as condições sociais desses africanos, a fim de conhecer bem o modo mais fácil e
o caminho mais seguro de os ganhar para a fé. Além disso praticou-se com eles a medicina e a caridade, de
forma que chegaram a distinguir muito bem entre o missionário que os beneficiava e o aventureiro branco
que os maltratava e lhes roubava os seus filhos e bens.
2852
5.o Aprenderam-se algumas línguas daqueles países, entre elas as duas principais: o dinca, que é falado
por mais de vinte e duas tribos e por bastantes milhões de indígenas e o bari, falado pelos negros que vivem
entre os 5o de lat. norte e o equador. Destas duas línguas, o ilustre professor Mitterrutzner, de Bressanone,
compôs, com ajuda dos nossos manuscritos, e publicou impressos, os dicionários e os catecismos, assim
como bastantes diálogos e as traduções dos Salmos e de S. Lucas. As publicações nestas duas línguas, das
quais a ciência na Europa até o nome ignorava, serão de enorme utilidade aos futuros missionários da África
Central.
2853
6.o Finalmente, tornaram-se católicos cerca de cem idólatras. E aqui convém notar que só se julgou opor-
tuno admitir ao baptismo, salvo rara excepção, aqueles que se consagravam inteiramente ao serviço da mis-
são e que podiam ser por ela mantidos e, se era preciso, transferidos para Cartum ou para o Egipto para asse-
gurar a sua fé em qualquer caso. Muitos e muitos milhares de africanos e tribos inteiras teriam abraçado a
nossa santa religião; porém, como, pelas mortes frequentes entre os missionários, a missão não era perma-
nentemente estável, nem se podia ter a certeza de manter lá de forma contínua o ministério sacerdotal e aten-
der com regularidade aos convertidos, preferiu-se esperar a época em que fosse possível consolidar e perpe-
tuar a missão. Knoblecher repetiu-me isto muitas vezes.
2854
Entretanto, surgiam na Europa duas novas instituições que se preparavam para dedicar os seus cuidados a
preparar pessoal para a África.
A primeira era o Instituto dos Engenhos Distintos, fundado em Verona pelo extraordinário zelo de P.e Ni-
colau Mazza, que, por meio do falecido mons. Besi, apresentou em 1853 ao em.o card.-prefeito uma humilde
petição tendente a conseguir uma pequena porção da África Central para evangelizar com os seus sacerdotes.
Sua eminência remeteu o peticionário ao pró-vigário apostólico para tratar o assunto e, agindo de acordo com
ele em tudo, o Insto. Mazza, nas duas expedições de 1853 e 1857, enviou à África Central sete missionários
veroneses, entre os quais me encontrava eu também. Cinco deles morreram, um retirou-se para sempre para a
sua terra e o último, o mais insignificante de todos, encontra-se ainda como servus inutilis no campo da mis-
são.
2855
A outra instituição foi a do P.e Ludovico de Casoria, franciscano, que em 1854 fundou em Nápoles dois
colégios: um masculino, no qual havia mais de oitenta negros, e o outro feminino, que contava com mais de
cento e vinte negras. O piedoso fundador fazia educar estes jovens negros, resgatados na sua maior parte
graças ao grande zelo do defunto P.e Olivieri, de Génova, no intuito de preparar pessoal para as missões da
África interior.
2856
Enquanto brilhava a esperança de consolidar com estes relevantes meios e preparações o vicariato da
África Central, o dr. Knoblecher, numa viagem a Roma por assuntos da missão, morria em Nápoles a 13 de
Abril de 1858. Três dias depois, sucumbia também, em Cartum, o seu vigário-geral, P.e José Gostner, da
diocese de Trento. E morriam, além disso, os superiores das estações de Santa Cruz e Gondokoro e alguns
outros missionários.
2857
O rev.do P.e Mateus Kirchner, ao regressar do Nilo Branco em Agosto do mesmo ano, recebia o encargo
de tomar as rédeas do vicariato. E como os missionários iam diminuindo e não tinha esperança de receber
outros no futuro, foi a Roma pedir alguns frades ao rev.mo P.e geral dos franciscanos, que já havia mantido
contactos com esse vicariato para os institutos de negros de Nápoles e para a missão do Alto Egipto. E obti-
dos três, entre eles o P.e João Reinthaller-Ducla, de Gratz, regressou a África.
2858
A sua primeira preocupação, consultados os missionários, foi tentar livrar os seus companheiros de apos-
tolado da inexorável mortandade, que ameaçava com um extermínio não distante todos os que compunham a
missão. E decidiu-se estabelecer uma residência única e central num ponto do território menos exposto às
mortíferas influências do clima. Daí, os missionários iriam uma vez por ano visitar as estações de Cartum e
do Nilo Branco, que, entretanto, ficariam confiadas a alguns influentes e bons católicos do lugar. O lugar
escolhido para tal fim foi Schellal, povo situado no início das cataratas de Assuão, em frente da ilha de Filé e
a mil quilómetros de Cartum, nos limites entre o Egipto e a Núbia, a umas quarenta milhas a norte do Trópi-
co do Câncer, e entre os 30o e 31o de long. E. de Paris. A Propaganda assumiu os gastos desta fundação,
depois de obtido de Said Paxá, vice-rei do Egipto, o terreno para o estabelecimento que se devia construir.
2859
Como, entretanto, a morte tinha levado outros missionários, o pró-vigário Kirchner, desalentado por tan-
tas perdas e movido pela necessidade de assegurar à missão uma indispensável quantidade de operários mis-
sionários, pensou em confiar a uma ordem religiosa o cuidado daquele difícil vicariato.
2860
Tendo ido para tal fim a Roma, com o conhecimento da Propaganda dirigiu-se novamente ao geral dos
franciscanos. Este, com o voto do seu definitório, declarou formalmente estar disposto a tomar por completo
a seu cargo a missão, se fosse declarada seráfica. Tal projecto, ao qual aderiu plenamente S. E. o conselheiro
áulico Frederico de Hurter, historiador do império austríaco e presidente do comité da Marienverein de Vie-
na em favor dos Franciscanos, baseava-se nos seguintes motivos:
1.o As vantagens que oferecia uma numerosa corporação religiosa capaz de fornecer pessoal segundo as
necessidades.
2.o Encontrar-se a ordem seráfica na posse das instituições de Nápoles, criadas pelo P.e Ludovico de Ca-
soria, totalmente orientadas para benefício daquelas longínquas e difíceis regiões.
3.o A necessidade de olhar pelos pouquíssimos missionários que ficavam naqueles lugares, quase aban-
donados a si mesmos, com a perspectiva de se juntarem rapidamente aos que os precederam vítimas do clima
e das fadigas apostólicas e sem esperança de novos reforços, sempre débeis e sempre difíceis, ao terem que
se recrutar um a um e em diferentes dioceses.
2861
Por isso o em.o cardeal-prefeito actual expôs ao Santo Padre na audiência de 5 de Setembro de 1861 o
subordinado parecer de anuir ao referido projecto, deixando o vicariato como se encontrava e confiá-lo, sem
mais, inteiramente, aos frades menores, segundo as regras vigentes noutros vicariatos similares, para conti-
nuarem a governá-lo por meio de um religioso pró-vigário sem carácter episcopal, até os resultados poderem
levar a S. C. a resolver-se a destinar para lá um vigário apostólico bispo. A resposta pontifícia foi favorável,
como resulta do registo da indicada audiência (pág. 1792, vol. 139), que aparece nos seguintes termos:
«Ss.mus etc. benigne annuit et propositam cessionem probavit et confirmavit, iuxta votum Card. Praefecti
relatoris.» A pontifícia disposição foi comunicada ao geral dos franciscanos com carta de 12 de Setembro de
1861 (vol. 352, p. 505).
2862
Uma vez inteiramente confiada a missão à ordem seráfica, tiveram de retirar-se os sacerdotes que resta-
vam do Insto. Mazza de Verona, o qual mais tarde apresentou ao em.o card.-prefeito um novo projecto para
fundar uma missão nalguma tribo africana, que não pôde levar-se a cabo por falta de meios.
2863
Após os frades menores tomarem a seu cargo o vicariato, a S. C. nomeou pró-vigário apostólico o menci-
onado P.e João de Ducla Reinthaller, o qual, tendo recebido não poucas obediências em branco do seu
rev.mo geral, se apresentou em muitos conventos de Veneza, do Tirol e da Áustria, e a tempo de recrutar 34
religiosos, entre sacerdotes e leigos. O P.e geral tinha enviado previamente para tal fim uma circular aos
religiosos dessas três províncias franciscanas. Em Novembro chegava ao Egipto esta numerosa expedição de
filhos de S. Francisco e, em meados de Janeiro de 1862, o P.e Reinthaller tomava posse de Schellal. Partiu
depois daí com um grupo de novos missionários para os estabelecer nas antigas estações. Alguns morreram
durante a viagem e ele mesmo caiu doente na tribo dos Schelluk. Foi levado para Cartum e, depois, para
Berber, onde morreu. Outros missionários morreram em seguida. A chegada de uma segunda expedição com
23 franciscanos foi insuficiente para reparar aquelas perdas e considerou-se conveniente abandonar as esta-
ções do Nilo Branco e retirar-se para Cartum e Schellal. Algum tempo depois, também esta última teve que
ser abandonada. Ficou unicamente Cartum, que foi ocupada apenas por um único sacerdote franciscano, o
P.e Fabião Pfeifer, de Eggenthal, no Tirol, com dois leigos. Este padre ficou isolado em Cartum durante mais
de cinco anos, sem um companheiro sacerdote para se confessar.
2864
O P.e Reinthaller não teve sucessor nas suas árduas funções. Depois da sua morte, a S. C. confiou intei-
ramente o governo da missão ao vigário apostólico do Egipto.
A ordem seráfica mandou para a África Central cerca de sessenta frades, entre sacerdotes e leigos. Desses
morreram vinte e dois e os outros mudaram-se para o Egipto ou a Terra Santa ou regressaram à Europa.
2865
Em 1865, a S. C. permitiu que o P.e Ludovico de Casoria ocupasse com alguns dos seus frades e negros
terciários a estação de Schellal, aonde fui encarregado de os acompanhar; mas ao fim de sete meses tive que
abandonar a missão por falta de meios. Quatro quintos dos negros e negras de Nápoles ou morreram ou
abandonaram a obra. Os restantes elementos masculinos ou se tornaram religiosos ou ficaram improdutivos.
Das negras, algumas fizeram-se religiosas. Numa palavra, a África Central não obteve de tão santa institui-
ção o mínimo proveito.
2866
De todas as estações do vicariato, hoje resta apenas a de Cartum, à frente da qual se encontra o P.e Dimas
Stadelmeyer, de Innsbruck, que é assistido pelo P.e Hilário Schletter, tirolês, e por dois irmãos leigos. Estes
dois padres exercem o seu ministério em favor dos poucos católicos que se encontram em Cartum.
2867
E até aqui a brevíssima resenha histórica do vicariato da África Central. Perante esta série de provas e o
espectáculo de tantas vítimas da caridade cristã, acode à mente de forma natural uma pergunta: porque é que,
com uma tão boa fileira de missionários cheios de zelo e chefiados por um comandante tão capaz como era o
dr. Knoblecher, não se conseguiu implantar estavelmente a fé em nenhuma parte desta importante missão?
Por que razão a ordem seráfica, dotada de forças tão importantes, não pôde continuar uma empresa já estabe-
lecida e equipada de tantos meios?
2868
O apostolado da Nigrícia é de per si árduo e laborioso. Contudo, parece-me que o insucesso da primeira
parte da missão, sob a direcção de Knoblecher, foi provocado pelos seguintes motivos:
1.o Na Europa faltava a base de um seminário especial dedicado exclusivamente à preparação de candida-
tos para uma tão difícil missão. Há que educar e formar o operário evangélico antes de o expor aos trabalhos
apostólicos. É preciso inculcar-lhe a abnegação e o sacrifício e traçar-lhe, por assim dizer, o caminho até esse
grande fim pelo qual deve consumir toda a sua vida; e para fazer isto requere-se tempo e um trabalho perse-
verante. Pelo contrário, os missionários de Knoblecher, ainda que de óptimo espírito e virtudes, foram recru-
tados num pequeno número de dioceses e enviados em seguida para a missão, sem os ter preparado conveni-
entemente para a grande empresa, nem os ter capacitado mediante uma séria educação apostólica para en-
frentar os perigos e as dificuldades.
2869
2.o No Egipto, onde o europeu pode viver e trabalhar, embora o clima seja muito quente, que pode ser
considerado a média proporcional entre o da Itália e da África Equatorial, faltava um instituto onde o missio-
nário tivesse a possibilidade de se habituar pouco a pouco ao calor, aos costumes, às comidas e à vida africa-
na. Os missionários de Knoblecher partiam da Alemanha, ou seja, de um clima muito frio e sem nenhuma
estada no lugar de temperatura intermédio, metiam-se de repente nos países mais quentes da Terra, com o
que se expunham a uma morte quase certa. Porque é que muitos homens de negócios europeus viveram e
vivem ainda longos anos na África Central e, em contrapartida, os missionários de Knoblecher morriam? É
porque esses homens de negócios – eu conheci-os a todos – não foram para esses países senão depois de ter
passado alguns anos nas costas da África ou em alguma cidade do Alto Egipto. Penso que os nossos missio-
nários teriam também vivido se tivessem feito o mesmo.
2870
3.o O sistema de vida que seguiam os missionários alemães não era apropriado àquele clima. Mantinham
na missão o regime alimentício da Alemanha, especialmente quanto ao consumo de carne e de bebidas. Na-
turalmente, não se podiam habituar de repente ao adequadíssimo regime frugal e moderado dos africanos,
porque passavam com demasiada rapidez da sua pátria para a Nigrícia. É preciso uma grande sobriedade na
comida e na bebida para poder viver na África. Um sábio e equilibrado regime de alimentação é condição
essencial para aguentar nesses longínquos países e torna-se difícil habituar-se a isto sem antes se submeter a
uma especial educação apostólica e a um longo exercício de abnegação e sacrifício em institutos bem adap-
tados, que preparem para tão difíceis missões.
2871
4.o Aquela missão carecia de clero indígena e até de jovens catequistas nativos que ajudassem os missio-
nários no seu ministério.
2872
5.o Finalmente, faltava-lhes também a colaboração do elemento feminino: uma casa de religiosas que
formasse mestras negras e missionárias indígenas, as quais são indispensáveis numa longínqua e perigosa
missão.
2873
Sem dúvida, mais tarde o ilustre dr. Knoblecher ocupar-se-ia para conseguir tudo isto; a ele se deve todo
o bem que se fez na África Central; aos seus sublimes dotes de firme carácter e de constância a toda a prova,
juntava-se uma enorme perspicácia, muita actividade, mente e coração.
2874
Depois, quanto ao tão infeliz balanço da missão na segunda etapa, sob a direcção dos franciscanos, penso
que, à parte os motivos aduzidos, teve como causa o seguinte: para tão difícil empresa, por disposição do
Senhor, foram escolhidos entre os frades menores os indivíduos menos adequados para alcançar o santo ob-
jectivo. Em vez de pôr à frente do vicariato um religioso da Alemanha, mais adequado para a pregação do
que para a difícil arte de dirigir, não experimentado ainda em missões estrangeiras e não habituado ao clima
africano, em vez de arriscar aventureiramente um grupo de fradezinhos recrutados de improviso em vários
conventos de três grandes províncias, com diferentes línguas e caracteres, às vezes sem ter ouvido sequer os
superiores locais ou sem ter seguido o seu conselho, a ilustre ordem deveria ter escolhido um adequado chefe
que tivesse passado já muitos anos exercendo o seu ministério na Terra Santa ou no Alto Egipto (onde cer-
tamente os havia) e que, portanto, estivesse já aclimatado aos países do Oriente. Este, utilizando sabiamente
os meios dos franciscanos e com um sistema de acção bem meditado e prudente, pouco a pouco teria podido
lançar sólidas bases para prosseguir na santa empresa.
2875
E se fracassaram os louváveis e generosos esforços dos institutos de negros e negras fundados em Nápo-
les pelo P.e Ludovico de Casoria, foi porque geralmente os negros não podem viver na Europa, sem excluir
os países meridionais da mesma e receber aqui uma educação para depois trabalharem nos seus lugares de
origem. Eles, que chegam à Europa destroçados pelos horrores da escravidão, pelos maus tratos dos muçul-
manos e pelas fadigas de longas e incómodas viagens, encontram um clima demasiado diferente. E atrevo-
me a dizer com convicção que apenas o Egipto é adequado para educar os negros, tendo verificado por expe-
riência que, para não poucos deles, o próprio clima egípcio é diferente em excesso, pelo que acaba por lhes
ser nocivo; e requerem-se, também no Egipto, não poucos cuidados a fim de criar condições suportáveis aos
indígenas da África interior, arrastados para a escravidão pela desumana barbárie dos jilabas.
2876
Enfim, como parece que a ínclita Ordem dos Frades Menores, por falta de pessoal suficiente, tem inten-
ção de se retirar completamente do vicariato, farei com que este breve relatório histórico seja seguido, dentro
de poucos dias, por uma breve informação sobre as obras de Verona e do Egipto, que surgiram sob os auspí-
cios de mons. Canossa, bispo de Verona e de mons. Ciurcia, vigário apostólico do Egipto, com o objectivo
directo de prestar ajuda às missões da África Central; e concluirei, expondo-lhe, em duas palavras, o plano
de acção que, no meu entender, deveria seguir-se para fazer ressurgir e prosperar aquele importantíssimo
vicariato, submetendo tudo humildemente à sabedoria e às veneráveis determinações da S. C., disposto, co-
mo estou com todos os meus companheiros e subordinados, a sacrificar-me inteiramente até à morte no difí-
cil e laborioso apostolado da África Central, a fim de procurar, com todo o empenho, no modo que melhor
parecer à Santa Sé, a salvação daquelas almas, que são as mais infelizes, as mais necessitadas e as mais
abandonadas do mundo.
Entretanto, tenho a honra de me declarar com todo o respeito

De V. E. Rev.ma hum., indig.mo e obed.mo filho


P.e Daniel Comboni
Superior dos instos. de negros do Egipto
e miss. da África Central

N.o 433 (405) - AO CÓN. J. C. MITTERRUTZNER


ACR, A, c. 15/67
V. J. M. J.
Roma, 28 de Fevereiro de 1872

Caríssimo amigo e pai em J. C.,

2877
Agradecendo-lhe de todo o coração pela sua carta, os seus mapas, a vida de Knoblecher, etc., peço-lhe
outro urgente favor.
No último trabalho que apresento à Propaganda devo expor que plano tento seguir ao tomar a meu cargo
o vicariato apostólico da África Central: as estações a ocupar e se é necessário fundar alguma nova, qual é a
residência ordinária do pró-vigário apostólico, etc. Em suma, devo explicar o que me proponho fazer com as
forças hic et nunc existentes. Estas são:
9 sacerdotes missionários
1 clérigo teólogo de Jerusalém
7 freiras
20 professoras negras
7 irmãos leigos e um negro
2878
Deve ocupar-se Cartum? Gondokoro? Schellal? Cordofão?
Além disso, temos os institutos:
O Insto. das Missões
O Insto. das Pias Madres da Nigrícia de Verona
Três casas no Cairo Velho.
2879
Pois bem, com estas bases e com estas forças que faria o senhor no meu caso? Espero a sua venerada opi-
nião sobre o assunto.
Ontem começou a imprimir-se a Posição Secreta da África Central, quer dizer: as regras do instituto de
Verona; a famosa carta ao Papa da Sociedade de Colónia; a carta da Marienverein de Viena; a carta do geral
dos franciscanos na qual declara retirar-se da África Central; os decretos de instituição canónica dos instos.
de Verona e do Egipto, do bispo de Verona e do vigário apostólico do Egipto; mais a carta do bispo de Vero-
na ao Papa, na qual solicita uma missão para nós na Nigrícia e o meu relatório, concluído ontem, sobre toda a
história do vicariato, desde 1844 até hoje. Tudo isso está no prélio e eu estou encarregado de corrigir a im-
pressão secreta desta Posição. Trata-se da segunda sobre a África Central: a primeira apresentou-se em Ja-
neiro de 1846. Agora escrevo o plano de que lhe falo e peço-lhe que venha em minha ajuda. Na informação
sobre a história africana campeã sobressai o benemérito nome do dr. J. Mitterrutzner. A nossa Posição à
Congregação de Cardeais será apresentada imediatamente depois da Páscoa e eu devo escolher o cardeal
ponente, tenho direito a isso, etc.
2880
Agradeço-lhe pelo dinheiro que me arranjou, etc. Escreverei a mons. Gasser para Salzburgo. Entretanto,
pedir-lhe-ia que me mandasse já esse dinheiro, tanto em florins austríacos como em liras italianas, para Ro-
ma, porque tenho aqui necessidade dele. A direcção de Roma é: Piazza del Gesù, n.o 47, 3.o P.
Esta tarde, às seis, vou visitar o Papa; por isso pedir-lhe-ei uma grande bênção para si. Mil respeitosos
cumprimentos a Sua Alteza rev.ma do

Tuis.mus Daniel Comboni

2881
Desejaria saber: de quanto pode dispor a Sociedade de Maria em favor do vicariato cada ano? Isso é tal-
vez o que a S. C. irá perguntar. Nesse caso, escreverei a todos os arquiduques, príncipes e nobres austríacos
que conheço para que mandem dinheiro à Marienverein. Entretanto, escrevo aos príncipes e nobres do resto
da Alemanha para que ajudem Colónia. Recebo também de Lião e Paris e assim os meios entram no haec
omnia adiicientur vobis, e nós podemos consagrar-nos com toda a energia ao quaerite primum regnum Dei et
iustitiam eius. A Propaganda está animadíssima com a África Central. O Postulatum foi o primeiro golpe de
graça e a Marienverein, Colónia e o Insto. de Verona foram o segundo. O nosso pobre P.e Beltrame, lamento
dizê-lo, entra na camarilha dos italianíssimos de Verona e, depois de ter lido a carta do card. Barnabó em
nome do Papa, em que S. E. se congratulava comigo por ter renunciado à condecoração da coroa de Itália,
na qual S. E. dizia não poder em consciência um sacerdote cató-

N. B. O escrito está incompleto.

N.o 434 (406) - INFORMAÇÃO


AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ
AP SOCG, v.999, ff.570-581

Roma, 2 de Março de 1872

OS INSTITUTOS DE VERONA E DO EGIPTO


para a REGENERAÇÃO da NIGRÍCIA
e
PLANO DE ACÇÃO APOSTÓLICA
a seguir ao assumir
o Vicariato da África Central

Ex.mo e Rev.mo Príncipe,

2882
Dado que a Ordem Seráfica parece disposta a renunciar ao Vicariato da África Central, como se depreen-
de do documento de 5 de Janeiro passado do rev.do P.e geral dos menores, contido no Sumário n.o III, pág.
10, assim, seguindo o desejo de V. Em.a, exponho aqui sucintamente o Plano de Acção Apostólica que, se-
gundo a minha subordinada opinião, o novo Instituto das Missões para a Nigrícia deveria seguir ao assumir
este difícil vicariato, no caso de a Santa Sé ter por bem confiar-lho.
2883
Com tal objectivo, devo, antes de mais, dar uma brevíssima notícia sobre:
1.o A situação concreta do Insto. e as forças de que hic et nunc pode dispor.
2.o As condições actuais do Vicariato da África Central.
Como corolário de tudo isso, exporei em seguida o plano em questão.
2884
Quanto ao primeiro ponto, existem em Verona dois institutos preparatórios de ambos os sexos, criados
com base do Plano para a Regeneração da África, exclusivamente para favorecer, segundo as veneradas
disposições da Santa Sé, o apostolado da África Central. São eles:
1.o O Instituto dos Missionários para a Nigrícia.
2.o O Instituto das Pias Madres da Nigrícia.
Estes institutos, que estão sob o governo e a supervisão do mons. o bispo de Verona e de um selecto Con-
selho Central constituído pelas personagens mais prudentes e distintas da diocese, têm como fim formar
mediante uma intensa e sólida educação regular homens verdadeiramente apostólicos e virtuosas missioná-
rias, para que, depois de um noviciado de mais de dois anos em Verona e de outros três anos nas casas do
Egipto, se consagrem por completo às missões da África Central.
2885
A norma principal que se fixaram estes institutos, além das prescritas para formar o espírito e cultivar a
boa disposição dos alunos e alunas, é a de fazerem uma boa selecção dos aspirantes e educá-los no espírito
de sacrifício, por depender disso não só o feliz arranque, o florescimento e a duração dos institutos, mas
também o seu próprio e máximo interesse, junto com o interesse dos missionários e missionárias, assim co-
mo o das almas e das missões que lhes serão confiadas na Nigrícia.
2886
No insto. dos missionários inculca-se profundamente e procura-se imprimir e fazer arreigar bem no espíri-
to dos candidatos o verdadeiro e necessário carácter do missionário da Nigrícia, o qual deve ser uma perpé-
tua vítima de sacrifício destinada a trabalhar, suar e morrer, talvez sem ver fruto algum da sua fadiga.
2887
Por isso, o superior do Insto. e o mestre de noviços fazem saber desde o princípio aos alunos que a vida
de um homem que, de modo absoluto e definitivo, rompeu todas as relações com o mundo e com as coisas
mais queridas segundo a natureza, deve ser uma vida de espírito e de fé. O missionário que não tivesse um
forte sentimento de Deus e um interesse vivo na sua glória e no bem das almas careceria de aptidão para os
seus ministérios e acabaria por se encontrar numa espécie de vazio e de intolerável desolação. Porque a sua
obra não estará sempre rodeada dessa devota consideração, desse ambiente favorável, quase de aplauso, que
envolve o sacerdote quando trabalha entre almas inteligentes e corações sensíveis.
2888
Esta satisfação humana pode alimentar até um zelo pouco fundado em Deus e na caridade. Mas o missio-
nário da África Central não pode nem deve esperá-lo sempre. Ele trabalha no meio de indivíduos embruteci-
dos pelos horrores da escravatura mais desumana, [...] para onde os lançou a desgraça e a tremenda crueldade
dos seus inimigos e opressores. Estes infelizes negros estão habituados a ver arrancar do seu seio os seus
filhinhos para serem condenados a deplorável e perpétua servidão e sem esperança de os voltar jamais a ver;
a ver assassinar impiedosamente diante deles mesmos os seus parentes, até os seus próprios pais. E como os
autores de tão brutais e horríveis crimes não pertencem à sua raça, mas são estrangeiros, esses desgraçados
africanos, a quem todos sempre atraiçoaram e maltrataram da maneira mais cruel, olham às vezes o missio-
nário com desconfiança e horror, por ser estrangeiro [...]. Por isso, ele, em vez de esperar uma agradável
correspondência de afectos, deve estar resignado e encontrar resistências hostis, inconstâncias dolorosas e
traições amargas.
2889
Daí que com frequência deva pôr a sua esperança do fruto num futuro remoto e incerto. Às vezes tem que
se contentar de semear, no meio dos maiores suores e no meio de mil privações e perigos, num lento martí-
rio, uma semente que só dará algo para colher aos missionários sucessores. Deve considerar-se como um
indivíduo anónimo numa série de operários, que têm de esperar resultados não tanto do seu trabalho pessoal,
mas de uma acumulação e continuação de trabalhos misteriosamente conduzidos e utilizados pela Providên-
cia.
2890
Numa palavra, deve pensar frequentemente que trabalha numa obra de altíssimo mérito, sim, mas muito
árdua e laboriosa; e isto para ser ele como uma pedra escondida debaixo da terra, que talvez nunca sairá à luz
e passa a formar parte do cimento de um novo e colossal edifício que só os vindouros verão despontar do
solo, elevar-se pouco a pouco sobre as ruínas do feiticismo e engrandecer-se para acolher depois no seu seio
os mais de cem milhões da desditosa estirpe dos camitas, que há mais de quarenta séculos gemem curvados
sob o jugo de Satanás. O missionário da Nigrícia, totalmente despojado de si mesmo e privado de todo o
consolo humano, trabalha unicamente para o seu Deus, para as almas mais abandonadas da Terra e para a
eternidade.
2891
Movido pela pura visão do seu Deus, tem em todas estas circunstâncias com que se sustentar e alimentar
abundantemente o seu coração, caso lhe caiba num tempo, vizinho ou longínquo, com mão alheia ou com a
própria, recolher o fruto dos seus suores e do seu apostolado; antes, tendo ele de tal maneira o coração quente
com o amor de Deus e contemplando com o olhar iluminado pela fé a suma vantagem, a grandeza e a subli-
midade da obra eminentemente apostólica pela qual se sacrifica, todas as privações, as contínuas dificuldades
e os mais duros trabalhos se tornam ao seu espírito um paraíso na Terra, e a própria morte e o mais doloroso
martírio são o mais caro e desejado galardão para o seu sacrifício. Assim pois, o pensamento dirigido de
forma contínua ao grande fim da sua vocação gera necessariamente nos alunos do insto. o verdadeiro espíri-
to de sacrifício.
2892
Eles formam-se nesta disposição essencialíssima tendo sempre os olhos fixos em Jesus Cristo, amando-o
ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das
almas. E, renovando frequentemente a sua oferta a Deus, incluídas a saúde e a vida, em certas circunstâncias
de maior fervor, fazem todos juntos em comum uma formal e explícita consagração a Deus de si mesmos,
oferecendo-se cada um, com humildade e confiança na sua graça, também ao martírio.
Formados nestas normas, os nossos candidatos não podem não tornar-se bons instrumentos nas mãos de
Deus e nas dos seus legítimos representantes, para colaborar nesta difícil empresa.
2893
O que digo do instituto masculino pratica-se igualmente no das Pias Madres da Nigrícia, cujas noviças se
educam segundo o mesmo espírito.
2894
Além disso, é-me grato observar a V. Em.a que são actualmente muitos os jovens de valia que solicitam o
ingresso na casa masculina de Verona; e espero no Senhor que esta possa fornecer autênticos apóstolos, e
não poucos, em favor da infeliz Nigrícia.
2895
O Instituto das Missões para a Nigrícia de Verona tem uma casa filial no Cairo dedicada ao Sagrado Co-
ração de Jesus e fundada na festa da Imaculada Conceição de 1867, cujo objectivo está exposto no Sumário
n.o IV, artigo quinto, pág. 19.
2896
Neste insto. egípcio, que constitui o segundo noviciado e uma escola preparatória de conhecimentos prá-
ticos para os missionários da África Central, dão-se, além do correspondente a outras disciplinas, aulas espe-
ciais sobre de controvérsia africana, que têm lugar duas vezes por semana, sobre os seguintes pontos:
a) Sobre coisas de maior importância e actualidade do ministério dos missionários.
b) Sobre os erros e superstições da África Central
c) Sobre os erros do Islamismo em geral e sobre os particulares dos muçulmanos do Egipto, da Núbia e
dos nómadas da Nigrícia de língua árabe.
d) Sobre os erros dos hereges e cismáticos de todas as classes e ritos em geral e sobre os que em parti-
cular existem entre os hereges e cismáticos do Egipto, que são os coptas, os gregos, os arménios, os anglica-
nos e os protestantes.
e) Sobre os nocivos preconceitos reinantes entre os católicos de todos os ritos no Egipto e entre alguns
monges, sacerdotes católicos orientais, preconceitos que podem ser um obstáculo para o progresso do verda-
deiro Catolicismo romano.
f) Sobre as perniciosas tendências e vícios que reinam entre os católicos europeus no Egipto e sobre o
modo prático de lhes dar remédio.
g) Sobre as máximas diabólicas da maçonaria e sobre os gravíssimos danos produzidos por esta no Ori-
ente.
2897
Graças a este estudo esmerado e consciencioso estabelece-se pouco a pouco um sistema prático, para,
com a graça de Deus, conseguir a salvação das almas.
Além disso, estudam-se minuciosamente os erros, as superstições e as falsas crenças das infiéis muçul-
manas e heterodoxas, compilando assim um Tratado adaptado à capacidade e inteligência das irmãs e das
mestras negras, a fim de que possam utilizá-lo eficazmente para converter e ajudar do melhor modo possível
essas gentes do seu sexo.

Este instituto é composto por:


1.o os sacerdotes missionários
2.o os clérigos e catequistas
3.o os irmãos coadjutores
4.o o catecumenado para os negros
5.o os alunos negros
6.o pequena enfermaria para os negros doentes e abandonados.
2898
Os sacerdotes missionários são os seguintes:
1.o P.e Daniel Comboni, superior, de 40 anos
2.o cón. P.e Pascoal Fiore, vice-superior, de 34 anos
3.o P.e Bartolomeu Rolleri, de 30 anos
4.o P.e José Ravignani, de 37 anos
5.o P.e Estanislau Carcereri M. I., de 29 anos
6.o P.e José Franceschini M. I., de 25 anos
7.o P.e Vicente Jermolinski, de 32 anos
8.o P.e João Losi, de 30 anos
9.o P.e Pedro Perinelli, de 29 anos
10.o P.e Calis Jerusalemitano, clérigo de teologia, de 21 anos.
2899
Além disso, a dez minutos de distância do instituto dos negros do Cairo, está a casa das negras, consagra-
da ao Sagdo. Coração de Maria e fundada igualmente em 1867, com o objectivo de formar boas missionárias
indígenas para prestarem a sua colaboração no apostolado da África Central. É dirigida pelas Irmãs de S.
José da Aparição.
2900
Neste instituto, para além de outras práticas e ramos de educação, expostos a V. Em. a na minha informa-
ção de 15 de Abril de 1870, e além da escola paroquial do Cairo Velho, cujas aulas se dão em várias línguas
exclusivamente por mestras negras, há uma escola interna, na qual se ensina profundamente o catecismo às
negras para fazer delas úteis e verdadeiras missionárias da sua pátria na África Central.
2901
Nesta escola dá aulas de quando em quando um missionário, que explica e desenvolve as ideias e os ar-
gumentos de prova que para tal fim foram discutidos e esmiuçados no insto. masculino. Segundo as matérias,
tem lugar uma espécie de controvérsia, na qual se ensina a maneira mais eficaz de converter as negras de
qualquer superstição e se expõem os motivos e os exemplos mais práticos e simples para combater e destruir
os erros e as superstições das mulheres pagãs e muçulmanas.
2902
Comprovámos, pela experiência, que o instituto das negras do Cairo é um importante elemento de aposto-
lado para as negras residentes no Egipto. Por as verem tão bem instruídas e educadas, por conversarem com
elas e por as ouvirem cantar na igreja, muitas, mesmo muçulmanas, sentiram o desejo de se tornarem católi-
cas. Nós, depois de reiteradas provas, admitimo-las no seio da Igreja, onde são constantes na perseverança.
Quanto mais útil não será ainda a obra que realizarão nos seus países de origem, a África Central!
A esta casa pertencem:
1.o as irmãs
2.o as mestras negras missionárias
3.o o colégio para as negras
4.o o catecumenado para as negras
5.o a enfermaria para as negras doentes e para as abandonadas.
2903
Neste Instituto, além de outro pessoal, há vinte mestras negras de provada moralidade e capacidade, que
estão maduras para exercer convenientemente o seu ministério na África Central. Além de cada uma delas
conhecer bem o italiano, o francês ou o alemão, todas falam o árabe e algumas a língua materna da tribo da
Nigrícia onde nasceram. Estas vinte mestras negras são muito hábeis na arte e na maneira de instruir as suas
irmãs de raça e de as atrair para a fé, por muito arreigadas que tenham as superstições e por muito fanáticas
que sejam do Islamismo.
2904
Estes dois institutos de negros do Egipto, além de prepararem elementos para o apostolado da África Cen-
tral, servem eficazmente a missão do Egipto – com a autorização do venerável vigário apostólico de lá – e,
de maneira particular, ajudam os negros residentes no Cairo, onde gemem na mais triste situação, como fica
exposto nas duas informações publicadas no fascículo correspondente a Janeiro do presente ano de 1872 dos
Anais da Propagação da Fé.
2905
Na fundação dos institutos de Verona e na manutenção dos do Cairo, erigidos em 1867, gastei 54 000 es-
cudos romanos, todos eles oferecidos pela caridade das pias associações católicas para a propagação da fé e
por benfeitores meus particulares.
2906
Para, a partir de agora, tomarmos a nosso cargo o vicariato da África Central, podemos dispor, hic et
nunc, do seguinte pessoal:
8 sacerdotes missionários
9 irmãos coadjutores
4 irmãs, entre elas uma betlemita
20 mestras negras
2907
Passando agora a falar do estado actual do vicariato da África Central, é preciso assinalar a V. Em. a que a
acção apostólica dos antigos missionários, entre os quais eu também me encontrava, se desenvolveu só na
parte oriental do vicariato, quer dizer, desde o trópico do Câncer, na Núbia Inferior, até ao equador, entre os
25o e os 35o graus de long. E. segundo o meridiano de Paris. Das quatro estações fundadas, restam só três:
Schellal, que está a mais de um mês de viagem de Cartum, a qual dista dois meses de Gondokoro. A antiga
estação de Santa Cruz, na tribo dos Kich, está destruída.
2908
Ora acontece que sobre esta mesma linha, até às fontes do Nilo, se desenvolveu também a acção conquis-
tadora dos muçulmanos e não tardará muito a seguirem-se as vagas da propaganda protestante.
2909
Sua Alteza o paxá Ismail, vice-rei do Egipto, tanto para engrandecer as suas possessões como para asse-
gurar um reino que lhe sirva de refúgio no caso de complicações políticas, artimanhas da Sublime Porta ou
consequências do enredo da Rússia o lançassem abaixo do trono do Egipto, já realizou em grande parte o seu
plano de conquistar a África Central até às fontes do Nilo. Para esse fim, serviu-se de toda a espécie de indi-
víduos, desde muçulmanos a protestantes e maçónicos.
2910
Em 1866 tomou definitivamente posse do vasto território dos Schelluk e constituiu com ele uma província
egípcia, cujo mudir, ou governador, reside em Hellah el-Kakah, na margem esquerda do Nilo Branco, nos 10
graus de lat. N.
2911
Em fins de 1869, enviou ao centro da África o protestante inglês Baker com o título de paxá do Sudão, ou
Nigrícia, com sete barcos a vapor, 2600 soldados de todas as seitas e grande soma de dinheiro. E, fazendo
crer à diplomacia que o fim de tal empresa era introduzir a civilização europeia naquelas tribos e abolir e
destruir aí a escravatura, estacionou diversos grupos de soldados nos pontos principais do Nilo Branco, na
foz do Sobat e do Bahr el-Ghazal e entre os Dincas, os Nuer, os Kich e os Eliab, bem como em Gondokoro e
empreendeu a construção de um estrada de Gondokoro ao lago Alberto, ou Luta N’Zige, que é a primeira
fonte do Nilo, descoberta por ele mesmo em 1864 e que dista dois graus de latitude de Gondokoro.
2912
Após esta violenta invasão, a maior parte dos negros do Nilo Branco retiraram-se para o interior, a oci-
dente, para escapar à opressão dos conquistadores, os quais, não obstante a grande severidade do sr. Baker,
arrancam violentamente os pequenos negros do seio das suas famílias, raptam as meninas, maltratam a gente
e exercem barbaramente o tráfico de escravos, como me asseguraram as mais exactas informações do Egipto
e as cartas privadas do sr. Baker publicadas estes dias nos jornais da Alemanha.
2913
Para além de tudo isto, o vice-rei do Egipto tem firme intenção de prolongar o caminho de ferro do Alto
Egipto até Cartum pelo deserto de Atmur e estabelecer a navegação a vapor no Nilo Branco e nas nascentes
do Nilo, que são lagos imensos, onde o clima é suave e saudável. Pelo que, dentro de poucos anos, se contará
com o caminho de ferro de Alexandria até Cartum, com a navegação a vapor de Cartum até Gondokoro, com
a estrada de Gondokoro até ao lago Alberto e com o comércio europeu até às nascentes do Nilo. E talvez
com o desenvolvimento deste progresso material (de que as missões da África Central poderão aproveitar
para as comunicações) se seguirá naquelas regiões a depravação produzida pela pestífera influência das pro-
pagandas muçulmana, protestante e maçónica; e, quanto mais tarde o apostolado católico chegar àquelas
regiões, maiores obstáculos e oposição encontrará.
2914
Perante este estado de coisas, vendo a perseverante energia dos inimigos da religião, que se arriscam aos
maiores perigos naquelas remotas terras, e o espectáculo de mais de setenta europeus, entre alemães, holan-
deses e ingleses, que participam na expedição de Baker, enfrentando neste momento o abrasador clima afri-
cano por uma glória passageira e por interesses mundanos, parece-me que não devem ficar atrás o zelo cató-
lico e a acção benéfica da Igreja. E possuindo já a missão uma grande Casa em Cartum, mais uma importante
estação em Gondokoro, que é a base de operações para estender os nossos esforços até às nascentes do Nilo,
onde existe um clima saudável, e conhecendo já nós as principais línguas, os costumes e o carácter dos povos
que habitam as margens do Nilo Branco, não seria conveniente abandonar a ideia de evangelizar as vastas
tribos que constituem a parte oriental do vicariato.
2915
Embora se torne oportuno desdobrar a nossa actividade ao longo dessa grande linha, que, desde Schellal e
Cartum, se prolonga até às nascentes do Nilo, não se deve perder de vista o centro do vicariato e em especial
as tribos interiores dos negros que habitam o Sul e o Sudoeste do Cordofão e de Darfur, como seriam os Te-
qalek, Gebel Nuba, Fertit, Birket, Abodima, Ming, etc., os quais, por se encontrarem longe das comunica-
ções ordinárias da pretensa civilização moderna e menos expostos à nociva influência dos muçulmanos e dos
aventureiros europeus, são por isso mesmo mais simples e de melhores costumes e, portanto, mais fáceis de
evangelizar. A chave para entrar naquelas tribos do interior é o Cordofão, cuja capital, El-Obeid, é sede do
governador egípcio, está em comunicação com o Cairo por meio de correio semanal e é povoada na sua mai-
or parte por negros provenientes das tribos do interior referidas.
2916
Bem ponderadas estas circunstâncias, depois de ter submetido a sério exame tudo o que realizaram os
missionários da África Central, com os quais partilhei alguns anos de fadigas daquele difícil apostolado e,
depois de ter meditado sobre todas as vicissitudes, os estudos, as explorações e as sábias observações feitas
pelo falecido pró-vigário Knoblecher, que sem dúvida serão conhecidas de V. Em.a, e que, em parte, estão
recolhidas nos Anais da Sociedade Mariana de Viena, não devo esconder a V. Em.a Rev.ma que repassei os
livros e os trabalhos escritos em diversas línguas pelos mais célebres viajantes que, no século passado ou no
presente, visitaram uma ou outra parte das regiões centrais incluídas no vicariato, penetrando nelas a partir
do Norte ou do Nordeste ou até da parte austral. Entre esses, a alguns dos quais conheci bem e pessoalmente,
figuram os seguintes na história da África Central:

Poncet, que penetrou lá no ano 1698


Pater Krumps 1701
Browne 1793-1796
Hornemann 1798
Xeque Mohamed Ibn-Omar el-Tansi 1803
Burckhardt 1816
Cailland 1817
Drovetti 1818
Edmond Stane 1819
Lyon 1819-1820
Minutoli 1820
Sultão Taima 1821
Maior Denham
Clapperton 1822
Oudney
Mohamed Bey 1823
Rüppel 1824
Pacho 1826
Belzoni
Brocchi
Limant de Bellefon 1827-1832
Prudhoe 1829
Moseki 1832
Hotroyd 1837
Russeger 1838
Thibaut 1838-1860
Kotscky 1839
D’Arnaud
Werne
Pallme
Figari 1844
Hudson
Brun Rollet 1844-1859
Lepsius 1845
Dr. Penay 1846-1860
Richardson 1846-1851
John Petherick 1847-1859
Brehm
B(...)ore de Müller 1848
F. Fresnet
Dr. Over 1849
Bayard Taylor 1851
Lafargue 1851-1870
Barath, o mais respeitável de todos 1852-1864
Em. Dandol 1853
De Schlieffen 1853
Latif Effendi o De Bono 1853-1866
Vogel 1854
Malzac 1854-1861
Vayssière 1854-1863
Irmãos Poncet 1854-1864
D’Escayrat de Lauture 1855
Rossi 1856
Th. de Heugling 1856-1860
Hansal 1857
Hartemann
Loian
Karnier 1861
Speke
Grant
Baker 1864-1872

2917
Durante muitos anos submeti a sério exame e ponderei minuciosamente quanto em substância escreveram
estes ousados viajantes da África Central, prestando atenção aos caminhos seguidos, à índole das tribos visi-
tadas, as tradições e a história verdadeira ou falsa daqueles povos; e possivelmente estudei tudo o que escre-
veram e, quase diria, tudo o que na Europa se podia saber a respeito daquelas vastas regiões pouco menos
que desconhecidas, que se estendem entre os confins do vicariato.
Pois bem, tido tudo em conta e depois de longa e madura reflexão, estou profundamente convencido de
que o meio melhor e mais seguro de alcançar o objectivo da Santa Sé com as forças actuais fornecidas pelos
institutos de Verona e do Egipto, e com as que fornecerão, é brevemente descrito no que se segue.

PLANO DE ACÇÃO APOSTÓLICA

2918
Permito-me antes de tudo dizer que é muito conveniente que a S. C. não faça, por agora, nenhuma mu-
dança quanto aos limites do vicariato e mantenha os estabelecidos pelo decreto apostólico do dia 3 de Abril
de 1846, subtraída a delegação do deserto do Sara, confiada em 1868 ao arcebispo de Argel, porque, desta
maneira, fica para os novos missionários um campo mais variado e extenso para fazerem, com o objectivo de
se estabelecerem, uma boa escolha das regiões bastante salubres e das tribos e povos mais simples e aptos
para receberem a fé e a civilização cristãs.
2919
Na actual situação dos países e dos povos da África Central, parece-me que convém não perder de vista,
mas pelo contrário prestar a mais séria atenção à parte oriental do vicariato e, ao mesmo tempo, é mister
concentrar o essencial da nossa actividade na parte central do mesmo e especialmente a sul e sudoeste do
Cordofão e de Darfur.
2920
A base de operações para a parte oriental do vicariato é Cartum e para a parte central El-Obeid, capital
do Cordofão. Portanto, eu seria da subordinada opinião de que se destinassem alguns missionários a Cartum
e, ao mesmo tempo, se criasse uma nova estação em El-Obeid para aí concentrar pouco a pouco, após as
mais seguras indagações, as mais selectas das forças preparadas pelos institutos de negros do Egipto. Uma
grande casa com jardim e com terreno para construção duma igreja estaria à minha disposição na capital do
Cordofão no dia em que V. Em.a se dignasse dar o seu venerado consentimento para a fundação da projecta-
da estação.
2921
Os motivos para conservar Cartum são os seguintes:
1.o Desde Cartum está-se em condições de velar pelos interesses dos povos do Nilo Branco e de ter os
olhos postos nos resultados da actual expedição egípcia, comandada por Baker, a fim de aproveitar o tempo e
a ocasião oportunos para destinar missionários a alguma tribo do Nilo Branco, restabelecer a antiga residên-
cia de Gondokoro e, chegado o momento, prolongar a nossa actividade até às nascentes do Nilo.
2.o Cartum é a última residência de um cônsul austríaco, por meio do qual, em caso de necessidade, po-
dem ser tutelados os interesses da missão em todos os extensos domínios egípcios na África Central.
3.o Em Cartum há alguns católicos para assistir e muitos negros para ganhar para Cristo.
4.o Em Cartum, além da casa, há o quintal para tratar e melhorar em benefício da missão.
2922
Os motivos para fundar uma nova estação em El-Obeid são os seguintes:
1.o Quase todos os alunos e mestras negros das nossas casas do Egipto provêm do Cordofão e das tribos
dos seus arredores, que constituem o centro do vicariato.
2.o Nenhuma seita não católica nem nenhuma loja maçónica se introduziram ainda no Cordofão para per-
verter as suas gentes.
3.o O Islamismo é muito fraco entre os muçulmanos do Cordofão e entre as tribos nómadas árabes que
vagueiam pelas zonas dos arredores.
4.o Grande parte dos habitantes de El-Obeid são pagãos e contrários ao Islamismo.
5.o El-Obeid está separada do centro de acção do Governo egípcio, que na actualidade se concentra na li-
nha oriental do vicariato e, portanto, ainda longe da nociva influência dos maçónicos e dos incrédulos e per-
versos europeus, que ordinariamente o Governo egípcio arrasta consigo.
6.o El-Obeid está em comunicação directa com muitas tribos do centro do vicariato.
7.o A El-Obeid afluem cada ano muitos régulos ou chefes das tribos do interior para levar o seu tributo ao
governador egípcio do Cordofão. Isso facilita à missão entabular contactos com os mesmos para se estabele-
cerem a pouco e pouco nos seus territórios.
8.º Sendo os nossos missionários os primeiros a estabelecer-se definitivamente no Cordofão, poderão
conseguir mais facilmente que prevaleçam na alma daquelas gentes os princípios católicos, frustrando assim
a acção das seitas protestantes no caso de elas se estabelecerem aí mais tarde.
9.o A vida no Cordofão é barata e a água de lá boa para a saúde.
2923
10.o Os nossos missionários exploradores, que se encontram actualmente no Cordofão, confirmam-me
todos estes dados, que eu conhecia há muito. Foram recebidos bastante bem por aquele governador – graças
às cartas de recomendação que no passado Verão S. M. o Imperador Francisco José I ao I. R. agente e côn-
sul-geral austríaco no Egipto –, e por turcos e pagãos e os poucos hereges coptas residentes em El-Obeid
convidaram-nos a estabelecer lá uma escola católica para instruir a juventude.
2924
Por todos estes motivos, pois, parece-me necessário ocupar quanto antes Cartum, criar uma nova Estação
em El-Obeid e utilizar a de Schellal como muito oportuno ponto intermédio, reservando-nos para decidir
sobre o terreno, segundo as circunstâncias, se convém ou não estabelecer definitivamente nesta estação um
instituto de educação para negros.
2925
Quanto à residência ordinária do responsável de toda a Missão, parece-me que, por agora, deveria fixar-
se em Cartum, por ser a estação que hic et nunc possui o necessário para as primeiras necessidades, tem rela-
ções com o Nilo Branco e com o Cordofão e está em comunicação postal e telegráfica com o mundo civili-
zado. Se a nossa acção no Cordofão for depois abundante em bons resultados, então será mais conveniente
estabelecer a residência do dito superior na cidade de El-Obeid.
2926
Para chegar a Cartum, normalmente requerem-se dois meses de viagem a partir do Cairo, trinta e cinco
dias de Schellal, quinze dias de El-Obeid e cerca de dois meses de Gondokoro.
El-Obeid está a quarenta dias de Schellal e a dois meses de viagem do Cairo pela rota de Dongola, que se
encontra a 18o de lat. N., e entre os 28 e 29 graus de long. E. do meridiano de Paris. Nesta cidade seria con-
veniente fundar uma estação, como intermediária entre Schellal e El-Obeid.
2927
O correio, por seu lado, vai com muito mais rapidez, funcionando sem interrupção dia e noite através de
meios apropriados, pelo que se faz a rota de El-Obeid ao Cairo em apenas trinta e oito dias. E o transporte
das provisões, das quais se fazia um despacho por parte do defunto pró-vigário Knoblecher, na altura em que
ia ao Egipto, ao rev.mo mons. delegado apostólico, buscar os santos óleos, realizava-se ordinariamente em
cerca de setenta dias do Cairo a Cartum e em quatro meses e meio do Cairo a Gondokoro.
2928
Quanto aos meios para sustentar o vicariato, além da activa cooperação das sociedades de Colónia e de
Viena e de outras menores da Alemanha, seria necessário que a pia Obra da Propagação da Fé de Lião e Pa-
ris prestasse para este fim uma importante ajuda. Tem muito zelo e uma boa disposição pela África Central, a
julgar pelo que mais de uma vez me afirmou e pelas suas grandes promessas; ainda assim, uma carta de re-
comendação de V. Em.a ajudaria por certo a alcançar esse fim, sendo isso necessário para as necessidades de
um vicariato tão vasto e difícil, com grandes gastos.
2929
De resto, como até agora não se conseguiu nunca implantar estavelmente a fé na África Central e como
pelas graves dificuldades encontradas se produziu desalento não só nas corporações capazes de enviar missi-
onários para esses lugares, mas também na Sociedade Mariana e em todo o Império austríaco, neste momen-
to, ao retomar a santa obra, impõe-se caminhar passo a passo e proceder com toda a lentidão e prudência, que
são as condições essenciais para assegurar o êxito da santa empresa. A primeira coisa que se deve procurar,
ao retomar as actividades deste árduo vicariato, é provar com factos que o estabelecimento de uma regular
missão na África Central é possível e realizável com o pessoal indígena que se vai preparando. Além disso é
necessário que o campo onde vamos trabalhar seja vasto, para assim se poderem escolher os lugares onde
seja menos difícil estabelecer-se e, ao mesmo tempo, dedicar todos os nossos desvelos às tribos e populações
negras que se mostrarem mais aptas para receber o evangelho.
2930
Depois, quando com os elementos fornecidos pelos nossos institutos de Verona e do Egipto tivermos de-
monstrado com factos que é possível uma missão bem organizada na África Central e que, paulatinamente,
pode tornar-se estável e duradoira, então o zelo das sociedades para a propagação da fé reanimar-se-á, bem
como o de outros insignes benfeitores; os ânimos voltarão a reacender-se nas corporações eclesiásticas e
religiosas que estão em condições de se dedicarem à evangelização da Nigrícia, algumas das quais, especi-
almente entre as recentes e de bom espírito, estariam dispostas a colaborar dentro de pouco. O Instituto de
Verona, com a graça de Deus, ajudá-las-á em tudo o que puder, tanto alojando temporariamente os membros
das mesmas nas suas casas do Egipto, para que se aclimatem e se preparem para o apostolado no interior,
como acolhendo-os nas suas estações da África Central e assistindo-os de toda a maneira possível até que,
consolidados na experiência prática do ministério africano, possam tomar a seu cargo determinadas missões
no interior, que posteriormente a Santa Sé vier a erigir em outras tantas prefeituras ou vicariatos apostólicos.
2931
Termino esta informação permitindo-me observar a V. Em.a a enorme e essencial importância dos institu-
tos de negros do Egipto, nos quais os candidatos se aperfeiçoam na sua vocação e se aclimatam e treinam no
exercício do ministério apostólico e onde também se formam juntamente com o clero indígena todos os ou-
tros elementos para o apostolado e se preparam de forma imediata os materiais para apertar o assédio ao
formidável baluarte da Nigrícia.
2932
Acrescento, além disso, uma fervente súplica a V. Em.a para que se digne assistir-nos com a sua sabedo-
ria em todas as coisas da santa empresa, uma vez que nós temos absoluta necessidade de ser guiados e regu-
lados pela incomparável prudência e sabedoria da S. C. e, estando nós decididos a não dar um único passo no
difícil e perigoso caminho sem escutar antes as veneráveis ordens e as sábias disposições da Propaganda, a
qual é soberana absoluta dos nossos sentimentos, das nossas acções e da nossa vida.
Beijando-lhe a sagrada púrpura, tenho a honra de me subscrever com toda a veneração
De V. Em.a Rev.ma
Hum., devot.mo e obed.mo filho
P.e Daniel Comboni

N.o 435 (407) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


«Les Missions Catholiques» 146 (1872), p. 253

Roma, 13 de Março de 1872

Breves notícias.

N.o 436 (408) - À SOCIEDADE DE COLÓNIA


«Jahresbericht...» 20 (1872), pp. 54-58

Roma, 29 de Março de 1872

Ao presidente e aos membros da Sociedade para o Resgate


e Educação dos Meninos Negros, de Colónia

2933
Ao enviar-lhes, senhores, a informação sobre a nova expedição ao Cordofão, empreendida imediatamente
após os senhores me comunicarem, na reunião de 4 de Setembro do ano passado, a decisão, rica em conse-
quências, de me concederem 20 000 francos, é meu dever explicar-lhes de forma breve as razões que me
determinaram a levar a cabo essa expedição, que em tão pouco tempo deu magníficos resultados. Os senho-
res discutiram este assunto no dia 4 de Setembro de 1871 e fizeram com que as palavras fossem seguidas de
factos. Os senhores pronunciaram-se pelo «Cordofão» e só 210 dias depois, o primeiro de Abril de 1872, a
expedição ao Cordofão era coisa terminada e a relação sobre ela está já em suas mãos! A Igreja e a civiliza-
ção cristã deverão agradecer-lhes por isso.
2934
Tendo conseguido muito bons resultados nos meus institutos de negros do Egipto, considerei chegado o
momento de avançar para o interior da África, para, com o que se conseguisse, dispor da prova mais convin-
cente de que é possível e realizável a evangelização desta imensa parte do mundo, que, durante tantos sécu-
los, resistiu obstinadamente às mais heróicas tentativas da Igreja e da civilização. E isto, a dizer a verdade, só
se pode realizar mediante os elementos que formei com tal fim nos institutos do Cairo; quer dizer, a regene-
ração cristã da Nigrícia deve levar-se a cabo por meio dos próprios negros.
2935
Eu também tomei parte nas laboriosas empresas do falecido pró-vigário Knoblecher e dos seus missioná-
rios, os quais se dirigiram à parte oriental do grande vicariato da África Central, que é o mais vasto e povoa-
do do mundo. Avançando sempre ao longo do Nilo, passámos os trópicos e chegámos ao equador, onde de-
senvolvemos a nossa actividade missionária. Encontrei-me entre as gentes do Nilo Branco e aí fiz muitos
estudos e sofri muito. Tratei pessoalmente com os grandes viajantes Linant Bey, Mr. D’Arnaud, Speke,
Grant e Baker e mantive muitas conversações com os jilabas e com os mercadores árabes, os quais atraves-
sam continuamente o país e conhecem-no melhor que os viajantes europeus. Além disso, li devidamente
quanto se publicou sobre o tema, e investiguei sobre o assunto o que fizeram os exploradores desde 1698 até
ao presente.
2936
Foi assim que cheguei à convicção de que ao fundar uma missão é absolutamente necessário estabelecê-la
longe das margens do grande Nilo Branco, ou seja, no interior da região, porque a experiência ensinou-nos
que aqueles lugares, especialmente depois da estação das chuvas equatoriais, são funestos para a saúde dos
europeus. Sempre me tinham assegurado que a sul e a este do Cordofão havia montes, rios, lagos e bosques
deliciosos e hoje vemos plenamente confirmadas essas afirmações pelas notícias que acabo de receber e pe-
las explorações que as precederam.
2937
Consequentemente, o Cordofão presta-se de forma ideal para aí fundar uma missão que se converta num
centro de acção apostólica, para começar de novo a pregar o Evangelho e a levar a civilização às numerosas
tribos das regiões equatoriais, que vivem ainda nas trevas do paganismo.
Parece-me que a escolha do Cordofão foi tanto mais feliz, quanto a maior parte dos alunos dos nossos ins-
titutos do Egipto, que provêm das tribos das regiões centrais, passaram pelo Cordofão.
2938
Todavia para verificar melhor a exactidão destas observações e informações, considerei muito importante
e necessário enviar em primeiro lugar quatro exploradores ao Cordofão, sob a guia do muito diligente P. e
Carcereri, para sondar o terreno e ver se era possível fundar nalgum lugar por lá uma missão em que colabo-
rassem coadjutores indígenas e criar assim um centro de acção para o apostolado no interior da Nigrícia.
2939
Indiquei-lhes que fossem pelo deserto do Atmur e por Cartum, ordenando-lhes que fizessem profundas
averiguações sobre as condições actuais na zona do Nilo Branco. Também os encarreguei de se informarem
sobre os resultados da última expedição de Sua Alteza o quedive a Gondokoro e às nascentes do Nilo, dirigi-
da por Samuel Baker e que, além disso, tentassem conhecer o modo mais seguro e fácil de penetrar no Cor-
dofão. Os resultados destas indagações superaram as minhas expectativas.
Em oitenta e dois dias, os nossos quatro viajantes alcançaram felizmente a capital do Cordofão, El-Obeid,
que, segundo o P.e Carcereri, é uma cidade de cem mil habitantes, dois terços dos quais são escravos negros
pagãos. Esta cidade fica situada numa zona alta e o seu clima pode considerar-se bom. A partir daí, é fácil ir,
pouco a pouco, penetrando nas tribos do Sul e do Oeste, de modo que, no futuro, com a ajuda dos nossos
alunos indígenas dos institutos do Egipto, se poderá resolver o grande problema de fazer dos habitantes da
África Central cristãos e homens civilizados, coisa pela qual até agora se trabalhou em vão, desde há mais de
dezoito séculos.
2940
Meus senhores, com a mais íntima imploração do meu coração, dirijo-me a vós para que façam um apelo
a todos os católicos alemães, a todas as sociedades católicas e sobretudo aos bispos, que são tão solícitos e
caritativos, não só para conseguirem uma maior solidez nos meios de ajuda à Sociedade de Colónia, que é a
autora desta grande obra de regeneração cristã da Nigrícia, mas também para recomendar a todos os mem-
bros desta pia sociedade para o resgate e a educação dos pobres negros que elevem cada dia por nós fervoro-
sas orações a Deus Omnipotente, a fim de que na sua infinita misericórdia se digne abençoar as nossas tenta-
tivas e esforços em favor dos povos negros, aos quais agora procuramos nas suas próprias regiões. Da funda-
ção desta missão no Cordofão pode depender a salvação dos cem milhões dos pobres filhos de Cam que po-
voam o vasto espaço interior de África.
2941
Quanto a mim e aos meus companheiros da missão, os senhores sabem com quanto entusiasmo consa-
gramos a nossa vida ao bem desta parte do mundo, que é ainda quase desconhecida e que jaz em tão grande
miséria, tratando de ganhá-la para Cristo. O nosso único programa, que com a ajuda de Deus e com todos os
meios da prudência e da circunspecção queremos realizar, é este: «NIGRÍCIA OU MORTE» «AU NIGRI-
TIA AUT MORS».
Tenham, senhores, a certeza da minha mais profunda gratidão para com essa sociedade pela sua entusiás-
tica ajuda à nossa obra e para com todos os seus exímios membros pela sua generosa caridade.

Expressando-lhe a minha mais distinta estima e afecto, honro-me de me declarar

Seu devot. servidor


P.e Daniel Comboni
Director dos instos. de negros do Egipto

Original alemão
Tradução do italiano

N.o 437 (1157) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOGC, v. 999, f. 553

Roma, Março de 1872


Palavras de introdução de Comboni ao apêndice da Posição.

N.o 438 (409) - A PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


APFL, Afrique Centrale

V. J. M. J.
Roma, 1 de Abril de 1872

Aos presidentes e aos membros do Conselho


da Obra da Propagação da Fé

Senhores,

2942
Ao enviar-lhes a informação oficial sobre a nova exploração do Cordofão realizada por um excelente
missionário, o P.e Carcereri, devo comunicar-lhes que, tendo verificado um certo bom resultado dos nossos
institutos de negros do Egipto, julguei chegado o momento de continuar para o centro da África, para de-
monstrar com os factos que a evangelização desta imensa parte do mundo, que durante tantos séculos opôs
resistência a todos os generosos esforços da Igreja Católica e da civilização cristã, é possível e realizável
mediante o pessoal indígena formado nas nossas casas do Egipto; quer dizer que, segundo o meu plano, a
regeneração da Nigrícia é possível por meio da própria Nigrícia.
Os fatigantes trabalhos do falecido pró-vigário Knoblecher e dos seus missionários, entre os quais me en-
contrava também eu, dirigiram-se à parte oriental do vicariato da África Central, isto é, ao longo do Nilo
desde o Trópico do Câncer até ao equador.
2943
Por ter passado uns anos entre os negros do Nilo Branco, ter viajado muito pela África interior e ao mes-
mo tempo ter estudado profundamente as observações de todos os maiores viajantes da África Central desde
1698 até hoje, cheguei à convicção de que era preciso estabelecer uma missão no interior, nas pequenas mon-
tanhas, longe das grandes margens do Nilo Branco, que, depois da época das chuvas equatoriais, é muito
perigosa para a saúde dos europeus. Ora, depois dos conselhos recebidos, pensei que o Cordofão podia pres-
tar-se admiravelmente para fundar uma importante missão, que fosse o centro da acção apostólica ao esten-
der a pregação do Evangelho pela enorme quantidade de povos negros da África Equatorial, que gemem
ainda nas trevas do paganismo; e tanto mais que quase todos os nossos alunos negros dos institutos do Egipto
provêm do Cordofão e das tribos vizinhas.
2944
Porém, para melhor verificar a verdade das minhas indagações e impulsionado pelo entusiasmo do P. e
Carcereri e de todos os missionários do Egipto, julguei prudente e necessário, antes de tudo, mandar quatro
exploradores ao Cordofão, sob a direcção do pio e solícito P.e Carcereri, para sondar bem o terreno e ver se
era possível estabelecer uma missão nalgum ponto do interior do Cordofão e criar um centro de acção para
uma eficaz dedicação ao apostolado neste grande e laborioso vicariato. Ordenei-lhes que seguissem a rota do
deserto do Atmur e de Cartum, a fim de que recolhessem os dados mais exactos sobre as condições actuais
do Nilo Branco, que eu tinha visitado em 1858 e 1859, e que me informassem sobre os reais resultados da
última expedição de S. A. o vice-rei do Egipto a Gondokoro e às nascentes do Nilo, dirigida pelo sr. Samuel
Baker e também que se ocupassem de conhecer o caminho mais fácil e seguro para penetrar no Cordofão.
2945
Os resultados desta exploração superaram as minhas expectativas. Os quatro exploradores, após oitenta e
dois dias de viagem, chegaram felizmente à capital de Cordofão, El-Obeid, que é uma cidade, segundo o P.e
Carcereri, de cem mil habitantes, dois terços dos quais são pagãos e escravos. Esta grande cidade está situada
sobre uma zona alta, onde o clima é suportável e de onde nos será possível estendermo-nos paulatinamente a
muitas tribos do Sul e do Oeste; de modo que com os colaboradores indígenas que educamos no Egipto se
poderá, pouco a pouco, resolver o grande problema de evangelizar a África Central, coisa que os factos e a
história de dezoito séculos mostraram até hoje como impossível.
2946
Quando ficarem resolvidos os assuntos que agora estou a tratar com a Propaganda e logo que mons. Ca-
nossa, o bispo de Verona e responsável da minha obra, bem como mons. Ciurcia, vigário apostólico do Egip-
to e a S. C. me autorizarem, partirei do Cairo para Cartum e o Cordofão com uma grande expedição de mis-
sionários, catequistas, agricultores, artesãos, freiras e mestras negras. E arvoraremos pela primeira vez o
estandarte da cruz, lá onde nunca brilhou a luz do Evangelho.
2947
Por isso, senhores, dirijo-me a vós com lágrimas nos olhos e com todo o ardor da minha alma para vos
suplicar insistentemente que nos presteis o vosso apoio, não apenas com uma considerável ajuda em dinheiro
mas também recomendando aos piedosos sócios da Propagação da Fé que elevem todos os dias fervorosas
preces a Deus Omnipotente, a fim de que a sua infinita misericórdia se digne abençoar os nossos passos e as
nossas laboriosas tentativas em favor da conversão dos povos da África Central. Da criação da missão do
Cordofão, como também dos nossos institutos de negros do Egipto, pode depender a salvação de cem mi-
lhões de desditosos filhos de Cam que neste vasto vicariato se encontram ainda nas trevas e sombra da morte.
2948
Por nossa parte, eu e os meus caros companheiros deste grande apostolado, saídos do Instituto das Mis-
sões da Nigrícia, de Verona, somos mais que felizes por consagrar toda a nossa vida e até morrer por esta
parte do mundo quase desconhecida. O nosso perpétuo programa, que com a graça de Deus levaremos a cabo
com todos os meios da prudência e da sabedoria humana, será sempre este: «Ou Nigrícia ou Morte!»
Entretanto, senhores, envio-lhes a informação oficial da exploração dos meus missionários, que o meu ca-
ro companheiro Carcereri me acaba de mandar da capital do Cordofão.
Dignem-se aceitar a afirmação do meu respeito e agradecimento eternos, com os quais tenho a honra de
me declarar

Dos senhores devtmo. serv.


P.e Daniel Comboni
Superior dos instos. de negros do Egipto

Original francês
Tradução do italiano

N.o 439 (410) - A MONS. JOSÉ MARINONI


APIME, v. 28, pp. 17-21

V. J. M. J.
Roma, 11 de Abril de 1872
Monsenhor,

2949
Há oito dias que recebi a sua veneradíssima carta e não respondi imediatamente, esperando para ver se me
era possível fixar a altura da minha partida.
Estou em Roma sobre brasas por não poder ir já para o Egipto. O nosso em.o cardeal prometeu-me desde
o princípio que na primeira congregação de Abril seria tratada a minha Posição e, para tal fim, desde há mais
de vinte dias, está impresso o sumário, que chega a 87 grandes páginas. Só faltava o resumo, que o minuta-
dor, com base no sumário, tinha que fazer.
2950
O facto é que, apesar de estar sempre em cima do nosso bom minutador Giacobini, pressionando-o e em-
purrando-o, até agora, pela muita correspondência ou por outros motivos, não o fez e, entretanto, foi fixada a
congregação para o dia 15 do corrente e a minha Positio não se trata. O Em.o card. Barnabó e mons. Simeoni
asseguraram-me, juntamente com o minutador, que se tratará na próxima, prevista para o fim de Abril ou
princípios de Maio. Eu estou lá a insistir, pelo que espero poder partir em meados de Maio; porém, não posso
estar completamente seguro enquanto estes molengões romanos se não mexerem. Para dizer a verdade, em-
bora o nosso Giacobini seja eficiente e activo, é preciso dizer que trata de demasiados assuntos: propaganda,
professorado, círculos católicos, etc.
2951
His positis, quid faciendum? Se o bom jovem puder esperar um mês ou mês e meio, eu levá-lo-ei com
prazer para o Egipto; se não puder esperar, julgo que, tal como veio sozinho a Roma, pode ir até Trieste e
embarcar-se no Lloyd. Lá posso recomendá-lo a mons. Schneider, presidente do cabido, e depois fazer com
que um dos meus missionários do Cairo se desloque a Alexandria para o receber e conduzir ao Cairo ou fazê-
lo até ao Suez, etc. Em suma, o senhor não tem mais que mandar, que eu farei o que me indicar.
Se deixo Roma antes de resolver os meus assuntos, estes podem ficar para as calendas gregas. O senhor
sabe bem como funcionam as coisas.
2952
Em todo o caso, ordene; quando souber o dia da minha Posição, escrever-lhe-ei, porque então poderei fi-
xar a altura definitiva da partida. Saúde a todos da minha parte. Quanto ao boletim, dei-o às Irmãs de S. José
da Aparição, na Praça Margana, rogando à superiora que o difunda entre as damas romanas que vão ao seu
instituto trabalhar para a Obra Apostólica para as Missões, da qual ela é presidente. A semana passada distri-
buíram-se mais de duzentas casulas, e cálices, e grande quantidade de roupa de Igreja, etc. Eu falei por si,
mas cheguei tarde. Em Janeiro de cada ano, faça a petição para todas as suas missões e assim anualmente
receberá paramentos sagrados, cálices, etc.
A superiora fez, depois, a assinatura de um número do Boletim. E espera fazer com que outros também o
assinem. Esta é a sua direcção:
Mui Rev.da Madre Superiora
das Irmãs de S. José da Aparição
Piazza Margana, 18 – Roma

Na esperança de lhe escrever em breve, recomendo-me às suas orações e declaro-me nos Sagrados Cora-
ções de J. e de M.

Seu hum. e devot.mo filho


P.e Daniel Comboni m. a.
2953
Congratulo-me com o piedosíssimo P.e Scurati pelo seu novo lugar. Porém, sobretudo, aplaudo a genero-
sa ideia do senhor. No caso de surgirem problemas, conviria que o bom jovem fosse para Trieste e se apre-
sentasse a mons. Schneider da minha parte, que depois lhe faremos continuar a viagem.
S. S. está de perfeita saúde e cheio de esperança.

N.o 440 (411) - AO PADRE GERMAN TOMELLERI


APCV, 1458/306

V. J. M. J.

Roma, 24 de Abril de 1872


Muito rev.do e caro padre,

2954
Se até agora não respondi à sua gentilíssima carta de 7 de Abril, é porque estive doente e tive muito que
fazer. Agradeço-lhe de todo o coração a sua bondade, ao dar-me aqueles conselhos saudáveis, e asseguro-lhe
que tirarei proveito deles.
Quanto à minha superiora, pelo que de facto globalmente revelou, eu, o bispo, P.e Squaranti e todos os
que a conheceram, julgamos ser uma grande mulher e creio que não fica atrás nem da Oberbizer, nem da
Nespoli, que, em minha opinião, são as superioras mais cabeçudas de Verona. Esperemos que dure.
2955
Pelo que respeita a Ângela Rossolani, tenho em minhas mãos uma carta que me escreveu na Semana San-
ta, na qual me diz ser feliz por estar no meu instituto e me suplica com lágrimas nos olhos que a admita defi-
nitivamente (é que eu só a admiti provisoriamente). E como não só era demasiado velha mas também pouco
saudável, pretendia comer normalmente na sexta e no sábado e era extremamente tagarela e, o que era pior,
absolutamente inadequada e incapaz de se tornar numa verdadeira religiosa, ordenei que a mandassem para
casa. Ela resistiu durante um mês; porém, tendo chegado a uma situação muito desagradável, a superiora
decidiu-se a ler-lhe as minhas cartas e foi-se embora. Se não fora capaz de estar no convento em Bréscia
quando era jovem, como iria conseguir agora, que já é velha e adoentada?
2956
Quanto às outras que se apresentaram, eram todas criadas que vinham para escapar da fome, pelo que
mandei que não se aceitasse nenhuma. Por isso, estão lá somente as duas noviças que eu levei, as quais vão
muito bem e estão contentes. Eu encarregar-me-ei de que venham postulantes forasteiras e aptas. Com as
criadas de Verona não se converte a África. Por outro lado, preciso de estabelecer a casa-mãe em Verona
cidade, para que a superiora possa examinar bem as candidatas. Montório tornar-se-á numa casa filial.
2957
Ontem recebi carta do Cordofão, datada de 6 de Março. O P.e Carcereri e Franceschini estão muito bem e
contentes. Têm uma grande casa em El-Obeid (cidade de cem mil habitantes) e brilha a melhor esperança de
que faremos uma grande missão. Com data de 12 de Fevereiro, mandou-me a relação oficial da exploração,
que foi impressa na imprensa secreta da Propaganda. Quando for a Verona, comunicar-lhe-ei tudo. Entretan-
to, encontram-se perfeitamente bem e espero abraçá-los no próximo Outubro. Franceschini está forte como
um touro. Porém, desde que partiram do Cairo não receberam notícias nossas, excepto um telegrama que lhes
chegou via Cartum. Talvez as cartas se tenham extraviado. Reze por mim e por eles. Hoje vi o Santo Padre,
que goza de maravilhosa saúde. Vi também Bacchichetti e Guardi. Dê muitas saudações a seus irmãos e ro-
go-lhe que faça chegar quanto antes a carta junta ao P.e Carcereri.
Recomenda-se às suas orações

Seu af.mo e reconhecido


P.e Daniel Comboni

N.o 441 (412) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

V. J. M. J.
Roma, 27 de Abril de 1872

Minha cara e venerável senhora,

2958
Que contente estou de ter recebido a sua carta e de saber que em breve chegará a Roma! Fui anunciá-lo ao
nosso pai, o card. Barnabó, e ele respondeu: «E és tão ingénuo para crer que a madre geral virá rapidamente
a Roma? Eu só acreditarei quando a vir aqui: as religiosas não dizem sempre a verdade e vós padres também
não dizeis sempre a verdade.» Mas eu respondi-lhe que a madre virá a Roma na primeira quinzena de Maio.
Rogo-lhe que traga consigo o magnífico relatório da congregação que a irmã Catarina leu segunda-feira
passada ao card. Barnabó, porque desejo tomar nota de todas as casas e dos seus progressos para o publicar
na Alemanha e na França. Na Alemanha tem sido publicado desde 1869 o meu relatório sobre a congrega-
ção; em Roma ser-lhe-á mostrado pela Ir. Catarina.
2959
Não pode vir a Roma numa circunstância melhor do que a presente, porque, em meados de Maio, os car-
deais da Propaganda celebram uma congregação especial para mim, para me confiarem o mais extenso vica-
riato da África e do mundo. Os prelados da Propaganda estão bem-dispostos comigo, mas eu não posso or-
ganizar uma missão sem as irmãs. Portanto, espero que o senhor me conceda todas as irmãs orientais que tem
em Marselha. No Cordofão comprei uma grande casa árabe com um jardim espaçoso e paguei-a em parte.
Foi a primeira vez na história que se levantou a cruz no Cordofão, que se celebrou lá a santa missa e que as
irmãs irão até àqueles lugares para difundir o Evangelho. A cidade de El-Obeid tem 64 000 pagãos e 40 000
muçulmanos. Escrevem-me que se lá tivessem duas das nossas negras do Cairo, poderiam fazer um bem
imenso.
Que bem não farão então sete ou oito Irmãs de S. José com as irmãs orientais? Eu penso que farão mila-
gres. Venha a Roma e falaremos longamente; mas venha na primeira metade de Maio; é necessário. Espero
que esteja aqui na próxima semana.
2960
No que toca à minha dívida ao sr. Lourenço, também falaremos em Roma. Ficarei bem contente se a se-
nhora pensa em consciência que eu lhe posso fazer a si todo o pagamento, espero que dentro de pouco.
E sóror Maria Bertholon? Há já tempo que não me escreve da África do Sul. As negras gostam muito dela
e não seria má ideia destiná-la a uma das nossas casas da África Central.
Apresente os meus respeitos à madre assistente, essa excelente mulher do Evangelho. Pode estar orgulho-
sa da sua congregação!
Saúde da minha parte sóror Genoveva. Asseguro-lhe que o seu nome não será esquecido nunca no Cairo,
pelo muito que faz. Foi ela que inaugurou a missão de caridade da mulher católica na capital do Egipto e
trabalhava por dez. Devido a isso, ainda se continua a falar bem dela no Cairo e sempre se falará, pois fez um
grande bem.
2961
Aqui em Roma, a madre tem uma estrela de caridade, de talento e de habilidade na pessoa da Ir. Catarina.
Digo-lhe antecipadamente que vai ficar bem contente com ela, porque, no meio de tantas dificuldades, sabe
agir com a prudência e desenvoltura duma pessoa de Deus cheia de experiência. Os cardeais, os nobres, as
princesas, os inimigos e os amigos do Papa, todos a têm em grande admiração e estima. É uma verdadeira
filha de S. José e uma das suas filhas que mais se lhe parecem. Formou-as segundo o seu coração e ela tor-
nou-se muito boa aluna. Todas as outras irmãs são muito boas e piedosas; a sua vontade não é diferente da
das superioras. Tem em Roma uma comunidade modelo.
2962
Destine-me a mim a sua negra. No Cordofão, se ela quiser, casá-la-emos com um régulo.
Falaremos sobre como educar outras irmãs árabes e como atribuir classificações. Porém, entretanto, des-
tine-me todas as que tem em Marselha e que terminaram o noviciado.
Escrevendo para Colónia, faça-o para:

Monsieur Jaimes Müller


Sécrétaire des Vereines des
Heiligen Grabes
À St. Ursule
COLOGNE (Prusse Rhenane).

Eis o endereço.
Ele é o presidente e o factotum da Sociedade. Tudo depende dele.
Recebi cem francos que a senhora me enviou da parte da Sr.a Villeneuve.
Escrever-lhe-ei em breve. Reze por este seu devoto filho

P.e Daniel
Original francês
Tradução do italiano

N.o 442 (413) - A MADAME A. H. DE VILLENEUVE


AFV, Versalhes

J. M. J.
Roma, Piazza del Gesù, 47
15 de Maio de 1872

Minha cara e venerável senhora,

2963
Na próxima terça-feira haverá uma congregação geral dos cardeais no Vaticano relacionada comigo e
com a minha obra; por isso, reze muito por mim e pela minha causa, a fim de que o Espírito Santo inspire o
melhor para os pobres negros.
Agradeço-lhe imenso pelos cem francos que me enviou mediante a madre geral. Deus a abençoará por sua
admirável piedade. Na minha insignificância, eu nunca mais deixo de rezar por si, por Augusto, Désiré, seu
esposo e Maria. Várias vezes pedi a bênção do Papa para si, Augusto e Maria. Ele encontra-se tão bem que
nunca esteve tão forte e tão robusto.
2964
A madre Emilie encontra-se aqui desde sábado e está bem. Ela e sóror Catarina mandam-lhe atenciosas
saudações. Falamos sempre de si e dizemos que ficaríamos felizes se a sr.a Villeneuve e o sr. Augusto esti-
vessem aqui.
Como me encontro muito ocupado por causa da minha congregação cardinalícia, não posso escrever-lhe
mais; mas fá-lo-ei depois, com os resultados e outras coisas.
Apresente os meus afectuosos respeitos ao meu caro Augusto e à sr.a Maria. Tenha sempre os olhos pos-
tos no Céu, para o qual fomos feitos, e que a Santíssima Virgem a guarde sempre a si e à sua casa. Entretanto
tenho a sorte de me declarar nos corações de Jesus e de Maria

Seu devot.mo servidor


P.e Daniel Comboni
Original francês
Tradução do italiano

N.o 443 (414) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, v. 14/92

J. M. J.
Roma, 15 de Maio de 1872

Excelência,

2965
Muitíssimo obrigado pela sua apreciadíssima carta de 12 do corrente. Com a ajuda de Deus, encontro-me
perfeitamente e pudemos ambos peregrinar até Subiaco em visita à gruta de S. Bento e passar dois dias com
o negro P.e Pio. Ele é um anjo e, embora agora não esteja muito bem de saúde, quando voltar à sua terra, o
Cordofão, recuperará por ser de excelente constituição. O Papa e Barnabó consentiram que fosse ordenado
sacerdote, se eu decidisse a sua admissão definitiva. E agora que V. E. se dignou dar a sua venerada autori-
zação, daqui a quinze dias o nosso mui piedoso P.e Pio, tão estimado pelo Papa e por muitos, será sacerdote
e ficará à nossa disposição. Vi em Subiaco trabalhos seus verdadeiramente admiráveis. É uma boa aquisição.
2966
Quanto ao egípcio de Génova, do qual V. E. me escreve e de quem recebi carta, suspeito que o seu ardor
pela missão é um pretexto para regressar ao seu país à nossa custa. Por isso, escrevi ao superior daquele insti-
tuto de artesãos para que me dê, em consciência, uma informação exacta sobre ele; e também escrevi para
Turim, a D. Bosco, onde foi conduzido por Olivieri, para que me forneça referências oportunas, indicando-
me o motivo pelo qual deixou o Instituto D. Bosco para ir para o dos artesãos de Génova. Pelas respostas
saberemos orientar-nos e não me deixarei enganar por ninguém que tente livrar-se de problemas atirando-os
sobre os demais.
2967
A apreciação da nossa Posição terá lugar na congregação geral no Vaticano no próximo dia 21 do corren-
te. Sexta-feira passada chegou resposta, favorável no essencial, de mons. Ciurcia, o qual fez grandes elogios
de missionários, negras, freiras e institutos; porém, advertiu que havia exageros na informação fornecida à
Propagação da Fé de Lião e impresso nos Anais de Janeiro de 1872. Depois imprimiu-se essa carta e sábado
foi distribuído entre todos os cardeais da Posição, da qual é ponente o Em.o Monge La Valletta. Seria utilís-
simo que V. E. escrevesse um par de linhas a este em.o cardeal para o Palácio Altempo, a fim de lhe reco-
mendar o nosso assunto, dizendo-lhe que espera que o Instituto de Verona dê homens excelentes da categoria
de Rossi, etc., e que, em Verona, há grande interesse pela África, etc. Um clérigo de Trani assegura-me que o
arcebispo de lá tem preparado outro óptimo colaborador, não inferior a Fiore, para mo entregar quando eu
passar por Trani. Disto tomei conhecimento por uma carta que há pouco me escreveu aquele arcebispo.
2968
P.e Pio será ordenado titulo missionis. Li a sua carta de 12 ao card. Barnabó, na qual V. E. o cumprimenta
e me ordena que lhe beije a mão. Respondeu pedindo-me que o saúde cordialmente. Porém, quanto ao bei-
jar-lhe a mão, diz que não quer, para que V. E. não incorra em excomunhão, havendo pago Sua Eminência
desde 1856 dezasseis escudos por um breve de S. Pio IX em que fulmina de excomunhão a quem beijar a
mão a Barnabó. A P.e Perinelli, que sempre lhe quer beijar a mão, diz-lhe invariavelmente: “Não, porque há
excomunhão.” Insistindo eu, há tempo, para que se tratassem com mais rapidez na Propaganda os nossos
assuntos, eu dizia: «Por amor de Deus, apressemo-nos, porque os negros andam perdidos, enquanto esperam
que os vão socorrer». Ao que Sua Eminência respondeu: «Se esperaram quatro mil anos, podem esperar ain-
da uns meses.»
Pagarei a Befani pela Voce. Gostaria muito que viesse o reitor do seminário. Saúdam-no a nossa madre
geral, que agora está em Roma (fundou 28 institutos na Europa, Ásia, África e Austrália); o marquês de Ba-
viera, mons. Manetti, administrador em Subiaco, o Em.o De Silvestri, o barão Visconti, P.e Perinelli e o seu
indigno filho

P.e Daniel Comboni

Ontem vi o Papa e está bem: não dê crédito ao telégrafo espanhol.

N.o 444 (415) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/93

J. M. J.

Roma, 17 de Maio de 1872

Excelência rev.ma,

2969
Quanto lamento que tenha caído doente o nosso caríssimo, venerado e incomparável sr. reitor! Eu já tinha
feito os meus planos para irmos juntos visitar o rev.mo P.e geral dos jesuítas... e conduzirmo-nos a nós mes-
mos a Verona... Mas roguemos insistentemente ao Senhor para que nos conserve esse homem providencial.
Segunda-feira pedirei para o sr. reitor uma bênção especial do nosso Santo Padre. Vemos amiúde Sua Santi-
dade e, há dias, pediu-me que saudasse V. E. Anteontem ordenei a P.e Perinelli que pedisse ao Papa que lhe
desse a comunhão com suas santíssimas mãos e, de facto, ontem pela manhã teve a grande dita de comungar
das próprias mãos de S. S. na sua capela do Vaticano.
2970
Agradeço-lhe as belíssimas estampas da novena, uma das quais fiz chegar de imediato às mãos do Santo
Padre. Gostaram muito em Roma e, tendo-se-me acabado, desejava precisamente arranjar mais. E aqui a
bondade de V. E. oferece-me a ocasião; por isso, alegrar-me-ia que me mandasse enviar pelo menos cem, ao
preço estabelecido. Dei a Reminiscência a Giacobini e a muitos, mas ainda tenho alguns exemplares. Giaco-
bini e outros a quem a dei são justamente os que presidem à Sociedade para a Santificação dos Domingos,
que fez um grande bem em Roma. Alguns no Corso que se mantinham abertos no domingo receberam de
distintas famílias romanas o convite para apresentar as suas contas, com a ideia de deixar de comprar aí para
sempre. Então os infractores puseram-se a rogar aos seus clientes, prometendo-lhes encerrar. Tudo foi inútil:
os transgressores pagaram a sua culpa. É um espectáculo de conduta dos romanos e sobretudo da juventude
católica. Contar-lhe-ei muita coisa pessoalmente.
2971
Os dias tornam-se-me longos até terça-feira próxima. Porém, o Senhor é bom e estou contentíssimo: os
cardeais têm grande interesse pela obra, abençoam a coragem e o zelo de V. E. e dizem coisas que para a sua
humildade seria embaraçoso ouvir. Mas nós somos marionetas de Deus: portanto só a Ele a honra.
2972
Comoveu-me saber que essas mais de cem pessoas, algumas escolhidas, ofereceram a sua vida pela con-
servação do Papa. Segunda-feira contá-lo-ei ao Santo Padre, que ficará contente. Em Roma, a ninguém im-
porta bem o Parlamento, nem o Governo nem o rei: em Roma só reina Pio IX. É uma grande satisfação co-
nhecer a piedade dos nossos bons veroneses: seiscentas comunhões na Scala, quinhentas nos colombinos.
Quase diria que o nosso clero não fica atrás de nenhum. Glória a Deus e a Verona! Como lhe escrevi, procu-
rei e fiz procurar por Roma inteira o livro de S. Tomás sobre os Evangelhos traduzido por Tommaseo; não
sendo possível encontrá-lo, suspendo já a procura.
2973
Quanto às boas almas de Lonato que escrevem que P.e Comboni assalta Cerebotani com contínuas pro-
postas, peço a Deus que as abençoe. Há mais de dois meses que nem vejo, nem tenho falado ou ouvido falar
de P.e Cerebotani. Desde que estou em Roma, vi-o três vezes. Na primeira manifestou estar descontente com
a sua situação, acrescentando que a sua inclinação é dedicar-se ao ministério e à salvação das almas. Então,
como faço com todos, disse-lhe: «Venha para a África!» «Há tempos, respondeu-me, que tenho essa inten-
ção, porém, em certo modo impedem-mo circunstâncias familiares». Isto foi a primeira vez. A segunda veio
com P.e Peloso, ao qual disse a brincar, indicando P.e Cerebotani: «Aí temos um futuro missionário da Áfri-
ca», e comentámos e rimos juntos. A terceira vez já não se falou disso. Esta é a verdade, que V. E. pode dizer
e fazer ler a essa boa gente de Lonato, que, por sua vez, pode pôr-se em contacto com P.e Cerebotani aqui
em Roma, o qual corroborará a minha afirmação. A única recomendação que lhe fiz foi que se recomende a
Deus, que reflicta consigo mesmo e que consulte o seu confessor e que peça conselho a alguma sábia perso-
nalidade; e, no caso de nele persistir o desejo das missões, que escreva a V. E., pondo-se totalmente nas suas
mãos e deixando-se guiar.
2974
E que, se V. E. julgar oportuno aprovar a sua vocação, a missão, omnibus absolutis, poderá deixar-lhe a
esmola da missa para a sua família e para contribuir para pagar as dívidas familiares. Ao que Cerebotani
respondeu: «Isso não estaria mal, porque se continuo em Roma como estou, o que recebo não chega para
viver e não posso ajudar a minha família. E se me torno pároco ou padre cura, tão-pouco poderei ajudar a
minha família, porque ou serei mais pobre que agora ou, se recebesse um bom benefício, teria que ajudar os
pobres. Outras obrigações, fora do ministério, não as quero, pois tornei-me padre para me dedicar ao sacer-
dócio. Assim, inclino-me para as missões e especialmente para o nosso bispo, etc.» Parece-me que raciocina
bem e que pensa de forma mais prudente e cristã que as boas almas de Lonato, cujas ideias têm mais a ver
com a Terra que com o Céu. Isto é tudo. Porém, pelo que observei, ainda não vejo demasiado claro quanto a
esta desejada ou pretendida vocação; pelo que não falei nem falarei nunca com Cerebotani, limitando-me a
responder às suas perguntas, se mas faz.
2975
Mons. Ciurcia, em substância, escreveu à Propaganda mostrando-se um homem muito sensato e conscien-
te: assinalou que é preciso manter no seu lugar e travar o P. e Carcereri, o qual, por outro lado, tem óptimas
qualidades. Por isso Barnabó disse-me: «Vou ter que atar-vos aos dois com vinte e quatro cadeias, porque se
as romperdes não haverá quem vos subjugue e acabareis os dois no cabo de Boa Esperança», e ria-se muito.
Terça-feira faça um memento pelo êxito da Posição. Apresente os meus respeitos ao reitor do seminário e
diga-lhe que se cuide, porque a sua vida é preciosa.
Receba as filiais amostras de devoção do

Seu indig.mo filho


P.e Daniel Comboni

Desejaria o nome, apelido e direcção daqueles que vou inscrever como assinantes ad annum da Voce del-
la Verità.

N.o 445 (416) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/94

J. M. J.
Roma, 23 de Maio de 1872

Excelência rev.ma,

2976
Há meia hora que um enviado de P.e José Gru me trouxe um sobrescrito aberto com a sua veneradíssima
de 19 do corrente. Corri imediatamente a casa de Adami, mas ele não sabe nada sobre o advogado Morani;
dirigir-me-ei ao P.e Boero para notícias e insistirei. Quanto à petição do Corpus, caiu das nuvens. Procurou
entre os seus papéis e, encontrando-a entre os documentos despachados, disse que tinha recebido em Ritos
uma negativa. Porém, como suspeitei que não o tinha apresentado e posto que falta muito para o Corpus,
instei-o a que a apresentasse de novo; e, de facto, amanhã vai apresentá-la. Falarei do assunto a mons. Barto-
lini e, dentro de poucos dias, espero esteja tudo resolvido.
2977
Como estou pesaroso pelo nosso reitor! Estes dias fiz rezar as Irmãs do Sagrado Coração, da Compaixão,
etc. pelo seu restabelecimento; também a bênção do Papa, etc. E como P.e Losi me não escreve, espero boas
notícias.
2978
A Posição foi uma das mais brilhantes e interessantes e agradou muito aos cardeais. Não sei o que se de-
cidiu, porque é segredo até à resolução do Papa (domingo à tarde). Pelo que pude entrever, correu magnifi-
camente. Como os cardeais decidiram imprimir o meu Grande Mapa da África com a Demarcação das Mis-
sões Católicas, no qual estão traçados todos os vicariatos, prefeituras e dioceses da África para que sirva à
Congregação, roguei as Suas Eminências que mo deixassem uma semana para o enriquecer e aperfeiçoar.
Assim que P.e Perinelli e eu trabalhamos todo o dia e grande parte da noite.
2979
Befani mandou uma pessoa perguntar-me se a importância que eu paguei era por um novo sócio. Trouxe-
me a carta que V. E. lhe escreveu a ele e, apercebendo-me do equívoco, fiz suspender o associado desde 15
de Junho, etc.
Falei e correspondi-me com Marietti e Pustet, etc. sobre mons. Giulari; porém, vejo que é necessário con-
tactar também Migne, de Paris. Marietti abandonou a tipografia poliglota; não chegou a um acordo com a
Propaganda. Beijo-lhe o sagrado anel.
Seu devot.mo filho
P.e Daniel Comboni

N.o 446 (417) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA

Sicut placuit D.no... Sit nomen D.ni bened.um

Roma, 25 de Maio de 1872

Excelência rev.ma,

2980
Levantemos os olhos aos Céus e bendigamos ao Senhor. É muito duro o golpe para a diocese e para a
África a perda de P.e Pedro Dorigotti e V. E. comprovará quão duro é especialmente quando tiver que nome-
ar o sucessor. Porém, confiemos em Deus. Eu sinto todo o pesar que aflige o paternal coração de V. E. e
estou consternado pela perda em si e pela dor que sente V. E. Rev.ma. Mas o pensamento de que o Senhor o
torna digno de levar a sua cruz e de lhe tocar onde lhe dói, o pensamento de que o próprio Jesus Cristo, Ma-
ria e S. José o ajudam a levar a cruz e o ajudam eficazmente me consola.
2981
Que grande mistério, rev.mo monsenhor e meu pai: morrem os homens mais valiosos e necessários. Po-
rém, Jesus, Maria e José não morrem nunca e neles está o nosso apoio. Então? Pois é necessário recorrer
sempre a quem fez os grãos de areia e as montanhas. Sicut placuit Domino, etc. factum est: Dominus dedit,
Dominus abstulit, sit nomen Domini benedictum.
Amanhã, à tarde, mons. Simeoni referirá ao Papa a Posição e o juízo e decisões da S. C. e, dentro de qua-
tro dias, V. E. saberá o resultado.
Nestes dias não pude averiguar com clareza o que fizeram e, por isso, não fiz senão agitar-me, pensar, re-
flectir ansiosamente e gravar na mente e no coração a meditação do Fundamento e da indiferença inaciana.
Beijo-lhe reverentemente a mão, declarando-me

De V. E. Rev.ma
e
humo. e dev. filho, P. Daniel Comboni

N.o 447 (418) - AO CÓNEGO J. C. MITTERRUTZNER


ACR, A, v. 15/68

Roma, 27 de Maio de 1872

Caríssimo,

2982
A S. C. de Propaganda no dia 12 do corrente e S. S. Pio IX no dia 26 (ontem) dignaram-se confiar todo o
vicariato da África Central ao Insto. das Missões para a Nigrícia de Verona e nomear P. e Dan. Comboni pró-
vigário apostólico. Sua Santidade ordenou que fosse anunciado oficialmente ao geral de Ara Caeli que acei-
tou a renúncia ao vicariato e que isso fosse transmitido ao Insto. de Verona e a P.e Comboni.
Com pressa e prometendo escrever amplamente mais tarde,

Tuis P.e Comboni


Provicarius ap.licus Africae Centralis

A S. C. escreverá para Viena dentro de poucos dias.

N.o 448 (419) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/96

Roma, 27 de Maio de 1872

Excelência rev.ma,

2983
A S. C. da Propaganda, na congregação geral do passado dia 21, e S. Pio IX, no passado dia 26, digna-
ram-se atribuir todo o vicariato da África Central, o mais vasto do mundo, instituído por S. S. o Papa Gregó-
rio XVI no dia 3 de Abril de 1846, ao Insto. das Missões para a Nigrícia, de Verona e nomearam pró-vigário
apostólico a minha pobre e indigníssima pessoa.
2984
Ao mesmo tempo, Sua Santidade ordenou que se anunciasse oficialmente tal notícia ao geral dos francis-
canos, aceitando a sua renúncia ao dito vicariato e convidando-o a estabelecer no Cairo um instituto de jo-
vens franciscanos (em conformidade com o nosso Plano), com vista a prepará-los para o apostolado da Ni-
grícia para a altura em que esteja em condições de aceitar alguma parte do grande vicariato.
Finalmente, Sua Santidade dispôs que seja instituído um novo exame sobre as regras e constituições do
Insto. de Verona.
Dentro de alguns dias entregar-me-ão todos os papéis e documentos para a assunção do governo de tão
vasta missão.
2985
Bem vê V. E. que a Santa Sé nos concedeu mais do que tínhamos pedido. Nós pedimos uma missão na
África Central: a Santa Sé concedeu-nos toda a África Central erigida em vicariato apostólico. A Santa Sé
tem por costume pensar as coisas durante anos e anos, antes de decretar sobre elas. Insistindo eu numa rápida
decisão, decidiu o que acabo de lhe manifestar, gastando um pouco mais de tempo para completar as suas
resoluções.
A dor que sinto pela perda do incomparável P.e Dorigotti torna-me insensível hic et nunc a este passo gi-
gantesco da nossa obra. Mas, corações ao alto! Beija-lhes as mãos

Seu indig.mo filho


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apost. da África Central

N.o 449 (420) - AO P.e MARINO RODOLFI


ANOB, Fald. 30, cart. 71/b

J. M. J. e St.a Ângela

Roma, 30 de Maio de 1872

Meu caro amigo,


2986
A sua carta veio encontrar-me na cama, onde estou com arrepios. Agradeço-lhe os seus afectuosos senti-
mentos. É um homem providencial: teria desejado ter escrito a mons. o bispo. Ao rev.mo Carminati, às boas
senhoras Girelli e aos outros para lhes comunicar o resultado da congregação geral de cardeais no Vaticano
no dia 21 e da determinação de S. S. Pio IX a respeito da minha obra; porém, encontro-me muito doente e
peço-lhe que o faça em meu lugar.
2987
Sua Santidade e a congregação geral de cardeais encarregaram-me da missão mais árdua, laboriosa e
vasta da Terra; quer dizer, toda a África Central, tendo como limites Trípoli, Egipto, Abissínia, os Gallas,
Zanguebar, Guiné e os 12o de lat. sul. Portanto, tenho sobre a minha jurisdição in fieri mais de oitenta mi-
lhões de infiéis para os conduzir a Cristo. O vicariato da África Central foi confiado ao meu nascente Insto.
de Verona, e eu fui nomeado pró-vigário apostólico mediante decreto de 27 de Maio do corrente ano. Aqui
tem o pobre cura nascido em Limone encarregado pela Santa Sé de uma jurisdição que é a mais vasta e difí-
cil do mundo. Quando no vicariato da África Central tiver um pequeno número de católicos, então a S. Sé
nomeará um bispo. Porém, eu, como ordinário da África Central, tenho todas as faculdades episcopais, me-
nos a de conferir as ordens maiores.
2988
Disse-lhe tudo isto para que compreenda a necessidade de rezar e de fazer que rezem todas as almas bea-
tas de Bréscia, a Sta Ângela, aos Sagrados Corações, etc.
No dia 27, festa de S. Filipe, celebrei missa junto ao túmulo do grande apóstolo de Roma.
2989
Apresente os meus respeitos ao rev.mo Carminati e, por sua mediação, ao anjo de Bréscia, a quem escre-
verei pela festa do Sagdo. Coração. Igualmente a todos os seus sacerdotes e à madre Gesualda, superiora do
Sagdo. Coração. Faça, por mim, uma visita às mui estimadas e dignas senhoras Girelli e saúde da minha
parte todos os conhecidos, especialmente o dr. Pelizzari e P.e F. Faroni, director da Obra da Prop. da Fé em
Bréscia.
2990
Faça o favor de me dizer algo sobre as Chiappa e se essas boas almas da Provedoria de S. Faust. e St.a
Jovita e do seu rev.mo fiscal mudaram de ideias. Não consigo manter os olhos abertos, devido à febre e dor
de cabeça. Cumprimentos a Capretti. Quanto a Milessi, rogo-lhe que fale com ele em meu lugar e lhe propo-
nha a nossa missão. Faça-o o senhor, porque eu estou mal e, quando curado, terei mil ocupações. Farei com
que o Papa reze por esta intenção.

Tuissimus in Xto.
P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico da África Central

N.o 450 (421) - A MONS. AGUSTIN PLANQUE


ASMA, 30071, n. 11/100

J. M. J.
Roma, Piazza del Gesù 47/3-6.o
Maio de 1872

Meu mui caro e venerado irmão,

2991
Sinto-me no dever, pela amizade e pelo interesse compartilhado pela nossa querida África, de lhe anunci-
ar que na próxima terça-feira, dia 21, se celebrará uma congregação geral sobre a África em geral e em espe-
cial sobre si e mim. Comunico-lhe isto para que reze e faça rezar no seu seminário pelo êxito tanto do seu
assunto como do meu. Espero que dentro de pouco tempo possa estabelecer-se colaboração entre os dois
vicariatos do cabo da Boa Esperança e que mais tarde nos seja possível encontrar-nos no centro.
2992
Posso afirmar-lhe que aqui em Roma, na Propaganda, há um clima muito favorável a si: merece-o bem,
porque fez muito pela África e espera-se que continue a fazer até à morte. Mande rezar também por mim e
pelos meus pobres negros. Em Setembro partirei do Cairo para Cartum e o Cordofão com uma grande expe-
dição. Pode acontecer que parta em Agosto.
Adeus. Receba as expressões do meu respeitoso afecto e estima.

Seu devot.mo serv.


e
P. Daniel Comboni miss. ap.

Original Francês
Tradução do italiano

N.o 451 (422) - NOTA PARA A PROPAGANDA FIDE


AP SC Afr. C., v. 9, f. 59r

Roma, Maio de 1872

N.o 452 (423) - A JEAN-FRANÇOIS DES GARETS


APFL, 1872. Roma, 4

Roma, 5 de Junho de 1872

Senhor presidente,

2993
A Santa Sé acaba de confiar ao meu Instituto das Missões para a Nigrícia, de Verona, o vicariato da Áfri-
ca Central e a mim o governo daquela grande missão com o título de pró-vigário apostólico.
Por agora, as obras a que me limito na minha vasta jurisdição são as seguintes:
1.o Fazer prosperar os três institutos de negros do Cairo que conhece.
2.o Revitalizar as estações de Schellal e de Cartum, deixando para mais tarde a reabilitação das de S.ta
Cruz e de Gondokoro.
3.o Criar uma nova estação em El-Obeid, capital do Cordofão.
2994
As contribuições que recebi até agora, tanto da Propagação da Fé como de pequenas sociedades da Ale-
manha e de colectas que fiz nas minhas voltas pela Europa, apenas são suficientes para as casas do Egipto; e
isto devido a eu ter feito longas viagens à Hungria e à Alemanha, pedindo muito para os negros.
2995
De agora em diante, as obrigações do meu ministério de pró-vigário apostólico da mais vasta missão do
universo não me permitirão voltar à Europa e não poderei receber senão da Propagação da Fé quase todos os
recursos para os institutos do Egipto.
É a essa instituição admirável à qual volto a dirigir-me, solicitando os meios para o vicariato da África
Central.
Eis aqui o meu actual plano de acção:
2996
Em Julho deixo Verona com doze pessoas para me dirigir ao Cairo. No mês de Setembro partirei do Cairo
com mais de trinta pessoas para me dirigir a Schellal, a Cartum e ao Cordofão. A viagem até ao Cordofão,
com tantas pessoas, durará pelo menos três meses.
2997
No Cordofão está tudo por fazer. Lá não há nada: nem remédios, nem médicos, nem ferramentas para
construir, cultivar a terra e moer o grão, nem para fazer os trabalhos de serralharia, alvenaria ou carpintaria.
É preciso levar tudo da Europa. E já é muito se os homens e as mulheres têm um pedaço de pano para se
cobrir. O vinho para celebrar a missa, levado do Cairo ao Cordofão, custa quatro vezes mais que no Egipto,
porque tem que se transportar tudo sobre o dorso de camelos.
2998
As ferramentas para construir e trabalhar, etc., assim como as máquinas, é preciso comprá-las na Europa.
No Cairo há que fretar duas embarcações, uma para os homens e outra para as irmãs e as raparigas. Nes-
tes dois barcos – nos quais por certo haverá que alimentar os marinheiros – chegaremos a Assuão em vinte e
cinco dias. De Assuão vai-se para Schellal de camelo. De Schellal a Korosko, em dois barcos, gastam-se
cinco dias. De Korosko até Berber, pelo deserto, vinte dias, e são precisos ao menos cinquenta camelos para
transportar as pessoas e as bagagens, etc. De Berber vai-se para Cartum em dois barcos e de Cartum a Cor-
dofão em camelos.
2999
Em toda esta viagem é preciso comprar tudo, excepto a água do Nilo. Os gastos são enormes.
No Cordofão é necessário pagar as casas, restaurá-las para que sejam habitáveis e viver lá por um ano.
3000
A viagem dos meus quatro exploradores dirigidos pelo P.e Carcereri, do Cairo até Cordofão, custou-me
10 000 francos. E além disso mandei-lhes mais 3000 francos para que possam viver até à minha chegada até
El-Obeid. Eles têm já a seu cargo muitas crianças negras.
Para completar bem a minha empresa de fundação e restauração do vicariato da África Central seriam ne-
cessários pelo menos 100 000 francos, seis mil dos quais precisaria eu de ter antes de deixar a Europa, para
comprar as ferramentas e as máquinas referidas e para fazer a viagem com doze pessoas até ao Cairo.
3001
Senhor presidente, se o senhor ajudar a minha missão, dá vida à parte do mundo mais abandonada e des-
ditosa.
O meu vicariato é o mais trabalhoso, mais difícil e mais vasto do universo inteiro. Também é o de maior
interesse e importância, porque deve regenerar um mundo no qual até agora a Igreja não obteve resultados.
Ao estabelecer no Cordofão uma missão segundo o meu plano, o senhor funda o centro de acção apostólica
mediante o qual, pouco a pouco, se vão conquistando para Cristo mais de sessenta milhões de infiéis, que
compõem o meu vicariato. Esta missão fará progressos segundo os meios que desde o início obtiver da sua
caridade.
3002
Dar-lhe-ei contas de tudo, mantê-lo-ei informado de quanto diz respeito a esta missão. Mas defenda, pe-
ço-lhe, esta santa causa no conselho de Lião e no de Paris. O relatório que lhe enviei sobre a exploração ao
Cordofão ter-lhe-á dado uma pequena ideia da empresa que me disponho a levar a cabo.
3003
Creio que o apostolado da África Central será abençoado por Deus, se o senhor o der a conhecer nos
Anais e o recomendar às orações e à caridade dos dois milhões de associados da Obra da Propagação da Fé,
espalhada por toda a parte do universo.
3004
Receba de antemão as minhas mais vivas manifestações de agradecimento pela caridade que teve e terá
pela África Central. As últimas palavras dos meus irmãos e minhas serão sempre «Nigrícia ou Morte». Tudo
isso pelo amor àquele que derramou todo o seu divino sangue na cruz também pela Nigrícia.
Aceite, senhor presidente, as expressões da minha mais elevada consideração, com que tenho a honra de
me subscrever nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria

Seu devot.mo serv.


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário ap. da África Central

N.o 453 (424) - A MARIA DELUIL MARTINY


AFCG, Berchem Anvers

J. M. J.
Roma, Piazza del Gesù 47
7 de Junho de 1872, dia do S. C.

Senhora Maria,

3005
Ainda que não lhe escreva há tanto tempo, posso assegurar-lhe que nunca deixei passar um dia sem pen-
sar em si e rezar por si. Estou perfeitamente informado das presentes cruzes que o bom Jesus lhe concedeu,
sobretudo com a morte e a ressurreição de dois queridos membros da sua família. Tenho a certeza de que terá
oferecido a Jesus este ramalhete de sofrimentos e que, por isso, a senhora estará agora mais intimamente
unida ao Coração de Jesus, onde terá encontrado o caminho e o Paraíso.
3006
Peço-lhe que me escreva uma longa carta sobre as maravilhas da Guarda de Honra e sobre si. Eu, por ago-
ra, não tenho tempo de pegar na caneta; mas devo escrever-lhe antes da minha partida para a África Central.
Envio-lhe o meu Postulado ao Concílio.
Faça chegar as minhas mais cordiais saudações ao seu papá e à sua mamã e reze pela minha obra, porque
S. S. Pio IX me encarregou da mais vasta e difícil missão do universo. Esperando uma longa carta, declaro-
me no Sagdo. Coração de Jesus

Todo seu, P.e Daniel Comboni


Pró-vigário da África Central

Original francês
Tradução do italiano

N.o 454 (425) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 8, f. 8

Roma, 13 de Junho de1872

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3007
Desde o dia em que me foi comunicado que a Santa Sé se tinha dignado confiar o vicariato da África
Central ao meu Insto. de Verona e que eu era o escolhido para chefiar esta árdua e laboriosa missão, passa-
me pela mente o seguinte pensamento, que submeto humildemente ao juízo de V. Em.a para obter ideias e
saber orientar-me sobre o assunto.
3008
Em Cartum encontram-se dois sacerdotes franciscanos da província do Tirol alemão, os quais, segundo as
informações que possuo, são bons e dotados de zelo.
Em Jerusalém está o P.e Boaventura, de Cartum, antigo aluno da minha missão e do Insto. Mazza de Ve-
rona, que é agora coadjutor na paróquia de S. Salvador e foi declarado recentemente pela S. C. missionário
apostólico, o qual me deu a conhecer mais de uma vez o seu desejo de se consagrar ao apostolado na sua
pátria, também com a intenção de ganhar para a fé os seus pais, muçulmanos, que vivem em Cartum.
3009
Finalmente, em Nápoles, há três sacerdotes franciscanos negros, que o P.e Ludovico de Casoria, seu supe-
rior, me ofereceu para a África Central.
3010
Bem pensado tudo isto, parece-me que se a ordem seráfica permitisse que estes membros seus viessem
em ajuda dos meus missionários, tornar-se-ia útil estabelecer nalgum ponto do vicariato uma casa francisca-
na submetida sempre à jurisdição do pró-vigário apostólico até que, verificada a utilidade da sua obra e estu-
dada a possibilidade de o fazer, se lhe possa confiar mais tarde uma porção do vicariato, que se erigiria em
prefeitura, para atribuí-la exclusivamente à Ordem dos Frades Menores.
3011
Pelo que, permito-me perguntar a V. Em.a se seria conveniente e útil que eu dirigisse ao rev.mo geral de
Ara Caeli um convite ou uma súplica que me conceda, para ajuda do vicariato, os mencionados membros da
família franciscana, ficando bem claro que, em caso afirmativo, eu me encarregaria de todas as despesas da
sua viagem e do seu sustento na missão.
3012
Embora a experiência tenha demonstrado que curas e frades dificilmente andam de acordo no trabalho de
uma mesma vinha, a unidade da difícil empresa, a natureza do próprio apostolado dos negros e as condições
antes expostas far-me-iam confiar no sucesso do projecto em questão e em que a presença dos franciscanos
no vicariato não seria obstáculo à acção e ao bom funcionamento dos missionários do meu instituto.
3013
Desejo ardentemente proporcionar verdadeiros apóstolos à vasta missão que me foi confiada, embora per-
tençam a outras corporações eclesiásticas e religiosas. Porém, não me parece prudente dar um passo e proce-
der a algumas práticas sobre o assunto sem consultar a S. C.; por isso, imploro o conselho de V. Em. a, deci-
dido a ater-me a tudo quanto V. Em.a se dignar sugerir-me ou ordenar-me num assunto tão delicado e impor-
tante.
Entretanto, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me com toda a veneração nos Sagdos Corações de J. e
M.

De V. Em.a Rev.ma
Hum., obed.mo e devot.mo filho
P.e Daniel Comboni
Pró-vigário ap. da África Central

N.o 455 (426) - A HENRIQUE PASTORE


AFP, Verona

J. M. J.
Roma, 18 de Junho de 1872

Meu caríssimo Henriquinho,

3014
Prometi escrever-te; mas não o fiz devido às minhas contínuas ocupações e porque sempre o fez por mim
P. Pedro. Mas agora que ele está em St.o Eusébio a fazer os santos exercícios, dos quais sairá depois de
e
amanhã, escrevo-te eu. Nós estamos de perfeita saúde e o mesmo esperamos em relação a ti e ao teu incom-
parável superior, o P.e Conobio, e aos outros padres de Moncalieri, aos quais dedico especial afecto e vene-
ração. A Santa Sé confiou-me o governo da mais vasta missão da África Central, que é maior que toda a
Europa e tem mais de sessenta milhões de pobres infiéis. Sê bom e reza por mim. Espero ir ver-te com P.e
Pedro uma vez mais, antes da nossa partida para Viena e África.
3015
Recomendo-te encarecidamente que sejas bom, muito amante da oração, estudioso e obediente aos teus
superiores, que velam e se preocupam contigo. De nenhuma outra maneira poderás agradar a Deus e dar
satisfação ao terno coração da tua mamã, à qual custas tantos suspiros. Sobretudo tem grande devoção à Vir-
gem e pensa sempre e procura seguir as saudáveis normas que te ensinam os teus queridos e veneráveis supe-
riores no venturoso tempo da tua educação.
3016
Peço-te que apresentes os meus respeitos ao M. R. P. Conobio, ao P.e Denza e a todos esses bons padres,
que espero voltar a ver. E, quando escreveres para Verona, dá muitos cumprimentos da minha parte à tua boa
mãe e ao avô, assegurando-lhes que nós nunca nos esquecemos deles.
Com estes sentimentos, abraço-te nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria, declarando-me com todo o
afecto

Teu af.mo no Senhor


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico da África Central

N.o 456 (427) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC Afr. C., v. 171, f. 532

Roma, 27 de Junho de 1872

Em.o e Rev.mo Príncipe,


3017
Tendo desde há uns anos no meu instituto do Cairo o clérigo P.e Elias Calis, jerusalomitano de rito latino,
já iniciado nas ordens menores, muito avançado nos estudos teológicos e de bem provada vocação, não só
para o estado eclesiástico mas também para a missão da África Central, tendo ele chegado à idade canónica e
não tendo de seu mais que o dom de uma boa vocação, suplico humildemente a V. E. me permita fazê-lo
promover ao subdiaconado titulo missionis e me faculte a fórmula da S. C. requerida para tal fim.
3018
Como, além disso, dentro de pouco tempo haverá outros dois clérigos candidatos às ordens sagradas na
mesma situação que o clérigo Calis, rogaria que me concedesse a mesma graça em favor de três clérigos.
Beijando-lhe a sagrada púrpura, subscrevo-me com honra nos SS. CC.

De V. Em.a Rev.ma hum. e dev. filho


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico da África Central

N.o 457 (428) - A PIO IX


AP SC Afr. C., v. 8, f. 92v

Roma, Junho de 1872

Santíssimo Padre,

3019
No Mosteiro da Visitação de Pinerolo, que acolheu caritativamente bastantes das negras resgatadas pelo
e
P. Olivieri, sacerdote de santa memória, existem, todavia, três professas da Nigrícia, Ir. Maria Benita, Ir.
Maria Fidela e Ir. Maria da Conceição, as quais, aí acolhidas e educadas, mantiveram entre elas o uso espo-
rádico da sua língua materna, na esperança de que amanhecesse o dia em que pudessem comunicar às gentes
da sua terra o fruto da educação religiosa que elas receberam.
3020
Assim, segundo os imperscrutáveis caminhos da Providência, aquele santo e incansável ministro do Se-
nhor teria preparado um dos elementos mais eficazes para a conversão daqueles povos. Sua Excelência o
bispo daquela cidade, com uma carta muito respeitosa de 27 de Fevereiro, suplicava de Vossa Santidade que
fosse benevolamente concedido às ditas negras poderem fazer parte daqueles que nos institutos da Nigrícia,
ou de qualquer outro modo, colaboram na evangelização da África. Vós, Beatíssimo Padre, primeiro median-
te Sua Em.a o card. Alfieri, de venerada memória, depois por intermédio de S. Em.a o actual prefeito da Pro-
paganda com carta de 16 de Março deste ano, fizeste responder que, no caso de se organizarem as missões do
centro de África, então poderia efectuar-se o projecto proposto.
3021
O momento, Santíssimo Padre, chegou. A morte vai ceifando aquelas pobres, que não conseguem resistir
longamente à diversidade do clima; ao invés, regressando aos seus países nativos, a sua vida prolongar-se-ia
e a educação recebida, bem como o facto de terem a mesma língua e cor das gentes dessas regiões, redunda-
ria em grande proveito para as nossas missões. Voltariam como anunciadoras da verdade aos seus lugares de
origem aquelas que de lá foram arrebatadas pela humana barbárie e devido à avidez do dinheiro. Estes mila-
gres apenas a religião católica os sabe e pode realizar. O excelente bispo de Pinerolo, juntamente com aquele
que, embora indigno, constituístes, Beatíssimo Padre, representante na direcção daquela vasta missão espe-
ram ansiosos a vossa palavra, enquanto prostrados a vossos pés Vos suplicam devotamente a bênção apostó-
lica.
Entretanto ajoelha-se humildemente para beijar o sagrado pé

O hum.mo, ob.mo e devot.mo filho, P.e Daniel Comboni


Pró-vigário apostólico da África Central

N.o 458 (429) - A MONS. JOÃO SIMEONI


AP SC Afr. C., v. 8, f. 96r

Roma, Junho de 1872

Pró-memória
Para S. E. R. mons. o secretário da Propaganda

3022
O bispo de Pinerolo escreveu a S. S. uma petição, que eu entreguei a S. E. mons. o secretário nos finais de
Fevereiro passado. Tratava-se de conseguir que umas freiras negras da Visitação de Pinerolo, para preservar
a sua vida e pelo seu desejo de se dedicar à salvação das negras, suas irmãs, pudessem passar a integrar-se
nas filas das religiosas que trabalham para a África Central.
O bispo recebeu em Março uma lisonjeira carta do em.o cardeal-prefeito.
Agora, a rogo do bispo de Pinerolo, recordo a mons. o secretário que dê seguimento a este assunto.

P.e Daniel Comboni


Pró-vigário apostólico

N.o 459 (430) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/97

J. M. J.
Roma, 24 de Julho de 1872

Excelência rev.ma,

3023
Só esta noite chegámos a Roma, onde encontrei tantas cartas, que ainda não consegui lê-las todas. As su-
as, sim, li-as todas e farei o que me diz nelas.
Agora anuncio-lhe que dentro de quatro ou cinco dias penso deixar Roma para seguir para Verona, por
Florença e Piacenza. E como, há dois meses, me solicitou que o avisasse antes de partir de Roma, espero
impaciente as suas ordens.
3024
Experimentei vender uma letra de câmbio de 10 000 francos a Mr. Brown, o qual me pagou por ela 10
715 liras italianas. Gostaria saber se Grego dá outro tanto. Em todo o caso, como as letras são em branco,
experimentemos se dá resultado com a de 10 000. Eu seria de opinião de que se vendessem todas, para não
perder o fruto de uns meses.
3025
Vai-me acontecer o mesmo que ao Papa. O nosso amado Jesus deu-nos muitas alegrias: a maneira extre-
mamente boa como nos correram os assuntos com a Santa Sé e a Propaganda; 45 mil francos de Lião; todas
as receitas de Viena; a casa de Cordofão, que no passado dia 5 de Junho contava com 17 pessoas (demasia-
do!!!), etc., etc. Era, pois, justo e merecido que nós, seguidores de Cristo, recebêssemos uma grande cruz: eu
esperava-a há tempo e, por isso, rezava ao Senhor. E eis o assunto de Ravignani e de mons. Ciurcia. Trata-se
de uma coisa dura, muito dura. Oh!, queridas cruzes! Sem dúvida eu fui a causa, devido à minha inutilidade,
e é conveniente que carregue com a maior pena. Realmente não foi negligência minha: não posso estar em
toda a parte. Venero, respeito e tenho afecto ao nosso estimado mons. Ciurcia; mas também venero o arce-
bispo de Trani. Monsenhor Ciurcia não confiaria ao cónego Fiore nem as galinhas, para as dirigir; o arcebis-
po de Trani entregou a Fiori a direcção de uma cidade de 36 000 almas, ficando ele encarregado de mais de
trinta clérigos e trinta beneficiados. P.e Perinelli e eu, que passámos dois dias naquela cidade de Corato, so-
mos testemunhas do entusiasmo que aí desperta Fiore e da fama de que goza nas dioceses de Trani, Barletta,
Bisceglie e Bari. Creio que pode dirigir galinhas e galos.
3026
Tenho sobre a mesa as cartas que Ravignani mandou a Fiore. Ravignani escreve a Fiore como um patrão
escreveria a um servo que se porta mal. Carece por completo dos princípios mais rudimentares da ascética
cristã. Fiore espera virá-lo a seu favor.
Vou mandar as suas preciosíssimas cartas a Ravignani e a Fiore. Parecem-me muito oportunas. Prova-
velmente, Ravignani receberá a coisa mal! Fiore, ao contrário, recebê-la-á por certo como a voz de Deus e
com verdadeira humildade!... Porém, escreverei sobre o muito realizado em Nápoles, Trani, etc.
Muitas saudações dos arcebispos de Trani, Bari, Nápoles, etc. Falámos muito com Melânia de Salette.

P.e Comboni

N.o 460 (431) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/26

J. M. J.
Roma, Piazza del Gesù, 47
29 de Julho de 1872

Meu muito caro P.e Francisco,

3027
Há muito tempo que desejava escrever-lhe; mas a preguiça, o calor e um sem-fim de ocupações impedi-
ram-mo. E também uma longa volta que dei por Nápoles, Bari, etc. com o meu secretário P.e Perinelli.
O facto é que tenho sempre em cima dos ombros mais de sessenta milhões de infiéis para converter. Fei-
tas as Regras e aprovadas pelo bispo de Verona, vim para Roma, onde trabalhei quatro longos meses, de
sorte que se conseguiu preparar uma grandiosa Posição. E, depois de a Santa Sé ter discutido e ponderado
tudo, na congregação geral dos em.mos cardeais, celebrada no Vaticano no dia 21 de Maio, com a aprovação
do Sumo Pontífice, foi confiado todo o vicariato da África Central até aos 12o de latitude sul, etc. ao novo
Instituto de Verona para as Missões da Nigrícia e, mediante decreto apostólico de 26 de Maio, eu fui nomea-
do responsável dessa missão, a mais árdua e trabalhosa do mundo e a maior do universo: maior que toda a
Europa.
3028
Apenas se soube na França e na Alemanha da minha promoção a pró-vigário apostólico e ordinário do vi-
cariato, a Sociedade de Viena comprometeu-se a conceder-me todos os seus rendimentos e a Sociedade de
Colónia todas as suas receitas; as pequenas sociedades atribuíram-me uma ordem de pagamento e a Propaga-
ção da Fé de Lião e Paris enviou-me logo 45 000 francos, com a promessa de uma maior contribuição anual
no futuro; e a referida importância de 45 000 francos deu-ma como sendo do exercício de 1871.
3029
Agora, dentro de 5 dias, irei a Verona, depois a Viena e em fins de Agosto para o Cairo. A Propaganda
ordenou-me que fizesse rapidamente a visita ao vicariato até às fontes do Nilo e, nesse tempo, farei uma casa
e uma igreja na capital do Cordofão, El-Obeid, que tem cem mil habitantes e 17 católicos e onde os meus
quatro exploradores estão estabelecidos há seis meses. O vicariato, portanto, foi retirado aos franciscanos e
deram-no-lo a nós mediante um estupendo breve de 1 de Junho de 1872, pelo qual as casas de Cartum,
Schellal, Gondokoro e Santa Cruz são minhas.
3030
Ocupadíssimo como estou, termino aqui. Ver-nos-emos em Verona ou em Vicenza. Procure-me algum
bom clérigo para missionário.
Muitos cumprimentos a P.e Primo, a Consolaro e a todos. Os meus respeitos a mons. o bispo. Ninguém
no mundo – dizem-me na Propaganda – tem faculdades tão amplas como as que Pio IX me outorgou. Sou
um pequeno papa na África.

Tuissimus in D.no, P.e Daniel Comboni


Pró-vigário da África Central

N.o 461 (432) - AO PÁROCO DE S. MARTINHO B. A.


AMV, c. «Missione Africana»

J. M. J.
Roma, 31 de Julho de 1872

Estimado prof. e arcipreste,

3031
Ao regressar de Nápoles e de Bari encontrei a sua estimadíssima carta de 19 de Junho. Em seguida, o meu
pensamento voou até ao saudoso P.e Pedro, seu inseparável e incomparável irmão, e também até ao nosso
querido e digníssimo amigo Grigolin, com o qual passámos tão boas horas inter pocula et gaudium. Faça-se
sempre a vontade de Deus.
3032
A Santa Sé confiou ao novo Insto. das Missões para a Nigrícia de Verona a mais vasta, árdua e trabalhosa
missão do universo, a da África Central, pondo à frente dela a minha humilde pessoa com o título de pró-
vigário apostólico. É maior que toda a Europa e tem mais de sessenta milhões de infiéis.
Ontem, o Santo Padre ordenou-me que partisse quanto antes para fazer a visita apostólica e fundar casas
de ambos os sexos: há mais de quinze anos que não se administra lá a confirmação e que a Santa Sé não re-
cebe informação oficial. Messis multa, operarii pauci. Reze e mande rezar por mim.
3033
Mando-lhe duas fotos minhas, uma para si e outra para o nosso excelente querido Grigolin. Dentro de dez
dias estarei em Verona. Os meus quatro exploradores, depois de 82 dias de viagem, chegaram ao Cordofão a
partir do Cairo e aí arranjaram uma casa com jardim que eu pagarei.
Dê cumprimentos aos meus conhecidos de S. Martinho e a essa boa família em cuja casa estive a beber
com mons. Giuliani e reze por

Seu af.mo discípulo


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico da África Central

N.o 462 (433) - A MONS. LUÍS DE CANOSSA


ACR, A, c. 14/98

Louvado seja J. e M. eternamente, ámen.

Roma, 4 de Agosto de 1872

Excelência rev.ma,

3034
Finalmente, disponho-me a partir: amanhã vou a Florença, depois de amanhã a Piacenza e quinta-feira a
Verona. Depois de muito correr de cá para lá (porque o P.e Boero e mons. Bartolini sabiam pouco do assun-
to), vi o advogado Morani e pude inteirar-me do ponto em que se encontra a causa da sua venerável tia. Falei
veementemente sobre isso com o Papa em presença de P.e Pedro e em Novembro haverá congregação geral
sobre os escritos não dela, mas sobre ela. Levo comigo o sumário impresso. Pelo que me foi possível averi-
guar, precisa-se de dinheiro para fazer avançar a causa. Todos os santos fizeram assombrosos milagres; po-
rém nenhum (desde Urbano VIII) fez ainda o milagre de ser canonizado ou deixar-se canonizar sem dinheiro.
Todos, começando pelo Papa, mostram, isso sim, uma magnífica disposição para com tal causa.
3035
Quanto à sua pergunta sobre se me compete o tratamento de monsenhor, etc., cum rubore respondo que
os oficiais da Propaganda me disseram que me competem (além da jurisdição) os atributos inerentes à digni-
dade de ordinário e responsável de um vicariato. Portanto, em parte o traje, o anel, etc. Todos os bispos com
os quais falei, o cardeal Mónaco, mons. Giacobini e todos os que estão versados em coisas de missão, assim
como muitos cardeais e prelados romanos, o autor da Acta S. Sedis, etc., chamam-me monsenhor. Os docu-
mentos e faculdades recebidos da Propaganda dão-me o tratamento devido aos bispos, quer dizer (R. P. D.
Daniel) R.do Patri D.no Comboni. Em suma, quase todos dizem que me competem os títulos dos ordinários.
Giacobini, nosso minutador, diz que sou verdadeiro prelado romano. Só dois excelentes cónegos romanos
dizem que talvez me não compita o «monsenhor», porque não há nenhum decreto que outorgue ao pró-
vigário este tratamento. Em todo o mundo há só cinco pró-vigários.
3036
O meu predecessor, Knoblecher, que sucedeu a Ryllo, tinha os paramentos pontificais e fazia-se chamar
monsenhor e todos os padres agostinhos de Nápoles (em cujo convento morreu Knoblecher) que me mostra-
ram o seu túmulo contaram-me as cerimónias que teve a sua morte e que ficou exposto durante três dias com
ornamentos pontificais. Em troca, o último pró-vigário, Kirchner não usou nenhum distintivo nos poucos
meses que ocupou esse cargo. Quando a Propaganda escreve a um bispo vigário apostólico diz, por exemplo:
R. P. León Meurin bispo, etc., vigário apostólico, etc. E para se dirigir a um pró-vigário, como no meu caso,
escreve: Rev.mo senhor P.e Comboni, etc., pró-vigário.
3037
Pois bem, que faço eu? Aceito tudo. Se alguém me chama monsenhor, não me oponho; e igualmente não
me oponho, antes sinto prazer, se alguém me diz rev.do P.e Daniel, etc. O que, pelo contrário, me preocupa é
a gravíssima e tremenda tarefa que me impôs a Santa Sé. Excepto a veste talar e o colar e o na-

N. B. Desta carta falta a parte final (desde a pág. 4)

N.o 463 (1158) - ASSINATURA NUMA ESCRITURA NOTARIAL


ANDV, n. 1235-129

Verona, 23 de Agosto de 1872

N.o 464 (1159) - ASSINATURA DUMA ESCRITURA NOTARIAL


ANDV, n. 1236-130

Verona, 23 de Agosto de 1872

N.o 465 (434) - AO ABADE CASARETTO


ACSR, Corrisp.Casaretto-Hadrian

Viena, 9 de Setembro de 1872

Rev.mo P.e abade e mui dilecto padre meu,

3038
Aproveito esta ocasião para lhe apresentar as minhas mais cordiais expressões de devoção e dizer-lhe que,
antes de partir de Verona e em conformidade com a sua carta a P.e Pio, fui apresentar os seus respeitos a
mons. Canossa, o bispo de Verona, o qual me ordenou que lhe comunicasse que, quando o senhor se dirigir
de Milão para Veneza, pare em Verona, alojando-se no paço episcopal, pois monsenhor ficará muito conten-
te de passar um pouco de tempo consigo, de quem tanto gosta e a quem tanto estima. Pelo meu lado, digo-lhe
que estou muito satisfeito de ter comigo P.e Pio, que produziu em todos uma óptima impressão em Verona e
na Alemanha. Fiz com que o examinassem famosos médicos, os quais asseguraram que se curará, sobretudo
quando voltar à sua terra. Aqui, em Viena, despertou em todos o maior interesse e creio que produzirá uma
viva e excelente impressão também a S. M. apostólica, aonde o levarei amanhã às dez. Parece-me muito bom
e digno do nome que tem. Mas a minha esperança é que ele seja a primeira pedra da ordem beneditina obser-
vante para colocar no meu vasto vicariato e que, depois do bom resultado da empresa, o senhor me prepare
mais beneditinos, para irem civilizar a infeliz Nigrícia.
3039
Sim, a santa ordem que civilizou o mundo deve realizar a sua obra na África Central. Aí, com a ajuda de
Deus, preparei-lhe casas e terrenos e, ao mesmo tempo, os meios pecuniários, após o que o senhor deve des-
tinar para lá, sem falta, homens formados na sombra da sagrada gruta, que façam chegar o seu santo espírito
à infeliz Nigrícia. O que agora lhe pode parecer uma quimera será, dentro de alguns anos, algo viável e posto
em execução. Eu faço todos os dias votos por isso. A África Central é grande e o senhor pode fazer o que
quiser nesses países melhor que na nossa desditosa Itália, onde há mais inimigos com quem lutar que entre os
negros da África. P.e Pio está muito bem. Viajou dia e noite comigo, os vómitos tornaram-se cada vez menos
frequentes e um solícito cuidado restabelecê-lo-á por completo. Entretanto agradeço-lhe por mo ter concedi-
do. Reze por mim, que sou feliz de me chamar

Seu dev.mo filho P.e Daniel Comboni


Pró-vigário apostólico da África Central

N.o 466 (435) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


APCV, 1458/311

Cairo, 1 de Outubro de 1872

Concessão de faculdades.

N.o 467 (436) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 716-717v

Cairo, 5 de Outubro de 1872

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3040
Antes de tudo, peço-lhe desculpa por tardar demasiado a escrever-lhe, desde a minha partida de Roma. O
cuidado que tive para organizar as coisas em favor da Nigrícia e as ocupações, surgidas no Cairo após ausên-
cia de mais de dois anos, não me permitiram cumprir esse dever.
3041
Já de Roma temia eu que o escândalo causado pelo Governo da Sublime Porta ao expulsar de Constanti-
nopla o legítimo patriarca dos arménios, mons. Assun, influiria no espírito do Governo e dos muçulmanos do
Egipto e que, portanto, poderia repercutir-se de algum modo, agora ou mais tarde, no apostolado da África
Central. Não me enganei no tocante ao Egipto, porque no Cairo pude verificar que os muçulmanos prestaram
atenção ao acontecido em Constantinopla, embora não tenham aqui cometido nenhum acto de hostilidade
contra a Igreja Católica.
3042
Sua Alteza o quedive, que antes tinha em torno de si franceses, agora começa a rodear-se de prussianos e
move-se conforme o vento que hoje sopra na Europa. Por isso é que, pelo bem da Nigrícia, eu considerei
oportuno ir à Europa visitar S. M. o imperador da Áustria para lhe recomendar ardentemente o vicariato da
A. C., do qual é protector desde 1851, na firme convicção de que, dada a sua grande influência pessoal sobre
o quedive – a qual se tornou mais considerável quando S. M. veio ao Egipto para a inauguração do canal de
Suez – poderia ajudar-me a alcançar o meu objectivo de favorecer o mais possível a Nigrícia. Sua Majestade
apostólica recebeu-me numa longa audiência privada, na qual me mostrou ter vivo interesse e me prometeu a
mais ampla protecção. Isto, unido às comunicações oficiais do núncio apostólico a respeito do vicariato, in-
fluiu poderosamente a meu favor no Ministério dos Negócios Estrangeiros: daí escreveram ao I. R. Consu-
lado Geral austro-húngaro do Egipto, onde encontrei os ânimos bem-dispostos para obter do Governo egíp-
cio um documento assinado de protecção para utilizar em todas as possessões egípcias da África Central.
3043
O segundo fim pelo qual empreendi a viagem a Viena foi pôr-me em contacto com o Alto Comité da So-
ciedade de Viena, chamada Mariana, para lhe expor com bons modos o seu especial mandato de que ajude
com todas as suas forças a missão católica apostólica romana da África Central e animá-lo a satisfazer ple-
namente os justos e rectos desejos da Propaganda e do pró-vigário apostólico. Tive a sorte de encontrar o
ilustre vice-presidente, o barão de Spens, alma da Sociedade Mariana, totalmente romano e papista, que dei-
xou de ser cesáreo (mas foi sempre bom católico) desde a época em que o Governo austríaco abandonou o
rumo seguido até então para cair vítima do moderno liberalismo. Além disso vi todos os membros do alto
comité bem animados de verdadeiro zelo para fazer prosperar a sociedade em benefício da santa missão.
3044
A Sociedade Mariana, cujo maior colaborador foi o velho barão de Spens, deu, desde 1851 a 1867, para a
África Central mais de um milhão de florins, ou seja, a bonita soma de quinhentos mil escudos romanos.
Hoje em dia encontra-se reduzida à mínima expressão.
3045
Por outro lado, aqui no Cairo, encontrei em bastante bom estado os institutos de negros, de cujo regula-
mento darei conta exacta a V. Em.a Rev.ma. Ainda não pude saudar o veneradíssimo delegado apostólico, o
qual estava na Síria e agora se encontra nas estações do canal de Suez.
3046
Estou a preparar as coisas para a partida para a África Central e, com o próximo vapor, enviar-lhe-ei, para
submetê-lo ao seu critério, o plano desta viagem e da visita pastoral ao vicariato que me recomendou a sabe-
doria e solicitude de V. Em.a rev.ma.
Agradecendo-lhe profundamente tudo quanto se dignou fazer pela pobre Nigrícia, renovo-lhe os meus
protestos de perfeita obediência e devoção, com os quais tenho a honra de me subscrever

De V. Em.a rev.ma
Hum.mo, obed.mo e devot.mo filho
P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apost. da África Central

N.º 468 (437) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


«Les Missions Catholiques» 178 (1872), p. 633

Cairo, 10 de Outubro de 1872

3047
Neste momento preparo a expedição a Cartum e ao Cordofão, onde vou fazer a visita pastoral do vicariato
da África Central. A partida da caravana terá lugar no mês de Novembro. É inquebrantável a minha confian-
ça no êxito desta empresa, que tem a bênção da Santa Sé e de Pio IX, nosso Sumo Pontífice, que nos concede
uma bênção especial.

P.e Daniel Comboni


Original francês
Tradução do italiano

N.o 469 (438) - AO P.e HENRI RAMIERE


«Messager du Coeur de Jésus» XXI (1872), pp. 415-416

Cairo, instituto de negros


10 de Outubro de 1872

Mui rev.do e estimado padre,

3048
Certamente não esqueceu a obra da regeneração da África, da qual tive a satisfação de lhe falar singela-
mente durante o concílio e em função da qual foi fundado em Verona o Instituto para as Missões da Nigrícia.
Esta obra está consagrada aos Divinos Corações de Jesus e de Maria, cuja poderosíssima protecção nos aju-
dará, espero, a estabelecer de forma duradoira a fé católica nas imensas regiões da África Central. Esta gran-
de empresa apenas está no início da execução. A Santa Sé confiou ao meu Instituto o vicariato apostólico da
África Central, que se estende ao norte desde o Egipto até Trípoli e que se prolonga para sul até aos 12 graus
de latitude. É a maior diocese do mundo, superando em extensão a Europa.
3049
Há nela mais de oitenta milhões de infiéis e não se contam lá talvez duzentos católicos. Colocado na qua-
lidade de pró-vigário apostólico à frente desta imensa grei, recorro a si, rev.do padre, e aos sócios para que
me ajudem a fazer voltar aos caminhos da vida estes infelizes que jazem na sombra da morte. É preciso que o
divino Coração de Jesus reconduza ao redil da salvação todas estas ovelhas tresmalhadas. Para obter tal mi-
lagre, proponho-me começar a minha missão com uma consagração solene de todo o meu vicariato a esse
Coração infinitamente misericordioso. Penso realizar este projecto quando chegar a Cartum ou ao Cordofão.
Mas para que o Coração de Jesus acolha melhor a nossa homenagem, desejo oferecer-lho em união com os
sócios do Apostolado da Oração. Portanto, peço-lhe insistentemente queira redigir o acto de consagração,
inspirando-se em todo o seu zelo pela glória do Coração de Jesus.
3050
Se aceder à minha súplica e os seus sócios obtiverem para nós do Sagrado Coração de Jesus, por interces-
são dos sagrados Corações de Maria e José, as únicas bênçãos que podem tornar o nosso trabalho fecundo,
será para mim um prazer mandar-lhe informações sobre o andamento da missão.
«Nigrícia ou Morte», será o meu grito de guerra até ao fim da minha vida. Venha, pois, em minha ajuda,
estimadíssimo padre e considere-me nos divinos Corações que são a nossa esperança comum

Seu af.mo P.e Daniel Comboni


Pró-vigário da África Central
Original francês
Tradução do italiano

N.o 470 (439) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v, 1003, ff. 718-719

J. M. J.
Cairo Velho, 15 de Outubro de 1972

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3051
Na esperança de que V. Em.a tenha recebido a última que lhe escrevi desta capital, vou expor-lhe e sub-
meter-lhe agora o modo como procurarei realizar a próxima expedição à África Central, estando já bem en-
caminhado um documento de protecção, que S. A. o quedive está prestes a conceder-me.
3052
Antes de tudo, tenho de lhe assinalar que em Cartum se encontra a antiga estação com um grande jardim,
de um lado do qual se ergue a ampla residência dos missionários e do outro a casa chamada de Casolani,
porque a habitaram os missionários desde Casolani a Gostner (de 1848 a 1855). Nesta última estão agora
umas trinta negras, sem nenhuma directora adequada. Igualmente em El-Obeid, no Cordofão, temos um am-
plo jardim, onde se encontram disseminadas quatro pequenas casas. Numa delas estão os quatro exploradores
com alguns negros e noutra há algumas negras, uma das quais é uma velha quase desdentada que faz de ma-
dre superiora.
3053
Tanto em Cartum como no Cordofão, cristãos de diversas seitas e até muçulmanos pedem com insistência
que se abram escolas.
Depois de ponderar devidamente todas as circunstâncias e de fervorosamente suplicar ao Senhor que me
guie bem em tão relevante assunto, estou convencido de que devia ser necessário escolher já nos dois institu-
tos do Cairo algumas pessoas entre as mais preparadas e maduras para ocuparem a estação de Cartum, que
está provida do necessário. E, depois de abrir e pôr suficientemente em andamento aí duas casas, eu iria ao
Cordofão com dois sacerdotes e dois irmãos leigos para estabelecer adequadamente aquela estação e preparar
também aí uma casa feminina para instalar, a seu devido tempo, as irmãs e as mestras negras.
3054
Por isso, eu julgaria conveniente escolher nos institutos preparatórios do Cairo:
1.o Cinco sacerdotes já aclimatados, com três catequistas e pios artesãos europeus.
2.o Quatro irmãs, com sete ou oito mestras negras experimentadas.
A pequena família masculina embarcaria numa dahhabia, ou barco fluvial, com camarotes bastante có-
modos; a família feminina iria noutra dahhabia ainda mais cómoda. As duas embarcações navegariam sem-
pre a pouca distância uma da outra e assim se faria a viagem do Cairo a Assuão, de Schellal a Korosko e de
Berber a Cartum.
3055
Depois, a maneira de realizar a viagem pelo deserto desde Assuão até Berber (de Assuão a Schellal não
são mais de duas horas) seria a seguinte: dividir-se-iam os camelos em duas pequenas caravanas, uma a dez
minutos de distância da outra. À frente iria a masculina e atrás a feminina, seguida a certa distância por dois
habir, ou guias governativos, obtidos para este objectivo pelo grande chefe do deserto. À noite, as duas pe-
quenas caravanas católicas ficariam alojadas sob duas grandes tendas, que agora estamos a preparar. Estou
convencido de que deste modo se realizaria uma viagem conveniente em todos os aspectos e completamente
segura.
3056
Sob a administração dos meus antecessores Knoblecher e Kirchner, ao sábado comia-se carne, quando tí-
nhamos, por falta de azeite. Entre as faculdades que a S. C. se dignou conferir-me não figura absolutamente
o indulto de comer carne ao sábado. Certamente os meus predecessores receberam autorização para isso me-
diante documento particular. Naqueles tempos diziam-me até que a S. C. tinha dispensado de abstinência
também à sexta-feira, porque na África Central não existe azeite e no Nilo Branco não se fabrica manteiga.
Portanto, para minha tranquilidade de consciência (não podendo o costume ter força de lei numa igreja re-
cém-nascida), suplico a V. Em.a me obtenha de S. S. especial privilégio quanto a isso, na certeza de que o
utilizarei com toda a cautela e prudência.
3057
A semana passada fui a Alexandria apresentar cumprimentos a mons. Ciurcia, que me entregou o inventá-
rio de Schellal. Ele não se encontra em bom estado de saúde, embora tenha tido algumas melhoras. Peçamos
ao Senhor que se digne conservar para tão espinhoso e difícil cargo este distinto prelado, que dificilmente
poderá ter um sucessor semelhante a ele.
Confiando ter em breve a honra de receber os seus venerados escritos, beijo-lhe a sagrada púrpura e de-
claro-me com a mais profunda veneração

De V. Em.a Rev.ma
Hum.mo, obed.mo e devot.mo filho
P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico

N.o 471 (440) - AO P.e VENÂNCIO DE S. VENÂNCIO


AFDC, Cartas antigas

Cairo, 22 de Outubro de 1872


Declaração sobre os bens de Schellal.

N.o 472 (441) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

Cairo, 28 de Outubro de 1872

Minha muito venerada madre,

3058
Já lhe escrevi e pedi insistentemente para que me mandasse o mais depressa possível a Ir. Maria Bertho-
lon com uma ou duas irmãs e repito-lhe neste momento a mesma súplica; e se estivesse em Marselha seria
capaz de me ajoelhar diante de si (às escondidas do card. Barnabó) para lhe implorar que me desse a Ir. Ma-
ria para a África Central.
3059
Com ela a minha fadigosa e difícil missão caminharia perfeitamente e eu ficaria muito contente, porque
todas as irmãs que me concedeu, por sua caridade bem dirigidas com sabedoria e espírito de Deus, têm virtu-
des para superar admiravelmente as dificuldades (que a Ir. Verónica nunca lhe assinalou nas suas cartas), as
quais desaparecerão de todo com as disposições que tomei. Também a superiora e a Ir. Isabel (que não care-
cem de sólidas virtudes) poderiam servir. Mas preciso da Ir. Maria Bertholon como superiora do Sudão e da
Ir. Verónica como superiora no Cairo Velho.
3060
A senhora é uma madre e fez um bem imenso à minha missão, que é preciso continuar. Nomeei um novo
superior no Cairo Velho, o qual estima muito as irmãs e é capaz de conhecer e corrigir os defeitos. A Ir. Ve-
rónica está muito contente com ele. Eu quero fazer da Ir. Verónica uma das melhores e mais capazes superio-
ras da congregação, sobretudo pela perfeita observância da regra e pelo espírito da congregação.
3061
Quanto à Ir. Josefina e à Ir. Madalena, tenha a certeza de que lhes dedicaremos cuidados mais que pater-
nais. Presentemente estão maravilhosamente bem. Eu conheço a sua doença, que a África curará perfeita-
mente: melhor que os médicos que me tinham desiludido também a mim.
São doze horas e os correios estão quase a fechar. Espero a Ir. Maria dentro de quinze dias. Conto com o
seu grande coração.

Seu indigno filho


e
P. Daniel Comboni

Envie esta carta aos primos da Ir. Germana.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 473 (442) - A MONS. LUÍS CIURCIA


AVE, c. 23

Cairo, 30 de Outubro de 1872

Declaração sobre o inventário dos bens de Cartum.

N.o 474 (443) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM. Afrique Centrale Dossier

Cairo, 11 de Novembro de 1872

Minha caríssima e venerável madre,

3062
Com impaciência espero a sua resposta às minhas cartas sobre a Ir. Maria Bertholon e alguma outra irmã.
A partida está fixada para o fim deste mês e as casas estão preparadas no Sudão. Se se atrasa um mês mais,
haverá dificuldades devido ao vento do Norte.
3063
Tenho à minha disposição duas grandes embarcações, ou dahhabias, uma para as irmãs e as negras e a
outra para os missionários. Com a Ir. Maria Bertholon a minha obra fica em boas mãos. Como a Ir. Maria só
pode estar serena cumprindo a vontade de Deus, expressa pela superiora geral, não voltei a escrever à Ir.
Maria desde o concílio, ou seja, desde há dois anos e um quarto.
3064
O clima da África Central fez tão bem aos padres Estanislau Carcereri e José Franceschini, que agora
nunca estão doentes; e os dois fizeram a viagem entre Cartum e o Cordofão quatro vezes.
Levo comigo para o Cairo o clérigo Pascoal Fiore e P.e Bártolo Rolleri, P.e Vicente Jermolinski, P.e Pio
Adriano e P.e Abraão Riga – todos sacerdotes –, mais quatro agricultores.
3065
Pelo que respeita às irmãs, eu rogar-lhe-ia que mandasse as cartas de obediência à Ir. Maria Bertholon, à
Ir. Josefina Tabraui, à Ir. Germana Assuad e à Ir. Madalena Caracassian; e se a Ir. Maria vier com duas ir-
mãs, também seria necessária a obediência para a Ir. Isabel Cambefort. Talvez a madre tenha dificuldades
quanto à Ir. Madalena por causa da sua saúde; mas nós pensamos que a viagem para o Sudão e sua perma-
nência aí lhe farão bem. Por outro lado, preciso de uma irmã para conduzir ao Cairo uma vintena de negras
que temos em Cartum. Dentro de quatro anos poderemos ir de comboio de Cartum ao Cairo em quatro dias.
Eu espero para mim muitas cruzes e também triunfos.
3066
Entretanto, rogo-lhe que me prepare irmãs orientais, como a Ir. Josefina e a Irmã Germana; eu estou dis-
posto a oferecer-lhe 500 francos pelos gastos do noviciado de cada uma. Pelo S. Lourenço pagar-lhe-ei 5000
francos, quando da primeira oferta que me chegar da Propagação da Fé, que não deve tardar muito. Minha
boa madre, fico à espera da Ir. Maria. As irmãs estão bem, graças a Deus.
Espero pelas suas cartas e reze por

Seu filho
e
P. Daniel Comboni

Peço-lhe desculpa por esta tinta: escrevo da casa dos frères.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 475 (444) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


APCV, 1458/313

Cairo, 16 de Novembro de 1872

Nomeação como vigário-geral interino do vicariato da África Central.

N.o 476 (445) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

J. M. J.
Cairo, 18 de Novembro de 1872

Minha veneradíssima madre,

3067
O atraso da Ir. Maria e das que tem a bondade de me conceder dá-me muito que pensar. Não obstante,
confio nos Corações de Jesus, Maria e José, espero que o seu coração maternal e cheio da caridade de Jesus
Cristo não quererá demorar a obra da conversão de mais de cem milhões de almas, das quais as Irmãs de S.
José são as primeiras evangelizadoras. Preciso de duas superioras. Dê-me a Irmã Maria e fico sossegado.
Com Ir. Maria, Ir. Josefina Trabaui, Ir. Germana e alguma outra fundamos uma obra magnífica. É difícil
encontrar irmãs tão generosas como elas. Se as irmãs árabes são como estas, asseguro-lhe que a Igreja Cató-
lica receberá delas muitos benefícios na África Central.
3068
Sobre a nossa cara Ir. Madalena escreveu-lhe a Ir. Verónica. Temos toda a esperança de que se restabele-
cerá. A superiora do hospital e o médico também desiludiram o padre Franceschini, dando-lhe só quinze dias
de vida; mas fez a viagem de Cartum ao Cordofão e está muito bem, porque para os tísicos o clima do Cairo
é bom e o do Sudão muito bom.
3069
Se não me mandar de seguida a Ir. Maria, perco um ano. Pelo amor de Deus e de S. José, faça esse sacri-
fício.
À madre assistente e todas as irmãs, mil saudações de

Seu humo. filho


P.e Daniel Comboni
Original francês
Tradução do italiano

N.o 477 (446) - AO CARD. JOSEPH O. RAUSHER


AEV

Institutos negros do Cairo (Egipto)


21 de Novembro de 1872

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3070
É sabido de V. Em.a Rev.ma que no ano de 1846 a Santa Sé Apostólica erigiu o vicariato da África Cen-
tral e que mandou para lá alguns missionários de diversas nações e um bispo, sob a celebérrima direcção do
padre Ryllo s. j., polaco.
3071
Porém, tendo os lamentáveis efeitos da nefasta revolução do ano de 1848 impedido que a romana Sagrada
Congregação da Propaganda Fide e a Pia Sociedade da Propagação da Fé de Lião e Paris mandassem ulterio-
res ajudas a essa missão, o meu venerável predecessor, o dr. Inácio Knoblecher, da diocese de Liubliana, que
certamente não tinha perdido a esperança por tão grave esquecimento, ao voltar à Europa, encontrou logo
sentimentos de extraordinária piedade no magnânimo coração do nosso augusto imperador Francisco José I,
que, movido de compaixão para com tão numerosas infelizes tribos dos camitas, que gemiam sob o jugo de
Satanás, não só outorgou muitas ajudas do seu real pecúlio ao rev.mo pró-vigário, mas também se dignou,
além disso, acolher sob a sua protecção o vicariato da África Central.
3072
Depois preocupou-se de que o vicariato fosse tutelado por «decreto» da suprema autoridade dos turcos,
assim como de que se abrisse um consulado austríaco com sede no Cairo. Com a sua autoridade reforçou a
instituição da famosíssima Sociedade de Maria, comummente conhecida com o nome de «Marienverein»,
fundada em Viena com o fim de recolher fundos para o sustento da missão.
3073
E sucedeu que os veneráveis bispos de todo o império responderam com solicitude aos seculares gemidos
dos milhões, dos cem milhões de pagãos como parecem ser os habitantes da África Central, exortando com
apaixonado zelo os seus fiéis diocesanos a reunir enormes somas de dinheiro para socorrer aquelas gentes e
enviando essas somas ao Alto Comité Mariano para tal missão.
3074
Se bem que não pareça que os frutos dos missionários da África Central brilhem por agora com um gran-
de esplendor, pelas tremendas dificuldades que se opuseram ao seu ministério, contudo as suas fadigas pro-
porcionaram não pequenos benefícios. Concretamente, entre o trópico de Câncer e o equador, ao longo do
Nilo e do Nilo Branco, fundaram-se quatro estações católicas.
3075
Além disso, estudaram-se os costumes, as leis, as superstições, a índole e os defeitos de muitos povos.
Exploraram-se vastíssimas regiões e visitaram-se povoados. Graças ao esforço do il.mo prof. Mitterrutzner,
de Bressanone, imprimiram-se com caracteres austríacos textos em línguas desconhecidas, como a dos Din-
cas e dos Bari.
3076
Como todas as obras de Deus, também esta teve que passar por grandes dificuldades e fadigas, devidas à
crueldade dos homens, à inclemência do clima, etc. São estas dificuldades que põem o selo nas obras de
Deus, quer dizer, as instituições da Igreja e das missões apostólicas.
3077
Porventura problemas de todo o género, perseguições e mortes cruéis tornaram-se insuperáveis impedi-
mentos para os apóstolos de Cristo? Não foram mais gloriosos os combates e os troféus dos apóstolos onde
maiores se apresentaram as dificuldades? Não é o sacrifício o preço da redenção e o sangue dos mártires
semente de cristãos?
3078
Isto sucedeu, em.o e rev.mo príncipe, na missão da África Central. Caíram homens valentes, porém, a Di-
vina Providência suscitou outros, cuja última palavra, inspirada pela caridade de Cristo, será sempre esta:
«Nigrícia ou morte»!
3079
Por disposição da Divina Providência, fundei em Verona o Instituto das Missões da Nigrícia e abri no
Cairo, no Egipto, dois colégios, um masculino e outro feminino, para educar o clero indígena, para instruir os
nativos nos trabalhos artesanais e também para habituar os missionários europeus ao clima das regiões inte-
riores da África.
3080
O Nosso Santíssimo Senhor Pio IX, ouvido o parecer da S. C. Propaganda Fide, manifestado na assem-
bleia geral de 21 de Maio deste ano, determinou que todo o vicariato da África Central fosse confiado aos
sacerdotes veroneses do Instituto Missionário para a Nigrícia e dignou-se pôr-me a mim, embora indigno, à
frente desta árdua e laboriosíssima missão, com o cargo e as faculdades de pró-vigário apostólico.
3081
O Em.o cardeal Barnabó, prefeito geral da S. C. Congregação da Propaganda Fide, mandou uma carta à
Sociedade de Maria de Viena, exortando os membros desta a multiplicar os esforços para recolher ajudas de
todas as partes do vasto império austro-húngaro em favor desta missão.
3082
Eis, portanto, Eminentíssimo Príncipe, aqui na sua presença, esta infelicíssima Nigrícia, que se encontra
nas trevas, que se afasta do recto caminho e que está a ponto de cair em precipícios, porque está sem luz, sem
fé, sem Deus. Trata-se de toda a salvação da África Central, que abrange a décima parte de todo o género
humano e cuja extensão é maior que toda a Europa. Eis aqui perante V. Em.a a mais vasta e difícil missão de
toda a Terra, que vai desde o trópico de Câncer até aos doze graus de latitude austral e que goza da protecção
do glorioso estandarte do imperador.
3083
Eia, pois, em.o príncipe, pelo Coração de Jesus Cristo, digne-se fazer sua esta causa; e enquanto nós nos
afadigamos cada dia com suor, sangue e canseiras por esta vinha abandonada, conceda-nos a graça de exortar
os devotíssimos fiéis da sua diocese a que rezem intensamente e ofereçam ajudas e esmolas às missões da
África Central. Digne-se enviar os donativos à Sociedade de Maria de Viena, que por meio dos seus Anais
dará a conhecer as nossas fadigas, as nossas viagens e também as conversões dos povos da África Central.
3084
Dentro de poucos dias partirei do Cairo para as remotas regiões da África Central com um grupo de mis-
sionários, irmãs e artesãos, os quais, estando já ambientados, se adaptarão mais facilmente ao mortífero cli-
ma das terras interiores da África. Assim se cumprirá o que diz a Sagrada Escritura: «Venient legati ex
Aegipto, Aethiopia praevenient eos.»
Prostrado humildemente a seus pés recomendo-lhe esta causa e com ânimo agradecido subscrevo-me nos
Corações de Jesus e de Maria

De V. Em.a rev.ma dev.mo filho


P.e Daniel Comboni pró-vig. apostólico

Original latino
Tradução do italiano

N.o 478 (447) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

Cairo, 24 de Novembro de 1872

Minha caríssima e venerável madre,

3085
O atraso na chegada da Ir. Maria assinala e significa que o seu grande coração concede esta admirável ir-
mã à África Central. A madre terá recebido as minhas cartas, nas quais lhe pedia que apressasse o envio da
Ir. Maria. Nos institutos fez-se uma novena a S. José para obter de si a graça desta irmã e no dia 29 come-
çaremos outra novena à Imaculada Conceição com o mesmo fim. A Santíssima Virgem e S. José são mais
fortes que todo o mundo e a madre vai mandar-me a Ir. Maria.
3086
Mas se tardar em mandar-ma, o prejuízo pelo seu atraso é muito considerável: quanto mais nos demorar-
mos, mais aumenta o preço do frete, porque perdemos o vento favorável e as embarcações custam o dobro e,
em vez de chegar a Cordofão dentro de dois meses, chegaremos dentro de três. Amanhã partirão dois missio-
nários e três irmãos para prepararem os camelos no deserto e as casas nas duas estações. Uma linda e longa
carta do P.e Estanislau, que do Cordofão me descreve a situação de milhares de meninas que as nossas irmãs
podem salvar e ganhar para Jesus Cristo, fez chorar copiosamente as irmãs e as negras, que se ajoelharam
dizendo-me: «Meu padre, por amor de Deus, partamos rapidamente, vamos salvar essas pobres almas aban-
donadas. Se estivesse aqui, a nossa madre geral enviar-nos-ia imediatamente.»
3087
Naturalmente também eu não pude conter as lágrimas e chorámos todos e todas. Ah, se estivesse aqui a Ir.
Maria, teria chorado e já nos teríamos posto a caminho. A viagem para esta missão é muito fácil e delicioso.
O Cordofão tornou bem fortes e robustos os nossos missionários. A Ir. Josefina queria partir com os nossos
padres da vanguarda e diz que eu, tendo recebido as irmãs para o meu vicariato, tinha poder para a enviar.
Mas prefiro ter as obediências.
3088
Já está tudo pronto. Tenho à minha disposição duas grandes embarcações: uma para as irmãs e as negras e
a outra para mim e os missionários. As compras estão também feitas. Só esperamos a Ir. Maria. Se a Ir. Ve-
rónica se negou a receber o dinheiro para as irmãs que tem a seu cargo, já não o voltará a fazer.
Espero a Ir. Maria para dar à superiora da África Central as atribuições de um ano mais para ela e para as
irmãs que tem a seu cargo e para dar à superiora do Cairo Velho o dinheiro para ela e para as suas irmãs que
ficam no Cairo. Além disso, a missão proporcionar-lhe-á tudo aquilo que precisam (à parte o arrendamento),
porque são nossas filhas e trabalham com um zelo admirável. Ah, se tivesse doze Ir. Josefinas, doze Ir. Ger-
manas e doze como a Ir. Maria Bertholon, meia África Central seria convertida. A Ir. Josefina Trabaui é mais
robusta e forte do que eu. Há vinte anos que trabalha por quatro.
3089
Minha madre, preciso de cinco irmãs para o Sudão. Dando-me a Ir. Maria, disporei de duas boas superio-
ras, pois a Ir. Josefina é uma superiora excelente. Não me falta nada. No Sudão há que abrir duas casas de
grande importância. Entende-se que, para o ano que vem, deve preparar-me ao menos cinco irmãs, a maior
parte das quais sejam árabes.
3090
Rogo-lhe, por amor de Deus, que telegrafe à Ir. Maria que vá para Marselha e, de lá, mande-a para o
Egipto. Ponha tudo na minha conta e depois será reembolsada dos gastos que efectuar. Se dentro de quinze
dias as irmãs não estiverem no Egipto, será uma grande desgraça para mim e para a minha missão. Presen-
temente é devido à Ir. Maria que não posso partir para o meu Vicariato. Esperar por outra estação é um gran-
de prejuízo para a missão e um gasto de 20 000 francos mais. Pelo amor de Deus, não me faça perder mais
tempo. Espero que a Santíssima Virgem e S. José serão mais fortes que a madre e que todas as cruzes.
3091
Quanto às irmãs que ficam no Cairo, além da obra das negras, têm a escola da paróquia do Cairo Velho
que se torna uma casa nossa, tendo fechado a velha casa onde estavam a ex-madre Catarina e Marietta. Mais
tarde as nossas irmãs poderão abrir na nossa grande casa um pensionato. E penso que o poderiam fazer até
dentro de uns meses. Assim, no Cairo, que, às escondidas de todos e sem que ninguém possa opor-se, está a
tornar-se numa das principais capitais do mundo, as Irmãs de S. José podem, por meio de mim, abrir e dirigir
um magnífico pensionato, que mais tarde será mudado para o centro da cidade, onde penso construir.
3092
Espero a rápida chegada da Ir. Maria. Mil cordiais saudações à madre assistente e que Deus escute a sú-
plica do

Seu desditoso filho em J. C. (se não vierem as irmãs)


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico da África Central

Esta manhã chegou aqui de Alepo o irmão de Sóror Germana, que veio vê-la. Fica alojado em minha ca-
sa. Por favor, envie para Lourdes a carta junta.
Original francês
Tradução do italiano

N.o 479 (448) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM Afrique Centrale Dossier

Cairo, 30 de Novembro de1872

Minha rev.ma madre,

3093
Sou um infeliz, pois não vejo nem cartas nem Irmãs. A Propaganda Fide fez-me compreender gentilmente
que era necessário que eu partisse para a África Central. Escrevi ao card. Barnabó explicando-lhe o plano
que seguirei quanto à caravana das irmãs e negras e à dos missionários na viagem de Cartum para o Cor-
dofão e esta manhã recebi uma carta de Sua Eminência, na qual elogia muito as precauções e medidas de
prudência que estou a tomar para esta grande viagem e me manifesta que leu com muito agrado este plano e
que rezará a Deus para que abençoe a minha viagem e minha empresa.
3094
Estes últimos 15 dias que estive à espera de Sóror Maria e das irmãs pareceram-me quinze anos. Vê-se
que Deus quer dar-me cruzes por meio de si. Terça-feira passada mandei dois missionários e quatro irmãos
para prepararem os camelos no deserto e as casas das irmãs em Cartum e no Cordofão. Como eles são apenas
seis, farão a viagem em cinquenta dias. Tinha encontrado para eles há quinze dias uma embarcação (essa
bela barca estava preparada para as irmãs) a um preço conveniente. Esta semana as embarcações custam o
triplo.
3095
Dentro de 15 dias, as embarcações custarão mais, os camelos mais e a viagem será mais longa por causa
dos ventos do Norte que se tornam mais fracos. Lá, na África Central há tantas almas à espera! As nossas
irmãs aqui estão cheias de zelo e impacientes por partir. Eu ando sobre espinhos por causa do atraso da Ir.
Maria, que a madre me prometeu muita vez em Roma. Fui ao hospital para me aconselhar com essa boa su-
periora e ela disse-me que não sabe a razão deste atraso. Todavia parece-me ter percebido que, talvez, não
me mande as irmãs porque, à minha chegada ao Cairo, não entreguei à superiora o dinheiro que eu devo dar
às irmãs, conforma havíamos combinado. Não posso acreditar que isso venha da minha madre.
3096
Logo que cheguei ao Cairo, tomei 1500 francos e ofereci-os à superiora; ela não os quis receber e isso re-
vela a generosidade dela. E eu não a forcei a aceitar o dinheiro, porque estava certo de que à chegada da Ir.
Maria iria aceitá-lo. E isso talvez seja melhor, porque então eu dou à Ir. Maria o dinheiro para as irmãs que a
madre destina à África Central e à Ir. Verónica o que é para as irmãs que ficarem no Cairo. Enfim, peço-lhe,
minha boa madre, que se tiver observações a fazer-me, as faça à vontade, pois sabe que eu as escuto e atendo
ao seu parecer. A madre sabe que as suas cartas e as suas ordens me fazem mais impressão que as do cardeal,
porquanto eu respeite o nosso pai e o considere como o representante de Deus.
3097
O atraso das irmãs já me trouxe muitos prejuízos na obra de Deus e se tardar mais quinze dias será um
grande dano para a mesma.
Estamos na novena de S. Francisco Xavier e da Imaculada Conceição, que fazemos pela rápida chegada
de Sóror Maria e das irmãs. Quero ver se a Santíssima Virgem e S. Francisco Xavier são mais fortes que a
madre. S. José esteve um pouco surdo e preguiçoso esta vez. Eu esperava ver a Ir. Maria no Cairo ao menos
no mês de Outubro. Porém, eis-nos em Dezembro e as irmãs sem virem. Sou bem infeliz!
3098
Para duas casas preciso no mínimo de seis irmãs: mande-me, ao menos, seis obediências. Quanto às das
superioras, uma é para a Ir. Maria e a outra, por favor, para a Ir. Josefina Trabaui. A Ir. Josefina é mais forte
que eu e que a madre. Por mais que eu insista para que se cuide, ela pouco se preocupa; porém, tem muito
juízo e o magnífico clima da África Central e do Cordofão far-lhe-á muito bem. No que respeita a Sóror Ma-
dalena, estou certo de que o clima do Cordofão, a vida activa e a Ir. Maria, que a estima muito, ser-lhe-ão
muito proveitosos e restabelecerão a sua saúde. Não ligo muito ao veredicto do médico do hospital, que diz
que os pulmões da Ir. Madalena estão podres: sempre se enganou connosco. A superiora do hospital é da
opinião desse médico; mas eu consultei outros médicos e sobretudo o nosso e não encontra o mal que vê o
médico do hospital.
3099
Os cuidados que dedicaremos a Sóror Madalena e o excelente clima da África Central fortalecerão as ir-
mãs Josefina e Madalena. Espero pelas obediências destas duas boas irmãs. Nos cinco anos que estamos no
Egipto e no Sudão, de trinta e sete, nenhum europeu dos nossos institutos morreu, graças ao nosso modo de
viver e aos cuidados que lhes dispensamos.
3100
Por amor de Deus, tenha piedade de mim: sou um infeliz. Agora que Deus me mandou os meios para sus-
tentar a missão, vem-me a desgraça do atraso das irmãs. Não durmo nem sequer duas horas por noite. Não
posso aproximar-me do Nilo, com um vento tão bom e tão favorável, porque volto a casa meditabundo e
triste, pensando que talvez dentro de um mês teremos o vento contrário, o que suporá um mês mais de via-
gem para nós e ao menos 2000 francos mais de gasto. Clamo por S. José porque ele está a dormir.
3101
A superiora do hospital disse-me ontem que a madre tem mantas a 4 francos cada uma. Pois bem, mande-
me quarenta e também tudo o que julgar necessário para as irmãs e as negras, tanto no Cairo como na África
Central. Compre e mande-me a factura para reembolso por meio do meu banqueiro de Roma e de Colónia.
Na esperança de que me tire esta pena que me consome a vida (e as irmãs são testemunhas disso), entrego
o assunto à Santíssima Virgem e declaro-me nos Corações de Jesus e de Maria com todo o respeito

Seu indigno e infeliz filho


P.e Daniel Comboni, pró-vigário apostólico da A. C.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 480 (449) - A MADAME A. H. DE VILLENEUVE


AFV, Versailles

Cairo, 12 de Dezembro de 1872

Minha caríssima e venerável senhora,


3102
Não pense que posso esquecê-la um instante e deixar que passe um dia e celebrar uma só missa sem rezar
por si. Sabe que a trago gravada no meu coração, como também ao meu estimado Augusto, à senhora Maria
e a todos os seus. As minhas ocupações são tão absorventes, que não tenho podido escrever-lhe muito. Mas,
do meu barco, mandar-lhe-ei cartas bem longas. Parto este mês com trinta e três pessoas para o centro da
África. A viagem é de três meses e vou cruzar o deserto com muitas preocupações e incómodos. Tenho a
missão maior e mais trabalhosa de todo o universo: cem milhões de habitantes. Leia «Missions Catholiques»,
boletim de Lião, e «Il Messaggero del S. Cuore» de Dezembro; neles terá notícias da minha obra.
3103
Entretanto, mande-me notícias suas e da sua família. Diga a Urbansky que me escreva e que a sr. a Ernes-
tina está aqui no Cairo, nos meus institutos, com as nossas Irmãs de S. José. Eu encontro-me forte, mas reze
por mim e pelos meus negros. Tenho duas casas em Verona, duas no Cairo e disponho-me a fundar duas em
Cartum e duas no Cordofão. Escrever-lhe-ei em breve do meu barquito.
Mil afectuosas saudações a Augusto, à senhora Maria e a todos.

Seu af.mo P.e Daniel Comboni


Pró-vig. da A. C.
Original francês
Tradução do italiano

N.o 481 (450) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier
Cairo, 15 de Dezembro de 1872

Minha rev.ma madre,


3104
A nossa caríssima Ir. Madalena regressou de Jerusalém com uma perfeita saúde. Ela é muito forte e eu es-
tou contente de ter conseguido o meu objectivo. Será uma boa irmã para a África Central. A Ir. Josefina
goza de perfeita saúde. Nestes dias trabalhou por duas. Eu conheço a fundo a indisposição física que as afli-
ge: a África Central é para elas o melhor remédio.
3105
Sem dúvida tem conhecimento da morte de mons. Valerga. Os franciscanos fizeram já os seus planos.
Proporão mons. Bernardino Trionfetto, bispo de Terracina Sezza e Pipermo como novo patriarca de Jerusa-
lém. Foi guardião da Terra Santa e geral da ordem franciscana. É bom com as Irmãs de S. José; porém, uma
vez determinado que, em princípio, o patriarca é um franciscano, todas as congregações não franciscanas, as
missões estabelecidas pelo patriarca Valerga, o seminário de Betsaida e o capítulo e as Irmãs de S. José aca-
barão por ser afastados de Jerusalém e da Palestina.
3106
Se a Propaganda nomear um franciscano, segundo a minha opinião fará um sacrifício de primeira classe.
Parece-me que, no interesse da Congregação de S. José, conviria que em Roma a Ir. Catarina, com o seu
admirável estilo, desse a conhecer a Sua Eminência a situação (isto digo-lho confidencialmente) e sondasse o
terreno etc., etc. A madre entendeu-me bem. As clarissas do Cairo já estão certas de, em breve, se estabelece-
rem em Jerusalém. Enfim, faça-se sempre só a vontade de Deus.
3107
Os meus missionários em Jerusalém falaram muito com Sóror Angélica Feruai, que está aí e deseja ser
mandada para a África Central. A Ir. Madalena disse-me que a superiora, Ir. Cipriana, deixá-la-ia partir com
prazer. Goza da confiança da Ir. Josefina. Portanto, por amor de Deus, peço-lhe que a ponha à minha dispo-
sição e que lhe envie a obediência para a África Central. Além disso, far-me-ia outro favor se enviasse a
obediência também à Ir. Maria Afonsina Gattash, de Jerusalém. Se me conceder esta graça, mandarei o di-
nheiro para Jerusalém. Ou melhor, ordene à Ir. Cipriana que ponha na minha conta o preço da viagem.
3108
A negra Josefina, depois de ter feito sofrer muito as irmãs, fugiu de nós e apresentou-se aos franciscanos
e agora está com as clarissas por ordem de mons. o delegado. Determinei não admitir nunca negras, porque
têm mil pretensões e são a morte das irmãs. Rogo-lhe, pois, que não me mande mais negras e diga a P.e Bia-
gio que se ocupe ele mesmo das suas. Já lhe escrevi claramente sobre o assunto. Com as nossas irmãs árabes
alcançaremos mais fruto com menor custo. Estou em apuros se não me manda irmãs. Como me disseram que
a madre consente nisso, partirei com a Ir. Josefina como superiora. É muito hábil, prudente e boa.
3109
Para lhe pagar, pouco a pouco, tenho que fazer muitos sacrifícios, porque é sobretudo neste primeiro ano
do meu pró-vicariato que preciso de grande soma de dinheiro. E não é pertinente pedir à Propagação da Fé
para lhe pagar a si, pois acabo de receber a bela soma de 45 000 francos, de que já não sobra nada, e não me
convém pedir de novo. Porém, farei o seguinte: como antes de terminar Dezembro tenho de mandar para
Lião a nota dos gastos estimados para o ano de 1873, com o estado da missão, as dívidas, etc., darei a conhe-
cer ao presidente a dívida de 8000 francos que tenho consigo e rogar-lhe-ei que lhe passe 5000 francos; o
restante tratarei de lho pagar de outro modo. Pense que tenho duas casas no Cairo e que vou ter duas em Car-
tum e duas no Cordofão; tudo sobre os meus ombros e à custa do meu bolso. Eu não tenho outro ecónomo a
não ser S. José, que às vezes se mostra surdo e indolente; mas pagar-lhe-ei a si quanto antes.
3110
Não mande nenhuma negra nem beduína, nem ninguém, exceptuadas as irmãs. O mal que nos fez a louca
da Josefina é enorme. Não admito nenhuma negra que queira casar-se agora. Quando tiver feito a visita pas-
toral da missão e tiver visto e estudado bem todos os assuntos com as irmãs e examinado a situação que se
criará para as negras da Europa com o seu casamento, escrever-lhe-emos a si a dizer o que convém fazer. Por
agora é melhor que as raparigas negras que se queiram casar fiquem na Europa, em vez de virem para o
Egipto.
3111
Quanto às Madres da Nigrícia de Verona, não tenho nenhuma confiança que possam tomar a seu cargo
uma pequena missão. Elas são muito boas para a clausura, mas para a África preciso de soldados como a Ir.
Josefina e a Ir. Maria Bertholon.
3112
O meu vicariato é doze vezes maior que a França e nele há lugar para trinta congregações, a primeira das
quais é e será sempre a de S. José da Aparição, que partilhou as primeiras penas e sofrimentos da fundação.
Por outro lado, nunca poria numa estação católica duas congregações; sobre isto tenho bastante experiência e
vi muitas coisas no Cairo, onde há só três congregações.
3113
A Ir. Josefina nega-se a ser superiora; mas não tema: continue a insistir até que aceite. Agora tem bastante
maturidade e está cheia de sensatez. Quem precisa de ser orientada é a Ir. Germana, que seria idónea para o
apostolado se se deixasse dirigir. Espero consegui-lo. A Ir. Isabel, que está cheia de abnegação e de virtudes
apesar da sua cabeça, certamente virá para a África Central; eu tê-la-ei sempre na minha obra. Infelizmente,
neste momento tem várias irmãs e negras contra si; veremos como acertaremos as coisas.
3114
Por favor, destine-me para Março a que pedi há 50 dias, que está a acabar o seu noviciado. Por ela enviar-
lhe-ei quinhentos francos. Porém, suplico-lhe pelas duas de Jerusalém, de que lhe falei. Pense que só a mu-
lher e S. José converterão a África Central.
Aceite, minha madre, a expressão do meu mais profundo respeito em Nosso Senhor.

P.e Daniel Comboni v. ap.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 482 (1160) - CERTIFICADO


Numa família de Helouan (Egipto)

Cairo, 20 de Dezembro de 1872

Certificado sobre a autenticidade de relíquias.

N.o 483 (451) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

J. M. J.
Cairo, Dezembro de 1872
3115
Há pouco escrevi ao nosso rei Henrique V que as Irmãs de S. José da Aparição são as primeiras evangeli-
zadoras da Nigrícia. Falei-lhe da congregação, sobretudo à rainha, que está em Frosledorf. Leia em fins de
Dezembro «Il Messaggero del S. Cuore» e verá que os sócios do Apostolado da Oração rezam durante este
mês pela África Central. O rev.do P.e Ramière escreveu-me uma bela carta. Todas as irmãs mostram uma
grande entrega. A Ir. Maria Bertholon é a mais apta para ser superiora; está acima de todo o elogio, tal como
Ir. Josefina Tabraui. Em minha opinião, na do P.e Ângelo, prefeito de Trípoli e na de todos os missionários, a
Ir. Josefina seria uma superiora incomparável.
3116
Mande-me, pois, a obediência para esta irmã como superiora do Sudão e o Sudão pagar-lho-á em saúde,
dando-lhe mais doze anos de vida. Comprei uma burra para ela e para a Ir. Madalena. Ir. Germana tem tanto
zelo que é preciso travá-la; mande-me também a sua obediência. Não vou falar-lhe, minha rev.da madre, da
importância do apostolado das irmãs na África Central. Aqui os doentes vêm todos os dias às centenas para
serem curadas por elas. A Ir. Germana está agora aqui e a Ir. Rosália em Tunes.

P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano
N.o 484 (453) - NOTAS VÁRIAS
ACR, A, c. 22/5 n. 9

Cairo, Dezembro de 1872

N.o 485 (453) - LISTA DOS BISPOS DA ITÁLIA


ACR, A, c. 18/20

1872

N.o 486 (454) - AO CONDE MINISCALCHI


ASC

Roma, 1872

Autógrafo sobre uma estampa do S. C. de Jesus, de Maria e de José.

N.o 487 (455) - AO P.e JOSÉ FRANCESCHINI


APCV, 1458/395
1872

Concessão de faculdades.

N.o 488 (456) - APONTAMENTOS


SOBRE AS MISSÕES DA ÁFRICA
ACR, A, c. 18/19, nn. 1-6

1872

N.o 489 (457) - AUTÓGRAFO NUMA FOTO


ACR, sez. fotografie

Roma, 1872

N.o 490 (458) - AUTÓGRAFO NUMA FOTO


ACR, sez. fotografie

1872
1873

N.o 491 (459) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE PARIS


APFP, Boîte G 84, N. 113

Cairo, 1 de Janeiro de 1873

Estatísticas das missões e notas administrativas.


N.B. O mesmo documento foi enviado à Propag. da Fé de Lião.

N.o 492 (461) - A MGR. JEAN FRANÇOIS DES GARETS


Presidente da Obra da Prop. da Fé de Lião
APFL Afrique Centrale, 1

Cairo, 15 de Janeiro de 1873

Senhor presidente,

3117
Hoje, que tenho diante do nosso Instituto, no Nilo, os dois barquitos que devem levar a minha expedição
apostólica até ao começo do deserto, é-me grato dar-lhe esta notícia enquanto lhe envio o resumo de contas
de 1872 e as previsões orçamentais para 1873.
3118
As tropas egípcias acampadas frente à Abissínia tomaram todos os camelos do deserto e as autoridades
sanitárias que o quedive mandou à Núbia, devido à pretensa doença da cólera, estenderam o raio de acção até
ao trópico e Tebaida e requisitaram também as embarcações. Assim que a nossa grande caravana se poderia
ver sem barcos e sem camelos para a sua viagem de três meses de duração.
Porém, tendo enviado ao deserto e a Cartum no dia 26 de Novembro dois missionários e quatro irmãos,
eles conseguiram arranjar os camelos em Korosko, após vinte dias de espera, e agora dirigem-se a Cartum.
Quando o senhor receber esta carta, terei deixado o Cairo, com mais de trinta pessoas entre homens e mulhe-
res: é a primeira vez que a irmã e a mulher do Evangelho vão sulcar o Nilo no Alto Egipto e na Núbia para,
depois, atravessar o deserto; mas foi preciso muita prudência e preparativos.
3119
Na minha carta de Julho passado mostrei-lhe o grande bem que o senhor fez à mais vasta e difícil missão
do universo, dando-me com uma caridade e rapidez extremas a importante soma de 45 000 francos. Eu nunca
cesso de agradecer à Propagação da Fé, que me deu a possibilidade de empreender a Missão, o que de outro
modo teria sido impossível.
3120
É no primeiro ano que os sacrifícios são mais necessários. Por isso a Propagação da Fé é a única obra só-
lida capaz de dar vida à missão da África Central. A Sociedade de Viena, que noutros tempos deu tanto di-
nheiro a esta missão, teve que reunir todos os fundos existentes na sua caixa desde há muitos anos, para po-
der entregar-me 6590 francos. As outras são pequenas sociedades da área.
Rogo-lhe, pois, que redobre os seus generosos esforços e me conceda uma grande ajuda este ano, metade
do qual passaremos na areia, em embarcações, etc., com o céu como tecto e só com a protecção de Deus.
3121
Pelo resumo de contas que junto, o senhor verá o estado desta missão, que não tem nenhuma comparação
com outras missões, como lhe manifestei em minha carta datada em Roma no dia 5 de Junho. Aqui é preciso
fazer tudo, pagar tudo e até comprar as pessoas, ao princípio. Requerem-se grandes sacrifícios, porém, em
poucos anos, a Obra da Propagação da Fé ficará feliz por ver brilhar a luz do Evangelho nas tribos da África
Central, onde mais de cem milhões pedem a salvação.
3122
Agora peço-lhe me conceda duas graças para este mês de Janeiro.
1.o Mandar à madre Emilie Julien, superiora geral das Irmãs de S. José da Aparição, em Marselha, a im-
portância de 5000 francos, à conta de uma dívida de 8000 francos que tenho com ela.
2.o Enviar-me, dentro do exercício de 1873, a soma de 5000 francos, porque, com tantas pessoas numa
viagem de três meses, não quereria parar no deserto por falta de dinheiro.
3123
Tudo isto peço-o para este mês. A semana passada recebi de mons. Ciurcia uma letra cambial de 2400
francos, pelo que estou infinitamente agradecido.
Eis a direcção do meu representante no Egipto, para quem pode mandar o dinheiro e as cartas para mim.
P.e Bartolomé Rolleri
Missionário ap. e superior dos institutos
de negros do Cairo (Egipto).
3124
Ele negociará as letras e far-me-á chegar o dinheiro a Cartum e ao Cordofão por meio do divã do Cairo.
As cartas e o correio em geral chegar-me-ão pelo cônsul da Áustria em Cartum.
Esta semana enviar-lhe-ei a foto da expedição, à frente da qual partirei dentro de uns dias. Também lhe
mandarei um relatório de Carcereri que me chegou do Cordofão para as Missions Catholiques e que receberá
Laverrière.
Digne-se, senhor presidente, receber a homenagem da minha profunda veneração e de eterno agradeci-
mento, com os quais tenho a honra de me declarar

Seu dev.mo servidor


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário ap. da Africa C.
Original francês
Tradução do italiano

N.o 493 (462) - DISCURSO PRONUNCIADO NO CAIRO


ACR, A, c. 27/19, n. 2

Cairo Velho, 26 de Janeiro de 1873


3125
Finalmente chegou o momento tão suspirado por mim e por vós, ó irmãos e irmãs em Cristo, em que po-
demos desafogar o prolongado desejo do nosso coração. Agradeço-vos a paciência com que me esperastes na
minha longa ausência, a abnegação com que suportastes tantas privações, incómodos e pobreza. Tudo me dá
fortes garantias que posso contar com a vossa cooperação na magna e árdua empresa que a Santa Sé se dig-
nou confiar-me. Talvez os sacrifícios passados não sejam senão um ensaio para os muitos que teremos ainda
que sofrer para conseguirmos plantar no coração da África o estandarte da redenção; porém, não temamos,
pois o Deus que nos amparou nas penas passadas não nos abandonará nas futuras.
3126
Façamos um holocausto da nossa vida pela santa empresa e essa terá um êxito seguro: caíram os Apósto-
los, mas a sua fé chegou até nós e durará até ao fim dos séculos. A minha longa ausência, se, por um lado,
submeteu a vossa paciência a dura prova, assegurou, por outro, a existência e o futuro da nossa missão. Com
donativos de particulares pude comprar em Verona dois grandes imóveis, onde se abriram dois institutos
para formar alunos e alunas para a missão.
3127
Das sociedades de Lião, de Colónia e de Viena consegui obter receitas regulares anuais para o nosso sus-
tento e para todos os gastos originados pela implantação da missão na Nigrícia. Por último, o que é mais
importante, obtive da Sagrada Congregação da Propaganda, com a sanção da Santa Sé, toda a missão da
África Central com o título e jurisdição de pró-vigário apostólico. A messe, portanto, está conseguida: não
falta senão o nosso trabalho. Trabalho requerido pela nossa vocação, pela Santa Igreja, pelos fiéis que nos
apoiam e pela própria infeliz Nigrícia, que desde o interior ardente nos estende as suas negras e descarnadas
mãos amarradas pelo Demónio. Avante, pois, irmãos e irmãs, filhos e filhas do Senhor. Sigamos sem mais
este irresistível impulso do nosso coração, que nos leva a salvar um povo desamparado, uma gente lacerada e
envolvida em mil costumes e erros. Armemo-nos do escudo da fé, do elmo da esperança, da couraça da cari-
dade, da espada de dois gumes da divina Palavra e marchemos animosos a conquistar para o Evangelho esta
última nação do universo.
3128
Eia, vamos destruir entre aqueles povos o império de Satanás, implantar aí o estandarte triunfante da cruz
e eles verão a luz sob o esplendor deste sinal. Vamos regar com nossos suores, com a água da vida eterna,
aquelas áridas e abrasadas regiões, as quais farão brotar para o Criador um novo povo de fiéis adoradores.

P.e Daniel Comboni

N.o 494 (463) - A UMA IRMÃ DE S. JOSÉ


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

Siut (capital do Alto Egipto)


10 de Fevereiro de 1873

Minha veneradíssima madre,

3129
Uma só palavra para lhe dar notícias das nossas irmãs. A Irmã Germana é a Marta da nossa expedição;
comporta-se verdadeiramente bem. A semana passada avançámos lentamente, porém, agora temos um bom
vento. A Ir. Madalena encontra-se em perfeita saúde; nunca a vi tão cheia de saúde. A Ir. Josefina está bem,
embora tenha ficado doente do peito por ter trabalhado muito com os preparativos do Cairo e começou a
fazer o mesmo no barco, quando tivemos dois dias e duas noites de Inverno; porém, eu obriguei-a, por obe-
diência, a ficar na cama e agora melhorou. Fazemos o possível por curá-la; assim poderá terminar a viagem e
trabalhar no Sudão.
Dentro de quinze dias chegaremos a Schellal, no começo do vicariato. Dou graças ao senhor por me ter
concedido as Irmãs de S. José.
3130
São umas heroínas as três que tenho. Defenda a minha causa perante a madre geral para que me mande
mais seis, no próximo mês de Março. Dê-lhe notícias nossas e agradeça-lhe da minha parte o que fez por
mim. Este novo mundo da África Central pertence a S. José. Rezamos sempre pela nossa madre geral, por si,
pela madre assistente, pela Ir. Catarina, superiora de Roma e por todas as irmãs. Reze também por nós. Es-
tamos nas mãos de Deus e refugiados no Sagrado Coração. Faço todos os dias um sermão às irmãs e às ne-
gras. Elas estão felizes, pelo que vejo; são boas. Mil saudações à madre geral e às suas queridas filhas. Reze
por este que é

Seu devot.mo servidor


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário ap. da África Central

Navegando desde o Cairo até Schellal, fizemos três sétimos da viagem. De Schellal, espero chegar a Car-
tum em 40 dias.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 495 (464) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 720-721

Schellal (Núbia Inferior)


7 de Março de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3131
Eis-me aqui, finalmente, chegado ao vicariato da África Central, depois de uma lenta e penosa navegação
de mais de trinta e oito dias desde o Cairo. Saí da capital do Egipto com dois pequenos barcos, num dos
quais iam os missionários e os irmãos leigos e no outro as excelentes Irmãs de S. José e as mestras negras: ao
todo vinte e seis pessoas. O Senhor visitou-nos com a morte de um bom irmão leigo, agricultor veronês, que,
ao passar pelo Alto Egipto, adoeceu no barco de uma terrível varíola e a quem o prefeito, o P.e Ângelo,
mandou enterrar em Negadeh, perto de Tebaida.
3132
Apesar dos meus esforços de correr quanto antes para o meu vicariato, até agora tinha-me sido totalmente
impossível:
1.o Pelo cordão sanitário estabelecido pelo Governo entre o Egipto e a Núbia por causa da pretensa exis-
tência de cólera em Berber, Cartum e Suakin, patranha ideada a fim de subtrair esses países à vigilância di-
plomática e impedir que se espiassem os movimentos das tropas do quedive nas operações para a conquista
da Abissínia (empresa agora frustrada pelo Gabinete Britânico). Disso derivou a total falta de camelos para
percorrer o deserto e a escassez de embarcações para sulcar o Nilo; pelo que os dois missionários e quatro
leigos que no dia 26 do passado mês de Novembro eu tinha mandado do Cairo a Cartum, a fim de prepara-
rem os alojamentos para as duas caravanas, ficaram imobilizados durante oitenta e um dias em Korosko,
limiar do deserto, por não terem podido encontrar camelos; e tive que conseguir por meio do consulado que o
divã do Cairo mandasse uma ordem telegráfica, para que arranjassem quatro, enquanto os outros dois perma-
neciam em Korosko esperando a minha chegada.
3133
2.o Por a rev.da madre geral de S. José se ter demorado a enviar as obediências às irmãs destinadas ao
Sudão, que foram assinadas em Marselha só a 2 de Janeiro e recebidas por elas a 19, isto é, apenas uma se-
mana antes que as nossas expedições partissem do Cairo. Eu já tinha cumprido há tempos as minhas obriga-
ções para com as irmãs, segundo o acordo estipulado em Roma entre mim e a madre geral. Porém, assim
dispondo o Senhor as coisas, respeitáveis pessoas trataram de impedir por meios que acho injustos a colabo-
ração das santas e eficientes irmãs na minha árdua e laboriosa missão; e não foi tanto a minha sagacidade e
os meus esforços que conjuraram o perigo, como a misericórdia de Deus, que vela com piedoso cuidado pela
sua obra.
3134
3.o Pelas múltiplas preocupações e trabalhos suportados no Cairo, dos quais darei notícia a V. Em. a
quando chegar à minha residência e pela tediosa e cansativa tarefa de reunir as provisões para tantas pessoas
para uma difícil viagem de três meses, e de preparar os objectos necessários para erguer e equipar modesta-
mente dois importantes estabelecimentos que há que erigir no vicariato.
3135
A minha presença no Cairo teria sido necessária para tratar devidamente o assunto da compra de um ter-
reno para nele construir dois pequenos estabelecimentos preparatórios para a missão da África Central, com
o fim de evitar o gravoso arrendamento das duas casas actuais, para cujo fim já realizei as oportunas diligên-
cias com o I. R. agente diplomático e com o cônsul-geral austro-húngaro no Egipto para o obter gratis de S.
A. o quedive. E ainda mais útil teria sido para vigiar a guerra surda que, permitindo-o o Senhor, se faz no
Egipto contra a santa obra da regeneração da Nigrícia. Alguns, que por vocação deveriam favorecer tudo o
que tende só para a glória de Deus, procuraram, e talvez procurem ainda, multiplicar-lhe as dificuldades e
não deixaram de arranjar forma de me prejudicar.
3136
A minha obra é por si árdua e penosa e só a omnipotência divina pode levá-la a cabo. Por isso, pus toda a
minha esperança no Coração de Jesus e na intercessão de Maria e estou disposto a sofrer seja o que for pela
salvação dos povos a mim confiados, convencido de que a cruz constitui a marca das obras divinas – sempre
que não seja devida à nossa imprudência e malícia –, e confortado pela sentença divina: qui seminant in la-
crymis in exultatione metent.
3137
Sim, por tais motivos a minha presença teria sido útil no Cairo. Porém, bem ponderado tudo, decidi confi-
ar o instituto e os meus assuntos do Cairo à cuidadosa vigilância e prudência do meu excelente missionário
P.e Bartolomeu Rolleri, homem de provada integridade, discrição e zelo apostólico, que desde há cinco anos
trabalha louvavelmente no meu instituto do Cairo e correr logo com as duas caravanas para o vicariato, por
ser hic et nunc urgente e mais conforme com o pensamento da Propaganda ocupar o vicariato e fazer a sua
visita, assim como pôr convenientemente em andamento a estação de Cartum e a do Cordofão.
3138
Quanto a Schellal, encontrei a casa em óptimo estado de solidez; porém, completamente vazia dos objec-
tos que possuía no valor de mais de dois mil escudos, os quais foram em parte vendidos e consumidos, em
parte roubados e em parte destruídos pelas formigas brancas. Como aqui temos um clima excelente e um
amplo terreno produtivo na nossa propriedade (75 000 metros quadrados) e, tendo em vista que Schellal é
um sítio que se pode tornar importante, é minha intenção devolver a esta Estação a vida e torná-la útil para a
missão, segundo o objectivo para que foi fundada, como lhe exporei depois da visita pastoral do vicariato.
Beija-lhe a sagrada púrpura com toda a veneração

Seu hum. devot.mo e obed.mo filho


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apost. da África Central

N.o 496 (465) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


«Missions Catholiques», 203 (18073), p. 196

Schellal, 18 de Março 1873

3139
Empregámos trinta e oito dias na viagem do Cairo até Schellal e precisaremos de mês e meio para chegar
a Cartum. Temos uma grande confiança em Deus. Animou-nos concedendo-nos um milagre, por intercessão
da rev.da madre de Canossa, tia do arcebispo de Verona, fundadora das religiosas chamadas canossianas. A
superiora das religiosas da expedição estava a morrer, pelo que iniciámos uma novena à rev.da madre de
Canossa.
Ao terceiro dia, ou seja, no dia 10 de Março, a doente pôde levantar-se e hoje está completamente curada.
Prepare as colunas do Boletim para o meu relato da nossa expedição. Tenho que concluir este bilhete porque
a violência do vento me impede de escrever.
P.e Daniel Comboni
Original francês; tradução do italiano.

N.o 497 (466) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

J. M. J.
Schellal (Núbia Inferior)
19 de Março de 1873

Minha queridíssima e rev.da madre,

3140
Já entrei, após uma navegação de trinta e oito dias pelo Nilo, no vicariato da África Central. Hoje as irmãs
renovaram o seus votos. São as primeiras religiosas que pisam o interminável espaço da África Central. Estas
três irmãs são anjos, devo confessá-lo à sua querida madre e faço-o com uma sinceridade e um sentimento de
júbilo.
Que graças nos concederam Deus, a Santíssima Virgem e S. José! Porém, hoje devo assinalar outra gran-
de protectora da África Central e das Irmãs de S. José da Aparição: a venerável marquesa Madalena de Ca-
nossa, tia do bispo de Verona, cuja canonização está a ser instruída em Roma. A Ir. Josefina Tabraui, digna
superiora das nossas irmãs, embora quinze dias antes da nossa partida do Cairo gozasse de bastante boa
saúde, trabalhou tanto nos preparativos da viagem que caiu doente: cuspia sangue e foi tomada de febre, que
não a deixava.
3141
Devo dizer-lhe a si que se torna difícil moderá-la: é incansável e, apesar das minhas censuras, dos meus
rogos e os das irmãs, empenha-se a trabalhar, não tem nenhum cuidado com a saúde. É indomável. Deus
sabe quanto trabalhámos e sofremos para a obrigar a abandonar o camarote convertido num forno ou para a
impedir de descer a terra quando, com o vento contrário, ficámos parados. Esperando poder curá-la com o
descanso da navegação, partimos no dia 26 de Janeiro. Porém, a febre não a deixou nunca durante a viagem
de 38 dias.
3142
Remédios, sangrias, repouso, alimentação, tudo foi inútil. Como está verdadeiramente tísica, a meio da
viagem comprei uma burra com o seu potro por 145 francos; mas o leite caía-lhe mal. Chegados à nossa casa
de Schellal, foi deitar-se e às sete confessou-se e comungou. Nós pensávamos administrar-lhe os santos
óleos. Que dor para mim e para as irmãs!
Decidimos ficar em Schellal com toda a caravana de vinte e cinco, à espera das irmãs que a madre me ti-
nha prometido, porque nem eu nem as suas companheiras podíamos abandoná-la para cruzar o deserto. Aí,
cada dia representava para mim uma despesa de 60 francos.
3143
Estávamos desolados. Era enorme a quantidade de orações, novenas e tríduos que dirigíamos a todos os
santos, a S. José, etc.; mas o dia 9 de Março eu não pensava vê-la com vida. E a Ir. Germana também era
tomada de convulsões e palpitações.
No meu desespero, determinei finalmente fazer uma novena à marquesa de Canossa, fundadora das Irmãs
da Caridade de Verona, que fez muitos milagres e que morreu em 1835.
Nos dois primeiros dias da novena piorou; mas Ir. Madalena e Faustina, minha prima, gritavam que a de
Canossa tinha que fazer o milagre.
Ao terceiro dia da novena, a febre desapareceu por completo. Eu queria fazer-lhe beber a água de La Sa-
lette. Não – disseram as Irmãs –, não devemos dar-lhe nada; é a de Canossa que deve curá-la.
3144
Em suma, no final da novena, ou seja, no dia 17, a Ir. Josefina levantou-se sã e salva e agora trabalha
mais que nunca. Cessou quase totalmente a tosse que a consumia e a febre não voltou a aparecer. A Ir. Jose-
fina está mais forte que em Deir-el-Kamar e no Cairo. Hoje, sob um Sol ardente, fez uma viagem a Assuão
de 4 horas e meia para tratar um assunto com o governador. E espero que dentro de quarenta dias cheguemos
a Cartum. Vou escrever ao bispo de Verona e farei o relatório para juntá-lo à causa de beatificação. As irmãs
prometeram a Deus não deixar que passe um dia sem rezar à de Canossa e fazer um jejum e um retiro de três
dias em Cartum se nos conceder a graça de chegar lá sãos e salvos.
3145
A Ir. Germana está curada. Quanto à Ir. Madalena, desde que partiu do Cairo até agora não sofreu nunca
uma dor de cabeça, tem uma pele bronzeada e uma saúde tal que nunca a vi tão saudável e alegre, desde 31
de Julho de 1864 até ao presente. Trabalha por duas com muita calma e sensatez; o mal é que as outras duas
irmãs também querem trabalhar. Por isso, se nestes países longínquos preciso de mais é também para poupar
estas três verdadeiras filhas do Evangelho.
3146
Depois de ter lido esta carta, dê a conhecer o conteúdo a Ir. Maria Bertholon e diga-lhe que a espero na
África Central para a curar e torná-la apóstola dos negros. Saúde-a, além disso, da minha parte, como tam-
bém à Ir. madre assistente da qual queremos uma foto.
Mande-me irmãs árabes: pelo menos dez. Para que hei-de falar-lhe do apostolado das irmãs neste país?
Os doentes vêm às centenas todos os dias, de lugares a trinta e quarenta milhas de distância para serem trata-
dos por elas.
A Ir. Germana é agora a Ir. Rosália de Tunes. Compreende-me bem?
3147
Schellal é uma povoação situada em frente da ilha de Filé, de quinhentos habitantes disseminados pelas
cataratas. Nós temos uma boa casa com 15 feddans de terreno sobre o Nilo, onde farei um grande jardim (15
feddans são 75 000 metros quadrados). O ar é magnífico. Ora bem, se as irmãs são solicitadas nesta aldeia,
que sucederá em Cartum, em El-Obeid, no Cordofão, onde há uma população tão numerosa?... Por conse-
guinte, rogo-lhe insistentemente que me mande ao menos sete irmãs rapidamente. Procure que me seja desti-
nada uma boa farmacêutica, porque se trata de apostolado. Espero que para meados de Abril possa fazer com
que partam de Marselha.
3148
Dê-me santas irmãs como as três que tenho comigo. Mande-me verdadeiras irmãs como as do hospital do
Cairo, porque é preciso um grande espírito de sacrifício para esta missão...
Em três anos espero fazer de Schellal uma grande estação, com um belíssimo jardim. Construirei uma
igreja toda de granito oriental, como o do obeslisco que está na Praça de S. Pedro em Roma, que foi daqui.
3149
Consagrarei a estação de Schellal a S. José. O clima é dez vezes mais saudável que o do Cairo.
Mil saudações à madre assistente. Escreva para Roma, à Ir. Catarina sobre o milagre que eu irei escrever-
lhe de Cartum.
Espero as irmãs
Seu filho em N. S.
P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 498 (467) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP Acta, Ponenze, v. 241, f. 689

Schendy, na Núbia Superior


29 de Abril de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3150
Enquanto estamos encalhados há dois dias entre as cataratas de Halfaya e impedidos de avançar também
pelo vento contrário, tenho a honra de lhe anunciar que me chegaram do Cairo as suas veneradíssimas do dia
8 e do dia 28 de Novembro, assim como o decreto do Santo Ofício de 11 de Dezembro com a dispensa da
abstinência ao sábado, pelo que lhe agradeço imenso.
3151
O ilustre Sir Bartle Frère, embaixador de S. M. Britânica, que me foi recomendado por sua estimada carta
de 28 de Novembro, veio visitar-me com o seu séquito ao meu instituto do Cairo e conversámos durante
mais de três horas sobre o doloroso tema da escravidão. Embora este exímio senhor pertença à Igreja Angli-
cana, parece muito animado pela missão filantrópica, à qual foi destinado pelo seu Governo. Não se dirigia à
África Central, que é o verdadeiro e lamentável teatro da escravidão, mas a Mascate por Zanzibar. Quer pôr-
se em contacto com aqueles sultões para abolirem praticamente o tráfico de escravos e, depois de uns meses,
voltará à Europa, isto é, a Londres. Combinámos manter correspondência usque ad mortem sobre o mencio-
nado fim humanitário. Julguei prudente, contudo, não lhe dizer nada, por agora, sobre estragos que neste
momento está a fazer entre os negros, desde Gondokoro até às nascentes do Nilo, outro inglês, Sir Samuel
Baker, porque antes quero comprovar o facto.
3152
Não obstante pareça ser certo o que me contaram, porque o capitão do meu barco, de onde escrevo, me
assegura que esteve com Sir Baker três longos anos, até há oito meses, e que junto com Baker, o mais velho
e Baker júnior, mataram bastantes milhares de negros, incluindo os seus chefes, porque se negavam a acom-
panhá-lo até aos N’Yamza. Mas sobre isto escreverei mais adiante.
3153
O processo que seguiram até agora as potências europeias, sobretudo a Inglaterra, no sentido de acabar
com o tráfico de negros é ineficaz para alcançar o objectivo proposto. Os sultões dos países mencionados
receberão S. E. o embaixador com gentileza e esplendor, como já o fez Sua Alteza o quedive; assinarão al-
gum tratado e darão todas as garantias sobre o papel. Porém, partido o embaixador, continuarão a promover e
proteger o infame tráfico, porque isso está na natureza dos princípios do Alcorão e para eles é fonte de algu-
mas receitas e comodidades. Nos três longos meses e mais de viagem do Cairo até aqui, vimos mais de qua-
renta embarcações com escravos e escravas completamente nus, que iam como sardinhas em lata, e no deser-
to encontrámos mais de vinte caravanas de negras que, totalmente nuas, marchavam a pé, empurradas por
vezes à força de chicotadas.
3154
Todas elas eram conduzidas em pleno dia, diante dos olhos do Governo local, que é o primeiro cúmplice
e promotor, e tinham como pontos de destino o Cairo e Alexandria. E não falo do imenso número de escra-
vos arrancados todos os anos do nosso vicariato e que vão parar aos portos de Trípoli e Tunes. Por isso não
pude senão abanar a cabeça quando em Berber li no Times o seguinte fragmento do discurso da Coroa que no
passado dia 6 de Fevereiro a rainha da Inglaterra pronunciou no Parlamento de Londres: «O meu último dis-
curso, mylords e senhores, referiu-se às medidas adoptadas para acabar eficazmente com o tráfico de negros
nas costas orientais da África. Mandei um embaixador a Zanzibar (Sir Bartle Frère); leva instruções que me
parecem as mais adequadas para conseguir o objectivo que propus. Recentemente chegou ao seu destino e
pôs-se em contacto com o sultão».
3155
O único meio de eliminar ou diminuir o tráfico de negros é ajudar eficazmente o apostolado católico nes-
sas infelizes regiões, de onde são arrebatados violentamente milhares e milhares de pobres negros, cometen-
do os mais terríveis excessos e onde se exerce o infame tráfico. Entre todos os países do mundo é a África
Central onde se perpetram as mais tremendas atrocidades contra estes infelizes seres. E como esta horrível
chaga da humanidade afecta sobremaneira o meu vicariato, vou ter muito que fazer e escrever acerca de tal
assunto. Eu poderia ter nas minhas mãos os cordelinhos para tratar sobre isto com os mais altos dirigentes
das grandes potências da Europa, porém, hoje mandam só governos ateus e revolucionários; portanto não
darei um passo sem submeter tudo previamente ao sábio juízo da S. C. e, sobre o assunto, agirei unicamente
segundo as suas instruções.
Beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me de Vossa Eminência

Hum.mo e devot.mo filho


e
P. Daniel Comboni, pró-vigário ap.

N.o 499 (468) - HOMILIA DE CARTUM


«Annali B. Pastore» 4 (1873), pp. 32-35

Cartum, 11 de Maio de 1873

3156
Estou muito contente de finalmente me encontrar de novo entre vós, depois de tantas vicissitudes penosas
e de tantos ansiosos suspiros. O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia e, deixando
tudo o que me era mais querido no mundo, vim, faz agora dezasseis anos, a estas terras para oferecer o meu
trabalho como alívio para as suas seculares desgraças. Depois, a obediência fez-me voltar para a Europa,
dada a minha enfraquecida saúde, que os miasmas do Nilo Branco em Santa Cruz e em Gondokoro tinham
incapacitado para a acção apostólica. Parti para obedecer; porém, entre vós deixei o meu coração e, tendo-me
recomposto como Deus quis, os meus pensamentos e os meus actos foram sempre para convosco.
3157
E hoje, finalmente, recupero o meu coração voltando para junto de vós para o abrir na vossa presença ao
sublime e religioso sentimento da paternidade espiritual, da qual quis Deus que fosse investido, faz agora um
ano, pelo supremo chefe da Igreja Católica, nosso senhor o Papa Pio IX. Sim, eu sou vosso pai e vós meus
filhos e como tais pela primeira vez vos abraço e estreito contra o meu coração. Estou-vos muito reconhecido
pelas entusiásticas recepções que me tendes dispensado: demonstram o vosso amor de filhos e persuadem-
me de que quereis ser sempre a minha alegria e o meu diadema, como sois o meu dote e a minha herança.
3158
Tende a certeza de que a minha alma vos corresponde com um amor ilimitado para todo o tempo e para
todas as pessoas. Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado
para sempre ao vosso maior bem. O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre dis-
posto a atender as vossas necessidades espirituais; o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o
patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração. O vosso bem será o meu e as vossas penas serão
também as minhas.
3159
Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida
por vós. Não ignoro a gravidade do peso que lanço sobre mim, já que, como pastor, mestre e médico das
vossas almas, terei de velar por vós, instruir-vos e corrigir-vos; defender os oprimidos sem prejudicar os
opressores, reprovar o erro sem censurar o que erra, condenar o escândalo e o pecado sem deixar de ter com-
paixão pelos pecadores, procurar os transviados sem encorajar o vício: numa palavra, ser ao mesmo tempo
pai e juiz. Mas resigno-me a isso, na esperança de que todos vós me ajudareis a levar este peso com júbilo e
com alegria em nome de Deus.
3160
Sim, antes de tudo confio no teu trabalho, reverendo padre e meu caríssimo vigário-geral: em ti, que foste
o primeiro que me ajudou nesta obra da missão para a regeneração da Nigrícia e o primeiro que arvoraste o
estandarte da santa cruz no Cordofão e ensinaste àqueles povos os primeiros rudimentos da fé e da civiliza-
ção. E também confio em vós, estimados sacerdotes irmãos meus e filhos neste apostolado, uma vez que
sereis os meus braços na acção de dirigir pelos caminhos do Senhor o seu povo e ao mesmo tempo meus
anjos conselheiros. E igualmente confio em vós, veneráveis irmãs, que com mil sacrifícios vos associastes a
mim para colaborar comigo na educação da juventude feminina. E do mesmo modo confio em todos vós,
senhores, porque sempre querereis confortar-me com a vossa obediência e docilidade às afectuosas insinua-
ções que o meu dever e o vosso bem me aconselhem a fazer-vos.
3161
Quanto a si, ilustre representante de S. M. I. R. A. o imperador Francisco José I, nobre protector desta
vasta missão, enquanto com prazer lhe agradeço quanto fez até agora por ela, apresso-me a exprimir-lhe a
esperança de que quererá continuar a render gloriosamente a homenagem da espada à cruz, a defender os
direitos da nossa religião divina, no caso de serem ignorados e espezinhados.
3162
E agora é a vós a quem me dirijo, ó piedosa Rainha da Nigrícia, e, aclamando-vos como Mãe amorosa
deste vicariato apostólico da África Central entregue aos meus cuidados, atrevo-me a suplicar-vos que nos
recebais solenemente sob a Vossa protecção a mim e a todos os meus filhos, para que nos guardeis do mal e
nos dirijais para o bem.
3163
Ó Maria, Mãe de Deus, o grande povo dos negros dorme ainda na sua maior parte nas trevas e sombras da
morte: apressai a hora da sua salvação, aplanai os obstáculos, dispersai os inimigos, preparai os corações e
enviai sempre novos apóstolos a estas remotas regiões tão infelizes e necessitadas.
3164
Meus filhos, eu confio-vos neste dia solene à piedade dos Corações de Jesus e de Maria, e, no acto de ofe-
recer por vós o mais aceitável dos sacrifícios ao Altíssimo Deus, rogo humildemente que seja derramado
sobre as vossas almas o sangue da redenção, para as regenerar, para as sarar, para as embelezar na medida da
vossa necessidade, a fim de que esta santa missão seja fecunda para a vossa salvação e para a glória de Deus.
E assim seja.

P.e Daniel Comboni

Original árabe, traduzido para italiano pelo P.e Carcereri


Tradução do italiano

N.o 500 (469) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 724-725

Em.o Príncipe,
3165
Aos noventa e oito (98) dias da minha partida do Cairo, cheguei finalmente com a grande expedição a
Cartum. Não lhe posso exprimir por palavras os sofrimentos, os incómodos, as fadigas, como tão-pouco a
ajuda e as graças do Céu, nem as vicissitudes, enfim, desta perigosa e difícil peregrinação. Os Santíssimos
Corações de Jesus e Maria, que foram incessantemente o doce e suave assunto das nossas esperanças e pre-
ces, salvaram-nos de todos os perigos e protegeram-nos a todos e a cada um dos membros da nossa conside-
rável caravana, especialmente no árduo e terrível percurso do grande deserto de Atmur, no qual, durante mais
de 13 dias, desde o meio dia até às quatro da tarde, tivemos 58 graus Réaumur e nos quais galopámos de 16 a
17 horas por dia; aos 4 do corrente mês, todavia, chegámos todos sãos e salvos a Cartum. Dois despachos
telegráficos, um meu para o Cairo e outro do I. R. cônsul austro-húngaro para Londres, anunciavam no mes-
mo dia este acontecimento.
3166
Por estar muito cansado, não lhe falarei agora da favorável impressão que a minha chegada a Cartum e a
das irmãs produziu em todo o Sudão, nem dos assuntos da missão e como a encontrei, nem do verdadeiro
milagre que a marquesa Madalena de Canossa, morta em odor de santidade, fez em Schellal, em favor da
minha superiora, Ir. Josefina Tabraui, a qual, curada de uma doença mortal ao terceiro dia de uma novena,
pôde atravessar incólume o grande deserto, etc., etc. De tudo isto escreverei dentro do mês. Agora limito-me
a informá-lo da feliz chegada da caravana a Cartum, para a qual o meu vigário-geral tinha tudo preparado, a
quem três meses antes eu mandara vir para aqui com esse fim, após a partida dos dois franciscanos que ocu-
pavam esta estação.
3167
Já desde a minha entrada no vicariato, nas primeiras cataratas do Nilo, comecei a mostrar aos governado-
res turcos o grande decreto que Sua Majestade Apostólica o Imperador Francisco José I obteve do grande
sultão de Constantinopla, a favor do meu vicariato da África Central; pelo que todas as autoridades turcas
rivalizaram em nos favorecer em tudo ao longo da dificultosa viagem. Em Korosko, em apenas dois dias,
conseguimos ter à nossa disposição sessenta e cinco camelos escolhidos para o deserto; em Berber, o próprio
paxá governador me disponibilizou a sua embarcação para navegar em 15 dias até Cartum, etc., etc. Depois,
a entrada na minha sede foi um verdadeiro triunfo, que me deixou desconcertado. O cônsul austríaco, com
uniforme de gala, seguido de toda a colónia cristã de cada seita de Cartum, foi até ao barco, ao meu encontro,
e dirigiu-me um emocionante discurso, no qual me felicitava em nome de S. M. Apostólica pela minha no-
meação como pró-vigário e pela minha chegada ao vicariato e, em nome de toda a colónia cristã do Sudão e
da cidade de Cartum, me agradecia por ser o primeiro a trazer irmãs para o Sudão para a educação da juven-
tude feminina e convidava-me a tomar posse da minha sede.
3168
Eu, depois de uma apropriada resposta, e apresentados os missionários e as irmãs, pelas ruas principais da
cidade, entre o estrondo de morteiros e fuzis, rodeado dos missionários e do corpo consular e seguido de toda
a colónia cristã, dirigi-me à igreja e depois à minha majestosa residência, onde o cônsul me apresentou a
personalidades da colónia. À tarde veio visitar-me com o seu numeroso séquito o chefe turco do Governo
Geral do Sudão, o qual, felicitando-me pela minha chegada, se ofereceu para ajudar em tudo o que pudesse
ser do meu agrado. Esperemos!!!
3169
Não faltou depois quem repetisse uma benévola frase do cônsul, ou seja, que agradecia cordialmente ao
Pontífice Pio IX por ter dado nova vida ao vicariato e ter mandado as irmãs ao serviço da missão. O Doutor
Angélico rezava assim: Da mihi, Domine, inter prospera et adversa non deficere, ut in illis non extollar, in
istis non deprimar. Por minha parte, depois de ter ouvido os hossanas, preparo-me para o crucifige.
3170
Ontem, além disso, fiz a minha entrada solene. Inter missarum solemnia pronunciei em língua árabe a
minha pastoral, na qual expus claramente o objectivo da missão recebida do imortal Pio IX Assistiam mais
de cento e trinta católicos, grande número de hereges de todos os cismas, muçulmanos e idólatras, pelo que
estava cheia a capela, os pórticos e o pátio da missão. Asseguraram-me que havia onze longos anos que do
altar não se tinha ouvido a palavra de Deus, coisa em que eu ainda não posso crer. Aqui espera-nos não pou-
co trabalho, porque, à excepção de duas famílias, todos vivem em concubinato. Confio na graça do Sagdo.
Coração de Jesus, a quem dedicarei solenemente todo o vicariato no quarto domingo de Agosto, dedicado ao
Sagrado Coração de Maria. O S. Coração de Jesus, invocado pelos membros do Apostolado da Oração, como
escreveu o P.e Ramière, deve conseguir o milagre da conversão dos cem milhões de almas, de que consta
esta imensa missão.
3171
A nova missão do Cordofão parece estar em bom começo; porém, necessito de dinheiro para os estabele-
cimentos. Aqui, em Cartum, as irmãs e as mestras negras estão alojadas num palácio situado a três minutos
de distância do jardim da missão, separado dele por uma ampla rua de Cartum.
Receba os obséquios do meu vigário-geral, o P.e Estanislau, dos missionários, das irmãs e do seu

Indig.mo filho
e
P. Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico

N.o 501 (470) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


APCV, 1458/314

Cartum, 22 Maio de 1873

Sua nomeação como vigário-geral da África Central.

N.o 502 (471) - A P.e ESTÊVÃO VANNI


AVAE, c. 31

Cartum, 25 de Maio de 1873


Dimissórias.

N.o 503 (473) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

V. J. M. J.
Cartum, 4 de Junho de 1873

Minha muito venerada madre,

3172
Acabo de receber a sua estimada carta, que me deixou muito satisfeito; e quando entreguei as suas às nos-
sas três irmãs, elas beijaram-nas e ficaram a chorar de alegria: tal é o poder de uma mãe. A madre não viveria
em nenhuma parte do mundo tão intensamente como na África Central. Estas três filhas são incomparáveis.
Agradeço-lhe imenso pelas quatro irmãs que me mandou, as quais já estão no Cairo e também lhe expri-
mo o meu agradecimento pelas que me irá mandar em Setembro. Devo dizer-lhe que a missão de Cartum não
pode estabelecer-se bem sem, pelo menos, seis irmãs.
3173
Consequentemente, por amor de Deus, faça com que a expedição de Setembro seja pelo menos de sete
irmãs. Quanto às que já estão no Cairo, vou dar ordem para que deixem de imediato o Egipto e se dirijam a
Schellal, na Núbia Inferior, a fim de que no mês de Agosto possam atravessar o deserto, por esta época ser
muito fresca. As que chegarem ao Cairo em Setembro, partirão para Cartum no mês de Outubro. A Ir. Jose-
fina diz-me que algumas das quatro chegadas ao Cairo podiam ser nomeadas superioras, dado que se a morte
sobreviesse a uma superiora, a casa poderia estar sem superiora durante muito tempo, por causa da imensa
distância, porque aqui, devido ao deserto, estamos mais distantes da Europa que a Austrália do Japão. Uma
carta pode chegar desta capital do Sudão a Marselha em quarenta dias, mas nós gastámos noventa e nove
dias para ir do Cairo a Cartum.
3174
Rogo-lhe que me autorize a destinar as irmãs quer a Cartum quer ao Cordofão, conforme eu o julgar opor-
tuno para o bem destas duas casas e isto de acordo com as superioras das mesmas, porque aqui só nós pode-
mos julgar sobre as necessidades das missões. Entendeu-me? Assim que, nas cartas obedienciais não ponha
que tal irmã vem destinada a Cartum ou ao Cordofão, mas ponha ao Sudão. Deste modo, o pró-vigário apos-
tólico e a superiora provincial do Sudão decidirão de comum acordo os diferentes destinos, porque nós de-
vemos olhar pela saúde tão preciosa das irmãs. Se uma está cansada pela febre ou pelo trabalho em Cartum,
mudamo-la para o Cordofão e vice-versa, etc., etc. Por outro lado, é difícil encontrar irmãs tão boas, tão ge-
nerosas e tão heróicas como as três daqui.
3175
Quanto às negras que ofereceu P.e Biagio, nãos as admito. A Ir. Josefina e eu, assim como todos os nos-
sos missionários e as nossas irmãs, determinámos não admitir mais negras que tenham sido educadas na
Europa: são a ruína das missões e a morte das irmãs. A viagem do Cairo até Cartum custou-me 22 000 fran-
cos e éramos vinte e oito. Cada negra que faça esta viagem provoca, pois, um gasto de 800 francos, soma
com a qual poderíamos comprar seis delas. Depois, a alimentação, roupa, etc. de uma negra no Cairo custa-
nos muito e não tiramos nenhum proveito. Ainda por cima, estas negras, vindas da Europa, não pensam se-
não em casar-se e tiram-nos o tempo e os recursos que devíamos dedicar à missão.
3176
Além disso, nunca admitirei uma negra oferecida por P.e Biagio, porque esse santo varão sempre proibiu
às negras válidas, residentes nos mosteiros da Europa, que viessem connosco para o Cairo: essas têm voca-
ção de se tornarem religiosas. Ele manda-as todas para as clarissas do Cairo e até teve a coragem de me es-
crever a pedir-me que mande para as Clarissas as nossas negras que se querem tornar religiosas. Em contra-
partida, a nós manda-nos sempre aquelas que, rejeitadas pelas clarissas, não podem ficar noutros conventos
da Europa. Portanto, que Deus abençoe P.e Biagio; porém, nunca mais admitirei nenhuma das suas negras, as
quais foram sempre um martírio para as nossas irmãs e uma peste para as nossas casas. Como também nunca
admitirei negros do P.e Ludovico, de Nápoles: são a escória e o barro da Nigrícia, porque esse santo homem
carece de bons educadores.
3177
Porém, passemos a Cartum.
É impossível descrever o entusiasmo com que foram recebidas aqui as irmãs. O cônsul veio de grande ga-
la ao barco dar-nos as boas-vindas e, em nome do Imperador da Áustria, do paxá do Sudão e da colónia eu-
ropeia, agradeceu-me por ter sido o primeiro a trazer as Irmãs para o Sudão. Igualmente o paxá veio à minha
formosa residência agradecer-me por ter trazido as irmãs e o mesmo me repetiu num grande jantar que deu
em minha honra. Coisa digna de menção: o grande mufti, o chefe da religião muçulmana do Sudão, num
brinde felicitou-me pela vinda das irmãs. Para a colónia europeia elas são o braço direito do meu apostolado.
Só duas famílias católicas vivem aqui cristãmente: todas as demais vivem em concubinato. Agora, um mês
após a nossa chegada a Cartum, as irmãs instruem as concubinas e, dentro de pouco tempo, teremos muitos
matrimónios.
3178
A Ir. Josefina é uma apóstola e uma pregadora de primeira. Já se introduziu em muitas famílias e fala aos
maridos, às mulheres, às concubinas, a todos; ela insinua a moral e a religião católicas e no nosso confessio-
nário trabalha-se mais; numa palavra, temos uma grande missão a realizar em Cartum: as irmãs farão mila-
gres, mas preciso que venham mais. A madre lerá nos Anais muitas coisas que não tenho tempo de dizer
aqui, porque dentro de dois dias parto para o Cordofão. Vim para Cartum com um decreto do sultão de Cons-
tantinopla, que o imperador da Áustria me obteve. O grande paxá do Sudão converteu-se em meu amigo e
protector: deu-me o seu barco a vapor para chegar, pelo Nilo Branco, mais rapidamente ao Cordofão. Com o
vapor, até Abu-Gherab gastarei apenas cinco dias. Estou numa feliz situação aqui no Sudão. Em nenhuma
parte do mundo o sacerdote e as irmãs são tão respeitados como na África Central.
3179
Escolhi o P.e Estanislau Carcereri como meu grande vigário: fez muito na África Central. Nomeei confes-
sor das irmãs o cónego Pascoal Fiore, um santo que as guiará pelo caminho da perfeição. A Ir. Madalena e a
boa Domitila foram as únicas que na terrível travessia do deserto, como em toda a viagem de noventa e nove
dias do Cairo a Cartum, não sofreram a mínima indisposição, a mais pequena dor de cabeça; mas dir-lhe-ei o
que dizem todos: «A mão de Deus está aqui.» Eu ando confuso sobre isso, porém, vejo que Deus se serve
sempre dos fracos para as empresas mais difíceis. A de Canossa fez um grande milagre. Viajámos sempre
pelo deserto dezoito horas por dia sobre camelos, com 50 graus de calor, na estação mais temível. A Ir. Jose-
fina e as nossas Irmãs (eu levava sempre no bolso os Santos Óleos para a Unção dos Enfermos) atravessaram
o deserto melhor que eu e que os missionários. Finalmente, depois de treze dias chegámos a Berber, no outro
lado do deserto, na época mais crítica. Cumpriremos as nossas obrigações para com a de Canossa. Ela trou-
xe-nos até Cartum em perfeita saúde, por milagre.
3180
Uma palavra sobre as nossas casas.
A minha residência é um palácio bem mais longo que o da Propaganda em Roma, com um jardim de que
vinte homens têm de cuidar todos os dias e que chega até às margens do Nilo Azul. Tinha pensado dividi-lo
em dois, mediante um muro, deixando uma parte às irmãs. Porém, o P.e Carcereri tomou para elas um palá-
cio perto do nosso, com um belo jardim. É uma das construções mais sólidas de Cartum, junto com a minha
residência, que é não só de Cartum a mais imponente construção mas de todo o Sudão, e que custou ao meu
predecessor mons. Knoblecher mais de um milhão de francos. Porém, a Ir. Josefina não gosta muito da sua
residência, pelo que estamos prestes a meter-nos em obras para fazer a divisão do meu palácio. Ao mesmo
tempo decidi construir uma igreja três vezes maior que a pequena que temos, que não é suficiente para os
nossos fiéis. Quanto à comida, aqui é barata: com pouco, poderei tratar as irmãs como condessas. Porém, os
alimentos provêm só da missão, porque tudo é produzido em casa, sai da nossa terra.
3181
Lamento muito ter rejeitado em Roma a Ir. Genoveva, antiga superiora do Cairo, quando me foi ofereci-
da. Se quiser vir, mande-a já para o Cairo para que parta para Cartum com as quatro irmãs preparadas. Man-
dei ao P.e Carcereri que escrevesse neste sentido à Ir. Genoveva, cuja habilidade conheço; aqui em Cartum
faria milagres. Nesta cidade de 50 000 habitantes somos mais professores que outra coisa: ela faria muito
bem.
3182
Deixe que lhe diga uma coisa: dentro de cinco anos, o vicariato da África Central será dos mais florescen-
tes, mas só se me mandar ao menos cinquenta irmãs nesses cinco anos e todas as irmãs árabes que puder. É
preciso que crie uma província e me dê como madre provincial uma eficiente e santa mulher. Sóror Josefina
tem todas as qualidades, excepto a saúde. Trabalha dia e noite, até com febre, e não há força na Terra que
consiga dissuadi-la. Isto não pode durar: é um milagre ela continuar viva. Assim, embora a veja sempre acti-
va, não deixo de temer o pior, porque Deus quer que cuidemos de nós, não que nos matemos. O milagre da
de Canossa foi extraordinário, mas, se a pessoa miraculosamente curada quer matar-se, é culpa sua se morre.
3183
Se houver uma superiora provincial que, por obediência, meta em ordem a superiora Ir. Josefina, esta vi-
verá mais tempo para salvar almas, porque a Ir. Josefina é incomparável como missionária. Com certeza a
madre não tem outra igual em toda a sua congregação e para mim seria uma grande desgraça perdê-la. Ela
continua a beber leite de burra; mas, como me inteirei de que o leite de camela é melhor, farei comprar uma
para a Ir. Josefina: colocá-la-á no seu jardim. Obrigue-a a cuidar da sua saúde. E não deixe de me enviar as
irmãs em Setembro; pense que o atraso em me mandar as cartas obedienciais no passado Janeiro me custou
mais de 12 000 francos e todos os incómodos de uma viagem de noventa e nove dias. Avisei-a, mas não
acreditou em mim. As irmãs que partirem do Cairo no mês de Agosto, chegarão a Cartum em cinquenta dias
e com muita comodidade. A madre terá recebido 5000 francos de Lião e agora vou escrever a Colónia para...
(folha incompleta).
3184
Mons. Ciurcia, pressionado pelos franciscanos, proibiu-nos de baptizar no Cairo, pois fui denunciado em
Roma por causa da negra de P.e Biagio, que fugiu às nossas irmãs. Que esta negra (a que me mandou com a
Ir. Germana) tenha fugido do nosso instituto é um crime, mas que se tenha escapado vinte dias depois das
clarissas, isso tem indulgência plenária. Enfim, os franciscanos não são nossos amigos no Cairo, salvo o P.e
Pedro e algum outro santo religioso. Eu mantenho abertas as casas do Cairo para conservar o direito, para
fazer mais tarde o que tenho no pensamento; mas, por agora, preciso de concentrar o grosso das forças no
vicariato, onde temos a missão directa de converter estes povos. Se não podemos baptizar no Cairo, para que
destinar para lá 25 000 francos anuais? Por isso, de momento, vou reduzir o Cairo a uma espécie de procura-
doria para a África Central. As necessidades mais urgentes estão no vicariato...
(folha incompleta)
3185
A casa de Cartum vai custar-me mais de 100 000 francos. A fachada é mais comprida que o palácio da
Propaganda da Piazza di Spagna até à livraria poliglota da Piazza di S. Andrea delle Fratte e o jardim é maior
que o seu de Cappelletta. Tive que fazer o mesmo projecto para as irmãs igual ao do palácio da minha resi-
dência, que custou mais de 600 000 francos. A porta das Irmãs com os Sagrados Corações de Jesus, Maria e
José sai-me por mais de mil francos. Porém, este instituto de irmãs é uma construção eterna e a casa estará
intacta ao fim de mil anos.
3186
Espero a superiora provincial de Cartum. Por cada irmã árabe que der bom resultado, como Sóror Ana,
pagar-lhe-ei – ficaremos nisso – quinhentos francos.
Saudações da minha parte à Ir. Catarina e a todas as irmãs de Roma, bem como à madre assistente. Reze a
Jesus por

Seu devot.mo
e
P. Daniel Comboni

Rogo à madre geral que ponha um selo de vinte cêntimos na carta à Unità Cattolica e que a envie.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 504 (474) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 726-731
N.o 5
Cartum, 5 de Junho de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3187
A notícia de que V. Em.a, por especial favor divino, recuperou totalmente a vista, encheu o meu coração
de indizível conforto e alegrou os meus bons companheiros e as irmãs; de modo que ontem, reunidos diante
do altar, cantámos o hino de acção de graças. Era previsível que o Senhor se dignasse conceder-lhe tal mercê,
como prémio pela maravilhosa calma e edificante resignação com que a insigne piedade de V. Em.a suportou
tão grave adversidade.
3188
Não é minha intenção expor-lhe o miserável estado em que encontrei a missão de Cartum, sobretudo no
que respeita às almas. A falta do pão da Palavra divina, que desde 1861 não se tinha pregado mais, e relaxa-
mento do espírito, em que insensivelmente costuma cair o obreiro evangélico mais bem preparado e disposto
quando em tão perigosos lugares, longe dos olhares de um bispo, permanece muito tempo só e isolado ou
quando não é vigiado de maneira periódica pelos superiores ou quando não vem despertá-lo e reanimá-lo
alguma salutar visita apostólica, foram as principais causas do estado tão deplorável em que encontrei o pe-
queno rebanho de Cartum, cujo maior vício não é o da mancebia.
3189
Se não soubesse que V. Em.a experimentou noutras missões as lamentáveis consequências do vae solis,
sugerir-lhe-ia com a mais fervorosa solicitude que não permitisse nunca que uma missão ficasse só com um
ou dois missionários. Não posso compreender como é que a Santa Sé não mandou nunca um visitador apos-
tólico à África Central, tendo tomado tão sábia e saudável medida com outras missões menos árduas e peri-
gosas que esta. Certamente também nisto teve Deus os seus adoráveis desígnios.
3190
A minha primeira preocupação foi instaurar cada domingo e festa a pregação evangélica na missa paro-
quial e, dentro de pouco, introduzirei também o ensino da doutrina cristã na tarde dos domingos. Já tenho a
satisfação de que, desde a nossa chegada, a nossa capela é tão frequentada que não chega para acolher todos
os fiéis, pelo que decidi construir uma nova igreja com maior capacidade. Para este fim, na homilia em árabe
que pronunciei no dia de Pentecostes, expressei o desejo de levantar um novo templo, convidando os fiéis a
contribuir com as suas esmolas. Em apenas três dias recebi subscrições no valor de 1256 táleres, que equiva-
lem a 6280 francos em ouro, os quais, juntos com outras receitas que espero da Europa e com outras que
receberei no vicariato do Governo turco e dos fiéis, me porão em condições de colocar a primeira pedra do
sagrado edifício no próximo mês de Outubro, ao regressar do Cordofão.
3191
Além disso, começámos a abordar, em nome de Deus e com hábil solicitude, os nossos católicos para os
reconduzirmos para os caminhos da salvação e parece que Deus abençoa a nossa humilde obra, na qual se
revela de capital importância a colaboração das nossas santas e capazes irmãs, de tal modo que, dentro de
pouco tempo, a graça de Deus e a piedade cristã reinarão no pequeno rebanho de Cartum. Em suma, o sagra-
do ministério está aqui em plena actividade e exerce-se entre as ovelhas tresmalhadas não menos que em
favor dos infiéis, porque bastantes catecúmenos recebem instrução todos os dias em ambos os institutos.
3192
Quanto às irmãs, na próxima segunda-feira, 9 do corrente, elas começarão as escolas femininas. E graças
ao dom que Deus me fez de religiosas de excelente espírito e valor e de boas mestras negras, espero ver,
dentro de pouco, uma escola católica florescente nesta capital, que nunca tinha visto uma freira nem os por-
tentos de caridade das mulheres evangélicas. Graças também ao abundante pessoal docente de que actual-
mente dispõe esta missão, trabalhou-se muito no passado mês na preparação dos que iam receber a confirma-
ção. Desde 1860 que não se administrava este Sacramento na África Central.
3193
Na recente festa do Pentecostes, depois da homilia e da missa solene, administrei a sagrada confirmação a
35 pessoas, entre velhos e jovens; e estão a ser preparados mais outros tantos. A escola masculina não poderá
abrir-se antes de Novembro.
3194
A cidade de Cartum tem uns 50 000 habitantes, com 200 católicos, 1000 hereges de diversas seitas, 25
000 escravos negros; os restantes são muçulmanos nubianos, egípcios, abexins, gallas, turcos, etc., além de
8000 soldados. Na colónia cristã existem mais de 200 gregos e 70 sírios.
3195
A casa da missão é o edifício melhor e mais sólido não só de Cartum como de todo o Sudão e de toda a
África Central. Custou a Knoblecher, juntamente com o jardim anexo, mais de 200 000 (duzentos mil) escu-
dos romanos. É um palácio de um só piso, que tem um comprimento de uma vez e meia a do Palácio da Pro-
paganda e que representa só a oitava parte do projecto. O jardim anexo, tão extenso que chega até ao Nilo
Azul, é agora um bosque, porém, em poucos anos espero convertê-lo numa quinta tão produtiva que manterá
toda a missão de Cartum.
3196
A minha posição, perante os católicos dos diversos ritos, é muito satisfatória: todos mostram uma ilimita-
da confiança para comigo e para com os missionários e as irmãs. Esperamos valer-nos dela para benefício
das suas almas.
3197
Em relação aos muçulmanos, sobretudo ao Governo local e às autoridades consulares, a minha posição
não pode ser melhor. A missão católica é a primeira potência no Sudão, e todos, grandes e pequenos, nos
respeitam e nos temem.
3198
O decreto de Constantinopla e o nome do imperador da Áustria, de quem soube valer-me no momento
oportuno, produziram os mais esplêndidos resultados. Ainda não sei a que se deve tudo isso, mas não deixa
de estar relacionado com o que hoje sucede. Sua Excelência Ismail Paxá, governador-geral, que domina até
às nascentes do Nilo, veio visitar-me para me oferecer a sua amizade e todo o seu apoio, para que possa rea-
lizar o meu desejo a respeito da missão católica.
3199
É um homem informado de tudo, um turco instruído, um finório, um bisbilhoteiro e um intriguista de
primeira, mas para comigo e com a missão sumamente benévolo. Desta benevolência deu-me esplêndidas
provas em pouco tempo, oferecendo-me o seu barco a vapor para as visitas pastorais, dando-me madeira para
a missão e declarando livre qualquer escravo ou escrava que, em meu nome, lhe fosse apresentado no Divã,
coisa nunca vista no Sudão, no Egipto, nem em nenhuma parte do império turco. Para não falar doutras coi-
sas, citarei só o jantar diplomático dado por ele em minha honra, para o qual convidou todos os paxás, os
beis, os principais do Governo e da colónia europeia e os chefes da religião muçulmana. Neste solene ban-
quete, muito mais esplêndido que alguns de Paris, fizeram-se quatro brindes, os quais têm aqui o mesmo
significado que na Inglaterra.
3200
O primeiro pronunciou-o o próprio grande paxá, que expressou uma admiração própria de um católico,
por eu e os meus companheiros termos deixado a pátria e as comodidades da Europa para vir para a África
Central difundir a civilização e agradeceu-me em nome dos sudaneses e do Governo por ter vindo encabeçar
a corrente do progresso no Sudão. O segundo esteve a cargo do grande mufti, o chefe do Islamismo no Su-
dão, o qual me felicitou por ter trazido as irmãs para Cartum. O terceiro brinde foi o do cônsul austríaco, que
agradeceu ao Sumo Pontífice por ter feito ressuscitar o vicariato da África Central, por me ter posto à frente
do mesmo e ter enviado as irmãs; após o que fez um brinde a Sua Majestade o Imperador da Áustria por ter
assumido com nova solicitude a protecção do vicariato da África Central. E o quarto, que foi o meu, dedi-
quei-o a S. A. o quedive do Egipto e a S. E. o paxá do Sudão, agradecendo-lhes a protecção concedida à mis-
são e manifestando a esperança de que continuasse no futuro; isto depois de ter feito votos pela sua vida e
prosperidade.
3201
Quanto ao cônsul austríaco, trata-se de um antigo membro da missão que foi trazido a África pelo faleci-
do pró-vigário Knoblecher. Chama-se Martinho Hansal e é um distinto geógrafo, além de um verdadeiro
amigo e servidor da missão.
3202
Por tudo isto, pode V. Em.a deduzir quão favorável é a minha posição actual. Contudo, longe de me dei-
xar levar por vãs lisonjas, depois de tantos hossanas, espero a pé firme o crucifige. Toda a minha confiança
está depositada na cruz e nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria. Por isso fixei o terceiro domingo de
Setembro, dia 14, dedicado à Exaltação da Santa Cruz, o dia para consagrar solenemente todo o vicariato da
África Central ao Sagrado Coração de Jesus.
3203
Nesse dia, os devotíssimos membros do Apostolado da Oração associados ao Messager du Sacré Coeur,
espalhados pelas cinco partes do mundo, acompanharão e farão eco ao meu acto solene de consagração com
fervorosas preces a este divino Coração, que deve inflamar toda a África Central e converter à fé todos estes
povos e todas estas infelizes tribos, sobre as quais ainda pesa o tremendo anátema de Cam. Por isso, compus
recentemente uma oração em latim, que costumamos rezar diariamente pela conversão da Nigrícia e que está
no anexo A, que junto.
3204
Eu suplicaria a V. Em.a que rogasse ao nosso gloriosíssimo Santo Padre a concessão a todo o fiel do orbe
católico que rezasse em qualquer língua esta oração pro conversione chamitarum Africae Centralis ad Eccle-
siam Catholicam as seguintes indulgências:
1.o De 300 dias cada vez que se reze.
2.o Indulgência plenária a quem a rezar todos os dias durante um mês, servatis servandis. E ao mesmo
tempo rogaria a V. Em.a que modificasse ou corrigisse tal oração, onde não estivesse exactamente formula-
da.
3205
Embora sejam grandes as fadigas e os sacrifícios que deveremos suportar pelo amor de Cristo, todavia pa-
rece-me ver um futuro risonho para a África Central. O clima de Cartum, nos meus tempos tão funesto para o
europeu, hoje melhorou notavelmente. A construção do caminho de ferro do Cairo até Cartum, passando por
Schellal, Wadi Halfa, Dôngola e Schendi é algo já decidido. Eu soube-o oficialmente por Sua Excelência o
paxá e falei com a comissão inglesa que projectou o traçado da via. Assim, com os barcos a vapor e os com-
boios, demorar-se-á um mês para ir de Alexandria a Gondokoro, situada no 4o de latitude Norte. E isto den-
tro de quatro anos.
3206
Amanhã à tarde partirei para o Cordofão. S. E. Ismail Paxá pôs o seu vapor à minha disposição. Ele mes-
mo me acompanhará durante cento e dez milhas até Abu-Gharat, no Nilo Branco, onde montarei a camelo e,
em oito dias chegarei à capital, El-Obeid. Rogando-lhe uma bênção especial a Sua Santidade para todos nós,
beija-lhe a sagrada púrpura

O hum. e indig.mo filho de V. Em.a


P.e Daniel Comboni

3207
P. S. Suplico também a V. Em.a que obtenha de S. Santidade uma indulgência plenária para todos os fiéis
do vicariato e os que vivendo sob a minha jurisdição, como são os membros dos pequenos institutos do Cai-
ro, que, confessados e comungados e rezando pela Igreja e pelo Sumo Pontífice, assistam aos sagrados misté-
rios no domingo, dia 14 de Setembro próximo, quando eu realizar o solene acto de consagração da África
Central ao Sagrado Coração de Jesus; o mesmo realizarão os responsáveis de Cartum e do Cairo no mesmo
dia e à mesma hora em que eu o fizer no Cordofão.
Beijo-lhe a sagrada púrpura, confiando-me de novo aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria.

De V. E. Rev.ma, hum. e obed.mo Filho


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário ap. da Afr. Central

Segue a oração para conversão da África em latim.

N.o 505 (475) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


«Annali Buon Pastore» 5 (1873), pp. 11-13

El-Obeid, 23 de Junho de 1873

3208
«Esta é a primeira carta que escrevo da Portae Nigritiae haec e, de entre todos, merece-a o meu queridís-
simo primogénito. Dir-lhe-ei que estou confuso pelas honras e a solene entrada em El-Obeid. Em Fula (lugar
a duas horas de El-Obeid) encontrei toda a colónia oriental, que tinha acorrido a receber-me... A meio cami-
nho, os coptas cismáticos com o seu sacerdote vieram-me ao encontro, de modo que entrei em El-Obeid em
procissão. Chegado à porta da casa da missão, onde me impressionou a magnífica inscrição Porta Nigritiae
haec, estava a banda militar do paxá, de maneira que, depois de rezar um pouco na nossa bela capela, entrei
no Divã, onde recebi as saudações de todos os católicos, dos coptas e gregos cismáticos, dos turcos, presi-
dentes dos tribunais, chefes dos soldados, etc. etc., e de um enviado do paxá, o seu primeiro ajudante, que
tinha vindo a cumprimentar-me em nome de S. E. o mudir.
3209
Na manhã do dia 20 fiz uma visita ao paxá, que me recebeu in formis e veio depois retribuir-ma com to-
dos os chefes do Divã, todos a cavalo e precedidos de alguns grupos de soldados, no meio de uma multidão
que enchia hic et inde a grande esplanada e a imensa avenida que há em frente da casa da missão. Em resu-
mo, todos em El-Obeid, desde o paxá aos comerciantes e ao povo simples, renderam a máxima honra ao
indigno representante do Papa no Sudão. Além disso fiquei maravilhado pelo grande trabalho que o senhor e
o P.e José fizeram nesta incipiente missão: Deus abençoará os seus esforços. E o que me conforta é o crédito
de que goza a missão entre toda a classe de pessoas. Por outro lado, estou contentíssimo do P. e José, que
agiu e trabalhou com uma firmeza e uma gravidade próprias de um homem de mais idade que ele. É um au-
têntico e fiável missionário, capaz de fazer grandes coisas pela glória de Deus. O Senhor deu-lhe muito talen-
to, mas ele soube fazer bom uso dele...»
3210
Numa outra carta subsequente, monsenhor diz-me:
«O clima do Cordofão não pode ser melhor. Além disso, a situação de El-Obeid como Porta Nigritiae é
da máxima importância e não compreendo como é que os primeiros missionários não pensaram antes nesta
capital. Quanto a vós, os dois camilianos, em pouco mais de um ano fizestes aqui prodígios, e eu não trocaria
agora a estação de El-Obeid por nenhuma das do Alto Egipto, que contam com mais de um século. O nome e
a reputação de que os senhores, meus dois caros primogénitos gozais aqui entre todos é muito grande, pelo
que Deus vos abençoará a vós e à missão. O princípio está lançado, é mister continuar o caminho. O divino
Coração de Jesus está connosco.»

P.e Daniel Comboni

N.o 506 (476) - A P.e ESTÊVÃO VANNI


AVAE, c. 31

El-Obeid, 24 de Junho de 1873


Dimissórias.

N.o 507 (477) - A UM SACERDOTE DE TRENTO


«La Voce Cattolica» IX (1874), n. 5-8

A REGENERAÇÃO DA ÁFRICA

J. M. J.
El-Obeid, capital do Cordofão
24 de Junho de 1873
Il.mo e rev.mo senhor,

3211
Vou contar-lhe agora algo da obra. Esta já se encontra em andamento e asseguro-lhe que certamente terá
êxito e se converterão muitos milhões de almas; e isto não porque todos nós, missionários, irmãs e operários,
estejamos decididos a vencer ou morrer, mas porque a obra vai ser confiada ao Sdo. Coração de Jesus, que
deverá incendiar toda a África Central e enchê-la do seu fogo divino. No próximo dia 14 de Setembro, aqui
em El-Obeid, farei a solene consagração de todo o vicariato ao Sagrado Coração de Jesus, enquanto o meu
vigário-geral fará, em igual data, a mesma consagração em Cartum. Nesse dia, os associados do Apostolado
da Oração farão o mesmo acto de consagração, cuja fórmula foi composta pelo nosso caro amigo P. e Ra-
mière.
3212
Sem dúvida, o senhor lerá no Messager du Sacré Coeur. Pois bem, como é possível que o Coração de Je-
sus não escute as fervorosas orações de tantas almas justas associadas ao Messager, que são a flor da piedade
e da virtude? Jesus Cristo é o rei dos cavalheiros: sempre manteve a palavra. Ao petite... quaerite... pulsate
sempre respondeu e responderá com o accipietis... invenietis... aperietur. Portanto, a Nigrícia verá a luz e os
seus cem milhões de infelizes ressuscitarão para uma nova vida pelo Sagrado Coração de Jesus.
3213
Uma vez que, graças à munificência régia, se pôde comprar a casa Caobelli junto ao seminário de Verona,
eu, ainda em viagem pela Alemanha, pus-me a trabalhar nas regras do instituto para as apresentar em Roma.
Entretanto, no Cairo, os meus companheiros, especialmente o meu imprevisível P.e Carcereri, realizavam
estudos acerca dos pontos da África Central onde, pela amenidade do seu clima e pela importância da sua
situação estratégica, seria oportuno estabelecer os membros do instituto já maduros para o apostolado da
Nigrícia interior. Estudou-se, escreveu-se, falou-se, viajou-se e, finalmente, acordou-se tentar uma explora-
ção no Cordofão.
3214
Como a experiência levada a cabo desde 1848 até 1864 no Nilo Branco foi calamitosa, pelos imensos
pântanos que lá geram febres mortais e enfermidades perigosíssimas para o europeu, eu tinha o olhar posto
nas tribos interiores que se encontram entre o Nilo Branco e o Níger, em cujo território há montes e ar sadio.
Aceitei de muito boa vontade a proposta do P.e Carcereri sobre o Cordofão e, mediante uma carta de 15 de
Agosto de 1871, enviada de Dresden, ordenei-lhe que fizesse os preparativos para uma próxima exploração
do Cordofão. A 15 de Setembro, de Mogúncia, ordenei aos exploradores que saíssem do Cairo em Outubro,
época propícia para a navegação pelo Nilo. E foi assim que o valoroso Carcereri, com Franceschini e dois
leigos, em apenas 82 dias de viagem, passando por Cartum, chegaram ao Cordofão. Exploraram-no pela
parte de Darfur, assim como pelo sul, até Tekkela e os confins dos Nuba e julgaram oportuno estabelecer
uma missão aqui, em El-Obeid, que, realmente, segundo posso ver agora, é o centro de todo o verdadeiro
interior da África e cujo clima é muito melhor que o de Cartum e o do Nilo Branco.
3215
De facto, desde El-Obeid, em apenas três dias de viagem a camelo, entra-se no território de Darfur e em
quinze dias chega-se à capital onde habita o sultão. Em três dias, daqui chega-se aos primeiros montes das
grandes tribos dos Nuba, pátria de Bajit Miniscalchi, onde há bastantes milhões de africanos ainda não con-
taminados, que nunca quiseram saber de Maomé. Em trinta dias chega-se ao vasto império de Bornu, en-
quanto para ir aí de Trípoli ou Argel seriam precisos mais de cem dias e a viagem seria perigosa. Aqui em
El-Obeid estão os procuradores e os correspondentes dos sultões de Darfur e de Bornu, os quais fornecem
àquelas regiões mercadorias e objectos europeus por meio de trocas.
3216
Em Setembro passado cheguei com uma boa expedição ao Cairo, onde o Demónio, permitindo-o o Se-
nhor, me tinha preparado imensas dificuldades, que ameaçavam pôr-me na impossibilidade de empreender a
viagem da grande expedição à África Central e ocupar o vicariato, segundo as ordens da Propaganda e de
acordo com o que eu tinha anunciado às sociedades benfeitoras europeias, que para tal fim me tinham dado
alguma ajuda. Para não falar de muitas e muito graves oposições que se desencadearam contra mim por von-
tade de Deus e, pela minha indignidade, direi que tive bastantes personalidades muito estimáveis que escre-
veram a Marselha, à rev.da madre geral das minhas irmãs, esconjurando-a a não permitir nunca que nenhuma
das suas irmãs fosse para a África Central, onde encontrariam uma morte certa, como tinha acontecido a
todos os missionários precedentes.
3217
A madre geral, que tinha oito irmãs preparadas para mas enviar para o Cairo, assustou-se e, como conse-
quência disso, mandou-as para a Bélgica para aí abrirem uma nova casa. Igualmente, com todas as artes e
modos, se procurou insinuar às três irmãs, que já tinham recebido a obediência da madre geral para irem
comigo para o centro da África e que já viviam há mais de dois anos no meu instituto, que não fossem para a
África Central. Porém, neste caso, não tiveram êxito: elas, já na posse das suas obediências, permaneceram
inamovíveis no seu santo propósito, dispostas a morrer por Cristo.
3218
Não obstante, vi-me num grave aperto. Porque, embora a rev.ma madre geral, convencida de se ter deixa-
do enganar, assegurou-me de novo que me mandaria as irmãs depois da festa de S. José, em que tinha mais
de trinta novas profissões, eu encontrava-me na embaraçosa impossibilidade de empreender a expedição,
dado que a superiora destinada a Cartum estava doente e não parecia prudente aventurar-se com duas ou três
irmãs e dezasseis mestras negras. Para esfriar a madre geral e algumas irmãs contribuiu um novo assalto
lançado pelos mesmos que tinham procurado assustá-las. Consistiu no seguinte.
3219
A Congregação das Irmãs de S. José tem mais de sessenta casas na Europa, Ásia, África e Austrália; a to-
das a madre geral deve prover de pessoal. A mim constava-me com certeza que todos os bispos e vigários
apostólicos em cujos territórios se encontram tais casas insistem continuamente para obter novas irmãs, sen-
do uma congregação de excelente espírito e criada de propósito para as missões, cujo cardeal protector é o
próprio em.o prefeito da Propaganda. Porém, a madre geral não pode sempre atender às necessidades de
todos.
3220
Por isso, prevendo que tão-pouco eu poderei obter sempre desta congregação o número de irmãs que é
necessário para o imenso vicariato da África Central, então, depois de ter inutilmente tentado sondar, por
meio de mons. Canossa, se as canossianas assumiriam a direcção de algum instituto feminino na África Cen-
tral e obtida a conformidade de Pio IX com sumo prazer de mons. Canossa, abri um instituto feminino em
Verona para formar missionárias para a África, que provisoriamente chamei Pias Madres da Nigrícia. Para
este fim comprei o convento Astori em Santa Maria in Organis, no qual instalei as Pias Madres da Nigrícia,
instituto que vai muito bem, como me escreve o monsenhor e que dentro de poucos anos me dará boas mis-
sionárias.
3221
Pois bem, informados disto, os meus bons amigos do Cairo escreveram à madre geral de S. José e insinu-
aram às irmãs do Cairo que Comboni se valia no momento das Irmãs de S. José, enquanto esperava ter as
suas de Verona preparadas; porém, quando pudesse dispor destas, haveria de se dirigir às de S. José e, agra-
decendo-lhes por o terem ajudado a iniciar a sua obra, dar-lhes-ia o passaporte. Isto comoveu não pouco a
firmeza da madre geral; porém, finalmente, por graça de Deus e pelos meus rogos e garantias, decidiu dar-
me todas as irmãs que pudesse, tal como faz com os outros responsáveis de missão e obrigou-se a isso medi-
ante documento assinado por ela, por mim e pelo cardeal-prefeito da Propaganda. Veja como Jesus é bom e
como me tratam bem a Virgem e o seu Santíssimo Esposo São José.
3222
Não falo de outras tempestades levantadas por divina vontade, como o ter tentado abalar a constância dos
meus missionários, o ter-me denunciado à polícia turca como réu de ter baptizado negros já muçulmanos (o
que é verdade), etc., etc. Todos nós seríamos demasiado afortunados se os turcos nos cortassem a cabeça pela
fé; até estamos preparados para isso desde há muito tempo, na certeza de que Deus suscitaria outros depois
de nós segundo a sábia economia da sua Providência.
3223
Embora eu soubesse que já se havia escrito para a Europa contra mim, e até a Roma, dizendo que eu ia
conduzir à morte os missionários e as irmãs e, apesar de só ter três destas e doentes, que tinham respeitado a
obediência da madre geral, contudo quis partir do Cairo, consciente de que ia enfrentar ventos contrários, o
terrível khamsin do deserto e a estação mais crítica. Consultados os meus companheiros, decidimos lançar-
nos nos braços da Providência e cumprir os desejos da Propaganda, bastante claros e manifestos.
3224
No dia 26 de Janeiro, a bordo de duas grandes dahhabias, numa das quais estavam os missionários e ir-
mão leigos e na outra as irmãs e as negras, partimos do Cairo em direcção ao centro da África. Após uma
penosíssima viagem de noventa e nove dias e depois de ter perdido nas Tebaidas um irmão leigo atingido
pela varíola, chegámos, quase por milagre, sãos e salvos, a Cartum. Em dez dias mais, eu fui com outros a
El-Obeid. Como a descrição desta viagem lhe chegará impressa a partir de Verona, não lhe falarei agora
dela...
3225
A cidade de Cartum e sobretudo o grande paxá, cuja autoridade se estende desde Meroe até às nascentes
do Nilo, acolheram-me com demasiadas honras, o que me levou a pensar que Nosso Senhor Jesus Cristo
depois dos hossanas teve o crucifige. Contudo, o paxá recebeu-me como amigo, ofereceu-me o seu total
apoio para fazer tudo o que eu quisesse para o bem da civilização e da religião, deu uma grande festa em
minha honra e ofereceu-me gratis os seus barcos a vapor para as minhas visitas pastorais pelo Nilo Azul e
Branco até Gondokoro, como de facto fez logo que eu vim ao Cordofão, porque pôs à minha disposição o
seu vapor, que me levou 127 milhas pelo Nilo Branco até Tura-el-Khadra, onde desci a terra e a camelo al-
cancei El-Obeid em nove dias.
3226
Não somente os turcos me deram as boas-vindas por ter chegado a Cartum, mas o próprio grande mufti,
chefe da religião muçulmana, me felicitou por ter levado para lá as irmãs para a educação das meninas. O
mesmo se passou aqui em El-Obeid, onde, no dia anterior à minha chegada, o paxá aboliu a escravatura,
publicou pela primeira vez os decretos de 1856 do Congresso de Paris e pôs em liberdade a mais de 300 es-
cravos de sua casa. Depois veio com grande pompa visitar-me, acompanhado de dois generais e dos chefes
do seu Divã e ofereceu-me o seu apoio em todos os meus desejos.
3227
Não é que sejam espontâneas estas ovações, pois o turco odeia o Cristianismo, nem tão pouco que a es-
cravidão seja eficazmente abolida, porque, como direi depois, na África Central e no Egipto está em pleno
vigor, dado que o turco nunca abolirá a escravatura: subscreverá tratados, suprimi-la-á no papel, fingirá não
querê-la, para enganar os bobos; mas o muçulmano, enquanto for maometano, jamais acabará com o tráfico
de negros. Não obstante, a mim, que ameacei muitos paxás a respeito disso, quiseram render-me tal homena-
gem, tendo sido advertidos oficialmente pelo Divã do Cairo que sou encarniçado inimigo da escravidão. Mas
deve saber que eu estava munido de um grande decreto do sultão de Constantinopla, obtido pelo nosso muni-
ficentíssimo imperador de Áustria-Hungria, por meio do qual o grande sultão ordena ao paxá do Egipto que
proteja o vicariato da África Central. De vez em quando puxei por este decreto, esplendidamente escrito,
porque por aqui a bandeira austríaca é respeitada e temida e, durante toda a minha longa viagem, os gover-
nadores e paxás ofereceram-me os seus serviços.
3228
Agora dir-lhe-ei uma palavra sobre este vicariato, o maior do mundo e o mais difícil e laborioso, para cu-
jo cultivo se precisariam dois mil jesuítas, cinquenta estigmatinos de Verona, quinhentos beneditinos dos da
nova reforma Casaretto, etc., e que agora estão em Subiaco. Actualmente somos poucos aqui; porém, vou
escrever-lhe os meus projectos, que já expus e que agradaram a esse bom do P.e Beck, general chefe dos
granadeiros do Papa.
3229
O vicariato da África Central tem como limite a norte o Egipto, Barqa, Trípoli e Tunes; a este o mar
Vermelho, a Abissínia e os Gallas; a sul estende-se até aos 12o de latitude austral, compreendidos os lagos
ou nascentes do Nilo, Udschidschi, etc. e o Congo; a oeste confina com as duas Guinés e a linha recta desde
a ponta ocidental meridional da prefeitura apostólica de Trípoli até ao Níger, chegando ao norte do vicariato
apostólico da Costa do Benim. Como vê, este vicariato é maior que toda a Europa.
3230
Pois bem, em tão imenso vicariato fundaram-se e prosperaram de 1848 a 1861, sob o governo dos meus
antecessores Knoblecher e Kirchner, as quatro seguintes estações, situadas ao longo do Nilo Branco, que
constituem a parte oriental do vicariato: 1.o, Gondokoro, nos 4o de lat. N.; 2.o, Santa Cruz, nos 6o; 3o, Car-
tum, nos 15o; e 4o, Schellal, sobre os 23o de lat. N. Sob o governo dos franciscanos, desde 1861 até 1872,
abandonaram-se nos dois primeiros anos as estações de Gondokoro, Santa Cruz e Schellal e, por nove anos,
mantiveram apenas Cartum com um ou dois missionários da excelente província do Tirol. Os pobres francis-
canos, dada a supressão na Itália, não têm pessoal suficiente para manter e conservar todas as inumeráveis
missões que têm, como me dizia o venerabilíssimo P.e Bernardino, seu padre geral.
3231
As casas e os jardins de Gondokoro e Santa Cruz estão completamente destruídos. De Schellal resta a ca-
sa, mas em muito mau estado. Em Cartum, ao contrário, permaneceu muito firme e é, sem dúvida, a melhor e
mais sólida construção de todo o Sudão; porém, o jardim converteu-se num bosque e precisarei de um ano
para que dê à missão, a que pertence, o fruto de 2000 francos anuais. A isto acresce que o estabelecimento de
Cartum ficou despojado de tudo, enquanto nos tempos em que esteve lá como responsável Knoblecher se
encontrava tão bem equipado como uma casa de beneditinos na Europa. Os bons franciscanos encontraram-
se numa época crítica, na qual na Europa havia revolução e na qual, quase como agora, a Sociedade de Viena
tinha ficado reduzida ao mínimo. Quando sofre o Papa, sofrem os membros da Igreja.
3232
Agora, a fim de lançar firmes bases sobre as quais se estabeleça de forma consistente o vicariato, limitar-
me-ei a consolidar o melhor que puder as duas estações centrais, para que sirvam de base de operação a todas
missões que no futuro hão-de surgir no centro da África. Estas são as de Cartum e El-Obeid; e como a via-
gem do Cairo a Cartum é suficiente para matar ou incapacitar o missionário, por isso, e para cumprir além
disso o desejo da Propaganda, que me foi expresso pelo Em.o cardeal Barnabó mediante a sua venerada carta
de 29 de Abril, quero abrir Schellal.
3233
Quanto aos institutos do Cairo, estou a deixá-los consideravelmente reduzidos, porque eu mesmo trouxe
de lá para o centro da África mais de trinta pessoas maduras para o apostolado e outras e vinte virão numa
segunda expedição no próximo Agosto. Não obstante, no Cairo são sempre necessários dois pequenos esta-
belecimentos para aclimatar neles os missionários e as irmãs e provar a sua vocação; e além disso constituem
como uma procuradoria do vicariato para as relações com a Europa e o aprovisionamento da missão. Mas a
passagem do Cairo para Cartum é demasiado violenta e perigosa para a saúde dos missionários; daí a neces-
sidade de Schellal, que é a média proporcional entre o Cairo e o Sudão. Porque, depois de ter assistido à mor-
te de tantos missionários, é mister que eu estude os meios para conservar a sua vida.
3234
No Cairo, ao regressar agora o cônsul-geral de Viena, teremos o terreno que nos ofereceu o quedive para
construir os dois estabelecimentos. O terreno vale no Cairo 20 fr. o metro, por isso o paxá vai fazer-nos uma
mercê muito grande. Viver no Cairo custa o dobro ou o triplo que na Alemanha, depois da abertura do canal
de Suez. Por isso tenho intenção de reduzir os dois Institutos ao mínimo, deixando-os só para os europeus e
europeias que se preparam para o apostolado da Nigrícia.
3235
Os negros são caros no Cairo (500 fr. cada um) e já estão contaminados pelos muçulmanos; aqui não cus-
tam quase nada, de 15 a 30 táleres, e são melhores, tendo uma boa índole, que os muçulmanos não fizeram
perder. Por isso, enquanto até hoje os institutos do Cairo me custaram 34 000 fr. ao ano, espero que, a partir
de 1874, me custem a quarta parte. Em Schellal, além da casa masculina, temos doze feddan de bom terreno
(60 000 metros quadrados), onde, com a compra de umas máquinas para tirar água do Nilo, se podem obter
metade dos alimentos que se consomem na estação. Mas é preciso construir uma pequena casa para as irmãs,
a qual se fará toda de granito oriental, como os obeliscos de Roma, cujas pedras foram todas cortadas em
Schellal ou perto; de modo que a casa custará pouco. E a igreja também se fará de granito. A Schellal che-
gam doentes desde a distância de sessenta milhas para serem tratados na missão. Num único dia, a 16 de
Março, baptizei quatro meninos moribundos, que foram todos logo para o Paraíso.
3236
Em Cartum, precisa-se da casa das irmãs e da igreja. Cartum tem uns 50 000 habitantes e melhorou de
clima, devido aos grandes edifícios e jardins que se construíram; agora pode-se ali viver como nas zonas
baixas de Verona ou de Pádua. Desde que mandei ocupar esta estação pelo meu vigário-geral, Cartum ga-
nhou nova vida e espero que em breve teremos lá uma boa cristandade. Actualmente há muitos catecúmenos
e na festa do Espírito Santo confirmei 34 recém-convertidos. Agora está lá em vigor o catecismo, as prega-
ções e o ministério, como na paróquia de Verona: dentro de uns anos, se Deus nos der vida, espero anunciar-
lhe óptimos resultados desta missão. Aqui, em El-Obeid, onde os primeiros missionários que chegaram fo-
ram os meus exploradores Carcereri e Franceschini, já começou a formar-se uma pequena cristandade.
3237
Temos a nossa casa e uma preciosa igrejinha. Teria que fazer ampliações para a escola e para o ensino de
artes e ofícios, porque agora as aulas são dadas debaixo duma grande árvore e desde as nove até às quatro faz
calor. Além disso é preciso a casa para as Irmãs. Agora tenho comigo três mestras negras, além da minha
prima, que é professa da Companhia de Santa Ângela Merici, as quais vivem em cabanas de palha. Aqui as
casas são cabanas, mas como ocorriam e ocorrem sempre incêndios, por ordem do governador constroem-se
agora todas de areia, porque aqui não há pedras, nem terra para fabricar tijolos. Antes da estação das chuvas,
estas casas de areia são cobertas com uma mistura de areia e excrementos de vaca e com isto resistem às
chuvas desse ano. Mas cada ano é preciso repetir a operação. A actual casa com a igreja que temos custa 13
000 francos; porém, exige-nos anualmente um gasto de 600 francos entre vigas e barro para conservar. E é
uma das mais sólidas e bonitas desta capital.
3238
Todo o mérito desta missão cabe aos padres Franceschini e Carcereri da Ordem de S. Camilo, que, com a
autorização do seu geral e mediante um breve pontifício, se associaram a mim; e espero que permaneçam
sempre na missão, como é seu desejo. Para este fim, criarei mais adiante, como prometi ao seu geral, um
hospital, que nesta capital será uma bênção de Deus, porque aqui mais de metade dos que morrem – e às
vezes até antes de morrerem – são retirados da cidade e, como não recebem sepultura, são devorados pelas
hienas e pelas aves.
3239
Tendo visto anteontem com os meus próprios olhos mais de sessenta mortos, todos eles negros, retirados
assim da cidade, enviei ao grande paxá do Cordofão um escrito propondo-lhe que ordenasse que todos os que
morram sejam enterrados, porque o costume aqui predominante vai contra a religião e civilização, por estes
desditosos serem nossos semelhantes. No momento ele ditou a lei que eu desejava e agora vão mensageiros e
pregoeiros pela cidade, dando a conhecer a ordem, cujo incumprimento é punido com penas severíssimas.
Entre os convertidos está o primeiro comerciante (grego cismático) de El-Obeid, que há sete meses abjurou
perante mim, vigário-geral, e o P.e Carcereri e com ele converteu-se toda a sua família, que agora é extre-
mamente exemplar.
3240
Passo a dizer-lhe algo da mais dolorosa calamidade que aflige o meu vicariato, a escravidão, que aqui está
em pleno vigor, em parte por culpa do ateísmo e dos delírios das actuais potências europeias e sobretudo por
culpa do Islamismo, que prometerá qualquer coisa, assinará todos os tratados das potências europeias, mas
no papel: nunca de facto. Eu, pela minha situação, estou em condições de, neste aspecto, fazer o bem, porque
no Sudão a missão católica tem muito poder, em grande parte devido à bandeira austríaca que nela flutua.
3241
Todos os paxás e os traficantes de escravos nos temem e procuram fugir dos nossos olhares. Eu declarei
ao paxá de Cartum e ao do Cordofão que quantos escravos encontrar na cidade ou fora, atados, etc., faço-os
levar à missão e já os não devolvo; e que todos os que se apresentarem na missão a denunciar maus tratos por
parte dos seus amos, verificada a verdade, retenho-os e tão-pouco os devolvo, limitando-me tão-só a denun-
ciar que retive fulano ou sicrano na missão e até que se faça o juízo e seja aprovado por mim ou pelo meu
instituto na minha ausência, o escravo deve lá permanecer. Os ditos paxás ou governadores, que se sentem
em falta, porque o primeiro traficante de escravos é o Governo, não se atreveram a dizer palavra e concede-
ram-me tudo; de modo que já libertei mais de quinhentos. Os cornos de Cristo, como dizia P.e Mazza, são
mais duros que os do Diabo.
3242
Porém, como triunfa o horror da escravidão nestas terras! Por El-Obeid e por Cartum, assim como pelo
território intermédio, passam cada ano mais de meio milhão de escravos, a maior parte do género feminino,
mas misturadas sem consideração com varões de todas as idades – embora a maior parte de 7 a 18 anos –
todas nuas e a maior parte amarradas. Gente que foi roubada e arrancada violentamente do seio das suas fa-
mílias nas tribos e reinos do Sul ou do Sudoeste de Cartum e do Cordofão, às vezes depois de os seus pais
terem sido assassinados por serem velhos ou levados também, se forem jovens. Todos passam por aqui para
serem levados para o Egipto ou para o mar Vermelho e vendidos! Às mulheres que dão mais nas vistas pre-
param-nas sumariamente para a prostituição ou para os haréns, e os demais para o trabalho.
3243
Desde o Cairo até Cartum vimos mais de quarenta embarcações de escravos, nas quais homens e mulhe-
res iam metidos como sardinhas. Ao passar o deserto encontrámos mais de trinta caravanas deles, que, nus,
mães com os seus filhitos, meninos e meninas de sete ou oito anos, iam a pé pela areia ardente, realizando
assim uma viagem que cansa os mais fortes viajantes montados a camelo e recebendo de comer – não todos
os dias – um pouco de sorgo ou de outro grão demolhado em água.
3244
Porém, o que mais me horrorizou de tudo foi o que vi entre Cartum e El-Obeid, onde encontrei vários mi-
lhares de escravos, a maior parte mulheres misturadas com varões e sem sombra de roupa. Os pequenos até
três anos eram levados por outras escravas, que pareciam as mães e estas iam a pé. Outros, homens e mulhe-
res, em grupos de oito e de dez, iam atados ao pescoço e amarrados a uma barra que descansava sobre os
seus ombros e que deviam transportar; isto para que não se escapassem. Outros, em grupos de dez e de quin-
ze, com idade entre os oito e os quinze anos, levam ao pescoço uma corda de pele de cabra atada a uma cor-
da mais grossa que um jilaba ou traficante de escravos segurava com a mão. Outros eram ligados dois a dois
pelo pescoço a uma trave, um dum lado, outro do outro.
3245
Outros levavam a scheva, barra com um extremo em forma triangular a que estava amarrado o pescoço do
escravo, que, ao caminhar, ia arrastando o madeiro. Outros tinham as mãos e os braços amarrados atrás das
costas e a uma longa corda segurada por um canalha. Outros tinham os pés apertados com cadeias de ferro;
alguns assim atados levavam fardos e embrulhos dos patrões. Os velhos caminhavam sem amarras. Todos
eram impelidos barbaramente com lanças e paus, se não caminhavam suficientemente depressa ou estavam
cansados; e quando, esgotados, alguns caíam no chão, então aqueles canalhas acabavam com eles à paulada
ou com as lanças, ou abandonavam-nos pelo caminho. Eu encontrei alguns deles mortos pelo caminho e as
nossas pobres catequistas ficaram horrorizadas e cheias de medo.
3246
Isto é apenas uma pálida ideia do mais que poderia contar. Eis aqui, pois, senhor, uma das tarefas da nos-
sa missão. Nenhum tratado, nenhuma potência, poderá abolir aqui a escravidão, porque é permitida por
Maomé e os muçulmanos julgam-se com direito a exercê-la. Será destruída unicamente com a pregação do
Evangelho e com a definitiva implantação do Catolicismo nestas terras. O Governo, que aderiu ao tratado de
1856, só o fez no papel, não na prática. Os governadores do Sudão são os primeiros a exercer o infame tráfi-
co, de que tiram proveito. Os próprios paxás efectuam incursões no território dos Nuba, no dos Teggala, no
Nilo Branco, etc., levando consigo soldados armados de fuzis, voltando de cada vez com seis ou oito mil
escravos! Tudo isto é sabido no Cairo. Sabem-no o Divã, o vice-rei, e, creio, muitos cônsules europeus. Mas
hoje todos estão comprados e, como o grito destes povos não chega à Europa, onde agora reinam o ateísmo e
a maçonaria, a desolação destes lugares continua e continuará por muito tempo.
3247
Porém, o Coração de Jesus, suplicado por almas justas, e a caridade dos corações santos e generosos fau-
tores do apostolado católico em tão santa e espinhosa missão hão-de bastar para enxugar as lágrimas destes
povos infelizes por cuja redenção nós sacrificamos a vida. Veja também, por este lado, a enorme importância
deste vicariato apostólico...
3248
Em Dezembro passado, o embaixador da Inglaterra veio visitar-me no Cairo. Tivemos uma longa conver-
sa e combinámos manter correspondência. Porém, foi grande a minha surpresa quando me disse que se diri-
gia não à África Central, que é o teatro mais colossal da escravidão, mas sim a Zanzibar e a Mascate. Tinha
falado com o vice-rei do Egipto e estava muito satisfeito da audiência, porque o quedive, após louvar a sua
filantrópica missão, lhe tinha prometido toda a ajuda ad hoc. Eu, que sei como estão as coisas, calei-me e
deixei-o na sua boa-fé; só lhe disse que os Turcos, apoiando-se nas afirmações dos seus muftis, intérpretes do
Alcorão, consideram lícita e benemérita a escravidão, etc. Então Sua Ex.cia perguntou-me: «Pensa que terei
sucesso na minha missão perante o sultão de Zanzibar?»
3249
Eu respondi-lhe: «Senhor embaixador, o sultão vai recebê-lo esplendidamente, vai dar-lhe uma hospitali-
dade principesca; porém, vai negar-se a cumprir o seu desejo, porque o Alcorão, para ele palavra de Deus,
não proíbe, mas permite o tráfico de carne humana. Ou, se o sultão se mostrar disposto a agradar-lhe, assina-
rá um tratado com S. M. a rainha da Inglaterra e, quando o senhor tiver partido de Zanzibar, continuará como
antes, praticando o mesmo e permitindo aos outros muçulmanos o tráfico de escravos.» Sua Excelência não
ficou muito satisfeito com a minha opinião e exprimiu-me a esperança de alcançar os seus intentos com as
cartas do seu Governo e com os canhões. «Com os canhões, sim – respondi-lhe –, porém, só naqueles lugares
onde se ouvir o seu estampido.»
3250
Despedimo-nos amigavelmente, depois de ter almoçado com ele e com o seu grande séquito, no qual fi-
gurava um bispo anglicano, doutíssimo em árabe e persa, que partilhava dos meus pontos de vista e que era o
secretário daquela embaixada. Não sei o resultado da mesma, porque eu vim para a África Central; mas eu
continuo com a minha opinião. Só a fé de Cristo implantada no centro da África e os Sagdos. Corações de
Jesus, de Maria Imaculada e de S. José, mais que a rainha da Inglaterra e o Tratado de Paris de 1856, aboli-
rão a escravidão...
3251
Por outro lado, o Santo Padre Pio IX tem muito interesse por esta missão e disse-me que rezou e rezará
sempre por mim. E nós aqui na África Central, depois de ter pregado a Trindade, a Redenção e N. Senhora,
pregaremos imediatamente o Papa, que é tanto maior quanto mais perseguido. Oh, que delícia sofrer com o
Papa!...
Receba todo o coração de

Seu devot.mo e hum. P.e Daniel Comboni


Pró-vigário apostólico da África Central

N.o 508 (478) - AO P.e CAMILO GUARDI


AGCR, 1700/33

J. M. J.

El-Obeid (Cordofão), 5 de Julho de 1873

Rev.mo P.e geral,

3252
Devia ter-lhe escrito antes e falar-lhe dos seus dignos filhos e meus caríssimos filhos e irmãos Carcereri e
Franceschini. Porém, nunca me pude decidir a fazê-lo até não ter ocasião de os abraçar no campo das suas
apostólicas fadigas e ver com os meus próprios olhos tudo o que realizaram, a fim de lhe dar exactas e cons-
cienciosas notícias disso ao veneradíssimo pai, e informá-lo com pleno conhecimento de causa.
3253
Sem mencionar quanto bem fizeram estes dois bons padres nos meus Institutos do Egipto, pelo que guar-
darei para com eles e para consigo eterna gratidão, devo confessar-lhe abertamente que no meu vicariato
(que consumiu as forças de mais de sessenta missionários) levaram a cabo maravilhas, porque, no espaço de
apenas dezassete meses, deram vida à missão de El-Obeid, que pela sua situação geográfica é verdadeira
porta da Nigrícia e talvez o ponto de apoio mais importante para implantar a fé no coração das imensas tribos
do vicariato da África Central. Levaram a cabo em poucos meses o que um bom corpo de missionários teria
podido fazer só em vários anos. De facto, com os modestos meios que eu lhes pude proporcionar, criaram em
El-Obeid uma estação equipada de casa, capela e jardim, suficiente para uma comunidade em pleno vigor de
apostolado; começaram a formar uma pequena cristandade, de modo que aqui as coisas funcionam como
numa paróquia normal da Europa; ganharam, com a sua atitude e procedimentos dignos, a estima de todos,
desde o paxá e os demais ricos comerciantes até à classe mais humilde do povo. E com uma coragem que só
a fé e missão de Deus inspiram souberam fazer respeitar a nossa santa obra por parte das autoridades turcas e
dos mais ferozes inimigos da fé, a ponto de gozarem da máxima consideração entre os habitantes desta cida-
de, que são mais de cem mil.
3254
Além disso, o P.e Estanislau, a quem eu tinha dado a incumbência de tomar posse em meu nome da esta-
ção de Cartum, porque, desde a minha nomeação como pró-vigário, se deixava deteriorar tudo aquilo e se
vendia quanto de valor restava naquela outrora riquíssima missão, em apenas três meses, enquanto eu estava
de viagem com a grande expedição, reanimou tão bem o espírito decaído daqueles católicos, que agora pen-
samos levantar aí o edifício espiritual de uma pequena e florescente cristandade católica. Numa palavra, o
P.e Estanislau é um verdadeiro e santo religioso, digno filho de S. Camilo e um valiosíssimo missionário,
que parece ter recebido de Deus especiais dotes para o árduo apostolado da Nigrícia.
3255
Por seu lado, o P.e Franceschini não é absolutamente inferior ao P.e Carcereri no que respeita às aptidões
essenciais que constituem um verdadeiro operário evangélico, e parece feito de propósito para a África Cen-
tral. Além disso, possui uma maturidade mental e um raciocínio muito acima da sua idade, pelo que se mos-
tra um homem perito e seguro nas mais difíceis contingências. Em suma, já é um missionário experimentado
e de valor, e continua a ser um religioso enamorado da sua congregação camiliana, que lhe deu a educação
espiritual. Ambos falam árabe fluentemente, consideram que aprenderam muito sobre a prática do ministério
apostólico nos seis anos em que se encontram na África sob a minha humilde bandeira e têm tão bons ânimos
em relação ao apostolado da África Central que ambos estão dispostos a gastar toda a sua vida e a derramar
mil vezes o seu sangue pela salvação dos pobres negros, sempre que contam com a autorização e a bênção de
V. P. Rev.ma, a quem, por todos os títulos, estão subordinados e a quem guardam a mais sincera e filial ve-
neração e afecto.
3256
Eu fiquei muito satisfeito quando em Cartum li a venerada carta de V. P. Rev.ma, na qual afirmava não
ser contrário ao espírito e às regras da sua ínclita ordem que um ministro dos doentes pode exercer, attentis
circumstantiis, o cargo de vigário-geral; em razão do que, mediante o correspondente documento, no passado
Maio, eu nomeei o P.e Carcereri meu vigário-geral, a quem agora deixei provisoriamente à frente da estação
de Cartum para que complete e continue a boa obra que já tinha começado em favor daquela cristandade.
Entretanto, aqui em El-Obeid, apesar de ter comigo um missionário de óptimo espírito e prudência, de qua-
renta anos de idade, nomeei superior da estação o P.e Franceschini, que com seu juízo e serenidade, não dos
27 anos que tem, mas de mais de cinquenta, estou certo que saberá desempenhar bem o seu difícil e delicado
cargo, por ter também para isto uma aptidão fora do comum.
3257
Agora, logo que cheguei com a minha grande caravana à minha residência principal de Cartum, pensei
pôr em execução ad litteram o que prometi formalmente e de que falei a V. P. Rev.ma sobre a sua ínclita
Ordem em relação à África Central, ou seja, erigir naquele lugar ou estação que fosse do maior agrado a
estes dois queridos filhos seus e meus uma casa camiliana com todas as condições que me fossem manifesta-
das e expressas por V. P. Rev.ma: casa própria e rendimento adequado para o próprio sustento. E isto por
me encontrar agora totalmente capacitado para manter as promessas que lhe fiz em Roma.
3258
Falei disso, pois, com o rev.mo vigário-geral Carcereri. Porém, ele observou-me que dois religiosos ape-
nas não poderiam fazer frente a todas as condições requeridas para uma bem constituída casa camiliana e
convenceu-me do que me dizia em Verona o P.e João Baptista Carcereri, isto é, que hic et nunc torna-se mui-
to mais fácil a estes dois padres, Estanislau e José, e mais útil para a missão, que continuassem por algum
tempo a trabalhar unidos a mim e sob a minha direcção; firmes, não obstante, na opinião de que, quando
pudessem contar com outros irmãos seus de religião, vindos da Europa, lhes seria possível pôr em prática a
supramencionada ideia de V. P. Rev.ma e minha.
3259
De facto, por serem só dois, penso que fazem muito mais trabalhando unidos a mim do que fariam de ma-
neira isolada numa casa independente; e darão um resultado ainda muito maior se V. P. Rev.ma me conceder
a graça de utilizar os seus serviços livremente, segundo as necessidades do vicariato. Na verdade, é bem difí-
cil encontrar dois missionários e religiosos com tal espírito e firmeza para o apostolado extremamente árduo
e penoso da África Central como estes dois dignos filhos seus. Há seis anos que os conheço a fundo, e por ter
visitado diversas missões na Europa, na África, na Síria e nas Índias, sei o que significa ser missionário, so-
bretudo quando eu mesmo o sou da Nigrícia desde há dezasseis anos, e trabalhei ao lado dos mais distintos e
denodados campeões da África Central; por isso, com pleno conhecimento de causa, repito-lhe que missioná-
rios como Carcereri e Franceschini, que apresentem verdadeiras aptidões para trabalhar com óptimo resulta-
do nesta dura e laboriosa vinha que me confiou a Santa Sé, há poucos nas cinco partes do mundo.
3260
São, além disso, excelentes religiosos, que vivem, diria, quase como se estivessem no noviciado. Assim,
para mim será uma grande alegria também se V. P. Rev.ma mos conceder para que trabalhem unidos a mim,
como fizeram até agora. Bem entendido que este beneplácito de V. P. Rev.ma não seria in perpetuum, mas só
até que apareça na Europa um horizonte mais claro para as ordens religiosas e concretamente para a camilia-
na e até que eu possa encaminhar devidamente a dificultosa obra do meu vicariato. Para isto encontro uma
ajuda inestimável na experiência, nos dotes especiais e na firme constância destes dois incomparáveis religi-
osos e trabalhadores evangélicos, cujo zelo e actividade tenho que acalmar e refrear, mais que incentivar e
estimular.
3261
Pelo que me dirijo à extraordinária bondade de V. P. Rev.ma para lhe suplicar fervorosamente que tenha
por bem conceder a estes dois padres, filhos seus e meus, a graça de poderem trabalhar por alguns anos uni-
dos a mim e sob a minha bandeira. Graça que atrairá sobre si e sobre toda a sua ordem as bênçãos divinas,
porque milhares de infiéis convertidos pelos dois solicitarão do trono de Deus a conservação e prosperidade
da ilustre ordem camiliana.
3262
Passo a expor-lhe a minha ideia para o futuro, a qual submeto ao parecer de V. P. Rev.ma. Tenho uma
firme e inamovível certeza no triunfo não distante da Igreja; também no ressurgimento florescente das ordens
regulares e da camiliana, que fará flutuar as suas bandeiras na França e na África e especialmente depois da
tempestade da actual perseguição infernal e após a conclusão do Concílio Vaticano. O nobre e generoso pro-
grama da ordem camiliana está em consonância com as necessidades dos tempos e, além disso, é um podero-
síssimo meio para ganhar a simpatia dos povos e conquistar os infiéis.
3263
Por isso estou disposto a realizar esse plano contra todos os obstáculos, sempre com o consentimento da
Sagrada C. da Propaganda, à qual está sujeita toda a minha acção. O meu vicariato, mais extenso que a Euro-
pa inteira e o maior do mundo, é povoado por mais de cem milhões de infiéis. Até agora não ocupámos mais
que as portas da Nigrícia e o umbral do centro do vicariato, no qual habitam grandes tribos impolutas, ainda
não contaminadas pelos seguidores do Alcorão, às quais se pode fazer muito bem. Todos os que quiserem ir
ao centro da Nigrícia, onde há povos ainda virgens, têm que passar por Cartum ou pelo Cordofão.
3264
Portanto eu construiria de muito boa vontade uma casa para os camilianos, segundo as exigências do seu
espírito e das suas regras, em qualquer ponto da Núbia ou do Cordofão ou nas próprias capitais Cartum e El-
Obeid, que servisse como ponto de apoio para uma missão no centro da Nigrícia; missão que, a seu devido
tempo, se poderia confiar a S. Camilo, para cujo fim não faltariam, nem faltam, os meios pecuniários e mate-
riais, porque tenho a certeza de dispor deles agora e no futuro, como tão-pouco faltam ou faltarão às outras
missões do mundo, as quais contam como primeiro apoio com as mesmas sociedades benfeitoras da Europa
que ajudam o meu vicariato; e isto à parte os recursos que vou encontrando no próprio vicariato. Em resumo,
essa Providência, que em seis anos, em tempos tão difíceis, me deu meio milhão de liras para sustentar e
continuar em frente com as minhas obras, saberá proporcionar-me os meios para estabelecer na África Cen-
tral os camilianos, que tanto contribuíram para o êxito da minha empresa, contrariis quibuscumque obstanti-
bus.
3265
Estas são as ideias e as coisas que submeto à sabedoria e ao coração de V. P. rev.ma, declarando-me dis-
posto a fazer quanto julgar oportuno e desejável e que esteja ao meu alcance. A única coisa a que não saberia
adaptar-me seria a transferência para a Europa destes dois campeões do apostolado africano, o que represen-
taria uma imensa dor para mim e para eles. Porém, eu confio na Imaculada Virgem Maria, Rainha da Nigrí-
cia e no bendito S. Camilo, que, colocando-me no Insto. Mazza de Verona por meio do meu querido P.e João
Baptista Peretti, de santa memória, me abriu o caminho do apostolado africano e que, desde há mais de 28
anos, me fez outros favores. Estes dois venerados objectos da minha devoção conceder-me-ão tal graça em
prol do vicariato da África Central, que é a mais vasta e trabalhosa missão do universo e pela qual os seus
dois queridos filhos e eu estamos dispostos a dar cem vezes a vida. O nosso grito de guerra é este: «Nigrícia
ou morte.» Semelhante empresa é bem digna de S. Camilo e de nós.
Confiando na mente e no coração magnânimo de V. P. Rev.ma, que está cheio de zelo pelas almas e a
quem dedico um respeito e gratidão filial, confio-me às suas orações, enquanto tenho a honra de me subscre-
ver nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria

De V. P. Rev.ma
Hum., devot.mo e agrad.mo servidor
P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico da África Central

N.o 509 (479) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff.732-733

N.o 6
El-Obeid, capital do Cordofão
8 de Julho de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3266
Como lhe indicava na minha última carta, a núm. 5, de 5 de Junho, o paxá de Cartum punha gratuitamente
à minha inteira disposição um vapor do Governo para me levar a mim e ao meu pequeno grupo pelo Nilo
Branco até ao ponto em que se desce para tomar o caminho que conduz ao Cordofão. De facto, na manhã do
dia 8 do mês passado, o vapor zarpava do jardim da missão; e, acompanhado do meu vigário-geral, em de-
zoito horas, fizemos cerca de 120 milhas pelo Nilo Branco até Tura-el-Khadra, não longe da grande tribo dos
Schelluk. Aí, tendo encontrado o superior da missão de El-Obeid, que tinha vindo procurar-me para me
acompanhar ao meu destino, desci a terra. Depois, após me despedir do vigário-geral, que regressou imedia-
tamente a Cartum no barco, pus-me a caminho com a nossa caravana de dezanove camelos e, atravessando
densas selvas e arenosas planícies salpicadas de árvores gomíferas, em apenas nove dias cheguei à capital do
Cordofão.
3267
Duas horas antes saiu ao meu encontro quase toda a colónia cristã, incluídos os coptas cismáticos, que
ocupam os cargos mais importantes no Divã; e, recebidas as felicitações de todos, entrei na missão engala-
nada para festa, entre o repenique dos sinos e os harmoniosos acordes da banda da guarnição militar (três mil
soldados, entre infantaria e cavalaria) e no meio do júbilo dos membros da nossa casa e da pequena comuni-
dade desta cidade, que conta com mais de cem mil habitantes. Devo dizer-lhe que também o próprio grão-
paxá do Cordofão (que, dada a imensa distância do Cairo, tem amplos poderes e é como um pequeno rei),
acompanhado de numerosos soldados, dois generais e as primeiras autoridades do seu Divã, se apresentou
com grande pompa a visitar-me, oferecendo-me a sua amizade e colaboração em tudo o que eu desejasse
fazer orientado para os altos fins de civilização e beneficência que ele sabia que me tinham trazido aqui.
3268
Este é o mesmo paxá que não queria reconhecer a missão católica do Cordofão em Abril do ano passado,
facto de que V. Em.a teve conhecimento – assim como de outros problemas consulares – em Julho do ano
anterior por carta de mons. Ciurcia. Porém, depois do Memini que provoquei em Viena em nome de Sua
Majestade apostólica o imperador Francisco José I e, com a carta de recomendação que o I. R. Cônsul austro-
húngaro por ordem de Viena dirigiu ao Divã do Cairo e de que eu me muni, não só o paxá de Cordofão mas
também os de Cartum e de Berber me dispensaram o melhor acolhimento e me permitiram fazer o que me
parecesse a respeito dos escravos que se apresentassem à porta das nossas missões; vali-me disso até agora
para libertar centenas de infelizes que gemiam sob o peso do mais cruel e arbitrário despotismo.
3269
No dia anterior ao da minha chegada à capital do Cordofão, o referido governador-geral desta imensa re-
gião ordenou que fosse abolida em El-Obeid a escravidão (de palavra e no papel para enganar os ingénuos) e
ele mesmo pôs em liberdade mais de duzentos escravos que tinha no seu Divã e nos seus haréns. Deste mo-
do, desde o passado mês de Junho, dia da minha entrada nesta capital, fechou-se por completo o mercado de
escravos de El-Obeid e não voltaram a passar por aí tantos milhares de infelizes de ambos os sexos que, to-
talmente nus, permaneciam atados pelo pescoço com cordas e com os pés apertados ou ambos os braços atrás
das costas, com cadeias de ferro, ou com a scheva – longo madeiro terminado em triângulo, ao qual se fixava
com ferros o pescoço do escravo –, esperando que viessem comprá-los.
3270
E aqui interessa-me descrever-lhe os horrores da escravidão, que está em pleno vigor em toda a África
Central, apesar dos tratados das potências europeias e das fingidas proibições dos paxás e governadores do
Sudão. Apesar da minha posição nestes lugares e do autêntico prestígio da missão estarem em condições de
serem muito úteis para fomentar a civilização e limitarem o furor desta chaga da humanidade, isto é um as-
sunto que requer a mais séria reflexão e o mais atento exame por parte da Sagrada Congregação. Portanto,
escreverei sobre o assunto no futuro, pelo que passo agora a falar-lhe brevissimamente desta importante mis-
são do Cordofão.
3271
Estou convencido de que foi verdadeira inspiração de Deus o ter estabelecido uma missão em El-Obeid,
que é talvez a cidade mais povoada do Sudão; e isto sobretudo pela sua importantíssima e estratégica situa-
ção. É a verdadeira porta da Nigrícia. Para não mencionar muitas outras tribos, a três dias daqui, para noro-
este, fica o império de Darfur e em quinze dias chega-se onde reside o seu sultão. Em três dias, indo para
sudoeste, chega-se ao imenso e povoadíssimo território, habitado por milhões de almas, das grandes tribos
dos Nuba, que nunca foram domadas pelas armas egípcias e com as quais se torna fácil para nós entabular
relações a partir de El-Obeid. Num mês, a camelo, alcança-se daqui o império de Bornu, enquanto desde
Trípoli, com maiores perigos, se precisam cento e tal dias. Em El-Obeid residem (e são já nossos amigos) os
representantes dos comerciantes e dos sultões de Darfur e de Bornu, que adquirem tecidos e outras mercado-
rias europeias por meio deles. Além disso, o clima deste lugar é bom, absolutamente bom, e o calor é menos
desagradável e excessivo que em Roma, além de que aqui não se conhecem as febres e doenças que reina-
vam no Nilo Branco.
3272
Estou ainda convencido de que esta florescente missão de El-Obeid é abençoada por Deus. Nós possuí-
mos uma casa suficientemente grande para alojar seis missionários, quatro irmãos coadjutores e vinte alunos,
equipada de salas de aulas e de locais para artes e ofícios e dotada de uma bonita capela com capacidade para
cem pessoas e dum quintal que actualmente fornece hortaliça à missão durante todo o ano. Temos, além dis-
so, uma pequena casa anexa à nossa, onde estão provisoriamente as negras catecúmenas, confiadas aos cui-
dados da minha excelente prima Stampais (que estava há cinco anos com as irmãs no Cairo) e de duas mes-
tras negras que trouxe de Cartum; pode servir comodamente para quatro irmãs e trinta alunas e, com outra
casa, que estou prestes a arrendar, torna-se, para as Irmãs que virão em Outubro, um estabelecimento muito
mais cómodo e amplo que o das Irmãs de S. José de Piazza Margana, em Roma.
3273
Aqui estão em plena actividade as funções paroquiais, com pregação, catecismo e instrução em cada fes-
ta, para os trinta católicos que formam a nascente missão. Entre eles devo mencionar o mais rico comerciante
da cidade, homem exemplar, que com a sua esposa abjurou do cisma grego perante os padres Estanislau Car-
cereri e José Franceschini, camilianos, os quais enviei o ano passado como exploradores ao Cordofão.
3274
E neste ponto, por dever de justiça, devo comunicar a V. Em.a que o estabelecimento desta nascente mis-
são se deve aos ditos dignos filhos de S. Camilo. Foram eles que, com os modestos meios que lhes forneci,
empreenderam a exploração do Cordofão, compreenderam a verdadeira importância de El-Obeid e criaram
esta estação, pondo a missão em andamento e ganhando, com a sua prudente e edificante conduta, a estima e
veneração de toda a cidade e especialmente dos principais funcionários e comerciantes. Ambos falam, cate-
quizam e pregam em árabe e seriam felizes de poder consumir a sua vida na redenção da Nigrícia.
3275
Considerando tudo isto e com o fim de conservar, se for vontade de Deus, estes distintos missionários tão
cheios de zelo e preparados para este árduo e espinhoso ministério, escrevi ao seu rev. do P.e geral com vista
a estabelecer um regular acordo que seja conforme os seus desejos e os interesses da África Central, para
depois submeter tudo à S. C.
Beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me

De V. Em.a hum. filho


P.e Comboni, vigário ap.
N.o 510 (480) - A P.e BARTOLOMEU ROLLERI
AVAE, c. 31

El-Obeid, 16 de Junho de 1873

Caríssimo P.e Bartolo:

3276
Para a promoção de P.e Estêvão ao subdiaconado, ele deve ter e tem o seu património, quer dizer, o sufi-
ciente para constituir uma receita anual de 250 liras. Porém, se estas práticas atrasarem a ordenação, eu auto-
rizo-o a ordená-lo titulo missionis, em conformidade com a autorização ad hoc recebida da S. Sé, ainda que
com a obrigação absoluta de que P.e Estêvão retire cada ano o rendimento do seu património e o entregue à
missão, porque a Santa Sé concedeu só a isenção e apenas aos pobres. Rogue por seu af.mo amigo

P.e Daniel Comboni


Pró-vigrio ap. da África Central

N.o 511 (481) - A LUÍS GRIGOLINI


ACR, A, c. 15/51

J. M. J.
El-Obeid, capital do Cordofão
21 de Julho de 1873

Meu caro Grigolini,

3277
Embora assoberbado com mil ocupações e apesar de ter quase mil cartas para escrever para as cinco par-
tes do mundo, não quero demorar-me mais a mandar duas linhas ao meu caro Grigolini, comunicando-lhe
que as famosas garrafas que deu à minha passagem por S. Martinho foram gloriosa e devidamente bebidas
para a maior glória de Deus e a nossa saúde nos seguintes lugares:
1.o Duas, no meu instituto do Cairo, com a participação de todos os sacerdotes missionários.
2.o Uma, oferecida ao superior dos Irmãos das Escolas Cristãs do Cairo, amigo e benfeitor nosso.
3.o Uma, ai!, aberta por engano em Assuão, nas primeiras cataratas do Nilo: queria convidar dois religio-
sos franciscanos que tinham deixado Cartum depois que a S. Sé lhes tirou a missão para no-la dar a nós, mas
convidá-los com uma garrafa (coisa rara nestes países) de vinho corrente. Ao invés, ai, por engano bebeu-se
o Pullicella de Grigolini.
3278
4.o Uma garrafa bebemo-la em Cartum com o meu rev.mo vigário-geral, o P.e Carcereri.
5.o E uma tenho-a ainda escondida no meu baú e da qual ninguém sabe nada. Porém, beber-se-á aqui na
capital do Cordofão, talvez a 14 de Setembro, em que farei a solene consagração do vicariato ao Sagrado
Coração de Jesus.
3279
O senhor vê que não seria mal, antes bem, se pensasse em fazer de modo que outras sublimes garrafas de
tal género fossem assim gloriosamente honradas na África central. Porém, haveria que evitar o maçador im-
posto de consumo a que estão sujeitos tais envios na Rua do Seminário, núm. 12, em Verona: conviria que a
caixa ou o que fosse se enviasse directamente para Alexandria do Egipto, ao sr. Ângelo Albengo, meu procu-
rador, o qual se encarregaria de ma fazer chegar a Cartum.
3280
Embora nesta longa viagem tenha de passar ainda a alfândega do Instituto do Cairo, todavia espero que
também nós pobres africanos da África Central venhamos a saboreá-lo como coisa vinda do outro mundo.
Alarguei-me demasiado neste assunto. Agora limito-me a mandar-lhes cumprimentos a si a seu irmão e às
suas excelentes famílias, assegurando-lhe que rezamos por eles e que eu rezei uma missa no Cairo por si e
que rezarei outras de vez em quando. É absolutamente necessário que vamos para o Céu.
3281
Em noventa e nove dias de terrível viagem cheguei com a grande expedição a Cartum, e em dez dias e
meio mais, cheguei aqui ao Cordofão. Noutra carta falar-lhe-ei da grande missão que Deus me confiou, que é
a mais difícil e colossal do universo. Falar-lhe-ei da escravidão, de como se faz o tráfico de escravos, se ven-
de e se oprime aqui a milhares e milhares de rapazes e raparigas, roubados aos seus pais, por vezes depois de
os terem assassinado. Por agora temos duas grandes missões abertas, uma em El-Obeid e outra em Cartum; e
em breve abriremos a de Schellal e levaremos a cruz ao território nuba, a pátria de Bajit Miniscalchi, que
está a cinco dias a camelo daqui. No dia 14 de Setembro próximo, faço a solene consagração ao S. Coração
de Jesus de toda a África Central: esse dia reze e faça rezar muito o arcipreste de S. Martinho, meu caro mes-
tre, a quem desejo que o senhor faça uma visita especial por mim e outra a P. e Dallora. Se não morrermos,
talvez voltemos a ver-nos reunidos na Mariona, na qual adquiri uma espécie de direito. Mando-lhe a bênção
a si e a toda a sua família e declaro-me nos Sag.dos Corações de J. e M.

Seu af.mo amigo P.e Daniel Comboni,


Pró-vigário ap. da África Central

N.o 512 (482) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 734-735

N.o 7
El-Obeid, capital do Cordofão
25 de Julho de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3282
Recebi com sumo prazer a sua estimadíssima de 29 de Abril, n.o 1. Tornam-se verdadeiramente gratas a
uma distância tão grande as veneráveis palavras dos superiores, que são a expressão da vontade divina. To-
mo nota do parecer e desejo de V. Em.a sobre a reabertura do estabelecimento de Schellal. Em tempo opor-
tuno e quando as forças o permitirem, levar-se-á a cabo, sem dúvida alguma. O seu clima é saudável.
3283
Cada vez disponho de mais argumentos que demonstram esplendidamente a importância da missão de El-
Obeid. Se bem que na actualidade tenha posto o meu empenho principalmente em reavivar, estabelecer e
consolidar bem as duas missões fundamentais, as de Cartum e de El-Obeid, que são a base de operações para
estender paulatinamente a acção do Catolicismo às tribos que habitam a parte oriental do vicariato até para lá
das nascentes do Nilo e as imensas populações das vastas regiões que constituem o centro do mesmo vicaria-
to, contudo tão-pouco deixamos, entretanto, de nos ocupar das tribos e povos próximos do Cordofão, onde o
Islamismo ainda não penetrou, adquirindo exacta informação sobre eles, aprendendo as suas línguas e estu-
dando sempre pouco a pouco o modo mais fácil e adequado para poder um dia, com segurança e eficácia,
estabelecer missões neles.
3284
Para tal fim, mostramo-nos muito activos em preparar já bons colaboradores indígenas dessas terras, edu-
cando-os na fé e na civilização cristã. E com não pouco esforço tratamos de compor um dicionário e uma
gramática da língua dos Nuba, assim como um pequeno catecismo nessa língua.
3285
A semana passada veio visitar-me três vezes com um bom séquito um dos reis ou chefes dos povos Nuba,
o qual acorrera a El-Obeid para pagar a este paxá o tributo de várias populações que confinam com o Sudo-
este do Cordofão. Chama-se Nemur. Manda ainda em não poucos povoados que nunca se submeteram a pa-
gar o tributo e mantêm perfeitas relações com quase todos os chefes ou reis dos povos Nuba, que nunca fo-
ram vencidos pelos turcos e que ainda são independentes. Este rei fez-me um convite explícito para que vá a
suas terras ou, ao menos, que mande lá missionários, para erigir uma igreja, criar escolas e ensinar-lhes a
nossa religião. Um do seu séquito, que tinha sido escravo na Síria, onde tinha visto os cristãos e conhecido as
suas igrejas, disse-me que em dez anos que nós lá estivéssemos, todos se tornariam cristãos.
3286
Pedi ao chefe alguma informação sobre aqueles lugares e fiquei a saber que os seus habitantes foram ata-
cados muitas vezes pelos árabes Bagara e pelos turcos, mas quase sempre os tinham repelido; que em repeti-
dos roubos os árabes tinham conseguido arrebatar-lhes milhares de meninos e meninas; que nunca quiseram
saber nada nem dos turcos nem de Maomé; que sabem que há um Deus, mas nunca o viram e não sabem
rezar, como viram fazer em El-Obeid e na Síria; que, segundo o que lhes contaram os antepassados, que tra-
taram com os Habbasc (abexins), muitos destes praticam a seguinte cerimónia com seus filhos: quando um
recém-nascido tem oito dias, vem um óeuru (mago), que unge todo o corpo do menino com uma certa gordu-
ra, depois do que ele mesmo se mete na água, toma a criança, submerge-o na água e devolve-o à mãe. Fala-
ram com desprezo do Cordofão, elogiando o clima e a fertilidade da sua própria terra. Observaram maravi-
lhados a nossa bela capela, a escola, alfaias agrícolas, carpintaria, serralharia, etc., e, nas três visitas que me
fizeram, insistiram em que eu fosse ao seu país fundar uma igreja e uma escola.
3287
Eu acolhi-os muito bem, mostrando-lhes que estou disposto a realizar o seu desejo, logo que se cumpram
muitas condições. Anunciei-lhes que, ao irmos à sua terra, levaríamos connosco alguns dos seus jovens para
os devolver às suas famílias e ordenei-lhes que, de vez em quando, me mandassem alguém deles, para me
informarem do seu interesse e das suas intenções. O chefe Nemur ofereceu-se espontaneamente a voltar aqui
depois do karif, ou colheitas, em Outubro. Ofereci-lhe alguns medicamentos e medalhas e uma fotografia do
excelente negro Bajit Minischalchi (a quem monsenhor o secretário teve o ano passado a bondade de condu-
zir aos pés de Sua Santidade), o qual é originário daquela zona; e, muito contente, foi-se com todo o seu sé-
quito, de regresso às terras dos Nuba.
3288
Por agora não emito nenhum juízo sobre este facto, que poderia ser importantíssimo. Quero pensar sobre
isso, ver se esconde algum engano, examinar se tem algo de positivo com que se possa contar, estudar bem
tudo e depois esperar o tempo fixado por Deus.
3289
Depois de ulteriores observações, enviar-lhe-ei uma breve relação sobre os horrores do tráfico de negros,
do qual é trágico teatro este vicariato. A Inglaterra, sob a artificiosa justificação de abolir a escravatura,
manda os seus embaixadores a Zanzibar e a Mascate para favorecer os seus interesses políticos e os seus
planos de conquista. Mas é na África Central, mais que em nenhuma outra parte, onde faz estragos esta cha-
ga da humanidade; e a missão católica poderá mais que os canhões, pois com a bênção divina triunfará pouco
a pouco na grande empresa.
Beijando-lhe a sagrada púrpura, nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria tenho a honra de me proclamar

De V. Em.a Rev.ma
Hum. devot.mo e obed.mo filho
P.e Daniel Comboni, pró-vig. ap.

N.o 513 (483) - AO PRESIDENTE DO CONSELHO


DA OBRA DA SANTA INFÂNCIA
ACR, A, c. 14/137 n. 1

El-Obeid, capital do Cordofão


31 de Julho de 1873

Sr. presidente,

3290
Uma nova obra, digna da sua caridade, vem pedir a ajuda da Santa Infância. Trata-se de ajudar as crianças
do vicariato apostólico da África Central, o qual foi confiado o ano passado pela Santa Sé ao novo Instituto
das Missões para a Nigrícia de Verona e à minha pequenez com o título e os poderes de pró-vigário apostó-
lico.
O vicariato da África Central é a mais vasta e laboriosa missão do universo inteiro e conta com mais de
cem milhões de infiéis. Está situado entre as missões do Egipto, Trípoli, Abissínia, os Gallas, Costa do Be-
nim e Guiné meridional; a oeste tem como limite a linha que vai de Morzouk ao Níger e a sul chega aos doze
graus de latitude austral.
3291
As obras que até agora fundei para a grande conquista da Nigrícia são:
1.o Dois pequenos institutos no Cairo, um masculino e outro feminino, para aclimatar os missionários e as
irmãs destinados à África Central e para educar os meninos e as meninas negros na fé e nas artes e ofícios.
2.o Dois institutos em Cartum, capital do Sudão Oriental situada a 15 graus de latitude Norte.
3.o Duas instituições na cidade de El-Obeid, capital do Cordofão. Esta cidade, de onde tenho a honra de
lhe escrever, é habitada por mais de cem mil pessoas e na actualidade é a cidade mais central entre todas as
missões da África aqui existentes. Encontra-se entre os 12o e os 13o de lat. norte.
3292
Cartum é a base de operações para a parte oriental do vicariato, parte que abrange todas as imensas tribos
do Nilo Branco e das nascentes do Nilo até aos grandes lagos do Niassa, Tanganica e os países de Lunda e
Muemba.
El-Obeid é a base de operações para a parte central do vicariato: é a verdadeira porta da Nigrícia interior e
o centro de comunicação com o reino de Darfur, o império de Bornu, as enormes tribos dos Nuba, Fertit,
Waday, Tchad e com os milhares de tribos que habitam as regiões do Sudoeste.
3293
Todos os meus esforços se orientam para consolidar bem estas duas missões, nas quais preparamos indí-
genas das tribos centrais para que sejam apóstolos de fé e civilização entre a sua gente. Depois, avançaremos,
pouco a pouco, até aos países do interior, à medida do pessoal disponível e os recursos que a Propagação da
Fé e a Obra da Santa Infância nos facultarem.
3294
Em Cartum dirigem a obra feminina as Irmãs de S. José da Aparição, de Marselha, que vivem numa casa
arrendada por 1200 francos ao ano. Comprei o terreno para construir a casa das irmãs, onde devo abrir um
grande orfanato para os meninos pequenos. O mesmo devo fazer el El-Obeid.
3295
Agora há aqui um grande número de crianças para recolher, os quais frequentemente são abandonados
por suas mães. Há também mães que fogem dos seus patrões com as suas criaturas e se refugiam na missão.
Com frequência é preciso acolher mães e filhos, porque, de contrário, correriam perigo mortal os corpos e as
almas de umas e de outros.
Mas para atender à necessidade de fundar grandes orfanatos carecemos totalmente de recursos. Por isso,
senhor presidente, dirijo-me com lágrimas nos olhos à sublime Obra da Santa Infância, a fim de obter uma
importante ajuda para poder salvar milhares de meninos negros.
3296
Construir uma casa nestes países é muito custoso: há que trazer da Europa os utensílios necessários e um
pedreiro não trabalha por menos de 20 francos por dia, enquanto os seus ajudantes têm que ser rogados com
insistência para que trabalhem por 10 francos ao dia. Isto em Cartum, onde o número de pedreiros é muito
pequeno. Aqui em El-Obeid custam menos as obras, mas há que duplicar o pessoal que trabalha.
Além disso, há que pensar que neste vicariato tudo o que é necessário para a vida e para uma construção
custa como mínimo seis vezes mais que no Egipto, porque a maior parte do material é preciso trazê-lo de lá
com camelos, pelo grande deserto de Atmur e pelas planícies do Cordofão.
3297
Espero que a Santa Infância me preste a sua ajuda para a construção e a manutenção de dois grandes orfa-
natos. Neste vicariato está tudo por fazer, de modo que são necessárias substanciais contribuições. As priva-
ções dos meus missionários, das minhas freiras, dos meus catequistas, das mestras negras e dos irmãos coad-
jutores são muito grandes; o clima é muito quente e as distâncias tão grandes que, às vezes, nas viagens, du-
rante meses inteiros não se vê mais que a abóbada do céu pela noite e de dia o Sol africano, cujos ardores
caem sobre as nossas costas.
Digne-se, senhor presidente, aceitar o meu humilde pedido e as expressões de profundo respeito com que
me honro em chamar-me, nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria

Seu humílimo servidor


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico da África Central
Original francês
Tradução do italiano

N.o 514 (484) - A MONS. JOSEPH GIRARDIN


AOSIP, Afrique Centrale

J. M. J.
El-Obeid, capital do Cordofão
31 de Julho de 1873

Monsenhor,

3298
Há seis anos que tive a honra de conhecer o ilustre director da Santa Infância, o qual talvez ainda não se
tenha esquecido de ter visto em Roma e em Paris um pobre missionário, sobrevivente de tantos que tinham
morrido na África Central; esse missionário fazia muita viagem para fundar a obra da regeneração da Nigrí-
cia e implantar, de forma duradoura, a fé católica nesta parte do mundo, a mais infeliz e abandonada. Pois
bem, esse pobre missionário é o que se honra de lhe escrever do centro da África para implorar fortes ajudas
da admirável obra que o senhor dirige.
3299
Junto à presente, envio-lhe uma petição para o presidente do Conselho da Santa Infância e rogo-lhe insis-
tentemente que me escute e apoie a minha causa, que é santa e conforme o objectivo especial dessa obra
sublime, que povoou o céu de pequenos larápios do Paraíso.
Antes de lhe falar da deplorável situação da infância neste vicariato, permito-me dizer-lhe duas palavras
acerca da minha obra e sobre como Deus mesmo a dirigiu.
3300
Em 1846, Gregório XVI, de santa memória, erigiu o vicariato da África Central e confiou-o a mons. Ca-
solani, bispo de Mauricastro e vigário apostólico, que obteve a colaboração de dois padres jesuítas, o P. e
Ryllo e o P.e Pedemonte, e de dois alunos do Colégio da Propaganda. Esta, por o P.e Ryllo estar mais bem
informado do caminho mais seguro para empreender a obra, que era o do Egipto e da Núbia, pôs à frente da
missão o dito padre, o qual em 1848 conduziu a expedição até Cartum, onde morreu. Sob o governo do seu
sucessor, mons. Knoblecher, a missão fez progressos, porque pôde abrir, além da estação de Cartum, uma
entre os Kich, a 6o de lat. norte e outra em Gondokoro, a 4o da mesma latitude, junto às nascentes do Nilo.
3301
Porém, como a diferença climática entre a Europa e a África Central é enorme, de quarenta missionários
que foram directamente da Europa para o Sudão morreram trinta e cinco e quatro voltaram para a Europa
para não regressarem jamais à missão. O restante, que sou eu, regressou à Europa com a ideia de voltar para
sacrificar aqui a vida. Então a Propaganda experimentou a mandar os franciscanos, que em 1861 ocuparam o
vicariato; mas depois de ter perdido vinte e dois dos seus, todos regressaram à Europa, excepto três, os quais,
tendo sido abandonadas todas as estações, menos a de Cartum, permaneceram nela até ao ano passado. Por
causa da supressão das ordens religiosas na Itália, os pobres franciscanos, que obtinham dos conventos da
Itália a maior parte dos seus missionários, viram-se forçados a abandonar a África Central e também as ou-
tras missões. Foi então que a Santa Sé confiou este grande vicariato a um novo instituto que fundei com a
ajuda e protecção do senhor marquês de Canossa, bispo de Verona.
3302
Desde 1857, quando me encontrava na missão dos Kich, no Nilo Branco, aqui na África Central, passei
por todas as provas deste difícil apostolado. E tendo estado onze vezes a ponto de morrer por causa do clima
e das enormes fadigas, vi-me na necessidade de regressar à Europa, onde, ao cabo de uns anos, já restabele-
cido, pensei no modo de voltar a este campo de batalha para nele sacrificar a vida pela salvação dos negros.
Foi a 18 de Setembro de 1864 quando, ao sair do Vaticano, onde tinha assistido à beatificação de Margarida
M.a Alacoque, me veio à mente apresentar à Santa Sé a ideia do Plano retomar o apostolado da África Cen-
tral. O Sagdo. Coração de Jesus fez-me superar todas as enormes dificuldades o meu Plano orientado para a
regeneração da Nigrícia com a própria Nigrícia.
3303
Em 1867 fundei em Verona o Instituto das Missões para a Nigrícia e no fim do mesmo ano abri duas ca-
sas para negros no Cairo. O senhor, que tem uma imensa prática em obras deste género, não precisa que lhe
explique toda a história, a finalidade e a importância destas obras preparatórias para instalar estavelmente o
apostolado nas regiões centrais da África. Eu tinha que proporcionar à obra um corpo de eclesiásticos para
cobrir sempre as necessidades de pessoal da missão. E além disso tinha que procurar a maneira de os missio-
nários europeus poderem conservar a saúde o maior tempo possível nestes lugares abrasadores da África
Central.
3304
Para este fim, com a poderosa protecção de mons. Canossa (seu pai era irmão da venerável fundadora –
cuja causa de beatificação está agora a ser tratada – das Filhas da Caridade de Verona, que estão também
estabelecidas em Hong Kong e em Hu-pé, na China; e o bispo é também cunhado da senhora Teresa, mar-
quesa Durazzo do S. Coração, de Paris) fundei o Instituto das Missões da Nigrícia em Verona, que foi cano-
nicamente aprovado pelo bispo e estabeleci no Cairo duas instituições preparatórias para as missões da Áfri-
ca Central, as quais me formaram em cinco anos 54 bons colaboradores, que são agora muito úteis para o
meu vicariato.
3305
Como os padres franciscanos não ocupavam dele senão a cidade de Cartum com dois missionários, que-
rendo fazer chegar a minha obra aos países da África Central, que não tinham nunca ouvido a palavra de
Deus, e vendo-me bem provido de pessoal indígena, em 1871 enviei ao Cordofão quatro exploradores para
verem se era oportuno fundar na sua capital, El-Obeid, uma missão e ocupar utilmente o dito pessoal naquilo
para que tinha sido educado. Os exploradores, comandados pelo P.e Carcereri, meu actual vigário-geral, em
oitenta e dois dias de viagem, chegaram ao Cordofão e, após reconhecerem bem a região, pareceu-lhes con-
veniente estabelecer uma missão em El-Obeid, segundo as instruções que tinham recebido no Cairo.
3306
Então fui a Roma para pedir o Cordofão para o meu instituto de Verona. Mas a Santa Sé, depois da re-
núncia dos veneráveis padres franciscanos a Cartum e à África Central, decidiu conceder-me todo esse vica-
riato, que é maior que a Europa inteira e se estende até aos 12o de latitude Sul.
3307
Quando regressei ao Cairo, fiz os preparativos para a grande expedição à África Central e a 26 de Janeiro
deste ano parti da capital do Egipto com um grupo de 33 pessoas, entre missionários, freiras, mestras negras
e irmãos leigos. Depois de uma fadigosa viagem de 99 dias cheguei a Cartum. Depois, tendo ficado aí um
mês, parti para o Cordofão, onde me encontro há cinquenta dias. Só a viagem do Cairo até Cartum e El-
Obeid custou-me 22 000 francos e isto sofrendo muito, não bebendo nunca vinho nem eu nem os demais e
sobretudo uma grande pobreza. Mas como esta missão é árdua, difícil e dolorosa, é preciso que os missioná-
rios estejam dispostos a um martírio lento e contínuo.
3308
Agora em Cartum e El-Obeid temos a propriedade das casas dos missionários, mas as das irmãs tive que
as arrendar e pago 1200 francos anuais em Cartum e um pouco menos em El-Obeid. Aqui nunca bebemos
vinho, porque é demasiado caro: uma garrafa normal de vinho corrente para a missa, que no Cairo custa 60
cêntimos, aqui não se encontra por cinco francos. As batatas estão a 130 cêntimos o quilo. Tudo o que é mais
necessário para a vida é muitíssimo caro. Em Cartum temos o pão muito caro, mas aqui nem sequer o há,
pelo que nunca comemos pão, mas fahit, uma espécie de pão de sorgo silvestre, que na Europa apenas as
galinhas comeriam. Mas nós estamos muito contentes, porque fazemos a vontade de Deus e procuramos a
salvação das almas mais abandonadas.
3309
Uma das minhas primeiras preocupações é a de fundar dois grandes orfanatos para a infância, que seriam
dirigidos pelas irmãs. Tenho de dar-lhe uma ideia da deplorável situação destes países para que o senhor
possa compreender tudo. A abolição da escravidão, decidida pelas potências europeias em Paris em 1856, é
letra morta para a África Central. Os tratados existem no papel, mas aqui o tráfico está em pleno vigor. To-
dos os meses do ano, exceptuada a época das chuvas equatoriais, saem homens de Cartum e de El-Obeid que
se dirigem às tribos de negros próximas. Entram nelas armados de fuzis e pistolas e levam violentamente
meninos e meninas, pequenos e mais crescidos, de famílias pacíficas. Para vencer a resistência que os pais
opõem, muitas vezes matam-nos. E com todos estes meninos e suas mães, se estas forem jovens, encami-
nham-se para o Cordofão e a Núbia para os venderem.
3310
Entre eles vão desde meninos de dois dias até raparigas e mulheres de 24 anos aproximadamente; mães
muito jovens de catorze a vinte anos, com duas ou três criaturas e também mães que ainda levam no ventre
os seus filhos e que completamente nuas são conduzidas à Núbia, ao Cordofão ou ao Egipto. Cada ano se
roubam centenas de milhares destes seres, talvez meio milhão. Desde o Cairo até Cartum nós vimos mais de
trinta caravanas e embarcações deles. E desde Cartum até ao Cordofão, mais de mil destas pessoas, todas
nuas e atadas pelo pescoço, as quais eram puxadas pelos jilabas (negociantes de escravos). Uma vez rouba-
dos estes pobres meninos e meninas, o amo dispõe deles a seu bel-prazer, destinando-os sobretudo aos ha-
réns e à prostituição.
3311
Em El-Obeid são inumeráveis os recém-nascidos de que se desfazem fora da cidade, enterrando-os ou
deixando-os estendidos no chão para que os abutres e outras aves os comam, tal como aos camelos, burros e
outros animais mortos. Há quinze dias, dando um passeio fora da cidade, vi centenas destes pequenos cadá-
veres ou pedaços dos mesmos. Reclamei perante o paxá, o qual deu ordem de enterrar todos os negros mor-
tos. Além disso, uma quantidade de meninos são vendidos com suas mães por 90 ou 100 francos. Nós temos
numerosas mães com os seus pequenos, que adquirimos ou que nos foram dadas e nós metemo-las em pe-
quenas cabanas que construímos e comprámos fora da missão.
3312
Eis aqui a grande necessidade de fundar um grande orfanato e de o confiar às Irmãs. Já comprei um terre-
no adequado próximo da minha residência. Mas preciso de dinheiro, seja para construir seja para manter e
educar estas crianças. Mães para as aleitar há em abundância, até de onze anos, que podemos adquirir ou
contratar. Também em Cartum é necessário um grande orfanato.
3313
Posto tudo isto, o senhor, monsenhor, deve ainda pensar que aqui nunca o Evangelho foi pregado e, por
isso, pode imaginar as desordens, a corrupção e os efeitos da corrupção. É necessário ainda ter presente que
de cem milhões de infiéis de que é formado o meu vicariato, cerca de oitenta milhões andam completamente
nus, homens e mulheres. Ora, para estabelecer a fé católica, é preciso vestir ao menos as mulheres e um pou-
co os homens. Vesti-los acarreta uma despesa enorme, porque uma peça de tecido ordinário, que compramos
no Cairo por 10 francos, aqui no Cordofão custa, ao menos, 40 francos. Só o transporte até ao Cordofão de
uma caixa de vestidos e de camisas de mulher, que me mandaram gratuitamente da França, custou-me 67
francos. Pense agora o senhor nas despesas que é necessário fazer para fundar um orfanato para os nossos
pequenos negros.
3314
No momento em que lhe escrevo, monsenhor, não temos nem sequer roupa branca para nós, porque ti-
vemos que fazer uma camisa para cada uma das meninas e mulheres do nosso instituto feminino e fazer uma
também para os rapazes. Nós dormimos vestidos sobre o nosso angareb que é constituído de pedaços toscos
de madeira e ligado com cordas de palmeiras ou de pele de animais. Há em El-Obeid negociantes árabes
(nem sequer um europeu) que têm tecidos, mas para os adquirir é preciso dinheiro, que não temos. Repare
mais numa coisa: as camisas não duram aos negros como na Europa, onde há belas casas, camas e cadeiras.
Aqui, as crianças dormem na terra nua ou, se as tivermos, sobre esteiras. Não há cadeiras; eles dormem e
sentam-se sempre na chão; não têm sapatos: andam sempre descalços.
3315
Apesar de tudo isto, o sustento e a roupa de cada menino e menina, mesmo pequeno, custa-nos 7 francos
e 74 cêntimos por mês, sem contar a casa e as mães que amamentam os pequenos. Mas isto assim não pode
durar, porque eles acabarão por morrer. São precisos de 8 a 10 francos por cada um. Em Cartum é mais caro.
Junte a isto os remédios que trouxemos do Cairo. Estes, quando chegam ao Cordofão, custam enormemente:
por isso acrescente ainda as despesas com a sua aquisição.
Todos os dias se nos apresentam escravos para serem libertados da crueldade dos seus patrões. Apresenta-
ram-se-me mães grávidas; se eu não as aceitar, serão punidas com a morte pelos seus sicários. Verifiquei que
algumas delas, mesmo se grávidas, foram assassinadas.
3316
Então que fazer perante este miserável espectáculo? Levanto os olhos ao céu, confio na Providência e
aceito. Agora, não tendo tempo para lhe escrever outras misérias, dirijo-me à Obra da Santa Infância e peço-
lhe insistentemente que venha em meu socorro com um bom contributo anual. Se o senhor visse, monsenhor,
o estado das populações da África Central, ficaria convencido de que nenhuma das missões da China e dos
outros países do mundo merece ser ajudada como a minha.
Na China, as missões estão implantadas há séculos; aqui, no Cordofão, há apenas 486 dias que a fé católi-
ca entrou pela primeira vez. Portanto, aqui é preciso fazer tudo. A China é um país civilizado; a África Cen-
tral não; as populações andam completamente nuas, homens e mulheres, à distância de dez ou até três dias
daqui. Aqui as mulheres trazem, pelo caminho, uma pequena toalha de mão; as raparigas andam completa-
mente sem vestido, ou com um cordãozinho de pele em baixo. Não tenho palavras para lhe exprimir a misé-
ria destas terras e muitas coisas nem se podem sequer dizer por pudor. Portanto, recomendo esta santa causa
ao seu admirável coração; defenda, monsenhor, a causa da África Central.
3317
Por nossa parte, missionários e missionárias estamos dispostos a morrer mil vezes pela salvação das al-
mas. O nosso grito de guerra será sempre durante toda a nossa vida: «Nigrícia ou morte.»
Com a graça de Deus, seremos fiéis ao nosso propósito.
3318
Não quero ocultar-lhe que, quando a Santa Sé me confiou esta vasta e laboriosa missão, a minha consci-
ência estava um pouco titubeante, porque conhecia a minha pequenez perante a enorme tarefa que Deus me
confiava por meio do seu augusto vigário Pio IX e pensava que com as nossas forças nunca conseguiríamos
estabelecer o Catolicismo nestas imensas regiões, onde a Igreja, apesar dos esforços de tantos séculos, jamais
o tinha conseguido. Então pus toda a minha confiança no Sagrado Coração de Jesus e decidi consagrar-lhe
todo o vicariato no dia 14 de Setembro próximo. Com o objectivo de dar a conhecer esta grande solenidade,
mandei uma circular, e pedi ao admirável apóstolo do S. Coração, o P.e Ramière, que redigisse o acto de
consagração solene, o que ele fez. Irei enviar-lho.
3319
E por agora termino, rogando-lhe que destine à infância do meu vicariato uma boa contribuição e que a
envie para o Cairo ao meu representante, P.e Bartolomeu Rolleri, superior dos institutos de negros do Egipto.
Ele far-me-á chegar tudo à minha residência principal por meio do Divã do Cairo.
3320
Até ao momento as autoridades turcas têm sido muito boas para com a missão. Vim para o vicariato com
um decreto do imperador de Constantinopla, no qual outorga ao vicariato todos os privilégios concedidos aos
cristãos do império turco. Isso contribuiu para que eu fosse muito bem recebido em todas as principais cida-
des do Sudão e faz com que sejamos completamente livres. Porém, a dois dias daqui, onde não há nenhum
governo, o único decreto que temos é o da Providência Divina. Não obstante, a fama da nossa missão de El-
Obeid chegou a toda a parte do reino de Darfur e do império de Bornu, estendendo-se também entre os Bo-
gus e os Nuba. Um rei destes últimos veio convidar-nos a construir uma igreja e criar escolas na sua tribo,
onde há um conhecimento ideal de Deus, mas falta completamente o culto e não se reza. Eles detestam o
Alcorão e mataram todos os que lhes falaram dele.
3321
O meu objectivo actual é consolidar Cartum e El-Obeid como bases de operações. Depois estender-nos-
emos para lá das nascentes do Nilo, onde há uma população idólatra ainda não contaminada e um clima mui-
to bom.
Confio esta petição à Imaculada Virgem Maria, a fim de que inspire a Santa Infância a acorrer em ajuda
desta missão, da qual depende, talvez, a salvação de todos os povos deste imenso vicariato.

P.e Daniel Comboni


Original francês
Tradução do italiano

N.o 515 (485) - CARTA PASTORAL PARA A CONSAGRAÇÃO


DO VICARIATO AO SAGRADO CORAÇÃO
AP SOCG, v. 1003, ff. 736-737

El-Obeid, 1 de Agosto de 1873

DANIEL COMBONI
Por graça de Deus e da S. Romana Sé
Pró-vigário apostólico da África Central
Ao venerável clero e ao dilectíssimo povo católico
Do nosso vicariato apostólico, saúde em N. S. J. C.
E pastoral bênção

3322
Encarregados por disposição suprema de Deus e pela vontade do Sumo Pontífice Pio IX do árduo e labo-
rioso apostolado da África Central, que é a mais extensa e povoada missão do universo, conscientes no pro-
fundo da nossa alma do peso da divina empresa, medimos a desproporção existente entre a nossa pequenez e
a enorme magnitude e importância do mandato que nos era confiado. Por isso, confiados, elevamos os olhos
ao Céu solicitando de lá de cima força e ajuda suficientes para apoiar e guiar a nossa fraqueza na grande
tarefa que nos prefixámos. Agradou ao Senhor, em tal circunstância, inspirar-nos como meio seguro para o
efeito desejado que reuníssemos nós mesmos os nossos fiéis e o inteiro vicariato apostólico sob a égide do
sacratíssimo e amabilíssimo Coração de Jesus.
3323
Este Coração adorável, divinizado pela união hipostática do Verbo com a humana natureza em Jesus Cris-
to nosso salvador, livre sempre de toda a culpa e rico em toda a graça, não conheceu um instante desde a sua
formação em que não palpitasse com o mais puro e misericordioso amor pelos homens. Desde o sagrado
berço de Belém, apressa-se a anunciar pela primeira vez a paz ao mundo: menino no Egipto, solitário em
Nazaré, evangelizador na Palestina, partilha a sua sorte com os pobres, convida os pequenos e desafortuna-
dos a que se aproximem, conforta e cura os doentes, devolve os mortos à vida, chama ao bom caminho os
extraviados e perdoa aos arrependidos; moribundo na cruz, na sua extrema mansidão reza pelos seus crucifi-
cadores; glorioso ressuscitado, manda os Apóstolos pregar a salvação ao mundo inteiro.
3324
Este coração divino, que tolerou ser atravessado por uma lança inimiga, para saírem do seu lado aberto os
sacramentos com que se formou a Igreja, de nenhum modo deixou de amar os homens, mas vive permanen-
temente nos nossos altares, prisioneiro de amor e vítima propiciatória de todo o mundo. E, não contente com
isso, Ele mesmo, num aparição à beata Margarida M.a Alacoque, ofereceu-se trepidante de amor como re-
médio dos males que afligiriam o mundo, culpado e perecedouro, com promessas de protecção especial para
aqueles que se consagrassem ao seu culto e adoração.
3325
Esta é a razão, ó dilectos filhos, pela qual estamos imbuídos da mais firme esperança de que no sagrado
âmbito deste adorabilíssimo Coração estão reservados também os tesouros de graças que devem decidir a
eterna salvação das imensas populações ainda curvadas sob o jugo de Satanás que foram entregues aos nos-
sos cuidados. Daí que depois de enormes fadigas e desastrosas viagens, ao encontrarmo-nos finalmente entre
vós, tenhamos resolvido proceder formalmente à solene consagração de todo o nosso querido vicariato apos-
tólico da África Central ao Sacratíssimo Coração de Jesus. Por isso, convidamo-vos a todos vós a entrar com
absoluta confiança nesta arca de salvação, a fim de nos livrar do dilúvio de tantos males que o Inferno conti-
nuamente vomita contra nós e que ameaçam todos os dias cada vez mais com o total extermínio do mundo.
3326
Confiamos que este fausto acontecimento, além de incrementar em vós a fé e o amor, abrirá novos cami-
nhos de salvação ao grande povo, para nós tão dilecto, da Nigrícia interior, que ainda dorme nas trevas e na
sombra da morte. Por isso, desejamos que se celebre com a maior solenidade e pompa possíveis; para esse
fim, escolhemos para tal festa o dia 14 do próximo mês de Setembro, dia em que toda a Igreja comemora a
solene Exaltação da Santa Cruz, símbolo do triunfo alcançado por Jesus Cristo sobre o Inferno e o pecado.
3327
Compete aos M. R. superiores e párocos das missões do nosso vicariato cuidar de que esse dia seja prece-
dido por um tríduo de orações públicas e de que, em tal circunstância, se dê ao povo a instrução necessária
sobre o tema, explicando a natureza, a importância e a edificação da sublime devoção ao S. Coração de Je-
sus, e convidando todos os fiéis a receberem os santíssimos sacramentos, para ganharem indulgência plenária
que, em conformidade com as faculdades que nos foram conferidas pela Santa Sé no dia 12 de Junho de
1872, resolvemos aplicar em favor de todos os que, contritos, confessados e comungados, participarem na
comovedora cerimónia desta solene consagração.
3328
O som festivo dos sinos durante meia hora depois do Maghreb anunciará a grande solenidade em cada um
dos três dias e uma geral abstinência na véspera, com alimentação de estrito jejum, contribuirá para atrair
sobre nós mais copiosamente as bênçãos divinas. Por outro lado, na manhã de 14 de Setembro, na santa mis-
sa, acrescentarão a colecta do Sagdo. Coração da missa própria «Miserebitur» e a missa solene será «Ritu
votivo solemni de SS. Corde J. ut in die cum com. dom. occor. sub unica conclusione». Terminada a missa
solene, expor-se-á o Santíssimo e o superior ou o pároco recitará em voz alta, em língua árabe, a fórmula da
consagração que nós estabelecemos e que nós mesmos pronunciaremos na igreja da nossa actual residência
do Cordofão. Finalmente será cantado o «Te Deum», concluindo a sagrada função com a bênção do Santís-
simo Sacramento.
3329
Além disso, para que fique perene memória desta solene consagração do vicariato apostólico da África
Central ao Sagrado Coração de Jesus, ordenamos que em todas as igrejas do nosso vicariato, todas as sextas-
feiras do mês, depois da costumada devota prática da Guarda de Honra do Sagrado Coração de Jesus, seja
igualmente repetida, coram SS.mo in perpetuo, esta fórmula de consagração e dê-se também a bênção ao
povo. Será, além disso, especialíssimo empenho nosso dirigir quanto antes à Santa Sé os mais ardentes ro-
gos, a fim de que se digne conceder que na sexta-feira seguinte à oitava do Corpus Domini, consagrado à
festa do S. Coração de Jesus, seja formalmente consagrado dia santo obrigatório para todo o vicariato apostó-
lico da África Central e que o nosso clero secular e regular o celebre com rito duplo de primeira classe, com
oitava, segundo as regras gerais dos patronos.
3330
Estamos profundamente convencidos de que o faustíssimo dia desta solene consagração marcará uma no-
va era de misericórdia e de paz para o nosso caro vicariato e que do seio misterioso deste divino Coração
trespassado brotarão torrentes de graça e rios de bênçãos celestes sobre este grande povo da África Central
que nos é tão dilecto e sobre o qual ainda pesa tremendo, ao cabo de tantos séculos, o anátema de Cam.
Dado em El-Obeid, desta nossa residência do Cordofão, no dia 1 de Agosto de 1873.

P.e Daniel Comboni, pró-vig. ap.


P.e José Franceschini, pró-secretário

N.o 516 (486) - A P.e FRANCISCO BRICOLO


ACR, A, c. 14/27
J. M. J.

El-Obeid, capital do Cordofão


2 de Agosto de 1873

Meu muito estimado P.e Francisco,

3331
Realmente não sei que pensar do seu eterno silêncio. Escrevi do Egipto duas vezes para Vicenza, e agora,
ainda que assoberbado de mil graves ocupações, não posso esquecer um instante o meu estimado P. e Bricolo
e procuro por meio de P.e Guella fazer chegar as minhas cartas às suas mãos. Oh, como sinto não ter roubado
dois dias para os ir passar consigo em Vicenza ou em Veneza! Porém, tinha tais compromissos que não sou-
be, como devia, desembaraçar-me deles. Agora que estou tão longe é que dou conta da falta, porque já não
tenho a esperança de poder brevemente dar uma saltada a Vicenza, ao separarem-me daí imensas e fadigosas
viagens. Meu Deus!
3332
Agora, a primeira coisa que desejo dizer-lhe é que quero novas suas e uma carta de seis folhas, pelo me-
nos. Estou completamente em jejum de notícias suas: não sei se está vivo ou morto. Ordenei a P.e Squaranti
(ah, se se fizesse membro da minha obra apostólica, que abrange tantas partes, um P.e Francisco Bricolo) que
lhe enviasse sempre os nossos pequenos Anais para lhe dar a conhecer notícias minhas. Por certo, em Lião, a
Propagação da Fé publica semanalmente Les Missions Catholiques, e em Milão, no seminário de S. Caloce-
ro, imprime-se cada ano a tradução: também elas falam de mim. Mas eu não sei nada de P.e Francisco. Por
isso, quero notícias.
3333
Em segundo lugar, pretendo pessoal: clérigos ou sacerdotes, ou santos agricultores, ou santos carpinteiros,
ou santos pedreiros para a África. Portanto, desejaria que fornecesse à África Central missionários, sacerdo-
tes e leigos de primeira classe, mandando-os primeiro ao modesto instituto do seminário. Também boas
mestras com vocação religiosa, as quais seriam primeiro enviadas para Verona, ao instituto antes Astori, em
Santa Maria in Organo, mas que agora é meu.
3334
E passo a dar-lhe rapidamente algumas notícias minhas, por falta de tempo. Na necessidade de trabalhar
como pró-vigário, tenho mais de novecentas cartas para escrever, pois preciso de cultivar as relações que
mantenho com tantos insignes benfeitores. Em menos de seis anos, desde que iniciei as pequenas fundações,
gastei nas minhas obras mais de 500 000 (digo quinhentos mil) francos em ouro, ou melhor, nas obras de
Deus (das quais eu sou o lava-pratos e S. José o ecónomo), criadas em favor da Nigrícia; tenho, pois, que
fazer. Aí vão, pois, como um relâmpago, as minhas notícias.
3335
Com mais de dezasseis pessoas entre sacerdotes, leigos, irmãs, etc. fui de Verona para o Cairo. Trouxe
comigo Perinelli, do Insto. P.e Mazza, como meu secretário. Porém, talvez seduzido pelos inimigos das boas
obras, abusou do segredo de secretário e tornou público o que devia ter mantido secreto, porque afectava
uma terceira pessoa. Em suma, formou partidos e criou divisões entre o pessoal, em vez de servir o seu che-
fe, que o tinha cumulado de gentilezas, gastando dinheiro com ele e dando-lho em abundância e apresentan-
do-o a altas personalidades em Roma, Nápoles, Trani, Bari, etc. Ele, para apoiar P. e José Ravignani, queria
que eu mandasse embora dois dos melhores missionários que tenho, entre eles um distinto cónego que foi
pároco de 30 000 almas. Eu opus-me por amor da justiça.
3336
O facto foi que (provavelmente já tinha aprendido a formar partidos nas comunidades) me vi obrigado a
expulsá-lo da missão. O mesmo fiz com o sobrinho do P.e Ludovico de Casoria, de Nápoles, dois sujeitos
que eu havia admitido sem os submeter a nenhuma prova. Fiat!
3337
Após superar imensas dificuldades, a 26 de Fevereiro, parti do Cairo em duas grandes embarcações com
trinta pessoas, entre sacerdotes, monjas, negros e negras. E depois de grandes fadigas e mil perigos, dos
quais nos salvámos por milagre, ao cabo de 99 (noventa e nove) dias de viagem cheguei a Cartum, onde a
colónia, os paxás, os cônsules, todos, me receberam com um entusiasmo tal que ainda me sinto confundido.
O grande paxá Ismail, de Cartum, cuja autoridade se estende até às nascentes do Nilo, ofereceu-me plena
liberdade e o seu apoio para fazer o que eu quisesse e dispusesse dos escravos como eu quisesse e pôs-me à
disposição os seus barcos para as minhas visitas pastorais pelo Nilo Branco, Nilo Azul, Berber, etc.
3338
De facto, pôs o seu vapor gratuitamente à minha inteira disposição para a minha viagem ao Cordofão, em
que tive que fazer 127 milhas pelo Nilo Branco e entrar na selva. Em Cartum fizemos ressuscitar aquela es-
tação já moribunda e agora a paróquia está em plena actividade. Administrei a confirmação a quem a não
tinha recebido desde 1858. Noutro palácio, tomado de arrendamento, abri o instituto feminino, onde alojei as
irmãs e as mestras negras e agora esse instituto floresce e faz milagres de caridade. Tenho freiras orientais de
Jerusalém, de Alepo, do monte Líbano, bem como francesas e fazem prodígios, pelo que estou muito conten-
te. Mas já irei mais ao pormenor noutras cartas sobre este assunto. A minha superiora, Sóror Josefina Ta-
braui, de Jerusalém, estava às portas da morte em Schellal, depois de ter tido vómitos de sangue, etc.; porém,
com um assombroso milagre da venerável Canossa (a quem fizemos uma novena), curou-se em três dias e
pôde cruzar o deserto na estação mais crítica, viajando dezassete horas ao dia, suportando 60o Réaumur,
desde o meio dia às 4 da tarde e indo em marcha acelerada, de modo que aquele deserto entre Korosko e
Abu-Hamed, que é o mais perigoso pela falta de água e que em 1857 atravessámos em 15 dias, agora, com as
irmãs, com dezanove mulheres, passámo-lo em apenas seis dias e meio.
3339
Eu cheguei a Berber mais morto que vivo. Como ia munido de um decreto do grande sultão de Constanti-
nopla, obtido pelo imperador da Áustria, todos os paxás e mudires do Sudão me receberam jubilosamente e
me ofereceram os seus serviços. Em Berber, obtive o barco desse paxá. A minha entrada em Cartum e na
capital do Cordofão e o que se fez até agora sabê-lo-á pelos nossos Anais de Verona. À minha chegada ao
Cordofão, o paxá publicou o decreto da abolição da escravatura, o que nunca se tinha feito aqui; pelo que
este mercado, que estava todos os dias cheio de milhares de escravos amarrados, agora encontra-se vazio. E
que eu não veja pela rua nenhum escravo amarrado, porque o levo imediatamente para a missão e não o de-
volvo.
3340
Na viagem entre o Nilo Branco e El-Obeid encontrei milhares de escravos de todas as idades e de ambos
os sexos. Uns iam em grupos de dez ou doze atados ao pescoço com uma corda, cuja ponta era agarrada por
um jilaba; outros, em grupos de oito a dez, raparigas e rapazes misturados, levavam o pescoço atado a uma
viga que apoiavam nos ombros; outros tinham cadeias de ferro nos pés ou os braços amarrados às costas ou
arrastavam a scheva, uma trave atada ao pescoço. E iam todos nus, empurrados por aqueles esbirros; a maior
parte eram raparigas de dez a vinte anos completamente nuas. Compreenda bem a sublimidade da minha
missão. Mas basta.
3341
Esta cidade de El-Obeid é a verdadeira porta da Nigrícia. Mais à frente saberá a história desta magnífica
missão nascida recentemente quase por encanto, onde há um clima óptimo – agora temos 18 graus –, chove
bem e não existem nem febres nem nada. Em Outubro de 1871 mandei os padres Carcereri e Franceschini
explorar o Cordofão. Resultou bem e agora tenho aqui uma magnífica casa com jardim e a casa feminina em
ordem, ambas compradas e pagas. É uma missão que promete muito. Além disso é a porta da Nigrícia. Em
cinco dias vai-se a Gebel Nuba, pátria de Bajit Miniscalchi. Um dos chefes de lá veio convidar-me a cons-
truir aí uma casa e uma escola: são um terreno e clima magníficos.
3342
Noutros dois dias, indo para noroeste, chega-se a Darfur e em doze ao lugar onde reside o sultão. Num
mês de viagem alcança-se daqui o vasto império de Bornu, enquanto a partir de Trípoli são precisos cento e
catorze dias. Bornu está sob a minha jurisdição. O meu vicariato encontra-se entre o Egipto e os 12o de lati-
tude Sul, e entre o mar Vermelho e Suakin, Abissínia, os Gallas e o Níger. É o maior e mais povoado do
universo. Portanto, por caridade, procure-me candidatos e mande-os para Verona.
3343
Saúde da minha parte o senhor bispo, P.e Sartori e todos os da casa, assim como P.e Quinto e todos os jo-
vens. A 14 de Setembro faço a solene consagração de todo o vicariato ao Sag.do Coração de Jesus, do qual
espero a conversão de todos. Em Outubro continuo a minha visita pastoral e, no vapor que puseram gratui-
tamente à minha inteira disposição, irei a Gondokoro. Em Janeiro subirei o Nilo Azul até aos confins da
Abissínia e Suakin. Baker, que regressou das nascentes do Nilo, diz que devo estabelecer lá uma missão.
Estabelecê-la-ei, mas encontre-me missionários. Sou seu af.mo em J. C. usque ad mortem (cumprimente P.e
Bártolo, em Veneza).

P.e Daniel Comboni


Pró-vig. ap. da África Central

N.o 517 (487) - CARTA CIRCULAR AO CLERO DO VICARIATO


AP SOGG, v. 1003, ff. 740-741

El Obeid, 10 de Agosto de 1873

DANIEL COMBONI
Pró-vigário apostólico da África Central
------
Aos M. R. párocos e vigários paroquiais e confessores
do nosso muito dilecto vicariato apost. da África Central,
saúde e todo o bem de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor

3344
Desde que nos entregámos ao cuidado espiritual do imenso vicariato, que nos foi confiado pela Santa Sé
Apostólica, a nossa primeira e especial preocupação foi a de conhecer o estado moral dos fiéis sob a nossa
jurisdição, a fim de lhes prestar a ajuda que nos fosse possível e eles pudessem necessitar. Deste modo, tor-
nou-se-nos fácil encontrar também entre eles a dualidade do bem e do mal que se encontra em toda a socie-
dade humana. Assim, enquanto nos confortou não pouco esse impulso de fé que os leva geralmente a respei-
tar as autoridades eclesiásticas quase até ao entusiasmo e esse ânimo com que alguns se sentiram dispostos a
retornar aos caminhos da eterna salvação, por outro lado entristeceu-nos a quase indiferença moral que leva
muitos outros a violar com demasiada frequência alguns dos mais importantes preceitos da lei divina, natural
e eclesiástica.
3345
Isso obriga-nos a levantar, por vossa mediação, a voz contra o lobo que assola o rebanho e a dizer com as
palavras do Apóstolo (2 Tim 4) a cada um de vós, nossos mui queridos e solícitos colaboradores e irmãos nas
nossas graves tarefas pastorais: «Praedica verbum, insta opportune, importune: argue, obsecra, increpa in
omni patientia et doctrina», «ne quis eorum ignoranter pereat». Fazei-lhes compreender primeiro que a fé
sem obras está morta, como diz Santiago (Ep. Cath. c. 2), e que a verdadeira fé, sem a qual é impossível
agradar a Deus (Hb 11), é aquela que, como diz S. Gregório Papa (Hom. 29 in Ev.), não nega com as obras o
que afirma com as palavras. Depois, mostrai-lhes como e quão grave é o pecado da mancebia.
3346
Desde que Jesus Cristo chamou de novo o matrimónio à sua primitiva unidade e o elevou à dignidade de
sacramento, é uma grave culpa toda a união fora deste estado único; porém, quanto a isto, muito mais se
deve dizer do concubinato, que é um estado e uma união habitualmente oposta ao matrimónio. Fazei-lhes ver
também o grande escândalo que os concubinos causam aos restantes fiéis e até aos infiéis, muitos dos quais
sabem muito bem que isso é pecado para os cristãos. E não vale, para diminuir a culpa, o pretexto de que
nestas terras do Sudão é esse o costume: Jesus Cristo não fez nenhum excepção para o Sudão, mas instituiu
uma lei geral para todos os tempos, lugares e pessoas e não se salva quem não observa esta lei.
3347
Ele condenou directamente o concubinato na Samaritana (Jo 4) e depois todos os padres e concílios ecu-
ménicos consideraram-no sempre como um grave pecado, de tal modo que o Concílio de Trento decretou em
especial (Ses. 24, c. 8) contra os que o cometem a pena de excomunhão ferendae sententiae post trinam mo-
nitionem e a de os expulsar da cidade e da diocese com a ajuda das autoridades seculares. Sem dúvida, sabeis
que em quase todos os sínodos se considera este pecado como um dos maiores e mais prejudiciais e que as
próprias leis da Europa o castigam severamente (Scavini T. I, tr. 4, Disp. 2, c.2, art. 1); e tão-pouco ignorais
que aos amancebados públicos se lhes proíbe pelo Ritual Romano (De Patrinis et de quibus non licet dare
eccl. Sepult.) ser padrinhos e privam-se da sepultura eclesiástica, como pecadores manifestos, nisi dederint
signa poenitentiae.
3348
Declarai, pois, publicamente, que estamos decididos a aplicar contra os que para sua desgraça se obstinas-
sem no concubinato todas essas penas e censuras eclesiásticas; e mais, desde agora vos mandamos observar o
que prescreve o Ritual Romano contra eles, tanto na administração dos sacramentos como na sepultura ecle-
siástica, de maneira que depois desta ordem nenhum amancebado público deve ser aceite como padrinho na
administração dos sacramentos, nem enterrado eclesiasticamente se morrer impenitente. E além disso dei-
xamos ao nosso critério proceder com penas maiores contra os que pertinazmente se obstinassem em não
atender às nossas paternais admoestações.
3349
Outro deplorável delito temos que lamentar em alguns dos nossos fiéis e é a cooperação directa ou indi-
recta no desumano comércio de escravos e no horrível tráfico de negros. Alguns chegaram ao ponto de con-
siderar os negros como uma espécie de seres diferentes dos seres humanos, intermédios entre os puros ani-
mais e o homem; e pretendem que os negros, dada a sua condição, devem ser escravos e servir como artigo
de especulação comercial. Assim, descobrimos, com grande dor da nossa parte, que há alguns cristãos que
com dinheiro ou com armas prestam apoio a quem se dedica a arrancar violentamente das suas famílias e a
levar da sua pátria essas desditosas vítimas da forma mais cruel, elas que são nossos caríssimos filhos e nossa
preciosa herança; e não faltam outros que os compram para os venderem logo de novo, nem faltam os que os
maltratam com golpes cruéis até fazê-los sangrar, nem os que ilegitimamente os casam para depois venderem
a prole ou para vender separadamente a mulher, o marido e os filhos.
3350
Contudo, não há quase ninguém entre os cristãos do nosso vicariato que pense em fazer instruir os seus
criados negros na verdadeira religião, como lhes impõe Deus no quarto dos seus mandamentos, pelo que
merecem a repreensão do Apóstolo: «Qui suorum et maxime domesticorum curam non habet, fidem negavit,
et est infideli deterior» (1 Tm 5). O nosso ânimo, profundamente indignado contra os autores destes delitos,
dirige-se a vós, dilectíssimos colaboradores nesta árdua e laboriosa vinha de Cristo, para que façais saber a
todos os nossos fiéis que nós, em nome da religião e da humanidade, detestamos e proibimos este desumano
comércio. Jesus Cristo disse-nos expressamente (Mt 23, 8) que todos nós somos irmãos, sem distinção entre
brancos e negros e que (Mt 7) não devemos fazer aos demais o que não queremos que nos façam a nós mes-
mos.
3351
E o Apóstolo escreve de Onésimo a Filémon (Ad Phil.): «non ut servum, sed pro servo charissimum fra-
trem, maxime mihi, quanto autem magis tibi, ut in carne et in Domino! Si ergo habes me socium, suscipe
illum sicut me». Então, se no Cristianismo a escravidão é um delito, quanto mais o há-de ser o abominável
comércio de escravos e o horrível tráfico de negros? Por isso os Sumos Pontífices Paulo III, Urbano VIII,
Bento XIV, Pio VII e Gregório XVI, entre outros, condenaram estes abusos como ultrajantes para o Cristia-
nismo. Assim pois, querendo nós prover tanto quanto possível ao bem espiritual do nosso querido vicariato,
ordenamo-vos que lhes anuncieis que não é sem grave pecado que eles podem vender os negros, nem dá-los
a quem não lhes pode procurar a eterna salvação, nem fornecer dinheiro ou munições aos que vão arrebatá-
los das suas terras à força, nem muito menos roubá-los eles mesmos ou mandá-los roubar por sua conta, nem
colaborar de nenhuma outra maneira nesse infame tráfico. E que estão obrigados a tratar humanamente e
instruir ou fazer instruir na verdadeira religião os que têm ou vierem a ter, e encarregamo-vos a vós de velar
com toda a solicitude e de me informar quanto a isso, a fim de que seja erradicado tão hediondo comércio,
reservando-nos, em caso de necessidade, de tomar, com as autoridades locais, as correspondentes disposições
da lei civil contra os que reincidissem e que foi referendada pela Sublime Porta e pelos tratados com as gran-
des potências europeias.
3352
Imobilizados com a má consciência de um ou outro destes delitos ou sob o peso de outros costumes de-
sordenados, alguns dos nossos fiéis deixaram passar o tempo pascal sem se apresentarem aos ss.mos. sacra-
mentos, como tínhamos estabelecido até por via extraordinária. Tal facto afligiu-nos sobremaneira, e mais,
dado que vós os exortastes repetidamente com zelo incansável, tanto em público como de forma pessoal em
privado. Pelo que tomamos a decisão de aplicar contra os renitentes as especiais disposições do Ritual Ro-
mano (De Comm. Pasq.), além de uma das penas eclesiásticas pelo Concílio Lateranense IV, celebrado em
1215 sob o Pontífice Inocêncio III. Por isso, ordenamo-vos que nos denuncieis cada ano todos aqueles que,
depois de serem reiteradamente advertidos, se negarem por culpável negligência a cumprir o preceito pascal;
que não permitais que desempenhem a função de padrinhos nos sacramentos e que lhes negueis a sepultura
eclesiástica, quando por extrema desgraça morressem obstinados na impenitência.
3353
Finalmente, recomendamo-vos com todo o fervor da nossa alma que inculqueis também em nossos dilec-
tíssimos fiéis a obrigação de santificar as festas e de guardar nas sextas-feiras a abstinência prescrita e que,
quanto possível, induzais todos a frequentar os ss.mos. sacramentos.
3354
Sorri-nos na alma a mais doce esperança de que, por obra do vosso louvável zelo, os nossos fiéis se con-
vencerão de que a nós só nos guiam o seu bem espiritual e o interesse da sua eterna salvação. Por isso, temos
a mais viva confiança em que quererão escutar a nossa voz e seguir os nossos paternais conselhos, com os
que sentimos no dever de os chamar ao recto caminho dos mandamentos divinos e eclesiásticos. Para tal
efeito, dirigimos ao céu as nossas orações diárias e estamos certos de que vós fareis outro tanto pelas almas
dos fiéis que estão confiados ao vosso especial cuidado.
3355
Com todo o fervor do nosso espírito recomendamo-los de novo ao vosso zelo apostólico, na convicção de
que sabereis chegar a cada um deles, a fim de os preservar a todos para a graça redentora de Jesus Nosso
Senhor, em cujo nome, com todo o coração, invocamos sobre vós e cada um dos fiéis do nosso vicariato
apostólico todas as bênçãos celestiais em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim seja.
Dada na nossa actual residência do Cordofão.

El-Obeid, 10 de Agosto de 1873

P.e Daniel Comboni, pró-vigário ap. da África Central


P.e José Franceschini, pró-secretário

N.o 518 (488) - A UMA PERSONALIDADE AUSTRÍACA


«Annali B. Pastore» 6 (1874), pp.21-27

El Obeid, 18 de Agosto de 1873

Ex.mo senhor,

3356
A exímia bondade e condescendência que sempre mostrou para comigo e o sentimento mais vivo e pro-
fundo de devoção e gratidão que guardarei indelével para com V. S. até à morte, não me permitem demorar
por mais tempo uma brevíssima informação sobre a evolução, desenvolvimento e progressos da obra da re-
generação da Nigrícia, que o inteligente e sábio juízo da sua mente e a sensível piedade do magnífico cora-
ção de V. S. tiveram a alta honra de me solicitar.
3357
Tendo formado e educado nos institutos do Cairo mais de cinquenta indígenas capazes de ajudar podero-
samente no apostolado da Nigrícia central, enviei quatro exploradores ao centro da África, a fim de encontrar
um lugar favorável para iniciar com sucesso uma missão no interior. Os quatro exploradores, dirigidos pelo
rev.mo P.e Estanislau Carcereri, meu actual vigário-geral, após oitenta e dois dias de viagem, chegaram a
esta capital, que conta com mais de cem mil habitantes. Depois de estudar bem a conveniência de uma mis-
são em El-Obeid, onde nunca o Evangelho tinha chegado, e encontrando aqui um clima muito saudável e
muito menos quente que o do Cairo, corri a Roma com ânimo de solicitar da Santa Sé para o meu instituto a
missão de Cordofão, que é uma província tão grande como toda a Hungria. A Sagrada Congregação da Pro-
paganda, após maduro exame e profundos estudos, não só me confiou o Cordofão mas toda a África Central,
que é a mais vasta e trabalhosa missão do universo, por ter uma extensão maior que a de toda a Europa e uma
população de mais de cem milhões de infiéis.
3358
Além disso, o Santo Padre Pio IX nomeou-me pró-vigário apostólico desta imensa região, dando-me to-
das as faculdades episcopais necessárias para exercer a minha função.
Estes são os limites do vicariato: a norte, o Egipto, Trípoli e a Argélia; a oeste, o Níger; a sul, a Guiné
Meridional e o 12o grau de lat. sul; e a Este, o mar Vermelho, a Abissínia e as tribos dos Gallas. Com a ajuda
do Sagrado Coração de Jesus, a quem no próximo dia 14 de Setembro consagrarei todo o vicariato, espero
conseguir implantar a fé estavelmente na Nigrícia interior e consolidar aí a missão católica.
3359
No dia 26 do passado Janeiro, em duas embarcações, dahhabias, saí do Cairo com trinta e três pessoas,
entre missionários, irmãs, mestras negras e irmãos artesãos coadjutores e, depois de 99 (noventa e nove) dias
de lenta e penosíssima viagem, montados em 65 camelos com que tínhamos atravessado o deserto de Atmur,
chegámos a Cartum, onde, após um mês de estada, pus em andamento dois importantes institutos e uma pa-
róquia. Depois, a bordo do vapor que o paxá de Cartum pôs gratuitamente à minha disposição, entrei no Nilo
Branco; e depois de ter viajado pelas suas águas 127 milhas desci em Tura-el-Khadra. Daí parti com 17 ca-
melos e, depois de atravessar os imensos bosques dos árabes Hassanieh em nove dias de rápida marcha, che-
guei a esta capital, que é a verdadeira porta da Nigrícia interior. Aqui já se está a formar uma comunidade
cristã, abriu-se um instituto feminino e a missão está em plena actividade. Em apenas quatro meses que estou
no Sudão, começo a ter a certeza de em breve ver o vicariato bem encaminhado, de modo que se possam
fazer nele grandiosas conquistas.
3360
Todos os meus esforços actuais se orientam de modo particular para consolidar as importantíssimas mis-
sões de Cartum e do Cordofão.
Cartum é a base de operações para levar a fé às inumeráveis tribos da parte oriental do vicariato até mais
para além das nascentes do Nilo. El-Obeid é o ponto a partir do qual se implanta pouco a pouco a cruz nas
tribos, regiões e impérios que constituem a parte central do vicariato. Em quatro dias, a partir de El-Obeid
entra-se no território do reino de Darfur e, em quinze dias, chega-se à residência do sultão; em trinta dias
chega-se à capital do império de Bornu, e, em cinco dias, chega-se às tribos que formam o grande povo dos
Nuba.
3361
Agora, tanto em Cartum como em El-Obeid, há paróquia, escolas públicas masculinas e femininas e te-
mos aqui um grande orfanato em várias cabanas, que instalarei numa grande casa quando Deus me der os
meios para a construir com areia, como se usa no Cordofão. Todas as semanas baptizo e confirmo um bom
número de adultos, porque, sobretudo nas mestras negras formadas no Cairo, tenho umas habilíssimas cola-
boradoras para catequizar e instruir os indígenas.
3362
Conto com o favor de todas as autoridades egípcias, que prestam verdadeiro apoio ao meu apostolado. Os
paxás de Cartum e do Cordofão mostram-me a sua amizade e estão-me agradecidos sobretudo por ter trazido
as irmãs para a instrução da juventude feminina. É a primeira vez que a África Central vê estas heroínas da
civilização cristã.
3363
Deixando para outra carta notícias ulteriores deste imenso vicariato para V. S., limito-me agora a infor-
má-lo brevissimamente sobre o horrível tráfego de escravos, que neste vicariato está no auge. V. S. terá lido
não há muito despachos telegráficos, nos quais se comunicava ao mundo inteiro que se tinha acabado com-
pletamente com o tráfego de escravos e que estavam abertos os caminhos desde Gondokoro até ao equador
e desde o equador até Zanzibar. Tudo é falso. E a missão da África Central vê-se obrigada a ser testemunho
dos horríveis estragos que os infames traficantes de carne humana fazem entre os desditosos negros das tri-
bos vizinhas destas duas fundamentais estações, onde tenho a minha residência.
3364
Várias vezes por mês saem de Cartum e de El-Obeid grupos de jilabas armados de fuzis, que vão às tribos
vizinhas e mesmo a outras mais distantes e arrebatam violentamente do seio de pacíficas famílias de negros
os rapazes e raparigas e as jovens mães, matando quase sempre os pais e os que se defendem.
3365
Depois de juntarem um despojo de mil, dois mil, cinco mil pessoas, regressam às suas cidades, de onde
logo saem para vender os escravos na Núbia, nos portos do mar Vermelho e no Egipto. Aquelas infelizes
criaturas fazem tão longas viagens a pé, empurradas pelas lanças dos bandidos! E como numa montanha do
território de Darfur, onde há uma população de mil e quatrocentos negros, há três meses foi repelido um as-
salto de jilabas, que iam raptar os meninos e meninas, a semana passada subiram de El-Obeid dois mil ho-
mens armados de fuzis para vingarem a derrota sofrida nessa montanha e matarem todos os chefes dessas
gentes.
3366
Na minha viagem de nove dias desde Tura-el-Khadra até El-Obeid vi mais de mil destes infelizes dividi-
dos em diversas caravanas. Iam rapazes e raparigas todos nus, misturados promiscuamente em grupos de oito
ou dez, atados pelo pescoço a uma viga para não fugirem; uns eram arrastados com cordas, com os braços
atados às costas, outros tinham cadeias nos pés, outros arrastavam a scheva, uma viga terminada em triângu-
lo, onde vai atado o pescoço do escravo. As jovens mães de catorze ou quinze anos iam amarradas duas a
duas e só os meninos e meninas de 4 a 7 anos não iam atados. Todos estavam nus, iam a pé, empurrados
cruelmente pelas lanças. Encontrei bastantes cadáveres de escravos, que, incapazes de suportar a fadiga, ti-
nham caído mortos pelo caminho.
3367
A abolição do tráfego de escravos na África Central ficou letra morta. Creio que é impossível levá-la a
cabo, porque os escravos constituem uma das principais fontes de receita do Governo e dos negociantes do
Sudão... O que realmente abolirá o tráfego de escravos será a pregação do Evangelho e a implantação da fé
católica nestes desditosos países. Eu agora estou a estudar o modo de pôr a missão católica em condições de
obrigar os paxás e o Governo a diminuir e parar praticamente com os estragos que se fazem entre os pobres
negros e já há muitos que têm medo da missão.
3368
Quando vejo escravos amarrados ou estes se apresentam na missão, levo-os ou mando-os levar ao Divã e
faço com que lhes dêem a carta da liberdade.
Comprei fora de El-Obeid um grande terreno para o cultivar e pôr nele os escravos libertados, que viverão
do produto que dele obtiverem. Já lá tenho muitos.
3369
Não escapa a V. S. que, mesmo só por este aspecto, a minha missão é importantíssima. Vendo tantos hor-
rores e misérias, os meus missionários estão decididos a sacrificar a sua vida pela salvação destes desventu-
rados povos. Não sentimos nem o calor equatorial, nem os trabalhos da vida apostólica desta missão, nem as
fadigas das viagens, nem os alojamentos incómodos, nem as privações de tudo (a roupa branca, camisas,
todo o tecido, gastámos tudo para fazer uma simples camisa para cada uma das escravas libertadas). Todos
estamos dispostos a suportar seja o que for, para melhorar a situação destes povos e chamá-los à fé. O nosso
grito de guerra será até ao último alento: «Nigrícia ou morte.» O Sagrado Coração de Jesus ajudar-nos-á.
3370
Como, por outro lado, grande parte dos cristãos são cúmplices no infame tráfico de negros na África Cen-
tral, fulminei com a excomunhão os que cometem este delito e adverti todos os hereges de todas as paragens
que, com base nas leis vigentes após o Tratado de Paris de 1856, em que foi abolida (no papel) a escravatura,
eu conseguirei que as autoridades turcas os prendam a todos; eu obrigá-las-ei a fazer isso sob pena de denun-
ciar os seus governos, submetendo-os ao opróbrio de todo o mundo. Há cerca de um mês que mandei essa
circular e agora há um tal medo por parte dos turcos, dos cristãos e dos católicos, que confio em que a actua-
ção do chefe do Catolicismo e da missão do Sudão será fecunda em bons resultados.
3371
Peço-lhe perdão, senhor, por me ter alargado em excesso. Desejo transmitir-lhe, pouco a pouco, uma li-
geira ideia da minha missão, que pela importância, dimensão e dificuldade é a primeira do mundo, a mais
santa, a mais benéfica e a mais humanitária.
Digne-se V. S. aceitar a expressão da minha mais profunda veneração e gratidão, com as quais tenho a
honra de me subscrever nos Sagdos. Corações de J. e M.

De V. S. hum., dev. e obed. servidor


e
P. Daniel Comboni, pró-vig. ap. da África Central
N.o 519 (489) - AO CÓNEGO CRISTÓVÃO MILONE
«La Libertà Cattolica» 244(1873), pp 981-982

El-Obeid, capital do Cordofão


19 de Agosto de 1873

Caríssimo e venerado amigo, director de «La Libertà Cattolica»,

3372
Ocupadíssimo como estive com os preparativos feitos no Cairo para a maior expedição católica que até
agora se viu na África Central e com a direcção da mesma até Cartum, viagem em que empreguei 99 (noven-
ta e nove) dias desde o Cairo, bem como com o muito que fazer que encontrei no vicariato, não me foi possí-
vel cumprir até agora o que combinámos sobre a manutenção da nossa correspondência epistolar. Mas depois
da solene consagração do vicariato ao Sagrado Coração de Jesus, que terá lugar no próximo dia 14 de Se-
tembro, espero, uma vez regressado à minha residência principal de Cartum, estabelecer uma agradável e
interessante correspondência. Este vicariato, o maior e mais laborioso do universo, tem mais de cem milhões
de pobres infelizes, cujas misérias e desventuras, se se conhecessem, comoveriam os corações mais duros.
Entre as muitas misérias, o tráfico de escravos e os horrores da mais cruel escravidão, chagas que estão no
auge e em plena actividade e que não se podem explicar com palavras.
3373
Tenho a grande dita de contar no meu vicariato com dois bons e valiosos missionários da ilustre diocese
de Trani. Um é P.e Salvador Mauro, de grande espírito e abnegação, que fala, prega e catequiza em árabe, e
que é muito devoto de S. Judas Tadeu e de N. S. do Sagrado Coração de Jesus. O outro é o cónego P.e Pas-
coal Fiore, actualmente em Cartum, dotado de um valor heróico e de uma preocupação constante pelos ne-
gros e capaz de dirigir bem uma missão. Estes dois distintos missionários estão convencidos de que a nossa
missão é a mais santa, a mais humanitária, a mais importante de todas, porque aqui primeiro temos que fazer
homens os nossos negros e depois fazê-los cristãos. Porém, tudo se conseguirá com o Sagrado Coração de
Jesus. Envia-lhe um cordial abraço

O seu af.mo amigo P.e Daniel Comboni


Pró-vigário ap. da África Central

N.o 520 (490) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 738-739

N.o 8
El-Obeid, Cordofão, 20 de Agosto de 1873

Em.mo e Rev.mo Príncipe,

3374
Tomo a liberdade de lhe incluir a circular escrita por motivo da solene consagração do vicariato da África
Central ao Sacratíssimo Coração de Jesus, que terá lugar no próximo dia 14 de Setembro. Dirijo-me humil-
demente a V. Ex.a rev.ma da maneira mais calorosa, também em nome dos meus missionários tão cheios de
zelo, para que eleve ao trono augusto do Sumo Pontífice, o nosso adorado Santo Padre Pio IX, uma súplica, a
fim de que se digne conceder benevolamente «que a sexta-feira depois da oitava do Corpus Domini, consa-
grado à festa do Santíssimo Coração de Jesus, seja formalmente declarada pela Santa Sé Apostólica dia festi-
vo, obrigatório para todo o vicariato apostólico da África Central e que seja por todo o clero secular e regular
deste vicariato celebrado com rito duplo de primeira classe, com oitava, segundo as regras gerais dos patro-
nos».
3375
Todos nós estamos profundamente convencidos de que a graça do Sacratíssimo Coração de Jesus nos fará
triunfar sobre todos os obstáculos que o mundo e o Inferno suscitaram até agora contra a regeneração destes
povos tão desditosos e de que dentro de não muito tempo a Santa Igreja os poderá contar entre os seus dilec-
tos filhos, reunidos à sombra da arca mística da eterna aliança, do pacífico redil de Cristo, o único lugar onde
se encontra a salvação.
3376
Não há muito, causou sensação na Europa científica um telegrama enviado de Alexandria, datado de 30
de Junho, elaborado nos seguintes termos: «Samuel Baker anuncia que as terras até ao equador foram incor-
poradas no Egipto. Todas as rebeliões, intrigas e tráfico de escravos foram eliminados por completo. O Go-
verno está perfeitamente organizado e os caminhos ficam abertos até Zanzibar.» Pois bem, este despacho é
completamente falso em todas e cada uma das suas partes.
3377
O audaz viajante inglês, que no passado dia 30 de Junho estava em Cartum, onde visitou a missão e a casa
das irmãs, nesta última expedição não chegou muito mais além da nossa estação católica de Gondokoro (ele
anunciou que a nossa casa e igreja, que custaram 200 000 francos, estão completamente destruídas). Ele gas-
tou nessa expedição mais de vinte milhões e matou muitos milhares de negros – como soubemos de fonte
bem segura – para obter um solene fiasco. Contudo, é digno de elogio o seu valor. Sua alteza o paxá de Car-
tum (que sempre me mostra a sua amizade e que agradeceu ao paxá do Cordofão por me ter dispensado um
bom acolhimento), a quem o seu senhor, o quedive do Egipto, encarregou de obter exactas informações sobre
a realidade do êxito da expedição de Baker, na qual gastou oitocentas mil libras esterlinas, escreveu-me há
uma semana pedindo-me que lhe expusesse sinceramente o meu juízo acerca desta expedição e dissesse se os
autênticos resultados dela estão à altura dos gastos efectuados. Sua excelência regular-se-á pela minha res-
posta para elaborar o relatório a enviar ao quedive. Compreende, pois, V. Em.a quão grande deve ser a minha
prudência, moderação e exactidão ao responder à gentil pergunta do paxá de Cartum.
3378
Quanto à abolição da escravatura – que agora só é verdadeira no papel dos tratados e dos jornais, mas fal-
sa de facto –, pela experiência vivida em poucos meses, estou em condições de assegurar a V. Em.a que a
nossa missão, aproveitando-se da abolição da escravatura recentemente promovida pela Inglaterra e do gran-
de prestígio que agora tem a missão, tanto no Divã como entre os traficantes de escravos, sem dúvida conse-
guirá com o seu poder, autoridade e energia assustar os Turcos e obter, mais que as grandes potências da
Europa, a abolição real, ao menos em grande parte. Como no roubo, maltrato, venda e compra dos pobres
negros estão muito implicados os nossos católicos, nos primeiros do corrente mês escrevi uma circular contra
o tráfico de escravos, recordando as severas censuras dos pontífices romanos. Foi publicada em árabe e lida
do púlpito de Cartum e assustou a todos, católicos, hereges e turcos, porque V. Em.a deve saber que o co-
mércio de negros é aqui uma das principais fontes de receitas dos negociantes e do Governo.
3379
São horríveis as tropelias que aqui se cometem contra estes pobres negros, das quais somos testemunhas.
Porém, nos momentos que conseguimos roubar às nossas ocupações, estamos a elaborar para V. Em. a um
relatório sobre as atrocidades da escravidão e do tráfico de escravos, que estão no seu apogeu. O Coração de
Jesus ajudar-nos-á a cumprir bem esta parte da missão do vicariato. Comprei e paguei um terreno muito ba-
rato a uma hora de El-Obeid, para que nele trabalhem e com o que ele der vivam os escravos libertados. É
tão grande como o espaço que há desde a Propaganda até à Basílica de S. Pedro no Vaticano. Produz na
época das chuvas, de Maio a Novembro. Também comprei e paguei uma nova casa a poucos passos da mis-
são, que destinei às irmãs que agora devem ter partido para cá do Cairo. Espero que dentro de dois anos a
missão do Cordofão tenha muito pouca necessidade da Europa para subsistir. Nós estamos contentes de so-
frer agora para amealhar para a missão: nunca bebemos vinho e o nosso regime de vida é austero, mas muito
adequado para este clima e para nos conservar sãos no corpo e na alma. Tudo se conseguirá com a ajuda do
Sagdo. Coração de Jesus.
3380
Como os dois camilianos que trabalham a meu lado são dois esforçados e valentes missionários da África
Central, perfeitamente aclimatados e com muito zelo pela Nigrícia, e como este assunto dos camilianos é
muito importante para este vicariato e também para a própria ordem dos Ministros dos Enfermos, por isso,
querendo eu unicamente o cumprimento da pura vontade de Deus (sem a qual se constrói na areia), decidi
mandar a Roma no próximo Outubro o meu incomparável vigário-geral actual, o P.e Estanislau Carcereri,
dos camilianos. Ele tratará todo o assunto com o seu geral e com V. Em. a Rev.ma, do que resultará a mani-
festação da vontade de Deus. Por meio dele mandar-lhe-ei um relatório sobre a estado actual do vicariato e o
seu considerável ressurgimento. Na festividade da Assunção administrei o baptismo a 11 adultos e agora
temos ainda aqui 23 catecúmenos quase instruídos.
Digne-se dar a sua bênção a todos os missionários, enquanto lhe beijo a sagrada púrpura e me declaro
com toda a veneração

De V. Em.a hum. e ind. filho


P.e Daniel Comboni, pró-vigário ap.

N.º 521 (491) - AO ABADE PEDRO CASARETTO


ACSR – Corrispondenza Casaretto

El-Obeid, 20 de Agosto de 1873

Necrologia

3381
Com a mais viva dor da nossa alma apressamo-nos a comunicar que o R. D. P.e José Pio Hadrian, sacer-
dote beneditino da primitiva congregação de Montecassino e missionário apostólico da África Central, após
prolongada doença crónica, desconhecida para a profissão médica, contraída bastantes anos atrás na Europa,
confortado com todos os auxílios da nossa santíssima religião, voou para o eterno descanso no dia 17 de
Agosto de 1873, às oito e meia da manhã, com cerca de 26 anos de idade, em El-Obeid do Cordofão, na
África Central.
3382
Nascido numa das tribos da península do Sennar, junto ao Nilo Azul, com apenas quatro anos foi violen-
tamente arrebatado e afastado do seio da sua família por ferozes traficantes de carne humana. Depois de ter
sido repetidamente vendido na Núbia, foi levado para o grande Cairo do Egipto, onde o resgatou o muito
rev.do P.e Nicolau Olivieri, de santa memória, que o levou para a Itália. Aí foi acolhido pela bondade dos
monges beneditinos em Subiaco, perto de Roma, onde, graças aos cuidados mais solícitos e afectuosos,
aprendeu os primeiros rudimentos da nossa santa religião, para depois, a 24 de Junho de 1853, receber o
santo baptismo no Mosteiro de Santa Escolástica das mãos do Il.mo e Rev.mo P. e Pedro Casaretto, presiden-
te da mencionada ordem e agora abade geral da primitiva congregação de Montecassino do patriarca São
Bento. No dia 26 de Abril de 1856 fez com grande devoção a sua primeira comunhão no referido protomos-
teiro, onde a 18 de Outubro do mesmo ano recebeu o sacramento da confirmação, que lhe foi administrada
por Sua Em.a o cardeal De-Andrea, de boa memória. Entrou no noviciado da citada ínclita congregação be-
neditina a 16 de Fevereiro de 1861, tomando o hábito monástico no dia 24 do mesmo mês e ano, e no dia 19
de Março de 1863 professou com votos simples.
3383
Em fiel correspondência à divina graça, o novo religioso africano foi admiravelmente imbuído do espírito
do seu santo patriarca; e ao tesouro de uma distinta piedade, candura e pureza de costumes, juntou-se a ri-
queza intelectual de uma sólida formação nas ciências sagradas, acompanhada do conhecimento da liturgia,
da música sacra, do desenho e decoração e de algumas línguas.
3384
Quando oferecia as melhores esperanças de se converter em modelo de exímia piedade e de religioso bem
instruído, afectou-o desde 1867 uma lenta doença, que, desconhecida dos médicos mais ilustres, se mostrou
rebelde a todos os remédios e cuidados que lhe prodigalizava a grande bondade dos seus superiores. Estes,
julgando que o clima do seu país de origem podia devolver-lhe o antigo vigor e a perfeita saúde, com a aqui-
escência do imortal Sumo Pontífice Pio IX e da Sagrada Congregação da Propaganda Fide, o ano passado
confiaram-no ao rev.mo pró-vigário da África Central, P.e Daniel Comboni, a fim de que o conduzisse à sua
terra natal e, recobrada a saúde, consagrasse a sua vida ao apostolado daquela santa missão.
3385
No dia 26 de Maio de 1872, recebeu as ordens menores na sagrada gruta que é berço da ilustre ordem be-
neditina, das mãos de Sua Excelência rev.ma mons. Filipe Manetti, bispo de Trípoli in part. inf. e adminis-
trador apostólico da abadia nullius de Subiaco. A 2 de Junho seguinte, o mesmo prelado promoveu-o ao sub-
diaconado também na sagrada gruta, a 9 ao diaconado e a 16 ao sacerdócio. No dia 12 de Agosto chegou a
Verona, ao Instituto das Missões para a Nigrícia. A 3 de Setembro teve a honra de ser recebido em Viena
com o seu pró-vigário apostólico por Sua Majestade apostólica o imperador da Áustria e da Hungria e, três
dias depois, a satisfação de visitar o ilustre e antiquíssimo mosteiro de S. Pedro em Salzburgo, bem como o
celebérrimo das monjas beneditinas de Nonnberg, fundado por Santa Erentrude em 581 e que, ao longo dos
seus treze anos de existência, nunca foi suprimido.
3386
Esta foi uma das mais doces recordações da sua vida, tendo admirado o espírito eminente do seu venerado
patriarca São Bento naquelas pias e fervorosas religiosas benfeitoras da obra da redenção da sua querida
Nigrícia, com as quais estabeleceu um sagrado vínculo de recíprocas orações quotidianas, que ele manteve
fielmente até à morte. A 26 do mesmo mês chegou ao Grande Cairo, ao instituto de negros, onde difundiu
admiravelmente o grato odor das suas formosas virtudes. No dia 26 de Janeiro do corrente ano deixou a capi-
tal do Egipto, fazendo parte da grande expedição apostólica guiada pelo chefe da missão, com destino à Áfri-
ca Central, e, após 99 dias de penosíssima e desastrosa viagem pelo Nilo e pelo deserto chegava a Cartum,
capital das possessões egípcias no Sudão. Depois de permanecer aí pelo espaço de um mês, partiu com o pró-
vigário para o Nilo Branco e, tendo entrado no Cordofão montado num camelo, chegou no dia 19 de Junho a
esta capital de El-Obeid.
3387
Estava há cerca de um mês nesta nova missão, onde o ar é saudável, quando a antiga doença começou a
despertar com força e começou a declinar de forma perceptível, agravada por violenta disenteria, consequên-
cia de uma afecção crónica do aparelho intestinal, contraída há alguns anos. Após vinte dias de agudas dores,
suportadas com cristã alegria e edificante resignação, chegou ao seu fim uma vida imaculada e eminente-
mente religiosa com a morte do justo, deixando na dor os seus queridos irmãos missionários, que jamais
poderão esquecer esta primeira flor do sacerdócio indígena da África Central, a quem adornavam as esplen-
dorosas graças da virtude religiosa da mais distinta e ilustre entre as famílias monásticas da Igreja Católica.
Dado em El-Obeid, na nossa residência de Cordofão, a 20 de Agosto de 1873.

P.e Daniel Comboni


Pró-vig. ap. da África Central

Rev.mo abade geral,

3388
Ao dar-lhe a dolorosa notícia da morte de P.e Pio, prometo fazer-lhe saber os pormenores da mesma por
meio da Propaganda. Foi direito ao Paraíso. Como a 18 de Agosto do ano passado, eu o havia associado a
uma congregação de Verona, comuniquei o seu falecimento ao presidente da mesma para que sejam celebra-
das por ele mais de 600 (seiscentas) missas a que tem direito.
Não lhe posso exprimir quão grande é a minha dor; porém, faça-se a santíssima vontade de Deus. Saúde
da minha parte o P.e procurador e todos os padres e dê-me a sua bênção. Os meus respeitos a mons. Manetti,
bispo de Subiaco.

Seu hum., dev. e verdadeiro servidor


P.e Daniel Comboni
Pró-vig. apostólico

N.o 522 (492) - AO P.e GERMANO TOMELLERI


APCV, 1458/317

J. M. J.
El-Obeid, Cordofão, 31 de Agosto de 1873

Meu caro e venerado P.e Germano,

3389
Há tempos que desejava escrever-lhe para o informar com pleno conhecimento de causa sobre os seus
dois queridos discípulos, irmãos e filhos, os padres Estanislau e Beppi; porém, as múltiplas ocupações, a par
de um pouco de negligência culpável, impediram-mo. Mas eu conheço a fundo o seu coração desde quando
era ainda secular e debaixo do mesmo tecto comíamos a clássica e filosófica polenta de P. e Mazza; ou seja,
desde quando eu era um jovenzinho com pouco juízo e o senhor um jovem mas dotado do juízo, sensatez e
prudência de um homem feito. Por isso estou certo que me perdoa.
3390
Os dois camilianos são agora o ornato e a coluna do meu imenso vicariato apostólico, o qual vê em S.
Camilo um valioso protector e favorecedor da infeliz Nigrícia. Com os poucos meios que eu lhes dispensei,
eles foram os primeiros a abrir uma missão nesta capital, que tem uma população superior à de Verona, e a
fundar aqui uma comunidade cristã. Por ser esta missão a verdadeira porta da Nigrícia, oferece as melhoras
esperanças e a ordem de S. Camilo pode dar fruto neste lugar mais que em qualquer cidade da Europa; por-
que, sendo estas gentes infiéis na sua totalidade, é preciso estabelecer aqui todas as obras católicas, entre as
quais são importantíssimas as de S. Camilo. O mesmo pode dizer-se de Cartum, cujo clima melhorou muito
desde os tempos em que lá estavam os missionários do Instituto Mazza. Porém, o clima de El-Obeid é sensi-
velmente melhor, e o Verão que estou a passar aqui, desde 20 de Junho até hoje, é como a Primavera em
Verona.
3391
Para dizer tudo numa palavra, o P.e Estanislau é um poço de energia, capaz de grandes coisas, que pode
ser posto à frente de uma grande diocese, sobretudo se estiver ao meu lado, porque tem uma grande influên-
cia sobre mim, bem como me deu provas de que eu (indigníssimo) tenho influência sobre ele. E assim, sendo
nós dois diabinhos, como se disse em Roma, eu estou em condições de moderar a sua fogosidade, que o leva-
ria mais longe que o devido, e ele tem a força para me conter a mim nos limites da prudência e do que é jus-
to. Este providencial encadeamento deu tão bons resultados, que em menos de seis meses, com a prodigiosa
ajuda de Deus, fizemos ressuscitar este imenso vicariato, que estava moribundo, levámo-lo a uma situação de
prosperidade que não alcançou nem nos bons tempos do meu ilustre predecessor mons. Inácio Knoblecher.
Por seu lado, Beppi – digo-o com orgulho, porque com os sãos e excelentes princípios que possuía, graças à
escola do Paraíso, tornou-se, sob a minha bandeira, naquilo que é mediante o exercício do mais activo apos-
tolado – é um homem de cinquenta anos pela sensatez, prudência, critério, solidez e firmeza de ânimo.
3392
São dois valiosíssimos e autênticos missionários, dois bons e eficientes operários da vinha do Senhor e
dois verdadeiros e fiéis filhos de S. Camilo de Lelis, que se desejariam matar e cortar em pedaços – e, em
consequência, capazes de renunciar a toda a glória e ao seu mais apreciado desejo – para se manterem fiéis
aos seus quatro votos e à obediência aos seus legítimos superiores camilianos. A educação religiosa recebida
no paraíso de Verona tem, pois, que ser muito sólida. A saída de Perinelli e de algum outro napolitano e ve-
ronês, que estiveram nos meus institutos do Cairo, faz-me apreciar cada vez mais estes dois apóstolos cami-
lianos; fazem-me convencer, na prática do que escrevi nas minhas regras do nascente Insto. de Verona: que
para trabalhar numa vinha árdua como esta da África se requer uma sólida formação religiosa e uma escola
de abnegação extraordinária e segundo o espírito de Jesus Cristo crucificado, porque a renúncia a si mesmo
e a tudo o que é próprio para se lançar nos braços da obediência e de Deus, não se obtém sem a ajuda extra-
ordinária da graça. E isto é necessário para a África Central.
3393
Estes dois missionários familiarizaram-se de tal maneira com a vida árabe, tão cheia de privações nestes
países, que nunca vi nenhum missionário da África Central assim: eles viajam em camelos e dormem vesti-
dos, estendidos sobre uma pele; comem o locma com os árabes, gozam de uma saúde de ferro e trabalham
como um natural do país, sob o Sol e em toda a parte. Eu tenho que ter os meus cuidados, a que devo o exce-
lente estado de saúde de que desfruto.
3394
Porém, eles, apesar das minhas severíssimas ordens, não pensam em si mesmos: lá onde o ministério os
reclama, acorrem imediatamente. Em resumo, é difícil que eu possa ter dois missionários tão formados para a
Nigrícia como estes; por isso pode imaginar-se quanto os estimo e até que ponto tenho esperança no seu
trabalho. No dia da Assunção baptizei onze adultos infiéis, um deles muçulmano. No dia 14 de Setembro
baptizarei outros doze e ainda temos bastantes mais catecúmenos. Nunca mais acabaria se tivesse que lhe
descrever as perspectivas que existem nesta missão por eles fundada.
3395
Agora é necessário chegar a uma definitiva resolução sobre o futuro destes camilianos, que estão aqui por
graça de Deus, de Pio IX e do P.e Guardi. O P.e Estanislau, como meu vigário-geral que é, encontra-se em
Cartum, a minha sede principal, e Beppi está aqui. Nenhum dos dois sabe que eu lhe escrevo agora a si. Po-
rém, ontem, Beppi recebeu uma carta de Guido, na qual, entre outras coisas, lhe diz que se lembre que é ca-
miliano e que, à voz da obediência, ele está obrigado a voltar ao ninho, etc. Deve saber, meu caro P. e Ger-
mano, que fui e sou ainda talvez um grande ignorante. Mas Deus, nos seus imperscrutáveis e sempre adorá-
veis desígnios, permitiu que eu cometa tantos erros e fez-me passar por tantas armadilhas, que agora não
raramente as vejo de longe.
3396
Tratei com o mundo e com a mais alta e multiforme diplomacia bastarda, com santos e com patifes, com
os grandes e com os pequenos; de maneira que, por disposição de Deus, creio não ser agora o ignorante que
era em S. Carlos, onde não se podia conhecer nem o mundo profano, nem o sagrado, nem o maçónico, nem o
papista, nem nada. Aquilo era estudar e pronto. O P.e Guido escreve como verdadeiro filho de S. Camilo, o
que aprecio. Porém, entre as veneráveis razões apresentadas parece-me vislumbrar que, talvez com louvável
e justa intenção, pensa chamar estes dois padres à Europa. Os venerados superiores camilianos não farão
mais do que aquilo que o Senhor lhes inspirar; e, por outro lado, conhecendo eu tão profundamente Beppi e o
P.e Estanislau e a sua firmeza no cumprimento dos sagrados deveres, estou certo de que deixariam um paraí-
so para obedecerem aos seus superiores.
3397
Por isso, em nome de Deus, dado que a minha obrigação e o motivo pelo qual a Santa Sé me pôs aqui é
velar pelos interesses dos mais de cem milhões de infiéis que a Igreja me confiou para os converter à fé, diri-
jo-me a si para que seja meu patrono e protector perante o P.e Guardi, a fim de que se levem a cabo os pro-
jectos concebidos desde há mais de seis anos de fundar na África Central uma casa camiliana, a qual seria
como o centro e o viveiro para assumir uma ou mais missões no interior da Nigrícia.
3398
Ao caducar o famoso breve pontifício quinquenal, tive a honra de me pôr em comunicação com o P.e
Guardi, o qual, animado da mais viva caridade de que está repleto, visto ser camiliano, permitiu aos seus dois
queridos filhos que permanecessem em África indefinidamente, assegurando-me que, chegado o momento
em que se pudesse estabelecer uma casa camiliana num lugar seguro do vicariato, com as condições requeri-
das pela santa regra leliana, ele, em vista do autêntico desejo destes dois filhos, consentiria nisso, após auto-
rização da Propaganda. Porém, como vejo que em Verona se abriu o noviciado e que, em França e na Ingla-
terra, há procura de camilianos, considero que este é o momento de tratar o importantíssimo assunto do tra-
balho dessa ordem em favor da África Central, onde há mais almas, mais infelizes, mais necessitados que na
França e na Inglaterra, almas africanas que se podem salvar com mais facilidade e em maior número que na
Europa e que também foram remidas pelo sangue de Jesus Cristo.
3399
Portanto, tendo à minha disposição os meios necessários para satisfazer as justas exigências do rev.mo vi-
gário-geral Guardi e todas as condições estabelecidas por ele e pela regra camiliana e contando com estes
dois incomparáveis missionários formados de propósito para a África Central, que desejam sacrificar a sua
própria vida por esta obra santíssima, creio chegado o tempo fixado pela Providência para determinar sobre
bases duradoiras e perpétuas a fundação de uma obra camiliana na Nigrícia central. Pense que se estes dois
sacerdotes fariam na Europa dois graus de bem, aqui fazem trinta, porque salvam um grande número de al-
mas, o que atrai sobre a ordem camiliana as maiores bênçãos.
3400
Contrapor-me-á o P.e Germano que hoje há aqui apenas dois membros da sua ordem e que esta se encon-
tra na Europa em estado tão calamitoso que não pode oferecer mais. Eu respondo-lhe que se hoje são dois,
daqui a dez anos serão vinte os missionários camilianos na África, e quarenta outros em França associados à
ínclita ordem por causa da África. Eu conheço os franceses e a sua maneira de pensar mais a fundo do que o
senhor ou qualquer outro. Em França, enquanto a ordem camiliana se limitar aos hospitais e à sua finalidade
específica, não prosperará muito, o mesmo tendo acontecido à de S. João de Deus, porque os franceses não
querem homens, mas mulheres, nos seus hospitais, e quase todos os hospitais franceses estão em mãos femi-
ninas. Para se arreigar em França, uma ordem hospitalar precisa de se dedicar a qualquer obra de caridade
(oeuvres de zèle, como dizem os franceses) e ao mesmo tempo ao apostolado ou à pregação ou às missões
diocesanas. Eu visitei quase a totalidade dos estabelecimentos de toda a França, onde há mais de trezentas
congregações religiosas, entre as masculinas e femininas.
3401
Apenas os Irmãos das Escolas Cristãs têm setecentas e cinquenta casas. Porém, nem os trinitários, nem os
agostinhos, nem os Irmãos de S. João de Deus tiveram um êxito comparável ao dos dedicados às missões. Se
a ordem de S. Camilo aderir a qualquer obra de apostolado, por exemplo à da África Central, asseguro-lhe
que acorrerão em bom número os postulantes para se associarem a S. Camilo, que então disporá de gente
para a França para a Inglaterra e para a África. Talvez o senhor não acredite, uma vez que não tem a experi-
ência que Deus me deu sem o saber sobre tais coisas. Mas conserve esta carta durante alguns anos e compro-
vará a verdade da minha afirmação.
3402
Basta que, terminadas as diligências com o geral e com a Propaganda sobre estes dois, eu publique na
Propagação da Fé, nas Missions Catholiques de Lião, no L’Univers, no Le Monde e nalguma Semaine Réli-
gieuse da França, um elogio sobre estes dois camilianos, incitando os franceses a ingressarem no Insto. que
os senhores têm agora na diocese de Autun, dizendo que, tornados camilianos, podem vir a ser missionários
da África Central e verá que muitos se vão pôr à sombra de S. Camilo e sob a chefia do estupendo Tezza (é
muito bom que o mestre de noviços seja um italiano como Tezza).
3403
Isto espero eu com a ajuda de Deus e do Sagrado Coração de Jesus, a quem consagro todo o vicariato no
próximo dia 14. Ora bem, como estes assuntos tão delicados e importantes não se podem tratar por carta e
posto que os superiores têm direito a considerar bem, sondar e reconhecer todo o terreno para descobrir a
pura verdade e a vontade de Deus (que é a única que desejo e quero, porque doutro modo se trabalha sobre
areia), decidi mandar de seguida o P.e Estanislau à Europa, o qual tratará bem este assunto e também alguma
outra pequena coisa minha na Alemanha e na França. Tinha decidido mandá-lo em Janeiro; mas, ponderado
tudo, partirá no início de Outubro ou, ao menos, dentro desse mês.
3404
Irá a Roma e a Verona e falará com os senhores. Entretanto eu, sabendo que os Corações de Jesus e de
Maria são mais fortes e poderosos que os padres Guardi e Germano, rezarei e farei com que se façam nove-
nas nos meus institutos de África e em La Salette e em Lourdes e em N. D. des Victoires, etc., para que se
cumpra a santíssima vontade de Deus com base na minha santíssima vontade. Se o senhor decidiu chamar os
dois, suspenda, por agora, o projecto e rogue a S. Camilo e a Maria Santíssima que se cumpra só a divina
vontade para honra e bem da ordem. Saúde da minha parte Regazzini e todos os bons padres. Irá ver a trans-
formação que teve em seis anos o P.e Estanislau: certamente que se alegrará. Reze por seu af.mo amigo

P.e Daniel Comboni


Pró-vig. ap. da África Central

3405
Rogo-lhe que, por agora, mantenha estas coisas em segredo. Tratemo-las em primeiro lugar diante de
Deus e depois esperemos todo o bem. O senhor, rogo-lho in visceribus Christi, fale e actue em favor da Áfri-
ca Central, porque assim trabalhará também em favor da sua ínclita ordem, a qual adquirirá do espírito apos-
tólico em prol da Nigrícia essa vida que agora não tem entre os maçónicos da Europa. Aqui estamos no para-
íso no respeitante às autoridades políticas. Os paxás são nossos humildes servidores e fazem quanto quere-
mos. Nove dias atrás, o P.e Estanislau fez tremer o paxá de Cartum, o qual teve que recorrer a mediadores
para fazer as pazes. Louvado seja Deus.
Faça todos os dias um memento por mim. Muitas saudações a Bonzanini, a quem sempre tenho presente;
diga-lhe que reze todos os dias pela Nigrícia e por este que é seu devotíssimo.

P.e Daniel Comboni


Pró-vigário ap. da África Central

N.o 523 (493) - AO COMITÉ DA MARIEN VEREIN


«Bericht des Marienverein» (1873)

El-Obeid, 22 de Setembro de 1873

Ilustre comité,

3406
Depois de ter tomado conta da estação missionária de Cartum e com isso da escola feminina, que viu au-
mentar o número das que a frequentam e que provi de professores e professoras, a minha tarefa mais urgente
era fundar uma nova estação missionária em El-Obeid, a capital do distrito do Cordofão. Também esta se
encontra já em plena actividade e tem o número necessário de sacerdotes e de professoras. Agora estou pres-
tes a erigir uma filial da estação do Cordofão em Gebel Nuba e assim propagar o mais possível o Cristianis-
mo entre as tribos negras para cumprir quanto possível a tarefa que corresponde à missão. Mas para isto ne-
cessita-se não só de recursos humanos (pessoal) mas também e especialmente meios pecuniários.
3407
Digne-se ter em conta o ilustre comité que a comida em Cartum e no Cordofão custa o dobro que na Eu-
ropa, que, à excepção da carne, o café e o sal, os produtos alimentícios quadruplicam aqui o preço europeu,
que hoje em dia viajar em África sobe para o dobro do que custava nos tempos do pró-vigário apostólico
Knoblecher e que o aluguer de uma embarcação fluvial, que antes andava pelas cem piastras, agora ascende a
180. Por outro lado, agora há em Cartum dois estabelecimentos, um masculino e um feminino, e outros dois
em Cordofão e todos devem ser providos, ainda que limitadamente, de víveres, vestuário, quartos, mobiliá-
rio, ferramentas e utensílios de artes e ofícios, de agricultura e também é preciso abastecê-los de remédios.
Considerando tudo isso, esse ilustre comité compreenderá que, com o escasso pecúlio que tinha à minha
disposição, houve que fazer gincanas na economia para poder realizar tanto trabalho.
3408
Merece, pois, toda a consideração que em tempo tão breve e com meios tão limitados se tenha conseguido
dar uma nova vida a tão vasto vicariato, que estava já nos limites da subsistência, se tenham ampliado as
instalações preexistentes, fundado outra estação em El-Obeid, feito vir irmãs cheias de zelo e habilidade, que
antes não havia aqui e que agora dirigem uma escola pública. Eu precisava de formar e educar negros e ne-
gras para estarem em condições de fazer de mestres e mestras nas suas tribos.
3409
E tendo conseguido formar competentes mestres e catequistas negros, além de sapateiros, pedreiros, car-
pinteiros, etc., provi com eles as estações de Cartum e Cordofão. Indígenas, assim preparados, são indispen-
sáveis para a existência de uma missão: foi precisamente a falta de tal pessoal o que, após a morte de Kno-
blecher, deixou a missão perto do fim, embora estivesse bem fornecida de meios. Considerando tudo o ex-
posto, creio ter feito com muito esforço e muitas dificuldades o máximo pela prosperidade da missão, e com
isso ter ganho também o reconhecimento desse alto comité, dos reverendíssimos membros e de todos os ben-
feitores da missão.
3410
Dentro de um ano, graças ao laborioso zelo dos meus irmãos e se conseguir obter o desejado subsídio da
Europa, espero até poder declarar que o vicariato da África Central é um dos mais florescentes do mundo.

P.e Daniel Comboni

N.o 524 (494) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 742-743

El-Obeid, 15 de Setembro de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3411
Foi enorme o júbilo que ontem sentimos todos os membros desta santa missão, quando realizámos a sole-
ne consagração de todo o vicariato ao Sagrado Coração de Jesus. A festa da Exaltação da Santa Cruz de 1873
marca uma nova época de misericórdia e de ressurreição para a África Central, subjugada desde há tantos
séculos por Satanás. E nós abrimos o coração não já a uma doce esperança, mas sim a uma infalível certeza
de que o Coração de Jesus, que derrama abundantemente as suas graças nestes tempos de universal calami-
dade para a Igreja e para o mundo, se dignou, em sua infinita piedade, escutar os nossos votos e os de cente-
nas de milhares de piedosos associados do Apostolado da Oração e do Messager du S. Coeur, os quais nas
cinco partes do mundo acompanharam ontem com edições especiais o acto de consagração que solenemente
pronunciei em El-Obeid. Por isso, estamos profundamente convencidos de que agora começa o grande acon-
tecimento da verdadeira regeneração da Nigrícia, para a qual, sob os auspícios da Virgem Imaculada, de S.
José, dos apóstolos e dos santos e mártires africanos, começa o fim das suas seculares desditas, sob que ge-
mem os mais de cem milhões de infelizes que constituem este vicariato.
3412
Nós, se bem que pela nossa debilidade não sejamos indiferentes à série de cruzes (que são sempre o selo
das obras de Deus) de que estamos cercados, encontramo-nos sempre dispostos aos mais duros padecimen-
tos, às mais árduas fadigas e à própria morte, para alcançar o objectivo de consolidar estas missões da África
Central e chamar estes povos à fé. Sob o glorioso estandarte do Sagrado Coração de Jesus, que palpitou na
cruz também por estas pobres almas, o nosso grito de guerra até ao último alento será este: Nigrícia ou mor-
te.
3413
Ontem, a solene função celebrada segundo as normas da minha circular do dia 1 do passado mês de Agos-
to foi precedida do solene baptismo de 12 adultos e seguida da confirmação de vinte e cinco neófitos desta
nascente missão de El-Obeid.
3414
No intuito de dar a V. Em.a uma sucinta ideia da situação religiosa dos comerciantes católicos do vicaria-
to, mando-lhe uma cópia da minha circular de 10 de Agosto passado (que produziu óptimos efeitos), na qual
se assinalam brevemente as principais desordens que actualmente predominam entre os nossos cristãos. Há
uma outra desordem sobre a qual não considero oportuno prescrever agora nenhuma norma, depois das pres-
crições da S. Penitenciária, mas sobre que me reservo para mais tarde: é a usura. Aqui todos os cristãos em-
prestam e pedem emprestado dinheiro a 5, 10, 15 por cento ao mês e até mais: 60, 120, 180 e até 200 por
cento. Nalgumas ocasiões, nós procurámos impedir, não sem fruto, esta usura extraordinariamente judaica,
que se pretende justificar sobretudo com o frequente perigo de perder todo o capital; procura-se assim o ex-
cesso de lucro, com juros que às vezes atingem a soma de cem, duzentos e até trezentos por cento ao ano.
Sobre isto não tomei qualquer medida definitiva.
3415
O que tomei, isso sim, foi uma medida importantíssima dirigida especialmente aos cristãos que cooperam
no comércio e no tráfico de negros fornecendo fuzis, pólvora, dinheiro e com mil formas de ajuda. Embora
de momento seja absolutamente impossível destruir esta enorme calamidade na África Central, a influência
real da missão católica e as prudentes e bem ponderadas medidas que estou a tomar com o Governo local e
com a autoridade consular austro-húngara contribuirão poderosamente para enxugar muitas lágrimas e ferir o
infame tráfico de escravos, em prol da humanidade e da Igreja Católica.
3416
A escravatura e o comércio de escravos estão por aqui em pleno vigor, apesar dos tratados da pretendida
abolição e das fingidas ordens de Sua Alteza o quedive aos governadores do Sudão. Várias vezes ao mês
partem de Cartum e de El-Obeid várias centenas de jilabas (traficantes de escravos), que armados não já de
lanças como nos anos passados, mas de faiscantes fuzis, invenção moderna, de gatilho à Chassepot, inter-
nam-se nas tribos e dão caça aos pacíficos negros nos seus povoados; e, depois de terem morto todos os que
lhes oferecem resistência, reúnem os rapazes e raparigas, as grávidas, as jovens mães com seus filhos e famí-
lias inteiras; levam-nos a todos nus, a pé, por árduos e duros caminhos, para El-Obeid ou Cartum ou até atra-
vés da selva e do deserto conduzem-nos para a Núbia, para o Egipto ou para o mar Vermelho, para os vende-
rem ou explorarem na prostituição.
3417
Eu tenho na missão rapazes e raparigas roubados há menos de um mês, a quem mataram, diante dos seus
olhos, o pai, a mãe, o tio, no momento em que foram raptados. Faz agora um mês, partiram de El-Obeid mais
de dois mil jilabas, com magníficos fuzis, que foram massacrar os habitantes de uma montanha chamada
Dajo, habitada por mais de catorze mil negros. Segundo notícias que recebi recentemente, parece que mata-
ram os chefes e fizeram escravos os sobreviventes. Até à altura da minha chegada ao Cordofão, o governo
local recebia uma taxa por cada escravo. O anterior paxá de Cartum veio há dois anos ao Cordofão e com
vários milhares de soldados armados de fuzis e dois canhões foi à terra dos Nuba caçar negros. Capturou
9400 e matou muitíssimos. Porém, ao Governo do Cairo não declarou mais de 1800 e o produto dos 7600
restantes foi repartido entre ele, os seus oficiais, o médico Giorgi, que estudou em Pisa, e alguns escrivães.
3418
Com frequência os governadores do Sudão recebem ordens do Divã do Cairo para arranjarem e enviarem
para o Egipto tantas centenas de belas abissínias, tantas centenas de fortes dincas, tantas centenas de negros
bem gordos para os fazerem eunucos, etc., e isto para satisfazer as petições e desejos de altos funcionários do
Cairo, de Alexandria, etc., ou para prendas que têm que fazer. Por hoje limito-me a expor só isto, porque
enviarei a V. Em.a o trabalho sobre a actual escravidão que, por ordem minha, realizou o P.e Carcereri, de-
pois de o termos revisto e verificado a sua veracidade sob todos os aspectos. Como viajam e como são trata-
dos estes pobres escravos?
3419
Só responderei com o que viram os meus olhos no trajecto de Cartum a El-Obeid, em que encontrei mais
de mil escravas dos dois aos trinta anos, completamente nuas e mais de quinhentos varões também nus, mis-
turados com as mulheres. Eles e elas caminhavam todos a pé, empurrados pelas lanças daqueles malandros,
com excepção de alguns meninos que iam a cavalo. As jovens mães que levavam o seu bebé e os meninos e
meninas de seis ou sete anos, iam a pé desamarrados. Mas os rapazes e raparigas dos sete ou oito aos vinte
anos caminhavam em grupos de quatro, seis, dez, atados juntos varões e mulheres, para não escaparem. Al-
guns e algumas iam amarrados com uma corda cujo extremo ia ligado a uma soga larga, que era agarrada por
um daqueles tratantes. Havia outros grupos também de ambos os sexos, em que cada indivíduo estava atado
separadamente a uma larga viga, a qual assentava no seu ombro e cujo peso era suportado e levado por todo
o grupo de escravos.
3420
Uns tinham as mãos atadas atrás com cordas, outros levavam nos pés cadeias de ferro e outros, enfim, es-
tavam sujeitos à scheva, que é um madeiro de três ou quatro metros de comprimento e que tem num dos ex-
tremos duas peças de madeira que, unidas com cavilhas de madeira ou de ferro, se fecham sobre o pescoço
do escravo, o qual, ao caminhar, vai arrastando a scheva somente com a força do pescoço. E em tais condi-
ções, esses escravos e escravas, absolutamente nus, viajam toda a noite e parte do dia. Sinal de que alguns
não conseguiam suportar tantas fadigas e morriam durante a viagem eram os cadáveres recentes que encon-
trei pelo caminho.
3421
Este quadro não dá mais que uma apagada ideia da realidade dos horrores da escravidão e do tráfico de
escravos que actualmente tem lugar no vicariato. Por agora não acrescento mais nada, a não ser que confio
que a protecção do Sagrado Coração de Jesus consolide a santa, humanitária e importantíssima obra deste
vicariato apostólico e, a pouco e pouco, dê um golpe terrível, senão mortal, ao tráfico de negros e ao Isla-
mismo no Sudão. Espero-o do Sagrado Coração.
Beija-lhe a sagrada púrpura o seu hum. e dev.mo filho

P.e Daniel Comboni


Pró-vigário ap.

N.o 525 (495) - A MONS. JEAN FRANÇOIS DES GARETS


APFL, Afrique Centrale, 11

J. M. J.
El-Obeid, capital do Cordofão
24 de Setembro de 1873

Senhor presidente,

3422
Com o coração cheio de emoção e de reconhecimento, acabo de receber a sua gentil carta de 12 de Junho,
em que me informa de que essa divina Obra da Propagação da Fé concedeu ao meu vicariato a ordem de
pagamento no valor de 49 991 francos. Ainda que a minha caneta seja incapaz de exprimir tudo o que os
meus caros missionários e eu sentimos por si, senhor presidente, e por todos os membros dos conselhos cen-
trais, que votaram por uma ajuda tão considerável em favor desta imensa missão, posso assegurar-lhe que,
destas ardentes terras, os nossos corações imploram continuamente de Deus as bênçãos celestiais para os
dois veneráveis presidentes, para os membros dos Conselhos e para os sócios do mundo inteiro da Propaga-
ção da Fé.
3423
Pode o senhor compreender o imenso fruto que a sua grande caridade produziu já, de modo que o vicaria-
to mais vasto do universo ressuscitou e agora trabalha-se, as coisas funcionam e floresce a missão mais po-
voada, mais laboriosa, mais difícil e mais temível que existe no mundo.
3424
Apresso-me a preparar-lhe a informação anual sobre este vicariato; mas é impossível que a receba para o
primeiro de Dezembro, apesar de o comboio do Egipto chegar agora até perto de Siut, no Alto Egipto. Não
Ihe poderei dar uma informação completa, porque não terminei a visita pastoral. Devo visitar a parte oriental
da Núbia até Suakin, no mar Vermelho, que está sob a minha jurisdição e que dista da minha residência pre-
sidencial de Cartum mais de um mês; igualmente devo visitar os Bari, que habitam numa região a 4° de lati-
tude Norte, perto das nascentes do Nilo, a mais de um mês de Cartum. No entanto estou certo de que, pelo
pequeno relatório que receberá, poderá ver bem o imenso fruto que produziu a admirável obra a que o senhor
admiravelmente preside, consolidando e perpetuando a missão da África Central, que contém a décima parte
de todo o género humano.
3425
No presente, todos os meus esforços são dedicados a estabelecer bem e consolidar as missões principais
do vicariato, que se estende desde o trópico do Câncer, de Schellal até aos 12° da latitude Sul e que tem por
limite o mar Vermelho, Abissinia, o vicariato dos Gallas e a prefeitura de Zanguebar. A missão de El-Obeid,
que constitui a porta da Nigrícia interior, é a base de operações para difundir a fé católica até à parte central
do vicariato. De facto, desta capital chega-se em quatro dias ao reino de Darfur e em catorze à residência do
sultão. A partir daqui, em três dias, entra-se no extenso território dos Nuba, que são todos pagãos e, num mês
de viagem, alcança-se o vasto império de Bomu, onde fica o grande lago Chade, etc.
3426
Estou convencido de que nos veio de Deus a inspiração de estabelecer uma missão no Cordofão. O ano
passado, quando os meus exploradores chegaram a El-Obeid, não havia nem uma cruz, nem sinal de Cristia-
nismo. No Cordofão, nunca tinha penetrado o Evangelho de Jesus Cristo. Nunca se tinha celebrado a santa
missa. Hoje há uma próspera missão nascente nesta cidade de El-Obeid, que tem mais de cem mil habitantes
e é o centro e a base de operações de todas as missões que Deus nos conceder que fundemos na África inte-
rior. Isto é o que produziu a Propagação da Fé.
3427
No dia 14 de Setembro, fiz a consagração solene do vicariato ao Sagrado Coração de Jesus, com a maior
satisfação por parte do nosso Santo Padre Pio IX, que nos concedeu por escrito uma indulgência papal.
3428
Quando voltar a Cartum no próximo Novembro, escrever-lhe-ei sobre o horrível comércio de escravos de
negros e o tráfico de escravos. Os jornais falaram muito sobre a supressão da escravidão, realizada por Sir
Samuel Baker, etc.; sobre a conquista que o exército do quedive levou a cabo desde o território compreendi-
do entre o Nilo Branco e o equador e sobre os caminhos livres desde as nascentes do Nilo até Zanzibar. É
completamente falso, não há nada de verdade em tudo isso. O que poderá suprimir o tráfico de negros será a
pregação do Evangelho e a fundação das missões católicas.
3429
Permita-me, sr. presidente, agradecer-lhe de novo pela imensa caridade mostrada para com este vicariato
e para comigo em Lião a última vez que tive a honra de o ver. Os nossos trabalhos, as nossas fadigas, os
nossos sofrimentos, o terrível clima, as privações, tudo isso se torna muito suave sabendo que a Propagação
da Fé, com as suas ajudas, está em condições de fazer que tenha eficácia e seja frutífero para o apostolado da
África Central. Digne-se apresentar os meus respeitos a todos os membros do Conselho e à sua piedosa famí-
lia, enquanto me honro de me declarar nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria

Seu dev.mo servidor


P.e Daniel Comboni
Pró-vig. apostólico da A. C.
Original francês
Tradução do italiano

N.o 526 (496) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 752-754

J. M. J.
El-Obeld, capital do Cordofão
12 de Outubro de 1873

Em.° e Rev.mo Príncipe,

3430
Chegou-me a sua venerada carta de 29 de Junho, que foi motivo de imenso conforto para mim, porque ne-
la vejo claramente a vontade, os sentimentos e os desejos de V. Ema. rev.ma sobre algumas coisas concer-
nentes à minha dificultosa tarefa, os quais, com a ajuda de Deus, serão sempre a base da minha actuação.
Além disso, agradeço-lhe infinitamente as suas paternais recomendações, que recebo de todo o coração como
se fossem do próprio Deus, relativas ao proceder com muita cautela e prudência, à contracção de dívidas, etc.
3431
Na minha árdua e espinhosa posição, a prudência é mais necessária que nenhuma outra coisa, uma vez
que tenho que tratar com as raposas mais astutas e os maiores tratantes do mundo. Se Deus me ajudar como
até agora a ter sob controlo estes paxás, governadores e negociantes, em beneficio da fé, e se puder continuar
a manter a missão na digna posição em que agora se encontra, talvez a Igreja Católica consiga obter, pouco a
pouco, a abolição real do infame comércio de negros e fazer o que as grandes potências da Europa não pude-
ram com os seus tratados e o seu dinheiro.
3432
Por isto e por muitas outras circunstâncias do meu difícil ministério, é necessária uma grande cautela. Eu
farei todo o possível para não incorrer em erros garrafais e com a assistência dos Sagrados Corações de Jesus
e de Maria e da prodigiosa sabedoria da S. C. da Propaganda, espero consegui-lo; porque nunca empreende-
rei nada relevante sem consultar a S. C., cuja perspicácia, prudência e experiência incomparáveis, para além
do sopro do Espírito Santo, superam em muito as modestas luzes de qualquer chefe da missão. Quanto às
dívidas, desde há uns anos que me causam tanto medo e calafrios, que espero não vir a contraí-las: foi para
mim uma grande lição o caso das veneradas personagens P.e Nicolau Mazza, meu antigo superior, e mons.
Brunoni, agora patriarca de Antioquia, i. p. i., o primeiro dos quais deixou os seus sucessores carregados com
uma dívida de duzentas mil liras e o segundo legou ao vicariato de Constantinopla a pouco grata herança de
mais de um milhão em dívidas.
3433
Graças ao Senhor e ao meu querido ecónomo S. José, em seis anos, desde que comecei a redenção da Ni-
grícia, entre dificuldades de todo o género e numas condições económicas do mundo excepcionalmente críti-
cas, a Providência pôs-me nas mãos mais de cem mil escudos romanos e encontro-me em óptimas relações
com todas as sociedades católicas e com benfeitores altos e principescos em suas pessoas e a eficaz genero-
sidade com que continuam a favorecer-me; pelo que não só deixei a obra de Verona sem um centavo de dívi-
da, mas provida até de um fundo para eventuais necessidades extraordinárias, como também, para além dis-
so, libertei o meu vicariato da África Central das dívidas que nele encontrei e vou-o dotando de úteis aquisi-
ções de casas e terrenos. Assim, sem dever nem um tostão, encontro-me agora na posse de um bom fundo de
caixa para poder avançar e operar segundo os santíssimos fins do apostolado que me confiou a Santa Sé,
como V. Ema. poderá ver pelo relatório sobre a missão, que não tardarei muito a enviar-lhe da minha resi-
dência principal de Cartum.
3434
Em todo o caso, embora tenha tido estas bênçãos de S. José (que foi, é e será sempre o rei dos cumprido-
res e um administrador e ecónomo de muito juízo e também de bom coração), eh, não deixe V. Ema. de me
chamar de vez em quando à atenção, nem de me confortar e iluminar com toda a sorte de admoestações,
advertências e exortações, que são sempre muito sábias e saudáveis e sem nunca poupar as reprimendas, nem
o argue e o increpa do Apóstolo por ser este um grande meio para cometer menos desatinos e caminhar rec-
tamente conforme o espírito de Deus.
3435
Agora que V. Ema. Rev.ma com a sua carta acima mencionada me autoriza a favorecer de muitas manei-
ras a actividade de S. E. ilma. Sir Bartle Frère, embaixador da Inglaterra, fá-lo-ei de seguida e também no
futuro. Não obstante, como o horizonte actual da Europa é menos sombrio que no passado, parece-me útil
não deixar de efectuar certas sondagens e pôr-me em contacto imediato com alguns altos funcionários de
sentimentos católicos que conheço nos gabinetes de França e de Viena, para ver se posso tirar partido das
duas potências católicas e especialmente da França, em favor da real abolição do tráfico de escravos, no meu
desejo de evitar, por agora, o recurso aos cônsules-gerais do Egipto, que na sua totalidade estão comprados
pelo quedive. O que farei, depois de ter submetido tudo ao sapientíssimo juízo da S. Congregação e isto por
meio de cartas que Ihe entregará no próximo mês de Março em Roma o meu vigário-geral Carcereri, que irá
ai tratar não só de assuntos privados com o seu rev.mo geral, mas, além disso, por encargo meu, submeter
importantes questões a V. Ema. Rev.ma, a respeito da escravidão e da utilidade prática da árdua e espinhosa
missão do meu imenso vicariato.
3436
Com a minha carta n.° 7 de 25 de Julho passado, eu notificava-lhe que um dos grandes chefes das tribos
dos Nuba, que habitam no Sudoeste do Cordofão, tinha vindo a El-Obeid e, com o seu numeroso séquito, se
tinha apresentado perante mim na manhã de quarta-feira de 16 de Julho, dia da Virgem do Monte Carmelo,
no momento em que nós acabávamos de sair da hora de adoração do Ss.mo Sacramento, que eu estabeleci se
realizasse em todas as quartas-feiras pro conversione Nigritiae em todas as minhas casas do Egipto e da
África Central. Esse chefe tinha vindo para me convidar a erigir uma igreja ou seja uma missão entre o seu
povo, que em parte é tributário do Governo egípcio e em parte completamente independente. Eu, para andar
com pés de chumbo, depois de o ter tratado muito bem a ele e a todos os seus, convidei-o a regressar em
Setembro a El-Obeid, no intuito de, entretanto, obter exactas informações, começar com a língua dos Nuba e
tentar saber o pensar, os enredos e o apoio do Governo do Cordofão, o qual (como fazem o paxá de Cartum e
o de Fazogl) tempos atrás enviou para o meio dos Teggala e dos Nuba muftis e sacerdotes muçulmanos a
pregarem o Alcorão.
3437
Pois bem, o chefe dos Nuba não pôde vir a El-Obeid pessoalmente em Setembro; mas mandou em seu lu-
gar o cojur dos Nuba, ou seja, o grande mago, dito em língua Nuba oeck, que é, simultaneamente, sacerdote,
médico e mago e tem mais autoridade que os próprios chefes. Acompanhado de 12 ou 15 nuba entrou na
missão na quarta, pela manhã, quando saíamos da igreja, depois da costumada hora de adoração ao Ss.mo
pro conversione Nigritiae, no dia 24 de Setembro, dia dedicado à Virgem das Mercês. Depois de três horas
de conversação comigo, após ver a nossa igreja, a oficina dos artesãos, as ferramentas de carpinteiro, sapatei-
ro, serralheiro e agricultor, bem como as fotografias, após escutar o som do acordeão e do harmónio, por
mim tocados na igreja, o canto e as palavras dos alunos, alguns dos quais são nuba, recentemente arrebatados
e roubados das suas terras, o grande mago com o seu séquito ficou estupefacto e cheio de admiração.
3438
Impressionaram-no sobretudo a bela imagem de Nossa Senhora, a fotografia e a atitude dos nossos alunos
nuba; pelo que me rogou calorosamente que estabelecesse uma missão entre a sua gente e que não tardásse-
mos em ir lá, onde seríamos recebidos como seus pais e irmãos. Permaneceu em El-Obeid cinco dias, em
cada um dos quais esteve várias horas connosco e no último dia falou-me com franqueza deste modo: «Ainda
que o chefe e o seu séquito ao seu regresso de El-Obeid há dois meses me tenham contado maravilhas de ti e
do teu “serraye” (estabelecimento), não acreditei nele e confesso que te vim ver com não muito boa disposi-
ção.
3439
Mas agora que estes olhos viram e estes ouvidos ouviram, acredito em tudo e, por isso, sou o primeiro a
rogar-te que venhas à nossa terra para nos ensinares a nós e a nossos filhos a rezar, porque sabemos que há
um Deus, que é Deus, mas não sabemos rezar-lhe, porque ninguém nos ensinou.» Não quero alargar-me
neste escrito, já demasiado extenso, com as interessantíssimas coisas que aconteceram nas longas e variadas
conversas que houve entre ele e mim nos dias em que veio visitar-nos este excelente cojur dos Nuba, o qual
deixou em El-Obeid alguns dos seus para esperarem pelos missionários e os levarem ao seu país.
3440
Só Ihe acrescento que, por muitos dados, me parece ser vontade de Deus que tomemos em séria conside-
ração o apostolado entre os Nuba, depois de tantos séculos de trevas e de morte. Pelo que, confiando o assun-
to ao dulcíssimo Coração de Jesus, já dono absoluto por modo especial do vicariato, decidi empreender uma
atenta exploração das terras dos Nuba mais vizinhas e depois submeter uma informação exacta destas novas
tribos à S. C., para que decida sobre o nosso primeiro passo fora da órbita das possessões muçulmanas, em
regiões livres e independentes, como são a maior parte das terras dos Nuba. Assim pois, após ter examinado
tudo, decidi chamar de Cartum o meu valoroso vigário-geral, o qual se encontra já connosco em El-Obeid; e
estamos a fazer os preparativos para esta nova exploração, para a qual partirá, dentro de poucos dias, o dito
vigário-geral P.e Carcereri à frente de um grupo formado por outro missionário e sete ou oito indivíduos
mais. Creio que chegou o tempo da redenção da Nigrícia.
3441
Estou cheio de cruzes; mas o remédio está escondido no Sagrado Coração de Jesus, que, além de querer
salvos o Papa e a Igreja, salvará, sem dúvida, a infeliz Nigrícia.
Digne-se V. Ema. abençoar aquele que cheio de veneração lhe beija a sagrada púrpura e que, com todo o
respeito, se honra de se declarar de V. Eminência

Hum., dev.mo e obed.mo filho


P.e Daniel Comboni,
Pró-vig. ap. da A. Central

N.o 527 (497) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 756-759
N.°11 J. M. J.
El-Obeid, capital do Cordofão
20 de Outubro de 1873
Em.° e Rev.mo Príncipe,

3442
Às três da tarde do dia dezasseis do corrente partiu de El-Obeid o grupo de exploradores com destino ao
país dos Nuba, importante povo negro, em grande parte idólatra, que habita o Sudoeste do Cordofão. Essa
terra, pelo que ouvi dizer ao grande chefe e ao cojur ou grande mago, tem um clima muito saudável e cente-
nas de montanhas, algumas das quais são tributárias do Cordofão e, portanto, do Egipto, porém, na sua maio-
ria são independentes e livres. Uma imensa planície que divide o Cordofão do império de Darfur e que se
prolonga para sudeste, separa o Cordofão do território Nuba e é habitada por nómadas Bagara Omar tributá-
rios do Egipto, os quais são assassinos e ladrões consumados, professam um maometanismo rígido e exer-
cem (talvez por conta do Governo) o ofício de jilabas, ou seja, o de carniceiros de seres humanos e trafican-
tes de escravos.
3443
Como o grande chefe destes Bagara esteve aqui em El-Obeid há vinte dias para falar com o paxá, pude
pôr-me em contacto com ele e entabular uma relação de amizade. Tendo-lhe feito perguntas sobre os Nuba e
dito que eu tencionava fazer uma viagem talvez àquelas regiões ou mandaria algum dos meus missionários,
ofereceu-se para me dar uma escolta de duzentos homens e para ele mesmo me conduzir lá, assegurando-me
que a sua cabeça e a sua barba responderiam pela nossa vida. Ofereci-lhe roupa usada, um martelo e medi-
camentos e disse-lhe que no momento oportuno aproveitaria a sua bondosa oferta. Tomei informações exac-
tas sobre o grande chefe dos Bagara e sobre os Nuba inquirindo várias pessoas, mas especialmente o sultão
Hussein, que é o descendente dos sultões do Cordofão, que mandavam neste reino antes de ser ocupado pelo
Govemo egípcio, o qual desfruta de uma pensão vitalícia do Governo usurpador e tem oficialmente o titulo
de sultão.
3444
Este, que é nosso amigo e um autêntico cavalheiro, ofereceu-nos aqui um terreno, um pouco longe de nós,
destinado a ser cemitério católico. É a pessoa mais bem informada sobre as tribos dos negros que há à volta
do Cordofão até à distância de mais de um mês de viagem. Igualmente o grande paxá foi muito cortês comi-
go e ofereceu-me tudo o que eu desejasse: soldados, armas, munições, cavalos, camelos, etc. Porém, o após-
tolo de Cristo deve ir de outro modo, segundo os santos ditames do Evangelho; e, embora deva tomar todas
as medidas exigidas pela prudência e uma sábia cautela, em geral a Divina Providência é que deve ser o seu
guia.
3445
Quando lhe anunciei que mais de duzentos homens podiam estar à sua disposição, o meu valoroso vigá-
rio-geral, o P.e Carcereri, a quem eu tinha destinado a chefia da ideada expedição exploratória, negou-se
rotunda-mente: queria ir até aos Nuba sine sacco et sine pera, deixando tudo nas mãos de Deus. Mas obri-
guei-o, com total satisfação final de sua parte, a partir bem provido: 1.°, de uma carta especial de recomen-
dação do paxá para o grande chefe dos Bagara, em que Sua Ex.cia Ihe ordenava que tratasse os missionários
como à sua própria pessoa; 2.°, de uma carta de recomendação do paxá e do mencionado sultão para todos os
chefes dos países por onde tinha que passar a nossa caravana, ordenando que lhes proporcionassem aloja-
mento, comida, provisões, etc.; 3.°, de um guia do Governo, nativo e conhecedor daqueles territórios; 4.°, de
um dos escrivães do paxá, que é amigo nosso, copta cismático, velho e conhecido até na montanha Nuba de
Delen, de onde teve duas esposas e que me disse que se deixaria matar pela religião cristã.
3446
Rejeitei soldados, camelos e outras coisas que me ofereceu o paxá e, depois de um tríduo ao S. Coração
de Jesus, Pai da missão, e outro a S. Judas Tadeu, partiu o P.e Carcereri à frente da expedição, na qual iam
outro padre, um excelente leigo alemão que em 1868 esteve comigo no Nilo Branco, dois criados e mais
cinco ou seis pessoas. A exploração durará quinze dias; e, quando voltar, o P.e Carcereri seguirá para Roma,
como lhe escrevi. Pela minha parte, obtida uma exacta referência da exploração e tudo bem ponderado, redi-
girei um breve mas substancioso documento sobre o estabelecimento de uma missão entre os Nuba, subme-
tê-lo-ei a S. Ema. Rev.ma e levarei a cabo o que a S. C. me mandar fazer, ela que é encarregada por Deus de
governar e dirigir todas as missões do mundo.
3447
O meu principal empenho actual continua a ser consolidar bem e perpetuar as duas principais missões de
Cartum e El-Obeid. Cartum é a base das operações para estender, pouco a pouco, o nosso apostolado para a
parte oriental do vicariato até para lá do equador e das nascentes do Nilo, espaço em que há centenas de
tribos e muitos milhões de idólatras; El-Obeid é a base de operações para difundir paulatinamente o Evange-
lho na parte central do vicariato, na qual se encontram imensas tribos, reinos e impérios e, certamente, mais
de cinquenta milhões de infiéis.
3448
Até agora, graças aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, a missão vai andado como é devido; e no
que diz respeito ao exterior, gozo de plena influência sobre todos os governadores do Sudão, os quais me
concederam até ao presente tudo quanto pedi: correio gratuito (em El-Obeid não há nenhum cônsul, mas
quero escrever ao imperador da Áustria para o estabelecimento de um consulado no Cordofão, por este ser
utilíssimo no caso de os hossanna do Governo se tornarem no futuro em crucifige, para o que há que estar
sempre preparados, porque esta é eminentemente uma obra de Deus), terrenos, protecção, etc.
3449
Até ao momento, todos os escravos cuja libertação pedi, todos, sem excepção, foram postos em liberdade;
todos os que fugiram para a missão e aqueles para os quais pedi a carta de liberdade e a permissão de perma-
necer connosco foram-me concedidos na sua totalidade. Até em certas coisas do seu governo este paxá soli-
cita a minha opinião. Porém, como amanhã pode acontecer que venham novos governadores que actuam de
outro modo, tomo desde agora as minhas precauções e trato de conseguir dos actuais paxás grandes favores e
concessões para poder fazer valer como direitos perante os futuros governadores; e ao mesmo tempo tenho o
ânimo preparado para qualquer turbulência e perseguição, que serão inevitáveis, sobretudo quando chegar o
momento - que chegará - em que a missão der o golpe mortal no comércio de escravos. Portanto, nós tudo
esperamos do Sagrado Coração de Jesus.
3450
Ainda que as minhas actuais preocupações sejam preparar os materiais e as pessoas, as armas e os arneses
para, a seu tempo, assaltar a formidável fortaleza da Nigrícia e, portanto, ando ocupado em estabelecer devi-
damente as paróquias, as casas, as escolas, os institutos e em pôr em prática sábios e oportunos regulamen-
tos, etc., para afiar bem as armas e fazer com que cada casa e cada indivíduo da missão possua todos os co-
nhecimentos, qualidades e virtudes, mediante os quais possa ser ou tornar-se óptimo instrumento, soldado e
operário de Cristo; contudo, não deixo de estudar cuidadosamente o povo do meu vicariato, isto é, as almas,
a natureza e índole destas gentes, a fim de escolher, depois, os meios adequados para os conduzir à fé.
3451
Vou dar-lhe aqui uma brevíssima notícia sobre os coptas cismáticos que há no vicariato, os quais são ob-
jecto de diligente atenção da minha parte, porque quero completar os estudos que realizei tempos atrás no
Egipto sobre a Igreja Copta herética, a qual, em minha opinião, pode constituir uma parcela importantíssima
no apostolado do Oriente, enquanto as actuais disposições em favor do mesmo, adoptadas sensata e pruden-
temente pela Santa Sé, me parecem todavia muito limitadas e débeis. Os coptas heréticos, como bem sabe V.
Ema. Rev.ma, alcançam no Egipto um número que oscila entre os 250 000 e os 300 000. Na Abissínia são
mais de um milhão, talvez dois milhões. No meu vicariato há alguns milhares deles, com sede episcopal em
Cartum e com algumas paróquias em Cartum, Dôngola e El-Obeid e pequenas capelas em Berber, Taqa,
Suakin, etc. Agora a Igreja Copta herética ou Eutiquiana está limitada às seguintes sedes, a cuja frente se
encontram como pastores os indivíduos enumerados com elas:
3452
1.° Sede patriarcal de Alexandria, com residência no Cairo. O patriarca vacat.
2.° Sede episcopal de Alexandria: o bispo é um tal Morgos ou Marcos.
3.° Sede episcopal de Jerusalém: O bispo, Basilius, que reside no Cairo, forma parte da cúria patriarcal
eutiquiana e, todos os anos, acompanha os peregrinos coptas cismáticos a Jerusalém.
4.° Sede episcopal do Cairo. O bispo Botros, ou Pedro, pertence também à cúria patriarcal do Cairo.
5.° Sede episcopal de Monutieh, perto de Tantah, entre o Cairo e Alexandria. O bispo é Joannes.
6.° Sede episcopal de Fayum, a antiga Arsinoe ou Crocodinópolis. O bispo é Issac.
7.° Sede episcopal de Minieh, a antiga Cinópolis. O bispo é Thomas.
3453
8.° Sede episcopal de Montallut, perto de um grande mosteiro com numerosíssimos monges. O bispo é
Jussah, ou José.
9.° Sede episcopal de Sánaboh, entre Melaui e Siut. O bispo é Theófilos.
10.° Sede episcopal de Siat, a antiga Licópolis, capital do Alto Egipto. O bispo é Macarius.
11.° Sede episcopal de Abutig, a Abutis dos romanos. O bispo é Atanasius.
12.° Sede episcopal de Akmim, a antiga Panópolis, construída – diz-se – por Cam, filho de Noé, mas se-
gundo quase todos os eruditos, fundada ou engrandecida por Misraim, ou Egipto, filho de Cam. O bispo é
Jussah, ou José, que dispõe de numerosos sacerdotes. A uma hora daí está o povo de Hamas, onde nasceu o
excelente mons. Bsciai, o bispo copta actual.
13.° Sede episcopal de Guss, ou Coptas, a antiga Justinianópolis, não longe da antiga Tebas. O bispo é
Abraham.
14.° Sede episcopal de Negadeh, a antiga Maximianópolis. Vacante desde há muitos anos, fica sob a ju-
risdição do bispo de Guss.
15.° Sede episcopal de Gondar, na Abissínia. O bispo é Atanasius, que habitualmente reside em Adua, tal
como o Negus ou rei.
16.° Sede episcopal de Esneh, a antiga Latópolis. O bispo é Mattha ou Mateus, que desde há uns meses
fixou a sua residência em Luxor, que é a antiga Tebas.
17.° Sede episcopal de Cartum, na África Central, fundada em 1840. O novo bispo ainda não foi nomea-
do, porque, como dizem os coptas, hoje não há patriarca e só a este compete nomear e sagrar os bispos. Po-
rém, esta razão não é válida, porque Mateus, o bispo de Esneh, foi nomeado e sagrado no corrente ano de
1873.
3454
Quando eu tiver estudado bem a maneira prática de tentar a conversão dos coptas cismáticos do meu vica-
riato, o que se tornará difícil, dada a enorme corrupção em que vivem, em regiões tão longínquas e quentes
(coisa de que sem dúvida me ocuparei quando tiver tempo, na esperança de corrigir algum), escrever-lhe-ei
expressamente sobre isso. Entretanto, não me parece oportuno assinalar-lhe uma coisa que certamente sabe-
rá: desde há quase quatro anos a sede patriarcal eutiquiana está vacante, e tal continuará talvez por muitos
anos, ou seja, durante a vida do actual quedive do Egipto, o qual proibiu de modo absoluto que se eleja um
novo patriarca.
3455
A razão disso radica no facto de um alto funcionário do grande Divã do Cairo - o qual, dizem, é copta
cismático - por privada animosidade contra um bispo, que se presumia ser aspirante à sede patriarcal, insu-
flou à mãe do quedive, muitíssimo supersticiosa, a ideia de que o seu filho morreria sob o governo do novo
patriarca eutiquiano. Dai que a mãe implorasse a Sua Alteza que impedisse a todo o custo a eleição do novo
patriarca e que o quedive, muito devoto de sua mãe e também supersticioso, o cumprisse à letra; decisão a
que os eutiquianos se submeteram humildemente, faltos da graça e da inspiração do Espírito Santo, por esta-
rem fora da verdade.
3456
Pois bem, a Santa Sé, na sua extraordinária sabedoria e perspicácia, não poderia aproveitar tão longa va-
catura da sede patriarcal eutiquiana para tentar a conversão destes hereges, que a poucos erros dogmáticos,
mas, sem dúvida, a muitos vícios especialmente respeitantes a concupis-centiam oculorum et carnis, juntam
uma fé fora do comum e muitas virtudes relevantes?... Desde há mais de 15 anos, os protestantes, tanto in-
gleses como americanos, têm feito estragos entre os coptas cismáticos, conseguindo levar muitos milhares
deles para o seu campo (exteriormente, entenda-se, e não por convicção): hoje, muitos deles falam inglês e
frequentam as escolas americanas e anglicanas no Cairo, Alexandria, Tantah, Fayum e Siut, onde ganharam
os mais endinheirados e poderosos. E em Fayum, onde desde há 23 anos está estabelecido um jardim-de-
infância católico, contemplei com horror a escola protestante, frequentada por cento e tal jovens cismáticos e
católicos.
3457
É preciso avisar que os nossos missionários são pobres e os protestantes riquíssimos. Porém, não deixa de
ser verdade que, entre os coptas cismáticos, há muitos que poderíamos convertê-los facilmente; no contacto
que tive com quase todos os seus bispos, com muitos dos seus sacerdotes e muitíssimos dos seus fiéis, con-
venci-me disso. A graça está nas mãos de Deus e talvez na Santa Sé não faltem medidas para empreender
uma conquista que seria fecunda em maravilhosos resultados no meu vicariato, especialmente na Abissínia,
onde um só bispo, de nenhum valor, tem jurisdição sobre um ou talvez dois milhões de almas.
3458
Desejo renovar-lhe a humilde súplica que Ihe fiz na minha carta do dia 15 do passado mês de Setembro,
sobre a festa do S. Coração de Jesus, que desejaria que o Santo Padre declarasse de preceito com rito duplo
de primeira classe, com oitava, em todo o meu vicariato, porque do S. Coração de Jesus espero a conversão
dos mais de cem milhões de infiéis que o habitam. O meu antecessor, Inácio Knoblecher, que tinha realizado
profundos estudos sobre o vicariato, calculava noventa milhões, como nos dizia a nós, e como se lê na sua
biografia, que o doutíssimo Mitterrutzner publicou; porém, então, os geógrafos colocavam os designados
montes da Lua, limite meridional do vicariato, a 3° de latitude Norte, enquanto hoje pensam que devem en-
contra-se 15° mais a Sul, onde, segundo Speke e Grant, há tribos com populações muito numerosas. Portan-
to, não se está longe da verdade se se calcularem cem milhões de infiéis para o vicariato.
3459
O Sagrado Coração de Jesus, que difunde hoje mais que em tempos passados os tesouros das suas graças,
ao haver-se incrementado maravilhosamente o seu culto, convertê-los-á a todos.
Aproveito esta oportunidade para Ihe apresentar a homenagem da minha profunda veneração e decla-
rar-me nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria

De V. Ema. Ver.ma, Hum., obed.mo e indig. filho


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico

N.° 528 (498) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


ACR, A, c. 19/31

El-Obeid, 29 de Outubro de 1873

Testemunho em seu favor.

N.o 529 (499) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 760-761

J. M. J. N.o12
El-Obeid, capital do Cordofão
4 de Novembro de 1873

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3460
Parece que realmente soou a hora da redenção da Nigrícia e que o próprio Deus, em sua infinita miseri-
córdia, dirige por seus amáveis caminhos esta sua obra. Os exploradores que enviei a terras dos Nuba sob a
chefia do P.e Carcereri foram acolhidos com o máximo entusiasmo pelo grande chefe e pelo grande mago,
bem como pelos habitantes, os quais lhes ofereciam tudo o que desejassem – terrenos, casas e até a residên-
cia do chefe – e lhes suplicavam que ficassem com eles para sempre. Estas gentes são completamente idóla-
tras; porém, embora entregues a muitas superstições, nunca quiseram inclinar-se ante o Alcorão. São muito
inteligentes, dóceis e capazes de apreciar as vantagens do Catolicismo. O grande chefe, a quem conheci bem
aqui em El-Obeid, é um homem sensato e de bom coração e como tal foi reconhecido pelos nossos explora-
dores.
3461
O P.e Carcereri, depois de ter estudado bem estes primeiros povos Nuba, tomou uma decisão sobre o lu-
gar onde seria adequado fundar a primeira missão, que é Uaco, chamado Delen pelos Bagara; fica situado
num local ameno e muito saudável, apenas a quatro dias de El-Obeid. Esse é o primeiro ponto completamen-
te idólatra, a partir do qual nos estenderemos a pouco e pouco por todas as regiões da Nigrícia central. Há lá
muitas superstições, como disse, e o Demónio recebe tributo. A cruz, porém, irá pô-lo em fuga e o Leão de
Judá vencerá: estes povos parecem muito dispostos a abraçar a fé. O P.e Carcereri prometeu ao grande chefe
que dentro de pouco estabeleceríamos uma missão católica em Delen ou Uaco e regressou são e salvo a El-
Obeid com os demais; e amanhã eu partirei com ele para Cartum, onde espero chegar em quinze dias de via-
gem a camelo. De lá enviarei a V. Ema. uma relação exacta sobre esta nova empresa dos Nuba, que abre –
cremos nós – o caminho certo e seguro para difundir o Evangelho nas terras que constituem a parte central
do vicariato.
3462
A missão dos Nuba apresenta vantagens muito superiores às de qualquer outra tentativa já levada a cabo
pela Igreja na África Central desde a altura da erecção do vicariato até hoje. De facto, as antigas estações de
Gondokoro nos 4° de lat. N. e de Santa Cruz nos 7° de lat. N., fundadas pelo meu ilustre antecessor no Nilo
Branco, encontravam-se, é certo, em regiões completamente pagãs e mergulhadas na idolatria, mas invadidas
desde havia muitos anos por contínuas hordas de muçulmanos e de negociantes europeus e orientais da pior
espécie, que acorriam aí, seguindo a cómoda via do Nilo Branco, atraídos pelo comércio do marfim, dos
escravos, etc., e que, com o seu mau viver e as sua mais nefandas violências e crueldades, tinham lá infiltra-
do a peste de todos os vícios. Entre os Nuba, porém, nunca penetrou nenhum europeu, nem o Islamismo
pôde ganhar raízes, nem se estabeleceu nunca nenhuma casa de comércio: portanto, estas populações são,
por assim dizer, ainda virgens e apresentam vantagens que o vicariato nunca pôde obter até hoje.
3463
Isto é uma nova prova de que verdadeiramente foi o Senhor que levou a Santa Sé a aprovar a nova via do
Cordofão que nós escolhemos, e a estabelecer El-Obeid como verdadeira porta do interior e como base de
operações para ganhar o centro da Nigrícia para a Igreja Católica. Com o que está fora de toda a dúvida que
a estabilidade e perpetuidade da missão da África Central se encontra assegurada, tanto pelo clima, que
nesta zona é suportável e quase diria muito saudável, como pelo carácter destas populações pagãs, que, por
muitos dados, parecem inclinadas para a fé.
3464
Glória ao Sacratíssimo Coração de Jesus, que parece querer absolutamente a salvação destas almas.
Digne-se V. Ema. receber a expressão da minha filial devoção e respeito, com os quais tenho a honra de
me subscrever nos Sagdos. Corações de Jesus e de Maria

De V. Em.a Rev.ma
Hum, devot.mo e indig.mo filho
P.e Daniel Comboni
Pró-vig. ap. da África Central

N.o 530 (500) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


APCV, 1458/319

El-Obeid, 4 de Novembro de 1873

Testemunho em seu favor.

N.o 531 (501) - AO CARDEAL ALEXANDRE BARNABÓ


AP SOCG, v. 1003, ff. 762-763

N.o 13 J. M. J
Cartum, 20 de Dezembro de 1873

Em.° e Rev.mo Príncipe,

3465
Só duas linhas, porque tenho o braço esquerdo atado ao pescoço há mais de vinte e cinco dias. Vindo do
Cordofão, a quatro dias de distância de Cartum, o camelo assustou-se de repente, quando corria mais que um
cavalo e lançou-me por terra, onde fiquei meio morto, com um braço partido, que, por sorte, é o esquerdo.
Não posso exprimir-lhe quanto sofri. Depois de permanecer dois dias dentro da minha tenda, no meio de
atrozes dores, com o braço amarrado viajei ainda cinco dias sobre o camelo, que a cada passo que dava me
provocava um espasmo. Chegado ao Nilo Branco, em Ondurman, o paxá governador-geral do Sudão envi-
ou-me o seu vapor, que me levou à missão. A graça de Deus não deixa de vir lá onde faltam os auxílios hu-
manos. Em todo o Sudão não existe um médico que saiba os primeiros rudimentos de medicina ou de cirur-
gia: esventra-gatos e carniceiros, isso é o que há. No entanto o paxá fez com que o seu esventra-gatos se
ocupasse a compor-me o braço e, graças a Deus, agora encontro-me um pouco melhor. Até estou esperança-
do de que na Epifania estarei em condições de celebrar missa.
3466
Mas o relatório que lhe prometi na minha carta de 4 de Novembro passado sobre a fundação de uma bela
missão entre os Nuba e o relativo a todo o vicariato só poderei elaborá-los quando me encontrar bom de to-
do. Entretanto, o grande chefe dos Nuba continua a mandar mensageiros a El-Obeid para ver quando nos
estabelecemos na sua terra e, ultimamente, apresentou-se o chefe Nemur a solicitar a nossa ida até lá, dizen-
do: «Nós queremos ser cristãos. Alguns muçulmanos de El-Obeid disseram-nos que os cristãos são janazir e
kelab (porcos e cães); mas nós vimos com os nossos próprios olhos que os cristãos são a melhor gente do
mundo.» Enfim, roguemos ao Sagrado Coração que mantenha nos Nuba estes sentimentos até que seja von-
tade de Deus que fundemos entre eles uma missão.
3467
No dia 11 do corrente, partiu o P.e Estanislau Carcereri para o Cairo e para Roma e, segundo notícias que
tive, já entrou no deserto. No mesmo dia chegou a Cartum a segunda expedição, formada por um missioná-
rio, um irmão leigo, quatro Irmãs de S. José (parecem-me de excelente espírito, como as que tenho em Car-
tum) e três rapazes da tribo dos Dincas, um dos quais estuda latim. Como uma destas irmãs tinha medo do
camelo, foi de burro até uma terça parte do trajecto pelo deserto, onde as hienas, de noite, devoraram uma
pata traseira do asno, de modo que a pobre irmã fez os doze dias restantes da viagem a pé pela areia sob um
Sol abrasador. Graças a Deus, apesar do percurso de doze jornadas de doze horas a pé, chegou a Cartum em
perfeito estado de saúde.
3468
A missão vai para a frente, tanto em El-Obeid como aqui em Cartum. A minha situação com respeito às
autoridades locais não pode ser melhor. Porém, os horrores da escravidão e o tráfico de negros, que constitui
uma parte das minhas preocupações, reclamam a autoridade moral da Igreja. Contudo, como é coisa de gran-
de alcance e de enorme dificuldade prática, preciso de usar de uma grande prudência e submeter tudo à sabe-
doria da S. C., antes de dar um passo que seja importante. Confio que, agindo eu exactamente segundo as
instruções que V. Ema., me agradará dar, pouco a pouco daremos um golpe mortal a esta chaga da humani-
dade. Desejando-lhe Felizes Festas e um próspero Ano Novo, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me

De V. Em.a dev.e hum. filho


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico

N.o 532 (502) - A P.e ROLLERI E A P.e SQUARANTI


ACR, A, c. 19/10, n.3

Cartum, fim de 1873


Nota num registo.

N.o 533 (503) - À Obra de Paris


APFP, Boíte G 84, n. 113

Cartum, fim de 1873


Estatísticas das missões e notas administrativas.

N.o 534 (504) - A MGR. M. DAUPHIN


«Oeuvre des Ecoles d’Orient» - 79 (1873), pp. 219-221

El-Obeid, 1873

Senhor director.

3469
Mons. Soubiranne, tendo conhecido e apreciado desde as origens a obra da regeneração da Nigrícia, quis
favorecer a causa dos dois institutos de negros fundados por mim no Cairo e conseguiu-me para eles, da ad-
mirável Obra das Escolas do Oriente, uma modesta ajuda em 1868 e 1870.
Além disso fez-me esperar ajudas de maior vulto para quando eu empreendesse o ataque – dizia-me – à
África Central pela parte do Oriente, enquanto mons. o arcebispo de Argel a atacaria pelo Ocidente, pelo
deserto do Sara.
3470
Pois acontece que precisamente a Santa Sé me confiou há pouco o vicariato apostólico da África Central,
tarefa imensa, porque é, penso, a missão mais vasta e laboriosa do universo inteiro, já que no seu território
habitam cerca de cem milhões de infiéis; e, com a graça de Deus, empreendi energicamente esta guerra apos-
tólica.
3471
Em Cartum, a capital do Sudão oriental (15° de latitude N.), fundei já duas instituições consideráveis e
abri outras duas de suma importância em El-Obeid, de onde lhe escrevo. Esta última cidade, que conta com
uma população de cem mil almas, é a verdadeira base de operações para penetrar no centro da África, que
avança até distâncias enormes. A minha jurisdição espiritual estende-se, de facto, desde as fronteiras do
Egipto e da Tripolitânia até aos 12° de latitude Sul.
Compreende já, sr. presidente, a importância de que antes de atacar esta grande massa de idolatria e bar-
bárie, eu reforce o mais possível as minhas missões fundamentais de Cartum e El-Obeid.
3472
Eis, pois, as diversas instituições que solicitam já a assistência da admirável obra a que o senhor preside.
1.° No Cairo, o instituto de negros que é dirigido pelos nossos missionários de Verona, fundado para as
missões da Nigrícia. Esta casa tem na actualidade pouca gente, porque tirei daí certo número de pessoas já
formadas para as trazer para aqui para a África Central.
2.° Em Cartum, o instituto de negros, com a escola da paróquia e da missão. Estes dois institutos, que
contam com um grande número de crianças, é dirigido também pelos nossos missionários de Verona.
3.° Em El-Obeid, o instituto de negros, com muitas pessoas e sob a mesma direcção.
4.° No Cairo, a escola de negras, dirigida pelas Irmãs de S. José da Aparição.
5.° Em Cartum, a escola paroquial e o instituto de negras. Ambas as obras estão sob a direcção das mes-
mas religiosas e têm muitas alunas.
6.° Finalmente, em El-Obeid, uma escola e um instituto de negras, que ficarão sob a direcção das profes-
soras negras que educámos no Cairo, até à chegada das Irmãs de S. José da Aparição, que estão de viagem e
de quem estou à espera.
3473
Permita que a esta árida enumeração acrescente uma observação susceptível de lhe fazer compreender
melhor a minha pesada carga e a premente necessidade que tenho da sua ajuda.
Salvo as escolas externas de Cartum e de El-Obeid, que nos proporcionam alguns honorários, todas as ou-
tras obras estão a cargo da missão. E que encargos, sr. director! Não se trata somente de dar instrução aos
nossos pobres negros: quase sempre é preciso comprá-los com dinheiro à vista, bem sonante, porque é bas-
tante reduzido o número dos que nos são cedidos gratuitamente. E, antes de os alojar, alimentar, curar as suas
doenças, estamos obrigados a vesti-los, uma vez que todos, tanto rapazes como raparigas, nos chegam com-
pletamente nus.
3474
Ora bem, aqui no Sudão, a maior parte dos produtos de vestir e de alimentação, como procedem do Egip-
to, só se obtêm a um alto preço. Assim, por exemplo, um pedaço de tecido que no Cairo se vende a dez fran-
cos, trazido de Cartum custa cinquenta. Do mesmo modo, o vinho para o santo sacrifício custa-nos aqui cin-
co francos a garrafa, quando no Cairo se vende a 60 cêntimos.
É por isto que me dirijo à generosa caridade dos seus piedosos associados e lhe peço, em nome do Divino
Redentor, que tenha compaixão das obras da minha pobre e grande missão. Tudo aqui é imenso e repleto de
obstáculos; mas, encontrando-se tudo nas mãos de Nosso Senhor e tendo falado o Seu Vigário, eu estou
cheio de confiança.
3475
O vicariato da África Central, fundado em 1846 pelo Papa Gregório XVI, antes tinha devorado, no espaço
de quinze anos, a vida de 35 missionários. De 40 que tinham enfrentado os incómodos e dificuldades, só 5
conseguiram sobreviver. Deus quis que eu estivesse neste número, depois de me ver onze vezes às portas da
morte.
Essa expedição apostólica foi seguida de um novo envio, agora de 60 padres franciscanos. Deles, 22 mor-
reram, dois estão em Cartum e os restantes voltaram para o Egipto e para a Terra Santa.
Foi depois destas primeiras e dolorosas provas que o Santo Padre actual confiou o vicariato da África
Central ao instituto de missionários da Nigrícia, que nós (o bispo de Verona e eu) tínhamos fundado com a
assistência de Nosso Senhor e para o qual solicito hoje o seu benévolo interesse.
3476
Assim, no ano de 1871, enviei, sob a direcção do P.e Carcereri, meu vigário-geral, quatro exploradores
muito decididos, que chegaram até ao Cordofão, onde começaram a pregar o Evangelho.
No ano seguinte, eu mesmo me pus à frente de uma grande expedição de trinta pessoas, entre religiosos e
religiosas. Subimos o Nilo, atravessámos o deserto e, com a evidente protecção de Deus, depois de 99 dias
de penosa e perigosa viagem, chegámos a Cartum, sem incidentes e sem perdas.
Tenha por bem aceitar, etc., etc.

P.e Daniel Comboni


Pró-vigário apostólico da A. C.
Original francês
Tradução do italiano

N.o 535 (505) - NOTA SOBRE UMA CARTA


ACR, A, c. 26/20

1873

N.o 536 (506) - AO P.e HENRI RAMIERE


«Le Messager du Coeur de Jésus» XXIV (1873), pp. 185-187

1873
Meu caríssimo e venerado padre,

3477
É impossível exprimir o bem que a sua carta produziu no meu coração e no espírito de todos os meus que-
ridos irmãos. Basta dizer-lhe que a sua amável missiva, na qual me comunicava as orações que o senhor soli-
citou dos associados do Apostolado da Oração em O Mensageiro do Coração de Jesus, como intenção geral
do mês de Dezembro, em favor da África Central, encheu-nos de tal modo de conforto e de ânimo, que agora
estamos sobremaneira contentes de dar todo o nosso sangue e a nossa vida entre os mais atrozes martírios
para a glória do Sagrado Coração. O senhor, meu padre, fortaleceu a nossa fé, o nosso valor, a nossa espe-
rança e, durante a minha viagem entre o Cairo e Cartum com a minha expedição de trinta pessoas, no que
empregámos 99 dias, sobretudo em atravessar a camelo o deserto, sob 60° Réaumur, os meus missionários,
as minhas irmãs e eu falávamos frequentemente de si, meu padre, e dos associados do Apostolado e dizí-
amos: «Nós sofremos e trabalhamos aqui; mas temos umas almas eleitas, as almas mais fervorosas e devotas
da Terra, os associados, os membros da Liga do Coração de Jesus, que pensam em nós e rezam por nós.
3478
«No meio destes ardentes desertos, temos a grande dita de viver no Sagrado Coração de Jesus e no espíri-
to dos seus mais fiéis amigos. Estas almas eleitas rezam por nós e pela nossa laboriosa e difícil missão. Jesus
disse: «Pedi e recebereis, chamai e abrir-se-vos-á. A palavra de Jesus é infalível. Se eu, se o senhor (dizíamo-
nos reciprocamente) fôssemos os únicos a rezar pela África Central, Deus não nos escutaria, porque não re-
zamos bem, com todas as condições necessárias; mas por nós rezam os membros do Apostolado da Oração,
os mais fervorosos servidores do Coração de Jesus, os pios leitores do seu Mensageiro: é impossível que a
sua oração não seja ouvida, quando, além do mais, estas almas rezam pela conversão dos infiéis do nosso
vicariato, pelos cem milhões de desditosos. De modo que a África Central será convertida pelo Sagdo. Cora-
ção de Jesus e pelas orações dos seus mais devotos servidores.»
3479
Estas palavras repetimo-las várias vezes, meu querido padre, durante a travessia do deserto, em Abril, e
repetimo-las no presente. Não pode imaginar quanto nos conforta a ideia de que o senhor e os membros do
Apostolado da Oração rogam por nós. Obrigado, obrigado, meu querido padre e exprima a todos os associa-
dos a nossa gratidão pelas suas poderosas orações. Assegure-lhes o nosso reconhecimento.
Como o senhor teve a bondade de me dizer que seria útil fazer-lhe saber o dia em que consagrarei a Áfri-
ca Central ao Sagrado Coração com a fórmula que lhe ditou o Espírito Santo (que magnífica consagração!
Muito obrigado por esta fórmula tão bonita, que traduzi em diversas línguas do meu vicariato), anuncio-lhe
que realizarei esse acto de consagração solene no dia 14 de Setembro, festa da Exaltação da Santa Cruz, ou
seja, no terceiro domingo de manhã. Esse dia, eu, pessoalmente, farei a consagração solene em El-Obeid,
capital do Cordofão, enquanto o meu vigário fará a mesma consagração em Cartum às nove da manhã tam-
bém.
3480
Termino, porque o tempo escasseia; mas peço-lhe que faça rezar muito por este imenso vicariato, a fim de
que possamos ver estes povos convertidos ao amor de Jesus. Permitir-me-ei enviar-lhe notícias sobre a mi-
nha missão para o Mensageiro do Coração de Jesus.
Sou, etc.
P.e Daniel Comboni
Pró-vigário ap. de A. C.
Original francês
Tradução do italiano

N.o 537 (507) - ACORDO COM MONS. CIURCIA


ACR, A, c. 18/36

1873

ACORDO

3481
Entre S. Excia. rev.ma mons. Luís Ciurcia, arcebispo de Irenópolis, vigário apostólico do Egipto para os
latinos e delegado apostólico para os orientais do Egipto, da Arábia, da Síria, etc., etc. e P.e Daniel Comboni,
pró-vigário apostólico da África Central, com respeito aos institutos de negros do Cairo.
3482
Sob o nome de institutos de negros, em Dezembro de 1867, o sacerdote P.e Daniel Comboni, missionário
apostólico da África Central, com expresso consentimento de S. E. Rev.ma mons. Luís Ciurcia, arcebispo de
Irenópolis e vigário apostólico do Egipto para os latinos e depois ter participado à S. C da Propaganda Fide,
fundou no Cairo dois pequenos estabelecimentos: um masculino para a educação de negros, dirigido pelos
sacerdotes do Instituto das Missões para a Nigrícia, de Verona, e o outro, feminino, para a educação de ne-
gras, dirigido pelas Irmãs de S. José da Aparição.
3483
Estes institutos permaneceram de maneira absoluta sob a jurisdição de S. E. rev.ma mons. Luís Ciurcia,
como vigário apostólico do Egipto, o qual teve por eles um interesse paternal e assim puderam produzir al-
gum fruto em favor dos pobres negros mais abandonados. Mas como o objectivo de tal fundação tinha como
fim principal alguma missão na Nigrícia interior, tendo agora confiado a Santa Sé o vicariato apostólico da
África Central ao Instituto das Missões para a Nigrícia de Verona, e tendo sido encarregado da sua direcção
o sac. P.e Daniel Comboni, com o título de pró-vigário apostólico, S. E. Rev.ma mons. Luís Ciurcia, como
vigário apostólico do Egipto, expressou o desejo de que se chegue a um acordo recíproco, a fim de evitar
todo o conflito jurisdicional também no futuro sobre a existência dos mesmos institutos de negros do Egipto.
Por isso, o acima referido pró-vigário apostólico da África Central submete humildemente à aprovação de S.
E. Rev.ma os seguintes

Acordos

3484
1.° Os institutos de negros do Cairo estão canonicamente reconhecidos no vicariato apostólico do Egipto,
com o duplo objectivo de aclimatar os missionários, os irmãos coadjutores e as irmãs provenientes da Europa
e destinados às missões da África Central e de educar negros de ambos os sexos na fé e na civilização cristã.
3485
2.° Estes institutos preparatórios para as missões da Nigrícia são mantidos em tudo pelo vicariato apostó-
lico da África Central. Contudo são livres em receber uma pensão pela educação dos seus alunos e pelos
serviços que prestassem, públicos ou individuais, ou por remunerações gerais que fossem efectuadas a todos
os institutos do Egipto em geral ou a eles em particular.
3486
3.° Sua Excia. rev.ma o vigário apostólico do Egipto tem sobre eles a jurisdição que lhe é atribuída ao seu
ofício pelo direito comum e eclesiástico; portanto, tem o direito à visita pastoral, à vigilância sobre os seus
sacerdotes e irmãs, a regular a administração dos sacramentos, à prescrição de orações públicas e ao castigo
dos infractores públicos.
3487
4.° No que respeita à organização interna dos institutos, ao pessoal da direcção e ao superiorato dos
mesmos, à direcção espiritual das irmãs, ao dispor dos missionários e das irmãs, segundo as necessidades das
missões da África interior, reconhece-se a competência do pró-vigário apostólico da África Central, tendo
em conta sobretudo a finalidade própria dos institutos. Pelo que se lhe reconhece igualmente o direito de dar
dimissórias, remissórias e patentes aos seus missionários residentes nos institutos de negros, como seu supe-
rior ordinário, quando não entrarem em conflito com os direitos do vigário apostólico do Egipto.
3488
5.° Dada a enorme distância a que se encontram estes institutos de negros da sede do pró-vigário apostóli-
co da África Central, roga este a Sua Excia. rev.ma o vigário apostólico do Egipto que intervenha em seu
nome também na ordem interna nos seguintes casos: a) rebelião aberta, escandalosa, dos subordinados contra
o superior; b) manifesta incapacidade do superior para desempenhar o seu cargo, quer por doença quer por
infâmia proveniente de infracções públicas; c) morte repentina do mesmo. Nestes casos poderá exercer a sua
autoridade sobre os subordinados ou sobre o superior, substituindo-o eventualmente, até novas disposições
do pró-vigário apostólico da África Central.
3489
6.° S. E. rev.ma mons. o vigário apostólico do Egipto, de acordo com o superior dos institutos de negros,
poderá dispor para o serviço espiritual do seu vicariato, quando o desejar, dos sacerdotes missionários que
viverem durante algum tempo nos institutos de negros e sobre os quais o pró-vigário apostólico da África
Central não tiver disposto de modo diferente.
3490
7.° Finalmente, o pró-vigário apostólico da África Central obriga-se para com S.E. Rev.ma mons. o vigá-
rio apostólico do Egipto a comunicar-lhe oficialmente as pessoas que escolher para superior e director dos
institutos cada vez que houver uma nova nomeação; e por sua parte a rev.ma cúria do vicariato apostólico do
Egipto comunicará ao pró-vigário apostólico da África Central, ou à sua cúria, as disposições extraordinárias
tomadas em favor ou contra o pessoal dos institutos nos casos urgentes e os motivos que as causaram.
3491
Como o fim do sublime apostolado dos chefes das missões não é senão a glória de Deus e a salvação das
almas, não há dúvida de que a generosa cooperação dos ilustres vigários apostólicos do Egipto e da África
Central na consolidação e desenvolvimento desta missão redundará grandemente na glória do Senhor e será
fonte de benefícios para a infeliz Nigrícia.

N.o 538 (508) - NOTAS SOBRE A RELAÇÃO


DO P.e ESTANISLAU CARCERERI
ACR, A, c. 19/6 n.2

1873

N.o 539 (509) - DO LIVRO DE BAPTISMOS DE CARTUM


ACR, A, c. 10/9

Cartum, 1873

N.o 540 (1161) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


«Annali Buon Pastore» 5 (1873), p. 13

El-Obeid, 1873

Breves notícias.
N.o 541 (510) - LISTA DOS CONFIRMADOS EM CARTUM
ACR, A, c.10/1 ii

Cartum, 1873
1874

N.o 542 (512) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


«Les Missions Catholiques» 249 (1874). p. 129

Cartum, 6 de Janeiro de 1874

3492
Depois de os meus exploradores deixarem o território dos Nuba, onde estiveram pouco tempo, o grande
chefe Kakum enviou a El-Obeid um dos seus oficiais para me comunicar que muitos chefes das montanhas,
ao inteirarem-se da chegada dos missionários, se tinham dirigido a Delen (Mako na língua nuba) para os
verem e que, com o sabido respeito por eles, tinham pedido ao chefe Kakum que nos convencesse para que
fôssemos estabelecer-nos nas suas terras. Se eu tivesse cem missionários poderíamos fazer um grande bem.
3493
Este enviado de Kakum encontrou-se no caminho de El-Obeid com uns árabes nómadas Bagara, que são
muçulmanos. Perguntaram-lhe se também era cristão, porque os Nuba, depois da nossa exploração, se dizem
já cristãos. Tendo-lhes respondido ele afirmativamente, os árabes despojaram-no do seu «ghorbab» (rico
vestido dos Nuba) e bateram-lhe. O enviado chegou a El-Obeid no mesmo dia da minha partida para Cartum.
Assegurei-lhe que nos iríamos estabelecer entre eles e ofereci-lhe uma camisa. Ele regressou muito satisfeito.
3494
Há quarenta e nove dias que saí de El-Obeid e os meus missionários escrevem-me a dizer que os Nuba
não deixam de enviar mensageiros para saberem quando vamos para as suas terras. Parece que a hora da
salvação chegou para este povo. Espero, portanto, que possamos formar aí uma comunidade cristã que nos
torne possível o apostolado nas outras tribos.

P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 543 (1206) - NOTA NUMA CARTA


ACR, A, c. 28/2 n. 8

Cartum, 14 de Janeiro de 1874

N.o 544 (513) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÓ


AP SC, Afr. C., J. 8, f. 176

J. M. J.
Cartum, 20 de Janeiro de 1874

Em.o e Rev. mo Príncipe,

3495
Tenho a satisfação de enviar a V. Em.a o relatório anexo sobre a exploração a terras dos Nuba, que me
mandou o P.e Carcereri, do qual não tardará em ouvir de viva voz interessantes pormenores. Dado que estas
tribos se encontram apenas a quatro dias de distância de El-Obeid, poderíamos começar desde agora a pôr as
primeiras pedras do planeado edifício espiritual, que talvez venha a ter transcendentais consequências para a
redenção da Nigrícia. Não deixarei de lhe comunicar toda a informação oportuna e a maneira de actuar que
creio mais conveniente para empreender esta nova missão; porém isto, quando o meu braço estiver discreta-
mente restabelecido.
Agradecendo a V. Em.a rev.ma pelas suas estimadas cartas, n.os 4 e 5, a que responderei logo que seja
possível, beijo-lhe a sagrada púrpura e declaro-me nos Sagrados Corações de J. e M.
De V. Em.a rev.ma
Hum., devot.mo e obed.mo. filho
e
P. Daniel Comboni, pró-vig. apostólico

N.o 545 (514) - ORAÇÃO PELA ÁFRICA E DECLARAÇÃO


ACR, A, c. 25/21

Cartum, 25 de Janeiro de 1874

ORAÇÃO
PELA CONVERSÃO DOS CAMITAS DA ÁFRICA CENTRAL
À IGREJA CATÓLICA

3496
Roguemos pelos mui desditosos povos negros da África Central, que constituem a décima parte do total
género humano, a fim de que Deus, que tudo pode, elimine finalmente dos seus corações a maldição de Cam
e lhes conceda a bênção que só em nome de Jesus Cristo, Deus e Senhor Nosso, se pode conseguir.
ORAÇÃO

3497
Ó Senhor Jesus Cristo, único Salvador de todo o género humano, que já dominas de um mar ao outro e
desde o rio até ao extremo do mundo, abre propício o teu sacratíssimo Coração também às infelicíssimas
almas da África Central, que jazem ainda nas trevas e na sombra da morte, a fim de que, pela intercessão da
Santíssima Virgem Maria, Tua Mãe Imaculada, e do seu gloriosíssimo esposo José, abandonados os ídolos,
se prostrem em adoração perante Ti os etíopes e se agreguem à tua Igreja.
O qual vive, etc. Pater, Ave, Glória.
------------------
Segue o decreto da S. Congregação de Ritos.

Concorda com o decreto original existente nesta chancelaria do vicariato apostólico da África Central.
Dado em Cartum, África Central, pela chancelaria do mesmo vicariato apostólico, no dia 25 de Janeiro de
1874.
(Locus sigilli)

P.e Daniel Comboni


Pró-vig. apost. da África Central

N.o 546 (515) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


APFL, Répertoire des Lettres 1868-1881

Cartum, 1 de Fevereiro de 1874


Breve nota.

N.o 547 (516) - AO CARD. ALEXANDRE BARNABÒ


AP SC, Afr. C., v. 8, ff. 182-183

J. M. J.
Cartum, 22 de Fevereiro de 1874

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3498
Acabo de voltar do Nilo Branco, onde acompanhei até Tura-el-Khadra o piedoso e excelente missionário
e
P. João Losi, três Irmãs de S. José e outras pessoas, a quem em dezasseis camelos enviámos para o Cor-
dofão. Sua Excelência o paxá Ismail, governador-geral das possessões egípcias no Sudão, por essa razão, pôs
à minha disposição gratuitamente um grande vapor; e à hora em que V. Em.a Rev.ma receber esta carta, a
importante missão de El-Obeid contará com um novo instituto de religiosas missionárias, destinadas a fazer
aí um grande bem. Para esta finalidade já tenho desde há tempos comprada, paga e restaurada, uma cómoda
casa, separada da nossa igreja e residência por uma ampla via pública, chamada Derb-el-Sultania ou Rua
Imperial.
3499
Com o próximo correio enviar-lhe-ei uma breve informação geral sobre o estado actual do vicariato; quer
dizer, o que se fez até ao momento e o que teremos que fazer no futuro para implantar estavelmente a fé na
África Central.
3500
Agora limito-me a dar-lhe algumas notícias concretas sobre certas coisas, acessórias, mas importantes.
Logo que cheguei o ano passado a Cartum, eu, vendo que a nossa igreja era pequena, pensei levantar uma
com mais capacidade; mas, há três meses, ao voltar do Cordofão, vi que era urgentíssima a construção da
casa das irmãs, que até agora têm vivido num edifício arrendado e um pouco distante da missão. Esta minha
decisão foi muito do agrado do comité de Viena, que se pôs logo a procurar ajudas. Para construir a casa das
irmãs sob o projecto vindo de Viena já em 1854 são precisos pelos menos 200 000 francos; porém, com ape-
nas 50 000 francos, feito o cálculo exacto, espero com o mesmo desenho, construir para as irmãs uma parte
do edifício, ou seja, doze belas e sólidas salas, de 6 metros de comprimento por 5 metros e 48 centímetros de
largura cada uma, que sirvam hic et nunc de habitação, oficinas e aulas do instituto feminino, reservando a
prossecução da construção para quando tiver mais meios.
3501
Como fazer isto era algo que eu tinha na mente desde há meses, tinha assinado já uma letra de câmbio por
conta do meu ecónomo S. José; e agora vejo que esse cavalheiro de velho (sob cuja barba se esconde o di-
nheiro para levantar dentro de um ano os dois estabelecimentos entre os povos Nuba e que lhe atribui uma
taxa de 50 000 francos por ter permitido nas planícies do Cordofão a minha terrível queda do camelo na qual
parti o braço) demonstra prestar honra à minha firma; porque, apenas em quinze dias, S. José fez-me receber
a não desprezível importância de 30 540 francos em ouro, entre os quais se contam 4000 fr. que me mandou
S. A. Francisco V, arquiduque da Áustria Este, duque de Módena, com uma longa carta de três folhas inteiri-
nhas que me escreveu com o seu punho e letra este catolicíssimo abastado príncipe, que está entusiasmado
com a obra da Nigrícia; e os 12 500 fr. que me deram Suas Majestades Apostólicas o Imperador Fernando I e
a Imperatriz Maria Ana Pia de Áustria (irmã da venerável Maria Cristina, rainha de Nápoles), dinheiro que
me foi anunciado com carta de 13 de Dezembro vinda do castelo imperial de Praga e cuja entrega foi efectu-
ada ao comité mariano de Viena para que o fizesse chegar às minhas mãos. Esta casa Imperial, que conheço
pessoalmente, em pouco tempo forneceu-me em esmolas para a minha santa Obra africana 32 995 francos
em ouro, e tenho a esperança de que continue a conceder-me a sua protecção no futuro.
3502
A África Central precisa de meios gigantescos, mas S. José é um administrador excelente e o S. Coração
de Jesus abunda em misericórdia e em dinheiro. Além disso, agora que a exímia caridade de V. Em. a fez
aprovar a oração em latim que lhe mandei de Cartum em Junho do ano passado pro conversione chamitarum
Africae centralis ad Ecclesiam Catholicam e que o nosso Santo Padre enriqueceu com indulgência plenária
para quem a rezar todos os dias durante um mês e trezentos anos para quem a rezar uma vez, asseguro-lhe
que a África Central será bem provida de tudo; porque essa oração, quando se difundir por todo o orbe cató-
lico, produzirá orações e vocações e dinheiro, que serão as três coisas necessárias para converter a infeliz
Nigrícia.
3503
Porém, volto à construção da casa das irmãs em Cartum: no dia 9 do corrente abençoei a primeira pedra e
com os mais de trinta homens que trabalham lá, com os 600 ardeb de cal comprada e paga, com os 400 000
tijolos grandes comprados e pagos e com as 300 pequenas traves de sunt (madeira forte como ébano) e 20
grossas vigas de sunt (que paguei a sete escudos cada uma), já se levantaram os fundamentos e para Junho as
irmãs estarão a ocupar a nova residência. Graças a isto espero fazer coisas sólidas e duradouras. Creio que o
Sagrado Coração de Jesus está connosco e que me ajudará a vencer os inimigos da santa obra.
3504
Não é difícil que eu visite dentro de pouco o território das antigas estações do Nilo Branco – Santa Cruz e
Gondokoro – até perto das nascentes do Nilo. E espero que S. E. o paxá governador-geral do Sudão (que
visita pela primeira vez Gondokoro, onde se estabeleceu uma nova muderia ou província egípcia) e o próprio
cônsul austríaco, que já foi professor da missão em Gondokoro, acompanhar-me-ão com três embarcações a
vapor. Em apenas dois meses farei esta visita, porque o vapor emprega só 15 dias a ir de Cartum a Gondo-
koro, enquanto com os barcos a vela não bastariam cinco meses e 5000 francos de gastos para fazer esta visi-
ta pastoral e haveria que sofrer incrivelmente. Em contrapartida, com os vapores do paxá vai-se comodamen-
te e não há outros gastos além de umas gorjetas aos capitães e marinheiros.
3505
Quero oferecer-lhe aqui uma nova prova da importância enorme da missão de El-Obeid como verdadeira
porta da Nigrícia e como ponto de partida e base de operações para implantar a fé na parte central do vicari-
ato. Trata-se do facto de o reino e império de Darfur, cujo território começa a três jornadas de El-Obeid e
cuja capital e residência do sultão se encontram a quinze dias de camelo, está a ponto de se converter numa
província egípcia. Gibert Bey, governador de Schiaka, no Bahr-el-Gazal, situado a sul de Darfur, atacou este
reino com o falso pretexto de que gentes do mesmo iam a essa província exercer o tráfego de negros; e saiu
vitorioso de uma decisiva batalha, em que matou o vizir do sultão de Darfur.
3506
O grande paxá de Cartum (que me comunicou estas notícias lendo-me as cartas escritas pelo punho e letra
de Gibert Bey e os telegramas trocados entre eles e o quedive do Egipto) enviou a El-Obeid tropas de reforço
e ordenou ao governador daí que atacasse Darfur pela parte oriental. Darfur ficou fechado hermeticamente
com a destruição dos poços que o circundam; porém, o governador-geral enviou cinco mil camelos com água
aos egípcios e estes, como possuem artilharia e armas de fogo em boas condições, alcançarão sem dúvida a
vitória. Darfur está fechado para os estrangeiros desde há séculos e é lei antiga daqueles sultões é condenar à
morte toda a pessoa estrangeira. Isto sempre se cumpriu, salvo alguma rara excepção, como aconteceu com o
actual paxá do Cordofão, que, como ele mesmo me confessou, há doze anos foi a Darfur levar ricas prendas
do vice-rei do Egipto, mas passou lá vinte e dois meses como refém; e contou-me o muito que sofreu, porque
todos os dias temia ser assassinado.
3507
Pois bem, se Darfur chegasse a converter-se em província egípcia, a verdadeira Igreja de J. Cristo não
tardaria muito em encontrar-se em situação de implantar aí a cruz. E ainda que Darfur esteja exactamente nas
mesmas condições que o Cordofão – é muçulmano –, a sua capital, Tendelti, poderia converter-se na porta
mais próxima do vasto império de Bornu, ou seja, tornar-se no que El-Obeid é agora para os povos Nuba e
outras imensas tribos do centro do vicariato. Além disso, o governador-geral assegurou-me francamente que
o quedive do Egipto tem intenção de se estender até ao império de Bornu. Porém, sobre isto, escrever-lhe-ei
mais adiante.
3508
Entretanto, é necessário que nós asseguremos a nossa acção sobre os povos Nuba, empresa para a qual es-
tou certo que será favorável o sábio juízo de V. Em.a Contudo, eu não faço nada sem ouvir o oráculo da Pro-
paganda, na firme convicção de que Deus abençoará os meus passos quando forem guiados pela S. C., mes-
tra de prudência e sagacidade em tudo o que diz respeito a missões apostólicas.
3509
Parece que o quedive do Egipto finalmente conheceu os enganos de Baker e a autêntica realidade sobre as
suas pretensas vitórias e os seus descobrimentos dos caminhos entre Gondokoro e Zanzibar. Pelos vistos está
fortemente irritado contra esse fura-paredes, que devorou 29 milhões de francos, sem ter ultrapassado os
confins da missão católica de Gondokoro. Agora enviou outro coronel inglês, que antes se ocupava em tare-
fas de navegação no Danúbio e encarregou-o de tentar levar a cabo a empresa de Baker. Em todo o caso, é
interesse da missão da África Central manter e consolidar as boas relações com o Governo egípcio e usar a
máxima prudência ao tratar com ele, para conduzir ao sucesso o importante assunto da escravidão. Eu fiz
sérios estudos sobre este ponto, que é preciso tratar sabiamente, porque poderia ser fonte de imenso bem para
a fé, mas também motivo de tropeço e de consequências funestas, se não se adoptasse a máxima prudência.
Beija-lhe a púrpura

Seu hum. e devot.mo filho


e
P. Daniel Comboni, pró-vig. ap.

Responderei às suas veneradas cartas sobre os acordos com o delegado apostólico e com a madre geral; o
e
P. Carcereri conduz as conversações.
N.o 548 (517) - A P.e ESTÊVÃO VANNI
AVAE, c. 31

Cartum, 1 de Março de 1874

Dimissórias.

N.o 549 (518) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

N.o 2
Cartum, 8 de Março de 1874

Minha caríssima madre geral,

3510
Dentro de poucos dias escrever-lhe-ei uma longa carta; por agora encontro-me muito ocupado. A nossa
admirável Ir. Josefina está a ir para a eternidade. Há vinte dias que lhe administrei a santa unção e lhe fiz
receber a bênção papal. Hoje encontra-se melhor, mas penso que antes de acabar este mês de S. José ela esta-
rá no Céu. Ficaria muito contente poder conservá-la durante cinquenta anos, mesmo que na cama: é uma
digna heroína cristã.
3511
No primeiro dia deste mês as nossas irmãs Germana, Madalena e Inácia chegaram ao Cordofão e entra-
ram triunfalmente na capital, El-Obeid. Todos estavam contentes por saudarem estas gloriosas virgens de S.
José, que tiveram a valentia de superar todas as grandes dificuldades para irem, as primeiras, para a missão
mais central da África, onde o Evangelho nunca tinha penetrado até ao ano de 1872. Escrever-lhe-ei para
resolver e acertar os nossos assuntos. Na espera, apresso-me a rogar-lhe que mande para o Cairo numerosos
irmãs árabes como a Ir. Ana, a Ir. Germana e a Ir. Josefina. Espero que, depois da festa de S. José, a madre
possa dispor, pelo menos, de meia dúzia delas. Estou-lhe infinitamente agradecido pela sua bondade, minha
boa madre, porque me tinha destinado também a entretanto falecida Ir. Abdu. A madre faz o possível para vir
em ajuda da missão.
3512
Actualmente estou em comunicação com a Ir. Angélica, que desejo venha para a África Central. Uma ir-
mã árabe, minha madre, vale aqui por dois missionários. Mas não todas as irmãs árabes: têm que ser como
Sóror Josefina, Sóror Germana e Sóror Ana. Por amor de Deus, esvazie provisoriamente a Síria e Palestina
de irmãs árabes e mande-mas a mim. Este ano vou abrir uma nova missão entre os povos Nuba, a sudoeste
do Cordofão e aí precisam-se já irmãs árabes para responder aos desejos desses povos, que querem abraçar a
nossa santa Fé. Encomendo-me ao seu coração de Madre.
3513
A casa de Cartum continua em construção. Só para os alicerces de doze salões que estarão terminados em
Junho tiveram que se usar 202 000 tijolos de 25 centímetros de comprimento por doze de largo e seis de
espessura. Dentro de dois anos será um grande palácio com um esplêndido jardim. A Ir. Germana diz que
gosta mais de Cartum que de Marselha. A construção está junto de dois rios magníficos.
Vou escrever ao presidente da Propagação da Fé dizendo-lhe que, por minha conta, lhe pague três mil
francos, isto é, o restante do assunto Lorenzo. Adeus, minha madre! Saúde da minha parte a Ir. Catarina e as
irmãs de Roma. E rogue a fim de que eu obtenha paramentos para a igreja.

Seu filho P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 550 (519) - A MONS. JERÓNIMO VERZERI


ACR, A, c. 15/179
J. M. J.
Cartum, 10 de Março de 1874

Excelência rev.ma,

3514
Devo confessar francamente que faltei ao meu dever e às imperiosas exigências do meu coração ao guar-
dar silêncio durante tanto tempo. Imitei à letra os pecadores que sempre adiam. Logo que nomeado pela San-
ta Sé pró-vigário apostólico da África e, regressando a correr a Verona, tinha pensado em passar por Bréscia
e ir até Limone; mas a necessidade de ir a Viena e partir rapidamente para o Cairo impediram-me, com muito
pesar meu, de ir a Bréscia e ficar aí um dia, como era meu propósito. Porém, a partir do Cairo, de Cartum e
do Cordofão, desejava ardentemente informar V. E. e o seu venerável e rev.mo secretário dos felizes pro-
gressos da árdua empresa africana. Mas não o fiz; espero bem, contudo, que os pequenos Anais do B. Pas-
tor, que, por ordem minha, devem ter-lhe chegado às mãos apenas publicados, e talvez as “Missões Católi-
cas”, lhe tenham dado uma pálida ideia da minha santa obra.
3515
Em qualquer caso e pedindo-lhe perdão por tão prolongado silêncio, posso assegurar-lhe que, na minha
indignidade, nem um só dia deixei de rezar e fazer rezar aqui, no coração da Nigrícia, por V. E. Rev.ma, pelo
rev.mo Carminati e por toda a minha cara diocese natal de Bréscia; de todos guardo a mais viva e inesquecí-
vel recordação. Agora vou dar-lhe só uma rapidíssima notícia do bom andamento desta obra do Sagrado
Coração, porque o meu braço, que tenho partido, me impede de me alongar. No dia 16 de Novembro, com o
meu vigário-geral, saí de El-Obeid, capital do Cordofão, para voltar à minha residência principal, em Car-
tum. No dia 25, pela manhã, aos nove dias de uma fadigosa viagem a camelo, a minha montada, já enlouque-
cida e assustada, deitou a correr mais veloz que um cavalo e acabou por me atirar ao chão, onde fiquei meio
morto e vomitando sangue. Nem sequer tempo tive de me encomendar ao Sagrado Coração. Tendo-me resta-
belecido um pouco, apercebi-me que tinha o braço esquerdo fracturado.
3516
Mandei montar a tenda no deserto e, depois de estar quarenta e duas horas seguidas com o braço metido
em água e vinagre de tâmaras, tive de montar de novo a camelo e viajar sobre a montada durante cinco dias,
para não perecermos no deserto. A cada passo do animal renovavam-se as dores lancinantes no braço es-
querdo, partido e contuso. Só Deus sabe o que sofri. Quando por fim cheguei ao Nilo Branco, a Ondurman, o
grande paxá de Cartum enviou-me o seu vapor, que me levou à missão. Porém, em toda a África Central não
existe um médico conhecedor dos primeiros rudimentos de medicina e cirurgia.
3517
O nosso médico é Jesus crucificado. O paxá mandou-me o seu esfola-gatos que me ligou o braço e mo
atou ao pescoço. Durante oitenta e dois dias tive-o assim, amarrado ao pescoço, com terríveis dores. E o bra-
ço ficou mal unido e torto sem força para mexer uma folha. Celebrei missa a dois de Fevereiro, embora com
grandes dificuldades, e obrigado a segurar a hóstia entre o dedo indicador e o médio, porque não podia unir o
polegar com os outros dedos. Depois de muitos pedidos da minha superiora árabe, pedi que me visitasse um
que dizia ser médico, também árabe. Veio na véspera de S. Faustino e de Jovita. Era um Sansão pela força e
um Judas Iscariotes pela atitude. Examinado o braço, assegurou-me que em vinte e quatro horas estaria cura-
do se eu deixasse fazer uma operação. Consenti.
3518
No dia seguinte apresentou-se com oito estaquinhas de palmeira, um punhados de pelos de cabra, um
pouco de cauda de tigre e goma. Era acompanhado de outros dois esfola-gatos muçulmanos. Agarrou-me o
braço e, ajudado pêlos outros dois, torceu-mo literalmente, para depois, servindo-se do seu polegar, com toda
a força de que era capaz, empurrar o osso que sobressaía meio dedo, até levá-lo ao sítio. Finalmente, impreg-
nou com a goma uma tela de linho, na qual pôs os pêlos de cabra e a cauda do tigre e envolveu-me com ela o
braço. Atou depois à volta as estaquinhas de tal modo que parecia detida a circulação do sangue e deixou-me
assim, meio morto, no angareb (espécie de catre onde dormíamos). Quanto deveu sofrer Jesus Cristo quando
o ataram e pregaram na cruz! Mas o facto é que, ao cabo de oito dias de ter o braço sempre assim amarrado,
achei que estava quase curado, com o osso de novo no sítio; e agora que lhe escrevo encontro-me em condi-
ções de trabalhar como antes. Disto devo dar graças primeiro ao Senhor, depois a S. José e depois a esse
medicozinho turco, que me curou à sua maneira pouco amável e delicada, mas eficaz.
3519
Não é que as tenha poupado ao meu caro ecónomo S. José, a quem me tinha encomendado para uma feliz
viagem do Cordofão a Cartum. Por este querido santo ter permitido que eu tivesse tão terrível queda do ca-
melo, multei-o a mil francos de ouro por cada dia que tivesse de levar o braço amarrado ao pescoço. E como
o tive atado ao pescoço uns bons 82 dias, sem eu poder dizer missa, salvo cinco vezes, o meu venerado ecó-
nomo foi condenado a pagar-me a multa de 82 000 francos. Assim, no dia de S. Faustino e de St.a Jovita,
protectores da nossa querida diocese de Bréscia (dia 82.o da minha terrível queda no deserto), assinei por
conta do meu querido santo uma letra de quatro mil e cem marengos com vencimento a seis meses; e já vejo
que o bom ecónomo, como sempre, honra a minha assinatura, porque, desse dia até hoje em que escrevo a V.
E., recebi 38 706 francos em ouro, entre os quais estão os 5000 florins que me mandaram de Praga esse mi-
lagre que são S. M. apostólica a imperatriz Maria Ana e o imperador Fernando I e os 4000 francos recebidos
de Viena daquela jóia de príncipe católico que é S. A. imperial e real o duque de Módena, Francisco V.
3520
E depois, embora o meu ecónomo tenha sido muito pobre na sua vida, agora ele que é o administrador dos
tesouros do céu, nunca deixou de me ajudar e em só seis anos e meio desde que comecei a obra forneceu-me
600 000 francos, ou seja, pagou-me letras no valor de trinta mil marengos. Asseguro-lhe, monsenhor, que o
banco de S. José é mais sólido que todos os bancos de Rotschild. Deste modo, sem me encontrar com um
cêntimo de dívidas, este estupendo ecónomo mantém para a Nigrícia duas casas em Verona, duas no Cairo,
duas em Cartum e duas em El-Obeid, a capital do Cordofão, que tem mais de 100 000 (cem mil) habitantes e
onde, pela primeira vez, se celebrou missa e se adorou J. C. em 1872.
3521
Alarguei-me de mais sem dar conta. Passo a dar-lhe uma breve informação sobre o andamento da minha
obra. No dia 26 de Setembro de 1872 deixei Verona com uma expedição de 13 pessoas. Depois, tendo acer-
tado muitos assuntos no Cairo, a 26 de Janeiro de 1873 saí dessa metrópole em duas grandes embarcações
fluviais com trinta e um acompanhantes, entre missionários, freiras de S. José da Aparição, irmãos artesãos e
mestras negras; e subindo o Nilo e cruzando o grande deserto de Atmur sob 60 graus Réaumur desde o meio
dia até às quatro, depois de 99 dias de penosíssima viagem, chegámos a Cartum, onde fomos recebidos com
grande júbilo por gente de todas as classes. Depois de um mês de estada nesta capital (de 48 000 habitantes),
a bordo de um vapor que me facultou gratuitamente o grande paxá do Sudão – com o qual vivo em muito
mais amistosa harmonia que a existente entre os pobres bispos de Itália e seus governadores civis e presiden-
tes de junta – parti de novo pelo Nilo Branco até Tura-el-Khadra. Aí fiz-me ao caminho em dezassete came-
los para atravessar as intermináveis planuras dos Hassanieh e dos Bagara e só em nove dias de rápida marcha
cheguei a 19 de Junho à capital do Cordofão, El-Obeid, onde os turcos me receberam com não menor festa
que em Cartum.
3522
Quando em Outubro de 1871 ordenei desde Dresden ao P.e Carcereri, meu actual vigário-geral e então
vice-superior dos institutos de negros do Egipto, que partisse do Cairo com outros três companheiros para
efectuar a exploração do Cordofão, pus-lhe à disposição 5000 francos para esta longa e fadigosa viagem
exploratória. Hoje temos em El-Obeid uma paróquia, duas casas pagas – uma para os missionários outra para
as irmãs – e uma missão em plena actividade. Algo semelhante acontece em Cartum, onde desde 1863 até
1869 não havia mais que um padre franciscano e, até Janeiro de 1873, só dois padres da mesma ordem, numa
boa casa construída pelos missionários alemães sob a direcção do meu ilustre antecessor, mons. Knoblecher,
em 1856; em contrapartida, agora há dois institutos, uma discreta paróquia e a nova casa que estou a cons-
truir para as Irmãs de S. José, as quais fazem ali um grande trabalho.
3523
Pois bem, a quem devo estes bons resultados? Inteiramente ao S. Coração de Jesus, a quem consagrei to-
do o vicariato, com a bênção do Santo Padre Pio IX, a 14 de Setembro, em que celebrámos uma soleníssima
função, precedida do solene baptismo de 12 adultos e concluída com a confirmação de 25 neófitos. Compôs
a fórmula da consagração o apóstolo do S. Coração, o P.e Ramière. Ao mesmo tempo, em Cartum, eu redigi
em latim uma pequena oração pela conversão dos meus cem milhões de camitas, que são a décima parte do
género humano (e que constituem o vicariato apostólico da África Central, o maior e mais populoso do mun-
do). Agora o Santo Padre Pio IX concedeu a magnífica indulgência de 300 anos a quem reze uma só vez essa
oração e indulgência plenária a quem a reze todos os dias durante um mês.
3524
Veja V. E. quanto interesse tem o Papa por esta santa obra, nascida a 18 de Setembro de 1864, dia da bea-
tificação de Alacoque. Escrevi depois ao Santo Padre Pio IX para me conceder que sexta-feira depois da
oitava do Corpus Domini, consagrado ao dulcíssimo Coração de Jesus, em todo o vicariato da África Central
seja dia santo de guarda e se celebre com rito duplo de primeira classe, com oitava; porém, ainda não obtive
resposta, porque é um assunto grave e Roma é eterna. Mas eu não deixarei de insistir até que a Santa Sé me
conceda esta graça.
3525
É o Coração de Jesus que deve converter a Nigrícia. Parece que o Santo Padre concedeu tal graça à Repú-
blica do Equador, na América, postulantibus aquele presidente e o arcebispo de Quito; por isso espero que
seja concedida também a esta minha abandonada parte do mundo africano equatorial, que há tantos anos jaz
nas trevas da morte.
3526
Todos os meus esforços até hoje foram no sentido de consolidar e estabelecer bem as duas missões capi-
tais de Cartum e El-Obeid, que são a base de operações para levar a fé a todas as imensas tribos do vicariato.
3527
Cartum é a base de operações para levar a fé a todas as tribos da parte oriental do vicariato, que se esten-
de entre a Abissínia, os Gallas e o Nilo Branco até às nascentes do Nilo, a doze graus de latitude sul, onde
termina a minha jurisdição. El-Obeid, que constitui a verdadeira porta da Nigrícia, é a base de operações
para levar a fé a todas as tribos, reinos e impérios que a parte central do meu vicariato contém. O clima de
El-Obeid é saudável e espero conseguir que se instale lá um consulado austro-húngaro, cuja bandeira é nesta
região símbolo de protecção da religião católica.
3528
Com base neste plano de organização do movimento do apostolado da África Central, o Coração de Jesus
suscitou em nós um novo caminho para o nosso trabalho evangelizador. No passado dia 16 de Julho, dia
consagrado à Virgem do Carmo, quarta-feira, às oito da manhã, quando saíamos de fazer a hora de adoração
da Guarda de Honra do Sagrado Coração (que estabeleci para todas as quartas-feiras, com exposição do San-
tíssimo, em todo o vicariato e nos institutos de negros do Cairo), um chefe dos povos Nuba, vasta tribo do
Sudoeste do Cordofão, entrou na missão com um séquito de quinze pessoas e convidou-me a levantar uma
igreja e duas casas na sua tribo de Delen, na qual todos estariam dispostos a tornar-se cristãos. Como tenho
bastante experiência no trato com os negros e os turcos e os conheço, mostrei-me disposto a cumprir as aspi-
rações daqueles povos, mas fui cuidadoso em acreditar; por isso pedi ao chefe que voltasse em Setembro,
para, entretanto, eu medir as minhas forças e obter as devidas informações.
3529
Entre o Cordofão e os Nuba vivem os nómadas Bagara, que se entregam a assassinatos e ao comércio de
negros, etc. Uma vez partido esse chefe, procurei informações exactas, sondei o paxá do Cordofão, etc. Fo-
ram-me oferecidos duzentos soldados para acompanhar os meus exploradores aos montes dos Nuba. O facto
é que na manhã do dia da Assunção da Virgem Maria, dia 15 de Agosto, decidi levar a cabo a exploração
daqueles povos, ainda não visitados por nenhum europeu e todos idólatras. Portanto ordenei ao meu vigário-
geral, que estava aqui em Cartum, que, no dia seguinte à solene consagração do vicariato ao Sagrado Cora-
ção de Jesus, que ele devia efectuar em Cartum, partisse com as convenientes provisões para El-Obeid, onde
prepararíamos juntos tão importante expedição.
3530
Enquanto, efectivamente, ele vinha de viagem, a 24 de Setembro, dia consagrado à Virgem das Mercês,
também uma quarta-feira pela manhã e depois de fazermos a hora de adoração pela Nigrícia, o grande chefe
dos Nuba, que é mago, rei, sacerdote e médico, entrou na missão acompanhado de mais de vinte pessoas e
repetiu-me o convite para que eu implantasse a Igreja no seu país. Ficou muito contente quando lhe disse que
vinha de viagem o missionário que devia ir visitar as suas tribos, escolher o lugar onde fundar a missão e,
depois, regressar para fazer os preparativos e procurar o necessário para essa fundação. O chefe visitou a
igreja e ficou impressionado ao contemplar a imagem da Ss. Virgem e o quadro do Sag.do C. de Jesus e so-
bretudo ao ver-me tocar acordeão e o pequeno órgão da igrejinha. Também ficaram admirados ao verem as
enxadas, picaretas, serras e outros instrumentos de artes e ofícios. Em suma, ficou connosco uns dias e foi-se
embora.
3531
Chegado o P.e Carcereri, despachou os duzentos soldados, contentando-se com um guia e, acompanhado
de outro missionário e mais sete pessoas, partiu para o território Nuba. Recebido aí com entusiasmo, deter-
minou o primeiro lugar da missão, após o que regressou a El-Obeid. Os interessantíssimos pormenores dessa
expedição, assim como de todo o vicariato, poderá V. E. Rev.ma ouvi-los da boca do meu próprio vigário-
geral, o P.e Carcereri, que enviei à Europa, quer dizer, a Roma, Viena, Verona e Paris, por causa de assuntos
da missão. No momento em que escrevo, ele deve ter chegado ao Cairo, pois saiu de Cartum a 11 de Dezem-
bro do ano passado. Encarreguei-o de ir saudar V. E. Rev.ma e o veneradíssimo Carminati.
3532
Talvez o Senhor faça com que a minha querida pátria, a diocese de Bréscia, me dê algum santo e capaz
missionário bresciano ou algum bom operário ou irmão coadjutor. Logo que Carcereri chegue a Bréscia,
suplico-lhe humildemente que o encaminhe para visitar as Filhas do S. Coração, onde morreu a sua venerá-
vel irmã, bem como o nascente instituto do excelente P.e Pedro, em Castello, as irmãs Girelli, em C. da S.
António e o P.e Rodolfi. Espero que a estada do meu representante em Bréscia sob as asas de V. E. seja
abençoada pelo Sag.do Coração. A minha prima Faustina Stampais, de Maderno, que abriu a casa feminina
do Cordofão, que é filha de S. Ângela sob a direcção das piíssimas e boas irmãs Girelli, pede-me que apre-
sente os seus respeitos a V. E., de quem recebeu a confirmação.
3533
No dia 11 de Dezembro chegava-me a Cartum uma segunda caravana de irmãs e missionários. Agora
também El-Obeid dispõe de um instituto de irmãs. Uma delas, Ir. Xavérine, de Bayeux, na França, por detes-
tar o camelo, que é uma cavalgadura molestíssima, fez quatro dias de burro através do deserto; porém, como
à quinta noite as hienas devoraram o lombo e duas patas do asno, percorreu o deserto a pé durante treze dias,
viajando treze ou catorze horas diárias, às vezes sob 50 e 60 graus Réaumur. Chegou-me a Cartum muito
cansada; mas agora está muito bem.
3534
Não lhe posso exprimir com palavras a favorável impressão que fizeram as irmãs a estas gentes. É a pri-
meira vez, desde que o mundo é mundo, que esposas de Cristo vêm até estas abrasadas extensões. À sua
chegada, muitos turcos ficaram atónitos ao vê-las chegar. Havia quem julgava serem homens vindos da Lua
e quem as via como mulheres, mas de outra raça. O certo é que os turcos daqui sentem um grande respeito
pelas irmãs. Tenho-as de Jerusalém e também da Síria, monte Líbano, Arménia, França, Malta e Itália e to-
das falam três, quatro ou cinco línguas. Tenho-as jovens de vinte anos e outras de até quarenta. Porém, todas
estão munidas de uma forte e sólida educação religiosa, de uma provada moralidade e de uma enérgica cora-
gem: não temem as difíceis e perigosas viagens, dormem debaixo de uma árvore, onde horas antes talvez
tenha estado uma hiena ou um leão, repousam de noite sob a areia a céu aberto ou num canto duma velha
barca; entram nas casas dos infiéis, curam as suas chagas e convidam-nos à fé; vão aos tribunais; percorrem
os mercados e regateiam até ao cêntimo pela missão. Entretanto, outras ocupam-se da escola e da cultura
moral das meninas e apresentam-se perante o paxá e, com valentia e polidas maneiras, protegem a causa dos
desditosos. E fazem respeitar-se pelos turcos, pelos poderosos, pelos soldados, pelos africanos; trabalham
tanto pela Igreja e, às vezes, mais que os próprios missionários, até que os mais diligentes deles.
3535
Em suma, depois das experiências vividas com elas no meio dos maiores perigos, perante os quais se as-
sustariam na Europa os homens mais corajosos, estas filhas da caridade católica, com toda a calma e como se
fosse a vida normal, mostram atitudes serenas e fazem-se respeitar por todos. É, numa palavra, a força da
graça da vocação apostólica, que realiza estes prodígios nas missões. E, enquanto há dez anos muitíssimos
religiosos fugiram espantados destas areias ardentes, apesar de na Europa terem recebido uma vocação não
vulgar, elas insistem amiúde que nos lancemos para as tribos mais centrais, onde a necessidade é maior, para
levar a esses negros a eterna salvação.
3536
Enquanto a caridade de Cristo as sustenta nestes perigosos momentos, o seu coração arde de amor divino:
o Coração de Jesus é todo o seu consolo, a sua força, a sua vida. Ai, este mundo turbulento de hoje não pode
compreender as delícias que experimentam os amantes do Sacratíssimo Coração de Jesus, sofrendo e mor-
rendo por seu amor. Uma cruz, uma tormenta, uma aflição suportada pelo Coração de Jesus vale cem vezes
mais que as diversões e as falsas delícias do mundo.
3537
Desejaria, monsenhor, dizer-lhe algum dos admiráveis traços da graça da vocação das nossas Irmãs de S.
José da Aparição, que foram as primeiras entre todos os santos institutos da Igreja a enfrentar o deserto afri-
cano e a apresentar-se entre estes povos, os mais necessitados do mundo; mas agora limitar-me-ei a expor-
lhe um facto ocorrido no passado Outubro, quando eu me encontrava no Cordofão e o meu vigário-geral
estava entre os Nuba.
3538
Havia aqui em Cartum uma negra cristã de uns vinte e quatro anos, de nome Teresa, baptizada o ano pas-
sado e que estava ao serviço de um senhor cristão. Indo ao mercado fazer umas compras, foi raptada por um
muçulmano. Este, para segurar a sua presa, fez valer perante o cadi, ou juiz do tribunal, que Teresa era sua,
que tinha fugido de sua casa sem motivo e que indevidamente se tinha tornado cristã. O cadi perguntou à
jovem se era verdade que tinha fugido e se se tinha tornado cristã; ela respondeu que sim. Então o juiz apre-
sentou-lhe o Alcorão e ameaçou-a com quinhentas chicotadas e com a morte se não abandonasse o Cristia-
nismo e voltasse à religião maometana. Ela respondeu resolutamente que era cristã católica e que morreria
cristã. Então ataram-lhe fortemente os pés, despojaram-na da roupa e deram-lhe nos pés e em todo o corpo
trezentos golpes de corbach, chicote de pele de hipopótamo. Depois, insistiram em que ela abraçasse de novo
o Islamismo; perante a sua rotunda resposta negativa, deram-lhe, nas mesmas condições, outras trezentas
chicotadas e, depois, ainda mais duzentas: um total de oitocentas. O sangue brotava da carne rasgada; dos
ossos partidos saía a medula, mas a rapariga repetia apenas: “Ana nassrani”, “eu sou cristã”.
3539
Se eu tivesse estado em Cartum, com certeza que o cadi não teria cometido semelhante exagero, porque
ele sabe até que ponto a missão está em condições de lhe fazer prestar contas. Mas a missão desconhecia
tudo isso. Por casualidade o patrão cristão de Teresa, o verdadeiro, chegou a sabê-lo e correu à missão, onde
não estava o superior. Só estava outro missionário, P.e Vicente, o qual foi imediatamente à polícia reclamar a
cristã; porém, aí foi insultado. Regressado por fim o superior, P.e Pascoal Fiore, e inteirado do caso, serviu-
se dos senhores mais influentes perante o cadi para libertar a cristã: tudo em vão. Estando assim as coisas,
que fez ele? Apresentou-se perante a minha superiora, a Ir. Josefina Tabraui, de trinta e um anos, nascida em
Jerusalém, a qual estava na cama com uma grande febre e contou-lhe o doloroso assunto.
3540
E que fez a superiora? «Eu – disse – vou ter com paxá». Então, sem pensar no ardor da febre (ela está
agora nas últimas e há quinze dias administrei-lhe todos os sacramentos e a bênção papal in articulo mortis),
levanta-se, veste-se, toma consigo outra irmã, uma armena, e, com um bastão na mão, quase incapaz de se ter
em pé, chega com grandes dificuldades ao Divã do grande paxá e reclama com grande energia que seja le-
vada imediatamente para a missão a rapariga maltratada, reservando-se a possibilidade de fazer chegar ao
meu conhecimento o delito cometido por ódio à religião católica. O paxá declarou que não estava informado
de nada, mas que daria satisfação de tudo ao pró-vigário apostólico. Tratou a irmã com absoluta gentileza e
pediu-lhe que perdoasse ao juiz e acorresse a ele sempre que precisasse de alguma coisa, pois que se sentiria
ditoso e honrado em lhe agradar. A conversa demorou meia hora. Depois de ela se arrastar até ao instituto,
encontrou já lá Teresa, que fora levada por dois soldados; estava cheia de feridas, com a carne rasgada e os
ossos numa lástima (agora vai-se curando, contente por ter sofrido por J. C.). Teria também muitas coisas
para lhe escrever sobre a escravidão.
3541
Os traficantes de escravos saem às centenas, armados de fuzis para caçarem os negros e, para roubarem
mil deles, matam, pelo menos, duzentos. Vê-se como levam a pé, misturados, estes escravos de todas as ida-
des e de ambos os sexos; mas os que mais abundam são as raparigas entre os quatro e os vinte anos, vestidas
como a nossa mãe Eva, em estado de inocência: uma amarradas pelo pescoço, com cordas a uma grande
viga, que, em fila, levam sobre os ombros dez ou doze daquelas infelizes; outras, atadas com as mãos atrás
das costas ou levando nos pés grossas cadeias de ferro, etc., etc. Assim, empurradas pelas lanças desses tra-
tantes, viajam a pé dois, três meses, fazendo jornadas de doze ou quinze horas. Há outras, até 800 (oitocen-
tas) que viajam numa só barcaça, amontoadas em quatro pisos, toscamente feitos de juncos e assim percor-
rem mais de mil milhas. Essas desventuradas devem satisfazer todos os desejos dos patifes, que depois as
vendem; como disse, elas foram violentamente arrebatadas ao seio das suas famílias, após matarem o pai ou
frequentemente a mãe ou aos que as defendem.
3542
Esta é apenas uma pálida ideia dos horrores da escravidão que impera no meu vicariato. Embora o meu
vigário-geral lhe vá contar muito mais, nunca poderá descrever com suficiente exactidão como os horrores
são na realidade. Já vê, monselhor, que missão Deus me confiou. Mas o Coração de Jesus triunfará de tudo.
Encomende-me a mim e à minha missão ao S. Coração de Jesus; faça rezar, em Bréscia e noutros lugares, as
admiráveis Filhas do Sagrado Coração, que estão tão imbuídas das maravilhas da caridade de Jesus crucifi-
cado e trespassado pela lança cruel. Desse Coração devem brotar as águas salvíficas que hão-de lavar estas
pobres almas infelizes e conduzir os mais de cem milhões de infiéis do meu vicariato da África Central aos
caminhos da eterna salvação. Também lhe peço que faça difundir na nossa querida diocese bresciana a ora-
ção pro conversione chamitarum Africae Centralis, que, por ordem minha, lhe remeterá o excelente reitor do
meu instituto africano de Verona, P.e António Squaranti.
3543
Envio mil respeitosas saudações ao fortíssimo paladino do sacerdócio cristão e bresciano, o rev.mo Car-
minati, assim como às Filhas do S. Coração, com a madre Gesualda; e dê recordações ao seu piedoso e fiel
camareiro. Conceda-me a sua santa bênção, enquanto com prazer me declaro nos Sagrados Corações de Je-
sus e de Maria, com filial devoção e respeito

De V. E. Rev.ma
Hum. devot.mo e at.to filho
P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apostólico da África Central

Perdoe benevolentemente este tosco escrito, em consideração ao braço ainda não bem curado e ao facto
de, nos desertos da África Central, ainda não ser conhecido o belo estilo de monsenhor Dalla Casa.

N.o 551 (520) - A MONS. DEMÉTRIO CARMINATI


ACR, A, c. 15/178

J. M. J.
Cartum, 11 de Março de 1874

Rev.mo senhor,

3544
Com esta carta, que escrevo com prazer ao venerável pastor da nossa querida diocese bresciana, desejo
enviar-lhe ao menos uma linha para apresentar a V. E. Rev.ma os meus mais rendidos e cordiais respeitos e
encomendar-me às suas santas orações, que são o nosso apoio e o nosso conforto. Espero que a visita do meu
bom Carcereri a Brescia seja abençoada pelo S. Coração, porque confio que não deixará a gloriosa Cidade
dos Mártires sem a esperança de obter antes ou depois algum jovem bresciano, sacerdote ou clérigo ou leigo
artesão que venha compartilhar connosco as fadigas do apostolado de África. Faço votos e rezo pela conser-
vação e prosperidade de V. E. e do nosso venerado monsenhor, que é todo amor a Deus e cujo jubileu epis-
copal se celebrará solenemente nos institutos de negros do Cairo e em todas as missões da África Central no
dia 30 de Setembro do próximo ano. Peço-lhe que lance uma vista de olhos a vários pontos da diocese e veja
se encontra alguma sólida vocação para a Nigrícia.
3545
Que lastimosa é a situação da Igreja na Itália, na Prússia e na Suíça; mas, ao mesmo tempo, que consola-
dores exemplos de valor oferecem os gloriosos bispos, o clero e os leigos. Causa compaixão também a Fran-
ça legal de hoje. Parece-me que esse Boglie (a quem conheci pessoalmente e que, por fora, era muito religio-
so e cujo liberalismo o seu pai reprovava) é um hipócrita. A França está cheia de virtudes e de pecados. Não
obstante, com a ajuda de Deus, espero que o seu rei, que tem uma mente e um coração verdadeiramente ré-
gios, dentro de uns anos esteja no seu lugar e que Chambord seja abençoado, apesar de, entretanto, o moder-
no Diocleciano de Berlim vá fazendo estragos loucamente. Mas o evangélico Pio vive e Deus conforta-nos.
Oh!, confio nas muitas orações e virtudes do mundo católico: serão eficazes para desbaratar a obra de Sata-
nás e conseguir o triunfo da cruz.
3546
Receba todo o meu coração e o Coração de Jesus seja o centro e o elo de ligação entre nós: entre a abra-
sada Nigrícia e a pátria bresciana. Com estes sentimentos, comprazo-me em declarar-me nos Sagrados Cora-
ções de Jesus e de Maria

Seu af.mo em Jesus Cristo


P.e Daniel Comboni
Pró-vig. ap. da África Central

N.o 552 (521) - A MONS. JOÃO SIMEONI


AP SC, Afr. C., v. 8, ff. 180-181

J. M. J. N.o 3
Cartum, 4 de Abril de 1874

Excelência rev.ma,

3547
Não tenho palavras para exprimir a dor que senti ao ser-me comunicada a morte do nosso em.o e venera-
do pai. A Igreja, e sobretudo as santas missões, perderam no nosso em.o card.-prefeito uma verdadeira colu-
na, um grande apoio, uma profunda inteligência. Segunda-feira depois da oitava da Páscoa, tanto em Cartum
como no Cordofão será cantado o ofício com missa solene de requiem pela alma de sua eminência e, quando
chegar o aniversário da sua morte, celebraremos a triste comemoração com oração fúnebre. Jamais na minha
vida poderei esquecer o Em.o card. Barnabó nem a caridade que mostrou para comigo.
3548
Desconhecendo ainda quem seja o sucessor, que não tardará a ser nomeado pelo Santo Padre, porque a
Igreja é sempre fecunda em homens extraordinários, dirijo a V. E. Rev.ma o meu acto de condolência por tão
grande perda, enquanto lhe manifesto a minha absoluta e ilimitada obediência in omnibus et quoad omnia e
rogo-lhe me assista nesta árdua e laboriosa missão, a qual, apoiados no Sag. Coração de Jesus, esperamos
estabelecer solidamente, dando-lhe carácter de estabilidade e perpetuidade contra os assaltos das forças do
abismo. Se o Em.o card. Capalti gozasse de boa saúde, creio que seria o sucessor; porém, como sei pelos
jornais que a sua vida está em perigo, o meu olhar dirige-se ao muito venerável card. Billio e ao muito pers-
picaz card. Monaco la Valletta, personalidades e homens ad hoc e cuja idade fresca e vigorosa permitiria
desenvolver admiravelmente o apostolado das santas missões dos dois mundos.
3549
Em qualquer caso, aquele que o Santo Padre escolher será o eleito de Deus e disporá da nossa vontade e
da nossa vida. Os muitos assuntos de grave importância que devo submeter à Santa Sé em prol deste mare
magnum da África Central serão objecto da minha próxima correspondência epistolar. Entretanto, graças ao
Sagrado Coração de Jesus, as duas importantes missões de Cartum e do Cordofão vão para diante. O instituto
das irmãs instalou-se muito bem em El-Obeid e as obras do magnífico edifício, sob planta nova, do insto. das
irmãs em Cartum avança rapidamente. O meu ecónomo S. José mostra não pouco juízo ao atender o seu
mandato do perfeito cumprimento do haec omnia adiicientur vobis.
3550
Eu estou a preparar a expedição e o necessário para fundar a missão entre os Nuba imediatamente depois
do karif, ou seja, das chuvas equatoriais. O P.e Carcereri dar-lhe-á uma ideia da grande missão que me foi
confiada, da qual lhe fornecerei uma breve informação.
3551
A última carta com que me honrou a Propaganda tem data de 5 de Janeiro do presente ano e tem o n.o 2.
Isto supõe já enviada a n.o 1, que não recebi. Suplico, pois, a V. E. Rev.ma que me mande cópia da n.º 1, que
certamente se extraviou.
Atrevo-me a rogar, além disso, a V. E. que se sirva facultar-me a norma de titulo ordinationis. Se bem me
lembro, parece-me que se intitula: «Instructi S. Cong.nis de Prop.da Fide, datae Romae ex Aedibus dictae S.
Cong.nis 27 Aprilis 1871», onde se trata também de missionis titulo e está a fórmula do juramento. Fiz com
que mons. Ciurcia ordenasse um e farei ordenar outro este ano, com base no breve recebido em Julho de
1872. Desejaria essa norma.
Beijando-lhe a sagrada mão, declaro-me nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria

De V. E. hum.e devot.mo filho


P.e Daniel Comboni
Pró-vig. ap. da África Central

N.o 553 (522) - AO DIRECTOR DE «LETTERE AFRICANE»


AP SC Afr. C., v. 8, f.262

Cartum, 10 de Abril de 1874

3552
«...Na minha vasta missão tenho um sacerdote, P.e Salvador Mauro, superior e pároco da missão do Cor-
dofão (que é até agora a mais interior e central de toda a África), o qual é um entusiasta da devoção a S. Ju-
das Tadeu. Conseguiu acender em todos nós, mas sobretudo nessa nascente comunidade cristã, a devoção ao
grande apóstolo e não se pede graça nenhuma sem implicar também este santo. Como me parece que não
brinca, decidi dedicar a S. Judas Tadeu, se Deus me der vida, uma imagem, um altar e uma igreja nalguma
localidade dos povos Nuba, que fiz explorar recentemente no coração da África desconhecida e que eu mes-
mo visitarei depois das chuvas para fundar uma nova missão. Vou levar para lá também as Irmãs de S. José.
Segundo a minha opinião e experiência, elas são o paradigma da verdadeira missionária católica. No meu
árduo e laborioso vicariato fazem um bem enorme e com a simplicidade das suas maneiras e com a sua edu-
cação ganham o respeito dos paxás, a admiração dos turcos e o amor dos africanos.
3553
Se não tivesse tantas ocupações, gostaria de lhe dar uma ideia do apostolado destas irmãs, verdadeira
imagem das antigas mulheres do Evangelho. Com a mesma facilidade com que ensinam na Europa o abece-
dário à órfã abandonada, enfrentam na África Central meses e meses de viagens sob 60º Réaumur; atraves-
sam desertos a camelo e montam e dominam o cavalo; dormem a céu aberto debaixo de uma árvore ou num
canto duma barcaça árabe; desafiam o beduíno armado; reprovam o vício ao homem imoral; conseguem que
a concubina passe a fazer penitência, assistem o soldado no hospital; reclamam justiça dos tribunais turcos e
dos paxás em favor dos infelizes e dos oprimidos; não temem a hiena nem o rugido do leão e arrostam com
todas as fadigas, as viagens desastrosas, até à morte, para ganharem almas para a Igreja e para corresponde-
rem com as suas forças, com a sua milagrosa debilidade e com a sua vida a esse Coração que ignem venit
mittere in terram.
3554
Desejo também dar-lhe uma substanciosa informação sobre o andamento desta minha grande missão, a
maior e mais povoada do mundo, e fá-lo-ei quando tiver mais tempo. Por outro lado, enquanto estou de cor-
po e alma consagrado ao apostolado da África Central, não lhe posso ocultar o tormento da minha alma, ao
ver o nosso adorado Santo Padre com tantas tribulações, ao ver a Igreja perseguida e ao pensar no muito que
ainda têm que sofrer o Papa, Roma e a Igreja. É verdade que a Igreja triunfará de tudo e que as pessoas e
instituições que a perseguem, como grandes moles sem base, desabarão e desaparecerão, autodestruindo-se,
como acontecerá a Bismarck, Heliogábalo moderno; mas, entretanto, o Papa sofrerá. Portanto, resta-nos a
âncora da oração e o refúgio seguríssimo do Sagrado Coração de Jesus.»

(P.e Daniel Comboni)

N.o 554 (523) - A ANÍBAL PERBELLINI


AVAE, c. 31

Cartum, 10 de Abril de 1874


Dimissórias.

N.o 555 (524) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

J. M. J. N.º 3
Cartum, 19 de Abril de 1874
Minha rev.ma e cara madre,

3555
Reina aqui a dor. A nossa querida Ir. Josefina Trabaui está no Céu. Fizemos por ela, este ano, catorze no-
venas em Cartum e no Cordofão e celebrámos num ano mais de cem missas. Mas Deus não quis ouvir as
minhas orações. Bendito seja! Quinta-feira, 16 de Abril, às dez e meia da manhã, a Ir. Josefina exalava o
último suspiro, assistida por mim, que lhe administrei todos os sacramentos da Igreja com a bênção papal in
articulo mortis. Rezei todas as orações dos moribundos com o seu confessor ordinário, P.e Pascoal Fiore,
vigário e superior da missão de Cartum, que a assistiu dia e noite durante dois meses. Ela foi para o Céu,
asseguro-lho, sem ter passado pelo Purgatório.
3556
O toque do sino que anunciava a morte da Superiora de Cartum fez acorrer à missão uma multidão de
pessoas a apresentarem-me as suas condolências. A Ir. Josefina foi chorada em toda a cidade de Cartum, pois
gozava da estima geral, especialmente do paxá governador-geral, do cônsul e de todos os católicos. O seu
funeral teve lugar sexta-feira, dia 17, pela manhã, às oito, e os meus missionários e eu celebrámos as exé-
quias e nocturno e cantámos a missa, contando com a presença do cônsul da Áustria e de todos os católicos.
Sua Excelência o governador-geral do Sudão, Ismail Paxá, quis fazer-se representar por S. E. o presidente do
Tribunal do Comércio, com quatro janízaros, que acompanharam o cadáver desde a igreja até cemitério eu-
ropeu. De facto todos os estratos, mas especialmente os membros da religião católica, participaram da dor
que Deus houve por bem infligir-nos.
3557
Enquanto voltávamos do cemitério para a missão, entrava pela parte do jardim a Ir. Genoveva, que acaba-
va de chegar a Cartum, procedente do Cairo, depois de uma viagem de oitenta e dois dias. Pode imaginar a
impressão que lhe causou a notícia da morte da Ir. Josefina. Contudo recuperou o ânimo e agora estou con-
tente de ela ter chegado em perfeita saúde.
3558
Vós, minha madre, resignar-vos-eis à morte da Ir. Josefina. Eu por nada. É impossível encontrar uma mis-
sionária que se lhe assemelhe. Ela conhecia a natureza da nossa missão e estava disposta a sacrificar a sua
vida pelos cem milhões de negros que habitam o nosso vicariato. Espero que Deus me dê conforto e alivie
pouco a pouco a minha dor. Agora estou muito pesaroso. Bendito seja Deus.
3559
Dizem-me e escrevem-me que a Ir. Catarina Tempestini, superiora de Roma, está há oito meses doente e
que está tísica. Escreveram-me ultimamente que o médico espera salvá-la. Minha boa madre, os duques, os
príncipes e princesas, que se encontram tísicos, deixam todos os anos a Europa para irem até ao Egipto. Pois
bem, no Cairo Velho e precisamente na nossa casa das irmãs, o clima é mais suave. Desembaracei-me quase
por completo daquelas negras que foram educadas na Europa e que eram um estorvo na nossa casa do Cairo.
Não há um lugar mais adequado para passar o Inverno. Creio que aceitar a minha oferta seria bom para a
saúde tão preciosa da Ir. Catarina. Darei ordem para que nada lhe falte. O clima do Egipto, a visita à Terra
Santa, o afastamento das ocupações far-lhe-ão bem. Se não existisse no meio grande deserto, o nosso magní-
fico jardim de Cartum seria bom para ela.
3560
Far-lhe-ei chegar os quinhentos francos que lhe prometi pagar por cada irmã árabe que saia do seu novici-
ado e que seja considerada útil para o apostolado do centro da África. Espero que me tenha destinado muitas
Irmãs árabes para a África Central. Escrever-lhe-ei acerca dos nossos assuntos quando tiver passado um pou-
co esta tormenta da morte da Ir. Josefina. Todas as irmãs de Cartum e do Cordofão se encontram bem. Reze
pelo seu

P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano.

No 556 (525) - À PROPAGAÇÃO DA FÉ DE LIÃO


«Les Missions Catholiques» 260 (1874), f. 265

Cartum, Abril de 1874

3561
Quando há mais de seis anos fundei no Cairo um instituto para a educação dos negros, eu não exercia
ainda nenhuma jurisdição na África Central. Agora que a Santa Sé me confiou este imenso vicariato, posso
verificar com alegria que a educação dos negros teve mais sucesso e menos gastos em El-Obeid que no Cai-
ro.
3562
No Egipto, manter um negro ou uma negra custa de 300 a 350 francos. De cada dez negros educados no
Cairo, cinco morrem ou adoecem. Se os levamos para a Europa, a maior parte morre. Os que sobrevivem
ficam a expensas das casas que tiveram a caridade de os acolher. De entre as negras, bem poucas abraçam a
vida religiosa; quanto aos negros, há um pequeno número que se acostuma a uma vida tranquila e agradável.
Isto é o que mostram as experiências feitas em França, Itália e Alemanha. Se eles abandonam a Europa para
regressarem ao Egipto ou à África interior, os hábitos europeus que contraíram tornam as despesas do susten-
to tão caras como as dos missionários e das religiosas.
3563
Posso já indicar-lhe as vantagens que encontrei ao abrir em El-Obeid institutos para a educação de negros
de ambos os sexos. Na capital do Cordofão um negro ou uma negra custa de 80 a 150 francos, e para a sua
alimentação e vestuário bastam 100 francos por ano.
Permanecendo na sua terra natal, o negro desenvolve plenamente as suas forças.
3564
Sem mudar os seus hábitos de vida, recebe a instrução cristã sob a direcção dos missionários ou das irmãs
e pode chegar a ser um instrumento de apostolado entre os seus compatriotas.
Enfim, conserva o espírito de submissão, diria até o espírito de humildade, enquanto o negro que volta da
Europa leva para África as pretensões das ideias europeias.
3565
Daqui concluo que com um gasto de 10 000 francos, por exemplo, se pode educar em El-Obeid, em Car-
tum, em Zanguebar, etc., um maior número de negros e com mais êxito do que se faz no Cairo, na França ou
na Itália pelo preço de 100 000 francos. Assim um negro educado na África custa dez vezes menos que um
negro educado na Europa e além disso pode ser utilmente empregue no apostolado da sua nação.
3566
Eu pertenço ao instituto de Verona que educou mais de cinquenta negros e negras e levei a cabo o mesmo
no Cairo. Esta dupla experiência permitiu aos meus missionários e a mim comprovar a exactidão destas ob-
servações.
3567
Quanto ao demais, Deus é o inspirador das diversas obras de apostolado e, nos decretos sempre adoráveis
da sua Providência, todas estas obras servem para a sua glória e são como outros tantos elos que se unem
para conseguir a perfeição dos seus planos. Se nós não tivéssemos visto negros na Europa, talvez não tivés-
semos tido a vocação para ir evangelizar a África Central; e talvez se não tivesse desenvolvido a caridade
católica, como agora, em favor dos pobres negros.

P.e Daniel Comboni


Original francês; tradução do italiano.

N.o 557 (526) - A P.e ANTÓNIO SQUARANTI


ACR, A, c. 21/4

Abril de 1874
Breve nota.

N.o 558 (527) - AO CÓNEGO JOSÉ ORTALDA


«Museo delle Missioni Cattoliche», 17 (1874), pp. 464-465

Cartum, 5 de Maio de 1874

3568
«O coronel Gordon sucedeu a Sir Samuel Baker como governador-geral do Nilo Branco e do equador.
Agora está em Cartum e o grande paxá trouxe-o a fazer-me uma visita. O novo governador parece-me à altu-
ra da sua difícil e grande tarefa. E já foi a Gondokoro. Falei-lhe da escravidão e sobre este ponto professa os
mais humanos sentimentos. Talvez tenha sucesso nesta empresa civilizadora, que tornará mais fácil a evan-
gelização destas ignotas regiões. A construção da casa das irmãs e das dependências progridem rapidamente.
Desde Janeiro nunca as obras pararam. Eu estou completamente curado da fractura do meu braço e só o sinto
um pouco fraco, o que não me impede de cumprir os meus deveres.»

(Daniel Comboni)

N.o 559 (528) - A Mgr. JEAN FRANÇOIS DES GARETS


APFL, 1874, Afrique Centrale
J. M. J. N.o 3
Cartum, 6 de Maio de 1874

Senhor presidente,

3569
Agradeço-lhe infinitamente, senhor presidente, os 9600 francos que teve a bondade de me enviar com a
sua carta de 23 de Dezembro de 1873, relativamente aos fundos desse ano. Espero que o superior dos institu-
tos de negros do Cairo, P.e Bartolomeu Rolleri, meu representante no Egipto, tenha acusado a recepção dessa
importância. Na esperança de em breve lhe dar novas notícias sobre esta vasta missão que o senhor mantém,
rendo-lhe a mais calorosa homenagem de gratidão em nome de todos os missionários, que não deixam de
rezar por todos os conselhos centrais e por todos os associados desta obra divina.
Digne-se aceitar também, senhor presidente, as vivas mostras da minha profunda veneração, enquanto te-
nho a honra de me chamar

Seu devot.mo servidor


P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apost. da A. C.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 560 (530) - A MONS. JOÃO SIMEONI


AP SC Afr. C., v. 8, ff. 211-212

J. M. J. N.o 4
Cartum, 22 de Maio de 1874

Excelência rev.ma,

3570
Após a recepção da circular impressa e da estimadíssima carta de V. E de 3 de Março passado, tanto em
Cartum como na capital do Cordofão se celebraram dois solenes ofícios com missa solene de requiem. Um
deles, público, a que assistiu de grande gala o I. R. cônsul austro-húngaro e toda a população católica, e, o
outro, privado, para os membros da missão de ambos os institutos e para os católicos mais devotos e fervoro-
sos. Isto, aqui em Cartum e em El-Obeid. Sem contar as orações que os institutos introduziram de manhã e à
noite nos seus exercícios ordinários de piedade, todos os sacerdotes, por convite meu, celebraram cinco mis-
sas cada um por alma do venerado falecido.
3571
Mas aquela grande alma que se consumiu toda pela maior glória de Deus e pela salvação das almas, que
serviu com tanto amor e constância a causa da Igreja e do Papa, que era tão sincera e santa, e que suportou
com tanta resignação e paciência admirável os graves incómodos da cegueira, essa grande alma, digo, não
precisa de sufrágios: creio com absoluta certeza que, apenas separada daquele corpo consumido pelas fadi-
gas, voou rapidamente para o Paraíso para receber o merecido prémio pelas suas extraordinárias virtudes.
Contudo, o meu coração ficará por longo tempo dorido, porque foram muitos os benefícios e as saudáveis
lições que recebi do chorado purpurado; não poderei esquecer jamais aquele venerado nome.
3572
Porém, o Senhor, em sua misericórdia, assistiu muito bem o nosso Santo Padre ao dar-lhe um digno su-
cessor na pessoa do Em.o cardeal Franchi, de quem ouço dizer com muito gosto que é uma alegria e um con-
forto para todos os funcionários e auxiliares da S. C. da Propaganda. Não obstante, devo preparar-me para
uma nova dor, pois também o alto cargo de secretário da Propaganda ficará em breve vacante pela promoção
de V. E. ao cardinalato, com o que eu deveria estar contente por ver devidamente reconhecidos os seus mui-
tos méritos. Mas mitiga esta dor e conforta-me a ideia de que quem foi secretário de uma congregação se
converte, por direito, em membro da mesma. Assim pois, V. E. poderá ser ainda parte muito activa desta S.
C. da Propaganda.
3573
Agradeço vivamente a bondade de V. E Rev.ma pelo benévolo acolhimento dispensado ao meu vigário-
geral, o P.e Carcereri, e sobretudo por ter convencido o P.e Guardi a que permita não só que os meus bons
Carcereri e Franceschini continuem a ajudar-me mas também para que me proporcione algum outro selecto
membro dessa ordem. Para tal fim, com base nalgumas ideias que o P.e Carcereri me traçou (as quais são a
essência de quanto ele e eu sobre o assunto temos discutido), estou a redigir um acordo, que submeterei à S.
C. Esta inesperada ajuda chega-me muito oportunamente agora que, por disposição divina, se abrem os ca-
minhos do interior da África e tenho as mais fundadas esperanças de estabelecer para sempre a fé nestas re-
motas terras. Agradeço também calorosamente a V. E. a sua viva preocupação pelos interesses deste impor-
tante vicariato.
3574
Dentro de pouco escrever-lhe-ei sobre muitas coisas. Não o fiz até agora por estar ocupadíssimo dia e noi-
te. No Cordofão, as Irmãs de S. José conquistaram a todos e fazem um bem enorme. Parece que verdadeira-
mente triunfa a bênção de Deus. E tudo é obra do S. C. de Jesus.
Beijo-lhe a sagrada mão e declaro-me com todo o respeito e gratidão

De V. E. devot.mo filho
P.e Daniel Comboni

N.o 561 (531) - A FAUSTINA STAMPAIS


ACR, A, c. 20/18, n.20

22 de Maio de 1874

Breve nota.

N.o 562 (532) - AO CARD. ALEXANDRE FRANCHI


AP SC Afr. C., v. 8, ff. 213-216

J. M. J. N.o 5
Cartum, 25 de Maio de 1874

Em.o e Rev.mo Príncipe,

3575
Se foi viva e profunda a dor que senti ao receber a triste notícia da morte daquele grande entre os prínci-
pes da Santa Igreja, que, durante tantos anos, dirigiu com prodigiosa diligência e sabedoria a S. C. da Propa-
ganda e que me serviu de escudo e de sagacíssimo guia ao lançar os alicerces da santa obra para a regenera-
ção da Nigrícia, senti no fundo da alma um grande alívio, um conforto inefável, quando a venerada carta,
com que V. Em.a se dignou honrar-me no dia 17 de Março passado, me anunciou que o Santo Padre tinha
nomeado V. Em.a sucessor do nunca bastante chorado Em.o card. Barnabó.
3576
Deus misericordioso, em sua infinita caridade pela conversão das gentes, não tardou em buscar compen-
sação para a grande perda; e os permanentes e sublimes méritos, os altos cargos sempre mais importantes
desempenhados durante mais de vinte anos em prol da Santa Sé Apostólica e os dotes eminentes de sabedo-
ria, perspicácia e zelo, com que se mostra luminosa e brilhante a sua carreira prelatícia, são argumento inelu-
tável e claro indício das grandes obras e salvíficas empresas que V. Em.a há-de levar a cabo na nova carreira
cardinalícia, como prefeito da importantíssima congregação que rege os destinos e interesses mais vitais da
Igreja e de Deus nas quatro partes e meia do mundo.
3577
Daí que, uma vez cumprido o nosso dever de encomendar a Deus a alma cheia de méritos do ilustre pur-
purado que nos deixava órfãos, mediante dois ofícios com missa solene em cada uma das estações do vica-
riato, além de cinco missas celebradas por cada sacerdote, eu pedisse, com uma circular preparada para o
efeito, orações públicas diárias ao Sagrado Coração de Jesus, precedidas do Veni Creator, a fim de que Deus
guiasse, como sempre fez, a mente do nosso Santo Padre Pio IX, para dar às missões católicas dos dois mun-
dos um piloto de valia, o melhor guia, que fosse digno do alto cometimento. E eis que quinta-feira da Ascen-
são de N. S., recebida a mencionada carta de V. Em.a Rev.ma, depois da missa solene, exposto o Santíssimo,
entoámos cheios de júbilo o hino ambrosiano, em acção de graças a esse Deus que dá dor e conforto e que
jamais abandona quem n’Ele confia.
3578
Desde este momento, pois, prostrado a seus pés como humilde filho, ainda que completamente indigno,
prometo e juro a V. Em.a absoluta submissão e perfeita obediência e declaro-me disposto a considerar a sua
autoridade, as suas ordens, as suas intenções e o seu juízo como os de Deus e do Santo Padre, de quem V.
Em.a é digno representante. Digne-se acolher benevolamente este acto de submissão e de absoluta obediên-
cia que sai do coração. E como é meu firme propósito não iniciar nunca nenhuma empresa de importância
sem consultar a S. C. da Propaganda e dado que o apostolado da África Central está cheio de espinhos, supli-
co a sua imensa caridade que me ajude, porque desde que a Santa Sé me confiou este árduo e laborioso vica-
riato, todos os meus companheiros e eu estamos unanimemente dispostos a consumir e gastar a nossa vida
para salvar os mais de cem milhões de almas que contém.
3579
O nosso grito de guerra é e será sempre até ao último alento: «Nigrícia ou morte!» Além disso, em todas
as casas do vicariato reza-se continuamente todos os dias, de manhã e de tarde, pelo em.o cardeal-prefeito,
pelo monsenhor o secretário e por toda a Propaganda, de onde parte todo o bem para as missões, e especial-
mente para a mais nova e a mais necessitada delas: a África Central.
3580
Espero que o excelente P.e Carcereri tenha submetido a V. Em.a os relevantes assuntos de que o encarre-
guei, como o do comércio de negros de que é lutuoso teatro o meu vicariato, a importância da nova missão
entre os Nuba, a situação do vicariato e as esplêndidas esperanças de ver bem depressa estabelecido no cora-
ção da Nigrícia o Evangelho. Igualmente lhe recomendei que componha e defina o acordo com as Irmãs de
S. José, que exponha à S. C. o tema da exagerada usura vigente entre os católicos do vicariato e que supli-
que novamente que a sexta-feira depois da oitava do Corpus Domini, consagrado ao Sagrado Coração de
Jesus, seja para o vicariato dia de preceito e rito duplo de primeira classe com oitava.
3581
Quanto a mim, tendo estado muito ocupado estes meses ardentes do Col equatorial, ainda não pude redi-
gir uma informação geral sobre o vicariato e dar recentes importantes notícias a respeito do mesmo. Não
obstante espero poder enviar-lhe antes de quatro meses uma substanciosa relação do vicariato, a qual, unida
às notícias do meu vigário-geral Carcereri, possa oferecer a V. Em.a um quadro exacto e uma ideia veraz
sobre esta santa missão.
3582
Assim como, pois, o mencionado P.e Carcereri me comunica que volta sumamente agradecido à Propa-
ganda, que não só os dois camilianos Carcereri e Franceschini continuam a ajudar-me a mim e aos meus
missionários, mas também, além disso, se associam outros religiosos da mesma ordem; com base nas poucas
ideias que me traçou Carcereri redigi o apenso acordo entre mim e o rev. mo P. e Guardi, que humildemente
submeto a Vossa Eminência. Ao elaborar este documento, supus que poderão ser destinados ao novo aposto-
lado doze religiosos. Os maiores gastos correspondem às viagens e às construções: estas ficaram todas a meu
cargo. Em lugares como Berber e Cartum, onde com quatro francos se compra um carneiro, com trinta um
grande boi, etc., vive-se com pouco; por isso penso que fui muito generoso, destinando cinco mil francos à
projectada casa camiliana de Berber.
3583
Porém, estou disposto a fazer todas as modificações que V. Em.a julgue oportunas, ou o que o rev.mo P.e
Guardi possa desejar. Assim, para não atrasar a conclusão deste importante assunto, em caso de ser necessá-
ria a minha assinatura para qualquer modificação que V. Em.a houvesse por bem fazer no presente acordo,
delego no meu veneradíssimo mons. Canossa, bispo de Verona, o poder de me representar; a sua assinatura
será tida como válida e garantida como se fosse a minha.
Digne-se V. Em.a aceitar com benevolência as expressões de absoluta submissão e de profunda veneração
com as quais, beijando-lhe a sagrada púrpura, tenho a honra de me subscrever nos S. Corações de J. e M.

De V. Em.a Rev.ma
Hum.mo, obed.mo e devot.mo filho
P.e Daniel Comboni
Pró-vigário apost. da África Central

P. S. Chega-me neste momento a sua estimada carta de 15 de Abril, a n.o 4. Dentro de três dias receberá o
pequeno relatório sobre o vicariato.

N.o 563 (534) - AO CARD. ALEXANDRE FRANCHI


AP SOCG, v. 1003, ff. 770-784

N.º 6
Informação à S. C. da Propaganda Fide
sobre o vicariato ap. da África Central

Cartum, 2 de Junho de 1874

Em.o e Rev.mo Príncipe,

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Cumprindo o desejo que V. Em.a se dignou exprimir-me na sua venerada carta n.o 4 do passado dia 15 de
Abril, apresso-me a redigir-lhe sucintamente uma breve informação sobre o estado actual da missão que me
foi confiada, a qual, unida ao relatório que já lhe terá apresentado o P.e Carcereri, meu vigário-geral, poderá
dar-lhe uma justa ideia da importante obra que a Divina Providência me pôs nas mãos. E antes de tudo, creio
oportuno antepor algumas noções gerais sobre as condições deste laborioso e imenso campo da vinha do
Senhor.
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O vicariato ap. da África Central é, sem dúvida, o mais extenso e populoso do universo.
Tem como limites:
A norte, o vicariato do Egipto e a prefeitura de Trípoli.
A este, o mar Vermelho, os vicariatos da Abissínia e dos Gallas e a prefeitura de Zanguebar.
A sul, os 10o de latitude austral, onde geralmente se situam as supostas montanhas da Lua.
A oeste, a Guiné Meridional e a prefeitura do deserto do Sara.
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Disto se deduz claramente que o vicariato da África Central abrange uma extensão territorial superior à de
toda a Europa. A sua população, segundo os cálculos do meu doutíssimo predecessor, o pró-vigário Knoble-
cher, ascende a noventa milhões de almas (1). Porém, segundo a minha humilde opinião, baseada em sérias
indagações e diligentes estudos, os habitantes do vicariato são mais de cem milhões.
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Esta população imensa, carenciada em absoluto de toda a civilização, está dividida, na sua maior parte,
em tribos independentes. Algumas delas são nómadas. Contudo, não faltam vastíssimos reinos e impérios
governados despoticamente em todo o rigor da palavra. Pelo contrário, as tribos apresentam só uma sombra
de governo, que geralmente é patriarcal: o chefe de família tem uma grande autoridade; e nos assuntos de
interesse público, especialmente a guerra, o chefe da tribo, que, geralmente, é o chefe da família mais rica e
poderosa, tem uma autoridade absoluta que todos reconhecem e respeitam.
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As línguas do vicariato (não os dialectos) são mais de cem e totalmente diferentes umas das outras: dife-
rem em maior medida que o italiano do alemão. Em nenhuma delas se encontram as palavras escrever e ler,
porque se desconhecem por completo as letras. Todas as normas de governo, as leis e a história são transmi-
tidas pela tradição. O falecido pró-vigário Knoblecher recolheu os nomes dos números de quarenta e cinco
línguas faladas na parte oriental do vicariato, trabalhos que eu mesmo vi e li. Agora, esses preciosos escritos
andam extraviados. Em 1859 conseguimos compor um volumoso dicionário e uma gramática das línguas dos
Dincas e dos Bari e, no ano passado, no Cordofão, comecei a recolher muitíssimos vocábulos da língua dos
Nuba.
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Todas as línguas da África Central, pelo que até agora pude averiguar, são monossilábicas e de natureza
semítica. A língua predominante nos países muçulmanos submetidos à coroa do Egipto é o árabe que, com os
séculos, se introduziu em toda a Núbia Inferior e Superior, desde Assuão até Cartum; porém, os séculos de
opressão muçulmana não puderam fazer desaparecer a língua original, chamada berberina, que é falada ex-
clusivamente pelos Barabra.
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Os povos do vicariato são, em geral, de raça negra, excepto os de raça árabe que citarei mais adiante. Há
representantes de todas as tonalidades, desde o tipo abexim até à pura cor de ébano e de negro carvão. Exis-
tem também tribos de cor ruiva e de cor de sangue, como os Dor, no Centro, e os Abugerid, no Nilo Azul e
no Branco. Há, além disso, raças de todas as estaturas, desde as anãs às gigantes. Mas todos eles são guerrei-
ros e desde a infância se adestram no uso das armas, que geralmente consistem em lanças e flechas envene-
nadas, hastes agudíssimas e paus de ébano e de sunt muito bem trabalhados. Muito frugais, estes povos não
são tão libidinosos como se pensa e como costumam ser os que, arrancados das suas terras da Nigrícia, são
condenados a viver no meio da corrupção muçulmana. As suas casas são, geralmente, toscas cabanas, cujas
portas são como a boca de um forno; a sua cama é o chão nu ou uma pele ou o angareb O clima é, em geral,
muito quente.
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No centro há chuvas regulares por seis ou sete meses todos os anos. Em Berber, Dôngola, Cartum e no
Cordofão as chuvas caem por três a quatro meses; quer dizer, nos três ou quatro meses da chuva, o karif,
chove oito ou dez vezes abundantemente. Todo o resto do ano o céu está descoberto e sereno. Esta é razão
pela qual as casas da missão devem ser sólidas e amplas: doutro modo lá nos vai a vida. O vicariato tem mui-
tos desertos de areia ardentíssima. Porém, a maior parte da África Central está semeada de terrenos muito
férteis, que, regados e com a arte humana, poderiam produzir imensas riquezas. Os montes que se erguem em
alguns lugares são bastante pequenos em comparação com os da Europa: quase todo o solo do vicariato se
estende em imensas planuras abundantes em férteis pastos e cheias de gado de toda a espécie. Há também
nelas, em grande número, elefantes, hienas, leões, tigres, panteras, serpentes de enorme tamanho e outros
animais ferozes. Os caminhos são escassos; os mais notáveis e para nós mais cómodos são sempre os dos
jilabas, ou seja, aqueles por onde passam os traficantes de escravos com os inumeráveis grupos das suas
vítimas: são essas as estradas utilizáveis pelos missionários.
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Quanto à religião, o predominante no vicariato é o feiticismo e a idolatria, nas suas mais estranhas ver-
sões. Porém, o Islamismo impera em toda a parte setentrional do vicariato, na Núbia, no Waday, no Cor-
dofão, numa parte do império de Bornu e entre as tribos árabes nómadas, as quais têm a sua origem nas fa-
mosas migrações dos séculos vII e XVI, que, procedentes da Arábia, se estenderam gradualmente até muitas
tribos do interior. Porém, os seguidores do Alcorão que povoam tão considerável parte do Vicariato, não são
tão fanáticos como os do Egipto e da Ásia.
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Os coptas heréticos, estabelecidos no vicariato desde a época das conquistas egípcias, como escrivães do
Governo ou como comerciantes e aventureiros, são cerca de cinco mil e têm uma sede episcopal em Cartum,
que hoje se encontra vacante pelos motivos a que aludi em minha carta de 20 de Outubro do ano passado ao
em.o cardeal-prefeito (d. p. m.).
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Também há uns dois mil gregos cismáticos, mais um pequeno número de protestantes luteranos e angli-
canos, e alguns judeus atraídos pelo comércio.
Os católicos de todos os ritos apenas chegam a trezentos em todo o vicariato. Mas quando as missões do
mesmo estiverem organizadas e todas as obras do apostolado católico, estou profundamente convencido de
que, então, a nossa santa fé fará progressos extraordinários. Os prussianos (perdoe-me V. Em.a este exemplo
dos modernos perseguidores da Igreja e do papado) trabalham há cinco meses seguidos a prepararem as suas
obras de estratégia militar para apertarem o cerco à inexpugnável Paris. Depois do que, com uns poucos dias
de bombardeamentos, entram vitoriosos na soberba capital da França. Quando nós tivermos preparado as
bombas e as metralhadoras de bem organizados institutos missionários e de irmãs e de colégios, e tivermos
organizado bem as escolas, os jardins-de-infância, os hospitais e as outras obras católicas, abriremos fogo, e
o colosso da idolatria cairá por obra da cruz, como a mística pedrinha da Escritura e aí reinará só Jesus Cris-
to.
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É indubitável que, sabiamente estabelecidas as obras do apostolado católico nas tribos interiores do vica-
riato, a pregação do Evangelho produzirá assinaláveis frutos, até ver inteiras povoações convertidas em mas-
sa à nossa santa religião. O Islamismo não pode ganhar raízes entre os negros da África Central. As tribos
árabes nómadas, desde há muitos séculos, e o Governo, desde há quarenta anos, realizaram esforços inaudi-
tos no sentido de ganharem para Maomé as tribos dos negros; e até hoje em dia os governadores do Sudão
egípcio, como pude verificar com os meus olhos, têm a prática de enviar os mais fanáticos dos seus muftis e
ulemas e mestres de religião com o fim de preparar, mediante a pregação do Alcorão, aqueles povos para a
sua sujeição à coroa do Egipto. Porém, foi sempre em vão: os negros detestam o Islamismo.
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Além disso, eu sou da opinião de que, bem organizadas as nossas santas missões nas zonas muçulmanas
do vicariato, como Cartum, o Cordofão, Berber, Sennar, etc., com o volver de algumas gerações e graças ao
culto externo, à vida exemplar dos missionários, das irmãs e dos membros da missão e ao estabelecimento
das obras de caridade, também estas imensas províncias, dominadas pelo Islamismo dobrarão a fronte peran-
te a cruz. A influência que hoje exerce a missão católica, tanto no Governo local como nas populações cristãs
de todo o género e sobre os infiéis, é muito grande. Pode-se dizer com toda a verdade que a missão constitui
a primeira força moral do Sudão. Mas é necessário que o seu chefe e os seus missionários mostrem muita
prudência e circunspecção, juntamente com uma grande firmeza, para se manterem sólidos perante os golpes
das potências do mal, sobretudo no respeitante aos atropelos da mais horrível escravidão e do tráfico de ne-
gros, chaga funesta, da qual é triste cenário o vicariato. O maior obstáculo para a conversão destes povos
muçulmanos é a opressão brutal que exerce sobre eles o Governo dominante, bem como a crueldade e os
excessos arbitrários dos satélites do Divã do Egipto.
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O Governo egípcio tem tais possessões no vicariato, que, se estivessem bem organizadas e governadas,
poderiam formar em poucos lustros um império muito florescente. De facto ocupa uma boa porção da parte
oriental, e alguns pontos da parte central, ao longo do imenso espaço que se estende desde o Trópico do
Câncer até ao equador. E sem contar a Núbia Inferior desde Schellal até Wadi Halfa e boa parte do deserto
de Atmur, que obedece ao governador de Esneh, no Alto Egipto, as possessões de S. A. o Quedive no vicari-
ato estão divididas em catorze muderias ou vastas províncias governadas cada uma por um mudir, que sem-
pre é um paxá ou um bei e equipadas com mais de trinta mil soldados egípcios e indígenas, armados de fuzis
e artilharia de campanha. Estas catorze províncias encontram-se reunidas sob a jurisdição de três hokonda-
res, ou governadores gerais, dotados de grandes poderes e que residem em Taka, em Cartum e em Gondo-
koro.
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Sua excelência o paxá Munziger, católico suíço e actual hokondar ou governador-geral do departamento
oriental, ou do mar Vermelho, que compreende as províncias de Taka, Suakin, Cadaref e Ghalabat, no meu
vicariato e também a de Massaua, no vicariato da Abissínia, depende do vice-rei do Egipto.
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Sua excelência Ismail Paxá Ayub, turco de origem e temível muçulmano (ainda que muito cortês e gene-
roso comigo) é o hokondar ou governador-geral das províncias de Cartum, Sennar, Fazoglo, Berber, Dôngo-
la, Cordofão, Fashoda (a vasta tribo dos Schelluk na margem esquerda do Nilo Branco) e Schiaka, em Bahr-
el-Ghazal, no 9o de lat. N.
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Sua Excelência o coronel Gordon, inglês anglicano, que domou os rebeldes da China e é um distinto ca-
valheiro, é o governador-geral do Nilo Branco e do equador, tem sob a sua jurisdição as províncias de Gon-
dokoro e de Fatico, e recebeu do quedive o encargo de implantar o Governo egípcio nas férteis e povoadís-
simas terras situadas em redor das nascentes do Nilo.
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A acção dos primeiros missionários desde a erecção do vicariato em 1846 até 1861, dos quais eu mesmo
fazia parte, desenvolveu-se na parte oriental do vicariato, onde se fundaram estas quatro estações: Schellal,
no trópico do Câncer; Cartum, entre os 15o e os 16o; Santa Cruz, entre os 6o e 7o, e Gondokoro, entre os 4o
e 5o (sempre de lat. norte), no Nilo Branco.
De 1861 a 1872, sob a direcção franciscana, abandonaram-se todas as referidas estações, com excepção
de Cartum.
A obra do Instituto das Missões da Nigrícia, de Verona, nos dois anos da sua administração estendeu a
acção católica ao Centro do vicariato, fundando a missão do Cordofão e levando a cabo uma eficaz explora-
ção entre os Nuba.
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O clima de Cartum já não é letal como nos tempos passados, em que foram vítimas do mesmo mais de
trinta missionários e eu mesmo estive repetidas vezes à beira da morte. Pelas plantações e por outras causas
melhorou a atmosfera desta capital, destinada a converter-se num grande centro de poder e de comércio, logo
que esteja construída a via férrea do Sudão, a qual eliminará a barreira do grande deserto, que agora torna
tão penosa e difícil a comunicação entre a África Central e o Egipto. Hoje, em Cartum, pode-se viver quase
como no Cairo. Por outro lado, o clima do Cordofão, como o das terras dos Nuba e o das nascentes do Nilo,
no equador – onde não tardaremos a estabelecer a nossa santa religião – é do mais saudável que existe. Pare-
ce que Deus, na sua misericórdia, tirou o maior obstáculo que impedia a redenção destes povos: o clima mor-
tífero. Este facto, unido à circunstância não menos importante de que agora se vão abrindo na África Central
as vias de comunicação, é um novo indício indubitável de que soou a hora da redenção da Nigrícia.
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Há, contudo, um gravíssimo inconveniente que afecta de forma viva e directa o apostolado católico e é a
existência em pleno vigor da mais cruel escravatura, em que caem todos os anos centenas de milhares de
vítimas; é o horrível tráfico de negros, que levam a cabo em pleno dia inúmeros tratantes, apoiados pelo Go-
verno egípcio, e que até os seus próprios agentes e governadores realizam. Mas Deus suscitará meios para a
eliminar em breve e para isso contribuirá grandemente a força e o poder moral da nossa santa missão, que
não recuará perante nenhum obstáculo. É a verdadeira missão de Jesus Cristo, que veio ao mundo libertar os
escravos, dar a todos a liberdade e fazer de nós todos seus irmãos e filhos de um mesmo Pai que está nos
céus. A luta gloriosa da missão contra a horrível chaga da escravidão e o comércio de escravos facilitará
poderosamente a conquista da África Central para a Igreja Católica.
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Após estas noções gerais, que julguei oportuno expor a Vossa Eminência, passo a assinalar brevemente o
estado actual deste tão importante vicariato. A dizer a verdade, os meios utilizados para produzir os resulta-
dos obtidos são muito fracos; o que nos serve de grande satisfação, porque tal é a regra ordinária da Provi-
dência divina, que nos indica que só Ele é o autor de todo o bem.
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O maior fruto que o apostolado católico pode alcançar eficazmente no vicariato é a conversão dos negros
pertencentes às tribos idólatras e feiticistas do interior. Porém, também podemos ganhar almas em terras
muçulmanas, onde actualmente estamos estabelecidos, nas quais mais de quatro quintos dos habitantes são
escravos idólatras que gemem sob o jugo das famílias maometanas.
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Para conseguir organizar as obras católicas nas regiões idólatras do interior a fim de converter aquelas tri-
bos à fé, importa muitíssimo que os estabelecimentos nelas erguidos tenham um grande apoio e estejam
submetidos, por assim dizer, às casas-mães; ou seja, às missões fundamentais estabelecidas em território
seguro, sob um governo regular, onde haja também consulados de potências europeias que protejam a sua
existência e a sua estabilidade.
Tais são precisamente as duas missões fundamentais e centrais estabelecidas nas capitais Cartum e El-
Obeid, cidades muito importantes, a primeira com 48.000 habitantes e a segunda com 100 000, que se pres-
tam maravilhosamente para este fim.
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Cartum é o centro de comunicação e a base de operações para levar gradualmente a fé às grandes tribos e
reinos que constituem a parte oriental do vicariato até para lá das nascentes do Nilo Branco, nos 10o de lati-
tude meridional.
El-Obeid é o centro de comunicação e a base de operações para plantar pouco a pouco o estandarte da
cruz nas imensas tribos, reinos e impérios que formam as partes central e ocidental do vicariato.
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Este é o motivo pelo qual desde que tomei posse da missão na qualidade de pró-vigário apostólico pus um
cuidado especial em fortalecer e consolidar as Missões principais e fundamentais de Cartum e de El-Obeid,
como várias vezes indiquei nas minhas cartas à S. C. Com esta intenção, adiei, por agora, a grande tarefa de
ir à caça de almas, considerando mais útil estabelecer primeiro, convenientemente, as obras de apostolado.
Pois bem, eis o que existe e o que penso fazer nestes dois estabelecimentos primários.
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Em Cartum, o departamento masculino conta com a mais grandiosa e perfeita construção (em pedra) que
há em todo o Sudão, de 127 metros de comprimento, e, portanto, mais longa que o Palácio da Propaganda,
com um vasto jardim anexo que se estende até às margens do Nilo Azul: é uma obra do meu predecessor, o
pró-vigário Knoblecher, que gastou nela quase um milhão de francos. Trata-se da residência do pró-vigário
apostólico e dos missionários. É dotada de locais adequados a escolas de artes e ofícios, com armazéns para
guardar provisões e os objectos necessários para todas as estações do vicariato apostólico. Dispõe de uma
elegante capela, que serve de paróquia para os católicos desta capital.
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Ao lado deste colossal edifício comecei, a partir de Janeiro do presente ano, a construção com tijolo ver-
melho de um estabelecimento absolutamente igual ao grandioso edifício masculino, para as obras femininas,
que deve ficar, à excepção das arcadas, idêntico ao anterior em dimensões, desenho e capacidade. Presente-
mente, as obras estão num quarto do total, porque todos os dias trabalham nelas cerca de cinquenta operários;
e no próximo Julho, nas fracções já construídas, instalar-se-ão as irmãs, o jardim de infância e, em parte, a
escola. Todo o estabelecimento estará pronto, espero, antes de um ano; para isso, além dos recursos das soci-
edades benfeitoras da Europa, ajudar-me-ão as esmolas recebidas de benfeitores especiais, entre os quais se
destacam suas majestades o imperador Fernando I e a imperatriz Maria Ana Pia de Áustria, irmã da venerá-
vel rainha Maria Cristina, de Nápoles, e seu sereníssimo sobrinho, o duque de Módena.
3611
Uma bela e espaçosa igreja, circundada de árvores, frente a um amplo largo aberto, rodeado também de
árvores, separará os dois grandes estabelecimentos dos missionários e das irmãs. Para esta obra já fiz alguns
preparativos, contratei e paguei em parte um milhão de tijolos vermelhos, contando para o efeito com firmes
promessas de importantes ajudas. Espero que este complexo esteja pronto dentro de quatro anos. Para a ex-
tracção e preparação das pedras, preciso algum artesão, que farei vir da Europa. Deste modo, dentro de não
muito tempo, além da igreja, necessária quando estiver aberto o caminho de ferro do Sudão, teremos dois
enormes estabelecimentos, masculino e feminino (coisa muito útil nestes países tão materialistas para manter
o prestígio da missão), dotados de um vasto quintal-jardim que produzirá grande parte do que consumirmos e
providos dos respectivos locais de ensino, jardins-de-infância e enfermarias de ambos os sexos, e as respecti-
vas dependências para os escravos.
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O que estou a fazer em Cartum realiza-se em parte em El-Obeid, mas em proporções mais modestas e
menos dispendiosas, por não haver aí cal nem pedra.
Em El-Obeid temos uma casa bastante espaçosa para os missionários, com locais para escola e aulas de
arte e ofícios e com um pouco de jardim. Há lá uma capela que serve de paróquia e um cómodo conjunto
separado de locais, onde abri um colégio de negros, onde se seleccionarão aqueles que, distinguindo-se por
sua piedade e inteligência, forem chamados à carreira eclesiástica. Se bem que este colégio se encontre ainda
no princípio, funciona muito bem e promete muito. Já há nele quatro jovens, de que espero fazer bons missi-
onários. Temos também, anexo, um local destinado a recolher os doentes expulsos; quer dizer, os negros que,
estando doentes, são lançados fora de casa pelos amos. Até agora só morreram três destes e já tinham recebi-
do a preparação e o baptismo.
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Separado pela alameda imperial, o Derb-el-Sultanie, está o instituto das irmãs, com creche e dependên-
cias para as escravas e capela privada. Este estabelecimento, que tem capacidade para setenta pessoas, será
restaurado e ampliado depois do karif, isto é, quando terminarem as chuvas no próximo Outubro, e será ro-
deado de um grosso muro de areia vermelha (porque agora cerca-o uma sebe de espinheiros). Também em
El-Obeid estou a preparar madeira e areia para a construção de uma casa mais ampla. Espero que tudo isso se
encontre pronto em 1875.
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Tanto em Cartum como em El-Obeid não abri ainda as respectivas escolas públicas masculinas, apesar
das petições de muitos, até de entre católicos: até agora não julguei prudente aceder a isso pela falta de sufi-
ciente pessoal docente. A escola feminina de Cartum está aberta; porém, tive de limitar a admissão de alunas
por não ter ainda prontos os locais. Também em El-Obeid se abriu uma escola pública por parte das irmãs;
mas também neste caso ordenei que se proceda com lentidão, por ser ainda escasso o número das irmãs e das
mestras negras, que prefiro, por agora, no ensino do catecismo às dezassete catecúmenas que agora há aí. É
preciso medir cada passo, pois, uma vez dado, já se não pode retroceder.
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Cartum tem 74 pessoas que vivem completamente a expensas da missão, incluídos os missionários e as
irmãs. Em El-Obeid há cinquenta e oito.
Como a obra que tenho entre as mãos é toda de Deus, é com Deus especialmente com quem há que tratar
todos os assuntos, grandes ou pequenos da missão; por isso é da máxima importância que entre os seus
membros abundem sobremaneira a piedade e o espírito de oração.
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Graças ao Sacratíssimo Coração de Jesus reina verdadeiramente este Espírito do Senhor. Todas as ma-
nhãs, logo que nos levantamos às quatro e meia e às cinco no Inverno, os missionários fazem em comum três
quartos de hora de meditação, para além das orações ordinárias da manhã; e à noite reúnem-se igualmente na
capela para rezar juntos o santo terço, fazer os exames, etc. O ofício divino, a leitura espiritual, a visita do
Santíssimo Sacramento, etc. cada um os faz em particular. Diga-se o mesmo dos leigos, das irmãs e das mes-
tras negras de ambas as missões. Às quarta-feiras de manhã há uma hora de adoração ao Santíssimo Sacra-
mento, que termina, exposto o mesmo, com a benção pro conversione Nigritiae, por mim instituída em 1868
nas nossas casas do Cairo com o devoto exercício da Guarda de Honra do Sagrado Coração.
3617
Todas as sextas-feiras, pela manhã, na igreja, os membros de ambos os institutos rezam em comum o ter-
ço do Sag.do Coração e às quatro da tarde fazem também aí a via crucis. Além disso, todas as primeiras sex-
tas-feiras do mês há retiro e prática da adoração ao Ss.mo Sacramento, com o mesmo exposto, em honra do
Sagdo. Coração de Jesus, onde se renova a consagração do vicariato ao Sag.do Coração de Jesus, padroeiro
da Nigrícia. Também temos feito sempre publicamente na igreja o mês de Março em honra de S. José e o de
Maio em honra da Virgem Imaculada, Rainha da Nigrícia, com sermão diário e bênção, com o Ss.mo expos-
to, para além de todas as novenas e tríduos na preparação para as principais festas de Nosso Senhor, da Vir-
gem Maria e dos santos protectores do vicariato.
Estas práticas ordinárias de piedade realizadas em comum mantém muito bem o espírito dos membros da
missão, fortalecendo-os e tornando-os capazes de suportar com ânimo alegre os grandes sofrimentos, os in-
cómodos, as difíceis e perigosas viagens e as cruzes inevitáveis em tão árduo e laborioso apostolado.
3618
Os baptismos de adultos infiéis até 15 de Maio passado foram 73, além da firme conversão de um rico
comerciante albanês, que, diante de mim, abjurou do cisma grego, tornando-se um benfeitor da missão; e de
outro rico comerciante grego cismático de El-Obeid, que abjurou com a esposa perante o P.e Carcereri. Po-
rém, como disse, estas conversões são insignificantes, porque ainda não chegou o tempo de abrir fogo com
os canhões e metralhadoras que agora se estão a preparar nas missões do vicariato.
O pessoal masculino e feminino é ainda muito escasso; mas tenho razões para esperar que dentro de pou-
co recebamos poderosos reforços.
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Estabelecimentos masculinos

1.o P.e Daniel Comboni, nascido em Limone, diocese de Bréscia, a 15 de Março de 1831, membro do
Insto. das Missões para a Nigrícia de Verona, pró-vigário apostólico.
2. P.e Estanislau Carcereri, veronês, dos MM. dos II, de 34 anos, vigário-geral.
o
3.º P.e Pascoal Fiore, cónego, membro do Instituto de Verona, de 33 anos, superior e pároco da missão
de Cartum, confessor ordinário das irmãs.
4. P.e Salvador Mauro, de Barletta, membro do Instituto de Verona, de 39 anos, superior e pároco da
o
missão de El-Obeid e confessor extraordinário das irmãs em El-Obeid.
5. P.e João Losi, de Placência, membro do insto. de Verona, de 35 anos, confessor ordinário das irmãs
o
em El-Obeid.
6.o P.e José Franceschini, de 28 anos, dos MM. dos II, chanceler da minha cúria.
7.o P.e Estêvão Vanni, do insto. de Verona, de 39 anos, piedoso e excelente sacerdote missionário.
8.o P.e Vicente Jermolinski, polaco, piedoso e douto missionário, de 29 anos.
9.o P.e José Khuri, de 23 anos, piedoso e bem instruído maronita de Trípoli, da Síria, mestre de língua
árabe e aspirante ao estado eclesiástico no estabelecimento de Cartum.
3620
Há, além disso, cinco bons e distintos mestres de artes e ofícios, três em Cartum e dois em El-Obeid, que
são também exemplares e de conduta inatacável. Entre os dezassete alunos negros há quatro que aspiram ao
estado clerical. Do insto. do Cairo, dirigido pelo meu excelente e mui piedoso missionário aluno do insto. de
Verona, P.e Bartolomeu Rolleri, e do pessoal que há aí, informá-lo-á melhor o P.e Carcereri.
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Quanto ao insto. feminino, dirigido pelas Irmãs de S. José da Aparição, há quatro irmãs em Cartum e três
em El-Obeid, assistidas por uma prima minha – que é já uma religiosa experimentada, com a qual abri a casa
feminina no Cordofão por falta de irmãs – e por nove boas mestras negras. Para as necessidades das duas
missões principais precisar-se-iam, pelo menos, vinte e quatro Irmãs de S. José, as quais, em minha opinião,
são umas missionárias excelentes e de suma utilidade para as missões estrangeiras; mas é uma congregação
que não tem muitos membros. Sabendo eu isto desde há uns anos, fundei em Verona o instituto das Pias
Madres da Nigrícia, e dotei-o de alguns rendimentos, com o fim de preparar missionárias para a África Cen-
tral. Elas têm agora uma escola e um pensionato, sobretudo para filhas de grandes famílias decaídas e há aí
bastantes noviças a preparar-se para o apostolado da Nigrícia.
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Penso arranjar em Berber, dependente dos camilianos, a primeira casa africana das minhas irmãs de Ve-
rona, que dão muitas esperanças. Na África Central há lugar para todos. Estou contente com as Irmãs de S.
José e gostaria que a madre geral me desse muitas delas, especialmente árabes que, com menos exigências,
são de grande utilidade.
3623
Em El-Obeid, além de ter em propriedade absoluta dois estabelecimentos isentos de impostos, adquiri
dois armazéns que rendem mil francos anualmente.
Em Cartum, a missão é proprietária dos estabelecimentos e também possui um amplo e fértil quintal, no
qual fiz grandes despesas para o melhorar. Mas dentro de dois anos renderá dois mil escudos anuais limpos,
ou seja, mais de dez mil francos.
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As receitas obtidas desde 26 de Maio de 1872, época da minha nomeação como pró-vigário, até 26 de
Maio de 1874, são 202 521 (duzentos e dois mil quinhentos e vinte e um) francos em dinheiro efectivo e
mais de dez mil francos em géneros e objectos. Enquanto aqui em Cartum disponho de um pequeno fundo
para continuar a construção do estabelecimento feminino, graças à Providência e ao meu ecónomo S. José,
nem eu nem a missão temos um único cêntimo de dívida nem no Egipto nem na Europa, à excepção de três
mil francos que devo à madre geral de S. José, Sóror Emilie Julien, por obrigação voluntária e que pagarei
quando receber o contributo da Propagação da Fé, correspondente ao exercício de 1873.
3625
As viagens entre o Egipto e a África Central, além de serem custosíssimas, são tremendamente fadigosas.
Na primeira expedição, de trinta e uma pessoas, guiada por mim nos inícios de 1873 e que me custou 22 000
francos, incluídas algumas provisões, demorei noventa e nove dias para ir do Cairo até Cartum. P. e Losi, que
veio com quatro irmãs e três irmãos leigos, empregou só sessenta e oito dias; mas o P. e Estanislau, com ou-
tro missionário, demorou de Cartum ao Cairo setenta e cinco dias e a actual superiora, que chegou faz agora
seis meses, empregou oitenta e dois. De Cartum a El-Obeid são doze dias; de Cartum a Berber, oito dias; de
Berber a Suakin, treze dias; de Cartum a Gondokoro, dois meses, etc. Além disso, até que ponto são fadigo-
sas as viagens para o Sudão di-lo-á a V. Em.a o ilustre senhor Trémaux, membro de várias academias de
ciências e do Instituto de França, o qual, vindo do Egipto a Cartum a expensas de S. A. o vice-rei do Egipto
e, por isso, com todas as comodidades imagináveis, que um missionário nunca pode ter, deixou escrito na sua
esplêndida obra Egipte et Ethiopie, segunda edição, págs. 357-358, estas palavras verdadeiras:
3626
«A viagem de barco, sobretudo por via marítima, não é nada em comparação com a viagem por terra nes-
tas regiões (entre o Egipto e Cartum). Com efeito, por mar, por ex., fazem-se cem léguas por dia, jogando às
cartas no vapor; mas, pelo deserto, a camelo, não se fazem mais que seis ou sete léguas no mesmo espaço de
tempo, suportando um inaudito calor e toda a sorte de privações. Deste ponto de vista, o Sudão está dez
vezes mais longe que a China, dez vezes mais longe que os antípodas» (2).
3627
Quanto à missão entre os Nuba, o P.e Carcereri terá exposto tudo a V. Em.a com precisão. Creio que na
missão dos Nuba e noutras da mesma espécie será muito conveniente adoptar mais ou menos o sistema das
famosas reduções do Paraguai, ideadas pelos valorosos padres da Companhia de Jesus, que fizeram daquele
país uma escola de perfeição cristã, modelo das missões católicas. O chefe dos Nuba, o cojur Kakum, conti-
nua a mandar-me embaixadas e ultimamente enviou-me como oferta uma quantidade de mel maravilhoso.
Depois do karif começarei a mandar para Gebel Nuba os materiais para erguer o estabelecimento missioná-
rio.
3628
Resta agora o importantíssimo assunto da escravidão e do comércio de negros, deprimente espectáculo de
que é teatro o vicariato da África Central.
Espero que o P.e Carcereri lhe tenha feito uma completa exposição sobre esse assunto, sendo essa a razão
principal pela qual o enviei a Roma e a Viena. Pela minha parte, far-lhe-ei saber epistolarmente, pouco a
pouco, as fases de tão grande desgraça da humanidade. Espero que o divino Coração de Jesus, a quem con-
sagrei solenemente o vicariato, elimine, com a sua infinita caridade, esta terrível chaga da infeliz Nigrícia.
3629
Além do mais, dispus tudo para a correcta administração de todas as paróquias. Mediante uma circular
ordenei expressamente a adopção do catecismo de mons. Valerga como texto original para o vicariato, tendo-
o encontrado muito adequado para estes países.
3630
Portanto aqui tem um breve quadro do estado da missão da África Central. Nós esperamos todas as bên-
çãos do Sacratíssimo Coração de Jesus, especialmente depois de o Santo Padre se ter dignado enriquecer
com trezentos anos de indulgência uma oração que compus em latim pro conversione chamitarum Africae
Centralis ad Ecclesiam Catholicam e conceder Indulgência Plenária a quem a rezar um mês.
Suplico de V. Em.a a maior solicitude para com a infeliz Nigrícia e um acolhimento benévolo às expres-
sões da minha mais profunda reverência e veneração, com as quais lhe beijo a sagrada púrpura subscreven-
do-me nos SS. CC. de J. e M.

De V. Em.a Rev.ma
Hum.mo, devot.mo filho
P.e Daniel Comboni
Pró-oigv. ap da África Central

(1) Dr. Inácio Knoblecher Apostolischer Provikar der Katholischen Mission in Central-Afrika, Eine Le-
bensskizze von Dr. J. C. Mitterrutzner, pág.10. Brixen 1869.
(2) Trémaux, Egipte et Ethiopie, déuxième edition. Paris. Librairie de L. Hachette e Cie., Boulevard St.
Germain 77.

N.o 564 (535) - A EUSTÁQUIO E HERMÍNIA COMBONI


AFC

J. M. J.
Cartum, na África Central
2 de Junho de 1874

Meus caríssimos primos Eustáquio e Hermínia,

3631
Teria esperado qualquer coisa: desgraças de doenças, reveses da sorte, tribulações de todo o género, mas
que um jovem cheio de energia e de vida, na flor dos anos e da esperança, como Emílio, fosse morrer tão
cedo, deixando inconsoláveis uns ternos e incomparáveis pais como vós, e a uma fiel e angelical esposa co-
mo a nossa boa Teresita, nunca o teria imaginado! Eu não estava preparado para este choque. Era muito,
demasiado, o que queria ao Emílio, para pensar numa desgraça; e mais tratando-se do melhor, já que era ele
o que vivia com seus pais e constituía a sua alegria e conforto. Participo da vossa imensa pena em toda a sua
dimensão e identifico-me convosco, que, quanto ao amor paterno e materno não ficais atrás de ninguém no
mundo. Por isso sinto em mim toda a vossa amargura e compreendo que profunda desolação vos deve ter
causado a perda do vosso bom Emílio.
3632
Agora, que fazer? Há que ter coragem: considerar a vida e o mundo como o que são realmente e persua-
dirmo-nos de que somos de Deus, que d’Ele viemos e para Ele teremos de voltar. Numa palavra, se desejais
obter verdadeiro conforto, este só se encontra na religião; e como, graças a Deus, sempre vivestes e praticas-
tes a vossa santa religião, espero que ela vos sirva de lenitivo; um lenitivo real, que conforta e alivia o espíri-
to cristão e católico e o torna capaz, à semelhança de Jesus Cristo, de suportar todas as penas e adversidades
desta vida que não é senão o meio para alcançar a eternidade. Embora sinta toda a dor pela perda do Emílio,
conforta-me pensar que era um bom jovem, de vida boa e bom comportamento moral e que praticava a reli-
gião, que amava o próximo e respeitava de facto e de verdade os seus pais, que sempre encontraram nele
puro amor e submissão. Quereria que todos os jovens de hoje em dia fossem como o Emílio: a sociedade
moderna seria mais feliz.
3633
Em suma, o Emílio era bom filho, excelente marido, bom cristão e bom cidadão e tenho a mais sólida e
firme esperança de que a sua alma se salvou. Estou certo disso. Portanto, com o vosso olhar iluminado pela
fé, vede nele o vosso conforto, um grande alívio para o vosso ânimo abatido; e pensai que estamos unidos a
ele pelo vínculo da fé e do amor e que depois de uns poucos anos de vida iremos juntos com ele e com Deus
viver eternamente. Ânimo pois! Rezai por ele, confortai-vos na sua honestidade e boa vida, e pensai em Deus
e na Virgem Maria, que vos consolarão grandemente.
3634
No primeiro dia do rito semiduplo, teremos aqui em Cartum, na minha catedral, um ofício solene com a
missa solene; celebrá-lo-ei eu, e farei celebrar cem missas. Esta manhã, apenas dei a notícia à comunidade
feminina, as minhas irmãs começaram a chorar. Vão rezar e fazer muitas comunhões pelo Emílio, que sem
dúvida notará os salutares efeitos.
Assim, pois, armai-vos de coragem, levantai o vosso ânimo, levantai o olhar e aprendei com a perda do
Emílio a assegurar-vos como ele o porro unum est necessarium, isto é, a assegurar-vos a salvação da vossa
alma, que vale muito mais que os insignificantes e caducos bens desta vida.
Lembrai-vos, meus caríssimos Eustáquio e Hermínia (sabeis o afecto que sempre vos tive aos dois), do
vosso sempre afectuosíssimo primo

P.e Daniel Comboni


Pró-vig. ap. da A. Central

N.o 565 (536) - AO CÓN. CRISTÓVÃO MILÃO


«La Libertà Cattolica» 160 (1874), pp.637-638

Cartum (África Central), 6 de Junho de 1874

Meu caro amigo, director da «Libertà Cattolica»:

3635
Prometi escrever-lhe o mais amiúde que me fosse possível. Mas tenho-lhe escrito pouco, embora espere
poder fazê-lo mais no futuro. Tenho muitas coisas que lhe contar, em particular sobre as bênçãos que Deus
derrama sobre o meu vicariato da África Central, que é o maior e o mais povoado do universo. Desde que
com a aprovação do Sumo Pontífice e da Santa Sé Apostólica consagrei solenemente o vicariato ao Sacratís-
simo Coração de Jesus, parece que se vão aplanando muitos obstáculos nesta terra abrasada, onde desde há
mais de quarenta séculos pesa a terrível maldição de Cam. Tenho muito que lhe contar, repito: mas os nume-
rosos e pesados afazeres do meu mui complexo cargo e a terrível queda do camelo no deserto entre o Cor-
dofão e Cartum impediram-me de escrever até agora.
3636
Começo por lhe pedir que corrija um erro involuntário aparecido na sua esplêndida publicação La Libertà
Cattolica, no dia 1 de Março, no número 96 da Informação Religiosa, em que se lhe escapou da pluma que o
Santo Padre me tinha concedido 300 dias de indulgência a uma oração que eu compus pela conversão da
Nigrícia. Não são 300 dias, mas trezentos anos que o Santo Padre concedeu à minha oração cada vez que se
reze. Por isso envio-lhe impresso o precioso decreto, tal como me foi expedido pela S. C. da Propaganda. Se
quero que se rectifique este erro, é para que quando os piedosos e devotos leitores da sua magnífica publica-
ção e sobretudo os membros do glorioso clero napolitano leiam tão ampla e generosa indulgência, compre-
endendo o grande interesse que a Sé Apostólica e o nosso adorado Santo Padre Pio IX têm pela minha árdua
e laboriosa missão, a rezem todos os dias e a façam rezar aos outros; assim, pela poderosa razão do petite et
accipietis, a Nigrícia será convertida.
3637
Das suas dioceses napolitanas continuam a acorrer a alistar-se não poucos na minha sagrada milícia, vin-
do compartilhar connosco as fadigas e suores do apostolado africano. Envio-lhe também a minha pastoral
sobre o tráfico de negros, que ainda aflige a minha missão.
3638
A missão de Cartum está dotado de dois importantes institutos, o dos missionários e o das Irmãs de S. Jo-
sé, com as respectivas escolas e jardins de infância.
Igualmente a nova missão do Cordofão dispõe de um colégio de negros, alguns dos quais se orientam pa-
ra o estado eclesiástico e de um Instituto das Irmãs de S. José, com dependências para alojamento das escra-
vas, colégio de negras e creche, além de uma enfermaria para os escravos lançados fora. Quando um escra-
vo está doente e se prevê que já não vai ser suficientemente útil, expulsam-no, muitas vezes para pasto das
hienas e dos cães.
3639
Depois das chuvas irei fundar a missão entre os povos Nuba, a sudoeste do Cordofão, onde jamais os eu-
ropeus puseram os pés. O meu valoroso vigário-geral, o P.e Estanislau Carcereri (que se encontra na Europa
e por ordem minha irá fazer-lhe uma visita aí a Nápoles) esteve, de acordo com as minhas ordens, a fazer
explorações prévias naquelas regiões e espero que, dentro de pouco, todo este povo idólatra inclinará a fronte
perante a cruz de Cristo e se converterá em seu fervoroso adorador. Espero também, dentro de dois anos,
poder arvorar o estandarte da cruz entre os povos que habitam as nascentes (até ontem misteriosas) do Nilo.
Sua Alteza o quedive do Egipto enviou como governador-geral do Nilo Branco e do Equador S. E. o coronel
Gordon, inglês, já glorioso por ter reprimido os rebeldes da China e da Mongólia. É protestante, mas um
verdadeiro cavalheiro, um nobilíssimo senhor, um valoroso soldado e um homem sensato, que tem em gran-
de estima os bispos e prelados católicos, porque pôde admirar a sua virtude na China e na Mongólia. Irá fa-
vorecer muito o nosso apostolado. Convidou-me a acompanhá-lo ao equador, mas agora tenho ainda muita
falta de missionários. Logo que me seja possível, certamente que erigirei uma missão também lá.
3640
Os seus napolitanos dão muitas satisfações. P.e Salvador Mauro, a quem nomeei superior e pároco no
Cordofão, exerce com muita diligência e piedade o seu difícil papel. Tira toda a sua força da fervorosa devo-
ção que sente por S. Judas Tadeu. Ao nomeá-lo superior e pároco daquela longínqua missão, escrevi-lhe a
dizer que o verdadeiro superior por mim escolhido era S. Judas Tadeu e que ele não era mais que vice-
superior e pro-curador do santo. Bastou isto para reavivar o seu ânimo e, como lhe disse, dá-me muitas satis-
fações.
3641
O cónego P.e Pascoal Fiore, de Corato, é superior e pároco de Cartum. Parece nascido para este cargo e a
um zelo proeminente une uma rara e fina prudência. Que o Senhor me mande muitos destes missionários.
3642
Adeus, meu caro amigo e solícito dessa Libertà Cattolica, que com atraso por causa da distância me che-
ga sempre agradabilíssima e confortadora. Aqui não tenho nem vontade nem tempo para atender à política
que aflige a sua Europa. Aqui encontro-me num mundo novo, que espera a sua civilização por meio da fé.
Sem dúvida é um motivo de honra para as dioceses napolitanas terem a trabalhar aqui, nestes terrenos difí-
ceis, alguns dos seus representantes. Estimule o trabalho de outros, que aqui a messe é incomensurável.

Seu totalmente devoto amigo


P.e Daniel Comboni
Pró-vig. ap. da Af. Central

N.o 566 (537) - À IR. VERÓNICA PETTINATI


AP SC Afr. C., v. 8, ff. 267-268

Cartum, 1 de Julho de 1874

Minha excelente Ir. Verónica,

3643
Recebo a sua carta de 30 de Maio e com dor tomo conhecimento de que foi comunicado às irmãs destina-
das a África Central que devem ir para o hospital. Tinham-me dito anteriormente que o P.e Estanislau e a
madre geral tinham acordado isso. Mas já escrevi a P.e Bartolo há tempos a comunicar a minha desaprova-
ção desse projecto.
3644
As duas pequenas casas do Cairo fundei-as eu e só eu as devo suprimir. Mas nunca as suprimirei, excepto
se for obrigado a obedecer a uma força superior. P.e Bartolo faz o que lhe dizem de Roma; e embora a irmã
esteja obrigada a obedecer a P.e Bartolo como meu representante no Egipto, na presente ocasião dou-lhe esta
ordem: «Não saia do seu sítio sem uma ordem minha concreta ou sem uma ordem da S. C. da Propaganda
que lhe seja manifestada directamente ou por meio de P.e Bartolo, da madre geral ou do delegado apostólico.
Se qualquer um outro a mandar ir para o hospital, responda que se porventura a destinam à casa do hospital
ou se ela serve a África Central; e, nesta hipótese, responda humildemente e com toda a submissão que é
conveniente esperar as minhas disposições.
3645
Ainda não consigo convencer-me de que se tenha tomado tão grave decisão sem me consultarem. Por is-
so, espero ainda uma vinda do correio e se não houver mudança no disposto, enviarei um telegrama a P.e
Bartolo, ordenando-lhe que suspenda tudo até novas ordens.
A madre geral confiou-me as irmãs para servirem a África Central e para eu as conduzir à missão, não pa-
ra ficarem num hospital; para mim seria agravo e não o admito. Tenho inúmeras razões para não aceitar esta
decisão que o P.e Estanislau terá tomado com bom fim e com santas intenções, que, contudo, não me cabe na
cabeça. Repito: permaneça no seu lugar. Recomendando-lhe suma prudência, dou-lhe a minha bênção. Saúde
a todas da minha parte e considere-me

Seu af.mo
e
P. Daniel Comboni
Pró-vig. ap.

N.o 567 (538) - À MADRE EUFRÁSIA MARAVAL


ASSGM, Afrique Central Dossier

J. M. J.
Cartum, 3 de Julho de 1874

Minha rev.da madre assistente,

3646
Perdoe-me se lhe dirijo estas duas linhas. É que não tenho coragem de escrever à madre geral, a qual não
se mostra à altura da sua posição em relação ao meu vicariato, que hoje é o mais importante do mundo. No
mês de Abril, o P.e Estanislau escrevia-me de Roma: «Acertei com a madre geral todos os artigos do acordo
relativo às irmãs: quantas estão no Cairo ou as que vão da Europa para o Cairo, para depois se transferirem
para a África Central, irão para o hospital durante todo o tempo em que estiverem no Cairo e o senhor pagará
um tanto por dia por cada irmã, etc.». Eu não quis acreditar que isso fosse a sério e abstive-me de responder.
Ao cabo de uma semana, chega-me outra carta do P.e Estanislau, na qual me diz: «Sobre o acordo, combinei
com a Propaganda e com a madre geral que nos primeiros de Julho todas as irmãs passem para o hospital,
etc.»
3647
Tão-pouco fiz caso desta vez, porque a Propaganda não se imiscui nestes assuntos e deixa tudo aos res-
ponsáveis das missões; mas escrevi ao superior do Cairo, P.e Bartolo, dizendo-lhe que não aceito esta deci-
são e que, se a Propaganda ordena a ida das irmãs para o hospital, apresentarei umas alegações tais que terá
de atender a meus rogos de deixar as minhas irmãs na minha casa do Cairo. Já mons. o delegado me tinha
dito muitas vezes no Cairo que, para evitar enormes gastos, eu devia instalar as irmãs em dois quartos do
Bom Pastor e Scubra, a dois francos ao dia, respondendo-lhe eu que as minhas irmãs não eram penitentes,
etc. Parece que foi o mesmo delegado o que teve – é possível – a ideia do hospital.
3648
Depois, passado algum tempo, o P.e Estanislau escreve-me em duas cartas: «O acordo com a madre geral
foi realizado e estipulado com pleno consenso. As irmãs do Cairo passarão para o hospital em princípios de
Julho.» Entretanto a Propaganda não escreveu nada sobre o assunto. Portanto o assunto depende da madre
geral e do P.e Estanislau, a quem dei instruções claras para que me livre dessas dez ou doze negras que não
são de nenhuma utilidade ao meu vicariato, mas que deixe intactos os institutos para a aclimatação dos mis-
sionários e das irmãs procedentes da Europa, até vir outro delegado que permita fazer no Egipto o bem aos
negros, porque mons. Ciurcia e os franciscanos nos põem entraves e proibiram-nos de nos ocuparmos dos
negros no Egipto.
3649
Domingo passado, P.e Bartolo escreveu-me: «Vendo que a madre geral já não escreve, nem dá as ordens
oportunas para que as irmãs passem para o hospital (coisa que não é do meu agrado), eu, após as ordens e
convénios entre a Propaganda, a madre geral e o P.e Estanislau, manifestei a Sóror Verónica as decisões de
Roma e que em princípios de Julho devem mudar-se para o hospital, etc.» Eu, minha madre, fiquei petrifi-
cado. Depois chega-me uma carta da Ir. Verónica, a anunciar-me com pesar o que P.e Bartolo lhe tinha co-
municado.
3650
Então o sangue subiu-me à cabeça e enviei um telegrama a P.e Bartolo, ordenando-lhe que não realize a
louca determinação (porque penso que a Propaganda não tem nada a ver com este projecto, uma vez que, de
contrário, ter-me-ia escrito a dizer que alugasse as minhas irmãs ao hospital, em vez de as preparar para a
África Central) de colocar as minhas irmãs no hospital e que espere as minhas ordens.
Depois dirigi-me por carta à Ir. Verónica e ordenei-lhe que não se mova do seu lugar sem que eu o dispo-
nha.
3651
Depois de tudo isto, rogo-lhe, minha madre, que comunique à madre geral a minha recusa em aceitar esta
determinação. E que as Irmãs, destinadas à África Central, devem ir para minha casa e passar aí o tempo de
preparação e aclimatação e não no hospital ou no Bom Pastor. Posto que ela me confia a mim as suas irmãs
para que trabalhem na minha missão, deve estar plenamente convencida de que posso guardá-las, mantê-las e
dirigi-las bem. Graças a Deus, nunca faltou o pão às irmãs que ela deixou a meu cargo.
3652
Então, por que razão quer meter no hospital as irmãs que estão destinadas à África Central? Não o permi-
tirei nunca, enquanto tiver uma casa no Cairo; e a casa no Cairo tê-la-ei sempre, seja arrendada, seja própria.
Os motivos desta negativa são inúmeros e graves e se o delegado continua a procurar impor-se, espero obter
justiça da Propaganda. Tenho razões de sobra para rejeitar a pretensão da Madre Geral de meter no hospital
as irmãs (parece-me impossível que ela tenha chegado a isto), etc.
Sirva-se receber, minha boa madre, etc. Que Deus a abençoe.

Seu dev.mo, etc.


P.e Daniel Comboni
Pró-vig. ap. da A. C.

Original francês
Tradução do italiano

N.o 568 (539) - A DOMINGAS COMBONI


ACR, sez. fotografie

Cartum, Julho de 1874

Autógrafo numa foto.

N.o 569 (540) - ACORDO COM OS CAMILIANOS


AP SC Afr. C., v. 8, ff 227-230v.

Roma, 24 de Agosto de 1874

ACORDO
ENTRE OS REV.MOS PRÓ-VIGÁRIO APOSTÓLICO
DA ÁFRICA CENTRAL
E O P.e VIGÁRIO-GERAL DOS MINISTROS DOS ENFERMOS

----------

3653
Com o objectivo de contribuir para a difusão do Evangelho entre os povos infiéis da Nigrícia, foi estipu-
lado entre os rev. mos pró-vigário apostólico da África Central e o P.e vigário-geral dos Ministros dos En-
fermos o seguinte acordo para ser submetido à S. Congregação da Propaganda.
I. O rev.mo P.e geral dos Ministros dos Enfermos, seguindo o impulso da sua caridade para com os
povos da Nigrícia, que são os mais necessitados e abandonados do universo, põe à disposição da Propaganda
para o vicariato apostólico da África Central, além dos padres Carcereri e Franceschini, outros dos seus reli-
giosos que se sintam inclinados ao árduo e laborioso apostolado da Nigrícia e que sejam de provada virtude e
tenham já feito a profissão dos quatro votos solenes próprios da ordem de S. Camilo de Lelis, sem que, por
isso, deixem de atender ao exercício próprio do seu santo instituto em benefício dos pobres enfermos e ago-
nizantes; de modo que não só se dedicarão com todo o fervor à assistência espiritual daqueles povos, mas
também procurarão com o tempo e com empenho criar um pequeno hospital em favor dos mesmos, tanto
para a assistência espiritual como para a corporal, por ser tal a finalidade primária do seu instituto.
3654
II. O P.e geral apresentará à Propaganda os ditos religiosos, que, depois de serem aprovados mediante
o habitual exame e munidos da patente de missionários apostólicos, se transferirão para o seu lugar de desti-
no.
3655
III. Todos e cada um destes religiosos, chegados à missão, ficam à disposição do pró-vigário apostólico
e para ajuda dos seus missionários, podendo ele utilizá-los como melhor entender na assistência às diversas
missões do vicariato e atribuir-lhes, pelo tempo que julgar oportuno, qualquer cargo, desde o mais humilde
ao mais elevado, como o de mestre coadjutor, pároco, confessor de freiras, superior local, vigário-geral, etc.,
etc. Porém, isto entende-se dentro dos limites seguintes e com as seguintes condições: 1.o, que os religiosos
destinados a África dependam do P.e geral, do modo e maneira como se efectua em todas as outras religiões
que têm missões no estrangeiro; 2.o, que o pró-vigário e seus sucessores possam dispor dos religiosos segun-
do as necessidades da missão, como se disse, porém, pondo-se de total acordo com o superior e dirigindo-se
sempre a ele, nunca simplesmente aos indivíduos; 3.o, finalmente, que isto se entende no relacionado com o
exercício externo dos ministérios próprios da missão e não no concernente à disciplina interna e estritamente
religiosa, para o que deverão depender exclusivamente do superior.
3656
IV. Todos e cada um dos religiosos, durante o tempo que permanecerem distribuídos nas missões do
vicariato, estarão sujeitos à obediência ao superior local e à observância do regulamento da casa para a qual
tenham sido temporariamente transferidos.
V. O rev.mo P.e geral atribuirá ao conjunto dos seus religiosos destinados à África Central um superi-
or que os represente, o qual terá em especial o encargo de os vigiar, a fim de que todos e cada um conservem
o espírito religioso do instituto de S. Camilo de Lelis e desenvolvam os seus benéficos efeitos em prol da
conversão da Nigrícia.
3657
VI. O rev.mo pró-vigário apostólico proporcionará quanto antes, equipada com o necessário, uma boa
casa com capela, farmácia e um pequeno quintal ou jardim na salubre cidade de Berber, na Núbia Superior,
onde se poderão reunir os religiosos, quando não estiverem ocupados na assistência das missões centrais,
para viverem a vida religiosa, fazerem os exercícios espirituais e fortalecerem o espírito eminentemente sub-
lime do seu santo instituto.
3658
VII. A casa de Berber será exclusivamente casa camiliana, promoverá na medida do possível o bem
espiritual por meio da escola e da assistência aos enfermos e terá a jurisdição ordinária paroquial não só da
cidade e província deste nome, mas também da província de Suakin, no mar Vermelho, e da de Taka, na
fronteira nordeste com a Abissínia, como também a jurisdição provisório da província ou antigo reino de
Dôngola, até terminar o caminho de ferro do Sudão, ocupando-se dos cristãos de qualquer nação ou rito.
3659
VIII. O superior camiliano, quando se encontrar à disposição do Pró-vigário apostólico ou prestando
serviço noutra missão do vicariato, far-se-á representar na casa camiliana de Berber por outro religioso da
sua confiança e que conte com a aprovação do pró-vigário apostólico para o desempenho da direcção espiri-
tual e temporal da obra camiliana, em tudo e por tudo, segundo as normas estabelecidas nas constituições da
própria ordem.
3660
IX. A escolha do religioso que vai exercer o cargo de pároco fá-la-á o pró-vigário em entendimento e
de acordo com o P.e geral, procurando, se possível, que para esse cargo se nomeie uma pessoa diferente do
superior da casa religiosa.
3661
X. O pró-vigário apostólico atribuirá anualmente à casa camiliana de Berber a importância de 5000
(cinco mil) francos dos rendimentos que o vicariato recebe das sociedades benfeitoras europeias, a qual se
entregará antecipadamente ao superior, numa ou duas entregas, no início de cada ano. Tal atribuição come-
çará a partir do dia em que estejam lá instalados religiosos em número adequado, o que sucederá logo que
estejam equipadas a casa e a capela dedicadas a S. Camilo de Lelis. Este contributo anual durará cinco anos,
tempo necessário para conhecer na prática a acção camiliana, o número aproximado de religiosos que a or-
dem pode fornecer, o custo dos víveres e os gastos necessários para a manutenção da casa e das obras cami-
lianas. Transcorridos cinco anos, o pró-vigário apostólico e o superior Camiliano estipularão um novo acor-
do, que submeterão a Roma, baseado em noções práticas e seguras acerca de tudo, para estabelecer, de ma-
neira definitiva e correcta, o necessário contributo e dotação da casa camiliana, que se efectuará, tanto quanto
possível, em bens imóveis e em conformidade com o que se considerar melhor para ambas as partes.
3662
XI. Esta atribuição anual destina-se à alimentação e ao vestuário dos religiosos, enquanto viverem em
Berber, à visita das localidades dependentes da jurisdição camiliana, à conservação ou melhoramentos na
casa de Berber e à manutenção da igreja anexa ou capela, quer dizer, para os gastos do culto. Por outro lado,
os religiosos que se encontram a prestar serviço noutras missões do vicariato vivem a expensas da casa à
qual estão temporariamente destinados.
3663
XII. Todas as viagens dos religiosos camilianos desde a Europa ao Egipto e à estação da ordem em Ber-
ber e desta às diversas missões interiores do vicariato, como também as viagens de volta das missões centrais
até Berber, ficam a cargo do pró-vigário apostólico.
3664
XIII. O superior camiliano, de acordo com pró-vigário apostólico, deverá reunir, uma vez por ano, todos
os seus religiosos por um período pelo menos de vinte dias, a fim de verificar se conservam o espírito religi-
oso do Instituto e para reavivar o seu zelo apostólico, por meio de especiais exercícios espirituais e das devo-
tas práticas da ordem.
3665
XIV. No caso de o superior camiliano, de acordo com o pró-vigário apostólico, julgar conveniente visitar
os seus religiosos nas diversas missões centrais, todos os gastos da viagem e do sustento serão por conta do
pró-vigário apostólico.
3666
XV. Enquanto viverem na casa camiliana e suas dependências, os religiosos aplicam a santa missa se-
gundo a intenção do seu superior. Em troca, enquanto viverem a prestar assistência nas missões do interior,
aplicam-na segundo a intenção do pró-vigário apostólico ou do superior da casa onde se encontram instala-
dos, com excepção de duas missas ao mês, que o religioso pode aplicar por si mesmo, ou como desejar, mais
as obrigações de missas impostas especificamente aos camilianos pela sua ordem, segundo os seus estatutos
e disposições generalícias.
3667
XVI. Todos os anos, dentro do mês de Setembro, o superior da casa camiliana apresentará ao pró-vigário
apostólico uma exacta informação sobre o andamento, desenvolvimento e administração da casa e da obra
camiliana, que ele, depois, transmitirá à S. C. da Propaganda, acompanhada das suas observações. E outro
tanto fará o superior com o rev.mo P.e geral, sobretudo no que diz respeito à actuação e conduta de cada um
dos religiosos.
3668
Tudo para a maior glória de Deus e para a salvação da infeliz Nigrícia, «in unitate spiritus et vinculo cha-
ritatis», sem prejuízo da autoridade da mencionada S. Congregação da Propaganda Fide, nem dos decretos e
regras vigentes para o governo das santas missões. Ámen.

† Luís bispo de Verona representante de


e
P. Daniel Comboni, pró-vig. ap. da Áfr. central
e Camilo Guardi, vig.o-g. de RR. RR. Ministros dos Enfermos
concordam no que ficou exarado e, assinando, expressam a sua aprovação.
Por parte da S. Congregação da Propaganda, nada obsta para que o presente acordo seja levado à prática.
Roma, sede da Propaganda, aos 24 de Agosto de 1874

Card. Alex. Franchi, pref.

N.o 570 (541) - AO CARDEAL ALEXANDRE FRANCHI


AP SC Afr. C. v. 8, ff. 286-287

N.º 10
Cartum, 14 de Setembro de 1874
Em.º e Rev.mo Príncipe,

3669
Embora tenha tido a honra de lhe ter escrito há apenas alguns dias, agora, ao receber do P.e Carcereri uma
cópia assinada do acordo feito entre a rev.ma madre geral das Irmãs de S. José e entre mim, para regular o
desenvolvimento desse venerável instituto no meu vicariato, eu não posso, pelo menos, deixar de expressar a
V. Em.a a minha sincera satisfação e assegurar-lhe ao mesmo tempo que para mim será sempre especialíssi-
ma preocupação não somente fomentar e manter viva de toda a maneira nestas excelentes filhas africanas de
S. José o espírito da sua vocação e dirigi-las sabiamente para o maior bem espiritual desta vasta e trabalhosa
missão mas também tomar cuidado para que nunca falte nada do necessário a cada uma delas, ainda que, se a
tal se chegasse, me fosse necessário dobrar os gastos e a atribuição estabelecida no acordo. Estas boas irmãs
expõem a vida como nós, consagrando-se por completo a si mesmas para glória de Deus e a salvação da infe-
liz Nigrícia e, portanto, têm direito a todo o amparo que lhes pode oferecer uma paternal solicitude, que não
faltará nunca pela nossa parte com a ajuda do Senhor.
3670
Tenho grande interesse, como fica expresso no acordo, em que a madre geral designe uma irmã sensata e
de valia que a represente neste remotíssimo vicariato e com a qual eu possa tratar sobre os destinos e mudan-
ças e os interesses das irmãs da África Central. Esta irmã deve ser sempre a superiora da casa de Cartum,
cidade onde se encontra a sede ordinária do pró-vigário apostólico. Portanto, suplico fervorosamente da exí-
mia bondade de V. Em.a que se digne instar vivamente a referida madre geral, profunda conhecedora das
missões estrangeiras, a que escolha para tão importantíssima função uma de entre as melhores das suas ir-
mãs, que esteja verdadeiramente à altura da sua missão e que ma mande quanto antes. Eu estou a preparar-
lhe uma residência que será digna do seu cargo.
3671
Concluo a presente declarando sinceramente a V. Em.ª Rev.ma a alta estima e veneração que professo a
estas irmãs, enquanto missionárias em terras dos infiéis e a preferência que entre elas tenho pelas irmãs ára-
bes no que respeita à minha missão. Sem possuírem essa viril e profunda formação ascética nem toda essa
amplíssima instrução que admiramos nas santas filhas das Escolásticas, das Chantal, das Merici e das Damas
do Sagrado Coração, contudo estas Irmãs de S. José são muito recomendáveis pela sua simplicidade, zelo
incansável e aptidão para todas as tarefas missionárias, bem como pela sua heróica valentia ao enfrentarem
toda a espécie de riscos, longas e perigosas viagens e até a morte, para desempenharem bem todo o seu mi-
nistério.
3672
Além disso, todas (falando das que eu conheci) são de imaculados costumes, inatacáveis quanto à morali-
dade, até ao ponto de poderem enfrentar a pé firme, com a ajuda de Deus, até os perigos da corrupção huma-
na entre os infiéis, para corrigir os seus excessos, triunfar das almas mais depravadas, derramar entre elas o
bom odor de Cristo e fazer respeitar a pureza da moral cristã. Para estes bons efeitos contribuem grandemen-
te a protecção providencial de S. José e o amor e confiança que as irmãs sentem vivamente por este querido
santo, seu pai, como também as frequentes práticas de piedade e os contínuos ensinamentos dos missionários
e o manter sempre acesa entre elas a chama do altíssimo fim da sua missão, ou seja, a glória de Deus e a
salvação das almas, que não se podem obter sem se ocupar seriamente da própria santificação.
3673
Na próxima carta falar-lhe-ei da viagem tão desastrosa, recentemente finalizada pelo prussiano dr. Nacti-
gal, que agora está aqui em Cartum, e que, em cinco anos e meio, veio desde Trípoli até Cartum, passando
pelos impérios de Bornu, Waday e Darfur, submetidos à minha jurisdição. Contar-lhe-ei também as interes-
santes notícias que me deu desses povos e dos milhões de escravos que ainda gemem sob o império de Sata-
nás. O nosso governador-geral, Ismail Paxá, que me escreveu um bom elogio das nossas casas do Cordofão,
agora está a atacar o sultão de Darfur.
Beija-lhe a sagrada púrpura

O seu hum.mo e obed.mo filho


P.e Daniel Comboni
Pró-vig. apostólico da África C.

N.o 571 (542) - AO CARD. ALEXANDRE FRANCHI


AP SC Afr. C., v.8, ff. 289-291

N.o 11
Cartum, 14 de Outubro de 1874
Em.o e Rev.mo Príncipe,

3674
Dado que o chefe dos Nuba continua a manifestar a vontade de ter nas suas terras os nossos missionários
e que pelas repetidas informações do P.e Carcereri parece que a Propaganda aprova a fundação da projectada
missão de Gebel Nuba e, em vista de que em breve me vão chegar bons reforços de missionários do meu
insto. de Verona e da obra de São Camilo, parece-me chegado o momento estabelecido pela Providência para
criar a nova missão dos Nuba. Por isso, invocada com públicas e insistentes preces a ajuda do dulcíssimo
Coração de Jesus e depois de madura reflexão, decidi fazer os preparativos para enviar quanto antes a Delen,
lugar e residência do chefe, dois sacerdotes missionários; isto é, o superior do Cordofão com o P.e Fran-
ceschini (que foi companheiro de exploração de Carcereri), junto com dois irmãos leigos artesãos, a fim de
arranjar duas casas com uma capela. Com este objectivo, como escrevi noutra ocasião, estou a reunir em
Cartum as coisas necessárias, enquanto, por seu lado, o próprio chefe e cojur me fizeram saber não há muito,
mediante os seus mensageiros, que, ao anúncio da nossa partida para Gebel Nuba, teria madeira, esteiras e
outros materiais preparados para a construção das nossas moradas.
3675
Assim pois, eu preparo a pequena caravana para Gebel Nuba como se tivesse que se pôr imediatamente a
caminho; porém, não darei a ordem de sair enquanto não tiver a comunicação oficial de que tal é realmente a
vontade de V. Em.a ou da S. Congregação. Depois, recebidas as veneradas instruções da Propaganda sobre o
assunto, chegada de Cartum a nova expedição do P.e Carcereri, feita a distribuição do pessoal entre as diver-
sas estações e instalados provisória ou estavelmente os camilianos em Berber, eu deixarei esta minha sede
principal e pela rota do Cordofão dirigir-me-ei para fundar a missão de Gebel Nuba, logo que estejam pron-
tas as casas que os dois sacerdotes e os dois leigos mencionados tiverem preparado.
3676
Com o vapor que o Governo pôs à minha disposição, farei, após o Dia de Fiéis Defuntos, uma breve via-
gem a Berber com o fim de comprar uma casa para os camilianos. Já em Abril de 1873, à minha passagem
por essa cidade, eu lancei o olhar a uma bela casa com terreno para jardim, que desde então tinha intenção de
comprar, quer para aí pararem as nossas caravanas provenientes do Cairo e fatigadas pela terrível travessia
do deserto quer para dispor sempre de un pied-à-terre para as visitas que fosse necessário fazer às províncias
de Taka, Suakin e Dôngola, nas quais se encontram disseminados alguns cristãos necessitados de auxílio
espiritual. Não sei todavia oficialmente que disposições tomou V. Em.a ou a S. Congregação sobre a implo-
rada cooperação da ínclita ordem camiliana no meu vicariato. Nem a Propaganda nem o rev.do P.e Guardi
me escreveram nada sobre isso. Porém, subsistindo o facto de que chegaram ao Cairo três padres camilianos
com um irmão leigo, creio necessário proporcionar-lhes casa em Berber. No entanto, antes de erigir canoni-
camente a casa camiliana, deverei esperar o que dispôs V. Em.a ou a S. Congregação.
3677
Com a ajuda do Senhor, as irmãs já se instalaram na nova casa, que recentemente mandei construir nesta
capital, segundo o projecto do famoso engenheiro Carlos Roesner, de Viena. Apesar disso, os trabalhos con-
tinuam ainda aceleradamente. Este edifício solidíssimo e majestoso é uma verdadeira obra apostólica, da
qual o vicariato obterá grande proveito em todo o tempo. A residência dos missionários e esta nova das irmãs
constituem uma maravilha para o povo de Cartum e o de todo o Sudão. São as duas construções mais sólidas
e colossais de toda a África Central.
3678
Isto contribui não pouco para nos dar um certo prestígio e para nos fazer respeitar por esta gente tão mate-
rialista do Governo sudanês e pelos povos muçulmanos. Também vão em bom andamento os trabalhos de
construção no Cordofão, onde sobretudo o Insto. feminino necessita de ser ampliado para a separação das
diversas obras que abrange. O governador-geral do Sudão, S. E. Ismail Paxá, antes de sair do Cordofão para
a conquista do império de Darfur, visitou os meus estabelecimentos de El-Obeid e escreveu-me uma carta
muito gentil, na qual, louvando as obras e a ordem sobretudo do Insto. feminino, se congratulou por isso
comigo e prometeu estar disposto a ajudar-me numa obra que, diz, é de autêntica civilização. Estas são pro-
messas de turcos; porém, entretanto, segue-se para diante com a bênção de Deus.
3679
O exército egípcio capitaneado por Ismail Paxá dispõe de artilharia pesada, fuzis Remington e 10 metra-
lhadoras, com cerca de 12 000 soldados. O sultão de Darfur tem até agora pouco mais de 80 000 homens,
mas só estão armados com lanças e flechas, uns poucos de fuzis de pederneira e um ou outro tosco canhão.
Parece que o sultão de Waday, cujo império fica a noroeste de Darfur, acode em ajuda do seu vizinho com
120 000 homens armados apenas de muito valor. Mas o certo é que Ismail Paxá conquistou as localidades
que constituem como que as alfândegas de Darfur e marcha sobre Tendelti, capital e residência do sultão.
Aqui crê-se que na conquista deste Estado, até agora fechado à gente dos exterior, porque, por ordem daque-
les sultões, matava-se todo o estrangeiro que entrasse. Em 1861 esteve lá retido o actual governador do Cor-
dofão (como ele mesmo me contou), o qual, apesar de ter sido enviado com valiosas ofertas pelo vice-rei do
Egipto, teve que ficar como refém durante 23 meses, com o temor de morrer a qualquer momento. Parece,
pois, provável que, caindo tal reino sob o dominação egípcia, se nos torne mais fácil implantar lá a cruz num
tempo não longínquo e fundar uma missão.
Beijando-lhe a sagrada púrpura, tenho a honra de lhe prestar a minha humilde homenagem de respeitosa
devoção e de me subscrever com filial veneração e respeito
De V. Em.a Rev.ma
Hum.mo, devot.mo e ob.mo filho
Pró-vig. apost. da África Central

N.o 572 (543) - AO P.e ESTANISLAU CARCERERI


AP SOCG, v. 1005 (1806), f. 1513 v.

Cartum, 3 de Dezembro de 1874

3680
...Parece-me que Deus quer que toda a expedição secular e regular venha a Cartum (porque antes pensa-
va-se em deixar os camilianos em Berber e seguir daí a rota de Korosko). Recebi o seu telegrama uma hora
depois de o ter enviado de Wady-Halfa... Peço-lhe, pois, que conduza a caravana e os camilianos até Cartum,
indo de Dôngola a Dabba pelo Nilo e de Dabba a Ondurman pelo bom deserto de Bayuda, que é um percurso
mais agradável e menos pesado que o do Cordofão, etc... Ainda que conheça a viagem de Wady-Halfa a Car-
tum, porque o realizei há catorze anos ao voltar da África Central à Europa, de todo o modo procurei aqui as
informações mais exactas, etc...
P.e Daniel Comboni

N.B. Esta carta de Comboni foi transcrita só parcialmente pelo P.e Carcereri num seu relatório à Pro-
paganda.

N.o 573 (544) - AO CARD. ALEXANDRE FRANCHI


AP SC Afr. C., v. 8, ff. 296-299

N.o 12
Cartum, 19 de Dezembro de 1874
Em.a e Rev.mo Príncipe,

3681
Com verdadeiro júbilo recebi a sua estimadíssima carta de 31 de Agosto passado, a n. o 6, com que V.
Em.a teve a bondade de me comunicar o resultado da assembleia geral da S. C. da Propaganda, a qual se
dignou ocupar-se dos assuntos do meu árduo e trabalhoso vicariato. Por me encontrar extraordinariamente
ocupado neste momento, deixo para outra carta a minha resposta a cada um dos pontos da importante e apre-
ciada missiva de V. Em.a e mostrar-lhe quão sábias e práticas foram todas e cada uma das veneradas instru-
ções que a S. C. teve por bem dar-me sobre o modo de actuar nos diversos assuntos relativos a esta missão.
3682
Sim, em.o príncipe! Vê-se claramente que é o Espírito Santo quem guia essa sublime Congregação que
governa todas as missões estrangeiras do universo. E eu com todos os meus companheiros, a quem dei a
conhecer esse precioso documento, o qual contém a voz de Deus que fala por meio da sua Igreja, tivemos o
grande consolo de ver traçada e assinalada tão claramente a vontade divina a nosso respeito. Eu prometo-lhe
de todo o coração que serei fiel em realizar com todas as minhas forças e à letra as sábias e prudentíssimas
disposições que me foram comunicadas nesse escrito, que é um monumento de sabedoria dos eminentíssimos
padres da Propaganda. Além disso, não tenho bastantes palavras para exprimir a minha gratidão para com V.
Em.a e os seus eminentíssimos colegas por se ter dignado animar-me a perseverar incansavelmente na santa
empresa que me foi confiada pela Santa Sé e a esperar toda a ajuda da amorosa assistência de Deus. Tenho a
firme convicção de estar muito longe de merecer tão alta honra por parte do em.mos cardeais que integram a
S. C. da Propaganda.
3683
Confesso-lhe sinceramente que tais palavras de encorajamento no meio dos contínuos sofrimentos deste
trabalhoso apostolado foram para a minha fraqueza um verdadeiro maná do Céu, que consolidaram e dupli-
caram a coragem e vigor do meu espírito e constituíram um bálsamo salutar para o ânimo de todos os meus
companheiros. Quando se tem a plena certeza de estar a fazer a vontade de Deus, todo o sacrifício, todas as
cruzes e a própria morte são o mais doce conforto dos nossos corações, a mais grata recompensa para os
nossos sofrimentos. Pelo que suplico humildemente a V. Em.a que se faça intérprete, perante os ditos
em.mos cardeais da S. C., dos meus profundos sentimentos de gratidão, de devoção e da inquebrantável fir-
meza em corresponder fielmente às suas benévolas expectativas e aos seus magnânimos desejos, dirigidos à
glória de Deus e à salvação das almas.
3684
Tardei esta vez em escrever, porque estive ausente da minha residência principal, por ter ido a Berber,
onde comprei e equipei uma das maiores e belas casas da cidade, situada nas margens do Nilo, para nelas
alojar os padres camilianos. Dispõe de espaços para enfermaria ou hospital, capela, aulas e jardim. Instalei lá
o P.e Franceschini, camiliano, a quem tinha destinado para a nova missão de Gebel Nuba, mas a quem de-
pois retive em Berber, após ter recebido uma carta do P.e Carcereri, na qual dizia ser vontade da Propagan-
da e do P.e geral Guardi que todos os camilianos permaneçam um ano inteiro ligados à casa de Berber. An-
tes de fazer qualquer objecção ao que me escreve a este respeito e que não está muito em concordância com
o sentido do meu acordo com o rev.mo P.e geral da ínclita ordem dos crucíferos, julguei oportuno esperar a
chegada a Cartum do dito padre e falar com ele sobre o assunto.
3685
Entretanto, logo que recebi o venerado escrito de V. Em.a antes referido, no qual os seus Eminentíssimos
colegas ordenaram que funde eu sem mais a nova missão entre os povos Nuba, mandei logo ao Cordofão
dois indivíduos competentes com o fim de se juntarem ao superior de El-Obeid para acompanhar a pequena
vanguarda enviada por mim a essas terras e ajudá-la a levar a cabo os meu planos. As últimas notícias que
recebi esta semana são que o grande chefe enviou à nossa missão de El-Obeid um parente seu com outros
seis nuba, os quais estão alojados no nosso estabelecimento e dentro de uns dias conduzirão a minha pequena
caravana apostólica ao seu destino; quer dizer, apenas se encontre restabelecido o meu excelente missionário
P.e João Losi, que deve substituir P.e Salvador Mauro no posto de superior de El-Obeid.
3686
Quanto à caravana guiada pelo P.e Carcereri, dar-lhe-ei notícias quando tiver chegado a Cartum. Partiu do
Cairo no dia 25 do passado mês de Outubro. E como o mencionado padre quis seguir a longa e insegura rota
de Wady-Halfa e Dôngola e deixar o velho itinerário do deserto do Atmur, que os missionários sempre se-
guiram, bem como todos os comerciantes, receio que não chegue ao seu destino, aqui em Cartum, nem se-
quer noutros dois meses, ainda que esta seja a estação mais propícia do ano para viajar no Sudão.
3687
Ismail Paxá, governador-geral da maior parte do Sudão, à frente do seu exército egípcio tomou já a capital
do império de Darfur e, após cortar a cabeça ao sultão local, levou-a em triunfo para Tendelti. O mesmo ge-
neralíssimo Ismail Paxá escreve-me da capital de Darfur, anunciando-me as suas vitórias e assegurando-me
que levou a cabo a conquista desse importante país sem excessivo derramamento de sangue e que, depois das
festas do Grande Bairan, espera regressar a Cartum e vir apertar-me a mão à minha residência. Porém, eu sei,
por outra fonte ainda mais segura, que o povo de Darfur escolheu como sultão o tio do defunto e, queimada a
capital Tendelti, se retirou para as montanhas do Noroeste do império, que são bastante férteis e menos aces-
síveis, decidido a defender-se até à morte. Pelo que, tomada a capital, não se pode considerar conquistado o
império de Darfur; e o exército egípcio tem ainda muita luta pela frente até poder dizer que a conquista de
Darfur está alcançada.
3688
Por outro lado, tenho notícias positivas da expedição do coronel Gordon, governador-geral das regiões
equatoriais da África, o qual me escreve frequentemente. O seu principal ajudante, o coronel Long, america-
no, chegou ao lago Nyanza Victoria, descoberto por Speke e Grant, e passou algum tempo na corte do rei dos
Metisi, o mais poderoso dos príncipes equatoriais. O coronel Long, que regressou a Cartum, veio-me ver e
contou-me que o rei dos Metisi, para festejar a sua chegada, mandou degolar diante dos seus olhos quinze
pessoas: tal é o sinal que o rei utiliza para exprimir o seu júbilo pela presença de um ilustre visitante.
3689
Completando as interessantíssimas notícias por mim recolhidas nas minhas longas viagens entre as tribos
do Nilo Branco em 1858 e 1859 sobre os importantíssimos reinos situados nos territórios equatoriais limítro-
fes dos Grandes Lagos, que constituem as nascentes do Nilo, o coronel Long deu-me tão sugestivos dados
sobre aqueles povos pertencentes ao meu vicariato, que penso (tidos em conta também os repetidos convites
que me fizeram o governador e o coronel Gordon) que, após estabelecer bem e pôr em andamento a missão
de Gebel Nuba, conseguiremos fundar outra nas regiões equatoriais junto às nascentes do Nilo. Isto, natu-
ralmente, depois de ter submetido o projecto da mesma e o resultado das minhas investigações a V. Em. a e
de ter obtido a sua venerada aprovação. Entretanto, ponho todo o empenho em levar a cabo o que V. Em. a e
a S. C. me ordenaram recentemente a respeito da missão de Gebel Nuba.
3690
Renovando-lhe a expressão da minha sentida gratidão e absoluta obediência, apresento-lhe os meus me-
lhores desejos de Boas Festas de Natal e de fim de ano e passo a beijar a sagrada púrpura e a declarar-me nos
Sagrados Corações de Jesus e Maria
De V. Em.a
Hum., devot.mo e af.mo filho
Pe. Daniel Comboni
Pró-vig. ap. da África Central

3691
Como, sem dúvida, saberá, a raiz das intrigas do agente diplomático e cônsul-geral inglês no Egipto e do
cônsul-geral prussiano, o quedive do Egipto fez nomear patriarca copta herético no Cairo um monge do
grande mosteiro de Maria Virgem (Deir el-Aadra), que fica situado entre Alexandria e o Cairo e, ao aceder
ao patriarcado, esse monge tomou o nome de Cirilo IV.
Pelos sacerdotes coptas de Cartum, possuo a informação fidedigna de que o novo patriarca Cirilo IV não
tardará a designar o novo bispo herético copta de Cartum na pessoa de um monge do convento de Santo An-
tão, do Egipto.

N.o 574 (545) - À MADRE EMILIE JULIEN


ASSGM, Afrique Centrale Dossier

J. M. J.
Cartum, 27 de Dezembro de 1874

Minha rev.da madre,


3692
Muitos assuntos e ocupações têm-me impedido e impedem-me no presente de tomar a pena. Contudo es-
creverei uma linha para lhe desejar boas festas e todas as venturas para o novo ano. Desejo-as a si, à madre
assistente, à Ir. Celeste (para que me forme boas irmãs árabes que se santifiquem a si mesmas e à África
Central), à boa Ir. Catarina Tempestini e a todas as irmãs, assim como à sr. a de Villeneuve, etc. Fique certa
de que de agora em diante o meu bom P.e Bartolo Rolleri, superior do Cairo, não voltará a ler as cartas diri-
gidas a mim. Leu a sua e todas as outras, porque tinha a minha autorização para isso; e eu dei-lhe essa per-
missão, porque me chegam aqui a Cartum e também a El-Obeid cartas dirigidas a mim que encerram letras
de câmbio de milhares de francos e que tive que enviar ao Cairo para conseguir o dinheiro, dado aqui não
haver possibilidades de efectuar o câmbio.
3693
Agora, visto o inconveniente de que outros leiam estas cartas do superior da missão, ordenei a P.e Bartolo
que não abra nenhuma. Assim, pois, tenha a certeza de que as suas cartas não serão lidas e de que pode fazê-
las chegar às mãos de P.e Bartolo.
Lamento muito que somente três irmãs venham com a caravana. Ainda preciso de dez, a maior parte ára-
bes. Não duvido do seu zelo pela minha missão. Sei que o P.e Estanislau se lamentou muito ao Cairo porque
a madre não mandou, em meados de Outubro, as cinco irmãs que tinha prometido. Eu creio que a madre terá
feito tudo para no-las mandar e que fará de modo a mandá-las o mais rápido possível para o Cairo com a
superiora provincial da África Central que lhe pedi. Sei que o P.e Estanislau lhe escreveu em termos um
pouco fortes. Porém, pense que o superior maior e principal da África Central sou eu e eu não aprovo a pre-
cipitação e a falta de educação. Bem sabe a estima que tenho por si e pela sua congregação; conheço o seu
coração e o seu carácter positivo. Portanto, tudo passará.
3694
O P.e Carcereri, com a sua precipitação e impaciência, para não esperar durante uns dias os camelos em
Korosko, conduziu a caravana às cataratas de Wady-Halfa e há vinte e cinco dias que se encontra confinado
nesse povoado deserto com a caravana e as irmãs. Esta pouca prudência do P.e Carcereri vai-me levar pelo
menos mais seis mil francos que teria custado a viagem de Korosko a Berber. O bom Deus manda-me verda-
deiras cruzes: seja Ele sempre bendito.
3695
Trataremos bem dos nossos assuntos em Roma e em Verona, onde espero voltar depois de ter fundado a
missão de Gebel Nuba. Quero como mínimo trinta e seis irmãs no vicariato. A melhor que agora tenho e que
poderá ser tão útil à Nigrícia como a Ir. Josefina (a quem sempre choro e por quem celebrei e faço celebrar
mais de cem missas) é a Ir. Ana Mansur. Ainda jovem, precisa por isso de uma madre; porém, é bondosa,
capaz e generosa. Espera-se com impaciência a Ir. Genoveva.
Dentro de três anos teremos o caminho de ferro a 50 léguas de Cartum. Então a madre virá aqui com a
madre assistente. A Ir. Madalena está perfeitamente bem. Se a minha madre visse quão felizes estão estas
três irmãs e quão dispostas estão para dar a sua vida pela África Central!
3696
No domingo passado, festa de Pentecostes, administrei a confirmação em Cartum pela primeira vez. Nun-
ca se tinha visto em Cartum uma festa semelhante. Na minha carta pastoral anunciei o projecto de construir
uma igreja. Hoje recebi seis mil francos para começar. Só temos uns cento e trinta católicos.
Sirva-se aceitar os meus sentimentos de respeito.

P.e Daniel Comboni


Pró-vig. ap. da A. C.
Original francês
Tradução do italiano

N.o 575 (546) - DECLARAÇÃO SOBRE JOÃO MIANI


ACR, A, c. 10/20
19-?-1874
N.o 576 (547) - A P.e BARTOLO ROLLERI
ACR, A, c. 18/37
1874
Caríssimo P.e Bartolo,

3697
Rogo-lhe que envie imediatamente esta cópia ao nosso venerado pai, o bispo de Verona. Os muitos afaze-
res e o enorme calor não me permitiram escrever-lhe, para acompanhar este acordo, com o correio de hoje.
Fá-lo-ei com o próximo. Entretanto, exponha-lhe o senhor as grandes vantagens que advêm para o vicariato
o facto de nós termos os bons padres Carcereri e Franceschini e, além disso, um pequeno grupo de camilia-
nos escolhidos. O vicariato é grande, o maior do universo, e S. José manda os meios pecuniários conforme as
necessidades. Viva o Sagrado Coração de Jesus!
P.e Daniel Comboni

N.o 577 (548) - À MARQUESA D’ERCEVILLE


«Oeuvre Apostolique», Paris, 1874, pp. 345-346

1874
Venerável presidente,

3698
Tem mil razões para reprovar o meu longo silêncio, depois de todas as nossas edificantes relações em
Roma; mas será explicação suficiente para me desculpar quando conhecer as cruzes que me caíram em cima,
até ao ponto de ficar impedido de escrever.
Os institutos que fundei no Cairo têm sido objecto das mais espantosas perseguições. Estiveram à beira de
ser lançados a pique. Porém, como Deus morreu por todos, também tem destinada aos negros a participação
no grande banquete do Pai Eterno. E a mão de Deus não só salvou esses institutos que corriam tanto perigo
mas também, além disso, por especial consideração, de dois que eram, passaram a ser três. O primeiro cha-
ma-se Casa do Sagrado Coração de Jesus e dirigem-no quatro sacerdotes.
O segundo, que se denomina Casa do Sag.do Coração de Maria, está a cargo das Irmãs de S. José da Apa-
rição, onde se encontram três delas, junto com dezanove mestras negras e muitas catecúmenas.
3699
O terceiro chama-se Casa da Sag.da Família, porque está a poucos passos do lugar onde Jesus, Maria e
José residiram sete anos no Egipto. A madre Catarina Valério, de Verona, com a ajuda de cinco mestras ne-
gras, dirige esta casa, cuja escola é frequentada por raparigas muçulmanas, pagãs e hereges de toda a espécie.
Na cidade do Cairo Velho, que conta com 23 000 almas, há um grande número de raparigas que não vão à
escola por falta de roupa. Ah, se tivesse roupa usada com que vesti-las! Quanto bem que se poderia fazer!
Assim são três capelas as que devo fornecer. O que me ofereceu a senhora é pouco mais de metade do que
possuo. Tenha, peço-lhe, compaixão da nossa indigência.

P.e Daniel Comboni

Original francês
Tradução do italiano

N.o 578 (549) - À MARQUESA D’ERCEVILLE


«La Foi Catholique. Livre des Dames Chrétiennes»
Paris 1879, pp. 107-108

1874
Breve artigo.

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