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Pós Graduação em Ciências Sociais – UNESP – Câmpus Marília

Disciplina: Governo das diferenças e suas eventuais resistências na escola, 1° semestre de


2018 (PPG-Educação).
Professor: Dr. Pedro Pagni
Aluno: Silvio de Azevedo Soares

“Estamira” e os frágeis limiares heterotópicos de resistência à psiquiatria enquanto uma


estratégia de governo biopolítico das diferenças.

RESUMO
O propósito deste trabalho é averiguar as probabilidades de resistência à psiquiatria (enquanto
um dispositivo biopolítico de governo das diferenças) presente nas falas e na existência da
personagem Estamira, reproduzidas no documentário homônimo. Através da perspectiva
analítica de Foucault, compreendo “diferenças” como as exceções, as fugas, os excessos, os
afrontamentos às normas disciplinar e biopolítica. A partir de Foucault, apresento também
considerações acerca da emergência de um governo das diferenças com a consolidação das
estratégias de normalização do biopoder. De maneira específica, destaco como se concretizou
um governo das diferenças através do dispositivo psiquiátrico. Em termos metodológicos,
utilizando as reflexões de Foucault e Butler, tomo “Estamira” como um documentário de
inspiração genealógica visto que permite a manifestação do discurso sujeitado e a apreensão
das condições precárias da personagem. Dessa forma, examino o conteúdo audiovisual do
documentário procurando descrever e analisar as sujeições e resistências de Estamira aos
governos religioso, familiar (como instância de normalização disciplinar do sujeito e como
instrumento da psiquiatria) e psiquiátrico de sua existência. Ao estabelecer-se em um lixão
(como um espaço heterotópico), essa mulher classificada como louca e diagnosticada como
esquizofrênica apresenta, de maneira paradoxal, uma resistência mais lúcida e crítica contra as
investidas do poder psiquiátrico.

Palavras chave: Estamira; psiquiatria; governo; diferenças.


I) INTRODUÇÃO

“Eu, Estamira, não concordo com a vida.” (ESTAMIRA, 2006).


“Eu penso que, de fato, a vontade de não ser governado é sempre a vontade
de não ser governado assim, dessa forma, por elas, a esse preço.”
(FOUCAULT, 1990, p. 24).

O objetivo desse trabalho é analisar as possibilidades de resistência à psiquiatria


(enquanto um dispositivo1 biopolítico de governo das diferenças) presentes nas falas, nas
narrativas e na existência de Estamira Gomes de Souza – abordadas e veiculadas pelo
documentário “Estamira” (2006), que relata a história dessa mulher, então com 63 anos, que
sofre de distúrbios mentais e vive e trabalha em um aterro sanitário no Rio de Janeiro.
Para alcançar tal fim, compreendo aqui “diferença” a partir do quadro analítico
desenvolvido por Michel Foucault: na modernidade2, os diferentes como aqueles sujeitos que
estão aquém ou excedem, que escapam ou afrontam as normas disciplinares e biopolíticas. A
diferença como o que não é norma(l).
Nesse sentido, a partir de uma revisão bibliográfica dos ditos e escritos genealógicos3
de Foucault, apresento considerações sobre a emergência do biopoder (em suas interfaces
disciplinar e biopolítica) e a constituição de uma sociedade da normalização enquanto
condições de formação e consolidação de um governo dos anormais/dos diferentes. De forma
específica, destaco como se procurou efetivar um governo das diferenças através, entre outros
dispositivos, da tecnologia médica-psiquiátrica (FOUCAULT, 2006d, 2010a).
Numa perspectiva metodológica, a partir de algumas considerações realizadas por
Foucault (1999, 2006a) e Judith Butler (2015), abordo o filme “Estamira” como um
documentário de orientação genealógica, que constrói um enquadramento que possibilita a
transmissão e, ao menos, a apreensão do discurso sujeitado e da precariedade de existência da
personagem.

1
Noção analítica utilizada por Foucault (2016c), dispositivo compreende toda uma rede heterogênea de práticas
de poder, de discursos, de instituições, de leis, de normas, dentre outros elementos.
2
Para Foucault, a modernidade pode ser descrita: a) em um ângulo histórico, a partir do final do século XVIII; b)
em uma perspectiva política, a partir do exercício do biopoder; c) em um ponto de vista epistêmico, com a
constituição das ciências humanas (CASTRO, 2009, p. 301).
3
Estudiosos da obra de Foucault – como Machado (2016, p. 32) e Castro (p. 264) – comumente dividem a sua
trajetória intelectual em três períodos: uma arqueologia dos saberes, das regras de enunciação e de circulação dos
discursos (anos 1960); uma analítica genealógica sobre os dispositivos de poder-saber que formam discursos e
sujeitos (anos 1970); a fase ética de problematização do sujeito e das práticas através das quais o ser humano
constituiu-se enquanto sujeito (anos 1980). Todavia, essa periodização não é suficientemente precisa na
articulação da produção de Foucault visto que as questões do poder, sujeito e discurso estão entremeadas nas
suas inúmeras análises, ainda que com distintos enfoques e abordagens em cada uma delas.
Por essa lógica, examino o conteúdo audiovisual do documentário, descrevendo e
analisando – com o apoio também das considerações de Giorgio Agamben (2010) e Peter Pál
Pelbart (2007) – as sujeições e as oposições de Estamira às tentativas de governo religioso, de
governo familiar e de governo psiquiátrico de suas condutas.
A despeito do tom um tanto absoluto na fala de Estamira (“Não vou ceder o meu ser a
nada”), é principalmente contra o dispositivo psiquiátrico, quando estabelecida no lixão –
enquanto um espaço heterotópico (FOUCAULT 2013a) –, que Estamira se mostra em uma
posição de resistência mais articulada, próxima até mesmo de uma atitude crítica
(FOUCAULT, 1990). Paradoxalmente, essa mulher rotulada de louca e diagnosticada como
esquizofrênica, parece apresentar maior lucidez na crítica ao governo psiquiátrico de sua
existência.

II) MARCO TEÓRICO-ANALÍTICO

Perspectiva analítica do poder em Foucault: poder relacional, governo e resistência.


Em inúmeras análises históricas realizadas na designada fase genealógica – nos cursos
no Collège de France como A sociedade punitiva (2015), O poder psiquiátrico (2006d), Os
anormais (2010a), Em defesa da sociedade (1999) e nas obras Vigiar e Punir (1987) e A
vontade de saber (1985) – Foucault descreve como as estratégias, os procedimentos e os
controles de poder-saber se exerceram sobre a materialidade dos corpos humanos.
Nessas análises, Foucault concebe o poder como algo que se exerce: é ato, é relacional
– não constitui uma substância ou entidade que se possa ter, trocar, retomar. Como relação
social, o poder funciona a partir de uma rede de interações entre corpos, discursos, saberes,
práticas, onde os sujeitos (enquanto intermediários, não somente objetos de poder), exercem,
submetem-se ou resistem ao poder (1999, p. 32). Assim, não se tratam de relações de poder
que se impõem de maneira unívoca, mas de múltiplas lutas, guerras e enfrentamentos – em
dado contexto histórico e social – entre diferentes saberes, poderes e modos de concepção de
sujeito.
Na modernidade, o poder deve ser compreendido não somente nas dimensões
negativas de repressão, proibição e cerceamento, mas também como uma realidade positiva
que constitui discursos e individualidades (1987, p. 172), que produz instrumentos de
observação, registro, investigação e acúmulo de saber (1999, p. 45).
Dessa maneira, em Foucault, o poder e o saber se implicam e se reforçam
mutuamente: às múltiplas relações de poder que constituem e perpassam o corpo social,
congregam-se específicos discursos de verdade. Saberes produzidos e postos em circulação
por tais mecanismos de poder. Tais práticas de poder e discursos de saber, a partir de
determinadas instituições (escola, hospício, prisão, etc.), engendram sujeitos, nas maneiras
pelas quais os indivíduos se concebem e são compreendidos pelo corpo social (aluno, doente
mental, delinquente, etc.).
No curso no Collège de France de 1977-78, Segurança, território, população (2008),
em uma espécie de deslocamento espiral no interior de seu quadro analítico4, Foucault passou
a considerar o poder também como da ordem do governo, no sentido de direção de condutas
de outro indivíduo ou de um grupo: poder que incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, limita
ou estende, obriga ou impede certos comportamentos e condutas (1995, p. 243). Neste
sentido, afirma Foucault que o “traço distintivo do poder é que alguns homens podem mais ou
menos determinar inteiramente a conduta de outros homens – mas nunca de maneira
exaustiva ou coercitiva.” (2006c, p. 384, grifos nossos).
Dessa citação decorre uma terceira consideração à noção de poder em Foucault:
enquanto relação em rede, o poder provoca possibilidades de resistência, de contra-conduta,
de recusa às suas intenções (1995, p. 232; 2006c, p. 384). Daí a reciprocidade ontológica entre
estratégias de poder e táticas de resistência – as relações de poder “só podem existir em
função de uma multiplicidade de pontos de resistência: estes desempenham nas relações de
poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência onde se agarrar.” (1985, p. 91).

Sociedade da normalização e a emergência de um governo dos anormais/das diferenças.


Em virtude do aumento da população europeia e do início do processo de
industrialização entre fins do século XVII e meados do XIX, Foucault constata uma
reconfiguração na estratégia geral de poder. Da preponderância de uma lógica de poder
denominada soberania, que se exercia essencialmente no direito do soberano sobre os súditos
de “causar a morte ou de deixar viver” (1985, p.148, grifos do autor), houve a passagem para
a prevalência do biopoder que, tomando como objeto o corpo e a vida do ser humano,
caracteriza-se como “um poder de causar a vida ou devolver à morte” (p.150, grifos do autor).
Enquanto sistema de poder, o biopoder não se aplica exclusivamente ao governo
considerado institucionalmente, mas ao funcionamento entrelaçado do saber e do poder em
inúmeros âmbitos da sociedade moderna (CASTRO, 2009, p. 327). Dessa forma, através das

4
No curso de 1975-76, Em defesa da sociedade (1999), Foucault realiza uma autocrítica ao modelo binário da
guerra enquanto princípio de análise das relações de poder (utilizado nos estudos anteriores citados). Tal modelo
da guerra entre dois antagonistas seria insuficiente para compreender a multiplicidade das relações de poder, já
que as codifica, de forma excessiva, como violência, enfrentamento, rivalidade (PELBART, 2017, p. 14).
dimensões do biopoder (a disciplina, individualizante; a biopolítica, massificante), a vida
humana foi inserida em uma série de mecanismos de poder que possuem como objetivos a
maximização das forças individuais e a otimização da vida coletiva.
Desde os fins do século XVII, a primeira interface do biopoder – a anátomo-política
enquanto sistema generalizado de poder – submeteu o corpo individualizado em seus detalhes
(hábitos, movimentos, comportamentos) às práticas disciplinares (como o controle do tempo,
a distribuição espacial dos corpos, a vigilância hierárquica e contínua) no interior de
instituições (a prisão, o hospício, a fábrica, a escola, etc.). Sujeição disciplinar que objetivava
adestrar os corpos, criando indivíduos úteis e dóceis: úteis na medida em que deveriam ser
formados, corrigidos, receberem certas habilidades e aptidões, serem qualificados como
corpos capazes de trabalhar; dóceis, uma vez que deveriam se tornar mais obedientes e
disciplinados (1987, p. 157).
Na implementação das tecnologias disciplinares, Foucault (2010a, p. 43) destaca
também a elaboração de uma série de normas (de modelos considerados como “ótimos”) que,
como mecanismos de poder, possuíam a finalidade de coerção e correção dos indivíduos e
grupos nos diferentes domínios em que elas se aplicavam. A partir das normas, o olhar
normalizador do exame – constituindo saberes como a psiquiatria, a criminologia, a
pedagogia – compôs um sistema exaustivo de classificação e hierarquização das diferenças
individuais (os “normais” e os “anormais”, os “aptos” e os “inaptos”).
Já na biopolítica, a partir do final do século XVIII, a vida – em sua multiplicidade de
circunstâncias sociais – foi reduzida à dimensão biológica de espécie humana (1999, p. 289) e
circunscrita à noção de população enquanto o conjunto plural de corpos vivos (2008, p. 28).
Dessa forma, em sua interface biopolítica, o biopoder tomou, como objeto, os
fenômenos biossociológicos da espécie humana como as doenças, a natalidade, a mortalidade.
Tratava-se, assim, de buscar melhorar as condições de existência de uma população,
procurando aumentar a vida, visando “intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no
‘como’ da vida” (1999, p. 295). Nesse sentido, ao longo do século XVIII, implementou-se
uma série de tecnologias biopolíticas como as campanhas médicas de inoculação e de regras
de higiene, os mecanismos de controle do sexo e sua função reprodutiva (mirando tanto a
regulação do tamanho da população, como a proteção da sociedade contra ameaças
hereditárias), a vigilância dos indivíduos perigosos, a caça aos vagabundos e mendigos.
Para dar conta, em nível global e na fineza dos detalhes (2006b, p. 302), dos múltiplos
domínios da vida, a biopolítica, por um lado, consolidou uma expansão e multiplicação das
artes de governar5 (1990, p. 3): governo da população pela economia política, governo das
crianças pelos professores, governo do indivíduo pela família, governo dos doentes pelo
médico, governo dos ilegalismos pelo sistema prisional. Através de um neologismo, Foucault
designa esse processo de desenvolvimento de inúmeros dispositivos específicos de governo e
de saberes sobre a população de “governamentalidade” (2006b, p. 303). Por outro lado, a
biopolítica levou também a uma organização e centralização estatal dos aparelhos de governo,
a uma tendência de “estatização do biológico humano” (1999, p. 286), que implicou numa
“governamentalização do Estado” (2006b, p. 384) como o processo no qual o Estado passou a
coordenar os governos de múltiplos aspectos micropolíticos da vida.
Como discursos de saber da biopolítica, constituiu-se a demografia, a estatística, a
economia política e a medicina social. Discursos que ocupavam-se do conjunto da população
e seus fenômenos e fundamentavam procedimentos de normalização – distintos da
normalização disciplinar (2008, p. 83) – que visavam coeficientes gerais normalmente
esperados sobre a população e suas secções internas (como taxas de mortalidade e de
morbidade de grupos específicos, de ocupações específicas que não colocassem em risco a
vitalidade e a força produtiva de uma população).
Enquanto tecnologias que visavam fazer viver, pode-se considerar que, na efetivação
da biopolítica ainda nos séculos XVIII e XIX, constituiu-se um governo das anomalias, das
causas de “diminuição do tempo de trabalho, baixa de energias, custos econômicos” (1999, p.
290), das doenças como fatores de “morte permanente, que se introduz sorrateiramente na
vida, a corrói perpetuamente, a diminui e a enfraquece” (p. 291). Consequentemente, as
incapacidades biológicas diversas foram assumidas como ameaças à vida e os doentes, os
sujeitos na velhice e qualquer perigo interno em relação à segurança do conjunto (loucos,
degenerados, criminosos, mendigos) foram tomados como diferenças a serem governadas,
rejeitadas, expulsas e, no limite, deixadas morrer.
Dessa forma, no contexto de uma sociedade de normalização (1999, p. 302) que
congrega as normalizações disciplinar e biopolítica, deixar morrer é resultado de uma gestão
calculista da vida que, para maximizar a existência biológica de uma população, distribui
“vivos em um domínio de valor e utilidade” (1985, p. 157) e chega até mesmo a planejar e
exigir a morte de outros.

5
Emergência de inúmeras artes de governo que ocorreu a partir da generalização extra-religiosa do poder
pastoral no século XV(FOUCAULT, 1990). Em vários trabalhos (1990, 2006b, 2008), Foucault realiza uma
genealogia do poder pastoral enquanto governo das condutas de todos e de cada um, bem como da apropriação e
transformação dessa forma de governo pelo Estado moderno.
Todavia, é necessário sublinhar que as análises de Foucault referem-se a uma
sociedade de normalização e não a uma sociedade normalizada (CASTRO, p. 309). Ou seja, a
normalização diz respeito ao modo de funcionamento e a finalidade do biopoder e, ainda que
tenham atingido uma extensão considerável, os procedimentos de normalização nem por isso
deram-se – ou se realizam atualmente – de forma absoluta, sem resistências, críticas e
movimentos de luta. Existiram – e sucedem-se – fugas e restos às tentativas biopolíticas de
totalização da massa de sujeitos à população. Ocorreram – e ainda se desenrolam – escapes às
normas disciplinares e biopolíticas: a própria norma “traça a fronteira do que lhe é exterior (a
diferença com respeito a todas as diferenças), a anormalidade” (CASTRO, p. 310).
Efetivaram-se e realizam-se críticas e questões ao fenômeno da governamentalidade: como
não ser governado dessa ou daquela forma? (FOUCAULT, 1990).
Em suma, da consolidação de uma sociedade da normalização emergiu também um
governo das diferenças, dos que resistem, insubordinam-se e escapam tanto às normas
disciplinares quanto às biopolíticas.

Medicalização psiquiátrica e a consolidação de um governo dos anormais/das diferenças.


Se as duas interfaces do biopoder não se exercem sobre o mesmo nível, todavia,
articulam-se uma à outra. Foucault destaca (1999, 2010a), nesse sentido, a medicina e, entre
as especialidades médicas, a psiquiatria como estratégias articuladas de normalização visto
que buscaram efetuar, concomitantemente, o assujeitamento disciplinar do corpo-organismo e
a regulação biopolítica dos processos biológicos de uma população.
Reforça Castro que “a sociedade da normalização é uma sociedade fundamentalmente
medicalizada” (p. 310), uma sociedade no qual a medicina moderna, que emergiu nos fins do
século XVIII, se alastrou e foi muito além da questão das enfermidades. Nessa perspectiva,
numa série de trabalhos (2010b, 2016a, 2016b), Foucault descreve como a medicina moderna,
em sua função política de normalização social, incumbiu-se de inúmeros domínios não
estritamente patológicos: a) do conjunto de corpos compreendidos como força global do
Estado; b) do meio urbano (a higiene pública, as condições de moradia, a localização dos
bairros, a circulação de ar, água e miasmas); c) da força de trabalho, ocupando-se dos pobres e
dos operários; d) da família – constituída como primeira instância da normalização dos
sujeitos – e da infância (higiene, amamentação, vacinação, vestuário). Em outros termos, com
o desenvolvimento da medicina moderna se estabeleceu uma ascendência médico-política de
controle social sobre a população, suas secções internas e seu meio de existência, que foram
enquadrados em uma série de prescrições normalizantes.
Nos cursos O Poder Psiquiátrico (1973-74) e Os Anormais (1974-75)¸ Foucault
realiza, de forma específica, a análise da psiquiatria como mecanismo de normalização social.
Em O Poder Psiquiátrico (2006a), através de uma genealogia histórica do dispositivo
psiquiátrico de poder-saber, o curso descreve como, desde os primeiros passos da psiquiatria
asilar no início do século XIX, a loucura enquanto doença mental foi concebida como
distúrbios em relação à conduta regular e normal de agir, querer, sentir e experimentar as
paixões (p. 443).
Nesse período, a família tornou-se parte dos objetos da psiquiatria ao ser identificada
como uma das causas deflagradoras da loucura (devido às contrariedades e preocupações no
seio familiar como as perdas financeiras e as separações). Essa generalização psiquiátrica
sobre a família realizou-se de duas formas: como estratégia de medicalização disciplinar,
patologizando questões familiares (como o leito conjugal, o quarto infantil, o vestuário, a
alimentação) e como disciplinarização interna da família, através da adoção, por esta, de
práticas como a vigilância sobre os filhos, o controle da postura, gestos, comportamentos das
crianças. Dessa forma, a família passou a funcionar como uma das instâncias de identificação
do sujeito psiquiatrizável: quando um sujeito escapava ao poder da família, era internado e
posto sob as práticas do asilo que deveriam disciplinarizá-lo, para então retornar ao convívio
com seus familiares.
Progressivamente, o discurso psiquiátrico da doença mental como desvio da conduta
regular se generalizou para todos os dispositivos disciplinares. Na ocasião em que uma pessoa
era incapaz de seguir a disciplina escolar, da oficina ou do exército, a psiquiatria intervinha
como esquema de normalização e sujeição desse sujeito no interior dessas instituições. Enfim,
a psiquiatria desempenhou o papel de disciplina para todos os indisciplináveis, de instância de
controle de todas as instituições disciplinares, colocando “fora do circuito certo número de
indivíduos inutilizáveis no aparelho de produção” (2006a, p. 140).
Já em Os Anormais (2010a), a partir de um ponto de vista extramanicomial, Foucault
aborda a generalização social da psiquiatria, realizando uma genealogia da noção de
anormalidade. Através dessa noção, a psiquiatria se afastou da loucura como doença mental e
emergiu, nos anos 1840-1875, como dispositivo de poder-saber do anormal, como ciência dos
desvios, das anomalias e de todas as desordens possíveis de conduta (p. 210).
O campo do anormal, como abordado no interior dessa nova psiquiatria de meados do
século XIX, foi constituído, de forma não sincrônica, a partir de três elementos: a) o monstro
humano (como exceção jurídica e biológica: as deformidades congênitas, o hermafroditismo,
os irmãos siameses; como exceção jurídica e moral: os crimes sem motivo); b) o indivíduo
indisciplinado (os incorrigíveis que escapavam das normas disciplinares preliminares); c) a
criança masturbadora (a partir da concepção da masturbação como causa potencial de uma
série de doenças e distúrbios).
Nessa nova psiquiatria do anormal encontra-se um duplo sentido da noção de norma.
Por um lado, a norma entendida como regra social de conduta, como lei informal e princípio
de conformidade social (que se opunha à desordem, à excentricidade, aos desvios morais e
jurídicos). Por outro, baseada na medicina orgânica e na neurologia, a norma era
compreendida como a regularidade funcional do organismo (que contrastava-se ao mau
funcionamento do corpo, ao patológico, ao organismo disfuncional). Por esse duplo jogo da
norma, o anormal na ordem das condutas podia ser referido ao anormal na ordem do
organismo.
Através da constituição do campo das anomalias, a psiquiatria se viu diante de um
domínio muito mais extenso que o da doença mental. Das infrações e pequenos desvios em
relação à lei até as irregularidades intrafamiliares, do domínio penal ao controle da família,
“tudo o que é desordem, indisciplina, agitação, indocilidade, caráter recalcitrante, falta de
afeto, etc., tudo isso poder ser psiquiatrizado” (2010a, p. 138). Dessa forma, a psiquiatria se
tornava operadora geral dos mecanismos de poder (como a família, a escola, a fábrica, o
tribunal, a prisão, o Estado).
A partir da constituição da teoria da degenerescência6, a psiquiatria consolidou-se,
então, não mais como dispositivo terapêutico de cura, mas como instrumento de defesa da
sociedade contra os perigos internos (biológicos, psíquicos, morais) que pudessem ameaçá-la
(1999, p. 277). Desse caráter de defesa social na psiquiatria, despontou também um novo tipo
de racismo, denominado por Foucault como racismo interno7, que se voltava, enquanto
estratégia biopolítica de proteção biológica da espécie, contra os próprios membros internos
do grupo, contra os indivíduos portadores de anomalias transmissíveis aos seus descendentes.
Enfim, dessa generalização social sustentada pela medicalização e psiquiatrização do
anormal, a psiquiatria consolidou-se como instância disciplinar e biopolítica de governo das
diferenças enquanto anomalias.

6
A teoria da degenerescência, sistematizada pelo médico franco-austriáco Bénédict Morel (1809-1873), concebia
as doenças mentais a partir da noção de degenerescências – os supostos desvios da natureza biológica original do
homem, a progressiva degeneração mental hereditária entre as gerações.
7
No curso Em defesa da sociedade (1999), Foucault descreve como esse racismo interno transformou-se em um
mecanismo que permite ao Estado, no biopoder, reativar o direito soberano de matar ou expor à morte (o
anormal, o desviante, o incorrigível, os que podem constituir riscos ao futuro da sociedade e da espécie humana).
III) PERSPECTIVA METODOLÓGICA

O documentário “Estamira” (115 minutos), dirigido por Marcos Prado e lançado em


2006, narra a história de uma catadora de lixo de 63 anos, portadora de transtornos mentais,
que vive e trabalha há mais de 20 anos no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, em Duque
de Caxias, Rio de Janeiro. A partir de uma série de incursões no aterro desde 1994, das quais
surgiu o ensaio fotográfico Jardim Gramacho (PRADO, 2004), o diretor conta que, em 2000,
encontrou, conheceu e fotografou Estamira: “Um dia, tempos depois de conhecê-la, ela me
perguntou se eu sabia qual era a minha missão. Antes que eu respondesse, Estamira disse: ‘a
sua missão é revelar a minha missão’.” (PRADO, 2004, p. 9).
Procuro aqui compreender o documentário “Estamira” a partir de algumas
considerações realizadas por Foucault e Judith Butler. Em A vida dos homens infames
(2006a), Foucault analisa fragmentos de arquivos de finais do século XVII e início do XVIII
referentes às pequenas infâmias cometidas por indivíduos de pouca importância em suas
modestas vidas (blasfemos de pequena relevância, errantes, desocupados, homossexuais,
alcoólatras, etc.). Devido a petições ao rei (por parte de familiares, do pároco local, de
vizinhos, etc.), esses insignificantes desvios e infâmias foram alvos de intervenções de poder
e de registros em dossiês e arquivos. Tal poder que se tombou sobre essas existências
produziu efeitos paradoxais: por um lado, através dessas poucas frases sobre elas lançadas,
foram condenadas (ao internamento, ao calabouço, à morte); por outro, tais vidas
sobreviveram por séculos graças aos rastros escritos – ainda que breves e obscuros – legados
justamente por esse contato com o poder.
De maneira análoga, busco compreender o documentário produzido sobre Estamira
também como resultado de uma intervenção de poder que, embora com efeitos distintos aos
casos citados por Foucault, permitiu igualmente o registro de sua pequena infâmia. Nesse
sentido, a produção do filme documental envolve procedimentos de poder como a perspectiva
e o enquadramento de câmera do diretor – “não podemos garantir que o que vemos seja
exatamente o que teríamos visto se estivéssemos presentes ao lado da câmera” (NICHOLS,
2008, p. 19) –; a edição com os cortes, seleção e montagem das cenas (BAZIN, 1983) e a
construção de uma impressão de autenticidade daquilo que é reproduzido (NICHOLS, 2008).
No entanto, apesar de todas as operações de poder intrínsecas à produção
cinematográfica e que atravessam as falas e o corpo de Estamira, o documentário ainda lhe
permite veicular sua fala, seu grito e sua experiência e, dessa forma, expandir sua potência de
resistência e transgressão. Nesse sentido, com base na concepção de genealogia de Foucault
(1999) – “ser o discurso daqueles que não têm a glória, ou daqueles que a perderam e se
encontram agora, por uns tempos talvez, mas por muito tempo decerto, na obscuridade e no
silêncio” (p. 82) –, entendo “Estamira” como um documentário de inspiração genealógica,
visto que possibilita a emergência e a veiculação dos discursos sujeitados, das contracondutas
que se insurgem contra certas disposições de poder.
Reforçando essa concepção de cinema genealógico e de documentário de
contraconduta presente em “Estamira”, tomo também as reflexões de Butler 8 (2015) sobre os
enquadramentos de poder. Segundo a filósofa estadunidense, a apreensão, o conhecimento
inteligível9 e o reconhecimento do outro – em sua vida e em sua precariedade (enquanto
condição política e relacional de fragilidade da existência ocasionada por fatores como as
violências, as enfermidades, a miséria) – são delineados, em procedimentos de poder, por
enquadramentos visuais e discursivos. Tais enquadramentos audiovisuais operam como
molduras que restringem e ao mesmo tempo configuram o nosso olhar e a nossa interpretação
do que é apresentado (p. 14). Por esse ângulo, concebo o documentário “Estamira” como um
enquadramento que proporciona tanto a emergência e transmissão do discurso da personagem,
como – ao menos – a apreensão da precariedade de sua existência.
Dessa forma, considerando que o documentário (a despeito de todas as intervenções de
poder) permite a Estamira dizer o que é por si (não a deixando aprisionada apenas ao discurso
do conhecimento médico-psiquiátrico), procuro analisar o conteúdo do filme, as falas de
Estamira, as suas condições de existência no lixão (que, em parte, ela teria construído em sua
tentativa de resistência aos governos religioso, familiar e psiquiátrico das suas
anomalias/diferenças).

IV) DESCRIÇÃO, DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS DADOS

“Vocês é comum. Eu não sou comum.”


O documentário aborda cenas e passagens da existência cotidiana de Estamira entre
2000 e 2004 – período contemporâneo à implementação e à consolidação da Reforma
Psiquiátrica no Brasil (FONTE, 2013). Nesse sentido, data de abril de 2001 a aprovação da lei
federal n° 10.216, o marco legal da Reforma Psiquiátrica brasileira, resultado – em parte – da
luta antimanicomial travada nas duas décadas anteriores por doentes e seus familiares em

8
Apesar das diferenças entre a problemática do reconhecimento (com as possibilidades inerentes de qualificação
da vida) proposta por Butler (2015) e a questão da identificação singular através das relações de poder que
tombam sobre o sujeito, descrita por Foucault (2006a). Pesquisar verificação em Foucault!
9
Butller (2015) realiza uma distinção entre apreensão e conhecimento: apreender implicar reconhecer o outro
por uma forma não conceitual de conhecimento, através do sentir e do perceber (p. 18).
conjunto com trabalhadores da saúde mental (AMARANTE, 1998). Essa legislação tornou-se
a referência da política nacional de serviços psiquiátricos, consolidando a reorientação da
prática psiquiátrica no país10 através de propostas de fechamentos de manicômios e a
implantação, nos anos seguintes, de serviços substitutivos de atenção ambulatorial aos
doentes mentais, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
As primeiras cenas do documentário, em preto e branco e acompanhadas de uma
música em tom lamurioso, apresenta-nos a área externa de um simples barraco, coberto de
telhas de zinco e com paredes de papelão e lona. Ao seu redor, perambulam cachorros. Ao
longo de outras passagens, o documentário retrata o interior dessa morada: garrafas vazias
jogadas ao chão de terra batida, uma faca sem cabo, utensílios domésticos enferrujados, um
enfeite em forma de lua pendente do teto, um boneco do Batman também como adorno, uma
camisa do Flamengo pendurada na parede e um livro religioso, “O Reino de Deus, Nosso
Iminente Governo Mundial”. Aqui reside Estamira, nesse barraco por ela construído a partir
do que retirava do lixão em que trabalha há cerca de duas décadas: “Não caguei essa casa,
não. Não foi cagada, não. Foi trabalhado, suado! Dia e noite e no sol e na lama.”
(ESTAMIRA, 2006).
A história dessa personagem – mulher, negra, miserável, portadora de transtornos
psíquicos, catadora de lixo, idosa – nos é então apresentada ao longo do filme. As toneladas
de lixo que vemos chegar diariamente ao aterro correspondem ao peso das violências que
tombaram sobre Estamira, narradas por ela e por seus três filhos (Hernani, Carolina e Maria
Rita): órfã de pai aos dois anos, a mãe também portadora de transtornos mentais – “Coitada
da minha mãe. Mais perturbada do que eu. Bem, eu sou perturbada, mas lúcida e sei
distinguir a perturbação. Entendeu como é que é? E a coitada da minha mãe não conseguia.
Mas também pudera, eu sou Estamira!”–, abusada sexualmente na infância, prostituída na
pré-adolescência, traída duas vezes pelos maridos, vítima de violência doméstica, viveu na
rua, estuprada, separada de uma filha contra a sua vontade, estuprada novamente.

Lamentavelmente, o pai da minha mãe é famílias de Ribeiro. Tudo polícia,


tudo general, tudo não sei o quê, né? Ele é estrupador11. Ele estrupou a
minha mãe. E fez coisa comigo. (...) É, e quando eu tinha 9 anos, eu pedi a

10
Sobre a introdução da psiquiatria e do asilo medicalizado no Brasil em fins do século XIX, pode se conferir a
obra de Roberto Machado e seus colaboradores (1978). Em trabalho anterior (SOARES, 2017), procurei também
demonstrar, através de revisão bibliográfica, como no momento da introdução e implementação da psiquiatria no
Brasil (entre fins do século XIX e início do XX), as figuras – de certa forma – representantes das diferenças
foram capturadas na trama psiquiátrica: indivíduos das camadas populares; a mulheres que destoavam, em seus
comportamentos, da norma sexual monogâmica e patriarcal; os homossexuais; os anarquistas e os negros.
11
Na transcrição, mantive as falas de Estamira na forma como foram enunciadas. Alterar sua fala seria submetê-
la aos enquadramentos de linguagem e de compreensão da, assim denominada, norma culta da gramática.
ele pra comprar uma sandália pra mim... pra mim ir na festa que eu queria
a sandália. Ele falou que só comprava se eu deitasse com ele. É, eu não
gosto do pai da minha mãe, porque ele me pegou com 12 anos e me trouxe
pra Goiás Velho. E... lá era um... era um bordel. É... Era um bordel, sabe, e
eu prostituí lá. Era da filha dele. Aí, o pai do Hernani, ele me conheceu lá...
aonde meu avô me deixou, lá no bordel... aí, eu já tinha 17 anos. E gostou
demais de mim e deu no meu pé e arrumou uma casa e pôs eu dentro da
casa. Mas o pai do Hernani, ele era muito cheio de mulher. Eu peguei e não
aguentei. Larguei tudo dentro da casa e só apanhei o menino. Apanhei o
menino e vim embora pra Brasília. Eu tava lá na casa da tia, lá em Brasília
e apareceu o pai da Carolina lá, o italiano, e levou eu na casa dele. Aí deu
certo e, depois, nós foi morar junto. E ele também é cheio de mulher. Eu vivi
com ele 12 anos.

Estamira e seus companheiros do lixão, como os modestos infames do final do século


XVII, “pertencem a esses milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastro.”
(FOUCAULT, 2006a, p. 207). Estamira faz parte dessa multiplicidade fragmentária de corpos
carentes e excluídos, o “povo” que resta da constituição do “Povo” 12(AGAMBEN, 2010, p.
173). Estamira não é vida reconhecida como vivível (distinguida em sua precariedade,
contando com condições sociais e econômicas para viver). É vida em condição precária,
sistematicamente negligenciada e privada de direitos, exposta de forma diferenciada às
violações, à violência e à morte (BUTLER, 2015, p. 46).
No entanto, do que seria apenas fragilidade e impotência em Estamira (sua condição
precária, seu transtorno psíquico, seu sofrimento) emerge uma força: “ao poder sobre a vida
responde a potência da vida” (PELBART, 2007, p. 58). Essa biopotência de Estamira faz com
que ela não seja somente, de maneira passiva, o resíduo das relações de poder. Com uma
incrível acuidade, Estamira constitui uma subjetividade que ativamente resiste e busca
subtrair-se às intervenções e insistências de governo religioso, familiar e psiquiátrico de suas
condutas.
Tal potência de vida é marcadamente notável em sua forma provocativa de dizer, de
enunciar e em suas palavras proferidas: “fala descosturada, profética, poética, política,
mística, metralhada” (PELBART, 2013, p. 4). Uma fala disparatada, recheada de
neologismos, metáforas, devaneios que desafiam as nossas formas gramaticais de
compreensão.

Trocadilo safado, canalha, assaltante de poder, manjado, desmascarado!


Me trata como eu trato, que eu trato; me trata como o teu trato que eu te

12
Nos rastros de Foucault, o filósofo italiano Giorgio Agamben (2010) denomina o que resta da produção
biopolítica de população como a “fratura biopolítica fundamental” (p. 173) de dois polos irreconciliáveis:
“Povo” como o corpo político integral e incluído (de certa forma, próximo à noção de população em Foucault) e
“povo” como a pluralidade dos corpos rejeitados.
devolvo o teu trato. E faço questão de devolver em triplo. Onde já se viu
uma coisa dessa? A pessoa não pode andar nem na rua onde mora, nem
trabalhar dentro de casa e nem trabalho nenhum, em lugar nenhum. Onde o
senhor já se viu? Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra
e não sei o quê? Não é ele que é o próprio trocadilo? Só para otários, pra
esperto ao contrário, abobado, bestalhado.

O “trocadilo”, esse neologismo criado por Estamira, corresponderia a uma espécie de


entidade superior e maligna, responsável pelas coisas erradas do mundo, pela confusão na
vida dos homens: “O trocadilo amaldiçoado, excomungado, hipócrita, safado, canalha,
indigno, incompetente, sabe o que ele fez? Menti pros homem, seduz os homem, cega os
homem. É, seduz os homem, enfeitiça os homem, depois joga no abismo!”. Em outras falas,
Estamira parece se referir a Deus ao usar esse termo: “Eu, hein, que Deus é esse? Deus
estrupador, Deus traidor! Trocadilo que não respeita mãe, que não respeita pai? Eu, hein?”.
Pode-se obervar também na linguagem profética e na existência de Estamira um tom
parresíastico13 como dos cínicos do período helenísitico: uma fala provocadora, “Que Bíblia?
Papel aceita até levar no banheiro. Papel é indefeso!”; um comportamento socialmente
escandaloso e chocante – como na cena em que ela abaixa as vestes e aponta para o ventre
indicando ao neto quem criou a mãe dele: “Não foi Deus que pariu sua mãe, não! Foi eu! Foi
eu que pari! Aqui, ó! Aqui ó!”; uma existência errante, despojada e sem dissimulações que lhe
permite enunciar a sua verdade apesar dos riscos de incompreensão, descontentamento e ódio:

“A minha missão é revelar, seja lá quem for, doa a quem doer. A verdade é
nua e crua. Ninguém errado gosta da verdade. E eu via verdade. Eu faço o
máximo para não machucar quem quer que seja. Agora, se quem quer que
seja sente-se machucado é porque está errado”.

“A única sorte que eu tive foi conhecer o Sr. Jardim Gramacho, o lixão”
Muitas passagens do documentário possuem, como cenário, o lixão de Jardim
Gramacho, espaço de trabalho e convívio de Estamira. Localizado no município de Duque de
Caxias e às margens da Baía de Guanabara, o aterro foi fechado em 2012 após mais de três
décadas em operação. Esse lixão chegou a ser considerado o maior aterro da América Latina
quando recebia, em média, mais de 7.000 toneladas de lixo por dia provenientes da cidade do
Rio de Janeiro e contava com cerca de 1.600 catadores disputando o lixo (MARTÍN, 2017).
No filme, há vários enquadramentos em que figuram as condições do lixão: montanhas de lixo

13
A noção de parrhesia da antiguidade grega pode ser traduzida como a fala franca, a coragem de enunciar a
verdade em uma situação de risco. Foucault analisa, em seus trabalhos dos anos 1980 (2013b, 2017), os
empregos e as práticas de parrhesia no mundo greco-romano (a passagem de uma parrhesia política para uma
parrhesia ética). Sobre as aproximações entre Estamira e a prática parresiástica cínica pode se conferir o trabalho
de Mansanera (2015).
e de sujeira; caminhões descarregando mais detritos; urubus pairando; poças de chorume;
vários trabalhadores do local em vestes maltrapilhas garimpando, com as próprias mãos, os
amontoados de lixo.

Eu não gosto de falar lixo, não, né? Mas vamos falar lixo. É cisco, né? É
caldinho disso. É fruta, é carne, é plástico fino, é plástico grosso... É não sei
o que lá mais... E aí vai azedando, é laranja, é isso tudo... E aí faz esse
porque, sabe? E aí, imprensa, azeda, fica tudo danado e faz a pressão
também. E aí vem o sol e esquenta e mais o fogo de baixo...

A potência de vida em Estamira também permite que ela ressignifique esse lugar. Não
somente como espaço para o lixo, mas, aos olhos de Estamira, o aterro configura-se como um
local de “transbordo” – “Você sabe o que é um transbordo? Bem, toda coisa que enche,
transborda!” –, uma área que recebe os “descuidos”:

Isso aqui é um depósito dos restos. Às vezes, é só resto. E às vezes, vem


também descuido. Resto e descuido... Quem revelou o homem como único
condicional, ensinou ele a conservar as coisas. E conservar as coisa é
proteger, lavar, limpar e usar mais o quanto pode. Você tem sua camisa.
Você está vestido, você esta suado... Você não vai tirar sua camisa e jogar
fora. Você não pode fazer isso. (...) O trocadilo fez duma tal maneira que
quanto menos as pessoas têm, mais menosprezam, mais elas jogam fora.
Quando menos eles têm.

Do lixão de Jardim Gramacho, além de construir também sua morada, Estamira retira,
do lixo, o seu luxo:

Descarregaram uma coisa muito importante aqui... Que é o de comer...


Enlatados, conservas... Amanhã, por causa disso, eu vou preparar uma bela
macarronada, entendeu? Macarrão eu já tenho. Deixa eu ver o que é isso.
Agora no momento eu não sei nem o nome desse aqui. Mas é conserva. É
preparado lá fora. E boa, sabe? Aqui, ó...(...) Palmito. Veio uma carga boa.
Olha, tá vendo? Eu ponho no molho do macarrão também, tá vendo? E às
vezes fica até melhor do que lá no restaurante. Pra quem sabe preparar, né?

Dessa forma, o lixão é, para Estamira, um espaço heterotópico. Foucault (2013a)


concebe heterotopias como contraespaços: os espaços sociais da diferença, do desvio e da
multiplicidade. As heterotopias são os lugares nos quais as incompatibilidades se justapõem:
dos restos, Estamira produz o luxo; do repugnante, ela faz emergir sua potência fascinante; do
seu amado lixão, “Sr. Cisco Montouro”, ela constitui o seu espaço terapêutico, como atesta
sua filha mais velha, Carolina: “Depois que ela foi para o lixão lá de Caxias (...), ela
melhorou muito, assim, em relação aos distúrbios. Às vezes ela fala certas coisas que
parecem até, assim, verdade... Que você fica, que te deixa balançado”. Do aterro enquanto
heterotopia, espaço essencialmente de contestação de todos os outros espaços, Estamira cria
“uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como ilusão” (2013a, p. 28). Enfim, do
lixão, Estamira constitui seu espaço heterotópico de resistência às investidas do governo
religioso, familiar e psiquiátrico de sua existência.

“Você tá com Deus enfiado no teu cú?”


O documentário não traz nenhuma autoridade religiosa, como um padre ou pastor
evangélico que, através de um poder pastoral, procure evangelizar e dirigir Estamira à alguma
espécie de salvação. Há, sim, um ódio e ojeriza a Deus presente nas falas de Estamira e uma
tentativa de condução religiosa de sua existência através do seu filho mais velho, Hernani, fiel
da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Segundo sua filha Carolina, Estamira era muito religiosa até a ocorrência de dois
acontecimentos fatídicos:

Aí foi estrupada uma vez no centro de Campo Grande. Foi estrupada uma
segunda vez aqui nessa mesma rua que eu moro. Na época, não tinha nem
luz aqui. Aí falou, né, que... o cara fez sexo anal com ela e ela gritando:
“Para com isso, pelo amor de Deus!”. “Que Deus? Esquece Deus!”, o
estrupador falava pra ela. E fez sexo de todas as formas que quis com ela e
depois mandou ela ir: “Se adianta, minha tia, se adianta”. Mandou embora.
Aí, chorava, contava esse caso... Ela é muito revoltada, né? Nesse tempo ela
não tinha alucinações nenhuma. Não tinha perturbação nenhuma. Muito
religiosa. Acreditava que Deus ia... Que aquilo que ela tava passando tipo...
Era uma provação.

Desses eventos traumáticos, parece decorrer uma espécie de desencantamento


religioso em Estamira: “Quem fez Deus foi os home!”. E, desde então, uma revolta agressiva e
uma ira catártica contra qualquer menção a Deus:

Já me bateram com pau pra mim aceitar Deus. Mas esse Deus desse jeito,
esse Deus deles, esse Deus sujo, esse Deus estrupador, esse Deus assaltante,
de qualquer lugar, de tudo quanto é lugar, esse Deus arrombador de casa...
Nem a minha carne picadinha de faca, de facão, de qualquer coisa... Eu não
aceito, não adianta. Eu sou a verdade, eu sou da verdade. Os home é
superior na terra, o bicho superior. Home também é bicho, mas é superior.
Trocadilo fez isso. Agora vou revelar. Quem quiser me matar pode matar.
Não mataram Jesus? Jesus não é bom demais agora depois que ele morreu?
Mas eu não, comigo é esquisito.

Seu filho Hernani acredita que a loucura de Estamira decorre de uma incorporação
demoníaca, de uma possessão maligna, o que explicaria suas falas hereges e suas blasfêmias:
“É louca, né? Tem o laudo até do médico. Mas, ela espiritualmente, ela parece... a pessoa,
acredita ou não acredita, é influência demoníaca, demônios, né?”. E é a partir dessa
concepção religiosa dos males de Estamira que decorre conflitos entre mãe e filho:
Hernani: “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas... cada um se
desviava pelo seu caminho, mas o Senhor fez cair sobre eles... a iniquidade
de todos nós”.
Estamira: Credo em cruz, credo em cruz... Entendeu? O meu ouvido não é
privada, otário! (...)
Hernani [se despedindo da mãe após os insultos]: Bom, Shalom Adonai.
Estamira: Vai tomar no rabo! Vai tomar no seu cú! Entra dentro do cú da
desgraça, da sua desgraça! Esse pastor todinho é vigarista, vadio e
vagabundo. Todos eles! Pior do que os padres!

“Mãe, sai dessa vida lá do lixão. Lá é difícil. A pessoa tem que dormir no relento...”
A instituição familiar esta presente na existência de Estamira. Em vários momentos, o
documentário exibe a personagem acompanhada, em sua casa, de seus familiares (os três
filhos, os netos e outros agregados). Apesar das resistências e conflitos entre Estamira e seus
filhos, há até mesmo cenas de troca de afetos e carinhos (em especial, entre ela e a filha
caçula). Já enquanto modalidade de governo que busca dirigir as condutas de Estamira, a
família pode ser analisada, no filme, como instância de normalização disciplinar do sujeito e
como instrumento do dispositivo psiquiátrico.
No âmbito da família como instituição disciplinadora do indivíduo (em seus
comportamentos e formas de agir), há uma passagem na qual sua filha Carolina narra a
insistência da família para que Estamira largasse a vida errante, suja e livre no lixão:

Minha mãe, quando ia trabalhar no Jardim Gramacho, logo quando ela


começou, ela passava duas semanas, às vezes uma semana, dormindo ao
relento, sei lá como, às vezes em barraca. Às vezes ao relento mesmo lá em
cima, lá na rampa, lá... Depois vinha pra casa, tomava banho, se limpava,
toda bonitinha. Ficava perfeita, depois voltava de novo e assim ia. Passou
cinco anos assim. Eu e meu irmão, um dia chamamos ela:“Mãe, sai dessa
vida lá do lixão... lá é difícil... a pessoa tem que dormir no relento e coisa e
tal”... Aí conversamos: “É perigoso achar um negócio que fura você, te
contamina”. Ela quis sair. Aí ela foi trabalhar no Mar e Terra. E, quando
ela saía dia de sexta-feira, sábado, eu acho, assim... aí, se reunia com os
colegas que trabalhava, né... mas iam... ia pra lá beber uma cervejinha e
coisa tal. E depois, na hora de ir embora, cada um ia pro teu canto, né? E
ela vinha sozinha.

Domesticada em uma casa e em um trabalho fixo, foram nesses momentos em que


voltava sozinha para sua morada que Estamira foi vítima de violência sexual. Na visão da
filha Carolina, foi a partir de tais fatos que os transtornos mentais de Estamira afloraram e o
lixão do Jardim Gramacho passou a ser seu local, em definitivo, de trabalho e de existência.
Diante dessa vida indisciplinável e em condições precárias, o seu filho mais velho,
Hernani, decide retirar sua irmã caçula, Maria Rita, do convívio com a mãe, a despeito dos
desejos da criança e de Estamira. No documentário, a mãe adotiva de Maria Rita, Ângela
Maria, narra esse momento:

Mais ou menos 12 anos passados, já era motorista e era voluntária num


hospital. E aí eu conhecia uma pessoa, uma senhora bacana. E um dia ela
chegou lá em casa com essa menina no... era pequenininha assim pela mão,
e falou assim: “Eu tenho um presente pra você”. Aí, eu falei: “Não vai me
dizer, filhinha, que é essa coisinha aí”. Ela falou: “É esse bichinho do mato
aqui. Tô trazendo pra você cuidar”. Aí eu falei assim: “Da onde é que ela
saiu?” Aí ela me contou a história da menina. Que a menina vivia na rua
com a mãe... a mãe catava lixo... e... que o irmão dela mais velho não queria
aquela vida pra menina. Era muito preocupado com isso e aí ela falou:
“Vou marcar uma reunião com os irmãos pros irmãos te conhecerem...
porque há um impasse... a irmã quer botar a menina num colégio interno. O
irmão achou que ela deve ir para uma casa de família, pra ter um lar”. Mas
o irmão era mais velho e decidiu que ele é que deveria decidir... E, tudo
bem, fiquei com a menina. Até então, eu só ouvia falar da Estamira. Que ela
era de rua, que ela era mendiga, que ela catava lixo, que vivia disso.

Apesar de reconhecer a situação de miséria e de penúria em que viviam no aterro,


Maria Rita se ressente de ter sido separada da mãe: “Eu não condeno nenhum dos três, não,
mas eu falo mesmo... de vez quando eu tenho mágoa deles. Se minha mãe criou os dois
passando fome, eu achava que ela tinha que ter me criado também. Ela tinha condições de
ficar comigo, sim!”.
No papel da família como instrumento do dispositivo psiquiátrico – identificando os
sujeitos psiquiatrizáveis e conduzindo-os aos mecanismos psiquiátricos – Hernani demonstra
também, em um diálogo com a irmã, o desejo de intervir para internar a mãe:

Carolina: Mas ela morrerá feliz se for no meio da rua do que numa clínica
lá. Ela sabe... Ela prefere viver dois anos livre do que viver cinco anos...
bem, trancada num lugar, você sabe disso.
Hernani: Você não está me entendendo. Isso aí... não vou dizer que ela vai
ficar a vida, o resto da vida... o pouco ou, sei lá, o muito que ela tiver. Ela
vai ficar até pelo menos ela... entendeu? Ela... ela... eu acho mais o
problema dela é sistema nervoso.
Carolina: Mas só que pra ficar lá, teria que ser dopada, amarrada. Pra
mim... ele é mais forte que eu nesse caso, se precisar de amarar e dopar é
com ele mesmo. Eu já não... Eu acho judiação, não tenho coragem de
deixar, entendeu?

Outra ocorrência de governo familiar dos comportamentos no qual a família agiu


próxima às disposições do poder psiquiátrico efetuou-se na internação da mãe de Estamira em
um hospital psiquiátrico. Contra a sua vontade e pressionada pelo então marido – “O meu pai
judiou muito dela. Disse pra minha mãe assim: ‘ou você interna a sua mãe ou a gente não
vive junto’” –, a própria Estamira relata esse episódio:
Primeiro, ele chamou a ambulância pra levar minha mãe. Chamou médico
com camisa de força. Aí, o médico falou: “Não, daí não é camisa de força,
essa daí não precisa”. Tá bom. Aí ele ficou me atentando, me atentando, me
atentando até que fez eu levar a minha mãe lá no Engenho de Dentro. Nós
fomos de trem. Coitada da minha mãe, inocente... Tá bom, aí deixei ela lá no
hospício... Quando foi na quinta-feira, eu fui lá visitar ela, ela tava com o
braço todo roxo. Eu falei: “O que foi isso mãe?”, Ela falou: “Foi o
desgraçado”. Deu choque nela, bateu nela, ela tava com o braço roxo.

De certa forma semelhante à descrição de Foucault (2006a, 2010a), a família, nessas


cenas, apresenta-se psiquiatrizada e patologizando suas irregularidades. Assim, ao livrar-se da
sujeição familiar ao marido, Estamira resgata sua mãe do hospício, como conta sua filha
Carolina: “A partir do momento que ela largou meu pai... a primeira coisa que ela fez...
deixou nós na casa não sei de quem... no morro lá e foi buscar minha avó no dia seguinte. E
minha avó sempre seguiu com a gente até morrer.”

“Se eu beber diazepam... se eu sou louca, visivelmente, naturalmente, eu fico mais louca!”
Estamira submete-se a certas prescrições do governo psiquiátrico de sua existência: há
cenas nas quais ela frequenta um CAPS; onde fala a respeito do uso de medicações; em que
apresenta disartria (“língua enrolada”) e tremores pelos efeitos colaterais de medicamentos,
“E eles tudo é dopante, esses remédio. Eu acho que é por isso que eu tô com a língua assim”;
quando lê, com dificuldades, o atestado do seu diagnóstico conferido pelo saber psiquiátrico,
“Atesto que Estamira Gomes de Souza... portadora de quadro... é... psicótico de evolução...
crônica... alucinações... auditivas... ideias de... influências... discurso místico... deverá
permanecer em tratamento psiquiátrico...”.
No entanto, apesar da sujeição a algumas práticas médico-psiquiátricas, Estamira
também resiste ao assédio de outras investidas do dispositivo psiquiátrico. Em uma passagem
do documentário, há o relato de uma tentativa, pelo filho e pelo ex-marido, de internação de
Estamira. Mas diferente de quando se curvou ao desejo do marido na internação de sua mãe e
agora vivendo no aterro enquanto seu espaço heterotópico, Estamira insurgiu-se de forma
violenta, como conta o filho:

Seu Leopoldo, o falecido Leopoldo Fontanive, né? Meu pai de criação. Ele
não deu dinheiro nenhum pra ajudar minha mãe, não. Então aí eu fiquei
ligando a semana toda pra esses hospital, né?...Que trata da cabeça das
pessoas, vê se tinha vaga pra poder internar ela, eu tinha combinado com
ele assim. Aí fui no hospital lá de Caxias... Fui primeiro com o velho, né?
Fui no carro dele. Aí consegui uma ambulância. Aí fomos prá lá pro lixão.
Aí, chegou lá, até os bombeiros estavam com medo de encostar a mão nela,
porque ela queria morder e tudo, começou a gritar nome de entidades de
macumba, né? E daquele jeito, chega espumando, né... parecendo bicho
mesmo.

A respeito das negativas dos hospícios em interná-la, Estamira comenta a atitude do


filho, em tom de deboche: “E aquele meu filho ficou contaminado pela terra suja, pelo baixo
nível, pelo insignificante, parecendo um palhaço lá, lá dentro do hospital! A coisa mais
ridícula!”.
Todavia, é nas críticas ao uso de medicamentos que Estamira apresenta uma
resistência mais lúcida, com argumentos até mesmo mais articulados e coerentes. Nesse
sentido, por exemplo, Estamira questiona o saber psiquiátrico e a atuação da psiquiatra que
lhe atende no CAPS:

A doutora passou remédio pra raiva. [Risos]. (...) Presta atenção nisso.
Olha, e ainda mais, eu conheço médico, médico, médico, médico mesmo!
Direito, entendeu? Ela é copiadora. Eu sou amigo dela. Eu gosto dela, eu
quero bem a ela. Quero bem a todos, mas ela é a copiadora. Eles estão,
sabe, fazendo o quê? Dopando, quem quer que seja... com um só remédio!
Não pode, o remédio... Quer saber mais do que Estamira?

Estamira traz, nessa fala, uma crítica ao conhecimento científico, construído e


reproduzido nas escolas e na academia: “Vocês não aprendem na escola, vocês copiam. Vocês
aprendem é com as ocorrências. Eu tenho neto com 2 anos que já sabe disso. Tem de 2 anos
que ainda não foi na escola copiar hipocrisias e mentiras charlatais”. Daí, aos seus olhos, os
profissionais de saúde serem meros copiadores e repetidores de um conhecimento,
prescrevendo – de maneira indiscriminada – o mesmo medicamento para todos: “O tal do
diazepam... Não, eles vai lá...só copeia. Uma conversinha qualquer e só copeia e tome...!”.
Os questionamentos de Estamira dizem respeito também à finalidade, ao seu ver, do
uso dos medicamentos:

Quem sabe é o cliente... Fica se viciando... Fica dopando, vadiano... Pra


terra suja maldita, excomungada, desgraçada... Mais ainda, que que é?
Manjado, desmascarado, desgraçado! Porra! Aí, ó, tudo quanto é remédio
que ela passou pra mim eu bebi. As quantia, os limite. Toda coisa tem limite!
Esses remédio são da quadrilha... da armação... do dopante, pra cegar os
home... pra querer Deus... Deus farsário! Entendeu? Esses remédio são
dopante pra querer Deus farsário, entendeu?

O que poderia assemelhar-se a um mero delírio (remédios prescritos por uma


quadrilha para os homens buscarem e aceitarem Deus) aproxima-se, de certa maneira, às
considerações de Foucault (2006a) sobre o uso de medicamentos no interior dos hospitais
psiquiátricos ao longo do século XIX. De acordo com Foucault, a utilização de medicamentos
não possuíam funções terapêuticas. Funcionavam, na realidade, como instrumento disciplinar,
como mecanismo de sujeição do individuo à ordem do hospício: “prolongar até o interior do
corpo do doente o sistema do regime asilar, o regime da disciplina; era garantir a calma que
era prescrita no interior do asilo, era prolongá-la até o interior do corpo do doente.” (pg. 226).
Nesse sentido, Estamira parece compreender a utilização de medicamentos psiquiátricos como
forma de assegurar um assujeitamento dócil às intervenções de governo (seja religioso, seja
familiar, por exemplo) associado a uma perda substancial de autogoverno (como quando
reclama de um dos efeitos do uso de medicações: “Desgovernada. Eu tô desgovernada. Sabe
o que é uma pessoa desgovernada? Uma pessoa nervosa assim, querendo falar sem poder...
agoniada. E eu não sei o que eu faço. Eu já tive pensando em parar um ano sem beber o
remédio”).
Enfim, apesar de submeter-se a algumas práticas psiquiátricas, Estamira busca resistir,
ainda que de maneira frágil em muitas situações, ao dispositivo psiquiátrico. Nesse sentido, a
postura de resistência de Estamira (mesmo com seus desvarios) às tecnologias
contemporâneas da psiquiatria assemelha-se à atitude crítica tal como analisada por Foucault
(1990, p. 5): ao não querer e não aceitar ser governado de determinada forma, ao não aceitar
como um discurso verdadeiro somente por que algo foi proferido por uma autoridade, ao
praticar uma espécie de inservidão voluntária.

V) CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 2011, cinco anos após o lançamento do documentário, Estamira, aos 70 anos,
faleceu em um hospital público – vítima de uma infecção generalizada ocasionada por um
ferimento no braço – após esperar por atendimento médico por mais de 5 horas (VAZ, 2011).
No interior de uma biopolítica dos anormais/das diferenças, Estamira foi, literalmente,
deixada morrer. Contudo, parafraseando Butler (2015, p. 130), graças à construção de um
quadro de apreensão de sua singularidade pelo documentário, Estamira sobrevive, já que a
circulação indefinida de sua imagem e de sua voz permite que sua existência continue a
acontecer. E, neste sentido, ela nos lembra, talvez como consolo a aqueles para quem sua
morte tornou-se lamentável, que “visivelmente, naturalmente, se eu me desencarnar, eu tenho
a impressão que eu serei muito feliz”.
Não obstante os limites trazidos pelas operações de poder inerentes à produção
cinematográfica e o muito de potência de vida em Estamira que transborda e escapa nesse
trabalho, procurei averiguar as possibilidades contemporâneas de resistência às distintas
formas atuais de governo (no caso específico, os governos religioso, familiar e psiquiátrico
das condutas). E é no lixão, compreendido como um espaço heterotópico, que Estamira
produz – paradoxalmente, visto o seu diagnóstico de psicótica – uma experiência de
resistência e de contra-conduta mais articulada e mais consciente contra as práticas atuais da
psiquiatria. Experiência de resistência que se realiza com fragilidades: apesar de alguma
sujeição, ainda que em precárias condições materiais, trilhando um tênue limiar entre
assujeitar-se e adotar uma atitude crítica.
Se Estamira pode ser apresentada como a loucura irredutível que tenta escapar das
estratégias de normalizações do poder, o documentário (caracterizado como de inspiração
genealógica) dá voz à desrazão de Estamira, libertando-a do “monólogo da razão sobre a
loucura” (FOUCAULT, 2006e, p. 153, grifo do autor) que caracteriza a experiência moderna
do louco.
Enfim, Estamira – como contracondutora dos governos religioso, familiar e
psiquiátrico – parece que toma, em suas falas e em sua existência, a tarefa apresentada por
Nietzsche (2009): realizar a transvaloração de certos valores morais (Deus, justo, certo,
errado, lúcido)!

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