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Fragmentos de uma

Antropologia Anarquista
David Graeber

B4N5H33
Sumário
Manifesto da edição........................................................................... 4

Apresentação...................................................................................... 5

Por que existem tão poucos anarquistas na academia?.................. 7

Isso não significa que teorias anarquistas sejam impossiveis..... 12

Graves, Brown, Mauss, Sorel............................................................ 17

Explodindo Barreiras......................................................................... 37

Premissas de uma ciência inexistente............................................ 60

Algumas idéias sobre rumos de Pensamento e Organização........ 72

Antropologia...................................................................................... 87
Manifesto e
nota da edição
Existe uma dificuldade de acesso muito grande a conteudo
anarquista. Muitos conteúdos não existem em português; outros tem
uma linguagem defasada ou academica demais; e alguns, simples-
mente estão em um formato que desencoraja a leitura.

É por estes motivos que escrevo este manifesto. Pois acredito


que nós, anarquistas que podemos produzir conteúdo, temos um
dever de facilitar o acesso a cultura e conhecimento anarquista.

Diagramei este livro, que, pretendo que seja o primeiro de muitos,


com a intenção de tornar a leitura facil em celulares e computadores.
Para você, care, leitore, espero que tenha uma leitura agradavel.

Quanto ao livro em si: peguei o texto traduzido do site Protopia


(consultado em 10/07/2019). Algumas notas da tradução eu removi,
por não achar pertinente. Outras foram mantidas. Editei algumas partes
do texto que estavam com erros de tradução, mas ainda é bem possivel
que alguns erros permaneçam. O link para o texto original é este:
https://pt.protopia.at/wiki/Fragmentos_de_uma_Antropologia_Anarquista

O link para a biblioteca onde ficam minhas produções é este:


https://mega.nz/#F!C6ID1CAY!cjSz4cFRGrhzc22eEwd6wg

B4N5H33
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Apresentação
O que se segue é uma série de reflexões, rascunhos de teorias em
potencial e pequenos manifestos - tudo com o intuito de permitir
vislumbrar o esboco de uma teoria radical que nao existe de fato,
embora ela possa existir em algum momento futuro. Uma vez que
existem boas razoes pelas quais uma antropologia anarquista deva
existir, poderíamos começar nos perguntando por que ela nao existe
- ou, nesse mesmo sentido, por que uma sociologia anarquista não
existe, ou uma teoria econômica anarquista, ou uma teoria literária
anarquista, ou, ainda, uma ciência política anarquista.

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“Anarquismo:
O nome dado a um princípio ou teoria de vida e conduta em que
uma sociedade é concebida sem governo - harmonia em tal socie-
dade sendo obtida, não pela submissão a lei, ou pela obediência
a qualquer autoridade, mas pelos livres acordos firmados entre
diversos grupos, territoriais e profissionais, livremente constituídos
com a finalidade de produzir e consumir, bem como de satisfazer
uma infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser
civilizado.”
(Piotr Kropotkin, Enciclopédia Britânica)


“Basicamente, se você não é um utópico, é um imbecil.”
(Jonothon Feldman, Indigenous Planning Times)

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Por que existem tão poucos
anarquistas na academia?
Esta é uma questão pertinente já que enquanto filosofia política,
o anarquismo de fato está crescendo neste momento. Anarquistas ou
movimentos inspirados pelo anarquismo estão surgindo em todos os
cantos; os princípios tradicionais do anarquismo - autonomia, associa-
ção voluntária, autogestão, ajuda mútua, democracia direta - estão na
base organizacional do movimento antiglobalização, assim como em
movimentos radicais em todos os lugares. Revolucionários no México,
Argentina, Índia e demais lugares, têm cada vez mais deixado até mes-
mo de falar sobre tomar o poder e começou a germinar entre eles ideais
radicais distintos sobre qual seria o significado da revolução. A maior
parte das pessoas assume abertamente que tem receio de empregar
a palavra “anarquista” em suas práticas. Mas como Barbara Epstein
recentemente colocou, o anarquismo de longe tomou o lugar do marxis-
mo nos movimentos sociais dos anos 60: mesmo aqueles que não se
consideravam anarquistas perceberam que teriam que se posicionar em
relação ao anarquismo e recorrer a suas ideias.

Ainda assim, todo este fenômeno não tornou-se alvo de nenhuma


reflexão dentro da academia. A maior parte dos acadêmicos parece ter
apenas uma ideia vaga do que é que o anarquismo defende; ou o reduz
a estereótipos que apenas evidenciam sua própria ignorância (“Organi-
zação anarquista! Mas isso não é uma contradição em termos?”). Nos
Estados Unidos existem várias centenas de acadêmicos marxistas das
mais variadas linhas, mas dificilmente encontramos algumas dúzias de
especialistas que se considerem anarquistas.

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Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Então seria a academia um espaço de exceção da ampliação


do anarquismo? É possível. Talvez em alguns anos a academia
seja amplamente ocupada por anarquistas. Mas não estou espe-
rando para ver. Parece que o marxismo tem uma afinidade com a
academia que o anarquismo nunca terá. E foi, no final de contas
o único grande movimento social inventado por um Ph.D., mes-
mo que depois tenha se tornado um movimento que pretendia se
vincular à classe trabalhadora. A princípio a maioria dos relatos
históricos a respeito do anarquismo sugerem que sua origem
seria basicamente similar, o anarquismo teria surgido como fru-
to das cabeças de certos pensadores do século XIX – Proudhon,
Bakunin, Kropotkin, etc.- e depois inspiraria as organizações da
classe trabalhadora, passaria a envolver-se em lutas políticas,
dividida em seitas... O anarquismo, nesse tipo de relato comum,
normalmente aparece como o primo pobre do Marxismo, teorica-
mente malformado, mas com paixão e sinceridade, compensado
por algumas mentes. Porém, na melhor das hipóteses, a analogia
é algo forçada. Os “pais-fundadores” não se pensavam enquanto
inventores de algo novo. Os princípios básicos do anarquismo -
auto-organização, associação voluntária, ajuda mútua - faziam
referência a formas de comportamento humanos que se pensa-
va existir desde o início da humanidade. O mesmo vale para a
rejeição ao Estado e a todas as formas de violência estrutural,
desigualdade, ou dominação (anarquismo significa literalmente
“sem governantes”), inclusive para a premissa de que todas essas
formas estão de alguma forma relacionadas e reforçam umas as
outras. Nada disso foi apresentado como uma doutrina brilhante-
mente nova. E de fato não o era: podemos encontrar registros de
pessoas defendendo posições similares por toda a história - ainda
que haja razão para acreditar que, em grande parte dos momentos
históricos e lugares, tais opiniões fossem as menos prováveis de
terem sido colocadas no papel. Estamos falando, então, menos de
um corpo teórico do que de uma atitude, ou talvez, alguém poderia

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David Graeber

dizer, de uma fé: a rejeição de certos tipos de relações sociais, a


confiança de que outras relações sociais seriam muito melhores
na constituição de uma sociedade e a crença de que tal sociedade
poderia de fato vir a existir.

Mesmo se compararmos as escolas históricas do marxismo


e do anarquismo, podemos perceber que lidamos com projetos
completamente distintos. Escolas marxistas possuem autores.
Assim como o Marxismo veio da cabeça de Marx, temos os Le-
ninistas, Maoístas, Trotskistas, Gramscianos, Althusserianos...
(Note que a lista começa com chefes de estado e desloca-se, sem
nenhuma costura, até professores franceses). Pierre Bourdieu
percebeu, certa vez, que, se o campo acadêmico é um jogo no
qual estudiosos lutam pelo domínio, então você sabe que ganhou
quando outros estudiosos começam a pensar sobre como fazer
de seu nome um adjetivo. E é, presumivelmente, para preservar
a possibilidade de ganhar o jogo que os intelectuais insistem, ao
discutir entre eles, e em dar continuidade a este tipo de teoria
histórica de Grandes Homens, que rejeita qualquer outro contexto:
as ideias de Foucault, assim como as de Trotsky, nunca são trata-
das como o produto de um certo meio intelectual - como algo que
emergiu de conversas infindáveis e argumentos envolvendo cen-
tenas de pessoas - mas sempre como se tivessem emergido da
genialidade de um homem singular (ou, ocasionalmente, de uma
mulher). E também não é que a política marxista tenha se organi-
zado como uma disciplina acadêmica ou que tenha se tornado um
modelo para a maneira como os intelectuais radicais - ou, cada
vez mais, todos os intelectuais - tratam a si mesmos; ao invés
disso, ambas se desenvolveram uma depois da outra. A partir da
perspectiva da academia, isso levou a muitos resultados salutares
- o sentimento de que deveria haver alguma centralidade na moral,
de que as preocupações acadêmicas deveriam ser relevantes para
a vida das pessoas - porém, também levou a muitos resultados

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Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

desastrosos: transformou muito do debate acadêmico numa paró-


dia da política sectária, com cada um tentando reduzir o discurso
do outro a caricaturas ridículas de forma a declará-las não so-
mente erradas, mas também maléficas e perigosas - mesmo que
o debate geralmente se desenrole em uma linguagem tão arcaica
que quem não puder bancar sete anos de graduação não é capaz
de saber que o debate está de fato acontecendo.

Agora considere as diferentes escolas do anarquismo. Há anar-


cossindicalistas, anarcocomunistas, insurrecionários, cooperativistas,
individualistas, plataformistas... Nenhuma delas recebe seu nome a
partir de algum Grande Pensador; ao invés disso, elas são invariavel-
mente nomeadas com base em uma prática ou, mais frequentemente,
devido a um princípio organizacional. (De forma significante, as ten-
dências marxistas que não possuem o nome de indivíduos - tal como
o Autonomismo ou o Comunismo de Conselhos - são as mais próxi-
mas do anarquismo). Anarquistas gostam de se distinguir dos outros
pelo que fazem e pela forma como se organizam para fazê-lo. E, de
fato, os anarquistas gastaram a maior parte do seu tempo pensando e
discutindo sobre isso. Anarquistas nunca tiveram muito interesse nas
amplas questões filosóficas e estratégicas que preocuparam histo-
ricamente os Marxistas - questões como: São os camponeses uma
classe potencialmente revolucionária? (Anarquistas pensam que isso
é algo que os camponeses devem decidir.) Qual a natureza da for-
ma-mercadoria? Em vez disso, eles tendem a discutir entre se sobre
qual é de fato a forma mais democrática de se tocar uma reunião, em
que ponto uma organização deixa de possibilitar o empoderamento e
começa a esmagar a liberdade individual. Ou, por outro lado, sobre as
questões éticas implicadas na oposição ao poder: O que é ação direta?
É necessário (ou correto) condenar publicamente alguém que assas-
sinou um chefe-de-Estado? Pode o homicídio - especialmente se for
para evitar algo terrível como uma guerra - ser um ato moral? Quando
se pode quebrar uma janela?

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David Graeber

Em resumo, então:
1 - O marxismo tendeu a ser um discurso analítico e
teórico sobre estratégia revolucionária.
2 - Anaquismo tendeu a ser um discurso ético sobre
prática revolucionária.

Obviamente, tudo o que eu disse foi um pouco caricatural


(houve grupos anarquistas extremamente sectários, e muitos
marxistas libertários orientados para a prática, incluindo, discuti-
velmente, eu mesmo). Porém, mesmo dito dessa forma, isso su-
gere uma boa dose de complementaridade potencial entre os dois.
E de fato ela existiu: mesmo Mikhail Bakunin, com suas batalhas
infindáveis com Marx sobre questões práticas, traduziu pessoal-
mente O capital, para o russo. Mas isso também ajuda a entender
porque existem tão poucos anarquistas na academia. Não é que o
anarquismo não tenha tendência a ser empregado em teorias de
alto nível. É que ele está mais preocupado com questões práticas;
e que, antes de mais nada, nossos meios devem estar de acordo
com nossos fins; não se pode criar liberdade por meios autori-
tários; na verdade, é preciso incorporar o máximo possível, nas
relações com inimigos e aliados, a sociedade que se quer criar.
Isso não combina muito bem com atuar dentro de uma universi-
dade, talvez a única instituição ocidental - com exceção da igreja
católica e da monarquia britânica - que tenha sobrevivido à Idade
Média com o mesmo formato, realizando duelos intelectuais em
conferências em hotéis caríssimos, e tentando fingir que isso, de
alguma forma, dá continuidade à transformação. Ao menos, ima-
ginaríamos que ser um professor abertamente anarquista signi-
ficaria desafiar a forma como as universidades são dirigidas - e
tampouco me refiro a demandar um departamento de estudos
anarquistas - e isso, é claro, trará problemas muito maiores que
qualquer coisa que se possa escrever.

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Isso não significa que
teorias anarquistas
sejam impossíveis
Isso não significa que anarquistas tenham que ser contra teo-
ria. Afinal de contas, anarquismo é, em si, uma ideia, mesmo que seja
uma ideia bem antiga. E é também um projeto, o qual se dirige para
a criação das instituições de uma nova sociedade “dentro da casca
da antiga”; para expor, subverter e minar as estruturas de dominação,
mas sempre, enquanto o faz, procedendo de modo democrático, uma
maneira que demonstra como tais estruturas são desnecessárias.
Qualquer projeto desse tipo, claramente, precisa de ferramentas de
compreensão e análise intelectual. Talvez não precise de Grandes
Teorias (High Theory), no sentido hoje familiar do termo. Certa-
mente, não precisará de uma única Grande Teoria Anarquista. Isso
seria completamente distante de seu espírito. Muito melhor, penso
eu, seria algo com o espírito dos processos anarquistas de tomada
de decisão, aplicados em tudo, desde pequenos grupos de afinida-
de até conselhos gigantes de milhares de pessoas. Muitos grupos
anarquistas operam através de um processo de consenso, o qual
tem sido desenvolvido, de várias formas, para ser o extremo oposto
dos processos arbitrários, divisores e sectários tão populares entre
outros grupos radicais. Aplicado à teoria, isso implicaria em aceitar
a necessidade de uma diversidade de grandes perspectivas teóricas,
unidas somente por alguns compromissos e entendimentos mútu-
os. No consenso, todo mundo concorda, desde o início, com alguns
princípios amplos de unidade e sentido de existência do grupo; mas,
além disso, aceita-se como uma coisa natural que ninguém vai
converter completamente uma pessoa ao seu ponto de vista, e que
provavelmente seja melhor nem tentar; e que, portanto, a discussão

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David Graeber
deve focar em questões concretas relativas à ação e à elaboração
de um plano com o qual todos consigam conviver e no qual ninguém
sinta que seus princípios tenham sido fundamentalmente violados.
Podemos ver um paralelo aqui: diversas perspectivas, conectadas
por um desejo compartilhado de compreender a condição humana, e
movê-la na direção de uma liberdade maior. Ao invés de estarem ba-
seadas na necessidade de provar que suposições fundamentais dos
outros estão erradas, tentar encontrar interesses particulares que
reforcem uns aos outros. Somente porque as teorias são incomen-
suráveis em alguns aspectos não significa que não possam coexistir
ou inclusive se reforçarem mutuamente, da mesma forma que o fato
dos indivíduos terem visões de mundo únicas e incomensuráveis não
significa que não possam se tornar amigos, ou amantes, ou trabalhar
em projetos comuns.

Ainda mais que Grande Teoria, o que o anarquismo preci-


sa é o que pode ser chamado de Pequena Teoria: uma forma de
agarrar as questões reais e imediatas que emergem de um proje-
to transformador. O mainstream das Ciências Sociais realmente
não ajuda muito, porque normalmente, no mainstream das ciên-
cias sociais, esse tipo de coisa é geralmente classificada como
“assuntos políticos”, e nenhum anarquista com respeito próprio
teria algo coisa a ver com isso.

Contra políticas públicas [policy] (um manifesto minúsculo)

A noção de “políticas públicas” pressupõe um Estado ou aparato


governamental que impõe sua vontade sobre os outros. “Política públi-
cas” [policy] é a negação da política; políticas públicas é, por definição,
algo concebido por algum tipo de elite, a qual presume saber melhor do
que os outros como os assuntos deles devem ser conduzidos. Ao par-
ticipar em debates de políticas públicas, o melhor que se pode fazer é
reduzir os danos, visto que a própria premissa é inimiga da idéia de que
as pessoas devem administrar os seus próprios assuntos.

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Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Então, nesse caso, a questão se torna: Que tipo de teoria so-


cial seria de verdadeiro interesse para os que estão tentando ajudar
a produzir um mundo em que as pessoas sejam livres para governar
suas próprias questões? Este panfleto é essencialmente sobre isso.
Para começar, eu diria que tal teoria teria que iniciar com algumas
suposições básicas. Não muitas. Provavelmente duas. Primeiro, teria
que partir da suposição que, tal como diz aquela cantiga Brasileira,
“um outro mundo é possível”. Pressupor que instituições como Estado,
capitalismo, racismo e dominação masculina não são inevitáveis; que
seria possível haver um mundo onde essas coisas não existissem e
que, como resultado, estaríamos todos melhores com isso. Compro-
meter-se com um princípio desses é quase um ato de fé, pois como
podemos ter certeza dessas coisas? Talvez seja possível que um mun-
do desses não seja possível. Mas também poderíamos argumentar
que essa mesma indisponibilidade de um conhecimento absoluto é o
que faz do comprometimento ao otimismo um ato moral: visto que não
podemos saber se um mundo radicalmente melhor é algo impossível,
não estamos traindo a todo mundo ao insistir em continuar justifican-
do, e reproduzindo, a bagunça que temos hoje? E, de qualquer jeito,
mesmo se estivermos errados, talvez cheguemos muito mais perto.

Contra o antiutopismo (outro manifesto minúsculo)

Aqui, é claro, precisamos lidar com uma objeção inevitável:


que o utopianismo levou ao horror absoluto quando Stalinistas, Mao-
ístas e outros idealistas tentaram esculpir formas impossíveis na
sociedade, matando milhões no processo.

Esse argumento esconde um erro fundamental: que imaginar


mundos melhores era o problema em si. Stalinistas e sua corja não
matavam porque sonhavam grandes sonhos – na verdade, Stalinis-
tas eram famosos por serem um pouco limitados na imaginação –
mas porque achavam erroneamente que seu sonhos fossem certe-

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David Graeber

zas científicas. Isso os levou a pensar que tinham o direito de impor


suas visões através de uma máquina de violência. Anarquistas
não propõem coisas desse tipo, de nenhuma forma. Eles entendem
que o curso da história não é inevitável, e que o curso da liberdade
não pode ser desenvolvido através da criação de novas formas de
coerção. De fato, todas as formas de violência sistêmica são (entre
outras coisas) agressões ao papel que a imaginação cumpre en-
quanto um princípio político; e o único meio de começar a pensar
em eliminar a violência sistemática é reconhecendo isso.

E, é claro, poderíamos escrever livros muitos longos sobre as atroci-


dades cometidas, ao longo da história, por cínicos e outros pessimistas...

Essa é, então, a primeira proposição. A segunda, eu diria, con-


sistiria na rejeição consciente, por qualquer teoria social anarquista,
de qualquer traço de vanguardismo. O papel dos intelectuais, defini-
tivamente, não é o de formar uma elite que possa formular as aná-
lises estratégicas e, depois, conduzir as massas a segui-la. Mas se
não isso, o quê? Esta é uma razão pela qual chamo este ensaio de
“Fragmentos de uma Antropologia anarquista” - porque se trata de
uma área na qual entendo que a antropologia está particularmente
bem posicionada para ajudar. E não somente porque a maioria das
comunidades autogovernadas e das economias do dom atualmente
existentes no mundo foram estudadas por antropólogos e não por
sociólogos ou historiadores. É também porque a prática da etnogra-
fia fornece algo como um modelo - ainda que bruto e incipiente - de
como uma prática intelectual revolucionária pode funcionar. Quando
conduzimos uma etnografia, observamos o que as pessoas fazem e
depois tentamos extrair as lógicas - simbólicas, morais ou pragmá-
ticas - escondidas sob suas ações; tentamos percorrer o caminho
no qual os hábitos e as ações das pessoas fazem sentido através
de caminhos que tais pessoas desconhecem. Um papel óbvio para
um intelectual radical é fazer precisamente isso: olhar para aqueles

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Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

que estão criando alternativas viáveis; tentar descobrir quais são as


implicações mais amplas do que eles (já) estão fazendo; e, então,
oferecer de volta tais ideias, não como receitas, mas como contribui-
ções, possibilidades - dádivas. Isso é mais ou menos o que eu estava
tentando fazer alguns parágrafos atrás quando sugeri que a teoria
social poderia se reformular na forma de um processo de democracia
direta. E, tal como esse exemplo deixa claro, tal projeto necessitaria,
de fato, de dois aspectos ou momentos: um etnográfico e outro utó-
pico, ambos suspensos em diálogo constante.

Nada disso tem muito a ver com o que a antropologia, mesmo a


antropologia radical, tem sido nos últimos cem anos ou mais. Ainda
assim, tem havido uma estranha afinidade ao longo dos anos entre
antropologia e anarquismo, a qual é significativa em si mesma.

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Graves, Brown,
Mauss, Sorel
Não é que os antropólogos abraçaram o anarquismo, nem,
tampouco, esposaram conscientemente ideias anarquistas; trata-se
mais do fato de que eles se moviam nos mesmos círculos, que suas
ideias tendiam a entram em choque umas com as outras, que havia
algo sobre o pensamento antropológico em particular - sua consci-
ência aguda do alcance das possibilidades humanas - que o dotava,
desde o início, de uma afinidade com o anarquismo.

Deixe-me começar com Sir James Frazer, ainda que ele tenha
sido a coisa mais distante de um anarquista. Frazer, catedrático
de antropologia em Cambridge na virada do (último) século, foi um
enfadonho vitoriano clássico, o qual escreveu crônicas sobre costu-
mes selvagens, baseados principalmente em resultados de questio-
nários enviados a missionários e oficiais coloniais. Sua atitude teó-
rica ostensiva era totalmente condescendente - ele acreditava que
quase toda mágica, mito e ritual estavam baseados em tolos erros
lógicos - mas sua obra maior, O Ramo de Ouro, continha descrições
tão floridas, divertidas e estranhamente bonitas de espíritos-árvore,
sacerdotes eunucos, deuses vegetais moribundos e sacrifício de reis
divinos, que inspirou uma geração de poetas e literatos. Entre eles
estava Robert Graves, um poeta britânico que ficou famoso, inicial-
mente, por escrever amargamente, desde as trincheiras da Primeira
Guerra Mundial, um verso satírico. Ao final da guerra, Graves acabou
em um hospital na França, onde foi curado de fadiga de combate
por W.H.R. Rivers, o antropólogo britânico famoso pela Expedição
ao Estreito de Torres, que também atuava como psiquiatra. Graves

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Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

ficou tão impressionado com Rivers que sugeriu, posteriormente,


que antropólogos profissionais fossem colocados no comando de
todos os governos mundiais. Não era um sentimento particularmente
anarquista, certamente - mas Graves vacilava dentre todos os tipos
de posições políticas estranhas. Ao final, ele abandonaria inteira-
mente a “civilização” - a sociedade industrial - e gastaria os últimos
cinquenta anos ou mais de sua vida em um vilarejo na ilha espanhola
de Maiorca, sustentando-se através da escrita de romances, mas
também produzindo inúmeros livros de poesia amorosa e uma série
de alguns dos mais subversivos ensaios já escritos.

A tese de Graves era, entre outras coisas, que a grandiosida-


de era uma patologia; “grandes homens” eram, essencialmente,
destruidores, e “grandes” poetas não eram muito melhores (seus
arqui-inimigos eram Virgílio, Milton e Pound), que toda verdadeira
poesia é e sempre foi a celebração mítica de uma Deusa Suprema
- da qual Frazer -tinha apenas uma alusão confusa e cujos segui-
dores matriarcais foram conquistados e destruídos pelas hordas
Arianas amadas por Hitler, quando estas emergiram das estepes
ucranianas no início da Era de Bronze (ainda que tenha sobrevivi-
do algum tempo na Creta Minoica). Em um livro chamado A Deusa
Branca: uma gramática histórica do mito poético, ele afirmou ter
mapeado os rudimentos dos calendários de ritos em diferentes
partes da Europa, focando no periódico assassinato ritual dos con-
sortes Reais da Deusa, o que, entre outras coisas, era um jeito cer-
teiro de garantir que “grandes homens” em potencial não saíssem
do controle, e terminando o livro com um chamado a um eventual
colapso industrial. Eu falei “afirmou” intencionalmente. O que é en-
cantador, se não também confuso, sobre os livros de Graves é que
ele, obviamente, estava se divertindo tanto ao escrevê-los, jogando
uma tese absurda depois da outra, que é impossível dizer o quan-
to eles devem ser levados a sério. Ou se isso não é uma questão
sem sentido. Em um ensaio, escrito nos anos 50, Graves inventa a

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David Graeber

distinção entre “plausabilidade” e “racionalidade” - posteriormente


tornada famosa por Stephen Toulmin nos anos 80 - mas o faz em
um ensaio escrito para defender a esposa de Sócrates, Xantipa, de
sua reputação de atroz resmungona. (O argumento dele: imagine
se você fosse casado/a com Sócrates.)

Graves realmente acreditava que mulheres são sempre supe-


riores aos homens? Ele realmente esperava que acreditássemos que
ele tinha resolvido um problema mítico ao cair num “transe analítico”
e entreouvir uma conversa sobre peixes entre um historiador Grego
e um oficial Romano no Chipre em 54 da era comum? Vale a pena
pensar, visto que, mesmo com toda obscuridade atual sobre esses
escritos, Graves inventou, essencialmente, duas tradições intelectu-
ais diferentes, as quais tornar-se-iam posteriormente grandes ten-
dências teóricas no anarquismo moderno - e reconhecidamente, são
consideradas geralmente duas das mais extremas. Por um lado, o
culto da Grande Deusa tem sido revivido e se tornado uma inspiração
direta para o Anarquismo Pagão, artistas hippies que fazem danças
espirais e que são sempre bem vindos em ações de massa porque,
de fato, parecem mais possuir um tino para influenciar o clima; por
outro lado, Primitivistas, cujo avatar mais famoso (e radical) é John
Zerzan, quem tomou a rejeição de Graves da civilização industrial e
espera ainda mais pelo colapso econômico generalizado, argumen-
tando que mesmo a agricultura foi um grande erro histórico. Tanto
os Pagãos quanto os Primitivistas, curiosamente, compartilham essa
qualidade inefável que faz do trabalho de Graves algo tão distinto: é
simplesmente impossível saber em que nível devemos lê-lo. É uma
autoparódia ridícula e, ao mesmo tempo, algo terrivelmente sério.

Houve também antropólogos – entre eles, algumas das figuras


fundadoras da disciplina – que também se intrometeram com política
anarquista ou anárquica.

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Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

O caso mais famoso foi o de um estudante da virada do século


chamado Al Brown, conhecido por seus amigos de faculdade como
“Anarchy-Brown”. Brown era um admirador do famoso anarquista
Príncipe (o qual, obviamente, renunciou tal título), Peter Kropotkin,
naturalista e explorador do ártico, que colocou o darwinismo social
em alvoroço – do qual ainda não saiu completamente – ao docu-
mentar como as espécies melhor sucedidas tendem a ser aquelas
que cooperam de forma mais efetiva. (A sociobiologia, por exem-
plo, foi uma tentativa de tentar responder a Kropotkin). Mais tarde,
Brown começou a usar manto e monóculo, adotando um nome “hi-
fenizado” falsamente aristocrático (A. R. Radcliffe-Brown), e final-
mente, nos anos 1920 e 30, se tornando o grande teórico da antro-
pologia social britânica. O velho Brown não gostava de falar muito
sobre sua política juvenil, mas, provavelmente, não é coincidência
o fato de que seu principal interesse teórico ter continuado a ser a
manutenção da ordem social fora do estado.

Talvez o caso mais intrigante seja o de Marcel Mauss, contempo-


râneo de Radcliffe-Brown, e inventor da antropologia francesa. Mauss
era um filho de pais judeus ortodoxos, que teve a bênção confusa de
também ser sobrinho de Émile Durkheim, o fundador da sociologia
francesa. Mauss foi também um socialista revolucionário. Durante boa
parte de sua vida, ele administrou uma cooperativa de consumidores em
Paris, e estava constantemente escrevendo longos textos para jornais
socialistas, tocando projetos de pesquisa sobre cooperativas em outros
países e tentando criar conexões entre cooperativas para construir uma
economia anticapitalista e alternativa. Seu trabalho mais famoso foi
escrito em resposta à crise do socialismo que ele via na reintrodução,
por Lênin, do mercado na União Soviética nos anos 20: se era impossí-
vel simplesmente legislar sobre a economia até mesmo na Rússia – a
sociedade menos monetarizada da Europa – então talvez os revolucio-
nários precisassem começar a olhar para os registros etnográficos para
ver que tipo de criatura o mercado realmente era e como poderiam ser

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David Graeber

as alternativas viáveis ao capitalismo. Assim, seu “Ensaio sobre a Dádi-


va”, escrito em 1925, argumentava (entre outras coisas) que a origem de
todos os contratos se encontra no comunismo, um compromisso incon-
dicional às necessidades dos outros, e, mesmo que incontáveis livros
didáticos de economia digam o contrário, nunca existiu uma economia
baseada na troca: as sociedades atualmente existentes que não usam
dinheiro têm sido, ao contrário, economias da dádiva, nas quais as dis-
tinções que hoje fazemos entre interesse e altruísmo, pessoa e proprie-
dade, liberdade e obrigação, simplesmente não existiam.

Mauss acreditava que o socialismo jamais poderia ser constru-


ído pela sanção do estado, mas somente gradualmente, desde baixo,
que seria possível começar a construir uma nova sociedade, baseada
na ajuda mútua e na auto-organização “dentro da sociedade antiga”;
ele sentia que as práticas populares existentes forneciam as bases
de uma crítica moral do capitalismo e permitiam vislumbrar possíveis
formas que tal futura sociedade poderia assumir. Todas essas são
clássicas posições anarquistas. Ainda assim, ele não se considerava
um anarquista. De fato, ele nunca teve coisas boas para falar sobre
eles. Isso porque, parece, ele identificava o anarquismo principalmente
com a figura de Georges Sorel, um anarcossindicalista e antissemita
francês, hoje famoso por seu ensaio Reflexões Sobre a Violência. Sorel
argumentava que, visto que as massas não eram fundamentalmente
boas ou racionais, era tolice fazer um primeiro apelo a elas através
de argumentos racionais. A política é a arte de inspirar os outros com
grandes mitos. Para os revolucionários, ele propôs o mito de uma apo-
calíptica Greve Geral, um momento de total transformação. Para man-
tê-la, ele acrescentava, precisar-se-ia de uma elite capaz de sustentar
o mito vivo através da disposição de se engajar em atos simbólicos de
violência - uma elite que, assim como o partido marxista de vanguarda
(frequentemente menos simbólico em sua violência), Mauss descre-
via como um tipo de conspiração perpétua, uma versão moderna das
sociedades políticas secretas masculinas do mundo antigo.

21
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Em outras palavras, Mauss via Sorel, e portanto o anarquismo,


como introdutor da irracionalidade, da violência e do vanguardismo.
Pode parecer um pouco estranho que entre revolucionários france-
ses da época fosse o sindicalista que enfatizasse o poder do mito
e o antropólogo que o objetasse, mas, no contexto dos anos 20 e
30, com agitações fascistas por todo lado, é compreensível o mo-
tivo pelo qual um radical europeu - especialmente judeu - pudesse
ver tudo isso como um pouco assustador. Assustador o suficiente
para jogar água fria na imagem sempre instigante da Greve Geral -
a qual é, por sinal, o meio menos violento possível de se imaginar
uma revolução apocalíptica. Nos anos 40, Mauss concluiu que suas
suspeitas se haviam justificado.

À doutrina da vanguarda revolucionária, ele escreveu, Sorel adi-


cionou uma noção originalmente tirada do próprio tio de Mauss -
Durkheim: a doutrina do corporatismo, de estruturas verticais mantidas
juntas através de técnicas de solidariedade social. Isso, ele disse, foi
uma grande influência em Lênin, quem pessoalmente o admitiu. A partir
daí, ela foi adotada pela direita. Ao final de sua vida, Sorel havia se torna-
do crescentemente simpático ao fascismo; nisso ele seguiu a mesma
trajetória de Mussolini (outro jovem diletante do anarcossindicalismo),
e quem levou, acreditava Mauss, essas mesmas ideias durkheim-sorel-
-leninistas até as últimas consequências. Ao final de sua vida, Mauss
acabou se convencendo que mesmo as grandes procissões rituais de
Hitler, cortejos de tochas e cantos de “Seig Heil”, tinham sido inspiradas
por relatos feitos por ele e seu tio sobre os rituais totêmicos de aborí-
genes australianos. “Quando estávamos descrevendo como os rituais
podem criar solidariedade social ao submergir o indivíduo na massa”,
queixava-se, “nunca nos ocorreu que alguém fosse aplicar tais técni-
cas nos dias modernos!”. (Na verdade, Mauss estava errado. Pesquisas
recentes mostraram que as procissões de Nuremberg se inspiraram, de
fato, nos Pep Rallies de Harvard. Mas isso é outra história.) O estopim da
guerra destruiu Mauss, que nunca havia se recuperado completamente

22
David Graeber

da perda da maioria de seus amigos mais próximos durante a Primeira


Guerra Mundial. Quando os nazistas tomaram Paris, ele se recusou a
fugir e, todos os dias, sentava-se em seu escritório com uma pistola em
sua mesa, esperando a Gestapo chegar. Eles nunca chegaram, mas o
terror, assim como o peso de seus sentimentos de cumplicidade históri-
ca, finalmente, despedaçaram sua sanidade.

A antropologia anarquista que quase já existe

No fim das contas, entretanto, Marcel Mauss talvez tenha tido


mais influência nos anarquistas que todos os outros conjuntamente.
Isso porque ele estava interessado em moralidades alternativas, que
abriam caminho para pensar que sociedades sem Estado e Mercado
eram do jeito que eram porque desejavam ativamente viver desse jei-
to. Porque, em nossos termos, significa que eram anarquistas. Uma
vez que fragmentos de uma antropologia anarquista já existem, eles
são amplamente derivados dele.

Antes de Mauss, a compreensão universal tinha sido a de


que economias sem dinheiro ou mercados operavam através da
“troca”; que elas estavam tentando se encaixar no comportamento
de mercado (adquirir bens e serviços úteis pelo menor preço, enri-
quecer se possível...), elas apenas não tinham desenvolvido ainda
meios sofisticados para fazê-lo. Mauss demonstrou que, na ver-
dade, tais economias eram realmente “economias da dádiva”. Elas
não estavam baseadas em cálculos, mas numa recusa a calcular;
elas estavam enraizadas num sistema ético que rejeitava cons-
cientemente a maior parte do que consideraríamos princípios bási-
cos de economia. Não era que elas ainda não tivessem aprendido
a buscar lucro através de meio eficazes. Eles teriam achado pro-
fundamente ofensivo que a premissa das transações econômicas
fosse buscar o maior lucro possível – ao menos das transações
que envolvessem aqueles que não são inimigos.

23
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

É significativo que um antropólogo (um dos poucos) aberta-


mente anarquista na memória recente – outro francês, Pierre Clas-
tres – se tornou famoso por elaborar um argumento similar no nível
político. Ele insistia que antropólogos políticos ainda não tinham
passado por cima das antigas perspectivas evolucionistas, as quais
viam o Estado principalmente como uma forma de organização
mais sofisticada do que as que a haviam precedido; povos sem Es-
tado, tais como as sociedades amazônicas estudadas por Clastres,
eram tacitamente vistas como não tendo atingido o nível dos Azte-
cas ou dos Incas. Mas e se, ele propunha, os ameríndios não fos-
sem completamente inconscientes de como as formas elementares
do poder estatal pudessem ser – que significaria permitir a alguns
homens dar ordens inquestionáveis a todos outros, pois essas
estavam apoiadas na ameaça do uso da força – e estivessem, por
essa mesma razão, determinados a garantir que tais coisas nunca
ocorressem? E se eles considerassem moralmente questionáveis as
premissas fundamentais de nossa ciência política?

Os paralelos entre os dois argumentos são realmente im-


pressionantes. Nas economias da dádiva, existe, frequentemente,
espaço para indivíduos empreendedores: mas tudo está organi-
zado de tal forma que esses espaços nunca possam ser usados
como plataforma para a criação de desigualdade econômicas per-
manentes, visto que essas figuras autoengrandecidas terminam
competindo para ver quem desperdiça mais. Em sociedades ama-
zônicas (ou norte-americanas), a instituição de um chefe possuía
o mesmo papel no nível político: a posição era tão exigente, e tão
pouco recompensadora, tão guarnecida por salvaguardas, que não
havia espaço para que indivíduos famintos por poder fizessem
muita coisa. Ameríndios podem não ter arrancado literalmente a
cabeça de seus governantes a cada par de anos, mas essa é não
uma metáfora totalmente inapropriada.

24
David Graeber

Através de tal perspectiva, essas eram, num sentido bastante


verdadeiro, sociedades anarquistas. Elas estavam fundadas na rejei-
ção explícita da lógica do Estado e do Mercado.

Elas são, contudo, extremamente imperfeitas. A crítica mais
comum que se faz a Clastres é perguntar como os seus Amerín-
dios podiam organizar verdadeiramente suas sociedades contra a
emergência de algo que nunca haviam experienciado realmente.
Um questionamento ingênuo, ainda que aponte para algo igual-
mente ingênuo na abordagem de Clastres. Ele consegue falar
alegremente sobre o igualitarismo descompromissado dos mes-
mos ameríndios que, por exemplo, são famosos por seu uso do
estupro coletivo enquanto uma arma para aterrorizar mulheres
que transgridem o papel próprio de seu gênero. É um ponto cego
tão brilhante que podemos pensar como foi possível que ele não
o percebesse; especialmente se considerarmos que tal ponto
fornece uma resposta exatamente para essa pergunta. Talvez os
homens ameríndios percebam o quão arbitrário poderia ser um
poder inquestionável apoiado no uso da força porque eles próprios
exercem esse tipo de poder sobre suas mulheres e filhas. Talvez
por essa mesma razão eles não gostariam de ver sobre eles mes-
mos estruturas capazes de infligir tal poder.

É válido chamar a atenção para tais questões porque Clastres é,


sob vários aspectos, uma romântico ingênuo. Desde outra perspec-
tiva, porém, não há aqui nenhum mistério. Afinal, estamos falando do
fato de que a maioria dos ameríndios não quer dar a outros o poder
de os ameaçar fisicamente se eles não fizerem o que for mandado.
Talvez fosse melhor se estivéssemos nos perguntando o que isso
diz sobre nós mesmos, visto que sentimos que tal atitude precisa de
algum tipo de explicação.

25
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Rumo a uma teoria do contrapoder imaginário

Isso é que o quero dizer por ética alternativa. Sociedades


anarquistas são tão conscientes das capacidades humanas para a
ganância e a vaidade quanto americanos modernos são conscien-
tes das capacidades humanas para a inveja, gula e preguiça; elas
as achariam igualmente desinteressantes enquanto bases para sua
civilização. De fato, elas veem tais fenômenos como perigos morais
tão horrendos que terminam por organizar boa parte de sua vida
social de forma a contê-los.

Se este fosse um ensaio puramente teórico, eu diria que tudo


isso sugere uma maneira interessante de sintetizar teorias de va-
lor e teorias de resistência. Para o presente propósito, é suficiente
dizer que Mauss e Clastres foram bem sucedidos, ainda que ape-
sar de si mesmos, em pavimentar o caminho para uma teoria do
contrapoder revolucionário.

Tenho a impressão que esse argumento é um pouco complica-


do. Deixe-me dar um passo de cada vez.

No típico discurso revolucionário, “contrapoder” é um conjun-


to de instituições sociais colocadas em oposição ao Estado e ao
Capital: de comunidades autogovernadas até sindicatos operários
radicais até milícias populares. Por vezes é também referido como
“antipoder”. Quando tais instituições se mantêm diante do Estado,
isso é comumente referido como uma situação de “poder dual”. Me-
diante tal definição, a maior parte da história humana é, na verdade,
caracterizada por situações de poder dual, visto que pouco Estados
históricos tiveram os meios de eliminar tais instituições, mesmo
se assumirmos que eles o quisessem. Contudo, os argumentos de
Mauss e Clastres sugerem algo mais radical ainda. Sugerem que o
contrapoder, ao menos em seu sentido mais elementar, existe até

26
David Graeber

mesmo onde Estados e Mercados não estão presentes; que em tais


casos, ao invés de estarem incorporados em instituições populares
que se colocam contra o poder de lordes, reis ou plutocratas, eles es-
tão incorporados em instituições que garantem que esse tipo de gen-
te nunca apareça. O que é o “contra”, então, é um aspecto potencial,
latente – ou uma possibilidade dialética, se você preferir – dentro da
própria sociedade.

Isso ao menos ajudaria a explicar um fato peculiar; a forma


como são as sociedades igualitárias que, frequentemente, são des-
pedaçadas por terríveis tensões internas, ou ao menos, por formas
extremas de violência simbólica.

É claro que, até certo ponto, todas as sociedades estão em


guerra consigo mesmas. Há sempre colisões entre interesses, fac-
ções, classes e coisas do tipo; além disso, sistemas sociais estão
sempre baseados na busca de diferentes formas de valor, os quais
empurram as pessoas em diferentes direções. Em sociedades igua-
litárias, as quais tendem a colocar uma enorme ênfase na criação e
manutenção de consenso comunitário, isso parece, frequentemente,
dar origem a um tipo igualmente elaborado de formação reativa, um
mundo noturno habitado por monstros, bruxas e outras criaturas de
terror. E são as sociedades mais pacíficas as que são também as
mais assombradas – em suas construções imaginativas do cosmos
– por espectros constantes de guerra perene. Os mundos invisíveis
que os envolvem são, literalmente, campos de batalha. É como se o
incessante trabalho de alcançar o consenso mascarasse uma violên-
cia interna constante – ou, talvez seja melhor dizer, é de fato o pro-
cesso pelo qual tal violência interna é medida e contida – e é preci-
samente isso, e o emaranhado de contradição moral que daí resulta,
que é a fonte primeira de criatividade social. Não são esses princí-
pios conflitantes e impulsos contraditórios em si que são a realidade
última da política, portanto; é o processo regulatório que os media.

27
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Alguns exemplos podem ajudar:

Caso 1: Os Piaroa, uma sociedade altamente igualitária que


vive nos afluentes do Orinoco, a qual foi descrita pela etnógrafa
Joanna Overing enquanto anarquistas. Eles colocam um valor enor-
me na autonomia e liberdade individual, e são bastante conscientes
da importância de assegurar que ninguém esteja sob as ordens de
ninguém, ou da necessidade de assegurar que ninguém ganhe tal
controle sobre os recursos econômicos que possam usar para res-
tringir a liberdade de outros. Apesar disso, eles insistem que a cul-
tura Piaroa foi criada por uma divindade maligna, um bufão canibal
de duas cabeças. Os Piaroa desenvolveram uma filosofia moral que
define a condição humana como presa entre um “mundo dos senti-
dos” - de desejos selvagens, pré-sociais – e um “mundo do pensa-
mento”. Crescer envolve aprender a controlar e canalizar o primeiro
através de uma reflexão de consideração pelos outros, e o cultivo de
um senso de humor; mas isso se torna infinitamente mais difícil pelo
fato de que todas as formas de conhecimento técnico, estão, devido
a suas origens, atadas a elementos de loucura destrutiva, por mais
necessários que sejam para a vida. Da mesma forma, por mais que
os Piaroa sejam famosos por sua condição pacífica – não se ouve
falar de assassinato, sendo que o pressuposto é que qualquer um
que matasse outro ser humano seria instantaneamente consumido
pela poluição e morreria horrivelmente – eles habitam um cosmos
de infindável guerra invisível, no qual os xamãs estão ocupados em
resistir aos ataques das divindades insanas e predatórias, e no qual
todas as mortes são causadas por assassinato espiritual e precisam
ser vingadas através do massacre mágica de comunidades inteiras
(distantes, desconhecidas).

Caso 2: Os Tiv, outra notória sociedade igualitária, fazem de


moradia as margens do rio Benue, na Nigéria central. Comparados
aos Piaroa, sua vida doméstica é bastante hierárquica: homens

28
David Graeber

velhos tendem a ter diversas esposas e trocar entre eles os direi-


tos à fertilidade das mulheres mais jovens; os homens jovens são,
assim, reduzidos a passar a maior parte de suas vidas em espe-
ra como solteiros e dependentes dos !!conjuntos paternos. Nos
séculos recentes, nunca estiveram completamente isolados dos
ataques de traficantes de escravos; a terra dos Tiv também teve al-
guns mercados locais; pequenas guerras ocasionais foram trava-
das entre clãs, ainda que as frequentes disputas mais amplas eram
mediadas em grandes “debates” comunais. Ainda assim, não havia
instituições políticas maiores que os !!conjuntos; de fato, qual-
quer coisa que começasse a parecer com uma instituição política
era considerada intrinsecamente suspeita, ou, mais precisamen-
te, vista como algo cercado por uma aura de terror oculto. Assim
era, como coloca sucintamente o etnógrafo Paul Bohannan, pelo
que era visto como sendo a natureza do poder: “homens adquirem
poder consumindo a substância de outros (homens)”. Os merca-
dos eram protegidos, as regras do mercado impostas por !!feitiços
que encapsulavam doenças e sobre os quais se dizia serem movi-
dos por partes humanas e sangue. Homens empreendedores que
conseguiam congregar uma certa fama, riqueza ou clientela eram,
por definição, bruxos. Seus corações eram envolvidos por uma
substância chamada tsav, a qual somente podia ser magnificada
através do consumo de carne humana. A maioria evitava fazê-lo,
mas se dizia que existiam sociedades secretas de bruxos que colo-
cavam pedacinhos de carne humana na comida de suas vítimas,
incorrendo, assim, em uma “dívida de carne” e em desejos não-na-
turais que, eventualmente, poderiam levar os afetados a consumir
suas famílias inteiras. Tais sociedades imaginárias de bruxos eram
vistas como o governo invisível do país. O poder era, dessa forma,
o mal institucionalizado e, em cada geração, emergiam movimen-
tos de caça as bruxas que expunham os culpados, destruindo
efetivamente qualquer estrutura autoritária emergente.

29
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Caso 3. As Terras Altas de Madagascar, onde vivi entre 1989 e


1991, era um lugar bem diferente. A área tinha sido o centro do Es-
tado de Madagascar – o reino Merina – desde o início do século XIX
e, posteriormente, sofreu sob o duro mando colonial durante anos.
Havia uma economia de mercado e, em teoria, um governo central –
durante o tempo em que estive lá, em grande parte dominado pelo
que era chamado de “burguesia Merina”. De fato, tal governo havia se
retirado de boa parte do interior do país e, efetivamente, as comuni-
dades rurais governavam a si mesmas. Tais comunidades podem ser
consideradas anarquistas de muitas formas: a maioria das decisões
locais eram tomadas em grupos informais, através do consenso; a li-
derança era olhada, na melhor das hipóteses, com desconfiança; era
considerado errado que os adultos dessem ordens uns aos outros,
especialmente de forma sistemática; isso fazia com que mesmo ins-
tituições como trabalho remunerado fossem moralmente suspeitas.
Ou, para ser mais preciso, (eram consideradas) não-malgaxe – era
assim que os franceses se comportavam, ou reis lunáticos e escra-
vocratas de tempos atrás. A sociedade era notavelmente pacífica.
Contudo, era mais uma vez cercada por uma guerra invisível; quase
todo mundo tinha acesso a remédios perigosos ou espíritos, ou esta-
va disposto a revelar que pudessem ter; a noite estava assombrada
por bruxas que dançavam nuas e cavalgavam os homens como se
estes fossem cavalos; quase todas as doenças eram ocasionadas
por inveja, ódio e ataques mágicos. E mais, a feitiçaria tinha uma
estranha e ambivalente relação com a identidade nacional. Enquanto
as pessoas faziam alusões retóricas, dizendo que os malgaxes eram
iguais e tão unidos “quanto cabelos numa cabeça”, ideais de igualda-
de econômica eram raramente, quase nunca, invocados; entretanto,
presumia-se que qualquer um que se tornasse demasiado rico ou
poderoso seria destruído por feitiçaria e, enquanto feitiçaria era a de-
finição do mal, era percebida como algo peculiarmente malgaxe (fei-
tiços eram apenas feitiços, mas feitiços maléficos eram chamados
de “feitiços malgaxe”). Na medida em que rituais de solidariedade

30
David Graeber

aconteciam – e o ideal de igualdade era invocado –, era durante os


rituais feitos para suprimir, expulsar ou destruir tais bruxas as quais,
perversamente, eram a corporificação perturbadora e a imposição
prática do ethos igualitário da própria sociedade.

Note como em cada um dos casos existe um evidente contraste


entre conteúdos cosmológicos, que nao é nada senão tumultuoso, e o
processo social, o qual diz respeito à mediação chegando ao consen-
so. Nenhuma dessas sociedades são inteiramente igualitárias: existem
sempre formas centrais de dominação, pelo menos, de homens sobre
mulheres, de pessoas idosas sobre jovens. A natureza e a intensidade
dessas formas varia enormemente: na comunidade Piaroa as hierar-
quias são tão modestas que dificilmente se pode falar de “dominação
masculina” (a despeito do fato de que líderes da comunidade são in-
variavelmente do sexo masculino); os Tiv parecem ter um história bem
diferente. Ainda que desigualdades estruturais existam invariavelmen-
te, e, como resultado, eu penso que é justo dizer que estas anarquias
não são apenas imperfeitas, mas contêm as sementes de sua própria
destruição. É dificilmente uma coincidência o fato de que formas de
dominação sistematicamente mais amplas e violentas que emergem
baseiam-se em idade e gênero para se justificarem.

Entretanto, eu penso que seria um erro identificar a violência


invisível e o terror como simplesmente o trabalho das “contradições
internas” criadas por aquelas formas de desigualdade. Poder-se-ia
talvez sugerir que se trata da violência mais tangível e real. Pelo me-
nos, é notório o fato de que, nas sociedades onde a única desigualdade
observável está baseada em gênero, os únicos assissinatos existentes
envolvem homens matando uns aos outros por causa de mulheres. De
forma similar, não parece ser o caso, geralmente falando, de que quan-
to mais pronunciadas as diferenças entre os papeis dos homens e das
mulheres na sociedade, mais fisicamente violentos eles tendem a ser.
Mas dificilmente isso significa que se todas as desigualdades desapa-

31
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

rececem, então tudo, até mesmo a imaginacão, tornar-se-ia tranquila e


não-problemática. Em alguma medida, suspeito que toda essa turbulên-
cia deriva da própria natureza da condição humana. Parece não existir
sociedade a qual não veja a vida humana como fundamentalmente um
problema; ainda que elas possam vir a se diferenciar no que consideram
ser o problema, em última instância, a existência do trabalho, o sexo e a
reprodução são encarados como preocupações com todos seus dile-
mas. Os desejos humanos são sempre mutáveis; e há também o fato
de que todos nós morreremos um dia. Então, há muito com o que se
preocupar. Nenhum desses dilemas irão desaparecer se eliminarmos
as desigualdades estruturais (no entanto, penso que isso melhoraria
radicalmente as coisas em vários outros sentidos). De fato, a fantasia de
que isso poderia desaparecer, que condição humana, o desejo, a mor-
talidade, tudo poderia ser resolvido parece ser uma fantasia especial-
mente perigosa, uma imagem utópica que sempre parece ocultar-se em
algum lugar entre as pretensões de Poder e do estado. Ao invés disso,
como tenho sugerido, a violência espectral parece emergir das próprias
tensões inerentes no projeto de sustentar uma sociedade igualitária.
Caso contrário, alguém poderia ao menos imaginar que a imaginação
Tiv poderia ser mais tumultuosa do que a Piaroa.

Que o estado emerge de imagens de uma resolução impossível
da condição humana era também o ponto de Clastres. Ele argumentava
que historicamente a instituição do estado não poderia ter emergido de
instituições políticas de sociedades anarquistas, que eram designadas
para garantir que ele nunca ocorresse. Pelo contrário, só podia apenas
emergir de instituições religiosas: ele afirmou que os profetas Tupinam-
bá que lideravam toda a população em uma vasta migração na busca
de uma “Terra Sem Males”. É evidente que, em contextos posteriores,
aquilo que Peter Lamborn Wilson chama de “máquina clastriana” a qual
se materializa em mecanismos que se opõem à emergência da domina-
ção -- o que chamo de aparatos de contrapoder -- pode ser ele próprio
capturado em tais fantasias apocalípticas.

32
David Graeber

Agora, neste ponto o leitor poderia certamente questionar,


“Claro, mas o que isso tem a ver com o tipo de comunidades insurre-
cionistas às quais os teóricos revolucionários normalmente se refe-
rem quando utilizam a palavra “contrapoder”?

Aqui poderia ser útil observar a diferença entre os dois primei-


ros casos e o terceiro - porque as comunidades de Madagascar que
conheci em 1990 estavam vivendo em algo que de diversas formas
reproduzia uma situação insurrecionária. Entre o século XIX e o XX,
houve uma considerável transformação das atitudes populares.
Todas as informações a respeito do século passado insistem nesse
ponto, apesar do amplo ressentimento contra o corrupto e sempre
brutal governo Malgaxe, ninguém questiona a legitimidade da mo-
narquia em si, ou particularmente, sua absoluta lealdade pessoal à
rainha. Nem poderia alguém explicitamente questionar a legitimidade
da escravidão. Após a conquista francesa da ilha em 1895, que foi
imediatamente seguida da abolição tanto da monarquia quanto da
escravidão, tudo pareceu ter mudado extremamente rápido. Antes de
uma geração ter desaparecido, outra começou a encontrar a atitude
que achei amplamente arraigada nas áreas afastadas do centro uma
centena de anos mais tarde: escravidão era malévola, e monarcas era
vistos como inerentemente imorais por sua forma de tratar os ou-
tros como escravos. No final, todas as relações de comando (serviço
militar, trabalho assalariado, trabalho forçado) acabaram mistura-
das juntas na mente das pessoas como variações da escravidão; as
mesmas instituições que haviam sido vistas anteriormente para além
de qualquer desafio tornaram-se então a definição da ilegitimidade, e
isso, especialmente entre aqueles que haviam tido o menor acesso à
alta educação e às idéias do iluminismo francês. Ser Malgaxe pas-
sou a ser definido por sua rejeição a tais costumes estrangeiros. Se
alguém combina essa atitude com a constante resistência passiva às
instituições estatais, e a elaboração de autônomas, e relativamente
igualitárias formas de auto-governo, este alguém veria aquilo que se

33
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

passou como uma revolução. Depois da crise financeira da década


de 80, o estado em grande parte do país efetivamente colapsou, ou
em todos os sentidos regrediu para uma forma vazia sem o anteparo
da coerção sistemática. Populações rurais levaram adiante muito da
vida anterior, pois continuavam indo aos escritórios periodicamen-
te para preencher formulários ainda que não mais fossem cobrado
nenhum imposto real; o governo dificilmente providenciava serviços,
e na ocorrência de roubos ou mesmo assassinato, a polícia não mais
viria. Se uma revolução significa a resistência de uma população a
alguma forma de poder identificado como opressivo, salientando
alguns aspectos-chave desse poder como a fonte daquilo que é fun-
damentalmente questionável sobre ele, tentando livrar-se dos opres-
sores na medida em que se procura eliminar completamente aquele
tipo de poder da vida cotidiana, logo é difícil negar que, em certo sen-
tido, trata-se, de fato, de uma revolução. Pode não estar relacionado
com um levante de fato, mas se trata de uma revolução sem dúvida.

O quanto uma revolução duraria, esta é uma outra questão;


trata-se de uma forma muito frágil e tênue de liberdade. Muitos dos
enclaves falharam, em Madagascar e em outros lugares. Outros ain-
da persistem, novos estão sendo criados a todo momento. O mundo
contemporâneo está repleto de tais espaços anárquicos, e quanto
melhor sucedidos eles são, menos provável é de que obteremos
informações sobre eles. Apenas se tais espaços sofrem uma ruptura
violente é que pessoas de foram descobririam que ele existe. A difícil
questão é como mudanças profundas nas atitudes populares pode-
riam acontecer tão rápido? A resposta provável é a de as mudanças
não aconteceram de fato; existiram acontecimentos pertencentes ao
reino no século XIX os quais observadores externos (mesmo aqueles
que residiram por muito tempo na ilha) simplesmente não sabiam
a respeito. De forma clara, também, algo sobre a imposição da or-
dem colonial permitiu um rápido re-ordenamento das prioridades.
Isso, eu argumentaria, é o que a existência de formas profundamente

34
David Graeber

enraizadas de contrapoder permitem. Muito do trabalho ideológico,


na verdade, de fazer uma revolução foi conduzida precisamente no
mundo espectral, noturno de feiticeiros e bruxas; em redefinição das
implicações morais das diferentes formas de poder mágico. Mas isso
apenas salienta como essas zonas espectrais servem sempre como
fulcro moral da imaginação, um tipo de reservatório da criatividade,
com potencial de mudança revolucionária. É precisamente desses
espaços invisíveis, sobretudo, invisíveis ao poder, assim como o po-
der de insurreição, que a extraordinária criatividade social que parece
emergir do nada em momentos revolucionários de fato vem.

Logo, para resumir o argumento até agora:

1 - O contrapoder está primeira e principalmente enraizado na


imaginação; ele emerge do fato de que todos os sistemas sociais
são um emaranhado de contradições; sempre em algum grau em
guerra com si próprios. Ou, mais precisamente, está enraizado na
relação entre imaginação prática necessária para manter a so-
ciedade baseada no consenso (como em qualquer sociedade não
baseada na violência, em ultima instância, precisa ser) - o trabalho
constante da identificação imaginativa com outras que fazem o
entendimento possível - e a violência espectral que parece ser sua
constante, e talvez inevitável, consequência.

2 - Nas sociedades igualitárias o contrapoder propriamente dito


se dá numa forma predominante de poder social. Faz vigilância sobre
o que pode ser visto como certas possibilidades assustadoras dentro
da sociedade; notavelmente contra a emergência de formas sistemá-
ticas de dominação política e econômica.

2a - Institucionalmente, o contrapoder toma a forma do que


poderíamos chamar de instituições de democracia direta, consenso
e mediação, que são a forma de publicamente negociar e controlar o

35
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

inevitável conflito interno e as transformações dentro destas condi-


ções sociais (ou se você preferir, formas de valores) que a sociedade
entende como os mais desejáveis: convivialidade, unanimidade, fertili-
dade, prosperidade, beleza, em quaisquer formas que se apresentem.

3 - Em sociedades amplamente desiguais, o contrapoder imagi-


nativo geralmente define-se contra certos aspectos de dominação e
são vistos como particularmente indolentes e podem se tornar uma
tentativa de eliminá-los completamente das relações sociais. Quan-
do isso acontece, ele se torna revolucionário.

3a - Institucionalmente, como um bem imaginativo, é res-


ponsável pela criação de novas formas sociais, e a revalorização ou
transformação das formas antigas, e ainda,

4 - em momentos de transformação radical - revoluções em


termos antiquados - isso é precisamente o que permite a notória ha-
bilidade popular de inovar completamente em termos políticos, eco-
nômicos e sociais. Portando, esta é a raiz daquilo que Antonio Negri
tem chamado de “poder constituinte”, o poder de criar constituições.

A maior parte das ordens constitucionais enxergam a si pró-


prias como tendo sido criadas por rebeliões: a revolução estaduni-
dense, a revolução francesa, etc. Obviamente que nem sempre foi o
caso. Mas isto implica em uma questão muito importante, porque
qualquer antropologia engajada de fato terá de começar por confron-
tar seriamente a questão do que (se é que) realmente divide o que
costumamos chamar o mundo “moderno” e o resto da história hu-
mana, relegado aos Piaroa, Tiv ou Malgaxe. Eis uma forma através da
qual alguém poderia imaginar essa questão realmente controversa,
mas receio que ela não pode ser evitada, posto que, de outra forma,
muitos leitores não poderão ser convencidos de que existem razões
para existir uma antropologia anarquista.

36
Explodindo
barreiras
Como disse anteriormente, uma antropologia anarquista não
existe de fato. Existem apenas fragmentos. Na primeira parte deste
ensaio, eu tentei juntar alguns deles e apontar para temas comuns;
nesta parte quero ir além e imaginar um corpo de teoria social que
possa existir em algum momento no futuro.

Objeções óbvias

Antes de começar preciso fazer referência a uma objeção corren-


te a qualquer projeto dessa natureza: aquela que afirma que o estudo
das sociedades anarquistas existentes na atualidade é simplesmente
irrelevante para o mundo moderno. Afinal de contas, não estamos nós
falando apenas de um bando de primitivos?

Para anarquistas que conhecem alguma coisa sobre antropo-


logia, os argumentos são todos muito familiares. Um típico argu-
mento é mais ou menos assim:

Cético: Bem, eu talvez tome essa idéia anarquista mais se-


riamente se você puder me dar alguma razão para pensar que isso
funcionaria. Você pode nomear um único exemplo viável de socie-
dade que existiu sem governo?

Anarquista: Claro. Existiram milhares. Eu posso nomear uma


dúzia só de cabeça: os Bororo, os Baining, os Onondaga, os Wintu,
os Ema, os Tallensi, os Vezo...

37
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Cético: Mas esses todos são um bando de primitivos! Eu estou


falando de anarquismo em uma sociedade tecnológica moderna.

Anarquista: OK, pois houve vários tipos de experimentos de su-


cesso com auto-gestão de trabalhadores, como Mondragon; projetos
econômicos/tecnológicos baseados na idéia da economia da dádiva,
como o Linux; vários tipos de organização política baseada no con-
senso e democracia direta...

Cético: Claro, claro, mas esses são pequenos, isolados exem-


plos. Eu estou falando de sociedades inteiras.

Anarquista: Bem, não é que as pessoas não tenham tentado.


Veja a comuna de Paris, a revolução na Espanha...

Cético: É, e olhe o que aconteceu com esses caras! Eles foram mor-
tos!

Os dados estão viciados. Você não pode vencer. Quando um


cético diz “sociedade” o que ele realmente quer dizer é “estado”, e até
mesmo “estado-nação”. Já que ninguém vai produzir um exemplo de
um estado anarquista -- isso seria uma contradição em termos -- o
que nós realmente estamos sendo perguntados é por um exemplo
de um estado-nação moderno com o governo de alguma maneira
ausente: uma situação na qual o governo do Canadá, para pegar um
exemplo aleatório, foi derrubado ou por alguma razão derrubou a si
próprio, e ninguém tomou o seu lugar, mas, ao contrário, todos os
ex-cidadãos canadenses começaram a se organizar em coletivos
libertários. Obviamente, isso nunca seria permitido acontecer. No
passado, sempre quando parecia que talvez isso pudesse acontecer
-- aqui, a comuna de paris e a guerra civil espanhola são excelentes
exemplos -- os políticos no governo de todos os estados da vizi-
nhança colocaram suas diferenças de lado até que aqueles tentando

38
David Graeber

trazer tal situação revolucionária a tona fossem agrupados e balea-


dos.
Há um saída a qual seria aceitar que as formas de organiza-
ção anarquista não se pareceriam em nada com um estado. Elas
envolveriam uma infinita variedade de comunidades, associações,
redes, projetos, em toda escala concebível, sobrepondo e conec-
tando de todas as formas que nós conseguimos imaginar, e pos-
sivelmente de várias que não conseguimos. Algumas seriam bem
locais, outras globais. Talvez tudo o que elas teriam em comum
seria que nenhuma envolveria alguém se mostrando com armas e
dizendo para todo o resto se calar, e fazer o que lhe é mandando.
E isso, já que anarquistas não estão na realidade tentando medir
poder no interior de qualquer território nacional, o processo de um
sistema substituindo o outro não tomaria a forma de um repentino
cataclisma revolucionário -- o ataque a uma bastilha, a tomada
de um palácio de inverno -- mas seria necessariamente gradual, a
criação de formas alternativas de organização em escala mundial,
novas formas de comunicação, novas e menos alienadas formas
de organizar a vida, as quais irão eventualmente fazer as formas
de poder existentes parecerem estúpidas e sem sentido. Isso, por
sua vez, implicaria na existência de infinitos exemplos de anar-
quismo viável: praticamente qualquer forma de organização con-
taria, desde que não fosse imposta por uma autoridade superior,
desde uma banda de klezmer a um serviço postal internacional.

Infelizmente, esse tipo de argumento não parece satisfazer


a maioria dos céticos. Eles querem “sociedades”. Então, ficamos
limitados a tirar do registro histórico e etnográfico entidades que
se parecem com um estado-nação (um povo, falando uma língua
comum, vivendo dentro de um território delimitado, adquirindo uma
série comum de princípios de direito...) mas dispensando um apa-
rato estatal (o qual, seguindo Weber, pode-se definir grosseiramen-
te como: um grupo de pessoas que clamam que, ao menos quando

39
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

estão por perto e em sua competência oficial, eles são os únicos


com o direito de agir violentamente). Essas, também, se pode achar
se alguém se dispõe a olhar para comunidades relativamente pe-
quenas e distantes no tempo ou no espaço. Nesse caso, é dito que
elas não contam por apenas essas razões.

Então, estamos de volta ao problema original. Pressupõe-se


que há uma ruptura absoluta entre o mundo em que vivemos e o
mundo habitado por qualquer um que talvez seja caracterizado como
“primitivo”, “tribal”, ou até como “camponês”. Aos antropólogos não
se pode culpar aqui: nós estamos tentando por décadas convencer
o público de que não existe o tal “primitivo”, aquelas “sociedades
simples” não são assim tão simples, que ninguém jamais existiu em
isolação atemporal, que não há sentido nenhum em falar de sistemas
sociais como mais ou menos evoluídos; mas até aqui, nós tivemos
muito pouco avanço. É praticamente impossível convencer um ame-
ricano médio que um grupo de amazonenses poderia ter alguma coi-
sa para ensiná-los -- exceto que nós deveríamos todos abandonar a
civilização moderna e ir morar na Amazônia -- e isso porque pressu-
põe-se que eles vivem em um mundo absolutamente diferente. O que
se deve, de forma um tanto estranha, à maneira pela qual estamos
acostumados a pensar sobre revoluções.

Deixe-me recomeçar o argumento que iniciei a esboçar na últi-


ma seção e tentar explicar porque eu penso que isso é verdade:

Um manifesto razoavelmente breve relativo ao conceito de revolução:

O termo “revolução” foi tão abusado em seu uso corrente que


ele pode significar quase qualquer coisa. Em nossos dias, nós temos
revoluções toda semana: revoluções bancárias, revoluções ciberné-
ticas, revoluções médicas, uma revolução internética toda vez que
alguém inventa algum novo software.

40
David Graeber

Esse tipo de retórica é somente possível porque a definição co-


mum de revolução sempre implicou, em certa medida, uma mudança
de paradigma: um claro rompimento, uma ruptura fundamental na
natureza da realidade social, depois da qual tudo viria a funcionar
de forma diferente, e as categorias prévias não mais se aplicariam.
É isso que torna possível afirmar que o mundo moderno é resultado
de duas “revoluções”: a revolução Francesa e a revolução Industrial,
apesar do fato de que as duas não tiveram praticamente nada em
comum a não ser o fato de marcar o rompimento com tudo o que
existia antes. Um estranho resultado é que, como Ellen Meskins
Wood notou, nós temos o hábito de discutir o que chamamos de
“modernidade” como se ela envolvesse a combinação da economia
laissez-faire inglesa e o governo republicano francês, apesar do fato
de que os dois nunca realmente aconteceram juntos: a revolucão
industrial aconteceu sob uma bizarra, antiquada e ainda largamente
medieval constituição inglesa, e a França do século XIX era qualquer
coisa menos liberal.

(O único apelo da revolução russa para o “mundo desenvolvido”


parece consistir no fato de que ela é o exemplo no qual ambos tipos
de revolução parecem coincidir: a tomada do poder nacional o qual
levou à rapida industrialização. Como resultado, praticamente todo
governo do século XX do sul global, determinado a tentar alcançar as
potências industriais, também reivindicou ser um regime revolucio-
nário).

Se há algum erro lógico subjacente a tudo isso, ele está apoiado


na ideia de que mudanças sociais ou tecnológicas tem a mesma for-
ma que as “estruturas das revoluções científicas”, tal como as definiu
Thomas Kuhn. Kuhn referia-se a eventos como a mudança de um
universo Newtoniano para um Einsteiniano: de repente, há uma gran-
de descoberta intelectual e, em seguida, o universo está diferente.

41
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Aplicado a qualquer outra coisa que não a revoluções científicas, tal


erro sugere que o mundo real é equivalente ao nosso conhecimento
dele e, no momento em que mudam os princípios nos quais estão
baseados nosso conhecimento, a realidade também muda. Esse é
justamente o tipo de erro intelectual que se espera que superemos
no início da infância, dizem os psicólogos desenvolvimentais, porém,
parece que apenas poucos de nós o fazem.

A verdade é que o mundo não tem obrigação de viver de acordo


com nossas expectativas e, na medida em que a “realidade” se refere
a alguma coisa, ela se refere precisamente àquilo que nunca poderá
ser completamente englobado por nossas construções imaginati-
vas. Totalidades, em particular, são sempre criaturas da imaginação.
Nações, sociedades, ideologias, sistemas fechados... nenhum desses
existe realmente. A realidade é sempre infinitamente mais bagunçada
que isso - mesmo se a crença de que eles existem seja uma força
social inegável. O costume de pensar que o mundo, ou a sociedade,
são sistemas totalizantes (nos quais cada elemento só possui sig-
nificado em relação aos outros elementos do sistema) tende a levar
quase inevitavelmente a uma visão de que as revoluções são ruptu-
ras cataclísmicas. Afinal de contas, de que outro jeito seria possível
substituir um sistema totalizante por outro se não por uma ruptura
cataclísmica? A história humana, assim, torna-se uma série de re-
voluções: a revolução neolítica, a industrial, a informacional, etc., e
o sonho político passa a ser o de controlar o processo; chegar ao
ponto em que possamos promover uma tal ruptura, uma descoberta
importante que não somente vai “acontecer”, pois resultará direta-
mente de algum tipo de vontade coletiva. “A revolução” propriamente
dita.

Sendo assim, não é surpreendente que, no momento em que


pensadores radicais sentiram que precisavam abdicar desse sonho,
sua primeira reação foi redobrar os esforços em identificar revolu-

42
David Graeber

ções acontecendo de qualquer forma, até o ponto em que, aos olhos


de alguém como Paul Virilio, a ruptura seja o nosso permanente
modo de ser, ou para alguém como Jean Baudrillard, o mundo muda
completamente a cada dois anos, ou sempre que ele tem uma idéia
nova.
Isso não é um apelo pela completa rejeição de tais totalida-
des imaginárias -- mesmo assumindo que isso fosse possível,
o que provavelmente não é, já que elas são provavelmente uma
necessária ferramenta para o pensamento humano. Esse é um
apelo para sempre se ter em mente que elas são apenas isso: fer-
ramentas de pensamento. Por exemplo, é certamente positivo ser
capaz de questionar “depois da revolução, como organizaremos o
transporte de massas?”, “quem financiará a pesquisa científica?”
ou até “depois da revolução, você acha que ainda existirão revis-
tas de moda?”. As frases são úteis articulações mentais, ainda que
nós reconheçamos que na realidade, a menos que nós estivesse-
mos dispostos a massacrar milhares de pessoas (e provavelmente
mesmo assim), a revolução quase com certeza não será uma clara
e completa ruptura como tal expressão implica.

O que será então? Eu já fiz algumas sugestões. A revolução


em escala mundial levará um longo tempo. Mas é também possível
reconhecer que já está começando a acontecer. A maneira mais fácil
para pararmos de nos iludir é parando de pensar na revolução como
uma coisa -- “a” revolução, a grande ruptura cataclísmica -- e, em
vez disso, perguntar “o que é ação revolucionária?”. Nós podería-
mos, então, sugerir: ação revolucionária é qualquer ação coletiva que
rejeita, e portanto confronta alguma forma de poder ou dominação
e, ao fazer isso, reconstitui relações sociais -- mesmo no interior da
coletividade. Ação revolucionária não necessariamente tem de alme-
jar derrubar governos. Tentativas de criar comunidades autônomas
diante do poder (usando a definição de Castoriadis aqui: aqueles que
constituem a si próprios, coletivamente fazem suas próprias regras

43
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

ou princípios de operação, e continuamente os reexaminam), iriam,


por exemplo, ser por definição ações revolucionárias. E a história nos
mostra que a contínua acumulação de tais ações pode mudar (prati-
camente) tudo.

(fim do manifesto)
Dificilmente fui eu o primeiro a argumentar nesse sentido - al-
gumas de tais visões decorrem quase necessariamente a partir do
momento em que não pensamos mais em termos de estado e da
tomada do poder estatal. O que quero enfatizar aqui é o que isso sig-
nifica para a forma como olhamos para a história.

Um experimento no pensamento, ou, derrubando muros

O que proponho, essencialmente, é nos engajarmos em um


certo experimento de pensamento. E se, tal como um recente título
sugere, “nós jamais fomos modernos”? E se nunca houve nenhuma
ruptura fundamental, e, portanto, nós não estamos vivendo em um
universo moral, social e político fundamentalmente diferente que o
dos Piaroa, Tiv ou Malagasy?

Há milhões de formas distintas de definir “modernidade”. De


acordo com alguns autores, ela principalmente tem a ver com ciência e
tecnologia, enquanto para outros ela é uma questão de individualismo;
para outros, capitalismo, ou racionalidade burocrática, ou alienação,
ou algum ideal de liberdade de tal ou tal tipo. A despeito da definição
adotada, quase todos concordam que, em algum momento do século
dezesseis, dezessete ou dezoito, uma Grande Transformação acon-
teceu; e ela ocorreu na Europa Ocidental e em suas colônias, e, por
causa dela, nos tornamos “modernos”. Tornamo-nos criaturas com-
pletamente diferentes de qualquer coisa que tenha aparecido antes.

Mas... e se nos livrássemos de todo esse aparato? E se derru-

44
David Graeber

bássemos o muro? E se aceitássemos que os povos “descobertos” por


Colombo ou Vasco da Gama em suas expedições eram apenas nós
mesmos? Ou, certamente, tão “nós” como eram Colombo ou Vasco da
Gama?

Não estou dizendo que nada de importante mudou nos últimos


quinhentos anos, nem dizendo que diferenças culturais não são im-
portantes. Em certo sentido, cada um, cada comunidade, cada indi-
víduo que seja, vive em seu único universo. Ao falar em “derrubar os
muros”, quero dizer a maioria deles: derrubar as percepções arro-
gantes e irrefletidas que nos dizem que não temos nada em comum
com 98% dos povos que já viveram, logo não precisamos pensar
nesses povos. Visto que, afinal de contas, se você aceitarmos a su-
posição da ruptura fundamental, a única questão teórica que resta
a ser levantada é uma variação de “o que nos faz tão especial”?
No momento em que nos livrarmos de tal percepção e decidirmos
aceitar a idéia de que não somos tão especiais quanto gostaríamos
de pensar, poderemos também começar a pensar no que realmente
mudou e no que não mudou em nada.

Um exemplo:

Tem ocorrido um debate sobre quais vantagens específicas “o


Ocidente” -- como a Europa Ocidental e suas colônias tem gostado
de chamar a si mesmas -- tinha sobre o resto do mundo que o pos-
sibilitou conquistar tanto nos quatrocentos anos entre 1500 e 1900.
Foi um sistema ecônomico mais eficiente? Uma tradição militar
superior? Teve a ver com o Cristianismo, ou Protestantismo, ou um
espírito de investigação racionalista? Foi simplesmente um questão
de tecnologia? Ou teve a ver com arranjos familiares mais individu-
alistas? Alguma combinação desses fatores? Em grande medida,
a sociologia histórica do Ocidente tem se dedicado a resolver esse
problema. E um sinal de quão arraigados são esses pressupostos

45
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

é que só recentemente os acadêmicos começaram a sugerir que,


talvez, a Europa Ocidental não tivesse nenhuma grande vantagem.
Que a tecnologia, organização estatal, arranjos sócio-econômicos
e o todo o resto em 1450 não eram em nada mais “avançados” do
que aqueles que prevaleciam no Egito, Bengal, Fuji ou em qualquer
outra parte urbanizada do Velho Mundo naquele tempo. Talvez
a Europa estivesse na frente em algumas áreas (e.g. técnicas de
guerra naval, gerência de finanças); mas estava significativamente
atrás em outras (astronomia, jurisprudência, tecnologia agrícola,
técnicas de guerra terrestre). Talvez não houvesse nenhuma van-
tagem misteriosa. Talvez o que aconteceu foi uma coincidência.
A Europa Ocidental acabou por estar localizada na parte do Velho
Mundo onde era mais fácil navegar para o Novo; os primeiros que o
fizeram tiveram a incrível sorte de descobrir terras cheias de enor-
mes riquezas, populadas por indefesos povos da idade da pedra, os
quais morriam convenientemente quase no momento da chegada
deles; o súbito ganho resultante, e a vantagem demográfica de ter
terras com excesso populacional para ser removido, era mais do
que suficiente para explicar os sucessos posteriores das potências
européias. Então, foi possível fechar a (muito mais eficiente) indús-
tria têxtil indiana e criar espaço para uma revolução industrial, e
devastar e dominar amplamente a Ásia a tal ponto que, em termos
tecnológicos - particularmente em tecnologia industrial e militar - a
região ficou para trás.

Vários autores (Blaut, Goody, Pommeranz, Gunder Frank) têm


argumentado nesse sentido nos últimos anos. A raiz do argumento
é moral, um ataque à arrogância Ocidental. Enquanto tal, o argu-
mento é extremamente importante. Seu único problema, em termos
morais, é que ele tende a confundir meios e inclinações. Ou seja,
o argumento está baseado na idéia de que os historiadores Oci-
dentais estavam corretos ao presumir que, o que tornou possível
aos Europeus desapropriar, abduzir, escravizar e exterminar mi-

46
David Graeber

lhões de outros seres humanos, era uma marca de superioridade,


e que, portanto, seria ofensivo aos não-Europeus sugerir que eles
também não o tivessem. Eu acho muito mais ofensivo sugerir que
algum grupo viria a se comportar como os Europeus dos séculos
dezesseis ou dezessete - e.g., despovoando grandes porções dos
Andes e do México central ao forçar milhões a trabalhar até morrer
nas minas, ou sequestrando um pedaço significativo da África para
trabalhar até a morte em plantações de cana de açucar - ao menos
que alguém tenha uma evidência clara para sugerir que eles possu-
íam tendências tão genocidas. Na verdade, existiram muitos exem-
plos de povos em posição de liderar uma tal destruicão em escala
mundial - digamos, a dinastia Ming no século quinze - mas que não
o fizeram, não tanto porque hesitaram, mas porque nunca os pas-
saria pela cabeça agir de tal forma para começo de conversa.

No fim das contas, tudo depende em como se define o ca-


pitalismo. Quase todos os autores acima citados tendem a ver
o capitalismo como mais uma conquista que os Ocidentais, de
forma arrogante, pensam ter inventado sozinhos, e, assim, o
definem (tal como os capitalistas o fazem) em termos de negó-
cios e instrumentos financeiros. Mas aquela vontade de colocar
o lucro acima de qualquer preocupação humana, que levou os
Europeus a despovoar regiões inteiras do globo a fim de colocar
a maior quantidade possível de prata e açucar no mercado, era
uma outra coisa. Parece-me que ela merece um nome próprio.
Por essa razão, é melhor continuar definindo o capitalismo tal
como seus oponentes o fazem, como fundado em uma conexão
entre o trabalho assalariado e o princípio da busca eterna e in-
teressada pelo lucro. Tal definição, por outro lado, torna possível
argumentar que o capitalismo foi uma estranha perversão da ló-
gica normal dos negócios, a qual acabou por tomar conta de um
lugar do mundo - que antes era um pouco bárbaro - e encorajou
seus habitantes a se comportarem de uma maneira que, talvez,

47
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

de outra forma, pudesse ter sido considerada abominável. Mais


uma vez, nada disso tudo quer dizer que temos que concordar
com a premissa de que o capitalismo, uma vez criado, tornou-
-se imediatamente um sistema totalizante e que, a partir desse
momento, tudo que aconteceu somente pode ser compreendido
em relação a ele. Mas sugere um dos eixos pelos quais podemos
começar a pensar no que realmente mudou nos dias de hoje.

Vamos imaginar, portanto, que o Ocidente, quaisquer que


seja a sua definição, não era nada especial e que, além disso, não
houve nenhuma ruptura fundamental na história humana. Nin-
guém pode negar que houve mudanças quantitativas massivas: a
quantidade de energia consumida, a velocidade com que humanos
viajam, o número de livros produzidos e lidos; todos esses nú-
meros tem crescido exponencialmente. Mas vamos imaginar, em
favor da argumentação, que tais mudanças quantitativas, em si
mesmas, não implicam necessariamente em mudanças qualitati-
vas: não estamos vivendo em um tipo de sociedade fundamental-
mente diferente de outras que já existiram, não estamos vivendo
em um tipo de tempo fundamentalmente diferente; a existência de
fábricas e microchips não significa que as possibilidades sociais
e políticas tenham mudado em sua natureza básica; ou, para ser
mais preciso, o Ocidente pode ter introduzido novas possibilida-
des, mas não cancelou nenhuma das velhas.

A primeira coisa que se descobre ao tentar pensar dessa forma


é que é extremamente difícil fazê-lo. É preciso ultrapassar a infin-
dável multidão de armadilhas e truques intelectuais que criam uma
muralha ao redor das sociedades “modernas”. Deixe-me dar apenas
um exemplo. É comum distinguir entre as chamadas “sociedades
baseadas no parentesco” e as sociedades modernas, as quais estão
supostamente baseadas em instituições impessoais como o merca-
do e o estado. As socieades tradicionalmente estudadas pelos an-

48
David Graeber

tropólogos possuem sistemas de parentesco. Estão organizadas em


grupos de descendência - linhagens, clãs, metades, ou ramos - que
traçam a descência a ancestrais comuns, vivem principamente em
territórios ancestrais, são vistas como pessoas de um “tipo” similar -
uma idéia comumente expressada através de idiomas bio-físicos de
carne, sangue, osso ou pele em comum. Frequentemente, sistemas
de parentesco se tornam a base da desigualdade social à medida
que alguns grupos são vistos como mais importantes que outros, tal
como em um sistema de castas, por exemplo; em todos os casos,
o parentesco estabelece os critérios para o sexo, o casamento e a
transmissão de propriedade através das gerações.

O termo “baseadas no parentesco” é frequentemente usado da


mesma maneira que “primitivo” costumava ser; essas são socie-
dades exóticas que, de forma alguma, são como a nossa. (Por isso
que se presume que precisamos de antropólogos para estudá-las;
disciplinas completamente diferentes, como a sociologia e a eco-
nomia, são pensadas como necessárias para estudar sociedades
modernas). Porém, as mesmas pessoas que usam esse argumento
não dão o merecido valor ao fato de que os principais problemas
sociais em nossa própria sociedade “moderna” (ou “pós-moderna”:
para os própositos presentes, é exatamente a mesma coisa) envol-
vem raça, classe e gênero. Em outras palavras, derivam precisa-
mente da natureza de nosso sistema de parentesco.

Afinal de contas, o que significa dizer que a maioria dos ameri-


canos vêem o mundo como dividido em “raças”? Isso significa que
eles acreditam que ele está dividido em grupos que se pressupõe
compartilharem uma descêndencia e uma origem geográfica co-
muns, os quais, por essa razão, são vistos como diferentes “tipos”
de gente, e essa idéia é geralmente expressa por idiomas físicos
de sangue e pele; o sistema resultante regula sexo, casamento e a
herança de propriedade, criando e mantendo desigualdades sociais.

49
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Nós estamos falando sobre algo muito similar a um clássico siste-


ma de clãs, exceto em escala global. Pode-se objetar que há muitos
casamentos interraciais acontecendo, e, mais ainda, sexo interracial,
mas isso é apenas o que poderíamos esperar. Estudos estatísticos
sempre revelam que, até em sociedades “tradicionais” como os Nam-
bikwara ou Arapesh, ao menos 5-10% da juventude esposa alguém
que eles não deveriam. Estatisticamente, os fenômenos têm cerca
da mesma significância. Classe social é um pouco mais complicado,
uma vez que os grupos são menos claramente delimitados. Ainda,
a diferença entre uma classe dominante e um grupo de pessoas de
boa condição econômica é, precisamente, parentesco: a habilidade
de casar o filho apropriadamente, e passar suas vantagens para seus
descendentes. Pessoas se casam atravessando linhas de classe
também, mas raramente isso acontece; e enquanto a maioria dos
americanos acredita estar em um país de considerável mobilidade de
classe, quando requisitados a exemplificar, tudo o que eles geralmen-
te conseguem apresentar são algumas histórias de ascessão econô-
mica. É praticamente impossível achar um exemplo de um americano
que nasceu rico e acabou na ala pobre do estado. Então, o que nós
realmente estamos lidando aí é com o fato, familiar a qualquer um
que tenha estudado história, de que as elites (exceto as poligâmicas)
não são nunca capazes de reproduzir-se demograficamente, e por
isso sempre precisam recrutar novo sangue (e se eles são poligâmi-
cos, logo ele se torna um modo de mobilidade social).

Relações de gênero são, obviamente, o próprio tecido do paren-


tesco.

O que seria preciso para derrubar essas paredes?

Muito, eu diria. Muita gente está comprometida demais em


mantê-las. Isso inclui anarquistas, acidentalmente. Ao menos nos
Estados Unidos, os anarquistas que tomam a antropologia mais se-

50
David Graeber

riamente são os primitivistas, uma pequena mas muito vocal facção


que argumenta que a única forma de colocar a humanidade de volta
nos trilhos é descartar a modernidade inteiramente. Inspirados pelo
ensaio de Marshall Sahlins “A sociedade afluente original”, eles suge-
rem a existência de um tempo em que a alienação e a desigualdade
não existiam, quando todo mundo era caçador-coletor anarquista,
que, portanto, a real libertação só poderia vir com o abandono da ci-
vilização e o retorno ao paleolítico, ou pelo menos ao começo da era
do ferro. Na verdade, nós não sabemos praticamente nada sobre a
vida no paleolitico, além do tipo de coisa que pode ser inferida do es-
tudo de crânios muito antigos (i.e. no paleolítico as pessoas tinham
dentes muito melhores e morriam muito mais frequentemente de
lesões traumáticas na cabeça). Mas o que vemos no registro etno-
gráfico mais recente é uma infindável variedade. Existem sociedades
caçadoras-coletoras com senhores e escravos, existem sociedades
agrárias que são ferozmente igualitárias. Até nos favorecidos lugares
cativos de Clastres na Amazonia, acha-se alguns grupos que podem
justamente ser descritos como anarquistas, como os Piaroa, viven-
do ao lado de outros (digamos os belicosos Sherente) que são tudo
menos anarquistas. E as “sociedades” estão constantemente em
transformação, passando para frente ou para trás na escala daquilo
que pensamos como diferentes estágios evolutivos.

Eu não acho que estamos perdendo muito em admitir que


humanos nunca realmente viveram no jardim do Éden. Derrubar as
paredes pode permitir-nos ver essa história como um recurso de
forma muito mais interessantes. Porque funciona das duas formas.
Não somente nós, em sociedades industriais, ainda temos paren-
tesco (e cosmologias); outras sociedades tem movimentos sociais
e revoluções. O que significa, entre outras coisas, que teóricos radi-
cais não mais tem de meditar interminavelmente acerca dos mes-
mos escassos 200 anos de história revolucionária.

51
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Entre os séculos XVI e XIX, a costa oeste de Madagascar era


dividida em uma série de reinos relacionados sob a dinastia Maroan-
setra. Seus súditos eram conhecidos como Sakalava. No noroeste de
Madagascar existe agora um “grupo étnico” abrigado em uma difícil
e montanhosa região, identificados como os Tsimihety. A palavra
literalmente significa “aqueles que não cortam seu cabelo”. Isso se
refere a um costume Sakalava: quando um rei morria, era esperado
que seus súditos homens cortassem fora seus cabelos em sinal de
luto. Os Tsimihety eram aqueles que se recusavam, e portanto rejei-
tavam a autoridade da monarquia Sakalava; até hoje eles são defi-
nidos por organizações sociais e práticas igualitárias. Eles são, em
outras palavras, os anarquistas do noroeste de Madagascar. Até hoje
eles mantiveram a reputação de mestres da fraude: sob os franceses,
administradores reclamam que eles poderiam mandar delegações
para organizar o trabalho no intuito de construir uma estrada per-
to de uma vila Tsimihety, negociar os termos com aparentemente
cooperativos anciões e retornar com o equipamento uma semana
depois somente para descobrir a vila inteiramente abandonada, cada
habitante havia se mudado com um parente para uma outra parte do
país.

O que especialmente me interessa aqui é o príncipio de “et-


nogenesis”, como é chamado hoje em dia. Os Tsimihety são hoje
considerados um foko - povo ou grupo étnico - mas sua identidade
surgiu com um projeto político. O desejo de viver livre do dominação
Sakalava foi traduzido em um desejo -- que veio para cobrir todas as
instituições sociais desde assembléias da aldeia até rituais mortu-
ários -- de viver em uma sociedade livre de hierarquia. Isso foi insti-
tucionalizado como um modo de vida de uma comunidade vivendo
com conjunto, o que, por sua vez, veio a ser definido como um “tipo”
particular de pessoas, um grupo étnico -- pessoas que também, uma
vez que tendem a casar entre si, são vistas como unidas por uma
ancestralidade comum. É mais fácil observar isso em Madagascar,

52
David Graeber

onde todo mundo praticamente fala a mesma lingua. Mas eu duvido


que isso seja tão incomum. A literatura em etnogenesis é razoavel-
mente nova, mas está se tornando cada vez mais claro que a maior
parte da história humana foi caracterizada por constante mudança
social. Em vez de grupos atemporais vivendo por milhares de anos
em seus territórios ancestrais, novos grupos foram sendo criados, e
os velhos foram se dissolvendo, todo o tempo. Muito do que nós vie-
mos a pensar como tribos, nações ou grupos étnicos foram original-
mente projetos coletivos de algum tipo. No caso dos Tsimihety, nós
estamos falando sobre um projeto revolucionário naquele sentido
que eu desenvolvi aqui: uma consciente rejeição de certas formas de
poder político totalizante, o que também levou as pessoas a reorga-
nizarem e repensarem o modo como lidam uns como os outros no
cotidiano. Algumas são igualitárias, outras são a favor da promoção
de um certo tipo de visão de autoridade ou hierarquia. Ainda, está-se
lidando com um fenômeno segundo as características do que nós
definiríamos como um movimento social; e, é só isso, na ausência
de comícios, manifestos, os meios através dos quais se podia criar e
exigir novas formas de vida social, econômica ou política, para perse-
guir diferentes formas de valor, eram diferentes: era preciso trabalhar
esculpindo carne (literalmente ou figurativamente), através da mú-
sica e do ritual, comida e vestimenta, e modos de dispor os mortos.
Mas, em parte, como um resultado ao longo do tempo, o que eram
então projetos se transformam em identidades. Eles se ossificam
e se encrudesceram em verdades auto-evidentes ou propriedades
coletivas.

Toda uma disciplina poderia, sem dúvida, ser inventada para ex-
plicar precisamente como isso acontece: um processo, somente em
alguns aspectos, análogo à “rotinização do carisma” de Weber, cheio
de estratégias, reversões, desvios de energia... Campos sociais os
quais são, em sua essência, arenas para o reconhecimento de certas
formas de valor podem se tornar fronteiras a serem defendidas; re-

53
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

presentações ou mídias de valor se tornam poderes em si, a criação


desliza em comemoração; os restos ossificados dos movimentos
liberatórios podem acabar, debaixo do controle do estado, transfor-
mados no que chamamos “nacionalismos”, os quais são tanto mo-
bilizados para reunir apoio à maquinaria estatal, como se tornam a
base para novos movimentos sociais opostos a eles.

O elemento crítico aqui, me parece, é que essa petrificação não


somente se aplica aos projetos sociais. Ela pode também ocorrer
aos próprios estados. Esse é um fenômeno que os teóricos das lutas
sociais raramente levaram em consideração.
Quando a administração colonial francesa se estabeleceu
em Madagascar, ela começou a dividir a população em uma série
de “tribos”: Merina, Betsileo, Bara, Sakalava, Vezo, Tsimihety, etc.
Como existem poucas distinções claras de linguagem, é mais
fácil aqui do que na maioria dos lugares discernir os princípios
pelos quais essas divisões surgiram. Algumas são políticas. Os
Sakalava são notáveis sujeitos da dinastia Maroantsetra (a qual
criou pelo menos três reinos ao longo da costa). Os Tsimihe-
ty são aqueles que recusaram submissão. Aqueles chamados
“Merina” são os povos das terras altas originalmente unidos pela
submissão a um rei chamado Andrianampoinimerina; sujeitos de
outros reinos altiplanos para o sul os quais os Merina conquis-
taram quase imediatamente são referidos coletivamente como
Betsileo. Alguns nomes têm a ver com o lugar onde as pessoas
vivem, ou como ganham a vida: os Tanala são o “povo da flo-
resta” na costa leste; na costa oeste, os Milkea são caçados e
coletores, e os Vezo pescadores. Mas até aqui existem elemen-
tos políticos: os Vezo viveram ao lado da monarquia Sakalava,
mas, como os Tsimihety, conseguiram manter-se independentes
deles porque, como diz a lenda, sempre que eles se informavam
que representantes reais estavam a caminho para visitá-los, eles
todos entravam em suas canoas e esperavam no alto mar até

54
David Graeber

eles fossem embora. Aquelas vilas pescadoras que sucumbiram


tornaram-se Sakalava, não Vezo.

Os Merina, Sakalva e Betsileo são de longe os mais nume-


rosos. Portanto, a maioria dos Malagasianos são definidos, não
exatamente por suas lealdades políticas, mas através das lealda-
des que seus ancestrais tinham em torno de 1775 e 1800. O inte-
ressante é o que aconteceu depois com essas identidades, uma
vez que os reis não mais estavam por perto. Aqui os Merina e os
Betsileo parecem representar duas possibilidades opostas.

Muitos desses antigos reinos eram um pouco mais do que


sistemas de extorsão institucionalizados; a forma que as pessoas
comuns participavam das políticas reais se dava através do traba-
lho ritual: construir palácios reais e tumbas, por exemplo, no qual a
cada clã era geralmente atribuído um papel honorífico muito es-
pecífico. No interior do reino Merina, esse sistema acabou sendo
completamente deturpado, pois quando os franceses chegaram, ele
já estava quase inteiramente descreditado, e o papel real se tornou,
como eu mencionei, identificado como escravidão e trabalho força-
do; como resultado, os “Merina” agora existem, sobretudo, no papel.
Não se ouve ninguém na zona rural referir-se desse modo, exceto
talvez em ensaios que eles têm de escrever na escola. Os Sakalava
tem outra história. Sakalava é ainda uma identidade viva na costa
oeste, e continua a significar os seguidores da dinastia Maroantse-
tra. Mas, nos últimos 150 anos ou mais, as lealdades primárias da
maioria dos Sakalava têm sido para os membros dessa dinastia que
estão mortos. Enquanto a realeza existente é amplamente ignorada,
as tumbas dos reis antigos são ainda continuamente reconstruidas
e redecoradas em vastos projetos comunais, e isso é o que signi-
fica ser Sakalava. Os reis mortos ainda fazem seus desejos serem
conhecidos - através de mediuns espíritas os quais geralmente são
mulheres de idade e de descendencia plebéia.

55
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Em muitas outras partes de Madagascar, parece que muitas


vezes ninguém realmente exerce sua completa autoridade antes
de morrer. Logo, o caso Sakalava não é tão extraordinário. Mas ele
revela um modo muito comum de evitar os efeitos diretos do poder:
se não se pode simplesmente sair de seu caminho, como os Vezo ou
os Tsimihety, pode-se, por assim dizer, tentar fossilizá-lo. No caso
Sakalava, a ossificação do estado é bem literal: os reis que são ainda
adorados tomam a forma física de reliquias reais, eles são literal-
mente dentes e ossos. Mas esta abordagem é provavelmente muito
mais lugar comum do que nós suspeitaríamos.

Kajsia Eckholm, por exemplo, fez recentemente a intrigante su-


gestão de que o tipo de realeza divina que Sir James Frazer descreveu
em O ramo de ouro no qual reis eram resguardados com infinito ritual e
tabu (não tocar a terra, não ver o sol...) não era, como nós normalmente
assumimos, uma forma arcaica de realeza, mas, na maioria dos casos,
uma muito recente. Ela dá o exemplo da mornarquia do Congo, a qual,
quando os portugueses apareceram pela primeira vez no final do sé-
culo XV, não parecia ter sido mais ritualizada do que as monarquias em
Portugal e Espanha no mesmo período. Existia uma certa quantidade de
cerimônias da corte, mas nada que entrasse no caminho da governan-
ça. Foi somente depois, quando o reinado colapsou com a guerra civil
e se despedaçou em pequenos fragmentos que seus comandantes se
tornaram seres sagrados. Ritos elaborados foram criados, restrições
multiplicadas, até ao final nós lemos sobre reis que eram confinados em
pequenas construções ou literalmente castrados ao ascender ao trono.
Como resultado, eles governavam muito pouco, a maioria de BaCongo
passou, de fato, para um amplo sistema de autogoverno, embora muito
tumultuado, preso na penúria do tráfico negreiro.

Eis aqui algo relevante para as preocupações contemporâ-


neas? Muito mesmo, me parece. Pensadores autônomos na Itália
desenvolveram, ao longo das duas últimas décadas, uma teoria do

56
David Graeber

que eles chamam “êxodo” revolucionário. Ela é inspirada em parte


por condições particulares da Itália – a extensa recusa do trabalho
fabril entre pessoas jovens, o florescimento de squats e “centros
sociais” ocupados em várias cidades italianas... Mas em tudo isso
a Itália parece ter agido como um tipo de laboratório para os mo-
vimentos sociais futuros, antecipando tendências que agora estão
começando a ocorrer em escala global.

A teoria do êxodo propõe que o mais efetivo modo de se opor ao


capitalismo e ao estado liberal não é através da confrontação direta,
mas por meios dos quais Paolo Virno chamou de “retirada engajada”,
deserção em massa por aqueles que desejam criar novas formas de
comunidade. É necessário apenas resvalar no registro histórico para
confirmar que a maioria das formas bem sucedidas de resistência
popular tomou exatamente essa forma. Elas não envolveram desafiar o
poder de frente (isso geralmente leva a ser abatido ou se não a se tor-
nar – geralmente até mais tenebrosa – variante da mesma coisa que
se desafiou primeiramente), mas a partir de uma ou outra estratégia de
fugir de seu controle, de fuga, deserção, a fundação de novas comuni-
dades. Um historiador autonomista, Yann Moulier Boutang, até mesmo
argumentou que a história do capitalismo foi uma série de tentativas de
resolver o problema da mobilidade do trabalhador - por isso a infinita
elaboração de instituições como contrato, escravidão, sistemas coolie,
trabalhadores contratados, trabalhadores convidados, inumeráveis for-
mas de controle das margens – uma vez que, se o sistema alguma vez
chegou realmente perto de sua própria versão fantasiosa de si mesmo,
na qual trabalhadores eram livres para empregar-se e despedir-se onde
e quando quisessem, o sistema inteiro iria colapsar. É precisamente
por essa razão que a demanda mais consistente impulsionada pelos
movimentos radicais no movimento de globalização – dos autonomis-
tas italianos aos anarquistas norte-americanos – sempre foi liberdade
global de movimentação, “globalização real”, a destruição das fronteiras,
um movimento geral para derrubar as paredes.

57
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

O tipo de destruição das paredes conceituais que estou propon-


do aqui torna possível para nós não somente confirmar a importân-
cia da deserção, ele promete uma infinitamente mais rica concepção
de como formas alternativas de ação revolucionária podem funcio-
nar. Essa é uma história que ainda está largamente para ser escrita.
Peter Lamborn Wilson produziu a mais brilhante delas em uma série
de ensaios que incluem reflexões sobre, entre outras coisas, o co-
lapso das culturas Hopewell e Mississipianas através da maior parte
do leste da América do Norte. Essas eram sociedades aparentemen-
te dominadas por elites sacerdotais, estruturas sociais baseadas
no sistema de castas e sacrifício humano -- que misteriosamente
desapareceu, sendo substituído por sociedades caçador-coletoras
e horticulturais muito mais igualitárias. Ele sugere, curiosamente,
que a famosa identificação com a natureza dos nativos americanos
pode não ter realmente sido uma reação aos valores europeus, mas
a uma possibilidade dialética dentro de suas próprias sociedades da
qual eles absolutamente fugiram conscientemente. A história con-
tinua através da deserção dos colonos de Jamestown, um grupo de
servos em sua primeira colônia norte-americana abandonados por
seus patronos cavalheiros que aparentemente acabaram se tornando
índios, para infinitas séries de “utopias piratas” nas quais renega-
dos britânicos se uniram a corsários mulçumanos, ou se juntaram a
comunidades nativas de Hispaniola à Madagascar, repúblicas “trira-
ciais” escondidas e fundadas por escravos fugidos nas margens dos
assentamentos europeus, antinomianos, e outros poucos conhecidos
enclaves libertários que crivaram o continente até mesmo antes dos
agitadores, Fourieristas e todas as mais conhecidas “comunidades
intencionais” do século XIX.

A maioria dessas poucas utopias eram até mais marginais que


os Vezo ou os Tsimihety em Madagascar; todas elas foram eventu-
almente vencidas. O que nos leva a questão de como neutralizar o

58
David Graeber

próprio aparato do estado na ausência de políticas de confrontação


direta. Sem dúvida, alguns estados e elites corporativas serão der-
rotados por seu próprio peso morto; alguns já o foram; mas é dificil
imaginar um cenário no qual todos irão. Aqui, os Sakalava e BaCongo
podem ser capazes de fornecer-nos algumas sugestões úteis. O que
não pode ser destruído pode, não obstante, ser desviado, congelado,
transformado e gradualmente privado de sua substância - a qual no
caso do Estado é, em última instância, sua capacidade de inspirar
terror. O que isso significa diante das condições atuais? Não está
inteiramente claro. Talvez os aparatos do estado existentes serão
gradualmente reduzidos a fachada, enquanto a substância é retirada
deles por cima e por baixo: por exemplo, tanto através do cresci-
mento de instituições internacionais, como da restituição de formas
locais e regionais de auto-administração. Talvez o governo pela
mídia espetacular recairá no espetáculo puro e simples (um pouco
na linha do que Paul Lafargue, genro de Marx e autor de “O direito à
Preguiça”, sugeriu que depois da revolução os políticos ainda seriam
capazes de cumprir uma função social útil na indústria do entreteni-
mento). Mais provável isso acontecer em modos que não podemos
antecipar. Mas sem dúvida há modos em que isso já está acontecen-
do. Enquanto estados neoliberais seguem em direção a novas formas
de feudalismo, concentrando suas armas em torno de condominios
fechados, espaços insurrecionais que nós nem sequer sabemos são
inaugurados. Os fazendeiros de arroz de Merina descritos na última
seção entendem o que muitos pretensos revolucionários não enten-
dem: existem horas em que a coisa mais estúpida que se poderia
fazer é levantar uma bandeira vermelha e preta, e emitir declarações
provocadoras. Algumas vezes a coisa mais sensata a fazer é fin-
gir que nada mudou, permitir que representantes oficiais do estado
mantenham sua dignidade, e até mesmo aparecer em seus escritó-
rios para preencher formulários de vez em quando; e, em todos os
outros casos, simplesmente ignorá-los.

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Premissas de uma
ciência inexistente
Permitam-me delinear algumas áreas teóricas que uma antro-
pologia anarquista pode vir a desejar explorar:

1. Uma Teoria do Estado

Os Estados têm um caráter dual peculiar. Eles são, ao mesmo


tempo, formas institucionalizadas de pilhagem (ou extorsão) e pro-
jetos utópicos. A primeira característica certamente reflete a forma
como os estados são experienciados de fato por quaisquer comuni-
dades que retenham um certo grau de autonomia. A segunda, entre-
tanto, é como tendem a aparecer nos registros escritos.

Em certo sentido, estados são “totalidades imaginárias” por


excelência, e muito da confusão trazida pelas teorias do estado reside
historicamente em uma inaptidão ou relutância em reconhecer este
fato. Em grande medida, os estados foram ideias formuladas com a
intensão de imaginar ordens sociais como algo que se pudesse con-
trolar -- modelos de controle. É por isso que os primeiros escritos co-
nhecidos a respeito da teoria social, quer sejam da Pérsia, da China ou
da Grécia Antiga, foram sempre enquadrados como teorias da cons-
tituição do estado. Isso tem resultado em duas consequências de-
sastrosas. Uma delas é a de dar ao “utopianismo” uma má reputação,
pois a palavra “utopia” traz à mente, em primeiro lugar, a imagem de
uma cidade ideal, geralmente, com uma geometria perfeita - a imagem
parece remeter originalmente ao campo militar: um espaço geométrico
que é a emanação completa de um desejo individual único, a fantasia

60
David Graeber

do controle total. Tudo isso teve consequências políticas perversas. A


segunda consequencia é a de que tendemos a pressupor uma ampla
correspondência entre as idéias de estado, ordem social e até mesmo
sociedade. Em outras palavras, temos uma certa tendência a levar a
sério as mais grandiosas e até paranoicas alegações dos comandan-
tes do mundo, pressupondo que, pelo menos ligeiramente, qualquer
que seja o projeto cosmológico que eles defendam, corresponde, de
fato, a algo que possui fundamento na realidade. Ainda que seja pro-
vável que em muitos destes casos estas afirmações sejam apenas
ordinariamente aplicadas plenamente no raio de poucos metros do
monarca em qualquer direção, e a maioria dos sujeitos estejam muito
mais propensos a verem as elites dominantes -- no dia-a-dia -- como
algo na mesma linha dos saqueadores predadores.

Uma adequada teoria do Estado teria, portanto, de começar


pela distinção, em cada caso, entre o ideal de comando (o qual
pode ser quase tudo, uma necessidade de reforçar a disciplina de
estilo militar, a habilidade de fornecer uma representação perfeita-
mente teatral da vida, o que irá inspirar aos outros, a necessidade
de prover bens com bondade humana infinita para resistir ao apo-
calipse...) e a mecânica da regra, sem pressupor que há neces-
sariamente muita correspondência entre elas. (Há de existir, mas
ela deve ser empiricamente estabelecida). Por exemplo: muito da
mitologia “ocidental” remete à descrição de Herotodo das guerras
de época entre o Império Persa, baseado em um ideal de obedi-
ência e poder absoluto, e as cidades gregas de Atenas e Esparta,
baseadas nos ideais de autonomia cívica, liberdade e equidade.
Não quer dizer que esses ideais - especialmente suas vívidas re-
presentações em poetas como Ésquilo e historiadores como He-
ródoto - não sejam importantes. Não seria possível compreender
a história ocidental sem eles. Mas sua grande importância cegou
profundamente os historiadores para o que está se tornando pro-
gressivamente uma realidade clara: a despeito de seus ideais, o

61
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

império Persa foi bastante brando no que diz respeito ao controle


da vida de seus súditos, particularmente em comparação com o
grau de controle exercido pelos atenienses sobre seus escravos,
ou Espartanos sobre a grande maioria da população laconiana,
que era zelote. Quaisquer que fossem os ideais, a realidade para a
maioria das pessoas envolvidas era percebida de forma contrária.

Uma das descobertas surpreendentes da antropologia evolu-


cionista foi a de que é perfeitamente possível ter reis, nobres e todo o
suporte exterior da monarquia sem ter um Estado no sentido mecâ-
nico. Deve-se pensar que este fato pode ser de algum interesse para
todos os filósofos políticos que gastam tanta tinta argumentando
acerca das teorias da “soberania” - uma vez que elas sugerem que o
soberano não era a cabeça do estado e que seu termo técnico favo-
rito, na verdade, foi construído a partir de um ideal quase impossível,
no qual o poder real gerencia a tradução de suas pretensões cosmo-
lógicas para um controle burocrático genuíno de população territo-
rial. (Algo nestes moldes começou a acontecer na Europa Ocidental
nos séculos XVI e XVII, mas, logo após o ocorrido, o poder pessoal
do soberano foi substituído por uma pessoa fictícia chamada “povo”
, permitindo a dominação completa da burocracia. Pelo que sei os
filósofos políticos continuam a não ter nada a dizer sobre o assunto.
Eu suspeito que isto se dá, em grande parte, devido a uma escolha
extremamente pobre de termos. Os antropólogos evolucionistas
fazem referência à reinos que não possuem burocracias coercitivas
desenvolvidas como cacicatos, um termo que evoca mais as ima-
gens de Jerônimo ou do Búfalo Sentado que Salomão,1 Luís, o Piedo-

1Salomão é um personagem da Bíblia (mencionado, sobretudo, no Livro dos Reis),


filho de Davi com Bate-Seba, que teria se tornado o terceiro rei de Israel, governando
durante cerca de quarenta anos, segundo algumas cronologias bíblicas, de 1009 a
922 a.C.(N. do T.)

62
David Graeber

so2 ou o Imperador Amarelo3. E é claro que o quadro de referências


evolucionistas garante que estas estruturas sejam vistas como algo
que imediatamente precede a emergência do estado, não como uma
forma alternativa, ou até mesmo algo que estado pode vir a ser. Es-
clarecer tudo isso seria um projeto histórico maior.

2. Uma teoria sobre entidades políticas que não são Estados

Eis um dos projetos: reanalisar o estado como uma relação


entre um imaginário utópico, e uma realidade confusa que envol-
ve estratégias de ataque e evasão, elites predatórias e mecânicas
de regulação e controle. Tudo isso destaca a necessidade de outro
projeto: um projeto que questionará “se muitas entidades políticas
que nós estamos acostumados a definir como estados, pelo menos
no sentido weberiano, não o são, então o que elas são?” E o que isto
implica em termos de possibilidades políticas?

Em certo sentido, é incrível que tal literatura teórica ainda não exista.
É, ainda, um outro sinal, penso eu, de quão difícil é para nós pensarmos
para além do quadro de referências estadistas. Um excelente exemplo:
uma das demandas mais consistentes dos ativistas anti-globalização
tem sido a eliminação das restrições nas fronteiras. Se vamos globalizar,
nós afirmamos, vamos levar isso a sério. Vamos eliminar as fronteiras
nacionais. Deixem as pessoas irem e virem como desejarem e viverem
onde quiserem. A demanda é formulada em torno da noção de cidada-
2 Luís I o Piedoso (778 – 840), também conhecido como Louis o Belo ou Louis
o Debonaire, ou ainda, em língua alemã, Ludwig der Fromme e em latim, Ludovico
Pio), foi o segundo filho de Carlos Magno, imperador e rei dos francos de 814 a
840.(N. do T.)
3 Huang Di, conhecido no ocidente como o Imperador Amarelo. É um dos Cin-
co Imperadores, reis lendários tidos como sábios e moralmente perfeitos que
teriam governado a China após o período de milênios regido pelos também len-
dários Três Soberanos. O Imperador Amarelo teria reinado de 2698 AC a 2599
AC. É considerado o ancestral de todos os chineses da etnia Han.(N. do T.)

63
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

nia global. Mas isso inspira objeções imediatas: não seria a demanda
por “cidadania global” uma demanda por um tipo de estado global? Nós
realmente desejamos isto? Logo, a questão torna-se a de teorizarmos
uma cidadania fora do estado. Isto é geralmente tratado como um dilema
profundo, talvez insolúvel, mas se considerarmos o assunto historica-
mente, é difícil de entender porque o deveria ser. Noções modernas oci-
dentais de cidadania e liberdade política geralmente parecem derivar de
duas tradições, uma originária da antiga Atenas, e a outra primeiramente
proveniente da Inglaterra medieval (onde há uma tendencia de ser remon-
tada à asserção do privilégio aristocrático contra a Coroa na Carta Magna,
Petição de Direito; e, então, a extensão gradual destes mesmos direitos
para o restante da população. Na verdade, não há consenso entre os
historiadores se a Atenas clássica ou a Inglaterra Medieval foram esta-
dos - e, sobretudo, em função dos direitos dos cidadãos na primeira e dos
privilégios aristocráticos na segunda que estavam bem estabelecidos. É
difícil pensar em Atenas como um estado, com monopólio da força pelo
aparelho do estado, se se considera que o mínimo aparato governamental
que existia consistia inteiramente de escravos, cuja posse coletiva era dos
cidadãos. A força policial de Atenas consistia em arqueiros importados do
lugar onde agora é a Rússia ou a Ucrânia. E algo de seu status legal pode
ser compreendido a partir do fato de que, pela lei ateniense, a testemunha
de um escravo não era admitida como evidência no tribunal, a menos que
fosse obtida através de tortura.

Então, como chamamos tais entidades? “Cacicatos”? Pode-se


descrever o Rei John4 como um “chefe” no sentido técnico, evolucio-
nário do termo, mas aplicar o termo à Péricles5 parece absurdo. Tam-
4 João I, também conhecido por João Sem Terra (Lackland em inglês) (1166 -
1216) foi Rei de Inglaterra, Duque da Normandia e Duque da Aquitânia de 1199
a 1216. Quinto filho de Henrique II, não herdou nenhuma terra quando da morte
de seu pai, fato que lhe deu o seu cognome.(N. do T.)
5 Péricles (495/492 a.C. - 429 a.C.) foi um estrategista e político grego, um dos
principais líderes democráticos de Atenas e a maior personalidade política do
século V a.C. Sua presença foi tão marcante que o período compreendido entre o

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David Graeber

pouco podemos continuar a chamar Atenas de “cidade-estado” se ela


não foi de forma alguma um estado. Parece que nós simplesmente
não temos as ferramentas intelectuais para falar sobre estas coisas.
O mesmo se aplica para a tipologia dos tipos de estado, ou entidades
que se assemelham a estados em tempos recentes: um historiador
chamado Spruynt sugeriu que nos séculos XVI e XVII o estado-nação
dificilmente foi o único colocado em jogo. Existiam outras possibili-
dades - cidades-estado italianas, que eram, de fato, estados, os cen-
tros mercantis confederados da Liga Hanseática6 Eu tenho sugerido
que uma das razões pelas quais o estado-nação territorial acabou
vencendo foi porque, neste estágio inicial de globalização, as elites
ocidentais tentaram modelar a si próprias com base na China, o único
estado existente no período que, de fato, parecia se conformar com o
seu ideal de uma população uniforme, que, nos termos de Confúcio,
eram a fonte da soberania, criadores da literatura vernacular, sujeitos
a um código uniforme de leis, administrado por burocratas escolhidos
por mérito, treinados na literatura vernacular... Com a crise atual do
estado-nação e o rápido crescimento de instituições nacionais que
não são exatamente estados, mas em muitos sentidos igualmente
repulsivo, justapostos contra as tentativas de criação de instituições
internacionais que fazem muitas das mesmas coisas que os estados,
mas seriam consideravelmente menos repulsivas, a falta de tal corpo
de teoria está se tornando uma verdadeira crise.

final das Guerras Médicas (448 a.C.) e sua morte (429 a.C.) é chamado o Século
de Péricles.(N. do T.)
6 A Liga Hanseática foi uma aliança de cidades mercantis que estabeleceu e
manteve um monopólio comercial sobre quase todo norte da Europa e Báltico,
em fins da Idade Média e começo da Idade Moderna (entre os séculos XIII e
XVII). De início com caráter essencialmente econômico, desdobrou-se poste-
riormente numa aliança política. as quais envolviam uma concepção completa-
mente distinta de soberania) as quais não vingaram - pelo menos, não imedia-
tamente - mas eram não menos intrinsecamente viáveis.(N. do T.)

65
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

3. Mais uma teoria do capitalismo

Alguém poderia relutar em sugerir, mas o impulso sem fim de


naturalizar o capitalismo ao reduzi-lo a uma questão de cálculo
comercial, o qual, por conseguinte, permite declarar que ele é tão
velho quanto a Suméria, circula amplamente por aí. Precisamos,
pelo menos, de uma teoria adequada da história do trabalho assa-
lariado e das relações de trabalho. Uma vez que, afinal de contas, é
na realização do trabalho assalariado -- e não na relação de com-
pra e venda -- que a maioria dos humanos gasta o seu tempo acor-
dado e é isso que os torna miseráveis. (Logo, a IWW não afirma que
eles são anti-capitalistas, ainda que eles sejam o bastante, ele vão
direto ao ponto e dizem-se “contra o sistema de assalariamento”).
Os primeiros contratos de trabalho assalariado que temos registro
parecem ser, de fato, o aluguel de escravos. Que tal um modelo de
capitalismo que se constituiu a partir disso? Quando antropólogos
como Jonathan Friedman argumentam que a escravidão foi somen-
te uma versão antiga do capitalismo, podemos com facilidade - na
verdade, muito facilmente - argumentar que o capitalismo moderno
é realmente apenas uma nova versão da escravidão. Ao invés de
termos pessoas nos vendendo ou alugando, nós mesmos nos alu-
gamos. Trata-se. pois, basicamente do mesmo tipo de arranjo.

4. Poder/Ignorância ou Poder/Estupidez

Acadêmicos amam o argumento de Michel Foucault que iden-


tifica a relação saber/poder e insistem que a força bruta já não é
um fator importante no controle social. Eles amam isso porque
trata-se de uma bajulação: a fórmula perfeita para pessoas que
gostam de pensar em si mesmas como radicais políticos, embora
tudo que façam seja escrever ensaios suscetíveis de serem lidos
por uma dúzia de outras pessoas em um ambiente institucional. É
claro, se algum desses acadêmicos fosse caminhar nas bibliotecas

66
David Graeber

de suas universidades para consultar algum volume de Foucault


sem ter lembrado de levar uma cateira de identificação válida, e
decidisse entrar de qualquer maneira, logo descobriria que a força
bruta não está assim tão distante quanto gostaria de imaginar - um
homem com um grande porrete, treinado exatamente para bater
forte nas pessoas, rapidamente apareceria para expulsá-lo.

Na verdade, a ameaça do homem com o porrete permeia nos-


so mundo a cada momento; a maioria de nós têm desistido de
sequer pensar em atravessar as linhas e as inúmeras barreiras que
ele cria, para só assim não ter de lembrar de sua existência. Se você
ver uma mulher com fome e de pé, alguns metros de distância de
uma pilha enorme de alimentos -- um evento diário para a maioria
daqueles vivem nas grandes cidades -- existe uma razão que im-
pede você de poder simplesmente pegar algo e dar a ela. Um ho-
mem com um grande porrete virá e possivelmente baterá em você.
Anarquistas, em contraste, gostam de nos lembrar da existência
dele. Moradores da comunidade de Christiania na Dinamarca, por
exemplo, tem um ritual natalino no qual eles se vestem com roupas
de papai Noel, pegam os brinquedos das lojas de departamento e
distribuem-os às crianças na rua, em parte, apenas para que todos
possam ser atraídos pelas imagens da polícia batendo no Papai
Noel e arrancando os brinquedos das crianças chorando.

Tal ênfase teórica abre caminho para uma teoria da relação


de poder não com o saber, mas com a ignorância e estupidez.
Porque a violência, especialmente a violência estrutural, na qual
todo o poder está de um lado, cria ignorância. Se você tem o po-
der de bater na cabeça das pessoas sempre que quiser, não tem
de se incomodar muito em descobrir o que as pessoas pensam
que está havendo, e portanto, de maneira geral, você não se im-
porta. Daí, a maneira de comum simplificar os arranjos sociais,
ignorar o jogo incrivelmente complexo de perspectivas, paixões,

67
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

ideias, desejos e entendimentos mútuos de que a vida humana


realmente é feita; criar uma regra e ameaçar atacar qualquer um
que a quebre. É por isso que a violência tem sido sempre o re-
curso favorável à estupidez: é uma forma de estupidez na qual
é quase impossível de se chegar a uma resposta inteligente. É
também, é claro, a base do Estado. Ao contrário da crença po-
pular, os burocratas não criam estupidez. São formas de gerir
situações que já são intrinsecamente estúpidas, porque são, em
última instância, baseadas na arbitrariedade da força.

Em última instância, isto deve levar a uma teoria da relação


entre violência e imaginação. Por que as pessoas da base (as vítimas
da violência estrutural) sempre estão imaginando como devem se
parecer para as pessoas no topo (os beneficiários da violência estru-
tural), mas quase nunca ocorre às pessoas do topo espantarem-se
de como poderiam se parecer se fossem da base? Os seres huma-
nos, sendo as criaturas compreensivas que são, tendem a tornar isso
um dos bastiões principais de qualquer sistema de desigualdade --
os humilhados, na verdade, preocupam-se com os seus opressores,
pelo menos muito mais que seus opressores se preocupam com eles
-- mas isso parece ser um efeito da violência estrutural.

5. Uma Ecologia de Associações Voluntárias

Quais os tipos existentes? Em que ambientes elas prosperam?


De onde vem a noção bizarra de “corporação” mesmo?

6. Uma Teoria da Felicidade Política

Ao invés de uma teoria do porquê as pessoas hoje em dia nunca


experimentam a felicidade política. Essa seria fácil.

68
David Graeber

7. Hierarquia

Um teoria de como estruturas hierárquicas, por sua própria lógi-


ca, necessariamente criam sua própria contra-imagem ou negação.
Elas o fazem, você sabe.

8. Sofrimento e Prazer: Sobre a Privatização do Desejo

É um saber comum entre anarquistas, autonomistas, situa-


cionistas, e outros novos revolucionários que a velha geração de
revolucionários amargurados, determinados e auto-flageladores
que vêem o mundo somente em termos de sofrimento, irá apenas
produzir mais sofrimento. Certamente, isso é o que tendia a acon-
tecer no passado. Portanto a ênfase no prazer, no carnaval, em
criar “zonas autônomas temporárias” onde alguém poderia viver
como se já estivesse livre. O ideal do “festival da resistência” com
sua música maluca e bonecos gigantes é, de forma bem cons-
ciente, retornar ao mundo medieval tardio de tecituras de gigantes
e dragões, festas do mastros7 e dança morris8; o mesmo mundo
que os pioneiros puritanos do “espírito capitalista” odiavam tanto
e, em última instância, se mobilizaram para destruir. A história do
capitalismo move-se dos ataques à consumação coletiva e fes-
tiva à promoção de formas pessoais, privadas e mesmo furtivas
(depois de tudo, uma vez que tenha a todas essas pessoas dedi-

7 A festa do Mastro ou festa do levantamento do Mastro é uma cerimônia


em que um grupo de pessoas levantam um tronco de árvore e dançam ao seu
redor, por vezes segurando fitas que se enrolam nele. É uma tradição ancestral,
de origem pagã, originalmente celebrada no mês de maio em diversos países
da Europa. Na atualidade, é também dançada nas Américas. (N. do T.).
8 A dança Morris (Morris Dance em inglês) é uma dança ancestral de povos
que habitavam as ilhas onde hoje fica o Reino Unido. Geralmente acompanha-
da por música e antes parte de procissões e ocasiões festivas, a dança morris
era executada sobretudo no mês de maio. Se baseia na rítmica e na intensifica-
ção da execução coreográfica de um grupo de dançarinos.(N. do T.)

69
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

cando todo seu tempo a produzir coisas ao invés de festejar, eles


precisam arranjar um modo de vender tudo isso); um processo
de privatização do desejo. A questão teórica: como conciliar tudo
isso com a visão teórica perturbadora de pessoas como Slavoj Zi-
zek: se se deseja inspirar ódio étnico, a forma mais fácil de fazê-lo
é concentrar nas formas bizarras e perversas pelas quais o outro
grupo busca prazer. Se se pretende enfatizar aspectos comuns, a
maneira mais fácil é a de apontar que eles também sentem dor.

9. Uma ou Várias Teorias da Alienação

Este é o prêmio máximo: quais são as possíveis dimensões


da experiência não-alienada? De que forma suas modalidades
poderiam ser catalogadas ou consideradas? Qualquer antropolo-
gia anarquista de valor teria que dedicar atenção especial a essa
questão, porque é precisamente acerca disso que todos os punks,
hippies e ativistas de todas as matizes buscam quando voltam
sua atenção para a antropologia. Os antropólogos têm tanto medo
de serem acusados de romantizar as sociedades que estudam que
eles se recusam até mesmo a sugerir que possa existir uma res-
posta, deixando-os sem escolha senão a de caírem nos braços de
verdadeiros romantizadores. Primitivistas como John Zerzan que,
na tentativa de remover aquilo que parece nos separar da experi-
ência não-mediada pura, termina por excluir absolutamente tudo.
O crescimento na popularidade da obra de Zerzan acaba por con-
denar a própria existência da linguagem, matemática, marcação
do tempo, música e toda forma de arte e representação. Elas são
todas prescritas como formas de alienação, deixando-nos com um
tipo de ideal evolucionário impossível: o único ser humano ver-
dadeiramente não-alienado não era nem mesmo humano, estava
mais para um tipo de macaco perfeito, em algum tipo de conexão
telepática atualmente inimaginável com seus semelhantes, de na-
tureza selvagem, vivendo talvez por centenas de milhares de anos

70
David Graeber

no passado. Verdadeira revolução poderia apenas significar de al-


guma forma retornar a isso. Como é que os aficionados por desse
tipo de ação e discussão ainda conseguem exercer ação política
eficaz (porque, pela minha experiência, muitos deles fazem um
trabalho verdadeiramente notável) é por si só uma questão socio-
lógica fascinante. Certamente, uma análise alternativa da aliena-
ção poderia ser muito útil. Poderíamos começar com um tipo de
sociologia das micro-utopias, a contraparte de uma tipologia das
formas de alienação, formas alienadas e não alienadas de ação...
No momento em que pararmos de insistir em enxergar todas as
formas de ação apenas por suas funções em reproduzir formas de
desigualdade de poder maiores ou totais, seremos também capa-
zes de perceber que as relações sociais anarquistas e as formas
não-alienadas de ação estão por toda parte. E isso é fundamental
porque também nos mostra o que o anarquismo é -- no presente
-- e tem sido, uma das principais bases da interação humana. Nós
nos auto-organizamos e nos engajamos na ajuda mútua o tem-
po todo. Nós sempre o fizemos. Nós também nos engajamos em
criatividade artística, o que, penso eu, se examinado revelaria que
muito do que resta em termos de formas alienadas de experiência
geralmente envolve um elemento que o Marxismo chamaria de
fetichização. Entretanto, é mais premente o desenvolvimento de
tal teoria se aceitarmos que (como tenho argumentado com frequ-
ência) uma constituição revolucionária sempre envolve uma tácita
aliança entre os menos alienados e os mais oprimidos.

71
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Algumas idéias sobre


rumos de Pensamento e
Organização
Pergunta: Quantos eleitores é preciso para se mudar uma lâmpada?
Resposta: Nenhum. Porque eleitores não mudam nada.

Obviamente, não há um único programa anarquista - e nem pode-


ria realmente haver - no entanto, talvez seja útil acabar dando ao leitor
algumas idéias sobre os atuais rumos de pensamento e organização.1

Globalização e a Eliminação das Desigualdades entre o Norte e o Sul

Como eu havia mencionado, o “movimento anti-globalização” é


cada vez mais anarquista em sua inspiração. A longo prazo, a posi-
ção anarquista sobre a globalização é óbvia: a supressão dos esta-
dos-nação implica na eliminação das fronteiras nacionais. Esta é a
verdadeira globalização. Todo o resto é apenas um logro. Mas, nes-
se ínterim, existem todos os tipos de sugestões concretas sobre a
forma como a situação pode ser melhorada no presente, sem cair em
abordagens estatistas e protecionistas. Um exemplo:

Certa vez durante os protestos que antecederam o Fórum Eco-


nômico Mundial, houve uma espécie de festa (e networking) de mag-
natas, propagandistas corporativos e políticos partilhando cocktails
no Waldorf Astoria que fingiam discutir maneiras de aliviar a pobreza
1 O título deste capítulo foi criado a partir deste curto texto de apresentação
para englobar os conteúdos de um capítulo que no livro original em inglês não
possui título.(N. do T.)

72
David Graeber

global. Eu fui convidado a participar de um debate de rádio com um


dos seus representantes. Aconteceu de a tarefa passar para outro
ativista, mas eu tive tempo suficiente para preparar um programa de
três pontos que, eu penso, teria dado conta do problema:

• Perdão imediato da dívida internacional (Um anistia da dívida pes-


soal pode não ser uma idéia ruim, mas é uma questão diferente.)
• O cancelamento imediato de todas as patentes e outros direitos
de propriedade intelectual relacionados com a tecnologia de
mais de um ano de idade
• A eliminação de todas as restrições sobre a liberdade global
de viagem ou de residência

O resto teria muito bem cuidado de si mesmo. No momento em


que o residente médio da Tanzânia, ou Laos, já não for proibido de se
mudar para Minneapolis ou Roterdã, os governos de cada país rico e
poderoso do mundo certamente não decidiriam nada mais importan-
te a fazer do que encontrar uma maneira de ter certeza que as pes-
soas na Tanzânia e Laos prefeririam ficar lá. Você realmente acredita
que eles não encontrariam uma solução?

O ponto é que apesar da retória sem fim sobre “complexidade,


sutileza, questões intratáveis” (justificando décadas de caras pes-
quisas realizadas pelos ricos e seus lacaios bem pagos), o progra-
ma anarquista provavelmente teria resolvido a maior parte delas em
cinco ou seis anos. Mas, você vai dizer, essas demandas são com-
pletamente irrealistas! É verdade. Mas por que elas são irrealistas?
Sobretudo porque esses caras ricos se reunindo em Waldorf nunca
iriam posicionar-se favoravelmente. É por isso mesmo que dizemos
que eles são o problema.

73
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

A Luta contra o Trabalho

A luta contra o trabalho sempre foi central para a organização


anarquista. Com isso quero dizer, não a luta por melhores condições
de trabalho ou salários mais altos, mas a luta para eliminar o trabalho
como uma relação de dominação, inteiramente. Daí o slogan da IWW
(Industrial Workers of the World) “contra o sistema salarial”. Este é um
objetivo de longo prazo, é claro. No curto prazo, o que não pode ser
eliminado, pelo menos pode ser reduzido. Por volta da virada do século,
os Wobblies e outros anarquistas desempenharam o papel central na
conquista dos trabalhadores da semana de 5 dias de 8 horas/diárias.

Na Europa Ocidental, governos social democratas estão agora,


pela primeira vez em quase um século, mais uma vez reduzindo a jorna-
da de trabalho. Eles estão instituindo mudanças pouco significativas (de
uma jornada de 40 horas para uma de 35), e nos EUA ninguém sequer
está discutindo essa possibilidade. Ao invés disso, eles estão discutindo
a eliminação dos benefícios seja por hora extra, seja por compensação
de 1.5 horas para cada hora trabalhada. Tudo isto sem levar em con-
sideração que os americanos trabalham mais horas do que qualquer
outra população do mundo, incluindo o Japão. Então, os Wobblies
reapareceram com o que parecia ser o próximo passo em seu programa,
mesmo o da década de 20: a jornada de trabalho de 16 horas por sema-
na (“quatro dias da semana, quatro horas de trabalho por dia”). Apare-
mentemente, esta demanda parece completamente fora da realidade,
até mesmo insana. Agora, alguém já fez um estudo sobre as condições
de possibilidade de tal demanda? Uma vez que já foi repetidamente
demonstrado que uma parcela considerável das horas trabalhadas nos
EUA são apenas necessárias, na verdade, para compensar pelos proble-
mas criados pelo fato de que os Americanos trabalham demais. (Leve
em consideração os seguintes trabalhos: entregador de pizza 24 horas,
lavador de cachorro, ou mulheres que mantém creches noturnas para
crianças de mulheres/homens executivos... sem mencionar as horas

74
David Graeber

incontáveis que são gastas por especialistas para tentar resolver danos
emocionais e físicos causados por excesso de trabalho, acidentes no
trabalho, problemas de saúde, suicídios, divórcios, assasinatos, produ-
ção de drogas para pacificar crianças...).

Logo, quais são os trabalhos realmente necessários?

Bom, para começar, existem muitas formas de trabalho cujo


desaparecimento, quase todo mundo concordaria, seria de gran-
de valia para a humanidade. Consideremos aqui o telemarketing,
construção de pick-ups e furgões alargados, e os advogados de
corporações. Nós poderíamos também eliminar todas as indus-
trias de relações públicas e propaganda, demitir todos os políticos
e seus empregados, eliminar o cargo de qualquer pessoa remota-
mente envolvida com agências de seguro, sem sequer começar a se
aproximar de funções sociais essenciais. A eliminação da indústria
da propaganda também reduziria a produção, transporte, e venda
de produtos desnecessários, uma vez que aqueles produtos que
as pessoas realmente precisam ou desejam, as pessoas vão tentar
obter informações a respeito. A eliminação de desigualdades ra-
dicais também significaria a eliminação de serviços de milhões de
pessoas empregadas como porteiro, segurança privada, guardas de
prisão, ou times da SWAT - sem contar os militares. Para além dis-
so, nós teríamos de fazer pesquisa. Financiadores, seguradores e
banqueiros são essencialmente seres parasitários, mas pode existir
algumas funções úteis neste setor que não podem simplesmente
serem substituidas por software. Com o tempo, nós poderíamos
vir a descobrir que, se nós identificarmos o trabalho que seria real-
mente necessário para manter uma vida confortável e ecologica-
mente sustentável, e redistribuir as horas de trabalho, pode ser que
a plataforma Wobbly seja perfeitamente realista. Especialmente se
nós levarmos em consideração que ninguém seria forçado a fazer
trabalho extra, se assim o desejar. Muitas pessoas gostam do que

75
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

fazem, certamente mais do que ficar sem fazer nada durante o dia
todo (é por isso que, quando se deseja punir prisoneiros, eles lhes
tiram o direito de trabalhar), e se se elimina a falta de dignidade e
os jogos sadomasoquistas que são consequencia de toda a orga-
nização hierárquica, poder-se-ia se esperar que ninguem teria de
trabalhar mais do que se deseja.

NOTA RÁPIDA: Presumivelmente, tudo isso pressupõe a com-


pleta reorganização do trabalho, um cenário pós-revolução, o qual, eu
tenho argumentado, é uma ferramenta necessária para começarmos
a pensar sobre as possibilidades humanas, mesmo se a revolução
não nunca assumir a forma apocalíptica. Esta discussão traz obvia-
mente a tona a questão “Quem vai fazer o trabalho sujo?” - questão
que é sempre direcionada aos anarquistas ou outros utópicos. Peter
Kropotkin demonstrou há muito tempo a falácia deste argumento.
Não existe razão para que trabalhos sujos existam. Se dividirmos as
tarefas desagradáveis igualmente, isto significaria que todos os cien-
tistas e engenheiros mais renomados teriam de faze-las também;
poder-se-ia prever a criação de cozinhas auto-limpantes e robôs
para mineração de carvão quase que imediatamente.

Tudo isto, no entanto, é uma questão paralela, já que o que eu


realmente quero fazer nesta seção final é focar na:

DEMOCRACIA

Isso talvez dê ao leitor a chance de perceber como organiza-


ções anarquistas, e as inspiradas pelo anarquismo, são realmente
- alguns dos contornos do novo mundo sendo agora construídos
com base no velho - e de mostrar em que a perspectiva historico-
-etnográfica que tentei desenvolver aqui, nossa ciência inexistente,
pode estar apta a contribuir.

76
David Graeber

O primeiro ciclo da nova insurreição global - o que a imprensa


ainda insiste em referir-se, de modo crescente e de forma ridícula, como
“o movimento anti-globalização” - começou com os municípios autô-
nomos de Chiapas e veio à tona com as asambleas barreales de Buenos
Aires e em cidades por toda a Argentina. Praticamente não há espaço
aqui para contar a história toda: começando com a rejeição Zapatista da
idéia de tomar o poder e, ao invés disso, sua tentativa de criar um mode-
lo de auto-organização democrática para inspirar o resto do México; sua
organização de uma rede internacional (Ação Global dos Povos, ou AGP)
a qual disseminou os chamados para os dias de ação contra a OMC (em
Seattle), FMI (em Washington, Praga...) e assim em diante; e finalmen-
te, o colapso da economia argentina, e a esmagadora revolta popular
a qual, novamente, rejeitou a própria ideia de que é possível achar uma
solução substituindo um conjunto de políticos por outro. O slogan do
movimento argentino era, desde o início, que se vayan todos. Ao invés
de um novo governo, eles criaram uma vasta rede de instituições al-
ternativas, começando por assembléias populares para governar cada
vizinhança (a única limitação era a de que não se podia estar emprega-
do por um partido político para participar), centenas de fábricas ocupa-
das e geridas pelos trabalhadores, um sistema complexo de troca e um
sistema de moeda novo para mantê-los em operação - em resumo, uma
infinita variação no tema da democracia direta.

Tudo isso aconteceu completamente sob o radar da mídia


corporativa, a qual também não entendeu a razão das grandes mo-
bilizações. A organização dessas ações era para ser uma ilustração
viva de como poderia ser um verdadeiro mundo democrático, de
fantoches festivos à organização cuidadosa de grupos de afinidade
e conselhos participativos, todos operando sem uma estrutura de
liderança, orientados sempre por princípios de democracia direta
baseada em consenso. Era o tipo de organização que a maioria das
pessoas teria, uma que elas tivessem ouvido a proposta, amortizada
como uma quimera; mas funcionou e de forma tão eficiente que os

77
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

departamentos da polícia da cidade ficaram completamente perple-


xos em como lidar com elas. Claro, isso também tinha algo a ver com
as novas táticas empregadas (centenas de ativistas em roupas de
fada fazendo cócegas na polícia com espanadores ou envoltos em
tantas câmaras de ar e coxins de borracha que pareciam rolar como
o homem da Michelin sobre as barricadas, incapazes de machucar
ninguém mas também bastante impermeáveis aos bastões da polí-
cia...) as quais confundiram completamente as categorias tradicio-
nais de violência e não-violência.

Quando protestantes em Seattle entoaram “esta é a cara da


democracia”, eles queriam ser interpretados literalmente. Na melhor
tradição da ação direta, eles não apenas confrontaram uma certa
forma de poder expondo seus mecanismos e tentando pará-lo nos
seus trilhos: eles o fizeram de tal modo que demonstrava porque os
tipos de relações sociais em que tal poder está baseado são desne-
cessárias. É por esse motivo que os comentários condescendentes
sobre o movimento ser dominado por um bando de crianças estúpi-
das sem nenhuma ideologia coerente errou o alvo completamente.
A diversidade era uma função da forma descentralizada da organi-
zação, e essa organização era a ideologia do movimento.

O termo-chave do novo movimento é “processo”, pelo que ele


significa, processo de tomada de decisão. Na América do Norte, isso
já é quase invariavelmente feito através de algum processo de busca
por consenso. Isso é muito menos sufocante ideologicamente do que
talvez pareceria, porque o pressuposto por trás de todo bom proces-
so de consenso é ninguém deveria nem ao menos tentar converter
os outros completamente ao seu ponto de vista; o ponto do processo
de consenso é permitir que um grupo decida sobre um curso comum
de ação. Ao invés de votar propostas sim e não, então, propostas são
trabalhadas e retrabalhadas, talhadas ou reinventadas, até que al-
guém encontre algo que todo mundo possa aceitar. Quando se chega

78
David Graeber

ao estágio final, “chegar ao consenso” de fato, existem dois níveis de


objeção possíveis: pode-se “ficar de fora”, o que significa dizer “Eu
não gosto disso e não vou participar, mas não impediria ninguém de
fazê-lo, ou “bloquear”, que tem o efeito de um veto. Pode-se somente
bloquear se alguém sente que a proposta viola os principios funda-
mentais ou razões de ser de um grupo. Pode-se dizer que a função
que na constituição estadounidense está relegada aos tribunais, de
derrubar as decisões legislativas que violam os principios consti-
tucionais, é relegada a qualquer um com coragem de confrontar a
vontade combinada do grupo (embora obviamente existam também
formas de desafiar bloqueios sem fundamento).

Poderia-se falar por muito tempo sobre os métodos elaborados


e surpreendentemente sofisticados que foram desenvolvidos para
garantir todos esses trabalhos; de formas de consenso modificado
requeridos para grupos muito extensos; da forma que o consenso em
si reforça o princípio da descentralização por assegurar que ninguém
queira realmente submeter propostas a grupos muito extensos ao
menos que se precise, de maneiras de garantir equidade de gênero e
resolução de conflitos... O ponto é que essa é uma forma de demo-
cracia direta que é bem diferente do tipo que nós geralmente asso-
ciamos com o termo - ou, para esse caso, pelo tipo geralmente em-
pregado por anarquistas europeus e norte americanos de gerações
anteriores, ou ainda, empregada, digamos, nas asambleas urbanas
argentinas. Na América do Norte, o processo de consenso emergiu
mais do que qualquer outro através do movimento feminista como
parte da extensa repercussão contra alguns dos mais desagradáveis,
auto-engrandecidos estilos de liderança machista da nova esquerda
dos anos 60. Grande parte dos procedimentos foi adotada original-
mente dos Quakers, ou grupos inspirados nos Quakers, estes, por
sua vez, clamam ter sido inspirados pela prática nativa americana.
Quanto do segundo é realmente verdadeiro, é difícil de determinar em
termos históricos. Entretanto, a tomada de decisão nativa americana

79
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

funcionava por uma forma de consenso. Na verdade, assim fazem


as mais populares assembléias ao redor do mundo, das Tzeltal ou
Tzotzil ou comunidades falantes do Tojolobal em Chiapas às Mal-
gaxes fokon’olona. Após haver vivido em Madagascar por dois anos,
eu fiquei assustado a primeira vez que comecei a comparecer aos
encontros da Rede de Ação Direta em Nova Iorque, por quão familiar
tudo parecia - a principal diferença era que o processo da RAD era
muito mais formalizado e explícito. Tinha de ser, já que todo mundo
na RAD estava acabando de descobrir como tomar decisões dessa
forma, e tudo tinha de ser enunciado, ao passo que em Madagascar,
todo mundo fazia isso desde que aprenderam a falar.

De fato, como antropólogos estão cientes, quase todas as comu-


nidades humanas conhecidas que tiveram de vir a tomar decisões de
grupo empregaram alguma variação do que estou chamando de “pro-
cesso de consenso” - ou seja, todo mundo que não faz parte de um jeito
ou de outro da tradição da Grécia Antiga. A democracia majoritária, no
sentido formal, no sentido das Regras de Ordem de Roberto raramente
emerge de seu próprio acordo. É curioso que quase ninguém, incluindo
os antropólogos, parece nunca se perguntar porque isso ocorre.

Uma hipótese

Democracia majoritária era, em sua origem, essencialmente


uma instituição militar.

Claro, é o peculiar viés da historiografia ocidental de que esse


é o único tipo de democracia que se leva em conta como democra-
cia absolutamente. É-nos dito geralmente que a democracia origi-
nou-se na Grécia antiga - como a ciência ou a filosofia foram in-
venções gregas. Não está nunca inteiramente claro o que isso quer
dizer. Devemos acreditar que antes dos atenienses nunca realmente
ocorreu a ninguém, em nenhum lugar, de reunir todos os membros

80
David Graeber

da comunidade no intuito de tomar decisões conjuntas em um


modo que desse a todos oportunidade de se pronunciar? Isso seria
ridículo. Claramente, existiram várias sociedades igualitárias na
história - muitas muito mais igualitárias que Atenas, muitas de-
vem ter existido antes de 500 a.C. - e obviamente, elas deveriam ter
algum tipo de procedimento para chegar a decisões em matérias de
importância coletiva. Ainda, de algum modo, é sempre suposto que
esses procedimentos, quaisquer que eles tenham sido, não pode-
riam ter sido, propriamente falando, “democráticos”.

Até os estudiosos com variadas, impecáveis credenciais radicais,


promotores da democracia direta, viram-se em contradição ao tentar jus-
tificar essa atitude. Comunidades igualitárias não-ocidentais são “base-
adas em parentesco”, argumenta Murray Bookchin. (E a Grécia não o foi?
Claro que a ágora ateniense não era em si baseada em parentesco, mas
tampouco é a fokon’olona malgaxe ou a seka balinesa. Mas e daí?) “Alguns
talvez falem de democracia iroquois ou bérbere” argumentou Cornelius
Castoriadis, “mas isso é um abuso do termo. Há sociedades primitivas que
assumem que a ordem social é entregue para elas por deuses ou espíritos
não auto-constituída pelas próprias pessoas como em Atenas.” (Verda-
de? De fato “A Liga dos Iroquois” foi uma organização de acordos, vista
como uma concordância popular criada em tempos históricos e sujeita a
constante renegociação.) Os argumentos nunca fazem sentido. Mas eles
realmente não tem que fazer sentido, porque nós não estamos somente
lidando com argumentos aqui, senão com respostas irrelevantes e triviais.

A razão real para a indisposição da maioria dos estudiosos em ver


um conselho de aldeia Sulawezi ou Tallensi como “democrático” - bem,
fora o simples racismo, a relutância em admitir com relativa impunidade
que os abatidos pelos ocidentais estavam consideravelmente no mes-
mo nível que Pericles - é que eles não votam. Agora, admitidamente,
esse é um fato interessante. Por que não? Se nós aceitarmos a idéia
que uma mostra de mãos, ou ter todos os que apoiam uma proposi-

81
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

ção postos de pé em um lado da praça e todos aqueles que são contra


postos de pé no outro, não são, de fato, idéias incrivelmente sofisticadas
da sorte que não ocorreriam a ninguém até que algum gênio antigo as
“inventasse”; então por que elas são tão raramente empregadas? No-
vamente, nós parecemos ter um exemplo de explícita rejeição. Mais e
mais, pelo mundo, da Australia a Sibéria, comunidades igualitárias pre-
feriram alguma variação no processo de consenso. Por que?

A explicação que eu proporia é a seguinte: é muito mais fácil em


comunidades face a face advinhar o que a maioria dos membros dessa
comunidade quer fazer, e adivinhar como convencer aqueles que não o
querem a colaborar. A tomada de decisão consensual é típica de socie-
dades em que não haveria modo de compelir uma minoria a concordar
com uma decisão da maioria - seja porque não há um estado com o
monopólio da força coercitiva, ou porque o estado não tem nada a ver
com a tomada de decisão local. Se não existe modo de compelir aqueles
que acham a decisão da maioria desagradável de acompanhar, a última
coisa que se desejaria fazer é realizar uma votação: um disputa pública
na qual alguém será visto perder. Votar seria a forma mais provável de
garantir humilhações, ressentimentos, antipatias, e, no final, a destruição
das comunidades. O que é visto como um elaborado e difícil processo
de busca por consenso é, de fato, um longo processo para certificar que
ninguém vá embora sentindo que sua posição foi totalmente ignorada.

Democracia majoritária, diríamos, pode somente emergir quan-


do dois fatores coincidem:

1. sentimento de que as pessoas deveriam ter igualdade de opi-


nião em tomar decisões de grupo e
2. um aparato coercitivo capaz de executar tais decisões.

Na maior parte da história humana, foi extremamente incomum ter


os dois ao mesmo tempo. Onde sociedades igualitárias existem, é tam-

82
David Graeber

bém geralmente considerado errado impor coerção sistemática. Onde a


maquinaria da coerção existia, nem ao menos ocorria àqueles governan-
do-a que eles estavam executando qualquer tipo de vontade popular.

É de relevância óbvia que a Grécia Antiga era uma das sociedades


mais competitivas conhecidas na história. Era uma sociedade que ten-
dia a tornar tudo uma disputa pública, do atletismo à filosofia ou drama
trágico, ou praticamente qualquer outra coisa. Então talvez não pareça
inteiramente surpreendente que eles fizessem da tomada de decisão
política uma disputa pública também. Ainda mais crucial contudo era
o fato de que decisões eram tomadas por uma população em armas.
Aristóteles em a Política observa que a constituição de uma cidade-
-estado grega normalmente dependia do braço do seu chefe militar: se
este for da cavalaria, será uma aristocracia, pois cavalos são caros. Se
infantaria hoplita, será uma oligarquia já que nem todos podiam pagar
a armadura e a formação. Se o poder fosse baseado na marinha ou na
infantaria leve, poderia-se esperar uma democracia, já que qualquer um
pode remar ou usar um estilingue. Em outras palavras, se um homem
está armado, então deve-se levar sua opinião em conta. É possível ver
como isso funcionava mais fortemente em Anabasis de Xenofonte, que
conta a história de um exército de mercenários gregos que de repente se
veêm sem um líder e perdidos no meio da Pérsia. Eles elegem novos ofi-
ciais e, então, fazem uma votação sobre o que fazer em seguida. Em um
caso como esse, mesmo se a votação estivesse 60/40, todos poderiam
ver o equilibrio das forças e o que aconteceria se as coisas realmente se
tornassem complicadas. Todo voto era, em sentido real, uma disputa.

Legiões romanas poderiam ser similarmente democráticas;


essa é a razão principal pela qual elas não eram autorizadas a entrar
na cidade de Roma. E quando Maquiavel reanimou a noção de uma
república democrática no alvorecer da era “moderna”, ele imediata-
mente a reverteu para a noção do povo em armas.

83
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Isso, por sua vez, talvez ajude explicar o próprio termo “demo-
cracia”, o qual parece ter sido cunhado como uma espécie de estigma
por seus oponentes elitistas: ele literalmente significa a “força” ou até
a “violência” do povo. Kratos não archos. Os elitistas que cunharam
o termo sempre consideraram democracia como não muito longe do
motim ou da chefia de máfia, embora sua solução obviamente era a
permanente conquista de um povo por outro. E ironicamente, quando
eles conseguiam suprimir a democracia por essa razão, o resultado
era que a única maneira da vontade do povo ser conhecida era preci-
samente através de motins, uma prática que se tornou bastante insti-
tucionalizada na Roma imperial e na Inglaterra do século XVIII.

E isso é para não dizer que democracias diretas - como as pratica-


das nas cidades medievais ou nos encontros urbanos da Nova Inglaterra
- não eram procedimentos regulares e dignificados, embora suspeita-se
que aqui também, na prática real, existia uma certa busca de consenso
ocorrendo nas bases. Ainda, foi esse tom militar que permitiu aos autores
dos Ensaios Federalistas, como quase todos os outros homens letrados
de sua época, de dar como garantido o que eles chamavam de “democra-
cia” - pela qual eles queriam dizer democracia direta - era em sua natu-
reza a mais instável, tumultuosa forma de governo, para não mencionar
uma que põe em perigo os direitos das minorias (sendo a minoria espe-
cífica que eles tinham em mente os ricos). Foi somente quando o termo
“democracia” pode ser quase completamente transformado para incorpo-
rar os princípios da representação - um termo o qual ele próprio tem uma
história muito curiosa, pois, como nota Cornelius Castoriadis, ele original-
mente referia-se a representantes do povo perante o rei, embaixadores
internos de fato, em vez daqueles que manejavam poder em qualquer
sentido eles próprios - que ele foi reabilitado nos olhos dos privilegiados
teóricos políticos, assumindo o significado que tem hoje.

Em certo sentido, os anarquistas pensam que todos aqueles


teóricos políticos direitistas os quais insistem que “A América não é

84
David Graeber

uma democracia, é uma república” estão bastante corretos. A dife-


rença é que os anarquistas vêem nisso um problema. Eles pensam
que deveria ser uma democracia. Apesar de um número crescente vir
a aceitar que a crítica tradicional elitista à democracia direta majori-
tária não é inteiramente sem fundamento.

Eu apontei anteriormente que todas as ordens sociais estão em


um certo sentido em guerra com elas próprias. Aquelas indispostas
a estabelecer um aparato de violência para forçar necessariamente a
tomada de decisões tem de desenvolver um aparato para criar e manter
o consenso (ao menos naquele sentido mínimo de garantir que os des-
contentes possam ainda sentir que eles escolheram livremente proce-
der com decisões ruins); como um resultado aparente, a guerra interna
acaba projetada para fora em infinitas batalhas noturnas e formas de
violência espectral. A democracia direta majoritária está constantemen-
te ameaçando tornar essas linhas de força explícitas. Por essa razão,
ela tende a ser bastante instável: ou mais precisamente, se ela durar
é porque suas formas institucionais (a cidade medieval, os conselhos
urbanos da Nova Inglaterra, a este respeito pesquisas Gallup, referen-
dos...) são quase invariavelmente colocadas dentro de um quadro maior
de controle no qual as elites dominantes usam essa mesma instabi-
lidade para justificar seu monopólio final dos dipositivos de violência.
Finalmente, a ameaça dessa instabilidade se torna uma desculpa para
uma forma de “democracia” que se trata de nada mais que insistir que
as elites dominantes deveriam ocasionalmente consultar seu “públi-
co” - em debates cuidadosamente encenados, repletos de combates e
torneios, sem sentido preferencialmente - para reestabelcer seu direito
de prosseguir tomando decisões que os beneficiam.

É uma armadilha. Hesitando entre um e outro garante que per-


manecerá extremamente improvável que se possa imaginar que seria
possível às pessoas conduzirem suas próprias vidas, sem a ajuda de
“representantes”. É por essa razão que um novo movimento global

85
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

começou por reinventar o próprio significado da democracia. Fazê-lo


em última instância significa, novamente, chegar a termos com o fato
de que “nós” - seja como “o Ocidente” (o que quer que isso signifi-
que), como o “mundo moderno” ou qualquer outra coisa - não somos
assim tão especiais quanto gostaríamos de pensar que somos; que
não somos os únicos a ter praticado democracia, que, de fato, ao
invés de disseminar democracia ao redor do mundo, governos “oci-
dentais” estiveram a gastar muito tempo colocando-se na vida de
pessoas que praticaram democracia por milhares de anos e, de um
modo ou de outro, dizendo-lhes para abandonar suas práticas.

Uma das coisas mais encorajadoras a respeito desses novos


movimentos inspirados no anarquismo é que eles propõem uma nova
forma de internacionalismo. Mais velho, o internacionalismo comu-
nista tinha alguns ideais muito belos, mas em termos organizacionais,
basicamente falhou. Tornou-se uma forma para os regimes fora da
Europa e suas colônias de povoamento aprenderem estilos de orga-
nização ocidentais: estruturas de partido, plenários, expurgos, hie-
rarquias burocráticas, polícia secreta... Em nosso tempo - a segunda
onda de internacionalismo que poderiamos chamar de globalização
anarquista - o movimento de formas organizacionais em grande parte
foi para o outro lado. Não é somente processo de consenso: a idéia
de ação direta não violenta de massa primeiramente se desenvolveu
na África do Sul e Índia, o modelo corrente de rede foi primeiramente
proposto por rebeldes em Chiapas; até a noção de grupo de afinidade
saiu da Espanha e da América Latina. Os frutos da etnografia - e as
técnicas de etnografia - poderiam ser enormemente úteis aqui se os
antropólogos pudessem superar sua - embora instável - hesitação,
devido a sua própria, muitas vezes terrível, história colonial, e vir a per-
ceber aquilo em que estão assentados não como um segredo (o qual
é, sobretudo, o seu segredo de culpa e o de mais ninguém) mas como
uma propriedade comum da espécie humana.

86
David Graeber

Antropologia (na qual o autor


um pouco relutantemente
morde a mão que o alimenta)
A questão final - a qual eu admitidamente procurei evitar até
agora - é a de por que antropólogos não o fizeram até agora? Eu já
descrevi porque eu acho que os acadêmicos em geral raramente sen-
tiram muita afinidade com o anarquismo. Eu falei um pouco a respei-
to das inclinações radicais em muito da antropologia do começo do
século XX, a qual geralmente mostrou uma afinidade muito forte com
o anarquismo, mas isso pareceu ter desaparecido amplamente com
o tempo. É tudo um pouco estranho. Antropólogos são afinal o único
grupo de estudiosos que conhecem alguma coisa a respeito de exis-
tentes sociedades sem estado de fato; muitas na realidade viveram
em esquinas do mundo onde estados tinha cessado sua função, ou,
ao menos, temporariamente retiraram suas estacas e foram embora,
e pessoas estão administrando seus próprios assuntos de forma au-
tônoma; eles estão conscientes de que a maior parte das suposições
triviais sobre o que aconteceria na ausência do estado (“mas as pes-
soas não iriam simplesmente se matar?”) são factualmente falsas.

Por quê, então?

Bem, existem várias razões. Algumas são compreensíveis o


suficiente. Se o anarquismo é essencialmente uma ética da prática,
então meditar sobre a prática antropológica tende a encadear muitas
coisas desagradáveis. Particularmente se alguém concentra-se na
experiência antropológica do trabalho de campo - o que antropólo-
gos invariavelmente tendem a fazer quando eles se tornam reflexi-
vos. A disciplina que conhecemos hoje se tornou possível por terrí-

87
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

veis esquemas de conquista, colonização e assassinato em massa


- muito como a maior parte das disciplinas acadêmicas modernas,
na realidade, incluindo a geografia e a botânica, sem mencionar
aquelas como a matemática, linguística, robótica, as quais ainda
o são; mas os antropólogos, já que seu trabalho tende a envolver
o conhecimento das vítimas pessoalmente, acabaram agonizando
em cima disso de modo que os proponentes das outras disciplinas
quase nunca o fizeram. O resultado foi estranhamente paradoxal: as
reflexões antropológicas acerca de sua própria culpabilidade tiveram
principalmente o efeito de prover os não-antropólogos, os quais não
querem ser incomodados em ter de aprender 90% da experiência hu-
mana com convenientes duas ou três frases de efeito (vocês sabem:
nada como projetar o sentido de alteridade nos colonizados) através
das quais eles podem se sentir moralmente superiores.

Para os próprios antropólogos, os resultados foram estranha-


mente paradoxais também. Uma vez que os antropólogos estão efe-
tivamente sentados num vasto arquivo de experiência humana, de
experimentos políticos e sociais que ninguém mais realmente conhece
a respeito, aquele mesmo campo da etnografia comparada é visto
como algo vergonhoso. Como eu mencionei, ele é tratado não como
uma herança comum da humanidade, mas como nosso segredinho
sujo. O que é, na realidade, conveniente, ao menos enquanto o poder
acadêmico estiver baseado no estabelecimento de direitos de proprie-
dade acerca de um certo tipo de conhecimento, de forma a garantir
que outros não tenham muito acesso. Porque, como eu já mencionei,
nosso segredinho sujo é ainda nosso. Não é algo que se precise com-
partilhar com os outros.

Existe mais a acrescentar entretanto. De diversas formas, a antropo-


logia parece uma disciplina aterrorizada com seu próprio potencial. É, por
exemplo, a única disciplina em posição de fazer generalizações a cerca
da espécie humana como um todo - já que é a única disciplina que leva

88
David Graeber

toda a humanidade em conta e é familiar com todos os casos anômalos.


(“Todas as sociedades praticam o casamento, você diz? Bem, isso depen-
de em como você define casamento, entre os Nayar...”) Porém, ela resolu-
tamente recusa-se a fazê-lo. Eu não penso que isso é para ser levado em
conta apenas como uma reação compreensível a propensão direitista de
fazer grandes argumentos sobre a natureza humana para justificar mui-
to particulares, e geralmente, particularmente torpes instituições sociais
(estupro, guerra, capitalismo de livre mercado) - embora certamente isso
seja uma grande parte disso. Parcialmente, trata-se apenas da vastidão
do assunto em questão. Quem realmente tem os meios para discutir, di-
gamos, concepções de desejo, ou imaginação, ou ego, ou soberania, para
considerar tudo o que pensadores chineses, indianos, islâmicos tinham
a dizer sobre o assunto além do cânone ocidental, sem falar nas concep-
ções folclóricas dominantes em centenas de sociedades da Oceania ou
nativo-americanas? É simplesmente muito difícil. Como resultado, antro-
pólogos não produzem absolutamente mais muitas generalizações teóri-
cas abrangentes - em vez disso, viram o trabalho para filósofos europeus
que geralmente não tem absolutamente nenhum problema em discutir
desejo, ou a imaginação, ou o ego, ou soberania, como se tais conceitos
tivessem sido inventados por Platão ou Aristóteles, desenvolvidos por
Kant ou Sade, e nunca significativamente discutidos por qualquer pessoa
fora das tradições da elite literária da Europa ocidental ou da América do
Norte. Onde certa vez os termos teóricos-chave da antropologia eram
palavras como mana, totem, ou tabu, as novas palavras da moda são
invariavelmente derivadas do latim ou grego, geralmente via o francês,
ocasionalmente o alemão.

Ainda que a antropologia talvez pareça perfeitamente posicionada a


prover um fórum intelectual para todos os tipos de conversações planetá-
rias, políticas ou variadas, existe uma certa relutância interna em fazê-lo.

Portanto, exite uma questão de política. A maior parte dos antropó-


logos escreve como se seu trabalho tivesse um sentido político eviden-

89
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

te, em um tom o qual sugere que eles consideram o que estão fazendo
bastante radical e certamente à esquerda do centro. Mas no que essas
políticas consistem efetivamente? É cada vez mais difícil de dizer. Antro-
pólogos tendem a ser anti-capitalistas? Certamente é difícil pensar em
um que tenha muita coisa boa a dizer sobre o capitalismo. Muitos estão
habituados a descrever a época atual como “capitalismo tardio”, como se
ao declarar que o capitalismo está para acabar, eles possam pelo próprio
ato de fazê-lo apressar a sua morte. Mas é difícil pensar em um antropó-
logo que tenha, recentemente, feito qualquer tipo de sugestão sobre como
uma alternativa ao capitalismo se pareceria. São eles liberais, portanto?
Muitos não podem pronunciar a palavra sem um ar de desprezo. O que o
são, então? Na medida do meu entendimento, o único compromisso po-
lítico fundamental correndo por todo o campo é um tipo de amplo popu-
lismo. Se é só isso, nós definitivamente não estamos ao lado de qualquer
um, em dada situação, que seja ou se imagina ser da elite. Nós estamos
pelos grupos marginais. Já que na prática a maior parte dos antropólo-
gos está ligada às (de modo crescente no globo) universidades, e se não,
acabam em trabalhos como consultorias de marketing ou trabalhos com
as Nações Unidas - posições dentro do próprio aparato de domínio global
- o que isso realmente acaba se tornando é um tipo de constante e ritua-
lizada declaração de deslealdade àquela mesma elite global da qual nós
mesmos como acadêmicos claramente formamos uma (admitidamente
de alguma forma marginal) fração.

Agora, qual a forma desse populismo na prática? Fundamen-


talmente significa que você precisa demonstrar que o povo que você
está estudando, os “grupos marginais”, está, com sucesso, resistindo
contra alguma forma de poder ou influência globalizante imposta de
cima para baixo. Isso é, pelo menos, o que a maioria dos antropólogos
falam quando a disciplina volta seus olhos para a globalização – o que
acaba por acontecer quase imediatamente, hoje em dia, qualquer que
seja o assunto que você esteja estudando. Seja publicidade, novelas,
formas de disciplina no trabalho, sistemas legais impostos pelo Esta-

90
David Graeber

do ou qualquer outra coisa que parece estar esmagando ou homoge-


neizando algum grupo, demonstra-se que eles não estão enganados,
esmagados nem homogeneizados; de fato, eles estão apropriando ou
reinterpretando criativamente o que está sendo jogado neles de uma
forma que seus autores jamais teriam antecipado. Obviamente, em
alguma medida tudo isso é verdade. Eu certamente não desejo negar a
importância de combater a concepção popular – todavia incrivelmen-
te difundida – que no momento em que as pessoas no Butão ou em
Irian Java são expostas à MTV, sua civilização praticamente acaba. O
que é perturbador, pelo menos pra mim, é o grau em que essa lógica
acaba por ecoar a lógica do capitalismo globalizado. Afinal de contas,
as agências de publicidade também não dizem estar impondo nada a
ninguém. Especificamente nesta era de segmentação do mercado, elas
dizem estar fornecendo material para que o público possa apropriá-lo
e torná-lo seu de formas imprevisíveis e idiossincráticas. A retórica
do “consumo criativo” poderia ser considerada a ideologia do novo
mercado global: um mundo no qual todo o comportamento humano
pode ser classificado como produção, troca ou consumo; no qual se
presume que a troca seja conduzida por inclinações humanas básicas
de busca racional pelo lucro, as quais são as mesmas por toda a parte,
e o consumo torna-se uma forma de estabelecer a identidade parti-
cular de alguém (e a produção não é sequer discutida, caso seja pos-
sível evitar). No balcão de negociações, somos todos iguais; é o que
fazemos com as coisas, ao chegar em casa, que faz com que sejamos
diferentes. Tal lógica de mercado tem se tornado tão profundamente
enraizada que, digamos, se uma mulher em Trinidad coloca um traje
escandaloso e sai para dançar, os antropólogos presumirão automa-
ticamente que o que ela está fazendo pode ser definido como “con-
sumo” (em oposição, digamos, a procurar se exibir ou curtir a vida),
como se o que fosse realmente importante em sua noite fosse o fato
dela comprar alguns drinks, ou talvez porque o antropólogo considera
vestir roupas em si como sendo, de alguma forma, o mesmo que beber,
ou talvez porque eles nem pensam nisso de verdade e presumem que

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Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

qualquer coisa que alguém faça e não seja trabalho seja “consumo”,
porque o que realmente importa é que produtos manufaturados estão
envolvidos na situação. A perspectiva do antropólogo e do executivo
de marketing global tornaram-se indistinguíveis nesse aspecto.

E não é tão diferente no nível político. Lauren Leve alertou re-


centemente que os antropólogos arriscam, caso não sejam cuidado-
sos, tornarem-se apenas mais uma engrenagem nesta “máquina de
identidade” global, um aparato de instituições e presunções que tem
o tamanho do planeta e que tem, na última década, informado efeti-
vamente os habitantes da terra (ou ao menos, todos com exceção da
elite mais alta) que, visto que todos os debates acerca da natureza
das possibilidades econômicas e políticas já acabou, a única forma
atual de fazer uma reclamação política é através da afirmação de
uma identidade de grupo com todas as premissas sobre o que cons-
titui a identidade estabelecidas previamente (i.e., que identidades de
grupo não são formas de comparar um grupo com outro, pois são
constituídas através da forma pela qual o grupo se relaciona com
sua própria história e que não existe uma diferença essencial, nesse
olhar, entre indivíduos e grupos...). As coisas chegaram a tal ponto
que em países como o Nepal até mesmo Budistas Theravada são
forçados a jogar com políticas da identidade: um espetáculo particu-
larmente bizarro porque essencialmente eles estão baseando suas
reinvindicações identitárias através da adesão a uma filosofia univer-
salista que insiste na ideia de que a identidade é uma ilusão.

Muitos anos atrás um antropólogo francês de nome Gerard Al-


thabe escreveu um livro sobre Madagascar intitulado Oppression et
Liberation dans l’Imaginaire’ (“Opressão e Libertação no Imaginário”).
É uma frase que pega. Eu acho que isso pode ser aplicado da mesma
forma ao que acaba acontecendo em vários trabalhos antropológicos.
Na maior parte das vezes, o que aqui chamamos de “identidade”, lá nos
lugares que Paul Gilroy gosta de chamar de “mundo super-desenvolvi-

92
David Graeber

do” é empurrado sobre as pessoas. Nos Estados Unidos, muitos são os


produtos da opressão e da desigualdade: alguém que é definido como
Negro não lhe é permitido esquecer disso em nenhum momento de sua
existência; a auto-definição dele ou dela não tem importância nenhuma
para o banqueiro que lhe negará crédito, ou o policial que o prenderá por
estar no bairro errado, ou o médico que, no caso de um braço quebrado,
provavelmente sugerirá amputação. Todas as tentativas de auto-in-
venção ou auto-atribuição individuais ou coletivas precisam acontecer
inteiramente dentro dos limites violentos impostos por essas amarras.
(A única forma real de mudança seria transformar as atitudes daqueles
que tem o privilégio de seres definidos como “Brancos” – ao final, pro-
vavelmente, através da própria destruição da categoria da Branquitude.
Ocorre que ninguém tem a mínima ideia de como as pessoas se auto-
-definiriam caso o racismo institucional simplesmente desaparecesse –
se todos realmente fossem deixados livres para se auto-definirem como
quisessem. E não tem muito porque especular sobre isso. A questão é
criar uma situação na qual possamos descobrir.

Isso é o que quero dizer com “libertação no imaginário”. Pensar


sobre o que seria necessário para vivermos em um mundo em que
todo mundo realmente tivesse o poder de decidir por si mesmo, indi-
vidualmente e coletivamente, pudesse escolher a quais comunidades
pertencer e que tipo de identidades assumir – isso é realmente difícil.
Trazer tal mundo à tona seria inimaginavelmente difícil. Seria preciso
mudar quase tudo. E também entraria em choque com uma oposição
teimosa e violenta por parte daqueles que se beneficiam mais dos
arranjos atuais. Ao invés disso, escrever como se tais identidades es-
tivessem criadas livremente – ou pelo menos em sua maioria – é fácil,
e nos deixa completamente fora do intrincado e intratável problema
do quanto o nosso próprio trabalho é parte dessa máquina identitária.
Mas isso não o torna mais verdadeiro do que falar que o “capitalismo
tardio” vai, por si, levar ao colapso industrial ou à revolução social.

93
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

Uma ilustração

Caso não esteja claro o que estou dizendo aqui, deixe-me re-
tornar, rapidamente, aos rebeldes Zapatistas de Chiapas, sobre cuja
revolta, no réveillon de 1994, podemos falar como sendo aquela que
deu o pontapé inicial do movimento anti-globalização. A maioria dos
Zapatistas provinha de comunidades falantes do Maya em Tzeltal,
Tzotil e Tojolobal que se estabeleceram na selva Lacandona – algu-
mas das mais pobres e mais exploradas comunidades no México.
Os Zapatistas não se entitulam anarquistas completamente, e nem
inteiramente de autonomistas; eles representam seu próprio fio
nessa tradição mais ampla; de fato, eles estão tentando revolucionar
a estratégia revolucionária em si através do abandono de qualquer
noção de vanguarda que vise tomar controle do Estado, já que, ao in-
vés disso, batalham pela criação de enclaves libertários que possam
servir de modelos de auto-governo autônomo, permitindo assim
uma reorganização geral da sociedade mexicana numa complexa
rede de grupos auto-gestionados que possam começar a discutir
a reinvenção da sociedade política. Havia, aparentemente, alguma
diferença de opinião, dentro do movimento Zapatista, sobre as for-
mas de prática democrática que eles gostariam de promover. A base,
falante do Maia, enfatizou fortemente uma forma de processo atra-
vés do consenso, adaptada de suas próprias tradições comunitárias,
mas reformuladas para serem mais radicalmente igualitárias; alguns
dos líderes militares, falantes do espanhol, estavam muito céticos
quanto a possibilidade de isso ser aplicado em escala nacional. Ao
final, porém, tiveram de ceder à visão daqueles que “lideravam obe-
decendo”, como diz o ditado zapatista. Mas a coisa mais impres-
sionante foi o que ocorreu quando as notícias da rebelião chegaram
ao resto do mundo. É aqui que podemos realmente ver a “máquina
identitária” trabalhar: ao invés de um bando de rebeldes com uma
visão de transformação radical da democracia, eles logo foram re-
definidos como um bando de Índios Maias demandando autonomia

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David Graeber

indígena. Assim foi como a mídia internacional os retratou; isso é o


que era considerado importante pelas organizações humanitárias,
pelos burocratas mexicanos e pelos monitores de direitos humanos
da ONU. Enquanto o tempo passava, os Zapatistas – cuja estratégia
dependeu, desde o início, da obtenção de aliados internacionais –
viram-se forçados a jogar o jogo da indigenidade também, exceto
quando lidavam com seus aliados mais comprometidos.

Tal estratégia não foi totalmente ineficaz. Dez anos depois,


o Exército Zapatista de Liberação Nacional ainda está lá, não pre-
cisando disparar quase nenhum tiro, talvez porque eles se dispu-
seram, até o momento, a deixar de lado a parte “Nacional” de seu
nome. Tudo que quero ressaltar é o quão condescendente – ou
talvez não vamos pegar leve aqui – o quão completamente racis-
ta tem sido a reação internacional à rebelião zapatista. Porque o
que eles estavam propondo é exatamente dar início a esse difícil
trabalho que, como apontei, muito da retórica sobre “identidade”
acaba por ignorar: a tentativa de pensar quais formas de organiza-
ção, que maneira de proceder e deliberar, seriam necessárias para
criar um mundo em que pessoas e comunidades sejam realmente
livres para determinar que tipo de pessoas e comunidades elas
próprias querem ser. E o que falaram pra eles? Foram informados
que, por serem Maias, eles não poderiam sequer pensar em ter
alguma coisa a dizer para o mundo sobre o processo de consti-
tuição de uma identidade ou sobre a natureza das possibilidades
políticas. Enquanto Maias, a única afirmação política que eles po-
deriam fazer para os não-Maias seria sobre sua identidade Maia.
Eles podiam demandar reconhecimento como Maias. Porém, um
Maia dizer ao mundo algo que não fosse apenas um comentário
sobre sua herança Maia seria inconcebível.

95
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista

E quem estava escutando o que eles realmente tinham para dizer?

Em sua maioria, parece, um bando de adolescentes anarquistas


da Europa e da América do Norte, os quais logo começaram a cercar
os encontros dessa elite global com a qual os antropólogos mantém
um aliança tão desconfortável e conturbada.

E os anarquistas estavam certos. Acho que os antropólogos de-


veriam fazer sua a causa deles. Temos em nossas mãos ferramentas
que poderiam ser de enorme importância para a liberdade humana.
Comecemos a assumir alguma responsabilidade por isso.

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David Graeber

Este livro foi diagramado utilizando as fontes Roboto (pacote) para o


corpo de texto e OldNewspaper Types para a Capa.
Na versão original, este livro foi feito para leitura digital, e não existe
gramatura a princípio.

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