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por Jörg Guido Hülsmann, terça-feira, 17 de agosto de 2010
Observe a nuança nessa mensagem. A questão não é que o livre comércio faz
necessariamente com que as pessoas fiquem em uma situação melhor do que a que
estiveram até agora. Antes, ele faz com que elas fiquem melhores do que estariam caso
o comércio fosse, de agora em diante, obstruído por intervenções governamentais, ou por
outras violações de direitos de propriedade.
K
Para ilustrar esse fato, considere o seguinte exemplo de uma economia de uma ilha
primitiva. João e José trabalham isolados um do outro. Ambos gastam todo o seu tempo
colhendo frutas e caçando coelhos. Todos os dias, João gasta 8 horas para capturar 1
coelho, e outras 2 horas para colher 3 kg de frutas. Já José gasta 6 horas para capturar 3
coelhos, e outras 4 horas para colher 7 kg de frutas. Observe que José é superior em
ambas as atividades.
Agora eles resolvem se juntar e coordenar suas atividades. Desta forma, eles facilmente
podem encontrar uma maneira de dividir suas tarefas de modo que ambos se
beneficiem. Por exemplo, José pode dedicar todo o seu tempo para a caça de coelhos,
ao passo que João dedica todo o seu tempo à coleta de frutas. O produto agregado da
economia dessa ilha antes e depois da divisão do trabalho será o seguinte:
K
João e José têm agora, por dia, um coelho e cinco quilos de frutas a mais do que teriam
caso não tivessem juntado forças. Não importa como eles dividam esse excedente, o
fato é que cada um deles estará melhor do que antes.
Observe que a divisão do trabalho é benéfica para todos os envolvidos não apenas quando
um produtor é superior ao outro em uma determinada área; a divisão também é benéfica
mesmo quando um dos produtores é mais produtivo que o outro em as áreas. Em
nosso exemplo acima, José é melhor do João como caçador, mas ele também é superior
no que tange à coleta de frutas. Para a maioria dos não economistas, esse certamente é
um aspecto surpreendente da divisão do trabalho.
Porém, como vimos acima, essa concepção é errada. Economistas, obviamente, não
negam que favores sejam concedidos e obediência seja devida em certos casos. Eles
meramente mostram que esses laços de favor e obediência estão longe de representar
toda a realidade possível da cooperação social. E esses laços certamente não se
comparam em importância aos laços que resultam dos benefícios materiais
compartilhados. A divisão do trabalho é uma benção para todas as pessoas. Produtores
inferiores e superiores podem ser genuínos parceiros sociais.
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Foi o economista britânico David Ricardo quem primeiro enfatizou esse fato em sua obra
ð , dentro de um contexto de análise do comércio
internacional. Ricardo não percebeu que ele de fato havia descoberto uma lei econômica
geral que se aplica a todos os casos de cooperação humana. Ele meramente afirmou que
o livre comércio era benéfico. Ademais, em sua dedução, ele deixou
claro que estava assumindo que a mão-de-obra e o capital eram fatores móveis somente
de uma nação. Em outras palavras, ele assumiu um cenário em que
somente matérias-primas e bens de consumo eram comercializados para além das
fronteiras nacionais. Esse comércio, declarou Ricardo, era benéfico.
Ampliando a mensagem de Ricardo para o contexto mais geral possível, Mises enfatizou
que essa alocação geográfica dos recursos seria a mais adequado do ponto de vista da
satisfação do consumidor. Alguns anos mais tarde, em seu livro , Mises
demonstrou que os benefícios materiais oriundos da divisão do trabalho são um incentivo
fundamental para a cooperação humana. E, em sua obra mais desenvolvida, K
, ele deu ao funcionamento desses incentivos o nome de "lei da associação".
Observe que Mises não disse que os fatores de produção se mover para os locais
que oferecessem a maior remuneração. O que ele disse é que eles se mover para
esses locais, e que isso na verdade seria benéfico do ponto de vista dos consumidores.
Observe, mais detalhadamente, que Mises na realidade trouxe contribuições.
Primeiro, ele digeriu a essência do argumento de Ricardo e demonstrou que ele era
universalmente válido.
Depois, ele aplicou esse argumento a um hipotético mundo de capitalismo global, no qual
nenhum obstáculo político iria dificultar a livre movimentação da mão-de-obra e do
capital ³ o exato oposto do mundo ricardiano. No período anterior à Primeira Guerra
Mundial, a hipótese misesiana de certa forma refletia as condições políticas do mundo
real. O cenário que Mises analisou poderia ser observado em um grande número de casos
concretos, o mais notável deles era o do Império Britânico. Capital e mão-de-obra
constantemente saíam de Grã-Bretanha e iam para províncias como Austrália, Índia e
Canadá, onde eles podiam ser empregados com maiores retornos.
Esse cenário é relevante para o entendimento das condições do mundo atual. Nos
últimos vinte anos, um número cada vez maior de países fora do tradicional hemisfério
ocidental passou a adotar políticas mais voltadas para o livre mercado. Ao invés de
confiscar os ativos dos capitalistas estrangeiros, como faziam antes, eles passaram a
proteger os direitos de propriedade desses estrangeiros e a permitir que eles remetam
suas receitas para seus países de origem. Investir em alguns desses países é hoje muito
mais lucrativo do que no Ocidente. Como consequência, eles passaram a atrair uma
enorme quantia de recursos ocidentais. Capitalistas dos EUA, da Europa ocidental e do
Japão já investiram consideráveis somas de dinheiro nesses países, e a tendência é que
eles aumentem essas exportações de capital nos próximos anos.
Assim, temos uma situação que em muito se parece com o caso britânico do século XIX.
A Grã-Bretanha constantemente exportava mão-de-obra e capital. É óbvio que os fatores
de produção exportados auferiam maiores receitas lá fora do que teriam auferido em
casa. Por isso, para os donos desses fatores (os trabalhadores e os capitalistas), cruzar as
fronteiras do estado-nação foi algo indubitavelmente benéfico. Mas, e quanto aos ex-
usuários desses fatores, que ficaram em casa?
Ao que tudo indica, no caso britânico, o declínio nos salários domésticos foi apenas
relativo, e não absoluto. Os salários reais na Grã-Bretanha aumentaram constantemente
nesse mesmo período em que o país passou a exportar capital para todo o mundo.
Porém, hoje as coisas podem ser diferentes. Não é impossível que haja um declínio em
termos absolutos nos salários dos países ocidentais caso haja uma contínua exportação de
capital para os países menos desenvolvidos.
Deveria isso ser um motivo suficiente para que os países ricos revejam sua defesa do livre
comércio? Alguns economistas pensam que sim. Eles reconhecem que as exportações de
capital irão aumentar os salários e a produtividade dos trabalhadores estrangeiros. Eles
admitem que essa maior produtividade dos trabalhadores estrangeiros pode gerar um
aumento nos salários dos países ocidentais (em decorrência das
importações baratas dos países subdesenvolvidos). E eles até mesmo aceitam o fato de
que, de um ponto de vista global, exportações de capital é algo ao qual não é possível se
opor. Entretanto, eles se recusam a adotar tal perspectiva global. Eles se importam
apenas com os salários domésticos. Da maneira como eles veem, o argumento a favor do
livre comércio é válido apenas enquanto as transações internacionais não estiverem
diminuindo os salários dos trabalhadores domésticos.
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Para ver melhor o erro desses economistas, temos de fazer uma coisa acima de tudo:
pensar em termos de alternativas; temos de adotar o ponto de vista econômico.
Por conseguinte, vamos definir claramente a questão que está em jogo. A questão não é
definir se a redução, em termos absolutos, dos salários é algo bom ou ruim de acordo
com algum ponto de vista ético ou estético. A maioria dos economistas provavelmente
compartilha o mesmo desejo deste escritor: que todas as pessoas, tanto dos países
desenvolvidos quanto dos subdesenvolvidos, constantemente progridam na prosperidade.
Porém, isso é alheio à questão. A questão não é nem mesmo sobre a probabilidade de a
atual exportação de capital gerar um declínio não apenas relativo, mas também
absoluto, nos salários no hemisfério ocidental.
A primeira consequência óbvia seria a de que aquele capital que de outra forma teria
saído da Ruritânia ficará agora retido dentro de suas fronteiras. Entretanto, tal medida
não necessariamente significa que todo esse dinheiro seria reinvestido no país. Parte
dele poderia ir para o consumo pessoal do capitalista; outra parte poderia ser doada para
campanhas políticas com a intenção de reverter esse neoprotecionismo. Tão logo o
governo comece a ditar o que as pessoas devem fazer com seu dinheiro, os capitalistas
tornar-se-ão receosos e começarão a se perguntar o que virá a seguir. Reinvestir seu
dinheiro em algum projeto de longo prazo torná-lo-ia um alvo fácil. Por conseguinte, é
seguro assumir que os capitalistas da Ruritânia procurariam investir somente em projetos
de curto prazo extremamente líquidos ³ ou, melhor ainda, utilizariam o dinheiro
exclusivamente para consumo próprio, enquanto ainda podem. A consequência
inevitável seria uma redução na quantidade total de capital disponível (haveria um
consumo improdutivo de capital) e, com isso, uma redução nos salários de todos os
setores, exceto no setor de bens de consumo.
Porém, a intervenção não irá apenas incitar um maior consumo do capital existente. Ela
irá também impedir a formação de mais capital. Os cidadãos da Ruritânia iriam reduzir
sua poupança e entregar-se a um maior consumismo. Parte dessa poupança foi feita
apenas por causa da perspectiva de maiores retornos, os quais, agora, só poderão advir
de investimentos feitos no exterior. Impedir esses investimentos significa frustrar toda a
poupança que foi feita até então com vistas a esse investimento. Novamente, o
resultado seria um decréscimo nos salários.
À luz dessas considerações, torna-se claro que uma política de restrição da livre
mobilidade de capitais para fora da Ruritânia não faria com que o atual estoque de
capital no país fosse preservado. Consequentemente, isso não impediria uma queda nos
salários do país. Tal política gera tendências que agem contra suas intenções. A única
questão remanescente é se os efeitos de tal restrição são positivos ou negativos.
A resposta é que eles certamente serão negativos no longo prazo; e mesmo no curto
prazo eles tendem a ser mais negativos do que positivos.
E mesmo no curtíssimo prazo os efeitos líquidos tendem a ser negativos. À luz da nossa
análise acima, certamente não se pode afirmar que eles são positivos. E, até agora,
supomos que essas novas políticas seriam imediatamente aplicadas. Entretanto, é
ingenuidade imaginar que as exportações de capital podem ser impedidas,
principalmente quando se sabe que há retornos altos esperando logo ali além da
fronteira. Em qualquer cenário desse tipo, teríamos de assumir que um enorme mercado
negro iria rapidamente se desenvolver, e que a corrupção e o crime organizado viriam a
reboque.
Agora esse período está chegando ao fim. O parênteses está sendo fechado e as coisas
estão retornando ao seu estado normal. O capital está começando a sair dos países
capitalistas desenvolvidos e se difundindo por outras regiões da economia mundial,
certamente para o benefício dessas áreas; porém, em última instância, para o benefício
de toda a humanidade. É possível que os americanos vivenciem uma redução salarial por
alguns anos. Porém, eles serão imprudentes caso permitam que esse temor sobrepuje
um julgamento sóbrio da situação. O livre comércio não é meramente uma política digna
de um país livre. Ele também é, de um ponto de vista mais estreito e materialista, muito
superior à sua única alternativa lógica: permitir que o governo destrua o comércio e a
divisão mundial do trabalho.