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As heterotopias feministas: espaços outros de

criação
tania navarro swain

resumo:

o que seria uma heterotopia feminista? Em uma experiência material


específica, em um local de fala dado e datado, mulheres/feministas
criam um espaço outro de fluidez, crítica e modificação de suas auto-
representações e das representações sociais sexuadas, onde a
identidade é movimento , o ser e a ação política são transformação .

Palavras-chave: heterotopias, feminismos, criatividade, experiência

Apesar de suas diversidades de perspectivas, todos os


feminismos parecem ter um objetivo comum: o de transformar a face
do mundo, mudar as práticas sociais,começando por aquelas que são
apontadas como fundamentais: as relações entre o feminino e o
masculino. Mas ações e teorias feministas seriam elas uma utopia?
"Utopia - descrição de um lugar ou de uma situação ideal, quimera,
ilusão.~\"O que seria uma utopia feminista? De que sociedades
sonham as teorias e os movimentos feministas, que tons colorem um
horizonte utópico, portador de esperanças e que tantas linguagens e
formas tentam expressar?.

Mas o que é, afinal, o feminino e os feminismos, quando nos


referimos a mulheres reais, em situações específicas, no tempo e no
espaço?

Meu discurso aqui tem como única pretensão colocar


questões e pontos de análise; não busco respostas definitivas, nem o
traçado de um caminho que levaria aos lugares ideais. Encontro-me
nos limiares das trilhas e delimito meu lugar de fala, meu lugar de
ser-no-mundo, além das imagens e das categorias habituais,
destinadas a conter nosso espaço de ação, presentes, porém
marcadas de um ponto de interrogação: mulher? latina? branca?
heterossexual? homossexual, pobre, rica?

Ao colocar estas questões dou-me conta do ilusório destas


palavras, pois se aqui sou branca, alhures posso ser mestiça ,
pertenço a classes diferente segundo minha trajetória geográfica e
em parte alguma defino-me por práticas sexuais.
Não me considero pós-colonial, apesar de utilizar uma
língua européia em meu país americano. A nacionalidade não pode
me definir, pois não consigo discernir em que traços me apoiaria para
dizer: "sou brasileira". Quais são as raízes - existiriam?- que
delimitam a "cultura", da qual poderia reivindicar meu
pertencimento? Índias, africanas, portuguesas, a clássica composição
brasileira? Ou seria eu uma "mestiza", cuja mistura é feita de sangues
europeus: inglês, espanhol, alemão? Posso verdadeiramente falar de
nacionalidade do sangue, com esta tez amarelada e sobrenome
inglês?

Não estou nos centros mundiais, nem dos feminismos, nem


da economia mundial, mas não sou este sujeito da "diaspora" pós-
colonial, este sujeito que para Spivak , reivindica uma especificidade
cultural.(Spivak,1994)

Constato que minha posição de sujeito muda, a todo


momento, segundo o lugar onde me encontro, o espaço social que
me concedem ou que eu tomo; verifico assim que não sou um sujeito
coerente ou definido, já que meus contornos desenham-se sob as
luzes dos olhares que me tornam visível e pela imagem de mim que
construo, que aceito ou interiorizo.

Se me apresento como sujeito "mulher", "feminista", sou,


porém, um conjunto de brechas e de questões; pretendo, entretanto,
pensar o real na busca dos mecanismos que sem cessar produzem
"evidências"unívocas a despeito de um irredutível múltiplo, da infinita
polissemia dos seres. Com efeito, vivemos em uma realidade
construída por valores, práticas e enunciados que a instituem. As
raízes não estão lá, quando o olhar insiste em torná-las visíveis: meu
pretenso "ser profundo"é apenas transformação, uma posição de
sujeito ligada à um lugar social de fala,com suas significações e suas
representações de mundo.

Este eu em trânsito é forjado no cadinho das instituições e


das práticas sociais que lhe dão um perfil e um nome: este “Eu", que
reivindico enquanto sujeito-mulher/feminista é aquele que me
concederam e através do qual eu disputo um lugar ao sol. "Mim",
este conjunto de dúvidas sem raízes,atualiza-se em um "Eu"social ,
generizado, dotado de um corpo, marcado de um sexo, criado pelas
"tecnologias de produção do gênero"( de Lauretis, 1987), estas que
re-citam e re-produzem as marcas, as fissuras, os deveres e as
limitações do feminino no seio das relações sociais.

Neste sentido, a identidade de gênero "mulher", torna-se


possível e inteligível na própria instituição do "mim"enquanto “eu".
Chamarei "técnicas de mim", o processo pelo qual eu me assujeito –
ou não - ä este mistura de práticas e de representações. “ Eu”e
"mim" se imbricam para criar uma identidade, pedra angular das
pesquisas feministas, categoria de inclusão social, através da qual
posso dizer enfim "eu sou": eu sou uma mulher, um sujeito social, a
expressão de um gênero, um corpo biológico, uma brasileira,
necessito vistos para viajar pelo mundo, tenho um lugar designado,
mas esta identidade me é imposta, pois sou uma desenraizada, uma
construção, uma ruptura.

Assumo uma identidade, monto-a como um jogo e


apresento-a como um todo coerente e acabado. Conservo,
entretanto, a perspectiva da "Bandita" (Singer,1992), aquela que
toma e utiliza os sentidos que quer, no universo dos sentidos;
desmonto, então, as significações identitária, desvelo os mecanismos
de sua produção e escarneço da fatuidade das “evidências"e das
verdades definitivas. Sou também a "mestiza"de Anzaldua (1999),
aquela que "reinterpreta a história e, utilizando novos símbolos, cria
novos mitos"( Anzaldua ,1999:104), aquela que se produz como "[…]
uma criatura das sombras e uma criatura das luzes, mas também
uma criatura que questiona as definições de luz e sombra e lhes dá
novas significações"(idem,:103)

Enquanto feminista, como posso mudar o mundo sem


modificar as representações de mim mesma, da imagem que vejo e
que assumo como sendo meu ser? Encontro-me aqui, face às
tecnologias sociais de produção de gênero e das técnicas de mim,
que se imbricam para forjar uma experiência singular e é nestes
registros – que de fato se tornam único- que vejo o trabalho de uma
feminista.

Quando teorizo, portanto, além da produção de um


"conhecimento situado"-do qual já falava Christine Delphy (1970), em
relação ao feminismo, nos anos 70- encontro-me no cerne de uma
experiência concreta de mulher e de feminista - perturbada pela falta
de marcos que me designem um lugar identitário, no qual possa me
reconhecer.

Teresa de Lauretis concebe a experiência como um processo


que constrói a subjetividade de modo semitótico e histórico e a define
como sendo "um complexo de hábitos que resultam na interação
entre o mundo exterior ( outer world) e o mundo interior ( inner
world), um engajamento contínuo do sujeito na realidade social ( de
Lauretis, 1984:182). Esta relação, que leva ao assujeitamento ou à
resistência ,é nomeada semiosis por de Lauretis: esta categoria
poderia assim tentar de dar conta das tensões por ocasião da
construção de um sujeito em sua experiência singular. Temos aqui,
portanto, um sujeito em migalhas, agente e presa, porém, dos
processos de sua própria instituição pelas técnicas de mim e as
tecnologias de produção do gênero, em uma experiência marcada
pelo espaço e pelo tempo, que a constituem e a nomeiam.

Não se pode negligenciar a experiência particular de uma


mulher e das mulheres em um social específico, para pensar a ação
feminista, os objetivos dos feminismos. Mas se somos seres
singulares, que elemento pode ligar nossos destinos, criar
solidariedades e finalmente os movimentos de mulheres?[1] Que
temos nós em comum em uma assembléia feminista internaciona l-
pessoas em tudo dessemelhantes, ligadas talvez por um tipo de
linguagem e pelas utopias feministas? O sexo biológico não pode
servir de união. pois nossos corpos sexuados não são iguais,
produzidos em configurações sociais e
em assujeitamentos/resistências as mais diversificadas. Nossa
biologia é modelada segundo a importância dada ao sexo e à
sexualidade em nossas experiências singulares.

Se o quadro de expressão lingüística ultrapassa as


fronteiras das nacionalidades e pode criar laços, resta que o sujeito
"mulher", objeto dos feminismos, não é senão dispersão.

Mas os feminismos não tem dificuldades em encontrar seus


referentes e seu objeto, debruçando-se sobre os sujeitos nomeados
"mulheres", "mulheres"criadas como tais pelas representações sociais
e políticas. Nós somos, em todo caso, objeto de nossas próprias
reflexões.

A questão não é mais "o que é uma mulher?", uma


identidade que poderia nos unir, mas sim: quais são os mecanismos
produtores das pessoas, designadas pelo termo "mulheres"? A
questão é, portanto, como se organizam as relações sociais e as
imagens humanas, como seus corpos biológicos são produzidos como
corpos sexuados, pelas representações e o imaginário das formações
sociais. E por conseguinte, como seu gênero produz seu sexo, sua
sexualidade e seu lugar de fala e de ação, já que, como sublinha
Judith Butler,

"[...] gênero não está para a cultura assim como sexo está
para a natureza; gênero é também o significado
discursivo/cultural pelo qual ‘ a natureza sexuada’ ou o ‘
sexo natural’ é produzido como ‘ prédiscursivo’, anterior
‘a cultura, uma superfície neutra politicamente, sobre a
qual age a cultura” ( Butler,1990 :7)
Mostrar os mecanismos políticos da construção desta
diferença, em sua especificidade, os feminismos não cessaram de
fazê-lo, malgrado suas dissensões teóricas. Os argumentos
biológicos, que instituíram os corpos definidos em sexo e sexualidade
binárias implodem quando observamos os valores e as significações
sociais que definem sua importância simbólica.

Enquanto historiadora denuncio a história binária das


relações sociais, que não tem senão reforçado um essencialismo
reprodutivo. De fato, é preciso que um sistema sexo/gênero seja
instalado, para que adquira uma importância maior. Quero dizer que
o agenciamento das relações humanas não é binário a não ser pela
implantação política da diferença, em um eixo biológico anunciado
como incontornável. A antropologia não cessa de nos mostrar o
múltiplo, a biologia nos indica articulações genéticas muito além do
binário, mas as representações sociais do "feminino/masculino"s
ustentam um discurso e uma ordem, marcadas pela diferença sexual
e suas características. Uma certa história não silencia apenas a
presença e a ação das mulheres: ela impõe certos quadros teóricos
de análise que limitam o alcance do olhar, como o da
heterossexualidade inexorável ou a divisão do espaço
público/privado, tão bem analisados por Adrienne Rich( 1981) e
Colette Guillaumin(1988).

Com efeito, o processo político de diferenciação social


( como mostraram as feministas dos anos 70) que produz uma lógica
social/ sexuada binária, tomou proporções mundiais a partir das
colonizações do século XVI. As representações sociais dos
colonizadores, seus valores e sua força material ou econômica
transformaram as relações sociais dos países ocupados e construíram
assim uma narrativa, repetida sem cessar, baseada sobre a
dominação das mulheres pelos homens em todas as sociedades e em
todos os tempos. O caso dos indígenas brasileiros é exemplar e talvez
ainda mais o das "amazonas" brasileiras, mulheres guerreiras cujas
representações perigosas para a ordem androcêntrica foram
rapidamente enviadas à dimensão do mito pelo discurso dos
historiadores. ( Navarro-Swain, 1999)

É bem verdade que os ocidentais não inventaram a


opressão. Mas a homogeneização das relações social/ sexual
expressa pela universalização de um sistema sexo/gênero binário e
hierarquizado não faz senão esconder as expressões da diversidade:
é assim que mesmo a história das mulheres perde a perspectiva do
possível das relações e trocas sociais.
Se o pressuposto reprodução/heterossexualidade não é
tomado como fundamento axiomático, não existe nenhuma razão, a
não ser da ordem dos valores, para que a diferença dos sexos
biológicos se estabeleça como eixo da organização social. Com efeito,
não é necessário que todas as mulheres procriem para que a espécie
se perpetue. O possível na história sugere que o social não tem
regras imutáveis e esta premissa abre espaço aos múltiplos.

Assim, quer seja hoje ou nas dobras da história,a


denominação " mulheres" designa , não um conjunto de indivíduos,
mas um lugar no seio de relações políticas e simbólicas que lhes dão
um rosto e um sentido.

Nossas percepções do mundo são articuladas pela grade de


nossas representações , que instalam valores e significações: o que
talvez precisamos é uma "ortopedia" ( Foucault, 1976 :40) da imagem
do humano, para além do assujeitamento às narrativas fundadoras,
narrativas que criaram um esquema de relações binárias ao longo de
40 000 anos de história humana .

Se os feminismos se multiplicam em eixos e categorias


diferentes em relação às mulheres - igualdade, sistema sexo/gênero,
reprodução, diferença sexual, trabalho, classe, raça e outros - pode-
se perceber, hoje, uma ênfase particular dada às matrizes de
inteligibilidade que produzem, ao mesmo tempo, as significações
sociais e as relações sociais elas mesmas.

É assim que as teorias feministas se debruçam sobre a


desconstrução das noções de corpo e de sexo biológico enquanto
superfície de evidência, superfície pré-discursiva de inscrição social
do humano. O exercício da sexualidade baseada no sexo biológico-
heterossexualidade - é ainda considerado como um signo
fundamental de identidade: é aqui que se encontra um dos
mecanismos de partilha e de assujeitamento do humano às normas
sociais, sob a evidência do biológico 'natural'.

Com efeito, a importância dada à sexualidade torna-se a


base do poder social sobre os corpos , moldando-os mulher e homem
e conferindo-lhes assim uma identidade fictícia binária e sobretudo
hierarquizada. Uma utopia feminista de nossos dias seria um espaço
humano onde os corpos e os desejos se encontrariam livres da
escravidão do sexo e da sexualidade, definida pelas normas e as
representações sociais?

Mas as utopias são marcadas pela conotação do impossível;


porque não, neste caso, não se pensar uma heterotopia como o
espaço outro, libertário, onde os seres se nomeariam e se
construiriam ao longo de suas vidas e a partir de outros parâmetros,
outros valores?

Para Foucault, as heterotopias seriam

"[…] lugares efetivos, lugares que são desenhados na


instituição mesmo da sociedade e que são como contra-
lugares, espécies de utopias efetivamente realizadas, nas
quais os lugares reais, todos os outros lugares reais que
se pode encontrar no interior de uma cultura são, ao
mesmo tempo, representados, contestados e invertidos,
espécies de lugares fora de todos os lugares, ainda que
possam ser localizados"( Foucault, Dits et écrits, IV, 1980-
1988:755)

Esta noção de heterotopia , com efeito, se realiza


efetivamente na experiência de mulheres que temos em nossas
realidades singulares e as possibilidade de ultrapassá-la, criando
novas significações/valores e sobretudo outras representações sociais
do humano, além dos moldes binários. "Lugares for a de todos os
lugares "são criados quando destruímos imagens, valores, quando se
inaugura sentidos, lugares, rupturas lá onde não são esperadas.

As mulheres/feministas são,portanto, os sujeitos ex-cêntrico


, aquelas que se apóiam em uma experiência designada, para melhor
evitá-la e desconstrui-la, aquelas que estã em um mundo de
significações, mas se situam , ao mesmo tempo, fora de seus
contornos e silêncios, em um movimento de crítica, que inova ao
desconstruir.

Luce Irrigaray, em um de seus textos, pouco comentado,


propõe a noção de mimetismo, o assumir deliberadamente um papel
histórico designado no feminino: realizar a mimesis seria assim , para
uma mulher histórica e socialmente definida, buscar o lugar de sua
exploração pelo discurso, sem por isso a ele se reduzir. ( Irigaray,
1977:74 ) Desta forma, os espaços dos feminismo se encontra ao
mesmo tempo for a e dentro de uma incontornável experiência do
feminino, datada e localizada, sem entretanto, a ele de limitar.[2]

Assim, propostas radicais visando a se repensar de maneira


crítica e transformadora a identidade, a partir de uma subjetividade
ancorada no gênero,na história e nos espaço vivido, vem se contrapor
a uma identidade "mulher", imaginada no mundo normativo e binário
das representações sociais hegemônicas. A experiência vivida do
feminino seria o ponto de partida da explosão identitária da categoria
"mulher" propriamente dita, cujas experiências são múltiplas e/ou
contraditórias, constituídas de modo plural. Não é suficiente, porém,
indicar-se apenas as variáveis - etnia, idade, classe, preferência
sexual, para compor uma identidade "mulher" e dizê-la múltipla. Pois
esta pluralidade nomeada não explicita a construção fictícia da
identidade, tal como questiona Judith Butler: “ [ em que medida as
práticas regulatórias da formação e divisão de gênero constitui
identidade, a coerência interna do sujeito, de fato a auto identificação
do status da pessoa? Em que medida ‘ identidade’ é um ideal
normativo do status da pessoa?” (Butler ,1990:16)

Estou falando aqui, portanto, de um sujeito que, assujeitado


à sua identidade social, ultrapassa-a e torna-se assim um ser em
construção, em vir-a-ser, no cerne de uma poética identitária,
entendida enquanto processo, mutação onde os limites não se
traduzem senão no passado, ao longo de uma “cartografia” de mim,
no coração mesmo de uma identidade em transição. Temos assim a
expressão da base histórica de uma experiência vivida e a ação que a
ultrapassa, critica e cria um espaço outro de movimento e produção
de “ mim”

A auto representação abre assim a brecha, a fissura, a partir


de uma experiência de "mulher", de um lugar de fala dado, de onde
posso construir um contra imaginário, lugar onde o sexo não seria
mais O fundamento identitário. A identidade fluida deste feminismo
não requer nenhuma visão substantiva do sujeito para levar em
frente uma ação política.

É uma construção de si, em movimento, transitória,


retrospectiva, da qual podemos traçar os mapas. Com efeito,
podemos indicar apenas a transição dos movimentos da experiência;
o que pensamos ter sido, cujo traçado obedece os vieses da memória,
aquela que escolhe e decide os fatos.

Desta maneira, a fluidez proporia aos feminismos e às


feministas a aceitação das contradições e das descontinuidades
internas, trabalhando as incertezas não como fracassos, mas como
os traços constitutivos do ser. (Braidotti, 1994 : 167). Do lugar de fala
onde me encontro, sou um feixe de experiências que fazem de mim
um ser no presente, mas jamais cristalizado em uma natureza ou
função.

De uma certa maneira, a fluidez é a re-invenção de "mim"


enquanto " a outra"de mim mesma, é o espaço de "mim”.

Se conseguirmos pensar no espaço identitário como estando


em ligação com todos os espaços de um "eu"que os critica, nomeia
ou sobre eles reflete, chegamos a uma heterotopia identitária. Em
fluidez, sou uma outra, para além do que e de quem pareço ou do
que digo, Sou o espaço de mim, migratório, em transumância,
transitório, nesta cartografia que me revela e me nega. Sou o espelho
de mim, um lugar sem lugar, sou, de fato a heterotopia de mim
-mesma, o espaço outro onde posso recriar meu ser no mundo, onde
as normas e os modelos não tem força ou poder.

Na imagem invertida do espelho, vejo a imitação de um


"mim" em um “eu"unificado, categorizado, tão ilusório quanto as
dimensões que se abrem sobre a superfície polida. Sou, entretanto,
fluida e então, esta materialidade torna-se o reflexo no espelho, pois
o "eu", que me observa não sou eu. Pois este "eu", forjado pelos
valores e normas históricas, por teorias e por discursos de saber,
pelos limites e coerções erigidos em sexo e sexualidade, não sou
"eu": é apenas uma imagem, um lugar de passagem.

Uma identidade transitória seria, portanto, uma heterotopia


de “ mim”, um espaço outro que, conectado a todos os espaços de
onde falo e atuo, abre o caminho para a transformação.

O que importa, sobretudo, nesta criação constante de mim,


é a quebra contínua do assujeitamento às representações sociais do
“eu”. A re-citação das normas e estereótipos aqui está invertida: em
lugar de sofrê-la, ao re-criar os moldes e as imagens ancoradas no
social, eu invento novos mundos, canto estrofes desconhecidas,
escapo à pesada materialidade que me vem do exterior e quer me
fixar; escapo assim , também, das emboscadas montadas por mim
mesma , nas quais me deixo enclausurar. O espaço de “mim” é a
trajetória que eu instituo e me carrega em pontilhados, onde cada
momento é diferente do outro e tem a duração de um suspiro.

Este é o espaço da heterotopia feminista em ação sobre o


mundo e sobre si, onde o espaço político da resistência social se
conjuga às dobras internas de minhas transições.

Não há opostos, há posições de sujeito, não há binário ou


múltiplo, pois não há unidades. Uma “identidade” ( da qual só se
pode falar agora entre aspas) em construção não aceita um
desenho/destino final, é um esboço, onde o que importa é o
movimento, a mudança

O que seremos, então, ancoradas em nossa experiência de


feministas e de mulheres, assim catalogadas e classificadas?

Nada de representações fixas, antes de tudo: a transição


não conhece senão o movimento, a mudança, a transformação, a
crítica, o que se inicia com a auto-representação sexuada e se
estende ao social . Do “mim” ao “ nós”, a mudança em nível de
representações é uma transformação do imaginário que institui o
mundo, uma estratégia política que visa os mecanismos mentais
construtores do ser sexuado e as práticas sociais que os objetivam,
como a invenção dos corpos sexuados.

Não se procura explicar o paradoxo de uma ação que age


para anular seu objetivo. Baseadas na experiência de cada mulher,
trata-se de uma estratégia que não exclui as outras e que, pela
dissolução das representações sociais identitária mulher/ homem,
alcançaria a transformação do mundo generizado/ sexuado. Aberto
então às pessoas, ao humano, em sua diversidade.

Não é suficiente pensar o mundo; é preciso igualmente


pensar a sua transformação; os feminismos vem mostrando que as
relações sociais/sexuais são construídas em hierarquias e princípios
ilusórios. E tudo que é construído pode ser desfeito.

Mas que fazemos de nós mesmas? Em torno de que valores


construímos nossas imagens e papéis enquanto seres-no-mundo?
Que importância atribuímos às coisas e às palavras que nos
definem ?A historicidade das relações sociais/sexuais mostra que o
importante encontra-se onde o colocamos, quer se trate do gênero,
do sexo ou da sexualidade. Para mudar um “ regime de verdade” é
necessário mudar os lugares, é preciso ceifar os paradigmas para
melhor dissolve-los.

A heterotopia feminista poderia bem ser o lugar das


mulheres históricas e materiais, criadoras do não-lugar das
representações sem referentes, das imagens do humano que
prescindem do binário, do natural, das coerções e da modelagem dos
corpos sexuados, das práticas sexuais normativas , para criar espaços
e relações sociais outras.

A heterotopia feminista não é uma utopia, é a criação de


representações inesperadas do humano, para além da ordem do
significante binário e sexuado, em condições concretas da
experiência de um sujeito ao mesmo tempo agente e objeto de sua
ação: mulher e feminista. O que aconteceria com o poder, se os
valores sobre os quais se funda revelassem seus sentidos fictícios,
sua vacuidade insensata?

Referências:

Anzaldúa, Gloria. 1999. Bordelands, La frontera, The new mestiza,


San Francisco, Aunt Lute Books, second edition
>Braidotti, Rosi ( 1994) Nomadic subjects, Embodiment and sexual
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de Lauretis, Teresa . ( 1984) Alice Doesn’t, Feminism , Semiotics,


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Delphy, Christine.(1970) « L´ennemi principal », Partisans, Paris, vol.


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Guillaumin, Colette. (1978) Pratique du pouvoir et idée de Nature,


2.Le discours de la Nature, Questions féministes,no3, mai, Paris,
pags.5-28

Irigaray, Luce (1977) Ce sexe qui n´en est pas un, Paris, les Éditions
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possible et de l´impossible, in Anita Caron (ed) Recherches
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Pateman, Carole (1988) The Sexual Contracts, Blackwell Publishers,


traduzido para o português em 1993. O Contrato sexual, São Paulo,
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Rich , Adrienne.( 1981) La contrainte à l'hétérosexualité et


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n01, pags.15-43

Spivak, Gayatri. 1994. Quem reivindica alteridade ? in Hollanda,


Heloisa Buarque. Tendências e impasses- o feminismo como crítica da
cultura, Rio de Janeiro, Rocco

Dados biográficos :
tania navarro swain é professora do Departamento de História da
Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris
III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal,
onde lecionou durante um semestre na Université du Québec à
Montréal, (UQAM), onde foi professora associada ao IREF, Institut de
Rechereches et d´Études Féministes. Ministra um curso de Estudos
Feministas na graduação e trabalha na área de concentração com a
mesma denominação na pós-graduação. Publicou recentemente um
livro pela Brasiliense, “O que é o lesbianismo”, 2000 e organizou um
número especial “ Feminismos: teorias e perspectivas” da revista
Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente um livro “
História no Plural”, além de vários artigos em revistas nacionais e
internacionais.Criou e organizou a revista Labrys, Estudos
Feministas, com o seu Grupo de Estudos Feministas- GEFEM.

[1] A perspectiva de Íris Young neste sentido é um marco nas teoiras


feministas: Gender as Seriality : Thinking about Women as a Social
Collective, Rutt-Elle B. Joeres and Barabra Lasllet (ed)The
Second Signs Reader, Feminist Scholarship, 1983-1996

[2] Posição que não tem nenhum parentesco com um certo “


positivismo” científico, produtor de “ verdades”. Ao contrário, é o
domínio da dúvida e da indeterminação, enunciadas a partir de um
local de fala e de açõaoespecífico

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