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SOTERIOLOGIA

Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

SOTERIOLOGIA
A Doutrina da Salvação

Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

Rio de Janeiro – RJ
E-mail: prof.nelsoncelio@oi.com.br
1
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

INTER-RELAÇÕES

Doutrina
de
Deus

Doutrina das
Antropologia
Últimas
Teológica
Coisas Soteriologia
e suas
Relações

Doutrina do
Espírito Cristologia
Santo
2
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Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

INTRODUÇÃO

A Soteriologia, trata da participação das bênçãos de salvação ao pecador e de sua


restauração ao favor divino e à vida em íntima comunhão com Deus.1 O homem é
totalmente dependente de Deus, ainda que tente se afirmar como dono de si mesmo, não
pode fugir dessa dependência.

Restauração, redenção e renovação – fazem parte da obra de Deus no homem,


face ao pecado que perturbou as relações do homem com seu Criador. Posto que a
Soteriologia trata da salvação do pecador, salvação que depende de Deus por completo e
que é conhecida por Deus desde toda a eternidade, conduz, como é natural, nosso
pensamento retrospectivamente ao conselho eterno de paz e ao pacto da graça, que Deus
estabeleceu como provisão para a redenção dos homens caídos.2

Soteriologia é o estudo da salvação, que tem como base Jesus Cristo como
Mediador da redenção. Daí a Soteriologia ter uma relação estreita com a Cristologia.

É de extrema importância que se estude a Soteriologia com base no Antigo


Testamento e Novo Testamento, pois a Sagrada Escritura é o fundamento e a estrutura da
redenção e se realiza por intermédio de Deus, que na sua misericórdia exerce a sua
bondade e fidelidade. Essa redenção possui uma referência à totalidade do homem e do
mundo como criação de Deus.

Jesus Cristo revelador e realizador único da salvação.3 Deus se revela ao vir ao


nosso encontro para nos salvar, e assim o faz, em Jesus Cristo. O discurso soteriológico não
pode deixar de prescindir da salvação que se concretizou no Filho de Deus feito Filho do
Homem. A obra da salvação se define a partir da pessoa e dos atos todos de Jesus de
Nazaré. Ele se entregou por “nós”, segundo o que está nos textos neotestamentários: 1 Co
15.3; 2 Co 5.14; Rm 8.32; Gl 1.4; 2.20; etc. A expressão “hyper”, em grego, apresenta um
significado profundo para a humanidade, em dimensões salvíficas profundas: por causa de
nós, por nós e em nosso lugar.

O texto de Romanos 3.23-24 não é apenas um relato ou a simples informação da


transgressão do homem como pecador, mas envolve aspectos teológicos e doutrinários, no
sentido de que, como Palavra de Deus, o seu ensino molda e aperfeiçoa o caráter. “Todos
pecaram”, significa o pecado definido como “transgressão da lei”. É a falta de
conformidade com a Glória de Deus. É o afastamento de Deus, e conseqüentemente o
afastamento também dos outros seres humanos. O pecado aborrece a santidade de Deus e
obscurece a vida humana. Até mesmo a natureza geme por causa do pecado. Diante disso,
lemos em Paulo que “Não há um justo sobre a face da terra”.

Destarte, somente a justificação mediante a entrega de Jesus Cristo por nós, nos
assegura a redenção. “Justificados”, significa “declarados justos diante de Deus”, isto é,

1
BERKHOF, L. Teologia Sistematica. Cuarta Edicion Inglesa Revisada y Aumentada. T.E.L.L. 941 Wealthy Street,
S.E. Grand Rapis, Mich. U.S.A. Mexico, A. C. Pag. 493.
2
Ibidem.
3
MIRANDA, M. F. Jesus Cristo, obstáculo ao diálogo religioso. REB 57, fasc. 226, junho/1997, Vozes. Páginas 253-
264.
3
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livres da condenação. “Justificar” era um termo legal que significava assegurar um


veredicto favorável, absorver, vindicar, declarar justo, utilizado nos antigos tribunais
romanos.

Nas Escrituras é um ato de Deus, que é oferecido pela salvação em Jesus Cristo,
segundo o Novo Testamento.

A salvação em Jesus Cristo é vista mediante três pontos fundamentais:

1. Foi processada fora de nós (extra). É exclusivamente pela graça (xáriti dià). Não
teve a participação do homem, por estar morto em seus delitos e pecados (Ef 2.1-
10). Só Jesus Cristo, sem pecado, pode realizar essa obra maravilhosa.

2. Foi providenciada para nós. Em favor da humanidade, pois, é da vontade de Deus


que todos sejam salvos (Rm 3.29; Jo 3.16). “Deus amou o mundo de tal maneira”,
esta é a mais profunda afirmação da história da salvação.

3. Foi realizada em nós (intra). A salvação é aplicada dentro do homem, gerando


nele uma consciência alicerçada pela dimensão do Espírito Santo, que nos faz
compreender a suficiência da obra do Filho de Deus. Jesus Cristo é o “Emanuel”, o
Deus em nós.

A intimidade de Jesus com Deus, que Ele chamava de Pai, seja pela sua obediência
(Jo 5.30), seja pela atividade comum (Jo 5.19; 10.30), seja pelas suas palavras que são as
do Pai (Jo 12.49), demonstra ser este o amor de Deus pela humanidade. Daí ser Jesus
Cristo a manifestação da bondade de Deus e de seu amor pelos homens (Tt 3.4; 1 Jo 4.9).

Amor realmente vivido no interior da história, de modo perfeito e definitivamente


incondicionado pelo ser humano.4

Uma salvação da na história e na história.5 O pensamento escatológico garante a


espera de uma salvação para todos, não extra-histórica, mas intra-histórica como resposta
positiva diante de todos os males que fazem a humanidade sofrer. A salvação tem um
sentido todo especial a ponto de encorajar o ser humano a viver diante de todas as
realidades, onde se pode recuperar o que somos e aquilo que somos capazes de reconhecer
como a causa de significado para nós mesmos e para os outros. Essa salvação é prometida
ao homem como uma vida inteiramente nova. Logo, pode-se pensar no Reino de Deus
antevisto como o reinado dos valores de justiça, paz, liberdade e fraternidade, que dão
significado pleno à existência humana.

Jesus Cristo é justamente o que aparece claramente como a figura de destaque da


esperança de seu povo. E, nesse contexto, não existe nenhuma barreira que possa estancar
o reinado de Deus e a história, que têm o seu seguimento na intenção de construir um
futuro melhor pela realização do evento Cristo já no aqui e agora da caminhada.

4
MIRANDA, M. F. REB 57, fascículo 226 de junho de 1997, página 254. Para uma melhor compreensão cita-se
literalmente a argumentação desse teólogo, que está bem exposta, em ralação à salvação em Jesus Cristo, o que vale à
pena recorrer ao artigo.
5
MOINGT, J. El Hombre que venía de Dios. Páginas 53-58.
4
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Que salvação anunciar na situação presente da humanidade? Este problema


condiciona o acesso através da fé. Não se trata de um outro problema: não se pode
proclamar que Jesus é chefe e salvador, libertador da humanidade, sem dizer que perigos
livra, e sem saber que salvação propõe.6

Essa salvação é a coragem para encarar o futuro, quando a pessoa reconhece ser ela
mesma ainda que viva num mundo de ambigüidades; mesmo diante da morte que rodeia o
homem. Aí sucede o que ensina a Bíblia como Palavra de Deus, em que o clamor do povo
no exílio é o lamento de um povo que tem Deus como auxílio, encontrando-o na
misericórdia, que é traduzida em libertação da escravidão.

Esta salvação é a esperança militante que determina a atuação do homem na história,


numa vida sempre por vir a ser, considerando que essa esperança não depende de nós
mesmos, mas da fé em Deus. A coragem de existir só se dá na experiência do encontro com
Deus, não imediatamente a fé em haver encontrado Deus, mas em ser surpreendido por
Ele.7 A coragem de existir se fundamenta no Deus que aparece quando há a angústia e até
mesmo a dúvida.

É importante saber que o homem não pode voltar à vida sem o ato de fé, sem crer que
Jesus é o Salvador. Através de Jesus, Deus começa uma nova história, assumindo um
compromisso de vida, possibilitando ao homem uma vida plena de sentido histórico. Essa
iniciativa sendo divina é realizada no humano, como sendo a gratuidade que transcende a
todos os pontos negativos da desumanidade.

Jesus é o único mediador e definitivo da salvação, dando cumprimento a todas as


suas possibilidades, libertando os homens do jugo do pecado e abrindo um acesso direto a
Deus em si mesmo. O Filho de Deus se entregou por nossa salvação, o Deus presente na
cruz, reconciliando consigo o mundo (2Co 5.19), era Ele quem obrava essa reconciliação
indo às últimas conseqüências. Logo, podemos pensar na salvação como obra de vida, e
que contrasta com todas as tradições religiosas dos escribas e fariseus opressores daqueles
que não podiam se defender.

Como mediador Jesus faz o seu convite magistral (Mt 11,25-30). Depois da
retumbante oração e grande louvor ao Pai, caracteristicamente descritivo do espírito
fervoroso de Jesus, ele que possuía total e completa percepção do conhecimento de Deus,
elabora um convite imemorável. “Vinde a Mim”- o convite é lançado a qualquer pecador
que perceba a sua condição pecaminosa e que possa reconhecer a necessidade de servir a
Deus. “EU”- é enfático: Jesus Cristo pode mostrar ao cansado o descanso de que tanto
precisa, bem como dar-lhe confiança para com Deus. “Jugo”- contrasta com o jugo da Lei.

Jesus oferece um jugo que se deriva do próprio conhecimento de Deus. É o


verdadeiro caminho para Deus através da pessoa do Messias. O Seu jugo é suave. Plenifica
a vida humana. Contrasta com os jugos dos romanos, que impunham ao povo altas taxas,
impostos caros; e dos fariseus, que impunham meticulosa observação da lei. O grande
convite de Jesus põe fim a todo tipo de escravidão, porque é o convite para a salvação.

6
MOINGT (1995). Página 37.
7
MOINGT (1995). Página 40. Uma das mais ricas expressões da obra desse teólogo, que fascina o leitor é saber que
temos um Deus que nos surpreende com a sua salvação.
5
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A vitória sobre o pecado e a morte, a plenitude do que a fé cristã entende como


salvação é a realização definitiva e perfeita do ser humano, em todas as suas dimensões,
em Deus, sob a ação do Espírito Santo.8
Ainda que nosso conhecimento seja fragmentado e imperfeito, contextualizado e
limitado, podemos testemunhar ao mundo a vitória de Jesus sobre a morte, que é a sua
ressurreição, da qual fazemos parte, sendo essa a nossa proclamação em fé.

1. LIBERTAÇÃO E REDENÇÃO
Segundo uma abordagem feita por Hans Kessler,9 No Antigo Testamento, a redenção
tem as seguintes dimensões:

Libertação histórica
Há narrativas no Antigo Testamento que falam de ações redentoras de Deus em
relação ao seu povo. O povo de Israel foi libertado de situações concretas de angústia (Jz
3.9s; 1 Sm 11); a libertação da escravidão egípcia (Ex 3.7s; Dt 5.10; Ex 6.2-8), através da
qual Israel entende-se livre para a liberdade da vida comunitária diante de Deus e com ele
(Ex 20.2s; Dt 5.6ss; Mq 6.4; Lv 25). Isso significa que Deus readquire para si o povo que já
desde sempre lhe pertencia (Is 3.1l 44.21s; 62.11).10

Israel, diante do seu pecado, merecia a morte; o seu pecado era irreparável, mas
Deus sendo bondoso e fiel à sua palavra não desiste do seu povo. Deus não desistiu e nem
desistirá do seu povo, ainda que este povo haja com infidelidade.

Em que consiste a salvação no Antigo Testamento? Consiste numa plenitude de


bens terrenos. Estava relacionada à posse da terra, da semeadura e da colheita dos frutos;
da liberdade, do direito, da vida realizada e da descendência. Isso era visto como dons
outorgados por Deus, no sentido que o próprio Deus se voltava para os homens. Israel
tinha de distinguir essa felicidade terrena com a comunhão com Deus. Assim, essa salvação
propriamente dita, que continua com a morte, mas não preserva do sofrimento terreno (Sl
63.4; 73.23-28).

Redenção como perdão 11


O estado de não-salvação ameaça o homem tanto externo quanto internamente (Gn
6.5; 8.21; Jr 13.23; 17.9). Destarte, há uma perturbação que provoca a desestruturação na
relação com Deus que é vital. O pecado é visto como falha quanto ao fim, inversão e
rompimento com Deus. Significa a miséria última, de que o homem não consegue se
libertar por suas próprias forças. Ele precisa do perdão de Deus (Sl 39; 51-130). O perdão é
recebido, sobretudo no culto realizado no templo, onde Deus expia os pecados (Sl 65.3-5).

Isso significa que o homem não pode expiar os seus próprios pecados, segundo o
ensino do Antigo Testamento.

Convém notar que a experiência de julgamento pelos pecados do povo de Israel foi o
exílio (Is 50.1), contribuindo para se aprofundar a consciência do pecado e para se
8
MIRANDA, M. F. (1997). REB 57. Fascículo 226, página 259.
9
KESSLER, H. Redenção/Soteriologia. In: Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia (Org. Peter Eicher);
São Paulo: Paulus, 1993, pp. 744-750.
10
Ibidem, p. 744.
11
Ibidem, p. 744.
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compreender o significado do culto a Deus como expiação (Ez 43.7; Lv 9.7). Essa expiação
cultual tem um significado profundo: a doação pessoal da própria vida que assim entra em
novo contato de vida com Deus. Mas, é preciso observar também, que há ambigüidade
nesse relacionamento: o culto é carregado de violência oculta. Há uma crítica feita em Os
6.1-11, porque a aliança estabelecida por Deus era desobedecida.

Redenção como renovação (interior e exterior) escatológica 12


Essa redenção penetrará até o íntimo e atingirá a universalidade dos povos e até a do
cosmos por intervenção do Deus criador. É plena de justiça e libertação aos pobres e
oprimidos (Is 9.2-7; 11.1-5; Jr 23.5ss, Sl 72) e paz entre os povos. Os povos peregrinarão ao
monte de Deus conforme Mq 4.1-4; Is 2.2-5; 25.6ss; 66.18-22; Ml 1.11). A paz será uma
realidade no seio da natureza, traduzida pela criação de nova terra paradisíaca (Is 11.6-9;
65.17-15). Participam também dessa glória os que já morreram, pela ressurreição (Is 25.8,
26.19; Dn 12.1-4).

O que tudo quer dizer é que Deus fará nova e eterna aliança com seu povo, que
consiste na libertação do pecado, dando-lhes coração novo e pondo um novo espírito no
seu íntimo (Jr 31.31-34; 32.37-42; Ez 36.23-29; 37.26-28; 11.19s; Is 54.7-10; 55.3-5; Sl
130.8).

Já se percebe no Antigo Testamento que essa redenção inaudita ocorrerá no sentido


de alguém assumir e pagar voluntariamente a culpa do povo no seu lugar e por sua
salvação, conforme os relatos aludidos ao Servo do Senhor (Is 52.13-52.12; 42.6; 49.6, 8).13

Quanto ao Novo Testamento há a associação de forma indissolúvel da redenção e


salvação com a pessoa e a história de Jesus. Significa que Deus cumpriu o que havia
prometido desde o Antigo Testamento. Seu agir salvífico atinge a história
definitivamente.14

 A pessoa e a história de Jesus


De acordo com a pregação de Jesus a salvação consiste no futuro Reino de Deus (Lc
11.2). A sua presença na história significa que ele é definitivamente o portador da salvação
(Lc 10.23s) e a determinação do seu conteúdo como se voltar indulgente e salvador de
Deus a todos os homens. Aos perdidos, Jesus assegura a incondicional bondade de Deus.

Todos podem se voltar para Deus por meio de Jesus. Esse se voltar tem o significado
de que a redenção atinge até a corporalidade e a sociabilidade. Os sinais perceptíveis são as
curas feitas por Jesus e sua comunhão de mesa com os parias (Mc 1.14ss; Mt 18.23-35). A
recusa à participação dessa bênção tem o significado de não-salvação. As autoridades
judaicas rejeitaram a Jesus e à sua ação salvífica. A sua morte foi violenta, mas não se pode
negar a possibilidade de que Jesus tenha atribuído à sua morte esperada um sentido
expiatório a partir de sua atitude fundamental. A sua pro-existência estava comprometida
com a causa do Pai , e, favor dos homens e das mulheres.

 A pregação pós-pascal
A experiência definitiva da Páscoa e do Espírito Santo tornou manifesto o significado
da soteriologia em relação à ressurreição, à parusia e à presença do Senhor no Espírito (1

12
Ibidem, p. 744-745.
13
Ibidem, p. 745.
14
Ibidem, pp. 745-746.
7
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Ts 1.10; Rm 4.25). É só assim que se reconhece o significado salvífico da vida e obra de


Jesus de Nazaré.

 O ensino de Paulo
No seu ensino tudo se concentra na cruz (1Co 1.18-2.2). Com fundamento na
ressurreição, segundo 1 Co 15.3ss; Rm 4.25; 8.34. Deus realiza, no seu ilimitado amor pelos
inimigos, a reconciliação consigo, do homem que caiu no pecado e se tornou inimigo de
Deus (2 Co 5.18s; Rm 3.21ss; 5.8-10) e libertação dos poderes da Lei, do pecado e da Morte
(Rm 5-8).

 Segundo Lucas
Todo o itinerário de Jesus tem importância salvífica (At 1.21s; 4.12). Alcança a todos
os que estão em situação de não-salvação (Lc 4.1821; 19.10; 22.27; At 10.38) até à
consumação na ressurreição (Lc 9.51; At 2.32ss; 3.20-26), pela qual Jesus se tornou
pioneiro e salvador (At 5.30s). Assim, pode conceder perdão dos pecados e o Espírito
Santo (At 2.38).

 Segundo João
Seu ensino mostra que Jesus veio do Pai (encarnação) e volta para o Pai (exaltação,
revelador e portador da vida espiritual: 1.18; 3.34; 10.10). Em toda a sua vida terrena,
Jesus, mostrou o amor do Pai pelos pecadores. Amor que salva e que faz uma nova pessoa.

Amor que livra do pecado e da morte (3.21; 5.24ss; 8.31ss, 51). Assim, todo o evento
de Cristo, segundo o Novo Testamento, tem significado para a redenção.

2. ANÁLISE HISTÓRICO-SISTEMÁTICA
Uma salvação inscrita na criação 15
A fé cristã confessa e proclama uma salvação. O nome de Jesus Cristo concentra essa
realidade: “Não tem sob os céus nenhum outro nome dado aos homens necessário a nossa
salvação” (At 4.12). Assim, podemos entender que Jesus Cristo é o rosto de Deus para nós e
o representante do homem diante de Deus. “Jesus Cristo crucificado é poder e sabedoria
de Deus” (1 Co 1.24).

A articulação entre pregação cristã de uma salvação radical e reconhecimento de uma


criação, na sua consistência e na sua necessária diversidade, se mantém no coração do
cristianismo. Destarte, houve o desenvolvimento dessa redenção no decorrer da história da
teologia. Não obstante, é preciso entender que, essa salvação e sua articulação com a
criação, foram sempre ameaçadas de desequilíbrio pelo dualismo de linha grega, que
despreza o mundo e o próprio corpo. Entretanto, é preciso perceber também que, o
cristianismo possui uma riqueza imensa, quando se pode refletir que a própria criação é
lugar incontornável de prova de bênção.

A pregação cristã sempre proclamou o cristianismo como uma religião de salvação.


Desde os primeiros séculos, a fé em Cristo participa da riqueza de se projetar dentro do
Império Romano sempre pregando a Cristo como Senhor e Salvador. As definições

15
GISEL, P. Un salut inscrit em création. Bruxelles: Facultés universitaires Saint-Louis, 1989, pp. 120-161.
8
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conciliares dos primeiros séculos reivindicaram a entrada dessa salvação no mundo. Os


teólogos não cessaram de dizer, em termos variáveis, acerca do cristianismo como
realização, e também recapitulando sempre a centralidade do destino do homem e da
criação.16

2.1. Compreendendo a redenção pelo ponto de vista da história da teologia

2.1.1. A era patrística


Tentativas foram feitas no sentido de haver uma correspondência para a
compreensão da riqueza da redenção. Em Clemente de Alexandria se observam alguns
temas fundamentais: 17

a) Parece ser fundamental o motivo da divinização, que significa a união da


humanidade com Deus como libertação da transitoriedade e da morte. A chave
para ela é a encarnação, que se consuma na morte e ressurreição. Isso quer dizer
o seguinte: o Filho de Deus se fez homem a fim de que todos nos tornássemos
filhos de Deus. Ele assumiu a humanidade, pensada como unidade real, e em sua
queda na morte, assumiu as conseqüências do pecado e não os pecados mesmos,
possibilitando a participação na vida divina mediante o Espírito Santo. Destarte,
somente a encarnação de Deus pode trazer redenção, ou seja, realização plena e
superabundante da humanidade e criação em Deus.

b) A educação pelo exemplo e ensinamento de Jesus garante o motivo da


divinização e também a vitória contra os poderes do mal. O sacrifício vicário de
Jesus Cristo acentuou essa vitória (concordam entre si: Irineu, Atanásio,
Orígenes e Justino).

2.1.2. Idade Média latina.

a) Anselmo é o primeiro que harmoniza os motivos da redenção da Escritura e da


Patrística, privilegiando o motivo ocidental da “satisfação”, em sistema rígido. A
teoria da satisfação é desenvolvida em sua obra “Cur Deus homo”. No seu
ensino, Anselmo entende o pecado como subtração do reconhecimento devido a
Deus e sendo assim, como destruição da ordem da criação. Para que a honra de
Deus em sua criação (ou seja, a reta ordem da liberdade criada) seja
restabelecida, por si se exige um ato de expiação gratuito, que pague e pese mais
do que a culpa, da parte da liberdade humana. Mas ao homem, falta a
capacidade para prestar esta “satisfação” perfeita. Somente pode ser prestada
pela misericórdia de Deus, mediante a morte do Deus-homem, Jesus Cristo,
inocente mediante a sua morte gratuita. Cristo assume o lugar do pecador.
Assim, a redenção adquire o sentido, sobretudo de apagamento do pecado.

b) Tomás de Aquino. 18 Para esse teólogo da Igreja, em nenhum ponto de vista


isolado a redenção pode ser compreendida inteiramente. Ela funda-se
profundamente no mistério do amor de Deus pelos homens e na radical e
amorosa união de Cristo, a “Cabeça”, com a humanidade. A redenção é operada
por toda a atividade da humanidade de Cristo unida com Deus e assim libertada:
16
Ibidem, p. 121.
17
KESSLER, H. Redenção/Soteriologia. In: Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia (Org. Peter Eicher);
São Paulo: Paulus, 1993, pp. 746-748.
18
Ibidem, p. 747.
9
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vai da encarnação, passando pela vida. A mais obediente e amorosa dedicação da


vida pelos pecadores; e a ressurreição até a sua presente atividade como o
exaltado. Toda a salvação do homem provém de Deus e consiste no próprio
Deus.

2.1.3. Tempos modernos. 19

a) Lutero. Dar-se a separação da misericórdia de Deus e da sua justiça. Agora é


entendida como punitiva: julgamento condenatório que recai sobre nós
pecadores. A necessidade existencial de salvação por parte do sujeito exige
resposta que dê certeza. Cristo, esvaziando-se, entrou de tal forma em nossa
situação, que entre ele e nós ocorre “feliz intercâmbio”. Ele assume sobre si,
como se fossem seus, o nosso pecado e o nosso castigo e nos concede a sua
justiça. Assim, Cristo satisfez objetivamente por nossos pecados, tomou de nós
para si o julgamento de punição e nos reconciliou com Deus. Somente assim é
que não somos eternamente perdidos, mediante a apropriação do Espírito Santo
na Palavra e no Sacramento, somente pela fé que dá razão a Deus é que somos
justificados por Deus e podemos produzir frutos de amor.

b) O iluminismo. Dar-se a autonomia da razão, emancipação de ordenações e


obrigações; interpretação e disposição desdivinizada do mundo; absolutização
da utilidade econômica, sujeito individualista de necessidades; luta pela
dignidade e pelos direitos humanos; separação da busca de felicidade e do
progresso seculares da pregação crente da salvação sobrenatural; a crítica a esta
fé/salvação como consolo ilusório e alienante; supressão da referência do mundo
e do homem a Deus como pressuposto a que comumente se possa apelar. Ainda
mais se contemplam as fórmulas esotéricas que se propagam dia a dia na
sociedade, reduzindo-se a salvação de Deus em relação irreal. Os
questionamentos modernos requerem reelaboração profunda de base. As
tendências destrutivas do homem tornam-se problemas mundiais. Isto tem
muito a ver com a soteriologia.20

3. DIMENSÃO TEOLÓGICO-SISTEMÁTICA
3.1. A ação do Espírito Santo
 Confissão de Fé de Westminster

■ III. O Espírito Santo, o qual o Pai prontamente dá a todos os que Lho pedirem, é o
único agente eficaz na aplicação da redenção. Ele convence os homens do pecado,
leva-os ao arrependimento, regenera-os pela sua graça e persuade-os e habilita-os
a abraçar a Jesus Cristo pela fé. Ele une todos os crentes a Cristo, habita neles
como seu Consolador e Santificador, dá-lhes o espírito de adoção e de oração, e
cumpre neles todos os graciosos ofícios pelos quais eles são santificados e selados
até o dia da redenção.
■ Lc.11:13; At.1:5; At.5:32; Jo.16:8; At.2:37,38; Tt.3:4-7; At.8:29,37; I Cor.12:13 e
3:16,17; Rom.8:15; Ef.4:30.

19
Ibidem, p. 747.
20
Ibidem, p. 748.
10
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Um trabalho no coração do homem – Essencialmente, pelo Espírito Santo,21 a


regeneração é um trabalho realizado no coração do ser humano.22
Trabalho contínuo do Espírito – A realidade do Espírito está presente em todos
os níveis, no coração da realidade que cerca o humano.23 Essa realidade tem conexão com a
doutrina da criação, da cristologia, da eclesiologia e dos sacramentos. A base para essa
conexão é a relação intratrinitária, ou seja, a articulação entre as pessoas da Santíssima
Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.24 Essa relação das pessoas da Trindade, faz cair
por terra uma visão de “emanação” geral,25 que não representa a consistência própria das
pessoas trinitárias. Assim, o Espírito, não será, antes de tudo, senão “força” e “virtude” em
oposição de derivação e de subordinação.

Aparece efetivamente o conteúdo de que o Espírito é força, virtude, vigor, poder,


energia, tomada em movimento ou efetuação.26 É o agir de Deus na história, no sentido de
haver uma realização que tem uma direção rumo à concretização da criação de uma forma
geral. Assim, tudo o que Deus faz é feito pelo Espírito, no Espírito e através do Espírito.

Essa é a ação de Deus sob forma pneumática.27 Mas, é fundamental perceber que, na
boa cristologia, não há espaço para uma ação do Espírito de modo autônomo. Antes, é uma
ação que remete a uma cristologia, como lugar de testemunho referenciado na Escritura e
no Sacramento. E, por sua vez, também, tem reflexo na realidade que cerca o humano.

Mediante essas premissas, denuncia-se uma certa forma de cristolatria e um certo


espiritualismo entusiasta.28 As duas formas contém erros gravíssimos, com reflexões
negativas da teologia na antropologia, quando se percorre o trajeto doutrinário de uma
cristologia ou de uma pneumatologia sob fluxos isolados. É preciso entender que toda ação
de Deus passa pelo Espírito, ou que qualquer ação de Deus é feito do Espírito. A ação de
Deus no Espírito, aparece de maneira diversificada. O Espírito trabalha no coração dos
eleitos, mas também diferentemente, no homem racional e diferentemente ainda, na
criação mesma e na sua conservação. Essa diversificação não significa oposição, sem
separação.

O lugar mais íntimo, onde se lança diretamente a fé, é o lugar onde se atesta com mais
clareza o senhorio de Cristo.29 Este é o lugar da reconfirmação da natureza referente ao
Cristo encarnado que, sob a ação do Espírito é também o Cristo elevado, que envia a uma
regeneração e santificação. Jesus não agiu no Espírito em seu próprio favor, mas em favor
do seu corpo, a Igreja. Tudo isto, numa instituição e num desenvolvimento mediante os
ofícios de profeta, rei e sacerdote. Assim, a carne de Cristo fez-se matéria e lugar de nossa
salvação. Através de uma história concreta e de uma individualidade dada, uma e outra

21
Cf. a excelente análise de HOEKEMA, Anthony. Salvos pela Graça, pp. 35-59.
22
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 160-163.
23
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 167-172.
24
Sobre esse assunto importante, cf. as seguintes obras: MOLTMANN, J., Trindade e Reino de Deus. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000. 224p.; BOFF, Leonardo. A Trindade e a Sociedade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 296p.
25
Cf. KRUSCHE, W., Das Wirken des Heiligen Geistes nach Calvin, Göttingen, Vandenhoeck et Ruprecht, 1957, dès
la page une. In: Le Christ de Calvin, p. 167.
26
Cf. KRUSCHE, W., Das Wirken des Heiligen Geistes nach Calvin, Göttingen, Vandenhoeck et Ruprecht, 1957, dès
la page une. In: Le Christ de Calvin, p. 167.
27
Cf. KRUSCHE, W., Das Wirken des Heiligen Geistes nach Calvin, Göttingen, Vandenhoeck et Ruprecht, 1957, dès
la page une. In: Le Christ de Calvin, p. 168.
28
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 168.
29
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 169.
11
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

repletas de graça, num espaço de “reconhecimento”30 vai se configurar como realidade


testemunhada. Não uma nova lei, mas é a interpretação e efetuação de modo correto,
acerca de uma lei inscrita numa ordem da carne, reconhecida, celebrada como tal e
atualizada. Essa é a lei de Cristo, inscrita no coração e na realidade.

O segundo lugar da obra do Espírito é mais extenso.31 Ele não sobressai unicamente
da regeneração estritamente entendida.32 É antes visto ligado a uma antropologia geral e
que culmina numa doutrina dos dons ou dos carismas de cada um. A visão do homem, na
criação original, é essencialmente dinâmica e teleológica. A reação da natureza não é, em
efeito, tomada como qualidade intrínseca, mas como dom do Espírito. A vida de Adão
“antes” da queda passou pela Palavra e pelo sacramento,33 e reclama uma consciência e
um reconhecimento de Deus.34 Essa estrutura essencial não foi destruída pelo pecado, mas
o seu uso é pervertido, por causa da cegueira e da distorção.

A obra redentora atestada na Escritura pela via da obra do Espírito no homem, é uma
obra que opera uma recriação e uma renovação. É uma renovação tomada de “uma nova
criação”. Está sobre a base da obra de Cristo inscrita no crente e na própria criação. É uma
obra que o crente reconhece, porque age em todos os homens, mesmo que eles não a
reconheçam como benefício de Deus.35

A questão que se deve precisar não é simplesmente a da regeneração do Espírito ou


da adoção filial. A perspectiva cristológica nesse sentido, é estritamente a de falar dos
carismas e das funções no interior da Igreja.36 Principalmente, o sacerdócio que é

30
A temática do “reconhecimento” é fundamental para definir a ordem da vida crente. Nota-se que o Catéchisme de
Heidelberg coloca toda a sua terceira parte sob o título “do reconhecimento”(onde ele será questão da Lei, o decálogo, e
da oração, o Pai Nosso), depois uma primeira parte, “da miséria do homem”, e uma Segunda, “da libertação do
homem”. Teologicamente, o tema do “reconhecimento” parece ligado ao do Senhorio de Cristo (não sem uma certa
prioridade acordada do “ofício real”). In: Le Christ de Calvin, p. 169.
31
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 169 ss.
32
Existe sempre, segundo Calvino, os usos terminológicos surpreendentes. Assim e por exemplo, no Commentaire de
l’Evangile de Jean, 1,5, Calvino fala do “Espírito de regeneração” (in fine), num contexto onde ele se move justamente
e, distingue uma ordem ligada à criação do mundo e da disposição natural de uma parte, e o momento soteriológico de
propriamente falar, de outro, em ocorrências relacionadas, respectivamente, a Cristo, “palavra eterna de Deus”, por
quem “o mundo tem sido criado” (quem comanda os “dons naturais”) e a “graça da regeneração”, poder pelo qual o
“Filho de Deus (...) renova e restaura a natureza decaída”. In: Le Christ de Calvin, p. 169.
33
Cf. Institution, I, VI, pt. 1; Commentaire de la Genèse, 2, 9 (a propósito da árvore da vida), retomado na Institution
IV, XIV, pt. 18 onde Calvino escreve, depois de ter igualmente falado do arco no céu dado a Noé: “Adão e Noé tiveram
essas coisas como sacramentos”. No pt 19, onde se lê, em referência a Santo Agostinho: “Os homens não puderam se
unir em alguma religião que seja (...), senão por meio de alguns sacramentos” e no pt. 23: “Quando os doutores da
escola colocam uma grande diferença entre os sacramentos do antigo e estes da nova Lei, como se os primeiros não
fossem que figuras concretas da graça de Deus (...), esta doutrina é inteiramente rejeitada”. In: Le Christ de Calvin, p.
170. É interessante que Calvino se refere aos sacramentes naturais, já estabelecidos na ordem da criação de Deus. É o
“conceito amplo de sacramento”.
34
CALVIN, J., Commentaire de l’Evangile de Jean 1, 4 (in fine), Instituiton I, I, pt. 5 (início). In: Le Christ de Calvin,
p. 170.
35
Cf. GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 170. Calvino se reporta aos diferentes dons ou carismas através das artes, das
ciências e da vida pública como obra do Espírito. A perspectiva ultrapassa as únicas funções ou ministérios específicos,
no sentido de englobar a vida social. As virtudes são do Espírito, que os crentes testemunham, não somente neles, mas
também em todos os homens. Sobre este assunto cf. as seguintes obras de CALVIN, J.: Sermon sur Job 32, 8 CR 63,
Opera Calvini 35, col. 23; Sermon sur Job, 12, 7ss, CR 61, Opera Calvini 33, col. 577; Institution, II, II, pts. 15, 16;
Sermon sur Job 12, 17 a 25, CR 61, Opera Calvini 33, col. 599; Sermon sur Luc, 4, 16-19, Opera Calvini 46, col.
661; Sermon sur Job, 32, 4, CR 63, Opera Calvini 35, col. 23.
36
Cf. KRUSCHE, W., sublinha com força, op. cit., p. 116, precisamente: “A relação do Espírito Santo nos meios de
conservação como nos meios de graça presentes nas estruturas análogas, porque ela se move segundo uns como
segundo os outros, de mediação”. In: Le Christ de Calvin, p. 171.
12
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

universal, e a eleição como resultado de Deus é reportada não à parte de Deus, mas que se
dá numa diversificação temporal e concreta dos carismas, sem garantia e sem linha direta
na salvação. Ela não é reportada ao Espírito efetuando a regeneração, mas do Espírito de
render efetivamente a obra de conservação da providência e colocando em lugar uma
ordem histórica de mediações.
A ordem do Espírito opera contra a idéia de um caos na criação, produzindo vida com
estrutura organizada e estabilizada, inspirada e vivificada em seu interior. A ação de Deus
opera em dimensões cósmicas, conserva o mundo através dos dons exteriores nos crentes.

3.2. União com Jesus Cristo


Este tema tem a ver com a autêntica existência cristã.37 Portanto, é um tópico que é
subjacente à toda a soteriologia. João Calvino assim entendeu:

Precisamos entender que enquanto Cristo permanecer fora de nós, e nós estivermos
separados dele, tudo o que ele sofreu e fez pela salvação da raça humana permanece
inútil e sem valor para nós ... Tudo o que [Cristo] possui é nada para nós até que
cresçamos num só corpo com ele.38

A relação entre a união com Cristo e a ação do Espírito Santo em nossa salvação é
uma realidade insofismável. Somente através do Espírito Santo podemos nos tornar um
com Cristo e pode Cristo viver em nossos corações. Não somos salvos até que sejamos
feitos um com Cristo e permanecemos salvos porque permanecemos em união com Cristo.

■ Os ensinos bíblicos sobre a nossa união com Cristo

O Novo Testamento descreve esta surpreendente verdade – que nos tornamos um


com Cristo – de duas maneiras:

1. Os crentes estão em Cristo – Aqui, nos vem à mente o conhecido texto sobre sermos
novas criaturas: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas
antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2 Co 5.17). Cf. também: João
15.4,5,7,; 1 Coríntios 15.22; 2 Coríntios 12.2; Gálatas 3.28; Efésios 1.4, 2.10;
Filipenses 3.9; 1 Tessalonicenses 4.16; e 1 João 4.13.

2. Cristo está em nós – Em Gálatas 2.20, por exemplo, Paulo diz: “Logo, já não sou eu
quem vive, mas Cristo vive em mim ...” Noutro lugar Paulo celebra o fato de que
“Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da glória desse mistério entre os
gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1.27). Esse pensamento é
encontrado também em Romanos 8.10; 2 Coríntios 13.5; e em Efésios 3.17.

Há pelo menos três passagens, todos nos escritos de João, nas quais esses dois
conceitos são combinados: João 6.56; 15.4; 1 João 4.13. Parece que esses dois tipos de
expressão são intercambiáveis. Quando estamos em Cristo, Cristo também está em nós.
Nossa vida nele e sua vida em nós são inseparáveis.

Essa união é entendida por todo o caminho, de eternidade a eternidade. União com
Cristo começa com a decisão pré-temporal de Deus de salvar seu povo em e através de
Jesus Cristo. Essa união, além disso, é baseada na obra redentora historicamente operada

37
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela Graça, pp. 61-73.
38
CALVINO, J. Institutas, III, VI ss
13
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

por Cristo em favor do seu povo. É uma união que é estabelecida depois do nascimento do
povo de Deus, continuando através de sua vida e tendo como alvo a glorificação da vida
que há de vir. A união com Cristo tem como suas raízes a eleição divina, sua base na obra
redentora de Cristo, e seu estabelecimento real com seu povo, dentro do tempo.

■ Raízes da união com Cristo

1. Paulo, apóstolo de Cristo Jesus por vontade de Deus,


aos santos que vivem em Éfeso e fiéis em Cristo Jesus, Cristo Crente
2. graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e
do Senhor Jesus Cristo.
3. Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que
nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual
nas regiões celestiais em Cristo,
4. assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do
mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante
ele; e em amor
5. nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por
meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua
vontade,
6. para louvor da glória de sua graça, que ele nos
concedeu gratuitamente no Amado,
7. no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão
dos pecados, segundo a riqueza da sua graça,
8. que Deus derramou abundantemente sobre nós em toda
a sabedoria e prudência,
9. desvendando-nos o mistério da sua vontade, segundo o
seu beneplácito que propusera em Cristo,
10. de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos
tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da
terra;
11. nele, digo, no qual fomos também feitos herança,
predestinados segundo o propósito daquele que faz
todas as coisas conforme o conselho da sua vontade,
12. a fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que
de antemão esperamos em Cristo;
13. em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da ■ As raízes da união com Cristo:
verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele eleição divina – Efésios 1.1-14.
também crido, fostes selados com o Santo Espírito da
promessa;
14. o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da
sua propriedade, em louvor da sua glória.

■ A base da união com Cristo

Cristo Crente

■ A base da união com Cristo: a obra


redentora de Cristo
14
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

■ A real união com Cristo

1. Somos unidos com Cristo na


regeneração. Cristo Crente
2. Apropriamo-nos e continuamos a
vivenciar essa união com Cristo pela fé.
3. Somos justificados na união com Cristo.
4. Somos santificados através da nossa
união com Cristo.
5. Perseveramos na vida de fé em união
com Cristo.
6. É dito que morremos com Cristo.
7. Seremos ressuscitados com Cristo.
8. Seremos eternamente glorificados com
Cristo.

■ A significância da união com Cristo

Uma das maneiras pelas quais a doutrina da união com Cristo é útil está em habilitar-
nos a preservar um equilíbrio apropriado entre dois aspectos maiores da obra de Cristo: o
que podemos chamar de aspectos legal e vital.

O ramo ocidental da igreja cristã, representada por teólogos como Tertuliano e


Anselmo, tendeu a enfatizar o lado “legal” da obra de Cristo. O aspecto do pecado que esses
teólogos se inclinavam a enfatizar era a culpa, a qual Cristo retirou de sobre nós pagando
nosso débito; a suprema bênção qual ele satisfez a justiça de Deus por nós pagando nosso
débito; a suprema bênção soteriológica foi vista como justificação; e o mais importante dia
do calendário eclesiástico foi tido como a Sexta-Feira Santa.

A ala oriental da igreja, representada por Teólogos como Irineu e Atanásio, foi mais
inclinada a enfatizar o lado ”vital” ou de “compartilhamento de vida” da obra de Cristo. O
aspecto que esses teólogos enfatizam foi a poluição, a qual Cristo debelou juntando-nos e
ale pela encarnação; o ponto alto da soteriologia era a santificação; e o dia festivo mais
importante da igreja era a Páscoa.

Para a igreja ocidental, o cerne da vida cristã era tido como o perdão, enquanto para
a igreja oriental, era a vida eterna. A igreja ocidental tendeu a acentuar o Cristo “para nós”;
a igreja oriental, por outro lado, celebrou o Cristo “em nós”.

Precisamos manter juntos esses dois aspectos da obra de Cristo: o legal e o vital,
Cristo por nós e Cristo em nós. A doutrina da união com Cristo nos auxilia a manter o
equilíbrio apropriado entre essas duas facetas. Cristo veio à terra não só para pagar o preço
pela nossa salvação, como alguém que paga um débito atrasado, mas também veio para
trazer-nos para dentro e manter-nos dentro da vida união consigo mesmo.
15
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

Através da união com Cristo, recebemos toda bênção espiritual. Cristo não só morreu
por nós na cruz do Calvário há muitos atrás; ele também vive em nossos corações para
sempre.

3.3. A vocação do Evangelho


O chamado do Evangelho precisa ser entregue a todas as pessoas.39 A Escritura deixa
bem claro o ensino de que o Evangelho precisa ser pregado a todos. A vontade Deus é a
regra da pregação da Igreja.

A vocação evangélica pode ser definida assim: a oferta da salvação em Cristo a


pessoas, junto com um convite para aceitar a Cristo em arrependimento e fé, para que
recebam o perdão dos pecados e tenham a vida eterna.

Três elementos integrantes da vocação do Evangelho:

1. A apresentação dos fatos do evangelho e dos meios de salvação. A obra que


Cristo realizou pela nossa salvação precisa ser clara e cuidadosamente colocada.
Isso deve ser feito em linguagem compreensível ao povo de hoje e relevante às
necessidades e problemas presentes.

2. Um convite para vir a Cristo em arrependimento e fé. O convite do Evangelho


precisa ser mais que uma apresentação; precisa incluir um convite honesto. Jesus
mesmo convida pessoas a virem a ele em arrependimento e fé (Mt 11.28-30). Deve
ser deixado bem claro que fé não é um assentimento intelectual a certas verdades,
mas a aceitação de Cristo com todo o ser, incluindo compromisso de serviço.

3. A promessa de perdão e da salvação. O convite do Evangelho precisa também


incluir a promessa de que aqueles que respondem propriamente ao chamado
receberão o perdão e a vida eterna em comunhão com Cristo. Somente Deus pode
capacitar o ouvinte do convite do Evangelho a se arrepender e crer.

Calvino acreditava que devemos fazer uso total das oportunidades que Deus dá para
evangelizar.40 “Quando uma oportunidade para edificação se apresenta, devemos perceber
que uma porta foi aberta para nós pela mão de Deus a fim de que possamos introduzir
Cristo naquele lugar e não devemos nos recusar a aceitar o generoso convite que Deus nos
faz”, ele escreve.41

Por outro lado, quando as oportunidades são restritas e as portas do evangelismo


estão fechadas ao nosso testemunho, não devemos persistir em tentar fazer o que não pode
ser feito. Ao contrário, devemos orar e buscar outras oportunidades. “A porta está fechada
quando não há expectativa de sucesso. [Então] temos que tomar um caminho diferente ao
invés de desgastarmos-nos em vãos esforços para alcançá-los”, Calvino escreve.42
Entretanto, dificuldades para testemunhar não são desculpas para deixar de tentar. Para
39
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça. A doutrina da salvação. São Paulo: Cultura Cristã, 1997, pp. 75 ss.
40
João Calvino, o Evangelista em Genebra. Publicado em 11 de junho de 2009 – 7:00 por Dr. Joel Beeke. Retirado
de www.monergismo.com - Fonte: Revista “Os Puritanos”, ANO XII: Nº 01: 2004.

41
CALVINO, J. Comentário sobre 2 Coríntios 2:12.
42
Ibid.
16
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

aqueles que estavam sofrendo restrições e perseguições severas na França, Calvino


escreveu: “Vamos, cada um, empenhar-nos em atrair e ganhar para Jesus Cristo aqueles
que pudermos”.43 “Cada homem deve cumprir seu dever sem ceder a qualquer
impedimento. No fim, nosso esforço e nossas fadigas não falharão; eles receberão o
sucesso que ainda não aparece”. 44

Vamos examinar aqui a prática de evangelização de Calvino em sua congregação e na


sua própria cidade de Genebra.

Com freqüência pensamos em evangelização hoje apenas como a obra regeneradora


do Espírito e da conseqüente recepção de Cristo pelo pecador através da fé. Por isto,
rejeitamos a ênfase de Calvino na conversão como um processo contínuo envolvendo a
pessoa como um todo.

Para Calvino, evangelização envolve um chamado contínuo e autoritativo ao crente na


igreja para exercer a fé no Cristo crucificado e ressurreto. Esta convocação é um
compromisso para a vida toda. Evangelização significa apresentar Cristo de modo que as
pessoas, pelo poder do Espírito, possam vir a Deus em Cristo. Mas também significa
apresentar Cristo de modo a que o crente possa servi-lo como Senhor na comunhão da Sua
igreja e no mundo. Evangelização requer edificar crente na fé mais santa de acordo com os
cinco princípios-chave da Reforma: Sola Scriptura, Sola Fide, Sola Gracia, Solus Christus,
Sole Deo Gloria.

Calvino foi um notável praticante deste tipo de evangelização dentro de sua própria
congregação. Para Calvino, o evangelismo começa com a pregação. Como escreve William
Bouwsma: “Ele pregava regularmente e com freqüência: no Antigo Testamento nos dias de
semana às seis da manhã (sete no inverno), alternadamente; no Novo Testamento, nas
manhãs de domingo e nos Salmos, no domingo à tarde. Durante a sua vida ele pregou,
neste sistema, cerca de 4.000 sermões depois do seu retorno a Genebra: mais de 170
sermões por ano”. Pregar era tão importante para Calvino que, quando estava
rememorando as realizações da sua vida, no seu leito de morte, ele mencionou seus
sermões na frente dos seus escritos. 45

O intento de Calvino na sua pregação era evangelizar tanto quanto edificar. Em média
ele pregava em quatro ou cinco versículos do Antigo Testamento e dois ou três versículos
do Novo Testamento. Ele refletia sobre uma pequena porção do texto de cada vez,
explicando primeiro o texto e depois, aplicando-o às vidas da sua congregação. Os sermões
de Calvino jamais eram curtos na aplicação; ao contrário, a aplicação era mais longa do que
a exposição em seus sermões. Os pregadores devem ser como pais, ele escreveu, “dividindo
o pão em pedaços pequenos para alimentar seus filhos”.

Ele também era sucinto. Como o sucessor de Calvino, Theodoro Beza, disse da
pregação do reformador: “Cada palavra pesava uma libra”.

Calvino instruía freqüentemente sua congregação sobre como ouvir um sermão. Ele
os ensinava o que procurar na pregação, em que espírito eles deveriam ouvir. Seu alvo era
ajudar as pessoas a participarem do sermão o mais que pudessem de modo a alimentar
43
Bonnet: Cartas de Calvino, 3: 134.
44
CALVINO, J. Comentário sobre Gênesis 17:23.
45
William Bouwsma: John Calvin: Um Retrato do Século Dezesseis (New York: Oxford, 1988), pg 29.
17
SOTERIOLOGIA
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suas almas. A atitude de alguém que vem para um sermão, dizia Calvino, deveria incluir
“prontidão para obedecer a Deus completamente e sem qualquer reserva”.46 “Nós não
vimos para a pregação unicamente para ouvir o que não sabemos”, Calvino acrescentou,
“mas para ser incitado a cumprir o nosso dever”.47

Calvino também alcançava os não salvos através de sua pregação, impressionando-os


com a necessidade de ter fé em Cristo e o que isto significava. Ele deixava claro que não
acreditava que todos no seu rebanho estavam salvos. Embora caridoso com os membros da
igreja que mantinham um estilo de vida aparentemente recomendável, ele também se
referiu mais de trinta vezes em seus comentários e nove vezes em suas Institutas (contando
apenas as referências de 3.21 a 3.24) ao pequeno número daqueles que recebem a Palavra
pregada com fé salvífica: “Se um sermão é pregado, digamos, a cem pessoas, vinte o
recebem com a obediência pronta de fé, enquanto o resto o toma como sem valor, ou ri, ou
vaia ou detesta-o”, disse Calvino.48 Ele também escreveu: “pois, embora todos, em exceção,
a quem a Palavra de Deus é pregada, sejam ensinados, mesmo assim apenas um em dez, se
tanto, o saboreia; sim, escassos um em cem aproveita a ponto de ser habilitado, desse
modo, a prosseguir num rumo certo até o final”.

Para Calvino, a tarefa mais importante do evangelismo era a edificação dos filhos de
Deus na fé mais santa e convencer os incrédulos da hediondez do pecado, dirigindo-os a
Cristo Jesus como o único Redentor.

Evangelismo em Genebra
Calvino não limitava a pregação à sua própria congregação. Ele também a usava como
instrumento para divulgar a Reforma de um extremo ao outro da cidade de Genebra. Aos
domingos os Estatutos Genebrinos requeriam sermões em cada uma das três igrejas na
alvorada e às 9 da manhã. À tarde as crianças vinham para as classes de catecismo. Às três
da tarde, sermões eram pregados novamente em cada igreja.

Durante a semana eram programados sermões em diferentes horários nas três igrejas
nas Segundas, Quartas e Sextas. Ao tempo da morte de Calvino, um sermão era pregado
em cada igreja, todos os dias da semana.

Mesmo assim não era suficiente. Calvino desejava reformar os genebrinos em todas
as esferas da vida. Em seus estatutos eclesiásticos ele requeria três funções adicionais além
da pregação que cada igreja deveria oferecer:

1. Ensino. Os doutores em teologia deveriam explicar a Palavra de Deus, primeiro


em conferências informais, depois em ambiente mais formal da Academia de
Genebra, estabelecida em 1559. Ao tempo da aposentadoria do sucessor de
Calvino, Theodoro Beza, a Academia de Genebra havia treinado 1.600 homens
para o ministério.

2. Disciplina. Os presbíteros designados dentro de cada congregação deviam, com a


assistência dos pastores, manter a disciplina cristã, observando os membros da
igreja e seus líderes.

46
Leroy Nixon: John Calvin: Pregador Expositivo (Grand Rapids: Eerdmans, 1950), pg 65.
47
John Calvin: Opera quase supersunt omnia, 79: 783.
48
CALVINO, J. Institutas 3.24.12.
18
SOTERIOLOGIA
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3. Caridade. Os diáconos em cada igreja deviam receber as contribuições e distribuí-


las aos pobres.

Inicialmente a reforma de Calvino encontrou dura oposição local. As pessoas


particularmente objetavam a utilização pela igreja de excomunhão para reforçar a
disciplina eclesiástica. Depois de anos de controvérsias, os cidadãos locais e refugiados
religiosos que apoiavam Calvino ganharam o controle da cidade. Nos últimos nove anos da
sua vida, o controle de Calvino sobre Genebra foi quase total.

Entretanto, Calvino desejava fazer mais do que reformar Genebra. Ele queria que a
cidade se tornasse uma espécie de modelo do reino de Cristo para o mundo inteiro. Na
verdade a reputação e a influência da comunidade genebrina espalhou-se para a vizinha
França, depois para a Escócia, Inglaterra, Holanda, parte da Alemanha ocidental, e partes
da Polônia, Tchecoslováquia e Hungria. A igreja de Genebra tornou-se um modelo para o
movimento reformado inteiro.

A Academia de Genebra também assumiu um papel criticamente importante, pois


logo se tornou mais que um lugar para se aprender teologia. Em “João Calvino: Diretor de
Missões”, Philip Hugues escreve:

“A Genebra de Calvino não foi uma torre de marfim teológico que viveu para si
mesma. As naves humanas eram equipadas e reparadas neste porto…para que
pudessem ser lançadas nos circunvizinhos oceanos das necessidades do mundo,
encarando bravamente cada tempestade e cada perigo que as aguardava, a fim de
trazer a luz do Evangelho de Cristo para aqueles que estavam na ignorância e
escuridão de onde eles próprios originalmente vieram”.49

Através da influência da Academia, John Knox levou a doutrina evangélica para a sua
Escócia natal; ingleses foram equipados para liderar a causa na Inglaterra; italianos
tiveram o que necessitavam para ensinar na Itália e os franceses (que formavam a grande
massa de refugiados) estenderam o Calvinismo para a França. Inspirados pela visão
verdadeiramente ecumênica de Calvino, Genebra tornou-se o núcleo de onde a
evangelização se espalhou por todo o mundo. De acordo com o Registro da Companhia de
Pastores, entre 1555 e 1562, oitenta e oito homens foram enviados para fora de Genebra,
para diferentes lugares do mundo. Estes dados são lamentavelmente incompletos. Em
1561, que parece ter sido o ano culminante da atividade missionária, o envio de apenas
doze homens está registrado, enquanto que outras fontes indicam que perto de vinte vezes
aquele número - não menos do que 142 - saíram em missões particulares. 50

Esta é uma espantosa realização para um esforço que começou com uma pequena
igreja se debatendo dentro de uma minúscula cidade - república. Contudo, o próprio
Calvino reconheceu o valor estratégico do esforço. Ele escreveu para Bullinger: “Quando
considero quão importante é este recanto (de Genebra) para a propagação do reino de
Cristo, eu tenho uma boa razão para desejar que ele seja cuidadosamente vigiado”.51

Em um sermão em 1 Timóteo 3:14, Calvino pregou: “Que possamos atentar para o que
Deus tem nos ordenado, que Ele teria prazer em mostrar Sua graça, não apenas sobre uma

49
CALVINO, J. Comentário sobre Salmos 119:101.
50
A Herança de João Calvino, ed. John H. Bratt, pg. 44.
51
Ibid., pgs 45-46.
19
SOTERIOLOGIA
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cidade ou um punhado de pessoas, mas que reinaria sobre todo o mundo; que cada um
possa servi-lo e adorá-lo em verdade”.52

3.4. Vocação Eficaz

CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER CAPÍTULO X - DA VOCAÇÃO EFICAZ

I. Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por
ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-
os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e
transpondo-os para a graça e salvação. Isto ele o faz, iluminando os seus entendimentos
espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes
os seus corações de pedra e dando lhes corações de carne, renovando as suas vontades e
determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a
Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela
sua graça.

 João 15:16; At. 13:48; Rom. 8:28-30 e 11:7; Ef. 1:5,10; I Tess. 5:9; 11 Tess. 2:13-14;
IICor.3:3,6; Tiago 1:18; I Cor. 2:12; Rom. 5:2; II Tim. 1:9-10; At. 26:18; I Cor. 2:10,
12: Ef. 1:17-18; II Cor. 4:6; Ezeq. 36:26, e 11:19; Deut. 30:6; João 3:5; Gal. 6:15;
Tito 3:5; I Ped. 1:23; João 6:44-45; Sal. 90;3; João 9:3; João6:37; Mat. 11:28;
Apoc. 22:17.

II. Esta vocação eficaz é só da livre e especial graça de Deus e não provem de qualquer
coisa prevista no homem; na vocação o homem é inteiramente passivo, até que, vivificado e
renovado pelo Espírito Santo, fica habilitado a corresponder a ela e a receber a graça nela
oferecida e comunicada.

 II Tim. 1:9; Tito 3:4-5; Rom. 9:11; I Cor. 2:14; Rom. 8:7-9; Ef. 2:5; João 6:37; Ezeq.
36:27; João5:25.

III. As crianças que morrem na infância, sendo eleitas, são regeneradas e por Cristo salvas,
por meio do Espírito, que opera quando, onde e como quer, Do mesmo modo são salvas
todas as outras pessoas incapazes de serem exteriormente chamadas pelo ministério da
palavra.

 Gen. 17:7; Sal. 105:8-10; Ezeq. 16-20-21; Luc. 18:1516; At. 2:39; Gal. 3:29; João
3:8 e 16:7-8; I João 5: 12; At. 4:12.

IV. Os não eleitos, posto que sejam chamados pelo ministério da palavra e tenham algumas
das operações comuns do Espírito, contudo não se chegam nunca a Cristo e portanto não
podem ser salvos; muito menos poderão ser salvos por qualquer outro meio os que não
professam a religião cristã, por mais diligentes que sejam em conformar as suas vidas com
a luz da natureza e com a lei da religião que professam; o asseverar e manter que podem é
muito pernicioso e detestável.

52
Bonnet, Cartas de Calvino 2: 227
20
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

 Mat. l3:14-15; At. 28:24; Mat. 22:14; Mat. 13:20-21, e 7:22; Heb. 6:4-5; João 6:64-
66, e 8:24; At. 4:12; João 14:6 e 17:3; Ef. 2:12-13; II João 10: l 1; Gal. 1:8; I Cor.
16:22.

Nem todos os que ouvem o convite do Evangelho, aceitam e chegam à salvação.


Alguns, sim, outros não. Como se pode explicar essa questão?

Diversas posturas teológicas existem, no sentido de responder a essa questão.53 Por


exemplo:

o Os semi-pelagianos e arminianos – Têm ensinado que a aceitação do convite


evangélico depende, em última instância, exclusivamente da vontade do ser
humano. Todos os que ouvem o Evangelho têm habilidade para aceitá-lo.

o A tradição teológica de Agostinho – Os que seguem essa tradição afirmam que a


razão pela qual as pessoas aceitam o convite do Evangelho deve ser buscada, em
última instância, não na vontade humana, mas na graça soberana de Deus.

o A tradição reformada – Tem sido mantida por teólogos calvinistas ou


reformados. Segundo a Teologia Reformada, seres humanos são, por natureza,
inabilitados a responder ao convite do Evangelho com arrependimento e fé. A
razão disso é que são todos nascidos em estado e condição de pecado conhecido
como “pecado original”, constituindo isso em “depravação total” e “inabilidade
spiritual”. Somente Deus pelo seu Espírito pode abrir o coração da pessoa,
capacitando-a a crer. Isso é o que teólogos reformados denominam de “vocação
eficaz”.

Terminologia
Alguns teólogos reformados utilizam o termo “vocação interna” para descrever o tipo
de chamado de Deus para a salvação. Essa terminologia implica que o convite do
Evangelho deve ser visto como um “chamado externo”.

HOEKEMA, prefere utilizar o termo “vocação eficaz”, que significa mais


apropriadamente: “A abertura de coração operada por Deus, que capacita uma pessoa a
crer.” 54

Base bíblica
Será que a Bíblia ensina algo sobre a “vocação eficaz” – Um chamado em que Deus
eficazmente nos habilita a responder ao convite do evangelho com um “Sim?” Na verdade,
ensina, como por exemplo: 1 Coríntios 1.22-24:

“Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós
pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas
para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de
Deus e sabedoria de Deus.”

Quando Paulo pregava, sentia que alguns aceitavam e outros rejeitavam sua
mensagem. A única maneira pela qual ele teria descoberto que o Cristo crucificado que ele

53
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, pp. 87 ss.
54
Cf. Ibid, p. 88.
21
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

pregava era uma pedra de tropeço para alguns judeus e loucura para alguns gregos teria
sido por pregar a eles e observar suas respostas. Mesmo aqueles aos quais o Cristo pregado
era pedra de tropeço ou loucura, porém, teriam recebido o convite do evangelho. Quando
Paulo acrescenta: “... para os que foram chamados, tanto judeus como gregos; pregamos a
Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”, chamados de maneira a responder
favoravelmente ao evangelho. Assim, a palavra grega kletois, como usada nessa passagem,
deve se referir à vocação eficaz.

Vejamos ainda o texto de Romanos 8.28-30:

“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão
conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a
fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses
também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a
esses também glorificou.”

“Chamados” no verso 30, deve ser entendido também como se referindo à vocação
eficaz, por duas razões:

1. “Chamado” está apenas expressando na forma de verbo (ekalesen) aquilo que foi
dito no verso 28 em forma de substantivo: “[aqueles] que foram chamados”
(kletois). As pessoas mencionadas como “aqueles chamados” no verso 30 são as
mesmas pessoas “chamadas segundo seu propósito”, do verso 28. Assim, os versos
29 e 30 fundamentam o verso 28.

2. Todos os que foram “chamados” no verso 30 são também mencionados como


justificados: “aos que chamou a esses também justificou”. Ninguém pode dizer
que todos os que receberam o chamado do evangelho foram justificados
independentemente de crerem. Mas pode-se dizer que todos os que foram
efetivamente vocacionados são justificados – e que eventualmente serão
glorificados. “Chamados” portanto, no verso 28 e 30, querem dizer “efetivamente
vocacionados”.

Como se pode definir vocação eficaz? Segundo HOEKEMA, uma definição mais
completa da vocação eficaz é esta:

o “A ação soberana de Deus através do Espírito Santo, pela qual ele habilita o
ouvinte do convite do evangelho a responder ao apelo em arrependimento, fé e
obediência.” 55

Os alvos da Vocação Eficaz


Somos chamados para algum alvo ou fim; a uma qualidade de vida. O Novo
Testamento indica, de diversas maneiras, a que alvos a vocação eficaz do Senhor nos
convoca:

1. À comunhão com Jesus Cristo (1 Co 1.9).


2. À vida eterna (1 Tm 6.12).
3. Ao reino e à glória de Deus (1 Ts 2.12).

55
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, p. 93.
22
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

4. A uma vida de santidade (1 Ts 4.7.; 2 Tm 1.9).


5. A seguir a Cristo como exemplo de sofrimento (1 Pe 2.21).
6. À liberdade e paz (Gl 5.13; Cl 3.15).
7. Para ganhar o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus (Fp 3.14).

3.5. Regeneração

Os Cânones de Dort (1618-1619) - Capítulos 3 e 4

A corrupção do homem, a sua conversão a Deus e o modo dela

 12. Esta conversão é aquela regeneração, renovação, nova criação, ressurreição dos
mortos e vivificação, tão exaltada nas Escrituras, a qual Deus opera em nós, sem nós.
Mas esta regeneração não é efetuada pela pregação apenas, nem por persuasão moral.
Nem ocorre de tal maneira que, havendo Deus feito a sua parte, resta ao poder do
homem ser regenerado ou não regenerado, convertido ou não convertido.

 Ao contrário, a regeneração é uma obra sobrenatural, poderosíssima, e ao mesmo


tempo agradabilíssima, maravilhosa, misteriosa e indizível. De acordo com o
testemunho da Escritura, inspirada pelo próprio autor desta obra, regeneração não é
inferior em poder à criação ou à ressurreição dos mortos. Conseqüentemente todos
aqueles em cujos corações Deus opera desta maneira maravilhosa são, certamente,
infalivelmente e efetivamente regenerados e de fato passam a crer.

 Portanto a vontade que é renovada não é apenas acionada e movida por Deus, mas ela
age também, sob a ação de Deus, por si mesma. Por isso também se diz corretamente
que o homem crê e se arrepende mediante a graça que recebeu.

É preciso atentar para a distinção que C. S. Lewis citado por Hoekema apresenta, no
que concerne a esse ponto doutrinário importante que é a regeneração, demonstrando a
existência de dois tipos de vida:

Dois tipos de vida: Bios e Zoe. Bios é o tipo de vida que todas as pessoas têm – vida
biológica, mantida por comida, ar e água, mas que eventualmente termina em morte.
Zoe, por outro lado, é vida espiritual, o tipo de vida que Deus nos dá quando
nascemos de novo – vida eterna. Esses dois tipos de vida não são só diferentes; mas
são opostas entre si. Bios é basicamente centrada em si mesma, ao passo que Zoe é
centrada em Deus e nos outros. 56

A Bíblia fala de regeneração em três sentidos diferentes, mas relacionados:

1. Como início da nova vida espiritual implantada em nós pelo Espírito Santo,
habilitando-nos ao arrependimento e à fé (Jo 3.3,5);

2. Como a primeira manifestação da nova vida em nós implantada (Tg 1.18; 1 Pe


1.23);

3. Como a restauração de toda a criação até sua perfeição final (Mt 19.28). Na última
passagem bíblica mencionada a palavra grega palingenesia, traduzida por
56
Cf. LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples, p 90, 154. In: HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, p. 99.
23
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

“regeneração”, e encontrada em só um outro lugar do Novo Testamento (Tt 3.5), é


usada para descrever a renovação do universo todo – os “novos céus e nova terá”
de 2 Pe 3.13 e Apocalipse 21.1-4.57

Quanto à perspectiva da regeneração aparece relacionada com o lugar da tradição


concreta da graça de Cristo para o crente. Ela é pois, questão das formas e das
modalidades da vida cristã.58 A regeneração tem a ver com o reformar da imagem de Deus
em nós.59

Essa regeneração é espiritual, pois significa o alvo da imagem de Deus, que restaura o
homem.60 Essa reforma ou restauração é um processo de um estado inscrito
originariamente em Adão e que foi retomado a partir do acabamento em Cristo, numa
perspectiva dinâmica que se inscreve no tempo, em que Deus restaura o homem e o
conforma a sua imagem. Esse processo é contínuo e crescente.61 É uma militância no
coração do mundo e se desenvolve marcada por um dom de perseverança.62 Dentro de um
quadro geral, aparece sublinhada por uma perspectiva teológica retida, que indica
sucintamente como a matéria é concretamente tratada.63

No que toca à temática central, a regeneração é dada pela “mortificação de nossa


carne” e pela “vivificação do Espírito”.64 Essa temática que na sua dualidade, atravessa
toda a realidade da “regeneração” ou da “santificação”, é uma realidade que se lança no
coração de um desenvolvimento da vida como tal. Essa é a vida do crente, em seu corpo, de
forma integral. Esse corpo tem a ver com a realidade da criação de Deus, pois se pode
afirmar que é um feito do Espírito Santo, que nos faz participar de toda a realidade de
Cristo.

A regeneração é um trabalho interno do Espírito, designando a força e a eficácia de


nossa salvação operada por Cristo. No coração do mundo o crente é ratificado como
pertencente a Deus, e na abertura de um espaço operado por Cristo, e através dele, se dá a
vocação do humano. Essa vocação se concretiza mediante uma ação autenticamente
espiritual, porque é mediante a ação do Espírito.

A figura de Jesus Cristo é asseguradamente decisiva à regeneração, mas não se pode


ter acesso a ele pela via eclesial ou pela graça de práticas de piedade, as quais têm a
intenção de auxiliar e até de presidir65 essa ação. A referência passará, pois, essencialmente
pelo Espírito.

A regeneração especialmente em seu sentido mais estrito, pode ser definida como a
obra do Espírito Santo pela qual ele inicialmente traz as pessoas à viva união com Cristo,

57
HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, p. 99.
58
CALVINO, J. Institutas, III, i.1.
59
Cf. CALVINO, J. Commentaire de l’Epître aux Ephésiens, 4, 24. In: Le Christ de Calvin, p. 160.
60
CALVINO, J. Institutas, III, III, pt. 9. In: Le Christ de Calvin, p. 160.
61
CALVINO, J. Institutas, III, III, pt. 9. In: Le Christ de Calvin, p. 161.
62
CALVINO, J. Institutas, III, XXIV, pt. 6. In: Le Christ de Calvin, p. 161.
63
Para maior desenvolvimento, se poderá conferir FUCHS, E., La morale selon Calvin, Paris, Cerf, 1986. In: Le Christ
de Calvin, p. 161.
64
CALVINO, J. Institutas, III, III, pts. 5 e 8. In: Le Christ de Calvin, p. 162.
65
Pode-se observar o que escreveu WEBER, M., <<... le sacrament de la pénitence dont la fonction correpond au
caractère le plus profond du catholicisme>> (... o sacramento da penitência cuja função corresponde ao caráter mais
profundo do catolicismo), L’Ethique protestante et l’esprit du capitalisme (1904-5, depois 1920), Paris, Plon, 1964. In:
Le Christ de Calvin, p.163.
24
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

transformando seus corações para que aqueles que estão espiritualmente mortos se
tornem espiritualmente vivos, habilitados a se arrependerem do pecado, crer no evangelho
e servirem ao Senhor.66

Por que a regeneração?


O entendimento reformado acerca da regeneração tem a ver com o que está acoplado
ao tema, em face da concepção da depravação humana. A Bíblia ensina que os seres
humanos são totalmente depravados (Jr 17.9; 13.23; Rm 7.18; 8.7,8; 1 Co 2.14; Ef 2.1 ...).

Essa é a nossa condição natural. É indubitavelmente claro que não podemos nos dar,
ou ajudar a nos dar, vida espiritual, mais do que um cadáver pode dar a si mesmo vida
biológica.

À luz dessas demonstrações bíblicas da natureza humana caída, a regeneração precisa


ser entendida, não como um ato que Deus e o homem operam juntos, mas como obra de
Deus unicamente.

A regeneração é profundamente misteriosa. Ela é um ato de Deus e jamais podemos


observar ou experimentar a regeneração; podemos somente observar seus efeitos. Assim,
entendendo a regeneração no seu sentido estrito, como a implantação da nova vida, jamais
será possível estar certo de quando ela ocorre; podemos deduzir de certas evidências com
maior ou menos acuracidade em ralação a nós mesmos, do que nas noutras pessoas.67

A natureza essencial da regeneração68

1. É uma transformação instantânea. Não é um processo gradual como a


santificação progressiva. Ver em Atos 16.14 sobre a conversão de Lídia. Ainda que
não possamos estar certos de quando a regeneração ocorre, ela tem de ser
instantânea, uma vez que não há meio termo entre a morte e a vida.

2. É uma transformação sobrenatural. É puramente a ação de Deus. Não é uma


mudança levada a efeito por persuasão moral.

3. É uma mudança radical. Significa que é uma mudança na raiz de nossa natureza.

4. Significa a adoção ou “implantação” da nova vida espiritual. É o momento em


que o pecador morto é espiritualmente vivo, que a resistência a Deus é mudada
para a não-resistência, e que a inimizade contra Deus é transformada em amor.

5. É uma mudança que afeta a pessoa toda. É como já foi visto anteriormente: é
uma reforma da pessoa integral. Atinge o corpo e a alma; é a doação de um
coração novo.

6. É uma mudança que ocorre num nível subconsciente. Isso é evidente, primeiro,
pela forma que as Escrituras descrevem nosso estado natural. Assim, devemos ser
mudados na raiz do nosso ser, de modo integral pelo sobrenatural.

3.6. Conversão
66
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, p. 100.
67
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, p. 107.
68
Ibid, pp. 108-110.
25
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

Os Cânones de Dort 1618-1619 - Capítulos 3 e 4

A corrupção do homem, a sua conversão a Deus e o modo dela

 11. Deus realiza seu bom propósito nos eleitos e opera neles a verdadeira conversão da
seguinte maneira: Ele faz com que ouçam o Evangelho mediante a pregação e
poderosamente ilumina suas mentes pelo Espírito Santo de tal modo que possam
entender corretamente e discernir as coisas do Espírito de Deus. Mas pela operação
eficaz do mesmo Espírito regenerador, Deus também penetra até os recantos mais
íntimos do homem. Ele abre o coração fechado e amolece o que está duro, circuncida o
que está incircunciso e introduz novas qualidades na vontade. Esta vontade estava
morta, mas Ele a faz reviver; era má, mas Ele a torna boa; estava indisposta, mas Ele a
torna disposta; era rebelde, mas Ele a faz obediente. Ele move e fortalece esta vontade
de tal forma que, como uma boa árvore, seja capaz de produzir frutos de boas obras (I
Cor 2:14).

A conversão pode ser definida como o ato consciente de uma pessoa regenerada, no
qual ela se volta para Deus em arrependimento e fé.69 Isso envolve um duplo retorno: para
longe do pecado e na direção do serviço a Deus. Em seu sentido mais rico, a conversão
inclui os seguintes elementos:

1. Iluminação da mente, pela qual o pecado é conhecido como ele é na realidade, um


comportamento que desagrada a Deus.

2. Autêntica tristeza pelo pecado, não apenas remorso por causa dos seus resultados
amargos.

3. Humilde confissão do pecado, tanto para com Deus como em relação aos outros
que foram feridos pelo pecado.

4. Ódio pela pecado, incluindo a decisão de fugir dele.

5. Retorno a Deus como gracioso Pai em Cristo, com fé que ele pode e perdoa nossos
pecados.

6. Alegria de coração em Deus por meio de Cristo.

7. Amor genuíno por Deus e pelos outros, juntamente com prazer no serviço de
Deus.

A conversão é primeiramente, obra de Deus. Mesmo que a conversão seja a evidência


externa da regeneração, a nova vida espiritual implantada na regeneração continua a
existir somente na dependência de Deus. Não podemos manter essa nova vida pela nossa
própria força. Temos que continuar a sermos fortalecidos com poder pelo Espírito de Deus
em nosso ser interior (Ef 3.16).

A conversão é também uma obra do homem. Tanto no Antigo Testamento quanto no


Novo Testamento a conversão é retratada mais freqüentemente como obra de o homem do

69
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, p. 119-126.
26
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

que de Deus. A palavra veterotestamentária, shub, significando “voltar atrás”, ocorre 74


vezes como descrição da volta do homem a Deus, mas só cinco vezes com o designativo da
conversão como obra de Deus; no Novo Testamento as palavras para conversão são usadas
26 vezes em relação à atividade humana, mas só duas ou três vezes indicando a conversão
como obra de Deus.70

Em passagens das Escrituras Deus nos chama à conversão, a tornar-nos para ele, ao
arrependimento e à fé, à reconciliação com ele. Na doutrina da conversão vemos um
exemplo do paradoxo: a conversão é obra de Deus e obra do homem. É preciso que Deus
nos converta e, ainda assim, nós precisamos nos converter a ele; ambos são verdadeiros.
Não podemos descartar nenhum lado do paradoxo.71

Sobre o que têm a missão de exortar seus ouvintes, honesta e ardentemente, a


converterem-se, confiando que Deus os habilitará para tanto, os fará mais convictos da
maravilhosa graça de Deus.

Variações no padrão de conversão


Ainda que a verdadeira conversão ocorra uma só vez, pode haver muitas variações no
seu padrão. O padrão da conversão pode também variar de outras formas.72 Mesmo que a
pessoa toda esteja envolvida, a conversão pode ser predominantemente intelectual, volitiva
ou emocional.

Um exemplo de uma conversão principalmente intelectual pode ser a de C. S. Lewis,


que em sua autobiografia, Surprised by Joy (Surpreendido pela alegria), diz que ele lutava
com problemas intelectuais e dificuldades até que, finalmente, tendo enfrentado as
dificuldades e tendo se submetido a Deus, ele o arrastou, esperneando e gritando, para o
Reino, “o mais desalentado e relutante convertido em toda a Inglaterra”.73

Um exemplo de conversão predominantemente volitiva seria a de Agostinho que,


depois de anos de batalha infrutífera contra seus pecados, finalmente, depois de ler
Romanos 13.14 , encontrou em Cristo a força para vencer.74

Um exemplo de conversão principalmente emocional seria a de John Bunnyan que,


tendo experimentado anos de convulsão emocional causada pelo medo de ter cometido o
pecado imperdoável, finalmente encontrou a paz de alma no descanso de Cristo.75

A variação mais comum no padrão é entre a conversão gradual e a conversão


instantânea ou de crise. Um exemplo bíblico marcante de conversão de crise é o do
apóstolo Paulo. É difícil imaginar uma ocorrência mais dramática: respirando ameaça,
Saulo, a caminho de Damasco para perseguir os cristãos – de repente, através de uma luz
que cegava e de uma voz dos céus – foi transformado em Paulo, o missionário (At 9.1-19;
veja ainda 22.3-14 e 26.9-18).

70
KUYPER, Abraham. Dictaten Dogmatick, 2ª ed. (Kampen: Kok, 1910), Vol. 4, Lócus de Salute, p. 94. In:
HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, p. 119-126.
71
Cf. diversos tipos conversão elencados por HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, p. 126 ss.
72
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, pp. 124-126.
73
Cf. KERR e MULDER, Conversions (Conversões), pp. 199-204. In: HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, pp.
124.
74
Cf. Ibid., pp. 11-14. In: Ibid.
75
Cf. Ibid., pp. 48-43. In: Ibid.
27
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

A conversão é um passo ou aspecto necessário no processo de salvação. Nem todos os


do povo de Deus experimentam a conversão da mesma forma. Não podemos determinar
um padrão de conversão que sirva a todos.

3.7. Arrependimento
CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER
CAPÍTULO XV - DO ARREPENDIMENTO PARA A VIDA
I. O arrependimento para a vida é uma graça evangélica, cuja doutrina deve ser tão
pregada por todo o ministro do Evangelho como a da fé em Cristo.

 At. 11: 18; Luc. 24:47; Mar. 1: 15; At. 20:21.

II. Movido pelo reconhecimento e sentimento, não só do perigo, mas também da impureza
e odiosidade do pecado como contrários à santa natureza e justa lei de Deus;
apreendendo a misericórdia divina manifestada em Cristo aos que são penitentes, o
pecador pelo arrependimento, de tal maneira sente e aborrece os seus pecados, que,
deixando-os, se volta para Deus, tencionando e procurando andar com ele em todos os
caminhos dos seus mandamentos.

 Ezeq. 18:30-31 e 34:31; Sal.51:4; Jer. 31:18-19; II Cor.7:11; Sal. 119:6, 59, 106; Mat.
21:28-29.

III. Ainda que não devemos confiar no arrependimento como sendo de algum modo uma
satisfação pelo pecado ou em qualquer sentido a causa do perdão dele, o que é ato da
livre graça de Deus em Cristo, contudo, ele é de tal modo necessário aos pecadores, que
sem ele ninguém poderá esperar o perdão,

 Ez. 36:31-32 e 16:63; Os. 14:2, 4; Rom. 3:24; Ef. 1: 7; Luc. 13:3, S; At. 17:30,31.

IV. Como não há pecado tão pequeno que não mereça a condenação, assim também não há
pecado tão grande que possa trazer a condenação sobre os que se arrependem
verdadeiramente.

 Rom. 6:23; Mat. 12:36; Isa. 55: 7; Rom. 8:1; Isa. 1: 18.,

V. Os homens não devem se contentar com um arrependimento geral, mas é dever de


todos procurar arrepender-se particularmente de cada um dos seus pecados.

 Sal. 19:13; Luc. 19:8; I Tim. 1:13, 15.

VI. Como todo o homem é obrigado a fazer a Deus confissão particular das suas faltas,
pedindo-lhe o perdão delas, fazendo o que, achará misericórdia, se deixar os seus
pecados, assim também aquele que escandaliza a seu irmão ou a Igreja de Cristo, deve
estar pronto, por uma confissão particular ou pública do seu pecado e do pesar que por
ele sente, a declarar o seu arrependimento aos que estão ofendidos; isto feito, estes
devem reconciliar-se com ele e recebê-lo em amor.
28
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

 Sal. 32:5-6; Prov. 28:13; I João 1:9; Tiago 5: 16; Luc. 17:3-4; Josué 7:19; II Cor.
2:8.

Regeneração ou arrependimento que é mediante a fé. 76


É de fundamental importância conhecer em detalhe o pensamento teológico de
Calvino quando trata do tema da Regeneração, ou como também é visto de igual forma,
como sendo Arrependimento. Como será visto no decorrer da exposição em questão, o
fator preponderante que marca essa ação do Espírito Santo no coração do pecador, torna-
se evidente pela fé, que se constitui elemento imprescindível.

Sobre o arrependimento.
Segundo Calvino o arrependimento não apenas segue de contínuo a fé, mas até dela
nasce. Não existe arrependimento em relação à tirania de Satanás, do jugo do pecado e à
mísera servidão dos vícios, antes da fé. Não podem os frutos existir antes das árvores, usa o
Reformador este argumento. Logo, esse arrependimento se assim existir, não pode ser
encontrado nele nenhum poder, e será totalmente movido por argumentos falsos, que não
correspondem ao que está na Escritura.77

Este é o esquema segundo o pensamento de Calvino:

 FÉ  ARREPENDIMENTO OU REGENERAÇÃO  VIDA NOVA

O arrependimento como se observa no esquema acima é diretamente fruto da fé.


Pode-se imaginar uma bela árvore com seus frutos abundantes, e encontrar ali a fé, que
marca a vida da pessoa ou da comunidade eleita por Deus, segundo a Sua graça.

Cristo e João Batista iniciaram suas pregações exortando o povo ao arrependimento, e


acrescentaram que o Reino de Deus está próximo (Mt 3.2; 4.17). Os apóstolos receberam
tal incumbência (At 20.21).

Calvino argumenta que pessoas aludem primeiro o arrependimento, e caem no


encantamento das sílabas não dando atenção ao seu sentido que entre si estejam ligadas.

De modo contrário, pergunta: por ventura, da própria graça e da promessa de


salvação não deveriam a causa de arrepender-se? O sentido dos textos da Escritura é o
seguinte: “Porque o Reino dos Céus se há feito próximo, por isso, arrependei-vos”. Isso fez
cumprir a profecia de Isaias em relação à voz a clamar no deserto: “Preparai o caminho do
Senhor, fazei retas as veredas de nosso Deus” (Mt 3.3; Is 40.3).78

Conhecer a Deus é a base para que o homem se arrependa dos seus pecados, pois
retidão nenhuma se pode achar onde não reina o Espírito que Cristo recebeu a fim de que o
comunicasse a seus membros. O Salmo 130.4 diz: “Contigo, porém, está o perdão, para
que Te temam”. Ninguém jamais reverenciará a Deus, senão aquele que o haja de confiar a
si propício. Em Oséias 6.1 está escrito: “Vinde, retornemos ao Senhor, porque Ele nos

76
As Institutas, Volume III: páginas 55-83. Este assunto abordado por Calvino apresenta a Regeneração sendo o
mesmo que Arrependimento. Obra de Deus no coração do homem pecador, que livra do pecado e da morte.
77
As Institutas, Volume III: página 55.
78
Ib. Página 56.
29
SOTERIOLOGIA
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apanhou e nos salvará, feriu-nos e nos curará”. O perdão proporcionado por Deus é para
que os homens em seus pecados se não fiquem atormentados.79

A duas faces do arrependimento.


Contrição e vivificação são as duas faces do arrependimento. Segue-se o que Calvino
argumenta sobre ambas:

 Contrição: que é denominada também de “mortificação”. É a aflição da alma e o


pavor concebido do reconhecimento do pecado e do senso de juízo de Deus.

 Vivificação: é a consolação da Fé, quando o homem, prostrado pela consciência do


pecado e abatido pelo temor de Deus, mirando, a seguir, a bondade de Deus, sua
misericórdia, graça, salvação, que é através de Cristo, reergue-se, reanima-se,
recobra alento e como que da morte à vida se passa.80

Calvino, também nesse desdobramento argumenta sobre o “arrependimento legal” e


o “arrependimento evangélico”:

 O legal: seguem-se os exemplos de Caim, Saul, Judas. Reconhecida a gravidade de


seus pecados, se tomaram de pavor da ira de Deus, cogitando Deus apenas como
vingador e Juiz, neste sentir eles falharam. O arrependimento deles não foi outra
coisa senão que antecâmara do inferno.

 O evangélico: aqueles que são espicaçados pelo pecado, são soerguidos e refeitos
pela confiança na misericórdia de Deus, e se voltam para o seu Senhor. Ezequias
quando soube que ia morrer, começou a chorar, e orou a Deus (2 Rs 20.2; Is 38.2)
e, havendo firmemente visualizado a bondade de Deus, recobrou a confiança. Os
ninivitas, conscientizados da ameaça de destruição, vestidos de saco e cinza,
oraram, esperando que o Senhor se pudesse demover e ser desviado o furor de sua
ira (Jn 3.5-9). O rei Davi confessou que havia pecado quando recenseou o povo de
Israel, acrescentou: “Remove, Senhor, a iniqüidade do teu servo” (2 Sm 24.10).
Reconheceu também o crime de adultério e se prostrou diante do Senhor, mas ao
mesmo tempo, esperou o perdão de Deus (2 Sm 12. 13,16). Tal foi também o
arrependimento do apóstolo Pedro, que chorou, de fato, amargamente, entretanto,
não cessou de esperar (Mt 26.75; Lc 22.62).81

O arrependimento é definido por Calvino como a volta para Deus em fé.82 Ambos são
diferentes, entretanto, se requer antes ser unidos que ser confundidos. Pode, porventura, o
verdadeiro arrependimento subsistir à parte da fé? Absolutamente que não. Somente
devem ser distinguidos.

79
As Institutas, Volume III: página 56. Sobre esse tema do Arrependimento, da volta do povo a Deus, muitos
estudiosos têm desenvolvido obras de grande valor no livro do profeta Oséias. Cf. as seguintes obras para uma boa
pesquisa: 1. ASURMENDI,J. Oséias. Paulinas, SP, 1992. Coleção Cardenos Bíblicos; 2. EICHRODT,W. The Holy
One in Your Midst. The Theology of Hosea. Páginas 259-273; 3. LIMA, Maria de L. C. Tempo e História na
Concepção Israelita. 1997; 4. Id. A Volta do Povo a Deus em Oséias. 1997; 5. WOLFF, H. W. Guilt and Salvation.
A Study of the Prophecy Hosea. Páginas 274-285.
80
As Institutas, Volume III: página 57.
81
As Institutas, Volume III: página 58. Calvino conhecia as leis, pois passara pela universidade, aprendendo as
técnicas do Direito, logo, utiliza a linguagem dessa Ciência.
82
Ib. Página 58.
30
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

Para os hebreus arrependimento é derivado da palavra que significa “conversão” ou


“retorno”. Para os gregos, significa “mudança da mente e do desígnio”. Emigrando de nós
mesmos, nos voltemos para com Deus e, deposta a mente antiga, de uma nova nos
revistamos.

Com mais abrangência Calvino assim define “arrependimento”:

É ele a verdadeira conversão de nossa vida a Deus, procedente de um sincero e real


temor de Deus, que consista da mortificação de nossa carne e do velho homem e da
vivificação do Espírito”.83

Arrependimento: volta para com Deus, implícita mudança de alma e coração.


Três pontos são fundamentais na concepção de J. Calvino ao tratar deste tema de tão
significada relevância:

 Primeiro: “a volta da pessoa para com Deus”, é transformação não só das obras
exteriores, mas até na própria alma, despojada da sua velha natureza, se produza
frutos de obras correspondentes à sua renovação (Ez 18.31, novo coração).
Verificar o que está em Deuteronômio 6.5; 10.12; 30.2,6,10), a expressão que
constantemente se observa nos profetas, mexendo com os afetos interiores. Para
Calvino, nenhuma passagem há de que melhor se possa perceber qual seja a real
propriedade do arrependimento que Jeremias 4.1,3,4: “Se voltares, ó Israel”, diz o
Senhor, “A Mim voltarás. Arai para vós a terra de plantio e não semeeis sobre
espinheiros; sede circuncidados para o Senhor e removei os prepúcios dos vossos
corações.” Desta forma, Deus abomina o coração dobre (Tg 1.7,8).84

 Segundo: “O arrependimento procede de real temor a Deus.” É despertado no


pecador, antes, o juízo de Deus: que haverá de subir, um dia, ao Seu tribunal, a fim
de exigir a razão de todas as palavras e feitos de todas as pessoas (Jr 4.4; At
17.30,31). A conversão é começada do horror e ódio do pecado, por isso o Apóstolo
enfoca a “tristeza que é segundo Deus” (2Co 7.10), como a causa do
arrependimento. Tristeza, segundo Deus não é o horror ao castigo, mas também
quando odiamos e execramos ao próprio pecado, por isso que o compreendemos
por desagradar a Deus.85

 Terceiro: “mortificação da carne e da vivificação do Espírito”, elementos


integrantes do arrependimento. A Sagrada Escritura constantemente ensina:
“Desiste do mal e faze o bem” (Sl 34.14; 37.27); de igual modo: “Lavai-vos, sede
limpos, removei de meus olhos o mal de vossas obras. Cessai de agir
pervertidamente, aprendei a fazer o bem, buscai o juízo, vinde em socorro ao
oprimido” (Is 1.16-17). Calvino afirma que, cousa assaz difícil e árdua é despir-nos
de nós mesmos e apartarmos-nos de nossa disposição natural. Paulo diz que todo
o afeto da carne é inimizade contra Deus (Rm 8.7). Já o primeiro passo para a
obediência da Lei de Deus é essa renúncia de nossa natureza.

A renovação do Espírito Santo tem seus frutos: de justiça, do juízo e da misericórdia.


Isto se dá pela operação do Espírito de Deus. Somos exortados a despirmos-nos do homem
83
Ib. Página 59. À luz de toda a sua argumentação, considerando a Palavra de Deus, não podemos encontrar outra
definição acerca do “Arrependimento” que esteja mais clara do que a de João Calvino.
84
As Institutas, Volume III: página 60.
85
Ib. Páginas 60-61.
31
SOTERIOLOGIA
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velho, a renunciar o mundo e à carne, dito adeus a nossas concupiscências, sermos


renovados nos espírito de nosso entendimento (Ef 4.22-23). Como se Deus declarasse que,
para que lhe sejamos contados entre os filhos, se faz de mister a destruição de nossa
natureza comum.86
A mortificação da carne e a vivificação do espírito resultam da participação da morte e
da Ressurreição de Cristo, a real regeneração ou arrependimento.87

Para Calvino, esses dois termos, cujo escopo não é outro senão que seja em nós
restaurada a imagem de Deus que fora danificada pelo pecado. Morremos com Cristo, e
ressuscitamos com Ele, para uma nova vida. Somos restaurados à justiça de Deus, da qual
havemos decaído, e esta restauração, na verdade, se não consuma em um momento, ou em
um dia, ou em um ano; pelo contrário, através de avanços contínuos, bem que, por vezes,
de fato lentos, destrói Deus em Seus eleitos as corrupções da carne, limpa-os de suas
sordidezas e a Si os consagra por templos, a verdadeira pureza renovando-lhes os
sentimentos todos, para que se exercitem no arrependimento a vida toda e saibam que esta
luta fim nenhum há senão na morte.88

A regeneração livra da servidão do pecado.


É preciso considerar que não se tem a plena posse da liberdade, até que se despojem
do corpo mortal, logo, há sempre pecado nos santos. O pecado no crente já não reina,
entretanto, continua nele a habitar. Como Calvino argumenta no sentido de resolver essa
questão? Através do Espírito Santo, ao crente é administrado o seu poder, pelo qual se
tornem superiores e vencedores na luta.

Mas, o pecado deixa apenas de reinar, não, contudo, de neles habitar. Foi, como diz
Paulo, crucificado o velho homem (Rm 6.6), assim haver sido abolida nos filhos de Deus a
lei do pecado (Rm 8.2), que no entanto, resquícios ainda existam, não que os dominem,
mas para que os humilhem pela consciência de sua fraqueza. Mas, para que os resquícios
do pecado não sufoquem os filhos de Deus, a força vem pela misericórdia do Senhor e
encontre a libertação dessa condição culposa.89

Calvino diz que o pecado é a concupiscência,90 embora algumas pessoas afirmassem o


contrário no tempo desse Reformador. Segundo Tiago 1.15, “a concupiscência, depois que

86
Ib. Página 62.
87
Ib. Página 62.
88
As institutas, Volume III: página 63.
89
Ib. Páginas 64-65.
90
É muito importante como na Síntese de Metz, Dicionário de Teologia, Loyola, consta uma detalhada definição e
compreensão da Concupiscência. 1. Conceito atual e exame teológico das fontes - É igual a cobiça, desejo, é central
para a antropologia teológica e a teologia moral. Correspondem à atividade de aspirações (desejos), espontaneidades,
tendências e impulsos que precedem ao gozo da atual liberdade. É o ser humano viver para si mesmo. O ser humano é
um ser pluridimensional, tem setores, logo, necessidade de libertar-se, de conhecer, de amar, de ter alguma coisa;
necessidade de vida social. Tem uma série de determinismos, mas nem sempre estão em ordem. É necessário ordená-
los. Eis aí a grande dificuldade. A concupiscência entra nesse meio para gerar incapacidade e resistência para haver essa
integração. A concupiscência atinge o ser humano todo, por causa da situação de pecado. Somente a graça de Deus
pode intervir para haver integração. A Escritura vê na concupiscência a manifestação do domínio universal do pecado
original, que entrou no mundo por intermédio de Adão. O apóstolo Paulo reconhece uma relação próxima e dinâmica
entre pecado e concupiscência, e esta subsiste igualmente no homem verdadeiramente justificado (Rm 13.14); embora
esteja justificado, livre da condenação por Jesus Cristo. Os reformadores sempre compreenderam a concupiscência
como pecado no sentido próprio. 2. Horizontes de compreensão à nível da Teologia - Foi interpretada principalmente
como um apetite (puramente) sensível, em contraste com o espírito. Tomás de Aquino a define como revolta das
potências “inferiores” da alma contra as potências “superiores”. Muito se falou sobre a concupiscência como
sensualidade, mas é, por assim dizer, considerar o que vem antes, a causa de toda a sensualidade. Ela atinge todo o ser.
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SOTERIOLOGIA
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haja concebido, dá à luz o pecado”. Aos atos vergonhosos e às ações viciosas Tiago chama
prole da concupiscência e a esses mesmos fatos atribui o nome de pecado, não se segue,
nem de longe, que alimentar concupiscência não seja causa má e condenável diante de
Deus.91

Em 2 Coríntios 7.11 contém sete causas ou efeitos do arrependimento: diligência ou


solicitude, excusa, indignação, temor, anelo, zelo, vindicação. São disposições associadas
com o arrependimento. Esses frutos do arrependimento são santidade e pureza
desenvolvidas na vida toda. Com quanto maior diligência conforma alguém sua vida à
norma da Lei de Deus, tanto mais seguros sinais exibem de seu arrependimento, quer na
interioridade ou na exterioridade.92

O que se diz da conversão do coração inteiro ao Senhor e do rasgamento não das


vestes, mas do coração, próprio é o arrependimento, com pranto e jejum. Entre nós mui
oportuno haverá de ser o uso do pranto e do jejum, quantas vezes houver o Senhor de
parecer ameaçar-nos de algum flagelo ou calamidade.93 Continua Calvino tratando dessa
questão utilizando o que ele denomina penitência exterior, que é, afinal, confissão de culpa
e pecado antes que real expressão do arrependimento.

Não é necessário sempre isso fazer abertamente, mas, confessar, porém a Deus em
particular, é parte do verdadeiro arrependimento, que não pode ser omitida.94

A Escritura, segundo o Reformador, freqüentemente, tem exortando ao


arrependimento, expressa uma como que passagem da morte à vida, e, em referência a
que o povo se encontre arrependido, significando haver-se ele saído da idolatria e de outras
miseráveis perversões.

Vínculo profundo entre o arrependimento e o perdão de pecados.


Ao anunciar o Reino de Deus, João conclamava à fé, pois através deste, se ensinava
estar próximo; significava ainda o perdão dos pecados, a salvação, a vida e tudo quanto
alcançamos absolutamente em Cristo. Da mesma maneira o próprio Cristo, declarava em
Si abertos os tesouros da misericórdia de Deus; em seguida, exige o arrependimento;
então, finalmente, a confiança para com as promessas de Deus.95

É uma integração lenta, pelo fato de ser concupiscente, o homem descobre que antes de sua liberdade agir, ela está
sendo perturbada pelos setores de sua vida. Alguma coisa que vem antes, por isso, é preciso ir à raiz de todo o pecado, e
não apenas prender-se aos atos livres em termos de “arrependimento contínuo”. É preciso fazer um exame de
consciência. 3. Interpretação teológica - Concupiscência, significa primeiramente: “mundo” que o ser humano já tem
assimilado para a sua realização sensível-espiritual, considerando em caráter universal e existencialmente pré-formado
pela ação culpável de Adão na origem da humanidade. Há impulsos que podem impedir o homem no ponto de partida
de sua própria opção atual numa direção contrária a Deus, determinada por essa ação culpável. O homem, repetidas
vezes pecará, será derrotado, pois a concupiscência em sentido teológico, indica a incapacidade do homem para
configurar total e irrevogavelmente, no sentido de sua opção por Deus. Somente a graça de Deus pode ajudá-lo a
vencer. O homem não vive sem a graça de Deus. A concupiscência é um poder que, continuamente domina e determina
todas as dimensões da livre atuação do homem, ver Rm 7.7. O pecado despertou no ser humano toda a sorte de
concupiscência. Considerando a graça de Deus como a única que pode estabelecer a disponibilidade do homem para
Deus, a concupiscência vai sendo vencida.
91
As Institutas, Volume III: página 67.
92
Ib. Página 71.
93
Ib. Páginas 72-73.
94
Ib. Página 74.
95
As Institutas, Volume III: página 75.
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SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

O ódio pelo pecado, que é o intróito do arrependimento, primeiro nos abre o acesso
ao conhecimento de Cristo, que a nenhum se revela senão a míseros e aflitos pecadores,
que gemem, mourejam, e que estão sobrecarregados; que sofrem fome, padecem sede,
consomem-se de dor e de miséria (Is 61.1-3; Mt 11.5,28; Lc 4.18). Assim nos importa
diligenciar para com o próprio arrependimento, nele animar-nos por toda a vida, perseguí-
lo até o fim, se queremos permanecer firmes em Cristo. Destarte, a vida do cristão é de
contínuo esforço e exercício de mortificar a carne, até que, morta ela inteiramente, o
Espírito de Deus em nós obtenha o reino. 96

Deus, na verdade, afirma que quer a conversão de todos e dirige suas exortações a
todos em comum. A eficácia disso, no entanto, depende do Espírito de regeneração, não
que seja o arrependimento propriamente a causa da salvação, mas porque já se viu que é
ele inseparável da fé e da misericórdia de Deus.97

Deus perdoa todos os pecados, entretanto, exceto o pecado contra o Espírito Santo e
sua real natureza, que não tem perdão.98 Calvino insere a definição de Agostinho sobre este
assunto: “renitência obstinada até a morte, com a desesperança de perdão”. Depois, com
base na divina Palavra, elabora a sua própria definição significando esse pecado é a
rejeição à verdade de Deus; a resistência à graça de Deus, que só os réprobos sabem
proceder, porque não estão em sentido de reverência e adoração, de todo o coração. São
revestidos do espírito de blasfêmia, da mesma forma que os fariseus (Mt 9.34; 12.24).
Estão possuídos da incredulidade e da obstinada rejeição à verdade do evangelho. Desta
maneira, agindo assim, não podem obter o perdão de Deus. Mesmo quando clamam, o
fazem com voz de desespero, longe do verdadeiro arrependimento. Tais foram os exemplos
de Esaú (Hb 12.16-17) e de Acabe (1 Rs 21.28-29).

Mas, os que fazem a experiência da Fé, e que foram e são obedientes à Palavra divina,
mesmo que pequem são perdoados. Confiam no Senhor e sabem que a sua graça não
falhará, porque grande é a sua misericórdia; e todas a suas promessas se cumprem.99

3.8. Fé

CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER
CAPÍTULO XIV - DA FÉ SALVADORA

I. A graça da fé, pela qual os eleitos são habilitados a crer para a salvação das suas almas, é
a obra que o Espírito de Cristo faz nos corações deles, e é ordinariamente operada pelo
ministério da palavra; por esse ministério, bem como pela administração dos sacramentos
e pela oração, ela é aumentada e fortalecida.
 Heb. 10:39; II Cor. 4:13; Ef. 1:17-20, e 2:8; Mat. 28:19-20; Rom. 10:14, 17: I Cor.
1:21; I Ped. 2:2; Rom. 1:16-17; Luc. 22:19; João 6:54-56; Rom. 6:11; Luc. 17:5, e
22:32.

96
Ib. Página 76.
97
Ib. Página 77.
98
Ib. Páginas 78-83.
99
As Institutas, Volume III: páginas 82-83.
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SOTERIOLOGIA
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II. Por essa fé o cristão, segundo a autoridade do mesmo Deus que fala em sua palavra, crê
ser verdade tudo quanto nela é revelado, e age de conformidade com aquilo que cada
passagem contém em particular, prestando obediência aos mandamentos, tremendo às
ameaças e abraçando as promessas de Deus para esta vida e para a futura; porém os
principais atos de fé salvadora são - aceitar e receber a Cristo e firmar-se só nele para a
justificação, santificação e vida eterna, isto em virtude do pacto da graça.

 João 6:42; I Tess. 2:13; I João 5:10; At. 24:14; Mat. 22:37-40; Rom. 16:26; Isa.
66:2; Heb. 11:13; I Tim. 6:8; João1:12; At. 16:31; Gal. 2:20; At. 15: 11.

III. Esta fé é de diferentes graus, é fraca ou forte; pode ser muitas vezes e de muitos modos
assaltada e enfraquecida, mas sempre alcança a vitória, atingindo em muitos a uma
perfeita segurança em Cristo, que é não somente o autor, como também o consumador da
fé.

 Rom. 4:19-20; Mat. 6:30, e 5: 10; Ef. 6:16; I João 4:5; Heb. 6:11, 12, 10:22 e 12:2.

Sem fé 100 o significado da Bíblia e, particularmente, do Novo Testamento, seria


incompreensível. Seria também incompreensível à própria vida cristã.101 Santo Agostinho
gostava muito de citar das versões latinas antigas de Is 7.9 a seguinte expressão: Nisi
credideritis, non intelligetis (Se não crerdes, não entendereis).

No Antigo Testamento Deus é o único fiel, imutável e sempre leal à sua aliança e
promessa. O Novo Testamento reafirma, naturalmente, esta verdade: “Quem fez a
promessa é fiel” -pistós - (Hb 10.23; Rm 3.3; 1 Ts 5.24; 2 Ts 3.3).

O AT insiste que o homem, de sua parte, seja fiel a Deus, isto é, confiante, obediente,
constante, repousando na fidelidade como sobre uma rocha em meio ao turbulento mar (Is
23.3ss), ou como a esposa fiel ao seu marido (Os 2.20).

“O justo viverá pela sua fé” (Hc 2.4) – texto que São Paulo traduzirá livremente, para
seus próprios propósitos (Rm 1.17; Gl 3.11; Hb 10.38). Este espírito de confiança absoluta
nas promessas de Deus encontrado no AT também se verifica freqüentemente no NT,
especialmente em Hebreus, onde a fé é definida como “A certeza de coisas que se esperam,
a convicção de fatos que se não vêem” (Hb 11.1). Só podemos ter provas a respeito da
realidade do invisível, quando confiamos na fidelidade de Deus. Então, entenderemos a
verdade (Hb 11.3). Os heróis do AT conseguiram realizar feitos poderosos e eficazes porque
possuíam este tipo de fé (Hb 11).

O próprio Jesus Cristo é exemplo claro desta fidelidade (“O Autor e Consumador da
fé” Hb 12.2), pois suportou a cruz e toda a sorte de males e tentações que conhecemos (Hb
4.15; 2.17ss).

O apóstolo Paulo prefere chamar de esperança o que Hebreus chama de fé: “Mas se
esperamos o que não vemos” (Rm 8.25); contudo, Paulo entende a fé como está descrita
no AT (Rm 3.3; 1 Co 1.9; 10.13; Gl 3.9).

Em geral, o NT e Paulo, em particular, ultrapassam o conceito de fé exarado no AT.


100
RICHARDSON, A. Introdução à Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Aste, 1966, pp. 21-22. Sigo
literalmente os escritos desse teólogo de grande peso entre os melhores especialistas do Novo Testamento.
101
Nesta parte faço uso de minhas próprias palavras, sob forma de analogia, à luz do que consta na obra retrocitada.
35
SOTERIOLOGIA
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Os profetas do AT lamentam constantemente que, embora Deus tenha permanecido


fiel à Aliança, Israel se mostre cada vez mais infiel; e não têm esperanças de que Israel pela
sua própria capacidade possa recuperar-se. A única esperança está na intervenção de Deus,
que pode criar um novo coração e um novo espírito, selando também uma nova aliança,
através de uma nova criação (Jr 31.31-34; Ez 14.26, etc).
Deus deve criar ou recriar a fé que exige. Segundo o NT foi exatamente isto o que
aconteceu ao ser estabelecida a nova aliança do Senhor Jesus Cristo. Conseqüentemente,
no NT, fé significa, antes de tudo, fé em Jesus Cristo, que é ao mesmo tempo o objeto e o
doador da fé aos discípulos. Jesus mesmo ensinou aos discípulos a necessidade
fundamental da fé.

Definindo a fé segundo as Escrituras


A fé é a base da vida orgânica da Igreja, tanto em sua natureza, quanto em suas
dimensões em nível constitucional, como povo de Deus que congrega em si mesmo pessoas
de todos os lugares.

Conceber a experiência da fé sem a eleição divina para a salvação, estabelecendo a sua


unidade orgânica a partir do que o apóstolo Paulo entendeu ser a Igreja como o Corpo de
Cristo,102 vai divergir do conceito que João Calvino desenvolveu em suas obras.

A fé está intimamente ligada à constituição da Igreja no aspecto da unidade


intensamente ensinada por Jesus Cristo no Evangelho de João,103 onde não deve haver
fragmentação. Da mesma forma também em relação à universalidade, que congrega
pessoas transformadas pelo Espírito Santo, de todas as partes do mundo para compor o
Corpo de Cristo, “A nação eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade
exclusiva de Deus...”104

A fé é obra principal do Espírito Santo105 revelada pela Escritura. Somente por meio
da fé é que a pessoa é conduzida à luz do Evangelho. Calvino cita João 1.12-13, onde consta
o ensino de que os crentes em Cristo são de fato filhos de Deus, os quais não nasceram da
carne e do sangue, mas mediante a fé, receberam a Cristo. De outra maneira,
permaneceriam na incredulidade.106 Os crentes são selados com o Espírito Santo da
promessa (Ef 1.13); eleitos por Deus na santificação do Espírito e na fé da verdade.107 A fé
não procede de outra fonte a não ser do Espírito Santo.108

João Calvino argumenta que é o Espírito Santo quem outorga a fé; é a chave com que
se nos abrem os tesouros do Reino celeste e sua iluminação e a agudeza de visão da nossa
mente.109 Quanto ao esquema que segue, proposto pelo Reformador, é bem estruturado

102
1 Coríntios 12.12-31. Neste texto da Epístola de Paulo trata-se da unidade orgânica da Igreja, que é o Corpo de
Cristo, através dos dons concedidos por obra e graça do Espírito Santo.
103
Evangelho segundo João 17.21. Jesus fala da unidade do seu corpo, que deve existir, à semelhança dele com o Pai,
em reciprocidade.
104
1 Pedro 2.9. Neste texto é enfatizada a verdadeira natureza da Igreja.
105
CALVINO, J. As Institutas, São Paulo, 1989, Volume III: p. 4. Entendo que esse argumento valoriza o que mais
pode dar sentido à vida cristã: a fé. Aprofunda também o valor da inspiração da Escritura como Palavra de Deus
revelada ao homem.
106
Ibidem. p. 4.
107
Em 2 Tessalonicenses 2.13, Paulo não deixa dúvida em relação à ação de Deus considerando o aspecto soteriológico
profundo pela santificação do Espírito e Fé na verdade.
108
As Institutas, III: p. 5.
109
Ibidem. p. 5.
36
SOTERIOLOGIA
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com referência à participação na Pessoa de Cristo, achando nele a perfeita salvação:110


“Batizando-nos [Ele] no Espírito Santo e no fogo” (Lc 3.16), iluminando-nos à fé [viva] de
Seu evangelho e, assim regenerando [-nos], que sejamos ‘Novas criaturas’ (2 Co 5.17), e,
purificados das impurezas profanas, a Deus [nos] consagra por templos santos (1 Co
3.16-17; 6.19; 2 Co 6.16; Ef 2.21) ”.
Calvino não se contenta em apenas elaborar uma definição dessa fé outorgada pelo
Espírito Santo, mas também expõe suas propriedades, onde aparece Cristo o Redentor,
através de cuja mão o Pai celestial, compadecido de nós por Sua imensa bondade e
clemência, nos socorre, se, deveras, importa-nos não só abraçar-nos a esta misericórdia
com firme fé, mas também nela descansarmos com esperança constante.111

Considerando que a fé tem a sua base na Palavra de Deus, é verdade que ela tende
para o Deus único, e não para especulações. É fundamental experimentar e desenvolver a
fé na caminhada da Igreja, tomados pelo Espírito Santo a fim de que sejamos impelidos a
buscar a Cristo; assim, por vez, devemos estar alertados de que o Pai Invisível não deve ser
buscado em outro lugar que nesta imagem.112 Essa postura vai de encontro à
improcedência da fé implícita especulada pelos escolásticos,113 que estenderam um véu a
ponto de as pessoas não compreenderem o verdadeiro conceito de fé em Cristo,114
aniquilando toda a sua força e enganando as pessoas mais simples.115 Ocultaram a Cristo,
enfraqueceram e quase aniquilaram toda a força da fé.116 A fé não se assenta na ignorância,
mas no conhecimento, e, este, certamente não apenas de Deus em Si, como também da
divina vontade.117 Obtém-se a salvação pela reconciliação através de Cristo (2 Co 5.18-19),
sabendo que Deus é o nosso Pai propício e Cristo Jesus nos é dado, na verdade como
justiça, santificação e vida. Isto não pode ser compreendido somente pelo sentimento
humano, entretanto é como Paulo escreve aos Romanos: “Com o coração se crê para a
110
Ibidem. p. 5.
111
Ibidem. p.6. Se pela fé não aceitássemos tudo o que Deus fez por nós em Seu Filho Amado, não compreenderíamos a
importância da natureza desse dom.
112
As Institutas III, p. 7.
113
Ibidem. p. 7ss. Calvino acusa o escolasticismo de ter ocultado a Cristo, ocorrendo uma série de labirintos para
dificultar o entendimento por muitos.
114
CALVINO, Exposição de Hebreus. São Paulo, 1997. p.296-297. A fé é com justa razão chamada a substância das
coisas que são ainda objetos de esperança e a evidência das coisas ainda ocultas. Está ligada intimamente à paciência.
Ambas não podem se separar. O profeta Habacuque declara: “O justo viverá por sua fé” (Hc 2.4). A fé nos conduz às
coisas distantes que ainda não alcançamos. Nesta dimensão necessário se faz que a fé inclua a paciência. O que Calvino
quer dizer sobre a fé como substância das coisas que se esperam? É aquilo que ainda não se encontra nas nossas mãos,
e sim o que está escondido de nós. Entende ele que, no ensino do apóstolo Paulo, não devemos exercer a fé em Deus
com base nas coisas presentes, e, sim, com base na expectativa de coisas vindouras. Isto é algo que supera a razão.
“Substância” para Calvino é o “arrimo ou fundamento sobre o qual firmamos nossos pés”. Que se constitui o apoio para
os pés vacilantes, sujeitos aos tropeços na caminhada como Igreja que segue no poder do Espírito Santo? São as coisas
ausentes, as quais se encontram tão longe de estar sob nossos pés, que excedem infinitamente ao poder de nossa
compreensão. Para que tudo isso seja percebido não bastam os olhos carnais, mas se concretiza pelo Espírito Santo de
Deus, que nos mostra as coisas ocultas, o conhecimento das quais não podem atingir nossos sentidos. Destarte, é
interessante a maneira de Calvino apresentar alguns contrastes, que a Igreja experimenta na sua situação existencial. Por
exemplo: a vida eterna nos é prometida; todavia, ela é prometida aos mortos. Somos informados sobre a ressurreição
dos bem-aventurados; mas, entrementes, vivemos envolvidos em corrupção. Somos informados de que somos justos;
todavia, o pecado habita em nós. Ouvimos que somos bem-aventurados; mas, somos subjugados por inaudita miséria.
É-nos prometida abundância de tudo quanto é bom; mas vivemos freqüentemente famintos e sedentos de Deus. Deus
proclama que nos virá buscar imediatamente; mas parece que é surdo ao nosso clamor.
115
PASTOR, Felix Alexandre. Semântica do Mistério. Loyola, 1980, página 59. Argumenta sobre os Reformadores,
chegando a citar João Calvino, no sentido de que eles procuravam renovar a perspectiva salvífica neotestamentária,
aceitando os símbolos de fé da tradição apostólica e a linguagem trinitária da Igreja antiga, manifestando aversão à
definição de fé do escolasticismo.
116
As Institutas, Volume III: página 7.
117
Ibidem. Página 8.
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SOTERIOLOGIA
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justiça, com a boca se faz confissão para a salvação”(Rm 10.10).118 Calvino afirma que aí
não implica elemento implícito, mas requer algo explícito, que se faz de modo público,
como reconhecimento da bondade divina, em que temos por base a justiça,119 e nela
estamos sedimentados para proclamarmos a salvação.

Ao tratar da correta acepção da fé implícita, Calvino argumenta que esta é imperfeita,


incompleta, incipiente ou germinal.120 Diz ele que somos circundados de muitas nuvens de
erro, e assim, não compreendemos tudo. Somos peregrinos nesta terra, e não adquirimos
aqui a perfeição. Mas, somos desafiados a prosseguir para a frente, desembaraçando-nos
de tudo o que é da carne. Fé implícita é possível notar-se nos discípulos de Cristo antes de
havermos obtido a plena iluminação do Espírito Santo. Quando as mulheres foram avisar
que o Cristo saíra do sepulcro, ressuscitara (Lc 24.11), pareceu-lhes como que um sonho.

A maneira como Calvino disserta acerca da fé, definindo-a, mas sempre procurando
um envolvimento prático, mesmo diante das adversidades, é para torná-la explícita.121 No
seu entender segundo o argumento de cunho paulino há uma união entre a fé e a doutrina
como sua companheira inseparável. Toma, sem dúvida o texto de Efésios 4.20-21, que
afirma: Não aprendestes assim a Cristo, se fostes, na verdade, ensinados qual seja a
verdade em Cristo.” 122 Chama-nos a atenção para refletirmos na relação da fé com a
Palavra (Is 55.3; Jo 20.31; Sl 95.7). O ouvir a Palavra é tomado como significado de crer.

Logo, se tirar a Palavra já nenhuma fé restará.123 A definição da fé é a obediência ao


Evangelho (Rm 1.5; Fp 2.17). É o conhecimento da vontade divina. O seu fundamento é a
certeza da verdade de Deus, e se alguma dúvida houver em relação a sua autoridade, não
poderá ser configurada na mente humana.124

A fé para Calvino repousa na graça de Deus e visualiza-se na Palavra, que tanto lhe
concedeu preeminência, dando a garantia de que nada poderá abalar esse dom divino.

Deste modo, respectivamente, a fé vai encontrar na Palavra do Senhor tudo o que se


possa realizar e descansar. Logo, a fé não pode buscar outro bem senão o próprio Deus.125

118
Calvino afirma que esta passagem pode ser útil para se compreender a justificação pela fé. Ela revela que obtemos a
justiça quando abraçamos a benevolência divina, que nos é oferecida no Evangelho. Somos justificados quando cremos
em Deus através de Cristo. O desejo do apóstolo Paulo era unicamente de mostrar como Deus efetuou a nossa salvação,
ou seja: ao fazer com que a fé, a qual ele pôs em nossos corações, se concretize através da confissão. A verdadeira fé
deve acender no coração a chama do zelo pela glória de Deus como as chamas do vulcão que não podem ser retidas
(CALVINO, J. Romanos. São Paulo, 1997. P 366-368).
119
As Institutas, III, p. 8.
120
As Institutas, III, p. 9.
121
FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: Vida, influência e Teologia. Campinas-SP, 1990. p. 29. Esse autor
analisando a vida e obra do Reformador a divide em três partes, que vale a pena conferir. Calvino foi um homem que à
semelhança de outros de sua época, sentiu a operação do Espírito de Deus em sua vida. Apesar das enfermidades no seu
corpo, a fé que Deus lhe outorgara o sustentava na brilhante carreira de pastor. Ele era, indubitavelmente, um homem de
excepcionais dons de inteligência e caráter, que nem mesmo alguns de seus tenazes inimigos ousaram negar. A sua
constituição física era frágil, dominada por enfermidades tantas e tão inquietantes, capazes de tirar a calma, o equilíbrio
e a vontade de viver e trabalhar, mesmo ao mais paciente dos mortais. Diante de tantas dificuldades, encontrava na fé
fundamentada na graça de Deus as condições para estudar, e também para redigir as suas obras, e nelas definir, segundo
a orientação do Espírito Santo, a fé que supera toda a angústia.
122
As Institutas, III: p. 11-12.
123
As Institutas III, p. 12.
124
Ibidem. p.12. O valor que Calvino confere à Palavra de Deus é extraordinário, a ponto de acentuar a relação da fé
com a própria Palavra.
125
As Institutas, III, p. 12-13.
38
SOTERIOLOGIA
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Não basta apenas uma definição de fé, mas entender a vontade de Deus, que é revestida de
plena misericórdia, e assim, da mesma forma chegar mais perto da natureza desse dom.

Isso denota a nossa busca pelo Deus da plena benevolência, onde o coração do
homem pode repousar. De outra sorte como saberíamos que Deus é verdadeiro, se Ele
mesmo a Si não nos atraísse, e nem poderíamos encontrar a sua misericórdia, a não ser
pela sua Palavra que na fé nos empenhamos em conhecer a Deus?

A mente humana está obscurecida, e por si mesmo o homem não percebe a vontade
de Deus,126 portanto, carece de iluminação da mente e de um coração bem firmado, a fim
de que a Palavra de Deus obtenha pleno êxito. Concomitantemente, a partir dessa
realidade que pode se concretizar no mais profundo do humano por obra e graça do
Espírito Santo, decorre uma justa definição de fé, se afirma que é ela o firme e seguro
conhecimento da divina benevolência para conosco; conhecimento, que fundado na
verdade da graciosa promessa de Cristo, não só é revelado à nossa mente, mas é também
selado em nosso coração, mediante o Espírito Santo.127 Esta definição valoriza esse dom e o
reconhece como autenticação do Espírito Santo para que a pessoa não creia no vazio
destituído de sentido, mas ensinada pela Palavra de Deus.

Calvino não perdoa o escolasticismo em relação à definição de fé. Ele afirma ser
improcedente o ensino que afirma ser a fé o simples assentimento do intelecto.128 Pensar
assim, não cogitando acerca do dom do Espírito, não pode se levar à vontade de Deus, que
deseja, pois, o mais importante, que é crer. Só aí encontra o ser humano a reconciliação,
achega-se a Deus verdadeiramente. Citando Paulo em Romanos 10.10, diz que “com o
coração se crê para justiça”. Não se pode desprezar essa qualidade, sendo a única certeza
que nos assiste, pois é o assentimento mesmo do coração, mais do que do cérebro e mais
da sensibilidade que do intelecto.129

A fé não consiste em outro ponto senão naquilo que pode garantir esperança: o
conhecimento de Cristo. Esse conhecimento se dá, conseqüentemente, em conjunção com
a santificação do Espírito de Deus.130 Calvino vai além. Para que não haja uma deformação
desse dom como destituído de caridade, ele argumenta que é de fundamental importância
o estímulo da fé na caridade. Deste modo, também a Igreja é edificada. Muitas são as
formas da fé, mas reconhecemos e proclamamos, assim como a Escritura, que dos piedosos
a fé é uma e única, porque é para a salvação.131

Quando Calvino argumenta que a fé é dos piedosos, atingindo não somente uma pura
definição, mas se concretizando pela via da caridade, quer dizer que há pessoas que
pensam ter fé e não compreendem a sua verdadeira natureza. O exemplo de Simão Mago:

126
Calvino segue o ensino do apóstolo Paulo em 1 Co 2.14, quando nessa Escritura trata-se a respeito da natureza do
homem natural, que não entende as coisas do Espírito de Deus. O homem natural é uma pessoa escravizada a desejos
grosseiros, à sua própria sensualidade, alguém dotado somente dos poderes naturais. Contrasta com o homem espiritual.
O homem espiritual é orientado pela iluminação do Espírito Santo, capaz de julgar todas as coisas (CALVINO, J. 1
Coríntios. São Paulo, 1996. p. 92-94).
127
As Institutas, III: p. 14. Esta é a maneira pela qual Calvino define a fé, evitando a superficialidade que grassa nos
tempos modernos. Os elementos que a compõem dão-lhe plenitude e realeza: firme e seguro conhecimento da
benevolência de Deus, tendo como base a verdade da graciosa promessa de Cristo. Não é uma fé que decorre do mero
sentimento, mas dom outorgado pelo Espírito Santo de Deus.
128
As Institutas III, p. 14-15.
129
Ibidem. p. 15.
130
Ibidem. p. 15.
131
Ibidem. p. 16.
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SOTERIOLOGIA
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este afirmou sua crença, e pouco tempo depois caiu em contradição pela sua incredulidade
(At 8.13,18-19). Ele, a princípio, aos olhos de alguns, manifestou certa dose de fé,
reconhecendo a Cristo como autor da vida e da salvação, entretanto ficou enquadrado
dentro daquilo que consta em Lucas 8.13, “... crêem apenas por algum tempo, e na hora
da provação se desviam.” 132

A definição de fé vai se realizar nos eleitos de modo operante, embora haja


imperfeições.

O desenvolvimento da fé nos eleitos


Fé dos eleitos é a fé real e eficaz; nos réprobos é apenas aparente e ineficaz.133
Destarte, o que pretende J. Calvino ao afirmar tais palavras? Fé apenas nos eleitos? Quem
são os eleitos? Quem são os réprobos? Será que o pensamento do Reformador de Genebra
como era conhecido na Europa no século XVI tende a discriminar as pessoas? Ainda que
muitos estudiosos não concordem com suas argumentações, faz-se necessário tomar
conhecimento daquilo que concluiu e considerou durante toda a sua vida estar dentro dos
desígnios de Deus.

Um ponto fundamental que não se pode olvidar é que Deus não é o autor do pecado.
Deus não induziu o homem a cometer transgressão. Pela queda do primeiro homem pôde-
se-lhe apagar da mente e da alma a imagem de Deus,134que não é obrigado a salvar a
todos, mas mesmo se a alguns, réprobos, que são resistentes à verdade, Deus ilumina com
os raios de Sua graça, os quais, depois, a extinguem.135

Somente nos eleitos o Espírito Santo sela a remissão dos pecados, aplicando para
todo o proveito a fé que tem a sua natureza e propósito salvífico. Ainda que os réprobos,
que são os maus, perversos, malvados, resistentes à verdade, afirmem que crêem em Deus,
fazem plena confusão. Não é o simples afirmar que crêem em Deus, pois devem ter
participação na filiação de Deus; se não o têm, não fazem parte da mesma fé ou
regeneração. Os que simplesmente reconhecem até mesmo a graça de Deus, chegam à fé
temporária, que desaparece diante das provações, contudo aos eleitos é a graça que
produz a raiz viva da fé, para que perseverem até o fim. J. Calvino faz referência a Mateus
24.13: “Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo”. 136

132
Ibidem. p. 16-17.
133
As Institutas III, p. 18-29, loc. cit. Cito literalmente esse argumento sobre o qual João Calvino disserta, elaborando
uma definição entre a fé dos eleitos e o que ele mesmo demonstra ser aparente, o que existe naqueles que não têm o
temor de Deus.
134
Ibidem. p. 19.
135
Ibidem. p. 19. Sobre esse assunto, é importante observar o que argumenta SPENCER. Somente àqueles que o Pai
considera conveniente por Sua livre vontade, sem qualquer tipo de condição da parte deles, é dada a fé que os habilita
para a salvação. A eleição é bem explicitada na Palavra de Deus. Atos 13.48 é um texto clássico segundo o autor para
demonstrar essa eleição: “Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a Palavra do Senhor, e creram todos
quantos haviam sido destinados para a vida eterna”; João 5.21: “... O Filho do Homem vivificará aqueles a quem quer”;
João 6.29: “... A obra de Deus é esta, que creiais naquele que por Ele foi enviado”. Nestas passagens da Escritura
claramente se verifica que Jesus Cristo insiste em que a vida e a fé são concedidas como obras de Deus, e não como
obras do homem. João 15.16: “Não fostes vós que Me escolhestes a mim; pelo contrário, Eu vos escolhi a vós outros, e
vos designei para que vades e deis frutos”. O autor da Epístola aos Efésios, entendeu essa escolha, que foi feita por
Deus antes que ele tivesse feito qualquer outra coisa: “... assim como nos escolheu nEle (em Cristo) antes da fundação
do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante Ele...” (Ef 1.14). (SPENCER, D. E. Os Cinco Pontos do
Calvinismo à Luz das Escrituras. Teologia dos Reformadores. São Paulo, 1992: p. 37-39).
136
As Institutas, III. p. 18. Cf. o que SPENCER argumenta esclarecendo o seguinte: “A decisão de ir a Cristo é obra
que Deus realiza pelo Seu Espírito Santo, no homem, e não escolha de sua vontade livre. O homem em pecado não pode
contemplar a obra de Deus no aspecto soteriológico, mas somente quando lhe é tirada a venda que o impede de
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SOTERIOLOGIA
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Essa fé real137 dos eleitos é o conhecimento da divina benevolência e segura convicção


de sua verdade.138 Essa fé dos eleitos é fé da verdade, e não fingida. É a possibilidade de
alimentar a esperança na plena manifestação de um novo tempo e espaço, onde toda a
injustiça será aniquilada. A própria experiência do cotidiano constata que nem todos têm
fé real e eficaz. É eficaz porque o cristão, segundo a autoridade do mesmo Deus que fala
através de Sua Palavra, crê ser verdade tudo quanto nela é revelado, e age de conformidade
com aquilo que cada passagem contém em particular, prestando obediência aos
mandamentos, tremendo às ameaças e abraçando as promessas de Deus para esta vida e
para a futura. Porém, os principais atos de fé salvadora são: aceitar e receber a Cristo e
descansar só nele para a justificação, santificação e vida eterna, isto em virtude do pacto da
graça.139

A vontade de Deus é imutável e Sua verdade é consistente consigo própria.140 Só os


eleitos podem penetrar nessa vontade, que é a secreta revelação de Deus na Escritura. Os
réprobos não têm como penetrar na revelação, pois sendo de coração duro não
compreendem a verdade. Neles, a fé não tem nenhum valor para a salvação. Não é real e
muito menos eficaz. Os réprobos são, por vezes, tocados do senso da graça divina,
necessariamente se lhes desperta no coração certo desejo de mútuo amor.141

Calvino lembra que em Saul, o primeiro rei de Israel, por certo tempo vicejou um
afeto piedoso para que amasse a Deus (1Sm 15). O rei foi desobediente a Deus em todo o
tempo, fingindo que tinha fé, e até usando de mentira afirmando cumprir as palavras do
Senhor. Diante desse episódio de desobediência, pode-se verificar que a fé nos réprobos
(maus, perversos, resistentes à verdade)142 não se arraiga profundamente na convicção do
amor de Deus, assim não há nenhuma reciprocidade que solidifique o amor como filhos;
pelo contrário, são conduzidos por certa disposição mercenária.143

O eleito confia na graça de Deus; o réprobo confia na sua capacidade. O eleito tem
prazer em ser Igreja; o réprobo se firma na religião. O eleito acolhe o dom de Deus; o
réprobo é fechado a tudo quanto Deus estabelece em sua Palavra. Muitas outras
comparações poderiam ser feitas, mas estas bastam para se tentar compreender a fé real e

descobrir a verdadeira vida, por graça, por meio da fé, é que se torna um eleito. Se a eleição dependesse do homem, ele
nunca creria, porque o homem é totalmente depravado e incapaz de fazer aquilo que é bom aos olhos de Deus. Deixado
a si mesmo para decidir-se por Cristo, sem que antes a fé lhe seja outorgada por um ato de Deus, o homem nunca irá a
Cristo” (Página 39). MIRANDA, Mário de França, argumentando sobre a eleição também assim se expressa: “A
comunidade cristã, consciente da eleição, é não só uma comunidade marcada pela esperança, pela confiança e pela
alegria, mas também uma comunidade com uma responsabilidade única na sociedade humana, a saber, de anunciar e
lutar pela realização de Reino entre os homens” (Libertados Para a Praxis da Justiça, São Paulo, 1991. p. 54).
137
A Confissão de Fé da Igreja Presbiteriana do Brasil assim se expressa: “A graça da fé, por meio da qual os eleitos
são habilitados a crer para a salvação das suas almas, é a obra que o Espírito de Cristo faz nos corações deles, e é
ordinariamente operada pelo ministério da Palavra, por esse ministério, bem como pela administração dos sacramentos
e pela oração, ela é aumentada e fortalecida”. Textos da Escritura: 1Co 12.3; Ef 2.8; Hb 12.2; Rm 10.14,17; 1 Pe 2.22;
At 2.32; Mt 28.19; 1Co 11.23-29; 2Co 12.8-10. A Confissão de Fé, elaborada no período de 1643-1649, na Abadia de
Westminster, por um grupo de mais de 120 teólogos é todo o escopo da Teologia da Igreja Presbiteriana do Brasil.
138
As Institutas, III: p. 18.
139
É importante conferir a Confissão de Fé de Westminster mais uma vez, e , em seu Capítulo XIV, que explica essa fé
nos eleitos, que sendo real se constitui uma operosidade do Espírito Santo.
140
As Institutas, III: p. 19.
141
Ibidem. p. 19.
142
BOYER, O. S. Enciclopédia Bíblica. Venda Nova-MG, 1986. p. 539. Define, portanto, o que está de acordo com o
pensamento de J. Calvino, bem como de acordo com os melhores dicionários. Réprobo: malvado, condenado; resistente
à verdade; mau, reprovado.
143
As Institutas, III: p. 19.
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SOTERIOLOGIA
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eficaz naqueles que são chamados por Deus para a salvação, e a fé aparente e ineficaz
naqueles que se firmam em meros rituais religiosos.

Paulo escrevendo aos Romanos é citado por Calvino: “Derramado nos foi no coração
o amor de Deus pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5.5). Esse amor gera aquela
confiança da certeza proporcionada pela adoção divina (Gl 4.6). Por mais que sejamos
acossados, e nos pareçamos desgastados, não cessamos de sentir a munificência divina
para conosco. Uma vez que o que se nos afigura como felicidade não passa de miséria,
quando Deus nos hostiliza e se revela descontente conosco, assim também, quando Ele se
mostra favoravelmente, e disposto para conosco, nossas próprias calamidades,
indubitavelmente, nos resultam em prosperidade e alegria.144

Calvino afirma que Paulo reivindica a fé real e eficaz somente nos eleitos, de maneira
exclusiva citando Tito 1.1: “Paulo, servo de Deus, e apóstolo de Jesus Cristo, para
promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a
piedade.”145 Ele chama essa fé de raiz viva, e que muitos fenecem, porque não têm exibido
essa raiz. Chega a citar um trecho de Evangelho de Mateus que diz: “Toda árvore que meu
Pai não plantou será desarraigada” (Mt 15.13). Pode-se observar nitidamente a maneira
como é elaborada a argumentação que mostra o que só pode ser real em quem Deus elegeu.
Neles, não pode haver uma fé fingida, antes não fingida (1Tm 1.5); se assim houver, é em
muitos que não têm uma boa consciência em relação a Deus (1Tm 1.19).146

Em uma Igreja que vive a fé real e eficaz, de maneira alguma podem existir laivos de
simulação por parte dos eleitos. Ao contrário, os que são levados de súbito impulso de zelo,
enganam-se a si mesmos com uma opinião falsa, todavia, segundo o pensamento paulino,
a fé real é reivindicada nos eleitos.

A expressão eleitos de Deus,147 segundo Calvino, vai indicar que a nossa salvação flui
da fonte da graciosa misericórdia de Deus, que nos faz conhecida a sua eterna eleição. Essa
eleição é iluminada pela graça de Deus somente, não tendo da parte do homem nenhuma
participação, a não ser receber com amor o dom de Deus. Parece ser muito difícil aceitar
essa eleição, que é dada a uns e a outros não, embora seja a todos indiscriminadamente
oferecida. Argumentando dessa maneira, Calvino quer enfatizar a soberania de Deus e
considerar que o homem não é salvo por obras, mas pela graça de Deus somente. Mais
uma vez Calvino recorre a Paulo, como escreve aos Romanos 11.5-6, para explicitar esse
fato contundente: “Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um

144
CALVINO, J. Romanos. São Paulo, 1997. p. 181. Comentando Rm 5.5, Calvino argumenta que este conhecimento
do amor divino para conosco é instilado em nossos corações pelo Espírito de Deus, pois as boas coisas que Deus
preparou para aqueles que o adoram estão ocultas dos ouvidos, dos olhos e das mentes dos homens, e tão-somente o
Espírito é quem pode revelá-las. Ainda do mesmo comentário: “Derramado” é bastante enfático. Significa que a
revelação do amor divino para com os eleitos é tão copiosa que inclui os seus corações. Sendo assim derramado, e
permeando cada parte de nós, não somente mitiga nosso sofrimento na adversidade, mas também age como um
agradável condimento a transmitir graça às nossas tribulações.
145
A fé que é dos eleitos indica não só aqueles que ainda estavam vivos no tempo de Calvino, mas indica também a
todos quantos foram eleitos desde o princípio do mundo (CALVINO, J. As Pastorais. Tito. São Paulo, 1998. p. 298).
146
A suma da Lei consiste em que devemos adorar a Deus com uma fé genuína e uma consciência pura, bem como
igualmente devemos amar uns aos outros. Há pouca distinção entre coração puro e consciência íntegra. Ambos são
frutos da fé. Deus purifica os corações por meio da fé (CALVINO, J. As Pastorais. 1 Timóteo. São Paulo, 1998. p. 32-
33).
147
As Institutas, III: p. 384-449. Nesta parte da obra de João Calvino consta seu pensamento teológico sobre os Eleitos
e os Réprobos. Deus na Sua soberania escolheu os seus Eleitos para a salvação, sem méritos da parte deles, pois o
homem não pode produzir a sua salvação, visto o pecado ter embotado toda a visão que tinha acerca do Supremo Bem.
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remanescente segundo a eleição da graça. E, se é pela graça, já não é pelas obras; do


contrário, a graça já não é graça”. 148
Deus age segundo a Sua própria liberalidade, e daí decorre a nossa salvação. À eleição
graciosa é prescrita a salvação de um remanescente do povo, que somente é conhecido por
Deus apenas. Não aceitar essa doutrina é obscurecer o entendimento da Escritura e da
vontade de Deus; é fechar-se ao que de melhor tem Deus para a felicidade dos eleitos. Eles
vivem em plena segurança, conforme o que está em escrito no Evangelho de João 10.28-
29. Calvino chama de míseros todos os que ignoram essa realidade da segurança da
salvação. Desta certeza surge a Igreja, que de outra sorte não poderia ser achada, nem
reconhecida entre as criaturas.149 Isto faz parte do que ele entende e utiliza como Os
secretos desígnios da vontade de Deus, que determinou serem desvendados através de Sua
Palavra.150

Calvino, que tem todo o seu pensamento estruturado no ensino de Agostinho,


reconhece na Palavra de Deus a base para toda a existência de fé, que conduz ao
conhecimento da vontade do Criador; é a luz única que ilumina a mente, a fim de estar
bem firmada. Mesmo estando contida a eleição na Palavra de Deus, recomenda Calvino um
cuidado quanto ao seu ensino, pois muitas pessoas a deturpam. A moderação é a
providência que se requer para melhor compreensão da doutrina da Predestinação.151 Para
que se possa compreender bem o ensino do Senhor em relação à eleição, deve-se retornar à
própria Palavra, na qual se assegura toda a sua base, pois segundo o Reformador é ela a
Escola do Espírito Santo.152 Deste modo, o cristão deve permitir abrir a mente e os ouvidos
a todas as palavras de Deus, que lhe são dirigidas. Desviar-se dos oráculos de Deus
constitui-se perigo, pois aquilo que nos foi revelado pertence a nós e aos nossos filhos (Dt
29.29).153

Se alguém pensa que a doutrina da Predestinação é absurda, logo refuta Calvino essa
questão, enfatizando que na Palavra de Deus consta ser o próprio Deus quem elege. A
predestinação de Israel é evidenciada pelo fato de ter sido o povo escolhido por Deus
através do Seu beneplácito. Predestinação e Presciência154 são para Calvino elementos
correlatos, assim, quando a Deus atribuímos presciência, significa que tudo está sob Suas
vistas; que para Ele não pode existir passado ou futuro, mas presente. Deus é Deus em
todos os ângulos da história, e o mesmo não está preso ao tempo.

Por eleição ou predestinação Calvino ensina que é o eterno decreto de Deus pelo qual
houve em Si, por determinado conselho, sobre o que acerca de cada homem determinasse

148
O apóstolo Paulo faz alusão à profecia de Isaias [1.9; cf. Rm 9.29], a que referira; ele mostra que a fé em Deus ainda
resplandecia mesmo em meio à desolação confusa e sombria, visto que um remanescente ainda fora deixado,
preservado pela graça de Deus. Esse é o testemunho de que a eleição é imutável. É a eleição da graça, que é eleição
gratuita. A graça divina e as obras humanas são opostas. As obras não conferem méritos para a salvação, senão não
seria graça (CALVINO, J. Romanos. São Paulo, 1997. p. 388-389).
149
É deste argumento que surge o aprofundamento de Calvino sobre a formação da Igreja, a partir da divina eleição,
segundo a determinação de Deus. É por isso que ela é chamada Povo de Deus.
150
Calvino valoriza a Palavra de Deus, que é a fonte de toda a Revelação da Vontade de Deus. No Volume I das
Institutas, páginas 83-111, trata do seguinte: Cap. VI - Para que alguém chegue a Deus o Criador faz-se necessário a
Escritura por guia e mestra; no Cap. VII - Afirma que a Igreja não pode determinar a autoridade da Bíblia, porque tal
autoridade é estabelecida pelo Espírito Santo; no Cap. VIII - A Bíblia supera a razão humana em todos os sentidos; no
Cap. IX - A Bíblia e o Espírito Santo não se dissociam.
151
Esse termo Predestinação é o mesmo que Eleição, segundo o Reformador.
152
As Institutas, III: p. 387.
153
Ibidem. p. 388.
154
Ibidem. p. 389.
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o que vai acontecer. Todos não são criados em igual condição; pelo contrário, a uns a vida
eterna, a outros a danação.155
Deus foi quem dividiu os povos, e dentre todos escolheu a sua porção que foi o povo
de Israel, a sua herança (Dt 32.8-9). Em Abraão, como se em tronco seco, um só povo foi
eleito. Qual foi a causa dessa eleição? O amor de Deus. Isto mostra que não houve méritos
da parte de Israel, mas porque Deus amou (Dt 7.7-8; 10.14-15). Calvino cita várias
passagens referindo-se respectivamente aos contextos, sobre o amor de Deus justificador
da eleição, que caracteriza a formação de um povo para a Sua glória. Este princípio é
chamado de pacto de graça, onde todos são convocados a render graças ao Senhor Criador
dos céus e da terra. O Salmo 100.3 afirma: “Ele nos fez e não nós mesmos”, “Somos povo
Seu e ovelhas de Suas pastagens.”156

Segundo esta doutrina, lembra Calvino, ecoa o cântico de toda a Igreja (Sl 44.3).
“Bem-aventurada a nação da qual Deus é o Senhor, o povo a quem para Si escolheu por
herança”(Sl 33.12). A Deus aprouve criar para Si um povo (1Sm 12.22), e onde também diz
em Sua Palavra: “Bem-aventurado aquele a quem escolheste: habitará nos Teus átrios”
(Sl 65.4). São muitas as passagens da Palavra de Deus as quais Calvino enfatiza para
mostrar que Deus é quem elege. Ainda que o povo de Israel vivesse no exílio, Deus se
lembrava dele, mesmo com um coração duro a eleição não seria interrompida, pois o amor
de Deus é mais forte.157

Ainda que pareça estranho para muitos, a eleição em Israel faz registrar que Deus
escolheu a uns, rejeitando a outros. Entre Esaú e Jacó o Antigo Testamento é claro em
mostrar que Deus escolheu Jacó. Outro exemplo similar foi o de Saul, o que também
magnificamente se proclama no Salmo 78.67-68: “Ele rejeitou a tribo de José e a tribo de
Efraim não escolheu; pelo contrário, escolheu a tribo de Judá”. É o segredo da graça de
Deus. Claro que por suas falhas e culpa Calvino reconhece que foram alijados da eleição,
porquanto estavam em condição oposta à de cumprirem o pacto da graça divina, que
violaram. Ainda com relação a Jacó e Esaú, não eram eles irmãos? Contudo, diz o Senhor:
“A Jacó amei, a Esaú, porém, tive ódio” (Ml 1.2-3; Rm 9.13). É o mistério da graça de
Deus. Ainda que alguém pense romanticamente em querer que todos sejam salvos,
prevalece esse mistério, que a mente humana não pode compreender.158

É muito importante considerar a certeza da segurança da salvação. Os eleitos por


Deus segundo a Sua bendita graça não decaem da salvação.159 Deus não somente oferece a
salvação, mas também confere a certeza, que é atestada pelos filhos da promessa (Rm 9.8;
Gl 3.16). Neste caso está-se falando dos membros de Cristo, em que muito mais excelente
155
Ibidem. p. 389. Mais à frente, vai constar uma explicação no sentido de que o próprio homem é quem procura o seu
mal ao rejeitar a verdade, as coisas de Deus. Por isso são chamados de réprobos. Destarte, Deus não é o autor do
pecado, e muito menos do mal. Cf. MIRANDA, Mário de França. Libertados para a práxis da Justiça, página 47ss. Esse
teólogo coloca em evidência o que a Teologia Tradicional afirma por Predestinação, e se contrapõe argumentando que a
vontade de Deus é salvar toda a humanidade, em Cristo, onde a comunidade tem o seu fundamento na história com
intensa responsabilidade.
156
As Institutas III: p. 390-391.
157
Ibidem. p. 391. A graça de Deus é maior do que o pecado, e o Senhor não deixa que o Seu povo pereça em seus
delitos e pecados. Nada neste mundo pode separar a Igreja do amor de Deus. Paulo enfatiza esta matéria no capítulo 8
de Romanos, versos 38 e 39.
158
Ibidem. p. 392.
159
Ibidem. p. 393-394. Segundo o Reformador os crentes, ainda que pequem, não perdem a salvação. Aos que não
passam de descendentes naturais, Paulo os chama de filhos da carne, justamente como os que são peculiarmente selados
pelo Senhor são chamados de filhos da promessa (CALVINO, J. Romanos. São Paulo, 1997. p. 323); A promessa tem a
ver com a graça de Deus e com a fé. Entre os próprios filhos de Abraão já havia começado certa divisão, no fato de um
deles haver sido eliminado da família (CALVINO, J. Gálatas. São Paulo, 1998. p. 98-99).
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poder da graça se alteia, porque foram enxertados no próprio Cristo,160 daí, nunca decaem
da salvação. Essa eleição sendo efetiva, não se restringiu apenas aos filhos de Abraão
segundo a carne, mas para Si Deus coligiu a Sua Igreja continuamente, em razão de Seu
pacto, de acordo com Seu próprio conselho imutável, pelo qual para Si predestinou a quem
quis, para a salvação. Fica evidente, que Calvino afirma, segundo a Escritura, que Deus
determinou de uma vez por todas os salvos e os que queriam devotar-se à perdição. Para
isso, estatuiu-se a vocação como testemunho da eleição, e logo em seguida a justificação,
para chegar à glória de Deus.161

De maneira nenhuma Calvino atribui a confirmação da eleição fora da Escritura, e


muito menos à postulação de méritos humanos. Aqueles que foram indignos da graça de
Deus tornaram-se filhos adotivos, livrando-os da condenação da morte. Diante disso,
ninguém pode afirmar que Deus seja injusto, pois a sua misericórdia dura para sempre.

Deus distribui seus benefícios variadamente segundo o seu juízo. Calvino toma
emprestado o que argumenta Agostinho: que na própria Cabeça da Igreja que é Cristo, está
o mais sábio espelho da eleição graciosa, para que não haja conturbação operando-se em
seus membros, nem foi Ele feito Filho de Deus com viver justo, mas, pelo contrário, foi
graciosamente brindado de tão grande honra, para que ao depois a outros fizesse
participantes de seus méritos.162 Todos nós somos corruptos, de natureza pecaminosa,
logo, que méritos tínhamos, ou temos? Não sendo Deus o autor do pecado, porém justo em
seu ser, o que merecíamos senão o inferno? Calvino pergunta: quem pode arrebatar o
direito de Deus eleger ou reprovar? Ainda bem que nos deu Cristo Jesus, o Seu Filho
amado.163 A Escritura proclama que fomos eleitos em Cristo antes da fundação do mundo
(Ef 1.4)164; isso quer dizer que Deus não achou em nós nenhum mérito digno de Sua
eleição. Voltou os seus olhos para Cristo, o Seu Servo, para que a Igreja fosse eleita nele.

Em Cristo fomos adotados como herança celestial, porque nós mesmos não éramos
capazes de tão rica herança. Para que a eleição? Para que sejamos santos, e irrepreensíveis
à Sua vista (Ef 1.4-5; Cl 1.22).165

É sempre importante ratificar que a eleição graciosa, absoluta, à parte de qualquer


mérito humano, à luz de Efésios 1.4-5, nos constrange a viver da melhor forma que a
Escritura determina para a nossa felicidade. Assim, remove Paulo toda a consideração de
dignidade própria. A Igreja foi eleita por Deus para ser santa neste mundo, glorificando o
Criador dos céus e da terra.166

160
As Institutas, III: p. 393.
161
Ibidem. p. 394.
162
Ibidem. p. 396.
163
Ibidem. p. 396.
164
A eterna eleição é o fundamento e a causa primeira, tanto de nosso chamamento como de todos os benefícios que de
Deus recebemos. Deus nos elegeu antes que o mundo viesse à existência. O próprio tempo da eleição mostra que ela é
gratuita. A nossa eleição é em Cristo, assim, tal fato se encontra fora de nós (CALVINO, J. Efésios. São Paulo, 1998. p.
24-25).
165
CALVINO, J. Efésios, São Paulo, 1998. p. 25-27. A glória de Deus é a finalidade mais elevada, à qual a nossa
santificação está subordinada. Tudo o que de bom existe nos eleitos é fruto da eleição.
166
Segundo Calvino, aí está todo o propósito da Igreja; é o pensamento genuíno em relação à constituição, natureza e
propósito do Corpo de Cristo. Glorifica o Senhor quando cumpre a sua missão entre os homens. É o que expressa muito
bem Mário de França Miranda, op. cit. “A Comunidade Cristã é: consciente da Eleição; marcada pela esperança;
marcada pela confiança; marcada pela alegria; e, tem uma responsabilidade única na sociedade humana, a saber, de
anunciar e lutar pela realização do Reino entre os homens” (Libertados Para a praxis da Justiça, São Paulo, 1991.p. 54).
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A Eleição é para que sejamos santos. Não porque sejamos santos. Logo, também para
as boas obras, e não por boas obras. Profunda é esta afirmação: Deus nos chamou com
grande vocação. Essa vocação a Escritura a denomina de santa (2Tm 1.9). Sempre Calvino
se reporta à Palavra de Deus, e mais particularmente ao capítulo 9 da Epístola de Paulo aos
Romanos.

Calvino retoma o assunto sobre Esaú e Jacó, sobre os desígnios de Deus na escolha de
um e na reprovação de outro. Há Deus mostrando na pessoa de Jacó que elege os dignos de
sua graça, na pessoa de Esaú que repudia por serem indignos. Tudo para que
permanecesse o firme propósito de Deus quanto à eleição, não de obras, mas segundo o
favor imerecido (Rm 9.11-13). A adoção de Jacó não procedeu de obras, mas segundo a
vocação eficaz de Deus. Em Jacó, Deus elegeu um povo, uma nação, para manifestar a sua
glória. Não está escrito na Palavra de Deus: “Terei misericórdia de quem me aprouver ter
misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão ?” (Êx 33.19; Rm
9.15).167 Isso significa que a obra da salvação é de Deus somente.

Calvino mostra a eleição nas próprias palavras de Cristo Jesus, o eleito de Deus para a
salvação do seu povo. Jesus entendia essa eleição da seguinte forma: “Tudo quanto meu
Pai Me dá, virá a mim, pois esta é a vontade do Pai, que tudo quanto Me haja dado, disso
cousa alguma não perca” (Jo 6.37,39). Nesse entender, o Pai é quem elege, é quem atrai. É
toda sua a iniciativa da salvação. Diz mais ainda Jesus: “Ninguém pode vir a mim, se o não
houver trazido o Pai, mas aquele que ouviu, e aprendeu do Pai, esse vem a mim” (Jo 6.44-
45). Na sua oração sacerdotal, Jesus ora da seguinte forma: “Não rogo pelo mundo, mas
por estes que Me deste, porque são Teus” (Jo 17.9). O que é isto senão o próprio Deus que
vocaciona para a salvação! E no caso de Judas? Não era ele um eleito? Calvino responde
que só se referia ao múnus apostólico, que, se bem que é claro espelho do favor de Deus,
como em sua pessoa tantas vezes reconhece Paulo, todavia, não contém em si a esperança
da eterna salvação. O que se verifica é que Deus usa quem quer para executar a Sua
vontade.168

Do lado de Agostinho, Calvino vai de encontro ao pensamento de Tomás de Aquino,


quando este afirma que a glória dos eleitos é predestinada de méritos, porquanto Deus
predestina a graça mercê da qual glória mereçam. Atribuir a Deus os méritos da salvação é
saber mais do que convém a um mortal, é reconhecer a glória de Deus em sua ação.169
Segundo a Escritura, mediante a pregação exterior, são chamados todos ao
arrependimento e à fé, entretanto nem a todos é dado o espírito de arrependimento e a fé.

Voltando à Palavra, e mais particularmente ao livro dos Atos 16.6-10, a Paulo foi
vedado pregar a Palavra na Ásia, e ao mesmo tempo, o Espírito de Deus desvia-o da Bitínia
à Macedônia. Calvino mostra que é de direito de Deus agir dessa forma, pois os seus planos
às vezes não são compreendidos pelos seres humanos. Apesar de o Evangelho ser dirigido a
todas as pessoas, de forma geral, no entanto o dom da fé não é dado a todos. Logo, a fé não
é geral, mas àqueles que Deus quis eleger antes da criação do mundo, segundo Efésios 1.3-

167
As Institutas, III: p. 398-402. Calvino entende que somente a Deus pertence o destino de todas as pessoas; tudo e
todos estão em suas mãos. Mário de F. Miranda, op. cit. argumentando sobre O Primado da Ação de Deus, diz o
seguinte: “A nossa salvação deve-se à iniciativa de Deus, à qual nós respondemos, e mesmo esta nossa resposta não se
daria sem a ação de Deus. Esta verdade já estava de certo modo incluída em nossa criação e eleição em
Cristo...”(Libertados para a praxis da Justiça, p. 65).
168
As Institutas, III: p. 402-404. A eleição nas palavras de Jesus Cristo contidas no evangelho de João.
169
Ibidem. p. 404-406.
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4. O apóstolo recomenda a fé dos eleitos (Tt 1.1), a fim de que não se pense que esta seja
própria de um esforço humano, mas, ao contrário, é Deus quem nos outorga esse dom.170

O argumento do Reformador não deixa dúvidas a esse respeito, e segue também o


pensamento de Bernardo em relação ao que está escrito no Evangelho de Lucas 12.32:
“Não temais, pequeno rebanho, porque a vós vos foi dado conhecer o mistério do Reino
dos céus” (Mt 13.11).171 Esses, seguramente, são aqueles que de antemão Deus predestinou
para serem conformes a imagem de Jesus (Rm 8.29).
Calvino diz que nem todas as pessoas querem ser salvas; isso prova que a eleição não
é para todos. Se a todas as pessoas quisesse salvas, como guardião à frente lhes poria o
Filho e a todos em Seu Corpo inseriria, mercê do sacro vínculo da fé. Seguramente, textos
do Novo e do Antigo Testamentos nos colocam numa posição bem firme a esse respeito (Jo
6.46; 39-40; 10.3-5; 10.29; Is 8.16; 54.13). Por outro lado, volta-se à reflexão de que
também a rejeição dos réprobos procede da divina vontade (Rm 9.18).172

João Calvino foi sempre muito combatido por pensar desta forma. Segundo a sua
teologia, Deus é um tirano. No entender de alguns, Deus é um Deus injusto em votar a
condenação de criaturas. Mas, ele não acha que Deus seja injusto, pois utiliza a Sua justiça.

Como estamos todos infeccionados pelo pecado, não podemos não ser odiosos a Deus,
e isso não é de crueldade tirânica, mas de mui eqüitativa justiça. Se todos estão sob
condição geral de morte por causa do pecado, de que se há de queixar o homem? Quem
pecou foi o homem, e não Deus. Deus é tão misericordioso que ainda salva um
remanescente. “Ora, quem sois vós, míseros homens, que intentais acusação a Deus?”
(Rm 9.20); “E por isso a intentais, que a grandeza de suas obras à vossa ignorância não
acomoda?” Quem é o homem para inquirir a Deus? (Rm 9.20). Segundo Calvino, Deus é
tão misericordioso que ainda salva um povo das trevas, pelo Seu Espírito, que falou pela
boca dos profetas e dos apóstolos, bem como através da Igreja, que proclama a mensagem
de salvação.173

Sendo Deus o Senhor dos céus e da terra não tem Ele o poder para fazer o que quiser?
Por Sua própria causa todas as cousas foram feitas, até o ímpio para o dia mau (Pv 16.4).
Não está também escrito que a palavra proclama “Fazer tudo quanto quer” (Sl 115.3)?
Proclama ainda a Escritura que, na pessoa de um só homem, à morte eterna foram
sujeitados todos os mortais (Rm 5.12-18). Destarte, Calvino entende que a queda de Adão
foi preordenada, mas ao homem lhe foi dado o arbítrio.

Para explicar essa questão Calvino trata da distinção de vontade e permissão de


Deus. Ele recorre a Agostinho, que simplesmente confessa que a vontade de Deus é a
necessidade das coisas e que haverá necessariamente de ocorrer aquilo que Ele tenha
querido, da mesma forma que aquelas coisas que haja antevisto, haverão verdadeiramente
de vir a ser.

Parece ser tão difícil de entender, mas o primeiro homem caiu porque o Senhor assim
julgara ser conveniente. Isso pertence aos eternos desígnios de Deus, que o homem não
consegue entender.174 Mas, por outro lado, Calvino argumenta que Deus criou o homem

170
Ibidem. p. 407.
171
As Institutas, III: p. 407.
172
Ibidem. p. 408-409.
173
Ibidem. p. 410-415.
174
As Institutas, III: p. 417-419.
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sem pecado, entretanto, este se corrompeu pela sua própria malignidade, e com isso
arrastou toda a posteridade para o caos.

Os réprobos não podem se escusar da condenação, pois a causa derivou de si


próprios, não de Deus, e desta forma não têm nenhuma razão para justificar-se e até culpar
a Deus. Assim, continua argumentando Calvino, que não existe favoritismo da parte de
Deus, não há acepção de pessoas (At 10.34; Rm 2.11; Gl 2.6), não há distinção entre judeu e
grego (Gl 3.28).

A Escritura não se contradiz. Sendo o homem pecador, escolhendo pecar, Deus ainda
é misericordioso ao eleger pessoas para a vida eterna. Aos eleitos Deus os predestina em
função de Sua misericórdia; aos réprobos em função de Sua justiça. Os eleitos são os que
levam vida santa e irrepreensível (Ef 1.4).

O escopo da eleição é a santidade de vida, levando a um estímulo e à alegria da práxis


de vida com Deus e com o próximo. Ninguém por ser considerado eleito de Deus deve
considerar que, por estar salvo, pode fazer o que quiser. Não fomos chamados para a
imundície (1Ts 4.7), mas, ao contrário, para que possuamos o nosso vaso de honra (1Ts
4.4). Então, os eleitos de Deus são feituras de Deus, criados para as boas obras, que foram
preparadas para que andemos nelas (Ef 2.10). Isto não significa que tenhamos que nos
ensoberbecer, mas nos gloriar no Senhor.175

A eleição é confirmada pela vocação de Deus, absconsa em Si mesmo, segundo o que


consta em Romanos 8.29-30: “Àqueles que de antemão conheceu, a esses também de
antemão predestinou para que se tornassem conformes à imagem de Seu Filho; mas aos
que de antemão predestinou, a esses também chamou; aos que chamou, a esses também
justificou.”176

Paulo chama os eleitos de adotados pelo Espírito Santo (Rm 8.15). São eles ensinados
acerca da fé, e de tudo o que da graça decorre (Jo 6.45). Deus extirpa toda a dureza de
coração (Ez 11.19; 36.26). Assim, Deus os admite à Sua família, para que sejam um. E
sendo assim mesmo, porque no homem não existe força para produzir a sua salvação,
porém tudo depende da misericórdia de Deus.

Sobre a vocação eficaz, Calvino afirma ser o chamado de Deus eficaz para a
salvação.177 Resulta como obra da graça divina de dois meios fundamentais: a pregação da
Palavra e da iluminação do Espírito Santo. Os eleitos ouvem a voz de Deus; os réprobos a
rejeitam. Como a eleição reina eficazmente é demonstrado em Atos 13.48: “Haverem crido
aqueles que haviam sido ordenados para a vida eterna”. Logo, na Palavra e na
experiência reside a garantia e certeza da eleição.178

O eleito não tem dúvida acerca de sua salvação, pois está testificada na Palavra. A
nossa eleição se fundamenta, se efetua e se assegura em Cristo somente (Ef 1.4; Rm 8.32;
13.14; Ef 4.15; Jo 3.16; 5.24; 6.35).179 Esse é o penhor da salvação dos eleitos na comunhão

175
Ibidem. p. 420-425.
176
Através da eleição do Senhor, fomos predestinados para a vida e preparados para a glória celestial. A presciência de
Deus significa adoção, pela qual o Senhor sempre distingue seus filhos dos réprobos. Todos quantos fossem adotados
levariam a imagem de Cristo; conformados a essa imagem (CALVINO, J. Romanos. São Paulo, 1997. p. 295-298).
177
As Institutas, III: p. 427-430.
178
Ibidem. p. 431-432.
179
Ibidem. p. 432-433.
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com Cristo, que nos faz ovelhas e nos faz perseverantes na fé, e ter uma experiência viva na
história.

Calvino argumenta que jamais o eleito decai de sua salvação. A comunhão com Cristo
não é mera aparência, mas uma realidade que impõe uma vida de real piedade, temor e
fé.180 Os crentes em Cristo Jesus não perdem a salvação.

A salvação é dom de Deus, de modo irrevogável. Isto se constitui segurança para


aqueles que são chamados por Deus para serem novas criaturas, segundo a operação do
Espírito Santo que age com poder e graça nos corações.

3.9. Justificação
A justificação pela fé permanece sendo o eixo central da perspectiva calvinista, que
por sua vez, antes de tudo, toca o eixo da Reforma, indo de encontro à teologia romana dos
méritos, que é acompanhada da organização penitencial que requer em definitivo uma
instituição papal. O texto das Institutas diz logo de entrada que a doutrina da justificação
pela fé é o principal artigo da religião cristã.181 Se a justificação não parece dispor de todos
os níveis da única prioridade, este é o momento da compreensão humana, vista da
dispensação concreta ou de amadurecimento existencial, que poderá, por uma parte, não
coincidir exatamente com o nível propriamente teológico. Isto não implica que a
justificação pela fé possa fruir, inegavelmente, de um primado de direito, sendo este o
essencial.

A ordem cristológica adotada por Calvino é confirmada através dos pontos que se
desenvolvem para uma reflexão aprofundada: a Criação a Escritura, a Igreja, os
Sacramentos e a Ordem Civil. Aborda a maneira de participar da graça de Jesus Cristo, dos
frutos a que reenviam e dos efeitos que se refletem. A vida do crente é vista como realidade
da regeneração. É um lugar percebido de modo inegável como um lugar da encarnação do
Espírito. É um momento complexo e dado de forma irredutível. É um trabalho que é
operado em segredo, no mais íntimo do ser, pelo Espírito Santo que o comanda. Convém
observar que o fundamento aparece mediante uma heterogeneidade, secreta. Tem uma
relação do estatuto da justificação pela fé com a regeneração. Este é um primado que vem
de Deus, que é uma referência a uma realidade que dá estrutura interior.

O momento da regeneração remete à justificação. Esse remeter é processado como


desenvolvimento da realidade encarnada de Cristo e sua obra soteriológica. Subentende
uma estrutura de realização que passa pela morte, remetendo, por sua vez, à figura eterna
do Mediador.182

Esse momento focaliza e toca um ponto altamente teológico, como por exemplo: a
criação, externa e universal, é atravessada de uma obra de Deus, que não faz nome com ela,
mas que permite identificar-se como dom, instituição e aliança, e como lugar de
testemunho.183 Ou mesmo como a Escritura, ordem da Letra, que se dá como realidade
externa, historicamente situada, na distância do crente de uma parte, e como lugar de um
trabalho interno do Espírito, de outro. Sua leitura está tomada com o “testemunho interno
do Espírito”. Ainda, a Igreja, que se apresenta sob suas formas visíveis, necessariamente

180
Ibidem. p. 435-436.
181
CALVINO, J., Instituas, III, XI, pt. 1. In: Le Christ de Calvin, p. 164.
182
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 165.
183
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 165.
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organizadas, que remetem a uma “Igreja invisível”, se pode ignorar as suas fronteiras,
porque nela se pode testemunhar a realidade do Espírito de Deus. Assim, como também o
sacramento, que requer “um sinal exterior” terreno, carnal e material, e remete ao mesmo
tempo à realidade do Espírito, que labora nele e no Cristo que o simboliza sem enclausurá-
lo.

Essa realidade da regeneração que remete à justificação faz que o homem não seja
marcado por um destino, mas, antes dirigido pelo Deus criador e pela sua providência.184
Ele é sujeito à vocação,185 no coração do tempo, da cidade e da secularidade. O homem
opera a sua obra sob uma responsabilidade fortemente afirmada e sobre uma ética
centrada sobre as realidades presentes.186 E, essa realidade onde se configura o homem
regenerado, remete-se à glória de Deus, sob forma de testemunho dessa operosidade.

Mas, é preciso entender que existe uma ruptura original (uma assimetria) entre Deus
e o homem, ou mesmo entre Deus e o mundo, constituindo a necessidade de uma aliança.

Essa aliança está incluída na temática da cristologia, que é uma tomada de conta da
Escritura, da irrupção da Palavra, do estatuto da Letra. Nesse sentido e numa situação
hermenêutica a qual está ligada, o Antigo Testamento não é ultrapassado pelo Novo
Testamento, 187 no qual a aliança está inserida.

Há, portanto um jogo de profundas correspondências, feito de analogias e de


diferenças.188 Em relação ao tema da Lei, onde se joga uma oposição ao Evangelho, longe
está de ser uma oposição, mas remete a um triplo uso, integrando certas entradas de
negação e de ultrapassagem. Mas, é também de uma reprise e de uma realização. Há uma
recapitulação da cristologia desdobrada segundo o tempo, o espaço e a ordem do homem.

Essa temática de aliança se articula assim, na realidade como criação. Uma aliança
que é de certa maneira percebida na fé e no Espírito, em recapitular a força e a verdade no
coração da realidade, que toca o ser humano e a criação.

A realidade exterior é reordenada e acolhida pelo Evangelho, com uma marca nada
menos que de uma dimensão corporal. É uma realidade como criação, uma história como
desdobramento e instituição estruturante; um texto com consistência e espaço de figuras
diversificadas. É algo que envolve a fé e sua realidade, percebendo um trabalho do
Espírito, não nos confins, mas no coração dessa realidade. É um trabalho que acontece em
segredo, indireto, que inclui um não-entender por à parte do homem.

184
GISEL, P., Création et Eschatologie. Création et Providence. In: Initiation à la pratique de la théologie.
Dogmatique II; Paris; Cerf, 1993. Direction de Bernard Louret et François Refoulé, 3a ed., pp. 678-680. Na teologia de
Calvino, se sublinha em primeiro lugar a ligação entre criação e providência. O Deus criador é de relação presente,
contínua e ativa com a sua criação. O mundo é obra de Deus. Esta premissa vai de encontro ao estoicismo e ao
panteísmo. O mundo é lugar de efetivação e prática ou de história. Assim, a criação é obra de Deus para o homem atuar,
mas sob a dependência divina.
185
Cf. MIEGGE, M., Vocation et travail. Ensaio sobre a ética puritana, Genève, Labor et Fides, 1989, cap. 1, e
WOLTERSTORFF, N., Justice et paix s’embrassent, Genève, Labor et Fides, 1988, cap. 1 (se remarcará, segundo estes
dois autores, a referência a Ernst Troeltsch). In: Le Christ de Calvin, p. 165.
186
VINCENT, G., tem bem acentuado este ponto, Exigence éthique et interprétation dans l’oeuvre de Calvin, Labor et
Fides, 1984. In: Le Christ de Calvin, p. 165.
187
Cf. ZENGER, E., A Sagrada Escritura de judeus e cristãos. In: Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo:
Loyola, 2003, p. 27.
188
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 166.
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Assim, tanto na escatologia como na protologia permanece a transcendência de Deus.


Dar-se a onipresença do Espírito. Esse atributo não se confunde com certas antecipações
relacionadas a certos espiritualismos, que acontecem de forma livre, de puras
interiorizações subjetivas. Nada tem a ver com uma linha pietista, e nem com a de cunho
liberal. O trabalho do Espírito é um trabalho interno por excelência, de modo articulado
com a realidade. É um trabalho no coração do homem, visto pelo prisma de o conformar à
imagem de Deus cristalizada em seu Filho.

Justificação somente pela fé bíblica


Calvino entende que é de grande importância uma exposição sobre a doutrina da
Justificação, devido a sua necessidade, para que a Igreja se perceba como eleita pelo
Senhor. A lei da fé é o único fundamento vital que converge para o ser humano recuperar-
se. Cristo Jesus, que a nós foi dado pela misericórdia de Deus Pai, é da nossa parte
apreendido e recebido pela fé, recurso único para a salvação.189 É a bondade de um Deus
propício, amoroso e justo, que em sua própria natureza arregimentou todos os elementos
dessa reconciliação, em santificação operada pelo seu Espírito.

Significa, portanto, ser o homem justificado diante de Deus e ser justificado pela fé,
não por obras, mas as obras são em decorrência da fé. Ser justificado por Deus não é ser
somente contado como justo, mas também que em razão da justiça divina, o pecador acha
graça aos olhos de Deus. O pecado é agressão a Deus, e daí se manifesta a sua ira e
vingança. O homem é justificado por Deus diante do tribunal divino, onde se prostram
abatidos todos os pecadores. Justificado diante do juiz, assim é justificado diante de Deus,
onde o homem é excluído dos pecadores, e a Deus tem por testemunha e proclamador de
sua justiça.190 É justificado pela fé aquele que excluído das obras está.191

Calvino vai à Escritura, onde ele afirma existir toda a base para essa justificação em
questão (Gl 3.8; Rm 3.26; 8.33-34, etc). Justificar é absolver de culpa aquele que era
considerado culpado, como se provada fosse sua inocência. Recorrendo, portanto, à
intercessão de Cristo, há a absolvição. Deus imputa a justiça de Cristo, destarte, somos
justificados em Cristo (At 13.38-39).

A justificação é sintetizada em quatro conceitos192 básicos que são:

1) Aceitação por parte de Deus (Ef 1.5-6);


2) Imputação da justiça de Cristo (Rm 4.6-7; Sl 32.1);
3) Perdão de pecados (Sl 32.1);
4) Reconciliação com Deus (2 Co 5.18-20).

Somente Deus pode justificar o pecador, e isso nos foi dado por justiça, mediante
Cristo Jesus. A fé, segundo Calvino, é o instrumento de apropriar-se dessa justiça, com

189
Ibidem. p. 188. Observa-se o profundo valor do assunto enfatizado por Calvino, através de abordagem um tanto
quanto exaustiva.
190
As Institutas, III: p. 189. Cf. MIRANDA, M. F. Libertados para a práxis da justiça. São Paulo, 1991. Esse
teólogo faz uma exposição acerca do tema da Justificação. p. 85-111, que em muito contribui para um maior
aprofundamento referente ao tema hoje.
191
Em Efésios 2, o título utilizado pela Bíblia de Jerusalém é “Salvação gratuita em Cristo”, onde nos versículos 8 e 9
consta: “Pela graça fostes salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, é o dom de Deus: não vem das obras, para que
ninguém se encha de orgulho.” A versão Revista e Atualizada no Brasil, tradução de João Ferreira de Almeida, no
versículo 9, consta: Loc. cit. “...para que ninguém se glorie.” É preferível a tradução da Bíblia de Jerusalém “orgulho”.
Daí, passa-se a entender o que Calvino argumenta, que a justificação é pela fé, e não pelas obras.
192
As Institutas, III: p. 191.
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Cristo, que é a causa material, e a um só tempo Autor e Ministro de tão grande bênção a
nós concedida.

Para Calvino, não apenas a natureza divina é a causa ativa da justificação, mas
também todo o ser humano de Jesus. Ele viveu em obediência ao Pai. Não se pode dividir a
Cristo, pois o Pai providenciou a reconciliação em sua carne, e nos dotou de justiça.

Calvino enfatiza o valor da plena humanidade de Jesus, que se revestiu da forma de


servo (Fp 2.7), que ele nos justifica em se mostrar obediente ao Pai em todas as coisas (Fp
2.8).

Jesus não só experimentou a plena humanidade, mas também nos fez compreender o
sentido de ser verdadeiramente humano. Daí entendermos a justificação como sendo obra
do Mediador, do Logos encarnado, portanto, da própria natureza humana de Cristo.193
Calvino toma as palavras do apóstolo Paulo, estatuindo não em outro lugar estar a fonte da
justiça a não ser na carne de Cristo: “Aquele que não conhecia pecado, Ele o fez pecado por
nós, para que nEle fôssemos justiça de Deus” (2 Co 5.21). Cristo é o verdadeiro e único
Mediador da justificação do pecador.

Aos amantes da ação trinitária, e todos os bons teólogos o são, Calvino atribui a Cristo
a justificação, o Deus-homem, sob a ação do Deus-Pai e do Espírito Santo, fazendo-nos
participantes da eterna justiça do Deus eterno. A apropriação dessa justiça se dá no
coração, em união mística de Cristo conosco, fazendo-nos também participantes nos seus
dons. Em 2 Pedro consta o seguinte: “Através de Cristo, nos foram dadas preciosas e mui
grandes promessas, para que nos houvéssemos de fazer participantes da natureza
divina” (2 Pe1.4). Portanto, somos justificados, absolvidos e perdoados segundo a
reconciliação proporcionada por Deus em Cristo (2 Co 5.19,21). Ser justificado, termo
tirado do uso forense, é a certeza de que já nenhuma condenação existe para os que estão
em Cristo Jesus (Rm 8.1).194

Calvino argumenta que a graça da justificação não é separada da regeneração, ainda


que sejam distintas.195 Tudo isso é proporcionado por Deus para que o pecador encontre a
libertação. E por que Deus age assim? Está nos seus propósitos eternos, no Seu grande
amor: “Terei misericórdia daquele de quem haverei de ter misericórdia” (Êx 33.19). Deus
abomina o pecado, mas ama profundamente aqueles que justifica. Tornam-se cobertos da
justiça de Cristo. Em Cristo estão escondidos os tesouros todos da sabedoria e do
conhecimento (Cl 2.3).196 Portanto, Deus-Pai manifestou o Seu amor em Cristo, usando a
sua natureza humana para brilhar nas trevas do pecado. Jesus é o Sol da Justiça (Ml 4.2) e

193
As Institutas, III: p. 9. Calvino combateu a Osiandro, cujo nome verdadeiro era André Hosemann, que sustentou em
1550, em Koenigsberg, 81 teses sobre a Justificação que suscitaram grande controvérsia e que Calvino refutou.
Sustentava Osiandro que nossa justiça provém da presença de Cristo e da sua justiça em nós, por uma espécie de
justificação mística (citação contida na página 95, das referências bibliográficas do Livro III das Institutas). Osiandro,
segundo Calvino, defendia que a justificação em Cristo procedeu da natureza divina, desprezando a humana (ibidem).
194
Estas são palavras de consolação, pois, ainda que o crente viva digladiando com a sua própria carne, mesmo cercado
pelo pecado, contudo é livre do poder da morte e da própria maldição. O crente vive segundo a norma do Espírito de
Deus. A permanência em Cristo é a garantia de se estar livre da condenação (CALVINO, J. Romanos. São Paulo,
1997).
195
As Institutas, III: p. 194-195. É percebida essa distinção, que perpassa o conteúdo das páginas citadas.
196
As Institutas, III: p. 202.
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a Luz do Mundo (Jo 8.12). Jesus se manifestou para destruir aquele que tinha o império da
morte (Hb 2.14).197

A morte e ressurreição de Cristo, segundo Calvino, é a justiça e a própria vida


verdadeira, que o justificado pode provar, onde o próprio Filho de Deus esteve pleno do
Espírito, para que, por sua magnificência, houvesse de suprir a indigência de seus
membros.198 Por isso, percebemos que Cristo se santificou na carne, justamente para que
fôssemos feitos justos e participantes de todas as suas benesses.

Natureza e sentido da justificação


Diante desta afirmativa, logo, se exclui as obras. A justiça que advém de Deus é
mediante a fé (Fp 3.8-9). Calvino fala da “lei da fé” (Rm 3.27), que exclui as obras para a
justificação. Se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar; mas, a Escritura
diz que ele foi justificado pela fé (Rm 4.2). À fé se atribui a justiça segundo a graça. Desta
maneira, é desprovida de méritos. As obras não servem para a justificação, ainda que
sejam plenas de espiritualidade.199 Estão excluídas todas e quaisquer obras para a
justificação (Gl 3.11-12). À justiça da fé, se cremos que Cristo morreu e ressuscitou (Rm
10.5,9)!
Calvino, tomando por base Lombardo, concebe a justificação como sendo dada
através de Cristo de dois modos: 200

 primeiro: a morte de Cristo nos justifica, enquanto mediante ela nos é despertado
no coração amor pelo qual somos redimidos e justos;

 segundo: pelo mesmo amor o pecado pelo qual o Diabo nos tinha cativos não nos
condena. Lombardo segue a mesma opinião de Agostinho, e por sua vez Calvino
encontra toda a sua argumentação teológica.201

A justificação no enfoque da Escritura


Quando a Palavra de Deus trata da justificação da fé, nos faz olhar na direção da
misericórdia de Deus e considerar a perfeição de Cristo.202 As nossas obras não são
centralizadas em si mesmas para justificar-nos diante de Deus. A justificação consiste em
que Deus acolhe o homem, em primeiro lugar, por graciosa bondade. Encontra-o
desprovido de méritos, de justiça própria que o habilite a possuir o perdão divino. Somente
a benevolência de Deus o torna livre da condenação, sob a ação do Espírito Santo, que age,
regenerando o homem, fazendo-o compreender a dimensão da sua falta, decorrente do
pecado, e arrependido, em fé, abraça a graça de Deus. Toma, portanto, posse da salvação.

Tudo isso se concretiza através da fé, esse instrumento para acolher a salvação do
pecador. A Escritura deixa bem claro que a consideração das obras meritórias para
justificar o homem está excluída.203 O apóstolo Paulo é quem o mostra, em duas passagens

197
Ibidem. p. 203. Foi necessário que o Filho de Deus se revestisse de nossa carne, para que pudesse participar de nossa
mesma natureza e, ao suportar a morte, nos redimisse dela. É inestimável o seu amor para conosco (CALVINO, J.
Hebreus. São Paulo, 1997. p. 73-75).
198
As Institutas, III: p. 203-204.
199
Há muitas pessoas religiosas que entendem a necessidade de realizar obras para serem salvas, justificadas,
enveredando-se em perseguir esse ideal, através de um esforço próprio; no entanto, segundo Calvino, a graça de Deus é
que pode justificar. Isso caracteriza uma garantia, de que se está seguro para sempre.
200
As Institutas, III: p. 206-207.
201
As Institutas, III: p. 206.
202
Ibidem. p. 207.
203
Ibidem. p. 207.
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citadas por Calvino. A primeira está na epístola aos Romanos 10.1-10. A justiça que é da fé
anuncia a salvação: “Se houveres crido em teu coração e com a boca confessado o Senhor
Jesus e que o Pai o ressuscitou dos mortos serás salvo.” 204 Há um antagonismo entre Lei e
Evangelho. A lei é das obras; o Evangelho é da graça que subsiste sem as obras e outorga
ao homem a salvação.205 A Lei é tão pesada, que os homens não podem cumpri-la. O amor
é como diz Calvino: o ponto capital da Lei.206 Ele é outorgado pelo Espírito de Deus, a fim
de que mesmo imperfeitos possamos fazer a vontade de Deus como Igreja.

A segunda passagem da Escritura é Gálatas 3.11-12.207 Ninguém pode ser justificado


pela lei. O justo viverá da fé. A lei não procede da fé. A lei é diferente da fé. A justiça da
lei reivindica obras para a justificação. A justiça da fé é à parte de quaisquer obras, pois
pela fé o homem é absolvido de suas culpas. Todas as obras que são produzidas para a
salvação estão na misericórdia de Deus, e a essa graça não cabe recompensa, pois foi da
exclusiva vontade de Deus que o homem pudesse ser justificado.

Calvino entende o argumento paulino e dá toda atenção ao seu aspecto crucial no


acento que diferencia Lei e Fé. A lei produz obras que são fundamentais para a justificação.

A fé confia e se sedimenta na misericórdia de Deus. A fé é uma herança, segundo a


graça, herança graciosa. É assim, porque encontra seu apoio no amor incondicional de
Deus. A lei não pode garantir tranqüilidade à consciência (Gl 3.21), por isso não pode
conferir a justiça. A fé é imputada pela justiça (Rm 4.5).208 É a justiça que encontra a sua
fundamentação no agir de Deus, considerando todo o contexto de justificação que provém
da maneira incondicional do amor divino, sendo derramada de modo pleno, a fim de que o
homem, morto em seus delitos e pecados, encontre o perdão e a promessa de vida eterna.

A justificação como perdão de pecados


A justificação pela fé é uma reconciliação com Deus que consiste, essencialmente, no
perdão dos pecados. O pecado é uma divisão entre o homem e Deus. Calvino diz que é uma
virada do rosto de Deus para o pecador.209 Paulo diz que o homem é inimigo de Deus, até

204
A única religião verdadeira é aquela que se acha conectada com a Palavra de Deus. Quando vemos alguém que
parece vaguear em trevas, mesmo quando perambula com boas intenções, ponderemos como somos merecedores de mil
mortes, se, uma vez tendo sido iluminados por Deus, desviarmo-nos conscientes e voluntariamente de seu caminho.
Aqueles, pois, que querem ser justificados por si mesmos jamais se submetem à justiça procedente de Deus, porquanto
o primeiro passo para obtermos a justiça divina consiste em renunciarmos a nossa própria justiça. O homem é vestido
da justiça divina pela instrumentalidade da fé. Paulo compara a justiça procedente da fé e a justiça procedente das obras,
com o fim de evidenciar como são grandemente discrepantes. É debalde que alguém alcance a perfeição pela justiça da
Lei, uma vez que é impossível praticá-la toda com o intuito de obter a salvação. Mas, é a justiça que decorre da fé,
significando que a vontade divina não está escondida e longe de todos. Ela oferece perdão para a imperfeição e defeitos.
O contraste entre Lei e Evangelho está subentendido e desta distinção deduzimos que, assim como a Lei exige obras, o
Evangelho requer apenas que os homens exibam a fé, a fim de que recebam a graça divina (CALVINO, J. Romanos.
São Paulo, 1997. p. 355-368).
205
As Institutas, III: p. 208.
206
Ibidem. p. 208.
207
O apóstolo Paulo utiliza a premissa mediante uma passagem de Habacuque, que é utilizada em Romanos 1.17. A lei
justifica todo aquele que cumpre todos os mandamentos, enquanto que a fé justifica aqueles que são destituídos de
mérito das obras e confiam exclusivamente em Cristo. O justo viverá pela fé. O profeta certamente opõe a orgulhosa
confiança da carne à fé genuína. Significa que o justo continuará vivendo, e não temporariamente, ou sendo vencido por
repentinos temporais; mesmo diante da morte ele não cessará de viver. Por fé simplesmente significa a tranqüila certeza
de uma consciência que confia somente em Deus (CALVINO, J. Gálatas. São Paulo, 1998. p. 92-94).
208
As Institutas, III: p. 210.
209
Pode-se entender que essa virada é enquanto o pecado prevalece, e o homem não se abre para Deus e para o
próximo. O pecado é odiado por Deus, aborrecendo a Sua santidade.
54
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que, através de Cristo Jesus, pode remover todo o pecado e se apresentar justificado a
Deus-Pai.

Calvino, ao observar a Escritura, entende que a remissão dos pecados e a justiça são a
mesma coisa, e argumenta ser ação da graça a benevolência de Deus. Pela intercessão do
único Mediador nós somos justificados por Deus, e não pelos nossos méritos, daí observa-
se que a justiça não está em nós, mas em Cristo. Sendo participantes de Cristo, nEle
possuímos todas as riquezas. Não somos justificados por obras, mas pela fé, em razão da
fraqueza e da impotência da carne.

Ninguém é justo diante de Deus, e diante do seu tribunal todos são injustos. Ainda
que se possa pleitear retidão, esta nada é diante de Deus. Nos méritos de Cristo, Calvino
toma por base o que Agostinho e Bernardo entenderam à luz da Palavra de Deus, onde se
configura a justificação.210 Eis uma citação de Bernardo: “E, deveras, onde aos fracos
seguro e firme descanso e segurança, senão nas chagas do Salvador? Tanto mais seguro
aí habito quanto mais poderoso é Ele para salvar. Freme o mundo, o corpo, o Diabo
arma ciladas; não caio, pois que estou solidamente embasado na Rocha Firme. Pequei
grave pecado. Turba-se a consciência, mas se não haverá de perturbar, porque haver-
me-ei de lembrar das chagas do Senhor.”211 Aos olhos de Deus os méritos humanos nada
representam para a nossa justificação (Jó 25.4,6; 14.4; 9.20-21; Is 53.6). Diante disso,
Calvino recomenda ter humildade e reconhecer a graça de Deus. Está escrito que a
salvação foi preparada para o povo humilde e abatimento para os olhos dos soberbos (Sl
18.27). Devemos reconhecer a nossa pobreza (Is 62.2; 57.15).

Cristo, lembra Calvino, veio ao mundo para chamar os pecadores, não justos. A
Escritura nos fala disso profundamente (Lc 18.9-14), apresentando a imagem da legítima
humildade. O coração do homem deve estar vazio de todo senso de justiça própria para
receber a graça de Deus. Aos pobres as boas novas, a cura aos quebrantados de coração, a
libertação aos cativos, a abertura de prisão aos encarcerados e o consolo aos que
pranteiam, e uma profunda transformação (Is 61.1-3). Mais uma vez Calvino cita
Agostinho: “Esquecidos de nossos méritos, abraçamos os dons de Cristo, por isso que, se
em nós méritos buscasse Ele, a Seus dons não veríamos.” 212

De uma forma interessante Calvino continua argumentando sobre o tema da


justificação, e afirma que salvaguarda integral a glória de Deus e assegura plena paz de
consciência, tudo isso assegurado pelos méritos de Cristo. Sendo assim, o homem natural
ou não-regenerado e completamente permeado de corrupção, não pode obrar para
configurar a sua justificação diante de Deus.213 O argumento que Calvino enfatiza é que os
homens que não foram dotados do conhecimento de Deus, foram submersos na idolatria.

Calvino quando assim se expressa, o faz explicitando a impureza da vida pelas ações
que conduzem à negação de Deus, onde pessoas só viviam de aparências, confessando a
Cristo somente com a boca, mas o coração bem distante da verdadeira santidade. Homens
que desenvolvem as obras que certamente vão de encontro à Palavra de Deus, as quais

210
As Institutas, III: p. 217.
211
Cf. nota contida nas referências do Capítulo XII do Livro III, das Institutas: SERMONES IN CONTICIS - Sermões
em Cânticos dos Cânticos - Sermão LXI, V, Seção B (PLM, Vol. CLXXXIII, p. 1072).
212
Referência contida nas Institutas, Volume III: sermão CLXXIV, Seção 2 (PLM, Vol. XXXVIII, p. 941).
213
As Institutas, III: p. 231. A partir do capítulo XIV e seus pontos, Calvino continua a desenvolver o tema da
Justificação, onde expõe os argumentos de Paulo e Tiago, chegando à uma conciliação em referência ao sentido das
obras em relação à fé.
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SOTERIOLOGIA
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Paulo enumera: “Fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, rixas,


ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões, invejas, bebedeiras, orgias e coisas
semelhantes...” (Gl 5.19-21).214

Na realidade, todas as boas obras, contrastando com as obras da carne, são motivadas
pela fé, pois estão a serviço de Deus e dos homens. Se são boas obras, na verdade, só são
feitas na fé em Cristo e na comunhão com Ele. Decorre um aspecto que é notório: há uma
diferença acentuada entre o justo e o injusto. Calvino cita Agostinho: “nossa religião
distingue os justos dos injustos não pela lei das obras, mas pela própria lei da fé, sem a
qual as cousas que parecem boas obras em pecado se convertem”.215 Sendo as boas obras
em Cristo, a Escritura proclama que Deus nada encontra no homem que mereça a
justificação, mas pelo contrário vem misericordiosamente ao seu encontro. Isso é graça,
não pelas obras, entretanto, somos regenerados para as boas obras, que Deus preparou
para que nelas andássemos (Ef 2.10).

As obras têm um lugar especial na vida dos eleitos, pois, “havemos nós sido
chamados pelo Senhor com um santo chamamento, não segundo as obras que
praticamos, mas segundo o seu propósito e graça” (2 Tm 1.9). Logo, somos justificados
por sua graça, feitos herdeiros da vida eterna (Tt 3.4,5,7). Se desta forma não é o homem
merecedor por si mesmo, decorre do fato de ser inimigo capital e professo de Deus, até
que, justificado, é recebido na amizade (Rm 5.10; Cl 1.21-22). Calvino chama de justiça
salvífica,216 que resulta da fé e implica um coração regenerado. Se a salvação fosse por
obras, o orgulho humano apareceria; mas sendo pela fé, é a glória de Deus que se revela,
fazendo com que o homem regenerado prossiga sempre para o alvo (Fp 3.13-14). Somos
nós uma plantação da glória de Deus (Is 61.3).

Calvino exibe as causas217 de nossa salvação postas na graça, e não nas obras:

1) Causa eficiente: adquire-se a vida eterna através da misericórdia de Deus e seu


gracioso amor para conosco;

2) Causa material: através de Cristo Jesus e a sua obediência, adquirindo a


justificação para nós;

3) Causa instrumental: é a Fé;

4) Causa final: a manifestação da justiça divina e o louvor da sua bondade.

Para Calvino, a doutrina da justificação pela fé não pode abolir as boas obras, mas as
faz possíveis e necessárias, uma vez que a justificação e santificação não podem se
separar. Então, por que somos justificados? Porque nos apropriamos da justiça de Cristo,

214
E preciso obedecer ao Espírito e resistir à carne. Se os homens se conhecessem, não careceriam de tal declaração, de
que nada são senão carne. Tal, porém, é a nossa inerente hipocrisia, que nunca percebemos nossa vileza, enquanto a
árvore não for conhecida pelos seus frutos (CALVINO, J. Gálatas. São Paulo, 1998. p. 168).
215
Referência contida nas Institutas, Volume III, página 114: CONTRA EPÍSTOLAS PELAGIANORUM DUAS: AD
BONIFACIUM, Livro III, Cap. V, Seção 14 (PLM, Vol. XLIV, pp. 597-598).
216
Sobre a atualidade da doutrina da justificação, a salvação é obra de Deus em nós, a ele cabe a iniciativa da execução;
e que essa salvação depende também de nossa decisão pessoal. O homem é agente transformador da sociedade, mas
libertado do seu egoísmo (MIRANDA, Mario de França. Libertados para a práxis da justiça. São Paulo, 1991. p. 94).
217
As Institutas, III: p. 246-247. Cf. também na página 21, Calvino, novamente faz referência às causas da nossa
justificação, considerando que o ser humano em nada tem de se orgulhar, pois as suas obras não salvam, mas a graça de
Deus.
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SOTERIOLOGIA
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mercê da qual unicamente somos reconciliados a Deus.218 Uma vez reconciliados,


passamos a seguir os passos de Jesus (1Pe 2.21; Jo 13.15; 15.10). Segue-se uma verdadeira
adoração, que é a confiança na sua misericórdia; concebe-se maior horror ao pecado que
gera a morte, que só a obra de Cristo pode nos libertar de suas garras.

E quanto a Tiago e Paulo, pode haver algum conflito? Há fé sem obras? Em Tiago há o
testemunho (Tg 2.21,24,14,19);219 em Paulo é explicitado o meio de justificação. Para
Calvino, mesmo que alguém argumente retidão própria, tudo é em função da ação gloriosa
de Deus. Se Deus já havia nos galardoado antes das obras, logo, não se é salvo
considerando como causa as boas obras. Deus nos amou primeiro.

3.10. Santificação

CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER
CAPÍTULO - XIII - DA SANTIFICAÇÃO

I. Os que são eficazmente chamados e regenerados, tendo criado em si um novo coração e


um novo espírito, são além disso santificados real e pessoalmente, pela virtude da morte e
ressurreição de Cristo, pela sua palavra e pelo seu Espírito, que neles habita; o domínio do
corpo do pecado é neles todo destruído, as suas várias concupiscências são mais é mais
enfraquecidas e mortificadas, e eles são mais e mais vivificados e fortalecidos em todas as
graças salvadores, para a prática da verdadeira santidade, sem a qual ninguém verá a Deus.

 I Cor. 1:30; At. 20:32; Fil. 3:10; Rom. 6:5-6; João 17:17, 19; Ef. 5-26; II Tess. 2:13;
Rom. 6:6, 14; Gal. 5:24; Col., 1:10-11; Ef. 3:16-19; II Cor. 7:1; Col. 1:28, e 4:12; Heb.
12:14.

II. Esta santificação é no homem todo, porém imperfeita nesta vida; ainda persistem em
todas as partes dele restos da corrupção, e daí nasce uma guerra contínua e irreconciliável -
a carne lutando contra o espírito e o espírito contra a carne.

 I Tess. 5:23; I João 1:10; Fil. 3:12; Gal. 5:17; I Ped.2:11.

III. Nesta guerra, embora prevaleçam por algum tempo as corrupções que ficam, contudo,
pelo contínuo socorro da eficácia do santificador Espírito de Cristo, a parte regenerada do
homem novo vence, e assim os santos crescem em graça, aperfeiçoando a santidade no
temor de Deus.

 Rom. 7:23, e 6:14; I João 5:4; Ef. 4:15-16; II Ped. 3:18; II Cor. 3:18, e 7: 1.

A obra de Deus pela qual nos torna santos é chamada de santificação.220 Podemos
definir santificação como a graciosa operação do Espírito Santo, envolvendo nossa
participação responsável, pela qual ele nos livra da poluição do pecado, renova toda nossa
natureza inteira segundo a imagem de Deus, e habilita-nos a viver de forma a agradá-lo.

218
Ibidem. p. 261.
219
Ibidem. p. 261.
220
Cf. HOEKEMA, Anthony. Salvos pela graça, pp. 199-239.
57
SOTERIOLOGIA
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HOEKEMA faz uma distinção entre a culpa e a poluição associada ao pecado.221

 Por culpa entende-se o estado de condenação merecida ou o ser responsável pela


violação da lei de Deus a ser merecedor da punição prescrita. Na justificação, que é
o ato declarativo de Deus, a culpa pelos nossos pecados pe removida na base da
obra expiatória de Jesus Cristo.

 Por poluição entende-se a corrupção da nossa natureza como resultado do pecado,


a qual provoca mais pecados. Com o resultado da Queda de nossos primeiros pais,
todos nascemos num estado de corrupção; os pecados que cometemos não são
apenas produtos dessa corrupção, mas adicionam-se esses pecados a ela. Na
santificação, a poluição do pecado está num processo de ser removida (ainda que
não seja removida totalmente até que estejamos na outra vida).

A santificação efetua uma renovação de nossa natureza. Provoca mudanças de direção


e não de substância. Santificando-nos, Deus não nos equipa com poderes ou capacidades
totalmente deferentes do que tínhamos antes; ao invés, capacita-nos a usar nossos dons da
maneira certa e não para o pecado. A santificação dá poder para pensar, querer e amar de
modo a glorificar a Deus: pensar os pensamentos de Deus e de acordo com ele, e agir em
harmonia com sua vontade.

Santificação também significa ser capacitado a viver conforme é do agrado de Deus.


Comumente se diz que na santificação Deus nos habilita para as “boas obras”. Essas boas
obras não devem ser entendidas como meritórias nem devemos imaginar que sejam
perfeitas, sem ruga ou mácula. Elas são necessárias. Em Efésios 2.10, de fato, as boas obras
são descritas como frutos de nossa salvação. Noutras palavras, não somos salvos pelas
obras, mas para as obras. E mais: uma vez que a expressão boas obras possa dar a entender
algo atomístico (sugerindo que podemos fazer boas ações durante o dia), prefere-se dizer
que Deus nos habilita a viver da maneira que lhe agrada.

Etimologia de “santificar”
 Santificar significa “tornar santo”. Deriva-se duas palavras latinas: sanctus, santo
e facere, fazer.

 A palavra no Antigo Testamento é qadosh, que significa “separar dentre outras


coisas”. Isto é, colocar algo ou alguém numa esfera ou categoria separada da
comum ou profana.

 No Novo Testamento a palavra chave é hagios e seus derivados. Utilizada com


diferentes sentidos, esta palavra usualmente descreve a santificação dos crentes,
como em Efésios 5.25, 26.

Nesse sentido do texto de Efésios, a santidade significa pelos menos duas coisas:

1. Separação da prática do pecado deste presente mundo;

2. Consagração ao serviço de Deus.

221
Cf. Ibid., p. 199 ss.
58
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

Somos chamados a viver uma nova vida porque fomos alçados com Cristo e
partilhamos de sua vida ressurreta (Cl 3.1; Ef 2.4-6). Estamos sendo santificados através
do crescimento numa mais completa e rica união com Cristo. Somos santificados por meio
da verdade que é encontrada na Palavra de Deus. Também somos santificados pela fé, que
é uma das verdades centrais proclamada pela Reforma.

O Espírito Santo nos habilita a vencer o pecado e viver para Deus em santidade de
vida, que é fazer a vontade de Deus. Assim como Jesus Cristo o crente tem de viver.

4. OS CINCO PONTOS DO CALVINISMO


Para compreender melhor a soteriologia, faz-se necessário estudarmos Os Cinco
Pontos do Calvinismo 222, visto estarmos experimentando hoje um tipo de salvação que
tem o homem como agente livre em sua ação na história e não como subserviente de Deus.

Os Cinco Pontos do Calvinismo são os seguintes:

4. Depravação Total;
5. Eleição Incondicional;
6. Expiação Limitada;
7. Irresistível Graça;
8. Perseverança dos Santos.

Segue-se uma análise concisa, sobre este assunto da teologia, que é fundamental para
se compreendermos a doutrina da salvação do ângulo reformado.

4.1. Depravação Total

O homem é totalmente incapaz de salvar a si mesmo, em virtude de sua queda. O


estado natural do homem é de total depravação, portanto, há total incapacidade para obter
ou contribuir a favor de sua própria salvação.

Depravação total não significa que o homem é tão mau que não seja capaz de fazer o
bem para os seus semelhantes, ou incapaz de reconhecer a vontade de Deus, ou até de ser
submisso externamente ao culto a Deus. É a incapacidade de operar em favor de sua
própria salvação. Textos: Rm 5:12; 2 Tm 2: 25, 26; Mc 4.11,12.

Somos Pecaminosos por Natureza – Sl 51:5 e Gn 6:5. O homem não veio das mãos de
Deus nessa condição depravada. Originalmente sua vontade estava livre do domínio do
Pecado. Agora, não é mais livre. Está escravizado à sua natureza pecaminosa. É incapaz,
por si mesmo, de se arrepender, de crer e de vir a Cristo. Jo 14:46; Jer 13:23; Jo 6:44,
37,65; I Cor 2:14; II Cor 3:5.

4.2. Eleição Incondicional


222
SPENCER, D. E. Os Cinco Pontos do Calvinismo. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992. 117p. Para um
melhor aprofundamento e também os motivos pelos quais foram elaborados.
59
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

É a decisão divina numa perspectiva eterna.

Esta doutrina é conseqüência natural da doutrina da depravação total. Dentre todos


os membros decaídos da raça de Adão, Deus escolheu alguns para serem objetos de seu
imerecido amor. Se o homem está morto, cego, preso em cativeiro, não tem ele condição de
mudar sua posição. Só Deus mesmo pode fazê-lo. Podendo salvar todos ou não salvar
ninguém, preferiu salvar alguns baseando sua escolha no Seu Beneplácito, e na sua
soberana vontade.

A eleição não foi condicionada nem determinada por qualquer coisa que os homens
iriam fazer, mas resultou inteiramente do propósito determinado pelo próprio Deus. Não
foi baseada em qualquer mérito previsto. Deus não tem obrigação de mostrar misericórdia
a quem quer que seja. A escolha de alguns implica a rejeição dos demais.

Não cabe à criatura questionar a justiça divina por não escolher todos os pecadores
para a salvação. Rm 9: 20-24. Deus não foi injusto porque não estava na obrigação de
prover Salvação para todos os pecadores.

A missão do Espírito Santo – Foi (e é) de aplicar aos Eleitos a Salvação adquirida


para eles pelo Filho. A obra eletiva de Deus, conquistada objetivamente por Cristo na Cruz,
é subjetivamente aplicada pelo Espírito Santo.

Os textos abaixo mostram que Deus tem um Povo Eleito: Rm 9:11-13; Lc 4:25-27; Jo
15:16; Dt 10:14, 15; Sl 33:12; Mt 22:14;24: 22,24,31; Lc 18:7; Rm 8:28-30,33; At 5:9; I Pe
2:8,9.

A escolha foi feita antes da fundação do mundo - Ef 1:4; 2 Tm 1:9; 2 Ts 2:13; Ap 13:8;
Ap 17:8.
As boas obras são o resultado e não a base da Predestinação – Ef 1:12; Ef 2:10; Jo
15:16.

A escolha divina não foi baseada na fé prevista. A fé é um resultado, a evidência da


eleição, não a causa ou base da escolha – At 13:48; 18:27; 1 Ts 1:45; 2 Ts 2:13, 14. Assim, é
através da fé e das boas obras que alguém confirma a sua eleição.

A eleição não é a Salvação, mas para a Salvação. Os eleitos não são salvos até que
sejam regenerados pelo Espírito Santo e justificados pela fé em Cristo – 2 Tm 2:10. A
eleição foi baseada na misericórdia de Deus – Dt 7:6, 7; Rm 9;20,21.

4.3. Expiação limitada

A expiação é suficiente para todos, mas eficiente só para os eleitos.

A expiação foi realizada pela submissão voluntária de Cristo à morte na Cruz, onde
sofreu a justiça do Pai. Ele adquiriu Salvação. Na Cruz suportou o castigo e obteve
Salvação.

Mas levou sobre si o castigo de quem?


60
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

Só há três caminhos a seguir:

a) Universalismo – Cristo morreu para salva a todos sem distinção;


b) Arminianismo 223 – Cristo morreu para salvar potencialmente todos os
homens. Torna-se realidade para quem crê;
c) Calvinismo – Cristo morreu para “salvar alguns”.

Cristo morreu positiva e eficazmente para salvar a um certo número de pecadores. O


Arminianismo ensina que a morte de Cristo não assegurou a Salvação de ninguém. A
morte de Cristo só poderia salvar: a todos; a ninguém em particular; a um número
especial.

O que dizem os textos? Ef 1;4; Mt 1:21; 26:28; Ef 5;25; Rm 4:25; Jo 15:13; Is 53:11; Mt
20:28; Jo 10:11.

A redenção foi designada para cumprir o propósito divino da eleição: A salvação dos
eleitos e a glória de Deus.

Bênçãos Asseguradas por Cristo em sua obra Redentora:

a. Assegurou reconciliação ao seu povo – Rm 5:10; 2 Cor 5:18, 19; Ef 2:15, 16 3 Cl 1:


21,22;

b. Assegurou a justificação – Rm 3:24, 25; 5: 8, 9: 1 Cor 1: 30; Gl 3: 13; Cl 1: 13, 14;


Hb 9: 12 e 1 Pe 2: 24;

c. Assegurou o dom do Espírito Santo, que opera: Regeneração – Ef 1: 3,4; Fp 1: 29;


At 5: 31; Tt 2: 14; 3: ,6; Ef 5: 25,26; 1 Cor 1: 30; Hb 9: 14; 13: 12 3 1Cor 1: 7;
Santificação;

d. Jesus foi enviado para salvar o povo que o Pai lhe deu – Mt 10:28; Jo 6:35, 40; 10:
11, 14-18, 24-29; 11:50-53; At 20: 28; Hb 2: 17; 3: 1; 9: 15, 28 e Ap 5: 9;

e. Textos que dão a entender que Cristo morreu por todos: 1. Os que contêm a
palavra “mundo” – Jo 1: 9, 29; 3: 16, 17; 4: 42; 2 Cor 5: 19; 1 sJo 2: 1, 2 e 4: 14; 2.
O que contêm a palavra “todos” – Rm 5:18; 2 Cor 5: 14, 15; 1 Tm 2: 4 – 6; Hb 2: 9
e 2 Pe 3: 9.

As expressões “Que nenhum pereça e todos cheguem ao arrependimento” referem-se


às razões que explicam o uso dos termos:

a. Corrigir a falsa noção de que a salvação só era para os judeus;


b. Mostrar que Cristo morreu por todos os homens sem distinção, e não por todos os
homens sem exceção.

4.4. Graça Irresistível – Efésios 2:8


223
SPENCER, D. E. Os Cinco Pontos do Calvinismo. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992. Páginas: 10-12.
Nessas páginas constam os chamados “Cincos Pontos do Arminianismo”.
61
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

A graça tem dois aspectos:

a. Chamada externa ou graça comum. É o convite a todos os homens e mulheres,


sem distinção – Mateus 11: 28;

b. Chamada Eficaz. É a ação do Espírito Santo sobre os que recebem o Evangelho, de


tal modo que não conseguem resistir. Só o Espírito Santo convence o pecador do
seu pecado. O pecador (antes morto) é atraído a Cristo pela chamada interna e
sobrenatural do Espírito Santo, que através da regeneração, cria nele a fé e o
arrependimento.

A chamada externa é por vezes rejeitada, mas a chamada interna nunca deixa de
produzir a conversão daqueles a quem ele é feita. Ela não é feita a todos os pecadores, mas
só aos eleitos.

Na graça irresistível, há a participação da Trindade – Rm 8: 14; 1 Cor 2: 10-14; 6: 11;


12: 3; 2 Cor 3: 6, 17, 18 e 1 Pe 1: 2.

Na participação da Trindade, a obra do Espírito Santo é:

a. Regenerar – Jo 1: 12, 13; 3: 3 – 8; Tt 3: 5; 1 Pe 1:3, 23 e 1 Jo 5: 4;

b. O pecador é levado a andar segundo a vontade de Deus – Dt 30: 6; Ez 36: 26,27;


Gl 6: 15; Ef 2: 10 e 2cor 5: 17, 18;

c. O pecador é vivificado – Jo 5: 21; Ef 2: 1, 5; Cl 2: 13;

d. A fé e o arrependimento são dons divinos – At 5: 31; 11: 18; 13: 48; 16: 14; 18: 27;
Ef 2: 8, 9; Fp 1: 29 e 2 Tm 2: 25, 26;

e. A aplicação da Salvação É toda pela graça, realizada através do infinito poder de


Deus – Is 55: 11; Jo 3: 27; 17: 2; Rm 9: 16; 1 Cor 3: 6, 7; 4: 7; Fp 2: 12, 13; Ts 1: 18; 1
Jo 5: 20;

4.5. Perseverança dos Santos

A contínua operação do Espírito Santo no crente, pela qual a obra da graça divina
iniciada no coração, tem prosseguimento e se completa.

Os eleitos são garantidos para o céu – Fp 1: 6; Rm 8: 20-31, 38, 39; 11: 29;

São guardados pelo poder de Deus, os eleitos, mediante a fé, e nada os pode separar
do seu Amor - 2 Tm 1: 12;

Os eleitos foram selados com o Espírito Santo.


Textos comprobatórios: Is 43: 1 – 3; 54: 10; Jr 32: 40; Mt 18: 12-14; Jo 3: 16, 36; 5;
24; 6: 35-40; 6:47; 10: 27-30; 17: 11, 12, 15.

Certeza da Salvação:
62
SOTERIOLOGIA
Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha

É maravilhoso estar salvo. Melhor ainda é ter certeza da salvação; e esse é um


privilégio de todo o filho de Deus. Esta certeza nos é transmitida de três maneiras:

 Pela Palavra de Deus – 1 Jo 5: 11-13;

 Pela confiança íntima que o Espírito Santo lhe dá – Rm 8: 16; 1 Jo 5: 10;

 Pela vida transformada – 1 Jo 3: 14; 1 Jo 2: 3.

A certeza da salvação não vem através dos sentimentos, e, sim, pelas evidências
mencionadas acima. Os sentimentos nem sempre são estáveis – verificar o que disse Jesus:
“O que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora” (João 6: 37).

CONCLUSÃO
A reflexão empreendida com o objetivo de preparar estudantes de Teologia não
somente para o Sagrado Ministério da Palavra e dos Sacramentos, mas também para o
crescimento na vida cristã de modo integral. Também, visa o aperfeiçoamento de todo
aquele que tem interesse em aprofundar-se no ensino da Soteriologia, que é a Doutrina da
Salvação em Jesus Cristo. Se tal finalidade for alcançada ainda que não de totalmente, já é
de grande valia e satisfação. Ao procurar conhecer quem é Jesus Cristo e a sua obra na
história, a pessoa terá condições de viver a sua existência de forma encarnada, pois essa é a
postura mesma do Filho de Deus, conforme o ensino dos evangelhos.

E sendo assim, interpela Deus em sua Palavra, a uma caminhada com sentido, para
todo aquele que segue o seu caminho. O caminho de Deus é caminho marcado por
compromisso sincero e decisivo; compromisso histórico sem perder de vista a realidade
transcendental. E, somente uma pessoa revestida verdadeiramente com as características
da realidade cristológica, terá condições de ocupar o seu espaço existencial. Uma vida
engajada na história pode fazer sobressair todos os elementos que compõem a salvação
conquistada por Jesus de Nazaré, com sua vida e obra. São elementos que ultrapassam
quaisquer barreiras e paradigmas que neutralizam a vida.

Diante da eficácia da salvação em Cristo, qualquer força negativa é interceptada.


Jesus Cristo é Deus entre os homens e o homem diante de Deus. Daí a sua grande
importância em relação ao estudo que envolveu todo o conteúdo do presente trabalho. O
desejo de que não se busque apenas conhecê-lo pela reflexão soteriológica, mas muita mais
pela práxis histórica de uma fé viva e marcante.

Dr. Nelson Célio de Mesquita Rocha


prof.nelsoncelio@oi.com.br

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