Departamento de Sociologia e Antropologia (DESOC) Disciplina: Tópicos Especiais II (Antropologia II) Atividades de avaliação (2ª Unidade) Docente: Dr. Marilande Martins Abreu Discente: Tássio Carlos Rodrigues Filgueiras
Atividades Segunda Unidade (data de entrega: 11 de dezembro de 2019)
- Elabore 01 um resumo de cada um dos três artigos abaixo relacionados: Lévi-Strauss, Claude. [s/d] O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia estrutural. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. Editora Cosac Naify, p. 181-200. Não há por que duvidar da eficácia de certas práticas mágicas. Porém, ao mesmo tempo, percebe-se que a eficácia da magia implica a crença na magia, que se apresenta sob três aspectos complementares: primeiro, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; depois, a do doente de que ele trata ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; e, finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam continuamente uma espécie de campo de gravitação no interior do qual se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça. A situação mágica é um fenômeno de consenso. Depende do quanto de credulidade e quanto de espírito crítico intervêm na atitude do grupo em relação àqueles a quem atribui poderes excepcionais, e a quem concede privilégios correspondentes, mas dos quais também exige satisfação à altura. Para demonstrar suas afirmações, o autor recorre a um caso vivenciado entre um pequeno grupo de índios Nambikwara, não longe das nascentes do Tapajós, no cerrado descampado do Brasil Central, de onde se extrai que a explicação mágica e profana racional são logicamente incompatíveis, mas nós admitimos que tanto uma quanto a outra possam ser verdadeiras; como são ambas igualmente plausíveis, passamos facilmente de uma para a outra, dependendo da ocasião e do momento, e para muitos elas podem obscuramente coexistir na consciência. Em outras observações feitas há um bom tempo entre os Zuñi do Novo México pela admirável investigadora M. C. Stevenson (1905) percebeu-se que um réu, acusado de feitiçaria e correndo por isso o risco de ser condenado à morte, não conseguia ser absolvido se desculpando, mas sim assumindo o suposto crime. E mais, melhora sua defesa apresentando versões sucessivas, cada vez mais ricas, mais cheias de detalhes (portanto, em princípio, cada vez mais incriminadoras). O debate não se faz, como em nossos julgamentos, com acusações e denegações, mas com alegações e especificações. Os juízes não esperam que o réu conteste uma tese, menos ainda que negue os fatos; exigem que ele corrobore um sistema do qual possuem apenas um fragmento, e querem que ele reconstitua o que falta de modo apropriado. [isso me faz lembrar o instituto da delação premiada criado recentemente no Brasil para corroborar a existência da corrupção sistêmica e legitimar o pacote anti-corrupção criado por um governo para perseguir seus opositores políticos]. “Mais do que punir um crime, o que os juízes querem (validando seu fundamento objetivo com a expressão emocional apropriada) é atestar a realidade do sistema que o possibilitou. A confissão, reforçada pela participação – cumplicidade, até – dos juízes, faz com que o réu passe de acusado a colaborador da acusação... O acusado, preservado como testemunha, fornece ao grupo uma satisfação de verdade, infinitamente mais densa e mais rica do que a satisfação de justiça que teria dado sua execução” (Levi-Strauss, O feiticeiro e sua magia, p.188). Nosso autor ainda recorre a um fragmento de autobiografia indígena registrado em língua kwakiutl (da ilha Vancouver, no Canadá) por Franz Boas (1930a, parte ii: 1-41), onde descreve o caso de Quesalid, alguém que não acreditava no poder dos feiticeiros ou, mais precisamente, dos xamãs, movido pela curiosidade de descobrir seus embustes e pelo desejo de desmascará-los, começou a freqüentá-los, até que um deles lhe ofereceu introduzi-lo no grupo, onde seria iniciado e se tornaria rapidamente um deles. Se colocou diante de várias modalidades de “falso sobrenatural”, levando-o a concluir que umas eram menos falsas do que outras: aquelas em que seu interesse pessoal estava envolvido, evidentemente. Enquanto isso, o sistema começava a se constituir subrepticiamente em sua mente. A atitude inicial tinha-se modificado sensivelmente, portanto; o negativismo radical dera lugar a sentimentos mais matizados. Existem xamãs de verdade. E ele próprio? Quando o relato termina, não se sabe. Mas é evidente que ele exercia seu ofício conscienciosamente, que se orgulhava do próprio sucesso e que defendia acaloradamente, contra todas as escolas rivais. Os resultados a que chega é que “de um lado, a convicção de que os estados patológicos têm uma causa e de que ela pode ser atingida e, do outro, um sistema de interpretação em que a invenção pessoal desempenha um papel importante, que ordena as várias fases do mal, desde o diagnóstico até a cura. Essa fabulação de uma realidade em si desconhecida, feita de procedimentos e representações, funda-se numa tripla experiência: a do próprio xamã que, se sua vocação for real (e ainda que não o seja, em razão do exercício em si), experimenta estados específicos de natureza psicossomática, a do doente, que sente ou não uma melhora, e a do público, que também participa da cura... Esses três elementos do que se poderia chamar de complexo xamânico são indissociáveis. Mas percebe-se que eles estão dispostos ao redor de dois pólos, um constituído pela experiência do xamã e o outro, pelo consenso coletivo.” (p.194) “os males do tipo que atualmente chamamos de psicossomáticos freqüentemente cedem à terapêutica psicológica. Tudo considerado, é provável que os médicos primitivos (xamãs), como seus colegas civilizados (psicanalistas), curem ao menos parte dos casos que tratam e que, sem essa eficácia relativa, as práticas mágicas não poderiam ter-se difundido tanto quanto o fizeram, no tempo e no espaço”. O fracasso ou sucesso são secundários. São concebidos como função de um outro fenômeno, a diluição do consenso social, reconstituído, contra eles, em torno de um outro praticante e de um outro sistema. “O problema fundamental é, portanto, o da relação entre um indivíduo e o grupo, ou, mais precisamente, entre um determinado tipo de indivíduo e determinadas exigências do grupo” (p.196). “em qualquer perspectiva não científica (e nenhuma sociedade pode ter a pretensão de não fazer parte disso), pensamento patológico e pensamento normal não se opõem, se complementam. Diante de um universo que anseia por compreender, mas cujos mecanismos não domina, o pensamento normal sempre busca o sentido das coisas nelas mesmas, que nada informam. O pensamento dito patológico, ao contrário, transborda de interpretações e ressonâncias afetivas, sempre pronto para aplicá-las sobre uma realidade de outro modo deficitária. Para o primeiro, existe o não verificável experimentalmente, isto é, o exigível; para o segundo, experiências sem objeto, ou o disponível. Na linguagem dos lingüistas, diríamos que o pensamento normal sempre sofre de uma deficiência de significado, enquanto o pensamento dito patológico (ao menos em algumas de suas manifestações) dispõe de um excedente de significante” (p.196-7) [e aqui fazemos o paralelo entre a esquizofrenia enquanto modo de vida militante com o pensamento patológico na capacidade de exceder significantes e não se deixar prender ao pensamento normal deficiente e limitado de significado]. O autor ressalta que “é preciso que, tanto quanto o doente e o feiticeiro, o público participe, pelo menos em alguma medida, da ab-reação, essa experiência vivida de um universo de efusões simbólicas” (p.197). “a dupla doente-feiticeiro encarna para o grupo, de modo concreto e vivo, um antagonismo que caracteriza todo pensamento, mas cuja expressão normal é sempre vaga e imprecisa: o doente é passividade, alienação de si mesmo, assim como o informulável é a doença do pensamento, e o feiticeiro é atividade, transbordamento de si mesmo, assim como a afetividade é a fonte dos símbolos. A cura põe em relação esses pólos opostos, garante a passagem entre um e outro e manifesta, numa experiência total, a coerência do universo psíquico, ele mesmo projeção do universo social” (p.198). “o valor do sistema não mais estará baseado em curas reais, de que se beneficiam indivíduos particulares, mas sim no sentimento de segurança infundido no grupo pelo mito fundador da cura e no sistema popular conforme o qual, nessa base, seu universo se verá reconstituído” (p.199). Para o autor, o tratamento com a psicanálise, longe de chegar à solução de um distúrbio preciso, se reduz à reorganização do universo do paciente em função das interpretações psicanalíticas. 2 A eficácia simbólica (Claude Lévi-Strauss) Na cura xamânica, que "consiste na repetição de um ritual geralmente muito abstrato, não se consegue compreender qual poderia ser seu efeito sobre a doença. É cômodo livrar-se dessas dificuldades declarando que se trata de curas psicológicas, mas esse termo permanecerá sem sentido enquanto não for definido o modo como determinadas representações psicológicas são invocadas para combater males fisiológicos, igualmente bem definidos. O texto que analisamos traz uma contribuição excepcional à solução desse problema. Trata-se de uma medicação puramente psicológica, já que o xamã não toca o corpo da paciente e não lhe administra nenhum remédio, mas, ao mesmo tempo, envolve direta e explicitamente o estado patológico e seu foco. Poder- se-ia dizer que o canto constitui uma manipulação psicológica do órgão doente, e que é dessa manipulação que se espera que decorra a cura.
3 A estrutura dos mitos (Claude Lévi-Strauss)
Lévi-Strauss, Claude. [s/d] A estrutura dos mitos. In: Antropologia estrutural. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. Editora Cosac Naify, p. 221-248. A mitologia é considerada como reflexo da estrutura social e das relações sociais. O objetivo próprio dos mitos é oferecer uma derivação para sentimentos reais mas recalcados. “É melhor reconhecermos que o estudo dos mitos nos leva a constatações contraditórias. Tudo pode acontecer num mito. A sucessão dos eventos não parece estar aí submetida a nenhuma regra de lógica ou de continuidade, qualquer sujeito pode possuir qualquer predicado, qualquer relação concebível é possível. Contudo, os mitos, aparentemente arbitrários, se reproduzem com as mesmas características e, muitas vezes, os mesmos detalhes, em diversas regiões do mundo. Daí a questão: se o conteúdo do mito é inteiramente contingente, como explicar que, de um extremo a outro da terra, os mitos se pareçam tanto? Tomar consciência dessa antinomia fundamental, que pertence à natureza do mito, é condição sine qua non para podermos esperar resolvê-la” (p.223). “O mito faz parte da língua, é pela palavra que o conhecemos, ele pertence ao discurso. Se quisermos dar conta das características específicas do pensamento mítico, devemos, portanto, estabelecer que o mito está ao mesmo tempo na linguagem e além dela” (p.224). “O mito também se define por um sistema temporal... Um mito sempre se refere a eventos passados, “antes da criação do mundo” ou “nos primórdios”, em todo caso, “há muito tempo”. Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém do fato de os eventos que se supõe ocorrer num momento do tempo também formarem uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro” (p.224). “Essa dupla estrutura, ao mesmo tempo histórica e a-histórica, explica que o mito possa simultaneamente pertencer ao âmbito da fala (e ser analisado enquanto tal) e ao da língua (na qual é formulado) e ainda apresentar, num terceiro nível, o mesmo caráter de objeto absoluto” (p.225). “Por mais que ignoremos a língua e a cultura da população em que foi colhido, um mito é percebido como mito por qualquer leitor, no mundo todo. A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que nele é contada. O mito é uma linguagem, mas uma linguagem que trabalha num nível muito elevado, no qual o sentido consegue, por assim dizer, descolar do fundamento lingüístico no qual inicialmente rodou (p.225). “Se os mitos possuem um sentido, este não pode decorrer dos elementos isolados que entram em sua composição, mas na maneira como esses elementos estão combinados” (p. 226). Como todo ser lingüístico, o mito é formado de unidades constitutivas. Cada forma difere da que a precede por um grau mais alto de complexidade. Por essa razão, chamaremos os elementos que são próprios do mito (e que são os mais complexos de todos) de grandes unidades constitutivas (mitemas), que não são assimiláveis nem aos fonemas, nem aos morfemas, nem aos semantemas, situam-se num nível mais elevado. Portanto, será preciso buscá-las no nível da frase. Cada grande unidade constitutiva tem a natureza de uma relação. As verdadeiras unidades constitutivas do mito não são as relações isoladas, mas feixes de relações, e que é unicamente na forma de combinações desses feixes que as unidades constitutivas adquirem uma função significante (p.226-7). O autor propõe definir cada mito pelo conjunto de todas as suas versões. Posto que um mito se compõe do conjunto de suas variantes, a análise estrutural deverá considerar todas elas na mesma medida. Não existe versão “verdadeira”, de que todas as demais seriam meras cópias ou ecos deformados. Todas as versões pertencem ao mito. “Aplicando sistematicamente esse método de análise estrutural, consegue-se ordenar todas as variantes conhecidas do mito numa série, formando uma espécie de grupo de permutações, no qual as duas variantes situadas nas duas extremidades da série apresentam, uma em relação à outra, uma estrutura simétrica, mas invertida. Introduz- se assim um começo de ordem onde só havia caos, e ganha-se a vantagem suplementar de extrair certas operações lógicas que estão na base do pensamento mítico” (p.241). O pensamento mítico provém da tomada de consciência de determinadas oposições e tende à sua mediação progressiva. O trickster (a figura do enganador) é, portanto, um mediador, e essa função explica o fato de ele manter algo da dualidade que tem por função superar. Daí seu caráter ambíguo e equívoco. Mas o trickster não é a única forma possível de mediação. Alguns mitos parecem dedicar-se inteiramente a esgotar todas as modalidades possíveis da passagem da dualidade para a unidade. Além do caráter ambíguo do trickster, uma outra característica dos seres mitológicos torna-se explicável. Referimo-nos aqui à dualidade de natureza que é inerente a uma mesma divindade, ora benéfica ora maléfica. O autor propõe, com seu método, estar em condições de desenvolver paralelamente o estudo sociológico e psicológico do pensamento mítico, talvez até de tratá-lo como que em laboratório, submetendo as hipóteses de trabalho ao controle experimental. “Finalmente, os sociólogos que se perguntaram quanto às relações entre a mentalidade dita “primitiva” e o pensamento científico geralmente responderam invocando diferenças qualitativas no modo como o espírito humano trabalha em cada caso. Mas não questionaram que o espírito se aplicasse, em ambos os casos, aos mesmos objetos. As páginas acima levam a uma outra concepção. A lógica do pensamento mítico pareceu- nos tão exigente quanto a que fundamenta o pensamento positivo e, no fundo, pouco diferente. Pois a diferença está menos na qualidade das operações intelectuais do que na natureza das coisas a que se referem tais operações... Talvez um dia descubramos que a mesma lógica opera no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem sempre pensou igualmente bem” (p.248).
Questão 02: Destaque a comparação entre o ritual xamânico e a prática psicanalítica elaborada por Claude Lévi-Strauss no artigo A eficácia simbólica.
A cura xamânica se situa a meio caminho entre nossa medicina orgânica e as
terapêuticas psicológicas como a psicanálise. Sua originalidade está em aplicar a desordens orgânicas um método muito próximo destas últimas (p.213). Em ambos os casos, propõe-se trazer à consciência conflitos e resistências que até então haviam permanecido inconscientes, seja por terem sido recalcados por outras forças psicológicas, seja – é o caso do parto – em razão de sua própria natureza, que não é psíquica e sim orgânica, ou até simplesmente mecânica. Também em ambos os casos, os conflitos e resistências se dissolvem, não porque a paciente deles vá tomando progressivamente conhecimento, real ou suposto, mas porque esse conhecimento torna possível uma experiência específica, na qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenrolar e conduzem ao seu desenlace. Em psicanálise, essa experiência vivida é chamada de ab-reação. Como se sabe, ela tem como condição a intervenção não provocada do analista, que surge nos conflitos do paciente pelo duplo mecanismo da transferência, como um protagonista de carne e osso, em relação ao qual o paciente pode remontar e explicitar uma situação inicial que permanecera não-formulada. Todos esses traços se encontram na cura xamânica. Também no caso desta trata-se de suscitar uma experiência e, na medida em que essa experiência se organiza, mecanismos situados fora do controle do sujeito se regulam espontaneamente, desembocando num funcionamento ordenado. O xamã tem um duplo papel, como o psicanalista. Um primeiro papel – de ouvinte no caso do psicanalista, de orador no caso do xamã – estabelece uma relação imediata com a consciência (e mediata com o inconsciente) do paciente. É o papel do encantamento propriamente dito. Mas o xamã faz mais do que apenas proferir o encantamento, ele é seu herói, pois que é ele que penetra nos órgãos ameaçados liderando o batalhão sobrenatural dos espíritos que liberta a alma cativa. Nesse sentido, ele se encarna, como o psicanalista objeto da transferência, para tornar-se, graças às representações induzidas no espírito do paciente, o protagonista real do conflito que este experimenta a meio caminho entre o mundo orgânico e o mundo psíquico. O paciente vítima de uma neurose liquida um mito individual opondo-se a um psicanalista real. A parturiente indígena supera uma desordem orgânica verdadeira identificando-se a um xamã miticamente transposto. O paralelismo não exclui diferenças, portanto. O que não deve causar surpresa, se atentarmos para o caráter psíquico num caso, e orgâ- nico no outro, do mal a ser curado. A cura xamânica parece ser de fato um exato equivalente da cura psicanalítica, mas com uma inversão de todos os termos. Ambas buscam provocar uma experiência, e ambas conseguem fazê-lo reconstituindo um mito que o paciente deve viver, ou reviver. Mas, num caso, é um mito individual que o paciente constrói com elementos tirados de seu passado e, no outro, é um mito social que o paciente recebe do exterior e que não corresponde a um estado pessoal antigo. Para preparar a ab-reação que, nesse caso, torna-se uma “ad-reação”, o psicanalista escuta e o xamã fala. Mais ainda, quando as transferências se organizam, o paciente faz falar o psicanalista, atribuindo-lhe supostos sentimentos e intenções, ao passo que no encantamento, ao contrário, o xamã fala por sua paciente. Interroga-a e coloca na boca desta respostas que correspondem à interpretação de seu estado de que ela deve se convencer (p.214-215). A semelhança torna-se ainda mais impressionante quando se compara o método do xamã com certas terapêuticas surgidas recentemente que se valem da psicanálise. Percebeu-se que o discurso, por mais simbólico que fosse, esbarrava ainda na barreira do consciente, e que ela só podia atingir complexos muito profundos com atos. O médico psicanalista dialoga com o paciente, não por meio da palavra, mas por operações concretas, verdadeiros ritos, que atravessam a barreira da consciência sem encontrar obstáculos, para levar sua mensagem diretamente ao inconsciente (p.215-216). Encontra-se aqui, portanto, a noção de manipulação, que nos parecera essencial para compreender a cura xamânica. Ora se trata de manipulação de idéias, ora de manipulação de órgãos, cuja condição compartilhada é fazer-se com o auxílio de símbolos. Os gestos do psicanalista repercutem no espírito inconsciente de seu paciente do mesmo modo que as representações evocadas pelo xamã determinam uma modificação das funções orgânicas de sua paciente (p. 216) É a eficácia simbólica que garante a harmonia do paralelismo entre mito e operações. E mito e operações formam um par, no qual sempre se encontra a dualidade de médico e paciente. Na cura pela psicanálise, o médico realiza as operações, e o paciente produz seu mito. Na cura xamânica, o médico fornece o mito, e o paciente realiza as operações (p.217). A cura xamânica e a cura psicanalítica tornar-se-iam rigorosamente semelhantes: tratar- se-ia, em ambos os casos, de induzir uma transformação orgânica, que consiste essencialmente numa reorganização estrutural, levando o paciente a viver intensamente um mito, ora recebido, ora produzido, cuja estrutura seria, no nível do psiquismo inconsciente, análoga àquela cuja formação se quer determinar no nível do corpo. A eficácia simbólica consistiria precisamente nessa “propriedade indutora” (p.217). A comparação com a psicanálise nos permitiu esclarecer certos aspectos da cura xamânica. Talvez o estudo do xamanismo, inversamente, seja um dia chamado a elucidar pontos obscuros da teoria de Freud. Pensamos especialmente nas noções de mito e de inconsciente (p.218). A única diferença entre os dois métodos diz respeito à origem do mito, num caso reencontrado [psicanálise], como um tesouro individual, e, no outro [xamanismo], recebido da tradição coletiva (p.218). O mito, quer seja recriado pelo sujeito ou tomado da tradição, só tira de suas fontes, individual ou coletiva (entre as quais interpenetrações e trocas se produzem constantemente), o material de imagens com que opera. A estrutura permanece a mesma, e é por ela que a função simbólica se realiza (p.219). Essa forma moderna da técnica xamânica que é a psicanálise retira suas características específicas, portanto, do fato de na civilização mecânica não haver mais lugar para o tempo mítico, a não ser no próprio homem. Dessa constatação, a psicanálise pode retirar uma confirmação de sua validade e, ao mesmo tempo, a esperança de aprofundar suas bases teóricas e alargar a compreensão dos mecanismos de sua eficácia, por intermédio de um confronto de seus métodos e objetivos com os de seus grandes predecessores, os xamãs e os feiticeiros (p.220).