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Podemos, portanto, traçar essa relação entre Kant e Hegel levando em conta a
tensão estabelecida ente transcendência e imanência segundo o horizonte da finitude
humana. É certo que, para Kant, o traço essencial da finitude humana não consiste na
afirmação cética segundo a qual o conhecimento humano deve se resignar ao seu modo
de ser incompleto e imperfeito quando confrontado com a totalidade infinita; a tese
kantiana diz respeito a algo muito mais radical: é o horizonte da finitude humana
enquanto condição a priori e instransponível que projeta a ideia de um para além
numenal inacessível (Zizek, 2007, p.38). Ou seja, aqui há uma inversão radical em
relação à forma da metafísica pré-crítica que pensa a finitude sempre como uma
deficiência, um lapso, em relação ao absoluto. Para Kant, ao contrário, é a finitude
humana que vem antes, e o infinito passa a ser relativizado, dessubstancializado e
rebaixado ao posto de uma “simples” Ideia. O problema a partir de então é que Kant não
encontrou argumentos teóricos capazes de eliminar de uma vez por todas a referência à
dimensão numênica, sendo, pois, obrigado a sustentar numa espécie de equilíbrio frágil
a relação entre o dito e o não dito, ou seja, entre transcendência e imanência. E embora
Kant não deixe claro do que se trata efetivamente esse domínio numênico – ou seja, não
levanta em momento algum pretensões ontológicas em relação a ele – há, no entanto,
sempre uma sombra espectral dessa dimensão que se recusa a desaparecer por completa.
Nesse sentido, o caráter insuperável da finitude humana o leva naturalmente a
estabelecer uma antinomia fundamental entre duas dimensões radicalmente
assimétricas, a saber, entre númeno e fenômeno, ou ainda, entre transcendência e
imanência. Qual seria então a solução hegeliana para o impasse? O gesto de Hegel –
insisto – não se trata de modo algum em eliminar a lacuna específica da filosofia
kantiana e elevar-se (novamente) a um absoluto infinito, triunfando soberanamente
sobre o horizonte da finitude. Sua saída envolve uma estratégia muito mais simples: o
que Hegel faz no fundo é apenas deslocar o lugar das antinomias de sua referência
básica à transcendência/imanência para alojá-la enquanto uma fenda puramente
imanente, ou seja, a lacuna em Hegel passa a ser ontologicamente imanente ao
fenômeno enquanto tal. Nesse sentido, o que se torna impossível de capturar na
atividade intelectual do ser humano não é o reino numênico para além de suas
possibilidades finitas e limitadas, mas, pelo contrário, o que excede esse nível
conceitual é o próprio fenômeno na sua imediaticidade, ou seja, a própria aparência
enquanto pura aparência.
Somos, assim, tentados mais uma vez a arriscar mais outra interpretação da
passagem de Kant a Hegel, mas, agora, a partir da dialética entre entendimento e razão.
Para Kant, a razão não poderia jamais se sobrepor ao entendimento, já que isso
significaria a recaída numa metafísica dogmática racionalista, cujas ideias
desenvolvidas com base apenas na dedução lógica do pensamento seriam já suficientes
para garantir sua existência efetiva. Ocorre que, como não se pode simplesmente
abandonar a atividade da razão em pressupor reflexivamente as bases e os princípios
lógicos do entendimento, Kant mantém juntas essas esferas, lado a lado, mas com a
condição de não se tocarem ou se confundirem. Desse modo, a existência é uma
condição restrita ao campo do entendimento, já que é somente por meio da passividade
a priori da intuição pura que se pode de fato conhecer algo; a razão, em contrapartida,
equivaleria a uma espécie de ilusão transcendental, mas que, apesar de sua condição de
ilusão, ainda cumpre um papel indispensável, pois atua como princípio regulador do
próprio entendimento. Dito em outros termos, enquanto a razão para Kant opera
dialeticamente, podendo superar infinitamente o nível do entendimento e, dessa forma,
retroceder as suas origens (o princípio de razão suficiente), o entendimento, em
contraposição, deve operar analiticamente, através apenas de conceitos, já que não pode
ultrapassar o dado recebido pela experiência sensível. A conclusão, portanto, é que, por
essa linha de raciocínio, a razão equivaleria a um “a mais” em relação ao entendimento,
consistiria em seu excesso extraído pela autonomia do pensamento em relação à
experiência sensível. Por isso, enquanto ilusão transcendental, a razão deve ser
enquadrada numa dimensão a parte, separada por uma lacuna intransponível que
discerne radicalmente aquilo que posso efetivamente conhecer daquilo que posso
alcançar segundo a atividade lógica da razão pura.
Por outro lado, em contraste com Kant, essa relação dialética entre razão e
entendimento funciona em Hegel de maneira totalmente invertida: a travessia do
entendimento para a razão não significa aqui em um “a mais”, um excesso do
pensamento lógico sobre o entendimento; ao contrário, essa passagem corresponde a um
“a menos”, uma subtração formal que suprime o pano de fundo transcendental que
sustenta o campo do entendimento. Isso quer dizer que a razão é igual ao entendimento
menos a sua atividade transcendental, ou seja, a razão é apenas o entendimento em sua
forma pura, sem o efeito ilusório do excesso arranjado pela dedução lógica do exercício
reflexivo do intelecto. Como diz Zizek (1988):
E por isso, Zizek vai insistir que a verdade sobre a Aufhebung reside na
permanência teimosa no momento da negatividade, e isto significa a radicalidade
mesma do momento da antítese. Entretanto, podemos, antes, contrapor duas outras
leituras possíveis sobre esse tema: a primeira, a mais inconsistente, defende uma visão
teleológica da tríade hegeliana, de modo que a negação seria antes anulada que
conservada. A segunda, mais bem elaborada, defende a síntese como um retorno à tese
mantendo conservado o momento de sua negação. Essa é por exemplo a posição de
Jean-François Kérvegan (2006) :
Defendo que a Aufhebung tem aqui (e sem dúvida em geral) antes o significado
de uma regressão para o que funda uma “tese” (ou seja, que também a legitima
relativamente) do que o de uma progressão para o que a refuta: como indica a
Lógica, a progressão para o “resultado” é também uma regressão para o
fundamento” (p.94).
Onde, então, localizamos o sujeito meio a essa inversão dialética hegeliana que
desloca o eixo da epistemológica para ontologia transferindo a limitação constitutiva da
subjetividade para a realidade como sendo essa própria limitação? A resposta é simples:
o sujeito aqui é um outro nome para essa lacuna ontológica. Para esclarecer esse tema
com mais amplitude, façamos um breve desvio por Descartes. Podemos encontrar já no
método cartesiano o protótipo dessa lacuna: o cogito, resultado final da dúvida
hiperbólica, é a manifestação mais pura dessa negação radical, desvelado no exato
momento em que é esgotada toda e qualquer determinação positiva do ser, ou seja,
quando mais nenhum critério positivo pode o determinar. O problema de Descartes é
que, logo que ele destaca o sujeito de suas determinações ônticas, positivas, ele,
contudo, retorna imediatamente ao primado da metafísica substancialista na qual o
cogito volta a ser uma parte do ser, como substância pensante. Foi Kant quem
efetivamente radicalizou esse crack, essa ruptura decisiva com a cadeia positiva do ser,
determinando o sujeito como um órgão de referência puramente formal, como síntese a
priori de todas as representações possíveis. O fundamental aqui é: em Kant o sujeito já
não mais se inclui como uma parte do ser; o sujeito kantiano é, em última análise, o
excedente mesmo do ser, um ponto de referência não determinado, ou seja, uma
instância de mediação que, por sua vez, não pode determinar a si mesmo. O salto
hegeliano consiste então em reificar novamente esse sujeito, não como Descartes o fez,
como substância, mas agora como negatividade determinada, ou seja, como reificação
que guarda, consigo, a negatividade constitutiva do sujeito kantiano.
A conseqüência teórica disso é, mais uma vez, nada mais que a radicalização
daquilo que Kant já havia intuído. Assim, a verdadeira diferença entre Kant e Hegel é
uma diferença de ordem fundamentalmente formal: em vez de situar a lacuna entre o
sujeito e a Coisa numenal, o sujeito hegeliano coincide com a própria lacuna, ou seja,
como negatividade autorreferencial que surge da tensão imanente à própria realidade.
Dito de forma mais específica, Hegel considera a dicotomia clássica entre
essência/aparência como uma falsa dicotomia; na sua versão, a verdadeira divisão é
antes estabelecida entre a própria aparência e ela mesma: a essência, nesse caso, a
Coisa-em-si, não é mais que o efeito ilusório projetado no para-além dos limites do
conhecimento. O que se acredita ser a realidade lá fora é apenas um efeito de
espelhamento – uma produção imaginária da subjetividade quando encerrada em si
mesma (Zizek, 2008, p.101). Podemos acrescentar, seguindo essa mesma linha de
pensamento, que a tensão entre imanência e transcendência é, portanto, uma tensão
secundária se tomarmos como referência a fenda dentro da própria imanência. A
transcendência é no fundo uma ilusão de perspectiva, a forma pela qual percebemos
“erroneamente” a fenda/disparidade que é inerente à própria imanência. A mesma coisa
aplica-se à relação entre o Mesmo e o Outro: “a tensão entre o Mesmo e o Outro é
secundária em relação à não-coincidência do Mesmo consigo” (Zizek, 2011).
Bibliografia:
Zizek, S. (1988). O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
_________ (2011). Órgãos sem Corpo: Deleuze e Conseqüências. Cia. de Freud: Rio de
Janeiro.