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QUANDO O ANHANGUERA CRUZA GOIÁS: O MONUMENTO AO


BANDEIRANTE E O MITO FUNDADOR DA CAPITAL

JORDANNA FONSECA SILVA

Resumo

Este ensaio contém uma análise documental dos momentos que antecederam a
chegada do Monumento ao Bandeirante em Goiânia, bem como do momento de sua chegada.
Essa análise compreende a descrição dos grupos envolvidos nas campanhas pró-monumento,
nas negociações para definir sua localização e seu escultor. Isso foi observado a partir do
acervo documental Coleção Band - Monumento aos Bandeirantes mantido pelo CIDARQ-
UFG e do relatório urbanístico do planejador da nova capital. A fim de fundamentar a
discussão dos dados, as definições de conceitos centrais à análise são revisitadas: monumento,
patrimônio cultural, documento, memória coletiva, representações sociais e poder simbólico.
Ainda, foi retomado o tratamento garantido ao patrimônio cultural na Constituição Federal de
1988 e no último Plano Diretor de Goiânia. Por fim, uma análise simbólica do monumento foi
realizada, o que compreende sua descrição enquanto objeto prático-sensível, seu contexto de
fixação, seus usos em manifestações políticas e algumas mudanças que envolveram a estátua
e seu entorno de 1942 até os dias atuais.

Palavras-chave: Monumento ao Bandeirante; Patrimônio Cultural; Memória coletiva;


Goiânia.

Introdução

Quando a bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva chegou a Goiás, encontrou um


território ocupado por povos indígenas da região1. Como visualizou nas mulheres nativas
ricos ornamentos, o bandeirante interpelou àqueles selvagens onde encontraram ouro. A lenda
não conta como se deu essa comunicação, diz apenas que os indígenas se recusaram a
fornecer a informação e permitir a entrada em suas terras. O homem-branco, então, com uma
vasilha de aguardente (transparente como água), ameaça queimar os rios com seu poder

Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, vinculada à linha de pesquisa Sociologia
Urbana e das Populações e pesquisadora no Centro de Estudos Urbanos – CEURB. Cientista social pela UFG.
Agência de financiamento: FAPEMIG.
1
“Goyazes”, outras tribos indígenas de Goiás: Karajás, Avás-canoeiros, Tapuyas, Javaés, xavantes, caiapós.
2

mágico o suficiente para pôr fogo em água. Assim foi que recebeu o nome de Anhanguera. De
origem tupi, anhanga, “ser maligno”, e uera, “o velho, o que já foi”: diabo velho.
O filho desse Anhanguera, de igual nome, Bartolomeu, foi responsável por erguer o
Arraial de Sant’Anna, em 1722, que poucos anos depois se tornaria o pequeno aglomerado
administrativo Vila Boas de Goyaz, capital do estado até o final do século XIX, quando as
ideias de uma nova capital começam a surgir. Os custos dessa fundação ultrapassam limites
econômicos. As bandeiras partiam do litoral, paulista em especial, com objetivos definidos de
exploração mineral, escravização e extermínio de grupos indígenas, destruição de quilombos,
entre outras gloriosas conquistas. O rio que corre entre as ruas da atual Cidade de Goiás – Rio
Vermelho, afluente do Rio Araguaia – recebeu esse nome, pois, conta a lenda, muitos foram
os corpos ensanguentados debandados em suas margens.
Quando dizemos que Goiânia foi projetada, naturalmente associamos a ideia de
projeto, planejamento, ao futuro. Isso quer dizer que antes de ela nascer, ela foi pensada,
desenhada, idealizada. Quando pensamos em lembranças, por outro lado, a ideia evocada é a
de passado, de algo que ficou para trás. Ambos os processos envolvem uma reflexividade
temporal, e ambos acontecem no instante presente. O que os difere é bastante óbvio: o
passado guarda acontecimentos que já se realizaram, e o futuro não guarda acontecimento
algum, aguarda...
Grosso modo, Goiânia surge com o objetivo de ser o novo centro administrativo do
governo de Goiás, sendo projetada para 50 mil habitantes. Nos nomes das avenidas, ruas,
praças, monumentos, se inscrevem fragmentos da história local, geralmente representada em
figuras políticas consideradas importantes, como é o caso da estátua localizada no cruzamento
de duas grandes avenidas: Anhanguera e Goiás, na praça dos Bandeirantes. Tombada em
patrimônio histórico pela prefeitura de Goiânia em 1991, a estátua homenageia Bartolomeu
Bueno da Silva, filho, bandeirante paulista responsável pela fundação da velha capital. Foi
uma doação da Faculdade de Direito de São Paulo, após uma série de investidas culturais dos
governos paulista e goiano. Nesse contexto, indagamos acerca da dádiva desse presente nada
neutro e analisaremos alguns documentos a fim de refletir sobre este patrimônio local e suas
teias de significados tecidas após sua fixação em território urbano. Antes, porém, faremos
uma recapitulação de conceitos centrais à nossa análise: memória coletiva, documento, poder
simbólico, monumento, patrimônio histórico, mito e representações sociais.

A memória social de uma capital planejada: “Essa história está mal contada...”
3

A memória, individual ou coletiva, carrega consigo uma densa carga de significados e,


de certa forma, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”
(HALBWACHS, 1990: 94). A história aprende e ensina o passado a partir de fatos, datas,
nomes, imagens, análise documental etc. Sem anular uma a outra, de modo geral, a memória
estaria nas pessoas, no vivido, nas ações e afetos, ao passo que a história estaria nos discursos,
nos livros, caixas e arquivos: “A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta
do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno
presente; a história, uma representação do passado.” (NORA, 1993: 9). Todavia, o
conhecimento da realidade social, os saberes, envolvem relações de poder, marcadamente
imparciais, aparecendo nos campos discursivos das narrativas históricas ou de suas
interpretações como verdadeiras arenas políticas (RICOEUR, 2010).
Etimologicamente, a palavra documento, do latim documentum, deriva de docere
(ensinar) e está relacionada à noção de testemunho, de algo que ensina a alguém alguma
coisa. Porém, essa produção documental não é natural, sendo, em certo sentido, forjada pelos
grupos de interesse que nela investiram: “O documento não é qualquer coisa que fica por
conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças
que aí detinham o poder.” (LEGOFF, 1996: 545). Assim, o documento não traduziria um fato
histórico em si mesmo, devendo ser indagado, analisado, questionado, criticado, a fim de
arrancar suas máscaras e buscar a verdade histórica para além das datas, personagens, eventos
etc. Esta perspectiva vai ao encontro da afirmação de Foucault (1987: 8) de que os problemas
da História, enquanto ciência, em síntese, consistem no “questionar o documento”,
diferentemente da escola positivista que via no documento a prova suficiente do fato histórico
(LEGOFF, 1996).
É nesse sentido que a neutralidade desses fatos é questionada ao se deparar, por
exemplo, com acervos doados por famílias, elites político-econômicas locais, com pretensões
coletivas de construir a memória da cidade. De certo modo, supor que objetos que
pertenceram a uma família, a um conjunto muito restrito de uma sociedade, dizem ou fazem
referência ao passado comum parece uma narrativa enviesada, controlada ou minimamente
limitada.
No caso do acervo documental sobre o Monumento ao Bandeirante, é possível
perceber a persistência dessa relação entre memória individual e memória coletiva. O acervo
foi doado pela família Cunha Bueno e se coloca como arquivo de origem da cidade. Consiste
em patrimônio da Universidade Federal de Goiás desde 1987, com ato solene de doação
realizado na Faculdade de Direito da UFG. O acervo é composto por recortes de jornais com
4

fotografias e notícias, cartas, telegramas, decretos-lei, orçamentos, em sua maioria. Desde


2009, se encontra no Setor de Arquivo da Universidade para tratamento arquivístico e
preservação. Data nos documentos que a ideia de construir o monumento surgiu de Antônio
Sylvio Cunha Bueno, acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
numa visita realizada em 1938 pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, a convite do interventor
Pedro Ludovico Teixeira.
Nesse contexto, é válido notar que:

Os monumentos, com algumas exceções, geralmente representam a memória das


elites de uma determinada sociedade. (...) também nos relevam as disputas
simbólicas e os grupos que disputam esse poder simbólico (...); revela-nos quais
memórias são rememoradas (dos ‘vencedores’) e quais são esquecidas (dos
‘vencidos’); revela-nos quais grupos integram a ‘história oficial’ e quais são
‘excluídos da história’. (BATISTELLA, 2014: 155, grifos meus)

Vale lembrar que, para Bourdieu, o poder simbólico é:

[...] um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem


gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)
supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo social, quer dizer, “uma
concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna
possível a concordância entre as inteligências”. (BOURDIEU, 2001: 9, grifos do
autor)

Ao existir somente através de uma relação determinada de “cumplicidade” entre os/as


que exercem esse “poder invisível” (Ibidem: 8) e aqueles/as que lhe estão sujeitos/as, o poder
simbólico atua através dos sistemas simbólicos como instrumentos de conhecimento e
comunicação, mas, principalmente, como imposição, legitimação da dominação, inculcação;
ou seja, com uma função política intrínseca. Ainda Bourdieu (2001) nos mostra que a
integração social depende deste aspecto lógico, de uma concepção homogênea de tempo e
espaço, que cria as condições necessárias para uma integração moral. Sendo poder, o poder
simbólico é também violência, violência simbólica, ao sustentar-se na relação dominantes e
dominados/as.
Dito isso, continuemos. Os documentos indicam que o monumento foi idealizado
pelas elites locais. Attilio Corrêa Lima, o primeiro projetista da nova capital goiana,
mencionou, em seu relatório urbanístico, a possibilidade de criação do monumento, indicando
inclusive sua localização:

No cruzamento dos eixos das Pedro Ludovico, Araguaia, Tocantins, 10, 26, 34 e 35,
deverá ser erigido futuramente um monumento comemorativo das bandeiras,
descobertas, e das riquezas do Estado, figurando como homenagem principal a
figura de Anhanguera (LIMA, 1979: 142, grifos meus).
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O objetivo seria perpetuar, rememorando, os laços históricos entre Goiás e São Paulo,
ao registrar os feitos dos bandeirantes numa escultura exposta no centro da capital. Foi em
São Paulo que aconteceu, então, a campanha pró-monumento, financiada pelos governos de
Goiás e São Paulo. Contou com publicidade, propagandas a nível nacional, bem como
conferências, palestras, discursos que versavam sobre a história dos bandeirantes em território
paulista e goiano. Em 1942, ano do batismo cultural da cidade, o escultor e professor
Armando Zago é contratado para construir a estátua de Bartolomeu, inaugurada no mesmo
ano.
O monumento serviu de inspiração para a literatura folclórica regional (LACERDA,
1981), pinturas e peças teatrais, músicas etc., ou seja, para a produção cultural de modo geral.
Além disso, a história oficial de Goiás e sua nova capital ensinada nos livros didáticos, nas
escolas e universidades, cobrada em exames de seleção, tem a figura dos bandeirantes como
pioneiros, como verdadeiros colonos do interior, do sertão, brasileiro. A estátua parece
cumprir ainda um efeito-profecia, como se o destino goiano tivesse de cruzar o paulista, seu
espelho de modernidade, uma vez que sua origem coincide com as bandeiras dos primeiros
povoados.

O monumento nos documentos: as representações do sujeito histórico

No acervo documental mencionado previamente, organizado por um dos estudantes de


direito da USP que compuseram a embaixada universitária paulista que visitou a nova capital
de Goiás (em construção), em 1938, a convite do interventor federal Pedro Ludovico
Teixeira2, podemos observar algumas representações compartilhadas entre certos jornais
paulistas de maior circulação. O acervo foi dividido, após tratamento arquivístico e
digitalização, em três séries: 1) CPMB – Campanha Pró-Monumento aos Bandeirantes, 2)
IMB – Inauguração do Monumento aos Bandeirantes, 3) VEUP – Viagem da Embaixada
Universitária Paulista. Na primeira, há cinco sub-séries: solicitação e concessão de auxílio
financeiro; prestação de serviços para a construção do monumento; finanças e contabilidade;
eventos promovidos; diversos. Na segunda, duas sub-séries: cerimônia de inauguração;
Goiânia, a comissão e o monumento. Na terceira: viagem a Goiás; regresso a São Paulo. Essas
sub-séries subdividem-se ainda em dossiês específicos, mas para efeito dos resultados aqui
desejados, apenas os abordaremos quando convier à análise de algum documento desejado.

2
Série 3, sub-série 1 – “Viagem a Goiás”, Dossiê 1 – “Anúncios da viagem”, Item 3: Jornal Folha da manhã, SP,
11.1.1938.
6

Na série 3 – VEUP 3, há uma reportagem, escrita por Ulysses Silveira Guimarães, com
o seguinte título: “considerações sobre o surto progressista de Goyaz e sobre Hermano
Ribeiro da Silva, o bandeirante do século XX”. Ainda nessa série, há outra reportagem:
“prestando uma homenagem ao bravo sertanista da Bandeira Anhanguera, Hermano Ribeiro
da Silva, recentemente fallecido, a delegação levará consigo uma placa commemorativa.” A
delegação era composta por homens estudantes de direito da USP, na coorte de 1938, além do
professor de Economia Política e Estatística José Romeiro Pereira e do orador Ulysses
Guimarães. A visita foi politicamente orientada, como atesta este outro documento 4:
“Apresentaram suas despedidas ao prefeito os universitários paulistas que visitarão o Estado
de Goyaz. Pergaminho a ser entregue ao sr. Pedro Ludovico, interventor federal goyano.”.
Na série CPMB, podemos extrair outras evidências históricas
de intenções políticas que motivaram a construção do monumento.
Apesar da pretensão já visualizada no plano urbanístico de Goiânia
(1933-35), de Attilio Correa Lima, foi somente alguns anos depois
que essa ideia tomou a forma de bronze, “perpetuando em pleno
coração do Brasil a gloriosa epopeia dos bandeirantes”, como datado
no documento da série IMB5. Outra reportagem6 havia se referido de
maneira semelhante na campanha pró-monumento, que durou de Figura 1 – A estátua no ano da
inauguração, 1942. Item 4,
1938 até o ano de inauguração 1942: “glorificação aos bandeirantes Dossiê 1, Sub-série 2, Série
IMB / Fonte: Acervo
no coração geographico do Brasil”. Essa mesma reportagem reitera documental “Coleção
BAND”, CIDARQ-UFG
ainda a colaboração da Prefeitura e do Instituto Histórico e
Geográfico.
A estátua feita em bronze mede cerca de 3,5m de altura, veste Bartolomeu com botas
altas, chapéu largo, calça, gibão e cinto. As vestimentas assemelham-se muito com as fardas
usadas pelo exército. O olhar altivo, como mirando ao horizonte, provoca nele uma
investidura de liderança, de chefia, mais do que um simples aventureiro. As armas são
destaques: bacamarte, segurado na mão direita com firmeza, e espada, pendurada entre os
ombros e a cintura. Por fim, a bateia para o garimpo, na mão esquerda. No momento de sua
fixação, outros detalhes foram considerados: localização e posicionamento. Os olhos da

3
Série 3, sub-série 1 – “Viagem a Goiás”, Dossiê 1 – “Anúncios da viagem”, Item 14: Jornal Diário Popular, SP,
15.1.1938.
4
Série 3, sub-série 1 – “Viagem a Goiás”, Dossiê 1 – “Anúncios da viagem”, Item 19: Jornal Folha da noite, SP,
15.1.1938.
5
Série IMB, sub-série 1 – “Cerimônia de inauguração”, Dossiê 2 – Anúncios da inauguração, Item 1, 1942.
6
Série CPMB, sub-série 1 – Solicitação e concessão de auxílio financeiro, Dossiê 1 – Concessão de auxílio, Item
8: Jornal “O diário”, Santos, 1938.
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escultura e todo o seu corpo miram o Oeste, como uma referência à marcha para o Oeste,
patrocinada pela Fundação Brasil Central, nos anos 30, sob o governo desenvolvimentista e
nacionalista de Getúlio Vargas.
Pedro Ludovico transforma Goiânia numa representação de sucesso das políticas do
Estado Novo, acompanhado de outros bandeirantes do século XX, que buscavam colonizar as
terras do interior brasileiro até a Amazônia. Nesse contexto, Goiânia surge como a primeira
capital moderna no sertão e o monumento ao bandeirante foi significativo na materialização
dessas narrativas no espaço urbano, consolidando espaços de memória.

O monumento narra um mito: representações sociais e patrimônio cultural

A palavra monumento, do latim monumentum, deriva de monere, que significa


advertir, recordar, lembrar. Choay (2001: 17) chama atenção para a natureza afetiva do
monumento ao dizer que “a especificidade do monumento prende-se então, precisamente,
com o seu modo de acção sobre a memória. Não só ele a trabalha, como também a mobiliza
pela mediação da afectividade, de forma a recordar o passado, fazendo-o vibrar à maneira do
presente”. Ou seja, há um elemento essencial na constituição dos monumentos que é a
mobilização da emoção, da sensibilidade, evocando uma memória viva, um sentido de
temporalidade, não apenas transmitindo uma informação. Ainda sobre essa função
antropológica do monumento, de remontar sentidos temporais, Choay (2001:18) diz que “o
monumento assegura, sossega, tranquiliza, ao conjurar o ser do tempo. É garantia das origens
e acalma a inquietude que gera a incerteza dos princípios”. Mas, afinal, o “que pretendem
dizer os monumentos dentro da simbologia urbana contemporânea?” (CANCLINI, 2013:
291).
Nesse sentido, associado às origens e às questões elementares da condição humana
sobre a origem das coisas, o monumento veste-se como um mito, compreendido aqui como
uma narrativa de origem, verdadeira ou não, um tanto sagrada, “produto coletivo e
coletivamente apropriado” (BOURDIEU, 2011: 10), capaz de atribuir sentido e valor à
existência humana ao retomar um tempo remoto, muito antigo, fabuloso, não vivido pela
maioria dos homens e mulheres vivos/as (ROCHA, 1991). No caso do Monumento ao
Bandeirante, sua função seria manter, na nova e moderna capital, uma narrativa de origem do
estado de Goiás, que remonta aos seus primeiros povoados, bem como ao planejamento e
construção de Goiânia. Para LeGoff (1996: 535), “a sua finalidade é perpetuar e recordar e
fazer uma possível volta ao tempo”.
8

O historiador da arte, Aloïs Riegl (2006), entende os monumentos a partir da dinâmica


dos valores atribuídos a eles. Ao definir o monumento como “uma obra criada pela mão do
homem e edificada com o propósito preciso de conservar presente e viva, na consciência de
gerações futuras, a lembrança de uma ação ou destino (ou a combinação de ambos)” (RIEGL,
2006: 43), o autor vincula o monumento à obra de arte, conferindo assim um valor artístico.
De acordo com as definições deste autor, o Monumento ao Bandeirante pode ser considerado
um monumento intencional, pois eles se referem a “obras destinadas, pela vontade de seus
criadores, a comemorar um momento preciso ou um evento complexo do passado” (Idem:
52).
A discussão em torno da memória e da história enquanto sistemas de gestão do
passado já foi esboçada anteriormente, cabendo aqui retomá-la para acrescentar algumas
contribuições teóricas não apenas da história ou da filosofia (NORA, 1993; LEGOFF, 1996;
RICOUER, 2010), mas também da psicologia social (BOSI, 2003; MOSCOVICI, 2005) e da
sociologia (WEBER, 1971; DURKHEIM, 2006; HALBWACHS, 1990; BERGER, 1996;
BOURDIEU, 2001). Aqui insere-se, fundamentalmente, a questão das representações sociais,
dos valores e das disputas simbólicas.
Um símbolo organiza-se através da relação significante e significados e/ou como um
sistema de ideias e valores (GEERTZ, 1997). Nesse sentido, o monumento enquadra-se como
significante, variando os significados a ele atribuídos de acordo com os grupos e contextos
específicos. Os significados são, desse modo, representações, pois, tratam de traduções
mentais, expressões do pensamento, da realidade exterior percebida, resultantes dos processos
de abstração. A fim de definir a realidade, então, o imaginário une-se ao campo da
representação, manifestando-se através de imagens e discursos. (LEGOFF, 1996).
Aparentemente naturais e universais, as representações são sociais em essência
(DURKHEIM, 2006), agindo sobre os indivíduos como coerção, violência, ainda que
simbólica, como já foi mencionado na discussão acerca do poder simbólico. Chartier (1990)
concorda com essa definição ao dizer que:

As representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem à


universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos
interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento
dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER, 1990: 17)

As representações sociais são compreendidas não apenas como um conceito, mas


como um fenômeno social (MOSCOVICI, 2005). As representações, necessariamente
inseridas em um contexto histórico, possibilitam a orientação no (e o controle do) mundo
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social e de si mesmos, ordenando a comunicação e os vínculos entre os membros de uma


mesma comunidade, ao produzir códigos de classificação e nomeação do mundo e da história
individual e do grupo (VALENCIA, 2005).
A identidade, intimamente vinculada à memória, à cultura e, portanto, às questões de
reconhecimento e preservação de patrimônios históricos e culturais, constitui-se como um
campo de disputas. Assim, a memória coletiva possui um caráter de construção, além de
relações com o poder, a política, e com as formas de gerir o social (HALBWACHS, 1990),
sendo importante pensá-la “como uma dinâmica em tensão contínua, num jogo de conflitos,
seleções, interpretação do passado” (TEDESCO, 2004: 86).
Como observa Chuva (2009: 46), “a noção de patrimônio estava atrelada ao
surgimento dos Estados nacionais e ao
processo de formação da nação dele
integrante, em que se verificou um enorme
investimento na invenção de um passado
nacional”. Ou seja, enquanto as lutas
republicanas e democráticas formavam o
Estado-nação, buscava-se moldar uma
identidade, uma memória, uma cultura Figura 2 - O cruzamento: Av. Anhanguera e Av. Goiás /
Fonte: O popular, Zuhair Mohamad, 2017.
nacional. No entanto, como testemunho desse
mosaico histórico, ao invés de contemplar a diversidade social e cultural da/na sociedade
brasileira, de início procurou-se preservar, reconhecendo como patrimônio, apenas igrejas,
fortes militares, sobrados coloniais etc., e não senzalas, quilombos, cortiços ou vilas operárias,
por exemplo (ORIÁ, 1998). Em suma:

Dado o modo como se implantaram as políticas de patrimônio,


predominantemente associadas à construção dos Estados-nação e de uma
representação de ‘identidade nacional’, e dada também sua precária apropriação pela
sociedade como um todo, essas políticas terminaram por referir-se
predominantemente àqueles grupos sociais que detêm o poder de produzir a
representação hegemônica do ‘nacional’. (FONSECA, 2003: 76)

Logo, podemos compreender a questão da preservação patrimonial como um jogo


político, de interesses, não neutro. De modo semelhante, na construção dos regionalismos e
distinções locais, fundamentais num país territorialmente continental como o Brasil, a
construção das identidades locais acontece nas regiões e estados. No que concerne a Goiás, de
que forma o Monumento ao Bandeirante contribui nesse processo de formação de uma
identidade goiana?
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Primeiro, é preciso entender o que é patrimônio cultural. No Brasil, a Constituição de


1988 afirma, nos art. 215 e 216, que “constituem patrimônio cultural todos os bens portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira.”. Esses bens podem ser de natureza material ou imaterial, incluindo:

I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL,
art. 216, 1988)

A lei versa ainda sobre a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro.


Noutras palavras, define formas de preservação, que serão feitas via “inventários, registros,
vigilância, tombamento, desapropriação”. Ademais, incentivos para a produção e o
conhecimento de bens e valores culturais são previstos, bem como punições a danos e
ameaças ao patrimônio.
A nível local, o Plano Diretor de Goiânia inclui os patrimônios cultural e natural no
patrimônio ambiental, definindo que:

I – integram o Patrimônio Cultural, o conjunto de bens imóveis de valor


significativo, edificações isoladas ou não, enquadradas como “art déco”, os parques
urbanos e naturais, as praças, os sítios e paisagens, com simbolismo cultural, assim
como manifestações e práticas culturais e tradições que conferem identidade a estes
espaços; (PLANO DIRETOR GOIÂNIA, art. 9, 2007, grifos meus)

A valorização do patrimônio cultural constitui uma das estratégias de sustentabilidade


socioambiental do município:

II – Programa de Valorização do Patrimônio Cultural que objetiva


identificar e classificar elementos de valor cultural, definir diretrizes e desenvolver
projetos, com vistas a resgatar a memória cultural, respeitando a evolução histórica
dos direitos humanos e a pluralidade sócio-cultural, restaurando, revitalizando,
potencializando áreas significativas e criando instrumentos para incentivar a
preservação; (PLANO DIRETOR GOIÂNIA, art. 13, 2007, grifos meus)

Nesse último parágrafo, vemos a preocupação com o “resgate da memória cultural”,


tendo em vista a pluralidade sociocultural do povo goiano. Nesse contexto, cabe perguntar
“por que os nomes das ruas e avenidas, assim como os monumentos, estátuas e bustos
edificados nas nossas praças, geralmente homenageiam pessoas pertencentes às elites
nacionais, regionais ou locais?” (BATISTELLA, 2014, p. 153). Uma resposta para essa
pergunta pode estar relacionada às disputas que permeiam a construção da memória coletiva,
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com vistas à uma narrativa homogênea, uma vez que “os grupos dominantes, vencedores na
história, tentam impor a sua visão e a perpetuação de uma memória da dominação. Aos
vencidos, restam apenas o esquecimento e a exclusão da história e da política
preservacionista.” (ORIÁ, 1998, p. 36).
Ao longo da história de Goiânia, a praça do bandeirante, que sustenta o monumento,
foi cenário de protestos e manifestações sociais de grupos político-ideológicos diversos. Essa
característica permanece na praça: ela é o lócus de manifestações políticas. Mesmo após a
redução de seu espaço desde a reforma do BRT Eixo Anhanguera, que transformou a avenida
Anhanguera no corredor principal desse transporte coletivo, a praça não perdeu sua força
política. Alguns manifestantes mais radicais, simbolicamente, ateiam fogo, realizam
intervenções ou inscrevem pichações na estátua, ao passo que elites locais e grupos
conservadores defendem sua importância para “recordar a história do meu estado”. Exemplos
como estes, contraditórios entre si, expõem as sutis diferenças encontradas nas representações
sociais, coletivas e históricas, que tecem símbolos identitários a partir da conservação ou do
rompimento de certas tradições. Logo, a transmissão da história, em exaltações ou
silenciamentos, ecoa conflitos de grupos de interesses; em suma, conflitos políticos.

Considerações Finais

Se, de um lado, a história possui uma constante preocupação em responder como os


fatos realmente aconteceram, buscando a veracidade dos acontecimentos (quem foi o sujeito,
quando viveu e o que fazia), a sociologia aparece, de outro lado, preocupada em responder
como esse sujeito se representa a si mesmo, seu tempo histórico e meio social, ou como ele é
representado por outros sujeitos e quem são esses outros. Nesse sentido, não nos preocupamos
aqui tanto em questionar os documentos a ponto de chegar a uma narrativa verdadeira, mas
em retomar algumas representações feitas por jornalistas e selecionadas no acervo particular
de um dos estudantes envolvidos na campanha em favor e na construção do monumento.
Assim, por mais enviesada que seja a nossa fonte, buscamos trazer à discussão elementos que
poderiam permitir uma reflexão ampliada sobre a construção da memória coletiva local.
Em certo sentido, a relação entre passado, história e memória parece óbvia. Mas ao
perceber que apenas podemos concebê-la através de arquivos, documentos, objetos, registros
(escritos ou não), entre outros, torna-se evidente a importância de se reconhecer patrimônios
culturais aqueles elementos constitutivos do lugar. É nesse sentido que o tombamento e as
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requalificações e políticas de preservação caracterizam práticas contemporâneas eficazes de


manutenção de uma memória coletiva, de uma consciência histórica.
É curioso observar, como contraponto, que a revitalização da estátua ao bandeirante,
realizada em 2003, juntamente com a revitalização da avenida Goiás (antiga avenida Pedro
Ludovico), coincide com a restauração nunca feita do Monumento ao Trabalhador, antes
localizado na antiga estação ferroviária de Goiânia. A praça do trabalhador, “uma estranha
homenagem aos verdadeiros construtores da cidade” (DIAS, 2016), encontra-se atualmente
em reformas, porém, o monumento ao trabalhador que ali existia foi completamente
destruído.
Em suma, podemos concluir que certas representações sociais de uma memória local
foram forjadas por grupos dominantes (elites político-econômicas goianas e paulistas) nas
décadas que precederam o surgimento da nova capital goiana e seu batismo cultural: anos 30 e
40. Essas representações em torno do Monumento ao Bandeirante alcançam dimensões
temporais que ultrapassam as primeiras décadas da capital, sendo contestadas ou defendidas
ao longo dos anos e até hoje. O contexto de sua construção anunciava as políticas para o
patrimônio com os movimentos artístico-culturais modernistas, em 1922, cem anos após a
Independência da República, além das promessas de modernidade, desenvolvimento,
progresso econômico, urbanização e industrialização, erigidas nos assombros das
desigualdades de uma cidade feita para o serviço.

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