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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Estudar o novo Código Civil é fundamental para uma resposta ade- APRESENTAÇÃO .... 5
quada a importantes desafios contemporâneos, como a nova con-
figuração das famílias, das relações contratuais, das ilicitudes civis e O NOVO DIVÓRCIO E SEUS REFLEXOS NO DIREITO A ALIMENTOS
de sua reparação, da iniciativa empresarial e de tantos outros temas Rodolfo Pamplona Filho & Luiz Carlos de Assis Júnior .... 11
que tocam de perto o cotidiano das pessoas, na perspectiva indivi-
dual e coletiva. OS ILÍCITOS CIVIS NA EXPERIÊNCIA JURÍDICA BRASILEIRA
Felipe Peixoto Braga Netto .... 51
A presente coletânea aborda essas questões e também se ocupa
de ideias mais amplas como a própria essência da codificação e ASPECTOS DE ALGUNS PRESSUPOSTOS HISTÓRICO- FILOSÓFICOS
os novos padrões de interpretação. A publicação congrega auto- HERMENÊUTICOS PARA O CONTEMPORÂNEO DIRETO CIVIL
res consagradíssimos na doutrina brasileira, que têm dado enorme BRASILEIRO — ELEMENTOS CONSTITUCIONAIS PARA UMA REFLEXÃO
contribuição ao estudo do direito civil contemporâneo, bem como Luiz Edson Fachin .... 79
colegas e servidores do Ministério Público da União, que sempre
prestam uma contribuição original a partir da vivência do Direito O PRINCÍPIO DA OPERABILIDADE NO CÓDIGO CIVIL
como ciência e técnica, e ainda jovens talentos, que merecem o es- Tarcísio Henriques Filho .... 103
tímulo para que desabrochem plenamente sua vocação acadêmica.
O DANO MORAL COLETIVO E A SUA REPARAÇÃO
Agradeço, como organizador, a todos os autores, que se dispuseram Xisto Tiago de Medeiros Neto .... 119
a expor suas reflexões acerca de temas tão candentes, na linha da
abertura de um franco diálogo com toda a comunidade acadêmica OBRIGAÇÕES ALIMENTARES PÓS-DIVÓRCIO:
brasileira, bem como à Escola Superior do Ministério Público da A ANÁLISE DE SUA LEGALIDADE
União, que, por meio da sua Diretoria e de todos os seus servidores, Larissa Alves de Brito Zarur .... 153
tornou possível a concretização desse projeto.
RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS
Por fim, faço votos de que o leitor se debruce sobre os artigos que DECORRENTES DE ABANDONO AFETIVO DE FILHO
integram essa obra e possa, por meio deles, aprimorar seus conhe- Anderson Cavichioli .... 175
cimentos e formar suas próprias convicções.
O MINISTÉRIO PÚBLICO E O VELAMENTO DAS FUNDAÇÕES PRIVADAS
SOB A ÓTICA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
Roberto Moreira de Almeida .... 201
Robério Nunes dos Anjos Filho
Procurador Regional da República — 3ª Região ABUSO DO DIREITO — A ATUAL SISTEMÁTICA DO ILÍCITO MATERIAL
Diego Escobar Francisquini ... 221
O NOVO DIVÓRCIO E SEUS
REFLEXOS NO DIREITO A ALIMENTOS
1 Introdução Por meio deste artigo, visa-se investigar os reflexos do novo divór-
cio no Brasil — inaugurado pela Emenda Constitucional n. 66/2010
2 Considerações históricas do — no direito a alimentos. Inicialmente, cumpre advertir que o objeto
novo divórcio no Brasil de investigação é limitado aos alimentos entre os cônjuges, sendo
induvidoso que o regime do dever alimentar dos pais para com os fi-
3 A extinção da separação judicial lhos e entre parentes permanece inalterado com a referida emenda.
4 A supressão da discussão da No primeiro tópico, faz-se breve análise dos fatos históricos, desde
culpa nas relações de família o período pré-republicano, que resultaram na atual forma de dis-
solução do vínculo matrimonial, o divórcio verdadeiramente direto
5 Os reflexos do novo divórcio e incondicionado.
no direito a alimentos
Em seguida, a pesquisa aponta para a supressão da separação ju-
6 Conclusões dicial no Brasil, como decorrência da imediata eficácia das normas
constitucionais. A Emenda Constitucional n. 66/2010 alterou o art.
226, § 6˚, suprimindo a expressão após prévia separação judicial, de
modo que o divórcio passou a prescindir desse requisito e, conse-
quentemente, todas as normas infraconstitucionais acerca da sepa-
ração judicial restaram revogadas pela alteração constitucional.
Para entender os reflexos do atual regime jurídico do divórcio em Em razão da ascensão histórica do poder espiritual sobre o poder
matéria de alimentos, faz-se imprescindível, ainda que brevemente, temporal, até 1861 o casamento era regulado apenas pela Igreja,
a análise dos fatos históricos que desencadearam na mais recente de modo que os não católicos restavam desamparados em rela-
forma de extinção do vínculo matrimonial no Brasil, após a Emenda ção ao matrimônio. Com a edição do Decreto 1.1445, naquele ano,
Constitucional n. 66/2010. o Estado brasileiro passou a regular os casamentos não católicos,
dando-lhes efeitos civis, mas ainda assim lhes estendia o princípio
Historicamente, o casamento sempre sofreu influência da re- da indissolubilidade do vínculo, permitindo apenas a separação dos
ligião, qualquer que seja ela. Essa influência é percebida no or- corpos com a manutenção vincular. Esse decreto marcou o início do
denamento de cada país direta ou indiretamente, a depender da fim do monopólio do casamento pela Igreja.
institucionalização da religião ou de seu estado laico. Dada sua
influência na história da civilização humana, a Igreja Católica é es- Já em 1890, após a laicização do Estado brasileiro, poder secular
pecialmente lembrada em se tratando de constituição e dissolu- avocou para si o domínio sobre a regulação do casamento ao pro-
ção do vínculo matrimonial. mulgar o Decreto 181/18906, que previa em seu artigo 1˚ que “o
casamento civil, único válido [...], precederá sempre às cerimônias
Sob o prisma católico, o casamento tem origem na união cele- religiosas de qualquer culto” sob pena de o ministro de confissão
brada por Deus entre Adão e Eva1, em razão da inviabilidade da que celebrá-lo ser punido com seis meses de prisão e multa.
vida solitária, sentida pelo homem e reconhecida pela divindade.
Como algo criado por Deus, o casamento seria sagrado e sua dis- Apesar do rompimento do Estado com a Igreja em 1889, a influên-
solução jamais poderia ocorrer pelas mãos do homem. Por isso cia dos dogmas católicos sobre o ordenamento brasileiro sempre foi
mesmo, o casamento foi usualmente um ato religioso, apenas se notória. Tentou-se em 1893, em 1896, em 1899 e em 1900 a apro-
incorporando aos atos civis após a ascensão do Estado em rela- vação de projetos legislativos de divórcio vincular, mas em nenhuma
ção à Igreja. dessas tentativas se obteve sucesso7.
No Código Civil de 2002 não foi diferente. O novo codex resgatou Após a promulgação do Código Civil de 2002, esse entendimento
o rol de causas da separação47 do CC/1916, porém, deixou claro foi flexibilizado para permitir, ainda que a ação estivesse fundada na
tratar-se de rol meramente exemplificativo48 ao prescrever que o culpa, a decretação da separação judicial com base na mera insu-
juiz poderia considerar outros fatos que tornassem evidente a im- portabilidade da vida em comum52. Diferentemente do que ocorria
possibilidade da vida em comum. Na sistemática da separação judi- antes da entrada em vigor do CC/2002, passou-se a entender que
cial litigiosa, um dos cônjuges deveria imputar ao outro qualquer ato a decretação da separação sem-culpa não implicaria julgamento
O fundamento dos alimentos conjugais vai além da obrigação civil Pontes de Miranda já advertia que
de mútua assistência para encontrar bases sólidas na solidariedade
constitucional, necessária à construção de uma sociedade livre, justa no trato das relações jurídicas de que se irradiam
e solidária. É esta a razão de se fixar alimentos, conforme se depre- direitos e deveres alimentares devem-se separar,
ende de orientação da doutrina contemporânea: “a fixação dos ali- nitidamente, o que concerne à existência da sociedade
mentos deve obediência a uma perspectiva solidária (CF/1988, art. conjugal, o que deriva da relação jurídica de pátrio poder [...]
3˚), norteada pela cooperação, pela isonomia e pela justiça social”63. e o que provém da relação jurídica paternofilial 65.
8. CAHALI, 2000 p. 41-42. 19. Esse divórcio direto estava previsto na segunda parte do art. 226 da CF/1988:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...]
9. Constituição de 1934. Art 144 — A família, constituída pelo casamento indis- § 6º — O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia sepa-
solúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo único — A lei civil ração judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada
determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo separação de fato por mais de dois anos.” Não obstante, o divórcio verdadei-
sempre recurso ex officio, com efeito suspensivo. Disponível em: <http://www. ramente direto foi inaugurado com a Emenda Constitucional n. 66/2010, nas
planalto.gov.br/>. Acesso em: 23 fev. 2010. linhas seguintes.
21. Neste sentido, cita-se obra “O novo divórcio”, de Pablo Stolze Gagliano e 30. LÔBO, 1999, p. 100.
Rodolfo Pamplona Filho, que foi a primeira publicação em livro sobre o novo
divórcio no Brasil: “desapareceu, igualmente, o requisito temporal para o divór- 31. Vem a calhar o duplo sentido de constitucionalização do Código Civil relatado
cio, que passou a ser exclusivamente direto, tanto o por mútuo consentimento por Eugênio Facchini Neto: “No primeiro deles, trata-se da descrição do fato
quanto o litigioso. [...] É o reconhecimento do divórcio como o simples exercício de que vários institutos que tipicamente eram tratados apenas nos códigos
de um direito potestativo” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010. p. 43). privados passaram a serem disciplinados também nas constituições contem-
porâneas [...]. Na segunda acepção [...] o fenômeno vem sendo objeto de
22. Não há espaço neste artigo para maiores divagações acerca do regime jurí- pesquisa e discussão apenas em tempos mais recentes, estando ligado às aqui-
dico do novo divórcio, uma vez que seu objeto de estudo se restringe à análise sições culturais da hermenêutica contemporânea, tais como força normativa
histórica do divórcio no Brasil, mas não se poderia deixar de consignar alguns dos princípios, [...] à interpretação conforme a Constituição etc.”. FACCHINI
dispositivos do Código Civil que tiveram sua eficácia imediatamente prejudi- NETO In SARLET, 2006. p. 37-40.
cada com a promulgação da Emenda Constitucional n. 66: art. 1.571, III; art.
1.572; art. 1.573; art. 1.574; art. 1.575; art. 1.576; art. 1.577; art. 1.578; art. 1.580; 32. Acerca da força normativa da Constituição, deve-se recordar a seguinte
art. 1.702; e art. 1.704. passagem de Konrad Hesse: “A Constituição jurídica não configura apenas a
expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e
23. CC. Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: I — pela morte de um dos cônju- conforma a realidade política e social. [...] A Constituição jurídica logra conferir
ges; II — pela nulidade ou anulação do casamento; III — pela separação judicial; forma e modificação à realidade. Ela logra despertar “a força que reside na
IV — pelo divórcio. natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa
que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma
24. Fala-se em Código Civil em sentido geral, abrangendo o Código Civil napole- tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da
ônico e todas as codificações oitocentistas. Acerca da influência do Código Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais
Civil francês na confecção do Código Civil brasileiro de 1916, Gustavo Tepe- responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força norma-
dino contextuliza: “O Código Civil, bem se sabe, é fruto das doutrinas individu- tiva da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão de
alista e voluntarista que, consagradas pelo Código de Napoleão e incorpora- vontade normativa, de vontade de Constituição.” HESSE, 1991. p. 24.
das pelas codificações do século XIX, inspiraram o legislador brasileiro quando,
na virada do século, redigiu o nosso Código Civil de 1916. Àquela altura, o valor 33. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 8 dez. 2010.
fundamental era o indivíduo”. TEPEDINO, 1999. p. 2.
34. Registre-se a existência de uma corrente minoritária que insiste na persistência da
25. Orlando Gomes retrata muito bem essa cultura conservadora presente no separação judicial, mesmo após sua supressão da Constituição Federal de 1988.
legislado de 1916, pois, conforme lembra, restou conservado o marido como Em geral, essa posição ignora a força normativa da Constituição e seu status de
chefe de família, competindo-lhe, inclusive, autorizar profissão da mulher; fundamento de validade e eficácia das normas infraconstitucionais, afastando-se
manteve-se a propriedade como valor absoluto e foi reconhecida força de lei completamente do processo histórico de constitucionalização do direito. Assim,
à vontade das partes nas relações contratuais. GOMES, 2006. p. 8 e 15. Romualdo Baptista dos Santos defende que casamento e divórcio são institutos
39. VILLEY, 2005. 47. CC/2002. Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de
vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos: I — adultério; II — tenta-
40. VILLEY, p. 143. tiva de morte; III — sevícia ou injúria grave; IV — abandono voluntário do lar
conjugal, durante um ano contínuo; V — condenação por crime infamante;
41. VILLEY, p. 144 e ss. VI — conduta desonrosa.
42. Ainda hoje, o Código de Direito Canônico prescreve, em seu artigo 1141 (Can. 48. A doutrina é unânime no sentido de que o rol das causas de separação judicial
1141 A marriage that is ratum et consummatum can be dissolved by no human previsto no art. 1.573 é meramente exemplificativo. Cf. FARIAS; ROSENVALD,
power and by no cause, except death), que um casamento consumado não 2010. p. 369. GONÇALVES, 2010. p. 229.
pode ser dissolvido, a não ser pela morte, enquanto o artigo 1151 (Can. 1151
Spouses have the duty and right to preserve conjugal living unless a legitimate 49. Mesmo se fosse reconhecida culpa recíproca, a sanção incidiria, mas desta
cause excuses them) prevê que a preservação da vida conjugal é, além de um vez para obstar o direito de qualquer dos cônjuges aos alimentos, conforme
dever, um direito dos cônjuges. Em seu artigo 1152, § 1, dispõe que o cônjuge se denota do seguinte julgado do STJ: “Se reconhecida, na instância ordinária,
não culpado apenas terá o direito de suspender a vida conjugal se, expressa culpa recíproca dos cônjuges, o marido não está obrigado a prestar alimentos”.
ou tacitamente, não perdoar o cônjuge adúltero (Can. 1152 § 1. Although it (STJ — T3 - REsp 306060 — Rel. Ministro ARI PARGENDLER - DJ 29.10.2001
is earnestly recommended that a spouse, moved by Christian charity and p. 204). A doutrina ratifica essa conclusão ao afirmar que, nas separações
concerned for the good of the family, not refuse forgiveness to an adulte- judiciais, “se ambos [os cônjuges] forem culpados, nenhum deles fará jus à
51. Por todos, confira-se: “I — Na linha de entendimento da jurisprudência e da 57. MIRANDA, 2000. p. 253.
doutrina (cf. por todos, Teresa Celina Arruda Alvim Wambier), se não demons-
trada a prova da culpa do cônjuge, e for esse o fundamento do pedido de sepa- 58. NEVES, 2002. p. 591-592. Pontes de Miranda também define os alimentos natu-
ração, improcede a pretensão. II — Consoante a melhor doutrina, na qual se rais e os alimentos civis: “a) alimentos naturais são os estritamente exigidos para
encontra o magistério de Yussef Said Cahali, ‘é vedada a transmutação do pedido a mantença da vida; b) civis, os que se taxam segundo os haveres do alimentante
de separação judicial por culpa em separação judicial sem culpa, e vice-versa, e a qualidade e situações do alimentado”. MIRANDA, 2000. p. 253.
uma vez que são diversos os fundamentos de fato e de direito (causas jurídicas
e causas legais) dos dois institutos; o procedimento judicial que se disponha a 59. MIRANDA, 2000. p. 253. O artigo 1.687 do Código Civil de 1916 tinha a
tais conversões recíprocas, para alem de violentar a vontade do demandante seguinte redação: “Art. 1.687. O legado de alimentos abrange o sustento, a
consubstanciada no pedido inicial, afronta o principio da imutabilidade do cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se
libelo; a diversidade de natureza jurídica da separação-remédio e da separa- ele for menor.”
ção-sanção afasta qualquer argumento que se pretenda deduzir no sentido de
que as causas de um poderiam estar implícitas nas causas do outro’”. (STJ — T4 60. Márcia Cristina Neves (2002, p. 589) traz a seguinte nota acerca da origem da
- REsp 62322 — Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira - DJ 10.11.1997 p. 57768). obrigação alimentar decorrente do parentesco: “A obrigação alimentar devida
por parentesco não existia no período arcaico e no republicano, pois o pater
Esse entendimento perdurou por bastante tempo no âmbito do Superior familias comandava todos os direitos dos membros da família, até mesmo os
Tribunal de Justiça, uma vez que ainda no ano de 2002 era vedada a conver- de vida e de morte. Foi com o surgimento do Império que ocorreu o desenvol-
são do pedido de separação-sanção em separação-remédio: Inadmissível a vimento da obrigação alimentar entre parentes. O direito a alimentos passou
conversão do pedido de separação judicial por culpa para separação sem a ser recíproco entre os ascendentes e descendentes na família legítima e
culpa, tendo em vista a diversidade da causa de pedir. Precedente. (STJ — entre pai e descendentes na família ilegítima, além da obrigação que os irmãos
T4 - AgRg no REsp 222830 — Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior — DJ e cônjuges possuíam em prestar alimentos. Para que fosse possível o paga-
26.8.2002 p. 224) mento desses alimentos era necessário estarem presentes os seguintes pres-
supostos: o estado de miserabilidade de quem necessitava da pensão; a falta
52. STJ — T3 - REsp 466329 — Re. Ministra Nancy Andrigh — DJ 11.10.2004 p. 314. de capacidade deste em se sustentar sozinho; e a existência de um parente
rico”.
53. A despeito de o pedido inicial atribuir culpa exclusiva à ré e de inexistir recon-
venção, ainda que não comprovada tal culpabilidade, é possível ao Julgador levar 61. CC/2002. “Art. 803. Pode uma pessoa, pelo contrato de constituição de
em consideração outros fatos que tornem evidente a insustentabilidade da renda, obrigar-se para com outra a uma prestação periódica, a título gratuito”.
vida em comum e, diante disso, decretar a separação judicial do casal. (STJ — 2ª
Seção - EREsp 466329 — Rel. Ministro Barros Monteiro - DJ 1º 2. 2006, p. 427) 62. STJ — T4 — RMS 28336 — Rel. Ministro João Otávio de Noronha - DJe
6.4.2009.
54. A redação originária do art. 40 da Lei n. 6.515/1977 era a seguintes: “Art 40
— No caso de separação de fato, com início anterior a 28 de junho de 1977, e 63. FARIAS; ROSENVALD, 2010. p. 376.
desde que completados 5 (cinco) anos, poderá ser promovida ação de divór-
cio, na qual se deverão provar o decurso do tempo da separação e a sua causa.” 64. O Código Civil Argentino, em seu art. 209, dispõe que, independentemente
Em 1989, foi alterada pela Lei 7.841/89 e passou a ser a seguinte: “Art. 40. No da declaração da culpa na sentença de separação, o cônjuge que não gozar de
caso de separação de fato, e desde que completados 2 (dois) anos consecuti- recursos próprios e nem de condições para buscá-los, tem o direito de reque-
vos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual deverá ser comprovado rer ao outro que lhe preste o necessário para sua subsistência. A necessidade
decurso do tempo da separação”. e o montante são aferidos levando-se em conta três critérios, a idade e estado
de saúde dos cônjuges, a dedicação e cuidado aos filhos por quem detém sua
55. STJ — T4 - REsp 40020 — Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira — DJ guarda e a qualificação para o mercado de trabalho.
2.10.1995 p. 32366.
68. Neste sentido, Pontes de Miranda: “Em verdade, só os parentes é que não 74. “Renunciado o cônjuge a alimentos, em acordo de separação, por dispor de
podem renunciar ao direito a alimentos. Outra não pode ser a exegese do art. meio para manter-se, a cláusula é válida e eficaz, não podendo mais preten-
404 do Código Civil brasileiro. Não se pode dar a esse artigo interpretação der seja pensionado” (STJ — T3 - REsp. 9286 — Rel. Min. Eduardo Ribeiro — j.
literal. Com efeito, trata o art. 404 do Código Civil de dívida alimentar iure 28.10.1991); “A jurisprudência, inclusive a do Pretório Excelso, assentou ser
sanguinis, e não de alimentos entre cônjuges, tanto assim que está colocado admissível a renúncia ou dispensa a alimentos por parte da mulher se esta
no capítulo VII do título V, inscrito sob a rubrica — Das relações de parentesco possuir bens ou rendas que lhe garantam a subsistência, até porque, alimen-
— ao passo que o art. 318, que se ocupa do desquite, por mútuo consentimento, tos irrenunciáveis, assim os são em razão do parentesco (iure sanquinis) que é
dos cônjuges que forem casados por mais de dois anos, está colocado no capí- qualificação permanente e os direitos que deles resultam nem sempre podem
tulo I do título IV, inscrito sob a rubrica — Da dissolução da sociedade conjugal ser afastados por convenção ou acordo. No casamento, ao contrario, o dever
e da proteção da pessoa dos filhos”. MIRANDA, 2000, p. 258-259. Concor- de alimentos cessa, cessada a convivência dos cônjuges” (STJ — T3 — REsp.
dando, Washington de Barros Monteiro (1989, p. 291) dizia ser “verdade que a 95267 — Rel. Min. Waldemar Zveiter — j. 27.10.1997); “Os alimentos devidos
mulher casada tem direito a alimentos do outro cônjuge, não sendo ela, entre- ao ex-cônjuge, uma vez dissolvida a convivência matrimonial e renuncia-
tanto, parente, ou afim, do marido. Mas essa obrigação alimentar repousa em dos aqueles em processo de separação consensual, não mais poderão ser
outro fundamento legal, pois, citado Capítulo VII diz respeito aos parentes revitalizados” (STJ — T4 — REsp. 70630 — Rel. Min. Aldir Passarinho Junior
apenas; trata-se do disposto no art. 233 do Código Civil [de 1916]”. — j. 21.9.2000); “Se há dispensa mútua entre os cônjuges quanto à prestação
alimentícia e na conversão da separação consensual em divórcio não se faz
69. Ainda assim, Washington de Barros Monteiro (1989, p. 296) insistia na possi- nenhuma ressalva quanto a essa parcela, não pode um dos ex-cônjuges,
bilidade da renúncia: “Nos processos de separação consensual [...] torna-se posteriormente, postular alimentos, dado que já definitivamente dissolvido
comum a inserção de cláusula pela qual fica o marido dispensado de pensionar qualquer vínculo existente entre eles. Precedentes iterativos desta Corte. (STJ
a mulher. Essa estipulação é perfeitamente válida, pois a mulher não é parente — T4 — REsp. 199427 — Rel. Min. Fernando Gonçalves — j. 9.3.2004).
do marido e a ela não se aplica, por conseguinte, citado art. 404, que regula,
tão somente os alimentos devidos em razão do parentesco. [...] Pactuada, 75. CC/2002. “Art. 1.702. Na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges
porém, a desistência, não pode reclamá-los posteriormente”. inocente e desprovido de recursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia
que o juiz fixar, obedecidos os critérios estabelecidos no art. 1.694”.
70. O próprio Supremo Tribunal Federal afastou a incidência da súmula 379, deci-
dindo pela renunciabilidade do direito a alimentos derivado do casamento: 76. CC/2002. “Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a
“Alimentos. Conversão de desquite em divórcio, sem ressalva de obrigação do necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a
ex-marido a prestar alimentos à ex-mulher. Nessa situação, vigorante o estado ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separa-
de divorciados, não cabe invocar o art. 404, do CCB [1916], se pretender a ção judicial. Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar
ex-mulher obter alimentos de seu ex-marido. No caso, à época do divórcio, de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão
o marido estava dispensado de prestar alimentos, diante de modificação de para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o
cláusula do desquite, ocorrida havia alguns anos. Improcedência das alegações valor indispensável à sobrevivência”.
de negativa de vigência do art. 404, do CCB, e de contrariedade à súmula 379.
Recurso extraordinário não provido” (STF — 1ª Turma — RE 104620 — Rel. Min. 77. PROCESSO CIVIL E DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. AÇÃO DE SEPA-
Néri da Silveira - DJ 29-08-1986). RAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. IMPUTAÇÃO DE CULPA. VIOLAÇÃO DOS
DEVERES DO CASAMENTO. PRESUNÇÃO DE PERDÃO TÁCITO. ALIMEN-
71. CC/2002. Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir TOS TRANSITÓRIOS. ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA. [...] 2. A boa-fé objetiva
uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatí- deve guiar as relações familiares, como um manancial criador de deveres jurí-
vel com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua dicos de cunho preponderantemente ético e coerente. 3. De acordo com os
educação. arts. 1.694 e 1.695 do CC/2002, a obrigação de prestar alimentos está condi-
CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. 9.ed. rev. e NEVES, Márcia Cristina Ananias. Vademecum do direito
atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. de família à luz do novo Código Civil. São Paulo: 2002.
CARVALHO NETO, Inácio de. Separação e divórcio: PEREIRA, Áurea Pimentel. Divórcio e separação judicial:
teoria e prática. 8.ed. Curitiba: Juruá, 2007. comentários à Lei 6.515/1977 à luz da Constituição
de 1988. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.
DIAS, Maria Berenice. Divórcio já: comentários à emenda
constitucional 66, de 13 de julho de 2010. São Paulo: RT, 2010. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. O divórcio: teoria
e prática. Rio de Janeiro: GZ, 2010.
. Da separação e do divórcio. In Direito de família
e o novo Código Civil. Coord. Maria Berenice Dias; Rodrigo RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família.
da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 21.ed. São Paulo: Saraiva, 1978.
Trata-se, obviamente, de concepção de forte inspiração liberal, sem Houve, portanto, uma paralisação teórica, um ambiente teorica-
falar que a noção de autonomia privada sofre sérios ataques, com o mente morno, sem discussões significativas. Aliás, a matéria sempre
surgimento de estudos demonstrando sua inadequação com as re- se ressentiu de grave desvio de perspectiva, consistente em tratar
lações contratuais contemporâneas, massificadas e impessoais, que dos ilícitos em conjunto com a responsabilidade civil. É preciso frisar
distam, progressivamente, do esquema clássico8. que os temas pertinentes à responsabilidade não guardam necessá-
ria relação com os temas relativos aos ilícitos civis9.
Mas é significativo sublinhar o exaustivo trabalho havido, por um
lado, de construção de conceitos e categorias tendentes a explicar Algo semelhante, mutatis mutandis, ocorre no direito inglês, em que
a realidade dos atos lícitos, e, por outro, a preocupação quase ine- a constatação do tort dá ensejo à ação de indenização. Se a ação ou
xistente com os atos ilícitos, que, paralelamente aos lícitos, povoam omissão é reputada ilícita, é pertinente a reparação. Não existe, no
o mundo civil. entanto, uma doutrina sistemática; os casos formam a teoria. Aliás,
o sistema jurídico inglês é conhecido por não dar muita importân-
Os ilícitos sempre se mantiveram à margem, como questão menor, cia à teorização, sendo infenso a construções meramente abstratas,
relegados a um plano secundário, quando muito. Não houve, absolu- sem relações com os casos reais levados a juízo.
tamente, a construção de um estatuto teórico, tal como existe com os
lícitos, nem uma unidade lógica de pensamento. As referências, sem- É preciso, entretanto, ressaltar que nem todos os casos de inde-
pre genéricas, em livros também genéricos, limitavam-se, na maioria nização decorrem de ilícitos. Tal ponderação é ponto pacífico em
dos casos, a repetir os pressupostos do ilícito indenizante, reforçando doutrina10. Desde os casos clássicos de legítima defesa, estado de
falsos conceitos, como culpa e dano, que sempre foram erigidos à necessidade e exercício regular de direito, passando por outras hi-
condição de pressupostos necessários à definição da ilicitude civil. póteses, em que a contrariedade ao direito é pré-excluída11, o ilícito
não se forma, por ausência do sinete da contrariedade ao direito,
A análise da jurisprudência não conduziu a doutrina brasileira a uma ainda que persista o dever de indenizar.
teorização acerca dos ilícitos. Sem embargo de quase um século
de vigência do nosso Código Civil de 1916, as análises mantiveram- Uma das mais conhecidas associações que se faz a respeito dos ilí-
-se basicamente as mesmas, desde o início do século passado até o citos refere-se aos efeitos por eles produzidos. De fato, sempre que
início do atual. O panorama teórico dos ilícitos, grosso modo, apre- se pensa em ilícito civil, relaciona-se, quase que intuitivamente, o
senta-se como uma vasta coleção de fatos empíricos apenas frou- dever de indenizar como eficácia naturalmente produzida. Essa é
xamente ligados pela teoria. uma ideia que nasceu, muito provavelmente, conforme observamos
há pouco, da definição de ilícito do Código Civil de 1916, que rela-
Sociologicamente, é possível relacionar, não sem apontar o caráter cionou, de forma peremptória, ilícito ao dever de indenizar como
precário e aproximativo dessas ponderações, a ausência de apro- eficácia supostamente única: “Art. 159. Aquele que, por ação ou
fundamento teórico na matéria com a definição de ato ilícito, pe- omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou
remptória e supostamente definitiva, do Código Civil de 1916, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.
Em livro que publicamos ainda antes da vigência do Código Civil Talvez a confusão se explique pela identificação entre o gênero
de 2002, defendemos a contrariedade ao direito de tais atos, aos — os ilícitos civis — e uma espécie — o ato ilícito indenizante15 .
quais chamamos, todavia, de “ilícitos funcionais”13. Ponderamos em Sempre que se falava no tema, invocava-se essa espécie, e tudo
outra ocasião que atualmente, mercê da força, no direito atual, das que fosse característica sua atribuía-se, em descabida generaliza-
a. Ilícito indenizante: é todo ilícito cujo efeito é o dever de indenizar. Ilícito caducificante — No ilícito caducificante, o sistema relaciona
Não importa o ato que está como pressuposto normativo. Se o ao ilícito a perda de um direito. Aliás, mais propriamente, a perda de
efeito é reparar, in natura ou in pecunia, o ato ilícito praticado, qualquer categoria de eficácia19. Assim, decorre do ilícito, de modo
estaremos diante de um ilícito indenizante. direito e imediato, a perda de um direito.
b. Ilícito caducificante: é todo ilícito cujo efeito é a perda de um Estatui, a propósito, o Código Civil, art. 1.638:
direito. Também aqui não importam os dados de fatos aos quais o
legislador imputou tal eficácia. Importa, para os termos presen- Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I —
tes, que se tenha a perda de um direito como efeito de um ato castigar imoderadamente o filho; II — deixar o filho em abandono; III
ilícito. Sendo assim, teremos um ilícito caducificante. — praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV — incidir,
reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
c. Ilícito invalidante: é todo ilícito cujo efeito é a invalidade. Se o or-
denamento dispôs que a reação pelo ato ilícito dar-se-ia pela ne- Assim, o pai (ou a mãe) que espanque o filho pode perder o poder
gação dos efeitos que o ato normalmente produziria, em virtude familiar. Se a mãe de recém-nascido castiga imoderadamente o fi-
da invalidade, o ato é invalidante, o que engloba tanto a nulidade lho, poderá perder o poder familiar sobre ele. Trata-se, na espécie,
quanto a anulabilidade. de um ilícito civil, sem prejuízo do ilícito penal porventura caracteri-
zado (lembremos que, se o efeito — perda do poder familiar — é civil,
d. Ilícito autorizante: é todo ilícito cujo efeito é uma autorização. As- o fato jurídico que originou esse efeito também o é. Sem prejuízo,
sim, em razão do ato ilícito, o sistema autoriza que a parte preju- repita-se, de o fato configurar, simultaneamente, suporte fático de
dicada pratique determinado ato, geralmente em detrimento do ilícito penal).
ofensor.
Os ilícitos civis — cabe insistir — podem dar ensejo à perda de di-
Importa analisar, levemente, cada uma das espécies, em ordem a reitos ou outras categorias de eficácia. Apenas para exemplificar, o
potencializar-lhes o significado.
Ilícito autorizante — É o ilícito cujo efeito consiste na autorização, O Código Civil, no art. 1.210, § 1º, regula a situação descrita: “O
facultada pelo sistema, ao ofendido, para praticar, ou não, a seu cri- possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se
tério, determinado ato. No ilícito autorizante, o ordenamento lhe por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa,
relaciona uma autorização, que sem ele não existiria. Nasce, des- ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção,
tarte, para o ofendido, a possibilidade de praticar certo ato, como ou restituição da posse”. Trata-se, novamente, de uma autorização
efeito do ato ilícito. (expulsar os invasores) que o Código Civil disponibiliza a quem so-
fre um ilícito civil (no caso, teve sua propriedade invadida).
É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não
existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de in- Ilícito invalidante — A grande questão que aqui se põe não é tanto
denizar. Apenas para exemplificar, a ingratidão do donatário é um identificar os inválidos, mas caracterizá-los como lícitos ou ilíci-
ilícito civil cujo efeito consiste, exatamente, na possibilidade, que o tos. A doutrina tradicional, mercê da identificação do ilícito civil
ordenamento faculta ao doador, de revogar a doação, se assim lhe com uma de suas espécies, afastou, sem maiores discussões, os
aprouver (Código Civil, art. 557: “Podem ser revogadas por ingrati- inválidos da seara ilícita. Assim, no Direito Civil, salvo em tópicas
dão as doações: I — se o donatário atentou contra a vida do doador manifestações, os inválidos são considerados lícitos, ainda que por
ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; II — se cometeu exclusão.
contra ele ofensa física; III — se o injuriou gravemente ou o calu-
niou; IV — se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos Há autores, contudo, que distam dessa orientação. Pontes de
de que este necessitava”). Trata-se, portanto, de uma autorização Miranda (1954, p. 202) inclina-se em enxergar nos inválidos atos
16. Pontes de Miranda (1954 p. 201), escrevendo em meados do século LORENZETI, R.L. Fundamentos do Direito Privado. Trad.
passado, já consignava: “há mais atos ilícitos ou contrários a direito que os Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998.
atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar”. Aliás, ainda antes, em
1928, no seu livro Fontes e evolução do direito civil brasileiro (ed. Pimenta de MELLO, M.B. Teoria do fato jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991.
Mello), Pontes já intuía que os ilícitos não se esgotavam no dever de inde-
nizar. Assim, ao esboçar a classificação dos fatos jurídicos adotada pelo MONATERI, P.G. Pensarei l Diritto Civile. Torino: Giappichelli, 1999.
Código Civil, bipartia os ilícitos em delitos e outros ilícitos, que não fossem
delitos (p. 176). PONTES DE MIRANDA, F.C. Tratado de direito privado.
Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, T. II.
17. BRAGA NETTO, 2008.
. F.C. Tratado de direito privado. Rio
18. Curioso é que Pontes de Miranda já houvera assentado a existência, no Brasil, de Janeiro: Borsoi, 1966, T. LIII.
do princípio da primazia da reparação in natura. Hoje, por intermédio do art.
461 do Código de Processo Civil e art. 84 do Código do Consumidor, deve ser RIEG, A. Le role de la volonté dans la formation de l`acte
buscada, em linha de princípio, a tutela específica da obrigação. Não sendo juridique d`après lês doctrines allemandes du XIX siècle.
possível, o resultado prático equivalente. Somente em último caso, as perdas Archives de Philosophie du Droit. Prais: Sirey, 1957, t. 4.
e danos.
REFERÊNCIAS
BRAGA NETTO, F.P. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
7 À guisa de compreensão Isso feito, e em certa medida pautando-se pelo que se pode haurir
nesse campo das teorizações de Hans-Georg Gadamer, investi-
gar-se-á o fenômeno hermenêutico aplicado à ordenação sistemá-
tica do Direito, buscando-se problematizar as possibilidades quer
de restringir a hermenêutica a cânones científicos determináveis,
Se da superação de um dado paradigma da cognoscibilidade fez-se Além de colocar em xeque a própria concepção de sujeito racio-
premente o renascimento da scientia clássica no século XVI, rom- nal, Nietzsche procede a uma crítica feroz da moral e da própria
pendo-se definitivamente com a mentalidade medieval, não menos formação cultural da sociedade, suscitando que os significados e
verdade é o fato de que a promoção desse conhecimento lastreou os valores vigentes na sociedade são relativos e mutáveis, fruto de
o desenvolvimento da racionalidade moderna, levando à ebulição sua própria historicidade, inexistindo, assim, uma verdade absoluta
política, que já se sagrava, de algum modo, no plano econômico e (1992, p. 172-175).
social; a manutenção dos privilégios da nobreza, já no apagar das
luzes do século XVIII, não mais se fazia possível. Revolucionou-se, Há mais ainda nesse quadro de ebulições, notadamente no campo
pois, não apenas uma sociedade mas uma cultura e, por que não, da filosofia. Assim, Marx, influenciado em boa medida pelo ma-
uma certa racionalidade. terialismo de Feuerbach e pela dialética de Hegel, elaborou um
método novo, diferente daqueles até então existentes para o es-
Um determinado conceito de metafísica clássica que outrora havia tudo das ciências sociais, o materialismo histórico-dialético. Por
sido resgatado e lapidado sob o método cartesiano, que pela ló- meio deste método, dedicou-se ao estudo das relações sociais e
A hermenêutica, para Heidegger, compreende a interpretação do Para o autor, o intérprete deve estar disposto a dialogar com o texto
objeto ente pela pré-concepção do intérprete ser, que só existe para que, na proporção dessa abertura, componha-se um plexo dia-
enquanto tal em um dado tempo. Assim, a hermenêutica se revela lético entre aquilo que é lido e o que é pré-concebido, firmando-se,
como fenômeno da existência do ser, que abarca ontologicamente então, uma nova (e única) compreensão, que substituirá (ou não) os
a totalidade por traduzir o universo ente pela compreensão do su- pré-conceitos por conceitos novos e mais adequados (1997, p. 43).
jeito ser. O fenômeno hermenêutico deixa, portanto, de ser percepção, pas-
sando a ser compreensão.
Essa percepção vai resultar em relevante segmento do pensamento
contemporâneo, como se verá. Nesse sentido, a hermenêutica conforma um fenômeno interpreta-
tivo enquanto compreensão do ser, e não um método que orienta a
interpretação genérica visando à obtenção de uma dada verdade.
Com a virada hermenêutica do final da década de 19706, marcada Para essa abertura semântica, de qualquer modo, necessária se faz a
pela valorização da Filosofia do Direito, conferiu-se abertura se- compreensão do Direito como um sistema aberto, e não mais como
mântica ao Direito, passando-se a valorizar a heterogeneidade so- um sistema fechado de normas, segundo previa a lógica positivista.
cial, a força criativa dos fatos e o pluralismo jurídico, cuja síntese
normativa somente se revelou possível pela reestruturação da É necessário, nada obstante, compreender os reflexos dessa ordem
concepção dos princípios. de ideias para o Direito Privado.
Nesse sentido, espera-se que a lei vincule todos por igual, mas, no Desse modo, é possível afirmar que a hermenêutica conforma um
caso de aplicação, de concretização da lei, cabe ao juiz a complemen- fenômeno interpretativo enquanto compreensão do ser, ou seja, ob-
tação produtiva do direito por meio de uma ponderação justa do con- jetivar a hermenêutica e reduzi-la a método interpretativo implica
junto que lhe foi apresentado (GADAMER, 1997, p. 189). diminuir-lhe a abrangência, limitar-lhe o diálogo para com o texto e,
por consequência, tornar-lhe menos dúctil, barrando o seu potencial
Destarte, como a constituição do Direito se dá gradativa e dialeti- transformador e emancipatório como compreensão do próprio sujeito.
camente, abarcando leis elaboradas em momentos histórico-ideo-
lógicos bastante distintos, busca-se uma hermenêutica crítica, que Tendo por pressupostos essas compreensões, verifica-se que a maior
conceba no Direito a complexidade da vida, interpretando-o com contribuição trazida ao Direito por uma hermenêutica diferenciada
base em seus princípios e valores fundamentais; uma hermenêutica pode ser a consciência crítica e dialética para com a realidade de
não adstrita à formalidade, mas alargada pela substancialidade do uma hermenêutica que não é somente a interpretação do mundo
ser humano e de sua dignidade. mas também a sua transformação pelo próprio sujeito que nele está
inserto. É assim que a permanente dialética entre a norma e o fato
No tocante à conformação da hermenêutica, filiamo-nos à crítica resulta na constante reinvenção e renovação do Direito.
de Lenio Streck, que propôs a eliminação do “caráter de ferramenta
da Constituição” (2000, p. 287), uma vez que esta não é ferramenta, Àqueles que acusam essa hermenêutica de arbitrária e frágil, impende
mas verdadeira constituinte. fazer-se três afirmações: a) o Direito não corresponde ao clássico
conceito de ciência nem a hermenêutica ao método, uma vez que, se
A Constituição deixa, assim, de ser vista apenas como um texto legal assim o fosse, a lei seria, antes da interpretação, destituída de qual-
dotado de maior hierarquia para ser algo mais: passa a ser também quer sentido, significante ou significado, conformando tão somente
um “modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito” um objeto, quando, na verdade, ela própria já é fruto de uma dada
(BARROSO, 2003, p. 44). Gustavo Tepedino afirma que a herme- compreensão; b) o intérprete está inserto em um dado tempo e lugar, o
nêutica civil-constitucional permite o revigoramento do Direito que acaba por circunscrever a sua compreensão e a sua interpretação
Reconhecer aquilo que a sociedade e a cultura têm para oferecer 4. Esses critérios referem-se à hermenêutica enquanto método, o que não é
ao Direito, o que inclui também o plano hermenêutico, independen- objeto do presente trabalho, entretanto seguem aqui arroladas as diferentes
temente de qualquer apreensão legislativa, conforma um dever de técnicas interpretativas mencionadas por Lenio Streck: “a) remissão aos usos
práxis, segundo o qual é necessária a adequação da lei genérica às acadêmicos da linguagem (metodo gramatical); b) apelo ao espírito do legis-
lador (método exegético); c) apelo ao espírito do povo; apelo à necessidade
necessidades do presente e do caso sob análise.
(método histórico); d) explicitação dos componentes sistemáticos e lógicos
do direito positivo (método dogmático); e) análise de outros sistemas jurídicos
Considerar, assim, o fato um elemento fenomenológico informador (método comparativo); f) idealização sistêmica do real em busca da adaptabi-
do ordenamento jurídico importa reler a própria hermenêutica ju- lidade social (método da escola científica francesa); g) análise sistêmica dos
rídica — a qual não pode ser vista separadamente de uma teoria da fatos (método do positivismo sociológico); h) interpretação a partir da busca
compreensão, como se dela diferisse — para que se possa levar em da certeza decisória (método da escola do direito livre); i) interpretação a partir
dos fins (método teleológico); j) análise lingüística a partir dos contextos de uso
conta não apenas a norma, o que inclui a própria Constituição, mas
(método do positivismo fático); l) compreensão valorativa da conduta através
também a própria ação legítima do sujeito concreto como consti- da análise empirico-dialética (egologia); m) produção de conclusões dialéticas a
tuinte de sua própria personalidade e da história daqueles com quem partir de lugares (método tópico-retórico).” STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica
dialeticamente se relaciona. jurídica e(m) crise. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 98.
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1 Considerações iniciais A aplicação da lei sempre foi um dos momentos mais complexos
do Direito.
2 Aspectos relevantes da “operabilidade”
das normas jurídicas Se acrescentarmos a esta questão o problema da perspectiva com
que as regras jurídicas são entendidas, teremos uma clara noção
3 A operabilidade e o atendimento da da importância do trabalho interpretativo em busca da desejada
“finalidade social” da norma efetividade das regras jurídicas.
Assim, por todos, as considerações do Professor Miguel Reale (apud Rosenvald, com propriedade, aponta que a Constituição Federal de
NADER, 2003, p. 47): 1988 levou à necessidade de se buscar, no âmbito da legislação civil,
referenciais diferentes daqueles que balizavam o ordenamento jurí-
[...] a nova codificação inspirou-se em três princípios dico anterior.
filosóficos: o de socialidade1, o de eticidade2 e o de
operabilidade3 . A trama normativa seria o desenvolvimento Para ele, neste sentido, o novo Código Civil se afastou “dos valores
de tais princípios fundamentais, que estariam na imediatidade (patrimonialismo e individualismo) que marcaram significativamente”
da consciência, secundados, naturalmente, por vários o Código de 1916, abandonando tais valores e estabelecendo “três
outros de menor generalidade. [grifos do original]
paradigmas a serem perseguidos: a socialidade, a eticidade e a ope-
rabilidade” (ROSENVALD; FARIAS, 2009, p. 19)4 .
A ideia de operabilidade, adotada no novo Código Civil, se presta
como fundamento à aplicação adequada de todas as regras jurídi- Especificamente sobre a operabilidade, ressaltando a ligação do
cas, e pode servir para viabilizar uma maior efetividade dos crité- Código Civil de 1916 com uma “ideologia marcadamente individu-
rios para avaliação das questões submetidas à avaliação dos juristas. alista”, que dava enorme preponderância à questão patrimonial, já
que ela “apreciava cada integrante de uma relação jurídica como um
Na exposição de motivos do novo Código Civil, relacionando as abstrato sujeito de direitos patrimoniais”, Rosenvald e Farias (2009,
diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Justiça quando da de- p. 27-28) destacam o seguinte:
signação da comissão de juristas que redigiu o projeto inicial, fez-
-se constar expressamente que uma das diretrizes observadas no [...] Não havia João ou Maria, mas o contratante, o proprietário,
trabalho foi o cônjuge; todos pessoas neutras e indiferentes, [...]: o
Direito Civil ignorava as particularidades de cada pessoa,
[...] tratando a todos como se fossem rigorosamente iguais. A
norma, enfim, aplicava-se genericamente a quem quer que se
p) Dar ao Anteprojeto antes um sentido operacional do titularizasse em uma determinada situação patrimonial.
que conceitual, procurando configurar os modelos
jurídicos à luz do princípio da realizabilidade, em função O Código Civil de 2002 guarda outras pretensões. Afinado
das forças sociais operantes no País, para atuarem como com a centralidade do ser humano no ordenamento
instrumentos de paz social e de desenvolvimento. jurídico constitucional, pretende demonstrar que, de
forma subjacente ao indivíduo abstrato dos códigos
A partir desta diretriz, se constrói o sentido de operabilidade. liberais, existe uma pessoa concreta, [...].
A diretriz [...] da operabilidade [...] Propugna [...] por Especificando melhor esta ideia, Ehrhardt Júnior (2009, p. 104)
rápidas formas de solucionar pretensões, bem como aduz que os autores do projeto do Código Civil de 2002 se depa-
por meios que evitem a eternização de incertezas e raram com as dificuldades criadas pelo “exacerbado tecnicismo” de
conflitos. [...] o magistrado será um homem do seu tempo alguns institutos jurídicos do Código Civil de 1916.
e meio. Caberá a ele a valoração do fato, mediante
ponderação das características dos seus artistas e a De forma clara, tais disposições tecnicistas já sinalizavam para a im-
natureza da atividade econômica desempenhada.
portância da ideia de assegurar a “realizabilidade, ou [...], efetividade,
condição essencial das normas jurídicas que são feitas para serem
Estas palavras dão uma conformação distinta para a operabilidade, aplicadas”, como com propriedade leciona Reale, na passagem
mas não negam a importância da diferente e distinta perspectiva acima transcrita.
dada à norma civil.
Diante desta constatação, os autores do novo Código Civil, como
De fato, afastando-se da perspectiva anterior, ou seja, aquela patri- apontado por Reale, buscaram retirar dos institutos inseridos no
monialista e excessivamente individualista, alcançamos ou viabiliza- novo código este “tecnicismo”, ampliando com isto o campo de atu-
mos a aplicabilidade ampliada dos valores constitucionais. ação dos Juízes. Eis o que afirma, sobre a questão, Ehrhardt (2009,
p. 104-105):
A importância desta consequência, ou seja, a “efetividade” e apli-
cação das regras jurídicas, é tamanha que é preciso estruturar de Para facilitar a adequação da nova codificação aos desafios
modo adequado a compreensão deste princípio. que envolvem o disciplinamento de questões bioéticas
(reprogenética humana, por exemplo) e temas relativos ao
Os conteúdos jurídicos das regras, e mesmo dos princípios, como direito eletrônico e aos aspectos do mundo digital, evitando
são normalmente estipulados nas leis, neste sentido, só teriam “rea- que ao longo dos anos seus dispositivos percam eficácia social,
fez-se opção por não regular no Código [...] matérias polêmicas
lizabilidade”, só teriam “efetividade”, só produziriam os efeitos alme-
[...] Renzo Gama Soares ressalta que as cláusulas gerais contêm Tal compreensão dinâmica do que deva ser um Código implica
preceitos vagos no antecedente (necessidade, grave dano, uma atitude de natureza operacional, sem quebra do rigor
obrigação excessivamente onerosa, prestação manifestamente conceitual, no sentido de se preferir sempre configurar os
desproporcional...), não apresentando uma solução para o juiz, a modelos jurídicos com amplitude de repertório, de modo a
quem competirá construir uma solução adequada às peculiaridades possibilitar a sua adaptação às esperadas mudanças sociais,
do caso concreto. Neste particular, difeririam dos conceitos graças ao trabalho criador da Hermenêutica, que nenhum
jurídicos indeterminados, pois nestes casos, quando preenchidos, jurista bem informado há de considerar tarefa passiva e
a solução legal já estaria preestabelecida no próprio dispositivo, já subordinada. Daí o cuidado em salvaguardar, nas distintas
que nesta categoria não exerce o juiz qualquer função criadora. partes do Código, o sentido plástico e operacional das
normas, conforme inicialmente assente como pressuposto
Tem-se, pois, com as cláusulas gerais um antídoto à tipicidade metodológico comum, fazendo-se, para tal fim, as modificações
que tradicionalmente caracteriza as normas casuísticas dos e acréscimos que o confronto dos textos revela.
códigos e que ao longo dos anos vêm perdendo sua eficácia social
(efetividade). Nas cláusulas gerais, exerce o juiz verdadeira função O que se tem em vista é, em suma, uma estrutura normativa
criadora, pois os conceitos não são apenas vagos no antecedente, concreta, isto é, destituída de qualquer apego a meros
mas também no consequente do dispositivo normativo. [...]. Esse é valores formais e abstratos. Esse objetivo de concretude
o substrato que orienta a atuação dos aplicadores do direito. impõe soluções que deixam margem ao juiz e à doutrina, com
frequente apelo a conceitos integradores da compreensão
O mesmo autor ainda relembra a observação feita pelos doutrina- ética, tal como os de boa-fé, equidade, probidade, finalidade
dores Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery sobre a im- social do direito, equivalência de prestações etc., o que talvez
portância desta “técnica legislativa”: “a técnica legislativa moderna não seja do agrado dos partidários de uma concepção mecânica
se dá por meio de conceitos legais indeterminados e cláusulas ge- ou naturalística do Direito, mas este é incompatível com leis
rais, que dão mobilidade ao sistema, flexibilizando a rigidez dos insti- rígidas de tipo físico-matemático. A ‘exigência de concreção’
surge exatamente da contingência insuperável de permanente
tutos jurídicos e dos regramentos do direito positivo”. (EHRHARDT,
adequação dos modelos jurídicos aos fatos sociais ‘in fieri’.
2009, p. 105).
Vale, como síntese do até aqui estabelecido, transcrever a observa- Fica evidente aí o sentido atribuído à necessária operabilidade das
ção de Ehrhardt (2009, p. 104-105) no ponto em que faz a distin- normas jurídicas.
Lembrando aqui a lição do Professor Paulo Neves de Carvalho, que Esse pensamento acabou por fazer realidade normativa o que, com
em sala de aula afirmava que “o direito que não serve à vida não serve”, a Carta de 1988, vinha sendo observado na prática.
é mais adequado estruturar a regra por meio de cláusulas abertas, o
que permitiria a solução mais efetiva dos problemas sociais subme- De fato, a finalidade social e o bem comum, que, no ordenamento
tidos à avaliação dos operadores do direito. infraconstitucional de então, deveriam ser considerados apenas na
exegese do Código Civil, passaram a ser parâmetro de observância
obrigatória na exegese de todas as normas de Direito com a edição
da Lei n. 12.376, de 30 de dezembro de 2010.
De fato, a própria Constituição Federal reconhece a diferença No caso da disposição constitucional do art. 3º, inciso III, verdadei-
de realidade econômica entre as várias regiões da República ramente não se alcançaria o escopo de redução das desigualda-
Federativa do Brasil, e dispõe, em capítulo reservado ao tra- des se não se considerassem as desigualdades entre as realidades
tamento da Ordem Econômica, especificadamente no seu distintas e as efetivas condições socioeconômicas dessas regiões.
artigo 174, § 1º, que “a lei estabelecerá as diretrizes e bases do
planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual in- É, pois, mais adequado estruturar as disposições normativas atra-
corporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de vés de disposições estruturadas sob a forma de cláusulas gerais,
desenvolvimento”[grifo nosso]. cuja redação permita ao administrador avaliar as especificidades
de cada espaço posto para a sua apreciação, de modo a permitir
A mesma ideia se vê normativamente materializada no artigo 3º, uma mais adequada efetividade da disposição legal.
III, da Carta da República, cujo dispositivo prevê como objetivo
da República Federativa do Brasil a redução das desigualdades
regionais.
4. Sobre os dois primeiros paradigmas, os autores aduzem, sobre a socialidade, NADER, Paulo. Curso de direito civil — Parte
o seguinte: “[...] os ordenamentos jurídicos posteriores à Segunda Guerra Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
Mundial perceberam que a todo o direito subjetivo deverá necessariamente
corresponder uma função social. [...] O ordenamento [...] concede a alguém ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito
um direito subjetivo para que satisfaça um interesse próprio, mas com a condi- civil — teoria geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
ção de que a satisfação individual não lese as expectativas coletivas que lhe
rodeiam. Todo poder de agir é concedido à pessoa, para que seja realizada uma
finalidade social; caso contrário, a atividade individual falecerá de legitimidade
[...]. Todo poder é concedido para a satisfação de um dever. [...]. Em suma, pode-
-se abstrair e encontrar o paradigma da socialidade na atuação irretocável de
uma orquestra. Cada membro da orquestra porta o seu instrumento, cada qual
com uma finalidade. O maestro deverá reger sem a vaidade de sobrepor-se
aos músicos, mas apenas para encaminhar a perfeita execução da harmonia,
cujos limites encontram-se na partitura. Traduzindo: o Estado está a serviço
da pessoa, ele existe para possibilitar as nossas relações, através da constru-
ção de princípios jurídicos éticos. Em contrapartida, cada uma de nós deverá
atuar em solidariedade e cooperação com os semelhantes. [...] A socialidade,
ou função (fim) social, consiste exatamente na manutenção de uma relação
de cooperação entre os partícipes de cada relação jurídica, bem como entre
eles e a sociedade, com o propósito de que seja possível, ao seu término, a
consecução do bem (fim) comum da relação jurídica. Exemplos de socialidade
podem ser percebidos no Código Civil de 2002 nos arts. 421 (função social do
contrato) e 1.228 (função social da propriedade), [...]” (ROSENVALD; FARIAS,
2009, p. 19-23). Sobre a eticidade, os mesmos autores asseveram que, por não
se poder “restringir o Direito àquilo que for prescrito pelo legislador”, como
pretendiam os positivistas, devemos reconhecer que “o Direito é uma técnica
a serviço de uma ética”. A eticidade penetra assim a legislação civil “através de
técnicas das cláusulas gerais, transformando-se o ordenamento privado em
Esses direitos, protegidos pelo ordenamento jurídico, inegavelmente Invocando-se a lição da doutrina, tem-se que “a desvinculação da
inserem-se na órbita dos interesses e valores extrapatrimoniais reco- dor física e psíquica do conceito de dano moral possibilita a cons-
nhecidos a uma coletividade. E, sendo assim, qualquer lesão injusta a trução teórica da noção de dano moral coletivo, que se caracteriza
eles infligida, dada a sua induvidosa relevância social, impõe desenca- pela ofensa a padrões éticos dos indivíduos, considerados em sua
dear-se a reação do ordenamento jurídico, no plano da responsabili- dimensão coletiva” (ANDRADE, 2006, p. 171).
zação, mediante a forma específica de reparação do dano ocorrido.
É esse um aspecto relevantíssimo no estudo do dano moral coletivo, a
Afirma-se, então, que o reconhecimento do dano moral coletivo e da colocar em destaque a racionalidade e o modelo teórico inerentes à
imperiosidade da sua adequada reparação traduz a mais importante compreensão adequada da matéria, que, saliente-se, firma-se nos do-
vertente evolutiva, na atualidade, do sistema da responsabilidade ci- mínios próprios do sistema de tutela jurídica dos direitos transindividu-
vil, em seus contínuos desdobramentos, a significar a extensão do ais, a afastar-se, em muitos pontos substanciais, do regime inerente ao
dano a uma órbita coletiva de direitos, de essência tipicamente ex- dano moral individual. Nessa seara, pois, incorrerá em equívoco gros-
trapatrimonial, não subordinada à esfera subjetiva do sofrimento ou seiro quem buscar definições e respostas à luz exclusiva das regras re-
da dor individual. São direitos que traduzem valores jurídicos funda- gentes das relações privadas individuais, ancorando-se nos conceitos
mentais da coletividade, que lhes são próprios, e que refletem, no e na lógica peculiares à concepção teórico-jurídica do dano pessoal.
horizonte social, o largo alcance da dignidade dos seus membros.
A concepção atualizada do dano moral há muito superou a signi-
Resta evidente, com efeito, que, toda vez em que se vislumbrar o ficação anteriormente restritiva, de viés semântico, subordinada
ferimento a interesse não patrimonial, do qual é titular determinada ao plano subjetivo da dor ou do sofrimento, posição que resistiu por
coletividade (em maior ou menor extensão), configurar-se-á dano longo tempo vinculada à esfera da possibilidade de reparação das
passível de reparação, sob a forma adequada a esta realidade jurí- lesões individuais.
dica peculiar aos direitos transindividuais, que se traduz em conde-
nação pecuniária arbitrada judicialmente, reversível a fundo especí- Por isso mesmo, a adequada compreensão do dano moral coletivo
fico, com o objetivo de reconstituição dos bens lesados. não se conjuga diretamente com a ideia de demonstração de ele-
Ademais, de acordo com o que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, 1. O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual
o dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de
de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva
dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas
esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos1.
como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base.
No palco jurisprudencial, anota-se que se consolidaram, hoje, em 2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de
todas as instâncias, o reconhecimento do dano moral coletivo e a sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera
do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos.
imprescindibilidade de sua reparação, nas variadas áreas de identi-
ficação dos interesses transindividuais, como exigência constitucio- 3. Na espécie, o dano coletivo apontado foi a submissão dos idosos a
nal do regime de responsabilidade civil, por força da sua ampliação procedimento de cadastramento para o gozo de benefício do passe livre,
à tutela dos danos coletivos, expressão marcante dos novos foros cujo deslocamento foi custeado pelos interessados, quanto o Estatuto do
e exigências dos princípios da reparação integral e da justiça social. Idoso, art. 39, § 1º, exige apenas a apresentação de documento de identidade.
É importante destacar, de forma exemplificativa, algumas hipóteses j. deterioração do patrimônio cultural da comunidade;
específicas - e hoje muito recorrentes - em que se observam con-
dutas que geram, induvidosamente, dano moral coletivo, cuja cer- k. deficiências, abusos ou irregularidades injustificáveis e intolerá-
teza nasce concomitantemente com a própria ocorrência do fato veis na prestação de serviços privados e públicos (p. ex., trans-
lesivo. Reitere-se que a adequada concepção do dano moral coletivo porte coletivo, limpeza urbana, telecomunicações, assistência à
não se vincula aos elementos e à racionalidade que informam a res- saúde, educação, crédito e financiamento, seguro, habitação);
ponsabilidade civil nas relações de cunho individual e privado. Eis as
hipóteses selecionadas pelo critério da maior incidência: l. exploração do trabalho de crianças e adolescentes, em violação
ao princípio constitucional da dignidade humana e da proteção
a. veiculação de publicidade enganosa prejudicial aos consu- integral;
midores;
m. submissão de grupo de trabalhadores a condições degradantes,
b. comercialização fraudulenta de gêneros alimentícios, com a serviço forçado, em condição análoga à de escravo, ou me-
risco à saúde da população; diante regime de servidão por dívida;
c. sonegação de medicamentos e outros produtos essenciais, n. manutenção de meio ambiente de trabalho inadequado e des-
com vistas a forçar o aumento do seu preço; cumprimento de normas trabalhistas básicas de segurança e
saúde, em prejuízo à integridade psicofísica dos trabalhadores;
d. fabricação defeituosa de produtos e sua comercialização, em
detrimento da população consumidora; o. prática de discriminação, abuso de poder e assédio moral ou
sexual em detrimento dos trabalhadores;
e. monopolização ou manipulação abusiva de informações, ativida-
des ou serviços, em violação aos interesses da coletividade; p. submissão de trabalhadores a situações indignas, humilhantes
A resposta do sistema jurídico não pode, em absoluto, apresentar-se À vista das características próprias do dano moral coletivo, a con-
de maneira compassiva, proporcionando conforto ou ânimo para o denação pecuniária — prevista como o equivalente a uma espécie
agente violador. É absolutamente ilógico e inconcebível admitir-se de reparação ou indenização punitiva — apresenta natureza prepon-
a ocorrência de hipótese em que violar direitos e infligir danos, em derantemente sancionatória, em relação ao ofensor, com pretensão
matéria de interesses fundamentais de expressão coletiva, possa dissuasória, também, diante de terceiros, a realçar a nota preventiva
gerar alguma espécie de benefício para o lesante, de um lado, ou de da responsabilização.
incentivo para terceiros, de outro. O sistema jurídico (e os respecti-
vos órgãos de justiça, que o interpretam e aplicam as suas normas) Essa condenação afasta-se, portanto, da função típica que preva-
que venha a condescender com essa absurda distorção estará der- lece na seara dos danos morais individuais, em que se confere maior
ruído em suas próprias bases e seus princípios. relevância à finalidade compensatória ou satisfatória da indenização
É assim que se apresenta o mecanismo adequado de responsabi- Faz-se imperativo, ademais, que essa decisão judicial seja motivada,
lização civil que visa a assegurar a tutela necessária nas hipóteses fundamentando-se em elementos criteriosos quanto à composição
de violação dos interesses coletivos extrapatrimoniais, e que foi do quantum, como exigência da cláusula constitucional do due pro-
introduzido, de maneira explícita, em nosso ordenamento jurídico, cesso of law, com isso evitando-se a fixação de valores desarrazoa-
segundo se vê das disposições dos arts. 1º e 13 da Lei n. 7.347/1985, dos, para mais ou para menos, em prejuízo ao interesse tutelado e
e 6º, VII, e 83 do CDC. aos fins almejados pelo próprio sistema jurídico.
A decisão do Recurso Especial em referência12 foi assim ementada: Por último, o ministro Francisco Falcão votou pela não admissão da
possibilidade de reparação de dano moral coletivo, perfilhando a
Processual Civil. Ação Civil Pública. Dano ambiental. Dano moral mesma tese do ministro Teori Zavascki.
coletivo. Necessária vinculação do dano moral à noção de dor,
de sofrimento psíquico, de caráter individual. Incompatibilidade O que se conclui, portanto, da verificação das posições externadas
com a noção de transindividualidade (indeterminabilidade do pelos ministros votantes, é que, no que diz respeito à admissibilidade
sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa e da reparação). da reparação do dano moral coletivo, dos cinco votos proferidos
pelos integrantes da 1ª Turma do STJ, três ministros entenderam
Tratou-se do primeiro caso em que aquela Corte Superior enfren- a possibilidade jurídica de condenação por dano moral coletivo
tou a matéria relativa à condenação por dano moral coletivo, tendo (Luiz Fux, Denise Arruda e José Delgado) e os outros dois ministros
sido proclamada, equivocadamente, decisão contrária à admissão da (Teori Zavascki e Francisco Falcão) se posicionaram pela impossibi-
reparação do dano moral coletivo, em hipótese que versou lesão ao lidade de ocorrer essa reparação. Quanto à caracterização do dano
meio ambiente. É o que se demonstra a seguir. moral coletivo, no caso apreciado, três ministros não vislumbraram
a sua configuração de dano moral coletivo (Teori Zavascki, Denise
O voto do ministro relator Luiz Fux admitia a possibilidade de repara- Arruda e Francisco Falcão) e os outros dois ministros (Luiz Fux e
ção e, em consequência, acolhia a condenação por dano moral cole- José Delgado) manifestaram o entendimento de que se caracteri-
tivo, entendendo assim, no caso analisado, caracterizada lesão am- zou o dano moral coletivo na situação observada.
biental a ensejar essa reparação, fixada no valor total de cem mil reais.
Em resumo, por três votos a dois, decidiu-se, naquela oportunidade,
Em seguida, o ministro Teori Albino Zavascki, em seu voto-vista, po- pela admissibilidade da reparação de dano moral coletivo. Também
sicionou-se de maneira contrária à possibilidade de condenação por por três votos a dois, decidiu-se pela não caracterização ou prova do
dano moral coletivo, conforme estampa a ementa transcrita, argu- dano moral coletivo no caso examinado.
9 CONCLUSÃO
Dessa maneira, a ação impositiva, por meio dos mecanismos, instru- 3. No mesmo sentido: RECURSO DE REVISTA. TRABALHO EM CONDIÇÕES
mentos e órgãos competentes, objetivando a efetivação dos direi- DEGRADANTES. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. (...) 2. Não
tos, em prol dos indivíduos e das coletividades, na busca do equilí- há como negar, diante dos fatos registrados no acórdão regional, a existên-
brio e do bem-estar social, é o que dá concretude ao conceito de cia de violação aos princípios e direitos fundamentais mínimos previstos na
Constituição Federal, haja vista que a submissão de trabalhadores, ainda que
cidadania, principalmente quando se trata de direitos fundamentais,
sem vínculo empregatício, a condições de trabalho degradantes e desumanas
status hoje reconhecido constitucionalmente aos direitos ou inte- repugnam a coletividade e afrontam a honra e a dignidade coletiva dos traba-
resses coletivos e difusos. lhadores arregimentados pelas primeira e segunda Reclamadas, cuja atitude
empresarial é repudiada pelo ordenamento jurídico. 3. Devido o pagamento
A evolução do regime da responsabilidade civil possibilitou a devida de indenização por danos morais coletivos, haja vista que esta Corte Superior
tutela em face de danos a interesses titularizados por determinadas já pacificou entendimento no sentido de que a coletividade detém interes-
ses de natureza extrapatrimonial, que violados, geram direito à indenização.
coletividades, em coerência com a ampla relevância que adquiriu o
TST-RR 98300-57.2006.5.12.0024, 7ª Turma, rel. min. Maria Doralice Novaes,
princípio da dignidade humana, em suas várias órbitas de projeção, DJ 27 ago. 2010.
no âmbito do ordenamento constitucional.
4. STJ-REsp 1.057.274-RS (2008/0104498-1), 2ª Turma, rel. min. Eliana Calmon,
A ordem jurídica, assim, por diretriz explícita da Carta Magna de DJ 26 fev. 2010.
1988, assegurou à coletividade a titularidade de direitos e interesses,
5. No mesmo sentido, RECURSO ESPECIAL. DANO MORAL COLETIVO. CABI-
cuja violação enseja reação eficaz consubstanciada na possibilidade
MENTO. ARTIGO 6º, VI, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
de se obter uma reparação adequada, que se viabiliza por meio do REQUISITOS. RAZOÁVEL SIGNIFICÂNCIA E REPULSA SOCIAL. OCORRÊN-
sistema processual coletivo. CIA, NA ESPÉCIE. CONSUMIDORES COM DIFICULDADE DE LOCOMOÇÃO.
EXIGÊNCIA DE SUBIR LANCES DE ESCADAS PARA ATENDIMENTO. MEDIDA
Enfim, que, no tempo presente, o reconhecimento e a efetiva re- DESPROPORCIONAL E DESGASTANTE. INDENIZAÇÃO. FIXAÇÃO PROPOR-
paração dos danos morais coletivos, por meio da ação civil pública, CIONAL (...). I — A dicção do artigo 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor
5 Prazo necessário para a propositura Nesse sentido, este artigo discutirá as mudanças advindas da
da ação de alimentos pós-divórcio Emenda Constitucional n. 66/2010, conceituará os alimentos e mos-
trará a sua importância, bem como sua abrangência do ponto de vista
6 A culpa no quesito alimentos pós-divórcio jurídico e, por fim, discutirá as possibilidades existentes quanto à propo-
situra da ação alimentícia após a decretação do divórcio. Com relação a
7 Considerações finais esse assunto, ter-se-á como foco a legitimidade para se propor a ação
de alimentos, as suas limitações e os princípios que versam a respeito
do tema, tanto no que diz respeito ao casamento como ao divórcio.
Ressalte-se, sobretudo, que a metodologia a ser utilizada no presente ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
artigo será a pesquisa exploratória, de cunho bibliográfico. O método FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO.
utilizado para a sua realização será o dedutivo, tendo como fontes de RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA
informações a jurisprudência dos tribunais brasileiros, a Constituição
E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO.
Federal da República Federativa do Brasil, o Código Civil de 2002, os CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA
Enunciados da III Jornada de Direito Civil e os posicionamentos de ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos
alguns doutrinadores a respeito do assunto em comento. fundamentos da ADPF n. 132-RJ pela ADI n. 4.277-DF, com a
finalidade de conferir “interpretação conforme a Constituição” ao
Por fim, no que diz respeito à temática em questão, há que se des- art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação.
tacar que, para que a decretação dos alimentos após o divórcio seja
possível, o casamento deverá ser considerado válido. Para tanto, Diante da análise da ADPF citada, percebe-se que o STF reconheceu
aborda-se o casamento, bem como alguns efeitos decorrentes de a união estável homoafetiva, indo de encontro ao o que acontece há
sua dissolução, sobre a Emenda Constitucional n. 66/2010, a legiti- algum tempo na sociedade, mas que sempre ocorreu de forma ir-
midade e as possibilidades de se requerer a decretação de alimen- regular, qual seja a convivência entre pessoas do mesmo sexo como
tos após o divórcio, assim como a existência ou não de um prazo se fossem uma família.
para sua arguição. Além disso, discutir-se-á acerca da manutenção
ou não do quesito culpa no divórcio e a necessidade de uma menor Voltando à discussão a respeito do casamento, ressalta-se que, du-
intervenção do Estado no âmbito familiar. rante a vigência do Código Civil de 1916, acreditava-se na indissolu-
bilidade do casamento, visto que ocorria, segundo Rosenvald e Farias
(2010, p. 108), a incorporação da máxima canonista, qual seja: “o que
Deus uniu o homem não separa”, da qual se percebe a forte influên-
2 O CASAMENTO E A SUA DISSOLUÇÃO cia religiosa nessa união. Nesse contexto, destaca-se a clássica defi-
nição de Clóvis Beviláqua (apud DINIZ, 2011, p. 52), segundo a qual
O casamento é uma das situações que geram obrigações mútuas de o casamento é contrato bilateral e solene, pelo qual um
prestar alimentos entre os envolvidos. Segundo o posicionamento homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legitimando
da ilustre jurista Diniz (2011, p. 51), “o casamento é o vínculo jurí- por ele suas relações sexuais; estabelecendo a mais estreita
dico entre o homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e comunhão de vida e de interesses e comprometendo-
espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a consti- se a criar e educar a prole que de ambos nascer.
tuição de uma família”. Entretanto, atualmente, parte desse posicio-
namento está ultrapassado, visto que o Supremo Tribunal Federal Entretanto, após a Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977 (Lei
(STF) passou a admitir, em sua jurisprudência, que a família não ad- do Divórcio), tal posicionamento se modificou, pois o casamento
Conforme os ensinamentos de Gagliano e Pamplona Filho (2011, Na situação jurídica anterior, era possível a ocorrência da separação
p. 542), essa emenda facilitou a implementação do divórcio no judicial,ou seja, apenas a dissolução da sociedade conjugal, em que
Brasil, pois inovou o ordenamento em dois pontos fundamentais: a seria cabível uma possível reconciliação entre os cônjuges. Por outro
extinção da separação judicial e a extinção da exigência de prazo lado, para que ocorresse o divórcio, caracterizado, à época, de “di-
de separação de fato para a dissolução do vínculo matrimonial. Por reto”, seria preciso o casal estar separado de fato há mais de dois anos,
conseguinte, a separação judicial deixa de ser requisito para conces- sem que houvesse, no correspondente período, possível conciliação.
são do divórcio, facilitando, assim, a ruptura do vínculo matrimonial
entre aqueles que não mais suportam a vida em comum. Para que Por sua vez, após a mudança, o divórcio a ser requerido pelo côn-
isso ocorra, ressalte-se, não há mais um período mínimo de separa- juge que esteja interessado no rompimento matrimonial deixa de
ção de fato, de modo que o divórcio pode ocorrer a qualquer tempo, se submeter a qualquer requisito temporal. Dessa forma, basta a
seja um dia ou dois anos após a realização do casamento. simples insatisfação com a vida em comum para se justificar a disso-
lução do vínculo matrimonial por meio do divórcio.
No entanto, há questionamentos acerca dessa rápida possibilidade
de propositura da ação de divórcio, tendo em vista que os casais Apesar de não ter ocorrido uma revogação expressa do instituto
poderiam agir por impulso emocional, se divorciarem e, posterior- da separação judicial, esta foi suprimida do ordenamento jurídico.
mente, se arrependerem, não podendo mais reatar a relação, a No entanto, aplicam-se ao divórcio as mesmas regras que versavam
não ser casando-se novamente. Diferentemente ocorria antes da a respeito da separação judicial, com exceção do lapso temporal
Emenda Constitucional n. 66/2010, quando se fazia necessária, pri- que era exigido e da comprovação da separação de fato ou judicial.
meiramente, a separação judicial por mais de um ano nos casos ex- Por conseguinte, apesar de a separação judicial ainda estar prevista
pressos em lei ou a comprovada separação de fato por mais de dois no Código Civil, visto que não houve uma revogação expressa, não
anos, para que fosse possível dissolver o casamento. há mais qualquer aplicação no ordenamento jurídico, de modo que,
se as pessoas que estejam separadas judicialmente após a mudança
ocorrida queiram se divorciar, não ocorrerá mais a conversão da se-
paração em divórcio, mas, sim, o divórcio propriamente dito.
3 O DIVÓRCIO COM BASE NA EMENDA Nessa perspectiva, entende-se que o ocorrido de fato foi uma revo-
CONSTITUCIONAL N. 66/2010 gação tácita da separação judicial, devendo, a partir daquela, todas
as normas infraconstitucionais se adequarem ao dispositivo consti-
tucional acerca do assunto, entre elas diversos institutos do Direito
A Emenda Constitucional n. 66/2010, também denominada Emenda de Família, inclusive no que diz respeito aos alimentos.
do Divórcio, modificou a redação original do art. 226, § 6º, da Lei
No contexto do divórcio, deve-se ressaltar que a extinção do pres- Com isso, pode-se perceber que se deve respeitar a autonomia das
suposto “culpa” na decretação daquele e dos alimentos dele advin- pessoas nas decisões tomadas no decorrer de suas vidas. Sendo assim,
dos, portanto, tem como uma das finalidades diminuir a interferên- não cabe ao Estado opinar sobre algo que diz respeito apenas a elas.
cia do Estado no âmbito familiar, resguardando, assim, o direito à No mesmo diapasão, não se pode restringir o recebimento de alimen-
intimidade e à privacidade do casal em litígio, não sendo mais neces- tos por aquele que esteja em necessidade, em virtude de garantir o
sário expor os motivos do rompimento matrimonial em juízo. cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana, garan-
tindo-se, assim, pelo menos, o mínimo necessário para sobreviver.
NOTAS
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Anderson Cavichioli
Servidor do Ministério Público da União, graduado pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO
São elementos que configuram a responsabilidade civil: a) a conduta O valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo bá-
ilícita, comissiva ou omissiva; b) o dano e c) o nexo de causalidade, sico e informador de todo o ordenamento jurídico e vem expresso
que estabelece o liame entre os dois primeiros. no art. 1º, III, do Texto Maior.
A questão que se põe no presente estudo é saber se é possível a Para Flávia Piovesan (2008, p. 52):
configuração da responsabilidade civil na hipótese de abandono
afetivo de filho e, se afirmativa a resposta, em que circunstâncias. É no valor da dignidade humana que a ordem jurídica encontra
seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto
de chegada, na tarefa da interpretação normativa. Consagra-
O instituto da responsabilidade civil não é estranho ao Direito de
se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio
Família tampouco ao instituto da filiação. a orientar o Direito Internacional e o Direito Interno.
A título exemplificativo, pode-se mencionar a ocultação de paterni- Dessa forma, o superprincípio da dignidade da pessoa humana con-
dade pela mãe, privando o pai do convívio com seu filho, ou mesmo diciona a interpretação de todo o ordenamento jurídico, principal-
recusa injustificada de reconhecimento de filho, situações que, a mente dos institutos próprios do Direito de Família, em que se dão
depender do caso concreto, podem gerar o direito à indenização. as relações mais sensíveis à natureza humana.
Acerca da responsabilidade civil no Direito de Família discorre Inacio Por essa razão, Águida Arruda Barbosa (2009, p . 2) salienta:
de Carvalho Neto (2009, p. 19):
No entanto, foi pela ótica do sentimento que o ser humano
No âmbito da família, contudo, também se desenvolvem abusos; passou a apreender as relações familiares, a partir da década de
situações anormais, que causam danos. É de Ripert a afirmação de 60, no pós-guerra, pós-nazismo, enfim, na pós-modernidade,
que o dano que ontem inclinava para o nefasto azar, hoje intenta num movimento de ampla abertura para o conhecimento, daí
encontrar seu autor, e a infactível e conformada resignação buscar fundamento na interdisciplinaridade, valorando-se o
cede espaço para a responsabilidade civil, quer pelo prejuízo afeto como bem jurídico a ser tutelado pelo Direito.
material, quer incida o dano sobre valores imateriais. [...]
Logo, não se pode excluir aprioristicamente a hipótese de responsabi- O revival ou retour des sentiments foi uma reação em
lidade civil do âmbito das relações familiares, inclusive no que diz res- prol da vivificação dos direitos humanos e dos direitos
Flávio Tartuce (2011, p. 1110) define a filiação como “a relação jurí- Daí ser possível afirmar que a vedação do tratamento discriminatório
dica existente entre ascendentes e descendentes de primeiro grau, em relação aos filhos tem sede constitucional e é ampla e absoluta.
ou seja, entre pais e filhos”.
Os princípios da dignidade da pessoa humana e o da máxima efe- O presente estudo pretende abordar a possibilidade de caracte-
tividade dos direitos fundamentais permitem concluir que o men- rização da responsabilidade civil por abandono afetivo de filho,
cionado dispositivo constitucional veda não apenas o tratamento como dito alhures.
A prova do estado de filiação ocorre, nos termos do art. 1.603 do Também é preciso definir quem são os integrantes da relação jurí-
Código Civil, pela certidão do termo de nascimento registrada no dica de filiação para que, posteriormente, seja possível definir quem
Registro Civil. pode eventualmente ser responsabilizado pelo descumprimento
dos deveres decorrentes dessa relação.
O registro de nascimento produz uma presunção de filiação quase
absoluta, pois apenas pode ser invalidado caso se prove que houve Na relação de filiação, de um lado, estarão o(s) pai(s) e/ou a(s) mãe(s).
erro ou falsidade. Com isso, a declaração do nascimento do filho é Cabe mencionar que o plural nos termos pai e mãe deve-se à refe-
irrevogável, o que igualmente se aplica aos filhos havidos fora do rência às famílias constituídas de relações homoafetivas.
casamento (Código Civil, art. 1.609).
De outro lado, figurarão os filhos, seja por vínculo biológico, seja por
Também admite o Código Civil a prova da filiação por qualquer ou- adoção, seja decorrente da afetividade.
tro meio admissível em Direito quando houver começo de prova
por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente ou Nesse ponto, é preciso delimitar se o termo “abandono de filho”,
quando existirem veementes presunções de fatos já certos (Código caracterizador de eventual responsabilidade civil, abrange apenas
Civil, art. 1.605), rol que, à evidência, não é taxativo, bastando lem- filhos menores ou, também, os maiores. Vejamos.
brar do exame pericial (DNA).
O poder familiar pressupõe a menoridade dos filhos, como eviden-
É exatamente da redação do art. 1.605 do Código Civil que a dou- cia o Código Civil em seus arts. 1.630 e 1.634, caput:
trina extrai a tese da posse de estado de filho, vale dizer, a notorie-
dade e exteriorização de uma relação paterno/materno-fraternal Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder
(CHAVES; ROSENVALD, 2001, p. 569). familiar, enquanto menores.
O papel preponderante da posse do estado de filho é conferir Portanto, com o fim da menoridade (Código Civil, art. 5º3), cessa
juridicidade a uma realidade social, pessoal e afetiva induvidosa, também o poder familiar e as atribuições e deveres dos pais com
conferindo, dessa forma, mais direito e mais vida ao Direito. relação aos filhos menores.
É reconhecida, pois, a posse do estado de filho como mecanismo de
estabelecimento de filiação, figurando ao lado das demais hipóteses Com efeito, tanto o Código Civil quanto o Estatuto da Criança e do
previstas em lei de estabelecimento do estado de filho. Adolescente reputam que o filho, ao alcançar a maioridade, atingiu
a plenitude de seu desenvolvimento, sendo capaz, por conseguinte,
A tese da posse de estado de filho serve para determinar o vínculo de de seguir seus passos independentemente do auxílio material ou
filiação por meio do comportamento dispensado no cotidiano, da afe- afetivo dos pais, não havendo falar, assim, em abandono afetivo em
tividade. Enfim, caracteriza a paternidade/maternidade socioafetiva. relação aos filhos maiores.
Deve ser observado, contudo, o prazo prescricional para o ajuiza- A disciplina normativa constante do Código Civil, em especial do
mento da demanda, dada sua natureza indenizatória e, por conse- art. 1.634 anteriormente mencionado, todavia, não traduziu o im-
guinte, patrimonial. pacto que anteriormente se fez sentir no ordenamento pátrio com
a Constituição Federal de 1988, que expressamente dispôs:
Segundo a jurisprudência5, o prazo prescricional é o previsto no ar-
tigo 206, § 3º, V, do Código Civil de 2002, ou seja, três anos conta- Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
dos da maioridade, observada, ainda, a regra de transição prevista à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
no art. 2.028 do referido diploma legal. direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
6 ATRIBUIÇÕES E DEVERES DECORRENTES
DA FILIAÇÃO: O CONTEÚDO MÍNIMO DO [...]
DEVER DE CUIDADO DOS FILHOS MENORES
§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por
adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
O instituto da filiação, vedada qualquer forma de discriminação em quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
relação aos filhos, reprise-se, impõe direitos e deveres a todos os
[...]
envolvidos na mencionada relação jurídica.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), por Com efeito, a legislação que dispõe sobre a proteção à criança e ao
seu turno, prescreve, in verbis: adolescente reclama a especial atenção que se deve dar aos seus
direitos e interesses.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção Portanto, é necessário ter em vista que a análise da legislação acerca
integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou do poder familiar deve ocorrer sob o manto do princípio da prote-
por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de
ção integral, o que significa posicionar a criança e o adolescente
lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual
e social, em condições de liberdade e de dignidade. como sujeitos de direito e não como objeto do poder familiar.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e Pertinente a lição de Paulo Lobo (2009, p. 168):
do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação
dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao A concepção da criança como pessoa em formação e sua qualidade de
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. sujeito de direitos redirecionou a primazia para si, máxime por força do
princípio constitucional da prioridade absoluta (art. 227 da Constituição)
[...] de sua dignidade, de seu respeito e convivência familiar, que não podem
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer ficar comprometidos com a separação de seus pais.
forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado,
por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais acima elencados
impõem aos pais diversos deveres e atribuições e compõem o conteúdo
[...]
mínimo do que pode ser chamado dever de cuidado dos filhos menores.
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao
respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo Trata-se, na perspectiva da criança e do adolescente como sujeito de di-
de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos
e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
reitos, de atribuir-lhes direitos que permitam seu pleno desenvolvimento
sob diversos planos: físico, mental, moral, espiritual, social e afetivo.
[...]
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado
e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em
família substituta, assegurada a convivência familiar e
comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas
dependentes de substâncias entorpecentes. 7 A RESPONSABILIDADE CIVIL DECORRENTE DE
[...]
ABANDONO AFETIVO DE FILHOS MENORES
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação
dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a Como dito anteriormente, o dever de indenizar, como um dever ju-
obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.” rídico sucessivo ou secundário, pressupõe a violação de um dever
3. Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica
XIII. A aferição do comportamento culposo não pode ser mera-
habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
mente subjetiva, mas deve ser antes de tudo objetiva, apurada
circunstancialmente. Deve-se levar em consideração situações Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:
que não caracterizam violação ao dever de cuidado (excluden-
tes de ilicitude), pois configuradoras da impossibilidade de sua I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instru-
prestação. mento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença
IV - pela colação de grau em curso de ensino superior; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressuposto,
elementos e limites do dever de indenizar por abandono
V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de afetivo. In: PEREIRA, Tânia da Silva e outro (Coord.). A
emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos comple- ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano
tos tenha economia própria. dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
4. STJ, 3ª Turma, REsp 1.218.510/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe de 3 LOBO, Paulo. Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
set. 2011.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos morais em família?
5. Nesse sentido: TJ/RS, Apelação Cível 70028673572, 7ª Câmara Cível, rel. des. Conjugalidade, parentalidade e responsabilidade Civil. In: PEREIRA,
Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, DJ, 6 out. 2009 e TJ/SP, Apela- Tânia da Silva e outro (Coord.). A ética da convivência familiar e sua
ção Cível 0060063-16.2008.8.26.0000 (994.08.060063-3), 6ª Câmara de efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
Direito Privado, rel. des. Roberto Solimene, DJe, 29 jul. 2010.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade
6. DIAS, 2005, p. 403-405. humana e a Constituição brasileira de 1988. In: NOVELINO, Marcelo
(Org). Leituras complementares de direito constitucional: direitos
humanos e direitos fundamentais. 3. ed. Salvador: JusPodium, 2008.
REFERÊNCIAS
CRUZ, Maria Luíza Póvoa. Artigos 1.596 a 1.606 CC. In: ALVES,
Leonardo Barreto Moreira (Coord. e coautor). Código das
2 AS FUNDAÇÕES NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
2.1 Conceito
Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 207), as fun- Para a verificação da natureza jurídica de uma fundação, se pública
dações “constituem um acervo de bens, que recebe personalidade ou privada, há de se perquirir pela presença de dois elementos es-
jurídica para realização de fins determinados, de interesse público, senciais, isto é, a forma de sua instituição e a atividade que tal en-
de modo permanente e estável”. tidade desempenha. Nesse diapasão, decidiu o colendo Tribunal
Superior do Trabalho:
Conforme lição de Orlando Gomes (1996, p. 192), “a fundação é
pessoa jurídica de tipo especial, pois não se forma pela associação EMENTA: RECURSO DE REVISTA. DESERÇÃO DO RECURSO
de pessoas físicas; nem é obra de um conjunto de vontades, mas de ORDINÁRIO. FUNDAÇÃO. NATUREZA JURÍDICA.
um só; é, em síntese, um patrimônio destinado a um fim”.
A natureza jurídica das fundações está diretamente relacionada
As fundações ou estabelecimentos de utilidade pública1, em nosso à forma de sua criação e às atividades que desenvolve. Embora
pensar, são universalidades de bens (universitas bonorum), dotadas ostentem, em qualquer hipótese personalidade jurídica de
de personalidade jurídica e destinadas ao cumprimento de determi- Direito Privado, serão públicas as fundações criadas diretamente
nados fins indicados pelo instituidor. por lei específica, não dedicadas à exploração de atividade
econômica, e privadas aquelas instituídas em razão de autorização
específica do Poder Público, na forma da lei. No caso concreto,
encontrando-se revelados nos autos os pressupostos necessários
2.2 Natureza jurídica ao reconhecimento da natureza pública da fundação, não
há como negar-lhe os benefícios elencados no Decreto-lei
As fundações podem ser classificadas em privadas e públicas, a de- 779/69. Recurso de revista conhecido e provido (TST, Recurso
pender, sobretudo, da forma pela qual foram instituídas e das ativi- de Revista, relator: Lelio Bentes Corrêa, data de julgamento:
dades por elas desempenhadas. 6/9/2006, 1ª Turma, data de publicação: DJ 29/9/2006).
3. Trata-se, como acentua a doutrina, de uma “norma 5. Por excesso, na medida em que, por outro lado, a
de encerramento”, que, à falta de reclamo explícito de circunstância de serem sediadas ou funcionarem no Distrito
legislação complementar, admite que leis ordinárias — qual Federal evidentemente não é bastante nem para incorporá-las
acontece, de há muito, com as de cunho processual — à Administração Pública da União - sejam elas fundações de
possam aditar novas funções às diretamente outorgadas direito privado ou fundações públicas, como as instituídas pelo
ao Ministério Público pela Constituição, desde que Distrito Federal -, nem para submetê-las à Justiça Federal.
compatíveis com as finalidades da instituição e às vedações
6. Declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 66 do Código
de que nelas se incluam “a representação judicial e a
Civil, sem prejuízo, da atribuição ao Ministério Público Federal da
consultoria jurídica das entidades públicas”.
veladura pelas fundações federais de direito público, funcionem,
V - Demarcação entre as atribuições de segmentos do ou não, no Distrito Federal ou nos eventuais Territórios.
Ministério Público — o Federal e o do Distrito Federal.
Tutela das fundações. Inconstitucionalidade da regra
questionada (§ 1º do art. 66 do Código Civil) —, quando Destarte, após a decisão emanada do Pretório Excelso, acima
encarrega o Ministério Público Federal de velar pelas transcrita, em resumo, caberá: a) aos Ministérios Públicos esta-
fundações, “se funcionarem no Distrito Federal”. duais: o velamento das fundações privadas nos respectivos limi-
tes territoriais do estado-membro; b) ao Ministério Público do
1. Não obstante reserve à União organizá-lo e mantê-
Distrito Federal: velar pelas fundações particulares localizadas
lo — é do sistema da Constituição mesma que se infere a
no Distrito Federal ou nos territórios federais eventualmente
identidade substancial da esfera de atribuições do Ministério
Público do Distrito Federal àquelas confiadas ao MP dos criados; e c) ao Ministério Público Federal: a veladura pelas fun-
Estados, que, à semelhança do que ocorre com o Poder dações federais de direito público, funcionem, ou não, no Distrito
Judiciário, se apura por exclusão das correspondentes ao Federal ou nos territórios.
Ministério Público Federal, ao do Trabalho e ao Militar.
h. visitar, sempre que entender necessário e ao menos uma vez por b. as fundações podem ser classificadas em privadas e públicas, a
ano, as instalações das fundações sob velamento; depender da forma pela qual foram instituídas e das atividades por
elas desempenhadas;
i. manifestar-se acerca da necessidade de alienação, permuta ou
gravame de bens integrantes do acervo patrimonial da fundação; c. as fundações particulares, instituídas por pessoas físicas, por ato
inter vivos (escritura pública) ou de última vontade (causa mortis
j. elaborar, em caso de testamento ou em razão de omissão das — testamento), são pessoas jurídicas de direito privado. As funda-
pessoas a tanto legitimadas, o estatuto da fundação bem como ções públicas, criadas mediante autorização legislativa, são pesso-
realizar as reformas estatutárias supervenientes em decorrência as jurídicas de direito público. Ambas desempenham atividades de
de modificação legislativa ou no interesse da própria entidade; relevante caráter social;
g. duas são as formas pelas quais uma fundação poderá vir a ser ex-
1. As fundações são denominadas de “estabelecimentos de utilidade pública” no
tinta: I) primeira forma: quando vencer o prazo de sua existência sistema jurídico francês.
(fundações instituídas por prazo determinado); e II) segunda for-
ma: quando se tornar ilícita, impossível ou inútil a sua finalidade; 2. As fundações privadas são criadas por particulares e estão reguladas pelos
arts. 62 a 69 do Código Civil.
h. o velador, isto é, quem fiscaliza ou vigia as fundações de direito
3. As fundações públicas não são regidas pelo Código Civil, mas por normas
privado no Brasil desde o nascedouro é o Ministério Público;
próprias de Direito Administrativo.
i. incumbe aos Ministérios Públicos estaduais o velamento das fun- 4. DINIZ, 2011, p. 271.
dações privadas nos respectivos limites territoriais do estado-
-membro; 5. Se insuficientes para constituir a fundação, conforme reza o art. 63 do Código
Civil, os bens a ela destinados serão, se de outro modo não dispuser o institui-
dor, incorporados em outra entidade fundacional que se proponha a fim igual
j. cabe ao MPDFT velar pelas fundações privadas localizadas no Dis-
ou semelhante.
trito Federal e, uma vez criados, nos territórios federais;
6. O estatuto da fundação é uma espécie de lei orgânica da pessoa jurídica. Ele
k. é obrigação do Ministério Público Federal a veladura pelas fun- servirá para orientar o funcionamento da entidade.
dações federais, funcionem, ou não, no Distrito Federal ou nos
territórios federais; 7. Aqueles a quem o instituidor cometer a aplicação do patrimônio, em tendo
ciência do encargo, formularão logo, de acordo com as suas bases (art. 62), o
estatuto da fundação projetada, submetendo-o, em seguida, à aprovação da
l. a função de velamento do Curador de Fundações consiste, dentre autoridade competente, com recurso ao juiz (CC, art. 65, caput). Se o estatuto
outras atividades, na análise dos atos institutivos, na sugestão de
9. O registro, segundo determina o art. 46 do Código Civil, deverá conter: a) a GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil.
denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
houver; b) o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos
diretores; c) o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil
judicial e extrajudicialmente; d) se o ato constitutivo é reformável no tocante brasileiro. v.1. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
à administração, e de que modo; e) se os membros respondem, ou não, subsi-
diariamente, pelas obrigações sociais; e f) as condições de extinção da pessoa PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de
jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso. direito civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
10. BITTAR, 1994, p. 87-88. WALD, Arnold. Curso de direito civil brasileiro:
introdução e parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 1992.
11. GONÇALVES, 2007, p. 211.
12. A eventual alienação de bens das fundações, uma vez comprovada a sua
necessidade, deve ser sempre autorizada judicialmente, ouvido previamente
o Ministério Público (RT, 242:232, RF, 165:265).
REFERÊNCIAS
2 DO ABUSO DO DIREITO OU
ILICITUDE MATERIAL
Vejamos, de forma breve, o desenvolvimento dessas teorias. 2.3.2 O caráter metajurídico da teoria do abuso do direito
Mais uma vez a crítica apresentada nada acrescenta ao desenvolvi- Essa também é a crítica formulada por Coutinho de Abreu (2006,
mento da teoria do abuso. Tal concepção seria fruto do muito ultra- p. 6), para quem é “arrojado garantir a logicidade de um acto ser si-
passado positivismo jurídico dos antigos códigos liberais. multaneamente conforme a um direito subjectivo e desconforme
com o direito em geral — sendo certo que é este que prevê ou
reconhece aquele”.
Em resposta às críticas formuladas por Planiol, outro autor fran- Considera este autor [Savatier] que o acto abusivo só pode ter
cês, Louis Josserand, buscou fundamentar a aplicação autônoma lugar relativamente ao exercício daqueles direitos que estejam
da teoria por meio da diferenciação entre o direito subjetivo e o legalmente codificados e cuja natureza própria os torne susceptíveis
direito objetivo. Nesse sentido, o ato abusivo seria conforme ao de virem a prejudicar outrem — não já, porém, quanto àqueles
direito subjetivo daquele que o exerce e contrário ao direito obje- cuja natureza não permita de modo algum causar dano a terceiros,
nem quanto aos direitos de que, estando em estreita correlação
tivo, sendo este visto como ordenamento jurídico como um todo.
com a proteção das liberdades individuais (de pensamento, de
Cunhou-se, portanto, uma concepção de abuso do direito como
palavra e de publicação, de comércio, de trabalho, de circulação,
contrário ao direito objetivo.
Vejamos os comentários de Fernandes de Souza (2005, p. 30): 2.3.7 O abuso do direito como exercício em contrariedade
ao interesse ou à situação de poder ou domínio de
Josserand, a princípio também sustenta uma posição que o direito subjetivo é a expressão jurídica
objetivista, filiando-se ao ponto de vista da finalidade
social do direito subjetivo. Assim, abusa do seu direito
aquele que o exerce em desrespeito à sua finalidade e O abuso do direito como exercício em contrariedade ao interesse
espírito próprios, em contrariedade às regras sociais. Ao ou à situação de poder ou domínio de que o direito subjetivo é ex-
lado dos direitos altruístas, concedidos ao titular para pressão jurídica surge com a chamada teoria causalista do abuso de
satisfação de interesses que lhe são exteriores, vislumbra
direito. Segundo essa teoria, a tutela legislativa dos direitos estaria li-
a existência de outros tantos. Classifica-os como
gada à verificação de interesses que seriam objetos de um consenso
direitos não causados, prerrogativas de fronteiras bem
estreitas e demarcadas, relativas a direitos abstratos da comunidade social. Nesse sentido, seria abusivo o exercício de
e peremptórios, que poderiam ser exercidos de modo um determinado direito toda vez que o seu titular desrespeitasse
absoluto, e direitos de espírito egoísta, categoria composta o interesse ou a situação de poder ou de domínio de que tal direito
por prerrogativas cuja finalidade social seria mesmo a é expressão jurídica (CUNHA DE SÁ, 1973, p. 423). Seria preciso,
satisfação dos interesses pessoais do titular do direito. portanto, buscar quais seriam as causas das opções legislativas e
jurisprudenciais para a análise acerca do abuso.
Ressalte-se que, mesmo para os autores que defendem a tripartição
dos direitos subjetivos, todo e qualquer deles são instituídos pelo Em outras palavras, para superar as incongruências constantes na
legislador tendo em vista uma finalidade específica, que deverá ser concepção de abuso de direito como contrário ao direito objetivo,
observada, sob pena de configuração de ilicitude, regra também cunhou-se a ideia de que estaríamos em frente a um conflito de
aplicável aos direitos egoístas. A diferença, portanto, estaria na aná- direitos, sendo necessária a sua ponderação no caso concreto, so-
lise da finalidade de cada um dos direitos. bressaindo-se aquele mais importante.
A caracterização do abuso, portanto, dependeria dos seguintes ele- Considerando que, em grande parte dos casos, o exercício do di-
mentos: a) pessoa titular de um direito e capaz de exercê-lo; b) per- reito é gerador de danos, sem qualquer tipo de ilegitimidade, o pro-
manência nos limites objetivos traçados de forma mais ou menos blema da referida concepção seria definir quais seriam os direitos
precisa pela lei; c) apontamento numa direção contrária ao indicado mais importantes no caso concreto. Se essa prevalência é evidente
pelo espírito da lei (CUNHA DE SÁ, 1973, p. 419). em alguns casos, em uma infinidade de situações, não haveria qual-
quer critério seguro a ser aplicado, concedendo ao Estado-Juiz uma
Para Jordão, a adoção da referida teoria possui o inconveniente de discricionariedade imensa na aplicação da teoria. Ademais, nem
reduzir o problema do abuso a questões de cunho exclusivamente sempre o interesse mais elevado tem de ser o mais forte, não sendo
ideológico, além de incluir em seu âmbito uma imensidade de situ- a situação de poder o único fator para decidir sobre a prevalência
ações que antes não eram abarcadas pela teoria do abuso. Nesse de determinado interesse.
Para sustentar a autonomia do abuso do direito, Cunha de Sá (1973, Josserand, ocupando-se da questão da responsabilidade, estabelece
p. 476) estabelece, diante de um determinado comportamento, três que o dano indenizável pode decorrer de atos ilegais, atos ilícitos ou
hipóteses a serem consideradas, quais sejam: abusivos e atos excessivos. Os primeiros seriam aqueles praticados
sem direito, em afronta ao direito de outrem, o que resultaria de
[...]a) tal comportamento conforma-se quer com a estrutura do uma responsabilidade objetiva, isto é, prescindindo da análise do
direito subjetivo exercido, isto é, com a sua forma, quer com o elemento subjetivo do agente. Os atos ilícitos ou abusivos seriam o
valor normativo que lhe está inerente; b) o comportamento do exercício de um direito, porém com a finalidade de “falsear o espí-
titular é, logo em si mesmo, contrário ou disforme da própria rito da instituição” (CUNHA DE SÁ, 1973, p. 473), dependente do
estrutura jurídico-formal do direito subjetivo em causa; c) o elemento subjetivo do agente, qual seja, a culpa em sentido lato, o
comportamento preenche na sua materialidade, in actu, a forma que caracteriza a responsabilidade subjetiva. O ato excessivo, por
do direito subjetivo que se pretende exercer, mas, do mesmo sua vez, seria aquele que, embora fosse legal em si mesmo, pelo seu
passo, rebela-se contra o sentido normativo interno de tal fim, provocasse um dano anormal, rompendo o equilíbrio entre os
direito, isto é, contra o valor que lhe serve de fundamento. direitos em jogo.
Segundo os ensinamentos de Rosenvald (2007, p. 75), o desenvol- Ressalte-se que o conceito de boa-fé subjetiva é largamente utili-
vimento do conceito de boa-fé pode ser compreendido com base zado, entre outros, no direito possessório e em matéria de ausência,
na análise dos modelos romano, francês e alemão, respectivamente. situações jurídicas em que a boa-fé subjetiva interfere significativa-
O primeiro, ainda segundo o autor, possuía como característica um mente em suas consequências.
4 CONCLUSÃO
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos PLANIOL. Marcel. Traité élémentaire de droit civil. Paris: F. Pichon, 1903.
civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
QUEIROGA, Antônio Elias de. Responsabilidade
CARPENA, Heloisa. A parte geral do novo Código Civil. Estudos na civil e o novo Código Civil. São Paulo: 2007.
perspectiva civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2007.
civil. 6. ed., rev., aum. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.
STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual.
COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel. Do abuso de Direito São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
— Ensaio de um critério em direito civil e nas deliberações
sociais. Coimbra: Almedina, 1983 (reimpresso em 2006).