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BOLSONARISMO E
“CAPITALISMO DE FRONTEIRA”
Daniel Cunha1
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mundo, conforme Wallerstein (1974, 88-9): “O cultivo de açúcar começou nas ilhas mediterrâneas, mais
tarde avançou para as ilhas do Atlântico, e então cruzou o Atlântico em direção ao Brasil e às Índias
Ocidentais. A escravidão seguiu o açúcar. À medida que se moveu, a composição étnica da classe dos
escravos foi transformada. Mas por que africanos como os novos escravos? Por causa da exaustão da
oferta de trabalhadores autóctones das regiões das plantações, porque a Europa precisava de uma fonte
de força de trabalho de uma região razoavelmente populosa que fosse acessível e relativamente próxima
da região do seu uso. Mas ela tinha de vir de uma região externa à economia-mundo, de maneira que a
Europa não tivesse que preocupar-se com as consequências econômicas da remoção de mão-de-obra em
larga escala na forma de escravos da região de reprodução. Coube à África Ocidental preencher melhor
esses requisitos” (tradução minha).
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Se avançarmos até o século XXI, vivemos sob aquilo que Moishe Postone
chamou de “anacronismo do valor”.5 Como antecipado por Marx nos Grundrisse, a
composição orgânica do capital atinge tal grau que o valor ou tempo de trabalho
socialmente necessário passa a ser uma base mesquinha para a medição da riqueza
material.6 Trata-se do limite absoluto do modo de produção capitalista, que se desenrola
enquanto processo de crise cujos efeitos vão do desemprego estrutural à favelização
mundial, da financeirização ao asselvajamento do patriarcado, do reforço do racismo
estrutural ao agravamento da crise ecológica.7 Robert Kurz localizou esse “ponto de
viragem” na “revolução microeletrônica” a partir dos anos 70, quando as racionalizações
dos sistemas produtivos (automatização computadorizada etc.) começam a eliminar
mais trabalho vivo do que o gerado pela expansão da do sistema.8 Esse “ponto de
viragem” foi marcado por uma constelação de eventos, como o colapso de Bretton
Woods, a queda do muro de Berlim e dos regimes do Leste, a crise de dívida nos países
do Terceiro Mundo. Ocorre, se Kurz está certo, que neste ponto a “modernização”
4 Moore (2015).
5 Postone (2019), nesta edição da Sinal de Menos.
6 No célebre “fragmento sobre as máquinas”: Marx (2011/1858), 940-ss.
7 Sobre o asselvajamento do patriarcado, elemento gritante do bolsonarismo, ver Scholz (2017). Scholz
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brasileira (e dos países do “Terceiro Mundo” em geral) ainda estava incompleta. Trata-
se do “colapso da modernização”, o fim dos projetos de “modernização retardatária”,
geralmente impulsionados por ditaduras que conduzem o desenvolvimento das forças
produtivas com mão-de-ferro. Desde então, temos uma sociedade “pós-catastrófica” em
uma economia-mundo capitalista que passa a girar em falso. 9 “Pós-catastrófica” e
apenas parcialmente modernizada, frise-se, não tendo uma completa formação de
classes, instituições e democracia de massas como nos países centrais; nem o
“proletariado” e tampouco o “cidadão” foram aqui plenamente acumulados. Racismo,
violência estrutural exterminista, mandonismo e capricho anti-republicano (para além
de suas formas militaristas mais óbvias, como por exemplo no Judiciário e no Ministério
Público), permanecem não como meros “preconceitos” ou “privilégios” idiossincráticos,
mas como elementos estruturantes de uma sociedade escravista de fronteira apenas
parcialmente superados.
9 Kurz (1992)
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de Menos (2013).
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14 A sabotagem do PSDB foi surpreendentemente admita por Tasso Gereissati em entrevista ao jornal O
Estado de São Paulo. Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,nosso-grande-
erro-foi-ter-entrado-no-governo-temer,70002500097. Em artigo publicado em 2004, o juiz Moro
escreveu: “A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento,
não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes.”
Ele também defendeu as “delações premiadas”, incluindo o uso de táticas de desinformação contra os
acusados e o uso dos meios de comunicação de massa para revelar informações durante o processo,
antecipando a sua decisão de “vazar” ilegalmente a conversa entre a então presidente Dilma Rousseff e
Lula em 2016. Ver Moro (2004).
15 Ver Jiménez (2018).
16 Ver Araújo (2017) e minha crítica no adendo a este texto.
17 Cf. Botelho (2018).
18 Sobre liberais escravistas, ver Bosi (1988) e Schwarz (2000/1977).
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https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/04/19/Quais-%C3%A1reas-ind%C3%ADgenas-as-
mineradoras-querem-explorar. Uma consequência importante desse impulse de expansão fronteiriça é
a pressão sobre a Floresta Amazônica, prejudicando a biodiversidade e arriscando o colapso da floresta
oriental se for atingido um ponto de não-retorno (tipping point) que provocará a conversão da floresta
em savana e a liberação de enorme quantidade de carbono à atomosfera. Isso configura uma pressão
adicional nos ciclos biogeoquímicos planetários, já for a de controle. Ver Lovejoy e Nobre (2018) e Cunha
(2015).
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assassinadas no campo em conflitos por terra ou ambientais.24 Junto com a favela, onde
milhares são assassinados todos os anos, esse é o lugar da milícia no “capitalismo de
fronteira”. Também neste aspecto, o bolsonarismo se diferencia da versão brasileira do
movimento fascista histórico (integralismo), que em seu projeto de “nação” imaginária
buscava “incluir” negros e indígenas (devidamente “evangelizados”), inclusive utilizando
como saudação oficial o tupi “Anauê”.25
***
A indicação de Ernesto Araújo como futuro chanceler por Jair Bolsonaro trouxe à
luz um debate que estava até então sendo feito implicitamente: a questão do novo
nacionalismo de extrema-direita liderado internacionalmente por figuras como Steve
Bannon.27 Araújo parece ser uma versão subalterna dessa Internacional neonacionalista,
https://blogdaconsequencia.com/2018/11/27/comunidade-e-nacionalismo-na-era-da-crise-do-valor/
27 Ver Rossi (2018) e Fernandes (2018).
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33 Marx (2013/1867), 207 (tradução modificada para preservar a continuidade entre sachliche e Sache).
34 Convém lembrar que no pensamento dialético, a conclusão do modo de investigação (capítulo sobre o
valor nos Grundrisse) abre o modo de exposição (primeiro capítulo d’O Capital). O capítulo de abertura
de O Capital, assim, ao invés de ser lido como um preâmbulo do que vem a seguir, como faz a maior
parte dos leitores marxistas tradicionais, deveria ser lido como uma conclusão, plenamente
compreensível apenas em uma segunda leitura do volume.
35 Ver Jappe (2014); Colletti (1992/1975)
36 Marx (2007), 37. Ver também Sobre a questão judaica (Marx (2010)). Para uma introdução da noção
Adorno, Marcuse) e no jovem Lukács da História e consciência de classe etc., que Araújo parece
identificar com um “marxismo cultural” divorciado da crítica da mercadoria. Já em Gramsci essa crítica
da mercadoria não parece presente. Ver Bösch (2015).
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Lembrando que, para Adorno, o antissemitismo tem caráter funcional e independência relativa do
objeto. Ver Catalani (2018) sobre o anticomunismo bolsonarista como estruturalmente antissemita.
Ademais, se há uma “Internacional” ativa hoje, é a dos neonacionalistas comandada por Steve Bannon.
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46 Postone (2019).
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