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Como compreender, e resistir, o bolsonarismo gay?

Gustavo Hessmann Dalaqua 1

Como é possível compreender o bolsonarismo gay? O que leva um gay a apoiar um


político homofóbico? Desde já, devo alertar que, ao investigar essa questão, emprego uma
abordagem normativa, e não neutra, pois parto da norma de que, em uma democracia, todos
os cidadãos devem – independentemente de classe social, raça, religião, origem geográfica,
gênero ou sexualidade – ser igualmente valorizados. A democracia, enquanto regime calcado
no princípio do igual valor dos cidadãos, vai contra a existência de toda prática opressiva que
inferioriza alguém por conta de sua raça, gênero, classe etc.

Devo também esclarecer de antemão que minha resposta à questão baseia-se no


conhecimento que obtive a partir dos gays bolsonaristas que conheci pessoalmente. Não
tenho a pretensão de afirmar que minha resposta vale para todos os LGBTQ+ que apoiam
Bolsonaro, até porque não travei contato íntimo com bissexuais ou transexuais bolsonaristas.
Mesmo assim, suspeito que a resposta que elaboro a partir dos casos individuais que conheci
ajuda a compreender um dos motivos pelos quais alguns membros de grupos subalternizados
– como, por exemplo, negras e negros, indígenas, familiares de criminosos, dentre outros –
acabaram por apoiar um adepto de discursos que os oprimem. Tal suspeita ganha
plausibilidade uma vez que observamos que as conclusões inferidas a partir de minha
experiência pessoal vão ao encontro das explicações, oferecidas por dois grandes pensadores
do século XX, de por que alguns membros de grupos oprimidos apoiam aqueles que os
oprimem.

1
É doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e professor de filosofia na Universidade Estadual do
Paraná (Unespar). Participa do Coletivo Paulo Freire, projeto de extensão do curso de filosofia da Unespar que
organiza círculos de cultura. Este manuscrito foi publicado, em dezembro de 2019, na revista HHMagazine:
Humanidades em Rede (cf. https://hhmagazine.com.br/como-compreender-e-resistir-o-bolsonarismo-gay/).

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Minha hipótese é a de que, ao explicar como o oprimido transforma-se em
perpetuador ativo de sua própria opressão, Paulo Freire e Augusto Boal nos ajudam a
entender o bolsonarismo gay. Lidos em conjunto, os dois autores nos oferecem recursos para
resistir o fenômeno que o corrente texto se propõe a analisar. O itálico na frase precedente
serve para destacar o duplo aspecto da questão elencada em nosso título. Nosso objetivo é
não só compreender como também sugerir meios de resistência ao bolsonarismo gay.

Presente em quase todas as obras de Freire, o tema da internalização da opressão


consta em um dos primeiros livros do autor, Educação como prática da liberdade. No
“Esclarecimento” com que abre a obra, Freire (2017a, p. 53) afirma que a opressão incute
nos oprimidos uma “sombra” que bloqueia o advento da liberdade. A metáfora da “sombra”
seria utilizada por Freire ao longo de toda a vida. Ao elaborá-la, Freire visava realçar o
mecanismo psíquico de internalização da opressão que explica por que grupos
subalternizados acabam por apoiar aqueles que os oprimem. A “sombra” denota a introjeção
dos discursos hierarquizantes, inventados pelos opressores, que cumprem duas funções
cruciais para a sustentação de uma sociedade opressora.

Em primeiro lugar, a “sombra” torna mais fácil para o opressor agir a favor da
opressão, pois fornece uma narrativa que justifica seus privilégios e que o torna insensível à
injustiça sofrida pelo oprimido. É muito mais fácil para uma pessoa rica, por exemplo, não
se sensibilizar ao ver um sem-teto quando ela endossa o discurso da meritocracia, segundo o
qual a culpa da pobreza é dos próprios pobres (que são preguiçosos, viciados etc.) e segundo
o qual a riqueza é fruto do mérito, quer dizer, do trabalho árduo. Outrossim, é também mais
fácil para um heterossexual agir a favor da opressão homofóbica quando ele introjetou o
discurso segundo o qual os homossexuais são inferiores porque constituem uma aberração.

Antes de passar em revista o segundo aspecto da “sombra” que é indispensável para


a sobrevivência de um regime opressor, cabe destacar que, na esteira de Freire, não
entendemos ser possível agir de maneira indiferente à opressão. Quem se diz indiferente à

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pobreza ou à homofobia – para retomar os exemplos do parágrafo anterior –, em verdade,
contribui para que esses dois eixos de opressão continuem vigentes. Na sociedade opressora
em que vivemos, não agir contra a homofobia ou a pobreza, na prática, equivale a apoiá-las.

Em segundo lugar, a “sombra” contribui para a manutenção da opressão porque


dociliza os oprimidos e minimiza a possibilidade de revolta. Ao internalizarem o discurso de
que a pobreza se deve a falhas pessoais, os pobres tornam-se menos resistentes à opressão
social. É por mérito próprio que o rico desfruta de privilégios que eles, os pobres preguiçosos,
não têm. De maneira análoga, ao comprar o discurso de que seriam inferiores perante os
heterossexuais, os homossexuais se conformam à subalternidade social e tendem a não
resistir à opressão homofóbica. Não só tendem a não resistir como, pior ainda, tornam-se
cúmplices e perpetuadores ativos da homofobia.

Segundo Freire, a internalização da opressão ocasionada pela “sombra” coloniza o


desejo do oprimido, no sentido em que o faz querer ser como o opressor. A “sombra” garante
que as emoções e os desejos dos oprimidos sejam manipulados de modo a fazê-los aceitar a
opressão como algo natural – no limite, garante inclusive que eles sintam prazer com a
opressão, destacando sua conformidade aos padrões que os subjugam como uma insígnia de
superioridade e honra. Dessa maneira, a “sombra” cobre de grinaldas os grilhões da opressão
e mascara a dominação que pesa sobre os oprimidos.

Para ilustrar a internalização da opressão provocada pela “sombra”, Freire (2017b, p.


45) menciona o caso de camponeses pobres que desejam que a terra seja redistribuída porque
ambicionam “tornar-se proprietários ou, mais precisamente, patrões de novos empregados”.
Os camponeses pobres, assim como todo grupo oprimido, passaram a vida inteira ouvindo,
sob as formas mais diversas, que o opressor encarnava um tipo “superior” de ser humano.
Portanto, não surpreende que sintam “uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus
padrões de vida. Participar desses padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua
alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor” (ibid., p. 68). Quando se encontram
sob o jugo da “sombra”, os camponeses pobres desejam redistribuir a terra não porque
almejam acabar com a opressão, mas sim porque querem tornar-se, eles próprios, opressores.

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Tendo reconstruído brevemente os apontamentos de Freire sobre a internalização da
opressão, vejamos como eles nos auxiliam a compreender o que leva um gay a se tornar
bolsonarista. Em primeiro lugar, Freire nos leva a perceber que a conformidade do oprimido
às métricas inventadas pelos opressores gera benefícios psíquicos. Na medida em que segue
as regras de conduta observadas pelos homens heterossexuais, o gay bolsonarista se sente
“superior” perante os gays “afeminados”. Em segundo lugar, Freire nos ajuda a perceber que,
além de aumentar sua autoestima, a “sombra” tende a tornar o oprimido insensível ao
sofrimento dos demais oprimidos. Visto que concorda com a ideia de que os gays seriam
“inferiores”, o gay bolsonarista não considera problemático a homofobia que se dirige
àqueles gays que desrespeitam as regras de conduta estabelecidas pelo opressor.

O conforto psicológico propiciado pela “sombra” é, portanto, duplo. A presença da


“sombra” na psique do gay bolsonarista, de um lado, o permite se sentir “superior” aos
demais gays na medida em que ele se porta como um homem heterossexual viril – tipo de
homem que, não raramente, costuma figurar entre aqueles que espancam homossexuais – e,
de outro, o poupa do sofrimento que sentiria acaso se identificasse com os vários casos de
agressão provocados pela homofobia. Semelhante conforto psíquico, contudo, tem seu preço.
Se o oprimido apoia o discurso opressor e não trabalha para combatê-lo, cedo ou tarde esse
discurso se voltará contra ele. Os agressores homofóbicos não distinguem, dentre os gays, os
que são bolsonaristas dos que não são.

Freire descreve a expulsão da “sombra” do opressor, alojada na psique do oprimido,


como um “parto doloroso” (ibid., p. 48). Doí para o oprimido se identificar como membro de
um grupo oprimido. Doí saber que, para um número considerável de pessoas, ele faz parte
de um grupo portador de uma “inferioridade ‘ontológica’” – i.e., de uma inferioridade inscrita
em seu próprio ser – que justifica seu confinamento a uma posição social subalterna, ou ainda,
seu extermínio (ibid., p. 189). Não causa surpresa, portanto, que os relatos de suicídio e
sofrimento psíquico entre os gays não bolsonaristas tenham aumentado após a eleição de
Bolsonaro. Tenho um amigo abertamente gay em Curitiba que, alguns dias depois de
Bolsonaro ter obtido, naquela cidade, 62% dos votos no primeiro turno, foi espancado na rua
por um grupo de homofóbicos. Poucos meses depois, ele tentou cometer suicídio. Ele me

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disse que o caso de agressão que sofreu foi um dos fatores causadores da depressão que
culminou em sua tentativa de suicídio.

II

Embora o tema da internalização da opressão apareça já em um dos primeiros


trabalhos de Boal – com efeito, em Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, Boal
(1975) investigara o modo como a opressão, ao ser internalizada, constrangia o
desenvolvimento corporal dos oprimidos –, é sobretudo em O arco-íris do desejo que Boal
explora o tema a contento. Como o título do livro deixa entrever, Boal (1996, p. 115)
considera que o desejo humano é, tal qual um arco-íris, “caleidoscópico”. Dotado de uma
riqueza infinita, o desejo humano possui inúmeros matizes. Contudo, por causa da
internalização da opressão, essa riqueza do desejo humano acabou sendo atrofiada. Seguindo
a esteira de Freire, Boal afirma que a opressão se perpetua não só por meios materiais (como
exploração econômica e violência física), mas também por mecanismos psíquicos, tal qual a
colonização do desejo. A luta contra a opressão e em prol da liberdade exige, portanto,
expurgar do oprimido a opressão internalizada que o impede de conhecer plenamente seus
desejos e a si próprio.
Ao passo que Freire tematiza a internalização da opressão ao apresentar a metáfora
da sombra, Boal investiga o mesmo fenômeno quando introduz a metáfora do “tira na cabeça”
(ibid., p. 23). Como o nome escolhido pelo autor já insinua, o “tira na cabeça” denota o
cerceamento da liberdade decorrente do fato de o oprimido hospedar, dentro de si, discursos
opressores. Boal explica que o processo por meio do qual os “tiras” opressores vão se
formando em nossa cabeça é como uma “osmose”, no sentido em que ocorre constante e
involuntariamente (ibid., p. 54). A osmose é uma reação psicológica quase que automática
de qualquer um que vive em uma sociedade opressora – isto é, em uma sociedade em que
nem todos os grupos sociais são tratados de maneira equânime porque alguns são
hierarquizados como “superiores” a outros. Segundo Boal, a osmose se produz “em toda
parte, em todas as células da vida social” (ibidem). Todavia, diferentes tipos de opressões
proliferam em diferentes âmbitos sociais. Ciente disto, Boal convida os sujeitos que sofrem

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um tipo similar de opressão a criar núcleos de interação nos quais possam, em conjunto,
revisitar o passado de cada um de modo a identificar os lugares e as ocasiões em que um
certo tipo de osmose ocorreu entre eles. Mediante uso da técnica do arco-íris do desejo, os
núcleos conseguem combater as opressões internalizadas de seus participantes.

O modo como os núcleos criados por Boal visam reverter a internalização da opressão
lembra os “círculos de cultura” propostos por Freire (2017b, p. 99). Na descrição de Freire,
os círculos de cultura oferecem, sobretudo, espaços onde os oprimidos conseguem expurgar
a “sombra” do opressor, alojada dentro deles, por meio do debate democrático. Tanto em
Boal quanto em Freire, o que se objetiva é a formação de subjetividades democráticas – vale
dizer, de mentalidades e sensibilidades que não mais hierarquizam os cidadãos em grupos
“superiores” e “inferiores”. 2 Essa formação, como dissemos, corresponde a um longo e
doloroso “parto”. A passagem de uma subjetividade opressora para outra democrática está
longe de ser uma tarefa fácil.

Apropriando-se do vocabulário cristão, Freire (2002, p. 125) afirma que o parto


doloroso por meio do qual o oprimido consegue expurgar a “sombra” de dentro de si
caracteriza-se como uma “Páscoa”. A passagem de uma subjetividade autoritária para uma
subjetividade democrática “exige uma profunda ressurreição” (Freire, 1980, p. 60). A
reversão da internalização da opressão não é um processo persuasivo que se dá por vias
estritamente intelectuais. Não se trata, aqui, de uma substituição de ideias que ocorre entre
interlocutores que, após participarem de uma deliberação racional, chegariam à conclusão de
que sua perspectiva do mundo estaria equivocada. A expulsão da “sombra” requer, em vez
disso, uma remodelação do sujeito que mobiliza e transforma tanto seu intelecto quanto sua
sensibilidade. A reversão do bolsonarismo gay demanda não apenas pensar de outra maneira,
mas também deixar-se afetar de outra maneira. Nesse sentido, o desmantelamento da
opressão internalizada assemelha-se mais a um processo de conversão do que a uma
persuasão racional.

2
Para uma explanação mais detida de como a luta contra a opressão, segundo Freire e Boal, visa à formação de
subjetividades democráticas, cf. Dalaqua (2018 e 2019).

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Esse ponto é ressaltado em um dos relatos incluídos no vídeo “Homossexuais que
apoiam Bolsonaro”, disponível no YouTube. No último depoimento do vídeo, uma jovem
bolsonarista inicia seu relato declarando: “Sou homossexual, mas se pudesse, não seria. Por
quê? Porque é uma vergonha”. A jovem corrobora, assim, a asserção de Boal e Freire. É por
ter internalizado a visão, criada pelo opressor, de que os homossexuais seriam “inferiores”
que a jovem acaba por tornar-se cúmplice de um discurso que a oprime.

Na continuação do relato, a jovem pede àqueles que tentam dissuadi-la de apoiar


Bolsonaro a desistir de “mudar sua cabeça”. Segundo ela, tentar fazer com que um gay
bolsonarista deixe de apoiar Bolsonaro e vote em um político como Fernando Haddad “é
como tentar convencer um umbandista a virar evangélico”. A jovem reforça, assim, a tese de
que a passagem de uma subjetividade bolsonarista em prol de outra mais democrática é
análoga ao processo de conversão religiosa. Enquanto regime calcado na igualdade de todos
os cidadãos, a democracia reclama uma espécie de religião civil de acordo com a qual todos
os cidadãos – seja qual for sua classe, raça, sexualidade etc. – são portadores de igual valor.
Ao exortar os oprimidos a participar de um debate público, norteado pelo princípio
democrático do igual valor de todos os cidadãos, os círculos de cultura freireanos e os núcleos
boalinos os permitem reverter os discursos opressivos que eles internalizaram e arquitetar
estratégias subversivas contra a opressão. Além de nos ajudarem a compreender de que
maneira um gay pode vir a se tornar bolsonarista, Freire e Boal nos sugerem medidas que
indicam um meio de resistência ao bolsonarismo gay.

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Referências

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro.


Civilização Brasileira. 1975.

BOAL, Augusto. O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1996.

DALAQUA, Gustavo H. Democratic freedom as resistance against self-hatred, epistemic


injustice, and oppression in Paulo Freire's critical theory. Constellations, 2018.
https://doi.org/10.1111/1467-8675.12395

DALAQUA, Gustavo Hessmann. Injustiça estética. Revista Limiar, v. 6, n. 12, p. 101-129,


2019.

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao


pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes, 1980.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e Terra,
2002.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e
Terra, 2017a.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e Terra, 2017b.

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