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Antropologia

Aldemir Barros da Silva Júnior


José Adelson Lopes Peixoto
PLANO DE ENSINO DE DISCIPLINA

1. Disciplina: Antropologia
Carga Horária Total [ 80 ]
Modalidade: Presencial [X] A Distância [ x ] Semipresencial [ ]

nº de horas junto à disciplina 60 presenciais e 20 a distância

3. Carga Horária Semanal [ 20 ] Divididas em:

Aulas Teóricas [ 10 ]
Aulas Teórico-Práticas [ 05 ]
Aulas Práticas [ 05 ]
4. Súmula da disciplina e Conteúdo Programático

A constituição da Antropologia como disciplina e seu campo de estudo. Introdução ao


conceito antropológico de cultura. O conhecimento antropológico como instrumento
jurídico. Os Povos indígenas do Nordeste e a antropologia. A crítica ao etnocentrismo e o
relativismo cultural.
Questões teórico-metodológicas: Etnografia. Autoetnografia. Trabalho de Campo.
Observação Participante. Descrição Densa.

5. Objetivos da Disciplina

1. Conhecer e aplicar conceitos antropológicos;


2. Entender a antropologia enquanto campo de disputa jurídica para os Povos
Indígenas;
3. Desenvolver crítica sobre a construção da imagem dos Povos Indígenas do
Nordeste;
4. Produzir pesquisa etnográfica refletindo sobre a realidade em que o aluno está
inserido;

6. Metodologia de Ensino

1 - Aulas expositivas dialogadas;


2 - Seminários;
3 - Leitura dirigida;
4 - Oficinas de elaboração de roteiro para pesquisa etnográfica;
5- Retorno ao corpo discente dos materiais produzidos, acompanhados de recomendações,
sugestões e comentários do professor.
7. Critérios de Avaliação

A avaliação será realizada através da observância dos seguintes critérios por parte
dos alunos: 1 - apresentação e discussão de textos nos seminários; 2 - participação em
aula, nos seminários e nas oficinas; 3 - frequência; 4 - confecção de exercício de
produção textual sobre conteúdos desenvolvidos; 5 - produção de Etnografia.

8. Bibliografia Básica
La Platine, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14º edição. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
Oliveira, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogi: olhar, ouvir, escrever.
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 1996, V. 39, Nº1.

Outras referências:
ARRUTI, João Maurício Andion. Morte e vida no Nordeste Indígena: emergência étnica
como fenômeno regional. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, v. I, nº 15, 1995.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas...
VELHO, Gilberto. “Observando o familiar”. In: NUNES, Edson de Oliveira (org.). A
Aventura Sociológica. Rio, Zahar, 1978.
OLIVEIRA, João Pacheco de Oliveira. “Uma etnologia dos índios misturados?”
situação colonial, territorialidade e fluxos culturais. MANA – Revista de Antropologia.
Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1993. pp. 47-77.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Os índios se o mundo dos brancos. São Paulo:
Unicamp, 1996.
RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil
moderno. São Paulo: Companhia da Letras, 1996.
APOSTILA
Capı́tulo 4

Os Pais Fundadores Da
Etnografia:

Boas e Malinowski
Se existiam no final do século XIX homens (geralmente missionários e ad-
ministradores) que possuı́am um excelente conhecimento das populacões no
meio das quais viviam – é o caso de Codrington, que publica em 1891 uma
obra sobre os melanésios, de Spencer e Gillen, que relatam em 1899 suas
observações sobre os aborı́gines australianos, ou de Junod, que escreve A
Vida de uma Tribo Sul-africana (1898) – a etnografia propriamente dita só
começa a existir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisador
deve ele mesmo efetuar no campo sua própria pesquisa, e que esse trabalho
de observação direta é parte integrante da pesquisa.

A revolução que ocorrerá da nossa disciplina durante o primeiro terco do


século XX é considerável: ela põe fim à reparticão das tarefas, até então
habitualmente divididas entre o observador (viajante, missionário, adminis-
trador) entregue ao papel subalterno de provedor de informações, e o pes-
quisador erudito, que, tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa e
interpreta – atividade nobre! – essas informações. O pesquisador compre-
ende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho
para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais
como informadores a serem questionados, e sim como hóspedes que o rece-
bem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não
apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua l´ıngua e a pensar
nessa lı́ngua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se,
como podemos ver, de condições de estudo radicalmente diferentes das que

57
conheciam o viajante do século XVIII e até o missionário ou o administrador
do século XIX, residindo geralmente fora da sociedade indı́gena e obtendo
informações por intermédio de tradutores e informadores: este último termo
merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez
uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinowski, ”ao vivo”, em uma
”natureza imensa, virgem e aberta”.

Esse trabalho de campo, como o chamamos ainda hoje, longe de ser visto
como um modo de conhecimento secundário servindo para ilustrar uma tese,
é .onsiderado como a própria fonte de pesquisa. Orientou a partir desse
momento a abordagem da nova geracão de etnólogos que, desde os primei-
ros anos do século XX, realizou estadias prolongadas entre as populacões do
mundo inteiro. Em 1906 e 1908, Radcliffe-Brown estuda os habitantes das
ilhas Andaman. Em 1909 e 1910, Seligman dirige uma missão no Sudão.
Alguns anos mais tarde, Malinowski volta para a Grã-Bretanha, impregnado
do pensamento e dos sistemas de valores que lhe revelou a população de
um minúsculo arquipélago melanésio. A partir daı́, as missões de pesquisas
etnográficas e a publicação das obras que delas resultam se seguem em um
ritmo ininterrupto. Em 1901, Rivers, um dos fundadores da antropologia
inglesa, estuda os Todas da ı́ndia; após a .Primeira Guerra Mundial, Evans-
Pritchard estuda os Azandés (trad. franc. 1972) e os Nuer (trad. franc.
1968); Nadei, as Nupes da Nigéria; Fortes, os Tallensi; Margaret Mead, os
insulares da Nova Guiné, etc

Como não é possı́vel examinar, dentro dos limites deste Inibalho, a con-
tribuição desses diferentes pesquisadores na elaboracão da etnografia e da
etnologia contemporânea, dois entre eles, a meu ver os mais importantes, de-
terão nossa Hlenção: um americano de origem alemã: Franz Boas; o outro,
polonês naturalizado inglês: Bronislaw Malinowski.

4.1 BOAS (1858-1942)


Com ele assistimos a uma verdadeira virada da prática antropológica. Boas
era antes de tudo um homem de campo. Suas pesquisas, totalmente pioneiras,
iniciadas, notamo-lo, a partir dos últimos anos do século XIX (em particular
entre os Kwakiutl e os Chinook de Colúmbia Britânica), eram conduzidas de
um ponto de vista que hoje qualificarı́amos de microssociológico. No campo,
ensina Boas, tudo deve ser anotado: desde os materiais constitutivos das
4.1. BOAS (1858-1942) 59

casas até as notas das melodias cantadas pelos Esquimós, e isso detalhada-
mente, e no detalhe do detalhe. Tudo deve ser objeto da descrição mais
meticulosa, da retranscrição mais fiel (por exemplo, as diferentes versões de
um mito, ou diversos ingredientes entrando na composicão de um alimento).

Por outro lado, enquanto raramente antes dele as sociedades tinham sido
realmente consideradas em si e para si mesmas, cada uma dentre elas ad-
quire o estatuto de uma totalidade autônoma. O primeiro a formular com
seus colaboradores (cf. em particular Lowie, 1971) a cr´ıtica mais radical e
mais elaborada das noções de origem e de reconstituicão dos estágios,1 ele
mostra que um costume só tem significação se for relacionado ao contexto
particular no qual se inscreve. Claro, Morgan e, muito antes dele, Montes-
quieu tinham aberto o caminho a essa pesquisa cujo objeto é a totalidade das
relações sociais e dos elementos que a constituem. Mas a diferença é que,ia
partir de Boas, estima-se que para compreender o lugar particular ocupado
por esse costume não se pode mais confiar nos investigadores e, muito menos
nos que, da ”metrópole”, confiam neles. Apenas o antropólogo pode elaborar
uma monografia, isto é, dar conta cientificamente de uma microssociedade,
apreendida em sua totalidade e considerada em sua autonomia teórica. Pela
primeira vez, o teórico e o observador estão finalmente reunidos. Assistimos
ao nascimento de uma verdadeira etnografia profissional que não se contenta
mais em coletar materiais à maneira dos antiquários, mas procura detectar
o que faz a unidade da cultura que se expressa através desses diferentes ma-
teriais.

Por outro lado, Boas considera, e isso muito antes de Griaule, do qual fala-
remos mais adiante, que não há objeto nobre nem objeto indigno da ciência.
As piadas de um contador são tão importantes quanto a mitologia que ex-
pressa o patrimônio metafı́sico do grupo. Em especial, a maneira pela qual as
sociedades tradicionais, na voz dos mais humildes entre eles, classificam suas
atividades mentais e sociais, deve ser levada em consideração. Boas anuncia
assim a constituição do que hoje chamamos de ”etnociências”.

Finalmente, ele foi um dos primeiros a nos mostrar não apenas a importância,
mas também a necessidade, para o etnólogo, do acesso à lı́ngua da cultura
na qual trabalha. As tradições que estuda não poderiam ser-lhe traduzidas.
1
Da qual Radcliffe-Brown e Malinowski tirarão as conseqüências tec ricas: não é
mais possı́vel opor sociedades ”simples”e sociedades ”complexas”, sociedades ”inferio-
res”evoluindo para o ”superior”, sociedades ”primitivas”a caminho da ”civilização”. As
primeiras não são as formas An nraanizacões originais das quais as segundas teriam deri-
vado.
Ele próprio deve recolhê-las na lı́ngua de seus interlocutores.2

Pode parecer surpreendente, levando em conta o que foi dito, que Boas, ex-
ceto entre os profissionais da antropologia, seja praticamente desconhecido.
Isso se deve principalmente a duas razões:

1) multiplicando as comunicações e os artigos, ele nunca escreveu nenhum


livro destinado ao público erudito, e os textos que nos deixou são de uma
concisão e de um rigor ascético. Nada que anuncie, por exemplo, a emoção
que se pode sentir (como veremos logo) na leitura de um Malinowski; ou que
lembre o charme ultrapassado da prosa enfeitada de um Frazer;

2) nunca formulou uma verdadeira teoria, tão estranho era-lhe o espı́rito


de sistema; e a generalização apressada parecia-lhe o que há de mais distante
do esp´ıritocient´ıfico. Às ambições dos primeiros tempos – quero falar dos
afrescos gigantescos do século XIX, que retratam os primórdios da humani-
dade mas expressam simultaneamente os primórdios da antropologia, isto é
uma antropologia principalmente – sucedem, com ele, a modéstia e a sobri-
edade da maturidade.

De qualquer modo, a influência de Boas foi considerável. Foi um dos pri-


meiros etnógrafos. A sua preocupação de precisão na descrição dos fatos
observados, acrescentava-se a de conservacão metódica do patrimônio reco-
lhido (foi conservador do museu de Nova Iorque). Finalmente, foi, enquanto
professor, o grande pedagogo que formou a primeira geracão de antropólogos
americanos (Kroeber, Lowie, Sapir, Herskovitz, Linton. . . e, em seguida,
R. Benedict, M. Mead). Ele permanece sendo o mestre incontestado da an-
tropologia americana na primeira metade do século XX.

4.2 MALINOWSKI (1884-1942)


Malinowski dominou incontestavelmente a cena antropológica, de 1922, ano
de publicação de sua primeira obra, Os Argonautas do Pacı́fico Ocidental,
até sua morte, em 1942.
1) Se não foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiência et-
nográfica, isto é, em primeiro lugar, a viver com as populacões que estudava
2
Sobre a relação da cultura, da lı́ngua e do etnólogo, cf. particular-mente. após Boas.
Sapir (1967) e Leenhardt (1946).
e a recolher seus materiais de seus idiomas, radicalizou essa compreensão por
dentro, e para isso, procurou romper ao máximo os contatos com o mundo
europeu.

Ninguém antes dele tinha se esforçado em penetrar tanto, como ele fez
no decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, na mentali-
dade dos outros, e em compreender de dentro, por uma verdadeira busca
de despersonaliza-ção, o que sentem os homens e as mulheres que perten-
cem a uma cultura que não é nossa. Boas procurava estabelecer repertórios
exaustivos, e muitos entre seus seguidores nos Estados Unidos (Kroeber, Mur-
dock. . .) procuraram definir correlações entre o maior número possı́vel de
variáveis. Malinowski considera esse trabalho uma aberração. Convém pelo
contrário, segundo ele, conforme o primeiro exemplo que dá em seu primeiro
livro, mostrar que a partir de um único costume, ou mesmo de um único ob-
jeto (por exemplo, a canoa trobriandesa – voltaremos a isso) aparentemente
muito simples, aparece o perfil do conjunto de uma sociedade.

2) Instaurando uma ruptura com a história conjetural (a reconstituição es-


peculativa dos estágios), e também com a geografia especulativa (a teoria di-
fusionista, que tende, no inı́cio do século, a ocupar o lugar do evolucionismo,
e postula a existência de centros de difusão da cultura, a qual se transmite
por empréstimos), Malinowski considera que uma sociedade deve ser estu-
dada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo onde
a observamos. Medimos o caminho percorrido desde Frazer, que foi no en-
tanto o mestre de Malinowski. Quando perguntávamos ao primeiro por que
ele próprio não ia observar as sociedades a partir das quais tinha construı́do
sua obra, respondia: ”Deus me livre!”. Os Argonautas do Pac´ıfico Ociden-
tal, embora tenha sido editado alguns anos apenas após o fim da publicação
de O Ramo de Ouro, com um prefácio, notamo-lo, do próprio Frazer, adota
uma abordagem rigorosamente inversa: analisar de uma forma intensiva e
contı́nua uma microssociedade sem referir-se a sua história. Enquanto Frazer
procurava responder à pergunta: ”Como nossa sociedade chegou a se tornar
o que é?”; e respondia escrevendo essa ”obra épica da humanidade”que é O
Ramo de Ouro, Malinowski se pergunta o que é uma sociedade dada em si
mesma e o que a torna viável para os que a ela pertencem, observando-a no
presente através da interação dos aspectos que a constituem.

(Com Malinowski, a antropologia se torna uma ”ciência”da alteridade que


vira as costas ao empreendimento evolucionista de reconstituicão das origens
da civilização, e se dedica ao estudo das lógicas particulares caracterı́sticas de
cada cultura. O que o leitor aprende ao ler Os Argonautas é que os costumes
dos Trobriandeses, tão profundamente diferentes dos nossos, têm uma signi-
ficação e uma coerência. Não são puerilidades que testemunham de alguns
vestı́gios da humanidade, e sim sistemas lógicos perfeitamente elaborados.
Hoje, todos os etnólogos estão convencidos de que as sociedades diferentes
da nossa são sociedades humanas tanto quanto a nossa, que os homens e
mulheres que nelas vivem são adultos que se comportam diferentemente de
nós, e não primitivos”, autômatos atrasados (em todos os sentidos do termo)
que pararam em uma época distante e vivem presos a tradições estúpidas.
Mas nos anos 20 isso era propriamente revolucionário.

3) A fim de pensar essa coerência interna, Malinowski elabora uma teoria


(o funcionalismo) que tira seu modelo das ciências da natureza: o indivı́duo
sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente
como função a de satisfazer à sua maneira essas necessidades fundamen-
tais. Cada uma realiza isso elaborando instituições (econômicas, polı́ticas,
jur´ıdicas, educativas. . .), fornecendo respostas coletivas organizadas, que
constituem, cada uma a seu modo,soluções originais que permitem atender
a essas necessidades.

4) Uma outra caracterı́stica do pensamento do autor de Os Argonautas é,


ao nosso ver, sua preocupação em abrir as fronteiras disciplinares, devendo o
homem ser estudado através da tripla articulacão do social, do psicológico e
do biológico. Convém em primeiro lugar, para Malinowski, localizar a relacão
estreita do social e do biológico; o que decorre do ponto anterior, já que, para
ele, uma sociedade funcionando como um organismo, as relacões biológicas
devem ser consideradas não apenas como o modelo epistemológico que per-
mite pensar as relações sociais, e sim como o seu próprio fundamento. Além
disso, uma verdadeira ciência da sociedade implica, ou melhor, inclui o es-
tudo das motivações psicológicas, dos comportamentos, o estudo dos sonhos e
dos desejos do indivı́duo.3 E Malinowski, quanto a esse aspecto (que o separa
radicalmente, como veremos, de Durkheim), vai muito além da análise da
afetividade de seus interlocutores. Ele procura reviver nele próprio os sen-
timentos dos outros, fazendo da observacão participante uma participação
psicológica do pesquisador, que deve ”compreender e compartilhar os senti-
mentos”destes últimos ”interiorizando suas reacões emotivas”.

3
É essa vontade de alcançar o homem em todas as suas dimensões, e, notadamente,
de não dissociar o grupo do indivı́duo, que faz com que seja um dos primeiros etnólogos
a interessar-se pelas obras de Freud. Mas devemos reconhecer que ele demonstra uma
grande incompreensão da psicanálise
***

O fato de a obra (e a própria personalidade) de Malinowski ter sido provavel-


mente a mais controvertida de toda a história da antropologia (isso inclusive
quando era vivo) se deve a duas razões, ligadas ao caráter sistemático de sua
reação ao evolucionismo.

1) Os antropólogos da época vitoriana identificavam-se totalmente com a


sua sociedade, isto é, com a ”civilização industrial”, considerada como ”a
civilização”tout court, e com seus benefı́cios. Em relacão a esta. os costumes
dos povos ”primitivos”eram vistos como aberrantes. Malinowski inverte essa
relação: a antropologia supõe uma identificacão (ou, pelo menos, uma busca
de identificação) com a alteridade, não mais considerada como forma social
anterior à civilização, e sim como forma contemporânea mostrando-nos cm
sua pureza aquilo que nos faz tragicamente falta: a autenticidade. Assim
sendo, a aberração não está mais do lado das sociedades ”primitivas”e sim
do lado da sociedade ocidental (cf. pp. 50-51 deste livro os comentários de
Malinowski, que retomam o tema da idealização do selvagem).

2) Convencido de ser o fundador da antropologia cient´ıfica moderna (o que,


ao meu ver, não é totalmente falso, pois o que fez a partir dos anos 20 é
essencial), ele elabora – sobretudo durante a última parte de sua vida –
uma teoria de uma extrema rigidez, que contribuiu, em grande parte, para o
descrédito do qual ele ainda é objeto: o ”funcionalismo”. Nesta perspectiva,
as sociedades tradicionais são sociedades estáveis e sem conflitos, visando
naturalmente a um equilı́brio através de instituições capazes de satisfazer às
necessidades dos homens. Essa compreensão naturalista e marcadamente oti-
mista de uma totalidade cultural integrada, que postula que toda sociedade
é tão boa quanto pode ser, pois suas instituições estão aı́ para satisfazer a
todas as necessidades, defronta-se com duas grandes dificuldades: como ex-
plicar a mudança social? Como dar conta do disfuncionamento e da patologia
cultural?

A partir de sua própria experiência – limitada a um minúsculo arquipélago


que permanece, no inı́cio do século, relativamente afastado dos contatos in-
terculturais –, Malinowski, baseando-se no modelo do finalismo biológico,
estabelece generalizações sistemáticas que não hesita em chamar de ”leis ci-
entı́ficas da sociedade”. Além disso, esse funcionalismo ”cientı́fico”não tem
relação com a realidade da situação colonial dos anos 20, situação essa, to-
talmente ocultada. A antropologia vitoriana era a justificação do perı́odo
da conquista colonial. O discurso monográfico e a-histórico do funcionalismo
passa a ser a justificação de uma nova fase do colonialismo.

***
Apesar disso, além das crı́ticas que o próprio Malinowski contribuiu em pro-
vocar, tudo o que devemos a ele permanece ainda hoje considerável.

1) Compreendendo que o único modo de conhecimento em profundidade dos


outros é a participação a sua existência, ele inventa literalmente e é o pri-
meiro a pôr em prática a observacão participante, dando-nos o exemplo do
que deve ser o estudo intensivo de uma sociedade que nos é estranha. O fato
de efetuar uma estadia de longa duração impregnan-do-se da mentalidade
de seus hóspedes e esforçando-se para pensar em sua própria lı́ngua pode
parecer banal hoje. Não o era durante os anos 1914-1920 na Inglaterra, e
muito menos na França. Malinowski nos ensinou a olhar. Deu-nos o exemplo
daquilo que devia ser uma pesquisa de campo, que não tem mais nada a ver
com a atividade do ”investigador”questionando ”informadores”.

2) Em Os Argonautas do Pac´ıfico Ocidental, pela primeira vez, o social


deixa de ser anedótico, curiosidade exótica, descrição moralizante ou coleção
exaustiva erudita. Pois, para alcançar o homem em todas as suas dimensões,
é preciso dedicar-se à observacão de fatos sociais aparentemente minúsculos
e insignificantes, cuja significação só pode ser encontrada nas suas posicões
respectivas no interior de uma totalidade mais ampla. Assim, as canoas tro-
briandesas (das quais falamos acima) são descritas em relação ao grupo que
as fabrica e utiliza, ao ritual mágico que as consagra, às regulamentacões
que definem sua posse, etc. Algumas transportando de ilha em ilha colares
de conchas vermelhas, outras, pulseiras de conchas brancas, efetuando em
sentidos contrários percursos invariáveis, passando necessariamente de novo
por seu local de origem, Malinowski mostra que estamos frente a um pro-
cesso de troca generalizado, irredutı́vel à dimensão econômica apenas, pois
nos permite encontrar os significados polı́ticos, mágicos, religiosos, estéticos
do grupo inteiro.

Os Jardins de Coral, o segundo grande livro de Malinowski, trabalha com a


mesma abordagem. Esse ”estudo dos métodos agrı́colas e dos ritos agrários
nas ilhas Trobriand”, longe de ser uma pesquisa especializada sobre um
fenômeno agronômico dado, mostra que a agricultura dos Trobriandeses
inscreve-se na totalidade social desse povo, e toca em muitos outros aspectos
que não a agricultura.
3) Finalmente, uma das grandes qualidades de Malinowski é sua faculdade
de restituição da existência desses homens e dessas mulheres que puderam
ser conhecidos apenas através de uma relacão e de uma experiência pessoais.
Mesmo quando estuda instituições, não são nunca vistas como abstracões
reguladoras da vida de atores anônimos. Seja em Os Argonautas ou’ Os
Jardins de Coral, ele faz reviver para nós esse povo trobriandês que não po-
deremos nunca mais confundir com outras populacões ”selvagens”. O homem
nunca desaparece em proveito do sistema. Ora, essa exigência de conduzir
um projeto cientı́fico sem renunciar à sensibilidade artı́stica chama-se etno-
logia. Malinowski ensinou a muitos entre nós não apenas a olhar, mas a
escrever, restituindo às cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor. Quanto
a isso, Os Argonautas me parece exemplar. É um livro escrito num estilo
Capı́tulo 6

Introdução:

Com o trabalho efetuado pelos pais fundadores da etno-grafia – Boas, Ma-


linowski, Rivers. . . – e pelos primeiros teóricos da nova ciência do social
– Durkheim e Mauss –, podemos considerar que a antropologia entrou em
sua maturidade. O que examinaremos agora são os desenvolvimentos contem-
porâneos. Não se trata evidentemente de apresentar aqui um panorama com-
pleto desse perı́odo que cobre mais de meio século (1930-1986), tão grande é a
diversidade e a riqueza do campo antropológico explorado, e também porque
nos falta distância para fazer o balanço dos trabalhos que nos são propria-
mente contemporâneos. Contentar-nos-emos, mais modestamente, em abrir
algumas trilhas (mais próximas da trilha do que da auto-estrada) que per-
mitam destacar as tendências dominantes do pensamento e da prática dos
antropólogos de nossa época. Podemos fazer isso de três diferentes maneiras.

6.1 Campos De Investigação


A primeira via, que me recusarei a adotar por razões que começaram a ser
expostas no inı́cio desse livro, consistia em levantar as áreas de investigação
e estudar os resul tados obtidos em cada uma ou em algumas delas. O
desenvolvimento do pensamento cientı́fico implica uma diferen ciação cres-
cente dos campos do saber. A antropologia não apenas tende a progredir
por disjunção em relação à filosofia, sociologia, psicologia, história. . . (po-
dendo manter paralelamente canais e espaços de articulação e confronto),
mas avança, dentro de sua própria prática, especializando-se e instaurando
até subespecialidades.1
1
Especialidades: antropologia das tecnologias, antropologia econômica, antropologia
dos sistemas de parentesco, antropologia polı́tica, antropologia religiosa, antropologia
artı́stica, antropologia da comunicação, antropologia urbana, antropologia industrial. ..

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Se deixamos de lado essa primeira forma possı́vel de exposicão do campo
antropológico contemporâneo, é porque consideramos que uma disciplina
cientı́fica (ou que pretende sê-lo) não deva ser caracterizada por objetos
empı́ricos já constituı́dos, mas, pelo contrário, pela constituição de objetos
formais. Ou seja, a única coisa passı́vel, a nosso ver, de definir uma disciplina
(qualquer que seja), não é de forma alguma um campo de investigação dado
(a tecnologia, o parentesco, a arte, a religião. . .), muito menos uma área
geográfica ou um perı́odo da história, e sim a especificidade da abordagem
utilizada que transforma esse campo, essa área, esse perı́odo em objeto ci-
ent´ıfico.

6.2 Determinações Culturais


Uma segunda via, que apenas esbocaremos aqui, consistiria em mostrar o
que a pesquisa do antropólogo deve à cultura à qual ele próprio pertence.
As condições históricas e sociais de produção do saber antropológico são
eminentemente diversificadas, e não seria satisfatório relacioná-las àpenas ao
”Ocidente”, como se este fosse um bloco homogêneo e Imutável. Mostrare-
mos quais foram os caracteres culturais distintivos que marcavam profunda-
mente e continuam influenciando várias sociedades nas quais o pensamento e
a prática (antropológicas estão hoje particularmente desenvolvidos. Limitur-
nos-emos a três: a antropologia americana, a britânica h francesa.

A antropologia americana:

Tendo tido um crescimento rápido com o impulso especialmente do evolu-


cionismo e de seu principal teórico Lewis Morgan, pode ser caracterizada da
seguinte maneira:

1) trata-se de um tipo de pesquisa que destaca a diversidade das culturas-


, as variações praticamente ilimitadas que aparecem quando se comparam
as sociedades entre si. Esse estudo, conduzido mais a partir da observacão
dos comportamentos individuais do que do funcionamento das instituições,
visa evidenciar a especificidade das personalidades culturais, bem como das
produções culturais caracterı́sticas de uma etnia ou nacão. Disso decorre a
Subespecialidades: etnolingüı́stica, etnomedicina, etnopsiquiatria, etnomusicologia, de que
só se domina a prática para uma área geográfica limitada.
importância, nos Estados Unidos, das relacões da etnologia com a psicologia
ou a psicanálise:

2) a antropologia americana não se interessa apenas pelos processos de in-


teração entre os indivı́duos e sua cultura, mas também entre as próprias1
culturas: forjou, em especial, o conceito de ”aculturacão”ao qual voltaremos
mais adiante;

3) nunca foi confrontada, ao contrário do que ocorreu na Franca e na Ingla-


terra, aos processos da colonização e descolonização, mas, em contrapartida,
aos problemas colocados por suas próprias minorias (negra, ı́ndia e portorri-
quenha);

4) acrescentemos finalmente que se a antropologia americana contribuiu muito


cedo em grande parte (Boas) para pôr um fim à arrogância das reconstituições
históricas especulativas, reatualizou e renovou ao mesmo tempo, em seus de-
senvolvimentos contemporâneos, a abordagem evolucionista sob a forma do
que é hoje chamado neo-evolucionismo

A antropologia britânica:

Seu crescimento, também muito rápido, como nos Estados Unidos, deve ser
relacionado à importância de seu império colonial. Pode ser caracterizada da
seguinte maneira:

1) é uma antropologia antievolucionista, que se constituiu desde Malinowski


em oposição a uma compreensão histórica do social (as reconstruções hi-
potéticas dos estágios, indo das sociedades ”primitivas”às ”civilizadas”, bem
como a abordagem da historiografia). Dedica-se preferencialmente à inves-
tigação do presente a partir de métodos funcionais (Malinowski), e, em se-
guida, estruturais (Radcliffe-Brown): uma sociedade deve ser estudada em
si, independentemente de seu passado, tal como se apresenta no momento no
qual a observamos. O modelo pode portanto ser qualificado de sincrônico,
enquanto a pesquisa baseia-se no levantamento da totalidade dos aspectos
que constituem uma determinada sociedade: a monografia;

2) é uma antropologia antidifusionista, o que a opõe à antropologia ame-


ricana, a qual se preocupa em compreender o processo de transmissão dos
elementos de uma cultura para outra. Para a maioria dos pesquisadores
ingleses, uma sociedade não deve ser explicada nem pelo que herda de seu
passado, nem pelo que empresta a seus vizinhos;
3) é uma antropologia de campo, que se desenvolve muito rapidamente, a
partir do inı́cio do século, com Malinowski e, antes, com Radcliffe-Brown, o
qual é, mais ainda que Malinowski, um dos pais fundadores de quem a maio-
ria dos antropólogos britânicos contemporâneos se considera sucessora. Esse
caráter empı́rico (observação direta de uma determinada sociedade, a partir
de um trabalho exigindo longas estadias no campo) e indutivo da prática dos
antropólogos ingleses apóia-se numa longa tradição britânica: o empirismo
dos filósofos desse paı́s, que se pode opor ao racionalismo e ao idealismo
do pensamento francês. Hoje ainda, um antropólogo que pode ser conside-
rado como um dos mais importantes da Grã-Bretanha, Leach, não hesita em
qualificar-se de ”empirista”, e até de ”materialista”, e vê a abordagem de um
Lévi-Strauss como tipicamente francesa: racionalista e idealista;

4) finalmente, é uma antropologia social que, ao contrário da antropologia


americana, privilegia o estudo da organizacão dos sistemas sociais em detri-
mento do estudo dos comportamentos culturais dos indiv´ıduos.

A antropologia francesa:

A França está praticamente ausente da cena da antropologia social e cul-


tural da segunda metade do século XIX. Nenhum pesquisador francês teve,
nessa época, a influência de um Tylor (inglês) ou de um Morgan (americano).
As preocupações da antropologia francesa estavam voltadas para outra área.
Quando se falava de antropologia, tratava-se da antropologia f´ısica, que era
então ilustrada pelos trabalhos de Broca, Quatrefages ou Topinard, que pu-
blicou em 1876 uma obra intitulada simplesmente A Antropologia.2

Esse atraso da etnologia francesa – muito importante se considerarmos a


intensa atividade que se desenvolvia do outro lado do canal da Mancha e do
Atlântico – não será recuperado no inı́cio do século XX. Enquanto que um
campo empı́rico e teórico considerável se constituı́a tanto nos Estados Unidos
como na Grá-Bretanha; enquanto, nesses dois paı́ses, administradores utili-
zavam cada vez mais os serviços de antropólogos formados nas universidades,
a etnologia francesa dessa época permanecia ainda uma etnologia selvagem,
que não era praticada por etnólogos e sim por missionários e por alguns ad-
2
Notemos que Gobineau, que considera o estudo do homem apenas sob o ângulo da
raça, nunca das culturas (Essai sur ilnégalité des Races Humaines, 1853) era francês.
Lembremos também a importância que teve a antropologia fı́sica e pré-histórica na França
(em relação notadamente à influência considerável exercida no final do século XIX pelas
ciências positivas e experimentais no paı́s de Pasteur e de Claude Bernard)
ministradores de colônias francesas.3

Mais uma vez, as preocupações francesas estão voltadas para outros aspec-
tos: trata-se dessa vez de preocupações teóricas de filósofos e sociólogos que,
sem dúvida, exercerão uma influência decisiva na constituição cientı́fica da
etnologia, mas não são sustentadas por nenhuma prática etnográfica. Nem
Durkheim (cujo pensamento vai impregnar profundamente a antropologia in-
glesa), nem Lévy-Bruhl efetuaram qualquer observacão. O próprio Mauss,
que é paradoxalmente autor de uma excelente obra, manual de investigação
etnográfica (1967), nunca realizou uma investigação no campo.

Será preciso esperar os anos 30 para que uma verdadeira etnografia pro-
fissional comece a se constituir na Franca. A primeira missão de caráter
cientı́fico (a famosa ”Dacar-Djibuti”) será efetuada por Mareei Griaule e
seus colaboradores em 1931. A partir da mesma época, Maurice Leenhardt,
que permaneceu por mais de 20 anos na Nova Caledônia como missionário
protestante, empreendeu trabalhos (1946, 1985) que podem ser qualificados
de pioneiros, enquanto Paul Rivet passava a ser um dos principais artesãos
da organização da antropologia no nosso paı́s. A partir dessa época, mas
só a partir dela, pode-se considerar que, com o impulso especialmente dos
homens que acabamos de citar, a antropologia francesa entrou em sua maturi-
dade. A partir desse momento, as pesquisas foram prosseguindo, estendendo
o aprofundando-se em um ritmo ininterrupto.

Seria dif´ıcil, principalmente em algumas frases, caracterizar os desenvolvi-


mentos propriamente contemporâneos dessa pesquisa francesa, cuja riqueza
não tem mais nada a invejar dos Estados Unidos ou da Inglaterra. Lembre-
mos apenas aqui alguns aspectos relevantes:

as preocupações teóricas dos antropólogos franceses que aparecem par-


ticularmente quando confrontamos seus trabalhos (e debates) à prática
da antropologia anglo-saxônica, freqüentemente mais empı́rica;

• um objeto de predileção que é o estudo dos sistemas de ”representacões”


3
Clozel e Delafosse estudaram no inı́cio do século o sistema jurı́dico das populações
do Sudão. O segundo se tornou professor na Escola Colonial. diretor da Revue
d’Ethnographie e co-fundador do Institu´ı d’Ethno-logie de Paris (1924). Publicou notada-
mente Les Noirs de 1’Afrique e L’Ame Nègre (1922). Entre os pioneiros desse africanismo
francês principiante, convém lembrar os noves de Tauxier, Monteil, Labouret, que são
administradores coloniais eruditos, e sobretudo ]unod, missionário da Suı́ça romanche
(particularmente a religião, a mitologia, a literatura de tradicão oral),
termos que devemos a Dur-kheim, enquanto Lévy-Bruhl já se interes-
sava pelo que chamava de ”mentalidades”;

• uma renovação metodológica, com o impulso especialmente:

1) do estruturalismo (do qual Lévi-Strauss é evidentemente o representante


mais ilustre),

2) de pesquisas conduzidas dentro da perspectiva do marxismo;

um crescimento muito recente, mas apoiado em uma sólida tradicão, da


etnografia, da museografia e da etnologia da própria sociedade francesa,
em suas diversidades e mutações.

6.3 Os Cinco Pólos Teóricos Do Pensamento


Antropológico Contemporâneo
Uma terceira via deterá mais nossa atencão. É para essa que finalmente
optaremos, e é a partir dela que se organizará a segunda parte desse li-
vro. Pareceu-nos que, desde sua conslituição enquanto disciplina de vocação
cientı́fica,4 a antropologia oscila entre vários pólos teóricos que aparecem
freqüentemente como exclusivos uns dos outros, mas são de fato pontos de
vista diferentes sobre a mesma realidade.

Tentaremos, portanto, dar conta do desenvolvimento contemporâneo da an-


tropologia, não nos colocando mais do lado dos territórios particulares (ter-
ritórios temáticos como a antropologia econômica, a antropologia religiosa, a
antropologia urbana), nem do lado das colorações nacionais, explicativas das
tendências culturais da prática dos pesquisadores, mas do lado dos métodos
de investigação.

A pluralidade dos modelos mobilizados e utilizados não tem, a meu ver,


nada de desvantajoso. E seria errôneo atribuir exclusivamente a impressão
de cacofonia que dão freqüentemente os congressos e reuniões de antropólogos

4
As fundações antropológicas de Morgan, o aperfeiçoamento de instrumentos de inves-
tigação verdadeiramente etnográficos com Boas, Rivers e Malinowski, a elaboração de um
quadro de referência conceitual com Mauss e Durkheim
a uma imaturidade cientı́fica e ao caráter ainda principiante de nossa disci-
plina. Novamente, procurando estudar a pluralidade, seria o cúmulo se a
antropologia não fosse ela mesma ”plural”. A pluralidade é pelo contrário
para mim, uma das garantias (não a única evidentemente, pois pode haver
pluralidade de dogmatismos e ortodoxias) de que nossas pesquisas aceitam
sujeitar-se a crı́ticas recı́procas e passar por processos de invalidação (cf. K.
Popper, 1937), cada um dos modelos teóricos sendo apenas uma perspectiva
sobre o social e não o próprio social.

Em As Palavras e as Coisas, Michel Foucault distingue o que ele chama de


três ”regiões epistemológicas”, em torno das quais se constituı́ram, a partir do
século XIX, os diferentes saberes positivos sobre o homem: a biologia, ciência
do ser vivo; a economia, ciência da produção e das relações de produção; a
filologia, ciência da linguagem e de suas diversas expressões (mitologias, li-
teraturas, tradições orais. . .). Mais precisamente, diz Foucault:

a biologia é o estudo das funções do homem nas suas regulacões fi-


siológicas e nos seus processos de adaptacão, bem como o estudo das
normas reguladoras dessas funções;

a economia é o estudo dos conflitos entre o homens, a partir das relacões


sociais do trabalho, bem como das regras que permitem controlar esses
conflitos;

a filologia é o estudo do sentido que elaboramos em nossos discursos,


bem como do sistema que constitui sua coerência.

A ”região”biológica, considera Foucault (1966), encontra um de seus pro-


longamentos no campo psicológico que estuda nossos processos neuromoto-
res, mas também nossa aptidão em elaborar fantasias e representacões. À
”região”econômica pertence o campo sociológico que explora as relacões de
poder. Finalmente, a última região vai dar lugar ao espaço lingüı́stico, às
disciplinas que chamamos hoje de ciências da comunicação, que se dão como
objeto a análise de todas as manifestações escritas, orais e gestuais.

O que é importante notar, ainda de acordo com o autor de /ls Palavras


e as Coisas, é:

1) o caráter inconsciente das normas, das regras e dos sistemas, em


relação às funções, aos conflitos e às significações;

2) o fato de que esses diferentes pares conceituais (funcão/norma, conflito/regra,


sentido/sistema) podem deslocar-se para fora dos territórios nos quais apa-
receram. Assim, por exemplo, o estudo do social tende a apreender o homem
em termos de regras e conflitos. Mas também pode ser conduzido a partir
dos conceitos de funções e normas (Durkheim, Malinowski) ou a partir do
sentido e do sistema (Griaule, Lévi-Strauss).

Dispondo dessa orientação, o que procurarei mostrar agora, falando em meu


nome pessoal, é que:

1) o objeto da antropologia é tão complexo que não podia dotar-se de um


único modo de acesso sem correr o risco do espı́rito de ortodoxia. E efe-
tivamente, no perı́odo de aproximadamente meio século que estudaremos,
veremos nossa disciplina utilizando sucessiva ou simultaneamente vários mo-
dos de acesso.

2) a reflexão antropológica não pode deixar de lado o conceito de incons-


ciente, forjado no âmbito do discurso psicanalı́tico, mas do qual este não tem
evidentemente o monopólio. Somente o caráter inconsciente das normas,
regras e sistemas nos permite compreender que a partir dos três campos do
saber determinados por Michel Foucault estaremos confrontados com pesqui-
sas etnológicas de caráter empı́rico e a pesquisas preocupadas da construção
de seu objeto cientı́fico; o qual nunca é dado, e sim conquistado, sendo por
assim dizer arrancado da percepção consciente imediata tanto dos atores so-
ciais quanto das observadoras do social.

Levando em conta o que foi dito, parece a meu ver possı́vel localizar cinco
pólos em torno dos quais a antropologia oscila constantemente.

1) A antropologia simbólica. Seu objeto é essa região da linguagem que cha-


mamos sı́mbolo e que é o lugar de múltiplas significações,5 que se expressam
em especial através das religiões, das mitologias e da percepção imaginária
do cosmos. Esse primeiro eixo da pesquisa caracteriza-se mais, como vere-
mos, por um tipo de preocupações do que por um método propriamente dito.
Trata-se de apreender o objeto que se pretende estudar do ponto de vista do
sentido. O que significam as instituições ou os comportamentos que encon-
tramos em tal sociedade? O que se pode dizer a respeito daquilo que uma
sociedade expressa através da lógica de seus discursos?

5
Sobre a definição antropológica do sı́mbolo, autorizo-mo a indicar meu livro t.es 50
Mots Clés de /’Anthropologie. Toulouse. Privai, 1974.
2) A antropologia social. Seu objeto situa-se claramente no campo epis-
temológico oriundo da economia (cf. acima M. Foucault). Nada distingue
realmente seu território do território do sociólogo. Um dos conceitos ope-
ratórios a partir do qual essa perspectiva de inı́cio se instaurou, é o de função
(Malinowski, mas também Durkheim), freqüentemente ligado ao estudo dos
processos de normalização destas funções (= as instituições). É um eixo
de pesquisa que não se interessa diretamente para as maneiras de pensar,
conhecer, sentir, expressar-se, em si, e mais para a organizacão interna dos
grupos, a partir da qual podem ser estudados o pensamento, o conhecimento,
a emoção, a linguagem. Qual a finalidade de tal instituição? Para que serve
tal costume? A que classe social pertence aquele que tem tal discurso, e qual
é o nı́vel de integração dessa classe na sociedade global?

3) A antropologia cultural. Seja o modelo utilizado, biológico, psicológico


(Kardiner, 1970), ou lingüı́stico (Sapir, 1967), é uma antropologia freqüente-
mente empı́rica, que se situa do lado da função ou, mais ainda, do sentido,
em detrimento da norma e do sistema. Mas o que permite essencialmente
caracterizar essa tendência de nossa disciplina é o critério da continuidade ou
descontinuidade entre a natureza e a cultura de um lado, e entre as próprias
culturas, de outro.

a) Enquanto autores como Bateson ou Lévi-Strauss, de quem falaremos adi-


ante, esforçam-se em pensar a continuidade (ou, mais exatamente, no caso
de Lévi-Strauss, a articulação) entre a ordem da natureza e a da cultura,
os que chamamos ”aculturalistas”, com autores de quem estão, no que diz
respeito ao essencial, muito afastados, como Evans-Pritchard ou Devereux,
privilegiam claramente a solução da descontinuidade.

b) Enquanto um grande número de antropólogos salienta a universalidade


da cultura (para Morgan, as sociedades só são pensáveis porque pertencem a
um tronco comum, para Malinowski, há uma permanência das funções, e para
Devereux uma ”universalidade da cultura”), os culturalistas mais uma vez,
sobretudo a respeito disso, privilegiam a des-continuidade, isto é a coerência
interna e a diferença irredutı́vel de cada cultura.

c) A antropologia estrutural e sistêmica. Estudaremos aqui não só uma,


mas várias correntes do pensamento antropológico. Uns utilizam um modelo
psicanal´ıtico; outros um modelo proveniente do que Foucault designa como
o campo epistemológico da economia (Mauss elabora, como vimos, as regras
explicativas da troca); outros finalmente, os mais numerosos, escolhem um
modelo lingüı́stico, matemático, cibernético (Lévi-Strauss, Bateson). Mas
qualquer que seja o modelo adotado, ele realiza uma passagem do consciente
para o inconsciente: passagem da função para a norma (Roheim), do conflito
para a regra (Mauss), do sentido para o sistema (Lévi-Strauss).

Enquanto nos situávamos por exemplo do lado da função, o alteridade sempre


corria o risco de ser considerada (e rejeitada) no espaço da extraterritoriali-
dade: ao lado, fora. isto é, para sempre diferente. Assim, para a psicologia
pré-freudiana, o normal e o anormal não têm nada em comum. Para a et-
nologia de Lévy-Bruhl (1933), existe uma ”mentalidade primitiva”exclusiva
de tudo que é próprio do homem da lógica. Para Griaule, finalmente (1966),
às instituições e mitologias plenamente significantes da África tradicional,
opõe-se a insignificância do Ocidente industrial. Inversão de perspectiva
neste caso, em relação ao anterior, mas que se inscreve no mesmo horizonte
epistemológico. Ao contrário, quando a atividade epistemológica começa a
situar-se do lado da norma (e não mais da função), da regra (e não mais do
conflito), do sistema (e não mais do sentido), não é mais possı́vel pensar que
os doentes mentais são ”loucos”, a ”mentalidade primitiva”, ”absurda”, e os
mitos ”insignificantes”. O que desmorona, então, é a pertinência dos pares
antinô-micos do normal e do patológico, do lógico e do ilógico, do sentido e
do não-sentido.

Se insistimos tanto desde já sobre esse quarto pólo da pesquisa, é porque,
com ele, o campo epistemológico do sabei sobre o homem muda radicalmente
pela segunda vez desde o final do século XVIII (cf. p. 53 deste livro). E
é, de fato, em torno das obras de Freud (o inconsciente explicativo do cons-
ciente), Saussure, e depois Jakobson (a l´ıngua explicativa da palavra), de
Lévi-Strauss e dos estruturalistas (a prio ridade dada ao sistema sobre o
sentido), que se reorganizará o conhecimento antropológico contemporâneo.
Na antropo logia psicanal´ıtica, como na antropologia estrutural, estima-se
que além da surpreendente diversidade das formações psicológicas ou das
produções culturais localizadas a nı́vel empı́rico existe o que Bastian já cha-
mava de ”unidade ps´ıquica da humanidade”. Mas esta deve doravante ser
pensada, não mais ao nı́vel das significações vividas, mas ao nı́vel do sistema
(inconsciente). Uma das principais questões que se colocará então é a se-
guinte: quais são as estruturas inconscientes do espı́rito que atuam, tanto
nas formas elementares e complexas do parentesco, quanto no mito, na obra
de arte?. . .

5) A antropologia dinâmica. Reunimos nesse termo um eixo da pesquisa


antropológica contemporânea que se situa no horizonte do que Foucault6
chama de campo sociológico, e que procura estudar as relacões de poder.
As interrogações dos autores dos quais trataremos não estão distantes das
da sociologia, e alguns inclusive preferem qualificar-se de sociológos. Uma
das caracterı́sticas de suas contribuições para a antropologia do século XX,
e mais especificamente, da segunda metade do século XX, consiste, a meu
ver, em reorientar a antropologia social, operando uma ruptura total com o
funcionalismo em seus pressupostos, ao mesmo tempo a históricos (socieda-
des imóveis que podem ser estudadas como se a colonização não existisse)
e finalistas (instituições visando satisfazer as necessidades). Para esses au-
tores, pelo contrário, convém não isolar essa área particular do homem que
seria a história. Esta é parte integrante do campo antropológico. Por isso,
as questões colocadas são as seguintes: qual é a dinâmica de tal sistema so-
cial? De onde vem? Quais são as modalidades atuais de suas transformações?

Esses cinco pólos em torno dos quais se organiza a antropologia contem-


porânea não têm nada de exclusivo. São tendências de pesquisa que podem
coexistir dentro de uma mesma escola de pensamento, ou mesmo de um único
pesquisador.7

A escolha da pieeminência do que Devereux (1972) chamou de motivo ope-


rante (ou modelo epistemológico principal, constitutivo da abordagem ado-
tada) – o qual pode ser exclusivo (ou não) do lugar concedido a um motivo
instrumental (ou modelo de investigação complementar) –explica os deba-
tes, ou até as discussões, a que assistimos não apenas entre disciplinas, mas
também dentro de uma mesma disciplina. A incompreensão entre os pesqui-
sadores pode se tornar total, se estes não tiverem plena consciência do falo de
que efetuam respectivamente escolhas metodológicas, que constituem diver-
sas perspectivas possı́veis visando dar conta de um mesmo objeto empı́rico.
7
Assim, por exemplo, o começo da obra de Malinowski aparece como muito próximo da
antropologia cultural. Evidenciando a especificidade da sociedade trobriandesa (1963), e
afirmando em seguida a não-existência do complexo de Édipo nessa população melanésia
(1967-1970), exerceu uma influência evidente (cf.. por exemplo, Kardiner, 1970) sobre os
culturalistas americanos. Mas. no final de sua vida (1968h a universalidade da função
superou finalmente a particularidade das culturas. Considerando agora a obra de Lévi-
Strauss, esta situa-se, se a examinarmos do ponto de vista- dos objetos preferencialmente
estudados (os mitos), do lado do que chamamos de antropologia simbólica. Mas seu projeto
diz respeito à antropologia social (é o nome do laboratório que Lévi-Strauss chefiou no
Collège de Francel e sua abordagem pertence evidentemente (e é até constitutiva dele) ao
quarto eixo de pesquisa definido acima.
Existem portanto afinidades entre, por exemplo, a antropologia cultural e a antropo-
logia funcional (Malinowski), entre a antropologia estrutural e a antropologia dinâmica
(Godelier. 1973). Em compensação, é difı́cil imaginar como se poderia conciliar uma
antropologia baseada na noção de integração social (Malinowski) e uma antropologia de
orientação dinâmica (Balandier) ou psicanalı́tica (Devereux).
Esse problema diz respeito em especial à questão da transferência dos mo-
delos em antro pologia. Estes podem ser, por exemplo, biológicos (Spencer.
Comte, Malinowski), históricos (Morgan), lingüı́sticos ou. como se diz hoje,
”informacionais”(a antropologia estrutural e sistêmica referindo-se às noções
de mensagens, códigos e programas), psicológicos (a introdução dos conceitos
de inibição, repressão e sublimação para pensar o social). Convém, se qui-
sermos escapar daquilo que é freqüentemente apenas um diálogo de surdos,
nunca esquecer que se trata somente de modelos, isto é, de instrumentos da
pesquisa que visam explicar o real, mas não podem subsiituı́-lo, pois este, em
termos cientı́ficos, só pode ser, segundo a expressão de Bachelard, ”aproxi-
mado”.
Capı́tulo 9

A Antropologia Cultural:

A passagem da antropologia social (particularmente desenvolvida na Franca


e mais ainda na Inglaterra) para a antropologia cultural (especialmente ame-
ricana) corresponde a uma mudança fundamental de perspectiva. De um
lado, a antropologia se torna uma disciplina autônoma, totalmente indepen-
dente da sociologia. De outro, dedica-se uma atencão muito grande menos
ao funcionamento das instituições do que aos comportamentos dos próprios
indivı́duos, que são considerados reveladores da cultura à qual pertencem.
Quanto a isso, uma história da antropologia como a de Kardiner e Preble
(1966) – que está longe de ser uma das melhores histórias de nossa disci-
plina, mas essa não é a questão – é muito caracterı́stica dessa atitude ame-
ricana. Trata tanto da personalidade dos principais pesquisadores apresen-
tados, quanto de suas idéias. Já de inı́cio, coloca o que é uma constante
da prática antropológica nos Estados Unidos: sua relação à psicologia e à
psicanálise.

Para compreender a especificidade dessa abordagem, freqüentemente qua-


lificada (de forma um pouco pejorativa) de ”culturalista”, parece-me impor-
tante especificar bem o significado dos conceitos de social e de cultura.

O social é a totalidade das relações (relações de produção, de exploração,


de dominação. . .) que os grupos mantêm entre si dentro de um mesmo
conjunto (etnia, região, nação. . .) e para com outros conjuntos, também
hierarquizados. A cultura por sua vez não é nada mais que o próprio social,
mas considerado dessa vez sob o ângulo dos caracteres distintivos que apre-
sentam os comportamentos individuais dos membros desse grupo, bem como
suas produções originais (artesanais, artı́sticas, religiosas. . .).

A antropologia social e a antropologia cultural têm portanto um mesmo

95
96

campo de investigação. Além disso, utilizam os mesmos métodos (etnográficos)


de acesso a este objeto. Finalmente, são animadas por um objetivo e uma
ambição idênticos: a análise comparativa.1 Mas, o que se compara no pri-
meiro caso é o social enquanto sistema de relacões sociais, sendo que, no
segundo, trata-se do social tal como pode ser apreendido através dos com-
portamentos particulares dos membros de um determinado grupo: nossas
maneiras especı́ficas, enquanto homens e mulheres de uma determinada cul-
tura, de pensar, de encontrar, trabalhar, se distrair, reagir frente aos acon-
tecimentos (por exemplo, o nascimento, a doença, a morte).

É difı́cil dar uma definição que seja absolutamente satisfatória da cultura.


Kroeber, um dos mestres da antropologia americana, levantou mais de 50.
Propomos esta: a cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-
fazer caracter´ısticos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo
essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem, e trans-
mitidas ao conjunto de seus membros.

Detenhamo-nos um pouco para sublinhar que, a nosso ver, apenas a noção


e cultura, ao contrário da de sociedade, é estritamente humana. Da mesma
forma que existe (isso não é mais sequer discutido hoje) um pensamento e
uma linguagem nos animais, existem sociedades animais c até formas de soci-
abilidade animal, que podem ser regidas por modos de interacão antagônicas
ou comunitárias, bem como de modos de organizacão complexos (em função
das faixas de idade, dos grupos sexuais, da divisão hierarquizada do traba-
lho. . .). Indo até mais adiante, existe o que hoje não se hesita mais em
chamar de sociologia celular. Assim, o que distingue a sociedade humana da
sociedade animal, e até da sociedade celular, não é de forma alguma a trans-
missão das informações, a divisão do trabalho, a especialização hierárquica
das tarefas (tudo isso existe não apenas entre os animais, mas dentro de uma
única célula!), e sim essa forma de comunicação propriamente cultural que se
dá através da troca não mais de signos e sim de sı́mbolos, e por elaboração
das atividades rituais aferentes a estes. Pois, pelo que se sabe, se os animais
são capazes de muitas coisas, nunca se viu algum soprar as velas de seu bolo
de aniversário. É a razão pela qual, se pode haver uma sociologia animal
(e até, repetimo-lo, celular), a antropologia é por sua vez especificamente
humana.

Fechemos aqui esse parêntese, que não nos afasta de forma alguma do nosso
propósito, mas, pelo contrário, define-o melhor, e examinemos mais adiante

1
Muito mais afirmada porém na antropologia cultural do que na antropologia social.
97

os traços marcantes dessa antropologia que qualifica a si própria de cultural.


Deter-nos-emos em três deles, que estão, como veremos, estreitamente liga-
dos entre si.

1) A antropologia cultural estuda os caracteres distintivos das condutas dos


seres humanos pertencendo a uma mesma cultura, considerada como uma
totalidade irredutı́vel à outra. Atenta às descontinuidades (temporais, mas
sobretudo espaciais), salienta a originalidade de tudo que devemos à socie-
dade à qual pertencemos.

2) Ela conduz essa pesquisa a partir da observacão direta dos comporta-


mentos dos indivı́duos, tais como se elaboram em interacão com o grupo e o
meio no qual nascem e crescem estes indiv´ıduos. Procurando compreender
a natureza dos processos de aquisição e transmissão, pelo indivı́duo, de uma
cultura, sempre singular (a forma como esta não apenas informa, mas modela
o comportamento dos indivı́duos, sem que estes o percebam), encontra várias
preocupações comuns aos psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. Utiliza por-
tanto freqüentemente os modelos conceituais destes, bem como suas técnicas
de investigação (por exemplo, os testes projetivos, utilizados pela primeira
vez em etnologia por Cora du Bois). Assim, esse campo de pesquisa, desig-
nado pela expressão ”cultura e personalidade”, extremamente desenvolvido
nos Estados Unidos e relativamente negligenciado na Franca e Grã-Bretanha,
impõe-se, a partir dos anos 30, como uma das áreas da antropologia na qual
a colaboração pluridisciplinar se torna sistemática.

3) Finalmente, a antropologia cultural estuda o social em sua evolução, e


particularmente sob o ângulo dos processos de contato, difusão, interacão e
aculturação, isto é, de adoção (ou imposicão) das normas de uma cultura por
outra.

***

Um certo número de obras representativas dessa abordagem – escritas em


sua maior parte por americanos 2 – merece ser citado. 1927: Margaret Mead
2
Notemos porém que a contribuição dos pesquisadores franceses na área da antropologia
cultural está longe de ser negligenciável. Citemos notadamente, para o perı́odo contem-
porâneo, os trabalhos de Ortigues (1966), Erny (1972), J. Rabain (1979) e lembremos a
influência considerável que exerceu e continua exercendo Roger Bastide (1950, 1965, 1972)
que pode ser considerado como o mestre da antropologia cultural francesa.
98

publica Corning of Age in Samoa, que será retomado em Hábitos e Sexuali-


dade na Oceania, em 1935, um livro que foi um marco. 1934: Amostras de
Civilização, de Ruth Benedict, certamente a obra mais caracterı́stica do cul-
turalismo americano; 1939: Kardiner, O Indiv´ıduo e Sua Sociedade-, 1943:
Roheim, Origem e Função da Cultura, que desenvolve a idéia de que a cultura
é uma sublimação decorrente da imperfeição do feto humano ao nascer; 1944:
Cora du Bois, O Povo de Alor; 1945: Linton, Os Fundamentos Culturais da
Personalidade: 1949: Herskovitz, As Bases da Antropologia Cultural; 1950:
Roheim, Psicanálise e Antropologia. . .

O que mostram essas diferentes obras, sempre baseadas em numerosas ob-


servações, é que convém não atribuir à natureza o que diz respeito à cultura;
ou seja, não considerar como universal o que é relativo.3 Essa compreensão
da irredutı́vel diversidade das culturas que é o eixo central da antropologia
cultural – aparece ao mesmo tempo: 1) ao n´ıvel dos tracos singulares dos
comportamentos; 2) ao n´ıvel da totalidade da nossa personalidade cultural,
qualificada por Kardiner de ”personalidade de base”. Como essa corrente de
pesquisa, que procuraremos apresentar o mais fielmente possı́vel, multiplica-
remos os exemplos.

1) A variação cultural pode ser encontrada em cada um dos aspectos de


nossas atividades. Assim, a maneira com que descansamos. Nas sociedades
nas quais os homens dormem diretamente no. solo, dificilmente suportam
a maciez de um colchão. Inversamente, sentimos dificuldade em dormir –
como me aconteceu no Brasil – em uma rede, e não nos passaria pela cabeça
descansar, como alguns na Ásia. apoiando-nos em uma só perna.

Tomemos um outro exemplo: a divisão do trabalho entre os sexos. Nas


sociedades do Oeste africano, as mulheres se dedicam à cerâmica, enquanto
os homens vão para a roça, quando, na ilha de Alor, são as mulheres que
cultivam a terra enquanto os homens cuidam da educação das crianças. As-
sim como na sociedade Chaumbuli, na qual os homens se dedicam aos filhos,
enquanto as mulheres vão pescar.

Consideremos agora os comportamentos adotados para penetrar nos edif´ıcios


religiosos. Na Europa, ao penetrar numa igreja, observamos que os fiéis tiram
o chapéu e permanecem com os sapatos. Inversamente, em uma mesquita,
os muçulmanos tiram os sapatos e permanecem com o chapéu.

3
Como mostrei em meu livro sobre A Etnopsiquiatria, este ultimo comentário deve
porem ser relativizado no que diz respeito a Rohem.
99

As formas de hospitalidade também testemunham de uma extrema diversi-


dade podendo, como no exemplo acima, consistir na inversão pura e simples
daquilo que tomávamos espontaneamente por natural. Assim, fiquei pessoal-
mente impressionado, durante minha primeira estadia em paı́s Baúle (Costa
do Marfim), como hóspede, com o convite que me era sistematicamente feito
de uma refeição preparada em minha homenagem, mas que devia ser consu-
mida isoladamente, isto é, em um cômodo e separadamente de meus hospe-
deiros, os quais, por outro lado, reservavam-me um presente muito inesperado
para um ocidental, que não era nada menos que a filha mais bonita da casa.

Diferenças significativas, decorrentes da cultura à qual pertencemos, po-


dem também ser encontradas nos menores detalhes dos nossos comporta-
mentos mais cotidianos. Assim, nas sociedades árabes, sul-americanas e sul-
européias, desviar o olhar é considerado como um sinal de má educação,
enquanto que nas sociedades asiáticas e norte-européias, olhar fixamente
alguém com insistência causa um incômodo que se traduz por uma impressão
de ameaça e agressividade.

A saudação visual consistindo em levantar rapidamente as sobrancelhas, ace-


nar a cabeça e sorrir, assinala um encontro amigável na Nova Guiné ou na
Europa, mas é censurada por ser considerada indecente no Japão. As trocas
de contatos cutâneos entre dois interlocutores são extremamente reduzidas
nos paı́ses anglo-saxônicos assim como no Japão. Impõe-se pelo contrário,
como expressão normal do prazer de encontrar o outro nas sociedades medi-
terrâneas e sul-americanas. Esses mesmos interlocutores, sentados no terraço
de um bar ou passeando na rua, irão manter um certo espaço entre si na
Europa do Norte ou na Ásia, sob pena de sentir um certo mal-estar; ten-
derão a diminuir a distância que os separa nas sociedades árabes ou latino-
americanas.

Finalmente, as formas de comportamento sexual detiveram particularmente


a atenção dos observadores. De um lado, a educação sexual é eminentemente
variável de uma sociedade para outra. Na Melanésia, por exemplo, meninos
e meninas são, na idade da puberdade, iniciados nas técnicas amorosas por
monitores experimentados, enquanto os Muria da ´ındia (cf. Elwin, 1959) ins-
titucionalizavam essa prática preservando um espaço (por assim dizer, uma
casa da juventude) que tem como objetivo encorajar os jogos sexuais. Por
outro lado, os rituais amorosos são profundamente diferentes, não apenas de
uma civilização para outra, mas dentro de -uma mesma civilização. Aqui
está um exemplo recolhido por Margaret Mead que merece ser relatado.
10
0

Durante a última guerra mundial, soldados americanos estavam mobiliza-


dos na Grã-Bretanha. Esses soldados e as jovens inglesas que freqüenta-
vam acusavam-se mutuamente de má educação nas relações amorosas. Os
GIs consideravam as inglesas mulheres levianas; as inglesas achavam que
os americanos comportavam-se como marginais. Cada um dos grupos re-
agia normalmente, mas a norma era diferente de uma cultura para outra:
para os americanos, o beijo, que intervém muito cedo nas relações de na-
moro, não tinha grandes conseqüências, enquanto que, para as inglesas, era
a última etapa antes do ato sexual. As inglesas ficavam, portanto, chocadas
que os americanos quisessem beijá-las tão precipitadamente; e estes não en-
tendiam que as inglesas fugissem deles por causa de um ato tão insignificante
quanto um beijo na boca, ou que passassem tão rapidamente para a etapa
seguinte, quando tinham aceito o beijo. Qüiproquós desse tipo pontuam nos-
sas relações interculturais.

2) O peso da cultura não se manifesta apenas nas formas diversificadas de


comportamentos e atividades facilmente localizáveis de uma sociedade para
outra (como a alimentação, o hábitat, a maneira de se vestir, os jogos. .O,
mas também nas estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas constitutivas
da própria personalidade. A antropologia cultural foi assim levada a reto-
mar, nos fundamentos da observação e da análise etnopsicológica, o que os
folcloristas, mas também os escritores (Chateaubriand, Georges Sand. . .)
chamavam de ”alma”ou ”gênio”de um povo. Assim, tentou evidenciar a pre-
ocupação dos japoneses em nunca perder a face em sociedade, sob pena de
um desmoronamento da personalidade que se traduz por um sentimento de
vergonha e culpa extremo, ou ainda, o receio dos franceses frente à natureza
que deve ser domesticada pela razão; receio que se expressa tanto no caráter
”bem-comportado”dos nossos contos populares (sempre menos extravagan-
tes que os contos escandinavos, russos ou alemãs) quanto em nossos jardins,
qualificados precisamente de ”jardins à francesa”.

Mas é sobretudo ao estudo das formas contrastadas da personalidade nos


povos das sociedades ”tradicionais”, que a antropologia americana deve a
sua fama. Margaret Mead (1969), ao confrontar duas populações vizinhas da
Nova Guiné, considera que uma, a dos doces e ternos Arapesh, só deseja paz
e serenidade, enquanto a outra, a dos violentos Mundugumor, é comandada
por uma agressividade propriamente canibal. O que é então considerado
como personalidade desviante entre os primeiros (o indiv´ıduo violento), apa-
recerá, entre os segundos, como perfeitamente normal, isto é conforme ao
ideal do grupo, e inversamente. Na mesma ótica, Ruth Benedict (1950) opõe
101

a sociedade ”apoloniana”dos ı́ndios Pueblos do Novo México à exaltação e


rivalidade ”dionisı́acas”permanentes que mantêm entre si os habitantes da
ilha de Dobu, este povo de feiticeiros (R. Fortune, 1972). Se houver, entre
estes, indivı́duos que não tenham nenhum sentimento de suspeição, nenhum
gosto pelo roubo, e detestem brigar, não deixarão de aparecer como margi-
nais, enquanto estariam perfeitamente bem adaptados (e considerados como
conformistas) na sociedade pueblo.

A partir de exemplos desse tipo, Ruth Benedict elabora sua teoria do ”arco
cultural”. Cada cultura realiza uma escolha. Valoriza um determinado seg-
mento do grande arcode c´ırculo das possibilidades da humanidade. Encoraja
um certo número de comportamentos em detrimento de outros que se vêem
censurados. Através de um processo de seleção (não biológico, mas cultu-
ral), todos os membros de uma mesma sociedade compartilham um certo
número de preocupações, sentem as mesmas inclinações e aversões. O que
caracteriza uma determinada sociedade é uma ”configuração cultural”, uma
lógica que se encontra ao mesmo tempo na especificidade das instituições e
na dos comportamentos. Toda cultura persegue um objetivo, desconhecido
dos indivı́duos. Cada um de nós possui em si todas as tendências, mas a cul-
tura à qual pertencemos realiza uma seleção. As instituições (e, em especial,
as instituições educativas: famı́lias, escolas, ritos de iniciação) pretendem –
inconscientemente – fazer com que os indiv´ıduos se conformem aos valores
próprios de cada cultura.

Crı́ticas, freqüentemente severas, não faltaram aos cul-turalismo americano,4


que está longe de fazer a unanimidade entre os antropólogos, sobretudo na
França onde o mı́nimo que se pode dizer é que não tem boa reputação. Tra-
balhando com uma abordagem muito empı́rica (a localização das funções, dos
conflitos e das significações, em detrimento da investigação das normas, das
regras e dos sistemas, de acordo com os termos de Michel Foucault aos quais
nos referimos acima), tende a efetuar uma reducão dos comportamentos hu-
manos a tipos, e a esboçar tipologias que devem muito mais à intuicão e à
própria personalidade do pesquisador, do que à construção rigorosa de um
objeto cientı́fico. Além disso, e em conseqüência mesmo dos pressupostos que
são seus (a observação daquilo que, em uma sociedade, é manifesto, em detri-
mento daquilo que é recalcado e inconsciente), desenvolve uma concepção do
4
Autorizo-me a indicar ao leitor dois de meus livros anteriores (L’Ethnopsychiatrie, Ed.
Universitaires, 1973, pp. 33-36; Les 50 Mots Clés de 1’Anthropologie, Ed. Privat, 1974,
pp. 46-50) e a sublinhar que, a meu ver, foi Georges Devereux (1970). colocando-se no
coração mesmo do campo de estudo privilegiado por essa tendência da antropologia, quem
propôs a crı́tica mais radical desta.
relativismo cultural (expressão forjada por Herskovitz) que
102
o impede de dar o passo que separa o estudo das variações
culturais da análise da variabilidade da cultura;
variabilidade esta que será o objeto das pesquisas
examinadas no próximo capı́tulo.

Isso não impede que, levando-se em ’conta essas crı́ticas,


levando-se em conta, também, o fato de que o projeto
desses autores é freqüentemente menos am- bicioso do
que geralmente se diz (cf. particularmente a obra de
Ruth Be- nedict), a antropologia cultural, pela área de
investigação que é sua e que é freqüentemente deixada de
lado em nosso paı́s, pela amplitude do campo dos
materiais recolhidos, pela importância dos problemas
colocados, represente uma contribuição bastante
considerável para nossa disciplina.
Copyright © 1986, Roque de Barros Laraia lidos
os direitos reservados.
A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo
ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 9.610)
Copyright © 2001 desta edição:
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1996, 1997, 1999, 2000
Capa: Carol Sá e Sérgio Campante

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Laraia, Roque de Barros, 1932-


1.331c Cultura: uni conceito antropológico / Roque
14.ed. de Barros Laraia. — 14.ed. — Rio de Janeiro: Jorge
"Zahar Ed., 2001
(Antropologia social)

Anexos
Inclui bibliografia
ISBN 85-7110-438-7

Cultura. I Titulo. II Série.


CDD 306
01-0157 CDU 316.7
Segund a parte

C O M O OPERA A CULTURA
1. . A C U LTU R A C O N D IC ION A
A VISÃO D E MUND O D O HOMEM

Na primeira parte deste trabalho discutimos o Ruth Benedict escreveu em seu livro O crisântemo e a
desenvolvimento, na antropologia, do conceito de cultura. espad a1 que a cultura é como uma lente através da qual o
Mostramos também as explicações da ciência para o homem vê o mundo. Homens de culturas diferentes usam
processo de evolução biocultural do homem. Em outras lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das
palavras, vimos como a cultura, a principal característica coisas. Por exemplo, a floresta amazônica não passa para o
humana, desenvolveu-se simultaneamente com o antropólogo — desprovido de um razoável conhecimento de
equipamento fisiológico do homem. Preocupamo-nos então botânica — de um amontoado confuso de árvores e arbustos,
em fornecer uma descrição diacrônica do próprio dos mais diversos tamanhos e com uma imensa variedade de
desenvolvimento teórico da antropologia. Nesta segunda tonalidades verdes. A visão que um índio Tupi tem deste
parte pretendemos mostrar, de uma maneira mais prática, a mesmo cenário é totalmente diversa: cada um desses
atuação da cultura e de que forma ela molda uma vida "num vegetais tem um significado qualitativo e uma referência
ser biologicamente preparado para viver mil vidas". espacial. Ao invés de dizer como nós: "encontro-lhe na
esquina junto ao edifício x", eles freqüentemente usam
determinadas árvores como ponto de referência. Assim, ao
contrário da visão de um mundo vegetal amorfo, a floresta é
vista como um conjunto ordenado, constituído de formas
vegetais bem definidas.
A nossa herança cultural, desenvolvida através de inú-
meras gerações, sempre nos condicionou a reagir deprecia-
tivamente em relação ao comportamento daqueles que agem
fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade. Por
isto, discriminamos o comportamento desviante. Até recen-
temente, por exemplo, o homossexual corria o risco de
agressões físicas quando era identificado numa via pública e alegria. Todos os homens riem, mas o fazem de maneira
ainda é objeto de termos depreciativos. Tal fato representa diferente por motivos diversos.
um tipo de comportamento padronizado por um sistema
A primeira vez que vimos um índio Kaapor rir foi um
cultural. Esta atitude varia em outras culturas. Entre algumas
tribos das planícies norte-americanas, o homossexual era motivo de susto. A emissão sonora, profundamente alta,
visto com,-) um ser dotado de propriedades mágicas, capaz assemelhava-se a imaginários gritos de guerra e a expressão
de servir de mediador entre o mundo social e o sobrenatural, facial em nada se assemelhava com aquilo que estávamos
e portanto respeitado. Um outro exemplo de atitude diferente acostumados a ver. Tal fato se explica porque cada cultura
de comportamento desviante encontramos entre alguns povos tem um determinado padrão para este fim. Os alunos de
da Antigüidade, onde a prostituição não constituía um fato uma nossa sala de aula, por exemplo, estão convencidos de
anômalo: jovens da Lícia praticavam relações sexuais em
que cada um deles tem um modo particular de rir, mas um
troca de moedas de ouro, a fim de acumular um dote para o
casamento. observador estranho a nossa cultura comentará que todos
O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral eles riem de uma mesma forma. Na verdade, as diferenças
e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo percebidas pelos estudantes, e não pelo observador de fora,
as posturas corporais são assim produtos de uma herança são variações de um mesmo padrão cultural. Por isto é que
cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determi- acreditamos que todos os japoneses riem de uma mesma
nada cultura. maneira. Temos a certeza de que os japoneses também estão
Graças ao que foi dito acima, podemos entender o fato de que
convencidos que o riso varia de indivíduo para indivíduo
indivíduos de culturas diferentes podem ser facilmente
identificados por uma série de características, tais como o modo dentro do Japão e que todos os ocidentais riem de modo
de agir, vestir, caminhar, comer, sem mencionar a evidência das igual.
diferenças lingüísticas, o fato de mais imediata observação Pessoas de culturas diferentes riem de coisas diversas. O
empírica. repetitivo pastelão americano não encontra entre nós a
Mesmo o exercício de atividades consideradas como mesma receptividade da comédia erótica italiana, porque em
parte da fisiologia humana podem refletir diferenças de
nossa cultura a piada deve ser temperada com uma boa dose
cultura. Tomemos, por exemplo, o riso. Rir é uma proprie-
dade do homem e dos primatas superiores. O riso se expres- de sexo e não melada pelo arremesso de tortas e bolos na
sa, primariamente, através da contração de determinados face do adversário. Voltando aos japoneses: riem muitas
músculos da face e da emissão de um determinado tipo de vezes por questão de etiqueta, mesmo em momentos evi-
som vocal. O riso exprime quase sempre um estado de dentemente desagradáveis. Enfim, poderíamos continuar
indefinidamente mostrando que o riso é totalmente condi-
cionado pelos padrões culturais, apesar de toda a sua fisio-
logia.
invés de ser determinada geneticamente (todas as formigas
Ainda com referência às diferentes maneiras culturais de de uma dada espécie usam os seus membros uniformemente),
efetuar ações fisiológicas, gostaríamos de citar o clássico a rtigo depende de um aprendizado e este consiste na cópia de
de Marcel Ma uss, ( 1872- 1950 ) "Noção de técnica padrões que fazem parte da herança cultural do grupo.
corporal"2, no qual analisa as formas como os homens, de Não pretendemos nos estender neste ponto porque os
sociedades diferentes, sabem servir-se de seus corpos. Se- exemplos seriam inumeráveis, mas vamos acrescentar mais
gundo Mauss, podemos admitir com certeza que se "uma um exemplo: o homem recupera a sua energia, a sua força de
criança senta-se à mesa com os cotovelos junto ao corpo e trabalho, através da alimentação. Esta é realizada de formas
permanece com as mãos nos joelhos, quando não está co- múltiplas e com alimentos diferentes.
mendo, ela é inglesa. Um jovem francês não sabe mais se É evidente e amplamente conhecida a grande diversidade
dominar: ele abre os cotovelos em leque e apóia-os sobre a gastronômica da espécie humana. Freqüentemente, esta
mesa". Não é difícil imaginar que a posição das crianças diversidade é utilizada para classificações depreciativas;
brasileiras, nesta mesma situação, pode ser bem diversa. assim, no início do século os americanos denominavam os
Como exemplo destas diferenças culturais em atos que franceses de "comedores de rãs". Os índios Kaapor discrimi-
podem ser classificados como naturais, Mauss cita ainda as nam os Timbira chamando-os pejorativamente de "comedo-
técnicas do nascimento e da obstetrícia. Segundo ele, "Buda res de cobra". E a palavra potiguara pode significar realmen-
nasceu estando sua mãe, Mãya, agarrada, reta, a um ramo de te "comedores de camarão", mas resta uma dúvida lingüística
árvore. Ela deu ã luz em pé. Boa parte das mulheres da Índia desde que em Tupi ela soa muito próximo da palavra que
significa "comedores de fezes".
ainda dão à luz desse modo". Para nós, a posição normal é a
As pessoas não se chocam, apenas, porque as outras
mãe deitada sobre as costas, e entre os Tupis e outros índios comem coisas diferentes, mas também pela maneira que
brasileiros a posição é de cócoras. Em algumas regiões do agem à mesa. Como utilizamos garfos, surpreendemo-nos
meio rural existiam cadeiras especiais para o parto sentado. com o uso dos palitos pelos japoneses e das mãos por certos
Entre estas técnicas pode-se incluir o chamado parto sem dor segmentos de nossa sociedade:
e provavelmente muitas outras modalidades culturais que
estão ã espera de um cadastramento etnográfico. "Vida de Pará,
Dentro de uma mesma cultura, a utilização do corpo é Vida de descanso,
diferenciada em função do sexo. As mulheres sentam, cami- Comer de arremesso E
nham, gesticulam etc. de maneiras diferentes das do homem. dormir de balanço."
Estas posturas femininas são copiadas pelos travestis.
Em algumas sociedades o ato de comer pode ser público, em
Resumindo, todos os homens são dotados do mesmo
outras uma atividade privada. Alguns rituais de boas
equipamento anatômico, mas a utilização do mesmo, ao
maneiras exigem um forte arroto, após a refeição, como em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos con- flitos
sinal de agrado da mesma. Tal fato, entre nós, seria conside- sociais.
rado, no mínimo, como indicador de má educação. Entre os O etnocentrismo, de fato, é um fenômeno universal. É
latinos, o ato de comer é um verdadeiro rito social, segundo o comum a crença de que a própria sociedade é o centro da
qual, em horas determinadas, a família deve toda sentar-se à humanidade, ou mesmo a sua única expressão. As autode-
mesa, com o chefe na cabeceira, e somente iniciar a nominações de diferentes grupos refletem este ponto de
alimentação, em alguns casos, após mia prece. vista. Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se
Roger Keesing em seu manual New Perspectives in Cul- autodenominavam "os entes humanos"; os Akuáwa, grupo
Tupi do Sul do Pará, consideram-se "os homens"; os
tural Anthropology 3 começa com uma parábola que
esquimós também se denominam "os homens"; da mesma
aconteceu ser verdadeira: "Uma jovem da Bulgária ofereceu forma que os Navajo se intitulavam "o povo". Os
um jantar para os estudantes americanos, colegas de seu australianos chamavam as roupas de "peles de fantasmas",
marido, e entre eles foi convidado um jovem asiático. Após pois não acreditavam que os ingleses fossem parte da
os convidados terem terminado os seus pratos, a anfitriã humanidade; e os nossos Xavante acreditam que o seu
perguntou quem gostaria de repetir, pois uma anfitriã território tribal está situado bem no centro do mundo. É
búlgara que deixasse os seus convidados se retirarem comum assim a crença no povo eleito, predestinado por seres
sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais crenças
famintos estaria desgraçada. O estudante asiático aceitou
contêm o germe do racismo, da intolerância, e,
um segundo prato, e um terceiro — enquanto a anfitriã frequentemente, são utilizadas para justificar a violência
ansiosamente preparava mais comida na cozinha. Finalmente, praticada contra os outros.
no meio de seu quarto prato o estudante caiu ao solo, A dicotomia "nós e os outros" expressa em níveis dife-
convencido de que agiu melhor do que insultar a anfitriã rentes essa tendência. Dentro de uma mesma sociedade, a
pela recusa da comida que lhe era oferecida, conforme o divisão ocorre sob a forma de parentes e não-parentes. Os
costume de seu país." Esta parábola, acrescenta Keesing, primeiros são melhores por definição e recebem um
reflete a condição humana. O homem tem despendido tratamento diferenciado. A projeção desta dicotomia para o
grande parte da sua história na Tora, separado em pequenos plano extragrupal resulta nas manifestações nacionalistas ou
grupos, cada um com a sua própria linguagem, sua própria formas mais extremadas de xenofobia.
visão de mundo, seus costume, e expectativas. O ponto fundamental de referência não é a humanidade,
O fato de que o homem vê o mundo através de sua mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos a estranheza, em
cultura tem como conseqüência a propensão em considerar relação aos estrangeiros. A chegada de um estranho em
o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. determinadas comunidades pode ser considerada como a
Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável
quebra da ordem social ou sobrenatural. Os Xamã Suruí
(índios Tupi do Pará) defumam com seus grandes charutos rituais A CULTURA INTERFERE NO
os primeiros visitantes da aldeia, a fim de purificá-los e torná-los PLANO BIOLÓGICO
inofensivos.
O costume de discriminar os que são diferentes, porque
pertencem a outro grupo, pode ser encontrado mesmo dentro
de uma sociedade. A relação de parentesco consangüíneo afim
pode ser tomada como exemplo. Entre os romanos, a
maneira de neutralizar os inconvenientes da afinidade con-
sistia em transformar a noiva em consangüínea, incorporan- Vimos, acima, que a cultura interfere na satisfação das ne-
do-a no clã do noivo pelo do ritual de carregá-la através da
cessidades fisiológicas básicas. Veremos, agora, como ela pode
soleira da porta (ritual este perpetuado por Hollywood). A
noiva japonesa tem a cabeça coberta por um véu alto que condicionar outros aspectos biológicos e até mesmo decidir sobre
esconde os "chifres" que representam a discórdia a ser a vida e a morte dos membros do sistema.
implantada na família do noivo com o início da relação afim. Comecemos pela reação oposta ao etnocentrismo, que é
Um outro exemplo são as agressões verbais, e até físicas, a apatia. Em lugar da superestima dos valores de sua própria
praticadas contra os estranhos que se arriscam em determi- sociedade, numa dada situação de crise os membros de uma
nados bairros periféricos de nossas grandes cidades. cultura abandonam a crença nesses valores e, conseqüente-
Comportamentos etnocêntricos resultam também em
mente, perdem a motivação que os mantém unidos e vivos.
apreciações negativas dos padrões culturais de povos dife- rentes.
Práticas de outros sistemas culturais são catalogadas como Diversos exemplos dramáticos deste tipo de comportamento
absurdas, deprimentes e imorais. anômico são encontrados em nossa própria história.
Os africanos removidos violentamente de seu continente
2. (ou seja, de seu ecossistema e de seu contexto cultural) e
transportados como escravos para uiva terra estranha habi-
tada por pessoas de fenotipia, costumes e línguas diferentes,
perdiam toda a motivação de continuar vivos. Muitos foram
os suicídios praticados, e outros acabavam sendo mortos
pelo mal que foi denominado de banzo. Traduzido como
saudade, o banzo é de fato uma forma de morte decorrente
da apatia.
Foi, também, a apatia que dizimou parte da população
Kaingang de São Paulo, quando teve o seu território
invadido
pelos construtores da Estrada de Ferro Noroeste. Ao perceberem mortes de acidente de estrada." É de se supor que em todos
que os seus recursos tecnológicos, e mesmo os seus seres os casos relatados o procedimento orgânico que leva ao
sobrenaturais, eram impotentes diante do poder da sociedade desenlace tenha sido o mesmo.
branca, estes índios perderam a crença em sua sociedade. Muitos Deixando de lado estes exemplos mais drásticos sobre a
abandonaram a tribo, outros simplesmente esperaram pela morte atuação da cultura sobre o biológico, podemos agora nos
que não tardou.1 referir a um campo que vem sendo amplamente estudado: o
Entre os índios Kaapor, grupo Tupi do Maranhão, acre- das doenças psicossomáticas. Estas são fortemente influen-
dita-se que se uma pessoa vê um fantasma ela logo morrerá. O ciadas pelos padrões culturais. Muitos brasileiros, por
principal protagonista de um filme, realizado em 1953 por exemplo, dizem padecer de doenças do fígado, embora
Darcy Ribeiro e Hains Forthmann, ao regressar de uma grande parte dos mesmos ignorem até a localização do órgão.
caçada contou ter visto a alma de seu falecido pai perambu- Entre nós são também comuns os sintomas de mal-estar
lando pela floresta. O jovem índio deitou em uma rede e dois provocados pela ingestão combinada de alimentos. Quem
dias depois estava morto. Em 1967, durante a nossa perma- acredita que o leite e a manga constituem uma combinação
nência entre estes índios (quando a história acima nos foi perigosa, certamente sentirá um forte incômodo estomacal se
contada), fomos procurados por uma mulher, em estado de ingerir simultaneamente esses alimentos.
pânico, que teria visto um fantasma (um "añan"). Confiante A sensação de fome depende dos horários de alimenta-
nos poderes do branco, nos solicitou um "añan-puhan" ção que são estabelecidos diferentemente em cada cultura.
(remédio para fantasma). Diante de uma situação crítica, "Meio-dia, quem não almoçou assobia", diz um ditado po-
acabamos por fornecer-lhe um comprimido vermelho de pular. E de fato, estamos condicionados a sentir fome no
vitaminas, que foi considerado muito eficaz, neste e em meio do dia, por maior que tenha sido o nosso desjejum. A
outros casos, para neutralizar o malefício provocado pela mesma sensação se repetirá no horário determinado para o
visão de um morto. jantar. Em muitas sociedades humanas, entretanto, estes
É muito rica a etnografia africana no que se refere às horários foram estabelecidos diferentemente e, em alguns
mortes causadas por feitiçaria. A vítima, acreditando efeti- casos, o indivíduo pode passar um grande número de horas
vamente no poder do mágico e de sua magia, acaba realmente sem se alimentar e sem sentir a sensação de fome.
morrendo. Pertti Peito descreve esse tipo de morte como A cultura também é capaz de provocar curas de doenças,
sendo conseqüência de um profundo choque psicofisiológico: reais ou imaginárias. Estas curas ocorrem quando existe a fé
"A vítima perde o apetite e a sede, a pressão sangüínea cai, o do doente na eficácia do remédio ou no poder dos agentes
plasma sangüíneo escapa para os tecidos e o coração culturais. Um destes agentes é o xamã de nossas sociedades
deteriora. Ela morre de choque, o que é fisiologicamente a tribais (entre os Tupi, conhecido pela denominação de pai' é
mesma coisa que choque de ferimento na guerra e nas ou pajé). Basicamente, a técnica de cura do
xamã consiste em uma sessão de cantos e danças, além da extrair e vomitar o ymaé, que fez desaparecer na mão.
defumação do paciente com a fumaça de seus grandes cha- Nas curas a que assistimos, os pajés jamais mostraram o
rutos (petin), e a posterior retirada de um objeto estranho do ymaé que extraíam dos doentes. Guardavam-nos por
interior do corpo do doente por meio de sucção. O fato de algum tempo dentro da mão, livre do cigarro, para fazê-
que esse pequeno objeto (pedaço de osso, insetos mortos lo desaparecer após. Explicavam, porém, à audiência a
etc.) tenha sido ocultado dentro de sua boca, desde o inicio sua natureza, o que parecia bastante. Dizem que os pajés
do ritual, não é importante. O que importa é que o doente é mais poderosos o fazem, e algumas pessoas guardam
tomado de uma sensação de alívio, e em muitos casos a cura pequenos objetos que acreditam terem sido retirados de
se efetiva. seu corpo por um pajé.2

A descrição de uma cura dará, talvez, uma idéia mais


detalhada do processo. Após cerca de uma hora de
cantar, dançar e puxar no cigarro, o pajé recebeu o
espírito. Aproximando-se do doente que estava sentado
em um banco, o pajé soprou fumaça primeiro sobre as
próprias mãos e, em seguida, sobre o corpo do paciente.
Ajoelhando-se junto a ele, esfregou-lhe o peito e o
pescoço. A massagem era dirigida para um ponto no
peito do doente, e o pajé esfregava as mãos como se
tivesse juntado qualquer coisa. Interrompia a massagem
para soprar fumaça nas mãos e esfregá-las uma na outra,
como se quisesse livrá-las de uma substância invisível.
Após muitas massagens no doente, levantou-lhe os bra-
ços e encostou seu peito ao dele. Queria assim passar o
ymaé (a causa da doença, aquilo que um ser sobrenatural
faz entrar no corpo da vítima) do doente para o seu
próprio corpo. Não o conseguiu e voltou a repetir as
massagens, dessa vez dirigidas para o ombro. Aí aplicou a
boca e chupou com muita força. Repetiu as massagens e
sucções, intercalando-as com baforadas de cigarro e
contrações como se fosse vomitar. Finalmente conseguiu
3. OS INDIVÍDUOS PARTICIPAM esta afirmação permite dois tipos de explicações: uma de ordem
DIFERENTEMENTE DE SUA CULTURA cronológica e outra estritamente cultural.
Existem limitações que são objetivamente determinadas
pela idade: uma criança não está apta para exercer certas
atividades próprias de adultos, da mesma forma que um
velho já não é capaz de realizar algumas tarefas. Estes impe-
dimentos decorrem geralmente da incapacidade do desem-
penho de funções que dependem da força física ou agilidade,
A participação do indivíduo em sua cultura é sempre como as referentes à guerra, à caça etc. Entre outras funções
limitada; nenhuma pessoa é capaz de participar de todos os podemos incluir as que dependem do acúmulo de uma
elementos de sua cultura. Este fato é tão verdadeiro nas experiência obtida através de muitos anos de preparação.
sociedades complexas com um alto grau de especialização, Torna-se fácil entender por que estas são interditadas às
quanto nas simples, onde a especialização refere-se apenas crianças e aos jovens e reservadas às pessoas maduras, como
às determinadas pelas diferenças de sexo e de idade. certos cargos políticos etc.
Com exceção de algumas sociedades africanas — nas No primeiro tipo de impedimento etário as razões
quais as mulheres desempenham papéis importantes na vida parecem ser bastante evidentes, o que não ocorre com o
ritual e econômica —, a maior parte tias sociedades huma-
segundo tipo, quando tratamos das razões determinadas
nas permite uma mais ampla participação na vida cultural
aos elementos do sexo masculino. Grande parte da vida cultural-mente. Por que um jovem aos 18 anos pode votar, ter
ritual do Xingu, por exemplo, é interditada às mulheres. um emprego, ir à guerra, se não pode casar, manipular os seus
Estas não podem ver as flautas Jacui e as que quebram esta bens financeiros antes dos 21 anos sem a autorização paterna?
interdição sofrem o risco de graves sanções. Em alguns Por que um homem necessita ter 35 anos para ser um
segmentos de nossa sociedade, o trabalho fora de casa é senador? Qual o argumento para impedir o acesso ao mesmo
considerado inconveniente para o sexo feminino. Como já cargo para um homem de 34 anos? Por que uma jovem com
discutimos este tema na primeira parte deste trabalho, quando
18 anos pode assistir a um determinado filme e uma outra
tratamos dos determinismos biológicos, vamos nos limitar a
uma discussão mais ampla das restrições decorrentes das com 17 anos, 11 meses e 20 dias não o pode? Por que um
categorias etárias. assassino com exatamente 18 anos pode ir a julgamento e
É óbvio que a participação de um indivíduo em sua outro com um dia a menos de vida recebe um tratamento
cultura depende de sua idade. Mas é necessário saber que diferenciado?
Estas e outras questões estão relacionadas com a deter-
minação do limite entre as classes etárias, ou seja, como
separar objetivamente adolescentes de adultos, sem incorrer em de determinadas ações. Apesar disso tudo há sempre o risco
algum tipo de arbitrariedade? de perda do controle da situação, porque "em nenhuma
Os grupos tribais utilizam métodos mais evidentes para sociedade todas as condições são previsíveis e controladas".2
estabelecer esta distinção: uma moça é considerada adulta De fato, os indivíduos podem perder o controle da situação,
logo após a primeira menstruação, podendo a seguir exercer embora na maioria dos casos isto não seja verda- deiro. E não o é
plenamente todos os papéis femininos. Em contrapartida, porque o conhecimento mínimo referido abrange um certo
pode-se afirmar que é evidente que uma jovem de 12 ou 13 número de padrões de comportamento que são regulares e,
anos não está ainda adequadamente socializada para exercer portanto, permitem a previsão.
esses papéis numa sociedade complexa. Mas mesmo numa Todos os membros de nossa sociedade sabem que uma
sociedade simples a determinação idêntica para um jovem do forma cortês de solicitar algum tipo de favor é a de preceder o
sexo masculino não parece ser tão fácil. Provavelmente pedido com a expressão "por favor ". Sabem também da
depende do desempenho individual dos candidatos a um novo necessidade de agradecer formalmente o atendimento con-
status. seguido com as palavras "muito obrigado", sob a pena de
Mas, qualquer que seja a sociedade, não existe a possi- não mais conseguir nada de seu interlocutor se esquecerem
bilidade de um indivíduo dominar todos os aspectos de sua de pronunciar estes simples vocábulos. Estas palavras, pois,
cultura. Isto porque, como afirmou Marion Levy Jr., 1 "ne- fazem parte de nossos padrões de comportamento e ignorá-
nhum sistema de socialização é idealmente perfeito, em las significa o rompimento de uma regra e, conseqüente-
nenhuma sociedade são todos os indivíduos igualmente bem mente, a impossibilidade de prever a resposta. Assim, a
socializados, e ninguém é perfeitamente socializado. Um solicitação de um favor em termos imperativos pode provo-
indivíduo não pode ser igualmente familiarizado com todos car, entre outras, as seguintes ações: o interlocutor atende ao
os aspectos de sua sociedade; pelo contrário, ele pode pedido; finge não ouvir o pedido; nega em termos ríspidos
permanecer completamente ignorante a respeito de alguns atender ao pedido; ou retruca com um forte palavrão. Estas
aspectos". Exemplificando: Einstein era um gênio na física, alternativas somente ocorreram porque foram rompidos pa-
um medíocre violinista e, provavelmente, seria um completo drões de comportamentos que asseguravam a possibilidade
desastre como pintor. de uma previsão.
O importante, porém, é que deve existir um mínimo de Tomemos, ainda como exemplo, os nossos termos de
participação do indivíduo na pauta de conhecimento da parentescos. Se uma pessoa denomina outra de pai, ela
cultura a fim de permitir a sua articulação com os demais espera um determinado tipo de comportamento que geral-
membros da sociedade. Todos necessitam saber como agir mente a beneficia. Daí a expressão popular: "negócio de pai
em determinadas situações e, também, como prever o com- para filho". As pessoas sabem como agir e podem prever a
portamento dos outros. Somente assim é possível o controle ação do outro, mesmo quando diante de um pai com o qual
nunca teve um contato anterior.
Um candidato a um emprego sabe que o empregador dispõe pouco atraente, trouxe para casa uma segunda mulher. A
apenas de duas alternativas básicas: conceder-lhe o lugar ou não. primeira esposa não gostou e atacou a jovem. Os irmãos
A surpresa ocorrerá, apenas, se o empregador agir de maneira da primeira obrigaram Biboi a despedir a segunda
inusitada, não prevista pelas duas possibili- dades de respostas. esposa e afastá-la do povoado. Biboi, então, estabeleceu a
Nem sempre, porém, a falta de comunicação acontece jovem em Cabruá, o povoado de seu pai.
porque um padrão de comportamento foi quebrado, mas Tendo deixado a sua formosa esposa num lugar segu-
porque às vezes os padrões não cobrem todas as situações ro, como a casa de seu pai, Biboi voltou a Cabitutu para
possíveis. Tal fato ocorre em períodos de mudança cultural arranjar as coisas e acalmar os descontentes. Mas conti-
e, principalmente, quando estes são determinadas por forças nuou com as suas maneiras arrogantes e exigentes, e
externas, quando surgem fatos inesperados e de difícil ma- assim os sentimentos do povoado foram se inflamando
nipulação. São situações sem precedentes e que, portanto, sem que ele recebesse nenhum apoio de sua primeira
não são controladas pelo conjunto de regras ordinárias. Nem esposa e de seus parentes. Entre eles foi crescendo cada
sempre os indivíduos envolvidos conseguem utilizar sua vez mais a determinação de exterminá-lo.
tradição cultural para contorná-las sem provocar conflitos. Enquanto isto, a pessoa de sua jovem esposa não
Alan Beals transcreve um texto de Robert Murphy, acerca estava tão segura como Biboi acreditava. Seu esposo
dos índios Munduruku, localizados no rio Madeira, que estava ausente e ela era uma moça desacompanhada; a
serve como exemplo para este tipo de situação: sua retidão não foi suficiente para fazer frente aos ho-
mens de Cabruá. Breve todos os homens do povoado,
Isto ocorreu ao jovem chefe Munduruku, quando cha- com exceção daqueles que eram afetados pela proibição
mado Biboi. Ele era o filho de um chefe, mas tinha sido do incesto, desfrutaram os favores da jovem esposa de
educado por um comerciante brasileiro e se sentia supe- Biboi...
rior a seus companheiros. Foi o comerciante que o O equilíbrio do poder e da moral favorecia os oponen-
nomeou capitão de Cabitutu. O papel de capitão consis- tes de Biboi, e o esforço dos que o apoiavam tornou-se
tia em servir de intermediário entre o grupo e as neces- cada vez mais difícil em virtude do fato de que Biboi
sidades de comercialização do caucho por parte do havia quase deixado de ser uma pessoa social, as regras já
comerciante. Em Cabitutu, Biboi não tinha parentes e não se aplicavam a ele. Nós mesmos deixamos o lugar
era considerado muito jovem e por isto tinha menos antes de que caísse o pano deste pequeno drama social,
prestígio que muitos homens do povoado. No intento de mas já se podia prever a conclusão. Esta se tornou mais
fortalecer sua posição, Biboi casou com uma viúva evidente após a nossa saída, quando Caetano caiu de
vários anos mais velha que ele. Considerando a mulher uma palmeira e ficou gravemente ferido durante vários
dias. Sabendo que o povo de Cabitutu lhe daria a morte
tão logo soubesse do falecimento de seu pai, Biboi A CULTURA TEM UMA LÓGICA PRÓPRIA
voltou imediatamente a Cabruá e ali permaneceu até que
o ancião conseguisse recuperar-se. Durante este período
Biboi se acercou de mim e disse: "Sabe, se meu pai
morrer, partirei desta terra e viverei na margem do rio
Tapajós." Perguntei por que ele se ia, Biboi respondeu:
"Porque é muito bonito lá." Biboi sabia que a sua vida
como membro dos Munduruku estava terminada. 3 Já foi o tempo em que se admitia existirem sistemas cultu-
Biboi é um homem que não se sente em nenhuma rais lógicos e sistemas culturais pré-lógicos. Levy-Bruhl, em
cultura. Não soube manejar as regras para viver bem na seu livro A mentalidade primitiva 1 , admitia mesmo que a
sociedade Munduruku — ele se considerava muito su- humanidade podia ser dividida entre aqueles que possuíam
perior a eles e acreditava poder ensiná-los. Estava colo- um pensamento lógico e os que estavam numa fase pré-ló-
cado em um status que não lhe pertencia e onde não gica. Tal afirmação não encontrou, por parte dos
podia ter êxito já que não contava com o apoio de pesquisadores de campo, qualquer confirmação empírica.
parentes. No final teve que escolher entre a morte ou o Todo sistema cultural tem a sua própria lógica e não passa de
exílio.4 um ato primário de etnocentrismo tentar transferir a lógica
de um sistema para outro. Infelizmente, a tendência mais
O exemplo descrito acima mostra o que pode ocorrer comum é de considerar lógico apenas o próprio sistema e
com uma pessoa que, por força de uma socialização inade- atribuir aos demais um alto grau de irracionalismo.
quada, não conhece as regras de seu grupo. Embora nenhum A coerência de um hábito cultural somente pode ser
indivíduo, repetimos, conheça totalmente o seu sistema analisada a partir do sistema a que pertence.
cultural, é necessário ter um conhecimento mínimo para Um trabalho fundamental para a compreensão deste
operar dentro do mesmo. Além disto, este conhecimento problema é o livro de Claude Lévi-Strauss, O pensamento
mínimo deve ser partilhado por todos os componentes da selvagem2 , que refuta a abordagem evolucionista de que as
sociedade de forma a permitir a convivência dos mesmos. sociedades simples dispõem de um pensamento mágico que
Um médico pode desconhecer qual a melhor época do ano antecede o científico e que, portanto, lhe é inferior. "O
para o plantio de feijão, um lavrador certamente desconhece pensamento mágico — diz Lévi-Strauss — não é um come-
as causas de certas anomalias celulares, mas ambos conhe- ço, um esboço, uma iniciação, a parte de um todo que não se
cem as regras que regulam a chamada etiqueta social no que realizou; forma um sistema bem articulado, independente
se refere às formas de cumprimentos entre as pessoas de uma deste outro sistema que constituirá a ciência, salvo a analo-
mesma sociedade. gia formal que as aproxima e que faz do primeiro uma
4.
expressão metafórica do segundo." Assim, ao invés de um O homem sempre buscou explicações para fatos tão
contínuo magia, religião e ciência, temos de fato sistemas cruciais como a vida e a morte. Estas tentativas de
simultâneos e não-sucessivos na história da humanidade. explicar o início e o fim da vida humana foram sem
A ciência não depende da dicotomia entre os tipos de dúvida responsáveis pelo aparecimento dos diversos
pensamento citados acima, mas de instrumentos de obser- sistemas filosóficos. Explicar a vida implica a com-
vação, pois como enfatizou Lévi-Strauss: "o sábio nunca preensão dos fenômenos da concepção do nascimento.
dialoga com a natureza pura, senão com um determinado Estas são importantes para a ordem social. Da explicação
estado de relação entre a natureza e a cultura, definida por que o grupo aceita para a reprodução humana resulta o
um período da história em que vive, a civilização que é a sua e sistema de parentesco, que vai regulamentar todo o
os meios materiais de que dispõe." comportamento social.
Sem estes meios materiais o homem tem que tirar con- Nem sempre as relações de causa e efeito são
clusões a partir de sua observação direta, valendo-se apenas percebidas da mesma maneira por homens de culturas
do inst rumental sensorial de que dispõe. Assim, não é nada diferentes. E hoje todos sabem que o homem só pode
ilógico supor que é o Sol que gira em torno da Terra, pois é compreender o mistério da vida quando dispõe de instru-
esta sua sensação. Uma conhecida nossa perguntou a um mentos que lhe permitam desvendar o mundo do infi-
caipira paulista como é que o sol morre todos os dias no Oeste nitamente pequeno. O homem tribal não possuía mi-
e nasce no Leste. "Ele volta apagado durante a noite", foi a croscópios. E teve que construir a partir de suas simples
resposta que obteve. Menos que um pensamento absurdo, trata- observações as teorias que durante séculos e ainda hoje
se de uma outra concepção a respeito do universo, obviamente têm a validade das verdades científicas.
diferente da nossa, que dispomos das informa- ções obtidas por Para os habitantes das ilhas Trobriand, no Pacífico, não
sofisticados observatórios astronômicos. existe nenhuma relação entre a cópula e a concepção.
Sem o auxilio do microscópio é impossível imaginar a Sabem, apenas, que uma jovem não deve mais ser
existência de germes, daí ser mais fácil admitir que as virgem para ser penetrada por um "espírito" de sua
doenças são decorrentes da intromissão de seres sobrenatu- linhagem materna, que vai gerar em seu útero uma
rais malignos. E, conseqüentemente, o tratamento deve ser criança. Esta criança estará ligada por laços de parentes-
formulado a partir de sessões xamanísticas, capazes de con- co, apenas, aos parentes da jovem, não existindo em
trolar e exorcizar essas entidades. Trobriand nenhuma palavra correspondente à que utili-
Em um outro artigo mostramos que o fenômeno do zamos para definir o pai.
aparecimento da vida individual só é explicado através da O homem que vive com a mulher será chamado pela
mediação de equipamentos ópticos que a humanidade so- mente criança por um termo que podemos traduzir como
recentemente passou a possuir: "companheiro da mãe".
Esta idéia de reprodução sexual não impediu que os meio-irmãos, isto é, jovens que tenham a mesma mãe e
habitantes de Trobriand notassem a semelhança física pais diferentes.3
que ocorre entre a criança e o "companheiro da mãe". A
explicação encontrada foi a de que a criança convive As explicações encontradas pelos membros das diversas
diariamente com aquele homem e dele copia os gestos, o sociedades humanas, portanto, são lógicas e encontram a sua
modo de falar, as expressões faciais, dando a ilusão de
coerência dentro do próprio sistema. Nunca é demais repetir o
uma semelhança. Além disto, deve-se considerar que o
limitado estoque genético de um grupo excessivamente clássico trecho de E.E. Evans-Pritchard no qual explica como
endogâmico não torna tão relevante a identidade física. a ação da feitiçaria é entendida pela filosofia Azande:
Por outro lado, os índios Jê, do Brasil, correlacionam a "Considerada como sistema de filosofia natural, ela [a
relação sexual com a concepção mas acreditam que só feitiçaria] implica uma teoria de causas: a infelicidade resulta
urna cópula é insuficiente para formar um novo ser. É da feitiçaria, que trabalha em combinação com as forças
necessário que o homem e a mulher tenham várias naturais. Caso um homem receba uma chifrada de um búfalo,
relações para que a criança seja totalmente formada e
caso lhe caia na cabeça um celeiro cujos suportes tenham sido
torne-se apta para o nascimento. O recém-nascido per-
tencerá tanto à família do pai como à da mãe. E se minados pelas térmitas, ou contraia uma meningite cérebro-
ocorrer que a mulher tenha, em um dado período que espinhal, os Azande afirmarão que o búfalo, o celeiro ou a
antecede ao nascimento, relações sexuais com outros doença são causas que se conjugam com a feitiçaria para
homens, todos estes serão considerados pais da criança e matar o homem. Pelo búfalo, pelo celeiro, pela doença, a
agirão socialmente como tal. feitiçaria não é responsável, pois existem por si mesmos; mas
Outra é a concepção dos índios Tupi, também do o é pela circunstância particular que os põe em relação
Brasil. Para estes, a criança depende exclusivamente do
destruidora com um certo indivíduo. O celeiro teria caído de
pai. Ela existe anteriormente como uma espécie de
semente no interior do homem, muito tempo mesmo qualquer maneira, mas foi pela feitiçaria que caiu em um dado
antes do ato sexual que a transferirá para o ventre da momento e quando certo indivíduo repousava embaixo. Entre
mulher. No interior desta, a criança se desenvolve sem todas essas causas, apenas a feitiçaria é significativa no plano
estabelecer nenhuma relação consangüínea com a esposa das relações sociais." 4
do pai. A mulher não passa, então, de um recipiente Talvez seja mais fácil para o leitor entender a lógica e a
próprio para o desenvolvimento do novo ser. E ela será coerência de um sistema cultural tratando-o como uma forma
sempre uma parente afim tanto de seu marido quanto de de classificação. Muito do que supomos ser uma ordem
seu filho. Esta teoria permite o matrimônio entre inerente da natureza não passa, na verdade, de uma
ordenação que é fruto de um procedimento cultural, mas que
nada tem a ver com uma ordem objetiva.
Rodney Needham, antropólogo inglês, faz uma interes- tratado de botânica". (Robbins, Harrington e Freire-Marre- co,
sante analogia, baseada em estudos sobre indivíduos cegos citados por Lévi-Strauss, 1976, p.25.)
desde o nascimento e que ganham a visão através de uma Que todas as sociedades humanas dispõem de um siste-
cirurgia. A reação inicial é de uma dolorosa aflição diante de ma de classificação para o mundo natural parece não haver
uma caótica confusão de cores e formas. Estas lhes parecem mais dúvida, mas é importante reafirmar que esses sistemas
não ter nenhuma relação compreensível entre si. "Apenas divergem entre si porque a natureza não tem meios de
vagarosamente e com um intenso esforço pode apreender que determinar ao homem um só tipo taxionômico. Por isso o
esta confusão manifesta uma ordem, e somente com uma morcego é muitas vezes colocado numa mesma categoria
aplicação resoluta é capaz de distinguir e classificar objetos e com as aves, da mesma forma que a baleia é vulgarmente
adquirir o significado de termos tais como `espaço' e 'forma'. considerada um peixe. No norte de Goiás, uma dona de
Quando um etnólogo inicia o seu estudo de um povo pensão nos afirmou que o "rato era um inseto impertinen-
estranho ele está numa situação análoga, e no caso de uma te". Constatamos, então, que como inseto eram classificados
sociedade desconhecida ele pode exatamente ser descrito todos os seres vivos que perturbam o mundo doméstico.
como culturalmente cego."5 Finalmente, entender a lógica de um sistema cultural
O que podemos deduzir da analogia formulada por depende da compreensão das categorias constituídas pelo
Needham é que cada cultura ordenou a seu modo o mundo mesmo. Como categorias entendemos, como Mauss, "esses
que a circunscreve e que esta ordenação dá um sentido princípios de juízos e raciocínios ... constantemente presen-
cultural à aparente confusão das coisas naturais. É este tes na linguagem, sem que estejam necessariamente explíci-
procedimento que consiste em um sistema de classificação. tas, elas existem ordinariamente, sobretudo sob a forma de
Retomemos o exemplo da floresta utilizado no início do hábitos diretrizes da consciência, elas próprias inconscien-
primeiro capítulo da segunda parte deste trabalho. O amon- tes. A noção de mana é um desses princípios: ela está dada
toado de árvores e arbustos só pode ser ordenado quando é na linguagem; está implicada em toda uma série de juízos e
classificado através de uma taxionomia. Esta, contudo, não é raciocínios, tendo por objetos atributos que são aqueles do
uma propriedade da botânica ocidental, pois muitas socie- mana".6 O leitor brasileiro entenderá melhor esta definição
dades tribais construíram sistemas de classificação bastante se trocar a palavra mana por panema, azar ou reima. 7
sofisticados para o mundo vegetal que as envolve. Assim, os
índios Tewa do Novo México "têm nomes para designar
todas as espécies de coníferas da região; ora, neste caso, as
diferenças são pouco visíveis e, entre os brancos, um indiví-
duo sem treinamento seria incapaz de as distinguir ... .
Realmente, nada impediria a tradução em Tewa de um
5. . A CULTURA É DINÂMICA tente entre os dois documentos, a afirmar que não ocorreu
modificação naquela sociedade no último século.
Mas seria verdadeira tal dedução? A resposta é negativa.
Em primeiro lugar, porque os ritos religiosos situam-se entre
as partes de uma sociedade que parecem ter uma menor
velocidade de mudança. Em segundo lugar, porque a foto
não cobre todas as variáveis do ritual. Consideremos que,
em vez do ritual xinguano, os dois documentos retratassem
Num exercício de imaginação, suponhamos que um dos uma parte da missa católica. O aspecto apenas visual dos
missionários jesuítas do século XVI, durante a sua perma- mesmos daria a falsa impressão de que não houve nenhuma
nência no Brasil, tenha dividido as suas observações entre o mudança no ritual. E nós sabemos que estas mudanças
comportamento dos indígenas e os hábitos das formigas ocorreram.
saúva. Quatro séculos depois, qualquer entomologista poderá A resposta do antropólogo seria, portanto, diferente da
maioria dos leigos. O espaço de quatro séculos seria
constatar que não houve qualquer mudança nos hábitos dos
suficiente para demonstrar que a referida sociedade indíge-
referidos insetos. Durante quase meio milênio, as habitantes na mudou, porque os homens, ao contrário das formigas,
do formigueiro repetiram os procedimentos de suas têm a capacidade de questionar os seus próprios hábitos e
antecessoras, obedecendo apenas às diretrizes de seus modificá-los. O antropólogo concordaria, porém, que as
padrões genéticos. Supondo, por outro lado, numa hipótese sociedades indígenas isoladas têm um ritmo de mudança
quase absurda, que um dos grupos indígenas observados menos acelerado do que o de uma sociedade complexa,
tenha sobrevivido aos quatro séculos de dizimação, graças a atingida por sucessivas inovações tecnológicas. Esse ritmo
indígena decorre do fato de que a sociedade está satisfeita
um isolamento em relação aos brancos, o que constataria um
com muitas de suas respostas ao meio e que são resolvidas
antropólogo moderno? por suas soluções tradicionais. Mas esta satisfação é relativa;
A tendência de muitos leigos seria a de responder que muito antes de conhecer o machado de aço, os nossos
essas pequenas sociedades tendem a ser estáticas e que, indígenas tinham a consciência da ineficácia do machado de
portanto, o antropólogo confirmaria as observações do mis- pedra. Por isto, o nosso machado representou um grande
sionário. Essa tendência decorre do fato de que as chamadas item na atração dos índios.
sociedades simples dão realmente uma impressão de estati-
No Manifesto sobre aculturação, resultado de um semi-
cidade. Por exemplo, em 1964 fotografamos um ritual nário realizado na Universidade de Stanford, em 1953, os
xinguano e a foto foi, posteriormente, comparada a um dese-
autores afirmam que "qualquer sistema cultural está num
nho de Von den Steinen, que ali esteve 80 anos antes. Desta
comparação poderíamos ser levados, tal a identidade
existente
contínuo processo de modificação. Assim sendo, a mudança utilizado desde o início do século pela antropologia alemã e a
que é inculcada pelo contato não representa um salto de um partir de 1928 pelos antropólogos anglo-saxões. Através
estado estático para um dinâmico mas, antes, a passagem de destes o conceito atinge o nosso meio acadêmico, mas
uma espécie de mudança para outra. O contato, muitas somente passa a ser utilizado amplamente a partir dos anos
vezes, estimula a mudança mais brusca, geral e rápida do 50, depois que Eduardo Galvão apresentou o seu "Estudo de
que as forças internas". aculturação dos grupos indígenas brasileiros", na I Reunião
Podemos agora afirmar que existem dois tipos de mu- dança Brasileira de Antropologia, em 1953.
cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio Deixaremos de lado as mudanças mais espetaculares,
sistema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de como as decorrentes de uma revolução política — como a
um sistema cultural com um outro.
francesa ou soviética; as resultantes de uma inovação cien-
No primeiro caso, a mudança pode ser lenta, quase
impercebível para o observador que não tenha o suporte de tífica — como as conseqüências da invenção do avião ou da
bons dados diacrônicos. O ritmo, porém, pode ser alterado pílula anticoncepcional para, num exercício didático, dis-
por eventos históricos tais como uma catástrofe, uma grande corrermos mais sobre as que agem lentamente sobre os
inovação tecnológica ou uma dramática situação de contato. nossos hábitos culturais. É necessário, porém, lembrar sem-
O segundo caso, como vimos na afirmação do Manifesto pre que ambas pertencem a um mesmo tipo de fenômeno,
sobre aculturação, pode ser mais rápido e brusco. No caso vinculadas que são ao caráter dinâmico da cultura.
dos índios brasileiros, representou uma verdadeira catástro- Comecemos pela descrição de um tipo carioca, feita por
fe. Mas, também, pode ser um processo menos radical, onde a Machado de Assis, em Dom Casmurro: "E vimos passar com
troca de padrões culturais ocorre sem grandes traumas. suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaques e grava-
Este segundo tipo de mudança, além de ser o mais ta de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de
estudado, é o mais atuante na maior parte das sociedades janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para
humanas. É praticamente impossível imaginar a existência que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto,
de um sistema cultural que seja afetado apenas pela mudança com um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço;
interna. Isto somente seria possível no caso, quase absurdo, era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve,
de um povo totalmente isolado dos demais. Por isto, a parecia nele uma casaca de cerimônia." Não há dúvida que as
mudança proveniente de causas externas mereceu sempre vestimentas masculinas mudaram muito, nestes últimos 100
uma grande atenção por parte dos antropólogos. Para atendê- anos, na cidade do Rio de janeiro. Muitas outras mudanças
la foi necessário o desenvolvimento de um esquema sucederam as descritas por Machado de Assis, passando
conceitual específico. Surge, então, o conceito de acultura- pelas pesadas vestimentas de casimira preta do inicio do
ção, século, até o modo informal de vestir dos dias de hoje.
São mudanças como essas que comprovam de uma maneira
O tempo constitui um elemento importante na análise de
mais evidente o caráter dinâmico da cultura.
uma cultura. Nesse mesmo quarto de século, mudaram-se os
Basta que o jovem leitor converse com seus pais e
padrões de beleza. Regras morais que eram vigentes
compare a nossa vida quotidiana com a dos anos 50, por
passaram a ser consideradas nulas: hoje uma jovem pode
exemplo. Ele poderá, então, imaginar estar em plena noite,
fumar em público sem que a sua reputação seja ferida. Ao
postado diante de um espelho, ajeitando o nó triangular de
contrário de sua mãe, pode ceder um beijo ao namorado em
sua gravata, bem no centro de seu colarinho, mantido reto
plena luz do dia. Tais fatos atestam que as mudanças de
pela ação das hastes de barbatana. Poderá também imaginar
costumes são bastante comuns. Entretanto, elas não ocorrem
o seu sentimento de vaidade ao reparar quão bem passado
coro a tranqüilidade que descrevemos. Cada mudança, por
está o seu terno de casimira azul. Enfim, estava pronto para
menor que seja, representa o desenlace de numerosos
brilhar em mais um baile. Antes, porém, de entrar no salão
conflitos. Isto porque em cada momento as sociedades hu-
não dispensaria o reforço de uma dose de bebida, seguida do
manas são palco do embate entre as tendências conservado-
mastigar de um chiclete capaz de disfarçar o forte cheiro de
ras e as inovadoras. As primeiras pretendem manter os
aguardente. Com esta dose adicional de coragem, o jovem
hábitos inalterados, muitas vezes atribuindo aos mesmos
estaria apto para audaciosamente atravessar o salão e, numa
uma legitimidade de ordem sobrenatural. As segundas con-
discreta mesura diante da escolhida, perguntar: "a senhorita
testam a sua permanência e pretendem substituí-los por
me dá o prazer desta dança?"
novos procedimentos.
Tudo estaria bem com a resposta afirmativa da moça.
Assim, uma moça pode hoje fumar tranqüilamente em
Mas, se esta, rompendo os limites da etiqueta, não aceitava o
público, mas isto somente é possível porque antes dela
convite, o mundo abria aos pés do jovem, que voltava
numerosas jovens suportaram as zombarias, as recrimina-
murcho e cabisbaixo para o seu lugar, lamentando a "bruta
ções, até que estas se esgotaram diante da nova evidência.
tábua que levara".
Por isto, num mesmo momento é possível encontrar numa
Um quarto de século depois, esse pequeno drama social
mesma sociedade pessoas que têm juízos diametralmente
era perfeitamente desconhecido para muitos jovens que
opostos sobre um novo fato.
jamais compreenderão perfeitamente como era esse estranho
Talvez seja mais fácil explicar a mudança raciocinando em
ritual denominado baile.
termos de padrões ideais e padrões reais de comporta- mento.
São essas aparentemente pequenas mudanças que cavam
Nem sempre os padrões ideais podem ser efetivados. Neste caso,
o fosso entre as gerações, que faz com que os pais não se
as pessoas agem diferentemente (esta ação cons- titui os padrões
reconheçam nos filhos e estes se surpreendam com a
reais), mas consideram que os seus procedimentos não são
"caretice" de seus progenitores, incapazes de reconhecer que
exatamente os mais desejados pela sociedade. Tomemos, como
a cultura está sempre mudando.
exemplo, as regras matrimoniais dos
Tupi. Os índios Akuáwa-Asurini (do sudeste do Pará) con- publicação desses resultados — mesmo deixando de lado a
sideram que um homem deve casar preferencialmente com a validade da amostra levantada na pesquisa — causou uma
filha do irmão da mãe; ou com a filha da irmã do pai; ou grande reação por parte de diferentes setores e a revista teve a
ainda com a filha da irmã. Mas razões diversas, entre elas as sua edição apreendida. Menos de dez anos depois, uma outra
de ordem demográfica, fazem com que nem sempre o ho- revista repetiu a pesquisa, com uma amostragem bem maior,
mem encontre esposas dentro dessas categorias genealógi- e os resultados foram mais significativos do que os da vez
cas. Assim, qualquer outro casamento é tolerado desde que a anterior. Comprovavam enfaticamente uma mudança no
mulher não seja mãe, filha ou irmã do noivo. Em decor- comportamento feminino. Dessa vez, contudo, a reação não
rência destas regras, os Akuáwa-Asurini classificam o casa- ocorreu e a revista circulou livremente. Tal fato significa,
mento segundo três tipos. Ao primeiro denominam de "katu- sem dúvida, a ocorrência de mudanças nos padrões ideais da
eté" (muito bom) e é referente a todas as uniões realizadas sociedade de forma a ajustá-la aos eventos reais. Em outras
de acordo com as regras preferenciais relacionadas acima. O palavras, a mudança chegou a uma tal dimensão que
segundo tipo é aquele que engloba todos os casamentos que modificou o próprio padrão ideal.
não estão de acordo com as regras preferenciais, mas Concluindo, cada sistema cultural está sempre em mu-
também não são proibidos, e que são denominados "katu" dança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o
(bom). Do ponto de vista estatístico este é o tipo de choque entre as gerações e evitar comportamentos precon-
casamento mais comum. Finalmente, o terceiro tipo, ceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a huma-
denominado "katu-î", é o referente às uniões dentro das nidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas
categorias proibidas, ou seja, aquelas que levam ao diferentes, é necessário saber entender as diferenças que
rompimento da proibição do incesto. ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único
O fato de que a maioria dos matrimônios não corres- procedimento que prepara o homem para enfrentar
ponde ao ideal somente pode ser considerado uma mudança serenamente este constante e admirável mundo novo do
quando as pessoas, além de agirem diferentemente, come- porvir.
çam a colocar em dúvida a validade do modelo.
Tomemos agora um exemplo de nossa sociedade. No início
dos anos 70, uma revista fez uma pesquisa sobre o
comportamento sexual da mulher brasileira. O resultado indicou
que existia uma porcentagem significativa que não agia de
acordo com os padrões tradicionais da sociedade. Ou seja,
tornavam-se mais freqüentes as relações sexuais pré-
matrimoniais e o número de relações extraconjugais. A
ingênua como é, a inquirição revelaria que multidões de
Anexo 1 gente civilizada ainda a ela aderem.
UMA EXPERIÊNCIA ABSURDA Contudo, não é essa a nossa moral da história. Ela está
no fato de que a única palavra, bek, atribuída às crian-
ças, constituía apenas, se a história tem qualquer auten-
ticidade, um reflexo ou imitação — como conjeturam
há muito os comentadores de Heródoto — do grito das
cabras, que foram as únicas companheiras e instrutoras
das crianças. Em suma, se for permitido deduzir
Kroeber, em seu artigo " O superorgânico", refere-se a duas qualquer inferência de tão apócrifa anedota, o que ela
experiências que teriam sido praticadas no passado. Embora o prova é que não há nenhuma língua humana natural e,
autor duvide da veracidade das mesmas, ele as utiliza cones portanto, nenhuma língua humana orgânica.
exemplo de reflexão sobre a natureza humana: Milhares de anos depois, outro soberano, o imperador
mongol Akbar, repetiu a experiência com o propósito de
Heródoto conta-nos que um rei egípcio, desejando ve- averiguar qual a religião natural da humanidade. O seu
rificar qual a língua-mater da humanidade, ordenou que bando de crianças foi encerrado numa casa. Quando
algumas crianças fossem isoladas da sua espécie, tendo decorrido o tempo necessário, ao se abrirem as portas
somente cabras como companheiros e para o seu na presença do imperador expectante e esclarecido, foi
sustento. Quando as crianças já crescidas foram de novo grande o seu desapontamento: as crianças saíram tão
visitadas, gritaram a palavra bekos, ou, mais provavel- silenciosas como se fossem surdas-mudas. Contudo, a
mente bek, suprimindo o final, que o grego padroniza- fé custa a morrer; e podemos suspeitar que será preciso
dor e sensível não podia tolerar que se omitisse. O rei uma terceira experiência, em condições modernas esco-
mandou então emissários a todos os países a fim de lhidas e controladas, para satisfazer alguns cientistas
saber em que terra tinha esse vocábulo alguma signifi- naturais e convencê-los de que a linguagem, para o
cação. Ele verificou que no idioma frígio isso significava indivíduo humano como para a raça humana, é uma
pão, e, supondo que as crianças estivessem reclamando coisa inteiramente adquirida e não hereditária, comple-
alimentos, concluiu que usavam o frígio para falar a sua tamente externa e não interna — um produto social e
linguagem humana "natural", e que essa língua devia não um crescimento orgânico. 1
ser, portanto, a língua original da humanidade. A crença
do rei numa língua humana inerente e congênita, que só É óbvio que quando Kroeber fala em linguagem está
os cegos acidentes temporais tinham decomposto numa implícita a possibilidade de estender o seu raciocínio para
multidão de idiomas, pode parecer simples; mas,
toda a cultura. Muitos anos depois de Kroeber, Clifford Geertz
demonstrou não ser possível, à luz do conhecimento atual, Anexo 2
esperar algum resultado de uma terceira experiência: A DIFUSÃO DA CULTURA

... isso sugere não existir o que chamamos de natureza


humana independente da cultura. Os homens sem cultura
não seriam os selvagens inteligentes de Lord of the Flies,
de Golding, atirados à sabedoria cruel dos seus instintos
animais; nem seriam eles os bons selvagens do
primitivismo iluminista, ou até mesmo, como a antro- Não resta dúvida que grande parte dos padrões culturais de
pologia insinua, os macacos intrinsecamente talentosos um dado sistema não foram criados por um processo autóc-
que, por algum motivo, deixaram de se encontrar. Eles tone, foram copiados de outros sistemas culturais. A esses
seriam monstruosidades incontroláveis, com muito empréstimos culturais a antropologia denomina difusão. Os
poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis antropólogos estão convencidos de que, sem a difusão, não
e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos. seria possível o grande desenvolvimento atual da humani-
Como nosso sistema nervoso central — e principal-mente dade. Nas primeiras décadas do século XX, duas escolas
a maldição e glória que o coroam, o neocórtex — antropológicas (uma inglesa, outra alemã), denominadas
cresceu, em sua maior parte, em interação com a cultura, difusionistas, tentaram analisar esse processo. O erro de
ele é incapaz de dirigir nosso comportamento ou ambas foi o de superestimar a importância da difusão, mais
organizar nossa experiência sem a orientação fornecida flagrante no caso do difusionismo inglês que advogava a tese
por sistemas de símbolos significantes.2 de que todo o processo de difusão originou-se no velho
Egito.
Mas deixando de lado o exagero difusionista, e mesmo
considerando a importância das invenções simultâneas (isto
é, invenções de um mesmo objeto que ocorreram inúmeras
vezes em povos de culturas diferentes situados nas diversas
regiões do globo), não poderíamos ignorar o papel da difu-
são cultural.
Numa época em que os norte-americanos viviam um
grande desenvolvimento material e os seus sentimentos
nacionalistas faziam crer que grande parte desse progresso
era resultado de um esforço autóctone, o antropólogo Ralph
Linton escreveu um admirável texto sobre o começo do dia
inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galo-
do homem americano:
chas de borracha descoberta pelos índios da América
Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste
O cidadão norte-americano desperta num leito cons-
da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado
truído segundo padrão originário do Oriente Próximo,
nas estepes asiáticas.
mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser
De caminho para o breakfast, pára para comprar um
transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de
jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga.
algodão cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de
No restaurante, toda uma série de elementos tomados de
linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no
empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de
Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi desco-
cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita
berto na China. Todos estes materiais foram fiados e
pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na
tecidos por processos inventados no Oriente Próximo.
Itália medieval; a colher vem de um original romano.
Ao levantar da cama faz uso dos "mocassins" que foram
Começa o seu breakfast com uma laranja vinda do
inventados pelos índios das florestas do Leste dos
Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma
Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos
fatia de melancia africana. Toma café, planta abissínia,
aparelhos são una mistura de invenções européias e norte-
com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a
americanas, mias e outras recentes. Tira o pijama, que é
idéia de aproveitar o seu leite são originárias do Oriente
vestiário inventado na índia e lava-se com sabão que foi
Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez
inventado pelos antigos gauleses, faz a barba que é um
na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os
rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou
quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica
do antigo Egito.
escandinava, empregando como matéria-prima o trigo,
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que
que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se
estão sobre uma cadeira do tipo europeu meridional e
com xarope de maple, inventado pelos índios das
veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das
florestas do Leste dos Estados Unidos. Como prato
vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáti-
adicional talvez coma o ovo de uma espécie de ave
cas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um
domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de
processo inventado no antigo Egito e cortadas segundo
um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e
um padrão proveniente das civilizações clássicas do
defumada por um processo desenvolvido no Norte da
Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra
Europa.
ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fu-
pelos croatas do século XVII. Antes de ir tomar o seu
mar, hábito implantado pelos índios americanos e que
breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita de vidro
consome uma planta originária do Brasil; fuma
cachimbo,
que procede dos índios da Virgínia, ou cigarro, proveniente
do México. Se for fumante valente, pode ser que fume BIBLIOGRAFIA
mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas
Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê
notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos
antigos semitas, em material inventado na China e por um
processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das
narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão
conservador, agradece rã a uma divindade hebraica, numa ANCHIETA, José
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O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir ,
Escrever

Roberto Cardoso ele Oliveira


Uni caniJJ

RESUMO: O Olhar, o Ouv ir e o Escrever são destacados pelo autor co1no


constituind o três n1on1cntos cspecialin ente estratégicos do nzétier do an-
tropó logo . Através de exen1plos concretos fornecidos pela etnog rafia, pro-
cura-se mostrar como cada u1n desses mo1nentos pode au1ncntar a sua efi-
cácia no trabalho antropológico, desde que seja1n dcvida1ncntc te1natizados
pelo exercíc io da reflexão episte1nológica. Se o Olhar etnográfico, tanto
qua nto o Ouvir , cun1pre sua função básica na pesqu isa e1npírica , é o Escre-
ver, particulanncnte no gabinete , que surge con10 o 1non1ento1nais fccundo
ela interpretação; e é por 1ncio dele - quando se textual íza real idade socio-
~l

cultural - que o pensa1nento se revela e1n sua plena criat ividade.

PALAVRAS-CHAVE: etnografia, interpretação, tcxtualização.

1 '1
ROBER TO CARDOSO DE ÜLIV EIRA. 0 TR ABAL HO DO ANTROPÓLOGO

Introdução
Pareceu-me, na oportunidade desta conferência, que um antropólogo,
dirigindo-sea uma platéia de cientistas sociais, poderia falar um pouco so-
bre a especificidade de seu métier, particularmente quando, na realização
de seu trabalho, articula a pesquisa empírica com a interpretação de seus
resultados.1 Nesse sentido, o subtítulo escolhido - é necessário esclarecer
- nada te1na ver com o recente livro de Claude Lévi-Strauss, Re garder,
Écoute r, Li re (Plon, 1993), ainda que nesse
,,
título eu possa ter me inspi-
rado, ao substituir apenas o Lire pelo Ecrire, o Ler pelo Escrever. Po-
ré1n,aqui, ao contrátio dos ensaios de antropologiaestéticade Lévi-Strauss,
trato de questionar algumas daquelas que se poderiam cha1narde princi-
pais "faculdades do entendimento" sociocultural que, acredito, sejam ine-
rentes ao modo de conhecer das ciências sociais. Naturalmente que ao
falar nesse contexto de faculdades do entendimento, é preciso dizer que
não estou mais do que parafraseando, e com muita lib~rdade, o significa-
do filosóficoda expressão "Faculdades da Ahna", como Leibniz assiln en-
tendia a percepção e o pensa1nento. Pois, se1npercepção e pensamento,
como então podemos conhecer? De meu lado, ou do ponto de vista de
minha disciplina, a Antropologia, quero apenas enfatizar o caráter consti-
tutivo do Olhar, do Ouvir e do Escrever na elaboração do conhecimento
próprio das disciplinas sociais, i.e., daquelas que convergem para a ela-
boração daquilo que um sociólogo como Anthony Giddens muito apro-
priadamentechama de "teoria social" para sintetizarco1na associação des-
ses dois termos o amplo espectro cognitivo que envolve as disciplinas que
deno1ninamos Ciências Sociais (Giddens, 1984). Rapidamente, porquan-
to no espaço de uma conferência não pretendo 1nais do que fazer aflorar
alguns problemas que comumente passa1ndespercebidos não apenas para
o jovem pesquisadorem CiênciasSociais, mas alguma~vezes també1npara
o profissional maduro, quando este não se debruça para as questões epis-
te1nológicasque condicionam a investigaçãoe1npírica91ntoquanto a cons-

- 14 -
R EV ISTA DE ANTR OPOLOG IA , SÃO P AULO, USP, 1996 , v. 39 nº 1.

trução do texto, resultante da pesquisa. Desejo , assim, chamar a atenção


para três n1aneiras - n1elhor diria, três etapas - de apreensão dos fenô -
n1enos sociais, ten1atizando-as (o que significa dizer: questionando-as)
co1no algo n1erecedorde nossa reflexão no exercício da pesquisa e da pro-
dução de conhecirnento. Tentarei rnostrar como o "Olhar, o Ouvir e o Es-
crever" podern ser questionados em si mesmos, embora num primeiro
11101nento possam nos parecer tão familiares e, por isso, tão triviais, a ponto
de nos sentinnos dispensados de problematizá-los; todavia, num segundo
n10111ento - 111arcadopor nossa inserção nas ciências sociais-, essas "fa-
culdades" ou, n1elhor dizendo, esses "atos cognitivos" delas decorrentes,
assume111 um sentido todo particular, de natureza epistêmica, uma vez que
é corn tais atos que logramos construir o nosso saber. Assi111sendo, pro-
curarei indicar que , enquanto no Olhar e no Ouvir "disc iplinados" - asa-
ber, disciplinados pe]a disciplina- se realiza nossa "percepção", será no
Escrever que o nosso "pe nsame nto" se exe rcitará da fonna mai s cabal,
co1no prod utor de um discurso que seja tão criativo quanto próprio das
ciências voltadas à const rução da teoria social.

O Olhar
Talvez a pri111eiraexperiência do pesquisador de ca1npo (ou no ca1n-
po) esteja na don1esticação teórica de seu olhar. 'Isso porque. a partir
do 1no111 ento en 1 que nos sent i1nos preparados para a investigação
en1pírica, o objeto sobre o qual clirigi1noso nosso olhar já foi previéu11ente
alterado pelo próprio rnodo de visualizá-lo. Seja qual for esse objeto, ele
não escapa de ser apreendido pelo esque 1na conceitua} da disciplina for-
n1adora de nossa n1aneira de ver a real idade. Esse esque,na conceituaL
disciplinadan1enteapreendido durante o nosso itinerúrio acadên1ico (daí o
tenno discip lina para as n1atérias que estuda1nos ), funciona co1no tnna
espéc ie de prisn1a por 1neio do qual a realidade observada sofre un1 pro-
/

cesso de refração - se 1neé pennitida a irnagen1. E certo que isso não é

- 15 -
R OBERTO CARDOSO DE ÜLIV EIRJ\. Ü TR/\B 1\ L HO DO ANTROPÓLO GO

exclusivo do Olhar, u1na vez que está presente e1ntodo proces so de co-
nhecirnento,envolvendo, portanto, todos aqueles atos cognitivos, que men-
cionei, en1seu conjunto. Mas é certa 1nente no Olha r que essa refração
pode ser n1aisbe1n co1npreendida. A própria imagem óptica - refração -
cha1na a atenção para isso.
I1nagine1nos u1nantropólogo iniciando tuna pesquisa junto a u1ndeter-
n1inado grupo indígena e entrando nu1na1naloca, tnna 1noradia de u1na ou
n1aisdezenas de indivíduos, se1nainda conhecer uma palavra do idio1na
nativo. Essa n1oradia de tão é.unplas proporções e de esti lo tão peculiar ,
corno, por exen1plo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tükúna do
Alto Solilnões, no An1azonas,teria o seu interior imediatamente vasculha-
do pelo "Olhar etnográfico", por 1neio do qual toda a tyoria que a discipli-
na dispõe relativa1nente às residências indígenas passaria a ser instru-
1nental izada pelo pesquisado r, isto é, por ele refer ida. Nesse sentido, o
interior da 1nalocanão seria visto com ingenuidade, co1no urna 1nera curi-
osidade diante do exótico, poré1nco1n u1nolhar devida1nentesensibiliza-
do pela teoria disponível. Tendo por base essa teoria, o observado r ben1
preparado, enquanto etnólogo, iria olhá-la co1no um objeto de investiga-
ção previa1nente já constr uído por ele, pelo menos numa primeira pre-
figuração: passaria, então, a contar os fogos (pequena s cozinhas pri1niti-
vas), cujos resíduos de cinza e carvão indicariam que em torno de cada
urn deles estivera1nreunidos não apenas indivíduos, porén1 "pessoas", por-
tanto "seres sociais", 1nernbrosde u111único "grupo don1éstico"; o que lhe
daria a infonna ção subsidiária que pelo 1n enos nessa n1aloca, de confor-
1nidade co111 o número de fogos, estaria abrigada u1nacerta porção de gru-
pos do1nésticos, fonnados por u1naou 1nais fa1nílias ele1nentares e, even-
tuahnente, de indivíduos"agregados" (originários de utT)outro grupo tribal).
Saberia, igual1nente, a totalidade dos n1oradores (ou quase) contando as
redes dependuradas nos tnourões da n1aloca dos 1ne1nbros de cada gru-
po do1néstico. Observa ria, ta1nbén1, as características arquitetô nicas da
1naloca, classificando-a segundo u1na tipologia de alcance planetário so-
bre estilos de residências, ensinada pela literatura etnológica existente.

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R EV ISTA DE ANTROP O LO G IA. Si\o P AULO, USP , 1996, v. 39 nº 1.

To1nando-se, ainda , os n1es1nos T'ükúna , 1nas en1 sua feição 1noderna,


o etnólogo que visitasse suas malocas obse rvaria de pronto que elas se
diferenciava1nradicaltne nte daquelas descritas por cronistas ou viajant es
que. no passado, navegara1npelos igarapés por eles habitados. Verifica-
ria que as a1nplas n1alocas, então dotadas de unia cobertura e1n fonn a de
sen1i-arco desce ndo suas laterais até o so lo e fechando a casa a toda e
qualquer entrada de ar (e do olhar exte rno), salvo por po rtas ren1ovíveis,
achan1-se agora totaln1entc re,nodeladas. A ,nalocaj á se apresen ta am-
pla1nentc aberta, co nstituída por unia cobert ura de duas águas, sen1pare-
des (ou co1nelas precá rias); e, internan1ente, i1npondo-se ao olhar exte r-
no vêc n1-sc redes penduradas nos tnour ões, co 1n seus res pec tivos
n1osquiteiros - uni clc,nen to da cultura material indígena desconhec ido
antes do co ntato intcrétn ico e des necessár io para as casas antigas. uma
vez que seu fccha1nento i1npedia a entrada de qualquer tipo de inseto.
Nesse sentido, para esse etnó logo n1oderno, já tendo ao seu alcance tuna
docun1entação histórica, a pri1neira conc lusão será sobre a existência de
unia n1udança cultur al de tal n1onta que, se de un1 lado veio a facilitar a
construção das casas indígenas. unia vez que a antiga residência exigia un1
esforço 1nuito grande de trabalho, dada a sua con1plcxidade arquitetônica.
por outro lado veio afeta r as relaçõ es de trabalho (por não ser n1ais ne-
cessá ria a n1obilização de todo o clã para a edificação da n1aloca), ao
n1cs1notcn1poe,n que tornava o grupo residenc ial 1nais vu lneráve l aos in-
setos, posto que os n1osquiteiro s son1ente podcrian1 ser úteis nas redes,
fica ndo a ra111ília a n1ercê deles durante todo o dia. Observava-se, assi111,
litera ln1ente. o que o saudoso Herbert Baldus chan1ava de unia espécie de
'·natureza -n1orta" da acultu ração. Con10 torná-la viva. senão pela pene-
tração na natureza das relações ~ociais?
Rcton1ando o nosso cxcn1plo, vcrían1os que para se dar conta da natu-
rc;,a das relações sociais n1antidas entre as pessoas da unidade residencial
(e delas entre si, cn1 se tratando de unia pluralidade de n1alocas de un1a
rnc~n1aaldeia ou '·grupo local''). so1nc ntc o Olhar não ~cria suficiente.
Co1no alcançar apenas pelo Olhar o signif icado dessas relações sociais

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ROBERTO CARDOSO DE ÜLIY EIRA. Ü TRABALHO DO ANTROPÓLOGO

sern conhecenno s a nomenclatura do parentesco, por meio da qual pode-


remos ter acesso a u1ndos sistemas simbólicos mais importantes das soci-
edades ágrafas e sem a qual não nos será possível prosseguir en1nossa ca-
1ninhada?O don1fnio das teorias de parentesco pelo pesquisador torna-se,
então, i ndispensáve]. Para chegar, entretanto, à estrutura dessas relações
sociais, o etnólogo deverá se valer, preli1ninannente, de um outro recurso
de obtenção dos dados. Vamos nos deter um pouco no Ouvir.
(

O Ouvir
Creio não ser ocioso rnencionar que o exemplo indígena, tomado co1no
ilustração do Olhar etnográfico, não pode ser considerado como sendo
incapaz de gerar analogias co1noutras situações de pesquisa, co1noutros
objetos concretos de investigação. O sociólogo ou o politólogo por certo
terão exe1nplos tanto ou 1nais ilustrativos para mostrar o quanto a teoria
social pré-estrutura o nosso olhar e sofistica a nossa capacidade de ob-
servação. Julguei, entretanto, que exemplos bem simples são gera]n1ente
os 1naisinteligíveis.E, co1noa Antropologia é a 111inha disciplina, continu-
arei a 111evaler dos seus ensinan1entos e de n1inhaprópria experiência pro-
fissional corn a esperança de, assiJnfazendo, poder proporcionar uma boa
noção dessas etapas, aparentemente corriqueiras da investigação científi-
ca. Portanto, se o Olhar possui uma significação específica para um cien-
tista social, o Ouvir ta1nbérno tem.
Evidentemente tanto o Ouvir quanto o Olhar não podem ser tomad os
co1110faculdades totahnente independentes no exercício da investigação .
A1nbosse complementa1ne serve1npara o pesquisador como duas mule-
tas (que não nos percamos co1nessa met áfora tão neg ativa ...) que lhe
pennitem ca1ninhar, ainda que tropega111 e nte, na estrada do conhecitnen-
to. A metáfora, propositada1nenteutilizada, pennite Ie111br ar que a cami-
nhada da pesquisa é se111 pre difícil, sujeita a 1nuitas quedas ... É nesse ím-
peto de conhecer que o Ouvir , comp)em entando o Olhar , participa das

- 18 -
R EV ISTA DE A NTROPOLOG IA, SAo P t , ULq , l JSP, 1996 , v . 39 nº 1.

1nes1nas precondições deste último, na medida en1que está preparado para


elin1inar todos os ruídos que lhe pareçam insignificantes, i.e., que não f a-
çan1 nenhu111sentido no co rpu s teórico de sua disciplina ou para o para-
dig1na no interior do qual o pesquisador foi treinado. Não quero discutir
aqui a questão dos paradigrnas; pude fazê-lo e111n1eu livro Sob re o p en-
sa111 ent o ant ropo lóg ico ( I988b ), e não te1nos te1npo aqui de abordá-la.
Bastaria entendenn os que as disciplinas e seus paradigmas são co ndi-
cionantes tanto de nosso Olhar qua nto de nosso Ouvir.
Irnagine,nos tIJna entrevista por n1eio da qual o pesquisador se111pre pode
obter inforn1ações não alcançáve is pela estrita observação. Sabernos que
autores co1n o Radcliffe-Brown se1npre recon1endaram a observação de
rituais par a estuda rn1os siste1na s religioso s. Para ele, "no en1penho de
co1nprcender un1a religião devemos pri1neiro concentrar atenção 1nais nos
ritos que nas crenças"(Radcliffe-Brown, 1973). O que significa dizer que
a religião podia ser n1ais rigorosa1nente observáve l na conduta ritual por
ser ela "o e]e1nento 1nais estável e durad ouro', se a compararmos con1 as
crenças. Poré,n isso não quer dizer que 1nesn10 essa conduta , sen1as idéias
que a sustenta1n, j an1ais poderia ser inteira1nente cornpreend ida. Descrito
o ritual, por 111eio do Olhar e do Ouvir (suas n1úsicas e seus cantos), falta-
va-lhe a plena co1npr eensão de seu "sentido" para o povo que o realizava
e a sua "s ignificação" par a o antropólogo que o obse rvava en1toda sua
exte rioridade. 2 Por isso, a obtenção de explicações, dada pelo s próprios
n1e1nbros da con1uniclade investigada, pennit iria se chegar àquilo que os
antropólogos chan1an1de "n1oclelo nativo',, 11 1atéria-prin1apara o entendi-
111ento antropológico. Tais explicações nativas só poderia1n ser obtidas por
1n eio da "entrevista''. portanto, de un1Ouvir todo especial. Mas, para isso,
há de se saber Ouv ir.
Se apa rcnten1cntc a entrev ista tende a ser enca rada con10 algo sen1
n1aiores dificuldades, salvo, naturaln1ente, a Iin1itação lingüística- i.e.. o
fraco dornínio do idio1na nativo pelo etnólogo -, ela torna--sen1uito n1ais
co1nplexa quando considera1nos que a n1aior dificuldade está na diferença

- I9 -
RoHLRTO CARDOSO DE ÜLI VE IR/\. Ü TR A8A LHO DO ANTROPÓLOGO

entre "idio111as culturais", a saber , entre o inundo do pesquisador e o do


nativo, esse n1undoestranho no qua l deseja1nos penetrar. De resto, há de
se entender o nosso 1nundo, o do pesquisador, co111 0 se1Jdoocidental, cons-
Lituídon1ini1na1nentepela sobreposição de duas subculturas: a brasileira ,
no caso de todos nós en1particular; e a antropológica, aquela na qual fo-
n1ostreinados co1T10 antropólogos e/ou cientistas sociais. E é o confronto
entre esses dois rnundos que const itui o contexto no qual ocorre a entre-
vista. É, portanto, nu111contexto essencialrnente problemático que te1n lu-
gar o nosso Ouvir. Co1nopoderemos, então, questionar as possibilidades
da entrevista nessas condições tão delicadas?
Penso que esse questiona1nento começa cotn a pergunta sobre qual a
natureza da relação entre entrevistador e entrevistado. Sabe1nos que há tnna
longa e arraigada tradição na literatura etnológ ica sobre a relação. Se to-
rnannos a clássica obra de Mali nowski como referência, vemos como essa
tradiçãose consolida e, pratica1nente,trivializa-se na realização da entrevis-
ta. No ato de ouvir o "infonnante", o etnólogo exerce u111"poder" extraor-
dinário sobre o 1nes1no,ainda que ele pretenda se posicionar co1110sendo o
observador1nais neutro possível, co1no quer o objetivisn10mais radical.Esse
poder, subjace nte às reiações hu tTianas - que autores co1110Fouca u It j a-
1nais se cansara1T1de denunciar-, j á na relação pesquisador/informante vai
dese111pen har u1nafunção profunda1n ente empobrecedora do ato cognitivo:
as perguntas, feitas e1T1
busca de respostas pontuais lado a lado da autoridade
de quern as faz (co1n ou se1n autoritaris1no), cria1n un1campo ilusório de
interação. A rigor, não há verdadeira interação entre nativo e pesquisador ,
porquanto na utilização daquele co1no infonnante o etnólogo não cria con-
dições de efetivo "diálogo". A relação não é dialógica. Ao passo que, trans-
fonnando esse infonnante e1n "interlocutor", uma nova 111oda1id ade de rela-
ciona1T1ento pode (e deve) ter Iugar.3
Essa relação dialógica , cujas conseqüências episte1nológicas, todavia,
não cabe1n aqui desenvolver, guarda pelo 1nenos u1na grande superiori-
dade sobre os proced i1n entos tradic ionais de entrevista. Faz co111que os

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R1~v 1sTA DE A NT RO POLOC I/\, Si\o P AULO, US P, 1996 , v. 39 nº 1.

horizontes sen1ânlicos e1nconfro nto - o do pesquisador e o do nativo -


se abran1u1n ao outro, de n1aneira a transfonnar u1n tal "confronto" nu1n
verdadeiro "encontro etnográfico" . Cri a u1nespaço sen1ântico pa11ilhado
por an1bos os interlocutores, graças ao qual pode oco rrer aquela "fusão
de horizontes" (co1no os hern1eneutas cha1narian1esse espaço), desde que
o pesquisador tenha a habi !idade de ouvir o nativo e por ele ser iguahnen-
te ou vicio, encetando un1diúlogo teorica1n ente de "iguais" , se1nreceio de
estar, ass in1, contanúnand o o discurso do nativo co1nele111 entos de seu
próprio discurso. Mesn10 porque acreditar ser possível a neutralidade ide-
alizada pelos defcnsores da objetividade absoluta é apenas viver nun1a doce
ilusão ... Trocando idéias e inforn1ações entre si. etnólogo e nativo, "unbos
igualn1cnte guindados a interlocutores, abre1n-sc a um diálogo e111tudo e
por tudo superior, 111 etodologica1n ente falando, à antiga relação pesqui sa-
dor/in forn1ante. O Ouvir ga nha en1 qua lidade e altera un1a relação, qual
estrada de n1ão única, nu1na out ra, de n1ão dupla. portanto. un1a verda-
deira interação.
Tal interação na rea lização de u1na etnografia , envolve. e1n regra.
aquilo que os antropó logos cha1nan1de "observação participante''. o que
significa dizer que o pesquisador assu1ne uni papel perfcita1ncntc digcrí\'cl
pela sociedade observada, a ponto de viabilizar unia aceitação senão óti-
n1a pelos n1en1hros daquela sociedade. pelo n1enos afável. de n1odo a não
i tnpcdi r a necess ária intcração. Ma s essa obse rvação participante 11en1
sen1prc ten1 sido considerada corno geradora de un1 co nhecin1ento efeti-
vo. sendo-lhe freqüenten1cntc atribuída a runc;ãode ~·geradora de hipóte-
ses'', a ser testadas por procedi111cntosnon1ológicos- estes sin1. expli -
ca ti vos por excelê ncia. capazes de assegurar un1 con hccin1cnto
proposicional e positivo da realidade estudad a.
No n1eu entender, há un1certo equívoco nessa redução da ohscr\ ·ac;ão
participante e a cn1patia que nela lcn1 lugar, a un1 n1ero processo de cons-
trução de h ipótcscs. 1:::ntendo que tal 1noda1idadc de observação real i1.a
un1 inegável ato cog nitivo, desde que aco n1prccnsão ( Verstchen) que lhe

- '; 1 -
ROBERTO CA RDOSO DE ÜLIVEIRA. Ü TRAB AL HO DO ANTROPÓLOGO

é subjacente capta aquiJoque u1n henneneuta chamaria de "excedente de


sentido", i.e., aquelas significações (por conseguinte, dados) que escapam
a quaisquer rnetodo]ogias de pretensão no1nológica.Voltarei ao tema da
observação participante na conclusão desta exposição.

O Escrever
Mas se o Olhar e o Ouvir pode1n se r considerados como os atos cog-
nitivos 1nais prelirninares no trabalho de campo (trabalho que os an-
tropólogos se acostumara1na se valer da expressão inglesafieldwork para
deno1niná-lo), é seguramente no ato de Escrever, portanto na configura-
ção final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento se
torna tanto ou 1nais crítica. Um livro relativamente recente de Clifford
Geertz, Trabalhos e vidas : o antropólogo conio autdr, infelizmente, ao
que eu saiba, ainda não traduzido para o português, oferece importante s
pistas para desenvolvermos esse te1na.4 Geertz parte da idéia de separar
e, naturalmente,avaliar,duas etapas be1ndistintas na investigaçãoempírica:
a primeira, que ele procura qualificar como a do antropólogo "estando lá"
(being there), isto é, vivendo a situação de estar no ca1npo; e a segunda ,
que se seguiria àquela, corresponder ia à experiência de viver, 111elhordi-
zendo, trabalhar "estando aqui" (being here), a saber, be111instalado e1n
seu gabinete urbano, gozando o convívio com seus colegas e usufruindo
tudo o que as instituições universitária s e de pesquisa pode111oferecer.
Nesses te1mos,o Olhar e o Ouvir seriam pa1teda prilneira etapa, enquanto
o Escrever seria parte inerente da segunda.
Devernos entender, assim, por Escrever o ato exercitado por excelên-
cia no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante ,
sobretudo quando o co111pa rannos co111o que se escreve no campo , seja
ao fazermos nosso diário, seja nas anotações que rabiscan1os em nossas
cadernetas. E se to1nannos ainda Geertz por referência ve111osque, na
111aneirapela qual ele encam inha suas reflexões, é o Esc rever "estando

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R EV ISTA DE ANTROP OLOG IA, SAo PA ULO, USP, 1996, v. 39 nº 1.

aqui", portanto fora da situação de carnpo, que cumpre sua mais alta fun-
ção cognitiva. Por quê? Devido ao fato de iniciannos propria1nente no ga-
binete o processo de textualização dos fenôrnenos socioculturai s obser-
vados "estando lá". Jáas condições de textualização, i.e., de trazer os fatos
observados (vistos e ouvidos) para o p lano do discurso , não deixam de
ser niuito particulares e exercen1, por sua vez, um papel definitivo tanto no
processo de con1unic ação interpares (i.e., no seio da comunidade profis-
sional), quanto no de conhecin1entoproprianiente dito. Mesmo porque há
un1a relação dialética entre o comunicar e o conhecer, u1na vez que a1n-
bos partilha1n de u1na rnes1na co ndição: a que é dada pela linguagem.
E1nbora essa linguage1nseja i1nportante e1n si 1nesnia, co111 0 tema de re-
flexão, haja vista aquilo que podería111o s cha111arele"guinada lingüística"
(ou linguistics turn ), que perpassa atualmente tanto a filosofia como as
ciência sociais, o aspecto que desejo tratar aqui, se betn que de modo muito
sucinto, é unicamente o da disciplina e de seu próprio idio1na,por n1eio do
qual os que exercita1n a antropolo gia (ou~n1es1no , qualquer outra ciência
social) pensan1 e se con1unica1n. Alg uérn já escreveu que o ho1ne111 não
pensa sozinho, nu1n111onólogosolitário, 1naso faz sociahnente , no interior
de Lnna"co1nunidadede co1nunicação" e "de argurnentação"(ApeL 1985).
Ele está, portanto. contido no espaço interno de u1n horizonte socialmente
construído (no caso o da sua própria sociedade e/ou de sua co1nunidade
profissional). Desculpando- 111cpela itnprecisão da analogia. diria que ele
se pensa no interior de unia "representação coletiva'': expressão essa. afi-
nal, be1n fan1iliar ao cientista social e que. de cer~o 111odo , dá t11naidé1a
aproxi1nada daqu ilo que entendo por "idio1na'' de u1na disciplina. Co1no
pode111osinterpretar isso en1 conexão con1 os exen1plos etnográficos?
Diria inicial1nente que a textualização da cultura, ou de nossas observa-
ções sobre ela, é uni en1preendin1cnto bastante con1plexo. Exige que nos
dcspojcn1os de alguns hábitos de escrever, válidos para diversos gêneros
de escrita, n1asque para a construção de un1 discurso que esteja discipli-
nado por aqui lo que se poderia chaniar de"( nicta)tcoria social'' nen1scn1-

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R OBERTO CARDOSO DE ÜLIVElRA. Ü TRABALHO DO ANTROPÓLOGO

pre parecen1adequados. É, portanto, um discurso que se funda numa ati-


tude toda particular que poderíamos definir co1110antropológica ou soci-
ológica. Para Geertz, por exe1nplo, poder-se-ia entender toda etnog rafia
(ou sociografia, se quisere1n)não apenas como tecnica111entedifícil, uma
vez que coloca1nos vidas alheias en1"nossos" textos, mas, sobretudo, por
esse trabalhoser "1noral, política e epistemologica111ente delicado" (Geertz,
l 988b). Ernbora Geertz não desenvolva essa afirmação, co1no seria de
se desejar, sen1pre pode1nosfazê-lo a partir de u111conjunto de questões.
Penso, nesse sentido, na questão da "autonomia" do autor/pesquisador
no exercício de seu ,nétier. Quais as ilnplicações dessa autono1nia na con-
versão dos dados observados (portanto, da vida tribal, para ficannos com
nossos exen1plos) no discurso da disciplina? Temo s de admitir que 111ai s
do que urna tradução da "cultura nativa" na "cultura antropológica" (i.e.,
no idio111a de 1nínha disciplina) , o que rea1iza1nos é u1na "interpretação"
que, por sua vez, está balizada pelas categorias ou pelos conce itos bási-
cos constitutivos da disciplina. Poré111, essa autono1niaepistê1nica não está
de 111odoalgu1n desvinculada dos dados (quer de sua aparência exter na,
propiciada pelo Olhar, quer de seus significados íntin1os ou do "mo delo
nativo", proporcionados pelo Ouvir). Está fundada neles, em relação aos
quais ten1de prestar contas e111 algu1n 1no1nentodo Escrever. O que sig-
nifica dizer que há de se permitir sempre o controle dos dados pela comu-
nidade de pares, i.e., pela co111un idade profissional. Portanto, siste1na con-
ceituai, de uni lado , e, de outro, os dados (nunca puros, pois - já nun1a
priineira instância - construídos pelo observador desde o 1110111ento de sua
descrição)5guarda111 entre si unia relação dialética. São interinfluenciáveis.
Sendo que o 1nomento do Escrever, 111arcadopor u1na interpretação "de"
e "no" gabinete, faz co111que aqueles dados sofram unia nova "refração",
uma vez que todo o processo de escrever, ou de "inscrever", as observa-
ções no discurso da disciplina está conta1ninado pelo contexto do being
here , a saber, pelas conversas de co rredo r ou de restaurante, pelos de-
bates realizados e1ncongressos, pela atividade docente, pela pesqu isa de

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R i:v 1STA DI·: A NTRoro1,oc 1A , SAo P A ULO , US P, 199 6 , v. 39 nº l.

bib]ioteca ou lihrar yf ield~vork (como joco samente se cos tu111achamá-


la) etc, etc, enfin1pelo a1nbie nte acadê111ico.
Exa1nine111os uni pouco 1nais de peito esse processo de textualização, tão
diferente do trabalho de ca111po.No dizer de Gee1tz ( 1988b), seria pergun-
tar o que acontece co1n a realidad e observada no campo quand o ela é
e1nbarcada para fora? (" Wlzo t happ ens to realit y vvh en it is shipp ed
ah road '/ '). Essa pergunta ten1sido constante na chan1adaantropologia pós-
n1ode111a - un1rnovi1nento que ve1ntendo lugar na disciplina a pa1tirdos anos
60 e que, n1algrado seus n1uitos equívocos (sendo, talvez, o principal a iden-
tificação que faz da objetividade co111a sua 111 odalidade perversa, o "objeti-
vis1no" ), conta a seu favor o fato de trazer a questão do texto etnográfico
corno te1na de reflexão siste1ná tica, co111 0 algo que não pode ser tomado
tac itan1ente co1n o tende a ocorrer e111nossa co111unidade profissional (cf.
Cardoso de Ol iveira, 1988a). Apesar de Geertz poder ser considerado o
verdadeiro inspirador desse 1nov i1nento, que reúne u111 extenso grupo de an-
tropólogos, seus 1ne111brosnão participarn de u111aposição unívoca eventu-
aln1ente ditada pelo n1estre.6 A rigor, a grande idéia que os une, adernais de
possuíren1unia orientação de base henn enêutica, inspiradas e111pensado-
res con10 D ilthey, Heidegger, Gadan1er ou Ricoeur, é se colocare111contra
o que considera111ser o n1odo tradicional de se fazer antropologia, e isso. ao
que parece, co111o intuito de reju venescer a antropologia cultural norte-an1e-
ricana. ó1fã de un1 grande teórico desde Franz Boas.
Que pontos podería 111os assinalar, ainda nesta opo rtunidade. nos con-
duzen1à questão central do texto etnográfico? Tex to, aliás. que be1n po-
deria ser sociográfico, se puderinos estender, por analog ia, pa ra aqueles
111es111os resultados a que chcga111 os cientistas sociais, não i111porta
ndo sua
vinculação disciplinar. Talvez o que torne o texto etnográfico 111aissingu-
lar, quando o co n1paran1os con1 outros devo tados à teoria social. seja a
articulação que ele busca fazer entre o trabalho de can1po e a cons trução
do texto. Geo rge Marcus e Dick Cush111 an chegan1 a co nsiderar que a
etnog rafia poderia ser clc Cinida co tno "a rep resen tação do traba lho de
RouERTO CARDOSO DE OLIVEIRA. o TRABALHO DO ANTROPÓLOGO

car11ooe1ntextos"(Marcus & Cush1nan, 1982). Mas isso tem vários com-


plic;dores, con10eles rnesmos reconhece1n. Vou tentar indicar alguns,
seguindoesses n1es1nosautores, alé1nde outros que, como e]es (e, de certo
n1odo,muitos de nós atuahnente), buscam refletir sobre a peculiaridade
do Escrever um texto que seja controlável pelo leitor, e isso na medida
cn1 que distingui1nos tal texto da narrativa tneramente literária. Já mencio-
nei~1no1nentosatrás, o diário e a caderneta de ca1npo con10 1nodos de
escrever que se diferencia1nclara1nente do texto etnográfico final. Poderia
acrescentar,seguindo os 1nes1nosautores, que ta1nbé1nos a1tigose as teses
acadên1icas deve1nser considerados"versões escritas intennediárias ", uma
vez que na elaboração da monografia (esta sim, o texto final) exigências
específicas deve1nou deveria1nser feitas. Vou silnplesmente 111encionar al-
gun1as, preocupado e1nnão 1nealongar muito nesta conferência.
Desde logo uma distinção cabe ser feita entre as monografias clássicas
e as 1nodernas. Enquanto as pri1neirasforam concebidas de conformida-
de coin u1na"estrutura narrativa nonnativa " que se pode aferir a partir de
uma disposição de capítu]os quase canônica (Território , Econo1nia, Or-
ganização Social e Parentesco, Religião, Mitologia, Cultura e Personal i-
dade etc), as segundas, as n1onografias que pode1nos cha1nar de 1noder-
na<;,priorizam u1nte1na, através do qual toda a sociedade ou cultura passa1n
a ser descritas, analisadas e interpretadas. Gosto de dar como u1n bom
exen1plo de n1onografias deste segundo tipo a de Victor Turner , sobre o
processo de seg1nentação política e a continuidade observáveis em uma
sociedade africana (cf. Turner, 1957), urna vez que ela expressa co1111nu ita
felicidade as possibilidades de u1na apreensão holística, porém concen-
trada nu1núnico grande te1na,capaz de nos dar Lnnaidéia dessa socieda-
de co1nou1naentidade extraordinariamente viva. Essa visão holística, to-
davia, não significa retratar a totalidade de u1na cultura, 1nas so1ne nte ter
ern conta que a cultura, sendo totalizadora, 1nes1no que parciahnente des-
crita, se1npre deve ser ton1ada por referência.
Um terceiro tipo seria o da~ chamadas "1no nografias experi1nentais" ou
pós-1nodernas (defend idas por M arcus & Cushman), 1nas que , nes te

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R i::v1ST/\ DE ANTROPOLOG I/\, Si\o PAULO,USP, 1996, v. 39 nº l.

1no1nento, não gostaria de tratá-las se1nu1nexame crítico preliminar que me


parece indis~n sável, pois iriaenvolver precisamente minha" restrições àquilo
que vejo con10 característica dessas n1onografia": o desprezo que seus auto-
res de1nonstra1nrelativa1nente à necessidade de controle dos dados etno-
gráficos, ten1a, aliás, sobre o qual tenho 1ne referido diversa<;vezes, quando
procuro n1ostrarque alguns desenvolvimentos da antropologiapós-mode111 a
resultan1nu1na perversão do próprio paradigma hennenêutico. Essas 1nono-
grafias chegan1a ser quase inti1nistas, i1npondo ao leitor a constante presença
/

do autor no texto.E un1ten1asobre o qual te1nhavido muita controvérsia, 1nas,


infelizn1ente,não posso aprofundá-loneste momento.7
Poré1n,o fato de se escrever na pri1neira pessoa do singular - co1110pa-
rece1nreco1nendar os defensores desse terceiro t I po de n1onografia - não
significa necessariarnente que o texto deva ser intirnista.Deve significar sim-
plesn1ente-e nisso creio que todos os pesquisadores pode1nestar de acor-
do - que o autor não deve se esconder sisten1atica1nente sob a capa de un1
observador in1pessoal, coletivo, onipresente e onisciente, valendo-se da
/

prin1eirapessoa do plural: "nós". E claro que sempre haverá situações e1n


que esse ''nós'' pode ou deve ser recorrido pelo autor. Mas ele não deve ser
o padrão na retórica do texto. Isso 1neparece i1nportante porque, co1n o
crescente reconhecin1entoda pluralidade de vozes que co1npõe1na cena de
investigação etnográfica, essas vozes têm de ser distinguidas e jamais cala-
das pelo to1n in1periale 1nuitas vezes autoritário de u1n autor esquivo , es-
condido no interior dessa pri1neirapessoa do plural. A chan1ada antropolo-
gia polifônica, na qual teorican1entcse daria espaço para as vozes de todos
os atores do cenário etnográfico, re1netesobretudo, no n1eu entcndin1ento,
para a responsabilidade específica da voz do antropólogo, autor do discur-
so próprio da disciplina, que não pode ficar obscurecido (ou sej,\ substitu-
ído) pelas transcrições das falas dos entrevistados. Mes1no porque, sabe-
1nos, u1nbon1 repórter pode usar tais transcrições con11nuito 1nais arte ...
U ni outro aspecto do processo de construção do texto que quero crer
seja i1nportantc resgata r ainda nesta exposição, antes de a dannos por
tenninada, é 1nostrar que, apesar das críticas, es~;eterceiro tipo de 1nono-

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R OBE RTO C/\ROOSO DE ÜLI VEIRA. Ü TRABALHO DO AN T ROPÓLOGO

grafia traz uma inegável contribu ição para a teoria soc ial. Marcus &
Cushn1an observa1n,relativamente à influência de Geertz na antropologia,
que, com ele, a "etnografia tornou-se u111meio de falar sobre teoria, filo-
sofia e episten1ologiasirnultaneamente ao cu1npri1nento de sua tarefa tra-
dicional de interpretar diferentes rnodos de vida"( l 982 :37). Evidentemente
que no elevar a produção do texto ao nível de reflexão sobre o Esc rever,
a disciplina está orientando sua ca1ninhada para aquelas instâncias meta-
teóricas que poucos alcançara1n realizar. Talvez o exe1np lo 1nais conheci-
do dentre os antropólogos vivos sej a o de Lév i-Strauss e no â111bit o de
seu n1étodo estruturalista , ainda que de reduzida eficác ia na pesqu isa
etnográfica. Con1 Geertz e sua antropologia interpretativa, verifica-se o
surgi1nentode un1aprática 1n etateórica e1nprocesso de padronização, em
que pesem alguns esco1Tegõesde seus adeptos para o inti1n is1no, há pou-
co 1nencionado. Entendo que o bo1n texto etnográfico, para ser elabora-
do, deve ter pensadas as condições de sua produção, a par tir das etapas
iniciais da obtenção dos dados (o Olhar e o Ouvir), tal não quer dizer que
ele deva se en1aranhar na subjet ividade do autor/pesquisador. Antes, o
que está em jogo é a "intersubje tividade" - esta de caráter epistêm ico -,
graças à qual se a1i icula1n nun11nes1n o "horizonte teórico" os rne1nbros de
sua co1n unidade profissional. E é o reconhecirnento dessa intersubjetividade
que torna o antropólogo 1no derno u1ncientista social menos ingênuo. Te-
nho para 1ni111 que talvez seja essa un1a das mais fortes contribuições do
paradig1na henn enêutico para a disciplina.

Conclusão
Exa n1inados o O]har , o Ouvir e o Esc reve r, a que co nclusões pod e-
1nos chegar? Como procurei 1nostrar desde o início, essas "facu ldades"
do espírito tê111características be1n precisas quand o exercitadas na órbita
das ciências sociais e, de urn 1nodo todo especial, na da antropolo gia. Se
o Olhar e o Ouvir constituem a nossa "percepção" da realidad e focaliza-

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R1~v1ST/\ l)L ANTROPOLOGJ 1\, SAo P ,\ ULO , US P, 1996, v . 39 nº 1.

da na pesquisa e1np írica, o Escrever passa a ser parte quase indissociável


do nosso "pensan1ento'', u1na vez que o ato de escreve r é sirnu ltâneo ao
alo de pensar. Quero charnar a atenção sobre isso, de 1nodo a tornar cla-
ro que - pelo n1enos no n1cu n1odo de ver - é no processo de redação de
u1n texto que nosso pensa1nento can1inha, encontrando soluções que difi -
ciln1entc aparecerão ''a ntes" da textualização dos dados prov enientes da
observação sistc1nática. Sendo assi1n, seria u1n equí voco i1na ginar que,
prin1eiro, chcga n1os a conclusões relativas a esses 1ncs1nos dados, para,
en1 seg uida , podc nno s insc reve r essas concl usões no texto. Port anto,
dissociando-se o "pe nsar" do ''esc rever". Pelo rnenos 1ninha experiência
indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal fonna solidários entre
si que, junt os, forn1an1pratican1ente u1n 1nesrno ato cognitivo. lsso signifi-
ca que nesse caso o texto não espera que o seu autor tenha pri1neiro to-
das as respostas para, só então , pod er ser inici ado . Entendo que ocorra
na elaboração de urna boa narrati va que o pesquisador, de posse de suas
observações dev idan1ente organiza das, j á inicie o processo de textuali-
zação. u1na vez que esta não é apenas unia f orn1a escr ita de sin1plcs expo-
sição (un1a vez que há tan1bén1 a forn1aoral), po rérn é a produção do tex-
to tan1bén1 produção de co nhecin 1ento. Não obstante. sendo o ato de
escrever un1ato igualn1entccognitivo, esse ato tende a ser repetido quantas
vezes ror necessário~ porta nto, ele é escrito e reescrito rcpetidan1ente , não
apenas para aperfeiçoar o texto do ponto de vista forn1al, n1as tan1bé1n
para 1nclhorar a veraci dade da~ descrições e da narrativa, aprofundar a
análise e consolida r argu111entos.
Mas isso. por si n1esn10. não carateriza o Olhar, o Ouvir e o Escre-
ver antropológicos. po is supo nho que ele está presente cn1 toda e qual-
quer escrita no interior das ciências sociais. Mas no que tange à Antropo-
logia. con10 procurei n1ostrar.esses atos estão prcvian1cnteco1npron1etidos
con1 o próprio hori;,onte da disciplina. onde Olhar, Ouv1r e Escreveres-
t:to desde scn1pre :-iintonizados con1 o '·s1stcn1a de idéias e valores" que
são próprios dela. O quadro conceit uai da antropologia abriga. ncs\c scn-

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ROB ERTO CARDOSO DE ÜLIY EIRA. Ü TRAf3ALHO DO ANTROPÓLOGO

tido, idéias e valores de difícil separação. Louis Dumont, esse excelente


antropólogofrancês, charna isso de "idéia-valor"8 unindo assim, numa única
expressão, idéias que possuam uma carga valorativaextremamente gran-
de. Trazendo essa questão para a prática da disciplina, diríamos que pelo
menos duas dessas "idéias-valor" marca1n o fazer antropológico: "a ob-
servação participante" e a "relativização". Entre nós, Roberto Da Matta
chan1oua atenção sobre esta última em seu livroRelativizando: unia intro-
dução à antropologia social,91nostrando e1nque medida o relativizar é
constituinte do próprio conhecitnento antropológico.Pessoalmente, enten-
do aqui por relativizar uma atitude epistê1nica,eminentemente antropoló-
gica, graças à qual o pesqui sador logra escapa r da ameaça do etnocen-
trismo - essa forma habitual de ver o n1undo que circunda o leigo, cuja
1naneira de olhar e de ouvir não foi disciplinada pela antropologia. E se
poderia estender isso ao Escrever na medida em que, para falannos com
Crapanzano, 'º"o Escrever etnografia é urna continuação do confronto "
intercultural, portanto entre pesquisador e pesquisado. Por conseguinte,
uma continuidade do Olhar e do Ouvir no Escrever, este último igualmen-
te rnarcado pela atitude relativista.11
Uma outra idéia-valor a ser destacada como constituinte do ofício
antropológico é a "observação participante", que já 1nencionei momento s
atrás. Permito-me dizer que talvez seja ela responsável por caracterizar o
trabalho de carnpo da antropologia, singularizando-a, enquanto discipli-
na, dentre suas innã s nas ciências sociais. Apesar de essa observação par-
ticipante ter tido sua forma 1naisconsolidada na investigação etnológica,
junto a populações ágrafas e de pequena escala, tal não significa que ela
não ocorra no exercício da pesquisa corn segrnentos urbanos ou rurais da
sociedade a que pertence o próprio antropólogo. Dessa observação par-
ticipante, sobre a qual muito ainda se poderia dizer, não acrescentarei mais
do que urnas poucas pa lavras; apenas para charnar a atenção para uma
modalidade de observação que ganhou, ao longo do desenvolvi111entoda
discip lina, u111statu s alto na hierarquia das idéias-valor que a 1narcarn

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R EV ISTA DE A NTROPO LOG IA, SÃOPAULO,USP, 1996, v . 39 nº 1.

e1nble matican1ente. Nesse sentido, os atos de Olhar e de Ouvir são, a ri-


gor, funções de um gênero de observação muito peculiar (i.e., peculiar à
antropologia), por 1neio da qual o pesquisador busca interpretar (melhor
dizendo: co1npreender) a sociedade e a cultura do Outro "de dentro", em
sua verdadeira interioridade. Tentando penetrar nas forn1as de vida que
lhe são estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função es-
tratégica no ato de elaboração do texto , uma vez que essa vivência- só
assegurada pela obse rvação participante "estando Já" - passa a ser evo-
cada durante toda a interpretação do mate rial etnográfico no processo de
sua inscrição no discurso da disciplina. Costu1no dizer aos meus alunos
que os dados cont idos no diário e nas cadernetas de campo ganham ern
inteligibilidade sempre que re1nernorado s pelo pesquisador; o que equi-
vale dizer que a n1e1nóriaconstitui provave hnente o elemento 1nais rico na
redação de u111texto, contendo ela 111 es111au111an1assa de dados cuj a sig-
nificação é 111 ais be1n alcançável quando o pesqu isador a traz de volta
do passado , tornando -a presen te no ato de escrever. Seria uma espécie
de presentificação do passado, com tudo que isso possa implicar do pon-
to de vista hermenê utico, ou, e1n outras palavras , com toda a influência
que o "esta ndo aqui" pode trazer para a co 111preensão (Verstehen) e a
interpretação dos dados en tão obtidos no ca1npo.
Paremos por aqui. Etn resu1110 , vi111
os, através da experiência antropo-
lógica, co111 0 a disciplina condiciona as possibilidades de observação e de
textua lização se1npre de confon nid ade com u111horizonte que lhe é pró-
prio. E, por analog ia, poder-se-ia dizer que isso oco rre ta111b é 1n en1 ou-
tras ciências sociais, e111maior ou e1111nenorgrau. Isso significa que o Olhar,
o Ouv ir e o Escrever devem ser sempre te1natizados, ou, em outras pala-
vras, questionados enquanto etapas de constituição do conhecimento pela
pesqu isa e1npírica- esta últirna sendo vista como o programa prioritário
das ciências sociais. Trazer esse te1napara tuna conferência nesta casa me
pareceu, enfi1n, apropriado pelo fato de estar 111 e dirigindo a colegas oriun-
dos de outras disciplinas, o que 1ne ]eva a imaginar estar contribuindo para

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ROBERTO CARDOSO OE ÜLIV~IRA. Ü TR ABALHO DO ANTROPÓLOGO

an1plíar a indispensável interação entre nossos diferentes (poré111aparenta-


dos) offcios, redundando, assim, a proporcionar (quero crer) um certo estí-
111uloà interdisciplinaridade, que entendo necessária no âmbito de um de-
partamento devotado ao estudo dos Trópicos. Ao mesmo tempo, ficarei
111uitofeliz se houver conseguido transfonnar atos aparentemente tão trivi-
ais, co1110os aqui exa111inados, e111
temas de reflexão e de questiona111ento.

Notas
A prin1eira versão desla co nferênc ia f oi desti nada à Aula Inaugura l do ano
acadêmico de 1994, re lat iva ao s cursos do In stitu to de F ilosofia e Ciências
Hu1nanas (IFCH) da Un ivers idad e Estad ual de Cam pin as (Unicai np ). Ap re-
se nte versão, que agora se publica, foi ela borad a para un1a co nfe rência n1i-
nistrada a u1na platéia n1ultidisciplinar na Funda ção Joaq ui1n Nabuco , en1
Recife, e1n 24 de n1aio do mes1no ano, e1n se u Institut o de Tropicologia.

2 Aqui fa ço u1na disti nção entre "se ntid o" e "s ignifica ção": o prilneiro termo
destinado a dar conta do hori zo nte se mânti co do "nativ o" (co 1no no exem -
plo de que estou n1e va lend o), enquant o o segu ndo tenn o serve para desig-
nar o horizo nte do antr opó logo (qu e é co nst ituíd o por sua discip lina). E ssa
distinção se apóia em E.D. Hir sc h Jr. ( 1967:21 l), que, por sua vez, apóia-se
na lóg ica fregeana.

3 Esse é u1n te1na que tenh o exp lora do seg uidmn ente em dife rentes pubh ca-
ções, poré1n indi ca ria apenas a mai s rece nte: UJna co nferência mini strada na
U niversidade Fede ral do Paraná, no ân1bito do Seminá rio "C iência e Socie-
dade: A Crise dos M ode los", rea lizado na cidad e de Cu riti ba, e1n 9 de no-
ve 1nbro de l993 (cf. Cardoso de Ol iveira, 1994).

4 O tít ul o da ed ição or ig inal é Works and tives: th e anthr opolog ist as autho r
(cf. G ee rtz, 1988) . Há unia tradução espanho la, publi ca da em Ba rce lo na.

5 M eye r Fo rtes já nos anos 50 chan1ava esse pr ocesso quase primitiv o de


in vestigação et nog ráfi ca reali zada no âin hi to da antr opo log ia soc ial de

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R EVISTA DI ~ A NT ROPOLOGIA , SAo P AULO, USP, 1996, v. 39 nº 1.

(c f. Fortes, 195 3). indica ndo com isso a reje ição


··0110/yticol clescri/Jfir)J1''
de qua lquer pretensão a u1na etnografia " pura", não pcnneacla pela aná lise.

6 Par a un1a boa idé ia sobre a varieda de de posições no inter ior do 1novi-
n1ento hen nenêutico , vale consultar os e nsa ios contidos e111Jan1es Clifford
& Geo rge
.... E. Marcus, 1986 .

7 De u1na perspectiva crí tica, ainda que sin1pütica a essas n1onografias ex-
perin1entais , leia-se o artigo ela ant ropó loga Te resa Caldeira ( 1988); já ele
u1na perspectiva n1enos favorável , ver, por exc 1nplo , o arti go- rese nha de
Wilson Trajan o Filho ( 1988), e o de Ca rlos Fausto ( 1988) an1bos publica -
do s no Anuârfr J Antropológi co; e o de Marí za Pe irano, "O enco ntr o etno-
gniJ ico e o diálogo teórico" (c f. Pe irano, 1991). Para u1na apreciação mais
ge nérica dessa antropo log ia pós-1noderna , onde se procura aponta r tan -
to seus aspecto s posi tivos (no que se refe re à co ntribui ção do paradign1a
hern1cnêutico para o enriqu ccin1ento da rnatriz disciplinar da antropologia)
quanto os aspectos negativos daquilo que considero ser o "de scnvo 1ví-
1ncnto perverso " desse paradigrna, (cf. Cardoso de Ol ive ira, 1988b; ve r-
são fin al de co n fcrência proferida no Centro de Lógica, Episten1ologia e
História da Ciência da Un ican1p, e1n 1986, cuja pri1neira publica ção foi feita
no Anuário Anrropolôi i co, 86, con forrne Cardoso de Oliv e ira , 1988a).

8 CL Louis Dun1ont , "La valcur chez les n1odernes ct che;, lcs autres '', in
Dun1ont, 1983, cap.7.

9 Editado pela Vozes, e n1 198 1, o volun1c é unia hoa intr odução à antropolo-
gia soc ial que rccon1cndo ao alu no interessado na disciplina, prccísan1en-
Lc por não se tratar de un1 n1anual, poré1n de un1 livro de reflexão sobre o
fazer antropológ ico, apoiada na rica exper iência de pesquisa do autor. Jú
nun1a direção un1 pou co dif erente , posicionand o-se co ntra certos exage-
ros anti-relativistas, Cliflo rd Gccrtz esc rev e seu "An ti anti-relativisrno''
( 1988a:5- l 9), que vale a pena co nsultar.

10 CL Vinccnt Crapanzano, l 977. Muitas vezes por razões estilísticas - obser -


va Crapanzano - " iso la-se o ato de esc rever, e se u produto final [o texto],
da próp ria co nrrontac;ão. Qualquer que seja a ra zão para essa dissociação,

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R OBERTO CARDOSO DE OLIV EIRA. 0 TRABALHO DO ANTROPÓLOGO

pennanece o fato de que a confro ntação não tern1ina antes da et nografia,


mas, se se pode dizer ao fi1n de tudo, é que ela ter_rninacom a etnografia"(: l O).

11 Eu faço u1na distinçã o entre "at itude relativ ista" , que cons idero ser ineren-
te à postura antropo lógica, e "relativism o" com o ideolog ia cien tífica . Ess e
relat i vismo, por seu ca ráter radi cal e abs oluti sta, não conseg ue visualizar
adequadainente questões de moralidade e de eticidade , sobrepondo, por
exe mplo , "hábito " a "nonn a 1noral" e justificando esta por aque le. Tiv e a
ocas ião de tratar de sse te1na mai s detalhadatnente em outr o lugar (cf. Car-
doso de Oliv eira, 1993:20-33).

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thc kind w ich is clone i n Lhe ofli cc, c,ncrgcs as thc 111 osl fruitful rno111 cnt o f
int crpr ctat io n. Think ing is rcvca lcd in it s m ost crcatí vc 111on1cnt w hen w rit -
ing bcco, n cs thc 1ncans for tcx tualizing soc io-c ult ur al rcality.

KEY WORDS: cthnograp hy, int erprctatí o n, tcxtualit y.

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