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Psicologia Existencial e Suas Práticas
ORGANIZADORE S DA SÉRIE
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo
Myriam Moreira Protasio
ISBN 978-85-63850-06-5
CDD 150.192
0020/2015 CDU 159.9
11 11;, o causal.
Uma das questões na qual precisamos nos deter diz respeito ao
1, r:\tcr descritivo e enunciador do modo de ser do homem presente
~- -
passar de informações parciais do nível descritivo para práticas de cura o 1 1 un os riscos da transposição do campo filosófico para o campo psico-
que acontece?" (p. 105). É justamente essa transposição o que queremos u-rnpêutíco! O caminho que vamos seguir aqui diz respeito ao modo
esclarecer neste texto, mostrando o modo como a clínica psicológica pode 1",jlC ífico de pensar que tomaremos da ontologia heideggeriana, ou
acontecer sem assumir uma prescrição. Com relação à cura, poderíamos ,,1·Ja, o modo fenomenológico - hermenêutico. A hermenêutica de Hei-
afirmar que não é esse o objetivo da clínica psicológica? Sim e não. Não, ill'ggcr pressupõe circularidade, que preserva a relação entre universal
isso quer dizer, que não sabemos de antemão o que seria curar-se, dado a ,. singular. O singular diz respeito a que o Dasein é sempre meu e que a
singularidade no que diz respeito à decisão que cada um assume em sua 1 umpreensâo é um existencial que se expressa sempre singularmente.
existência. Sim, uma vez que queremos, com a relação que se estabelece Mas a indeterminação originária do Dasein torna necessário que ele
na clínica, sustentar um espaço de pensamento que se demora ao pensar ',l' constitua pelos sentidos que se articulam no mundo que é seu. As
sobre as orientações do mundo que nos aprisionam em um dever ser, obs- orientações do mundo, ou seja, o acontecimento - apropriativo cons-
curecendo o caráter de poder ser que todos nós somos. A situação clínica 1 i I ui-se no caráter universal que sustenta as possibilidades singulares
que traremos aqui nos mostra, justamente, o aprisionamento por meio da 1k- ser.
cristalização da identidade feminina e a consequente queixa de solidão Assim, a queixa da solidão diz respeito às expressões singulares
quando essa identidade não se realiza. que se sustentam no modo que a identidade feminina se cristalizou em
Ao pensar a clínica psicológica de um ponto de vista distinto ao nosso horizonte histórico. Há muito se consolidou a tese de que toda
das ciências naturais que operam com a noção de causa - efeito, po- mulher necessita de um homem que lhe dê e confirme a sua identidade
sicionando de antemão o analista como o eu faço da relação, vamos f ·minina. Essas teses aparecem nos mitos, nas histórias infantis, nos
tomar a concepção de Dasein tal como desenvolvida por Heidegger contos, romances e até em teorias acerca do psiquismo humano. A in-
(1927/2003). O filósofo, ao redefinir o conceito de ser humano como 1 .rpretação hermenêutica com a qual lidaremos na clínica diz respeito,
Dasein, estabelece outro modo de apreender o tradicional conceito fi- primeiramente, a conhecer as determinações do horizonte histórico
losófico de necessidade e possibilidade. Em Ser e tempo, o filósofo in- ·m que nos encontramos. Sem deixar, no entanto, de atentarmos ao
troduz a concepção de decisão e do deixar as coisas aparecerem por modo como cada um singularmente corresponde a essas determina-
elas mesmas. Stein (2012), assim, resume essa passagem: ''A condição ções do mundo. E é nesse jogo do dever ser e poder ser que o singular
causa-efeito 'violenta' a existência humana, pois a ignorá' (p.106). Por pode emergir como ser das possibilidades. É, justamente, esse jogo que
isso Heidegger em Ser e tempo substitui a expressão "liberdade" pela será mostrado na situação clínica que discutiremos adiante.
ideia de decisão. E é justamente a ideia de decisão discutida ontologica- A clínica psicológica existencial se sustenta na noção de cuidado
mente pelo filósofo que discutiremos onticamente na clínica como não que podemos acompanhar em Ser e tempo, trata-se do caráter univer-
se tratando de uma mera escolha. sal das descrições heideggeriana, no entanto, não é possível um proces-
A cristalização da identidade feminina e a consequente queixa de so psicoterapêutico sem singularidade. De acordo com o que diz Stein
solidão, por parte das mulheres, torna-se cada vez mais frequente nos (2012): ''A preservação da singularidade do indivíduo, ao mesmo tempo,
consultórios de psicologia, por esse motivo é que essa questão se apre- a possibilidade de pensá-lo em sua generalidade, tal como é desenvolvido
senta com o mérito de ser pensada. Falar de identidade feminina não em Ser e tempo, põem-nos em uma relação clínica diferente" (p.107).
aponta para uma generalização? Tomar a queixa de solidão que aparece Ainda, para poder apresentar o tema solidão, que também com-
em alguns consultórios de psicologia não é um caminho que conduz a põe o título deste texto, esse deve ser pensado. Iniciemos pelo que en-
algo que diz respeito à singularidade? Para levar a cabo essa discussão, tendemos aqui por solidão. Fogel (1999) pensa a solidão totalmente
precisamos recorrer a Heidegger, ou melhor, a sua fenomenologia her- articulada ao silêncio e diz que é nesse espaço de liberdade que o ho-
menêutica. Surge, então, a segunda questão, de como podemos lidar mem tem a possibilidade de encontrar a sua necessidade, a sua tarefa
dos cuidados de um profissional que possa corrigir aquilo que lhe traz discurso de nosso tempo que, a todo o momento, nos diz que temos que
sofrimento. Essa interpretação e consequente atuação clínica partem 1 onquistar a felicidade, e feliz é aquele que tem "a família Doriana".
da naturalização da relação causa-efeito. Assim efetua-se uma genera- Em uma perspectiva existencial que abandona totalmente a ideia
lização na qual a singularidade é desconsiderada. Mas, também, pode dr uma estrutura psíquica que subjaz todo o modo de sentir, pensar e
ocorrer ao contrário, tudo pode ser tomado como da ordem de uma ,1gir do homem, a ideia de castração, tão cara à psicanálise, é totalmente
particularidade, recaindo-se em um relativismo e subjetivismo extre- .rhandonada, dando lugar à oportunidade de acompanhar o fenômeno,
mo, sem lugar para aquilo que tem um caráter universal. 1 k-svelando outras possibilidades de compreensão do mesmo. E, assim,
Na psicologia, que se sustenta na universalização de seus pressu- 11,1 clínica existencial, ao abandonar-se a ideia de castração, damos voz
postos, tende-se a pensar que a identidade feminina é algo da ordem de 11 experiência e ao sentimento de solidão presente nas mulheres que
uma determinação biológica que em um paralelismo estabelece o psí- buscam a clínica para que elas possam se libertar desse aprisionamento,
quico. Assim, pensam -se as questões trazidas pelas mulheres por meio 1111 seja, desse sentimento de solidão que as acompanha.
de uma teoria psicológica sobre o psiquismo feminino. Em uma pers- Mas, uma vez que, não se parte de uma estrutura e dinâmica psí-
pectiva existencial em psicologia, consideramos que nem o biológico e q11 ica que dão lugar aos traumas e aos complexos, como dar suporte a
nem o psíquico determinam os modos de ser do homem, ao contrário uma perspectiva em psicologia que parte da ideia da inexistência de
ambos se constituem pelas interpretações desses elementos em uma 11 m psiquismo e retoma a existência em sua dinâmica performática?
configuração historicamente constituída. Existência, então, diz respei- 1'11ra poder sustentar esse modo de pensar é que vamos dialogar com
to às possibilidades mais originais daquele que existe no seu encontro, 11s pensadores que já se ativeram a essa questão. Dentre eles, elegemos
também mais originário, com o mundo. Logo de início, nenhuma iden- 1 Icnomenologia hermenêutica de Heidegger.
tidade caracteriza o feminino, ao contrário, é no próprio existir que as Para Heidegger (1927/2003), o ser-aí, marcado pela nadidade
identidades se constituem e também podem se cristalizar. 1· pela fragilidade ontológica, busca a estabilidade do mundo, que se
clínico o caráter de nadidade, de indeterminação e de incompletude 11 1H la. Mas sua indeterminação própria, bem como o caráter de poder
de sua existência. Para poder mostrar como concretamente se dá o 1·1, .iparecem sempre como um anúncio de outros possíveis. Isso nos
acontecimento da clínica, vamos trazer à discussão uma situação mui- 111mtra como já no início, ao nascer, e na maioria das vezes, tende-
to presente nas queixas de mulheres que buscam a clínica psicológica, 11111•, a acompanhar a cadência do mundo, acabando por acreditar que
o medo da solidão. 11-,~ orientações sedimentadas em nosso horizonte histórico estão as
111111 ,is e inquestionáveis verdades. Heidegger nos diz que é preciso
ult.rr ao pensamento mais originário para, então, poder deixar trans-
Cristalização da identidade feminina 1'·" t'l -r as possibilidades de aparição do sentido dos fenômenos que
11, ,1111111 obscurecidos pelas determinações hegemônicas. Logo, vamos
Primeiramente, vamos buscar a gênese daquilo que encontramos 1, t 11,vcder aos gregos arcaicos para ver como os diferentes sentidos
nas queixas de solidão. Vamos buscar nos gregos antigos o sentido ori- ,111 h-minino em sua relação com o masculino se movimentou nesse
ginal daquilo que pretendemos discutir, ou seja, a constituição do fe- 11111 lrnnte histórico.
minino. Ao proceder a uma análise sobre como se cristalizou, ao longo Hrandão (1989) ao tratar de Helena discute a questão do femi-
do tempo, o sentido do feminino pensamos poder compreender o que 1111111 vm diferentes períodos gregos, a iniciar pelo período anterior ao
ocorre hoje. Ao tematizar o sentido da palavra análise, verificamos, nos 111, 1111, que afirma Brandão (1989, p.10) ser a "passagem do Neolítico II
Seminários de Zollikon, que análise refere-se à analisein que em grego t llltHI :i 2600 a. C.) para o Bronze Antigo (2600 a 1950 a.C.)". Em Creta
comportava dois sentidos: destecer e libertar. O sentido que vai pre- ,l11111lt1:iva uma cultura agrária que valorizava acima de tudo a fertilida-
valecer é o de destecer como dividir em partes, fragmentar. Enquanto ,1, 1 'um isso a divindade tutelar era feminina, a Deusa Helena, consi-
o sentido de libertar ficará totalmente obscurecido (Heidegger, 2001). 1, 1,111.1 a rande Mãe. E assim em Creta, nesse período, a estrutura da
Ao encontrar os sentidos mais originários, podemos mostrar como um 111111111ldade era matrilinear e as mulheres tinham o mesmo direito de
dos sentidos ficou obscurecido enquanto o outro ganhou relevo, de p,11111 lpnção política e social que tinham os homens. Ainda na Ilíada e
modo que este passou a ser considerado em total restrição dos sentidos 1 1,/1,"·i11 encontramos muitos elementos de valorização da mulher:
lisando denominaremos relação tu-tu. 111 d,· uma clínica existencial devemos atentar-nos em que:
minado e ao mesmo tempo de poder ser. "" 1111· r .lacionadas ao nivelamento histórico de sentido da técnica.
5 - Questionando as verdades estabelecidas: a clínica existen- <, - Abrindo o caráter de poder ser de toda e qualquer existência,
cial acontece no sentido de colocar em questão as verdades estabeleci- 1111nu-dida em que o analisando percebe o quanto restringe suas pos-
das, dentre elas a "família Doriana", "Felizes para sempre". Fogel (1998) thllldudes: na medida em que o analisando puder perceber o quanto
uns aos outros, trata-se do sentido mais originário da empatia. E, as- ,1 possibilidade de que o analisando conquiste a medida de sua existência
sim, compartilhando desse espaço, podemos nos abrir para que haja •,lngular. Trata-se do espaço onde o querer e o poder se reencontram.
uma disposição para a transformação. Faz-se necessário uma dupla A seguir, mostraremos uma situação clínica, no momento em
apropriação, o analisando tem que se deixar apropriar pelo espaço para que se estabelece a relação psicoterapêutica. Logo no início, atuamos
que o próprio espaço lhe devolva o aí que é o seu. d!' modo a deixar que a relação se estabeleça em uma dinâmica tu-tu,
Como podemos pensar em uma recuperação ou superação de i.d como mostraremos a seguir, acompanhando Flávia', com 15 anos
uma fissura ou inautenticidade sem uma estrutura psíquica de base que d1· idade ao trazer à clínica o seu sofrimento com o rompimento de sua
detenha em si mesma a "verdade singular" a qual tem que ser encontra- u-lução amorosa:
da para o reestabelecimento do psiquismo? Ou, ainda, sem uma adap- Flávia diz: Vim aqui por que acredito que seja o lugar em que eu
tação do comportamento? E, ainda, sem a premissa de um trauma no 1•11sso sarar a minha dor. Você vai me ajudar não vai? Sabe como fazer
passado que inviabiliza a vida fluida? A clínica que mantém a ideia de /11u, não sabe? Minha amiga me disse que depois que veio aqui conversar
uma interioridade psíquica tem como base o seu caráter confessional, 111111 você tudo se resolveu. Por favor, me diga como posso fazer para ar-
que acredita que com a revelação da verdade vem a libertação ( Cabral, 1,111car essa dor do meu peito. Às vezes parece que vai faltar ar.
2012). O analisando, inserido nessa perspectiva, vem em busca das ver- Analista: Eu preciso saber um pouco sobre a sua dor. O que está
dades que estão escondidas em sua interioridade ou então em busca 1111111/ecendo com você?
das medidas corretivas que o possibilitem realizar seus projetos. Flávia: Estou sofrendo muito. Não sei nem como começar a contar.
O clínico que atua em uma perspectiva fenomenológico-existen- 1 ',,,, [avor, diga-me o que eu tenho que fazer e, eu farei.
cial distancia-se totalmente dessa forma de atuação, mesmo porque Analista: Se você mesmo nem sabe como começar, nem o que fazer,
acredita que desse modo vai tranquilizar o analisando, dando-lhe a sua 1 ,111/1/ eu poderia saber, minimamente, o que você pode Jazer?
tutela, assegurando-o da possibilidade de conquistar seus objetivos, des- Flávia: Mas você é psicoterapeuta não é? Então sabe como acabar
de que ele siga o método certo. A clínica existencial caracteriza-se mui- 1 11111 o sofrimento, não sabe?
to mais por uma negatividade, não há nada em que esse clínico possa Analista: Sei acompanhar o sofrimento e posso acompanhar o teu,
orientar, mesmo porque a verdade é algo que se conquista no momento 111111 11üo posso lhe dizer que tenho o antídoto contra o sofrimento.
mesmo da existência. Logo, a verdade é essencialmente abertura e o aí Flavia: Mas preciso que você me prometa, eu não aguento mais essa dor.
existencial é o fenômeno mais originário da verdade. Ser verdadeiro é Analista: Eu não posso lhe prometer algo que só cabe a você. Só
ser desocultado na medida em que se é em um mundo. Isso torna o 1 , ,, , sabe o que lhe dói e só você pode encontrar outro modo de lidar com
exercício clínico não um ato confessional que na confissão conquista a ,, 111r1 dor. Então o que tanto dói em você?
consciência e a liberdade. O que acontece é uma conquista e reconquista
l'lávia é um nome fictício assim como toda a situação clínica apresen-
incessante de si, que no final das contas é pura indeterminação em seu
1111,1 lista compilação é fruto da experiência da autora com atendimentos e
caráter de poder ser. A clínica psicológica existencial se direciona no 11111•1 visões na clínica psicológica.
Situações Clínicas 1 • 35
34 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa
que mesmo eu não querendo, resolvi ceder. Eu tinha medo de que meus Após algum tempo, Flávia traz o seguinte assunto: Há um rapaz
pais soubessem e eles não iriam me perdoar. Mesmo porque meu pai é o que está se interessando por mim. Ele era nosso amigo e sempre mostrou
Pastor da Igreja e nós temos que dar o exemplo. Acontece que minha mãe ieu interesse em mim. Estou super feliz com isso. Também o outro já está
descobriu as pílulas no meu armário e isso deu muita confusão. Meu uamorando outra menina da igreja. Acho que eu também posso namo-
pai disse que eu não era mais a filhinha dele, minha mãe disse que se eu rar outro rapaz. Flávia passou várias sessões falando desse outro ra-
era mulher para manter um relacionamento sexual, também teria que p,1z. Dizia como ele era inteligente, gentil, ligava todos os dias para ela.
me responsabilizar pelas tarefas da casa. Tive que conciliar meus estudos luclusíve que era até mais amoroso que o primeiro namorado. Nessas
com as obrigações das tarefas da casa. Minha vida modificou totalmente. uportunidades, discorria acerca de tudo que era ruim na outra relação.
Mas não me importava, porque nós dois ficamos mais juntos ainda. Só As sessões passam a transcorrer com muitos relatos sobre a con -
que agora, ele terminando comigo, meus pais dizem que agora eu sou q11ls1a. Até que Flávia traz outra situação: O segundo rapaz, na verdade,
uma mulher e que os outros rapazes só vão se aproximar para se aprovei- 1, 111 outra namorada e, por isso concordamos em manter seu relaciona-
tarem de mim. Vejo um destino triste para mim, possivelmente, vou ficar 1111•1110 em segredo, até que ele terminasse com a moça. Acontece que ago-
solteirona, sozinha. E a solidão muito me amedronta. Às vezes, acho que ,,, l'i,· se encontrava em dúvida. Ele viu que não era tão fácil terminar,
ele vai se divertir um pouco, mas depois voltará para mim. Mas quando , , 1 ,1111 de acreditara no início.
telefono para ele e ele é grosseiro, diz para eu dar um tempo, que não quer As sessões transcorreram da mesma forma que as entrevistas
falar comigo, perco a esperança. Penso: "Será que ele precisava ser tão 1111t l,1ls. Esperança, idealização de projetos de casamento e filhos, re-
grosseiro assim?" i 1, 11111 unente eterno. Por outro lado, dor, luto, destruição dos proje-
Analista: Ele dá a entender que você não deve ter esperança, é isso? 1 , 1111·do da solidão, da rejeição. Às vezes Flávia ainda dizia que se
Flávia: É isso. E é isso que faz doer ainda mais. (Permanece cho- 111 l,1 usada, que o rapaz só queria transar com ela, mas com a outra
rando por um longo tempo). ,11,, ,1 qt 1 .ria se casar. Outras vezes, acreditava que ele iria decidir-se
Analista: Sem esperança dói mais, não é Flávia? 1 , l.1 P •rguntava-se por várias vezes porque isso acontecia logo com
Flávia: Dói. Mas ter esperança também é ruim, a todo momento " 1111 a-se por vezes frustrada, revoltada. Outras vezes, ficava triste
caio do cavalo. Preciso pensar em outras coisas. Preciso encontrar outro , pl'rançada.
sentido em minha vida. N11 1 clação psicoterapêutica, o analista deixa aparecer que a vida
Analista: Mas qual? , 111111,:nr de total realização, a vida comporta frustrações, ou seja,
Flávia: Ter amigos, estudar, sair. Não sei, mas preciso fazer outros 1 111 11 lo realizados. Flávia começa então a trazer para a sessão o
coisas. 111 oi,• Ili nr sozinha. Esse medo tomava seu pensamento dia e noite.
Analista: Como? 1, , , 1111ds. certificava-se de que o rapaz não queria assumi-la. Nes-
Flavia: Tenho umas amigas que não eram do grupo. Elas jicaraiu 111 11111, dl's .obríu que seu primeiro namorado espalhara que tivera
muito aborrecidas quando comecei a namorar e me afastei delas. M11,1, 11 , 11111 da. Mas isso não era o que a incomodava. Pior para ela
algumas delas já me procuraram e me chamaram para sair. Tenho q11,· 1 1111 do rapaz não resolver essa situação. E de outra vez começa
me animar e sair com elas. Tenho que parar de ficar esperando que 11111 11 11 1 IH los os indícios de que era ela que o rapaz iria escolher.
dia ele volte. ,11 1 ilrn, indícios de que ele não queria. Esse modo de manter a
Em muitos outros encontros Flávia relatava todos os indícios q111 , 11111•,I, .ivu pela segunda vez. A situação se repetia, ou seja, na
mostravam que o rapaz ainda poderia estar interessado em voltar. 11111 1 1 oi, 11n111lcr a ilusão de que a relação perduraria, Flávia preferia
outros encontros ela também relatava os indícios em que ele deixava 11 1,I, 1 "' os indícios que apontavam para a finalização da relação.
claro seu desinteresse. 1 1 11 111111111•1110 de se iniciar a incluir elementos que apontassem
para a dissipação da ilusão, assim, diz o analista: Você percebe vários Flávia: Claro que não e você sabe disso. Sou jovem, ainda irei para a
indícios de que o rapaz escolherá você, como continuar ligando para você /,u uldade e é disso que tenho que me ocupar. Não tenho que ficar lamen-
todos os dias, fazer questão de te encontrar, te dar presentes. E quais são /,111t!o, chorando, achando que eles são a única coisa que presta na minha
os indícios de que talvez não seja você quem ele escolherá? 1 kl«. Quando saí daqui, na semana passada,fui para a escola e vi os dois
Flávia permaneceu em silêncio, por um tempo, e começou a la- , auversando, tive a impressão que falavam de mim, senti nojo deles, são
crimejar. O analista se manteve em silêncio, deixando um espaço para /111/10s, infantis, imaturos. Pensei na mesma hora, eu vou me acabar, ficar
que Flávia no silêncio, sem se distrair com o falatório, pudesse recordar , liortmdo por esses caras. Não, não vou fazer isso. Alguma coisa mudou
essas situações. Ela retorna, depois de um longo tempo e diz: Muitos. .ivutro de mim. Eu nem sei te dizer o que foi, mas me libertei. Depois disso,
E começa em tom mais ameno e demorado a descrever todos: ele só se ,, I cundro me telefonou e eu fui bem sucinta, não tive vontade de esticar
encontra comigo às escondidas, dia dos namorados é com ela que ele fica. ,, , 1111versa. Ele insistiu e fui educada, mas não queria mais me encontrar
É ela que ele respeita. Sempre vai com ela à missa, independente se é na , ,1111 de. Pude ver toda a manobra de sedução, ele disse que eu era linda,
mesma missa que eu vou. /,1/,1 de. Nada do que ele disse me afetou. Não sou mais refém das seduções
O Analista na tentativa de destruir a ilusão, então, diz: Todos esses ,l, /1•. li/e não tem namorada? Fica com ela então e não me perturba.
são indícios de que ele pode não escolher você. O analista segue questionando as verdades estabelecidas tais
Flavia responde: São. E tem mais ainda. Ele, também, já conta , 111110 "familia Dorianà', "Felizes para sempre': "Familia de Pastor". Os
para os outros que a outra é a namorada e comigo ele se diverte. Isso dói. , 1111111tros continuaram acontecendo nessa mesma dinâmica de lamen-
Dói muito. Mas não falo nada porque pelo menos tenho quem telefone 1 t\ ,111, de revolta e de tristeza, até que Flávia, em um dos encontros, traz
para mim, quem está comigo. , , 1·1•,11inte relato: Eu fico pensando porque logo eu, que sempre cuidei tão
Analista: Ainda é melhor, mesmo sabendo o que ele fala de você, mes- /,, 111 ila minha vida, de meu futuro, tive que viver a situação de abandono
mo você não gostando, do que ficar totalmente sem ninguém. , ,, /'"fJel de amante. É isso que eu vivo hoje: uma mulher abandonada
Flávia: É. (Silencio longo). É a segunda vez que isso me acontece. , 11/111,issa.
Parece até que eu ter alguém para mim é impossível. Estou destinada a O psicoterapeuta pergunta: Por que não você? Com essa fala, o
ser amante? Talvez seja isso. Acho que tenho que me conformar. 111111 o arriscou apontar para o caráter imprevisível e incontrolável da
Analista: Ou amante ou solidão, parece que são as únicas saídas 1 1 ncia. Flávia, novamente, permanece durante muito tempo no si-
que você vê para você. Ok. Até a próxima semana. 1 111 lo e, então, retorna: Por que não comigo? Nunca tinha pensado nisso.
Na clínica, abrir o caráter de poder ser de toda e qualquer exis- I', 1111,111ece em silêncio por um longo tempo e retorna: Acho que sonhei
tência pode acontecer na medida em que o analisando percebe o quan- /, 11111/s, sonhei mais do que vivi e agora fico pensando que a vida não é
to restringe suas possibilidades. Flávia chega à sessão parecendo mais /,1111//i" Doriana. A vida não é conto de fadas com final feliz "casaram-se
animada, sorrindo e a fisionomia não se mostrava tão abatida: pensei /111,1111 felizes para sempre". Penso que a religião também ajuda a gente a
muito no que você falou na última sessão. Posso ser amante, posso ficar , ,i,,,r assim. Filha de Pastor tem. que dar o exemplo, nós temos que fazer
sozinha, pode aparecer outra pessoa na minha vida. Pode muita coisa, 111,/,1 direitinho, afinal seu pai é o pastor. A gente acaba acreditando nisso
depende daquilo que eu fizer. ,1, /111 que será como a gente quer que seja.
Analista: Não entendi, sobre o que você está falando? ( )s encontros continuaram e Flávia, pouco a pouco, caminhava se
Flávia: Sobre a última sessão. Você disse que não havia saída para ,11111li, conta de como as coisas podem acontecer, ou seja, podem se dar
mim e eu estou te dizendo que há saída. Não vou ficar lamentando que es- 111 11111do como planejamos, mas também pode ser de modo totalmente
ses caras imaturos, bobocas sejam a última oportunidade na minha vida. llh•11•111c do planejado. Ela dava-se conta do quanto tentava iludir-se,
Analista: E não são? 1 111 lormando aquilo que lhe acontecia, no sentido de que fosse da
melhor forma para ela, ou seja, que não doesse. Flávia refletia sobre o 1rr. Eu faço a minha parte, sou sincera, digo o que quero e o que não que-
quanto os contos de fadas eram modos de iludir. Pouco a pouco, desfa- 111, o que gosto e o que não gosto. Ele também e, assim, vamos seguindo
zia os laços da ilusão. Com isso, vivia o luto, na medida em que se dava 111 nossos caminhos. Sinto-me tranquila quanto ao relacionamento. Hoje
conta que seu projeto era apenas algo que estava em seu imaginário. 111/11/,a preocupação é poder me formar, ter um bom emprego para poder
Acabou se relacionando com outros rapazes e quando não dava certo, ,i/r tia casa de meus pais. Enquanto moro e dependo deles tenho que dar
lembrava-se de como era a relação com o seu primeiro namorado. Ou- ,1//sfr1ção. Quando eu puder ter minha casa e me sustentar, posso viver
tras vezes, a aproximação do segundo rapaz com quem se relacionou " 111l11ha vida com aquilo que acredito e quero fazer. Mas, por enquanto,
suscitava uma lembrança. Mas, Flávia se dava conta que também não 1, 11/w que aguardar. Meus pais exigem que eu vá à igreja, afinal meu pai
eram relações como aquelas que ela queria. Ela pensava no vestibular, , /1111/or e tenho que dar o exemplo. Eu vou para não contrariá-los e não
na faculdade e na vida profissional. Agora, não era só o casamento que , 1,11 problemas em casa. Meus amigos e ex-namorados, amantes, estão
a atraia, via a vida plena de possibilidades. ,, , 11111 u mesma vidinha. Com as mesmas fofoquinhas, com as mesmas
Após dois anos de psicoterapia, Flávia já se encontrava com 17 1 ,1111,m,das. Nada disso me incomoda mais. Ás vezes, eu vejo as brinca-
anos e já estava na faculdade. Ela mostrava interesse nos estudos e es- i, /1,1,, os flertes deles e digo de que boa me livrei. Sou mais feliz agora,
tava totalmente envolvida com o seu futuro profissional. Ela conhecera ,,,,., /tÍ te disse, tenho a sensação de liberdade.
outros rapazes, mas agora sem ficar planejando casamento e filhos. No
convívio com os amigos da Universidade descobriu que não era infe-
rior nem diferente porque não era mais virgem e, então, permitiu-se Lonsiderações finais
ter outras experiências sexuais agora não mais se sentindo usada, nem
tendo que se relacionar para agradar o outro. Enfim, como ela mesma 1 iurante todo o processo em que analisando e analista estiveram
dizia, sentia-se livre. Livre dos preconceitos, das verdades idealizadas 1111 ,r.~, · acompanhou a experiência de Flávia para que, no acompa-
da identidade feminina cristalizada. 1 11 il,1 própria experiência, eles pudessem encontrar aquilo com o que
A clínica existencial prosseguiu no sentido da reconquista da 11 11' vn ontrava afetada. Apenas seguindo aquilo pelo que a jovem
1 1l1111rnda é que poderíamos ir ao encontro do afeto transformador
medida da existência singular: espaço onde o querer e o poder se rc
articulam. Flávia, agora, não lidava com os relacionamentos de modo 11 1 11•,11 idade. Esse afeto transformador fica muito bem ilustrado por
a seu querer estar em descompasso com o seu poder. Na faculdade, 1 , 1111 ( 1988) no seu conto Amor, quando Ana, que levava uma vida
conheceu um rapaz que ela mesma denominava de maduro. Ela sabiu 1111d,1da e sob controle se depara com um cego no sinal, mascan-
aguardar os acontecimentos, não se deixava mais seduzir pelas pala 1,i, 1, 11·. 'Iambém podemos ver esse mesmo momento epifânico, tal
vras, como ela mesma dizia, deixava que as atitudes mostrassem aquilo , , ,1, 1111111inado por Lispector, no romance O idiota de Dostoievski
1 'li I ', ) quando Mískin vê o burro.
em que a relação se constituía.
Flávia: Hoje, namorando Pedro, vejo a situação passada como Ji-11111 l I q111· o mundo não tem uma medida naturalmente dada, a me-
de minha imaturidade e das influências que os valores da igreja exerciam ,11, .l,1d,1 pelo mundo como se fosse natural, ou pode ser conquis-
sobre as minhas decisões. Meus pais não participam de nada. É c1•1 /11 ' 1 11111111·!:1 existência. Assim, aconteceu com Ana e com Mískin.
que eles não me perdoaram. Eu compreendo, a moral da igreja é m11/1,, "11 /,/11, que significa visto) rearticula sentidos que tem um po-
esmagadora. Eu decepcionei e pronto, mas também não quero viver p11111 1 oi, 11 ,111sformação. A epifania, embora muito importante, é ex-
não decepcionar. Quero viver para viver. A relação com Pedro é mais lt·1'1 1111111• dilkil de ser conquistada.
Ele tem seus projetos, eu tenho os meus, sinto-me bem quando estou rr1111 11 1,1 1111 sltuação psicoterapêutica, pouco a pouco, ganhava, na
ele, mas também me sinto bem quando não estou. Será o que tiver 1//11 1 l1 lll i:1 • não na norma dada pelo mundo, ou seja, no como
a frente com seu caráter de poder ser. Diferentemente do que ela temin, 1 1, 1 1 ,1 1, M. (2008). Introdução à filosofia. (Marco Antonio Casanova,
1 1
descobriu que dessa forma experimentava a liberdade de se entregar 1 l 1,1,I ). Siio Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1928).
existência e não mais permanecer na luta para que as coisas se dessem
I' 1,1111. S. (2006) A. O lo uno o lo otro: un fragmento de vida, v. 1.
ao modo da ditadura do impessoal.
111, 11,1111ya Saez y Darío González, Trad.). Madrid: Editorial Trot-
O analista, para tanto, prosseguia de modo a dar apenas aqull«
11 (l l1 lgl11al publicado em 1843).
que ele não tinha. O analista ao dar o que tem, apenas dá o que devi
ser, algo da ordem de uma qualificação moralmente dada. Ao dar o q111 11 •1 t ( l ')98). Macabéa. ln. Laços de família. Rio de Janeiro: Edi-
não tem, o analista recua de modo a que o outro possa se libertar p,111
ele mesmo. (Leão, 2013). Por isso, o analista não atua por meio de u1111 1 ! '111 1). O ethos em Platão a partir do eidos. ln. Bocayuva I.
funcionalidade e instrumentalização e sim de uma posição envergo 11 l 1 11111s na antiguidade. Rio de Janeiro: Viaverita.
nhada, de recuo frente à decisão do outro. ~) 1 , '.'I. R.N (2008). Os sentidos da "análise" e "analítica" no
11 11111111!1 d· 11 idegger e suas implicações para a psicoterapia.
11,/,, , lh,111isa em Psicologia, Rio de Janeiro, 8 (2), 191-203.
REFERÊNCIAS
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( < 11 l11 nul publicado em 1877).
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