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FICHA CATALOGRÁFICA
SOBRE O INSTITUTO BRASILEIRO DE PESQUISA JURÍDICA –
IBPJ
RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL
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Democracia dos Conselhos
fenômeno por suas consequências, ignorando ou negligenciando sua
essência. Desta maneira é muito comum que as respostas que
ululam tanto de acadêmicos quanto de não acadêmicos sejam, em
geral, algo relacionado a ter direitos, ser titular de direitos. Visão esta
que reduz a cidadania a uma posição jurídica ocupada por um sujeito
de direitos diante do Estado.
Uma reflexão mais detida pode, no entanto, conduzir-nos a um
outro lugar de investigação, que, se é verdade que não exclui essa
dimensão estatutária da cidadania, também nos permite vislumbrá-la
não como a quididade da cidadania, mas como uma das possíveis
formas – histórica, social e culturalmente determinada – que a
“cidadanidade” pode e deve assumir nos regimes democráticos
contemporâneos. Se fôssemos, por exemplo, classificar a cidadania
contemporânea a partir da teoria do conhecimento aristotélico,
aquela seria um elemento teoretético, prático ou poiético?
Sou tendente a acreditar que na grande das ementas de
ciência política, teoria geral do estado, direito constitucional I e afins,
nos cursos de direito – e mesmo no senso comum, nas redações,
nos jornalísticos sensacionalistas - a cidadania é concebida como
algo a ser conhecido, aprendido, algo pronto e definitivamente
desenhado nas constelações dos microssistemas constitucionais.
Como astrônomos jurídicos, a nós nos resta apenas contemplar
estas constelações e utilizá-las para traçar o mapa dos direitos
fundamentais por meio dos abusos estatais.
Tenho uma visão diferente, no entanto, que admito não ser
original nem ser própria. A cidadania não é algo que se contempla,
cuja dinâmica está pré-determinada pela vontade dos astros
congressuais. Ao contrário, aquilo que vislumbramos, aprendemos,
estudamos e contemplamos não é senão os resultados, os efeitos, a
obra acabada. Um mundo tão ilusório que sem a constante vigília
evapora-se tão ardilosamente quanto acetona.
E neste olhar prefiro acreditar que a cidadania se aproxima
muito mais da práxis e da poiesis. Pois enquanto prática, a cidadania
não é algo que se pode ver, ter ou contemplar. A cidadania do dia a
dia é a própria ação que se esvai em si mesma em busca de um
valor da vida; é a luta diária do trabalhador pelo FGTS sonegado na
Justiça do Trabalho; da mãe estudante que deixa seu filho na creche
da Universidade todos os dias antes da aula; do casal homoafetivo
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Democracia dos Conselhos
reinvidicando seu casamento civil contra a negativa do tabelião; do
quilombola desafiando as forças armadas por acesso à água, terra e
comida. Mas mesmo essa cidadania é um efêmero vislumbre da
prática cidadadã par excellence, qual seja, aquela em que o sujeito
de direitos sujeita a própria cidadania à sua reivindicação. Quando,
reconhecendo-se como corpos politizados, os indivíduos se unem em
torno de seus interesses, necessidades e anseios comuns,
possibilitando um emergente corpo politizador extravasar.
É este corpo coletivo, politizador, emergente que possui a força
para se fazer ouvir quando todos os canais da cidadania do dia a dia
se recusam a escutar. É o corpo emergente, o sujeito coletivo, que
ocupa, que pressiona, que ameaça, que cria. É esta vocação para o
ser-mais movida coletivamente que leva a cidadania para o terreno
da poiesis. E este é o sentido para se falar em uma cidadania
coletiva: uma cidadania que se apresenta ao mundo não como
status, não como atuação, mas como ação transformadora – que
muda o mundo mudando a si mesma e a seus sujeitos. É a cidadania
concebida como marcha histórica das identidades que buscam não
pelo ser, nem pelo dever-ser, mas pelo poder-ser. E o seu resultado
transcende seu agir: cria políticas, inova direitos, depõe golpistas...
É nesta cidadania poiética que me concentro neste texto.
Primeiramente – destaco a cidadania coletiva, buscando identifica-la
enquanto fenômeno na sociedade brasileira. Em um segundo
momento apresento a própria cidadania como um campo de disputa
dos diversos sujeitos coletivos, estudando particularmente o caso da
criação do Sistema Nacional de Participação Social, e das reações
que esta ação desencadeou em alguns setores da mídia e no
Congresso Nacional. Por fim, no último trecho faço uma reflexão
sobre o futuro da cidadania coletiva, da participação social e do
Sistema Nacional de Participação Social diante do golpe de 201 6.
Em tempo faço uma advertência que meu programa kelseniano
me impõe: este texto assume uma forma mais próxima ao ensaio
político do que ao artigo construído nos limites do rigor científico, pois
como cidadão, afasto-me do lugar do teórico e lanço-me ao lugar do
poeta trovador — aquele que não promete a seu interlocutor nada
além da sua própria vida. Por isso, não se iluda.
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Democracia dos Conselhos
1 Prólogo: em busca da cidadania coletiva no Brasil
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Democracia dos Conselhos
A democracia, neste sentido, sempre implica em ruptura com
tradições estabelecidas, e, portanto, na tentativa de instituição
de novas determinações, novas normas e novas leis. É essa a
indeterminação produzida pela gramática democrática, ao
invés apenas da indeterminação de não saber quem será o
novo ocupante de uma posição de poder (SANTOS e
AVRITZER, 2002, p. 1 6).
É razoável desenvolver uma linha de interpretação que leve o
intérprete a ler o pluralismo político constitucional sob os vieses
democráticos não hegemônicos. Ou seja, a pluralidade das ideias
políticas passa também pela pluralidade das formas democráticas.
Vale dizer, “a política, para ser plural tem de contar com o
assentimento desses atores em processos racionais de discussão e
deliberação” (IDEM p.1 7). Desta maneira propõe-se que a
Constituição brasileira, em outras palavras, preconiza um modelo
procedimental de democracia que pode e deve ser baseado na
expansão das formas de participação. Uma destas formas é o voto,
mas não é a única. Com efeito, remete-se ao conceito de
“demodiversidade”, ou seja,“a coexistência pacífica ou conflitual de
diferentes modelos e práticas democráticas”(IDEM, p.49).
O mais importante de frisar é que, apesar da abertura
constitucional para a demodiversidade, o Sistema Nacional de
Participação Social não cria nem inventa nenhuma nova forma
democrática. Apenas estabelece diretrizes de coordenação para uma
série de espaços e práticas de exercício da cidadania coletiva que
foram construídos e conquistados ao longo da história brasileira. A
resistência que determinado setores da sociedade brasileira tem
apresentando contra o incremento da participação social pode ser,
como muito bem expressado pelo trecho do PDC 1 491 /201 4 -
“querem transformar esta Casa em um elefante branco” - o receio de
que as práticas fisiológicas da política tradicional percam sua eficácia
diante do aumento da qualidade democrática das instituições
participatórias brasileiras.
O SNPS vem reconhecer institucionalmente uma situação que
predomina de fato há décadas já na sociedade brasileira, e que não é
produto de nenhum ato de governo. Em um país onde a tradição
republicana é marcada por forte centralidade do poder federal e
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Democracia dos Conselhos
pouco volume de participação popular nas decisões, o fortalecimento
dos conselhos e a sistematização da participação social – repete-se
não é nova, nem é um desígnio estatal, mas uma conquista da
sociedade civil – indica uma possível mudança de trajetória. A
consolidação de uma era – inaugurada com a CF/88 – onde velhos
padrões de patrimonialismo, clientelismo e cordialidade cedem
espaço a valores republicanos, à demodiversidade e ao
reconhecimento de que não há dignidade sem respeito às
identidades, sejam individuais ou coletivas.
Epílogo: dias de um futuro esquecido para a democracia
participativa no Brasil
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