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Intelectual de curiosidade insaciável, malabarista de palavras com ideias iconoclastas,
filósofo e contrabandista de conhecimentos Marc-Alain Ouaknin ataca o monumento
dos monumentos, a Bíblia. Com ele, qualquer leitura é uma aventura.
Marc-Alain Ouaknin está com 62 anos. Desde Le Livre brûlé (1986), não parou de
interpretar com originalidade e liberdade os grandes textos da tradição judaica, a
começar pelo Talmud. Em 2001, traduziu o livro de Jonas, em colaboração com Anne
Dufourmantelle. Em 2007, lançou o “projeto Targum” para uma nova edição da
Bíblia hebraica.
Eis a entrevista.
Ao mesmo tempo livro de arte e nova tradução, seu Gênese do Gênesis
revisita o primeiro livro da Bíblia. Mas por que você se limitou aos 11 /
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primeiros capítulos?
A Bíblia não começa com as palavras de um Deus que dizia: “Olá, meu nome é Deus, o
que você vai ler é uma revelação, e vou agora explicar como criei o céu e a terra...”. O
Gênesis não diz “No princípio, eu, Deus, criei...”, mas “no princípio, Deus criou”. Indica-
nos imediatamente que Deus não escreveu esse texto. Portanto, há um narrador. Quem é
este homem que salpica o texto que está em processo de produzir num piscar de olhos o
que ele pensou, ao mesmo tempo? Ao ler dois outros livros da Bíblia, Esdras e
Neemias, que contam o retorno dos judeus a Jerusalém, penso que se trata de
Esdras. Esdras não é o inventor do Gênesis, mas ele é o seu redator, a partir de
tradições orais e de manuscritos existentes. Ele retoma histórias, como a de Gilgamesh,
para oferecer a sua própria versão.
Nós, os franceses de hoje, por exemplo, podemos escrever com letras oriundas de
hieróglifos simplificados, daquilo que é chamado de proto-sinaítico, que se tornou, em
/
seguida o cananeu Transmitida pelos cananeus do norte isto é os fenícios o cananeu se
seguida, o cananeu. Transmitida pelos cananeus do norte, isto é, os fenícios, o cananeu se
transformou no grego, no etrusco e no latim. A escrita paleo-hebraica, em uso antes do
exílio, é da mesma família. Ele procede também do egípcio. O rei Salomão não leu o que
chamamos de hebraico. Certamente, ele usava a língua hebraica, mas escrita em um
alfabeto diferente daquele atualmente em uso. As moedas em uso nos tempos de
Salomão e Davi estão em paleo-hebraico. Com algumas variações, a mesma escrita
encontra-se no museu de Beirute no sarcófago de Ahiram, o rei de Biblos, que reinou
por volta de 1.000 antes da nossa era. Ou no Louvre, na Estela de Mesa, rei de Moab
(século IX a.C.).
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O judeu é judeu porque toma consciência de sua dívida com os que o abrigaram ao longo
da história, desde os egípcios e os babilônios. Eu acrescentaria que se, historicamente, o
judeu é judeu (yehudi) é porque ele vem da tribo de Judá. No plano ético, a palavra está
próxima de outra (lehodot), que significa especialmente “obrigado”. Dizer “eu sou judeu”
significa, portanto, dizer “obrigado”. Um muito obrigado tanto maior que não se encontra
nenhum judeu nos 11 primeiros capítulos da Bíblia. Adão e Eva não são judeus. Nem
Caim e Abel. O começo da Bíblia é universal.
Você está se referindo ao salmo [137, 1]: “Junto aos canais de Babilônia nos sentamos e
choramos”. Mas nem todos os judeus estavam tão infelizes, pois quatro quintos deles
permaneceram no exílio. De fato, eles nunca deixaram a Babilônia! A prova da
persistência e da importância dessas comunidades, por pelo menos 1.000 anos, não é
outra senão o próprio Talmud. Na Judeia, os mestres falavam hebraico, e é em hebraico
que eles escreveram a Mishná, o outro grande corpus do judaísmo. Mas não há muitas
palavras hebraicas no Talmud, além das citações bíblicas. Este texto, que funda o
judaísmo atual, não é chamado por ninguém de Talmud da Babilônia. Não teria sido
escrito da mesma maneira se não houvesse comunidades estruturadas, academias
florescentes e persistentes.
Evocar os “mitos” a propósito da Bíblia não é fácil. Você não tem medo de
ofender alguns crentes?
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As tábuas de argila que contam a Epopeia de Gilgamesh datam do século XVIII a.C. A
Bíblia, em sua escrita, é datada no início do século VI antes da nossa era. A anterioridade
dos mitos babilônicos não é, portanto, debatida. Na época de Platão, por volta de 420
a.C., os gregos passaram do mito ao logos. Esdras, por volta de 450, passa do mito antigo
ao novo mito. Mas esse mito novo já é filosófico. O relato da criação do mundo segundo o
Gênesis não é a história verdadeira da criação do mundo, mas a verdadeira história da
criação do mundo como está escrita. /
Você dessacralizou o texto!
Não é o texto que dessacralizo, é Deus. Eu estou tirando Deus da Bíblia, se posso me
permitir essa expressão. Eu não dessacralizo o Gênesis, eu o desteologizo.
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Quando Deus quer criar o mundo, encontra um problema teológico. Se Deus é infinito,
não há lugar para outra coisa além dele. Para que o mundo possa existir, Deus diz para si
mesmo, devo retirar-me de mim mesmo e em mim mesmo. É preciso criar um espaço
vazio de Deus para que haja espaço para outra coisa. É o que a tradição judaica
chama tsimtsum, a retirada de Deus. O mundo é o lugar do desaparecimento de
Deus. A partida do divino, a desteologização ou ateologia, abre espaço para o
mundo e, neste mundo, um lugar para o leitor. É porque Deus se ausentou que você e eu
podemos estar aí e conversar um com o outro. Caso contrário, isso seria impossível.
Certamente, Deus voltará. Mas como voltar sem “obstruir” novamente o espaço? É aqui
que começa a discussão entre o judaísmo e o cristianismo, de modo especial. Deus “se
faz pequeno” para alcançar a finitude dos homens. Para os cristãos, é o corpo de Cristo.
Para o judaísmo, é o corpo do Livro. Nos dois casos, há encarnação. Mas nos dois casos
continua sendo um problema teológico importante. Deus, o infinito, está, por assim
dizer, preso nessa finitude que aceitou para si mesmo. Os homens têm a obrigação de lhe
devolver o seu estatuto de infinito.
É muito simples! Deus se fez finito no Livro, ele se contraiu nas letras do alfabeto. Deixar
o texto como está, contentando-se com uma leitura literal, mantém-no preso. Pelo
contrário, a interpretação do texto, por ser infinita, confere a Deus seu estatuto de
infinito. O papel da interpretação é um papel teológico em um espaço ateológico.
Para poder dar a Deus seu estatuto de infinito, precisamos “tirá-lo da finitude”. A
finitude de Deus é este texto. Ao tirar Deus do texto, ao refazer um texto humano, pela
interpretação que proponho, devolvo ao divino seu estatuto de infinito.
De fato, é tirando-o do texto que Deus se torna novamente Deus. Mas ele não é mais o
mesmo. Não é mais um Deus que é Deus por si mesmo, mas um Deus que se torna Deus
através da responsabilidade que os homens assumem de sua infinitude. No cristianismo,
o esquema é o mesmo. O corpo de Cristo na cruz é um Deus finito, a quem a Eucaristia
devolve seu estatuto de infinito.
É preciso uma certa coragem, sem dúvida, para tirar Deus do texto.
É o que todos os mestres sempre fizeram. É o cabalista Isaac Louria, no século XVI, que
formaliza essa ideia e propõe o conceito de tsimtsum. Mas essa ideia já está em germe no
Talmud e no midrash.
Perdoe-me esta pergunta... cristã: mas então, o que acontece com a fé?
A fé judaica é, na etimologia da palavra, a fidelidade. O judeu não é fiel a Deus, ele é fiel
ao texto, cuja interpretação torna Deus vivo.
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O hebraico não é uma língua de palavras, mas de letras. Cada palavra é uma caixa de /
letras, uma caixa de correio. A sintaxe é apenas um acidente do lançamento das letras da
caixa. Para cada raiz de três letras, são possíveis seis permutações, o que fornece
resultados fabulosos. Nenhuma letra é por si só a primeira, cada palavra é um movimento
de letras. Minha tradução procura enfatizar essa dinâmica interna da linguagem. A
ausência de maiúscula indica a igualdade de todas as letras em uma permutação infinita!
Acreditamos que os talmudistas são excelentes no Scrabble, este jogo que poderíamos
dizer particularmente hebraico!
Sua tradução é um diálogo com a pintura abstrata. O que essa troca traz?
Não tentei justapor versículos e imagens. Eu me perguntava que vínculo estabelecer entre
o texto e as obras que, a priori, não têm nenhuma relação. É o atrito entre o dizível e o
visível, como diria Roland Barthes. Esse diálogo com a abstração me permitiu redescobrir
o texto. Tomar as primeiras palavras do primeiro versículo do Gênesis. Ao traduzi-las
para o francês, posso pontuá-las de diferentes maneiras. Ou “Primeiramente, eloim”. Ou
“Primeiramente, eloim criou”. Ou ainda: “Primeiramente. Eloim...”. Nesta tradução, este
versículo é acompanhado pelo Círculo Negro de Malevich. A escolha de comparar este
quadro muda minha visão. Então, eu não traduzi apenas do hebraico. Traduzi do hebraico
e de Malevich, do hebraico e de Soulages, etc. Assim, desde o primeiro versículo:
É tudo menos um flerte. Em hebraico, o primeiro dia se diz yom rishon. O texto do
Gênesis, diz yom ehad, dia único. Este primeiro dia não foi precedido, nisso ele é único.
É a mesma palavra usada na oração do Shemá Israel para dizer: “O Eterno é Um”,
Adonai ehad. Certamente, o primeiro dia é seguido por um segundo, um terceiro, um
sétimo. E, no entanto, ele é único da mesma maneira que Deus é único. As consequências
éticas são formidáveis. O tempo está acabando. Todo dia é importante. Todo dia deve ter
um sentido.
Não é emocionante? E nós temos a sorte de poder dar aos dias que se seguem sua
singularidade. Nenhum dia pode se parecer a outro dia. Toda noite, devemos ir para a
cama com uma pergunta simples: fui capaz de fazer um dia único do dia que me foi dado?
Se cada dia é um presente único, que presente eu fiz deste presente? O presente é o
presente que farei à humanidade. O tempo não é o tempo que passa, mas o tempo que
construímos. /
construímos.
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Em hebraico, o verbo ser não existe. Não podemos dizer “eu sou”, mas podemos dizer
“existe”, yesh, escrito com as duas letras youd e shin. O contrário de “existe” é shin e
youd, é a palavra shaï, que quer dizer presente. O que “é” porque é um presente. Se eu
não sou único em um dia único e em uma vida única, qual é o sentido da minha
existência? Nossa vida é insubstituível e, a partir de então, nossa responsabilidade é
infinita!
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L'Ancien Testament, por Thomas Römer (Que sais-je ?, 9 euros). Um dos melhores
biblistas do mundo, professor do College de France, fornece uma síntese densa e precisa,
o estado mais atual do conhecimento.
Leia mais
(Im)possibilidades de narrar Deus hoje: uma reflexão a partir da teologia atual. Artigo
de Degislando Nóbrega de Lima. Cadernos Teologia Pública Nº 69
Narrar Deus nos dias de hoje: possibilidades e limites. Artigo de Jean-Louis Schlegel.
Cadernos Teologia Pública Nº 68
Narrar Deus: meu caminho como teólogo com a literatura. Artigo de Karl-Josef
Kuschel. Cadernos Teologia Pública Nº 61
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Talmud, a revelação permanente. Artigo de Elena Löwenthal
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