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revista de edição única

matute
crítica e dez 2019

fotografia recife

www.matuterevista.com
nota editorial da fotografia como convite ao matute
por Cecília Urioste

A matute teve sua semente em 2016, quando, por carência de


espaço para a discussão teórica da fotografia, me inspirei no livro
Words not spent today buy smaller images tomorrow, de David Levi
Strauss, e criei o grupo de estudos de crítica fotográfica no Museu
de Arte Moderna Aluísio Magalhães.

Lá me juntei a Mila Souza e Pedro Neves, os participantes mais


assíduos desse grupo que durou um ano. Com a vontade de dar
continuidade ao processo, criamos juntos o projeto FotoCrítica,
onde conseguimos o incentivo do Funcultura e apoio da Fundaj
e tivemos 6 meses de aulas e palestras. Trouxemos conteúdos
teóricos, discutimos temas diversos em torno da imagem e
recebemos três convidados responsáveis por aulas abertas: Moacir
dos Anjos, Fabiana Moraes e Maurício Lissovsky. O fio condutor
não intencional de todos os encontros, possivelmente pelo tempo
e espaço contemporâneo, foi a política. Em um momento onde seu
próprio conceito tem sido revisto, questionado e colocado à prova,
a reflexão sobre a imagem política (aqui no sentido mais amplo do
termo) fez-se urgente.

Como forma de ampliação do alcance desse conteúdo, publicamos


aqui alguns dos assuntos tratados nesse processo. Na estreia dessa
revista, esse tema chega por diversos ângulos e por diversas vozes.
Olhando por perspectivas históricas ou tratando diretamente dessa
imagem contemporânea, trazemos alguns pontos de inquietação
dentro do afogamento imagético que vivemos.

matutemos
então...
pelas melhores
imagens
de amanhã
06 10
no sertão também
existe “ETC“
no horizonte da vadiagem por Fabiana Moraes
por Mila Targino

17
disputando a imagem
do brasil: fotografia e
política na era vargas
por Maurício Lissovsky

24 30
a história do ouro
por Priscila Nascimento

a representação
das sobras
por Moacir dos Anjos
32
três perguntas para
cristiana dias
por Pedro Neves

Arlak

38
Rennan Peixe
OUTRA FOTO
-GRAFIA

42 40
Kalor Pacheco

44
Abiniel João
6

No horizonte
da vadiagem:
como observar
espectadores
em dia de anarquia
matute 7 revista de crítica e fotografia

texto Mila Targino


foto Bárbara Cunha

Escrevi esse texto no final do mês de maio, em 2016.


Três meses depois, Dilma Rousseff foi deposta do
cargo de presidenta do Brasil, e Michel Temer, o vice
abominável, assumiu a cadeira. Tudo aconteceu de-
baixo de um panelaço verde e amarelo padrão FIFA.
Foi estranho, para dizer o mínimo. Num átimo de
segundo, desconheci o país.
Em 2018, Luiz Inácio Lula da Silva, líder histórico da
esquerda brasileira, tornou-se preso político, enquan-
to Sergio Moro, o jurista predestinado a nos livrar da
corrupção, virou herói nacional. Um homem comum,
que não gosta de feministas, nem de homossexuais,
nem de ecologia, muito menos de educação e ciên-
cia, se tornou presidente do país, carregando com
ele todo o conservadorismo do mundo. Por conta
de um jornalista internacional, a lava-jato virou um
escândalo nacional, explicitando os motivos do golpe
parlamentar.
Nesse ínterim eu cresci com o movimento feminis-
ta. Vivi e continuo vivendo suas contradições, seus
limites, por vezes sofridos, mas também seus mo-
mentos de clareza impagáveis. 28 de maio de 2016,
por exemplo, foi um dia elucidativo aos mais atentos
à condição vulnerável das mulheres no país. Infeliz-
mente, para que alguns discursos da luta feminista
se fortalecessem, uma garota teve que sofrer maus
bocados. Fato triste demais. Seu nome foi sabia-
mente preservado, não deveria ser dito, sobretudo,
nas redes sociais. Sem apelo, isso seria demais para
qualquer mulher.
no horizonte da vadiagem 8 por Mila Targino

Quando eu acordei, culina, adquiriu valores anárquicos expressos numa


estética desapegada. Cabelos raspados, sovacos
dopada e nua, tinham cabeludos, peitos despudorados, corpos pintados
com símbolos afirmativos, expressões de força na
homens sobre mim. face, beijos lésbicos, tudo que a castidade colonial
não suporta. Uma catarse de difícil compreensão,
Após a frase bizarra, seguiu-se a pergunta mais posso concordar. O conservadorismo espraiado
espúria dos últimos tempos. Foram 30 ou 33? nos recantos nacionais não sabe o que fazer da va-
Abre os olhos menina! Por favor, diz para toda uma diagem, porque, na realidade, nunca soube o que
sociedade doente se foram trinta ou trinta e três fazer da anarquia.
homens. A dúvida persistiu por horas que mais
Uma das imagens da marcha, captada pelas lentes
pareciam uma eternidade. Difícil acreditar nesse
da fotógrafa pernambucana Bárbara Cunha, ex-
interesse mórbido. O apego aos números revela a
plicita a situação de maneira curiosa. A fotografia
parca miséria de um país bastante peculiar.
tem approach estético sutil, quase banal, não fosse
Sofrimento de mulher pode ser medido! Então, o desconforto social posto em cena. Uma com-
vamos lá, chegaremos à mais crua realidade. Se posição muito simples, dessas que nossa cartilha
cada homem pesar em torno de 70 quilos, a garota da exuberância já não nos permite realizar. Uma
suportou, ao longo da tortura, 2.310,00 quilos. Só pena, pois na minha percepção, essa simplicidade
assim, as pessoas se comovem. Para uma mulher, só ampliou a força discursiva da imagem. O clique
sofrimento de 100 gramas não é propriamente um foi construído criando uma horizontalidade assi-
sofrimento, ela sempre pode suportar qualquer métrica. Duas mulheres e um homem formam uma
coisa (já não posso dizer o mesmo da masculini- linha tão reta quanto possível. Onde se encontra o
dade corriqueira). desnível? Eis a minha questão. A observação do
O estupro é puro exercício de poder sobre os instável nas personagens da cena talvez colabore
corpos femininos ou afeminados. Por essa e outras com uma resposta mínima.
é que um dos anseios feministas seja o empode- O equilíbrio da mulher de blusa preta está por um
ramento das mulheres. Fato é que a equidade de fio. Sem firmeza alguma, colocando pé ante pé,
gênero instaurada por tal empoderamento, direta parece que, sem muita coragem, dará o próximo
ou indiretamente, traz perdas simbólicas e mate- passo. Com uma das mãos, se apoia num cabide
riais para todos os homens. Portanto, resistir ao de roupas à venda. Faz que vai, no entanto, fica! A
exercício do poder feminino é uma práxis coletiva, estagnação é um alívio. Trabalhadora do comércio
dispersa e sutil. Toda uma sociedade machista, em - será? Com o corpo frontal, vira o rosto altivo para
suas várias facetas, nega a já parca possibilidade. a esquerda. Sua distinção pouco me convence. Um
A Marcha das Vadias, como parte do movimento dia, vai se aproximar.
feminista, sempre mais amplo e complexo, expli- No extracampo da fotografia (ponto de inflexão da
cita esse desespero. Mas, para a inquietação de análise), no meio da Avenida Conde da Boa Vista,
alguns, a desobediência civil tem sido um marco reduto do centro do Recife, o som ecoa, entre cen-
deste fenômeno político. A estratégia histórica foi tenas de vozes. “Vem, vem! Vem pra rua vem, con-
incrível. O termo vadia, louvado pela jogatina mas- tra o machismo!”. Talvez seja mesmo difícil. Não dá
matute 9 revista de crítica e fotografia

para naturalizar a militância, ela é muito forte, tem Latina vai ser toda feminista!”, continuam as mu-
a capacidade de assustar. É também uma questão lheres, vociferando no oco do mundo.
de identificação com a política. Ela está para algu- As três personagens formam uma horizontalidade
mas mulheres, mas não está para todas. A escolha, que só funciona para elas mesmas; independem
nesse sentido, é totalmente legítima, enquanto a da existência alheia, sobretudo a que se espalha-
cidadania se torna um aprendizado. va na longa marcha das vadias. Vivem em bolhas
Subsequentemente, temos a mulher de blusa fechadas que já determinaram, de antemão e por
listrada. Escorando, com a ponta dos dedos, o pé todo vínculo ideológico, seus caminhos. Não se
direito sobre a sandália, ela mostra a enfadonha contaminam. A pichação vertical “Temer golpista”
expressão corporal das mãos apoiadas na cintura. atravessa essa horizontalidade como lança, mas
Mantemos viva a memória desse gesto; ele surge, os conformados não saem feridos. Ao menos, não
sobretudo, nos momentos de repreensão. A felici- conscientemente. O primeiro plano da fotografia,
dade não surge com as mãos na cintura, mostran- preenchido pela extensão da calçada, insinua essa
do franco cansaço nas pernas. Nesse estado de distância dos propósitos sociais.
coisas, ou a paciência sumiu ou a raiva já transbor- Abismado com a cena dos acuados no passeio,
dou. Olhos desviados demonstram o quão descon- o garoto, no canto da imagem, funciona como
fortável pode ser o momento. “Êta, êta, êta, êta, um ponto de fuga. Olhar para ele é também bater
Eduardo Cunha quer comandar minha buceta”. Na em retirada. Com sorte, talvez ele traga uma nova
velha avenida, continua o som em fúria. geração apartada do medo da força. Da força das
No meio de uma marcha de vadias, a saia no mulheres, é claro! Na contabilidade matemática
joelho contrasta. Ela significa o recato no campo final, tão ao gosto da perversidade brasileira, a res-
da religião e a consequente falta de liberdade de posta é cultural: para o anarquismo, toda liberdade
expressão na política. Há de se compreender. Em é plenitude; para o conservadorismo, todo controle
certo sentido, ainda que não em todos, a doutrina é escassez.
de fé encarcera a percepção: só olhamos o que é
permitido moralmente. Paciência, estamos diante > Mila Souza é doutora em Comunicação
pela UFPE, artista visual e escritora.
de uma práxis social. Totalmente alijadas do Esta-
do, mulheres também se “defendem” nos limites
impostos pelas paredes das igrejas.
Em seguida, temos um homem que se apoia em
muletas. No campo das formações imaginárias, ele
também segue na corda bamba, cuidando do an-
dar. Apoia o peso do corpo no quadril, dispõe um
olhar diretivo; no entanto, assim como as mulhe-
res na calçada, não sai do lugar estável. Homens
costumam ser criados para erguer a cabeça o todo
tempo. O espectro do machismo é amplo. Também
faz sofrer masculinidades. Não deve ser fácil! “Se
cuida, se cuida, se cuida seu machista, América
10

No Sertão
também
existe“etc”
texto Fabiana Moraes
frames Dia de Pagamento
Nossos bancos de
imagens só reiteram
clichês sobre um sertão
mítico congelado num
passado remoto.
Que outros sertões
emergem quando
olhamos para além
das representações
cristalizadas?
matute 11 revista de crítica e fotografia

Entre, se possível agora, em um serviço popular


de busca de imagens na internet e digite “sertão”.
O Sertão precisa se
Mire, veja. Volte a este texto depois. manter amarrado a uma
lógica de tradição e/ou
Fiz isso, ao lado de dezenas de estudantes, algumas
vezes nos últimos anos, durante as aulas de Comu-
nicação e Culturas Populares que ministro na UFPE.
Nas buscas, uso serviços como Google e Yahoo.
subserviência (inclusive
Seja neste exercício rápido, seja nas pesquisas em visual) para permanecer
sala de aula, as imagens nos dizem que Sertão é
sinônimo de Nordeste, também de pobreza e seca;
no espaço da estima.
que suas casas são de taipa, são frágeis, quase à Ou é assim ou não é o
beira do desmoronamento; que lá vestem-se de
gibão, trapo (às vezes, roupa de motoqueiro); que “verdadeiro” sertão.
anda-se muito de cavalo e às vezes de motocicle-
ta. Os serviços de busca usados para representar Essa terra rachada e a noção de um “Brasil
uma ordem discursiva ampla e potente conhecem profundo”, é claro, está para além das imagens
de fato o sertão, mas, infelizmente, apenas partes virtuais: foram gestadas em fogo lento durante
muito específicas dele, que, no entanto, são usa- décadas em nossa literatura, pintura, dramaturgia,
das para contá-lo como um todo. Assim, desco- imprensa. No livro Viagem ao Sertão Brasileiro,
nhecem – e pior, fazem desconhecer - que nas Vernaide Wanderley e Eugênia Menezes escrevem:
suas terras caminham, além dos vaqueiros (e mo-
“As definições de sertão fazem referência a
toqueiros), quilombolas, cientistas, travestis, pes-
traços geográficos, demográficos e culturais:
quisadoras, indígenas, bailarinos etc. Desconhe-
região agreste, semiárida, longe do litoral,
cem ainda que a maioria das casas do semiárido
distante de povoações ou de terras cultivadas,
não é feita de taipa. Para a grande parte de nosso
pouco povoada, e onde predominam tradições e
sistema de representações, no Sertão não existe
costumes antigos. Lugar inóspito, desconhecido,
“etc”. Ele é dotado de um menu tão magro quanto
que proporciona uma vida difícil, mas habitado por
as crianças maltrapilhas que achamos quando o
pessoas fortes.”
buscamos na internet.
Há uma pista que pode nos ajudar a entender É assim que, quando buscam o Sertão e não en-
essas imagéticas repetições. Trazer o plural de uma contram ali os “costumes antigos”, e sim paredões
região heterogênea oferecida continuamente como de som e mensagens de pêsames em LED chinês
homogênea pode desconstruir parte de um impor- colocados em funerais, os incautos terminam pri-
tante mito fundador da região: o da falta, da insu- meiro se decepcionando e depois refutando toda
ficiência, da dependência. É essa perspectiva que uma região. Ela precisa se manter amarrada a uma
garante a manutenção de uma desigualdade de lógica de tradição e/ou subserviência (inclusive
imagens, algo que se traduz também nos lugares visual) para permanecer no espaço da estima. Ou é
de poder. É exatamente por isso que cambiar as fo- assim ou não é o “verdadeiro” sertão.
tografias dos bancos de imagens é também realizar Nas tentativas de furar essas representações, é
– e não apenas no plano simbólico – uma mudança comum também vermos a simples justaposição de
radical na própria sociedade. Estas alterações dis- elementos que à primeira vista parecem se negar
cursivas e sociais são, na verdade, simultâneas. - as cabras e a modernidade, o carcará e a carí-
no sertão também existe etc 12 por Fabiana Moraes

cia, a seca e o desfile de moda. Mas a oposição, para suas casas com luz elétrica, sabendo que em
como nos lembra Durval Albuquerque Júnior, nos alguns lugares distantes do Brasil a “verdadeira
leva a lugares perigosos e preguiçosos, e geral- natureza” e a vida de curiosos povos de pele
mente opera para realçar o poder de quem ocupa escura (os índios coroados ou Kaingang) seguiam
o espaço do visto como moderno e civilizado. O tal intocadas. Seria possível até, assim como fizera
civilizado que geralmente surge para fazer contras- Roosevelt, visitá-los oportunamente para ver de
te ao Sertão. perto os modos mais exóticos de permanecer
na terra. Esse interesse atravessado não é uma
Foram muitos os meios de formação, produção e
propriedade dos EUA, bem sabemos – como nos
reprodução de uma imagética sobre esse Sertão
diz Glauber Rocha em seu texto Ezthetyka da
que é fetiche, o Sertão que surge, periodicamen-
Fome (1965):
te, mal condensado nas imagens de candidatos
vestindo gibões e chapéus de couro, a paisagem “para o observador europeu, os processos de
árida servindo como cenário, na tentativa de bus- produção artística do mundo subdesenvolvido
car votos nordestinos. só o interessam na medida que satisfazem sua
São homens que tentam se acoplar ao citado “Bra- nostalgia do primitivismo”.
sil profundo”, aquele no qual não há sinal de celu-
Eram olhos maravilhados aqueles saídos após a
lar, que está distante dos centros onde o mundo
exibição do filme. Tão maravilhados quanto os de
civilizado está deteriorado, mas abrigando a santa
Mário de Andrade (e Luís Saia, Martin Braunwieser,
industrialização, o micróbio das máquinas e da tec-
Benedicto Pacheco e Antônio Ladeira) em suas
nologia. Recorrem, mais uma vez, à oposição que
expedições por cidades de Pernambuco, Paraíba,
acentua: são eles os iluministas e iluminados que,
Ceará, Piauí, Maranhão e Pará no calar dos anos
com sua graça e sotaques universais, nos visitam
1930. Voltaram para São Paulo, mais especifica-
de quando em vez. Com roupas de “nordestinos” –
mente aos escritórios do Departamento de Cultura,
afinal, no fetiche o Nordeste é sinônimo de Sertão
com objetos de culto, anotações, instrumentos e
–, eles apenas seguem o fluxo. Repetem imagens,
registros musicais, documentos fílmicos e fotográfi-
mantêm a camisa de força, colocam-se como
cos. Nos materiais estavam as celebrações a orixás
guardiões dos “resgates culturais”, tentam mistu-
como Xangô (BA), os rituais dos índios Pankararu
rar-se ao sol quente, ao chão rachado, ao couro,
(PE), o batuque religioso do tambor de Mina e do
ao homem brabo e ao boi morto de sede, enquan-
tambor de Crioula (MA), o colorido do coco e dos
to os entendem como suficientes para representar
reis do Congo (PB). Eram exemplos de uma “verda-
um lugar.
deira” identidade nacional, mais verdadeira ainda
Produzem, assim, conteúdo para uma plateia quando contraposta àquela cidade sudestina cuja
parecida com aquela vista em 1918 no Carnegie urbanização seguia a galope - assim como a sua
Hall, em Nova Iorque. Ali, o capitão e cineasta riqueza, em parte sustentada pela falência econô-
Luiz Thomaz Reis, patrocinado pela National mica do Nordeste de tipos folclóricos e adoráveis.
Geographic Society, exibiu para o presidente Seguia ali a plena construção, até hoje poderosa,
Theodore Roosevelt a película Wilderness do mito do universal versus regional, do moderno
(intitulado, no Brasil, Santa Cruz). O sucesso foi versus tradicional (uma tradição ficcionalizada em
enorme, e todas aquelas pessoas que já gozavam boa parte pela elite nordestina, outro presente su-
do conforto da modernidade puderam ir tranquilas blinhado por Durval). Não era algo novo, como nos
matute 13 revista de crítica e fotografia

lembra Lúcia Lippi Oliveira no artigo A Conquista


do Espaço: Sertão e Fronteira no Pensamento Bra-
Nem toda visibilidade
sileiro (1998): é positivamente
“O sertão, para o habitante da cidade, aparece transformadora: na
como espaço desconhecido, habitado por
índios, feras e seres indomáveis. Para o verdade, boa parte dela
vestiu a nós, sertanejas
bandeirante, era interior perigoso, mas fonte
de riquezas. Para os governantes lusos das
capitanias, era exílio temporário. Para os
expulsos da sociedade colonial significava
e sertanejos, com rígidas
liberdade e esperança de uma vida melhor. camisas de força.
Como nos diz Janaína Amado (1995a), ‘desde
o início da História do Brasil, portanto, sertão também maravilhados, uma celebração religio-
configurou uma perspectiva dual, contendo, sa na qual a música, as roupas e os gestos eram
em seu interior, uma virtualidade: a da inversão. arrebatadores. Sentados, fotografávamos. Até que
Inferno ou paraíso, tudo dependeria do lugar de uma mulher, uma das responsáveis pela organiza-
quem falava’”. ção do coral, foi ao microfone e falou: “Por favor,
desliguem suas câmeras. Nós não estamos aqui
Não trata-se apenas de uma crítica a um modo de
para o entretenimento de vocês”. Ela sublinhava
olhar e traduzir: é uma inflexão acompanhada do
nossa imensa falta de educação e cuidado com o
entendimento de sucessivos períodos históricos e
espaço e as pessoas – e nossas fotos eram ape-
contextos nos quais fomentar a ideia de um Outro
nas a confirmação disso. O segundo episódio foi
exótico era ação natural – ou melhor, quase divina.
contado por uma colega pesquisadora: ao receber
No bojo dessa crítica, percebam, precisa haver
novamente a incumbência de falar para um gru-
uma tesoura, uma bomba, qualquer ferramenta
po de estudiosos em seu terreiro de candomblé,
necessária para a produção da desestabilização,
uma ialorixá devolveu: “não, não vou mais permitir.
para a luta por discursos e representações mais
Quantas vezes vocês viram o povo do terreiro en-
integrais. A representação é uma efetiva arma de
trando para filmar e fotografar suas igrejas?”
combate – por isso, que refundemos nossos ban-
cos de imagens. Essa matemática simples demorou a ser feita.
Podemos seguir: quantas expedições culturais,
Essas tentativas de fissurar engessadas represen-
como aquela feita por Mário de Andrade, os sudes-
tações não estão restritas a um ambiente de aca-
tinos continuam a realizar nas terras do Nordeste (=
dêmicos ou iniciados, mas espraiadas no cotidiano
Sertão)? Porque não é comum saber de grupos de
de pessoas e grupos que se sabem Sertão; aqui
nordestinos que seguem até as terras do Sudeste
peço licença para acionar dois episódios ouvidos e
vividos há algum tempo, experiências que, admito, ou Sul para filmar os hábitos de comunidades “típi-
possuem certo borrado da memória. Na primeira, cas”, tradicionais, de um “Brasil profundo”?
trago uma visita a uma igreja no Harlem, na mes- Nossos olhos devem continuar maravilhados – e
ma Nova Iorque que viu os índios Kaingang em mantê-los em tal estado tem sido um ato extrema-
1918. Era 2011, e eu e outros turistas olhávamos, mente difícil no Brasil atualmente transformado no
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matute 15 revista de crítica e fotografia

maior país minúsculo do mundo. Mas a maravilha


só se efetiva quando partimos em busca daquilo

as ca-
que nos aproxima, do que entre nós e o outro há
de semelhança, e não a busca pela diferença (“Eu
não sou discriminada porque eu sou diferente, eu
me torno diferente através da discriminação”, nos
diz a artista e pesquisadora Grada Kilomba, que

bras
conhece sertões diversos). E a produção da dife-
rença é especialmente perigosa quando estamos
armados de boa vontade, sem perceber a repetição
nem sempre sutil dos mecanismos dessa produção

e a mo-
– como quando eu clicava quase sem respirar o
coral lá no Harlem.
Nem toda visibilidade é positivamente transforma-
dora: na verdade, boa parte dela vestiu a nós, ser-

derni-
tanejas e sertanejos das periferias, das favelas, dos
interiores, da cor preta, do ser bicha, do ser mulher,
com rígidas camisas de força. O povo de NY que
se maravilhou com o filme (feito com boa vontade)

dade, o
de Luiz Thomaz Reis consumiu imagens apazigua-
doras da pesca, dos cocares e costumes daqueles
exóticos indígenas. Elas não mudaram o rumo de
uma história de genocídio: 97 anos após aquela as-
sombrosa exibição, um bebê Kaingang, Vítor, mor-

carcará
reria nos braços da mãe Sônia em frente à estação
rodoviária de Imbituba, no litoral de Santa Catarina.
Ela vendia artesanato durante o Carnaval; eles es-
tavam dormindo na rua quando um desconhecido

ea
se aproximou, afagou os cabelos da criança e de-
pois a feriu na garganta com uma navalha. Nossos
olhos maravilhados não conseguiram evitar que,
em 2019, um pastor chamado Ailton publicasse em

carícia
seu canal no YouTube um ritual de “unção e poder
de Deus” sobre este mesmo ainda exposto povo.
Nossas imagens, livros, filmes e tantos “resgates”,
enfim, não conseguiram impedir que cerca de 80
povos indígenas desaparecessem, nem que eles
sejam apenas 896.917 pessoas (Censo de 2010)
em um país de mais de 208 milhões.

Frames do filme “Dia de Pagamento“


Os indígenas, esses sertões.
de Fabiana Moraes
no sertão também existe etc 16 por Fabiana Moraes

Os sertões que na retina e na história já se firma- seus bois e vacas, nas estiagens mais prolon-
ram bem mais como o espaço da natureza, da gadas, sim). Isso não se conta: é preciso manter
família, do poder e do sobrenatural (como escre- o imaginário de um povo fadado à incivilização.
veram Vernaide Wanderley e Eugênia Menezes). Transmutou-se sem alarde essa seca tão pós-mo-
Sertões de campos de caatinga cobertos com o derna e célebre quanto o padre de batina preta,
plástico de embalagens de biscoitos, macarrão gesso-oco por dentro e prenhe de disputas simbó-
instantâneo, refrigerante. Sertões de carcaças de licas. Estamparam as capas de jornais e cartes de
carros largadas em borracharias à beira da estrada. visite destinados às senhoras dos elegantes salões.
Sertões de casas de colorido insistente que dispu- Também assombravam os olhos maravilhados.
tam espaço, numa briga ferrenha, com as cerâmi- Mas agora, na justa guerra das representações,
cas e os portões de alumínio. quem vamos observar quando esses olhos, afiadas
Sertões com mais caixas de som instaladas nas tesouras, se voltam diretamente para nós?
traseiras dos carros do que Riobaldos. Com tan- Inferno e paraíso, centro e periferia, o Sertão é
tas “mulheres macho”, tantos “machos mulheres”. distinto lugar e é como todos os outros. Guar-
Onde o trator cego do geralmente falso desen- da, em alguns recantos – nas malas de papelão de
volvimento passa sem avisar – como em todas as Seu Dedé em Apodi (RN), nas anáguas bordadas
regiões do planeta. “Acabou-se essa história de vendidas nas feiras de Parnamirim (PE) –, alguma
sangue. Os velhos não aguentam e os novos têm resistência ao cego trator. Essa resistência é tam-
medo”, me disse uma vez, ali por 2009, o senhor bém aviso que diz: é de fato moderno aquele que
Severino Rocha, Primeiro Decurião da Ordem dos sabe guardar algo da história de si. Uma história
Penitentes da Irmandade da Cruz, em Barbalha, tantas vezes mal contada através de uma media-
Ceará. Olhava, resignado mas não triste, seu cacho ção que há muito precisa se reinventar. Por fim,
de penitência, repleto de lâminas cortantes, pendu- volta a pergunta de Tom Zé, saído do Irará, sertão
rado na parede, sem trabalhar. Perto, no Juazeiro da Bahia, o mais universal dos seres e dono de
do Norte, um beato de barba longa não escondia maravilhosas tesouras:
sua decepção: naquele mesmo 2009, José Alves
de Jesus, líder dos pedintes e penitentes Borbo- Oh, Senhor Cidadão, eu quero saber,
letas Azuis, reclamava: “Desde que ela nasceu, eu eu quero saber
batalho. Tentei segurar, mas o demônio não dei- com quantos quilos de medo,
xa”. Referia-se a Amanda, sua neta, então com 12 com quantos quilos de medo,
anos. Sim, ela gostava de Cristo e do Padre Cícero. se faz uma tradição?
Tanto quanto de televisão e música pop.
> Fabiana Moraes é jornalista e professora de
Nos abracemos a esse sertão sempre grávido de Comunicação Social no Centro Acadêmico do
sentidos. Com seu Padre Cícero, que nunca pre- Agreste, campus da Universidade Federal de
cisou de um reconhecimento católico oficial para Pernambuco situado em Caruaru.
tornar-se poderoso santo popular. Sertões de
cisternas que interrompem a repetição das histó-
rias de secas que a mídia aprendeu historicamente
a valorar (rendem, afinal, polpudos dramas). Hoje,
a mulher e o homem não morrem de sede – mas
17

Disputando
a Imagem
do Brasil:
fotografia e
política na
Era Vargas
texto Maurício Lissovsky
imagens Acervo FGV
Arquivo Gustavo Capanema / FGV CPDOC

Em meio à Segunda Guerra


Mundial, dois projetos fotográficos
radicalmente distintos tentam forjar
em imagens a identidade brasileira.
disutando a imagem do brasil 18 por Maurício Lissovsky

Quando a Segunda Guerra começa, em 1939, canos, órgão diplomático encarregado de garantir
o Brasil, sob a ditadura de Vargas, é uma peça a aliança entre os Estados Unidos e as demais
importante que ainda não decidiu de que lado repúblicas do continente. Entre seus objetivos
irá alinhar-se. Mesmo no âmbito do governo, são estava convencer o público norte-americano que
grandes as divergências. O Ministério da Educa- essa imensa nação do Sul, apesar de seu governo
ção promovia grandes manifestações cívicas nos autoritário, era constituída por um povo humilde,
estádios de futebol, inspiradas na estética dos porém alegre e de alma democrática, que vivia
comícios fascistas, mas logo os estudantes univer- em cidades modernas e movimentadas, e que o
sitários irão às ruas para reivindicar a entrada do modo de vida dos brasileiros estava mais próximo
Brasil no conflito ao lado das “nações democráti- do liberal American-way-of-life do que da rigidez
cas”. Tudo isso em meio a um processo de intensa fascista. Ao confrontarmos esses dois conjuntos de
urbanização e modernização do comportamento e imagens, nos aproximamos da experiência de ser
da cultura que tornará o Brasil e os brasileiros do brasileiro em um mundo dividido pela guerra e pelo
pós-guerra muito diferentes do que eram antes dela. conflito ideológico.
Esse conflito ideológico e político também ocorre Comecemos pela Obra Getuliana. A ideia surgiu
na imagem. As fotografias produzidas no Brasil na nos últimos anos da década de 1930. Concebida
década de 1930 e nos primeiros anos da guerra como um livro comemorativo do governo Vargas,
propõem visões divergentes a respeito do caráter as fotografias remanescentes deste projeto cons-
e da vocação do país. De um lado, as fotografias tituem um impressionante acervo de mais de 600
de um Brasil ordeiro, trabalhador, educado, domi- imagens, produzidas por profissionais brasileiros
nantemente branco e governado por um Estado e europeus (particularmente imigrantes alemães).
muito bem organizado. É o Brasil dos fotógrafos Influenciados pelas vanguardas fotográficas euro-
do poderoso Departamento de Imprensa e Propa- peias, realizaram um empreendimento estético radi-
ganda e, principalmente, o Brasil da Obra Getuliana calmente novo na fotografia brasileira que a queda
– um monumental álbum de propaganda política de Vargas, em 1945, impediu que viesse a público.
que reuniu fotografias produzidas, quase todas, por Enquanto os textos da Obra Getuliana têm um ca-
alemães. Refugiados de guerra, esses fotógrafos ráter eminentemente burocrático, suas fotografias
usaram aqui as melhores técnicas da fotografia conformam um gigantesco empreendimento peda-
modernista europeia - a mesma utilizada pelos go- gógico e propagandístico autônomo, que faz uso
vernos fascistas da Itália, da Alemanha, mas igual- de várias soluções modernistas para representar a
mente pela comunista União Soviética. invenção do futuro no presente. No intuito de tor-
Em contraponto a esse, temos um outro Brasil: nar visível o progresso do Brasil após a revolução
carnavalesco, turístico, religioso e mestiço, ale- de 1930, o livro foi implicitamente concebido como
gremente desorganizado, musical e hospitaleiro. uma “pedagogia do olhar” que, simultaneamente,
É o Brasil fotografado pelas lentes dos repórteres mostrava e ensinava a ver. Entre os fotógrafos que
norte-americanos da revista Life e por Genevieve participaram desta empreitada, destacam-se os
Naylor, fotógrafa documental a serviço do Escri- alemães Peter Lange (cujo extremo rigor formal im-
tório de Coordenação dos Negócios Interameri- prime sua marca por toda a obra), Erich Hess, Paul
matute 19 revista de crítica e fotografia

Ao confrontarmos
esses dois conjuntos
de imagens, nos
aproximamos da
experiência de ser
brasileiro em um
mundo dividido pela
guerra e pelo conflito
ideológico.

Arquivo Gustavo Capanema / FGV CPDOC


disutando a imagem do brasil 20 por Maurício Lissovsky

Stille e Arno Kikoler, além do teuto-chileno Erwin Por conta própria, talvez, Naylor ampliou sua pau-
Von Dessauer, o francês Jean Manzon e os brasilei- ta: fotografou o carnaval negro do Rio, na Praça
ros Jorge de Castro e Epaminondas Macedo.¹ XI e nas favelas; seguiu as procissões nas cidades
O Brasil representado na Getuliana é bastante históricas mineiras; desceu o rio São Francisco, de
diferente daquele que se via nas ruas do país. Pirapora a Juazeiro; pegou um navio em Belém e
Mestiços, negros, pobres, marginalizados, índios, visitou Recife, Maceió, Aracaju e Salvador. É bas-
boêmios ou quaisquer outros sujeitos que não tra- tante provável que tenha selecionado algumas de
duzissem a ação modernizadora do Estado estão suas imagens para compor um livro com as foto-
ausentes dessa representação do futuro nacional. grafias de sua viagem, que pretendia expor no Bra-
Festejos populares, carnaval e manifestações reli- sil e, eventualmente, publicá-lo, aqui ou nos Esta-
giosas – com exceção de uma única foto, em que dos Unidos. Um pequeno ensaio inédito de Aníbal
a missa em honra à bandeira nacional celebra-se Machado foi claramente escrito como introdução
no altar da pátria – também estão invisíveis. Na a essa obra. A fotógrafa fora advertida por seus
Getuliana, não há povo, depositário de uma alma, superiores no Office para evitar fotografar tantos
de uma tradição, ou de qualquer manifestação “negros, mulatos, barracos de negros, negros no
nativista, mas brasileiros, cada um deles ocupando carnaval”. Em seu texto, o crítico brasileiro procu-
um lugar específico na ordem social, cumprindo ra justificar a desobediência: o álbum conteria a
zelosamente suas responsabilidades. Do mesmo “imagem de um país”, na “espontaneidade de seus
modo, não há natureza em estado bruto, selvagem. costumes, na sua atividade cotidiana, nalguns dos
Nós a vemos sempre domesticada, agriculturada, gestos mais expressivos de seu povo”, assinalando
produtiva; ou então, disposta ao turismo, ao lazer que a fotógrafa desprezou os “temas facilmente
civilizado e organizado – natureza desembrutecida. brilhantes” e preferiu os “assuntos mais humildes”.
Mas o fez com “sentido sociológico”, em que tipos
Em fins de 1940, quando os olhos modernos da “marcados por um caráter racial tão forte” parecem
Getuliana começam a percorrer o país, uma outra “o resumo etnográfico de uma determinada clas-
missão fotográfica, a norte-americana, desembar- se social”. Se nas fotografias de Naylor não são
ca no Rio de Janeiro. Entre os primeiros emissá- visíveis “o dinamismo do nosso trabalho e a nossa
rios culturais do Departamento de Estado, está a vontade de ir para a frente”, isso não as desme-
fotógrafa Genevieve Naylor. Não existem evidên- rece, pois “todo mundo sabe que o Brasil progri-
cias de instruções específicas que tenha recebido de”. Como se respondesse a eventuais críticas
previamente do Office. As únicas recomendações de funcionários da diplomacia norte-americana e
de pauta conhecidas vieram do próprio DIP, em autoridades brasileiras, Aníbal Machado reconhece
papel timbrado de sua Divisão de Turismo, listando que o livro não contém “uma imagem completa do
cenários relacionados à vida moderna das elites no Brasil”, porém exibe “a mais rara, a menos conhe-
Rio de Janeiro: apartamentos luxuosos, as praias cida, de um país que deseja e necessita entender-
de Copacabana e Ipanema, iates, o Jóquei Clube, -se com seus irmãos da América para uma mais
as lojas de moda da Rua do Ouvidor. A essa lista íntima e cordial solidariedade.” ²
que associa modernidade e sensualidade à capital
federal acrescentava-se apenas uma dimensão Genevieve Naylor não pôde expor suas fotos no
relativa aos menos favorecidos: “as obras de as- Brasil, pois o principal dirigente do Office no país
sistência social da Sra. Darcy Vargas” e a festa de as considerou inadequadas: “Há muito mais no
Natal no Palácio do Catete. Brasil que sacolejos de negros, negros no Car-
21

Em 1942, quando as
tensões da guerra
estavam mais
acirradas no Brasil,
ambos os projetos
sucumbiram: a
Getuliana, por ser
Arquivo Gustavo Capanema / FGV CPDOC

demasiado ariana, e
o álbum de Naylor,
demasiado negro.
disutando a imagem do brasil 22 por Maurício Lissovsky

1. O conjunto das imagens está disponível 2. Texto datilogafado, com correções manus-
no site do CPDOC/FGV, como parte do critas, mantido pela família de Naylor. Cópia
acervo do Arquivo Gustavo Capanema. gentilmente cedida por Ana Maria Mauad.

imagem

progresso

povo

identidade

Arquivo Gustavo Capanema / FGV CPDOC


matute 23 revista de crítica e fotografia

naval, instituições religiosas e bricabraque”. Os


agentes norte-americanos receavam que toda essa
Ao confrontarmos
espontaneidade e simpatia pudesse ofender algu-
mas autoridades brasileiras. Uma exposição com
esses dois conjuntos
pouco mais de 5 dezenas de imagens, no entanto, de imagens, nos
foi realizada no MoMA, de Nova York, em 1943,
tendo sido a edição original proposta pela fotógrafa aproximamos da
revista pelo curador do museu para atender melhor
as premissas da política visual da boa vizinhança.
experiência de ser
Nenhum catálogo foi publicado na ocasião. brasileiro em um mundo
Com a entrada oficial do Brasil na guerra, em
agosto de 1942, a modernidade almejada pela dividido pela guerra e
Obra Getuliana tornou-se inviável. Nada poderia
estar mais distante do Brasil sonhado por ela que
pelo conflito ideológico.
a versão “carnavalizada” da cultura nacional que, 1949, a Life publica uma matéria sobre a inaugu-
nos anos subsequentes, veio a ser eventualmente ração da loja da Sears na cidade. O evento atraiu
reconhecida como um componente essencial da multidões. A revista destacou que “nunca hou-
identidade brasileira. As melhores imagens desse ve uma inauguração como a do Rio de Janeiro”.
Brasil sério e disciplinado foram engavetadas e só Os eletrodomésticos, assim como as cortinas de
reapareceram mais de 4 décadas depois. O destino plástico para box de chuveiro, representavam as
do álbum de Naylor não foi diferente. Depois de re- ideias de modernidade, praticidade e conforto que
tornar aos EUA, abandona a fotografia documental atraíam os consumidores brasileiros do pós-guerra.
e se torna retratista e fotógrafa de moda. Também As geladeiras foram vendidas 35% mais barato que
tivemos que esperar quase meio século para que em qualquer outra loja da cidade e esgotaram-se
algumas de suas imagens brasileiras fossem final- em menos de 24 horas. As escadas rolantes, raras
mente publicadas. Em 1942, no entanto, quando as na época, foram uma atração à parte. Chegaram a
tensões da guerra estavam mais acirradas no Brasil, transportar 16 mil pessoas por hora nesse primeiro
ambos os projetos sucumbiram: a Getuliana, por dia. Os brasileiros haviam dado um passo em sua
ser demasiado ariana, e o álbum de Naylor, dema- evolução: não eram mais os trabalhadores cívicos a
siado negro. serviço da pátria, nem os alegres foliões de um car-
O Brasil havia sido tema de uma das principais naval permanente. Haviam finalmente se tornado
matérias da primeira edição da revista Life, em 23 os cidadãos modernos com que haviam sonhado.
de novembro de 1936. O Rio de Janeiro é desta- Eram, finalmente, consumidores.
que, com as calçadas de pedras portuguesas, a
> Mauricio Lissovsky é historiador e professor de
baía da Guanabara – dita a mais bonita do mundo Comunicação na Universidade Federal do Rio de
– e a festa da Penha. Treze anos depois, o público Janeiro. Atualmente é professor visitante na UFPE.
norte-americano pôde constatar, nas páginas da
mesma revista, que os investimentos em coopera-
ção e propaganda no tempo da guerra haviam sido
plenamente recompensados. Em 27 de junho de
24

A representação
das sobras
matute 25 revista de crítica e fotografia

Pondo em atrito o mundo


texto Moacir dos Anjos
da revista americana
imagens Divulgação Newsweek e o genocídio
de Ruanda, o artista
chileno Alfredo Jaar
revela a ligação entre
necropolítica, racismo e
(in)visibilidade midiática.
Ao longo de quatro décadas, o artista chileno
Alfredo Jaar investiga a construção de formas de
controle social por meio de signos visuais, e não
somente através da força bruta. Sugere, todavia,
que modos de vida mais inclusivos do que aqueles
cuja lógica regressiva desvenda são também possí-
veis de serem criados valendo-se de tais signos.
Afirma, assim, a importância da imagem e de seus
usos na emergência e manutenção de hegemonias
políticas. Seus trabalhos não obrigam ninguém,
contudo, a tomar posições e atitudes, tão somente
oferecendo entendimentos do mundo diferentes
dos que refletem e alimentam os consensos e con-
venções que fazem a vida ser o que ela é em cada
momento. São trabalhos que interpelam e afetam
o outro, mesmo que não seja possível saber os
efeitos dos afetos que produzem.
Um dos trabalhos do artista em que essas caracte-
rísticas melhor se oferecem é Untitled (Newsweek),
realizado em 1994 e formado por duas linhas do
tempo, ambas referentes a um mesmo período: os
cerca de 100 dias em que se deu o assassinato de
um milhão de habitantes de Ruanda, país situado
no centro-leste da África, e que teve início em 6
de abril daquele ano. A primeira dessas linhas do
tempo é formada por 17 capas de uma das mais
a representação das sobras 26 por Moacir dos Anjos

Para a revista, Marte está mana que tal fato ocorre, a capa da Newsweek dá
destaque a uma reportagem sobre como sobreviver
mais próximo dos Estados em um mercado financeiro instável.

Unidos do que a África Os textos continuam narrando a acelerada evolu-


ção dos assassinatos nos dias seguintes. Em duas
jamais vai estar. semanas, já são 50.000 mortos. Em três semanas,
100.000. Simultaneamente, a presença das for-
importantes revistas semanais de notícia do mun- ças de paz da ONU no país é diminuída de 2.500
do (a Newsweek, editada nos Estados Unidos), homens para um efetivo de apenas 270 pessoas.
espaço de visibilidade para pessoas ou assuntos Em uma das capas da Newsweek contemporâneas
que, quando ali colocados, são legitimados como a esses fatos, é noticiado com destaque o suicídio
hierarquicamente mais relevantes, naquele momen- do cantor Kurt Cobain, com a chamada involunta-
to, que qualquer outro. riamente irônica da reportagem: “Why do people kill
A segunda linha do tempo presente no trabalho– themselves?” (Por que as pessoas se matam?)
disposta logo abaixo das capas da revista – é O descompasso entre a tragédia em Ruanda e o
constituída, por sua vez, por textos curtos que es- que a revista dá destaque em suas capas continua
tabelecem a cronologia daquele extermínio. Textos nas semanas que se seguem. Pelo menos 100.000
que narram o começo, a intensificação, o agiganta- pessoas são assassinadas a cada poucos dias e
mento e, finalmente, o aparente controle da ma- seus corpos abandonados nas ruas ou jogados
tança de um milhão de ruandeses e da fuga deses- nos rios que cortam o país. Mesmo aqueles que
perada do país de cerca de dois milhões deles. É se refugiam em igrejas são mortos a machadadas.
a narrativa daquilo que, a despeito de seu caráter Outras centenas de milhares de ruandeses se re-
inédito e brutal, não foi merecedor da visibilidade fugiam nas fronteiras de países vizinhos. Enquanto
que a Newsweek concedeu a tantos outros acon- isso, a Newsweek continua ignorando a matan-
tecimentos do mundo também ocorridos naqueles ça. Nem mesmo quando dá destaque a um tema
dias, destacados em suas capas a cada semana. relacionado à África (o retorno de Nelson Mandela
São duas narrativas justapostas que evocam, dife- à cena política sul-africana), é capaz de fazer uma
rentemente, o transcurso de um mesmo período. associação com o genocídio que se desenrolava,
O texto que marca o início do tempo descrito no naquele momento, em Ruanda. Na semana em que
trabalho informa que o presidente de Ruanda, per- a contagem de mortos no país alcançava 400.000
tencente à etnia Hutu, foi morto ao ter o avião em pessoas, a capa da revista é dedicada à morte de
que viajava abatido um pouco antes de aterrissar Jacqueline Kennedy Onassis.
em Kigali, capital de seu país. Foi este o fato que Nas três semanas seguintes, enquanto o conflito
deflagrou o início dos ataques, comandados por eleva o número de mortos para 700.000 pessoas,
extremistas Hutus, a qualquer pessoa que perten- a Newsweek dá destaque a reportagens sobre
cesse a etnia Tutsi, acusados de provocar a morte comportamento ou amenidades. E é curioso que
do presidente. Moderados Hutus que se opuses- uma dessas reportagens de capa traga o título
sem a participar ativamente do massacre também “Virtue. The crusade against America’s moral decli-
foram eliminados. Somente nos primeiros dias de ne” (Virtude. A cruzada contra o declínio moral da
conflito, dezenas de milhares são mortos. Na se- América). Mas é nas três semanas posteriores a
matute 27 revista de crítica e fotografia

essa edição que a invisibilidade midiática da tragé-


dia de Ruanda ganha contornos mais dramáticos
nas capas da revista. Enquanto já existiam mais
de meio milhão de refugiados e cerca de 900.000
mortos, a Newsweek dedica três capas consecu-
tivas ao julgamento de O.J. Simpson, ator famoso
que matou sua esposa. O fato de Simpson ser uma
celebridade e ser negro estabelece um contraste
ainda maior entre a visibilidade de seu caso e a
invisibilidade a que, naquele momento, estavam
relegados os mais de um milhão e meio de negros
anônimos africanos, mortos ou vivendo em condi-
ções sub-humanas em campos de refugiados.
O horror continua avançando em Ruanda nas
semanas seguintes. O cólera mata muitos dos
que não foram assassinados. Para o semanário,
contudo, o destaque na capa de uma das edições
desse momento foi mais uma morte individual –
desta vez, a do líder norte-coreano Kim Il Sung e
as implicações disso para a paz mundial, o que nos
faz pensar sobre o que a Newsweek entende por
mundo. Na 16a semana após o início do massacre,
Imagens Divulgação Artista
a representação das sobras 28 por Moacir dos Anjos

a chamada principal de capa é uma reportagem


sobre a possibilidade de vida humana no planeta
Na morte de cada ruandês
Marte, sugerindo que, para a revista, Marte está
mais próximo dos Estados Unidos do que a África
se afirmava uma perfeita
jamais vai estar. coincidência entre o
Finalmente, quando mais de um milhão de seres
humanos já haviam morrido brutalmente (e quando
desaparecimento físico
um número ainda maior estava vivendo em cam- de uma vida e a quase
pos de refugiados em condições de alto risco), a
Newsweek resolve conceder uma capa ao tema. insignificância simbólica
“Hell on Earth” (Inferno na Terra), afirma a revista,
se referindo mais aos campos de refugiados do desse fato.
que ao próprio massacre que os gerou. Naquele
momento, e depois de muita hesitação e aberta re- países como Ruanda, expondo suas populações a
cusa por parte de alguns países, as Nações Unidas formas extremas (internas e externas) de controle
resolvem enviar uma força de paz a Ruanda. Muito social, incluindo a aniquilação física.
do que poderia ter sido feito para evitar centenas Reconhecer o extermínio como prática de domínio
de milhares de mortes não foi efetuado. E não o foi, implica admitir a existência daquilo que o filósofo
em parte, porque eram mortes quase invisíveis na Achille Mbembe nomeia de “necropolítica”, regime
mídia ocidental. no qual a vida é submetida à morte e populações
A mera descrição do trabalho de Alfredo Jaar específicas são levados à extinção. Ao relacionar a
sugere a necessidade de indagar as razões que emergência de uma política que regula a distribui-
fazem com que a morte violenta de tantos habitan- ção da morte com a história da violência colonial
tes de um país do continente africano – ocorridas, (incluindo suas aparições contemporâneas), o filó-
ademais, em período tão curto – não seja assunto sofo aponta ser o racismo o que torna possível ao
suficientemente importante para ser matéria de Estado exercer funções mortíferas. O racismo, diz
capa de um dos principais veículos de notícias do Mbembe, é “a condição de aceitação da matança”;
mundo. Em verdade, tanto o assassinato em massa e é ele que explica o massacre de Tutsis por Hutus,
dos ruandeses quanto os motivos de sua inexpres- ainda que as diferenças entre os dois grupos étni-
sividade midiática podem ser melhor entendidos cos sejam mais construídas que naturais. É tam-
– embora nunca justificados, é evidente – quando bém o racismo que permite entender a ausência de
se leva em conta a existência do que o sociólo- qualquer referência a esse um milhão de homens,
go Boaventura de Souza Santos chama de “linha mulheres e crianças negros nas capas da revista
abissal”, fronteira invisível que “separa o domínio Newsweek, ao longo dos 100 dias em que eram as-
do direito do domínio do não-direito”, para além da sassinados. A necropolítica une a aniquilação física
qual existe uma indistinção entre o legal e o ilegal, e a invisibilidade simbólica dos mortos.
entre a verdade e a mentira, ou mesmo entre a vida O trabalho de Alfredo Jaar lança luz, ainda, sobre
e a morte. Para além dessa linha abissal, a humani- o que está em jogo quando algo é representado;
dade é subtraída. E foi justo para lá que a coloniza- quando se cria – através de imagens, escrita, sons
ção de parte da África por países europeus lançou ou gestos – equivalentes sensíveis de uma dada
matute 29 revista de crítica e fotografia

realidade. Untitled (Newsweek) torna evidente que e de quem morre em Ruanda. E de quem vive e
essa equivalência inventada nunca coincide com morre em tantos outros lugares situados além da
a realidade a que se refere, sendo resultado da “linha abissal”. São imagens que, juntas, produzem
inclusão e exclusão de sujeitos e fatos tidos como uma representação ao mesmo tempo hegemônica
relevantes ou desprezíveis por quem tem o poder e racista do mundo.
de representá-la. Mostra que toda equivalência Por meio da aproximação de duas linhas do tem-
criada entre representação e realidade é informa- po que se contradizem e se chocam, Alfredo Jaar
da por maneiras particulares, e no mais das vezes contribui para a criação de uma representação
conflitantes com quaisquer outras, de recortar e alternativa desse mesmo mundo, contrapondo-se
compreender o mundo. A representação é, por àquelas que ignoram os já excluídos de outras
isso, campo aberto de negociações e disputas para esferas da vida, como a feita pela revista. Contri-
tornar visíveis e inteligíveis pessoas e acontecimen- bui, em tarefa partilhada com vários outros artistas,
tos, lançando outros, ao mesmo tempo, no campo para a criação de uma representação das sobras.
do que não se enxerga e não se entende. Dinâmica Representação contra-hegemônica que aponta e
que produz lembrança e também esquecimento. rememora os radicalmente excluídos dos espaços
E o que não coube ou foi excluído da represen- de visibilidade social pela dinâmica política que
tação do mundo que a Newsweek fez naquele move o mundo, reclamando para estes a condição
período foram justamente os indícios da exclu- de parte. Representação que questiona a ausência
são radical a que estava submetida grande parte dos ruandeses nas capas da Newsweek quando o
da população de Ruanda. Não couberam o mais massacre ainda estava em seu início, momento em
de um milhão de Tutsis e, em menor medida, de que sua visibilidade poderia contribuir, no âmbito
Hutus que morreram naqueles 100 dias, vítimas da de uma política das imagens, para a tomada de
necropolítica. Eles não contavam no mundo repre- ações efetivas capazes de controlá-lo. Um tipo de
sentado pela revista. Ou ao menos não contavam o representação, portanto, que reclama a condição
bastante para que seu extermínio fosse merecedor de alguém para quem é ninguém. “Ninguéns” que
de ser assunto de capa da publicação. Na morte naquele momento foram os ruandeses, mas que
de cada ruandês se afirmava uma perfeita coinci- já foram armênios, que já foram judeus, que são
dência entre o desaparecimento físico de uma vida palestinos e que são e serão ainda outros povos ou
e a quase insignificância simbólica desse fato. Nes- grupos sociais despossuídos de sua condição de
se sentido, esse conjunto de capas da Newsweek humanidade. Povos e grupos sociais que foram e
agrupadas produz uma representação perver- serão colocados em uma zona de abandono social
samente adequada de uma realidade que gera, e feitos vítimas de uma política ativa da morte.
ativamente, a invisibilidade e o olvido de quem vive
> Moacir dos Anjos é pesquisador da
Fundação Joaquim Nabuco.
30

A história
do ouro
texto Priscila Nascimento
imagem Bárbara Wagner

Reflexões sobre o os caboclos – segundo a artista, bêbados – usa-


vam enxadas para simular as lanças. Considerado
extrativismo a partir da um fracasso pela artista, o ensaio, composto por

série Estrela Brilhante, 22 fotos, foi publicado na revista americana Apertu-


re e na revista brasileira Zum.
de Bárbara Wagner As fotografias gravadas em minha mente mostram
corpos esmagados pela lente. Corpos embria-
Em Bogotá, na Colômbia, há um museu do gados, de olhos sem foco, aparentando não ter
ouro, com esse nome mesmo: Museo del Oro. A controle dos movimentos. Há um domínio incrível
intenção é preservar a cultura e a história pré-co- da narrativa fotográfica, uma amostra do poder da
lombianas do país. Os indígenas usavam o ouro captura de imagens. A altura da câmera e o flash
como matéria bruta para as suas obras. Há, nesse aceso característico da artista, que ilumina as cores
museu, altares, piteiras, estátuas – peças diver- vibrantes do barro, dá um tom saturado à imagem,
sas feitas em ouro, obras religiosas para o povo acende a cor da pele. Mas aonde isso leva?
indígena com caráter completamente distinto
Levada à Espanha, a arte indígena pré-colom-
daquele buscado pela Espanha. Esta saqueava o
biana, ora transformada em moeda, ora exposta
ouro e o tratava como moeda, de forma parecida
em museus, explicava aos civilizados coloniza-
à que o tratamos hoje. A história não acaba aqui,
dores como se comportam aqueles selvagens
mas o parágrafo sim - já voltamos a ela.
que tiveram suas terras invadidas e saqueadas.
Para realizar a série fotográfica Estrela Brilhante, Recentemente, o governo da Colômbia solicitou
Bárbara Wagner acompanhou, entre os anos de que os tesouros artísticos feito pelos indígenas
2008 e 2010, três grupos de maracatu de Nazaré pré-colombianos fossem devolvidos à sua terra.
da Mata: Águia Dourada, Cambinda Brasileira e A Espanha, país que colonizou grande parte da
Estrela Brilhante. Desprovidos de seus ornamentos, América do Sul, alega que não precisa devolver
matute 31 revista de crítica e fotografia

nada, pois o ouro foi um presente, dado de livre e pobre, preto, indígena e favelado nunca existiu, se
espontânea vontade pelos habitantes da terra. esses grupos sempre fizeram parte do cânone do
Nazaré da Mata é considerada o berço do mara- belo, para então validar esse argumento.
catu rural, local onde atualmente se concentra o Chegando na Espanha é derretido o ouro.
maior número de maracatuzeiros de Pernambu- No site de Bárbara Wagner, de uma bela organi-
co. A principal personagem do maracatu rural é zação minimalista, há fotos que dizem silencio-
o caboclo de lança, essa figura mística que, com samente tudo o que eu tento dizer com palavras
elementos da cultura negra e indígena, carrega em neste texto. Há um homem negro comprimido,
suas cores vivas as lutas ancestrais de um povo cortado, reduzido para se enquadrar no tamanho
que resiste. Sendo seus principais representantes e de um livro. Em torno dele, mãos brancas posam
grande parte dos brincantes trabalhadores da cana para a foto: o registro de uma possível posse. Essa
de açúcar, o maracatu rural é uma representação foto está na loja do site, e esse não é o único livro
histórica do que a classe dominante sempre tentou segurado por essas mãos com esse tom de pele: é
calar. Em artigo publicado em 2017 pelo pesquisa- assim com todos os outros que estão à venda.
dor Jean Carlos Nascimento, os principais mestres
de maracatu da Zona da Mata de Pernambuco Em entrevista para o site Limiares, Wagner comen-
falam sobre a falta de atenção das políticas públi- ta que uma de suas séries, Brasília Teimosa, foi
cas para com essa manifestação cultural, e como majoritariamente vendida para o Sudeste e para
isso dificulta sua manutenção. O artigo reflete o exterior. A artista fala da ausência de vendas em
sobre como o incentivo de políticas públicas acaba Recife, cidade palco da série fotográfica, que apa-
destinado a uma classe média artística, reforçando rece aqui como produtora de uma beleza para ex-
assim uma narrativa dominante sobre o que pode portação, que a própria “colônia” não sabe apreciar.
ser arte e quem pode exercê-la. Ao final de uma visita guiada ao Museo del Oro,
Algo na série fotográfica Estrela Brilhante me inco- um dos guias perguntou: “Você achou grande
moda; enquanto uma mulher negra de ascendência esse museu, que é um dos maiores do mundo?
indígena, acredito profundamente em intuições, e Achou que tem muita coisa? Não tem um terço
as minhas sempre apontaram algo que desgosto do que ele deveria ter. Todo o resto, a Espanha
nesses corpos achatados sob um tom estourado levou.”
entrando em contato com o barro, no mesmo nível Brasiliense interessada no “Corpo Popular”, Bárba-
do chão. Para defender essas imagens, fala-se ra Wagner mora há 10 anos em Recife. Suas obras
sobre um desejo de fugir do belo, sobre uma busca percorrem exposições nacionais e internacionais
pela distorção desses corpos populares, uma equi- desde 2007, quando fez a série fotográfica Brasí-
paração da figura com o chão, que se enquadra lia Teimosa. Desde 2011 trabalha em colaboração
nesse ensaio como fundo. Uma fuga da represen- com Benjamin de Burca.
tação canônica desses brincantes que se mate- Este texto, escrito por um dos corpos populares de
rializa na vontade de representar apenas o corpo, Pernambuco, é endereçado à Espanha.
sem as fantasias características. Esse argumento
vale-se de um admirável poder retórico, já que é > Priscila Nascimento é graduanda em cinema
ausente de sentido. Questiono-me se toda uma na Universidade Federal de Pernambuco
história de representações coloniais distorcidas do e realizadora audiovisual.
três perguntas para cristiana dias 32 por Pedro Neves

3 perguntas para
Cristiana Dias
por Pedro Neves
imagem Cristiana Dias

Tendo trabalhado por 12 anos


como repórter fotográfica e mais
sete como editora de fotografia
na Folha de Pernambuco,
a jornalista, fotógrafa e
pesquisadora Cristiana Dias
viu de perto como funciona
a produção, a seleção, o
enquadramento e a circulação
de imagens em um veículo de
imprensa. Nesta entrevista à
O fotojornalismo está situado na interseção
Matute, conversamos sobre entre dois campos em que a noção da ver-
o dever ético do jornalismo, a dade e da objetividade são valores centrais:
produção discursiva da realidade a fotografia e o jornalismo. Mas sabemos
como a “verdade” e a “objetividade” são
e os novos desafios da profissão conceitos complexos e emaranhados em
repórter na era das redes sociais posicionamentos ideológicos. Como lidar
e das fake news. eticamente com essas complexidades den-
tro de uma empresa jornalística?

No jornalismo nossa matéria prima é a informação,


e toda imagem que publicamos, desde um flagran-
matute 33 revista de crítica e fotografia

fato. Se tenho uma palestra sobre determinado


assunto e apenas o espaço de uma imagem para
representá-la, prefiro escolher uma imagem que
melhor esclareça o que está sendo informado do
que a foto de um palestrante oficial, por exemplo.
É preciso desdobrar as camadas da notícia. Am-
pliamos determinados aspectos, sim. É neste cam-
po da “ficção” que podemos atuar. Mas uma ficção
que entregue a realidade, e não que a esconda.
Se é honesto me posicionar ideologicamente,
tenho um olhar mais à esquerda porque conheço
muitos lados e sei que a manutenção da pobreza e
da miséria são escolhas políticas. Enquanto jorna-
listas, nos cabe dar a ver situações e realidades
desconhecidas, ou que certa fatia dos poderosos
busca esconder, dentro de um filtro de interesse
jornalístico. Buscamos sempre outros modos de
ver. Precisamos olhar e enxergar tudo aquilo que o
dia a dia acaba por apagar ou nos cegar. A rua nos
dá esta noção de realidade de forma muito dura.
Circulei por lugares, conheci pessoas, vivenciei
“realidades” que a maioria das pessoas de classe
média ou alta jamais vai acessar, senão mediados
por uma representação. Este é o nosso papel, ser
mediadores pelo direito à informação.
Gosto de uma frase dita por Edgar Morin numa
palestra: “a verdade é uma cebola.” Hoje vivemos
a distopia da política brasileira. Eu me pergunto
te na rua até uma produção fotográfica com mo- quantas camadas de “verdades” seletivas e contra-
delo, cenário e luz montados, advém de escolhas ditórias a população é capaz de enxergar. Quantas
pessoais. Escolhemos lentes, ângulos, pontos de camadas de supostas verdades podem sobreviver
foco, tratamento, conceitos, recortes de realidades simultaneamente? Há mentiras ou meias verdades
e criamos “ficções” ou imagens ilustrativas para servindo de base a condenações jurídicas. Enquan-
representar realidades. Naturalmente, a liberdade to provas materiais concretas e indiscutíveis do
de escolha caminha de mãos dadas com a respon- ponto de vista legal são abafadas e engavetadas
sabilidade ética por estas escolhas. Respondemos em nome de um projeto de poder. E a imprensa
ética e legalmente pelo que é publicado. tem parte nisso. Quem decide o que é a verdade
dentro de uma disputa de narrativas?
Muitas vezes, no campo das imagens, ficções têm
maior capacidade de representar a realidade e se Escolhas éticas que incluam a coletividade den-
fazer entender do que um registro objetivo de um tro de um campo amplo de liberdade e respeito
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é o que desejo para o jornalismo. E tento manter pesquisas, conhecendo o perfil dos usuários, seria
sempre a reflexão sobre o que de fato são “nos- um processo bem mais eficiente e eficaz. Quando
sos” desejos, e como eles impactam no todo. Isso você acerta este timing é mais fácil ser acompa-
é essencial numa democracia. nhado nas redes sociais. Quando a gente mantém
um nível de qualidade e credibilidade acaba se
Os veículos de comunicação têm investido tornando um ponto de parada obrigatória. Mas não
cada vez mais em múltiplas plataformas para tenho receitas prontas.
veicular conteúdo; as redes sociais se torna-
ram especialmente importantes nos últimos Entre as muitas crises enfrentadas pelo jor-
anos. Como o Facebook, Twitter, Instagram nalismo atualmente, a crise de credibilidade
e outras mídias do tipo têm transformado o parece ser uma das mais sérias. Por um lado,
trabalho do fotojornalista e do editor de fo- há a constatação que empresas de mídia
tografia? Como disputar a atenção do públi- têm interesses a defender que interferem no
co em um espaço tão saturado de imagens conteúdo que elas produzem e disseminam.
e vozes? Por outro, muito vem se falando das fake
Se a gente for pensar no uso das tecnologias, news, produzidas por agentes sem nenhum
nossa demanda de trabalho sempre aumenta. É compromisso ético e veiculadas fora dos
preciso alimentar as diversas plataformas seguindo espaços tradicionais do jornalismo. Você vê
o ritmo e o perfil de cada uma delas. Passamos por saídas para essa crise? Como ela afeta o fo-
algumas dificuldades para entender o que deveria tojornalismo especificamente?
pesar mais na escolha das imagens. Temos uma Talvez seja lugar comum afirmar que o jornalismo
matéria quente ou um flagrante: a gente segura nunca foi tão necessário em tempos de fake news
para o impresso ou publica logo nas redes? Mui- e pós-verdade. Vão surgindo outras necessida-
tas vezes a redação queria jogar a informação no des para as quais não estávamos preparados.
Instagram, que é uma plataforma de imagens, e no Há a necessidade de se consolidar como fonte de
departamento de fotografia a gente entendia que a checagem de notícias até as leis acompanharem e
notícia tinha mais perfil pra Facebook. os tribunais começarem a punir seriamente os (ir)
Esse timing fomos descobrindo aos poucos, e responsáveis pela disseminação de notícias falsas.
percebendo que determinado tipo de imagem ga- Também se fortalecer com matérias especiais bem
nhava mais visualizações que outros. Nem sempre construídas a partir de checagem, análise e interpre-
o que considerávamos a melhor fotografia ganhava tação de dados, utilizando-se dos mesmos meca-
a simpatia nas redes. Vamos descobrindo o que nismos de uso de algoritmos. É incrível o que pode
funciona, mas com o cuidado de estar sempre ser feito se utilizarmos estas ferramentas com cri-
alimentando com novas imagens de qualidade e térios éticos. Mas na medida em que encontramos
relevantes do ponto de vista jornalístico. Isso foi soluções, novos problemas a enfrentar vão surgindo.
feito por nós de forma intuitiva, através de acer- A última eleição presidencial brasileira foi marcada
tos e erros. Às vezes a fotografia vale pela notícia, pela consolidação da indústria da mentira e da dis-
outras pela imagem em si. No começo da manhã seminação do ódio, com aporte financeiro pesado
a gente buscava abrir com algo mais leve, como para bancar a gestão de perfis falsos, os “internau-
quem deseja “bom dia” e depois “te prepara que tas” robôs, o que impactou e talvez tenha definido
vem bomba”! Claro que se tivéssemos partido de o resultado das eleições. Uma estética amadora,
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caseira dá a sensação de publicações espontâ- independente para que tenhamos um porto, “algo
neas, sem planejamento, mas sabemos que em ou alguém” em quem confiar neste mar revolto de
sua maioria estas postagens são milimetricamente mentiras, jogo de poder, disputas de narrativas e
estudadas e definidas por algoritmos. muita manipulação.
As mídias tradicionais estão em crise, e faz parte Em relação ao fotojornalismo, o mercado vem mu-
do jogo político derrubar sua credibilidade e, con- dando muito rápido. Há anos o flagrante não per-
sequentemente, seu poder de alcance. Empresas tence ao fotógrafo profissional, mas a quem estiver
sempre terão interesses a defender. É importante com celular a postos diante dos acontecimentos.
que a visão da empresa seja clara. É honesto se Repórteres de texto acumulam funções. Fotógrafos
posicionar e esclarecer a linha editorial. Mas elas também. Algumas empresas priorizam fotógrafos
têm responsabilidade e pagarão o preço das suas com formação em jornalismo. No final, todos pas-
escolhas. A crise de credibilidade é um preço muito sam um flash para a rádio, fazem um live para as
alto. Também é bom lembrar que boa parte dos jor- redes sociais, fotografam, filmam, editam, escre-
nalistas que fazem estas empresas tentam escapar vem e postam. As equipes diminuem, a qualidade
cai, a crise atinge a todos. A facilidade de manipula-
Empresas sempre terão ção de imagens não escapa à crise de credibilidade.

interesses a defender, Mas isso vem desde a invenção da fotografia.

mas é bom lembrar que


Para a maioria das pessoas, a fotografia de jornal
parece ter prazo de validade. O fotógrafo acaba
boa parte dos jornalistas virando um especialista. E se virar especialista em

que fazem estas algum campo da fotografia não bastar, vira e se vira
com o auxílio de outras paixões, ou o que for ne-
empresas tentam escapar cessário à sobrevivência: assessoria, produção de

das formas de controle e vídeos, cinema, fotografia fine art, culinária, jardina-
gem etc. Ou então muda de profissão e a fotografia
têm compromisso com a deixa de ser ganha-pão.

notícia. Estamos saturados de tantas imagens, sim. O


bom fotojornalismo acaba virando coisa rara. Mas
das formas de controle e têm compromisso com é lindo de ver! E a gente sabe quando está diante
a notícia. Ainda que sejamos humanos e necessi- de uma imagem icônica. Carregamos várias de-
temos pagar contas, em algum momento outros las no nosso imaginário. Se o fotojornalismo vai
valores pesarão mais. É preciso ter discernimento. sobreviver a tudo isso? Penso que não. O certo
Felizmente, as mídias independentes têm crescido, é que precisamos aprender a ver imagens com
mas ainda estamos no meio do furacão para enten- desconfiança e refletir sempre sobre as estratégias
der o que virá. Algumas começam a se consolidar. de manipulação que se escondem por trás delas. É
Outras vêm conquistando espaço e credibilidade preciso estimular certa pedagogia do olhar. Preci-
através de outras formas de monetização, assina- samos aprender a ver de forma crítica e escapar
tura a preços baixos, financiamento coletivo. Mas desta hipnose coletiva.
ainda estamos muito divididos. Precisamos de > Pedro Neves é jornalista e doutorando em Comunica-
união. Precisamos identificar e apoiar o jornalismo ção e Cultura na UFRJ
OUTRA FOTO
-GRAFIA
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Com a ajuda da artista e curadora


Ana Lira, selecionamos uma amostra
do trabalho de quatro artistas jovens
pernambucanos. Em cada obra, uma
perspectiva distinta sobre a vivência
negra: espiritualidade, ancestralidade,
sexo, gênero, performatividade, racismo,
pertencimento. O fazer artístico se
entrelaça com a vida cotidiana, com as
suas demandas mais urgentes, seus
afetos, suas linhas de fuga, seus pontos
de apoio. As abordagens estéticas são
tão variadas quanto os sentimentos
que as imagens evocam; em comum,
uma potência política que pode assumir
muitas formas, da insurgência vital à
afirmação da comunidade.
matute 38 revista de crítica e fotografia

Arlak
Karla Fagundes (Recife, 1993)
atuando nos campos da fotografia, do cinema, da curadoria, da produção cultural e
da educação, Arlak leva sempre consigo uma perspectiva afro-indígena, a herança
que ela carrega nas veias e na formação. Sobrinha da Yalorixá Sandra Juremeira do
terreiro Ilê Axé Yemonjá Ossi, na Zona Norte do Recife, a artista conhece de perto
as religiões de matriz africana, cujos encontros, festas e cerimônias ela captura
obliquamente, em imagens de atmosfera densa e misteriosa.

instagram.com/arlak_fagundes
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matute 41 revista de crítica e fotografia

Rennan Peixe
Rennan Peixe (Recife, 1989)
Fotógrafo, cinegrafista, artista e professor, há dez anos Rennan vem registrando
a religiosidade e as manifestações culturais da diáspora africana. Seja numa
cerimônia de Santeria em Cuba ou no Kipupa Malunguinho do Quilombo do
Catucá (PE), suas imagens sempre demonstram cumplicidade com as pessoas e
intimidade com os espaços onde elas celebram sua espiritualidade.

instagram.com/rennanpeixe
matute 42 revista de crítica e fotografia

Abiniel João
Abiniel João do Nascimento (Carpina, 1996)
Marcado, ferido, ensopado de sangue, exposto aos olhos dos passantes, o corpo de
Abiniel é o seu instrumento de trabalho e o seu principal suporte artístico. É a partir da
própria carne que ele constrói situações performáticas que evocam a opressão histó-
rica dos negros no Brasil, da escravidão ao apagamento cultural. A fotografia aparece
duplamente em sua obra: como registro de ações efêmeras e como mídia em si mes-
ma valiosa pelos jogos de visibilidade e invisibilidade que permite.

abinieljnascimento.com
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matute 45 revista de crítica e fotografia

Kalor
Kalor Pacheco (Camaragibe, 1990)
transitando entre performance, videoarte, net art e fotografia, a artista põe seu corpo
em jogo para refletir sobre a experiência de ser uma jovem mulher negra hoje. Sua série
Tecnologia a serviço da orgia inventa dispositivos complexos para explorar manifestações de
sexualidade mediadas pelas redes sociais e por serviços de streaming ao vivo. Encarnando
e subvertendo estereótipos relacionados à mulher negra na cultura brasileira, ela investiga
os lugares em que a tecnologia de ponta encontra atualizações dos velhos mitos racistas e
patriarcais de sempre.

kalor.hotglue.me
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idealização e coordenação
Cecilia Urioste e Mila Souza

matute
edição
Pedro Neves

design gráfico
A Firma

roteiro audiodescrição
Lliana Tavares

consultoria audiodescrição
Michelle Alheiros

assessoria de imprensa
Sofia Lucchesi

incentivo apoio
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www.matuterevista.com

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