Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Novembro,
2018
Tese
apresentada
para
cumprimento
dos
requisitos
necessários
à
obtenção
do
grau
de
Doutor
em
Ciências
da
Comunicação,
Área
de
Especialização
em
Comunicação
e
Arte,
sob
a
orientação
científica
da
Professora
Doutora
Margarida
Medeiros
À
Dilma
Rousseff,
Marielle
Franco
(Presente!)
e
demais
mulheres
brasileiras.
ii
FINANCIAMENTO
iii
AGRADECIMENTOS
Agradeço
aos
sete
fotógrafos
que
participaram
dessa
Tese
com
suas
entrevistas
e
imagens
enviadas
por
e-‐mail.
Todos
os
fotógrafos
foram
muito
solícitos
e
simpáticos
e
me
ajudaram,
também,
a
perceber
muita
coisa
sobre
o
meu
povo.
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
André
Cepeda,
Duarte
Belo,
Martim
Ramos,
Jordi
Burch,
Valter
Vinagre,
Catarina
Botelho:
Obrigadíssima!
A
todos
que
lerão
essa
Tese:
Espero
que
este
trabalho
contribua
para
o
entendimento
de
que
o
nosso
modo
de
ver
e
representar,
seja
o
conterrâneo
ou
o
estrangeiro,
é
muito
mais
importante
do
que
descobrir
novos
territórios.
iv
RESUMO
ABSTRACT
This
thesis
sought
to
analyze
the
image
of
the
“Brazilian
body”
in
contemporary
Portuguese
photography
in
the
attempt
to
understand
which
aspects
of
Brazilian
identity,
built
since
the
colonial
period,
are
highlighted
or
surpassed
in
the
production
of
the
image
by
the
Portuguese
photographer.
The
objective
of
the
analysis
was:
to
select
a
Portuguese
photographic
production
of
which
the
purpose
was
to
produce
images
of
the
Brazilian
body
in
the
Brazilian
territory;
to
investigate
the
emergence
or
construction
of
stereotypes
related
to
Brazilians
over
time;
to
gather
theoretical
references
that
also
support
a
postcolonial
and
feminist
perspective;
finally,
to
evaluate
if
the
old
representations
of
the
body
in
the
colonial
period
have
similarities
with
the
contemporary
production
of
the
photographic
image,
through
a
deep
examination
of
images
and
interviews
with
the
selected
photographers
themselves.
The
research
presents
a
theoretical
and
empirical
investigation,
conceived
from
crossing
theory,
documents,
interviews
and
photographic
images.
The
first
chapter
posts
a
theoretical
and
methodological
perspective
with
the
discussion
about
culture,
representation,
subjectivity,
colonialism
in
the
production
of
difference
and
the
methodology
adopted.
The
second
chapter
offered
a
reflection
on
the
forms
of
representation
of
face
and
body
in
photography,
from
a
more
philosophical
approach
to
a
more
scientific
approach.
The
third
chapter
presents
some
figures
and
images
that
represent
the
colonial
ideology,
presenting
16th
century
letters
and
treatises,
landscape
photographs,
portraits
in
carte
de
visite
format,
20th
century
press
discourse,
and
the
image
of
Brazilian
women,
who
are
the
majority
with
regard
to
immigration,
as
well
as
protagonists
in
the
representation
of
Brazil
in
the
press
and
in
the
publicity
that
shows
them
as
bearers
of
a
latent
and
bewitching
sexuality.
The
fourth
chapter
promotes
a
reading
of
classic
and
contemporary
authors,
both
Portuguese
and
Brazilians,
to
understand
how
the
image
of
the
Brazilian
people
was
constituted
and
how
some
aspects
of
identity
were
certainly
attributed
to
"race".
The
fifth
and
last
chapter
analyzed
the
works
and
interviews
of
the
seven
contemporary
Portuguese
photographers:
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
André
Cepeda,
Valter
Vinagre,
Duarte
Belo,
Jordi
Burch,
Martim
Ramos
and
Catarina
Botelho.
Based
on
these
works,
this
thesis
approaches
aspects
of
culture,
identity,
representation
and
subjectivity
to
understand
how
photography
can
also
be
seen
as
a
tool
to
overcome
preconceived
images
based
on
a
subjectivity
that
is
assured
by
the
understanding
of
photography
as
the
result
of
an
encounter
between
an
ethical
subject
and
a
subject
that
evokes
ethics.
KEYWORDS:
contemporary
photography,
Brazilian
body,
subjectivity
vi
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1
Capítulo
III:
Figuras
e
imagens
do
colonialismo
-‐
O
“olhar
europeu”
no
Brasil
..........
88
III.1.
A
primeira
imagem
do
Brasil:
cartas
e
relatos
portugueses
..........................
92
III.2.
A
fotografia
na
documentação
da
paisagem
imperial
..................................
100
III.3.
Popularização
e
sentidos
do
retrato
carte
de
visite
......................................
108
III.4.
A
imprensa
do
século
XX
no
Brasil
e
a
nostalgia
colonial
..............................
117
III.5
A
imagem
da
mulher
e
a
persistência
do
estigma
colonial
............................
125
Capítulo
IV:
A
construção
da
imagem
do
povo
brasileiro
........................................
138
IV.1.
Povo
indígena:
bárbaros
e
canibais
..............................................................
140
IV.2.
Escravo
africano:
melancolia
e
sexualidade
.................................................
151
IV.3.
Povo
mestiço:
a
ninguendade
e
surgimento
de
um
novo
povo
....................
157
IV.4.
Brasileiro
contemporâneo:
cordialidade,
malandragem
e
corrupção
..........
163
Capítulo
V:
O
corpo
brasileiro
na
fotografia
contemporânea
portuguesa
...............
176
V.1.
Miguel
Valle
de
Figueiredo:
A
imagem
turística
do
Brasil
.............................
178
vii
V.2.
André
Cepeda:
O
fotógrafo
flanêur
em
São
Paulo
.........................................
187
V.3.
Duarte
Belo:
Os
caminhos
de
floresta
na
Amazónica
....................................
199
V.4.
Martim
Ramos:
Ocupação
em
ruínas
de
luxo
................................................
212
V.5.
Valter
Vinagre:
Modo
autobiográfico
de
ver
o
mundo
..................................
221
V.6.
Jordi
Burch:
Amor
cachorro
num
quarto
da
madrugada
...............................
230
V.7.
Catarina
Botelho:
Espaços
de
exclusão
social
................................................
240
V.8.
Considerações
adicionais
ou
“Por
uma
subjetividade
ética”
.........................
250
ANEXO 5: Entrevista com Miguel Valle de Figueiredo ............................................. 333
viii
INTRODUÇÃO
Esta
Tese
tem
como
objetivo
geral
analisar
a
representação
do
corpo
brasileiro
na
produção
fotográfica
contemporânea
portuguesa
a
partir
de
um
olhar
para
a
subjetividade
que
é
evocada
no
encontro
do
fotógrafo(a)
com
o
brasileiro(a),
tendo
em
vista
um
passado
colonial.
Dessa
forma,
os
objetivos
específicos,
são:
1)
selecionar
a
produção
fotográfica
contemporânea
portuguesa
que
produziu
imagens
do
corpo
brasileiro
no
Brasil;
2)
investigar
o
surgimento
e
a
construção
de
estereótipos
relacionados
ao
brasileiro
e
a
brasileira
através
de
um
olhar
para
uma
genealogia
do
povo
brasileiro
ao
longo
da
história;
3)
Levantar
referências
teóricas
que
envolvam
questões
pós-‐coloniais
e
feministas
para
a
compreensão
do
corpo
contemporâneo
na
fotografia;
4)
avaliar
se
as
antigas
representações
do
brasileiro
ainda
estão
presentes
na
produção
fotográfica
contemporânea
portuguesa;
5)
analisar
como
a
subjetividade
atua
na
produção
de
imagens
do
corpo
brasileiro
contemporâneo,
a
partir
do
cruzamento
entre
entrevistas
e
a
produção
fotográfica
portuguesa
contemporânea.
1
Sabe-‐se
que
o
“corpo
brasileiro”
como
se
conhece
hoje
foi
moldado
por
referências
externas
ao
longo
do
tempo,
mas
sabe-‐se
também
que
essa
construção
obteve
ajuda
interna
em
sua
propagação
e
assimilação.
Fala-‐se
a
título
de
exemplo
do
governo
ditatorial
da
época
Vargas
e
de
Gilberto
Freyre
com
o
lusotropicalismo;
do
mercado
da
diferença
ou
do
exotismo
comandado
pelo
turismo;
e
das
novelas
e
músicas
brasileiras
ou
produtos
culturais.
Nesse
contexto,
percebe-‐se
que
o
estereótipo,
além
de
ser
aceito,
passa
a
ser
reproduzido
internamente,
como
também
de
forma
performativa
pelo
próprio
brasileiro.
Por
isso,
no
segundo
capítulo,
coube-‐
nos
refletir
sobre
as
principais
formas
de
representação
do
corpo
na
fotografia
desde
o
século
XIX,
como
também
refletir
sobre
algumas
interpretações
filosóficas
do
corpo
e
do
rosto
com
a
discussão
sobre
o
surgimento
do
retrato
por
Didi-‐Huberman
e
de
corpo
utópico
por
Foucault.
Tratou-‐se,
portanto,
de
pensar
e
discutir
sobre
o
corpo
controlado,
objetificado
e
monstruoso
enquanto
ferramenta
dos
poderes
hegemônicos,
bem
como
o
corpo
como
fruto
de
um
olhar
ideológico,
como
instrumento
de
uma
performance
e
como
angústia
diante
do
desaparecimento
no
tempo.
Essas
formas
de
representação
foram
responsáveis
por
excluir,
fragmentar
ou
até
de
nos
fazer
compreender
como
a
fotografia
pode,
paradoxalmente,
tanto
apagar
a
existência
das
pessoas
numa
sociedade,
como
fazer
durar,
para
sempre,
aquela
imagem.
2
imprensa
brasileira,
a
partir
do
século
XX,
composta
por
portugueses
que
ainda
estavam
no
Brasil
e
também
por
brasileiros
que
queriam
o
retorno
do
imperialismo
português
e,
por
isso,
expressavam
em
seus
textos
uma
“nostalgia
colonial”.
Por
fim,
no
último
tópico,
são
analisados
os
discursos
e
as
imagens
que
apresentam
o
corpo
da
mulher
brasileira
como
um
corpo
disponível
desde
as
primeiras
imagens
produzidas
do
Brasil.
Esta
ideia
ainda
é
propagada
nos
media
portugueses
e
na
proposta
de
convencimento
do
turismo,
contribuindo
para
a
manutenção
da
imagem
da
mulher
brasileira
como
um
corpo
sempre
disponível
na
contemporaneidade.
O
quarto
capítulo
aproxima-‐se
de
uma
genealogia
do
povo
brasileiro
a
partir
de
uma
análise
dos
discursos
que
construíram
a
diferença
em
relação
ao
colonizador,
ou
seja,
através
do
discurso
colonial
que
conectou
estereótipos
aos
povos
africanos
e
indígenas.
Observou-‐se
que
as
representações
criadas
do
brasileiro
estavam,
sobretudo,
conectadas
à
raça,
e
que
tais
representações
serviam
para
justificar
e
exploração
de
seus
corpos.
Desse
modo,
foram
apresentados
os
povos
indígenas
no
Brasil,
vistos
como
preguiçosos;
os
povos
africanos,
vistos
como
melancólicos
e
sexuais;
a
formação
do
“novo”
povo
brasileiro
oriundo
da
mestiçagem
e,
por
isso,
marcado
pela
ninguendade
e
pelo
abandono
dos
pais;
para,
por
fim,
refletir
sobre
a
representação
do
corpo
brasileiro
contemporâneo,
que
ora
pode
ser
visto
como
cordial,
ora
pode
ser
percebido
como
um
malandro
que
se
aproveita
das
situações
através
do
“jeitinho
brasileiro”.
Neste
capítulo
foram
utilizados
autores
brasileiros
e
portugueses
para
tentar
compreender
os
diversos
olhares
dispensados
àquele
povo,
tentando
refletir
também
sobre
as
contradições
internas
que
os
autores
carregam
a
partir
de
um
confronto
entre
as
várias
formas
de
interpretar
a
história.
3
Burch,
Martim
Ramos
e
Catarina
Botelho.
Esses
fotógrafos
produziram
imagens
nos
mais
vastos
contextos,
do
turístico
ao
artístico,
do
retrato
à
paisagem.
Ao
fim,
empreendeu-‐se
um
olhar
para
a
identificação
de
aspectos
da
cultura,
identidade
e
estereótipos
do
Brasil
por
esses
fotógrafos,
em
suas
imagens
e
em
seus
discursos,
bem
como
identificou-‐se
quais
os
aspectos
da
subjetividade
emergem
nas
imagens
quando
no
momento
do
encontro
com
outro,
sejam
eles
produzidos
por
uma
subjetividade
ética
ou
uma
subjetividade
objetivadora.
Esta
tese
resulta,
portanto,
de
um
trabalho
de
investigação
que
busca
analisar
a
construção
da
imagem
do
brasileiro
de
acordo
com
os
discursos
e
imagens
de
portugueses
que
representaram
o
“corpo
brasileiro”
na
fotografia
contemporânea.
No
entanto,
além
de
empreender
uma
investigação
sobre
permanência
ou
não
de
antigas
concepções
coloniais
atreladas
ao
corpo
do
homem
brasileiro
e
da
mulher
brasileira,
buscou-‐se
olhar
para
a
subjetividade
do
fotógrafo
de
forma
sensível.
A
tese
defendida
neste
trabalho
é
a
de
que
é
possível
produzir,
através
da
fotografia,
aparato
que
foi
muitas
vezes
conectado
a
práticas
excludentes
e
ideológicas,
uma
“fotografia
sensível”,
ou
seja,
uma
fotografia
que
é
produto
de
uma
subjetividade
ética
do
fotógrafo
no
momento
de
encontro
com
o
fotografado.
A
relação
corpo-‐a-‐corpo
no
momento
da
produção
da
fotografia,
deve
ser
vista,
nesse
sentido,
tal
como
Viveiros
de
Castro
descreve
a
relação
do
antropólogo
com
seu
objeto
de
estudo:
uma
relação
sujeito-‐sujeito
ao
invés
de
uma
relação
entre
sujeito
que
possui
conhecimento
versus
objeto
pesquisado.
Além
disso,
vale
destacar
que
as
medidas
adotadas
a
partir
do
século
XIX
e
XX
com
a
criação
do
Estado-‐Nação,
do
luso-‐tropicalismo
e,
a
seguir,
com
a
ideia
de
“multiculturalismo”,
permitiram
uma
hipervalorização
do
passado
colonial
ao
reforçar
o
sucesso
lusitano
e
o
heroísmo
“conquistador”
português
em
terras
distantes.
Por
esta
razão,
o
colonialismo
se
mostra
presente
tanto
ao
longo
da
tese
como
ao
longo
do
período
histórico.
Mais
recentemente,
a
criação
do
Museu
das
Descobertas
mostra
que
o
colonialismo
não
ficou
no
passado,
ele
está
aqui,
bem
à
nossa
frente,
quando
o
governo
português
busca
naturalizar
o
caráter
violento
e
explorador
da
política
colonial,
na
medida
em
que
mostra
aquele
passado
como
forma
de
valorização
da
narrativa
nacional
ao
invés
de
dar
voz
ao
povo
escravizado.
Disso,
conclui-‐se
que
o
4
colonialismo
é
contemporâneo
e
precisa
ser
discutido,
pois
a
sua
permanência
termina
por
impregnar
as
imagens
contemporâneas
e
o
senso
comum
em
Portugal.
Fundamentações
teóricas
e
metodológicas
Com
o
intuito
de
mergulhar
nesse
mar
de
águas
turvas
que
é
a
construção
da
imagem
do
brasileiro
e
da
brasileira
na
contemporaneidade,
tornou-‐se
necessário
pensar
primeiro
nos
conceitos
que
nos
servirão
de
ferramentas
para
a
compreensão
da
complexidade
de
elementos
agregados
àquela
imagem
ao
longo
do
tempo.
Esse
exame,
da
imagem
do
brasileiro
pelo
português,
atravessa
várias
disciplinas,
pois
se
trata
de
uma
relação
social,
um
contato
entre
sujeitos
de
locais
distintos
que
se
iniciou
no
colonialismo,
sistema
político-‐económico
responsável
pelo
encontro
entre
Brasil
e
Portugal.
No
primeiro
tópico,
fala-‐se
sobre
o
conceito
de
cultura,
entendida
por
Geertz
(1989)
como
uma
rede
que
conecta
sistemas
de
signos,
e
sua
análise
deve
ser
compreendida
não
como
poder,
mas
como
contexto
das
relações
sociais,
momento
em
que
são
recebidas
e
propagadas
as
nossas
“culturas”.
Este
pensamento
se
contrapõe
ao
sistema
rígido
moderno,
que
defendia
a
cultura
como
privilégio
e
sua
transmissão
unicamente
possível
através
da
genética.
Nesse
sentido,
todo
ser
humano
é
passível
de
ser
“programado”
pelos
códigos
e
convenções
da
sociedade.
No
período
colonial,
várias
culturas
foram
violentamente
reunidas
num
mesmo
espaço
geográfico
e,
por
isso,
pensar
na
cultura
de
países
colonizados
é
pensar
na
existência
de
um
hibridismo
cultural.
Isto
porque
o
povo
dominado
absorveu
valores
externos
aos
seus
para,
assim,
sincretizar
culturas
opostas.
No
contexto
específico
do
Brasil,
os
índios
e
os
africanos
tiveram
suas
culturas
oprimidas
e,
mesmo
assim,
encontraram
formas
de
6
manter
e
dar
continuidade
a
algumas
de
suas
crenças
de
forma
sincrética,
misturadas
com
a
cultura
portuguesa.
O
híbrido,
assim,
avisa
Canclini
(1989),
surge
como
forma
de
adaptação
ao
meio
em
que
se
vive
e
todas
as
culturas
devem
ser
vistas
todas
como
culturas
de
fronteira,
pois
deixam
escapar
suas
tradições
para
além
dos
territórios
originários,
como
também
absorvem
culturas
externas.
Como
toda
relação
social,
a
fotografia
precisa
do
Outro
para
acontecer
e,
por
isso,
envolve
a
subjetividade
do
fotógrafo
no
momento
em
que
há
um
confronto
entre
culturas
do
fotógrafo
e
do
fotografado.
No
quinto
tópico
tratou-‐se
de
pensar,
portanto,
na
possibilidade
da
relação
ética
com
o
Outro,
quando
a
subjetividade
do
fotógrafo
atua
de
forma
sensível
na
formação
de
imagens.
Mais
do
que
um
cuidado
de
si,
a
produção
de
imagens
do
Outro
solicita
uma
ética
que
se
impõe
no
momento
que
há
o
encontro
com
o
Outro.
Trata-‐se
de
pensar
a
fotografia
como
processo
e
produto
de
uma
relação
ética
que
desconsidera
os
estereótipos
da
representação
para
acolher
o
Outro
do
jeito
que
ele
é.
Trata-‐se
de
procurar
um
olhar
que
“ensina
um
pensar
generoso
que,
entrando
em
si,
sai
de
si
pelo
pensamento
de
outrem
que
o
apanha
e
o
prossegue”
(Chauí,
1988,
p.60).
O
encontro
com
Outro,
o
estrangeiro,
o
instável,
abre
caminho
para
a
vulnerabilidade
mas,
na
fotografia,
essa
relação,
parece
ser
necessária
para
que
se
produza
uma
“fotografia
sensível”,
sem
a
carga
negativa
do
colonialismo.
9
I.1
Cultura
e
hibridização
da
cultura
como
forma
de
sobrevivência
O
termo
cultura
foi
criado
em
1871
por
Edward
Tylor
para
sintetizar
os
termos
“Kultur”
e
“Civilization”.
Kultur,
em
alemão,
diz
respeito
aos
aspectos
culturais
de
uma
comunidade;
Civilization,
em
francês,
fala
sobre
as
realizações
materiais
de
um
povo.
Assim,
Tylor,
com
a
definição
de
Culture,
procurou
abranger
todas
as
realizações
humanas
para
contrapor-‐se
à
antiga
ideia
de
cultura
como
uma
disposição
inerente
ao
ser
humano
que
seria
perpetuada
biologicamente,
ou
seja,
contra
a
ideia
de
que
a
cultura
seja
uma
questão
de
privilégios
(Laraia,
1986),
pensamento
que
foi
intimamente
conectado
ao
colonialismo.
Por
isso,
para
fugir
da
definição
de
cultura
ligada
à
tradição,
Tylor
a
definiu
como
“um
todo
complexo
que
inclui
conhecimentos,
crenças,
arte,
moral,
leis,
costumes
ou
qualquer
outra
capacidade
ou
hábitos
adquiridos
pelo
homem
como
membro
de
uma
sociedade”
(Tylor
apud
Laraia,
1986,
p.25).
Ou
seja,
a
cultura
seria
um
conjunto
de
práticas
humanas.
A
definição
de
cultura,
no
entanto,
tem
sido
moldada
ao
longo
do
tempo.
Max
Weber,
um
dos
fundadores
da
sociologia
moderna,
definiu
a
ação
social
como
sujeito
da
investigação
social,
pois
é
uma
ação
relevante
para
o
significado.
De
acordo
com
a
sua
“sociologia
do
significado”,
nossas
ações
são
inteligíveis
quando
conseguimos
interpretá-‐las
significativamente,
conforme
um
conjunto
de
normas
e
significados
compartilhados
que
dão
às
nossas
ações
relevância
para
o
significado.
Desse
modo,
o
sociólogo
concebeu
a
ideia
de
que
o
homem
é
um
animal
que
vive
preso
a
uma
teia
de
significados
criada
por
ele
mesmo.
10
publicamente,
seja
um
gesto
ou
uma
manifestação,
desde
que
seja
transmitido
e
percebido
no
interior
da
sociedade.
A
partir
dessa
concepção,
a
cultura
deve
ser
conectada
mais
a
uma
forma
de
nomear
e
dar
significado
ao
mundo
do
que
a
algo
que
pode
ser
definido
e
localizável.
Para
análise
dessa
teia
de
significados,
o
que
menos
interessa
é
a
interpretação
e
explicação
do
fatos
de
forma
isolada,
pois
sua
importância
se
apresenta
em
conjunto
com
a
sua
utilização
quotidiana
e
transmissão
de
significados
ao
grupo,
ou
seja,
o
importante
é
pensar
na
forma
como
esses
fatos
são
perpetuados
e
repetidos
por
quem
vê.
Assim,
na
ação
social
se
produz
sentidos
que
são
entendidos
tanto
para
quem
pratica
como
para
quem
observa
e
isto
acontece
devido
aos
diversos
sistemas
que
nos
permitem
compreender
significativamente
as
ações
alheias.
Em
conjunto,
esses
sistemas
constituem
nossas
“culturas”
e
garantem
que
toda
ação
social
seja
cultural.
Por
isso,
a
importância
de
se
olhar
para
a
transmissão
de
significados
em
conjunto
e
no
interior
de
uma
sociedade.
12
Para
Canclini
(1989),
“todas
as
culturas
são
de
fronteira”
(p.325).
A
partir
do
momento
em
que
todas
as
artes
já
não
possuem
fronteiras
geográficas.
Os
artesanatos
migram
do
campo
para
a
cidade,
as
narrativas
audiovisuais
de
um
povo
são
vistas
por
outros
povos.
Desse
modo,
todas
as
culturas
perdem
a
“relação
exclusiva
com
seu
território,
mas
ganham
em
comunicação
e
conhecimento”
(Canclini,
1989,
p.
326).
Sabe-‐se
que
em
todas
as
fronteiras
há
possíveis
brechas
que
deixam
escapar
conteúdos
e
por
isso
tratar
de
uma
cultura
de
fronteira
é
saber
que
toda
cultura
recebe
algum
grau
de
interferência
de
outras
culturas.
Segundo
Geertz
(2002),
a
globalização
estimula
as
culturas,
não
as
extermina1.
I.2.
A
identidade
e
as
práticas
de
mimese
Taussig
(1993)
também
recorreu
ao
conceito
de
mimese
para
compreender
as
práticas
de
terror
associadas
ao
colonialismo,
principalmente
no
que
se
refere
à
extração
de
borracha
no
Sudoeste
da
Colômbia
e
no
Congo
Belga.
Para
ele,
o
“terror
colonial”
é
uma
operação
de
mimese
por
parte
do
colonizador,
que
procura
reproduzir
uma
suposta
imagem
do
colonizado
bárbaro
e
selvagem
com
a
adoção
de
atos
violentos.
Ao
apresentar
os
índios
como
“comedores
de
gente”,
os
colonizadores
passaram
a
utilizar-‐se
de
violência
extrema
como
forma
de
mimetização
da
representação
do
colonizado
e,
assim,
justificavam
seus
atos.
A
violência
perpetrada
pelo
colonizador
se
justificaria
pela
violência
que
era
reproduzida
na
imagem,
apesar
14
de
muitas
vezes
ser,
a
imagem,
muito
pouco
credível
ou
produzida
pelos
próprios
colonizadores.
Dessa
forma,
a
mimese
tornou-‐se
responsável
por
fornecer
um
grave
enfraquecimento
do
mundo
ao
simplificar
a
realidade
em
imagens
distorcidas
e
conduzir
ações
violentas.
A
mimese
tornou-‐se
também
responsável
por
suportar
o
poder
das
imagens.
15
democracia
utiliza
a
violência
como
antídoto
contra
a
ameaça,
mas
na
verdade
essa
violência
se
mostra
contrária
aos
propósitos
humanistas
da
própria
sociedade.
O
conceito
de
identidade
nos
mostra
que
ela
é
relacional
e
por
isso
está
sempre
“em
construção”.
Enquanto
a
cultura
se
transforma,
está
sempre
em
movimento
ao
receber
e
produzir
significados
no
interior
da
sociedade;
a
identidade
está
sempre
se
transformando
no
interior
de
relações
múltiplas
com
alteridades.
O
ato
de
mimetizar,
tanto
na
cultura
como
na
constituição
da
identidade,
para
os
dominados,
surgiu
como
forma
de
sobrevivência
e
adaptação
diante
da
repressão
imposta
pelos
poderes
dominantes.
No
caso
do
colonizador,
o
mimetismo
serviu
para
justificar
atos
violentos
perpetrados
contra
os
colonizados,
reproduzindo
imagens
distorcidas
dos
povos
dominados.
O
mimetismo,
assim,
serviu
para
controle
de
si
e
do
Outro,
seja
dominado
ou
dominante.
Deleuze
e
Guattari
(1997)
propuseram
a
percepção
de
que
nós
somos
todos
criaturas
instáveis
e
híbridas
que
possuem
respostas
específicas
no
momento
de
encontro
com
alteridades.
Para
os
autores,
“a
axiomática
social
das
sociedades
modernas
está
contida
entre
dois
polos,
e
não
para
de
oscilar
de
um
pólo
a
outro”
(Deleuze
e
Guattari,
1997,
p.345).
O
capitalismo
está
constantemente
produzindo
novos
territórios
e
neste
processo
a
cultura
está
sempre
em
transformação,
tornando
quase
impossível
a
tarefa
de
distinguir
a
cultura
a
qual
pertence
cada
elemento
da
ação
social.
Desse
modo,
tanto
a
identidade
como
a
cultura
estão
em
um
eterno
devir
e,
assim,
perceber-‐se
como
humano
é
compreender
que
todos
somos
criaturas
híbridas
e
instáveis,
que
todos
estamos
mudando
o
outro
e
a
si
próprio
e,
que,
esse
processo
de
mudança
acontece
no
interior
de
relações
constantes
com
as
alteridades.
I.
3.
A
representação
como
forma
de
interpretação
da
realidade
O
significado
do
termo
“representação”
possui
caráter
ambíguo,
e
conceituar
pode
ser
complexo,
pois
é
campo
de
interesse
de
várias
disciplinas.
Roger
Chartier
(1988),
definiu
como
apresentação
de
algo
para
substituição
daquilo
que
está
ausente.
Etimologicamente,
o
termo
tem
origem
latina,
vem
de
representare,
que
significa
fazer
presente
ou
manifestar-‐se
outra
vez.
No
latim
clássico,
o
seu
uso
é
quase
sempre
16
limitado
a
objetos
inanimados,
o
que
pode
significar
que
“representação”
os
tornam
presentes,
como
também
pode
significar
a
substituição
de
um
objeto
por
outro,
ou
em
vez
de
outro,
ao
trazê-‐lo
para
o
presente
(Pitkin,
1967).
Assim,
se
o
conceito
de
representação
for
entendido
como
substituição
do
objeto,
quer
dizer
que
pode
tanto
evocar
a
ausência
como
sugerir
a
presença
ou
substituição
por
meio
da
representação.
Na
concepção
moderna,
representação
se
refere
ao
processo
democrático,
associado
à
delegação
de
poderes
a
um
grupo
reduzido,
por
meio
do
voto,
para
representar
o
interesse
do
grande
grupo
que
o
elegeu
(Freire
Filho,
2004).
Por
sua
abrangência,
o
termo
pode
se
relacionar
às
noções
de
imaginário,
ideologia,
mito
e
mitologia,
utopia
e
memória
(Falcon,
1985).
A
conceituação
do
tema
tem
alcançado
grande
interesse
por
parte
de
historiadores,
como
é
o
caso
de
Chartier
(1988),
que
procurou
refletir
mais
profundamente
sobre
suas
possíveis
significações,
e
Le
Goff
(1996
[1982]),
com
a
associação
da
representação
com
o
imaginário.
Para
Jacques
Le
Goff
(1996),
a
representação
surge
como
uma
tradução
mental
de
uma
realidade
exterior
que
tem
conexão
com
o
processo
de
abstração.
Sob
essa
perspectiva,
o
imaginário
também
faz
parte
do
campo
da
representação,
visto
que
se
mostra
como
expressão
do
pensamento
ao
manifestar-‐se
por
imagens
e
discursos
que
representam
a
sua
definição.
Apesar
da
representação
se
mostrar
de
natureza
distinta
do
que
é
considerado
real,
para
Le
Goff
(1996),
ela
é
responsável
por
conferir
significado
ao
que
se
convencionou
chamar
de
real
e,
assim,
é
também
parte
da
existência
da
realidade.
O
real,
nesse
sentido,
passa
a
ser
constituído
tanto
pela
existência
material
como
por
sua
própria
representação.
Já
para
Roger
Chartier
(1988),
na
representação
há
uma
oscilação
entre
substituição
e
evocação
mimética.
As
imagens
de
imperadores
ou
reis
no
momento
da
morte
eram
construídas
para
ser
o
equivalente,
junto
com
os
restos
mortais,
ao
corpo.
Para
o
autor,
a
representação
é
o
que
resulta
de
uma
prática.
Independente
do
discurso
ou
do
meio,
o
que
temos
é
a
representação
do
fato,
uma
referência
por
aproximação,
e
é
ela
que
nos
permite
conhecer
o
fato.
Dessa
forma,
a
representação
do
real,
seja
por
meio
do
discurso
ou
da
imagem,
transforma
o
real
e
a
sua
função
de
dar
sentido
ao
mundo.
A
representação,
como
sistema
de
interpretação,
controla
a
relação
social
e
orienta
o
nosso
comportamento.
Essas
representações
interferem
nos
processos
de
17
difusão
e
assimilação
do
conhecimento,
na
construção
de
identidades
pessoais
e
sociais,
no
comportamento
no
interior
de
grupos
e
em
relação
a
outros
grupos,
como
também
nas
ações
de
resistência
e
mudança
social
(Jodelet,
1989).
Assim,
surge
principalmente
com
a
função
de
criar
realidades,
agindo
também
como
forma
de
controlo
da
relação
social
e
do
comportamento.
Quando
a
realidade
é
construída
conforme
normas
pré-‐estipuladas
pelos
poderes
vigentes,
cada
grupo
social
colabora
na
produção
específica
de
representações
e,
ao
mesmo
tempo,
colabora
para
a
distinção
entre
os
grupos.
Muitas
representações
sociais
tornam-‐se
consensuais
quando
são
transmitidas
pelos
meios
de
comunicação
social.
Isto
porque
toda
representação
recebe
um
status
de
verdade
quando
é
compartilhada
em
larga
escala.
Quando
a
fotografia
desempenha
o
papel
de
notícia,
passa
de
um
complemento
da
informação
textual
para
representar
a
verdade
que
é
transmitida
no
texto.
Assim,
“toda
fotografia
produz
uma
‘impressão
de
realidade’
que
no
contexto
da
imprensa
se
traduz
por
uma
‘impressão
de
verdade”’
(Vilches,
1993,
p.
19).
Com
a
exibição
de
notícias
nos
meios
de
comunicação,
o
sujeito
tem
a
sensação
de
proximidade
com
o
fato
e,
por
isso,
se
conecta
muito
mais
facilmente
com
a
mensagem
veiculada
(Freire
Filho,
2004).
Os
meios
de
comunicação
passam
a
ser
responsáveis
pela
criação
e
validação
de
determinadas
realidades.
Esses
discursos
veiculados
nos
media
produzem
lugares
a
partir
dos
quais
o
indivíduo
confabula
alguma
opinião.
Por
isso,
o
contato
com
o
fluxo
frequente
de
referências
mediáticas
causa
interferência
na
avaliação
que
os
indivíduos
fazem
de
si
e
de
seus
interesses.
A
veiculação
de
representações
desfavoráveis
pode
prejudicar
as
minorias,
ou
seja,
aqueles
grupos
sociais
que
são
marginalizados
pelas
estruturas
de
poder
e
pelos
sistemas
de
significação
dominantes
numa
sociedade
ou
cultura
(Edgar
e
Sedgwick
2003
apud
Freire
Filho,
2004,
p.46).
Por
exemplo,
identidades
de
género
podem
ser
construídas
pelas
imagens
veiculadas
em
novelas
ou
em
peças
publicitárias.
Quando
a
representação
promove
uma
diferença
radical
entre
o
“nós”
e
“eles”,
entre
bárbaros
e
civilizados,
ela
pode
ser
identificada
com
o
que
se
conhece
como
estereótipo.
18
I.4.
Estereótipo
como
lugar
de
“exílio
simbólico”
Na
imprensa
e
na
tipografia,
“estereótipo”
era
um
molde
de
impressão
para
a
reprodução
de
múltiplas
cópias
de
um
único
modelo.
Foi
Walter
Lippman,
em
1922,
que
usou
esse
termo
pela
primeira
vez
de
forma
metafórica
no
campo
das
ciências
sociais.
Em
Public
Opinion
(2008
[1922])3,
livro
responsável
por
iniciar
os
estudos
mediáticos
nos
Estados
Unidos,
Lippman
especifica
duas
noções
diferentes
para
estereótipo.
A
primeira,
que
tem
base
psicológica,
fala
do
estereótipo
como
modo
de
processamento
de
informações
necessário
para
a
organização
da
vida
social
em
sociedades
que
possuem
uma
população
diversa.
Neste
sentido,
o
estereótipo
surge
mais
como
uma
tipificação
de
indivíduos
que
servem
para
estruturar
e
interpretar
experiências
e
eventos
complexos.
Esta
primeira
conceitualização,
para
Freire
Filho
(2004),
pode
levar
ӈ
temerária
conclusão
da
necessidade
do
estereótipo,
inocentando
seus
perpetradores,
e
deixando-‐nos
inermes
diante
do
racismo,
da
xenofobia
e
da
discriminação
sexual”
(2004,
p.46).
Assim,
esta
definição
promove
e
ratifica
qualquer
cisão
no
interior
da
sociedade,
ideia
contrária
a
um
olhar
mais
político
e
integrador
das
sociedades
que
tanto
se
busca
na
contemporaneidade.
A
segunda
noção
proposta
por
Lippman
(2008),
de
caráter
político,
revela
que
os
estereótipos
são
construções
simbólicas
que
não
possuem
reflexão
racional
e
que
são
também
resistentes
à
mudança
social.
A
representação
inadequada
de
estrangeiros,
comunidades
e
classes
sociais
desprivilegiadas
mostra-‐se
como
um
grande
problema
na
era
democrática,
pois
a
imprensa
ao
reproduzir
estereótipos
fornece
informações
que
servirão
de
base
para
a
formação
de
opinião
dos
indivíduos.
Para
Freire
Filho
(2004),
esta
segunda
tentativa
de
definição
também
propõe
um
sentido
de
organização
ao
mundo
social.
O
que
difere
da
primeira,
no
entanto,
parece
ser
o
entendimento
de
que
o
estereótipo
quer
impedir
qualquer
flexibilidade
de
pensamento
“na
apreensão,
avaliação
ou
comunicação
de
uma
realidade
ou
3
Foi
escolhida
a
seguinte
formatação
para
as
obras
dos
autores
consultados:
A
data
de
lançamento
da
obra/texto
do
autor
estará
entre
chaves
e
só
aparecerá
na
primeira
vez
que
o
autor
for
citado.
Nas
citações
seguintes
do
mesmo
autor
será
utilizado
apenas
o
ano
da
obra
consultada
nesta
tese,
entre
parênteses.
19
alteridade,
em
prol
da
manutenção
e
da
reprodução
das
relações
de
poder,
desigualdade
e
exploração;
da
justificação
e
da
racionalização
de
comportamentos
hostis”
(2004,
p.47).
20
que
os
cria,
e
por
outro,
envia
todos
aqueles
que
não
se
encaixam
na
sociedade
para
um
“exílio
simbólico”
(Freire
Filho,
2004).
A
criação
e
propagação
de
estereótipos,
segundo
Hall
(1996),
refere-‐se
ao
que
Gramsci
chama
de
luta
pela
hegemonia,
ou
seja,
tem
a
ver
com
a
relação
de
supremacia
entre
grupos
sociais,
na
qual
um
agrupamento
de
dirigentes
modela
a
sociedade
de
dirigidos,
conforme
seus
próprios
valores
e
entendimentos
de
mundo.
Tudo
isto
acontece
de
forma
que
se
considere
normal
por
toda
a
sociedade.
Os
meios
de
comunicação
são
a
fonte
primordial
de
difusão
e
disseminação
dessas
ideias,
pois
influenciam
em
sua
aceitação
nas
práticas
culturais.
No
entanto,
a
participação
dos
media
no
processo
de
difusão
de
ideias
pode
ser
bastante
contraditória.
Com
os
processos
de
estigmatização
(construindo
estereótipos)
e
a
criminalização
das
minorias
(de
raça,
género
e
classe
social),
podem
tanto
exercer
o
papel
de
fortalecimento
de
estereótipos
a
serviço
dos
poderes
hegemônicos,
como
podem
servir
como
espaço
de
expressão
de
minorias
na
luta
contra
injustiças.
22
desenvolveu
uma
explicação
para
a
conexão
entre
as
duas
substâncias.
O
que
ele
deixou
claro
foi
que
a
mente
seria
sinônimo
de
consciência,
seria
alma
e
“coisa”
que
define
o
eu
que
daria
expressão
ao
corpo.
Dole
(2001)
explica
que
o
sujeito
cartesiano
só
pode
ser
uma
figura
de
individuação
quando
se
considera
que
só
pode
se
expressar
por
meio
de
corpos
e
rostos.
O
corpo
seria
então,
para
Descartes,
a
forma
de
expressão
da
alma.
A
questão
da
subjetividade
no
pensamento
cartesiano
está
conectada
à
noção
de
cogito,
visto
como
fundamento
racional
e
por
isso
fonte
de
conhecimento.
O
“eu
penso”
funda
toda
a
certeza
do
conhecimento
e
institui
o
princípio
de
subjetividade
como
locus
de
toda
e
qualquer
certeza
filosófica.
Este
pensamento
iniciado
no
século
XVII
ganhou
reforço
no
século
seguinte
com
a
filosofia
de
Kant
(1724-‐1804)
que,
a
partir
das
contribuições
do
pensamento
cartesiano,
dedicou-‐se
à
tarefa
de
explicar
os
fundamentos
do
pensamento
e
da
ação
do
homem.
A
subjetividade
transcendental
proposta
por
Kant
salvaguardou
o
cogito
enquanto
fundador
da
possibilidade
do
entendimento
ao
propor
um
“eu
penso”
transcendental
(Castro,
2016).
Conforme
seu
pensamento,
a
subjetividade
se
desenvolve
na
discussão
entre
o
sujeito
sensível
e
o
sujeito
transcendental.
Enquanto
o
primeiro
é
passivamente
afetado
pelas
representações
do
mundo
que
são
externas
a
ele,
pois
ele
é
governado
por
leis
que
estão
fora
do
seu
domínio,
o
sujeito
transcendental
tem
a
capacidade
de
realizar
o
pleno
exercício
da
liberdade
a
partir
de
suas
escolhas.
O
sujeito
só
alcança
a
liberdade
quando
passa
da
passividade
para
a
autonomia
no
agir
moral
e,
assim,
o
“Eu
transcendental”
é
a
base
que
sustenta
a
objetivação
e
universalização
do
conhecimento
teórico.
“Em
outras
palavras,
todo
o
projeto
crítico
da
filosofia
transcendental
kantiana
encontra
amparo
no
seu
fundamento
originário,
o
eu
transcendental”
(Castro,
2016,
p.149).
A
ética
é
vista
como
esse
lugar
privilegiado
onde
acontece
a
emancipação
do
sujeito
a
partir
de
sua
autodeterminação.
A
subjetividade,
unidade
que
integra
o
sentido
e
a
representação,
foi
vista
como
elemento
constituidor
do
sujeito
que
possui
autonomia
para
criar
e
seguir
suas
próprias
leis.
Esta
noção
de
um
sujeito
universal
como
estável,
soberano,
interiorizado
e
individualizado
foi
sendo
desconstruída
ao
longo
do
tempo,
pois
apesar
da
crença
na
força
do
sujeito
racional,
a
partir
do
Iluminismo
no
século
XVIII,
principalmente
com
o
23
movimento
Romântico,
iniciou-‐se
“uma
crítica
à
ideia
de
sujeito
soberano,
que
supostamente
dominaria
a
si
mesmo
e
ao
mundo”
(Hermann,
2006,
p.9).
As
críticas
à
subjetividade
moderna
ganharam
mais
força
nos
séculos
XIX
e
XX,
com
os
pensamentos
de
Marx,
Nietzsche,
Freud
e
também
dos
estruturalistas
Deleuze
e
Foucault,
para
desconstruir
os
ideais
e
mitos
e,
então,
reconstruir
o
sujeito
e
a
subjetividade
produzidos
pela
modernidade,
principalmente
no
que
se
refere
ao
reinado
do
Eu
e
da
razão.
Birman
(2006)
assinala
que,
nesse
momento
de
desconstrução,
Marx
foi
responsável
por
apresentar
o
descentramento
do
Eu
em
relação
à
política
e
à
economia,
para
reconhecer
as
forças
produtivas
como
ordenadoras
da
sociedade;
Nietzsche
mostrou
que
as
relações
de
força
e
poder
são
centrais
e
reguladoras
do
humano;
Freud
mostrou
que
a
imagem
do
eu
é,
na
verdade,
um
produto
de
uma
construção
imaginária,
visto
que
o
inconsciente
seria
particular
e
determinante
da
subjetividade.
Esses
pensadores
procuravam
novas
formas
de
compreensão
e
justificação
para
os
fatos
históricos
e
problemas
filosóficos.
Em
suas
críticas,
foram
expostas
“as
mazelas,
os
limites
e
as
aporias
da
filosofia
da
subjetividade,
que
objetualiza
as
relações
impedindo
a
intersubjetividade
e
o
reconhecimento
do
Outro”
(Hermann,
2006,
p.10).
O
tema
da
desconstrução
do
sujeito
vai
além
da
filosofia.
Ele
está
presente
nos
estudos
culturais
de
raça
e
etnia,
como
também
em
discursos
feministas,
para
mostrar
que
não
existe
um
sujeito
a-‐histórico,
fora
da
cultura
e
das
relações
de
poder.
Além
disso,
Não
é
apenas
o
pressuposto
de
que
existe
um
sujeito
universal,
unitário
e
centrado
que
está
em
questão,
mas,
sobretudo,
como
porventura
o
sujeito
poderia
ser
situado,
corporificado,
fragmentado,
descentrado,
desconstruído
ou
destruído.
Por
isso,
no
lugar
dos
antigos
“sujeito”
e
“eu”,
proliferam
novas
imagens
de
subjetividade.
Fala-‐se
de
subjetividade
distribuída,
socialmente
construída,
dialógica,
descentrada,
múltipla,
nômade,
situada,
fala-‐se
de
subjetividade
inscrita
na
superfície
do
corpo,
produzida
pela
linguagem,
etc.
(Santaella,
2008,
p.17).
Na
psicanálise,
o
processo
de
constituição
subjetiva
está
estritamente
conectado
com
o
entendimento
de
que
o
sujeito
é
efeito
da
linguagem,
visto
como
“(...)
aquele
que
se
constitui
na
relação
com
o
Outro
através
da
linguagem.
É
em
referência
a
essa
ordem
simbólica
que
se
pode
falar
em
sujeito
e
subjetividade
a
partir
24
de
Freud
e,
em
especial,
após
a
produção
teórica
de
Lacan”
(Torezan
e
Aguiar,
2011,
p.
535).
A
subjetividade
produzida
pela
linguagem
foi
considerada
como
emergência,
vista
a
partir
de
uma
relação
entre
pronomes
que
permite
que
o
sujeito
fale
de
um
“eu”
em
seu
discurso
(Rose,
2001).
Pensar
no
sujeito
a
partir
dessa
concepção
revela
que
há
um
“lugar”
e
que
este
lugar
deve
ser
constantemente
retomado
para
que
possa
existir,
ou
seja,
“o
sujeito
tem
que
ser
reconstruído
em
cada
momento
discursivo
de
enunciação
(Coward
e
Ellis,
1977
apud
Rose,
2001,
p.149).
Esse
olhar
para
a
subjetividade
como
um
sistema
gramatical
mostra-‐se
deficiente,
segundo
Deleuze
e
Guattari
(1980),
pois
o
sujeito
não
mais
existe
fora
do
“eu”.
Deleuze
e
Guattari
(Idem)
acreditam
que
a
subjetivação
não
pode
ser
considerada
como
um
processo
puramente
gramatical,
pois
a
linguagem
surge
de
um
regime
de
signos
conectado
a
uma
organização
de
poder:
ela
está
agenciada
às
“práticas
discursivas”
do
mesmo
modo
que
falar,
contar,
fazer
contratos,
emitir
ordens
ou
discutir
uma
teoria
(Rose,
2001).
Essas
práticas
não
são
homogêneas
em
termos
de
significação
e
negociação
entre
indivíduos
e,
por
isso,
são
estruturadas
em
relações
que
concedem
poderes
a
alguns
ao
mesmo
tempo
que
delimita
os
poderes
de
outros.
Na
década
de
1980,
após
ter
declarado
a
morte
do
sujeito,
Michel
Foucault,
a
partir
dos
volumes
II
e
III
da
História
da
Sexualidade
(1984
e
1985),
passou
a
refletir
sobre
a
história
dos
processos
pelos
quais
nos
tornamos
sujeitos.
A
partir
de
então
o
autor
tratou
da
relação
do
sujeito
com
as
verdades
que
lhe
foram
culturalmente
impostas,
partindo
do
pressuposto
de
que
em
qualquer
cultura
há
asserções
sobre
o
sujeito
que,
independentemente
do
seu
valor
de
verdade,
circulam
e
são
aceitas
como
se
fossem
verdadeiras.
Ao
invés
de
considerar
as
condições
e
possibilidades
de
uma
verdade
para
um
dado
sujeito,
Foucault
teve
a
intenção
de
saber
“quais
são
os
efeitos
de
uma
subjetivação
a
partir
da
própria
existência
de
discursos
que
pretendem
dizer
uma
verdade
para
o
sujeito”
(Candiotto,
2010,
p.
125).
Sabendo
que
os
modos
pelos
quais
nos
tornamos
sujeitos
são
os
modos
de
subjetivação,
Foucault
mostra
que
esses
modos
aparecem
e
desenvolvem-‐se
historicamente
como
práticas
de
si
que
vigoram
dentro
das
“práticas
discursivas
e
práticas
de
poder
que
testemunham
pela
descontinuidade
de
suas
formas
históricas”
(Cardoso
Jr.,
2005,
p.
344).
As
práticas
de
si
correspondem
a
quatro
importantes
25
problematizações:
“natureza
do
ato
sexual,
fidelidade
monogâmica,
relações
homossexuais,
castidade”,
que
atravessam
as
oposições
“filosofia
pagã,
a
ética
cristã
e
a
ética
moral
das
sociedades
modernas”
(Foucault,
1984,
pp.
17-‐18).
Essas
problematizações
em
torno
do
sujeito
indicam,
segundo
Foucault,
que
a
austeridade
sexual
tem
raiz
na
tradição
antiga
e
enuncia
uma
moral
futura.
A
própria
categoria
cuidado
de
si
é
inerente
à
cultura
grega,
que
se
manifesta
na
ação
do
ser
que
se
preocupa
consigo
mesmo.
Justifica-‐se
assim
o
olhar
histórico
de
Foucault
quando
se
refere
à
Grécia
clássica
para
pensar
sobre
a
sexualidade.
Foucault
mostra
também
que,
se
por
um
lado
o
sujeito
constitui-‐se
a
partir
de
imposições
externas
a
ele,
compreendido
como
um
produto
das
relações
de
saber
e
de
poder;
por
outro
lado,
é
constituído
a
partir
de
processos
intersubjetivos
com
aberturas
de
espaço
para
se
manifestar
livremente,
o
que
possibilita
a
criação
de
si
como
um
sujeito
autônomo
e
possuidor
de
liberdade.
Os
saberes
e
poderes
de
todos
os
tempos
procuraram
domar
os
processos
de
subjetivação.
No
entanto,
“o
ponto
mais
intenso
das
vidas,
onde
se
concentra
sua
energia,
fica
exatamente
ali
onde
elas
se
chocam
com
o
poder,
se
debatem
com
ele,
tentam
utilizar
suas
forças
e
escapar
de
sua
armadilhas”
(Foucault,
1977
apud
Deleuze,
1986,
p.
101).
Este
é
justamente
o
espaço
de
manobra
que
permite
manter
a
liberdade
e
autonomia
do
sujeito,
processo
em
que
a
subjetividade
mantém
resistência
diante
da
tentativa
de
captação
de
sua
forma.
Assim,
(…)
o
problema
da
subjetividade
em
Foucault
pode
ser
equacionado
de
maneira
fiel
pelas
seguintes
fórmulas:
toda
subjetividade
é
uma
forma,
mas
essa
forma
é
simultaneamente
desfeita
por
processos
de
subjetivação;
enquanto
a
forma-‐sujeito
é
captada
pelos
saberes
e
poderes,
a
subjetivação
é
um
excesso
pelo
qual
a
subjetividade
mantém
uma
reserva
de
resistência
ou
de
fuga
à
captação
de
sua
forma.
(Cardoso
Jr,
2005,
p.
344)
A
subjetividade
no
pensamento
de
Foucault
refere-‐se
ao
processo
da
nossa
relação
com
as
coisas
e
com
o
mundo
em
constante
mudança
e,
por
isso,
envolve
uma
relação
com
o
tempo.
Isto
quer
dizer
que
a
subjetividade
é
flexível,
ao
contrário
do
conceito
cartesiano
que
aponta
para
um
sujeito
central
e
autorreferente.
A
subjetividade
é
diferenciação
e
não
identidade
(Cardoso
Jr.,
2005)5.
Assim,
a
conexão
5
Na
modernidade,
uma
relação
de
identidade
seria
a
relação
entre
um
ser
interior
pensante
em
contato
com
um
exterior
que
está
separado
do
ser
pensante,
ou
seja,
o
sujeito
é
visto
como
centro
da
identidade
estável.
Foi
essa
imagem
de
um
sujeito
racional,
reflexivo,
solitário
e
central
na
ação
e
no
26
entre
subjetividade
e
tempo
é
um
modo
de
afirmar
que
a
subjetividade
acontece
num
corpo
e
que
dele
não
se
separa.
Este
corpo
de
que
fala
o
filósofo
não
é
apenas
orgânico,
mas
também
constituído
pelas
relações
com
as
coisas,
isto
é,
trata-‐se
de
um
corpo
que
envolve
o
encontro
com
outro
corpo,
seja
um
corpo
orgânico
ou
inorgânico,
uma
ideia
ou
imagem,
etc.
Desse
modo,
o
processo
de
subjetivação
em
Foucault
surge
como
ensaio,
processo
ético
(pois
é
irredutível
às
práticas
disciplinares)
e
estético
(produz
modos
inéditos
de
existência).
Enquanto
o
corpo
se
transforma,
a
subjetividade
se
diferencia
em
sua
relação
com
o
tempo.
O
fio
condutor
da
articulação
entre
subjetividade
e
verdade
no
pensamento
do
filósofo
é
o
cuidado
de
si,
impelindo
os
outros
a
terem
cuidados
consigo
próprios.
Assim,
o
cuidado
de
si
pode
ser
entendido
como
o
autoconhecimento
de
si.
Para
esse
autoconhecimento,
o
autor
reuniu
regras
e
princípios,
visto
que
“cuidar
de
si
é
se
munir
dessas
verdades:
nesse
caso
a
ética
se
liga
ao
jogo
da
verdade”
(Foucault,
2006,
p.
269).
Por
isso,
o
cuidado
de
si
é
de
ordem
diferente
do
conhecimento,
diz
respeito
à
atitude
diferente
consigo,
com
os
outros
e
com
o
mundo;
indica
a
conversão
do
olhar
do
exterior
para
o
próprio
interior
como
modo
de
exercer
a
vigilância
contínua
do
que
acontece
nos
pensamentos;
sugere
ações
exercidas
de
si
para
consigo
mediante
as
quais
alguém
tenta
modificar-‐se;
designa
maneiras
de
ser,
formas
de
reflexão
e
de
práticas
que
conformam
o
núcleo
da
relação
entre
subjetividade
e
verdade.
(Candiotto,
2008,
p.91)
A
ética,
no
pensamento
de
Foucault,
tem
como
condição
ontológica
a
liberdade
e,
assim,
“a
ética
é
a
forma
refletida
assumida
pela
liberdade”
(Foucault,
2006,
p.
267).
A
liberdade
consiste
no
“trabalho
de
si
sobre
si
mesmo”
e,
assim,
está
situada
numa
análise
de
poder,
pois
é
considerada
política
e
tem
um
modelo
político,
“uma
vez
que
ser
livre
significa
não
ser
escravo
de
si
mesmo
nem
dos
seus
apetites,
o
que
implica
estabelecer
consigo
mesmo
uma
certa
relação
de
domínio,
de
controle,
chamada
de
archê
–
poder,
comando”
(Foucault,
2006,
p.
270).
Assim,
a
ética,
no
processo
de
subjetivação,
surge
com
uma
dupla
tarefa:
é
tanto
reflexo
da
liberdade
quanto
comporta
a
própria
liberdade.
Esta
remete
ao
desapego
aos
hábitos
que
possam
levar
ao
vício
e,
por
isso,
remete
a
um
autocontrole
de
si.
pensamento
que
fundamentou
a
filosofia
moderna,
imagem
que
ainda
se
mostrou
presente
nas
teorias
sociais
e
políticas
ocidentais
até
muito
recententemente.
27
Através
desse
pensamento,
portanto,
o
filósofo
não
procurou
descobrir
a
verdade
no
sujeito.
O
que
ele
procurou
foi
“dotar
o
sujeito
de
uma
verdade
que
ele
não
conhecia
e
que
não
residia
nele;
trata-‐se
de
fazer
desta
verdade
aprendida,
memorizada,
progressivamente
aplicada,
um
quase-‐sujeito
que
reina
soberanamente
em
nós”
(Foucault,
20016
apud
Candiotto,
2010,
p.100).
Deste
modo,
o
cuidado
de
si
não
quer
dizer
o
mesmo
que
perseguir
uma
vida
bela,
refere-‐se
à
investigação
da
existência
e
de
uma
“estética
da
existência”,
tendo
já
como
pré-‐condição
o
rompimento
com
convenções,
hábitos
e
valores
pré-‐estabelecidos.
Portanto,
a
subjetividade,
de
acordo
com
o
pensamento
de
Foucault,
refere-‐se
a
um
processo
que
gera
continuamente
novos
modos
de
existência,
isto
é,
modos
de
agir
e
sentir
e,
tem
nesse
processo,
o
próprio
sujeito
como
produto.
Ainda
no
cenário
da
destituição
do
sujeito
soberano
na
filosofia
contemporânea,
surge
o
pensamento
de
Emmanuel
Levinas.
Este
pensador
da
alteridade
descreveu
a
subjetividade
como
lugar
de
exposição
e
acolhimento
e,
assim,
fala
de
uma
relação
ética
com
o
Outro
que
tem
como
base
a
supremacia
do
Outro
sobre
o
Eu.
Isto,
porque
“somente
um
eu
destituído
da
sua
soberania
poderá
ser
realmente
ético”
(Kuiava,
2003,
p.147).
Através
de
sua
crítica
e
reconstrução
da
subjetividade,
o
autor
nos
permite
pensar
nos
caminhos
da
sensibilidade
como
fruição,
com
o
contato
e
a
vulnerabilidade,
expondo
a
constituição
de
uma
nova
subjetividade:
uma
subjetividade
ética
que
nos
torna
reféns
ao
acolher
a
alteridade
infinita
do
Outro.
Assim,
ao
contrário
de
um
cuidado
de
si,
a
subjetividade
mostra-‐se,
em
Levinas,
como
responsabilidade
total
pelo
Outro.
Seu
pensamento
teve
sua
originalidade
atribuída
à
visibilidade
à
questão
da
alteridade,
promovendo
uma
ruptura
com
o
pensamento
da
tradição
filosófica
ao
conferir
à
alteridade
um
papel
central
na
construção
de
uma
ética,
esta
pensada
como
filosofia
primeira.
Desse
modo,
Levinas
nos
apresenta
uma
descrição
fenomenológica
da
subjetividade
que
tem
como
base
a
estrutura
“um-‐para-‐o-‐outro”,
que
quer
dizer
um
que
“deve
dar
ao
outro
e,
portanto,
um
que
tem
mãos
para
dar”
(Levinas,
2000,
p.
217).
Seu
olhar
se
mostra
como
uma
alternativa
para
pensar
a
subjetividade
pela
perspectiva
do
face-‐a-‐face
com
a
6
Foucault,
M.
(2001)
L'Herméneutique
du
sujet.
Cours
au
Collège
de
France,
1981-‐1982.
Édition
établie
par
François
Ewald
et
Alessandro
Fontana,
par
Frédéric
Gros,
Paris:
Seuil/Gallimard
(Coll.
Hautes
études).
28
alteridade,
da
relação
com
Outro
e,
por
isso,
também,
da
relação
estabelecida
com
o
Outro
através
da
fotografia.
Levinas
(1993)
considera
a
subjetividade
ética,
pois
há
uma
responsabilidade
antes
de
uma
liberdade
na
relação
com
o
outro.
Ela
surge
com
uma
concepção
diferente
daquela
entendida
pela
filosofia
ocidental,
visto
que
parte
da
sensibilidade
do
sujeito,
que
significa,
em
termos
levinasianos,
aproximação,
exposição
ao
outro.
A
exposição
ao
outro
produz
vulnerabilidade
e
responsabilidade
ao
Eu,
como
também
atribui
um
sentido
moral
à
subjetividade.
No
entanto,
tal
vulnerabilidade
é
intrínseca
à
relação
com
o
outro
e
mostra-‐se
como
“obsessão
pelo
outro
ou
proximidade
do
outro”
(Levinas,
1993,
p.119).
Nesse
sentido,
sem
corpo
não
há
doação
visto
que
não
há
aproximação,
ou
seja,
o
sujeito
da
responsabilidade
é
o
próprio
corpo:
“a
subjetividade
humana
é
de
carne
e
osso”
(p.217).
O
sujeito
levinasiano
é
um
sujeito
encarnado,
não
é
um
fenômeno.
Nesse
contexto,
não
há
uma
ordem
para
agir
e
em
seguida
responsabilizar-‐se
pelo
outro,
pois
a
própria
responsabilidade
está
contida
no
sujeito
e
o
torna
responsável
por
todos,
antes
mesmo
de
sua
escolha.
A
espontaneidade
da
liberdade
é
posta
em
questão
no
momento
em
que
não
há
escolhas
para
o
sujeito,
pois
a
responsabilidade
é
um
elemento
que
define
a
sua
unicidade.
A
presença
do
outro
exige
já
uma
responsabilidade
e
a
exposição
ao
outro
se
apresenta
já
como
vulnerabilidade.
A
subjetividade
não
é
da
ordem
da
intencionalidade,
ela
se
mostra
anterior
a
todo
começo.
Quando
em
contato
com
a
alteridade
a
sua
presença
produz
inquietação
na
autonomia
do
Eu,
mas
é
isto
que
convoca
o
Eu
para
a
responsabilidade
ética.
O
acolhimento
dessa
alteridade,
na
forma
de
hospitalidade
ao
estrangeiro,
ao
totalmente
Outro,
estabelece
uma
responsabilidade
insubstituível
pelo
Outro
que
leva
até
a
sua
substituição.
A
alteridade
do
Outro
é,
neste
sentido,
imprescindível
para
a
constituição
da
subjetividade,
visto
que
é
responsável
por
animar
e
manter
viva
a
intriga
na
relação
ética
levinasiana:
provoca
a
abertura
do
Eu
para
fazer
surgir
uma
nova
relação
com
a
alteridade.
Levinas
fala
do
Outro
como
o
rosto
de
outro
homem,
independente
de
seu
gênero
e
nacionalidade.
“A
forma
como
o
outro
se
apresenta
é
visage,
rosto
não
figurado
pelas
suas
qualidades,
ultrapassagem
da
imagem
plástica
que
deixa
no
eu”
29
(Marcos,
2011,
p.83).
O
rosto
é
a
epifania
de
outrem
e
é
nesta
epifania
que
o
rosto
do
outro
reflete
o
terceiro,
ou
seja,
a
presença
da
humanidade
inteira.
O
rosto
é
nu,
“porque
não
se
deixa
iluminar
ou
delimitar
de
fora
por
uma
forma,
nem
pensar
a
partir
de
sua
relação
com
qualquer
coisa.
Rosto
nu,
ainda,
porque
vulnerável
ao
sofrimento
e
à
morte”
(Marcos,
2011,
p.83).
O
rosto
do
Outro
é
vulnerabilidade,
mas
também
é
imposição
de
uma
responsabilidade.
Escapa
à
tematização,
pois
é
a
completa
exterioridade,
abertura
e,
sobretudo,
exposição
ao
outro.
Esse
olhar
fenomenológico
da
subjetividade
proposto
por
Levinas,
além
de
destituir
a
centralidade
e
soberania
do
Eu,
abre
espaço
para
a
reconstrução
de
uma
nova
subjetividade
que
se
constitui
pelo
encontro
com
o
Outro.
Essa
busca
inscreve
na
relação
face-‐a-‐face
uma
nova
relação
ética
com
a
alteridade,
momento
em
que
o
Outro
não
está
integrado
à
estrutura
do
Eu,
ao
contrário,
ele
é
transbordamento,
excesso
que
se
estabelece
no
encontro,
é
o
infinito.
Esta
ideia
de
infinito
“não
vem
do
interior
do
eu,
vem
do
exterior,
da
presença
do
rosto
do
outro
que
me
ensina
mais
do
que
eu
possa
apreender
e
suportar”
(Marcos,
2011,
p.83).
Isto
garante
a
estranheza
do
outro
e,
por
isso,
sua
liberdade,
pois
torna-‐o
inapreensível,
livre
de
qualquer
qualidade
que
eu
possa
conceder.
Contra
Kant,
aqui,
a
ideia
do
infinito
não
nasce
no
interior
de
uma
consciência
finita
e
nem
é
introduzida
por
um
ser
superior
como
concebe
Descartes;
ao
contrário,
surge
a
posteriori,
a
partir
da
relação
frente
a
frente
com
o
rosto
do
outro
(Kuiava,
2003,
p.131).
A
epifania
do
Outro
expressa,
assim,
uma
interpelação
ética
que
destrói
a
imagem
plástica
e
a
representação
que
dele
se
possa
ter,
para
ser,
no
lugar,
um
convite
à
hospitalidade.
O
rosto,
visage,
tem
um
papel
decisivo
no
pensamento
levinasiano,
pois
é
o
que
vemos
primeiramente
no
encontro
com
o
Outro
e
que
assim
irrompe
a
subjetividade
(Marcos,
2011).
Por
isso,
para
pensar
na
fotografia
como
produto
de
um
acontecimento
ético,
primeiramente,
deve-‐se
pensar
na
experiência
fotográfica
como
um
lugar
de
encontro
com
o
Outro.
Para
esse
encontro
acontecer
é
preciso
abrir-‐se
para
o
desconhecido
e
estar
preparado
para
isso.
Esse
encontro
é
essencial
para
a
composição
de
uma
“fotografia
sensível”,
sendo
a
sensibilidade
entendida
como
contato
e
abertura
para
a
vulnerabilidade.
Esse
processo,
portanto,
não
é
possível
através
de
um
encontro
entre
um
fotógrafo
privilegiado
e
um
fotografado
dominado,
mas
sim,
por
via
do
exercício
de
acolhimento
e
30
responsabilidade
pelo
Outro,
sabendo
e
aceitando
todos
os
riscos
e
vulnerabilidades
que
isso
carrega.
Ao
contrário
de
um
entendimento
da
fotografia
como
uma
racionalidade
técnica
que
produz
uma
visão
objetivadora
do
Outro,
na
imagem
fotográfica
deve
ser
elaborado
um
olhar
sensível
para
o
Outro.
Como
seria
transformar
um
olhar
objetivador
em
um
olhar
sensível?
O
encontro
face-‐a-‐face
está
na
base
da
experiência
fotográfica,
especialmente
nos
retratos.
É
o
Outro,
o
fotografado,
que
inaugura
essa
relação
ética
na
fotografia
ao
exigir
um
olhar
ético
do
fotógrafo.
Esse
encontro
permite
pensar
a
fotografia
como
criação
de
uma
novidade
que
ao
desfazer
a
imagem
plástica
e
a
representação
do
Outro,
abre
espaço
ao
acolhimento.
Na
sessão
fotográfica,
essa
relação
resulta
em
uma
imagem
singular
e
irrepetível
e,
por
isso,
nesse
encontro,
surge
algo
novo
que
está
fora
do
Eu.
Pensar
numa
“fotografia
sensível”
a
partir
de
uma
relação
ética
é
pensá-‐la
como
forma
de
resistência
e
combate
à
banalização
do
humano,
ou
seja,
como
luta
contra
a
repetição
de
estereótipos.
Diante
do
que
é
desconhecido
busca-‐se
sempre
transformá-‐lo
em
conhecido.
Procura-‐se
uma
familiaridade
para
diminuir
o
desconforto
do
encontro.
Esse
processo
de
inquietação
provocado,
através
do
choque
de
ideias,
culturas
e
representação
de
mundos
tão
diferentes,
deve,
antes,
ser
considerada
como
possibilidade
ou
abertura
para
a
responsabilidade
que
se
impõe
no
lugar
de
uma
consciência
egoísta.
Esta
relação
situa-‐se
entre
familiaridade
e
estranhamento
e
deve
levar
a
um
combate
contra
os
padrões
identitários
pré-‐concebidos.
Desse
modo,
a
fotografia,
como
qualquer
outra
relação
social,
quando
vista
pelo
prisma
ético,
encontra
o
seu
sentido
humanitário
do
Outro,
com
a
responsabilidade
pelo
Outro,
pela
família
do
Outro
e
de
seus
conterrâneos.
A
produção
de
imagens,
portanto,
deve
criar
algo
novo
e
a
fotografia
deve
ser
percebida,
no
interior
dessa
relação,
como
processo
de
encontro
e
também
como
produto
do
encontro,
pois
o
resultado
é
uma
outra
imagem
que,
fruto
de
uma
relação
com
a
alteridade,
escapa
à
representação
anterior
ao
acolher
o
Outro
tal
como
ele
é,
aceitando
toda
a
responsabilidade
que
a
representação
acarreta
no
Outro
e
no
Outro
do
Outro.
Reconhecer
essa
responsabilidade
é,
então,
produzir
uma
“fotografia
sensível”
através
de
uma
subjetividade
ética.
No
caso
da
relação
entre
portugueses
e
31
brasileiros
através
da
fotografia,
trata-‐se
de
um
acolhimento
de
estrangeiro
para
estrangeiro.
I.6.
O
colonialismo
e
a
produção
de
diferença
7
"Colónia",
in
Dicionário
Priberam
da
Língua
Portuguesa
[em
linha],
2008-‐
2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/col%C3%B3nia
[consultado
em
26-‐02-‐2018].
32
O
sistema
colonial
deu
lugar
a
um
sistema
internacional
que
conhecemos
os
contornos:
a
criação
do
subdesenvolvimento
segundo
a
linha
divisória
entre
o
primeiro
e
o
terceiro
mundo,
e
o
surgimento
inesperado
de
sociedades
multiculturais
na
Europa
baseadas
em
desigualdades
sociais
profundas
entre
nacionais
e
imigrantes
(pp.82-‐83).
Para
o
Professor
Boaventura
Sousa
Santos8,
ainda
vivemos
em
uma
sociedade
que
tem
como
referência
os
três
principais
modos
de
dominação
da
modernidade:
capitalismo,
colonialismo
e
hetero-‐patriarcado.
Segundo
ele,
o
que
permanece
dos
períodos
anteriores
aparece
metamorfoseado
“em
algo
que
simultaneamente
o
denuncia
e
dissimula
e,
por
isso,
permanece
sempre
como
algo
diferente
do
que
foi
sem
deixar
de
ser
o
mesmo”
(Idem).
Seguindo
o
seu
pensamento,
o
que
acabou
foi
o
colonialismo
histórico
e
o
que
permanece
é
a
forma
de
dominação
colonial
exercida,
que
agora
se
apresenta
sob
outras
formas.
Exemplo
disso
é
a
forma
como
o
racismo
ainda
é
presente
(e
também
pode
ser
violento)
nas
formas
de
racismo
institucional
e
estrutural,
mas
que
também
ocorre
no
racismo
direcionado
à
pessoa,
embora
de
forma
mais
atenuada
nos
dias
atuais.
Também
o
racismo
pode
ser
visto
no
trato
dos
imigrantes
nos
países
de
acolhimento,
que
os
vê
como
aqueles
que
não
se
devem
misturar:
34
este
entendimento
surge
como
“esperança”
de
superação
da
diferença
cultural.
Desse
modo,
para
Bhabha
(1998),
a
questão
da
identificação
só
emerge
no
intervalo
entre
a
recusa
e
designação.
9
Conf.
Matéria
publicada
no
The
Guardian,
Why
are
white
people
expats
when
the
rest
of
us
are
immigrants?
Publicada
em
13
de
maio
de
2015.
Acessível
em:
https://www.theguardian.com/global-‐
development-‐professionals-‐network/2015/mar/13/white-‐people-‐expats-‐immigrants-‐
migration?CMP=fb_gu
35
pensá-‐los
como
negros10),
são
recebidos
pelo
mundo
como
expatriados.
Dessa
forma,
ser
imigrante
é
ser
diferente,
pois
além
do
fator
socioeconômico
e
de
classe
que
o
identifica
como
tal,
que
parte
do
entendimento
de
que
quando
vão
a
um
determinado
país
é
por
causa
das
condições
financeiras
desfavoráveis,
o
fator
racial
também
pode
ser
determinante
para
denominá-‐lo
de
acordo
com
esses
termos.
As
situações
coloniais,
que
hoje
são
pós-‐coloniais,
fazem
com
que
existam
espaços
em
que
populações
são
segmentadas
por
suas
diferenças
e
desigualdades
e
ainda
assim
convivam
na
mesma
sociedade.
A
situação
agrava-‐se
quando
a
questão
de
“raça”
se
une
aos
critérios
de
desigualdade
social
e
econômica,
pois
depara-‐se
com
uma
situação
que
ainda
é
resolvida
segundo
os
moldes
coloniais,
ao
demandar
uma
escolha
entre
a
“aculturação
ou
o
separatismo”
(Almeida,
2007,
p.
86).
Esses
extremos
não
corroboram
o
pensamento
de
Bhabha
(1998),
que
sugere
o
conceito
de
“fronteira”
para
determinar
não
uma
separação,
mas
sim
um
espaço
“entre-‐lugar”,
que
funciona
como
produto
da
interação
cultural
produzida
nas
fronteiras,
pois
são
estes
os
locais
onde
a
produção
de
significados
e
valores
da
minoria
é
realizada
de
maneira
errônea.
Os
brasileiros,
tratados
como
muitas
vezes
como
escravos
em
pleno
século
XXI,
são
vistos
como
mão
de
obra
imigrante
e,
por
isso,
sofrem
com
a
exploração
de
sua
força
de
trabalho.
Quando
são
passíveis
de
obtenção
da
cidadania,
são
abraçados
por
um
“multiculturalismo”,
que,
como
já
foi
dito,
os
define
como
diferentes
em
relação
10
Entrevista
com
Miguel
Vale
de
Almeida
ao
portal
QI,
“Ninguém
imagina
(de
verdade)
um
português
negro”.
Acessível
em:
https://qinews.pt/entrevista-‐qi-‐miguel-‐vale-‐de-‐almeida-‐ninguem-‐imagina-‐de-‐
verdade-‐um-‐portugues-‐negro/
36
ao
resto
da
população
europeia
ao
invés
de
promover
uma
integração.
“Nos
contextos
ditos
pluriétnicos,
os
multiculturalismos
não
é
mais
do
que
o
estabelecimento
de
um
supermercado
de
culturas”,
pois
objetifica
a
cultura,
transformando
“música
africana”
ou
“comida
chinesa”
em
produtos
que
passam
a
ser
vendidos
pelas
próprias
minorias,
“como
forma
de
construção
de
identidade
e
de
ocupação
de
nichos
na
sociedade
‘multicultural’”
(Almeida,
2007,
p.
89).
Dessa
forma,
o
diferente
continua
a
sobressair
numa
política
criada
para
receber
o
imigrante,
desde
que
ele
se
comprometa
a
não
se
sentir
totalmente
em
casa.
37
culturais
que
devem
ser
conectados
aos
processos
históricos
para
que
seja
possível
encontrar
uma
espécie
de
“terceiro
espaço”
que
Bhabha
(1998)
definiu
como
um
espaço
“entre”
na
relação
social
entre
o
Eu
e
o
Outro.
11
Texto
da
contracapa
do
livro
da
autora.
38
de
um
modo
mais
afetivo
e
efetivo
na
relação
social,
um
corpo
que
encontra
as
condições
participativas
e
de
concretização
da
pesquisa.
40
refere-‐se
à
utilização
da
primeira
pessoa
nos
relatos
sobre
o
outro,
para
colocar
em
primeiro
plano
as
diferenças
culturais.
Situamos
essa
pesquisa,
portanto,
com
a
aproximação
do
conceito
de
auto-‐etnografia
que
diz
respeito
ao
fato
de
a
autora
desta
pesquisa
também
fazer
parte
do
“corpo
brasileiro”
que
é
estudado.
Foi
preciso,
portanto,
oferecer
outras
perspectivas
de
interpretação
da
História
como
compreende
Walter
Benjamin
(1969
[1942]),
haja
visto
que
"o
estado
de
emergência
em
que
vivemos
não
é
a
exceção,
mas
a
regra.
Temos
de
nos
ater
a
um
conceito
de
história
que
corresponda
a
esta
visão”
(p.257).
Por
esta
razão,
o
olhar
de
Foucault
foi
visto
como
ferramenta
que
auxilia
o
pensamento
do
corpo
através
da
análise
das
práticas
de
poder,
pois
“só
podemos
falar
de
estruturas
ou
de
mecanismo
de
poder
na
medida
em
que
supomos
que
certas
pessoas
exercem
poder
sobre
outras”
(Foucault,
1982,
p.
217).
As
relações
de
poder
não
devem
ser
consideradas
apenas
como
uma
situação
de
constrangimento
absoluto,
como
aquele
que
envolve
a
violência
física
do
explorador
e
do
escravo
no
colonialismo
histórico
do
Brasil,
pois
também
se
estabelece
entre
pessoas
livres,
acontecendo
de
forma
muito
mais
sutil,
pois
a
existência
de
liberdade
impulsiona
a
reação
por
parte
daqueles
que
exercem
o
41
poder.
Para
mapear
o
poder
exercido
pelo
europeu
na
construção
da
imagem
do
brasileiro
e
da
brasileira,
foi
apresentado
no
capítulo
IV
um
olhar
histórico
em
relação
à
construção
da
imagem
de
um
povo
composto
por
várias
etnias
aprisionadas
e
que
tiveram
suas
identidades
homogeneizadas
nos
períodos
de
gestação
e
de
nascimento
de
um
Brasil
independente
de
Portugal.
No
capítulo
V
foram,
então,
analisados
os
discursos
coletados
na
fase
empírica,
através
da
realização
de
entrevistas
presenciais
com
os
fotógrafos
que
produziram
imagens
no
Brasil.
O
corpo-‐a-‐corpo
foi
fundamental
para
a
compreensão
de
significados
atribuídos
ao
corpo
brasileiro
em
suas
produções
fotográficas.
Como
método
de
entrevista,
para
a
compreensão
de
uma
subjetividade
na
produção
de
imagens,
foi
utilizada
a
entrevista
aberta
com
perguntas
que
não
obedecem
a
um
esquema
fechado,
mas
que
se
desenvolvem
em
ritmo
de
conversa,
para
trazer
à
tona
os
imaginários
coletivos
e
individuais
sobre
o
brasileiro
que
perpassam
a
vida
do
fotógrafo.
Essa
forma
adoptada
de
entrevista
permite-‐nos
a
captação
de
significados
e
conhecimento
dos
sentidos
que
os
sujeitos
dão
aos
seus
atos,
acessíveis
apenas
a
partir
dos
discursos
enunciados
pelos
próprios
fotógrafos.
Desse
modo,
não
eram
esperadas
nas
entrevistas
respostas
objetivas
e
verdadeiras,
mas
a
subjetivamente
sincera12,
o
que
corresponde
a
um
encontro
com
informações
relevantes
que
só
poderiam
ser
obtidas
através
da
experiência
do
encontro.
O
corpo
sempre
foi
local
de
intervenções
para
identificação
ou
pertencimento
a
algum
grupo,
filiação
ou
crença.
Com
este
objetivo,
foram
utilizados
desde
elementos
efêmeros
aplicados
ao
corpo,
como
pintura,
penteado
ou
traje;
até
deformações
definitivas,
como
escarificações
e
tatuagens.
As
pinturas
dos
índios,
as
queimaduras
de
vudu
na
Melanésia
e
as
tatuagens
dos
aborígenes
da
Nova
Zelândia
são
exemplos
de
intervenções
no
corpo.
As
marcas,
vestimentas
e
costumes
orientavam
a
identidade
do
sujeito.
O
corpo
e
o
rosto
surgem
como
revestimentos
que
atribuem
valores
fundamentais
para
coesão
em
um
determinado
grupo
social.
De
acordo
com
Tucherman
(2012
[1999]),
na
Grécia
Antiga
o
corpo
deveria
ser
cuidado
e
sua
imagem
idealizada
correspondia
ao
conceito
de
cidadão
que,
por
sua
vez,
deveria
cuidar
e
modelar
o
corpo
com
exercícios
e
meditações.
O
corpo
era
de
interesse
do
Estado
e,
por
isso,
era
dever
pessoal
o
cuidar
de
si
para
exibir
um
corpo
saudável
e
proporcional
que
estimava
a
capacidade
atlética
e
a
fertilidade.
O
intelecto
também
deveria
ser
cuidado
para
fazer
par
com
corpo
físico
e
assim
encontrar
a
perfeição.
A
mulher
não
participava
desta
concepção
de
corpo
perfeito.
Enquanto
o
homem
poderia
andar
nu
nos
ginásios
ou
com
vestes
soltas
na
cidade
(para
equilíbrio
térmico),
a
mulher
deveria
vestir
roupas
em
casa
e
cobrir
o
corpo
quando
saíssem
de
casa.
O
corpo
grego,
entretanto,
não
serviria
apenas
para
exposição
em
ginásios
e
nas
cidades,
ele
era
esculpido
também
para
a
guerra.
Ainda
segundo
Tucherman
(2012),
com
a
chegada
do
cristianismo
veio
também
a
culpa.
O
corpo
passa
de
expressão
de
beleza
para
fonte
de
pecado.
A
espiritualização,
regra
do
cristianismo,
trazia
a
negação
do
material
e
isso
inclui
o
cuidado
com
o
corpo
físico
para
que
se
possa
salvar
o
espírito.
O
corpo
exprimia
o
pecado
resultante
do
mau
comportamento
de
Adão
e
Eva
na
Terra
(mais
de
Eva,
na
44
verdade).
Por
isso,
Deus
estava
sempre
em
alerta
e
vigilante,
sem
pausa
para
descanso:
tudo
via
e
tudo
sabia.
O
corpo,
da
mulher
ou
do
homem,
com
o
cristianismo,
deveria
estar
coberto
até
no
momento
de
intimidade
dos
casais
ou
toda
nudez
seria
castigada.
Por
outro
lado,
o
corpo
sofredor
de
Cristo
mostrou
aos
cristãos
que
a
dor
física
servia
para
alcançar
alívio
espiritual,
ou
seja,
o
corpo
físico
seria
curado
de
todos
os
males
na
vida
pós-‐morte,
bastava
aguentar
um
pouco.
Assim,
no
mundo
judaico-‐
cristão,
a
dor
do
corpo
físico
e
a
prevalência
do
espírito
conduziriam
à
salvação.
O
corpo
feminino
foi
considerado
inferior
também
pelos
cristãos.
Deus
o
produziu
por
mediação
do
corpo
masculino,
através
das
costelas
de
Adão,
portanto,
seria
a
mulher
um
derivado
do
homem
para
servir
como
companheira.
45
funcionaria
como
veículo
da
alma,
nos
dizeres
de
Descartes:
“(...)
por
esses
sentimentos
de
dor,
fome,
sede,
etc.,
que
não
somente
estou
alojado
em
meu
corpo,
como
um
piloto
em
seu
navio,
mas
que,
além
disso,
lhe
estou
conjugado
muito
estreitamente
e
de
tal
modo
confundido
e
misturado,
que
componho
com
ele
um
único
todo”
(Descartes,
1988
[1641],
p.144).
Somos
portanto,
para
ele,
a
união
do
corpo
e
da
alma.
46
Diante
dos
vários
temas
que
podem
envolver
o
corpo
na
fotografia,
visto
que
o
corpo
e
as
suas
fantasias
sempre
participaram
dos
mecanismos
de
identificação
e
alteridade
(Tucherman,
2012),
neste
capítulo
buscou-‐se
apresentar
alguns
dos
modos
de
representação
do
corpo
e
do
rosto
na
história
da
fotografia,
principalmente
enquanto
forma
de
classificação
e
identificação
do
Outro.
Não
há
a
pretensão
de
fornecer
um
apanhado
teórico
completo
do
corpo
ou
uma
revisão
bibliográfica,
mas
sim
o
de
trazer
à
tona
pontos
de
conexão
entre
o
corpo
e
a
fotografia
que
são
importantes
para
esta
Tese.
O
capítulo
se
divide
em
seis
discussões
sobre
a
manifestação
e
representação
do
corpo
na
fotografia
contemporânea:
corpo
ausente;
corpo
refletido;
corpo
tendencioso;
corpo
controlado;
corpo
performativo
e
corpo
objetificado.
Os
estudos
que
se
dedicam
à
origem
da
imagem
ratificam
o
sentido
mágico
que
lhe
foi
conferido
na
Idade
Média,
ao
servir
como
mediação
entre
o
mundo
dos
mortos
e
dos
vivos
e
executando
uma
função
metafísica
com
relação
à
morte.
Isso
foi
confirmado
por
Regis
Debray
(1992),
que
diz
que
a
imagem
arcaica
surge
das
tumbas
para
prolongar
a
vida.
As
efígies
surgem,
assim,
como
mediação
entre
os
dois
mundos,
e
passaram
a
ser
veneradas
e
a
receberem
oferendas
específicas,
pois
o
corpo
morto
tinha
o
status
divino.
Ainda
segundo
Debray
(1992),
a
palavra
imagem
tem
origem
no
termo
latim
imago,
que
se
associa
aos
vocábulos
gregos
traduzidos
como
ídolo,
eídolon,
que
designa
a
alma
do
morto
que
sai
sob
a
forma
de
sombra,
o
seu
duplo.
Dando-‐lhe
um
aspecto
figurativo
de
sombra,
a
morte
parece
encontrar
na
imagem
um
antídoto
para
a
invisibilidade
ou,
pelo
menos,
um
alívio
para
esse
problema.
A
imagem
surge,
portanto,
como
manifestação
da
nossa
existência
no
mundo
e
também
como
protesto
contra
o
apagamento
da
existência
no
tempo
(Medeiros,
2000).
Essa
significação
atrelada
aos
símbolos
funerários,
demonstra
que,
desde
o
início,
a
imagem
tinha
os
efeitos
de
presença
e
dissimulação
da
perda.
O
tema
da
morte
também
foi
recorrente
na
história
da
fotografia,
de
forma
direta
ou
indireta,
47
como
também
em
contextos
diversos
(Medeiros,
2010).
No
século
seguinte
à
criação
da
fotografia,
ao
contrário
de
um
sentido
sinistro
ou
nostálgico,
diz
Medeiros,
a
relação
da
morte
com
a
fotografia
passa
a
ser
encarada
como
pretexto
para
o
exercício
de
humor.
No
entanto,
“quaisquer
que
tenham
sido
as
motivações
com
que
operaram,
o
contexto
da
produção
e
recepção
dessas
imagens
foi
sempre
ambíguo”
(2010,
p.25).
Sejam
nas
múmias,
nos
crânios
pré-‐históricos
ou
nas
pinturas
nas
cavernas
de
Lascaux,
a
representação
de
si
e
do
outro
surge
como
forma
de
marcar
e
fazer
presente
a
vida
e
todos
os
eventos
culturais
e
sociais
que
a
atravessam.
Sob
esse
contexto
e
para
além
de
uma
ideia
de
mimese,
uma
cópia
do
referente,
o
retrato
não
foi
considerado
como
um
género
por
Didi-‐Huberman
(1998),
mas
como
o
encontro
das
“incríveis
tranças
contraditórias
de
representações
e
de
presenças,
de
semelhanças
e
dessemelhanças,
de
seres
e
de
existências”
(p.62).
Isto
porque
mais
do
que
pela
necessidade
de
identificação
do
rosto
com
o
fotografado,
a
imagem
do
outro
tem
sua
importância
por
trazer
para
perto
o
corpo
que
está
ausente.
(...)
tudo
nos
indica
que
o
Homo
Sapiens
é
atingido
pela
morte
como
por
uma
catástrofe
irremediável,
que
vai
trazer
consigo
uma
13
Publicado na Revista de Comunicação e Linguagens (2008) nº39, pp. 257-261.
48
ansiedade
específica,
a
angústia
ou
horror
da
morte,
que
a
presença
da
morte
passa
a
ser
um
problema
(...)
Tudo
nos
indica
igualmente
que
esse
homem
não
só
recusa
a
morte,
mas
que
a
rejeita,
transpõe
e
resolve
no
mito
e
na
magia.
Na
Idade
da
Rena
(de
15
a
25
mil
anos
antes
de
Cristo),
o
rosto
humano
ainda
não
existia
na
produção
figurativa.
O
homem,
em
Lascaux,
não
tinha
um
rosto
delineado
nas
pinturas
rupestres,
mas
uma
espécie
de
bico,
“um
perfil
de
pássaro
sumariamente
traçado”
(Didi-‐Huberman,
1998,
p.63).
Do
que
decorre
que
o
homem
do
paleolítico
foi
representado
sempre
em
associação
com
a
figura
animal,
mostrando
que
o
rosto
estava
lá
(ao
contrário
do
que
Georges
Bataille
pensava),
mas
se
mostrava
de
forma
totalmente
diferente
da
que
conhecemos
hoje,
ou
seja,
totalmente
dista
de
uma
representação
mimética.
No
entanto,
enquanto
o
homem
existia
em
associação
com
a
cabeça/rosto
de
animais,
a
mulher
era
representada
por
uma
massa
disforme
que
só
era
reconhecida
pela
inserção
de
uma
vulva
ou
órgão
materno.
Foram
as
caveiras
da
pré-‐história
que
mostraram
a
Didi-‐Huberman
(1998)
que
mesmo
quando
não
existia
a
representação
do
rosto
humano
nos
desenhos
pré-‐
históricos,
havia,
por
outro
lado,
a
preocupação
com
o
destino
dos
rostos
através
do
cuidado
que
era
dispensado
aos
crânios,
que
eram
enfeitados
e
ritualizados
após
a
morte:
II.2
Corpo
refletido:
Narciso,
Drácula
e
outros
corpos
monstruosos
Para
Sabine
Melchior-‐Bonnet
(2016),
o
espelho
pertence,
em
primeiro
lugar,
ao
“domínio
do
vocabulário
místico
e
dá
lugar
a
um
discurso
moral
–
duradouro
–
que
baliza
os
direitos
do
olhar
sobre
si
e
desenvolve
a
dialética
da
essência
e
da
aparência(...)”
(2016,
p.13).
O
reflexo
do
corpo
teve
uma
importante
missão
na
organização
da
personalidade
há
um
século
por
psicólogos,
como
Lacan,
que
apresentou
o
“estádio
do
espelho”.
A
criança,
ao
ver-‐se
no
espelho
pela
primeira
vez,
passa
então
a
ver
o
seu
corpo
como
unidade,
não
mais
como
partes
separadas,
ao
mesmo
tempo
em
que
compreende
a
diferença
entre
o
modelo
e
a
imagem.
Esse
“estádio
do
espelho
como
formador
da
função
do
eu”,
proposto
pelo
psicanalista
em
1949,
refere-‐se
ao
momento
em
que
o
indivíduo
descobre
o
que
é
e
o
que
não
é
através
do
olhar
do
terceiro.
O
espelho,
enquanto
objeto
de
reflexão
simbólica,
está
sempre
atrelado
à
procura
pela
identidade,
já
o
primeiro
encontro
de
fato
com
o
espelho
faz
saber
da
unidade
do
corpo
e
atua
contra
as
ameaças
de
desmembramento.
O
espelho
passa
a
ser
assistente
na
identificação
do
eu,
mas
também
mostra-‐
se
revelador
de
perturbações
mentais
e
demarcador
de
alteridades.
Narciso
constitui
a
primeira
história
de
um
encontro
perturbador
com
o
espelho.
Filho
de
Juno,
esse
personagem
mitológico
era
muito
belo
e
tinha
muitas
mulheres
e
homens
51
interessados
em
seu
amor.
Quando
Juno
consultou
o
oráculo
sobre
o
futuro
de
Narciso,
ele
disse-‐lhe
que
o
jovem
viveria
muito
caso
não
pudesse
conhecer-‐se.
Narciso,
depois
de
recusar
muitos
pretendentes
de
ambos
os
sexos,
reduziu
Eco
à
sua
própria
voz
ao
condená-‐la
“ao
choro
e
à
morte”14
e
foi
condenado
ao
amor
sem
reciprocidade
por
uma
ninfa
humilhada
por
sua
recusa.
Indo
ao
encontro
de
seu
destino,
Narciso
vê
sua
imagem
espelhada
na
água
enquanto
a
bebe
e
se
apaixona
por
si
mesmo.
Com
a
impossibilidade
de
tocar
a
imagem
refletida,
ele
morre
afogado
e,
quando
procuram
o
corpo
do
jovem,
encontram
uma
flor
em
seu
lugar.
Segundo
Medeiros
(2000),
ao
contrário
de
um
conhecimento
filosófico,
o
“conhece-‐te
a
ti
mesmo”
que
solicita
uma
reflexão
interior,
um
conhecimento
da
razão;
o
conhecimento
mitológico
do
oráculo
de
Juno
refere-‐se
ao
conhecimento
do
corpo,
à
vaidade,
ao
amor
apenas
a
si
próprio,
afinal
“Narciso
acha
feio
o
que
não
é
espelho”15:
14
Cf.
Margarida,
2000,
p.61.
15
Trecho
da
música
“Sampa”
de
Caetano
Veloso.
52
Conforme
Ieda
Tucherman
(2012),
frente
ao
espelho,
o
agora
absoluto
é
mortal
ou
perigoso,
no
mínimo.
Além
do
mais,
a
nossa
cultura
ocidental
tem
sido
“uma
poderosa
construtora
de
espelhos
e
imagens
legisladoras
de
princípios
de
inclusão
e
exclusão,
natureza
e
cultura,
mesmo
e
outro”
(p.21).
Dentre
as
quais,
a
imagem
mais
radicalmente
privilegiada
talvez
tenha
sido
a
imagem
do
corpo,
o
que
parece
explicar
sua
longevidade
por
um
lado,
e
por
outro
lado
justificar
o
estado
de
aflição
com
a
crise
do
corpo.
No
primeiro
caso,
sobre
a
longevidade
do
corpo,
a
autora
faz
referência
à
admiração
frente
ao
corpo
humano
que
fora
referida
por
Nietszche16,
e
que
existe
ainda
hoje.
A
Ideia
é
compartilhada
por
físicos
dedicados
ao
estudo
da
cosmologia
científica
quando
encontram
dados
surpreendentes
sobre
a
idade
do
universo
ou
uma
nova
espécie
de
vida
encontrada
há
muito
tempo.
No
entanto,
a
ideia
da
imagem
do
corpo
próprio
e
ideal
mostrou
estar
em
crise
na
contemporaneidade,
com
o
surgimento
de
próteses,
clonagem,
cyborgs,
biologia
molecular
e
novas
técnicas
cirúrgicas
e
de
visualização
(Tucherman,
2012).
No
século
XVI,
época
das
primeiras
expedições
feitas
no
Brasil,
os
portugueses
tinham
como
hábito
oferecer
espelhos
e
outras
coisas
que
refletissem
a
imagem
para
mostrar
ao
nativo
que
o
seu
corpo
era
considerado
“como
diferença
dos
elementos
da
natureza,
mas
também
dos
‘homens
brancos’”
(2012,
p.25).
A
diferença,
entretanto,
já
era
há
muito
tempo
representada
no
livro
de
Gênesis
da
Bíblia,
quando
apresenta
o
homem
feito
por
Deus
como
diferença
da
natureza,
quando
“Deus
fez
desfilar
diante
de
Adão
todos
os
animais
e
a
cada
um
este
concedeu
um
nome
diferente
do
seu”
(Tucherman,
2012,
p.
25).
Também,
através
de
sua
costela,
Deus
criou
a
sua
companheira,
Eva,
totalmente
diferente
de
si.
Antes
mesmo
do
Cristianismo,
na
civilização
grega,
o
corpo
da
mulher
já
não
era
incluído
na
concepção
de
corpo
perfeito.
O
que
significa
dizer
que
em
nossa
cultura
“o
que
parece
contínuo
e
consistente
é
a
necessidade
de
constituir
um
locus
de
diferença,
de
alteridade
(...)”
(Idem,
2012,
p.96).
16
“O
que
é
mais
surpreendente
é
bem
mais
que
o
corpo:
não
deixamos
de
nos
maravilhar
com
a
ideia
de
que
o
corpo
humano
se
tornou
possível”
(Nietzsche
apud
Tucherman,
2012,
p.
22).
53
mulher
mais
bela
do
reino.
Essa
verdade
que
o
espelho
não
se
envergonha
de
dizer
ou
de
refletir
em
sua
superfície,
como
na
fotografia,
permitiu
o
entendimento
de
que
a
imagem
registrada
do
mundo
“real”
se
apresenta
da
forma
como
o
mundo
“realmente”
se
apresenta.
A
fotografia
foi
distinguida
como
fonte
de
conhecimento
e
instrumento
do
saber
científico
devido
ao
efeito
de
“mimese”
produzido
entre
a
imagem
e
seu
referente.
Para
Aristóteles,
a
mimesis
é
um
veículo
de
conhecimento,
enquanto
que
no
entender
de
Derrida
(1971
apud
Medeiros,
2000),
a
mimesis
se
manifesta
através
da
metáfora,
“desligado
da
própria
coisa
que
no
entanto
visa”
(p.66).
Trata-‐se
de
uma
referência
que
não
está
no
mesmo
espaço
do
referente,
mas
está
conectado
ao
objeto.
O
espelho
ainda
hoje
conserva
uma
relação
com
seu
poder
místico,
como
objeto
que
“devolve”
a
imagem
verdadeira.
Ao
me
ver
antes
de
sair
de
casa,
acredito
estou
me
vendo
como
os
outros
me
vêm.
Por
isso,
“espelho
e
retrato
são
pensados
em
função
um
do
outro”
(Melchior-‐Bonnet,
2016,
p.216).
Os
espelhos
eliminam
a
tridimensionalidade
do
objeto,
podem
inverter
a
imagem,
produzir
distorções,
portanto,
“como
as
câmaras
fotográficas,
se
regem
por
intenções
de
uso
e
seu
repertório
de
experiências
abarca
desde
a
constatação
científica
até
a
fabulação
poética”
(Fontcuberta,
2015,
p.40).
54
imagem,
ou
seja,
sua
reflexão;
no
outro
há
a
frustração
do
desejo,
“a
presença
escondida”,
a
não-‐imagem.
Quando
a
carta
de
Pero
Vaz
de
Caminha
descrevia
“aquele”
povo
encontrado
no
Brasil,
os
“índios”,
o
escrivão
se
perguntava
se
eram
da
raça
humana
ou
não.
E
embora
os
povos
indígenas
e
africanos
não
possuíssem
sinais
de
monstruosidade
clássica,
a
humanidade
de
ambos
os
povos
foi
sempre
questionada
pelos
portugueses
(Tucherman,
2012).
Esses
corpos
monstruosos
em
tudo
diferiam
do
corpo
europeu,
este
corpo
narcísico,
que
condenou
à
morte
a
imagem
desses
corpos
por
ser
a
alteridade,
a
diferença
de
suas
imagens
no
espelho.
Mas,
ao
mesmo
tempo
que
55
sentiam
repulsa,
também
eram
atraídos
e
possuíam
à
força
os
seus
corpos
e
de
todas
as
maneiras.
Essa
perturbação
tem
como
fonte
um
fascínio
pelo
desconhecido,
pela
impossibilidade
de
ser
como
o
outro.
A
figura
da
monstruosidade,
desse
modo,
exerce
uma
função
simbólica
que
perturba
os
sentidos
ao
mostrar
o
que
é
“anormal”
enquanto
corpo,
o
corpo
do
outro
diferente
do
Eu.
O
corpo,
na
imagem
refletida,
é
delimitado,
mas
esta
imagem
é
inacessível
na
medida
em
que
não
podemos
estar
onde
está
a
imagem.
Como
na
fotografia,
não
há
como
estar
ao
mesmo
tempo
no
momento
registrado
e
na
imagem:
apenas
a
imagem
pode
estar
lá,
o
corpo
não.
Por
isso,
para
Foucault
(2013),
“fazer
amor
é
sentir
o
corpo
refluir
sobre
si,
é
existir,
enfim,
fora
de
toda
utopia,
com
toda
intensidade,
entre
as
mãos
do
outro”
(p.16).
As
partes
que
não
vemos
no
espelho,
o
lado
mais
inalcançável
das
costas
ou
o
que
não
se
vê
abaixo
dos
pés,
tornam-‐se
sensíveis
quando
tocadas
pelo
outro;
há
um
olhar
que
nos
olha
quando
fechamos
as
nossas
pálpebras.
Por
isso,
fazer
amor,
esse
monstro
que
nos
toca
onde
não
podemos
ver,
talvez
seja
o
único
modo
de
nos
fazer
perceber
que
o
corpo
não
está
ausente
em
vida.
II.3.
Corpo
tendencioso:
A
opacidade
do
discurso
fotográfico
A
fotografia
possui,
desde
a
sua
invenção,
o
credencial
de
objetividade,
principalmente
por
ser
produzida
através
de
uma
câmara,
objeto
que
acreditava-‐se
permitir
um
resultado
“imparcial”,
verdadeiro,
por
supostamente
impedir
a
ação
da
mão
humana,
delegando
uma
autenticidade.
Era
vista
como
uma
“representação
da
própria
natureza,
como
uma
cópia
não
mediatizada
do
mundo
real.
O
próprio
meio
é
considerado
transparente”
(Sekula,
2013[1974],
p.389).
No
entanto,
ao
longo
do
tempo,
tem
sido
reconhecido
o
valor
que
as
imagens
escondem
por
trás
dessa
crença
construída
em
torno
da
transparência
da
imagem
fotográfica.
A
imagem
mecânica
surge
no
século
XIX,
num
ambiente
positivista,
como
resultado
da
intenção
humana
de
encontrar
uma
forma
mecânica
de
representação
do
real,
utilizando
esforços
já
iniciados
algumas
décadas
antes,
pelo
menos
desde
a
época
de
Leonardo
da
Vinci.
Depois
de
ser
apresentada
por
Daguerre
e
Niépce,
para
então
tornar-‐se
de
domínio
público,
“foram
criadas
condições
para
um
desenvolvimento
contínuo
e
acelerado”
(Idem).
Foi
assim
que
a
fotografia
passou
a
desempenhar
um
papel
fundamental
na
transformação
cultural,
especialmente
a
partir
do
momento
em
que
a
imagem
ganhou
terreno
junto
à
palavra
impressa,
com
a
invenção
dos
jornais,
apesar
dos
media
borrarem
as
fronteiras
entre
a
realidade
e
sua
representação.
A
fotografia,
nessa
época,
emergia
rapidamente
como
importante
instrumento
de
comunicação
de
massas.
Os
flashes
e
as
câmaras
de
pequeno
formato
começavam
a
ser
mais
fáceis
de
obter.
A
rotogravura
estava
a
desaparecer
e
as
primeiras
grandes
revistas
ilustradas
que
ocupariam
o
seu
lugar
davam
os
primeiros
passos
para
um
público
que
não
estava
habituado
a
uma
utilização
tão
liberal
das
imagens
fotográficas.
Desenvolviam-‐se
novas
formas
e
técnicas
para
conseguir
acompanhar
as
possibilidades
dos
novos
equipamentos
e
do
mercado,
bem
como
para
criar
novas
necessidades.
À
diversidade
dos
temas
já
legitimados
veio
acrescentar-‐se
todo
um
novo
território
de
assuntos
e
conteúdos.
(Tagg,
2013
[1977],
p.381)
58
Para
Walter
Benjamin,
em
Pequena
História
da
Fotografia,
os
processos
de
captação
de
imagem
no
século
XIX
foram
responsáveis
por
apresentar
uma
forma
diferente
de
experiência
e
recepção
das
imagens.
Antes
do
surgimento
da
linguagem
fotográfica,
não
havia
um
manual
ou
roteiro
para
“olhar”
a
fotografia.
À
primeira
vista,
na
fotografia
se
mostravam
vários
trajetos
possíveis
e
imprevisíveis,
“outros
tantos
tropeços
para
o
olho,
na
profusão
do
visível”
(Frade,
1992,
p.111).
Para
o
observador,
que
via
a
imagem
fotográfica
pela
primeira
vez,
a
visão
trazia
a
sensação
de
perda,
mesmo
que
de
forma
inconsciente.
De
todo
modo,
o
contexto
da
produção
e
recepção
destas
imagens
teve
sempre
um
caráter
ambíguo,
girando
em
torno
dos
pares
vida
e
morte,
verdade
e
representação,
visível
e
invisível,
para
mostrar
que
a
fotografia
ainda
está
coberta
por
uma
densa
nuvem
de
mistério.
Conforme
Miguel
Frade
(1992),
o
realismo
e
a
verdade
positiva
dos
fatos
da
ciência
no
século
XIX
não
impediram
que
as
imagens
se
constituíssem,
em
alguns
momentos,
como
objetos
de
um
“fascínio
do
ínfimo”,
que
ao
impedir
ou
dificultar
uma
restituição
total
dos
aspectos
da
imagem
fotográfica,
fez
vacilar
a
importância
atribuída
à
mimese
fotográfica.
Ele
ainda
conta
que
os
problemas
do
detalhe
estão
relacionados
ao
fato
de
que
as
fotografias,
quando
tudo
parecem
revelar
em
suas
superfícies,
são,
na
verdade,
um
espaço
misterioso
onde
se
joga
com
vários
modos
de
dissimulação,
a
exemplo
do
enquadramento,
profundidade
de
campo,
o
uso
do
flou
(desfocado)
ou,
ainda,
a
utilização
da
raspagem
e
retoque
do
negativo
(trucagem).
Desse
modo,
“qualquer
fotografia
esconde
tanto
ou
mais
do
que
se
dá
a
ver”
e,
por
isso,
todo
e
qualquer
ver
e
saber
pode
aparecer
como
“uma
potência
tendencionalmente
insuficiente”
(Frade,
1992,
p.113).
As
imagens
são
um
ecrã
visível,
“que
na
sua
visibilidade
interposta
forçaria
outras
visibilidades
possíveis
a
manterem-‐
se
indeterminados
como
invisíveis”
(ibidem,
p.114).
No
entanto,
a
fotografia
foi
determinante
para
a
utopia
moderna
ao
materializar
um
arquivo
visual
universal
a
partir
da
armazenagem
de
uma
imensa
variedade
de
amostras
do
mundo,
agindo
de
acordo
com
a
lógica
da
fragmentação
e
classificação
do
planeta.
A
fotografia
passa
a
representar
o
mundo
para
aqueles
que
visualizam
na
imagem
outros
povos
distantes
e
diferentes
de
si.
Sabendo
disso,
o
racionalismo
burocrático
utilizou-‐se
dela
como
instrumento,
como
foi
o
caso
da
polícia
de
Paris
que
criou
o
primeiro
cartaz
fotográfico
em
1871
junto
com
a
inscrição
59
“Procura-‐se”
(Sekula,
2013
[1974]).
Outras
funções
racionais
foram
atribuídas
à
fotografia
seguindo
essa
lógica
de
classificação
do
mundo,
como
foi
o
caso
dos
retratos
de
tribos
indígenas
e
escravos
que
atestavam
as
grandes
conquistas
imperiais
e
expansionistas
da
época.
Embora
as
noções
de
realidade
e
imagem
fotográfica
fossem
até
consideradas
complementares
no
passado,
não
é
a
realidade
que
se
torna
visível
na
superfície
da
imagem,
mas
sim
a
interpretação
do
momento
vivenciado
pelo
fotógrafo.
É
neste
processo
–
entre
o
que
se
viu
e
o
que
se
quer
mostrar
–
que
a
fotografia
tornou
visível
a
definição
identitária
do
Outro.
Por
isso,
para
Allan
Sekula
(2013),
qualquer
encontro
com
a
fotografia
deve
ser
a
nível
de
conotação,
visto
que
um
discurso
fotográfico
“é
um
sistema
no
interior
do
qual
a
cultura
liga
as
fotografias
a
várias
tarefas
representativas”
(p.
390).
Para
ele,
o
discurso
fotográfico
tem
como
função
tornar-‐se
transparente,
mas
se
caracteriza
por
uma
retórica
tendenciosa,
pois
“é
o
sinal
de
que
alguém
envia
uma
mensagem”
(Idem).
O
autor
acrescenta
também
que
Para
ele,
a
inserção
do
“natural
e
universal”
torna-‐se
particularmente
poderosa
na
fotografia
devido
ao
estatuto
fotográfico
de
testemunha
da
realidade.
Esta
vinculação
à
fotografia
é
produzida
e
reproduzida
por
aparelhos
ideológicos
privilegiados,
como
polícia,
tribunais
e
estabelecimentos
científicos.
Apenas
quando
ignorado
o
funcionamento
da
fotografia
no
interior
de
determinados
aparelhos
ideológicos,
o
seu
estatuto
privilegiado
é
deslocado
para
o
entendimento
de
uma
suposta
“natureza”
fotográfica.
Recordando
as
imagens
de
Atget,
Abbott
e
Evans,
temos
também
de
estar
conscientes
de
que
a
hipotética
“foto
bruta”
(frontal
e
clara)
é
ela
própria
localizável
dentro
de
uma
tipologia
histórica
de
configurações
fotográficas:
é
o
formato
característico
das
fotografias
nos
papéis
e
documentos
oficiais,
predominando
também
nesta
estirpe
mais
pura
das
fotografias
de
alta
linhagem
–
a
“fotografia
direta”-‐,
que
muitos
críticos
e
ideólogos
consideram
encarnar
as
“verdades
universais”
acerca
da
existência,
do
“estado
de
ser”,
da
“êxtase
em
contínuo”.
(p.361)
Desse
modo,
Tagg
entende
a
fotografia
como
objeto
utilizado
como
forma
de
manipulação.
Ela
tanto
pode
ser
posta
em
álbuns
como
pode
ser
exposta
em
museus,
servir
como
prova
policial
e
como
controle
de
fronteiras
e
ainda
serem
impressas
em
livros.
O
seu
conteúdo
pode
ser
descrito
por
qualquer
legenda,
assim
como
qualquer
um
pode
criar
uma
legenda
para
a
imagem.
Isso
aconteceu
muito
com
as
imagens
etnográficas
que
foram
consumidas
por
museus,
o
que
levou
a
erros
de
identificação
de
várias
tribos
(Edwards,
2008).
O
turismo
também
pode
deturpar
a
mensagem
fotográfica
através
do
seu
poder
de
“colonização
de
novas
experiências”
(Tagg,
2013,
p.365),
ou
seja,
utilizando
a
fotografia
para
captar
uma
diversidade
de
temas
inimagináveis
e
explorando
o
exotismo
criado
com
base
nas
velhas
concepções
colonizadoras
do
outro.
Mas
ambas
as
utilizações
da
imagem
–
turismo
e
museus
–
são
61
altamente
problemáticas,
pois
enquanto
a
primeira
atua
conforme
um
princípio
da
lógica
de
mercado,
o
segundo
foi
por
muito
tempo
consumidor
de
imagens
que
eram
vendidas
por
fotógrafos
que
determinavam
legendas
de
acordo
com
o
valor
que
elas
possuíam
para
os
acervos.
Referindo-‐se
a
Foucault,
Tagg
(2013)
fala
que
a
criação
e
a
definição
de
um
“estatuto
da
verdade”
em
qualquer
sociedade
faz
parte
de
um
“sistema
de
procedimentos
mais
ou
menos
ordenados
para
a
produção,
regulação,
distribuição
e
circulação
de
declarações”
(p.371).
A
“verdade”
vincula-‐se
a
sistemas
de
poder
que
a
produzem
e
a
suportam,
bem
como
aos
efeitos
de
poder
que
a
induz
e
reorientam.
Por
isto,
cada
sociedade
tem
uma
política
geral
da
verdade
que
nada
mais
é
que
um
conjunto
de
discursos
que
funcionam
como
verdade.
Logo,
a
imagem
fotográfica,
quando
vista
como
documento
atestador
ou
verificador
de
uma
suposta
verdade,
passa
a
ser
utilizada
também
para
imprimir
discursos
de
verdade
que
variam
de
acordo
com
o
que
é
produzido
em
cada
sociedade
com
esse
valor.
Victor
Burgin
em
Looking
at
Photographs
(1982
[1977]),
parte
dos
preceitos
da
semiótica
para
romper
com
a
ideia
de
um
sistema
único
de
significação,
com
signos
fixos,
para
pensar
na
fotografia.
Para
ele,
“há
antes
um
complexo
heterogêneo
de
códigos
a
partir
do
qual
a
fotografia
pode
se
posicionar”
(p.144).
Defende,
desse
modo,
uma
“linguagem
fotográfica”
como
um
processo
de
interação
entre
códigos
de
diversos
tipos,
visuais
ou
verbais,
que
variam
a
cada
imagem.
Também
para
ele,
as
características
do
aparato
fotográfico
ocultam
a
textualidade
da
imagem,
pois
a
dualidade
sujeito-‐objeto
mediada
pelo
aparato
fotográfico
e
pelas
imagens
que
são
produzidas,
tende
a
fazer
com
que
o
receptor
da
imagem
substitua
a
leitura
crítica
por
uma
recepção
passiva.
Nesse
sentido,
quando
nos
deparamos
com
a
imagem
fotográfica,
nós
operamos
no
sentido
de
fornecer
à
imagem
informações
que
ela
não
apresenta
até
conseguir
reconhecer
o
objeto
retratado
para
investir
uma
“identidade
plena”,
isto
é,
a
totalidade,
coerência
e
a
identidade
são
para
ele
uma
projeção,
uma
recusa
da
realidade
que
ocorre
de
forma
instantânea.
Esse
objeto
imaginário,
no
entanto,
não
é
utilizado
no
sentido
comum
da
palavra,
pois
“ele
é
visto,
ele
projetou
uma
imagem”
(p.147).
Burgin
(1982)
acredita
que
a
imagem
fotográfica
está
inextricavelmente
presa
a
atos
sociais
específicos
que
fornecem
uma
intenção
aos
sentidos
apresentados
na
62
imagem,
visto
que
a
sua
própria
estrutura
de
representação
se
envolve
intimamente
com
a
produção
de
ideologia,
ao
organizar
o
mundo
visual
no
interior
de
uma
moldura
que
tem
uma
estrutura
coerente
e
condizente
com
a
tradição
pictórica
ocidental.
A
questão
do
significado,
desse
modo,
foi
vista
como
da
ordem
das
formações
sociais
e
da
psique
do
autor
ou
espectador
da
imagem,
amparada
pelos
discursos
do
marxismo
e
da
psicanálise.
Referindo-‐se
à
ênfase
do
olhar
em
Lacan
e
na
discussão
sobre
o
imaginário,
Burgin
definiu
o
efeito
subjetivo
da
câmara
com
uma
coerência
enganadora
que
tem
como
base
o
olhar
unificador
de
um
sujeito
pontual.
Dessa
forma,
o
objeto
é
representativo
de
um
inconsciente
e
o
objeto
real
está
sempre
ausente.
Segundo
Geoffrey
Batchen
(2007
[1999]),
a
teoria
oferecida
por
Burgin
desloca
a
atenção
da
fotografia
para
procurar
algo
que
necessariamente
tem
a
origem
em
outro
lugar
ao
propor
a
separação
do
corpo
da
psique.
Essa
abordagem
acompanha
uma
corrente
teórica
que
passou
a
ser
desenvolvida
no
fim
dos
anos
1970,
em
que
também
participam
autores
que
falamos
anteriormente,
John
Tagg,
Allan
Sekulla,
além
de
Abigail
Solomon-‐
Godeau,
para
abordar
a
fotografia
num
campo
amplo
da
cultura,
negando
a
possibilidade
da
imagem
fotográfica
possuir
uma
identidade
própria.
Através
de
uma
aproximação
com
a
investigação
da
cultura
material,
Geoffrey
Batchen
(2007)
apresenta,
para
além
de
uma
origem
fotográfica,
uma
reflexão
sobre
o
surgimento
da
fotografia
como
uma
prática
discursiva,
cujo
objeto
de
desejo
parece
ser
a
fotografia.
Para
analisar
esse
discurso,
procura
examinar
não
só
obras
dos
primeiros
“experimentadores”
da
fotografia,
mas
também
outros
discursos
do
mesmo
período,
como
o
da
ciência
e
da
cultura
material.
Com
amparo
de
uma
modalidade
crítica
da
história
que
tem
base
na
genealogia
de
Foucault
e
da
desconstrução
de
Derrida,
o
autor
procurou,
em
Burning
with
Desire,
reescrever
a
história
tradicional
das
origens
da
fotografia
e
confrontar
as
análises
realizadas
no
pós-‐modernismo,
que
determinou
que
todo
significado
está
no
contexto.
Para
Batchen
(2007),
aqueles
autores
pós-‐modernistas
desenvolveram
uma
concepção
particular
de
fotografia
que
era
central
entre
os
autores
anglo-‐americanos
da
época:
um
olhar
para
o
sentido
contextual
da
imagem,
conectando
sentidos
que
expressam
experiências
de
classe,
raça,
gênero
e
nacionalidade.
Ao
se
contrapor
ao
formalismo
que
insistia
que
a
fotografia
é
natureza,
o
pós-‐modernismo
passou
a
63
defender
que
fotografia
é
cultura.
Desse
modo,
acabou
por
oferecer
a
mesma
economia
“logocêntrica”
(Derrida)
da
análise
produzida
no
formalismo
modernista,
oferecendo
uma
ideia
que
é
tomada
como
definitiva
e
irrefutável.
Essa
retenção
de
uma
lógica
estruturalista,
diz
Batchen
(Idem),
também
limita
a
relação
dessas
discussões
com
a
questão
do
poder,
pois
ao
reconhecer
a
fotografia
sempre
como
manifestação
de
poder
externa
a
ela,
termina
por
apresentar
também
a
separação
da
fotografia
do
corpo.
Na
teoria
proposta
por
Tagg,
por
exemplo,
Batchen
encontrou
duas
consequências
problemáticas:
Primeiramente,
o
“sujeito”
da
fotografia
surge
como
“efeito”
da
produção
de
ideologia,
como
se
o
corpo
estivesse
separado
da
mente
novamente;
depois,
o
autor
estabelece
uma
lógica
de
prioridades
na
qual
o
poder
sempre
precede
a
fotografia,
ou
seja,
o
poder
do
Estado
surge
como
anterior
à
representação.
Desse
modo,
situando-‐se
a
partir
da
Idade
Moderna,
Batchen
fala
que
a
fotografia
é
produto
do
sujeito
que
desponta
na
modernidade
e
que
abandona
os
seus
entendimentos
na
Idade
Clássica.
A
fotografia
se
inscreve
assim
como
um
“palimpsesto”,
isto
é,
como
“um
acontecimento
que
se
inscreve
a
si
mesmo
no
espaço
simultaneamente
marcado
e
deixado
em
branco
pelo
súbito
colapso
da
filosofia
natural
e
de
sua
visão
do
Iluminismo”
(Batchen,
2007,
p.186).
Para
o
autor,
a
origem
da
fotografia
mostra
na
verdade
que
ela
não
é
fixa
e
imutável,
mas
resulta
em
um
perturbador
jogo
de
diferenças
(différance),
onde
os
comentaristas
pretendem
identificá-‐la
com
a
natureza
(formalistas)
ou
com
a
cultura
(pós-‐modernistas).
Na
verdade,
a
fotografia,
em
sua
análise,
se
mostra
formada
por
uma
multiplicidade
de
fatores,
uma
junção
entre
imagem,
tecnologia,
modos
de
ver,
conhecimento
do
fotógrafo,
etc.,
e
por
isso
irredutível
ao
entendimento
de
que
a
imagem
se
conforma
apenas
segundo
o
ponto
de
vista
do
fotógrafo
que
exerce
o
poder
ou
de
qualquer
categoria
que
seja
externa
ou
anterior
à
própria
fotografia.
Por
ser
pensada
como
“o
jogo
de
uma
diferença
que
sempre
difere
de
si
mesma”
(Batchen,
2007,
p.187),
conforme
o
entendimento
da
differénce
de
Derrida,
o
que
confere
a
diferição
e
diferenciação
de
sentido,
a
fotografia
além
de
ser
vista
como
efeito
da
sociedade
moderna,
deve
ser
também
pensada
como
irredutível
a
ela
mesma,
pois
produz
várias
aberturas
para
produção
de
conhecimento.
Não
sendo
pós-‐
64
moderna
nem
formalista,
a
história
da
fotografia
proposta
por
Batchen
incorpora
os
dois
olhares,
se
põe
ao
meio
das
duas
correntes
de
interpretação,
e
utiliza
Foucault,
base
que
também
foi
recorrente
no
pós-‐modernismo,
para
mostrar,
através
do
conceito
de
disciplina,
“a
legitimação
para
uma
leitura
da
história
da
fotografia
que
identifica
esta,
como
base
na
sua
‘transparência’,
como
particularmente
apta
a
servir
a
construção
do
‘real’
por
parte
das
estruturas
de
poder”
(Medeiros,
2010,
p.59).
Dessa
forma,
ao
invés
de
pensá-‐la
como
efeito
de
poder,
a
fotografia
passa
a
ser
pensada
em
sua
relação
com
discursos
diversos,
de
modo
que
se
recusa
a
se
instalar
em
algum
dos
pólos
de
identificação
existentes,
seja
natureza,
cultura,
contexto
da
imagem,
os
media.
Por
isso,
quando
a
autora
pensa
na
fotografia,
ela
fala
dela
como
produto
do
encontro
entre
as
pessoas
que
são
ambas
protagonistas,
fotógrafo
e
fotografado,
câmara
e
espectador.
Mas
esse
“evento”
que
acontece
entre
pessoas,
como
ela
mesma
denomina,
não
necessariamente
resulta
em
uma
imagem
fotográfica.
Muitas
vezes,
mesmo
quando
a
câmara
ainda
estiver
desligada,
as
pessoas
ainda
verão
uma
fotografia
sendo
feita
através
da
imaginação.
Porém,
a
fotografia
produzida
ou
não
neste
“evento”
torna-‐se
um
documento
rico
que
pode
ser
usado
na
constituição
de
acontecimentos,
tornando-‐se
também
único,
no
sentido
de
que
não
se
pode
reivindicar
quem
possui
uma
posição
soberana
neste
encontro
que
foi
inscrito
na
fotografia
(Azoulay,
2010).
No
caso
de
inexistência
da
imagem,
a
imaginação
é
acionada
no
tempo
presente
como
dever
civil
de
ação
para
refazer
o
que
a
fotografia
poderia
ter
gravado,
caso
fosse
produzida.
“Quando
a
suposição
é
de
que
não
só
as
pessoas
fotografadas
estiveram
lá,
mas
que,
além
disso,
elas
ainda
estão
presentes
lá
quando
eu
estou
assistindo
essas
fotos,
meu
olhar
sobre
elas
está
menos
suscetível
de
65
tornar-‐se
imoral”
(Azoulay,
2008,
p.16).
Desse
modo,
a
fotografia
age
ao
convocar
o
outro
que
a
olha
para
a
ação.
II.4.
Corpo
controlado:
classificações
raciais,
médicas
e
policiais
A
fisionomia
surgiu
no
século
XIX
como
espelho
da
alma.
Johann
Kaspar
Lavater
(1741-‐1801),
criador
da
fisionomia,
acreditava
que
essa
ciência
permitia
o
conhecimento
dos
homens
através
dos
traços
fisionómicos,
pois
no
rosto
poderia
ser
revelada
a
verdade
que
está
escondida
no
coração.
Para
isso,
eram
isolados
o
perfil
da
cabeça
e
da
face,
atribuindo
uma
característica
significante
a
cada
elemento:
testa,
olhos,
orelhas,
nariz,
queixo,
etc.
(Sekula,
1986).
O
carácter
individual
deveria
ser
julgado
a
partir
de
um
cruzamento
das
leituras
dos
elementos
faciais,
onde
cada
elemento
estabelecia
uma
característica
da
índole
do
indivíduo
analisado.
De
acordo
com
a
fisionomia,
o
homem
se
mostrava
ao
mesmo
tempo
visível
e
invisível,
alma
e
corpo,
moral
e
físico.
Mas
a
personalidade,
o
invisível,
tornava-‐se
visível
com
a
análise
de
cada
detalhe
do
rosto.
67
A
frenologia
também
surgiu
no
século
XIX
com
as
pesquisas
do
físico
Franz
Josef
Gall,
que
buscava
identificar,
a
partir
da
topografia
do
crânio,
áreas
que
correspondessem
à
localização
das
faculdades
mentais
do
cérebro.
A
frenologia
partilhava
com
a
fisionomia
a
crença
de
que
a
superfície
do
corpo,
nomeadamente
do
rosto
e
cabeça,
“eram
portadoras
dos
signos
externos
do
caráter
interior”
(Sekula,
1986,
p.140).
Assim
como
a
fisionomia,
a
frenologia
foi
uma
disciplina
comparativa,
taxonómica,
que
procurava
englobar
uma
imensa
diversidade
humana
como
que
para
constituir
um
grande
arquivo
à
espera
de
leitura.
Esta
ciência
era
acessível
a
todos,
bastava
a
leitura
dos
livros
e
manuais
de
frenologia
para
dominar
os
códigos
interpretativos
e,
então,
realizar
a
leitura
facial.
A
fisionomia
e
a
frenologia
representaram,
juntas,
a
hegemonia
ideológica
capitalista
que
defende
uma
divisão
hierárquica
de
trabalho
e
a
individualidade.
Essas
disciplinas
foram
responsáveis
por
estabelecer
motivos
orgânicos
que
serviram
como
prova
ou
autenticação
da
dominação
intelectual
de
um
sobre
os
outros.
Isto
teve
bastante
influência
na
arte,
literatura
e
na
cultura
geral
em
meados
do
século
XIX.
Teve
bastante
influência
também
no
processo
de
identificação
das
massas
de
estrangeiros
que
se
tornavam
trabalhadores
urbanos
com
o
surgimento
das
cidades,
momento
em
que
o
novo
contingente
dava
margem
para
a
equivalência
entre
o
povo
e
a
periculosidade18.
A
fotografia
e
a
frenologia
são
contemporâneas,
e
isso
foi
determinante
para
que
a
fotografia
servisse
como
ferramenta
valiosa
para
a
frenologia.
Na
medida
em
que
a
câmara
fotográfica
permitia
rapidez
e
veracidade
à
constituição
de
um
arquivo;
a
frenologia
poderia
ter
seus
estudos
validado
pela
imagem
mecânica.
Surgem,
as
duas,
numa
época
de
alta
movimentação
e
instabilidade
social,
o
que
também
levou
ao
uso
da
fotografia
e
da
frenologia
na
administração
social
e
sua
organização.
A
união
de
fato
com
o
Estado
burocrático
se
deu
pelas
mãos
do
policial
parisiense
Alphonse
Bertillon
(1853-‐1914)
nos
anos
1880,
quando
criou
o
primeiro
sistema
de
identificação
criminal
moderno
que
cruzava
aspectos
individuais
com
os
traços
fisionômicos
para
definir
formas
que
supostamente
representam
o
desvio
social.
18
Antes
disso,
no
século
XVII
existia
uma
sociedade
anónima
e
uma
população
desconhecida.
O
trabalho,
o
lazer,
o
convívio
com
a
família
eram
atividades
separadas,
que
eram
vividas,
cada
uma,
em
espaços
fechados,
protegidos
do
olhar
dos
outros,
espaços
particulares
(Tucherman,
2012).
68
Figura
1
–
“Cartão
de
arquivamento”
de
Bertillon,
1893
Fonte:
Internet
Bertillon
desenvolveu
tal
técnica
por
causa
de
sua
alta
demanda
de
trabalho.
Ela
consistia
em
uma
padronização
das
gravações
policiais
para
possibilitar
a
identificação
dos
reincidentes
no
“cartão
de
arquivamento”
(Fig.
1).
No
cartão,
eram
reunidas
medidas
detalhadas
dos
criminosos,
descrição
de
marcas
de
identificação
e
duas
fotos
–
de
frente
e
de
perfil
–
que
eram
tiradas
com
lentes
focais
e
iluminações
padrões.
Essas
fotografias
de
registros
de
prisão
com
sua
técnica
de
iluminação
e
foco
padrão,
para
Sekula
(1986),
fizeram
florescer
a
técnica
do
retrato
fotográfico.
A
fotografia
passou,
assim,
a
integrar
o
sistema
do
racionalismo
burocrático.
Tornou-‐se
ferramenta
imprescindível
para
identificação
e
arquivamento
da
nova
massa
de
trabalhadores
urbanos.
A
classificação
tipológica,
neste
sentido,
tornou
a
grande
massa
de
estrangeiros
na
cidade
mais
“familiar”
com
a
catalogação
da
fisionomia
e
a
utilização
de
generalizações
convenientes.
Mas,
na
verdade,
a
preocupação
com
a
identificação
e
arquivamento
pelos
poderes
dominantes
esteve
muito
mais
conectada
a
uma
necessidade
de
vigilância
e
controlo
do
que
a
uma
criação
de
um
sistema
de
segurança
para
as
instáveis
cidades
recém-‐formadas.
Além
disso,
este
procedimento
classificatório
foi
responsável
pela
generalização
de
identidades
que
condenava
os
“estrangeiros”
à
uma
caracterização
circunscrita
por
elementos
fisionômicos
e
significações
impostas.
A
fotografia
era
a
técnica
objetiva
e,
por
isso,
era
uma
ferramenta
perfeita
para
arquivamento
e
documentação
das
fisionomias,
como
também
veio
a
ser
na
tarefa
de
catalogação
de
doenças
em
manicómios.
Em
1860,
o
fotógrafo
Charles
Le
69
Nègre
realizou
um
registo
fotográfico
sobre
a
situação
dos
doentes
no
manicómio
imperial
de
Vincennes
e
Baillarger,
como
também
desenvolveu
uma
série
de
fotografias
de
Salpêtrière,
quando
Charcot
e
Richer
iniciaram
a
produção
da
Nova
Iconografia
da
Salpêtrière
(Tagg,
2005
[1988]).
Para
Didi-‐Huberman
(2007),
esse
processo
de
classificação
de
doenças
coordenado
por
Charcot,
professor
de
anatomia
patológica
de
Salpêtrière,
parecia
com
uma
"fábrica
de
imagens",
a
que
Foucault
(2008
[1972])
chamou
de
"clínica
da
observação":
Além
de
criar
o
conceito
classificatório
de
histeria,
quando
a
diferenciou
da
histeria,
lhe
concedeu
uma
identidade
visual.
Charcot
começou
a
trabalhar
em
La
Saltêtrière
em
1862
e
foi
nomeado
professor
de
anatomia
dez
anos
depois.
Em
1881,
com
apoio
político,
conseguiu
criar
a
primeira
cátedra
de
doenças
nervosas.
Quando
transformou
o
maior
manicômio
da
França
em
local
de
clínica
e
ensino,
criou
também
o
Serviço
de
Fotografia
que
funcionava
num
regime
de
colaboração
entre
os
seus
discípulos
e
fotógrafos.
Contraditoriamente,
a
produção
de
imagens
fotográficas
que
tinham
a
função
de
identificar
as
doenças
o
mais
realisticamente
possível,
eram
produzidas
com
o
auxílio
da
encenação
dos
doentes.
Segundo
Didi-‐Huberman
(2007),
a
fotografia
era
a
“verdadeira
retina”
do
cientista,
por
isso,
ela
foi
decisiva
para
a
invenção
da
histeria,
com
todos
os
estágios
fotografados
e
exibidos
como
prova
de
que
o
diagnóstico
era
autêntico.
Charcot
descreveu
a
histeria
em
quatro
estágios
distintos
da
doença
e
disse
que
tais
estágios
eram
aspectos
universais:
Havia
primeiramente
um
período
“epileptoide”,
no
qual
a
paciente
sofria
ataques.
Na
fase
seguinte,
no
“período
de
contorções
e
grands
mouvements”,
a
paciente,
como
o
nome
indica,
apresentava
demonstrações
físicas
dramáticas,
muitas
vezes
acompanhada
de
choro
e
gritos,
e
culminando,
em
alguns
casos,
na
adoção
da
posição
arc-‐en-‐cercle,
na
qual
a
paciente
de
dobrava
pra
trás
numa
contorção
aparentemente
impossível,
com
apenas
a
parte
de
trás
da
cabeça
e
os
calcanhares
tocando
o
chão.
Charcot
também
se
referiu
a
esses
episódios
como
clownisme.
Então,
especialmente
nas
pacientes
do
sexo
feminino,
havia
a
fase
das
attitudes
passionelles,
na
qual
posavam
como
estando
crucificadas
ou
em
vias
de
um
orgasmo.
(Scull,
2009,
p.115)
A
“imagem
da
histeria”,
como
ficou
vulgarmente
conhecida
a
produção
de
Charcot
(Fig.
2),
procurava
transmitir
o
saber
médico
das
doenças
nervosas
através
de
uma
estetização
da
patologia.
Charcot
personificou
uma
“autoridade
museológica
70
sobre
o
corpo
doente”
(Didi-‐Huberman,
2007,
p.
17)
ao
nomear
patologias
e,
ao
mesmo
tempo
em
que
construiu
uma
narrativa
fotográfica
da
histeria,
generalizou
a
patologia.
Para
Charcot,
a
histeria,
mal
feminino,
poderia
estar
conectada
ao
período
menstrual.
Até
hoje,
e
muito
frequentemente,
as
mulheres
são
acusadas,
principalmente
por
homens,
de
possuírem
problemas
no
período
e/ou
histerismo
quando
não
se
comportam
de
acordo
com
o
esperado
pela
sociedade.
Segundo
Eduarda
Neves
(2016,
p.37),
a
constituição
desse
arquivo
da
histeria,
no
qual
a
fotografia
procura
“desocultar”
os
problemas
mentais
inconfessáveis
por
seus
portadores,
representa
a
“individualização
como
facto
político,
integrada
no
dispositivo
geral
de
poder”
(Idem,
p.38).
Tentou-‐se,
assim,
materializar
uma
suposta
conexão
entre
identidade
e
“verdade”
nos
moldes
de
um
grande
inventário
de
gentes
que
servia,
ao
fim,
para
vigilância
dos
“desviantes”
da
sociedade
pelo
Estado
burocrático
e
burguês.
Desse
modo,
classificavam
as
diferenças
individuais
a
partir
de
um
estatuto
“de
singularidade
ou
de
desvio”
(Neves,
2016,
p.38),
para
agrupar
povos
“sem
cultura”
ou
com
comportamentos
“inadequados”
que
iriam
servir
como
representação
na
imagem
da
alteridade
ou
da
cultura
inferior.
Figura
2
–
A
imagem
da
histeria
na
Iconographie
photographique
de
La
Salpêtrière
(1876-‐80)
Fonte:
https://www.flickr.com/photos/kristeberlin/4384320687/
71
tornou-‐se
ferramenta
de
poder
para
identificação
do
que
seria
uma
“anormalidade”
na
sociedade
e
mostrar
que
todos
estão
sob
total
vigilância.
72
outras.
Com
o
amparo
científico
e
“objetivo”,
ele
conseguiu
fazer
com
que
estas
ideias
tivessem
grande
penetração
pública,
com
foi
o
caso
da
ideia
de
eugenia
que
conseguiu
uma
grande
adesão
no
nazismo.
Essas
práticas
classificatórias
que
tiveram
como
base
a
frenologia
e
a
fisionomia
ainda
hoje
se
fazem
presentes
na
burocracia
policial
e
médica.
A
polícia
ainda
utiliza
o
retrato
em
estúdio
para
identificar
criminosos;
a
medicina,
com
o
uso
de
softwares,
utiliza
a
composição
fotográfica
para
desenhar
o
rosto
do
futuro
filho
através
do
cruzamento
da
imagem
dos
pais
ansiosos.
Segundo
Henning
(1996),
o
fato
dessas
técnicas
fazerem
parte
do
quotidiano
contemporâneo
faz
com
que
muita
gente
ainda
não
consiga
associar
as
práticas
fisionómicas
às
ideias
racistas
ou
de
vigilância
e
de
controle
social.
Figura
3
–
Retratos
compostos
feitos
com
a
combinação
de
pessoas
diferentes
com
a
técnica
de
Francis
Galton
(1822-‐
1911)
Fonte:
http://galton.org/
Os
aparatos
reguladores
e
disciplinares,
como
visto,
estiveram
intimamente
vinculados,
no
século
XIX,
á
formação
de
novas
ciências
sociais,
antropológicas,
como
a
psiquiatria,
a
polícia
e
a
etnografia
que
tomou
o
corpo
como
campo
de
estudo
e
ação.
Vale
ressaltar
que
grande
parte
das
imagens
coloniais
foram
realizadas
com
a
mesma
técnica
do
retrato
policial
criadas
por
Bertillon,
conhecida
como
bertillonagem,
ao
por
de
frente
e
de
perfil
o
negro/negra
ou
índigena
para
melhor
observação
dos
traços
fisionómicos.
Isto
demonstrava
que
(...)
as
classes
trabalhadoras,
os
povos
colonizados,
os
criminosos,
os
pobres,
os
favelados,
os
doentes
e
os
loucos
foram
designados
como
objetos
passivos
-‐
ou,
nessa
estrutura,
como
os
objetos
"feminizados"
–
do
conhecimento.
Sujeitos
ao
escrutínio,
forçados
a
73
emitir
sinais,
porém
alijados
do
controle
de
significado,
esses
grupos
eram
representados
e
intencionalmente
mostrados
como
incapazes
de
falar,
agir
ou
se
organizar
sozinhos.
(Tagg,
2005
[1988],
p.
20).
Este
modelo
de
identificação
implantou
a
sujeição
de
indivíduos
a
normas
de
controle
e
de
estereotipagem
para
serem
vistos
como
diferentes
e,
assim,
compor
um
grande
arquivo
de
alteridades
para
acesso
do
Estado.
Toda
essa
crença
de
“verdade”
atrelada
à
fotografia
sempre
foi
acompanhado,
por
fim,
de
um
discurso
ideológico
criado
pelo
poder
hegemônico.
Aproveitou-‐se
da
“realidade”
fotográfica
para
classificar
e
justificar
a
exclusão
daqueles
que
não
se
encaixam
nos
requisitos
de
uma
sociedade
chauvinista,
branca
e
europeia
que
segue
firme
e
forte
na
fabricação
da
alteridade
desde
o
período
colonial.
74
inferioridade
social
emoldurava
o
significado
das
representações
dos
objetos
de
supervisão
ou
recuperação”
(Tagg,
2005,
p.
53).
O
retrato,
para
Tagg
(2005),
seria
um
signo
cuja
finalidade
é
tanto
a
descrição
de
um
indivíduo
como
inscrição
da
identidade
social,
mas
é
também
mercadoria,
luxo,
que
confere
posição.
Obter
um
retrato
no
século
XIX
não
era
acessível
a
todas
camadas
sociais,
pois
havia
uma
“aura”
preciosa
com
as
primeiras
miniaturas
fotográficas,
que
eram
impressas
em
vidro,
como
também
nas
coleções
de
carte-‐de-‐
visite
e
de
figuras
públicas.
Assim,
as
classes
sociais
que
ascenderam
na
hierarquia
social
procuravam
um
fotógrafo
para
poder
então
entrar
para
o
hall
dos
afortunados
que
poderiam
ter
uma
foto
de
si,
o
que
servia
para
exibir
seu
alcance
na
sociedade.
Foi
assim
que
a
produção
do
retrato
tornou-‐se
também
“a
produção
de
significados
em
classes
sociais
rivais
que
reivindicam
sua
presença
na
representação”
(p.53).
Ter
um
retrato
de
si
ou
da
família
significava
ascensão
social
para
as
classes
médias
e
médias-‐
baixas,
dava-‐lhes
um
lugar
de
maior
importância
social,
económica
e
política.
Figura
4
–
Honoré
Daumier.
Pose
de
um
homem
da
natureza
(acima)
e
pose
de
um
homem
civilizado
(abaixo),
em
Croquis
Parisiens,
1853
Com
a
fotografia
veio
o
“espanto”
provocado
pela
obsessão
do
detalhe,
disse
Miguel
Frade
(1992).
A
imagem
mecânica
tornou
possível
ver
o
“infinitamente
pequeno”,
cada
detalhe
do
rosto
e
do
corpo
poderia
ser
visto
minuciosamente
e
analisado
na
imagem
fotográfica.
Entretanto,
a
longa
exposição
frente
ao
daguerreótipo
aproximou
o
processo
fotográfico
ao
processo
também
longo
da
pintura
de
retratos.
Para
que
as
imagens
mecânicas
pudessem
ter
maior
definição,
criou-‐se
dispositivos
que
fixam
a
cabeça
e
joelhos
para
que
o
fotografado
permanecesse
em
uma
pose
rígida
no
momento
da
foto,
dando
uma
aparência
de
“fotografia
de
monumento”
(Benjamin,
1992,
p.121).
Esta
pose
estática,
que
muito
se
assemelha
à
de
um
morto
pela
imobilidade,
contribuiu
definitivamente
para
afastar
muitas
pessoas
da
câmara
escura,
pois
era
Nessa
passagem
do
retrato
pintado
para
o
fotográfico,
—
que
ora
foi
detestado
pelos
pintores,
ora
foi
utilizado
como
base
para
pinturas
—
permaneceram
ainda
alguns
códigos
estilísticos
da
pintura
na
fotografia
(Medeiros,
2000).
Um
deles,
como
vimos,
refere-‐se
ao
artifício
da
“pose”
para
imitar
as
pinturas
do
século
XVIII.
A
fotografia
tornou
o
retrato
acessível
e
democrático
devido
ao
desenvolvimento
tecnológico
que
permitiu,
mais
tarde,
o
estabelecimento
um
preço
acessível
a
todas
as
camadas.
Também
trouxe
o
entendimento
de
“autenticidade”
à
imagem
mecânica,
aspecto
que
na
verdade
serviu
para
esconder
um
dos
aspectos
da
pose,
que
é
a
simulação
de
identidades.
76
Para
Annateresa
Fabris
(2004),
no
momento
em
que
o
retratado
passa
a
utilizar
o
corpo
como
performance
de
si,
com
a
utilização
do
artifício
da
pose,
o
retrato
passa
a
ser
constituído
por
uma
dobra
de
significados
que
vacilam
entre
o
que
se
é
e
o
que
se
deve
parecer,
segundo
as
expectativas
do
fotógrafo.
O
resultado
acaba
por
gerar,
assim,
outras
imagens
de
si
ou
para
si,
ou
seja,
o
retrato
surge
como
uma
espécie
de
simulacro,
ou
ainda,
como
representação
de
uma
identidade
inventada,
pois
o
“indivíduo
deseja
oferecer
à
objetiva
a
melhor
imagem
de
si,
isto
é,
uma
imagem
definida
de
antemão,
a
partir
de
um
conjunto
de
normas,
das
quais
faz
parte
a
percepção
do
próprio
eu
social”
(Fabris,
2004,
pp.35-‐6).
77
que
no
retrato
pintado
o
artista
pode
atribuir
uma
imagem
“melhorada”
ao
retratado,
o
que
não
ocorre
com
a
imagem
mecânica:
(...)
ora,
a
partir
do
momento
em
que
me
sinto
olhado
pela
objectiva,
tudo
muda:
preparo-‐me
para
a
pose,
fabrico
instantaneamente
um
outro
corpo,
metamorfoseio-‐me
antecipadamente
em
imagem.
Esta
transformação
é
activa:
sinto
que
a
Fotografia
cria
o
meu
corpo
ou
o
mortifica
a
seu
bel-‐prazer
(...)
(Barthes,
1989,
p.
25)
Este
problema
que
acompanha
o
status
de
realidade
e
a
conformação
da
identidade
do
fotografado
parece
ser
recorrente
na
teoria
e
crítica
fotográfica.
Por
isso,
Baudrillard
(1996)
afirma
que
o
mais
sensato
seria
não
procurar
a
identidade
por
trás
das
aparências,
mas
sim
“procurar
a
máscara
por
detrás
da
identidade”
(p.120).
Esta
“máscara”
que
esconde
a
identidade
é
o
que
na
verdade
mostra
o
olhar
do
Outro
sobre
si.
Isto
quer
dizer
que
“perante
a
objectiva,
eu
sou
simultaneamente
aquele
que
eu
julgo
ser,
aquele
que
gostaria
que
os
outros
julgassem
que
eu
fosse,
aquele
que
o
fotógrafo
julga
que
sou
e
aquele
de
quem
ele
se
serve
para
exibir
a
sua
arte.”
(Barthes,
1989,
p.
29).
Dessa
forma,
a
fotografia
passa
a
fornecer
uma
imagem
múltipla,
paradoxal,
que
agrupa
em
si
mesma
o
conhecimento
e
a
ilusão.
A
imagem
apresenta
um
duplo,
mas
esse
duplo
não
é
a
imagem
pura,
ele
se
constitui
como
uma
máscara
que
é
adicionada
ao
fotografado.
Apesar
de
falsear
a
imagem
de
si,
essa
máscara
serve
para
mostrar
como
o
retratado
se
vê
a
partir
do
outro;
revela-‐se
como
um
conflito
interior
que
traduz-‐se
por
um
jogo
entre
o
que
se
é
e
o
que
se
espera
que
seja.
Nesse
sentido,
Peggy
Phelan
(1993)
fala
que
todo
retrato
fotográfico
é
fundamentalmente
performativo,
pois
a
representação
fotográfica
do
Eu
precisa
do
Outro
para
acontecer,
visto
que
“para
nos
reconhecermos
num
retrato
(ou
num
espelho),
imitamos
a
imagem
que
imaginamos
que
o
outro
vê”
(Phelan,
1993,
p.36).
O
bom
resultado
do
retrato
se
baseia,
conforme
a
autora,
não
na
performance,
mas
na
qualidade
da
questão
proposta
pelo
fotógrafo
ao
fotografado.
79
A
produção
do
retrato
fotográfico
ainda
implica
um
alto
grau
de
complexidade
quando
direcionadas
a
um
arquivo
fotográfico
ou
mesmo
à
produção
de
fotografias
que
envolvem
duas
culturas
totalmente
distintas,
fotografado
e
fotógrafo/instituição,
pois
são
fabricadas
segundo
as
necessidades
do
produtor,
ou
seja,
da
empresa
que
a
consome.
Neste
contexto,
as
identidades
surgem
na
superfície
da
imagem
como
“semelhanças
mentirosas”
(Fabris,
2004),
pois
imprimem
uma
imagem
que
é
construída
pelo
fotógrafo
e
que
deve
ser
performatizada
pelo
corpo
do
fotografado
de
forma
a
garantir
na
imagem
o
que
o
fotógrafo
espera
ver.
Refletir
sobre
esse
corpo
performativo
no
retrato
refere-‐se,
portanto,
a
uma
compreensão
das
questões
que
são
propostas
pelo
fotógrafo
que
dirige
e
enquadra
a
foto.
Além
disso,
na
análise
dos
retratos
produzidos
no
Brasil
por
portugueses,
estes
que
têm
relações
históricas
complexas
e
profundas
com
a
ex-‐colónia,
coloca-‐se
como
emergência
a
análise
do
contexto
em
que
as
imagens
foram
produzidas,
pois
a
imagem
pode
refletir
o
olhar
do
fotógrafo
pode
reavivar
questões
coloniais
e
de
género
ou
promover
um
novo
olhar
descolonizador.
Segundo
Baudrillard
(2014),
a
imposição
da
beleza
do
corpo
implica
o
erótico.
Por
isso,
na
sociedade
de
consumo,
o
corpo
é
sempre
objeto
que
liberta,
unicamente,
a
pulsão
da
compra.
Seja
para
a
venda
de
produtos
ou
de
cosméticos,
a
publicidade
tem
utilizado
corpos
femininos
para
fabricar
imagens
estereotipadas,
como
a
de
símbolo
sexual
e
a
da
dona
de
casa
submissa,
para
atrair
novos
compradores.
Também,
a
publicidade
tem
sido
responsável
por
representar
o
corpo
da
mulher
baseado
em
graus
de
nudez
explícita
ou
atividade
sexual,
ou
seja,
tem
mostrado
uma
imagem
erotizada
do
corpo
feminino,
transformando-‐o
em
objeto
para
o
olhar
masculino.
80
mais
insidiosa
e
instrumental
forma
de
domínio
e
subjugação
e
objetificação
é
produzida
pelas
imagens
mais
comuns
da
mulher
(o
que
acontece
de
uma
forma
muito
mais
eficaz)
do
que
as
imagens
policiais
ou
obscenas”
(p.
237).
É
neste
sentido
que,
para
a
autora,
a
história
da
fotografia
se
confunde
com
a
história
social
da
mulher,
dado
que
a
fotografia
tende
a
apresentar
um
cariz
voyeur
ou
fetichista
da
mulher
ao
longo
do
tempo.
A
palavra
fetiche
vem
do
latim
facere,
que
significa
fazer
ou
construir.
Esta
palavra
foi
utilizada
pela
primeira
vez
no
século
XV
por
mercadores
e
colonos
portugueses
com
referência
à
veneração
africana
por
amuletos
e
ídolos
religiosos,
ou
seja,
teve
início
com
referência
ao
feitiço
(Hirschfeld,
1982).
Fetichismo
seria,
então,
o
ato
de
adorar
um
fetiche;
de
incorporar
uma
propriedade
mágica
ao
objeto
de
fetiche.
Isso
inclui
a
iconolatria
cristã
que
atribui
poder
aos
santos
que
podem
manifestar-‐se
milagrosamente
no
plano
físico.
Na
psicanálise,
um
objeto
torna-‐se
um
fetiche
quando
é
foco
de
algum
desejo
sexual,
normalmente
associado
ao
sexo
feminino.
Isto
porque
o
fetichista
é
compreendido
como
aquele
que
idealiza
objetos
associados
à
mulher,
como
sapatos
e
batom.
O
que,
segundo
Freud,
em
Três
ensaios
sobre
a
teoria
da
sexualidade
(1974
[1905]),
trata-‐se
de
uma
aberração,
quase
uma
patologia,
pois
substitui
o
ato
sexual
“normal”
do
homem
por
um
objeto.
Fetiche
é
“um
substituto
para
o
pénis
da
mulher
(da
mãe)
em
que
o
menininho
outrora
acreditou
e
–
por
razões
que
nos
são
familiares
–
não
deseja
abandonar
(...),
pois
se
uma
mulher
foi
castrada,
então
a
posse
de
seu
próprio
pénis
estaria
em
perigo”
(p.
180).
A
escolha
do
objeto
de
fetiche
não
depende
da
semelhança
com
o
pênis,
mas
sim
do
momento
de
fratura,
de
trauma,
ocorrido
na
primeira
infância,
quando
o
menino
percebe
que
a
mãe
não
possui
um
pênis.
É
neste
instante
que
o
primeiro
objeto
que
é
visto
torna-‐se
o
seu
fetiche,
objeto
do
momento
em
que
se
instaura
a
própria
angústia
de
castração.
A
crítica
de
filmes
Laura
Mulvey
(1975)
também
utilizou
a
psicanálise
para
uma
profunda
crítica
da
imagem,
sobretudo
a
do
cinema.
Neste
contexto,
a
teoria
psicanalítica
foi
utilizada
para
desvendar
como
“o
inconsciente
da
sociedade
patriarcal
tem
estruturado
a
forma
do
cinema”
(p.
6).
Em
Visual
Pleasure
and
Narrative
Cinema
(1975),
ela
fala
da
existência
de
um
ponto
de
vista
masculino
que
se
mostra
nas
artes
visuais
e
na
literatura.
O
“olhar
masculino”
(male
gaze)
pode
ser
observado
com
o
uso
constante
do
close
da
câmara
para
mostrar
detalhes
do
corpo
da
mulher
ocasionando
a
sua
fragmentação
na
mente
do
espectador.
Com
a
utilização
da
teoria
do
fetichismo,
a
autora
fala
da
objetificação
da
mulher
a
partir
do
momento
em
que
ela
é
representada
como
espetáculo,
instante
em
que
ao
homem
(heterossexual)
é
o
olhar
e
a
mulher
é
a
imagem.
Estas
posições
são
envolvidas
pelo
complexo
de
castração,
momento
em
que
a
mulher
representa
a
falta,
a
diferença
sexual.
Para
escapar
da
ansiedade
da
castração,
o
homem
situa
a
mulher
em
um
posição
desvalorizada
como
punição
(voyeurismo)
ou
substitui
a
figura
feminina
por
um
fetiche
(objeto
de
desejo).
No
entanto,
mais
tarde
a
autora
pensou
no
fetichismo
não
como
pertencente
a
um
olhar
sexual
dominante,
mas
sim
como
uma
forma
culturalmente
dominante
de
ver
o
mundo.
Com
o
artigo
Afterthoughts
on
'Visual
Pleasure
(...),
Mulvey
(1989)
atualizou
seu
pensamento
com
a
inserção
de
dois
outros
elementos:
a
mulher
como
espectador
e
a
personagem
feminina
protagonista.
A
mulher
ao
ser
espectadora
reflete
o
“olhar
masculino”
que
nada
mais
é
do
que
uma
posição
no
mundo,
ou
seja,
retrata
uma
masculinização
da
posição
do
espectador.
A
mulher
assume
um
lugar
82
masculino
para
reviver
o
aspecto
perdido
de
sua
sexualidade,
a
castração,
com
o
olhar
e
o
prazer
e,
neste
sentido,
deixa
de
ser
passiva,
para
exibir
a
masculinidade
como
ponto
de
vista.
Foi
preciso
ver
além
de
uma
oposição
binária,
masculino
e
feminino,
para
que
Mulvey
desenvolvesse
mais
profundamente
essa
sua
teoria
em
Fetishism
and
Curiosity
(1996).
Neste
escrito,
a
mulher
quando
vista
como
espectadora
exerce
função
semelhante
à
de
Pandora
ao
abrir
a
caixa:
a
curiosidade
exerce
um
fascínio
pela
imagem
e,
por
isso,
mostra-‐se
como
fonte
de
saber.
Nesse
caminho,
a
autora
desenvolve
a
ideia
de
uma
“estética
da
curiosidade”
para
contrapor
o
olhar
masculino
que
fetichiza
a
imagem
ao
olhar
curioso
de
Pandora
para
a
caixa.
Mulvey,
dessa
forma,
transforma
o
mito
que
tem
o
significado
misógino,
pois
mostra
a
mulher
como
culpada
por
todo
o
mal
do
mundo,
em
uma
forma
de
olhar
para
a
imagem
com
curiosidade
e
com
dimensão
política
ao
interpretar
imagens.
Para
ela,
“enquanto
curiosidade
é
um
desejo
compulsivo
de
ver
e
saber,
de
investigar
algo
secreto,
fetichismo
é
sustentado
por
uma
recusa
de
ver,
por
uma
recusa
em
aceitar
a
diferença
que
o
corpo
feminino
representa
para
o
masculino”
(1996,
p.
64).
Como
resistência
à
escopofilia
machista,
Mulvey
(1996)
sugere
ainda
e
sempre
a
necessidade
de
modulação
do
seu
próprio
argumento,
para
que
se
permita
uma
relação
mais
dialógica
entre
fetichismo
e
curiosidade.
83
No
senso
comum,
o
fetiche
alcança
o
sentido
de
objeto
para
estímulo
do
desejo.
Este
sentido
foi
moldado
e
repetido
pelos
media,
indústria
cultural
e
pornografia,
que
são
os
meios
responsáveis
pela
venda
dos
conceitos
de
beleza
e
erotismo.
Nesta
era
de
onipresença
das
imagens
e
da
fragmentação
do
corpo
da
mulher,
seja
na
fotografia
ou
no
cinema,
cabe-‐nos
pensar
mais
profundamente
na
questão
de
gênero
que
permeia
toda
a
história
da
fotografia
e
que
inevitavelmente
nos
leva
a
uma
reflexão
sobre
os
conteúdos
que
fornecem
à
mulher
sentidos
na
imagem,
ora
como
um
objeto
de
desejo
a
partir
da
fragmentação
do
seu
corpo,
ora
como
fetiche
que
pode
ser
carregado
e
utilizado
como
instrumento
de
prazer.
Este
último
aspecto
esteve
bastante
conectado
com
a
imagem
da
mulher
na
fotografia
colonial
que
foi
responsável
por
objetificar
a
mulher
duas
vezes:
seus
corpos
eram
objetos
disponíveis
ao
colonizador
e
foram
transformados
em
objeto
fotográfico
para
escrutínio
do
europeu
ou
de
instituições.
Tais
entendimentos
do
corpo
feminino
ainda
ecoam
nas
imagens
contemporâneas,
principalmente
quando
são
representadas
pela
cultura
dominante,
bem
como
quando
são
transmitidas
pelos
meios
dominantes.
Figura 5 – Protestos no ano de 1972 nos Estados Unidos pelos direitos da mulher.
84
Mesmo
após
as
mudanças
sociais
e
a
liberação
sexual
da
década
de
1960,
o
papel
da
mulher
permaneceu
inalterado.
Foi
preciso
esperar
dez
anos
para
a
participação
das
mulheres
nas
criações
artísticas
e,
com
isso,
o
surgimento
de
uma
crítica
à
objetificação
da
mulher
nas
imagens,
ou
seja,
à
sua
representação.
Cindy
Sherman
(1954)
foi
uma
artista
bem
importante
nesse
sentido.
Ela
produziu,
a
partir
do
final
da
década
de
1970,
projetos
que
questionavam
o
corpo
da
mulher
através
de
autorretratos.
Com
este
objetivo,
seu
corpo
serviu
para
reproduzir
as
funções
atribuídas
ou
impostas
à
mulher
pela
sociedade,
como
crítica
da
presença
da
imagem
feminina
estereotipada
em
filmes
e
revistas.
Este
primeiro
trabalho,
Untitled
Film
Stills
(1977–80)
foi
inspirado
em
filmes
feitos
nos
anos
1940,
1950
e
1960
que
apresentavam
uma
mulher
vulnerável,
fraca,
às
vezes
no
“limite
da
loucura”
nos
papéis
de
jovem
ingênua,
estrela
ou
dona
de
casa
(Pultz
e
Mondenard,
1995,
p.139).
19
Fonte:
Moma
19
https://www.moma.org/collection/works/56560
85
pintura
Ocidental
(Fig.7).
Ao
reconstruir
tais
obras
célebres,
a
artista
transformou
o
emblema
dominante
de
beleza
feminina
ou
materna
em
símbolos
grotescos
através
da
utilização
de
próteses
teatrais.
20
Fonte:
Site
do
Moma
A
fragmentação
e
perda
de
um
corpo
coerente
continua
a
surgir
nos
trabalhos
da
artista
realizados
no
início
dos
anos
1990.
No
último
trabalho
em
série
de
Sherman,
o
projeto
Sex
Pictures
(Fig.
8),
ela
mostra
imagens
escuras,
grotescas
e
fragmentadas.
Próteses
ou
manequim
de
plástico
substituem
o
seu
próprio
corpo
para
reproduzir
a
fragmentação
do
corpo
feminino
como
fetichismo
masculino
(Pultz
e
Mondenard,
1995).
Neste
projeto,
a
artista
confronta-‐se
com
as
manipulações
do
corpo,
como
as
próteses
de
silicone
e
o
botox,
e
a
transformação
do
corpo
em
objeto.
Ao
representar
a
artificialidade
e
ausência
do
corpo
inteiro,
ao
mostrá-‐lo
fragmentado,
a
artista
articulou
também
o
tema
da
pornografia
de
maneira
particular
e
assustadora,
como
pode
ser
visto
na
Figura
8,
em
que
a
vagina
é
representada
de
forma
exagerada
e
com
uma
linguiça
no
interior
dela.
São
cenas
que
remetem
também
a
uma
ideia
de
violência
das
imagens
pornográficas,
que
só
exibem
partes
sexuais
e
posições
específicas
do
corpo
da
mulher.
Fonte:
Site
do
Moma
21
21
https://www.moma.org/collection/works/56560.
87
Capítulo
III
Figuras
e
imagens
do
colonialismo:
O
“olhar
europeu”22
no
brasil
“O
maior
apetite
do
homem
é
desejar
ser.
Se
os
olhos
vêm
com
amor
o
que
não
é,
tem
ser”
(Padre
Antônio
Vieira)
O
período
das
grandes
“descobertas”
só
foram
possíveis
a
partir
do
século
XIV,
quando
finalmente
estavam
prontos
para
uso
os
principais
instrumentos
para
a
navegação
—
“o
leme
central,
a
bússola,
o
portulano,
a
vela
latina
e
a
navegação
à
bolina,
etc.”
(Marques,
2018,
p.
47).
No
século
seguinte,
os
portugueses
aperfeiçoaram
um
novo
tipo
de
navio
que
foi
chamado
de
caravela,
ideal
para
viagens
a
longa
distância
(Marques,
2018).
Com
os
avanços
da
ciência
astronômica
e
matemática,
a
partir
dos
estudos
islâmicos,
judaico
e
cristão;
e
do
conhecimento
geográfico,
que
era
partilhado
entre
cientistas,
marinheiros
e
mercadores,
tudo
estava
pronto
para
o
início
das
navegações.
O
Brasil,
naquela
época,
não
fazia
parte
da
história
Ocidental
mas
estava
lá,
no
interior
dos
limites
que
circundam
as
terras
pertencentes
a
Portugal,
estabelecidos
pelo
Tratado
de
Tordesilhas.
Trata-‐se
de
um
documento
assinado
em
7
de
junho
de
1494
que
dividia
as
terras
descobertas
e
as
que
estavam
por
descobrir
entre
as
coroas
portuguesas
e
espanholas,
para
evitar
mais
guerras
entre
os
dois
países.
Como
Schwarcz
e
Starling
(2015)
contam,
“nem
se
sabia
onde
esse
mundo
ia
dar,
mas
ele
já
tinha
dono
e
certificado
de
origem”
(p.
28).
Assim,
em
abril
de
1500,
do
rio
Tejo,
saiu
uma
tripulação
masculina
(capitão-‐
mor,
capitães,
marinheiros
e
padres),
mas
com
algumas
prostitutas
embarcadas
às
escondidas.
Essa
tripulação
contava
com
cerca
de
mil
homens,
sendo
setecentos
designados
como
soldados,
apesar
de
serem
apenas
“plebeus
comuns,
filhos
de
camponeses,
muitas
vezes
apanhados
à
força
e
sem
maior
treinamento”
(Schwarcz
e
22
Utilizado
primeiramente
por
Kossoy
e
Carneiro
em
O
olhar
europeu:
o
negro
na
iconografia
brasileira
do
século
XIX
(1994).
88
Starling,
2015,
p.31).
Nesse
caminho,
problemas
não
faltavam,
principalmente
os
que
dizem
respeito
à
falta
de
higiene
e
escassez
de
comida,
o
que
gerou
doenças
como
o
escorbuto
e
mortes
na
tripulação.
Ao
longe
viram
aquela
imensidão
de
natureza,
pássaros
a
voar.
Caminha
anotava
tudo.
Chegando
à
terra,
era
Páscoa,
22
de
abril
de
1500,
e
depois
de
anotar
todos
os
nomes
dados
ao
longe,
adicionaram
mais
um
à
lista:
índios.
E
assim
nomearam
também
aqueles
povos
nus,
sem
fé,
sem
rei
e
sem
lei,
visto
que
os
fonemas
/f/,
/l/
e
/r’/
na
língua
tupi
não
existe
e,
esta
ausência,
resulta
em
desordenação
e
desregramento
de
suas
vidas,
dizia
Gândavo.
Foram
os
índios
os
mais
citados
pela
literatura
portuguesa
nos
séculos
XVI,
XVII
e
XVIII.
Também
a
natureza
exuberante
que
viram
ao
longe,
antes
mesmo
de
pisar
no
solo
brasileiro,
foi
muito
frequente
em
vários
relatos,
principalmente
para
incentivar
a
imigração
portuguesa
que
passava
por
um
período
de
crise
devido
a
morte
de
mais
de
um
terço
da
população
com
a
peste
negra.
Também,
era
preciso
aproveitar
aquela
fartura
de
terra
e
animais,
escravos
indígenas,
mulheres
exóticas
à
disposição
do
colonizador.
O
período
colonial
no
Brasil
inicia-‐se,
assim,
em
1500
e
termina
em
1822,
com
a
polêmica
independência
do
Brasil
proclamada
por
um
português,
D.
Pedro
I.
Portanto,
o
termo
“Brasil
Colônia”
é
indicativo
de
um
período
histórico
colonial,
período
no
qual
o
território
brasileiro
foi
designado
de
“colônia”
de
Portugal,
apesar
de
sua
exploração
ter
sido
realizada
exclusivamente
pela
metrópole
portuguesa
até
1808.
Depois
disso,
com
a
abertura
dos
portos
e
a
vinda
da
corte
portuguesa
ao
Brasil
escoltada
pela
Inglaterra,
o
mercado
se
abre
para
o
mundo
e
a
independência
não
demora
muito
a
chegar.
De
todo
modo,
foram
os
portugueses,
através
de
seu
expansionismo,
“pautado
por
interesses
comerciais,
militares
e
evangelizadores,
equilibrados
em
boas
doses”23,
que
divulgaram
as
primeiras
imagens
do
Brasil
para
o
mundo
através
de
cartas
e
tratados
produzidos
por
exploradores
e
jesuítas
quando
estiveram
no
território
brasileiro.
O
Brasil,
agora
sede
administrativa
de
Portugal
e
com
a
corte
devidamente
instalada
no
Rio
de
Janeiro,
abria-‐se
para
o
mundo
exterior
depois
de
três
séculos
mantidos
sob
olhar
exclusivo
do
português.
O
europeu
estava
atraído
por
esse
mundo
23
Schwarcz
e
Starling,
2015,
p.26
89
desconhecido,
mostrava-‐se
como
um
laboratório
a
ser
estudado
pelos
naturalistas
e
com
um
mercado
que
acabava
de
surgir
e
que
deveria
ser
explorado.
Com
a
invenção
da
daguerreotipia
em
1839,
o
“olhar
europeu”
(Kossoy
e
Carneiro,
1994),
passa
a
se
materializar
através
das
diversas
técnicas
pictóricas:
ilustração,
pintura
e
fotografia.
Ao
fim,
todas
elas
serviam
para
a
publicação
da
documentação
da
flora,
fauna,
riquezas
minerais,
sociedade
e,
claro,
do
negro
de
diversas
nações
que
não
passava
despercebido
no
Brasil.
Ao
fim
do
colonialismo
histórico,
permanece
a
ideologia
do
colonialismo
que
é
perpetuada
pelas
imagens
e
relatos
portugueses
que
chegavam
na
ex-‐metrópole.
Muitos
estrangeiros
contribuíram
para
a
produção
e
publicação
da
iconografia
brasileira,
principalmente
a
do
Rio
de
Janeiro
que
na
época
era
o
maior
porto
de
escoamento
de
matérias
primas
tropicais
para
o
exterior,
sede
da
corte
e
também
a
cidade
mais
populosa
na
primeira
metade
do
século
XIX.
A
possibilidade
de
multiplicação
da
imagem
com
a
litografia
e
a
fotografia
foi
fundamental
para
a
história
do
conhecimento.
Muitos
fotógrafos,
além
de
trabalharem
como
“retratistas”
em
estúdios,
visto
que
a
fotografia
era
uma
atividade
comercial
presente
nos
principais
portos
da
costa
do
Brasil,
passaram
a
fazer
parte
das
expedições
científicas
e
atividades
militares
para
documentar
tudo
que
se
via
e
assim
reproduzir
com
a
sua
suposta
objetividade.
Com
o
surgimento
do
colódio
e
do
retrato
do
formato
carte
de
visite,
próprio
para
presentear
amigos
e
parentes
e
obtido
a
preços
mais
acessíveis,
o
retrato
se
popularizou
no
Brasil
Império.
As
cartes
de
visite,
apesar
de
apresentar
retratos,
possuía
uma
ondulação
de
sentidos
que
giravam
em
torno
de
quem
era
retratado.
As
fotografias
de
escravos
foram
tanto
consumidas
pelo
mercado
etnográfico
como
pelo
mercado
de
souvenirs
do
Brasil.
Através
do
recurso
da
pose,
os
escravos
eram
retratados
de
forma
a
reconhecer
marcas
da
pele
e
também
profissões
exercidas
quando
libertos.
Mas,
como
todos
sabem,
a
independência
do
Brasil
foi
bastante
singular.
Foi
proclamada
por
um
português,
mantinha
o
sistema
monárquico
de
poder
e,
também,
não
aboliu
a
escravatura
dos
negros,
e
o
Brasil
foi
o
último
a
realizar
esse
último
quesito.
Mesmo
sob
pressão
inglesa
que,
com
o
início
do
capitalismo
industrial,
comandava
o
comércio,
a
escravatura
e
os
latifúndios
com
suas
leis
próprias
permaneciam
nos
trópicos.
Assim,
havia
uma
conexão
com
Portugal
muito
forte,
o
que
era
visível
na
imprensa
local
a
90
partir
da
expressão
de
uma
nostalgia
colonial.
Monarquistas
tentavam,
através
da
imposição
da
cultura
portuguesa,
tocar
os
corações
dos
brasileiros
que
queriam
se
desvencilhar
de
vez
de
Portugal
para
estabelecer
uma
nova
cultura.
Esse
sentimento
de
nostalgia
colonial
ou
de
repetição
de
ideias
ideológicas
coloniais,
tornou-‐se
corriqueiro
no
tratamento
da
mulher
brasileira.
Isso,
de
fato,
coexiste
no
tratamento
de
mulheres
de
países
colonizados
e
pele
não-‐branca.
De
todo
modo,
a
menção
da
“Terra
de
Vera
Cruz”
em
lugar
de
Brasil,
de
apresentação
de
partes
fragmentadas
do
corpo
da
mulher
em
revistas
ou,
ainda,
da
conexão
da
imagem
da
brasileira
à
prostituição
ou
ao
sexo
fácil,
possuem
claramente
sintomas
de
repetição
de
um
sistema
colonial.
Nesse
ponto
os
media
são
os
grandes
perpetuadores
de
ideias
antigas,
ao
fazer
com
que
tais
ideias
nunca
sejam
esquecidas
no
imaginário
português.
Mas,
esse
“estigma
colonial”
não
é
só
propagado
pela
imprensa
portuguesa,
pois
as
telenovelas
brasileiras,
além
da
publicidade
turística
do
Brasil
têm
dado
grande
suporte
para
a
manutenção
de
um
corpo
exótico
e
de
uma
natureza
exuberante,
pontos
importantes
para
estimular
o
turismo
europeu.
Diante
desses
fatores,
falar
das
imagens
e
figuras
do
colonialismo
é
falar
da
origem
e
da
permanência
de
ideologias
coloniais
que
fizeram
parte
da
construção
da
imagem
do
brasileiro
e
da
brasileira,
seja
a
imagem
do
século
XVI
ou
a
do
século
XXI.
O
período
colonial
construiu
uma
imagem
forte,
estereotipada,
de
fácil
apreensão
através
dos
textos
e,
posteriormente,
dos
retratos
em
cartes
de
visite.
O
surgimento
da
imprensa
no
Brasil
procurou
produzir
uma
ideia
de
contiguidade
entre
os
dois
países
para
que
a
superioridade
cultural
de
Portugal
prevalecesse
sobre
a
do
Brasil
e,
além
disso,
a
mulher
brasileira,
desde
1500,
ainda
é
vista
como
aquele
corpo
disponível,
sexualizado,
principalmente
quando
negra
ou
mulata.
São
apresentados
cinco
tópicos
que
detalham
algumas
práticas
que
contribuíram
para
a
construção
da
imagem
do
brasileiro
ao
longo
do
tempo:
cartas
e
relatos
portugueses;
a
fotografia
na
documentação
da
paisagem
exuberante
brasileira;
popularização
e
sentidos
do
retrato
carte
de
visite;
a
imprensa
do
século
XX
e
a
nostalgia
colonial;
a
imagem
da
mulher
e
o
estigma
colonial.
91
III.1.
A
primeira
imagem
do
Brasil:
cartas
e
relatos
portugueses
No
dia
22
de
abril
de
1500,
a
armada
de
Cabral
seguia
para
as
Índias,
segundo
dizem,
mas
avistou
uma
terra
no
Ocidente.
Para
Marques
(2018),
historiador
português,
a
chegada
foi
algo
acidental,
pois
os
portugueses
“sem
qualquer
razão
aparente,
navegaram
mais
para
sudeste,
atingindo
a
costa
do
Brasil
(22
de
abril
de
1500)”
(p.75).
Ao
longe
viram
um
mundo
novo
que
não
se
encontrava
no
mapa
europeu,
com
animais
e
plantas
nunca
vistos
e
um
povo
totalmente
desconhecido.
Tudo
o
que
foi
visto
foi
nomeado,
como
uma
forma
de
garantir
a
posse
do
“Novo
Mundo”.
Deram,
àquela
terra,
o
nome
de
Terra
de
Vera
Cruz,
ao
monte
deram
o
nome
de
Monte
Pascoal
(era
Páscoa),
e
aos
povos
encontrados
deram
o
nome
de
índios,
numa
referência
à
terra
ainda
não
encontrada,
a
tão
cobiçada
Índia.
Ainda
segundo
o
autor,
as
“descrições
contemporâneas
mostram
que
a
descoberta
do
Brasil
não
suscitou
admiração
maior”
(p.75).
Desse
modo,
sem
grande
felicidade,
mas
ao
mesmo
tempo
nomeando
tudo
que
encontravam
na
terra
descoberta,
chegou
o
que
restou
da
armada
portuguesa:
homens
sujos,
esfomeados
e
doentes.
Entretanto,
não
se
sabe
como
chegaram
as
prostitutas.
Pero
Vaz
de
Caminha,
escrivão
oficial,
tratou
de
anotar
tudo
o
que
vira
daquelas
terras
e
com
os
mínimos
detalhes,
antes
mesmo
de
chegar
lá,
para
avisar
ao
El
Rei
de
Portugal
na
“Carta”24,
também
conhecida
como
certidão
de
nascimento
do
Brasil.
Nela,
foram
apresentadas
as
primeiras
imagens
do
Brasil
e
do
brasileiro
pelas
mãos
dos
portugueses:
(...)
A
feição
deles
é
serem
pardos,
um
tanto
avermelhados,
de
bons
rostos
e
bons
narizes,
bem-‐feitos.
Andam
nus,
sem
nenhuma
cobertura.
Nem
fazem
mais
caso
de
cobrir
nem
mostrar
suas
vergonhas,
e
estão
acerca
disso
com
tanta
inocência
como
têm
em
mostrar
o
rosto.
(...)
E
Nicolau
Coelho
lhes
fez
sinal
que
pousassem
os
arcos.
E
eles
os
depuseram.
Mas
não
pôde
deles
haver
fala
nem
entendimento
que
aproveitasse
(...).25
24
Carta
a
El-‐Rei
D.Manuel
sobre
o
achamento
do
Brasil.
Disponível
em:
http://cvc.instituto-‐
camoes.pt/conhecer/biblioteca-‐digital-‐camoes/literatura-‐1/coleccao-‐98-‐mares-‐expo98/1566-‐
1566/file.html
25
Carta
consultada
no
Arquivo
Nacional
da
Torre
do
Tombo.
Acessível
em
http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4185836.
92
Essa
primeira
percepção
da
terra
deu
início
à
construção
da
imagem
do
indígena
como
o
“bom
selvagem”
brasileiro.
Parece
que
o
que
queriam
mostrar
era
que
no
Novo
Mundo
não
existiam
guerras,
como
também
que
os
bons
gentios
poderiam
ser
bons
escravos,
desde
que
catequizados
para
assumir
a
boa
fé.
Na
“Carta”,
os
primeiros
povos
mostraram
que
eram
pacíficos
e
assim
também
criou-‐se
a
lenda
de
que
a
conquista
do
“Novo
Mundo”
foi
realizada
sem
violência26.
Foram
também
realçados
os
bons
ares
do
Brasil,
a
imensidão
de
água
e
de
terra
que
tudo
dá,
diferente
da
escassez
pela
qual
passava
Portugal,
com
a
crise
ocasionada
com
a
peste
negra
e
morte
de
mais
de
um
terço
da
população.
No
início
da
carta,
Caminha
contava
a
surpresa
de
ver
aquela
terra
(Pereira,
1999,
p.50):
94
plantas,
a
mandioca
recebeu
sua
maior
atenção,
com
descrição
de
suas
partes
e
utilidades.
A
História
da
Província
(...)
também
relatou
a
“descoberta”
do
Brasil
por
Pedro
Álvares
Cabral
e
o
início
da
colonização,
as
tribos
indígenas
e
as
capitanias
que
dividiam
o
Brasil.
Por
fim,
queria
mostrar
as
riquezas
e
prospecção
de
avanço
que
a
terra
reservava
aos
portugueses
com
seu
vasto
território.
A
mão
de
obra
era
formada
por
escravos
indígenas.
Ficou
famoso
por
falar
dos
nativos
como
aqueles
que
“não
têm
Fé,
nem
Lei,
nem
Rei”,
que
correspondiam
à
ausência
dos
fonemas
/f/,
/l/
e
/r’/
na
língua
tupi,
e
que
por
isso
“vivem
sem
justiça
e
desordenadamente”.
Segundo
Moreau
(2003,
pp.
68-‐9),
Gândavo,
que
não
escrevia
nada
de
forma
ingênua,
tinha
três
intenções
com
o
seu
texto:
“não
atemorizar
nem
desencorajar
os
futuros
colonos;
relegar
os
índios
ao
plano
dos
exotismos
da
terra
(funcionando
como
“objetos”
de
curiosidade,
sem
influir
na
colonização);
gerar
hostilidade
contra
eles,
que
não
passavam
de
entraves
aos
objetivos
dos
colonos
e
da
Coroa
(mesmo
em
afronta
à
jurisprudência
que
começava
a
vigorar)”.
Fonte:
Gravura
do
Tratado
da
Província
do
Brasil
(...),
de
Gândavo
(1575)
Tal
jurisprudência
diz
respeito
à
proibição
do
uso
da
mão
de
obra
indígena
pela
igreja,
o
que
não
o
impede
de
sentir
desprezo
pelos
povos
indígenas,
chamando
de
gentios
mesmo
aqueles
que
se
aliaram
às
guerras
promovidas
pela
metrópole.
Apesar
95
de
ter
em
seu
Tratado
distinguido
as
tribos
indígenas,
“ele
via
nos
índios
uma
massa
uniforme,
desprezível
e
útil
apenas
como
escravos
para
os
colonos
pobres”
(Moreau,
2003,
p.69).
O
que
demonstra
uma
visão
invertida
da
chegada
do
Brasil,
com
os
índios
incorporando
o
papel
de
invasores,
por
estarem
ali
todos
ocupando
a
terra
brasileira:
“ninguém
pode
pelo
sertão
dentro
caminhar
seguro,
nem
passar
por
terra
onde
não
acha
povoações
de
índios
armados
contra
todas
as
nações
humanas”
(Gândavo,
1980
apud
Moreau,
2003,
p.69).
Nesse
ponto
é
possível
notar
a
animalização
ou
falta
de
humanidade
concedida
aos
índios
em
seus
relatos.
Tomaram
este
modo
de
um
pássaro
que
(...)
canta
de
madrugada
e
lhe
chamam
de
rei,
senhor
dos
outros
pássaros,
e
dizem
eles
que
assim
como
aquele
pássaro
canta
de
madrugada
para
ser
ouvido
dos
outros,
assim
convém
que
os
principais
façam
aquelas
falas
e
pregações
de
madrugada
para
serem
ouvidos
dos
seus.
96
Algumas
cartas
também
tiveram
grande
importância
na
propagação
da
imagem
do
Brasil.
Dentre
tantas,
as
cartas
do
Padre
Manuel
da
Nóbrega
e
do
Padre
José
de
Anchieta,
adquiriram
grande
importância
na
literatura
portuguesa.
Segundo
Gonçalves
(1961,
p.13),
“as
primeiras
cartas
de
Manuel
da
Nóbrega,
de
1649,
já
no
ano
imediato
se
encontravam
em
Roma,
depois
que
foram
enviadas
para
todas
as
casas
e
colégios
europeus
da
Companhia”.
Antes
disso,
em
1556,
“encontrava-‐se
já
traduzida
para
o
francês
pelo
menos
uma
das
cartas
de
Manuel
da
Nóbrega,
que
nesse
mesmo
ano
foi
publicada
em
Paris”
(Leite,
1956
apud
Gonçalves,
1961,
p.13).
Ao
que
parece
que
“as
coisas
do
Brasil
tinham
encontrado
um
meio
incomparável
de
divulgação”
(p.13).
As
cartas
eram
traduzidas
pelos
jesuítas
em
várias
línguas
e
assim
alcançavam
todos
os
europeus.
Os
jesuítas
chegam
ao
Brasil
em
1549
e
o
superior
responsável
era
o
Padre
Manuel
da
Nóbrega,
que
tinha
o
intuito
de
trabalhar
na
conversão
dos
índios.
Sua
primeira
impressão
dos
povos
nativos
foi
posta
em
carta
a
Martim
de
Azpilcueta
Navarro,
após
a
descrição
das
boas
qualidades
da
terra:
Mas
é
muito
de
espantar
ter
dado
(o
Criador)
tão
boa
terra
tanto
tempo
a
gente
tão
inculta,
e
que
tão
pouco
o
conhece,
porque
nenhum
deus
tem
certo
e
qualquer
que
lhe
dizem
creem.
Regem-‐se
por
inclinação,
a
qual
sempre
prona
est
ad
malum,
e
apetite
sensual,
gente
absque
consilio
et
sine
prudentia.
Têm
muitas
mulheres
enquanto
se
contentam
delas
e
elas
deles,
sem
entre
eles
ser
vituperado
(...)
E
nestas
duas
coisas,
scilicet,
em
ter
muitas
mulheres
e
matar
os
seus
contrários,
consiste
toda
a
sua
honra
e
esta
é
a
sua
felicidade
e
desejo,
o
qual
tudo
herdaram
do
primeiro
e
segundo
homem
e
aprenderam
daquel
qui
ab
initio
mundi
homicida
est.
(Gonçalves,
1961,
pp.16-‐17)
O
padre
Manuel
da
Nóbrega
falou
também
em
uma
de
suas
cartas
sobre
o
desapego
aos
bens
materiais
do
povo
indígena,
ao
dizer
que
qualquer
“cristão,
que
entre
em
suas
casas,
dão-‐lhe
a
comer
do
que
têm,
e
uma
rede
lavada
em
que
durma”
(Gonçalves,
1961,
p.
65).
Isto
de
fato
o
impressionou
ao
ponto
de
fazê-‐lo
acreditar
que
eles
apenas
necessitavam
ser
catequizados,
mesmo
que
seja
necessário
assustá-‐los,
pois
assim,
“talvez
por
medo
se
converterão
mais
depressa
do
que
o
não
farão
por
amor,
tanto
andam
corrompidos
nos
costumes
e
longe
da
verdade”28.
28
Padre
Manuel
da
Nóbrega,
Carta
ao
Padre
Simão
Rodrigues,
1550,
p.70.
97
O
padre
José
de
Anchieta
veio
suceder
Manuel
da
Nóbrega
na
ação
de
converter
os
índios.
Ele
pedia
para
a
metrópole
o
envio
de
mais
padres
e
irmãos
devido
ao
grande
alcance
da
colonização
daqueles
povos.
Em
Informação
do
Brasil
e
suas
Capitanias,
Anchieta
descreve
primeiro
as
Capitanias
e
seu
caráter
histórico-‐
geográfico,
como
os
seus
colonizadores,
governadores,
bispos
e
jesuítas
de
cada
uma
das
capitanias.
Depois
disso,
ocupa-‐se
dos
costumes
indígenas:
Segundo
Gonçalves
(1961,
p.
53),
dezenas
de
jesuítas
enviavam
cartas
para
os
mais
diversos
lugares
com
descrição
dos
índios
e
seus
costumes.
Segundo
análise,
todas
elas
“confirmam
o
que
Nóbrega,
Anchieta,
Cardim
e
Simão
de
Vasconcelos
disseram”:
os
índios
eram
vistos
como
“semelhantes
às
feras
quanto
ao
entendimento
(...),
preguiçosos,
comilões,
têm
muitas
mulheres,
ódios,
guerras,
excessos
quanto
ao
vinho”,
além
de
possuírem
o
vício
de
comer
a
carne
humana.
No
que
se
refere
ao
encontro
de
semelhanças
entre
o
olhar
dos
viajantes
e
o
olhar
dos
jesuítas,
“os
costumes
dos
gentios
a
que
se
referem
são
essencialmente
os
mesmos”
(Idem,
p.
54).
A
diferença
de
olhares
para
o
indígena
se
interpõe
quando
o
explorador
se
ocupa
em
apenas
descrever
o
nativo,
enquanto
que
o
jesuíta
procura
interpretar,
nem
que
isso
seja
feito
a
partir
de
uma
descrição.
No
entanto,
“para
uns
como
Cardim,
são
os
29
Anchieta
apud
Gonçalves,
1961,
p.48.
98
aspectos
positivos
que
tomam
mais
relevo
e
prevalecem
sobre
os
comentários
(sobre
os
índios).
Para
outros,
como
Simão
de
Vasconcelos
dá-‐se
exactamente
o
inverso”
(Idem,
p.
54).
O
índio
foi
um
tema
bastante
recorrente
na
literatura
portuguesa
também
nos
séculos
XVI
e
XVII,
como
evidenciado
por
historiadores
que
procuravam
contar
o
caminho
marítimo
para
a
Índia
e
dedicaram
umas
poucas
páginas
à
paragem
de
Cabral
no
Brasil
(Francisco
de
Brito
Freire,
João
de
Barros,
Damião
de
Góis,
António
Galvão),
do
que
Gonçalves
(Idem,
p.56)
presume
que
“a
historiografia
portuguesa
dos
séculos
XVI
e
XVII
não
tenha
concedido
maior
atenção
ao
Brasil”.
No
que
tange
às
obras
literárias,
a
autora
não
encontra
nada
de
autoria
portuguesa
na
época,
a
não
ser
os
escritos
dos
jesuítas
Manuel
da
Nóbrega
e
José
de
Anchieta,
já
tratados
anteriormente.
Mas,
ainda
é
desejoso
ressaltar
que
no
século
XVIII,
após
o
esmaecimento
da
curiosidade
despertada
pela
chegada
ao
território
brasileiro
e
a
consequente
diminuição
de
documentos
de
viajantes
e
colonizadores
sobre
aquela
terra
e
seu
povo
nativo,
a
historiografia
permaneceu
alheia
ao
Brasil
e
aos
brasileiros
(Idem).
Muitos
textos
surgiram
para
mostrar
outras
marcas
do
espírito
“autômato”
do
nativo
brasileiro,
que
se
deixava
levar
pelas
suas
inclinações,
como
foi
o
caso
da
preguiça,
apresentado
no
texto
Apontamentos
para
a
civilização
dos
Índios
bravos
do
Império
do
Brasil
(1823)
de
José
Bonifácio
de
Andrade
Silva,
que
nasceu
no
Brasil,
mas
era
estadista
e
considerado
colonizador
(Idem,
p.
70):
99
grupos
destacados
nos
séculos
XVI,
XVII
e
XVIII
por
Gonçalves
(pp.107-‐110):
o
primeiro
grupo,
apresenta
os
índios
com
qualidades
e
defeitos,
mas
diferentes
do
europeu
(historiadores
e
exploradores
dos
séculos
XVI
a
XVIII
e
jesuítas);
o
segundo
grupo,
apresenta
o
índio
europeizado,
real,
disto
do
“bom
selvagem”,
mas
ainda
apresentando-‐se
como
selvagem;
o
terceiro,
utiliza
a
figura
do
índio
como
pretexto
e
elogio
da
ação
civilizadora
portuguesa.
30
Diante
de
uma
grande
crise
promovida
por
agitações
liberais
que
ocorrera
como
resposta
à
revolta
liberal
na
França,
com
a
deposição
do
Rei
da
França,
D.
Pedro
I
abdica
o
trono,
volta
para
Portugal,
e
deixa
uma
carta
de
abdicação,
deixando
em
seu
lugar
D.
Pedro
II
com
apenas
cinco
anos,
dando
tendo
início
o
Período
Regencial
(1831
a
1840).
Este
período
foi
o
último
da
monarquia
no
Brasil
e
compreende,
além
da
abdicação,
a
“Declaração
da
Maioridade”
que
proclamava
D.
Pedro
II
rei
antes
dos
15
anos
de
idade,
como
tentativa
de
manter
uma
estabilidade
do
reino
diante
de
tantas
revoltas
que
aconteciam
à
época,
a
exemplo
da
Guerra
dos
Farrapos,
Sabinada,
Cabanagem,
Revolta
dos
Malês
e
Balaiada.
Apesar
da
estabilidade
com
a
presença
do
monarca,
muitas
revoltas
regenciais
ainda
100
no
Brasil
e
também
grande
colecionador
de
fotografia
no
Brasil
(Chiarelli,
2006).
Segundo
conta
Natália
Brizuela
(2012),
o
“Segundo
Império
(1840-‐89)
utilizou
a
fotografia
para
complementar
o
seu
projeto
de
construir
uma
‘imaginação
geográfica’
e
desenvolver
um
sentimento
nacional”
(p.18).
Figura 10 – Foto de D. Pedro II da Cachoeira do Marmelo, c. 1876
Fonte:
Biblioteca
Digital
Luso-‐Brasileira
subsistiam,
como
a
Guerra
de
Farrapos
que
só
terminou
em
1845
e
a
Balaiada
que
terminou
em
1841
(Cf.
Schwarcz,
1998).
101
O
Brasil
foi
um
dos
países
que
mais
reuniu
fotógrafos
na
América
Latina
ao
longo
dos
séculos
XIX
e
XX,
conta
Kossoy
(1980).
O
Brasil,
esse
“gigante
tropical”
habitado
por
muitas
raças,
tornou-‐se
logo
um
posto
avançado
de
observação
naturalista
e
científica
e,
por
isso,
após
a
sua
invenção,
a
fotografia
encontrou
aplicação
imediata
na
documentação
da
paisagem
natural
e
rural.
No
entanto,
“cachoeiras,
florestas
ainda
virgens,
árvores
imensas,
e
também
animais
selvagens
ou
domesticados,
frutas,
flores
que
fizeram
parte
do
primeiro
desenho
captado
do
Brasil,
que
era
tomado
–
antes
mesmo
de
os
fotógrafos
estrangeiros
chegarem
como
um
local
excêntrico
na
natureza
e
em
seus
naturais”
(Schwarcz,
2012,
p.14).
Ao
longo
do
século
XIX
e
durante
as
principais
décadas
do
século
XX,
os
“álbuns
de
vista”
foram
a
forma
dominante
de
difusão
das
fotografias
de
paisagem
e
“é
sobretudo
por
sua
afinidade
com
as
narrativas
de
viagem
que
são
comercializadas
e
acolhidas”
(Lissovsky,
2011,
p.282).
Figura
11
–
Praia
de
Ipanema
e
morro
dois
irmãos,
c.
1900.
Fotografia
amadora
do
comerciante
português
José
Baptista
Barreira
Vianna
Fonte:
Acervo
Instituto
Moreira
Salles31
31
José
Baptista
Barreira
Vianna
(1860-‐1925)
é
um
exemplo
excepcional
desse
processo.
Comerciante
português
que
chegou
ao
Rio
de
Janeiro
em
1875,
Vianna
trabalhou
no
comércio
antes
de
abrir
uma
loja
de
produtos
importados
da
Europa
no
largo
da
Carioca.
Fonte:
https://ims.com.br/por-‐dentro-‐
acervos/a-‐cidade-‐em-‐direcao-‐a-‐copacabana-‐e-‐ipanema-‐transicao-‐para-‐a-‐modernidade/.
102
elementos
que
eram
naturalmente
locais,
pois
eram
desconhecidos
pelo
fotógrafo
europeu
que
a
fotografava;
ora
poderia
representar
ideias
preconceituosas
que
faziam
parte
do
espírito
do
fotógrafo.
103
destruição
da
natureza
para
a
construção
de
novidades,
como
é
o
caso
das
fotografias
de
estradas
de
ferro,
de
novas
autoestradas,
fábricas
e
monumentos
(Alonso,
2016).
Um
exemplo
disso
pode
ser
visto
com
o
trabalho
de
Roger
Fenton,
que
documentou
a
deterioração
arquitetônica
em
Paris
e
realizou
imagens
que
mostravam
o
caráter
pitoresco
das
ruínas
do
edifício
medieval
de
Bolton.
Figura
12
-‐
Roger
Fenton,
Bolton
Abbey,
fenêtre
ouest,
1854
Fonte:
National
Media
Museum,
Bradford/Science
&
Society
Picture
Library
Por
causa
da
precária
tecnologia
fotográfica
da
época,
a
qual
demandava
uma
preparação
individual
na
câmara
escura,
as
fotos
eram
sobretudo
de
soldados
comuns
e
oficiais,
sendo
esta
(Fig.
13),
intitulada
“O
vale
da
sombra
da
morte”,
a
única
feita
no
campo
de
guerra.
No
entanto,
ela
foi
alterada
para
ter
um
melhor
resultado:
“Fenton
fez
duas
chapas
da
mesma
posição,
com
a
câmara
sobre
um
tripé
(...)
mas,
antes
de
tirar
a
segunda
foto
(...)
ele
supervisionou
uma
operação
para
espalhar
as
balas
de
canhão
sobre
o
leito
da
estrada”
(Sontag,
2003,
p.47).
A
fotografia
de
paisagem,
como
qualquer
fotografia,
esconde
mais
do
que
se
mostra
(Frade,
1992).
Figura
13
-‐
O
vale
da
sombra
da
morte,
Criméia,
Ucrânia
(1855)
de
Roger
Fenton
Fonte:
Science
Museum,
London.
105
trata
de
um
conhecimento
de
aparências,
de
fragmentos
selecionados
de
edificações,
praças
e
logradouros;
fragmentos
institucionalizados
e
repetidos
à
exaustão”
(p.134).
Estes
fragmentos
que
um
dia
foram
escolhidos
pelo
fotógrafo
passa
a
fazer
parte
do
imaginário
do
receptor
e,
quando
repetidos,
condensam
nesse
fragmento
toda
a
memória
do
lugar,
principalmente
para
“aqueles
afastados
no
tempo
da
produção
das
imagens”
(p.134).
O
Rio
de
Janeiro
sempre
foi
reconhecido
pelas
suas
belezas
naturais,
como
o
corcovado
e
as
praias
e
isto
não
aconteceu
por
mero
acaso.
A
memória
das
cidades
foi
armazenada
através
da
fotografia
para
servir
de
consulta
daqueles
que
a
procuram
para
recordar
o
passado,
para
constituir
estudos
científicos
ou
como
ato
de
simples
prazer
nostálgico.
Figura
14
-‐
Estrada
de
ferro
de
Nazareth,
em
Belém
do
Pará,
do
fotógrafo
português
Felipe
Augusto
Fidanza32,
c.
1875
Fonte:
Instituto
Moreira
Salles
(IMS)
A
fotografia
tornou
familiar
o
outro
e
também
o
espaço
do
outro,
por
reforçar
expectativas
e
sugerir
realidades
através
de
sua
função
de
mediação
do
real.
Surge,
então,
como
fenômeno
cultural.
Quando
passa
a
representar
o
modo
de
ver
ocidental,
promove
consequências
graves
no
modo
de
perceber
o
mundo,
como
o
que
foi
visto
no
processo
de
representação
de
paisagens
brasileiras.
Jenks
(1995,
p.8)
avisa:
“Ver,
olhar
e
observar
são
ações
com
filtros:
olhar
é
seletivo”.
Olhar
é
abstrair
e
abstração
é
uma
questão
de
perspectiva
em
que
“o
tamanho
e
a
relevância
de
certos
fenómenos
são
alterados
em
relação
ao
seu
lugar
original”
(p.9).
A
fotografia
passou
a
determinar
aquilo
que
deve
ou
não
ser
visto,
ou
seja,
a
oferecer
uma
visão
parcial
como
instrumento
de
manipulação
e
controle
da
sociedade.
32
Felipe
Augusto
Fidanza
foi
um
fotógrafo
português
radicado
no
Brasil.
É
considerado
o
mais
importante
fotógrafo
em
atividade
em
Belém
no
fim
do
século
XIX
e
princípios
do
século
XX.
106
Georg
Simmel,
em
A
filosofia
da
Paisagem
(1913),
conta
que
para
“ver
uma
paisagem”
é
preciso
que
um
pedaço
do
campo
de
visão
cative
o
nosso
espírito
e
que,
dessa
forma,
passe
a
ser
um
novo
conjunto
ou
unidade.
Segundo
ele,
o
homem
da
Modernidade
perdeu
o
sentido
da
natureza
como
realidade
espaço
temporal
e
só
pode
recuperá-‐la
parcialmente
através
do
ato
perceptivo
que
une
elementos
soltos
para
compor
uma
unidade
sintética,
a
paisagem.
Esse
destaque
da
natureza
faz
com
que
a
paisagem
seja
um
fragmento,
uma
parcela
da
natureza
tomada
como
unidade
a
partir
de
um
sentimento
da
ordem
da
subjetividade
e
da
afetividade
denominada
Stimmung,
ou
seja,
um
estado
de
espírito,
um
sentimento
pessoal.
Simone
Maldonado
(1996)33,
diz
na
apresentação
do
texto
de
Simmel
que
Stimmung
é
um
“horizonte,
o
conceito
unificador
que
confere
sentido
aos
constructos
do
olhar
que
ao
delimitar
a
base
material
da
paisagem,
isola
um
trecho,
que
não
necessariamente
se
constituiria
como
paisagem”.
Para
Serrão
(2013),
a
A
abertura
dos
portos
brasileiros
para
o
comércio
internacional
faz
com
que
a
fotografia
surja
como
atividade
comercial
em
um
mercado
que
ainda
estava
em
fase
de
“descobrimento”.
Neste
período,
o
mercado
fotográfico
funciona
basicamente
com
a
produção
de
retratos
que
já
havia
se
tornado
uma
necessidade,
pois
permitia
a
reprodução
da
própria
imagem
para
a
posteridade.
A
partir
dos
crescentes
avanços
no
desenvolvimento
dos
processos
fotográficos
tornou-‐se
possível
o
desenvolvimento
da
sua
indústria
e,
com
isso,
a
possibilidade
de
comercialização
da
fotografia
em
larga
escala
e
a
preços
mais
económicos
(Naranjo,
2006).
34
A
carte
de
visite
foi
introduzida
por
André
Adolpho
Eugène
Disdéri
(1819-‐1890)
que
patenteou
o
processo
em
1854
na
França.
Este
formato
consiste
numa
foto
colada
sobre
um
cartão
suporte
com
as
dimensões
5,25
x
10,2
cm
aproximadamente
e
foi
criada
com
a
finalidade
de
ser
oferecida
a
amigos
e
parentes
(Kossoy,
1980,
p.38).
108
Todos
queriam
oferecer
e
receber,
como
também
enviar
para
os
familiares
e
pessoas
queridas
um
retrato
como
lembrança.
Com
essa
moda,
muitos
fotógrafos
se
tornaram
conhecidos
e
milionários
e
milhares
de
retratos
no
formato
carte
de
visite
foram
produzidos
em
todo
o
mundo.
Figuras
15
e
16
–
Cartes-‐de-‐visite
de
Christiano
Júnior
em
1865
com
escravos:
“Escravo
da
Nação
Africana
Olunan”
e
“Escravo
da
Nação
Africana
Mina”
Fontes:
Coleção
Gilberto
Freyre
e
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional
As
cartes
de
visite
que
eram
vendidas
no
comércio
também
foram
incorporadas
ao
discurso
científico
sob
a
forma
de
“tipos
raciais”.
Os
fotógrafos,
estrangeiros
em
sua
maioria,
nunca
deixaram
passar
a
figura
do
negro
nas
imagens
e,
assim,
realizaram
uma
série
de
retratos
dos
negros
escravos
e
libertos
que
faziam
parte
da
população
brasileira.
Nessas
imagens,
eles
procuravam
reafirmar
suas
diferenças
para
compor
uma
“tipologia”,
pois
destacavam
marcas
e
vestimentas
que
caracterizaram
cada
nação
africana.
Além
de
servir
para
controle
dos
mercadores
de
escravos,
essas
imagens
foram
consumidas
por
artistas
e
cientistas
da
época,
que
“na
condição
de
observadores
e
representantes
das
nações
colonizadoras,
interpretaram
–
através
de
seus
filtros
ideológicos
–
as
diferenças
culturais,
sem
entretanto,
questioná-‐las”
(Kossoy
e
Carneiro,
1994,
p.27).
Os
escravos,
vindos
do
mesmo
continente,
tinham
em
comum
apenas
a
pele
negra.
Eles
apresentavam
diferenças
culturais
que
eram
apresentadas,
de
modo
visual,
pelas
marcas
no
rosto
e
também
pelos
panos
e
penteados.
Essas
tradições
culturais
foram
também
exploradas
nas
cartes
de
visite.
109
Júnior,
que
se
dedicou
à
produção
de
imagens
de
“tipos
raciais”
e,
por
isso,
os
representa
como
“souvenirs
exóticos”;
e
José
Ferreira
Guimarães,
amigo
de
D.
Pedro
II,
que
fotografou
personagens
ilustres
da
nobreza
imperial.
Enquanto
o
primeiro
realizou
uma
apropriação
mercadológica
de
escravos,
o
segundo
apresentou
cartões
de
visita
de
uma
sociedade
que
se
espelhava
nos
gostos
do
monarca
Pedro
II,
amante
da
técnica
fotográfica
e
maior
entusiasta
do
império
(Mauad
e
Cruz,
2017).
Fonte:
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional,
Brasil
As
cartes
de
visite
do
fotógrafo
Christiano
Júnior
eram
produzidas
em
estúdio
e,
dessa
forma,
deslocava
os
representados
do
meio
em
que
viviam
para
uma
sala
com
fundo
neutro
e
homogêneo.
Através
desse
movimento,
indivíduos
díspares,
de
diversas
localidades,
foram
representados
como
pertencentes
ao
mesmo
universo:
o
universo
do
exótico.
O
destaque
da
“personagem”
em
um
fundo
neutro
só
confirma
a
função
de
montra
do
imperialismo
que
a
fotografia
exercia,
ao
exibir
tipos
humanos
“exóticos”
que
foram
conhecidos
com
grande
mobilidade
mercantil.
O
fotógrafo,
por
sua
vez,
exercia
um
duplo
poder
sobre
o
fotografado:
detinha
os
meios
de
produção/reprodução
da
imagem
e
possuía
um
ponto
de
vista
dominante.
Segundo
Natália
Brizuela
(2012),
as
cartes
de
visite
deixam
de
ser
retratos
para
mostrar-‐se
como
signo
de
exclusão,
demarcando
o
Outro
e
a
alteridade.
Esta
técnica
111
de
representar
o
outro
anula
subjetividades,
pois
descontextualiza
os
indivíduos
de
sua
vida
particular
e
da
história
nacional.
Nessa
produção
imagética,
a
tecnologia
fotográfica
“se
apropriava
de
corpos,
criava
estereótipos
e
reificava
conceitos
de
raça
e
de
cultura
na
ciência,
e
legitimava
e
adoptava
ideologias
coloniais
ou
práticas
discriminatórias”
(Edwards,
2008,
p.102).
Do
que
se
pode
entender
que
as
cartes
de
visite,
produzidas
no
Brasil
Imperial,
reproduziam
um
discurso
do
ponto
de
vista
do
colonizador,
pois
o
fotógrafo
estrangeiro
ao
exibir
seu
ponto
de
vista
acreditava
ser
o
responsável
por
desvelar
aquele
mundo
bárbaro
e
ainda
desconhecido.
Figuras
18
e
19
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
em
1865:
“Escravo
da
Nação
Africana
Cabinda”
e
“Escravo
da
Nação
Africana
Angola”
Fonte:
Museu
Histórico
Nacional,
Brasil
As
características
adotadas
pelas
cartes
de
visite
no
Brasil
definem
o
que
foi
concebido
como
“fotografia
colonial”.
Este
tipo
de
fotografia
surgiu,
sobretudo
para
o
consumo
dos
europeus,
“mas
também
para
mostrar
e
reproduzir
a
superioridade
do
colonizador
sobre
o
colonizado
em
vários
referentes”
(Barradas,
2014,
p.449).
O
colonialismo
encontrou
fundamento
na
“produção
do
Ocidente
como
forma
de
conhecimento
hegemónico
(que)
exigiu
a
criação
de
um
Outro,
constituído
como
um
ser
intrinsecamente
desqualificado,
um
repositório
de
características
inferiores
em
relação
ao
poder
e
saber
ocidentais
e,
por
isso,
disponível
para
ser
usado
e
apropriado”
(Santos
e
Arriscado,
2004,
p.
24).
A
fotografia
colonial
quando
atrelada
aos
poderes
hegemônicos
serviu
como
ferramenta
para
a
manutenção
de
desigualdades.
As
cartes
de
visite
ainda
reproduziam
essas
mensagens
e
apresentavam
personagens
exóticos
aos
olhos
eurocêntricos.
112
Contudo,
a
fotografia
colonial
tem
especificidade
própria:
constitui-‐se
como
a
mais
antiga
memória
pictural
dos
países
que
emergem
após
a
descolonização.
Essa
memória,
conta
Lobato
(2006),
foi
preservada
através
do
olhar
do
fotógrafo
europeu,
“o
qual,
como
qualquer
olhar,
é
discriminativo
e
(...)
também
frequentemente
discriminatório”
(p.107).
Os
fotógrafos,
em
sua
maioria
estrangeiros
no
Brasil,
atuavam
como
autoridade
intelectual
sobre
o
outro,
representando-‐o
como
alteridade,
amoral,
animal,
exótico.
E,
mesmo
com
o
progresso
da
técnica,
segundo
Kossoy
e
Carneiro
(1994),
o
“olhar
europeu”
nunca
deixou
de
representar
a
figura
do
negro
com
a
mesma
aparência
do
passado.
Figuras
20
e
21
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
mostrando
ofícios
exercidos
pelos
negros
escravos
e
libertos
no
centro
urbano,
c.1865
Fonte:
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional,
Brasil
As
cartes
de
visite
possuíam
um
padrão
preestabelecido
para
que
as
informações
alcançassem
melhor
compreensão
e
para
facilitar
a
comparação
de
tipos.
Além
disso,
grande
parte
reproduzia
todo
o
tipo
de
fantasias
relacionadas
com
o
orientalismo36
e
outros
exotismos,
criando
identidades
estereotipadas
que
satisfaziam
aos
consumidores
românticos
europeus.
Essas
imagens
funcionaram
como
mercadoria
nas
redes
relacionais
da
antropologia,
recebendo
significados
ambíguos
que
variavam
de
acordo
com
cada
interesse
ou
ideologia
política
de
consumo
institucional.
Como
36
O
orientalismo,
visto
por
Edward
Said
(1978),
relaciona-‐se
com
o
tratamento
subalterno
da
cultura
do
“Outro”.
É
uma
crítica
do
fenómeno
do
Orientalismo
definido
como
“um
conjunto
de
ideias
circunscritas
a
valores,
apresentados
de
modo
generalizado,
mentalidade,
características
do
Oriente”.
Dessa
forma,
a
cultura
dominante
se
apodera
da
outra,
a
traduz
a
partir
de
uma
gramática
e
imaginário
próprios
ao
descrever
a
cultura
do
Outro.
Termina
por
estabelecer
categorias
e
valores
que
se
baseiam
não
na
realidade,
mas
em
necessidades
políticas
e
sociais
do
Ocidente
113
aponta
Elizabeth
Edwards
(2008,
p.102),
no
século
XIX,
havia
uma
“interdependência
e
interpenetração
entre
esta
ciência
fluida
e
incerta
e
o
colecionismo
e
o
mercado”
e
a
fotografia
não
escapou
a
essa
regra,
pois
poderia
tanto
representar
um
quadro
falso
de
acontecimentos,
como
também
poderia
burlar
identidades
e
alterar
eventos
históricos
para
que
a
fotografia
fosse
mais
atrativa
e
assim
vendida
a
um
valor
proporcional
ao
grau
de
exotismo
oferecido
na
imagem.
Figuras
22
e
23
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
mostrando
trajes
típicos
dos
africanos,
c.1865
Fonte:
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional,
Brasil.
114
imperial”37.
Suas
imagens,
por
isso,
“deslizam
entre
os
planos
da
vida
pública
e
da
esfera
privada”
38.
A
função
de
representação
social
e
laços
pessoais
são
marcas
da
coleção
de
cartes
de
visite
de
Guimarães.
Ele
também
foi
fotógrafo
oficial
da
família
imperial
e
fez
grande
fortuna
na
profissão,
conforme
afirmou
Boris
Kossoy
(1980).
De
acordo
com
Ana
Maria
Mauad
e
Itan
Cruz
(2017),
identificou-‐se
a
presença
da
“fotografia
nas
relações
sentimentais
do
século
XIX,
sobretudo
com
o
crescimento
da
produção
da
modalidade
carte
de
visite,
a
partir
dos
anos
de
1870,
na
corte
do
Rio
de
Janeiro”
(p.159).
Tal
presença
foi
destacada
na
troca
de
correspondências
entre
a
imperatriz
Teresa
Cristina
e
Maria
Amanda
Paranaguá,
dama
de
companhia
da
princesa
Isabel
(filha
de
D.
Pedro
II)
e
baronesa
de
Loreto
(Fig.
24).
Pelo
estúdio
de
Guimarães
também
passaram
militares,
com
suas
fardas
e
condecorações
que
com
suas
poses
rígidas
queriam
registrar
para
a
posteridade
o
lugar
social
e,
sobretudo,
demarcar
hierarquias.
No
retrato
de
Beaurepaire
(Fig.
25),
as
condecorações
mostram
a
sua
estreita
vinculação
com
o
governo
imperial,
apesar
da
fotografia
ter
sido
produzida
na
época
republicana
do
Brasil.
Figuras
24
e
25
-‐
José
Ferreira
Guimarães.
“Retrato
da
baronesa
de
Loreto”
(c.1884)
e
“Retrato
do
visconde
de
Beaurepaire”
(1894)
37
Cf.
Acervo
Brasiliana
Fotográfica.
Acessível
em
http://brasilianafotografica.bn.br/?tag=dom-‐pedro-‐ii
38
Idem.
115
próprio
cliente
“se
converte,
ele
mesmo,
num
acessório
de
estúdio”
(Freund,
1976,
p.62)
com
poses
que
obedeciam
a
“padrões
pré-‐estabelecidos
e
já
institucionalizados
de
acordo
com
a
sua
posição
social”
(Kossoy,
1980,
p.44).
Com
as
imagens
realizadas
do
busto
do
fotografado
posicionado
mais
próximo
da
câmara,
as
expressões
faciais
e
as
insígnias
e
condecorações
ganham
mais
destaque.
Segundo
Heynemann
e
Rainho
(2017)39,
atrás
das
fotos
de
Guimarães
constava
dados
referentes
ao
estúdio,
“sua
participação
em
exposições,
seus
títulos
–
Fotógrafo
da
Casa
Imperial,
Cavaleiro
da
Ordem
da
Rosa
–
seus
prêmios”.
Com
essas
informações,
o
fotógrafo
se
distinguia
dos
concorrentes
e
aproximava
uma
seleta
clientela,
“homens
e
mulheres
da
boa
sociedade
que
aumentavam
seu
capital
simbólico
justamente
por
se
darem
a
ver
através
das
suas
lentes.”
Olhar
para
essas
imagens
pode
tanto
“suspeitar
um
balanço,
uma
memória
ou
uma
expectativa,
como
uma
representação
da
narrativa
e
da
identidade
do
colonizador
e
do
colonizado
nos
vários
estágios
que
as
compuseram”
(Mirzoeff,
1998,
p.127).
Essa
memória,
entretanto,
pode
vir
a
resgatar
um
passado
distante
no
tempo
e
no
espaço,
ao
invés
de
servir
como
desconstrução
da
narrativa
colonial
com
a
produção
de
imagens
a
partir
do
ponto
de
vista
do
colonizado,
o
que
nos
levaria
ao
conceito
de
pós-‐colonialismo.
As
fotografias
de
“tipos”
e
de
uma
sociedade
imperial
marcada
por
uma
relação
íntima
com
Portugal
nos
mostra
que
tais
imagens
representavam
aquele
modo
de
ver
o
mundo
ao
produzir
ainda
uma
“fotografia
colonial”.
117
a
imprensa
à
iniciativa
privada,
o
que
significava,
evidentemente,
a
sua
entrega
ao
capitalismo
em
ascensão”
(Sodré,
1983,
p.2).
Assim,
os
conflitos
e
as
guerras
passaram
a
ser
assistidos
por
correspondentes
que
se
deslocavam
até
o
local
dos
acontecimentos
e,
por
consequência,
a
informação
passa
a
ser
priorizada
no
lugar
da
opinião
nos
jornais
que
surgiam.
No
entanto,
muito
rapidamente
“a
grande
imprensa
capitalista
compreendeu,
também,
que
é
possível
orientar
a
opinião
através
do
fluxo
de
notícias”
(Sodré,
1983,
p.
4).
No
desenvolvimento
da
imprensa,
além
da
luta
entre
opinião
e
informação
houve
também
a
luta
entre
opinião
e
publicidade.
A
imprensa
francesa
no
final
do
século
XIX
tornou-‐se
pioneira
no
sentido
de
dar
uma
apresentação
gráfica
destacada
aos
anúncios
publicitários.
119
efetivamente
para
a
definição
do
Outro
através
de
um
jogo
de
contrastes
que
expõe
imagens
simplificadas
e
estereotipadas
do
Outro
para
mostrar
que
ele
é
diferente
da
maioria
dominante
(Rivers
e
Schramm,
1967
apud
Ferin
Cunha
et
al.,
2002).
A
imprensa,
portanto,
é
política,
pois
defende
o
ponto
de
vista
da
empresa
que
a
publica.
Dessa
forma,
os
media
podem
contribuir
com
o
reforço
da
percepção
de
minorias
como
“espaços
ideológicos-‐políticos,
como
realidades
alienígenas,
constituindo
um
corpo
estranho”
(Fernandes,
1995,
p.24).
Ao
mesmo
tempo
que
tornou
possível
visualizar
os
acontecimentos
que
ocorriam
para
além
das
proximidades,
das
áreas
mais
longínquas
do
planeta,
“(...)
se
converte
num
poderoso
meio
de
propaganda
e
manipulação.
O
mundo
em
imagens
funciona
de
acordo
com
os
interesses
de
quem
são
os
proprietários
da
imprensa:
a
indústria,
as
finanças,
os
governos”
(Freund,
1976,
p.96).
Com
a
instalação
da
República
no
Brasil,
em
1889,
as
relações
luso-‐brasileiras
tornaram-‐se
difíceis.
No
entanto,
foram
também
criadas
bases
necessárias
para
a
convivência
amistosa
entre
as
duas
nações.
Ao
fim
do
século
XIX
e
início
do
século
XX
havia,
no
Brasil,
uma
preocupação
em
definir
o
caráter
nacional
que
tinha
conexão
com
especulações
estéticas
e/ou
poéticas
(Müller,
2009).
Com
o
centenário
da
independência
em
1922,
momento
de
balanço
da
nacionalidade,
cresce
a
discussão
e
publicação
de
obras
e
estudos
sobre
o
Brasil
nas
áreas
de
história,
sociologia,
literatura
e
língua
nacional.
Nesse
período
de
transição
e
transformações
sociais
subjaziam
divergências
120
duas
nacionalidades.
Muitas
revistas
portuguesas
da
época
e
mesmo
aquelas
que
se
diziam
luso-‐brasileiras,
procuravam
divulgar
a
cultura
e
a
literatura
de
ambos
os
países,
mas
“utilizavam-‐se
de
artigos/matérias
para
realizar
a
manutenção
do
status
quo
português,
apesar
de
debates
intensos
acerca
da
desvinculação
cultural
promovida
por
alguns
intelectuais
brasileiros,
por
exemplo”
(Müller,
2009,
p.3).
Segundo
Benedita
Sant’Anna
(2007),
que
investigou
esse
tipo
de
imprensa
em
Portugal
e
no
Brasil,
tais
publicações
luso-‐brasileiras
procuravam
estreitar
laços
entre
o
Brasil
e
Portugal,
movimento
que
teve
início
na
metade
do
século
XIX.
Dentre
as
revistas
que
procuravam
impor
valores
portugueses
na
sociedade
brasileira
estavam
Illustração
Portugueza
(1903-‐1930)
e
Atlântida:
Mensário
artístico,
literário
e
social
para
Portugal
e
Brasil
(1915-‐1920).
Figura 26 – Frontispício de Illustração Portugueza, nº111 de 29 de janeiro de 1906
Fonte:
Hemeroteca
Digital
de
Lisboa
121
Fundador
da
Illustração
Portugueza,
o
escritor,
jornalista
e
monarquista
português
Carlos
Malheiros
Dias,
colaborava
com
a
imprensa
periódica
da
época
e
também
foi
um
dos
luso-‐brasileiros
que
procuravam
estreitar
os
laços
entre
os
dois
países,
apesar
da
procura
do
efetivo
corte
que
teve
seu
ponto
alto
com
a
Semana
de
Arte
Moderna
de
1922
(Müller,
2009,
p.6).
O
jornalista,
conta
Nelson
Vieira
(1991),
citado
por
Müller
(2009,
p.6),
“estava
imaginando
o
Brasil
como
uma
plataforma,
a
partir
da
qual
poderia
relançar
o
Portugal
do
século
XVI,
sempre
a
conquistar
novos
horizontes”.
Com
esse
intuito,
ele
utilizou
a
imprensa,
como
as
revistas
Illustração
Portugueza,
Cruzeiro
e
a
Revista
da
Semana
para
expressar
os
ideais
portugueses
no
Brasil.
A
revista
Illustração
Portugueza
(Fig.
24)
era
uma
revista
semanal
que
mostrava
a
vida
social,
política,
artística,
mundana,
esportiva
e
doméstica
portuguesa
(Müller,
2009).
Foi
publicada
em
Lisboa
e
apresentava
fotografias
de
personalidades
importantes
da
cultura
portuguesa.
A
partir
de
1906,
sob
a
direção
de
Malheiro
Dias,
apresentava
também
poemas
de
Fernando
Pessoa,
dentre
outras
obras
de
ilustres
literatos
portugueses.
No
ano
seguinte,
Malheiro
Dias
visita
o
Brasil
e
sua
revista
foi
apresentada
no
editorial
do
jornal
O
Estado
de
São
Paulo
como
uma
revista
que
procurava
divulgar
a
cultura
e
os
valores
de
Portugal
no
Brasil,
como
pode
ser
visto
nesse
trecho
do
editorial:
122
Neste
trecho,
torna-‐se
clara
a
procura
de
subordinação
do
Brasil
à
cultura
portuguesa
através
da
divulgação
da
revista
no
editorial
do
jornal
brasileiro.
No
momento
em
que
diz
“reatando
assim
a
comunidade
literária
que
perdurou
até
aos
primeiros
anos
do
século
XIX”,
observa-‐se
uma
necessidade
de
reatar
os
laços
do
passado,
coisa
que
deve
acontecer
através
da
unidade
que
se
impõe
pelo
idioma.
Desse
modo,
os
valores
portugueses,
que
eram
passados
através
da
língua
e
da
literatura
na
revista,
tinham
a
função
de
manter
sempre
vivos
os
valores
colonizadores
através
da
“hegemonia
literária”.
Se
Portugal
não
obteve
sucesso
através
da
unidade
territorial
Brasil-‐Portugal,
Malheiros
Dias
acreditava
que
o
sucesso
poderia
ser
alcançado
através
da
língua-‐mãe.
Expelindo
cheiro
de
política
a
cada
página,
a
revista
Atlântida
tinha
como
eixo
principal
a
propaganda
nacional
portuguesa
para
uma
aproximação
entre
Brasil
e
Portugal.
Interessante
notar
que
mesmo
com
editor
brasileiro
há
uma
ideia
compartilhada
de
Brasil
entre
os
editores.
“Atlântida”,
ao
utilizar
o
nome
da
civilização
perdida,
buscava
retomar
o
prestígio
perdido
português
no
momento
em
que
os
brasileiros
queriam
uma
cultura
própria
e
independente.
Ou
mesmo,
procurar
recriar
essa
civilização
perdida,
fazendo
surgir
outra
através
da
força
da
união
cultural.
Foi
financiada
pelos
Ministérios
das
Relações
Exteriores
do
Brasil
e
dos
Estrangeiros
e
Fomento
de
Portugal,
do
que
decorre
que
era
uma
“(...)
revista
de
elites
para
elites,
a
viabilidade
financeira
da
Atlântida
assentava,
provavelmente,
nas
assinaturas,
em
alguma
publicidade
e
nos
apoios
e
colaborações
voluntariosas
dos
que
lhe
asseguravam
conteúdo”
(Correia,
2008,
p.
4).
123
Figuras
27
e
28
–
Páginas
de
“Atlântida:
mensário
artístico,
literário
e
social
para
Portugal
e
Brasil”,
nº17
de
15
de
março
de
1917;
nº6
de
15
de
abril
de
1916
40
Fonte:
Hemeroteca
Digital
de
Lisboa
A
necessidade
de
união
luso–brasileira
proposta
por
João
de
Barros
poderia
até
ultrapassar
as
relações
diplomáticas,
como
o
próprio
disse:
A
animalidade
se
conecta
à
imagem
do
negro/negra
para
associação
ao
sexo.
Conforme
atesta
Fanon
(2008,
p.145),
o
negro
sempre
“representa
o
instinto
sexual”
para
os
europeus.
As
escravas
eram
alvos
da
luxúria
dos
senhores
e
para
as
quais
eram
dirigidas
toda
sorte
de
ações
no
âmbito
sexual,
uma
vez
que
elas
eram
“tidas
como
meros
objetos”
nos
quais
“davam
vazão
a
impulsos
sexuais”
(Freitas,
2011,
p.
65).
Além
disso,
segundo
Gilberto
Freire,
nos
engenhos
do
Brasil,
a
sexualização
das
negras
e
mulatas
era
algo
incentivado
até
pelas
mães
brancas:
“Nenhuma
casa
grande
do
tempo
da
escravidão
quis
para
si
a
glória
de
conservar
filhos
maricas
ou
donzelões.
O
que
a
negra
da
senzala
fez
foi
facilitar
a
depravação
com
sua
docilidade
de
escrava:
abrindo
as
pernas
ao
primeiro
desejo
do
senhor-‐moço.
Desejo
não,
ordem”
(Freyre,
1973
[1933],
p.352).
A
utilização
do
corpo
da
escrava
por
esses
senhores
ociosos
em
casa
era,
como
tudo
na
vida
escrava,
um
trabalho
forçado,
violento,
ou
melhor,
uma
violentação
naturalizada,
que
tratou
de
ser
amenizada
pela
literatura
e
pela
fotografia
da
época
que,
ao
invés
de
denunciar
tal
violência,
preferiu
apresentar
um
corpo
disponível
que
dava
vazão
aos
instintos
sexuais
animalescos
característicos
da
raça
negra.
A
fotografia
aprisionou
esses
corpos
pela
segunda
vez,
objetificou
o
corpo
da
negra
pela
segunda
vez
quando
permitiu
que
se
tornasse
um
objeto
visual
de
valor
sexual
que
pode
ser
carregado
para
qualquer
lugar
do
mundo.
Os
corpos
dos
escravos
pertenciam
aos
seus
donos
para
que
fosse
feito
o
que
bem
quisessem,
tal
como
corpos
dos
animais.
Nenhum
poder
se
impunha
contra
a
lei
dos
donos
de
escravos
em
seus
imensos
latifúndios
que
expandiam
os
terrenos
da
libertinagem,
da
depravação
e
da
subordinação
sexual,
que,
segundo
Gilberto
Freyre
(1998),
foram
características
inerentes
ao
sistema
colonial
brasileiro.
Além
do
mais,
vale
ressaltar
que
nos
navios
negreiros
as
africanas
eram
violentadas
para
que
126
chegassem
grávidas
em
seu
destino
e,
dessa
forma,
seriam
mercadorias
mais
atrativas
para
os
compradores
que
levavam
dois
escravos
pelo
preço
de
um
(Pomer,
1980
apud
Freitas,
2011).
Figuras 29 e 30 – Retratos de Augusto Stahl de negras de “raça pura” no Rio de Janeiro, 1865
Fonte:
Peabody
Museum
of
Archaeology
and
Ethnology,
Universidade
de
Harvard
A
produção
de
identidades
esteve
sempre
ancorada
em
uma
produção
visual
abundante,
com
exposições,
postais,
cartes
de
visite,
que
alcançou
todos
os
cantos
do
mundo,
criando
novos
sujeitos
que
passaram
a
participar
de
um
imaginário
coletivo
criado
e
perpetuado
apenas
através
das
imagens
de
seus
corpos.
Segundo
William
Ewing
(1996),
tais
fotografias
que
têm
como
objeto
o
corpo
humano
são
políticas,
pois
são
utilizadas
para
controlar
opiniões
ou
influenciar
ações.
Esse
tipo
de
imagem
alcança
maior
impacto
no
imaginário
social
que
as
imagens
televisivas,
pois
são
elas
que
ficam
marcadas
na
memória
como
identidade
do
Outro.
São
elas
que
promovem
a
identificação
do
Outro,
e
essa
identificação,
o
ser
para
um
Outro,
“implica
a
representação
do
sujeito
na
ordem
diferenciadora
da
alteridade
(...),
é
sempre
o
retorno
de
uma
imagem
de
identidade
que
traz
a
marca
da
fissura
no
lugar
do
Outro
de
onde
ela
vem”
(Bhabha,
1998,
p.76).
Figuras
31
e
32
–
Retratos
de
Walter
Hunnewell
de
mulheres
de
“raças
mistas”
em
Manaus,
1865-‐1866
Fonte:
Peabody
Museum
of
Archaeology
and
Ethnology,
Universidade
de
Harvard
O
olhar
erotizado
para
a
mulher
nas
primeiras
fotografias
do
Brasil
parece
ter
seguido
a
linha
do
erótico,
disfarçado
de
um
olhar
etnocêntrico.
Afinal,
as
escravas
eram
alvos
de
luxúria
dos
seus
senhores
e
exerciam
um
valor
fetichista
quando
puderam
ser
representadas
nessas
fotografias
duvidosas.
Esse
olhar
objetificador
não
é
exclusivo
do
Brasil,
ele
sempre
foi
lançado
para
as
mulheres
negras
e
birraciais
da
África,
por
exemplo,
para
que
suas
imagens
fossem
produtos
também
sexuais.
Tais
imagens,
de
qualquer
forma,
possuem
sentidos
ambíguos,
“elas
situam-‐se
entre
a
negociação
do
consentimento
por
parte
das
mulheres
fotografadas
e
a
intenção
voyeurística
do
fotógrafo”
(Monteiro,
2010,
p.76).
Elas
aceitam
ser
fotografadas
nuas,
mas
parecem
ser
coagidas
a
isso,
pois
suas
expressões
não
aparentam
que
estão
confortáveis
diante
das
lentes
e
também
dos
homens
que
a
encaram.
As
cartes
de
128
visite
do
português
Christiano
Júnior
também
representou
o
corpo
desnudo
de
mulheres,
mostrando
o
corpo
feminino
como
uma
simples
“geometria
de
sexualidade
cativa
da
tecnologia
da
forma
imperial”
(McClintock,
1995,
p.04).
Figura
33–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
em
1865:
“Mulher
Negra”
Fonte:
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional;
Museu
Histórico
Nacional
41
Acessível
em:
http://www.lusocom.net/anuario/anuario-‐2009/
130
casas
de
prostituição,
prisão
de
algumas
mulheres
e
repatriação
das
brasileiras
que
estavam
ilegais.
Para
a
imprensa
portuguesa,
foi
uma
confirmação
de
que
as
mulheres
brasileiras
eram
mesmo
“sexualizadas”
como
sempre
mostrou
a
história
dos
descobrimentos
e
que,
por
isso,
elas
deveriam
voltar
ao
seu
país
de
origem,
onde
tudo
é
permitido,
inclusive
para
os
homens
portugueses.
Figuras
34
e
35
–
Capa
da
revista
americana
Time
que
chama
Bragança
de
“Europe’s
New
Red
Light
District”
e
a
matéria
de
jornal
que
mostra
a
prisão
de
brasileiras
na
imprensa
portuguesa
Fonte:
Reprodução
encontrada
na
Internet
Muitas
brasileiras
que
emigraram
e
que
não
vinham
a
Portugal
para
prostituir-‐
se,
mas
sim
para
tentar
uma
vida
melhor
e
mais
tranquila,
foram
conectadas
automaticamente
a
uma
geração
que
procurava
maridos
europeus
para
casar
e
assim
obter
o
visto
português
de
residência.
Essa
imigração
ficou
marcada
no
imaginário
dos
portugueses
e
vez
por
outra
a
discriminação,
espelhada
nesse
caso,
ainda
se
repete.
Interessante
lembrar
que
houveram
vários
casos
de
retaliação
das
mulheres
portuguesas
em
relação
ao
corpo
visto
como
sexualizado
da
mulher
escrava
no
período
colonial,
conforme
relatou
Freyre
(1933)
sobre
o
fato
de
que
as
senhoras
de
escravos
destroçavam
dentes
de
negras
com
sapato
ou
mandavam
cortar-‐lhes
os
mamilos
quando
chegavam
na
puberdade
para
que
não
fossem
mais
atrativas
aos
esposos
brancos.
Essa
cultura
de
“retaliação”
passou
a
alimentar
“uma
grande
rivalidade
entre
senhoras
e
escravas
–
ambas
desconhecendo
que
estavam
todas
submetidas
ao
mesmo
poder
patriarcal”
(Freitas,
2011,
p.67).
Triste
constatar
que
até
hoje
ainda
há
um
entendimento
de
que
os
homens
são
pobres
coitados
que
não
podem
resistir
ao
corpo
de
outra
mulher,
ainda
mais
se
for
de
uma
brasileira
ou
uma
africana,
remetendo
ambos
os
corpos
a
uma
cultura
de
estupro
internalizada
na
época
131
da
escravidão.
Isso
faz
com
que
as
próprias
mulheres
se
tornem
inimigas
umas
das
outras
por
causa
dessa
ordem
patriarcal
que
ainda
bombeia
as
veias
de
todo
o
mundo.
Fonte:
Reprodução
encontrada
na
Internet
132
corpo-‐objeto
que
se
mostra
como
uma
constante
ameaça
contra
a
paz
da
família
portuguesa.
Os
homens
portugueses,
que
agora
não
se
lançam
mais
ao
mar,
passaram
a
frequentar
as
casas
de
alterne
à
procura
da
mulher
brasileira
que
é
capaz
de
tudo
para
satisfazer
o
seu
senhor.
Gomes
(2013)
acrescenta
que
este
corpo
disponível,
sexualizado,
ainda
atinge
todas
as
brasileiras,
independentemente
da
função
na
sociedade
ou
do
nível
de
escolaridade.
No
entanto,
a
diferença
de
classe
e
a
escolaridade
influenciam
a
vulnerabilidade
ao
estigma,
ou
seja,
mulheres
com
baixa
instrução
ao
exercer
atividades
domésticas
ou
de
atendimento
ao
público,
tornam-‐se
alvo
de
maior
preconceito
ou
de
sexualização.
A
capacidade
de
reação
organizada
deste
grupo
também
é
menor,
visto
que
se
sentem
inferiores
e
por
isso
internalizaram
já
essa
condição.
Gomes
(2013),
em
uma
revisão
crítica
de
estudos
realizados
sobre
a
mulher
brasileira
em
Portugal
em
sua
tese
de
doutoramento,
apontou
diversas
pesquisas
que
confirmam
a
permanência
nos
dias
atuais
do
estigma
da
facilidade
sexual
ou
mesmo
da
prostituição
que
carrega
a
mulher
brasileira
em
Portugal,
como
foi
o
caso
dos
trabalhos
de
Cunha
(2003;
2005)
e
Padilla
(2007).
Nesta
tese,
entretanto,
não
se
objetiva
traçar
uma
revisão
do
assunto,
mas
assinalar
que
muitos
estudos
já
comprovaram
a
permanência
de
um
estigma
colonial
no
que
se
refere
à
imagem
da
mulher
brasileira.
Figura
37
–
Neon
produzido
pela
artista
plástica
brasileira
Santarosa
Barreto
em
sua
residência
artística
em
Paris,
2016
Fonte:
Instagram
da
artista
(@santarosabarreto)
A
associação
da
mulher
brasileira
com
a
prostituição
deve-‐se
tanto
aos
media
portugueses
como,
também,
às
telenovelas
brasileiras
(Feldman-‐Bianco,
2010;
Machado,
1999).
Como
uma
mercadoria
pré-‐fabricada
no
próprio
Brasil,
a
mulher
brasileira
sensual,
principalmente
aquelas
que
são
negras
e
mulatas,
tornaram-‐se
133
atrativas
tanto
para
o
mercado
interno
como
para
o
externo.
Disto
se
percebe
que
no
Brasil
também
se
consome
o
estereótipo,
“pelo
que
a
exotização
se
sobrepõe
à
racialização”
(Padilla,
2007,
p.
125).
Cunha
(2003)
afirma
que
três
anos
após
o
fim
do
regime
ditatorial
português
houve
um
incremento
das
audiências
televisivas
em
Portugal
com
a
telenovela
Gabriela,
em
16
de
maio
de
1977,
adaptada
do
romance
homônimo
do
escritor
brasileiro
Jorge
Amado,
e,
desde
então,
esse
gênero
televisivo
vem
contribuindo
para
as
referências
lusófonas
da
mulher
tropical
do
Brasil.
Inclusive,
segundo
Cunha
(2005),
os
romances
de
Jorge
Amado
foram
os
mais
vendidos
naquela
época
na
Feira
do
Livro
de
Lisboa,
superando
a
venda
de
livros
políticos
pela
primeira
vez
após
o
25
de
Abril.
Gabriela
era
uma
mulher
sensual
que
representava
a
mudança
do
meio
patriarcal
da
Bahia
para
os
novos
tempos
de
renovação
cultural,
política
e
econômica
no
início
do
século
XX,
trata-‐se
de
uma
personificação
da
mudança.
Fonte:
Reprodução
encontrada
na
internet
Importante
ressaltar,
entretanto,
que
não
é
apenas
em
Portugal
que
a
mulher
brasileira
é
frequentemente
associada
a
um
corpo
disponível
sexualmente.
Margolis
(1993
apud
Gomes,
2013,
pp.
8-‐9),
em
seu
estudo
sobre
os
brasileiros
em
Nova
York,
fala
que
“por
algum
motivo
a
fama
das
Brasileiras
se
exacerba,
tanto
entre
os
cidadãos
Brasileiros
como
entre
os
não-‐brasileiros.
Essa
fama
refere-‐se
a
uma
“marca
da
prostituição”
que
também
foi
vista
na
Itália
(Bógus
e
Bassanezi,
1999).
A
grande
diferença
entre
os
cenários
de
Portugal
e
o
de
outros
países,
prende-‐se
ao
fato
de
a
presença
das
brasileiras
em
Portugal
ser
proporcionalmente
maior.
134
As
empresas
turísticas
e
a
publicidade
têm
grande
peso
na
propagação
da
imagem
de
um
Brasil
exótico
ao
apresentar
mulatas
com
corpo
nu
como
atrativo
de
pacotes
turísticos
e
uma
natureza
exuberante
sempre
a
ser
descoberta.
Segundo
Gomes
(2012),
isto
tem
mudado
um
pouco,
pois
o
órgão
responsável
pelo
turismo
brasileiro
e
a
imprensa
portuguesa
estão,
atualmente,
desconstruindo
o
imaginário
da
mulher
mulata
e
erotizada,
para
construir
outros
imaginários
do
Brasil
com
a
apresentação
de
elementos
da
cultura
em
detrimento
de
corpos
expostos.
Isso,
deve-‐
se,
em
parte,
segundo
a
autora,
à
pressão
exercida
pelos
movimentos
sociais
e
feministas
brasileiros
no
Brasil
e
em
Portugal.
A
expressão
“corpo
colonial”
foi
cunhada
por
Franz
Fanon,
pensador
afro-‐
caribenho,
e
utilizada
como
forma
de
percepção
do
corpo
da
mulher
brasileira
reproduzido
nos
media
portugueses
e
imaginário
de
portugueses,
principalmente
no
trabalho
de
Mariana
Gomes
(2012).
Esse
“corpo
colonial”
refere-‐se
a
um
corpo
que
ainda
é
visto
como
disponível
e
sexualizado
pelo
olhar
do
europeu,
nomeadamente,
pelos
portugueses.
Quando
Fanon
trata
do
“corpo
colonial”,
segundo
Oto
(2016),
ele
fala
de
um
corpo
que
é
constituído
pelo
colonialismo
mas
que
passa
a
ser
visível
apenas
no
momento
pós-‐colonial,
quando
o
corpo
é
enunciado
como
existente
através
da
ação
política
que
abre
a
crítica
do
colonialismo.
Trata-‐se
de
um
corpo
que
passa
por
um
deslocamento
espacial
e
temporal,
um
corpo
que
é
visto
no
momento
posterior,
momento
pós-‐colonial,
e
por
isso
também,
em
outro
espaço,
produzindo
uma
“poética
do
deslocamento”
para
Fanon:
um
corpo
que
foi
visto
e
reduzido
pelos
olhos
da
alteridade
no
passado,
mas
que
hoje
se
afirma
como
uma
identidade
libertadora.
Esse
corpo
da
mulher
brasileira
sob
estigma
colonial,
ainda,
como
muitas
pesquisas
realizadas
em
Portugal
mostraram
(Machado,
2004;
Feldman-‐Bianco,
2010;
Cunha,
2002;
Lages
e
Policarpo,
2003;
Padilla,
2007;
Gomes,
2012),
é
reconhecido,
no
momento
pós-‐colonial,
principalmente,
e
com
mais
força,
como
aquele
corpo
disponível
ao
olhar
do
outro
quando
surgem
em
imagens
nos
media
portugueses
e
nas
telenovelas
brasileiras.
Juntos,
reproduzem
ainda
a
mulher
negra
como
fetiche
ou
a
mulher
objeto
com
a
fragmentação
do
seu
corpo.
A
mulher
brasileira
pode
ser
entendida
então
como
uma
dobra
de
significações
que
une
raça
e
sexualização
como
identificação.
Esse
corpo,
ainda
representado
de
forma
objetificadora
e
reduzida,
135
passa
a
ser
desconstruído
através
de
um
pensamento
pós-‐colonial
e
feminista
para
que
se
torne
possível
descolonizar
o
pensamento
europeu
e,
também,
o
pensamento
da
própria
mulher
brasileira
que
muitas
vezes
pode
repetir
o
que
lhe
foi
internalizado
pela
cultura
heteronormativa
durante
todos
esses
anos.
Sabe-‐se
bem
que
ser
brasileiro
no
início
do
século
XXI
não
é
o
mesmo
que
sê-‐lo
no
século
XVI.
Considerando
o
que
Foucault
(2004
[1970])
escreve
sobre
o
discurso,
somos
sujeitos
e
objetos
da
história,
somos
resultado
das
múltiplas
relações
e
atribuições
de
sentidos.
Isso
porque
o
poder
é
relacional,
ele
convence
para
a
sua
livre
adesão
quando
nos
leva
a
seguir
em
alguma
direção
ao
mesmo
tempo
em
que
sofremos
os
seus
efeitos.
Ainda
segundo
Foucault
(2004),
quem
escreve
a
história
tem
motivações
específicas
e
utiliza
códigos
específicos,
inexistindo
um
“sujeito
fundador”
desinteressado
ou
com
algum
intuito
nobre.
Compreendendo
que
a
realidade
é
uma
construção
discursiva
que
é
controlada,
selecionada,
organizada
e
redistribuída
por
procedimentos
externos
e
internos
a
ela,
de
modo
a
prevenir
os
poderes
e
os
perigos,
dominar
a
força
dos
eventos
incontroláveis
e
esconder
as
forças
que
materializam
a
constituição
social
(2004,
p.
9),
deve-‐se
entender
o
discurso
não
no
âmbito
da
imaterialidade,
mas
sim
da
materialidade,
pois
é
dessa
forma
que
ele
se
efetiva
e
produz
efeitos.
Por
isso,
o
lugar
do
discurso
é
o
da
relação
(Ibidem,
p.57),
pois
cria
o
que
é
verdadeiro
e
falso,
o
legal
e
o
ilegal,
o
normal
e
o
anormal.
É
o
discurso
que
“liga
os
indivíduos
a
certos
tipos
de
enunciação
e
lhes
proíbe,
consequentemente,
todos
os
outros
(...)
serve,
em
contrapartida,
de
certos
tipos
de
enunciação
para
ligar
indivíduos
entre
si
e
diferenciá-‐los,
por
isso
mesmo,
de
todos
os
outros”
(Ibidem,
p.43).
Desse
modo,
devemos
encarar
os
textos
e
as
imagens
agrupadas
neste
capítulo
com
referência
à
uma
motivação
de
quem
escreveu,
pois
foram
produzidos
de
acordo
com
estratégias
de
convencimento
e
os
veículos
de
informação
são
instrumentos
de
amplo
alcance
dessa
disseminação
de
um
saber
que
é
forma
de
poder,
instrumento
que
pode
ser
orientado
para
promover
e/ou
excluir.
A
materialização
de
discursos
que
propagavam
“verdades”
produzidas
por
uma
sociedade
que
procurava
diferenciar-‐se
de
uns
(brasileiros)
e
unirem-‐se
a
outros
(portugueses),
ditavam
comportamentos
e
proibiam
outros.
Sabendo
disso,
procurou-‐se
desnaturalizar
tais
discursos
ou
produção
de
“verdades”
já
consagradas
para
deixar
emergir
os
jogos
de
poder
que
estão
136
envolvidos
na
produção
do
que
é
normal,
verdadeiro
e
justo,
de
modo
a
conferir
uma
coerência
aos
fatos
dispersos
que
foram
aqui
reunidos.
137
Capítulo
IV
138
No
que
se
refere
ao
habitante
do
Brasil
na
época
colonial,
pode-‐se
dizer
que
o
termo
“brasileiro”
agrupa
sentidos
complexos,
pois
variam
de
acordo
com
a
raça
e
o
gênero,
mas
ao
fim
todos
são
exóticos,
no
limite
da
humanidade
e
representados
como
se
fizessem
parte
da
paisagem
do
“Novo
Mundo”.
Isto
ocorre,
principalmente,
devido
ao
fato
de
que
a
construção
de
uma
“identidade”
brasileira
foi
construída
de
acordo
com
o
olhar
de
uma
camada
privilegiada
sobre
o
Outro,
que,
por
sua
vez,
era
desprovido
de
meios
materiais
e
simbólicos
de
representação.
Durante
muito
tempo,
desde
1500
para
ser
mais
exata,
foram
proferidas
muitas
“verdades”
sobre
o
caráter
brasileiro
que
passaram
então
a
povoar
o
imaginário
europeu,
incluindo
aquelas
associações
justificadas
com
base
em
“ciências”
duvidosas
que
conectavam
problemas
do
caráter
à
etnia,
pois
era
um
“problema
genético”.
Nesses
poucos
mais
de
500
anos
após
a
chegada
dos
portugueses
no
Brasil,
homens
e
mulheres
que
não
nasceram
na
Europa
foram
representados
como
preguiçosos,
canibais,
tristes,
sexualizados,
cordiais,
malandros
e
corruptos.
Este
conjunto
resumido
de
características
associadas
ao
brasileiro
(a),
é
repetido
pela
imprensa
e,
assim,
demonstram
a
força
dos
discursos
atribuídos
pelo
ponto
de
vista
139
europeu
a
um
povo
percebido
como
culturalmente
inferior.
Diante
disso,
tornou-‐se
fundamental
encontrar,
a
partir
do
exame
do
passado,
os
vestígios
e
contaminações
que
se
desdobram
nos
discursos
proferidos
e
propagados
sobre
os
brasileiros
pelos
portugueses,
sejam
em
textos
ou
fotografias,
como
forma
de
compreender
a
conformação
identitária
brasileira.
Trata-‐se
de
um
exame
do
passado,
das
raízes
étnicas
de
um
povo,
para
lançar
um
olhar
crítico
à
percepção
da
imagem
do
brasileiro
no
presente.
IV.1.
Povo
indígena:
bárbaros
e
canibais
42
Os involuntários da pátria. Aula pública durante o ato Abril Indígena. Rio de Janeiro, 20/04/2016.
Disponível em: https://ufrj.academia.edu/EVdeCastro
140
No
entanto,
os
povos
indígenas
ainda
não
são
considerados
“brasileiros”
por
viver
naquela
terra.
Eles
não
são
registrados,
controlados
ou
seguem
as
leis
de
um
Estado
soberano
(apesar
de
ter
que
respeitar
o
que
o
Estado
determina
como
seu
espaço).
Eles
sempre
foram
livres,
ao
contrário
do
“branco”,
o
aprisionador.
E
essa
liberdade
inclui
uma
relação
vital
com
a
terra:
“O
indígena
olha
para
baixo,
para
a
Terra
a
que
é
imanente;
ele
tira
sua
força
do
chão.
O
cidadão
olha
para
cima,
para
o
Espírito
encarnado
sob
a
forma
de
um
Estado
transcendente;
ele
recebe
seus
direitos
do
alto”
(Viveiros
de
Castro,
2006).
Diante
disto,
a
palavra
“índio”,
como
categoria
genérica,
foi
inventada
pelos
“brancos”,
pelo
Estado
“branco”,
imperial,
especialistas
na
generalização.
O
Estado
é
único,
singular
na
sua
própria
universalidade;
o
povo,
ao
contrário,
é
múltiplo,
mas
foram
dissolvidos
e
homogeneizados
para
serem
“abrasileirados”
pelo
poder
transcendente.
Por
causa
do
modo
de
vida
simples
e
da
utilização
da
caça
e
da
agricultura
para
viver,
muitos
portugueses
tinham
a
convicção
de
que
os
indígenas
viviam
num
momento
anterior
ao
homem
da
pedra.
É
o
que
pode
ser
visto
no
livro
A
evolução
do
povo
brasileiro
(1923)
de
Oliveira
Viana
(1883-‐1951),
historiador
e
sociólogo
brasileiro.
Neste
livro
ele
diz
que
entre
as
Índias
e
o
Brasil
há
uma
diferença
essencial:
Enquanto
que
nas
Índias
foi
encontrada
uma
civilização
milenária
com
uma
população
organizada,
que
tinha
além
de
uma
indústria
desenvolvida,
riqueza
acumulada
e
longa
tradição
comercial
com
os
povos
do
Ocidente
e
Oriente;
no
Brasil
acontecia
justo
o
contrário,
pois
os
portugueses
“encontraram
uma
população
de
aborígenes
ainda
na
idade
da
pedra
polida;
que
não
conhece
o
uso
de
metais;
que,
na
sua
maior
parte,
está
ainda
na
fase
puramente
caçadora;
que
pratica
apenas
uma
agricultura
rudimentar”
(Viana,
1923,
p.48).
Claude
Levi-‐Strauss
tem
uma
opinião
totalmente
oposta
à
do
sociólogo
Oliveira
Viana.
Em
Saudades
do
Brasil
(2009
[1994]),
o
antropólogo
conta
que
pesquisas
arqueológicas
recentes
mostraram
que
os
índios
são,
na
verdade,
sobreviventes
de
civilizações
mais
altas
e
numerosas,
possuidores
de
técnicas
muito
modernas.
As
mesmas
pesquisas
provaram
também
que
a
existência
dos
povos
indígenas
é
anterior
a
10.000
a.C.
Escavações
recuperaram
restos
de
cerâmica
em
Marajó
(embocadura
do
141
Rio
Amazonas)
e
no
baixo
Amazonas,
que
possuíam
influência
andina.
Ou
seja,
a
Amazônia
poder
ser
o
berço
das
civilizações
andinas.
Para
Darcy
Ribeiro
(2012
[1995]),
quando
os
portugueses
chegaram
ao
Brasil
se
depararam
com
grupos
indígenas
que
em
sua
maioria
eram
de
tronco
Tupi.
Esses
grupos
foram
os
primeiros
a
utilizar
a
atividade
agrícola,
domesticando
diversas
plantas
selvagens
para
mantimento
de
seus
roçados.
Para
o
autor,
esse
grupo
foi
amistoso
e
receptivo
com
os
portugueses
que
ao
desembarcar
das
caravelas
foram
vistos
sob
uma
espécie
de
encantamento.
Apesar
dessa
concepção
do
“bom
selvagem”,
alimentada
pelos
relatos
de
uma
chegada
pacífica
dos
portugueses
no
território
brasileiro,
os
povos
indígenas
nunca
formaram
um
grupo
homogêneo.
A
própria
condição
tribal
“fazia
com
que
cada
unidade
étnica,
ao
crescer,
se
dividisse
em
novas
entidades
autônomas
que,
afastando-‐se
umas
das
outras,
iam
se
tornando
reciprocamente
mais
diferenciadas
e
hostis”
(Ribeiro,
2012,
p.29).
Os
Tupi
viviam
em
guerra
permanente
contra
outras
tribos
que
se
alojavam
em
sua
área
de
expansão
ou
mesmo
contra
seus
vizinhos
de
mesma
matriz
cultural.
Seja
pela
disputa
das
melhores
áreas
para
caça,
pesca
e
lavoura
ou
pela
condição
cultural,
que
visava
a
captura
de
prisioneiros
para
antropofagia
ritual.
43
Hans
Staden
(1525
-‐1579)
foi
um
aventureiro
mercenário
alemão
que
por
duas
vezes
esteve
no
Brasil,
participando
de
combates
nas
capitanias
de
Pernambuco
e
de
São
Vicente
contra
navegadores
franceses
e
seus
aliados
indígenas
e
onde
passou
nove
meses
refém
dos
índios
tupinambás.
De
volta
à
Alemanha,
Staden
escreveu
"História
verdadeira
e
descrição...",
de
1557),
com
um
relato
de
suas
viagens
ao
Brasil
e
que
se
tornou
um
grande
sucesso
editorial
da
época.
142
Figura
39
–
Canibalismo
no
Brasil
descrito
por
Hans
Staden.
Gravura
de
Théodore
de
Bry,
1562
Fonte:
Coleção
particular,
Rio
de
Janeiro.
Essa
redução
da
prática
cultural
indígena
a
um
fator
econômico
demonstra
que
é
frequente
a
incompreensão
da
cultura
indígena,
fato
que
também
foi
visto
por
Bideaux
(1994)
em
Frank
Lestringant,
Le
cannibale:
grandeur
et
décadence,
ao
fazer
uma
análise
da
imagem
do
canibalismo
na
Europa.
Para
ele,
143
extrema
escassez
de
víveres,
vira
seu
apetite
contra
seus
semelhantes
(1994,
p.
30).
Conforme
Adone
Agnolin
(2002),
sob
uma
perspectiva
histórico-‐religiosa,
a
prática
alimentar
não
é
condicionada
por
um
valor
nutritivo.
Para
o
investigador,
os
cronistas
da
época,
viajantes
e
missionários,
ofereceram
respostas
que
são
contrastantes
com
a
ideia
materialista.
Não
se
tinha
prazer
em
comer
a
carne
de
outro
homem,
isto
apenas
obedecia
aos
preceitos
ritualísticos
da
antropofagia:
144
A
propagação
da
imagem
dos
índios
como
mansos
e
depois
como
bárbaros
iniciou-‐se
com
a
carta
escrita
por
Pero
Vaz
de
Caminha
ao
El
Rei
D.
Manuel,
em
primeiro
de
maio
de
1500.
Nela,
Caminha
descreve,
através
de
presunções
do
que
viu,
que
os
índios
eram
bárbaros
e
por
isso
deveriam
ser
amansados
pela
fé
cristã.
Mas,
“apesar
de
tudo
isso
andam
bem
curados,
e
muito
limpos...
São
como
aves,
ou
alimárias
montesinas,
as
quais
o
ar
fez
melhores
penas
e
melhor
cabelos
que
às
mansas
(...)”.
Logo
após
essa
curiosidade
inicial
e
por
causa
dos
rituais
antropofágicos,
os
índios
foram
vistos
como
“canibais,
totalmente
detestáveis
mas
susceptíveis
ainda
de
salvação”
(Arroyo,
1963,
p.22).
Bárbaros
ou
canibais,
os
povos
indígenas
foram
catequizados
à
força
e
submetidos
a
um
processo
de
aculturação.
A
difusão
do
canibalismo
foi
a
desculpa
perfeita
para
um
novo
propósito:
escravizar
os
índios.
Nesse
processo
devastador,
vários
índios
perderam
o
uso
da
língua
e
da
cultura
devido
à
presença
de
escolas
missionárias
em
seu
território.
Segundo
Darcy
Ribeiro
(2012),
os
adereços
e
plumárias
eram
guardados
pelos
jesuítas
para
que
não
fossem
“danificados”.
A
reposição
dos
artigos
tomados
tornou-‐se
difícil,
pois
muitas
aves
de
cores
vivas
passaram
a
ser
exportadas
para
o
outro
lado
do
oceano.
Algumas
tribos
ainda
foram
introduzidas
na
cultura
europeia,
mas
morreram
com
doenças
de
145
“branco”
e
alcoolismo.
Aos
poucos,
diante
do
estado
das
coisas,
os
índios
foram
obrigados
a
procurar
esconderijos
no
interior
de
florestas
e
áreas
de
difícil
acesso,
para
evitar
novas
invasões
portuguesas.
Os
portugueses,
por
outro
lado,
estavam
sempre
próximos
ao
mar,
sua
rota
de
fuga
caso
algo
desse
errado.
Isto
originou
uma
palavra
antiga
que
passou
a
descrever
o
português:
marinheiro.
A
chegada
dos
portugueses
foi
agressiva
e
capaz
de
destruir
de
várias
formas
a
existência
indígena.
Segundo
conta
Darcy
Ribeiro
(2012),
apesar
de
ser
um
grupo
pequeno
de
brancos
a
aportar
no
território
de
Santa
Cruz,
esse
grupo
atuou
em
vários
níveis
na
dizimação.
Nos
níveis
bióticos,
trouxeram
as
pestes
do
homem
branco
que
eram
mortais
para
os
indígenas;
no
nível
ecológico,
iniciaram
uma
disputa
de
territórios,
mata
e
riqueza
para
exploração
colonial;
e
nos
níveis
econômico
e
social,
inseriram
a
escravização
do
indígena.
147
Os
povos
indígenas
conseguiram
organizar
algumas
confederações
regionais,
mesmo
que
efêmeras,
contra
o
domínio
dos
portugueses.
A
mais
importante
foi
a
Confederação
dos
Tamoios,
motivada
pela
aliança
com
os
franceses
que
estavam
alojados
na
baía
da
Guanabara.
Apesar
das
derrotas
enfrentadas,
eles
jamais
estabeleceram
uma
paz
estável
com
o
colonizador,
exigindo
um
esforço
continuado
do
invasor
ao
longo
de
muito
tempo
para
dominar
cada
região.
A
resistência
indígena
contra
a
escravidão,
segundo
afirma
Darcy
Ribeiro
(2012),
é
explicada
devido
à
sua
estrutura
social
igualitária
que
não
admitia
um
poder
superior,
nem
camadas
inferiores
que
fossem
condicionadas
à
subordinação
e,
por
isso,
seria
impossível
se
organizarem
como
um
Estado,
ao
mesmo
tempo
que
seria
impossível
a
sua
dominação.
Na
ordem
de
jesuítas,
como
nos
de
Anchieta,
até
encontraram
alguns
defensores
contra
a
violência
praticada
pelos
traficantes
e
colonizadores,
mas
nem
por
isso
deixaram
de
sofrer
ataques
desapiedados
ao
serem
caçados
pelos
bandeirantes
pelo
interior
do
Brasil.
São
Miguel
da
Cachoeira,
município
do
Amazonas,
abriga
o
maior
número
de
indígenas.
São
29
mil
espalhados
pelo
território
e
há
outras
línguas
oficiais
além
do
português,
que
são
o
tukano,
baniwa
e
nheengatu,
todas
línguas
indígenas.
Denilson
Baniwa,
ativista
indígena,
diz
que
há
ainda
um
desconhecimento
sobre
as
diferenças
culturais
entre
os
povos
indígenas
brasileiros.
Para
ele,
"comparar
um
baniwa
a
um
tukano
é
como
comparar
um
francês
a
um
japonês.
São
povos
com
línguas,
hábitos
e
45
“Pesquisa
inédita
do
IBGE
detalha
características
de
povos
indígenas
brasileiros”,
matéria
Disponível
em
http://www.tribunapopular.com.br/noticia/pesquisa-‐inedita-‐do-‐ibge-‐detalha-‐caracteristicas-‐de-‐
povos-‐indigenas-‐brasileiros.
149
características
físicas
bastantes
distintas,
e
isso
porque
vivem
bem
próximos.
Imagine
a
diferença
entre
um
baniwa
e
um
kaingang,
um
povo
lá
do
Rio
Grande
do
Sul?"
46
Sempre
houve
uma
generalização
do
que
se
entende
por
índio
ou
indígena.
Todos
eles
foram
considerados,
de
uma
só
vez,
como
preguiçosos
por
causa
da
sua
inaptidão
à
escravização;
bárbaros,
por
causa
do
hábito
de
algumas
tribos
de
rituais
antropofágicos;
atrasados,
por
causa
da
produção
agrícola
ter
sido
considerada
rudimentar.
Todas
essas
características
foram
apreendidas,
ao
longo
do
tempo,
como
inerentes
à
toda
comunidade
indígena.
Não
se
tem
a
consciência
de
que,
mesmo
ainda
resistindo
em
número
muito
inferior
ao
número
inicial,
cada
etnia
tem
suas
particularidades,
rivalidades
e
aspectos
culturais
diferentes.
46
Entrevista
publicada
no
site
da
BBC
Brasil.
Disponível
em
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-‐
36682290?SThisFB.
Acesso
em
10/04/2017.
47
Cf.
Vídeo
do
Instituto
Socioambiental
(ISA)
#MenosPreconceitoMaisÍndio.
Disponível
em
https://www.youtube.com/watch?v=uuzTSTmIaUc
150
IV.2.
Escravo
africano:
melancolia
e
sexualidade
151
A
maioria
dos
negros
foi
capturada
na
costa
ocidental
africana,
constando
basicamente
de
três
tipos
culturais
(Ribeiro,
2012):
os
Yorubá
(conhecidos
como
nagô,
gegê
ou
minas);
os
Peuhl,
os
Mandiga
e
os
Haussa
(culturas
africanas
islamizadas
do
norte
da
Nigéria,
conhecidos
como
negros
malé
na
Bahia
e
negros
alufá
no
Rio
de
Janeiro);
e
os
Bantu
(grupo
congo-‐angolês).
Sabendo
destes
fatores,
as
únicas
coisas
que
os
africanos
levados
para
o
Brasil
tinham
em
comum
eram
a
cor
e
a
condição
de
escravos.
Com
línguas
diferentes
e
a
hostilidade
latente,
os
escravos
foram
obrigados
a
fazer
parte
do
universo
cultural
da
nova
sociedade.
Com
o
tempo,
aprenderam
o
português
com
seus
capatazes
e,
com
a
presença
indígena
cada
vez
mais
rara,
passaram
então
a
influenciar
de
maneira
decisiva
na
formação
da
sociedade
local.
Esta
introdução
do
negro
africano
no
Brasil
remarcou
o
“amálgama
racial
e
cultural
brasileiro
com
suas
cores
mais
fortes”
(Ribeiro,
2012,
p.102).
Ou
seja,
mudou-‐se
a
fisionomia
do
brasileiro,
marcada
então
por
singularidades
e
africanidades.
Devido
a
essa
mistura
de
etnias,
o
antropólogo
brasileiro
conta
que
os
habitantes
pareciam
aos
olhos
visitantes
como
uma
gente
bizarra,
o
que
somado
à
tropicalidade
índia,
os
qualificariam
como
exóticos.
A
escravidão
foi
o
real
alicerce
da
sociedade
colonial,
pois
os
negros
eram
as
mãos
e
pés
do
senhor.
Na
região
do
Recôncavo,
na
Bahia,
os
escravos
africanos
chegaram
a
ser
mais
de
75%
da
população.
No
Rio
de
Janeiro,
capital
do
império
português,
chegaram
a
constituir
mais
da
metade
da
população
(Lissovsky,
1987).
Diante
desta
enorme
presença,
o
negro
influenciou
na
demografia
de
forma
muito
mais
considerável
que
outras
matizes,
embora
a
afluência
de
novos
contingentes
152
brancos
e
a
seleção
social
(e
não
a
natural)
contribuísse
para
que
a
presença
do
branco
se
acentuasse
no
Brasil.
Para
os
portugueses
o
negro
era
mais
submisso
e
mais
robusto
que
os
índios.
Essas
“qualidades”
eram
importantes
para
o
transporte
de
cargas
e
a
execução
do
trabalho
de
forma
mais
ágil.
Essa
construção
da
ideia
de
um
“negro
submisso”
deve-‐se
ao
fato
de
que
eles
não
tinham
para
onde
ir
em
caso
de
fuga:
caso
quisessem
voltar
para
casa
tinham
o
oceano
como
obstáculo;
caso
ficassem,
eram
capturados
ou
teriam
que
disputar
terras
com
índios
“vorazes
e
antropófagos”
(Corrêa,
1938).
154
novamente
como
escravos.
Isto
demonstra
que
os
negros,
após
a
abolição
da
escravatura,
foram
lançados
num
poço
profundo
e
desumano
do
qual
poucos
conseguiam
fugir.
O
sistema
real
não
previu
e
nem
planejou
o
processo
de
inserção
desses
ex-‐escravos
que
nunca
tiveram
direitos
ou
cidadania,
pois
a
extinção
da
escravatura
aconteceu
mais
por
pressão
externa
do
que
por
uma
visão
humanista
da
Princesa
Isabel.
A
Lei
Áurea,
lei
imperial
n.
3.353,
sancionada
em
13
de
maio
de
1888,
fez
com
que
muitos
ex-‐escravos,
por
falta
de
instrução,
passassem
a
exercer
atividades
pesadas
ou
braçais,
equivalentes
às
qualificações
que
receberam
quando
aportaram
no
país.
Figura
40
-‐
Missa
campal
celebrada
em
ação
de
graças
pela
Abolição
da
Escravatura
no
Brasil,
1888.
São
Cristóvão,
Rio
de
Janeiro
Fonte:
Antônio
Luiz
Ferreira/IMS.
Muitos
falam
que
a
escravidão
foi
mais
branda
no
Brasil
em
relação
às
outras
colônias
americanas.
Segundo
essa
teoria,
a
índole
portuguesa
foi
“amaciada
pelo
contato
dos
trópicos
e
a
geral
moleza
que
caracteriza
a
vida
brasileira”,
como
diz
Caio
Prado
Jr.
em
Formação
do
Brasil
Contemporâneo
(1942,
p.276).
Esta
tese
“climática”
fez
surgir
a
associação
da
moleza
ou
preguiça
ao
povo
brasileiro.
Ao
negro,
exilado
e
escravo,
sobrou-‐lhe
a
tristeza.
Em
Retrato
do
Brasil
–
Ensaio
sobre
a
‘tristeza’
brasileira
(1927),
Paulo
Prado
refere-‐se
à
associação
da
luxúria
e
da
cobiça
ao
brasileiro
como
resultado
dessa
tristeza.
Para
o
autor,
a
luxúria
foi
resultado
da
intensa
vida
sexual
que
o
colono
estabeleceu
com
os
escravos;
e
a
cobiça
resultou
de
uma
grande
melancolia,
pois
os
esforços
para
enriquecer
não
resultavam.
No
155
entanto,
essas
caracterizações
não
podem
ser
concebidas
como
traços
da
personalidade,
são,
sobretudo,
se
utilizáveis,
fruto
das
circunstâncias
que
foram
impostas
aos
escravizados.
A
tristeza
fez
com
que
muitos
escravos,
arrancados
de
suas
terras
e
famílias
morressem
de
banzo48;
enquanto
a
sexualidade
foi
algo
imposto
pelos
colonizadores
como
parte
da
tarefa
de
possuir
aqueles
corpos
para
o
que
bem
entendessem.
Os
negros
foram
sempre
os
“bodes
expiatórios”,
eram
estrangeiros
e
exilados,
possuidores
de
características
inaceitáveis
para
a
cultura
europeia.
157
intermediação
de
escambo,
trocando
artigos
europeus
pelas
mercadorias
da
terra”
(Ribeiro,
2012,
p.74).
159
O
trabalho
escravo
era
utilizado
para
produção
mercantil
e
a
utilização
de
meios
violentos
de
ordenação
e
repressão
abriu
caminho
para
o
genocídio
e
etnocídio.
Esta
violência
aumentou
o
distanciamento
entre
classes
sociais
dominantes
e
subordinadas.
O
Estado
atuou
sempre
às
custas
do
pânico
que
causava
nas
classes
oprimidas
e
isto
ainda
se
mostra
presente
na
sociedade
brasileira.
Este
racismo
se
mostra
como
resultado
de
um
processo
violento
e
desumano
de
construção
de
uma
nação
colonizada
tendo
como
base
a
escravidão.
A
obra
de
Casa
Grande
&
Senzala
de
Gilberto
Freyre
surgiu
em
um
momento
muito
oportuno
para
fazer
da
mestiçagem
uma
grande
representação
nacional.
Segundo
Vera
Lúcia
Mata
e
Artur
Gomes
(2001),
foi
a
partir
dos
conceitos
elaborados
por
Freyre,
de
aclimatabilidade
e
miscibilidade,
que
“os
aparentes
“pares
de
oposição”
branco/negro,
casa
grande/senzala,
senhor/escravo,
parecem
acabar
por
se
harmonizar,
dando
origem
a
uma
situação
nova”.
Para
Freyre
(1933),
a
relação
senhor-‐
escravo
se
estabelece
num
constante
processo
de
troca,
característica
da
especificidade
“harmonizadora”
do
colonizador,
que
resultou
em
uma
relação
de
equilíbrio
e
não
de
conflito.
Foi
passada
uma
percepção
nacional
como
uma
soma
de
160
raças,
regiões
e
culturas,
pois
Freyre
acredita
que
não
houve
uma
relação
conflituosa
dominador/dominado,
mas
sim
uma
harmonia
promovida
pelo
português,
“tipo
ideal”
de
colonizador
dos
trópicos.
Isto
seria
fruto,
para
o
autor,
da
posição
geográfica
estratégica
de
Portugal
que,
por
estar
entre
a
Europa
e
a
África,
tornou-‐se
local
propício
ao
encontro
de
várias
etnias
e
culturas.
De
fato,
é
mais
fácil
dizer
que
o
Brasil
foi
formado
por
um
triângulo
de
raças,
o
que
nos
conduz
ao
mito
da
democracia
racial,
do
que
assumir
que
somos
uma
sociedade
hierarquizada,
que
opera
por
meio
de
gradações
e
que,
por
isso
mesmo,
pode
admitir,
entre
o
branco
superior
e
o
negro
pobre
e
inferior,
uma
série
de
critérios
de
161
classificação.
Assim,
podemos
situar
as
pessoas
pela
cor
da
pele
ou
pelo
dinheiro.
Pelo
poder
que
detêm
ou
pela
feiúra
de
seus
rostos.
Pelos
seus
pais
e
nome
de
família,
ou
por
sua
conta
bancária.
As
possibilidades
são
ilimitadas,
e
isso
apenas
nos
diz
de
um
sistema
com
enorme
e
até
agora
inabalável
confiança
no
credo
segundo
o
qual,
dentro
dele,
“cada
um
sabe
muito
bem
o
seu
lugar”
(1984,
p.
32).
Em
Racismo
à
brasileira,
Edward
Telles
(2003)
propôs,
através
de
uma
mescla
entre
dados
estatísticos
e
obras
de
estudiosos,
uma
nova
forma
de
ver
a
questão
racial
do
Brasil.
Nesta
análise,
Telles
diz
que
os
pardos
possuem
uma
ligeira
vantagem
acima
das
pessoas
negras,
mas
ainda
é
muito
abaixo
das
pessoas
brancas
de
classe
média.
Disto
dá-‐se
a
entender
que
o
racismo
aumenta
ou
diminui
no
país
segundo
a
quantidade
de
melanina
na
pele.
A
cor
parda,
agora
incluída
nas
pesquisas
censitárias
do
país,
no
entanto,
depende
da
percepção
do
agente
que
realiza
o
questionário
porta
a
porta.
Este
fator
pode
dificultar
ter
com
exatidão
o
número
de
negros
no
Brasil.
Mas
as
raízes
brasileiras
não
foram
apenas
estudadas
na
área
das
ciências
humanas.
O
geneticista
Sérgio
Danilo
Pena,
da
Universidade
e
Minas
Gerais,
estabeleceu
com
precisão,
do
ponto
de
vista
genético,
de
onde
vem
o
brasileiro.
No
livro
Homo
Brasilis
(2002)
ele
estabeleceu
o
“Retrato
molecular
do
Brasil”
com
a
análise
de
DNA.
Nesta
demonstração,
97%
dos
brancos
brasileiros
tinham
ancestrais
europeus
no
lado
paterno.
Já
a
linhagem
materna
dividia-‐se
em
3
ramificações:
39%
europeia,
33%
ameríndia
e
28%
africana.
No
total,
61%
dos
brasileiros
possuem
herança
indígena
ou
africana
do
lado
materno.
Os
números
só
confirmam
que
os
autores
como
Freyre
(1933),
Holanda
(2012)
e
Ribeiro
(1995),
“usando
metodologia
histórica,
sociológica
e
antropológica
já
analisaram
as
origens
do
povo
brasileiro”
(Pena,
2002,
p.
11).
Geneticamente
ou
sociologicamente
o
resultado
é
o
mesmo:
os
brancos,
os
colonizadores,
tiveram
uma
grande
quantidade
de
filhos
com
as
índias
e
as
escravas
africanas.
Em
1941
a
Walt
Disney
resolveu
investir
nesta
aproximação
com
a
criação
de
projetos
para
representar
a
“Política
da
Boa
Vizinhança”.
Mandaram
um
grupo
de
músicos,
roteiristas
e
desenhistas
para
o
México
e
América
do
Sul.
Após
esta
viagem,
a
equipe
regressou
aos
Estados
Unidos
com
esboços
para
dois
longa-‐metragens
de
animação:
Olá
amigos
(“Saludos
Amigos”)
que
teve
a
sua
estreia
em
1943
e
Você
já
foi
à
Bahia?
(The
Three
Caballeros),
que
estreou
em
1945.
Algumas
especificidades
foram
importantes
para
a
construção
dessas
animações
que
passaram
a
representar
uma
ideia
de
Brasil
em
uma
escala
mundial:
164
‘bicos’”
49
(Cavalcante,
2005,
pp.
71-‐72).
Estava
assim
criado
o
estereótipo
do
brasileiro
mais
assimilado
em
todo
o
mundo.
O
curioso
é
que
esta
ideia
foi
percebida
como
proposta
de
projeção
de
uma
imagem
positiva
do
brasileiro.
Getúlio
Vargas,
líder
da
ditadura
militar
no
Brasil
à
época,
viu
no
filme
norte-‐americano
uma
homenagem
ao
brasileiro
e
logo
patrocinou
o
lançamento
do
longa-‐metragem
no
Rio
de
Janeiro.
Esta
era
a
época
de
grande
interesse
pelas
coisas
nacionais,
considerava-‐se
a
mestiçagem
como
um
elogio
ao
brasileiro
ao
invés
de
transmitir
o
sentimento
de
desvantagem
que
os
habitantes
realmente
sentiam.
Neste
período,
“estava
em
curso
no
país
um
pensamento
que
negava
o
argumento
racial,
arriscava
explicações
de
ordem
cultural
e
insistia
em
oferecer
a
mestiçagem
como
a
melhor
resposta
do
Brasil
ao
resto
do
mundo”
(Schwarcz
e
Starling,
2015,
p.477).
Figura 41 -‐ Pato Donald e Zé Carioca em Olá, Amigos (1942)
Fonte:
Reprodução
encontrada
na
internet
Sérgio
Buarque
de
Holanda
em
Raízes
do
Brasil
(2012)
analisou
a
formação
do
Brasil,
abordando
também
o
receptividade
do
brasileiro
como
símbolo
nacional.
Para
ele,
“(...)
a
lhaneza
no
trato,
a
hospitalidade,
a
generosidade,
podem
ser
observados
no
brasileiro
pelos
estrangeiros
que
os
visitam”.
Neste
modo
de
ser,
“permanece
ativa
e
fecunda
a
influência
ancestral
dos
padrões
de
convívio
humano
informados
no
meio
rural
e
patriarcal”
(2012,
p.146).
Esta
obra,
produzida
no
contexto
da
urbanização
crescente,
estabeleceu
a
expressão
“homem
cordial”
para
falar
do
brasileiro
que
carrega
consigo
as
“relações
de
simpatia”
(Holanda,
2012).
As
relações
cordiais
são
49
No
Brasil
“fazer
um
bico”
significa
trabalhar
com
serviços
informais,
como
encanador,
jardineiro,
babá,
etc.
165
responsáveis
por
reduzir
qualquer
padrão
social
rígido
em
padrão
pessoal
e
afetivo.
Isto
pode
acontecer
também
no
âmbito
da
linguagem
através
da
utilização
dos
diminutivos
para
se
ter
acesso
a
alguma
intimidade.
Esta
particularidade
seria
um
traço
nítido
de
atitude
“cordial”;
uma
maneira
de
tornar
o
outro
mais
acessível.
Este
apego
aos
diminutivos
foi
encontrado
também
como
traço
rural
em
terras
de
língua
espanhola,
como
em
Andaluzia,
Salamanca
e
Aragão.
Segundo
Amado
Alonso
(1935
apud
Holanda,
2012),
os
ambientes
rurais
espanhóis
que
utilizavam
essas
maneiras
eram
contrários
às
relações
interpessoais
das
sociedades
ou
classes
cultas,
que
consideravam
insinceras
e
isentas
de
expressividade.
No
Brasil,
segundo
Holanda
(2012),
a
utilização
de
diminutivos
tem
relação
com
uma
saudade
em
relação
ao
estilo
de
convivência
do
ambiente
patriarcal,
cuja
marca
o
urbanismo
não
conseguiu
apagar.
O
autor
ainda
diz
que
este
aspecto
causa
zombaria
pelos
portugueses,
considerado
tão
ridículo
como
é
para
os
brasileiros
a
“pieguice
lusitana,
lacrimosa
e
amarga”
(Holanda,
2012,
p.148).
A
cordialidade
também
pode
ser
identificada
nos
aspectos
religiosos,
a
exemplo
das
capelas
particulares
construídas
em
cada
casa,
seja
de
fidalgos
ou
de
plebeus,
para
que
estivessem
sempre
em
contato
direto
com
Deus.
Até
os
santos
poderiam
ser
amigos
próximos.
O
“homem
cordial”
proposto
por
Holanda
(2012)
não
tem
relação
alguma
com
“boas
maneiras”
ou
civilidade.
Para
ele,
a
expressão
carrega
consigo
a
reunião
de
expressões
legítimas
de
fundo
emotivo,
em
que
o
convívio
social
é
justamente
o
contrário
de
uma
polidez
como
a
que
é
vista
no
Japão.
Afirma
ainda
que
a
vida
em
sociedade
para
o
“homem
cordial”
é
uma
libertação
do
pavor
de
viver
consigo
mesmo
diante
de
todas
as
circunstâncias
de
existência.
Também
a
manifestação
normal
de
respeito
no
Brasil
reflete-‐se
no
desejo
de
estabelecer
intimidade.
Nestes
termos,
Holanda
(2012)
acredita
que
o
princípio
de
cordialidade
foi
possivelmente
favorecido
pelo
processo
inicial
de
formação
do
brasileiro
no
interior
da
junção
de
tantas
etnias.
Visto
que
o
Brasil
se
originou
da
mistura
entre
índios,
negros
e
brancos,
o
autor
acreditava
que
a
tolerância
poderia
ter
surgido
como
sentimento
espontâneo.
Tal
relação
pacífica
entre
as
três
etnias,
como
já
visto,
também
foi
realçada
na
obra
de
Freyre.
No
entanto,
Darcy
Ribeiro
(2012)
discorda
totalmente
de
uma
cordialidade
que
faz
parte
do
discurso
da
formação
do
brasileiro
nos
dois
autores:
166
Às
vezes
se
diz
que
nossa
característica
essencial
é
a
cordialidade,
que
de
nós
um
povo
por
excelência
gentil
e
pacífico.
Será
assim?
A
feia
verdade
é
que
conflitos
de
toda
a
ordem
dilaceraram
a
história
brasileira,
étnicos,
sociais,
econômicos,
religiosos,
raciais,
etc.
(...)
O
processo
de
formação
do
povo
brasileiro,
que
se
faz
pelo
entrechoque
de
seus
contingentes
índios,
negros
e
brancos,
foi,
por
conseguinte,
altamente
conflitivo.
Pode-‐se
afirmar,
mesmo,
que
vivemos
praticamente
em
estado
de
guerra
latente,
que,
por
vezes,
e
com
frequência,
se
torna
cruento,
sangrento
(2012
[1995],
pp.
167,
168)
(...)
a
mania
de
congelar
a
imagem
de
um
país
avesso
ao
radicalismo
e
parceiro
do
espírito
pacífico,
por
mais
que
inúmeras
rebeliões,
revoltas
e
manifestações
invadam
a
nossa
história
de
ponta
a
ponta.
Somos
e
não
somos,
sendo
a
ambiguidade
mais
produtiva
do
que
um
punhado
de
imagens
oficiais
congeladas
(Schwarcz
e
Starling
(2015,
p.20).
A
imagem
do
Zé
Carioca,
além
de
emanar
essa
cordialidade
brasileira,
representou
também
uma
nova
forma
de
navegação
social:
o
“jeitinho
brasileiro”
para
lidar
com
as
adversidades.
Roberto
DaMatta,
importante
antropólogo
brasileiro,
escreveu
sobre
isto
em
O
que
faz
o
Brasil,
Brasil?
(1984).
Ele
explica
que
o
“jeitinho”
está
localizado
entre
o
que
pode
e
o
que
não
pode
ser
feito,
ou
seja,
é
a
tentativa
de
conciliar
vontades
opostas.
Isto
pode
ser
designado
como
um
modo
simpático,
desesperado
ou
humano
de
relacionar
o
impessoal
com
o
pessoal,
ou
seja,
de
juntar
167
um
problema
pessoal
com
um
problema
impessoal,
encontrando
uma
forma
pacífica
de
resolver
problemas
imediatos
através
de
favores
que
devo
e
que
me
devem.
Quando
os
cobradores
procuravam
o
Zé
Carioca
para
cobrar
o
que
lhe
deviam,
ele
sempre
encontrava
uma
forma
de
escapar
e
com
um
“jeitinho”
negociava
um
tempo
maior
para
pagar
suas
dívidas.
Ser
malandro
é
utilizar-‐se
do
“jeitinho”,
esse
modo
impessoal
de
se
relacionar
com
os
outros.
Para
ser
considerado
assim,
é
preciso
ter
um
talento
pessoal
ao
usar
das
“histórias”
ou
artimanhas
para
obter
benefícios
de
certas
situações.
De
acordo
com
Roberto
DaMatta
(1984),
foi
na
literatura
brasileira
do
século
XIX
que
surgiu
o
primeiro
‘malandro’
associado
à
identidade
do
brasileiro.
No
livro
Memórias
de
um
sargento
de
milícias
de
Manuel
Antônio
de
Almeida,
a
personagem
Leonardo
Pataca
se
mostrava
como
um
mulherengo
e
criador
de
problemas.
DaMatta
definiu
assim
o
malandro
como
um
“profissional
do
jeitinho
e
da
arte
de
sobreviver
nas
situações
mais
difíceis”
(1984,
p.101).
Mas,
foi
com
a
chegada
das
histórias
de
Pedro
Malasartes
no
final
dos
anos
1930,
que
o
brasileiro
passou
a
ser
representado
como
um
exemplo
de
trapaceiro
sem
escrúpulos
e
sem
remorso.
Gente
como
Pedro
Malasartes,
que
foi
capaz
de
realizar
uma
série
de
transformações
impossíveis
ao
homem
comum.
Assim,
ele
superou
a
exploração
econômica
e
política
do
seu
trabalho,
condenando
o
fazendeiro
que
o
espoliava.
Conseguiu
também
transformar
a
imobilidade
da
miséria
numa
venturosa
vida
de
viajante
sem
pouso
ou
casa,
situação
de
onde
pode
sempre
enxergar
tudo
e
ganhar
novas
experiências.
Pedro
Malasartes
foi
também
capaz
de
proezas
incríveis,
como
explorar
os
ricos,
vender
merda
como
se
fosse
riqueza
e
levar
a
honestidade
ao
meio
de
pessoas
desonestas.
Suas
aventuras
nos
indicam
que
a
vida
contém
sempre
o
bom
e
o
mau,
o
lado
humano
e
o
desumano
estando
misturados
de
modo
irremediável
em
todos
e
tudo.
Assim,
Pedro
Malasartes,
como
todos
os
malandros,
talvez
nos
diga
que
é
preciso
tomar
consciência
desses
dois
lados
para
poder
escolher
uma
vida
humanamente
digna.
(DaMatta,
1984,
p.70)
O
malandro
mostra-‐se
como
um
tipo
paradigmático
de
herói,
pois
ele
é
“um
ser
deslocado
das
regras
formais,
fatalmente
excluído
do
mercado
de
trabalho,
aliás
definido
por
nós
como
totalmente
avesso
ao
trabalho
e
individualizado
pelo
modo
de
andar,
falar
e
vestir-‐se”
(DaMatta,
1997,
p.263).
Pedro
Malasartes
é
o
paradigma
do
chamado
malandro,
frequentemente
visto
com
camisa
listrada,
anel
com
a
imagem
de
168
São
Jorge
(bastante
apreciado
pelos
africanos)
e
sapatos
que
tinham
duas
cores
(característica
das
danças
de
salão),
sendo
o
exato
oposto
do
militar
na
sociedade,
que
segue
uma
ordem,
uma
hierarquia
e
a
igreja.
No
entanto,
há
várias
gradações
de
“malandragem”
que
tornam
a
designação
complexa,
pois
tanto
pode
representar
um
gesto
sagaz
quanto
um
ato
marginal.
169
pode
buscar
uma
espécie
de
“nativo
universal”,
já
que
por
aqui
se
encontraria
uma
súmula
dos
povos
“estranhos”
de
todos
os
lugares”
(Schwarcz
e
Starling,
2015,
p.21).
Para
Caio
Prado
Júnior
(1942),
há
ainda
resquícios
do
passado
colonial
no
Brasil
contemporâneo.
No
passado,
o
colonialismo
construiu
algo
de
novo
no
plano
das
realizações
humanas,
concretizado
em
todos
os
elementos
que
constituem
um
organismo
social,
como
foi
a
população
distinta
que
se
formou
no
Brasil,
construída
por
uma
estrutura
material
própria,
uma
organização
social
completa
e
específica,
até
chegar
a
uma
consciência
coletiva
particular
de
um
povo-‐nação
(Ribeiro,
2012).
Os
sintomas
de
cada
elemento
vão
aparecendo
no
curso
da
evolução
histórica.
No
terreno
econômico,
por
exemplo,
pode-‐se
dizer
que
o
trabalho
livre
não
se
organizou
ainda
inteiramente
em
todo
o
país.
Há
apenas,
em
muitas
partes
dele,
um
processo
de
ajustamento
em
pleno
vigor,
um
esforço
mais
ou
menos
bem
sucedido
naquela
direção,
mas
que
conserva
traços
bastante
vivos
do
regime
escravista
que
o
precedeu.
O
mesmo
poderíamos
dizer
do
caráter
fundamental
da
economia,
isto
é,
da
produção
extensiva
para
mercados
do
exterior,
e
da
correlata
falta
de
um
largo
mercado
interno
solidamente
alicerçado
e
organizado
(Idem).
De
acordo
com
Schwarcz
e
Starling
(2015),
após
a
Segunda
Guerra
e
ao
fim
do
Estado
Novo,
o
Brasil
se
constituía
pela
mistura
de
crenças
e
costumes,
mas
existia
também
o
racismo
e
a
hierarquia
social
baseada
na
intimidade.
Corriam
pelas
ruas
vários
protestos
contra
a
censura,
a
favor
da
liberdade
de
expressão
e
pedidos
para
a
convocação
de
uma
nova
eleição
democrática.
Mas,
em
29
de
outubro
de
1945
os
ministros
militares
de
Getúlio
Vargas
tomam
poder,
instaurando
aí
a
ditadura
e
total
repressão
da
imprensa
e
dos
cidadãos,
que
passaram
a
ser
torturados
e
até
mortos
quando
capturados
pelos
militares.
Não
há
um
regime
político
de
democracia
plena,
isto
é
fato.
Mas,
no
caso
brasileiro,
a
luta
pela
eleição
democrática,
a
partir
dos
anos
1950
e
início
de
1960,
mostraram
uma
crescente
capacidade
de
mobilização
autônoma
dos
trabalhadores
rurais
e
a
presença
da
pressão
popular
ao
governo
em
busca
de
uma
sociedade
menos
excludente.
50
“Em
março
de
1968
o
estudante
de
17
anos,
Edson
Luís
de
Lima
e
Souto,
foi
morto
pelos
militares
no
restaurante
“Calabouço”,
no
centro
do
Rio
de
Janeiro,
desencadeando
revolta
e
protestos
por
todo
o
país.
Padre
Antônio
Henrique
celebrou
uma
missa
em
memória
do
estudante
assassinado,
tornando-‐se
desde
então,
alvo
da
ira
dos
militares.
No
dia
26
de
maio
de
1969
o
CCC
(Comando
de
Caça
aos
Comunistas)
seqüestrou,
torturou
e
matou
o
padre.
O
corpo
foi
deixado
em
um
matagal
da
cidade
universitária
do
Recife.
Padre
Antônio
Henrique
estava
pendurado
pelos
pés
em
um
galho
de
árvore;
trazia
marcas
brutais
de
tortura,
como
queimaduras
de
cigarro,
castração
da
genitália,
marcas
de
espancamento,
cortes
profundos
em
todas
as
partes
do
corpo
e
dois
ferimentos
de
bala
que
indicavam
a
execução
final”.
Disponível
em
https://virtualia.blogs.sapo.pt/34846.html
171
Figura
42
–
Cena
do
filme
Rio,
40
graus
(1955),
roteiro
e
direção
de
Nelson
Pereira
dos
Santos.
Em
1972,
foi
composto
o
espetáculo
teatral
Calabar:
O
elogio
da
traição,
a
fim
de
questionar
a
versão
oficial
sobre
a
Independência
do
Brasil
no
momento
em
que
a
ditadura
comemorava
150
anos.
A
peça
foi
censurada,
como
normalmente
acontecia
com
toda
a
produção
e
circulação
de
bens
culturais
no
Brasil,
na
época
da
ditadura.
Vários
artistas,
cineastas,
músicos,
apresentadores
e
membros
da
classe
artística
em
geral
protestaram
e
foram
presos
(Schwarcz
e
Starling,
2015).
Artistas
como
Chico
Buarque,
Caetano
Veloso
e
Gilberto
Gil
foram
obrigados
a
se
exilar,
professores
universitários
foram
obrigados
a
se
aposentar,
pesquisadores
foram
proibidos
de
trabalhar
e
Caio
Prado
Jr.,
importante
historiador
do
Brasil
e
que
também
foi
utilizado
nesta
pesquisa,
foi
preso.
Figuras 43 e 44-‐ Cildo Meireles, Inserções em circuitos ideológicos, 1970
Fonte:
Reprodução
da
internet
A
corrupção,
que
não
é
exclusividade
do
Brasil,
costuma
ser
associada
à
própria
identidade
do
brasileiro.
O
brasileiro
seria
corrupto
devido
às
práticas
de
comportamento,
como
o
“jeitinho”
e
a
“malandragem”.
É
também
no
Brasil
que
se
associa
a
imagem
do
brasileiro
com
a
do
político
ladrão,
criado
no
interior
dessa
“cultura
de
corrupção”.
Esta
visão
impede
que
se
veja
a
complexidade
da
corrupção
e
suas
raízes
antigas,
bem
como
torna
turvo
o
olhar
no
combate
à
corrupção
no
Brasil,
173
pois
torna
ineficaz
qualquer
busca
de
mudança
quando
se
acredita
que
todo
o
político
é
corrupto.
Segundo
Schwarcz
e
Starling
(2015),
apesar
desse
descrédito
em
relação
à
política
pelos
brasileiros,
tem
crescido
consideravelmente
no
Brasil
atos
de
reação
pública
contra
atos
de
corrupção
de
políticos
que
desviam
verbas
públicas
para
as
suas
contas
pessoais.
Os
incontáveis
protestos
populares
que
estampam
jornais
e
noticiários
de
TV
mostram
uma
onda
de
indignação
presente
em
todo
o
país.
Torna-‐se
cada
vez
mais
importante
lutar
contra
a
aceitação
passiva
de
uma
política
corrupta,
pois
isso
“pode
enfraquecer
os
mecanismos
de
participação
pública
e
levar
à
descrença
ao
funcionamento
das
instituições
democráticas”
(Schwarcz
e
Starling,
2015,
p.632).
No
entanto,
a
política
brasileira
atual,
simpatizante
da
ditadura,
tem
exercido
com
sucesso
suas
estratégias
de
convencimento
daquele
povo
carente
de
educação
e
de
dinheiro
em
meio
a
uma
enorme
crise
econômica
causada
pela
privatização
de
muitas
estatais
e
da
alta
do
desemprego.
Candidatos
de
direita
que
têm
como
plano
de
governo
a
luta
contra
o
Partido
dos
Trabalhadores
e
a
privatização
de
todo
o
patrimônio
do
Brasil,
têm
sido
vistos
como
única
escolha
por
um
povo
amedrontado
e
atordoado
com
a
crise,
pois
com
a
falta
de
educação
a
imprensa
brasileira
tendenciosa
tem
servido
como
parâmetro
na
formação
de
suas
opiniões.
175
CAPÍTULO
V
Tem-‐se
em
conta
que,
segundo
as
reflexões
pós-‐modernas
da
fotografia,
cada
imagem
se
referencia
a
outras,
construindo
paralelos,
diacronias,
sincronias
e
dialéticas,
construindo
uma
teia
de
significância
cujo
resultado
está
além
da
intencionalidade
do
autor.
Nessa
perspetiva,
“as
fotografias
foram
vistas
como
sinais
que
adquiriram
seu
valor
a
partir
de
sua
inserção
no
bojo
de
um
sistema
mais
amplo
de
codificações
sociais
e
culturais”
(Cotton,
2013,
p.
191).
É
assim
que
se
entende
os
trabalhos
apresentados:
como
parte
de
uma
grande
tessitura
histórica,
social
e
política
da
qual
emergem
diferentes
relações,
incluindo
as
coloniais,
que
foram
produzidos
no
interior
de
uma
relação
entre
Brasil
e
Portugal;
do
olhar
contemporâneo
do
fotógrafo
português
para
o
Brasil.
O
capítulo
foi
organizado
em
oito
tópicos:
são
sete
tópicos
com
as
análises
dos
trabalhos
e
entrevistas
dos
fotógrafos
que
aceitaram
participar
da
pesquisa;
e
um
tópico
final
com
as
considerações
adicionais
desta
pesquisadora
para
o
encontro
de
uma
subjetividade
ética
na
construção
de
imagens.
V.1.
Miguel
Valle
de
Figueiredo:
A
imagem
turística
do
Brasil
Miguel
Valle
de
Figueiredo
nasceu
em
Santa
Comba
Dão,
no
distrito
de
Viseu,
Portugal.
É
fotógrafo
profissional
desde
1986,
com
trabalhos
nas
áreas
industrial,
de
engenharia/arquitetura
e
editorial.
Em
1994
foi
cofundador
da
revista
Volta
ao
Mundo,
publicação
destinada
a
expor
possíveis
rumos
de
viagens,
realizando
reportagens
em
mais
de
50
países.
Foi
também
diretor
de
fotografia
da
revista
Evasões,
no
período
de
1999
a
2002,
dedicada
à
divulgação
do
turismo
em
Portugal
e
da
vida
do
país.
Figueiredo
já
foi
ao
Brasil
cerca
de
30
vezes,
sendo
duas
dessas
vezes
de
férias.
Ele
diz
conhecer
o
Brasil
mais
que
muitos
brasileiros,
realizando
fotografias
que
compõem
revistas
e
publicações
de
viagens
ou
de
turismo.
Em
1997,
ganhou
o
prêmio
Fuji-‐
European
Press
Award,
na
categoria
de
Grande
Reportagem,
com
uma
das
fotos
realizadas
no
interior
do
estado
do
Ceará,
Brasil.
178
Figura
45:
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
Bitupitá,
Brasil
(1997).
Foto
vencedora
do
1st
prize
Fuji
European
Press
Award
'97
de
Grande
Reportagem
51
Fonte:
Flickr
do
autor
52
Em
conversa
com
o
fotógrafo ,
ele
destacou
que
suas
incursões
no
Brasil
são
resultado
de
vários
trabalhos
para
publicações
turísticas
e
que,
por
esse
motivo,
muitas
de
suas
imagens
não
fogem
da
iconografia
atribuída
ao
país
tropical
de
belas
paisagens
e
terra
da
“garota
de
Ipanema”.
Porém,
em
sua
fala,
o
autor
expõe
que
esse
mito
sobre
a
mulher
brasileira
não
existe
(sensualidade
e
beleza
atribuída
à
mulher),
pois,
na
extensão
do
país,
cada
brasileira
é
uma
–
com
suas
peculiaridades
no
andar,
no
falar,
no
agir.
No
entanto,
suas
imagens
e
suas
legendas
retomam
estereótipos
da
mulher
para
representá-‐las
em
revistas
turísticas
para
portugueses,
como
pode
ser
visto
nas
fotografias
Mermaid
e
Garota
de
Ipanema
(Fig.
44
e
45)
que
representam
a
mulher
em
praias
ora
pitorescas,
ora
emblemáticas
(Rio
de
Janeiro)
de
um
Brasil
exótico
em
sua
natureza.
Figuras 46 e 47 -‐ Miguel Valle de Figueiredo, Mermaid (2007); A Girl from Ipanema (2008)
51
Disponível
em
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
52
Entrevista
concedida
no
dia
10
de
agosto
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
a
Lorena
Travassos.
179
53
Fonte:
Flickr
do
autor
Esse
imaginário
que
permeia
a
imagem
da
mulher
brasileira
como
aquela
que
hipnotiza
o
homem
como
uma
sereia
através
de
uma
beleza
sem
igual,
termina
sendo
associado
à
sua
representação.
Apesar
de
Figueiredo
garantir
que
não
existe
“a
mulher
brasileira”,
mas
muitas
mulheres
diferentes
em
cada
parte
do
Brasil,
em
suas
imagens,
todas
aparecem
da
mesma
forma:
trajando
apenas
fatos
de
banho,
em
praias
fantásticas,
como
se
a
própria
mulher
fizesse
parte
daquele
cenário
pitoresco.
A
representação,
por
transformar
o
real
e
na
sua
função
de
dar
sentido
ao
mundo,
muitas
vezes
representa
o
Outro
de
forma
generalista
ou
cria
realidades
estereotipadas
(Chartier,
1988).
São
aquelas
representações
estereotipadas
que
controlaram
por
muito
tempo
as
relações
sociais
entre
Brasil
e
Portugal.
A
partir
dessa
reflexão,
compreende-‐se
que
as
imagens
de
Figueiredo
parecem
reconectar
a
mulher
brasileira
àquela
ideologia
colonial
que
determinava
o
corpo
da
mulher
como
um
corpo
disponível
para
o
olhar
(e
não
só)
do
estrangeiro.
Contribui,
de
certa
forma,
ao
fortalecimento
de
um
estereótipo
que
foi
conectado
à
imagem
da
mulher
brasileira,
tão
difícil
de
ser
desconstruído.
54
Fonte:
Flickr
do
autor
53
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
54
Idem.
180
esconde-‐se
aí
também
a
situação
de
mercadoria
da
cultura
e
identidades
do
sujeito
que
fortalecem
estereótipos.
A
sua
escolha
não
se
dá
objetivamente
por
uma
identidade,
por
definir
quem
seria
a
“brasileira”,
mas
apresentar
uma
identidade
conectada
aos
mitos
que
fazem
parte
da
história
do
Brasil,
ou
seja,
promove
uma
imagem
sexualizada:
181
Mundo.
Em
entrevista
ele
contou
que
houve
um
grande
choque
quando
chegou
no
Brasil55,
em
1987,
na
cidade
de
São
Paulo,
principalmente
por
causa
do
tamanho
cidade
e
da
quantidade
de
pessoas
que
transitavam
por
entre
as
ruas
movimentadas
da
cidade.
Apesar
desse
seu
espanto
com
as
grandes
dimensões
da
metrópole
brasileira,
o
fotógrafo
quis
registar
os
lugares
escondidos
e
ainda
pouco
povoados,
totalmente
opostos
à
agitação
e
desenvolvimento
econômico
de
São
Paulo
e
das
outras
cidades
do
centro-‐sul
do
país.
Essa
procura
se
deu,
primeiramente,
porque
estava
fotografando
para
um
projeto
sobre
o
patrimônio
mundial
de
origem
portuguesa,
o
que
o
levou
a
fotografar
locais
onde
houve
a
presença
das
“missões”
catequizadoras
no
século
XVI
na
região
Nordeste
do
Brasil
e
em
Minas
Gerais.
Miguel
Valle
de
Figueiredo
acredita
que
muitas
localidades
fotografadas
por
ele
mudaram
muito
após
a
publicação
das
imagens
turísticas
no
livro
que
produziu,
pois
deixaram
de
ter
o
“sossego”
como
marca
registada,
para
se
tornarem
movimentados
pontos
turísticos:
Eu
tive
alguma
culpa
nisso,
por
causa
de
um
artigo
que
publiquei
na
revista
que
na
altura
eu
dirigia
a
parte
fotográfica,
que
era
a
Volta
ao
Mundo.
Foi
a
primeira
grande
reportagem
que
mostrou
Parati.
E
nem
no
Brasil
se
falava
muito
de
Parati.
(...)
E
de
repente,
(...)
publicaram
uma
reportagem
sobre
Parati
dando
referência
a
Volta
ao
Mundo
e
ao
trabalho
que
fizemos
lá.
(...)
O
turismo
tem
isso,
o
que
tem
de
bom
muitas
vezes
para
população,
tem
de
mau
por
causa
do
próprio
55
Entrevista
concedida
no
dia
10
de
agosto
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
a
Lorena
Travassos.
56
Idem.
57
Idem.
182
turista58.
Figuras
49,
50,
51
e
52
-‐
Lunch
Time
(2008)
e
The
mission
(2008),
Trancoso,
Brazil
(2007)
e
Hotel
em
Bitupitá
(1997)
59
Fonte:
Flickr
do
autor
Para
Cristina
Conceição
(1998),
a
divulgação
de
um
local
como
destino
turístico
transforma
suas
atrações
em
“mito”,
pois
corresponde
a
“um
sistema
coerente
de
imagens
manipuladas
pela
linguagem
mediática,
(...)
cuja
verdade
é
meramente
referencial,
dependendo
da
coerção
do
próprio
código”
(p.69).
O
turista,
através
dessa
antevisão
do
lugar,
ou
seja,
da
fotografia,
compreende
que
aquela
imagem
corresponde
ao
“local
de
sonhos”
tão
desejado,
antes
mesmo
do
contato
direto
com
a
localidade.
Por
isso,
a
fotografia
tornou-‐se
essencial
para
o
turismo:
permitiu
a
previsão,
bem
como
escolha,
de
locais
que
só
serão
vistos
posteriormente.
Figuras 53 e 54 -‐ Secret Place (2007) e Patience (2008), fotografias de Parati, RJ
58
Entrevista
concedida
no
dia
10
de
agosto
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
a
Lorena
Travassos.
59
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
183
60
Fonte:
Flickr
do
autor
São
cada
vez
mais
raros
os
locais
que
não
são
conhecidos
hoje
em
dia.
Foram
os
fotógrafos-‐turistas
que
passaram
a
selecionar
um
conhecimento
do
local,
porém
de
forma
descontextualizada,
“fruto
de
mecanismos
de
seleção
e
interpretação
que
pautam
todo
o
processo
comunicativo”
(Conceição,
1998,
p.74).
Dessa
forma
podemos
falar
que
as
imagens
fotográficas
apresentadas
passaram
a
produzir
opiniões
sobre
lugares
a
partir
de
uma
valoração
de
determinados
aspetos
em
detrimento
de
outros,
definindo
o
que
deve
ou
não
ser
visto.
Para
Conceição
(1998),
esse
discurso
presente
na
fotografia
turística
e
os
comentários
dos
lugares
por
outros
turistas,
reduz,
na
maioria
das
vezes,
a
realidade
dos
destinos
a
apenas
um
aspeto,
ou
seja,
a
uma
estereotipação.
É
nesse
sentido
que
atuam
as
imagens
de
Miguel
Valle
de
Figueiredo:
como
um
ensaio
que
se
utiliza
de
estereótipos
e
valoração
de
locais
pontuais
que
produzem
grande
apelo
turístico,
com
imagens
de
belas
mulheres,
futebol
e
praias
“descobertas”
pelo
fotógrafo.
Figuras 55 e 56 -‐ Beach Football e Sugar Loaf (2008), no Rio de Janeiro, RJ
61
Fonte:
Flickr
do
autor
60
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
61
Idem.
184
contexto,
portanto,
são
descontextualizadas,
simplificadoras
e
exageradas,
mostrando
uma
natureza
sempre
mais
exuberante
do
que
realmente
se
mostra.
Estes
fragmentos
selecionados
pelo
fotógrafo,
como
apontou
Kossoy
(2008),
passam
a
fazer
parte
do
imaginário
do
receptor
que,
com
a
repetição,
condensam
em
um
fragmento
toda
a
memória
do
lugar.
Com
a
presença
dos
fotógrafos-‐viajantes
nos
locais
mais
recônditos
do
planeta,
iniciou-‐se
um
processo
de
transformação
de
espaços
de
transitação
em
espaços
de
vigilância,
pois
“não
estamos
nem
no
anfiteatro,
nem
no
palco,
mas
sim
na
máquina
panóptica”
(Foucault,
2007[1975],
p.217).
Desse
modo,
o
nativo,
ao
se
sentir
vigiado,
pode,
em
maior
ou
menor
grau,
passar
a
estabelecer
uma
performance
para
justificar
os
estereótipos
identitários
e
dessa
forma
contribuir
para
o
trabalho
de
disseminação
dessas
falsas
ideias
generalizadoras
de
si.
Além
da
performance
causada
pela
sensação
de
eterna
vigilância
nos
nativos,
também
pode
ocorrer
uma
representação
por
conta
de
um
“bovarismo”,
descrito
por
Holanda
(2012[1936]),
como
uma
insatisfação
crónica
com
a
autoimagem
sofrida
pelo
brasileiro,
devido
à
falta
de
representatividade
nos
media
e
produtos
culturais.
Esse
“bovarismo”
foi
exemplificado,
pelo
fotógrafo,
com
a
62
Entrevista
concedida
no
dia
10
de
agosto
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
a
Lorena
Travassos.
185
escolha
de
Gisele
Bundchen
para
representar
o
Brasil
na
copa
do
mundo,
quando
o
brasileiro
é,
em
sua
maioria,
pardo
e
negro.
63
Fonte:
Flickr
do
autor
Figura
58
-‐
Back
to
basics
(fotógrafo
de
rua),
Brasil
(2008)
64
Fonte:
Flickr
do
autor
63
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
186
Conclui-‐se,
assim,
com
base
na
apreciação
das
imagens
atravessadas
pela
fala
do
artista,
que
sua
escolha
não
se
dá
objetivamente
por
uma
identidade,
por
definir
quem
seria
o
brasileiro,
mas
apresentar
um
possível
brasileiro.
Embora
fotografando
cenas
quotidianas
das
comunidades
visitadas
e
sendo
as
imagens
povoadas
por
indivíduos,
aquilo
que
se
apresenta
ao
espectador
é
uma
“cultura”,
uma
estrutura
sobre
a
qual
esses
indivíduos
mantêm
suas
relações
com
o
mundo
que
o
cercam,
inclusive
quanto
à
sua
necessidade
de
subsistência.
Contraditoriamente,
seu
discurso
não
dialoga
com
as
imagens
produzidas,
mostrando
conivência
com
a
imagem
mediática
e
turística
que
prevê
uma
sensualidade
da
mulher
brasileira
e
um
ambiente
extremamente
exótico
e
pitoresco
que
dialoga
com
os
discursos
coloniais
e
mediáticos
que
estereotipizam
gentes
e
paisagens
do
Brasil.
V.2.
André
Cepeda:
O
fotógrafo
flanêur
em
São
Paulo
64
Idem.
187
Para
ele,
o
livro65,
Foram
muitos
os
projetos
e
encomendas
solicitadas66
em
sua
carreira,
mas
foi
a
utilização
do
grande
formato
que
marcou
o
seu
trabalho
por
impor
uma
contemplação
como
método
de
construção
de
imagens.
Como
cresceu
num
meio
“completamente
analógico,
nem
se
quer
havia
digital”,
a
solidão
do
processo
de
revelação
foi
sempre
presente
na
sua
relação
com
a
fotografia.
A
câmara
passou
a
conduzir,
nas
palavras
de
Cepeda,
“a
forma
como
eu
quero
me
relacionar
com
o
mundo
e
com
aquilo
que
eu
vou
fotografar.
Eu
quero
estar
a
olhar
para
as
pessoas
e
para
as
coisas,
eu
quero
fazer
65
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
66
“Comecei
a
expor
regularmente
desde
1999,
ano
em
que
tive
uma
bolsa
para
realizar
a
residência
de
artista
no
Espace
Photographique
Contretype
de
Bruxelas.
Foi
editado
um
livro
com
este
projeto
em
2005,
na
inauguração
da
exposição
individual
no
mesmo
espaço.
Em
2001
recebi
duas
relevantes
encomendas:
a
primeira
no
âmbito
da
programação
do
Porto
2001
-‐
Capital
Europeia
da
Cultura,
pelo
Centro
Português
de
Fotografia/MC,
e
uma
segunda
para
os
Encontros
de
Imagem,
pelo
Museu
da
Imagem
de
Braga.
Fui
bolseiro
do
Centro
Nacional
de
Cultura
em
2002,
e
em
2003,
volto
a
fazer
uma
residência
de
artista,
em
Viseu,
na
António
Henriques
Galeria
de
Arte
Contemporânea,
que
durou
6
semanas
por
um
período
de
5
meses
e
deu
origem
a
uma
exposição
individual
e
catálogo.
Em
2006
recebi
2
encomendas,
uma
da
RAR-‐
Holding,
com
um
projeto
intitulado
“Um
olhar
sobre
a
RAR”,
comissariado
pelo
Miguel
von
Hafe
Pérez,
e
outro
da
Reitoria
da
Universidade
do
Porto,
para
a
exposição
“Depósito,
Anotações
sobre
Densidade
e
Conhecimento”,
comissariado
pelo
Paulo
Cunha
e
Silva.
Em
2007
fui
selecionado
para
o
Prémio
EDP
–
Novos
Artistas,
e
desenvolvi
um
projeto
comissariado
pelo
Sérgio
Mah,
para
o
Instituto
de
Emprego
e
Formação
Profissional,
que
teve
uma
exposição
no
Edifício
da
Alfândega
no
Porto
com
catálogo.
Em
2008,
após
ter
exposto
na
Faulconer
Gallery
em
Iowa,
USA,
desenvolvi
um
projecto
ao
longo
do
Rio
Mississippi,
que
foi
editado
pela
Chromma
e
apresentado
na
Galeria
Pedro
Cera
em
Lisboa
em
2009.
A
comissária
espanhola
Virgínia
Torrente
convidou-‐me
a
participar
na
exposição
Paraísos
Indómitos
no
Marco
-‐
Museu
de
Arte
Contemporânea
de
Vigo,
Espanha
em
2008.
De
2006
a
2009
desenvolvi
um
projeto
intitulado
“Ontem”,
apoiado
pela
Fundação
Ilídio
Pinho,
que
teve
a
sua
primeira
apresentação
na
ZDB
em
2008
em
Lisboa
e
que
vai
ser
editado
por
Le
Caillou
Blue
Editions
de
Bruxelas
com
2
exposições,
no
Espace
Photographique
Contretype,
Bruxelas
e
Galeria
Pedro
Oliveira,
no
Porto.
Em
2010
foi
nomeado
para
o
Prémio
BESPhoto,
e
desenvolveu
2
grandes
projectos
de
encomenda,
para
a
Trienal
de
Arquitectura
de
Lisboa
e
Fundação
Champalimaud.
Participou
ainda
em
2
grandes
exposições
internacionais,
Impresiones
Y
comentários
-‐
Fotografia
Contemporânea
Portuguesa,
na
Fundació
Foto
Colectania,
Barcelona,
Spain
comissariada
pelo
João
Fernandes
e
na
Mostra
de
Video
Arte
e
fotografia
Portuguesa
no
Centro
de
Artes
Helio
Oiticica,
Rio
de
Janeiro,
Brasil.
Em
2011
foi
shortlist
do
prémio
internacional
Paul
Huf
Award,
Foam
Fotografiemuseum
Amsterdam.
(texto
retirado
do
site
da
galeria
Missopo,
Porto)
Disponível
em
http://www.missopo.com/content/andr-‐cepeda
188
parte
dos
objetos,
da
paisagem”67.
Tal
processo
de
fotografar
com
uma
grande
câmara
é
um
processo
lento
que,
por
um
lado,
segundo
Cepeda,
requer
uma
organização
prévia,
com
a
escolha
do
filme
e
da
forma
de
abordagem
do
objeto
e,
por
outro,
também
carrega
consigo
o
improviso
no
momento
da
ação.
De
todo
modo,
esse
processo
o
obrigou
a
confrontar-‐se
com
as
pessoas,
a
planejar
com
antecedência
os
movimentos,
bem
como
a
aprender
com
os
erros
e
acertos,
elementos
que
são
muito
caros
ao
artista.
Figuras
59
e
60
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
69
Fonte:
Site
do
artista
67
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
68
Disponível
em
http://www.andrecepeda.com
69
http://www.andrecepeda.com
189
Em
2012
o
artista
foi
selecionado
para
uma
residência
artística
na
cidade
de
São
Paulo,
no
Brasil,
numa
parceria
entre
a
Fundação
Gulbenkian
e
a
Fundação
Armando
Álvares
Penteado
(FAAP).
Segundo
ele,
o
primeiro
plano
era
ir
para
Berlim,
mas
a
fotografia
não
era
interesse
principal
daquela
residência,
então
foi
indicado
pelo
Gulbenkian
para
a
participação
da
residência
em
São
Paulo.
O
trabalho
do
artista
realizado
no
Brasil
logrou
três
meses
de
olhares
e
percursos
que
o
levaram
a
uma
cidade
peculiar.
Ao
contrário
do
seu
trabalho
anterior,
realizado
em
preto
e
branco,
Rien
(2012),
mais
“duro”
e
produzido
na
cidade
do
Porto,
o
autor
decidiu
fotografar
em
cores
para
realçar
tudo
o
que
via
na
metrópole
brasileira.
De
acordo
com
os
seus
relatos,
o
primeiro
mês
em
São
Paulo
foi
gasto
em
passeios
pela
grande
cidade
para
tentar
perceber
o
que
ele
queria
fazer.
O
fotógrafo
procurou
compreender
o
olhar
romântico
que
tinha
sobre
o
país,
olhar
que
era
inspirado
principalmente
pelas
músicas
de
Vinícius
de
Morais,
telenovelas
e
pela
convivência
com
o
padrasto
brasileiro.
Depois
disso,
ele
começou
a
se
apaixonar
pela
cor,
“pela
forma
como
a
natureza
entra
na
própria
arquitetura”70.
Buscava,
assim,
imagens
que
apresentassem
a
cidade
ao
estrangeiro
que
passeava
por
entre
as
ruas
sem
fim
da
cidade
e,
por
isso,
queria
que
a
paisagem
e
as
pessoas
mostrassem
o
caminho
a
seguir
em
seu
projeto.
Assim
foi
construído
o
livro
Rua
Stan
Getz,
publicado
em
2015
pela
editora
Pierre
Von
Kleist.
Figura
61
–
Imagem
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist.
Na
foto,
uma
árvore
tem
sua
base
quase
totalmente
coberta
pelo
concreto
da
calçada
71
Fonte:
Site
do
artista
70
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
71
http://www.andrecepeda.com
190
No
livro,
o
autor
apresentou
ruas,
transeuntes,
paisagens,
reflexos
do
espaço
da
cidade
em
ângulos
pouco
convencionais,
mas
que,
segundo
ele,
foram
muito
bem
pensados.
Quando
as
imagens
“estão
tortas
é
porque
estão
tortas”
72
e
essa
precisão
é
algo
que
também
é
fortemente
requerida
quando
se
usa
uma
câmara
de
grande
formato
como
a
dele.
É
com
essa
precisão,
convivência
com
o
ambiente
e
participação
na
imagem
de
forma
a
ser
visto
por
quem
é
fotografado,
que
ele
procurou
registar
seu
olhar
sobre
o
caminho
construído.
Segundo
o
autor,
via
e-‐mail73,
o
título
desse
livro
remete
ao
nome
de
umas
das
ruas
de
São
Paulo,
pois
“é
um
livro
feito
a
olhar
para
as
ruas,
de
andar
na
rua”,
e
foi
a
“ideia
de
um
som”
provocado
pelo
nome
“Rua
Stan
Getz”
que
motivou
a
sua
utilização
como
título
do
livro.
Stan
Getz,
na
verdade,
era
um
saxofonista
americano
de
Jazz
que
trabalhou
ativamente
com
Tom
Jobim
e
João
Gilberto
sendo
um
dos
grandes
responsáveis
pela
difusão
da
Bossa
Nova
pelo
mundo.
O
fotógrafo,
assim,
elegeu
o
nome
de
um
dos
principais
disseminadores
da
visão
romantizada
do
Brasil
que
se
revelava
nas
letras
do
movimento
musical
criado
por
João
Gilberto,
a
MPB.
Uma
dessas
visões
romantizadas
e
cristalizadas
no
imaginário
pela
Bossa
Nova
foi
o
mito
da
beleza
da
mulher
brasileira,
com
a
música
“Garota
de
Ipanema”
criado
por
Tom
Jobim
e
Vinícius
de
Morais
em
1962.
Figuras
62
e
63
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
74
Fonte:
Site
do
artista
Por
ser
um
livro
feito
“a
olhar
para
as
ruas”,
torna-‐se
inevitável
a
associação
do
72
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
73
E-‐mail
recebido
em
06
de
abril
de
2018.
74
http://www.andrecepeda.com
191
flâneur
à
figura
do
fotógrafo
em
sua
jornada
no
Brasil.
O
flâneur,
para
Baudelaire,
refere-‐se
ao
andante
que
é
um
observador
apaixonado,
um
observador
por
natureza.
“Ele
gosta
de
ver
o
mundo,
estar
no
centro
do
mundo,
e
também
permanecer
escondido
pelo
mundo”
(Baudelaire,
1964,
p.09).
A
ideia
do
artista
como
caminhante
desconhecido
no
meio
da
multidão
foi
importante
para
o
processo
de
construção
do
ensaio
pelo
fotógrafo
que
“queria
aprender
a
olhar
para
a
própria
cidade
com
a
escala
que
era
completamente
diferente”
(...)”
75.
Figuras 64 e 65 – Imagens do livro Rua Stan Getz (2015), editora Pierre Von Kleist
76
Fonte:
Site
do
artista
Eu
acho
que
socialmente
há
um
desequilíbrio,
não
sei
se
de
valores.
O
Brasil
tenta
ser
contemporâneo,
mas
não
tem
estrutura
para
aguentar
(...)
São
Paulo
tem
uma
história
incrível.
É
o
motor
da
economia
da
América
Latina,
das
transações,
das
empresas.
São
Paulo
é
uma
Nova
York
da
África,
era
aquilo
que
eu
dizia.
Era
a
sensação
que
eu
tinha
porque
tem
um
bocado
de
estrutura
de
Nova
York,
o
lado
econômico,
tudo
a
crescer
e
construção
por
todo
lado.
Muito,
muito
dinheiro.
Pessoas
muito
ricas.
Lojas
vendem
helicópteros,
eu
nunca
tinha
visto.
Mas
depois
é
um
caos
ao
mesmo
tempo
e
tudo
convive
junto78.
Figuras 66 e 67 – Imagens do livro Rua Stan Getz (2015), editora Pierre Von Kleist
79
Fonte:
Site
do
artista
Neste
ensaio
de
André
Cepeda
há
também
retratos
que
se
entrecruzam
com
a
paisagem
da
cidade
na
organização
sequencial
do
livro.
Foram
apresentados
sete
retratos
que
foram
produzidos
em
seu
atelier,
que
passou
a
ser,
além
local
de
partida
para
suas
derivas,
lugar
de
trabalho80.
Desses
sete
retratos,
seis
imagens
são
de
nu
feminino,
restando
apenas
um
com
um
homem
que
está
completamente
vestido81.
Especificamente
no
caso
do
seu
ensaio
no
Brasil,
as
mulheres
que
posaram
para
os
79
http://www.andrecepeda.com
80
“Como
o
meu
ponto
de
partida
era
sempre
o
mesmo,
o
meu
atelier,
eu
quis
usar
o
atelier
também
como
lugar.
Então
comecei
a
fotografar
as
pessoas
não
só
fora
do
atelier,
mas
no
atelier”.
Fragmento
retirado
da
entrevista
concedida
pelo
André
Cepeda
no
dia
20
de
dezembro
de
2017.
81
Vale
lembrar,
entretanto,
que
sempre
houve
o
nu
feminino
em
seus
trabalhos.
194
seus
retratos
eram
todas
“modelos
que
posam
para
pintores”
82,
pois,
segundo
o
artista,
“era
a
forma,
em
três
meses,
mais
interessante
que
eu
encontrei
para
poder
fotografar
nu”83.
A
escolha
por
imagens
de
nu
feminino
se
deu
mais,
ao
seu
ver,
pela
qualidade
final
das
imagens,
visto
que
as
imagens
de
nu
masculino
não
foram
tão
agradáveis
ao
seu
olhar.
Em
outra
ocasião,
em
um
curso
de
verão84,
o
artista
comentou
que
prefere
fotografar
mulheres
por
ser
heterossexual,
ou
seja,
ele
fica
mais
à
vontade
diante
do
corpo
feminino,
impondo-‐se
aí
uma
questão
mais
de
“afinidade
sexual”
do
que
estética.
Figuras 68, 69, 70 e 71 – Imagens do livro Rua Stan Getz (2015), editora Pierre Von Kleist
89
Fonte:
Site
do
artista
Como
referência
à
pintura
clássica,
toma-‐se
como
exemplo
a
fotografia
em
que
uma
mulher
negra
está
nua
(Fig.
70)
e
reclinada
sobre
uma
cama
(o
nu
reclinado
é
bastante
tradicional
na
pintura,
como
bem
se
sabe).
Uma
análise
apressada
pode
levar
a
pensar
que
aquela
imagem
representa
a
objetificação
da
mulher
pelo
fotógrafo
europeu.
No
entanto,
por
saber
que
a
mulher
em
questão
é
modelo-‐vivo
para
pintores,
é
conveniente
discordar
daquela
visão
clássica
da
objetificação
da
mulher
para
dar
lugar
a
um
pensamento
mais
complexo
que
implica
a
utilização
da
pose
como
performance
de
forma
intencional
pela
modelo.
Se
o
corpo
da
modelo
se
expõe
ao
Outro,
ela
o
faz
intencionalmente
ao
utilizar
uma
pose
clássica
da
pintura
que
alcançou
atribuições
simbólicas
diversas,
inclusive
na
pintura
Olympia
(1863)
produzida
por
89
http://www.andrecepeda.com
196
Manet90.
Dessa
forma,
a
modelo
exibe
seu
corpo
para
que
seja
plasmada
na
imagem
o
que
Cepeda
queria
ver,
ou
o
que
esperava
ver,
refletindo
esse
“olhar
masculino”
que
foi
performatizado
pela
modelo.
Para
Fabris
(2004),
a
pose
é
uma
atitude
teatral
que
oferece
uma
imagem
já
definida
“a
partir
de
um
conjunto
de
normas,
das
quais
faz
parte
a
percepção
do
próprio
eu
social”
(pp.
35-‐36).
O
retrato,
por
ser
tomado
como
uma
representação
do
que
o
outro
quer
ver,
termina
por
refletir
também
a
imagem
que
é
percebida
como
representação
de
si
pela
modelo.
Como
uma
outra
Olympia,
a
imagem
de
Cepeda
possui
uma
dobra
de
significados
que
vacilam
entre
o
que
se
é
e
o
que
se
deve
parecer,
pois
gera
outra
imagem
de
si
ou
para
si
e,
desse
modo,
não
se
revela
como
identidade
da
mulher,
mas
como
máscara
que
esconde
a
identidade
para
manifestar-‐se
mais
conectada
com
o
imaginário
da
“mulher
brasileira”,
que
prevê
a
imagem
da
mulata
e
da
sensualidade.
As
mulheres
que
posam
para
Cepeda
são
profissionais
que
estão
acostumadas
a
posar
para
pintores
e
a
reproduzir
imagens
de
pinturas
famosas
da
história
da
arte.
A
escolha
por
fotografar
modelos
ao
invés
de
mulheres
daquela
sociedade
foi
justificada,
pelo
fotógrafo,
pela
maior
facilidade
de
execução,
visto
que
“as
pessoas
lá
não
estavam
tão
disponíveis
para
serem
fotografadas
nuas,
como
as
pessoas
aqui
estão.
As
90
Manet,
quando
pintou
Olympia
(1863)
tinha
a
Vênus
de
Urbino
de
Titian
como
inspiração.
No
entanto,
em
vez
de
pintar
na
tradição
artística
aceita,
dentro
de
temas
bíblicos
ou
mitológicos,
Manet
escolheu
pintar
uma
mulher
real,
uma
prostituta.
197
pessoas
são
muito
mais
pudicas
no
Brasil
do
que
cá”91.
Esse
foi
o
grande
paradoxo
encontrado
por
Cepeda,
no
que
tange
as
mulheres
brasileiras:
têm
liberdade,
mas
não
conseguem
mostrar
o
corpo
com
facilidade.
No
entanto,
a
sua
escolha
por
modelos,
apesar
de
ter
sido
crucial
para
a
execução
do
seu
trabalho
em
apenas
três
meses,
tornou
a
representação
da
mulher
brasileira
superficial
e
descontextualizada,
comprovando
que
seus
trabalhos
não
têm
uma
preocupação
com
o
contexto
social
do
lugar,
mas
sim
com
a
questão
estética
que
acompanha
a
técnica
fotográfica.
Quando
Pollock
(1998)
avisa
que
“a
modernidade
ainda
está
connosco”,
ela
fala
também
da
permanência
de
formas
de
representação
dos
negros,
mulheres
e
indígenas
nos
dias
de
hoje.
Na
Figura
69,
do
ensaio
de
Cepeda,
por
exemplo,
uma
mulher
negra
foi
fotografada
ao
estilo
etnográfico
do
século
XIX:
posicionada
lateralmente,
bem
iluminada,
bem
focada,
disponível
para
a
câmara
(Tagg,
2005
[1988]).
A
utilização
de
uma
cor
neutra
de
fundo
exclui
o
fotografado
do
fundo
para
mostrar
a
sua
cor
e
os
traços
fisionómicos,
refletindo
“traços
de
poder”
(p.
85)
que
expõem
o
outro
de
acordo
com
um
ponto
de
vista
privilegiado.
Disto,
constata-‐se
que
o
autor
ignora
toda
a
longa
conexão
histórica
Brasil-‐
Portugal,
como
também
a
história
da
representação
da
mulher
quando
na
produção
de
suas
imagens.
Desse
modo,
termina
por
representar
a
brasileira
de
forma
banal
de
modo
que
pode
ser
associada,
livremente,
pelo
expectador,
ao
corpo
disponível.
Conforme
Cepeda,
“era
a
mesma
forma
como
eu
fotografava
um
corpo,
fotografava
91
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
198
uma
arquitetura,
uma
rua
(...)
O
que
eu
procuro
é
exatamente
igual”.
92
A
mulher,
posta
como
objeto
do
olhar,
tal
como
uma
rua
ou
um
edifício,
corre
o
risco
de
ser
vista,
em
sua
representação,
com
referência
ao
olhar
excludente
e
objetificador
que
foi
característico
da
ideologia
colonialista
quando
representava
a
alteridade.
Para
Cotton
(2013),
a
imagem
adquire
seu
valor
“a
partir
de
sua
inserção
no
bojo
de
um
sistema
mais
amplo
de
codificações
sociais
e
culturais”
(p.191).
Nesse
contexto,
o
ensaio
Stan
Getz,
através
de
suas
imagens,
sugeriu
um
estranhamento
causado
pelo
contraste
do
nu
feminino
e
do
homem
sério
e
completamente
vestido.
De
forma
inconsciente
ou
não,
o
autor
representou
a
brasileira
conforme
performances
que
estão
conectadas
às
imagens
do
passado,
principalmente
com
referência
à
questão
de
género,
ao
representar
um
corpo
disponível
que
continua
a
ser
regulado
pelo
olhar
masculino.
92
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
93
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa
94
Idem.
199
impõe-‐se
uma
distância
social
e
temporal
com
a
neutralidade
semelhante
àquela
reivindicada
pelas
ciências
tipológicas
(e
excludentes)
que
surgiram
no
século
XIX,
visto
que
não
buscava
uma
representação
da
brasileira,
mas
sim
uma
exibição
de
tipos.
V.3.
Duarte
Belo:
Os
caminhos
de
floresta
na
Amazónica
Martim
Heidegger
(1988,
p.
3)
diz
que
na
floresta
há
caminhos
que
são
muitas
vezes
“sinuosos”,
e
“terminam
perdendo-‐se,
subitamente,
no
não
trilhado”.
São
esses
os
chamados
“caminhos
de
floresta”,
caminhos
que
são
diferentes,
porém
estão
contidos
na
mesma
floresta.
Podem
parecer
que
esses
caminhos
são
iguais,
mas
não
são.
“Lenhadores
e
guardas-‐florestais
conhecem
os
caminhos”.
Conhecer
os
caminhos
de
floresta
na
Amazônia
parece
ser
uma
tarefa
difícil,
pois
é
muito
fácil
perder-‐se
por
entre
os
caminhos
não-‐trilhados
e
desconhecidos
quando
se
é
estrangeiro.
Duarte
Belo
(1968),
fotógrafo
primeiro
e
arquiteto
depois,
acredita
que
ter
cursado
a
arquitetura
foi
importante
para
aprofundar
a
sua
sensibilidade
sobre
a
paisagem
que
o
cerca.
Ele
expõe
regularmente
seus
trabalhos
fotográficos
desde
1989,
seja
em
Portugal
ou
no
estrangeiro.
No
total,
foram
30
livros
publicados
com
suas
fotografias,
dentre
eles,
destaca-‐se95:
Orlando
Ribeiro
(1999);
Ruy
Belo:
Coisas
de
Silêncio
(2000);
O
Vento
Sobre
a
Terra
-‐
apontamentos
de
viagens
(2002);
À
Superfície
do
Tempo
-‐
Viagem
à
Amazônia
(2002);
Território
em
Espera
(2005);
Geografia
do
Caos
(2005);
Terras
Templárias
de
Idanha
(2006);
Fogo
Frio:
O
Vulcão
dos
Capelinhos
(2008);
Cidade
do
Mais
Antigo
Nome
(2010)
e
Sabor-‐Mamoré:
Viagem
de
comboio
sobre
o
mar
(2013).
97
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos
em
09
de
setembro
de
2016,
na
Praça
de
Touros
do
Campo
Pequeno,
Lisboa.
98
Idem.
99
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos
em
09
de
setembro
de
2016,
na
Praça
de
Touros
do
Campo
Pequeno,
Lisboa.
201
de
uma
realidade
que
se
representa
e
que
se
desprende
dessa
própria
realidade100.
100
Idem.
101
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
09
de
setembro
de
2016,
na
Praça
de
Touros
do
Campo
Pequeno,
Lisboa.
102
Idem.
202
Na
produção
da
imagem
de
paisagem
pelo
fotógrafo
não
há
uma
procura
por
uma
descrição
objetiva
que
demarca
uma
fisionomia
ou
tipologia
da
floresta,
nem
de
representá-‐la,
como
nas
artes,
com
um
estatuto
secundário
ou
uma
paisagem
idealizada.
Ao
contrário
de
um
olhar
científico
ou
artístico,
a
paisagem
foi
vislumbrada
como
um
fenómeno
perceptivo
para
realçar
aspetos
estéticos.
Trata-‐se
de
um
contato
que
se
baseia
na
fé
de
que
o
homem
se
move
pelo
mundo
por
causa
de
uma
curiosidade,
desapegado
de
uma
questão
de
poder
e
conquista
territorial,
ou
seja,
de
um
olhar
romântico
da
relação
entre
o
homem
e
a
natureza.
O
fotógrafo
“habita”
a
paisagem
enquanto
trabalha,
ou
seja,
estabelece
um
contato
intersubjetivo
com
a
mesma,
se
relaciona
com
a
paisagem
a
ponto
de
“sentir-‐se
bem”
por
onde
cria
sua
narrativa.
Dessa
forma,
a
paisagem
não
é
vista
apenas
como
forma
pictórica
da
natureza,
nem
tão
somente
representa
uma
zona
delimitada
da
realidade,
ela
se
conforma
como
experiência
do
indivíduo
em
um
lugar
no
qual
o
homem
da
cidade
encontra
refúgio,
terapia
ou
revivificação
de
uma
religiosidade
(Simmel,
1913).
Para
Adriana
Veríssimo
Serrão
(2013),
a
“paisagem
é
a
natureza
estética
enquanto
modo
de
relação.
Falar
de
relação
ou
encontro
com
a
natureza
pressupõe
a
posição
de
uma
alteridade
independente
do
homem,
subtraída
das
limitações
impostas
pelas
teorias
clássicas
da
mimese”
(p.142).
Falar
da
natureza
estética
da
paisagem,
portanto,
é
falar
de
um
lugar
livre
da
alternativa
de
ser
uma
“cópia
de”,
pois
se
apresenta
“esteticizada
pela
percepção”
(Idem).
Figuras 75 e 76 – Imagens do projeto À superfície do tempo (2000)
103
Fonte:
site
do
autor
103
Disponível
em
http://duartebelo.com/index.html
203
Quando
Duarte
Belo
foi
ao
Brasil,
sua
intenção
era
desenvolver
um
projeto
que
foi
solicitado
pelo
Centro
Português
de
Fotografia,
com
o
objetivo
de
refazer
os
caminhos
do
escritor
Ferreira
de
Castro
(1898-‐1974)
na
Amazônia,
no
período
que
ele
trabalhou
em
um
seringal
no
início
do
século
XX.
Este
projeto
foi
chamado
de
À
superfície
do
tempo
e
foi
realizado
no
ano
de
2000,
tendo
como
base
a
história
autobiográfica
publicada
no
livro
A
Selva
(1930)
de
Ferreira
de
Castro.
No
livro,
Castro
se
referia
à
Amazônia
como
um
“inferno
verde”,
apesar
de
trabalhar
em
um
seringal
chamado
“Paraíso”.
O
autor
do
livro
havia
emigrado
para
Belém
do
Pará
por
causa
da
escassez
de
emprego
em
Portugal
e,
naquele
momento,
a
extração
do
látex
da
árvore
da
borracha
(a
seringueira)
era
o
grande
atrativo
para
a
emigração
de
portugueses
que
buscavam
enriquecer
facilmente
nas
terras
brasileiras:
Quando
de
fato
chegou
na
Amazônia,
o
fotógrafo
notou
que
havia
uma
grande
diferença
entre
o
que
sabia
e
o
que
existia.
Disse,
por
exemplo,
que
imaginava
que
a
Amazônia
fosse
um
lugar
mais
rico
em
fauna
e
flora,
com
árvores
de
maior
porte,
ou
mesmo,
esperava
encontrar
muitas
árvores
de
pau-‐brasil,
mas
soube,
quando
esteve
lá,
que
“muitas
delas
foram
dizimadas
por
causa
do
comércio
de
madeiras”
104.
Contudo,
quando
fala
sobre
aquele
lugar
que
exerce
tanto
fascínio
em
estrangeiros
de
todos
os
lugares
do
mundo,
ele
fala
que:
Figuras
77
e
78
–
Projeto
À
superfície
do
tempo
(2000).
Fotos
no
Seringal
Paraíso
106
Fonte:
site
do
autor
105
Idem.
106
Disponível
em
http://duartebelo.com/index.html
205
europeu
a
viver
e
trabalhar
dentro
da
floresta
naquela
época.
Segundo
Chaves
et
al.
(2007,
p.14),
naquela
obra
literária,
A
grandiosidade
da
natureza
que
aprisiona
o
homem
em
seu
interior,
sempre
escuro
e
assustador,
pois
nunca
se
sabe
qual
o
animal,
homem
ou
monstro
pode
surgir
dentre
aquela
exuberante
flora,
mostra-‐se
determinante
na
construção
da
imagem
daquela
selva.
Parece
que
todos
os
caminhos
de
floresta
sempre
levarão
a
um
mundo
de
terror
e
impotência
diante
desse
terror.
Para
poder
encontrar
o
que
o
escritor
descreveu
em
sua
obra,
Belo
decidiu
ir
ao
seringal
“Paraíso”,
onde
trabalhou
Ferreira
de
Castro,
que
ficava
às
margens
do
rio
Madeira,
como
também
ir
a
Belém,
onde
o
escritor
morava
antes
de
ser
enviado
para
trabalhar
no
interior
da
floresta.
Foram,
assim,
gastos
três
dias
de
viagem
para
fazer
o
seguinte
percurso:
“o
seringal
onde
esteve
Ferreira
de
Castro,
que
até
tem
lá
uma
estátua
em
Humaitá,
e
depois
o
percurso
de
barco
que
ele
também
fez.
O
objetivo
era
fotografar,
fazer
uma
interpretação
minha
do
que
é
a
selva
e
tentar
chamar
a
vivência
do
livro
para
as
fotografias
que
eu
fiz”
107.
Desse
modo,
o
livro
guiou
o
olhar
do
fotógrafo,
apesar
das
referências
não
serem
muitas
após
quase
um
século
da
publicação.
Por
isso,
além
do
cenário
de
extração
e
da
imensidão
do
rio,
foi
mais
utilizado
o
seu
imaginário
do
que
dados
concretos.
No
entanto,
tinham
coisas
que
permaneciam
iguais
ao
livro
de
Ferreira
de
Castro,
pois
correspondiam
ao
que
Duarte
Belo
tinha
visto
em
fotografias
da
época,
como
a
praça
e
os
monumentos.
Com
posse
dos
relatos
de
Ferreira
de
Castro,
Belo
pretendia
contar
através
das
imagens
“uma
série
de
dicotomias
que
tornam
esta
uma
das
regiões
mais
grandiosas,
107
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
09
de
setembro
de
2016,
na
Praça
de
Touros
do
Campo
Pequeno,
Lisboa.
206
míticas
e
desconhecidas
do
planeta
Terra”108.
Tais
dicotomias
se
referem,
conforme
o
fotógrafo109,
ao
contraste
entre
a
luz
e
a
sombra
que
faz
parte
da
floresta:
Também,
o
fato
de
ser
um
dos
lugares
mais
“místicos”
do
mundo,
com
uma
extensão
que
chega
a
ser
do
“tamanho
da
Europa
ou
perto
disso”,
faz
com
que
a
Amazônia
seja
“muito
impressionante
para
quem
vem
fora”
110.
A
dicotomia
entre
e
claro
e
escuro,
entretanto,
não
foi
o
fator
que
influenciou
a
utilização
da
fotografia
em
preto
e
branco,
pois
ele,
no
momento
da
produção
daquele
ensaio,
fotografava
sempre
em
tons
de
cinza,
pois
era
mais
fácil
para
revelar
e
controlar
todo
o
processo
em
seu
laboratório
doméstico.
Figuras 79 e 80 – Imagens do projeto À superfície do tempo (2000)
111
Fonte:
site
do
autor
Por
causa
do
enfoque
dado
a
esse
ensaio
fotográfico,
ou
seja,
por
uma
busca
de
retomar
os
caminhos
feitos
pelo
escritor
Ferreira
de
Castro,
o
ensaio
“tem
a
ver
com
uma
interpretação
da
natureza
e
da
força
da
natureza,
e
de
alguns
vestígios
dos
108
Idem.
109
Idem.
110
Idem.
111
Disponível
em
http://duartebelo.com/index.html
207
humanos
sobre
a
paisagem”
112.
Os
vestígios
do
homem
surgem
nas
marcas
deixadas
nas
copas
das
árvores,
nos
barcos
que
navegam
o
rio
e
nos
caminhos
que
se
abrem
na
floresta.
Quando
questionado
sobre
a
ausência
de
povos
indígenas
em
seu
ensaio,
o
autor
afirma
que
já
na
época
de
Ferreira
de
Castro
não
havia
índios
próximo
à
seringueira
que
trabalhava,
o
que
elimina
a
presença
desses
povos
em
suas
fotos.
Por
outro
lado,
essa
era
uma
questão
ética
primordial
do
artista,
visto
que
ele
“repugnava,
por
princípio,
fotografar
seres
humanos”.
Para
ele,
fotografar
índios
porque
eles
“são
estranhos”,
com
determinados
hábitos,
não
faz
nenhum
sentido
em
seu
trabalho,
visto
que
ele
não
tem
um
interesse
antropológico.
O
seu
desinteresse
pelos
índios,
confessa,
também
foi
alvo
de
críticas
por
outras
pessoas,
mas
ele
afirma
se
sentir
incomodado
em
fotografar
pessoas
como
se
fossem
animais,
como
“seres
humanos
esquisitos”.
Para
ele,
[...]
os
índios
devem
ser
deixados
em
paz,
[que]
tenham
o
seu
modo
de
vida,
[com]
os
seus
hábitos
próprios.
Eu
aqui
em
Portugal
não
vou
fotografar
as
pessoas
de
Trás-‐os-‐Montes
porque
têm
hábitos
diferentes
do
meu.
Isso
não
interessa
no
meu
trabalho113.
112
Disponível
em
http://duartebelo.com/02-‐trabalhos/0202-‐trabalhos/0202_17-‐dbt0097-‐
superficie_do_tempo/dbt0097_1rt.html
113
Idem.
208
Figuras
81
e
82
–
Imagens
do
livro
Sabor-‐Mamoré
(2013)
114
Fonte:
Duarte
Belo/Biblioteca
Nacional
de
Portugal
114
Disponível
em
http://www.bnportugal.pt/
115
Esta
foi
a
primeira
grande
obra
civil
feita
com
capital
americana
fora
dos
Estados
Unidos.
A
obra
foi
realizada
pelo
empresário
americano
Percival
Farquhar
(1864-‐1953)
209
Duarte
Belo
conta
que
procurava
refletir
sobre
o
próprio
conceito
de
viagem
no
tempo
e
no
espaço,
o
que
fez
com
seu
ensaio
também
fosse
“uma
reflexão
também
sobre
velocidade,
o
povoamento
do
território,
os
movimentos
migratórios
de
populações
que
o
próprio
comboio
ajudou
a
promover
e
que,
mais
tarde,
entre
outros
aspectos,
ditariam
seu
próprio
fim”
(Belo,
2013,
p.53).
A
locomotiva
participou
do
desenvolvimento
económico
e
social
da
Europa
e
do
mundo,
mas
“não
foram
apenas
pessoas
e
mercadorias
que
começaram
a
circular
a
uma
velocidade
antes
não
imaginada,
foram
sobretudo
as
ideias,
as
ideologias
sociais
emergentes
do
século
XX”
(Idem).
O
fotógrafo,
procurava,
com
esta
ideia
de
viagem
imaginária
de
comboio
entre
os
dois
pontos
impossíveis
de
serem
ligados
por
trem,
a
linha
do
Sabor
(Trás-‐os-‐
Montes)
e
a
linha
de
Mamoré
(Amazônia),
apresentar
“uma
nova
civilização,
como
alguém
que
partira
em
demanda
do
El
Dorado,
ou
encontrava
as
Amazonas
(...)”,
procurava
encontrar
um
lugar
onde
estava
inserido
todo
o
seu
imaginário
para
reunir
esses
dois
“mundos
separados”
(2013,
p.54).
116
Fonte:
Duarte
Belo/Biblioteca
Nacional
de
Portugal
Ao
representar
uma
estrada
de
ferro
imaginária,
com
uma
união
entre
dois
“mundos
separados”,
sugere
um
tom
de
nostalgia
àquele
tempo
(colonial)
em
que
as
duas
nações
tinham
uma
única
economia
e
uma
única
direção.
Mas,
ao
mesmo
tempo,
o
abandono
em
que
os
dois
caminhos
de
ferro
se
mostram,
recria
um
outro
ambiente
abandonado
e
sem
futuro,
um
mundo
onde
as
Amazonas
(guerreiras
mitológicas
que
deram
nome
ao
rio)
e
o
Eldorado
parecem
impossíveis,
pois
retomam
imaginários
antigos
para
compor
o
seu
próprio
lugar.
116
Disponível
em
http://www.bnportugal.pt/
210
Figuras
85
e
86
–
Imagens
do
projeto
À
superfície
do
tempo
(2000)
117
Fonte:
Duarte
Belo/Biblioteca
Nacional
de
Portugal
117
Disponível
em
http://www.bnportugal.pt/
211
Esses
“caminhos
de
floresta”
apresentados
pelo
autor,
talvez
não
levem
a
lugar
nenhum,
mas,
como
todo
caminho,
é
perigoso
e
conduz
muitas
vezes
por
caminhos
misteriosos.
Mas,
por
outro
lado,
tal
como
os
lenhadores
e
guarda
florestais,
é
preciso
reconhecer
que
às
vezes
os
caminhos
não
levam
a
um
lugar,
mas
o
trilhar
por
esses
caminhos
valerão
a
pena,
nem
que
seja
só
pela
viagem
como
pretexto
para
encontro
de
um
caminho
impossível
em
direção
àquela
Amazônia
perdida.
V.4.
Martim
Ramos:
Ocupação
em
ruínas
de
luxo
Walter
Benjamin,
quando
se
refere
às
casas
burguesas,
fala
que
“por
mais
‘conforto’
que
aí
se
respire,
a
impressão
mais
forte
que
fica
é:
‘Isto
não
é
para
ti’”
(Benjamin,
2004,
p.247).
Esses
espaços
são
adornados
e
aveludados
por
marcas
que
se
tornaram
hábitos
que
obrigavam,
em
seu
interior,
o
morador
a
adquirir
tais
hábitos,
com
seus
quadros,
bordados,
veludos,
cortinas
e
bibelôs.
Os
hotéis
de
luxo
foram
pensados
para
que
os
hóspedes
estivessem
num
quarto
com
vestígios
produzidos
pelos
hábitos
burgueses,
como
foi
o
caso
do
hotel
Othon
Palace
em
São
Paulo.
Fundado
em
1959,
foi
um
dos
mais
famosos
hotéis
de
luxo
em
São
Paulo,
alcançando
seu
apogeu
nas
décadas
de
1960
e
1970.
Com
a
degradação
do
centro
da
cidade
de
São
Paulo,
os
hóspedes
passaram
a
preferir
hotéis
em
outras
regiões
levando
o
hotel
a
falência
no
ano
de
2008.
Em
2011,
com
o
prédio
abandonado,
houve
a
ocupação
de
todos
os
seus
andares
pelos
integrantes
do
Movimento
dos
Trabalhadores
Sem
Teto
(MTST).
Esse
hotel
de
luxo,
abandonado
e
ocupado
pelo
MTST
fica
mesmo
à
frente
do
edifício
reservado
para
residência
artística
da
Fundação
Antônio
Álvares
Penteado
(FAAP),
lugar
onde
Martim
Ramos
fez
sua
residência
no
Brasil.
O
fotógrafo
nasceu
em
Lisboa,
em
1983,
e
começou
a
fotografar
por
volta
dos
20
anos
de
idade,
iniciando
a
carreira
como
estagiário
em
jornais
lisboetas.
De
2007
a
2013
participou
do
coletivo
fotográfico
português
Kameraphoto,
com
Jordi
Burch
e
Valter
Vinagre.
Estudou
fotografia
na
Maumaus
e
na
Ar.Co
em
Lisboa
e
graduou-‐se
em
História
da
Arte
na
Universidade
Nova
de
Lisboa.
Colaborou
com
suas
imagens
em
várias
revistas
e
212
jornais,
como
Le
Monde,
Japan
Times,
Folha
de
São
Paulo,
Time
Magazine,
Público,
dentre
outros.
Atualmente
vive
em
Londres
onde
está
cursando
o
programa
de
mestrado
em
fotografia
no
Royal
College
of
Art,
através
de
uma
bolsa
de
estudos.
118
Disponível
em
http://www.martimramos.com/about/
119
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
09
de
janeiro
de
2017,
Café
Fábulas,
na
Baixa
de
Lisboa.
120
Idem.
213
A
sua
ideia
inicial
era
a
de
representar
o
Brasil
através
das
fotografias
das
pessoas
que
viviam
no
prédio
Copan,
prédio
famoso
do
centro
de
São
Paulo
que
foi
desenhado
por
Oscar
Niemeyer.
Este
prédio
era
habitado
por
pessoas
de
todas
as
classes
sociais,
“desde
o
porteiro
até
o
mais
rico”
121.
Mais
tarde,
quando
descobriu
que
o
prédio
havia
se
tornado
em
um
lugar
“da
moda”,
momento
em
que
os
moradores
passaram
a
ter
um
poder
aquisitivo
maior
que
a
média
da
população,
o
fotógrafo
decidiu
abandonar
essa
ideia,
mesmo
tendo
filmado
durante
um
ano
com
mais
dois
colegas
o
quotidiano
daquele
edifício
icónico.
Foi
mais
tarde,
quando
iniciou
a
sua
residência
artística
na
FAAP,
que
notou
um
prédio
imponente
logo
à
frente
que
havia
sido
o
maior
hotel
de
luxo
de
São
Paulo,
mas
que
agora
estava
sendo
ocupado
pelo
Movimento
dos
Trabalhadores
Sem
Teto
(MTST)
e
que
contava
com
800
famílias
a
viver
em
seu
interior.
Aquelas
famílias
eram
compostas,
basicamente,
por
auxiliares
de
limpeza,
carteiros,
seguranças
e
estudantes
que
não
conseguiam
pagar
os
altos
preços
dos
aluguéis
na
cidade
de
São
Paulo.
Ramos
assumiu
a
impossibilidade
de
representar
o
Brasil
a
partir
das
fotografias
de
moradores
do
edifício
Copan,
para
abraçar
a
ideia
de
documentar
moradores
e
o
quotidiano
daquele
prédio
ocupado.
Para
ele,
apesar
de
ter
vários
prédios
ocupados
em
São
Paulo,
aquele
hotel
de
luxo
tinha
particularidades
que
se
assemelhavam
à
sociedade
que
habitava
aquela
metrópole:
Figuras
87
e
88
–
Imagens
do
ensaio
Othon
(2012).
A
primeira
é
de
Martim
Ramos,
a
segunda
de
Guillaume
Pazat
123
Fonte:
Sites
dos
artistas
122
Entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
09
de
janeiro
de
2017,
Café
Fábulas,
na
Baixa
de
Lisboa.
123
Disponível
em
http://www.martimramos.com/othon/
e
em
http://www.guillaumepazat.com/othon
215
Ele
diz
que
a
sua
abordagem
dos
espaços
foi,
sobretudo,
descritiva,
circunstancial,
buscando
representar
apenas
detalhes
dos
quartos
do
prédio
ocupado
para
que
o
trabalho
não
resultasse
em
fotografias
repetidas
ao
fim
do
dia.
Por
isso,
sua
parte
resultou
em
fotografias
de
objetos
que
se
misturavam
aos
destroços
e
vestígios
burgueses
que
ornamentavam
o
hotel
no
passado.
O
ambiente,
ao
contrário
de
mostrar
a
vida
das
pessoas,
passou
a
ser
representado
pela
vida
dos
objetos
que
tornavam
funcional
a
vida
de
cada
trabalhador
que
passou
a
habitar
aquele
espaço,
apagando
os
vestígios
deixados
em
almofadas
e
sofás,
nos
objetos
de
decoração
daquele
lugar.
Apagam
a
impressão
do
“Isto
não
é
para
ti!”
(Benjamin,
2004,
p.247),
para
reconstruir,
com
os
novos
vestígios,
um
lugar
mais
“confortável”
para
se
viver
enquanto
se
espera
por
uma
moradia
de
verdade.
Dessa
forma,
eles
passavam,
os
objetos,
a
sobrepor
as
ruínas
do
hotel
com
uma
outra
camada
que
marca
e
demarca
um
espaço,
caracterizando
a
ruína
como
espaço
de
resistência,
ao
contrário
da
visão
romântica
da
ruína
que
a
via
como
algo
nostálgico
ou
saudoso.
Afinal,
“toda
a
resistência
é
–
deve
ser
–
concreta”
(Sontag,
2011,
p.210),
e
para
isso
é
preciso
deixar
para
trás
os
vestígios
produzidos
pelo
hábito
burguês.
Figuras 89, 90, 91 e 92 – Imagens do ensaio Othon (2012)
124
Fonte:
Site
do
artista
124
Disponível
em
http://www.martimramos.com/othon/
216
Os
homens
são
representados
nas
imagens
através
de
um
braço
que
segura
um
cartão
de
reuniões
ou
nos
nomes
masculinos
que
estampam
os
garrafões
de
água
que
carregam
pelos
andares
acima
como
prova
de
virilidade.
As
mulheres
surgem
nas
camisolas
que
se
espalham
no
ambiente
a
ornamentar
aquilo
que
seria
a
antítese
da
sala
de
luxo,
que
por
baixo
dos
escombros
ainda
sussurram
que
aquele
não
era
lugar
para
despojamento
ou
“pobreza”
nas
palavras
de
Benjamin
(2004).
125
Fonte:
Site
do
artista
Por
outro
lado,
o
projeto
foi
composto
por
um
vídeo
que
mostra
uma
outra
ocupação,
mais
habitada,
barulhenta,
feminina
e
mestiça.
São
imagens
que
mostram
o
esforço
em
conjunto
das
mulheres
para
fazer
chegar
a
água
aos
25
andares
do
prédio
através
de
um
sistema
simples
composto
por
balde,
corda
e
roldanas.
Apesar
disso,
o
trabalho
não
se
propôs
a
fazer
uma
reflexão
social
ou
colaborar
com
as
pressões
exercidas
pelo
MTST.
Procurava,
na
verdade,
uma
história
que
funcionasse
como
um
retrato
da
sociedade
brasileira
e,
em
troca,
dariam
alcance
àquela
história
para
que
outras
pessoas
conhecessem
a
aquela
ocupação.
As
pessoas
que
estão
ali
fazem
parte
do
movimento
dos
“sem
teto”
e
têm
uma
noção
muito
forte
do
que
é
comunidade.
Portanto,
sabem
que
sozinhas
nunca
vão
conseguir
nada,
por
isso
é
que
estão
ali.
Acho
que
perceberam
que
nós
tínhamos
boas
intenções
e
modéstia
também,
quer
dizer,
é
mais
um
filme
e
não
acham
que
aquele
filme
vai
mudar
o
mundo.
As
intenções
são
modestas,
mas
eram
no
mesmo
sentido
das
intenções
de
quem
lá
morava
e
havia
essa
partilha
nesse
sentido.
Ou
seja,
é
importante
que
mais
pessoas
conheçam
essas
histórias
(...)
Eu
não
teria
a
pretensão
de
achar
que
o
filme
possa
fazer
grande
diferença
na
vida
das
pessoas.
126
125
Disponível
em
http://www.martimramos.com/othon/
126
Entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
09
de
janeiro
de
2017.
Café
Fábulas,
na
Baixa
de
Lisboa.
217
O
ensaio
fotográfico
realizado
por
Martim
Ramos,
por
outro
lado,
propunha
mostrar
objetos
que
demonstram
um
modo
de
viver
com
o
essencial,
pois
aquelas
pessoas
“não
estão
ali
para
reclamar
propriedade
sobre
o
prédio,
estão
ali
para
fazer
pressão,
por
um
lado,
sobre
a
prefeitura
para
que
dê
uma
resposta,
e
estão
ali
também
porque
de
fato
querem
um
teto,
portanto
é
uma
coisa
muito
simples
o
que
querem”127.
A
sua
ideia,
portanto,
era
a
de
fotografar
o
que
seria
“um
kit
de
sobrevivência”
para
aquelas
pessoas
naquela
ocupação.
Figuras
95,
96,
97
,
98,
99
e
100
–
Still
do
ensaio
audiovisual
Othon
(2012)
127
Idem.
218
128
Fonte:
Site
do
artista
Figuras 101 e 102 – Imagens do ensaio Let Us Now Praise Famous Men (2012) de Walker Evans
129
Fonte:
Biblioteca
do
Congresso
Essas
imagens
dos
ensaios
de
Ramos
e
de
Evans
remetem,
ambos,
aos
objetos
sobre
os
quais
falava
Walter
Benjamin
nas
casas
encontradas
em
pequenas
aldeias
do
sul
de
Espanha
com
seus
objetos
“mais
ou
menos
preciosos”,
pois
o
“chapéu
de
palha
não
é
menos
precioso
do
que
a
simples
cadeira”
e
“a
rede
de
pesca
e
a
panela
de
cobre,
o
remo
e
a
ânfora
de
barro”,
todos
“estarão
prontos
a
mudar
de
lugar
e
a
juntar-‐se
em
novas
combinações”
(Benjamin,
2004,
p.223).
Esses
lugares,
comparado
às
“casas
bem
mobiliadas”,
“não
há
lugar
para
o
que
é
precioso,
porque
não
há
espaço
128
Disponível
em
http://www.martimramos.com/othon/
129
Evans,
W.,
photographer.
(1936)
Washstand
in
the
dog
run
and
kitchen
of
Floyd
Burroughs'
cabin.
Hale
County,
Alabama.
Alabama
Hale
County
Hale
County.
United
States,
1936.
[Summer]
[Photograph]
Retirada
da
Biblioteca
do
Congresso.
Disponível
em
https://www.loc.gov/item/2017762295/
219
para
os
seus
serviços”,
além
do
mais,
“numa
casa
em
que
não
há
camas
é
precioso
o
tapete
com
que
o
morador
se
cobre
à
noite”
(Idem).
Por
isso,
nas
imagens
de
Martim
Ramos,
o
que
vemos
são
os
“objetos
preciosos”,
pois
são
essenciais
para
aqueles
que
não
tem
uma
casa,
que
mostram
as
necessidades
de
quem
tem
pouco
e
“no
seu
eixo
move-‐se
o
fiel
de
uma
balança
invisível
na
qual
se
equilibram
os
pratos
das
boas-‐
vindas
e
da
rejeição”
(Idem).
Mais
preciosa
é
a
união
do
grupo
em
resistência
para
lutar
por
uma
casa
em
que
possam
exibir
seus
objetos
através
das
portas
abertas.
130
Fonte:
Site
do
artista
Martim
Ramos
fala,
em
entrevista,
da
existência
de
um
fardo
que
carrega
por
ser
um
português
a
fotografar
o
Brasil,
mas
garante
que
não
pensa
na
questão
como
“colonialista,
imperialista,
o
olhar
exótico
ou
qualquer
que
seja”,
pois
procura
“olhar
as
coisas
como
em
qualquer
outro
sítio”.
Por
outro
lado,
quando
esteve
no
Brasil,
viu
“muita
gente
brasileira
a
colocar-‐se
nessa
posição
do
exótico”131.
Vale
lembrar,
entretanto,
que
o
artista
tem
sempre
uma
vantagem
sobre
o
nativo132
que
recai
na
possibilidade
de
expor
as
imagens
do
nativo
independentemente
do
seu
conhecimento
(Geiger
e
Erber,
2018).
Ele
também
fala
de
um
preconceito
peculiar
que
encontrou
no
Brasil,
um
preconceito
social
(que
também
é
racial),
pois
direciona-‐se
a
uma
população
pobre
e
negra,
mas
não
se
trata
de
um
“racismo
dirigido
à
pessoa”,
como
o
que
conhecera
em
Portugal,
mas
de
um
racismo
que
se
expressa
através
de
uma
definição
muito
clara
de
papéis
na
sociedade,
em
que
“outra
pessoa
[passa]
a
ser
uma
espécie
de
comodidade
que
parte
da
população
tem
direito”
133.
Esse
preconceito
130
Disponível
em
http://www.martimramos.com/othon/
131
Entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
09
de
janeiro
de
2017,
Café
Fábulas,
na
Baixa
de
Lisboa.
132
Para
Geertz,
somos
todos
nativos,
mas
“de
direito,
uns
sempre
são
mais
nativos
que
outros”
(Viveiros
de
Castro,
2002,
p.115).
133
Entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
09
de
janeiro
de
2017,
Café
Fábulas,
na
Baixa
de
Lisboa.
220
tem
raízes
no
escravismo,
ou
seja,
corresponde
a
um
eco
do
sistema
colonial,
quando
negros
e
mestiços
eram
as
mãos
e
os
pés
de
uma
população
minoritária,
porém
branca
e
detentora
dos
meios
de
produção.
221
ferramenta,
ela
não
pensa
e,
por
isso,
deve
ser
utilizada
para
auxiliar
o
pensamento
sobre
a
realidade,
pois,
ao
fim,
“a
fotografia
toda
ela
é
documental,
quer
a
gente
queira,
quer
não”134.
A
fotografia
tem
um
papel
importante
em
sua
vida,
pois
acredita
que
ela
é
“a
melhor
ferramenta
que
tinha
para
continuar
a
pensar
aquilo
que
me
rodeava”
135.
Vinagre
trabalha
com
fotografia
desde
o
final
da
década
de
1980,
participando
de
exposições
individuais
e
coletivas
que,
de
acordo
com
o
seu
site,
são
mais
de
vinte
até
o
momento.
Dentre
as
quais,
destacou-‐se:
Cá
na
terra,
Bored
in
the
USA,
Carta
do
sentir,
Sob
a
pele,
Espírito
nas
ilhas,
Variações
para
um
fruto,
Animais
de
estimação/Pets,
Húmus,
Uma
extensão
do
olhar,
My
private
pictures,
Pedras
e
Rochas,
Fragmentos
do
prazer,
Madalena,
Stigmata,
Para,
O
Presente
–
uma
dimensão
infinita,
Um
diário
da
república
e
Posto
de
Trabalho.
Tem
obra
na
Coleção
Banco
Espírito
Santo
do
Museu
Berardo
(BESart)
e
participou
do
PhotoEspaña
em
2011.
Em
seu
site
estão
os
projetos
“Posto
de
Trabalho”
(2010-‐2013),
sobre
a
prostituição
na
beira
de
estrada,
com
fotografias
“que
não
mostram
gente,
mas
é
de
gente
que
falam”136;
“Barra
das
Almas”
(2013),
com
um
olhar
sobre
uma
pequena
comunidade
rural
em
vias
de
desaparecer
com
o
intuito
de
tratar
sobre
o
tempo
e
o
espaço;
“Olha”(s/d),
um
ensaio
sobre
as
vítimas
da
violência
doméstica;
“Animais
de
estimação”
(2010),
mostra
animais
empalhados,
muitos
deles
domésticos;
“Húmus”
(1988
a
2009),
com
uma
seleção
de
trabalhos
que
remetem
à
fantasia,
com
temas
sobre
a
morte,
memória
e
sexo;
e
“Para”
(2003)
que
apresenta
fotografias
de
coroas
de
flores
ou
homenagens
fúnebres
para
os
que
foram
mortos
em
acidentes
na
estrada.
Figuras
105
e
106
–
A
State
of
Affairs
(2009),
projeto
do
coletivo
Kameraphoto
138
Idem.
139
“
‘A
State
of
Affairs’
é
um
projeto
fotográfico,
onde
de
20
de
julho
a
26
de
julho
cada
fotografo
viajou
para
uma
cidade
diferente,
em
13
países
diferentes
ao
redor
do
mundo,
trabalhando
com
um
jornal
diário
local,
cobrindo
as
notícias
ao
lado
de
um
de
seus
repórteres.
A
motivação
subjacente
deste
projeto
está
no
desejo
de
abordar
questões
locais,
definidas
por
aqueles
que
as
conhecem
e
vivem,
deixando
para
trás
expectativas
anteriores,
noções
e
imagens
pré-‐concebidas.
É
uma
visão
alternativa
e
comparativa,
que
esperamos
venha
mais
perto
das
preocupações
e
problemas
da
população
local,
questionando
como
os
eventos
diários
são
editados
e
como
eles
são
representados
visualmente.
Seu
principal
objetivo
é
estabelecer
um
debate
entre
local
e
global,
em
uma
era
de
simultaneidade:
7
dias,
13
cidades,
13
fotógrafos,
91
fotografias”.
Disponível
em
http://picturetank.com/___/series/a4bc7ad2e515c18fe4faa8a741fd8111/en/KAMERAPHOTO_A_State_
of_Affairs.html
223
fotografia”,
pois
“há
uma
institucionalização
de
uma
forma
de
ver,
de
uma
forma
de
olhar
e
de
uma
forma
de
vender”
140.
Esta
institucionalização
tem
início
no
século
XIX,
quando
o
universo
institucional
da
arte
passa
a
ser
orientado
pelo
mercado,
e
não
mais
pela
academia
que
tinha
uma
forma
centralizada
e
autoritária
da
arte
(Bourdieu,
1988).
A
institucionalização
da
arte,
seja
pautada
na
contemporaneidade
pelo
comércio
ou
pelos
media
termina
planificando
a
produção
para
apresentar
uma
arte
“padronizada”
em
todos
os
lugares
do
mundo,
apagando
as
especificidades
do
trabalho
do
artista
para
dar
espaço
ao
que
é
mais
lucrativo
para
os
espaços
institucionalizados
da
arte.
Antes
de
ir
ao
Brasil,
Vinagre
diz
que
o
conhecia
através
dos
relatos
da
ditadura
dos
amigos
brasileiros
que
estavam
exilados
em
Portugal
naquela
época.
Também
conhecia
a
produção
de
arte
do
país,
principalmente
as
músicas.
“Mesmo
assim,
não
deixava
de
ter
uma
visão
estereotipada,
porque
era
uma
visão
ligada
a
São
Paulo,
ou
ligada
ao
Rio
de
Janeiro,
quando
muito,
Minas
[Gerais]”
141,
conta
o
fotógrafo.
Dentre
os
estereótipos
conhecidos
pelo
artista,
ele
recorda-‐se142
de
imaginar
uma
terra
eternamente
ensolarada
e
com
muitas
mulheres
bonitas.
Havia
também
escutado
muito
sobre
a
presença
da
igreja
na
vida
das
pessoas,
o
que
ele
confirmou
quando
esteve
lá,
principalmente
no
interior
dos
estados
nordestinos,
onde
os
jesuítas
se
instalaram
para
a
catequização
do
povo
indígena.
Figuras 107, 108, 109 e 110 – Imagens do ensaio realizado no interior do Ceará, Brasil
140
Entrevista
concedida
em
22
de
setembro
de
2016
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
Lisboa.
141
Idem.
142
Entrevista
concedida
em
22
de
setembro
de
2016
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
Lisboa.
224
Figuras
111,
112
e
113
–
Imagens
do
hospital
em
Milagres,
Ceará,
Nordeste
do
Brasil
225
A
nossa
ideia
de
lugar
sempre
parte
do
que
recebemos
de
um
agrupamento
de
dirigentes
que
modela
a
sociedade
dos
dirigidos,
que
nos
mostra
o
mundo
conforme
seus
próprios
valores
e
entendimento
de
mundo
(Hall,
1996).
Inconscientemente,
procuramos
ver
aquilo
que
todo
mundo
já
viu
antes,
para
certificar
a
existência
de
pontos
“obrigatórios”
marcados
pela
publicidade
e
pela
imprensa.
Vinagre,
por
exemplo,
assume
que
não
está
imune
à
representação
de
estereótipos,
pois
“todos
nós
quando
olhamos
para
um
país
partimos
de
estereótipos”
143
,
mas
acredita
que
“qualquer
um
de
nós
só
consegue
ultrapassar
algum
tipo
de
estereótipo
ou
de
valores
culturais
se
estivermos
dispostos
a
isso”
144.
Desse
modo,
ele
compreende
que
o
imaginário
também
faz
parte
da
representação
e
pode
se
manifestar
em
suas
imagens,
afinal,
quando
se
fotografa,
“várias
coisas
que
podem
não
estar
lá
[na
imagem]
diretamente,
mas
interessa
o
que
está
por
trás
daquelas
coisas”
145
.
Além
da
resistência
e
religiosidade
do
povo
do
interior
do
Nordeste
brasileiro,
Vinagre
chama
atenção
para
uma
particularidade
daquela
região
que
não
esperava
encontrar:
Posso
dizer
que
uma
coisa
eu
não
estava
esperando
encontrar:
a
luta
das
mulheres
pela
sua
dignidade,
a
força
que
elas
tinham
contra
o
assassinato
de
mulheres,
as
vigílias
que
elas
faziam
toda
semana
para
denunciar
o
presidente
da
câmara,
percebendo
que
a
qualquer
momento
um
jagunço
podia
matar
uma
delas.
Isso
é
Nordeste,
isso
é
Brasil.
E
ver
estas
mulheres,
que
vinham
do
Movimento
Sem
Terra,
politizadas
até
a
medula,
a
lutar
por
um
pequeno
pedaço
de
terra
dentro
de
uma
imensidão,
isso
nos
dá
uma
dimensão
humana
muito
grande146.
No
interior
do
Nordeste
brasileiro
ele
quis
ter
uma
convivência
profunda
com
a
atividade
de
prostituição
que
diz
que
foi,
sobretudo,
“para
perceber
uma
série
de
questões”
147
e
não
para
fotografar.
Por
outro
lado,
quando
esteve
fotografando
a
prostituição
em
Portugal,
diz
com
absoluta
certeza
que
99%
desse
contingente
feminino
é
composto
por
brasileiras.
Para
ele,
“isso
virou
uma
marca
muito
ruim
da
mulher
brasileira
e
isto
são
estereótipos
que
se
mantêm”
148.
O
fato
de
grande
parte
143
Entrevista
concedida
em
22
de
setembro
de
2016
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
Lisboa.
144
Idem.
145
Idem.
146
Idem.
147
Idem.
148
Idem.
226
das
prostitutas
encontradas
serem
brasileiras,
surge
como
justificativa
da
percepção
da
mulher
brasileira
pelo
português.
Vinagre
foi
também
grande
consumidor
de
novelas
brasileiras,
a
exemplo
da
novela
“Gabriela,
Cravo
e
Canela”
em
Portugal,
inspirada
no
livro
do
escritor
brasileiro
Jorge
Amado,
que
quando
começou
a
passar,
da
década
de
1970,
ele
e
seus
amigos
costumavam
“parar
a
revolução
para
ver
os
episódios”
149.
A
novela,
como
se
sabe,
foi
responsável
por
ecoar
aquela
imagem
da
mulher
brasileira
sensual
e
selvagem
que
parece
ter
cativado
os
homens
daquela
geração,
de
acordo
com
a
opinião
de
Vinagre.
A
imagem
de
uma
mulher
cobiçada
pelos
homens
da
cidade,
mas
que
exibia
uma
ingenuidade
em
relação
ao
mundo,
foi
subtendida
como
uma
sensualidade
inerente
à
mestiça
Gabriela.
Figura 114 – Imagem de meninas em Osasco, Sudeste do país
149
Entrevista
concedida
em
22
de
setembro
de
2016
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
Lisboa.
227
brasileiras
que
assistia
em
sua
juventude.
A
união
dessas
duas
referências
tão
presentes
na
sua
vida
e
no
seu
imaginário
termina
por
fazê-‐lo
representar
a
mulher
brasileira
por
meio
de
um
filtro
que
reflete
a
sensualidade
e/ou
sexualidade,
independente
da
idade
da
mulher
fotografada.
Dessa
forma,
a
mulher
é
representada
conforme
um
eixo
de
dominação
que
parte
do
pressuposto
de
que
“mulheres
brasileiras”
denota
uma
identidade
comum.
Sua
posição
frente
àquela
“realidade”
brasileira,
de
pobreza
e
prostituição
em
suas
imagens,
apresenta
uma
visão
generalista
que
procura
exibir
o
choque
e
o
estranhamento
no
encontro
com
o
Outro.
Outrossim,
conecta
o
Brasil
a
uma
realidade
atrasada,
sexualizada
e
pitoresca
que
retoma,
também,
o
estereótipo
de
género
e
de
uma
malandragem
ao
retratar
um
quotidiano
com
jogos
de
mesa,
danças
e
brincadeiras.
No
lugar
de
escolher
representar
o
brasileiro
pela
via
da
resistência
e
da
força
da
mulher
do
Nordeste,
que
tanto
lhe
chamou
atenção,
preferiu
representar
o
brasileiro
em
um
cenário
de
displicência
e
festas
que
acaba
fortalecendo
velhos
estereótipos
que
permeiam
a
imagem
do
malandro
e
da
mulher
de
corpo
disponível,
personagens
marcantes
na
construção
da
imagem
do
brasileiro
ao
longo
da
história.
Figuras
115,
116,
117
e
118
–
Imagens
do
ensaio
realizado
no
Nordeste
brasileiro
228
Fonte:
Arquivo
cedido
pelo
fotógrafo
Este
“mundo
novo”
encontrado
pelo
fotógrafo
antes
do
turismo
chegar,
mostra
questões
sociais
que
estão
extremamente
conectadas
à
questão
racial
(todos
os
fotografados
são
negros
ou
pardos)
e
de
género.
As
imagens
de
mulheres
com
seus
corpos
expostos
desde
muito
jovens,
hospital
em
uma
comunidade
carente,
além
da
prostituição
que
foi
investigada
profundamente
pelo
fotógrafo,
surgem
como
representação
de
um
Brasil
“de
verdade”.
Como
ele
mesmo
disse,
nenhum
fotógrafo
está
imune
ao
estereótipo,
por
isso,
ao
querer
apresentar
uma
reflexão
sobre
aquela
população
através
da
fotografia,
utilizou-‐se
de
um
olhar
assimétrico,
como
se
fosse
o
“descobridor”
daquele
lugar.
Segundo
Sontag
(2011),
para
representar
a
alegação
de
resistência
é
preciso
“em
primeira
e
última
instância
da
verdade
da
descrição
de
uma
situação
que
é,
de
facto,
injusta
e
desnecessária”
(p.203),
no
entanto,
não
se
vê
a
descrição
de
situações
injustas,
mas
sim
cenas
de
descontração
ou
de
violência,
de
pobreza
ou
de
festa.
Figuras
119,
120,
121
e
122
–
Imagens
realizadas
em
São
Paulo
e
no
Ceará
Fonte:
Arquivo
cedido
pelo
fotógrafo
229
A
fotografia
é,
“antes
de
mais
nada,
uma
maneira
de
ver”
e
não
“o
ver
propriamente
dito”
(Sontag,
2011,
p.143).
A
maneira
de
ver
o
Brasil
e
os
brasileiros
(as)
pelas
lentes
do
fotógrafo
representa
uma
maneira
mais
fria
ou
distanciada
de
ver
o
Outro,
como
um
comentário
do
estrangeiro
no
quotidiano
do
nativo.
Essa
distinção,
faz
com
que
a
fotografia
exposta
pelo
fotógrafo
como
“ferramenta
para
a
reflexão”
não
ajude
a
refletir,
pois
provoca
um
estranhamento
e
afastamento
daquele
cenário
e
daquelas
pessoas.
Sem
dúvida,
o
aspecto
“cru”
das
suas
imagens
pode
colaborar
para
a
produção
de
um
discurso
de
uma
realidade
dura
que
relacionou
ao
Nordeste
brasileiro,
no
entanto,
o
cenário
de
pobreza
compartilha
cenas
dúbias
que
expõe
não
uma
resistência,
mas
uma
displicência
e
uma
sexualidade
que
não
colaboram
para
a
uma
reflexão
profunda
sobre
o
que
é
“ser
brasileiro”
pelo
olhar
do
fotógrafo.
Jordi
Burch
nasceu
em
Barcelona,
em
1979,
mas
desde
muito
cedo
viveu
em
Lisboa
e,
por
isso,
se
considera
português.
Filho
de
catalão
(por
isso
o
nome
e
apelido)
com
portuguesa,
reside
atualmente
em
São
Paulo,
Brasil.
Fez
o
curso
de
Fotografia
e
História
da
Arte
na
AR.CO
em
Lisboa,
trabalhou
para
publicações
portuguesas
(Público,
Expresso,
Visão
e
Egoísta)
e
para
publicações
internacionais
(National
Geographic,
Courrier
International,
Playboy
Russa
e
Folha
de
São
Paulo).
A
partir
de
2007
se
uniu
ao
230
coletivo
fotográfico
(já
extinto)
Kameraphoto150,
junto
com
Martim
Ramos
e
Valter
Vinagre,
dentre
outros
fotógrafos.
Figuras
123
e
124
–
Imagens
dos
ensaios
The
Cure
for
Love
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
Morar
no
Brasil,
desde
o
início,
foi
uma
escolha
para
Burch.
“Antes
todos
falavam
muito
mal
do
Brasil,
depois
Portugal
entrou
numa
crise
e
mandavam-‐me
150
O
coletivo
Kameraphoto,
formado
por
nove
fotógrafos,
foi
fundado
em
2003
e
encerrou
em
2014.
“Entre
os
projectos
concretizados
destacam-‐se
Lusofonia,
450,
State
of
Affairs
e
Um
Diário
da
República,
um
dos
mais
importantes
projectos
do
colectivo,
que
se
centra
nas
mudanças
e
no
quotidiano
do
país
(...)”.
Disponível
em
https://www.publico.pt/2014/10/03/culturaipsilon/noticia/ponto-‐final-‐no-‐
colectivo-‐kameraphoto-‐1671692.
Jornal
Público
de
03
de
outubro
de
2014.
231
portfólios
para
mostrar
aqui”,
relata
o
fotógrafo151.
Sua
forma
de
trabalhar,
ou
sua
metodologia,
consiste
em
tratar
temas
específicos
e
não
os
catalogar
como
sendo
em
Brasil
ou
Portugal.
No
entanto,
e
apesar
disso,
os
trabalhos
realizados
no
Brasil
abraçaram
“temas”
que
envolvem
suas
relações
com
as
mulheres
brasileiras
e
a
compulsão
passional
de
um
grupo
de
mulheres
brasileiras,
deixando
claro
que
sua
temática
no
país
envolve
“a
mulher”.
Figuras
125
e
126
–
Imagens
dos
ensaios
The
Cure
for
Love
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
Figuras
127,
128,
129
e
130
–
Imagens
dos
ensaios
The
Cure
for
Love
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
Fonte:
Arquivo
cedido
pelo
fotógrafo
O
primeiro
trabalho
realizado
no
Brasil
foi
o
“Amor
cachorro”
(2008)
ou
“The
Cure
for
Love”.
Este
projeto
retratou
mulheres
que
fazem
parte
de
um
grupo
chamado
“Mulheres
que
Amam
Demais
Anónimas”
(MADA),
que
se
encontram
para
falar
de
154
Idem.
155
Idem.
233
suas
paixões
como
forma
de
desabafo,
pois
“amar
demais”
não
é
algo
que
possa
ser
curado.
No
início,
o
fotógrafo
apenas
conversou
com
elas
para
escutar
suas
histórias
e
escolheu,
conforme
esses
encontros,
treze
mulheres.
Ao
todo
foram
dois
meses
de
pesquisa
de
campo
com
entrevistas
e
quinze
dias
fotografando
com
várias
câmaras
diferentes.
Segundo
o
relato
do
fotógrafo,
o
processo
demandou
um
pouco
de
investimento
de
tempo
e
escuta
de
histórias:
“Umas
tinham
o
namorado
internado
numa
clínica
de
alcoólicos
e
eu
ia
com
ela
visitar
o
namorado.
Eu
passava
muito
tempo
com
elas.
Ia
para
a
casa
delas,
ouvia
o
que
elas
tinham
a
dizer...
e
só
depois
fotografei”156.
Grande
parte
das
mulheres
que
faziam
parte
do
MADA
são
mulheres
em
condições
económicas
desfavoráveis.
Mesmo
assim,
o
fotógrafo
não
quis
representá-‐
las
como
sofridas,
apesar
de
terem
uma
vida
bastante
difícil
e
de
sofrerem
com
a
grande
dependência
emocional.
Elas
moram
muito
longe
do
trabalho,
gastam
cerca
de
quatro
horas
para
chegar
ao
local
de
trabalho
e
ainda
são
mal
remuneradas,
revelando
desse
modo
uma
vida
de
“cão”,
segundo
Burch,
que
também
fotografou
o
“cão”,
o
animal,
no
ensaio
produzido.
A
questão
religiosa
também
é
muito
presente
na
vida
dessas
mulheres.
Conta
o
fotógrafo
que
“o
cachorro
(...)
vira
companheiro
delas
mesmo”
e
“todas
elas
têm
muita
fé”
de
que
o
futuro
será
melhor.
O
quotidiano
dessas
mulheres
foi
apresentado
como
mulheres
que
amam
demais,
mas
que
têm
uma
vida
comum
como
maioria
das
brasileiras
de
classe
baixa.
Algumas
mostram
partes
do
corpo,
como
as
costas
e
as
nádegas157,
na
imagem.
Para
Burch,
esse
processo
de
estabelecer
uma
segurança
para
que
as
imagens
acontecessem
foi
complicado,
principalmente
porque
teria
de
ser
explicado
para
as
mulheres
que
as
imagens
não
iam
ser
bonitas
como
em
um
ensaio
de
moda
ou
publicidade,
mas
que
o
resultado
seria
importante
para
que
o
fotógrafo
pudesse
expressar
o
que
na
verdade
queria:
a
“fragilidade
da
vida
humana”
158.
Com
a
utilização
de
câmaras
“arcaicas”,
Burch
se
preocupava
apenas
em
encontrar
cenas
mais
156
Entrevista
realizada
em16
de
março
de
2017,
Livraria
Cultura,
São
Paulo-‐SP
157
Essa
imagem
das
nádegas
de
uma
das
mulheres
fez
parte
da
exposição,
mas
o
fotógrafo
não
enviou
com
as
outras
imagens
do
ensaio.
158
Entrevista
realizada
em
16
de
março
de
2017,
Livraria
Cultura,
São
Paulo-‐SP.
234
espontâneas
e
menos
posadas.
Segundo
ele,
não
há
sensualidade
nas
imagens,
mas
uma
“brutalidade”,
uma
frontalidade
diante
do
assunto
que
chega
a
ser
agressiva.
Mas,
de
todo
modo,
apesar
de
não
ter
sido
esse
o
intuito
do
ensaio
–
o
de
expressar
a
sensualidade
da
mulher
brasileira
–
ele
acredita
que
“a
mulher
brasileira
é
muito
mais
sensual
que
a
mulher
portuguesa”.
Figuras
131,
132,
133
e
134
–
Imagens
dos
ensaios
“The
Cure
for
Love”
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
Fonte:
Arquivo
cedido
pelo
fotógrafo
235
Figuras
135,
136,
137
e
138
–
Imagens
do
ensaio
The
Cure
for
Love
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
Fonte:
Arquivo
cedido
pelo
fotógrafo
Sabe-‐se entretanto que seu trabalho é artístico, ou seja, a sua fotografia “não é
236
uma
espécie
de
agitação,
moral
ou
social,
visando
incitar-‐nos
a
sentir
e
agir,
mas
antes
um
projeto
de
notação”
(Sontag,
2011,
p.145).
Essa
função
de
“comentário”
da
situação
das
mulheres
fotografadas,
faz
com
que
não
exista
uma
reflexão
sobre
suas
histórias,
mas
em
transformar
aquelas
histórias
em
uma
história
sua,
através
do
ponto
de
vista
do
fotógrafo,
ou
seja,
causa
um
afastamento,
um
olhar
de
fora
que
não
visa
contribuir
para
um
pensamento
aprofundado
de
suas
“realidades”.
Figura 139– Ensaio Não era amor, era um quarto na madrugada (2015)
Fonte:
Revista
Granta
nº6,
“Noite”,
Ed.
Tinta
da
China
159
Entrevista
realizada
em
16
de
março
de
2017,
Livraria
Cultura,
São
Paulo-‐SP.
237
Figura
140
–
Ensaio
Não
era
amor,
era
um
quarto
na
madrugada
(2015)
Desse
modo,
o
fotógrafo
representa
a
autonomia
das
mulheres
de
uma
forma
muito
singular,
pois
escolhe
a
fragmentação
do
corpo
feminino,
como
imagens
de
fetiche,
ou
a
partir
de
um
voyeurismo-‐escopófilo,
nas
palavras
de
Laura
Mulvey
(1989).
Seu
testemunho
parece
reforçar
o
sentido
psicológico
que
submergem
de
suas
imagens,
isto
é,
a
busca
de
um
alívio
para
a
ameaça
de
castração.
Em
sua
entrevista
ele
fez
referência
ao
complexo
de
Édipo,
ao
confessar
que:
“quando
nós
somos
pequeninos,
o
homem
bebê
já
tem
uma
coisa
louca
com
a
mulher,
a
mãe”.
Essa
atração
por
representar
a
mulher
em
seus
trabalhos
parece
ter
sido
justificada,
em
seu
discurso,
através
dessa
ligação
“louca”
que
o
menino
tem
com
a
mãe.
A
teoria
psicanalítica
conecta
o
complexo
de
Édipo
com
o
complexo
de
castração.
É
nesse
sentido
que
Mulvey
(1989)
fala
da
escopofilia
em
Freud:
como
impulso
ou
necessidade
fundamental
originalmente
sexual.
Essa
fragmentação
do
corpo
da
mulher
como
fuga
do
medo
de
castração
do
menino,
leva
ao
prazer
voyeurístico
produzido
ao
olhar
para
o
outro
como
objeto,
como
fetiche.
Por
isso,
a
compartimentação
do
corpo
feminino
no
ensaio
de
Burch
parece
refletir
essa
sensação
que
sente
ao
chegar
no
Brasil
de
escapar
da
ansiedade
da
castração,
pois
substitui
a
figura
feminina
por
um
fetiche,
um
objeto
de
desejo,
que
o
leva
a
ter
um
prazer
voyeurístico.
Em
“Não
era
amor
(...)”,
com
foi
dito,
há
uma
única
fotografia
de
um
corpo
masculino
que
parece
ser
do
próprio
fotógrafo
(Fig.130),
tendo
ao
lado
uma
imagem
medieval
de
um
corpo
masculino
ferido.
Se,
como
ele
diz,
homens
e
mulheres
têm
o
mesmo
direito
de
ter
uma
liberdade
sexual,
o
seu
corpo,
no
entanto,
não
se
expõe
tanto
quanto
o
das
mulheres
em
seu
ensaio
e,
assim,
o
representa
como
um
238
“europeu”
que
olha
para
o
corpo
feminino
disponível.
O
corpo
que
surge
no
desenho
da
anatomia
medieval160
pode
ser
visto
como
uma
analogia
ao
corpo
ferido
do
fotógrafo
pelas
“cartas
violentas”
que
recebe
das
mulheres
que
abandona.
No
entanto,
não
considera
que
o
corpo
que
foi
ferido
foi
o
da
mulher
que,
ao
ser
abandonada,
usa
a
única
arma
que
tem
para
afetá-‐lo
e
fazê-‐lo
refletir:
uma
carta
que
exprime
o
seu
sentimento
de
rejeição.
Figura
141
–
Imagem
da
carta
“violenta”
161
publicada
no
ensaio
Não
era
amor,
era
um
quarto
na
madrugada
(2015)
160
Esta
imagem
da
anatomia
medieval
“O
homem
ferido”
(1519)
servia
para
mostrar
os
possíveis
ferimentos
que
o
corpo
poderia
sofrer
durante
batalhas
e
acidentes
para
que
pudesse
sobreviver.
São
mostrados
alguns
ferimentos
com
espadas
e
objetos
pontudos
no
corpo
e
como
proceder
a
cura.
161
Texto:
“gente
do
seu
nível
tem
que
ser
tratada
assim
ou
acha
que
pode
fazer
o
que
faz
com
os
outros
sem
pensar
na
responsabilidade
dos
seus
atos?
Vá
procurar
outra
otária,
porque
dessa
vez
eu
aprendi,
os
meus
sentimentos
por
vc
estão
aí
em
suas
mãos,
não
lhe
tratei
mal,
mas
passar
o
que
estou
passando
enquanto
vc
saltita
por
aí
deve
ser
muito
agradável
e
confortável,
tchau
pra
VOCÊ”.
239
que
colaboram
com
antigas
narrativas
ficcionais162
que
relatavam
a
cedência
erótica
do
europeu
à
sensualidade
da
mulher
dos
trópicos
(Martins,
2010),
afinal,
como
diz
a
famosa
música
de
Chico
Buarque,
“não
existe
pecado
ao
Sul
do
Equador”163.
V.7.
Catarina
Botelho:
Espaços
de
exclusão
social
A
fotógrafa
Catarina
Botelho
(1981)
nasceu
em
Lisboa
e
agora
vive
e
trabalha
entre
Lisboa
e
Barcelona.
Em
sua
vida
artística
já
foram
12
exposições
individuais
e
13
exposições
coletivas.
Também
recebeu
o
prémio
BES
Revelação
(2017),
foi
nomeada
ao
Prémio
EDP
Novos
Artistas
(2011),
participou
de
residências
artísticas
em
Budapeste
(Budapest
Galery,
2010),
em
Cabo
Verde
(Galeria
Ponta
d’Praia,
São
Vicente),
e
em
Madri
(Fundación
Botín,
2014).
Tem
suas
fotografias
como
parte
das
coleções
BES
–
Banco
Espírito
Santo,
Coleção
Américo
Santos,
Coleção
EDP,
Fundacion
Foto
Colectania,
Fundação
PLMJ
e
na
Colecção
Governo
Regional
dos
Açores.
A
sua
formação
é
em
pintura,
pela
Faculdade
de
Belas-‐Artes
da
Universidade
de
Lisboa,
mas
sempre
trabalhou
com
fotografia,
tendo
feito
curso
avançado
da
Maumaus
(2005).
Fez
o
curso
avançado
de
Fotografia
na
AR.CO
(2007),
curso
de
fotografia
no
Programa
de
Criatividade
e
Criação
Artística
Fundação
Gulbenkian
(2007)
e
participou
do
Programa
de
Estudios
Independientes
no
Museu
d’Art
Contemporani
de
Barcelona
(2017/2018).
A
fotógrafa
tinha
apenas
14
anos
quando
esteve
pela
primeira
vez
no
Brasil,
numa
viagem
de
férias.
A
sua
chegada
em
São
Paulo
foi
chocante,
como
ela
lembra,
principalmente
porque
naquela
grande
cidade
mostrou-‐se
uma
desigualdade
social
162
As
“ficções
de
fundação”
(Sommer,
2004)
da
identidade
brasileira
que
serviram
para
afirmar
as
“narrativas
de
miscigenação”
em
grandes
romances
nacionais,
como
Iracema
(José
de
Alencar,
1865)
e
O
Guarani
(Aluízio
de
Azevedo,
1857),
ao
retratar
uma
alteridade
assimétrica
racial
que
está
na
origem
da
ideia
de
mestiçagem
do
povo
brasileiro,
através
de
romances
em
que
mulheres
indígenas
tinham
relacionamentos
com
brancos
e
abdicavam
de
seus
interesses
para
seguir
o
a
cultura
do
europeu.
163
Música
e
letra
de
Chico
Buarque
de
Holanda:
“Não
existe
pecado
do
lado
de
baixo
do
equador/Vamos
fazer
um
pecado
rasgado,
suado,
a
todo
vapor/Me
deixa
ser
teu
escracho,
capacho,
teu
cacho/Um
riacho
de
amor/Quando
é
lição
de
esculacho,
olha
aí,
sai
de
baixo/Que
eu
sou
professor
//Deixa
a
tristeza
pra
lá,
vem
comer,
me
jantar/Sarapatel,
caruru,
tucupi,
tacacá/Vê
se
me
usa,
me
abusa,
lambuza/Que
a
tua
cafuza/Não
pode
esperar/Deixa
a
tristeza
pra
lá,
vem
comer,
me
jantar/Sarapatel,
caruru,
tucupi,
tacacá/Vê
se
me
esgota,
me
bota
na
mesa/Que
a
tua
holandesa/Não
pode
esperar”
240
gritante,
diferente
do
que
conhecia
em
Portugal164.
Isso,
porque
Botelho
esperava
encontrar,
de
certo
modo,
aquela
realidade
que
era
apresentada
nas
telenovelas,
que
representava
uma
sociedade
brasileira
composta
basicamente
por
uma
elite
branca,
mas
“não
esperava
que
fosse
tão
minoritário
aquele
mundo
de
brancos
ricos”.165
O
fato
do
Brasil
ter
uma
grande
desigualdade
social
que
termina
por
ser
também
racial,
foi
fruto
de
"um
projeto
português
de
ocupação
e
exploração
territorial”
que,
por
causa
do
tamanho
diminuto
de
Portugal,
“procuraria,
de
todo
modo,
implantar
a
exploração
agrária
voltada
para
o
mercado
atlântico
–
o
que
se
faria,
como
se
fez,
com
base
no
trabalho
escravo,
quer
dos
índios,
quer,
preferencialmente,
dos
africanos"
(Vainfas,
1997,
pp.229-‐230).
Esse
fator
deve
sempre
ser
levado
em
conta
quando
se
reflete
sobre
as
desigualdades
sociais
e
económicas
do
Brasil,
que
determinou
um
lugar
inexpressivo
do
povo
negro
na
sociedade,
em
contraposição
ao
da
elite
branca
que
sempre
é
representada
nos
média
e
que
detém,
ainda,
os
meios
de
produção.
Utilizando
as
palavras
de
Boaventura
Sousa
Santos
(2018)166,
“o
colonialismo
não
acabou,
apenas
mudou
de
forma
e
de
roupagem”.
Por
isso,
apesar
do
colonialismo
histórico
ter
encerrado
no
Brasil,
ele
continua
como
forma
de
dominação,
ao
inserir
negros,
índios
e
mulheres
em
patamares
desprivilegiados
em
relação
aos
brancos.
Diante
de
um
choque
em
relação
aquela
realidade
brasileira
encontrada,
Catarina
Botelho
chegou
à
conclusão
que
o
Brasil
é
complexo,
pois
não
exibe
uma
realidade
plana,
(...)
ou
seja,
é
um
país
com
muitas,
muitas
camadas.
Então,
eu
acho
que
eu
não
sei
o
que
é
o
Brasil.
Não
sabia
na
altura
e
continuo
sem
saber.
Eu
acho
que
é
essa
complexidade,
com
muitas
contradições
como
em
todos
os
lugares.
Ali
talvez
mais
à
vista,
mais
evidente.
Um
lugar
muito
vivo
em
comparação
com
a
Europa.
(...)
O
Brasil
é
uma
sociedade
jovem,
talvez
por
isso
também
jovem
em
todos
os
níveis,
no
ponto
de
vista
etário
e
no
ponto
de
vista
econômico
e
de
164
“Eu
quando
fui
a
primeira
vez
tinha
14
anos
e
foi
chocante
pra
mim.
Foi
chocante
porque
eu
percebi
muito
que
aquela
ficção
que
aparecia
nas
novelas
era
uma
coisa
completamente
elitista,
e
assim,
um
tanto
inexistente
a
nível
de
presença
social.
Aquela
imagem
não
existia
e
isso
foi
chocante
sim.”
165
Entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
realizada
no
Café
Tati
em
Lisboa,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
166
Disponível
em
https://www.publico.pt/2018/03/30/sociedade/opiniao/o-‐colonialismo-‐insidioso-‐
1808254
241
existência
em
comparação
com
a
Europa.167
167
Entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
realizada
no
Café
Tati
em
Lisboa,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
168
“Essa
relação
de
amizade,
conhecer
pessoas,
beber
um
copo,
aquilo
lá
é
muito
mais
fácil.
Depois
eu
acho
que
é
mais
difícil
fazer
amigos,
assim,
daqueles
amigos,
porque
as
coisas
parecem
mais
voláteis”.
Trecho
retirado
da
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
169
Entrevista
realizada
no
Café
Tati
em
Lisboa,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
170
Idem.
171
Idem.
242
Botelho
mencionou
a
existência
de
uma
concepção
conservadora
“em
volta
da
ideia
tradicional
de
família,
o
pai,
a
mãe,
os
filhos”
em
Portugal172,
o
que
levou
a
conflitos
com
a
imigração
feminina
do
Brasil
e
que
encontrou
respaldo
com
o
caso
das
“Mães
de
Bragança”
(2003),
quando
as
mulheres
expulsaram
as
brasileiras
que
trabalhavam
com
prostituição
em
Bragança.
Naquele
momento,
como
conta
a
fotógrafa,
“essa
relação
mais
livre
com
a
sexualidade
e
com
o
corpo
era
perturbador
aqui,
vem
de
uma
lógica
machista
que
a
mulher
é
mãe
e
se
não
é
mãe,
não
é
de
respeito”173.
Ela
acredita,
entretanto,
que
a
imigração
foi
ampliativa
no
sentido
de
promoção
de
uma
abertura
ao
outro
na
relação
social
que,
a
partir
daquele
momento,
passava
a
ser
flexível,
apesar
de
ainda
existir
a
xenofobia
em
Portugal,
embora
de
forma
menos
agressiva
que
em
outros
países,
conforme
Botelho.
São
Paulo,
em
suas
palavras,
é
uma
cidade
“dura”,
que
a
deixava
sempre
mais
atenta
(ou
mais
tensa)
em
relação
a
outros
lugares
quando
estava
trabalhando
com
sua
câmara.
Ela
conta
que
isso
acontecia
por
causa,
principalmente,
dos
relatos
sobre
a
violência
na
cidade
que
escutava
na
televisão
e
dos
mais
próximos,
os
quais
acabavam
por
afetar
a
permanência
em
lugares
públicos
por
causar-‐lhe
medo.
Entretanto,
a
fotógrafa
nunca
foi
assaltada
no
país,
mas
o
seu
receio
era
reflexo
do
que
via
nos
média.
Em
Lisboa,
ao
contrário,
ela
não
tem
e
nem
nunca
teve
receio
de
transitar
com
sua
câmara,
mas
ainda
tem
algum
cuidado
quando
está
com
o
seu
equipamento.
243
(...)
uma
não
tem
nada
com
Portugal,
tem
com
o
fato
de
que
vivemos
num
mundo
em
que
quem
dita
às
regras
do
mercado
das
artes
são
os
países
anglo-‐saxônicos
e
nesse
sentindo
todo
mundo
está
a
olhar
para
esses
países.
E
as
pessoas
que
vêm
desses
países
é
que
são
valorizadas
no
mercado
da
arte
e
no
sistema
capitalista.
Mas,
nesse
sentido,
essa
valorização
vem
daí.
A
desvalorização
dos
portugueses
vai
por
um
lado
por
não
pertencer
a
esses
países,
mas
até
aí
não
acontece
só
os
portugueses,
mas
tudo
que
não
pertence
a
esse
centro
ou
de
outros
alternativos,
mas
que
estão
se
formando,
o
pós-‐
colonial...se
vier
da
Angola,
se
calhar.
Por
outro
lado,
acho
que
há
um
preconceito
com
os
portugueses
que
tem
a
ver
com
a
migração
dos
anos
50,
que
o
português
é
aquela
coisa
meio
bronca,
meio
gordo
da
padaria,
mas
que
é
um
complexo
de
classe.
Portanto
acho
que
são
coisas
duplas,
não
é
uma
coisa
só.
Mas
sim,
tem
dificuldades
em
ascender174.
A
desvalorização
dos
portugueses
no
Brasil
poderia
também
estar
conectada
a
algum
sentimento
de
retaliação
por
causa
da
colonização
portuguesa
no
país,
mesmo
assim,
segundo
a
artista,
esse
fator
não
seria
tão
presente,
apesar
de
estar
nas
entrelinhas
da
relação
Brasil-‐Portugal,
pois
“a
questão
da
colonização
está
mais
discutida
que
a
das
pessoas
escravizadas”
175.
Por
isso,
a
questão
do
“preconceito”
em
relação
ao
português,
ao
seu
entender,
está
mais
relacionado
com
a
pequenina
dimensão
do
país
em
relação
aos
demais
países
europeus
que
fazem
parte
do
mercado
das
artes.
“Até
porque
o
Brasil
se
relaciona
muito
com
os
Estados
Unidos,
portanto
[Portugal]
vem
de
outro
eixo.
Não
(...)
é
um
grande
preconceito,
só
que
há”,
completa
Botelho
176.
Figuras 142 e 143 – Imagens do ensaio Memória descritiva, realizado em São Paulo
177
Fonte:
Site
da
artista
174
Entrevista
realizada
no
Café
Tati
em
Lisboa,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
175
Idem.
176
Entrevista
realizada
no
Café
Tati
em
Lisboa,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
177
Disponível
em
http://catarina-‐botelho.blogspot.pt/p/memria-‐descritiva.html
244
A
artista
produziu
no
Brasil
o
ensaio
Memória
descritiva
em
2013
com
auxílio
da
residência
artística
da
Fundação
Armando
Álvares
Penteado
(FAAP)
em
São
Paulo,
como
foi
o
caso
dos
fotógrafos
entrevistados
Martim
Ramos
e
André
Cepeda.
Entretanto,
sua
residência
não
teve
conexão
com
a
Fundação
Calouste
Gulbenkian
ou
qualquer
outra
organização
em
Portugal,
foi
realizada
integralmente
através
da
instituição
filantrópica
brasileira.
O
projeto
foi
pensado
para
ser
realizado
no
Brasil
e
especificamente
em
São
Paulo,
cidade
que
ela
conhecia
melhor.
Figuras 144 e 145 – Imagens do ensaio Memória descritiva, realizado em São Paulo
181
Fonte:
Site
da
artista
178
Entrevista
realizada
no
Café
Tati
em
Lisboa,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
179
Idem.
180
Entrevista
realizada
no
Café
Tati
em
Lisboa,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
181
Disponível
em
http://catarina-‐botelho.blogspot.pt/p/memria-‐descritiva.html
245
A
escolha
por
realizar
esse
projeto
em
São
Paulo
aconteceu,
principalmente,
pela
existência
desses
edifícios
modernistas
com
grandes
espaços
vazios
que
a
artista
tinha
interesse
em
trabalhar
e
que
já
tinha
visto
anteriormente,
em
outras
visitas
à
cidade.
Foi,
portanto,
um
projeto
pensado
justamente
para
essas
construções
modernistas
que
são
singulares,
pois
não
se
assemelham
a
nenhuma
outra
em
outro
lugar.
A
sua
escolha
por
não
fotografar
pessoas
no
Brasil,
enquanto
muitos
fotógrafos
portugueses
e
europeus
se
concentram
na
produção
de
retratos
e
de
fotografia
de
paisagem
quando
estão
no
país,
parte
do
entendimento
pessoal
de
que
“as
pessoas
não
são
a
sua
imagem”182.
Por
outro
lado,
havia
um
interesse
com
esse
projeto
em
O
seu
projeto,
com
esse
sentido,
pretende
estabelecer
uma
reflexão
“que
não
partisse
ligado
ao
indivíduo”,
mas
que
fizesse
pensar
sobre
a
sociedade
na
qual
o
indivíduo
se
insere.
Para
ela,
“as
pessoas
são
demasiado
importantes
para
estarem
da
maneira
como
eu
concebo
a
fotografia”,
ou
seja,
a
sua
fotografia
está
muito
mais
voltada
aos
rastros
que
delineiam
a
relação
do
indivíduo
em
um
determinado
espaço
do
que
a
representação
de
um
indivíduo
singular
que
não
pode
ser
apreendido
em
sua
essência
através
de
uma
imagem
estática,
pois
a
sua
identidade
foge
a
qualquer
tentativa
de
representação.
Segundo
a
artista,
o
grande
problema
da
representação
do
outro
Para
Maria
João
Branco
(2015)184,
o
que
caracteriza
a
obra
de
Catarina
Botelho
é
a
procura
por
uma
reflexão
sobre
a
“alienação
da
arte”,
com
referência
Bernstein
em
The
Fate
of
Art.
Aesthetic
Alienation
From
Kant
to
Derrida
and
Adorno
(1992).
182
Entrevista
realizada
no
Café
Tati
em
Lisboa,
no
dia
21
de
maio
de
2018.
183
Idem.
184
Disponível
em
http://catarina-‐botelho.blogspot.pt/p/memria-‐descritiva.html
246
Historicamente,
houve
a
separação,
a
partir
da
modernidade,
entre
arte
e
a
verdade,
e
também
isolou
a
arte
da
vida
comum,
ou
seja,
da
vida
em
comunidade.
“Isto
significa
que
a
modernidade
inaugurou
um
momento
inédito,
no
qual,
para
o
dizer
nos
termos
clássicos,
o
belo
se
separou
do
bom
e
do
verdadeiro”185.
Essa
separação
da
arte
da
vida
comum
pode
ser
experienciada
de
dois
modos
diferentes:
como
experiência
de
perda
da
verdade
da
arte
ou
do
seu
luto;
ou
como
descoberta
da
autonomia
da
arte
e,
por
isso,
vale
refletir
criticamente
a
respeito
de
sua
existência.
Para
Branco
(2015),
portanto,
os
trabalhos
de
Catarina
Botelho
seguem
a
essa
última
experiência,
que
remete
a
uma
reflexão
profunda
e
crítica
sobre
a
arte
vendo-‐a
como
autônoma,
pois
age
conforme
sua
instabilidade,
partindo
de
“um
interesse
pela
experiência
partilhada
de
espaços
concretos,
no
qual
a
atenção
às
formas
arquitectónicas
se
assumia
como
uma
reflexão
sobre
o
limiar
entre
exterior
e
interior,
ou
público
e
privado(...)”186.
Essa
característica
acompanha
a
maioria
de
seus
trabalhos,
representando
marcas
do
humano
através
de
objetos
que
compartilham
espaços
quase
sempre
vazios.
Figuras 146 e 147 – Imagens do ensaio Memória descritiva, realizado em São Paulo
187
Fonte:
Site
da
artista
Apesar
da
inexistência
de
pessoas
em
suas
imagens,
os
objetos
só
podem
ser
manuseados
por
pessoas.
A
reflexão
parte,
por
isso,
conforme
anuncia
Maria
João
Branco
(2015),
“da
experiência
do
grande
ausente
destas
fotografias:
o
corpo
humano”188.
O
corpo
passa
a
dar
uma
escala
humana
a
partir
dos
objetos
que
se
colocam
naqueles
espaços
imensos
e
estéreis,
devolvendo-‐lhes
o
que
se
espera
daqueles
espaços:
tornar-‐se
um
ambiente
em
que
o
humano
possa
transitar.
Dessa
185
Idem.
186
Idem.
187
http://catarina-‐botelho.blogspot.pt.
188
Idem.
247
forma,
a
imagem
que
a
artista
produz
provoca
um
distanciamento
do
espectador
para
incitar
a
reflexão
daqueles
espaços.
As
imagens,
em
grande
escala,
fazem
com
que
o
indivíduo
que
olha
para
aqueles
objetos
possa
se
reconhecer
ou
estranhar-‐se
diante
daquela
situação.
Para
Susan
Sontag
(2004),
do
mesmo
modo
que
“há
uma
arte
que
envolve,
que
cria
empatia,
há
também
“uma
arte
que
cria
distanciamento
e
provoca
reflexão”
(p.203).
Ao
optar
pela
reflexão,
a
artista
convida
o
espectador
a
contrabalançar
o
impulso
do
envolvimento
emotivo
com
“elementos
da
obra
que
favorecem
o
distanciamento,
o
desprendimento,
a
imparcialidade.
O
envolvimento
fica
sempre,
em
maior
ou
menor
grau,
adiado”
(Idem).
Os
objetos
comuns
que
Botelho
apresenta
parecem
invadir
o
espaço
do
museu
trazendo
quase
que
um
tratado
antropológico
do
Brasil
contemporâneo,
pois
ao
unirem-‐se
à
arquitetura,
a
artista
captura
um
dos
problemas
mais
pulsantes
do
país
que
se
torna
ainda
mais
evidente
nos
grandes
centros
urbanos:
a
exclusão
social
e
racial
do
país.
Frente
aos
objetos
de
limpeza
ela
nos
faz
parar
e
refletir
sobre
o
que
não
está
na
imagem,
mas
que
ainda
assim
faz
parte
dela.
Figura
148
–
Vista
de
instalação
de
Memória
descritiva
em
Appleton
Square,
Lisboa
(2015)
Por
diferir
de
uma
gratidão
fácil,
com
a
exibição
de
elementos
de
uma
atividade
exercida
por
uma
camada
excluída
da
sociedade
brasileira,
impõe
uma
reflexão
para
os
espaços
que
passam
a
servir
de
pano
de
fundo
para
o
retrato
do
indivíduo
invisível,
excluído,
que
trabalha,
vive,
mas
que
nunca
é
e
nem
nunca
será
visto
nas
telenovelas
brasileiras
como
realmente
são.
O
indivíduo
invisível,
que
representa
o
negro,
o
mestiço
ou
o
índio,
passa
despercebido
nas
novelas
e
nas
músicas
brasileiras.
No
entanto,
submergem
como
fantasmas
nas
imagens
de
Botelho,
para
espantar
para
longe
aquela
realidade
ficcional
das
telenovelas.
Figura
149
–
Vista
de
instalação
de
Memória
descritiva
em
Appleton
Square,
Lisboa
(2015)
São
esses
indivíduos
invisíveis
que,
por
causa
de
sua
cor,
passam
a
ser
também
referências
para
o
medo
iminente
que
é
anunciado
nos
jornais
locais.
Aquela
realidade,
por
não
ser
plana,
não
permite
compreender
se
o
que
vem
primeiro
é
o
medo
que
ecoa
nos
média
ou
a
violência
que
por
fim
marca
o
rosto
dos
excluídos
etnicamente
e
economicamente.
Ao
abrir
mão
do
retrato
das
pessoas
excluídas
para
tratar
dos
objetos
que
já
falam
por
si
de
exclusão,
a
fotógrafa
anuncia
que
há
uma
ética
em
seu
trabalho
que
refere-‐se
à
impossibilidade
de
representar
o
outro,
na
medida
em
que
“o
retrato
de
outra
pessoa
é
um
‘auto-‐retrato’
do
fotógrafo”
(Sontag,
249
1986,
p.138).
Por
isso,
ao
trabalhar
com
objetos
e
espaços
para
denunciar
a
exclusão,
a
artista
confirma
que
“na
medida
em
que
a
fotografia
é
(ou
deveria
ser)
sobre
o
mundo,
o
fotógrafo
conta
pouco,
mas
na
medida
em
que
é
o
instrumento
de
uma
subjetividade
questionadora
e
intrépida,
o
fotógrafo
é
tudo”
(Idem).
Quando
se
trata
da
relação
social
estabelecida
no
Brasil
pelos
fotógrafos,
todos
remetem
à
expressão
“choque
cultural”,
ou
seja,
o
que
encontram
naquele
país
não
coincidia
com
aquilo
que
sabiam,
viam
na
imprensa,
imaginavam,
ou
mesmo
não
coincidia
com
a
cultura
europeia
com
a
qual
estavam
acostumados.
A
diferença,
portanto,
foi
encontrada
na
percepção
dos
fotógrafos
diante
de
aspectos
da
sociedade
que
se
mostravam
explicitamente
como
resultado
do
colonialismo
histórico:
desigualdades
sociais,
racismo,
sexualidade
feminina,
violência.
Em
todas
elas
o
fator
“raça”
está
em
evidência.
Outros
fatores
como
religiosidade
exacerbada,
superficialidade
das
relações
sociais,
mulheres
políticas
e
desinteresse
pelo
artista
português
foram
também
citados
como
fatores
culturais
que
se
mostravam
diferentes
daquilo
que
os
artistas
estavam
esperando
encontrar.
Diante
da
incompatibilidade
entre
imagens
e
costumes
conhecidos,
nota-‐se
que
houve
uma
tentativa
de
comparação
entre
Brasil
e
Portugal
causado
pelo
desconforto
no
momento
do
encontro
com
o
país
e
seus
naturais.
250
O
problema
é
que
a
diferença
na
maioria
das
vezes
é
utilizada
de
forma
negativa.
Na
maioria
das
vezes,
tem
relação
com
a
raça,
que
acaba
por
coincidir
no
Brasil
com
a
pobreza.
Apesar
de
grande
parte
da
população
ser
pobre
e
negra,
ainda
existem
muitos
casos
de
racismo
no
país.
Almeida
(2007)
comenta
que
quando
esteve
no
Brasil,
a
“desigualdade
estatutária
(livres/escravos)
correspondia
a
diferença
“racial”
(brancos/negros)”,
ou
seja,
na
situação
social
do
Brasil
as
“linhas
de
clivagem
são
ao
mesmo
tempo
linhas
de
diferença
e
de
desigualdade”
(p.90).
Ainda
assim,
mesmo
que
a
construção
de
raça
e
o
processo
de
divisão
de
trabalho
ainda
se
entrelacem,
“eles
encontram-‐se
com
linhas
de
clivagem
locais
e
regionais,
com
idiomas
étnicos
para
a
reconstituição
de
identificações
politicamente
ativas,
bem
como
com
paisagens
globais
nas
quais
os
significados
diaspóricos
estão
disponíveis”
(Idem,
p.90).
No
que
tange
o
gênero,
mulheres
foram
vistas
pelos
fotógrafos
Jordi
Burch
e
Valter
Vinagre
como
“politizadas
até
a
medula”
(Vinagre)
e
lutando
por
seus
direitos
no
dia
da
mulher
ao
invés
de
receber
rosas
(Burch),
por
exemplo.
Esse
encontro
com
uma
mulher
politizada
se
mostrou
como
um
“choque
cultural”,
diante
desse
desconhecimento
de
uma
conscientização
contemporânea
com
as
diferenças
raciais
e
de
género
pelos
fotógrafos
citados.
Bhabha,
em
O
lugar
da
Cultura
(1998)
defende
a
hibridização
da
cultura
como
forma
de
encerrar
o
binarismo
presente
na
cultura
Ocidental.
Para
isso
ele
propõe
uma
“negociação”,
ou
seja,
uma
articulação
de
princípios
contraditórios
e
não
uma
superação,
como
sugere
a
negação
dialética
hegeliana.
Esse
espaço
intervalar,
de
negociação,
convoca
o
hibridismo,
pois
“o
momento
híbrido
tem
um
valor
transformacional
de
mudança
que
reside
na
rearticulação,
ou
tradução,
de
elementos
que
não
são
nem
o
Um
(a
classe
trabalhadora
como
unidade)
nem
o
Outro
(as
políticas
de
gênero),
mas
algo
mais,
que
contesta
os
termos
e
territórios
de
ambos”
(p.55).
No
caso
do
Brasil,
a
questão
da
pobreza
acaba
por
também
se
conectar
à
“raça”
devido
a
história
colonial,
como
também
à
questão
de
género,
que
insere
uma
nova
dobra
de
sentido
àqueles
dois
fatores
de
exclusão
social,
pobreza
e
“raça”.
252
Essa
diferença
abissal
entre
classes
sociais,
que
estiveram
cobertas
pelo
véu
do
discurso
lusotropicalista,
foi
assunto
tratado
nos
trabalhos
de
Catarina
Botelho
e
Martim
Ramos.
Enquanto
Botelho,
espantada
com
as
grandes
desigualdades
sociais
vistas
nas
ruas
de
São
Paulo
procurou
não
representar
as
pessoas,
mas
as
próprias
diferenças,
por
meio
dos
objetos
no
interior
de
uma
arquitetura
moderna
e
opulenta;
Ramos
preferiu
se
inspirar
nos
objetos
de
Walker
Evans
em
Let
us
now
praise
famous,
que
à
época
de
sua
produção,
em
1941,
refletia
“o
gosto
tradicional
da
fotografia
documental
pelos
pobres
e
pelos
desfavorecidos,
pelos
cidadãos
esquecidos
da
nação”
(Sontag,
1986,
pp.62-‐63),
ou
seja,
Ramos
procurou
exibir
sua
atração
por
aquelas
famílias
que
foram
“esquecidos”
pelo
governo
brasileiro
e
que
tinham
nada
para
oferecer,
a
não
ser
sua
imagem.
De
todo
modo,
ambos
os
trabalhos
dos
fotógrafos
portugueses,
Ramos
e
Botelho,
foram
realizados
com
base
no
espanto
ou
no
“choque
cultural”
experienciado
diante
do
encontro
com
a
diferença
abissal
que
separa
os
pobres
dos
ricos
na
cidade
de
São
Paulo.
Othon,
mostra
os
objetos
como
“kit
de
sobrevivência”,
ou
seja,
sem
nenhuma
reflexão
para
ser
mais
uma
documentação
de
um
modo
“pitoresco”
de
viver;
Memória
descritiva,
por
outro
lado,
aposta
mais
em
uma
reflexão
que
é
requerida
através
do
jogo
entre
arquitetura
e
objetos
de
limpeza
que,
no
interior
de
espaços
privilegiados,
sugere
uma
eugenia,
reflexo
da
exclusão
da
população
pobre
e
negra
que
surge
apenas
como
aqueles
que
são
responsáveis
pela
limpeza.
253
O
aspecto
da
“cordialidade”
como
característica
identitária
do
brasileiro
parece
se
conectar
ainda
ao
modo
de
sociabilização
visto
no
Brasil
pelos
portugueses
entrevistados.
Vários
fotógrafos
traduziram
a
“cordialidade”
como
uma
facilidade
no
contato
social
e
um
modo
mais
“afetivo”
de
lidar
com
o
outro.
Esse
aspecto
foi
apontado
nos
relatos
de
Jordi
Burch,
Martim
Ramos
e
de
Catarina
Botelho.
Burch,
em
seu
relato,
diz
que
gosta
de
ser
tratado
com
uma
aproximação,
de
receber
um
“bom
dia”
na
padaria
ou
poder
conversar
livremente
com
uma
mulher
ou
um
homem
enquanto
se
espera
um
trem.
Para
ele,
essa
forma
de
se
relacionar
foi
libertadora.
Martim
Ramos,
também
como
Burch,
fala
dessa
espontaneidade
das
pessoas
desconhecidas
que
encontrou,
principalmente
no
setor
de
serviços,
e
diz
que
quando
escutava
alguma
anedota
sobre
o
português,
a
sentia
como
um
mote
para
aproximação.
Catarina
Botelho,
por
outro
lado,
falou,
de
forma
generalizada,
que
essa
facilidade
em
socializar
no
Brasil
demonstrou
uma
fugacidade
dos
encontros,
oposta
a
um
sentimento
de
amizade
profunda
e
duradoura
que
ela
mantém
em
Portugal.
254
exibe
de
forma
sensual
e
como
parte
de
uma
paisagem
exótica,
um
corpo
disponível
ao
estrangeiro
que
chega
naquelas
terras.
255
fotografia
na
Europa
orienta-‐se
largamente
pelas
noções
do
pitoresco
(o
pobre,
o
estranho,
o
anacrónico)”
(Sontag,
1986,
p.64)
e
isso
pode
ser
confirmado
em
algumas
imagens
dos
fotógrafos
analisados.
Nota-‐se
que
a
pobreza
parece
ser
um
tema
geral,
não
estando
presente
apenas
no
trabalho
de
Duarte
Belo.
Apesar
de
ser
contra
os
estereótipos
e
afirmar
não
ser
racista
(mas
sim
de
«Direita
clássica»),
Miguel
Valle
de
Figueiredo
buscou
representar
o
Brasil
através
da
mulher
de
biquíni,
do
homem
negro
jogando
futebol
e
de
imagens
que
mostram
muitas
praias
emblemáticas,
como
as
do
Rio
de
Janeiro
com
vista
para
o
Corcovado.
Essa
união
da
fotografia
e
o
turismo
expressa
um
lado
predatório
da
fotografia
(Sontag,
1986),
pois
o
fotógrafo-‐turista
passou
a
invadir
o
território
e
a
privacidade
dos
“nativos”
brasileiros
para
fotografar
seus
modos
e
costumes
a
partir
de
um
ponto
de
vista
eurocêntrico.
Figueiredo
buscava
propositadamente
seguir
o
que
procuram
no
mercado
turístico,
isto
é,
aquelas
imagens
que
conectam
estereótipos
às
geografias:
o
negro
com
sua
aptidão
ao
desporto,
a
mulher
brasileira
bonita
a
mostrar
o
corpo,
praias
com
suas
paisagens
exóticas.
André
Cepeda,
por
outro
lado,
procurou
exibir,
além
de
uma
cidade
estranha
no
seu
ponto
de
vista,
com
ângulos
tortos
e
caules
de
árvores
aprisionadas
no
concreto,
produziu
também
retratos
de
mulheres
com
o
corpo
nu
para
apresentar
os
vários
tons
de
pele,
ou
seja,
para
apresentar
uma
“tipologia”
de
mulheres
daquele
país
de
acordo
com
os
moldes
das
cartes-‐de-‐visite
do
século
XIX.
Essa
obsessão
de
Cepeda
pelas
diferenças
cromáticas
de
pele
e
a
utilização
de
modelos
de
nu
para
pintores
terminou
por
representar
retratos
performativos
que
parecem
mais
querer
aprisionar
aquela
realidade
pitoresca
que
tanto
chamou
atenção
do
fotógrafo.
256
o
seu
imaginário
do
Brasil:
sexual,
pobre,
displicente.
As
suas
imagens
refletem
mais
uma
atração
por
representar
a
pobreza
e
as
especificidades
do
modo
de
viver
naquelas
pequenas
cidades
do
que
exprimir
qualquer
tom
depreciativo.
Por
outro
lado,
Duarte
Belo
sempre
se
recusou
a
fotografar
pessoas
em
seus
trabalhos,
sendo
a
sua
especialidade
a
fotografia
de
paisagem.
Por
ter
ido,
inicialmente
para
realizar
um
ensaio
com
referência
ao
romance
autobiográfico
de
Ferreira
da
Castro,
tinha
um
imaginário
construído
por
uma
narrativa
do
início
do
século
XX,
o
que
lhe
impediu
de
mostrar
uma
Amazônia
contemporânea.
O
seu
ensaio
não
destruiu
o
imaginário
da
floresta
exótica
e
mística,
por
outro
lado,
construiu
um
outro
imaginário
na
floresta,
com
poucos
animais
(quando
surge
um
cachorro,
parece
não
ter
cabeça)
e
árvores
que
são
esculturas
e
não
possuem
aquela
exuberância
das
cartas
de
Caminha.
Dessa
forma,
recriou
um
misticismo
particular
com
uma
floresta
que
sobrevive
aos
rastos
do
humano.
No
fim,
a
fotografia
que
deveria
ser
sobre
o
Brasil,
parece
mais
se
manifestar
por
autorretratos
e
paisagens
interiores
dos
fotógrafos
(Almeida,
1980),
pois
seus
olhares,
muitas
vezes,
ainda
são
orientados
pelo
imaginário
e
refletem
aquilo
que
eles
próprios
procuram
encontrar.
Quando
a
imagem
não
proporciona
um
momento
reflexivo,
pode
se
tornar
um
fragmento
que
“vai
à
deriva
num
passado
difuso
e
abstrato,
aberto
a
qualquer
leitura”
(Sontag,
1986,
p.71).
Por
estar
aberta
à
qualquer
leitura,
podem
perpetuar
estereótipos
que
são
desnecessários
em
uma
sociedade
pós-‐
257
colonial,
na
medida
que
ainda
serve
como
demarcadora
de
diferença.
Os
fotógrafos
entrevistados
também
acreditam
não
terem
fotografado
estereótipos
em
suas
imagens,
mas
admitem
que
isso
pode
ter
acontecido
de
forma
inconsciente,
pois,
como
disse
Valter
Vinagre,
“não
estamos
imunes”.
Notou-‐se
que
Duarte
Belo
criou
sua
própria
história
sobre
a
Amazônia
carregada
de
misticismos
para
eliminar
aquela
estranheza
que
sentiu
quando
chegou
lá
e
não
encontrou
o
reflexo
da
narrativa
de
Ferreira
de
Castro.
Dessa
forma,
utilizou-‐
se
da
imaginação
para
realizar
suas
imagens,
ou
seja,
da
sua
capacidade
de
abstração
para
transformar
aquele
livro
do
início
do
século
XX
em
fotografias.
Valter
Vinagre,
por
outro
lado,
decidiu
mostrar
o
Brasil
como
um
lugar
sofrido,
pobre
e
sexual
com
o
Nordeste
que
conheceu:
“Eu
digo
isso
de
um
ponto
de
vista,
como
diz
o
Caetano,
que
a
música
brasileira
não
existe
sem
o
Nordeste”189.
Mas
Caetano
Veloso
é
nordestino,
ou
seja,
é
parcial
em
sua
opinião.
Dito
isto,
compreende-‐se
que
“a
fotografia
pode
ser
verosímil,
mas
não
verdadeira”
(Fontcuberta,
2005)190,
afinal,
é
“o
artista
que
traduz
as
suas
imagens
interiores
em
obras
dotadas
de
significado
numa
sociedade
de
homens”
(Machado,
1984,
p.
10).
O
problema
de
uma
ética
das
imagens,
conforme
disse
Rancière,
se
concentra
no
exercício
de
“saber
como
é
posto
e
qual
espécie
de
senso
comum
é
tecido
pela
189
Entrevista
com
Valter
Vinagre,
concedida
a
Lorena
Travassos
em
22
de
setembro
de
2016
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
Lisboa
190
Entrevista
disponível
em
http://www.elcultural.com/revista/arte/Joan-‐Fontcuberta-‐Antes-‐la-‐
fotografia-‐era-‐escritura-‐Hoy-‐es-‐lenguaje/37349
258
construção
desta
ou
daquela
imagem;
saber
que
espécie
de
ser
humano
a
imagem
nos
mostra
e
a
que
espécie
de
ser
humano
ela
é
destinada,
que
espécie
de
olhar
e
de
consideração
é
criada
por
esta
operação”
(2010,
p.100).
Nesse
sentido,
olha-‐se
para
a
aparência
do
ser
que
está
na
imagem
e,
assim,
identifica-‐se
quais
as
implicações
que
essa
aparência
invoca
naqueles
que
visualizam
a
imagem.
Quando
apresenta-‐se
imagens
do
brasileiro,
torna-‐se
importante
pensar
qual
ideia
está
sendo
emitida
na
imagem,
mesmo
que
intencionalmente,
pois
não
se
pode
esconder
que
houve
uma
relação
colonial
com
Portugal,
país
originário
dos
fotógrafos
entrevistados
e
lugar
onde
o
fotógrafo
tem
maior
alcance
com
suas
imagens.
Por
isso,
a
ética
faz
parte
do
processo
do
fotógrafo,
quer
queira
ou
quer
não,
porque
a
imagem
está
aberta
a
qualquer
leitura
após
ser
publicada
e
solicita
uma
responsabilidade,
uma
ética,
diante
do
Outro
que
foi
fotografado.
Jordi
Burch,
Martim
Ramos
e,
mais
ainda,
André
Cepeda,
não
procuram
refletir
sobre
essa
conexão
possível
entre
suas
imagens
e
o
senso
comum/estereótipos,
por
isso
não
ponderaram
sobre
“que
espécie
de
olhar
e
de
consideração
é
criada
por
esta
operação”
(Rancière,
2010,
p.100),
dispensando
uma
ética.
Por
outro
lado,
Valle
de
Figueiredo
utiliza-‐se
de
estereótipos
para
produção
de
seus
trabalhos
de
forma
consciente.
Duarte
Belo,
entretanto,
teve
como
contexto
uma
Amazônia
do
passado
que
construiu,
junto
com
o
seu
imaginário,
uma
outra
floresta.
Que
espécie
de
senso
comum
é
tecido
pela
construção
dessas
imagens?
O
que
se
vê
nessas
imagens
são
elementos
que
mostram
pobreza,
sexualidade
feminina
e
lugares
pitorescos.
Essas
imagens
desconstroem
o
imaginário
colonial?
Acredito
que
não.
191
Ideia
central
no
pensamento
político
de
Rancière.
259
na
unidade
daquilo
que
é
dado
e
na
evidência
do
visível
para
desenhar
uma
nova
topografia
do
possível”
(Rancière,
2004,
p.55).
As
cenas
de
dissenso,
nesses
casos,
são
representadas
pelos
objetos
e
rastos
dos
rostos
dos
excluídos
da
sociedade,
causando
uma
ruptura
naquilo
que
seria
evidente
em
espaços
de
poder,
ao
retirar
a
visibilidade
dos
corpos
dos
lugares
assinalados
para
representar
a
invisibilidade
social.
Esse
rosto,
entretanto,
não
precisa
ser
marcado
por
um
corpo
presente,
pois
sua
presença
pode
ser
enunciada
a
partir
das
marcas
deixadas
por
um
corpo.
260
relacional
e,
por
isso
mesmo,
esse
rosto
pode
ser
visualizado
tanto
em
paisagens
como
em
objetos.
Cada
rosto
possui
um
infinito
que
é
impossível
de
apreender
na
imagem.
Essa
impossibilidade
refere-‐se
à
compreensão
de
que
qualquer
rosto
está
para
além
de
sua
representação,
ao
contrário
do
que
se
acreditava
na
Modernidade,
que
limitava
a
identidade
a
um
grupo
de
signos
que
correspondiam
aos
traços
faciais.
261
Essa
ética,
que
resulta
em
uma
responsabilidade
no
encontro
com
o
Outro
ao
representá-‐lo,
pode
existir
mesmo
quando
não
se
está
a
representar
um
corpo
físico
no
momento
da
tomada
da
fotografia,
pois
aqueles
utensílios
foram
postos
ali
por
corpos
que
os
utilizam,
e
por
isso,
aqueles
corpos
também
estão
lá,
apesar
de
invisíveis
na
imagem.
A
fotógrafa,
desse
modo,
faz
com
que
o
sujeito
se
desprenda
das
representações
impostas,
seja
pelo
lugar,
pelo
registo
no
cartório
ou
pela
ficha
policial,
para
dizer
que
ao
ser
despertado
pelo
encontro
com
o
Outro,
numa
exposição
que
produz
inquietação,
torna-‐se
possível
apresentar
ao
mundo
uma
“fotografia
sensível”
que
se
mostra
através
do
olhar
acolhedor
da
alteridade
do
Outro.
262
CONCLUSÕES
264
A
performance
foi
traço
marcante
nas
imagens
da
mulher
brasileira.
A
brasileira
parece
ser
vista
como
um
“corpo”;
como
uma
carne
sensual
e
sexual
que
tem
a
nudez
naturalizada
e
que
pode
ser
observada
e
abusada
desde
o
colonialismo.
A
diferença
da
representação
do
corpo
feminino
na
arte
(Ewing,
1996;
Pultz
e
Mondenard,
1995;
Henning,
1996),
mostrou-‐nos
que
essa
nudez
feminina,
mesmo
quando
encarada
como
produto
de
estudo
etnográfico,
foi
muitas
vezes
utilizada
de
forma
perversa
através
de
uma
negociação
do
consentimento
das
mulheres
(muitas
vezes
eram
obrigadas
ou
mal
pagas)
e
a
intenção
voyeurística
do
fotógrafo.
Na
modernidade,
como
foi
visto,
dividiu-‐se
os
corpos
femininos
em
“mães
de
família”
e
“mulheres
de
sexualidade
fácil”.
Restou
às
mulheres
não-‐brancas,
não-‐europeias,
a
amoralidade
(por
não
serem
cristãs).
Aprisionadas
em
um
corpo
classificado
segundo
as
normas
europeias
no
século
XIX,
a
mulher
brasileira
se
viu
obrigada
a
mostrar
aquilo
que
o
fotógrafo
queria
ver,
seja
mostrando
partes
do
corpo
ou
interagindo
com
objetos
em
estúdios
que
tinham
ao
fundo
uma
tela
opaca
e
homogênea
para
destacar
ainda
mais
o
seu
corpo.
265
ou
ainda,
como
um
corpo
que
se
oferece
como
produto
cultural
original
do
Brasil,
através
das
danças
e
das
comidas
(Lisboa,
2010).
Tendo
em
vista
a
grande
quantidade
de
estudos
que
demonstram
a
persistência
de
estereótipos
conectados
à
imagem
do
brasileiro
e
da
brasileira,
foi
proposto
uma
reflexão
e
ampliação
da
forma
de
representar
o
Outro,
para
pensar
para
além
dos
estigmas
e
estereótipos
que
foram
atribuídos
a
ambos
os
sexos.
Dito
isto,
a
tese
defendida
nesta
pesquisa
é
a
de
que
a
fotografia,
que
por
muito
tempo
foi
pensada
como
ferramenta
de
regulação
e
vigilância,
pode
ser
vista,
na
contemporaneidade,
como
ferramenta
de
produção
de
imagens
a
partir
de
uma
subjetividade
ética.
O
que
significou
dizer
que
a
fotografia
deve
ser
vista
como
um
evento
que
parte
da
sensibilidade
do
sujeito
que
se
expõe
ao
Outro,
o
fotografado.
Trata-‐se
de
uma
“fotografia
sensível”
que
surge
como
responsabilidade
diante
daquele
que
é
a
alteridade,
exterior
ao
Eu,
e
justo
por
isso
imprescindível
para
a
constituição
da
subjetividade.
Esta
“fotografia
sensível”,
produto
final
desse
encontro/evento
entre
sujeitos
ativos,
mostra-‐se
como
forma
de
resistência
e
combate
à
reprodução
de
estereótipos
a
partir
do
acolhimento
total
da
estranheza
do
Outro.
Foi
empreendido
um
auscultar
que
se
assemelha
ao
do
arqueólogo,
ao
buscar
significados
nas
ruínas
e
fragmentos
que
se
mostram
na
superfície
da
imagem,
para
trazer
uma
realidade
inconsciente
à
superfície
e
compreender
como
se
constitui
a
imagem
do
brasileiro
na
contemporaneidade.
Para
compreender
a
subjetividade
como
produtora
de
imagens
com
uma
“fotografia
sensível”,
foram
entrevistados
os
sete
fotógrafos
que
foram
mais
acessíveis
e
que
muito
satisfatoriamente
se
abriram
para
as
questões
e
também
refletiram
sobre
suas
próprias
imagens
e
realidades.
Foram
interrogados
os
passados,
sentimentos,
representações
persistentes
e
discursos
proferidos
nos
media
antes
e
depois
do
período
de
estadia
dos
fotógrafos
no
Brasil.
266
brasileira.
Esses
aspectos
citados
foram
localizados
pelos
interlocutores
como
“choque
cultural”,
na
medida
que
contrariam
as
regras
e
costumes
de
Portugal.
Isto
indicou
também
que
há
uma
naturalização
desses
elementos
como
pertencentes
a
uma
identidade
do
brasileiro
e
da
brasileira,
reproduzindo
antigas
e
ultrapassadas
representações.
267
determinação
de
quem
seria
o
brasileiro
na
fotografia
criada,
Botelho
acolhe
a
alteridade
sem
impor
rótulos
ou
julgamentos,
ao
mesmo
tempo
que
exerce
uma
tarefa
política
ao
denunciar
a
condição
de
invisibilidade
de
uma
“minoria”
pobre
e
negra.
O
encontro
de
uma
fotografia
construída
através
de
uma
subjetividade
ética
apenas
no
trabalho
fotográfico
de
uma
mulher
nos
mostra,
claramente,
que
o
patriarcalismo,
herança
de
um
olhar
colonial,
ainda
precisa
ser
desconstruído
para
que
seja
possível
deixar
emergir
uma
sensibilidade,
um
olhar
acolhedor
que
compreende
a
diferença
do
Outro
não
como
algo
negativo,
mas
como
uma
exterioridade
essencial
que
ordena
que
o
Eu
execute
um
exercício
ético
e
político
na
produção
da
imagem
fotográfica.
E
isto
deve
ser
visto
como
urgente.
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284
Figura
1
–
“Cartão
de
arquivamento”
de
Bertillon,
1893
............................................................
69
Figura
2
–
A
imagem
da
histeria
na
Iconographie
photographique
de
La
Salpêtrière
(1876-‐80)
71
Figura
3
–
Retratos
compostos
feitos
com
a
combinação
de
pessoas
diferentes
com
a
técnica
de
Francis
Galton
(1822-‐
1911)
...................................................................................................
73
Figura
4
–
Honoré
Daumier.
Pose
de
um
homem
da
natureza
(acima)
e
pose
de
um
homem
civilizado
(abaixo),
em
Croquis
Parisiens,
1853
...........................................................................
75
Figura
5
–
Protestos
no
ano
de
1972
nos
Estados
Unidos
pelos
direitos
da
mulher.
.................
84
Figura
6
-‐
Cindy
Sherman,
Untitled
Film
Still
#11,
1977
.............................................................
85
Figura
7
-‐
Cindy
Sherman,
Untitled
#216,
1989
.........................................................................
86
Figura
8
-‐
Cindy
Sherman,
Sex
Pictures,
Untitled
#250,
1992.
....................................................
87
Figura
9
–
“Monstro
marinho”
sendo
morto
por
um
português
................................................
95
Figura
10
–
Foto
de
D.
Pedro
II
da
Cachoeira
do
Marmelo,
c.
1876
..........................................
101
Figura
11
–
Praia
de
Ipanema
e
morro
dois
irmãos,
c.
1900.
Fotografia
amadora
do
comerciante
português
José
Baptista
Barreira
Vianna
.............................................................
102
Figura
12
-‐
Roger
Fenton,
Bolton
Abbey,
fenêtre
ouest,
1854
..................................................
104
Figura
13
-‐
O
vale
da
sombra
da
morte,
Criméia,
Ucrânia
(1855)
de
Roger
Fenton
.................
104
Figura
14
-‐
Estrada
de
ferro
de
Nazareth,
em
Belém
do
Pará,
do
fotógrafo
português
Felipe
Augusto
Fidanza,
c.
1875
..........................................................................................................
106
Figuras
15
e
16
–
Cartes-‐de-‐visite
de
Christiano
Júnior
em
1865
com
escravos:
“Escravo
da
Nação
Africana
Olunan”
e
“Escravo
da
Nação
Africana
Mina”
.................................................
109
Figura
17
–
Carte-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
em
1865:
“Escrava
Vendedora
de
Frutas”
..................................................................................................................................................
111
Figuras
18
e
19
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
em
1865:
“Escravo
da
Nação
Africana
Cabinda”
e
“Escravo
da
Nação
Africana
Angola”
.......................................................
112
Figuras
20
e
21
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
mostrando
ofícios
exercidos
pelos
negros
escravos
e
libertos
no
centro
urbano,
c.1865
...............................................................
113
Figuras
22
e
23
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
mostrando
trajes
típicos
dos
africanos,
c.1865
.......................................................................................................................
114
Figuras
24
e
25
-‐
José
Ferreira
Guimarães.
“Retrato
da
baronesa
de
Loreto”
(c.1884)
e
“Retrato
do
visconde
de
Beaurepaire”
(1894)
........................................................................................
115
Figura
26
–
Frontispício
de
Illustração
Portugueza,
nº111
de
29
de
janeiro
de
1906
..............
121
285
Figuras
27
e
28
–
Páginas
de
“Atlântida:
mensário
artístico,
literário
e
social
para
Portugal
e
Brasil”,
nº17
de
15
de
março
de
1917;
nº6
de
15
de
abril
de
1916
.........................................
124
Figuras
29
e
30
–
Retratos
de
Augusto
Stahl
de
negras
de
“raça
pura”
no
Rio
de
Janeiro,
1865
..................................................................................................................................................
127
Figuras
34
e
35
–
Capa
da
revista
americana
Time
que
chama
Bragança
de
“Europe’s
New
Red
Light
District”
e
a
matéria
de
jornal
que
mostra
a
prisão
de
brasileiras
na
imprensa
portuguesa
..................................................................................................................................................
131
Figura
36
–
Capa
da
Revista
Focus,
edição
nº
565
....................................................................
132
Figura
37
–
Neon
produzido
pela
artista
plástica
brasileira
Santarosa
Barreto
em
sua
residência
artística
em
Paris,
2016
...........................................................................................
133
Figura
38
–
Atriz
Sônia
Braga
interpretando
Gabriela
em
1977
...............................................
134
Figura
39
–
Canibalismo
no
Brasil
descrito
por
Hans
Staden.
Gravura
de
Théodore
de
Bry,
1562
..................................................................................................................................................
143
Figura
40
-‐
Missa
campal
celebrada
em
ação
de
graças
pela
Abolição
da
Escravatura
no
Brasil,
1888.
São
Cristóvão,
Rio
de
Janeiro
..........................................................................................
155
Figura
41
-‐
Pato
Donald
e
Zé
Carioca
em
Olá,
Amigos
(1942)
..................................................
165
Figura
42
–
Cena
do
filme
Rio,
40
graus
(1955),
roteiro
e
direção
de
Nelson
Pereira
dos
Santos.
..................................................................................................................................................
172
Figuras
43
e
44-‐
Cildo
Meireles,
Inserções
em
circuitos
ideológicos,
1970
..............................
173
Figura
45
-‐
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
Bitupitá,
Brasil
(1997).
Foto
vencedora
do
1st
prize
Fuji
European
Press
Award
'97
de
Grande
Reportagem
..................................................................
179
Figuras
46
e
47
-‐
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
Mermaid
(2007);
A
Girl
from
Ipanema
(2008)
..
179
Figura
48
-‐
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
Pitinga,
Bahia
(2008)
..................................................
180
Figuras
49,
50,
51
e
52
-‐
Lunch
Time
(2008)
e
The
mission
(2008),
Trancoso,
Brazil
(2007)
e
Hotel
em
Bitupitá
(1997)
..........................................................................................................
183
Figuras
53
e
54
-‐
Secret
Place
(2007)
e
Patience
(2008),
fotografias
de
Parati,
RJ
...................
183
Figuras
55
e
56
-‐
Beach
Football
e
Sugar
Loaf
(2008),
no
Rio
de
Janeiro,
RJ
............................
184
Figura
57
-‐
Drifting
in
Salvador,
Brasil
(2008)
............................................................................
186
Figura
58
-‐
Back
to
basics
(fotógrafo
de
rua),
Brasil
(2008)
......................................................
186
Figuras
59
e
60
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
................
189
Figura
61
–
Imagem
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist.
Na
foto,
uma
árvore
tem
sua
base
quase
totalmente
coberta
pelo
concreto
da
calçada
..............................
190
Figuras
62
e
63
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
................
191
286
Figuras
64
e
65
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
................
193
Figuras
66
e
67
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
................
194
Figuras
68,
69,
70
e
71
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
.....
196
Figura
72
–
Olympia
(1862),
pintura
a
óleo
de
Manet
.............................................................
197
Figuras
75
e
76
–
Imagens
do
projeto
À
superfície
do
tempo
(2000)
........................................
203
Figuras
77
e
78
–
Projeto
À
superfície
do
tempo
(2000).
Fotos
no
Seringal
Paraíso
................
205
Figuras
79
e
80
–
Imagens
do
projeto
À
superfície
do
tempo
(2000)
........................................
207
Figuras
81
e
82
–
Imagens
do
livro
Sabor-‐Mamoré
(2013)
.......................................................
209
Figuras
83
e
84
–
Imagens
do
livro
Sabor-‐Marmoré
(2013)
......................................................
210
Figuras
85
e
86
–
Imagens
do
projeto
À
superfície
do
tempo
(2000)
........................................
211
Figuras
87
e
88
–
Imagens
do
ensaio
Othon
(2012).
A
primeira
é
de
Martim
Ramos,
a
segunda
de
Guillaume
Pazat
...................................................................................................................
215
Figuras
89,
90,
91
e
92
–
Imagens
do
ensaio
Othon
(2012)
......................................................
216
Figuras
93
e
94
–
Presença
masculina
no
ensaio
Othon
(2012)
................................................
217
Figuras
95,
96,
97
,
98,
99
e
100
–
Still
do
ensaio
audiovisual
Othon
(2012)
...........................
218
Figuras
101
e
102
–
Imagens
do
ensaio
Let
Us
Now
Praise
Famous
Men
(2012)
de
Walker
Evans
..................................................................................................................................................
220
Figuras
103
e
104
–
Imagens
do
ensaio
Othon
(2012)
..............................................................
221
Figuras
105
e
106
–
A
State
of
Affairs
(2009),
projeto
do
coletivo
Kameraphoto
....................
223
Figuras
107,
108,
109
e
110
–
Imagens
do
ensaio
realizado
no
interior
do
Ceará,
Brasil
.........
224
Figuras
111,
112
e
113
–
Imagens
do
hospital
em
Milagres,
Ceará,
Nordeste
do
Brasil
..........
225
Figura
114
–
Imagem
de
meninas
em
Osasco,
Sudeste
do
país
................................................
228
Figuras
115,
116,
117
e
118
–
Imagens
do
ensaio
realizado
no
Nordeste
brasileiro
................
228
Figuras
119,
120,
121
e
122
–
Imagens
realizadas
em
São
Paulo
e
no
Ceará
...........................
229
Figuras
123
e
124
–
Imagens
dos
ensaios
The
Cure
for
Love
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
............................................................................................................................
232
Figuras
125
e
126
–
Imagens
dos
ensaios
The
Cure
for
Love
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
............................................................................................................................
233
Figuras
127,
128,
129
e
130
–
Imagens
dos
ensaios
The
Cure
for
Love
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
.............................................................................................................
234
Figuras
131,
132,
133
e
134
–
Imagens
dos
ensaios
“The
Cure
for
Love”
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
.............................................................................................................
235
Figuras
135,
136,
137
e
138
–
Imagens
do
ensaio
The
Cure
for
Love
(Amor
cachorro,
2008),
realizado
em
São
Paulo
.............................................................................................................
236
287
Figura
140
–
Ensaio
Não
era
amor,
era
um
quarto
na
madrugada
(2015)
...............................
238
Figura
141
–
Imagem
da
carta
“violenta”
publicada
no
ensaio
Não
era
amor,
era
um
quarto
na
madrugada
(2015)
....................................................................................................................
239
Figuras
142
e
143
–
Imagens
do
ensaio
Memória
descritiva,
realizado
em
São
Paulo
.............
244
Figuras
144
e
145
–
Imagens
do
ensaio
Memória
descritiva,
realizado
em
São
Paulo
.............
245
Figuras
146
e
147
–
Imagens
do
ensaio
Memória
descritiva,
realizado
em
São
Paulo
.............
247
Figura
148
–
Vista
de
instalação
de
Memória
descritiva
em
Appleton
Square,
Lisboa
(2015)
.
248
Figura
149
–
Vista
de
instalação
de
Memória
descritiva
em
Appleton
Square,
Lisboa
(2015)
.
249
288
ANEXO
1:
Entrevista
com
Martim
Ramos
+
Realizada
em
09
de
janeiro
de
2017,
no
Fábulas
(Chiado),
Lisboa.
LT:
Quando
você
começou
a
fotografar?
Qual
o
estilo
e
o
tema
fotográfico
mais
presente
no
seu
trabalho?
MR:
Comecei
a
fotografar
com,
19-‐20
anos
e
tenho
33
agora,
portanto,
há
uns
13
anos.
Comecei
sem
grande
pretensão
e
acabei
gostando
e,
enfim,
acabei
investindo
mais
tempo,
mais
compromisso
e
as
coisas
foram
acontecendo
naturalmente,
não
sei...
Por
um
caminho
mais
jornalístico,
de
estagiário
em
jornais.
Depois
entrei
pra
um
coletivo,
o
Kamaraphoto,
e
estive
lá
de
2007
até
2013,
quando
acabou,
entretanto
continuei.
Tenho
dado
aulas,
nos
últimos
dez
anos
estive
numa
escola
a
dar
aulas,
estive
sempre
a
fotografar
minhas
coisas
também
e
agora
estou
em
Londres,
a
fazer
um
mestrado.
Tenho
fotografado...
feito
trabalhos
bastante
diferentes.
Uns
com
abordagem
mais
jornalística
ou
documentais,
mais
documentais
que
jornalísticas,
na
verdade,
mas
também
com
muitas
contrações
na
imprensa.
E
outros
trabalhos
de
pesquisas
mais
pessoais,
sempre
de
alguma
maneira
ligadas
ao
documental,
mas,
enfim...
a
experimentar
várias
coisas,
não
tenho
facilidade
em
definir
um
lugar
em
que
esteja...
tenho
andado
a
saltitar
de
um
lado
pra
outro
e
tem
sido
esse
meu
percurso.
L.T:
O
mestrado
é
também
um
projeto
fotográfico?
MR:
Sim,
o
mestrado
é
em
fotografia,
mas
o
ambiente
da
escola
é
extremamente
aberto
e
convidam
até
que
não
estejamos
presos
a
fotografia
e
nos
dão
condição
de
experimentar
tudo,
de
pintura,
escultura,
imagem
em
movimento,
tudo.
Enfim,
são
dois
anos
pra
experimentar
de
fato...
L.T:
É
um
curso
mais
prático?
MR:
Tem
os
dois
componentes,
sim...
tem
dissertação
também,
mas
tem
uma
dimensão
muito
prática
e
de
nos
darem
todas
as
condições
para
experimentar,
sobretudo
isso.
Pronto,
é
isso.
Eles
não
estão
em
cima
de
nós,
temos
as
datas
para
apresentar
coisas,
mas
temos
que
ser
nós
a
tomar
a
iniciativa...
L.T:
Quando
você
foi
ao
Brasil?
Você
sabia
algo
sobre
o
Brasil
antes
de
estar
lá?
MR:
Fui
ao
Brasil
em
2012,
se
não
me
engano,
e
foi
a
primeira
vez
que
fui
ao
Brasil.
Na
verdade
tinha
ido
já
pra
o
casamento
de
um
amigo
e,
para
pagar
a
viagem,
eu
e
uma
amiga
acabamos
por
ficar
um
mês
a
dar
workshops
em
São
Paulo
e
Curitiba
e
fomos
conhecendo,
sobretudo
São
Paulo.
E
foi
absolutamente
incrível,
eu
não
nunca
tinha
ido
lá,
então
não
tinha
expetativa
sobre
coisa
nenhuma.
L.T:
Mas
você
nunca
escutou
nada
sobre
o
Brasil
e
sobre
o
brasileiro
antes
de
ir?
289
MR:
A
ideia
que
tinha
era
a
ideia
de
quem
nunca
lá
tinha
ido.
Quer
dizer,
há
todo
um
universo
que
nós
conhecemos
em
relação
ao
Brasil,
sobretudo
da
música
do
que
qualquer
outra
coisa...
Novelas
não
acompanhava
muito.
Meu
contato
com
a
cultura
brasileiro
é
sobretudo
através
da
música.
L.T:
E
o
estereótipo?
Por
que
a
publicidade
reproduz
muito
estereótipos
do
Brasil...
MR:
O
estereótipo
que
nós
temos
do
Brasil
é
festa
e,
chegando
lá,
não
era
totalmente
falso.
Mas
há
muito
mais
coisa.
Esse
aspecto
festivo
no
brasileiro,
está
no
contexto
ideal,
tudo
faz
sentido.
Eu
lembro
perfeitamente
as
primeiras
impressões
que
tive
do
Brasil,
que
são
de
São
Paulo,
era
a
força
de
algumas
coisas,
de
algumas
imagens.
Por
exemplo,
as
árvores
são
muito
finas,
muito
altas
e
com
umas
copas
que
não
dá
pra
acreditar
como
é
que
aguentam
lá
em
cima
e
parecem
que
nasceram
durante
a
noite,
mesmo
no
meio
do
cimento,
aqueles
troncos
muito
finos
e
muito
altos
e
é
uma
imagem
de
força
extraordinária.
Olhamos
para
uma
árvore
cá
e
imaginamos
que
cresceu
há
séculos,
que
demorou
séculos
a
crescer,
que
foi
tudo
lento.
E
ali
parece
que
foi
da
noite
pro
dia.
A
força
com
que
as
coisas
surgem,
a
força
com
que
chove
e
a
energia
é
incrível.
Eu
fiquei
logo
completamente
apaixonado
pelo
Brasil.
E
fiquei
muito
com
a
sensação
de
...
(pausa).
Para
além
da
música,
outra
referência
que
tenho
é
a
da
literatura,
não
só
do
Brasil,
mas
da
américa
latina
toda,
que
fala
sobretudo
do
realismo
mágico,
de
Gabriel
Garcia
Márquez
e,
não
sei...
quando
chego
ao
Brasil,
fiquei
com
a
ideia
de
que
“mágico”
seria
só
na
Europa,
porque
lá
é
só
realismo.
Quer
dizer,
essa
parte
mágica
faz
parte
da
natureza
do
Brasil,
nada
é
improvável,
tudo
pode
acontecer.
E
isso
foi
minha
primeira
impressão.
Em
termos
de
fotografia,
mais
especificamente,
não
tinha
grandes
referências,
não
conhecia
praticamente
nada.
Então,
nesses
quase
dois
anos
que
passei
no
Brasil,
não
direto,
pois
sempre
estive
viajando
pra
Portugal,
fui
conhecendo
mais
coisa,
sobretudo
São
Paulo
e
Curitiba,
e
foi
bem
isso
que
falei.
Há
uma
energia
que
nem
sempre
tem
a
ver
com
essa
ideia
com
que
vemos
do
Brasil
em
festa...
L.T:
O
Brasil
é
gigante,
em
outras
regiões
tudo,
como
a
minha,
é
totalmente
diferente
do
que
você
conheceu
em
São
Paulo,
sejam
os
costumes
ou
a
forma
de
falar...
MR:
Isso
é
muito
claro...
Claro,
o
Brasil
é
gigante
e
há
sempre
a
sensação
de
não
haver
um
Brasil.
Há
sempre
a
sensação
de
não
haver
um
só
Brasil,
há
sempre
muitos
“brasis”
a
acontecer
ao
mesmo
tempo...
um
sítio
onde
eu
more
pode
ser
uma
coisa
incrível,
mas
a
violência
também...
Sobretudo,
quando
vinha
do
Brasil
e
conversava
com
meus
amigos,
meus
pais,
“o
que
acha
do
Brasil?”
Não
dá
pra
falar
do
Brasil,
são
camadas
e
camadas
de
coisas,
mas
por
isso
mesmo
é
um
sítio
incrível.
Mas
foi
uma
grande
experiência,
sobretudo
São
Paulo,
que
é
uma
cidade
feia,
principalmente
para
quem
foi
ao
Rio...
mas
tem
uma
energia
inacreditável.
Não
estou
falando
se
é
boa
ou
má,
mas
é
sempre
muito
intensa,
qualquer
coisa
que
está
sempre
prestes
a
acontecer.
E
não
tem
nada
a
ver
com
as
pressões
de
segurança
que
imensa
gente
fala,
não
sei...
uma
sensação
que
sempre
há
alguma
coisa
prestes
a
acontecer,
que
não
se
explica.
290
Mesmo
no
meio
do
nada.
Não
sei
se
tem
a
ver
com
esse
aspecto
da
natureza...
ao
andar
por
São
Paulo
e
os
prédios
se
tem
aquela
sensação...
Também
dá
pra
imaginar
que
aquilo
nasceu
da
noite
por
dia
e
se
a
natureza
quisesse
aquilo
acabava
do
dia
pra
noite
também.
É
sempre
tudo
no
limite
e
isso
é
uma
sensação
incrível.
Cá
parece
que
as
coisas
foram
sempre
assim,
dá
essa
sensação,
no
Brasil
não,
qualquer
coisa
pode
acontecer
a
qualquer
momento.
L.T:
Você
alguma
vez
foi
assaltado
ou
passou
por
algum
tipo
de
violência?
MR:
Não,
nunca
tive
nada
disso.
É
óbvio
que
é
um
país
que
tem
problema
de
violência,
mas,
maior
que
a
violência,
um
dos
problemas
do
Brasil
é
o
medo.
É
mais
medo
do
que
perigo,
não
é
verdade?
E
pronto,
aí
está
mais
um
dos
contrastes:
um
país
onde
se
vive
uma
certa
liberdade,
mas
há
um
medo
que...
basta
ver
os
condomínios,
os
carros
ou
como
muita
gente
não
anda
na
rua.
Eu
nunca
tive
problema
e
nunca
deixei
de
fazer
coisa
nenhuma,
andar
a
pé
à
noite,
por
exemplo.
Claro
que
é
uma
coisa
de
sorte
ou
azar...Claro,
não
é
um
mito,
as
coisas
existem.
Mas
uma
coisa
alimenta
a
outra
é
uma
espiral
de
violência.
Eu
tinha
uma
namorada
brasileira
na
altura
e
quando
ela
vinha
cá,
umas
das
coisas
que
ela
mais
gostava
de
fazer
era
passear
um
bocadinho
a
noite,
sozinha,
ter
essa
liberdade
de
ir
a
rua
como
quisesse.
L.T:
Mas
quando
você
chegou
lá
viu
algum
tipo
de
estereótipo
do
brasileiro
que
se
confirmou?
MR:
Vi
os
bons,
acho
eu.
A
questão
de
ver
o
brasileiro
como
uma
pessoa
mais
desinibida,
mais
aberta...
A
facilidade
com
que
se
tem
de
estar
em
uma
parada
de
auto
carro
e
começar
a
falar
com
a
pessoa
ao
lado...
coisas
boas.
Como
ir
ao
café
de
manhã,
chegar
e
dizer
“café,
se
faz
favor”
não
existe...
o
que
eu
vi
foi
que
ninguém
pede
nada
sem
falar
um
bocadinho
e
essas
coisas
fazem
tanta
diferença,
porque
a
gente
chega
no
fim
do
dia
e
trocou
palavras
com
20
pessoas.
Não
importa
se
vamos
lembrar
no
outro
dia,
mas
se
calhar
faz
um
bocadinho
de
diferença
esse
cuidado.
Em
São
Paulo
não
é
aquela
coisa
do
carioca,
mas
é
uma
medida
justa,
pelo
menos
pra
mim,
mas...
sim,
uma
disponibilidade,
uma
facilidade
no
trato,
um
afeto
também,
se
você
está
no
boteco
e
vem
um
moço
e
diz
“e
aí,
meu
querido”,
uma
simpatia
que
faz
diferença.
Esse
foi
o
estereótipo
que
reparei,
os
bons.
Os
maus...
Depois
fui
reparando
alguns,
ao
fim
de
alguns
meses
lá.
No
início
é
tudo
maravilhoso,
como
uma
relação,
depois
o
que
era
uma
coisa
boa,
começa
a
ficar
um
pouco
distorcido,
que
é
fácil
associar
ao
estereótipo.
Por
exemplo,
a
dificuldade
de
dizer
“não”.
Quando
se
marca
alguma
coisa,
ninguém
diz
“não”
e
depois
pode
até
não
aparecer.
As
coisas
do
horário...
Mas
se
calhar
tem
mais
razões
do
que
os
portugueses
nisso.
Os
ingleses
chegam
sempre
a
horas
e
está
tudo
bem,
os
brasileiros
nunca
chegam
a
horas
e
também
está
tudo
bem.
Só
o
português
é
que
está
no
meio,
nem
chega
a
horas
e
fica
sempre
chateado...
as
tantas
é
melhor
assim,
toda
gente
chega
291
atrasada
e
ninguém
se
chateia
com
isso,
tá
tudo
bem,
só
nós
é
que
ficamos
sempre
chateados,
os
portugueses
chegam
atrasados
e
queixam-‐se.
Mas
essas
são
as
coisas
que
se
nota
quando
se
está
a
viver
lá...
(Está
a
se
tentar
trabalhar
e
não
corre
bem,
e
fica
cansado,
e
é
outro
país,
e
depois
não
há
dinheiro
ou
qualquer
coisa...
e
tudo
serve
pra
ficar
puto
da
vida).
Mas,
agora
que
já
não
vou
lá
há
algum
tempo,
as
memórias
são
todas
ótimas,
todas
incríveis,
é
um
tempo
que
lembro
com
muito
carinho.
E
mesmo
quando
as
coisas
estavam
a
correr
menos
bem.
Houve
uma
altura
em
que
disse
para
o
meu
amigo
Jordi
(Burch),
que
era
casado
(foi
pro
casamento
dele
que
falei
que
tinha
ido),
que
estava
indo
pra
casa
dele
em
Curitiba,
porque
não
dava
mais
pra
ficar
em
São
Paulo
e
ele
me
disse
que
estava
saindo
de
casa
no
mesmo
dia.
Fui
assim
mesmo
(para
Curitiba)
e
fomos
os
dois
pra
casa
de
um
outro
amigo.
Então,
estávamos
os
três
sem
conseguir
trabalho,
com
a
vida
amorosa
toda...
aquilo
não
podia
ser
pior,
mas
eu
sentia
que
um
dia,
e
isso
já
aconteceu,
íamos
olhar
praquilo
que
pensar
que
foi
qualquer
coisa
especial.
E
hoje
em
dia
é
assim
que
eu
olho
pro
Brasil:
as
coisas
boas
são
sempre
boas
e
as
coisas
más
são
especiais
também.
L.T:
Quais
foram
as
diferenças
do
modo
de
vida
português,
além
da
falta
de
pontualidade,
que
você
observou
nessa
temporada?
Havia
um
modo
de
vida,
questões
éticas
ou
sexuais
que
você
acha
que
tem
diferença
entre
português
e
brasileiro,
portuguesa
e
brasileira?
MR:
Uma
coisa
que
me
fazia
confusão
era
o
contraste,
o
racismo
que
eu
não
conhecia...
O
que
conheci
de
racismo
era
em
relação
ao
próximo,
uma
coisa
de
“eu
não
gosto
de
imigrantes,
eu
não
gosto
de
pretos”,
uma
coisa
que
vem
do
indivíduo
mesmo.
No
Brasil,
conheci
um
racismo
diferente,
um
racismo
social.
Claro,
de
uma
população
privilegiada
branca
em
relação
a
uma
população
pobre
e
negra
que
é
assim
”Eu
até
gosto
muito
de
ti,
tu
trabalha
na
minha
casa,
tem
lá
um
quartinho
e
gosto
muito
de
ti,
mas
que
tu
esteja
no
teu
lugar”.
Ou
seja,
não
é
um
racismo
dirigido
a
pessoa,
os
lugares
estão
muito
definidos
na
sociedade
e
isso
vê-‐se
muito
bem
no
“Som
ao
Redor”...
Pronto,
isso
da
outra
pessoa
ser
um
espécie
de
comodidade
que
parte
da
população
que
tem
direito.
Esse
contraste
social,
essa
maneira
de
olhar
para
o
outro,
me
fazia
muita
confusão,
sentir
que
há
lugres
definidos,
cada
um
tem
o
seu
lugar.
Quer
dizer,
não
sei
se
é
mais
impressionante
que
o
racismo
que
estou
habituado
a
ver,
só
era
diferente...
Como
estava?
Andar
num
elevador
que
estava
um
aviso
dizendo
que
era
ilegal
discriminar
uma
pessoa
por
causa
da
cor
da
pele...
Quando
estamos
num
lugar
em
que
é
preciso
lembrar
isto,
passa-‐se
alguma
coisa.
Isso
eu
notei
bastante,
este
racismo
social.
Em
termos
de
costume,
não
sei,
porque
é
sempre
muito
pessoal,
questões
de
relacionamento,
como
é
que
cada
um
vive
suas
relações,
sua
sexualidade...
É
difícil
pra
mim
responder
isso
por
dois
motivos,
primeiro,
porque
já
falamos,
não
há
um
Brasil,
há
imensos.
E
depois
porque
é
muito
pessoal...
Tenho
muita
dificuldade
em
falar
“as
mulheres
são
assim,
os
homens
são
de
outra
maneira”.
Não
sei
bem...
292
LT:
Você
se
sentiu
que
houve
uma
hospitalidade
brasileira
quando
esteve
lá?
Houve
alguma
coisa
ou
momento
discriminatório
por
você
ser
de
fora?
MR:
Não,
pelo
contrário.
Uma
coisa
é
ser
brasileiro
ou
angolano
ou
ucraniano
em
Portugal.
Outra
é
ser
inglês,
alemão
ou
sueco
em
Portugal.
A
mesma
coisa
no
Brasil.
Uma
coisa
é
ser
colombiano
ou
boliviano
no
Brasil,
outra
coisa
é
ser
europeu
e
a
maior
parte
das
vezes
eu
não
era
tratado
como
português,
mas
como
europeu.
Mas
eu
tentava
explicar
que
há
menos
diferença
entre
Portugal
e
Brasil
que
entre
Portugal
e
Dinamarca,
então
isso
do
ser
europeu
é
muito
relativo.
Havia
sempre
uma
piadinha
do
português,
que
era
mais
uma
piadinha
de
aproximação,
mas
sempre
fui
tratado
como
um
bom
imigrante,
que
é
o
europeu,
que
é
uma
discriminação
positiva...
Imigrantes
deste
podem
vir.
Se
fizermos
a
pergunta
a
boliviano,
colombiano
ou
alguém
do
Haiti,
se
calhar
a
resposta
é
diferente.
Mas
sempre
fui
bem
recebido
e
nas
conversas
que
tinham
a
ver
com
o
local
de
onde
eu
vinha,
eu
vinha
da
Europa,
que
dá
nisso...
Uma
pessoa
de
respeito,
mesmo
que
não
fosse.
Mas
isso
do
preconceito
em
relação
a
mulher
brasileira
que
tem
cá...
Eu,
na
altura,
tinha
minha
namorada
brasileira
e
dois
dos
meus
melhores
amigos,
que
também
tinham
namoradas
brasileiras,
falávamos
sobre
isso.
Minha
namorada
era
bastante
mais
nova
e
todos
elas
(as
namoradas)
tinham
essa
história
de
apanhar
táxi
e
os
motoristas
acharem
imediatamente
que
eram
prostitutas
e...
O
quê
que
há
de
dizer
sobre
isso?
LT:
Eu
acho
que,
pra
mim,
por
ser
mulher
e
brasileira,
torna-‐se
mais
difícil
fazer
com
um
homem
fale
abertamente
sobre
preconceito
contra
a
mulher
brasileira.
Toda
vez
que
eu
pergunto
pra
qualquer
português
sobre
esse
preconceito
dizem
que
é
coisa
do
passado
e
que
já
não
existe...
MR:
Não,
não
é
coisa
do
passado.
E
quanto
passado?
Há
uns
anos
houve
uma
história
cá
e
foi
capa
da
Times,
as
“Mães
de
Bragança”...
o
problema
não
era
com
os
maridos,
que
supostamente
é
com
quem
elas
têm
um
compromisso...
Entre
a
mulher
e
homem
há
um
compromisso
e
se
eles
iam
às
prostitutas
a
culpa
não
era
do
homem
ou
do
casal,
era
da
brasileira
que
ia
seduzir
o
“pobre
coitado”
que
não
tem
como
resistir.
Isso
é
motivo
de
vergonha
alheia,
mas
isso
existe,
há
esse
preconceito
e
não
acredito
que
tenha
desaparecido.
Todas
as
culturas
são
mais
ou
menos
racistas
em
certo
sentido,
sempre
que
há
crise,
sempre
que
há
problemas,
os
imigrantes
são
os
primeiros
a
levar.
Em
relação
a
isso
eu
não
sei,
mas
acredito
que
o
preconceito
possa
ter
mudado
ligeiramente.
Há
15
anos
havia
muita
piadinha,
havia
a
piadinha
e
acontecia...
Se
alguém
ia
passar
as
férias
em
Fortaleza
diziam
“cuidado,
que
as
mulheres
lá
vão
ficar
atrás
de
ti
pra
casar
e
tirar
visto
pra
vir
par
Europa”
e,
há
uns
anos
atrás,
quando
a
crise
estava
pesada
por
cá
eu
fui
pro
Brasil,
havia
a
piada
ao
contrário:
“vê
se
casa
por
lá,
pra
ficares
lá”.
Houve
aí
aspectos
que
podem
ter
mudado
um
bocadinho.
Acho
que
esse
preconceito
não
desaparece
em
dois,
três,
quatro
anos...
Acho
que
tem
muito
a
ver
com
o
dinheiro
que
cada
país
tem.
Com
Angola
é
a
mesma
coisa,
os
angolanos
e
os
africanos
que
vieram
das
ex-‐colônias
sempre
foram
293
maltratados
em
Portugal,
entretanto
Angola
tornou-‐se
uma
coisa
hipercapitalista
com
uma
pequena
porcentagem
da
população
rica,
que
sempre
vem
fazer
compra
aqui
na
avenida
da
liberdade
e
de
repente
angolano
é
um
tipo
incrível
e
fazem-‐se
novelas
em
angola
porque
somos
povos
irmãos.
Quando
é
que
fomos?
A
partir
do
momento
em
que
meteram
dinheiro
aqui,
podemos
todos
esquecer
que
somos
racistas
um
bocadinho
desde
que
haja
dinheiro
a
entrar.
E
pode
ter
sido
isso
que
aconteceu
no
Brasil,
durante
aqueles
anos,
Portugal
estava
mais
embaixo
e
Brasil
mais
em
cima,
em
termos
econômicos,
e
claro
que
isso
não
é
incompatível
com
o
fato
de
se
olhar
pra
uma
mulher
brasileira
em
Portugal
e
pensar
que
é
prostituta.
LT:
Sobre
o
projeto
no
Otton
Palace,
como
surgiu
a
ideia
de
fotografar
aquele
hotel?
MR:
Isso
começa
em
2012,
primeiro
ano
que
fui
ao
Brasil
e
conheci
o
Copan,
o
edifício
do
Niemeyer.
Eu
e
um
amigo
eu,
que
depois
fez
o
filme
comigo,
e
uma
jornalista,
a
Cândida
Pinto,
vimos
aquilo
e
pensamos:
“temos
que
fazer
uma
coisa
sobre
isso”.
E
andamos
um
ano
a
pensar
em
fazer
uma
história
sobre
o
Copan
e
no
fim
de
um
ano
voltamos
e
começamos
a
fazer
o
trabalho
sobre
o
Copan.
Ela
começou
a
fazer
o
trabalho
conosco,
mas
ela
estava
também
a
trabalhar
pra
SIC
e
depois
veio
um
câmera
fazer
a
parte
deles
e
nós,
enfim,
fomos
filmando,
tivemos
a
trabalhar
todos
juntos.
Enquanto
isto
acontece,
nós
fazíamos
parte
de
uma
residência
artística
na
FAAP
e
a
residência
era
na
praça
do
patriarca
em
frente
à
prefeitura.
E
tínhamos
aquele
edifício
em
frente,
tinha
o
ar
de
ser
uma
arquitetura
bem
cuidada,
um
edifício
imponente,
que
parecia
bem
cuidado,
mas
ao
mesmo
tempo
víamos
que
tinha
imensa
gente
e
perguntamos
o
que
era
e
explicaram-‐nos
a
história.
Tinha
sido
o
maior
hotel
de
luxo
de
São
Paulo,
mas
tinha
falido
em
2008,
portanto
foi
fechado
e
no
final
de
2012
tinha
sido
ocupado
pelo
Movimento
dos
Sem
Teto,
tinha
800
pessoas
a
viver
ali.
Quando
nós
soubemos
da
história,
pensamos
“que
se
lixe
o
Copan”,
porque
o
Copan
para
o
trabalho
que
nós
queríamos
estava
um
bocadinho
desilusão.
Queríamos
fazer
um
trabalho
sobre
o
Brasil
inteiro,
uma
coisa
impossível,
portanto
tínhamos
apontado
para
um
edifício.
Onde
é
que
se
pode
falar
com
o
Brasil
inteiro
dentro
de
um
edifício?
Era
o
Copan,
que
supostamente
teria
desde
o
porteiro
até
o
mais
rico,
a
viver
tudo
no
mesmo
prédio,
mas
hoje
em
dia
está
um
pouco
descaracterizado
nesse
sentido,
já
é
quase
tudo
classe
média
alta,
então
estávamos
um
pouco
desiludidos.
E
então,
quando
ouvimos
esta
história
(do
Otton
Palace),
havia
tudo...
Claro,
sabíamos
que
tinha
mais
de
30
prédios
ocupados
no
centro
de
São
Paulo,
mas
aquele
tinha
tudo,
era
em
frente
a
prefeitura,
tinha
sido
o
maior
hotel
de
luxo,
eram
25
andares
sem
água,
fazia
como
se
fosse
a
sociedade
de
São
Paulo,
mas
completamente
invertida,
porque
a
pirâmide
social,
a
maioria
embaixo,
a
minoria
em
cima,
em
São
Paulo,
é
muito
mais
evidente...
Porque
é
tudo
vertical
e
quem
tem
mais
dinheiro
mora
na
penthouse
e
vai
de
helicóptero.
E
aquilo
é
tudo
ao
contrário
(Otton
paliasse),
porque
quem
mora
no
20º
andar
tem
que
levar
água
nas
costas
20
pisos,
portanto
quem
tá
melhor
é
quem
tá
no
primeiro
ou
no
segundo.
294
LT:
E
é
curioso
porque
esse
é
um
prédio
de
rico
e
de
repente
os
pobres
é
que
ocuparam.
MR:
Sim,
a
história
era
maravilhosa,
era
uma
história
que
queríamos
mesmo
conhecer
e
falamos
com
o
movimento
e
fomos
lá
pra
dentro,
sem
histórias,
sem
planos,
fomos
conhecer,
falar
com
as
pessoas.
Foi
tudo
muito
natural
pela
nossa
vontade
de
ver
e
conhecer
as
coisas.
Foi
muito
bom,
foi
uma
experiência
incrível.
LT:
Porque
você
decidiu
não
fotografar
pessoas?
MR:
Isso
e
só
circunstancial.
Eu
fiz
o
trabalho
com
outro
fotógrafo
francês,
que
agora
mora
em
Paris,
mas
viveu
cá
quase
18
anos
e
dividimos
tarefas;
ele
fotografava
pessoas
e
eu
fotografava
os
ambientes.
Ou
seja,
o
que
está
no
meu
site
são
as
fotos
que
eu
tirei,
mas
o
projeto
em
si
tem
tudo,
as
minhas
fotos
com
o
ambiente
e
as
fotos
dele
com
retrato...
LT:
Eu
vi
tuas
fotos
e
me
lembrei
de
fotografias
de
ruínas,
com
um
olhar
melancólico
do
prédio
abandonado
...
mas,
ao
mesmo
tempo,
o
hotel
passa
a
ser
um
lugar
que
esta
sendo
ocupados,
então
elas
passam
a
ter
vida,
apesar
de
ter
sentido
algo
melancólico
nas
tuas
fotos.
Isso
faz
sentido?
MR:
Houve
essa
divisão
de
trabalho
porque
nós
estávamos
os
dois
a
fazer,
a
fotografar,
a
filmar
e
a
entrevistar
as
pessoas.
E
portanto,
tínhamos
que
ser
práticos
para
podermos
estar
a
trabalhar
a
vontade,
pra
não
corremos
o
risco
de
chegar
ao
fim
do
dia
e
termos
feitos
os
dois
exatamente
a
mesma
coisa.
Em
termos
de
fotografia
a
coisa
estava
bem
definida,
ele
fazia
os
retratos
e
eu
fazia
os
ambientes
e
eu
quando
estava
a
fazer
o
ambiente
estava
sobre
tudo
a
concentrar
nas
coisas
essenciais.
As
pessoas
que
estavam
ali
a
viver
tem
vidas
muito
simples
e
os
sonhos,
os
desejos,
as
ambições
dessas
pessoas
eram
também
muito
simples,
simples
sem
ser
no
sentido
pejorativo.
Dizem
muito
isso
no
filme
“eu
quero
um
teto”,
“eu
quero
uma
casa
pra
morar”
e
a
luta
daquelas
pessoas
ali
é
essa.
Não
estão
ali
pra
reclamar
propriedade
sobre
o
prédio,
estão
ali
pra
fazer
pressão,
por
um
lado,
sobre
a
prefeitura
para
que
dê
uma
resposta,
e
estão
ali
também
porque
de
fato
querem
um
teto,
portanto
é
uma
coisa
muito
simples
o
que
querem.
E
a
maneira
como
vivem
também,
vivem
com
o
essencial,
porque
é
uma
situação
transitória
e
eu
tentei
focar
nesse
aspecto,
nesse
pragmatismo,
nessa
simplicidade.
O
que
é
preciso
ali?
É
preciso
água,
é
preciso
uma
cama,
é
preciso
alguma
coisa
pra
comer.
Quase
tudo
que
aparece
ali
são
as
coisas
elementares
pra
uma
pessoa
viver
numa
cidade,
maneira
de
cozinhar,
maneira
de
dormir
e
maneira
de
se
lavar.
Enfim,
esse
foi
meu
foco
pra
fazer
as
fotos.
LT:
Você
acha
que
essas
pessoas
representam
uma
grande
parte
do
Brasil?
MR:
Uma
grande
parte
talvez,
na
medida
em
que
só
no
centro
de
São
Paulo
há
mais
30
edifícios
ocupados,
mas
não
sei
se
representa
uma
grande
parte
ou
não.
Quando
tínhamos
começado
com
o
Copan
queríamos
encontrar
uma
metáfora
que
representasse
o
Brasil
todo,
se
isto
fosse
possível
de
alguma
maneira
e
passávamos
lá
295
muitas
horas
e
estávamos
com
aquelas
pessoas...
acho
que
não
estávamos
preocupados
com
essa
ideia
de
metáfora
ou
com
o
fato
de
representarem
muitas
ou
poucas
pessoas.
Representam
se
de
alguma
forma
as
imagens
e
o
filme
forem
além
das
pessoas
que
aparecem,
serão
as
pessoas
que
estão
na
mesma
condição,
outras
pessoas
em
outros
prédios
ocupados,
mas
só
o
fato
de
alguma
maneira
contar
histórias
daquelas
pessoas
é
suficiente
pra
mim.
Se
fosse
só
uma
pessoa
seria
suficiente
pra
se
contar
uma
história,
pra
se
partilhar
alguma
coisa.
Eu
não
tenho
a
pretensão
de
ser
maior
do
que
é
ou
ir
além
do
próprio
edifício.
Aquilo
foi
uma
coisa
que
nós
vimos
em
determinado
momento,
em
determinado
lugar
e
é
isso,
podia
ser
só
uma,
mas
são
pessoas
suficientes
pra
se
contar
uma
história.
Claro
que
sabemos
que
há
muito
mais
gente
em
situações
semelhantes,
em
situações
piores,
mas
é
isto,
é
a
história
daquelas
pessoas.
LT:
No
vídeo
só
aparecem
mulheres
negras,
ou
seja,
já
mostra
a
classe
pobre
brasileira,
que
é
composta
por
maioria
negra
e
feminina.
Nas
fotografias
tinham
pessoas
os
rastros
de
pessoas,
que
é
parecido
com
o
que
Duarte
Belo
fez,
que
são
os
caminhos
de
trem
na
Amazônia
que
foram
abandonados
e
viraram
ruínas.
No
caso
as
tuas
fotos
eu
vi
muito
isso
de
ruína,
de
ser
um
olhar
meio
antropológico,
no
caso
do
Brasil,
que
mostra
justamente
isso,
a
circunstância,
a
história
de
adaptação
do
brasileiro
que
apresentam
nos
livros
de
antropologia
do
Brasil.
Da
fácil
adaptação
que
você
falou,
de
conseguir
acessar
isso,
e
ficar
lá...
MR:
Mas
ali,
na
nossa
abordagem,
íamos
andando
pelo
edifício
e
explicando
pras
pessoas
o
que
estávamos
a
fazer
e
acho
que
não...Acho
que
as
pessoas
percebiam
a
intenção
de
estarmos
ali,
porque
nós
falávamos
disso,
explicávamos
o
que
íamos
fazer
e
as
pessoas
sabem
a
importância
da
imagem,
do
filme,
da
partilha,
as
pessoas
que
estão
ali
fazem
parte
do
movimento
dos
sem
teto
e
tem
uma
noção
muito
forte
do
que
é
comunidade.
Portanto,
sabem
que
sozinhas
nunca
vão
conseguir
nada,
por
isso
é
que
estão
ali,
e
acho
que
perceberam
que
nós
tínhamos
boas
intenções
e
modesta
também,
quer
dizer
é
mais
um
filme
e
não
acham
que
aquele
filme
vai
mudar
o
mundo,
as
intenções
são
modestas,
mas
eram
no
mesmo
sentido
das
intenções
de
quem
lá
morava
e
havia
essa
partilha
nesse
sentido,
ou
seja,
é
importante
que
mais
pessoas
conheçam
essas
histórias.
E
era
nesse
sentido
que
havia
a
partilha.
LT:
O
objetivo
desse
projeto
era
compartilhar
e
ajudar
no
sentido
social?
MR:
Mais
partilhar
do
que
ajudar.
Não
por
falta
de
solidariedade
ou
empatia
com
as
pessoas
e
com
as
causas
é
mais
por
perceber
que...
eu
não
teria
a
pretensão
de
achar
que
o
filme
possa
fazer
grande
diferença
na
vida
das
pessoas.
Era
bom,
se
fizéssemos
um
filme
e
que
o
mundo
fosse
um
lugar
melhor
por
causa
disso,
mas
há
guerras
que
não
se
ganham,
mas
não
podemos
é
perde-‐las
também.
Pra
mim,
com
aquele
projeto
eu
sou
o
menos
importante
no
meio
daquilo
tudo.
Foi
meu
primeiro
filme,
foi
uma
296
experiência
muito
intensa
em
vários
sentidos,
porque
era
a
primeira
vez
que
estava
fazendo
um
filme.
Mas
tudo
isso
é
tão
pouco
ao
pé...
estão
ali
aquelas
pessoas
a
dizer
que
o
sonho
delas
é
ter
um
teto
pra
morar
e
eu
aqui
a
dizer
“gostei
muito
de
fazer
o
filme,
porque
filmar
é
muito
divertido.
Eu
filmei
e
eu
assino
no
filme,
mas
não
é
o
meu
filme,
são
aquelas
pessoas,
não
há
nada
que
eu
possa
dizer
sobre
a
minha
experiência
que
possa
ter
a
ver
com
aquelas
histórias.
O
filme
é
daquelas
pessoas
de
alguma
maneira.
LT:
Mas
também
faz
parte
do
teu
processo
artístico.
Você
apresenta
essas
fotos,
você
expõe
essas
fotos...
MR:
Nunca
foram
mostradas
muitas
vezes,
na
verdade.
O
filme
já
foi
algumas,
mas
as
fotos
acho
que
não,
as
fotos
estão
ali,
mas
foi
o
filme
que
teve
mais
vida
no
meio
disso
tudo.
LT:
O
o
exótico
sempre
percorreu
muito
a
fotografia
que
mostra
o
brasileiro
e
a
fotografia
de
ruína
é
uma
coisa
que
transmite
também
um
exotismo,
porque
é
uma
coisa
que
foi
abandonada,
tem
um
misticismo
envolvido.
Assim,
traz
um
interesse
pra
quem
tá
de
fora,
pro
estrangeiro,
pra
quem
quer
conhecer.
Por
exemplo,
hoje
a
favela
é
um
lugar
que
é
cheio
de
turista
e
isso
mostra
a
atração
para
o
exotismo,
mesmo
não
tendo
pessoas,
porque
você
mostra
a
condição
que
vivem
aquelas
pessoas...
MR:
Sobretudo
a
imagem
da
favela,
mais
do
que
a
favela.
Claro
que
há
imensas
favelas
agora
com
circuitos
turísticos,
a
serem
revitalizadas
pro
turista,
como
o
Vidigal,
no
Rio,
mas
eu
lembro
que
quando
foram
as
obras
pra
copa,
uma
das
estradas
que
vinham
do
aeroporto
do
Rio
pro
centro,
tinha
uma
favela
tapada,
pra
não
se
ver,
mas
tapada
com
fotos
da
favela.
E
isto
é
muito
curioso
porque
a
imagem
a
favela
é
mais
bonita
do
que
a
favela.
E
essa
questão
do
exotismo
é,
não
sei,
a
situação
brasileira
em
relação
ao
colonialismo
e
ao
exotismo
é
supercomplexa
e
muito
mais
mal
resolvida,
foi
a
primeira
colônia
portuguesa
a
ter
independência
e
parece-‐me
muito
mais
mal
resolvida
que
nas
ex-‐colônias
recentes,
como
angola
e
Moçambique.
Ao
passo
que
Angola,
Guiné,
Moçambique
conquistaram
independência,
no
Brasil
nunca
foi
propriamente
conquistada,
foram
os
portugueses
que
disseram
“nós
agora
somos
brasileiros”,
não
houve
propriamente
uma
revolta
local,
não
ouve
povos
originários
a
dizer
“não,
essa
é
nossa
terra”,
como
houve
em
África.
O
que
aconteceu
foi
D.
Pedro
a
dizer,
“já
não
sou
português”,
mas
ele
não
deixava
de
ser
estrangeiro
naquela
terra,
portanto
fica
assim
uma
situação...
As
piadinhas
que
tinham
por
lá
pelo
fato
de
ser
português,
“ah,
tu
é
português,
vocês
estragaram
esta
terra”,
quer
dizer
vocês
quem
estragaram?
Eu
sou
português,
sou
filho
dos
que
ficaram
em
Portugal,
e
tu
és
filho
dos
que
estragaram
isso.
Basta
ver
grandes
êxodos
durante
e
antes
a
segunda
guerra
mundial,
europeus
que
foram
pro
Brasil,
hoje
em
dia,
duas,
três
gerações
depois
“nós,
brasileiros”,
não,
toda
a
gente
ali
é
imigrante,
toda
gente
ali
é
culpada
de
alguma
maneira.
Tirando
os
297
negros
que
foram
forçados,
tirando
os
índios
que
foram
ocupados,
e
hoje
em
dia
o
brasileiro
é
a
mistura
disso
tudo...
LT:
Os
índios
continuam
sendo
mortos
por
disputa
de
terra
até
hoje...
MR:
Sim,
e
me
dava
vontade
de
rir
sempre
que
uma
pessoa
branca
me
dizia
“ah,
vocês,
os
portugueses
é
que...”
Desculpa,
é
assim
uma
questão
muito
difícil
e
não
teve
uma
forma
de
independência
semelhante
à
das
colônias
em
África,
em
que
há
claramente
os
povos
originários
a
dizer
“fora,
acabou”.
Ali
não,
foi
ocupando-‐se
até
que
disse
“já
não
somos
mais
portugueses”
e
continuam
a
ser
ocupantes
e
essa
relação
com
o
estrangeiro
nunca
foi
bem
resolvida.
E
isso
vê-‐se
muito
na
fotografia
brasileira.
Eu
dei
muitos
workshops
lá
e
nem
só
as
pessoas
que
estavam
a
começar,
mesmo
os
grandes
nomes.
Eu
que
sou
estrangeiro
no
Brasil,
quando
fotografo
lá,
tem
sempre
esse
peso
em
cima
de
mim,
de
um
estrangeiro
a
ver
as
coisas
ainda
por
cima
português,
a
questão
do
colonialista,
do
imperialista,
o
olhar
exótico
ou
qualquer
que
seja.
Mas
nem
penso
muito
nisso
quando
estou
a
fotografar,
estou
a
olhar
as
coisas
como
em
qualquer
outro
sítio,
mas
grandes
nomes
da
fotografia
brasileira
e
muita
gente
na
fotografia
brasileira
que
é
isso
que
faz.
Vi
muita
gente
brasileira
a
colocar-‐se
nessa
posição
do
exótico.
LT:
Mas
essa
é
uma
coisa
que
vende
muito
pra
turista,
publicidade...
As
pessoas
vivem
do
exótico.
Tenho
um
amigo
que
já
fez
trabalho
publicitário
e
ele
usa
muito
o
exótico,
a
mulher
de
Copacabana,
mostrar
o
Rio
e
mostrar
bunda
de
mulher...
MR:
Sim,
ir
pra
Bahia
e
fotografar
uns
moleques
a
tomar
banho...
LT:
É
uma
coisa
muito
explorada
pelos
próprios
brasileiros,
como
também
fotografar
índios.
O
Daniel
Rodrigues
passou
um
tempo
numa
reserva
fotografando...
Tem
muita
gente
que
tem
muito
interesse
pelo
índio,
que
tem
interesse
pela
Amazônia,
que
é
uma
coisa
meio
mística
e
tem
muito
fotógrafo
que
é
totalmente
contra
isso.
MR:
Pois,
depende
do
contexto,
depende
de
como
as
coisas
são
mostradas.
Não
sei
se
estamos
falando
do
mesmo
Daniel
Rodrigues,
mas
muitas
das
coisas
que
ele
fez
foi
pro
jornal
Expresso,
portanto
encomendas,
o
que
faz
com
que
às
vezes
ele
esteja
a
fotografar
aquilo
que
pediram
pra
ele
fotografar.
Eu
estive
na
Índia
e
senti
a
mesma
coisa
e
trabalhei
lá
com
fotógrafos
indianos
e
parávamos
no
sinal
vermelho
e
eles
começavam
a
fotografar
a
criança
a
pedir
dinheiro
no
vidro.
Mas
é
isso,
é
um
perpetuar
de
uma
imagem.
E
depois
há
outros
nomes
a
fazer
coisas
muito
interessantes.
LT:
Você
fotografou
esse
prédio,
que
são
pessoas
que
estão
ali
envolvidas
politicamente
com
o
processo
de
habitação
na
cidade,
mas
que
vivem
de
uma
forma
muito
precária.
Você
não
acha
que
de
certa
forma
também
passa
a
imagem
de
pobreza
do
brasileiro?
298
MR:
Eu
acho
que
não
porque,
lembrando
do
filme
todo,
nós
não
tentamos
tornar
as
coisas
mais
bonitas
do
que
eram
e
procuramos
sempre
que
tudo
aquilo
fosse
muito
digno,
porque
achamos
que
é.
As
pessoas
estão
a
lutar
pelo
seu
direito,
pelo
que
acreditam,
direitos
elementares,
habitação,
condições
dignas
para
viverem,
para
as
crianças
crescerem.
Tudo
aquilo
é
muito
digno,
não
são
mais
bonitos
por
serem
pobres
e
nem
são
mais
coitadinhos
por
serem
pobres,
são
pessoas
que
estão
a
lutar
pelos
seus
direitos
e
isso
é
a
história
do
filme.
LT:
O
filme
não
está
no
site.
Só
tem
uma
cena
das
mulheres
pegarem
água
no
poço
com
uma
roldana...
MR:
Não,
tem
um
trailer.
Uma
cena
das
mulheres
pegando
água.
E
tem
uma
coisa
muito
engraçada
que
isso
era
feito
pelas
mulheres,
os
homens
levavam
sempre
garrafões
nas
costas
e
isso
é
engraçado,
essa
coisa
do
homem
com
aquela
coisa
de
“não
preciso
de
ajuda,
eu
levo
isso
sozinho”
e
as
mulheres
juntavam-‐se
e
faziam
aquilo
em
conjunto.
E
vimos
coisas
curiosas
sobre
a
diferença
da
mulher
e
do
homem,
não
sei
se
são
questões
do
Brasil
ou
de
todo
mundo,
mas
havia
mães
solteiras
no
prédio,
mas
não
havia
pais
solteiros.
O
Darcy
Ribeiro
fala
isso
no
“O
Povo
Brasileiro”
de
faltar
um
elogio
a
mulher
brasileira,
principalmente
a
mulher
brasileira
pobre,
que
fica
e
sustenta
tudo
que
está
a
sua
volta.
LT:
Achei
as
suas
fotos
são
sempre
bem
bonitas
e
bem
iluminadas
pra
mostrar
a
pobreza
e
aquilo
que
eles
estão
fazendo
pra
apropriação
de
um
lugar,
utilizando
o
que
tem,
a
água
que
tem,
a
televisão
que
tinha,
as
portas
do
jeito
que
estavam,
o
que
tem
ali
pra
poder
viver...
MR:
Mas
eu
não
tentei,
se
calhar
falhei,
mas
eu
não
quis
fazer
imagens
bonitas,
não
quis
fazer
imagens
indiretas,
ou
seja,
queria
coisas
diretas,
sem
truques,
sem
coisas
isoladas,
dentro
de
quartos,
paredes,
portas.
Queria
só
apontar
pra
algumas
coisas,
“isto
é
uma
toalha,
“isto
é
um
fogão”,
“isto
é
uma
televisão”...
Sim,
tem
uma...
“Isso
é
uma
cama”,
“isto
é
um
garrafão”,
enfim.
Isto
são
os
objetos,
aquilo
é
quase
um
kit,
as
fotos
passam
a
ser
quase
um
kit
de
sobrevivência,
isto
é
o
que
é
preciso
pra
sobreviver
aqui.
Portanto,
quando
eu
estava
a
fotografar
não
estava
a
pensar
na
beleza,
a
ideia
não
é
que
fossem
bonitas,
a
ideia
é
que
fossem
diretas,
mas
enfim.
LT:
É
o
seu
olhar
pra
coisa
que
é
diferente.
Cada
um
olha
de
um
jeito
e
o
seu
olhar,
tudo
que
você
faz,
o
seu
trabalho,
termina
refletindo
na
foto.
Por
isso
que
eu
preciso
que
você
me
diga,
pra
que
eu
não
fique
analisando
de
acordo
com
o
que
eu
acho...
MR:
Mas
é
inevitável,
as
fotos
são
feitas
pra
serem
vistas
por
outros.
A
minha
preocupação
era
essa,
era
mostrar
os
objetos,
era
ser
direto.
O
oposto
é
isso,
das
bonitas
fotos
de
guerra,
tem
que
procurar
o
enquadramento,
em
que
acontecem
mil
coisas,
e
há
um
primeiro
plano
e
segundo
e
terceiro
e
há
toda
uma
mudança
de
fotos
a
acontecer
dentro
da
imagem
e
ali
era
os
objetos,
praticamente
tudo
mais
ou
menos
no
centro
da
imagem,
“isto
é
um
copo”,
“isto
é
uma
vela”,
isto
são
os
óculos”,
sem
299
profundidade,
são
imagens
muito
planas,
com
parede
atrás.
A
ideia
das
imagens
era
que
houvesse
o
mínimo
de
jogos,
o
mínimo
de
distrações,
o
mínimo
de
intervenção.
LT:
Era
descritiva?
MR:
Sim.
Foi
muito
a
pensar
no
Walker
Evans,
num
trabalho
que
ele
tem
do
Let
Us
Now
Praise
Famous
Men,
a
fotografar
a
crise
nos
Estado
Unidos,
no
início
dos
anos
30,
depois
do
crash
da
bolsa,
que
é
muito
esse
olhar
frontal,
direto,
sem
embelezamento.
Claro
que
quando
há
as
que
são
bonitas
a
uma
reação
imediata
“ah!
Que
bom”,
mas
depois
“não
era
isso
que
eu
queria”,
era
exatamente
o
oposto,
era
que
não
falassem
de
beleza,
que
falassem
dos
objetos
em
si,
que
fosse
esta
espécie
de
kit,
isto
é
o
que
é
preciso,
é
o
que
as
pessoas
precisam
para
viver.
LT:
Essa
história
do
lugar
que
é
temporário,
que
é
provisório,
o
que
você
falou
no
início,
“parece
que
alguma
coisa
está
sempre
prestes
a
acontecer”,
essa
iminência
das
coisas.
Se
você
vê
aquilo,
também
é
transitório,
ninguém
fica
ali
pra
sempre,
uma
hora
vai
desapropriar...
MR:
Eles
saíram
porque
era
na
altura
dos
motins
em
São
Paulo,
por
dois
motivos,
um
porque
a
prefeitura
já
estava
a
ir
ao
edifício,
pra
perceber
quantas
pessoas
havia
e
o
que
podia
ser
feito,
como
podiam
ser
realojados
e
tudo
mais.
Eu
lembro
de
ir
lá
um
desses,
e
não
está
no
filme
mas
também
não
é
importante
pra
história,
mas
fui
um
dia
em
que
ia
lá
a
prefeitura,
tinha
800
pessoas
a
viver
lá,
e
nesse
dia
estavam
lá
duas
mil
dentro
e
começa
a
espalhar-‐se
a
palavra
que
a
prefeitura
vai
lá
pra
dar
casas
e
a
coisa
começa
a
ficar
um
bocadinho
fora
de
controle.
O
movimento
que
estava
à
frente...
depois
começa
a
acontecer
os
motins,
era
em
frente
a
prefeitura
e
havia
ali
o
Itaú,
atearam
fogo
ao
Itaú,
muita
coisa
junta
e
resolveram
sair.
LT:
E
saíram
todos?
MR:
Sim,
a
prefeitura
fechou
as
portas
depois.
Mas
não
foi
uma
expulsão,
aquilo
estava
a
ficar
muito
explosivo
e
muita
gente,
muita
criança,
estava
muito
explosivo
pra
continuarem
ali
com
isso.
Muita
gente
a
aparecer
que
não
vivia
lá,
então
saíram.
300
ANEXO
2:
Entrevista
com
Valter
VInagre
+
Realizada
em
22
de
setembro
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
Lisboa.
LT:
Eu
preciso
entender
o
ponto
de
vista
do
português
em
relação
ao
brasileiro,
porque
lá
do
Brasil
é
muito
fácil
a
gente
ver,
e
com
base
em
estereótipos
julgar,
e
achar
que
tudo
é
muito
sexualizado
...
VV:
Eu
tenho
uma
ideia
muito
diferente.
Primeiro
por
que
conheço
relativamente
a
fotografia
produzida
no
Brasil
por
brasileiros,
ou
por
brasileiros
adotados.
Isso
tem
a
ver
com
quando
estudei
fotografia
e
depois
por
interesse
próprio
a
América
Latina,
e
muita
vezes
então
dá
para
“fugir”,
daquilo
que
é
a
fotografia
etnocêntrica.
Ou
seja,
eu
sou
daqueles
que
partem
de
uma
ideia
de
que
a
Europa
e
os
Estados
Unidos
funcionam,
sobretudo,
como
fotografia
etnocêntrica.
Nós
conhecemos
muito
mal
a
nossa
cultura
impressa,
conhecemos
muito
mal
a
fotografia
que
é
produzida
fora
dos
circuitos
europeu
e
americano.
Americano
quando
falo
nem
sequer
incluo
o
Canadá,
incluo
exclusivo
E.U.A.
E
a
história
da
fotografia
passa
por
aí,
mas
não
é
só
isso.
Sobretudo,
não
é
isso.
Para
mim
interessa
muito
uma
fotografia
dita,
por
uma
questão
neocolonialista,
mas
dita
periférica,
porque
penso
que
é
uma
fotografia,
quando
exercida
com
total
liberdade,
inclusive
de
pensamento,
é
uma
fotografia
muito
mais
subjetiva
do
que
aquilo
que
é
produzido,
também
nesses
países,
que
é
uma
fotografia
dita
contemporânea.
O
que
se
vê
hoje
mais,
e
isso
é
uma
opinião
muito
minha,
não
só
em
fotografia,
mas
sobretudo
na
fotografia,
é
uma
produção,
em
termos
de
arte
contemporânea,
etnocêntrica.
Ou
seja,
nós
podemos
olhar
para
exposições,
ou
autores
que
são
oriundos
de
países
ditos
periféricos,
seja
da
Ásia,
seja
da
África,
ou
de
países
da
América
Latina,
e
o
que
nós
vemos
é
o
mesmo
tipo
de
linguagem,
ou
seja,
há
um
problema
de
aculturação.
Isso
também
se
passa
aqui
em
Portugal,
e
no
Brasil
também
conheço
essa
parte.
O
Brasil
tem
outra
coisa
que
infelizmente
Portugal
não
tem,
que
é
o
Instituto
Moreira
Salles,
que
de
fato
é
um
manancial.
Vi
muita
coisa
lá
e
quando
quero
ver
coisas
que
tem
a
ver
com
o
chamado
documentarismo,
produzido
no
Brasil
ou
por
brasileiros,
esse
de
fato
é
um
acervo
extraordinário.
O
que
eu
penso
da
fotografia
contemporânea
brasileira
é
isto.
Quer
dizer,
continua
a
ter
brasileiros,
ou
importados
para
o
Brasil,
que
produzem
a
partir
de
um
pensamento
do
que
é
que
são
as
várias
culturas
do
Brasil,
que
não
é
meramente
Rio,
nem
Bahia,
nem
São
Paulo,
e
tem
um
conjunto
de
gente
que
produzem
a
chamada
fotografia
contemporânea
a
partir
de
lá.
Mas
se
estivesse
a
produzir
ali,
ou
em
Lisboa,
ou
Nova
York
o
resultado
seria
sempre
o
mesmo,
porque
é
o
que
as
galerias
querem.
Digamos
que
há
uma
institucionalização
de
uma
forma
de
ver,
de
uma
forma
de
olhar
e
de
uma
forma
de
vender.
E
essa
forma
de
ver
também
cada
vez
está
mais
jovem.
Se
olharmos
para
as
galerias,
isso
também
lá,
dificilmente
temos
alguém
com
mais
de
quarenta
e
cinco
anos
a
expor
fotografias.
Eu
penso
que
isto
não
é
bom
nem
é
mal,
é
uma
outra
coisa.
301
Mas
é
uma
coisa
que
há
mim
não
interessa
absolutamente
nada.
Eu
costumo
pensar
e
dizer
que
o
que
gosto
muito
de
ver
são
mulheres
bonitas
retratadas,
homens
bonitos
retratados,
gosto
muito
de
ver
umas
luzes
muito
miudinhas,
ou
os
umbigos,
ou
coisas
assim.
Prefiro
ver
as
coisas
que
são
muito
mais
honestas.
Penso
que
muitas
vezes
há
uma
produção
com
uma
falta
de
cultura
muito
grande,
ou
seja,
uma
parte
dos
autores
de
hoje,
não
digo
que
por
falta
de
conhecimento,
provavelmente
entrou
num
esquema
que
é
o
que
vende
e
daí
produzirem
estas
coisas
tão
sem
opinião.
Este
é
meu
princípio.
LT.
O
que
encontrei
sobre
o
Brasil
foi
o
trabalho
“Paixão”...
VV:
Este
trabalho
foi
feito
numa
estadia
minha
no
Rio,
quando
estive
a
expor
no
Museu
de
História
do
Brasil,
no
final
da
década
de
1990,
é
um
projeto
que
surgiu
de
quando
estive
a
expor
lá
no
museu
um
trabalho
sobre
as
festas
do
Espírito
Santo,
nos
Açores.
O
Instituo
Camões
promoveu
uma
exposição
lá,
por
causa
do
que
liga
Portugal
com
Santa
Catarina.
Como
não
tinha
nada
para
fazer,
apesar
de
estar
em
frente
à
praia
de
Copacabana,
decidi
lançar
um
desafio
a
pessoas
amigas
e
a
diretora
do
museu
se
me
arranjava
contatos
.
LT.
O
que
você
sabia
do
Brasil,
já
tinha
ouvido
falar,
o
que
viu
de
diferente
quando
chegou
lá?
VV.
Na
época
o
que
eu
conhecia
era
de
amigos
meus
brasileiros
que
viviam
cá,
alguns
refugiados
da
ditadura,
por
tanto
eu
conhecia
vários
“brasis”.
Então
conheci
o
Brasil
da
ditadura,
assim
como
também
conheci
a
produção
da
arte
no
Brasil,
toda
ela
com
música
incluída.
Mesmo
assim
não
deixava
de
ter
uma
visão
estereotipada,
porque
era
uma
visão
ou
ligada
a
São
Paulo,
ou
ligada
ao
Rio,
quando
muito
a
Minas.
Mais
tarde,
através
de
questões
ligadas
ao
projeto
de
teatro,
acabei
por
conhecer
o
interior,
mas
ainda
não
era
fotógrafo.
E
comecei
a
me
aperceber
que
havia
vários
brasis
dentro
daquele
Brasil
que
eu
gostava.
LT.
Quais
eram
os
estereótipos?
VV.
Eram,
sobretudo,
de
que
havia
sol
para
todo
lado,
praia
para
todo
lado,
mulheres
bonitas
para
todo
lado,
uma
que
era
verdade,
que
há
o
poder
da
igreja
em
todo
lado...
Essa
parte
foi
boa
pra
eu
perceber
uma
série
de
questões.
Depois,
em
um
outro
trabalho,
eu
estive
no
Nordeste,
onde
não
há
turistas
e
onde
há
o
Brasil
mesmo.
Estive
no
Ceará,
em
uma
terra
chamada
Milagres,
bem
mesmo
no
interior,
depois
Juazeiro
do
Norte,
duas
ou
três
semanas.
Foi
duro,
mas
foi
bastante
enriquecedor.
Estive
a
fazer
um
projeto,
portanto,
a
fotografar
em
um
hospital,
e
acabei
por
andar
por
lá,
relacionar-‐me
e
conhecer
várias
questões,
desde
o
tráfico
de
crianças
para
a
prostituição
na
Europa...
Ou
seja,
eu
quando
fotografo
estou
a
fotografar
várias
coisas,
que
podem
não
estar
lá
diretamente,
mas
me
interessa
o
que
está
por
trás
daquelas
coisas.
E
estes
brasis
eu
tentei
escavá-‐los
e
digamos
que
o
Brasil
de
hoje
é
o
Brasil
de
302
ontem
para
mim,
mas
é
o
Brasil
que
me
continua
a
doer.
O
que
isto
tem
a
ver
com
o
que
vejo
que
é,
ou
pode
ser,
a
fotografia
brasileira?
Está
tudo
lá.
Eu
continuo
a
ver
autores
que
continuam
a
trabalhar
a
partir
do
interior,
não
interior
do
país,
a
partir
do
seu
próprio
interior
para,
mesmo
que
seja
paisagem,
perceber
que
aquilo
é
inquietante.
Assim
como
continuo
a
ver
coisas
que
são
produzidas
para
galerias,
sobretudo
de
São
Paulo,
e
que
podem
estar
em
qualquer
galeria
na
Europa,
ou
num
sítio
qualquer
e
que
não
me
dizem
nada.
Não
é
o
que
me
interessa
na
arte,
nem
na
fotografia.
Não
defendo
que
tenha
que
haver
uma
fotografia,
ou
uma
arte
militante,
mas
eu
cheguei
a
fotografia
por
pensar
que
era
a
melhor
ferramenta
que
eu
tinha
para
continuar
a
pensar
aquilo
que
me
rodeava.
E
essa
fotografia
que
me
interessa.
Pronto.
LT.
Houve
uma
diferença
muito
grande
do
que
você
pensava
que,
antes,
do
Brasil
daquilo
que
você
viu
quando
chegou
lá?
VV.
Não.
Aquilo
que
eram
estereótipos
continuaram
a
ser
estereótipos
e
aquilo
que
eu
partia
de
uma
análise
mais
crua
da
realidade
continuou
a
ser
a
mesma.
Ou
seja,
aquilo
que
encontrei
no
interior
do
Ceará,
não
sei
se
estava
além
do
que
eu
esperava,
mas
também
achei
que
as
pessoas
são
de
uma
resistência...
LT.
E
isso
que
é
o
“Brasil
de
fato”
para
você?
VV.
Sim.
O
que
vem
das
pessoas,
seja
o
Brasil,
seja
qualquer
país...
Eu
não
confio
muito
nos
fazedores
de
opinião.
Eu
sei
como
que
é.
Eu
creio
que
todos
nós,
quando
olhamos
para
um
país,
partimos
de
estereótipos.
Se
queremos
fazer
qualquer
coisa
num
país
temos
que
tentar
não
ter
barreiras
e
ver
qual
é
a
brecha
por
onde
se
pode
entrar,
mantendo
o
respeito
pelas
pessoas.
Posso
dizer
que
uma
coisa
eu
não
estava
esperando
encontrar:
foi
a
luta
das
mulheres
pela
sua
dignidade,
a
força
que
eles
tinham
contra
o
assassinato
de
mulheres,
as
vigílias
que
elas
faziam
toda
semana,
a
denunciar
na
rua
contra
um
presidente
da
câmara,
percebendo
que
a
qualquer
momento
um
jagunço
podia
matar
uma
delas.
Mais
uma.
Isso
é
nordeste,
isso
é
Brasil.
E
ver
estas
mulheres,
que
vinham
do
Movimento
Sem
Terra,
politizados
até
a
medula,
a
lutar
por
um
pequeno
pedaço
de
terra
dentro
de
uma
imensidão,
isso
nos
dá
uma
dimensão
humana
muito
grande.
Se
calhar
aí
percebemos
em
Sebastião
Salgado,
por
exemplo.
LT.
Uma
coisa
que
alimenta
o
estereótipo
brasileiro
é
aquilo
que
Sérgio
Buarque
de
Holanda
chamava
do
Homem
Cordial,
que
fala
que
o
brasileiro
é
muito
cordial
por
causa
dessa
mistura
de
raça
e
por
isso
que
o
português
se
sente
em
casa
lá,
como
a
gente
de
lá
se
sente
em
casa
aqui.
Você
acha
que
isso
é
verdade?
VV.
Depende
do
grupo
de
amigos
que
você
tem.
Senti-‐me
em
casa
com
as
pessoas
com
quem
eu
consegui
estar,
mas
senti
toda
animosidade
com
aqueles
que
não
queria
me
ver.
Eu
fui
convidado
para
uma
ou
duas
casas
que
me
disseram
para
não
ir,
mas
disse:
“eu
vou!
Se
me
acontecer
alguma
coisa
vocês
sabem
para
onde
fui”.
Não
ia
fotografar,
nem
sequer
levo
máquina
fotográfica,
meu
interesse
era
perceber
uma
303
série
de
questões.
Mas
eu
penso
que
é
em
qualquer
país.
Só
que
no
Brasil
tem
uma
outra
questão,
que
é
uma
coisa
que
eu
tratei,
que
é
a
prostituição.
Eu
assisti,
digamos,
o
render
da
guarda
dentro
do
mundo
da
prostituição,
com
as
mulheres
que
viam
de
países
da
ex
União
Soviética
a
passar
para
as
brasileiras.
Posso
garantir
que
do
que
eu
conhecia
em
Portugal,
e
conhecia
quase
tudo,
do
que
eu
conhecia
na
Espanha
e
França,
99%
eram
brasileiras.
E
isto
é
uma
marca
muito
tramada.
É
o
pior
da
história
para
uma
mulher
brasileira
em
Portugal,
ou
na
Alemanha,
ou
na
França.
Isso
virou
uma
marca
muito
ruim
da
mulher
brasileira
e
isto
são
estereótipos
que
se
mantém,
não
por
ser
brasileira
ou
portuguesa,
que
são
criados
e
aproveitados.
A
uma
intencionalidade
por
trás
disso
tudo.
LT.
A
sua
fotografia,
vem
dizendo
no
site,
que
era
uma
fotografia
próximo
do
documental.
Depois
passou
a
ser
um
exercício,
ou
sempre
foi
um
exercício
reflexivo?
VV.
Sempre
foi
um
exercício
reflexivo.
Eu
ainda
estava
antes
do
final
do
curso
e
sempre
tentaram
me
guardar
numa
gaveta,
eu
nunca
deixei.
Me
diziam
“tu
é
fotojornalista”
e
eu
fazia
um
trabalho
ao
lado.
Eu
gosto
muito,
em
qualquer
situação,
de
dizer
que
somos
livres
e
que
uma
ferramenta
é
uma
ferramenta.
E
se
essa
ferramenta
não
serve
ao
pensamento,
nós
temos
que
saber
pensar
e
eu
penso
que
minha
fotografia
é
muito
isso.
Se
eu
tropeço
num
projeto
que
tenho
que
fazer,
se
é
mais
direto
é
mais
direto,
se
é
mais
indireto
é
mais
indireto,
mas
sou
eu
que
o
penso,
que
o
faço.
A
câmera
fotográfica
para
mim
é
uma
ferramenta,
seja
ela
digital,
seja
ela
analógica,
mas
é
uma
ferramenta
como
o
pincel
é
para
um
pintor
ou
um
bisturi
para
um
médico.
São
ferramentas.
Mas
a
ferramenta
não
pensa,
enquanto
nós
pensamos.
Nós
temos
que
sobreviver
com
as
ferramentas
que
temos.
Mas
essa
questão
da
descrição
sempre
foi
interessante.
Eu
fui
convidado
para
participar
de
um
projeto
do
Miguel
Bonato(?),
no
Porto
que
agregou
uma
série
de
autores
portugueses
até
o
final
dos
anos
1990,
onde
nós
entregávamos
uma
série
de
fotografias
e
depois
alguém
escrevia
uma
biografia
nossa.
Foi
o
Zé
Marmeleira
(?)
que
escreveu
e
eu
ri-‐me,
mas
me
senti
confortável,
porque
estava
com
ele
e
pudemos
contextualizar.
Então
quando
alguém
de
fora
olha
para
o
teu
trabalho
e
o
contextualiza,
eu
continuo
a
usar
isso
porque
me
sinto
confortável.
E
a
fotografia
toda
ela
é
documental,
quer
a
gente
queira,
quer
não.
LT.
Quais
as
aproximações
culturais
você
encontrou
entre
Brasil
e
Portugal?
VV.
Logo
no
Nordeste
tem
uma
série
de
cidades
com
o
nome
de
cidades
portuguesas.
Eu
estive
no
Crato
e
quanto
mais
para
o
interior
entra,
sobretudo
onde
estiveram
os
Jesuítas,
mais
Portugal
encontras.
E,
obviamente,
quando
chegas
deste
lado,
se
vens
com
essa
ponta
cultural
vais
encontrar
uma
parte
do
Brasil
cá
também.
É
claro
que
entre
países
que
tiveram
uma
relação
entre
colonizador
e
colonizado,
e
em
termos
até
da
história
mais
recente,
na
afirmação
de
Portugal
mais
independente,
com
a
questão
de
os
reis
fugirem
para
lá,
tem
toda
uma
relação,
quer
política,
quer
cultural,
comum.
304
Obviamente
que
depende
do
sítio
que
está,
principalmente
no
Brasil
que
tem
o
tamanho
de
um
continente.
Tem
os
japoneses
em
São
Paulo,
tem
os
libaneses
em
umas
comunidades
em
Santa
Catarina,
tem
os
índios
que
são
da
américa
toda
e
se
estabilizaram
na
região
do
Pantanal...
É,
está
coisa
de
querer
fazer
uma
coisa
homogênea
quando
ela
não
é
geralmente
dá
disparate.
LT.
Mas
é
uma
coisa
que
geralmente
está
presente
no
inconsciente...
VV.
Sim,
mas
é
como
querer
falar
da
África
como
se
lá
fosse
tudo
igual.
Ou
falar
do
Oriente
sem
separar
a
parte
do
oriente
médio
dos
países
mais
da
Rússia,
digamos
assim.
LT.
É
que
tanto
você
escutar
uma
coisa,
fica
difícil
não
repetir.
Então
eu
sei
que
isso
acontece
também
quando
se
é
fotógrafo
e
que
isso
termina
sobressaindo
em
uma
foto
e
você
só
consegue
ver
isso
depois.
Será
que
isso
aconteceu
com
você?
VV.
Sim.
Não
somos
imunes.
Mas
penso
que
qualquer
um
de
nós
só
consegue
ultrapassar
algum
tipo
de
estereótipos
ou
de
valores
culturais
se
estivermos
dispostos
a
isso.
Porque
se
não
esquece,
continua
igual
aos
teus
avós,
aos
teus
pais
e
aqueles
que
hão
de
vir.
LT.
Quando
você
diz
que
o
Brasil
de
verdade
era
no
interior
do
Nordeste,
de
alguma
forma
isso
não
é
condensar
a
identidade
do
brasileiro
naquela
pobreza
e
dureza?
VV.
Eu
digo
isso
de
um
ponto
e
vista,
como
diz
o
Caetano,
que
a
música
brasileira
não
existe
sem
o
Nordeste.
E
aí
eu
obtive
a
prova,
por
tanto.
A
questão
da
luta
e
da
forma
de
ser
das
pessoas
tem
muito
a
ver
com
aquele
lugar,
e
eu
conheço
pessoas
de
outros
lugares
que
a
sua
maneira
também
são
assim,
mas
não
tem
aquela
seca,
não
tem
aquela
falta.
Provavelmente
nunca
sentiram
o
poder
dos
coronéis
como
o
Nordeste
sentiu.
Isso
é
preciso
saber
história,
não
é
só
cultura.
A
cultura
desse
ponto
de
vista
é
reacionária,
para
ela
está
aí
e
não
se
mexe.
Não,
é
preciso
saber
qual
a
razão.
E
depois,
quando
se
é
filho
de
uma
geração
do
final
dos
anos
1960
o
que
nos
chegam
é
sobretudo
através
da
música
e
de
alguns
livros,
e
temos
que
pensar
que
raio
de
música
é
esta,
de
onde
é
que
ela
saiu,
então
tu
tens
que
começar
a
ver
de
onde
vieram
aquelas
pessoas.
LT.
Aqui
em
Portugal
também
chegaram
as
novelas.
VV.
Eu
via
Cravo
e
Canela
e
tem
uma
coisa
giríssima,
que
ela
passava
em
1975
e
nós
parávamos
a
revolução
para
ver
os
episódios
(risos).
E
elas
chegaram
com
força
e
duas
ou
três
que
eram
muito
importantes,
Malu
Mulher...
Se
tem
todo
o
Nordeste
ali
dentro,
é
muito
interessante.
LT.
É
que
foi
uma
novela
escrita
por
um
nordestino,
mas
foi
feita
por
atores
do
sudeste
imitando
o
sotaque,
e
coisas
que
não
existem...
VV.
Isso
quando
se
sabe,
temos
esse
filtro
e
vê-‐se
bem.
Agora,
isto
é
com
tudo.
Eu
estou
a
ver
uma
série
na
internet
que
sei
que
aquilo
aparentemente
não
tem
nada
305
com
nada,
que
O
Príncipe.
Agora
temos
filtro,
não
é.
Sabemos
o
que
estamos
a
ver.
É
bem
feito
e
dá
gozo
ver,
pronto.
LT.
Algumas
vezes
essas
novelas
reforçam
um
estereótipo
da
mulher...
VV.
Mas
há
duas
ou
três
que
a
mulher
é
heroína.
LT.
Muita
gente
ainda
chega
procurando
a
garota
de
Ipanema
no
Rio..
VV.
Eu
assino
uma
newsletter
francesa
e
hoje
estava
a
abrir
e
vi
algo
de
um
fotógrafo
francês
escrito
“Rio”,
pensei
“vamos
cá
ver
se
esse
não
foge
ao
estereótipo”
.
Tiro
e
queda.
Há
uma
série
de
fotografias
ótimas,
mas
lá
está
a
garota
de
Ipanema
com
a
tanguinha,
jovenzinha,
lá
está.
Basta
uma
para
estragar
o
resto
todo.
LT.
Falando
dos
fotógrafos
portugueses...
Hoje
em
dia
ainda
tem
muitos
que
estão
fotografando
índios
e,
de
certa
forma,
ainda
é
tipo
de
fotografia
tradicional
sobre
os
modos
de
vida
dos
índios...
VV.
Tudo
falso.
Continuam
a
fazer
o
que
já
Lévi-‐Strauss
fez,
e
fez
bem,
pois
continuam
a
fazê-‐los
como
se
índios
fossem
os
selvagens.
Os
selvagens
são
eles.
Eu
não
sou
índio,
não
falo
a
linguagem
dos
índios,
não
vivo
no
meio
dos
índios
e
como
posso
fotografar
índios?
Mesma
coisa,
eu
não
sou
um
drogado,
não
vivo
no
meio
dos
drogados,
eu
podia
ter
fotografado
o
crack?
Ia
fotografar
de
fora?
Não.
Tem
um
amigo
meu
que
fotografou,
mas
foi
lá
no
meio
deles,
levou
porrada
e
várias
coisas.
E
isto
tem
a
ver
com
o
princípio
da
fotografia,
que
é
uma
fotografia
etnocêntrica
sempre,
quer
dizer,
uma
parte
dos
que
hoje
a
exercem
parte
do
pressuposto
de
“eu
sei”,
“eu
conheço”,
“os
tenho
os
aparelhos
e
eu
domino”.
Então,
tudo
que
se
faça
com
estes
pressupostos,
por
muito
perto
que
esteja,
é
sempre
falso.
Sendo
que
a
própria
fotografia
em
si
é
falsa,
porque
é
uma
interpretação
a
partir
do
olho
e
da
cabeça
que
está
atrás
das
lentes,
mas
mesmo
quando
querem
ser
reais
às
vezes
são
uma
porcaria.
Uns
dois
brasileiros
atuais
têm
bons
trabalhos
feitos
sobre
a
Amazônia
atuais.
Eu
conheço
um
que
mora
na
Amazônia,
mas
ele
nunca
disse
que
era
assim,
aquele
é
olhar
dele
também.
Será
sempre
assim.
Mas
o
que
me
chateia
profundamente
é
ser
vendido
por
todo
lado
por
gente
que
faz
assim,
que
passa
uma
semana,
dez
dias,
quinze
dias
ou
dois
meses
e
diz
“eu
vi
e
é
isto”.
Os
índios
que
se
deixam
fotografar
daquela
maneira
já
não
são
os
índios
de
que
eles
querem
falar.
Manda
fotografar
os
índios
na
América
do
Norte
para
ver
se
eles
são
capazes.
Na
África
é
igual.
Qualquer
cidade
que
não
seja
patriarcal
é
assim.
O
quê
que
eles
querem
dizer
com
isto?
São
burros,
estruturalmente
burros.
Uma
legenda
dessa,
pura
e
simplesmente
não
deveria
aparecer
em
lugar
nenhum,
porque
partem
de
uma
leitura
cultural
de
uma
situação
que
não
entendem
e
jamais
vão
entender.
Nunca
entenderiam
os
esquimós,
por
exemplo.
É
gente
curta
e
que,
como
tu
dizes,
há
uma
manutenção
dos
estereótipos,
que
existem,
por
um
lado
pela
intencionalidade
de
quem
os
manipula
e,
por
outro,
continua
a
existir
por
causa
daqueles
que
não
estão
prontos
a
aceitar
as
diferenças
culturais.
E
as
diferenças
culturais
são
assim,
acho
eu.
306
Há
uma
coisa
que
eu
adoro
na
fotografia
latino-‐americana,
que
é
uma
coisa
de
brincar
com
o
título
das
coisas,
sobretudo
a
sul
americana,
uma
parte
são
chilenos.
São
irônicos
e
refinados,
dá
prazer,
muitas
vezes,
ler
os
títulos
das
fotografias,
porque
faz
parte
da
cultura
deles.
Eles
seriam
incapazes
de
por
aquela
imagem
na
parede
sem
escrever
aquela
frase,
que
parece
um
título,
mas
isso
é
a
cultura
daqueles
países
da
América
do
Sul.
As
fotografias
são
lindíssimas
e
os
gajos
tem
uma
mania
de
botar
os
títulos.
E
temos
que
perceber
por
que
lá
está,
de
onde
aquilo
saiu,
que
poeta
que
escreveu,
aquela
ideia,
percebes?
307
ANEXO
3:
Entrevista
com
Jordi
Burch
+
Realizada
em
16
de
março
de
2017,
Livraria
Cultura,
São
Paulo-‐SP.
LT:
Eu
pesquisei
muito
no
site
do
Kameraphoto,
mas
e
eu
achava
que
você
era
catalão...
JB:
Eu
nasci
lá,
mas
fui
pra
lá
bebê.
Fui
pra
Portugal
bebê,
então
eu
sou
português.
A
minha
mãe
é
portuguesa,
meu
pai
é
catalão.
Eu
nasci
em
Barcelona
e
fui
imediatamente
para
Lisboa.
LT:
Pesquisando
na
internet
eu
achei
que
o
seu
projeto
“Amor
Cachorro”
que
foi
feito
aqui
em
São
Paulo.
JB:
Foi
o
primeiro
de
todos
.Tem
um
outro
que
eu
fiz
que
se
chama
Sacrifício,
não
sei
se
chegaste
a
ver?
LT:
Sacrifício?
JB:
É,
foi
feito
cá.
LT:
Ah,
eu
não
consegui
achar
na
Internet.
Você
tem
como
mandar
as
fotos
depois?
JB:
Tenho
tenho…Estávamos
a
falar
do
Sacrifício
que
é
um
trabalho
que
eu
fiz
aqui
no
Brasil,
mas
é
só
cortes,
cortes
da
carne…são
cirurgias
plásticas,
mas
eu
trabalhei
muito
a
questão
do
gesto
e
do
corte,
então
não
tinha
nada
a
ver
com
cirurgias
plásticas….no
fundo.
Foi
feito
aqui,
mas
podia
ter
sido
feito
em
qualquer
outro
lugar.
LT:
Eu
achei
interessante
o
Amor
Cachorro.
Por
que
foi
feito
com
mulheres
e
foi
feito
aqui
em
São
Paulo.
E
é
um
tema
interessante.
Mas
como
foi
que
você
chegou
nisso?
JB:
Eu
cheguei
nisso
porque
quando
eu
cheguei
aqui
eu
comecei
a
ver
notícias
na
TV
e
no
jornal
e
aí
eu
fiquei
horrorizado
com
a
questão
da
violência…que
também
em
Portugal
e
agora
começou-‐se
a
se
ouvir
mais…deveria
de
haver
e
a
gente
não
sabia,
e
aqui
isso
era
muito
escancarado
nos
jornais
no
BRASIL…sabe
e
na
TV
e
tudo
mais.
Eu
fiquei
a
entender
que
essa
questão
passional
era
forte.
Aí
eu
via
também
muita
briga
na
rua
e
tudo
mais.
Aí
foi
a
Marília
Gabriela
que
me
disse
que
havia
um
grupo
de
mulheres
que
se
chama
“Mulheres
que
amam
demais
anônimas”
,
que
é
o
MADA.
Eu
fui
lá
…fui
lá
e
aí
escolhi
13
e
aí
a
gente
foi…eu
fui….eu
acho
que
eu
passei
uns
dois
meses
conversando
com
elas
e
fotografei
tudo
em
15
dias
porque
eu
não
queria
ir
fotografando…queria
entender
a
questão
finalmente,
entendes?
Então
eu
não
comecei
fotografando.
Eu
comecei
tomando
café.
Umas
tinham
o
namorado
internado
numa
clínica
de
alcoólicos
e
eu
ia
com
ela
visitar
o
namorado.
Eu
passava
muito
tempo
com
elas.
Ia
para
a
casa
delas,
ouvia
o
que
elas
tinham
a
dizer.
Entendes?
E
só
depois
é
que
eu
fotografei.
Eu
tive
uns
dois
meses
com
elas
a
308
conversar,
a
tomar
cafés
e
em
15
dias…eu
com
várias
câmeras
diferentes…nenhuma
era
igual
porque
eu
não
queria
uma
coisa
homogénea
porque
eu
achava
que
o
tema
não
é
um
tema
lógico,
é
um
tema
que
faça
sentido.
E
na
altura,
quando
eu
fiz
esse
trabalho.
Expus
lá
em
Portugal
também…a
maior
crítica
que
eu
tive
foi
de
usar
diferentes
formatos
no
mesmo
trabalho
que
eu
achava
uma
grande
caretice...
não
se
poder
fazer
isso.
Agora
já
não
é
assim.
Agora
já
todo
mundo
já
mistura
formatos,
vídeos,
fotos.
LT:
Então
quer
dizer
que
isso
é
uma
coisa
do
Brasil…essa
história
de
violência
contra
a
mulher
ou
violência
passional?
JB:
É
uma
violência
passional,
mas
por
outro
lado
eu
também
via
isso,
mas
também
via
coisas
incríveis.
As
pessoas
beijam-‐se
mais
nas
ruas
à
vontade
do
que
em
Portugal.
Amam-‐se
mais
tranquilamente,
entendes?
Eu
acho
que
no
metro
dois
moleques
de
16
anos,
um
menino
e
uma
menina
que
se
beijam
vão
ter
alguém
a
olhar
ou
mesmo
a
dizer
alguma
coisa.
Aqui
não…
então
eu
percebi
que
a
coisa
do
amor
e
dessa
demonstração
para
o
bem
o
para
o
mal
era
muito
mais
evidente,
entendes?
E
eu
queria
entender
um
pouco
mais
isso.
Entendi
coisas
como
a
palavra
DR
que
a
gente
não
sabia
o
que
era.
Tinha
histórias.
Há
uma
dessas
meninas
que
eu
fotografei
ela
era
casada
com
um
cara,
professor
universitário,
mas
ela
vivia
na
favela.
Aí
ela
ia
de
ônibus
sempre
da
favela
para
o
trabalho
dela.
Aí
ela
apaixonou-‐se
pela
motorista
do
ônibus.
Aí
ela
foi
falando
com
a
motorista.
Aí
um
dia
ela
esperou
a
motorista
no
fim
da
viagem
de
ônibus,
raptou-‐a,
colocou-‐a
no
porta-‐malas
do
carro
e
levou-‐a
para
casa
e
apresentou
ao
marido.
Estavam
os
três
juntos.
Eu
acho
isso
muito
louco
porque
olha
a
disponibilidade.
Tu
és
raptada,
mas
continuas
a
quereres
estar
ali,
não
foges.
LT:
E
isso
não
tem
em
Portugal?
JB:
Não
sei,
talvez
tenha,
mas
eu
nunca
tinha
ouvido
uma
história
destas.
Eu
trabalho
os
temas…eu
não
consigo
nunca
muito
catalogá-‐los
se
é
do
Brasil,
se
é
de
Portugal.
Tento
perceber
as
tensões
para
o
bem
e
para
o
mal.
As
tensões
emocionais
que
existem.
Então
eu
não
sei
dizer
se
isso
é
uma
questão
só
do
Brasil.
Mas
é
uma
questão
que
eu
assim
que
cheguei
vi.
Vi
as
pessoas
a
namorarem
longamente
encostados
a
uma
calçada
do
passeio,
sabe?
Ficam
ali
a
namorar,
a
falar,
a
acariciar
no
jardim.
Tu
vês
muito
isso.
Como
também
vê
as
brigas
monumentais:
seu
filho
da
puta…e
não
sei
que…ou
sua
filha
da
puta.
Então
era
um
tema
que
foi
o
logo
o
primeiro
quando
eu
cheguei
que
eu
queria
entender.
LT:
Em
Portugal
não
existe
namorar
na
rua,
não
é?
JB:
Eu
acho
também.
Aliás,
uma
das
coisas
que
eu
percebi
quando
cheguei
aqui
é
o
fato
de
não
ser
criminoso
eu
falar
com
uma
mulher.
Não
é
pecado.
Tu
pegas
um
elevador
em
Lisboa,
está
uma
mulher
lá
dentro…não
podes
falar
porque
ela
acha
que
tu
estás
a
seduzi-‐la
…e
isso
não
é
assim.
Há
uma
barreira
muito
grande
entre
o
homem
e
a
mulher
em
Portugal.
Eu
aqui
consigo
comunicar
com
uma
mulher
muito
mais
309
tranquilamente
e
não
tem
que
haver…eu
posso
achar
ela
linda…e
ela
não
se
vai
chatear
com
isso.
Eu
não
lhe
vou
dizer
isso,
mas
ela
não
vai
barrar
só
por
ser
linda,
por
exemplo.
Uma
mulher
portuguesa
que
é
linda
tu
nem
olhas
porque
ela
já
te
vai
dizer:
o
que
que
foi?
Entendes?
Então
há
uma
barreira
muito
grande…isso
aí
nitidamente.
Não
só
entre
homem
e
mulher,
entre
as
pessoas.
Contato
aqui
é
muito
mais
tranquilo,
é
muito
mais
liberto,
libertador.
LT:
Certo,
o
que
você
ouvia
falar
do
Brasil
antes
vir
para
cá?
JB:
Eu
vim
muitas
vezes
para
o
Brasil
antes
de
vir
viver
cá.
Mas
havia
na
Europa
um
grande
preconceito
em
relação
ao
Brasil.
Mulher
fácil…que
não
é.
Isso
é
preconceito.
Mulher
é
tão
fácil,
quanto
o
homem
é
fácil.
Desejam
e
estão,
ponto!
Era
uma
coisa
que
me
dava
raiva
esse
preconceito.
Eu
tive
grandes
discussões
com
amigos
em
Portugal
sobre
isso,
entendes?
Que
a
mulher
era
fácil,
que
o
brasileiro
era
malandro.
Isso
era
o
que
antigamente
se
achava
do
Brasil.
LT:
E
hoje
em
dia
não
mais
isso?
JB:
Eu
acho
que
não.
Tomara
que
não.
LT:
Eu
vou
dizer
para
você
que
eu
como
brasileira
passo
por
isso
hoje
ainda.
JB:
Ah,
com
certeza,
deves
passar.
Não,
eu
acho
que
ainda
existe
muito
preconceito
porque
o
português
é
muito
preconceituoso.
A
Europa
é
preconceituosa,
mas
eu
acho
que
antes
ainda
era
pior.
Mulher
brasileira
era
puta.
Era
assim
que
era.
E
o
homem
era
malandro,
e
o
português,
o
melhor
do
mundo.
O
português
é
inacreditável
como
tu
podes
ter
uma
pessoa
de
cada
nacionalidade
a
apontar
um
defeito
a
ele
e
ele
vai
dizer:
não,
não
vocês
todos
é
que
estão
enganados.
Eu,
português,
estou
certo.
Eu
ia
te
perguntar
como
é
que
consegues
viver
lá.
Eu
não
consigo
viver
lá.
Porque
se
não
eu
vou
bater
de
frente
diariamente.
Eu
vou
lá
um
mês
e
saio
de
lá
desesperado
para
vir
pra
cá.
As
coisas
aqui
são
muito…olha,
vou
te
dizer,
quando
eu
cheguei
aqui
e
fui
a
padaria
e
a
pessoa
diz:
oi,
tudo
bem?
E
eu
assim:
você
está
a
me
dizer:
oi,
tudo
bem?
Porque
em
Portugal
ninguém
te
faz
isso.
Eu
mandei
mensagem
aos
meus
amigos.
As
pessoas
perguntam:
oi,
tudo
bem,
meu
querido?
Entendes?
É
uma
libertação
para
quem
vem
de
lá
gigante.
É
uma
grande
libertação.
Para
mim
foi
tirar
uma
tonelada
das
costas
porque
eu
batia
de
frente
diariamente
em
todo
lugar.
E
com
as
relações
com
as
mulheres,
já
que
estava-‐se
a
se
falar
neste
trabalho,
também.
Acaba
por
ser
muito
mais
honesto,
entendes?
Se
ela
me
traiu
ou
seu
eu
traí
a
gente
fala
de
uma
maneira
muito
mais
aberta,
muito
menos
conservadora,
muito
menos
religiosa.
As
coisas
são
muito
mais
pulsivas
e
muito
mais
“discutidas”.
Entendes?
É
um
mundo,
apesar
de
ser
altamente
machista,
o
Brasil
também,
tal
como
Portugal,
mas
o
mundo
que
não
é
machista
aqui
é
muito
mais
libertador
que
o
mundo…em
Portugal
não
existe
não
machista.
310
LT:
Mas
existe
muito
brasileiro
machista,
né?
J:
É
que
lá
(em
PT)
existe
mulher
machista.
Eu
vi
essa
cena
meu
facebook;
o
que
que
acontecia
agora
no
dia
das
mulheres:
as
minhas
amigas
portuguesas
dizem:
querida,
beijinhos!
As
minhas
amigas
brasileiras
eram:
puta
que
pariu,
que
merda
é
essa?
Vamos
nos
manifestar,
não
queremos
flores,
queremos
direitos.
Entendes?
Outra
linguagem.
Então
para
mim
é
impossível.
Eu
sei
que
vou
morrer
neste
país.
Porque
eu
acho
que
quando
eu
for
velho,
nem
velho
eu
vou
ser
tão
velho
como
aquele
país.
E
não
tenho
raiva
nenhuma.
Tenho
lá
meu
apartamento.
Tenho
lá
os
meus
melhores
amigos,
mas
é
impossível
tu
teres
alguma
liberdade
emocional,
voltares
para
uma
prisão.
Mas
é
que
tu,
Lorena,
tu
conheces
a
liberdade.
Eles
não
conhecem.
Entendes?
Eu
vi
debates
televisivos
agora
dos
intelectuais
falando
sobre
o
dia
da
mulher…não
conseguem
não
ser
machistas.
Principalmente
essa
coisa
que
havia:
a
mulher
brasileira
é
puta
e
fácil.
Que
merda
é
essa?
É
assim:
tu
podes
comer
duas,
três,
quatro…e
como
é?
Não
temos
os
mesmos
desejos:
homens
e
mulheres?
Não,
isso
é
manifestação
de
liberdade.
Eu
desejo-‐te
e
podes
ser
casado
e
não
querer
trair,
mas
desejar
outra
pessoa
é
normal.
E
percebes
onde
está
o
problema
da
falta
de
direitos
das
mulheres?
Os
homens
querem
que
elas
não
sintam,
que
elas
não
tenham
desejo.
Elas
não
devem
ter
desejo.
Eles,
sim,
eles
podem.
Entendes?
Até
a
maneira
como
os
homens
falam
das
mulheres
e
as
mulheres
falam
dos
homens.
O
homem
pode
falar
de
uma
determinada
maneira
e
a
mulher
supostamente
não.
Então
eu
acho
que
esse
tema,
de
uma
ou
de
outra
maneira.
Essa
questão
mesmo
que
não
seja
diretamente
sobre
isso,
vai
sempre
estar
no
meu
trabalho,
sempre.
LT:
Então
é
por
isso
que
as
fotos
terminam
sendo…o
projeto
é
sobre
mulheres
que
amam
demais.
Essa
história
de
gostar
demais
e
ser
possessivo
para
elas
poderem
fazer
um
tratamento
e
amar
normalmente
a
pessoa,
respeitando
cada
um
o
seu
espaço.
Mas
termina
que
o
seu
projeto
mostra
muito
a
mulher
sensual,
porque?
JB:
Porque
é
e
eram.
Porque
são.
A
única
coisa
que
eu
queria.
A
única
indicação
de
que
aquilo
era
sobre
mulheres
que
amavam
demais
seria
ou
no
título
ou
numa
breve
explicação.
Eu
não
queria
que
as
imagens
passassem
esse
relato.
O
que
eu
fotografei
foi:
essas
mulheres
vão
a
um
grupo
chamado
mulheres
que
amam
demais…agora
eu
não
vou
forçar
a
barra.
Eu
vou
só
andar
com
elas.
Eu
não
vou
querer
que
a
imagem
passe
isso.
Para
tu
vês
a
maior
parte
são
mulheres
com
condições
económicas
desfavoráveis.
Mas
não
as
vês
colocadas
neste
lugar
de
fazer
retrato
sofrido…algumas
são
sofridas,
mas
eu
não
fazia
questão
que
passasse
essa…as
imagens
são
todas
sofridas,
mas
elas
têm
uma
vida
sofrida.
Entendes?
LT:
A
pessoa
que
ama
demais
já
sofre.
JB:
E
depois
vives
lá
longe.
Andas
quatro
horas
de
ônibus
para
vir
trabalhar
pra
aqui.
Entendes?
Todas
essas
questões
que
a
gente
falou
pareceu
muito
cachorro.
Há
várias
311
coisas
que
aparecem
nesse
trabalho.
Cachorro
e
a
questão
religiosa.
O
cachorro
porque
vira
companheiro
delas
mesmo.
E
a
questão
religiosa
porque
todas
elas
têm
muita
fé.
Mas
eu
não
queria
fazer
uma
coisa
descarada
de
“olha
aqui
essas
mulheres
que
ama
demais”.
Eu
queria
uma
coisa
do
cotidiano.
LT:
Tem
uma
tomando
banho?
E
tem
uma
que
você
falou
que
quando
ela
abaixava
levantava
o
vestido?
Era
isso,
uma
coisa
assim?
JB:
Sim.
Eu
queria
colocar
isso…ela
ia
na
varanda,
ela
curtia
o
vizinho
do
lado
e
aí
ela
pegava
uma
taça
de
vinho.
Ela
tinha
uma
bunda
gostosa…e
ela
sabia
que
tinha.
E
o
que
ela
fazia:
ela
tinha
a
varanda
e
o
vizinho
também
tinha
a
varanda
e
ela
quando
percebia
que
ele
estava
por
lá
ela
ia
com
uma
taça
de
vinho
e
aí
pousava
a
taça,
pegava
o
cachorro
de
maneira
que
ele
visse
a
bunda
dela.
E
aí
eu
disse
assim:
então
tá,
vamos
fazer
essa
foto,
mas
queres
que
faça
uma
foto
da
tua
bunda?
E
ela:
ah,
eu
quero,
eu
acho
minha
bunda
bonita.
E
a
gente
fez.
Todas
elas
foram
a
exposição
da
Nara
Roesler.
LT:
Elas
estavam
sempre
dispostas
a
mostrar
o
corpo?
JB:
Isso
foi
um
ato
complicado
porque
também
existe
uma
ideia
da
imagem
e
da
fotografia
no
Brasil
um
pouco
diferente
da
que
eu
tinha
de
lá.
Sempre
a
moda
e
publicidade,
tirando
esse
meio
artístico
e
tudo
mais,
a
moda
e
a
publicidade
são
as
grandes
manifestações
da
fotografia.
Nunca
vi
tanta
exposição
de
fotógrafos
de
moda
como
vejo
aqui.
O
Bob
Wolfenson
expõe
nas
melhores
galerias
e
faz
um
trabalho
de
moda,
entendes?
Então,
explicar
a
elas
que
aquilo
poderia
ter
imagens
que
não
eram
bonitas,
mas
que
era
sobre
um
assunto
importante
demorou
esses
dois
meses...
um
mês
e
meio
que
foi.
A
conversar
com
elas
e
aí
quando
elas
começaram
a
desabar
e
a
falar,
elas
perceberam
que
eu
estava
a
falar
da
fragilidade
da
vida
humana.
E
não
estava
a
falar
de
questões
estéticas.
Elas
não
iriam
sair
lindas.
As
câmeras
eram
todas
muito
arcaicas
e
então
isso
demorou
um
tempo
para
elas
não
pousarem
demasiado,
para
elas
não….para
elas
despreocuparem-‐se
foi
preciso
pôr
elas
a
falarem
para
perceber
também
do
que
que
eu
queria
falar.
LT:
Mas
eu
pergunto
porque,
por
exemplo,
na
fotografia
brasileira
você
olhar
pro
trabalho
do
Rio
Branco,
do
Cravo
Neto…ninguém
está
mostrando
muito
o
corpo
da
mulher
de
uma
forma
mais
sensual.
Mas
os
portugueses,
os
estrangeiros
geralmente
só
mostram
a
mulher
para
mostrar
de
uma
forma
mais
sensual.
Isso
é
uma
coisa…
JB:
Clássica.
Mas
o
Miguel
Rio
Branco
tem.
Na
Bahia…não
sei
se
é
sensual
ou
não…é
muito
subjetivo.
Mas
eu
não
acho….muitas
daquelas
imagens
que
eu
fiz
eu
não
acho
muito
sensuais.
Acho
brutas
se
queres
que
diga.
A
mulher
com
a
bunda
direto
para
a
câmera
é
uma
coisa
meio
agressiva
até.
Mas
queres
que
digas
honestamente:
sim,
a
mulher
brasileira
é
muito
mais
sensual
que
a
mulher
portuguesa.
Não
há
dúvidas.
Para
mim,
não
tenho
problema
nenhum
em
dizer
isso.
Diz
logo
da
maneira
como
eu
posso
falar
com
ela.
312
LT:
Eu
ainda
não
consegui
encontrar
uma
mulher
que
veio
para
o
Brasil
fotografar
para
poder
entender
esse
outro
olhar
sobre
a
mulher..
JB:
É
possível,
talvez.
Mas
eu
acho
que
o
Brasil
sempre
foi
um
lugar,
apesar
de
os
portugueses
serem
muito
preconceituosos
em
relação
a
isso…que
as
mulheres
são
fáceis
e
que
o
cara
é
malandro…eles
dizem
isto,
mas
eles
querem
isto.
Eles
querem
poder
ser
um
pouquinho
malandros
e
não
podem
lá
na
nossa
terra
e
querem
poder
ter
acesso
a
isso.
Só
que
não
no
país
deles.
E
há
um
lado
para
um
país
como
Portugal
que
é
a
possibilidade
de
os
portugueses
viajarem
e
encontrar
as
coisas
incríveis
que
não
tens
lá.
Eu
viajei
muito
pela
Amazônia
antes
de
fazer
isso.
É
uma
coisa
inacreditavelmente
mágica.
Há
um
livro
também
que
tu
podes
ver
que
é
de
um
cara
que
é
o
Pedro
Ferreira,
chama
“Viagem
Filosófica”,
mas
são
só
desenhos.
Toda
gente
ficava
maluca
quando
vinha
ao
Brasil.
Não
era
só
o
Vasco
e
Caminha.
Toda
gente
ficava.
Com
as
espécies
das
aves,
com
os
rios,
com
o
calor,
com
as
praias,
com
as
mulheres,
com
tudo.
É
mundo
novo
em
que
o
mundo
velho
pode
ter
algum
acesso.
Então
eu
acho
que
esse
lado
aventureiro
tenha
despertado
muita
atenção,
agora
eu
não
sei
porque
que
não
vem
mais
mulheres,
não
é?
…tu
sabes
que
quando
nós
somos
pequeninos,
o
homem
bebê
já
tem
uma
coisa
louca
com
a
mulher:
a
mãe.
Eu
acho
que
isso
cresce.
Eu
na
primeira
vez
que
fiz
uma
exposição
lá
em
Portugal
na
Kameraphoto.
Era
uma
exposição
que
se
chamava
“Processo”
e
o
tema
era
todo
de
mulheres.
Era
só
de
mulheres
e
chama-‐se
“Processo”
também
porque
eu
estava
a
descolar
da
linguagem
do
fotojornalismo
e
a
tentar
procurar
outras
linguagens.
Então
chama-‐se
processo
por
isso:
por
eu
estar
a
trabalhar
um
tema
que
já
foi
sobejamente
trabalhado,
mas
que
eu
achava
inevitável.
Para
mim,
eu
tinha
que
trabalhar
esse
tema.
Que
realmente
é
um
tema.
Para
mim,
homem,
é
um
tema.
Nunca
vai
deixar
de
ser
um
tema.
LT:
E
os
índios?
Fotografam
índios
até
hoje…
JB:
Claro.
Os
índios
são
a
mesma
coisa.
Mas
olha…a
gente
está
sempre
a
ver…quem
fotografou
os
índios
bem
foi
a
Claudia
(Andujar),
que
está
lá
agora
em
Portugal.
O
resto
fez
muito
uma
usurpação.
Aí
a
fotografia
entra
realmente
naquele
papel
de
roubar
a
alma.
Porque…a
Claudia
quando
fez
isso
a
preto
e
branco
não
fez
só
preto
e
branco
só
para
ficar
mais
bonito.
E
ela
também
tem
fotos
a
cores.
Agora
o
português
vai
lá
e
fotografa
a
preto
e
branco.
O
Sebastião
Salgado…eu
acho
as
imagens
dele
muito
bonitas,
Porque
o
Sebastião
Salgado
é
um
fotojornalista,
não
é
um
artista.
Mas
se
ele
quiser
entrar
no
universo
da
arte
as
coisas
não
são
tão
escancaradas
como
elas
têm
ali.
Há
outras
camadas
até
chegares
ao
assunto.
Não
é
tudo
tão
escancarado.
Então
ele
é
fotojornalista
eu
tenho
que
responder
a
4
perguntas:
onde,
por
que,
quando
e
quem?
Ele
não
bota
uma
legenda
com
os
nomes
das
pessoas
lá.
Como
se
chama
aquelas
índias
com
os
peitos
de
fora?
A
gente
não
sabe.
Entendes?
Ele
não
tem
legenda
com
os
nomes
das
pessoas.
Ele
vai
lá
e
monta
cenários.
E
os
portugueses
todos
que
vão
pra
lá…eu
fui…fotografar
para
o
Publico.
313
LT:
Quando
chegou
também
?
JB:
Não
não…
eu
tinha
19
anos,
20
anos.
Fiz
uma
matéria
a
preto
e
branco,
não
mostra
a
ninguém…esconde.
Tenho
vergonha.
Tudo
a
preto
e
branco
também,
entendes?
Que
é
isso…a
facilidade…vamos
ali
usurpar
as
coisas,
trazer
a
imagem
aí
a
fotografia
realmente
rouba
a
alma.
E
dos
índios
que
é
uma
coisa
especialíssima
toda
a
coisa
do
índio.
Tinha
que
se
saber
muita
coisa
para
ir
lá
e
fotografar.
A
gente
vai
lá
fotografar.
Eu
fui
sem
ter
lido
nada,
entendes?
Sem
ter
lido
os
antropólogos.
O
Lévi-‐Strauss,
sem
ter
lido….um
dos
antropólogos
brasileiros
mais
lidos.
LT:
Tem
o
Lobito
que
morou
na
Amazônia,
o
português.
JB:
Ah,
então,
tem
esse.
Tem
muita
coisa,
a
galera
vai
para
lá
pelo
exotismo
realmente.
Eu
fui
assim
também
quando
tinha
20
anos,
mas
já
fui
depois
outra
vez
com
o
Alexandre
Lucas
Coelho
e
já
fui
com
uma
abordagem
diferente,
eu
acho.
Fotografei
tudo
a
cores.
E
acho
que
me
posicionei
de
uma
maneira
diferente.
Li
mais,
conversei
com
antropólogos,
conversei
com
um
cara
que
chama
Pedro
Cesarino,
que
é
um
grande
antropólogo
especialista,
Darcy
Ribeiro.
É
preciso
entender
tudo
isso
para…eu
acho
que…Essa
é
uma
questão
que
o
fotojornalismo
precisa
ter
mais
background,
sabes?
Não
ir
só
à
procura
de
imagens
bonitas.
Eu
comecei
a
desistir
da
fotografia
de
reportagem
precisamente
por
achar
que
o
tempo
que
as
revistas
me
davam
para
fazer
as
coisas
não
era
suficiente
para
investigar
e
aprofundar,
como
hoje
eu
acho
que
consigo
fazer
em
relação
aos
projetos
eu
que
eu
faço.
Eu
acho
que
eu
entro
muito
mais
neles,
converso
com
muito
mais
gente,
estudo
muito
mais,
vou
falar
com
muito
mais
gente
do
que
as
revistas
nos
permitem.
A
gente
vai
lá
realmente
roubar
imagens
exóticas.
Eu
não
sei
porque
raios…se
tem
que
fotografar
África
e
Amazônia
a
preto
e
branco,
entendes?
LT:
Os
clichés,
não
é?
JB:
É,
os
clichés.
E
eu
também
vou
atrás
dos
clichés,
ouve
lá.
Realmente
quando
eu
cheguei
ao
Brasil
eu
apaixonava-‐me
em
cada
esquina.
Honestamente.
Primeiro
por
essa
possibilidade
de
falar
com
as
mulheres,
incrível.
Eu
podia
dizer
assim:
eu
amo-‐te
e
ela
não
me
mandava
para
a
puta
que
pariu.
Ela
dizia
assim:
que
incrível
e
tal…o
português
que
me
ama
e
não
queria
nada
comigo.
Mas
não
ficava
chateada.
Isso
aí
era
inacreditável,
entendes?
Então
eu
não
tenho
como
não
ter
fotografar
isso.
Eu
fotografei
isso
muito
e
tenho
ainda…tenho
um
livro
que
estou
para
lançar
que
é
a
falar
da
minha
própria
filha
depois
disto
porque
depois
eu
recebi
muitas
cartas
de
pessoas
chateadas
comigo
que
se
chama
“Não
era
amor,
era
um
quarto
da
madrugada”.
Porque
eu,
sabes?
a
fazer
tudo
o
que
eu
podia.
E
isso
entras
num
universo
novo,
é
como
se
não
pudesses
de
repente
falar
com
uma
pessoa
ou
com
pessoas
e
depois
foste
a
outro
país
e
passas
a
poder
falar.
Mais:
a
tocar.
Eu
não
vou
dizer
que
sou
um
cara
perfeito
e
que
não
caí
também
nesse
erro…também
caí.
Mas
acho
que
me
preocupo
no
meu
trabalho
e
não
ter
essa
de
ter
uma
gostosa,
aliás
tenho
gostosas
no
314
meu
trabalho.
Não
tenho
as
pessoas
como
gostosas.
A
pessoa
pode
ser
gostosa,
mas
não
é
isso
garantidamente
que
tu
vais
ver
na
foto.
Vais
ver
a
pessoa
e
vais
ver
a
mim.
Eu
não
tenho
pessoas
nas
minhas
fotos
por
serem
lindas,
feias,
gostosas
ou
bonitas.
Isso
não
passa
por
aí.
LT:
Acho
que
também
por
isso
minha
pesquisa
se
preocupa
em
falar
com
os
fotógrafos.
Porque
eu
vejo
que
em
fotografia
portuguesa
aparece
mulher
nua
e
na
fotografia
brasileira
não
tem
isso...
Então,
desde
a
fotografia
colonial
a
mulher
brasileira
continua
aparecendo
nua,
a
mulher
africana
continua
aparecendo
nua...
JB:
Totalmente.
LT:
E
aí
como
eu
não
sou
portuguesa,
eu
precisava
entender
o
que
cada
um
pensa
sobre
isso...
JB:
Essas
coisas
que
eu
entendi
de
achar,
vou
dizer
isso
sem
problema
nenhum,
as
mulheres
brasileiras
mais
bonitas,
mais
sensuais,
mais
delicioso
transar…tudo…porque
é
outra
liberdade,
entendes?
Tudo
isso
eu
acho
e
sinto,
então
acaba
por
estar
no
meu
trabalho,
mas
eu
não
faço
um
trabalho
sobre
isso.
Não
vou
fazer
um
trabalho
sobre
isso.
Mas
realmente
para
quem
vem
de
lá
isso
é
uma
coisa
absolutamente
notória,
mas
também
é
notório
de
como
os
meus
amigos
brasileiros,
assim
que
eu
cheguei
aqui
me
deram
casa
para
eu
ficar
e
eu
mal
os
conhecia.
Isso
em
contraste
com
aquilo
que
diziam
lá:
que
eram
malandros.
Quando
eu
tenho
que
pedir
10
euros
a
um
amigo
meu
é
um
sacrifício.
Aqui
eu
não
preciso
pedir.
O
meu
amigo
brasileiro
que
me
vê
aflito
diz:
oh,
cara,
toma
aí
300
reais.
Já
me
aconteceu.
1.500
reais,
não
era
10
euros.
Um
malandro
me
emprestava
1.500
reais
sem
eu
lhe
pedir?
Agora
há
uma
socióloga
e
antropóloga
que
ela
tem
um
trabalho
incrível
sobre
isso,
que
é
a
Lilian
Schwartz.
Eu
acho
que
poderias
falar
com
ela.
Porque
ela
fala
muito
sobre
isso
e
é
muito
interessante.
Mas
eu
acho
que
faz
sentido
a
tua
pesquisa.
Então,
o
único
trabalho
em
que
eu
fotografei
estritamente
mulheres
foi
esse
que
falaste
“Amor
Cachorro”.
Todas
as
outras
coisas
se
acabam
por
estar
lá,
mas
não
estão
diretamente.
Esse
trabalha
que
estavas
a
falar
”Não
era
amor,
era
um
quarto
da
madrugada”
tem
muito
mais
a
ver
eu
entender
a
merda
que
eu
também
fazia
e
que
vou
tentando
melhorar
em
relação
a
essa
questão
que
é
a
mulher…
E
perceber
que
as
pessoas
ficavam
muito
chateadas
comigo
na
maneira
como
eu
terminava
as
coisas
e
tudo
mais…toda
gente
fica.
Mas
as
cartas
eram
extremamente
violentas.
E
eu
entendi
que
elas
eram
violentas
porque
eu
tinha
feito
com
que
isso
acontecesse.
Então
esse,
talvez
seja
o
segundo
trabalho
que
eu
falo
disso
diretamente.
Em
todos
os
outros
não
aparece.
LT:
Esse
está
pronto
já
para
mostrar?
JB:
Tem
uma
parte…se
quiseres
posso
mostrar
uma
parte.
Saiu
na
Granta,
sabes
a
Granta
lá
em
Portugal,
uma
revista
de
literatura,
sobre
literatura?
é
uma
revista
inglesa
que
agora
a
Tinta-‐da-‐China
editou
em
Portugal
que
aí
saiu
no
Publico
e
tal
e
aí
315
eu
publiquei
um
capítulo
lá.
Eu
posso
lhe
mandar
esse
capítulo,
se
tu
quiseres.
E
aí
eu
coloco-‐me
como
um
filho
da
puta
em
relação
e
isso
e
como
a
mulher
é
autónoma,
independente.
Eu
tenho
uma
fotografia
de
uma
mulher
indo
a
um
casamento
com
o
noivo…está
tão
escuro…
então
praticamente
só
vês
a
mulher
e
na
fotografia
a
seguir
tens
uma
mulher
sozinha
a
masturbar-‐se
com
um
vibrador.
Somos
autônomos
realmente.
Então
esses
talvez
sejam
os
dois
únicos
trabalhos
em
que
eu
falo
diretamente
desse
tema.
Todos
os
outros
não,
mas
penso
muito,
já
pensei
muito
a
fazer
isso
que
é:
eu
não
distingo
entre
uma
mulher
a
outra
nas
capas
da
Playboy.
Porque
há
ali
um
estereótipo
que
todo
mundo
quer.
LT:
Mas
se
lhe
chamassem
para
fazer
um
ensaio
para
a
Playboy
você
faria?
JB:
Uma
vez
pediram,
não
para
fazer
capa,
mas
para
mandar
um
ensaio.
Eu
mandei
e
eles
não
publicaram.,
entendes?
LT:
Era
muito
subjetivo,
muito
abstrato?
JB:
Tens
mulher
a
sangrar
com
o
período,
com
a
menstruação,
tens
a
mulher
com
cabelo
rapado,
tens
a
gente
a
pousar
os
dois
juntos.
Acontece
uma
coisa
nas
capas
das
revistas
que
eu
consigo
identificar…é
que
não
tem
erro.
Eu
não
acredito
absolutamente
em
nada
que
não
tenha
erro.
É
por
isso
que
eu
gosto
da
fotografia
analógica.
Por
dois
motivos:
um
porque
eu
não
quero
o
crédito
todo
só
para
mim,
e
o
segundo
porque
uma
das
coisas
que
me
faz
apaixonar
pela
fotografia
foi
a
fenomenologia,
o
fenómeno,
qualquer
coisa
que
parece
que
não
tem
nada
a
ver
comigo…então
eu
que
domino.
Como
a
fotografia
do
Martin
quando
…já
chegaste
a
ver
essa
foto?
LT:
Sim
JB:
Essa
foto
está
o
Martin
sentado
e
tem
a
namorada
dele
com
as
pernas
em
cima.
Quando
eu
fiz
a
foto
eles
namoravam.
Quando
eu
fui
revelar
a
foto
para
fazer
a
exposição
eles
tinham
terminado.
E
aquela
era
a
última
foto
do
filme
e
ela
desapareceu
da
foto,
mas
eu
fiz
a
foto
a
contar
com
os
dois.
Então
essa
é
uma
coisa
inacreditável
que
não
sou
eu
que
faço.
Fenomenologia.
É
por
isso
que
eu
trabalho
com
a
câmara
e
ela
traz-‐me
erros
e
defeitos
e
essas
coisas
das
mulheres
aparecerem
todas
iguais
nas
capas
das
Playboys
e
tudo
mais…eu
também
já
pensei
em
fazer
um
trabalho
desses.
Só
que
isso
é
tão
complexo.
Que
é
igual…quando
eu
vou
a
manifestações
das
mulheres
aqui,
eu
vou
às
manifestações,
mas
eu
não
grito
porque
eu
não…eu
só
sou…eu
só
concordo,
eu
só
quero
que
as
coisas
mudem,
mas
eu
não
sou
mulher,
eu
não
sei
o
que
vocês
sofrem.
Então
eu
não
sei
se
sou
eu
que
tenho
que
fazer
um
trabalho.
LT:
É
difícil
ser
mulher…
JB:
Imagino
que
seja,
né?
Eu
não
sei
se
eu
tenho
condições
para
fazer
um
trabalho
sobre
essa
coisa
de
como
os
outros
homens,
não
sei
se
porque
eu
sou
homem,
316
fotografam
as
mulheres.
Eu
já
pensei
muito
nisso.
Houve
uma
altura
que
eu
recortava
pedaços
de
jornais
em
que
as
mulheres…havia
uma
publicidade
da
Folha
de
S.
Paulo
que
era
inacreditável.
Tu
tinhas
o
rosto
da
mulher
dividido
ao
meio.
O
lado
da
mulher,
que
era
a
mulher
que
assinava
tinha
a
pele
maravilhosa,
o
lado
da
mulher
que
não
era
assinante
tinha
a
pele
toda
fodida
e
toda…Eu
tinha
esses
recortes.
Uma
amiga
minha
que
era
diretora
da
Folha
de
S.
Paulo,
a
Paula
Cesarino…eu
falei
com
ela:
Paula,
que
merda
é
essa?
Ela
não
manda
naquilo,
ela
não
pode
fazer
nada.
Estás
a
ver:
a
imagem
da
mulher
está
sempre…É
um
tema
muito
difícil.
Eu
nunca
trabalhei
nele
nesse
sentido.
É
mulher.
Porque
acho
que
não
tenho
condições.
Ela
vai
aparecendo
em
pequenas
frechas
que
eu
possa
ir
lá.
As
mulheres
que
amam
demais
é
um
grupo
de
mulheres
que
ama
demais,
pronto,
eu
vou
lá
diretamente
passo
15
dias
com
elas.
Não
é:
é
mulher.
Esse
aqui
Não
era
amor,
era
um
quarto
da
madrugada
é
minha
vida
e
também
não
é
mulher.
LT:
O
Martin
falou
de
uma
coisa
que
incomodava
muito
ele
nos
brasileiros
que
era
a
mania
dos
brasileiros
de
marcarem
alguma
coisa
e
nunca
mais
aparecer.
Há
alguma
coisa
que
te
incomoda
assim
no
brasileiro?
JB:
Eu
não
estou
aqui
a
fazer
género
…eu
adaptei-‐me
super,
sabes?
porque
eu
não
era
adaptado
lá…eu
encontrei
minha
salvação.
Eu
viajava
muito
por
conta
das
revistas,
quando
eu
chegava
a
Portugal…passavam
meses
e
meus
amigos
diziam:
ah,
vai,
tu
estás
insuportável,
entendes?
Então
eu
cheguei
aqui…eu
sei
disso,
é
verdade…as
pessoas
têm….em
relação
a
liberdade
que
eu
pude
ter,
passo
por
cima
disso
tudo.
LT:
É
uma
troca
de
liberdade,
não?
Lá
é
a
liberdade
de
você
andar
na
rua,
aqui
é
a
liberdade
sexual
e
de
ser
quem
você
quiser,
é
isso?
JB:
É,
acho
que
sim…e
também
não
sinto
tanto
essa
questão
da
liberdade
de
andar
na
rua,
sabes?
LT:
Você
anda
com
câmera?
JB:
Sempre.
LT:
O
Miguel
Vale
Figueiredo
acha
que
não
vai
ter
mais
fotojornalismo,
ainda
mais
no
Brasil,
porque
vai
se
tornar
impossível
andar
com
as
câmeras.
Você
concorda
com
isso?
JB:
Eu,
primeiro
de
tudo,
quando
trabalhava
como
fotojornalista
nunca
me
aconteceu
roubarem
minha
câmera,
mas
era
uma
coisa
que
eu
estaria
preparado,
achava
que
era
uma
das
coisas
da
profissão
e
nunca
me
aconteceu.
Já
tive
em
lugares
muito
piores
que
o
centrão
de
São
Paulo
a
fotografar
à
noite,
em
lugares
muito
piores
que
esses.
Tu
tens
sempre
gente.
É
que
a
galera
acha
que
é
realmente
importante
o
fotógrafo…é
como
dizia
o
Roland
Barthes:
o
fotógrafo
não
pode
ser
apenas
um
operator
tem
que
ser
um
stud
man
também.
Então
tu
não
podes
chegar
lá…e
as
pessoas…então
como
seria
se
alguém
entrar
num
bar
em
que
tu
estás
e
começar
a
fotografar
à
toa?
Eu
vou
317
ficar
puto
da
vida
e
se
eu
for
ladrão
ou
malandro
eu
vou
pra
cima
de
ti.
Então
se
calhar
tu
tens
que
chegar
ao
bar,
falar
com
o
dono
do
bar,
tomar
umas
cervejinhas,
aproximar-‐se
das
pessoas…não
é
feito
em
aberto…tu
consegues
fotografar
qualquer
pessoa,
maior
malandro,
assassino,
criminoso
desde
que
tenhas
alguma
cautela.
Acho
que
a
galera
fica
muito
a
agarrar
que
imagem
incrível
e
vão
e
não
estão
muito
dentro
do
assunto.
Acho
importante
perceber
o
Walker
Evans…perceber
essa
turma.
Para
perceber
como
é
que
se
faz
as
coisas,
entendes?
Quando
eu
fui
para
a
parte
da
fotografia
que
não
tinha
tanto
a
ver
com
o
documental
foi
quando
eu
percebi
que
eu
estava
a
querer
falar
mais
do
mundo
para
os
outros.
Então
eu
não
estava
a
cumprir
com
o
meu
objetivo
do
fotojornalismo.
E
eu
acho
que
há
muito
fotojornalista
que
está
a
falar
mais
dele
do
que
do
assunto.
Desde
logo
quando
passa
a
preto
e
branco.
LT:
Termina
que
toda
a
fotografia
é
assim?
JB:
O
Jornalismo
não,
o
jornalismo
não
para
ser
assim.
O
Publico
faz
isso.
As
coisas
são
inclinadas…os
prédios
fazem
assim…entendes?
Queres
fazer
isso,
fazes
em
outro
lugar.
É
a
mesma
coisa
se
o
cara
que
escreve
tivesse
que
inventar.
Entendes?,
não
é
um
lugar
para
fazer
isso.
O
jornalismo
é
incrível,
é
maravilhoso,
é
uma
delícia
de
se
fazer
quando
é
feito
como
se
faz
nas
grandes
revistas.
Quando
o
fotografo
tem
tempo,
sabes
o
que
estás
a
fazer
e
não
é
malabarismo.
Perceberes
uma
cena
política,
entenderes
sobre
um
tema
que
estás
a
trabalhar
e
saberes
das
coisas.
Não
é
malabarismo
com
as
câmeras
porque
fotografar
é
a
coisa
mais
fácil
que
existe
no
universo.
Fazer
uma
foto
linda
não
custa
absolutamente
nada.
É
fácil,
fácil,
fácil.
Meu
filho
tem
três
anos
faz
fotos
lindas.
Olha,
eu
já
fui
para
várias
favelas
com
a
Alexandra,
sou
eu
e
o
Alexandra
Lucas
Coelho,
sem
Alexandra,
sozinho.
Se
eu
for
para
a
Cracolândia
à
meia
noite
sozinho…mas
não
é
assim
que
se
vai.
É
durante
o
dia,
conheces
o
cara,
explicas
o
que
estás
a
fazer.
Ele
vai
te
dizer
não,
e
não
é
não.
Porque
eles
são
viciados
em
crack,
mas
é
isso:
o
cara
que
é
rico
que
diz
não
é
não,
o
cara
que
é
viciado
em
crack
não
pode
dizer
não?
Entendes?
A
abordagem
eu
acho
que
é
importante,
portanto
fotojornalismo
de
grande
qualidade…começa
logo
pelos
editores.
Eu
trabalhei
para
algumas
revistas
de
fora
é
logo
uma
grande
diferença.
Os
caras
ligam-‐te,
não
importa
se
a
fotografia
é
espetacular
ou
não…são
outras
questões.
Eu
trabalhava
para
a
revista
do
Financial
Times
e
do
(não
entendi
o
nome
da
outro
jornal).
Eles
confiavam
em
mim
para
eu
pensar
o
trabalho…
vai
lá
tu
trabalhar
uma
revista
portuguesa
ter
dessas
cenas.
Vais
lá…és
o
operator,
depois
tem
o
cara
que
escreve
que
dá
densidade
ao
trabalho.
Quando
tu
trabalhas
para
essas
revistas
de
fora
como
fotógrafo,
tu
dás
os
temas.
Uma
coisa
que
aconteceu
muito
em
Portugal
que
eu
lembro,
é
quando
nós
éramos
freelancers
por
opção…os
outros
achavam:
ah,
eu
sou
o
Expresso
e
o
Público,
vocês
são
freelas.
Nós
éramos
por
opção
porque
a
gente
mandava
a
pauta.
A
gente
dizia:
há
um
tema
do
caralho
para
fazer.
A
gente
não
esperava
dizer
o
que
a
gente
ia
fazer
no
dia
a
seguir.
Aí
de
repente
o
fotojornalismo
em
Portugal
as
revistas
começaram
a
demitir
e
a
galera
que
começou
a
ter
que
ser
freelancer
começou
a
patinar
porque
não
318
sabia
contar
uma
história.
E
contar
uma
história
não
é
estar
a
fazer
aquilo
que
disseste
que
o
Daniel
fez….não
sei
se
fez
ou
não,
eu
não
conheço,
mas
montar
uma
história
é
fazer
um
texto
e
ter
uma
ideia
sobre
é
fazer
a
pesquisa
e
depois
vai
lá
fazer
a
foto
com
o
que
escreves.
Em
relação
ao
Brasil
a
fotografia…assim…esse
teu
trabalho
é
incrível
porque
realmente
essa
demonstração
de
fotografia
que
a
gente
faz
sobre
o
Brasil
é
um
preconceito
que
ainda
existe
e
são
os
últimos
que
a
gente
vê.
Por
que?
É
favela,
é
os
muitos
ricos,
as
mulheres.
Ah,
o
carnaval.
Se
fores
falar
com
um
português
acha
que
é
putaria.
Primeiro,
putaria
é
uma
delícia.
São
desejos
que
se
encontram.
E
além
do
mais,
precisamente,
quem
quiser
fazer
um
trabalho
sobre
carnaval
precisa
saber…Alexandre
que
escreveu
muito
bem
sobre
isso.
De
onde
é
que
vem
essa
coisa
do
carnaval?
De
onde
é
que
vem
essa
explosão?
Vem
precisamente
de
uma
política
oprimida
que
vem
de
muitos
anos
a
dos
portugueses,
da
escravatura
e
tudo
mais.
Se
alguma
coisa
teve
de
boa
dessa
merda
que
os
portugueses
fizeram
aqui
é
o
carnaval.
Que
é
uma
espécie
de
libertação.
E
a
galera
vai
fotografar,
vai
fazer
um
trabalho
do
carnaval
e
é
isso
é
bunda,
são
as
mamas,
o
peito.
Então
realmente…Mas
eu
não
quero
muito
ficar….gostaria,
mas…nunca
tive
a
ideia
de
fotografar
a
mulher,
nem
brasileira,
nem
mulher
nenhuma
como
gostosa.
Ela
pode
até
ser
gostosa,
mas
isso
não
vai
ser
o….não
tem
essa.
Faço
tema,
desse
tema
das
mulheres
que
amavam
demais
eu
fiquei
impressionado.
Realmente
alguém
que
vai
para
um
grupo
como
se
fosse
o
Alcoólicos
Anônimos
tratar
de
uma
coisa
que
não
tem
cura…não
é
uma
coisa
que
tu
curas,
é
uma
coisa
que
tu
sofres
muito,
depois
um
dia
deixas
de
sofrer,
ficas
bem
e
voltas
a
sofrer
por
outro.
É
mais
ou
menos
assim,
as
coisas
repetem-‐se.
Mas
obviamente
eu
fiquei
super
interessado
quando
soube
que
havia
essa
associação
e
quis
ir
lá
fotografar.
Mas
isso
são
questões
interessantes
de
se
trabalhar.
Agora
essa
do
medo.
Da
galera
vir
com
medo,
é
por
que?
Alguém
ameaçou
alguém
ou
eles
já
têm
o
preconceito
e
vêm
o
negro
e
vêm
a
pessoa
pobre
e
já
ficam
com
medo?
Alguém
dessas
pessoas
que
falaram
contigo,
alguém
chegou
lá
e
apontou
uma
faca?
Mesmo
tendo
acontecido
isso
acontece
em
qualquer
lugar
do
mundo.
LT:
Não,
isso
nunca
aconteceu
com
eles.
Um
fotógrafo
falou
que
estava
numa
praia
e
vieram
uns
pescadores
que
moravam
perto
e
foram
olhar
o
que
ele
tinha
na
bolsa,
mas
logo
ele
já
achou
que
ia
ser
assaltado...
JB:
Acho
que
isso
tudo
é
preconceito
e
é
de
um
lugar
que
é
diferente
do
outro.
E
desse
lugar
que
é
muito
comum
em
Portugal
que
é
não
conseguir
olhar
para
fora.
Portugal
não
consegue
olhar
para
fora.
Passa-‐se
com
os
angolanos,
com
os
africanos,
é
tudo…tudo
é
fotografado
preto
e
branco.
É
fotografado
sem
distância
nenhuma,
é
por
isso
que
aquela
coisa
do
trabalho
de
Angola,
“O
Rosto
da
Paisagem”,
tens
umas
imagens
a
cores.
Eu
fiz
com
a
Ondjaki,
poeta
angolano
também,
e
elas
são
preta
e
branca,
algumas
são
a
cores
e
outras
preto
e
branca.
Então
eu
estava
muito
longe.
Não
queria
interferir
na
coisa
das
pessoas,
então
eu
super
ampliei
e
quando
tu
vês
as
imagens,
tens
que
afastar
se
não
é
só
grão.
E
era
um
pouco
essa
minha
ideia.
Não
pra
319
chegar
assim
invadindo.
Ninguém
faz
isso
comigo,
porque
que
a
gente
faz
isso
com
os
africanos,
com
os
caras
da
favela?
É
que
a
gente
acha
que
pode
entrar
a
matar
e
por
que
que
a
gente
acha
que
o
outro
é
que
é
perigoso?
Nós
é
que
estamos
a
ser
perigosos.
O
cara
que
te
vai
ali
com
a
câmera
na
rua
se
não
lhe
aconteceu
nada
porque
que
acha
que
é
perigoso?
A
mim
nunca
aconteceu
nada.
Fotografei
aqui
imenso,
fotografei
as
manifestações,
fui
a
muitos
lugares:
aqui,
no
Nordeste,
na
Bahia,
lá
em
baixo,
no
Sul.
LT:
Então
como
é
que
você
acha
estão
representando
o
Brasil
na
fotografia
portuguesa?
Tu
tens
uma
visão
assim
geral,
uma
opinião?
JB:
Eu
acho
que
é
sempre
nesta
perspectiva
como
antigamente,
como
quem
está
a
descobrir,
entendes?
Sempre
com
estranhamento,
mesmo
dos
trabalhos
que
eu
acho
que
vi
feitos
em
Portugal
melhores
sobre
o
Brasil
que
é
o
do
André
Cepeda,
eu
acho
que
ele
foi
por
outros
lugares.
Entendes?
Eu
acho
que
ele
pegou
um
pouquinho
da
arquitetura,
mesmo
a
mulher
que
ele
mostra
nua
acho
que
ele
não
vai
por
esse
lugar
da
“gostosa”
,
da
“gostosona”,
acho
que
ele
vai
pelo
retrato
nu
mesmo.
Acho
que
ele
vai
pelo
retrato,
pela
intimidade.
Eu
conheço
o
André
Cepeda,
isto
provavelmente
não
é
para
escrever,
mas
provavelmente
foi
alguém
que
ele
se
relacionou,
que
ele
teve
alguma
coisa
que
ele
quis
retratar.
Eu
acho
que
do
André
Cepeda
esses
retratos
nos
vê
muito
mais
do
amor
porque
ele
é
um
cara
todo
amoroso,
todo
sensível,
sabes?
Do
que
propriamente
esse
preconceito.
Então
dos
poucos
que
eu
conheço,
o
Valter
Vinagre,
meu
amigo,
veio
fotografar
violência
também.
Eu
também…cheguei
ao
México,
era
para
o
mesmo
trabalho,
também
fui
logo
fotografar
violência.
É
o
que
a
gente
vê.
Então
eu
acho
que
era
importante
as
pessoas
viverem
aqui
um
pouco
e
perceberem
um
pouquinho
mais,
lerem
mais.
Eu
tenho
questões
minhas.
Quando
eu
chego
a
um
lugar,
se
eu
encontro
uma
coisa
que
seja
simbólica
para
essa
minha
questão
eu
fotografo.
Não
importa
muito
se
é
o
Brasil,
se
não
é
o
Brasil.
São
outros
tipos
de
questões,
sabes?
É
isso:
as
fragilidades
humanas,
a
morte,
o
medo,
o
amor,
o
sexo,
tudo
isso
são
coisas
que
estão
na
nossa
vida.
E
então
eu
acho
que
ele
trabalha
mais
por
aí.
Eu
também
tento
trabalhar
mais
por
aí.
Eu
acho
que
a
galera
que
vem
com
uma
semana
que
a
revista
paga-‐lhe
mal,
que
eles
não
têm
tempo
para
ter
estudado
o
assunto
já
que
eles
fizeram
30
trabalhos
antes,
sabes?
trabalham
loucamente…eu
acho
que
eles
vêm
o
preto,
pobre,
favelado,
fotografado
a
preto
e
branco.
LT:
Sempre
tem
o
Corcovado,
sempre
tem
alguma
bunda
de
uma
mulher
na
praia.
Mas
isso
é
muito
publicitário
porque
a
publicidade
quer
isso,
é
isso
que
vende,
né?
É
a
imagem
que
vende.
JB:
Mas
eu
acho
que
é
isso,
eu
acho
que
tem
a
ver
com
isso.
É
a
primeira
coisa
que
lhes
chama
atenção.
Eles
vêm
a
imagem,
acho
que
dificilmente
eles
vêm
as
pessoas.
Eles,
quer
dizer,
nós,
eu
não
quero
me
tirar
desse
pacote.
A
pessoa
vai
para
um
lugar
320
diferente
e
tem
tendência
a
ver
as
primeiras
coisas
como
imagem,
como
fotografia…eu
não
me
interesso
pela
fotografia
em
si,
eu
não
me
preocupo
em
fazer
fotografias
belas,
até
porque
quando
eu
faço
fotografias
belas
eu
tenho
plena
consciência
de
que
o
que
é
belo
é
o
que
se
está
ali
a
passar.
Eu
não
sou
um
pintor,
nem
sou
um
cantor
em
que
o
instrumento
é
a
minha
voz,
eu
não
fiz
nada,
ainda
por
cima
tem
uma
coisa
intermediária
que
é
a
câmera.
Então
se
há
coisas
lindas
que
eu
fotografei,
essas
coisas
é
que
são
lindas.
E
como
é
que
edito,
onde
é
que
eu
coloco
estas
coisas?
Que
tensões
eu
crio
entre
essa
beldade
e
outra
coisa?
Eu
posso
levar
a
discussão
para
outros
lugares.
Então
eu
acho
que
a
galera
chega
assim:
que
lindo,
vou
fazer
uma
grande
foto!
Não
é
tu
que
estás
a
fazer
uma
grande
foto,
as
coisas
são
assim.
Aí
eu
acho
que
o
jornalismo
precisa…o
jornalismo
português…O
Brasil
também
tinha
isso.
Havia
um
coletivo
que
era
Cia
de
Foto,
conheceste?
Eu
sou
amigo
de
alguns
deles.
Também
já
acabou.
Eu
ficava
puto
como
eles
fotografavam
os
favelados:
prateados.
Tu
não
vias
o
cara.
Tu
vias
a
dessaturação
da
imagem.
Eu
ficava
puto.
Tu
nem
vês
a
pessoa.
Tu
estás
a
ver
a
plástica
do
Photoshop,
não
está
a
ver
o
assunto.
O
sujeito
é
a
dessaturação
e
não
aquele
homem
que
lá
está.
O
sujeito
é
a
estética
e
não
o
assunto
que
eles
estavam
a
trabalhar.
Então
eu
acho
que
o
fotojornalismo
tem
uma
tendência
gigante
para
ir
para
aí.
Mas,
enfim,
ainda
bem
que
estás
a
fazer
essas
perguntas
porque
são
questões
que
me
interessam
e
não
quero
cair
nesse
lugar
de
objetificar
nem
as
mulheres,
nem
os
negros,
nem
a
pobreza.
LT:
Vocês
me
ensinam
muito.
Por
exemplo,
eu
cheguei
para
o
Martim
dizendo
que
ele
estava
fazendo
uma
fotografia
de
ruína
quando
ele
fez
o
Otton
…
eu
achei
que
era
uma
fotografia
de
ruína,
que
tipo
era
uma
coisa
melancólica
a
forma
de
ele
ver
…e
ele:
não
quis
fazer
isso
não,
eu
fiz
o
trabalho
totalmente
descritivo.
Porque
é
minha
leitura...
por
isso
é
interessante
no
meu
trabalho
a
leitura
de
vocês.
Eu
tenho
que
ter
certa
paciência
porque
é
outra
cultura,
é
outro
sistema.
É
outro
sistema
de
regras.
JB:
É
outro
mundo.
Eu
o
que
eu
te
posso
dizer
para
mim
foi
uma
experiência
de
salvação,
mesmo.
Eu
sinto
muito
mais
à
vontade,
muito
mais
livre.
Eu
tenho
meu
filho
aqui.
Adoro
que
ele
seja
brasileiro…que
ele
diga
papai,
que
ele
perceba
imenso
essas
coisas
que
são
muito
mais
liberais,
as
questões
sexuais.
O
meu
filho
não
vai
ter
problema
se
for
gay,
se
for.
Existem
muito
outros
problemas
relativos
a
esses
temas.
Mas
no
meu
meio
aqui
isso
não
é
um
problema.
No
meu
meio
lá
também
não
é
um
problema,
mas
é…diferente.
Sabes,
então
foi
uma
salvação
porque
eu
não
aguento
ficar
em
Portugal
mais
de
um
mês.
Eu
estive
lá
agora
chegou
um
mês
eu
venho
embora.
Havia
alguém
que
dizia
uma
coisa
que
era
o
brasileiro
foi
o
português
que
deu
certo.
Eu
sei
que
é
uma
coisa
fácil
de
dizer,
mas
realmente
há
aí
um
ponto
de
coisa
para
mim
não
deu
certo
porque
não
há
de
dar
certo.
A
humanidade
não
pode
dar
certo,
não
há
ideia
do
certo,
do
que
é
o
certo.
Isso
aplica-‐se
muito
em
mim.
Eu
gosto
de
namorar
321
com
as
pessoas
aqui,
eu
gosto
de
ter
os
meus
amigos
aqui,
eu
gosto
de
andar
na
rua
aqui,
eu
gosto
de
ser
atendido
na
padaria
como
eu
sou
aqui,
eu
gosto
de
entrar
em
movimentos…há
muito
machismo,
há
muito
racismo.
Depois
há
movimentos
muito
fortes
contra
isso.
Lá
em
Portugal
não
há.
Dia
das
mulheres
tens
as
mulheres
todas
com
rosinhas…a
minha
namorada
no
dia
da
mulher
a
única
coisa
que
fez
foi
uma
manifestação.
Não
fui
lhe
dar
flores
nem
rosas
porque
ela
não
iria
aceitar
isso.
E
eu
gosto
que
ela
não
aceite
isso.
Então
é
um
lugar
muito
diferente.
É
um
outro
mundo.
É
um
mundo
novo,
é
um
mundo
peculiar
porque,
por
exemplo,
A
Bolívia
e
o
Peru
não
são
assim
tão
diferentes.
O
Brasil
é
uma
coisa
completamente
única.
Não
há
um
país
parecido.
Há
muita
gente
a
produzir,
produz
coisas
incríveis.
Tanto
tens
o
cara
que
é
incrível
na
ciência
que
está
no
negócio
da
divisão
de
partículas
que
está
a
trabalhar
em
Londres,
como
tens
artistas
plásticos
incríveis,
como
tens
estudiosos
que
vieram
de
todo
mundo
para
entender
essa
coisa
maravilhosa.
Essa
coisa
não
é
simples
de
entender.
LT:
Além
de
ser
muito
grande.
Tem
gente
que
vem
aqui
com
o
papel
de
fotografar
o
brasileiro,
mas
o
que
é
o
brasileiro?
JB:
Todos
esses
que
tu
falastes
é
importante
perguntar
o
que
eles
leram
sobre.
O
que
tu
sabes
do
Brasil
além
de
mulheres
gostosas
e
das
pessoas
te
roubarem
a
câmera
na
rua?
Claro
que
existe
uma
violência.
Um
país
deste
tamanho
existe
uma
violência
brutal.
Claro
que
sim,
mas
no
dia-‐a-‐dia
eu
ir
a
padaria,
eu
ir
comprar
um
livro,
eu
estar
na
rua
e
cruzar-‐me
com
alguém
e
chutar
nela
é
muito
menos
violento
do
que
lá.
Lá
tu
levas
como
uma
outra
violência
e
além
do
mais
eles
estão
a
falar
da
violência…com
relação
às
mulheres
descobriu-‐se
que
em
Portugal,
que
um
país
deste
tamanho,
matam-‐se
mulheres,
batem-‐se
em
mulheres,
entendes?
Não
é
assim.
LT:
Mas
isso
não
sai
no
jornal,
não
é?
Eu
nunca
vejo
isso
em
jornal…alguma
coisa
relacionada
a
Sexualidade.
A
relação
entre
homens
e
mulheres
nunca
sai
em
jornal.
JB:
Pois…mas
agora
começa
a
aparecer
mais.
Nem
se
fala.
E
mais:
a
única
vez
que
eu
fui
assaltado
na
minha
vida
foi
em
Portugal,
não
foi
aqui.
É
claro
que
vai
haver
lugares
que
tens
que
ver
onde
vais
te
enfiar,
mas
vim
para
cá
fazer
um
trabalho,
e
essa
é
a
questão…Isso
que
eu
acho
importante
tudo
o
que
o
Alexandre
Lucas
Coelho
escreveu,
várias
coisas
sobre
o
Brasil,
tem
vários
livros,
um
que
chama-‐se
“Vai
Brasil”
que
tem
várias
crónicas.
Eu
acho
que
ele
fez
uma
coisa
maravilhosa
que
foi
alguém
que
tentou
entender,
alguém
que
entrevistou
muita
gente,
alguém
que
foi
aos
lugares,
alguém
que
observou,
alguém
que
foi
tomar
ayahuasca
para
entender
o
que
é
isso,
sabes?
Alguém
que
foi
para
os
lugares
violentos
para
entender
o
que
é
essa
violência.
Então
não
é
só
a
questão
do
Brasil,
mas
a
questão
de
chegares
a
qualquer
lugar
só
com
a
ideia
que
tu
viste
lá
do
teu
lugar.
O
Walker
Evans
é
o
grande
professor
da
fotografia
documental.
322
LT:
Você
já
tem
mais
experiência
que
eles
do
Brasil,
por
exemplo.
Para
falar
do
Brasil
eu
acho
que
você
tem
muito
mais
autoridade
do
que
a
maioria
deles.
JB:
É
que
eu
vivo
aqui,
mas
houve
outra
coisa
que
me
aconteceu
quando
eu
vim
para
cá
viver.
As
pessoas
mandavam
currículos.
Antes
todos
falavam
muito
mal
do
Brasil,
depois
Portugal
entrou
numa
crise
e
mandavam-‐me
portfólios
para
mostrar
aqui.
E
eu
achei
curioso
porque
quando
vim
para
cá
viver
eu
trabalhava
para
o
Expresso,
para
o
Publico,
para
a
Visão
e
revistas
de
fora.
Eu
não
vim
para
cá
viver
porque
havia
uma
crise
em
Portugal.
Eu
escolhi
vir
para
o
Brasil,
foi
uma
escolha,
uma
opção.
Aquela
galera
que
estava
sempre
a
falar
mal
do
Brasil
e
tudo
mais…veio
porque
não
havia
dinheiro
lá
e
Portugal.
E
eles
achavam
que
isto
é
um
país
tão
ridículo
que
o
editor
da
Folha
de
S.
Paulo
enviou
o
portfólio
e
disse:
o
gajo
do
outro
mundo
mandou
vir.
Então
não
é
assim…não
vais…Eu
tive
um
editor
de
fotografia
que
era
o
Rui
Xavier
na
grande
reportagem
que
era
um
gajo
incrível
que
ele
dizia
eu
dou
pontapé
numa
pedra
e
aparece-‐me
um
bom
fotógrafo.
Agora
a
questão
é
a
cuca,
como
é
que
tu
pensas
as
coisas.
A
galera
achava
que
chegava
aqui
e
que
isto
é
um
país
que
não
tem
fotógrafos
decentes
e
que
eles
mandariam
o
portfólio
e
que
todos
mandariam
eles
virem
para
cá.
Não
é
assim…tu
chegas,
conheces
as
pessoas.
LT:
Em
São
Paulo,
acredito
que
você
precisa
primeiro
conhecer
as
pessoas...
J:
Olha,
quando
nós
tínhamos
a
Kameraphoto,
quando
abríamos
vagas
para
novos
membros,
mais
importante
que
o
portfólio
era
a
entrevista
e
no
jornal
é
igual.
A
pessoa
percebe
se
tu
tens
capacidade
ou
não.
Isso
é
fundamental
porque
ensinar
a
fotografar
bem
é
muito
fácil.
Fazer
fotografia
dentro
do
meio
da
arte
é
a
coisa
mais
fácil
porque
ali
é
tudo
lindo,
entendes?
Agora
entender
o
mundo…isso
é
complexo
e
usar
a
fotografia
para
entender
o
mundo…difícil.
323
ANEXO
4:
Entrevista
com
Duarte
Belo
+
Realizada
em
09
de
setembro
de
2016,
Praça
de
Touros
do
Campo
Pequeno,
Lisboa.
LT:
É
certo
que
a
Amazônia
brasileira
exerce
um
certo
fascínio
nos
estrangeiros.
Então
por
isso
eu
pergunto:
o
que
era
a
Amazônia
para
você
antes
de
ir
e
o
que
é
a
Amazônia
agora
depois
de
ter
passado
um
tempo
e
ter
fotografado
lá?
DB:
Eu
imaginava
a
Amazônia
mais
rica
do
que
de
fato
encontrei,
com
árvores
de
maior
porte
que,
soube
lá,
muitas
delas
forma
dizimadas
por
causa
do
comércio
das
madeiras...
Era
muito
difícil
encontrar
árvores
de
madeira
pau-‐brasil,
pau-‐preto
que
lá
já
não
existiam
na
região
onde
andei.
Eu
andei
no
Rio
Madeira,
Humaitá,
estado
de
Porto
Velho
e
no
seringal
Paraíso,
onde
esteve
o
Ferreira
de
Castro.
Agora
eu
acho
que
de
qualquer
forma
a
Amazônia
é
muito
impressionante
para
quem
está
habituado
a
uma
dimensão
de
floresta
na
Europa,
particularmente
Portugal.
Eu
fui
de
Lisboa
a
Belém
e
depois
pra
Manaus,
por
tanto
tive
meu
primeiro
contato
com
o
rio
Amazonas
e
de
fato
é
muito
impressionante
ver
a
dimensão
do
rio.
Eu
tinha
lido
bastante
coisa
sobre
as
características
geográficas
e
fiquei
muito
impressionado...
Uma
pessoa
está
a
mil
ou
quase
dois
mil
quilômetros
do
mar
e
ver
uma
corrente
d’água
doce
daquele
tamanho
impressiona
muito
qualquer
europeu,
penso
eu.
Em
termos
de
espécies
me
pareceu
mais
pobre
do
que
eu
imaginava,
por
causa
dessas
questões
da
exploração
econômica
da
Amazônia.
Só
em
recantos
já
muito
afastados
é
que
mantém,
penso
eu,
aquela
floresta
mais
ou
menos
original.
De
qualquer
forma
fiquei
muito
surpreendido
com
a
Amazônia
brasileira.
Não
correspondia
muito,
mas
fiquei
surpreendido
com
o
que
vi.
LT:
Como
era
a
Amazônia
de
Ferreira
de
Castro,
o
que
o
senhor
procurava
quando
chegou
lá?
DB:
E
queria
estar
nos
lugares
onde
tinha
estado
Ferreira
de
Castro.
A
encomenda,
digamos
assim,
era
essa,
era
fotografar
à
luz
do
?
e
isso
incluía
também,
por
isso
que
eu
queria
ir
ao
seringal
Paraíso,
onde
ele
trabalhou,
que
era
muito
próximo
a
Humaitá,
uma
cidade
no
rio
Madeira
e
Belém,
basicamente.
Depois
um
percurso
de
barco
entre
as
duas
cidades.
Eu
fui
de
avião
até
Porto
Velho,
depois
de
autocarro
até
Humaitá
e
depois
fiz
o
percurso
de
Humaitá,
de
regresso...
Fui
direto
a
Belém.
Por
tanto
desci
o
Madeira,
depois
apanhei
o
Amazonas
até
Belém.
Foram
aí
três
dias
de
viagem
ou
quatro.
E
esse
percurso
que
eu
queria
fazer:
o
seringal
onde
esteve
Ferreira
de
Castro,
que
até
tem
lá
uma
estátua
em
Humaitá,
e
depois
o
percurso
de
barco
que
ele
também
fez
e
o
objetivo
era
fotografar.
Fazer
uma
interpretação
minha
do
que
é
a
selva
e
tentar
chamar
a
vivência
do
livro
para
as
fotografias
que
eu
fiz.
324
LT.
Mas
o
olhar
do
Ferreira
de
Castro
influenciou
a
sua
expectativa?
DB:
De
alguma
forma
influenciou,
mas
o
que
eu
encontrei,
aquela
força
do
verde...
Pra
mim
foi
importante
ir
a
selva
para
ter
um
quinhão
dos
sítios
onde
ele
tinha
estado,
mas
depois
estando
lá
foi
o
que
mais
me
impressionava
porque
enfim,
tinha
passado
quase
um
século
da
data
que
Ferreira
de
Castro
tinha
estado,
de
maneira
que
as
referências
não
eram
muitas.
Construídas
ainda
haviam
coisas
que
permaneciam,
que
vi
em
fotografias
da
época
e
era
interessante
ver
que
haviam
coisas
que
permaneciam.
LT:
Então
não
mudou
muito
em
cem
anos?
DB:
Havia
uma
praça
central
que
eu
penso
que
deveria
ser
mais
ou
menos
igual
a
90
anos
atrás.
Agora
toda
a
envolvência
da
cidade
era
diferente,
porque
aquilo
cresceu
muito,
mas
ainda
tinha
um
ar
de
arquitetura
colonial
curioso...
Essa
praça
central,
onde
está
uma
estátua
de
Ferreira
de
Castro,
um
busto.
LT:
O
senhor
fotografou
isso.
Eu
vi...
DB:
Eu
fotografei,
mas
não
está
no
livro.
A
praça
eu
penso
que
esteja
sim.
LT:
O
trabalho
À
Superfície
do
Tempo,
de
2000,
pretendeu
relatar
também
uma
série
de
dicotomias
que
tornam
a
Amazônia
uma
das
regiões
mais
grandiosas,
míticas
e
desconhecidas
do
planeta
Terra.
Gostaria
que
o
senhor
me
falasse
mais
sobre
as
dicotomias
encontradas
na
Amazônia
no
período
que
o
senhor
fotografou.
DB:
É,
sobretudo,
uma
coisa
que
achei
muito
curiosa
na
Amazônia
a
diferença
entre
o
rio,
que
é
um
extensão
enorme,
e
depois
a
selva...
No
fundo
era
a
luz
e
a
sombra.
A
selva
uma
pessoa
entrava,
e
na
medida
que
entrava
mesmo
a
pé,
uma
centena
de
metros,
aquilo
ia
ficando
cada
vez
mais
escuro.
E
depois
o
rio,
que
era
uma
luminosidade
muito
grande,
quando
você
andava
de
barco
era
um
mundo
incrível.
O
rio
era
silencioso,
a
selva
era
barulhenta,
por
causa
das
árvores,
etc.
E
era
sobretudo
essa
luz
e
sombra,
ou
o
denso
do
vegetal
e
a
superfície
do
rio
muito
aberta
e
transparente.
Por
um
lado,
a
civilização
também,
nos
pontos
que
havia,
muito
confinada,
isto
é,
havia
uma
diferença.
Depois
começava
a
floresta
naquelas
aldeias,
só
havia
um
povoamento
no
rio
junto
as
margens,
depois
para
dentro
já
era
tudo
só
floresta.
Eram
essas
dicotomias.
O
fato
de
ser
uma
das
regiões
mais
místicas,
diria
assim,
é
por
causa
da
extensão
absolutamente
brutal
de
floresta
que
nunca
mais
acaba,
no
tamanho
de
Europa
ou
perto
disso,
e
muito
impressionante
para
quem
vem
de
fora.
LT:
Essa
dicotomia
entre
o
claro
e
o
escuro,
foi
isso
que
influenciou
usar
o
preto
e
branco
para
fotografar,
ou
já
é
normal
no
seu
trabalho
usar
o
preto
e
branco?
DB:
Eu
fazia
quase
sempre
preto
e
branco
nessa
altura.
Comecei
com
preto
e
branco,
usava
quase
sempre
até
o
início
dos
anos
2000,
ainda
fotografei
com
preto
e
branco
até
2005,
2006,
mas
em
2009
já
comecei
com
digital,
houve
um
período
que
mantive
os
dois
processos,
e
quando
passei
para
digital
comecei
a
fotografar
só
a
cores.
Ou
325
melhor,
houve
a
tal
sobreposição
de
uns
cinco,
seis
anos,
fiz
alguns
trabalhos
ainda
preto
e
branco,
por
tanto,
com
película,
mas
depois
quando
passei
para
digital
usei
só
a
cores.
LT:
Então
foi
só
por
causa
da
mudança
de
tecnologia,
mesmo
antes
você
só
usava
preto
e
branco,
não
usava
filme
colorido?
DB:
Muito
raramente
usava
filme
colorido
nessa
altura.
Muito
no
início,
ainda
nos
anos
80,
mas
foi
em
uma
fase
muito
incipiente
do
meu
percurso,
muito
experimental,
usei
película
a
cor,
positivos
e
negativos,
mas
depois
houve
um
período
extenso
de
uns
dez
anos
em
que
só
usei
o
preto
e
branco.
Eu
revelava,
ampliava
e
controlava
o
processo
todo.
LT:
É
mais
fácil
para
revelar
também,
não
é?
DB:
Exatamente.
O
preto
e
branco
tem
essa...
Eu
como
sou
arquiteto
de
formação,
tinha
aquela
relação
que
eu
achava
próxima
ao
design
que
era
controlar
o
processo
todo.
LT:
Em
Sabor
Mamoré,
ensaio
publicado
em
2013
e
iniciado
em
1990,
o
senhor
estabelece
um
caminho
de
fé
ou
“de
uma
reflexão
para
falar
da
uma
velocidade
que
proporcionou
o
advento
do
comboio
e
a
ideia
de
que
não
eram
só
mercadorias
e
pessoas
que
eram
transportados,
mas
também
ideologias
sociais.
No
entanto,
há
também
uma
busca
por
novas
civilizações,
mundos
interiores
distantes,
bem
como
pelas
mulheres
míticas
da
Amazônia,
que
eram
estabelecidos
na
sua
mente
como
uma
teia
de
lugares
imaginários.
Que
novas
civilizações
o
senhor
encontrou
na
Amazônia
e
como
a
paisagem
apresentada
nas
fotografias
representa
essa
nova
civilização?
DB:
Eu
acho
que
há
uma
série
de
mitos
ligados
a
Amazônia,
do
Eldorado,
das
amazonas,
etc...
Que
obviamente
eu
não
encontrei
porque
nunca
terão
existido,
aquilo
eram
mitos.
A
questão
do
ouro,
onde
tinham
encontrado
tribos
indígenas
com
ouro,
mais
isso
mais
na
América
central,
e
pensavam
que
eles
vinham
da
região
andina
para
ali,
essas
novas
civilizações
eu
não
encontrei.
Acho
que
esse
foi
um
dos
motores
de
exploração
da
Amazônia
no
período
colonial
do
século
XV,
XVI
e
depois
por
aí
em
diante
até
o
continente
ser
conhecido.
E
esse
trabalho
é
mais
uma
reflexão,
o
Sabor
Mamoré
é
uma
reflexão
sobre
uma
viagem
de
comboio
imaginária
que
começa
em
uma
linha
que
existe
aqui
em
Portugal,
que
é
a
linha
do
Sabor,
que
ligava
Pocinho
à
Duas
Igrejas.
Portanto
imaginava
apanhar
o
comboio
entre
Duas
Igrejas,
descer
até
o
Douro,
depois
ir
até
o
Porto,
depois
como
se
fosse
possível
ir
de
comboio
e
atravessar
o
atlântico,
subir
até
o
Amazonas,
depois
o
Madeira
e
apanhar
novamente
o
comboio.
Eu
fotografei
essas
locomotivas
ao
lado
da
linha
a
vapor,
em
Porto
Velho,
que
era
a
linha
que
ligava
o
Rio
Madeira
ao
Rio
Mamoré,
que
permitia
escoar
a
borracha,
pelo
estado
do
Acre,
que
pertencia
a
Bolívia,
depois
o
governo
brasileiro
negociou
ficar
com
o
Acre
e
permitia
o
escoamento
da
326
borracha
para
o
Pacífico
e
eu
fotografei
aqueles
6,
7
km
iniciais
da
linha
ferroviária
que
na
altura
ainda
existiam.
LT:
Mas
por
que
o
caminho
até
a
Amazônia?
DB:
Isto
é
mais
uma
construção
literária
do
que
outra
coisa.
Uma
reflexão
sobre
viajar.
LT:
Por
que
daqui
para
o
Brasil
e
não
para
outro
lugar?
DB:
Porque
eu
tinha
as
fotografias
da
Amazônia
e,
no
fundo,
porque
a
linha
do
Sabor
e
a
linha
Mamoré
eram
contemporâneas.
E
como
eu
tinha
estado
nos
dois
sítios,
achei
interessante
fazer
uma
ligação
e
essa
reflexão
sobre
viajar.
É
um
trabalho
de
autor
que
não
tem
nada
de
científico.
É
uma
reflexão
só
sobre
a
paisagem.
Viajar
através
da
fotografia.
LT:
Normalmente
os
estrangeiros,
em
geral,
que
vão
a
Amazônia
decidem
de
uma
forma
ou
outra
fotografar
os
índios,
então
por
que
a
sua
escolha
de
não
fotografar
os
índios,
se
eles
também
foram
parte
importante
do
misticismo
que
acompanhou
a
construção
da
estrada
de
fero
que
liga
Porto
Velho
a
Guajará-‐Mirim?
DB:
Por
que
eu
não
fotografei
os
índios?
Porque
não
quis.
Por
um
lado,
não
fazia
parte
de
meu
objetivo
e
depois
incomoda
muito
fotografar
as
pessoas
como
se
fossem
animais:
há
uma
reserva,
onde
vou
fotografar
alguns
seres
humanos
esquisitos.
Isso
eu
recuso
terminantemente,
acho
que
os
índios
devem
ser
deixados
em
paz,
tenham
o
seu
modo
de
vida,
os
seus
hábitos
próprios.
Eu
não
vou
fotografar
seres
humanos
como
fotografo,
por
exemplo,
um
jardim
zoológico.
Eu
aqui
em
Portugal
não
vou
fotografar
as
pessoas
de
Trás
os
Montes
porque
tem
hábitos
diferentes
do
meu.
Isso
não
interessa
no
meu
trabalho.
LT.
Eu
pergunto
porque
a
grande
maioria
dos
fotógrafos
portugueses
fotografaram
índios
e
tem
essa
discussão
toda
em
relação
a
isso.
E
concordo...
Os
índios
vão
geralmente
para
as
reservas,
o
que
chamam
também
de
zoológico,
usam
a
mesma
denominação.
Por
exemplo,
há
índios
na
minha
região
que
não
tem
reserva,
eles
vivem
na
praia,
nas
costas,
porque
geralmente
os
de
reservas
são
os
que
foram
expulsos
pelos
bandeirantes,
pelos
portugueses
que
chegaram
e
por
isso
terminaram
se
escondendo
no
interior...
DB:
Eu,
na
altura,
lembro
de
me
criticarem
porque
eu
não
tinha
fotografado
os
índios.
E
foi
uma
coisa
que
a
mim
sempre
me
aturvou
porque
se
imaginar,
por
exemplo,
os
noruegueses
virem
fotografar
a
mim
e
a
minha
família,
porque
somos
uns
típicos
do
mediterrâneo
e
vivemos
aqui,
eu
ia
achar
uma
coisa
completamente
repugnante.
Quando
se
faz
um
estudo
antropológico,
etc...
Agora,
fotografar
os
índios
porque
são
“seres
estranhos”,
de
determinados
hábitos,
isso
para
mim
não
faz
qualquer
sentido
no
meu
trabalho.
Eu
quando
fiz
o
primeiro
trabalho
tinha
um
objetivo
específico,
foi
um
convite
do
Centro
Português
de
Fotografia,
que
era
fotografar
o
universo
de
Ferreira
de
Castro,
327
não
falava
em
índios.
Nessa
altura
não
havia
índios
naquela
zona,
havia
pessoas
que
tinham,
obviamente,
traços
índios
por
questões
genéticas,
mas
não
haviam
tribos
indígenas,
com
os
hábitos
que
eles
teriam
quando
aquela
região
foi
habitada
por
Ferreira
de
Castro.
Já
no
Ferreira
de
Castro
não
havia
índios
ali,
havia,
às
vezes,
quando
eles
andavam
a
procurar
novas
seringueiras,
porque
o
problema
da
borracha
na
Amazônia
é
que
as
árvores
estão
muito
afastadas
entre
si,
e
eles
procuravam
as
árvores
para
extrair
a
borracha,
e
depois
oferecer
a
indústria
de
pneus
norte
americana,
sobre
tudo.
Isso
coincide
com
o
desenvolvimento
do
automóvel.
E
só
quando
começava
a
estender
para
regiões
no
interior
da
floresta
é
que
começavam
a
encontrar-‐se
com
índios.
Ali
no
seringal
Paraíso,
já
no
tempo
de
Ferreira
de
Castro
não
havia
índios,
de
maneira
que
da
minha
parte
não
fazia
qualquer
sentido
fotografar
índios.
Isso
por
um
lado.
Por
outro,
como
eu
disse,
e
a
questão
principal,
é
que
eu
repugnava
por
princípio,
fotografar
seres
humanos.
E,
depois,
as
opções
conceituais
do
meu
trabalho
estavam
mais
ou
menos
explícitas
nos
livros
e
não
tem
a
ver
com
registro
de
seres
humanos.
Tem
a
ver
com
uma
interpretação
da
natureza
e
da
força
da
natureza,
e
de
alguns
vestígios
dos
humanos
sobre
a
paisagem.
Por
exemplo,
impressionou
muito
os
cortes
nas
seringueiras
para
extrair
a
borracha,
e
a
forma
como
as
árvores
ficam.
E
não
só
as
seringueiras.
Eu
falei
com
pessoas
lá
e
havia
várias
árvores
que
eram
extraídas
a
seiva
com
diversos
fins,
alguns
medicinais,
e
eu
achava
que
aquilo
era
muito
bonito
e
muito
forte.
E
era
uma
certa
economia
da
selva.
Mas
agora
pessoas
em
si
nunca
me
impressionou,
desde
o
princípio.
LT:
A
estrada
de
ferro
quando
acabou
de
ser
construída
já
tinha
um
declínio
da
extração
da
borracha,
não
é?
DB:
Exatamente.
Ela
acabou
e
praticamente
não
foi
utilizada,
porque
foi
muito
rápido
o
declínio.
Porque
as
seringueiras
adaptaram-‐se
muito
bem
ao
clima
asiático
e
era
uma
produção
controlada.
De
maneira
que
conseguiram
plantar
as
árvores
perto
uma
das
outras,
em
um
clima
húmido
como
o
da
Amazônia
e
sem
o
problema
dos
índios,
quando
se
largavam
para
zonas
mais
periférica
dos
principais
seringais,
não
havia
onça
pitada,
não
havia
as
epidemias
de
malária
e
febre
amarela
e
na
Ásia
o
preço
da
extração
era
muito
mais
barato,
de
maneira
que
aquilo
acabou
com
a
economia
da
borracha
na
Amazônia.
LT:
O
que
foi
que
você
aprendeu
sobre
o
Brasil
antes
de
ir?
Na
infância,
na
escola
o
quê
você
escutava,
o
que
você
esperava
encontrar
lá?
No
livro
fala
de
mulheres
míticas
da
Amazônia...
DB:
As
amazonas,
mulheres
guerreiras.
O
nome
Amazônia
vem
de
amazonas,
pelo
menos
foi
isso
que
eu
li.
E
pensou-‐se
que
esse
povo
do
Amazonas
vivia
na
Amazônia
e
que
haviam
mulheres
que,
de
fato,
dominavam
o
tal
Eldorado,
que
tinham
a
ver
como
328
uma
civilização
do
ouro,
etc.
Isto
é
tudo
uma
confusão
desse
período.
Do
que
eu
li,
pensou-‐se
que
essas
amazonas
da
Grécia
Antiga
tinham
a
ver
com
o
Amazonas.
Um
dos
livros
mais
bonitos
que
eu
li
lá
no
Brasil
foi
A
Invenção
da
Amazônia,
que
tem
a
ver
com
a
leitura
e
criação
do
mito
da
Amazônia
pelos
europeus.
Fala
de
como
os
europeus
foram
construindo
uma
ideia
da
Amazônia
que
muitas
vezes
não
tinha
a
ver
com
a
realidade.
A
ideia
que
eu
tinha
do
Brasil
tinha
a
ver
com
as
novelas
brasileiras,
por
um
lado,
e
depois
de
Brasileiros
que
fui
conhecendo
pontualmente
aqui
em
Portugal.
A
ideia
que
eu
fiquei
do
Brasil
é
que
não
tinha
nada
a
ver
com
as
novelas,
não
tinha
nada
a
ver
com
os
Brasileiros
que
tinham
mais
posse
e
que
chegavam
a
Portugal,
e
que
era
uma
coisa
muitíssimo
mais
rica
e
mais
interessante
do
que
qualquer
ideia
que
eu
pudesse
ter
do
Brasil.
Quem
não
conhece
tem
uma
ideia
muito
redutora
do
que
é
o
Brasil
e
o
povo
Brasileiro.
Da
simpatia,
generosidade,
o
uso
que
fazem
da
língua,
que
para
mim
foi
a
maior
surpresa,
muito
mais
rica,
nós
aqui
somos
muito
presos
a
gramática
e
muito
mais
formais.
O
brasileiro
tem
uma
criatividade
que
eu
achei
absolutamente
maravilhosa.
LT.
Mas,
de
identidade,
o
que
havia
de
diferente
do
que
você
imaginava
e
do
que
você
encontrou?
O
que
havia
nas
novelas
que
você
viu
diferente?
DB:
A
maior
parte
das
novelas
foca
extratos
sociais
com
rendimentos
altos,
e
eu
ali
convivi,
sobretudo,
com
o
povo
que
encontrava
nas
ruas,
com
agricultores,
com
os
homens
que
trabalhavam
na
floresta,
pessoas
com
quem
falava,
gente
muito
curiosa,
que
não
tem
nada
a
ver
com
o
universo
das
novelas
que
nós
vemos
aqui.
O
retrato
das
classes
mais
pobres
que
nós
vemos
nas
novelas
é
uma
coisa
que
não
tem
muito
a
ver
com
a
realidade
brasileira.
E
eu
só
conheci,
por
tanto,
a
realidade
do
norte
da
Amazônia,
Belém,
Manaus
e
Porto
Velho,
não
estive
em
São
Paulo
ou
no
Rio,
que
são
grandes
referências
de
povo
brasileiro.
LT:
Na
verdade
são
as
“realidades
brasileiras”.
Porque
cada
região
é
tão
específica,
usam
o
mesmo
português,
mas
tem
expressões
diferentes.
DB:
Eu
tinha
um
ideia
muito
diferente
antes
de
conhece,
embora
só
tenha
conhecido
o
norte,
e
imagino
que
haja
grandes
diferenças
entre
o
norte
do
Brasil
e
o
sul.
Se
aqui,
nós,
um
país
muito
pequenino,
e
é
muito
diferente.
Há,
claro,
coisas
em
comum,
mas
um
minhoto
e
um
algarvio
são
muito
diferentes,
comparados
a
um
trás
montano,
ou
português
da
Ilha
do
Pico,
ou
da
Madeira.
É
tudo
o
mesmo
caldo
cultural,
mas
são
realidades
muito
diferentes.
E
no
Brasil,
então,
em
um
país
do
tamanho
de
um
continente,
as
diferenças
são
muito
maiores
com
certeza.
LT:
Esses
estereótipos
são
mais
presentes
em
fotografias
turísticas.
Sempre
tem
uma
foto
de
mulher
brasileira
e
essa
mulher
brasileira,
a
maioria
das
vezes
é
uma
sambista
e
está
com
roupa
de
carnaval.
Os
cartazes
de
festa
brasileira
é
uma
mulata
com
roupa
de
escola
de
samba.
Eu
não
me
sentia
brasileira...
329
DB:
O
retrato
que
fazem
dos
portugueses
em
outros
países
também
não
tem
nada
a
ver.
Eu
vejo
as
imagens
de
turismo
que
os
próprios
portugueses
fazem
de
si,
não
tem
nada
a
ver
com
Portugal
que
eu
conheço.
Não
me
identifico
nada
com
aquilo.
O
turismo
de
Portugal,
por
exemplo,
faz
uns
filmes
de
ambiente
mediterrânico,
das
pessoas
nas
praias,
com
o
pôr
do
sol...
Quer
dizer,
são
imagens
iguais
a
que
se
vê
no
sul
da
França,
Espanha,
na
Grécia,
na
Turquia
e
Portugal
não
é
só
aquilo.
Quer
dizer,
é
um
pais
pequenino,
mas
não
tem
a
ver
com
esse
estereótipo
que,
às
vezes,
os
próprios
governos
criam
e
estimulam.
Aqui
em
Portugal
eu
fotografo
muito
de
leste
a
oeste,
fazendo
um
levantamento
de
paisagem,
ao
longo
de
30
anos
e
bato-‐me
para
mostrar
que
Portugal
é
muitíssimo
mais
rico
e
de
uma
diversidade
absolutamente
extraordinária.
Mas
não
há
sensibilidade
nem
dos
dirigentes
políticos,
quer
seja
a
nível
nacional,
que
r
seja
a
nível
autárquico,
para
explorarem
mesmo
do
ponto
de
vista
turístico,
essa
riqueza
que
é
uma
das
maiores
singularidades
a
nível
mundial
que
nós
temos.
LT:
Eu
vejo
isso,
por
exemplo,
quando
vou
para
Azenhas
do
Mar
e
é
totalmente
diferente
de
ir
para
uma
praia
aqui
em
Lisboa.
E
a
uma
distância
de
hora
e
meia
de
Lisboa.
DB:
Há
dois
anos
eu
estive
a
fotografar
o
auto
da
Serra
da
Estrela,
coberto
de
neve,
e
a
cento
e
poucos
quilômetros
estava
tendo
praia,
ali
na
região
de
Olaria,
quer
dizer,
não
há
muitos
países
que
tem
essa
diferença.
Há
situações
semelhantes,
mas
é
muito
raro
no
planeta
ver
uma
proximidade
de
paisagens
que
são
muito
diferentes
entre
si.
A
própria
Suzanne
Davao,
esposa
do
geógrafo
Orlando
Ribeiro,
já
viajou
o
mundo
todo,
e
ela
diz
que
nunca
encontrou
um
país,
em
uma
área
tão
reduzida,
em
que
houvesse
tanta
variação
e
paisagem
como
existe
em
Portugal.
Por
exemplo,
a
Amazônia,
embora
tenha
muitas
diferenças,
uma
pessoa
anda
dois
mil
quilômetros
de
barco
e,
aparentemente,
aquilo
é
tudo
muito
semelhante.
E
aqui
nós
temos
uma
diversidade
espantosa
e
os
portugueses
não
conhecem
isso.
É
por
isso
que
eu
acho
que
a
imagem
que
o
governo
passa,
em
termos
institucionais,
só
empobrece
o
pais
e
só
nos
torna
iguais
a
ofertas
de
outros
países.
E
isso
não
é
bom.
Acredito
que
o
Brasil
faça
um
pouco
a
mesma
coisa.
LT:
O
turismo
usa
muito
isso
de
homogeneizar
um
tipo
específico
e
vender
essa
imagem...
DB:
Se
calhar
são
as
próprias
pessoas.
E
estive
em
Óbidos
e
nas
ruas
são
centenas
de
pessoas,
que
vão
lá,
só
para
ver
aquele
espaço,
como
se
aquilo
fosse
uma
representação
de
Portugal
medieval.
E
as
pessoas
procuram
aquele
tipo
de
realidade
e
parece
que
se
sentem
bem
ali.
É
como
chegar
em
Lisboa
e
ver
o
Jerônimos
e
a
Torre
de
Belém,
como
se
aquilo
fosse
o
símbolo
máximo
dos
descobrimentos
e
do
império
português.
E
Lisboa
é
uma
cidade
com
uma
riqueza
extraordinária
que
as
pessoas
não
conhecem
mesmo
em
termos
de
vivência,
de
bairros,
etc.
330
LT:
Essa
escolha
por
fotografia
de
paisagem
foi
por
causa
da
sua
formação
como
arquiteto?
DB:
Eu
já
fazia
fotografia
de
paisagem
antes
de
começar
a
estudar
arquitetura
e
depois
continuei.
A
minha
formação
em
arquitetura
foi
muito
importante
para
aprofundar
a
sensibilidade
sobre
a
paisagem.
LT:
Eu
fiquei
muito
impressionada
com
essa
história
de
“fotografo
colonizador”.
Fiquei
com
isso
na
cabeça
porque
quando
você
fala
que
estava
buscando
novas
civilizações,
por
mais
que
seja
uma
civilização
imaginária,
é
uma
forma
uma
forma
imaginária
de
encontrar
mundos
distantes,
mulheres
míticas
que
era
uma
coisa
que
se
procurava
na
época
das
navegações...
DB:
Eu
já
não
lembro
o
contexto,
porque
já
fiz
isso
há
uns
anos,
mas
eu
não
fui
à
procura
disso.
Isso
era
um
relato
histórico
do
conhecimento,
do
descobrimento,
como
se
diz,
da
Amazônia
e
daquele
mundo.
Não
tem
nada
a
ver
com
aquilo
que
eu
procurava.
Agora,
há
uma
coisa
que
me
agrada
muito
em
termos
de
fotografia
e
de
paisagem
que
é
através
de
um
corpo
de
fotografias
que
representam
uma
realidade,
criar
outra
realidade
a
partir
da
qual
se
constroem
objetos
de
comunicação,
que
não
tem
nada
a
ver
com
a
espécie
de
colonização
e
exploração
econômica
de
outros
povos,
mas
tem
a
ver
com
uma
representação
do
mundo
quase
virtual,
não
no
sentido
informático,
mas
criar
uma
espécie
de
mundo
próprio,
que
no
fundo
é
o
corpus
de
trabalho
de
uma
pessoa,
a
partir
de
uma
realidade
que
se
representa
e
que
se
desprende
dessa
própria
realidade.
É
um
bocado
confuso,
mas...
Eu
estou
a
trabalhar
nesse
momento.
O
que
eu
faço
com
o
meu
trabalho
de
fotografia
de
representação
de
lugares
é
quase
um
lugar
que
nunca
se
desprende
do
mundo
representado,
e
que
cria
um
mundo
próprio
onde
eu
habito
e
me
sinto
bem.
E
onde
navego
nas
minhas
memórias,
que
não
tem
qualquer
ambição
de
colonizador,
nem
de
exploração
de
ninguém...
LT.
A
colonização
que
eu
digo
é
a
de
descobrir
alguma
coisa...
DB:
Atualmente
a
palavra
colonização
tem
uma
conotação
negativa
quase
sempre
aqui,
acho
eu.
Mas,
assim,
é
ver
coisas
novas.
Eu
quando
escrevi
isso,
por
acaso,
tinha
uma
ideia
diferente
sobre
a
humanidade
do
que
tenho
hoje
em
dia.
Quando
uma
pessoa
caminha,
e
eu
fiz
longas
caminhadas
com
mochilas
nas
costas
aqui
por
Portugal,
cheguei
a
nadar
o
mês
inteiro,
e
quando
alguém
caminha
numa
paisagem
que
não
conhece,
há
uma
curiosidade
que
nos
está
sempre
a
chamar
para
ver
o
que
está
no
vale
a
seguir,
atravessando
o
rio
o
que
vamos
conhecer,
etc.
Eu
gosto
muito
de
ler
divulgação
científica,
e
estava
convencido
que
a
humanidade
se
tinha
expandido
por
essa
curiosidade
de
ver
terras
novas,
de
lugares
novos
para
habitar
onde
se
sentisse
em
paz
e
conseguisse
viver
tranquilamente.
E
não
tem
nada
a
ver
com
isso.
O
que
aconteceu
de
fato
é
que
nós
ganhamos
uma
vantagem
evolutiva
sobre
as
espécies,
que
nos
permitiu
expandir
através
de
tecnologias
que
fomos
criando
pelo
331
caminho.
E
o
que
nos
levou
a
expandir
rapidamente
pelo
planeta
todo
foram
algumas
características
predatórias
e
quando
acabava
os
recursos
de
determinado
território
tínhamos
que
procurar
outro,
não
era
a
curiosidade
a
curiosidade
de
tal
paraíso
quase
cristão
que
se
procurava.
E
eu,
quando
escrevi
Sabor
Mamoré
tinha
ainda
esta
ideia.
Embora
tenha
sido
só
há
3
anos,
alterei
bastante
essa
leitura
da
humanidade
e
das
nossas
características
predadoras
e
destruidoras
em
escala
planetária.
LT:
Tentando
mostrar
os
vestígios
então?
DB:
Eu
gosto
de
mostrar
os
vestígios.
E
há
aspectos
do
povoamento
humano
que
eu
acho
que
são
de
uma
força
incrível
de
integração,
de
tentativa
de
adaptação,
porque
nós
estamos
sempre
a
tentar
adaptara.
É
o
mundo
em
mudança.
As
cidades
são
o
melhor
exemplo
disso,
são
construções
humanas
afastadas
da
natureza,
onde
nós
nos
sentimos
bem,
seguros,
onde
aumentamos
nossa
longevidade,
etc.
E
um
dos
objetivos,
pois
continuamos
a
ser
seres
biológicos,
é
a
alimentação
e
sobreviver.
Passarmos
os
nossos
genes
e
sobreviver
o
mais
tempo
possível.
Seja
vida
boa
ou
má.
LT:
Não
quero
fazer
julgamento.
Estou
aqui
mais
para
entender
como
é
que
os
fotógrafos
pensam
e
como
eles
apresenta,
isso
através
do
teu
pensamento.
Porque
não
existe
fotógrafo
e
vida
pessoal
é
uma
coisa
só.
DB:
Para
mim
a
Amazônia
foi
sobretudo
o
fascínio
pela
natureza
e
o
um
mundo,
que
é
muito
diferente
do
nosso,
em
termos
de
natureza,
sobretudo.
E
depois
fiquei
tremendamente
fascinado
com
os
brasileiros,
que
eu
não
tinha
uma
ideia
tão
concreta
da
riqueza
e
da
sabedoria
daquela
gente.
E
isso
é
maravilhoso.
Eu
tive
um
episódio
bastante
duro,
que
fui
assaltado
em
Belém.
Mas
depois
consegui
recuperar,
através
de
conhecimentos
que
fui
fazendo,
falando
com
comerciantes
das
barracas,
das
zonas,
pedintes,
etc.,
e
aí
conheci
gente
absolutamente
maravilhosa.
Depois
houve
um
senhor
que
vendia
pássaros
no
mercado
de
Belém,
que
me
disse:
“Português,
como
é
que
eu
posso
acreditar
em
ti?
”,
e
eu
respondi
que
não
podia
fazer
nada,
se
quisesse
acreditar...
E
eu
todo
dia
a
zona
onde
haviam
roubado
a
máquina
e
tinha
sido
avisado
por
um
americano
que
vivia
lá
como
mendigo,
para
não
percorrer
aquela
zona
a
partir
de
cinco
da
tarde.
E
um
outro
dizia
que
Deus
me
daria
em
dobro.
Era
gente
fantástica
que
conheci
nessa
altura.
Pouco
antes
de
vir
embora
consegui
a
máquina,
fiquei
quase
sem
dinheiro,
mas
ficamos
todos
contentes
e
acabamos
aos
abraços.
(risos).
Isso
não
manchou
em
nada
a
ideia
que
fiquei
do
Brasil.
Fiquei
com
uma
admiração
imensa
pelo
povo
brasileiro.
332
ANEXO
5:
Entrevista
com
Miguel
Valle
de
Figueiredo
+
Realizada
em
10
de
agosto
de
2016
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
Lisboa.
L:
Antes
de
você
ir
para
o
Brasil,
o
que
você
imaginava
encontrar?
MVF:
Eu
sou
de
uma
geração
diferente
e
no
tempo
em
que
eu
estudava
história,
no
Liceu,
ainda
se
estudava
que
o
Brasil
como
parte
integrante
de
Portugal,
ou
seja,
era
o
mesmo
país
até
1820.
Portanto,
a
história
do
Brasil
eu
conhecia
porque
era
a
história
de
Portugal.
Eu
tenho
família
no
Brasil
ainda
hoje,
também
havia
sempre
esse
vai
e
vem.
Você
via
mais
qualquer
coisa,
mas
a
linguagem
não,
porque
eu
não
assisto
novelas,
né,
então,
porque
era
uma
coisa
que
já
estava
?em
voga?
a
cá,
chegou
Gabriela
ainda
em
78
ou
79,
não
sei,
vieram
umas
séries
delas,
mas
eu
não
assistia,
né,
que
veio
uma
série
depois
que
eu
não
sabia.
E
a
realidade
brasileira,
justamente
na
escala
da
TV
naquele
país,
e
até
porque
as
notícias
que
vinham
do
Brasil,
a
época,
não
eram
assim
tantas.
As
notícias
não
é
o
que
é
hoje,
né,
média
não
tinha
esta
função,
meia
em
meia
hora
a
ver
noticiários
diretos,
sem
serem
diretos,
não
havia
as
famigeradas
redes
sociais,
portanto
os
contatos
eram
coisa
muito
mais
limitada.
Portanto,
não
haviam
grandes
acontecimentos
no
Brasil,
como
esse
ano
os
jogos
olímpicos,
ano
passado
futebol,
essa
coisa
toda...
Quer
dizer,
mesmo
os
problemas
políticos
enormes
que
o
Brasil
têm,
e
sempre
teve,
era
uma
coisa
muito
não
ouvida
aqui,
que
não
chegava,
chegava
quando
tinha
eleição,
basicamente.
Tipo,
muito
um
pouco
mais.
E,
portanto,
a
realidade
brasileira
não
era
uma
coisa
que
os
portugueses
comuns
tivessem
acesso
ou
conhecimento.
Portanto,
a
chegada
inicial
foi,
assim,
um
pouco
um
choque,
porque
uma
coisa
é
o
que
a
gente
ouve
falar
e
outra
coisa
é
chegar
a
São
Paulo
e
“o
que
é
isso?”,
“que
gente
é
essa?”,
“que
tanta
gente?”,
“que
tamanho
é
esse?”,
“que
cidade
é
esta
que
fala
a
minha
língua?”
ainda
pra
mais,
né.
Bom,
sendo
ainda
pra
mais,
posso
dizer
conhecedor
d’alguma
da
literatura
brasileira
e
da
música,
muito,
eu
acho
que
as
pessoas
lá
têm
uma
boa
criação
de
discos,
de
música
brasileira...
E,
assim,
e
a
gente
sabe
tudo
e
não
sabe
de
nada,
né?
E,
no
dia
seguinte
ao
ter
chegado,
eu
só
me
lembrava
da
música
do
Caetano,
do
‘Sampa’,
né,
e
a
descrição
não
pode
ser
melhor,
é
aquela:
é
o
choque
inicial;
e
você
depois
com
o
tempo,
a
coisa
vai
e
a
gente
acaba
por
se
entender,
apesar
da
língua.
Eu
fui
umas
30
vezes
ao
Brasil.
(L:
30?
e
todas
a
trabalho?)
Quase
todas,
fui
2
em
férias,
eu
nunca
achei
que
fosse
pro
Brasil
de
férias,
é
uma
coisa
engraçada.
Fui
umas
29
vezes...
Vez
da
Amazônia
ao
Sertão
Cearense,
São
Paulo,
Rio,
Rio
Grande
do
Sul,
Brasília...
Sei
lá...
Eu
acho
que
conheço
mais
do
Brasil
que
a
maior
parte
dos
brasileiros,
quer
que
o
diga.
E
tem
essa
coisa,
é
engraçado,
conseguir
hoje
em
dia
comparar
um
pouco
as
diferentes
regiões,
o
diferente
linguajar,
e
até
a
maneira
de
viver,
que
é
um
pouco
diferente
de
sítio
pra
sítio,
de
lugar
pra
lugar.
E
é
engraçado
o
nordeste
todo,
não
é
uno,
né,
a
Bahia
é
diferente
do
Ceará.
No
mapa
é
perto,
né,
pois
nada
é
perto
naquele
país.
Eu
viajei
333
muito
de
carro
no
Brasil.
Sobretudo,
agora
em
2011,
fiz
muitos
quilômetros
de
carro
porque
fui
fazer
um
livro,
fazer
um
álbum
sobre
o
patrimônio
mundial
da
origem
portuguesa
e,
claro,
o
Brasil
estava
na
rota,
e
eu
fiz
a
maior
parte
das
coisas
de
carro.
Fui
parar
em
Goiás
velho,
São
Luís
do
Maranhão...
As
missões
ainda
que
não
seja
totalmente
de
origem,
ou
somente
portuguesa,
as
missões
são
construídas
nos
tempos
felipos,
portanto,
quando
Portugal
e
Espanha
estavam
unidos,
eu
prefiro
dizer
assim,
que
isso
nunca
foi
Espanha
por
mais
que
eles
queiram.
Sabe?
Rs.
Depois
foi
o
nordeste,
muito
do
nordeste
e
Minas.
Vamos
dizer
que
eu
corri
um
bom
bocado
do
Brasil
de
carro
e
de
avião,
só
faltou
andar
de
jegue,
né.
E,
olha,
vou
te
dizer,
deixei
de
ter
saudades
de
ir
ao
Brasil,
sabe.
Da
última
vez
que
fui,
fui
há
dois
anos,
tive
em
São
Paulo
só.
Não
penso
em
ir
ao
Brasil
mais...
É
estranho.
De
repente,
eu
tinha
uma
coisa
com
o
Brasil
que
era
quase
compulsiva,
né.
O
lugar
onde
eu
queria
morar
e
morrer
era
Parati,
que
hoje
em
dia
é
o
caos
turístico.
Mas
na
época,
não
era.
E
eu
tive
alguma
culpa
nisso,
por
causa
de
um
artigo
que
eu
publiquei
na
revista,
que
na
altura
eu
dirigia
a
parte
fotográfica,
que
dera
a
volta
ao
mundo.
Foi
a
primeira
grande
reportagem
que
se
(?
Achou/publicou)
Parati.
E
nem
no
Brasil
se
falava
muito
de
Parati
a
época
ainda.
Pronto,
havia
umas
novelas
e
num
sei
quê,
mas
não
era
aquele
fluxo
turístico.
E
de
repente,
e
eu
não
sei
se
foi
a
próxima
viagem,
que
eram
grandes
fãs
da
revista
que
eu
fazia,
publicaram
uma
reportagem
sobre
Parati
dando
a
referência
da
Volta
ao
Mundo,
e
do
trabalho
que
nós
fizemos
lá.
Depois
foi
num
sei
quê,
e
a
globo
e
o
raio
que
parta
foram
fazer...
O
turismo
tem
isso,
o
que
tem
de
bom
muitas
vezes
pra
população,
tem
de
mau
pra
o
próprio
turista.
(...)
L:
A
maioria
dessas
fotos
que
você
fez
pelo
Brasil
eram
turísticas.
MVF:
muitas
delas,
sim.
Muitas
delas,
sim.
Fiz
coisas
muito
diferentes.
Fiz
do
patrimônio,
a
série,
né.
A
série
no
sentido
rigoroso
da
fotografia.
Fiz
em
reportagem
mais
turística
com
Búzios,
Pipa,
basicamente.
Eram
reportagem
mais
turísticas.
E
outras,
que
são
reportagens
de
viagem
com
retrato.
(L:
que
são
as
do
nordeste)
São
as
do
nordeste,
com
a
qual
eu
ganhei,
curiosamente,
o
European
Press
Award,
na
categoria
“grande
reportagem”
com
fotografias
do
Ceará,
em
97.
L:
Foi
aquela
da
comunidade
dos
pescadores?
MVF:
uma
delas
foi
em
Bitupitá,
são
duas.
Uma
delas
é
um
garoto
com
um
peixe
que
só
tem
o
corpo
do
peixe
e
o
rapaz
não
se
vê,
é
uma
dessas.
E
tem
outra,
que
é
o
cara
com
um
burro,
um
jumento,
no
meio
de
uma
duna
em
Jericoacoara.
Ou
seja,
no
fundo
foi
fazer
de
um
sítio
que
estava
a
começar
a
descobrir
o
turismo,
na
época
não
havia
turismo,
Jericoacoara
deve
ter
acabado...
Pipa
acabou,
né,
mas
Pipa
não
tinha
muito
mais,
era
muito
pobre.
Era
nada,
pronto.
Um
lugar
lindo,
as
praia
lindas,
naquele
Timbau
do
Sul
e
aquela
coisa
toda,
não
era
nada.
E
Natal
era
uma
cidade
muito,
bem
334
dizer,
precária,
pra
não
dizer
outra
coisa.
E
de
repente,
também
com
uma
reportagem
minha,
foi
capa
da
Volta
ao
Mundo,
na
época,
foi
um
sucesso
de
vendas
na
altura.
A
portuguesada
descobriu
Pipa
nesta
altura
e,
de
repente,
foi
estragar
o
que
faltava,
né,
porque
o
turismo
é
perverso
nesse
sentido,
o
que
traz
de
melhoras
às
vezes
à
população,
traz
de
pioras
para
o
lugar,
em
termos
urbanísticos
e
de
movimentação.
E,
portanto,
às
vezes
falta
cuidado
do
turista,
os
turistas
e
os
viajantes
não
é
a
mesma
coisa,
mas
há
um
corpo
aí
no
meio
que
se
cruza,
né.
E
há
tantos
os
lugares
que
os
viajantes
gostam
e
que
os
turistas
também
procuram,
em
algum
sentido,
quando
isso
é
massificado
o
lugar
acaba.
Houve
algo
em
Portugal
muito
sério
sobre
isso,
sempre
que
o
país
é
pequeno
não
aguenta
muito.
O
Brasil
tem
essa
vantagem,
não
teve
com
Pipa
mas
tem
mais
10
mil
lugares
assim.
Portanto,
vai
ter
tempo
para
aguentar
mais,
né.
E
é
de
certo
os
fluxos
turísticos
mudam,
né,
portanto,
há
lugares
que
se
vão
manter,
que
vão
ficar
intactos,
outros,
se
calhar,
regridem
por
falta
da
verba
que
o
turista
vai
trazendo
e
a
coisa
tende
a
normalizar.
E,
nesse
país,
eu
acho
que
a
coisa
é
um
pouco
diferente
porque
o
país
é
muito
pequeno
para
aguentar
isso
tudo
tão
de
repente.
Muitas
das
fotos
que
eu
fiz
tinham
um
intuito
de
divulgação
turística,
viagem
pra
revista
que
eu
fazia
na
época.
E
então,
não
se
pode
muito
fugir,
sobretudo
de
lugares
que
são
muito
conhecidos,
aquilo
que
você
falou
que
é
um
estereótipo
d'algumas
imagens,
ou
seja,
há
alguns
lugares
que
sejam,
como
agora
se
diz
muito
que
no
fundo
é
a
etnografia
conhecida,
portanto,
os
ícones
dos
lugares.
Se
for
a
Londres,
você
tem
que
mostrar
o
Big
Ben.
Se
for
a
Nova
York,
tem
que
ter
o
Empire
State
Building.
Já
não
tem
as
torres,
portanto,
enfim.
Se
for
ao
Rio,
tem
que
mostrar
o
Corcovado,
tem
que
mostrar
o
Pão
de
Açúcar...
Os
compradores
desse
tipo
de
revista
de
viagem/turismo,
muitos
deles
exigem
ver
aquilo
que
eles
já
conhecem
ou
que
já
visitaram
ou
que
viram
n'outras
revistas
ou
em
filme
e
então
tem
que
blablablá
a
abordagem
um
pouco
com
imagens
que
sejam
confortáveis
para
o
leitor.
Portanto,
a
tal
garota
de
Ipanema,
o
próprio
brasileiro
é
muito
responsável
por
ela,
eu
acho,
que
criou
uma
coisa
que
é
"mulher
brasileira"...
Isso
não
existe,
né.
Você
é
uma
coisa,
a
do
rio
grande
do
sul
é
outra,
a
paulista
é
diferente
da
carioca,
não
falo
do
fenótipo,
isso
é
outra
coisa.
Até
a
maneira
de
andar
é
diferente,
a
maneira
de
falar
é
outra,
a
maneira
de
estar
é
diferente.
Sem
codificar.
Mas
o
brasileiro
com
essa
brincadeira
da
"garota
de
Ipanema"
do
velho
Vinícius,
criou
um
bocadinho
um
estigma
contra
a
mulher
brasileira.
Não
é
favor,
é
ao
contrário.
Eu
acho
que
não
é
a
favor.
Mas
isso
é
uma
leitura
minha,
porque
criou
justamente
uma
ideia
que
não
existe.
Eu
não
sei
quantas
mulheres
tem
no
Brasil,
mas
se
fizermos
isto
metade
por
metade,
são
100
milhões
de
mulheres,
não
é.
Que
eu
tenho
dificuldade
em
arranjar
num
país
que
tem
aquele
tamanho,
que
tem
as
misturas,
o
que
tem
de
origem,
né,
sejam
africanas,
sejam
índias,
sejam
europeias,
sejam
até
japonesas,
libanesas,
o
que
for...
Arranjar
um
tipo
"a
mulher
brasileira".
Enfim.
Da
mesma
forma,
é
muito
difícil,
seja
para
o
fotógrafo
que
for,
ter
uma
ideia,
no
retrato,
do
brasileiro.
Qual
brasileiro?
O
brasileiro
urbano?
335
Urbano
de
que
qualidade?
Ou
seja,
o
urbano
do
Maranhão,
de
São
Luís,
é
necessariamente
diferente
do
urbano
de
Brasília
que,
por
sua
vez,
é
necessariamente
diferente
do
urbano
do
Rio.
Tem
a
ver
com
as
próprias
cidades
e
com
a
função
de
cada
uma,
funções
principais
de
cada
cidade.
Brasília
foi
criada
artificialmente
para
um
fim.
Logo,
o
fluxo
administrativo
foi
lá
para
criar
a
praia
diferente
para
a
rapaziada
que
faz
surf
na
prainha.
Ou
do
executivo
e
do
rico
de
São
Paulo,
falar
do
estereótipo
daquilo
que
se
entende.
Depois
como
é
que
uma
cidade
com
20
milhões
de
homens
pode
dizer
que
"o
homem
de
São
Paulo
é
o
rico
e
o
executivo",
eu
posso
desmentir
isso
completamente
a
qualquer
hora.
Mas
também
posso
desmentir
que
o
carioca
é
seja
o
pé
na
chinela
e
na
praia.
Quer
dizer,
em
organizações
urbanas
tão
grandes
é
muito
difícil
dizer
"ah,
o
carioca
é
assim,
o
paulista
é
assado",
"o
nordestino
é
diferente
ou
é
igual
ao
homem
do
sul,
das
pampas",
não
se
pode
realmente
comparar.
"O
negro
é
igual
ao
branco",
"o
índio
é
igual
ao
negro",
e
o
pardo?
Essa
raça
brasileira.
Que
é
o
que
falamos,
quando
falamos
do
brasileiro,
não
é?
Eu
tenho
dificuldade
com
essas
siglas
(?)
todas,
como
te
falei
ao
Brasil.
Aquilo
que
li
antes,
que
li
durante,
e
que
continuo
a
ler
sobre
o
Brasil.
Até
questões
que
os
prendem
com
estas
com
os
lençóis
do
Gilberto
Freyre,
por
exemplo,
não
é.
E
eu
continuo
com
imensa
dificuldade
em
definir
o
brasileiro.
No
retrato,
é
muito
curioso,
porque...
Uma
escola
fotográfica
se
quiser
não
era
uma,
são
várias.
E,
portanto,
quando
se
vai
partir
para
uma
ação
de
retrato
de
rua,
que
seja,
ou
reportagem
que
seja,
em
São
Paulo,
o
objetivo
do
retrato
tem
a
ver
com
a
maneira
como
se
vai
fotografar.
Portanto,
se
eu
preciso
de
um
estereótipo
de
São
Paulo,
ou
preciso
de
um
estereótipo
do
bigodes
de
Pontal
das
Almas,
ou
do
religioso
que
está
em
Olinda
a
visitar
as
igrejas,
ou
do
peregrino
que
anda
em
Minas
Gerais,
ou
do
cara
abandonado
em
Goiânia
ou
em
Goiás
ou
no
Rio
Grande
do
Sul.
Eu
tenho
que
procurar
que
tipo
de
trato
eu
vou
fazer,
ou
então
que
tipo
de
pessoa,
homem
ou
mulher,
indiferente
agora,
que
me
justifique
aquilo
que
eu
quero
mostrar.
Se
eu
for
pra
Bahia,
é
natural
que
se
eu
mostrar
um,
eu
falo
'preto',
como
disse
o
"num
sei
quê"
Santos
"os
pretos
não
eram
negros,
eram
pretos"
e
nós
éramos
brancos,
e
nós
continuamos
brancos.
E
eles
passaram
de
'preto'
para
'negro',
ou
'pessoa
de
cor'.
Enfim,
como
eu
não
sou
racista,
posso
falar
preto
tranquilamente,
não
tenho
problema.
E
isso
é
uma
coisa
muita
estranha.
Quer
dizer,
o
baiano
não
é
necessariamente
preto,
também
não
é
necessariamente
branco,
também
não
é
necessariamente
coisa
nenhuma.
Baiano
é
característico
da
Bahia.
As
suas
origens
podem
definir
o
seu
fenótipo,
não
é?
E
não
mais
do
que
isso.
Mas
se
eu
quiser
exemplificar
a
Bahia,
tirando,
se
quisermos,
o
branco
baiano,
que
eu
vou
tentar
arranjar
alguém
que
seja
parecido
com
Jorge
Amado
ou
um
coronel
qualquer,
né.
Eu
arranjo
um
preto
com
umas
baianas,
não
é?
É
o
equivalente,
falando
no
masculino
primeiro
e
depois
no
feminino.
Eu
quero
uma
baiana,
e
a
baiana,
não
há
maior
estereótipo
no
Brasil
que
a
baiana.
E
é
engraçado
isso,
porque
muitas
das
vezes
o
retrato
da
brasileira...
"Vamos
mostrar
uma
brasileira!",
mostra-‐se
uma
baiana.
Não
tenho
completa
certeza
que
a
mulher
brasileira
seja
a
baiana,
até
tenho
grandes
336
dúvidas
que
possa
ser.
(L:
nunca
acreditam
que
eu
sou
brasileira,
porque
esperam
uma
mulata
rs).
Não
é?
Isto
é...
Como
definir
o
Brasil?
Como
eu
vi
agora
nos
jogos
olímpicos
com
esta
tentativa
de
"ah,
num
sei
quê..."
e
depois
metem
a
Gisele
Bündchen.
Tanta
coisa
que
"somos
um
povo
mestiço",
"somos
os
pretos",
"somos
os
índios
e
num
sei
quê"
e
depois
vão
meter
uma
alemã.
Mas
é
estranho
até
a
maneira
como
o
próprio
brasileiro
tenta
definir
o
seu
Brasil,
os
seus
brasileiros,
o
seu
povo.
Eu
acho,
sempre
entendi
isso
das
viagens
todas
que
fiz,
que
há
um
racismo
e
tanto
no
Brasil,
muito
forte.
Muito
disfarçado,
mas
muito
forte.
E
pra
mim
isso
é
uma
coisa
um
pouco
compulsiva...
Meu
pai
nasceu
em
Cabo
Verde,
eu
tenho
irmãos
de
Angola,
de
Cabo
Verde,
de
cá,
os
que
eu
conheço,
né,
depois
há
outros,
rs.
E,
portanto,
faz
me
um
pouco
inversão
ao
ver
esse
racismo,
e
até
uma
certa
xenofobia,
se
quiser,
que
é
uma
coisa
diferente,
as
pessoas
tendem
a
achar
que
é
igual
e
não
é,
como
você
sabe.
Que
eu
acho
que
essa
parte
xenófila
tem
a
ver
com
a
dimensão
do
país.
Portanto,
tá
a
mudar
e
tá
a
aprender,
mas
vai
demorar
anos
a
aprender
isso.
Esse
mundo
é
tão
grande
que
nunca
precisou
se
abrir
ao
mundo,
né.
Estados
Unidos
sofre
de
problemas.
A
China
a
mesma
coisa.
Todos
os
grandes
países
olham
pro
mundo
sendo
eles
o
centro.
E
isso,
sem
querer,
xenofobia
sem
ser...
Não
quero
falar
aqui
de
uma
forma
rude,
mas
uma
certa
desconfiança,
um
certo
desprezo
do
estrangeiro,
por
mais
curioso
que
possa
ser...
Há
sempre
uma
linha,
"nós
somos
tão
grandes,
os
estrangeiros
pra
nós
são
nada",
né.
Isto
é
até
por
desconhecimento,
mas
sobretudo
pela
dimensão.
Não
houve
a
necessidade
e
os
fluxos
imigratórios
dos
grandes
países,
também
do
Brasil
por
ser
assim,
tem
sempre
uma
dificuldade
na
leitura
dos
outros
povos.
E,
no
caso
do
Brasil,
também
Estados
Unidos,
comecei
a
falar
dos
interiores
desses
países,
da
Índia,
da
Rússia,
num
sei
o
quê...
Há
também
uma...
Como
é
que
eu
posso
dizer...
A
educação
é
muito
básica,
é
muito
precária.
Portanto,
dadas
às
distâncias
nos
tamanhos,
como
educação
precária,
é
pior
ainda
como
se
olha
pro
outro,
pro
que
vem
de
fora,
pro
estrangeiro.
Eu
acho
que
os
países
pequenos
como
nós,
nós
de
Portugal,
com
a
sorte
e
com
o
azar
que
foi
a
época
das
descobertas,
não
temos
essa
questão.
Teremos
outras,
mas
essa
não
temos
com
certeza.
Portanto,
temos
sempre
aquela
ideia,
ou
pelo
menos
temos
tido
até
agora,
que
o
estrangeiro
é
sempre
bem
recebido,
é
sempre
bem-‐vindo,
não
estranhamos
estrangeiro.
Pelo
menos
era
assim,
não
sei
se
está
a
mudar
um
pouco
justamente
por
essa
questão
turística
em
Portugal.
Começa
a
ficar
uma
coisa
neurótica,
eu
começo
a
achar
estranho
tá
em
Alfama
e
os
portugueses
vindo
falar
comigo
em
estrangeiro,
seja
ele
qual
for,
francês,
inglês,
basicamente
é
o
que
falam.
E
se
eu
tô
de
máquina,
já
me
pediram
desculpa
de
tá
na
fotografia
em
inglês.
"I'm
sorry,
I'm
sorry",
"olha
lá
pra
mim,
acha
que
eu
tenho
cara
de
inglês?
de
gringo?",
como
vocês
falam.
Ou
de
‘bife’,
como
a
gente
fala.
(L:
como
é
que
é
gringo
aqui?)
Bife,
que
é
o
inglês,
a
gente
não
tem
o
americano,
né,
portanto...
(L:
que
na
verdade,
gringo
era
só
pra
americano,
só
que
terminou
generalizando)
Aqui
o
que
acontecia
era
o
bife
pra
inglês
e
pra
o
estrangeiro
era
"camon”
(c'mon)
pra
minha
geração,
pra
mais
nova
não
sei,
mudou
a
linguagem.
E,
a
partir
daí,
como
vocês
generalizaram
o
'gringo'
e
nós
337
generalizamos
o
'camon'.
E,
portanto,
é
o
camon.
É
muito
engraçado.
Mas
isso
para
lhe
dizer,
que
voltando
pra
trás,
que
há
uma
dificuldade
imensa...
Não
consigo
estabelecer
aquilo
que
é
o
brasileiro,
enquanto
objeto
de
retrato.
O
que
não
é
a
mesma
coisa
de
dizer
que
eu
não
consigo
fotografar
os
diversos
brasileiros,
como
"o"
brasileiro.
Com
a
vantagem
de
que
hoje
em
dia,
talvez
em
São
Paulo
a
coisa
esteja
a
mudar
um
pouco,
em
São
Paulo
é
um
caso
um
pouco
diferente,
havia
uma
certa
tranquilidade,
apesar
disso
tudo,
em
fotografar
o
brasileiro,
excluindo
o
paulista
e,
por
meio
de
razão,
fotografar
no
Rio
também
não
era
a
coisa
mais
dessa.
E
eu
fotografei
muito
o
Rio
e,
hoje
em
dia,
não
sei
se
teria
a
coragem
de
andar
onde
eu
andei,
com
as
câmeras
como
eu
andava.
E,
portanto,
há
uma
dificuldade
também
em
fazer
retratos
tranquilamente
pelo
Brasil
e
eu
acho
que
não
melhorou
com
o
tempo
que
passou,
acho
que
está
mais
duro
e
mais
difícil.
Eu
mesmo
tive
essa
sensação
por
tantas
idas,
durante
tantos
anos,
como
eu
andava
com
muito
equipamento,
era
olhado
como
um
fotógrafo
profissional
e
então,
não
quero
dizer,
não
era
minha
leitura,
portanto,
havia
um
respeito
até
do
criminoso
para
com
o
fotógrafo
profissional.
Hoje
em
dia
se
acabou.
E,
portanto,
eu
acho
que
cada
vez
mais
se
vai
o
estereótipo
da
garota
de
Ipanema,
do
negro
sambista,
do
não
sei
o
que
mais...
Porque
a
rapaziada
não
vai
andar
tranquilamente
com
máquinas
em
todo
lugar.
Da
minha
ideia
de
que
o
fluxo
turístico/
viajante/
repórter
daqui
também
já
não
tá
a
ir
tanto
ao
Brasil.
Portanto,
se
quisermos
um
interior
do
Brasil,
vai
ficar
outra
vez
sem
eco
fotográfico
em
Portugal.
Parece-‐me
que
é
isto
que
está
a
acontecer.
As
reportagens
cada
vez
sejam
mais
ou
de
eventos,
como
agora
nos
jogos
olímpicos
ou
como
foi
o
campeonato
de
futebol,
ou
cada
vez
mais
de
localidades
que
sejam
conhecidas
por
seu
turismo
ou
o
seu
patrimônio/turismo.
Portanto,
um
Brasil
daquele
tamanho
vai
ficar
por
ser
a
mesma.
L:
A
primeira
leva
dos
portugueses
que
chegaram
lá
eram
portugueses
também
de
classe
baixa,
desempregados,
que
iam
lá
pra
procurar
ganhar
dinheiro.
E
aí
quando
voltavam...
MVF:
Os
novos
brasileiros,
os
portugueses
que
imigraram,
fizeram
grande
fortunas.
Muita
gente
de
Braga
e
dessa
coisa
toda,
que
eram
os
brasileiros
de
Braga,
foram
pra
fazer
fortuna
e
fizeram.
Como
os
primeiros
bandeirantes,
como
toda
essa
gente.
Se
você
reparar,
o
grande
fluxo
imigratório
português
ou
outro
qualquer,
é
de
gente
que
não
consegue
se
??
no
seu
país.
As
outras
questões
são
individuais.
Nós
temos
agora
cerca
de
11
milhões
de
habitantes
em
Portugal
e
cerca
de
5
milhões
de
imigrantes,
que
é
um
peso
enorme.
Venezuela,
Brasil,
Estados
Unidos,
África
do
Sul,
Luanda
e
Angola,
que
agora,
enfim,
dada
as
questões
econômicas,
acho
que
tem
mudado.
Mas
pelo
menos
esses
países,
África
do
Sul,
Venezuela,
Brasil,
muitos
dos
Estados
Unidos,
que
não
se
fala
tanto...
Tem
muita
gente,
tem
muita
gente
de
fora.
E,
portanto,
a
maior
parte
das
pessoas
imigra
porque
tem
necessidade
de
imigrar.
Os
imigrantes
de
luxo,
sejam
os
estudantes,
que
são
os
imigrantes
de
luxo,
você
é
uma
imigrante
de
luxo.
Ou
os
grandes
quadros,
quadro
superior,
professores...
São
tudo
gente
de
luxo,
mas
essa
é
338
a
mínima
parte
da
imigração.
Donde
a
ideia
que
o
brasileiro
fez
do
português
foi
o
português
padeiro,
o
cara
do
açougue,
não
sei
o
quê,
o
Joaquim,
o
Antônio,
o
Manoel
do
bigode,
não
sei
o
quê...
Que
não
é,
acho
eu
ou
penso
eu,
ou
espero
que
seja,
de
outra
maneira,
se
calhar
vocês
têm
uma
visão
um
pouco
diferente
do
que
é
o
português.
Ou
dos
vários
portugueses,
que
também
não
é
um
tipo
só.
Portanto,
também
a
questão
do
português
no
Brasil
é
um
estereótipo,
eu
acho.
O
"ora,
pois,
pois",
eu
nunca
ouvi
ninguém
falar
aqui,
ninguém
fala
"ora
pois,
pois",
enfim.
“As
mulheres
portuguesas
têm
bigode”,
é,
umas
têm,
outras
não.
"Nós
usamos
todos
bigode",
já
usamos
alguns,
uns
não.
Se
você
pensar,
o
bigode
era
uma
coisa
que
se
utilizava
muito
no
princípio
do
século
que
fosse,
pra
uma
camada
mais
alta,
pra
uma
camada
mais
baixa,
fosse
em
Portugal
ou
fosse
onde
fosse.
(L:
O
que
eu
tô
falando
é
justamente
isso,
que
também
foi
uma
camada
no
início
mais
baixa,
dos
portugueses...
Depois
começou
a
fazer...)
Muito
baixa,
muito
baixa.
Mas
foi
muito
baixa.
As
duas
grandes
imigrações
do
século
20,
mas
pra
o
Brasil
no
início
do
século,
é
uma
camada
muito
baixa
da
população,
o
país
é
pobre
e
quem
imigra
primeiro
são
os
pobres,
não
são
os
ricos.
Depois
voltam
com
dinheiro
e
fazem
as
casas
magníficas,
os
chalés
da
zona
de
Braga
são
bonitos,
é
engraçado.
E
isso,
na
literatura
contemporânea,
é
muito
tratado
e
muito
falado
como
"o
brasileiro”,
“o
brasileiro
que
vai...foi
pra
lá
com
uma
mão
na
frente
e
outra
atrás...",
também
é
estereótipo
porque
nem
toda
gente
se
deu
bem
tão
bem,
nem
toda
gente
voltou,
né.
E,
quem
voltou,
nem
todos
vieram
ricos.
Portanto,
é
muito
fácil
nos
termos
uma
generalização
e
criar
um
tipo
que
justifica
o
todo.
É
preciso
ter
algum
cuidado
em
perceber
justamente
que
isso
é
a
armadilha.
E
isso,
para
o
fotógrafo,
isso
muitas
vezes,
a
facilidade
do
estereótipo
criado,
leva
que
o
próprio
fotógrafo,
que
muitas
vezes
não
tem
o
tempo,
às
vezes
não
se
percebe
que
os
fotógrafos
muitas
vezes
não
tem
tempo
para
fotografar,
né.
Não
tem,
não
há
meio
para.
Deixe
lá
ver...
Um
lugar
qualquer
na
Goiânia,
se
quiser
outra
vez,
ou
Piauí,
ou
aonde
for...
Durante
quinze
dias,
três
semanas,
um
mês,
fazer
um
estudo
fotográfico
e,
então,
começar
a
fotografar
sabendo
o
que
está
a
fazer.
A
gente
não
tem
tempo
pra
isso.
Muitas
das
vezes
evitar
a
armadilha
é
quase
impossível.
A
armadilha
do
estereótipo.
Nem
sempre
nós
temos
conhecimento
do
lugar
que
vamos
fotografar,
nem
das
pessoas,
das
populações...
Podemos
ser
enganados
com
as
primeiras
impressões,
e
não
haver
tempo
para
ter
as
segundas,
e
isso
ajuda
a
criar
e
fortalecer
o
estereótipo
que
é
lançado.
Portanto,
é
preciso
algum
cuidado
e
algum
trabalho
prévio,
se
não
vamos
ter
tempo,
ter
algum
trabalho
prévio
antes
de
chegar
ao
lugar
para
fotografar,
justamente
para
evitar
a
armadilha.
Nem
sempre
é
possível.
E
é
possível
criar,
a
partir
de
um
estereótipo,
grandes
retratos,
a
mesma,
independentemente.
É,
só
que
o
espelho,
e
eu
volto
sempre
a
esta
coisa,
o
espelho
de
duzentos
milhões
é
muito
difícil,
como
é
que
se
tratam
duzentos
milhões
de
pessoas
com
tanta
variedade
que
há
aqui
e
ali?
A
lógica
rácica
no
Brasil
é
muito
difícil
de
mapear
fotograficamente.
Ou
seja,
São
Paulo
ou
Rio,
a
quantidade
de
italianos
e
a
quantidade
de
portugueses,
não
me
interessa
se
uns
são
mais,
se
são
menos,
como
é
que
eu
vou
dizer
que
aquele
339
tem
origem
italiana
ou
tem
origem
portuguesa?
Se
não
conhecer
o
apelido,
e
muitos
dos
apelidos
a
gente
sabe
como
é
que
são
arranjados...
O
tipo
europeu,
se
quiser,
caucasiano,
cabelo
escuro,
não
é
tão
diferente,
assim,
a
primeira
vista...
Portanto,
como
é
que
eu
vou
definir
o
caucasiano
brasileiro?
É
o
português
ou
é
o
italiano
com
quem
cruzo
na
rua?
Não
sei,
não
sei
donde
é
que
ele
vem.
Ele
é
branco,
mas
é
só
branco
como
outros
milhões
que
são
brancos,
não
é.
O
mestiço
nas
suas
variantes,
mestiço
de
branco
com
negro/
preto,
mestiço
de
preto
com
branco,
ou
seja,
mãe
branca
e
pai
preto
ou
o
contrário,
né,
o
índio
com
o
branco...
Estamos
a
falar
de
500
anos,
não
é.
Os
portugueses
chegaram
em
1502
ao
Rio...
(L:
a
minha
vó
é
extremamente
índia,
assim,
você
olha
pra
ela
e
vê
que
é
uma
índia)
E
que
índio
é?
(L:
pois
é...)
Mês
com
que
índio
é
que
alguém
se
misturou?
Isto
a
falar
dos
mestiços.
E
aí
a
coisa
vai
se
complicando...
Portanto,
criar
o
tipo...
Eu,
eu,
eu
fico
sempre...
Eu
fico
espantado
com
o
pardo,
o
que
é
isso
do
pardo?
Isso
é
que
eu
acho
que
um
critério
completamente
racista.
O
pardo
é
uma
coisa,
como
raça,
é
uma
coisa
que
não
existe.
Partindo
do
princípio
de
que
a
raça,
depois
a
gente
pode
falar
disso
de
uma
outra
maneira...
Mas,
partindo
desse
princípio
pra
facilitar:
o
que
é
que
é
isso
do
pardo?
O
Brasil
inventou
uma
raça
que
é
o
pardo.
Branco,
preto,
pardo.
Bem,
não
tem
índio,
começa
por
aí...
O
índio
é
uma
coisa
a
parte.
Como
se
vê
as
fichas
do
vestibular
ou
da
faculdade
é
branco,
negro,
pardo...
Não
tem
índio,
não?
O
índio
não
faz
faculdade,
não
faz
vestibular,
não
faz
coisa
nenhuma.
Por
isso
que
eu
tava
falando
das
questões
d'algum
racismo
fortemente
implantado
no
Brasil,
a
todos
os
níveis,
me
deixam
um
pouco,
deixa
me
pouco
à
vontade.
Sem
crítica,
pelo
amor
de
Deus.
Mas
deixa-‐me
espantado
como
é
que
um
país
tão
miscigenado
tem
isso
tão
forte,
tão
forte.
E,
pra
mim,
isso
foi
claro
agora
com
a
coisa
dos
jogos
olímpicos,
com
o
discurso
inflamado
do
multi
-‐
que
eu
odeio,
odeio
-‐
do
multirracial.
De
repente,
escolhem
a
Bündchen
pra
desfilar
como
a
representante
da
mulher
brasileira.
Que
país
é
esse,
né?
L:
Você
não
tem
nenhuma
fotografia
dos
índios?
MVF:
Não,
não,
nunca
fotografei
índio.
Deixe-‐me
dizer,
nunca
fotografei
porque
era
uma
realidade
tão
diversa
que
eu
teria
que
fazer
um
trabalho
específico.
Eu
não
tinha
condições
pra
isso...
Podia
fazer
uma
a
fotografia
do
índio,
claro,
"olha
um
índio!",
né.
Era
uma
ou
outra
coisa,
então,
eu
prefiro
nunca
fazer
pra
não
cair
na
maior
das
armadilhas.
Eu
acho
que
não
se
fotografa
um
índio
porque
ele
é
índio,
um
branco
porque
ele
é
branco,
um
velho
porque
ele
é
velho,
uma
criança
porque
está
a
rir,
ou
um
preto
porque
é
preto.
Fotografa-‐se
por
outras
razões,
não,
nesse
critério
sobretudo
racial,
se
calhar,
o
fenótipo
"ah,
eu
preciso
de
um
preto
pra
ilustrar
esse
artigo...",
não
se
fotografa
um
preto
porque
ele
é
preto,
isso
é
racismo.
Não
se
fotografa
um
branco
porque
ele
branco,
porque
é
racismo.
Um
índio,
porque
é
racismo.
Agora,
o
que
nós
podemos
fazer
é
um
trabalho
sobre
um
determinado
grupo,
que
são
índios,
e
que,
por
razões
várias,
tem
um
interesse
étnico,
antropológico,
sociológico,
político,
o
que
se
quiser.
E
até
rácico,
se
quisermos.
Nesse
sentido,
é
um
340
trabalho
sobre.
Agora,
passa
um
índio,
eu
fotografo
um
índio
só
pra
dizer
que
é
um
índio.
A
mim,
não
faz
sentido.
Como
não
me
faz
sentido
publicar
uma
reportagem
sobre,
imagine,
África,
que
é
um
clássico
das
reportagens
em
todo
lugar.
As
crianças
riem-‐se
em
todo
lado
do
mundo.
As
crianças
pretas
riem-‐se
tanto
como
as
outras.
Mas
como
têm
aquelas
que
tem
umas
expressões
muito
marcadas,
entendem
muito
dos
meus
colegas,
que
devem
publicar,
não
se
percebe
porque
no
meio
de
uma
reportagem
de
uma
outra
coisa
qualquer,
uma
criança
preta
a
rir-‐se,
é
um
clássico.
Por
quê
é
que
nas
revistas,
de
qualquer
nacionalidade
e,
quando
se
trata
da
África,
em
reportagens
mais
amplas,
vai
encontrar
um
preto
rindo?
Convém
encontrar
uma
criança
de
outra,
noutro
lugar
qualquer,
rindo.
Mas
por
quê
que
nós
temos
crianças
a
rir
no
meio
das
reportagens?
Não
há
crianças
que
choram?
Até
choram
mais
do
riem
algumas,
não
é?
Uns
têm
fome,
outros
tão
a
fazer
uma
birra.
Por
quê
é
que
não
mostram
as
crianças
que
choram?
Só
mostram
crianças
que,
"ah,
o
mundo
é
sorridente!",
isso
é
outra
coisa,
então,
vamos
fazer
uma
reportagem
sobre
"As
crianças
que
riem".
É
a
mesma
coisa,
sabe.
Por
quê
é
que
se
mostram
coisas
sem
doando
(?)
toda
reportagem
daquilo
que
se
quer,
daquilo
que
se
pretende
fazer?
A
mesma
coisa
a
foto
do
índio
ou
a
foto
do
preto,
ou
o
estereótipo
do
sambista
ou
do
cara
que
joga
futebol,
ou
da
baiana
pra
mostrar
o
Brasil,
caindo
sempre,
ou
sem
querer,
na
primeira
armadilha.
É
justificar
200
milhões
com
uma
imagem.
Não
existe,
não
existe.
Isto
não
vai
ajudar
em
nada
seu
depoimento,
rs...
L:
Em
Portugal,
eu
vejo
que
ainda
fotografam
índios.
Desde
o
“inicio”
da
fotografia
portuguesa
se
está
representando
o
índio.
Não
sei
se,
às
vezes,
isso
interfere
diretamente
na
continuação
da
cultura
do
próprio
índio...
MVF:
Mas
eu
vou
lhe
dizer
o
porque
que
eu
acho
que
alguns
dos
fotógrafos
portugueses,
muitos
deles,
caem
nessa
armadilha.
É
porque
acham
que
tão
fazendo
uma
reportagem
diferente,
e
que
fotografar
o
índio
é
uma
coisa
muito
original
e,
como
é
que
eu
posso
dizer,
profunda.
É,
e
já
sabem
tudo
sobre
os
índios.
Agora,
convinha
que
se
soubessem
quantas
tribos
originais
que
haviam
no
Brasil
e
quantas
ainda
que
há
hoje,
e
as
suas
origens,
e
as
suas
crenças,
e
seus
rituais,
e
suas
maneiras
de
viver,
e
da
Amazônia,
olha
Paraty,
por
exemplo,
essa
região
ali,
qual
é
a
diferença
entre
o
tupi
guarani
e
num
sei
quê...
Convinha
se
ver.
Vão
onde
tem
índio,
é
na
reserva,
o
"jardim
zoológico"
do
índio,
sabe.
E,
percebo
que
tenho
poucos
amigos
na
fotografia.
Você
não
vai
usar
isso
depois,
né?
Porque
muita
parte
deles
são
incultos,
sabem
nada
de
coisa
nenhuma.
E
o
fato
de
viajar
e
fotografar
um
índio
lhes
dá
uma
capacidade
de
compreensão
do
mundo
maior.
E
a
fotografia
é
muito
repleta...
Muito
repleta
não
existe.
É
repleta
ou
não
é.
Mas
tá
repleta
disso,
é,
fotógrafos...
E
não
é
culpa
deles,
é
culpa
até
também
do
público,
uns
que
exigem
isso,
outros
que
aplaudem,
pela
mesma
razão.
A
gente
vai
quatro
dias
pra
um
lugar
qualquer
estranho,
traz
umas
fotos
que
te
são
estranhas
e,
então,
isso
faz
de
ti
uma
pessoa
muito
culta,
e
muito
viajada,
e
muito
capaz
de
aprender
o
resto.
Depois,
o
melhor
é
não
falar
com
eles,
que
aí
é
questão
de
341
cartas
a
desmoronar,
não
é.
Mas
eles
sabem
pouco,
isso
tudo
é
pouco.
Têm
questões,
claro,
políticas,
sociológicas,
quando
se
preocupa,
vagamente,
mas
entende
que
tão
sempre
a
fazer
uma
reportagem
do
gênero
National
Geographic.
Isso
depois
tem
um
problema,
que
é
não
compreender
que
uma
coisa
que
se
é
estudada,
na
maior
parte
dos
casos,
e
é
uma
visão
americana
da
coisa,
apesar
de
tudo,
e
que
os
fotógrafos,
portanto,
da
National
Geographic
iam
pelo
menos
três
meses
para
os
lugares,
ou
dois
meses
para
os
lugares,
o
que
é
diferente
de
quatro
dias.
A
gente
pode
dizer
"ah,
mas
eles
são
americanos
e
olham
para
o
mundo
de
uma
maneira
americana",
"tá
bom,
e
eu
olho
para
o
mundo
de
uma
maneira
portuguesa",
não
é
por
isso,
que
dizer...
Depois
não
há
mais
generalização
do
que
isso.
O
que
eu
acho
é
que
é
muito
estranho
ir
de
propósito
fotografar
o
lugar
dos
índios,
sem
antes
cuidar
de
saber
como
é
que
os
índios
foram
ali
parar,
porque
é
que
estão
ali
e
há
quanto
anos,
de
onde
é
a
origem,
de
onde,
como
é
que
foi
a
mudança...
Como
é
que
eles
foram
expulsos
dos
seus
lugares,
porque
é
que
eles
se
refugiaram
mais,
se
calhar,
no
interior
de
florestas
e
deixaram
a
costa?
Já
viviam
lá,
os
portugueses,
no
caso
do
Brasil,
e
não
havia
ali
ninguém,
em
lado
nenhum
na
costa.
(L:
Só
na
Amazônia
eram
mais
de
três
milhões
de
índios,
eles
diziam
que
se
jogassem
uma
flecha
pra
cima
caia
na
cabeça
de
algum.
Só
que
tinha
que
fazer
uma
limpeza,
né,
tinha
que
fazer
uma
limpeza
pra
poder
ocupar.
Toda
colonização
é
violenta.)
Claro.
Faz
parte.
Não
há
outra
maneira,
a
questão
é
a
gente
perceber
a
mentalidade
da
época,
dentro
daquilo
do
que
é
possível
entender,
é
difícil
recuar
500
anos
e
se
pôr
nos
sapatos
dos
outros.
Como
é
que
a
gente
faz
isso?
A
gente
tenta
perceber
que
a
época
é
diferente
e
que
os
tempos
eram
outros.
E
que
a
maneira
de
olhar
pras
raças
ditas
inferiores,
ainda
hoje
muita
gente
olha
pra
elas
assim,
enfim.
O
índio,
como
ao
preto,
para
o
europeu,
em
500,
600,
700,
800,
são
raças
inferiores,
não
se
esqueça
que
pegavam-‐se
os
pretos
para
escravizar
na
Europa.
Não
é
cá,
é
Inglaterra,
é
em
todo
o
lado.
Não
foi
há
500.
Portanto,
não
entender
os
tipos
da
época
e
a
estranheza
até,
não
sei
se
viver
numa
Lisboa
de
1500
e
vejo
um
preto,
se
eu
o
considero
semelhante.
Não
sei,
em
1500,
eu
não
sei
se
é
possível
isso.
Dado
o
não
conhecimento
do
mundo,
como
é
que
você
olha
pro
outro?
Que
é
diferente,
até
porque
é
não
se
veste
ou
porque
se
veste
de
outra
maneira,
e
que
não
é
da
mesma
cor
e
tem
um
osso
imprensado
no
nariz.
Como
é
que
é
que
você
em
1500
você
olha
pro
outro
e
não
perceber
isto,
é
não
conseguir
perceber
o
resto
do
mundo.
Agora,
eu
acho
que
muitos
dos
fotógrafos,
eu
espero
que
não
esteja
a
falar
contra
a
mim
mesmo,
tem
a
mesma
estranheza.
Fotografam
o
índio
porque
é
o
índio,
ou
o
preto
ou
azul
ou
o
num
sei
quê,
porque
é
diferente.
E
eu
não
sofro,
ou
pelo
menos
em
grande
parte,
quem
me
conhece
pode
confirmar
isso,
eu
não
sofro
de
espanto.
Não
fico
espantado,
a
não
ser
com
estupidez,
isso
ainda
me
consegue
espantar.
Mas
com
o
resto,
geralmente
não
me
espanto.
Posso
ficar
desmedido,
posso
ficar
zangado,
irritado,
contente,
mas
espantar
"aaaah!",
aquela
diferença...
Já
vi
o
suficiente,
lá
em
casa
já
se
tinha
visto
o
suficiente
também.
Quando
eu
comecei,
não
é
a
fotografar,
quando
comecei
a
viver,
já
tinha
visto
muito
mais
do
que
eu
alguma
vez
verei.
E,
de
certo,
342
aquela
coisa,
'coisa
espantosa',
não
tenho
essa
capacidade,
eu
tenho
pena
às
vezes
de
não
me
espantar,
as
pessoas
ficam
tão
contentes
com
o
espanto,
deve
ser
uma
coisa
muito
boa.
Eu,
por
ver
um
índio,
não
fico
espantado,
por
ver
um
preto,
não
fico
espantado
e
por
ver
um
branco,
também
não.
Mas
sei
que
há
coisas
neles
que
deixam
espantado
de
ver
um
tipo
de
tantas
penas
na
cabeça
que
parece
um
peru,
não
é,
que
dizem,
né.
E
que,
como
documento
fotográfico,
pode
ser
muito
interessante,
se
nós
pensarmos
em
termos
antropológicos
e,
de
outras
formas
até,
pode
isto
ser
até
muito
interessante,
mas
não
pode
parar,
então,
só
pela
imagem,
tem
que
perceber
todo
o
resto.
E
é
isso
que
vai
faltando
nos
tais
portugueses
que
vão
ao
Brasil
fotografar
o
índio.
Quando
vão
a
África
para
fotografar
pretos.
Sinto
que
há
um
diferença
grande.
Em
África,
a
segregação,
tirando
o
que
se
passou
na
África
do
Sul,
e
isso
já
acabou,
a
segregação
preto
e
branco,
do
apartheid
na
África
do
Sul.
Até
algum
racismo,
ou
alguma
situação
que
havia
em
Angola,
Moçambique,
isso,
quer
dizer,
na
África
do
Sul
e
na
Rodésia.
Os
meus
pais
viveram
na
Rodésia.
Mas
que
não
é
a
mesma
coisa
que
aconteceu
no
Brasil
em
relação
aos
índios.
Portanto,
comparar
coisas
de
natureza
diferente
é
sempre
uma
coisa
que
pode
ser
perigosa.
Não
se
comparam
coisas
de
natureza
diferente,
esse
é
o
ponto
de
partida,
se
comparamos,
tá
tudo
errado
a
partir
daí.
E
é
isso
que
tem
algum,
às
vezes,
tem
algum
receio,
até
eu
tenho
isso,
não
sou
melhor
que
os
outros
nisso,
com
certeza,
mas
que,
sim,
que
tem
a
maior
parte
dos
fotógrafos.
E
que,
no
fundo,
sem
querer
fotografa
o
gueto
e,
cada
vez,
acentuando
aquilo
que
está
lá.
Eles
não
vivem
entre
nós,
entre
nós
quem?
A
coisa
é
muito
mais
delicada
quando
se
começa
a
pensar
nela,
torna-‐se
muito
mais
complexa
e
mais
delicada.
O
princípio
de
se
fotografar
o
índio
só
porque
é
o
índio,
eu
acho
curto,
mas
compreendo.
Convém
pensar
sobre
o
que
se
fotografou
e,
sobretudo,
sobre
o
que
se
mostrou,
nem
sempre
é
a
mesma
coisa.
Uma
coisa
é
eu
fotografar
e
mostrar
a
imagem,
outra
coisa
é
eu
fotografar
e
guardar
pra
mim,
por
razões
todas.
E
a
fotografia
só
existe
aquela
que
é
publicada,
o
resto
ninguém
viu,
como
aos
poemas
de
gaveta,
um
poeta
que
escreve
pra
gaveta.
(...)
Um
retrato,
sobretudo,
um
retrato.
É
mais
delicado
fotografar
uma
pessoa,
seja
ela
qual
for,
em
qualquer
situação,
do
que
fotografar
um
prédio.
Quer
dizer,
o
prédio
pelo
menos,
o
arquiteto
pode
ser
um
“pirudo”
mas
você
pode
achar
que
aquilo
tá
mal
fotografado,
o
que
for.
Fotografar
um
semelhante,
a
coisa
pode
ser
um
pouco
mais
sensível.
Ok,
tudo
bem,
isso
pode
começar
assim...
Continuemos,
os
canais,
há
uma
justificação,
tem
que
haver
uma
justificação,
porque
senão
pra
nós
a
leitura
que
será,
necessariamente
cultural,
de
um
modelo
de
casamento,
de
relação
monogâmica,
e
depois
a
gente
pode
falar
sobre
isso
(risos)
mas
é,
oficialmente,
monogâmica,
que
não
permite
ou
pode
permitir
até
certo
ponto,
mas
não
permite
a
bigamia
ou
a
poligamia,
e
se
isso
ficar
assim
é
poligamia
ou
é
bigamia
e,
portanto,
é
um
pecado.
Mesmo
pra
quem
não
acredita
no
critério
de
pecado,
que
não
seja
religioso,
olha
sempre
pra
isso
com
uma
coisa,
um
comportamento
torto,
devasso,
promíscuo,
tudo
isso.
E
é
nisso
que
eu
falo,
as
pessoas
são
muito
responsáveis
ou
são
muito
irresponsáveis
naquilo
343
que
fazem,
porque
não
tem
o
cuidado,
ou
das
duas,
uma,
ou
não
tem
que
fazer
nenhuma
legenda
e
não
dizem
sobre,
mostram
a
imagem
e,
muitas
vezes,
é
suficiente.
Agora,
se
querem
ser
sociólogos,
então,
convinha
não
serem
analfabetos.
Se
eu
disser
porque
é
que
é
que
eu
não
tenho
muitos
amigos
na
fotografia...
Temos
um
problema,
é
por
isso
que
eu
digo
que
desisto:
"Eu
sou
tão
mau
fotógrafo
como
vocês,
tenho
é
algum
cuidado
nos
disparates
que
digo
sobre
aquilo
que
faço".
(L:
uma
ética,
não
é)
Tem
que
haver
uma
ética
na
fotografia,
que
se
tá
a
perder.
E,
hoje
em
dia,
todos
são
fotógrafos,
portanto,
a
ética
também
faz
parte,
não
é.
Qualquer
cara
com
um
celular
é
fotógrafo,
com
qualquer
máquina
dessa...
Mas
tem
que
haver
uma
ética,
não
naquilo
que
nós
fazemos
pra
nós,
porque
é
nossa
ética
e,
se
não
há
um
confronto,
a
ética
é
nossa,
é
uma
recordação.
Agora,
a
partir
do
momento
que
você
publica,
seja
em
que
meio
for,
porque
hoje
em
dia,
né.
Convém
ter
muito
mais
cuidado,
convém
tem
uma
ética
e
não
tem,
não
há
uma
ética.
Não
há
uma
ética
nos
fotógrafos,
que
é
uma
coisa
pra
mim
impensável,
impensável.
Eu,
nessa
revista
Volta
ao
Mundo,
penso
que
ainda
existe,
tinha
uma
coisa
que
era
"vocês
não
fotografem
os
putos
pretos
a
rir,
se
fotografar
nem
sequer
me
põe
na
mesa
de
luz,
que
a
gente
já
tem".
E
eu
gastado
meu
filme
que
ponho
na
máquina
pra
fotografar
putos
pretos
a
rir.
Mas
não
mostram
brancos
a
rir,
eu
faço
só
a
pergunta:
"Por
quê?".
Qual
é
a
diferença?
Estabelecemos
mais
uma
vez:
eu
vou
ao
zoo
ver
os
índios;
eu
vou
a
África,
vejo
um
preto
aqui,
ali
"ah,
são
tão
engraçadinhos",
imagina
o
povo
preto
a
nos
fazer
o
mesmo...
Como
é
que
é?
Agora,
havia
uma
facilidade
no
Brasil
ao
fotografar,
que
eu
não
sei
se
se
mantém
hoje
em
dia,
eu
não
tô
falando
da
facilidade
técnica
ou
a
facilidade
de
não
ser
assaltado,
não
sei
se
mantém
tanto
como
era,
mas
presumo
que
no
interior
todo
continua
sendo
uma
coisa
tranquila,
nas
grandes
cidades
talvez
já
não
tanto,
que
é
uma
coisa
que,
hoje
em
dia,
é
politicamente
incorreta,
é
fotografar
pessoas,
enfim,
mas
é
o
que
é.
Que
você
vê
nos
Estados
Unidos
e
na
Europa,
n’alguns
lugares
na
Europa,
já
é
difícil
de
fazer
retratos,
eu
trouxe
isso
só
pra
você
ver
3
ou
4
coisas,
que
é
um
apanhado
de
coisas.
Freelancers
na
revista
Volta
ao
Mundo...
Têm
alguns
retratos
meus,
não
sei
se
tem
brasileiros,
eu
acho
que
este
foi
publicado
(falando
das
fotos
que
estava
mostrando)
Era
uma
coisa
que
eu
tentava
assim,
fotograva-‐se
pela
situação,
pela
própria
circunstância,
mas
não
pela
cor,
não
somos
racistas,
somo
fotógrafos,
jornalistas
se
quisermos,
mas
o
critério
rácico
não
pode
entrar
nisto.
E
não
se
consegue
fazer
com
que
entendam
isto,
não
se
consegue.
Eu
sou
de
direita,
tendencialmente,
uma
pessoa
de
direita
é
uma
pessoa
racista,
estereótipos...
Sou
de
direita
clássica,
séria,
com
uma
ética
própria,
com
uma
metodologia
muito
definida,
tudo
isso.
Agora,
eu
não
sou
racista.
E
percebe-‐se,
acho
eu,
que
o
que
eu
digo,
que
é
o
que
faço,
não
é
outra
coisa.
É
muito
complicado
de
explicar
isso,
seja
a
fotografia,
que
eu
não
tenha,
sem
querer,
o
estereótipo
enfiado
lá
dentro
...
os
pretos
porque
são
pretos
e
os
índios
porque
são
índios.
Depois
podem
dizer
"ah,
não,
não,
somos
todos
seres
humanos",
não,
se
fala
índios
porque
são
índios,
se
fala
pretos
são
porque
eles
são
pretos,
amarelo
porque
é
amarelo.
Ou
seja,
a
individualidade
de
cada
um
esbate-‐
344
se
no
meu
critério
inicial
rácico,
e
isto
na
fotografia
é,
eu
acho,
perigosíssimo.
...
E
falei
com
eles
o
suficiente,
só
para
perceber,
mais
ou
menos...
Sem
querer,
eles
vão
fotografar
o
diferente
por
ser
diferente,
não
com
outro
interesse,
nem
coisa
nenhuma...
É
diferente,
fotografava-‐se.
E
é
esse
o
princípio
do
racismo.
Se
você
pensar,
em
Manaus,
simplificando,
é
isso
que
acontece,
é
olhar
o
outro
como
diferente.
Fotografar
a
diferença.
Eu
acho
isso
curto
e
complexo.
Mas
é
que
continua,
que
o
problema
é
esse.
Se
a
gente
voltar
pra
trás
e
entender
o
espírito
da
época,
dentro
daquilo
que
eu
te
falo
que
é
possível
da
gente
entender.
Agora,
500
anos
depois
continuamos
a
fazer
o
mesmo.
Vou
te
contar
uma
coisa...
Olha,
nessa
reportagem
que
deu
que
fiz
quando
estava
em
Bitupitá
(Nordeste
do
Brasil),
Bitupitá
na
altura
era
o
fim
do
mundo,
não,
era
antes
do
fim
do
mundo.
A
ideia
não
era
mostrar
coisa
nenhuma,
a
ideia
era,
nós
fomos
fazer
uma
reportagem
no
Ceará,
na
altura,
e
foi
uma
viagem
extraordinária
porque...
Sendo
que
Fortaleza
era
uma
cidade
com
2
milhões
e
meio
de
habitantes,
né.
Eu
tinha
lido,
tinha
e
tenho
uma
coleção
do
Catulo,
e
tinha
lido
aquelas
coisas,
aqueles
versos
de
Catulo
da
Paixão
Cearense.
Então,
tinha
uma
curiosidade
do
Ceará
que,
se
calhar,
a
maior
parte
da
rapaziada
não
tinha.
Não
se
via
Ceará
como
destino
turístico.
Não
tinha,
quer
dizer,
tinha
pra
algumas
brasileiros,
a
coisa
de
Jericoacora.
As
estruturas
turísticas
eram
básicas
e
primárias.
Mas
era
Fortaleza,
Jericoacoara,
não
tinha
luz
elétrica,
e
Canoa
Quebrada.
Todo
o
resto,
era
um
Brasil,
se
quisermos,
a
estar
ainda
muito
puro
sem
a
influência
turística,
que
é
uma
espécie
de
colonização.
E,
portanto,
alguns
desses
lugares,
estavam
esquecidos
num
tempo
pré-‐turístico,
se
eu
posso
dizer
assim.
É,
e
Bitupitá
era
um
deles.
Eventualmente,
podia
ter
turistas
do
próprio
Ceará,
era
no
fim
do
estado,
era
quase
na
fronteira
do
Piauí,
uma
praia
imensa,
mas
imensa.
Bitupitá
tinha
um
hotel,
que
é
um
hotel
central
de
Bitupitá,
não
sei
se
tenho
foto
aqui,
mas
tem
no
Facebook,
que
é
aquela
que
tem
a
rede.
Eu
vou
digitalizar
e
vou
te
mostrar
a
entrada
do
hotel
central.
O
que
é
uma
ideia
turística
extraordinária,
pra
os
tempos
de
hoje,
não
é.
Mas,
na
época,
já
havia
este
turismo
nos
grandes
hotéis,
em
todo
o
lado.
E
aquilo
era
uma
coisa
única,
nesse
sentido...
E
era!
De
facto,
era.
Tem
uma
história
muito
engraçada
nessa
praia,
quando
fui
fazer
aquela
foto
dos
miúdos
e
o
rapaz
com
os
pais,
eu
estava
com
o
jipe,
num
sei
quê..
E
a
gente
fez
aquela
coisa
toda
de
costa,
linha
de
costa,
Maceió,
Ceará,
só
aldeias
mínimas,
pescatórias,
turismo
nada.
Perguntaram-‐me
no
Ceará,
e
em
vários
lugares,
onde
é
que
era
Portugal,
e
eu
não
tô
brincando.
Um
deles
achava
que
eu
era
francês,
um
velho
pescador,
com
quem
tomei
meu
pequeno
almoço
ali,
essa
é
extraordinária...
Não
sei
se
foi
em
Camocim,
um
daqueles
lugares.
E
eu
disse
que
era
de
Lisboa,
Portugal.
E
ele
"mas
isso
é
na
França,
não?",
"não,
a
gente
fala
a
mesma
língua,
francês
fala
outra
coisa...",
"ah,
você
fala
muito
bem
pra
quem
é
francês!",
"ah
é?
muito
obrigado!".
Estamos
a
falar
de
uma
realidade
que
é
esta,
e
isso
não
tem
nem
mal,
nem
bem,
é
só
assim,
né.
Agora,
Bitupitá,
eu
vejo
os
caras
chegando
com
aquele
peixe
enorme,
um
garoto,
eu
publiquei
uma
outra
foto
deles,
o
cabelo
assim,
o
rapaz
que
tá
pegando
no
peixe,
não
sei
se
você
viu,
naquele
álbum
do
Brasil
345
que
te
mandei...Eu
vou
ter
que
correr
pra
um
almoço
e
eu
acho
que
esta
conversa
não
vai
ficar
por
aqui...
346
ANEXO
6:
Entrevista
com
André
Cepeda
+
Realizada
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
LT:
Você
me
autoriza
a
usar
a
sua
fala
e
as
fotos
no
projeto?
AC:
Sim,
sim.
LT:
Você
começou
a
trabalhar
em
2005
com
fotografia...
AC:
Não.
Eu
comecei
a
trabalhar
mesmo
como
fotógrafo
a
partir
de
1999.
Quer
que
eu
explique
o
processo?
LT:
Sim,
pode
ser?
AC:
Eu
cresci
muito
dentro
da
fotografia
portuguesa
porque
minha
mãe
trabalhava
nos
Encontros
de
Fotografia
de
Coimbra,
que
era
o
grande
festival
de
fotografia
em
Portugal.
Albano
Silva
Pereira
era
o
diretor
e
minha
mãe
era
secretária
dele.
Foi
a
primeira
pessoa
que
trouxe
Robert
Frank
em
89/90,
esqueço-‐me
sempre
da
data.
Foi
mais
ou
menos
a
segunda
ou
terceira
exposição
de
Robert
Frank
na
Europa
depois
dele
ter
parado
nos
anos
60.
Nunca
mais
fazia
exposições,
se
dedicou
ao
cinema,
mas
depois
voltou
à
fotografia
no
fim
dos
anos
80.
E
foi
um
evento
brutal
porque
o
Frank
é
um
grande
fotógrafo
americano
vivo,
ainda
com
certa
idade.
E
depois
vinha
a
ter
anos
90/2000
imensas
exposições
de
fotografia,
livros,
etc...Mas
o
The
Americans
é
considerado
o
grande
livro
da
fotografia,
não
só
americana
mas
também
em
geral,
porque
tem
a
questão
de
ser
um
livro
que
parte
de
um
ideia
de
viagem,
ainda
não
se
tinha
feito
nada
daquele
gênero.
Ficar
dois
ou
três
anos
a
viajar
e
faz
um
retrato
da
sociedade,
a
questão
documental,
a
questão
ficcional,
a
questão
geográfica,
a
questão
da
narrativa
do
livro,
da
construção,
da
edição,
formato,
design.
Eu
era
muito
novo
e
eu
fui
o
porteiro
da
inauguração
da
exposição
que
foi
um
evento
brutal.
Foram
ministros,
foi
toda
a
gente
de
Lisboa,
Porto.
E
foi
em
um
espaço
lindíssimo
que
era
uma
antiga
caldeira
da
Universidade
de
Coimbra.
Eu
tinha
12/13
anos
e
fui
destacado
para
ser
o
porteiro,
imagine
no
que
isso
influencia
um
miúdo.
E
depois,
a
partir
daí,
eu
conheci
todos
os
fotógrafos
que
vinham
a
Coimbra.
Minha
mãe
era
amiga
do
Jorge
Molder,
Tabarra,
que
estava
a
começar,
Antonio
Julio
Duarte
que
era
um
miúdo.
No
fundo,
eu
cresço
dentro
daquele
ambiente,
depois
vamos
viver
em
Bruxelas.
Em
Bruxelas
já
fazia
fotografia,
mas
continuo
a
desenvolver
muito
mais
aquilo
que
tinha
mais
tempo,
mais
meios
econômicos
para
isso.
E
começo
de
fato
a
trabalhar
muito
mais
a
sério,
tinha
18
anos.
Depois
não
me
dei
tão
bem
em
Bruxelas
e
vim
para
Portugal
e
acabo
o
12º
ano
em
Portugal,
no
Porto.
E
a
(4min
-‐
não
entendi)
estava
a
preparar
o
Centro
Português
de
Fotografia,
no
Porto,
e
eu
quando
acabo
o
Liceu
em
junho
ligo-‐lhe
e
começo
a
trabalhar
com
ela
em
Julho.
Ainda
o
Centro
não
estava
formado
a
nível
oficial,
mas
já
comecei
a
trabalhar
na
preparação
do
Centro
e
tive
347
quase
três
anos
como
braço
direito
dela,
até
1999
que
é
quando
ela
me
propõe
entrar
no
quadro
e
eu
decido
sair
e
faço
uma
grande
viagem
e
depois
acabo
na
Bélgica.
E
na
Bélgica
(4min50
–
não
entendi)
que
eu
tinha
conhecido
nos
Encontros
de
Fotografia
em
Coimbra,
que
era
o
diretor
da
(4min55
–
não
entendi),
um
centro
de
fotografia,
no
fundo
quase
um
museu
da
fotografia
em
Bruxelas,
dá-‐me
uma
bolsa
e
eu
fico
um
ano
com
essa
bolsa
a
trabalhar
e
desenvolver
o
meu
primeiro
grande
projeto
que
chama-‐
se
Ana
Comi.
Depois
é
exporto
em
99
e
2000
e
foi
aí
que
eu
comecei
no
fundo
a
minha
carreira
como
fotógrafo.
Depois
vou
a
Portugal
e
a
partir
daí
não
paro.
Mas
de
facto
há
uma
data
muito
marcante
que
é
2005,
que
é
a
minha
primeira
grande
individual
na
Bélgica.
E
é
a
partir
dessa
data
que
faço
o
Ontem,
que
é
meu
primeiro
livro
que
fico
cinco
anos
a
trabalhar
no
livro.
Depois
faço
o
Rien,
depois
o
Stan
Getz.
Mas
2005
é
uma
data
importante,
mas
eu
comecei
mesmo
foi
em
99.
LT:
Você
sempre
foi
fotógrafo?
AC:
Sempre,
sempre.
LT:
E
você
sempre
trabalhou
com
a
realização
de
projeto
em
livros?
AC:
O
projeto
de
livros
começa
mais
a
partir
de
2005
em
que
eu
decido
que
através
de
um
livro
que
eu
quero
trabalhar,
a
ideia
de
construir
um
livro,
ou
seja,
o
Ontem
começa
e
acaba
a
pensar
no
livro,
quando
estou
a
fotografar
estou
a
pensar
no
livro,
não
estou
a
pensar
na
exposição.
Isso
é
uma
forma
completamente
diferente
de
tu
contextualizares
o
teu
trabalho
e
tu
orientares,
organizares,
no
fundo
também
mentalmente
por
mais
emocional,
por
mais
instintivo
que
seja,
acabas
por
ser
diferente
a
construção.
Tu
estás
preocupada
com
uma
narrativa,
com
uma
sequencia.
E
tu
não
estás
a
pensar
nas
paredes.
Não
estás
a
pensar
no
formato,
estás
a
pensar
na
imagem,
naquilo
que
tu
vais
querer
dizer,
naquilo
que
tu
estás
a
sentir,
e
isso
eu
acho
que
faz
muito
mais
sentido.
Eu
acho
que
o
livro
é
de
facto
a
melhor
forma
de
apresentar
meu
trabalho.
LT:
Você
escolheu
a
câmera
de
grande
formato
a
partir
de
2005
por
causa
do
processo
mais
lento,
longo
e
de
grande
observação?
AC:
É
muito
lento.
É
uma
imagem
bem
pensada.
Mas
lá
está,
eu
acho
que
aqui
há
uma
questão
interessante
também
porque
eu
cresço
num
meio
completamente
analógico,
nem
se
quer
havia
digital.
O
quarto
escuro
era
o
lugar
do
fotógrafo,
o
papel,
a
química,
o
cheiro,
o
um
pra
um.
Você
está
em
uma
total
solidão,
estás
com
as
tuas
imagens,
com
os
teus
negativos.
Aquilo
é
uma
paixão,
é
uma
necessidade,
um
estilo
de
vida,
é
impossível
viver
sem
isso.
É
uma
coisa:
ou
tu
tens
ou
tu
não
tens.
É
quase
como
uma
dependência,
tu
precisas
daquilo
e
eu
fui
construindo
a
minha
relação
com
a
fotografia
348
com
a
forma
como
eu
queria
viver.
E
eu
chego
a
um
momento
que
tenho
uma
crise
muito
grande,
2002/2003/2004,
onde
as
coisas
já
não
faziam
sentido
para
mim,
já
não
tinha
prazer
absoluto
fotografar.
Era
muito
fácil,
eu
já
estava
há
tantos
anos
naquilo
em
que
tu
chegas
a
um
lugar
ou
tu
viajas
e
tu
levantas
o
braço
e
“click”,
dispara.
Aquela
relação
em
que
tu
estás
um
bocado
escondido
também,
em
que
o
próprio
formato
ou
a
própria
máquina
não
responde
aquilo
que
tu
necessitas.
Quando
eu
comecei
com
o
grande
formato
voltei
a
me
apaixonar
outra
vez
pela
fotografia,
pelo
processo,
porque
tu
consegues
viver
o
lugar
que
estás
a
fotografar.
Tu
consegues
preparar,
para
além
do
rigor
técnico
essencial,
a
qualidade
que
é
completamente
diferente
do
35mm
ou
médio
formato.
O
processo
todo
faz
mais
sentido
para
a
forma
como
eu
quero
me
relacionar
com
o
mundo
e
com
aquilo
que
eu
vou
fotografar.
Eu
quero
está
a
olhar
para
as
pessoas
e
para
as
coisas,
eu
quero
fazer
parte
dos
objetos,
da
paisagem.
Eu
quero
por
o
tripé
e
a
máquina
e
dar
uma
volta,
sentir
o
vento,
o
frio,
sofrer
ao
mesmo
tempo.
Eu
não
quero
estar
escondido,
um
lado
muito
facilitista.
Eu
quero
construir
a
imagem
o
mais
rigorosamente,
mais
para
a
esquerda,
mais
para
a
direita.
Às
vezes
as
minhas
imagens
parece
que
chegas
ali
e
tiras,
mas
não.
Estão
tortas,
estão
tortas
é
porque
estão
tortas,
é
a
forma
como
tu
olhas,
é
a
forma
como
tu
respondes.
Aprender
com
o
processo,
evoluir,
evoluir
com
os
erros,
contigo
próprio,
com
a
tua
pessoa.
Eu
depois
de
2005
e
2010
quando
editei
o
Ontem,
eu
era
uma
pessoa
diferente.
Isso
era
o
que
eu
queria
e
aquilo
me
marcou.
Aquele
processo
todo,
tu
obrigar-‐te
a
confrontar
com
as
pessoas.
É
como
foi
São
Paulo.
São
Paulo
foi
duríssimo,
a
cidade
é
extremamente
grande.
Como
é
que
tu
vais
compreender
aquele
território?
Como
é
que
tu
vais
decidir
se
vais
para
a
direita
ou
esquerda?
Para
onde
é
que
tu
vais?
Por
onde
tu
vais
começar?
LT:
E
como
aquela
câmera
é
grande
...
AC:
Sim,
sim.
Depois
só
levo
aquela,
não
levo
mais
nenhuma.
Pronto,
há
um
lado
que
tu
tens
que
escolher
antes,
escolher
o
filme
que
queres
trabalhar,
a
forma
como
tu
queres
atacar,
para
onde
é
que
tu
vais.
Depois,
claro,
deixa
um
bocado
para
o
improviso,
mas
há
coisas
que
tu
pré
determinas
antes.
O
primeiro
mês
em
São
Paulo
foi
apenas
para
andar
na
rua
a
tentar
perceber
o
que
é
que
eu
queria
fazer.
E
depois
eu
começo
a
me
apaixonar
pela
cor,
pela
forma
como
a
natureza
entra
na
própria
arquitetura.
A
cor
da
pele
das
pessoas,
a
mestiçagem
de
índio
com
negro,
com
branco,
com
japonês,
com
alemão,
com
uruguaio,
aquela
mistura
toda.
Há
de
facto
ali
uma
grande
paixão
e
depois
eu
tinha
acabado
de
fazer
o
Rien,
que
era
um
projeto
duro,
no
Porto,
em
preto
e
branco.
E
quis
fazer
o
oposto
ou
tentar
ou
experimentar
porque
as
residências
também
são
para
mim
importantes
para
isso.
Poderia
chegar
a
São
Paulo
e
fotografar
da
mesma
maneira
que
eu
fotógrafo
no
Porto
e
fazer
outro
livro
preto
e
branco,
mas
em
São
Paulo.
Mas
não
era
isso
que
eu
queria.
Isso
eu
sabia
fazer.
Eu
não
queria
fazer
aquilo
que
eu
já
sabia
fazer.
Eu
queria
que
a
própria
cidade
me
349
surpreendesse,
eu
queria
aprender
a
olhar
para
a
própria
cidade
com
a
escala
que
era
completamente
diferente,
era
difícil.
Eu
quando
montava
o
tripé
ou
eu
estava
muito
longe
ou
estava
muito
perto.
As
coisas
eram
demasiado
grandes,
parecia
que
as
coisas
não
se
encaixavam
dentro
do
visor.
Nada
batia
certo,
eu
demorei
imenso
tempo.
Eu
sei
perfeitamente,
eu
sei
fotografar
isso,
eu
sei
qual
é
a
distancia
que
eu
tenho
que
estar,
a
altura,
mas
lá
não.
Lá
tudo
é
diferente,
uma
folha
é
diferente,
a
luz,
e
principalmente
a
escala
das
coisas
são
diferentes.
Então
esse
processo
foi
muito
violento.
A
agressividade
da
própria
cidade
e
a
escala.
Tu
andas,
andas
e
andas
até
chegares
ao
ponto
que
tu
queres,
e
aí
já
está
cansado.
E
depois
perceberes
aquilo
que
tu
queres
fazer.
Como
o
meu
ponto
de
partida
era
sempre
o
mesmo,
o
meu
atelier,
eu
quis
usar
o
atelier
também
como
lugar.
Então
comecei
a
fotografar
as
pessoas
não
só
fora
do
atelier,
mas
no
atelier.
Aquilo
são
todos
modelos
vivos,
modelos
que
posam
para
pintores.
E
era
a
forma
em
três
meses
mais
interessante
que
eu
encontrei
para
poder
fotografar
nu.
LT:
O
que
você
escutou
antes
sobre
o
Brasil?
E
quando
chegou
lá
você
viu
que
algumas
coisas
que
você
tinha
escutado
se
encaixavam
e
outras
não
eram
visíveis?
AC:
Assim,
eu
cresci
na
Holanda
até
os
10
anos.
E
quando
saímos
da
Holanda
fomos
para
Coimbra
e
o
meu
padrasto
era
brasileiro
de
Porto
Alegre,
no
Rio
Grande
do
Sul.
Então
eu
cresci
sete
anos
com
ele,
ou
seja,
o
meu
imaginário
do
Brasil
era
um
imaginário...e
a
cultura
brasileira
fez
parte
da
minha
educação,
a
música,
o
cinema.
E
eu
sabia
muito
sobre
o
Brasil,
mesmo
da
literatura
porque
eu
estudava
muito
história
antes
de
chegar
lá.
Sempre
tive
uma
curiosidade,
nunca
pensei
em
ir.
Acho
que
as
coisas
não
são
assim
tão
diferentes
de
Portugal.
Tu
cresces
com
as
telenovelas,
cresce
com
uma
ligação
muito
direta
do
Brasil.
Podes
não
conhecer,
mas
achas
que
conhece.
Ou
seja,
a
música
eu
já
sabia
o
que
ouviam
e
estava
par,
mesmo
muita
música
contemporânea.
O
cinema
não
havia
assim
grandes
coisas,
mas
é
claro
que
existem
coisas
que
tu
não
conheces,
mas
estou
a
par
de
grandes
realizadores.
Eu
acho
que
foi
mais,
se
calhar,
eu
não
sei
bem.
A
perguntar
que
estás
a
me
dizer
são
as
diferenças,
aquilo
que
eu
senti
de
diferente.
LT:
Se
você
sentiu
diferença
porque,
por
exemplo;
achou
que
aquela
história
de
ser
um
pouco
malandro
é
verdade;
queria
marcar
as
coisas
com
as
pessoas,
mas
quando
chegava
no
dia
o
encontro
não
acontecia?
AC:
Eu
tive
muito
isso.
Eu
também
tive
algumas
situações
dessas.
É
difícil,
é
uma
cultura
diferente.
Toda
a
gente
diz
que
sim
e
depois
acaba
por
não
haver
essa
organização.
Perguntas
alguma
coisa,
dizem
que
sim
e
depois
não
aparecem.
Aconteceu
muitas
vezes
e
isso
foi
um
bocado
chato.
350
LT:
O
Jordi
é
apaixonado
pelo
Brasil.
Ele
diz
que
lá
as
pessoas
são
livres
e
elogia
uma
suposta
existência
de
uma
sexualidade
maior
que
o
que
conhecia
em
Portugal.
Você
sentiu
isso
também?
AC:
Sim,
bastante
sim.
Eu
acho
que
aquilo
que
agora
estou
a
lembrar
e
que
percebi
quando
estava
lá
é
de
fato
o
seguinte.
Não
sei,
posso
estar
completamente
errado,
mas
quando
isso
me
aconteceu,
ou
seja,
marquei
com
uma
série
de
pessoas
lá
no
atelier
e
ninguém
apareceu,
e
tinha
estado
a
tarde
toda
a
preparar,
a
comprar
merdas,
e
bebidas
para
estarmos
ali
a
discutir.
Europa
é
um
povo
velho
e
o
Brasil
é
um
país
novo.
As
referências,
e
o
peso
social,
e
a
história,
eu
acho
que
são
completamente
diferentes.
Nós
temos
velhos
hábitos,
questão
de
educação,
de
compromisso,
e
eles
lá
não
têm.
Essa
liberdade
que
o
Jordi
diz
e
que
também
explosão
sexual
de
libertação
e
de
códigos
sociais
que
lá
não
funcionam.
Não
sei,
eu
percebi
isso,
percebi
que
de
facto
aqui
há
questões
como,
por
exemplo,
tu
marcas
está
marcado
e
lá
não
está.
Nunca
sabes
se
a
coisa
vai
acontecer
ou
não
vai
acontecer.
Eu
tive
várias
exposições
marcadas
no
Brasil
que
nunca
aconteceram.
E
várias
objetos
que
ia
se
fazer
e
nunca
se
fizeram.
Mas
tive
outros
que
se
fizeram.
Agora
estou
a
trabalhar
com
outra
curadora.
Conheces
a
Isabella
Lenzi?
Ao
início
não
liguei
nenhuma
porque
achei
que
fosse
ser
mais
um
dos
projetos,
mas
pronto
agora
ela
veio
e
de
facto
estamos
a
trabalhar.
Mas
não
sei
se
essa
é
uma
questão
cultural,
eu
acho
que
é
uma
questão...Não
sei
se
estou
certo
ou
errado,
eu
não
sei
muito
bem
o
que
pensar
disso,
mas
sim,
senti
um
grande
choque.
Mas
também
não
era
nada
assim...eu
acho
que
hoje
em
dia
as
pessoas
viajam
tanto.
É
aquilo
que
sempre
digo:
as
pessoas
de
São
Paulo,
mesmo
as
de
uma
classe
média,
ou
músicos,
ou
artistas,
as
pessoas
viajam
tanto
que
hoje
em
dia
já
há
tão
poucas
diferenças.
LT:
Você
tem
alguma
coisa
para
falar
sobre
a
mulher
quando
esteve
no
Brasil?
Digo
isso
porque
todos
acompanham
novela,
mas
novela
é
ficção.
Apesar
de
elas
chegarem
muito
aqui,
elas
passam
uma
visão
meio
errada
da
nossa
cultura.
Mas,
você
acha
que
quando
você
foi
lá
a
imagem
da
mulher
correspondia
a
novela?
AC:
Não,
não.
Por
acaso
eu
pensei
que
a
mulher
brasileira
era
mais
bonita.
Mas
toda
a
gente
tem
essa
ideia.
Tens
uma
imagem
que
é
completamente
daquele
lado
romântico
do
Vinicius.
Não
é
nada
disso.
Por
acaso
agora
já
não
me
lembrava
de
um
monte
de
coisas
que
senti
quando
estive
lá.
Houve
um
desmoronar
de
ideia
que
eu
tinha
de
facto...de
uma
ideia
mais
romântica.
É
de
facto
uma
sociedade
muito
agressiva,
eu
acho
que
têm
coisas
bastante
feias.
LT:
Mas
também
têm
coisas
muito
diferentes
do
resto
do
Brasil.
Você
conheceu
só
São
Paulo?
AC:
Não,
também
fui
ao
Rio,
depois
andei
por
Belo
Horizonte.
Fiz
uma
grande
viagem
pelo
Rio
São
Francisco.
Diamantina
e
fiz
aí
uns
dois
mil
quilômetros.
LT:
Minas
Gerais
é
bem
português,
o
centro
de
Ouro
Preto...
351
AC:
Sim,
eu
estive
em
sítios
muito
pequenos,
pequenas
aldeias,
sítios
perdidos,
cidades.
Eu
não
posso
estar
a
dizer
o
que
é
melhor
ou
pior,
o
que
está
mal
o
bem.
Agora
aquilo
que
eu
vi
foi
uma
cidade
muito
machista.
Essa
questão
dos
valores
é
uma
questão
interessante,
eu
acho.
O
Brasil
era
um
lugar
só
com
índios,
depois
tu
trazes
uma
ideia
que
vem
da
Europa,
uma
estrutura
de
família
e
católica.
Então
como
é
que
isso
se
agrega
aquele
lugar.
Fica
ali
meio
perdido
porque
é
enorme.
Eu
acho
que
a
questão
da
religião
é
de
facto
muito
preocupante
porque
isso
também
castra
completamente
aquele
lado
que
o
Jordi
estava
a
dizer.
Essa
explosão
de
vida
e
de
energia
que
o
povo
brasileiro
tem.
Eles
agora
estão
a
tentar
entrar
no
governo.
Isso
é
um
grande
perigo
e
eu
acho
que
de
facto
o
Brasil,
pelo
que
meus
amigos
me
dizem
–
eu
costumo
falar
com
ele
por
e-‐mail
–
aquilo
lá
está
tudo
estragado.
Está
um
inferno.
Está
muito
violento
outra
vez.
LT:
Aumentou
o
desemprego,
aumentou
a
violência.
AC:
Em
2012,
quando
estive
lá,
havia
ainda
aquela
grande
esperança
com
o
boom
econômico,
uma
loucura
total.
Na
arte
então
um
artista
como
eu
era
riquíssimo.
Conheci
um
monte
de
miúdos
que
vendiam
e
eram
muito,
muito
caros.
Havia
muito
dinheiro
e
falava-‐se
muito
disso,
que
aquilo
ali
ia
explodir.
Mas
eu
acho
que
socialmente
há
um
desequilíbrio,
não
sei
se
de
valores.
O
Brasil
tenta
ser
contemporânea,
mas
não
tem
estrutura
para
aguentar.
Eu
acho
que
sociologicamente
há
ali
uma
faísca
porque
tu
tens
uma
grande
libertação
da
sexualidade.
As
pessoas
podem
beijar-‐se
no
metro
e
faz
muito
isso.
E
depois
tens
o
lado
da
direita
muita
conservadora.
E
depois
tens
muita
pobreza.
Há
aqui
um
buraco
enorme.
O
Brasil
poderia
ser
de
facto
um
país
incrível,
quase
como
a
Holanda,
uma
ideia
de
um
paraíso.
Poderia
ser,
mas
está
sempre
a
ser
castrado.
Mas
a
forma
como
eu
vejo
o
brasileiro
que
é
muito
a
tua
questão,
né?
Tu
queres
que
eu
fale
sobre
isso?
LT:
Sim,
sim.
Pode
falar
o
que
quiser.
AC:
Como
eu
cresci
com
um
brasileiro,
ele
na
altura
tinha...minha
mãe
é
muito
nova,
ela
fez
ontem
60
anos,
eu
tenho
41,
vou
fazer
41.
Ou
seja,
quando
voltamos
da
Holanda
a
minha
mãe
tinha
29
anos,
ele
tinha
24.
E
ele
era
uma
pessoa
muito
alegre,
ouvíamos
imensas
músicas
brasileiras,
comíamos
feijoada
todas
as
semanas,
víamos
futebol,
parecia
que
estava
sempre
muito
bem
disposto.
Essa
questão
de
facto
existe
num
aparência,
é
incrível
como
é
um
povo
sempre
tão
bem
disposto.
Nós
somos
muito
sérios,
somos
extremamente
sérios.
É
mesmo
o
oposto,
eu
acho.
Uma
pessoa
de
Bragança,
por
exemplo,
é
o
oposto
de
uma
pessoa
do
Rio.
Mas
eu
sempre
vi
o
Brasil
como...
depois
havia
a
questão
do
Collor,
as
questões
políticas,
a
pobreza.
Agora
eu
estou
a
lembrar
-‐
antes
que
me
esqueça
-‐
como
um
artista
como
eu
é
muito
difícil
se
impor
no
mercado
brasileiro
ou
quase
impossível.
Eu
acho
até
que
o
Julião
Sarmento
consegue
isso,
porque
o
Brasil
tem
um
lado
protetor
muito
grande,
o
mercado
é
virado
para
dentro.
Ele
fecha-‐se
ao
exterior,
se
protege.
E
isso
é
para
o
bem
e
para
o
mal.
352
Economicamente
pode
ser
bom,
mas
também
pode
ser
muito
mal.
Eu
sinto
isso
como
um
lado
muito
negativo
e
deixou
de
me
interessar
fazer
coisas
no
Brasil.
Eu
não
sinto
vontade
de
voltar,
não
senti
vontade
nenhuma
de
voltar,
nem
senti
vontade
nenhuma
de
fazer
nada.
Eu
estou
a
fazer
isso
porque
de
facto
o
projeto
(30min41
–
não
entendi)
deveria
ser
mostrado
e
nunca
foi
mostrado.
Foi
mostrado
no
Masp,
no
CityImagens,
no
Centro
Cultural
do
Rio,
na
Caixa
do
Rio
também
umas
imagens.
Eu
fiz
quatro
ou
cinco
exposições,
eu
conheço
imensos
diretores
de
museus.
Não
estou
a
dizer
que
eu
sou
melhor
ou
não,
eu
estou
a
dizer
é
que
mesmo
lá
havia
um
desinteresse
muito
grande
sabendo
que
eu
era
português.
Se
eu
fosse
alemão
ou
inglês
eu
certamente
teria
tido
muito
mais
sucesso
no
Brasil.
Esse
lado
é
muito
limitado
no
Brasil.
Existe
um
fascínio
pelos
americanos.
LT:
Será
que
é
um
ressentimento?
AC:
Pois,
não
sei,
mas
também
não
faz
muito
sentido.
Estamos
em
2000,
estamos
a
falar
de
pessoas
inteligentes.
Não
vou
vender
fósforos.
LT:
Então,
sobre
o
processo
de
construção
do
projeto
Stan
Getz,
que
é
relativo
ao
Brasil,
foi
feito
por
conta
de
residência
artística
da
FAAP?
Como
foi
que
começou
isso
tudo?
AC:
Porque
foi
uma
bolsa
da
Gulbenkian
que
tem
uma
parceria
com
FAAP.
Foi
o
primeiro
ano.
Eles
escolhem
um
artista
e
eu
fui
por
três
meses.
LT:
E
você
tinha
interesse
de
ir
para
São
Paulo?
AC:
Eu
tinha
concorrido
ir
para
Berlim
um
ano.
Mas
depois
não
consegui
ganhar.
Depois
então
a
Gulbenkian
perguntou
se
eu
não
queria
ir
para
São
Paulo.
LT:
Então
foi
uma
indicação
da
Gulbenkian?
AC:
Foi,
mais
ou
menos
sim.
Eu
tive
quase
para
ir
para
Berlim,
mas
depois
houve
ali
questões.
E
também
há
um
peso
muito
grande
para
a
pessoa
que
escolhe
em
Berlim.
E
não
costumam
ir
fotógrafos,
são
mais
artistas
plásticos.
Então
a
minha
candidatura
não
apaixonou
assim
tanto.
LT:
Você
acha
que
foi
bem
recebido
no
Brasil?
Acha
que
o
povo
foi
cordial
como
diz
a
história?
AC:
Se
eu
fui
bem
recebido
no
Brasil?
Eu
acho
que
sim,
no
geral
acho
que
sim.
As
pessoas
são
cordiais,
fiz
muitos
amigos.
Mas
eu
também
faço
amigos
facilmente.
Mas
eu
gostei
de
estar
lá,
gostei
imenso.
Não
senti
vontade
por
causa
daquela
questão
profissional
do
mercado.
Sempre
fui
muito
bem
recebido.
Por
exemplo,
eu
recebi
a
mesma
bolsa,
mas
não
foi
da
Gulbenkian,
e
também
estive
três
meses
agora
em
Nova
York,
no
ano
passado.
Há
uma
diferença
brutal.
Nos
três
meses
fiz
logo
duas
exposições,
uma
individual
em
uma
galeria
incrível.
Voltei
agora
lá
e
fiz
em
outra
individual
em
outra
galeria.
É
um
mercado
muito,
muito
difícil.
Nova
York
é
extremamente
difícil
e
eu
consegui
furar.
Mas
em
São
Paulo...
353
LT:
Foi
mais
fácil
fotografar
em
Nova
York
que
em
São
Paulo?
AC:
Não,
não
falo
de
fotografar.
Estou
a
falar
a
forma
como
tu
és
recebido.
Em
São
Paulo
não
queriam
saber
de
mim.
Eu
estar
lá
ou
não.
Eles
preferiam
que
eu
não
estivesse.
Não
tinham
interesse
em
mim,
em
um
fotógrafo
ou
artista
português.
LT:
Que
pena...
AC:
Não
é
aquilo
que
eles
querem,
sabe?
Eles
querem
um
americano,
querem
um
alemão,
querem
pessoas
famosas.
Ainda
agora
estive
a
falar
com
a
Isabella
e
ela
disse
que
a
programação
dos
grandes
museus
são
todos
blockbusters.
LT:
Então
aqui,
você
fala
no
seu
site
que
tem
interesse
no
tempo
presente.
Quando
você
esteve
no
Brasil
você
achou
que
esse
tempo
presente
teve
alguma
contaminação
do
que
você
sabia
ou
que
tinha
ouvido
falar
do
Brasil?
É
possível
esquecer
toda
a
história
e
a
relação
com
Portugal
quando
você
está
lá
fotografando?
AC:
Sim,
eu
acho
que
sim.
Eu
não
senti
muito
Portugal.
Eu
senti,
sinceramente,
em
São
Paulo
especificamente,
quem
sabe
em
Diamantina
por
conta
da
arquitetura
e
da
organização
da
cidade,
tens
a
praça,
e
é
uma
coisa
que
não
se
vê
em
muitos
sítios
a
não
ser
em
Portugal.
Mas
em
São
Paulo
eu
senti
a
influência
de
muitos
países.
Eu
senti
a
influência
de
facto
do
Japão,
dos
italianos,
tanta
gente
que
foi
para
lá.
E
Stan
Getz
é
um
bocado
isso.
Na
contracapa
se
tens
os
nomes
das
ruas
e
começa
a
ler
os
nomes
das
ruas
e
tu
tens
tanto
nomes
portugueses,
como
italianos,
japoneses.
São
Paulo
tem
uma
história
incrível.
É
o
motor
da
economia
da
América
Latina,
das
transações,
das
empresas.
“São
Paulo
é
uma
Nova
York
na
África”,
era
aquilo
que
eu
dizia.
Era
a
sensação
que
eu
tinha
porque
tem
um
bocado
da
estrutura
de
Nova
York,
o
lado
econômico,
tudo
a
crescer
e
construção
por
todo
lado.
Muito,
muito
dinheiro,
as
pessoas
muito
ricas.
Lojas
vedem
helicópteros,
eu
nunca
tinha
visto.
Mas
depois
é
um
caos
ao
mesmo
tempo
e
tudo
convive
junto.
Eu
não
sei
muito
bem
o
que
as
pessoas
querem
lá.
Eu
senti
uma
coisa
que
é
engraçada.
Eu
senti
que
as
pessoas
no
Brasil
vivem,
não
pensam
muito.
É
um
dia
de
cada
vez
e
eu
não
sei
o
que
elas
querem.
Aqui
se
organiza
muito,
pensa-‐se
muito
numa
construção
de
vida.
Como
lá
não
tem
tanto
isso...por
isso
que
também
está
tão
caótico.
Destroem
rapidamente
aquilo
que
construíram.
Demoram
tanto
tempo
e
em
uma
semana
destroem
tudo,
vai
tudo
abaixo.
Vai
à
moeda,
vai
tudo.
E
de
facto
é
o
lado
da
ignorância
que
é
o
pior
de
todos.
LT:
Você
achou
que
era
muito
machista?
A:
Sim,
machistas
e
ignorantes.
LT:
Você
acha
que
aqui
não
são
machistas?
AC:
Sim,
aqui
as
pessoas
são
machistas
e
racistas.
Lá
também
são,
mas
eu
não
sei
se
as
pessoas
são
tão
racistas
como
aqui.
Lá
se
convive
mais.
Se
calhar
é
racista
com
outro
tipo
de
coisa.
Eu
acho
que
o
povo
português
tem
imensos
problemas.
Têm
coisas
muito
boas,
mas
também
têm
grandes
problemas.
Também
é
um
povo
que
esteve
354
fechado
muito
anos,
muito
limitado
também.
Eu
nunca
pensei
em
voltar
para
Portugal
para
viver,
até
porque
eu
poderia
viver
onde
eu
quisesse.
Mas
quando
tu
começas
a
viajar,
tu
acabas
por
perceber
que
no
mundo
não
há
tantos
lugares
como
Portugal.
Tu
podes
ter
uma
vida
incrível
na
Bélgica,
na
Inglaterra,
na
Alemanha,
na
Polônia,
os
países
escandinavos.
Estive
na
Dinamarca,
a
qualidade
de
vida,
mas
vida
aborrecida.
Depois
tu
começas
na
Rússia,
é
brutal.
A
Rússia
tem
um
lado
trágico,
o
Tarkovski.
Falavam
que
era
incrível
e
eu
me
apaixonei
imenso.
Só
que
aquilo
é
muito
mais
duro.
E
o
Brasil
é
muito
mais
duro.
China,
o
Oriente
todo.
Ah,
Portugal
é
uma
flor.
Isto
aqui
é
pequenino
e
é
virado
para
o
mar.
Tu
tens
uma
qualidade
de
vida
incrível.
Isso
é
de
facto
uma
flor.
Quando
comecei
a
viajar
pelo
mundo,
eu
quis
voltar.
Não
há
tantos
sítios
como
Portugal.
Não
tem
muito
para
oferecer,
tu
tens
que
fazer
muito.
Mas
isso
também
é
interessante.
Não
tem
o
que
Nova
York,
Londres
ou
Paris
tem.
É
muito
difícil
ser
artista
em
Portugal.
É
muito
difícil
ter
uma
carreira
internacional
em
Portugal.
É
isso
que
estou
a
lutar
há
anos
e
agora
com
muito
mais
intensidade.
Se
calhar
agora
consigo
porque
tenho
mais
maturidade,
mais
ferramentas
para
isso.
Mas
é
aquela
questão
que
eu
dizia
da
abertura.
Em
Nova
York
não
querem
saber
és
português
ou
chinês,
preto
ou
branco,
se
for
bom
és
bom.
Têm
muitas
fronteiras
até
conseguir,
não
tens
um
negócio
estrangeiro
que
seja
forte
ou
um
instituto
Camões
que
consiga
suportar
e
levar
lá
para
fora.
Não
tens
curadores
internacionais,
mas
Portugal
é
um
país
incrível.
LT:
Para
viver
também
é
bem
mais
barato
aqui...
A:
Sim,
o
lado
econômico
não
me
assusta
tanto.
É
mesmo
uma
questão
social
de
paz
interior.
Ter
certo
equilíbrio
interior.
Na
Alemanha
não
sei
o
que
comer,
por
exemplo.
Eu
não
posso
comer
salsicha
todos
os
dias.
Eu
preciso
comer
peixe,
preciso
ver
o
mar.
LT:
Mas
então,
voltamos
para
o
projeto
Stan
Getz.
Uma
coisa
que
me
chamou
a
atenção
é
que
as
mulheres
estão
todas
nuas
e
os
homens
estão
vestidos.
Por
que
você
decidiu
fazer
isso?
AC:
Foi
só
questão
da
imagem.
Eu
também
tenho
homens
nus,
mas
não
eram
tão
boas
as
imagens.
Faz-‐te
confusão
isso?
LT:
Faz
no
sentido
de
que
quando
você
sabe
da
relação
Brasil
e
Portugal.
Desde
o
início
da
colonização
do
Brasil,
a
mulher
foi
mostrada
nua,
como
um
corpo
que
está
disponível
para
os
outros.
Até
hoje,
se
você
olhar
as
campanhas
publicitárias
ou
das
matérias
que
saem
nos
jornais,
mostra
uma
parte
do
corpo
da
mulher
brasileira.
Então
as
mulheres
são
sempre
vistas
muito
sexualizadas.
Mas
isso
não
quer
dizer
que
você
tenha
visto
assim...
AC:
Não,
não
tem
nada
disso.
LT:
É
justamente
por
isso
que
eu
quero
entender.
355
AC:
Essa
é
a
questão.
A
imagem
que
eu
tenho
dele
nu
não
é
tão
boa.
Foi
mesmo
pelas
imagens,
até
porque
eu
tenho
imagens
mais
sexualmente
mais
fortes.
Nus
muito
fortes.
Mas
ali
não
havia
esse
lado,
era
mesmo
o
olhar
dele
para
ti,
era
isso
que
me
interessava.
Elas
também
estão
a
olhar
para
ti.
Existia
uma
questão
de
corpo,
mas
também
de
olhar.
Aquelas
paisagens,
os
objetos,
a
arquitetura,
depois
elas
olham
para
ti.
Depois
a
mulher
está
de
costas.
Mas
não
tem
nada
a
ver
com
isso,
nem
se
quer
o
lado
sexual
ou
sensual.
Como
eu
disse
é
a
questão
da
pele...é
como
tu
olhas
para
um
corpo.
Faz
parte
da
história
da
arte,
né?
O
nu
faz
parte
da
escultura,
da
pintura.
Tem
mesmo
a
ver
com
a
relação
do
fotógrafo
e
do
modelo
no
atelier,
como
é
que
tu
olhas
para
aquilo.
É
muito
difícil
fotografar
nus
e
é
fascinante
ao
mesmo
tempo.
Cada
corpo
pede
coisas
diferentes.
Como
é
que
tu
reages?
Como
é
que
tu
direcionas?
Era
a
mesma
forma
como
eu
fotografava
um
corpo,
fotografava
uma
arquitetura,
uma
rua.
Exatamente
da
mesma
maneira.
O
que
eu
procuro
é
exatamente
igual.
LT:
Por
que
a
escolha
de
um
modelo
vivo
e
não
uma
mulher
“normal”?
AC:
Porque
as
pessoas
lá
não
estavam
tão
disponíveis
para
serem
fotografadas
nuas,
como
as
pessoas
aqui
estão.
As
pessoas
são
muito
mais
pudicas
no
Brasil
do
que
cá.
LT:
Isso
é
paradoxal.
AC:
É
completamente.
O
Brasil
também
é
feito
de
contrariedades
enormes.
Tem
um
lado
de
aparência
sexual
muito
grande,
mas
depois
na
praia
não
há
nudismo,
enquanto
aqui
há
nudismo.
E
somos
muito
mais
fechados.
Mas
depois,
se
calhar,
somos
sexualmente
muito
mais
abertos.
Eu
acho
que
é.
Lá
há
a
aparência
da
bunda,
mas
depois
são
conservadores.
Não
querem
posar,
mas
usam
biquíni.
Biquíni
não,
o
top.
E
aqui
não,
a
minha
mãe
nunca
usou,
por
exemplo.
Mas
tu
estás
a
tentar
decifrar...
LT:
Não,
eu
estou
apenas
tentando
dizer
o
que
foi
que
eu
pensei.
AC:
Claro,
claro.
E
tu
também
estás
dentro
desse
trabalho.
Mas
agora
a
mim
interessa
aquilo
que
eu
tenho
com
a
fotografia.
Não
tem
nada
dessas
questões,
percebes?
Um
homem
português,
um
homem
vestidos,
as
outras
nuas.
Quero
lá
saber.
Claro
que
depois
há
quem
interprete
de
uma
maneira.
Já
não
és
a
primeira
pessoa
que
me
pergunta.
Mas
normalmente
são
pessoas
que
de
facto
estudaram
o
livro
ou
viram.
São
questões
que
claro
que
saltam,
mas
o
nu...Eu
agora
vou
começar
um
novo
trabalho
aqui
porque
estou
aqui
a
viver
há
poucos
meses
e
vou
começar
a
fazer
nus.
E
quero
fazer
nus
de
pessoas
amigas
e
pronto.
Outras
questões
irão
se
levantar.
LT:
Então,
quase
todos
os
seus
trabalhos
têm
nus?
AC:
Sim.
LT:
E
sempre
é
uma
mulher,
mas
o
que
é
interessante
é
que
elas
não
têm
aquele
corpo
que
é
o
que
pede
a
publicidade,
a
moda.
Elas
têm
um
corpo
singular.
É
isso
356
também
que
acontece
nas
fotos
das
modelos,
mas
aquelas
modelos
foram
escolhidas
ao
acaso?
AC:
Sim,
sim.
Foi
um
azar,
um
acaso.
LT:
E
aquele
homem
também
era
modelo?
AC:
Não.
LT:
Ele
era
um
amigo?
AC:
Ele
nem
era
brasileiro.
Acho
que
o
pai
era
colombiano
e
a
mãe
americana
e
estava
a
viver
lá.
É
um
curador
de
fotografia,
mas
tinha
uma
cara
muito
forte.
LT:
Quando
eu
vejo
o
ensaio
todo
e
vejo
esse
que
tem,
inclusive,
uma
senhora
negra
que
ela
está
virada
de
perfil
que
tem
uma
referência
de
fotografia
etnográfica.
Depois
você
vê
que
tem
uma
mulher
posando
com
uma
pose
clássica
que
é
o
nu
reclinável
da
pintura...
AC:
Sim,
sim.
LT:
E
a
pintura
tem
esse
olhar
sexista...
Ai
você
vai
passando
o
livro
e
depois
vê
aquele
homem
sério
vestido.
Por
que
foi
adotada
essa
sequência
no
livro?
AC:
Eu
tenho
um
monte
de
retratos
da
negra,
mas
aquele
o
mais
bonito.
E
para
mim
não
tem
isso.
Mas
és
engraçado
tu
estás
a
dizer
isso
porque
eu
não
tenho
nada
disso.
Ela
está
de
lado
como
centenas
de
retratos
são
de
lado
e
não
são
etnográficos
por
estarem
de
lado,
mas
eu
percebo
o
discurso
que
estás
a
ter.
L:
Mas
é
que
quando
você
vai
olhando
a
história
da
fotografia
você
encontra
essas
referências.
Às
vezes
essas
referências
são
sutis,
mas
pode
não
ser
intencional...
AC:
Sim,
sim.
Eu
estou
a
perceber
o
que
estás
a
dizer.
Mas
também
há
ali
imagens
também
que
depois
não...eu
percebo
o
que
estás
a
dizer,
mas
eu
acho
que
o
livro
não
sentes
isso.
Tu
sentes
que
o
livro
é
feito
por
um
homem
machista
que
quer
ter
um
olhar
negativo
sobre
São
Paulo?
LT:
Não.
AC:
Sabes
que
na
galeria
de
Nova
York
que
eu
expus
há
15
dias
e
mostrei
algumas
imagens
do
Stan
Getz,
os
nus
também,
e
eles
falaram
que
não
mostravam
nus
na
galeria
desde
os
anos
90.
E
é
uma
galeria
de
fotografia
que
existe
há
30
anos.
LT:
(alguém
que
ele
marcou
chegou
para
tomar
café)
Então
vou
deixar
você
com
seu
compromisso.
AC:
E
está
boa
a
conversa?
LT:
Sim,
sim.
Eu
precisava
era
entender
o
que
o
fotógrafo
acha
do
Brasil
e
o
que
se
passa
quando
você
fotografa.
357
A:
Sim,
sim.
Há
um
grande
fascínio
como
dizia.
Tinha
um
brasileiro
que
me
fez
apaixonar
completamente
e
nunca
tinha
ido.
Eu
ainda
escuto
música
brasileira,
vejo
os
filmes
do
Glauber
e
fico
todo
arrepiado.
Mas
claro
há
coisas
como
em
qualquer
sociedade
e
país.
Há
coisas
boas
e
coisas
más.
E
há
grandes
problemas,
infelizmente.
Eu
não
poderia
ir
para
São
Paulo
e
fazer
uma
história
sobre
aquele
lugar,
percebes?
Ou
político
ou
documental,
não
havia
tempo.
É
andar
na
rua
e
fotografar.
Aquilo
é
aquilo
mesmo.
É
um
olhar
de
um
fotógrafo
sobre
uma
cidade.
É
uma
questão
de
fascínio
incrível.
O
que
se
vê
nas
imagens,
a
relação
da
natureza
com
a
arquitetura,
as
cores,
os
corpos,
o
olhar.
É
completamente
honesto.
É
aquilo
mesmo.
Eu
só
tenho
pena
das
pessoas
serem
assim
tão
fechadas,
sabes?
É
uma
estupidez.
358
ANEXO
7:
Entrevista
com
Catarina
Botelho
+
Realizada
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa
LT:
Você
autoriza
o
uso
dessa
entrevista
e
das
fotos
na
minha
tese
de
doutoramento?
CB:
As
fotografias
à
vontade,
mas
a
entrevista
em
que
termos?
Queres
fazer
transcrição?
Era
isso
que
queria
perceber.
LT:
Eu
vou
fazer
uma
transcrição.
CB:
Então
é
isso,
queres
usar
partes
da
entrevista...
LT:
Eu
uso
partes
da
entrevista.
E
as
entrevistas
vão
estar
lá
anexadas
para
eles
(o
júri)
conferirem
de
onde
eu
tirei.
LT:
Então,
o
início.
Como
foi
que
você
começou
a
fotografar,
há
quanto
tempo
trabalha
com
fotografia?
CB:
Eu
comecei
a
fotografar
assim
mais
sério
quando
estava
a
estudar
Belas
Artes.
LT:
Então
você
é
formada
em
fotografia?
CB:
Não,
eu
sou
em
pintura,
mas
sempre
fiz
fotografia.
LT:
Isso
foi
há
quanto
tempo?
CB:
Eu
acabei
em
2004.
LT.
O
que
você
escutava
e
sabia
sobre
o
Brasil
antes
de
ir
para
o
Brasil?
O
que
as
pessoas
falavam
para
você
ou
o
que
você
lia
sobre?
CB:
Eu
já
tinha
ido
ao
Brasil
antes
de
ir
fotografar
no
Brasil.
Eu
fui
ao
Brasil
pela
primeira
vez
com
14
anos,
ou
seja,
quando
eu
fui
fotografar
eu
já
tinha
estado
três
vezes
no
Brasil.
LT:
O
que
você
sabia
sobre
o
Brasil?
O
que
você
escutava
sobre
o
Brasil?
E
o
que
você
acha
que
viu
isso
lá?
CB:
O
Brasil
não
é
uma
realidade
plana,
ou
seja,
é
um
país
com
muitas,
muitas
camadas.
Então,
eu
acho
que
eu
não
sei
o
que
é
o
Brasil.
Não
sabia
na
altura
e
continuo
sem
saber.
O
que
é
essa
complexidade,
com
muitas
contradições
como
em
todos
os
lugares.
Ali
talvez
mais
a
vista,
mais
evidente.
Um
lugar
muito
vivo
em
comparação
com
a
Europa.
LT:
O
nível
de
energia?
CB:
Sim,
é
uma
sociedade
muito
jovem
e
que
não
há
tanto
esse
peso
histórico
que
nós
temos
na
Europa.
Obteve
certo
esmagamento
das
próprias
pessoas.
Eu
acho
que
no
Brasil
isso
não
é
assim.
O
Brasil
é
uma
sociedade
jovem,
talvez
por
isso
também
jovem
359
em
todos
os
níveis,
no
ponto
de
vista
etário
e
no
ponto
de
vista
econômico,
de
existência
em
comparação
com
a
Europa.
E
por
isso
em
demasiado
construção,
mais
que
aqui.
LT:
Construção?
CB:
Sim,
construção
viva.
LT:
Você
escutava
alguma
música
ou
já
tinha
ouvido
falar
de
novela
ou
alguma
coisa
do
tipo?
CB:
Música
sempre,
música
brasileira.
As
novelas
eram
uma
coisa
presente,
sobretudo
quando
eu
era
miúda.
Era
uma
coisa
socialmente
muito
importante,
portanto
sim.
LT:
Mas
quando
você
escutava
essas
músicas
e
assistia
às
novelas
imaginava
que
o
Brasil
era
igual
aquilo?
É
tudo
sempre
muito
festivo,
as
músicas
das
novelas,
a
mulher
brasileira.
CB:
Eu
quando
fui
à
primeira
vez
tinha
14
anos
e
foi
chocante
pra
mim.
Foi
chocante
porque
eu
percebi
muito
que
aquela
ficção
que
aparecia
nas
novelas
era
uma
coisa
completamente
elitista,
um
tanto
inexistente
em
nível
de
presença
social.
Aquela
imagem
não
existia
e
isso
foi
chocante
sim.
Mas
foi
logo
nessa
primeira
vez,
a
partir
daí...
LT:
Mas
teve
alguma
coisa
que...alguma
decepção
que
você
esperava
que
fosse
maior,
mais
rica,
mas
quando
chegou
lá
pensou:
“É
isso?”.
CB:
Não,
eu
acho
que
não
esperava
que
essa
desigualdade
social
fosse
uma
coisa
tão
forte.
As
novelas
não
refletiam
isso.
Não
esperava
que
fosse
tão
minoritário
aquele
mundo
de
brancos
ricos.
Eu
não
chamava
de
brancos
ricos,
mas
é
uma
representação
da
sociedade
brasileira
teoricamente,
não
é?
LT:
Nas
novelas
têm
muitos
brancos
e
poucos
negros...
CB:
Sim.
E
muitos
ricos,
coisa
que
não
existe.
Quer
dizer,
existe,
mas
nessa
proporção
não.
LT:
O
Duarte
Belo
,quando
chegou
na
Amazônia,
esperava
uma
coisa
muito
maior
do
que
a
que
ele
encontrou
lá.
Pra
quem
está
morando
na
Europa
é
uma
coisa
imensa,
mas
não
é
ainda
como
espera
porque
como
se
fotografa
e
se
relata
uma
coisa,
sempre
fica
muito
mais...
CB:
Sim,
eu
acho
que
os
imaginários,
sobretudo
esses
imaginários
que
utilizam
um
lugar,
são
um
bocadinho
complicados,
não
é?
Porque
criam
imagens,
coisas
que
não
existem.
Parece-‐me
um
bocadinho
aquela
síndrome,
aquela
coisa
japonesa,
síndrome
de
Paris,
sabes
o
que
é?
Acho
que
se
chama
síndrome
de
Paris,
que
é
a
depressão
que
os
japoneses
apanham
quando
chegam
a
Paris
e
descobrem
que
Paris
não
é
aquela
imagem
que
eles
tinham
a
vida
toda.
Tem
que
procurar,
mas
acho
que
é
alguma
coisa
assim.
Mas
é
um
bocadinho
disso,
a
exotização
do
lugar
que
depois
é
um
lugar
real,
360
com
problemas,
ou
pelo
contrário,
as
vezes
nota-‐se
como
um
sítio
cheio
de
problemas
e
onde
poucas
pessoas
vivem.
Então
eu
acho
que
é
sempre
um
pouco
problemática
essa
criação
dessas
imagens
e
dessas
ideias.
LT:
Se
você
pudesse
descrever
o
homem
e
a
mulher
brasileira,
como
você
descreveria?
CB:
Acho
que
isso
não
existe.
LT:
Você
acha
que
você
foi
tratada
pelos
homens
brasileiros
de
forma
diferente
que
você
é
tratada
pelos
homens
portugueses?
A
relação
intima
e
social
dos
homens
com
as
mulheres
é
diferente?
CB:
Eu
acho
que
a
sociedade
é
diferente.
LT:
Eu
também
acho
diferente.
Eu
noto
que
as
minhas
amigas
portuguesas
são
muito
mais
fechadas....
depois
de
muito
tempo
que
eu
estou
aqui,
eu
vejo
muito
mais
isso
...
CB:
Realmente
isso
é
um
choque
cultural,
sem
dúvidas.
A
sociedade
portuguesa
é
mais
fechada,
uma
sociedade
mais
provinciana,
mais
pequena.
As
pessoas
são
menos
expansivas
no
geral.
Sim,
eu
acho
que
aí
é
um
choque
cultural
porque
aquilo
que
os
brasileiros...agora
falo
de
forma
generalista...o
que
os
brasileiros
fazem
a
forma
que
funciona
para
nós...quer
dizer,
agora
já
não
é
assim
porque
a
comunicação,
agora
já
não
há
isso.
No
princípio
essa
maneira
não
era
muito
bem
compreendida.
Porque
aquilo
para
nós
o
que
equivale
a
uma
intimidade
muito
grande,
portanto
não
sabia
localizar
aquele
tipo
de
comportamento
se
não
tivesse
estado
no
Brasil.
Ali,
às
vezes,
gerava
equívocos
para
os
dois
lados,
porque
aqui
o
fato
das
pessoas
serem
muito
fechadas
era
tido
como
uma
coisa
antipática,
uma
coisa
muito
dura,
e
é,
mas
tem
um
contexto.
E
às
vezes
era
vista
como
uma
coisa
muito
falsa.
Mas
isso
são
choques
culturais,
eu
acho
que
faz
parte
desse
processo
de
aproximação.
Essa
relação
de
amizade,
conhecer
pessoas,
beber
um
copo,
aquilo
lá
é
muito
mais
fácil.
Depois
eu
acho
que
é
mais
difícil
fazer
amigos,
assim,
daqueles
amigos,
porque
as
coisas
parecem
mais
voláteis.
Mas
isso
é,
obviamente,
uma
generalização.
Eu
tenho
muitos
bons
amigos
no
Brasil,
estou
a
falar
a
nível
cultural.
LT:
Mas
aquela
história
sobre
o
estereótipo
do
homem
que
é
um
malandro
e
a
mulher
que
é
fácil,
o
que
você
acha?
CB:
Eu
acho
que
são
estereótipos
de
gêneros
que
tem
cá
em
todo
lado
e
que
não
tem
muito
interesse
e
me
parece
que
são
estereótipos
machistas.
Fazem
caricaturas
das
pessoas
e
de
gêneros.
Acho
que
aqui
em
Portugal,
sobretudo,
das
mulheres.
LT:
O
que
o
Jordi
falou
foi
que
o
problema
da
mulher
portuguesa
é
que
ainda
é
machista.
CB:
No
Brasil
também,
porque
eu
acho
que
esse
machismo
está
em
todos
nós.
Não
é
uma
coisa
de
homens,
é
uma
coisa
de
uma
sociedade
patriarcal.
361
LT:
Você
acha
que
ainda
existe
um
preconceito
contra
a
mulher
brasileira
em
Portugal?
Ou
Portugal
ainda
é
muito
machista
contra
a
mulher
em
geral?
CB:
Eu
acho
que
a
sociedade
portuguesa
melhorou
imenso,
mudou
muito
no
ponto
de
vista
para
a
melhor
com
a
imigração
brasileira
dos
anos
90.
Isso
numa
leitura
totalmente
sem
estudo,
só
de
observação.
Porque
as
pessoas
vierem
para
os
serviços,
para
os
restaurantes,
as
casas,
então
é
um
convívio
direto,
um
convívio
de
hábitos.
Portanto,
naturalmente
irá
influenciar.
E
vieram
em
massa
para
um
país
tão
pequeno.
Era
muita
gente
para
o
tanto
de
gente
que
havia
aqui,
portanto
tinha
uma
presença
expressiva
e
eu
acho
que
isso
foi
muito
bom
porque
as
pessoas
vinham
com
outra
delicadeza,
com
outro
cuidado
na
relação,
eram
mais
gentis
e
menos
duras.
Nós
vivíamos
uma
democracia,
mas
tínhamos
uma
dureza
que
eu
acho
que
é
de
um
antigo
regime,
vinha
dessa
coisa
muito
pesada.
E
eu
acho
que
essa
imigração
mudou
a
sociedade
portuguesa.
Mas
a
tua
pergunta
não
era
essa.
LT:
Mas
pode
continuar.
Foi
nessa
época
que
aconteceu
aquele
caso
das
Mães
de
Bragança...
CB:
É,
mas
as
coisas
vieram
juntas.
Eu
acho
que
essa
coisa
que
tem
haver
com
uma
concepção
aqui
conservadora
é
que
são
as
relações
entre
as
pessoas
e
uma
ideia
da
relação
entre
as
pessoas,
sobretudo
socialmente
mulher
de
família,
e
muito
conservador
a
volta
de
uma
ideia
tradicional
de
família,
o
pai,
a
mãe,
os
filhos,
etc.
E
isso
ainda
estava
muito
presente,
se
calhar,
ainda
está,
mas
não
dessa
maneira.
Eu
acho
que
as
coisas
mudaram
bastante
em
20
anos.
E,
portanto,
essa
relação
mais
livre
com
a
sexualidade
e
com
o
corpo
era
perturbador
aqui,
venho
de
uma
lógica
machista
que
a
mulher
é
mãe
e
se
não
é
mãe,
não
é
de
respeito.
Ou
você
preenche
esse
lugar
da
mulher
de
família
ou
deve
ser
excluída
porque
não
é
uma
mulher
de
bem.
E
essas
pessoas
que
migraram
não
vinham
com
isso,
com
essa
concepção
conservadora.
Aqui,
era
tudo
muito
contido
e
depois
quando
vêm
outras
pessoas
com
concepção
de
sexualidade,
vem
uma
relação
machista,
claro
que
as
mulheres
e
os
homens
portugueses.
Mas
eu
acho
que
não
foi
só
isso,
essa
relação
social
foi
mais
ampliativa.
LT:
Como
você
acha
que
estão
representando
os
brasileiros
na
fotografia
portuguesa?
Fora
a
sua,
claro.
CB:
Não
faço
a
mínima
ideia.
Não
sei,
não
conheço
os
trabalhos.
LT:
Você
teve
algum
medo
de
andar,
de
transitar,
de
trabalhar
em
São
Paulo?
CB:
Sim,
tive.
É
uma
cidade
difícil,
dura.
Sim.
Estava
com
o
equipamento
fotográfico.
Em
qualquer
lugar
eu
estou
atenta,
mas
ali,
se
calhar,
mais
que
em
outros,
porque
os
relatos
que
tu
ouve
acabam
por
ti
afetar
e
causar
medo.
LT:
A
cultura
do
medo...
362
CB:
Sim,
acho
que
sim.
Não
sabes
mais
ao
que
aquilo
corresponde,
mas
acho
que
tudo,
né?
A
cultura
do
medo
vai
para
a
televisão
e
você
nunca
está
sozinha
com
o
tripé
e
a
câmera
na
rua
depois
das
sete/oito
da
tarde.
Não
quer
ficar
sem
a
máquina,
né.
LT:
Você
acha
que
é
mais
medo
ou
essa
violência
existe
mesmo?
CB:
Não
sei.
LT:
Aconteceu
alguma
coisa
ou
alguém
foi
violento
ou
roubaram
alguma
coisa?
CB:
Não,
nada.
Nunca
me
roubaram
nada,
mas
as
ruas
ficavam
desertas,
eu
vivia
no
centro,
portanto
tens
medo.
Mas
não,
nunca
me
aconteceu
nada.
LT:
Você
tem
medo
de
andar
aqui
em
Lisboa?
CB:
Se
eu
tenho
medo,
não,
mas
se
eu
andar
de
equipamento
tenho
cuidado.
Não,
medo
não.
LT:
Você
acha
que
o
brasileiro
recebeu
você
bem?
Foi
cordial
como
dizem?
Você
se
sentiu
em
casa
quando
conheceu?
CB:
Sim,
eu
me
senti
bem
tratada.
LT:
Isso
você
acha
que
é
em
geral
ou
por
que
você
é
europeia?
CB:
Eu
só
posso
supor,
mas
eu
acho
que
isso
tem
uma
influência
porque
há
uma
valorização
por
ser
europeu
e
uma
desvalorização
por
ser
português.
LT:
Você
acha
que
há
uma
desvalorização
por
ser
português?
CB:
Acho
que
há
um
pouquinho.
Espera,
desvalorização
em
relação
ao
que
o
europeu
é
valorizado
numa
escala.
Não
estou
aqui
a
dizer
que
somos
mais
desvalorizados.
Mas
qual
é
a
pergunta?
LT:
O
André
Cepeda
quando
chegou
lá,
ele
disse
que
não
conseguiu
expor
porque
ele
era
português.
Se
ele
fosse
alemão
ou
americano
ele
seria
bem
recebido.
Você
acha
que
tem
isso?
CB:
Acho.
LT:
E
por
que
você
acha
que
acontece
isso,
esse
trato
com
os
portugueses?
CB:
Acho
que
aí
há
duas
coisas:
uma
não
tem
nada
com
Portugal,
tem
com
o
fato
de
que
vivemos
num
mundo
em
que
quem
dita
às
regras
do
mercado
das
artes
são
os
países
anglo
saxônicos
e
nesse
sentindo
todo
mundo
está
a
olhar
para
esses
países.
E
as
pessoas
que
vêm
desses
países
que
são
valorizadas
no
mercado
da
arte
e
no
sistema
capitalista.
Mas
nesse
sentido,
essa
valorização
vem
daí.
A
desvalorização
dos
portugueses
vai
por
um
lado
por
não
pertencer
a
esses
países,
mas
até
aí
não
vai
só
os
portugueses,
mas
tudo
que
não
pertence
a
esse
centro
ou
de
outros
alternativos,
mas
são
formando,
agora
pós-‐colonial...se
vier
da
Angola,
se
calhar.
Por
outro
lado,
acho
que
há
um
preconceito
com
os
portugueses
que
tem
a
ver
com
a
migração
dos
anos
363
50,
que
o
português
é
aquela
coisa
meio
bronca,
meio
gordo
da
padaria,
mas
que
é
um
complexo
de
classe.
Portanto
acho
que
são
coisas
duplas,
não
é
uma
coisa
só.
Mas
sim,
tem
dificuldades
em
ascender.
LT:
É
como
se
fosse
brasileiro
em
Portugal
em
Portugal?
CB:
Não
vou
dizer
que
é
a
mesma
coisa
porque
aí,
além
disso,
entram
questões
raciais
que
eu
não
posso
processar.
Eu
sou
branca
e
talvez
não
seja
a
mesma
coisa,
talvez
nosso
privilégio
seja
maior.
Mas
sim,
há
uma
questão
de
classe
porque
depende
da
imigração
e
do
tipo
de
imigração,
então
não
sei
se
é
a
mesma
coisa.
LT:
Então
você
não
acha
que
tem
alguma
relação
com
antipatia
com
relação
à
colonização?
CB:
Eu
acho
que
isso
também
está
lá,
mas
eu
sinto
que
no
Brasil...Somos
um
país
tão
pequeno...Eu
acho
que
essa
coisa
está
mais
a
ser
chamada...a
questão
da
colonização
está
mais
discutida
que
das
pessoas
escravizadas...Se
bem
que
tem
que
se
falar
disso
e
tem
que
perceber
como
foi
a
história,
parece-‐me.
Quando
eu
estive
lá
não
era
uma
coisa
tão
presente.
Portanto
eu
acho
que
esse
preconceito
não
era
tanto
daí.
Era
só
de
ser
um
país
pequeno
que
não
tinha
muito
interesse
e
não
tinha
presença.
LT:
Eu
lembro
que
muitos
portugueses
que
chegavam
e
faziam
hotéis
ou
chegavam
para
morar
na
minha
cidade
eram
muito
mais
bem
recebidos
como
europeus
do
que
como
portugueses.
Mas
eu
não
sei
como
é
nas
artes...
CB:
Pois
é
mais
fechado.
Até
porque
Brasil
se
relaciona
muito
com
EUA,
portanto
vem
de
outro
eixo.
Não
estou
a
dizer
que
é
um
grande
preconceito,
só
que
há.
Mas
eu
acho
que,
se
calhar,
ainda
bem,
porque
o
resto
do
mundo
também
anda
fechado.
LT:
Você
acha
que
dentro
da
sua
profissão
ainda
existe
um
preconceito
por
ser
mulher
fotografa
aqui
mesmo
em
Portugal?
CB:
Em
todo
lado,
aqui
sim
também.
LT:
E
é
difícil
arrumar
trabalho
por
causa
disso?
Isso
afeta
alguma
coisa?
CB:
Era
o
que
falávamos
antes,
viemos
de
um
centro
patriarcal,
há
um
machismo
internalizado
por
toda
a
sociedade
e
acho
que
continuamos
a
ter
uma
maioria
de
homens
a
dirigir,
a
serem
curadores,
a
dirigir
museus.
E
essas
pessoas
escolhem
em
geral
o
meio
interno
delas.
Não
estamos
ainda
em
um
momento
em
que
o
gênero
seja
acessório
em
Portugal,
não
é.
Acessório
nessa
questão,
porque
acessório
nunca
será.
Os
curadores
de
homens
escolhem
majoritariamente
homens.
E
como
são
os
homens
que
escolhem.
LT:
Vai
ter
que
partir
de
uma
consciência
dos
próprios
homens...
Então
sobre
o
seu
trabalho
Memória
Descritiva,
feito
em
2013:
Por
que
você
escolheu
ir
para
São
Paulo?
364
CB:
Eu
queria
fazer
esse
projeto
especificamente.
Eu
já
tinha
pensando
nesse
projeto
e
queria
fazê-‐lo
em
São
Paulo.
LT:
Por
que
São
Paulo?
CB:
Porque
era
a
cidade
que
eu
conhecia
melhor
e
tinha
esses
edifícios
que
eu
procurava,
esse
tipo
de
espaço
e
arquitetura
que
me
interessava
trabalhar.
LT:
Então
o
projeto
foi
pensando
antes
de
ir,
de
acordo
com
o
que
você
já
tinha
visto
lá?
Pelo
texto
que
eu
li,
ele
fala
da
exclusão
da
vida
da
arte
comum.
Isso
é
verdade?
Como
é
que
você
explica
aquele
trabalho
feito
em
São
Paulo?
CB:
Acho
que
aquele
trabalho
tem
diferentes
camadas
e
que
sabe
trabalhar
a
arquitetura
modernista,
sobretudo
que
é
um
tipo
de
arquitetura
que
gera/gerava
um
espaço
modernista
ou
neomodernista.
Gera/gerava
um
espaço
que
não
é
produtivista,
ou
seja,
tu
tens
grandes
espaços
de
distribuição
entre
os
edifícios
que
não
tem
uma
utilidade
objetiva.
E
isso
é
uma
coisa
que
interessava
muito
porque
é
uma
coisa
que
com
a
especulação
imobiliária
e
com
a
cidade
ser
cada
vez
mais
“monetarizada”
tinha
começado
a
desaparecer.
Esse
lugar
que
não
têm
móveis,
que
não
tem
função,
que
por
um
lado
é
pensando
para
as
pessoas
estarem
em
praças,
mas
depois
não
tem
na
verdade
essa
utilização.
É
um
lugar
que
faz
essa
proposta
e
depois
fica
ali
entre
falhada,
sem
ser.
Interessava-‐me
esses
lugares.
E
interessava-‐me
a
infinidade,
ou
seja,
me
decepcionou
um
lado
de
não
ter
um
lugar
ali.
A
proposta
não
é
essa
arquitetônica,
mas
depois
o
que
acontece
é
que
esses
espaços
estão
vazios.
E
até
podem
ser
um
bocadinho
desconfortáveis.
Quando
entramos
não
sabíamos
como
deveríamos
nos
posicionar,
o
corpo
para
onde
vai.
E
a
limpeza,
as
pessoas
que
limpam
têm
com
esses...a
posição
que
se
criam,
porque
um
espaço
que
é
bastante
enorme...uma
escala
muito
humana
né...quer
dizer,
é
e
não
é.
Como
é
que
as
pessoas
que
limpam
aproveitam
de
alguma
maneira
essa
lógica
com
sua
relação
física
material
com
os
lugares
e
ao
mesmo
tempo
criam/dão
outra
escala/dimensão
aquele
espaço.
Isso
era
uma
das
coisas,
mas
claro
que
interessava-‐me
que
representar
essa
atividade
naquele
tipo
de
espaço,
que
eram
espaço
que
pretendiam
alguma
democratização
ou
processo
aos
lugares,
que
a
gente
sabe
que
como
programa
muitos
casos
falhou,
não
só
no
Brasil.
E
portanto
esse
confronto
interessa
a
apropriação
daquelas
pessoas
que
não
vá
aqueles
lugares
para
outras
atividades
ou
vão
pouco,
mas
que
continuam
a
ser
aquelas
pessoas
que
os
limpam.
LT:
E
por
que
você
escolheu
ir
para
São
Paulo,
no
Brasil,
e
fez
um
projeto
que
não
tinha
pessoas?
CB:
Exatamente
porque
eu
acho
que
as
pessoas
não
são
a
sua
imagem.
Por
outro
lado
porque
interessava-‐me
outro
tipo
de
relação
com
as
pessoas.
Eu
acho
que
uma
representação
indireta
e
que
eu
tento
não
perceber
o
que
as
pessoas
são.
Eu
acho
que
eu
estou
a
falar
ali
não
do
que
as
pessoas
são,
é
mais
de
uma
relação
com
outras
coisas,
não
é.
E
nesse
sentido
eu
acho
que
as
pessoas
são
demasiadas
importantes
365
para
estarem
da
maneira
como
eu
concebo
a
fotografia,
a
minha,
não
estou
a
fazer
julgamentos.
Por
estarem
a
ser
representadas...isso...pretender
tirar
daí
o
que
quer
que
seja.
Queria
fazer
uma
reflexão
que
não
partisse
ligado
ao
corpo,
para
pensar
sobre
a
sociedade,
mas
não
(sobre)
aquela
pessoa.
LT:
Você
acha
que
isso
parte
da
história
de
não
conseguir
definir
o
que
é
um
brasileiro?
Você
conseguiria
definir
assim:
esse
é
um
português
e
fotografar
um
português?
CB:
Eu
acho
que
essa
ideia
parte
de
uma
ideia
de
identidade
que
eu
não
acredito
que
exista.
Baseada
na
ideia
de
estado-‐nação
que
também
é
uma
ficção
e,
portanto,
que
identidade
é
essa?
Uma
pessoa
média?
As
pessoas
são
singularidades,
cada
uma.
E
não
sei
se
parte
da
dificuldade
de
representar...É
que
a
pessoa
comum,
se
isso
existe,
é
uma
pessoa
comum.
LT:
Entendi.
CB:
Não
faz-‐me
nada
esses
imaginários
exotizados
que
venderam
pelo
National
Geographic
ou
pela
telenovela.
Isso
não
existe.
Mas
não
só
no
Brasil.
É
tudo
não
é?
E
principalmente
o
problema
disso
é
que
parte
de
um
imaginário
eurocêntrico
que
tem
aqui
como
a
sua
referência
do
que
é
normalidade,
e
depois
o
resto
é
saído
da
normalidade.
As
pessoas
não
querem
chegar
ao
Brasil
e
ver
que
as
pessoas
são
pessoas.
Querem
encontrar
aquela
imagem
do
lindo
ou
do
estereótipo
de
gênero
das
mulheres
para
tentar
corresponder
aquilo
que
os
levaram
talvez,
não
sei.
Para
justificar,
mas
isso
não
é
o
que
as
pessoas
chamam,
não
é.
LT:
Você
acha
que,
de
acordo
com
o
que
você
falou
de
exclusão
ser
mais
evidente
no
Brasil,
você
acha
que
eu
posso
ler
o
seu
projeto,
ao
ver
um
ambiente
limpíssimo,
branco,
elitista,
com
um
objeto
de
limpeza,
como
uma
representação
do
contraste
social?
CB:
Sim,
eu
acho
que
há
uma
confusão
entre
esses
dois
mundos
ali.
Esse
mundo
do
trabalho
desvalorizado
socialmente
em
todo
o
lado,
que
é
a
atividade
de
cuidar
do
espaço.
Sim,
essas
pessoas
não
tem
acesso
a
outros
tipos
de
trabalhos
e
de
espaço
social.
Quer
dizer,
eu
não
acho
que
seja
exclusivo
do
Brasil.
LT:
Você
acha
que
esse
projeto
poderia
ser
feito
em
qualquer
lugar?
CB:
Acho
que
não
porque
o
modernismo
da
arquitetura
brasileira
da
cultura
brasileira
é
modernismo
muito
específico.
É
um
modernismo
tropical
só
sentindo
em
que
é
um
modernismo
com
um
tipo
de
amplitude
em
relação
com
exterior,
em
relação
de
dimensão,
não
é
igual
a
mais
lado
nenhum,
mas
pessoas
dizem
isso.
Entretanto,
a
própria
relação
com
a
limpeza,
com
a
água,
que
ali
não
há
em
outros
sítios.
E
tem
outro
significado,
obviamente.
Eu
vinha
de
Portugal
que
era
um
país
que
apesar
de
tudo,
com
as
suas
discrepância
sociais
e
classes,
mas
é
um
país
onde
tu
não
tens/em
que
não
há
uma
espécie
de
homogeneidade.
E
até
aí
eu
só
tinha
visitado
países
aqui
366
perto,
e
chegar
ao
Brasil
foi
perceber
a
distância
que
havia
entre
aquelas
várias
classes,
várias
origens
e
aquela
multiplicidade,
tem
a
ver
com
classe
também,
mas
não
só.
Isso
foi
assim
um
choque.
LT:
Você
acha
que
estava
muito
demarcado
aquelas
faixas
média
e
alta?
CB:
Para
mim,
nesse
momento,
não
era
assim
tão
evidente,
também
eu
era
mais
nova.
Mas
o
que
eu
sentia
era
que
a
quantidade
imensa
de
gente
que
estava
assim.
Que
eram
as
pessoas
e
depois
havia
as
outras
que
viviam
bastante
melhores
que
aquelas
outras
que
estavam
com
o
pé
no
chão.
E
isso
aqui
em
Portugal
não
era
assim,
não
é.
Ou
era,
mas
numa
maneira
diferente.
Eu
sempre
andei
em
escolas
públicas
e
meus
colegas
eram
de
todas
as
classes
sociais,
e
chegar
ali
e
perceber
que
havia
toda
outra
lógica
social
foi
chocante.
Claro
que
depois
mais
tarde
tu
percebes
que
aquilo
é
uma
herança
colonial,
na
altura
não
tive
essa
comparação.
Mas
outra
coisa
que
me
chocou
muito
foi
o
racismo
social
que
parece
está
associado
a
uma
diferença
de
classe
social
também.
LT:
Só
conheceu
São
Paulo?
CB:
Rio,
São
Paulo,
Minas.
O
luxo
não
existia,
essa
riqueza
não
existia,
não
existia.
Mas
isso
também
era
porque
eu
não
conhecia
outras
realidades.
Não
é
só
o
Brasil,
se
fores
ao
EUA
também
tem
isso.
A
desigualdade
nos
EUA
é
muito
brutal.
Quando
eu
fui
aos
EUA
pela
primeira
vez
eu
senti
o
mesmo,
que
os
americanos
eram
um
engano,
como
eu
senti
com
as
novelas
brasileiras.
Foi
um
engano
perceber
aquela
complexidade
e
que
aquilo
não
tem
nada
a
ver.
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