Sie sind auf Seite 1von 91

HISTÓRIA CULTURAL

Autores: Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes


Daniela Fernanda Sbravati

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Ozinil Martins de Souza

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Norberto Siegel

Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Profa. Hiandra B. Götzinger Montibeller
Profa. Izilene Conceição Amaro Ewald
Profa. Jociane Stolf

Revisão de Conteúdo: Prof. Evandro André de Souza

Revisão Gramatical: Profa. Marli Helena Faust

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2009


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.
306.09
F156h Fagundes, Marcelo Gonzalez Brasil.
História Cultural / Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes
[e] Daniela Fernanda Sbravati.Centro Universitário
Leonardo. da Vinci – Indaial:Grupo UNIASSELVI,
2009.x ; 91 p.: il.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7830-222-1

1. História 2. História Social e Cultural 3. Cultura


I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título

Impresso por:
Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes

Graduado em História pela UDESC


(Universidade do Estado de Santa Catarina) e
graduado em Ciências Sociais e mestre em História
Cultural pela UFSC (Universidade Federal de Santa
Catarina), cursando atualmente especialização em
História do Mundo Hispânico pela Universitat Jaume I
da Espanha. Possuí experiência na área de História do
Brasil Colonial e História da América Latina. Entre as
principais publicações está um capítulo no livro dedicado
à História de Santa Catarina, intitulado “Pelas veredas
do paraíso: Hans Staden e a expedição Sanabria”,
além de comunicações sobre a vida e a obra do
escritor cubano Alejo Carpentier.

Daniela Fernanda Sbravati

Graduada em História pela UDESC


(Universidade do Estado de Santa Catarina) e
mestre em História Cultural pela UFSC (Universidade
Federal de Santa Catarina). Atualmente é professora
de História do Ensino Fundamental do Colégio de
Aplicação, da UFSC (Universidade Federal de Santa
Catarina). Tem experiência na área de História do Brasil
Colonial e Imperial. Entre as principais produções, consta
o livro Dialogando com a História, destinado ao sexto ano
do Ensino Fundamental (SBRAVATI, D. F., DANTAS, J.
Dialogando com a História. Florianópolis: Sophos,
2009, v.1)
Sumário

APRESENTAÇÃO...................................................................... 7

CAPÍTULO 1
Origens da História Cultural................................................ 9

CAPÍTULO 2
Estudos Culturais e a Escrita da História ....................... 33

CAPÍTULO 3
A Nova História Cultural...................................................... 57

CAPÍTULO 4
História Cultural no Brasil................................................. 79
APRESENTAÇÃO
Prezado pós-graduando, é com muita satisfação que apresentamos a você
este caderno de estudos. É um material constituído a partir da tentativa de definir
o que é História Cultural e seus principais autores e temas.

Compreendemos ser a História Cultural uma área do conhecimento que


cada vez mais ganha espaço no Brasil e no mundo. Por essa razão, para tratar
da temática, fizemos uma viagem no tempo e no espaço, contextualizando seu
surgimento, seu desenvolvimento, processo de transformação até chegar a suas
produções e discussões atuais.

No primeiro capítulo apresentamos uma linha de desenvolvimento dos


debates que definiram, em termos gerais, os campos de atuação da história
cultural, tratando a historicidade dos conceitos de “cultura”, “tradição” e “popular”.

O segundo capítulo inicia com uma discussão acerca da Antropologia


cultural, seus principais autores e fases, considerando sua contribuição para os
estudos culturais na área da História. A antropologia contribuiu inclusive para a
constituição do que conhecemos como Annales, assunto abordado posteriormente
nesse mesmo capítulo. Seguimos com uma discussão sobre micro-história, uma
metodologia adotada pela história cultural que dá ênfase ao micro, ou seja, a
história das pessoas comuns. Finalizamos o capítulo com uma discussão sobre
os estudos pós-coloniais na perspectiva cultural, objetivando uma reflexão acerca
da história das populações colonizadas.

No terceiro capítulo observamos a grande renovação da História Cultural ocorrida


no final da década de 1980, quando houve questionamento dos pressupostos teóricos
predominantes na historiografia da cultura. Essa renovação resultou na reflexão
acerca de alguns conceitos presentes em nossa sociedade, com conotação
política e social. Trata-se das discussões acerca da identidade, etnicidade e
diversidade étnica. Finalizamos esse capítulo fazendo um breve apontamento
sobre o papel da escola, da educação nas questões da diversidade cultural.

No quarto e último capítulo apresentamos os caminhos da História Cultural


no Brasil em suas dimensões históricas e contemporâneas. Analisamos alguns
autores e temas de modo especial, por compreendermos serem fundamentais
para a forma como olhamos e pensamos a sociedade brasileira.
Esperamos que você embarque nessa viagem e que, ao final dela, traga em
sua bagagem conhecimento teórico e prático que possa ser aplicado em seus
estudos presentes e futuros. Bons estudos para você!

Os autores.
C APÍTULO 1

Origens da História Cultural

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Identificar os debates que forjaram o desenvolvimento da história cultural.

 Definir o significado dos conceitos de cultura popular, tradição e cultura e sua


relação com o processo de construção do conhecimento histórico.

 Analisar a aplicação dos termos de “cultura popular” e “tradição” em reflexões


sobre o seu cotidiano.

 Debater o significado da “cultura” no saber historiográfico e sua aplicação


no ambiente escolar, com o intuito de valorizar os saberes dos alunos.
História Cultural

10
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

ConteXtualiZaÇÃo
A história cultural é entendida muitas vezes como uma ramificação do estudo
da História. No entanto, ela engloba uma grande variedade de temas e métodos,
não existindo um consenso entre os historiadores sobre os seus limites e suas
fronteiras. Como afirma o historiador britânico Peter Burke, definir A história cultural
a história cultural é “como tentar prender uma nuvem em uma rede não deve ser
de caçar borboletas” (BURKE, 2000, p. 233.). A história cultural não vista como uma
denominação ou
deve ser vista como mais uma entre as diversas disciplinas históricas
campo da história,
especializadas. O cultural constitui um campo multidisciplinar capaz de mas percebida
articular temas e questões mais ou menos dispersos pelas disciplinas como constituinte
especializadas. Há os que definem a história cultural como algo que de diversas
pode estar relacionado entre o econômico, o mental e o social. Dessa dimensões
forma, a história cultural não deve ser vista como uma denominação do saber
historiográfico.
ou campo da história, mas percebida como constituinte de diversas
dimensões do saber historiográfico.

Apresentaremos neste capítulo uma linha de desenvolvimento dos debates


que definiram, em termos gerais, os campos de atuação da história cultural.
Apesar das dificuldades, podemos enfrentar o problema de caracterizar o
estudo da cultura na História e ampliar nossas ferramentas pedagógicas para a
transmissão de um conhecimento histórico que seja amplo e plural.

Nosso primeiro passo nesse caminho será o de definir os conceitos básicos


que envolvem o estudo da cultura na História. Os problemas encontrados pelos
historiadores para delimitar a história cultural estão, principalmente, na amplitude
do atual conceito de “cultura” adotado pela historiografia. Contudo, para traçar
linhas gerais dos estudos que englobam a história cultural se torna necessário
observar a historicidade dos conceitos adotados por ela, como “cultura”, “tradição”
e “popular”.

A Historicidade do Conceito de
Cultura
A grande dificuldade de definir a história cultural deriva das diversas
denominações dadas ao termo “cultura”. Muitas vezes não conseguimos
ter precisão no significado dessa palavra aparentemente tão simples.
Habitualmente no senso comum a palavra cultura está associada à ideia de
educação formal ou conhecimento, a atividade intelectual de um indivíduo.
“Aquela pessoa tem cultura”, ou seja, aquela pessoa teve uma boa formação
educacional.
11
História Cultural

Segundo Alfredo Bosi, a palavra “Cultura” deriva do verbo


latino colo, que significa ocupar a terra, cultivar o campo. O
vocábulo cultus, de onde vem cultura, está associado ao campo
já ocupado e plantado por gerações de lavradores. (BOSI, 1992,
p. 11 – 16.) A partir do século XVIII, com a revolução iluminista,
começou a se configurar a ideia moderna de cultura, e esta passa
a designar o “estado do espírito cultivado pela instrução, estado
do indivíduo que tem cultura”. Dessa forma, “cultura” se opunha a
“natureza” e se aproximava da ideia de “progresso” e “civilização”.
Somente com o desenvolvimento das ciências sociais no século
XIX e XX é que “cultura” começa a ser empregada como o conjunto
de práticas e símbolos de determinada sociedade. (CUCHE, 2002,
p. 18 – 19).

Como vimos na definição de Alfredo Bosi, originalmente cultura estava


relacionada à ação de cultivar o campo, ou seja, da atividade agrícola. Se
Para entender prestarmos atenção à historicidade do significado de cultura, podemos
as origens da perceber que essas mudanças são frutos das crenças correntes em
história cultural determinado tempo histórico. As palavras têm história. Dessa forma,
é necessário ao estudar o desenvolvimento da história cultural, notamos que
observar o
a noção de cultura responde a certos problemas e reflexões de
contexto em
que se forma determinada sociedade em determinado tempo histórico. Assim,
e o significado para entender as origens da história cultural é necessário observar
assumido pela o contexto em que se forma e o significado assumido pela palavra
palavra “cultura”. “cultura”.

Atualmente existem ideias diferentes sobre o que constitui a “cultura”. A


ampliação do interesse dado pelos historiadores a essa temática diversificou as
noções e suas aplicações no entendimento das práticas sociais.

No século XIX, período de “surgimento” da história cultural, o termo referia-


se a arte, literatura ou manifestações da ciência e da filosofia. Hoje, no entanto,
influenciados pelos estudos antropológicos, os historiadores utilizam o termo de
forma mais ampla, associando-o a qualquer manifestação social.

Poderíamos perceber também a utilização de duas visões gerais sobre


cultura que distinguem os princípios da história cultural dos novos debates
historiográficos. Nas origens da história cultural o conceito de “cultura”
carregava um forte teor etnocentrista que relacionava a cultura à ideia de

12
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

civilização. Nessa visão, a cultura apresentava-se como algo unitário, ou seja,


a civilização referia-se ao modelo europeu Ocidental. De outra forma, com a
aproximação da história aos estudos antropológicos, houve o desenvolvimento
de uma noção mais ampla do conceito. As “culturas” eram pensadas agora no
plural.

A noção difundida nos círculos intelectuais europeus em fins do século XVIII


e primeira metade do século XIX estiveram intimamente ligadas à concepção
adotada pelos primeiros historiadores culturais. Durante o movimento iluminista
francês, no século XVIII, a palavra “cultura” ganha um sentido figurado. Ela vinha
normalmente acompanhada de adjetivos como “cultura das letras”, do “espírito”,
das “artes” e das “ciências”.

A partir desse momento o significado se afasta da ideia de “ação de cultivar


o intelecto” e se aproxima da noção moderna de “estado do intelecto cultivado”,
ou seja, do “indivíduo que tem cultura”. A disseminação dessa concepção através
da Europa Ocidental se insere no contexto do surgimento da ideia de progresso,
evolução, educação e razão. Cultura, escrita no singular, reflete a ideologia do
iluminismo.

Na França a palavra se aproximou da ideia de civilização, entendida


como o refinamento dos costumes que retira a humanidade da ignorância
e da irracionalidade. No entanto, a civilização não se estende a todos os
povos da humanidade. Existem sociedades mais avançadas, que podem ser
consideradas “civilizadas”, e outros povos, “selvagens”, em estágios inferiores de
desenvolvimento cultural.

Ainda no século XVIII, nos territórios que virão a configurar o Estado alemão,
a palavra Kultur assumiu uma denominação bastante similar à adotada na
França. No entanto, na Alemanha, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, a “cultura
– civilização” perdeu sua conotação aristocrática e se converteu em símbolo de
distinção das diferenças nacionais. A “cultura” se aproxima da noção de “nação”.
Segundo Cuche:

O conceito francês continua marcado pela ideia de unidade do


gênero humano. Entre os séculos XVIII e XIX na França, há
uma continuidade do pensamento universalista. A cultura, no
sentido coletivo, é antes de tudo a “cultura da humanidade”.
Apesar da influência alemã, a ideia de unidade suplanta a
consciência da diversidade: além das diferenças que se pode
observar entre a “cultura alemã” e a “cultura francesa”, há a
unidade da “cultura humana”. [...] No século XX, a rivalidade
dos nacionalismos francês e alemão e seu enfrentamento
brutal na guerra de 1914 – 1918 vão exacerbar o debate
ideológico entre as duas concepções de cultura. As palavras
tornam-se slogans utilizados como armas. [...] O debate

13
História Cultural

franco-alemão do século XVIII ao século XIX é arquetípico


das duas concepções de cultura, uma particularista, a outra
universalista, que estão na base das duas maneiras de definir
o conceito de cultura nas ciências sociais contemporâneas
(CUCHE, 2002, p. 30).

Através do debate franco-alemão em torno do conceito de cultura podemos


observar que a definição e a utilização de determinada noção possui uma
forte conexão com a conjuntura histórica. É importante destacar essa relação
para compreendermos as concepções adotadas pela historiografia durante o
desenvolvimento da história cultural.

Destacamos que durante um primeiro momento de surgimento da


problemática cultural no estudo da história, o conceito de cultura traz uma forte
carga ideológica que distingue as civilizações de cultura avançadas, das culturas
primitivas em estágios inferiores de cultura.

A ciência que estuda a cultura, a antropologia, desenvolveu no século XIX


teorias para embasar o estudo das sociedades humanas. As primeiras correntes
antropológicas, qualificadas de evolucionistas, observavam que o homem possuía
uma unidade bio-psicológica, que o faz responder igualmente aos mesmos
desafios. A diferença é explicada através de um eixo temporal, ou seja, através
de estágios de evolução da cultura. A cultura é uma só, a do homem civilizado
do século XIX. O restante eram estágios inferiores de civilização. Para os
evolucionistas, assim como para os primeiros historiadores culturais, a “cultura”
está associada ao progresso e ao desenvolvimento tecnológico. Devemos
observar que essas ideias se vinculam ao momento do expansionismo e
colonialismo europeu na África e Ásia do século XIX.

Inserido nesse contexto está o etnólogo inglês Edward Tylor, que, em 1871,
disse sobre a cultura: “tomado em seu amplo sentido etnográfico, é este todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou
qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de
uma sociedade” (TYLOR, 1975, p. 29). Na definição de Tylor, cultura assumia uma
dimensão ampla de todas as possibilidades de realizações humanas, fossem elas
materiais ou mentais.

O texto completo de Edward Tylor (1832 – 1917), em espanhol,


pode ser baixando na página virtual da Universidade de Guadalajara
do México – TYLOR, Edward. B. La ciencia de la cultura. In: Kahn,
J. S. (Comp.), El concepto de cultura. Barcelona: Anagrama, 1975.
(p. 29-46). Disponível em: <http://mail.udgvirtual.udg.mx/biblioteca/
handle/20050101/890?mode=simple>. Acesso em: 30 abr. 2009.

14
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

Em fins do século XIX, uma das primeiras críticas aos métodos evolucionistas
de análise da cultura veio do alemão Franz Boas (1858 – 1942). Para Boas, o
método comparativo adotado por Tylor pecava na tentativa de estabelecer leis
de evolução histórica da cultura. Segundo ele, “o objetivo de nossa investigação
é descobrir processos pelos quais certos estágios culturais se desenvolveram.
Os costumes e as crenças, em si mesmos, não constituem a finalidade última da
pesquisa. Queremos saber as razões pelas quais tais costumes e crenças existem
– em outras palavras, desejamos descobrir a história de seu desenvolvimento”
(BOAS, 2004, p. 33).

No entanto, a aproximação entre a antropologia e a história só ocorreu,


mais intimamente, a partir da década de 1960, com a influência mais direta de
antropólogos como Bronislaw Malinowiski, Marcel Mauss, Claude Levi-Strauss e
Cliffort Geerts, para referir-nos somente aos mais destacados. A “nova história
cultural” surgida dessa aproximação revisitou os historiadores culturais “clássicos”
para abandonar as concepções reducionistas de “cultura”.

Embora busquemos algumas definições a respeito do conceito de cultura,


não é nosso objetivo engessá-la num significado fechado, colocando-a a como
uma categoria de análise histórica imutável. Considerando que para a história os
conceitos são elásticos e podem se transformar de acordo com a conjuntura
da qual fazem parte, não nos interessa tanto definir com exatidão o conceito de
cultura, mas sim compreender as diferentes formas pelas quais foi apropriado
e as implicações sociais em decorrência disso. Ou ainda compreender de
que maneira os contextos sociais possibilitaram a mudança da concepção de
cultura em nossa sociedade. Afinal, o conceito ou a categoria de análise estão
diretamente relacionados às demandas de um tempo histórico, você não acha?

Para saber mais sobre as categorias de análise da história, ver:

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da Teoria ou um planetário


de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

15
História Cultural

Atividade de Estudos:

Caro pós-graduando,

Algumas das atividades propostas ao longo dos capítulos


deste caderno deverão ser realizadas por você, com a possibilidade
de serem aplicadas, em sala de aula, aos seus alunos. Ao fazer a
atividade o professor poderá analisar as dificuldades práticas de sua
aplicabilidade e, se necessário, implementar alterações ou reconstruí-
la, tendo como base o objetivo de proporcionar uma compreensão
menos teórica do tema discutido.

Nessa direção, propomos:

1) ____________________________________________________
Elabore um texto discutindo o conceito de cultura a partir do
tema: “O (des)encontro entre indígenas e europeus no Brasil no
século XVI”. Escreva a partir de dois enfoques diferentes, um
deles aproximando o conceito de cultura da ideia de civilidade, o
outro, da perspectiva da cultura constituída a partir de diferentes
manifestações sociais.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

A História Cultural “Clássica”


É importante notar que o desenvolvimento da história cultural foi influenciado
em grande medida pelos debates que ocorriam em outras ciências, como a
antropologia e a sociologia. O termo “cultura” começou a ser empregado no estudo
da história a partir do século XIX. Nesse momento, o termo carregava ainda uma
noção pejorativa de povos em estágios “inferiores” de desenvolvimento.

No século XIX, a historiografia entendia cultura como as expressões


16
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

da arte, da literatura e das ideias filosóficas. Assim, os primeiros É importante


historiadores culturais viam nas culturas grega e romana a evolução notar que o
de uma expressão artística e filosófica “superiores” a outros povos da desenvolvimento
antiguidade. da história cultural
foi influenciado
Na história da história cultural, Burke aponta que o período
em grande medida
entre 1800 e 1950 é uma fase que pode ser chamada de “clássica”. pelos debates
Nesse contexto, dois autores se destacam: o historiador suíço Jacob que ocorriam
Burckhardt, que escreveu A cultura do Renascimento na Itália (1860); e em outras
o historiador holandês Johan Huizinga, com O declínio da Idade Média ciências, como
(1919). Para esses autores, a preocupação central da história cultural a antropologia e
a sociologia. O
residia em estabelecer um retrato de uma época através do estudo de
termo “cultura”
diferentes manifestações artísticas. começou a ser
empregado no
Burckhardt elaborou uma história da cultura em que a obra de estudo da história
arte ocupava lugar essencial no seio dos diferentes componentes da a partir do século
civilização. Para ele, a civilização é considerada como um todo que se XIX.
encontra dividido em elementos ou, como denomina ele, “potências”.
Em sua principal obra, A cultura do Renascimento na Itália (1860), Burckhardt
“descreveu o que chamou de individualismo, competitividade, autoconsciência e
modernidade na arte, na filosofia e até na política da Itália renascentista” (BURKE,
2008, p. 18.).

Para saber mais sobre as contribuições de Jacob Burckhardt


para a história da cultura, leia:

FERNADES, Cássio da Silva. Jacob Burckhardt e a preparação


para a cultura do Renascimento na Itália. In: Fênix - Revista de
História e Estudos Culturais. Uberlândia, Vol. 3, Ano III, no.
3, Jul/ago/set – 2006. Disponível em: <www.revistafenix.pro.br/
PDF8/ARTIGO2-Cassioda.Silva.Fernandes.pdf>. Acesso em: 20
mai. 2009.

FERNADES, Cássio da Silva. As contribuições de Jacob Burckhardt


ao Manual de História da Arte de Franz Kugler (1848). Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 25, nº 49, p. 99-124 – 2005.
Disponível em: <www.scielo.br/pdf/rbh/v25n49/a06v2549.pdf>.
Acesso em: 20 mai. 2009.

Para melhor compreendermos as idéias de Burckhardt, podemos retomar

17
História Cultural

suas Reflexões sobre a História, em que ele aponta para o estudo das “três
potências” que compõem a civilização: o Estado, a religião e a cultura. Nesse
contexto, cultura, para Burckhardt, incluía

todas as congregações, artes, técnica, expressões literárias e


ciências. Ela constitui o mundo de tudo o que é dinâmico, livre,
não sendo necessariamente universal e nunca impondo pela
força a sua aceitação. [...] Chamamos de cultura a soma total
de criações espontâneas do espírito.

Dessa forma, a cultura se contrapunha a um estado de barbárie em que


viviam determinadas sociedades. Ela constituía:

O processo pelo qual se transformava as ações espontâneas


e instintivas de uma determinada raça num conhecimento
inteligente, conduzindo-a, no seu verdadeiro e mais elevado
estágio, à ciência e particularmente à filosofia e à reflexão
pura. Sua forma global externa, porém relacionada com o
Estado e a Religião, constitui a sociedade em seu sentido
mais amplo. (BURCKHARDT, 1961, p. 62 – 63.)

Burckhardt utilizou a ideia de “cultura” superior para diferenciar estágios de


desenvolvimento das ideias filosóficas. Em suas preocupações estavam temas
como a cultura grega, o pensamento cristão medieval e o renascimento italiano,
mostrando uma preocupação de traçar uma linha evolutiva do pensamento dito
“universal”. Como afirma ele:

ao considerarmos agora a cultura do século XIX como uma


cultura universal, verificamos que ela possui as tradições de
todos os tempos e culturas, do mesmo modo que a literatura
do nosso tempo é uma literatura eminentemente cosmopolita,
universal. (BURCKHARDT, 1961, p. 73).

Já em princípios do século XX, outro historiador assumiu um papel de


destaque no que se refere à história cultural. Johan Huizinga estudou sobre a
Índia antiga, a França medieval e a cultura holandesa do renascimento, tendo, em
alguns aspectos, proximidades e divergências com Jacob Burckhardt. Em 1929,
em ensaio intitulado A tarefa da história cultural, “retratava que o principal objetivo
do historiador cultural era de retratar padrões de cultura, em outras palavras,
descrever os pensamentos e sentimentos característicos de uma época e suas
expressões ou incorporações nas obras de literatura e arte” (BURKE, 2008, p.
19).

Sua principal obra, O declínio da Idade Média, trazia no original um subtítulo


que expressava sua concepção de cultura: um estudo sobre as formas de vida,
pensamento e arte na França e na Holanda no século XIV e XV. De forma geral,
o livro tratava do simbolismo e ritualização da arte em fins do período medieval.

18
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

Está claro que, dado o desenvolvimento que o estudo da cultura havia


assumido nas primeiras décadas do século XX, as concepções de Huizinga
se aproximavam mais da noção plural adotada na antropologia. Em 1938, ele
publicou um livro intitulado Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, no
qual afirma que “o jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em
suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana”. E
mais adiante prossegue:

O fato de apontarmos a presença de um elemento lúdico na


cultura não quer dizer que atribuamos aos jogos um lugar de
primeiro plano, entre as diversas atividades da vida civilizada.
[...] Não queremos dizer que o jogo se transforma em cultura,
e sim que em suas faces mais primitivas da cultura possuí um
caráter lúdico. (HUIZINGA, 1993, p. 53.)

Nessa obra, Huizinga utiliza os estudos dos antropólogos Marcel Mauss e


Bronislaw Malinowiski, trazendo uma reflexão sobre “cultura” através de suas
dimensões simbólicas. No entanto, persistem as distinções entre o que ele
qualifica de “a vida civilizada” e as “faces mais primitivas da cultura”.

Para saber mais sobre Huizinga, leia:

PAULA, João Antônio. Para lembrar Huizinga: 1872 – 1945. In: Nova
Economia: revista do departamento de economia da UFMG. Belo
Horizonte: n. 15 (1) janeiro-abril de 2005. p. 141-148. Disponível em:
<www.face.ufmg.br/novaeconomia/sumarios/v15n1/150106.pdf>.
Acesso em: 30 abr. 2009.

Atividade de Estudos:

1) Caro(a) pós-graduando(a), reflita sobre as origens da História


Cultural e desenvolva uma síntese da concepção de “cultura” para
Jacob Burkhardt e Johann Huizinga:
____________________________________________________
____________________________________________________

19
História Cultural

____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

A Cultura PoPular e a InvenÇÃo da


TradiÇÃo
Apesar de trilharem caminhos distintos, uma ideia que acompanhou o
desenvolvimento da história cultural foi o conceito de cultura popular. Segundo
Burke,

a idéia de “cultura popular” ou Volkskultur se originou no


mesmo lugar e momento que a “história cultural”: na Alemanha
do final do século XVIII. Canções e contos populares, danças,
rituais, artes e ofício foram descobertos pelos intelectuais de
classe média. (BURKE, 2008, 29.).

No entanto, esse conceito foi abandonado pelos historiadores pelo menos


até a década de 1960, sendo utilizado somente por folcloristas e antropólogos.

Uma dos primeiros estudos historiográficos que tiveram uma preocupação


mais direta com a ideia de cultura popular foi a obra do historiador inglês Edward
Thompson, A formação da classe operária inglesa (1963). Neste livro, Thompson
analisa a formação de uma consciência de “classe” através da continuidade de
certas “tradições populares” do século XVIII. O impacto da obra de Thompson se
estendeu para além das fronteiras da Grã-Bretanha, levando-o a ser considerado
como uma das principais referências da história das classes populares.

Outra obra que teve grande impacto sobre os historiadores foi A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento (1965), do teórico cultural russo
Mikhail Bakthin. Analisando a literatura do escritor francês François Rebelais e
outras “fontes populares”, o autor propõe desvendar a “cultura popular” cômica
europeia em fins do período medieval. Em conceitos como o de “carnavalização”,
Bakthin aborda as interações e transgressões dos limites entre a “cultura da elite”
e as “culturas do povo”. Seguindo a mesma linha, Peter Burke escreveu, em
1978, A cultura popular na Idade Moderna. Ao abordar “o problema do ‘popular’”,
Burke prefere utilizar o conceito no plural em virtude de sua heterogeneidade ou
“substituí-la por “a cultura das classes populares”” (BURKE, 1989, p. 17).

20
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

Para ambos os autores, existe uma ambiguidade que divide Duas teses
de forma fluída a “cultura popular” da “cultura da elite”. Apesar das sobre a cultura
popular: uma que
precauções dos autores Bakthin e Burke em qualificar a “cultura
estabelece sua
popular” como heterogênea, suas visões são criticadas por Roger marginalidade
Chartier. ante a cultura
letrada; outra que
[...] Peter Burke assim descreve os dois lhe concede uma
movimentos que desenraizam a cultura popular imagem mítica,
tradicional: de um lado, o esforço sistemático das
elites e particularmente dos cleros protestantes quase que de
e católicos, “para mudar as atitudes e valores do oposição à cultura
resto da população” e “para suprimir, ou ao menos dominante. Essas
purificar, vários elementos da cultura tradicional”; visões podem,
de outro, o abandono, pelas classes superiores, às vezes, estar
de uma cultura até então comum a todos. O
resultado é claro: “Em 1500, a cultura popular era presentes em
a cultura de todo mundo; uma segunda cultura uma mesma
para os instruídos e a única para os demais”. análise, ou obra
historiográfica.
Existem várias razões para só se retomar com
mais prudência essa periodização e esse diagnóstico que
concluem pela desqualificação da cultura popular ou pelo seu
desaparecimento. (CHARTIER, 1995, p. 181.)

Para Chartier, o conceito de “cultura popular” é uma categoria erudita, que


ora é qualificada como um sistema simbólico e autônomo, funcionando de maneira
alheia à cultura letrada, ora é percebida em sua dependência e carência em
relação à cultura das elites. Essas distinções têm sido utilizadas por historiadores
para criar modelos cronológicos, tal como Peter Burke, para uma suposta idade do
ouro da cultura popular. Assim, teríamos duas teses sobre a cultura popular: uma
que estabelece sua marginalidade ante a cultura letrada; outra que lhe concede
uma imagem mítica, quase que de oposição à cultura dominante. Essas visões
podem, às vezes, estar presentes em uma mesma análise, ou obra historiográfica.

Para saber mais sobre o conceito de “cultura popular”, leia:

CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito


historiográfico. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro. v. 8, n. 16,
1995, p. 179-192. Disponível em: <www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/172.
pdf>. Acesso em: 22 mai. 2009.

Um dos problemas que derivam dessas distinções entre a cultura popular


e da elite é o estabelecimento de um limite entre elas. O que é povo? Em geral,

21
História Cultural

como nos alerta Burke, é designar o popular por aquilo que não é a elite, ou seja, o
emprego de uma “categoria residual” que em muitos casos enrijece esses termos
e perde a abrangência das manifestações culturais. Em estudos historiográficos
mais recentes esses termos são já utilizados de forma mais ampla e plural.

Através dessas duas diferentes concepções de cultura popular podemos


observar diferentes formas de compreender a transmissão da “tradição”. Tal
como afirma Martha Abreu, a variedade de concepções dadas ao conceito
de “cultura popular”, quase sempre imbuídas de juízos de valor, idealizações,
homogeneizações e disputas teóricas e políticas, equivale, para alguns, ao
“folclore” (folk, em inglês, significa pessoas, povo) entendido como o conjunto
das “tradições culturais”. O estudo da “cultura” se vincula à ideia da “tradição”,
entendida como conhecimentos e habilidades transmitidas de geração para
geração. A “cultura” unitária dos princípios da história cultural pode conter diversas
manifestações da “tradição”. (ABREU, 2003, p. 83).

Dessa forma, assim como observado na análise de Edward Thompson sobre


as classes populares inglesas, a “tradição” é um elemento constituinte da cultura
popular. A ideia da tradição esteve presente, mesmo que de forma indireta, nas
reflexões dos historiadores culturais “clássicos” e persistiu nas análises de muitos
historiadores que se seguiram a eles. A ideia essencial na história positivista era
a noção de tradição e seu oposto complementar de “recepção” (como legado,
herança). Esta concepção de tradição acarretava o problema de determinação
do padrão cultural que persiste e do que se inova. Assim, como na discussão
acerca da circularidade entre a “cultura popular” e a “cultura da elite”, torna-se
difícil diferenciar aquilo que é “tradicional” do que é uma “inovação”.

Seguindo essa linha, a ideia de tradição sofreu uma crítica mais enfática
de Eric Hobsbawn e Terence Ranger, com A Invenção da tradição. A adoção
do termo “invenção” vinha com o intuito de demonstrar que as tradições
eram deliberadamente construídas e formalmente institucionalizadas. Uma
característica inerente à tradição é que, embasada no passado real ou forjado, ela
é invariável, fixa. Para os autores:

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,


normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente
aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade
em relação ao passado. (HOBSBAWN; RANGER, 1997, p. 9).

Peter Burke defende o estudo da tradição, mas alerta que deve ser
redefinida, levando em consideração a teoria da recepção cultural, a
adaptação e o reconhecimento. Dessa forma, o questionamento dos

22
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

conceitos amplamente utilizados em nosso cotidiano nos serve para


perceber as invenções intencionais ou não do que se entende como
“cultura”. A cultura legitimada normalmente recebe o crivo de “tradição”
como aquilo que deve ser preservado e transmitido.

Atividades de Estudos:

Sobre os assuntos desenvolvidos neste tópico responda:

1) Qual foi a polêmica estabelecida pelos historiadores Peter Burke e


Roger Chartier sobre a ideia de “cultura popular”?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2) Como a noção de “tradição” foi vista pelos historiadores da cultura?


____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

A História Cultural e sua APlicaÇÃo


no AmBiente Escolar
O ofício do historiador é uma atividade eminentemente política. Em sua
atividade de pesquisa ou na transmissão do conhecimento em sala de aula o
historiador reconstrói a vida coletiva, estabelece conexões entre o passado e o
presente e busca compreender os processos de desenvolvimento das sociedades
humanas. Através da eleição consciente ou inconsciente de determinados
conteúdos e métodos de compreensão do conhecimento histórico estamos agindo
politicamente.

23
História Cultural

Há muitas décadas que o ensino da História se pautou na exaltação dos


grandes personagens históricos, em geral, os heróis nacionais. A visão positivista
de uma verdade formada no encadeamento cronológico dos fatos históricos
era a forma de transmitir o conhecimento. Segundo os defensores dessa ideia,
existiria uma noção de evolução dos acontecimentos que só pode ser entendida
através da ordenação cronológica do conteúdo. Essa forma de ensinar a história
provocou um distanciamento com a realidade do aluno, causando desinteresse
e incompreensão por parte destes. Ela impede os educandos de perceber
semelhanças e diferenças, permanências e rupturas dos processos históricos.

A partir das últimas décadas, no entanto, observou-se uma transformação


nas metodologias da pesquisa histórica e consequentemente no ensino da
história. Mais recentemente ainda, pela percepção da ineficácia e limitação do
método tradicional, novas perspectivas educacionais foram adotadas. A adoção
de materiais didático-pedagógicos alinhados a essas novas perspectivas
inseriu o trabalho com diferentes fontes e documentos históricos (imagens,
documentos escritos, objetos, etc.) relativos aos conteúdos propostos. Além
disso, a multiplicação e a fragmentação das pesquisas históricas provocaram uma
diversificação, tornando mais complexo o ensino da História.

A diluição das fronteiras entre os campos de interpretação histórica


(economia, sociedade, cultura) tornou imprescindível a utilização de ferramentas
interdisciplinares. Frente a esses enormes e complexos desafios o historiador se
encontrou desabilitado e despreparado para trabalhar essas novas perspectivas. A
utilização dos conceitos é feita, muitas vezes, nos livros e pelos professores, sem
nenhum critério. Tradição, mentalidades, cultura e representação são concepções
amplamente difundidas nos livros didáticos, mas como devemos trabalhar esses
conceitos em sala de aula?

O desenvolvimento da história cultural proporcionou uma ampliação


O desenvolvi-
mento da história das reflexões sobre a nossa realidade imediata e a possibilidade de
cultural proporcio- utilização de novas ferramentas que aproximem o universo do aluno
nou uma amplia- da compreensão dos processos históricos. Para tanto, partimos da
ção das reflexões perspectiva da história como interpretação, possibilitando ao aluno
sobre a nossa contato com as várias construções existentes em torno dos processos
realidade imediata
históricos, sem desconsiderar sua própria realidade. Com uma proposta
e a possibilidade
de utilização de metodológica baseada nos acontecimentos do dia a dia, abordando
novas ferramentas temas como saúde, moradia, sexualidade, relações interétnicas, ou
que aproximem o seja, a vida cotidiana, é possível mostrar que a história é feita por todos
universo do aluno os homens e em todos os momentos de sua vida. Através da vida
da compreensão das pessoas comuns ou de grupos é possível compreender algumas
dos processos
situações vividas pela sociedade (até mesmo relacionadas à economia
históricos.
e à política).

24
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

Ao lembrarmos nossos alunos de que somos sujeitos históricos, reforçamos


a ideia de que a história não se constrói somente a partir dos grandes feitos e
grandes homens, fatos e datas, mas sim do cotidiano das pessoas comuns como
nós. Pessoas que se vestiam, moravam, relacionavam-se umas com as outras...
Compreender como isso acontecia em diferentes grupos sociais nos permite fazer
comparações e aproximações com nossa realidade atual.

A lei de diretrizes e bases para a educação nacional, elaborada em 1996,


trata de questões acerca da utilização de debates sobre a cultura na educação
fundamental e média. Vejamos o que diz a lei:

LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se


desenvolvem na vida familiar, na convivência humana,
no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e
nas manifestações culturais. [...]

Art. 26º. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter


uma base nacional comum, a ser complementada, em
cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por
uma parte diversificada, exigida pelas características
regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e
da clientela. [...]

§ 4º. O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições


das diferentes culturas e etnias para a formação do povo
brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e
europeia. [...]

Brasília, 20 de dezembro de 1996.

As perspectivas educacionais da lei preveem a adoção de um ensino


diversificado e que leve em consideração a variedade da vida social. Como no

25
História Cultural

parágrafo 4o do artigo 26, a História do Brasil deve levar “em conta a contribuição
de diferentes culturas e etnias [...] especialmente das matrizes indígenas, africana
e europeia” (BRASIL, 1996). Dessa definição podemos observar que a noção
adotada de cultura leva em consideração a existência de diferentes grupos. No
entanto, ela é reducionista quando delimita e enrijece as culturas e etnias em
“indígena”, “africana” e “europeia”. Dessa forma, podemos perceber as limitações
acerca da noção de cultura nas leis e diretrizes da educação nacional, bem como
nos livros didáticos utilizados nas escolas brasileiras.

Ainda que se tenha avançado nas discussões acerca da diversidade cultural


em nosso país, e a legislação vigente é um exemplo disso, é necessário um olhar
mais atento para os estereótipos criados em torno de determinados grupos. Na
intenção de firmar uma identidade a fim de conquistar um espaço, esquecemos
que uma mesma etnia contempla diferenças em termos culturais, relacionadas
ao seu tempo e contexto. Trata-se de analisar determinados aspectos culturais
a partir de especificidades decorrentes da história do indivíduo. As pessoas se
apropriam e absorvem a cultura de modo diferente, resultando em múltiplas
experiências de vida.

A disciplina de história é fundamental para trabalhar a questão da diversidade


cultural na escola, partindo do pressuposto de que devemos questionar certas
concepções tradicionais que privilegiavam alguns povos em detrimento de outros.
Possibilitar ao aluno a percepção de que sua história de vida, seu cotidiano,
seus hábitos e seus costumes são tão importantes quanto o de qualquer outra
pessoa em qualquer tempo e espaço é nosso trabalho. Partindo disso, damos um
grande passo em direção a uma história composta por sujeitos conscientes de
sua atuação e participação social.

Você já parou para pensar no quanto os conteúdos presentes nos livros


didáticos apontam para uma mudança cultural no modo de vida das populações
indígenas, a partir do contato com os europeus? O contrário também ocorre?

Para nos auxiliar nessa reflexão recorremos a um conceito


elaborado pela antropologia, o de aculturação. Esse termo foi criado
aproximadamente em 1880 por J. W. Powell, antropólogo americano,
e era utilizado para denominar “a transformação dos modos de
vida e de pensamento dos imigrantes ao contato com a sociedade
americana”. Ainda que estudos mais recentes procurem imprimir um
caráter dinâmico a esse conceito, a expressão por vezes é utilizada
no senso comum de modo negativo, ressaltando a ideia de uma perda
irreparável. Ou seja, no contato de dois grupos com culturas diferentes,

26
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

uma prevalece sobre a outra e para o indivíduo ou sociedade aculturada


há uma conversão à outra cultura.

Na história do Brasil, de modo específico, esse termo foi


utilizado em favor da cultura europeia, desconsiderando o fato
de que através do contato com os indígenas o modo de vida dos
portugueses também se transformou. Utilizamos aqui a concepção
de Serge Gruzinski, quando, em sua obra “O pensamento mestiço”,
destaca que do encontro de duas culturas diferentes surge uma
terceira cultura, que é resultado da mestiçagem. Nem mesmo a
violência com a qual foram tratadas as populações indígenas seria
capaz de anular seus traços culturais.

Sobre aculturação, leia a obra de: CUCHE, Denys. A noção de


cultura nas ciências sociais. 2a ed. Bauru: EDUSC, 2002.

Sobre “O pensamento mestiço”, leia a obra de: GRUZINSKI,


Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.

É importante lembrar que, embora nos utilizemos dos termos índios ou


indígenas, há que se considerar que essa foi uma denominação dada pelos
europeus a esses povos e deve ser questionada. Essas populações são
compostas por diferentes grupos étnicos. São eles: Guarani, Kaigang, Xokleng,
Caiapó, Carajá, Tupinambá, Ianomâmi, Pataxó, etc.

Uma das grandes contribuições do ensino de história focado na concepção


cultural é procurar compreender o outro a partir do seu tempo e do seu
contexto. Embora seja difícil nos desprendermos de nosso modo de pensar
e agir hoje, é necessário tentarmos nos colocar no lugar do outro, isentos
de julgamentos ou valores de nosso tempo. Para Ruth Benedict, “a cultura
é como uma lente através da qual o homem vê o mundo” (LARAIA, 1999,
p. 69) e não é incomum estranharmos o que desconhecemos. Problemático é
quando nos utilizamos como parâmetro, acreditando que nosso modo de vida é
mais correto e natural, sem a compreensão de que, para o outro, o mesmo outro
sou eu.

27
História Cultural

Atividades de Estudos:

Para trabalhar a concepção de estranhamento, propomos a


seguinte atividade (esta é uma sugestão de atividade que pode ser
feita em sala de aula com seus alunos):

• Dividir os alunos em duplas.


• Pedir que se identifiquem como seres de outro planeta, que
desconhecem a existência dos humanos – portanto o aluno terá a
sua frente algo que nuca viu.
• Solicitar que as duplas se olhem atentamente, prestando atenção
em cada detalhe do outro.
• Descrever por escrito o que viu, na condição de que é algo
desconhecido.
• Socializar e discutir sobre o que foi realizado, como os alunos se
sentiram ao serem descritos e ao descreverem o outro.
Para finalizar este capítulo, propomos uma atividade de leitura de
imagens que possibilitem pensar um pouco mais sobre o conceito de
cultura. Analise atentamente essas imagens e responda às questões
que seguem:

Figura 1 - Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles

Fonte: Disponível em: <www.moderna.com.br/.../datas/


images/indio1.jpg>. Acesso em: 18 out. 2009.

28
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

Figura 2 - Theodoro De Bry. Hans Staden assiste à preparação


do corpo. Ameriacae Tertia Pars, gravura 1592.

Fonte: Disponível em: <www.scielo.br/img/revistas/his/


v25n2/01f4.gif>. Acesso em: 18 out. 2009.

1) Descreva detalhadamente o que você vê em cada uma das


imagens.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2) Quais símbolos são utilizados pelo artista para identificar um


personagem do outro?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

3) Qual era a visão dos europeus sobre o “novo mundo” a partir do


que as imagens representam?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

4) De qual concepção de cultura essas representações se aproximam?


____________________________________________________

29
História Cultural

____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Algumas ConsideraÇÕes
Sendo a história a disciplina que estuda o processo, interessa-nos mais
procurar identificar os caminhos que nos levam a determinadas concepções atuais
do que sejam cultura e história cultural. Considerando a amplitude dos temas
discutidos ao longo desse capítulo, nosso objetivo não é atingir uma verdade
acerca dos conceitos e muito menos acomodar você, pós-graduando, com uma
explicação reducionista de algo que é amplo e complexo.

Na esteira desse raciocínio, procuramos apresentar análises de diferentes


autores, considerando o tempo e espaço em que construíram suas teorias,
possibilitando uma reflexão sobre as transformações pelas quais passou e tem
passado o conceito de cultura sem, no entanto, esgotar suas possibilidades de
abordagem.

Para a história cultural o fato deixa de ser o foco central de análise,


considerando que o político também está no âmbito do cotidiano, a partir do
questionamento sobre as transformações da sociedade, o funcionamento da
família, o papel da disciplina e das mulheres, o significado dos fatos, gestos e
sentimentos. A busca por novas perspectivas para a História abriu também um
campo mais amplo para a interdisciplinaridade. O diálogo com outras áreas do
conhecimento, como a antropologia, por exemplo, favoreceu a ampliação das
áreas de investigação histórica. A partir dessas novas perspectivas há uma
reorientação do enfoque histórico, contrapondo a linearidade, a abordagem
universalizante e uma história baseada no estudo das elites.

ReFerÊncias
ABREU, Martha. “Cultura Popular: um conceito e várias histórias”. In: Ensino de
História: conceitos, temáticas e metodologias. Martha Abreu e Rachel Soihet
(organizadores). Rio de Janeiro: FAPERJ. Casa da Palavra, 2003.

30
Capítulo 1 ORIGENS DA HISTÓRIA CULTURAL

BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 1987.

BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras,


1992.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB. Lei nº 9.394,


de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seed/
arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf>. Acesso em: 20 set. 2009.

BURKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. São


Paulo: Companhia das Letras, 1991.

_____. Reflexões sobre a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.

BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

_____. Unidade e variedade na história cultural. In: _____. Variedades de


história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 233-267.

_____. O que é História Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. (trad.


port.) Lisboa: DIFEL, 1990.

_____. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos


Históricos. Rio de Janeiro. v. 8, n. 16, 1995, p. 179-192.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC,


2002.

FERNADES, Cássio da Silva. Jacob Burckhardt e a preparação para a cultura


do renascimento na Itália. In: Fênix: Revista de História e Estudos Culturais.
Uberlândia, Vol. 3, Ano III, no. 3, Jul/ago/set – 2006.

_____. As contribuições de Jacob Burckhardt ao Manual de História da Arte de


Franz Kugler (1848). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, nº 49, p.
99-124 – 2005.
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras,

31
História Cultural

2001.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1997.

HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa/Rio de Janeiro: Ulisséia,


1985.

_____. Homo Ludens: o jogo como elemento da Cultura. São Paulo:


Perspectiva, 1993.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 12. ed. Rio de


Janeiro: J. Zahar, 1999.

PAULA, João Antônio. Para lembrar Huizinga: 1872 – 1945. In: Nova Economia:
revista do departamento de economia da UFMG. Belo Horizonte: no. 15 (1),
janeiro-abril de 2005. p. 141-148.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte:


Autêntica, 2003.

RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. (dir.) Para uma História


Cultural. (trad. port.) Lisboa: Estampa, 1998.

SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura? São Paulo: Brasiliense, 1983.

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da Teoria ou um planetário de erros.


Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

TYLOR, Edward. B. La ciencia de la cultura. In: Kahn, J. S. (Comp.), El concepto


de cultura. Barcelona: Anagrama, 1975. (p. 29-46)

32
C APÍTULO 2

Estudos Culturais e a Escrita


da História
A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes
objetivos de aprendizagem:

 Apresentar as relações interdisciplinares da história com a antropologia.

 Relatar a conjuntura histórica que propiciou a ampliação temática da história


cultural.

 Comparar a relação entre a natureza da investigação histórica e antropológica.

 Articular reflexões interdisciplinares na transmissão do saber historiográfico


relacionado à História cultural.

 Apreender a importância de uma história micro para compreensão


de contextos culturais.

 Analisar o papel do contexto histórico na transformação do processo


de escrita da história.
História Cultural

34
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

ConteXtualiZaÇÃo
Considerando que os estudos culturais se constituíram a partir de diferentes
áreas do conhecimento, percebemos ser de fundamental importância situar o
papel da Antropologia nesse contexto, bem como suas contribuições para o
campo da história. Portanto, este capítulo se inicia com uma discussão acerca
da Antropologia cultural, seus principais autores e fases. Esperamos que ao
final dessa seção seja possível perceber o quanto os estudos antropológicos
influenciaram a história cultural e a noção de cultura adotada pelos historiadores.

A antropologia contribuiu inclusive para a constituição do que conhecemos


como Annales, assunto abordado posteriormente neste capítulo. É importante
estudar os Annales, seu surgimento, principais autores e fases, para que
compreendamos o papel desse movimento como uma das fases mais importante
da historiografia cultural.

A seguir apresentamos uma discussão sobre micro-história, uma metodologia


adotada pela história cultural, que dá ênfase ao micro, ou seja, a história das
pessoas comuns, para então compreender o macro, o geral. Saímos do particular
para compreender o contexto da sociedade estudada. Ao adotar essa metodologia
devemos ficar atentos aos mínimos detalhes, pois ali se concentra o universal.

Finalizamos o capítulo com uma discussão sobre os estudos pós-coloniais na


perspectiva cultural, objetivando uma reflexão acerca da história das populações
colonizadas, e a perspectiva de um reescrever a história a partir da crítica de um
olhar puramente eurocêntrico.

Esperamos que os apontamentos presentes neste texto possibilitem a


você, caro pós-graduando, apropriar-se das ferramentas da história cultural para
interferência direta no seu cotidiano, percebendo que a sua história de vida pode
dizer muito a respeito de um contexto mais amplo no qual você está inserido.
Portanto, esperamos que você tenha na prática a confirmação de que todos
somos e fazemos história.

35
História Cultural

A AProXimaÇÃo da AntroPologia
Cultural com Novas PossiBilidades de
Escrita da História
O que define o campo da Antropologia é o conceito de cultura, que pode
ser compreendido como sendo um código simbólico, que possui uma dinâmica
e uma coerência interna. É compartilhado pelos membros de uma determinada
sociedade ou grupo social e, mediante um procedimento antropológico, pode
ser decifrado e traduzido para membros que não pertencem a esse grupo. À
antropologia, portanto, cabe a interpretação dos diferentes códigos simbólicos
que constituem as diversas culturas. (THOMAZ, 1995, p. 427-428).

A palavra Antropologia é composta por dois vocábulos gregos:


anthropos (que significa homem) e logos (que significa conhecimento,
estudo). Portanto, a antropologia é a ciência que estuda o homem
em seus aspectos gerais.

A fim de decifrar os significados atribuídos por diferentes sociedades ou


agrupamentos humanos nas suas próprias ações, o antropólogo deve relativizar
os seus próprios valores culturais, procurando fugir do etnocentrismo (THOMAZ,
1995, p. 434). “A antropologia foi impossível enquanto as distinções entre nós
próprios e o primitivo, nós próprios e o bárbaro, nós próprios e o pagão, nos
dominaram o espírito” (BENEDICT, 1983, p. 16).

A preocupação da Antropologia está centrada nos seres humanos como


produtos da vida em sociedade. O que a diferencia das outras ciências sociais é a
inclusão no seu campo de estudos de sociedades que não são a nossa sociedade.
Interessam ao antropólogo os costumes existentes em culturas diferentes, e o
seu objetivo é “compreender o modo como essas culturas se transformam e se
diferenciam, as formas diferentes por que se exprimem, e a maneira como os
costumes de quaisquer povos funcionam na vida dos indivíduos que os compõem”.

36
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

Caro pós-graduando, você sabe o que significa a palavra


etnocentrismo?

Partindo de uma definição mais geral, podemos considerar


como sendo o termo que define uma visão de mundo em que nosso
próprio grupo é o centro de todas as coisas e todos os outros grupos
são medidos e avaliados em relação a ele (CUCHE, 2002, p. 46).

Atividade de Estudos:

1) Ao refletir um pouco mais sobre a definição desta palavra, liste um


ou mais processos que marcaram a história da humanidade por
estarem carregados de valores etnocêntricos. Em seguida procure
pensar em seu cotidiano e mais uma vez liste situações em que
você percebe a aplicação do termo etnocentrismo.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Você sabia?

“A antropologia nasceu no século XIX, sob a égide do


evolucionismo cultural, que supunha a existência de uma única
marcha no progresso da humanidade, à qual todos os povos estariam
condenados. O final desta marcha seria, evidentemente, a civilização
Ocidental”. (THOMAZ, 1995, p. 437).

Que tal fazer uma breve pesquisa sobre a origem da antropologia


cultural? Procure fazer relações com o contexto vivido na época em
que surgiu esse tipo de estudo.

37
História Cultural

A Antropologia cultural recebeu maior ênfase e aprofundamento teórico nos


Estados Unidos, talvez pelo contexto de diversidade cultural existente no país,
oriundo da imigração. Aos sucessores do antropólogo Franz Boas (1858-1942)
coube retomar a pesquisa sobre a dimensão histórica dos fenômenos culturais.
Entre eles, Alfred Kroeber explica o processo de distribuição dos elementos
culturais no espaço.

A partir do estudo da repartição espacial dos traços culturais (definido


pelos menores componentes de uma cultura) nas culturas próximas, analisa o
processo de sua difusão - resultado dos contatos entre as diferentes culturas e
da circulação dos traços culturais. Quando aparece uma grande convergência de
traços semelhantes num mesmo espaço, define-se então uma área cultural. No
entanto, o conceito de área cultural deve ser empregado de maneira flexível, já
que, em muitas localidades, as áreas culturais só podem ser definidas de forma
aproximada, não tendo limites precisos. (CUCHE, 2002, p. 68-69). Dessa corrente
da antropologia surge o conceito de “modelo cultural”, que designa o conjunto
estruturado dos mecanismos pelos quais uma cultura se adapta ao seu meio
ambiente (Idem).

Conceituando etnografia: é uma metodologia qualitativa de


pesquisa que se concentra nas descrições dos grupos culturais,
podendo ser definida como o método utilizado na antropologia para a
coleta de dados.

Para se aprofundar um pouco mais sobre esse conceito, acesse


o site: http://www.antropologia.com.br/colu/colu10.html

Em reação à corrente antropológica “difusionista”, surgem os estudos do


antropólogo Bronislaw Malinowski (1884 – 1942). Para ele, era preciso observar as
culturas em seu estado presente, sem buscar o passado. Criticava principalmente
a falta de compreensão por parte dos difusionistas, dos traços culturais ligados a
um sistema global.

Para Malinowski, o importante era que os traços culturais exercessem, na


totalidade de uma dada cultura, uma função precisa.

Qualquer cultura deve ser analisada em uma perspectiva


sincrônica, a partir unicamente da observação de seus
dados contemporâneos. Contra o evolucionismo voltado
para o futuro, contra o difusionismo voltado para o passado,

38
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

Malinowski propõe então o funcionalismo centrado no


presente, único intervalo de tempo em que o antropólogo pode
estudar objetivamente as sociedades humanas. (CUCHE,
2002, p. 71-72).

Malinowski subestima as tendências à mudança interna própria de cada


cultura ao dizer que constituem um todo coerente, sendo os elementos de um
sistema cultural harmônicos, equilibrados e funcionais, tendendo as culturas,
dessa forma, a se conservarem idênticas em si mesmas. Para ele, a mudança
cultural vem do exterior, por contato cultural. “O grande mérito de Malinowski será,
no entanto, demonstrar que não se pode estudar uma cultura analisando-a do
exterior, e ainda menos a distância”. Propõe, assim, uma nova forma de etnografia,
a da observação participante (CUCHE, 2002, p. 72-73).

A antropologia cultural americana não teve muitos adeptos na França,


embora tenha sido retomado o tema da totalidade cultural pelo antropólogo
Claude Lévi-Strauss na década de 1950. O pensamento de Strauss, embora
influenciado pelo dos antropólogos americanos, diferencia-se deles ao
ultrapassar a abordagem particularista das culturas. Além do estudo das
variações culturais, pretende analisar a invariabilidade da cultura (CUCHE,
2002, p. 97). Trata-se, portanto, de uma antropologia estrutural que procura
localizar entre culturas o que é idêntico. “No ponto preciso em que a
cultura substitui a Natureza, isto é, no nível das condições muito gerais de
funcionamento da vida social, é possível encontrar regras universais que
também são princípios indispensáveis da vida em sociedade” (CUCHE, 2002,
p. 98).

Já para Clifford Geertz, um dos mais importantes antropólogos da segunda


metade do século XX, o trabalho da antropologia é o de revelar as singularidades
dos modos de vida de outros povos. Uma das maiores contribuições de Geertz foi
reduzir a ideia de cultura a uma dimensão mais adequada do que aquela com a
qual se vinha lidando desde os anos 1950.

Ao retrocedermos ao início da Antropologia, um dos mais reconhecidos


autores do século XIX, Edward B. Tylor (1832 – 1917), já citado no capítulo 1,
definiu cultura como o “todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte,
moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo
homem na condição de membro da sociedade”. Trata-se de uma definição
descritiva que pouco fala dos processos pelos quais a cultura se produz, nem
aponta para o que “singulariza” os homens que constituem diferentes culturas.
Algumas mudanças ocorreram a partir do século XX no campo da Antropologia,
entre elas o aumento do interesse por culturas particulares e a consolidação da
noção de que somente a partir do estudo minucioso e presencial de um modo de
vida era possível entender as grandes questões da humanidade. (TORRES, 2009,
p. 62).
39
História Cultural

Não somente na Antropologia, mas na Filosofia, Sociologia, Psicologia


e História, as mudanças foram favoráveis a uma produção de conceitos que
originaram uma concepção renovada de cultura. Geertz denominaria esse
acontecimento como uma virada para o sentido que, segundo ele, modificou tanto
o tema investigado quanto a posição do sujeito da investigação. Surgia então a
preocupação com a “produção de sentido”. Essa antropologia foi chamada por
Geertz de interpretativa (TORRES, 2009, p. 63).

O estudo das O estudo das culturas de outros povos implica “descrever o que
culturas de outros eles pensam que são, o que pensam que estão fazendo e com que
povos implica finalidade pensam o que estão fazendo” (GEERTZ, 2001, p. 26). Não
“descrever o que se trata, entretanto, de sentir como os outros ou pensar como eles,
eles pensam pois isso seria impossível. O que é metodologicamente esperado do
que são, o que
pesquisador de campo é que aprenda a viver com e não como as
pensam que estão
fazendo e com sociedades ou grupos de culturas diferentes. O que o antropólogo
que finalidade busca é a ação de se situar entre aqueles que são estranhos, é a
pensam o que possibilidade de conversar com eles. Visto sob esse ângulo, o objetivo
estão fazendo” da Antropologia é o alargamento do universo do discurso humano
(GEERTZ, 2001, (GEERTZ, 1978, p.24).
p. 26).

Para Geertz, o conceito de cultura denota um padrão de


significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos. É um sistema
de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais
os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atividades em relação à vida (GEERTZ, 1978, p. 103). Como sistemas entrelaçados
de símbolos, a cultura não é uma força que paira sobre os acontecimentos: é o
contexto dentro do qual os signos podem ser descritos e interpretados de forma
inteligível. Os antropólogos voltam seus olhares para as diferenças culturais a
partir de posições particulares. Compreendem os modos de vida de outros povos
considerando quem são ou aquilo em que se transformam. (TORRES, 2009, p.
63).

Atividade de Estudos:

1) Faça uma lista dos antropólogos que apareceram ao longo do


texto, definindo suas perspectivas de estudos. Em seguida faça
comparações, destacando as diferenças em relação à concepção
de cada um deles.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
40 ____________________________________________________
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

____________________________________________________
____________________________________________________

Segundo Lynn Hunt, em se tratando da relação entre a Antropologia e a


escrita da história cultural, Clifford Geertz é uma referência:

A modalidade antropológica de história parte da premissa de


que a expressão individual ocorre no âmbito de um idioma
geral. Sendo assim, trata-se de uma ciência interpretativa:
seu objetivo é ler “em busca do significado – o significado
inscrito pelos contemporâneos”. A decifração do significado,
mais do que a interferência de leis causais de explicação, é
assumida como tarefa fundamental da história cultural, da
mesma maneira que para Geertz, era a tarefa fundamental da
Antropologia cultural. (HUNT, 1992, p.16).

Nesse sentido a Antropologia Cultural se faz presente em novas formas de


escrita da história. Uma implicação da adaptação dos métodos antropológicos
à pesquisa histórica é a junção da preocupação com a mudança ao longo do
tempo e o surgimento de uma escolha por temáticas sincrônicas. Fortaleceu-se a
tendência para examinar um pedacinho do tempo. A pequena história transformou-
se na base da análise da nova história cultural. Disseminaram-se produções
baseadas num pequeno episódio. Assim, em vez da velha narrativa explicativa,
preocupada com causas/origens e consequências, passou-se para uma nova
narrativa, de curta duração, concentrada num evento que, se bem escolhido,
oferece um quadro repleto de significados.

Uma das princi-


pais característi-
A Escola Francesa dos ANNALES cas dos Annales
está na reflexão
dos historiadores
A “Escola dos Annales” foi um movimento inovador que surgiu na em relação a sua
França, no século XX, dando origem ao que conhecemos hoje como área de estudos
Nova História. Tudo começou diante das insatisfações que afligiam e suas formas
a história tradicional e com a criação da revista Annales d’historie de trabalho.
Preocupa-se em
économique et sociale, em 1929, pelas mãos de Lucien Febvre e Marc
tirar a história de
Bloch, historiadores e demais cientistas sociais que debatiam novas seu isolamento
metodologias e abordagens. Embora tenha surgido na França, o disciplinar, bus-
movimento dos Annales, ao longo do século XX, expandiu-se por todo cando formas de
o mundo, conquistando adeptos que contribuíram para o crescimento pensar abertas a
dessa nova abordagem historiográfica. Em 1946 recebeu seu nome problemáticas e a
metodologias exis-
atual, Annales: Economies, Sociétés, Civilisations (HUNT, 1992, p. 3).
tentes em outras
ciências sociais.
Uma das principais características dos Annales está na reflexão

41
História Cultural

dos historiadores em relação a sua área de estudos e suas formas de trabalho.


Preocupa-se em tirar a história de seu isolamento disciplinar, buscando formas de
pensar abertas a problemáticas e a metodologias existentes em outras ciências
sociais.

Entre as obras de maior destaque daqueles que compuseram


o movimento dos Annales encontram-se os “Reis Taumaturgos”,
de Marc Bloch, publicado em 1924, ou seja, antes da fundação da
revista. Nessa obra o autor amplia o campo historiográfico sobre o
estudo do mundo rural, fazendo comparações entre a França e a
Inglaterra, algo novo do ponto de vista tradicional “acostumado” a
escrever sobre temas mais restritos.

BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das


letras, 1993.

a) Primeira fase: oposição entre história tradicional, política e de eventos

De acordo com Peter Burke, os Annales foram um movimento dividido em três


fases: a primeira apresenta a oposição entre a história tradicional, a história política
e a história dos eventos. A contribuição historiográfica dos Annales nessa fase foi
a possibilidade de um diálogo entre a história e as ciências sociais, rompendo uma
barreira, legitimada por uma história tradicional, factual, excessivamente preocupada
com os acontecimentos, advinda do século XIX (REIS, 2004). Essa nova perspectiva
empreendida por Febvre e Bloch constrói o conhecimento em contraposição à história
baseada nos grandes homens e fatos, que colocava à margem aspectos importantes
das experiências humanas. Partindo do pressuposto de que toda vivência humana é
portadora de uma história, os Annales construíram a “história total”. A primeira geração
dos Annales foi o ponto de partida para as novas abordagens historiográficas, abrindo
espaço para a história social e econômica. Em seu primeiro momento a revista dos
Annales condensou os saberes e experiências de Bloch e Febvre, assim como suas
críticas ao modelo tradicional baseado na história positivista.

42
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

Você sabe qual era a perspectiva dos positivistas? Eles


acreditavam que, se adotassem uma atitude de distanciamento
de seu objeto, obteriam um conhecimento histórico objetivo, um
reflexo fiel dos fatos do passado. O historiador, para eles, narra fatos
realmente acontecidos e tal como eles se passaram. Em termos
historiográficos o “cientista” positivista colhe provas de suas falas,
fechando suas conclusões objetiva e comprovadamente. Ou seja,
trabalha com a concepção de uma história verdade.

b) Segunda fase: novos conceitos e métodos

Com a morte de Bloch e Febvre, Fernand Braudel (1946-1969) se tornou o


sucessor dos Annales, que em sua segunda geração se aproxima de uma “escola”,
com conceitos (estrutura e conjuntura) e novos métodos (história serial das mudanças
na longa duração). Para Braudel, a contribuição especial do historiador às ciências
sociais é a consciência de que todas as estruturas estão sujeitas a mudanças,
mesmo que lentas. Foi também importante contribuição de Braudel a inovação do
conceito de tempo, que para ele se distingue pela curta e longa duração, ou seja, os
eventos históricos podem se dar por ampla ou restrita dimensão temporal. Para Peter
Burke, Braudel realiza a combinação de um estudo de longa duração com o de uma
complexa interação entre o meio, a economia, a sociedade, a política, a cultura e os
acontecimentos (BURKE, 1997, p. 55).

Segundo Lynn Hunt, Braudel demonstra sua aproximação com o estruturalismo


ao rebatizar a “geo-história” da primeira edição de sua obra “O Mediterrâneo” de
“história estrutural”, como já aparece na segunda edição. Teoricamente, a relação
estabelecida por Braudel entre longa e curta duração, entre “história estrutural” e
“história política”, é a semelhante à relação estabelecida por Lévi-Strauss entre
“ordem de estrutura” e “ordem de evento”.

Fernand Braudel e a tradição dos Annales

Para Braudel, a geografia possuía um papel muito importante no estudo do


passado, pois é na relação do homem com o meio, tanto físico quanto social,
que a história se move. Em sua obra “O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico
na época de Felipe II”, valorizou as mudanças econômicas e sociais ocorridas
em longo prazo, dialogando com a geografia. Postulou três níveis de análise que
correspondiam a diferentes unidades de tempo: a estrutura ou longa duração,
dominada pelo meio geográfico, e a conjuntura ou média duração, voltada para

43
História Cultural

a vida social e o evento efêmero, que incluía a política e tudo que dizia respeito
ao indivíduo. A estrutura, ou longa duração tinha prioridade, enquanto os eventos
eram equiparados à poeira ou à espuma do mar.

Fonte: BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico


na época de Felipe II. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p. 48.

Atividades de Estudos:

1) Que tal refletir um pouco mais sobre as aproximações entre o


estruturalismo, presente na antropologia cultural, e a segunda
geração da escola dos Annales?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2) Veja a seguir uma passagem da aula inaugural do professor


Fernand Braudel no Collège de France:

A realidade do social, a realidade fundamental do homem revela-se


inteiramente aos nossos olhos e, queiramos ou não, nosso velho
ofício de historiador não cessa de brotar e de reflorir em nossas
mãos... Sim, quantas mudanças! Todos os símbolos sociais, ou
quase todos – e alguns pelos quais teríamos morrido ainda ontem,
sem muita discussão - perderam o seu conteúdo ainda. (...) Todas
as ciências sociais, inclusive a história, evoluíram, igualmente, de
maneira espetacular, mas não menos decisiva. Um novo mundo;
por que não uma nova história?

Fonte: MARQUES, Ademar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo.


História e Companhia. Belo Horizonte: Editora Lê, 1998, p. 24.

3) Como você interpreta esse trecho da fala de Braudel?


____________________________________________________
____________________________________________________

44
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

c) Terceira fase: Nova História Cultural

A terceira fase dos Annales talvez seja a mais difícil de definir, pois não contou
com a centralidade dos estudos de Bloch e Febvre ou Braudel. Por isso, chega-
se a dizer que nessa fase houve uma fragmentação. Exerceu grande influência
sobre a historiografia e sobre o público leitor, em abordagens que comumente
chamamos de Nova História ou História Cultural (BURKE, 1997).

Portanto a Nova História, oriunda da Escola dos Annales, A Nova História,


oriunda da Escola
pode ser definida em linhas gerais como uma ciência histórica
dos Annales,
inovada, regida pelos moldes das ciências sociais, voltada para a pode ser definida
problemática do homem enquanto objeto social. Caracterizada por em linhas gerais
uma história-problema e utilizando-se da interdisciplinaridade para como uma ciência
se constituir, valoriza os fatos recorrentes, ao lado dos singulares, histórica inovada,
trabalhando o cotidiano, ressignificando fatos e fontes históricas. regida pelos mol-
des das ciências
sociais, voltada
Sob essa perspectiva, a história sofreu uma mudança no campo para a problemá-
das técnicas e dos métodos. Se antes a documentação era relativa tica do homem
ao evento e seu produtor, passa a ser relativa ao campo econômico- enquanto objeto
social. “Os documentos se referem à vida cotidiana das massas social.
anônimas, à sua vida produtiva, à sua vida comercial, ao seu consumo,
às suas crenças, às suas diversas formas de vida social” (REIS, 1994, p. 126). Os
documentos podem ser arqueológicos, pictográficos, iconográficos, fotográficos,
cinematográficos, numéricos, orais, enfim, de toda ordem. Todos os meios são
tentados para vencer as lacunas e silêncios das fontes.

O documento, para Febvre, vai além de um simples papel, abrange


desde pedaços de cerâmica a documentos escritos e o importante é que haja
problematização em cima da fonte. Essas novas possibilidades deixaram
de priorizar perguntas e respostas, dando espaço para a construção de
questionamentos e hipóteses. Deram ao historiador liberdade de ação, tanto pela

45
História Cultural

ampliação dos fatos, como das fontes que deixaram de ser exclusivamente os
documentos oficiais, abrangendo todos os vestígios deixados pelo homem social
(FEBVRE, 1989).

Uma das mais importantes proposições da nova história é a criação da


história-problema originada pela necessidade social real. Na história-problema o
fato é uma construção, sendo impossível chegar-se a apenas uma verdade do
que aconteceu ao passado. Nas palavras de Lucien Febvre: “... nunca se façam
colecionadores de fatos, ao acaso [...] nos deem uma História não automática,
mas sim problemática.” (FEBVRE, 1989, p. 49). A história-problema construída
pelos Annales é de fato uma “nova história”.

Vamos entender o conceito de história tradicional e história


problema?

A história tradicional tem caráter narrativo, obedecendo a uma


cronologia, baseada em documentos ditos oficiais; escrita de forma
linear, evolucionista, conta os fatos como relatados nos documentos,
privilegia apenas os fatos singulares, geralmente políticos, isto é, na
concepção positivista havia uma restrição de fato e à fonte histórica.

A história-problema vem romper com essa definição; nela


reconhece-se que é impraticável narrar os fatos tal qual estão
registrados. Para a construção da história- problema o historiador
elege seu objeto de estudo no presente, questionando-o no passado,
e não se anula, mas deixa explícita sua opinião crítica, conceitos,
problemas e hipóteses, explicando os documentos, técnicas e formas
utilizadas.

Na perspectiva da nova história só se compreende o passado se


problematizá-lo com algo do presente. O historiador deve atentar para o
presente, aquilo que o cerca, para buscar respostas e explicações no passado,
“acabando” com essa ideia de história factual, fragmentada. Essa forma de
compreender a história deixa à margem o presente como perspectiva do
historiador.

Compreende-se a partir do exposto que a escola francesa dos Annales


constituiu-se num movimento que atendeu às demandas de seu tempo. De um
tempo que não mais se contentava com uma história sem problematização,
pronta e acabada, que não dava o devido espaço ao indivíduo como ator
46
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

social. Desde a sua formação, o objetivo dos Annales era a construção de


novas perspectivas e abordagens, que sem dúvida revolucionaram a escrita da
história e ampliaram o diálogo da disciplina com outras áreas do conhecimento.

Atividade de Estudo:

1) Faça uma lista das fases presentes nos Annales e destaque as


principais características de cada uma.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

A Micro-História
A historiografia em constante movimento e diálogo com outras áreas do
conhecimento, em especial a antropologia e ciências sociais, renova-se com
certa constância, a partir da construção de diferentes formas de fazer e pensar a
história. Nessa perspectiva, a análise micro-histórica surgiu como uma alternativa
a explicações estruturantes da sociedade, que não levavam em consideração o
estudo do indivíduo como ator social.

Atividade de Estudo:

1) Qual a principal aproximação entre Antropologia cultural e Micro-


história?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Entretanto a tarefa de definir o que é micro-história não é simples e, segundo


o historiador genovês Edoardo Grendi, não teria havido uma micro-história, mas

47
História Cultural

duas, que se distinguiam a partir da construção do seu próprio objeto. Por um


lado, havia uma reflexão em torno da microanálise, que partia da história social,
afirmando a centralidade do estudo das relações interpessoais na investigação
histórica. Por outro lado, uma micro-história “cultural”, que consistia na
interpretação do episódio a partir de sua inserção em um “contexto de natureza
histórico-cultural”. A leitura de um caso de riqueza singular permitiria ilustrar um
problema historiográfico particular e a cultura de uma época. Ou seja, o particular
ligado ao contexto (ESPADA, 2006, p. 366).

Nesse sentido alguns autores defendem a relação dos sujeitos com a cultura,
partindo da interpretação do indício. Entre eles podemos citar Carlo Ginzburg, para
quem a historiografia se configura como hermenêutica ou arte de interpretação
(ESPADA, 2006, p. 366). Há que se considerar ainda que, independente de haver
duas vertentes historiográficas nas quais a micro-história se divide, há pontos
comuns e que poderiam configurar o que se convencionou chamar de projeto
micro-histórico. Giovanni Levi apontou, em 1990, as questões e posições comuns
que davam alguma unidade a esse projeto: a redução da escala, o debate
sobre a racionalidade, a pequena indicação como paradigma científico, o papel
do particular (não, entretanto, em oposição ao social), a atenção à capacidade
receptiva e à narrativa, uma definição específica do contexto e a rejeição do
relativismo (LEVI, 1992, p.159).

O fazer micro-his- Ao se aproximar tematicamente da história das mentalidades, da


tórico baseia-se antropologia, bem como das crenças dos homens e mulheres comuns, a
na interpretação micro-história caminha na direção de um debate historiográfico pautado
da realidade social
nos temas do “vivido”, do cotidiano, da subjetividade e da atenção pela
a partir de seus
próprios termos, história narrativa. Assim, se enfatizarmos seus elementos de coerência
que inclui a nega- com o contexto, ela estaria do lado da nova história intelectual e cultural
ção de modelos (ESPADA, 2006, p. 384).
pré-estabelecidos,
dando ênfase ao O fazer micro-histórico baseia-se na interpretação da realidade
estudo do indi-
social a partir de seus próprios termos, que inclui a negação de
víduo como ator
social – ligado a modelos pré-estabelecidos, dando ênfase ao estudo do indivíduo como
um contexto mais ator social – ligado a um contexto mais amplo.
amplo.
A micro-história nasceu por volta dos anos 70, na Itália, a partir
de experiências historiográficas heterogêneas, apontando deficiências no modelo
macro-histórico. Categorias analíticas baseadas na “realidade social” foram
postas em questão e a ação do indivíduo deixa de ser tratada como mera função
de estruturas. Apesar das diversas formas sob as quais se apresenta, esse campo
de análise possui uma característica comum: a atenção que se dá ao ator social e
ao que está no espaço do “vivido”.

48
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

A proximidade com o objeto de estudo desafia o modelo. Uma história micro


não rejeita a história geral, ao contrário, o contexto é um ponto de chegada, o
resultado da organização dos fatos e das escolhas. A ação individual pode
constituir-se como a exceção do modelo geral e dessa forma questioná-lo em
sua abrangência, ou ainda, a partir das irregularidades e contradições internas,
desvendar por que as coisas mudam, de que forma as “leis” foram construídas. A
coerência entre o micro e o macro é necessária, pois o particular não teria sentido
sem o “universal”, “os problemas em pequena escala do desenvolvimento de uma
comunidade e os problemas em larga escala do desenvolvimento de um país
são inseparáveis. Não faz muito sentido estudar fenômenos comunitários como
se eles ocorressem num vazio sociológico” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 16). O
interesse da pesquisa se conecta com aspectos gerais e o micro é a parte do todo.
Mas esse todo não é uma estrutura estática, pois se constitui a partir das práticas
e relações. E estas não são movidas por forças estruturais que transformam as
escolhas dos indivíduos em meras funções do modelo geral, mas o contrário.

Através do indivíduo é possível entender dinâmicas sociopolíticas e o estudo


de uma pequena comunidade revela conjuntos de parâmetros. Os estudos micro-
históricos nos dão uma consciência aguda do tempo curto que os homens acionam
efetivamente em sua vida, mas também permite desvendar o tempo longo, porque
muito das formas que os atores integram ao seu próprio presente se encontram
em outras épocas e mesmo em outros lugares (BENSA, 1998, p. 63).

Existe a necessidade da construção de um modelo de análise, em que seja


possível identificar as escolhas do historiador. Se a análise micro-histórica se
constitui num modelo a ser construído, este estará pautado na lógica histórica,
na concepção de elasticidade dos conceitos e flexibilidade das categorias de
análise. Deve ser processual, para que se possa perceber como cada situação
é gerada no seu processo e composto pelo jogo (barganha) entre atores, que
ocupam posições determinadas pelos direitos, obrigações e limites. Esses atores
estabelecem estratégias para maximizar seus ganhos, porém o processo não
é previsível, havendo o risco constante e a incerteza. A mobilidade é fruto das
incertezas do processo e a noção de intenção e interesses leva a uma espécie
de “consciência do jogo”. O indivíduo está imerso em relações, interações e
interdependências, ou seja, é relacional.

A descontinuidade entre norma e prática impele a pensar o sistema a partir


do comportamento menos frequente, da exceção, do desvio. Entender como as
coisas mudam, a origem da mudança a partir das exceções, que são também
desafios à ordem, nos permite construir a história a partir do que está à margem.
“Regularidades no comportamento podem ser representadas com relativa
freqüência, como um estado de ordem que emerge das atividades independentes
de múltiplos atores; nossa tarefa é mostrar como a norma é gerada.” (BENSA,
1998, p. 63).
49
História Cultural

Ao operar com escala de observação reduzida, a micro-história contempla,


sobretudo, temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas, enfatizando
as relações estabelecidas pelos indivíduos, geralmente anônimos. “Durante a
vida de cada um aparecem, ciclicamente, problemas, incertezas, escolhas, enfim,
uma política da vida cotidiana cujo centro é a utilização estratégica das normas
sociais” (LEVI, 2000, p. 16). A forma como os atores sociais desenvolvem suas
estratégicas é algo que não se deve deixar perder de vista.

Segundo Giovanni Levi, durante a vida de cada indivíduo aparecem


problemas, incertezas e escolhas e, nessa política do cotidiano, as normas
sociais são utilizadas de forma estratégica. Costumamos observar a sociedade de
longe, atendo-nos aos resultados que muitas vezes são contrários à vontade dos
indivíduos e não dão conta das suas resistências. Nos intervalos entre sistemas
normativos estáveis ou em formação, grupos ou pessoas atuam com estratégias
próprias, capazes de interferirem na realidade política, embora muitas vezes não
sejam suficientes para impedir as formas de dominação (LEVI, 2000, p. 45).

Para Fredrik Barth (BARTH, 1981), é necessário perceber como cada


situação é gerada no seu processo, sendo composto pelo jogo (barganha) entre
atores, que ocupam posições determinadas pelos direitos, obrigações e limites.
Esses atores estabelecem estratégias para maximizar seus ganhos, porém o
processo não é previsível, havendo o risco constante e a incerteza. A mobilidade
é fruto das incertezas do processo e a noção de intenção e interesses leva a
uma espécie de “consciência do jogo”. O indivíduo está imerso em relações,
interações e interdependências, ou seja, é relacional. Nesse sentido o poder não
pode ser separado do campo onde agem forças instáveis e que estão sempre
sendo reclassificadas. “O poder é a recompensa daqueles que sabem explorar
os recursos de uma situação, tirar partido das ambiguidades e das tensões que
caracterizam o jogo social” (LEVI, 2000, p. 33). O motivo pelo qual as pessoas se
associam nem sempre é comum; elas se agrupam por interesses muitas vezes
diferentes, por conveniências. É dessa forma que trajetórias individuais ajudam
a revelar sobre uma experiência coletiva e, ainda, mostram o quanto as grandes
estruturas não submetem as vontades particulares.

Ainda segundo o pensamento de Barth, descontinuidade entre norma e


prática impele a pensar o sistema a partir do comportamento menos frequente,
da exceção, do desvio. Entender como as coisas mudam, a origem da mudança
a partir das exceções, que são também desafios à ordem, nos permite construir a
história a partir do que está à margem.

50
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

Atividades de Estudos:

1) Faça uma síntese do pensamento dos autores no que se refere à


micro-história e dê exemplos presentes em seu cotidiano do que
poderia constituir-se numa análise micro-histórica.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2) Considerando o significado de micro-história abordado no texto,


assinale as alternativas corretas:

(02) Trata-se de uma metodologia que tem por objetivo trazer à tona
trajetórias de vida a fim de anunciar questões mais amplas sobre a
sociedade.
(04) Constitui-se a partir de grande rigor metodológico e tem suas
origens no estruturalismo.
(08) Tem por objetivo o estudo do micro, sem levar em consideração
contextos macro.
(16) Parte do pressuposto de que contextos micro são
fundamentais para a compreensão do macro.
(32) Está centrada na ideia de que o que realmente é importante
na história são os grandes eventos.

O Pós-Colonialismo
Nas décadas de 1980 e 1990 os estudos pós-coloniais ganharam amplitude
em diversas partes do mundo, em especial nas academias dos Estados Unidos,

51
História Cultural

O pós-colonialis- do Caribe, da Europa (ocidental), da Índia e da África. Trata-se de um


mo apresenta-se estudo recente que tem por objetivo o deslocamento do eurocentrismo
como um conjunto presente nas ciências sociais. (BARBOSA, p. 1). O pós-colonialismo
de estratégias apresenta-se como um conjunto de estratégias interpretativas
interpretativas voltadas para a diversidade de práticas culturais que constituem as
voltadas para a
sociedades colonizadas ou saídas da colonização europeia.
diversidade de
práticas culturais
que constituem as A crítica pós-colonial problematiza o processo histórico de
sociedades colo- colonização efetuado pelos europeus e a partir da desconstrução de
nizadas ou saídas textos colonialistas destaca as representações europeias acerca dos
da colonização nativos que viviam nas localidades colonizadas. Ao avaliar o impacto da
europeia.
colonização europeia nas antigas colônias, constrói um contradiscurso
crítico em relação a interpretações culturais eurocêntricas que tenham
como parâmetro as excelências da civilização ocidental sem considerar o lado
obscuro dessa hegemonia. (PRYSTHON, 2004).

As primeiras utilizações do termo pós-colonial pertencem ao domínio da


crítica literária, de onde provêm seus fundadores: Edward Said, Homi Bhabha e
Gayatri Spivak. Em 1978, Edward Said, escritor palestino emigrado nos Estados
Unidos, com seu livro “Orientalismo”, dá origem a polêmicas e debates em torno
do pós-colonialismo. Segundo a teoria de Said, o mundo divide-se em duas
partes, a do colonizador e a do colonizado e o conceito de oriente nada mais é
que uma construção dos ocidentais. Esse pensamento é contestado alguns anos
depois por Homi Bhabha, que em seu livro “Os lugares da cultura” afirma que o
relacionamento entre colonizador e colonizado não é tão evidente e homogêneo,
ao contrário, rico de contradições e ambiguidades, podendo ser analisado a
partir de uma perspectiva psicanalítica, que traz a dimensão inconsciente dessas
relações. Bhabha afirma ainda que os novos “lugares” da cultura já não são as
academias e os centros dos poderes institucionais, mas os interstícios em que
penetram culturas marginais e híbridas. E é nesses novos lugares que é elaborada
a atual reflexão política e filosófica (NEVES, 2009, p. 236).

Spivak, escritora indiana, emigrada nos Estados Unidos, torna-se, com seu
livro “Crítica da razão colonial”, publicado em 1990, uma das estudiosas mais
significativas no panorama dos estudos pós-coloniais e dos estudos femininos.
Para Spivak, o sujeito subalterno não se conhece e não pode falar e ainda menos
o sujeito subalterno feminino, visto pela autora como o símbolo máximo do
esquecimento histórico (NEVES, 2009, p. 237).

A raiz histórica dos estudos pós-coloniais reside no processo de


descolonização concluído nos anos 60 (Portugal representa uma exceção, tendo
concluído o processo em 1975). Ainda que não possua uma metodologia única,
os estudos do pós-colonialismo têm um objeto de investigação definido: estudar

52
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

os confrontos entre culturas que estão numa relação de subordinação, ou seja,


estudar a marginalidade colonial, segundo uma perspectiva espacial, política
e cultural (NEVES, 2009, p.235). Por não possuir uma metodologia única, há
divergências intelectuais em relação à definição do termo pós-colonialismo. Há
os que consideram o termo num sentido mais amplo, sendo “pós-colonial” toda
cultura condicionada pelo processo imperial, desde a colonização até o presente.
E, por autores pós-coloniais, todos aqueles pensadores e ativistas que, desde
essa relação metrópole periferia, tenham enfatizado a experiência da colonização,
uma tomada de posição baseada na tensão com o poder imperial e a ênfase
sobre suas diferenças diante dos pressupostos do poder imperial (BONNICI,
2000, p. 265). Nessa perspectiva, a releitura é utilizada como sendo importante
para recuperar e reavaliar os pensamentos de autores do terceiro mundo como
pertencentes a essa tradição escrita. É o que faz Homi Bhabha ao analisar o
pensamento do ativista negro Franz Fanon (1925-61), intelectual da Frente de
Libertação Nacional (FLN) da Argélia, na década de 1950 (BHABHA, 1998).

Embora reconhecendo a importância da ruptura epistemológica operada


pelos estudos pós-coloniais, não faltam críticas ao seu significado e metodologias.
Uma das críticas refere-se ao fato de os teóricos pós-colonialistas serem
demasiado influenciados pela cultura ocidental, não conseguindo distanciar-se
suficientemente para criar um esquema teórico alternativo. (NEVES, 2009, p.
238).

A teoria pós-colonial tenta abarcar a cultura mundial depois que a experiência


colonial “já passou”, o que parece inevitavelmente controverso quando a condição
colonial, em vários casos, ainda persiste. Portanto, a teoria pós-colonial não
considera um fator fundamental para a maioria dos países “terceiro-mundistas” ou
“pós-coloniais”: o neocolonialismo. (PRYSTHON, 2004, p. 5).

Os estudos pós-coloniais integram-se no panorama dos estudos culturais e


constituem um dos paradigmas da situação global contemporânea. Atualmente os
estudos culturais persistem na afirmação do multiculturalismo, ocupando-se do
estudo dos diferentes aspectos da cultura e dialogando com outras disciplinas,
como a antropologia, a filosofia, a teoria literária, etc. O pós-colonialismo, inserido
nesses estudos, tem um papel central a cumprir para a superação dos paradigmas
eurocêntricos dominantes.

Algumas ConsideraÇÕes
Sem dúvida alguma, todos os temas abordados neste caderno têm um
objetivo comum: tornar mais claro o significado de História Cultural. Embora já

53
História Cultural

A história se faz a tenhamos afirmado no primeiro capítulo ser uma tarefa difícil, em função
partir do cotidia- da diversidade que abarca o conceito de cultura, compreendemos que,
no das pessoas a cada página escrita, nosso objetivo se torna mais concreto.
comuns, a partir
do seu próprio A História Cultural é interdisciplinar e por essa razão não nos
cotidiano e de
basta averiguar somente o campo da história, mas também recorrer à
suas experiências.
Portanto, você, Antropologia, área que nos emprestou sua concepção de cultura tão
caro pós-graduan- alargada, para a qual procuramos um constante ressignificar.
do, não somente
ensina história, Esse caderno não pretende ser um amontoado de palavras que
você vive história, se juntam e formam frases, que por sua vez se juntam e formam
você faz história.
parágrafos. Pretende, sim, ser um material que tenha aplicabilidade na
prática, portanto buscamos ressaltar inúmeras vezes que a história se
faz a partir do cotidiano das pessoas comuns, a partir do seu próprio cotidiano e
de suas experiências. Portanto, você, caro pós-graduando, não somente ensina
história, você vive história, você faz história.

Aproveitamos para anunciar ao final desse capítulo que o próximo se


constitui numa continuidade e que a compreensão das discussões apresentadas
até o momento serve como base para o texto seguinte.

ReFerÊncias
BARBOSA, Muryatan, Santana. O pós-colonialismo como projeto. (mimeo), 2006.
Disponível em: <www.historiaecultura.googlepages.com>. Acesso em: 28 de jun.
2009.

BARTH, Fredrik. Process and form in social life. Selected Essays of Fredrik
Barth. London: Routledge& Kegan Paul, 1981.

BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. São Paulo: Editora Livros do Brasil, 1983.

BENSA, Alan. Da microanálise a uma Antropologia Crítica. In: REVEL,


Jacques. Jogos de Escalas: A experiência da microanálise. Rio de Janeiro,
1998.

BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo: estratégias de leitura. Maringá: UEM,


2000.

BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva,


1992.
54
Capítulo 2 ESTUDOS CULTURAIS E A ESCRITA DA HISTÓRIA

BURKE, Perter (org.). A Escrita da História: Novas Prespectivas. São Paulo:


Editora Unesp, 1992.

BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa


da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, 153 páginas.
Tradução Nilo Odalia.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC,


2002.

ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de


Janeiro: Zahar, 2000.

ESPADA, Henrique. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Trad. Leonor Martinho Simões e


Gisela Moniz. 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

GEERTZ, Clifford. Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

_____. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LEVI, Giovanni. A herança imaterial: Trajetória de um exorcista no Piemonte do


século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

NEVES, Rita Ciotta. Os estudos pós-coloniais: um paradigma da globalização.


Revista Babilônia, n. 67, pp. 231 – 239, 2009. Disponível em: <http://babilonia.
ulusofona.pt/arquivo/revista_6/pdf_rev6/03dossier/01.pdf>. Acesso em: 28 jun.
2009.

PRYSTHON, Ângela. Interseções da teoria crítica contemporânea: estudos


culturais, pós-colonialismo e comunicação. Revista eletrônica e-compós, dez.
1994. Disponível em: <http://www.ppgcomufpe.com.br/arquivos/PUBLICACAO/
PRYSTHON4.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2009.

REIS, José Carlos. A história, entre a ciência e a filosofia. 3. ed. Belo


Horizonte: Autêntica, 2004.

REIS, José Carlos. Tempo, História e Evasão. Campinas: Papirus Editora, 1994.

55
História Cultural

THOMAZ, Omar Ribeiro. A Antropologia e o mundo contemporâneo: cultura


e diversidade. In: LOPES e GRUPIONI. A temática indígena na Escola
Brasileira. MEC/ UNESCO, 1995.

TORRES, Lilian de Lucca. Clifford Geertz e os sentidos da cultura. In: Revista


Leituras da História, n. 19, São Paulo: Editora Escala, 2009. p. 62-63.

56
C APÍTULO 3

A Nova História Cultural

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Apontar autores e temas que influíram no desenvolvimento da nova história


cultural.

 Identificar as diversas abordagens utilizadas pela nova história cultural.

 Perceber a aplicação do conceito de representação e prática cultural no


conhecimento histórico.

 Apresentar recentes discussões sobre as relações interétnicas e a


identidade nacional.

 Propor estratégias para o entendimento das ferramentas da nova história


cultural e sua utilização em sala de aula.
História Cultural

58
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

ConteXtualiZaÇÃo
Caro pós-graduando, neste capítulo observaremos a grande
A Nova História
renovação da História Cultural ocorrida no final da década de 1980. Cultural questio-
A Nova História Cultural questionou os pressupostos teóricos nou os pressu-
predominantes na historiografia da cultura e utilizou pensadores postos teóricos
de outras áreas de conhecimento para criar novas perspectivas de predominantes na
análise. Até meados da década de 1980 era visível o predomínio historiografia da
cultura e utilizou
de estudos de adeptos da escola dos Annales e do marxismo. No
pensadores de
entanto, a descoberta, pelos historiadores, de autores que haviam outras áreas de
sido menosprezados revigorou os questionamentos historiográficos. conhecimento
Veremos em seguida como Norbert Elias, Michel Foucault e Pierre para criar novas
Bourdieu estremeceram a bases teóricas da história da cultura perspectivas de
sedimentadas naquele momento. análise.

Essa renovação resultou na reflexão acerca de alguns conceitos presentes


em nossa sociedade, com conotação extremamente política e social. Trata-
se das discussões acerca da identidade e etnicidade. Considerando que a
história cultural está comprometida em compreender os aspectos relacionados
à cultura das sociedades humanas, tornou-se imprescindível para esse campo
historiográfico abarcar o conceito de diferença, fator determinante na construção
do que conhecemos por diversidade étnica.

Finalizamos esse capítulo fazendo um breve apontamento sobre o papel da


escola, da educação no que tange as questões da diversidade cultural. Esperamos
que, após a leitura do capítulo, seja possível compreender as discussões acerca
da Nova História Cultural, bem como de conceitos relacionados ao nosso cotidiano
e que dizem respeito às relações sociais estabelecidas entre pessoas de culturas
diferentes ou não.

Os Estudos Culturais: Autores e


Temas
Aprendemos no capítulo anterior que a aproximação da Antropologia
com a História promoveu uma renovação nos problemas enfrentados pelos
historiadores no que se refere ao estudo da cultura. Estudamos ainda que as
problemáticas levantadas pela Escola dos Annales levaram a uma transformação
das preocupações dos historiadores. A partir do final da década de 1980, com
a influência mais direta do antropólogo Cliffort Geertz, surgiu um termo para
representar essa mudança no paradigma da História: a Nova História Cultural.

59
História Cultural

Atividade de Estudos:

1) Thomas Kuhn fala sobre as estruturas das revoluções


científicas, das mudanças de um modelo de prática normal
da qual se desenvolve uma pesquisa científica, ou seja, uma
mudança de “paradigma”. Poderíamos refletir com nossos
alunos, por exemplo, que as observações astronômicas de
Galileo Galilei no século XVII provocaram uma “revolução” na
ciência com a emergência de um “novo paradigma” científico.
Assim poderíamos qualificar também a Nova História Cultural.
Reflita sobre outros momentos do desenvolvimento da
ciência: em que marcos poderíamos afirmar que ocorreu uma
transformação de paradigma?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

A década de 1980 marcou o recuo de uma posição cientificista herdada


do século passado que via no progresso e na civilização Ocidental o sentido da
explicação histórica. Jacob Burckhardt e Johan Huizinga, cada um a sua maneira,
representavam essa posição, tal como vimos no primeiro capítulo. A partir da
crise de paradigma que se processou na década de 1980, deixa de ter sentido a
existência de uma teoria geral de interpretações dos fenômenos sociais,
A Nova História e ocorre, consequentemente, uma segmentação dos conhecimentos
Cultural questio-
das ciências humanas e uma multiplicação dos objetos, problemas
nou os pressu-
postos teóricos e sentidos para o estudo da história. Essa é a chamada “crise dos
predominantes na paradigmas”. (PESAVENTO, 1995, p. 10).
historiografia da
cultura e utilizou A expressão Nova História Cultural surgiu no final da década de
pensadores de 1980 para designar uma transformação dos conceitos e problemáticas
outras áreas de
da historiografia cultural. Em 1989, a historiadora estadunidense Lynn
conhecimento
para criar novas Hunt organizou a publicação de uma obra intitulada “Nova História
perspectivas de Cultural”, que tinha o intuito de apresentar as novas problemáticas que
análise. surgiram naquele momento.

60
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

A partir de fins da década de 1950 a História Social passou a assumir um papel


mais importante nas temáticas desenvolvidas pela historiografia. Duas posições
interpretativas foram criticadas: a escola dos Annales e o marxismo. Entretanto, não
houve uma ruptura completa. Tanto os Annales quanto o neomarxismo serviram para
impulsionar os questionamentos da nova história da cultura.

Lynn Hunt demonstra que o “paradigma” dos Annales enfatizava as


abordagens seriais, funcionais e estruturais do entendimento da sociedade
como um organismo total e integrado. “O paradigma da Annales constituiu uma
indagação sobre como funciona um dos sistemas de uma sociedade, ou sobre
como funciona toda uma coletividade em termos de suas múltiplas dimensões
temporais, espaciais, humanas, sociais, econômicas, culturais e circunstanciais”
(HUNT, 1992. p. 3).

Na França, a década de 1960 marcou a ascensão de uma “história vinda de


baixo” através dos escritos de George Rudé e Albert Souboul sobre as classes
populares e o papel do sans-cullotes na Revolução Francesa. Na Inglaterra,
Edward P. Thompson desenvolveu estudos sobre a classe operária que tiveram
grande impacto sobre os historiadores marxistas. Thompson ressignificou o
conceito de cultura para o marxismo. Sobre seu impacto e importância falaremos
em seguida.

Em 1989, no momento em que Lynn Hunt escrevia a apresentação da obra


sobre a Nova História Cultural, começava-se a se processar uma difusão dos
estudos, tanto de adeptos dos Annales, quando dos marxistas, de História da
Cultura. Essa retomada da História Cultural surgiu como resposta à expansão do
domínio da “cultura” e à ascensão do que passou a ser conhecido como “teoria
cultural”; em outras palavras, ocorreu uma maior preocupação com os conceitos.
(BURKE, 2008, p. 69).

O “novo paradigma cultural” foi impulsionado pela influência de uma série de


pensadores, não necessariamente ligados à história, que fizeram a historiografia
questionar a forma como estavam sendo problematizadas determinadas
temáticas. Você já viu anteriormente que um desses autores foi o antropólogo
Clifford Geertz, mas além de Geertz poderíamos destacar ainda o sociólogo Pierre
Bourdieu e sua reformulação do conceito marxista de “cultura” e o filósofo Michel
Foucault, com obras sobre a loucura, os organismos estatais e a “microfísica
do poder”. Mais adiante observaremos um pouco mais detalhadamente o papel
desses autores para a transformação de paradigma na História Cultural.

61
História Cultural

Atividade de Estudos:

Caro pós-graduando, leia atentamente o trecho escrito pela


historiadora estadunidense Lynn Hunt:

Os historiadores que trabalham com a cultura não devem deixar-


se desanimar pela diversidade teórica, pois acabamos de entrar
numa nova e extraordinária fase em que as outras ciências
humanas (incluindo-se aí, em especial, os estudos literários, mas
também a antropologia e a sociologia) estão nos redescobrindo.
(HUNT, 1992, p. 29)

1) Procure lembrar o que você aprendeu até aqui e faça uma


interpretação do trecho da historiadora Lynn Hunt, pensando no
significado da mudança de paradigma da História Cultural.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

a) Marxismo e História Cultural

O marxismo teve uma relação bastante problemática com o termo cultura.


Karl Marx analisava as bases ideológicas da sociedade a partir da ideia de base
e superestrutura, em que a base representaria os sistemas de produção e a
superestrutura, desenvolvida a partir da base, seria as ideologias e instituições
sociais organizadas a partir do modo de produção. Em outras palavras, diríamos
que a base seria a economia, em suas noções micro e macro, que regem todas as
instâncias da vida social e a superestrutura – cultura, política – estaria subordinada
pelas atividades econômicas.

Devido a essa noção de Marx, que privilegia as relações econômicas, a


cultura, para os marxistas, foi posta em segundo plano. Somente a partir das
décadas de 1950 e 1960 o marxismo promoveu uma renovação em suas bases
metodológicas através de uma “escola inglesa marxista”, que contava com nomes
como Christopher Hill, Raymond Williams e Edward Thompson. Estes dois últimos

62
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

autores, em especial, voltaram-se para o estudo da cultura sob um novo prisma,


abandonando o economicismo dos marxistas ortodoxos e analisando a cultura de
uma forma mais ampla e dinâmica.

Edward Thompson ocupou lugar central dentro das correntes Edward Thomp-
dos neomarxistas ingleses introduzindo inovações nos planos da son ocupou lugar
teoria, do método, da temática e das fontes a serem utilizados pela central dentro
história. Thompson rejeitou a explicação da base e superestrutura e das correntes
dos neomarxistas
dedicou-se ao estudo do que ele chamava “mediações culturais”. Em
ingleses introdu-
1963 publicou A formação da classe operária inglesa, em que definiu o zindo inovações
conceito de “consciência de classe”. Essa consciência seria a maneira nos planos da
pela qual as experiências das relações produtivas são manipuladas teoria, do método,
em termos culturais: incorporadas em tradições, sistemas de valores, da temática e das
ideias e formas institucionais. O livro, no entanto, não teve uma fontes a serem
utilizados pela
boa recepção entre os marxistas que o acusaram de “culturalista”,
história.
ou seja, por colocar ênfase nas experiências e nas ideias, e não
nas duras realidades econômicas, sociais e políticas. Apesar das críticas, a
obra de Thompson exerceu, naquele momento, enorme influência entre jovens
historiadores, elevando o papel da cultura nos estudos marxistas.

Para saber mais sobre Edward Thompson, leia:

MÜLLER , Ricardo Gaspar. Razão e Utopia: Thompson e a História.


Disponível em: <http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/
volume01/vol6_rsm5.htm>. Acesso em: 10 set. 2009.

b) Autores e temas

Como você viu, o desenvolvimento da Nova História Cultural foi marcado


pela influência de uma série de autores, de diferentes áreas, que moldaram novos
temas e formas de analisar os acontecimentos sociais. Muitos poderiam ser esses
autores. No entanto, escolhemos alguns que, segundo os principais estudos sobre
o tema, representam os mais significativos para o estudo da História Cultural. São
eles: Norbert Elias, Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Você verá a seguir que,
curiosamente, duas dessas influências não foram reconhecidas imediatamente à
publicação de suas obras.

63
História Cultural

• Norbert Elias

Nobert Elias foi


um sociólogo Nobert Elias foi um sociólogo que influenciou o desenvolvimento
que influenciou o da nova História Cultural através de seus estudos sobre “cultura” e
desenvolvimento “civilização”. Em 1939, publicou pela primeira vez, na Suíça, O processo
da nova História civilizador, que despertou pouco interesse, mas a partir da década de
Cultural através 1960 teve influência cada vez maior sobre antropólogos e historiadores
de seus estudos
culturais como Roger Chartier. O livro de Elias sofreu inúmeras críticas,
sobre “cultura” e
“civilização”. mas passou a ter mais importância nos historiadores de língua inglesa
durante esse período.

O processo civilizador é, de maneira geral, uma obra de história cultural. Nela


Elias, influenciado por Freud e Huizinga, aborda “a história dos modos à mesa, a
fim de demonstrar o desenvolvimento gradual do controle sobre as emoções nas
cortes da Europa Ocidental, ligando ao que ele chamou de “pressões sociais pelo
autocontrole” entre os séculos XV e XVIII à centralização do Estado e à submissão
ou domesticação de uma nobreza guerreira.” (BURKE, 2008. p. 21.) Elias utilizou o
termo “civilização” em detrimento ao de “cultura”, mas contribuiu para o estudo do que
hoje é descrito como a “cultura do autocontrole”.

• Michel Foucault

Outro autor de grande destaque na mudança de paradigma sofrida pela


história cultural foi o filósofo francês Michel Foucault. Enquanto Elias enfocava
o autocontrole, Foucault prestava atenção no controle sobre os corpos exercidos
pelas autoridades sociais. Foucault publicou sua primeira obra importante
em 1961. O seu livro História da loucura, abrangendo os séculos XVI a XVIII,
posicionou-se a margem dos pressupostos da escola dos Annales e do marxismo.
Sua obra utilizava uma abordagem alternativa na nova história da cultura,
rompendo com os antigos métodos sociais e históricos.

A reação dos A reação dos historiadores à obra de Foucault foi, por um longo
historiadores à período, conflituosa. Ele, como filósofo, não gozava da simpatia dos
obra de Foucault historiadores por “sua rejeição à história positivista, sua linguagem
foi, por um longo
codificada e obscura e por sua rejeição aos críticos como “espíritos
período, conflitu-
osa. menores”, “burocratas e policiais”, que em nada contribui para
transpor o abismo entre ele e os historiadores acadêmicos”. (O´BRIEN,
1992, p. 36 – 37). Em seu livro sobre a Arqueologia do conhecimento, Foucault
disse: “não sou um historiador profissional – mas ninguém é perfeito”. Essa ironia
era uma crítica aos historiadores que apontavam a falta de método, menosprezo
dos dados e simplificações excessivas de suas obras. Um historiador francês,
Jacques Léonard, comparou Foucault a um “cavaleiro bárbaro” que galopava

64
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

irresponsavelmente pelos domínios da história. A resposta de Foucault não foi


menos irônica: “o virtuoso cavaleiro da exatidão [...] o inconsolável erudito que
chora sobre seu pedacinho de terra que acabou de ser saqueado pelos bárbaros:
exatamente como se, depois de Átila, a relva nunca mais voltasse a crescer”
(apud O´BRIEN,1992, p. 40).

A ideia central de Foucault era de que para compreender a cultura


A originalidade e
era necessário estudar o jogo de elaboração do discurso, constitutivos a fertilidade da
daquilo que se chamaria o real. Era necessário, segundo ele, chegar História Cultural
fundo nas “redes” ou estruturas intelectuais. Ele chamou atenção recente se devem,
ainda para as descontinuidades e “rupturas” dos momentos históricos, em grande medi-
como no caso da “invenção da loucura” ou em relação “às palavras e da, às seminais
idéias de Michel
às coisas” no século XVII. De fato, o que se apresenta atualmente é
Foucault.
a percepção de que a transcendência da obra de Foucault entre os
historiadores culturais é muito grande. A originalidade e a fertilidade da História
Cultural recente se devem, em grande medida, às seminais idéias de Michel
Foucault.

O site que segue, da Universidade de Brasília, traz textos


completos de Foucault em português, além de artigos, links e
biografia.

Espaço Michel Foucault: http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/

• Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu desenvolveu conceitos e teorias que tiveram grande impacto


no desenvolvimento de uma abordagem renovada para a História Cultural. Filósofo
de formação, não escreveu sobre história, embora possuísse bom conhecimento
do assunto. Como afirma Peter Burke: “os conceitos e teorias que produziu em
seus estudos, primeiro sobre os berberes e depois sobre os franceses, são de
grande relevância para os historiadores culturais. Incluem o conceito de “campo”,
a teoria da prática, a ideia de reprodução cultural e a noção de “distinção”,
(BURKE, 2008. p. 76.).

A noção de “campo”, entendida como campo intelectual, científico, etc.,


significa um território autônomo que se estabelece e constrói suas próprias
convenções culturais. No entanto, esse conceito não teve muito apelo entre os
historiadores.
65
História Cultural

A maior contri- O conceito de Pierre Bourdieu que teve maior impacto entre os
buição de Pierre historiadores foi a sua “teoria da prática”, especialmente a noção de
Bourdieu aos “habitus”. Através dessa ideia, Bourdieu analisou as práticas cotidianas
historiadores foi em termos de improvisação sustentada em uma estrutura de esquemas
lhes dar ferramen-
impostos pela cultura tanto na mente quanto no corpo. Outros conceitos
tas não só para
descrever, mas importantes de Bourdieu foram as ideias de “reprodução cultural”
para analisar a e “capital cultural” ou “capital simbólico”. Este último, emprestado
história. das ciências econômicas, passou a integrar estudos de sociólogos,
antropólogos e alguns historiadores. De maneira geral, a maior
contribuição de Pierre Bourdieu aos historiadores foi lhes dar ferramentas não só
para descrever, mas para analisar a história.

Atividade de Estudos:

1) Você estudou sobre a transformação de paradigma ocorrida


na História Cultural nos anos de 1990. Observou ainda a
importância de pensadores para essa mudança. Agora elabore
uma pequena síntese da importância dos autores Norbert Elias,
Michel Foucault e Pierre Bourdieu para a História Cultural.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Das Mentalidades À RePresentaÇÃo


O termo mentalidades surgiu nos primórdios da Escola francesa dos Annales,
no entanto, na primeira geração dos Annales a história das mentalidades era
apenas uma faceta da história social ou econômica que se pretendia total. Existiam
apenas a história tradicional e a história social que, por sua vez, englobavam a
história econômica e a cultural.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a história econômica foi privilegiada


pela segunda geração da escola dos Annales. O contexto da França depois dos
abalos da guerra levou uma geração de historiadores a interessar-se pelas forças
socioeconômicas, que moviam a industrialização e o consumo. A partir dos anos

66
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

de 1960 e 1970, verifica-se uma volta ao estudo das “mentalidades” na França e


um descenso dos estudos de caráter socioeconômicos.

Essa nova geração da escola francesa buscava novas fontes para estudar as
mentalidades das sociedades do passado. No entanto, diferentemente da primeira
geração, a história das mentalidades passa a ser um fenômeno significativo na
historiografia. Agora, o termo mentalidades não designa apenas um campo de
interpretação da cultura, mas um conceito difundido nos meios de comunicação.
Essa história foi associada, então, ao surgimento de uma “nova história”.

No entanto, a dificuldade de encontrar uma definição precisa A dificuldade de


para o termo mentalité levou alguns historiadores a criticá-la enquanto encontrar uma
marco teórico para a História Cultural. Lynn Hunt destaca que a história definição precisa
mais ampla das mentalités foi criticada pela ausência de um enfoque para o termo men-
claro. François Furet denunciou que essa falta de definição estimulava talité levou alguns
historiadores a
uma “busca infinita de novos temas”, cuja escolha era regida apenas
criticá-la enquanto
pelos modismos do momento. Do mesmo modo, Robert Darton lançou marco teórico para
a acusação de que “apesar de uma enxurrada de discursos sobre o a História Cultural.
método, os franceses não elaboraram uma concepção coerente de
mentalités enquanto campo de estudo.” (HUNT, 1992, p. 12.). Segundo Sandra
Pesavento:

A mentalidade era uma maneira de ser, um conjunto de valores


partilhados, não racionais, não conscientes e, de uma certa
forma, extra classe. Falava-se de permanências mentais e de
sentimentos que atravessavam épocas e culturas, partilhados
por diferentes extratos sociais, mas sem que houvesse um
trabalho de aprofundamento teórico do conceito. (PESAVENTO,
2008, p. 31).

Apesar da indefinição teórica, a história das mentalidades possuía a


vantagem de trabalhar com uma ideia mais dinâmica sobre o conceito de “classe
social”. Investia na diferença e não na luta de classes. Entretanto, se o conceito
de mentalidade permanecia uma incógnita para os historiadores, isso não impediu
que a historiografia francesa desenvolvesse uma reflexão mais aprofundada
das “representações coletivas”. Roger Chartier, um dos críticos do conceito de
mentalidades, demonstrou que a influência dos Annales permanecia viva, mas
que necessitava de uma reformulação que se adaptasse aos novos problemas
historiográficos.

Representações Coletivas e Identidades Socias

67
História Cultural

Roger Chartier afirma que “as representações coletivas [devem ser vistas]
como as matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social”. Ele
apresenta as representações coletivas como um retorno a Marcel Mauss e Emile
Durkheim e que processa, “sem dúvida melhor que o conceito de mentalidade”, as
modalidades das relações sociais.

De início, o trabalho de classificação e de recorte que produz configurações


intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída
pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas
que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria
de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim,
as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais “representantes”
(instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo
a existência do grupo, da comunidade ou da classe. [...] [Nossa perspectiva] quer
compreender a partir das mutações no modo de exercício do poder (geradores
de formações sociais inéditas) tanto as transformações das estruturas da
personalidade quanto as das instituições e das regras que governam a produção
das obras e a organização das práticas.

Fonte: CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados,


1991, vol.5, n.11, pp. 173-191. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0103-40141991000100010&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 set. 2009.

Etnicidade e Identidade
As diferenças culturais cada vez mais assumidas em nossa sociedade
demandam uma reflexão em relação a alguns conceitos. Se há pouco tempo
era comum a utilização de raça para definir diferenças em relação aos grupos
humanos, atualmente existem questionamentos em relação ao termo que, embora
ainda seja utilizado, implica a noção de algo definitivo e puramente biológico,
sendo também a origem do que chamamos de racismo, conceito presente em
nosso cotidiano, infelizmente.

Caro pós-graduando, você sabe o que significa o termo


racismo? Segundo o dicionário Aurélio (1997), é a doutrina que
sustenta a superioridade de certas raças; qualidade, sentimento ou
ato de indivíduo racista. E quem será esse indivíduo? Dificilmente
as pessoas se assumem com tais posturas. Na maioria das vezes
atitudes racistas são negadas e o ocultamento desse grave problema

68
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

social torna ainda mais dificil a sua solução. Agora reflita e registre:
quais os tipos de racismo existentes na sociedade brasileira? Quais
suas origens?

Numa perspectiva voltada para a cultura, atualmente tem-se utilizado o


conceito de etnia, pois este não pressupõe algo inato. É um fenômeno puramente
social, constituído e reproduzido ao longo do tempo, possibilitando a assimilação,
por parte do indivíduo, dos estilos de vida, normas e crenças de sua comunidade.

A etnicidade é fator central para a construção da identidade individual ou


coletiva, já que pressupõe uma relação com o passado, através das práticas
culturais, não sendo, portanto, estática – ao contrário, transforma-se e se adapta.
É nesse sentido que podemos falar de uma identidade étnica. Definimos, portanto,
como grupo étnico a unidade que engloba os indivíduos definidos através de uma
herança cultural comum.

Em se tratando da definição de identidade, recorremos a Stuart Hall, quando


diz que:

[...] realmente algo formado, ao longo do tempo, através


de processos inconscientes, e não algo inato, existente na
consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo
‘imaginário’ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece
sempre incompleta, está sempre em ‘processo’, sempre
‘sendo formada’ (HALL, 2005, p. 38).

Para Hall, o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos.


Portanto, a identidade é definida historicamente e não biologicamente (Hall, 2005,
p. 08). Sugere, dessa forma, a utilização do termo identificação, já que se constitui
num processo em andamento.

A identidade cultural se constitui tendo em vista um contexto e


é caracterizada por relações de força. Segundo Kabengele Munanga,
podemos definir três tipos de identidades com origens diferentes:

• A identidade legitimadora: é elaborada pelas instituições


dominantes da sociedade, a fim de estender e racionalizar sua
dominação sobre os atores sociais;

• A identidade de resistência: é produzida pelos atores sociais

69
História Cultural

que se encontram em posição ou condições desvalorizadas ou


estigmatizadas pela lógica dominante;

• A identidade-projeto: quando os atores sociais, com base no


material cultural a sua disposição, constroem uma nova identidade
que redefine sua posição na sociedade e consequentemente se
propõem a transformar o conjunto da estrutura social (MUNANGA,
2009).

A identidade cultu- Em termos naturais, biológicos e culturais, as comunidades


ral, portanto, pode buscam manter suas características, hábitos e costumes, ou seja,
ser entendida sua “identidade”, com a intenção de evitar a descaracterização de sua
como um processo
cultura. As identidades, como foram construídas, devem ser vistas
de incorporação
de conhecimentos dependentes do contexto social e político, pois este exerce papel
e da cultura do central na sua consolidação, sendo fortemente marcado por relações
local onde se de poder.
vive. A etnicidade,
com um signifi- A identidade cultural, portanto, pode ser entendida como um
cado puramente
processo de incorporação de conhecimentos e da cultura do local onde
social, refere-se
às práticas e às se vive. A etnicidade, com um significado puramente social, refere-se às
visões culturais práticas e às visões culturais de determinada comunidade de pessoas e
de determinada que as distinguem das outras, como a língua, história, religião, hábitos,
comunidade de etc.
pessoas e que as
distinguem das
As culturas nacionais representam uma das principais fontes de
outras, como a
identidade, sendo a nação uma entidade política e um sistema de
língua, história,
representação cultural. Em se tratando do Brasil, segundo Marilena
religião, hábitos,
etc. Chauí, cada um de nós experimenta no cotidiano a forte presença de
uma representação homogênea que os brasileiros possuem do país e
de si mesmos (CHAUÍ, 2000).

Uma suposta identidade nacional foi criada a partir de um mito fundador,


ou seja, um vínculo que todos nós, brasileiros, temos com o passado como
origem. Esse vínculo concentra-se em 1500, no “descobrimento” do Brasil
pelos portugueses. Da concepção de nação, faz parte o território, a língua, a
religião e a raça, que funcionam como elementos unificadores. A identidade
não pode ser construída sem a diferença, portanto, na ideologia do caráter
nacional brasileiro, a nação é formada pela mistura de três raças – índios,
negros e brancos –, e a sociedade mestiça desconhece o preconceito racial,
pois convive de forma harmoniosa e cordial. Será? A imagem positiva de
uma unidade fraterna por muito tempo nos silenciou, evidenciando a falta de

70
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

respeito à diferença e invisibilizando a desigualdade (SBRAVATI; DANTAS,


2009).

Atividades de Estudos:

1) De acordo com a discussão exposta até o momento, aponte as


relações existentes entre etnia e identidade.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2) As fronteiras existentes no Brasil não são somente geográficas,


referem-se também à classe social e etnia. Dê exemplos que
representem essas fronteiras.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

3) “[..] Milhões de pessoas esquecem seus problemas por ao menos


90 minutos quando é tempo de copa do mundo e se orgulham
de ser campeão do mundo no futebol, mesmo que seja campeão
também em desigualdade social. O futebol, assim como o
Carnaval, de alguma maneira faz parte da tal identidade brasileira.
Rico ou pobre, somos o país do futebol e do povo que canta,
dança e é feliz” (SBRAVATI; DANTAS, 2009).

Para você, o que é ser brasileiro? Como você se sente em época


de copa do mundo?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

71
História Cultural

A ideia de identidade não é estática. Ela pode ser inventada


e reinventada de acordo com o momento histórico. Atualmente
o discurso da identidade está muito difundido: identidade afro-
descendente, identidade homossexual, identidade feminista, etc. A
existência de diversas identidades exalta as diferenças entre grupos,
mas homogeneíza os indivíduos dentro de um mesmo grupo, muitas
vezes excluindo quem se comporta de forma diferente (SBRAVATI;
DANTAS, 2009).

No senso comum tem-se uma ideia de que, por vivermos num país composto
por diferentes etnias, estas coexistem de forma democrática, num sistema de
igualdade de possibilidades. O mito da democracia racial surge para esconder
o racismo existente em nossa sociedade. Ao nos considerarmos uma nação
sem preconceitos, em raros momentos nos questionamos sobre o significado
dessa palavra e suas implicações na vida de milhões de brasileiros. Como
resolver um problema considerado inexistente? Avançamos nessa discussão e
os estudos historiográficos nos mostram isso, porém em muitos momentos as
análises de pesquisadores acabam não sendo difundidas para toda a população.
Enquanto certas questões já estão superadas na universidade, continuam sendo
reproduzidas no cotidiano de muitas pessoas que não têm acesso a essas
informações (SBRAVATI; DANTAS, 2009).

A representação de que vivemos num país onde se convive


pacificamente com as diferenças foi em grande medida reforçada
por Gilberto Freyre, sociólogo, na década de 1930, que publicou
um livro chamado “Casa Grande e Senzala”. Nesta obra dizia que a
escravidão no Brasil foi menos violenta, sendo composta por senhores
bons e escravos submissos, havendo uma relação harmoniosa entre
explorados e exploradores. As coisas não aconteceram da maneira
como pensava Gilberto Freyre, pois a violência e o processo de
exclusão pelo qual passaram as populações afrodescendentes
escravizadas se refletem hoje em dia nos índices econômicos de
nosso país, que denotam o quanto a imensa desigualdade social
existente está relacionada com a questão étnica (ou, como outros
diriam, racial).

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala; formação da família brasileira


sob o regime da economia patriarcal. 27 ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.

72
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

Atividades de Estudos:

Observe atentamente as imagens a seguir e reflita:

Figura 4 – Iconografia Debret

Fonte: Disponível em: <http://galeriaphotomaton.blogspot.com/2008/04/


debret-e-o-brasil.html>. Acesso em: 11 jul. 2009.

1) Quais as relações possíveis de serem estabelecidas com a nossa


sociedade atual?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2) Em que medida imagens como as representadas abaixo


contribuíram para a construção da “identidade nacional” existente
hoje em nosso país?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

73
História Cultural

TraBalHando as DiFerenÇas
Diferença, uma palavra que constitui a base de muitos conflitos, desencontros,
incompreensões. Palavra demasiadamente humana, e de natureza inatingível
para nosso olhar tão etnocêntrico e acostumado a posicionar-se somente sobre
nós mesmos. A diferença constitui os seres humanos, divide-os em grupos, dá-
lhes identidade. Aliás, a formação de uma identidade só é possível porque existe
a diferença.

A escola constitui o lugar essencial e privilegiado, onde se desenvolve


o debate sobre a diversidade cultural, sendo a questão da identidade muito
importante para compreender os problemas da educação. Questões como
cidadania e democracia devem ser tratadas considerando as diferenças culturais
existentes entre os povos (inclusive os que compõem uma mesma escola, uma
mesma sala de aula).

Cada localidade deve formular seus conteúdos de acordo com as


necessidades regionais. O grande problema é quando tomamos modelos que
se distanciam de nossa realidade, como durante muito tempo aconteceu e
infelizmente ainda acontece com a disciplina de história. Ao nos utilizarmos
de uma história oficial com cunho eurocêntrico, excluímos a maior parte das
pessoas que fazem parte da formação cultural de nosso país, impossibilitando a
construção de uma autoidentificação positiva, fazendo acreditarem não ser sua
cultura importante, ou ainda causando o total desinteresse por uma disciplina
pouco aproximada do que realmente faz sentido.

As discussões presentes na historiografia, referentes à cultura, possibilitaram e


vêm possibilitando uma mudança de postura frente à disciplina, mostrando que as
palavras de Ferreira Gullar representam um sentido para a história:

E a história não se desenrola apenas nos campos de batalhas


e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos
quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas
casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos
namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia.
Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e
injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e
só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas
e as coisas que não têm voz. (SANTOS, 2002, p. 89).

Os processos identitários são ligados à história da humanidade, que não se


constitui somente do que é oficial, dos grandes feitos, dos grandes líderes. Os
professores têm o dever de ensinar aos alunos as contribuições dos diferentes
grupos culturais na construção da nação, ensinar o respeito, aceitação e
admiração pela cultura do outro, mostrando que o estranhamento é gerado pelo

74
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

desconhecido, assim como o preconceito. É necessário estimular nos alunos o


pensamento crítico e a percepção de que, para o outro, também somos o outro.
Valorizar as histórias de vida de nossos alunos e suas experiências poderá ser
fator determinante para a construção de uma identidade positiva de si mesmo.

Para tanto, deve-se reconhecer a diversidade cultural, relativizando o saber


e a memória nacional preservada na forma de livro, na forma de obra de arte,
de monumentos, de arquivo. Tudo isso é importante, mas só ganha sentido
democrático quando recriamos esse saber para um discurso, uma fala, uma
ação, vinculados a um projeto educacional aberto ao enraizamento comunitário
(TRINDADE, 2002, p. 21). Tem que entrar na dimensão da escola a dimensão do
cotidiano, do território. Não podemos esquecer a importância do miúdo, do oral,
do dia a dia, a importância do saber do mais velho. (TRINDADE, 2002, p. 28).

Às vezes pode parecer difícil nos desprendermos de velhas Nossa história não
roupagens, mesmo que estas não sirvam mais. Mas quando inovamos, é constituída por
mudamos a perspectiva, desistimos de incorrer em erros nos quais uma sequência
já estamos acomodados, percebemos vida em nossa prática e esta de fatos lineares,
ganha então seu sentido literal de ação. Passamos a nos sentir atores, mas sim pelo
modo como os
agentes de nossas vidas e capazes de contribuir com tantas outras
diferentes povos
vidas. Em partes esse é o ofício do historiador-professor, do professor- se organizaram e
historiador. Dar importância a detalhes mínimos e que fazem uma viveram.
enorme diferença. Não deixar que os grandes feitos de “pequenos”
homens se apaguem no tempo. Nossa história não é constituída por uma
sequência de fatos lineares, mas sim pelo modo como os diferentes povos se
organizaram e viveram.

Algumas ConsideraÇÕes
Neste capítulo vimos como os historiadores franceses dos Annales e os
neomarxistas trabalhavam, do final dos anos de 1960 aos anos de 1980, com
uma história social que avançava para os domínios do cultural, procurando ver
como as práticas e experiências, sobretudo de homens comuns, traduziam-
se em valores, ideias e conceitos sobre o mundo. Apesar de os neomarxistas
permanecerem ligados às teorias de Marx e que a historiografia francesa, herdeira
dos Annales, não se definissem metodologicamente, houve uma transformação
dos historiadores ante os problemas historiográficos.

Essa crise de paradigma marcou todas as vertentes historiográficas. Com


as incorporações de novas idéias vindas de outros campos de conhecimento
como antropologia, sociologia e filosofia, nasceu uma Nova História Cultural. Essa

75
História Cultural

corrente caracterizou-se mais pela ausência de metodologia do que pela definição


de um modelo a seguir. Sua maior contribuição foi a de introduzir as reflexões de
Michel Foucault e Pierre Bourdieu nos estudos históricos da cultura e ampliar,
enormemente, os campos de atuação da História Cultural.

Outra contribuição muito importante da Nova História Cultural foi a ênfase


nas discussões acerca da diversidade cultural, que resultou numa apropriação
mais política do conceito de identidade. Além disso, uma reflexão crítica sobre o
conceito de raça e suas implicações negativas no cotidiano de muitas populações
excluídas, deu espaço a utilização do termo etnia. Este não tem a intenção de ser
um mero substitutivo do termo raça, mas sim, atrelado a ideia de identidade ter
um significado puramente social, referindo-se às práticas e às visões culturais de
determinada comunidade de pessoas.

A valorização de todas as culturas, bem como a inclusão de populações


historicamente excluídas é tema presente neste século XXI, se já não antes. Com
a intenção de contar a história a partir da perspectiva dos “vencidos”, objetivamos
uma história que abarque diferentes visões de mundo.

ReFerÊncias
ARIÈS, Philippe. A história das mentalidades. In: LE GOFF, Jacques. A história
nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

BURKE, Peter. O que é História Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

_____. Unidade e variedade na história cultural. In: _____. Variedades de


história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 233-267.

CASTELLS, Manuel. Le Pouvoir de l’Identité. Paris: Fayard, 1999.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. (trad.


port.) Lisboa: DIFEL, 1990.

DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e


Natalie Davis. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. (trad.) São Paulo:
Martins Fontes, 1992.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1993. 2 v.

76
Capítulo 3 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio, 2, ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro (RJ): Forense


Universitária, 1987.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo;


Perspectiva, 2000.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu


da Silva, Guaracira Lopes Touro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. (trad.) São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MUNANGA, Kabengele. Diversidade, etnicidade, identidade e cidadania. Palestra


proferida no 1º Seminário de Formação Teórico Metodológica-SP. Dosponível em:
<http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/05diversidade.pdf>. Acesso em: 11
ago. 2009.

O´BRIEN, Patricia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn. A


Nova História Cultural. (trad.) São Paulo: Martins Fontes, 1992.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003.

SBRAVATI, Daniela; DANTAS, Jéferson. Dialogando com a História.


Florianópolis: Sopphos, 2009.

THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1987.

TRINDADE, Azoilda L. da; SANTOS, Rafael dos (orgs). Multiculturalismo mil e


uma faces da escola. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

77
História Cultural

78
C APÍTULO 4

História Cultural no Brasil

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Historicizar o processo histórico de desenvolvimento dos estudos culturais no


Brasil.

 Apontar novas perspectivas da história cultural no Brasil.

 Organizar os campos de investigações existentes hoje no Brasil.

 Articular as novas tendências da historiografia no processo de ensino-


aprendizagem.
História Cultural

80
Capítulo 4 HISTÓRIA CULTURAL NO BRASIL

ConteXtualiZaÇÃo
Caro pós-graduando: nesse capítulo, estudaremos os caminhos da
História Cultural no Brasil em suas dimensões históricas e contemporâneas.
Perceberemos que a História Cultural só teve uma franca expansão na
historiografia brasileira a partir da década de 1990. Contudo, notaremos que
o tema da “cultura brasileira” não foi menosprezado pelos estudiosos da
História. Cada um a sua maneira, o sociólogo Gilberto Freyre e o historiador
Sérgio Buarque de Holanda preocuparam-se com essa temática e trouxeram
reflexões avançadas para o seu tempo no que se refere ao estudo da cultura.
Da mesma maneira o fizeram mais recentemente Mary Del Priori e Sidney
Chalhoub, tratando de questões com implicação direta na nossa sociedade
atual.

As Origens do Estudo da Cultura na


HistoriograFia Brasileira
A História Cultural no Brasil desabrochou somente a partir Durante os anos
da década de 1990. Até então eram muito influentes as correntes 30, pensadores
historiográficas dos Annales e do marxismo. No entanto, durante como Gilberto
os anos 30, pensadores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque Freyre e Sérgio
Buarque de
de Holanda apresentaram posturas inovadoras para seu tempo e
Holanda apresen-
refletiram sobre a questão da cultura no Brasil. taram posturas
inovadoras para
Ambos os autores são produtos de uma revolução intelectual seu tempo e
ocorrida no Brasil a partir da Revolução de 1930 que, entre outras refletiram sobre a
coisas, levou os intelectuais à busca da compreensão da “identidade” questão da cultura
no Brasil.
brasileira. As obras Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre,
publicado em 1933, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda,
publicado em 1936, foram exemplos dessa inquietação e, além disso, marcavam
perspectivas culturalistas na análise da realidade brasileira. Apesar de não
se apresentarem efetivamente como historiadores culturais, deram uma nova
dinâmica ao buscar compreender uma identidade brasileira.

Gilberto Freyre, que através da influência da antropologia buscou perceber


a sociogênese da formação de uma identidade brasileira, analisou a miscigenação
racial oriunda das relações sociais na sociedade escravista colonial brasileira. Sérgio
Buarque de Holanda, por sua vez, incorporou reflexões do sociólogo alemão Max
Weber no que se refere às diferenças existentes entre uma ética protestante e católica
e o impacto disso na colonização da América. Vejamos agora um pouco mais sobre

81
História Cultural

as principais ideias dessas obras fundamentais para observar os passos iniciais dos
estudos culturais no Brasil.

a) Gilberto Freyre

Antes mesmo que as ciências sociais sedimentassem sua influência na


historiografia mundial, o sociólogo Gilberto Freyre procurou na interdisciplinaridade
uma forma de explicar a “cultura” brasileira. Apesar de não se caracterizar
essencialmente como uma obra de História Cultural, sua originalidade influenciou
- e continua influenciando – uma série de historiadores que se propõem ao estudo
da “cultura” no Brasil.

Caro pós-graduando, existe um interessante site patrocinado pela


Fundação Gilberto Freyre e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia que
traz trabalhos, artigos e outras interessantes fontes sobre a vida e a
obra de Freyre. Biblioteca Virtual Gilberto Freyre: http://www.bvgf.fgf.org.
br/portugues/index.html

A publicação, em dezembro de 1933, do livro Casa-Grande &


Foi o estudo de Senzala abriu um caminho novo na historiografia brasileira. Até então a
Antropologia sob historiografia brasileira estava caracterizada por uma postura positivista
a orientação do que destacava a história factual e centrada nos “grandes nomes”: era
Professor Boas um registro cronológico de guerras e coroações, de atos de heroísmo e
que primeiro me
rebeldia. Com seus conhecimentos de ciências sociais - especialmente
revelou o negro e
o mulato no seu da antropologia e da sociologia - Gilberto Freyre voltou-se para os fatos
justo valor – sepa- miúdos, aparentemente insignificantes; utilizou pioneiramente a história
rados dos traços oral, os documentos pessoais, manuscritos de arquivos públicos e
de raça os efeitos privados; anúncios de jornais.
do ambiente ou
da experiência
A redação de Casa-Grande & Senzala - primeiro tomo da História
cultural.
da Sociedade Patriarcal no Brasil - foi iniciada em Lisboa, em 1931, e
concluída no Recife, em 1933. Durante a redação da obra, houve outra oportuna
viagem: a que o autor realizou de Lisboa à Califórnia, onde pôde conhecer mais
de perto as sobrevivências do regime de monocultura patriarcal e escravocrata.
Essa viagem marcou ainda a inspiração do antropólogo Franz Boas, radicado nos
Estados Unidos. Segundo Freyre:

Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do Professor


Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo

82
Capítulo 4 HISTÓRIA CULTURAL NO BRASIL

valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou


da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamentalmente
a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos
de relações puramente genéticas e os de influências sociais,
de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação
fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano do ensaio.
Também no da diferenciação entre a hereditariedade de raça e
hereditariedade de família.

Essa afirmação de Freyre demonstra que o estudioso da cultura brasileira


possuía forte influência dos estudos culturalistas do antropólogo Franz Boas. Em
verdade, a obra Casa Grande apresenta-se como uma obra de etnografia, na qual
o autor propõe explicar um contexto sociocultural dos engenhos de açúcar do
Nordeste brasileiro entre 1600 e 1800, aproximadamente.

Casa-Grande tem como objeto de estudo a sociedade patriarcal


no contexto da sociedade açucareira. Nessa obra são estudadas as A obra Casa Gran-
características gerais da colonização portuguesa, visando à formação de apresenta-se
como uma obra de
de uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de
etnografia, na qual
exploração econômica e híbrida em sua composição étnica e cultural. Há o autor propõe
capítulos específicos sobre os antecedentes e predisposições do povo explicar um con-
português como colonizador de áreas tropicais e sobre as contribuições texto sociocultural
do indígena e do escravo negro. De forma geral, a obra defende a tese dos engenhos
da existência de uma “predisposição portuguesa” para a miscigenação de açúcar do
Nordeste brasileiro
verificada nas relações entre os senhores de engenhos e as mulheres
entre 1600 e 1800,
negras. Este ponto da obra de Freyre lhe rendeu a fama de docilizar as aproximadamente.
relações sociais da sociedade escravista. Em Casa-Grande, o escritor
exprimiu que o que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo
domínio da adiantada. Os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição. A
relação entre brancos e mulheres de cor foi a de vencedores e vencidos.

A interdisciplinaridade de Gilberto Freyre foi o primeiro passo para o


desenvolvimento do estudo da “cultura” no Brasil. Apesar de determinadas
visões de Freyre sobre as relações sociais na sociedade açucareira, sua idéias
representaram um luz fundamental para o aparecimento de novas problemáticas
sobre nossa identidade. Como afirma Darcy Ribeiro:

Com efeito, Casa Grande & Senzala é o maior dos livros


brasileiros e o mais brasileiro dos ensaios que escrevemos.
[...] Casa Grande é, sem dúvida, uma façanha da cultura
brasileira, como aliás foi visto desde os primeiros dias.
(RIBEIRO, 2000. p. 12).

83
História Cultural

Atividade de Estudos:

1) Observe a imagem que segue: esta imagem, de autoria do


naturalista francês Debret – que visitou o Brasil em princípios do
século XIX – mostra um importante aspecto da sociabilidade na
sociedade escravista brasileira.

Figura 5 – Iconografia Debret

Fonte: Disponível em: <http://galeriaphotomaton.blogspot.com/2008/04/


debret-e-o-brasil.html>. Acesso em: 11 jul. 2009.

Refletindo sobre as ideias desenvolvidas por Gilberto Freyre em


Casa Grande & Senzala, elabore uma pequena consideração
sobre a relação dessa imagem (já apresentada no capítulo 3) com
a obra de Freyre.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

84
Capítulo 4 HISTÓRIA CULTURAL NO BRASIL

b) Sérgio Buarque de Holanda

Sérgio Buarque de Holanda produziu uma das mais férteis explicações


sobre a identidade brasileira. Sua principal obra, Raízes do Brasil, é seu principal
estudo sobre questões culturais. Partindo de uma iniciativa da Companhia
Editora Nacional, através da coleção Brasiliana, de promover um debate sobre
as “explicações para o Brasil”, grandes autores nacionais se prestaram a publicar
obras que respondessem a esse anseio. Raízes do Brasil, de 1936, traz à tona
essas questões e busca encaminhar possíveis problemáticas para se pensar o
Brasil. Utilizando reflexões inovadoras para a época em que foi escrito, Sérgio
Buarque cunhou termos que acompanharam novas tentativas de explicação do
Brasil.

As influências que permeiam as reflexões de Raízes estão


relacionadas aos desenvolvimentos que a ciência histórica sofreria Observando o
no decorrer do século XX. Ele inovou ao incorporar à sua tentativa processo de
de explicação do Brasil noções caras aos historiadores franceses, desenvolvimento
do capitalismo no
como a ideia de “mentalidade”. Sérgio Buarque se aproximou
Brasil na década
desse conceito, como afirmou Fernand Braudel em carta escrita de 1930, Sérgio
a ele em 1948, destacando que as preocupações de historiador Buarque atribuiu
se aproximavam das suas. Essa noção surge a partir das reflexões nossa peculiarida-
sobre um ethos que compõe a sociedade e forja nossas relações de social a uma
sociais. Essa concepção possui ainda uma relação com as ideias de ética católica que
impedia nosso
Max Weber, que, na interpretação da gênese de uma mentalidade
desenvolvimento
capitalista, relacionou-a a uma ética protestante. Assim, observando aos moldes da
o processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil na década de América anglo-
1930, Sérgio Buarque atribuiu nossa peculiaridade social a uma ética -saxônica.
católica que impedia nosso desenvolvimento aos moldes da América
anglo-saxônica. Partindo dessas influências e reflexões, Sérgio Buarque buscou
qualificar a “gênese” mental que forjou nosso comportamento social. Na sua
explicação sobre essa “gênese” o peso da tradição portuguesa é fundamental
para condicionar nosso caráter social.

Dessa forma, Sérgio Buarque inicia a obra pelo capítulo sugestivamente


intitulado Fronteiras da Europa, em que ele apresenta Portugal como um Estado
limítrofe cujos fundamentos sociais se afastam da “Europa além-Pirineus”. Esse ethos
caracteriza a “frouxidão da estrutura social”, a “falta de uma hierarquia organizada”, a
“indolência de displicente das instituições e costumes”.

O papel exercido pela mentalidade ibérica é importante para estabelecer as


relações do homem com o meio. Os portugueses, dessa forma, adeptos de uma
ética da aventura, em que “as energias e os esforços se dirigem a uma recompensa
imediata”, em que “nada lhe parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do

85
História Cultural

trabalhador” (BUARQUE DE HOLANDA, 1984. p. 13), possuem uma capacidade


“que ainda não encontrou segundo exemplo na história” de adaptar-se ao novo
meio. Essa força adaptativa vai se configurar, na colonização do Novo Mundo,
através da adoção de um modo de produção centrado no latifúndio monocultor
escravista.

Sérgio Buarque destaca a presença dos “negros” de África, afirmando que


“à influência dos negros, não apenas como negros, mas ainda e sobretudo como
escravos, essa população não tinha como oferecer obstáculos sérios. Uma
suavidade dengosa e açucarada invade, desde cedo, todas as esferas da vida
colonial” (BUARQUE DE HOLANDA, 1984. p. 31). Constatações freyrianas que
se devem, segundo Sérgio Buarque, a uma “ausência completa, ou praticamente
completa, [dos portugueses] de qualquer orgulho de raça” (BUARQUE DE
HOLANA, 1984. p. 22). Essa docilização das relações entre os grupos que
compunham a sociedade colonial, vista como uma “moral das senzalas”, se
estabelece sobre todas as instâncias da vida colonial e forja nossas relações
sociais.

Em resultado de tudo isso, a mestiçagem que representou,


certamente, notável elemento de fixação ao meio tropical,
não constituiu, na América Portuguesa, fenômeno esporádico,
mas ao contrário, processo normal. Foi em parte, graças a
esse processo que eles puderam, sem esforço sobre-humano,
construir uma pátria longe da sua. (BUARQUE DE HOLANA,
1984. p. 36)

É dessa incorporação dos quadros do antigo sistema colonial que se configuram


as relações patriarcais e personalistas que Sérgio afirma constituírem traços de nosso
caráter. Essas estruturas sociais gestadas nas relações entre patrões e clientes, entre
senhores e escravos, produzem o homem cordial. Esse homem é incapaz de se
relacionar em estruturas sociais rígidas, mas estabelece as formas de organização
social informais nas relações pessoais.

A ausência de privilégios hierárquicos rígidos dá margem para o


desenvolvimento de uma cultura da personalidade, de um livre arbítrio que eleva
o valor da responsabilidade pessoal e que passa a hierarquizar a sociedade pelo
mérito. Isso tudo faz parte de uma mentalidade que repulsa uma moral pautada
no trabalho, vendo a ação sobre a vida material como uma submissão a um objeto
exterior, e sendo, assim, fora da proposta exigida por Deus. É a dignidade do ócio
que retira a racionalização da vida e o distingue da ética protestante. E aí está a
raiz de nossa incapacidade organizacional, a raiz de nossa “anarquia”.

Os novos tempos se anunciam com as transformações políticas e os ideais


vindos da Europa. Espanta “a facilidade com que [os intelectuais] se alimentam,
ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e como sustentam,

86
Capítulo 4 HISTÓRIA CULTURAL NO BRASIL

simultaneamente, as convicções mais díspares”. (BUARQUE DE Certas noções re-


HOLANA, 1984. p. 113). Destacando as leituras de Max Weber sobre feridas em Raízes
a ética protestante e o espírito do capitalismo, Sérgio Buarque afirma do Brasil, como a
em nota que há de se acolher com reservas certas explicações das ideia da cordiali-
influências puramente morais ou intelectuais na formação de uma dade, perduraram
na intelectualidade
mentalidade, tendo em vista que existem outros fatores mais decisivos.
brasileira até
nossos dias e for-
Certas noções referidas em Raízes do Brasil, como a ideia da maram muitas das
cordialidade, perduraram na intelectualidade brasileira até nossos ideias que temos
dias e formaram muitas das ideias que temos sobre o Brasil. Não sobre o Brasil.
se trata de negligenciar as aguçadas percepções de Sérgio Buarque
sobre nossa identidade, mas relevar os limites do alcance explicativo para o
quadro social de hoje. Sérgio Buarque omite a influência das tradições africanas
e indígenas na formação de nossa mentalidade nacional, percebendo-as como
meros coadjuvantes da história.

Ainda assim Raízes do Brasil surge como uma das mais emblemáticas
explicações sobre o Brasil. Inovadora em seu tempo, Sérgio Buarque introduziu
reflexões que auxiliaram no desenvolvimento da ciência histórica. Ele superou
modelos explicativos factuais percebendo que as estruturas mentais de um povo
diziam muito sobre ele. Dessa forma, ele desenvolveu uma reflexão fértil acerca
da influência da tradição luso-católica na formação das estruturas sociais no Brasil.
Raízes teve, tem e permanecerá tendo uma grande importância para compreender o
significado da “cultura” no Brasil, mas devemos continuar reinventando novas formas
de olhar a complexidade desse significado.

Atividade de Estudos:

1) Faça uma síntese das principais ideias sobre a “cultura e


identidade brasileira” das obras de Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

87
História Cultural

Novas PersPectivas da História


Cultural no Brasil
A história cultural cresceu vertiginosamente nas últimas
A história cultural
cresceu vertigino- décadas no Brasil, sendo uma das áreas mais promissoras da
samente nas últi- pesquisa histórica. Extremamente abrangente, faz-se presente
mas décadas no em diversos programas de pós-graduação espalhados por todo o
Brasil, sendo uma país. As produções culturais estão relacionadas aos mais variados
das áreas mais temas e neste texto apresentaremos uma pequena parte dessas
promissoras da
produções.
pesquisa histórica.
Extremamente
abrangente, faz-se Sandra Pesavento dividiu as produções da área por campos
presente em di- temáticos, destacando não serem essas definições inflexíveis.
versos programas Segundo sua classificação, trabalhando com o imaginário e com as
de pós-graduação representações sociais que dão sentido ao mundo, poderiam ser
espalhados por
citados José Murilo de Carvalho, Mary Del Priori e a própria Sandra
todo o país.
Pesavento. Entendendo a escrita da história como representação
sobre o passado, destacam-se os trabalhos sobre a memória. Nesse campo
temos a importante contribuição de Edgar De Decca e Antonio Torres Montenegro
(PESAVENTO, 2003, p. 103).

A temática da cidade, analisada sob o enfoque da História Cultual, tem sido


trabalhada por Maria Stella Brescianni, Sandra Pesavento, Maria Bernadete
Ramos, entre outros. Há ainda temas que poderiam ser agregados em torno de
uma concepção simbólica de pertencimento, envolvendo práticas e representações
específicas. Entre esses, podemos citar os estudos sobre escravidão e etnia, de
Sílvia Lara e Sidney Chalhoub, João Reis, Eduardo França Paiva e os estudos de
gênero de Joana Maria Pedro, Margareth Rago, Eni de Mesquisa Samara, Mary
Del Priori. Sem dúvida alguma a História cultural não se esgota nesses campos
temáticos e autores, ao contrário.

Pela impossibilidade de discutir, analisar e apresentar todos os trabalhos e


autores da área, selecionamos algumas produções historiográficas mais recentes
que se conectam com os temas discutidos ao longo deste caderno. Fizemos a
opção por autores e obras relacionados à escravidão, etnia e gênero, por acreditar
terem forte impacto social.

a) Mary Del Priori

Mary Del Priori é historiadora e escritora, lecionou história na USP e PUC/


RJ. Publicou mais de vinte livros no Brasil. Entre eles, História das mulheres no
Brasil e Histórias do cotidiano.
88
Capítulo 4 HISTÓRIA CULTURAL NO BRASIL

Em relação à História das mulheres no Brasil, trata-se de:

Contar a História das Mulheres, como nasceram, viveram e


morreram, o mundo que as cercava, do Brasil colonial aos
nossos dias. A história das mulheres não é só delas, é também
aquela da família, das crianças, do trabalho, da mídia, da
literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da
violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos
seus amores e dos seus sentimentos. (PRIORI, 2006, p. 07).

Não se trata de uma obra que procura colocar as mulheres na


As mulheres nem
posição de vítimas ou heroínas, e muito menos colocá-las num mundo sempre correspon-
à parte. As mulheres estavam inseridas na sociedade e por essa razão diam à imagem de
falar sobre elas significa anunciar outras questões importantes acerca frágeis e submis-
da sociedade estudada. O livro é uma organização do trabalho de sas. Muitas mulhe-
vários pesquisadores do tema e nos mostra histórias de mulheres em res eram chefes
de domicílio, ou
diferentes tempos e espaços. Talvez uma das grandes contribuições
seja, sustentavam
desse trabalho seja a de derrubar alguns mitos, na medida em que a família sem a
mostra que as mulheres nem sempre correspondiam à imagem de ajuda de um ho-
frágeis e submissas. Muitas mulheres eram chefes de domicílio, ou mem. Faziam-no
seja, sustentavam a família sem a ajuda de um homem. Faziam-no com seu próprio
com seu próprio trabalho. Se situações como essa não eram a regra, trabalho.
os artigos presentes no livro nos mostram que muito menos eram
exceção.

Em Histórias do cotidiano, Mary Del Priore discute convivência, corpo, mulheres,


relações familiares, jovens e velhos. Através da história das mentalidades, discorre
sobre temas que vão de sutiãs a aviões, de maternidade a modernidade, de solidão
a casamento, de sujeira nas ruas a sujeira na política, de férias no sítio a violência
urbana, de heranças do passado a novos desafios.

O estilo redacional é um dos aspectos positivos desse livro. Dialogando com


o leitor, a autora o aproxima da história, fazendo com que se sinta sujeito que
interfere na sua construção e não mero espectador. Numa das passagens de seu
livro destaca o desejo de conscientizar o leitor:

Falo mal da Barbie para lembrar a mães, educadoras,


psicólogas e professoras que somos responsáveis pela
construção da subjetividade de nossas meninas. Mas a
futilidade de Barbie não exclui a sua utilidade de lembrarmos
que temos de lutar por valores melhores do que o dinheiro ou
de desejarmos para nossas filhas outra coisa que tornar-se
simples mulher-objeto. (PRIORI, 2001, p. 47).

89
História Cultural

b) Sidney Chalhoub

Sidney Chalhoub é professor de História na Unicamp. Historiador da cultura,


utiliza, em seu trabalho de pesquisa, esforço minucioso de decodificação e
contextualização de documentos para chegar a descobrir a “dimensão social do
pensamento”. Percebe o historiador como um observador e investigador das pistas
deixadas pelos documentos. Acredita que a partir do cruzamento dessas pistas é
possível perceber como pensava a sociedade estudada.

Chalhoub dialoga com a micro-história e chama a atenção para as afinidades


existentes entre a História e a Antropologia, utilizando como referências teóricas
autores como: Carlos Ginzburg, Robert Darnton, E. P. Tompson, Clifford Geertz.

Sua análise sobre os escravos e os homens livres nas últimas décadas


da escravidão resultou no livro Visões da liberdade: uma história das últimas
décadas da escravidão na corte. Chalhoub deu ênfase às relações estabelecidas
entre senhores e cativos e as estratégias utilizadas por esses sujeitos para
sobreviverem e manterem situações que os favoreciam (muitas vezes através da
troca e do favor). Para o autor, tanto senhores quanto escravos sabiam como
proceder para não se desagradarem reciprocamente, ou seja, tinham
O trabalho do his- consciência das obrigações e dos direitos que os ligavam.
toriador consiste
na construção pré- Considerando o modo como Sidney Chalhoub trabalha com
via de perguntas
suas fontes documentais, percebemos a importância de deixar que
e propostas, que
acabam sendo os documentos nos permitam refletir sobre o assunto pesquisado. O
modificadas em trabalho do historiador consiste na construção prévia de perguntas e
função dos conte- propostas, que acabam sendo modificadas em função dos conteúdos
údos que a análise que a análise dos documentos traz à tona. É evidente em suas
dos documentos pesquisas a preocupação com o rigor metodológico na análise das
traz à tona.
fontes.

Atividade de Estudos:

1) A partir das informações expostas anteriormente, faça uma


reflexão acerca das implicações sociais presentes nas obras de
Mary Del Priori e Sidney Chalhoub. Se você considerar necessário,
faça uma pesquisa mais aprofundada sobre esses autores. Com
certeza valerá a pena saber mais sobre o assunto.
____________________________________________________
____________________________________________________

90
Capítulo 4 HISTÓRIA CULTURAL NO BRASIL

Algumas ConsideraÇÕes
Caro pós-graduando, nosso trabalho está chegando ao fim. Compreendemos
ter sido a produção desse material uma chance de aprendizado para nós, autores,
assim como esperamos ter sido para você. A possibilidade de reflexão a partir
dos textos construídos nos instigou a buscar uma história com movimento. Uma
história que tornasse possível uma aproximação com o vivido. E História Cultural
é isso, a aproximação com o vivido. Compreender como as pessoas sentiam,
agiam e pensavam não é tarefa fácil e é por essa razão que a metodologia da
historiografia cultural nos dá espaço para diferentes interpretações
acerca dos significados da história. Da mesma maneira, trabalha com E História Cultural
a ideia de que na história não existe uma verdade única e acabada, é isso, a apro-
mas sim versões. É nesse sentido que mais uma vez enfatizamos uma ximação com o
vivido.
história em movimento, que se renova e se transforma, assim como a
sociedade em que vivemos.

ReFerÊncias
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José
Olympo, 1984.

BURKE, Peter. O que é História Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: BUARQUE DE


HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympo, 1984.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da


escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte:


Autêntica, 2003.

PRIORI, Mary Del (org). História das mulheres o Brasil. São Paulo: Contexto,
2006.

_____. Histórias do cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001.

RIBEIRO, Darcy. Gilberto Freyre: uma introdução a Casa Grande & Senzala. In:
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000.

91

Das könnte Ihnen auch gefallen