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Numa situação em que um dos motivos pelos quais existe uma crise na educação
é justamente o fato de se abdicar de um mundo a ser apresentado, uma perspectiva de
ensino em que o “narrar” é uma possibilidade didática contribui não somente em criar
um espaço imaginativo no qual os alunos possam experimentar aquilo que é narrado,
uma experiência vicária, mas também salienta a característica inalienável a todo aquele
que se envolve na educação de outros, a saber, a responsabilidade pelo mundo.
Se uma das características da crise na educação é justamente a alienação do
mundo, a ausência de sentido proveniente da ruptura moderna com a tradição e com o
ineditismo de eventos aos quais não há quem queira se sentir parte deles – os eventos
totalitários – nos diz Almeida sobre a reconciliação com o mundo através da educação:
Na educação podemos contar as histórias do mundo e, assim, atribuir um
sentido a ele, quando isso é possível. Apostamos na possibilidade de os
alunos se reconhecerem nessas histórias, estabelecendo sua pertença singular
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a este mundo, no qual, apesar de tudo, precisam encontrar seu lugar. ( 2011,
p.17)
Quando se fala em crise não se trata de mera retórica com o intuito de justificar
medidas impopulares ou arbitrárias, ao menos no que diz respeito à crise na educação.
O sentido dado coletivamente a alguns ideais e instituições que constituem o projeto
moderno de sociedade já não é mais suficiente para nos orientar, ou nas palavras de José
Sergio Carvalho, “perdemos as respostas sobre as quais nos apoiávamos no que
concerne aos procedimentos, às escolhas e, sobretudo, ao significado público que
atribuímos ao processo educacional” (2013, p.4).
Os novos, os nascidos, que nos dizeres de Arendt nascem em um mundo velho que lhes
devem ser apresentado até mesmo para que eles possam se sentir em casa, ver sentido
no mundo como o lugar que, de fato, humaniza. Porém, o que está posto até mesmo na
escola é quase que uma necessidade sobre-humana de se atualizar, ou estar diante da
impossível tarefa docente de ser apresentado ao mundo vir-a-ser. A relação que ora
atribuímos e nos apropriamos das coisas do mundo é aquela inerente ao consumo, a que
não leva em conta o passado enquanto possibilidade de constituição de uma tradição, a
que sequer pensa o futuro enquanto possibilidade de continuação do que se tem e do que
se é. A educação, como quase todas as esferas e atividades humanas foi reduzida à mera
questão da vida, do consumo. A educação, cuja essência é a natalidade, perde o seu
próprio sentido de permanência. O desinteresse dos alunos pela escola é reflexo do
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desinteresse dos viventes pelo mundo. Desinteresse também demarcado por Vanessa
Sievers quando define a questão de sua tese de doutorado:
A questão central deste trabalho é: como despertar nos alunos o apreço pelo
mundo que nos une com os diferentes, encorajá-los a encontrar seu lugar nele
num momento em que a ausência de sentido e a preocupação com a
sobrevivência se impõem, de modo que qualquer compromisso com o
comum parece ser uma exigência deslocada e anacrônica? (2009, p.7)
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adultos têm sobre as crianças. À medida em que atribuo sentido eu me sinto como
pertencente a um mundo comum, amando-o pois é através dele que me faço humano, é
nele ,com os demais, que me faço livre, que ajo ético-politicamente, que, portanto, devo
preservar. Ressaltando que “o amor ao mundo a que se refere Arendt não implica sua
aceitação acrítica, mas, antes, a constituição de uma relação de pertencimento e
identidade, capaz de emprestar à futilidade e à brevidade da existência humana
individual um lastro tanto em relação ao passado como ao futuro.” (CARVALHO, 2013,
p. 84). A educação tem o objetivo de me fazer ser no mundo entre o passado e o futuro.
Para dar início a esta investigação à luz de uma interlocução com Hannah Arendt
se faz necessária a distinção entre educação e ensino. Portanto, partiremos de uma
leitura do ensaio “A crise na educação”, publicado na coletânea intitulada Entre o
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passado e o futuro (2005). Para Arendt, a educação tem uma função específica, a de
introduzir novos (natalidade) em um mundo que é velho, que existia antes do
nascimento de cada um deles e que existirá mesmo após a vida deste que agora chega.
Desta forma se revela o caráter conservador no que tange a educação no pensamento de
Hannah Arendt: é esperada um atitude conservadora da parte do educador sem margem
pois
Por outro lado, no âmbito político esta atitude conservadora não condiz com a
ideia que Arendt tem de política:
Uma autêntica filosofia política não poderá, em última instância, surgir a partir
de uma análise de tendências, acomodações parciais, interpretações, ou, pelo
contrário, da revolta contra a própria filosofia. Ela só poderá brotar de um ato
original de thaumazein, cujo impulso de admiração e questionamento deverá
desta vez (isto é, contra o ensinamento dos antigos) aprender diretamente a
esfera dos assuntos e feitos humanos.(ARENDT, 1993)
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é pelo nascimento que este mundo constantemente se renova” (ARENDT 1978, p.223).
Assim a tarefa da educação é justamente apresentar aos recém chegados o que é o
mundo para que não sejam abandonados ao ilimitado inerente à própria condição, e que
o mundo não seja destruído frente a um ineditismo desenfreado potencializado por esta
mesma natalidade. A essência da educação é a natalidade porque é através dela que
seres puramente biológicos (zoe) são inseridos em outro tipo de vida, esta
necessariamente compartilhada (bios).
A condição humana
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tanto dos recém-chegados, que não se sentiriam pertencentes a nada em comum, quanto
do mundo frente à novidade irrestrita.
Theresa Calvet de Magalhães, uma comentadora de Arendt, nos diz que a obra é
“uma atividade que possui um começo preciso e um fim determinado - um objeto
durável - que não é consumido imediatamente, mas é utilizado para fins que não são
propriamente os da vida biológica.” O mundo, para Arendt
Nem o trabalho nem a obra podem ser consideradas atividades políticas, pois
não abrem espaço para a pluralidade, que é a condição humana correspondente à
atividade da ação. Mas se identificarmos de imediato a atividade do professor à ação
cairíamos em um problema evidenciado pela própria Arendt: “a educação não pode
desempenhar nenhum papel na política porque na política se lida sempre com pessoas já
educadas” (1988, p.236). Em uma entrevista concedida a Günter Gaus na TV alemã, em
outubro de 1964, a autora afirma que
em toda ação a pessoa se exprime de uma maneira que não existe em outra
atividade. Daí, a palavra é também uma forma de ação [...]. Nós começamos
alguma coisa, jogamos nossas redes em uma trama de relações, e nunca
sabemos qual será o resultado [...]. Isso vale para qualquer ação, e é
simplesmente por isso que a ação se concretiza – ela escapa às previsões
(ARENDT, p. 143; os itálicos são meus. Só permanece a língua materna. In:
A dignidade da política – ensaios e conferências. Tradução Helena Martins e
outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993).
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a educação cumpre um papel determinante no sentido da conservação do
mundo, pois se trata de apresentar aos jovens o conjunto de estruturas
racionais, científicas, políticas, históricas, linguísticas, sociais e econômicas
que constituem o mundo no qual eles vivem. (ARENDT apud DUARTE,
2010, p.4)
Ora, amar o mundo envolve amar o que é comum, o que é público, pois é
justamente o mundo o lugar que os homens compartilham e nele se movem e podem
agir. A ação só é possível no mundo compartilhado, o futuro agente político não se
movimentará num mundo construído a partir de qualquer idiossincrasia particular.
Poderá, sim, agir a partir de convicções pessoais, mas somente se permanecer a ideia de
que ele, enquanto alguém, só pode aparecer aos outros se houver um espaço público no
qual outros podem fazer o mesmo que ele.
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semelhança do artesão. Para Arendt, pela própria essência da educação e pela exigência
da responsabilidade, ao professor cabe desvelar nas suas atividades a própria condição
da sociedade na medida em que lhe cabe apresentar o mundo.
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LEI Nº 11.684, DE 2 DE JUNHO DE 2008
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capacidades individuais ou àquilo que, com precisão, se convencionou
chamar de capital humano. (CARVALHO, 2013, p.75)
. Não podemos nos contentar que a mera reinserção da disciplina no quadro das
obrigatórias signifique uma valorização dos saberes historicamente constituídos numa
formação ético-política educacional. Atualmente, as propostas de reformulação dos
currículos que vigoram nos discursos que se sobressaem são aquelas que priorizam uma
relação com o conhecimento do tipo meio-fim, uma consideração da educação apenas
enquanto um meio pelo qual atingimos um fim determinado previamente. Estamos
diante do “declínio do sentido público da educação”, para usarmos uma formulação de
José Sergio Carvalho
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ínterins será suplantada pelas histórias que tal figura tem a contar. As histórias de suas
andanças. Além de evidenciar algo como um andarilho no fazer narrativo, o autor
também salienta que não poucas vezes o narrador é também aquele que jamais deixou
sua terra de origem, mas que por herdar uma cultura ligada à sua localidade, tem
autoridade para contar as histórias de um tempo passado e suas tradições.
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compor o fazer educacional enquanto instituído na escola, em específico, enquanto
professor de filosofia para as séries finais da Educação Básica, o Ensino Médio.
Referências:
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