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Revisão
Douglas André Gonçalves Cavalheiro
Bethânia Lima
Bons Costumes
é um selo da Editora Jovens Escribas
ISBN 978-85-66505-95-5
CDD 981.32
2015/07 CDU 981.85(813)
‘VERDADEIRA BARBARIA’ – PAULO HERÔNCIO
E A ESCRITA DE ‘OS HOLANDESES NO RIO GRANDE’1
Renato Amado Peixoto2
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testantes, a maçonaria, o discurso laico e as posições de O fato é que antes do Levante, em 1935 – sinalizando
esquerda de sua época. a divisão na Igreja católica norte-rio-grandense – padre
Ainda, cabe lembrar que esta reedição de Os Holande- Herôncio e D. Marcolino militavam, politicamente, em
ses no Rio Grande visa superar os problemas trazidos pela campos opostos: o vigário de São José do Mipibu apoian-
publicação da segunda edição em 1980, que omitiu parte do o Partido Popular e as forças decaídas; o Bispo de Na-
do texto original, juntamente com o importantíssimo tal sustentando a Aliança Social e o interventor Mário Câ-
prefácio do padre J. Cabral, sem os quais a obra não pode mara, membro de tradicional família natalense, indicado
ser lida e contextualizada adequadamente. por Getúlio Vargas, pessoalmente, para esse posto.
Seu escritor, Paulo Herôncio de Melo exerceu até 1933 Esta profunda cisão no clero e nas elites norte-rio-
as funções de vigário e prefeito de Macau, cidade do inte- grandenses havia se tornado ainda mais profunda pelo
rior do Rio Grande do Norte e esta atuação política, mais enfrentamento aberto de duas novas forças, o comunis-
próxima dos políticos destituídos do poder pela Revo- mo e o integralismo, movimentos que adquiriram ampla
lução de 1930, separaria padre Herôncio das posições de- difusão no estado, sobretudo pela vitalidade de suas for-
fendidas pela Diocese de Natal e por seu bispo, D. Marco- ças dinamizadoras, no primeiro caso, os sindicatos, alar-
lino Dantas, até o Levante Comunista de 1935. gados pela antiga liderança de João Café Filho, membro
De fato, D. Marcolino vinha desde 1930 desenvolven- da Aliança Social; no segundo, pela atuação da Congrega-
do uma vigorosa política de apoio aos interventores fe- ção Marista, apoiada pelo Bispo Diocesano.
derais, visando com isto expandir a atuação política da Em 1935 esta cisão ganhou o contorno de uma extensa
Igreja e sua presença na administração, inclusive, bus- crise – social, moral, religiosa e política – demonstrada
cando viabilizar, sob seu comando, a já planejada expan- pelo grande número de greves, atentados, assassinatos
são da estrutura diocesana para outras duas cidades, Cai- e espancamentos de membros dos grupos políticos, em-
có e Mossoró que, respectivamente, eram os centros das pastelamento de jornais, insubordinação de grupos ar-
atividades algodoeira e salineira no estado. Mobilizando mados contra o governo estadual e pela guerrilha rural,
a intelectualidade e as elites mais afinadas com sua lide- acionada e apoiada pelo Partido Comunista e pelo Sindi-
rança, guiada pelas ideias do reacionarismo católico, cato dos Operários das Salinas de Mossoró.3
D. Marcolino inspirou a fundação do jornal A Ordem, por-
ta voz das posições da Diocese e a criação de agremiações
políticas como a Ação Integralista e a Aliança Social, reu-
3. PEIXOTO, Renato Amado. ‘A Crise de 1935 no Rio Grande do Norte: a tensão
nindo as forças políticas que enfrentaram nas urnas os entre as identidades estadual e nacional por meio do caso norte-rio-grandense’.
inimigos dos Interventores. In: VI Simpósio Internacional Estados Americanos - Pesquisas acadêmicas con-
temporâneas, 2012, Natal. Anais do VI Simpósio Internacional Estados Con-
temporâneos. Natal: UFRN, 2012. v. 1. p. 294-301.
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Essas duas tendências ou antes essas duas orientações, P. Herôncio recorda-nos os tempos heróicos. em que o
cada dia mais extremes e mais irredutíveis, caminham povo brasileiro, ainda em formação, lutava para expulsar
paralelas... só no infinito se encontrarão. do solo pátrio o estrangeiro herege e invasor.
A infiltração dissolvente e corrutora, que visa aluir os Merecidamente, em nossos dias, devemos recordar es-
alicerces de todo o edifício fundamentado sobre o Evan- ses feitos gloriosos, pois, outros estrangeiros, de parce-
gelho, e a luta sem quartel contra as bases cristãs da ria com os modernos Calabares — traidores e sacrílegos,
civilização caminham a passos largos e nuvens negras e procuram entregar a Terra de Santa Cruz ao comunismo,
pesadas se acumulam sobre o amanhã dos povos ateu e querem transformar o Brasil em colônia da União
Urge combater as forças secretas e invencíveis, que Soviética.
tramam a ruína da sociedade e procuram derruir os mar- É preciso que o mundo inteiro saiba que a nossa gente
cos fronteiros, que separam as nações, assinalando as di- tem a alma forjada nas pugnas travadas em prol da re-
versidades de raça, cultura e religião. ligião e da pátria e que, assim como resistiu às invasões
Meio seguro e eficaz de fazer frente às ameaças, que armadas no passado, também repelirá a infiltração dis-
pairam sobre a ordem social vigente é ensinar às ge- solvente do marxismo hodierno.
rações novas as grandes lições de heroísmo e de amor O livro todo é uma lição, e lição de mestre, sobre uma
pátrio, que lhes deixaram aqueles que se foram, envoltos grande e formosa história, infelizmente já algo esque-
no manto do passado... é reviver as tradições já esqueci- cida e, às vezes, mal contada.
das e ressucitar a memória gloriosa daqueles que tudo Bem haja a quem serve a Deus e trabalha em prol da
sacrificaram pelo bem da terra sagrada — berço encan- terra natal.
tado de seus filhos, túmulo inviolável de seus pais.
É obra momentosa de véro patriotismo e de esclare-
cida visão social. Rio, Junho de 1937.
É por esse motivo que, com íntima satisfação, apre- Padre J. Cabral
sentamos aos verdadeiros filhos da Terra da Santa Cruz
o livro OS HOLANDESES NO RIO GRANDE, do Padre Paulo
Herôncio de Melo, que, revolvendo as cinzas do passado,
discorre, em linguagem correta e estilo ameno, sobre os
acontecimentos desenrolados no solo potiguar, nos tem-
pos da invasão flamenga.
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O AVISO DE
MATIAS DE ALBUQUERQUE
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A esquadra de D. Fradique de Toledo havia reconquis- guir com as forças de Francisco Coelho, governador do
tado a Baia. Maranhão, e de Antônio Coelho, capitão-mor da Paraíba,
O almirante Hendrichszoon chegara tarde demais para repelir os invasores.
para auxiliar os batavos. Não era com 28 navios que iria Essa a razão por que naquela madrugada o capitão-
enfrentar a esquadra de Toledo O. Os fortes de S. Salva- mor se dirigira ao forte dos Reis Magos. Era preciso que
dor, já guarnecidos de mais bocas de fogo. a guarnição da fortaleza estivesse de sobre-aviso, olhos
Ante a inutilidade de sua viagem, o almirante holan- fixos no horizonte, na suposição de que a esquadra ini-
dês resolvera voltar. E velejara para o norte. Avistando miga poderia surgir de momento deante de Natal.
Olinda, continuara a rota. Mas era preciso refazer o ran- Sem demora, aprestaram-se os canhões e as colibrinas.
cho e a aguada. Convinha, antes de tornar à Europa, fun- O capitão-mor voltou à cidade. Os habitantes de Natal
dear em algum porto. Parecera-lhe propicia a Baia da estavam alarmados com a notícia da invasão.
Traição. Transpusera a barra e arreara ferros. Desembar- A cidade fundada por Jerônimo de Albuquerque conta-
cara com alguns oficiais e marinheiros e procurara logo va apenas umas trinta casas de barro e palha. Os homens
conquistar a amizade dos naturais. de prol viviam em suas fazendas, indo à cidade somente
Marciliano, um dos chefes indígenas da região, ofe- aos domingos para a Missa.
recera hospedagem aos flamengos e fizera-lhes muitos Na tarde daquele dia, os fazendeiros, ao saberem da
oferecimentos, não sem primeiro receber presentes e chegada de um mensageiro de Pernambuco, foram à
bugigangas. casa de Francisco Gomes e ofereceram-lhe homens e ha-
Hendrichszoon levantara na praia algumas fortifi- veres. Era com eles que o capitão-mor teria de contar,
cações de emergência e instalara um pequeno hospital para repelir qualquer invasão. O auxílio dos índios era
para os marujos que haviam adoecido em viagem. muito problemático. Em número de mais de setecentos,
O chefe indígena falara, ao almirante, das vantagens de morando em aldeamentos dos quais o principal era o
uma entrada no Rio Grande. Organizara-se uma pequena de Mipibu, os selvagens eram pouco amigos dos portu-
expedição. Marciliano levara os holandeses ao engenho gueses.
Cunhaú. De lá, os batavos conduziram para bordo muito Na madrugada do dia seguinte, Francisco Gomes dei-
gado e 200 caixas de açúcar — auxílio providencial para xou a cidade.
quem ia atravessar o Atlântico. Quando se aproximaram da costa as forças dos capi-
Ao anoitecer da véspera daquele dia, chegara a Natal tães-mores, Hendriehszoon recolheu os marinheiros aos
um mensageiro de Matias de Albuquerque, com um avi- navios e se fez ao mar, velejando para as Antilhas, levan-
so para o capitão-mor. Os holandeses estavam nas costas do a bordo alguns selvicolas que manifestaram desejos
da Paraíba e do Rio Grande e Francisco Gomes devia se- de acompanhar os flamengos.
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O gesto indigno do traidor foi um achado para os in- A opinão de Calabar foi aceita pelos oficiais. Byma di-
vasores, naqueles momentos difíceis. Profundo conhece- tou, então, nestes termos, as suas ordens aos comandan-
dor das praias e do interior, ele iria garantir-lhes muitos tes de companhias:
triunfos. Em breve, lhes sorriria a vitória em várias bata- “Quando se houver de operar o desembarque,
lhas, como as de Iguarassú e Rio Formoso. farão proferir pelos soldados uma prece, implo-
Calabar iria levar os batavos ao Rio Grande do Norte. rando ardentemente ao Senhor a sua graça para a
Ao transfuga não seria difícil um entendimento com empresa que iam cometer, e em seguida animá-los
os soldados da guarnição do Forte dos Reis Magos. corajosamente a se portarem na ocasião iminente
Organizou-se a expedição. como leais e valorosos soldados, de acordo com a
Às 7 horas da noite de 5 de dezembro de 1633, saía de sua honra e juramento,
Recife a esquadra que devia se apoderar do Rio Grande. Deverão mais fornecer a sua gente pão para três
Comandava a frota o almirante Lichthardt. Em oito na- dias e dois martelos de vinho, antes de sair de bor-
vios, viajavam oitocentos e oito homens de desembar- do, e verificar que todas as bolsas e patronas este-
que, divididos em quatro companhias de fuzileiros e jam bem fornecidas.
quatro de mosqueteiros, comandados pelo tte. cel. Byma. Uma vez na terra, marcharão na ordem seguinte:
A capitania levava em seu bordo Von Ceulen, um dos di- as companhias do tenente coronel e do capitão
retores da Companhia das Índias Ocidentais, e Calabar. Maufas formarão a vanguarda; as do nobre senhor
O sopro brando dos ventos que cairam à noite não per- Delegado e do capitão Teller, a retaguarda. Sendo
mitiu que os navios avançassem. as duas primeiras companhias apertadas pelo ini-
Pela manhã, o navio de Smient se incorporou à frota. migo, devem as duas imediatas secunda-las, sem
Ao meio dia, a capitania içou sinal de convocação de aguardar ordens”.
oficiais.
Os marinheiros ferraram os panos dos navios. Das Iniciaram-se os preparativos para o desembarque.
naus partiram escaléres para o navio chefe. Os navios arrearam escaléres. Começou a concentração
Lichthardt reuniu seu estado maior. Era preciso assen- das tropas de desembarque nos navios menores que mais
tar o plano de ataque. Calabar foi de parecer que se devia pudessem aproximar-se da costa.
atacar o Forte dos Reis Magos por mar e por terra, efe- Já era tarde, quando terminou o transbordo dos sol-
tuando-se um desembarque na Ponta Negra. Os navios dados. As naus abriram as velas. E, na manhã seguinte,
apoiaram a ação da infantaria, forçando a barra do Po- aproavam para a Ponta Negra. Avizinharam-se o mais
tengi. possível da terra e fundearam na enseada.
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lusitanos. Quando era apenas alicerce, já se cobrira de mia. Não tivesse sido ferido, e teria resistido enquanto
glórias, pela bravura de seus defensores contra índios e houvesse pólvora.
franceses. De nada mais valia a sua lealdade. Cumpria-lhe apenas
Construída em 1598, no governo de Manoel Mascare- tratar da saúde para se retirar com as honras militares
nhas Homem, fora seu arquiteto o Pe. Péres, ilustre en- que lhe eram devidas. A sua voz não tinha mais força de
genheiro da Companhia de Jesus. Os trabalhos, iniciados comando. Era a voz de Gartsman que agora se fazia obe-
em 6 de janeiro, já estavam concluídos a 24 de junho decer dentro do forte Ceulen.
graças aos esforços de todos, empenhados em preparar o
reduto de defesa da Capitania.
Ponto estratégico para o domínio da costa, chegou a
ter 200 homens de guarnição. Em 1603, porém, apenas
40 soldados permaneciam dentro de suas muralhas. Mais
tarde, em 1610, a guarnição fora fixada em 1 capitão,
1 alferes, 1 embandeirado, 1 sargento, 1 tambor, 1 con-
destável, 2 bombardeiros, 4 cabos de esquadra, 40 mos-
queteiros e 40 arcabuseiros.
Dentro de suas muralhas não havia conforto. Faltava
até água. Os soldados “fugiam dele como da morte”. Mais
tarde, foi melhorado, tornando-se o maior e o melhor do
Brasil, com suas 33 peças de artilharia, corpo de guarda
e alojamento para as praças. Agora, estava transformado
em castelo holandês. Arreara-se do mastro o pavilhão
das quinas. Flutuava sobre os muros a bandeira dos con-
quistadores.
Depois daquela cerimônia de posse, Von Ceulen foi
visitar o capitão-mor. Pedro Mendes estava caído no lei-
to, banhado em sangue. Até aquele momento, nenhum
cirurgião lhe havia cuidado dos ferimentos. O chefe ho-
landês saudou o capitão. Pedro Mendes correspondeu
à saudação e protestou contra o gesto dos soldados que
entregaram o forte, roubando-lhe as chaves quando dor-
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tal. De lá, foi ele com outros índios conduzido para o Habituados a ouvir palavras de vingança e a marchar
Forte dos Reis Magos e atirado a um calabouço. ao som das inubias guerreiras para lavar no sangue ini-
Durante aqueles oito anos de prisão injusta, o chefe migo as ofensas recebidas, não podiam os selvagens com-
selvagem não deixou de reafirmar sua inocência e sua preender o gesto nobre do cacique. E ele acrescentou:
sinceridade, não o fazendo por humilhação mas por um “Sangram-me ainda os sinais das minhas cadeias; mas
dever de conciência. Sentia menos os ferros que o alge- é a culpa, não o castigo, que infama. Quanto pior me
mavam do que o juízo que se fazia de sua lealdade. Fora trataram os portugueses, tanto maior será o vosso e meu
sempre aliado dos portugueses, como seu tio Camarão. merecimento, conservando-nos fieis ao serviço deles, es-
A pecha de traidor que lhe atiravam era um ultrage a seu pecialmente quando o inimigo os aperta”.
caráter. Os índios entreolharam-se. Seria possível? Não lhe te-
Quando o forte foi atacado, desejou ser livre para com- ria o cárcere embotado a memória?... Não. Se aos civiliza-
bater também. Preferia morrer lutando, a ser esmagado dos faltara critério para dar credito às afirmações do sel-
pelas ruínas dos muros rebentados a tiros de canhão. vagem, ao índio sobrara conciência para se manter digno
Inda pediu ao capitão-mor permissão para ajudar os sol- de sua palavra, mesmo com sacrifício. Queria ele que os
dados, mas não conseguiu. E não se sabe mesmo como de sua tribo partilhassem da sua dignidade, ajudando-o a
ficou vivo, quando o forte capitulou, pois um seu com- reafirmar sua solidariedade aos lusos, para que eles vis-
panheiro de infortúnio foi, antes da rendição, estrangu- sem que o cativo de ontem confirmava, livre, sua inocên-
lado e atirado do alto da muralha, para as bandas do mar. cia e sua lealdade.
Os conquistadores libertaram o índio, esperando que Fascinados pelas palavras do chefe, os índios lhe ju-
ele fosse levantar as tribos contra os portugueses. Assim raram apoio. Seriam também amigos dos portugueses.
era de esperar de quem havia sofrido injustamente. Era Com ele retesariam os arcos e iriam aos combates em
chegado o momento da vingança. favor de Portugal.
Jaguarari deixou o forte. O gesto de Jaguarari não foi um grito que se perdeu
Foi um momento de surpresa a chegada do selvagem nas matas. Transpôs o oceano e foi ecoar na Metrópole.
às tabas dos seus irmãos. Todos o cercaram. Julgavam-no Em recompensa aos serviços do seu fiel vassalo, o rei
morto. lhe fez mercê de 750 reais de soldo, transmissíveis, por
Mostrando-lhes os pulsos feridos pelas algemas, ele sua morte, à sua mulher e aos seus filhos.
contou os seus padecimentos.
Mais estarrecida ficou a tribo quando ele afirmou que,
apesar dos sofrimentos, continuava fiel aos portugueses.
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Grande foi a alegria dos flamengos ao receberem os los retroceder. Mas os invasores avançaram, apesar das
excursionistas que regressavam com tão boa presa. baixas sofridas. Não podendo resistir, os portugueses fu-
Confirmavam-se as afirmações de Marciliano quando giram.
fora a Recife, convidá-los a ir ao Rio Grande. A terra era Novos guerrilheiros aguardavam os batavos mais
verdadeiramente um campo de criação. adiante, emboscados nos matos. Foi intensa a fuzilaria.
Convinha agora uma batida, rio acima. Para as bandas Cloppeuburch dispôs seus soldados para o combate.
de lá, existiam engenhos de açúcar. Depois de alguns momentos de luta, o chefe holan-
Dias depois, organizava-se a segunda expedição, mais dês achou mais prudente recuar. Não sabia de que forças
numerosa que a primeira, com 30 homens de cada com- dispunha aquele reduto. Além disso, o velho prisioneiro
panhia, formando um total de 200 soldados, ao mando afirmava que da Paraíba eram esperados 300 homens.
do major Cloppeuburth. Talvez que aquela força já tivesse chegado. Assim con-
Em seis escaléres, os expedicionários se transporta- vinha recuar.
ram ao passo do Potengi. Desembarcando, organizaram Uma companhia fez a retarguarda, sustentando fogo,
a marcha. garantindo a retirada, em ordem.
Ainda não haviam caminhado uma hora, quando ouvi- Não mais sendo perseguida, a coluna tomou o cami-
ram, de repente, alguns tiros. Observando a região, pu- nho de Natal.
deram ver que sentinelas avançadas escondiam-se pelo
mato e atiravam sobre eles. Fizeram descargas repetidas.
Os emboscados foram mortos, ficando apenas um velho
com vida.
Reiniciou-se a caminhada. Já marchavam os holande-
ses, havia três horas, quando a coluna foi novamente
obrigada a parar e a tomar posição de combate.
Desta vez as descargas eram mais repelidas e mais nu-
merosas.
Os fugitivos de Natal estavam acampados naqueles
sítios, com alguns soldados do forte, chefiados por Vaz
Pinto, provedor da Fazenda Real. Aguardavam eles au-
xílios da Paraíba.
Ao se avizinharem os conquistadores, os foragidos
começaram a disparar os mosquetes, esperando fazê-
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Para as bandas do sertão, até as margens do rio Assú, O sobressalto se espalhou em todos os semblantes.
estendiam-se os domínios dos Janduís, índios da grande O espectro da morte pairou diante daquela gente, que
família tapuia, cujas tribos se espalhavam até a Baía. Ti- não podia defender-se.
nham eles muito ódio aos portugueses. Já haviam feito Gritos de dor, abraços de despedida.
aliança com os flamengos, por intermédio de Marciliano. Açulados por Calabar, os bugres caíram sobre o en-
Aguardavam o momento aprazado para vingar os maltra- genho. Ninguém pode fugir. Os que tentavam escapar
tos que haviam sofrido os seus compatriotas, depois que ao tacape sentiam as flechas penetrarem-lhes as costas.
Hendricliszoon estivera na Baía da Traição. Os gemidos dos moribundos eram abafados pelo berreiro
Era chegado o momento de apelar para os bárbaros, infernal dos assaltantes. A matança foi terrível. Homens,
explorando-lhes os instintos de sangue e de vingança. mulheres e crianças, todos sacrificados com tanta cruel-
Com alguns companheiros, Calabar demandou o ser- dade e com tanta hediondez que não é possível descrever.
tão. Mais de 60 pessoas foram mortas. Entre elas, o proprie-
Depois de alguns dias de viagem, o terrível emissário tário do engenho, Francisco Coelho, com sua mulher e
chegou às tabas. Procurando os caciques, parlamentou seus filhos.
com eles, entregou-lhes presentes que os chefes holan- Ferreiro Torto marcava o início de um martírio de
deses lhes mandavam. E com eles acertou um ataque ao muitos anos. Aquela página de sangue era bem o pro-
engenho de Ferreiro Torto. grama de conquista dos novos senhores das terras do Rio
Ao som das inúbias e sobraçando arcos e tacapes, 300 Grande.
guerreiros tapuias desceram do sertão.
Para melhor se defenderem de qualquer ataque, os fu-
gitivos de Natal se refugiaram no engenho de Francisco
Coelho e ali ficaram o aguardando os esperados auxílios
da Paraíba.
Alguns dias depois daquele encontro com os holande-
ses, os refugiados de Ferreiro Torto foram surpreendidos
por gritos ferozes seguidos de um cortar de setas pelo
ar. O alarido aumentava à medida que se aproximavam.
Eram os Janduís.
Os tapuias! — gritaram todos, aterrorizados.
P. HERÔNCIO 67
índios, não confiando muito na amizade daquela gente, Quando chegaram as forças de Stockhouwer, o enge-
que se deliciava em comer carne humana. nho Cunhaú já estava em poder dos invasores.
Foi com prazer que os chefes flamengos receberam Destruído aquele último reduto de defesa, para onde
as sugestões de alguns compatriotas, que haviam fugido iriam os fugitivos?
das prisões de Cunhaú, onde estavam desde a primeira Uma atmosfera de desolação pesava sobre a Capitania.
invasão. Eles o animaram a saquear o engenho. Ótima O tufão da desgraça passara celere sobre ela, deixando
lembrança. Teriam assim em que ocupar os selvagens. após si um sinal de maldição. Por toda parte, vestígios
De lá, os bugres poderiam voltar ao sertão. de sangue derramado de vítimas indefesas. Casas aban-
Por mar, iriam tropas ao mando de Stockhouwer. donadas, campos incendiados, rebanhos dizimados, ban-
Os Janduís marchariam por terra, com soldados de algu- dos de salteadores a se espalhar pelo interior, de parceria
mas companhias chefiados por Artichofskey. com os ferozes tapuias... Como viver no Rio Grande? Até
Em meio de uma algazarra infernal, os índios dei- quando duraria aquele estado de cousas no novo distrito
xaram a cidade. Após dias de viagem, anoiteceram nas dos domínios holandeses? Que anos aqueles que pare-
vizinhanças de Cunhaú. ciam não mais findar!
Os cães do engenho pressentiram a aproximação de A chegada do príncipe Nassau a Pernambuco foi, para
alguém e começaram a ladrar. Mas os soldados de Álvaro os oprimidos, como um raio de luz a penetrar num cár-
Fragoso não deram importância a tão precioso aviso. cere.
Índios e soldados cercaram o engenho. Os atacantes, Os propósitos, que o novo administrador das conquis-
aproveitando a escuridão, avançaram cautelosamente so- tas de Holanda trazia para o Brasil, constituíam uma vaga
bre o forte e escalaram facilmente a muralha. esperança de paz à terra devastada pelo furacão da morte
Os soldados de Fragoso despertaram sobressaltados, e dos incêndios. Esperança que se concretizaria em reali-
entrando em combate na maior confusão. dade? Simples miragens de caminheiro que atravessa o
Os índios cairam sobre o engenho e sobre as casas dos deserto. As garras do abutre continuariam a estrangular
moradores. a presa. Novas páginas de sangue e de martírio iam se
Os flamengos prenderam logo o capitão e mais três escrever nas terras do Rio Grande.
soldados. Alguns ainda conseguiram fugir.
A refrega foi rápida. Mais de 50 cadáveres de homens,
mulheres e crianças ficaram estendidos no chão.
Um carmelita, que ali se achava, a prestar assistência
religiosa aos habitantes da povoação, foi vítima do sabre
dos hereges.
P. HERÔNCIO 71
Mas a esquadra luso-espanhola viera com maus fados. perigo de conduzir este socorro que o de perder
Aportando a Cabo Verde, perdera mais de 3.000 homens. aquela armada; em seu mau sucesso tiveram parte
Chegando a S. Salvador, estacionara no porto por muitos os elementos, e não os inimigos, em esta viagem
meses. Fazendo-se ao mar, para oferecer combate à es- havemos de pelejar com os inimigos e com os
quadra holandesa, fora vencida quatro vezes, travando a elementos; estes armados dos rigores do tempo,
última batalha na altura de Cunhaú. aqueles das cóleras do ódio. Tudo venceremos, se,
Depois de tantas derrotas, o conde da Torre abandonou só estribados na causa alentarmos a confiança, pois
a esquadra. é certo que não falta Deus com auxílios a quem lhe
O mestre de campo, Luis Barbalho, que vinha na frota, dedica obséquios. A favores do céu se nutre o valor
juntando tripulações de alguns navios, fundeara no porto dos homens. Irmos a socorrer e a livrar a pátria das
de Touros e efetuara um desembarque de 1.500 homens. leis da infidelidade e das extorsões da tirania, e a
Não se sentindo bastante forte para ficar no Rio Grande influir nas esperanças dos parentes e dos naturais,
com aquela gente, porque o príncipe Maurício lhe negara que em Pernambuco vivem oprimidos pelo jugo
quartel, o grande capitão resolveu marchar para a Baía. holandês, como libertarmos a Baía do seu império.
O que foi aquela arrojada travessia de mais de quatro- Podera-nos acobardar a falta de mantimento, se não
centas léguas, sertão a dentro, sem viveres suficientes, se costumarão a suprir com os frutos agrestes dos
ao sol e à chuva, enfrentando toda: as desgraças, tendo matos; neles mais certos e menos custosos nos tem
que vadear rios, escalar montes, transpor abismos, com- ensinado que mais facilmente se vence a falta que
bater selvagens, há tantos séculos atrás, — quem o pode a resistência; mas onde se contrasta a maior gló-
dizer? Todas aquelas dificuldades passaram, certamente, ria, sou de parecer que nesta marcha busquemos
pelo espírito do valente chefe, mas que importava o sa- o povoado, no qual poderemos conseguir remédio
crifício se havia ideal? para a força e argumento para a fama, mais grata
Antes de iniciar a marcha, Barbalho falou assim aos a quem vence homens que a quem mata feras. Por
seus soldados: esta vereda caminharemos a dois fins: a matar a
“O motivo que nos tirou da Baía, nos deitou fome e a refrear a força; pois é certo que os inimi-
agora nesta praia; dela nos tirou a conquista, a ela gos, que agora deixa nosso braço destruído, nos
nos leva a defesa; determinação, uma e outra, tão hão de faltar depois contrários. E quando o holan-
filha de ânimos portugueses, que livre de achar dês irritado nos busque poderoso, em nossa mão
nos estranhos competência, busca em si mesmo está a retirada, porque lhe fizemos tanta vantagem
o excesso, tanto maior em conservar o possuído, no conhecimento do sertão, quando ele nos pode
que em recuperar o estragado, quanto é maior o fazer no número dos soldados”.
P. HERÔNCIO 79
Jacob Rabbi fez publicar avisos aos moradores, inti- do as portas da igreja se fecharam e os índios caíram so-
mando-os a virem no dia seguinte à igreja, para receber bre os fiéis, de tacape e facas em punho.
ordens do governo de Recife, garantido-lhes que nada O pânico foi terrível. Todos rezavam, pedindo a Deus
temessem, pois se tratava apenas de dar a conhecer no- perdão dos pecados. Vozes de súplica se misturavam com
vas determinações do Conselho. Na porta da igreja fez gemidos de moribundos. “Na garganta de todos se en-
afixar um edital assinado pelo Conselho Supremo. contravam a oração e a espada”.
No dia seguinte, pela manhã, o Pe. André de Soveral, Os que haviam ficado nas casas do engenho, ouvindo
velhinho de 90 anos, pastor querido daquele pequeno os gritos, correram ao templo, abriram as portas aos em-
rebanho atribulado, se dirigiu à igreja, para aguardar a purrões e entraram em luta com os atacantes, para mor-
chegada dos fiéis que iam à Missa do domingo. Mal sabia rer também.
que aqueles passos, que dava, eram os últimos da vida. Um grupo de tapuias avançou sobre o altar. O velho
Não imaginava que ia celebrar pela última vez o santo sacerdote grilou para o bando: — Aquele que tocar no
sacrifício da Missa, ou melhor, que ia iniciar na terra a padre ou nas imagens do altar terá os braços ou as per-
Missa daquele dia para terminá-la no céu, como mártir nas paralizados!
da Eucaristia. Os tapuias recuaram. Mas os potiguares que os seguiam
Jacob Rabbi viu o velhinho entrar no templo, e sorriu, caíram sobre o altar e vibraram um golpe de morte sobre
prelibando o gozo satânico do festim de sangue que ia o padre, que tombou misturando o seu sangue com o
dirigir. sangue do Cordeiro Imaculado que imolava.
O sino da igreja começou a tocar, chamando os fiéis. O velho sacerdote ainda se ergueu, amparando-se a
Quantos não escutaram naquele toque festivo um do- uma porta em que se gravaram suas mãos. Mas não de-
bro de finado! Quantos deixaram a casa e caminharam morou a cair de vez, para o lado do altar, com o corpo
vacilantes, atormentados pela dúvida da sinceridade das inanimado.
promessas de paz do judeu Rabbi! Algumas crianças foram poupadas.
Os mais tímidos ficaram em casa. Gonçalo de Oliveira conseguiu fugir com dois criados.
A igreja se encheu. O padre subiu ao altar e começou Momentos depois, pairava na igreja um grande silên-
a Missa. cio, velando os corpos de sessenta e nove mártires.
Lá fora, a um sinal do judeu, os índios se aproximaram Ao pé do altar, o Pe. André de Soveral; no piso do tem-
e tomaram as portas do templo. plo, o montão de vítimas dos sacrílegos e traidores.
Era chegado o momento da consagração. O sacerdote
elevava em suas mãos a hóstia sacrificial, tornada Jesus
Cristo pela palavra eterna do Pontífice do universo, quan-
P. HERÔNCIO 83
paus, e construindo em redor uma cerca. Assim, não se- meio de evitar um ataque. A maioria achava que havia
ria difícil repelir as investidas dos índios. segurança para todos.
Já se iam quase três meses, e aquela pobre gente ali vi- Quatro dias depois da visita do judeu, o arraial ama-
via, entregue a orações e penitências, fazendo procissões nheceu cercado. Jacob Rabbi comandava o cerco.
e cantando ladainhas todas as tardes, entregando-se nas As primeiras investidas os sitiados repeliram com de-
mãos de Deus. nodo. Às avançadas dos bugres e flamengos sobre a
Depois da matança de Cunhaú, os tapuias e potiguares cerca respondiam os dezesete mosquetões, em descar-
haviam descido até Paraíba. A chamado dos flamengos, gas cerradas. À noite, maior foi a vigilância do arraial.
voltaram eles com Jacob Rabbi. A luta continuou no dia seguinte. E se prolongou por vári-
Os holandeses sabiam da existência dos refugiados em os dias. A cidadela continuava a resistir heroicamente.
Ferreiro Torto e Uruaçu e temiam que aqueles redutos O judeu tratou de reforçar o cerco, mandando vir do
de foragidos se tornassem pontos de resistência contra o Forte Ceulen duas peças de artilharia.
domínio de Holanda. Aos primeiros tiros de canhão, o herege intimou os
Era conveniente exterminá-los. defensores do arraial a se renderem, sob pena de serem
A empresa foi confiada ao judeu. Os índios caíram so- todos passados a fios de espada.
bre o engenho, repetindo as crueldades de Cunhaú, não Não era possível resistir ao fogo da artilharia.
respeitando idade nem sexo. João Lostau foi levado para Os bravos capitularam, sendo-lhes asseguradas vidas
a fortaleza. e haveres. A troco de passaporte, entregaram armas e
Depois daquele assalto, Jacob Rabbi, foi explorar o ar- munições e mais cinco reféns, que deviam ir para o forte.
raial. No arraial, ficavam dez flamengos, a título de salvaguar-
Aproximou-se da cerca e procurou falar aos mora- das daquela gente que não tinha mais esperança de paz e
dores. Lamentou com eles os fatos de Cunhaú, dizendo apenas aguardava com resignação o dia do martírio.
que o governo holandês já havia tomado providências De que lhes valia a palavra do holandês? Os quadros
contra os culpados — alguns flamengos revoltados, que de sangue de Cunhaú e Ferreiro Torto se esboçavam na
já estavam nos cárceres de Recife. Examinando bem as imaginação de todos.
possibilidades de resistencia do arraial, despediu-se com Seria o que Deus quisesse.
a amabilidade hipócrita de quem tinha na alma sinistros Redobravam-se os atos de religião. À tarde, um Cristo
planos de traição. crucificado precedia a procissão de penitência. Subiam
Alguns desconfiaram das palavras do judeu. Um ao céu as notas cadenciadas das ladainhas.
francês que passara pelo arraial aconselhou a fuga como
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Abriram-se as velas e os barcos começaram a singrar, arrancando-lhes narizes e orelhas, não deixando parte
aproveitando a maré montante. alguma, que não fosse assinalada pelo ferro.
Avizinhando-se do porto de Uruaçu, as embarcações O corpo do padre foi objeto das mais torpes vilezas.
aproaram para terra. Por detrás das moitas, dois rapazes presenciaram
O comandante da companhia ordenou o desembarque. aquela cena terrível. Deixando casualmente o arraial, ti-
E, quando estavam todos em terra, o capitão dispôs a tro- nham ido à margem do rio. Vendo os boles que se aproxi-
pa em quadrado, dentro do qual ficaram o Vigário Ferro mavam, esconderam-se e puderam, assim testemunhar
e seus companheiros. aquela carnificina.
O comandante mandou que aquela gente indefesa se Voltaram ao acampamento e ainda exaustos de correr,
despisse e se ajoelhasse. contavam o que viram, quando, além da cerca, surgiram
Todos compreenderam que era chegado o momento Jacob Rabbi e os oficiais flamengos. Um raio de pavor
do sacrifício. E se entreolharam com emoção, encorajan- atravessou os corações daquela gente.
do-se mutuamente. Os chefes holandeses, aproximando-se, convidaram os
O padre, com ânimo sereno, estendeu o braço sobre os homens para ir à fortaleza. Havia papéis a assinar, para
companheiros, dando-lhes a absolvição. serem remetidos ao Supremo Conselho.
O ministro protestante que acompanhava a tropa Bem sabiam os bravos defensores do arraial que tudo
começou a falar aos sacrificandos, exortando-os a que aquilo era uma cilada. E, em lágrimas de despedida, abra-
abjurassem a religião católica. Em resposta, ouviram-se çaram as esposas e filhinhos. Não voltariam mais. Saíram
brados de fé. Todos queriam morrer por Jesus Cristo e rezando.
pela sua igreja. Ninguem atraiçoaria o seu Deus. Na véspera, como se o céu lhes avisasse que a glória do
Diante da firmeza da fé, que aqueles bravos demons- martírio não tardava, jejuaram a pão e água e apertaram
traram, o próprio ministro protestante começou a tor- os rins com duros cilícios.
turá-los, auxiliado pelos soldados, a uns cortando a língua Ao se aproximarem das margens do Potengi, viram os
e rasgando lentamente a carne, a outros arrancando os índios e os soldados que os esperavam, e, mais de perto
olhos e decepando os braços. ainda, contemplaram os corpos mutilados dos primeiros
A um tiro de mosquete, surgiram dos capões de matos mártires.
mais de 200 índios, que Jacob Rabbi emboscara, chefia- O pastor protestante quis exortá-los, mas as confissões
dos pelo terrível Paroupava. Os selvagens caíram sobre de fé, em altas vozes, o fizeram calar.
os mártires, reduzindo a pedaços aqueles corpos, já Soldados e índios caíram sobre as vítimas do herege
tão mutilados pelos hereges, rasgando-lhes os ventres, invasor. Antonio Baracho foi amarrado a uma árvore.
Cortaram-lhe a língua e os membros, queimaram-lhe a
P. HERÔNCIO 93
hereges que naquele instante estavam martirizando os ram morrer para a vida terrena, deixando aos posteros
defensores do arraial. a poeira de luz de seus feitos memoraveis, como se, de-
Aquela visão fora Nossa Senhora que agora era invo- mandando a vida que vai além dos séculos, a vida que se
cada com tanta piedade. eterniza na bem-aventurança, fossem semeando, de pas-
E não tardou o socorro do céu. sagem pelos espaços, a via láctea de suas glórias.
A mulher do governador holandês conseguira do mari- Lágrimas de emoção correram abundantes pelas faces
do permissão para levar para sua casa, em Natal, as viú- encovadas das viúvas e dos órfãos.
vas e filhas dos mártires. Era a compensação do sofrimento.
Portuguesa de nascimento, vivia ela no Brasil na época Ninguém mais dormiu na casa de Gartsman, naquela
da conquista holandesa. Afeiçoando-se por Gartsman, noite.
casara-se com ele. Pela manhã, muitos holandeses atravessaram o rio
Aproveitando-se de sua situação de esposa do gover- e foram a Uruaçu, cheios de curiosidade. E voltaram
nador, pedira ao marido consentimento para proteger as contando que sentiram um perfume esquisito, como um
vítimas dos hereges. Naquela mesma tarde, fez transpor- cheiro de incenso, a recender dos corpos.
tá-las para Natal. Somente quinze dias depois, os chefes holandeses per-
Alta noite, quando tudo era silêncio, a mulher de mitiram sepultar os mortos.
Gartsman despertou ao som de uma estranha música. As famílias dos mártires foram ao porto de Uruaçu.
Continuando a ouvir a melodia, despertou o marido, que À medida que se avizinhavam, sentiam mais forte o
acordou sobressaltado. perfume que os corpos exalavam. Aproximaram-se.
Dentro de alguns instantes, todos os da casa haviam Os corpos não se haviam corrompido. Parecia que o
acordado, sangue do Pe. Ferro e dos companheiros havia sido der-
Lá fora ninguém a tocar. Gartsman notou que a melo- ramado naquele instante.
dia vinha do alto. E todos observaram que a harmonia Esposas, filhos e amigos ajoelharam-se e beijaram
parecia vir das margens do Potengi. Presos de emoção al- piedosamente a carne massacrada dos bravos. Cavaram
guns, outros de terror, os holandeses, juntamente com as depois, as covas, amortalhando os corpos com lágrimas
mulheres, verificaram que aquela música celeste pairava e preces e depositaram na terra sagrada com sangue ge-
sobre os campos de Uruaçu, ensopados com o sangue dos neroso os despojos dos heróis cristãos.
heróis cristãos.
Eram, por certo, os anjos do Senhor, a velar aqueles
corpos mutilados dos heróis riograndenses, a cantar
nos espaços a glorificação imperecível dos que soube-
P. HERÔNCIO 97
A noite, um fato interessante se passou. Quando o Depois de muitas pesquisas, nenhum vestígio de pas-
acampamento dormia, a sentinela pressentiu a aproxi- sos, nenhum ramo quebrado.
mação de patrulhas e, percebendo que se avizinhavam O comentário da soldadesca foi um só. Aquilo era um
soldados inimigos, deu sinal de alarme. A tropa acordou. aviso do céu. Eram, por certo, as almas dos mártires sa-
Cada soldado municiou a arma e tomou posição de com- crificados na igreja, a 16 de julho, que vinham avisar ser
bate. aquele lugar perigoso, sujeito às surpresas de ataques,
Os rumores que denunciavam ataque desapareceram e que era preciso mudar quanto antes o acampamento.
mas a tropa continuou em linha de batalha. Com a alma emocionada, Barbosa Pinto mandou le-
Quando o dia clareou, Barbosa Pinto mandou fazer vantar o acampamento. E, no mesmo dia, a tropa abalou
um reconhecimento, não descobrindo sequer vestígios para outro ponto, de mais fácil entrincheiramento por
de passos do inimigo. ser acessível apenas de um lado.
Na noite do segundo dia, novo brado de alarme da Mal Barbosa Pinto havia entrincheirado a tropa, um
sentinela. Ouviram-se os mesmos rumores da noite pre- grosso contingente de mais de 400 holandeses desem-
cedente. O comandante mandou a tropa estender em barcava na Baía da Traição e marchava sobre o engenho,
linha do combate. Veio a aurora, sem que se disparasse auxiliado pelos índios do terrível Pedro Poti, conhecido
uma arma. pelas atrocidades, que cometera na Paraíba.
Novos reconhecimentos, agora feitos com mais inte- À noite, os batavos atacaram Cunhaú, e não encon-
resse. Nenhum vestígio de patrulhas. trando com quem combater, sairam no encalço dos pa-
Barbosa Pinto ficára pensativo. Que seria aquilo? Seri- triotas, investindo contra o novo acampamento.
am fantasmas, amedrontando os guerreiros? Seria algum Se tivessem ficado no primeiro ponto onde estiveram,
aviso do céu? os nacionais teriam sido derrotados. Aquele simulacro de
Com aquela preocupação a lhe morder o pensamento, ataque nas três noites, fora, realmente um aviso do céu.
o capitão viu chegar a noite do terceiro dia. E ficou a Os invasores foram bravamente repelidos e desbarata-
velar. De repente, o brado da sentinela. E ele ouviu clara- dos, recuando em debandada, indo procurar refúgio no
mente o tinir de armas e o estalar de ramos que se que- Forte Ceulen.
bravam à passagem precipitada de alguem. Deu ordens Depois da vitória, não convinha a Barbosa Pinto
de comando e ficou a esperar o ataque. Cessara o movi- marchar sobre Natal. Ignorando de que forças dispunha
mento. o antigo Forte dos Reis Magos, seria temeridade avançar
O dia amanhecera. Barbosa Pinto quis em pessoa fazer sobre suas muralhas. Era mais prudente voltar à Paraíba.
o reconhecimento. Pondo a tropa em marcha, partiu para o arraial de
Santo André.
P. HERÔNCIO 101
D. Fradique de Toledo trouxe-lhe o título de DOM que Aguardando as horas de combate, ele se ajoelhou di-
lhe mandara el-rei. ante de um crucifixo esmaltado que trazia consigo, o
Pelejara em Mata Redonda, comandara guerrilheiros qual tinha no lado oposto uma imagem da Virgem.
quando Bagnuolo concentrara forças em Porto Calvo, Depois da prece ardente e cheia de fé, organizou seus
dera combate a Artichfshy e abrira caminho à Goiana, soldados em três filas, ordenando que não perdessem
quartel general dos libertadores. tiro e que enquanto a primeira carregasse, a segunda
Agora, cumpria-lhe a missão de defender a terra de passasse a frente, para descarregar, depois a terceira, evi-
seu berço. tando-se assim, interrupção no tiroteio. Acrescentou que
Às suas ordens, marcharam para o Rio Grande o seu se faltasse pólvora ou bala, gritassem todos por São João
regimento e mais duzentos índios, ribeirinhos de S. Fran- e Santo Antônio e seriam logo municiados.
cisco. Na Paraíba, colocou à testa da coluna cinquenta Os holandeses, comandados por Rhineberg, partiram
homens batedores do sertão, e continuou a marcha, de Natal, ao encontro de Camarão. A 27 de janeiro de
destruindo aldeias de tapuias e potiguares, indo acam- 1646, cercavam eles o acampamento e iniciavam o com-
par ao norte de Cunhaú, no mesmo local em que Barbosa bate.
Pinto vencera os holandeses. Os soldados de D. Antônio cumpriram fielmente as
O Supremo Conselho de Recife alarmara-se com a ordens recebidas. E o fizeram tão bem que carregavam
notícia da permanência do chefe indígena no Rio Grande. os mosquetes demais, ocasionando uma forçada mano-
Era preciso garantir aquela conquista que se tornara bra, tão interessante quanto feliz. As armas esquentadas
celeiro, a fornecer sempre aos invasores grande quanti- pela repetição das descargas davam um couce tão forte
dade de gado e de farinha. nos peitos dos atiradores, que os derrubavam em linha,
Je Bas, membro do Conselho, partiu para o forte Ceu- permitindo assim que as balas inimigas passassem aci-
len, com dois navios e um reforço de sessenta soldados e ma deles, sem os atingir. Ao vê-los cair, D. Antônio supôs
com índios de Itamaracá, e um outro igual, de Cabedelo, que seus soldados estivessem todos mortalmente feridos.
além dos tapuias comandados por Jacob Rabbi e pelos Mas quando viu que eles se erguiam e faziam novas des-
filhos de Janduí. Ao todo, mais de mil homens. cargas, reanimou-se na peleja.
Camarão dispunha apenas de uns seiscentos comba- Ante a resistência do acampamento, Rhineberg con-
tentes. cebeu novo plano de ataque, dividindo seus soldados em
Aproveitando o terreno, cuja defesa era favorecida, de três colunas, uma das quais sustentaria o fogo enquanto
um lado, pelo rio e, do outro, por uma espessa mata de outra forçaria a passagem do rio e a terceira tentaria es-
tabocas, o grande chefe levantou fortificações apenas no calar o tabocal.
lado aberto.
P. HERÔNCIO 109
Depois de uma viagem de seis meses através do Atlân- O assalto a Cunhaú seria um dos episódios da entrada
tico, o general holandês desistira do plano traçado e re- dos terços de Henrique Dias no Rio Grande.
solvera desembarcar logo em Recife, para iniciar ime- O chefe negro quisera deixar Pernambuco sem que
diatamente o ataque aos nacionais. ninguém pressentisse a sua ausência. Preferia que a notí-
Abandonado pelas tropas libertadoras, o Rio Grande cia de sua ida ao norte fosse a consequência de sua pas-
tornara-se campo de ação dos Índios e dos flamengos. sagem memorável pelas terras do Rio Grande.
Holandeses e bugres, aproveitando aquele abandono, Levando mais alguns soldados de Camarão, Henrique
trataram de cultivar a terra. Já o engenho Cunhaú estava Dias partiu com os seus terços. Por onde passava, ia dei-
restaurado e prestes a moer. xando os vestígios de heroísmo dos seus negros, vencen-
Ao saber que os intrusos estavam aproveitando-se das do as dificuldades a ferro e fogo.
terras abandonadas, os chefes da insurreição mandaram Às margens da lagoa Guaraíras, acampou com os seus
homens.
Antonio Dias Cardoso, com mais de trezentos homens,
Numa ilha situada na lagoa, os flamengos haviam le-
destruir-lhes as propriedades.
vantado algumas fortificações que eram guarnecidas por
Dias Cardoso ficou na Paraíba, enquanto Cosme do
soldados e índios e protegidas por duas linhas de trin-
Rego Barros marchou sobre Cunhaú, com um destaca-
cheiras. No centro, a casa forte, onde se guardavam os
mento de cento e sessenta soldados.
frutos da terra e da pilhagem.
Barros cercou o engenho, venceu a resistência do ini-
Ao anoitecer, o chefe negro dispôs os soldados para
migo, incendiou-lhe as casas, fez muitos prisioneiros e
assaltar as fortificações. Exortou a tropa a lutar com con-
ainda arrebanhou trezentos bois que levou para Pernam-
fiança na vitória.
buco.
Os negros atiraram-se à água, avançando sobre a ilha.
Com a retirada dos nacionais, os flamengos se insta- Com água pela cintura, começaram a escalada. Galgaram
laram novamente em Cunhaú. a primeira trincheira.
Agora era Vidal de Negreiros quem ia combate-los. Os holandeses defendiam-se com furor mas o avanço
Penetrando no Rio Grande, Vidal cercou o engenho e era impetuoso.
mandou que João Barbosa Pinto fosse mais ao norte, às A segunda trincheira foi assaltada.
campinas do Ceará-Mirim, e trouxesse o gado que por lá Vendo-se perdido, o chefe holandês tratou de fugir,
encontrasse. metendo-se numa canoa, com mais cinco companheiros.
A Negreiros foi mais prático regressar a Pernambuco, Os nacionais, avançando sobre as fortificações, pas-
levando o gado que Barbosa Pinto juntara do que apos- saram à casa forte e começaram, então, a exterminar
sar-se do engenho. As provisões eram tão necessárias o reduto inimigo, degolando a quantos lhes caiam nas
quanto a munição. mãos, sem distinção de sexo nem de idade.
Autores consultados:
PREÂMBULO ........................................................................ 27
I - O Aviso de Matias de Albuquerque ............................. 29
II - Marciliano ....................................................................... 33
III - De Atalaia ....................................................................... 37
IV - Calabar ............................................................................ 41
V - A Rendição da Capitania ............................................ 45
VI - O Forte Ceulen ............................................................. 51
VII - Jaguarari ....................................................................... 55
VIII - Primeiros Reveses ..................................................... 59
IX - Os Janduís ...................................................................... 63
X - Terra Desolada ............................................................... 67
XI - A Marcha de Luis Barbalho ......................................... 71
XII - Alvorada ........................................................................ 75
XIII - Traidores e Sacrílegos ............................................... 79
XIV - O Arraial de Uruaçu .................................................... 83
XV - Heróis e Mártires ......................................................... 87
XVI - Glorificação ................................................................. 93
XVII - Estranho Aviso .......................................................... 97
XVIII - Camarão .................................................................. 101
XIX - Jacob Rabbi .............................................................. 105
XX - Os Terços de Henrique Dias .................................... 109
XXI - Redenção ................................................................. 113
BIBLIOGRAFIA .................................................................... 117
ÍNDICE ................................................................................. 119
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