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SUMÁRIO
Apresentação 4
TAÍS DORÁ 5
OS GAÚCHOS 19
DEVIRES DE CORUAM 29
TRISTEZA E INCOMPLETUDE 36
FINITUDE 43
Sobre o autor 52
APRESENTAÇÃO 4
Inferno
Por mim vai-se à cidade que é dolente,
por mim se vai até à eterna dor,
por mim se vai entre a perdida gente.
Dante Alighieri2
Bem que eu poderia ser o tal Jorge Sutinga, e não sei como suportei
tanto castigo do meu povo no Arraial d’Ajuda. Mas depois eu falo sobre
isso.
Pois é ao som desses versos que Dona Selma começa um novo pote.
Ela pega um punhado de argila vermelha bem fresquinha e joga no meio
1
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, Infinito e escrita experimental. Curitiba: CRV,
2020.
2
Dante Alighieri, A divina comédia. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2011, p. 47.
3
Todos os poemas de Patativa do Assaré foram extraídos do livro Cante lá que eu canto cá: Filosofia de
um trovador nordestino. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.
do seu torno, que gira com o pé direito enquanto as mãos unidas no barro
6
começam a arredondar o primeiro trabalho do dia. Por entre as suas
mãos a argila sobe e desce, uma porção de vezes, e quase sempre volta a
ser amassada pelas mãos exigentes da Dona Selma.
A paciência é enorme, daquela de quem não tem pressa no que faz
e quer sempre fazer bem feito. Foi com essa precisão que o seu trabalho
ganhou fama e a nossa comunidade também. Enquanto a argila cresce
novamente, no rádio se ouve a sabedoria do trovador:
Foram precisos longos anos pintando o rosto para viver até deixar
a máscara cair, as lágrimas escorrerem, o vermelho do batom na boca
borrar e o corpo voltar a rolar no chão ao som de uma nova canção, em
busca de novos palcos, na reconstrução da vida,
I will survive!5
Oh, as long as I know how to love
I know I'll stay alive!
I've got all my life to live
I've got all my love to give
And I'll survive. I will survive!
Hey, hey!
6
Trechos da canção “Mudanças”, de Vanusa.
7
Trechos da canção “Pra você gostar de mim”, de Carmem Miranda.
De volta para casa, depois de quatro noites consecutivas de shows
9
semanais na pele de Taís Dorá, há mais de duas décadas em cartaz, a
rotina se repete: retiro os meus turbantes de frutas tropicais da cabeça,
os inúmeros balangandãs que ornamentam os meus dedos, braços,
pescoço e orelhas, jogo sobre o sofá o vestido bordado com pedras e
rendas, em camadas sobrepostas de tecidos, os pés calejados, os dedos
espremidos dos pesados sapatos e o corpo exausto repousam sobre o
colchão no conforto da pequena casa comprada com o suor das minhas
lágrimas, no centro de uma metrópole californiana.
Ao acordar, livre da maquiagem e das máscaras, penso na cicatriz
que não sai de mim, até o adorno da próxima noite, o modo quase diário
de bordejar o meu vazio. Sei que não posso recuperar a minha inocência,
que foi roubada por um adulto. Somente posso recriar o meu vazio. A
solução que encontrei foi cantar e dançar na pele de Taís Dorá. Na
imagem do outro, refaço-me a cada show e enfrento a dor do meu eterno
buraco infinito. No corpo da minha personagem produzo a feitura da
ruína da dor: a alegria, as cores, o brilho, a sensualidade, a liberdade, o
glamour, a vida que desmoronou no pequeno vilarejo do Arraial d’Ajuda.
Numa de minhas tardes de leituras na Biblioteca do Céu, conheci
a história de Carmem Miranda e aquela imagem nunca mais me saiu da
memória. O meu nome artístico ganhou inspiração em outro momento de
leitura, ao deixar-me ser atravessado pelas palavras do conto “Taís”, de
Walmir Ayala. A dor era tão gritante àquela época, que ao nome da
personagem lida acresci o seu “Dorá”, pronunciado com todas as letras e
sons: dor há. Assim, no banco duro da pequena biblioteca do meu vilarejo
baiano, nasceu a Taís Dorá, o an(te)paro da minha dor.
Na solidão da minha cama estrangeira, rememorando com saudade
a Biblioteca do Céu, lembro-me da origem de tudo: foi num livro que tive
nas mãos, lançado em 1967, Histórias do amor maldito8. Naquele
compêndio de autores da literatura brasileira, reunindo contos de amor
homoafetivo, foi que descobri “Taís”. As palavras do título nunca mais me
saíram da cabeça: amor m-a-l-d-i-t-o. Carrego por todo o sempre a
pergunta sobre o que de maldito trago comigo e no meu jeito de amar. Na
capa do meu diário escrevi um trecho do conto do Ayala para nunca mais
me esquecer:
8
Trecho extraído do conto “Taís”, de Walmir Ayala. Publicado em Histórias do amor maldito (seleção de
Gaspariano Damata). Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1967.
peles9, de Noé Filho, e me emociono quando o autor diz que o livro é
10
dedicado “a todos e todas que tiveram suas cores silenciadas pelos
olhares funestos da ignorância”.
Taís Dorá continua triunfando nos palcos californianos. É
provendo beleza e alegria aos outros que domestico o meu vazio e canto:
Então procurei
Pelo teu cheiro nas ruas que andei
Nos corpos dos homens que amei
Tentando em vão te encontrar10
Purgatório
14
Dante Alighieri, A divina comédia. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2011, p. 395.
15
Arthur Rimbaud, Uma temporada no inferno. Trad. Paulo Hecker Filho. Porto Alegre: LP&M, 2011
[1873].
o meu pênis foi crescendo e passei a penetrá-lo até o dia em que fiz 18
12
anos e resolvi me mudar para o Rio de Janeiro.
Eu não suportava mais viver aquela vida provinciana, apesar de
amar a minha família e alguns poucos da minha comunidade. Digo
alguns, porque foi nesta comunidade que vivi a minha temporada no
inferno. Não bastasse o estupro provocado pelo marido de Dona Selma, o
abuso sexual durante mais de quinze anos por meu cunhado, ainda vivi
inúmeros abusos pelos homens da minha redondeza, que diziam que eu
era a sua menina. Foram incansáveis as vezes em que introduziram o
dedo no meu ânus, faziam-me sentar sobre o pênis ereto e friccioná-lo
até gozarem. Não poucas vezes me penetraram também. Parecia existir
um pacto e o segredo foi mantido entre os homens que me molestavam.
Nunca, até hoje, ninguém da minha família tocou neste assunto.
Somente o meu corpo conhece a cicatriz que ele carrega e o abuso por ele
sofrido durante uma eternidade.
Foi então que, ao concluir o Ensino Médio, aos 18 anos, resolvi que
queria transformar a cicatriz na Cica, a atriz. Este foi o primeiro insight
que me ocorreu. Não tinha como me fazer atriz morando no Arraial
d´Ajuda. Felizmente a beleza natural das nossas praias gera um fluxo
turístico muito grande na nossa comunidade e foi lá que conheci uma
senhora, professora universitária de Teatro, no Rio de Janeiro. Ela me
prometeu ajuda, mas descrente de qualquer caridade, cansado de tanta
amargura e injúrias, dei ao humano o meu último voto de confiança.
Felizmente o seu desejo de me ajudar foi realmente generoso e
sincero. Passei a morar com ela, fiz cursos livres de teatro na
Universidade, tentei o vestibular por duas vezes, mas não obtive
aprovação. O nível de concorrência era grande demais para um estudante
vindo de uma educação precária no interior da Bahia. Ela sempre me
incentivou a não desanimar, dizendo que o meu talento era maior do que
qualquer graduação universitária e me motivava a continuar persistindo.
Durante dois anos ela financiou o meu curso completo de inglês, em uma
das melhores escolas de idiomas do Rio de Janeiro.
Foi nesta escola que conheci John, o meu professor e primeiro
namorado. Ele estava fazendo o estágio obrigatório de ensino de inglês
para estrangeiros, requisito para o seu doutoramento em Inglês, na
Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Com o apoio integral da minha madrinha, assim passei a chamá-
la, imigrei para os Estados Unidos com o John. Eu tinha 20 anos e ele
32. Namoramos por um ano no Rio de Janeiro. A sua vida era preenchida
com aulas na escola de inglês, restando pouco tempo para a nossa
convivência. Fui conhecê-lo de fato em Los Angeles, quando passamos a
morar em seu apartamento. No princípio a sua cordialidade e afeto me
conquistaram cegamente.
John revelou o seu lado obscuro, que não me foi mostrado no
Brasil: ele era boêmio, apreciador de bebidas alcóolicas em excesso, do
absinto e do haxixe. Após o uso de tudo isso, tornava-se extremamente
agressivo e me batia. Mais uma vez o meu corpo e a minha alma reviviam
o abuso doloroso da existência, o buraco da minha dor se mostrava cada
vez mais infinito.
Eu ainda não trabalhava, vivia de doação da minha madrinha, que
13
não tinha condição de me sustentar em um país estrangeiro. Sempre me
lembrando de suas palavras, que ressaltavam o meu talento, fui à
procura de trabalho no meio artístico de Los Angeles. Por intermédio dos
seus contatos conheci um diretor irlandês, residente nos Estados Unidos,
que tinha profundo interesse pela cultura brasileira e os seus ícones.
Foi no encontro com esse diretor que pude apresentá-lo à Taís
Dorá, a fonte de sustentação dos meus dias. Quando conheci a história
de Carmem Miranda, fonte de inspiração para a minha personagem, a
imagem daquela mulher também sofrida nunca me saiu da memória.
Mas eu não queria somente copiar o estilo de Carmen Miranda. A
minha intenção foi produzir-me brasileira ao estilo dela, mas com o meu
próprio estilo. Como disse antes, ao nome da personagem resolvi acrescer
o “Dorá”, pronunciado com todas as letras e sons: dor há. Assim, nasceu
a Taís Dorá, o an(te)paro da minha dor.
Faz tempo e muita saudade eu sinto do Arraial d’Ajuda. Morando
na dita América há mais de duas décadas, a canção de Dorival Caymmi16
não me sai da cabeça: “Ai, quanta saudade eu tenho da Bahia” e logo
depois, os seus versos tristes e muito verdadeiros, “Mas esse mundo é
feito de maldade e ilusão”. A saudade que sinto da Bahia é enorme.
No livro que ganhei recentemente da madrinha, ao falar para ela
sobre o lançamento que vi na TV do Cores sob nossas peles17, pude
conhecer as histórias de muitos LGBTQIA+ brasileiros: A Sofia, que
nasceu Jorge e se apaixonou por um também Jorge. O André,
questionado sobre o seu jeito desviante de se vestir por seu namorado
gay que não se assumia. Carlos, um jovem transexual que trabalha numa
empresa e é respeitado por todos. A diretora da escola Jéssica, nascida
Augusto. O filho que pede aos pais que o abracem exatamente como fazia
no passado, antes de saberem que ele era gay. A filha prodígio que se
apaixona por uma mulher de olhos castanhos. Outra mulher que vive
abertamente a sua bissexualidade. O filho mais novo que foi encontrado
esquartejado em um terreno baldio, juntamente com um rapaz. A artista
lésbica que conta com o apoio do seu ex-marido. André, a drag queen
mais animada da festa que em casa vive a tristeza, a angústia e a apatia.
Os pais que amam sua filha que ama mulheres e pedem que os pais
aceitem seus filhos como são, pois o mundo lá fora já é cruel demais com
eles. A religiosa que se aceita e acolhe a todos, sem julgamentos. Na
contracapa do livro o autor pergunta aos seus leitores: “Você é capaz de
sentir as cores que germinam sob nossas peles?”.
Mas foi observando a Dona Selma do Arraial d’Ajuda, criadora de
lindos vasos de barro vermelho típico da nossa região, que compreendi
que o sustentáculo do vaso é o seu vazio. Dona Selma me dizia, quando
eu era criança: “quanto mais belo o vaso, maior é o seu vazio”. “No vazio
ninguém pode mexer”, ela alertava. “Só no barro é que podemos dar a
forma que queremos.”
Pensando na lição aprendida com Dona Selma, hoje, diante do
vazio imenso que sou, compreendo que só posso mexer na minha pele, o
16
Trecho da canção “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi.
17
Noé Filho, Cores sob nossas peles. Teresina: Quimera Editora, 2019.
invólucro do meu vazio, somente ela pode ser ornamentada e inventada.
14
Passei a chamar esse ato criativo de bordejamento da minha dor, ou seja,
sendo Taís Dorá consigo dar bordas a minha dor, esse buraco imenso
que sou na condição de vazio, imensidão muito bem representada pelo
“o” da palavra dor18.
Todos nós carregamos o nosso vazio. A grande ilusão que
produzimos, como faz o meu ex-namorado John, é tentar preencher o
vazio com conteúdos ilusórios: álcool, absinto e haxixe. Trago este
exemplo para dizer que as tentativas de preenchimento do vazio são
inúmeras e são fontes inesgotáveis de sofrimento, pois quanto mais se
tenta preencher o “o” da dor, descobre-se que o buraco não tem fim. Nas
piores situações, de tão preenchidos que se tornam os vasos, terminam
rachando ou perdendo inteiramente a sua forma: a deformação de si
mesmo.
Felizmente, para viver a Taís Dorá, não preciso de mudanças
radicais no meu corpo. Eu a produzo com maquiagem, adereços, muitas
camadas de tecido e um bocado de criatividade. Cuidando da parede do
meu vaso, sinto-me cuidando do meu vazio. O melhor da arte é não
precisar ser somente um, consigo ser múltiplo, posso ser elas. Precisamos
encontrar uma escora para nós mesmos, a minha é a Taís Dorá e muitas
outras que já fui e ainda outras que serei.
O uso de entorpecentes, como faz o John, é uma tentativa ilusória
de anestesiar a dor, ou seja, de não querer estesiar o buraco infinito da
dor. O trágico é que a quantidade de anestésico nunca será o bastante e
quem dele depende, fará mais e mais uso para o controle da dor.
Dia desses, navegando nos portais de notícias no meu tablet, li
sobre uma pesquisa que falava sobre “a epidemia da solidão gay”19. Travis
Salway, integrante da esquipe de pesquisadores do Bristish Columbia
Centre for Disease Control em Vancouver, Canadá, dedicou cinco anos de
estudos para compreender porque os homossexuais continuam se
matando. Segundo ele, “O traço definidor dos homens gays costumava
ser a solidão do armário. Mas agora você tem milhões que saíram do
armário e ainda sentem o mesmo isolamento”. Um dos entrevistados
reflete sobre as fases vividas pela comunidade homossexual: “Para os
gays, sempre nos dissemos que tudo estaria bem quando acabasse a
epidemia da aids. Depois veio o casamento gay: estaríamos bem quando
pudéssemos casar. Agora estaremos bem quando acabar o bullying.
Continuamos esperando o momento em que não vamos mais nos sentir
diferentes das outras pessoas. Mas o fato é que somos diferentes. Já é
hora de aceitar e lidar com isso.”
No meu círculo de amigos e amigas, encontro multidão de gente
angustiada. São pessoas que não (an-) gostam (gustia) de quem elas são
e do que fazem. A maioria se deixou ser corrompida pelas oportunidades
de mercado, fazendo do trabalho o seu próprio tripallium, o trabalho como
punição. Sofrem muito os que assim vivem. No geral, são homens e
mulheres des-gostosos com a vida, gente amargurada e insuportável, que
18
Cf. Marguerite Duras, O deslumbramento. Trad. Ana Maria Falcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986
[1964].
19
Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com.
nem mesmo se suporta. Não à toa muitos comentem suicídio na tentativa
15
de findar suas amarguras. Estamos vivendo uma solidão continental20,
lembrando-me aqui do livro maravilhoso de João Gilberto Noll, com os
seus personagens que tentam matar as suas solidões crônicas.
Mais uma vez me lembro das lições da Dona Selma: “tudo o que
fizer na sua vida, faça com dom. Sem dom, só existe a dor”. Não demorou
muito para eu compreender que para sanar a do[r], é possível trocar o “r”
por um “m”, a fim de encontrar o do[m] de cada um. Ser artista de palcos
sempre foi o meu dom. A minha invenção de Taís Dorá foi um trabalho
feito sobre mim mesmo, para descriar o Arthur que não pude ser na
Bahia. De nada adiantava ficar preso ao ressentimento do que não tive a
oportunidade de ser; restou-me inventar uma nova pele para ser quem
posso ser e, constantemente, deformar quem não mais quero ser. Na
impossibilidade de ser o Arthur Rimbaud, na minúscula Arraial d’Ajuda,
com a minha rebeldia de juventude, o meu jeito de ser e de me vestir,
intensos demais para aquela pequena comunidade, tive a graça de
encontrar alguém que enxergou o meu dom e me abriu as portas para as
artes no Rio de Janeiro, a porta de entrada para o trabalho que realizo
em Los Angeles.
Esta é a vida dos artistas, inventamos sobre outras vidas. A Tais,
de Walmir Ayala, foi fonte de inspiração para a minha criação de Taís
Dorá. Por sua vez, foi na Thais, de Anatole France21, um livro de 1890,
em quem ele se inspirou. De tão grato que sou ao criador da Tais
brasileira, de 1967, quis conhecer mais sobre a vida de Walmir Ayala.
Encontrei no seu diário22 o seguinte registro de 1º de março de 1956:
“Sim, sei desde já que não conseguirei integrar a harmonia do mundo em
que vivo, que as pessoas jamais me perdoarão o mal de não ser
exatamente como elas, e elas não têm culpa alguma disso”.
Assim como ele, eu também não pude seguir o mesmo caminho dos
outros. Foi no Rio de Janeiro, aos 22 anos de idade, que Walmir Ayala
encontrou refúgio para tornar-se quem ele era. O comportamento de um
homem afeminado deixava Porto Alegre chocada e, por muitas vezes,
sofreu constrangimentos por ser o homem sensível com voz fina.
Felizmente encontramos uma cidade plural para conseguirmos existir.
Eu sabia que no Arraial d’Ajuda não conseguiria me tornar um
artista. É interessante lembrar de uma outra leitura das tardes de sexta-
feira, dessa vez os Capitães da areia, do nosso conterrâneo Jorge
Amado23. Por ser uma cidade turística, os meninos infratores também já
existiam por lá, não com a mesma violência dos que agiam em Salvador.
Eu temia me tornar um deles, pois furtar parecia uma forma de diversão
para os meninos. Foi no destino do personagem Professor, um dos
capitães da areia, que me inspirei. Ele assim era chamado por ser o único
que sabia ler, e passava as noites lendo à luz de velas. No desfecho da
história e diante do desejo de mudar de vida, o menino Professor
conseguiu entrar em contato com um homem do Rio de Janeiro que um
20
João Gilberto Noll, Solidão continental. Rio de Janeiro: Record, 2012.
21
Anatole France, Thais. Trad. Sodré Viana. São Paulo: Martin Claret, 2006 [1890].
22
Walmir Ayala, Diário I: difícil é o reino. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1962.
23
Jorge Amado, Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1937].
dia lhe oferecera ajuda. Para a vida carioca ele partiu e se tornou um
16
pintor famoso que retratava as crianças da Bahia. Eis que na minha vida
apareceu a madrinha, e foi para a cidade maravilhosa que me destinei.
Posso dizer que fui salvo por sua capacidade de enxergar o meu potencial
artístico, sendo ela uma professora de teatro e, pela cidade, que me
acolheu do jeito que sou.
A madrinha carioca foi o Gato da minha vida. Refiro-me ao
personagem de Alice no país das maravilhas24, quando dialogam:
24
Lewis Carroll, Aventuras de Alice no país das maravilhas. Trad. Sebastião Uchôa Leite. São Paulo:
Editora 34, 2016 [1865].
Em outro registro do diário de Walmir Ayala, leio o que escreveu
17
em 28 de janeiro de 1957: “O que me dói agora é a solidão”. Concordo
com ele. Não é mais o vazio que me incomoda. Com ele aprendi a viver.
O que me dói agora é a distância das pessoas, o mundo individualizado
que se construiu para viver no século XXI.
Ontem fui acordado às 4 horas da manhã. Um vômito súbito me
levou ao banheiro e me fez expurgar, como nunca antes, tudo o que havia
sido calado por anos. Por baixo, em diarreia incessante, excretei o líquido
fétido retido em minhas entranhas. A limpeza foi feita.
Agora sinto muita falta da comunidade que conheci no Arraial
d’Ajuda, dos amigos, do jogo de bilas na areia branca das ruas, das idas
à Biblioteca do Céu e, principalmente, das leituras nas tardes de sexta-
feira na voz mansa da minha querida irmã, que se fazia leitora dos livros
trazidos por nossa mãe: “Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia”25.
Resta-me fazer o que escreveu Walmir Ayala em 20 de fevereiro de
1957, no seu diário: “Lanço-me à aventura de reinventar o mundo,
sozinho, e maravilho-me como uma criança diante de uma aurora
boreal”26.
Mais uma vez, é com Dorival Caymmi que canto a minha dor:
Paraíso
25
Trecho da canção “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi.
26
Walmir Ayala, Diário I: difícil é o reino. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1962.
27
Trecho da canção “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi.
28
Dante Alighieri, A divina comédia. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2011, p. 887.
29
Antonio Cicero, Guardar. Em Ítalo Moriconi, Os cem melhores poemas do século. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 337.
Longe de casa há décadas, a minha temporada nos Estados Unidos
18
é a vivência encarnada da Aldeia do Silêncio30. Por todos esses anos, não
houve um dia em que não tenha pensado no meu Arraial d'Ajuda.
Agora é um outro "s" que carrego na minha vida: a solidão. O fato
é que a vida dos gays e lésbicas de meia-idade é diferente. Os nossos
amigos heterossexuais se casam, constituem famílias e quando chegam
os filhos, não têm mais tempo para os amigos homossexuais. Os
programas sociais mudam e o vínculo afetivo de muitos anos é rompido
da noite para o dia. Lembro de um amigo heterossexual com quem
costumava ir ao cinema quase semanalmente. Quando o seu filho
nasceu, nunca mais houve tempo para um novo filme. Continuamos nos
falando, agora mediados pelo Whatsapp.
Na solidão que vivo nos Estados Unidos, assisto à chegada do fim
da minha carreira de atriz. Nos meus últimos exames de saúde fui
proibida pelo médico de calçar as minhas sandálias de plataforma, depois
de ser diagnosticada com duas hérnias de disco na coluna vertebral. A
dor insuportável que a doença me causa exigirá o meu abandono do
palco, restando somente o registro na memória filmada dos meus shows.
Ganhei muito dinheiro ao longo dessas décadas californianas e uma
doença agora paralisa o meu corpo. Não posso mais dançar e não tenho
mais a mesma vitalidade de antes para começar novos projetos artísticos.
Sinto que é chegada a hora de voltar para casa e construir vida
nova no Arraial d'Ajuda. É para lá que partirei no final do ano. Viverei a
velhice no mesmo lugar que me roubou a infância. O tempo passou, a
minha mãe também morreu, resta somente a minha irmã, os meus
sobrinhos e os seus filhos. É pelas crianças da minha terra que voltarei
para casa.
A minha intenção é cuidar da Biblioteca Comunitária do Céu, no
Arraial d'Ajuda, fazer daquele lugar, que um dia salvou a minha vida, o
espaço de acolhimento de muitas crianças que também se veem roubadas
de suas infâncias. Pelos livros de literatura pretendo levá-las ao mundo
mágico da fantasia, à capacidade de sonhar dias melhores e de superar
as agruras de um passado de dores e privações. É para casa que eu volto,
como um dia cantou a poeta Paola Tôrres31:
30
Frei Betto, Aldeia do silêncio. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
31
Paola Tôrres, Andei por aí: narrativas de uma médica em busca da medicina. Fortaleza: Edições UFC,
2016, p. 43.
OS GAÚCHOS 32
19
32
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, A existência em ruínas. Curitiba: CRV, 2019.
Charles Kiefer33, no artigo que escreveu em 2012, “a arte não pode ser
20
inferior à ciência”, ao incentivar “que os professores-cientistas produzam
textos artísticos também”. Neste período, comecei a ler poemas e estudar
os poetas para encontrar a preciosidade da poesia em Baú de espantos,
do gaúcho Mário Quintana, um também egresso do Colégio Militar. Foi
em outro gaúcho, por mim descoberto mais recentemente, apesar do seu
já distante falecimento em 1964, a mais bela interjeição lida: “Palavras...
palavras... Falte tudo! Menos elas!”34
Sempre tive vontade de manter um caderno de literatura, de
colocar em prática uma frase que encontrei, em apenso na tela do
computador, na década de 1990, durante meus estudos na Universidade
de New Hampshire. Na sala da diretora do programa de Doutorado em
Leitura e Escrita, via-se: nulla dies sine linea (nenhum dia sem uma
linha).
Terminou que outras obrigações acadêmicas me roubaram essa
vontade. O desejo, todavia, persistiu e hoje encontrou o tempo de
concretizá-lo. O sentimento é o de alegria, por conseguir realizar um
projeto engavetado há muitas décadas. O presente texto começou a ser
escrito com o subtítulo “solidão infinita”, não deixou de ser ou fazer
sentido, dentro de uma potência específica que alude; mas hoje se tornou
“busca infinita”, entre peregrinações literárias, desde as palavras
desbravadoras de Walt Whitman, em Folhas das folhas da relva.
Em 2018 comecei a ler os cadernos, os diários e as entrevistas da
escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, como parte de minhas
pesquisas de pós-doutoramento. Ela também tradutora dos grandes
poetas, cujas sexualidades foram geradoras de polêmicas e de beleza
literária, a exemplo do encantador Arthur Rimbaud, em O rapaz raro,
versado para o português de Llansol, no qual lemos: “A estrela choveu
rosa no coração da tua escuta, / O infinito rolou alvo no teu corpo, da
nuca aos rins, / O mar orvalhou ruivo os teus seios de rubro cobre / E o
Homem sangrou negro no teu flanco sem fim”.
Com a leitura das obras de Llansol, o meu desejo de escrever um
caderno de literatura intensificou-se ainda mais, caderno que não
obedece a uma sequência linear de datas como nos diários, caderno que
não é espaço de pensamento sobre alguma obra literária. Trata-se de um
caderno que me permite transacionar35 com as palavras lidas, ouvidas,
vistas, degustadas e intuídas, escrever com todas as vozes e imagens que
me cercam, assumindo a escrita como gesto inacabado.
33
Charles Kiefer, “A arte não pode ser inferior à ciência”. Jornal Zero Hora, Cultura, 26 de maio de 2012.
34
Álvaro Moreyra, Melhores crônicas. São Paulo: Global, 2010.
35
A inspiração para este modo de produzir um caderno de literatura parte dos meus estudos da Teoria
Transacional do Trabalho Literário, desenvolvida por Louise M. Rosenblatt, no seu livro The Reader, the
Text, the Poem: the transactional theory of the literary work. Carbondale: Southern Illinois University
Press, 1978.
e expressões. Precisei, entretanto, viajar ao Piauí para conhecer outro
21
escritor gaúcho que se tornaria meu projeto inadiável.
Foi na visita à livraria Toccata, em Teresina (PI), poucos dias antes
do Natal, que encontrei o exemplar de 2018 da revista literária Hoblicua,
edição especial dedicada a Walmir Ayala. Peguei-o nas mãos, um volume
com 196 páginas luxuosas, mas por ignorância, não atendi o chamado
das palavras. Mais uma vez isso se repetia comigo: desprezo ao que
precisa ser valorizado, suposto como total desconhecimento, talvez
hesitação para não ver o fio contundente do próprio caminho. Walmir
Ayala me pediu para levá-lo comigo e lá o deixei na prateleira.
No dia seguinte, voltei à livraria para comprar a revista e fazer um
registro fotográfico com a sua proprietária, Socorro Vaz, professora
aposentada da Educação Infantil, que há 25 anos fundou aquele espaço
cultural na cidade. Ainda na livraria, ao ler os primeiros trechos, comecei
a ser atravessado pelas palavras de Walmir Ayala, a sua vida e a sua
obra. A edição especial, organizada por Carlos Newton Júnior e dedicada
ao escritor de Porto Alegre, foi dividida em quatro secções: diários,
cartas, poemas e entrevistas. Ayala e eu fizemo-nos íntimos, desde o
nosso primeiro encontro poético. Geografias imateriais, nos termos de
Maria Gabriela Llansol, para contextualizar que o poeta do sul, radicado
no sudeste, possa adentrar o imaginário de um cearense, através de uma
visita despretensiosa no Piauí, por uma belíssima edição publicada em
Teresina. A costura de espacialidades não cessou nas primeiras
formalidades.
Ao retornar a Fortaleza (CE), pelos sebos virtuais, comprei dois dos
seus três diários publicados: Diário I: Difícil é o reino (1962), adquirido em
um acervo de segunda mão, localizado na Barra de São Francisco (ES) e
Diário III: A fuga do arcanjo (1976), comprado de outro amante dos livros,
em Belo Horizonte (MG). Dois meses depois, após incansáveis buscas,
localizamos o Diário II: Visível amor (1963), na biblioteca de Belas Artes
da UFMG, em Belo Horizonte, completando o meu acesso aos seus três
diários-livros que, somados à edição especial da revista Hoblicua, formam
o corpus principal das palavras de Walmir Ayala às quais tive acesso.
Descobri, ainda, que o seu espólio de obras publicadas e inéditas
foi doado à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro,
cidade onde viveu dos 23 anos de idade aos 58 anos, quando do seu
falecimento. Em entrevista na Hoblicua, Ayala relembra a sua partida
para o Rio de Janeiro: "Então vim com uma mala amarrada com um cinto,
dinheiro para a sobrevivência de uma semana, e muito medo. Mais que
medo, terror. Mas eu não imaginava que se pudesse tirar do medo a força.
Porque a poesia era maior do que o medo, e eu não sabia. E a poesia me
fortaleceu, me deu esperança, me engrandeceu, e me fez ver. [...] O
emprego de um ano numa companhia de seguros. Os quartos alugados.
Depois a decisão de não mais me burocratizar, de viver do que escrevia.
Muitos concursos literários, vencendo alguns, sobrevivendo disso, mais
um salário mínimo que meu pai me mandava. Colaborações em alguns
jornais, com remuneração simbólica. Amizades certas e apoio. Muito
apoio humano, e muita força para não descer. Não desci nunca”.
Precisei realmente encontrar o Walmir Ayala até que as suas
22
palavras fossem o incentivo de que necessitava para adentrar o meu
desejo (de caderno) literário. Ele, que encontrou nos amigos Lúcio
Cardoso, a coragem de viver; e em Cecília Meireles, a paixão pela
transcendência, motivou-me a dar início a este caderno. Começo a
encontrar o tempo que me foi roubado pelas tarefas universitárias,
muitas vezes sem sentido e puramente burocráticas. O meu sentido
pessoal também organiza as vozes-mundos dos quantos autores e
literaturas que venho percorrendo, assumindo uma multiplicidade de
papéis que me sensibilizam, feito testemunha ou intercessor ou doula ou
parte de mim mesmo.
No futuro passado que hoje adentramos, o primeiro dia de 2019,
as palavras de Walmir Alaya me servem de alerta: "Na época da repressão
havia mais criatividade, havia necessidade de romper o bloqueio, as
pessoas se esforçavam mais por inventar armas de escape. Havia uma
coisa mais intensa”.
Na primeira leitura de 2019, ao prazer da brisa matutina que me
embala na rede, releio a entrevista com Walmir Ayala (1933-1991), a
grande descoberta que fiz no ano passado. Não conhecia essa
preciosidade de escritor brasileiro. Diz ele: “Eu ponho na vida aquilo que
posso, na hora que posso. Às vezes despertava de madrugada com
alguma ideia e escrevia dez páginas, assim como também passava dois
dias sem escrever”. Assim como ele, eu também “só consigo conhecer o
que vivi”.
Hoje fui ao cinema assistir “Conquistar, amar e viver
intensamente”, um filme de Christophe Honoré. Desprovido de qualquer
informação prévia sobre o seu enredo, continuo inundado com as muitas
sensações e emoções provocadas pelo belíssimo trabalho. Palavras não
serão suficientes, neste momento que se dilata, para descrever o que vi e
senti. Resta-me aspirar que outros possam encontrar ou evocar
experiências semelhantes, junto a esse que reputo como um dos
melhores filmes franceses que tive a oportunidade de aprender. Ouso
resumi-lo com uma frase de Ayala: “O amor, para mim, é uma coisa tão
grande [...]”.
Depois das imagens, minha fantasia percorreu outros encontros,
na sobreimpressão de registros entre Walmir Ayala e seu companheiro
André. Em carta datada de 15/10/86, os dois eram somente amigos, um
morando no Rio de Janeiro e o outro no Rio Grande do Sul. Entre os dois,
uma diferença de 32 anos de idade. Aos 22 anos, André se muda para o
Rio de Janeiro, contando quase a mesma idade de quando Ayala deixou
as terras gaúchas para ganhar a vida no território carioca. Já na carta
datada de 11/4/91, endereçada a Nelsa do Carmo Seffrin, Ayala
confidenciou: “Eu e o André estamos vivendo o período mais interessante
do nosso relacionamento. Passou aquele estágio de devoção inicial, que
ele sentia por mim, e já nos nivelamos, ele impondo a personalidade que
realmente tem, eu dobrando um pouco este meu desejo de domínio.
Então nos cruzamos, diferentes e solidários, o que realmente importa”.
Quatro meses seguidos à referida carta, faleceu Ayala, destinando
23
um tempo brevíssimo ao seu amor, em diálogo imaginário com a minha
experiência no filme “Conquistar, amar e viver intensamente”.
Walmir Ayala um dia sonhou com a notoriedade das letras e do
mercado editorial, entretanto descobriu o que realmente importa para um
escritor: "Antes eu queria ser maior, ganhar o prêmio Nobel, entrar para
a Academia Brasileira de Letras e outras futilidades. Hoje eu rio disto
tudo. Quero escrever, entrar pelas portas que puder abrir, passar por
onde for possível, com a minha bagagem e a força do meu coração". Em
um outro trecho de entrevista, ele diz: "Tenho uma compulsão diária de
transformar em experiência literária todos os acontecimentos
existenciais. [...] É um registro e parece que, através desse registro, filtro
e aperfeiçoo a vivência".
Se eu também vivesse da literatura, seguiria o conselho dado por
Cecília Meireles a Walmir Ayala e não me submeteria a um processo
psicanalítico. Disse ela, citada por Ayaia na Hoblicua: "Walmir, foge dos
psicanalistas. Eles começam a desvendar os arcanos do conflito e matam
o ser poético que há em você, esse mistério do não saber o que é”.
Na impossibilidade de fazer da poesia o meu modo de experiência
subjetiva (e contra-analítica), como fez Ayala, eu recorreria à psicoterapia
junguiana. No livro O espírito na arte e na ciência, Carl Jung diz que o
artista "fala através de imagens primordiais", ou seja, através dos
arquétipos do inconsciente coletivo que ele é capaz de acessar pela arte,
"fala como se tivesse mil vozes; comove e subjuga", sendo este "o segredo
da ação da arte", escreveu Jung. Ele complementa: "De certo modo a
formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do
presente pelo artista, dando novamente a cada um a possibilidade de
encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo,
lhe seria negado. É aí que está o significado social da obra de arte: ela
trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à
tona aquelas formas das quais a época mais necessita”.
Não é novidade que os artistas, em sua maioria dramática, têm vida
curta. O coração de Ayala, por exemplo, parou de bater aos 58 anos de
idade. Sobre essa diferenciação do tempo vital, Jung constatou que, "São
raros os homens criadores que não pagam caro a centelha divina de sua
capacidade genial. É como se cada ser humano nascesse com um capital
limitado de energia vital”.
Sobre o ofício de poeta, Ayala diz: "Nunca foi fácil ser poeta.
Primeiro, porque a poesia é um dom de poucos para poucos, apesar de
que todo mundo acha fácil fazer poesia. [...] A poesia sempre esteve em
crise de público porque, elitista no bom sentido, exige reflexão. Ela não é
óbvia, mais esconde do que revela”.
Ayala relembra a importância dos poetas e amigos Cecília Meireles
e Lúcio Cardoso na sua vida: "Tive exemplos extraordinários nessas duas
pessoas, como não fazer da literatura uma espécie de mercado de favores,
de sucessos, de glórias pequenas”.
Dentre as correspondências escritas por Walmir Ayala, publicadas
na Hoblicua, existe uma de 18/9/90, onze meses antes da morte do
escritor, que foi endereçada ao artista plástico cearense José Tarcísio
Ramos (Zé Tarcísio). Nela, Walmir Ayala escreveu: "Quando você me
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propôs escrever em seu catálogo e me convidou para voltar à Fortaleza,
de onde tenho lembranças tão prazerosas, eu senti alegria, eu vibrei.
Depois fui esmorecendo. Estou passando ainda por maus períodos, de
altos e baixos, tenho a impressão de que isso vai durar para sempre. Para
sempre – enquanto me prender aqui esta minha precária vida”.
Ayala sentia a dor pungente da morte do seu filho adotivo
Gustavo, que cometeu suicídio. Ayala estava com 56 anos de idade. Na
carta, endereçada ao artista Zé Tarcísio explica a impossibilidade de
atender ao seu convite: "Não, não posso escrever sobre você. Não sei nem
como começar. Tenho medo de não corresponder ao que você espera, e
você merece tudo. Você foi um artista de raro estofo neste percurso de
crítico de arte que há trinta anos estou trilhando. Você é um modelo de
criador, de ser humano, de determinação, de lucidez e de muita, muita
fantasia”. Ayala termina a carta pedindo a compreensão de Zé Tarcísio:
"Espero que você me perdoe, me entenda. Você sabe o que era o Gustavo
para mim. Deve imaginar como estou, sem ele”.
A carta de Walmir Ayala endereçada ao José Tarcísio despertou o
meu desejo de conhecer mais sobre o artista cearense e sua amizade com
Ayala. Comecei o dia pesquisando sobre o artista. Nascido em Fortaleza
(CE), em 1941, José Tarcísio Ramos é pintor, artista intermídia, escultor,
cenógrafo e figurinista. Assim como outros pintores cearenses (e.g.,
Darcílio de Paula Lima), mudou-se para o Rio de Janeiro em 1961, após
o incentivo recebido de Antônio Bandeira (também cearense), para
estudar na Escola de Belas Artes de 1964 a 1966, além de ter aulas no
ateliê de Inimá de Paula.
Em 1968, durante a repressão militar, foi preso por 4 dias e o seu
trabalho foi mantido sob censura. Em 1971 é comissionado por Walmir
Ayala para ser um dos representantes brasileiros na VII Bienal de Paris.
Em 1974, ganhou o prêmio nacional do XXIII Salão Nacional de Arte
Moderna. Em 1982, retornou à Fortaleza e instalou o seu ateliê no andar
superior de uma das casas que circundam o atual Centro Dragão do Mar,
em Fortaleza.
Vivendo a tristeza da perda do filho, Walmir Ayala agradeceu a
gentileza do convite de José Tarcísio: "Não conseguirei passear, nem
receber toda a paisagem que tu queres me dar, porque a única paisagem
que tenho agora é esta estrada nua, que vou banhando de lágrimas”.
Hoje Walmir Ayala completaria 86 anos de idade. Ainda poderia
estar entre nós, não fora a fragilidade do coração de um homem que
sentiu deveras: "O amor, para mim, é uma coisa tão grande, é ouvir
música junto das pessoas de quem gosto, assistir a um filme, transmitir
uma impressão que eu tive de um bom espetáculo, seja com quem for,
dar comida a uma criança, cuidar do meu cachorro”.
O poeta, dramaturgo, romancista, contista, cronista e crítico
literário Walmir Ayala, nasceu em Porto Alegre (RS), no dia 4 de janeiro
de 1933 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 28 de agosto de 1991. Aos
quatro anos de idade, Ayala viu a sua mãe ser assassinada por seu pai,
dentro de casa, por motivo de adultério. Sua mãe de criação foi, segundo
ele, “a grande artífice da sua força interior. Os valores que ela colocou em
25
mim foram muito importantes”.
Aos 56 anos de idade, perdeu Gustavo, o seu filho que antecipou a
morte na casa de praia. Poucos anos antes havia passado pela cirurgia
de coração, para o implante da ponte de safena. Sobre o impacto da
cirurgia, reflete: “Eu me lembro que, quando me operei, nos primeiros
meses depois da cirurgia, tinha a impressão de que a inspiração tinha
acabado. Acho que foi o efeito da anestesia muito forte. Não tinha vontade
de escrever, não vinham as ideias. Pensei: acabou. Quatro meses depois,
exatamente no dia 8 de dezembro, levantei de manhã e vi que tudo estava
intacto”. Ayala foi um homem muito religioso, “apesar de católico, gosto
tanto da vida que gostaria de reencarnar”. Morreu dois anos depois do
suicídio do filho. O coração pareceu não suportar a tristeza.
A experiência de quase-morte foi conhecida por Walmir Ayala,
antes da sua partida derradeira. Sobre a morte, teve tempo para refletir
e alterar as suas prioridades na vida, conforme acompanhamos no
fechamento da entrevista na Hoblicua: “Mas deixei de me preocupar com
os planos a longo prazo, exatamente no dia em que me dei conta de que
era mortal. Porque, até certo ponto da vida, especialmente na juventude,
a gente pensa que é imortal e traça projetos mirabolantes. Depois vai
perdendo, vai aprendendo a perder. Um dia se olha no espelho e vê os
cabelos brancos. Depois aparece uma indisposição que anuncia a
defasagem orgânica. Então a gente tem dois caminhos, ou se entrega ao
desânimo ou vive o presente. Eu optei pelo presente. Vivo cada dia como
se fosse uma vida. Cada minuto é de grande importância e todos os dias
eu subo ao céu e desço ao inferno. A felicidade está na força de avançar,
de absorver cada experiência. Sou sensível a todas as oscilações, mas me
rejubilo de estar vivo agora, e absorvo esta dádiva com plenitude e
surpresa. Amanhã? Não sei...”.
Walmir Ayala amava muito viver. Na verdade a busca do amor foi
o seu tema central. Na referida entrevista, disse que os temas centrais na
sua obra não eram diferentes do de todo mundo: Amor, Morte, Deus.
“Desta trindade se ramificam mil subtemas. E acho que tudo isto estaria
resumido num único tema, Amor”.
O seu amor pela vida é enfatizado nestas palavras: “Gosto tanto da
vida que eu quero que haja outras vidas”. Ao expressa-las dá-se conta de
que é católico e percebe um pequeno contrassenso com a sua crença,
mas a sua esperança é maior: “eu quero a reencarnação. Eu quero
voltar”.
Menino pobre, filho de pai mecânico de automóveis, residente no
subúrbio de Porto Alegre, Walmir Ayala não tinha dinheiro para comprar
livros. Com a mesada muito pequena, conseguia comprar um livro e um
velhinho, dono do sebo perto da sua casa, fazia a troca dos livros que ele
lia, sem cobrá-lo. Ayala recorda com entusiasmo: “Era assim, eu
comprava um, e lia vinte, sem pagar os outros dezenove”. Quando
adolescente, lembra que as leituras mais marcantes foram A novela de
uma múmia, de Teófilo Gautier, e Thaís, de Anatole France.
No entanto, a sua fonte literária não foram os livros, não tinha
fôlego para ler ou escrever narrativas extensas. Até mesmo os seus
romances são curtos. A sua literatura é autobiográfica: “Talvez porque eu
26
seja no fundo um homem muito comum, enovelado num cotidiano de
tragédias e responsabilidades, cada dia mais consciente do fim”.
Considerava autobiografia não somente a sua vida, mas também a de
todos que por ela passaram, tanto os do seu convívio como os que nunca
encontrou pessoalmente.
Conhecido como um escritor homossexual, nunca empunhou a
bandeira da sexualidade na sua literatura, apesar de ter livros dedicados
ao tema, como o romance Um animal de Deus, sobre o qual explica, em
carta de 19/7/67, endereçada a Luiz Carlos Lacerda, publicada na
Hoblicua: “Meu livro [...] está na boca do forno. Sim, sobre amor
homossexual, 200 páginas de uma luta para provar que o espírito é
soberano, e o corpo um simples veículo, que o amor tem pouco a ver com
a carne, apenas nos arrasta aos paraísos da paixão, onde começa o
inferno e a glória”.
A preocupação maior de Ayala foi com o autoritarismo que reinou
no país, cujo passado vejo agora retornar ao momento presente do Brasil,
e por ocasião de uma condecoração recebida nos anos 1960, em Brasília,
discursou sobre a inutilidade da poesia em um país sem liberdade. A sua
fala, publicada em vários jornais do país, colocou-o em foco e o seu nome
passou a constar “na lista negra do SNI”, conforme as suas palavras.
Alguns de seus livros publicados, após esse discurso, foram
censurados. Toda a sua obra foi autobiográfica. Diz ele: “Eu escrevo a
minha vida. Sempre. [...] Toda a minha literatura foi vivida, mesmo nas
montagens mais absurdas. [...] Sou ressoante, sou espelho permanente
de mim mesmo, sou antena, só sei ser isso na minha dimensão”.
Tendo as suas experiências como registro de origem para sua
literatura, Ayala fez-se vanguardista e, segundo ele, “a função primeira
da vanguarda é incomodar, tornar desconfortável o conquistado,
exorcizar a rotina”.
Mas ser escritor no Brasil foi e continua sendo um enorme desafio
a ser enfrentado. Poucos são os que vivem unicamente dos seus direitos
autorais. Uma grande maioria, como vivenciou Ayala, precisou e deveria
atuar em diversos campos da escrita: “Eu, particularmente, roubo o
tempo que seria da criação para colocar a minha pena a serviço da crítica
de arte, do colunismo em jornal, coisas que me livram da burocratização
e me obrigam a uma permanente ginástica de sobrevivência. É a
realidade”. Mesmo com o tempo roubado, deixou-nos uma obra
vastíssima, um fato louvável para quem, sem mãe, tornou-se pai e mãe
do Gustavo e viveu unicamente da sua fonte de renda como escritor.
A literatura para Walmir Ayala foi o seu redil, “Escrevo hoje para poder
amanhecer amanhã”, conforme o registro de 28/1/64 do seu diário,
publicado na Hoblicua. Na mesma revista, em carta a Alex Nicolaeff,
datada de 14/2/91, seis meses antes do seu falecimento, recordou o seu
prazer de escrever: “Aliás, eu sempre gostei de escrever os meus livros,
que têm a minha medida, e que não pretendo que sejam mais do que isto.
Muitas vezes acordei de madrugada atropelado por uma frase, uma ideia,
uma palavra, uma cena. E o livro foi escrito sem disciplina, a não ser a
da emoção. Mas sem um encadeamento interior esquematizado. Cada
27
página foi sendo gerada pela circunstância, pelo fato novo do meu
cotidiano, por uma carta, uma lembrança, um sonho”.
Aqui me identifico plenamente com Ayala, a minha escrita também
acontece por fluxos de consciência, jorro de palavras que não conseguem
ser contidas e se apresentam de modo fulgurante, nos mais diversos
locais e nos diferentes horários. Um exemplo que fez brotar este texto que
agora escrevo foi o meu encontro imprevisível, com uma revista incógnita,
em uma terra de visita turística, quando sou apresentado ao trabalho de
Ayala, fruto de uma experiência furtiva com uma senhora livreira,
acompanhado do meu namorado Bini, natural de Teresina (PI), e cuja
proprietária foi sua professora no antigo jardim da infância.
Quando estamos abertos ao inusitado, somos levados a trilhar
caminhos jamais imaginados, pelos fatos novos do cotidiano. Não era
minha intenção conhecer a sua obra e nem sequer escrever com36 ele,
entretanto, agora que estou provocado e intumescido dele, quero
conhecer outras mais das suas palavras escritas.
São instantes que a gente não esquece jamais. Duas idas à livraria
Toccata, de mãos dadas com o amor, e novos caminhos se abrem. Feliz
cidade a de Teresina, a riqueza das suas revistas literárias, a Acrobata e
a Hoblicua, editores fabulosos como o Douglas Machado, com quem
meses depois troquei mensagens e já me fiz seu admirador por sua
gentileza e atenção; Teresina de um milhão de habitantes e de tantas
riquezas, povo amável e hospitaleiro, o cuidado do Sr. Antônio e a
amabilidade da D. Terezinha, o calor físico e o humano, da Mariana que
é amiga do Bini desde os tempos no Instituto Dom Barreto. Teresina, do
encontro dos rios, das capitais do Nordeste, era a única que me faltava
conhecer, uma realização de dezembro de 2018, que ainda contou com a
beleza e o profissionalismo da Orquestra Sinfônica de Teresina e do Balé
da Cidade de Teresina, ambos existentes há 25 anos, como política
pública municipal, em apresentação conjunta no concerto de Natal que
tivemos o privilégio de assistir no Parque da Cidadania.
Escrever as minhas passagens pelo mundo e os mundos que
passam por mim, é missão (d)e encantamento. De modo semelhante ao
Walmir Ayala, “eu nasci para isso, para estas pequenas histórias que no
fundo são meu tributo à vida em toda a sua abrangência. A vida como
painel, como horizonte, não o meu umbigo”.
Viver de poesia ou talvez, viver para a poesia, “a poesia ainda e
sempre meu refúgio, quando tudo o mais me faltava. E a resistência”,
lemos Ayala na Hoblicua. Para ele foi e para mim continua sendo, a poesia
como “minha catarse, minha análise, meu refúgio, minha âncora. [...]
Para mim, pelo menos, foi uma questão de sobrevivência”.
E a poesia não tem pressa, ela pode vagar, “se não puder, é porque
não deveria ter sido escrita”, somos lembrados por Ayala, para quem “[...]
os poemas vão ficando privados, palpitando em livros que talvez nem
sejam publicados, e a gente morre, como uma vez me disse Cecília
36
A minha proposta consiste em escrever com os textos de Walmir Ayala e não sobre os seus cadernos,
diários e entrevistas, diferenciação que me foi apresentada pela escritora portuguesa Maria Gabriela
Llansol.
[Meireles], sem estar em dia com a própria produção”, confessou em carta
28
de 5/1/83, endereçada a Carlos Drummond de Andrade.
No que concerne à importância da poesia, quero somar os meus
esforços aos de Ayala: “A poesia deveria invadir os auditórios das
universidades e dos museus; ser lida por seus autores, da maneira mais
singela e transpirada. Deveria ser tema de debate, de questionamento”.
Começa a tocar no rádio a canção O quereres, de Caetano Veloso: “ah,
bruta flor do querer”. Sou remetido à busca incessante de Ayala por seu
bem-amado. No seu Diário III (1976) lemos: "Ontem um amigo me
perguntava, intrigado, como eu podia falar de amor com tanta clareza,
como eu tinha coragem de escrever a palavra AMOR com todas as letras.
Respondi que tudo o que tenho escrito, desde que sei de mim, é uma
longa e interminável pesquisa do amor”37. Para ele o amor foi uma doença
que o manteve “constantemente em febre e êxtase”, sempre muito
consciente de que “o amor é difícil, o amor é grave”.
Continuo a leitura dos diários de Walmir Ayala e recolho alguns dos
seus fragmentos de amor. Diário I (1962): “Porque o amor, para mim, é
esta possibilidade de colher pedaços de vida dentro da vida, e justificar o
tempo de respiração, de sonho, de andarilho, que é a nossa passagem
rápida no mundo”. Diário II (1963): “Grande parte da minha fortaleza
devo-a ao desamor. Cada vez que amo sem ser amado, faço um esforço
para me sobrepor humanamente a quem me desprezou. É preciso que a
outra parte saiba que perdeu alguma coisa”. Diário III: “Até que ponto um
amor pode ser anormal? Penso que uma vez que seja amor já está isento
de anormalidade”. Diário I: “Sou um enamorado do amor, e o amor não
cessa por mais céleres que sejam os objetos. Ele se transfere”. Diário II:
“Ontem tudo me predispunha ao suicídio. E não era desgraça, era um
fermento no ar, um tédio – nada valia a pena. A literatura um engano.
Ou se tem valor ou não se tem. Se se tem valor toda a glória é inútil; se
não se tem, a inutilidade é a mesma coisa. Logo, terminar. Nada controla
a medida da vida, para que não se derrame o nosso vinho. Mais vale
trabalhar no silêncio”. Diário III: “Se sofro hoje, chegando a desejar que
termine logo a minha vida, sei que nesta experiência visceral da alma
colhi verdades que me aperfeiçoaram. No mínimo posso dizer que amei,
e já é dizer muito, e que cumpri meu amor num verdadeiro martírio e não
o traí em nenhum momento de sua duração [...] Estou completamente só
e tenho que reconhecer que deve ser assim. Escrevo com sangue estas
palavras. Uma coisa tão importante que me falta, e em me faltando
atenua a importância de tudo o resto. Estou como quem chora um filho
distante, como quem acabou conscientemente de perder sua mãe. É a
história humana, e eu me embriagava de poesia. Agora começou a ruir
tudo, só me resta esperar que as ruínas me forneçam solidão e memória.
Mas gostaria de alçar voo deste estado de alma”.
Clarice Lispector38 – O que é amor?
Chico Buarque – Não sei definir, e você?
Clarice Lispector – Nem eu.
37
Citações com atualizações ortográficas.
38
Trecho da entrevista “Chico Buarque ou Xico Buark”, publicada na Revista Prosa Verso e Arte,
disponível em www.revistaprosaversoarte.com
DEVIRES DE CORUAM 39 29
Hoje perdemos um menino. Ele não tinha nem 20 anos ainda. Um menino
muito querido de todos nós, começando a vida universitária... De um
minuto para o outro, o menino se foi. O seu suicídio foi uma pancada em
nossas vidas e serve como lição para sabermos que ninguém estará nesta
vida eternamente. Vamos respeitar as pessoas como elas são. Deixemos
que elas sejam quem elas querem e podem ser, sem julgamentos.
Eu acredito que toda manhã vou receber seu bom dia, que toda noite vou
te falar pra dormir bem; com o final de semana chegando, vou poder te ver.
Acredito que a gente é eterno. Daria tudo pra ter você de volta, daria a
minha vida por ti, que eu sei que era uma pessoa muito melhor que eu, e
qualquer um que conheço. Nunca fui tão feliz, e sei que nunca mais serei
do mesmo jeito que fui com você. Eu peço o perdão das pessoas que te
deixaram mal, e não o seu. Você não foi um covarde namo, você foi forte,
você tentou lutar, mas as palavras doem mais que qualquer coisa.
Covardes são aqueles que judiaram de uma pessoa tão boa como você. E
são esses que precisam de qualquer perdão, o meu eles têm, mas esse é o
mínimo do que precisam. Eu te amo, namo, e eu sei que você estará comigo
onde for, já sei que você está comigo nesse momento que estou passando.
Você está com um pedaço de mim, e eu esperarei até a outra vida por ti.
Novamente, te amo.
39
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, A existência em ruínas. Curitiba: CRV, 2019.
como homem. Aquela voz fina era o meu timbre natural. Hoje, falo grosso,
30
mas quando fiz aulas de canto, o meu sábio professor logo identificou que
aquele não era o meu canto natural. Falo grosso e canto fino. Assim fui
crescendo, enquanto ouvia em casa o meu cunhado dizer para eu tomar
jeito de homem. Não compreendia porque os adultos que o viam dizendo
aquilo, nunca me defenderam e não disseram que era normal ser quem
eu era. Na verdade, quem eu sou e sempre fui desde criança.
Hoje é o meu primeiro dia de acampamento de jovens em um
programa de verão nos Estados Unidos. Eu nunca tinha saído de casa
sozinho até os meus atuais 15 anos. Na verdade, foi ideia da minha mãe.
Meu pai faleceu há 2 anos num desastre de asa delta. Nunca conversei
com os meus pais sobre a minha orientação sexual, mas eu sinto que
minha mãe sabe. Tenho a certeza de que ela acredita que me mandando
para fora do país, eu serei “corrigido”. Estamos no lindo estado de
Vermont, no nordeste dos Estados Unidos, com seus muitos lagos e
florestas. Ficaremos todos acampados na região do lago Champlain,
durante 40 dias. Espero que sejam os melhores dias da minha vida.
Ontem foi o terceiro dia do acampamento e convidei namo para um
passeio de caiaque. Foi assim que passei a chamar o meu namorado, o
namo. Na verdade, no primeiro dia, quando chegamos neste casarão,
fomos distribuídos no mesmo quarto, juntamente com dois outros
adolescentes. Namo despertou a minha atenção por seu corpo belo, pele
dourada do sol e a sua forma elegante de falar. Somos os únicos
brasileiros no acampamento. Eu nasci no Rio Grande do Norte e namo
nasceu no Acre. Descobrimos, com o tempo, que éramos opostos em
tudo. Daí nasceu um amor indescritível por meu primeiro e, espero, único
namorado. Com ele pretendo viver até os últimos dias da minha vida. Mas
tenho muito medo de tudo que precisaremos enfrentar quando
retornarmos ao Brasil. O que ouvi na minha família sobre homens gays,
não quero nem perder o tempo de escrever aqui, são palavras que me
doeram na alma, quando eu já sabia que era um deles. No lago
Champlain, margeando o casarão, ficam os caiaques para duas pessoas.
Remamos juntos sobre o espelho d’água cristalina na imensidão da
natureza de Vermont. Eu olhava para a paisagem que se abria no
horizonte, mas o que me atraía, de verdade, era a beleza natural de namo.
De frente um para o outro, nossos olhos conversavam em silêncio. Foi
então que resolvemos atracar o caiaque em uma ilhota no meio do lago.
Ela parecia deserta. Somente os pássaros e a exuberante floresta nos
faziam companhia. Caminhamos por um tempo, em silêncio profundo,
nossos braços se tocavam e se afastavam como numa repulsão de
choque. Paramos para contemplar a calmaria do lago, quando as nossas
mãos geladas se encontraram com dedos relutantes ao primeiro toque.
Na sequência, nos beijamos pela primeira vez e permanecemos dentro de
um longo abraço que durou quase uma eternidade, até que percebemos
que o sol estava se pondo e era hora de remar de volta para o casarão.
Ontem tivemos jogo de futebol pela manhã. Sendo os únicos dois
brasileiros, fomos separados em times opostos. Os meninos acreditavam
que éramos muito bons no futebol. Esqueci de dizer que o acampamento
era somente para rapazes. Somos 30 adolescentes entre 15 e 17 anos de
idade, de diferentes partes do mundo. Quando o jogo começou, me veio a
31
imagem da bola _________________________________________ do outro lado
da quadra uma criança corre com medo da bola de futebol. Essa criança
fui eu. Seu veado, chuta a bola. Não é homem, não? Até os meus 13 anos
tive jogo de futebol obrigatório na minha escola. Todas as semanas, nas
aulas de Educação Física, o martírio se repetiu. Parece que é marica, com
medo da bola. A bola de futebol ________________ sempre foi um pesadelo
na minha vida. Para corrigir a criança-visivelmente-gay, meus pais me
matricularam em aulas de Karatê. Tem que aprender a se defender, dizia
o meu outro irmão. Eles nunca souberam que o meu sonho foi ser
bailarino. Uma vez ousei pedir à minha mãe para me colocar na escola
de balé e sua resposta foi a minha matrícula em esporte de lutas no clube
militar. Mas o namo não conseguiu ser meu adversário no jogo de futebol.
Ele domina a bola muito bem e o seu belo corpo atlético ajuda. Ao passar
por mim e me perceber com pânico da bola, fez com que a bola se
aproximasse de mim e dissesse baixinho para eu chutar a bola com força
para o meio do campo. Foi o que fiz durante todo o jogo e os outros
meninos me parabenizaram dizendo que eu era um verdadeiro
Ronaldinho do Brasil. Obrigado, meu namo, você sempre é incrível e
importante na minha vida.
Eu não quero que os 40 dias acabem. Namo e eu dormimos bem
tarde e acordamos ao nascer do sol para aproveitarmos ao máximo os
dias que teremos aqui. Queremos permanecer juntos e a única
proximidade garantida que temos é a do mesmo quarto dividido com mais
dois amigos, um holandês e um suíço, neste lindo casarão do lago
Champlain. Eles estão se tornando nossos amigos incríveis, têm uma
cabeça muito aberta e vêm de culturas que respeitam as diversidades
humanas. Eles logo perceberam que eu e namo havíamos nos tornado
mais do que amigos. Os dois deixaram as suas namoradas nos seus
respectivos países e sabem como é amar alguém. Um é holandês e
namora há três anos e o outro é suíço, com namoro de pouco mais de um
ano. As duas são as suas primeiras namoradas também, da mesma forma
que eu e o namo, mas pra gente o tempo é de somente 17 dias. O amor
tem se tornado o tema das nossas conversas que se perdem na
madrugada e continuam nos nossos passeios diários para a ilhota que
fica no meio do lago Champlain. Assim tem sido a nossa rotina nesses 20
dias restantes de acampamento. Quase sempre fugimos dos esportes
propostos por nosso líder, um cara bem compreensível, que sempre nos
diz que a vida é feita de escolhas. Os nossos amigos de quarto chegaram
pra gente na semana passada e disseram que podemos ser naturais
dentro do quarto, porque já perceberam que somos namorados e que dão
o maior apoio pra gente. Um deles até trocou de cama para que eu e o
namo compartilhássemos o mesmo beliche. Ontem os dois se
aproximaram da gente e nos abraçaram como amigos de verdade. Sabe
aquele abraço que você sente que é de alguém que gosta muito de você?
Assim foi o que sentimos no abraço com eles.
Eu trouxe comigo do Brasil o Livro do Desassossego, de Fernando
Pessoa. A minha intenção era lê-lo durante o longo voo do Brasil aos
Estados Unidos, mas os filmes disponíveis no avião roubaram a minha
atenção. Combinei com o namo para lermos no beliche, antes de
32
dormirmos, os 481 textos que constam no livro, são parágrafos curtos
com os quais Pessoa escreveu seu livro-diário, semelhantes em tamanho
a estes que escrevo no meu Devires. Se lermos 25 registros por noite, ao
final do acampamento a leitura estará concluída. O primeiro que me
marcou intensamente ontem, foi este: “Escrevo, triste, no meu quarto
quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei”.
Parece que sou eu escrevendo estas palavras antes de conhecer o namo.
Deste modo também me sentia no Brasil.
Hoje mais cedo eu disse ao namo que, antes de sair do Brasil, eu
estava lendo o livro Suicídio e alma, do psicólogo James Hillman e achei
muito interessante quando o autor diz que a gente precisa saber qual é a
fantasia mítica que encenamos da nossa morte. Eu só consigo pensar em
morrer voando alto como um pássaro, como fez o meu pai de asa delta.
Dois anos se passaram e não temos a certeza se foi realmente um
acidente, como dizem os peritos, ou um suicídio. Eu queria muito fazer
psicoterapia para compreender essa fantasia, mas a minha mãe diz que
preciso me dedicar aos estudos para conseguir uma excelente pontuação
no ENEM para cursar Medicina na Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Na verdade, eu sempre quis cursar Psicologia, mas a mamãe
insiste que primeiro preciso me tornar médico para depois fazer o que eu
quiser. Ela acredita que é a única profissão bem remunerada no Brasil.
Acho que ela é muito influenciada pelas amigas do trabalho, priorizam o
dinheiro em detrimento de uma vida que pulsa dentro delas. Sinto como
se a minha vida fosse se encerrar no ENEM. As psicólogas do colégio só
falam sobre a importância da motivação para se alcançar uma excelente
pontuação no ENEM. E a vida que pulsa dentro de mim, quem se
importa? Não tem ninguém para interceder por mim no colégio. O serviço
de orientação vocacional foi extinto. O serviço de psicologia se resume a
fazer palestras sobre as profissões para o mercado de trabalho atual e
como motivar alguém para atingir as metas programadas. Eu me sinto
um produto que vale o quanto pontua. No livro do psicólogo Hillman, ele
diz que a alma humana precisa se narrar e cada narrativa tem um
significado interior que precisa ser compreendido com a intermediação
do psicoterapeuta. Não sei se me restará tempo para isso. Já me sinto
consumido e tenho apenas 15 anos de idade. De hoje até a prova do
ENEM ainda faltam 16 meses.
Das atividades do acampamento, a que mais gosto são as rodas de
conversa que acontecem todas as tardes, depois do almoço. Quem conduz
é um professor de Filosofia, um ser humano incrível. No casarão existe
uma grande biblioteca. O professor pediu que escolhêssemos um dos
diálogos de Platão e fizéssemos a leitura em duplas para compartilharmos
as nossas impressões na roda. Felizmente eu e o namo somos fluentes
em inglês, porque não é tarefa fácil estudar Filosofia em uma língua
estrangeira. Eu e ele escolhemos o Lísis. Uma boa coincidência foi a que
eu e o namo começamos a estudar inglês aos 5 anos de idade. Eu amo
Filosofia também. Depois da Psicologia, é a minha outra paixão.
Ontem à tarde apresentamos as nossas impressões sobre o diálogo
Lísis, de Platão, uma verdadeira lição sobre a amizade. Vivemos um dos
momentos mais belos em nosso acampamento, com depoimentos do
33
fundo do coração, reflexões sinceras sobre a amizade em diferentes
culturas. Um amigo verdadeiro tornou-se raro nos dias atuais, foi o que
concluímos de tudo que ouvimos. A rapidez que impera no século XXI
destrói também os vínculos que antigamente eram fortes e duravam por
toda uma vida. A amizade que cultivamos de um celular para o outro é
uma ilusão que carregamos. Os amigos de verdade são poucos ou quase
inexistentes em todas as 30 vidas que estão aqui reunidas. Mas o Lísis
fala também das expectativas dos nossos pais e um trecho sobre isso me
tocou profundamente. Ele diz que o desejo dos nossos pais é ver-nos
realizados e felizes. Mas uma frase que lá estava escrita, aqui traduzida
para o português, continua ecoando em meus ouvidos: “querem ver você
feliz e o impedem de fazer o que deseja?” Não sou feliz com a vida que os
meus pais escolheram para eu viver. A constatação de Fernando Pessoa,
que li com o namo antes de dormir ontem, é minha também: “Verifico
que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste”. É
assim que me sinto quase todos os dias. Mesmo quando estou com o
namo, sinto uma tristeza que não quer sair de mim. Como diz o psicólogo
James Hillman no livro que li no Brasil sobre o suicídio, o sofrimento da
alma tem uma narrativa que pede para ser compreendida. Não posso
fazer isso sozinho. Eu preciso de um profissional capacitado nesse tipo
de compreensão. Há outro livro, desse mesmo psicólogo, que eu gostei
muito de ler no ano passado, O código do ser: uma busca do caráter e da
vocação pessoal. Felizmente encontro estes livros na biblioteca do meu
colégio e digo para a mamãe que foi a professora que mandou ler para
fazer uma redação para o ENEM. Só assim ela não diz nada e não me
manda estudar “coisas que importam”, como costuma dizer. Eu sempre
me pergunto se a minha vida não importa quando a escuto dizer essas
“coisas que importam”. Numa frase bem resumida, este outro livro do
James Hillman sustenta que cada um de nós tem uma singularidade que
pede para ser vivida, e o mais interessante é que essa singularidade já
está presente na pessoa, esperando para ser vivida. Como pode, então,
alguém querer determinar o destino do outro visando somente o mercado
de trabalho? O que hoje está em voga, amanhã poderá não mais estar.
Basta vermos as profissões que deixaram de existir.
O que eu mais temia chegou. Amanhã será o último dia do
acampamento de jovens, momento de despedidas e de retorno aos nossos
países. Namo e eu pegaremos o mesmo voo para São Paulo, mas quando
lá chegarmos _____________________________________________ não quero
nem pensar _____________________________ ele seguirá para o Acre e eu
para o Rio Grande do Norte. Quando nos veremos novamente? Esta é
uma pergunta sem resposta. Mas sei que não quero ficar muito tempo
longe dele. Não consigo viver sem a companhia dele. O nosso amor não
será desfeito.
Escrevo agora dentro do avião de volta para o Rio Grande do Norte.
As letras estão turvas. Os olhos vermelhos e inchados. No meu coração
carrego um aperto que nunca senti na vida. Por que separar duas pessoas
que se amam de verdade? Não consigo mais escrever uma linha. Vou
tentar dormir um pouco.
Cheguei à minha casa cedo pela manhã, depois de quase 24 horas
34
de voos. A minha mãe, o meu irmão, os meus tios e as minhas tias foram
me receber no aeroporto. Mamãe havia preparado um café da manhã que
parecia O Banquete, de Platão, ao menos tinha muito amor envolvido:
mesa farta de tanta comida e o meu preferido chocolate quente que só ela
sabe fazer. Dormi a tarde toda. Logo que acordei, descansado, chamei a
mamãe para conversar dentro do quarto. Falei tudo que tínhamos vivido,
agradeci pela oportunidade maravilhosa que ela tinha me proporcionado
e resolvi contar a ela sobre o namo ______________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
____________________________________________ o meu mundo desabou
________________________________________________ ao ouvir o que ela me
disse. Ela sabe escolher as palavras que fazem sangrar a minha alma.
Mamãe tem consciência da falta que o meu pai me faz. Éramos muito
próximos, fazíamos tudo juntos. Ele foi o meu melhor amigo e me apoiava
em tudo. Ouvir da minha mãe o que ela disse
______________________________________________ com voz firme e certeira,
doeu demais: “O seu pai sentiria muita vergonha de você”.
_____________________________ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Meu namo, quando a saudade aperta, escuto essa música e tenho
a certeza de que te quero pra sempre. É nos teus braços, no carinho do
teu abraço, que me sinto todinho teu, quando estás comigo não sinto o
tempo passar. Sonho com nós dois morando juntinhos, livres de todas as
cobranças das nossas famílias que não nos aceitam como somos. Este
dia chegará. Não vai demorar. Só preciso ser forte para suportar as
pressões da mamãe e tudo que ela idealizou para mim, mas são os sonhos
dela e não os meus. Estudo a graduação que ela escolheu, dizendo ser o
sonho do meu pai que não conseguiu ser médico. Mas não cabe a mim
realizar os sonhos dos outros. Cada um tem os seus. Eu tenho os meus
sonhos e tu és uma realidade na minha vida. Sempre sonhei encontrar
um namo como você. Encontrei. Te amo muito.
Depois de viver um tempo de trevas, até aos trinta e três anos, passei
lentamente a um tempo de iluminação. As coisas iluminadas, o espaço
geométrico iluminado, as plantas e o meu cão iluminados DCM:108 Não
compreendi hoje como consegui viver até aos quarenta e três anos
DCM:172 Vivo e espero o que terei para viver, agora com 45 anos F:102
Nestes últimos tempos, tenho vivido mais intensamente a actualidade da
minha existência. Sou realmente uma mulher de quarenta e seis anos, na
sua casa que resplende de uma luz cuidada, de uma proteção inviolável
AS:146 Fiz cinquenta anos, uma idade de ponderação que parece
corresponder à parte mais enérgica da minha mocidade. Julgo ter vivido
40
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, A existência em ruínas. Curitiba: CRV, 2019.
41
Tristeza e Incompletude foi composta de fragmentos textuais extraídos dos diários, cadernos e entrevistas
da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, livremente acoplados e posteriormente transformados em
feitura. As siglas correspondem aos seguintes títulos: AI: O azul imperfeito: livro de horas V (Lisboa:
Assírio e Alvim, 2015); AS: Um arco singular: livro de horas II (Lisboa: Assírio e Alvim, 2010); DCM:
Uma data em cada mão: livro de horas I (Lisboa: Assírio e Alvim, 2009; E: Entrevistas (Belo Horizonte:
Autêntica, 2011); F: Finita: diário II (Belo Horizonte: Autêntica, 2011); FP: Um falcão no punho: diário I
(Belo Horizonte: Autêntica, 2011); HFS: Herbais foi de silêncio: livro de horas VI (Lisboa: Assírio e
Alvim, 2018); IQC: Inquérito às quatro confidências: diário III (Belo Horizonte: Autêntica, 2011); NL:
Numerosas linhas: livro de horas III (Lisboa: Assírio e Alvim, 2013); PI: A palavra imediata: livro de
horas IV (Lisboa: Assírio e Alvim, 2014).
uma vida completa, e inicio outra, ao serviço de todos; para que os fundos
37
da experiência não se percam, desejaria poder sempre prosseguir, através
de uma terceira, ou de uma quarta vida, até chegar às portas do mar que
desconheço PI:36 Tendo eu vivido ainda agora meio século, não vejo como
a narrativa poderia competir com as palavras que são testemunhos
antiquíssimos e implacáveis do devir humano FP:124 Dizem que o corpo
declina, mas o que eu sinto é o renascimento da minha vida, mas o que eu
canto é uma suavidade inteligente e imortal. De olhos fechados, de olhos
abertos, tudo é o mesmo. Não sei se o rio corre para a nascente, ou se corre
para desaparecerem os múltiplos mares. Ou se corre circularmente. Sei que
corre circularmente, sem entontecer e sempre senhor de si mesmo
DCM:225 Desconheço o que é um corpo velho, os anos só me têm trazido
“alegre sabedoria”. Sem Nietzsche, sem João da Cruz, sem Müntzer, quem
seria eu? AS:170
Acendo uma vela no momento em que me sento para escrever sobre Prunus
Triloba, que foi abatida este fim-de-semana por ordem da proprietária da
casa de Jodoigne. [...] Foi Prunus Triloba que sofreu por mim, ou fui eu que
sofri por ela? Ao mesmo tempo fomos abatidas, e eu sei que ela alcançou
a vida eterna. É a árvore da piedade, e está à porta do paraíso, a tornar
verdejante e verdadeira a nossa entrada NL:302 Escrevo no meio de
plantas crescendo com elas através do fogo ____ AS:202 Ocupei-me das
plantas, as plantas ocuparam-se de mim, deram-me do que me é próprio
como seiva AS:34 Para equilibrar a nostalgia de não viver sempre no
38
mesmo lugar ou lado do amor, introduzi profundamente a natureza de
cada árvore no meu coração, e dei-lhe o nome de amado PI:47 Eu espero
que o jardim me revele os nomes de muitos seres que, a olho nu (e cego),
não se vêem há muito tempo pela terra; eu espero que o jardim me proteja
do mal de utilizar sem discernimento o poder; eu espero que o jardim nos
introduza numa Comunidade de Seres onde não há hierarquias, mas
apaixonantes diferenças. A ausência de semelhança será nosso estímulo
HFS:149 Tulipas, narcisos, jacintos, lírios DCM:180 Vogo e divago. Sofro
na companhia das plantas AS:176
42
Doravante usaremos a sigla LS para o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.
foi-se degradando no alcoolismo, Kierkegaard acabou triste e só. É
39
igualmente um facto que foram pessoas com vivências afectivas
extremamente agitadas E:35 Eu lia bastante Fernando Pessoa E:11 O
preço da liberdade é uma certa solidão NL:246 Os dias pesados fazem
parte de viver. Os dias onde nada se aprende fazem parte do saber PI:158
Preciso afastar-me da depressão AI:177 Retorno o que disse atrás; sem
melancolia, eu nunca poderia escrever. Foi pela nostalgia que cheguei às
palavras, à notação verbal de um panorama. [...] Fora pela nostalgia que
chegara às palavras NL:35-36 Um dia de crise é um dia em que perco a
memória da nossa cosmogonia; a crise é a crista de uma montanha, num
período de nebulosidade inabalável, porque nem mesmo há a divisão dos
dias; quase sempre é o prelúdio de uma grande serenidade, a palavra-
jardim e final FP:39
se a minha escrita não tiver a sua força, de nada vale dar entrevistas, me
dar a ver nos jornais E:47
A arte de ler é uma arte difícil porque é simultaneamente uma arte de criar;
ler é impulsionar uma moeda com outra, não é curar feridas, é abri-las para
dar passagem HFS:406 Aprendi muito quer com Pessoa, quer com
Nietzsche, que são figuras da linhagem onde me situo E:34 Acabei de ler
o fim da Odisseia, retomo-a na origem e significado. Ao mesmo tempo,
desejo planificar a História, os séculos, estendê-los no papel ou numa
grande folha de cartolina branca, através de esquemas, traçados e sinais.
Visioná-los DCM:124 Comparo estes dias a ler, ler sempre que estou livre,
aos dias da minha adolescência, em que uma espécie de fraqueza me fazia
deitar na cama e empregar meu tempo à margem da vida de estudante, na
única actvidade para a qual ainda me restavam forças e interesse: a
leitura de livros NL:55 Eu penso que a leitura cria uma relação
extremamente íntima com alguém. Alguém que lê profundamente é
penetrado pelo que lê. E, digamos, essa penetração é uma penetração
expansiva, não é uma penetração que fique ali para utilidade própria. Ler,
o bem ler, é algo que se dá imediatamente no movimento seguinte. E é
assim que eu compreendo o amor e as relações de sexualidade, que não
estão só centradas em órgãos determinados, mas que abrangem a
totalidade do corpo e que existem para que o belo se perpetue, o prazer de
estar, etc. Por isso é que eu considero a leitura uma espécie de sexo, porque
de facto penetra profundamente, penetra profundamente e reproduz E:57-
58 Hoje sentia-me tão cansada e deprimida, à noite, depois do jantar, que
nem me sentei uns momentos para ver televisão. Procurei imediatamente
a companhia de K[atherine] Mans[field], companhia real, liberta da sua
presença física, que desejo que repouse em mim mesma AS:139 Nietzsche
ensinou-me a atravessar o tempo, excluindo dele qualquer forma de
desterro ou de resignação. Mostrou-me que o tempo era perpendicular, que
havia neles lugares privilegiados, por onde se passa ciclicamente. Só que
no que ele nisso via de fatalidade, eu via a possibilidade do mútuo. Com
esse viajante infatigável, que não parava quieto, aprendi a detectar, nos
lugares mais inesperados, a vontade de pujança, que infelizmente foi
traduzida em português por vontade de poder. Isso é tanto mais trágico,
41
quanto é aí que se encontra um dos principais pontos comuns entre ele e
Spinoza E:42 O bem-estar do dia parece ter me conduzido a Fernando
Pessoa, como já me conduziu a Müntzer, a Ana de Peñalosa, a João da
Cruz AS:198 Penso neles, Nietzsche, Virginia Woolf, São João da Cruz,
São Basílio, porque tenho as suas Regras nas mãos, e admiro-me: – Todos
mortos? NL:36 Por mais sombrios que sejam os dias, a companhia de
Spinoza não me deixa nunca ficar muito tempo sem a terra, o ar, e o fogo
FP:43 Uma vez fui a uma livraria e encontrei um volume que continha uma
série de documentos de tipo oficial referentes à vida prática de Bach.
Quando os percorri senti que aqueles documentos eram capazes de gerar
energia, dando uma imagem consistente da vida de Bach através, por
exemplo, de uma relação dos móveis que havia em casa dele e de outros
detalhes que parecem extremamente banais mas que davam uma medida
de Bach e da sua época. Quase ao mesmo tempo tinha saído O Livro do
Desassossego [...]. E pareceu-me evidente que havia um elo profundo entre
os dois, por antagonismo: Bach, um homem cheio de poder no seu corpo,
uma globalidade física e mental, a casa organizada, podendo apoiar-se na
mulher e ter filhos; e Fernando Pessoa, um ser sem espaço próprio por
base. Tornou-se premente operar num texto a união antagónica entre os
dois E:11-12 Não há literatura. Quando se escreve só importa saber em
que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros
FP:52 Um livro é um cofre de narrativas, pertencendo ao ramo principal da
narrativa da árvore da vida NL:280
O texto é um afecto meu, procuro liga-lo a outras pessoas por quem tenho
também grande afecto IQC:97 A palavra é uma escrita do corpo, é uma
contabilidade do corpo DCM:28 De facto, sou muito diferente dos homens.
Sinto-me como um corpo à procura de caminho, não sem inteligência, mas
como se toda a inteligência devesse passar pelo corpo DCM:86 A
imaginação faz conhecer AS:40 As coisas que perdi são uma porta aberta
para eu as criar _______ PI:106 Nunca o desenvolvimento do raciocínio foi
independente de um ritmo criativo AI:140 Já todos perdemos afectos.
Perdê-los é perder uma virtualidade do universo, é perder uma parte do
corpo ou uma parte do corpo que ficou por fazer E:24 Mas eu nunca saí
daqui, no sentido de que nunca abandonei o meu corpo. A minha forma de
rebeldia foi tão-só a recusa de o viver mutilado FP:126
43
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, Travessias de cigano: feituras e feitiços.
Fortaleza: Armazém da Cultura, 2017.
44
Ernesto Sabato, Antes do fim: memórias. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
45
Ibid., p. 69.
46
Versos da canção “Hora do almoço”, de Belchior.
47
Versos da canção “Beautiful boy”, de John Lennon.
compromisso: saiamos para os espaços abertos,
44
arrisquemo-nos uns pelos outros, esperemos, ao lado
de quem estende os braços, que uma nova onda da
história nos erga. Talvez isso já esteja acontecendo, de
modo silencioso e subterrâneo, como os brotos que
pulsam sob a terra do inverno. [...] Só quem for capaz
de encarnar a utopia estará qualificado para o
combate decisivo, o de recuperar o quanto de
humanidade houvermos perdido.48
48
Ernesto Sabato, Antes do fim: memórias. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008,
p. 164.
49
Ibid., p. 88.
50
Raduan Nassar, Lavoura arcaica. 3. ed. revista pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Ernesto Sabato, há pouco lidas, sobre o ofício de escrever diariamente:
45
“O escritor deve ser uma testemunha insubornável de seu tempo, com
coragem par dizer a verdade, e rebelar-se contra todo oficialismo que,
cegado por seus interesses, perde de vista a sacralidade do ser humano”51.
A angústia o acompanhou no início de uma nova manhã. A
pergunta de Heinrich von Kleist, encontrada durante a leitura de A
propósito do teatro de marionetes o inquietou durante todo o dia:
“teríamos que comer de novo da árvore do conhecimento, para voltarmos
ao estado de inocência?”52 No mesmo Kleist, compreendeu o que o
incomodava: “a afetação aparece, como o senhor sabe, quando a alma (vis
motrix) encontra-se em qualquer outro ponto que não seja o centro de
gravidade do movimento”.
Assim ele amanheceu, fora do seu eixo. Afinal, o que o afetava?
Como encontraria o seu retorno à inocência? Para aliviar-se da angústia,
saiu cedo de casa para comprar-lhe uma nova escrivaninha. Organizou
durante o dia um novo canto de escrita. De frente para o jardim, madeira
de cerejeira, cadeira de palhinha, livros e decoração demarcavam o seu
novo espaço de criação. Será da seiva da árvore do conhecimento que se
sente carente neste momento?
Passando o ouvido de relance, escutou na rádio que Fernanda
Torres havia publicado o seu primeiro romance. Dirigiu-se à livraria e
adquiriu o seu exemplar do Fim53. Mais uma vez viu-se cercado pela
temática do fim. Na companhia de O respirar dos dias, de Josep
Esquirol54, a aprendizagem do tempo, na verdade do dar-se tempo, vive
plenamente os dias e com eles reaprende a importância de passar pelo
mundo e deixar o mundo passar por dentro de si. Segue sentindo,
pensando e sendo tocado pelos instantes do agora. Sereno, alegra-se com
a possibilidade de simplesmente sentir os dias e de ser afetado por tudo
e todos que o cercam.
51
Ernesto Sabato, Antes do fim: memórias. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008,
p. 56.
52
Heinrich von Kleist, Sobre o teatro de marionetes. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013,
p. 12.
53
Fernanda Torres, Fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
54
Josep M. Esquirol, O respirar dos dias: Uma reflexão filosófica sobre a experiência do tempo. Trad.
Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
46
DEIXE A VIDÊNCIA CHEGAR 55
55
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior (Org.), Leveza e escrita experimental. Curitiba:
CRV, 2019.
56
Citada em Peter Grey, Bruxaria apocalíptica. São Paulo: Penumbra Livros, 2017, p. 72.
57
Citado em Merlin Coverley, A arte de caminhar: o escritor como caminhante. Trad. Cristina Cupertino.
São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 28.
58
Sílvio Gallo, Em torno de uma de uma poética do/no pensamento. Revista Sul-Americana de Filosofia e
Educação, 23, nov/2014-abr/2015, p. 354.
59
Gustavo de Castro e Florence Dravet, Comunicação e poesia: itinerários do aberto e da transparência.
Brasília: Editora UnB, 2014, p. 51.
60
Paul Valéry, Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 213.
61
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 201.
históricas do passado e, enquanto tais, culturalmente
47
identificáveis) vêm do futuro.
De que futuro?
62
Carl Jung, Tipos psicológicos. Trad. Lúcia Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p. 73.
63
Research é o equivalente em inglês para o substantivo pesquisa.
64
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 46.
65
James Hillman, O sonho e o mundo das trevas. Trad. Gustavo Barcellos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.
92-93.
66
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 216.
fechado, ver é fulminantemente belo, como
48
maravilhosa é a qualidade luminosa da visão.
67
RANCIÈRE, Jacques Rancière, Políticas da escrita. Trad. Laís Ramalhete, Lígia Vassalo e Eloísa
Ribeiro. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2017.
68
Arthur Rimbaud, Uma estadia no inferno, Poemas escolhidos, A carta do vidente. Trad. Daniel Fresnot.
São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 79.
69
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 215-216.
70
Ibid, p. 45.
49
O poeta, a exemplo de Alberto Caeiro71, encanta e esclarece ao
dizer:
71
Fernando Pessoa, O eu profundo e outros eus: seleção poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.
137.
72
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 45-46.
Ao transacionar com a alma imunda, aquela que carrega as
50
impressões do mundo que se inscrevem na psique, o pesquisador-poeta
ao psicologizar produz fantasia. James Hillman73, recorrendo ao próprio
Carl Jung, explica:
73
HILLMAN, James. Ficções que curam: psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. Trad. Gustavo
Barcelos, Letícia Capriotti, Andrea Lima e Elizabeth Sandoval. Campinas, SP: Verus, 2010a, p. 118.
74
Ibid., p. 119.
75
HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Trad. Gustavo Barcellos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010b, p.
243.
76
Ibid., p. 123-124.
imagens especiais escolhidas por um mestre ou um
51
código.
2) A imaginação ativa não é um esforço artístico nem
uma produção criativa de pinturas e poemas. Pode-se
esteticamente dar formas às imagens – de fato, deve-
se esforçar esteticamente ao máximo –, porém esse
esforço é em nome das figuras, em dedicação a elas e
para realizar sua beleza, não em nome da arte. O
trabalho estético da imaginação ativa, portanto, não
deve ser confundido com arte para exibição ou
publicação.
3) A imaginação ativa objetiva não o silêncio, mas o
discurso, não a imobilidade, mas a história, ou o teatro
e a conversa. Ela enfatiza a importância da palavra,
não o cancelamento da palavra, e assim a palavra
torna-se um modo de “relacionar-se”, um instrumento
do sentimento.
4) Assim, ela não é uma atividade mística, realizada
em nome da iluminação, para alcançar estados
selecionados de consciência (samadhi, satori, união
com todas as coisas). Isso seria impor uma intenção
espiritual sobre uma atividade psicológica; seria um
domínio, mesmo uma repressão, da alma pelo espírito.
77
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 47.
78
Maria Gabriela Llansol, Herbais foi de silêncio: livro de horas VI. Lisboa: Assírio e Alvim, 2018, p. 25.
79
James Hillman, O sonho e o mundo das trevas. Trad. Gustavo Barcellos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
SOBRE O AUTOR 52
vivimentos_cavalcantejunior
© CIPÓ, 2020.
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© Francisco Silva Cavalcante Junior, 2020.
Coleção CIPÓ
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