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1

Nosso tempo é um tempo de expectativas, ansiedades


2
e bifurcações. Longe de ser o fim da ciência, creio que
nosso período verá o nascimento de uma nova
cosmovisão, de uma nova ciência, cuja pedra
fundamental engloba a flecha do tempo: uma ciência
que faz de nós e de nossa criatividade a expressão de
uma tendência fundamental do universo.
Ilya Prigogine

Talvez seja hora, num momento em que se assiste a


uma crescente estetização da existência, e isso em
todos os domínios, de pensar a ciência, ou, mais
modestamente, o conhecimento, como uma arte.
Michel Maffesoli

Por que você lê tão depressa? Leia mais devagar. Volte


pra linha inicial. Volte dez poemas atrás. Não mude a
página! Não leia o próximo poema!
Jacques Roubaud

Ao entrar num determinado sentimento, procure não se


afastar dele; será que assim, só com ele, você já não
adentra num mundo sem limites? Não deixem que essa
emoção mude a cada instante, penetrem nela
profundamente até onde for possível, com firmeza.
Podem pular, podem saltar, podem rolar, podem fazer
o que quiserem que essa emoção não se desprende. Só
não pode ser um sentimento qualquer.
Kazuo Ohno

Acredito sinceramente que isso é a coisa mais


importante em qualquer processo cultural. Ou você
mexe com a forma, ou então não mexe com nada.
Torquato Neto

Tudo o que eu escrevi, eu vivi, mas não como eu


escrevi.
Goethe
3

SUMÁRIO
Apresentação 4

TAÍS DORÁ 5

OS GAÚCHOS 19

DEVIRES DE CORUAM 29

TRISTEZA E INCOMPLETUDE 36

FINITUDE 43

DEIXE A VIDÊNCIA CHEGAR 46

Sobre o autor 52
APRESENTAÇÃO 4

Esta antologia de feituras de ciência poética, para distribuição


gratuita, objetiva comemorar em 2020, os 10 anos de criação de um
outro modo possível de se fazer ciência com arte, reunindo trabalhos
previamente publicados.

A ciência poética é a arte de escrever ao modo dos poetas,


contemplando o estético como outra forma do saber e a poesia como
racionalidade científica.

Ser capaz de produzir feituras da vida é tarefa primeira da ciência


poética, intencionalmente grafada com letras minúsculas, sem sujeitos,
objetivos e nem objetos de investigação previamente definidos, a poesia
da perambulação do(a) pesquisador(a)-poeta que passa pelo mundo e
deixa o mundo passar por si:

tem muita gente se dedicando às coisas úteis


eu optei pelas inúteis
as que passam despercebidas
os dispensamentos da poesia
do olhar, do cheirar, do tocar, do ouvir e do saborear
prefiro o desenho verbal das palavras inocentes
aquelas que me permitem ver o que ainda não vi
afinal, o essencial não é mesmo invisível aos olhos?
TAÍS DORÁ 1
5

Inferno
Por mim vai-se à cidade que é dolente,
por mim se vai até à eterna dor,
por mim se vai entre a perdida gente.
Dante Alighieri2

Desde que me entendo por gente, ao nascer do Sol e ao som do galo


cantar, escuto o rangido do torno da Dona Selma, de domingo a domingo.
A movimentação na casa colada a minha começa às quatro e meia da
manhã, quando ela tira água da cacimba para encher os potes que serão
usados no trabalho de produção dos vasos do dia. Os meninos do Arraial
d’Ajuda ganham os seus trocados pegando argila fresca no rio para ela.
A cada dia da semana tem um responsável de deixar na sua porta a argila
do dia. Para a nossa localidade vem gente de todos os cantos do Brasil
comprar os seus lindos vasos produzidos com o barro vermelho da nossa
terra.
Às cinco em ponto começa o programa na Rádio Comunitária da
Biblioteca do Céu, com poemas do Patativa do Assaré3 declamados por
pessoas da nossa comunidade, em meio aos acordes do rabequista que
anima os versos do poeta com a rabeca fabricada por ele. Este é o sinal
de que Dona Selma começou a tornear.
De tanto escutar, sei muitos de cor:

Nunca quis questão nem briga


Nem com quem já me ofendeu
Não sei pruque Deus castiga
Um home bom como eu
Que não matrata ninguém.
Pro sinhô conhecê bem,
Meu nome é Jorge Sutinga,
Sou honesto e sou honrado
E nunca fu i viciado,
Não fumo, nem bebo pinga.

Bem que eu poderia ser o tal Jorge Sutinga, e não sei como suportei
tanto castigo do meu povo no Arraial d’Ajuda. Mas depois eu falo sobre
isso.
Pois é ao som desses versos que Dona Selma começa um novo pote.
Ela pega um punhado de argila vermelha bem fresquinha e joga no meio

1
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, Infinito e escrita experimental. Curitiba: CRV,
2020.
2
Dante Alighieri, A divina comédia. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2011, p. 47.
3
Todos os poemas de Patativa do Assaré foram extraídos do livro Cante lá que eu canto cá: Filosofia de
um trovador nordestino. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.
do seu torno, que gira com o pé direito enquanto as mãos unidas no barro
6
começam a arredondar o primeiro trabalho do dia. Por entre as suas
mãos a argila sobe e desce, uma porção de vezes, e quase sempre volta a
ser amassada pelas mãos exigentes da Dona Selma.
A paciência é enorme, daquela de quem não tem pressa no que faz
e quer sempre fazer bem feito. Foi com essa precisão que o seu trabalho
ganhou fama e a nossa comunidade também. Enquanto a argila cresce
novamente, no rádio se ouve a sabedoria do trovador:

Quero um chefe brasileiro


Fiel, firme e justiceiro
Capaz de nos proteger
Que do campo até a rua
O povo todo possua
O direito de viver.

O medo de ser morto, por ser um homem diferente, sempre


perseguiu os meus dias. Guardei as palavras do poeta como uma súplica
dentro de mim. Infelizmente nunca encontrei esse direito de viver no
Arraial d’Ajuda. Só quando deixei o Brasil consegui respirar aliviado do
medo que me acompanhou por duas décadas. Agora preciso lidar com a
saudade da minha terra. O preço que se paga pela liberdade de ser é
muito alto.
A mesma liberdade que conquistou a Dona Selma quando xotou de
casa o seu marido cachaceiro, que além de bater nela quase todos os
dias, mexia com todos nós, eu inclusive. Ela passou a viver do seu
trabalho diário. Eu também segui o seu modelo de independência.
Por volta das cinco e meia da manhã o primeiro vaso fica pronto. É
hora de pegar o fio de nylon e passá-lo com destreza sob o vaso, a fim de
soltá-lo do torno. Com cuidado para não deixar marcas na peça, ela a
coloca sobre uma bandeja para a secagem.
Depois de seca, ela paga um adolescente para levar ao forno
coletivo da comunidade, de dois em dois vasos, um em cada mão, para a
queima final. O trabalho de Dona Selma me lembra a persistência de
quem sempre faz e refaz, sobe e desce, cresce e mingua, cai e levanta.
Quando o programa dedicado à poesia do Patativa do Assaré
termina às seis da manhã, Dona Selma faz uma rápida pausa para tomar
o seu café com tapioca e queijo coalho.
Os versos do poeta ficam ecoando:

A minha dor a carpir,


Passei noites sem dormir
Procurando descobrir
De onde o meu castigo vem;
Pois, digo de consciência,
Atendendo a providência,
Durante a minha existência
Nunca ofendi a ninguém.
O porquê de tanto castigo e sofrimento, pergunto-me até hoje.
7
Carrego comigo a imagem dos vasos crescidos e caros de Dona Selma, o
vaso que não se livra do seu vazio. É ele, o vazio, que faz o vaso ganhar
corpo e ser admirado como uma peça de arte de grande valor, mesmo
com seu espaço vazio.
Dor, um buraco infinito no meio, insuportável dor causada pelo
marido da Dona Selma: ardor, pele cindida, corpo marcado, alma
dilacerada, espírito infernizado do infante roubado pela traição adúltera
da fantasia do palhaço que entristeceu, no momento da brincadeira de
criança ao entardecer de mais um dia, nunca mais esquecido.

Ah, o mundo sempre foi


Um circo sem igual
Onde todos representam
Bem ou mal
Onde a farsa de um palhaço
É natural4

Foram precisos longos anos pintando o rosto para viver até deixar
a máscara cair, as lágrimas escorrerem, o vermelho do batom na boca
borrar e o corpo voltar a rolar no chão ao som de uma nova canção, em
busca de novos palcos, na reconstrução da vida,

I will survive!5
Oh, as long as I know how to love
I know I'll stay alive!
I've got all my life to live
I've got all my love to give
And I'll survive. I will survive!
Hey, hey!

Cresci naquela minúscula casa, guardando um segredo, aquele que


um dia ouvi do adulto, “nunca fala para ninguém o que aconteceu”. A
minha pele guardou o segredo. Foram anos de aflição. Somente as
páginas ensanguentadas do jornal conheciam o silêncio. São as dores
que o jornal não noticia, exceto naquele dia, naquelas páginas quaisquer,
encontradas no banheiro de casa, guardadoras do sangue que somente
agora ouso revelar. Não é um segredo qualquer, mas pode ser a história
de qualquer um, homem ou mulher.
Brincar com as sementes vermelhas da frondosa árvore que caíam
diariamente no quintal de casa era a minha diversão preferida. Dentro da
lata de refrigerante, as sementes faziam o som do maracá. Coladas no
papel, reconstruíam as pegadas de João e Maria no conto de fadas, ou
até mesmo a casa de doces deliciosos da bruxa que os esperavam. Com
as minhas mãos ainda pequenas, furava cada uma das sementes para
passar um fio de nylon, igual ao usado por Dona Selma, para fazer um
cordão de contas vermelhas. Eu gostava muito de cordões. Passei a
4
Trechos da canção “Sonhos de um palhaço”, de Antônio Marcos.
5
Trechos da canção “I will survive”, de Gloria Gaynor.
admirá-los no pescoço de minha irmã, que se ornamentava diariamente
8
com inúmeras bijuterias penduradas na porta do seu guarda-roupa e ela
ficava deslumbrante em saltos altos e roupas costuradas por ela mesma.
Na ausência da minha irmã, eu vivia o meu sonho secreto diante
do seu espelho. Abria a porta do guarda-roupa, revestida por um espelho
de cristal enorme, daqueles que permitiam a visão do corpo inteiro de
quem se arrumava. Na parte de cima da porta, um cabide com inúmeros
ganchos penduravam as bijuterias da minha irmã. Dispostas em cabides,
na porta ao lado, as suas roupas coloridas encantavam os meus olhos.
Do outro lado da parede do quarto, uma sapateira servia de morada para
as sandálias em saltos altos fabricadas por um artesão do Arraial
d’Ajuda. Esse quarto era o paraíso para as minhas fantasias. Para aguçá-
las ainda mais, dentro do guarda-roupa ficavam os estojos de
maquiagem. Roupas, saltos, bijuterias e maquiagens compunham os
meus primeiros personagens, sempre mulheres exuberantes e bem-
vestidas. Sobre os saltos, caminhava em silêncio nos tacos de madeira
corrida do quarto.
Foi neste quarto que nasceu Cica, a primeira personagem criada
nos teatros improvisados do Arraial d’Ajuda. Ela era uma atriz glamorosa.
Quando subi ao palco pela primeira vez no Rio de Janeiro, resolvi chamá-
la de Taís Dorá. Foi na minha festa de despedida do Brasil que cantei:

Hoje eu vou mudar6


Pôr na balança a coragem
Me entregar no que acredito
Pra ser o que sou sem medo.

Ao adotar o codinome de Taís Dorá, fiz-me pele reinventada, adorno


do sempre presente vazio em mim. Descobri nos palcos outro modo de
reinventar a minha dor.
O Brasil não soube valorizar o que me tornei, uma triste
constatação que perdura até os meus dias atuais, quando recebo e-mails
de pessoas que pedem a minha ajuda para também deixarem o País.
Precisei sair da minha terra em busca de valorização e de vida nova no
estrangeiro. Nos palcos de Los Angeles consegui o meu maior
reconhecimento, montado sobre sandálias brilhantes de plataforma de
20 cm de altura, ornamentando o vazio, fantasio-me de Carmen Miranda,
a minha fonte de inspiração para a criação de Taís Dorá. Desde a estreia
até os dias atuais, plateias dos luxuosos teatros lotam e aplaudem as
apresentações triunfais do meu corpo delicado que alcançou a fama
internacional como Taís Dorá nos palcos da Califórnia, cantando

Meu amor não posso esquecer7


Se dá alegria faz também sofrer
A minha vida foi sempre assim
Só chorando as mágoas que não têm fim

6
Trechos da canção “Mudanças”, de Vanusa.
7
Trechos da canção “Pra você gostar de mim”, de Carmem Miranda.
De volta para casa, depois de quatro noites consecutivas de shows
9
semanais na pele de Taís Dorá, há mais de duas décadas em cartaz, a
rotina se repete: retiro os meus turbantes de frutas tropicais da cabeça,
os inúmeros balangandãs que ornamentam os meus dedos, braços,
pescoço e orelhas, jogo sobre o sofá o vestido bordado com pedras e
rendas, em camadas sobrepostas de tecidos, os pés calejados, os dedos
espremidos dos pesados sapatos e o corpo exausto repousam sobre o
colchão no conforto da pequena casa comprada com o suor das minhas
lágrimas, no centro de uma metrópole californiana.
Ao acordar, livre da maquiagem e das máscaras, penso na cicatriz
que não sai de mim, até o adorno da próxima noite, o modo quase diário
de bordejar o meu vazio. Sei que não posso recuperar a minha inocência,
que foi roubada por um adulto. Somente posso recriar o meu vazio. A
solução que encontrei foi cantar e dançar na pele de Taís Dorá. Na
imagem do outro, refaço-me a cada show e enfrento a dor do meu eterno
buraco infinito. No corpo da minha personagem produzo a feitura da
ruína da dor: a alegria, as cores, o brilho, a sensualidade, a liberdade, o
glamour, a vida que desmoronou no pequeno vilarejo do Arraial d’Ajuda.
Numa de minhas tardes de leituras na Biblioteca do Céu, conheci
a história de Carmem Miranda e aquela imagem nunca mais me saiu da
memória. O meu nome artístico ganhou inspiração em outro momento de
leitura, ao deixar-me ser atravessado pelas palavras do conto “Taís”, de
Walmir Ayala. A dor era tão gritante àquela época, que ao nome da
personagem lida acresci o seu “Dorá”, pronunciado com todas as letras e
sons: dor há. Assim, no banco duro da pequena biblioteca do meu vilarejo
baiano, nasceu a Taís Dorá, o an(te)paro da minha dor.
Na solidão da minha cama estrangeira, rememorando com saudade
a Biblioteca do Céu, lembro-me da origem de tudo: foi num livro que tive
nas mãos, lançado em 1967, Histórias do amor maldito8. Naquele
compêndio de autores da literatura brasileira, reunindo contos de amor
homoafetivo, foi que descobri “Taís”. As palavras do título nunca mais me
saíram da cabeça: amor m-a-l-d-i-t-o. Carrego por todo o sempre a
pergunta sobre o que de maldito trago comigo e no meu jeito de amar. Na
capa do meu diário escrevi um trecho do conto do Ayala para nunca mais
me esquecer:

“Parece uma menina”. Nesse instante, olhou-se no espelho velho pregado


à porta. Tinham-lhe adaptado uma cabeleira dourada e leve, como seriam
os cabelos dos anjos. A frase da vizinha soando em seu ouvido.
Convenceu-se, aceitou. Daquela noite em diante seu corpo transformou-se
em inimigo que deveria conquistar.

A saudade que sinto da Bahia é grande demais. Na solidão do meu


quarto assisto aos canais brasileiros de TV, a única forma de reconexão
com o País que não soube me aceitar. Durante o programa de notícias,
alegro-me com um livro recém-lançado em Teresina (PI), Cores sob nossas

8
Trecho extraído do conto “Taís”, de Walmir Ayala. Publicado em Histórias do amor maldito (seleção de
Gaspariano Damata). Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1967.
peles9, de Noé Filho, e me emociono quando o autor diz que o livro é
10
dedicado “a todos e todas que tiveram suas cores silenciadas pelos
olhares funestos da ignorância”.
Taís Dorá continua triunfando nos palcos californianos. É
provendo beleza e alegria aos outros que domestico o meu vazio e canto:

Então procurei
Pelo teu cheiro nas ruas que andei
Nos corpos dos homens que amei
Tentando em vão te encontrar10

A arte de Taís Dorá é empreendimento diário na construção de uma


ruína para a palavra dor. Cica, a minha atriz primeira do Arraial d’Ajuda,
não me abandona jamais. Ela é marca encravada na minha pele cindida.
Com sabedoria adquirida ao longo dos anos, dos vasos quebrados e
desfeitos, da argila que sobe e desce no torno da Dona Selma, em busca
da perfeição, faço Carmen Miranda renascer na pele de Taís Dorá. Sei
bem que de nada adianta tentar preencher o buraco infinito que para
sempre carregarei na minha condição de humano. Descobri que é no
desamparo produzido pelo buraco que sou capaz de manter o meu vaso
belo e em constante adornamento. De que a minha inocência foi para
sempre roubada, tenho total consciência. A minha criatividade é a força
motriz com a qual faço reinventar todos os meus dias como artista, com
a minha eterna gratidão à proteção dos meus orixás da Bahia.
Na labuta semanal nos palcos californianos, descobri o que há
muito lera na Biblioteca do Céu, na fala de Diotima, uma criação de
Platão no seu O Banquete11: “o amor é dar o que não se tem”.
Dona Selma, com as suas mãos habilidosas, faz surgir na argila
vermelha da sua região, um vaso que cresce e ganha forma. Nas paredes
crescidas de argila, o vazio é recoberto e ganha bordas. Da arte da
ceramista surge o vaso de barro, comprado a preço alto por seus
apreciadores. Do mesmo modo são os meus shows de Taís Dorá, caros e
quase sempre lotados. Este é o caminho que trilha o artista: do vazio à
criação12:

Minha ideia era fazer alguma coisa ao jeito de tapera.


Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono,
como as taperas abrigam13.

Purgatório

Ó padre nosso que nos céus estás,


9
Noé Filho, Cores sob nossas peles. Teresina: Quimera Editora, 2019.
10
Trecho da canção “Volta”, de Johnny Hooker.
11
Platão, O Banquete. Trad. J. Cavalcante de Souza. 6. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
12
Cf. Catherine Lépront, Entre o silêncio e a obra: uma reflexão sobre o fazer artístico. Trad. Caio Meira.
Rio de Janeiro: DIFEL, 2014.
13
Fragmentos do poema “Ruína”, de Manoel de Barros, publicado em Ensaios Fotográficos. 5. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2005.
não circunscrito, mas por mais amor
11
que às primas obras lá do alto dás,
sejas louvado em nome e em valor
por toda a criatura em digno empenho
de graças dar a teu doce vapor!
Dante Alighieri14

O meu pai largou a nossa família quando eu tinha oito anos de


idade, dois anos depois de eu ter sido estuprado pelo marido da Dona
Selma. Ficamos ao léu, o que obrigou a minha mãe a trabalhar para criar
os seus três filhos e uma filha. As opções de emprego eram raras para as
mulheres do Arraial d’Ajuda, no litoral de Porto Seguro, na Bahia.
Foi como zeladora da Biblioteca do Céu que ela sustentou toda a
nossa família e nunca nos deixou faltar nada, do alimento ao livro. É
interessante como a minha mãe semianalfabeta dava tanto valor aos
livros. Toda sexta-feira ela pegava um livro emprestado da biblioteca e o
nosso ritual semanal era ouvir a leitura do livro escolhido por minha mãe,
feita por minha irmã, que estudava para ser normalista, daquelas que
fazia o Curso Normal durante os anos do Ensino Médio para se tornar
professora.
Certa vez a mãe escolheu o livro Uma temporada no inferno, de
Arthur Rimbaud15, porque o autor tinha o meu primeiro nome,
exatamente com o “th” que tenho no meu prenome. O meu corpo todo
tremia quando as palavras eram lidas por minha irmã, ao constatar que
a vida do Arthur Rimbaud era a minha também. Nunca esqueço o que
ouvi das páginas lidas com a voz mansa da minha irmã: “Consegui fazer
desaparecer do meu espírito toda a esperança humana. Para extirpar
qualquer alegria dava o salto mudo do animal feroz”.
Depois daquele livro eu quis conhecer tudo sobre Arthur Rimbaud.
Sentia que éramos um só. Nascemos Arthur. Somente aos 22 anos de
idade me fiz Taís Dorá, quando passei a morar e a trabalhar na Califórnia.
E também nunca esqueço o que escreveu o outro Arthur: “a vida floresce
pelo trabalho, velha verdade”.
Do meu nascimento aos 18 anos, morei no Arraial d’Ajuda. Por todo
esse tempo fui abusado sexualmente por meu cunhado, marido da minha
irmã. Nunca contei isso a ninguém, um segredo que deixo cair na página
em branco desse papel. Não sei como ninguém nunca desconfiou dele,
que aparecia na minha casa durante a semana, nos horários em que eu
estava estudando. Ele entrava, tirava toda a roupa e com a porta
entreaberta do quarto, dando para ver todo o seu corpo despido, me
chamava para entrar e transar com ele. No início, quando eu era bem
pequeno e o meu pênis ainda não havia crescido, pedia para eu enfiar
objetos pontiagudos no seu ânus até ele gozar. Com o passar do tempo,

14
Dante Alighieri, A divina comédia. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2011, p. 395.
15
Arthur Rimbaud, Uma temporada no inferno. Trad. Paulo Hecker Filho. Porto Alegre: LP&M, 2011
[1873].
o meu pênis foi crescendo e passei a penetrá-lo até o dia em que fiz 18
12
anos e resolvi me mudar para o Rio de Janeiro.
Eu não suportava mais viver aquela vida provinciana, apesar de
amar a minha família e alguns poucos da minha comunidade. Digo
alguns, porque foi nesta comunidade que vivi a minha temporada no
inferno. Não bastasse o estupro provocado pelo marido de Dona Selma, o
abuso sexual durante mais de quinze anos por meu cunhado, ainda vivi
inúmeros abusos pelos homens da minha redondeza, que diziam que eu
era a sua menina. Foram incansáveis as vezes em que introduziram o
dedo no meu ânus, faziam-me sentar sobre o pênis ereto e friccioná-lo
até gozarem. Não poucas vezes me penetraram também. Parecia existir
um pacto e o segredo foi mantido entre os homens que me molestavam.
Nunca, até hoje, ninguém da minha família tocou neste assunto.
Somente o meu corpo conhece a cicatriz que ele carrega e o abuso por ele
sofrido durante uma eternidade.
Foi então que, ao concluir o Ensino Médio, aos 18 anos, resolvi que
queria transformar a cicatriz na Cica, a atriz. Este foi o primeiro insight
que me ocorreu. Não tinha como me fazer atriz morando no Arraial
d´Ajuda. Felizmente a beleza natural das nossas praias gera um fluxo
turístico muito grande na nossa comunidade e foi lá que conheci uma
senhora, professora universitária de Teatro, no Rio de Janeiro. Ela me
prometeu ajuda, mas descrente de qualquer caridade, cansado de tanta
amargura e injúrias, dei ao humano o meu último voto de confiança.
Felizmente o seu desejo de me ajudar foi realmente generoso e
sincero. Passei a morar com ela, fiz cursos livres de teatro na
Universidade, tentei o vestibular por duas vezes, mas não obtive
aprovação. O nível de concorrência era grande demais para um estudante
vindo de uma educação precária no interior da Bahia. Ela sempre me
incentivou a não desanimar, dizendo que o meu talento era maior do que
qualquer graduação universitária e me motivava a continuar persistindo.
Durante dois anos ela financiou o meu curso completo de inglês, em uma
das melhores escolas de idiomas do Rio de Janeiro.
Foi nesta escola que conheci John, o meu professor e primeiro
namorado. Ele estava fazendo o estágio obrigatório de ensino de inglês
para estrangeiros, requisito para o seu doutoramento em Inglês, na
Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Com o apoio integral da minha madrinha, assim passei a chamá-
la, imigrei para os Estados Unidos com o John. Eu tinha 20 anos e ele
32. Namoramos por um ano no Rio de Janeiro. A sua vida era preenchida
com aulas na escola de inglês, restando pouco tempo para a nossa
convivência. Fui conhecê-lo de fato em Los Angeles, quando passamos a
morar em seu apartamento. No princípio a sua cordialidade e afeto me
conquistaram cegamente.
John revelou o seu lado obscuro, que não me foi mostrado no
Brasil: ele era boêmio, apreciador de bebidas alcóolicas em excesso, do
absinto e do haxixe. Após o uso de tudo isso, tornava-se extremamente
agressivo e me batia. Mais uma vez o meu corpo e a minha alma reviviam
o abuso doloroso da existência, o buraco da minha dor se mostrava cada
vez mais infinito.
Eu ainda não trabalhava, vivia de doação da minha madrinha, que
13
não tinha condição de me sustentar em um país estrangeiro. Sempre me
lembrando de suas palavras, que ressaltavam o meu talento, fui à
procura de trabalho no meio artístico de Los Angeles. Por intermédio dos
seus contatos conheci um diretor irlandês, residente nos Estados Unidos,
que tinha profundo interesse pela cultura brasileira e os seus ícones.
Foi no encontro com esse diretor que pude apresentá-lo à Taís
Dorá, a fonte de sustentação dos meus dias. Quando conheci a história
de Carmem Miranda, fonte de inspiração para a minha personagem, a
imagem daquela mulher também sofrida nunca me saiu da memória.
Mas eu não queria somente copiar o estilo de Carmen Miranda. A
minha intenção foi produzir-me brasileira ao estilo dela, mas com o meu
próprio estilo. Como disse antes, ao nome da personagem resolvi acrescer
o “Dorá”, pronunciado com todas as letras e sons: dor há. Assim, nasceu
a Taís Dorá, o an(te)paro da minha dor.
Faz tempo e muita saudade eu sinto do Arraial d’Ajuda. Morando
na dita América há mais de duas décadas, a canção de Dorival Caymmi16
não me sai da cabeça: “Ai, quanta saudade eu tenho da Bahia” e logo
depois, os seus versos tristes e muito verdadeiros, “Mas esse mundo é
feito de maldade e ilusão”. A saudade que sinto da Bahia é enorme.
No livro que ganhei recentemente da madrinha, ao falar para ela
sobre o lançamento que vi na TV do Cores sob nossas peles17, pude
conhecer as histórias de muitos LGBTQIA+ brasileiros: A Sofia, que
nasceu Jorge e se apaixonou por um também Jorge. O André,
questionado sobre o seu jeito desviante de se vestir por seu namorado
gay que não se assumia. Carlos, um jovem transexual que trabalha numa
empresa e é respeitado por todos. A diretora da escola Jéssica, nascida
Augusto. O filho que pede aos pais que o abracem exatamente como fazia
no passado, antes de saberem que ele era gay. A filha prodígio que se
apaixona por uma mulher de olhos castanhos. Outra mulher que vive
abertamente a sua bissexualidade. O filho mais novo que foi encontrado
esquartejado em um terreno baldio, juntamente com um rapaz. A artista
lésbica que conta com o apoio do seu ex-marido. André, a drag queen
mais animada da festa que em casa vive a tristeza, a angústia e a apatia.
Os pais que amam sua filha que ama mulheres e pedem que os pais
aceitem seus filhos como são, pois o mundo lá fora já é cruel demais com
eles. A religiosa que se aceita e acolhe a todos, sem julgamentos. Na
contracapa do livro o autor pergunta aos seus leitores: “Você é capaz de
sentir as cores que germinam sob nossas peles?”.
Mas foi observando a Dona Selma do Arraial d’Ajuda, criadora de
lindos vasos de barro vermelho típico da nossa região, que compreendi
que o sustentáculo do vaso é o seu vazio. Dona Selma me dizia, quando
eu era criança: “quanto mais belo o vaso, maior é o seu vazio”. “No vazio
ninguém pode mexer”, ela alertava. “Só no barro é que podemos dar a
forma que queremos.”
Pensando na lição aprendida com Dona Selma, hoje, diante do
vazio imenso que sou, compreendo que só posso mexer na minha pele, o
16
Trecho da canção “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi.
17
Noé Filho, Cores sob nossas peles. Teresina: Quimera Editora, 2019.
invólucro do meu vazio, somente ela pode ser ornamentada e inventada.
14
Passei a chamar esse ato criativo de bordejamento da minha dor, ou seja,
sendo Taís Dorá consigo dar bordas a minha dor, esse buraco imenso
que sou na condição de vazio, imensidão muito bem representada pelo
“o” da palavra dor18.
Todos nós carregamos o nosso vazio. A grande ilusão que
produzimos, como faz o meu ex-namorado John, é tentar preencher o
vazio com conteúdos ilusórios: álcool, absinto e haxixe. Trago este
exemplo para dizer que as tentativas de preenchimento do vazio são
inúmeras e são fontes inesgotáveis de sofrimento, pois quanto mais se
tenta preencher o “o” da dor, descobre-se que o buraco não tem fim. Nas
piores situações, de tão preenchidos que se tornam os vasos, terminam
rachando ou perdendo inteiramente a sua forma: a deformação de si
mesmo.
Felizmente, para viver a Taís Dorá, não preciso de mudanças
radicais no meu corpo. Eu a produzo com maquiagem, adereços, muitas
camadas de tecido e um bocado de criatividade. Cuidando da parede do
meu vaso, sinto-me cuidando do meu vazio. O melhor da arte é não
precisar ser somente um, consigo ser múltiplo, posso ser elas. Precisamos
encontrar uma escora para nós mesmos, a minha é a Taís Dorá e muitas
outras que já fui e ainda outras que serei.
O uso de entorpecentes, como faz o John, é uma tentativa ilusória
de anestesiar a dor, ou seja, de não querer estesiar o buraco infinito da
dor. O trágico é que a quantidade de anestésico nunca será o bastante e
quem dele depende, fará mais e mais uso para o controle da dor.
Dia desses, navegando nos portais de notícias no meu tablet, li
sobre uma pesquisa que falava sobre “a epidemia da solidão gay”19. Travis
Salway, integrante da esquipe de pesquisadores do Bristish Columbia
Centre for Disease Control em Vancouver, Canadá, dedicou cinco anos de
estudos para compreender porque os homossexuais continuam se
matando. Segundo ele, “O traço definidor dos homens gays costumava
ser a solidão do armário. Mas agora você tem milhões que saíram do
armário e ainda sentem o mesmo isolamento”. Um dos entrevistados
reflete sobre as fases vividas pela comunidade homossexual: “Para os
gays, sempre nos dissemos que tudo estaria bem quando acabasse a
epidemia da aids. Depois veio o casamento gay: estaríamos bem quando
pudéssemos casar. Agora estaremos bem quando acabar o bullying.
Continuamos esperando o momento em que não vamos mais nos sentir
diferentes das outras pessoas. Mas o fato é que somos diferentes. Já é
hora de aceitar e lidar com isso.”
No meu círculo de amigos e amigas, encontro multidão de gente
angustiada. São pessoas que não (an-) gostam (gustia) de quem elas são
e do que fazem. A maioria se deixou ser corrompida pelas oportunidades
de mercado, fazendo do trabalho o seu próprio tripallium, o trabalho como
punição. Sofrem muito os que assim vivem. No geral, são homens e
mulheres des-gostosos com a vida, gente amargurada e insuportável, que

18
Cf. Marguerite Duras, O deslumbramento. Trad. Ana Maria Falcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986
[1964].
19
Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com.
nem mesmo se suporta. Não à toa muitos comentem suicídio na tentativa
15
de findar suas amarguras. Estamos vivendo uma solidão continental20,
lembrando-me aqui do livro maravilhoso de João Gilberto Noll, com os
seus personagens que tentam matar as suas solidões crônicas.
Mais uma vez me lembro das lições da Dona Selma: “tudo o que
fizer na sua vida, faça com dom. Sem dom, só existe a dor”. Não demorou
muito para eu compreender que para sanar a do[r], é possível trocar o “r”
por um “m”, a fim de encontrar o do[m] de cada um. Ser artista de palcos
sempre foi o meu dom. A minha invenção de Taís Dorá foi um trabalho
feito sobre mim mesmo, para descriar o Arthur que não pude ser na
Bahia. De nada adiantava ficar preso ao ressentimento do que não tive a
oportunidade de ser; restou-me inventar uma nova pele para ser quem
posso ser e, constantemente, deformar quem não mais quero ser. Na
impossibilidade de ser o Arthur Rimbaud, na minúscula Arraial d’Ajuda,
com a minha rebeldia de juventude, o meu jeito de ser e de me vestir,
intensos demais para aquela pequena comunidade, tive a graça de
encontrar alguém que enxergou o meu dom e me abriu as portas para as
artes no Rio de Janeiro, a porta de entrada para o trabalho que realizo
em Los Angeles.
Esta é a vida dos artistas, inventamos sobre outras vidas. A Tais,
de Walmir Ayala, foi fonte de inspiração para a minha criação de Taís
Dorá. Por sua vez, foi na Thais, de Anatole France21, um livro de 1890,
em quem ele se inspirou. De tão grato que sou ao criador da Tais
brasileira, de 1967, quis conhecer mais sobre a vida de Walmir Ayala.
Encontrei no seu diário22 o seguinte registro de 1º de março de 1956:
“Sim, sei desde já que não conseguirei integrar a harmonia do mundo em
que vivo, que as pessoas jamais me perdoarão o mal de não ser
exatamente como elas, e elas não têm culpa alguma disso”.
Assim como ele, eu também não pude seguir o mesmo caminho dos
outros. Foi no Rio de Janeiro, aos 22 anos de idade, que Walmir Ayala
encontrou refúgio para tornar-se quem ele era. O comportamento de um
homem afeminado deixava Porto Alegre chocada e, por muitas vezes,
sofreu constrangimentos por ser o homem sensível com voz fina.
Felizmente encontramos uma cidade plural para conseguirmos existir.
Eu sabia que no Arraial d’Ajuda não conseguiria me tornar um
artista. É interessante lembrar de uma outra leitura das tardes de sexta-
feira, dessa vez os Capitães da areia, do nosso conterrâneo Jorge
Amado23. Por ser uma cidade turística, os meninos infratores também já
existiam por lá, não com a mesma violência dos que agiam em Salvador.
Eu temia me tornar um deles, pois furtar parecia uma forma de diversão
para os meninos. Foi no destino do personagem Professor, um dos
capitães da areia, que me inspirei. Ele assim era chamado por ser o único
que sabia ler, e passava as noites lendo à luz de velas. No desfecho da
história e diante do desejo de mudar de vida, o menino Professor
conseguiu entrar em contato com um homem do Rio de Janeiro que um

20
João Gilberto Noll, Solidão continental. Rio de Janeiro: Record, 2012.
21
Anatole France, Thais. Trad. Sodré Viana. São Paulo: Martin Claret, 2006 [1890].
22
Walmir Ayala, Diário I: difícil é o reino. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1962.
23
Jorge Amado, Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1937].
dia lhe oferecera ajuda. Para a vida carioca ele partiu e se tornou um
16
pintor famoso que retratava as crianças da Bahia. Eis que na minha vida
apareceu a madrinha, e foi para a cidade maravilhosa que me destinei.
Posso dizer que fui salvo por sua capacidade de enxergar o meu potencial
artístico, sendo ela uma professora de teatro e, pela cidade, que me
acolheu do jeito que sou.
A madrinha carioca foi o Gato da minha vida. Refiro-me ao
personagem de Alice no país das maravilhas24, quando dialogam:

– Poderia me dizer qual caminho tenho de tomar para sair daqui? –


perguntou Alice.
– Depende muito do lugar para onde você queira ir – respondeu o Gato.
– Para mim tanto faz para onde – disse Alice.
– Então não importa qual caminho você tomará – disse o Gato.

A madrinha um dia me disse que escolher um caminho é preciso e


não qualquer caminho, mas o meu caminho. Assim tenho feito, desde
então. Não é tarefa fácil, mas tem se mostrado possível, apesar do buraco
da dor, o meu “o” infinito que lá persiste e sempre existirá, por toda a
minha vida. Criar é o que me impulsiona a viver. Cada um de nós tem
um dom a ser realizado desde que chegamos ao mundo, disso não tenho
dúvidas.
Certa vez li uma crônica, na internet, do dramaturgo brasileiro,
Alcione Araújo, um Engenheiro Civil, professor universitário que durante
a carreia docente na UFMG resolveu cursar Teatro para depois dedicar-
se integralmente à docência das artes na UNIRIO, e nesse texto ele
apresenta importantes questionamentos:

Se a educação não se incumbir da missão de desvelar o mundo mágico


da arte, vamos continuar a ver formarem-se médicos, engenheiros,
advogados, economistas – cuja trajetória, muitas vezes por empenho,
talento pessoal ou sorte, chega a alcançar a competência técnica
específica – que nunca vibraram com a leitura de um romance,
nunca umedeceram os olhos com um soneto nem se enlevaram ao ouvir
uma sinfonia. A educação é irmã inseparável da cultura. Afastá-las é
matá-las de inanição – e limitar o homem à sua face mais fria, ao seu
coração mais duro. Será que há aí um ser humano em plenitude? Mas
que ser humano é esse? Que educação é essa?

Não me sinto capaz de responder as suas perguntas. Sei que me


esforço para levar um pouco da alegria brasileira aos estrangeiros que me
assistem, vibram com o meu corpo livre e exótico, permitem que os seus
corpos vibrem com os nossos ritmos baianos, os tambores e os acordes
que trago na dramaturgia da Taís Dorá. Sim, dor há. Nunca o vazio do
vaso vai ser preenchido. Nunca Cica, a atriz, sairá de mim. Talvez tenha
sido esta a melhor aprendizagem dos últimos tempos.

24
Lewis Carroll, Aventuras de Alice no país das maravilhas. Trad. Sebastião Uchôa Leite. São Paulo:
Editora 34, 2016 [1865].
Em outro registro do diário de Walmir Ayala, leio o que escreveu
17
em 28 de janeiro de 1957: “O que me dói agora é a solidão”. Concordo
com ele. Não é mais o vazio que me incomoda. Com ele aprendi a viver.
O que me dói agora é a distância das pessoas, o mundo individualizado
que se construiu para viver no século XXI.
Ontem fui acordado às 4 horas da manhã. Um vômito súbito me
levou ao banheiro e me fez expurgar, como nunca antes, tudo o que havia
sido calado por anos. Por baixo, em diarreia incessante, excretei o líquido
fétido retido em minhas entranhas. A limpeza foi feita.
Agora sinto muita falta da comunidade que conheci no Arraial
d’Ajuda, dos amigos, do jogo de bilas na areia branca das ruas, das idas
à Biblioteca do Céu e, principalmente, das leituras nas tardes de sexta-
feira na voz mansa da minha querida irmã, que se fazia leitora dos livros
trazidos por nossa mãe: “Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia”25.
Resta-me fazer o que escreveu Walmir Ayala em 20 de fevereiro de
1957, no seu diário: “Lanço-me à aventura de reinventar o mundo,
sozinho, e maravilho-me como uma criança diante de uma aurora
boreal”26.
Mais uma vez, é com Dorival Caymmi que canto a minha dor:

Ponha-se no meu lugar


E veja como sofre um homem infeliz
Que teve que desabafar
Dizendo a todo mundo o que ninguém diz27

Paraíso

O amor que move o sol e as outras estrelas.28

"Nunca fale para ninguém o que aconteceu entre nós". Aquelas


palavras ditas por um adulto, quando eu ainda era criança, fizeram-me
guardar o segredo por quase cinco décadas. Somente depois da morte do
meu estuprador, comecei a romper o silêncio que me foi por ele imposto.
Aprendi nos versos do poeta Antonio Cícero29, o verdadeiro sentido do
guardar:

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.


Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

25
Trecho da canção “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi.
26
Walmir Ayala, Diário I: difícil é o reino. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1962.
27
Trecho da canção “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi.
28
Dante Alighieri, A divina comédia. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2011, p. 887.
29
Antonio Cicero, Guardar. Em Ítalo Moriconi, Os cem melhores poemas do século. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 337.
Longe de casa há décadas, a minha temporada nos Estados Unidos
18
é a vivência encarnada da Aldeia do Silêncio30. Por todos esses anos, não
houve um dia em que não tenha pensado no meu Arraial d'Ajuda.
Agora é um outro "s" que carrego na minha vida: a solidão. O fato
é que a vida dos gays e lésbicas de meia-idade é diferente. Os nossos
amigos heterossexuais se casam, constituem famílias e quando chegam
os filhos, não têm mais tempo para os amigos homossexuais. Os
programas sociais mudam e o vínculo afetivo de muitos anos é rompido
da noite para o dia. Lembro de um amigo heterossexual com quem
costumava ir ao cinema quase semanalmente. Quando o seu filho
nasceu, nunca mais houve tempo para um novo filme. Continuamos nos
falando, agora mediados pelo Whatsapp.
Na solidão que vivo nos Estados Unidos, assisto à chegada do fim
da minha carreira de atriz. Nos meus últimos exames de saúde fui
proibida pelo médico de calçar as minhas sandálias de plataforma, depois
de ser diagnosticada com duas hérnias de disco na coluna vertebral. A
dor insuportável que a doença me causa exigirá o meu abandono do
palco, restando somente o registro na memória filmada dos meus shows.
Ganhei muito dinheiro ao longo dessas décadas californianas e uma
doença agora paralisa o meu corpo. Não posso mais dançar e não tenho
mais a mesma vitalidade de antes para começar novos projetos artísticos.
Sinto que é chegada a hora de voltar para casa e construir vida
nova no Arraial d'Ajuda. É para lá que partirei no final do ano. Viverei a
velhice no mesmo lugar que me roubou a infância. O tempo passou, a
minha mãe também morreu, resta somente a minha irmã, os meus
sobrinhos e os seus filhos. É pelas crianças da minha terra que voltarei
para casa.
A minha intenção é cuidar da Biblioteca Comunitária do Céu, no
Arraial d'Ajuda, fazer daquele lugar, que um dia salvou a minha vida, o
espaço de acolhimento de muitas crianças que também se veem roubadas
de suas infâncias. Pelos livros de literatura pretendo levá-las ao mundo
mágico da fantasia, à capacidade de sonhar dias melhores e de superar
as agruras de um passado de dores e privações. É para casa que eu volto,
como um dia cantou a poeta Paola Tôrres31:

Um dia eu volto pra casa


Eu volto pro meu sertão
Que é para quando eu morrer
Me misturar nesse chão
Meu corpo virar poeira
Poeira do meu sertão

30
Frei Betto, Aldeia do silêncio. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
31
Paola Tôrres, Andei por aí: narrativas de uma médica em busca da medicina. Fortaleza: Edições UFC,
2016, p. 43.
OS GAÚCHOS 32
19

O Rio Grande sempre esteve próximo a mim. Foi para lá que, na


primeira oportunidade de férias de um adolescente, viajei para desvendar
os encantos do extremo sul brasileiro. Ainda não sou capaz de
compreender o motivo do meu deslumbramento com as terras e o povo
riograndenses. Talvez por saber, desde criança, que um escritor cearense,
o José de Alencar, criou o mito da vida nos pampas, em O gaúcho, de
1870. Quiçá porque os melhores amigos do meu pai, aqueles que nos
visitavam em nossa casa (meu pai fundou o Instituto de Matemática do
Ceará, em 1946), foram os professores gaúchos e com eles tive muitas
interações na infância. Lembro-me, ainda adolescente, que recebemos o
telefonema de um daqueles senhores de Porto Alegre pedindo a ajuda do
meu pai para localizar o seu filho em Fortaleza, um jovem andarilho, que
vivia de cigania por toda a costa litorânea brasileira, de carona em nova
carona. Com algumas pistas compartilhadas pela voz gaúcha que
desconhecia, conseguimos, eu e meu pai, chegarmos ao paradeiro de um
filho disperso nas dunas alencarinas. Levamos conosco o tal jovem
simpático apesar de maltrapilho, para os cuidados do nosso lar até o
posterior retorno ao domicílio dos seus pais.
No Colégio Militar, a minha primeira paixão (não correspondida) foi
um colega de mesma sala, homem gaúcho, alto, muito bonito e atleta de
basquetebol. Eu era um rapaz de 15 anos, estávamos em 1983. Neste
introito, vou lembrando outros caminhos de aproximação aos tais
gaúchos (cuja lista não para de crescer: hoje anotei o nome de Tabajara
Ruas como um próximo escritor a ler), minha descoberta aparentemente
inesperada de Walmir Ayala, uma nova paixão já precedida pelo autor de
Clarissa, uma adolescente vislumbrada com o novo futuro, o outro
mundo com a possibilidade dos estudos distantes. Érico Veríssimo
conseguiu encher-me de esperança, em dias turvos da história brasileira,
na sua busca por democracia. Outro escritor gaúcho chegou-me pelas
mãos de um namorado, era nosso primeiro encontro, em 20 de agosto de
1999, ao presentear-me com o livro Morangos mofados, de Caio Fernando
Abreu. Não à toa, o referido namorado, à época estudante universitário,
trilhou carreira literária e acadêmica. Além de uma geração com Ney
Matogrosso de 1941, Freddie Mercury de 1946, Elton John de 1947,
Cazuza de 1958, Renato Russo de 1960, George Michael de 1963, ler e
reler Caio (de 1948) tornou-se uma das minhas paixões, cujas palavras e
vida me tocam profundamente. Anos depois, no Rio de Janeiro, a esposa
de um amigo surpreendeu-me com o Solidão continental, de João Gilberto
Noll, dizendo que se gostávamos de Caio, seria enfeitiçado com a escrita
de Noll. Ela também estava certa e passei a ler todas as obras deste
quase-Caio.
Quando decidi enveredar pelo campo das artes como ciência, o
primeiro estímulo quem me apresentou foi o acadêmico e escritor gaúcho

32
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, A existência em ruínas. Curitiba: CRV, 2019.
Charles Kiefer33, no artigo que escreveu em 2012, “a arte não pode ser
20
inferior à ciência”, ao incentivar “que os professores-cientistas produzam
textos artísticos também”. Neste período, comecei a ler poemas e estudar
os poetas para encontrar a preciosidade da poesia em Baú de espantos,
do gaúcho Mário Quintana, um também egresso do Colégio Militar. Foi
em outro gaúcho, por mim descoberto mais recentemente, apesar do seu
já distante falecimento em 1964, a mais bela interjeição lida: “Palavras...
palavras... Falte tudo! Menos elas!”34
Sempre tive vontade de manter um caderno de literatura, de
colocar em prática uma frase que encontrei, em apenso na tela do
computador, na década de 1990, durante meus estudos na Universidade
de New Hampshire. Na sala da diretora do programa de Doutorado em
Leitura e Escrita, via-se: nulla dies sine linea (nenhum dia sem uma
linha).
Terminou que outras obrigações acadêmicas me roubaram essa
vontade. O desejo, todavia, persistiu e hoje encontrou o tempo de
concretizá-lo. O sentimento é o de alegria, por conseguir realizar um
projeto engavetado há muitas décadas. O presente texto começou a ser
escrito com o subtítulo “solidão infinita”, não deixou de ser ou fazer
sentido, dentro de uma potência específica que alude; mas hoje se tornou
“busca infinita”, entre peregrinações literárias, desde as palavras
desbravadoras de Walt Whitman, em Folhas das folhas da relva.
Em 2018 comecei a ler os cadernos, os diários e as entrevistas da
escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, como parte de minhas
pesquisas de pós-doutoramento. Ela também tradutora dos grandes
poetas, cujas sexualidades foram geradoras de polêmicas e de beleza
literária, a exemplo do encantador Arthur Rimbaud, em O rapaz raro,
versado para o português de Llansol, no qual lemos: “A estrela choveu
rosa no coração da tua escuta, / O infinito rolou alvo no teu corpo, da
nuca aos rins, / O mar orvalhou ruivo os teus seios de rubro cobre / E o
Homem sangrou negro no teu flanco sem fim”.
Com a leitura das obras de Llansol, o meu desejo de escrever um
caderno de literatura intensificou-se ainda mais, caderno que não
obedece a uma sequência linear de datas como nos diários, caderno que
não é espaço de pensamento sobre alguma obra literária. Trata-se de um
caderno que me permite transacionar35 com as palavras lidas, ouvidas,
vistas, degustadas e intuídas, escrever com todas as vozes e imagens que
me cercam, assumindo a escrita como gesto inacabado.

Este caderno de literatura implica outro lugar de feituras


contínuas, onde meu corpo afeta-se com a matéria sígnica e ao mesmo
tempo empresta vitalidade às palavras, criando para elas novos contextos

33
Charles Kiefer, “A arte não pode ser inferior à ciência”. Jornal Zero Hora, Cultura, 26 de maio de 2012.
34
Álvaro Moreyra, Melhores crônicas. São Paulo: Global, 2010.
35
A inspiração para este modo de produzir um caderno de literatura parte dos meus estudos da Teoria
Transacional do Trabalho Literário, desenvolvida por Louise M. Rosenblatt, no seu livro The Reader, the
Text, the Poem: the transactional theory of the literary work. Carbondale: Southern Illinois University
Press, 1978.
e expressões. Precisei, entretanto, viajar ao Piauí para conhecer outro
21
escritor gaúcho que se tornaria meu projeto inadiável.
Foi na visita à livraria Toccata, em Teresina (PI), poucos dias antes
do Natal, que encontrei o exemplar de 2018 da revista literária Hoblicua,
edição especial dedicada a Walmir Ayala. Peguei-o nas mãos, um volume
com 196 páginas luxuosas, mas por ignorância, não atendi o chamado
das palavras. Mais uma vez isso se repetia comigo: desprezo ao que
precisa ser valorizado, suposto como total desconhecimento, talvez
hesitação para não ver o fio contundente do próprio caminho. Walmir
Ayala me pediu para levá-lo comigo e lá o deixei na prateleira.
No dia seguinte, voltei à livraria para comprar a revista e fazer um
registro fotográfico com a sua proprietária, Socorro Vaz, professora
aposentada da Educação Infantil, que há 25 anos fundou aquele espaço
cultural na cidade. Ainda na livraria, ao ler os primeiros trechos, comecei
a ser atravessado pelas palavras de Walmir Ayala, a sua vida e a sua
obra. A edição especial, organizada por Carlos Newton Júnior e dedicada
ao escritor de Porto Alegre, foi dividida em quatro secções: diários,
cartas, poemas e entrevistas. Ayala e eu fizemo-nos íntimos, desde o
nosso primeiro encontro poético. Geografias imateriais, nos termos de
Maria Gabriela Llansol, para contextualizar que o poeta do sul, radicado
no sudeste, possa adentrar o imaginário de um cearense, através de uma
visita despretensiosa no Piauí, por uma belíssima edição publicada em
Teresina. A costura de espacialidades não cessou nas primeiras
formalidades.
Ao retornar a Fortaleza (CE), pelos sebos virtuais, comprei dois dos
seus três diários publicados: Diário I: Difícil é o reino (1962), adquirido em
um acervo de segunda mão, localizado na Barra de São Francisco (ES) e
Diário III: A fuga do arcanjo (1976), comprado de outro amante dos livros,
em Belo Horizonte (MG). Dois meses depois, após incansáveis buscas,
localizamos o Diário II: Visível amor (1963), na biblioteca de Belas Artes
da UFMG, em Belo Horizonte, completando o meu acesso aos seus três
diários-livros que, somados à edição especial da revista Hoblicua, formam
o corpus principal das palavras de Walmir Ayala às quais tive acesso.
Descobri, ainda, que o seu espólio de obras publicadas e inéditas
foi doado à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro,
cidade onde viveu dos 23 anos de idade aos 58 anos, quando do seu
falecimento. Em entrevista na Hoblicua, Ayala relembra a sua partida
para o Rio de Janeiro: "Então vim com uma mala amarrada com um cinto,
dinheiro para a sobrevivência de uma semana, e muito medo. Mais que
medo, terror. Mas eu não imaginava que se pudesse tirar do medo a força.
Porque a poesia era maior do que o medo, e eu não sabia. E a poesia me
fortaleceu, me deu esperança, me engrandeceu, e me fez ver. [...] O
emprego de um ano numa companhia de seguros. Os quartos alugados.
Depois a decisão de não mais me burocratizar, de viver do que escrevia.
Muitos concursos literários, vencendo alguns, sobrevivendo disso, mais
um salário mínimo que meu pai me mandava. Colaborações em alguns
jornais, com remuneração simbólica. Amizades certas e apoio. Muito
apoio humano, e muita força para não descer. Não desci nunca”.
Precisei realmente encontrar o Walmir Ayala até que as suas
22
palavras fossem o incentivo de que necessitava para adentrar o meu
desejo (de caderno) literário. Ele, que encontrou nos amigos Lúcio
Cardoso, a coragem de viver; e em Cecília Meireles, a paixão pela
transcendência, motivou-me a dar início a este caderno. Começo a
encontrar o tempo que me foi roubado pelas tarefas universitárias,
muitas vezes sem sentido e puramente burocráticas. O meu sentido
pessoal também organiza as vozes-mundos dos quantos autores e
literaturas que venho percorrendo, assumindo uma multiplicidade de
papéis que me sensibilizam, feito testemunha ou intercessor ou doula ou
parte de mim mesmo.
No futuro passado que hoje adentramos, o primeiro dia de 2019,
as palavras de Walmir Alaya me servem de alerta: "Na época da repressão
havia mais criatividade, havia necessidade de romper o bloqueio, as
pessoas se esforçavam mais por inventar armas de escape. Havia uma
coisa mais intensa”.
Na primeira leitura de 2019, ao prazer da brisa matutina que me
embala na rede, releio a entrevista com Walmir Ayala (1933-1991), a
grande descoberta que fiz no ano passado. Não conhecia essa
preciosidade de escritor brasileiro. Diz ele: “Eu ponho na vida aquilo que
posso, na hora que posso. Às vezes despertava de madrugada com
alguma ideia e escrevia dez páginas, assim como também passava dois
dias sem escrever”. Assim como ele, eu também “só consigo conhecer o
que vivi”.
Hoje fui ao cinema assistir “Conquistar, amar e viver
intensamente”, um filme de Christophe Honoré. Desprovido de qualquer
informação prévia sobre o seu enredo, continuo inundado com as muitas
sensações e emoções provocadas pelo belíssimo trabalho. Palavras não
serão suficientes, neste momento que se dilata, para descrever o que vi e
senti. Resta-me aspirar que outros possam encontrar ou evocar
experiências semelhantes, junto a esse que reputo como um dos
melhores filmes franceses que tive a oportunidade de aprender. Ouso
resumi-lo com uma frase de Ayala: “O amor, para mim, é uma coisa tão
grande [...]”.
Depois das imagens, minha fantasia percorreu outros encontros,
na sobreimpressão de registros entre Walmir Ayala e seu companheiro
André. Em carta datada de 15/10/86, os dois eram somente amigos, um
morando no Rio de Janeiro e o outro no Rio Grande do Sul. Entre os dois,
uma diferença de 32 anos de idade. Aos 22 anos, André se muda para o
Rio de Janeiro, contando quase a mesma idade de quando Ayala deixou
as terras gaúchas para ganhar a vida no território carioca. Já na carta
datada de 11/4/91, endereçada a Nelsa do Carmo Seffrin, Ayala
confidenciou: “Eu e o André estamos vivendo o período mais interessante
do nosso relacionamento. Passou aquele estágio de devoção inicial, que
ele sentia por mim, e já nos nivelamos, ele impondo a personalidade que
realmente tem, eu dobrando um pouco este meu desejo de domínio.
Então nos cruzamos, diferentes e solidários, o que realmente importa”.
Quatro meses seguidos à referida carta, faleceu Ayala, destinando
23
um tempo brevíssimo ao seu amor, em diálogo imaginário com a minha
experiência no filme “Conquistar, amar e viver intensamente”.
Walmir Ayala um dia sonhou com a notoriedade das letras e do
mercado editorial, entretanto descobriu o que realmente importa para um
escritor: "Antes eu queria ser maior, ganhar o prêmio Nobel, entrar para
a Academia Brasileira de Letras e outras futilidades. Hoje eu rio disto
tudo. Quero escrever, entrar pelas portas que puder abrir, passar por
onde for possível, com a minha bagagem e a força do meu coração". Em
um outro trecho de entrevista, ele diz: "Tenho uma compulsão diária de
transformar em experiência literária todos os acontecimentos
existenciais. [...] É um registro e parece que, através desse registro, filtro
e aperfeiçoo a vivência".
Se eu também vivesse da literatura, seguiria o conselho dado por
Cecília Meireles a Walmir Ayala e não me submeteria a um processo
psicanalítico. Disse ela, citada por Ayaia na Hoblicua: "Walmir, foge dos
psicanalistas. Eles começam a desvendar os arcanos do conflito e matam
o ser poético que há em você, esse mistério do não saber o que é”.
Na impossibilidade de fazer da poesia o meu modo de experiência
subjetiva (e contra-analítica), como fez Ayala, eu recorreria à psicoterapia
junguiana. No livro O espírito na arte e na ciência, Carl Jung diz que o
artista "fala através de imagens primordiais", ou seja, através dos
arquétipos do inconsciente coletivo que ele é capaz de acessar pela arte,
"fala como se tivesse mil vozes; comove e subjuga", sendo este "o segredo
da ação da arte", escreveu Jung. Ele complementa: "De certo modo a
formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do
presente pelo artista, dando novamente a cada um a possibilidade de
encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo,
lhe seria negado. É aí que está o significado social da obra de arte: ela
trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à
tona aquelas formas das quais a época mais necessita”.
Não é novidade que os artistas, em sua maioria dramática, têm vida
curta. O coração de Ayala, por exemplo, parou de bater aos 58 anos de
idade. Sobre essa diferenciação do tempo vital, Jung constatou que, "São
raros os homens criadores que não pagam caro a centelha divina de sua
capacidade genial. É como se cada ser humano nascesse com um capital
limitado de energia vital”.
Sobre o ofício de poeta, Ayala diz: "Nunca foi fácil ser poeta.
Primeiro, porque a poesia é um dom de poucos para poucos, apesar de
que todo mundo acha fácil fazer poesia. [...] A poesia sempre esteve em
crise de público porque, elitista no bom sentido, exige reflexão. Ela não é
óbvia, mais esconde do que revela”.
Ayala relembra a importância dos poetas e amigos Cecília Meireles
e Lúcio Cardoso na sua vida: "Tive exemplos extraordinários nessas duas
pessoas, como não fazer da literatura uma espécie de mercado de favores,
de sucessos, de glórias pequenas”.
Dentre as correspondências escritas por Walmir Ayala, publicadas
na Hoblicua, existe uma de 18/9/90, onze meses antes da morte do
escritor, que foi endereçada ao artista plástico cearense José Tarcísio
Ramos (Zé Tarcísio). Nela, Walmir Ayala escreveu: "Quando você me
24
propôs escrever em seu catálogo e me convidou para voltar à Fortaleza,
de onde tenho lembranças tão prazerosas, eu senti alegria, eu vibrei.
Depois fui esmorecendo. Estou passando ainda por maus períodos, de
altos e baixos, tenho a impressão de que isso vai durar para sempre. Para
sempre – enquanto me prender aqui esta minha precária vida”.
Ayala sentia a dor pungente da morte do seu filho adotivo
Gustavo, que cometeu suicídio. Ayala estava com 56 anos de idade. Na
carta, endereçada ao artista Zé Tarcísio explica a impossibilidade de
atender ao seu convite: "Não, não posso escrever sobre você. Não sei nem
como começar. Tenho medo de não corresponder ao que você espera, e
você merece tudo. Você foi um artista de raro estofo neste percurso de
crítico de arte que há trinta anos estou trilhando. Você é um modelo de
criador, de ser humano, de determinação, de lucidez e de muita, muita
fantasia”. Ayala termina a carta pedindo a compreensão de Zé Tarcísio:
"Espero que você me perdoe, me entenda. Você sabe o que era o Gustavo
para mim. Deve imaginar como estou, sem ele”.
A carta de Walmir Ayala endereçada ao José Tarcísio despertou o
meu desejo de conhecer mais sobre o artista cearense e sua amizade com
Ayala. Comecei o dia pesquisando sobre o artista. Nascido em Fortaleza
(CE), em 1941, José Tarcísio Ramos é pintor, artista intermídia, escultor,
cenógrafo e figurinista. Assim como outros pintores cearenses (e.g.,
Darcílio de Paula Lima), mudou-se para o Rio de Janeiro em 1961, após
o incentivo recebido de Antônio Bandeira (também cearense), para
estudar na Escola de Belas Artes de 1964 a 1966, além de ter aulas no
ateliê de Inimá de Paula.
Em 1968, durante a repressão militar, foi preso por 4 dias e o seu
trabalho foi mantido sob censura. Em 1971 é comissionado por Walmir
Ayala para ser um dos representantes brasileiros na VII Bienal de Paris.
Em 1974, ganhou o prêmio nacional do XXIII Salão Nacional de Arte
Moderna. Em 1982, retornou à Fortaleza e instalou o seu ateliê no andar
superior de uma das casas que circundam o atual Centro Dragão do Mar,
em Fortaleza.
Vivendo a tristeza da perda do filho, Walmir Ayala agradeceu a
gentileza do convite de José Tarcísio: "Não conseguirei passear, nem
receber toda a paisagem que tu queres me dar, porque a única paisagem
que tenho agora é esta estrada nua, que vou banhando de lágrimas”.
Hoje Walmir Ayala completaria 86 anos de idade. Ainda poderia
estar entre nós, não fora a fragilidade do coração de um homem que
sentiu deveras: "O amor, para mim, é uma coisa tão grande, é ouvir
música junto das pessoas de quem gosto, assistir a um filme, transmitir
uma impressão que eu tive de um bom espetáculo, seja com quem for,
dar comida a uma criança, cuidar do meu cachorro”.
O poeta, dramaturgo, romancista, contista, cronista e crítico
literário Walmir Ayala, nasceu em Porto Alegre (RS), no dia 4 de janeiro
de 1933 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 28 de agosto de 1991. Aos
quatro anos de idade, Ayala viu a sua mãe ser assassinada por seu pai,
dentro de casa, por motivo de adultério. Sua mãe de criação foi, segundo
ele, “a grande artífice da sua força interior. Os valores que ela colocou em
25
mim foram muito importantes”.
Aos 56 anos de idade, perdeu Gustavo, o seu filho que antecipou a
morte na casa de praia. Poucos anos antes havia passado pela cirurgia
de coração, para o implante da ponte de safena. Sobre o impacto da
cirurgia, reflete: “Eu me lembro que, quando me operei, nos primeiros
meses depois da cirurgia, tinha a impressão de que a inspiração tinha
acabado. Acho que foi o efeito da anestesia muito forte. Não tinha vontade
de escrever, não vinham as ideias. Pensei: acabou. Quatro meses depois,
exatamente no dia 8 de dezembro, levantei de manhã e vi que tudo estava
intacto”. Ayala foi um homem muito religioso, “apesar de católico, gosto
tanto da vida que gostaria de reencarnar”. Morreu dois anos depois do
suicídio do filho. O coração pareceu não suportar a tristeza.
A experiência de quase-morte foi conhecida por Walmir Ayala,
antes da sua partida derradeira. Sobre a morte, teve tempo para refletir
e alterar as suas prioridades na vida, conforme acompanhamos no
fechamento da entrevista na Hoblicua: “Mas deixei de me preocupar com
os planos a longo prazo, exatamente no dia em que me dei conta de que
era mortal. Porque, até certo ponto da vida, especialmente na juventude,
a gente pensa que é imortal e traça projetos mirabolantes. Depois vai
perdendo, vai aprendendo a perder. Um dia se olha no espelho e vê os
cabelos brancos. Depois aparece uma indisposição que anuncia a
defasagem orgânica. Então a gente tem dois caminhos, ou se entrega ao
desânimo ou vive o presente. Eu optei pelo presente. Vivo cada dia como
se fosse uma vida. Cada minuto é de grande importância e todos os dias
eu subo ao céu e desço ao inferno. A felicidade está na força de avançar,
de absorver cada experiência. Sou sensível a todas as oscilações, mas me
rejubilo de estar vivo agora, e absorvo esta dádiva com plenitude e
surpresa. Amanhã? Não sei...”.
Walmir Ayala amava muito viver. Na verdade a busca do amor foi
o seu tema central. Na referida entrevista, disse que os temas centrais na
sua obra não eram diferentes do de todo mundo: Amor, Morte, Deus.
“Desta trindade se ramificam mil subtemas. E acho que tudo isto estaria
resumido num único tema, Amor”.
O seu amor pela vida é enfatizado nestas palavras: “Gosto tanto da
vida que eu quero que haja outras vidas”. Ao expressa-las dá-se conta de
que é católico e percebe um pequeno contrassenso com a sua crença,
mas a sua esperança é maior: “eu quero a reencarnação. Eu quero
voltar”.
Menino pobre, filho de pai mecânico de automóveis, residente no
subúrbio de Porto Alegre, Walmir Ayala não tinha dinheiro para comprar
livros. Com a mesada muito pequena, conseguia comprar um livro e um
velhinho, dono do sebo perto da sua casa, fazia a troca dos livros que ele
lia, sem cobrá-lo. Ayala recorda com entusiasmo: “Era assim, eu
comprava um, e lia vinte, sem pagar os outros dezenove”. Quando
adolescente, lembra que as leituras mais marcantes foram A novela de
uma múmia, de Teófilo Gautier, e Thaís, de Anatole France.
No entanto, a sua fonte literária não foram os livros, não tinha
fôlego para ler ou escrever narrativas extensas. Até mesmo os seus
romances são curtos. A sua literatura é autobiográfica: “Talvez porque eu
26
seja no fundo um homem muito comum, enovelado num cotidiano de
tragédias e responsabilidades, cada dia mais consciente do fim”.
Considerava autobiografia não somente a sua vida, mas também a de
todos que por ela passaram, tanto os do seu convívio como os que nunca
encontrou pessoalmente.
Conhecido como um escritor homossexual, nunca empunhou a
bandeira da sexualidade na sua literatura, apesar de ter livros dedicados
ao tema, como o romance Um animal de Deus, sobre o qual explica, em
carta de 19/7/67, endereçada a Luiz Carlos Lacerda, publicada na
Hoblicua: “Meu livro [...] está na boca do forno. Sim, sobre amor
homossexual, 200 páginas de uma luta para provar que o espírito é
soberano, e o corpo um simples veículo, que o amor tem pouco a ver com
a carne, apenas nos arrasta aos paraísos da paixão, onde começa o
inferno e a glória”.
A preocupação maior de Ayala foi com o autoritarismo que reinou
no país, cujo passado vejo agora retornar ao momento presente do Brasil,
e por ocasião de uma condecoração recebida nos anos 1960, em Brasília,
discursou sobre a inutilidade da poesia em um país sem liberdade. A sua
fala, publicada em vários jornais do país, colocou-o em foco e o seu nome
passou a constar “na lista negra do SNI”, conforme as suas palavras.
Alguns de seus livros publicados, após esse discurso, foram
censurados. Toda a sua obra foi autobiográfica. Diz ele: “Eu escrevo a
minha vida. Sempre. [...] Toda a minha literatura foi vivida, mesmo nas
montagens mais absurdas. [...] Sou ressoante, sou espelho permanente
de mim mesmo, sou antena, só sei ser isso na minha dimensão”.
Tendo as suas experiências como registro de origem para sua
literatura, Ayala fez-se vanguardista e, segundo ele, “a função primeira
da vanguarda é incomodar, tornar desconfortável o conquistado,
exorcizar a rotina”.
Mas ser escritor no Brasil foi e continua sendo um enorme desafio
a ser enfrentado. Poucos são os que vivem unicamente dos seus direitos
autorais. Uma grande maioria, como vivenciou Ayala, precisou e deveria
atuar em diversos campos da escrita: “Eu, particularmente, roubo o
tempo que seria da criação para colocar a minha pena a serviço da crítica
de arte, do colunismo em jornal, coisas que me livram da burocratização
e me obrigam a uma permanente ginástica de sobrevivência. É a
realidade”. Mesmo com o tempo roubado, deixou-nos uma obra
vastíssima, um fato louvável para quem, sem mãe, tornou-se pai e mãe
do Gustavo e viveu unicamente da sua fonte de renda como escritor.

A literatura para Walmir Ayala foi o seu redil, “Escrevo hoje para poder
amanhecer amanhã”, conforme o registro de 28/1/64 do seu diário,
publicado na Hoblicua. Na mesma revista, em carta a Alex Nicolaeff,
datada de 14/2/91, seis meses antes do seu falecimento, recordou o seu
prazer de escrever: “Aliás, eu sempre gostei de escrever os meus livros,
que têm a minha medida, e que não pretendo que sejam mais do que isto.
Muitas vezes acordei de madrugada atropelado por uma frase, uma ideia,
uma palavra, uma cena. E o livro foi escrito sem disciplina, a não ser a
da emoção. Mas sem um encadeamento interior esquematizado. Cada
27
página foi sendo gerada pela circunstância, pelo fato novo do meu
cotidiano, por uma carta, uma lembrança, um sonho”.
Aqui me identifico plenamente com Ayala, a minha escrita também
acontece por fluxos de consciência, jorro de palavras que não conseguem
ser contidas e se apresentam de modo fulgurante, nos mais diversos
locais e nos diferentes horários. Um exemplo que fez brotar este texto que
agora escrevo foi o meu encontro imprevisível, com uma revista incógnita,
em uma terra de visita turística, quando sou apresentado ao trabalho de
Ayala, fruto de uma experiência furtiva com uma senhora livreira,
acompanhado do meu namorado Bini, natural de Teresina (PI), e cuja
proprietária foi sua professora no antigo jardim da infância.
Quando estamos abertos ao inusitado, somos levados a trilhar
caminhos jamais imaginados, pelos fatos novos do cotidiano. Não era
minha intenção conhecer a sua obra e nem sequer escrever com36 ele,
entretanto, agora que estou provocado e intumescido dele, quero
conhecer outras mais das suas palavras escritas.
São instantes que a gente não esquece jamais. Duas idas à livraria
Toccata, de mãos dadas com o amor, e novos caminhos se abrem. Feliz
cidade a de Teresina, a riqueza das suas revistas literárias, a Acrobata e
a Hoblicua, editores fabulosos como o Douglas Machado, com quem
meses depois troquei mensagens e já me fiz seu admirador por sua
gentileza e atenção; Teresina de um milhão de habitantes e de tantas
riquezas, povo amável e hospitaleiro, o cuidado do Sr. Antônio e a
amabilidade da D. Terezinha, o calor físico e o humano, da Mariana que
é amiga do Bini desde os tempos no Instituto Dom Barreto. Teresina, do
encontro dos rios, das capitais do Nordeste, era a única que me faltava
conhecer, uma realização de dezembro de 2018, que ainda contou com a
beleza e o profissionalismo da Orquestra Sinfônica de Teresina e do Balé
da Cidade de Teresina, ambos existentes há 25 anos, como política
pública municipal, em apresentação conjunta no concerto de Natal que
tivemos o privilégio de assistir no Parque da Cidadania.
Escrever as minhas passagens pelo mundo e os mundos que
passam por mim, é missão (d)e encantamento. De modo semelhante ao
Walmir Ayala, “eu nasci para isso, para estas pequenas histórias que no
fundo são meu tributo à vida em toda a sua abrangência. A vida como
painel, como horizonte, não o meu umbigo”.
Viver de poesia ou talvez, viver para a poesia, “a poesia ainda e
sempre meu refúgio, quando tudo o mais me faltava. E a resistência”,
lemos Ayala na Hoblicua. Para ele foi e para mim continua sendo, a poesia
como “minha catarse, minha análise, meu refúgio, minha âncora. [...]
Para mim, pelo menos, foi uma questão de sobrevivência”.
E a poesia não tem pressa, ela pode vagar, “se não puder, é porque
não deveria ter sido escrita”, somos lembrados por Ayala, para quem “[...]
os poemas vão ficando privados, palpitando em livros que talvez nem
sejam publicados, e a gente morre, como uma vez me disse Cecília

36
A minha proposta consiste em escrever com os textos de Walmir Ayala e não sobre os seus cadernos,
diários e entrevistas, diferenciação que me foi apresentada pela escritora portuguesa Maria Gabriela
Llansol.
[Meireles], sem estar em dia com a própria produção”, confessou em carta
28
de 5/1/83, endereçada a Carlos Drummond de Andrade.
No que concerne à importância da poesia, quero somar os meus
esforços aos de Ayala: “A poesia deveria invadir os auditórios das
universidades e dos museus; ser lida por seus autores, da maneira mais
singela e transpirada. Deveria ser tema de debate, de questionamento”.
Começa a tocar no rádio a canção O quereres, de Caetano Veloso: “ah,
bruta flor do querer”. Sou remetido à busca incessante de Ayala por seu
bem-amado. No seu Diário III (1976) lemos: "Ontem um amigo me
perguntava, intrigado, como eu podia falar de amor com tanta clareza,
como eu tinha coragem de escrever a palavra AMOR com todas as letras.
Respondi que tudo o que tenho escrito, desde que sei de mim, é uma
longa e interminável pesquisa do amor”37. Para ele o amor foi uma doença
que o manteve “constantemente em febre e êxtase”, sempre muito
consciente de que “o amor é difícil, o amor é grave”.
Continuo a leitura dos diários de Walmir Ayala e recolho alguns dos
seus fragmentos de amor. Diário I (1962): “Porque o amor, para mim, é
esta possibilidade de colher pedaços de vida dentro da vida, e justificar o
tempo de respiração, de sonho, de andarilho, que é a nossa passagem
rápida no mundo”. Diário II (1963): “Grande parte da minha fortaleza
devo-a ao desamor. Cada vez que amo sem ser amado, faço um esforço
para me sobrepor humanamente a quem me desprezou. É preciso que a
outra parte saiba que perdeu alguma coisa”. Diário III: “Até que ponto um
amor pode ser anormal? Penso que uma vez que seja amor já está isento
de anormalidade”. Diário I: “Sou um enamorado do amor, e o amor não
cessa por mais céleres que sejam os objetos. Ele se transfere”. Diário II:
“Ontem tudo me predispunha ao suicídio. E não era desgraça, era um
fermento no ar, um tédio – nada valia a pena. A literatura um engano.
Ou se tem valor ou não se tem. Se se tem valor toda a glória é inútil; se
não se tem, a inutilidade é a mesma coisa. Logo, terminar. Nada controla
a medida da vida, para que não se derrame o nosso vinho. Mais vale
trabalhar no silêncio”. Diário III: “Se sofro hoje, chegando a desejar que
termine logo a minha vida, sei que nesta experiência visceral da alma
colhi verdades que me aperfeiçoaram. No mínimo posso dizer que amei,
e já é dizer muito, e que cumpri meu amor num verdadeiro martírio e não
o traí em nenhum momento de sua duração [...] Estou completamente só
e tenho que reconhecer que deve ser assim. Escrevo com sangue estas
palavras. Uma coisa tão importante que me falta, e em me faltando
atenua a importância de tudo o resto. Estou como quem chora um filho
distante, como quem acabou conscientemente de perder sua mãe. É a
história humana, e eu me embriagava de poesia. Agora começou a ruir
tudo, só me resta esperar que as ruínas me forneçam solidão e memória.
Mas gostaria de alçar voo deste estado de alma”.
Clarice Lispector38 – O que é amor?
Chico Buarque – Não sei definir, e você?
Clarice Lispector – Nem eu.

37
Citações com atualizações ortográficas.
38
Trecho da entrevista “Chico Buarque ou Xico Buark”, publicada na Revista Prosa Verso e Arte,
disponível em www.revistaprosaversoarte.com
DEVIRES DE CORUAM 39 29

Coruam pulou da varanda do nono andar do apartamento onde


morava. No seu perfil do Facebook, encontramos a seguinte mensagem
de um amigo:

Hoje perdemos um menino. Ele não tinha nem 20 anos ainda. Um menino
muito querido de todos nós, começando a vida universitária... De um
minuto para o outro, o menino se foi. O seu suicídio foi uma pancada em
nossas vidas e serve como lição para sabermos que ninguém estará nesta
vida eternamente. Vamos respeitar as pessoas como elas são. Deixemos
que elas sejam quem elas querem e podem ser, sem julgamentos.

No dia seguinte, foi a vez do coração dilacerado do namorado de


Coruam manifestar-se no Instagram:

Eu acredito que toda manhã vou receber seu bom dia, que toda noite vou
te falar pra dormir bem; com o final de semana chegando, vou poder te ver.
Acredito que a gente é eterno. Daria tudo pra ter você de volta, daria a
minha vida por ti, que eu sei que era uma pessoa muito melhor que eu, e
qualquer um que conheço. Nunca fui tão feliz, e sei que nunca mais serei
do mesmo jeito que fui com você. Eu peço o perdão das pessoas que te
deixaram mal, e não o seu. Você não foi um covarde namo, você foi forte,
você tentou lutar, mas as palavras doem mais que qualquer coisa.
Covardes são aqueles que judiaram de uma pessoa tão boa como você. E
são esses que precisam de qualquer perdão, o meu eles têm, mas esse é o
mínimo do que precisam. Eu te amo, namo, e eu sei que você estará comigo
onde for, já sei que você está comigo nesse momento que estou passando.
Você está com um pedaço de mim, e eu esperarei até a outra vida por ti.
Novamente, te amo.

Por intermédio do irmão de Coruam, tive acesso ao caderno feito à


mão por ele, com a capa intitulada de Devires – Diário de Estudos,
Vivências, Imaginações, Recordações, Experimentações e Sonhos. No seu
Devires, Coruam pratica a escrita como quem entra no rio e enfrenta a
correnteza, – suave e forte, prazerosa e temerosa, o corpo todo molhado
de alegria e tristeza, de quem passa pelo mundo e deixa o mundo passar
por si. Coruam é qualquer um de nós, que neste diário escrevemos:
O meu diário carrega as lágrimas de quem não pode ser. A tinta da
minha caneta é o meu próprio sangue. Por que não me descobres em
vida? Voar para a morte, como fez o meu pai, será também o meu destino?

Eu sempre me senti um menino gay. Não sabia o que significava


esse nome, mas me percebia diferente dos outros garotos. Na minha
infância, o meu cunhado mandava que eu engrossasse a voz para falar

39
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, A existência em ruínas. Curitiba: CRV, 2019.
como homem. Aquela voz fina era o meu timbre natural. Hoje, falo grosso,
30
mas quando fiz aulas de canto, o meu sábio professor logo identificou que
aquele não era o meu canto natural. Falo grosso e canto fino. Assim fui
crescendo, enquanto ouvia em casa o meu cunhado dizer para eu tomar
jeito de homem. Não compreendia porque os adultos que o viam dizendo
aquilo, nunca me defenderam e não disseram que era normal ser quem
eu era. Na verdade, quem eu sou e sempre fui desde criança.
Hoje é o meu primeiro dia de acampamento de jovens em um
programa de verão nos Estados Unidos. Eu nunca tinha saído de casa
sozinho até os meus atuais 15 anos. Na verdade, foi ideia da minha mãe.
Meu pai faleceu há 2 anos num desastre de asa delta. Nunca conversei
com os meus pais sobre a minha orientação sexual, mas eu sinto que
minha mãe sabe. Tenho a certeza de que ela acredita que me mandando
para fora do país, eu serei “corrigido”. Estamos no lindo estado de
Vermont, no nordeste dos Estados Unidos, com seus muitos lagos e
florestas. Ficaremos todos acampados na região do lago Champlain,
durante 40 dias. Espero que sejam os melhores dias da minha vida.
Ontem foi o terceiro dia do acampamento e convidei namo para um
passeio de caiaque. Foi assim que passei a chamar o meu namorado, o
namo. Na verdade, no primeiro dia, quando chegamos neste casarão,
fomos distribuídos no mesmo quarto, juntamente com dois outros
adolescentes. Namo despertou a minha atenção por seu corpo belo, pele
dourada do sol e a sua forma elegante de falar. Somos os únicos
brasileiros no acampamento. Eu nasci no Rio Grande do Norte e namo
nasceu no Acre. Descobrimos, com o tempo, que éramos opostos em
tudo. Daí nasceu um amor indescritível por meu primeiro e, espero, único
namorado. Com ele pretendo viver até os últimos dias da minha vida. Mas
tenho muito medo de tudo que precisaremos enfrentar quando
retornarmos ao Brasil. O que ouvi na minha família sobre homens gays,
não quero nem perder o tempo de escrever aqui, são palavras que me
doeram na alma, quando eu já sabia que era um deles. No lago
Champlain, margeando o casarão, ficam os caiaques para duas pessoas.
Remamos juntos sobre o espelho d’água cristalina na imensidão da
natureza de Vermont. Eu olhava para a paisagem que se abria no
horizonte, mas o que me atraía, de verdade, era a beleza natural de namo.
De frente um para o outro, nossos olhos conversavam em silêncio. Foi
então que resolvemos atracar o caiaque em uma ilhota no meio do lago.
Ela parecia deserta. Somente os pássaros e a exuberante floresta nos
faziam companhia. Caminhamos por um tempo, em silêncio profundo,
nossos braços se tocavam e se afastavam como numa repulsão de
choque. Paramos para contemplar a calmaria do lago, quando as nossas
mãos geladas se encontraram com dedos relutantes ao primeiro toque.
Na sequência, nos beijamos pela primeira vez e permanecemos dentro de
um longo abraço que durou quase uma eternidade, até que percebemos
que o sol estava se pondo e era hora de remar de volta para o casarão.
Ontem tivemos jogo de futebol pela manhã. Sendo os únicos dois
brasileiros, fomos separados em times opostos. Os meninos acreditavam
que éramos muito bons no futebol. Esqueci de dizer que o acampamento
era somente para rapazes. Somos 30 adolescentes entre 15 e 17 anos de
idade, de diferentes partes do mundo. Quando o jogo começou, me veio a
31
imagem da bola _________________________________________ do outro lado
da quadra uma criança corre com medo da bola de futebol. Essa criança
fui eu. Seu veado, chuta a bola. Não é homem, não? Até os meus 13 anos
tive jogo de futebol obrigatório na minha escola. Todas as semanas, nas
aulas de Educação Física, o martírio se repetiu. Parece que é marica, com
medo da bola. A bola de futebol ________________ sempre foi um pesadelo
na minha vida. Para corrigir a criança-visivelmente-gay, meus pais me
matricularam em aulas de Karatê. Tem que aprender a se defender, dizia
o meu outro irmão. Eles nunca souberam que o meu sonho foi ser
bailarino. Uma vez ousei pedir à minha mãe para me colocar na escola
de balé e sua resposta foi a minha matrícula em esporte de lutas no clube
militar. Mas o namo não conseguiu ser meu adversário no jogo de futebol.
Ele domina a bola muito bem e o seu belo corpo atlético ajuda. Ao passar
por mim e me perceber com pânico da bola, fez com que a bola se
aproximasse de mim e dissesse baixinho para eu chutar a bola com força
para o meio do campo. Foi o que fiz durante todo o jogo e os outros
meninos me parabenizaram dizendo que eu era um verdadeiro
Ronaldinho do Brasil. Obrigado, meu namo, você sempre é incrível e
importante na minha vida.
Eu não quero que os 40 dias acabem. Namo e eu dormimos bem
tarde e acordamos ao nascer do sol para aproveitarmos ao máximo os
dias que teremos aqui. Queremos permanecer juntos e a única
proximidade garantida que temos é a do mesmo quarto dividido com mais
dois amigos, um holandês e um suíço, neste lindo casarão do lago
Champlain. Eles estão se tornando nossos amigos incríveis, têm uma
cabeça muito aberta e vêm de culturas que respeitam as diversidades
humanas. Eles logo perceberam que eu e namo havíamos nos tornado
mais do que amigos. Os dois deixaram as suas namoradas nos seus
respectivos países e sabem como é amar alguém. Um é holandês e
namora há três anos e o outro é suíço, com namoro de pouco mais de um
ano. As duas são as suas primeiras namoradas também, da mesma forma
que eu e o namo, mas pra gente o tempo é de somente 17 dias. O amor
tem se tornado o tema das nossas conversas que se perdem na
madrugada e continuam nos nossos passeios diários para a ilhota que
fica no meio do lago Champlain. Assim tem sido a nossa rotina nesses 20
dias restantes de acampamento. Quase sempre fugimos dos esportes
propostos por nosso líder, um cara bem compreensível, que sempre nos
diz que a vida é feita de escolhas. Os nossos amigos de quarto chegaram
pra gente na semana passada e disseram que podemos ser naturais
dentro do quarto, porque já perceberam que somos namorados e que dão
o maior apoio pra gente. Um deles até trocou de cama para que eu e o
namo compartilhássemos o mesmo beliche. Ontem os dois se
aproximaram da gente e nos abraçaram como amigos de verdade. Sabe
aquele abraço que você sente que é de alguém que gosta muito de você?
Assim foi o que sentimos no abraço com eles.
Eu trouxe comigo do Brasil o Livro do Desassossego, de Fernando
Pessoa. A minha intenção era lê-lo durante o longo voo do Brasil aos
Estados Unidos, mas os filmes disponíveis no avião roubaram a minha
atenção. Combinei com o namo para lermos no beliche, antes de
32
dormirmos, os 481 textos que constam no livro, são parágrafos curtos
com os quais Pessoa escreveu seu livro-diário, semelhantes em tamanho
a estes que escrevo no meu Devires. Se lermos 25 registros por noite, ao
final do acampamento a leitura estará concluída. O primeiro que me
marcou intensamente ontem, foi este: “Escrevo, triste, no meu quarto
quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei”.
Parece que sou eu escrevendo estas palavras antes de conhecer o namo.
Deste modo também me sentia no Brasil.
Hoje mais cedo eu disse ao namo que, antes de sair do Brasil, eu
estava lendo o livro Suicídio e alma, do psicólogo James Hillman e achei
muito interessante quando o autor diz que a gente precisa saber qual é a
fantasia mítica que encenamos da nossa morte. Eu só consigo pensar em
morrer voando alto como um pássaro, como fez o meu pai de asa delta.
Dois anos se passaram e não temos a certeza se foi realmente um
acidente, como dizem os peritos, ou um suicídio. Eu queria muito fazer
psicoterapia para compreender essa fantasia, mas a minha mãe diz que
preciso me dedicar aos estudos para conseguir uma excelente pontuação
no ENEM para cursar Medicina na Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Na verdade, eu sempre quis cursar Psicologia, mas a mamãe
insiste que primeiro preciso me tornar médico para depois fazer o que eu
quiser. Ela acredita que é a única profissão bem remunerada no Brasil.
Acho que ela é muito influenciada pelas amigas do trabalho, priorizam o
dinheiro em detrimento de uma vida que pulsa dentro delas. Sinto como
se a minha vida fosse se encerrar no ENEM. As psicólogas do colégio só
falam sobre a importância da motivação para se alcançar uma excelente
pontuação no ENEM. E a vida que pulsa dentro de mim, quem se
importa? Não tem ninguém para interceder por mim no colégio. O serviço
de orientação vocacional foi extinto. O serviço de psicologia se resume a
fazer palestras sobre as profissões para o mercado de trabalho atual e
como motivar alguém para atingir as metas programadas. Eu me sinto
um produto que vale o quanto pontua. No livro do psicólogo Hillman, ele
diz que a alma humana precisa se narrar e cada narrativa tem um
significado interior que precisa ser compreendido com a intermediação
do psicoterapeuta. Não sei se me restará tempo para isso. Já me sinto
consumido e tenho apenas 15 anos de idade. De hoje até a prova do
ENEM ainda faltam 16 meses.
Das atividades do acampamento, a que mais gosto são as rodas de
conversa que acontecem todas as tardes, depois do almoço. Quem conduz
é um professor de Filosofia, um ser humano incrível. No casarão existe
uma grande biblioteca. O professor pediu que escolhêssemos um dos
diálogos de Platão e fizéssemos a leitura em duplas para compartilharmos
as nossas impressões na roda. Felizmente eu e o namo somos fluentes
em inglês, porque não é tarefa fácil estudar Filosofia em uma língua
estrangeira. Eu e ele escolhemos o Lísis. Uma boa coincidência foi a que
eu e o namo começamos a estudar inglês aos 5 anos de idade. Eu amo
Filosofia também. Depois da Psicologia, é a minha outra paixão.
Ontem à tarde apresentamos as nossas impressões sobre o diálogo
Lísis, de Platão, uma verdadeira lição sobre a amizade. Vivemos um dos
momentos mais belos em nosso acampamento, com depoimentos do
33
fundo do coração, reflexões sinceras sobre a amizade em diferentes
culturas. Um amigo verdadeiro tornou-se raro nos dias atuais, foi o que
concluímos de tudo que ouvimos. A rapidez que impera no século XXI
destrói também os vínculos que antigamente eram fortes e duravam por
toda uma vida. A amizade que cultivamos de um celular para o outro é
uma ilusão que carregamos. Os amigos de verdade são poucos ou quase
inexistentes em todas as 30 vidas que estão aqui reunidas. Mas o Lísis
fala também das expectativas dos nossos pais e um trecho sobre isso me
tocou profundamente. Ele diz que o desejo dos nossos pais é ver-nos
realizados e felizes. Mas uma frase que lá estava escrita, aqui traduzida
para o português, continua ecoando em meus ouvidos: “querem ver você
feliz e o impedem de fazer o que deseja?” Não sou feliz com a vida que os
meus pais escolheram para eu viver. A constatação de Fernando Pessoa,
que li com o namo antes de dormir ontem, é minha também: “Verifico
que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste”. É
assim que me sinto quase todos os dias. Mesmo quando estou com o
namo, sinto uma tristeza que não quer sair de mim. Como diz o psicólogo
James Hillman no livro que li no Brasil sobre o suicídio, o sofrimento da
alma tem uma narrativa que pede para ser compreendida. Não posso
fazer isso sozinho. Eu preciso de um profissional capacitado nesse tipo
de compreensão. Há outro livro, desse mesmo psicólogo, que eu gostei
muito de ler no ano passado, O código do ser: uma busca do caráter e da
vocação pessoal. Felizmente encontro estes livros na biblioteca do meu
colégio e digo para a mamãe que foi a professora que mandou ler para
fazer uma redação para o ENEM. Só assim ela não diz nada e não me
manda estudar “coisas que importam”, como costuma dizer. Eu sempre
me pergunto se a minha vida não importa quando a escuto dizer essas
“coisas que importam”. Numa frase bem resumida, este outro livro do
James Hillman sustenta que cada um de nós tem uma singularidade que
pede para ser vivida, e o mais interessante é que essa singularidade já
está presente na pessoa, esperando para ser vivida. Como pode, então,
alguém querer determinar o destino do outro visando somente o mercado
de trabalho? O que hoje está em voga, amanhã poderá não mais estar.
Basta vermos as profissões que deixaram de existir.
O que eu mais temia chegou. Amanhã será o último dia do
acampamento de jovens, momento de despedidas e de retorno aos nossos
países. Namo e eu pegaremos o mesmo voo para São Paulo, mas quando
lá chegarmos _____________________________________________ não quero
nem pensar _____________________________ ele seguirá para o Acre e eu
para o Rio Grande do Norte. Quando nos veremos novamente? Esta é
uma pergunta sem resposta. Mas sei que não quero ficar muito tempo
longe dele. Não consigo viver sem a companhia dele. O nosso amor não
será desfeito.
Escrevo agora dentro do avião de volta para o Rio Grande do Norte.
As letras estão turvas. Os olhos vermelhos e inchados. No meu coração
carrego um aperto que nunca senti na vida. Por que separar duas pessoas
que se amam de verdade? Não consigo mais escrever uma linha. Vou
tentar dormir um pouco.
Cheguei à minha casa cedo pela manhã, depois de quase 24 horas
34
de voos. A minha mãe, o meu irmão, os meus tios e as minhas tias foram
me receber no aeroporto. Mamãe havia preparado um café da manhã que
parecia O Banquete, de Platão, ao menos tinha muito amor envolvido:
mesa farta de tanta comida e o meu preferido chocolate quente que só ela
sabe fazer. Dormi a tarde toda. Logo que acordei, descansado, chamei a
mamãe para conversar dentro do quarto. Falei tudo que tínhamos vivido,
agradeci pela oportunidade maravilhosa que ela tinha me proporcionado
e resolvi contar a ela sobre o namo ______________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
____________________________________________ o meu mundo desabou
________________________________________________ ao ouvir o que ela me
disse. Ela sabe escolher as palavras que fazem sangrar a minha alma.
Mamãe tem consciência da falta que o meu pai me faz. Éramos muito
próximos, fazíamos tudo juntos. Ele foi o meu melhor amigo e me apoiava
em tudo. Ouvir da minha mãe o que ela disse
______________________________________________ com voz firme e certeira,
doeu demais: “O seu pai sentiria muita vergonha de você”.
_____________________________ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Meu namo, quando a saudade aperta, escuto essa música e tenho
a certeza de que te quero pra sempre. É nos teus braços, no carinho do
teu abraço, que me sinto todinho teu, quando estás comigo não sinto o
tempo passar. Sonho com nós dois morando juntinhos, livres de todas as
cobranças das nossas famílias que não nos aceitam como somos. Este
dia chegará. Não vai demorar. Só preciso ser forte para suportar as
pressões da mamãe e tudo que ela idealizou para mim, mas são os sonhos
dela e não os meus. Estudo a graduação que ela escolheu, dizendo ser o
sonho do meu pai que não conseguiu ser médico. Mas não cabe a mim
realizar os sonhos dos outros. Cada um tem os seus. Eu tenho os meus
sonhos e tu és uma realidade na minha vida. Sempre sonhei encontrar
um namo como você. Encontrei. Te amo muito.

Quando estou nos braços teus


sinto o mundo bocejar.
Quando estás nos braços meus
sinto a vida descansar.
No calor do teu carinho
sou menino-passarinho
com vontade de voar.

Copiei estes versos da canção Prelúdio para ninar gente grande


(menino-passarinho), na linda interpretação de Cristina Braga.
Sabe, namo, ontem chorei muito quando assisti no Netflix, Me
chame pelo seu nome. A música “Visions of Gideon”, cantada por Sufjans
Stevens, me fez reviver um filme que não sai da minha memória. Tenho
medo de não conseguir suportar essa existência que vivo agora. Está
sendo muito pesado viver a vida que a minha família idealizou para mim.
Os versos daquela canção não saem da minha cabeça
35
_______________________________

I have loved you for the last time


I have touched you for the last time
And I have kissed you for the last time

Tenho medo de te beijar uma última vez, de te tocar e amar a última


vez. Não quero que isso aconteça, mas me sinto fraco para enfrentar o
mundo cruel que me quer diferente, principalmente quando as palavras
pesadas são ditas dentro de casa, por quem você mais ama ______________
Por que não consigo ser forte para enfrentar essas pessoas?
Minha mãe vive dizendo que sou um deus grego, me graduando em
uma profissão que muitos invejam e que mereço uma linda esposa. Ela
sempre projeta em mim os sonhos dela. Um deus grego se
suicidou ontem. Ainda não consigo acreditar que não lerei novos livros
do Victor Heringer. Ele sim era um homem muito belo, com mestrado,
premiado por seu maravilhoso livro, O amor dos homens avulsos, e
mesmo com todos esses atributos não conseguiu suportar a vida e se
matou aos 28 anos de idade. A mamãe não compreende que beleza e
profissão não sustentam ninguém. Podem até sustentar uma vida
material, mas isso não é tudo. Há uma vida da alma que somente quem
vive é quem sente.
Talvez eu seja mesmo um menino-passarinho, que vai virar luz do
dia, como fez o Qualquer, na canção de Arlindo Araújo,

E virou pássaro, um pássaro qualquer


Mas ser qualquer, qualquer não queria
De qualquer céu, qualquer freguesia
De acasalar com qualquer cotovia
E virou pássaro, um pássaro qualquer
Filho da lua, da noite e do dia
Bico de nuvem, asa de ventania
Qualquer cantava qualquer melodia
Qualquer virou um pássaro vadio
Sem canto, sem profissão
Sem canto, sem moradia
Qualquer estado civil lhe cabia
Mas ser qualquer, qualquer não queria
E desvirou e virou luz do dia.
TRISTEZA E INCOMPLETUDE 40 36

A Tristeza aportou na casa da Incompletude. As duas reunidas se


chamam de TI. A anfitriã, seguindo a tradição da sua autora favorita,
Maria Gabriela Llansol, a quem empresta os dias à leitura dos inúmeros
cadernos, diários e entrevistas, consulta o I Ching para a palavra que
guiará o encontro de hoje: modéstia foi o resultado obtido pelas TI
(Tristeza e Incompletude). “O que nos anuncia esta palavra”, diz
Incompletude, “é a possibilidade de vivermos sem grandes pretensões,
com pleno domínio sobre os nossos desejos e faltas, para atingirmos o
sossego e a serenidade”. “Saiba”, continuou, “que esse oráculo foi o livro
mais importante na vida de Llansol, de quem lerei um trecho agora:”

O livro do I Ching modificou a minha vida. Retive palavras que me dizem


respeito: duração, regresso, viajante, l’augmentation, a singularidade, o
lago sobre o lago, a verdadeira arte de me ligar ao sagrado, que a
perseverança deixará ficar no fim do meu caminho NL:6141

Incompletude permanecia na travessia, em busca do sempre


ausente. Confortava-se, nos momentos de desespero, com a sábia
lembrança de que, uma vez completo, se desaparece. A sua tendência na
vida jovem, há muito longínqua, foi a de querer preencher todos os
espaços, fugir do vazio. Incompletude já não tinha pressa; sabia esperar
o tempo sem tempo desse viver incompleto. Sabia acolher a idade que
crescia. As palavras de Llansol, sobre o registro dos seus dias, confortava-
lhe:

Depois de viver um tempo de trevas, até aos trinta e três anos, passei
lentamente a um tempo de iluminação. As coisas iluminadas, o espaço
geométrico iluminado, as plantas e o meu cão iluminados DCM:108 Não
compreendi hoje como consegui viver até aos quarenta e três anos
DCM:172 Vivo e espero o que terei para viver, agora com 45 anos F:102
Nestes últimos tempos, tenho vivido mais intensamente a actualidade da
minha existência. Sou realmente uma mulher de quarenta e seis anos, na
sua casa que resplende de uma luz cuidada, de uma proteção inviolável
AS:146 Fiz cinquenta anos, uma idade de ponderação que parece
corresponder à parte mais enérgica da minha mocidade. Julgo ter vivido

40
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, A existência em ruínas. Curitiba: CRV, 2019.
41
Tristeza e Incompletude foi composta de fragmentos textuais extraídos dos diários, cadernos e entrevistas
da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, livremente acoplados e posteriormente transformados em
feitura. As siglas correspondem aos seguintes títulos: AI: O azul imperfeito: livro de horas V (Lisboa:
Assírio e Alvim, 2015); AS: Um arco singular: livro de horas II (Lisboa: Assírio e Alvim, 2010); DCM:
Uma data em cada mão: livro de horas I (Lisboa: Assírio e Alvim, 2009; E: Entrevistas (Belo Horizonte:
Autêntica, 2011); F: Finita: diário II (Belo Horizonte: Autêntica, 2011); FP: Um falcão no punho: diário I
(Belo Horizonte: Autêntica, 2011); HFS: Herbais foi de silêncio: livro de horas VI (Lisboa: Assírio e
Alvim, 2018); IQC: Inquérito às quatro confidências: diário III (Belo Horizonte: Autêntica, 2011); NL:
Numerosas linhas: livro de horas III (Lisboa: Assírio e Alvim, 2013); PI: A palavra imediata: livro de
horas IV (Lisboa: Assírio e Alvim, 2014).
uma vida completa, e inicio outra, ao serviço de todos; para que os fundos
37
da experiência não se percam, desejaria poder sempre prosseguir, através
de uma terceira, ou de uma quarta vida, até chegar às portas do mar que
desconheço PI:36 Tendo eu vivido ainda agora meio século, não vejo como
a narrativa poderia competir com as palavras que são testemunhos
antiquíssimos e implacáveis do devir humano FP:124 Dizem que o corpo
declina, mas o que eu sinto é o renascimento da minha vida, mas o que eu
canto é uma suavidade inteligente e imortal. De olhos fechados, de olhos
abertos, tudo é o mesmo. Não sei se o rio corre para a nascente, ou se corre
para desaparecerem os múltiplos mares. Ou se corre circularmente. Sei que
corre circularmente, sem entontecer e sempre senhor de si mesmo
DCM:225 Desconheço o que é um corpo velho, os anos só me têm trazido
“alegre sabedoria”. Sem Nietzsche, sem João da Cruz, sem Müntzer, quem
seria eu? AS:170

Ao invés de escapar ao tempo, Incompletude segue outro fluxo. Ela


sente. Sente a água que cai sobre o seu corpo na hora do banho; ouve os
pássaros na árvore do seu jardim; lê tranquilamente cada parágrafo que
tem nas mãos. Incompleta faz-se realmente presente em tudo que vive.
Ela não foge às emoções: quando solitária, vive profundamente cada
solidão. Na companhia de Llansol, encontram-se na mútua solidão fértil:

Acontece-me uma estranha solidão ou companhia, aquela que escreve


desprende-se de mim e vive como uma sombra comigo, numa existência
plenamente autónoma. Quando faço o pão esta está lá, quando ando na
rua ela está comigo, em toda a parte vem atrás de mim como se fosse eu
na minha imaginação criadora e de poder AS:126 O solitário é o
libidinalmente activo, para quem o viver e a forma de viver são
vivencialmente indissociáveis DCM:45 Para que a vida de um prossiga, é
preciso voltar sempre à solidão. A solidão é uma “destruidora” de modelos,
a morada criativa das percepções DCM:118 Por essa altura de há vinte e
cinco anos escrevia: “estar sozinho é apenas uma das faces da solidão”
AS:194 Se todos os seres, e não apenas os humanos, me fazem tanta
companhia, porquê o espanto de eu ser tão feliz na solidão? DCM:69

Quando alegre, Incompletude também vive plenamente esta


emoção, ciente de sua fugacidade. Por sua intermitência, lança-se à
contemplação com a pergunta do poeta William Blake: “em que jardins
crescem as alegrias?” Neste momento, lembra-se do lugar de paixão que
as plantas ocupam nos livros da sua escritora favorita:

Acendo uma vela no momento em que me sento para escrever sobre Prunus
Triloba, que foi abatida este fim-de-semana por ordem da proprietária da
casa de Jodoigne. [...] Foi Prunus Triloba que sofreu por mim, ou fui eu que
sofri por ela? Ao mesmo tempo fomos abatidas, e eu sei que ela alcançou
a vida eterna. É a árvore da piedade, e está à porta do paraíso, a tornar
verdejante e verdadeira a nossa entrada NL:302 Escrevo no meio de
plantas crescendo com elas através do fogo ____ AS:202 Ocupei-me das
plantas, as plantas ocuparam-se de mim, deram-me do que me é próprio
como seiva AS:34 Para equilibrar a nostalgia de não viver sempre no
38
mesmo lugar ou lado do amor, introduzi profundamente a natureza de
cada árvore no meu coração, e dei-lhe o nome de amado PI:47 Eu espero
que o jardim me revele os nomes de muitos seres que, a olho nu (e cego),
não se vêem há muito tempo pela terra; eu espero que o jardim me proteja
do mal de utilizar sem discernimento o poder; eu espero que o jardim nos
introduza numa Comunidade de Seres onde não há hierarquias, mas
apaixonantes diferenças. A ausência de semelhança será nosso estímulo
HFS:149 Tulipas, narcisos, jacintos, lírios DCM:180 Vogo e divago. Sofro
na companhia das plantas AS:176

A Tristeza que permanecia calada, escutando essa fala da


Incompletude, sentiu-se tocada pelos sentimentos de Llansol e sussurrou
que o seu texto favorito é o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa42.
Dele recita de cor as suas palavras preferidas: “Verifico que, tantas vezes
alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste” (LS, 46). A Tristeza,
triste permaneceu.
Ouvindo à Tristeza, Incompletude diz-lhe que Pessoa foi um dos
mundos prediletos visitados por Llansol. “Veja o que escreveu sobre ele”,
abrindo o livro que tinha nas mãos:

Fernando Pessoa é um grande poeta português, mas eu, vivendo a


observá-lo, não encontro o grande, mas o humano que me atrai / o humano
de alguém AI:97 A sua poesia é simplesmente uma história de amor AI:60

“Assim como eu”, confessa Tristeza, “Fernando era um grande


sofredor”. Abre o Livro do Desassossego que carregava e dele começa a
ler: “Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça
própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não
parece insuportável porque de facto a suporto” (LS, 282).
“Como se parecem Llansol e Pessoa”, divaga Incompletude. “Não
à toa ela foi sua fiel leitora. Llansol, também, uma sofredora. Para ela...”

O sofrimento é aquele sentimento que me impele no trabalho como uma


necessidade: eu continuo a existir porque escrevo NL:208 A tristeza
destes últimos dias é um problema de ausência de sol, de nuance; por
vezes ele rompe as trevas, mas logo o mar das caravelas se abate AS:48
Escrever sempre me secou as lágrimas. Se eu não sofresse não escreveria
AS:159 Hoje, choro a escrever. A escrita não corre, precipita-se do alto,
profundamente em perigo AS:222 Eu era uma criança bastante solitária,
e até uma mulher bastante solitária em Portugal. Digamos que na Bélgica
isso tornou-se um pouco diferente, porque havia uma rede de
convivialidade. Depois, houve autores que eu comecei a ler, e esses autores
pouco a pouco vieram para dentro do meu texto... E:57 Nietzsche
enlouqueceu, Hölderlin endoideceu, Rilke não conseguiu entrar com o seu
corpo no poema, Virginia Woolf suicidou-se, Spinoza acabou silenciando-
se, Kafka foi apanhado a tempo por uma tuberculose galopante, Pessoa

42
Doravante usaremos a sigla LS para o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.
foi-se degradando no alcoolismo, Kierkegaard acabou triste e só. É
39
igualmente um facto que foram pessoas com vivências afectivas
extremamente agitadas E:35 Eu lia bastante Fernando Pessoa E:11 O
preço da liberdade é uma certa solidão NL:246 Os dias pesados fazem
parte de viver. Os dias onde nada se aprende fazem parte do saber PI:158
Preciso afastar-me da depressão AI:177 Retorno o que disse atrás; sem
melancolia, eu nunca poderia escrever. Foi pela nostalgia que cheguei às
palavras, à notação verbal de um panorama. [...] Fora pela nostalgia que
chegara às palavras NL:35-36 Um dia de crise é um dia em que perco a
memória da nossa cosmogonia; a crise é a crista de uma montanha, num
período de nebulosidade inabalável, porque nem mesmo há a divisão dos
dias; quase sempre é o prelúdio de uma grande serenidade, a palavra-
jardim e final FP:39

“Foi pela escrita que Llansol encontrou as fulgurações”, dita


Incompletude sobre o viver. “Ela escrevia nos seus muitos cadernos e
diários, que somados às poucas entrevistas que concedeu, 2879 páginas
foram publicadas em livros. Llansol argumentava:”

se a minha escrita não tiver a sua força, de nada vale dar entrevistas, me
dar a ver nos jornais E:47

Incompletude sabia como viver o silêncio. As múltiplas vozes que


outrora ocuparam os seus pensamentos, dissiparam-se. Escutava quem
realmente merecia a sua atenção. Em silêncio, aprendeu a ouvir os outros
seres que a cercavam, como fez a sua amada, de quem relia:

Os seres humanos os conheço em mim mesma, e que os outros seres – de


animais a plantas – é preciso escutá-los, ver-lhes a forma que passa –
pêlos, folhas, pedras – e seguir com o texto a sua vida oculta e
resplandecente NL: 333 Desejo de partir, de não voltar, de ver os seres
que aqui vejo noutro lugar; tenho a impressão de que ninguém me
responde; não quereria mais escrever sobre estes seres, quereria que eles
viessem viver comigo NL:315 Escolhi viver muito com animais, “não por
estar desiludida dos homens”, mas por crer nos animais; entre os homens
e a terra, encontro neles o meu repouso, descubro que eles têm um código
que nos será útil decifrar juntos DCM:88 Eu sou múltipla, por isso desejo
também tanto estar sozinha, ou seja, com meus restantes companheiros
vivos AS:37 Meu gato no meu colo é tão belo e abandonou-me o seu corpo,
vive comigo enquanto escrevo. Seu sangue passa no meu espírito e suas
patas andam na minha mão. Em cada compartimento da casa de Jodoigne
há uma espécie de carisma, ou de nume DCM:136 Que eu me afaste dos
homens para não magoar, que a minha opção seja viver numa casa dando
para um jardim, num jardim dando para uma casa com plantas e animais.
Ou seja, com seres vivos radicalmente diferentes de mim AS:23 Eu já
tendo tido a experiência de animais que viveram comigo e que eu senti que
evoluíram por estarem dentro de um determinado círculo vibratório, porque
eu considero que os seres dão a resposta a isso – nós damos um estímulo,
e os seres dão a resposta...; acho que mesmo dentro desses animais e
dessa natureza há uma troca de existência, e que nós, cortados deles,
40
somos cortados, não diria do luar libidinal, mas do luar terreal E:63

Lágrimas desprendem-se no corpo da Tristeza. Ela teme a finitude


e não ter vivido o que ainda gostaria. Não sabe se lhe restará o tempo. De
coração, brotam as palavras da Estética do Desalento, ainda no Livro de
Desassossego, de Pessoa: “Já que não podemos extrair beleza da vida,
busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida”
(LS, 261).
“Sabe Tristeza, o que me conforta nessa minha falta”, lança
Incompletude, são as palavras que li do nosso querido poeta Fernando:
“Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-
lo através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto” (LS, 208).
“Eu continuo lendo o que me dizem que é inútil”, recomenda
Incompletude. “Não vivo um dia sem... Chamam de literatura o encontro
com as minhas escritoras. Ler abranda os meus dias, como salvou os de
Llansol:”

A arte de ler é uma arte difícil porque é simultaneamente uma arte de criar;
ler é impulsionar uma moeda com outra, não é curar feridas, é abri-las para
dar passagem HFS:406 Aprendi muito quer com Pessoa, quer com
Nietzsche, que são figuras da linhagem onde me situo E:34 Acabei de ler
o fim da Odisseia, retomo-a na origem e significado. Ao mesmo tempo,
desejo planificar a História, os séculos, estendê-los no papel ou numa
grande folha de cartolina branca, através de esquemas, traçados e sinais.
Visioná-los DCM:124 Comparo estes dias a ler, ler sempre que estou livre,
aos dias da minha adolescência, em que uma espécie de fraqueza me fazia
deitar na cama e empregar meu tempo à margem da vida de estudante, na
única actvidade para a qual ainda me restavam forças e interesse: a
leitura de livros NL:55 Eu penso que a leitura cria uma relação
extremamente íntima com alguém. Alguém que lê profundamente é
penetrado pelo que lê. E, digamos, essa penetração é uma penetração
expansiva, não é uma penetração que fique ali para utilidade própria. Ler,
o bem ler, é algo que se dá imediatamente no movimento seguinte. E é
assim que eu compreendo o amor e as relações de sexualidade, que não
estão só centradas em órgãos determinados, mas que abrangem a
totalidade do corpo e que existem para que o belo se perpetue, o prazer de
estar, etc. Por isso é que eu considero a leitura uma espécie de sexo, porque
de facto penetra profundamente, penetra profundamente e reproduz E:57-
58 Hoje sentia-me tão cansada e deprimida, à noite, depois do jantar, que
nem me sentei uns momentos para ver televisão. Procurei imediatamente
a companhia de K[atherine] Mans[field], companhia real, liberta da sua
presença física, que desejo que repouse em mim mesma AS:139 Nietzsche
ensinou-me a atravessar o tempo, excluindo dele qualquer forma de
desterro ou de resignação. Mostrou-me que o tempo era perpendicular, que
havia neles lugares privilegiados, por onde se passa ciclicamente. Só que
no que ele nisso via de fatalidade, eu via a possibilidade do mútuo. Com
esse viajante infatigável, que não parava quieto, aprendi a detectar, nos
lugares mais inesperados, a vontade de pujança, que infelizmente foi
traduzida em português por vontade de poder. Isso é tanto mais trágico,
41
quanto é aí que se encontra um dos principais pontos comuns entre ele e
Spinoza E:42 O bem-estar do dia parece ter me conduzido a Fernando
Pessoa, como já me conduziu a Müntzer, a Ana de Peñalosa, a João da
Cruz AS:198 Penso neles, Nietzsche, Virginia Woolf, São João da Cruz,
São Basílio, porque tenho as suas Regras nas mãos, e admiro-me: – Todos
mortos? NL:36 Por mais sombrios que sejam os dias, a companhia de
Spinoza não me deixa nunca ficar muito tempo sem a terra, o ar, e o fogo
FP:43 Uma vez fui a uma livraria e encontrei um volume que continha uma
série de documentos de tipo oficial referentes à vida prática de Bach.
Quando os percorri senti que aqueles documentos eram capazes de gerar
energia, dando uma imagem consistente da vida de Bach através, por
exemplo, de uma relação dos móveis que havia em casa dele e de outros
detalhes que parecem extremamente banais mas que davam uma medida
de Bach e da sua época. Quase ao mesmo tempo tinha saído O Livro do
Desassossego [...]. E pareceu-me evidente que havia um elo profundo entre
os dois, por antagonismo: Bach, um homem cheio de poder no seu corpo,
uma globalidade física e mental, a casa organizada, podendo apoiar-se na
mulher e ter filhos; e Fernando Pessoa, um ser sem espaço próprio por
base. Tornou-se premente operar num texto a união antagónica entre os
dois E:11-12 Não há literatura. Quando se escreve só importa saber em
que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros
FP:52 Um livro é um cofre de narrativas, pertencendo ao ramo principal da
narrativa da árvore da vida NL:280

“Estas palavras de Llansol”, observa Tristeza, lembram-me de


Fernando quando diz: “Gosto de palavrar. As palavras são para mim
corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas” (LS, 225).
“Eu me recordo do que aponta Llansol sobre o texto que o escritor
escreve”, diz Incompletude. Abrindo o livro, começar a recitar:

O texto é um afecto meu, procuro liga-lo a outras pessoas por quem tenho
também grande afecto IQC:97 A palavra é uma escrita do corpo, é uma
contabilidade do corpo DCM:28 De facto, sou muito diferente dos homens.
Sinto-me como um corpo à procura de caminho, não sem inteligência, mas
como se toda a inteligência devesse passar pelo corpo DCM:86 A
imaginação faz conhecer AS:40 As coisas que perdi são uma porta aberta
para eu as criar _______ PI:106 Nunca o desenvolvimento do raciocínio foi
independente de um ritmo criativo AI:140 Já todos perdemos afectos.
Perdê-los é perder uma virtualidade do universo, é perder uma parte do
corpo ou uma parte do corpo que ficou por fazer E:24 Mas eu nunca saí
daqui, no sentido de que nunca abandonei o meu corpo. A minha forma de
rebeldia foi tão-só a recusa de o viver mutilado FP:126

“Triste é não ser reconhecido em vida”, dispara a Tristeza. “Dez


anos depois da morte de Llansol, continuamos assistindo em 2018 à
publicação dos cadernos dela”, sussurra em tom de lamentação,
interrompido pela Incompletude, que pega nas mãos o livro de Pessoa e
começa a recitá-lo: “No fundo, acredite, o que somos de mais doloroso é
o que não somos realmente, e as nossas maiores tragédias passam-se na
42
nossa ideia de nós” (LS, 304). “Sabe, Tristeza, a Maria Gabriela Llansol
sofreu muito por não ter sido valorizada como escritora. O exercício do
ofício diário de escrever foi muito penoso para ela”. A Incompletude
começa a folhear os livros da autora e deixa ecoar as suas palavras:

A madrugada vem aí, tenho de ir para a Quinta para trabalhar, pagar as


minhas horas de viver / pagar as minhas horas de vida AS:106 Há uma
distorção entre o que eu escrevo e o papel que eu desejo que a minha
escrita, apreciada, me faça assumir NL:30 Para satisfazer as
necessidades da minha vida quotidiana, trabalho numa comunidade de
produção. Faço perfumes, pão, cuido de galinhas, procuro dar-me em
conhecimento às crianças; estudo a história dos últimos dez séculos dos
movimentos integrais europeus e árabes. Tudo faz parte de uma visão
progressiva de que não conheço os confins AS:71 Não vivo de escrever,
mas também não sou obrigada a fazer um trabalho que me faça abandonar
a casa, lugar junto da paz do mar NL:28 Um horrível final de mês. Quase
não tenho dinheiro como capital. Sensação de instabilidade, de ser
devorada, de ser definitivamente incapaz de conseguir a minha autonomia
financeira. Sem sociedades, nem a cooperação de ninguém, sinto-me feroz
e ferida. Perco toda a esperança de viver neste mundo NL:32 Se desejo ser
reconhecida como escritor, não é por soberba. É para que outros possam
testemunhar que escrever é a fonte do meu prazer DCM:24 Ver um livro
publicado já seria paga suficiente. Mas uma vez não posso ceder. Ou editar
se traduz no cumprimento factual de um compromisso, ou o livro deve ficar
por editar, existindo ausente NL:91 Gostaria que lessem o que escrevo;
que aprendessem a ler o que escrevo HFS:128 Gostaria de editar-me a
mim mesma, sem obstáculo. Gostaria que não me deixassem apagar de
tristeza, de um vago sentimento de inutilidade, por escrever por detrás /
sobre uma língua que arde sobre si mesma, que se devora a si mesma.
Mas que eu não trocaria por nenhuma que me conduzisse ao sucesso,
mesmo à riqueza, porque é uma espécie de paixão, de desenho de mim
mesma, que me faz feliz e infeliz, e que me ofereceu todo o conhecimento
limitado que possuo NL:51

Ao pôr do sol, Tristeza despede-se de Incompletude antes que a


noite cresça no céu. Seguindo a tradição da sua escritora, Incompletude
abre aleatoriamente em uma página dos livros de Llansol que tem nas
mãos, para o acolhimento da mensagem de despedia do seu encontro
diário:

Para o gnóstico, o tempo consiste num eterno presente AS:190 Prefiro


meditar e ser triste DCM:44 São João da Cruz diz melhor: “Chegaremos
aonde não sabemos por caminhos que não sabemos” FP:126
FINITUDE 43
43

Lendo Antes do fim44, as memórias de Ernesto Sabato fazem


aproximar a finitude. Dando-se conta dos derradeiros dias do ano, dos
lampejos de uma crença na universalidade humana que dilui como vento
na poeira cósmica, se posta diante da convulsão de um passado que se
apresenta no conhecimento direto de ser tempo e movimento da vida, tão
efêmera quanto a duração do instante presente. Ergue a primeira taça de
vinho para repetir as palavras sofridas de Artaud, capturadas na
escritura de Sabato: “Não há ninguém que tenha alguma vez escrito,
pintado, esculpido, modelado, construído, inventado, a não ser para sair
de seu inferno.”45
Recostado na parede de azulejo da cozinha, ele se apercebe da
realidade única de ser um pensante íntimo naquilo que pretende
entender em sua poética maldita dos dias. Do rádio sobre o balcão
envelhecido é tomado pela canção de Belchior: “Cada um guarda mais o
seu segredo, sua mão fechada, sua boca aberta, seu peito deserto, sua
mão parada, lacrada, selada, molhada de medo.”46 Perto do fim do ano
enseja sentir a vida, neste instante em que cala a sua última sílaba ao
gole da garrafa agora vazia.
Na sala de casa, agora sintonizado em seus pensamentos sobre a
vida cotidiana, liga a TV e descobre que um de seus estudantes perdera,
na manhã daquele mesmo dia, o pai, a mãe e o tio em um acidente de
carro, no qual se dirigiam para comemorar as Boas Festas com a família
no interior do estado. No carro também estavam o aluno e sua irmã,
ambos retirados com vida do trágico acidente. “Quanto tempo dura a
vida?”, ocupa o seu pensamento. “Somente um instante”, recorda de suas
leituras filosóficas e dos versos da canção de John Lennon: “Life is what
happens while we are busy making other plans”47 [A vida é o que acontece
enquanto estamos ocupados fazendo outros planos]. Pensativo, recolhe-
se ao seu quarto com a dor da perda que também é sua.
Quando as primeiras frestas de sol atravessavam as venezianas da
janela, segura Antes do fim nas mãos. O testamento da esperança de
quem viveu 100 anos, as palavras de Ernesto Sabato (1911-2011)
acompanhavam a penúltima manhã do ano velho. Antes da chegada do
novo, era Sabato quem se dirigia aos mais novos, àqueles que como ele,
um dia pensaram em findar suas vidas prematuramente:

Proponho-lhes então com a gravidade das palavras


finais da vida, que nos abracemos em um

43
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior, Travessias de cigano: feituras e feitiços.
Fortaleza: Armazém da Cultura, 2017.
44
Ernesto Sabato, Antes do fim: memórias. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
45
Ibid., p. 69.
46
Versos da canção “Hora do almoço”, de Belchior.
47
Versos da canção “Beautiful boy”, de John Lennon.
compromisso: saiamos para os espaços abertos,
44
arrisquemo-nos uns pelos outros, esperemos, ao lado
de quem estende os braços, que uma nova onda da
história nos erga. Talvez isso já esteja acontecendo, de
modo silencioso e subterrâneo, como os brotos que
pulsam sob a terra do inverno. [...] Só quem for capaz
de encarnar a utopia estará qualificado para o
combate decisivo, o de recuperar o quanto de
humanidade houvermos perdido.48

Ele pensa na noite de amanhã, quando todos estarão trocando


abraços, entrecruzando braços em corpos de aço, humanidade de
engrenagens. Abraçar a utopia da humanidade perdida no tempo que
passou é o que espera como compromisso de Ano Novo.
Para construir uma imagem do ano que se encerra, encontrou no
caderno de anotações as palavras de Nietzsche copiadas de algum lugar
de onde não mais se recorda: “Os valores deixaram de valer.” Foram
muitas as surpresas com as atitudes humanas nos 365 vivenciados.
Todas as decepções humanas ainda não foram suficientes para roubá-lo
a crença no humano. Na companhia de Antes do fim, sua esperança se
renova ao ler estas sábias palavras do escritor argentino: “O homem não
progride, porque sua alma é a mesma.”49
A tão esperada noite de 31 chegara e multidões entram no frenesi
do “réveillon”, palavra originada do francês "reveiller", que significa
"despertar". Etimologicamente, "des-pertar" é aquilo que não está perto.
Estes são os votos dele para um ano realmente novo: o desejo de que
todos despertem para buscar o que está longe, mas ao alcance de todos;
que consigam se libertarem dos padrões que os aprisionam às rotinas do
cotidiano. Vai longe buscar o invisível. Assim, o novo ano novo será
verdadeiramente próspero e novo na sua vida. Subtrair as ilusões diárias
para descobrir a fortaleza espiritual do amor que existe em cada pessoa
é o que anseia para a humanidade no novo ano que já chegou.
A mansidão do primeiro dia do ano quase não consegue vê-lo fora
da cama. As horas passaram, a tarde chegou, páginas abertas, livros
fechados. Vontade de fazer nada. Dormir novamente. Enfim, sair de casa.
Dar uma volta no calçadão da praia. Movimento. Gente por todos os
cantos e de todos os sotaques. Necessidade de silêncio. Hora de voltar
para casa. Cama. À espera do sono na companhia de Lavoura arcaica50.
A falta da liberdade de expressão é a temática encontrada em sua
primeira leitura matinal no periódico local. As represálias vividas por um
escritor nos artigos semanais o entristece. Pensa o quanto evoluímos na
ciência do pensamento para sermos privados da livre expressão. Lembra-
se de um artigo publicado em jornal internacional, na última semana do
ano que passou, no qual anunciava a demissão de um professor chinês
por expressar publicamente o seu pensamento. Recordou as palavras de

48
Ernesto Sabato, Antes do fim: memórias. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008,
p. 164.
49
Ibid., p. 88.
50
Raduan Nassar, Lavoura arcaica. 3. ed. revista pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Ernesto Sabato, há pouco lidas, sobre o ofício de escrever diariamente:
45
“O escritor deve ser uma testemunha insubornável de seu tempo, com
coragem par dizer a verdade, e rebelar-se contra todo oficialismo que,
cegado por seus interesses, perde de vista a sacralidade do ser humano”51.
A angústia o acompanhou no início de uma nova manhã. A
pergunta de Heinrich von Kleist, encontrada durante a leitura de A
propósito do teatro de marionetes o inquietou durante todo o dia:
“teríamos que comer de novo da árvore do conhecimento, para voltarmos
ao estado de inocência?”52 No mesmo Kleist, compreendeu o que o
incomodava: “a afetação aparece, como o senhor sabe, quando a alma (vis
motrix) encontra-se em qualquer outro ponto que não seja o centro de
gravidade do movimento”.
Assim ele amanheceu, fora do seu eixo. Afinal, o que o afetava?
Como encontraria o seu retorno à inocência? Para aliviar-se da angústia,
saiu cedo de casa para comprar-lhe uma nova escrivaninha. Organizou
durante o dia um novo canto de escrita. De frente para o jardim, madeira
de cerejeira, cadeira de palhinha, livros e decoração demarcavam o seu
novo espaço de criação. Será da seiva da árvore do conhecimento que se
sente carente neste momento?
Passando o ouvido de relance, escutou na rádio que Fernanda
Torres havia publicado o seu primeiro romance. Dirigiu-se à livraria e
adquiriu o seu exemplar do Fim53. Mais uma vez viu-se cercado pela
temática do fim. Na companhia de O respirar dos dias, de Josep
Esquirol54, a aprendizagem do tempo, na verdade do dar-se tempo, vive
plenamente os dias e com eles reaprende a importância de passar pelo
mundo e deixar o mundo passar por dentro de si. Segue sentindo,
pensando e sendo tocado pelos instantes do agora. Sereno, alegra-se com
a possibilidade de simplesmente sentir os dias e de ser afetado por tudo
e todos que o cercam.

51
Ernesto Sabato, Antes do fim: memórias. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008,
p. 56.
52
Heinrich von Kleist, Sobre o teatro de marionetes. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013,
p. 12.
53
Fernanda Torres, Fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
54
Josep M. Esquirol, O respirar dos dias: Uma reflexão filosófica sobre a experiência do tempo. Trad.
Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
46
DEIXE A VIDÊNCIA CHEGAR 55

“Como pode um poeta tornar-se um pajé e voar até a fonte e voltar


para curar ou pronunciar oráculos?”, esta é a pergunta primeira que deve
se fazer um pesquisador-poeta, provocação extraída da poesia de Ted
Hughes.56
Fazer pesquisa poética consiste em produzir conteúdo que seja
capaz de curar as agruras e de valorizar os louros das travessias da vida.
Trata-se de um trabalho de pesquisa destinado ao corpo cigano, aquele
que vive em ciganias, zanzando pelo mundo e deixando-se ser
impregnado de mundo, seguindo a esmo, a exemplo do filósofo
Kierkegaard, que escreveu: “Quando sair para uma caminhada deixe
seus pensamentos perambularem a esmo, farejando aqui e ali,
experimentando a primeira coisa vista e depois outra”57, caminhar como
quem passa pelo mundo e deixa o mundo passar por si.
O propósito da pesquisa poética é o de produzir poesia “como
exercício de divagação, como abertura ao devir.”58 Não se trata de
produzir autobiografia ou narrativa de uma vida, mas de criar feituras.
As feituras são escritas com todas as vozes que acompanham o escritor
(dos poetas, dos cantores, dos cordelistas, dos cientistas, dos filósofos e
de muitos outros).
A pesquisa poética quer ser “luz do dia” na Universidade, ela é “a
forma mais elevada de dirigir-se ao vazio do mundo”59, linguagem para
poder dizer o indizível. A poesia é o lugar das artes que eclode nas
transações da linguagem para as quais “certas combinações de palavras
podem produzir uma emoção que outras não produzem, e que
denominamos poética”, diz Paul Valéry60.
A escrita do pesquisador-poeta é herdeira de Maria Gabriela
Llansol61, portuguesa de mesma linhagem e importância de Fernando
Pessoa, ofício de quem escreve o futuro:

A escrita é o que a figura vê, é o que fica depositado


nos que a lêem – a nostalgia inexpugnável dos seres
que estão por vir. É minha convicção que as figuras
(que, no meu texto, são muitas vezes pessoas

55
Feitura publicada em Francisco Silva Cavalcante Junior (Org.), Leveza e escrita experimental. Curitiba:
CRV, 2019.
56
Citada em Peter Grey, Bruxaria apocalíptica. São Paulo: Penumbra Livros, 2017, p. 72.
57
Citado em Merlin Coverley, A arte de caminhar: o escritor como caminhante. Trad. Cristina Cupertino.
São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 28.
58
Sílvio Gallo, Em torno de uma de uma poética do/no pensamento. Revista Sul-Americana de Filosofia e
Educação, 23, nov/2014-abr/2015, p. 354.
59
Gustavo de Castro e Florence Dravet, Comunicação e poesia: itinerários do aberto e da transparência.
Brasília: Editora UnB, 2014, p. 51.
60
Paul Valéry, Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 213.
61
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 201.
históricas do passado e, enquanto tais, culturalmente
47
identificáveis) vêm do futuro.

De que futuro?

O futuro ao qual se dedica o pesquisador-poeta consiste na


capacidade de criar novas imagens, novos modos de ver o mundo e a vida,
pois, conforme nos diz Carl Jung62,

sabemos que toda boa ideia e toda obra criadora


surgiram da imaginação e tiveram seu começo naquilo
que costumamos chamar de fantasia infantil. Não é
apenas o artista que deve sua máxima realização à
fantasia, mas também qualquer pessoa criativa. [...]
Não devemos esquecer que pode estar precisamente
na imaginação de uma pessoa o mais importante dela.
Digo expressamente pode estar, porque, de outro lado,
as fantasias são inúteis, não podendo ser usadas
como material bruto. Para aumentar o valor que nelas
reside, é preciso desenvolvê-las.

No desenvolvimento da fantasia criadora reside o futuro que o


pesquisador-poeta es-crê-verá. Ele crê na potência da linguagem da qual
faz uso para produção das suas feituras. Ele vê com olhos de vidente.
Seu hibridismo é a fusão de quem rebusca (research63) a imagem psíquica
percebida do mundo, com o mister dos poetas, aqueles que tentam
“transformar a revolta e o desejo de uma comunidade humana mais
natural [...] em forças de harmonia, de leveza e de amplitude”64. É
importante lembrarmos, com as palavras do psicólogo neojunguiano
James Hillman65, que as “imagens psíquicas não são necessariamente
quadros visuais e podem não ser de modo algum como as imagens
produzidas pelos sentidos. Em vez disso, elas são imagens como
metáforas.”
No seu ofício vidente, o pesquisador-poeta anuncia a imagem por
vir, não obrigatoriamente aquela percebida pelos olhos, mas por um
terceiro olho ou um terceiro ouvido. A implicação desse modo de ver é
refletido por Llansol66:

Não podemos dizer qual o sentido dessa abertura, nem


o que ela, de novo, nos trará. Apenas podemos
testemunhar uma qualidade do ímpar _____ apesar
das dificuldades extremas porque passará a abertura
do mundo, o levantamento da barra que o mantém

62
Carl Jung, Tipos psicológicos. Trad. Lúcia Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p. 73.
63
Research é o equivalente em inglês para o substantivo pesquisa.
64
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 46.
65
James Hillman, O sonho e o mundo das trevas. Trad. Gustavo Barcellos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.
92-93.
66
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 216.
fechado, ver é fulminantemente belo, como
48
maravilhosa é a qualidade luminosa da visão.

A vidência do pesquisador-poeta não é a do tipo sobrenatural. Ele


é o vidente pensado por Jacques Rancière67, o vidente como o amador de
imagens, o iluminador, o fabricante de iluminuras. Ao construir este
conceito, Rancière foi possivelmente influenciado pelo poeta Arthur
Rimbaud68 que, em 1871, na juventude dos seus 17 anos de idade,
escreveu a “Carta do vidente”, onde anuncia:

O primeiro estudo do homem que quer ser poeta [...] é


seu próprio conhecimento, total; ele procura sua alma,
inspeciona-a, tenta, aprende. A partir do homem que a
sabe, precisa cultivá-la [...] Eu digo que é preciso ser
vidente, fazer-se vidente.

Um trecho extraído da obra de Llansol69 serve-nos de ilustração


para a imagem-vidência produzida pelo pesquisador-poeta:

A mudança de olhar abre um campo vastíssimo ao


vivo. De quem é esta gota de água? É minha, ou
pertence-lhe a si?

Por que não sobe ela aos nossos lábios?

Estas interrogações transformam a gota num vivo,


num sexo que se vem situar em relação aos nossos.

Para a autora de Onde vais drama-poesia?70, ao poeta compete o


ofício de anunciar a imagem por vir e o diferencia dos vagabundos, dos
construtores e dos formadores:

Os vagabundos erram à procura de uma nova


paisagem. São, desde sempre, exteriores à
comunidade. Os construtores são os elementos
estabilizadores que prendem toda a geografia
imaterial à vida quotidiana. Os formadores sentem
essa geografia porque o seu órgão é o coração. Os
poetas vêem, e anunciam a geografia imaterial por vir.
Os construtores, os formadores são peregrinos.
Os poetas também o são, de certo modo. Há uma
grande afinidade que os liga aos vagabundos. Porque
são os únicos que desejam o retorno do ser como Belo.

67
RANCIÈRE, Jacques Rancière, Políticas da escrita. Trad. Laís Ramalhete, Lígia Vassalo e Eloísa
Ribeiro. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2017.
68
Arthur Rimbaud, Uma estadia no inferno, Poemas escolhidos, A carta do vidente. Trad. Daniel Fresnot.
São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 79.
69
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 215-216.
70
Ibid, p. 45.
49
O poeta, a exemplo de Alberto Caeiro71, encanta e esclarece ao
dizer:

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
Eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se faz para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,


E a única inocência não pensar...

Llansol72, leitora fiel de Fernando Pessoa, amplia a sua


compreensão sobre as iluminuras:

Parece-me claro que o centro da paisagem são as


florestas e, na sua forma mais acessível, os bosques.
Nas florestas, reúnem-se e formam-se a maior parte
das forças que, nos humanos, se irão constituir em
personalidades renovadas e enriquecidas. Não é nas
florestas que se criam as ilusões e a aspiração ao
novo? Não é na paisagem que o ser humano medita e
contempla? Não é na sua força que busca a força do
cismar?

71
Fernando Pessoa, O eu profundo e outros eus: seleção poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.
137.
72
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 45-46.
Ao transacionar com a alma imunda, aquela que carrega as
50
impressões do mundo que se inscrevem na psique, o pesquisador-poeta
ao psicologizar produz fantasia. James Hillman73, recorrendo ao próprio
Carl Jung, explica:

De fato, quando Jung formula sua experiência, diz:


“Imagem é psique”. Portanto, quando pergunto: “Onde
está minha alma? Como a encontro? O que quer ela
agora?”, a resposta é: “Volte-se para suas imagens”.
Jung diz: “Todo processo psíquico é uma imagem e um
‘imaginar’ [...] e essas imagens são tão reais quanto
você mesmo é real”. Ou, como colocou o poeta
americano da imaginação, Wallace Stevens: “Assim
nas imagens despertamos [...]. Ela é, nós somos”.

A fantasia criadora apresenta-se diretamente à alma do


pesquisador-poeta que produz as suas ideias e feitos com a energia
psíquica da imaginação. Como diz Jung, citado por Hillman74: “A psique
cria realidade todos os dias. A única expressão que posso usar para essa
atividade é fantasia. [...] A fantasia, portanto, parece-me a expressão mais
clara da atividade específica da psique.” O pesquisador-poeta é imaginal,
porque a sua alma imunda tem fome de ideias. Alinhado à vertente
neojunguiana do psicologizar, Hillman75 explica que,

Para nós, ideias são meios de considerar as coisas


(modi res considerandi), perspectivas. Ideias nos dão
olhos, deixam-nos ver. A palavra ideia por si mesma
aponta para sua intimidade com a metáfora visual do
conhecer, por estar relacionada com o latim videre (ver)
e com o alemão wissen (conhecer). Ideias são meios de
ver e de conhecer, ou de conhecer por meio de insight.
Ideias nos permitem visionar, e através da visão
podemos conhecer.

A técnica primeira de trabalho do pesquisador-poeta, para o acesso


da sua capacidade criadora por insights, é a imaginação ativa, cujos
elementos principais são destacados por Hillman76:

1) A imaginação ativa não é uma disciplina espiritual,


não é o caminho de Inácio de Loyola nem o da ioga
oriental, pois não há fantasias prescritas ou proscritas.
Trabalha-se com as imagens que surgem, não com

73
HILLMAN, James. Ficções que curam: psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. Trad. Gustavo
Barcelos, Letícia Capriotti, Andrea Lima e Elizabeth Sandoval. Campinas, SP: Verus, 2010a, p. 118.
74
Ibid., p. 119.
75
HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Trad. Gustavo Barcellos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010b, p.
243.
76
Ibid., p. 123-124.
imagens especiais escolhidas por um mestre ou um
51
código.
2) A imaginação ativa não é um esforço artístico nem
uma produção criativa de pinturas e poemas. Pode-se
esteticamente dar formas às imagens – de fato, deve-
se esforçar esteticamente ao máximo –, porém esse
esforço é em nome das figuras, em dedicação a elas e
para realizar sua beleza, não em nome da arte. O
trabalho estético da imaginação ativa, portanto, não
deve ser confundido com arte para exibição ou
publicação.
3) A imaginação ativa objetiva não o silêncio, mas o
discurso, não a imobilidade, mas a história, ou o teatro
e a conversa. Ela enfatiza a importância da palavra,
não o cancelamento da palavra, e assim a palavra
torna-se um modo de “relacionar-se”, um instrumento
do sentimento.
4) Assim, ela não é uma atividade mística, realizada
em nome da iluminação, para alcançar estados
selecionados de consciência (samadhi, satori, união
com todas as coisas). Isso seria impor uma intenção
espiritual sobre uma atividade psicológica; seria um
domínio, mesmo uma repressão, da alma pelo espírito.

Portanto, perguntamos com Llansol77, “Por que querem submeter


a visão à razão?”. Ela, que um dia foi leitora dedicada das obras de Carl
Jung e submeteu-se à análise junguiana, registrou nos seus cadernos:
“[...] ressurgimento do meu interesse por Jung, vontade de continuar
sozinha a análise do meu inconsciente, como mundo e como meu guia”78
(, p. 25).
A alma imunda do pesquisador-poeta é a sua fonte de criação na
forma de fantasias. Com palavras de-formamos progressivamente o peso
das interpretações e da necessidade de sentidos acumulados, para que
os nossos corpos deixem-se ser tocados pelos corpos que o fazem coletivo,
nosso, liberto dos padrões da intimidade e da individualidade de um
corpo próprio. Com a alma imunda o pesquisador-poeta es-crê-verá as
fantasias da psique. Parafraseando uma máxima alquímico-religiosa
apresentada por Hillman79, concluímos: na vidência do pesquisador-
poeta está sua alma.

77
Maria Gabriela Llansol, Onde vais drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000, p. 47.
78
Maria Gabriela Llansol, Herbais foi de silêncio: livro de horas VI. Lisboa: Assírio e Alvim, 2018, p. 25.
79
James Hillman, O sonho e o mundo das trevas. Trad. Gustavo Barcellos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
SOBRE O AUTOR 52

Francisco Silva Cavalcante Junior: pesquisador-poeta e professor


universitário. Há 25 anos dedica-se ao estudo e ao ensino de pesquisas
qualitativas, com experiência no uso dos métodos etnográfico,
fenomenológico, heurístico e da cartografia. Motivado pelo chamamento
de Norman K. Denzin, no livro The Qualitative Manifesto: a call to arms,
para que outros modos de escrever sobre o mundo fossem criados se a
intenção dos pesquisadores é produzir mudanças, passou a conceber e a
praticar a ciência poética desde 2010. Atualmente ensina estudantes dos
cursos de graduação em Cinema, Dança, Filosofia, Gastronomia,
Jornalismo, Moda, Música, Publicidade e Teatro, nas disciplinas de
Metodologia de Pesquisa em Arte, Filosofia e Ciências; Literatura, Cultura
e Arte; e Técnicas de Processos Criativos ministradas no Instituto de
Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (UFC). É professor-
orientador no Mestrado Acadêmico em Avaliação de Políticas Públicas
(MAPP) da UFC, com interesse nos métodos pós-estruturalistas de
avaliação. Realizou Estágio de Pós-Doutorado no Grupo Siruiz - Estudos
em Comunicação e Produção Literária, no Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da Faculdade de Comunicação da Universidade de
Brasília (UnB). É Ph.D. em Leitura e Escrita pela Universidade de New
Hampshire (EUA), com mestrado em Educação Especial na mesma
Universidade e Psicólogo formado pela Universidade de Fortaleza (Unifor).
Coordenador da varanda de ciência poética (cipó) e da Comunidade de
ações para redesenho dos modos de existência e prevenção do suicídio
(CARMENS). Autor de 16 livros, as suas mais recentes publicações de
ciência poética são: Travessias de cigano: feituras e feitiços (Armazém da
Cultura, 2017), Corpos insólitos (CRV, 2018), Mobpoéticas à mão
(Radiadora, 2018), Leveza e escrita experimental (CRV, 2019) e A
existência em ruínas (CRV, 2019).

vivimentos_cavalcantejunior
© CIPÓ, 2020.
53
© Francisco Silva Cavalcante Junior, 2020.

Capa: Guilherme Pedrosa

Revisão: Milena Bandeira

Coleção CIPÓ

varanda de ciência poética – cipó

PARTE – Pesquisa artística, teoria e experimento

Coordenação: Prof. Francisco Silva Cavalcante Junior, Ph.D.

Universidade Federal do Ceará

fscavalcantejunior@gmail.com

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