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O Direito à
educação
domiciliar
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Prefácio

Em “O Direito à educação domiciliar”, Alexandre Moreira compilou um recurso


abrangente e útil de uma importante questão para a comunidade de educação domiciliar
no Brasil. As questões abordadas no livro serão úteis para qualquer pessoa que tenha
algum interesse nesta forma de educação, que tem crescido rapidamente. A maneira pela
qual um país, em última análise, aborda a questão da educação domiciliar, revela muito
sobre a cultura cívica, política e dirigente de uma nação. A questão apresenta um nexo
jurídico, político e cultural dos direitos dos pais, crianças e sociedade na educação das
gerações futuras.

Dr. Joseph Murphy, diretor associado da Vanderbilt School of Education, identifica a


educação domiciliar tanto como um movimento social quanto como uma forma
alternativa de educação. O interesse em educação domiciliar está crescendo no Brasil.
Isso fica claro a partir dos processos judiciais que foram iniciados, bem como o fato de
que uma conferência mundial sobre educação domiciliar foi realizada em março de 2016
no Rio de Janeiro, onde os principais pesquisadores de educação, advogados e políticos
se reuniram para discutir o tema Home Education: it’s a right (Educação Domiciliar: é
um direito).

O Congresso Brasileiro tem considerado uma possível legislação, e um caso de 2016,


pendente no Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da educação
domiciliar, indicam que o movimento de educação em casa no Brasil chegou a um ponto
crítico. O Brasil é o maior país livre e democrático na América do Sul e tem influência
global, portanto como os formuladores de políticas brasileiros e juízes atenderão às
demandas de seus cidadãos por liberdade de praticar a educação domiciliar, afetará
dramaticamente os brasileiros, mas também muitos outros além de suas fronteiras.

Hoje, existem mais de dois milhões de crianças educadas em casa nos Estados Unidos.
Pesquisas demonstram que as crianças que são educadas em casa estão bem preparadas
acadêmica e socialmente para participar de uma democracia liberal. Em comparação com
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a média da população, pesquisas sugerem que crianças educadas em casa são mais
civicamente engajadas, empreendedoras, envolvidas na sociedade, e a educação
domiciliar foi tema de debate político intenso ao longo de duas décadas. Pesquisas
também revelam que não existe uma correlação positiva entre a regulamentação e
resultados para crianças educadas em casa. Isto significa que os altos níveis de
regulamentação não implicariam resultados mais positivos.

A crescente comunidade de educação domiciliar, em todo o globo, está se engajando com


formuladores de políticas em todos os níveis, para garantir que eles tenham poderes para
fornecer essa forma positiva de educação aos seus filhos.

Muitos interpretam o direito das crianças e dos pais na educação como uma garantia ao
direito à educação domiciliar. Advogados pela educação domiciliar, como eu, também
enxergam numerosos documentos internacionais de direitos humanos estabelecem
claramente que as crianças, em sua maioria, estão sob os cuidados de seus pais, cuja
autoridade e responsabilidade para tomar decisões educacionais são respeitadas pelo
Estado. Alexandre era redator principal dos Princípios do Rio
(www.therioprinciples.org), que estabelecem a forma de como o direito de educação
domiciliar deveria ser visto no âmbito do quadro internacional contemporâneo de direitos
humanos.i

Infelizmente, parece que muitas pessoas confundem o ensino obrigatório com frequência
obrigatória na escola, especialmente escolas públicas. Esta visão, contudo, não é a melhor
referência à luz dos direitos dos pais e crianças quanto à educação.

O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais articula claramente


que os pais têm o direito de enviar seus filhos para escolas não administradas pelo Estado
ou financiadas por fundos públicos. A Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu
que os pais têm o direito fundamental de dirigir a criação educacional de seus filhos. Em
um caso famoso de 1925 o tribunal emitiu estas palavras: “A teoria fundamental da
liberdade sobre a qual todos os governos desta União repousam, exclui qualquer poder
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geral do Estado para padronizar suas crianças, forçando-as a aceitar o ensinamento de


apenas professores públicos. Uma criança não é a mera criatura do Estado; aqueles que a
nutrem e dirigem o seu destino possuem o direito, juntamente com o elevado dever, de
reconhecê-la e prepará-la para obrigações adicionais”.

Neste livro, Alexandre discute as questões mais importantes que os formuladores


políticos precisam lidar sobre a educação em casa. Estas incluem o papel da família na
sociedade e na educação de uma criança, a história da educação e o fenômeno da educação
em casa à luz dos padrões atuais, a dignidade individual do ser humano, a importância da
neutralidade ideológica por parte do Estado, o pluralismo, e o nexo de direitos parentais
e os melhores interesses da criança.

À medida que o Brasil trilha seu caminho como uma nação desenvolvida e uma sociedade
livre, é importante que a educação não se torne monopólio de uma instituição. Devido ao
fato de que o propósito principal da educação é permitir o florescimento humano, esta
deveria ser a mais individualizada possível. E educação domiciliar é a educação mais
individualizada disponível. Há muitos argumentos práticos e persuasivos em favor da
permissão da educação domiciliar, em um sistema político pluralista; mas o respeito à
dignidade humana e ao valor inerente e individual do indivíduo está entre os mais
convincentes.

O livro de Alexandre é uma importante contribuição para a literatura no contexto de uma


das mais importantes sociedades democráticas emergentes do mundo, e ajudará
formuladores de políticas públicas e cidadãos a considerar os argumentos jurídicos e
filosóficos mais importantes e relevantes.

MIKE DONNELLY

Director of Global Outreach

Home School Legal Defense Associationii


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Introdução

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo

E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo

Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva

E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva

Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel

Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu

Vai voando, contornando a imensa curva norte-sul

Vou com ela viajando Havaí, Pequim ou Istambul

Pinto um barco a vela branco navegando

É tanto céu e mar num beijo azul

Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená

Tudo em volta colorindo, com suas luzes a piscar

Basta imaginar e ele está partindo, sereno e lindo

E se a gente quiser ele vai pousar

Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida

Com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida

De uma América a outra consigo passar num segundo

Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo


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Um menino caminha e caminhando chega no muro

E ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está

E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar

Não tem tempo nem piedade nem tem hora de chegar

Sem pedir licença muda nossa vida

Depois convida a rir ou chorar

Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá

O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar

Vamos todos numa linda passarela

De uma aquarela que um dia enfim

Descolorirá

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo

Que descolorirá

E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo

Que descolorirá

Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo

Que descoloriráiii

Ouvir Toquinho cantar Aquarela como trilha sonora de um comercial de lápis de cor é
uma das grandes lembranças da minha infância. Aos ouvidos de um menino de oito anos
de idade vivendo no interior de Minas Gerais, essa música não apenas soava sumamente
bela, mas também conseguia tocar o coração ao revelar verdades sobre a vida ainda
inacessíveis à mente racional. Hoje ao ouvi-la ainda me emociono, pois percebo mais de
três décadas depois que a vida realmente é uma aquarela, ou talvez várias aquarelas, sobre
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a qual nós constantemente desenhamos (traçamos mentalmente nossos planos), colorimos


(nos envolvemos com esses planos) finalmente deixamos a aquarela se descolorir (os
planos, realizados ou não, passam a fazer parte da nossa memória e se esvanecem com o
passar no tempo). Apesar desses planos todos, não sabemos como será o nosso futuro,
por quais caminhos trilharemos e em quais destinos chegaremos. Não sabemos nem quem
vamos nos tornar nessa caminhada: talvez o menino, caso pudesse ver-se décadas depois,
não reconheceria a si mesmo nesse adulto.

Soa absurdo pedir que alguém se prepare para uma longuíssima viagem, sem destinos
definidos, sem duração determinada, sem nem ao menos saber com certeza quem vai
acompanhá-lo nessa viagem. Porém, é exatamente isso que a vida pede a cada um de nós.
A vida pede que estejamos prontos para um amanhã que depende de forças absolutamente
fora de nosso controle. Já dizia Martin Heidegger que os seres humanos são simplesmente
“jogados no mundo” ao nascer, chegando em uma realidade para a qual não demos a
menor contribuição. Talvez o mais exato seja dizer que somos jogados no mundo todos
os dias ao acordar, obrigados a lidar com uma realidade quase sempre fora do nosso
controle.

E o que precisamos para realizar esse embate cotidiano com um mundo assustadoramente
maior que nós? Melhor dizendo, como podemos transformar esse embate em uma dança
entre o eu e o ambiente que o cerca, na qual a tensão permanente entre ambos é
transformada em harmonia e beleza? Para responder essa pergunta, bibliotecas inteiras
poderiam ser construídas com as formulações altamente sofisticadas de mestres da ética
e da religião. Não há tempo, porém, para que um mero ser humano leia e absorva tão
vasta obra, fruto da sabedoria acumulada de toda a humanidade. Não há também opção:
é preciso viver aqui e agora e é preciso também se preparar para o futuro incerto.

Uma das mais antigas e mais urgentes questões da humanidade consiste em como realizar
essa preparação para o futuro. Para a maioria dos adultos, essa pergunta não faz mais
sentido: a vida deve ser vivida cotidianamente, dia após dia, com a torcida de uma velhice
serena e de uma morte indolor. De minha parte, creio que eles estão mortalmente errados:
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o hoje é sempre o pai do amanhã e nossas escolhas atuais determinarão nosso futuro
mesmo que não pensemos nisso. Não podemos escapar: a vida também é uma preparação
para a morte.

Com as crianças, porém, é diferente: prometemos a elas que depois de vários anos de
preparação, estarão prontas para viver. Deixarão de ser meras “pessoas em formação”,
como diz o Estatuto da Criança e do Adolescente, para se tornar “pessoas plenamente
formadas” e prontas para atuar em sociedade em nome próprio, sem a necessidade de
apoio formal de nenhum adulto. E para isso, a Constituição Federal diz que dos quatro
aos dezessete anos, a pessoa deve ser obrigatoriamente “educada”.

Não há o mínimo consenso, porém, sobre o que seja essa exatamente esse processo de
preparação para o futuro denominado de educação. Seria alguma forma de cultivo em que
a pessoa, como uma planta, recebe os estímulos necessários para realizar seu potencial?
Em outras palavras, a educação seria simplesmente o cumprimento do comando de
Nietzsche: “torna-te quem tu és”? Ou, por outro lado, seria a introdução da criança ao
patrimônio cultural da humanidade, apta a transformar um ser biológico em um ser
humano? Ou, na forma mais pragmática, seria apenas a preparação para a uma vida
economicamente produtiva, tornando as pessoas aptas ao mercado de trabalho? Afinal de
contas, as crianças devem mesmo ser educadas por adultos ou podem fazer isso por si
mesmas?

Os questionamentos não terminam e certamente nunca terminarão pelo simples motivo


de que sempre haverá diversas visões sobre o adulto que se pretende construir e o modo
como deve ser feita essa construção. No meio de tanta polêmica sobre o que é educação,
sobre como as crianças devem ser educadas e mesmo se devem ser formalmente
educadas, é paradoxal todo o esforço que tem sido feito pelo Estado para que a educação
esteja necessariamente centrada na instituição escolar. Afinal de contas, as crianças
precisam de escola para se tornarem adultos saudáveis, felizes e produtivos? Para algumas
crianças, a resposta é certamente positiva, mas não há evidências de que essa resposta
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seja a mesma para a maioria das crianças. Certamente, a escola não é a opção mais
adequada para todas as crianças, mesmo porque não existe essa opção.

A experiência tem demonstrado que existem tantas maneiras de se educar quanto existem
crianças no mundo. Nenhum ser humano percorre um caminho exatamente igual aos
demais. Tentar impor um modelo idêntico para todos não apenas vai contra essa
experiência como também viola a dignidade de cada criança, tratando-a meramente como
parte de uma massa amorfa e não como uma pessoa a parte que deve ser respeitada em
sua individualidade. Esse tipo de mentalidade centralizadora e autoritária tem sido
responsável por intenso sofrimento de milhões de crianças por todo o País, que têm seu
bem-estar atual gravemente prejudicado em nome da preparação para um futuro que, na
imensa maioria das vezes, não tem nada a ver com seu potencial, seus talentos, suas
deficiências e seus desejos. Dessa maneira, a infância de hoje termina por ser brutalmente
sacrificada em nome de um “adulto ideal”, concebido artificialmente pelo sistema, que
pouco ou nada tem a ver com o potencial da criança. Estamos, enfim, sacrificando a alma
de nossas crianças em nome de uma criatura futura que somente existe na cabeça de uma
elite intelectual.

Sim, a criança é frágil e precisa ser protegida, cuidada e amparada. Porém, somente os
adultos que a amam têm real condições de fazer isso, pois naturalmente o interesse deles
consiste na realização dos interesses da criança. Deixar a educação nas mãos daqueles
que não tem amor pela criança significa na prática submetê-la a um tratamento indigno e
profundamente desrespeitoso com sua individualidade. Nem todas as famílias, porém,
têm condições de efetivamente dirigir a educação dos filhos, como determina nosso
Código Civil.

Este livro fala das famílias que não apenas têm condições de dirigir a educação dos filhos,
mas principalmente têm disponibilidade e vontade para fazer isso. A educação domiciliar
não é meramente uma alternativa à escola; muito mais do que isso, consiste no mais
integral cumprimento dos deveres decorrentes do poder familiar. Essencialmente, educar
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os filhos em casa é provavelmente a maior manifestação de amor que os pais podem dar
a eles.

Sabemos, porém, que a criança não pode viver apenas de amor: ela precisa efetivamente
ser educada, preparada para a vida adulta. Em outras palavras, a educação precisa ser
eficiente, precisa cumprir seus objetivos. Milhões de famílias no mundo todo e milhares
de famílias no Brasil têm demonstrado que isso é possível por meio da educação
domiciliar. Na verdade, as crianças educadas essas famílias têm mostrado resultados bem
melhores do que aquelas educadas no sistema escolar, mesmo em escolas privadas.

Se esses fatos fossem suficientes para falar por si, este livro seria absolutamente inútil.
Infelizmente, muitas vezes toneladas de evidências podem não significar nada para as
autoridades públicas. Estamos afinal em um Estado Democrático de DIREITO, onde tudo
deve ser justificado a partir de normas jurídicas. Com essa pretensão o livro foi escrito: a
de traduzir na linguagem jurídica a experiência concreta desses milhares de famílias no
Brasil.

Faço votos de que este livro ajude a tornar a vida dessas famílias um pouco menos difícil,
para que elas possam se concentrar naquilo que realmente interessa: a educação de seus
filhos. Vejo esta obra também como um subsídio para todos aqueles que, educando em
casa ou não, acreditam e lutam por mais liberdade educacional. Desejo por fim que este
livro se torne, no futuro próximo, uma peça de museu, reminiscência de uma época em
que ainda se considerava necessária a elaboração de complexas teses jurídicas para
explicar o óbvio ululante, qual seja, que os pais não apenas podem educar seus filhos em
casa como também são as pessoas mais capacitadas e mais interessadas na educação de
seus próprios filhos.
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Índice

I – Educação: conceitos fundamentais

II – A família

1. Conceito e espécies de famílias

2. O regime jurídico da família

3. Familismo na Constituição Federal

III – O fenômeno da educação domiciliar

1. A educação dirigida pelos pais

2. Abordagens e situações de educação domiciliar

3. Motivações para a adoção da educação domiciliar

4. Situação da educação domiciliar no mundo e no Brasil

IV – Questões jurídicas fundamentais

1. A dignidade da pessoa humana e a educação infantil

2. A neutralidade ideológica do Estado

3. A liberdade de consciência e de crença na educação infantil

4. O direito de transmitir determinada cultura às novas gerações

5. O pluralismo político

6. Os direitos das associações

7. As relações do poder familiar com o poder estatal


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V – O direito à instrução dirigida pelos pais

1. A educação como direito social e o princípio da subsidiariedade

2. O pluralismo político aplicado à educação

3. O princípio da proteção integral ou do melhor interesse da criança

Conclusões

Apêndices

Reflexões sobre educação e família

Declaração de princípios do Rio de Janeiro sobre educação domiciliar


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I – Educação: conceitos fundamentais

We don't need no education

We don’t need no thought control

No dark sarcasm in the classroom

Teachers leave them kids alone

Hey! Teachers! Leave them kids alone!

All in all, it's just another brick in the wall

All in all, you're just another brick in the walliv

A música Another Brick in the Wall, da qual foi retirado o trecho acima, é provavelmente
a manifestação mais famosa de repúdio ao sistema escolar. Lançada no final de 1979,
alcançou em 1980 o primeiro lugar das paradas em países tão diversos como Estados
Unidos, Israel e Nova Zelândia. A música chegou a ser proibida pelo regime racista da
África do Sul, pois havia se tornado um verdadeiro hino nos protestos contra a segregação
nas escolas sul-africanas. Ainda hoje, Another Brick in the Wall é considerada uma das
melhores músicas de todos os tempos.v

A gigantesca repercussão dessa música demonstrou a existência de uma percepção


compartilhada em vários países do mundo de que há algo essencialmente errado com a
educação tal qual a concebemos hoje. Infelizmente, a banda inglesa Pink Floyd também
cometeu um erro, que passou despercebido por quase todos que ouviram a música. Esse
erro foi a confusão entre educação e escolarização. Bem, não precisamos jogar toda a
culpa em Roger Waters & cia., pois esse erro é largamente disseminado. E não é o único:
instrução, por exemplo, também é frequentemente associada com escolarização.vi Da
mesma forma, os termos professor e educador são frequentemente tomados como
sinônimos. vii

Sem dúvida alguma, o termo “educação” é o de mais problemática definição. Vários


sentidos, muitas vezes com pouquíssima relação entre si foram se agregando à palavra
“educação” com o passar do tempo. viii A razão para essa infindável diversidade semântica
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foi a excepcional circunstância de que, a partir do Iluminismo, a educação passou a ter


uma forte conotação emotiva, significando “o instrumento fundamental de transformação
individual e social”.ix Nesse sentido, a educação passou a ser um símbolo agregador de
todas as transformações sociais e individuais visualizadas pelas mais diversas correntes
ideológicas. x

Entre as várias definições reconhecidas de educação, destaco:

“Educação desenvolve no corpo e na alma do aluno toda a beleza e toda a


perfeição de que ele é capaz.” (Platão)

“A educação é a criação da mente sadia em um corpo sadio. Desenvolve a


faculdade do homem, especialmente sua mente, para que ele possa ser capaz
de desfrutar a contemplação da verdade suprema, a bondade e beleza.”
(Aristóteles)

“A educação é o desenvolvimento da criança de dentro.” (Rousseau)

“A educação é desdobramento do que já existe em germe. É o processo através


do qual a criança faz com que o interno torne-se externo.” (Froebel)

“A educação é o desenvolvimento harmonioso e progressivo de todos os


poderes e faculdades de inatas do ser humano – físicas, intelectuais e morais.”
(Pestalozzi)

“A educação é o completo desenvolvimento da individualidade da criança


para que ele possa fazer uma contribuição original para a vida humana de
acordo com o melhor de sua capacidade.” (T. P. Nunn) xi

Apesar dessa diversidade de definições, é possível identificar uma essência comum a


todas elas: a educação diz respeito a um desenvolvimento, uma maturação, um
florescimento do potencial individual.xii Nesse sentido, a educação não é um pensamento
ou uma teoria, mas uma forma de ação concreta sobre o indivíduo:

Educação é ação, e a definição de Durkheim parece-nos excelente: “A


educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda não
amadureceram pela vida social.” Ação de uma personalidade sobre outras,
criação de comunicações psicológicas entre seres humanos, a educação
pertence ao domínio da arte: a arte de criar condições favoráveis a essa ação
profunda, suscetível de orientar a evolução de um sujeito, a arte de manejar
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certas técnicas de ação, a arte de conduzir para os objetivos determinados


aqueles cujo encargo nos pertence.xiii

Analiticamente, é possível constatar que a educação:

a) Compreende diversos processos de aprendizagem no decorrer da vida, sem


limitação a uma situação específica, como a escolar;xiv

b) Consiste essencialmente no desenvolvimento de um poder inato da pessoa;

c) É um processo dinâmico, que se desenvolve de acordo com as mudanças na


situação concreta da pessoa;

d) Em regra, é um processo tripolar, que requer a participação do educador, do


educando e da sociedade em que eles vivem. xv xvi

A educação pode ser realizada fundamentalmente de modo:

a) Informal: “ocorre no curso de atividades adultas mundanas nas quais os jovens


tomam parte de acordo com sua habilidade. Não há uma atividade executada
apenas para ‘educar as crianças’.”xvii;

b) Formal: existe um processo educacional específico, destacado da vida cotidiana,


que se destina à transmissão de conhecimentos, hábitos e habilidades para as
xviii
novas gerações. Enquanto a educação informal parte de uma relação pessoal
entre o educador e o educando (por ex., pai e filho), a educação formal é centrada
no conteúdo, universalmente padronizadoxix. A educação formal é realizada
usualmente dentro do ambiente escolar;

c) Não formal: qualquer atividade educacional organizada realizada fora do sistema


estabelecido. Envolve grupos comunitários e outras organizações. Existem os
seguintes tipos de educação não formal:

I) Educação paraformal: atividades reconhecidas por autoridades


educacionais e que correm paralelamente ao sistema educacional. É o caso
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da educação à distância, dos programas de tutoria e de aulas


complementares para pessoas com problemas de aprendizagem;

II) Educação popular: iniciativas educacionais explicitamente dirigidas aos


grupos marginais da população, de forma concreta e aproveitando-se de
seus conhecimentos anteriores; xx

III) Atividades de desenvolvimento pessoal: realizadas por meio do mercado


privado de ensino com o objetivo de atender demandas de caráter
individual. No Brasil, essas atividades acontecem nos “cursos livres”, que
recebem essa denominação por não requererem reconhecimento do
Ministério da Educação. São exemplos dessas atividades os cursos de
idiomas, esportes, artes plásticas e informática; xxi

IV) Treinamento profissional: inclui os vários programas de treinamento


profissional e vocacional organizados por firmas, sindicatos, agências
privadas e até escolas formais. Seu objetivo é capacitar profissionais para
atender às necessidades das empresas. xxii

Idealmente, a educação formal e não formal distinguem-se nos seguintes aspectos: xxiii

Formal Não formal


Propósitos Longo prazo & geral Curto prazo & específica
Baseada em certificação Não baseada em
certificação
Tempo De ciclo longo De ciclo curto
Preparatório Recorrente
Tempo integral Meio expediente
Conteúdo Padronizada Individualizada
Absorção Produção
Centrada na academia Centrada na prática
Requisitos de admissão A clientela determina os
determinam a clientela requisitos de admissão
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Sistema de administração Baseada na instituição, Baseada no ambiente,


isolada do ambiente. relacionada à comunidade.
Estruturada rigidamente. Flexível.
Centrada no professor. Centrada no aluno.
Utilização intensiva de Economia de recursos.
recursos.
Controle Externo Autogoverno
Hierárquico Democrático

Por sua vez, a “instrução se refere à formação intelectual, formação e desenvolvimento


das capacidades cognoscitivas mediante o domínio de conhecimentos sistematizados”.
xxiv
Nesse sentido, instrução é, essencialmente, a transmissão de conhecimentos e
habilidades. A instrução não é um fim em si mesmo, mas apenas um dos meios de se
realizar a educação, como explica José Carlos Libâneo:

Há uma relação de subordinação da instrução à educação, uma vez que o processo e o


resultado da instrução são orientados para o desenvolvimento das qualidades específicas
da personalidade. Portanto, a instrução, mediante o ensino, tem resultados formativos
quanto converge para o objetivo educativo, isto é, quando os conhecimentos, capacidades
e habilidades propiciados pelo ensino se tornar princípios reguladores da ação humana,
em convicções e atitudes reais frente à realidade. xxv

O ensino “corresponde a ações, meios e condições para a realização da instrução; contém,


pois, a instrução. (...) o ensino é o principal meio e fator da educação – ainda que não o
único – e, por isso, destaca-se como campo principal da instrução e educação”.xxvi O
ensino pressupõe necessariamente uma intenção (objetivo a ser alcançado por aquele que
se submete ao ensino) e em caráter triádico, pois se refere a quem ensina, à quem se ensina
e ao que é ensinado. Nesse sentido, o ensino é muitas vezes visto como mero sinônimo
de educação, mas trata-se, na verdade, de apenas uma das formas de realização do
processo educacional. Nada impede, por exemplo, que a educação ocorra sem um
educador (aquele que ensina): essa é a situação do autodidatismo, no qual a aprendizagem
ocorre sem o ensino.xxvii

A aprendizagem consiste na “aquisição de uma técnica qualquer, simbólica, emotiva ou


de comportamento: isto é, uma mudança nas respostas de um organismo ao ambiente, que
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melhore tais respostas em vista da conservação e do desenvolvimento do próprio


organismo”xxviii. A aprendizagem tem três dimensões:

a) humana: relacionamento interpessoal (professores, alunos, direção, funcionários);


b) político-social: época histórica, políticas governamentais, etc.;
c) técnica: definição de objetivos, seleção de conteúdos, técnicas e recursos de
ensino.

Cultura, em sentido antropológico, engloba tudo aquilo que o ser humano produz para
garantir sua sobrevivência e desenvolvimento. Abrange desde atividades essencialmente
materiais, como a agricultura,xxix até obras de caráter mais intelectual, como a literatura e
as artes. A Constituição Federal adotou esse conceito ao definir patrimônio cultural
brasileiro como “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou
em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira” (art. 216, caput). A transmissão da cultura se
faz por meio da educação, formal, não formal e mesmo informal.

Escolarização (ou educação escolar), por sua vez, refere-se a todos os processos de
caráter educacional controlados por uma instituição específica, a escola. Em termos
jurídicos, escolarização é sinônimo de submissão a padrões homogêneos definidos
nacionalmente; no caso do Brasil, esses padrões constam da Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional – também conhecida
como LDB), que delimita expressamente seu âmbito de aplicação: “Esta Lei disciplina a
educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em
instituições próprias” (art. 1º, § 1º).xxx A escolarização não é apenas a educação
institucionalizada (isto é, conduzida por estruturas burocráticas altamente reguladas, as
escolas), mas também uma ideologia xxxi, um mito xxxii, uma religião xxxiii e um processo
educacional xxxiv.

Educador é simplesmente aquela pessoa responsável pela educação de outrem. Sua


relevantíssima função social consiste na transmissão seletiva da cultura às novas
gerações. Nesse sentido, o educador determina quais manifestações culturais são
relevantes o bastante para serem internalizadas pelos educandos. Não é exagero dizer que
o conjunto de possibilidades de vida imagináveis por determinada geração foi
determinado majoritariamente pelos educadores dessa geração.
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Professor ou docente é a pessoa responsável pela educação, ou mais, estritamente, pela


transmissão de conhecimentos a outras pessoas. A atividade do professor é o ensino, que
pode ser realizado tanto em caráter informal (na educação domiciliar, por exemplo, o
ensino é responsabilidade dos pais) quanto profissionalmente, dentro de um ambiente
escolar como integrante de uma profissão. Existem duas espécies fundamentais de
professores:

a) Os professores instrutores: são responsáveis apenas pela transmissão de


conhecimentos. Não têm o poder de determinar o que, porque e para que
transmitir, mas somente prestam um serviço tendo em vista os fins já
determinados por outrem. Geralmente, consideram-se instrutores ou facilitadores
aqueles que atuam na educação não formal (por exemplo, em cursos de línguas
estrangeiras, de artes marciais e de mecânica);

b) Os professores educadores: são simultaneamente educadores e instrutores, pois


são responsáveis tanto por transmitir conhecimentos e habilidades como também
por selecionar os bens culturais e as finalidades com que eles são transmitidos. O
professor educador transmite ao educando a cultura filtrada de acordo com sua
ideologia e visão de mundo. Essa função é exercida pelos pais e mais
controvertidamente pelos profissionais do sistema escolar.

O quadro a seguir sintetiza as categorias de professores:

Atividade formal Atividade informal


Instrutores Professores inseridos no Instrutores de cursos livres.
sistema escolar.
Educadores Professores e outros Pais e responsáveis por
profissionais do sistema crianças e adolescentes.
escolar.

Intelectual, em sentido lato, é todo aquele que, dotado de cultura consideravelmente maior
que a média da população, reflete sobre as realidades sociais e propõe soluções para os
problemas dessa sociedade. A classe dos intelectuais é tradicionalmente denominada de
intelligentsia. Na conhecida classificação das espécies de poder realizada por Max
Weber, o poder intelectual (ao lado do militar e do político) tem destacada importância,
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uma vez que determina a ação alheia sem a necessidade da utilização da força física ou
de meios financeiros.

Extremamente influente no Brasil é a distinção realizada por Antônio Gramsci entre


intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos:

Daqui a designação de intelectuais “orgânicos” distintos dos intelectuais tradicionais.


Estes, para Gramsci, eram basicamente os Eram os intelectuais estagnados no mundo
agrário do Sul da Itália. Eram o “clero”, “os funcionários”, “a casa militar”, “os
acadêmicos” voltados a manter os camponeses atrelados a um status quo que não fazia
mais sentido. (...)

(...)

“Orgânicos”, ao contrário, são os intelectuais que fazem parte de um organismo vivo e


em expansão. Por isso, estão ao mesmo tempo conectados ao mundo do trabalho, às
organizações políticas e culturais mais avançadas que o seu grupo social desenvolve para
dirigir a sociedade. Ao fazer parte ativa dessa trama, os intelectuais “orgânicos” se
interligam a um projeto global de sociedade e a um tipo de Estado capaz de operar a
“conformação das massas no nível de produção” material e cultural exigido pela classe
no poder. Então, são orgânicos os intelectuais que, além de especialistas na sua profissão,
que os vincula profundamente ao modo de produção do seu tempo, elaboram uma
concepção ético-política que os habilita a exercer funções culturais, educativas e
organizativas para assegurar a hegemonia social e o domínio estatal da classe que
representam.xxxv

De acordo com essa classificação, os professores, responsáveis pela educação, seriam


necessariamente intelectuais tradicionais ou orgânicos. Na doutrina pedagógica brasileira,
há praticamente um consenso no sentido de que os professores não apenas são
intelectuais, mas principalmente têm o dever moral de serem intelectuais orgânicos, ou
xxxvi
em outros termos, intelectuais transformadores. Maria Lúcia de Arruda Aranha,
autora do mais influente manual de filosofia da educação no Brasil, afirma essa
vinculação entre professor e intelectual orgânico de forma assaz contundente:

Ser um educador intelectual transformador é compreender que as escolas não são espaços
neutros de mera instrução, mas carregados de pressupostos que representam as relações
de poder vigentes e convicções pessoais nem sempre explicitadas. Imaginar que a escola
seja um local apolítico, em que são transmitidos conhecimentos objetivos e apartados do
21

mundo das injustiças sociais, é manter uma postura conservadora. Perigosamente


conservadora, por contribuir com a manutenção do status quo.xxxvii

Ideologia tem duas concepções: a neutra e a crítica. De acordo com a primeira, ideologia
é uma visão de mundo compartilhada por determinado grupo; é, nesse caso, sinônimo de
ideário. Na concepção crítica, de fundo marxista, ideologia é a estratégia utilizada pelos
intelectuais a serviço de uma classe para representar falsamente a realidade em benefício
dessa classe. Para propagar a ideologia dominante e manter o sistema mediante o
consenso da população, o Estado contaria com aparelhos ideológicos, quais sejam,
instituições como a família, a religião, a escola, o sistema legal, a cultura e a
comunicação. xxxviii

Propagandaxxxix ou doutrinação é uma forma de comunicação que busca influenciar o


comportamento dos destinatários em direção a determinada causa ou ideologia. A
modificação comportamental, por sua vez, consiste em um estágio mais avançado da
doutrinação, pois utilizada técnicas empiricamente demonstradas para aumentar ou
diminuir a frequência de um comportamento. Há controvérsia a respeito da possibilidade
xl
de uma diferenciação essencial entre educação propaganda ou doutrinação. Porém,
considerando a educação no sentido clássico de “formação integral do ser humano”, é
possível realizar uma série de distinções entre educação e doutrinação ou propaganda,
como será detalhado no quadro a seguir.xli

Doutrinação e propaganda Educação


Unilateral: Diferentes ou opostos pontos Multifacetada: As questões são
de vista são ignorados, deturpados, examinadas a partir de muitos pontos de
subrepresentados ou denegridos. vista; os lados opostos são
equitativamente representados.
Usa generalizações, declarações Usa qualificadores: as declarações são
“totalizantes” e despreza referências e apoiadas em referências e dados
dados específicos. específicos.
Omissão seletiva: Dados cuidadosamente Equilibrado: Apresenta as amostras de
selecionados – e mesmo distorcidos – para uma ampla gama de dados disponíveis
apresentar apenas o melhor ou o pior caso sobre o assunto. Linguagem usada para
revelar.
22

possível. A linguagem é usada para


esconder.
Uso enganador das estatísticas. Referências estatísticas qualificadas com
respeito ao tamanho, duração, critérios,
controles, fonte e subsídios.
Aglomeração: ignora distinções e Discriminação: Assinala as diferenças e
diferenças sutis. Tenta reunir elementos distinções sutis. Use analogias com
superficialmente semelhantes. Raciocina cuidado, apontando diferenças e casos de
por analogia. inaplicabilidade.
Falso dilema (ou/ou): apenas duas Alternativas: Há muitas maneiras de
soluções para o problema ou duas resolver um problema ou visualizar uma
maneiras de ver a questão - o “caminho questão.
certo” (o caminho do orador ou do
escritor) e o “caminho errado” (qualquer
outra forma).
Apelos a autoridade: declarações Apelos à razão: Declarações de
selecionadas de autoridades utilizados autoridades e partes envolvidas utilizados
para encerrar uma discussão. Abordagem para estimular o pensamento e a
“Só o especialista sabe”. discussão. “Especialistas raramente
concordam”.
Apelos ao consenso ou “efeito arrastão”: Apelos aos fatos: fatos selecionados a
“Se todo mundo está fazendo isso, então partir de ampla base de dados. Aspectos
devem estar certos”. lógicos, éticos, estéticos e psicoespirituais
considerados.
Apelos às emoções: Usa palavras e Apelos à capacidade das pessoas para
imagens com fortes conotações respostas fundamentadas e atenciosas:
emocionais. usa explicações e palavras
emocionalmente neutras.
Rotulagem: usa rótulos e linguagem Evita rótulos e linguagem depreciativa:
depreciativa para descrever os defensores aborda o argumento, e não as pessoas que
de pontos de vista opostos. apoiam um ponto de vista específico.
23

Promove atitudes de ataque e/ou de defesa Promove atitudes de abertura e de


com o objetivo de vender uma atitude ou pesquisa. O objetivo é descobrir.
produto.
Ignora os pressupostos e os vieses Explora os pressupostos e os vieses
embutidos. embutidos.
O uso da linguagem promove a falta de O uso da linguagem promove maior
consciência. consciência.
Pode levar à pobreza de espírito e à Pode levar à compreensão e à visão mais
intolerância. abrangente.
Estudos citados escondem os conflitos de Estudos citados revelam os conflitos de
interesse das fontes de financiamento. interesse das fontes de financiamento.
As estatísticas sempre são apresentadas As estatísticas são apresentadas para
para mostrar o máximo de dano do mostrar vários aspectos do problema, nem
problema e mínimo de danos da solução. sempre a partir de uma abordagem
maximalista ou minimalista.

Socialização é o processo de absorção e disseminação das normas culturais de um


determinado grupo social. Em outros termos, é o modo como a cultura é transmitida a
uma pessoa e retransmitida por essa mesma pessoa; também é conhecida como educação
informal. Os agentes de socialização consistem nas pessoas e instituições que auxiliam
na integração do indivíduo na sociedade. Esses agentes podem ser:

a) primários: são as pessoas naturalmente mais próximas do indivíduo, ou seja, os


familiares e amigos;

b) secundários: são as instituições sociais nas quais o indivíduo é inserido, como


escola, igreja e local de trabalho.xlii

Pedagogia é a ciência da educação. Em sentido estrito, diz respeito apenas à educação


das crianças e jovens (pedagogia vem do grego paidós, que significa criança).xliii Em
xliv
sentido amplo, tem por objeto qualquer espécie de educação. Didática é o campo da
pedagogia que tem por objeto os modos de realização do ensino. Concepções pedagógicas
(ou concepções educacionais) são as diversas teorias que buscam fundamentar o saber
pedagógico. São reconhecidas as seguintes concepções: xlv
24

a) Concepção tradicional: o aluno é considerado receptor passivo de informações


preestabelecidas pelo sistema ou instituição educacional, que deve
criteriosamente selecionar e preparar os conteúdos a serem transmitidos às novas
gerações. A avaliação da aprendizagem baseia-se na capacidade de reprodução
fiel das informações ensinadas. A relação professor-aluno é marcada por forte
hierarquização e autoritarismo;

b) Concepção comportamentalista ou behaviorista (tecnicismo): o conhecimento é


externo ao indivíduo e deve ser por ele descoberto como resultado direto de sua
experiência. Cabe à Educação o papel de estabelecer um roteiro de ações
rigorosamente controlado, que conduza o aluno a atingir objetivos de ensino pré-
determinados. A transmissão dos conteúdos deve levar ao desenvolvimento de
habilidades e competências;

c) Concepção humanista: privilegia os aspectos da personalidade do sujeito que


aprende. Corresponde ao “ensino centrado no aluno”. O conhecimento, para essa
concepção, existe no âmbito da percepção individual e não se reconhece
objetividade nos fatos. A aprendizagem se constrói por meio da ressignificação
das experiências pessoais. O aluno é o autor de seu processo de aprendizagem e
deve realizar suas potencialidades. A educação assume um caráter mais amplo, e
organiza-se no sentido da formação total do homem e não apenas do estudante;

d) Concepção cognitivista: entendem o ser humano como um sistema aberto, ou seja,


consideram sua capacidade de processar novas informações, integrando-as a seu
repertório individual, reconstruindo-as de forma única e subjetiva continuamente
ao longo da vida, em direção à constante autossuperação, e incorporando
estruturas mentais cada vez mais complexas. Nessa abordagem, o professor é
entendido como mediador entre o aluno e o conhecimento. Cabe a ele
problematizar os conteúdos de ensino, criando condições favoráveis à
aprendizagem, e desafiar os alunos para que cheguem às soluções por meio de um
processo investigativo;

e) Concepção sociocultural: No Brasil, Paulo Freire é o representante mais


significativo da abordagem sociocultural. Nessa perspectiva, o ser humano não
25

pode ser compreendido fora de seu contexto; ele é o sujeito de sua própria
formação e se desenvolve por meio da contínua reflexão sobre seu lugar no
mundo, sobre sua realidade. Essa conscientização é pré-requisito para o processo
de construção individual de conhecimento ao longo de toda a vida, na relação
pensamento-prática. Visa à consciência crítica, que é a transcendência do nível de
assimilação dos dados do mundo concreto e imediato, para o nível de percepção
subjetiva da realidade como um processo de relações complexas e flexíveis ao
longo da história.

Glossário
Conceito “A educação é a ação exercida pelas gerações
Educação adultas sobre as que ainda não amadureceram
pela vida social.” (Durkheim)
Características Compreende diversos processos de
aprendizagem no decorrer da vida.
Desenvolve um poder inato da pessoa.
Varia de acordo a com situação concreta da
pessoa.
Participantes: educador, educando e sociedade.
Classificação Formal Conceito Realizada em
estabelecimentos
de ensino e
regulamentada
pelo Estado.
Classificação Ensino
fundamental
E. médio.
E. superior.
Informal Não há um processo educativo
(ou não separado da vida cotidiana da
intencional) criança.
26

Não formal Conceito Cursos livres, sem


regulamentação
estatal.
Classificação Educação
paraformal
Educação popular
Atividades de
desenvolvimento
pessoal
Treinamento
profissional
Instrução Transmissão de conhecimentos e habilidades.
Ensino Ações, meios e condições para a realização da instrução; contém,
pois, a instrução.
Aprendizagem Aquisição de conhecimentos e habilidades.
Cultura Tudo aquilo que o ser humano produz para garantir sua sobrevivência
e desenvolvimento.
Escolarização Processos de caráter educacional controlados por uma instituição
(ou educação específica, a escola.
escolar)
Educador A pessoa responsável pela educação de outrem.
Professor (ou Conceito Pessoa responsável pela educação, ou mais,
docente) estritamente, pela transmissão de conhecimentos a
outras pessoas.
Atividade Informal Fora do ambiente escolar; não
constitui uma profissão.
Profissional Dentro de um ambiente escolar
como integrante de uma profissão.
Classificação Instrutores São responsáveis apenas pela
transmissão de conhecimentos.
Educadores São simultaneamente educadores e
instrutores.
27

Intelectual Conceito Pessoa que reflete sobre as realidades sociais e


propõe soluções para os problemas dessa
sociedade.
Classificação de Tradicional Intelectual ainda preso a uma
Gramsci formação socioeconômica
superada.
Orgânico Intelectual que participa da
formação de uma nova sociedade;
também chamado de intelectual
transformador.
Ideologia Concepção Estratégia utilizada pelos intelectuais a serviço de
crítica uma classe para representar falsamente a realidade
(marxista) em benefício dessa classe.
Aparelhos Conceito Instituições sociais que propagam a
ideológicos do ideologia da classe dominante no
Estado Estado.
Espécies Religioso, escolar, familiar,
jurídico, político, sindical, cultural
e de informação.
Doutrinação Conceito Forma de comunicação que busca influenciar o
(ou comportamento dos destinatários em direção a
propaganda) determinada causa ou ideologia.
Modificação Consiste em um estágio mais avançado da
comportamental doutrinação, pois utilizada técnicas
empiricamente demonstradas para aumentar ou
diminuir a frequência de um comportamento.
Socialização Conceito Processo de absorção e disseminação das normas
culturais de um determinado grupo social.
Agentes de Primários Pessoas naturalmente mais
socialização próximas do indivíduo: os
familiares e amigos.
28

Secundários Instituições sociais nas quais o


indivíduo é inserido, como escola,
igreja e local de trabalho.
Pedagogia Conceito Ciência da educação.
Didática Campo da pedagogia que tem por objeto os modos
de realização do ensino.
Concepções Conceito São as diversas teorias que
Pedagógicas buscam fundamentar o saber
pedagógico.
Classificação Tradicional
Comportamentalista ou
behaviorista (tecnicismo)
Humanismo
Cognitivista
Sociocultural

II – A família

1. Conceito e espécies de famílias

Família! Família!

Papai, mamãe, titia

Família! Família!

Almoça junto todo dia

Nunca perde essa mania

Mas quando a filha quer fugir de casa

Precisa descolar um ganha-pão

Filha de família se não casa


29

Papai, mamãe, não dão nenhum tostão

(...)

Família! Família!

Vovô, vovó, sobrinha

Família! Família!

Janta junto todo dia

Nunca perde essa mania

Mas quando o neném

Fica doente

Uô! Uô!

Procura uma farmácia de plantão

O choro do neném é estridente

Uô! Uô!

Assim não dá pra ver televisão

(...)

Família! Família!

Cachorro, gato, galinha

Família! Família!

Vive junto todo dia

Nunca perde essa mania


30

A mãe morre de medo de barata

Uô! Uô!

O pai vive com medo de ladrão

Jogaram inseticida pela casa

Uô! Uô!

Botaram cadeado no portãoxlvi

A geração que nasceu nas décadas de 1960 e 1970 foi a primeira a ter o rock nacional
como sua grande referência musical e talvez a última a ter uma noção mais estabilizada
do termo “família”. Como ilustra a simpática música dos Titãs, a família era vista como
um lugar onde vários conflitos e desavenças aconteciam, mas mesmo assim as pessoas
estavam reunidas essencialmente por relações de consanguinidade (“Vovô, vovó,
sobrinha”). Analogamente, “família” ainda incluiria relações afetivas entre pessoas sem
vínculo de consanguinidade, os amigos mais próximos, e mesmo entre pessoas e animais
(“Cachorro, gato, galinha”). Se levarmos ainda mais longe essa analogia, “família”
incluiria quaisquer relações sociais que tivessem, ao menos retoricamente, algum grau de
afetividade, como empresas, associações e sindicatos. Porém, mesmo que apenas
intuitivamente, todos nós sabíamos que família “pra valer” abrangia apenas aquelas
pessoas pelas quais nós tínhamos relações de parentesco.xlvii Para as demais, isso não
passava de uma figura de linguagem (era como chamar os amigos mais próximos de
“irmãos”).

Essa noção relativamente bem definida de família tem sido progressivamente contestada
por movimentos sociais que procuram inflar a sua abrangência (para incluir, por exemplo,
uniões informais, casais gays ou mesmo uniões afetivas de mais de duas pessoas) ou
mesmo para destruir o próprio conceito de família, considerada como uma instituição
criada na era patriarcal que não teria mais função na sociedade contemporânea. Por isso,
mais do que nunca, é preciso identificar as diversas definições de família, além das
variadas formas de estruturas familiares.
31

A palavra “família” tem origem no latim pater familias (chefe de família) e famulus
(servos), e incluía, portanto, o chefe de família, seus descendentes e servos (a mulher não
era necessariamente parte da família do marido). Apenas no final do século XVII
“família” passou a designar, na Europa, o conjunto dos pais e dos filhos. Bronisław
Malinowski (1884-1942), antropologista polonês, declarou que a família era uma
instituição universal, cuja definição compreendia três elementos:

a) um grupo delimitado de pessoas (uma mãe, um pai e seus filhos) que reconhecem
uns aos outros e são distinguíveis de outros grupos;

b) um espaço físico definido, um lar e uma casa;

c) um conjunto peculiar de emoções, “amor familial”.

Essa definição foi objeto de muita controvérsia uma vez que nem sempre essas
características estavam presentes nas estruturas familiares estudadas pelos antropólogos
ao redor do mundo. Considerando que a universalidade da família derivaria de uma
necessidade humana constante, a criação das novas gerações,xlviii parece-me que seria
mais adequado considerar a família, estruturalmente, como qualquer grupo doméstico
que contenha ao menos um adulto e uma criança sob a dependência desse adulto.

A família também pode ser definida funcionalmente, ou seja, de acordo com o seu papel
social. Nesse sentido, a função primária da família é a perpetuação da sociedade, tanto
biologicamente, por meio da procriação, quanto culturalmente, por meio da educação
informal (socialização) ou formal. Secundariamente, a família tem diversas funções,
dentre as quais se destacam:

a) satisfação das necessidades sexuais de homens e mulheres;

b) provimento das necessidades básicas de seus membros;

c) unidade econômica primária, que estabelece a divisão do trabalho de acordo com


o gênero e a idade;

d) segurança de seus membros;


32

e) provimento de um ambiente de afetividade e amor.

No Brasil, a definição de família adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatística (IBGE) é especialmente relevante, uma vez que é considerado não apenas nos
censos realizados pelo instituto, mas também na definição de diversas políticas públicas:

Família – conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou


normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora só
em uma unidade domiciliar. Entende-se por dependência doméstica a relação estabelecida
entre a pessoa de referência e os empregados domésticos e agregados da família, e por
normas de convivência as regras estabelecidas para o convívio de pessoas que moram
juntas, sem estarem ligadas por laços de parentesco ou dependência doméstica.
Consideram-se como famílias conviventes as constituídas de, no mínimo, duas pessoas
cada uma, que residam na mesma unidade domiciliar (domicílio particular ou unidade de
habitação em domicílio coletivo).xlix

Muito se tem falado sobre a “decadência” e a “transformação” da família. O foco dessa


discussão, porém, parece-me deslocado. Considerando que a existência da instituição
“família” somente se justifica no exercício de sua função primária, a perpetuação da
sociedade, por meio da criação e educação das novas gerações, a verdadeira questão é
quão bem cada tipo de família pode exercer essa atribuição. Assim, quanto melhor a
família exerce sua função primária, mais funcional ela é; por outro lado, quanto menos
eficaz for a família no exercício de sua função, mais disfuncional ela é.

Abstraindo as questões ideológicas que contaminam severamente o debate público, é


possível distinguir empiricamente a funcionalidade e a disfuncionalidade de cada espécie
de estrutura familiar. Para isso, serão consideradas as seguintes estruturas familiares,
definidas nos termos do New Family Structures Study (NFSS) – Novo Estudo de
Estruturas Familiares, realizado pelo professor Dr. Mark Regnerus da Universidade do
Texas com quase 3.000 adultos de 18 a 39 anos: l

Estrutura familiar Descrição Relação entre os pais


Adotado Criança adotada por um ou Variados status conjugais e de
dois estranhos (pessoas não relacionamento entre o(s)
relacionadas com a criança) pai(s) adotivo(s)
33

no momento do nascimento
ou antes de 2 anos de idade.
Divorciado mais tarde Criança vivia com a mãe e o Os pais biológicos não estão
ou guarda conjunta pai biológicos do atualmente casados um com o
nascimento até a idade de 18 outro.
anos, seja através de guarda
conjunta ou em uma família
intacta que mais tarde passou
por divórcio.
Mãe tinha uma Criança vivia com a mãe 91% dessas crianças viviam
relação lésbica (biológica ou adotiva) que com a mãe enquanto ela
teve um relacionamento estava em um relacionamento
romântico do mesmo sexo do mesmo sexo; 57% viviam
por algum período de tempo. com sua mãe e sua parceira
durante pelo menos 4 meses; e
23% viviam com sua matriz e
sua parceira durante pelo
menos 3 anos.
Família biológica Criança vivia com seus pais Pai e mãe biológicos foram
intacta biológicos, casados entre si, casados durantes toda a
do nascimento até os 18 infância da criança e
anos. permanecem casados.
Pai em um Criança vivia com o pai 42% dessas crianças viviam
relacionamento gay (biológico ou adotivo) que com o pai enquanto ele estava
teve um relacionamento em um relacionamento do
romântico do mesmo sexo mesmo sexo; 24% viviam
por algum período de tempo. com seu pai e o parceiro dele
durante pelo menos 4 meses; e
2% viviam com o pai e seu
parceiro durante pelo menos 3
anos.
34

Pai ou mãe solteira Criança vivia principalmente Os pais biológicos são


com um de seus pais divorciados ou nunca se
biológicos, que não se casou casaram.
(ou não se casou novamente)
antes que a criança atingisse
18 anos de idade.
Família mista Criança vivia principalmente Os pais biológicos ou tinham
com um de seus pais divorciado ou nunca haviam
biológicos que se casou com se casado; o pai que tinha a
alguém que não seja o outro guarda era casado.
pai biológico da criança
antes que a criança atingisse
18 anos de idade

Nessa pesquisa, ficaram extremamente nítidas as diferenças de cada estrutura familiar


para o desenvolvimento futuro da criança. No quadro a seguir, são enumerados alguns
desses resultados (em azul são destacadas as proporções mais favoráveis e em vermelho
as mais desfavoráveis):

Estrutur Maconha Cigarro Prisão Declarou-se Recebem Desem-


li lii liii
a familiar culpadoliv assistência prega-
social dos
Adotado 1,33 2,34 1,31 1,19 27% 22%
Divorcia- 2,00 2,44 1,38 1,30 31% 15%
do mais
tarde
Mãe tinha 1,84 2,76 1,68 1,36 38% 28%
uma
relação
lésbica
35

Família 1,32 1,79 1,18 1,10 10% 8%


biológica
intacta
Pai tinha 1,61 2,61 1,75 1,41 23% 20%
uma
relação
gay
Pai ou 1,73 2,18 1,35 1,17 30% 13%
mãe
solteira
Família 1,47 2,31 1,38 1,21 30% 14%
mista

A tabela acima demonstra que em todos os aspectos considerados, a família biológica


intacta é que proporciona a melhor condição de vida para o adulto formado dentro dessa
família.lv A conclusão dos pesquisadores não deixa dúvidas de que este é o melhor arranjo
familiar:

(...) serem criadas por uma família biológica intacta apresenta claras vantagens para as
crianças sobre outras formas de parentalidade. Particularmente, o estudo fornece
evidências que as gerações anteriores de cientistas sociais foram incapazes de coletar -
evidências sugerindo que as crianças de famílias biológicas intactas também superam
seus pares que foram criados em lares de um pai que teve relações do mesmo sexo.
Portanto, esse novo estudo reafirma e fortalece a convicção de que o melhor padrão para
criar os filhos ainda é a família biológica intacta.lvi

2. O regime jurídico da família

O casamento é essencial para unidades familiares estáveis e fortes, que por sua vez são
essenciais para proteger a estabilidade da nossa sociedade. (Até mesmo alguns a favor
do casamento homossexual reconheceram esse fato e tentam usá-lo para promover sua
própria posição!) (Declaração do parlamento australiano)lvii
36

Juridicamente, família é a comunidade formada por indivíduos unidos em razão de:

a) casamento (realizado entre cônjuges) ou união estável (realizado entre


companheiros); e/ou

b) parentesco, consanguíneo (relativo às pessoas que compartilham um ascendente


comum), por afinidade (relativo aos parentes consanguíneos do cônjuge) ou por
adoção (ato jurídico que estabelece a relação de filiação sem que haja a
consanguinidade). lviii

São legalmente previstas duas espécies de família:

a) a família natural, “comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus


descendentes” (Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA – Lei nº 8.069, de 13
de julho de 1990, art. 25, caput); e

b) a família extensa ou ampliada, “aquela que se estende para além da unidade pais
e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a
criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade”
(ECA, art. 25, parágrafo único).

Curiosamente, a Constituição Federal utiliza, além do vocábulo “família”, também a


expressão “entidade familiar”. Nesses termos, a família é decorrente do casamento
enquanto que a entidade familiar compreende a união estável e a comunidade formada
por apenas um dos pais e seus filhos.lix A doutrina tem usado os dois termos como
sinônimos, mas é clara a intenção do constituinte de estabelecer um regime jurídico
diferenciado para cada caso, mesmo que as diferenças sejam apenas secundárias.lx

Nos termos da Constituição, a família, ou a entidade familiar,lxi pode ser classificada em:

a) a família biparental: comunidade formada por dois adultos, unidos por meio de
casamento (art. 226, §§ 1º e 2º) ou de união estável (art. 226, § 3º)lxii, e os eventuais
filhos ou netos que tiverem; e

b) a família monoparental: comunidade formada por apenas um dos pais e seus


descendentes, sejam filhos ou netos (art. 226, § 4º).
37

Família
Conceito Comunidade formada por Casamento ou união estável
indivíduos unidos em razão de Parentesco Consanguíneo
Por afinidade
Por adoção
Classificação Quanto à abrangência Natural
Extensa ou ampliada
Quanto aos pais Biparental
Monoparental

No atual contexto constitucional, a família, como agrupamento, deve ter sua função
compatibilizada com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil,
dentre os quais se destaca a “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, inc. III); com os
objetivos fundamentais da República, principalmente a promoção do “bem de todos” (art.
3º, inc. IV); e com os direitos e garantias individuais, com destaque para a igualdade
substancial (art. 5º, caput). lxiii Nesse contexto, a família se torna, nas palavras de Cristiano
Chaves de Farias e de Nelson Rosenvald, um “instrumento de proteção avançada da
pessoa humana”. lxiv De acordo com esses autores:

É simples, assim, afirmar a evolução de uma família-instituição, com proteção


justificada por si mesmo, importando não raro violação dos interesses das pessoas nela
compreendidas, para o conceito de uma família instrumento do desenvolvimento da
pessoa humana, evitando qualquer interferência que viole os interesses de seus
membros, tutelada na medida em que promova a dignidade de seus membros, com
igualdade substancial e solidariedade entre eles (arts. 1º e 3º da CF/88).

(...)

Desse modo, avulta afirmar, como conclusão lógica e inarredável, que a família cumpre
modernamente um papel funcionalizado, devendo, efetivamente, servir como um
ambiente propício para a promoção da dignidade e a realização da personalidade de seus
membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como o alicerce
fundamental para o alcance da felicidade. lxv
38

A família tem algumas semelhanças com o Estado. Primeiramente, ambos têm uma
finalidade em comum: proteger os direitos fundamentais de seus membros, possibilitando
que eles usufruam o máximo bem-estar possível. Os direitos fundamentais, apesar de
serem dirigidos primordialmente ao Estado, são providos primariamente pela família que,
se contar o mínimo de estabilidade, atua com eficiência consideravelmente maior que o
Estado. Por exemplo, os direitos à vida, à segurança, à alimentação, ao lazer, à moradia
são providos em primeiro lugar pela família, somente se justificando a atuação estatal nas
situações em que a família não tem condições de prover esses direitos adequadamente
(trata-se do conhecido princípio da subsidiariedade, que será analisado mais a frente).

Além disso, família e Estado tem em comum a previsão expressa dos responsáveis pelo
exercício do poder, com a determinação das competências dessas autoridades. Enquanto
a Constituição Federal trata detalhadamente da distribuição do poder político entre os
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o Código Civillxvi e o Estatuto da Criança e
do Adolescentelxvii definem as competências daqueles que exercem o poder familiar, ou
seja, o pai e a mãe. É notável ainda que a CF estabeleça deveres apenas para duas
instituições: o Estado, juntamente com seus agentes públicos, e a família, representada
pelos pais.

Nesse sentido, é dever da família:

a) “a educação” (art. 205, caput);

b) “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito


à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão” (art. 227, caput); e

c) “amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,


defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida” (art. 230,
caput).

Além disso, é dever dos pais “assistir, criar e educar os filhos menores” e dos filhos
maiores “ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” (art. 229).
39

As nítidas semelhanças entre a família e o Estado conferem a ela um status único entre as
instituições da sociedade civil: a de uma entidade semiestatal. A autonomia privada,
fundamento do princípio da dignidade humana e principal contrapeso ao poder estatal, é
fundamentalmente exercida em dois níveis: individual e associativo. Quanto à família,
espécie de associação, parte da doutrina a considera mais do que autônoma, mas até
mesmo soberana.lxviii Vide, a esse respeito, a contundente lição do administrativista
chileno Eduardo Soto Kloss:

Família que nasce do poder soberano de um homem e de uma mulher que se dão
mutuamente e em que ambos são “cossoberanos”, comunidade de vida e amor que
constitui a primeira e mais radical forma de sociedade humana, “autônoma” em seus
fins e bens, “independente de todo o poder estatal e “soberana” na sua potencialidade
de gerar direitos, anteriores e superiores ao Estado. lxix

Os qualificativos dados à família pelo ordenamento jurídico reforçam esse entendimento.


No art. 226, caput, da CF, a família é denominada de “base da sociedade”, ou seja, o
fundamento e o suporte de todas as demais estruturas sociais. Em decorrência, não é
possível “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (CF, art. 3º, inc. I) sem que a
família tenha força suficiente para formar indivíduos capazes de conduzir adequadamente
as demais estruturas sociais, inclusive o próprio Estado.

Os documentos internacionais de direitos humanos também qualificam a família da


mesma forma:

a) a Declaração Universal de Direitos Humanos, promulgada pela Organização das


Nações Unidas (ONU) em 1948, dispõe que “a família é o núcleo natural e
fundamental da sociedade” (Artigo 16, inciso III);

b) a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, promulgada também


em 1948, dispõe que a família é “elemento fundamental da sociedade” (Artigo
VI);

c) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promulgado pela ONU em


1966, dispõe que “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade”
(Artigo 23, inciso I); exatamente nestes termos também dispuseram:
40

I) o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,


promulgado pela ONU em 1966;
II) a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgado
pela ONU em 2007 e recepcionada no Brasil com status de emenda
constitucional;lxx e
III) a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa
Rica), promulgada pela Organização dos Estados Americanos em 1967 e
adotada no Brasil em 1992;

d) finalmente, a Convenção sobre os Direitos da Criança, promulgada pela ONU em


1989, dispõe que a família é o “grupo fundamental da sociedade e ambiente
natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular
das crianças”.lxxi

Neste ponto, cabe enfatizar que nenhuma norma jurídica tem função meramente
decorativa ou retórica. Pelo contrário: por definição, a norma jurídica, e mais ainda a
norma constitucional, é promulgada com a finalidade de produzir efeitos na realidade
social. Portanto, a incomparável importância dada à família faz com que essa instituição
tenha poderes e atribuições da mais notável relevância, merecendo não apenas um
específico ramo jurídico, o Direito de Família, mas também a mais intensa proteção do e
contra o Estado.

Família
Concepções Tradicional Instituição (fim em si mesma)
Contemporânea Instrumento (proteção dos direitos
individuais de seus membros)
Semelhanças com o Estado Finalidade: proteção dos direitos fundamentais de seus
membros.
Previsão expressa dos responsáveis pelo exercício do
poder, com a determinação das competências dessas
autoridades.
Previsão de deveres
Deveres familiares Educação
41

Da família como Assegurar os direitos das crianças,


um todo adolescentes e jovens
Amparar os idosos
Dos pais Assistir, criar e educar os filhos
menores.
Dos filhos maiores Ajudar e amparar os pais na
velhice, carência ou enfermidade.
Natureza jurídica Entidade semiestatal, soberana na realização de suas
funções típicas.
Qualificações Base da sociedade
Núcleo natural e fundamental da sociedade
Elemento fundamental da sociedade
Elemento natural e fundamental da sociedade
Grupo fundamental da sociedade

3. Familismo na Constituição Federal

O sociólogo dinamarquês Gøsta Esping-Andersen classificou o Estado de bem-estar


social em três tipos fundamentais:lxxii

a) Liberal: as regras para a habilitação aos benefícios são estritas e muitas vezes
associadas ao estigma; os benefícios são tipicamente modestos. O Estado, por sua
vez, encoraja o mercado, tanto passiva – ao garantir apenas o mínimo – quanto
ativamente – ao subsidiar esquemas privados de previdência;

b) Conservador/corporativista: predomina a preservação das diferenças de status; os


direitos são ligados à classe e ao status. Este corporativismo está por baixo de um
edifício estatal inteiramente pronto a substituir o mercado enquanto provedor de
benefícios sociais; por isso a previdência privada e os benefícios ocupacionais
extras desempenham realmente um papel secundário. Os regimes corporativistas
são muito comprometidos com a preservação da família tradicional. Creches e
outros serviços semelhantes prestados à família são claramente subdesenvolvidos;
42

o princípio de “subsidiariedade” serve para enfatizar que o Estado só interfere


quando a capacidade da família servir os seus membros se exaure.

c) Socialdemocrata: A política de emancipação do regime socialdemocrata dirige-se


tanto ao mercado quanto à família tradicional. Ao contrário do modelo
corporativista-subsidiador, o princípio aqui não é esperar até que a capacidade de
ajuda da família se exaura, mas sim de socializar antecipadamente os custos da
família. O ideal não é maximizar a dependência da família, mas capacitar a
independência individual. Neste sentido, o modelo é uma fusão peculiar de
liberalismo e socialismo. O resultado é um Estado de bem-estar que garante
transferências diretamente aos filhos e assume responsabilidade direta pelo
cuidado com as crianças, os velhos e os desvalidos. Por conseguinte, assume uma
pesada carga de serviço social, não só para atender as necessidades familiares,
mas também para permitir às mulheres escolherem o trabalho em vez das prendas
domésticas.lxxiii

O segundo tipo de Estado de bem-estar social (conservador/corporativista) baseia-se


numa concepção denominada de familianismo (ou familismo), segundo a qual a família é
a mais importante fonte de bem-estar para os indivíduos. A família é, portanto, uma
instituição, na verdade a mais importante instituição social. Por essa razão, a família deve
ser protegida e respeitada pelo Estado, que somente pode exercer funções típicas da
família quando esta comprovadamente não puder realiza-las. Assim, em um regime no
qual predomine a concepção familista, o principal recebedor da assistência social do
Estado é a família e não o indivíduo.

A Constituição Federal de 1988 nitidamente adotou o Estado de bem-estar social


conservador, fundamentado na concepção familista. Não por acaso o primeiro objetivo
da assistência social é a “proteção à família” (CF, art. 203, inc. I). A Norma Operacional
Básica do Sistema Único de Assistência Social – NOB/SUAS,lxxiv por sua vez, determina
que uma das “diretrizes estruturantes da gestão do SUAS” é a “matricialidade
sociofamiliar” (art. 5º, inc. IV), ou seja, deve haver a “centralidade na família para
concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos” (Política
Nacional de Assistência Social – PNAS, p. 18).lxxv

Essa concepção da central da família nas políticas sociais não é algo novo no Brasil, como
bem salienta Andréa Pacheco de Mesquita:
43

Ao discutir a centralidade da família nas políticas públicas é importante salientar que no


Brasil, segundo Pereira, “a instituição familiar sempre fez parte integral dos arranjos de
proteção social”, e acrescenta ainda que, “os governos brasileiros sempre se beneficiaram
da participação autonomizada e voluntarista da família na provisão do bem-estar de seus
membros” (2006, p.29). Assim, não é algo novo a participação da família, mas o que se
coloca hoje é o novo papel que está sendo atribuído. Se antes a família (principalmente a
mulher) participava através do cuidado aos dependentes e na reprodução de atividades
domésticas não remuneradas, como bem coloca Potyara (2004), hoje ela passa a ser
centralidade nas políticas públicas (saúde, educação, assistência social). Chegando a ser
um eixo estruturante da gestão do Sistema Único de Assistência social – SUAS: a
matricialidade sociofamiliar.lxxvi

Assim, quando a Constituição Federal determina que apenas a família “tem especial
proteção do Estado” (art. 226, caput), isso significa que a família é a destinatária
preferencial das políticas sociais, como saúde, educação, e assistência social. Como
destacado acima por Mesquita, compete à família decidir autonomamente como distribuir
esses benefícios entre seus membros. Presume-se, dessa maneira, que a família tem maior
capacidade e competência que o Estado para gerir benefícios sociais para os membros da
família. Exemplo dessa política é o conhecidíssimo bolsa-família, benefício que é
distribuído não individualmente, mas a cada grupo familiar, e que ainda determina
obrigações específicas para esse grupo familiar, como a obrigatoriedade de vacinação dos
filhos.

Tipos fundamentais de Estado de bem- Liberal


estar social Conservador/corporativista
Socialdemocrata
Familianismo (ou familismo) Concepção segundo a qual a família é a
mais importante instituição da sociedade,
devendo ser protegida e respeitada pelo
Estado.
Constituição Federal de 1988 Adotou o Estado de bem-estar social
conservador, baseado em uma concepção
familista das políticas sociais.

III – O fenômeno da educação domiciliar


44

Educação de hoje em dia

Observando a juventude de hoje em dia

É uma anarquia não sei onde vai pará

Com essa moda de educação moderna

Muitos direitos, pouco dever pra cobrá

Antigamente se educava na família

Mostrava a trilha, pra não ter que castigá

Diz um ditado, “quem não cuida da raiz

Depois que cresce não consegue endireitá”

Eu sou do tempo da benção e a senhoria

Onde a hierarquia, nos fazia obedecê

Só pelo olhar de atravessado dos meus pais

É o que bastava e já sabia o que fazê

Hoje na escola cada um com celular

Na sala de aula poucos prestam atenção

O professor vai explicando a matéria

E os alunos com fone escutando som

Eu tenho pena do pobre do professor

Que ganha pouco e não consegue ensiná

Com tanto aluno, sem o mínimo interesse


45

No fim do ano só o que resta é reprová

Antigamente uma vara de marmelo

Ou um chinelo, imperava pra exemplá

Tinha um ditado “quem obedece seus pais

Dificilmente da polícia apanhará”

Mas hoje em dia tudo é muito diferente

E dar conselho nem sei se pode também

Mais de uma coisa, tenho certeza, não muda

Que rédea curta e carinho sempre faz bemlxxvii

É quase impossível discordar do lamento expresso nessa música. Nos últimos anos, temos
testemunhado um fenômeno coletivo de “desistência (ou renúncia) familiar”, no qual
progressivamente a família delega a outras instituições sociais as suas atribuições mais
típicas. Parece que sobra para a imensa maioria das famílias a função mais rudimentar de
todas: o sustento dos filhos. Dá-se as condições materiais necessárias para a sobrevivência
e o conforto dos filhos e deixa-se todo o restante para o Estado e para outras instituições
sociais. Isso aconteceu de forma mais marcante quanto à atribuição mais fundamental da
família: a educação dos filhos.

Quase não se educa mais em casa. O cotidiano das crianças brasileiras, de qualquer nível
socioeconômico, é marcado por uma divisão entre o espaço da escola (reservado à
educação) e o da casa (reservado basicamente aos cuidados materiais, sendo o tempo livre
quase totalmente preenchido pela televisão). E isso não provoca nenhum escândalo em
nossa sociedade (aliás, escândalo no Brasil parece ter que envolver sempre desvio de
dinheiro público...), apesar de sua extrema gravidade: todos os dias, milhões de famílias
por todo o país descumprem seu dever natural (e obrigação constitucional) de educar os
próprios filhos, de prepará-los para a vida adulta. Do descumprimento dessa função
essencial, que gera a disfuncionalidade da família, até a pura e simples desagregação
46

familiar, costuma haver um caminho incrivelmente curto, que muitas vezes é percorrido
sem que se tenha consciência de seu destino final.

Por outro lado, cresce o número de famílias que resolveram trilhar o caminho oposto, ou
seja, que tomaram para si a responsabilidade pela educação de seus filhos. Muitas dessas
famílias ainda se utilizam de estabelecimentos escolares por razões meramente práticas
(para elas, as escolas são um “mal necessário”, funcionando como “creches mais
sofisticadas”, pois é preciso deixar as crianças em algum alugar enquanto ambos os pais
trabalham); nos períodos em que toda a família se encontra em casa, a prioridade absoluta
é a educação dos filhos, ou seja, a transmissão da cultura familiar para as novas gerações.
Essas famílias tentam compatibilizar as demandas da vida contemporânea com a
educação dos filhos, lutando para transmitir o que têm de melhor e buscando cumprir seus
deveres naturais e jurídicos. Seu grande mérito talvez seja reconhecer a sabedoria do
famoso ditado segundo o qual, a “educação vem de berço”. Elas, porém, não são o foco
deste capítulo.

Aqui, será analisado o fenômeno dos pais que retiraram (ou nunca incluíram) os filhos no
ambiente escolar, centralizando a sua educação no ambiente familiar. Primeiramente, se
verificará a terminologia mais adotada (“educação domiciliar”) para em seguida, analisar
suas características, sua classificação, as principais motivações dos pais e a situação do
fenômeno no Brasil e no mundo.

1. A instrução dirigida pelos pais

A denominada educação domiciliar (também chamada de homeschooling e de educação


familiar desescolarizadalxxviii) consiste na assunção pelos pais ou responsáveis do efetivo
controle sobre os processos instrucionais de suas crianças ou adolescentes. Para alcançar
esse objetivo, o ensino é, em regra, deslocado do ambiente escolar para a privacidade da
residência familiar. Isso não impede, porém, que os pais ou responsáveis, no exercício de
sua autonomia, determinem que o ensino seja realizado parcialmente fora da residência,
por exemplo, em curso de matérias específicas, como Matemática e Música.

No presente capítulo, a análise desse fenômeno será realizada primeiramente tendo em


vista algumas distinções fundamentais. Por meio dessas distinções, procurar-se-á
47

demonstrar a inexatidão da expressão consagrada, sugerindo-se um novo termo, apto a


descrever com precisão o fenômeno: a instrução dirigida pelos pais.

Primeiramente, é preciso relembrar a distinção entre educação e instrução. A educação


designa amplamente todo o processo de transmissão e aquisição de conhecimentos,
valores e hábitos, principalmente de uma geração para outra. As finalidades da educação
dizem respeito à formação integral do ser humano, tanto a nível individual (busca da
máxima concretização do potencial de cada pessoa) quanto a nível social (internalização
dos valores e regras de comportamento vigentes na comunidade em que se encontra a
pessoa); além disso, a educação tem também caráter instrumental, pois busca transmitir
conhecimentos específicos para a utilização no mercado de trabalho. Nesse sentido, e de
acordo com o art. 205 da Constituição Federal, a educação tem as seguintes finalidades:
pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação
para o trabalho.

A instrução, por sua vez, diz respeito à transmissão de conhecimentos para possibilitar à
pessoa atuar de modo produtivo no mercado de trabalho.lxxix De acordo com o Instituto
Central de Ciências Pedagógicas – ICCP, lxxx

O conceito expressa o resultado da assimilação de conhecimentos, hábitos, e habilidades; se


caracteriza pelo nível de desenvolvimento do intelecto e das capacidades criadoras do homem.
A instrução pressupõe determinado nível de preparação do indivíduo para sua participação
numa ou outra esfera da atividade social.

A instrução, portanto, é apenas um dos aspectos da educação, não estando


necessariamente vinculado a esta. Na verdade, a educação é um processo que, idealmente,
ocorre durante toda a vida do indivíduo, que tem não apenas o direito, mas o dever de se
lxxxi
educar. Por outro lado, a única fase da vida em que instrução e educação
necessariamente se mesclam é a infância, uma vez a entrada na vida adulta coincide
aproximadamente com a entrada no mercado de trabalho. lxxxii

A opção pelo termo “instrução” ao invés de “educação” deve-se ao fato de que não há
controvérsias a respeito do poder dos pais de educarem os filhos (o art. 205 da CF, por
exemplo, estabelece que a educação é “dever da família”).lxxxiii O que se tem questionado
juridicamente é se esse poder abrange também a prerrogativa de ministrar, diretamente
ou por meio de terceiros especialmente selecionados, os conhecimentos necessários à
preparação para o mercado de trabalho.
48

O adjetivo “domiciliar” também não se mostra apto a descrever de forma precisa o


fenômeno em estudo. O domicílio de uma pessoa, de acordo com o Código Civil, “é o
lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo” (art. 70). Trata-se,
portanto, de um conceito jurídico “geográfico”, ou seja, relativo ao local onde a família
se estabelece. A despeito de a instrução, na situação analisada, ser realizada
costumeiramente na residência da família, não há obrigatoriedade de que assim o seja.
Pelo contrário, o local onde o processo instrucional se realiza é indiferente no caso.

Por essa razão, é utilizada aqui a expressão “instrução dirigida pelos pais”, ainda mais
precisa do que “instrução familiar” pois o ensino não é necessariamente conduzido no
seio da família. Na verdade, essa modalidade de instrução permite aos pais o mais amplo
poder de escolha com relação a quem, como, onde e quando se dará o aprendizado dos
filhos. Assim, a instrução não precisa ser ministrada pelos pais (apesar de ser a situação
mais comum), mas estes têm o controle direto sobre o processo instrucional dos filhos.
Trata-se do elemento que substancialmente distingue essa modalidade de instrução
daquela ministrada no ambiente escolar, onde a liberdade dos pais se resume na maioria
das vezes à escolha da instituição de ensino onde os filhos serão matriculados.

2. Abordagens e situações de educação domiciliar

Como visto no primeiro capítulo, a educação nos moldes determinados pelo Estado é
denominada de “educação formal”, que compreende no Brasil, o ensino básico
(fundamental e médio) e o ensino superior. A educação formal tem a importantíssima
função social de possibilitar o acesso a determinados setores do mercado de trabalho, com
o credenciamento exercido por meio da expedição de diplomas (no Brasil, é ilícito, por
exemplo, exercer a advocacia sem ter a “credencial” expedida por uma faculdade de
Direito).

Sem essa função credenciadora, existe a educação não formal, que compreende tanto
alternativas quanto complementos à educação formal. A educação domiciliar é
nitidamente uma espécie de educação não formal alternativa ao modelo escolarizado de
educação. Nada impede, porém, que a educação domiciliar seja realizada de forma
complementar à educação escolar, com a participação ativa da família nas atividades
49

escolares; essa hipótese, porém, não será objeto de análise aqui, uma vez que não contém
controvérsias jurídicas significativas.

Geralmente, as famílias que decidem adotar a educação domiciliar passam por uma
transição, um rompimento com o modelo anterior, baseado na instituição escolar. Essa
transição é chamada de desescolarização e tem as seguintes fases:

a) Crise: os pais tornam-se conscientes da disparidade entre a sua própria percepção


do processo educacional e o ambiente educacional por um lado, e a realidade das
escolas e das creches no mundo de hoje, por outro lado;

b) Procura de uma alternativa: os pais começam a procurar por formas de responder


à crise acima. Eles buscam por alternativas dentro de duas categorias:

I) mudar o sistema; ou
II) abandonar o sistema e educar os filhos em casa;

c) Uma decisão em favor da educação domiciliar: após coletar informação a respeito


das alternativas, os pais decidem pela educação domiciliar. É importante notar que
isso não é uma decisão aleatória e irresponsável, mas que resulta de extensa
pesquisa e de cuidadosa consideração;

d) Lidando com as consequências dessa decisão: depois que a decisão é feita a favor
da educação domiciliar, os pais devem constantemente suportar as consequências,
que implicam, quase sempre, uma radical mudança no estilo de vida da família, o
incluindo a tomada de consciência e de responsabilidade sobre certas práticas
antes automatizadas; maior flexibilidade, sem planejamentos rígidos de longo
prazo, e diversas ramificações na vida pessoal, como senso de maior significado
e de desenvolvimento pessoal. lxxxiv
50

Lidando com
Decisão em
Procura de as
favor da
Crise uma
educação consequências
alternativa
domiciliar
dessa decisão

Esse rompimento com o modelo escolar pode acontecer de forma mais ou menos radical:
em um extremo, existem famílias que simplesmente transplantam a metodologia
tipicamente escolar para casa enquanto que, no outro extremo, existem também famílias
que buscam se desvincular de modo absoluto do modelo escolar. Esses dois tipos
extremos podem ser assim caracterizados:

a) Escola em casa (school-at-home): consiste basicamente na transposição da rotina


escolar para a casa. Os pais adotam livros didáticos, fazem avaliações e registros.
Geralmente, os pais adquirem um sistema on line, seguindo-o rigidamente. Isso
pode incluir a matrícula dos filhos em escolas a distância que fornecem suporte
para os pais;

b) Unschooling (educação natural ou educação dirigida pelas crianças): considera


que as atividades escolhidas pelo aprendiz são o principal meio para o
aprendizado. Assim, as atividades educacionais são determinadas pelos próprios
interesses das crianças, sem a utilização de um currículo fixo. O termo foi criado
por John Holtlxxxv e baseia-se na concepção de que não há diferença entre viver e
aprender, sendo prejudicial à criança a separação artificial entre essas atividades.
51

Escola em
Unschooling
casa

A educação domiciliar é uma modalidade de ensino que não obedece a uma lógica única,
massificada para todas as famílias, uma vez que se baseia no princípio da soberania
educacional das famílias, ou seja, seu fundamento é a liberdade de cada família
determinar como será realizada a educação de cada um de seus filhos. Por essa razão,
diversas abordagens podem ser adotadas, a critério da família. Nesse contexto, alguns
estilos de educação domiciliar se destacam:

a) Charlotte Mason: considera a criança como uma pessoa e não como um


“container” que deve ser simplesmente preenchido com conhecimento. De acordo
com sua criadora, a educadora britânica de mesmo nome, a educação tem três
componentes:

I) Uma atmosfera: o ambiente no qual a criança se desenvolve. As ideias que


regem a vida dos pais seriam responsáveis por um terço da educação dos
filhos;
II) Uma disciplina: o cultivo dos bons hábitos, especialmente os formadores
de caráter, seria responsável por outro terço da educação dos filhos;
III) Uma vida: devem ser dados às crianças pensamentos e ideias vivas, não
apenas fatos vazios; todos os seus métodos para ensinar as várias matérias
escolares giram em torno desse conceito.

b) Montessori: abordagem educacional baseada nos ensinamentos da educadora


italiana Maria Montessori, caracterizado por uma ênfase na independência e no
respeito pelo desenvolvimento físico, psicológico e social da criança. Os seis
52

pilares educacionais de Montessori são: autoeducação, educação como ciência,


educação cósmica, ambiente preparado, adulto preparado e criança equilibrada;

c) Educação domiciliar eclética/flexível: é a abordagem utilizada mais


frequentemente pelas famílias educadoras. A educação é personalizada, sendo
usados os métodos que mais se encaixam nas necessidades das famílias;

d) Clássica: o objetivo é ensinar as pessoas a aprender por si mesmas. O aprendizado


ocorre em três fases, denominadas de Trivium: gramática, lógica e retórica. Utiliza
as grandes obras da literatura ocidental. Tem duas grandes vertentes: a educação
clássica cristã e a educação clássica secular;

e) Waldorf: abordagem baseada na filosofia da educação do alemão Rudolf Steiner,


criador da antroposofia, que procura integrar o desenvolvimento físico, espiritual,
intelectual e artístico dos alunos. Seu objetivo é criar indivíduos livres,
socialmente competentes e moralmente responsáveis;

f) Inteligências múltiplas: baseia-se na concepção de que todos são inteligentes a


seu próprio modo e que por isso o aprendizado é mais eficiente se a pessoa for
encorajada a usar seus pontos fortes ao invés dos fracos. De acordo com Howard
Gardner, criador da teoria, existem sete tipos de inteligências: lógico-matemática,
linguística, musical, espacial, corporal, interpessoal, intrapessoal, naturalista e
existencial.lxxxvi

Abordagens em educação domiciliar


Charlotte Mason A educação requer uma atmosfera, uma
disciplina e uma vida.
Montessori Ênfase na independência e no respeito
pelo desenvolvimento físico, psicológico
e social da criança.
Educação domiciliar eclética/flexível Adaptada às necessidades da criança e da
família; não utiliza um método único.
53

Clássica O objetivo fundamental não é ensinar


conteúdos, mas ensinar a aprender.
Waldorf Procura integrar o desenvolvimento físico,
espiritual, intelectual e artístico dos
alunos.
Inteligências múltiplas O processo educacional é focado no tipo
específico de inteligência da criança.

Quanto à liberdade dada às crianças, existem três abordagens, explicitadas no quadro


abaixo.lxxxvii

Estruturada Semiformal Informal


A criança tem pouca Os pais e a criança têm Todo o aprendizado é
influência na determinação influência na definição das dirigido pela criança,
do material a ser utilizado – atividades de aprendizado; baseado nos seus interesses
os pais determinam o que e a criança tem oportunidade atuais. O papel dos pais é
quando vai ser estudado. A de seguir seus próprios providenciar um ambiente
maioria do ensino vem de interesses enquanto “educacionalmente
um currículo determinado, aprende. Os pais têm um estimulante”. Não há
geralmente livros papel de facilitadores, com currículo nem livro
didáticos, seguidos em uma o objetivo de encorajar a didáticos pré-
ordem determinada. Existe criança em direção a determinados: a criança é
um cronograma de atividades educacionais. que deve escolhê-los como
matérias que deve ser Livros didáticos são usados um auxílio ao aprendizado.
seguido durante o dia. Os apenas quando necessário. Não há cronograma. Pode
materiais são baseados no Não há um cronograma haver um ênfase em
currículo nacional. Ênfase estrito quando o “aprender a lidar com o
em seguir o curso aprendizado acontece. mundo real”. Discussões
determinado; as discussões Variedade de atividades baseadas em atividades são
dirigidas pelas crianças são educacionais. muito comuns.
raras.
54

É possível também classificar as famílias educadoras de acordo com seu grau de


integração social: lxxxviii

a) Educadores domiciliares estruturados: são frequentemente pais religiosos, de


classe média e alto nível educacional e que proveem educação domiciliar
tradicional, focalizada em currículos. Seus conflitos de valores e de interesses com
a escola e a sociedade nacional são fracos em áreas diversas de suas convicções
fundamentais;

b) Unschoolers: de bom nível educacional, frequentemente com posições políticas e


culturais radicais, de classe média, contrários ao sistema vigente, que proveem
educação centrada na criança, com um reduzido grau de estruturação e de
planejamento curricular.

c) Educadores domiciliares pragmáticos: famílias tipicamente rurais ou de classe


operária, com pouca educação formal, que enfatizam a educação domiciliar
baseada no trabalho prático. Eles frequentemente iniciam a educação domiciliar
por conta de conflitos urgentes com a escola, que frequentemente podem ser
compreendidos como conflitos de classes;

d) Educadores domiciliares marginais: ciganos, imigrantes não registrados, famílias


socialmente problemáticas, frequentemente com histórico de abuso de drogas; e
algumas famílias religiosas fundamentalistas, algumas das quais utilizam a
educação domiciliar como uma forma de isolamento social autoimposto.
55

Educadores
domiciliares
marginais

Educadaores
domiciliares
pragmáticos

Unschoolers

Educadores
domiciliares
estruturados

Quanto à motivação para a adoção da educação domiciliar, as famílias foram classificadas


em:lxxxix

a) Ideólogas: explicam que educam em casa por dois motivos – objeção ao que é
ensinado em escolas, tanto públicas quanto privadas; e para fortalecer o
relacionamento com os filhos. Esses pais são cristãos fundamentalistas e têm
valores, crenças e habilidades específicas que querem ensinar a seus filhos. Além
das matérias tradicionais, os pais querem que seus filhos aprendam doutrinas
religiosas fundamentalistas e uma perspectiva política e social de caráter
conservador;xc

b) Pedagogas: educam em casa porque acreditam que as crianças aprendem mais


naturalmente fora do ambiente escolar, no qual a criatividade e a curiosidade inata
das crianças seriam reprimidas. xci

As famílias educadoras ainda podem ser divididas em:

a) Crentes: influenciados por diversos doutrinadores cristãs, como o educador


Raymond Moore. De acordo com ele, as crianças se desenvolvem melhor se
forem educadas em casa em seus primeiros anos. O objetivo fundamental da
56

educação domiciliar seria proteger e cuidar das crianças. Correspondem às


famílias ideólogas da classificação anterior. xcii

b) Inclusivos: baseados na doutrina de John Holt, um reformista educacional que se


rebelou contra o sistema escolar. Seu objetivo primordial é a liberação do
potencial interior da criança. Em consequência, a educação deve deixar a criança
livre para explorar e criar. Correspondem às famílias pedagogas da classificação
anterior.xciii

Finalmente, há uma curiosa classificação que não tem em vista as famílias, mas as mães,
que na maior parte dos casos são as responsáveis diretas pela educação domiciliar:

a) Primeira opção: são mães que sentem terem sido chamadas a educar seus filhos
em casa, tanto por razões estritamente pedagógicas quanto por razões religiosas;

b) Segunda opção: são mães que resolveram educar os filhos em casa depois de os
outros métodos educacionais terem falhado; para essas mães, a educação
domiciliar não faz parte de sua identidade, mas é apenas uma opção temporária.
xciv

Classificações
Quanto ao grau de integração social Educadores domiciliares estruturados
Unschoolers
Educadores domiciliares pragmáticos
Educadores domiciliares marginais
Quanto à motivação para a adoção da Famílias ideólogas
educação domiciliar Famílias pedagogas
Quanto à influência doutrinária Crentes
Inclusivos
Quanto à situação das mães De primeira opção
De segunda opção

3. Motivações para a adoção da educação domiciliar


57

As famílias escolhem a educação domiciliar pelas mais variadas razões, que podem ser
classificadas em quatro categorias principais:

a) Sociais: a socialização oferecida pela escola seria geralmente negativa, uma vez
que é improvável um contato humano significativo com um grande número de
pessoas, o que ainda aumenta as chances de submissão às pressões do grupo. Por
outro lado, as crianças educadas em casa desenvolveriam mais autoconfiança e
um sistema de valores mais estável, que são os ingredientes básicos para uma
socialização positiva;xcv

b) Acadêmicas: o sistema escolar desconsideraria as condições específicas de cada


criança, submetendo-as a um ensino massificado, com disciplinas isoladas umas
das outras e sem conexão direta com a realidade. Por outro lado, a educação
domiciliar respeitaria integralmente a individualidade da criança, com uma
abordagem interdisciplinar de acordo com as necessidades dela;

c) Familiares: atualmente, a ideologia dominante nas escolas tende a desvalorizar o


papel na família e mesmo ativamente propagar valores que são contrários aos da
maioria das famílias. O sucesso do aprendizado dependeria muito mais de uma
estrutura familiar sólida e funcional do que da qualidade do ensino provido pelas
escolas;

d) Religiosas: as escolas quase sempre assumem uma ideologia de cunho materialista


e cientificista, desconsiderando a importância da religião ou mesmo a atacando de
forma explícita.xcvi

No Brasil, Édison Prado do Nascimento identificou as seguintes razões predominantes


para que os pais optassem pela educação domiciliar:

a) compromisso com o desenvolvimento integral dos filhos;

b) instrução científica e preparação para a vida adulta;


58

c) valores e princípios cristãos;

d) proteção da integridade física, moral, psíquica e espiritual dos filhos;

e) exercício de um dever/direito fundamental.xcvii

4. Situação da educação domiciliar no mundo e no Brasil

Antes de a escola tornar-se um fenômeno de massas no decorrer dos séculos XIX e XX,
a educação era quase sempre provida integralmente em casa, de modo mais informal, com
o aprendizado do ofício paterno pelos filhos das famílias mais humildes, e de modo mais
formal, com a contratação de tutores e preletores para a educação dos filhos das famílias
mais prósperas. Essa modalidade de educação, que predominou durante quase toda a
história da humanidade, foi se tornando cada vez mais marginalizada com a propagação
das leis de escolarização compulsória, até o ponto de ser realizada principalmente por
minorias (linguísticas, culturais e étnicas) não inseridas na cultura predominante. A esse
fenômeno historicamente determinado, denomino educação em casa, para diferenciar do
movimento contemporâneo de educação domiciliar.

A educação domiciliar, conhecida internacionalmente como homeschooling, surgiu como


um movimento social de contraposição ao sistema educacional vigente, centrado na
instituição escolar. O primeiro país no qual a educação domiciliar adquiriu relevância
foram os Estados Unidos, que conta com um expressivo número de famílias desde a
década de 1970. Atualmente, a educação domiciliar é legal em todos os 50 estados da
federação americana, estimando-se em 2,5 milhões o número de crianças e adolescentes
educados em casa.

A educação domiciliar ainda está presente em dezenas de outros países do mundo, sendo
expressamente legalizada em diversos países, como África do Sul, Canadá, Colômbia,
México, Peru, Índia, Indonésia, Israel, Áustria, Espanha e Itália.
59

Legenda:

Verde: legal

Vermelho: não tolerado

Amarelo: sem lei específica, mas geralmente tolerado

Cinza: situação desconhecida

Roxo: indefinido por lei, possivelmente praticado

Como visto, no mapa acima, no Brasil a educação domiciliar não está prevista em
nenhuma norma; apesar disso, quase sempre é tolerada pelas autoridades judiciais e
60

administrativas (uma proporção bastante reduzida das famílias educadoras tem sofrido
problemas de natureza jurídica). Não há um censo que indique com precisão o número de
famílias que adotam a educação domiciliar; presume-se que em 2015 eram cerca de 2.500
famílias.

Nos próximos capítulos, procurar-se-á demonstrar que, a despeito da inexistência de


permissão legal expressa, a educação domiciliar é uma opção familiar plenamente
legítima, estando de acordo não apenas com os princípios protetivos da criança e da
família, mas também com os fundamentos constitucionais da república brasileira,
principalmente no que diz respeito à educação.

IV – Questões jurídicas fundamentais

1. A dignidade da pessoa humana e a educação infantil

1.1 O princípio da dignidade humana

Eu fiquei indignado

Ele ficou indignado

A massa indignada

Duro de tão indignado

A nossa indignação

É uma mosca sem asas

Não ultrapassa as janelas

De nossas casas
61

(REFRÃO)

Indignação, indigna

Indigna, inaçãoxcviii

Estamos na era da indignação. Nas redes sociais, todos os dias somos estimulados a
demonstrar nossa fúria e desprezo contra algo que consideramos injusto, ofensivo ou
incorreto. A indignação é sempre a atribuição de um valor negativo a alguém; por meio
dela, nós procuramos demonstrar que essa pessoa tem menos valor que as demais, por
causa de suas atitudes ou de seu caráter, ou mesmo que essa pessoa é tão degradada que
não guarda em si nenhum valor positivo. Decerto, temos várias razões para nos
mostrarmos indignados hoje em dia, mas em Direito é preciso inverter o foco e considerar
ao invés disso, a dignidade de cada pessoa.

Historicamente, era considera digna apenas a pessoa que tivesse demonstrado um


comportamento honroso, correto, nobre; portanto, a dignidade não era um atributo inato
da pessoa, mas um reconhecimento social de seu caráter demonstrado por meio de seus
atos. Além disso, durante vastos períodos históricos, a imensa maioria da população era
considerada indigna apenas pela circunstância de pertencer a determinado grupo social,
como as mulheres, os escravos, as crianças e os estrangeiros (existem registros de várias
tribos indígenas que não consideravam os estrangeiros como seres humanos). Nesses
casos, não importava se a pessoa tinha realizado feitos heroicos ou mesmo se se
comportava de modo absolutamente honroso: a dignidade era um bem quase sempre
inacessível a ela.

Filosoficamente, essa concepção começou a ser questionada pelos estoicos, que


declararam todo ser humano como digno, independentemente de seus atos ou de
pertencimento a determinado grupo social ou nação. Posteriormente, o cristianismo
também reconheceu que cada ser humano tem um valor intrínseco, uma vez que todos
foram feitos à imagem e semelhança de Deus. A noção moderna de dignidade deriva da
doutrina de Kant, segundo o qual os seres humanos têm valor enquanto que as coisas tem
preço. De acordo com ele, o ser humano é um fim em si mesmo, não podendo ser tratado
como um instrumento, um objeto a serviço de outros fins.
62

Depois da barbárie nazista do holocausto do povo judeu, a dignidade da pessoa humana


tornou-se princípio fundamental das diversas declarações de direitos humanos e também
das diversas constituições nacionais que se seguiram. Na verdade, a dignidade tornou-se
o pressuposto dos direitos humanos, uma vez que estes foram concebidos como inatos a
todos os seres humanos pelo simples fato de serem humanos. Da mesma forma, e
seguindo a concepção kantiana, os sistemas jurídicos passaram a ser formulados em torno
do conceito de dignidade humana, ou seja, o Direito e principalmente o Estado devem ser
instrumentos a serviço dos seres humanos, sendo considero como tratamento indigno
colocar os seres humanos a serviço do Estado, como acontecia nos regimes totalitários
(nazistas, comunistas e fascistas).

Nesse sentido, a dignidade humana tornou-se a base da Declaração Universal de Direitos


Humanos (DUDH), de 1948, que dispôs:

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família


humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo;

(...)

Considerando que, na Carta,xcix os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua
fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na
igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o
progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais
ampla;

(...)

Artigo 1°

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de


razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

É notável que a dignidade tenha sido reconhecida não apenas como inerente a todo ser
humano, mas também que todos nascem iguais em dignidade. Porém, a DUDH, como
revela seu próprio nome, não é uma norma jurídica, mas apenas uma declaração. A
vinculação jurídica das nações do mundo ao princípio da dignidade humana se deu com
63

os diversos tratados internacionais de direitos humanos promulgados a partir da década


de 1960, dentre os quais se destacam:

a) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promulgado pela ONU em


1966 e ratificado pelo Brasil em 1992; c
b) o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também
promulgado pela ONU em 1966 e ratificado pelo Brasil em 1992; ci
c) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa
Rica), promulgada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1969 e
ratificada pelo Brasil em 1992; cii
d) a Convenção sobre os Direitos da Criança, promulgada pela ONU em 1990 e
ratificada pelo Brasil no mesmo ano; ciii e
e) a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
promulgada pela ONU em 2007 e ratificada pelo Brasil em 2009. civ

Todos esses tratados internacionais de direitos humanos não apenas foram ratificados
pelo Brasil, sendo, portanto, de observância obrigatória, mas também, de acordo com o
entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal, têm valor supralegal, ou seja,
são hierarquicamente superiores às leis nacionais, sendo subordinados apenas à
cv
Constituição Federal. A última convenção (sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência) ainda tem o status de emenda constitucional, uma vez que observou o
procedimento previsto no art. 5°, § 3° da Constituição Federal (CF). cvi

A dignidade da pessoa humana, porém, não é apenas tema da legislação internacional.


Pelo contrário, a própria CF a reconhece como um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil (art. 1°, inc. III). De acordo com o STF, a dignidade humana não
fundamenta somente a república brasileira, mas também todo o ordenamento jurídico, em
especial da própria Constituição Federal. Vide a esse respeito, contundente trecho de um
acordão desse tribunal:

"(...) a dignidade da pessoa humana precede a Constituição de 1988 e esta não poderia ter
sido contrariada, em seu art. 1º, III, anteriormente a sua vigência. A arguente desqualifica
fatos históricos que antecederam a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei
6.683/1979. (...) A inicial ignora o momento talvez mais importante da luta pela
redemocratização do país, o da batalha da anistia, autêntica batalha. Toda a gente que
conhece nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da Lei
6.683/1979. (...) Tem razão a arguente ao afirmar que a dignidade não tem preço. As
64

coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem preço, vale para todos
quantos participam do humano. Estamos, todavia, em perigo quando alguém se arroga o
direito de tomar o que pertence à dignidade da pessoa humana como um seu valor (valor
de quem se arrogue a tanto). É que, então, o valor do humano assume forma na substância
e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o
mensure. Então o valor da dignidade da pessoa humana já não será mais valor do humano,
de todos quantos pertencem à humanidade, porém de quem o proclame conforme o seu
critério particular. Estamos então em perigo, submissos à tirania dos valores. (...) Sem de
qualquer modo negar o que diz a arguente ao proclamar que a dignidade não tem preço
(o que subscrevo), tenho que a indignidade que o cometimento de qualquer crime
expressa não pode ser retribuída com a proclamação de que o instituto da anistia viola a
dignidade humana. (...) O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para
afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que
praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime
militar, esse argumento não prospera." (ADPF 153, voto do Rel. Min. Eros Grau,
julgamento em 29-4-2010, Plenário, DJE de 6-8-2010.)

O princípio da dignidade humana é citado ainda mais três vezes no texto constitucional,
sendo todas elas no capítulo “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do
Idoso” (arts. 226 a 230). Além disso, diversas leis ordinárias fazem referência a esse
princípio, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Finalmente, é possível conceituar a dignidade da pessoa humana como:

(...) a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.cvii

Os autores em direitos humanos geralmente distinguem entre a dignidade interna, o valor


inerente de cada ser humano, e dignidade externa, que é identificada como merecimento
de respeito. O primeiro não pode ser derrogado e forma a infraestrutura do último, que,
por sua vez, pode ser derrogado, violado e perdido, mas que também constitui a base para
os direitos humanos. A diferença entre a dignidade interna e a dignidade externa é
marcante, como demonstra o quadro a seguir.cviii
65

Dignidade humana Dignidade humana externa


interna
Definição Valor inerente ao ser Merecimento de respeito pelo ser humano
humano
Focos de estudo Dimensões e atributos Atitudes e atos
Epistemologia Por meio da intuição Por meio da observação de atitudes, atos e
omissões
Método Não pode ser provado Pode ser descoberto cientificamente;
cientificamente; empírico; descritivo e prescritivo.
fenomenológico,
metafisico; atributivo.
Escopo Universal e pré- Contingente; depende da pessoa, do
societário. contexto e da cultura. Dependente das
relações sociais
Relação com ~
A própria Implica autorrespeito
pessoa
Outros Implica reconhecimento do respeito
Direito Indireto; via Da d.e. para A d.e. estabelece todos os
humanos (d.h.) dignidade externa os d.h. d.h. ou
(d.e.) Estabelece alguns d.h. ou
É em si mesma um d.h. ou
um aglomerado de d.h. ou
Limita os d.h., estabelecendo
deveres humanos
Dos d.h. A realização dos d.h. protege
para a d.e. e engrandece a dignidade
Abusos de d.h. A dignidade inerente O ofensor pode violar ou negar a dignidade
nunca pode ser de si mesmo ou de outros; e
perdida, derrogada ou A vítima é reduzida a um instrumento, é
violada. desumanizada.
66

Negar a dignidade humana, em seu aspecto externo, a alguém, significa tratá-lo como um
objeto e não um ser humano. Trata-se do procedimento de objetificação, que
necessariamente envolve uma ou mais das seguintes noções:

a) instrumentalidade: a pessoa é tratada como um instrumento para os propósitos de


outrem:
b) negativa de autonomia: é negada à pessoa a autonomia e a autodeterminação;
c) inércia: a pessoa é tratada como incapaz de agir;
d) fungibilidade: a pessoa é tratada como um objeto intercambiável por outros da
mesma espécie ou mesmo por objetos de outras espécies;
e) violabilidade: a pessoa é tratada como se faltasse integridade em seus limites,
como alguma coisa que é possível quebrar, esmagar, invadir;
f) propriedade: a pessoa é tratada como propriedade de outra, que pode ser vendida,
comprada, etc.;
g) negativa de subjetividade: a pessoa é tratada como um objeto cujos sentimentos e
experiências não precisam ser levados em consideração.cix

No próximo capítulo, será analisada a aplicabilidade específica do princípio da dignidade


humana às crianças. Da mesma forma, serão discutidas as principais formas pelas quais
as crianças são tratadas como um objeto, especialmente a instrumentalidade e a negativa
de autonomia, ou como um ser humano de categoria inferior aos demais, e que por isso
seria impedido usufruir integralmente dos direitos humanos.

1.2 O direito da criança à dignidade e ao respeito

Como visto, a dignidade humana é um atributo inerente a todos os seres humanos,


independentemente de sua condição ou situação específica: trata-se da dimensão
ontológicacx da dignidade humana. Nesse sentido, a criança,cxi como qualquer ser
humano, é naturalmente portadora de dignidade.

Neste caso, contudo, a Constituição vai além, pois não apenas afirma a dignidade de todos
os seres humanos, inclusive das crianças, mas também estabelece para estas o “direito à
cxii
dignidade”. Essa expressão, porém, é equivocada, uma vez que “a dignidade não é
algo que alguém precise postular ou reivindicar, porque decorre da própria condição
67

humana. O que se pode exigir não é a dignidade em si – pois cada um já a traz consigo –
mas respeito e proteção a ela”cxiii. Assim, é logicamente impossível que a dignidade
humana seja ao mesmo tempo o fundamento de todos os direitos conferidos aos seres
humanos (como um “direito a ter direitos”, para usar a feliz expressão de Hannah
Arendtcxiv) e também um específico direito humano. Ora, somente se preveem direitos
quando algo pode ser perdido e por isso mesmo deve ser protegido pela ordem jurídica (o
direito à vida, por exemplo, tem seu fundamento na possibilidade de se perder a vida); a
dignidade, porém, é inerente a qualquer ser humano e por isso mesmo não pode “ser
perdida”, pois, por definição, não existe ser humano que não tenha dignidade.

Neste ponto, é preciso fazer uma pequena digressão em hermenêutica constitucional. É


bem conhecida a regra de interpretação segundo a qual não existem palavras inúteis na
Constituição, uma vez que todos os seus vocábulos têm conteúdo normativo, ou seja, são
vinculativos a toda a ordem jurídica. O legislador constituinte, porém, muitas vezes se
utilizou de termos em forma atécnica, inexata ou até mesmo absurda. Nesses casos, o
intérprete deve se afastar do significado literal da expressão linguística para buscar outro
significado, o mais próximo possível do significado literal, que preserve o valor
normativo do dispositivo.

Pois bem. Três elementos da dignidade humana são internacionalmente reconhecidos:

a) igualdade – a intrínseca dignidade humana de cada ser humano requer que todos
sejam tratados com igual consideração e respeito, sem distinções de qualquer
natureza;

b) direitos de personalidade, como vida, liberdade, honra, integridade moral,


imagem, integridade física, direito ao próprio corpo, às partes separadas do corpo,
direito ao nome e à intimidade;

c) autonomia – a habilidade individual de regular seus próprios assuntos, isto é, de


determinar os fins a serem atingidos e os meios para atingi-los. A essencialidade
da autonomia para a dignidade humana foi magistralmente enunciada pela Corte
Constitucional da África do Sul:

A dignidade humana não pode ser plenamente valorizada ou respeitada a menos que os
indivíduos sejam capazes de desenvolver a sua humanidade, a sua “condição humana”
68

em toda a extensão do seu potencial. Cada ser humano é singularmente talentoso. Parte
da dignidade de cada ser humano é o fato e consciência desta singularidade. A dignidade
humana de um indivíduo não pode ser plenamente respeitada ou valorizada, a menos que
o indivíduo tenha permissão para desenvolver seus talentos únicos de forma otimizada.

(...)

Uma “sociedade aberta” (...) é uma sociedade em que as pessoas são livres para
desenvolver suas personalidades e habilidades, para buscar sua própria realização última,
para cumprir a sua própria humanidade e de questionar toda a sabedoria recebida sem
limitações colocadas sobre eles por parte do Estado. A “sociedade aberta” sugere que os
indivíduos são livres, individualmente e em associação com outros, para perseguir
amplamente seu próprio desenvolvimento pessoal e realização e sua própria concepção
da “bem viver”.cxv

Tanto a igualdade quanto os direitos de personalidade são expressamente previstos para


as crianças na Constituição Federal. A autonomia, porém, não recebe menção expressa, a
despeito de ser elemento essencial da dignidade humana. Assim, para que o “direito à
dignidade” da criança tenha a normatividade necessária, ele será considerado aqui como
um direito à autonomia.

E qual seria o conteúdo desse direito? Prever um direito à autonomia significa conferir
proteção estatal para a liberdade fundamental do ser humano de determinar seus próprios
objetivos, de definir seus valores, seu modo de vida, enfim, de realizar as decisões
fundamentais de sua existência. Em uma “sociedade aberta” (democrática e pluralista)
cada indivíduo deve ter as mais amplas condições possíveis de exercer a sua
singularidade, a sua individualidade, de realizar seus projetos pessoais.

De fato, pode soar estranho que as crianças tenham um “direito à autonomia”. Como seria
possível que pessoas menores de 18 anos, portanto incapazes e dependentes de
representação e assistência de um adulto, tenham o direito de decidir sobre sua própria
vida? Para entender esse direito é preciso antes compreender o conceito de “evolução da
capacidade”, conforme previsto no art. 5 da Convenção sobre os Direitos das Crianças:

Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou,


onde for o caso, dos membros da família ampliada ou da comunidade, conforme
determinem os costumes locais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis,
de proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e acordes com a
69

evolução de sua capacidade no exercício dos direitos reconhecidos na presente


convenção. (Grifou-se)

O reconhecimento da evolução da capacidade da criança significa um grau crescente de


liberdade conferida a esta em decorrência de sua maior compreensão da realidade. Trata-
se de um revolucionário dispositivo que desmantela a tradicional concepção dualista de
capacidade, segundo a qual a aquisição da maioridade aos 18 anos de idade marca uma
mudança abrupta de estado, da absoluta incapacidade para a absoluta capacidade, sem
qualquer espécie de transição. Portanto, desde a Convenção sobre os Direitos das
Crianças, a capacidade jurídica passa a ser adquirida gradualmente, de acordo com a
maturidade moral, intelectual e emocional da criança. Sobre a importância desse novo
princípio, vide a seguinte manifestação do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF):

Este princípio – novo no Direito Internacional – tem profundas implicações para os


direitos humanos da criança, pois estabelece que à medida em que as crianças adquirem
competências aprimoradas, existe uma necessidade reduzida de direção e uma maior
capacidade de assumir a responsabilidade por decisões que afetam as suas vidas. A
Convenção reconhece que crianças em diferentes ambientes e culturas que são
confrontados com experiências de vida diversas adquirirão competências em diferentes
idades, e sua aquisição de competências irá variar de acordo com as circunstâncias. Ela
também reconhece o fato de que as capacidades das crianças diferem de acordo com a
natureza dos direitos a serem exercidos. As crianças, por conseguinte, requerem vários
graus de proteção, participação e oportunidade para autonomia de decisão em diferentes
contextos e em diferentes áreas de tomada de decisão.

O conceito de capacidades em desenvolvimento é central para o equilíbrio consagrado na


Convenção entre o reconhecimento das crianças como agentes ativos em suas próprias
vidas, o direito de ser ouvido, respeitado e concedida ampliação da autonomia no
exercício de direitos, enquanto também ter direito a proteção de acordo com sua relativa
imaturidade e juventude. Este conceito fornece a base para um adequado respeito pelas
atitudes das crianças sem expô-las prematuramente às responsabilidades completas
normalmente associadas com idade adulta. É importante reconhecer que não é o respeito
pelos direitos, como tal, que é influenciado pela capacidade de desenvolvimento das
crianças: os direitos previstos na Convenção sobre os Direitos da Criança estendem-se a
todas as crianças, independentemente da sua capacidade. O que está em questão é onde a
responsabilidade para o exercício dos direitos se encontra.cxvi
70

Nesse sentido, as crianças adquirem autonomia gradualmente, de acordo com o


desenvolvimento de sua capacidade de compreender o mundo. Trata-se da gradualíssima
transição entre o mero status de sujeito de direitos para o status de agente desses direitos.
Em cada caso concreto, é preciso verificar se a criança tem capacidade, desejo e
oportunidade para exercer essa autonomia.

Viver de forma autônoma significa essencialmente o poder de decidir a respeito de sua


própria vida. No processo decisório, existem três níveis de envolvimento:

a) ser informado sobre a situação que requer uma decisão;


b) expressar seu ponto de vista;
c) ter o seu ponto de vista levado em consideração no momento da
decisão;
d) ser o principal responsável ou ao menos um dos responsáveis pela
tomada de decisão.

Todas as crianças que tenham capacidade de se expressar (ou seja, com certo domínio da
linguagem) têm direito aos três primeiros níveis de envolvimento conforme determina o
art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança:

Artigo 12

1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios
juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos
relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em
função da idade e maturidade da criança.

2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser


ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente
quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as
regras processuais da legislação nacional.

O quarto nível de envolvimento é adquirido de forma gradual, a depender da competência


e do desejo da criança de atuar em determinada situação. Não há idade determinada para
que a criança possa decidir sobre certos assuntos de sua vida. Esse poder é adquirido à
medida em que ela demonstrar a posse das habilidades, do conhecimento e da
compreensão necessários para a realização de uma decisão razoável.
71

Para reforçar e enfatizar a proteção conferida à criança, a Constituição Federal logo após
enunciar o direito à dignidade, também previu o direito da criança ao respeito (cf. art.
227, caput). Esse enunciado pode causar perplexidade tendo em vista a semelhança
semântica entre respeito e dignidade. Porém, como observado anteriormente, cabe ao
intérprete distinguir entre os signos constitucionais, sendo inadmissível a presença de
sinônimos perfeitos na Constituição Federal, que teriam como consequência a
inaplicabilidade de algum dos termos considerados semanticamente idênticos.

Nesse sentido, o que diferenciaria o respeito da dignidade? A dignidade refere-se ao valor


imputado a algo. Como visto, a dignidade humana é o valor intrínseco de cada ser
humano, independentemente de sua situação concreta. O respeito, por sua vez, vai além
da dignidade; trata-se de um grau superior de consideração pela pessoa, no qual esta é
tratada com especial apreço, atenção, admiração e deferência. Em regra, o respeito é o
reconhecimento de nobres qualidades e mesmo de grandes conquistas realizadas pela
pessoa.

Por isso, não há sentido em falar-se de um direito universal ao respeito. A Constituição


Federal estabeleceu apenas um parâmetro mínimo de relacionamento interpessoal, a
dignidade. Qualquer tratamento que ultrapasse esse parâmetro é, em regra, mera
liberalidade de quem o realiza. Portanto, ninguém pode exigir ser tratado de forma
respeitosa, ou seja, com especial deferência.

Como visto, porém, a Constituição Federal enunciou esse direito especialmente para as
crianças (e também para os adolescentes e jovens). Isso significa que as crianças, por sua
condição peculiar de “pessoas em desenvolvimento” (Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), art. 6°), além de todos os direitos previstos para as pessoas em geral,
têm “proteção integral” (ECA, art. 3°) e por isso devem ter seus direitos assegurados com
“absoluta prioridade” (ECA, art. 4°). Em consequência, de acordo com o estatuto, “o
direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da
criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da
autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais” (ECA, art. 17).

Trata-se ademais de uma medida compensatória da situação de vulnerabilidade e


hipossuficiência das crianças. Estas não apenas têm compreensão incompleta da realidade
como também estão continuamente submetidas ao poder dos adultos, sejam seus pais
(poder familiar) ou os responsáveis pelas instituições em que elas se encontram,
72

principalmente escolas, creches e orfanatos. Nesse sentido, dar às crianças um conjunto


mais completo de proteções e direitos não é conferir-lhes um privilégio, mas sim diminuir
a diferença a brutal diferença de poder entre estas e os adultos.

Historicamente, o desrespeito às crianças tem sido a regra. Desde abortos, infanticídios,


trabalho escravo, maus-tratos até a mais simples desconsideração de suas necessidades
físicas, psicológicas e psicológicas, as crianças talvez sejam o grupo humano que mais
tenha sofrido abusos e negligências em toda a história da humanidade. Apesar dessa
terrível situação, somente no início do Século XX, levantou-se a primeira voz a demandar
o respeito às crianças.

Janusz Korczak, pedagogo polonês, deu início a experiências pioneiras em orfanatos, nos
quais as crianças eram tratadas com o mesmo respeito e consideração que os adultos.
Além disso, foi influência determinante na Declaração dos Direitos das Crianças, de 1959,
e na Convenção sobre os Direitos das Crianças, em 1989. O seu manifesto, “O Direito da
Criança ao Respeito”, de 1929, é provavelmente a mais bela e eloquente defesa já feita
da criança como um ser humano integral e não apenas um potencial, um “futuro adulto”.
Desse manifesto, destaco os seguintes trechos:

É como se existissem duas vidas. Uma é séria e respeitável; a outra vale menos, é apenas
tolerada com indulgência. Costumamos dizer: o futuro homem, o futuro trabalhador, o
futuro cidadão. Eles passarão um dia a existir de verdade, sua real trajetória ainda está
por começar, só mais tarde virão a ser levados a sério. Damos licença para que fiquem
zanzando por aí, mas sem eles tudo é mais cômodo.

Pois bem: não é verdade. As crianças existem e hão de existir sempre. Não caíram de
repente do céu, para um rápida visitinha. Uma criança não é um vago conhecido, de quem
nos podemos desvencilhar, num encontro ao acaso, com um simples alô e um sorriso.

(...)

Na Antiguidade da Grécia e de Roma, uma lei cruel mas franca permitia matar uma
criança. Na Idade Média os pescadores achavam nas suas redes cadáveres de bebês
afogados nos rios. No século XVII as crianças maiores eram vendidas a mendigos,
enquanto as menorzinhas eram distribuídas de graça em frente à catedral de Notre Dame.
E isso foi ainda outro dia. E até hoje muitas crianças continuam a ser abandonados quando
começam a incomodar.
73

Aumenta cada vez mais o número de crianças ilegítimas, largadas, desprezadas,


exploradas, depravadas, maltratadas. Bem entendido, a lei as protege, mas será que lhes
oferece suficientes garantias? Num mundo que evolui, as velhas leis precisam ser revistas.

(...)

Renunciar a hoje em nome de amanhã? O que o futuro nos prenuncia de tão sedutor
assim? Pintamo-lo com cores exageradamente sombrias; e eis que chega o dia em que
nossas previsões se concretizam: o telhado desaba, porque a construção das fundações foi
feita com negligência.cxvii

Quase nove décadas depois do manifesto de Janusz Korczak, os desafios permanecem. A


despeito do posterior reconhecimento internacional dos direitos das crianças, por meio da
Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, e da internalização desse
reconhecimento na legislação brasileira, por meio do Estatuto da Criança e do
Adolescente, ainda há uma grande distância a percorrer para que as crianças brasileiras
sejam efetivamente tratadas com respeito e dignidade. Esses, como os demais direitos
humanos, já foram suficientemente enunciados e declarados. O grande desafio, neste
ponto da história da humanidade, é a sua concretização, para que todos os seus
destinatários possam usufrui-lo em sua máxima extensão possível. cxviii

No próximo capítulo, os conceitos de dignidade e respeito às crianças serão aplicados à


educação infantil. Buscar-se-á responder a uma questão essencial: que modelo de
educação é compatível com os direitos das crianças à dignidade e ao respeito?

1.3 O direito da criança à dignidade e ao respeito aplicado à educação

A educação é indubitavelmente a forma mais radical, intensa e extensiva de intervenção


na vida de uma criança. Durante quase toda a infância, a criança é retirada de suas
atividades espontâneas e submetida a diversas atividades que têm por objeto não a criança
de hoje mas um hipotético adulto do futuro. Quase sempre, isso significa retirar a criança
da casa de seus pais e colocá-la em uma instituição escolar onde, por várias horas diárias,
ela deve obedecer a certos padrões, absorver determinados conteúdos, obedecer a
diversos adultos e conviver cotidianamente com incontáveis outras crianças, com as quais
geralmente o único ponto em comum é a idade.
74

A educação tal qual a conhecemos é uma aposta de altíssimo risco. Vultuosos recursos
materiais, humanos e de tempo são alocados para um dos mais ambiciosos objetivos a
que a humanidade já se propôs: formar seres humanos, aptos a exercer sua cidadania,
utilizar seu potencial e serem membros produtivos da sociedade. Em nome desse
“esplendoroso” e incerto ser do futuro, a vida de seres humanos efetivamente existentes
é radicalmente transformada, em um processo com pouquíssima ou nenhuma participação
da vontade desse ser humano real.

A educação escolar, em especial, encontra-se tão naturalizada que se tornou lugar comum
identificar educação com escolarização. A despeito de seus variados e conhecidos
problemas, a existência e a necessidade da instituição escolar são vistas como
inquestionáveis. O pensamento quase hegemônico é mais ou menos o seguinte: “sempre
é possível melhorar a escola, mas não se pode conceber a educação completamente fora
da escola”.

Talvez uma analogia possa deixar essa questão mais clara. A intervenção que a escola
realiza na vida da criança somente pode ser comparada na vida adulta à realizada pela
prisão. Os pontos de semelhança são vários, como uma estrutura autoritária, a perda da
autonomia individual, a ausência de participação na formulação das decisões e tempos
determinados para todas as atividades. Há uma notável semelhança inclusive com relação
à função primordial: enquanto a escola se destinaria à socialização das crianças, a
penitenciária se destinaria à ressocialização dos adultos.

Neste capítulo, pretende-se analisar a relação entre a escola e o direito da criança à


dignidade e ao respeito. Ao contrário das outras análises, não se pretende louvar a
educação escolar como indispensável à efetivação da dignidade humana. Pelo contrário,
o objetivo aqui é descortinar as inevitáveis tensões entre o sistema escolar e a dignidade
humana.

Quanto maior a intervenção externa na vida de uma pessoa, menor a sua autonomia e
mais exposta a riscos estará sua dignidade. Em algumas situações, a essa intervenção pode
ser inevitável, como em tratamentos médicos para pessoas que não podem expressar sua
vontade; em outras, a sua necessidade é questionável, como é o caso das escolas. De
qualquer forma, em todas as situações de intervenção compulsória sobre a vida de alguém,
existe o risco de lesão à sua dignidade e à sua autonomia.
75

Essas tensões entre a dignidade da criança e a sua submissão ao modelo escolar de


educação podem ser classificadas em três espécies:

a) criança (presente) vs. adulto (futuro): entre o bem-estar atual da criança e o


hipotético acréscimo de bem-estar que a educação proporciona ao futuro adulto;
b) criança (ser humano) vs. instituição (pessoa jurídica): entre a criança enquanto
ser humano e a criança enquanto cliente de uma instituição, a escola;
c) criança (indivíduo singular) vs. massa (coletividade de indivíduos): entre a
criança enquanto indivíduo e a criança enquanto parte de uma massa.

A primeira espécie de tensão se dá temporalmente, dentro da vida da própria pessoa. A


educação, sendo compulsória, restringe a autonomia da criança atual em nome de uma
hipotética maior autonomia do futuro adulto. Essa tensão é bem resumida por Johannes
Giesinger:

Deixe-me começar com duas proposições opostas quanto à relação entre dignidade e
educação.

Primeiramente, nós poderíamos dizer que respeitar a dignidade de uma criança


significa educá-la. Isso pode significar, entre outras coisas, que o desenvolvimento de sua
capacidade para autonomia deve ser fomentado.

Em segundo lugar, poderia ser dito que as interferências educacionais ameaçam


a dignidade da criança. Educação é frequentemente pensada como uma forma de
heteronomia. Educar alguém significa controlar ou constranger o seu comportamento ou
moldar seus valores e crenças. Se a minha esposa tentasse me educar da mesma maneira
que nós educamos nossas crianças, eu me sentiria violado em minha dignidade.

Essas afirmações deixam claro que o conceito de dignidade tem ao menos duas diferentes
funções na reflexão educacional. Primeiro, a dignidade da criança pode fundamentar uma
demanda para educação. A ideia é que a criança – ou o adulto em que ela se tornará – tem
necessidade de educação: sem educação, ela não viverá uma vida satisfatória e autônoma
e poderia ser privada de certas oportunidades sociais e econômicas.

O problema é, porém, que fomentar determinadas capacidades pode ser contrário aos
desejos atuais da criança. Isso nos leva à segunda função do conceito de dignidade: pode
funcionar como uma restrição normativa às interferências educacionais. (...)cxix

Hoje em dia, há uma concepção hegemônica de que as crianças devem ser educadas tendo
em vista a indisfarçável necessidade futura de adultos funcionais, tanto econômica (para
76

o mercado de trabalho) quanto politicamente (para o exercício da cidadania), para que a


sociedade tal qual a conhecemos possa se manter e ao mesmo tempo se renovar. Trata-
se, além disso, de uma medida de justiça da geração que hoje detém as rédeas da sociedade
(a grosso modo, os adultos entre 30 e 59 anos) com a geração que no futuro próximo
assumirá essa mesma sociedade. Para esse fim, certa dose de paternalismo, ou seja, de
limitação da liberdade atual da criança em nome de seus futuros interesses, é não apenas
aceitável, mas também indispensável.

A questão é definir os limites desse paternalismo (imposição de parâmetros exteriores à


criança) tendo em vista os direitos da criança à dignidade e ao respeito. De um lado, a
educação não apenas é compulsória, como prevê a Constituição de 1988 e vários tratados
de direitos humanos, mas também determinados conteúdos necessariamente devem ser
ministrados às crianças, como a língua pátria e aritmética. Por outro lado, a criança tem
o direito a manter um nível adequado de bem-estar em sua vida presente, preservando os
bens específicos que apenas a infância pode proporcionar. cxx

Esses bens específicos da infância somente podem ser preservados se as crianças puderem
exercer efetivamente sua autonomia. Em educação, a autonomia das crianças significa:

a) Informá-las adequadamente sobre a razão de se ministrar determinado conteúdo


(por exemplo, “o estudo da Biologia é necessário por tais e tais razões”) e sobre o
modo como esse conteúdo será ministrado (p. ex., “aulas expositivas tantas horas
por semana”). Há portanto, um ônus da prova por parte do educador, que não pode
desmotivadamente impor determinado conteúdo ou processo educativo sobre a
criança; cxxi
b) Possibilitar que a criança efetivamente opine sobre o processo educativo a que
está submetida;
c) Considerar a opinião da criança na formulação de qualquer ação educacional; e
d) Permitir que as crianças sejam os principais ou ao menos ou dos tomadores de
decisões relativas às ações educacionais. A decisão negociada deve ter preferência
frente à solução imposta. Esse poder deve ser dado às crianças de forma gradativa,
das decisões mais simples à mais complexas, a depender de seu nível de
maturidade intelectual. Idealmente, perto de completar a maioridade a criança já
deve ser a responsável pela maior parte das decisões relativas à sua educação.cxxii
77

O sistema escolar brasileiro atual não confere nenhum espaço para que as crianças possam
exercer sua autonomia. Pelo contrário: não há absolutamente nenhuma participação ativa
dos alunos dos alunos no processo educacional ao qual eles estão submetidos. O aluno é
apenas o recipiente passivo que recebe não apenas as informações, mas também as
atitudes e os valores daqueles que o ensina. Das relevantes instituições modernas, a escola
talvez seja a mais autoritária de todas: não há opção quanto a entrar, sair ou permanecer
e durante esse período, a autonomia da criança é absolutamente desrespeitada. No limite,
o único direito das crianças no decorrer do processo pedagógico é o de não ser submetido
a maus-tratos.

Outra fonte de potencial conflito entre a escola e a dignidade da criança é a circunstância


de a escola ser uma instituição, ou seja, uma forma de organização social com finalidades
específicas. À medida em que uma instituição se desenvolve, mais poder e dinheiro
concentra e mais pessoas dependem dela para sua sobrevivência. A partir de determinado
ponto, essas pessoas passam a fazer a instituição trabalhar muito mais em prol de seus
próprios interesses do que em prol dos interesses daqueles que diz servir.

A partir desse ponto, a instituição passa a ter como finalidade primordial o seu próprio
crescimento em detrimento das finalidades explícitas da instituição. Então, os
destinatários dos serviços da instituição passam a ser meros instrumentos, meros pretextos
para os verdadeiros fins dessa instituição. Um órgão público, por exemplo, oficialmente
existe para prover serviços à população, mas tendo em vista o altíssimo grau de
institucionalização do Estado, sua finalidade precípua será beneficiar os servidores
públicos e os políticos ligados a esse órgão.

No caso do sistema escolar, não se pode desprezar a influência de poderosos interesses


internos. Existem no Brasil cerca de 2,3 milhões de professores; trata-se indubitavelmente
de uma das profissões com o maior número de profissionais. Todos os estados contam
com influentes e articulados sindicatos de professores. Esses sindicatos têm o virtual
cxxiii
monopólio da participação da sociedade civil nas políticas educacionais. Seu
principal meio de pressão é a greve, ou seja, a paralização das atividades escolares, quase
sempre com o único objetivo de buscar aumento remuneratório para seus membros. A
greve com certeza é um dos exemplos mais eloquentes de como a finalidade explícita de
uma entidade é não apenas sobrepujada, mas durante certo tempo anulada, pelos
interesses dos membros dessa instituição. Por outro lado, não consta que os sindicatos de
professores já tenham defendido melhorias na educação que não fossem ao menos
78

coincidentes com os interesses corporativos da classe. O maior prejuízo causado pelos


sindicatos de professores é sentido pelas famílias de baixa renda, que não têm alternativa
à escola pública, alvo quase exclusivo dos movimentos grevistas.

Não são apenas professores os beneficiários diretos da instituição educacional. Centenas


de milhares de funcionários administrativos e de burocratas estão, direta ou
indiretamente, vinculados a escolas. O orçamento apenas do Ministério da Educação foi
de mais de R$ 90 bilhões de reais em 2013; cifras muito mais expressivas são alcançadas
se somarmos os orçamentos das secretarias municipais, estaduais e distrital de ensino. Da
mesma forma, um número incalculável de empresas deve sua existência aos contratos
firmados com as escolas e as burocracias ligadas a elas.

Uma sociedade sem escolas, tal como proposta por Ivan Illich, em clássica obra de mesmo
nome, cxxiv representaria portanto o desemprego para milhões de pessoas e a falência de
inumeráveis empresas. Uma diminuição mínima do aparato escolar já significaria o
desemprego de milhares de pessoas e bilhões de reais a menos no orçamento educacional.
São poderosos interesses, portanto, que exigem não apenas a manutenção mas
principalmente o contínuo crescimento do sistema escolar.

Existe ainda outro poderoso interesse interno à instituição escolar: a transmissão de


determinada visão de mundo pela classe docente. Essa transmissão, denominada de
doutrinação ideológica, transforma a educação em propaganda. Em consequência, as
crianças, ao invés de absorverem uma visão abrangente da realidade, são transformadas
em instrumentos de propagação de determinada ideologia, sendo as demais visões de
mundo repassadas de forma distorcida ou mesmo completamente ignoradas.

Por essas razões, a relação ser humano/instituição tende a se inverter no caso do sistema
escolar: o primeiro passa a existir em função do último e não, como era de se esperar, o
contrário. A escola, ao invés de servir aos alunos, serve-se deles como instrumentos para
a satisfação dos interesses internos de seus membros. Essa inversão retira a humanidade
dos alunos, transformando-os em meros objetos, instrumentos a serviço de propósitos
externos a eles.

Finalmente, a dignidade da criança é desrespeitada na escola por meio da massificação.


Mesmo nos melhores sistemas educacionais e nas mais perfeitas condições, é impossível
levar em consideração as peculiaridades de cada criança, de cada aluno. O conteúdo das
79

matérias, a metodologia de ensino e mesmo o ritmo em que as matérias são dadas em sala
de aula necessariamente levam em consideração algum tipo de média estatística.

Assim, é impossível ao “Aluno A” ter providas suas necessidades educacionais


específicas. Nas políticas públicas, em cada sistema de ensino e mesmo nas salas de aula,
tudo é orientado para um inexistente “aluno médio”. E isso é inevitável: em um sistema
com milhões de alunos, a individualidade necessariamente deve ser desprezada. Todas as
crianças de determinada idade devem, em regra, fazer parte da mesma turma e portanto
aprender exatamente as mesmas coisas, mesmo que tenham interesses, capacidades e
desejos completamente diversos entre si.

O ser humano, portanto, é despojado de seu caráter único e distinto e passa a ser tratado
como algo fungível, ou seja, exatamente igual aos demais. Não há mais indivíduo, com
sua específica necessidade de descobrir e conhecer o mundo, mas apenas uma média
estatística, da qual se espera os mesmos resultados dos demais, que também se tornam
parte indiferenciada desse todo. Trata-se de uma lesão não apenas ao direito à dignidade
e ao respeito, mas também ao direito à diversidade, pelo qual cada pessoa tem o poder de
definir suas necessidades, seus desejos e sua visão de mundo.

Seria possível reformar o sistema escolar atual de modo a realmente garantir que todas as
crianças sejam tratadas com dignidade e respeito? Curiosamente, essa crucial questão
raramente é objeto de consideração por educadores e pedagogos. Decerto, reformas
pontuais sempre são possíveis e, de certa forma, estão sendo formuladas e testadas
continuamente. Praticamente todos os pedagogos e educadores proeminentes advogaram
algum tipo de reforma do sistema escolar.

Para verificar a viabilidade de uma reforma radical e global do sistema escolar, é preciso
revisitar as três tensões já analisadas.

A primeira delas diz respeito à perda de autonomia da criança atual frente ao hipotético
acréscimo de autonomia do futuro adulto em decorrência da educação. Seria possível uma
escola em que as crianças tivessem graus crescentes de autonomia de acordo com seu
grau de desenvolvimento intelectual? Sem dúvida, é possível tornar as escolas mais
democráticas, participativas e inclusivas, como demonstram várias experiências nesse
cxxv
sentido. Porém, o que chama a atenção nessas experiências é exatamente seu
restritíssimo alcance: as “escolas democráticas”, onde é garantido o direito à dignidade e
ao respeito dos estudantes não apenas são raras mas também em cada caso envolvem um
80

número bastante restrito de crianças. Aliás, não se conhece um sistema escolar que, como
um todo, tenha adotado essa abordagem. Não por acaso existem sérios questionamentos
a respeito do caráter inerentemente autoritário da escola, que teria como uma de suas
funções implícitas “ensinar a obedecer a ordens”. cxxvi Portanto, permanece extremamente
improvável que a escola venha a se tornar um espaço que garanta o respeito e a dignidade
às crianças.

A questão torna-se ainda mais problemática quando analisamos a segunda tensão, que diz
respeito ao conflito de interesses entre os estudantes e aquelas pessoas que efetivamente
detém o poder dentro do sistema escolar (professores e burocratas em geral). Esse conflito
de interesses é latente dentro de qualquer grande instituição e se revela de forma explícita
quando os interesses internos à instituição se posicionam de forma contrária à dignidade
e ao respeito aos alunos. Trata-se de uma questão estrutural do sistema escolar, que, sendo
uma das maiores instituições já criadas pelo ser humano, encontra-se inevitavelmente
vergado por esses interesses internos. Neste caso, existe uma impossibilidade prática de
o sistema escolar estar realmente a serviço da dignidade e do respeito às crianças. Aliás,
isso pode acontecer, mas de forma acidental, desde que os interesses das crianças
coincidam com os interesses internos do sistema.

A última tensão diz respeito à posição da criança enquanto indivíduo e enquanto parte
indistinta de uma massa. Como visto, quando milhões de crianças devem ser ensinadas
conforme um padrão determinado, necessariamente qualquer noção de individualidade é
dissolvida dentro de um padrão comum. Seres únicos tornam-se fungíveis por um
imperativo do sistema escolar. A ausência de autonomia das crianças, descortinada na
primeira tensão, impede que a educação seja direcionada pelas necessidades específicas
de cada aluno. O resultado inevitável é uma brutal padronização, que não atende por
inteiro os interesses de nenhuma criança. Essa tensão pode ser diminuída da mesma forma
que a primeira, ou seja, por meio da democratização das escolas, mas nunca poderá ser
extirpada, tendo em vista a existência de currículos mínimos obrigatórios, como
determina a Constituição Federal, e a simples e inevitável circunstância de que escolas
implicam por definição agrupamento de alunos, com tratamento idêntico de crianças com
necessidades e desejos absolutamente diversos.

Portanto, a escola, ao menos no modelo atualmente hegemônico, não é uma instituição


apta a efetivamente garantir os direitos da criança à dignidade e ao respeito. Pelo
contrário, a escola sistematicamente nega a autonomia, a individualidade e a prevalência
81

dos interesses das crianças. No limite, uma instituição que nega cotidianamente esse
direito às crianças seria considerada uma associação para fins ilícitos, se não fosse
expressamente prevista na própria Constituição Federal (o art. 206, inc. I, se refere ao
princípio da “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”).

Nesse sentido, a única opção para minorar os efeitos deletérios da escolarização, tal qual
a conhecemos, sobre as crianças, é conferir a maior liberdade educacional possível para
as famílias e às instituições educacionais. Essa liberdade já se encontra prevista na
Constituição Federal, no art. 206, inc. II e III:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

(...)

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições


públicas e privadas de ensino;

Na prática, isso significa permitir, incentivar e proteger experiências e alternativas


educacionais que garantam maior autonomia, respeito e individualidade às crianças, com
a efetiva prevalência de seus interesses sobre os de outros participantes no processo
educacional. Das várias opções ao sistema escolar atual (como escolas democráticas e
centros mais informais de aprendizado), destaca-se a educação domiciliar.

A educação domiciliar permite que a criança simultaneamente:

a. atue com autonomia, a depender do seu grau de maturidade intelectual


(essa autonomia não impede que os pais transmitam seus valores aos
filhos, mas pode conviver harmonicamente com esse direito parental); cxxvii
b. tenha seus interesses e direitos devidamente priorizados (ao contrário das
outras instituições, a família é unida por laços afetivos, o que previne a
ocorrência de conflitos de interesses); e
c. seja considerada como um indivíduo, com necessidades, desejos, talentos
e mesmo deficiências absolutamente únicos e que portanto requer uma
abordagem educacional adaptada a ele.cxxviii

Enfim, é necessário e urgente que ampliemos o foco das discussões a respeito de educação
e dignidade humana. Sem dúvida, a educação é um fator importantíssimo para que a
pessoa no futuro tenha condições de desenvolver seu potencial e atuar efetivamente na
82

sociedade. Porém, é indispensável que a educação também respeite a dignidade do


educando, especialmente da criança. Como visto, a educação escolar atual está muito
longe desse ideal. Por isso, alternativas devem estar disponíveis às famílias que assim
puderem e quiserem. E a educação domiciliar tem se mostrado a alternativa que mais
respeita a criança como um ser humano completo (não apenas um futuro adulto), titular
integral de direitos.

2. O dever de neutralidade do Estado aplicado à educação

Hei você que tem de 8 a 80 anos

Não fique aí perdido como ave

sem destino

Pouco importa a ousadia dos seus planos

Eles podem vir da vivência de um ancião

ou da inocência de um menino

O importante é você crer

na juventude que existe dentro de você

Meu amigo meu compadre meu irmão

Escreva sua história pelas suas próprias mãos

Nunca deixe se levar por falsos líderes

Todos eles se intitulam porta vozes da razão

Pouco importa o seu tráfico de influências

Pois os compromissos assumidos quase sempre ganham

subdimensão

O importante é você ver o grande líder que existe dentro

de você
83

Meu amigo meu compadre meu irmão

Escreva sua história pelas suas próprias mãos

Não se deixe intimidar pela violência

O poder da sua mente é toda sua fortaleza

Pouco importa esse aparato bélico universal

Toda força bruta representa nada mais do que um sintoma

de fraqueza.

O importante é você crer nessa força incrível que existe

dentro de você

Meu amigo meu compadre meu irmão

Escreva sua história pelas suas próprias mãos.cxxix

Essa belíssima música de Zé Geraldo trata da angústia existente em cada ser humano de
viver entre as mais diversas pressões externas enquanto busca realizar seu projeto de vida
único e intransferível. Quase sempre, o ambiente no qual a pessoa se encontra é pobre de
opções de projetos de vida; pior ainda, muitas vezes as pessoas nem sabem que essas
opções existem. Aqui, o papel do Estado é prover as condições necessárias para que os
projetos individuais possam ser realizados pelo maior número possível de pessoas. Esse
papel pode ser efetivado de forma positiva, por meio do provimento de condições
materiais para a realização desses projetos (em ações de assistência social, por exemplo),
ou de forma negativa, por meio da abstenção de condutas que restringiriam indevidamente
o leque de opções a ser dado a cada indivíduo.cxxx Nesse sentido, as condutas vedadas ao
Estado vão desde a mais explícita coerção, como a censura e a vedação do exercício de
determinadas atividades, até a mais sutil manipulação comportamental, totalmente
imperceptível às suas vítimas. A concepção fundamental é a da instrumentalidade do
Estado, que não deve “formar” seres humanos, mas se conformar às necessidades e
demandas destes. Neste ponto, cabe um breve retorno (vide capítulo anterior) ao
supraprincípio da dignidade humana.
84

A dignidade da pessoa humana não é apenas o fundamento da República Federativa do


Brasil, como dispõe o art. 1°, inc. III, da Constituição Federal, mas também de todo o
ordenamento jurídico. Trata-se, a rigor, de um dado axiológico, pré-jurídico, que
condiciona a existência e a finalidade de qualquer constituição moderna. Nesse sentido,
constituição nada mais é que o conjunto de normas jurídicas que têm a importantíssima
finalidade de garantir o ser humano contra violações à sua dignidade por parte do Estado
e de outros particulares. A importância da dignidade humana foi magistralmente
demonstrada no seguinte julgado do STF:

“(...) a dignidade da pessoa humana precede a Constituição de 1988 e esta não


poderia ter sido contrariada, em seu art. 1º, III, anteriormente a sua vigência. A
arguente desqualifica fatos históricos que antecederam a aprovação, pelo Congresso
Nacional, da Lei 6.683/1979. (...) A inicial ignora o momento talvez mais importante da
luta pela redemocratização do país, o da batalha da anistia, autêntica batalha. Toda a gente
que conhece nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da
Lei 6.683/1979. (...) Tem razão a arguente ao afirmar que a dignidade não tem preço. As
coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem preço, vale para todos
quantos participam do humano. Estamos, todavia, em perigo quando alguém se arroga o
direito de tomar o que pertence à dignidade da pessoa humana como um seu valor (valor
de quem se arrogue a tanto). É que, então, o valor do humano assume forma na substância
e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o
mensure. Então o valor da dignidade da pessoa humana já não será mais valor do
humano, de todos quantos pertencem à humanidade, porém de quem o proclame
conforme o seu critério particular. Estamos então em perigo, submissos à tirania dos
valores. (...) Sem de qualquer modo negar o que diz a arguente ao proclamar que a
dignidade não tem preço (o que subscrevo), tenho que a indignidade que o cometimento
de qualquer crime expressa não pode ser retribuída com a proclamação de que o instituto
da anistia viola a dignidade humana. (...) O argumento descolado da dignidade da pessoa
humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes
políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não,
durante o regime militar, esse argumento não prospera.” (ADPF 153, voto do Rel. Min.
Eros Grau, julgamento em 29‑4‑2010, Plenário, DJE de 6‑8‑2010.)

Reconhecer o outro ser humano como digno tem duas importantíssimas repercussões para
os fins deste estudo. A primeira diz respeito à relação entre indivíduo e Estado:
ultrapassadas as doutrinas totalitárias, que determinavam a dissolução do indivíduo no
Estado soberano (“não há legítimos interesses particulares, mas apenas estatais”), o
85

Estado passa a se constituir como servo do ser humano, como um instrumento a serviço
do bem-estar de seus cidadãos. Trata-se do “Estado eudaimônico”,cxxxi ou seja aquele que
tem por objetivo supremo permitir, proteger e incentivar a busca da autorrealização de
cada um de seus cidadãos. Nesse sentido, qualquer ação estatal somente pode ser
considerada legítima caso tenha por finalidade suprema a contribuição para os projetos
individuais de cada um de seus cidadãos. cxxxii

A segunda repercussão diz respeito ao modo como cada indivíduo se autorrealiza. Cada
pessoa deve ter a possibilidade de escolher como viverá: desde os seus hábitos mais
cotidianos (como a escolha do tipo de alimentação ou de transporte) até os valores mais
profundos (como a visão de mundo, a religião, a filosofia de vida) passando pelas decisões
fundamentais da vida (como a escolha da profissão e da(s) pessoa(s) para relações
íntimas). É por meio dessas decisões e escolhas que se exerce a autonomia, decorrência
necessária da dignidade humana. Em termos mais superficiais, a autonomia é respeitada
por meio da ausência de coerções ilegítimas. Em um nível mais profundo, porém, a
autonomia individual requer o respeito às convicções fundamentais de todo ser humano;
nesse sentido, ninguém pode ser coagido, manipulado ou mesmo influenciado, contra sua
vontade expressa, a acreditar em uma concepção da realidade (por exemplo, a existência
ou inexistência de um mundo espiritual), de normas éticas (por exemplo, a existência ou
inexistência de um dever de ajudar os mais pobres) ou em uma filosofia política (que
requeira, por exemplo, maior ou menor intervenção do Estado na sociedade). O respeito
à autonomia individual deve alcançar inclusive as meras apreciações estéticas, como as
relativas a estilos de músicas. Enfim, por meio da autonomia o ser humano se autoconstrói
moralmente, intelectualmente, filosoficamente e espiritualmente, sendo vedadas, a
princípio, quaisquer intervenções externas ao indivíduo e no caso das crianças, à sua
família, como se verá mais adiante.

Com relação aos valores fundamentais de cada pessoa, o Estado pode ter duas atitudes
básicas. A primeira delas é o perfeccionismo político, no qual o Estado adota
determinados valores, ou seja, define o que é uma “vida correta”, e passa a estimulá-los
e, no limite, a impô-los. Diversos regimes políticos totalitários adotam políticas
perfeccionistas, banindo escolhas e modos de vida considerados como “ruins” ou mesmo
demandando a aderência a um estilo de vida considerado “virtuoso”. É o caso do
marxismo, que propôs a abolição da propriedade privada para concretizar as
potencialidades e excelências humanas e desencorajar os modos de vida que careceriam
86

dessas excelências. Também é o caso dos regimes islâmicos, que limitam as escolhas
individuais àquelas compatíveis com os preceitos da Sharia, a lei islâmica diretamente
derivada do Alcorão. O perfeccionismo é, portanto, um exemplo da “tirania dos valores”
a que se referiu o julgado do STF acima transcrito: valores pertencentes a determinados
grupos são impostos a toda a sociedade por meio do aparato estatal.

Por outro lado, o neutralismo político se propõe a respeitar as escolhas e os modos de


vida individuais, atuando o Estado de forma neutra e imparcial com relação às diferentes
concepções de vida. Trata-se indubitavelmente de uma restrição fundamental à legítima
atuação do Estado. Porém, o significado e a extensão dessa neutralidade ainda são
disputados na doutrina, existindo três concepções de neutralidade:

a) o Estado não deveria promover alguma visão de bem, seja de forma coercitiva ou
não coercitiva, a não ser que aqueles submetidos à autoridade do Estado
consintam a que este faça isso;
b) o Estado não deve promover alguma visão de bem a não ser que exista um
consenso social que o suporte nessa ação;
c) o Estado não deve justificar o que faz apelando a concepções do bem que estão
sujeitas a discordâncias razoáveis.cxxxiii

A doutrina reconhece duas espécies de neutralidade. A primeira delas é a neutralidade de


fins, ou seja, que proíbe ao Estado ter o objetivo de disseminar ou de restringir
determinados valores. A segunda é a neutralidade de efeitos, a qual considera ilegítimas
ações estatais que, mesmo sem ter o objetivo de disseminar ou de restringir determinados
valores, acaba por ter esse efeito na realidade concreta. A neutralidade de fins faz parte
da essência de qualquer democracia liberal fundada no princípio da dignidade humana e
pode ser, portanto, demandada do Estado. O mesmo não se aplica à neutralidade de fins:

(...) qualquer estrutura social fiel aos princípios liberais de justiça política vai
inevitavelmente se demonstrar não neutro em seus efeitos em vários grupos sociais,
doutrinas abrangentes e modos de vida, alguns dos quais podem não ter resistência aos
valores políticos liberal-democráticos. Nenhuma democracia liberal pode prometer
neutralidade de efeitos. Isso porém não poderia contar contrariamente a ela, pois nenhuma
concepção de justiça, liberal ou iliberal, pode prometer, para não mencionar entregar,
neutralidade de efeitos. Uma vez institucionalmente organizadas, todas as concepções de
justiça vão se demonstrar não neutras em seus efeitos em várias doutrinas abrangentes ou
modos de vida ao redor dos quais grupos sociais específicos se organizam.cxxxiv
87

A despeito de ser controversa a possibilidade de existência de um Estado absolutamente


neutro em questão de valores (a própria existência do Estado é, de certa forma, uma
afirmação valorativa), é indisputável que todo sistema político fundado na dignidade
humana, e consequentemente na autonomia individual, deve caminhar rumo à postura
mais neutra possível em questões morais. Essa relação entre autonomia individual e
neutralismo estatal é magistralmente demonstrada por Will Kymlicka:

(...) nenhuma vida será melhor por ser vivida exteriormente, segundo valores que a pessoa
não endossa. Minha vida só será melhor se eu a estiver conduzindo interiormente,
segundo minhas crenças a respeito de valor. (...)

Portanto, temos duas pré-condições para a concretização de nosso interesse essencial de


conduzir uma vida que seja boa. Uma é que conduzamos nossa vida do interior, em
conformidade com nossas crenças a respeito do que dá valor à vida; a outra é que sejamos
livres para questionar estas crenças, para examiná-las à luz de quaisquer informações,
exemplos e argumentos que nossa cultura proporcionar. (...)

Essa descrição do valor da autodeterminação forma a base do princípio de liberdade de


Rawls. Segundo ele, a liberdade de escolha é necessária justamente para que encontremos
o que é valioso na vida – formar, examinar e rever nossas crenças sobre valor. (...)

Rawls argumenta que essa descrição da autodeterminação deve nos levar a endossar um
“Estado neutro” – isto é, um Estado que não justifica suas ações com base na
superioridade ou inferioridade intrínseca de concepções de boa vida e que não tenta
deliberadamente influenciar os juízos de valor das pessoas sobre estas diferentes
concepções. Ele contrasta isso com as teorias perfeccionistas, que incluem uma visão
específica ou leque de visões, quanto a quais são os atributos que mais vale a pena serem
desenvolvidos. (...)

Para Rawls, por outro lado, nossos interesses essenciais são prejudicados por tentativas
de impor às pessoas uma visão específica de boa vida. (...) Como a vida tem de ser
conduzida do interior, o interesse essencial de uma pessoa em levar uma vida que seja
boa não é promovido quando a sociedade penaliza ou discrimina os projetos que, ao
refletir, ela sente serem os mais valiosos para si. (...) cxxxv

A educação tem se mostrado o terreno mais problemático para a aplicação do princípio


da neutralidade estatal, uma vez que educar é a atividade perfeccionista por excelência.
Somente é possível se falar em educação (e não mero treinamento) quando se tem em
vista um ideal de ser humano tal como concebido por determinada visão de mundo.
88

Mesmo a mera escolha dos conteúdos a serem ministrados já requer uma valoração a
respeito do conhecimento necessário para a formação do ser humano (vide, por exemplo,
a atual controvérsia entre o ensino da história grega e o ensino da história africana).
Assim, por definição, não existe educação neutra; pelo contrário, toda forma de educação
requer que se façam opções políticas, filosóficas e antropológicas, mesmo que essas
opções não sejam expressamente assumidas.

Esse caráter não neutro da educação é reconhecido de forma praticamente unânime por
pedagogos e filósofos da educação. É notável, por exemplo, que as escolas brasileiras,
para orientar seus professores, façam um projeto político-pedagógico e não simplesmente
um projeto pedagógico.cxxxvi Paulo Freire, denominado de patrono da educação brasileira
e pedagogo brasileiro mais reconhecido no exterior, reconhece expressamente esse fato:

O mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo


educativo e a tomá-lo como um quefazer puro, em que nos engajamos a serviço da
humanidade entendida como uma abstração, é o ponto de partida para compreendermos
as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma prática "astuta” e outra crítica.

Do ponto de vista critico, é tão impossível negar a natureza política do processo educativo
quanto negar o caráter educativo do ato político. Isto não significa, porém, que a natureza
política do processo educativo e o caráter educativo do ato político esgotem a
compreensão daquele processo e deste ato. Isto significa ser impossível, de um lado, como
já salientei, uma educação neutra, que se diga a serviço da humanidade, dos seres
humanos em geral; de outro, uma prática política esvaziada de significação educativa.
Neste sentido é que todo partido político é sempre educador e, como tal, sua proposta
política vai ganhando carne ou não na relação entre os atos de denunciar e de anunciar.
Mas é neste sentido também que, tanto no caso do processo educativo quanto no do
ato político, uma das questões fundamentais seja a clareza em torno de a favor de
quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, fazemos a educação e de a
favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, desenvolvemos a
atividade política. Quanto mais ganhamos esta clareza através da prática, tanto mais
percebemos a impossibilidade de separar o inseparável: a educação da política.
Entendemos então, facilmente, não ser possível pensar, sequer, a educação, sem que
se esteja atento à questão do poder.cxxxvii (grifou-se)

Nesse sentido, a adoção do neutralismo político em seu estado puro necessariamente


levaria a uma radical separação entre educação e Estado, uma vez que há insanável
contradição entre a atuação estatal neutra e a assunção, pelo Estado, de uma atividade
89

essencialmente não neutra como a educação. Essa separação é possível, em tese, nos
países de constituição sintética, como os Estados Unidos, na qual não é prevista
cxxxviii
expressamente a educação como um dever do Estado. No caso brasileiro, essa
demanda é juridicamente impossível, uma vez que a Constituição Federal de 1988 não
apenas trata da educação em vários de seus dispositivos, como também explicita, em seu
art. 208, os meios pelos quais o Estado participa ativamente da educação brasileira. A
Constituição determina além disso que “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino
fundamental (...)” (art. 210, caput), o que implica ao menos a influência estatal na
elaboração dos currículos a serem utilizados pelas escolas.

Portanto, é preciso compatibilizar a necessidade de um Estado neutro em questões


valorativas com a necessária atuação desse mesmo Estado na área educacional. Essa
compatibilização requer necessariamente a adoção de um neutralismo moderado na
atuação educacional do Estado. Assim, o Estado pode ter uma atuação não neutra em
educação, desde que:

a) essa atuação seja objeto de um consenso social a respeito da sua


necessidade;
b) na inexistência de consenso, deve ser dada ao educando, ou ao
responsável por ele, a opção de não se submeter a essa ação
educacional.

A inexistência de consenso pode ser dar em vários aspectos do ensino, como, por
exemplo, qual o conteúdo a ser ministrado, quais os materiais didáticos a serem utilizados,
a adoção de determinada visão de mundo em pontos específicos (por exemplo,
criacionismo ou evolucionismo) ou mesmo no planejamento global do ensino (por
exemplo, uma educação científica ou clássica), sobre quem está melhor preparado para
ensinar (os pais ou professores credenciados) e sobre quem deve dirigir o processo
educacional (a criança, segundo seus interesses, os pais ou os professores). Em uma
sociedade pluralista, baseada no respeito à autonomia, inclusive das crianças, são
incontáveis as possibilidades de divergência sobre a condução do processo educacional.

Na educação infantil, o critério fundamental para resolver essas divergências está previsto
no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: “Os Estados Partes do presente
Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores
legais de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas
90

próprias convicções” (Art. 18, 3). Nesse sentido, os pais ou responsáveis pelos menores
têm a prerrogativa de determinar quais são os valores, morais e religiosos, a serem
transmitidos por meio da educação às crianças. Em caso de divergência entre os pais e a
escola ou mesmo entre os pais e o Estado, deve prevalecer a vontade dos pais.

Quais são os limites do poder dos pais de determinar os valores a serem transmitidos por
meio da educação às crianças? O primeiro deles se refere à obediência a “padrões
mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado” (Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Art. 13, 6), ou seja, o exercício da autonomia
educacional familiar não pode se dar em prejuízo da qualidade da educação recebida pelos
filhos; não se concebe, por exemplo, que as crianças não sejam devidamente
alfabetizadas. O segundo limite refere-se ao próprio conceito de valores: os pais têm
primazia na transmissão de convicções fundamentais que integram determinada religião
ou filosofia de vida, não meros gostos ou caprichos pessoais. Em terceiro lugar, como
visto no capítulo anterior, é preciso também respeitar a autonomia das crianças de acordo
com seu grau de desenvolvimento intelectual (muitas vezes, a criança e mais
especialmente o adolescente pode vir a escolher valores diversos daqueles esposados por
seus pais). Finalmente, existem alguns valores que necessariamente devem ser
observados na educação, conforme determina o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais:

Artigo 13

§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação.


Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade
humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e
liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as
pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou
religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

Se a educação politicamente neutra é por definição impossível, o princípio da neutralidade


política moderada do Estado requer que seja conferida aos pais a máxima liberdade
possível, dentro dos parâmetros acima estabelecidos, para determinar o modo como seus
filhos devem ser educados. Obedecidos parâmetros mínimos de qualidade, de acordo com
cxxxix
os critérios adotados de forma homogênea pelo Estado, os pais não apenas podem
escolher o método de ensino a ser aplicado aos filhos, mas também se eles serão educados
91

em casa ou na escola, sendo possível até a escolha de um sistema misto (algumas matérias
ensinadas na escola e outras em casa), de acordo com a conveniência e com os valores da
família.

Finalmente, a neutralidade moderada adotada pela Constituição Federal de 1988 no


campo educacional demanda a existência de uma relação dinâmica entre o Estado e a
família. Enquanto os pais têm o poder de dirigir a educação dos filhos (cf. Código Civil,
art. 1631, inc. I), cabe ao Estado uma função subsidiária, de fomentador dessa atividade
e excepcionalmente de provedor de instrução para as crianças, por meio das escolas
públicas. Além disso, cabe ao Estado definir um currículo mínimo e avaliar a educação
dada pelas escolas ou pelos pais, por meio dos mesmos critérios, como as avaliações
nacionalmente aplicadas (por exemplo, o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem). A
frequência das crianças à escola ou a sua educação domiciliar depende integralmente da
decisão dos pais, a qual deve ser objeto de respeito e deferência por parte das demais
pessoas e do Estado.cxl

3. A liberdade de consciência e de crença na educação infantil

Que nenhuma família comece em qualquer de repente

Que nenhuma família termine por falta de amor

Que o casal seja um para o outro de corpo e de mente

E que nada no mundo separe um casal sonhador

Que nenhuma família se abrigue debaixo da ponte

Que ninguém interfira no lar e na vida dos dois

Que ninguém os obrigue a viver sem nenhum horizonte

Que eles vivam do ontem e o hoje em função de um depois

Que a família comece e termine sabendo onde vai


92

E que o homem carregue nos ombros a graça de um pai

Que a mulher seja um céu de ternura aconchego e calor

E que os filhos conheçam a força que brota do amor

(...)

Que marido e mulher tenham força de amar sem medida

Que ninguém vá dormir sem pedir ou sem dar seu perdão

Que as crianças aprendam no colo o sentido da vida

Que as famílias celebrem a partilha do abraço e do pão

Que marido e mulher não se traiam nem traiam seus filhos

Que o ciúme não marque a certeza do amor entre os dois

Que no seu firmamento a estrela que tem maior brilho

Seja firme esperança de um céu aqui mesmo e depois

Que a família comece e termine sabendo onde vai

E que o homem carregue nos ombros a graça de um pai

Que a mulher seja um céu de ternura aconchego e calor

E que os filhos conheçam a força que brota do amorcxli

Várias gerações de católicos brasileiros cresceram embalados por essa música. Não foi
por acaso: a “Oração pela Família” mostra de forma belíssima o desejo e o sentimento
que temos com relação às famílias em geral e à nossa em especial. De fato, todos
queremos que a família seja um lugar de “ternura aconchego e calor” e que “as crianças
aprendam no colo o sentido da vida”. Essa mensagem ultrapassa os meios católicos e tem
93

a capacidade de tocar os corações de pais e mães de todas as crenças e convicções,


inclusive aqueles que não têm nenhuma espécie de religião.

Ao contrário da sociedade e do Estado, onde as relações sociais devem ser mediadas por
critérios de Justiça, a família é o lugar onde o princípio fundamental das relações deve
ser o amor. Muito mais do que tratar nosso cônjuge e nossos filhos com isonomia e
proporcionalidade, queremos cuidar deles e buscar satisfazer as mais íntimas
necessidades de suas almas. Muito além da ética dos princípios e das normas (sociais e
estatais), a família é o lugar da ética da proteção, do cuidado e do amor. Muitas vezes,
essas duas éticas podem entrar em colisão frontal, o que no limite leva os pais a agirem
de forma contrária às normas jurídicas emanadas do mundo extrafamiliar. Nesses
momentos, o mundo jurídico deve ceder perante a consciência individual da família e
entra em cena a inviolável liberdade de consciência, crença e de religião, reconhecida no
art. 5°, inc. VI, da Constituição Federal.

A Constituição confere um status privilegiado à liberdade de consciência


e de crença: além de enumerá-la entre os direitos individuais (art. 5°, inc. VI), ainda
confere a ela uma reforçada proteção ao denominá-la de inviolável, a qual é concretizada
pela previsão da objeção de consciência (art. 5°, inc. VIII), motivação apta a tornar
legítimo um ato que a princípio é lesivo da ordem jurídica. Proteção semelhante é dada
por meios tratados internacionais de direitos humanos, como se verifica no art. 18,1 do
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, in verbis:

Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse


direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha
e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto
pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do
ensino.

É preciso distinguir entre consciência, crença e crença religiosa. A


consciência é a faculdade moral ínsita a qualquer ser humano que avalia as ações,
pretéritas ou futuras, como erradas ou corretas moralmente. A consciência nos distingue
94

dos animais, constituindo um dos elementos da dignidade humana. Respeitar a


consciência alheia é respeitar a própria identidade do outro como ser humano que se
autoconstitui no exercício de sua autonomia. A crença, por sua vez, diz respeito ao modo
como cada pessoa vê a realidade e se relaciona com ela. Trata-se da visão de mundo
pessoal, por meio da qual a pessoa tenta responder para si as questões fundamentais da
humanidade, como a existência ou não de uma realidade transcendente à matéria
(imanentismo ou transcendentalismo) e existência ou não de Deus (teísmo ou ateísmo).
Finalmente, a crença religiosa envolve a concepção de uma realidade transcendental que
pode ser compreendida por meio de uma doutrina a respeito da natureza da realidade, do
ser humano e das normas éticas.

A liberdade de consciência, crença e religião está indissoluvelmente ligada


à educação que os pais devem prover aos filhos. A educação é provavelmente uma das
atividades humanas mais permeadas por valores políticos, morais, filosóficos e religiosos.
Como visto, a educação necessariamente é um processo não neutro, perfeccionista, que
tem em vista um ideal de ser humano. Naturalmente, os pais têm o interesse e até o dever
de repassar aos filhos sua visão de mundo, sua filosofia, seus conceitos de certo e de
errado. Para as famílias que seguem determinada religião, transmitir sua crença aos filhos
é um dos mais caros deveres, que em hipótese alguma pode ser declinado ou delegado.
Nesse sentido, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos é expresso ao
determinar que os pais têm liberdade para “assegurar a educação religiosa e moral dos
filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções” (art. 18, 4).

A liberdade de consciência, crença e religião é aplicada à educação dos


filhos cotidianamente na privacidade e no recesso de cada lar. Por meio do exemplo e da
transmissão explícita de valores e de doutrinas, os pais transmitem a seus filhos aqueles
bens intangíveis que consideram ser essenciais para uma vida digna. Fora do âmbito
doméstico, essa transmissão se torna mais complexa e problemática uma vez que os filhos
passam a receber influências dos pares de idade semelhante e de autoridades, como os
professores.
95

Muitos pais procuram resolver essa tensão por meio da matrícula dos filhos
em instituições de ensino vinculadas a determinada confissão religiosa ou filosofia (pais
católicos, por exemplo, podem matricular seus filhos em escolas católicas). Assim, os
filhos a princípio receberiam na escola os mesmos valores que recebem em casa. Essa
solução, porém, ainda contém certas dificuldades que no limite podem ser insolúveis.

A opção por escolas vinculadas a determinada religião ou filosofia


simplesmente não está disponível para a imensa maioria das famílias. Essa
indisponibilidade decorre tanto de questões financeiras, uma vez que essas escolas são
privadas, quanto de questões geográficas (ausência desse tipo de escola nas imediações
da residência da família). Na verdade, a liberdade que os pais têm de escolher a escola
nos filhos inexiste para a imensa maioria das famílias pobres, pois quase é o governo
estadual (ou distrital) que decide em qual escola pública as crianças deverão estudar.

Portanto, em determinadas situações, a liberdade de crença religiosa dos


pais pode dar a eles o direito de retirar os filhos na escola e educá-los em casa. Assim,
não sendo viável a matrícula em escola vinculada às suas convicções mais profundas, a
única ação condizente com a crença familiar é a educação domiciliar. Essa proibição de
matricular os filhos em escolas não confessionais é bastante explícita, por exemplo, no
caso do catolicismo, como se vê no seguinte trecho da Carta Encíclica Divini Illius
Magistri, promulgada pelo Papa Pio XI em 1929:

Daqui resulta precisamente que a escola chamada neutra ou laica, donde é


excluída a religião, é contrária aos princípios fundamentais da educação. De resto
uma tal escola é praticamente impossível, porque de fato torna-se irreligiosa. Não
ocorre repetir aqui quanto acerca deste assunto disseram os Nossos
Predecessores, nomeadamente Pio IX e Leão XIII, em cujos tempos começou
particularmente a dominar o laicismo na escola pública. Nós renovamos e
confirmamos as suas declarações, e juntamente as prescrições dos Sagrados
Cânones pelas quais é proibida aos jovens católicos a frequência de escolas
acatólicas, neutras ou mistas, isto é, daquelas que são abertas indiferentemente
para católicos e não católicos, sem distinção, (...)
96

Neste caso indubitavelmente a educação domiciliar está albergada pela


liberdade religiosa. Pensemos, porém, de modo ligeiramente diverso. Suponha-se que a
família tem à sua disposição uma escola que se revele totalmente vinculada à sua
confissão religiosa. Neste caso, seria possível invocar a liberdade de religião para excluir
os filhos da escola? Em regra, esse fundamento dificilmente seria aceitável, uma vez que
a transmissão dos valores religiosos da família aparentemente está assegurada também
pela escola. Em algumas situações específicas, porém, a liberdade religiosa pode
fundamentar a educação domiciliar mesmo nessa hipótese. Isso pode acontecer, por
exemplo, quando a escola, apesar de nominalmente vinculada a uma confissão religiosa,
demonstra claramente propagar ou tolerar a propagação de valores contrários ao dessa
religião.

A escolha da educação domiciliar por motivos religiosos não é estranho a


boa parte das famílias brasileiras que fizeram essa opção. Nosso País ainda carece, porém,
do efetivo respeito pela liberdade religiosa em matéria educacional. Por outro lado, nos
Estados Unidos é bastante comum a aceitação explícita da educação domiciliar motivada
pela liberdade religiosa. O estado da Virgínia, por exemplo, prevê expressamente que as
crianças podem ser liberadas da frequência à escola por razões religiosas, in verbis:

A diretoria da escola eximirá de frequência na escola qualquer aluno que, juntamente com
seus pais, em razão da formação religiosa ou de crença de boa-fé é conscientemente
contrário à frequência na escola. Para os fins desta subdivisão, “formação religiosa ou de
crença de boa-fé” não inclui pontos de vista essencialmente políticos, sociológicos ou
filosóficos ou um código moral meramente pessoal. (§22.1-254 B 1 of the Code of
Virginia)

Neste ponto, é preciso ressaltar a diferença entre consciência e crença.


Enquanto a primeira diz respeito às regras morais adotadas intimamente por determinada
pessoa, a segunda é relativa a uma visão de mundo coletiva à qual à pessoa adere. Assim,
é possível que um ato seja determinado exclusivamente por questões religiosas, por estar
incluso entre os atos recomendados ou exigidos dos fiéis, exclusivamente por questões de
consciência, princípios morais que não têm equivalente na doutrina de uma religião, ou
mais comumente por questões tanto de religião quanto de consciência. Mais raramente, é
97

possível inclusive que alguém aja de acordo com sua consciência, mas contrário às regras
da religião a que pertence.

Ressaltada essa distinção, é preciso verificar se é possível adotar a


educação domiciliar apenas por questões de consciência, ou seja, sem a interferência de
qualquer doutrina religiosa. Neste caso, a resposta deve ser necessariamente positiva.
Tanto a Constituição Federal quanto os tratados internacionais de direitos humanos dão a
mesma proteção à liberdade de consciência e à liberdade de religião.

No tocante à escolha da educação domiciliar, verificou-se a existência de


situações nas quais a liberdade religiosa pode não ser motivo suficiente, como a
disponibilidade de escolas confessionais. No caso da liberdade de consciência, essas
dificuldades desaparecem. Aqui, o ônus da família é fundamentar a incompatibilidade
entre seus valores e o sistema escolar tal como estabelecido hoje. É possível por exemplo
argumentar razoavelmente que a educação massificada e institucionalizada na escola é
incapaz de prover o aprendizado individualizado que cada criança precisa.

Tanto a liberdade de consciência quanto a de crença podem ser exercidas


secundum legem ou contra legem. Na primeira situação, um direito já reconhecido a todos
é exercido tendo por fundamento a consciência ou a crença do indivíduo. Na segunda
situação, o indivíduo deixa de cumprir uma obrigação, de fazer ou não fazer, tendo em
vista razões de consciência ou de crença.

Esta última situação configura a objeção de consciência, que consiste na


invocação de “crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” para “eximir-se de
obrigação legal a todos imposta” (CF, art. 5°, inc. VIII). Neste caso, é possível que a lei
determine prestação alternativa que o objetor deve necessariamente cumprir sob pena de
privação de direitos; atualmente somente é prevista a prestação alternativa ao serviço
militar para os objetores de consciência.
98

Porém, a objeção de consciência pode ser arguida nas mais diversas


situações, mesmo naquelas em que não haja prestação alternativa definida em lei. Essa
possibilidade está fundamentada no art. 5°, § 1°, da CF, que determina a aplicação
imediata das normas definidoras de direitos e garantias individuais. Assim, na ausência
de prestação alternativa, o não cumprimento pelo objetor de consciência de obrigação a
todos imposta não pode lhe trazer nenhuma consequência jurídica.

Nesta obra, procurou-se demonstrar que a opção pela educação domiciliar


está inserida naturalmente na autonomia de família, não requerendo que a sua adoção seja
justificada às autoridades públicas. Caso, porém, se compreenda que a escolarização
compulsória é uma “obrigação legal a todos imposta” é imprescindível levar em conta
que o direito individual de objeção de consciência, protegido pela cláusula pétrea
insculpida no art. 5°, inc. VIII, da CF. Neste último caso, o direito à educação domiciliar
seria um desdobramento do direito à objeção de consciência e requereria para a sua
efetivação em cada caso concreto a informação motivada às autoridades a respeito da
existência dessa objeção.

4. O direito de transmitir determinada cultura às novas gerações

A família

É lá o inicio de tudo

o a bê cê dê;

de lá, caminhos do mundo

e você.

O jeito engraçado ou implicante do irmão,

a mãe que ensina o sim e o não,

o pai quer ser cabeça mas é mesmo coração.


99

A vida é interrogação.

Mamãe vou ser herói

e eu a bailarina.

Pai, aqui me dói

o que será?

É hora de dormir...

Que linda essa menina!

Príncipe valente ele será!

É lá o inicio de tudo

o dó ré mi fá,

de lá mistérios do mundo:

vivercxlii

É preciso ressaltar ainda um aspecto da educação pouco analisado pela doutrina brasileira:
a sua profunda interseção com a política cultural. Essa conexão já é dada na própria
rubrica do Capítulo III do Título VIII da Constituição Federal: “Da educação, da cultura
e do desporto” e no art. 210, caput, que determina como uma das finalidades da fixação
de conteúdos mínimos para o ensino fundamental é “assegurar (...) respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Na verdade, entre educação e cultura há uma
relação de continente e conteúdo, ou seja, uma cultura somente pode existir como tal se
for continuamente transmitida às novas gerações por meio da educação, formal ou
informal; por outro lado, o conteúdo da educação é sempre a transmissão de
determinada(s) cultura(s).

No art. 215, a CF determina que o “Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais”. cxliii De acordo com a Declaração de Freiburg sobre direitos culturais, adotada
100

em 2007, esses direitos decorrem diretamente da dignidade humana, uma vez que visam
proteger a identidade cultural, definida como “a soma de todas as referências culturais
através das quais uma pessoa, sozinha ou em comum com os outros, se define ou se
constitui, se comunica e deseja ser reconhecida em sua dignidade” (art. 2.b da declaração).
Cultura, por sua vez, “abrange os valores, crenças, convicções, línguas, conhecimento e
as artes, tradições, instituições e modos de vida através do qual uma pessoa ou um grupo
expressa sua humanidade e os significados que eles dão à sua existência e ao seu
desenvolvimento” (art. 2.a).

Existe uma inevitável tensão entre o sistema escolar regulado ou provido pelo Estado e o
pleno exercício dos direitos culturais. A educação escolar sempre tende à uniformização
cultural: no Brasil, o currículo é nacionalmente unificado, da mesma forma que os livros
didáticos, a formação dos professores e avaliação do ensino. Desse modo, as múltiplas
culturas existentes no território nacional, após passarem pelo sistema educacional oficial,
tendem a ser assimiladas dentro da “faixa cultural”cxliv considerada aceitável pelo sistema.
Essa tendência já foi demonstrada concretamente várias vezes no decorrer da história,
como mostrou a educação dada aos indígenas durante a colonização do território
brasileiro, que muitas vezes tinha por objetivo um verdadeiro genocídio cultural, com a
substituição da cultura indígena pela cultura portuguesa. A escola, portanto, tem sido o
lugar por excelência da assimilação, ou mesmo da dissolução, de uma cultura em outra,
o que indubitavelmente viola frontalmente os direitos culturais, que protegem a
transmissão de uma cultura às futuras gerações.cxlv

Fora das escolas e das instituições oficiais, o patrimônio cultural é transmitido às novas
gerações fundamentalmente pela família por meio da educação domiciliar. Na verdade, a
família é a unidade cultural mais importante, pois não apenas transmite cotidianamente
o patrimônio cultural aos filhos, como também garante que, devido às mais diversas
formações culturais das famílias, cada cultura específica seja devidamente preservada por
meio de sua transmissão às novas gerações. Não por acaso, os pais têm garantido o direito
de transmitir seus valores, ou seja, a sua cultura familiar para os filhos. Mais ainda: sendo
a cultura um conjunto de valores, crenças e convicções, a responsabilidade para decidir
em qual cultura devem ser educados os filhos recai primordialmente sobre os pais.
101

A educação, portanto, deve contribuir para “o desenvolvimento integral da identidade


cultural da pessoa” (art. 6 da declaração). Essa identidade cultural, como visto, é
conferida a cada criança pela família. cxlvi Por isso, demandar a escolarização compulsória
de todas as crianças é desrespeitar a identidade cultural dessas mesmas crianças e
desobedecer um dos objetivos fundamentais da educação infantil, conforme expresso na
Convenção sobre os Direitos das Crianças: “imbuir na criança o respeito aos seus pais, à
sua própria identidade cultural, ao seu idioma e seus valores” (art. 29.1.c). O
reconhecimento da legitimidade da educação domiciliar, é enfim, uma das mais eficazes
formas de proteger os direitos culturais e fomentar a diversidade e a pluralidade em nossa
sociedade.

5. O pluralismo político

Meu Brasil querido, solo tão rico e abundante

Era um gigante adormecido, cobiçado por navegantes

De além-mar, dos desertões africanos

O negro acorrentado aqui chegou

Semeou nosso folclore e Cascudo nos mostrou

Aprendeu a plantar, rezar, curar. Ensinou a dançar, cantar

Escravos da opressão no abandonado sertão

E do mandacaru, sobreviveu, mata branca enfrentou, e ao luar

Viu o Cangaço chegar, pediu proteção contra o Boitatá

No coração do ''Inferno Verde''

O Boi revive e a Cunhã-poranga brilha

Enquanto o Pajé anuncia orgulhoso,


102

Que o futuro é ''Garantido'' e o destino ''Caprichoso''

Festa do Divino, Marujada, Carimbó

Violeiro anima na Ciranda, Boi-Bumbá

Curupira apareceu, o Cerrado se escondeu

O Uirapuru cantou e a índia se encantou

Kuarup encarnou, seringueiro aprendeu

A respeitar as maravilhas que o Chico preservou

Suave é o canto da Mãe D´água, assombros protegendo o lugar

As lendas e mistérios lá do sul

Pinheirais e chimarrão, peão e gralha azul

Savana, o pastoleiro está presente

Porque nosso sertão é o coração de cada um

Hoje a Vila e seus herdeiros

Brindam à mãe natureza

E pintam nesse carnaval

O retrato de um Brasil pluralcxlvii

Antes de se iniciar a análise das relações da família com o Estado, é necessário verificar
a questão da natureza do poder estatal sobre a sociedade, nos termos definidos pela
Constituição Federal, e das suas relações com os grupos presentes na sociedade, como a
família, as igrejas, os sindicatos e as associações profissionais.

Desde a Paz de Westfália,cxlviii tem sido reconhecido internacionalmente o princípio da


soberania nacional. Esse princípio, derivado filosoficamente das obras de Jean Bodincxlix
e de Thomas Hobbescl, estabelece que a ordem jurídica vigente em determinado território
103

somente tem única uma fonte, o Estado. Em outras palavras, o Estado tem o poder
supremo sobre todas as pessoas que estão em seu território. A nível internacional, a
soberania foi identificada como a igualdade de prerrogativas de um Estado com relação
a outro.

Esse conceito de soberania implicava necessariamente o monismo jurídico, no qual


somente são consideradas normas jurídicas aquelas promulgadas pelo Estado ou,
reconhecidas expressamente por este, caso tenham sido editadas por entidades privadas.
Portanto, entidades da sociedade civil, como igrejas, associações e cooperativas, não
seriam entidades políticas, uma vez que careceriam de poder jurídico autônomo.

Porém, esse conceito de soberania encontra-se há muito em crise. Com o advento do


constitucionalismo moderno, o poder estatal foi limitado tanto pela previsão de direitos
individuais quanto da separação de poderes. Além disso, as sociedades democráticas têm
como característica fundamental o respeito ao pluralismo com o consequente
reconhecimento das diversas ordens jurídicas setoriais. Internacionalmente, a soberania
foi minada pelos tratados internacionais de direitos humanos, normas geradas fora do
Estado, mas obrigatórias para seus habitantes, e pelo surgimento de organismos
supranacionais, que determinam em grande medida as políticas internas dos Estados
participantes. Por essas razões, chegou-se a sugerir o abandono do conceito de soberania,
que seria inaplicável à situação jurídico-política atual:

A plenitude do poder estatal se encontra em seu ocaso; trata-se de um fenômeno que não
pode ser ignorado. Com isto, porém, não desaparece o poder, desaparece apenas uma
determinada forma de organização do poder, que teve seu ponto de força no conceito
político-jurídico de Soberania. (...) Estando esse supremo poder de direito em vias de
extinção, faz-se necessário agora, mediante uma leitura atenta dos fenômenos políticos que
estão ocorrendo, proceder a uma nova síntese político-jurídica capaz de racionalizar e
disciplinar juridicamente as novas formas de poder, as novas “autoridades” que estão
surgindo. cli

A alternativa ao abandono do conceito de soberania foi dada por uma nova teoria da
soberania: o pluralismo. Os pluralistasclii se voltaram contra a teoria monista da soberania
que considerava ser o Estado a única fonte do Direito. Para eles, o Estado é uma
instituição social entre várias outras, ao invés de uma entidade soberana. Eles consideram
que a associação é uma das qualidades mais básicas da sociedade moderna, que consiste
fundamentalmente em uma rede de associações. Isso quer dizer que cada uma das
104

associações, operando em seu respectivo domínio, deve ter liberdade de funcionamento.


De acordo com eles, esses grupos sociais são naturais e espontâneos, uma vez que não
dependem sua existência de um ato de vontade do Estado. Nesses termos se pronunciam
G. D. H. Cole, J. N. Figgis and H. J. Laski, considerados os teóricos mais importantes do
pluralismo:

Pluralismo é simultaneamente uma doutrina antiestatista, anticoletivista e ainda fortemente


oposta ao extremo individualismo do liberalismo de livre mercado e da definição estreita de
propósitos e bens humanos implicada no utilitarismo clássico. (...) Os desejos egoístas de
átomos sociais isolados necessariamente diminui as finalidades humanas e leva a uma
confusão de diversos e privados propósitos e não a uma sociedade. Porém, os pluralistas
clamam que não existe uma entidade singular denominada “sociedade” nem mesmo um bem
comum singularizado. As pessoas se desenvolvem por meio da contribuição a associações
com o objetivo de cumprir seus propósitos definidos. A sociedade é composta de associações
livremente formadas por cidadãos. É como pluralidade de sociedades menores que a
sociedade, em qualquer sentido, existe como um todo. cliii

Portanto, de acordo com a teoria pluralista, não existe uma soberania, materializada no
poder estatal, mas diversas soberanias, cada uma relativa às funções típicas de cada
associação. A relação entre essas soberanias foi sistematizada pelo holandês Abraham
Kuyper, que criou o conceito das “esferas soberanas”, ou seja, instituições não estatais
cuja autoridade é, em última análise, equivalente à do Estado. Nesse modelo, uma
variedade de esferas tem autonomia legal substancial para levar adiante seus propósitos
soberanos, sendo o Estado é limitado em sua autoridade para intervir nessas esferas.
Porém, uma concepção da ordem jurídica baseada nas esferas soberanas mantém um
papel vital para o Estado, que media entre as esferas e assegura que elas não abusem do
seu poder com respeito aos indivíduos submetidos à sua autoridade. cliv

Kuyper descreve o Estado como portador de três obrigações primárias:

a) assegurar que cada esfera opere dentro das suas próprias finalidades e não interfira
com as demais (“resolução de disputas de fronteiras entre as esferas”);
b) intervir dentro de cada esfera para reprimir o abuso de poder contra o membros
mais frágeis (“resolução de conflitos internos das esferas”) ;
c) assegurar a sua própria unidade, por meio da coação, pessoal ou financeira, para
a manutenção do Estado.clv
105

Cabe agora verificar se a Constituição Federal de 1988 optou pelo monismo ou pelo
pluralismo político. No preâmbulo da Constituição, a sociedade brasileira é qualificada
clvi
como “pluralista”. Em geral, esse qualificativo pode ter dois significados: primeiro,
pode ser uma simples descrição de um estado de coisas (“a sociedade brasileira é
pluralista”); segundo, pode ter um sentido normativo, ou seja, determina que a
diversidade é um estado desejável e, portanto, deve ser estimulada (“a sociedade brasileira
deve ser pluralista”).clvii Nesse caso, como ele se encontra inserido em um texto
normativo, a Constituição Federal, seu significado necessariamente é normativo, ou seja,
a sociedade que a Constituição se propõe a construir tem como característica
fundamental a pluralidade, que deve ser protegida e estimulada pelo poder público. clviii

De acordo com Jacques Maritain,clix existem os seguintes tipos de pluralismo, todos


interconectados:

a) pluralismo de visões de mundo, ou seja, de concepções sobre a natureza da


realidade e dos valores fundamentais para atuação nessa realidade (de acordo com
James W. Site, existem as seguintes espécies de visão de mundo: teísmo (cristão
ou islâmico), deísmo, naturalismo, niilismo, existencialismo, monismo panteísta
oriental, Nova Era (denominada de “espiritualidade sem religião”) e pós-
modernismo); clx
b) pluralismo de associações, em uma “ordem social horizontal”, as associações têm
o poder de fazer as próprias leis pelas quais serão regidas; clxi
c) pluralismo de seres humanos, consistente na autonomia de cada indivíduo,
segundo a qual cada pessoa tem o poder de determinar seus atos de acordo com
aquilo que ele acredita ser verdadeiro; essa liberdade nos diversos campos de ação
somente pode ser adequadamente alcançada por meio das diferentes associações;
d) pluralismo de contextos culturais: refere-se a uma variedade de padrões culturais
de crenças e práticas ou modos de vida que as pessoas compartilham;
e) pluralismo de minorias criativas: de acordo com o historiador inglês Arnold
Toynbee, que cunhou o termo, as novas civilizações são construídas por meio das
minorias criativas, que tomam o lugar das velhas maiorias, culturalmente
moribundas. clxii

O reconhecimento expresso do pluralismo social tem como consequência inevitável o


pluralismo político, como reconheceu o constitucionalista brasileiro José Afonso da
Silva:
106

É imprescindível, contudo, notar que uma sociedade pluralista conduz à poliarquia, conforme
Bordeau com as seguintes palavras: “Politicamente a realidade do pluralismo de fato conduz
à poliarquia, ou seja, a um regime onde a dispersão do poder numa multiplicidade de grupos
é tal que o sistema político não pode funcionar senão por uma negociação constante entre os
líderes desses grupos (...)”. clxiii

A despeito de o pluralismo político ser uma decorrência necessária do pluralismo social,


a Constituição Federal escolheu não deixar dúvidas sobre a adoção dessa filosofia ao
enumerar, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil o pluralismo político
(art. 1º, inc. V).clxiv Nesse sentido, todas as normas constitucionais, e em consequência
todas as outras espécies normativas, são baseadas e devem ser interpretadas conforme o
princípio do pluralismo político.

No mesmo artigo, a CF dispõe, no parágrafo único, que o povo exerce pode exercer o
poder diretamente, “nos termos desta Constituição”. Tradicionalmente, esse dispositivo é
interpretado apenas em conjunto com o art. 14 da CF, que prevê o exercício da soberania
popular por meio de plesbicito, referendo e lei de iniciativa popular.clxv Essa interpretação,
porém, despreza o princípio do pluralismo político ao limitar o exercício direto do poder
pelo povo a ações consistentes apenas na influência do povo no exercício do poder estatal.
Essa conclusão seria admissível em um sistema monista, no qual apenas o Estado seria
fonte do Direito. Em um sistema pluralista, como visto, o poder político (e
consequentemente jurídico), tem diversas fontes, dentre as quais se destacam as
associações voluntárias. Portanto, o exercício do poder pelo povo vai muito além da
tentativa de influenciar a produção dos atos estatais, manifestando-se primordialmente na
formação e no funcionamento de associações, as quais são constituídas como “esferas
soberanas”, como se verá a seguir.

6. Os direitos das associações e a autonomia familiar

Os pais são todos iguais

Prendem seus filhos na jaula

Os professores com seus lápis de cores

Te prendem na sala de aula


107

O que eu queria, o que eu sempre queria

Era conquistar a minha autonomia

O que eu queria, o que eu sempre quis

Era ser dono do meu nariz

Ia pra rua, mamãe atrás s

Ela não me deixava em paz

Não aguentava o grupo escolar

Nem a prisão domiciliar

O que eu queria, o que eu sempre queria

Era conquistar a minha autonomia

O que eu queria, o que eu sempre quis

Era ser dono do meu nariz

Mas o tempo foi passando

Então eu caí numa outra armadilha

Me tornei prisioneiro da minha própria família

Arranjei um emprego de professor

Vejo os meus filhos, não seiclxvi

Em sentido, amplo, associações são quaisquer agrupamentos humanos que se organizam,


fora da estrutura estatal, para alcançar determinada finalidade; não é preciso que tenham
personalidade jurídica. Em sentido estrito, “constituem-se as associações pela união de
pessoas que se organizem para fins não econômicos” (Código Civil, art. 53); neste caso,
sempre têm a natureza de pessoa jurídica. De acordo com José Afonso da Silva, a
Constituição Federal adota o conceito amplo de associação:

Seus elementos são: base contratual, permanência (ao contrário de reunião), fim lícito (fim
não contrário ao Direito). A ausência de fim lucrativo não parece ser elemento da associação,
pois parece-nos que o texto abrange também as associações lucrativas. Então, a liberdade de
108

associação inclui tanto as associações em sentido estrito (em sentido técnico-estrito,


associações são coligações de fim não lucrativo) e as sociedades (coligações de fim
lucrativo). clxvii

Existem as seguintes espécies de associações:

a) associações políticas: têm o objetivo de lutar pela conquista do poder político


estatal por meio das eleições – são os partidos políticos (previstos no art. 17 da
CF);
b) associações íntimas: criadas em razão do afetos existente entre seus membros,
que desenvolvem suas relações predominantemente em âmbito privado – o grande
exemplo é a família (prevista nos arts. 5º, inc. XXVII, LXII e LXIII; 7º, inc. IV e
XII; 183; 191; 195, § 8º; 201, inc. IV e § 12; 203, inc. I e V; 205; 220, § 3º, inc.
II; 221, caput, inc. IV e § 7º, inc. II; 226; 227; 230 da CF); clxviii
c) associações culturais: têm por objetivo a difusão de manifestações culturais,
como a Música, a Dança, a Pintura, a Escultura, a Literatura, o Teatro e o Cinema
– cultura é protegida pelos arts. 215 a 216-A da CF;
d) associações econômicas: têm por objetivo a produção de bens e o fornecimento
de serviços a consumidores – inclui a indústria, o comércio, a agricultura e a
prestação de serviços (a ordem econômica está regulada nos arts. 170 a 182 da
CF);
e) associações religiosas: chamadas de igrejas ou de organizações religiosas, são
instituições que propagam uma visão de mundo a respeito da realidade e dos
valores fundamentais dos seres humanos – a liberdade religiosa é protegida no art.
5º, inc. VI a VIII e no art. 29 da CF;
f) associações expressivas: grupos organizados em defesa de determinada ideia ou
categoria de pessoas – são exemplos os movimentos sociais de defesa dos gays,
dos sem-terra ou dos negros (esses grupos são protegidos pelos direitos de
liberdade de expressão e de reunião, previstos no art. 5º, inc. IX e XVI).clxix

Como visto, a liberdade de associação é consequência direta da adoção do pluralismo


político. Porém, a CF preferiu deixar explícita essa liberdade. Primeiramente, definiu
como plena a liberdade de associação (art. 5º, inc. XVII), ou seja, é absoluta a autonomia
conferida aos indivíduos para formarem e definirem o funcionamento das associações.
clxx
As únicas espécies de associações cuja existência é proibida são aquelas com
109

finalidades ilícitas (por exemplo, a de cometer crimes) ou paramilitares, que têm o


objetivo de conquistar o poder político por meio da força.

A seguir, a CF deixa essa liberdade ainda mais explícita ao declarar que “a criação de
associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo
vedada a interferência estatal em seu funcionamento” (art. 5º, inc. XVIII). Nesse sentido,
o Estado é proibido não apenas de autorizar ou impedir a constituição de associações, mas
também de interferir em seu funcionamento, ou seja, as normas que determinam o modo
como a associação deve desenvolver suas atividades internas são de competência
exclusiva da própria associação (trata-se, em outras palavras, de um poder legislativo
interno). Da mesma forma, o Estado não pode participar da administração da associação,
que cabe exclusivamente a seus associados (desta vez, trata-se de um poder executivo
interno). Portanto, a despeito de a doutrina de Abraham Kuyper ser praticamente
desconhecida no meio jurídico nacional, percebe-se claramente que a CF adotou um
paradigma bastante semelhante à teoria das esferas soberanas.

Logo após, a CF ainda determina que “as associações só poderão ser compulsoriamente
dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro
caso, o trânsito em julgado” (art. 5º, inc. XIX). Portanto, as associações somente poderão
ser extintas ou suspensas caso seja comprovado, por meio de processo judicial, que elas
têm fins ilícitos ou paramilitares. Finalmente, a CF prevê que “ninguém poderá ser
compelido a associar-se ou a permanecer associado” (art. 5º, inc. XX), permitindo que a
participação em associações seja absolutamente livre, sem qualquer obrigação de agregar-
se ou manter-se agregado a uma associação. clxxi

Como visto, a família é uma espécie de associação íntima. Sua proteção contra
interferências estatais indevidas deriva não apenas das garantias constitucionais de
associação, vistas acima, mas também pelo direito de autonomia individual (previsto no
art. 5º, inc. II), por meio do qual os indivíduos são livres para buscar as relações íntimas
que estejam de acordo com seu projeto de vida e sua visão de mundo; pelo direito de
privacidade (protegido pelo art. 5º, inc. X a XII), prerrogativa pela qual é possível evitar
o conhecimento e a atuação de pessoas de pessoas estanhas na vida íntima dos indivíduos;
e inclusive pelos direitos culturais, uma vez que a família é o principal meio de
transmissão de “formas de expressão” e “modos de criar, fazer e viver” (art. 216, inc. I e
II). Além disso, a CF confere diretamente à família prerrogativas específicas em seu art.
226.
110

Verifica-se, portanto, o peculiaríssimo status constitucional da família, que tem uma série
de poderes não apenas por ser uma associação ou mesmo uma associação íntima, mas
principalmente em virtude de ser “a base da sociedade” (CF, art. 226, caput). Dessa
forma, não há nenhuma espécie de instituição social para a qual tenha sido conferida
tamanha proteção constitucional nas mais diversas áreas. A família é, assim, a mais
importante “esfera soberana”, sendo imprescindível a análise de suas relações com a
“esfera das esferas”, o Estado.

7. As relações do poder familiar com o poder estatal

Você trabalha feito um burro de carga

Puxando um sistema podre que é bancado com o seu suor

E sexta feira vai a igreja comungar com sua família

A voz sagrada Jesus Cristo é o senhor

Deixa parte do salário em retribuição

A dádiva divina da palavra do pastor

É melhor garantir um lugar no céu

Aqui nesse inferno tenta só sobreviver

E o que salva é a cervejinha no fim de semana

Assistindo o jogo do seu time preferido na TV...

Segunda-Feira o seu filho tá em casa

Porque a escola onde estuda, não tem nenhum professor

E o professor está na rua apanhando da polícia

E tá cobrando seu salário lá do governador


111

(...)

A gente gasta são 6 meses de salário

Dando tudo pro governo e não tem nada quase em troca

E o governo vai tomando e gastando o seu dinheiro

Eles são o parafuso e você é a porca

(...)

Mas as crianças vão crescer

E o futuro do Brasil por algum dia deverá ser bem melhor

Só que o problema é que as crianças

Estão crescendo com seus pais longe de casa

E mais ninguém ao seu redor!clxxii

Como visto, no regime de pluralismo político estabelecido na Constituição Federal as


associações constituem fontes de normas jurídicas e têm um conjunto de competências
exclusivas sobre seus assuntos internos. Por essa razão, a autonomia associativa somente
pode ser restrita nas situações expressamente previstas na própria Constituição Federal.
Dentre as associações, destacam-se aquelas de caráter íntimo, que têm sua autonomia
reforçada devido à proteção conferida por dispositivos constitucionais específicos, como
os que preveem os direitos à autonomia individual e à privacidade. Finalmente, o supremo
exemplo de associação íntima é a família, instituição social que conta com incomparável
proteção constitucional.

O conjunto das prerrogativas conferidas aos pais com o objetivo de gerir as questões
internas da família é denominado de poder familiar, que constitui um “conjunto de
direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, em
112

igualdade de condições, por ambos os pais, (...) tendo em vista o interesse e proteção do
filho”. clxxiii Esse poder tem as seguintes características:

a) constitui um munus público, ou seja, é um encargo exercido tendo em vista o


interesse público; clxxiv

b) é irrenunciável, pois o pais não podem perder a titularidade desse poder por ato
próprio;

c) é inalienável, indisponível e indelegável, uma vez que não pode ser transferido
voluntariamente a terceiros;

d) é imprescritível, pois os pais não o perdem pela mera circunstância de deixar de


exercê-lo durante determinado tempo;

e) é incompatível com a tutela, pois não se pode nomear tutor para menor cujo pai
ou a mãe permanece com o poder familiar;

f) tem a natureza de uma relação de autoridade, uma vez que há subordinação dos
clxxv
filhos pelos pais.

O poder familiar não requer previsão explícita no ordenamento jurídico, pois, como visto,
cada associação se constitui em um “governo privado”, com atribuições de caráter
exclusivo para gerir seus assuntos internos. clxxvi Além disso, a família, constituindo uma
instituição de caráter pré-político, tem seu funcionamento interno regido primordialmente
clxxvii
por normas de Direito Natural. De qualquer forma, o legislador considerou
pertinente a explicitação das atribuições decorrentes do poder familiar no art. 1.643 do
CC,clxxviii no art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescenteclxxix e no art. 229 da
Constituição Federal. clxxx Dentre essas atribuições, destaca-se a direção da criação e da
educação dos filhos menores,

(...) provendo-os de meios materiais para sua subsistência e instrução de acordo com seus
recursos e sua posição social, preparando-os para a vida, tornando-os úteis à sociedade,
assegurando-lhes todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. Cabe-lhes
ainda dirigir espiritual e moralmente os filhos, formando seu espírito e caráter, aconselhando-
os e dando-lhes uma formação religiosa. (itálicos nossos) clxxxi
113

Neste ponto, a questão é estabelecer quais são as relações possíveis entre a família,
representada pelos pais, detentores do poder familiar, e o Estado, representado pelos
agentes públicos no exercício de suas competências legalmente estabelecidas.

O fundamento dessa relação é o princípio da intervenção mínima do Estado na família.


A princípio, o Estado é proibido de intervir em assuntos internos da família. Essa
proibição decorre da previsão constitucional da autonomia associativa (como visto, o art.
5º, inc. XVIII, veda a interferência estatal no funcionamento das associações) e da
específica proteção constitucional conferida à família. O art. 1.518 do Código Civil
enfatiza essa proteção ao dispor que “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou
privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”.

Essa vedação, porém, não é absoluta. O Estado pode intervir na família nos casos em que
o poder familiar não for desempenhado adequadamente, ou seja, nas situações em que os
pais não puderem garantir aos filhos o usufruto de direitos fundamentais, como vida,
saúde e educação. Nesse exato sentido é o magistério de Cristiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald:

Tema de especial relevo e atualidade diz respeito ao movimento de afirmação da intervenção


mínima do Estado nas relações familiares (também chamado de Direito das Famílias
mínimo), com a consequente valorização da autonomia privada.

(...)

Nas relações de família, a regra geral é a autonomia privada, com a liberdade de atuação do
titular. A intervenção estatal somente será justificada quando for necessário para garantir os
direitos (em especial, os direitos fundamentais reconhecidos em sede constitucional) de cada
titular, que estejam periclitando. É o exemplo da atuação do Estado para impor a um relutante
genitor o reconhecimento da paternidade de seu rebento, através de uma decisão judicial em
ação de reconhecimento de filho. Também é o exemplo da imposição de obrigação
alimentícia a um pai que abandona materialmente o seu filho.

Em tais hipóteses, impõe-se a atuação estatal para efetivar a promoção dos direitos e
garantias (especialmente, os fundamentais) dos seus componentes, assegurando a dignidade.
clxxxii

Devido à referida proteção constitucional da família, a interferência estatal em seu


funcionamento deve ser, além de excepcional, sempre motivada. clxxxiii Essa motivação é
necessariamente composta de dois elementos: o fundamento de fato (o acontecimento que
114

deu origem à intervenção) e o fundamento de direito (a norma jurídica na qual se


fundamenta a intervenção).clxxxiv Portanto, o ônus da prova nas excepcionais situações de
intervenção estatal na família pertence ao Estado, que deve demonstrar, ao menos, o
efetivo descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar. clxxxv

Além disso, a atuação estatal deve ser precedida de um processo que permita aos pais ou
responsáveis não apenas o conhecimento integral da acusação feita contra eles (em suma,
de não prover adequadamente os direitos fundamentais aos menores sob sua
responsabilidade), mas também lhes dê a oportunidade de se defenderem adequadamente
e de, ao final, terem o processo decidido por uma autoridade imparcial. Trata-se da
aplicação dos conhecidíssimos princípios constitucionais do devido processo legal (art.
5º, inc. LIV – “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal”) da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, inc. LV – “aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). clxxxvi

A única exceção à regra da anterioridade do processo à atuação estatal consiste nas


situações excepcionais em que existe comprovado risco de dano iminente à criança ou ao
adolescente. Nesse caso, o processo se dá posteriormente à atuação estatal. clxxxvii É o caso,
por exemplo, da suspensão imediata da guarda de um ou ambos genitores para evitar a
continuidade de situação de violência doméstica. clxxxviii

Finalmente, é preciso ainda que a intervenção estatal na família obedeça ao princípio da


proporcionalidade, limitador de qualquer espécie de atuação do Estado na sociedade, que
é dividido em três subprincípios: adequação (a atuação estatal deve ser efetivamente de
proteger um direito fundamental), necessidade (dentre as medidas eficazes, deve ser
utilizada a menos severa), e proporcionalidade em sentido estrito (os benefícios da
atuação estatal devem ser superiores aos prejuízos por ela gerados). clxxxix

Portanto, a intervenção estatal legítima no funcionamento da família deve obedecer


necessariamente aos seguintes princípios: excepcionalidade (intervenção mínima),
motivação, devido processo legal, ampla defesa, contraditório e proporcionalidade.

Outras possíveis relações do Estado com a família, previstas na Constituição Federal e


nos tratados internacionais de direitos humanos, têm a natureza de proteção (conjunto de
ações para defender, apoiar e favorecer a família)cxc e de assistência (atendimento às
necessidades básicas dos membros da família). cxci Nesse sentido, é notável que enquanto
115

a CF trata as associações em geral com “respeitosa indiferença”,cxcii garantindo-lhes a


independência para cuidar de seus assuntos internos, a família é tratada com incomparável
deferência (nenhuma outra instituição social é qualificada como “base da sociedade”),
recebendo a mais ampla gama de apoios do Estado para que ela realize suas funções
típicas, como criação e educação dos filhos.

V – O direito à instrução dirigida pelos pais

1. A educação como direito social e o princípio da subsidiariedade

O direito à educação é tratado de forma ampla e detalhada na Constituição Federal; além


de vários dispositivos dispersos pelo texto constitucional, existe uma seção que trata
especifica e detalhadamente da educação (vide arts. 205 a 214). Da mesma forma, o
direito à educação é garantido em vários tratados de direitos humanos. Finalmente,
existem duas leis que dispõem minuciosamente sobre o direito à educação: a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) e o Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 1990). Antes, porém, analisar essas normas,
é necessário compreender a natureza jurídica do direito à educação.

A Constituição Federal, em seu art. 6º,cxciii classifica a educação como um direito social,
ou seja, como uma prestação que pode ser exigida pelo cidadão ao Estado. A finalidade
dos direitos sociais é proporcionar melhores condições de vida aos setores mais
fragilizados da sociedade; trata-se de uma decorrência do princípio da igualdade
substancial (art. 5º, caput) e do objetivo da República Federativa do Brasil de “erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º). cxciv
Nesse sentido, e tendo em conta as limitações orçamentárias do Estado e o dever de
eficiência (previsto no art. 37, caput), “é preciso levar em consideração que a prestação
cxcv
devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão”.
Por exemplo, a construção de moradias realizada, direta ou indiretamente, pelo Estado
deve destinar-se somente àquelas pessoas que não têm condições financeiras de pagar por
uma moradia. cxcvi
116

À necessidade de eficiência na utilização dos limitados recursos orçamentários deve ser


conjugado o respeito à dignidade humana e à autonomia das associações, que, em um
sistema de pluralismo político, são, como visto, “esferas soberanas”. Em consequência, a
efetivação dos direitos sociais requer a obediência ao princípio da subsidiariedade,
segundo o qual “cada grupo social e político deve auxiliar grupos menores e mais locais
cxcvii
a alcançar seus objetivos sem, contudo, arrogar esses objetivos para si mesmos”.
Assim, o Estado somente deve impor sua vontade quando indivíduos e associações
voluntárias não tiverem condições por si mesmos de prover bens considerados
indispensáveis. Havendo a possibilidade de os indivíduos e as associações voluntárias,
como a família, proverem direitos fundamentais, a atuação estatal dependerá do
consentimento destes e terá sempre caráter auxiliar e assistencial. Nesse sentido é o
contundente magistério de Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo:

(...) há que recordar – de acordo com a precisa e oportuna lição de Jörg Neuner – que o
princípio da subsidiariedade assume, numa feição positiva, o significado de uma imposição
de auxílio e, numa acepção negativa, a necessária observância, por parte do Estado, das
peculiaridades das unidades sociais inferiores, não podendo atrair para si as competências
originárias daquelas. Neste sentido, ainda na esteira de Neuner, o princípio da
subsidiariedade assegura simultaneamente um espaço de liberdade pessoal e fundamenta
uma “primazia da autorresponsabilidade”, que implica, para o indivíduo, um dever de zelar
pelo seu próprio sustento e o de sua família. cxcviii

No art. 205, a CF determina que há duas instituições responsáveis por prover o direito à
educação: o Estado e a família. Essas instituições devem receber a colaboração da
sociedade, que deverá promover e incentivar a educação. Curiosamente, enquanto o dever
do Estado na educação é minuciosamente detalhado no art. 208, não há nenhum
dispositivo da CF que determine como será efetivado o dever da família com a educação.
cxcix
Mais ainda: sendo a educação um dever comum ao Estado e à família, não foi definido
expressamente quais são as relações entre uma e outra instituição no tocante ao
provimento desse serviço.cc A despeito dessas lacunas, é preciso ressaltar a indiscutível
existência do dever da família de prover educação, que se sobrepõe inclusive às escolas
particulares, as quais, como integrantes da sociedade, têm apenas a função de promover
e incentivar, mas não de realizar o processo educacional.

Portanto, uma primeira conclusão se impõe: a chamada educação domiciliar não é, a


rigor, um direito da família ou dos pais, mas um dever que não pode ser descumprido,
117

inclusive sob pena de perda ou suspensão do poder familiar. Em consequência, não é


legítima a total delegação da educação dos filhos à escola, como infelizmente é o desejo
de várias famílias. A questão objeto de polêmica é se as famílias são obrigadas a
associarem-se a uma instituição escolar para prover a instrução dos filhos.

2. O pluralismo político aplicado à educação

Ei, povo brasileiro


Não ponha suas crianças nas ruas para mendigar
Pois a saída de nossos problemas é a educação
Se você não teve sua chance
Dê-a seus filhos então

Mesmo que não seja ainda


O momento de lutar pela revolução
Certamente se passou o tempo de buscarmos a nossa conscientização
As crianças são o futuro, mas o presente depende muito de você
Não venda sua identidade cultural
Esse é o maior tesouro que um país pode ter
Alimentar, educar, investir
Mais tarde os seus filhos vão lhe agradecer
Muita atenção no outro quinze de novembro
Quando os homens sorridentes surgem em sua TV
Pois o mensageiro arco-íris
Virá do infinito pra nos presentear
Com o livro de nossa cultura
E a música dos povos para representear
O ressurgimento de nossas raízes
Olhe, sorria, goste da sua cor
Procure sempre sua consciência
E jamais tenha vergonha de falar de amor

Ei vamos cantar
118

Tudo pode estar


Em seu coraçãocci

Como visto, em uma sociedade pluralista, referida no preâmbulo da CF, é reconhecida e


protegida a diversidade de opiniões e de visões de mundo. Mais ainda, o pluralismo é
expressamente reconhecido como um dos princípios do ensino: “pluralismo de ideias e
de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”
(art. 206, inc. III). Para a CF, portanto, o pluralismo educacional é um importantíssimo
ccii
aspecto de uma sociedade pluralista e, por isso, deve ser especialmente protegido.
Reforçando essa determinação, a CF ainda enumera como princípio do ensino a
“liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art.
206, inc. II). Essa liberdade possibilita a existência não apenas da educação tradicional,
centralizada na instituição escolar, mas também de modalidades alternativas de educação,
o que indubitavelmente inclui a chamada educação domiciliar. cciii

Nesse sentido, o Estado reconhece e protege as várias formas de pluralidade (de visões
de mundo, de associações, de seres humanos, de contextos culturais e de minorias
criativas), sendo impedido de impor à sociedade determinada forma de pensar e de ver o
mundo.cciv Portanto, em uma sociedade pluralista, a transmissão de valores cabe aos
indivíduos e às associações, dentre as quais se destaca a família, que realiza essa
transmissão por meio da educação dada às crianças. ccv

Porém, é natural que haja uma visão de mundo comum entre os detentores do poder
estatal, que não necessariamente se identifica com a visão de mundo da maioria da
população. Essa dissonância pode provocar um déficit de legitimidade das autoridades
políticas, o que naturalmente as levará a tentar diminuí-la. O instrumento mais útil para
esse fim é a educação pública,ccvi por meio da qual pode se realizar a doutrinação
ideológica, que propaga abertamente determinada visão de mundo, e a alteração
comportamental, que induz as crianças a adotarem determinados comportamentos sem a
defesa explícita de uma ideologia. ccvii

Para escapar da imposição à criança de determinada visão de mundo contrária àquela


adotada pela família, poderia parecer suficiente evitar as escolas públicas e matricular os
filhos em escolas particulares que professassem a visão de mundo considerada pertinente
(uma família católica, por exemplo, poderia matricular o filho em uma escola católica).
119

Essa alternativa, porém, ainda assim pode ser problemática para a família, pelas seguintes
razões:

a) a integral adesão de uma instituição de ensino a uma visão de mundo é de rara


ocorrência, inclusive pela decisiva influência das ideologias particulares dos
professores (são bastante conhecidos, por exemplo, os casos de doutrinação
marxista em escolas confessionais); ccviii
b) tanto a educação pública quanto a privada devem obedecer às mesmas diretrizes
(determinadas, no Brasil, pelo Ministério da Educação por meio dos Parâmetros
Curriculares Nacionais), o que, conjuntamente com a padronização dos cursos de
Pedagogia (no Brasil, por meio das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso
de Pedagogia, editadas pelo Conselho Nacional de Educação), tende a formar um
corpo docente de atuação ideologicamente homogênea;ccix
c) a mera preferência por uma educação de cunho predominantemente científico ao
invés de uma educação liberalccx já expressa relevantíssimo juízo a respeito de
ccxi
valores fundamentais, que tende a excluir visões de mundo não
materialistas;ccxii
d) a provisão de educação por meio de uma instituição de massa já implica a
inculcação de certas atitudes nos educandos, como a automática deferência a
autoridades fora da família e a necessidade, às vezes extremas de se adaptar aos
valores predominantes no grupo em que está inserido. ccxiii

Torna-se, portanto, extremamente difícil conceber uma situação na qual a educação


escolar, seja pública ou privada, não possa trazer sérios riscos à transmissão de valores
fundamentais dos pais aos filhos, violando o princípio da neutralidade estatal e o direito
humano dos pais de educar os filhos de acordo com suas concepções morais e religiosas.

A previsão do pluralismo político como um dos fundamentos da República Federativa do


Brasil (art. 1º, inc. V) faz seguir em frente o raciocínio já iniciado pelo reconhecimento
da sociedade brasileira como plural. Assim, não apenas a diversidade deve ser protegida,
mas ela também é fonte do Direito, uma vez que as diversas associações presentes na
sociedade agem como “esferas soberanas”, produzindo ordens jurídicas autônomas, que
obedecem apenas aos limites constitucionais. A família, como associação íntima, tem
reforçada liberdade para exercer suas funções típicas,ccxiv formando um sistema jurídico
próprio, que somente pode sofrer intervenção estatal em situações excepcionais.
120

Portanto, sendo cumprido o dever de educar, o Estado não pode impor à família a adoção
de determinado sistema educacional, no caso, a educação escolarizada. Essa prerrogativa
da família é reconhecida pelo Código Civil ao dispor que a primeira decorrência do poder
familiar é a competência dos pais de dirigir a “a criação e educação” dos filhos menores
(art. 1.634, inc. I). Da mesma forma, a Declaração Universal de Direitos Humanos
reconhece essa prerrogativa ao dispor que “Os pais têm prioridade de direito na escolha
do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos” (art. XXVI, item 3). É notável,
por outro lado, a ausência de qualquer norma que determine ao Estado a direção da
educação das crianças nem a escolha do tipo de ensino a ser ministrado (tradicional ou
alternativo, formal ou informal, institucionalizado ou familiar). Ademais, o direito de
liberdade de associação (previsto na CF, art. 5º, inc. XX) impede que os pais sejam
obrigados a se associarem contratualmente a escolas para o provimento de instrução a
seus filhos. ccxv

Além disso, o princípio da subsidiariedade impõe limites à atuação estatal no que se


refere ao provimento de direitos sociais. Como visto, o respeito à autonomia associativa
e ao princípio da eficiência demanda que o Estado somente atue naquelas situações em
que indivíduos e associações não possam prover adequadamente bens considerados
essenciais, como transporte, saúde e moradia.

Mais ainda, esse princípio determina que se houver conflito entre diversas associações da
sociedade civil, deve-se dar preferência àquelas de menor envergadura, ou seja, as que
estejam mais próximas ao indivíduo titular desses direitos. Neste ponto, a questão assume
peculiar concretude, pois somente em cada caso particular poder-se-á verificar a
inadequação da atuação familiar no provimento dos direitos sociais. Portanto, se a família
recusar-se a utilizar a educação escolar, estatal ou privada, caberá ao Estado respeitar
essa opção, a não ser que demonstre, após o devido processo legal, que a família não
provê adequadamente esse direito. ccxvi

3. O princípio da proteção integral ou do melhor interesse da criança

É bom ser criança


121

Ter de todos atenção

Da mamãe, carinho

Do papai, a proteção

É tão bom se divertir

E não ter que trabalhar

Só comer, crescer, dormir, brincar

É bom ser criança

Isso às vezes nos convém

Nós temos direitos

Que gente grande não tem

Só brincar, brincar, brincar

Sem pensar no boletim

Bem que isso podia nunca mais ter fim

É bom ser criança

E não ter que se preocupar

Com a conta no banco

Nem com filhos pra criar

É tão bom não ter que ter

Prestações pra se pagar

Só comer, crescer, dormir, brincar

É bom ser criança


122

Ter amigos de montão

Fazer cross saltando

Tirando as rodas do chão

Soltar pipas lá no céu

Deslizar sobre patins

Bem que isso podia nunca mais ter fim ccxvii

Até o momento, foi demonstrado que a denominada educação domiciliar, como


modalidade de instrução de livre escolha dos pais, é indubitavelmente protegida (e
demandada) pela previsão do Brasil como uma “sociedade plural”, do “pluralismo
político” como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e do princípio da
subsidiariedade como limitador da função estatal no provimento de direitos sociais.
Agora, é preciso voltar o foco para os fundamentos do Direito da Criança e do
Adolescente: o princípio da proteção integral ou do melhor interesse da criança, previsto
na CF,ccxviii na Convenção Internacional dos Direitos das Criançasccxix e no ECAccxx.

De acordo com esse princípio, as crianças e os adolescentes, além de serem portadores de


todos os direitos humanos, recebem proteção reforçada a nível legal e administrativo
tendo em vista seu incompleto “desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e
social” (ECA, art. 3º). Em consequência, qualquer ação estatal ou privada que possa afetar
direitos e interesses de crianças e adolescentes deve sempre buscar a solução que melhor
atenda a eles. Portanto, na determinação de políticas públicas ou mesmo de atos
específicos, realizados por agentes públicos ou particulares, que afetem crianças e
adolescentes, o principal fator a ser considerado é o bem-estar destes. Em outros termos,
quando houver conflito de interesses, deve-se privilegiar o interesse das crianças.

Para aplicar esse princípio à educação domiciliar, é preciso ter em vista que existe uma
tríade de interesses envolvidos: dos pais, do Estado e da criança. O interesse dos pais tem
dois aspectos: um autointeresse, baseado nas vitais necessidades emocionais que são
preenchidas pelo relacionamento entre pais e filhos;ccxxi e um interesse pelo outro, ou seja,
uma genuína vontade dos pais de promover o bem-estar dos filhos. O Estado também tem
dois interesses relacionados à educação das crianças: primeiramente, tem interesse em
123

prover uma educação cívica que possibilite sua participação nas estruturas políticas da
sociedade;ccxxii em segundo lugar, o Estado tem um interesse em que as crianças recebam
uma educação básica suficiente para torná-las adultos capazes de funcionamento
independente na sociedade. ccxxiii Finalmente, é preciso verificar os interesses das crianças
na educação, que também são duplos: primeiramente, as crianças têm interesse em se
desenvolver como adultos capazes de funcionamento independente, ou seja, as crianças
querem adquirir uma série de competências que as permitirão atuar nas diversas
instituições da sociedade; em segundo lugar, as crianças têm interesse em se tornarem
pessoas minimamente autônomas, que podem buscar realizar suas próprias aspirações e
participar, se quiser, do processo político.

Muito comumente, os interesses de cada um desses atores são similares (por exemplo, o
interesse em prover capacidades adequadas para uma vida adulta autônoma). Porém,
conflitos podem ocorrer (por exemplo, os pais podem discordar do modo como o Estado
decide promover a educação cívica). Em situações como essa, é preciso estabelecer
algumas diretrizes para uma “teoria da autoridade educacional”: todos esses interesses
são, a princípio, legítimos e devem ser respeitados, sendo necessário compatibilizá-los
(deve-se evitar o totalitarismo estatal e qualquer forma de despotismo dos pais ou da
criança); apenas em caso de impossibilidade de compatibilização, deve-se dar preferência
aos interesses das crianças. É preciso agora responder à seguinte questão: em uma
situação de claro predomínio da autoridade parental, como é o caso da educação
domiciliar, podem os interesses do Estado e da criança na educação serem satisfeitos?

Essa pergunta somente pode ser respondida de forma concreta, ou seja, com base nos
dados atualmente disponíveis sobre educação domiciliar. A despeito de ainda não terem
sido feitas pesquisas de larga escala no Brasil, nos Estados Unidos, onde o homeschooling
é um fenômeno de massas há décadas, existem diversas estatísticas consolidadas. ccxxiv A
quantidade avassaladora de dados positivos a respeito da educação domiciliar permite
uma resposta claramente positiva à questão. A educação desenvolvida
predominantemente em ambiente familiar é capaz de realizar não apenas os interesses dos
pais, mas também do Estado e das crianças. Mais ainda: diversos estudos mostram que
comumente a educação domiciliar satisfaz esses interesses de forma superior à da
educação escolarizada, seja pública ou privada. ccxxv Em especial, a satisfação do melhor
interesse da criança se dá por meio de uma educação individualizada, que permite o
124

desenvolvimento das habilidades específicas das crianças, evitando os problemas


decorrentes da massificação educacional promovida pela escola. ccxxvi

Portanto, em regra, o princípio da proteção integral ou do melhor interesse da criança é


plenamente concretizado por meio da educação domiciliar, que se mostra estatisticamente
superior à educação escolar. Nesse sentido, a função do Estado no tocante à educação
domiciliar é garantir um nível adequado de qualidade, por meio de uma regulamentação
que fixe padrões mínimos de conhecimento a serem alcançados pelas crianças (por
exemplo, o nível de alfabetização para cada idade), e da fiscalização, por meio dos
conselhos tutelares, do cumprimento desses parâmetros. Apenas excepcionalmente, e
após o devido processo legal, o Estado poderia determinar a matrícula da criança na
escola: por exemplo, quando a criança tem um nível de conhecimento nitidamente inferior
àquele das crianças que frequentam o ambiente escolar; quando os pais privam as crianças
da convivência comunitária (situação semelhante à do crime de cárcere privado)ccxxvii; e
quando a criança ou o adolescente expressamente requerer a matrícula em escola, neste
caso, desde que comprovado dano de caráter psicológico ou intelectual decorrente da
manutenção da situação de educação domiciliar.ccxxviii Por outro lado, caberia ao Estado
recomendar expressamente aos pais a adoção da educação domiciliar, atendendo ao
princípio da proteção integral, nas situações em que a inserção da criança no ambiente
escolar esteja causando problemas psicológicos ou de aprendizado na criança.

Conclusões

A questão discutida nesta obra não se restringe aos milhares de famílias brasileiras que
adotam a modalidade educacional conhecida como educação domiciliar ou
homeschooling. A essência diz respeito à própria identidade do Estado brasileiro como
definida na Constituição Federal. Trata-se da reafirmação da República Federativa do
Brasil como um Estado Democrático de Direito fundamentado na dignidade da pessoa
humana e no pluralismo político (CF, art. 1°, III e V) comprometido com o bem-estar de
todos, sem quaisquer formas de preconceito e discriminação (CF, art. 3°, IV).
125

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há muito reconheceu a centralidade do


princípio da dignidade humana em nosso ordenamento jurídico, conferindo-lhe inclusive
um caráter de pré-constitucionalidade. Esse princípio, por óbvio, é aplicável a todos os
seres humanos. Contudo, a Constituição Federal determinou a sua aplicação com especial
ênfase para as crianças e adolescentes, que não apenas têm dignidade inerente, como
também são portadoras do direito à dignidade e ao respeito, o que inclui a devida
consideração por sua individualidade e autonomia, conforme também determina a
Convenção sobre os Direitos das Crianças, promulgada expressamente no Brasil em
1990.

A instituição escolar indubitavelmente desempenha um relevante papel social não apenas


na educação das crianças, mas também como meio de assistência social para crianças
carentes e ainda como um mecanismo de defesa dos direitos das crianças em geral. Porém,
a escola também pode entrar em conflito com o direito das crianças à dignidade e ao
respeito. Mesmo nas melhores escolas, a educação necessariamente é provida de forma
massificada, sem atentar para as necessidades específicas de cada criança. Dentre os
pedagogos, há uma considerável corrente no sentido de que quanto mais individualizada
a educação, mas efetiva ela será. Não é exagero arguir que em analogia ao princípio da
individualização da pena, previsto na CF, art. 5°, XLVI, diretamente derivado da
dignidade humana, exista também o princípio da individualização da educação. Em
situações limítrofes, as crianças podem ainda servir de instrumentos da difusão de
determinadas ideologias, como demonstram os diversos casos já registrados de
doutrinação ideológica nas escolas.

A dignidade da pessoa humana requer necessariamente que o Estado reconheça e proteja


as mais diversas formas que as pessoas e as associações escolhem para desenvolver seus
modos e projetos de vida, sem qualquer espécie de discriminação. Trata-se da autonomia
individual, reconhecida pela doutrina como um dos componentes essenciais da dignidade.
Exatamente por isso, a CF qualifica em seu preâmbulo a sociedade brasileira como
“plural”. O respeito a essa pluralidade se dá mediante uma atitude básica de qualquer
Estado que adote uma constituição liberal: o neutralismo político. Nesse sentido, o Estado
não deve favorecer nenhuma concepção específica de ser humano, defendida por religião
126

ou filosofia. Da mesma forma, o Estado não pode proibir estilos de vida e valores, mesmo
que estejam em contradição com o modo de pensar da maioria da população e com a
opinião das autoridades governamentais. Nesse sentido, essa Egrégia Corte ao julgar a
constitucionalidade da união homoafetiva, deixou bem claro seu papel contramajoritário
em defesa de minorias contra concepções de vida predominantes na sociedade. No
acordão, a afirmativa de que o Estado deve ser absolutamente neutro em questões
religiosas sobressai-se por sua clareza e definitividade. Exatamente pelas mesmas razões,
o Estado deve ser absolutamente neutro em questões relacionadas a convicções filosóficas
ou políticas, até pela indissociável ligação entre liberdade de religião e liberdade moral.
Finalmente, esse acordão indica que o Estado ainda deve dar um passo além, ou seja, deve
ativamente proteger as crenças e convicções minoritárias em nossa sociedade contra
qualquer forma de assimilação forçada dentro da cultura predominante.

É opinião unânime entre os pedagogos de que a educação não é não deve ser neutra (vide,
por todos, a contundente exposição de Paulo Freire a respeito da estreita vinculação entre
educação e política). Educar sempre tem em vista uma visão de mundo determinada e um
ideal de ser humano que deve ser alcançado ou ao menos buscado. Bem ou mal, a
educação provida por meio do sistema escolar reflete as concepções valorativas da elite
intelectual em determinada época. Desse modo, a escola não é, como se diz comumente,
um lugar de pluralismo e de diversidade. Pelo contrário, o sistema escolar é o maior
mecanismo social de assimilação e dissolução da diversidade cultural espontânea da
sociedade em uma massa relativamente homogênea. Esse não é um defeito do sistema,
mas uma característica inerente a ele. Ressalte-se que as famílias de baixa renda são as
que menos têm condições para escapar desse processo de destruição cultural, uma vez
que a elas somente são reservadas as escolas públicas, que operam dentro de padrões
muito bem definidos – a formação dos professores, o material didático utilizado e as
avaliações são todos padronizados nacionalmente. Atualmente, está sendo discutida a
base curricular nacional, que aprofundará ainda mais essa padronização.

Tendo em vista essa realidade, o legislador constituinte achou por bem reconhecer como
norma fundamental da educação o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”
(CF, art. 206, III). A importância desse dispositivo não pode ser subestimada. As ideias e
127

concepções pedagógicas incluem todas as teorias, filosofias, ideais e visões pedagógicas


do ser humano. A enunciação desse princípio deixa bem claro que os mais variados pontos
de vista sobre educação devem ser permitidos pelo Estado brasileiro. Aliás, uma rápida
leitura em qualquer obra de história da educação já permite verificar a incrível diversidade
de ideias e concepções pedagógicas presente no decorrer dos tempos. Não há
absolutamente nenhum critério que permita dizer objetivamente quais são as melhores
ideias e concepções, até porque trata-se de uma valoração dependente em grande parte da
filosofia e da visão de mundo de quem a realiza. Como visto, em um regime de
neutralidade estatal, não cabe ao Estado constituir, promover ou reprimir religiões,
filosofias e ideologias. Nesse sentido, historicamente, a escola não é e não pode ser a
única instância educadora. Na verdade, a escola é apenas um dos elementos que fazem
parte da variadíssima gama de ideias e concepções pedagógicas. Enfim, a sua imposição
como único modelo aceitável de educação e a consequente proibição dos demais modelos
é absolutamente vedada pelo princípio da pluralidade pedagógica.

Outro princípio fundamental da educação brasileira é o da liberdade educacional, ou seja,


a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”
(CF, art. 206, II). Essa liberdade, como qualquer outra liberdade, é um direito negativo,
ou seja, constitui uma garantia contra a arbitrariedade estatal no campo da educação. E os
titulares desse direito são os beneficiários do processo educacional (no caso em análise,
as crianças e os adolescentes) e as suas respectivas famílias, que têm o dever primordial
de educação (CF, art. 205), como será demonstrado mais adiante. Mais especificamente,
isso significa que a educação deve ser a mais livre possível nas suas duas pontas: o ensino
e o aprendizado. Na primeira delas, as crianças e adolescentes devem ter sua autonomia
preservada para serem muito mais do que recipientes vazios, mas verdadeiros
protagonistas da sua própria educação, conforme deixa clara a Convenção sobre os
Direitos das Crianças. Infelizmente, esse dispositivo constitucional ainda está muito
distante de ser concretizado na realidade brasileira. A liberdade educacional dos filhos é
quase sempre absolutamente nula, sem qualquer possibilidade de interferência no
processo educacional a que estão submetidos. A liberdade educacional dos pais está em
situação bastante semelhante, uma vez que esta geralmente se esgota na escolha da
instituição de ensino na qual os filhos serão matriculados (no caso das famílias pobres
nem isso existe, uma vez que em regra a escola pública em que os filhos serão
128

matriculados é escolhida inteiramente pelo governo estadual). Uma comprovação desse


déficit de liberdade foi dada no Freedom of Education Index – Worldwide Report on
freedom of education (Índice de Liberdade Educacional – Relatório Global sobre
Liberdade Educacional) divulgado em 2016, no qual o Brasil ocupa o modestíssimo 58°
lugar entre 136 países. ccxxix

Os limites do pluralismo pedagógico e da liberdade educacional consistem na satisfação


das próprias finalidades da educação, tal como enumeradas na Constituição Federal (art.
205, in fine):

a) pleno desenvolvimento da pessoa: uma educação bem-sucedida é aquela que, em


primeiro lugar, permite à pessoa desenvolver autonomamente seu projeto de vida,
de acordo com suas potencialidades, aspirações e valores;
b) preparo para o exercício da cidadania: a educação cívica consiste na capacitação
da pessoa para atuar como um cidadão, conhecedor de seus direitos e deveres e
apto a influir na condução política do País;
c) qualificação para o trabalho: o processo educacional deve dar à pessoa as
condições necessárias para o desempenho da atividade produtiva de sua escolha,
de acordo com seu projeto de vida.
Dessas finalidades, indubitavelmente a mais importante é o pleno desenvolvimento da
pessoa, pois uma vez satisfeita, permite que o indivíduo tenha as condições necessárias
para uma existência autônoma, condição indispensável para uma vida digna. Ressalte-se
que a definição do ponto onde esse desenvolvimento pode ser considerado pleno depende
única e exclusivamente da própria pessoa, pois isso depende das suas potencialidades,
dos seus projetos e valores. Aqui, o interesse do Estado é indireto, consistindo no
provimento de condições para que esse desenvolvimento possa ocorrer de forma mais
plena possível. Como visto, em um regime de neutralidade e pluralidade, é vedado ao
Estado tentar conduzir a pessoa por determinado caminho, mas apenas apoiá-la em sua
caminhada.

As outras duas finalidades são secundárias, uma vez que não advém diretamente do
princípio da dignidade humana. O preparo para o exercício da cidadania é a finalidade
que mais interessa diretamente ao Estado, uma vez que diz respeito à própria manutenção
129

do regime político atualmente vigente. Para isso, é necessário que as novas gerações não
apenas tenham os conhecimentos suficientes para atuar politicamente, mas também
recebam os valores que constituem a base desse regime, como bem expressou o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em seu art. 13, 1:

(...) a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do


sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades
fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a
participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e
a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e
promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

A qualificação para o trabalho é a mais simples das três finalidades da educação. Dentro
de sua inafastável autonomia, a pessoa escolhe em primeiro lugar se vai participar ou não
do mercado de trabalho e caso positivo qual profissão pretende exercer. Feita essa opção,
a Constituição garante “o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas
as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (art. 5°, XIII). Para atender a essas
qualificações profissionais, a pessoa deve adquirir os conhecimentos necessários para o
exercício desse trabalho, ofício ou profissão. A rigor, a aquisição desses conhecimentos
consiste em treinamento profissional, que pode ser realizado dentro do sistema de ensino
formal ou mesmo em atividades não formais, como os cursos desenvolvidos em empresas
ou nas entidades do Sistema S.

Ora, não existem evidências empíricas de que a escola seja a única instituição apta a
prover todas estas finalidades. Pelo contrário, há uma extensa lista de pessoas com
realizações notáveis que nunca frequentaram os bancos escolares ou o fizeram por
períodos reduzidos. Nesse grupo estão incluídos diversos políticos, como os presidentes
americanos George Washington, Woodrow Wilson e Andrew Jackson, escritores, como
Agatha Christie, C. S. Lewis e G. K. Chesterton, artistas, como Leonardo da Vinci,
Claude Monet e Louis Armstrong, esportistas, como Venus e Serena Williams, artistas,
como Justin Timberlake e Taylor Swift, e inclusive o renomado sociólogo brasileiro
Gilberto Freire. De nenhum deles pode se dizer que sua personalidade não foi plenamente
desenvolvida; pelo contrário, todos eles são exemplos de excelência humana em suas
130

respectivas áreas. Seria enfim no mínimo estranho que as mais diversas personalidades
humanas somente pudessem se desenvolver por meio de uma instituição específica e
delimitada historicamente como a escola.

Da mesma forma, não há absolutamente nenhuma evidência empírica que vincule de


forma necessária escolarização e preparação para a cidadania. A questão aqui tratada é
mais simples do que pode parecer em um primeiro momento. Em uma sociedade
pluralista, com atuação neutra do Estado relativamente aos diversos valores presentes
nessa sociedade, qualquer pretensão de formar um modelo perfeito de cidadão deve ser
descartada imediatamente tendo em vista o viés totalitário de tal empreitada (ressalte-se
que em uma democracia constitucional, o Estado deve servir aos indivíduos e não
contrário). Na verdade, em educação, como em qualquer outro campo, uma visão de
mundo deve ser considerada razoável a não ser que rejeite normas morais ou políticas
básicas a respeito das quais há um consenso geral entre pessoas razoáveis na nossa
sociedade. Pelo menos, devemos tratar como razoável qualquer visão que reconheça a
importância do desenvolvimento humano normal, que abrace a tolerância cívica e o
respeito pela lei e concorde com nossos arranjos constitucionais básicos. Ora,
concretamente, pouquíssimas famílias deixariam de preencher esses requisitos.

Apesar disso, de longe o questionamento mais frequente com relação à educação


domiciliar refere-se à socialização das crianças. Aparentemente, a família não seria o
locus adequado para prover as crianças com conhecimentos e valores necessários à vida
em uma sociedade democrática e pluralista. É preciso deixar bem evidente o absurdo
dessa afirmação. Em primeiro lugar, ela reflete um inaceitável preconceito contra a
família brasileira, que, nessa visão, seria uma verdadeira fábrica de pessoas desajustadas
e incapazes da mínima convivência social. Pior ainda: ela considera a família como
produtora de pessoas intolerantes, preconceituosas e de mentalidade totalitária. No limite,
é como se cada família brasileira, deixada à sua própria sorte, fosse incapaz de criar nada
além de pequenos ditadores, quiçá consumados nazistas, prontos a impor sua vontade a
todos os que discordem deles. Nessa bizarra visão, a sociedade deveria ser protegida das
famílias, ao contrário do que dispõe a Constituição Federal ao determinar que a “família,
base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (art. 226, caput).
131

Em segundo lugar, a crítica da educação domiciliar baseada na socialização deficiente


ou inapropriada das crianças não tem absolutamente nenhum fundamento empírico.
Chama a atenção que neste processo nem a Procuradoria Geral da República nem o
Colégio Nacional de Procuradores dos Estados e do Distrito Federal foram capazes de
trazer uma única evidência empírica de que a educação domiciliar é um instrumento
inadequado para a formação de cidadãos. Na verdade, diversas pesquisas empíricas
demonstram exatamente o sentido contrário, ou seja, de que a família não apenas tem as
condições para a adequada socialização das crianças como também na maioria das vezes,
a educação domiciliar forma adultos que exercem sua cidadania de maneira muito mais
efetiva que aqueles educados em ambiente escolar.

Considerando a importância e a persistência da objeção, pedimos vênia para transcrever


sucintamente algumas pesquisas internacionais a respeito de socialização de crianças
educadas fora da escola:

Kunzman, Robert and Milton Gaither. "Homeschooling: A Comprehensive Survey of


the Research." Other Education: The Journal of Educational Alternatives, 2, No. 1
(2012), 4-59 (EUA)

Essa pesquisa considerou 72 outras pesquisas e descobriu que o resultado predominante


é que crianças e adolescentes educados em casa comparam favoravelmente com crianças
e adolescentes da escola tradicional em relação uma gama ampla de habilidades sociais e
participam em atividades extracurriculares que providenciam oportunidades para
interação em grupo participando em números comparáveis com seus pares nas escolas
tradicionais.

Shyers, Larry Edward. "Comparison of social adjustment between home and


traditionally schooled students." University of Florida, Ph.D. (1992), 311 (EUA)

Estudou 70 crianças em ED e 70 em escolas públicas e descobriu significativamente


menos “comportamentos problemáticos” entre crianças em ED entre idades 8 a 10.
132

Knowles, J. Gary and James A. Muchmore. "Yep! We're Grown Up, Home-schooled
Kids--And We're Doing Just Fine, Thank You!."Journal of Research on Christian
Education, 4, No. 1 (1995), 35-56(EUA)

Os autores não acharam nenhuma indicação que educação domiciliar foi uma
desvantagem em termos sociais para 10 adultos selecionados de 46 voluntários para
representar a demográfica da população. Ao contrário, sugiram que contribui para um
senso forte de independência e autodeterminação.

Sutton, Joe P. and Rhonda S. Galloway. "College success of students from three high
school settings." Journal of Research & Development in Education, 33, No. 3, Spr
2000, 137-146(EUA)

Galloway, Rhonda A. and Joe P. Sutton. "Home Schooled and Conventionally


Schooled High School Graduates: A Comparison of Aptitude for and Achievement in
College English." Home School Researcher, 11, No. 1 (1995) (EUA)

Na faculdade, alunos que são produtos de educação domiciliar comparam favoravelmente


com seus pares nas áreas de comportamento social e liderança.

Batterbee, Gayla C. "The relationship of parent-child interactive systems to cognitive


attributes in the home schooled child." United States International University, Ph.D.
(1992) (EUA)

Crianças e adolescentes em ED demonstraram índices mais altos de motivação e


autonomia

Kingston, Skylar T. and Richard G. Medlin. "Empathy, Altruism, and Moral


Development in Home Schooled Children." Home School Researcher, 16, No. 4
(2006), 1-10 (EUA)

Em um estudo com 30 crianças e seus pais envolvidos em educação domiciliar, Kingston


e Medlin (2006) não encontraram nenhuma diferença estatística na resposta com a
pergunta, “Eu quero que meu filho decide por ele/ela mesma os valores que vai
acreditar”, em comparação com as respostas de 50 pais da rede de ensino público da
mesma região.
133

Uecker, Jeremy E. "Alternative Schooling Strategies and the Religious Lives of


American Adolescents." Journal for the Scientific Study of Religion, 47, No. 4 (2008),
563-584(EUA)

Para crianças e adolescentes com pais profundamente religiosos, o fato de ser envolvido
ou não em educação domiciliar, não fez nenhuma diferença estatística na seu
comportamento e compromisso religioso. A influência dos pais era a mesma,
independentemente de ser envolvido em educação domiciliar ou não. Um resultado
contraintuitivo que põe em dúvida, a associação por muitos teóricos que o meio da
educação domiciliar aumenta a influência ideológica dos pais.

Ray, Brian D. "Homeschoolers on to College: What Research Shows Us." Journal of


College Admission, No. 185 (2004), 5-11(EUA)

Adultos que foram educados com educação domiciliar votam mais do que a média
nacional nos EUA onde o voto não é obrigatório e são mais propensos ser voluntários em
organizações cíveis. Porém, o estudo não controlou para renda, nível de educação e outras
características demográficas.

Van Pelt, Deani A. Neven, Patricia A. Allison and Derek J. Allison. "Fifteen Years
Later: Home-Educated Canadian Adults." London, Ontario: Canadian Centre for
Home Education (2009) (Canadá)

Adultos que foram educados com educação domiciliar votam mais do que a média
nacional no Canadá (88% vs. 47% - eleições federais), onde o voto não é obrigatório, e
são mais propensos a participar em atividades de organizações cíveis (69% vs. 48% da
população geral).

Dos adultos pesquisados falando sobre suas experiências com crianças em educação
domiciliar, 32% relataram oportunidades para interação social fora da família em mais do
que 10 horas por semana, 38% entre 5 e 10 horas, e 27% menos do que cinco horas por
semana.
134

Definidas as questões da liberdade educacional e do pluralismo pedagógico e a


necessidade de cumprimento das finalidades da educação, passamos agora a analisar o
papel da família na educação, conforme a Constituição Federal e os tratados
internacionais de direitos humanos.

A despeito de ainda ser assunto pouco tratado na doutrina brasileira, internacionalmente


a família é tratada não apenas em seu ramo próprio, o Direito de Família, mas também
em estrita conexão com os direitos das associações, tal como definidos na Constituição
Federal e nos tratados de direitos humanos. A esse respeito, a CF dispõe expressamente
que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”
(art. 5°, XVII). Ressalte-se que não apenas é garantida a liberdade de associação, mas
ainda que essa liberdade deve ser plena, ou seja, deve ser da maior intensidade possível.
ccxxx
Confirmando a abrangência dessa liberdade, a CF logo após determina que é “vedada
a interferência estatal em seu funcionamento” (art. 5°, XVIII, in fine). Assim, as
associações podem desempenhar livremente suas atividades, sem qualquer espécie de
intervenção do Estado em seus assuntos internos. Essa proteção das associações contra o
próprio Estado já foi expressamente reconhecida por esta Egrégia Corte, como demonstra
o seguinte trecho da ADI 3.045, julgada em 10.8.2005:

Essa importante prerrogativa constitucional também possui função inibitória,


projetando‑se sobre o próprio Estado, na medida em que se veda, claramente, ao Poder
Público, a possibilidade de interferir na intimidade das associações e, até mesmo, de
dissolvê‑las, compulsoriamente, a não ser mediante regular processo judicial.

A proteção das associações contra terceiros, inclusive contra o Estado, é reforçada caso o
objeto da associação tenha relação com outro direito constitucionalmente protegido. Uma
associação que defenda determinada causa, por exemplo, está protegida não apenas pelo
direito de associação mas também pelo direito à liberdade de expressão, conforme
determinam o art. 5°, IX (“é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica
e de comunicação, independentemente de censura ou licença”) e o art. 220, caput (“A
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta
Constituição”). Da mesma forma, a liberdade associativa é reforçada caso a relação entre
135

seus membros tenha caráter íntimo, conforme dispõe o art. 5°, X (“são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (...)”).

A família é indubitavelmente uma forma de associação, que pode ser constituída de


diversas maneiras, como um ato formal de celebração (o casamento), a posse do estado
de casados (união homo ou heteroafetiva) e o nascimento de uma criança (famílias
monoparentais). Em todas elas, o elemento comum é a intimidade presente entre seus
membros, que têm relações específicas entre si e em regra vivem em coabitação. Por essa
razão, a família é indubitavelmente uma associação íntima, cujo funcionamento interno
é protegido triplamente pela Constituição Federal, por meio da garantia dos já referidos
direito de associação e direito de privacidade, mas principalmente por específica
determinação constitucional (art. 226, caput – “A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado”).ccxxxi Nesse mesmo sentido, dispõe o Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos: “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e
terá o direito de ser protegida pela sociedade e pelo Estado” (art. 23, 1), o Pacto de São
José da Costa Rica: “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser
protegida pela sociedade e pelo Estado” (Art. 17, 1) e a Convenção sobre os Direitos das
Crianças (Preâmbulo):

Convencidos de que a família, como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural


para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças,
deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas
responsabilidades dentro da comunidade;

A família, portanto, é provavelmente a associação que conta com a proteção mais


reforçada de todo o nosso ordenamento jurídico. É notável inclusive que a própria esfera
da privacidade seja identificada costumeiramente com a família, na tradicional dicotomia
privado/familiar e público/social. Novamente, os tratados internacionais de direitos
humanos enfatizam essa relação: “1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias
ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação. 2. Toda pessoa terá
direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas.” (Artigo 17 do Pacto
136

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e Artigo 12 do Pacto de São José da Costa
Rica).

Neste ponto, cabe fazer um breve retorno à questão do pluralismo. A CF não se contentou
em denominar a sociedade brasileira de plural, o que por si só constitui um compromisso
com a proteção das mais diversas formas de vida e visões de mundo presentes na
sociedade. O texto constitucional foi além ao determinar que um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil é o pluralismo político (art. 1°, V). Nesse sentido, a
sociedade brasileira ultrapassou definitivamente o velho monismo estatal, no qual apenas
o Estado poderia exercer o poder político, reconhecendo a existência de outras esferas
dentro da sociedade, que são soberanas no exercício de suas atribuições intrínsecas. O
direito das associações, portanto, é decorrência direta do pluralismo político reconhecido
como fundamento da República Federativa do Brasil. Trata-se do reconhecimento de um
caráter político às associações voluntárias constituídas no seio da sociedade que as deixa
livres de qualquer interferência estatal em seu funcionamento.

Esse caráter político das associações transparece de forma nítida na família, que tem
pontos de contato com a própria estrutura e função estatal. Primeiramente, ambos têm
uma finalidade em comum: proteger os direitos fundamentais de seus membros,
possibilitando que eles usufruam o máximo bem-estar possível. Além disso, família e
Estado têm em comum a previsão expressa dos responsáveis pelo exercício do poder, com
a determinação das competências dessas autoridades (enquanto o Estado tem os
conhecidíssimos Três Poderes, a família conta com o poder familiar). É notável ainda que
a CF estabeleça deveres apenas para duas instituições: o Estado, juntamente com seus
agentes públicos, e a família, representada pelos pais. ccxxxii

Portanto, a relação fundamental entre a família e o Estado é a de proteção contra terceiros


e contra o próprio Estado. Porém, é possível que o Estado intervenha em situações
específicas, como naquelas em que há violência no seio familiar (CF, art. 227, § 8°). Esta
hipótese de intervenção acontece nos casos em que a família ainda existe formalmente
137

mas já deixou de exercer suas funções intrínsecas, como a proteção mútua de seus
membros.

A questão torna-se consideravelmente mais sensível quando a família é composta não


apenas de adultos, mas também de crianças. Neste caso, não pode haver dúvidas de que
a principal função da família: a proteção dos direitos e interesses das crianças. Trata-se
da primeira instância de proteção integral da infância. A importância da família para as
crianças não pode ser subestimada, sendo fato amplamente reconhecido pela doutrina
especializada. Não por acaso, a Convenção sobre os Direitos das Crianças afirma em seu
preâmbulo: “Reconhecendo que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento
de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade,
amor e compreensão (...)”, o que é reafirmado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei n° 8.069, de 1990, art. 19, caput): “Toda criança ou adolescente tem direito a ser
criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta,
assegurada a convivência familiar e comunitária (...)”.

Assim, os pais ou os responsáveis são as pessoas diretamente responsáveis por proteger


os direitos individuais das crianças e prover os seus direitos sociais, tal como elencados
no art. 6° da CF. No caso específico dos direitos sociais, é preciso colocar em relevo o
princípio da subsidiariedade, segundo o qual cada grupo social e político deve auxiliar
grupos menores e mais locais a alcançar seus objetivos sem, contudo, arrogar esses
objetivos para si mesmos. Assim, o Estado somente deve impor sua vontade quando
indivíduos e associações voluntárias não tiverem condições por si mesmos de prover bens
considerados indispensáveis. Havendo a possibilidade de os indivíduos e as associações
voluntárias, como a família, proverem direitos fundamentais, a atuação estatal dependerá
do consentimento destes e terá sempre caráter auxiliar e assistencial. Esse princípio tem
relação direta não apenas com o pluralismo político e os direitos de associação, mas
também com o próprio princípio da eficiência das políticas públicas (CF, art. 37, caput),
que requer a utilização dos recursos públicos de modo a melhorar a qualidade de vida dos
que mais precisam. Portanto, não há sentido em se efetivar o direito à moradia, previsto
no art. 6° da CF, para uma família que já tem casa própria. A regra, assim, é bastante
138

simples: o Estado deve atuar para prover bens e serviços que a família não tem condição
de prover por seus próprios meios.

Dentre os direitos sociais, a educação naturalmente tem especial destaque, pois consiste
na importantíssima missão de prover as crianças e adolescentes com os meios necessários
para a realização de seu potencial, o que inclui uma vida independente em sociedade, com
participação no mercado de trabalho e vida cívica da sociedade. A importância da família
na educação dos filhos é reconhecida desde o primeiro momento na CF, que ao abrir o
capítulo sobre educação dispõe que esta é “direito de todos e dever do Estado e da família”
(art. 205), no que é estritamente acompanhado pelo ECA: “Aos pais incumbe o dever de
sustento, guarda e educação dos filhos menores (...)” (art. 22). No mesmo sentido, o
Código Civil determina que o poder familiar consiste primeiramente em dirigir a criação
e a educação dos filhos (art. 1.634, I).

De todas as normas referentes a educação, sem dúvida a mais importante está no referido
caput do art. 205 da CF, que determina a titularidade dos direitos e deveres educacionais.
Como visto, em um regime baseado na dignidade humana, na neutralidade e no
pluralismo político não se pode dizer que cabe ao Estado educar os indivíduos, pois a
formação de cada ser humano é algo personalíssimo, que depende das condições
específicas de cada pessoa. Por outro lado, acreditar que acabe ao Estado a constituição
de cada personalidade humana seria dar-lhe um poder totalitário sobre a sociedade, o que
é absolutamente incompatível com os valores constitucionais.

Assim, cabe ao próprio indivíduo educar-se e no caso das crianças e adolescentes cabe à
família a educação. Neste caso, como nos demais, o papel do Estado é subsidiário ao do
indivíduo e da família. Cabe a ele prover as condições necessárias para que cada pessoa
possa se educar adequadamente e para que cada família possa educar seus filhos. Essa
atividade subsidiária do Estado inclui não apenas prover serviços educacionais por meio
das escolas públicas, mas também fixar parâmetros mínimos de qualidade educacional e
fiscalizar o cumprimento desses parâmetros.
139

Muito se tem falado a respeito de um suposto “papel educativo central” destinado às


escolas em nosso sistema constitucional. Data venia, não há fundamento para essa
suposição. A escola, enquanto instituição social, tem lugar absolutamente secundário e
subsidiário dentro das normas constitucionais da educação. Como visto, a educação é
dever apenas de duas instituições, a família e o Estado. Outras instituições sociais podem
atuar apenas em regime de colaboração com o Estado ou com a família e desde que isso
seja considerado necessário por qualquer um desses. Por isso mesmo, a Constituição
determina que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade (...)” (art. 205 – grifou-se).
Nesse sentido, a escola, como parte da sociedade, pode colaborar com a educação, ou
seja, pode concorrer, cooperar para a realização dos processos educacionais. Ressalte-se
que não há nenhum dispositivo constitucional que determine a indispensabilidade da
escola na educação de crianças e adolescentes. Por outro lado, emerge do art. 205 da
CF como indisputável a essencialidade da família para a educação de seus filhos.

Neste ponto, cabe fazer uma comparação com os dispositivos da Constituição de 1967
relativos à educação. Em seu art. 168, a constituição pretérita determinou que “a educação
é direito de todos e será dada no lar e na escola; assegurada a igualdade de oportunidade,
deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de
solidariedade humana” (essa redação se manteve com a Emenda Constitucional n° 1, de
1969). É nítido o contraste desse dispositivo com o atual art. 205: antes, a educação
necessariamente incluía a escola (“será dada no lar e na escola”); hoje, por outro lado,
inexiste essa determinação, sendo apenas estabelecido o dever do Estado e da família na
educação. Despiciendo lembrar da ocasião da promulgação da constituição pretérita,
principalmente de sua primeira emenda – provavelmente o período da história brasileira
com as mais notórias violações de direitos humanos e de brutal perseguição às
mentalidades dissidentes. Sendo impossível controlar o que era ensinado aos filhos em
casa, a ditadura militar determinou a escolarização compulsória, mantendo rígido regime
de censura e de doutrinação ideológica nas escolas. Não por acaso o art. 168 da CF de
1967 determinou que a educação deve ser inspirada, em primeiro lugar, “no princípio da
unidade nacional”, ou seja, as crianças deveriam ser essencialmente educadas não apenas
para garantir a unidade territorial do Brasil, mas principalmente para garantir a
uniformidade de pensamento necessária para a manutenção do regime militar que não
140

reconhecia concretamente a diversidade de opiniões e a liberdade de expressão. Ressalte-


se enfim que, ao contrário da Constituição cidadã de 1988, esse regime não reconhecia o
Brasil como uma sociedade plural nem enumerava entre seus fundamentos o pluralismo
político. Era, portanto, um regime monista, que concentrava todo o poder político nas
mãos do Estado, o qual, para garantir a perpetuação do regime, controlava a educação
com mãos de ferro. ccxxxiii

Essa relação entre a desconsideração do papel da família na educação e a consequente


superafetação do papel da escola e os regimes mais tirânicos foi devidamente percebida
quando da confecção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que
conferiu à família o papel central na educação dos filhos, in verbis: “Aos pais pertence a
prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos” (art. 26. 3).
Historicamente, a linguagem de proteger o direito fundamental dos pais de escolher o tipo
de educação para seus filhos reflete a experiência trágica de violações maciças dos
direitos humanos inalienáveis sob o domínio nazista. Essa experiência está diretamente
referida no preâmbulo da DUDH, afirmando que “o desprezo e o desrespeito pelos
direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da
humanidade”. Na verdade, o art. 26.3 é um dos artigos da DUDH que foram mais
claramente moldadas pela experiência da guerra. Sob o governo nazista o direito em
destaque no presente artigo foi fortemente violado. Os pais que tentaram manter seus
filhos fora da Juventude Hitlerista e de outros instrumentos de doutrinação ideológica
nazista, o sistema escolar público nazista incluído, foram acusados de “abusar de
autoridade parental” e perseguidos. Essa experiência de abuso de poder do Estado para a
doutrinação ideológica e lavagem cerebral na educação foi, de fato, a razão histórica real
para introduzir a linguagem em questão na DUDH. Este é um fato histórico claro e bem
documentado. ccxxxiv

O dispositivo da DUDH é de uma simplicidade e de uma clareza ímpar. Ele estabelece


que ao se decidir qual o tipo de educação a ser dada aos filhos, deve se ter em vista em
primeiro lugar a vontade dos pais. Dessa maneira, apenas excepcionalmente outros atores
poderiam decidir a esse respeito; seria o caso das crianças órfãs e daquelas que estão
sofrendo algum tipo de abuso ou negligência em decorrência da decisão dos pais. Em
141

regra, portanto, o Estado deve agir com deferência em relação às escolhas educacionais
dos pais. Aliás, nesse caso, estamos tratando da mais importante e mais ampla escolha
educacional, que se refere ao tipo de educação que os filhos vão receber. A doutrina
pedagógica reconhece os seguintes tipos essenciais de educação: educação formal,
centrada nos estabelecimentos escolares controlados ou reconhecidos expressamente pelo
Estado, e educação alternativa (também chamada de informal ou paraformal), que inclui
desde a educação dos povos tradicionais indígenas até a educação a distância, passando
pela educação popular e a educação domiciliar. Portanto, a DUDH conferiu aos pais
ampla liberdade educacional, sempre condicionada, como já visto, pela satisfação das
finalidades da educação e pela garantia dos direitos das crianças. Ressalte-se que embora
não seja juridicamente vinculativa por si só, a linguagem da DUDH forma um fundo
hermenêutico importante para a interpretação e aplicação das outras normas de direitos
humanos reconhecidos universal e regionalmente. Não por acaso, todos os mais
importantes tratados internacionais de direitos humanos contêm referências diretas à
DUDH em seus preâmbulos. ccxxxv

Nesse sentido, diversos tratados internacionais reconheceram essa prioridade dos pais na
educação. Vide, por exemplo, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais (art. 13):

1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos


pais e, quando for o caso, dos tutores legais de escolher para seus filhos escolas distintas
daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos
de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a
receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

2. Nenhuma das disposições do presente artigo poderá ser interpretada no sentido


de restringir a liberdade de indivíduos e de entidades de criar e dirigir instituições de
ensino, desde que respeitados os princípios enunciados no parágrafo 1 do presente
artigoccxxxvi e que essas instituições observem os padrões mínimos prescritos pelo Estado.

Esse dispositivo detalha o art. 26.3 da DUDH ao estabelecer:

a) o direito dos pais de escolher para seus filhos escolas não estatais, com a única
condição de que elas devem estar em conformidade com os “padrões mínimos de
ensino” se tal estiver previsto pelo Estado;
142

b) o direito dos pais direito de assegurar a educação religiosa e moral dos seus filhos
de acordo com suas próprias convicções (igual ao do PIDCP),
c) o direito dos pais direito de estabelecer e dirigir instituições de ensino sob a
condição de que a educação aqui fornecido também deve estar em conformidade
com “padrões mínimos” acaso fixados pelo Estado.

Novamente, verifica-se o reconhecimento internacional da mais ampla liberdade


educacional possível aos pais, desde que sejam cumpridas as finalidades da educação e
haja conformidade com os padrões mínimos de qualidade estabelecidos pelo Estado.
Ressalte-se ainda a plena liberdade dada para a criação de instituições de ensino (ou
educacionais) desde que preenchidos esses requisitos. Este dispositivo (art. 13.2) é
especialmente significativo, pois não se refere à escola, como no art. 13.1, mas a
instituições de ensino (ou instituições educacionais). Ora, tanto em antropologia quanto
em teoria educacional, há tempos formou-se um consenso de que a família é uma
instituição educacional, uma vez que, como visto repetidas vezes aqui, educar constitui
uma das funções precípuas da instituição social denominada família.ccxxxvii Portanto,
nenhuma disposição do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais pode ser interpretada no sentido de se impedir que as famílias, legítimas
instituições educacionais, escolham a exclusiva educação domiciliar.

A determinação de que “os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus
filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas
próprias convicções” (repetida no Pacto de São José da Costa Rica, art. 12.4), merece
especial atenção. Trata-se de um direito dos pais; em termos mais precisos, de uma
decorrência da liberdade de consciência aplicada à relação entre pais e filhos. De acordo
com ele, a educação moral e religiosa dos filhos deve estar submetida às convicções (ou
seja, às crenças filosóficas e/ou religiosas) dos pais. A educação moral refere-se à
atividade por meio da qual as crianças adquirem aquelas virtudes ou valores morais
necessários para uma vida digna, individual e socialmente. A educação religiosa, por sua
vez, consiste no ensino das crenças, doutrinas, rituais e costumes de determinada religião.
Na verdade, não há uma diferenciação essencial entre educação moral e religiosa, uma
vez que a primeira quase sempre decorre da segunda. Em outros termos, toda educação
143

religiosa é também uma educação moral; por outro lado, é possível a existência de valores
morais não derivados necessariamente de uma religião.

Neste ponto, cabe perguntar: matricular os filhos na escola poderia em tese lesionar esse
direito dos pais? Em outros termos, apenas pelo fato da criança assistir às aulas em uma
escola, haveria o risco de ela ser educada de acordo com convicções morais e religiosas
diversas daquelas professadas por seus pais? Se considerarmos a escola como um lugar
valorativamente neutro, no qual não são ensinados valores morais ou religiosos de
nenhuma espécie, a resposta deve ser necessariamente negativa. Porém, como visto
anteriormente, há uma percepção quase unânime entre pedagogos e filósofos da educação
no sentido de que a escola não é nem deve ser valorativamente neutra; trata-se, ao
contrário, de um locus politicamente engajado, como defendia Paulo Freire. A adoção do
currículo cientifico no Brasil, por exemplo, foi decisivamente influenciado pela filosofia
ccxxxviii
e religião positivista de Augusto Comte. A despeito de várias outras ideias e
concepções pedagógicas terem se seguido ao positivismo, percebe-se claramente a
manutenção dessa matriz por meio do predomínio explícito das matérias de caráter
científico na grade curricular. Por outro lado, a educação clássica, com foco em aspectos
mais metafísicos e religiosos do ser humano foi completamente abandonada pelo sistema
ccxxxix
oficial de ensino. Aliás, não há registro mesmo de escolas privadas no Brasil que
adotem a educação clássica, a grande antípoda à educação positivista hoje hegemônica.
Portanto, o sistema escolar, especialmente se considerarmos a conformação atual no
Brasil, indubitavelmente desrespeita o direito de incontáveis pais de educarem seus filhos
de acordo com suas convicções. Esse desrespeito atinge com maior intensidade as
famílias que adotam determinada religião, as quais veem seus filhos sendo doutrinados
por meio de uma concepção pedagógica declaradamente antirreligiosa. ccxl

Finalmente, por sua fundamental relevância, cabe fazer referência à Convenção sobre os
Direitos da Criança, promulgada no Brasil em 1990 e que serviu de base para o Estatuto
da Criança e do Adolescente:

Artigo 18

1. Os Estados Partes envidarão os seus melhores esforços a fim de assegurar o


reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações comuns com relação
144

à educação e ao desenvolvimento da criança. Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos
representantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo
desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da
criança.

2. A fim de garantir e promover os direitos enunciados na presente convenção, os Estados


Partes prestarão assistência adequada aos pais e aos representantes legais para o
desempenho de suas funções no que tange à educação da criança e assegurarão a criação
de instituições, instalações e serviços para o cuidado das crianças.

3. Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas a fim de que as crianças cujos
pais trabalhem tenham direito a beneficiar-se dos serviços de assistência social e creches
a que fazem jus.

Mais uma vez, um documento internacional reconhece a prioridade dos pais na educação
dos filhos (“caberá aos pais e aos representantes legais a responsabilidade primordial pela
educação (...) da criança”) e estabelece a função suplementar do Estado com relação à
educação (“os Estados Partes prestarão assistência adequada aos pais e aos representantes
legais para o desempenho de suas funções no que tange à educação da criança”). Trata-
se, sem dúvida alguma, da aplicação do princípio da subsidiariedade, amplamente
reconhecido pela doutrina e jurisprudência dos direitos humanos, à educação. Nesse
sentido, cabe ao Estado auxiliar as famílias na educação dos filhos, provendo medidas de
assistência social às famílias que não tiverem a condição ou a vontade de exercer
plenamente esse mister. Caso a família demonstre condições de educar seus filhos, a
atuação estatal torna-se não apenas desnecessária, mas também violadora da autonomia
da família.

A análise conjugada desses diversos instrumentos internacionais de direitos humanos


deixa evidente que a educação domiciliar é um direito humano, ainda não expressamente
ccxli
enumerado, da família e principalmente, da própria criança. Nesse sentido,
encontram-se anexos a estas razões os “Princípios do Rio” a respeito de direitos humanos
e educação domiciliar, declarados na Convenção Global de Educação Domiciliar,
realizada no Rio de Janeiro de 9 a 12 de março deste ano. Para concluir o tópico referente
à aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos no presente caso, fazemos
referência à Declaração Modelo sobre os Direitos das Famílias, proclamada em Roma no
ano de 2013:
145

Artigo 14 (Responsabilidade educacional)

a) Os pais têm o direito de precedência e dever de educar os seus filhos; o papel do Estado
na educação é sempre subsidiária à dos pais da criança.

b) Os pais têm o direito de educar seus filhos de acordo com suas convicções morais e
religiosas. Daí decorre necessariamente que os pais têm o direito e o dever de garantir
que seus filhos não sejam obrigados a participar de um sistema obrigatório de educação
no qual a religião seja excluída ou a assistir às aulas que não estão de acordo com suas
próprias convicções morais e religiosas.

c) Os pais têm o direito e o dever de escolher livremente as escolas de acordo com


suas convicções, incluindo a educação domiciliar ou outros meios necessários para
educar seus filhos, que estejam em conformidade com os padrões mínimos que possam
ser aprovados pelo Estado.

d) Os pais têm direito a subsídios públicos para que eles possam exercer livremente o seu
dever de fornecer para a educação de seus filhos sem incorrer em encargos injustos, tais
como custos adicionais, diretos ou indiretos, que impeçam ou injustamente limitem o
exercício desta liberdade.

e) A prioridade do direito dos pais de educar significa que, quando não escolherem a
educação domiciliar, eles têm o dever e o direito de colaborar com professores e
autoridades escolares, e, em particular, nas formas de participação projetados para dar à
família uma voz no funcionamento das escolas e na formulação e implementação de
políticas educacionais. ccxlii (Grifou-se)

Nesta obra, procurou-se demonstrar que a opção pela educação domiciliar está inserida
naturalmente na autonomia de família, não requerendo que a sua adoção seja justificada
às autoridades públicas. Caso, porém, se compreenda que a escolarização compulsória é
uma “obrigação legal a todos imposta” é imprescindível levar em conta que o direito
individual de objeção de consciência, protegido pela cláusula pétrea insculpida no art. 5°,
inc. VIII, da CF. Neste último caso, o direito à educação domiciliar seria um
desdobramento do direito à objeção de consciência e requereria para a sua efetivação em
cada caso concreto a informação motivada às autoridades a respeito da existência dessa
objeção.
146

Toda argumentação aqui desenvolvida se baseou no íntimo entrelaçamento entre a


interpretação constitucional e a interpretação dos tratados internacionais de direitos
humanos. Não é exagero dizer que na moderna concepção do ordenamento jurídico
fundado no princípio da dignidade humana, a Constituição Federal e os tratados de
direitos humanos formam um todo indissociável, no qual os dispositivos destes reforçam,
completam, esclarecem e conferem mais robusta unidade à nossa Carta Magna. Dentro
desse todo, as partes interagem de forma dinâmica e harmônica; dessa interação, nascem
novos direitos, que existiam apenas em forma embrionária ou potencial dentro de cada
dispositivo isoladamente considerado.

Essa é exatamente a situação do direito à educação domiciliar no ordenamento jurídico


brasileiro. Trata-se de um direito não enumerado expressamente no texto constitucional,
mas que decorre da conjunção de diversos direitos, valores e princípios constitucionais,
dentre os quais a dignidade humana aplicada às crianças, o pluralismo social e político, a
neutralidade estatal, a autonomia da família, a liberdade de expressão, a subsidiariedade
da atuação estatal, os direitos culturais e a liberdade de consciência, de crença e de
religião. Nesse sentido, a educação domiciliar é um legítimo direito não enumerado na
Constituição Federal, e, portanto, protegido pela cláusula de abertura do art. 5°, § 2°, da
CF, que dispõe: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Em consequência, a educação
domiciliar também se reveste da reforçada proteção dada a todos os direitos albergados
pelo art. 5° da CF, ou seja, tem o caráter de cláusula pétrea, sendo inviável a sua limitação
mesmo por meio de emenda constitucional.

Apêndice 1: Reflexões sobre educação e família

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O que a escola pode e o que a escola não pode fazer


147

A escola pode: ensinar que todas as pessoas devem ser tratadas com dignidade, mesmo e
principalmente quando se concorda com as suas atitudes. Nesse sentido, a pessoa "A" não
pode ser desrespeitada por adotar certo comportamento ou estilo de vida.

A escola não pode: fazer juízos de valor (certo\errado) com relação a comportamentos
moralmente controversos, pois essa avaliação é exclusiva da família. Da mesma forma,
não pode estimular ou reprimir esse tipo de comportamento. Nesse sentido, não se pode
exigir ou estimular que os outros concordem ou discordem do comportamento ou do estilo
de vida da pessoa "A".

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“Existe uma ideia mais radical na história da raça humana do que entregar os seus filhos
a estranhos totais que você não sabe nada sobre, e ter esses estranhos trabalhando na
mente do seu filho, fora de sua vista, por um período de doze anos? . . . é uma ideia louca!”

(John Taylor Gatto)

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Para quase todas as pessoas, a escola não é uma prestadora de serviços educacionais, mas
a fornecedora de um produto bem específico: o diploma, o grande requisito para se
pleitear cargos e empregos com remunerações mais elevadas. Raramente a qualidade da
educação é questionada se o diploma for devidamente entregue pela escola, de preferência
com notas que possam ser objeto de orgulho da família.

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Você sabia?

Tanto a Convenção sobre os Direitos das Crianças quanto o Estatuto da Criança e do


Adolescente determinam que devem ser asseguradas às crianças todos os meios e
oportunidades para seu desenvolvimento ESPIRITUAL!

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“A palavra ‘educação’ significa todo o processo da vida social por meio do qual os
indivíduos e grupos sociais aprendem a desenvolver conscientemente dentro, e para o
benefício das comunidades nacionais e internacionais, o conjunto das suas capacidades
pessoais, atitudes, aptidões e conhecimento. Esse processo não está limitado a quaisquer
atividades específicas.”
148

(Item I.1.a da Recomendação adotada sobre o relatório da Comissão de Educação da


trigésima sexta sessão plenária das Nações Unidas de 19 de novembro de 1974.)

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Pergunta: existe educação neutra?

Resposta: se você entende por neutra aquela totalmente desvinculada de visão de mundo,
religião, filosofia ou ideologia, evidentemente não existe educação neutra.
Necessariamente, a educação compreende a assimilação de determinada visão de mundo,
religião, filosofia ou ideologia por alguém. Se isso não acontece, não há de fato educação,
mas apenas instrução.

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Pergunta: você sabe em qual lei aparece a palavra "socialização"?
Resposta: nenhuma!
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Pergunte a várias pessoas o que é educação e a imensa maioria delas não vai ser capaz de
dar uma resposta minimamente razoável. Da minoria que saberá responder algo com
algum sentido, dificilmente se encontrará duas pessoas que concordem sobre o conceito
de educação. Em consequência, as discussões políticas e jurídicas sobre educação se
tornam uma gritaria dos infernos na qual as pessoas discordam ou concordam entre si sem
terem a mínima ideia do que os outros estão falando e, pior, mesmo do que elas próprias
estão falando.
---
Nenhuma forma de desrespeito ou de tratamento indigno pode ser aplicada à criança em
nome de um eventual benefício que o futuro adulto pode vir a receber. É como justificar
a tortura sob o argumento de que a pessoa pode se tornar mais resistente a adversidades
em decorrência disso. Em outras palavras, a educação que prejudique os direitos e
interesses da criança de hoje é simplesmente uma forma de abuso que deve ser reprimida
dentro dos rigores da lei.
---
Para horror de alguns e com a ignorância de quase todos no Brasil, a Convenção sobre os
Direitos das Crianças estabeleceu que todas as crianças têm liberdade de se associar ou
não com outras pessoas, tanto outras crianças quanto adultos. Isso significa que os
149

relacionamentos das crianças com terceiros fora da família dependem da sua vontade e
concordância.

A escolarização compulsória é a mais gritante forma de desrespeito a esse direito. A


criança simplesmente não pode ser obrigada, contra a sua vontade expressa, a se
relacionar com tais ou quais pessoas. Caso ela manifeste expressamente sua recusa em
frequentar a escola, juridicamente a única opção é garantir a ela meios de educação fora
do ambiente escolar.

"Associação forçada não é socialização" (Adele Carrol)

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Famílias educadoras,

Da próxima vez em que perguntarem sobre socialização, sugiro responder com outras
perguntas:

1. Por socialização você entende fazer amigos?

Então, me desculpe: não há uma regra que obrigue as pessoas a fazer amigos apenas na
escola. Aliás, as amizades minhas ou dos meus filhos fazem parte da nossa privacidade e
ninguém pode se intrometer nisso.

2. Por socialização você entende a confirmação a um papel social considerado adequado?

Então, novamente me desculpe: nem eu nem meus filhos somos obrigados a nos adequar
a qualquer padrão de mediocridade social. E convenhamos, saber se relacionar com os
outros é uma habilidade que nunca requereu uma instituição para ser aprendida.

3. Por socialização você entende a formação de cidadãos?

Olha, se você chama de cidadão aquele que conhece seus direitos e deveres frente ao
Estado, não há segredo algum: em poucas horas, uma pessoa de inteligência média pode
aprender o necessário. Porém, se você chama de cidadão um tipo específico de pessoa
que está comprometida com a manutenção do sistema político atual, esqueça: meus filhos
terão capacidade de fazer escolhas políticas, que poderão muito bem ser contrárias ao
estado de coisas atual.

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“Ao contrário da sociedade e do Estado, onde as relações sociais devem ser mediadas por
critérios de Justiça, a família é o lugar onde o princípio fundamental das relações deve
150

ser o amor. Muito mais do que tratar nosso cônjuge e nossos filhos com isonomia e
proporcionalidade, queremos cuidar deles e buscar satisfazer as mais íntimas
necessidades de suas almas. Muito além da ética dos princípios e das normas (sociais e
estatais), a família é o lugar da ética da proteção, do cuidado e do amor. Muitas vezes,
essas duas éticas podem entrar em colisão frontal, o que no limite leva os pais a agirem
de forma contrária às normas jurídicas emanadas do mundo extrafamiliar. Nesses
momentos, o mundo jurídico deve ceder perante a consciência individual da família e
entra em cena a inviolável liberdade de consciência, crença e de religião, reconhecida no
art. 5°, inc. VI, da Constituição Federal.” (Trecho do livro “Direito à Educação
Domiciliar”, a ser publicado em breve)

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Declaração Modelo sobre os Direitos das Famílias, proclamada em Roma no ano de 2013:

Artigo 14 (Responsabilidade educacional)

a) Os pais têm o direito de precedência e dever de educar os seus filhos; o papel do Estado
na educação é sempre subsidiário ao dos pais da criança.

b) Os pais têm o direito de educar seus filhos de acordo com suas convicções morais e
religiosas. Daí decorre necessariamente que os pais têm o direito e o dever de garantir
que seus filhos não sejam obrigados a participar de um sistema obrigatório de educação
no qual a religião seja excluída, ou a assistir às aulas que não estão de acordo com suas
próprias convicções morais e religiosas.

c) Os pais têm o direito e o dever de escolher livremente as escolas de acordo com suas
convicções, incluindo a educação domiciliar ou outros meios necessários para educar seus
filhos, que estejam em conformidade com os padrões mínimos que possam ser aprovados
pelo Estado.

d) Os pais têm direito a subsídios públicos para que eles possam exercer livremente o seu
dever de fornecer para a educação de seus filhos sem incorrer em encargos injustos, tais
como custos adicionais, diretos ou indiretos, que impeçam ou injustamente limitem o
exercício desta liberdade.

e) A prioridade do direito dos pais de educar significa que quando não escolherem a
educação domiciliar eles têm o dever e o direito de colaborar com professores e
autoridades escolares, e, em particular, nas formas de participação projetados para dar à
151

família uma voz no funcionamento das escolas e na formulação e implementação de


políticas educacionais.

---

Estado de necessidade educacional: situação em que os pais retiram os filhos da escola


em razão da péssima qualidade das opções disponíveis.

---

Atenção famílias educadoras

No meio de tanta confusão, passou quase despercebida uma mudança ocorrida no ECA
recentemente, bastante favorável às famílias. Trata-se do parágrafo único adicionado ao
art. 22 do estatuto:

A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades


compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito
de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança
estabelecidos nesta Lei.

---

Mesmo que discordemos absolutamente dos valores dos pais, são eles os exclusivos
responsáveis pela educação dos filhos. Em nenhuma hipótese, podemos defender uma
doutrinação a pretexto de combater outra.

---

Em uma democracia, a educação deve conjugar a máxima liberdade com a devida


prestação de contas de quem educa" (Jan de Groof).

PS: essa prestação de contas significa a comprovação de foram atingidos os parâmetros


mínimos de qualidade exigidos.

---

Os três princípios fundamentais da educação, segundo a doutrina europeia:


152

1. Liberdade de educação: não pode ser imposto um método, uma pedagogia ou uma
instituição para realizar a educação. Cada pessoa e cada família deve ter a máxima
liberdade possível para escolher como será realizada a educação.

2. In loco parentis: a educação é sempre dada pelos pais ou por pessoas que atuam em
nome deles. Caso os pais decidam matricular os filhos na escola, esta deve atuar sempre
em nome deles e nos termos por eles definidos. Nem o Estado nem a escola tem
autonomia para determinar como as crianças devem ser educadas.

3. Regulação mínima: o Estado somente pode exigir o cumprimento do núcleo essencial


do processo educacional - a princípio, leitura, escrita, aritmética e noções básicas de
cidadania. O Estado não pode exigir das famílias e das escolas privadas um nível maior
do que consegue prover por meio das escolas públicas.

---

Um número crescente de pais com filhos autistas está se interessando por educação
domiciliar. Os relatos mostram um cenário de horror para os autistas nas escolas, onde
encontram professores despreparados e são vítimas constante de abusos por parte dos
colegas.

---

Dados importantes:

Das 123 jurisdições em que se pratica educação domiciliar no mundo, 101 permitem e
apenas 22 proíbem.

Em toda a Europa, apenas um país proíbe a educação domiciliar: a Alemanha. Aliás, é a


única democracia do mundo em que a educação domiciliar é proibida.

Cuba, um país que inspira tanta gente por aqui, também proíbe expressamente a educação
domiciliar.

---
"O homem nobre é exigente consigo mesmo, o homem vulgar é exigente para com os
outros" (Confúcio).

E eu pergunto: como educar nossas crianças para a nobreza de espírito?

---
153

Apenas 8% dos brasileiros adultos têm proficiência na leitura, ou seja, apenas uma
minúscula fração da população adulta brasileira sabe ler adequadamente. Pois é, esse dado
saiu e praticamente ninguém se escandalizou.

Talvez uma comparação meio tosca ajude: é como se de cada 100 TVs fabricadas, apenas
8 funcionassem realmente; e mesmo assim as pessoas continuassem comprando essas
TVs. Absurdo, não é? Tenho dificuldades de imaginar um exemplo melhor de fracasso
total e absoluto e ainda conjugado com resignação cínica.

E a culpa é de quem? É de todos nós. Isso não é o fracasso do governo, mas do Brasil
como nação. Nós apenas fazemos de conta que nos importamos com educação. Na
verdade, nem sabemos ao certo o que é isso. Queremos os diplomas, que nos dão acesso
aos melhores postos no mercado de trabalho. E já temos nossas fábricas de diplomas, que
na imensa maioria das vezes usam a educação como pretexto para vender seu verdadeiro
produto.

---

Não tenho a pretensão de controlar minhas filhas, mas de fazer algo muito mais sério:
ensiná-las a ter autocontrole.

---

Um resumo extremo de uma questão bem complexa:

Se você acha que o mundo é dividido entre opressores ("malvados") e oprimidos


("bondosos"), você é provavelmente de esquerda. Se você acha que todos os seres
humanos são defeituosos por natureza e propensos tanto ao bem quanto ao mal, você é
provavelmente de direita.

---

Quem tem mais incentivos para satisfazer as necessidades educacionais das crianças, os
pais ou os professores?

---

Todo mundo sabe: quase sempre, os pais agem em benefício do melhor interesse dos
filhos. E pelo simples motivo de que os amam.

---
154

Quem deve ser a principal autoridade educacional para as crianças: os pais ou as maiorias
democráticas?

---

Educação absolutamente neutra é possível? Talvez, mas apenas se a educação se resumir


a ensinar a criança a falar, ler, escrever e calcular. Porém, qualquer um sabe que isso está
muito aquém das necessidades educacionais das crianças, ou seja, do que elas precisam
pra se desenvolver.

---

Ok, todas as escolhas educacionais devem levar em conta, dentre outros fatores, o melhor
interesse da criança. Só tem um problema: não existe o mínimo consenso a respeito do
que seja exatamente esse melhor interesse da criança.

---

Em uma sociedade pluralista, é inviável o consenso sobre o que é viver uma boa vida. Em
consequência, é inviável também um consenso sobre como preparar uma pessoa para
viver bem, ou seja, sobre o que é uma boa educação.

---

O impulso de nossas práticas educacionais (públicas e privadas) tem sido sempre ensinar
as crianças a acreditar em determinados valores e regular a sua exposição a valores
conflitantes.

---

Precisamos educar as crianças para lidar com os inevitáveis momentos de sofrimento e


de tédio. Quase sempre, só damos distrações, como TV e guloseimas. Podemos fazer
melhor que isso.

---

O infindável questionamento a respeito da socialização de crianças educadas em casa


revela no fundo um medo de que seja criado um bando de esquisitões. Bobagem.
Esquisitões sempre o existiram; desconfio inclusive que eles já nascem assim. A diferença
é que na escola eles são as vítimas preferenciais de bullying.
155

PS: na acepção popular, esquisita é toda aquela pessoa que não se identifica plenamente
com a média.

---

A experiência cotidiana sugere que a maioria das crianças, se forem criadas com liberdade
para escolher seus valores, escolheriam uma vida de autogratificação fácil, imediata e
indisciplinada ao invés de uma vida de responsabilidade, trabalho duro e autodisciplina.
Sem estas características, as crianças são incapazes de satisfazer seus interesses de longo
prazo ou de se comportar de maneira respeitosa ou justa com outras pessoas. Em resumo,
a ausência de transmissão de valores dos pais aos filhos produzirá pessoas que são
escravas dos seus próprios apetites ao invés de indivíduos com autocontrole moral.

---

Quando eu morava nos EUA, onde a educação domiciliar é comum, ficava fácil
identificar as crianças educadas em casa. Por algum motivo (não sei ao certo), elas eram
muito mais tranquilas e em paz. Desconfio que a escola estimule a hiperatividade.

---

Privacidade também é não ser molestado por criar os filhos de maneira diferente da
maioria das pessoas.

---

Princípio da deferência parental

As decisões dos pais presumem-se feitas no melhor interesse dos filhos. Essa presunção
somente pode ser derrubada depois de uma sentença judicial transitada em julgado.

---

Vamos falar de socialização?

De longe o questionamento mais frequente com relação à educação domiciliar refere-se


à socialização das crianças. Aparentemente, a família não seria o locus adequado para
prover as crianças com conhecimentos e valores necessários à vida em uma sociedade
democrática e pluralista. É preciso deixar bem evidente o absurdo dessa afirmação, que
reflete um inaceitável preconceito contra a família brasileira, que, nessa visão, seria uma
verdadeira fábrica de pessoas desajustadas e incapazes da mínima convivência social.
Pior ainda: ela considera a família como produtora de pessoas intolerantes,
156

preconceituosas e de mentalidade totalitária. No limite, é como se cada família brasileira,


deixada à sua própria sorte, fosse incapaz de criar nada além de pequenos ditadores, quiçá
consumados nazistas, prontos a impor sua vontade a todos os que discordem deles. Nessa
bizarra visão, a sociedade deveria ser protegida das famílias, ao contrário do que dispõe
a Constituição Federal ao determinar que a “família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado” (art. 226, caput).

---

Liberdade educacional pelo mundo

Os dez países com maior índice de liberdade educacional são: Irlanda, Holanda, Bélgica,
Malta, Dinamarca, Reino Unido, Chile, Finlândia, Eslováquia e Espanha. Por outro lado,
os dez países com menor índice de liberdade educacional são: Gambia, Líbia, Cuba,
Arábia Saudita, Afeganistão, República Democrática do Congo, Etiópia, República
Árabe da Síria, Mauritânia e Serra Leoa. O Brasil, em 58° lugar, está ao lado de Benin
(56°), Qatar (57°), Camboja (59°) e Vietnam (60°).

---
“(…) a deferência que nós estendemos às escolhas educacionais dos pais deve se
aproximar (porém, não necessariamente deve ser igual) à deferência que nós damos às
escolhas dos indivíduos adultos que digam respeito a eles mesmos. Em educação, como
nas outras áreas, uma visão abrangente pode ser vista como razoável a não ser rejeite
normas morais e políticas para as quais exista um consenso geral entre indivíduos
razoáveis em nossa sociedade. Ao menos, devemos tratar como razoáveis quaisquer
visões abrangentes que reconheçam a importância do desenvolvimento humano normal,
abraça a tolerância cívica e o respeito pela lei e aquiescem a nossos arranjos
constitucionais básicos. Porque poucos pais em nossa sociedade escolherão educar seus
filhos em formas que não satisfarão esses parâmetros, o Estado raramente será capaz de
justificar de se sobrepor à autoridade educacional dos pais”. (GILLES, Stephen (1996)
"On Educating Children: A Parentalist Manifesto," University of Chicago Law Review:
Vol. 63: Iss. 3, Article 2, p. 939-940)

---

Objeção de consciência
157

Em um aspecto muito importante, a Constituição Federal não é neutra em matéria de


religião ou de filosofia de vida. Sob o direito de liberdade de consciência e de crença,
reinvindicações de consciência motivadas por religião ou filosofias de vida podem fazer
surgir um direito constitucional que as outras pessoas sem essas motivações não têm – o
direito à objeção de consciência. Essa é a maior garantia do cidadão contra a imposição,
pelo Estado, de condutas que ele considera moralmente inaceitáveis.

PS: A objeção de consciência é perfeitamente aplicável à opção pela educação domiciliar.


Vários estados norteamericanos, por exemplo, preveem expressamente que as famílias
podem utilizar essa motivação para a adoção do homeschooling.

"Não em meu nome"

--

Algumas informações sobre as visitas do Conselho Tutelar:

1. O Conselho Tutelar é o órgão de fiscalização dos direitos das crianças, não tendo
poderes para impor nenhuma medida à família.

2. Todos os pais que ensinam em casa devem estar preparados para uma eventual visita
do Conselho Tutelar. Essa visita ocorre porque o conselho precisa verificar se não há
situação de abandono intelectual.

3. Nada obriga a família a receber os representantes do Conselho Tutelar. Porém, é


aconselhável que os receba e explique a situação com toda a boa vontade necessária.

4. A família deve presumir que os representantes do Conselho Tutelar não têm a mínima
noção do que seja educação domiciliar, pois essa é a situação em quase todos os casos.
Assim, é preciso que a família saiba explicar exatamente o que é isso e porque é uma ação
legítima.

5. Mais do que explicar, é indispensável que a família prove que efetivamente está
ensinando os filhos em casa. Por isso, é preciso que todas as atividades educacionais
estejam devidamente registradas.

6. A presença de um advogado não é indispensável, mas pode ser útil para explicar os
fundamentos jurídicos da educação domiciliar. Porém, se houver interesse, a própria
família pode se informar e explicar a questão jurídica aos representantes do Conselho
Tutelar.
158

7. Quase sempre os representantes do Conselho Tutelar ficam convencidos das razões da


família. Caso isso não aconteça, a questão será remetida ao ministério público. Falarei do
promotor de justiça em outro post.

---

Sobre o respeito do Estado às escolhas educacionais dos pais

“(…) a deferência que nós estendemos às escolhas educacionais dos pais deve se
aproximar (porém, não necessariamente deve ser igual) à deferência que nós damos às
escolhas dos indivíduos adultos que digam respeito a eles mesmos. Em educação, como
nas outras áreas, uma visão abrangente pode ser vista como razoável a não ser que rejeite
normas morais e políticas para as quais exista um consenso geral entre indivíduos
razoáveis em nossa sociedade. No mínimo, devemos tratar como razoáveis quaisquer
visões abrangentes que reconheçam a importância do desenvolvimento humano normal,
abraçam a tolerância cívica e o respeito pela lei e aquiescem a nossos arranjos
constitucionais básicos. Porque poucos pais em nossa sociedade escolherão educar seus
filhos em formas que não satisfarão esses parâmetros, o Estado raramente será capaz de
justificar de se sobrepor à autoridade educacional dos pais”. (GILLES, Stephen (1996)
"On Educating Children: A Parentalist Manifesto")

---

O que significa dizer que "a educação é dever da família" (CF, art. 226)?

Significa que a formação moral, emocional e intelectual dos filhos é responsabilidade


primária do pai e da mãe. Dirigir a educação e criação dos filhos é a principal atribuição
decorrente do poder familiar (CC, art. 1.631, I).

Esse dever deve ser exercido pelo pai e pela mãe em igualdade de condições. Assim, a
educação dos filhos não pode ser realizada apenas pelo pai ou pela mãe ou de forma
desproporcionalmente maior por um deles.

---

Os pais podem educar os filhos de acordo com a ideologia de gênero?

Certamente. E ainda podem ensinar aos filhos qualquer ideologia, filosofia ou religião. O
que se proíbe é que outras pessoas as ensinem sem autorização expressa dos pais. Esse é
o princípio da autonomia educacional da família.
159

---

Um dos mitos relacionados à escola é o da "diversidade". A escola seria o local por


excelência onde as mais diversas pessoas se encontram e realizam um frutífero
intercâmbio de ideias e experiências. Ocorre, na verdade, o oposto: na escola, pessoas das
mais diversas experiências e origens são assimiladas por uma cultura estranha a elas e
imposta por determinada elite intelectual. A escola talvez seja o maior mecanismo de
homogeneização cultural já criado pelo ser humano.

PS: uma curiosidade - um dos argumentos para a introdução da escolarização compulsória


nos EUA no século XIX foi a "excessiva" imigração de católicos que precisavam ser
devidamente "cristianizados", ou seja, assimilados à cultura protestante majoritária.

---

A educação verdadeira é o conjunto de estímulos que a criança recebe para desenvolver


seu potencial único. A sua base é o amor.

O simulacro de educação é a submissão da criança a um conjunto de rotinas que buscam


destruir sua individualidade, dissolvendo-a em uma gigantesca massa amorfa. A sua base
é o desprezo.

A primeira é a adubagem que permitirá a uma pequena muda transformar-se num belo e
majestoso carvalho. A segunda é a constante podagem dessa mesma muda que acabará
por transformá-la num belo e inofensivo bonsai.

---

Todos os pais que têm filhos na escola precisam se resignar com a seguinte situação: se
houver divergência de opiniões entre os pais e os professores das crianças, estes quase
sempre ganharão. O motivo é ridiculamente simples: ao matricular o filho na escola, os
pais implicitamente dizem que os professores sabem mais do que eles; afinal de contas, a
escola serve para colocar totalmente a educação nas mãos dos "profissionais".

---

---

Direitos humanos, no Brasil?


160

Para os juristas, só existem um ou dois dispositivos do Pacto de São José da Costa Rica.
Para todo o resto, a indiferença é total. Na faculdade de Direito, aliás, não se fala de
direitos humanos.

Para a esquerda, direitos humanos só servem se forem para certos seres humanos, as tais
"minorias oprimidas". Esquecem que os direitos humanos são, por definição, universais.

Para a direita conservadora, direitos humanos não passam de uma desculpa para a
imposição de uma agenda de dominação global. Pouquíssimos sabem da poderosa
influência da doutrina católica dos direitos naturais sobre os tratados de direitos humanos.
Quase ninguém sabe que o aborto é proibido por esses tratados.

Resultado: os direitos humanos são cotidianamente violados no Brasil, sem ao menos que
as pessoas saibam o que está acontecendo.

---

“Um ponto importante que deve ser constantemente lembrado é a circunstância de que se
está educando um ser humano, capaz de apreender e compreender e que pode e deve ser
participante ativo do processo. A criança deve poder manifestar sua vontade durante a
aprendizagem, deve poder obter uma resposta quando quiser saber o porquê daquilo que
lhe está sendo ensinado e deve ter certa liberdade para trabalhar mais naquilo que
corresponde à sua vontade.” (Dalmo de Abreu Dallari, O direito da criança ao respeito,
p. 49)

---

Na imagem abaixo, há interessantíssimo resumo gráfico das teorias educacionais. Isso


realmente dá o que pensar. Os maiores teóricos e filósofos da educação apresentaram
pontos de vista absolutamente diversos e incompatíveis entre si. Não há nenhum tipo de
unanimidade entre esses pensadores. Então, se a questão é absolutamente controversa fica
muito difícil defender a legitimidade de uma teoria ou filosofia sobre a outra.

Nesse cenário, quem deve decidir o que vai ser aplicado a cada criança? A resposta é dada
pelos tratados internacionais de direitos humanos: aos pais cabe escolher a modalidade
de ensino a ser ministrada a seus filhos.
161
162

---

"Tá bom, tá bom! Estou convencido por todos esses argumentos a favor da educação
domiciliar. Tudo faz sentido. Só não serve pra mim. Não estou disposto a abrir mão das
comodidades que a escola me proporciona. Olha, eu tenho uma vida boa, não posso
reclamar; trabalho no que gosto, pratico esportes e viajo sempre que posso. E não estou
disposto a abrir mão dela em nome da educação dos meus filhos. No fim das contas, eles
aprenderão tudo o que quiserem aprender; essa é uma responsabilidade deles e não minha.
Eu já os sustento, pago a melhor escola disponível e ainda saímos juntos nos finais de
semana. Estou de consciência limpa, pois sei que cumpro meus deveres. E numa boa,
todo esse lance de educação domiciliar parece papo de quem não tem vida própria. Eu
tenho e não abro mão. Olha que eu sou sincero: quase todo mundo que eu conheço pensa
exatamente assim, mas não tem coragem de assumir".

(Desabafo que ouvi de um "amigo". Reproduzo aqui por considerar representativo da


mentalidade predominantemente hoje)

---

“Alguns podem se perguntar por que eu falo de 'fazer' ou 'fazer as coisas melhor' em vez
de 'aprendizagem'. Por um lado, a palavra 'aprender' implica (como a maioria das pessoas
agora parecem acreditar) que a aprendizagem é separada do resto da vida, que só podemos
fazê-la ou fazê-la melhor quando não estamos fazendo qualquer outra coisa, e de
preferência em um lugar onde nada mais é feito. Quase todo mundo que passa por escolas
sai acreditando que (1) se eu quiser aprender alguma coisa importante, eu tenho que ir a
um lugar chamado uma escola e arranjar alguém chamado um professor para ensiná-lo a
mim; (2) o processo vai ser chato e doloroso; e (3) eu provavelmente não vou aprender.”

(John Holt)

Estão se multiplicando os casos pelo País de pais que decidiram pela educação domiciliar
porque a escola é motivo de profundo sofrimento para seus filhos. Nesses casos, um laudo
de psicólogo atestando a incompatibilidade da criança com o ambiente escolar aumenta
bastante a segurança da família contra eventuais questionamentos. O problema é que a
grande maioria dos psicólogos têm mentalidade totalmente escolarizada, desconhecendo
163

por completo o homeschooling. Precisamos de psicólogos com a mente aberta e que


estejam dispostos a auxiliar essas famílias.

Se você já tentou de tudo e seu filho continua encarando a escola como uma verdadeira
tortura, é seu dever buscar alternativas que o protejam física, moral e mentalmente. A
educação domiciliar é uma dessas alternativas.

Há crianças com personalidade absolutamente incompatível com o ambiente escolar e


que desenvolvem verdadeiras fobias à escola. Se você perceber que seu filho se enquadra
em um desses casos, sugiro que o retire imediatamente da escola e peça um laudo de uma
psicóloga infantil. Se houver futuros questionamentos, você poderá provar que retirar da
escola foi uma medida essencial para preservar a saúde física e mental de seu filho.

O verdadeiro professor “ensina com mais sucesso quando não está conscientemente
tentando ensinar, mas quando ele age espontaneamente a partir de sua própria vida. Então,
ele pode ganhar a confiança do aluno; ele pode convencer o adolescente que há verdade
humana, que a existência tem um significado. E quando a confiança dos alunos foi
conquistada sua resistência contra a ser educado dá lugar a um acontecimento singular:
ele aceita o educador como pessoa. Ele sente que pode confiar este homem, que este
homem está participando de sua vida, aceitando-o antes que desejam influenciá-lo. E
assim ele aprende a perguntar”. (Martin Buber)

Um dos pilares da educação deve ser o respeito pela verdade, pelos outros e
principalmente por si mesmo.

As pessoas precisam aprender a acreditar no seu valor intrínseco e que seus planos de
vida merecem ser concretizados.

Na essência, educação é o processo de concretização do potencial de cada pessoa. Uma


pessoa bem-educada torna real em sua vida aquilo que existia apenas como possibilidade
dentro de si.
164

As pessoas que não receberam dos pais um conjunto coerente de valores, baseiam suas
decisões em três fatores:

a) pressão das pessoas próximas;

b) submissão irrefletida a uma autoridade;

c) influência da mídia.

“A educação moral das crianças é atribuição dos pais”. Nunca vi alguém discordar desta
frase, aliás reafirmada em tratados de direitos humanos. Porém, se esquecem de algo:
transmitir os valores morais é um dever que os pais têm com relação aos filhos. E esse
dever somente pode ser cumprido se os pais tiverem uma consciência bem clara de seus
próprios valores. Se você realmente quer educar seus filhos, eis a pergunta fundamental:
em que você realmente acredita?

É impossível separar as dimensões morais e cognitivas do aprendizado.

Somente aprende de forma efetiva aquele que desenvolveu as "virtudes intelectuais":

a) coragem intelectual;

b) empatia intelectual;

c) integridade ou boa-fé intelectual;

d) perseverança intelectual;

e) justiça intelectual; e

f) fé na razão.

Aquele que não tem essas virtudes apenas dá vazão a seu próprio autoengano.

A informação transmitida pode ser, em si mesma, neutra, correspondendo exatamente à


realidade. Porém, a escolha da informação a ser transmitida nunca é neutra, pois
necessariamente requer um juízo de valor a respeito dessa informação. Só o ato de
transmitir uma informação implicitamente significa que a consideramos relevante.
165

Suponha, por exemplo, que uma escola resolva dar aulas sobre técnicas de
sadomasoquismo. A informação pode ser precisa e objetiva (ou seja, neutra), mas o fato
de transmiti-la implica necessariamente considerá-la relevante ou mesmo necessária. A
grande questão é se as crianças que tiverem essa “aula” serão influenciadas em direção a
esse comportamento. E a resposta é positiva, mesmo que não se dê nenhum incentivo
explícito.

Somente é constitucional a educação que ao mesmo tempo respeite a individualidade da


criança e os valores da família.

Uma das principais questões da Ciência Política é a definição de quem deve ter a
competência para decidir sobre temas socialmente controvertidos. Doutrinadores mais à
esquerda tendem a responder que é o Estado enquanto que doutrinadores mais liberais
tendem a responder que é o indivíduo. Para as questões relativas à criança e ao
adolescente, porém, não há dúvida: a primeira e quase sempre a definitiva instância de
tomada de decisões é a sua família.

Quando falamos das mazelas da educação brasileira, costumamos esquecer dos maiores
vilões: as próprias famílias, que quase sempre têm absoluto desinteresse pela educação
que os filhos recebem na escola. Para ilustrar essa situação, vou transcrever aqui uma
conversa que eu tive com Renato Nunes, grande amigo e compadre, professor e gestor
escolar há duas décadas.

Renato Nunes

A grande verdade é que a grande maioria dos pais se interessam apenas pela nota dos
filhos; ou seja; se um professor relapso der uma nota boa para o filho mesmo sem ter dado
uma aula adequada dificilmente será questionado.

Trabalho em escola há 20 anos como professor e gestor e nunca um pai ou mãe me


procurou para questionar que seu filho não está estudando em casa e está tirando apenas
notas boas.
166

Alexandre Magno Fernandes Moreira

Essa informação é chocante! Parece que a regra quase sem exceção é a total negligência
dos pais com relação à educação dos filhos.

Renato Nunes

Sim. Se preocupam com números que supostamente medem o aprendizado: notas. E em


muitos casos pode ser exatamente ao contrário. Ou seja; um aluno nota 10 em uma escola
mais fraca pode passar aperto para atingir a média em outra mais apertada. E já vi muitos
país voltarem eles para a primeira buscando o 10 de volta. É como se fosse uma espécie
de troféu para estes pais.

Dica para quem tem filho na escola:

A escola tem autonomia para determinar qual o conteúdo das aulas a serem ministradas
em cada ano, devendo em geral apenas seguir certas diretrizes do Poder Público. Essa
autonomia é materializada no projeto político-pedagógico (PPP), que enuncia os valores,
a missão, a metodologia e as concepções pedagógicas adotadas pela escola. É o
documento fundamental, uma espécie de constituição da escola. Os planos de trabalho
dos professores devem ser baseados nesse documento.

Na a decisão da escola para o filho, o PPP contém a informação que mais interessa. E
depois de feita a decisão, a escola pode ser fiscalizada e demandada pelos pais e alunos
nos termos do PPP.

"Faz uma grande diferença em educação se um estudante é visto como 'macaco nu' de
Desmond Morris ou como um filho de Deus. Da mesma forma, é importante saber se as
crianças são essencialmente boas, como é afirmado em Emile de Rousseau, ou se a sua
bondade foi radicalmente corrompida pelos efeitos do pecado. Variação em posições
antropológicas levarão a abordagens significativamente diferentes para o processo
educacional." (George R. Knight)
167

"Por que é que as igrejas cristãs gastam milhões de dólares todos os anos em sistemas
privadas de ensino quando os sistemas públicos gratuitos estão amplamente disponíveis?
É por causa de crenças metafísicas sobre a natureza da realidade última, a existência de
Deus, o papel de Deus nos assuntos humanos, e a natureza e o papel dos seres humanos
como filhos de Deus. Homens e mulheres, em seu nível mais profundo, são motivados
por crenças metafísicas. Eles estão dispostos a viver e morrer por essas convicções, e eles
desejam criar ambientes educacionais em que essas crenças mais básicas serão ensinadas
para suas crianças". (George R. Knight)

“Metafísica, que trata da realidade última, é fundamental para qualquer conceito de


educação, porque é importante que o programa educacional da escola seja baseado em
fato e realidade, em vez de fantasia, ilusão ou imaginação. Diferentes crenças metafísicas
levam a diferentes abordagens educacionais e até mesmo sistemas separados de
educação.” (George R. Knight)

Por meio da educação massificada, os modismos de uma geração de intelectuais são


transmitidos às crianças como verdades irrefutáveis.

Pergunta fundamental: qual o verdadeiro propósito da educação? Em outras palavras, qual


o efeito que a educação deve ter no indivíduo que a recebe?

Sem respostas satisfatórias a essa questão, qualquer método educacional será no mínimo
uma forma elaborada de se desperdiçar recursos.

Só para relembrar:

1. Toda forma de educação pressupõe a adoção de determinada filosofia.

2. A completa neutralidade ideológica do Estado em matéria educacional somente é


possível caso o Estado deixe de regulamentar e de prover educação.
168

Toda legislação brasileira adotou um paradigma implícito: as famílias são incapazes de


cumprir adequadamente suas funções e por isso precisam da assistência do Estado e de
outras instituições sociais. Isso talvez seja a regra, considerando a situação lamentável de
boa parte das famílias brasileiras. Existem, porém, exceções, como as famílias que
educam em casa. A lei brasileira ainda precisa reconhecer que nem sempre a família é tão
frágil como se pensa...

Alguns chegam a propor a abolição da família e a adoção de um modo coletivo de criação


dos filhos. Quando ouço isso, penso num gigantesco orfanato. Vou além e imagino um
orfanato perfeito, com os melhores profissionais e a melhor metodologia de criação e
educação de crianças. Com condições melhores do que a maioria das famílias pode
proporcionar. Imaginemos que isso seja possível.

Eu, chato que sou, consigo pensar imediatamente em dois problemas nessa utopia.
Primeiro: sem família não existe amor; quem cresceu numa creche sabe o quanto isso faz
falta. Segundo: sem família não há diversidade, não há pluralidade, existe apenas a
igualdade no totalitarismo.

Todos conhecem o art. 26, 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Aos pais
pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos”. Vejam
agora como ele surgiu concretamente:

“No que diz respeito à família, o representante da União Internacional das Ligas de
Mulheres Católicas, C. Schaeffer, fez questão de observar, quando a comissão discutiu
art. 16 (da educação) que a doutrinação nazista tinha envenenado números muito grandes
de jovens alemães. Ele ressaltou que ‘os artigos não mencionam o direito fundamental e
a responsabilidade dos pais para educar seus filhos o que bem entendessem. Se esse
direito não fosse reconhecido na Declaração, poderia muito bem haver uma repetição de
situações como a que prevaleceu na Alemanha sob Hitler’. Assim, graças à ênfase do
Congresso Judaico Mundial e Beaufort, o representante holandês, uma terceira seção foi
acrescentado ao artigo 26 passou a dizer: ‘Os pais têm prioridade de direito na escolha do
gênero de instrução que será ministrada a seus filhos’.” (J. Morsink, The Universal
Declaration of Human Rights, p. 265).
169

Em resumo – o direito à educação domiciliar teve origem na luta de organizações


católicas e judaicas contra a doutrinação de crianças por regimes totalitários.

Ensine o seu filho a nunca se considerar uma vítima das circunstâncias.

Se você fizer isso, estará a caminho de formar um adulto seguro, equilibrado e ético.

Se milhões de pessoas fizerem isso, em uma geração as políticas baseadas na vitimização


morrerão à míngua.

Em educação, objetividade é muito difícil de se obter, mas não é impossível. A


neutralidade (filosófica, religiosa, moral, política, etc.), porém, é por definição impossível
na educação. Já no primeiro momento do processo educacional, a definição do currículo
a ser ensinado, requer-se parcialidade, pois todo currículo dá ênfase em determinados
conhecimentos em detrimento de outros. A partir daí, a parcialidade ainda cresce
vertiginosamente. Apenas uma fração do conhecimento humano pode ser transmitida e a
escolha dessa fração sempre requer a existência a priori de uma filosofia, de uma visão
de mundo que fundamenta a educação.

A rigor, não é possível separar educação de doutrinação.

Se seu filho conseguir a proeza de decidir com base em princípios e não nas conveniências
ou pressões do momento, você poderá ter a satisfação de saber que a educação dada ele
foi bem-sucedida.

Toda educação é inevitavelmente religiosa porque toda a educação transmite uma visão
de mundo que molda e determina o caráter, a vida, as crenças, o comportamento e o futuro
das crianças.

"A educação é uma arma e tudo depende de quem a maneja e para quem está apontada."
(Stalin)
170

Já perceberam que a educação quase sempre é considerada uma espécie de salvação para
a humanidade? Frases no estilo "tudo é possível com educação" e "nada é possível sem
educação" estão em todos os lugares. Porém, será que é isso mesmo?

É preciso desmistificar o tema. Educação em si não é benéfica ou maléfica, pois sua


utilidade ou dano depende essencialmente da sua finalidade. Ninguém se torna uma
pessoa melhor simplesmente por ter absorvido determinado conteúdo.

Estudar Química, por exemplo, não melhora o caráter de alguém, mas apenas dá maiores
poder para a pessoa exercer sua personalidade. Com esse conhecimento, a pessoa pode
tanto produzir medicamentos quanto armas químicas. Aliás, existe uma terceira
possibilidade: conhecer química pode ser absolutamente irrelevante para a pessoa, o que
é de longe a situação mais comum.

"Não há nada de remotamente católico na teoria que crianças devem passar ao menos seis
horas diárias, cinco dias por semana, num ambiente que ataque continuamente as suas
crenças. Todos os textos laicos estão impregnados de valores anticristãos, de ideias do
New Age, de critérios feministas, de um único governo mundial na 'Nova Ordem
Mundial'. Mas o pior é [...] a mentalidade de que tudo é relativo, de que não há verdades
absolutas, de que Deus pode não existir e de que uma doutrina é tão boa como qualquer
outra. Integração* não é paganização. Às pessoas que me perguntam pela integração dos
meus filhos, sempre lhes respondo que não hão de ir à escola para aprender uma
linguagem vulgar, para aprender como usar camisinhas [...]ou zombar de coisas sagradas.
Os nossos filhos não devem socializar-se, se por socialização se entende a formação das
suas mentes e dos seus corações nos mesmos valores da sociedade em que vivemos."

Mary Kay Clark, Catholic Home Schooling, TAN Books, 2009, Charlotte, North
Carolina, p. 80.

Porque a educação domiciliar não é proibida pela Constituição:


171

1. De acordo com o art. 5°, II, na ausência de proibição expressa, a conduta


necessariamente é permitida. Não existe qualquer norma proibindo expressamente a
educação domiciliar.

2. A Assembleia Nacional Constituinte nunca chegou a discutir a educação domiciliar,


por absoluto desconhecimento do tema à época. Não houve, portanto, a intenção de
proibi-la, pois obviamente não se pode proibir o que se ignora totalmente.

3. Em nenhum momento, a Constituição afirma que a educação é dever da escola, mas


"do Estado e da família". Dessas duas entidades, é a família que tem a função de "dirigir
a educação dos filhos". Portanto, o Estado age subsidiariamente, ou seja, quando a família
não quiser ou não puder prover a educação.

4. Dentre os princípios do ensino, a Constituição estabelece a "liberdade de aprender,


ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber", ou seja, é norma
fundamental da educação brasileira a existência da maior liberdade educacional possível,
típica de uma sociedade pluralista como a brasileira. Portanto, qualquer modalidade de
educação é válida, desde que alcance suas finalidades ("pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho") e respeite
os direitos das crianças.

5. A escolarização compulsória pode submeter as crianças a terrível sofrimento (vide os


casos de bullying, violência e fobia escolar), o que contraria frontalmente o princípio
fundamental do melhor interesse da criança. Nesse sentido, se algo é prejudicial à criança,
deve ser dada a ela e à sua família a possibilidade de escolher alternativas. No limite, a
manutenção de uma criança no ambiente escolar pode ser considerada tortura, crime
equiparado a hediondo.

6. As crianças têm direitos garantidos pela Constituição e pelos tratados internacionais de


direitos humanos. Dentre esses direitos, estão os de liberdade de locomoção, que inclui
não ser retido em um local contra a sua vontade (no caso, a escola) e de liberdade de
associação, que veda qualquer forma coercitiva de agrupamento de pessoas (o que
acontece nas escolas). Os primeiros garantidores dos direitos das crianças são os pais, que
têm a prerrogativa de em cada caso determinar como o melhor interesse da criança pode
ser satisfeito.
172

7. A educação é a forma por excelência de transmissão cultural entre gerações. Em uma


sociedade pluralista, não pode ser dado nenhum tipo de privilégio a determinada
manifestação cultural, ou seja, o Estado necessariamente deve ser neutro com relação às
diversas culturas presentes em seu território. Assim, enquanto a escola transmite
determinada cultura (e também visão de mundo e ideologia), a família pode transmitir
outra cultura por meio da educação. O Estado, que é necessariamente neutro, não pode
determinar que apenas uma forma de transmissão cultural é válida. Essa decisão sempre
pertence à família, uma vez que os pais têm o direito de transmitir seus valores aos filhos,
conforme determinam vários tratados internacionais de direitos humanos.

O fato: nunca um pai foi preso por ensinar o filho exclusivamente em casa.

O motivo: educação domiciliar não está tipificada como crime.

E o crime de abandono intelectual?

Esse crime somente ocorre se os pais ou responsáveis deixarem de prover instrução para
as crianças. Assim, não é crime deixar de matricular a criança na escola, mas deixar de
ensinar (instruir) a criança. E educar em casa necessariamente inclui prover a instrução
para os filhos.

A rigor, uma atividade somente pode ser denominada educação se produzir efeitos
permanentes na formação da pessoa. Aquilo que se aprende hoje e se esquece mês que
vem pode ser no máximo passatempo, mas nunca educação.

Muita gente boa tem reclamado, e com razão, da doutrinação ideológica nas escolas.
Porém, esse talvez seja o menor dos problemas na educação brasileira atual. Há algo
anterior a isso e muito mais sério.

O problema é que raramente vemos nas escolas brasileiras algo que possa ser realmente
chamado de educação. Somente há educação quando estiver presente um projeto de longo
prazo, com finalidades determinadas, princípios e integração dos conteúdos entre si e com
a realidade.
173

O que temos em quase todas as escolas hoje é simplesmente o caos informativo.


Conteúdos são simplesmente lançados para os alunos sem que estes, e nem os professores,
tenham consciência de sua utilidade e função. Em outras palavras, o aluno não sabe
porque está aprendendo e o professor não sabe porque está ensinando.

Alguns professores mais cínicos (ou mais sinceros) chegam a dizer que tudo isso é
simplesmente "para passar na prova". E o aluno sabe disso: tanto geralmente esquece tudo
logo depois da prova.

A longo prazo, quase nada do que foi "ensinado" contribuirá para a formação da pessoa
e nem ao menos para sua qualificação no mercado de trabalho. Isso não é educação, mas
uma farsa, um teatro absurdo que no mínimo joga pelo ralo preciosíssimos anos de nossas
crianças e adolescentes.

PS: eu passei torturantes anos tentando aprender Química, Física e Matemática. Com
apenas 14 anos, eu já tinha total consciência da inutilidade dessas matérias para o meu
futuro. E eu estava certíssimo: foi tudo uma gigantesca perda de tempo.

Para os que rotulam os tratados internacionais de direitos humanos como "contrários à


família", não custa nada citar um trecho do preâmbulo da Convenção dos Direitos das
Crianças, promulgada pela ONU e ratificada pelo Brasil em 1990:

"Convencidos de que a família, como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural


para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças,
deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas
responsabilidades dentro da comunidade;

Reconhecendo que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua


personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e
compreensão;"

A propósito, quando a convenção diz que a família deve receber proteção e assistência
para assumir plenamente suas responsabilidades, ela obviamente inclui a primeira
responsabilidade, que é a educação.
174

E se a criança simplesmente se recusar a continuar indo para escola? A resposta quase


sempre é colocá-la na terapia e de certa forma tratá-la como uma doente.

Porém, vejam o que diz a Convenção dos Direitos das Crianças, ratificada pelo Brasil:

“Artigo 12

1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios
juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos
relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em
função da idade e maturidade da criança.”

Moral da história: caso a criança se recuse a continuar indo à escola, ela deve ser ouvida
e os pais têm o dever de buscar a opção que melhor proteja os direitos da criança, o que
pode significar em muitas situações, retirá-la do ambiente escolar, por absoluta
incompatibilidade.

Qual deve ser a atitude do Estado com relação aos pais? De novo responde a Convenção
sobre os Direitos das Crianças:

"Artigo 5

Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou,


onde for o caso, dos membros da família ampliada ou da comunidade, conforme
determinem os costumes locais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis,
de proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e acordes com a evolução de
sua capacidade no exercício dos direitos reconhecidos na presente convenção."

Resposta: a atitude deve ser de respeito às responsabilidades, direitos e deveres dos pais
quanto à instrução e orientação das crianças

Os pais que educam em casa podem perder a guarda dos filhos? Mais uma vez, recorro à
Convenção sobre os Direitos das Crianças:

"Artigo 9

1. Os Estados Partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a
vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades
175

competentes determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos legais


cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação
pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre
maus tratos ou descuido por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma
decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança."

E a resposta é certamente negativa. A perda da guarda da criança somente pode ocorrer


em casos extremos, em que os direitos das crianças estejam sendo desrespeitados ("casos
específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus tratos ou descuido por
parte de seus pais"). É preciso ainda demonstrar, por meio de processo judicial, que a
perda da guarda atende ao melhor interesse da criança.

Pessoal, educar qualquer um educa, de uma forma ou de outra. Na verdade, não é


necessário nem que haja um educador, pois, as crianças aprendem naturalmente no meio
onde estão. Nesse conceito amplíssimo de educação, o tema se torna irrelevante.

O direito à educação não é um direito a qualquer forma de educação. Pelo contrário: a


educação juridicamente protegida é aquela que simultaneamente consegue atingir seus
objetivos (pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho) e respeitar os direitos das crianças.

Todas as modalidades de educação, mesmo as mais consolidadas e tradicionais, devem


comprovar a satisfação desses requisitos. Caso contrário, serão consideradas pura e
simplesmente inconstitucionais.

Problemas insolúveis da escola (ou como a escola desrespeita as crianças):

1. Objetificação: as crianças são tratadas como instrumentos a serviço de determinados


interesses, geralmente ideológicos e corporativos, e não como um fim em si mesmo.

2. Massificação: a individualidade das crianças é simplesmente desconsiderada em nome


de um modelo único, que deve ser aplicado a todas as crianças que estejam, digamos, na
mesma série.

3. Submissão: não há nenhuma participação efetiva das crianças na formulação dos


processos educacionais que elas recebem.
176

Um motivo simples e inquestionável para educar em casa: quanto mais individualizada a


educação, mais respeitosa para a criança e mais eficiente para o futuro adulto ela será.

"-- Mãe, você está achando que eu aprendi a ler na escola? Você está doida? Eu aprendi
foi com o meu pai!

(Risadas)

-- Do que vocês estão rindo? Não tem nada de engraçado, vocês sabem que foi assim."

(Meu sobrinho mais velho, de cinco anos de idade, educado em casa e na escola)

"Todo pai que se preocupa com o filho é um pouco homeschooler." (Rodrigo Fernandes
Moreira, meu irmão)

Pessoas muito bem-intencionadas têm discutido ardentemente qual o melhor conteúdo a


ser ensinado. Aliás, a última polêmica aparentemente consiste em decidir se deve ser
ensinada a história da África ou da Grécia.

O problema desse tipo de controvérsia é o seu foco em um aspecto secundário. Antes


disso, é preciso responder à pergunta essencial: "qual é a finalidade da educação?" No
caso da controvérsia referida, a questão é "para que estudar História?" Sem responder a
essa questão, tanto faz estudar a história da África, da Grécia ou do Azerbaijão. Tudo
seria apenas um passatempo dispendioso.

A lógica é ridiculamente simples: como tudo na vida, somente há caminhos melhores ou


piores se você souber aonde quer chegar. Em outras palavras, se você não sabe o que fazer
com o conhecimento, tanto faz que tipo de conhecimento você vai receber.

Transmissão de valores morais às crianças: perguntas e respostas

O que são valores morais?


177

São juízos que classificam as ações humanas em certas ou erradas. Estão incluídos nessa
definição os valores de origem religiosa.

Como são transmitidos os valores morais?

Informalmente, por meio da mera convivência com outras pessoas (é a socialização).


Formalmente, com a comunicação expressa desses valores (é a educação).

Quem deve determinar quais valores morais devem ser transmitidos?

Os pais, por disposição expressa dos tratados internacionais de direitos humanos.

A escola pode transmitir valores morais?

Sim, desde que sejam os mesmos valores dos pais. A matrícula em uma escola
confessional naturalmente implica a aceitação de que o filho receba determinados valores
na escola.

E se uma escola secular resolver defender expressamente determinados valores?

Os pais devem ser avisados com antecedência para que possam exercer seu poder de veto
à participação dos filhos na atividade escolar em que for feita essa defesa.

Existe limite ao poder dos pais de definir quais os valores serão transmitidos aos filhos?

Sim, esse poder não é absoluto. Os pais não têm o direito de transmitir aos filhos valores
que sejam incompatíveis com os direitos humanos e a existência de uma sociedade
pluralista e democrática. Por exemplo, um muçulmano pode ensinar ao filho que o
cristianismo é errado, e até diabólico, mas não pode ensiná-lo que a atitude correta é matar
cristãos.

A importância da escola é diretamente proporcional ao número de famílias disfuncionais,


que não cumprem suas atribuições típicas, como criar e educar os filhos. Assim,
considerando a situação da maioria das famílias brasileiras, a escola não é apenas
necessária, mas indispensável.

Há, porém, uma minoria de famílias que pode, e com grande vantagem, dispensar a
escola. Para essas é que se dirige a proposta da educação domiciliar.
178

Nota histórica: o primeiro Estado a instituir a escolarização obrigatória para todos foi um
ducado alemão em 1592, sob influência direta da doutrina de Martinho Lutero.

Geralmente, as crianças usam quase todo o seu tempo desperto em duas atitudes passivas:
assistir as aulas na escola e assistir TV em casa. O problema é mais grave do que parece:
além das crianças não aprenderem a agir no mundo, elas não chegam nem a saber
exatamente qual o mundo real (só para dizer o óbvio: a vida adulta não tem nada a ver
com o ambiente escolar e nem com os programas da TV). O resultado disso já estamos
vendo: adultos que não conseguem ter a mínima atuação no mundo concreto e desejam
apenas diversão e distração da vida.

Ok, amiguinhos: todos querem que os filhos recebam uma educação eficaz e daqui a
alguns anos se tornem adultos talentosos, bem pagos, além de cidadãos conscientes (o
que quer que isso seja). Só não nos esqueçamos de uma coisa: esse adulto almejado é
apenas uma projeção de nossos desejos. O ser humano real, que merece ser tratado com
dignidade e respeito, é a criança que está na nossa frente hoje. Ou nos lembramos disso
ou corremos o risco de transformar a vida de nossos filhos em um inferno.

O brasileiro médio tem um seríssimo problema com o futuro. Quase sempre incapaz de
economizar para as incertezas e de planejar algo com mais de uma semana de
antecedência, o brasileiro vive em um estado de eterno presente.

E o que isso tem a ver com a educação? Bem, a educação de nossas crianças é de longe
nossa ação de mais longo prazo: educamos a criança para formar o adulto vários anos
depois. Se não conseguimos nos planejar nem para o mês que vem, imagine então para
daqui a mais de uma década!

O brasileiro não sabe o que quer para si e muito menos para seus filhos. E sem uma
finalidade almejada não existe de fato um processo educacional, mas apenas um caótico
passatempo escolar que no final das contas terá uma contribuição mínima na vida dos
filhos. Mas pelo menos, os meninos não ficaram à toa esse tempo todo...
179

Qual o limite do poder dos pais na educação dos filhos?

"A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança apresenta uma perspectiva adicional.
Ela impõe limites não só ao Estado, mas também sobre os pais. Ela insiste que os
melhores interesses das crianças devem ser uma consideração primordial em todos os
assuntos que lhes digam respeito, que as suas opiniões devem ser seriamente consideradas
e que as capacidades em desenvolvimento das crianças devem ser respeitadas. Em outras
palavras, a convenção afeta o direito dos pais à liberdade de escolha na educação de seus
filhos; o direito dos pais de escolher a educação de seus filhos não é absoluto a declinar
à medida em que as crianças ficam mais velhas. A lógica por trás da escolha parental não
é legitimar uma negação dos direitos de seus filhos. Pelo contrário, é para evitar qualquer
monopólio estatal da educação e para proteger o pluralismo educativo. No caso de
conflito entre a escolha dos pais e o melhor interesse superior da criança, no entanto, a
criança deve ser sempre a prioridade." (UNICEF)

Em resumo: os limites são os direitos das próprias crianças.

Dois casos reais de desrespeito à criança e ao adolescente no sistema escolar:

1. Ela tem apenas 12 anos, mas já publicou seu primeiro livro. Sua vocação de escritora
é indubitável. Apesar disso, deverá ainda ser submetida a vários anos de escolarização
forçada em matérias absolutamente inúteis para seu futuro (exatas, por exemplo, são uma
tortura para ela).

2. Ele tem 14 anos e venceu uma competição internacional de matemática. Disso resultou
uma bolsa em uma prestigiada universidade americana. Ele, porém, não poderá usufruir
disso, pois ainda precisa ultrapassar uma formalidade: os três anos de ensino médio.

Vez por outra, aparece a discussão: "A quem pertencem as crianças? Ao Estado, à
comunidade, aos pais?" A resposta, bastante óbvia, é: as crianças não pertencem a
ninguém, mas são pessoas com dignidade própria. Relações patrimoniais são exercidas
por pessoas em coisas; nenhuma pessoa pertence, é patrimônio de outra, a não ser que se
queira defender a escravidão.
180

Por isso, a rigor não existem direitos dos pais, mas apenas direitos das crianças (só para
lembrar: o Brasil é signatário da Convenção dos Direitos das Crianças). E o que a família
tem de tão importante? É a instituição que melhor provê os direitos das crianças. E porque
devemos dar, em regra, a máxima autonomia aos pais? Porque a relação entre pais e filhos
é aquela mais intensamente regida pelo amor; e somente aquele que ama pode cuidar,
proteger e respeitar o ser amado. Assim, protegemos as famílias para que estas melhor
protejam suas crianças.

"Educação moral é o processo de sair de uma condição egocêntrica, na qual somos apenas
vítimas dos nossos impulsos, para uma condição em que nós reconhecemos as
características objetivas de nossa situação" (Kenneth Minogue).

Mais do que interesse é requerido. O ensino, declara Santo Agostinho, é o maior ato de
caridade. O aprendizado é facilitado pelo amor." (Mortimer Adler)

A educação que mereça esse nome será utilizada pelo indivíduo em seu tempo de lazer,
quando poderá refletir sobre seu lugar no mundo, sua vocação, o sentido de sua vida e
agir de acordo com essa reflexão. Por outro lado, tudo aquilo que é voltado
essencialmente para o mercado de trabalho é apenas treinamento.

A educação bem-sucedida é aquela que possibilitou à pessoa utilizar com sabedoria seu
tempo livre. Aliás, o número de horas que as pessoas em geral passam em frente à TV
todos os dias é um forte indício de fracasso do sistema educacional.

“Portanto, parece ser uma opinião comum em todas as épocas que a educação deve buscar
desenvolver excelências características das quais os homens são capazes e que seus fins
últimos são a felicidade humana e o bem-estar da sociedade” (Mortimer Adler).

Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que é absolutamente impossível a


existência de qualquer forma de educação sem a vinculação a uma ideologia, a uma visão
181

de mundo, a um ideal de ser humano. Nesse ponto, os marxistas estavam certos: não existe
educação neutra, imparcial. Ainda que conseguíssemos extirpar toda a doutrinação
ideológica explícita de nossas escolas, algumas perplexidades ainda permaneceriam.

Vou dar um exemplo simples: no sistema atual, é obrigatório o ensino de, digamos,
química orgânica, enquanto que é facultativo o ensino de retórica. Não existe uma razão
puramente técnica para essa escolha, mas uma decisão de privilegiar determinada visão
de mundo (no caso, a cientificista) sobre as demais. A ideologia privilegiada pode variar
(nosso currículo é deveras caótico), mas o raciocínio é o mesmo: sempre haverá a escolha
de um ponto de vista sobre os demais.

Enfim, educar é sempre transmitir valores. A questão ainda a ser discutida é quem decide
os valores a serem transmitidos.

Toda educação é transmissão de cultura.

A educação formal é a transmissão de uma faixa bem estreita de cultura tendo em vista
objetivos determinados. É uma intervenção calculada no processo de aprendizado que já
ocorre naturalmente.

Perguntas inevitáveis: qual é a sua visão de mundo? A que tradição você se filia? Qual é
a sua cultura pessoal? Somente depois de responder essas perguntas, é que você pode se
questionar: "o que ensinarei a meus filhos?"

A educação consiste em um processo no qual a pessoa é alimentada espiritualmente com


doses contínuas de determinada cultura.

A educação é sempre a relação entre o eu presente, que recebe determinada cultura, com
o eu futuro, que já sofreu a transformação decorrente da absorção dessa cultura. O
resultado da educação é a transformação do indivíduo em resposta às influências
recebidas.

Política educacional é política cultural. Ao determinar o conteúdo que deve ser ensinado,
o Estado seleciona certos elementos culturais para serem transmitidos às novas gerações.
182

Consequentemente, considera irrelevantes todos os outros elementos que não foram


selecionados. Pergunta sem resposta: o Estado pode fazer isso sem desobedecer ao seu
dever fundamental de neutralidade em questões morais e filosóficas?

A primeira pergunta para quem está cogitando educar em casa é "o sistema escolar está
de acordo com seus valores mais fundamentais"? Se essa pergunta for respondida
negativamente, a segunda seria: "você está disposto a alterar seu estilo de vida para educar
seus filhos"?

Fato histórico ainda desconhecido no Brasil: durante o período Talibã, houve um


crescimento expressivo da educação domiciliar no Afeganistão. A principal razão para
isso é que toda a educação formal foi proibida para as meninas. Assim, muitas famílias
passaram a educá-las em casa. Detalhe: fizeram isso clandestinamente, correndo o risco
de serem presos ou até mortos.

Situações em que a educação domiciliar exclusiva é desaconselhável:

1. Famílias disfuncionais (com alcoolismo ou violência doméstica, por exemplo): nesses


casos, a escola se torna o refúgio.

2. Pais que não tem interesse nenhum em cultura, pois ensinar em casa é transmitir
cultura.

3. Pais que preferem delegar a terceiros as suas obrigações familiares, pois somente há
educação domiciliar quando os pais estão dispostos a assumir diretamente suas
responsabilidades.

Não custa lembrar:

1. Onde se dá a educação?

Responde o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): "Toda criança ou adolescente


tem direito a ser criado e educado no seio da sua família" (art. 19).
183

2. Quem tem o dever de educar?

Também responde o ECA: "Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos
filhos menores" (art. 22).

3. Qual a melhor forma de educação para as crianças?

Continua o ECA: aquela que proporciona "todas as oportunidades e facilidades, a fim de


lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições
de liberdade e de dignidade" (art. 3*). Sim, você leu direito: o ECA menciona o
desenvolvimento espiritual.

Incontáveis vezes vi pessoas de bem reclamando, e com razão, da doutrinação ideológica,


do bullying, das drogas, da violência e da péssima qualidade de nossas escolas. Concordo
plenamente. Porém, existe um problema nessa abordagem: todas essas questões podem
ser resolvidas. Sim, existem escolas seguras, sem doutrinação e com um ensino de
altíssima qualidade.

Os críticos das escolas deixam de lado exatamente a única questão insolúvel: o fato de as
escolas serem uma instituição altamente burocratizada. E por que isso é um problema?
Porque essas instituições têm como prioridade real a sua própria manutenção e
crescimento; a educação de crianças e adolescentes é um objetivo apenas secundário e
subordinado ao anterior.

Obviamente, os poderosos sindicatos de professores não têm por objetivo real a melhoria
da educação fornecida aos alunos, mas a melhoria das condições dos próprios professores.
A escola sustenta milhões de pessoas, entre professores e burocratas; continuar a sustentá-
los, cada vez mais, é seu real objetivo. No mundo concreto das escolas, "educação" quase
sempre é uma mera peça retórica que busca esconder os verdadeiros interesses em jogo.

Se a socialização é o aprendizado concreto das normas de convivência comunitária, como


é possível que isso aconteça em um ambiente totalmente apartado da comunidade?
184

Em educação, o que significa dizer que as crianças são portadoras de dignidade humana?
Significa que elas não podem ser transformadas em instrumentos a serviço de um fim
alheio a elas. Assim, a educação deve servir sempre para o desenvolvimento saudável da
própria criança e não para arregimentar seguidores de determinado projeto político ou
ideológico.

Se você quer que seu filho seja "socializado" para se tornar um homem de sucesso como
isso é definido na cultura brasileira, não pense duas vezes: matricule-o na escola. Somente
cogite a educação domiciliar se você quiser algo diferente e melhor do que esse padrão.

Divisão de funções na educação:

1. Família: transmite seus valores morais e religiosos. Caso entenda pertinente, ainda se
responsabilizar pela instrução dos filhos.

2. Estado: regulamenta e fiscaliza a educação. Provê escolas para aqueles que


necessitarem.

3. Escola: instituição responsável essencialmente pela instrução. Em casos específicos, e


com a autorização dos pais, também pode transmitir valores morais e religiosos (ex.:
escolas confessionais).

4. Sociedade: a convivência comunitária é um direito da criança e uma das principias


fontes de educação informal.

5. Criança: a educação é um processo interno que só acontece se a criança quiser adquirir


determinada capacidade, habilidade, atitude ou conteúdo. Todas as outras entidades
apenas podem influenciar a educação da criança, mas a eficácia dessa influência depende
essencialmente da vontade da criança. Educação é, enfim, um processo de autoformação
do ser humano e a "educação compulsória" é uma impossibilidade no mundo concreto.

Desejo do dia: que o Conselho Tutelar passe a visitar e a pedir explicações para as famílias
que NÃO educam os filhos em casa (não custa lembrar: educar os filhos em casa continua
sendo obrigação da família mesmo que os filhos frequentem a escola).
185

Em quase tudo o que eu aprendi de forma duradoura na vida, não havia alguém ensinando.
Foi simplesmente um produto da minha curiosidade, exercitada de modo lúdico,
aprendendo apenas pelo prazer de aprender. Do primário até a universidade, tive
incontáveis problemas com o método de ensino centrado no professor. Ao contrário da
maioria dos colegas, eu não conseguia aprender nada sem uma boa dose de
espontaneidade.

Isso não me faz um gênio ou uma pessoa de inteligência superior, pois acredito que as
experiências descritas acima aconteceram com inúmeras pessoas. Mais ainda: não acho
que exista algo como a "educação compulsória", pois educar-se é sempre um ato que vem
de dentro; a verdadeira educação sempre envolve a livre decisão de incorporar certo
conhecimento ou habilidade. Sem isso, sobra apenas a hipocrisia: fingimos que
aprendemos para cumprir as formalidades prescritas ("passar na prova") e logo depois
esquecemos daquilo como se nunca tivéssemos apreendido.

PS: no quadro abaixo, isso fica bem nítido, pois 70% do nosso conhecimento vem da
aprendizagem informal.
186

O que eu aprendi na escola?

Em termos de conhecimento, quase nada. A maior parte do que eu aprendia era esquecido
instantaneamente logo após a prova.

E a socialização?

Imaginem um menino tímido e reservado, sendo forçado a conviver com dezenas de


outras crianças. Adicionem a isso bullying sofrido por anos a fio. Meus caros, a escola
me fez uma pessoa pior.

Educação domiciliar e educação escolar: quem escolhe?

1. Em regra, os pais ou responsáveis pelo menor.

2. Excepcionalmente, os pais podem ser proibidos de optar pela educação domiciliar


exclusiva caso, após sentença judicial transitada em julgado, for indubitavelmente
comprovada sua inaptidão. Ex: pais alcoólatras ou analfabetos.

3. Por outro lado, os pais podem ser obrigados a realizar a educação domiciliar exclusiva.
Isso pode acontecer nas situações em que a criança demonstra total incompatibilidade
com o ambiente escolar; são chamadas genericamente de "fobias escolares".

A grande função social das escolas hoje em dia é funcionar como meio de acesso ao
mercado de trabalho, não por causa do conhecimento adquirido pelos alunos, mas
simplesmente pelo fato de que o diploma fornecido pela escola é pré-requisito
indispensável para o exercício lícito das mais variadas posições. A escola é, em suma, a
grande instituição credenciadora de nossa sociedade. Sem a credencial escolar, mesmo a
pessoa mais apta e mais bem-informada está impedida de exercer dezenas de profissões.

Desconfio que isso seja um gigantesco desvio de finalidade: a escola não deveria existir
para ensinar e transmitir conhecimentos? Se a pessoa prova que tem esses conhecimentos,
qual é a necessidade de um diploma? Um exemplo: alguém que consegue a pontuação
necessária na prova da OAB precisaria mesmo de um diploma de uma faculdade de
Direito para se tornar advogado?
187

Enfim, uma pergunta sem resposta: o que aconteceria ao sistema escolar se os diplomas
fossem abolidos?

Uma nota autobiográfica sobre educação:

Tenho boas recordações da escola primária (Escola Estadual Honorato Borges, em


Patrocínio, MG). Lá eu aprendi, e bem, a ler, escrever e a fazer as quatro operações.
Depois disso, suspeito que nada do que aprendi na escola fez real diferença na minha vida
de adulto. Não tenho dúvidas de que foram anos perdidos, um sofrimento desnecessário.
Depois do primário, absolutamente toda a cultura que fez diferença na minha vida proveio
de um aprendizado voluntário, fruto de minha curiosidade espontânea e dos incentivos
que recebi de meus pais.

Educação compulsória não implica escolarização compulsória. Aliás, muitas vezes, é


exatamente o contrário: a escolarização pode ser um fator determinante para que a criança
não seja de fato educada.

A educação domiciliar talvez seja o mais exótico movimento social do Brasil. Onde já se
viu um movimento que não pede um centavo ao governo e ter como participantes pessoas
que simplesmente querem cumprir o dever de educar os filhos?

A qualidade da educação que uma criança recebe em casa é inversamente proporcional


ao número de horas que ela passa assistindo TV.

Doutrinação ideológica e técnicas de modificação de comportamento utilizadas no


sistema escolar

Natureza jurídica: lesão à dignidade humana, uma vez que trata o aluno como um meio
para a execução de projetos políticos e não como um fim em si mesmo. Além disso,
impede o livre desenvolvimento da personalidade, que passa a ser condicionada
externamente, em desrespeito à autonomia individual.
188

Consequência jurídica: geralmente, não resultado em dano moral, pois não causa
necessariamente sofrimento para os alunos. Sempre, porém, caracterizará dano
existencial, pois impede a livre escolha dos projetos de vida pela vítima. Assim, aquele
que realizar essas condutas (o professor) ou se omitir frente a elas (a direção da escola)
pode ser responsabilizado civil (pagamento de indenização), administrativa (pena de
advertência, multa, demissão ou suspensão) ou mesmo criminalmente (crime de
prevaricação).

Nunca tente convencer alguém, mesmo que isso pareça absolutamente necessário. A
verdadeira educação (ou "evolução pessoal") é uma porta que somente pode ser aberta
por dentro. Quando a pessoa quiser e estiver pronta, ela espontaneamente buscará o
conhecimento de que necessita.

Princípio da dignidade humana aplicado à educação:

O aluno, como qualquer ser humano, é um fim em si mesmo e não um meio a serviço
das finalidades de outras pessoas. Por isso, a única forma de educação legítima é aquela
centrada nos interesses da criança e não dos pais, professores ou burocratas da educação.

Desejo do dia das crianças: uma educação que possibilite ao ser humano identificar o que
é realmente necessário e quanto desse necessário é preciso mesmo. Em outras palavras,
precisamos aprender a reconhecer o que é suficiente para nós.

Não contem comigo para tomar partido nessas disputas entre “conservadores” e
“progressistas” dentro do movimento da educação domiciliar. Estou absolutamente
convicto de que o foco é a soberania educacional da família, qualquer que seja o seu
perfil.

Aliás, uma curiosidade: as famílias de perfil mais "alternativo" têm como referência
essencial a obra de Ivan Illich, que foi exatamente um padre católico, e com doutorado
em Roma. Então, pessoal à esquerda e à direita, relaxem: todos estão no mesmo barco.
189

Da série "dogmas da cultura brasileira": " a remuneração de alguém deve ser diretamente
proporcional ao número de anos que essa pessoa passou na escola ". E aí, eu pergunto:
como chegaram a essa conclusão? Será que o simples fato de alguém ter passado mais
anos na escola torna seu trabalho necessariamente mais valioso?

Porque eu apoio a educação domiciliar

Tudo pode ser resumido em uma palavra: família. Ao revermos individualmente nossas
histórias pessoais, cada um pode perceber o quanto a família foi importante para sua
formação. Todos nós fomos, ao menos informalmente, educados em casa. Nossas
primeiras impressões profundas foram formadas ao vermos como nossos pais agiam no
dia a dia tanto entre eles quanto conosco. Estou convicto de que as histórias que eu lia na
biblioteca de minha casa e os exemplos dados pelos meus pais foram infinitamente mais
importantes na minha formação do que os vários anos passados na escola.

Nos últimos tempos, o tema “família” não sai da mídia. Paradoxalmente, cada vez menos
pessoas escolhem realmente formar uma família (ou seja, terem filhos). Mesmo aqueles
que assim escolhem, quase sempre delegam a função educacional para instituições que
não têm essa atribuição – a propósito, precisamos parar de sobrecarregar as escolas, que
não servem para educar nossos filhos, mas apenas para instruí-los em determinadas áreas
do conhecimento. E qual a diferença da família para as outras instituições sociais? O
amor. Somente na família, o laço fundamental entre as pessoas é formado pelo amor.

Existem famílias que nadam contra a corrente. Essas famílias assumiram integralmente
o primeiro dever dos pais, aquele que justifica a existência da própria família: a educação
de seus filhos. Os resultados, repetidos aos milhões, são os mais impressionantes
possíveis e mostram a formação de uma nova geração de pessoas, que não apenas têm
desempenho acadêmico e profissional acima da média, mas também são mais felizes e
seguros, pois a base moral e intelectual de sua vida foi construída num ambiente de amor,
respeito e compreensão.

Existem várias teorias, ideologias e filosofias educacionais, muitas vezes totalmente


incompatíveis umas com as outras. Por isso, não há nem nunca haverá um mínimo de
190

consenso sobre o tipo de educação ideal, até porque é impossível existir um modelo único
que sirva para todas as crianças e todas as famílias. Então, no meio dessas divergências
insolúveis, quem deve ter a última palavra quanto ao tipo de educação a ser dada às
crianças?

Vejam os resultados que mais aparecem no Google quando se pesquisa a expressão "a
escola me faz...". Pois é, há muito sofrimento envolvido no sistema escolar. Precisamos
começar a levar isso a sério.

Para a quase totalidade das famílias, a escola é apenas um lugar para deixar os filhos
enquanto pai e mãe trabalham ou realizam outras atividades. Talvez essa seja a real função
social da escola: dar um descanso aos pais.

Esqueçam por um momento a ideologia de gênero e tentem responder a uma relevante


questão preliminar: a educação sexual dada a crianças (muitas vezes de apenas nove anos
de idade) não seria uma forma de erotização precoce?

Para que serve a educação em uma democracia?

Na minha opinião, para prover os eleitores de um "detector de merda". Sim, é isso mesmo!
Cotidianamente, os políticos abusam da retórica e do marketing para manipular os
eleitores. Um povo bem-educado, especialmente em lógica e retórica, tem a capacidade
de identificar esse tipo de discurso e desmascará-lo, protegendo-se da manipulação.
Obviamente, ainda estamos muito longe disso.

A educação católica bem-sucedida é aquela que conseguiu produzir na criança o desejo


de ser santa.
191

Se você se identifica com a filosofia de Rousseau e tem filhos pequenos, considere adotar
o unschooling. A obra "Emilio", de Rousseau, é a primeira a advogar uma educação
natural, absolutamente centrada nos interesses e necessidades das crianças.

A educação domiciliar brasileira não tem rumo, não tem direção. Cada família deve ser
livre para escolher seu próprio destino.

Minha filosofia educacional em três palavras: soberania educacional da família.

Não importa o formato, o meio de vida e a visão de mundo - as decisões educacionais


cabem aos pais. Isso vale tanto para a família anarquista, esotérica e alternativa quanto
para a família tradicional cristã, passando pelos mais diversos estilos e modos de vida
imagináveis.

Como apoiar a educação domiciliar

1. Localmente: forme associações municipais de famílias educadoras. Em cada


Município, representantes dessa associação poderão visitar o Conselho Tutelar, o
promotor e o juiz para explicar o que é educação domiciliar. Além disso, a associação
deve buscar influenciar ativamente a eleição dos conselheiros tutelares.

2. Regionalmente: forme associações estaduais de famílias educadoras. Visitem a


Secretaria de Educação. Busquem apoio na Assembleia Legislativa: proponham para um
deputado estadual um projeto de lei que permita expressamente a educação domiciliar no
estado.

3. Nacionalmente: apoiem, com recursos humanos e financeiros, a Associação Nacional


de Educação Domiciliar, que tem trabalhado incansavelmente no Congresso Nacional, no
STF e na mobilização em todo o País. Além disso, é possível a fundação de associações
específicas, como de homeschoolers cristãos ou de unschoolers, que atuariam de modo
articulado.

Como agir? Sugestões para as famílias educadoras


192

1. Informe-se, conheça seus direitos. Você precisa estar apto a responder eventuais
questionamentos, principalmente do conselho tutelar.

2. Registre tudo o que você estiver ensinando a seus filhos. Seja capaz de provar que você
está educando seus filhos em casa.

3. Se for necessário, busque a ajuda de especialistas

3.1 Cursos a respeito de educação domiciliar

3.2 Coaching

3.3 Advogados: necessários apenas para os raros casos de famílias que são intimadas por
promotores ou juízes. Curso de Direito Educacional começa dia 28 de abril: indique o
curso para um advogado amigo da família.

3.4 Psicólogos: caso seu filho esteja na escola sofrendo abusos, negligências e maus-
tratos, requeira um laudo a um psicólogo de confiança. Isso poderá ser bem útil quando a
família for questionada a respeito da opção pela educação domiciliar. Está em formação
a Rede de Proteção às Crianças Vítimas da Escola, composta por psicólogos, psiquiatras
e psicopedagogos.

Estão se multiplicando os casos pelo País de pais que decidiram pela educação domiciliar
porque a escola é motivo de profundo sofrimento para seus filhos. Nesses casos, um laudo
de psicólogo atestando a incompatibilidade da criança com o ambiente escolar aumenta
bastante a segurança da família contra eventuais questionamentos. O problema é que a
grande maioria dos psicólogos têm mentalidade totalmente escolarizada, desconhecendo
por completo o homeschooling. Precisamos de psicólogos com a mente aberta e que
estejam dispostos a auxiliar essas famílias.
193

Apêndice 2: Carta do Rio de Janeiro sobre direitos humanos e educação domiciliar

Os Princípios do Rio

Introdução
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao reconhecer o direito à educação,
proclama que deve ser dirigida “para o pleno desenvolvimento da personalidade humana
e ao reforço do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais” (Artigo 26.2).
Através da pessoa, a educação afeta famílias, bairros, vilas, cidades, estados, culturas,
nações e o mundo inteiro.

Para satisfazer a obrigação de garantir a liberdade e os direitos humanos, o Estado deve


respeitar e proteger a liberdade fundamental da educação. Isso significa não apenas
reconhecer a educação como um direito em si, mas também entender a educação como
mais que escolaridade, mais que fatos e mais que o conhecimento, vendo nela o meio pelo
qual uma pessoa ganha a capacidade de expressar a si mesma, de se envolver em
comunicação com o mundo, e de buscar a boa vida, o bem comum e a felicidade humana.

O Estado pode fornecer oportunidades educacionais, mas somente a pessoa pode


desenvolver seu potencial através da educação. O Estado deve respeitar a pessoa, a
família, o contexto cultural e o direito do indivíduo e dos povos à autodeterminação.
Como demonstra a dramática história do Século XX, a falta de tal respeito leva facilmente
ao abuso do poder do Estado, transformando a educação obrigatória em doutrinação
ideológica totalitária que destrói em vez de desenvolver a personalidade humana. Para
evitar a repetição daquele “desprezo e desrespeito pelos direitos humanos, que resultaram
em atos bárbaros que têm ultrajado a consciência da humanidade”, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos solenemente proclamou que ”os pais têm prioridade de
direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos”". O respeito
a esse direito fundamental da família na educação é, portanto, pré-requisito necessário
para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática.

Este dispositivo dos direitos humanos universais deve ser entendido e implementado na
sua ligação com outras disposições fundamentais da Declaração Universal, como a do
artigo 16.3, que afirma “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem
194

direito à proteção da sociedade e do Estado”, e do artigo 18 proclamando que “toda pessoa


tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui ...
liberdade, tanto de forma individual ou em comunidade com outros em público ou ... no
ensino”. Esses dispositivos devem ser vistos como a base autoevidente para interpretar e
aplicar todos os instrumentos de direitos humanos internacionais e leis nacionais.

Os seguintes princípios da jurisprudência dos direitos humanos internacionais relativas


ao papel da família na educação são essenciais para o cumprimento da promessa de
liberdade e dos direitos humanos. Esperamos que todas as culturas, povos, nações e
Estados terão em conta estes princípios que foram desenvolvidos ao longo do tempo e
são lembradas aqui. A aplicação destes princípios pode ajudar o mundo a cumprir a
promessa de liberdade e prosperidade humana.

Finalmente, os Princípios do Rio refletem o estado atual da jurisprudência internacional


dos direitos humanos em relação a questões de educação no lar. Eles também afirmam
normas jurídicas internacionais obrigatórias com as quais todos os Estados devem
respeitar.
195

Princípio 1: A dignidade humana

Todos os seres humanos são dotados de dignidade inerente e de direitos inalienáveis, que
lhes dão liberdade e igualdade de tratamento perante a lei.

Os Estados deverão:

a) incentivar arranjos educacionais que promovam a dignidade humana,


especialmente aqueles que reconhecem a singularidade de cada ser humano e a
consequente necessidade de uma abordagem individualizada para a educação;

b) respeitar e proteger a liberdade de educação como uma consequência necessária


da dignidade humana que permite a cada pessoa a busca da formação educacional
mais benéfica para o desenvolvimento de sua personalidade única.

Princípio 2: O melhor interesse da criança

A consideração primária de ações relativas às crianças é o seu melhor interesse. Presume-


se que os pais de uma criança agem em conformidade com esses interesses até que o
oposto seja devidamente comprovado perante um tribunal competente.

Os Estados deverão:

a) evitar que as instituições sociais, incluindo as agências de assistência social e infantil,


as escolas e os orfanatos desrespeitem a dignidade das crianças, garantindo que a sua
primeira e principal preocupação seja o bem-estar das crianças e preparação para viver na
sociedade de acordo com suas personalidades únicas;

b) abster-se da imposição de um modelo educacional padronizado para todas as crianças


em desrespeito da situação real de cada criança individual;

c) proteger os métodos de ensino que respeitem e operam sobre o princípio de uma


educação individualizada;

d) reconhecer que os pais da criança estão geralmente em melhor posição para determinar
o melhor interesse de seus filhos, em comparação com o Estado ou a qualquer outra
instituição social;

e) presumir que as decisões dos pais são para o melhor interesse das crianças, a menos
que o contrário é justamente provado por um tribunal competente, e garantir que todas as
instituições estatais e sociais seguirão esta presunção em prática.
196

Princípio 3: Proteção da família

A família é a unidade fundamental da sociedade e tem direito à proteção pelo Estado. Ela
tem um papel único e autoridade especial em relação à educação das crianças.

Os Estados deverão:

a) respeitar e incentivar o cumprimento dos papéis familiares em relação à educação


dos filhos;

b) em conformidade com o princípio da subsidiariedade, intervir em tarefas típicas da


família apenas nas situações em que foi justamente provado que a família não tem
condições de cumpri-las;

c) abster-se de interferir na privacidade da família, a não ser em situações em que há


uma violação substancial comprovada dos direitos da criança e somente após o devido
processo legal;

d) reconhecer o papel especial e essencial da família na educação da criança e em


particular o direito dos pais de escolher o tipo de instrução que será ministrada a
seus filhos.

Princípio 4: O Estado imparcial

O Estado deve ser imparcial e, portanto, não impor qualquer visão particular sobre a
questão da boa vida, reconhecendo que as famílias são livres para definirem suas próprias
concepções filosóficas, morais e religiosas sobre a boa vida.

Os Estados deverão:

a) respeitar e proteger o papel único e prioritário dos pais na transmissão dos valores
morais e religiosos a seus filhos;

b) abster-se de qualquer tipo de discriminação em razão da religião, visão de mundo


ou filosofia;

c) reconhecer o direito à objeção de consciência quando uma provisão geral conflita


com os valores fundamentais da família.
197

Princípio 5: O respeito pela diferença

Todos os indivíduos e grupos têm o direito à sua própria identidade étnica, cultural e
religiosa. O Estado deve respeitar essa diversidade legítima.

Os Estados deverão:

a) respeitar a legítima diversidade de identidades étnicas, culturais e religiosas;

b) reconhecer o fato de que os seres humanos, naturalmente com diferentes


identidades e valores étnicos, culturais e religiosos e viver de acordo com eles, têm o
direito de viver em paz;

c) proteger a igualdade em dignidade e direitos para os indivíduos e grupos,


especialmente as famílias;

d) reconhecer a educação como uma parte essencial da transmissão de cada cultura


particular e, portanto, permitir que todas as unidades culturais, especialmente a
família, a maior liberdade na educação, respeitando as normas mínimas que possam
ser legitimamente estabelecidas ou aprovadas pelo Estado.

Princípio 6: Liberdade de pensamento, consciência e religião

"Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este


direito deve incluir (...) individualmente ou em comunidade com outros e em público ou
privado, de manifestar sua religião ou crença em adoração, observação, prática e ensino”
(Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, Art. 18, 1).

Os Estados deverão:

a) não interferir com a liberdade de pensamento, consciência e religião,


individualmente ou em grupos, especialmente as famílias, na educação, exceto
quando, por meio de lei aplicada após o devido processo legal, restrições forem
absolutamente necessárias para proteger a segurança pública, a ordem, a saúde ou a
moral ou os direitos e liberdades de outrem;

b) proteger e respeitar os direitos dos pais a:

I) organizar a vida no seio da família, de acordo com a sua religião ou crença


com a plena proteção do direito à privacidade;

II) escolher livremente o tipo de instrução que será ministrada a seus filhos, o
198

que significa escolher entre as diferentes abordagens educacionais, incluindo


educação em casa;

III) dar a educação religiosa e moral em que eles acreditam que a criança deve
ser educada;

c) não impor encargos desnecessários às crianças ou os pais, seja direta ou


indiretamente, como resultado do seu exercício da liberdade de ensino ou a sua
escolha de educação domiciliar.

Princípio 7: Os direitos culturais

“Toda pessoa, individualmente ou em comunidade com outros, tem o direito de ter sua
própria cultura respeitada” (Declaração de Friburgo, Art. 3).

Os Estados deverão:

a) não impedir a transmissão das heranças culturais para as gerações presentes e


futuras;

b) não se envolver em assimilação forçada de uma pessoa ou um grupo em uma


comunidade cultural através da utilização de frequência obrigatória de uma escola ou
outros meios impostos pelo Estado;

c) respeitar e proteger a liberdade de seguir um modo de vida e modalidade de ensino


associado à valorização de seus valores culturais;

d) reconhecer que a educação contribui para o livre e pleno desenvolvimento da


identidade cultural;

e) respeitar os pais da criança e da identidade cultural dos pais e da família;

f) reconhecer que tanto a religião quanto as abordagens educacionais preferenciais


pode constituir um elemento importante da identidade cultural;

g) reconhecer a família como a comunidade cultural mais fundamental que tem a


tarefa essencial de direcionar o desenvolvimento da identidade cultural de sua prole.

Princípio 8: Direitos parentais

Os direitos dos pais são direitos fundamentais derivados do simples fato de ser pai ou
mãe. “Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será
199

ministrada a seus filhos” (DUDH, Art. 26.3). O Estado respeitará e protegerá os direitos
fundamentais dos pais e sua primazia vendo-os como uma condição necessária para o
bem comum e o desenvolvimento genuíno da pessoa e da sociedade.

Os Estados deverão:

a) reconhecer que o livre exercício dos direitos dos pais é necessário para proteger os
direitos e interesses genuínos de uma criança, bem como manter a diversidade
educacional que é necessária em uma sociedade livre e pluralista;

b) respeitar, proteger e promover o direito dos pais a “escolher o tipo de instrução que
será ministrada a seus filhos”, incluindo a educação em casa (DUDH art. 26.3,
Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos; Art. 13.4,
Carta Africana sobre os Direitos e Bem-Estar da Criança);

c) respeitar o direito dos pais “de fornecer, de uma forma consistente com as
capacidades em desenvolvimento da criança, direção e orientação apropriadas no
exercício pela criança dos direitos reconhecidos na presente Convenção” (Convenção
das Nações Unidas sobre os Direitos da criança, Art. 5);

d) respeitar a liberdade dos pais e tutores legais para assegurar a educação religiosa e
moral dos seus filhos de acordo com suas próprias convicções religiosas, filosóficas
ou pedagógicas (PIDCP 18,4, Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos
Humanos e das Liberdades Fundamentais Protocolo 1, Art. . 2);

e) respeitar a liberdade dos pais e guardiões de escolher escolas diferentes dos


estabelecidos pelas autoridades públicas (PIDESC 13.3), incluindo o seu direito de
fixar livremente e governar suas próprias escolas ou outros estabelecimentos de
ensino, sem enfrentar restrições ou encargos indevidos;

f) reconhecer que “a educação da criança deverá ser dirigida ao desenvolvimento do


respeito pelos pais da criança, a sua própria identidade cultural, língua e valores, pelos
valores nacionais do país em que a criança está vivendo, o país de onde ele ou ela
poderá se originar, e pelas civilizações diferentes do seu próprio "(CDC, art. 29; a
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas Indígenas 13, 14);

g) reconhecer que os pais são os primeiros educadores dos seus filhos e que a
educação em casa é um meio legítimo pelo qual as crianças podem ser educadas;

h) respeitar e assegurar o caráter prévio e primazia dos direitos e deveres dos pais e
200

tutores legais, prestando assistência na educação apenas a pedido dos pais e


responsáveis legais.

Princípio 9: O direito à educação

“Toda pessoa tem direito à educação” (DUDH, Art. 26.1). O respeito pela liberdade de
educação implica que o Estado não pode preferir um método educativo ou abordagem
especial, incluindo frequência obrigatória em uma instituição operada pelo governo.

Os Estados deverão:

a) distinguir entre o ensino obrigatório e escolaridade obrigatória;

b) não exigir ou dar preferência pela presença obrigatória em qualquer escola em


particular, sempre que o ensino obrigatório seja legitimamente imposto pela
legislação nacional;

c) respeitar que “o foco da educação básica deve ser, portanto, no momento da


aquisição real de aprendizagem e resultados, e não exclusivamente no momento da
inscrição, participação contínua em programas organizados e conclusão dos requisitos
de certificação” (Declaração Mundial sobre Educação para Todos, Art. 4);

d) assegurar que, no exercício da liberdade de ensino, famílias, pais e filhos não


enfrentarão quaisquer ônus ou restrições adicionais que não estejam em conformidade
com as normas mínimas legitimamente estabelecidas ou aprovados pelo Estado;

e) reconhecer que a educação inerentemente comunica normas e valores, e, por essa


razão, respeitar a autoridade exclusiva dos pais para estabelecer o tipo de instrução
que será ministrada a seus filhos;

f) garantir “a mais ampla proteção possível (...) à família, que é o núcleo natural e
fundamental da sociedade, em particular para o seu estabelecimento embora seja
responsável pelo cuidado e educação dos filhos dependentes”(Pacto Internacional
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Art.10);

g) reconhecer a família como a instituição de ensino primordial e fundamental.

Princípio 10: O direito à educação domiciliar

O direito à educação domiciliar é o direito fundamental das famílias, das crianças e dos
pais claramente derivado de todos os direitos acima mencionados e implícito neles,
201

especialmente na liberdade de pensamento, consciência e religião, nos direitos culturais


e nos direitos dos pais. Portanto, o dever dos Estados de respeitar e garantir este direito é
uma parte necessária das suas obrigações de acordo com os padrões universais de direitos
humanos.

Os Estados deverão:

a) reconhecer explicitamente na sua legislação interna o direito de todos os pais a


escolherem livremente a educação domiciliar para os seus filhos;

b) respeitar e proteger a liberdade dos pais para escolherem a abordagem pedagógica


na educação domiciliar;

c) não interferir na educação em casa, exceto em casos de grave violação dos direitos
de uma criança que causaram danos substanciais e que tenham sido justamente
comprovadas após o devido processo legal;

d) impedir qualquer discriminação no que diz respeito ao acesso ao ensino superior e


ao emprego em razão da escolha da educação, incluindo a escolha da educação
domiciliar;

e) proteger a liberdade de exercer atividades de educação casa a qualquer momento,


sem encargos indevidos sobre a criança ou os pais. ccxliii

Apêndice 3: Depoimentos de famílias que optaram pela educação domiciliar

“Procurávamos para nosso filho um desenvolvimento livre e afirmativo e condizente com


nossos princípios de vida.

Procurávamos um tipo de desenvolvimento onde a criança pudesse ‘caminhar’


livremente entre o idoso, o adolescente, o adulto e as outras crianças e pudesse ser livre
pra ser gentil com todos, sem conviver apenas com “seus iguais” aprendendo
inconscientemente a estratificar o convívio, sendo um com seu colega, um com o adulto
e um com o ‘velho’.

Procurávamos um tipo de desenvolvimento onde nosso filho fosse livre para encontrar
suas potências com respeito aos interesses que ele mesmo sempre demonstrou. Um onde
tivéssemos a intervenção de apenas criar as condições para o livre aprendizado. Esse onde
202

tudo acontece tão espontaneamente que nós, escolarizados, ficamos admirados e


maravilhados, por termos sido tão incrédulos ante essa possibilidade.

Procurávamos um desenvolvimento onde tivéssemos a certeza de que nosso filho não


seria excluído por conta de nossa opção alimentar nem que fosse cooptado pela péssima
alimentação industrial para crianças pelo ‘desejo de entrar pra turma’, ou pela “vergonha
de não ser diferente, ou pelo bullying.

Procurávamos um tipo de desenvolvimento onde a liberdade para escolher o que quer


priorizar, o que quer aprender, o que fazer e o que quer SER! fosse plenamente respeitado.

Procurávamos um desenvolvimento com respeito pleno à Natureza com compaixão à


todos os seres viventes aceitando a Luz que toda forma de vida tem. Um desenvolvimento
junto à natureza para nela observar e apreender os processos envolvidos e frear assim o
aquecimento global, criando um profundo senso de amor e respeito à vida e a esses
processos... um fim real ao aquecimento...

Não encontramos nada disso na escolarização. Nada.

Encontramos tudo isso no Unschooling.

Para essa família (sublinhe-se: para essa família) essa é a opção. É isso que queremos e
é para isso que vivemos.

E é tudo pelo mais sublime amor.”

(William Germano e Daisy Godoi, pais de Bento, dois anos)

“Escolhemos educar nossos filhos em casa pois cada um deles tem necessidades
específicas e respeitamos cada uma delas. Do mesmo jeito que há habilidades e
capacidades genuínas oriundas de suas próprias especificidades há por sua vez
dificuldades que só serão superadas caso haja uma direção precisa. Além disso temos a
educação deles como nossa missão e desejamos fazê-lo em conformidade com nossa fé”.
203

(Gustavo e Milene Góes)

“Meu nome é Renata, sou mãe de 3 meninos, 13,12 e 5 anos. O mais velho frequentou a
escola por 6 anos, o de 12 anos, frequentou por 5 anos, o mais novo nunca foi. Decidimos
tirá-los da escola por vários motivos. Meu filho mais velho que amava ler, aprender, era
supercurioso, estava indo por um caminho de total desinteresse por qualquer estudo. Isso
por querer ser parecido com os amigos, queria se enturmar, como era o único chamado
de ‘nerd’, preferiu perder sua autenticidade que ficar isolado. Eu assistia a isso
desesperada. Enquanto isso, meu filho de 12, com 9 na época, odiava a escola. Durante
os 5 anos que frequentou, me pedia todos os dias para faltar, além de ter crises de
ansiedade, adoecer muito e não ter um só amigo. Sempre foram ótimos alunos, com boa
reputação diante dos professores, mas eu vi que isso não seria bastante para proteger a
personalidade de cada um. Quando resolvemos mesmo tirar, a situação estava
insustentável. Então, mesmo contra a família e alguns amigos, eu e meu marido optamos
pelo homeschool. Os problemas de autenticidade, personalidade, tudo se resolveu em
menos de um mês com o Ensino Domiciliar. Conseguimos incentivá-los a serem quem
são, não há pressão para serem aceitos, sabem que são amados, aprendem naturalmente,
instintivamente. Estudamos juntos, somos unidos, não consigo ver nenhum só malefício
no homeschool. Agradeço a Deus, por colocar pessoas em minha vida que me mostraram
que isso era possível!”

(Renata Correa)

“Cada família em si, agrega valores baseados no que ela crê ser melhor para todos os seus
membros. Ao passo que, cada indivíduo também tem suas próprias idiossincrasias, e por
isso, requer algo específico para seu desenvolvimento, bem-estar e até mesmo para
contribuir com o meio onde vive.

Por isso, acreditamos valer a pena, usufruir do direito de poder assistir de maneira mais
proveitosa e participativa da formação acadêmica do nosso filho. Tendo em vista, que
cabe aos pais, a obrigação de educar e formar o caráter dos filhos, com base em valores
que achamos necessário preservar, um legado para eles.
204

Acreditamos que, esta modalidade de ensino é um presente de Deus, para os pais e para
os filhos. Porque resgata a essência da família, a união, a cooperação e sobretudo, os laços
que têm se desfeito, pela ausência que acaba por facilitar a estranheza entre os membros
da mesma família. Muitas vezes só se veem no final do dia, já cansados, ou até estressados
pela agitação e correria.

Podemos usufruir da companhia uns dos outros, vendo de perto nossos filhos crescendo,
conhecendo cada vez mais de suas reações diante de várias situações, e assim saber em
qual precisam de mais apoio e atenção. Enquanto eles aprendem a ver em nós, como lidar
com diversas dificuldades, podendo também conhecer nossas fraquezas, entendendo
assim, que todos têm algo a aprender sempre. Isso os tornará pessoas maduras, sensíveis
e capazes de ter empatia para com os outros.

Acima de tudo, ele está desenvolvendo sua capacidade de aprender e de buscar o


conhecimento para sua formação intelectual, e não receber tudo pronto. Isso é nada mais,
nada menos, que ter liberdade, senso crítico, poder tirar suas próprias conclusões, sem
manipulação ou influência de mídias, etc.

O nosso filho (Lucas), completará 10 anos em agosto, foi alfabetizado em casa, gosta
muito de leitura; é bastante curioso. Quando desperta interesse por algo, pesquisa em
todos os meios, e gosta de falar do conhecimento adquirido para outras pessoas.

Estamos muito felizes, participando, acompanhando o crescimento físico e a capacidade


de aprender, de guardar informações úteis e necessárias para seu desenvolvimento.

(Carlos Jorge de Deus e Catarina Inez F. de Deus/Belo Horizonte MG)

“Escolhi educar meus filhos em casa por que anseio que o Estado me permita e dê
condições de exercer um direito que me é inerente. A Constituição Federal e o Código
Civil me garantem o direito de prover a educação dos meus filhos. Não sou obrigada a
aceitar que o Estado venha a intervir nos meus princípios, prioridades e escolhas de
interesse da minha família. Em um momento social e político em que a família não é mais
reconhecida como base da sociedade, exijo o mínimo de proteção ao meu âmbito familiar,
de maneira que eu possa promover a educação dos meus filhos sem que os nossos
princípios sejam violados nem o nosso poder familiar retirado.”

(Mayres Pereira)
205

“Por que educo meus filhos em casa?

Poderia alegar diversas razões, mas creio que a principal delas é a tranquilidade, a
harmonia que o ambiente doméstico proporciona. O lar é um ambiente educativo em
tempo integral. Nele, pais e filhos estão em comunicação constante, e esta é de natureza
instrucional. Estudar em casa é uma responsabilidade mais séria que delegar a outrem em
ambiente externo ao lar, pois os pais tornam-se pesquisadores no anseio de oferecer um
ensino melhor aos seus filhos. Hoje, estamos diante de uma realidade diferente. Temos
boa formação e cultura de estudo não como obrigação, mas como algo necessário para
nos tornar ainda mais aperfeiçoados. Nós estudamos mais, investimos em tecnologias e
em alta cultura nos nossos lares, portanto, podemos ir além da escola. Para os educadores
domiciliares, o conceito de escola é ampliado. A escola é o mundo a ser investigado sob
as lentes da verdade, da beleza e da bondade.”

Silvailde S. M. Rocha (Mestre em Educação, pedagoga).

“Minha filha frequentou a escola desde os 3 até os 8 anos. Primeiramente, frequentou


uma das melhores e mais tradicionais escolas do interior de São Paulo, uma escola
Católica que ocupava um quarteirão inteiro com quadras, piscinas...enfim. Nos 3 anos
que ela frequentou essa escola, não aprendeu nada. Nenhuma das crianças sabia ler ou
escrever seu nome até o primeiro ano (antiga 2ª série) e não souberam explicar por quê.
Suspeito que era a professora desmotivada e sem muita vocação. Gritava e repetia, sem
explicar nada. O salário era baixo, me contaram. Tirei ela da escola depois da
“formatura”. Nos 6 meses que ficou em casa, aprendeu a ler frases simples, adição e
subtração e várias outras coisas. Depois ela frequentou outra escola particular com uma
professora ótima. Ali ela aprendeu a realmente ler e escrever, nos últimos 6 meses do
mesmo ano. No ano seguinte, teve um professor que, novamente, não conseguiu dar
continuidade e ela começou a perder o interesse. A coitada ficava mais tempo tentando
controlar a sala cheia de alunos do que ensinando. O sistema “copiar do quadro” nunca
funcionou. Depois mudamos para o campo e ela frequentou uma escola pública. Lá, ela
sofreu bullying (que disse que ‘aguentada’) e não aprendeu absolutamente nada, embora
considerassem ela ‘a melhor aluna da sala’. Ela começou a faltar e ficar na rua para não
ter que continuar na escola. O choro antes de sair era tanto, que perguntei: vamos parar?
Sim, ela falou, e nunca mais voltou atrás. Resumindo, o sucesso da educação acadêmica
206

parece depender do professor. Como eu já sou professora, prefiro dar o meu melhor e
educar a minha filha onde ela quer aprender e estudar.”

(Cipriana Leme)

“Meu filho iniciou os estudos em escola normal aos quatro anos. Tinha lido que meninos
se adaptavam com mais dificuldade à escola antes desta idade, portanto, esperei e
enquanto isso, fazia homeschooling e nem sabia!

Ele foi estudar em uma escola com pedagogia freinetiana, cuja metodologia me pareceu
muito adequada ao meu pensamento. Escola fofa, tudo lindinho, arrumado, a diretora me
mostrou como uma escola poderia ser um sonho. Pois é, era um sonho mesmo. A
pedagogia fica nos livros, a mesmice na prática. Ele não se adaptava, chorava, não comia,
não respondia a nada. Estava me separando à época, então, segundo terapeutas, era esse
o motivo. No ano seguinte, mudei de escola, ele foi para uma de pedagogia naturalista,
que é um mix de tudo e nada ao mesmo tempo. Nada parecia ter mudado, sempre o levava
à força. Nesta escola ele migrou da letra caixa alta para a cursiva e tudo piorou, teve crises
intensas. Aos seis anos ele mudou novamente de escola, foi para uma conteudista,
tradicional. Se antes ele ia berrando para a escola, agora ele ia arrastado, babando,
gritando, esperneando. Eu o deixava aos prantos no chão. O que eu ouvia? “Mãezinha,
basta você sair que tudo melhora”, o que pode ser traduzido como: menino mimado, a
culpa é sua, você o protege demais, vê se melhora.

No dia 27 de fevereiro de 2013, em um programa de televisão, eu ouvi uma entrevista


com várias mães de crianças autistas, com vários graus. A ficha caiu. Nenhuma escola
que meu filho frequentou teve a capacidade de notar qualquer particularidade, qualquer
deficiência, qualquer coisa nele, ou seja, ignoraram um ser humano. Todas atribuíam seu
comportamento ao fato de eu ter sido mãe mais velha, ao fato de ser mãe sozinha, ao fato
de não ter um pai presente, a separação, a qualquer coisa, menos a uma deficiência! Isso
foi tão forte que eu já havia me convencido que eu era mesmo o problema. Sou graduada
em Biologia, com doutorado em Ecologia, estudei muito, mas era igualmente ignorante.
Ignorei minha intuição e segui o pensamento limitado das pedagogas e terapeutas. Meu
filho tem a síndrome de Asperger, um grau mais leve de autismo, é verbal,
inteligentíssimo, não-sociável, não senta em cadeira, não mente, é literal, não entende
metáforas, hipersensível a cheiro, sons, coisas comuns para um Asperger. Receber o
207

diagnóstico foi um alívio diante das atrocidades cometidas em nome do ensino


tradicional, e enfim eu tinha descoberto, a escola estava errada! O legado desta escola foi
o significado do abandono, da discriminação, da agressão verbal e física.

Ensinar em casa complica minha vida profissional, com certeza, por que eu sou a
provedora desta casa. Mas no ensino domiciliar ele é respeitado, ele é ouvido. As crises
sumiram, ele adora ler, adora aprender, está feliz. O que pode uma mãe querer mais na
vida que a felicidade de um filho? Pode detestar ainda a tabuada, mas sabe a composição
química do sol, sabe o que é um átomo, identifica constelações no céu, conhece unidade
de medida, fala um português corretíssimo. Mas não sabe tabuada, diriam alguns. Não
sabe e não quer saber, tem calculadora pra isso, ele diz. E ele está certo.”

(Adriani Hass)

“Decidir que meus filhos fossem educados em casa não foi um mar de rosas.

Muita reflexão e pesquisa. Conversas que entravam pela noite com meu marido. Dia sim,
dia não, mas por muito tempo investigamos a respeito da famosa educação domiciliar.

E entendemos uma coisa, que as famílias que optam pelo método não fazem por capricho
ou moda, mas porque chegaram à conclusão de que é o melhor para os seus filhos.

Não é para menos. A quantidade de informação é tamanha que você logo se convence de
que há mais vantagens que desvantagens. Daí até tomar a decisão, é outra história...

Mas eu e meu esposo decidimos, e respondo minhas razões porque educo meus filhos em
casa:

- É possível acompanhar a formação de cada um e ir cuidando caso a caso, o que não é


possível numa sala de aula, que geralmente tem, por baixo, dez alunos;

- Não precisa de lugar fixo para estudo. E isso, acreditem, faz muita diferença, porque
renova a motivação para aprender. Não que se acontecerá sempre em um lugar diferente,
mas tem mais liberdade, obviamente;

- As matérias não se prendem a grades pré-determinadas, pois podemos ir também


conforme a curiosidade de cada criança, sem pressa e pressão. Minha filha de 4 anos, por
exemplo, notou a diferença nas formas que a lua tomava algumas vezes. Pronto: de forma
208

que ela pudesse entender, ensinamos as fases lunares, o movimento da terra... e hoje ela
já tem ideia de que existem outros planetas e que giramos ao redor do sol, etc. Ainda
falaremos muito disso...

- Acredito que o investimento nas nossas mãos será melhor aplicado. E acabamos
economizando bastante, sem dúvida.

Ainda existem outras vantagens, é claro.

Mas paro pra continuar com motivos que foram decisivos.

Sabemos que na escola podem até ter professores muito bons, mas também existem
alunos que não querem aprender, cujos pais não são presentes em suas vidas e, com isso,
podem destoar um pouco e levar os outros alunos a se dispersarem também. Sem falar
nos casos que ouvimos de palavrões e historinhas nada adequadas à idade que algumas
dessas vítimas de maus pais levam pra escola. Isso é triste, mas é uma realidade.

Os pais, às vezes, optam por educar, porque eles não podem obter um lugar para o seu
filho em uma escola de sua escolha.

Se se acredita que a escola tem o dever de transmitir valores às crianças enquanto os pais
não levam à sério a própria missão, então tenho a alegria de pensar diferente e poder fazer
minha escolha!

Quando você passa a ensinar em casa, volta inevitavelmente para o conceito de família.
Posso, assim, trabalhar melhor a ideia de companheirismo, compromisso, paciência,
modéstia e valores necessários a qualquer pessoa em desenvolvimento.

De outra forma, as crianças podem crescer e não apreciar verdades atemporais na primeira
infância.

Destarte, é compreensível que às vezes os pais sentem que os métodos de ensino e


orientação na escola_ pra fecharmos só nisso_ não são adequados para o seu filho e que
eles podem proporcionar uma educação melhor para eles no lar.

Outra coisa é que eu amo a flexibilidade que a educação em casa traz!

É muito animador para mim não só passar mais tempo com meus filhos, mas também
olhar para eles e vê-los aprender e aprender com eles!
209

É uma satisfação saber o quão feliz eu posso torná-los a despeito do mundo ao seu redor.
É coisa de mãe protetora? Pode ser, mas sei que não sou nenhuma neurótica a ponto de
privar meus filhos de novas experiências. Aliás, uma das coisas que a educação domiciliar
mais proporciona é isso: experiências. Sobretudo, experiências com mais cuidado, para
pais que não querem ver seus filhos se perderem para ideologias sem moral do mundo.

Incluo sem pusilanimidade aqui toda a problemática que as escolas brasileiras têm tido
com a doutrinação esquerdista, declarada e destemida.

Certamente, isto é justificativa das mais perfeitas para optar pelo homeschooling.

Por fim, ter a chance de ensinar-lhes como aprender qualquer coisa por si mesmos é de
uma alegria difícil de dimensionar! Educar minhas crianças em casa é ver a recepção de
conhecimentos com liberdade para desenvolverem seus próprios talentos, sem serem
moldados da mesma forma, como frequentemente acontece na sala de aula.”

(Yandra Maria da Silva)

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i
A tradução dos Princípios do Rio consta do Apêndice 2 deste livro.
ii
Tradução realizada por João Paulo Magalhães Arumaa e revisada pelo autor.
iii
Aquarela. Toquinho. Álbum: Aquarela, 1983.
iv
“Não precisamos de nenhuma educação
Não precisamos de controle mental
Chega de humor negro na sala de aula
Professores, deixem as crianças em paz
Ei! Professores! Deixem essas crianças em paz!
Tudo era apenas um tijolo no muro
Todos são somente tijolos na parede”
Another Brick in the Wall é uma faixa do álbum The Wall, da banda inglesa Pink Floyd. A letra e a tradução
estão disponíveis no site http://www.vagalume.com.br/pink-floyd/another-brick-in-the-wall-traducao.html,
acessado em 14 de agosto de 2015.
v
Lista feita pela revista Rolling Stone em 2004. Disponível em
http://web.archive.org/web/20080621075825/http://www.rollingstone.com/news/coverstory/500songs/pag
e/4, acessado em 14 de agosto de 2015.
vi
Um exemplo nítido dessa confusão entre instrução e escolarização é a intepretação doutrinária geralmente
feita do art. 246 do Código Penal (“Abandono intelectual Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à
instrução primária de filho em idade escolar: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa”), por
meio da qual “deixar de prover a instrução” torna-se, num passe de mágica, “deixar de matricular na
escola”.
vii
Vide, a esse respeito, a obra “Professor não é educador”, de Armindo Moreira (Ed. Edesio, 2013).
viii
Essa pluralidade semântica é bem demonstrada pela existência dos seguintes sinônimos do termo
“educação”: “instrução, ensino, disciplinamento; preparação, adaptação: ‘Educação disciplinar e sólida’
(E. Cunha). Civilidade, polidez, delicadeza, urbanidade, cortesia” FERNANDES, Francisco. Dicionário de
sinônimos e antônimos da Língua Portuguesa, p. 294. Editora Globo: Porto Alegre, 1974.
ix
“Nenhuma área do desenvolvimento tem inspirado tanto otimismo quanto a educação. Planejadores e
políticos igualmente, no Sul ou no Norte, têm consistentemente chamado a atenção para o potencial do
investimento educacional para promover ativamente tanto o desenvolvimento nacional quanto o pessoal.
Educação tem sido universalmente retratada como sinônimo de progresso e a falta de educação com atraso.”
(HALL, Anthony L; MIDGLEY, James. Social Policy for Development, p. 142. Londres: SAGE, 2004.)
x
Para o filósofo Immanuel Kant, a educação seria a própria condição para a existência do ser humano como
tal: “O homem só pode tornar-se homem pela educação. Ele é simplesmente o que a educação faz dele.”
(Kant on education, § 7. Boston: D.C. Heath & Co., publishers, 1900.)
xi
KUMAR, Satish; Sajjad, AHMAD. Meaning, aims and process of education. Disponível em
https://sol.du.ac.in/Courses/UG/StudyMaterial/16/Part1/ED/English/SM-1.pdf, acessado em 14 de agosto
de 2015.
xii
A palavra “educação” vem do latim educativo, que significa não apenas “educação, instrução”, mas
também “ação de criar, alimentar; alimentação; criação; cultura”. É significativo ainda que a palavra
educator, que deu origem a “educador” significa “aquele que cria, alimenta; pai; o que faz as vezes de pai.
Aio; preceptor”. Por fim, educo significa “conduzir para fora; fazer sair; tirar de” (TORRINHA, Francisco.
Dicionário Latino-Português, p. 278. Porto: Edições Maranus, 1945).
xiii
MIALARET, Gaston. Introdução à pedagogia, p. 12. São Paulo: Atlas, 1977.
216

xiv
Nesse sentido, entende a Lei de Diretrizes e Bases da Educação: “A educação abrange os processos
formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de
ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”
(Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, art. 1º, caput).
xv
Cf. KUMAR, Satish; Sajjad, AHMAD. Op. cit., p. 6.
xvi
A educação também é vista como um processo bipolar (relação entre dois sujeitos – educador e educando)
e excepcionalmente até mesmo unipolar, em que a transformação interior da pessoa é conduzida apenas por
ela mesma.
xvii
SCRIBNER, Sylvia; COLE, Michael. Cognitive Consequences of Formal and Informal Education.
Science, New Series, Vol. 182, No. 4112, (Nov. 9, 1973), p. 555 (tradução livre).
xviii
A educação informal é indistinguível da vida cotidiana da criança, tanto que é muitas vezes considerada
como sinônimo de socialização e de criação. Nesse sentido, está sempre presente na vida da criança, ao
contrário da educação formal, que pode ou não estar presente. Aliás, a educação informal atua mesmo
quando a criança é submetida à educação formal.
xix
Cf. idem, p. 556.
xx
De acordo com Carlos Rodrigues Brandão, existem quatro sentidos para a expressão “educação popular”:
“1) como a educação da comunidade primitiva anterior à divisão social do saber; 2) como a educação do
ensino público; 3) como educação das classes populares; 4) como a educação da sociedade igualitária.” (O
que é educação popular, p. 5. Disponível em:
http://sitiodarosadosventos.com.br/livro/images/stories/anexos/o_que_ed_popular.pdf. Acessado em 19 de
agosto de 2015.
xxi
“Os cursos de educação à distância que não precisam da certificação do Ministério da Educação e não
dão diploma, os chamados cursos livres, estão sendo mais procurados do que os autorizados pelo MEC.”
(RIBEIRO, Renata. Cursos livres são mais procurados do que os autorizados pelo MEC. Disponível em
http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2012/09/cursos-livres-sao-mais-procurados-do-que-os-
autorizados-pelo-mec.html. Acesso em 19 de agosto de 2015).
xxii
A classificação da educação não formal foi retirada de CARRON, Gabriel; CAR-HILL, Roy A. Non-
formal education: information and planning issues. International Institute for Educational Planning – IIEP
(established by UNESCO). Paris: IIEP, 1991. Disponível em
http://www.unesco.org/education/pdf/26_39.pdf. Acessado em 19 de agosto de 2015.
xxiii
Quadro baseado em SMITH, M. K. (2001). ‘What is non-formal education?’ The encyclopaedia of
informal education. Disponível em http://infed.org/mobi/what-is-non-formal-education/. Acessado em 2 de
outubro de 2015.
xxiv
LIBÂNEO, José Carlos. Didática, p. 23. São Paulo: Cortez, 1994.
xxv
Idem, ibidem. O próprio autor reconhece mais a frente que é possível instruir sem educar. É a situação
em que os conteúdos de uma matéria sejam aprendidos sem a intenção de utilizá-los na vida real. Por óbvio,
qualquer instrução que esteja subordinada à educação, que não vise à vida concreta, torna-se destituída de
qualquer finalidade concreta e termina por se reduzir ao mero entretenimento ou mesmo diletantismo, como
é o caso da leitura efetuada apenas como forma de passatempo.
xxvi
Idem, ibidem.
xxvii
Espécies de ensino. ARCHAMBALT, Reginald D. Educação e análise filosófica, p. 189-201. São
Paulo: Saraiva, 1979.
xxviii
ABAGNANNO, N. Dicionário de Filosofia, p. 71. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982.
xxix
Etimologicamente, cultura tem o sentido de cultivar, e até hoje é sinônimo de agricultura.
xxx
Depois de vistas essas definições, fica bem nítida a impertinência da denominação “Ministério da
Educação”, uma vez que a área de atuação desse órgão não envolve a educação como um todo, mas apenas
a educação formal provida pelas escolas.
xxxi
“Sistemas educacionais em si mesmo são, em certo sentido, ideologias. Eles racionalizam a realidade
em termos modernos e removem as explicações sagradas e primordiais da natureza e organização social e
de conhecimento em sociedades modernas. Eles são, presumivelmente, os efeitos da reorganização da
sociedade moderna em torno do individualismo secular, que é o tem principal de Marx e Weber.” (MEYER,
John W. The effects of education as an institution. The American Journal of Sociology, Vol. 83, No. 1 (Jul.,
1977), p. 66 – tradução livre).
xxxii
“A educação [escolarizada] é um poderoso mito na sociedade moderna. Os mitos devem seus efeitos
não ao fato de os indivíduos acreditarem neles, mas ao fato de que eles “sabem” que todos os demais
acreditam, e portanto, “para todos os propósitos práticos” os mitos são verdadeiros. Nós podemos fofocar
privadamente a respeito da inutilidade da educação [escolarizada], mas, nas contratações e promoções, em
consultando os vários magos do nosso tempo e em organizando nossas vidas contemporâneas
217

racionalmente, nós fazemos nossa parte em um drama no qual a educação é autoridade”. (Idem, p. 76 –
tradução livre).
xxxiii
“Educação [escolarizada] é, como tem sido frequentemente percebido, uma religião secular nas
sociedades modernas. Como as religiões fazem, isso provê um cálculo legitimador da competência dos
cidadãos, da autoridade das elites, e as fontes de adequação do sistema social para manter a si mesmo em
tempos de incerteza”. (Idem, p. 72 – tradução livre).
xxxiv
“A escolarização vista de uma perspectiva dos processos educacionais que põe em funcionamento tem
duas marcas principais: a obrigatoriedade e a linha de ação restrita ao ensino‐aprendizagem.” (CORRÊA,
Guilherme Carlos. EJA, educação e escolarização, p. 4. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014.)
xxxv
SEMERARO, Giovanni. Intelectuais “orgânicos” em tempos de pós-modernidade. Cad. Cedes,
Campinas, vol. 26, n. 70, p. 373-391, set./dez. 2006, p; 377-378.
xxxvi
Cf. GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da
aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, obra que deu origem ao termo.
xxxvii
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação, p. 47. São Paulo: Moderna, 2006.
xxxviii
De acordo com Althusser, a escola substituiu as igrejas como o principal aparelho ideológico do Estado.
Cf. sua obra seminal, ALTHUSSER, Louis P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1998.
xxxix
É preciso diferenciar propaganda de publicidade. A despeito de ambas terem por objeto a indução de
determinados comportamentos, a propaganda tem um escopo mais amplo, pois busca definir uma ampla
gama de comportamentos do destinatário, enquanto que a publicidade busca apenas induzir os destinatários
a se tornarem consumidores de terminados produtos ou serviços.
xl
Nesse sentido, vide PALMER, R. Roderick: “Se educação pode ser distinguida de doutrinação é uma
questão que tem sido muito discutida” (tradução livre) in Education and indoctrination. Peabody Journal of
Education. Volume 34, Issue 4, 1957, p. 224. Carrol H. Wooddy chega a afirmar simplesmente que
“educação lida com a instrução das crianças e jovens; e propaganda consiste nos esforços para modificar a
comportamento de adultos” (tradução livre) in Education and propaganda. The Annals of the American
Academy of Political and Social Science. Vol. 179, Pressure Groups and Propaganda (May, 1935), pp. 227.
xli
Adaptado de Indoctrination & Propaganda vs. Education. Disponível em http://freedom-
school.com/truth/think.htm. Acessado em 5 de outubro de 2015.
xlii
Cf. SULLIVAN, Laurie. Agents of socialization. Disponível em
http://pop.goffstown.k12.nh.us:8100/~lsullivan/Ms._Sullivans_Site/Sociology_files/Agents%20of%20So
cialization.pdf. Acessado em 5 de outubro de 2015.
xliii
Por sua vez, a andragogia seria a ciência da educação dos adultos.
xliv
“Este termo que na sua origem significava a prática ou a profissão do educador passou em seguida a
significar qualquer teoria sobre a educação: entendendo por teoria não só uma elaboração ordenada e
generalizada das modalidades e das possibilidades da educação mas também uma reflexão ocasional ou um
pressuposto qualquer da prática educativa”. Abbagnano, op. cit., p. 717.
xlv
A classificação a seguir foi retirada integralmente de OLIVEIRA, Lucia Maria Pesce de; LEITE, Maria
Tereza Meirelles. Concepções pedagógicas. Especialização em saúde da família. Modalidade a distância.
Módulo pedagógico.
xlvi
Família é uma faixa do álbum Cabeça Dinossauro, de 1984, da banda brasileira Titãs. A letra está
disponível no site http://www.letras.mus.com.br, acessado em 15 de outubro de 2015.
xlvii
Situação ambígua ainda bastante comum nas casas de classe média e alta no Brasil diz respeito à
empregada doméstica, que além de ter uma relação de trabalho com a família, muitas vezes é considerada
como parte dessa família. “Destaca-se a frase ‘fulana é como um membro da família’ cujo efeito ideológico
para a empregada é a adesão ao ritmo e forma de viver da família e do ponto de vista da patroa é que ela
torna possível a aceitação de uma pessoa socialmente estranha dentro da casa, compartilhando o cotidiano
da família.” BRITO, Marcelo. Empregadas domésticas: intimidade e distanciamento nas relações de
trabalho. Disponível em
http://unimontes.br/arquivos/2012/geografia_ixerg/eixo_politica_meio_ambiente/empregadas_domesticas
_intimidade_e_distanciamento_nas_relacoes_de_trabalho.pdf. Acessado em 15 de outubro de 2015.
xlviii
“A criança humana precisa de proteção dos pais por um período muito mais longo do que todos os
outros jovens animais, inclusive os chimpanzés mais evoluídos. Por isso, nenhuma cultura poderia perdurar
sem que o ato de reprodução (ou seja, acasalamento, gravidez e nascimento) não estiver ligado com o fato
do parentesco legalmente constituído, isto é, um relacionamento no qual o pai e a mãe devem cuidar dos
filhos por um longo período e, em retorno, receber certos benefícios derivados dos cuidados e dos
problemas assumidos” (tradução livre). MALINOWISKI, Bronisław. A scientific theory of culture. Chapel
Hill: University of North Carolina, 1944, p. 99.
218

xlix
Percebe-se claramente a relação feita pelo IBGE entre família e domicílio. Esse e outros conceitos
adotados pelo instituto estão disponíveis em
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/conceitos.shtm.
Acessado em 15 de outubro de 2015.
l
Os resultados dessa pesquisa constam do site http://www.familystructurestudies.com/. Acessado em 16 de
outubro de 2015.
li
Frequência de uso de maconha nos últimos 12 meses, em média (1-6: 1 = Nunca, 6 = quase diariamente).
lii
Frequência de uso de cigarro nos últimos 12 meses, em média (1-6: 1 = Nunca, 6 = quase diariamente).
liii
Número de vezes preso, em média (1-4: 1 = Nunca, 4 = inúmeras vezes).
liv
Número de vezes que se declarou culpado de um delito grave, em média, (1-4: 1 = nunca, 4 = inúmeras
vezes).
lv
Esse tipo de família ainda tem os maiores índices de: a) percepção de segurança pelas crianças; b)
qualidade do relacionamento atual; c) identificação integralmente heterossexual; e os menores índices de:
a) suicídio (neste caso, empatada com o pai ou mãe solteira); b) utilização de terapia; c) depressão; d) toques
sexuais por adultos; e) estupro; f) doenças sexualmente transmissíveis; g) número de vezes em que
considerou o relacionamento atual problemático; h) parceiros femininos para as mulheres; i) parceiros
masculinos para as mulheres; e j) parceiros masculinos para os homens.
lvi
SAMUEL, Ana. New Family Structures Research and the “No Differences” Claim. Disponível em
http://www.familystructurestudies.com/files/NFSS-summary-20120809.pdf. Acesso em 16 de outubro de
2015.
lvii
Values in Australian society. Disponível em
lviii
Vide, a esse respeito, DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume 5. Direito de
Família, p. 9-15.
lix
O Código Civil, art. 1723, também realiza essa distinção, referindo-se a entidade familiar apenas quando
trata de união estável.
lx
Exemplo dessa diferença está no art. 1790 do Código Civil, que prevê regime sucessório específico para
o caso de união estável.
lxi
Tendo em vista a quase total identidade entre os dois termos, e em consonância com a doutrina
majoritária, daqui pra frente o termo “família” passará a englobar também “entidade familiar”.
lxii
A despeito de a CF reconhecer apenas a “união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”
(art. 226, § 3º), o Supremo Tribunal Federal ampliou o conceito do termo, ao admitir a validade jurídica de
uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo (Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, julgadas em 4 de maio de 2011).
lxiii
Utiliza-se aqui o tradicional cânone de interpretação constitucional segundo o qual o texto da CF deve
ser interpretado de forma conjunta, evitando a formação de contradições lógicas entre seus dispositivos.
Reconhece-se, porém, as limitações desse método, inclusive por pressupor implicitamente a presença de
legislador único e onisciente, somente possível em textos de caráter religioso, desprezando a realidade de
uma junção, muitas vezes incoerente, de posicionamento políticos definidos em diferentes épocas por
grupos absolutamente diversos de pessoas.
lxiv
Curso de Direito Civil, vol. 6, 4º edição, p. 45. Salvador: Editora Juspodium, 2012.
lxv
FARIAS e ROSENVALD, p. 47-48.
lxvi
Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.
Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou
impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.
(...)
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: (...)
lxvii
Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do
que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer
à autoridade judiciária competente para a solução da divergência
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes
ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
lxviii
Enquanto que a autonomia constitui-se em um poder subordinado a outro, a supremacia consiste em um
poder que não é limitado por outro.
lxix
Derecho Administrativo. Temas Fundamentales. Tercera edicion, p. 59 (tradução livre).
lxx
A Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, acrescentou ao art. 5º da CF o § 3º, que
dispôs: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
219

equivalentes às emendas constitucionais”. Até o momento, o único ato aprovado com base nessa norma foi
a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
lxxi
Em consonância com esses tratados internacionais, diversas constituições definiram família de forma
semelhante à brasileira. Vide, por exemplo, a constituição do Afeganistão (“A família é o principal pilar da
sociedade (...)), de Andorra (“(...) a família é a fundação básica da sociedade) e de Angola (“A família é o
núcleo básico da organização social (...)”). Lista completa de países disponível em
http://worldfamilydeclaration.org/assets/translations/WFD.German.2014.03.28.pdf. Acessado em 19 de
outubro de 2015.
lxxii
The Three Political Economies of the Welfare State. Princeton University Press (January 23, 1990).
lxxiii
Essas definições foram retiradas da versão em Português do primeiro capítulo do livro: As três
economias políticas do welfare state. Lua Nova nº 24 São Paulo Sept. 1991, p. 85-126.
lxxiv
Resolução nº 33, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Assistência Social.
lxxv
POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – PNAS, aprovada pelo Conselho Nacional de
Assistência Social por intermédio da Resolução n. 145, de 15 de outubro de 2004, e publicado no Diário
Oficial da União – DOU do dia 28 de outubro de 2004. O PNAS ainda dispõe sobre a matricialidade familiar
no seguinte sentido: “Por reconhecer as fortes pressões que os processos de exclusão sociocultural geram
sobre as famílias brasileiras, acentuando suas fragilidades e contradições, faz-se primordial sua centralidade
no âmbito das ações da política de assistência social, como espaço privilegiado e insubstituível de proteção
e socialização primárias, provedora de cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e
protegida. Essa correta percepção é condizente com a tradução da família na condição de sujeito de direitos,
conforme estabelece a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei
Orgânica de Assistência Social e o Estatuto do Idoso. A família, independentemente dos formatos ou
modelos que assume é mediadora das relações entre os sujeitos e a coletividade, delimitando,
continuamente os deslocamentos entre o público e o privado, bem como geradora de modalidades
comunitárias de vida” (p.25).
lxxvi
A família como centralidade nas políticas públicas: a constituição da agenda pública da assistência
social no Brasil e as rotas de reprodução das desigualdades de gênero. Disponível em
http://www.ipea.gov.br/code2011/chamada2011/pdf/area2/area2-artigo29.pdf. Acessado em 19 de
outubro de 2015.
lxxvii
Educação De Hoje Em Dia é uma música do cantor brasileiro Raone. A letra está disponível no site
http://letras.mus.br/raone/educacao-de-hoje-em-dia/, acessado em 15 de outubro de 2015.
lxxviii
Essa última denominação foi sugerida por Édison Prado de Andrade em sua tese de doutorado A
educação familiar desescolarizada como um direito da criança e do adolescente: relevância, limites e
possibilidades na ampliação do direito à educação. São Paulo: USP, 2014.
lxxix
Mesmo considerando-se especificamente a preparação para o mercado de trabalho, apenas a instrução
(transmissão de conhecimentos) é claramente insuficiente. Hoje, é majoritária na ciência da Administração
a concepção de que a atuação competente no mercado de trabalho requer não apenas conhecimentos, mas
também, e principalmente, habilidades (relacionadas a “saber fazer”) e atitudes (relacionadas a “querer
fazer”). Estes últimos fatores são adquiridos por meio da educação e não da instrução.
lxxx
Pedagogía. La Habana: Pueblo y Educación, 1988, p. 32.
lxxxi
O dever de autoeducação não é apenas moral, mas também jurídico. Vide, a esse respeito, a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948): “Toda pessoa tem o dever de adquirir, pelo menos,
a instrução primária”.
lxxxii
Somente aos 18 anos a pessoa adquire verdadeira liberdade laboral, pois a Constituição Federal
estabelece a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer
trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos” (art. 7º, inc.
XXXIII).
lxxxiii
Este ponto será desenvolvido com mais detalhes à frente.
lxxxiv
ROTHERMEL, Paula (ed.). International perspectives on home education. Do we still need schools?
NY: Palgrave Macmillan, 2015, p. 213-214. As fases foram estabelecidas em decorrência de uma pesquisa
empírica em Israel.
lxxxv
Cf. HOLT, John; FARENGA, Pat. Teach Your Own: The John Holt Book Of Homeschooling. Da Capo
Press; First Paperback Edition (April 2003).
lxxxvi
Essa classificação foi obtida em KOCHENDERFER, Rebecca; KANNA, Elizabeth; KIYOSAKY,
Robert T. Homeschooling for Success: How Parents Can Create a Superior Education for Their Child.
Grand Central Publishing (July 1, 2002).
lxxxvii
ROTHERMEL, Paula (ed.). International perspectives on home education. Do we still need schools?
NY: Palgrave Macmillan, 2015, p. 45.
lxxxviii
Idem, p. 91-92. A classificação foi baseada em uma pesquisa empírica norueguesa.
220

lxxxix
Esta e as próximas classificações foram obtidas em How Have Scholars Divided Homeschoolers into
Groups? Disponível em http://www.responsiblehomeschooling.org/homeschooling-101/how-have-
scholars-divided-homeschoolers-into-groups/. Acessado em 13 de novembro de 2015.
xc
GALEN, Jane Van; PITMAN, Mary Anne. Home Schooling: Political, Historical, and Pedagogical
Perspectives, p. 66-67. Norwood: Ablex Publishing Corporation, 1991.
xci
Idem, p. 72-75.
xcii
Cf. MOORE, Raymond S.; MOORE, Dennis R.; MOORE, Dorothy N. Better Late Than Early: A New
Approach to Your Child's Education. Reader's Digest Association; 1st edition (August 1989).
xciii
De forma bastante semelhante às classificações anteriores, Milton Gaither classifica as famílias mais
conservadoras como “de comunidade fechada” e as famílias mais progressistas como “de comunidade
aberta”. Cf. Homeschool: An American History. Palgrave Macmillan; First Edition edition (June 15, 2008).
xciv
Cf. LOIS, Jennifer. Home Is Where the School Is: The Logic of Homeschooling and the Emotional Labor
of Mothering. NYU Press (December 17, 2012).
xcv
Cf. a respeito, MOORE, Raymond S. Research and Common Sense: Therapies for Our Homes and
Schools. Teachers College Record Volume 84 Number 2, 1982, p. 355-377.
xcvi
Cf. JEUB, Chris. Why Parents Choose Home Schooling. September 1994 | Volume 52 | Number 1 The
New Alternative Schools Pages 50-52.
xcvii
ANDRADE, Édison Prado de. A educação familiar desescolarizada como um direito da criança e do
adolescente: relevância, limites e possibilidades na ampliação do direito à educação. Tese (Doutorado em
Educação). Universidade de São Paulo.
xcviii
Skank. Indignação. Disponível em https://letras.mus.br/skank/72885/. Acessado em 13 de novembro de
2015.
xcix
A Carta das Nações Unidas, ou carta de São Francisco, de 1945, é o acordo que estabelece a Organização
das Nações Unidas. Logo no início, a Carta dispõe:
“CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS
NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS
a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe
sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade
e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações
grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes
de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos” (grifou-se)
c
“Os Estados Partes do presente Pacto,

Considerando que, em conformidade com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e
inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana,”


ci
A redação desse pacto, no tocante à dignidade humana, é exatamente igual à do pacto citado
anteriormente,
cii
Artigo 5º - Direito à integridade pessoal
(...)
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda
pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.
(...)
Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade
1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
ciii
Os Estados Partes da presente Convenção,

Considerando que, de acordo com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, a liberdade, a
justiça e a paz no mundo se fundamentam no reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e
inalienáveis de todos os membros da família humana;
Tendo em conta que os povos das Nações Unidas reafirmaram na carta sua fé nos direitos fundamentais do
homem e na dignidade e no valor da pessoa humana e que decidiram promover o progresso social e a
elevação do nível de vida com mais liberdade;
(...)
Considerando que a criança deve estar plenamente preparada para uma vida independente na sociedade e
deve ser educada de acordo com os ideais proclamados na Cartas das Nações Unidas, especialmente com
espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade;
221

(...)
Artigo 23
1. Os Estados Partes reconhecem que a criança portadora de deficiências físicas ou mentais deverá desfrutar
de uma vida plena e decente em condições que garantam sua dignidade, favoreçam sua autonomia e
facilitem sua participação ativa na comunidade.
(...)
Artigo 28
(...)
2. Os Estados Partes adotarão todas as medidas necessárias para assegurar que a disciplina escolar seja
ministrada de maneira compatível com a dignidade humana da criança e em conformidade com a presente
convenção.
(...)
Artigo 37
Os Estados Partes zelarão para que:
(...)
c) toda criança privada da liberdade seja tratada com a humanidade e o respeito que merece a dignidade
inerente à pessoa humana, e levando-se em consideração as necessidades de uma pessoa de sua idade. Em
especial, toda criança privada de sua liberdade ficará separada dos adultos, a não ser que tal fato seja
considerado contrário aos melhores interesses da criança, e terá direito a manter contato com sua família
por meio de correspondência ou de visitas, salvo em circunstâncias excepcionais;
(...)
Artigo 39
Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para estimular a recuperação física e psicológica
e a reintegração social de toda criança vítima de qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura
ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos armados. Essa recuperação
e reintegração serão efetuadas em ambiente que estimule a saúde, o respeito próprio e a dignidade da
criança.
Artigo 40
1. Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança a quem se alegue ter infringido as leis penais ou
a quem se acuse ou declare culpada de ter infringido as leis penais de ser tratada de modo a promover e
estimular seu sentido de dignidade e de valor e a fortalecer o respeito da criança pelos direitos humanos e
pelas liberdades fundamentais de terceiros, levando em consideração a idade da criança e a importância de
se estimular sua reintegração e seu desempenho construtivo na sociedade.
civ
Os Estados Partes da presente Convenção,
a) Relembrando os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, que reconhecem a dignidade e o
valor inerentes e os direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana como o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
(...)
h) Reconhecendo também que a discriminação contra qualquer pessoa, por motivo de deficiência, configura
violação da dignidade e do valor inerentes ao ser humano,
(...)
y) Convencidos de que uma convenção internacional geral e integral para promover e proteger os direitos
e a dignidade das pessoas com deficiência prestará significativa contribuição para corrigir as profundas
desvantagens sociais das pessoas com deficiência e para promover sua participação na vida econômica,
social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos
desenvolvidos,
(...)
Artigo 1
Propósito
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito
pela sua dignidade inerente.
(...)
Artigo 3
Princípios gerais
Os princípios da presente Convenção são:
a) O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias
escolhas, e a independência das pessoas;
(...)
Artigo 8
222

Conscientização
1.Os Estados Partes se comprometem a adotar medidas imediatas, efetivas e apropriadas para:
a) Conscientizar toda a sociedade, inclusive as famílias, sobre as condições das pessoas com deficiência e
fomentar o respeito pelos direitos e pela dignidade das pessoas com deficiência;
(...)
Artigo 16
Prevenção contra a exploração, a violência e o abuso
(...)
4.Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para promover a recuperação física, cognitiva e
psicológica, inclusive mediante a provisão de serviços de proteção, a reabilitação e a reinserção social de
pessoas com deficiência que forem vítimas de qualquer forma de exploração, violência ou abuso. Tais
recuperação e reinserção ocorrerão em ambientes que promovam a saúde, o bem-estar, o autorrespeito, a
dignidade e a autonomia da pessoa e levem em consideração as necessidades de gênero e idade.
(...)
Artigo 24
Educação
1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse direito
sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema
educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os
seguintes objetivos:
a) O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e autoestima, além do
fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade
humana;
(...)
Artigo 25
Saúde
Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde
mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência. Os Estados Partes tomarão todas as
medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde, incluindo os
serviços de reabilitação, que levarão em conta as especificidades de gênero. Em especial, os Estados Partes:
(...)
d) Exigirão dos profissionais de saúde que dispensem às pessoas com deficiência a mesma qualidade de
serviços dispensada às demais pessoas e, principalmente, que obtenham o consentimento livre e esclarecido
das pessoas com deficiência concernentes. Para esse fim, os Estados Partes realizarão atividades de
formação e definirão regras éticas para os setores de saúde público e privado, de modo a conscientizar os
profissionais de saúde acerca dos direitos humanos, da dignidade, autonomia e das necessidades das pessoas
com deficiência;
cv
“PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE
DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS
TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica
(art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o
caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no
ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status
normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna
inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de
adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim
como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002).”
(RE 349703 / RS, julgado em 3.12.2008)
cvi
“Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”
cvii
SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade humana. Revista Brasileira de Direito
Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007, p. 383.
cviii
Essa classificação e o respectivo quadro consta de BAETS, Antoon. A successful utopia: the doctrine
of human dignity. Disponível em
http://ejournals.epublishing.ekt.gr/index.php/historein/article/view/2141/1981. Acessado em 28 de janeiro
de 2016.
223

cix
NUSSBAUM, Martha C. Objectification. Philosophy and Public Affairs; Fall 1995; 24, 4; Research
Library Core, pg. 249-291.
cx
Ontologia é o ramo da Filosofia das propriedades gerais do ser.
cxi
“Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito
anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada
antes.” (Artigo 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança) O Estatuto da Criança e do Adolescente faz
delimitação diversa: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.” (art. 2°). Nesta obra, será utilizada
a definição da Convenção sobre os Direitos da Criança.
cxii
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” É notável
aliás que o direito à dignidade seja conferido expressamente pela CF apenas à criança, ao adolescente, ao
jovem (art. 227) e ao idoso (art. 230), ou seja, a pessoas em condições etárias que as colocam em situação
de maior vulnerabilidade frente às demais.
cxiii
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. O princípio fundamental da dignidade humana e sua
concretização judicial. Disponível em
http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_const/o_principio_fundamental_da_
dignidade_humana_e_sua_concretizacao_judicial.pdf. Acessado em 3 de dezembro de 2015.
cxiv
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, p. 331. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.
cxv
Cf. JORDAAN, Donrich W. Autonomy as an Element of Human Dignity in South African Case Law.
The Journal of Philosophy, Science & Law. Volume 9, September 8, 2009, p. 3-4.
cxvi
LANSDOWN, Garison. The evolving capacities of the child. UNICEF. Innocenti Research Centre.
cxvii
DALLARI, Dalmo de Abreu; KORCZAK, Janusz. O direito da criança ao respeito, p. 85/90. São Paulo:
Summus, 1986.
cxviii
Cf., a esse respeito, BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
cxix
GIENSINGER, Johannes. Dignity and Education. Presentation at the Conference “Encountering
Children - Dignity, Autonomy, and Care”, June 9, 2011, University of Zurich.
cxx
“(...) é plausível que alguns tipos de valores, que nós podemos desfrutar plenamente como crianças são,
no caso da maioria das pessoas, diferentes daqueles que podemos desfrutar como adultos. À medida em
que nos transformamos em adultos melhoraram nossos conhecimentos e habilidades: Nós acumulamos
experiência e ganhar melhor controle de nossas emoções. Assim, tornamo-nos capazes de plena atuação
moral. Além disso, nos tornamos mais intencionais e adquirimos as habilidades necessárias para perseguir
os nossos objetivos de forma eficaz e, portanto, novos tipos de conquistas tornam-se disponíveis para nós.
Ao mesmo tempo, na transição para a vida adulta perdemos, em média, não apenas habilidades físicas
desejáveis, tais como agilidade e flexibilidade, mas também a maior parte da plasticidade mental,
imaginação, curiosidade e viva percepção, por vezes, sinestésica do mundo (ou seja, uma capacidade de
experimentar o mundo através de mais de um sentido de cada vez). No processo, a capacidade de imaginar
radicalmente diferentes mundos e as habilidades filosóficas e artísticas que tínhamos quando crianças é, em
média, perdida ou pelo menos diminuída em muito. Por conseguinte, a mudança da infância à idade adulta
não pode, em todos os sentidos ser tanto progresso - como a visão de ‘crianças como adultos inacabadas’
teria - ou regressão – como sugerida pela visão de adultos como crianças defeituosas.’ Pelo contrário, é
uma transformação de um tipo de intrinsecamente valioso ser humano a um diferente tipos intrinsecamente
valioso do ser humano.” (GHEAUS, Anca. Unfinished Adults and Defective Children: On the Nature and
Value of Childhood. Journal of Ethics & Social Philosophy vol. 9 no. 1 February 2015, 1-21.)
cxxi
É indispensável que a criança saiba como aquele conteúdo deve ser integrado em sua realidade atual e
futura. A ausência de justificação para a aquisição de determinado conhecimento, além de desrespeitar a
própria criança, ainda prejudica a efetiva absorção desse conhecimento. Tendo em vista o conceito de
“capacidades em evolução” da criança, quanto maior for sua maturidade intelectual, mais completa deve
ser a fundamentação da educação que ela vai receber.
cxxii
Isso pode ser realizado, por exemplo, pela adoção nos últimos anos do ensino básico de um sistema
semelhante ao existente no ensino superior, o de matérias optativas. Nesse sistema, o estudante do ensino
médio poderia escolher, dentro um rol de matérias, aquelas que ele consideraria mais pertinente.
cxxiii
Obviamente, há diversos outros meios de participação da sociedade civil na formulação de políticas
educacionais; é o caso, por exemplo, dos conselhos escolares. Nenhum deles, porém, pode ser comparado
aos sindicatos em termos de poder, estrutura, recursos financeiros e influência política.
cxxiv
ILLICH, Ivan. Deschooling society. Disponível em
http://www.arvindguptatoys.com/arvindgupta/DESCHOOLING.pdf. Acesso em 25 de janeiro de 2016.
224

cxxv
Provavelmente, o mais conhecido exemplo de escola democrática é a SummerHill School, fundada em
1921 na Inglaterra e ainda em funcionamento. Seu fundamento é a concepção de que a escola deve se
adequar ao aluno e não o contrário. Sua direção é conduzida em encontros escolares, dos quais qualquer
um pode participar, seja professor, aluno ou funcionário. Além disso, os alunos podem escolher entre
assistir ou não as aulas.
cxxvi
John Taylor Gatto chega a dizer que “a escola não ensina nada, exceto a obedecer ordens”. GATTO,
Taylor Gatto. Why Schools Don't Educate. Disponível em
http://www.naturalchild.org/guest/john_gatto.html. Acessado em 27 de janeiro de 2016.
cxxvii
O seguinte depoimento ilustra essa situação: “No início da minha educação, meus pais eram muito
dominantes, oferecendo uma tremenda quantidade orientação e ajuda na minha escolaridade. (...) Esse tipo
de atenção individualizada e apoio continuou durante toda a minha educação. (...) Conforme fui crescendo,
o papel dos meus pais mudou gradualmente, dando-me mais domínio sobre a minha educação, e cada vez
maior liberdade para escolher como e o que estudar”. GERBER, Abraham. Autonomy and education: the
case of homeschooling, p. 4 Disponível em
https://www.hamilton.edu/documents/English%20Proposal%20Sample%204.pdf. Acessado em 28 de
janeiro de 2016.
cxxviii
“Os alunos precisam receber apoio individual, porque os alunos têm habilidades diferentes e maneiras
diferentes de material de aprendizagem. Alguns alunos aprendem melhor sinestesicamente, enquanto outros
são aprendizes visuais, e por sua vez, alguns alunos prosperam na comunicação, enquanto outros prosperam
em tarefas de análise. Na sala de aula, o desafio é adotar um método ensino que ajude o maior número de
estudantes possíveis, trabalhando para garantir que todos os alunos serão incluídos no processo de
aprendizagem. No entanto, independentemente do método adotado na sala de aula, em termos de permitir
que os alunos adquiram material, orientação pedagógica individualizada será quase sempre mais eficaz do
que sala de aula, porque em um ambiente um-a-um, um professor pode calibrar às necessidades do aluno,
o método de ensino”. GERBER, Abraham. Autonomy and education: the case of homeschooling, p. 6.
Disponível em https://www.hamilton.edu/documents/English%20Proposal%20Sample%204.pdf.
Acessado em 28 de janeiro de 2016.
cxxix
“Como diria Dylan”, música de Zé Geraldo. Álbum “Estradas”, de 1980.
cxxx
Nada impede que o Estado legitimamente proíba estilos de vida ou comportamentos que prejudicam os
projetos de vidas de outras pessoas. É o caso, por exemplo, da proibição de associações criminosas.
cxxxi
Eudaimonia, geralmente traduzida como bem-estar, felicidade ou florescimento, constitui um conceito
central da ética aristotélica.
cxxxii
Vide, nesse sentido, RUBIN, Edward. Soul, Self, and Society: New Morality and the Modern State.
Oxford University Press; 1 edition (March 13, 2015).
cxxxiii
Wall, Steven, "Perfectionism in Moral and Political Philosophy", The Stanford Encyclopedia of
Philosophy (Winter 2012 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL =
<http://plato.stanford.edu/archives/win2012/entries/perfectionism-moral/>. Acessado em 12 de fevereiro
de 2016.
cxxxiv
REIDY, David A. Pluralism, liberal democracy and compulsory education. JOURNAL of SOCIAL
PHILOSOPHY, Vol. 32 No. 4, Winter 2001, 591-592. © 2001 Blackwell Publishers.
cxxxv
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea, p. 259-263. Martins Fontes: São Paulo, 2006.
cxxxvi
Vide, a respeito, VEIGA, Ilma Passos Alencastro. (org) Projeto político-pedagógico da escola: uma
construção possível. 14a edição Papirus, 2002: “O projeto busca um rumo, uma direção. É uma ação
intencional, com um sentido explícito, com um compromisso definido coletivamente. Por isso, todo projeto
pedagógico da escola é, também, um projeto político por estar intimamente articulado ao compromisso
sociopolítico com os interesses reais e coletivos da população majoritária. É político no sentido de
compromisso com a formação do cidadão para um tipo de sociedade.”. Curiosamente, a Lei n° 9.394, de
1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), não menciona “projeto político-pedagógico”, mas apenas de
“proposta pedagógica” (art. 12, inc. I).
cxxxvii
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Autores
Associados: Cortez, 1989. (Coleção polêmicas do nosso tempo; 4)
cxxxviii
A respeito da defesa da separação entre educação e Estado, vide RICHMAN, Sheldon. Separating
School & State. How to liberate America´s families. The future of freedom foundation: 1995.
cxxxix
No caso brasileiro, existem diversas avalições, conduzidas pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), capazes de verificar a satisfação desses requisitos mínimos
no ensino fundamental e no ensino médio.
cxl
Sobre a deferência que o Estado deve ter em relação aos pais, vide BUSS, Emily. Parental rights.
PUBLIC LAW AND LEGAL THEORY WORKING PAPER N. 23, p. 10: “Uma premissa principal deste
ensaio é que um sistema legal que mostra forte deferência para com as decisões dos pais relativas à criação
225

dos filhos serve bem às crianças. A forte ligação emocional dos pais com seus filhos e um conhecimento
considerável das suas necessidades específicas fazem deles os especialistas mais qualificados para avaliar
e buscar melhores os interesses de seus filhos na maioria das circunstâncias. Em contraste, o conhecimento
do Estado e o compromisso com qualquer criança em particular é relativamente tênue. Um esquema de
fortes direitos constitucionais protege o pai especialista do intrusivo questionamento do Estado menos
especializado.”
Vide também GILLES, Stephen (1996) "On Educating Children: A Parentalist Manifesto," University of
Chicago Law Review: Vol. 63: Iss. 3, Article 2, p. 939-940: “(…) a deferência que nós estendemos às
escolhas educacionais dos pais deve se aproximar (porém, não necessariamente deve ser igual) à deferência
que nós damos às escolhas dos indivíduos adultos que digam respeito a eles mesmos. Em educação, como
nas outras áreas, uma visão abrangente pode ser vista como razoável a não ser rejeite normas morais e
políticas para as quais exista um consenso geral entre indivíduos razoáveis em nossa sociedade. Ao menos,
devemos tratar como razoáveis quaisquer visões abrangentes que reconheçam a importância do
desenvolvimento humano normal, abraça a tolerância cívica e o respeito pela lei e aquiescem a nossos
arranjos constitucionais básicos. Porque poucos pais em nossa sociedade escolherão educar seus filhos em
formas que não satisfarão esses parâmetros, o Estado raramente será capaz de justificar de se sobrepor à
autoridade educacional dos pais”.
cxli
Oração pela família. Padre Zezinho.
cxlii
Música interpretada por Zé Renato e composta por Edu Lobo.
cxliii
A importância da expressão “pleno exercício dos direitos culturais” não pode ser subestimada, uma vez
que não há nenhuma outra espécie de direitos na CF para a qual o Estado deva garantir o “pleno exercício”.
cxliv
Denomino de “faixa cultural” as manifestações culturais selecionadas pelo sistema escolar como
relevantes para fins de educação. Essa faixa necessariamente é bastante estreita, uma vez que é
concretamente impossível que seja transmitida a alguém toda a cultura já produzida pela humanidade e
mesmo apenas pela nação brasileira. Nesse sentido, previamente ao ato de educar, sempre há uma seleção
valorativa das manifestações culturais que “valem a pena” ser transmitidas às novas gerações.
cxlv
Nesse sentido, vide o art. 4.b da Declaração de Freiburg: “Ninguém deve ter uma identidade cultural
imposta ou ser assimilado em uma comunidade cultural contra a sua vontade”.
cxlvi
Isso não impede que uma criança, na medida do desenvolvimento de suas capacidades, decida
gradualmente por uma identidade cultural diversa daquela adotada pela família.
cxlvii
Retratos de um País Plural. Henrik Silva.
cxlviii
Paz de Westfália é um conjunto de tratados que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), a qual
teve como uma de suas causas os conflitos religiosos entre católicos e protestantes.
cxlix
Les six livres de la République. Édition et présentation de Gérard Mairet. Paris : Librairie générale
française, 1993, 607 pp. Le livre de poche, LP17, n° 4619. Classiques de la philosophie.
cl
Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiasticall and Civil, 1651.
Disponível em http://www.gutenberg.org/files/3207/3207-h/3207-h.htm.
cli
BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, Vol. 2, p.
1187-1188.
clii
A teoria pluralista da soberania é baseada principalmente nas ideias de Robert M. MacIver (1882-1970),
A. D. Lindsay (1879-1952), Leon Duguit (1859-1928), Harold J. Laski (1893- 1950), George Douglas
Howard Cole (1889-1959), Ernest Barker (1874-1960) e Hobhouse (1864-1929).
cliii
The pluralist theory of the state, p. 16. New York: Routledge, 1989 (tradução livre).
cliv
A respeito da teoria das esferas soberanas, vide Abraham Kuyper: a Centennial Reader – Wm. B.
Eerdmans Publishing Co. (February 13, 1998). Sobre a aplicabilidade jurídica das teses de Kuyper, vide
HORWITZ, Paul. Churches as First Amendment Institutions: Of Sovereignty and Spheres. Harvard Civil
Rights-Civil Liberties Law Review. Vol. 44, p. 79-131.
clv
HORWITZ, p. 96-97.
clvi
O preâmbulo introduz o texto constitucional, explicando o seu conteúdo. Apesar de não ser norma
jurídica, é considerado como um instrumento auxiliar de interpretação constitucional.
clvii
A respeito dessa distinção, vide WOLDRING, Henk E. S. The quest for truth and human fellowship in
a pluralist society. In: Truth matters. Essays in honor of Jacques Maritain, p. 285. Catholic University
America Pr (2004).
clviii
“A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista, que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em
lugar de uma sociedade monista, que mutila os seres e engendra as ortodoxias opressivas. (...) Optar, pois,
por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e
antinômicos” (SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição, p. 26. São Paulo: Malheiros,
2011)
clix
Cf., a respeito, WOLDRING, p. 285-299.
226

clx
The Universe Next Door: A Basic Worldview Catalog, 5th Edition. IVP Academic. Outra classificação é
proposta por Nancy R. Pearsey em Total Truth: Liberating Christianity from Its Cultural Captivity, p. 123-
152. Crossway Books; HARDBOUND edition (June 29, 2004).
clxi
Os primeiros a tratar da pluralidade de associações foram Johannes Althusius (1557-1638) e Alexis de
Tocqueville (1805-1859).
clxii
Cf. A study of history. Volume I: Abridgement of Volumes 1-6, p. 230. Oxford University Press, 1946.
clxiii
SILVA, p. 26-27. A obra citada de Georges Bordeau é o Traité de Science Politique, t. VII, p. 563-
564.
clxiv
Segue o teor completo do art. 1º da CF:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
clxv
A rigor, a soberania popular é um mito construído para justificar o exercício do poder nas sociedades
democráticas ocidentais. Apenas por ficção poder-se-ia considerar que o poder supremo pertence a todas
as pessoas simultaneamente. Vide, a esse respeito, MORGAN, Edmund S. Inventing the People: The Rise
of Popular Sovereignty in England and America. W. W. Norton & Company; Reprint edition (September
17, 1989).
clxvi
Autonomia. Titãs. Composição: Marcelo Fromer / Arnaldo Antunes / Paulo Miklos.
clxvii
SILVA, p. 116.
clxviii
Sobre associações íntimas e associações expressivas, vide INAZU, John D. The Unsettling “Well-
Settled” Law of Freedom of Association. Connecticut Law Review, Volume 43, Number 1, p. 149-207.
clxix
Classificação parcialmente baseada em WOOLMAN, Stuart. Freedom of Association. Disponível em
http://www.chr.up.ac.za/chr_old/centre_publications/constitlaw/pdf/22-
freedom%20of%20Association.pdf. Acessado em 3 de outubro de 2014.
clxx
Em geral, os direitos e garantias individuais, previstos principalmente no art. 5º da CF, não têm caráter
absoluto, permitindo que se aplique parcialmente ou mesmo se deixe de aplicar um direito quando em
colisão com outro. Porém, ao afirmar que a liberdade de associação é plena, a CF conferiu maior proteção
a esse direito, impossibilitando que se faça juízo de ponderação com outros direitos e permitindo apenas
sua restrição nos casos expressamente previstos na CF. Vide, a esse respeito, o seguinte julgado do STF:
“O direito à plena liberdade de associação (art. 5º, XVII, da CF) está intrinsecamente ligado aos preceitos
constitucionais de proteção da dignidade da pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da
liberdade de expressão. Uma associação que deva pedir licença para criticar situações de arbitrariedades
terá sua atuação completamente esvaziada.” (HC 106.808, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-4-
2013, Segunda Turma, DJE de 24-4-2013.)
clxxi
“(...). Diria, até, que, sob a égide da vigente Carta Política, intensificou-se o grau de proteção jurídica
em torno da liberdade de associação, na medida em que, ao contrário do que dispunha a Carta anterior, nem
mesmo durante a vigência do estado de sítio se torna lícito suspender o exercício concreto dessa
prerrogativa. (...) Revela-se importante assinalar, neste ponto, que a liberdade de associação tem uma
dimensão positiva, pois assegura a qualquer pessoa (física ou jurídica) o direito de associar-se e de formar
associações. Também possui uma dimensão negativa, pois garante a qualquer pessoa o direito de não se
associar, nem de ser compelida a filiar-se ou a desfiliar-se de determinada entidade. Essa importante
prerrogativa constitucional também possui função inibitória, projetando-se sobre o próprio Estado, na
medida em que se veda, claramente, ao Poder Público, a possibilidade de interferir na intimidade das
associações e, até mesmo, de dissolvê-las, compulsoriamente, a não ser mediante regular processo judicial.”
(STF, ADI 3.045, voto do Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-8-2005, Plenário, DJ de 1º-6-2007.)
clxxii
Quem é você? Detonautas. A Saga Continua, 2014.
clxxiii
DINIZ, Maria Helena, p. 537.
clxxiv
Trata-se de outra evidente semelhança entre o poder familiar e o poder estatal, uma vez que a
Administração Pública também tem natureza de munus público, conforme o tradicional ensinamento de
Hely Lopes Meirelles: “A natureza da administração pública é a de um ‘munus público’ para quem a exerce,
isto é, a de um encargo de defesa, conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da
coletividade.” (Direito Administrativo Brasileiro, 18ª edição. Malheiros Editores, p. 81).
clxxv
Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 538-539.
227

clxxvi
Sobre a concepção de associações como “governos privados”, vide a definição de Roderick M. Hills,
Jr.: “(...) o termo ‘governo privado’ é usado para se referir a qualquer grupo privado que possui uma
estrutura legal e processos decisórios que permitem a seus membros, oficiais ou agentes buscar objetivos
comuns relativos à propriedade, empregados, membros ou outros constituintes da organização. Como
exemplos, tem-se as igrejas, sindicatos, empresas, associações de assistência social, grupos de
reinvindicação política e (mais controvertidamente) as famílias” (tradução livre). The constitutional rights
of private governments, p. 149. New York University Law Review. Vol.: 78:144.
clxxvii
“Pré-político” significa anterior (e independente) ao Estado. O caráter pré-político da família foi
reconhecido na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos ao defini-la como
“base” ou “fundamento” da sociedade. Além disso, quaisquer normas de direitos humanos, inclusive
aquelas protetivas da família, são, por sua própria natureza, de caráter pré-político, uma vez que
independem do reconhecimento estatal para existirem. Vide a esse respeito, GAVISON, Ruth. On the
relationships between civil and political rights, and social and economic rights. Disponível em
http://archive.unu.edu/unupress/sample-chapters/ghr-chapter1.pdf. Acessado em 7 de outubro de 2014. Por
outro lado, o caráter pré-político da família tem sido duramente questionado por diversos doutrinadores
ligados ao feminismo. O mais influente desses questionamentos foi realizado por Catherine MacKinnon
em Toward a Feminist Theory of the State, Cambridge, MA: Harvard University Press, 1989.
clxxviii
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e a educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou
o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em
que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
clxxix
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes
ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
clxxx
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o
dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
clxxxi
DINIZ, Maria Helena, p. 542.
clxxxii
FARIAS e ROSENVALD, p. 156-158.
clxxxiii
A motivação é um dos princípios da Administração Pública e requer, para qualquer ato administrativo,
a exposição dos fundamentos de fato e de direito (Lei nº 9.784, de 26 de janeiro de 1999, art. 2º).
clxxxiv
Vide, nesse sentido, o art. 50, inc. I, da Lei nº 9.784, de 1999, in verbis: “Os atos administrativos
deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando neguem, limitem ou
afetem direitos ou interesses”.
clxxxv
É comum a invocação, pela doutrina administrativa brasileira, de um “princípio da veracidade dos atos
administrativos”, que eximiria a Administração Pública de demonstrar o fundamento de seus atos. Porém,
esse “princípio”, deve “ser considerado como não recebido pela Constituição redemocratizadora de 1988,
especialmente em face dos princípios da motivação e da presunção de inocência” (ARAGÃO, Alexandre
Santos de. Algumas notas críticas sobre o princípio da presunção de veracidade dos atos administrativos.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 259, p. 85, jan./abr. 2012).
clxxxvi
De acordo com Donald C. Hubin, “Direitos humanos fundamentais, reconhecidos pela Constituição,
não devem, legal ou moralmente, ser suspendidos ou negados sem justa causa e devido processo legal. Isso
é especialmente importante quando esses direitos protegem importantes interesses humanos. Os direitos
dos pais são direitos humanos fundamentais reconhecidos pela Constituição. Mais ainda, eles protegem
relevantes interesses tanto dos pais quanto das crianças” (tradução livre). Parental rights and due process.
The Journal of Law and Family Studies. VOLUME 1, NUMBER 2 (1999), p. 123-150.
clxxxvii
Vide, nesse sentido, o art. 45, da Lei nº 9.784, de 1999, in verbis: “Em caso de risco iminente, a
Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia
manifestação do interessado”.
clxxxviii
A hipótese excepcional de intervenção estatal na família no caso de violência é expressamente prevista
na Constituição: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (art. 226, § 8º). A Lei Maria da
Penha (Lei nº 11.340, de 26 de agosto de 2007), que regulamentou esse dispositivo, prevê, por exemplo, a
seguinte medida protetiva de urgência à ofendida: “afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos
direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos” (art. 23, inc. III).
228

clxxxix
O Estatuto da Criança e do Adolescente determina expressamente a utilização desse princípio na
aplicação de medidas protetivas a crianças e adolescentes: “São também princípios que regem a aplicação
das medidas: (...) proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação
de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada” (Lei
nº 8.069, de 1990, art. 100, parágrafo único, inc. VIII). A respeito do princípio da proporcionalidade, vide
ROMAN, Flavio José. Discricionariedade Técnica na Regulação Econômica, p. 210-247. São Paulo:
Saraiva, 2012.
cxc
“A família (...) tem especial proteção do Estado” (art. 226, caput). Exemplo de proteção à família é a
regra do Estatuto dos Servidores Públicos Federais (Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990) que
determina o direito à remoção para “acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil
ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que foi
deslocado no interesse da Administração” (art. 36, inc. III, “a”). A propósito, é notável que apesar de o
termo “proteção” ser encontrado dezenas de vezes na CF, a expressão “especial proteção” é utilizada apenas
para se referir à família, denotando o reconhecimento pelo Estado da indispensabilidade da família.
“Proteção da família” ainda significa que o Estado deve ter políticas públicas que estimulem a manutenção
e a criação de entidades familiares, inclusive com o encorajamento da formalização de uniões em
casamento, inclusive como forma de diminuição da pobreza e da violência. Vide, a esse respeito,
LICHTER, Daniel T. Marriage as Public Policy. Disponível em
http://www.human.cornell.edu/pam/outreach/upload/marriage_lichter.pdf. Acessado em 9 de outubro de
2014.
cxci
“O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram (...)” (art. 226, §
8º). Diversas ações assistenciais do Estado, como o bolsa-família, têm como foco a família e não o indivíduo
isoladamente. Ressalte-se que a assistência social tem como seu primeiro objetivo “a proteção à família, à
maternidade, à infância, à adolescência e à velhice” (art. 203, inc. I).
cxcii
Não se despreza o fato de as associações privadas serem frequentemente objeto de fomento estatal. Isso
porém depende do preenchimento de uma série de requisitos previstos em lei (cf. Lei nº 13.019, de 31 de
julho de 2014, que estabelece o regime jurídico das parcerias voluntárias entre a administração pública e as
organizações da sociedade civil), inclusive e principalmente o exercício de uma atividade considerada de
interesse público. As famílias, ao contrário, realizam, por sua propria natureza, atividades de interesse
público, o que sempre as coloca sob a proteção do Estado.
cxciii
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição.”
cxciv
Cf. SILVA, José Afonso da, p. 186-187.
cxcv
MENDES, Gilmar Ferreira. Direito fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 465. São Paulo:
Saraiva, 2012.
cxcvi
Assim, o programa habitacional denominado “Minha Casa Minha Vida” restringe seus beneficiários
àqueles que integram famílias “com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta
reais)” (Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, art. 3º, inc. III).
cxcvii
CAROZZA, Paolo G. Subsidiarity as a structural principle of international human rights. The American
Journal of International Law. Vol. 78:93, p. 38. Nesse artigo, é citado trecho do famoso discurso de Eleanor
Roosevelt na Organização das Nações Unidas em 1958: “Onde, afinal, começam os direitos humanos? Em
pequenos lugares, perto de casa – tão perto e tão pequenos que não podem ser vistos em nenhum mapa do
mundo. Ainda assim eles são o mundo do indivíduo: a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade
em que ele estuda; a fábrica, fazenda ou escritório onde ele trabalha. Esses são os lugares onde cada homem,
mulher e criança busca a mesma justiça, as mesmas oportunidades, a mesma dignidade sem discriminação.
A não ser que estes direitos tenham significado lá, eles não terão significado em lugar nenhum” (tradução
livre).
cxcviii
Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina
da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em:
http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana.html. Acesso em: 10 out. 2014.
cxcix
Uma possível explicação para essa lacuna é a circunstância de que a formulação da Constituição de
1988 foi profundamente influenciada por interesses classistas, que garantiram diversos direitos aos
integrantes dessas categorias. Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos, p. 63. São
Paulo: Malheiros, 2012. Vide, a esse respeito, declaração da Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Estabelecimentos de Ensino (CONTEE): “Instalada a Assembleia Nacional Constituinte, quatro dias
depois, ou seja, no dia 5 de fevereiro de 1987, uma reunião com quase todo o segmento do movimento
sindical, na sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), era assinado um
importante documento, sendo signatárias as centrais sindicas Central Geral dos Trabalhadores (CGT),
Central Única dos Trabalhadores (CUT) e União Sindical Independente (USI). Assinavam também o
229

documento dez confederações de trabalhadores, dentre elas a Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Estabelecimento de Educação e Cultura (CNTEEC), da qual saiu, na década de 1990, a nossa Contee,
a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes) e a Confederação dos Professores do
Brasil (CPB), antecessora da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).”
SILVEIRA, João Batista da. A Constituição de 1988, sua instalação e a participação do movimento
sindical. Disponível em http://contee.org.br/contee/index.php/2013/10/a-constituicao-de-1988-sua-
instalacao-e-a-participacao-do-movimento-sindical/. Acesso em 10 de outubro de 2014. Por outro lado, não
havia à época da Assembleia Constituinte e ainda não há no Brasil uma associação de abrangência nacional
que defenda as prerrogativas das famílias contra a indevida interferência estatal.
cc
A CF somente define deveres para mais de uma instituição no art. 205 e no art. 227. Em ambos os casos,
refere-se ao Estado, à família e à sociedade. A despeito disso, ainda não foi desenvolvida pela doutrina
brasileira uma teoria jurídica das interações entre o Estado, a família e as associações, que constituem a
forma organizada da sociedade.
cci
Povo brasileiro. Natiruts. Álbum: Povo brasileiro, 1999.
ccii
A CF refere-se de modo genérico a “sociedade pluralista” no preâmbulo e a “pluralismo político” no art.
1º. Porém, quando trata de direitos fundamentais, apenas a educação está expressamente relacionada ao
pluralismo, o que demonstra a importância específica dada pelo constituinte à diversidade de processos
educacionais.
cciii
A educação tradicional, centrada na escola, recebe críticas que vão muito além da doutrinação ideológica
e da qualidade do ensino. A crítica mais profunda relaciona-se com os objetivos ocultos da educação
escolar. As escolas seriam, no dizer de Foucault, “instituições disciplinarias” que não teriam por finalidade
transmitir conhecimentos ou mesmo “preparar para a cidadania”, mas essencialmente modelar
comportamentos, disciplinando as pessoas para adotar certos hábitos, atitudes e automatismos que as
submetam irrefletidamente ao poder vigente. Vide, a esse respeito, FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.
História da Violência nas Prisões. São Paulo: Vozes, 2007; e ILITCH, Ivan. Deschooling society. Marion
Boyars Publishers Ltd (July 1, 2000).
cciv
Diversos filósofos políticos contemporâneos rejeitam o perfeccionismo político, consistente na ação
estatal que busca concretizar uma concepção de bem baseada em determinada visão de mundo. De acordo
com eles, a ação estatal seria regida pelo princípio da neutralidade, que proíbe o Estado de promover uma
visão de bem sem o apoio consensual da sociedade. Vide, por todos, Rawls, J., 1971, A Theory of Justice,
p. 347-359. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
ccv
Essa prerrogativa da família é expressamente reconhecida pelo Pacto de São José da Costa Rica: “Os
pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e
moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (art. 12, item 3) e pelo Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: “Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a (...)
fazer com que seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas
próprias convicções” (art. 13, item 1).
ccvi
De acordo com John R. Lott Jr, qualquer atuação governamental produz transferência de renda de uma
categoria para outra de pessoas. Nessa transferência, os “perdedores” formariam naturalmente a oposição
ao governo. Essa oposição pode ser mitigada por suas formas: pela força (típica do totalitarismo) ou pela
educação (onde se realiza a doutrinação). Why is education public provided? A critical survey, p. 496. Cato
Journal, Vol.7, No.2 (Fall 1987)
ccvii
A respeito das técnicas atuais de alteração comportamental, vide BERNARDIN, Pascal. Maquiavel
Pedagogo. Vide Editorial, 2013.
ccviii
Vide, por exemplo, a situação descrita por JACOBINA, Paulo Vasconcelos. As escolas católicas e a
perenização das lendas negras antieclesiais. Disponível em: http://www.escolasempartido.org/artigos/511-
as-escolas-catolicas-e-a-perenizacao-das-lendas-negras-antieclesiais. Acessado em 17 de outubro de 2014.
ccix
A imposição estatal de uma ideologia, mesmo de forma sutil ou indireta, constitui a mais grave violação
do direito fundamental de liberdade de expressão, uma vez que torna inviável a própria condição de sua
existência, ou seja, a possibilidade concreta de obter as informações necessárias à adequada formação da
consciência individual.
ccx
A “educação liberal” consiste em um sistema educacional direcionado à formação integral do ser humano
sem vinculação necessária com a formação profissional. Têm especial relevância, por exemplo, a literatura,
a lógica e a retórica.
ccxi
O predomínio de matérias ditas científicas, como Matemática, Biologia, Física e Química, indica
claramente a adoção de uma visão de mundo cientificista segundo a qual o único conhecimento verdadeiro
é aquele derivado do método cientifico. A respeito das implicações ideológicas do ensino focado nas
ciências, vide COBERN, William W. Worldview Theory and Conceptual Change in Science Education.
Scientific Literacy and Cultural Studies Project. Paper 15; MATHEWS, Michael R. Teaching the
Philosophical and Worldview Components of Science. Science & Education. June 2009, Volume 18, Issue
230

6-7, p. 697-728; GAUCH Jr., Hugh G. Science, Worldviews, and Education. Science & Education. 2009,
p. 27-48.
ccxii
De acordo com Nomi Maya Stolzenberg, “a mera exposição a ideias divergentes sabota a crença
religiosa fundamentalista porque é permitido, e até encorajado, a análise racional e o debate coletivo. Na
visão dos pais, o ponto de vista da neutralidade distancia a criança de suas tradições familiares mediante a
transformação de absolutos religiosos em matérias de opinião pessoal. O apelo aparentemente objetivo das
escolas à razão individual nitidamente inculca os valores da escolha individual, tolerância e razão – valores
que, mais do que transcender a cultura, derivam e reproduzem uma sociedade liberal” (tradução livre). The
paradox of a liberal education. Harvard Law Review. Vol. 106: 581.
ccxiii
Vide, a esse respeito, as obras de John Taylor Gatto, especialmente Dumbing Us Down: The Hidden
Curriculum of Compulsory Schooling - New Society Publishers; 2nd edition (February 1, 2002) e Weapons
of Mass Instruction: A Schoolteacher's Journey Through the Dark World of Compulsory Schooling - New
Society Publishers; Paperback Edition (April 1, 2010).
ccxiv
A doutrina reconhece as seguintes funções principais para a família: “(...) de natureza biológica,
garantindo a descendência e a permanência do grupo; educadora e socializadora, adequando o
comportamento de seus membros aos valores dominantes no grupo familiar e na sociedade,
transmitindo-lhes a linguagem, os hábitos, a cultura; econômica, proporcionando-lhes as condições
materiais de existência e conforto, e psicológica, contribuindo para o equilíbrio, o desenvolvimento afetivo
e a segurança emocional de seus membros”. AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução, p. 140. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006 (grifou-se).
ccxv
Ressalte-se a excepcional situação em que os pais podem ser compelidos a se associarem a uma escola
por ausência de interesse ou de condições para prover a instrução dos filhos.
ccxvi
O art. 18 da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças deixa explícito que a atuação estatal no
tocante à educação tem caráter subsidiário à atuação da família:
“1. Os Estados Partes envidarão os seus melhores esforços a fim de assegurar o reconhecimento do princípio
de que ambos os pais têm obrigações comuns com relação à educação e ao desenvolvimento da criança.
Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade primordial pela
educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da
criança.
2. A fim de garantir e promover os direitos enunciados na presente convenção, os Estados Partes prestarão
assistência adequada aos pais e aos representantes legais para o desempenho de suas funções no que
tange à educação da criança e assegurarão a criação de instituições, instalações e serviços para o cuidado
das crianças.” (grifou-se)
ccxvii
É bom ser criança. Toquinho. Álbum: Canção de Todas as Crianças, 1987.
ccxviii
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.” (grifou-se)
ccxix
“Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar
social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o
interesse maior da criança.” (Artigo 3, item 1) Essa convenção, na qual se baseou o ECA, tem valor
supralegal, como qualquer tratado internacional de direitos humanos, e portanto está acima de qualquer
legislação nacional, como o próprio ECA.
ccxx
“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios,
todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.” (grifou-se)
ccxxi
“Sucesso ou fracasso na tarefa de ser pai, medidos de acordo com qualquer critério que nós
consideremos relevante, provavelmente afetará profundamente nosso senso geral de quão bem ou mal
nossas vidas têm sido”. CALLAN, Eamonn. Creating citizens (Oxford: Clarendon Press, 1997) apud
REICH, Rob. Testing the boundaries of parental authority over education: the case of homeschooling. In:
MACEDO, Stephen; TAMIR, Yael Tamir. Political and moral education. New York: New York University
Press, 2002.
ccxxii
Esse interesse está explicitado na CF, que dispõe “A educação (...) será promovida e incentivada (...)
visando ao (...) preparo [da pessoa] para o exercício da cidadania (...)” (art. 205).
ccxxiii
Esse interesse também está explicitado na CF, que dispõe “A educação (...) será promovida e
incentivada (...) visando [à] qualificação [da pessoa] para o trabalho” (art. 205).
ccxxiv
Cf. as estatísticas em http://www.nheri.org/research/research-facts-on-homeschooling.html. Vide,
ainda, MURPHY, Joseph. Homeschooling in America. Corwin; 1 edition (August 8, 2012).
231

ccxxv
De acordo com as pesquisas do National Homeschool Reasearch Foundation, aqueles que receberam
educação domiciliar “estão indo bem, geralmente acima da média, em medidas de desenvolvimento social,
emocional e psicológico. Medidas de pesquisa incluem interação entre pares, autoconceito, habilidades de
liderança, coesão familiar, a participação em serviços comunitários, e da autoestima” (tradução livre).
Disponível em http://www.nheri.org/research/research-facts-on-homeschooling.html.
ccxxvi
O foco nos talentos específicos de cada pessoa tem se mostrado um método de ensino naturalmente
muito superior à absorção de informações sem finalidade específica promovida pela escola. Vide, a esse
respeito, o interessante caso da família Harding, que conseguiu a admissão de vários de seus filhos na
universidade aos 12 anos de idade: HARDING, Kip; HARDING, Mona Lisa. The Brainy Bunch: The
Harding Family's Method to College Ready by Age Twelve. Gallery Books (May 6, 2014). Por outro lado,
são bastante conhecidos os problemas decorrentes da inserção em ambiente escolar, como a exposição à
violência, ao bullying, ao tráfico de drogas e o estímulo ao consumo precoce de álcool.
ccxxvii
A convivência comunitária, que ocorre em ambientes diversos da família (ex.: clubes, igrejas,
vizinhança), é um direito e da criança e do adolescente previsto no ECA (arts. 4º e 19).
ccxxviii
Neste caso, utiliza-se analogicamente o disposto no art. 28 do ECA, in verbis:
“Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente
da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.
§ 1º Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interprofissional,
respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá
sua opinião devidamente considerada.
§ 2º Tratando-se de maior de 12 (doze) anos de idade, será necessário seu consentimento, colhido em
audiência.”
ccxxix
Os dez países com maior índice de liberdade educacional são: Irlanda, Holanda, Bélgica, Malta,
Dinamarca, Reino Unido, Chile, Finlândia, Eslováquia e Espanha. Por outro lado, os dez países com menor
índice de liberdade educacional são: Gambia, Líbia, Cuba, Arábia Saudita, Afeganistão, República
Democrática do Congo, Etiópia, República Árabe da Síria, Mauritânia e Serra Leoa. O Brasil, em 58° lugar,
está ao lado de Benin (56°), Qatar (57°), Camboja (59°) e Vietnam (60°).
ccxxx
Na CF, somente outra liberdade recebe esse qualificativo, a liberdade de informação jornalística (art.
220, § 1°).
ccxxxi
Ressalte-se que a Constituição Federal não prevê especial proteção para nenhuma outra associação
além da família. Na verdade, o art. 226, caput, é o único dispositivo constitucional a mencionar a expressão
“especial proteção”.
ccxxxii
Nesse sentido, é dever da família:
a) “a educação” (art. 205, caput);

b) “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227, caput); e

c) “amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua


dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida” (art. 230, caput).
ccxxxiii
Não por acaso, existe forte correlação entre o nível de democracia de um país e a sua liberdade
educacional. Conferir, nesse sentido, a nota de rodapé n. 1, que contém a lista dos dez países com menor
liberdade educacional, todos atualmente em regime ditatorial. Na mesma nota de rodapé, pode se verificar
que, por outro lado, todos os dez países com maior liberdade educacional são democracias plenas. Também
232

não foi por acaso que a escolarização compulsória teve início historicamente no despótico Estado
germânico da Prússia, no sec. XIX.
ccxxxiv
Durante as negociações sobre o texto da DUDH, Catherine Schaefer, a representante da União
Internacional das Ligas Femininas Católicas, “observou que os 2 artigos [sobre educação e cultura]
deixaram de mencionar o direito fundamental e responsabilidade dos pais a educar os seus filhos o que bem
entendessem. Se esse direito não for estabelecido na Declaração, poderia muito bem haver uma repetição
de situações como a que prevaleceu na Alemanha sob Hitler”. Esta posição foi apoiada por diversos
delegados.

Beaufort, o delegado holandês, apontou que “os pais não seriam capazes de arcar com a responsabilidade
primária, a menos que eles fossem capazes de escolher o tipo de educação que seus filhos devem ter. Na
Alemanha nazista, onde a Juventude Hitlerista privou os pais do controle de seus filhos e forneceu uma
experiência que nunca deve ser permitida a acontecer novamente. Carton de Wiart, o delegado belga,
observou que “com efeito, a família tinha direitos anteriores sobre o Estado, que seria útil reconhecer, de
uma forma ou de um outro em uma declaração de princípio, como o artigo 23. O representante da Holanda
tinha expressado o horror que os países ocupados pelos nazistas ainda sentiam ao pensar que o Estado pode
obrigar as crianças a serem deformados moral e intelectualmente pela doutrina do partido no poder. (...)
Seria, de fato, um erro para não reconhecer os direitos da família em um artigo de tal importância,
especialmente como não poderia ser presumido que os direitos e deveres do Estado em matéria de educação
tinha sido desconsiderados ao fazê-lo. Como resultado da discussão da alteração introduzida pelo
representante do Líbano se tornou o que nós conhecemos agora como o artigo 26.3 da DUDH. “A maioria
daqueles que votaram a favor da alteração tinha ficado impressionado com o argumento de que os recentes
abusos nazistas do poder do Estado tinham de ser evitados. Shaista Ikramullah do Paquistão pensou que
“era essencial para garantir a liberdade de escolher a educação, um princípio flagrantemente violados pelos
nazistas”. Deve notar-se que, de facto, a mais forte oposição à linguagem proposta veio do outro regime
totalitário do tempo – os delegados da União Soviética comunista.

Cf. Morsink, Johannes. 1999. The Universal Declaration of Human Rights: origins, drafting, and intent.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, p. 177, 265-267.
ccxxxv
Ressalte-se que a DUDH tem sido utilizada na jurisprudência de forma equivalente à legislação
internacional, não havendo controvérsias a respeito de seu status de fonte de direitos.
ccxxxvi
“1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam
em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua
dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em
que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre,
favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais,
étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.”
ccxxxvii
Esse mesmo caráter é reconhecido pela CF ao dispor que a educação é dever da família. Vide, a esse
respeito, GOODSELL, Willystine. A history of the family as social and educational institution. New York:
The Macmillan Company, 1920.
ccxxxviii
De acordo com o positivismo, a evolução do espírito humano passava por três estados: teológico,
metafísico e o positivo. Este último estado substituiria os dois anteriores e seria integralmente baseado no
saber científico.
233

ccxxxix
A educação clássica (ou educação liberal) tem dois fundamentos: as artes liberais (todo o conjunto de
técnicas intelectuais que ensinem ao aluno como pensar, como gramática, lógica e retórica) e os grandes
livros do pensamento ocidental, especialmente os de literatura.
ccxl
Esse viés antirreligioso da educação pública brasileira foi intensificado após a década de 1960, com a
crescente influência de autores marxistas, especialmente de Paulo Freire.
ccxli
A educação domiciliar também é um direito fundamental não enumerado, como será demonstrado mais
à frente.
ccxlii
The International Center on Law, Life, Faith and Family (ICOLF). A MODEL DECLARATION ON
THE RIGHTS OF THE FAMILY. A TRANSLATION OF THE CHARTER OF THE RIGHTS OF THE
FAMILY INTO INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS LANGUAGE. Disponível em
https://s3.amazonaws.com/icolf/icolf/wp-content/uploads/ICOLF.ModelFamilyDeclaration1.pdf.
ccxliii
Tradução realizada por Timothy Brennan Junior e revisada pelo autor.

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