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Ø Música e dança
Do ponto de vista das Africanidades Brasileiras, não
tem cabimento a musicalização de crianças, adolescen-
tes e adultos que não inclua os ritmos de origem afri-
cana. E, do mesmo ponto de vista, não bastará ouvir
textos musicais e reconhecer instrumentos típicos. Será
preciso ouvir e fazer tentativas de tirar som e ritmo de
instrumentos típicos: caixa de fósforo, pandeiro, agogô, Criança negra reafirma sua identidade e cidadania
REVISTA DO PROFESSOR, Porto Alegre, 19 (73): 26-30, jan./mar. 2003
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das pessoas, das maneiras como elas se relacionam Ø Literatura e Língua Portuguesa
entre si. No Brasil, assim como em outros países Poderá envolver pessoas da comunidade que têm
de fortes raízes africanas, em qualquer nível de en- o gosto de colaborar com a escola. As histórias
sino, torna-se inadmissível desconhecer as obras de colhidas pelos alunos são transformadas em tex-
Franz Fanon, pelo menos Pele Negra,Máscaras tos que poderão ser reunidos num livro e, desta
Brancas(...) que analisa e discute as dificuldades en- forma, serem divulgados entre outras classes e tam-
frentadas por descendentes de africanos para terem bém na comunidade.
sua identidade respeitada, enquanto tias, num mun- Os professores, juntamente com os alunos, de-
do colonizado por europeus. No nosso caso especí- cidem o que perguntar, que histórias pedir para as
fico, não há como desconhecer a obra de Neuza San- pessoas da comunidade negra contar: histórias de
tos Souza, Tornar-se negro. brincadeiras, de trabalho, de festejos, de celebra-
ções religiosas, da vida na escola, etc.
Ø Sociologia Apresentamos, a seguir, exemplos de algumas his-
Fonte-chave para estudos que tenham preocupa- tórias colhidas por professores e alunos em dife-
ção com as Africanidades Brasileiras é certamente rentes situações, junto a representantes de comuni-
a obra de Clovis Moura, salientando-se Sociologia dades negras.
do Negro Brasileiro, em que aborda a sociedade bra- Essas histórias constituem relatos originais. A
sileira, a partir de estudos sobre a problemática que linguagem individual foi mantida, o que dá aos rela-
envolve o povo negro. tos a autenticidade histórica dos fatos acontecidos
com os ancestrais dos depoentes.
Ø Educação Física
Na medida em que esta área de conhecimento, ao
dedicar-se ao estudo do corpo, incluir dança, seria
incompreensível, no Brasil, deixar de haver sessões
de danças de raízes africanas. E, na área de jogos, de
se jogar capoeira.
Ø História
A História do Brasil, enquanto construção de
uma nação, inclui todos os povos que a constituem.
Assim, ignorar a história dos povos indígenas, do
povo negro é estudar de forma incompleta a histó-
ria brasileira. Por exemplo, o professor que traba-
lha na perspectiva das Africanidades Brasileiras não
omitirá, ao tratar da fundação de Laguna, em Santa
Catarina, que, conforme registra Cláudio Moreira
Bento em O Negro, a expedição que lá se instalou
em 1648 era formada, em 70%, por homens ne-
gros escravizados. Ao referir a fundação da Colô-
nia de Sacramento, não esquecerá de fazer saber
que, além dos escravos, a tropa fundadora contava
com soldados negros.
Se a história ensinada na escola souber contem-
plar, também, a vida vivida no dia-a-dia, pelos gru-
pos menosprezados pela sociedade, então estaremos
ensinando-aprendendo a história brasileira integral-
mente realizada. Conforme o entendimento de Gi-
gante, a valorização da história dos grupos popula-
res, registrando o que em suas memórias está guar-
dado de suas experiências, é tarefa que pode ser rea-
lizada por professores e alunos, a partir da comuni-
dade em que a escola está inserida. Desta forma,
pondera o autor, todos os que constroem o Brasil
estarão presentes nos conteúdos escolares. Pessoas idosas são a memória da comunidade negra
REVISTA DO PROFESSOR, Porto Alegre, 19 (73): 26-30, jan./mar. 2003
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DEPOIMENTOS
As tochas de fogo Dona Tereza Azevedo Oliveira História do nosso
O mato do Limoeiro, quando eu era criança, eu me lembro povo através da família Benedito Samuel Barbosa
que era um mato muito fechado. Não era esse matinho que tem Meus Avós – Minha avó era negra, meu avô era mestiço. Ele
aí, aberto como fizeram agora. foi para a guerra do Paraguai. Lutou 2 anos, foi com 15 e voltou
Isso foi no tempo do Dirceu Rosa, aquela fazenda na frente com 17. Ele dizia que no fim da guerra tinham sobrado muitos
do mato do Limoeiro era dele. Foi dele, depois passou a ser do negros vivos. Mas nem todos voltaram, só ele e mais alguns. Os
governador. que voltaram nunca mais ouviram falar dos outros.
O Limoeiro era um mato fechadíssimo, tinha muita figueira.. Parentes mais Velhos – Na época dos meus avós, de acordo
Eu, quando era criança, cheguei a enxergar lá, quando anoitecia, com o que eles contavam, os parentes não se separavam. O pai era
umas línguas de fogo. A gente não ligava, mas tinha medo, mas responsável por todos enquanto vivesse. Os filhos, os netos moravam
não ligava muito. com ele, ou perto da sua casa. Até mesmo os irmãos mais novos
A minha mãe cozinhava para o pessoal daquela granja, tinha eram comandados pelos mais velhos. Numa fazenda, por exemplo,
uma pensão. Ficava lá naqueles cantos da Reforma. Daí, um dia todos moravam juntos, muitas vezes na mesma casa. Os filhos
de noite, a gente foi levar comida para um homem que cuidava casavam com vizinhos, com primos e continuavam todos ali.
das máquinas, o motor d’água, que estava puxando água. Tradições – Na religião, a família sempre acreditou na força
Enquanto o homem jantava, a gente brincava, eu e meu irmão e na energia dos antepassados. Uma parte da família foi e é
mais velho... E lá do mato do Limoeiro saíam, das figueiras, católica, a outra, espírita, mas para louvar o Senhor todos sempre
aquelas tochas de fogo... Passava uma pra lá, passava outra pra estiveram juntos.
cá. Nós olhávamos e não tínhamos medo. A família sempre participou das festas em louvor do padroeiro
De repente, quando nós agarramos o prato do homem para do lugar onde vivia e vive, seja uma fazenda, bairro, cidade.
vir embora... saiu do mato uma luzinha deste tamanhozinho, e As rezas foram e são consideradas importantes, com muito
veio na nossa direção. canto e louvação.
O meu irmão me agarrou pela mão e corria... corria... A gente No tempo dos avós, principalmente, usavam muito benzedu-
voava, não corria. E aquela luzinha sempre atrás da gente. ras para fazer curas. Benziam com brasa, alho, palma benta,
Hoje em dia, não existe mais nada daquilo ali. Agora, quando águ a.
eu era criança cansei de ver as tochas de fogo ali, andando por Trabalho – Meus avós e seus filhos trabalharam no café.
cima das árvores. Ela (a tocha) se formava amarela, verde, azul e Naquela época, para os estrangeiros, o café valia como ouro. A
não era uma só. maior parte da nossa família era de colono, vivia nas fazendas,
As pessoas mais velhas, a minha avó, a minha mãe sempre nas colônias. Cada homem tinha como tarefa 4.000 pés de café
contavam que aquilo ali, no tempo da escravidão, naquele lugar, para tratar.
degolavam os escravos e enterravam debaixo daquela figueira. Este trabalho era de sol a sol todos os dias, incluindo domingo.
Para cuidar do dinheiro dos fazendeiros, que ficava ali enterrado. Só não trabalhavam nos dias santos. Tudo debaixo de ordem do
Naquele tempo não existia banco, não é... feitor.
Como o negro era sacrificado! Degolavam, botavam debaixo Não tinha farmácia nem médico por perto.
daquela árvore e aquele espírito ficava ali para cuidar. Para Salário – O ganho, na época de meus avós, era pela produção,
ninguém mexer naquele ouro, naquele dinheiro. após a colheita, que ia de maio a novembro. O café era colhido e
O bs e rv aç ão: A depoente tinha filhos na escola e sempre colocado no armazém, depois ia para Santos onde era embarcado
colaborou com as professoras e os alunos. Na sua história, ela nos navios. Os trabalhadores só recebiam depois que o governo
se refere à fazenda da Reforma, onde se tentou uma experiência pagasse os fazendeiros, o que acontecia após a colheita. Mas,
de reforma agrária, no início dos anos 60. Palmares do Sul/RS. quando o preço do café não agradava os fazendeiros, o café era
jogado no mar ou queimado. Então os colonos não recebiam os
seus salários. Isto começou a ser assim por volta de 1930. Antes
O quicumbi Dona Tereza Lopes de Oliveira não era assim: antes da colheita o patrão dava um dinheiro para
O que é o quicumbi? as despesas com comida, até chegar a colheita.
É o Ensaio. Nós fizemos uma vez aqui em casa para pagar a As festas, os casamentos, os batizados se realizavam no final
promessa que o falecido pai do Maneca tinha feito. do ano, época em que recebiam o dinheiro da produção.
Foi em 74, não, em 75.
Neste Ensaio, dançam só os homens e cantam cantos de
reza. Eles têm um canto. Um mestre comanda a turma com BIBL IOGRAFIA
instrumentos: pente, um reco-reco, uma taquareira, um
tamborzinho. Eles passam a noite cantando aquelas orações do FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Porto: Paisagem, s. d.
Divino Espírito Santo. GIGANTE, H. História, memória e cotidiano nas primeiras séries do pri-
Eles não dançam uns com os outros, eles dançam sozinhos. meiro grau. Dissertação. (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação.
É só gente morena. Este Ensaio vem do povo negro mesmo, do Universidade Federal de São Carlos. São Carlos/SP, 1993.
africano. GERBES, Paulus. Vivendo a Matemática – desenhos da África. São Paulo:
De onde gerou, nós não sabemos. De primeiro, usavam muito Scipione, 1993.
por aqui, isto de promessas. Faziam promessas e davam uma
festa, comida, bebida, tudo por conta do dono do Ensaio, aquele LOPES, H. T. 500 anos de cultura e evangelização brancas do ponto de vista
que fazia a promessa. das religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro, 1990. (Texto datilografado).
As mulheres só olhavam e faziam as comidas. MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
Vinha muita gente olhar, os convidados. Só dançava aquele
grupo, essa dança é reza, não é divertimento. PALMARES DO SUL. Secretaria Municipal de Educação. Escola Municipal
Eles vinham cantando, dançando, tocando. Por aqui, ninguém de 1 o Grau Incompleto Cândido Osório da Rosa. Histórias do Limoeiro.
Palmares do Sul, 1986.
mais sabe nada disso. Nós falamos com o pessoal lá da Casca,
para vir aqui em casa. SCHENETZIER, R. P. Do ensino como transmissor para um ensino como
Veio muita gente, um Ensaio sempre junta muita gente.Depois mudança conceitual nos alunos: um processo (e um desafio) para a formação
da reza, vem o baile. Pena que a gente não seguiu o costume. de professores de Química. Cadernos ANPED, n. 6, p. 55-89, out. 1994.
O Ensaio vem do povo africano.
Observação: Dona Tereza Lopes de Oliveira, juntamente com SILVA, P. B. G. e. Africanidades: como valorizar as raízes afro nas propos-
tas pedagógicas. Revista do Professor, Porto Alegre, v. 11, n. 44, p. 29-30,
seu marido Maneca Boeira Oliveira, falava para seus filhos sobre out./dez. 1995.
o quicumbi. Palmares do Sul/RS.
SOUZA, N. S. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.