Sie sind auf Seite 1von 17

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

DO PEQUENO AO INFINITO:
TARDE, VITALISMO E O TEMPERAMENTO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Thiago de Araujo Pinho


“O que mais o exaspera é encontrar-se à mercê do acaso, do aleatório, da
probabilidade, é deparar, nas atitudes humanas, com o desleixo, a
imprecisão, sua ou de outros.” (CALVINO, 1990, p. 25)
SÍSIFO E O ETERNO RETORNO

E lá vai ele subindo uma ladeira irregular, empurrando uma pedra muito maior do que
seu corpo... e lá vai ele agora descendo a mesma ladeira não tão alta, quase um morro, mas
ainda assim reforça em detalhes toda a tragédia da cena, sua repetição, sua infinita repetição
frustrada. Esforço inútil, estéril, retirando tudo aquilo de dinâmico, tudo de intenso, ao mesmo
tempo que dissolve qualquer coisa em um fluxo de pura indiferença. A monotonia do
movimento, aliada ao suor que escorre por cada contração de músculo, por cada esforço
localizado, parece adicionar mais peso nas costas do pobre Sísifo, personagem infeliz
condenado por Zeus a uma pena inimaginável. Como desistir de tudo isso em nome do lançar
de dados deleuziano, da verdadeira repetição e não daquela sinônimo de monotonia? Sísifo
não é um bom jogador, ao menos aos olhos do crupiê, Diosinio, essa criatura curiosa e
desejante que observa toda aquela cena patética e pouco afirmativa. Sísifo deixa o
ressentimento cegar suas possibilidades, negando, ao mesmo tempo, a chance de um
verdadeiro esforço criativo, de pura afirmação. “Quem ele é?” Pergunta o positivista curioso,
já que adora proposições simples e objetivas. Sísifo é basicamente uma metáfora, além de ser
também o objetivo de todo esse ensaio: “Compreender o vitalismo na Teoria Social e sua
dupla ramificação encontrada nas abordagens de Tarde/Durkheim, Deleuze/Foucault,
Latour/Bourdieu”

PARTE I: TARDE, SOCIOLOGIA E DEVIR

Gabriel Tarde, personagem quase esquecido da história do pensamento social,


condenado a algumas discussões marginais no campo da psicologia e do direito, enfim
ressurge. Embora tenha tido no início de sua carreira uma boa popularidade, além de uma
razoável repercussão de suas ideias, em especial no campo antropológico, com seu diálogo
com Lombroso, ou mesmo no campo sociológico, com as polêmicas acaloradas com
Durkheim, acabou sendo excluído de um novo domínio a ser formado, um espaço com
fronteiras fixas e impenetráveis. A sociologia começava a apresentar limites bem demarcados,
através de métodos assépticos, higienizados, com aquele polimento bem positivista. Havia
uma busca ansiosa por legitimidade acadêmica, conseguida apenas através de aproximações
insistentes com as ciências biológicas e físicas, ao conferir assim maior firmeza, identidade e
confiança ao conhecimento aí gerado. Tarde, com sua metafísica, seria entendido, talvez,
como um filósofo, talvez um psicólogo social ou, no máximo, com um pouco de esforço, um
microssociologo, quando não, uma espécie de protopensador, alguém que apenas instituiu
rudimentos de uma sociologia em breve superada por Durkheim e sua sociologia científica.
Com o passar do tempo, através de alguns pensadores como Deleuze e Latour, esse
personagem ressuscita de seu sono intelectual e passa a ganhar uma força cada vez maior. A
predominância do “vitalismo” no espaço acadêmico e principalmente sua invasão nas ciências
sociais, garantiram a Tarde o status necessário e o lugar adequado para disseminar suas
categorias, ao passo que se transforma, aos poucos, num evidente ancestral e uma referência
marcante para muitos autores contemporâneos, sejam eles filósofos, sociólogos, antropólogos,
etc.

Dentre os vários conceitos que circulam pelo seu universo, e que caracterizam não
apenas sua sociologia, mas a própria tradição vitalista que utiliza, existem três que circulam
pelos seus textos: a repetição, a diferença e a imitação. Esses três conceitos são importantes
não pela inevitável centralidade que ocupam no pensamento de Gabriel Tarde, o que pode ser
o caso, mas sim porque são três pontes convergentes para a tradição “vitalista” e suas
ramificações no campo da Teoria Social, como vai ficar claro em breve. Entender o papel do
“vitalismo” nas ciências sociais, passando pela ancestralidade de Tarde, é o principal objetivo
desse ensaio, rompendo ao mesmo tempo fronteiras arbitrárias entre autores e tradições
sociológicas. A hipótese é simples, mas arriscada: existe uma mesma matriz interpretativa
atravessando muitos de nossos sociólogos, principalmente aqueles que consideramos rivais e
inconciliáveis (Tarde/Durkheim, Deleuze/Foucault, Latour/Bourdieu). Na verdade, o simples
fato de existir dissenso entre eles, e oposição, já é um claro sinal de que algo em comum
passeia pelos bastidores e garante a própria possibilidade desse mesmo dissenso. Se não
tivessem nada em comum, se fossem de mundos opostos, o silêncio e a indiferença seriam as
únicas coisas existentes e não o debate e a polêmica. O estudo é preliminar, ainda um esboço,
sendo muito mais uma experiência arriscada e provocativa, um campo interessante de
possibilidades, saindo assim do óbvio espaço das polarizações e conflitos acadêmicos.
Embora a sociologia francesa goste de polêmicas, e esse detalhe não tem nenhuma novidade,
podemos ainda assim arriscar um outro percurso, mais reconciliatório.

O JOGO DE DADOS: A REPETIÇÃO

Existe, sem dúvida, um jeito mais imediato, meio senso comum, de conceber a
“repetição”, afinal, usamos esse substantivo várias vezes durante o dia: “O menino repetiu de
ano”, “Essa cena é repetida”, “Não precisa repetir a mesma coisa”, etc. Para Gabriel Tarde,
por outro lado, esse conceito nada tem a ver com permanência, hábito ou regularidade, ou
seja, com aquilo que normalmente é associado a esse termo. O que é repetido, assim como em
Deleuze, não é uma serie causal, uma esteira idêntica de fenômenos, “[...] mas uma
virtualidade de certo tipo” (TARDE, 2007, p. 121), uma espécie de inclinação ao novo. A
repetição sempre adiciona alguma coisa no fenômeno, quase como o “evento” de Badiou
(1997) e Savransky (2016), isto é, uma instância que sempre força novas remodelagens. Os
três termos tardianos (diferença, repetição e imitação), nesse caso, convergem dentro de um
mesmo solo vitalista, ao abrir espaço não para realidades definidas, representações
sobrepostas, ou categorias transcendentais. O que é repetido guarda dentro de si um potencial
intenso, transbordante, ao despencar em novos agenciamentos, deslocando as continuidades e
permanências de seu centro epistemológico. Em outras palavras, a “identidade” não deixa de
existir em Tarde, assim como as categorias sujeito-objeto em Latour, embora elas se
encontrem, por outro lado, descentradas de uma posição de excelência e transformadas em
instantes passageiros, em momentos casuais, lançados num fluxo repetitivo, vitalista. Como
para esse sociólogo “toda coisa é uma sociedade” (TARDE, 2007, p. 81), desde uma simples
célula até um cardume se agrupando num coral, passando por encontros religiosos e
polêmicas politicas, a repetição atravessa tudo, permitindo que humanos e não-humanos
cooperem num jogo rico de virtualidades, todos num ritmo sempre inédito de descobertas e
articulações. Nesse solo vitalista, de um puro fluxo, tudo está “at the same footing”
(GRAHAM, 2007, p. 22), em um mesmo plano de experiências, sem hierarquias ou
distinções. Não importa se estamos falando da repetição ondulatória, gravitacional,
hereditária ou imitativa (TARDE, 2007); todas implicam num mesmo princípio repetitivo e
“profusor”, num mesmo solo heideggeriano contrário a predicados e fronteiras, a não ser uma
contínua série de encontros. O que existe apenas é excesso e avidez, assim como a célula
nietzschiana, sempre em busca de mais expansão e potência, sempre desejando novas
agenciamentos.

O espaço, o tempo, ou qualquer outra categoria a priori, vê a si mesma dependente


desse movimento repetido, dessa virtualidade sempre contagiante, sempre se propagando para
o infinito com aquela vontade expansiva, insatisfeita. Não é á toa, inclusive, que Tarde
entende a “imitação”, com seu contagio bem rizomático, como geradora dos eventos
repetitivos do universo humano (VARGAS, 2000). As coisas “não são” para Tarde, elas se
possuem, se conectam e ultrapassam sempre a si mesmas, subvertendo a própria unidade
individual que supostamente teriam, mascaradas pelo mais antigo artifício de linguagem: o
verbo “ser” e sua mania transcendente e reificante. A essência não é um adjetivo, um rótulo
necessário, ou uma marca profunda no corpo do fenômeno, mas a condição mesma de sua
difusão, uma quebra de fronteira. A origem ao não ser um núcleo atual, no sentido deleuziano,
acaba sendo um solo de surpresas, um encontro de linhas de força. O critério determinante,
como já era de se esperar, não é de validade, como se houvesse um corte atemporal entre o
verdadeiro e o falso, transparente ao sujeito esclarecido. “Here we are beyond causes and
effects[…]” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 20). A origem é genealógica, ou seja, é um
fundamento virtual em que a própria enunciação do evento, suas conexões e implicações, já é
um mergulho em sua profundidade, um acréscimo à sua expansão. O sujeito desinteressado
kantiano, o protótipo do cientista tradicional, uma vez descolado do mundo, enxergando de
cima suas variáveis e suas determinações, é substituído não por uma outra
transcendentalidade, um outro eixo vertical de significado qualquer, mas sim por um conjunto
de mônodas descentradas, uma rede afecções. Ao querer “[...] encontrar qualquer justificativa
no acaso” (BALZAC, 2012, p. 410), alguma série causal escondida, o ator adquire aquela
identidade suficiente, aquele alicerce indispensável, ao menos para uma vida congelada. Ao
não ser uma causa, nem simplesmente uma origem oculta por trás dos bastidores, a genealogia
oferece uma multiplicidade e uma dinâmica nova ao fenômeno. Não existe nada por trás,
nenhuma matriz fixa, ou algum transcendental conveniente, mas um “entre”, uma relação. “É
que, na realidade, trata-se aqui de centros e de núcleos infinitamente múltiplos, com pontos de
vista e graus diferentes.” (TARDE, 2007, p. 126)

O indivíduo, por consequência, não é uma célula isolada, um corpo ascético e bem
esboçado, ou talvez um núcleo causal brotando de alguma transcendentalidade qualquer. Ele
(o indivíduo), “[...] é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo (NIETZSCHE, 1874, p.
16). Isso implica o abandono do rótulo de individualismo metodológico quando falamos de
Tarde, já que não há indivíduos no seu esquema de pensamento, mas apenas mônadas
lançadas numa esteira infinitesimal ou, em outras palavras, um feixe de múltiplos contatos,
um espaço completamente descentrado. Seu projeto é de uma monodologia renovada, ao
resgatar, como ponto de partida, as reflexões de Leibniz e sua filosofia monista, embora
ultrapasse suas conclusões, dando ao conceito de mônoda um aspecto mais diferencial e mais
aberto. Seria a mônoda um átomo, um tipo de particula elementar indivisível? Não. Para
Tarde, mesmo esse átomo não deixa de ser “[...] um turbilhão, um ritmo vibratório de certo
gênero, algo de infinitamente complicado segundo todas as aparências [...]” (TARDE, 2007,
p. 22).

Com essas premissas não há lugar para dualismo, nem entre sociedade e cultura,
muito menos entre eu, entendido como núcleo individual, e o coletivo, algo autônomo e sui
generis. Essa unidade metafísica chamada eu, e toda sua identidade bem a priori, responsável
pelo ordenamento da experiência e sua síntese necessária, é desmontada na exata medida em
que ocorre a repetição no universo humano, ou seja, quando ocorre o processo imitativo e seu
crescimento rizomático, seu deslocamento descentrado. O individuo já é um feixe diferencial,
complexo e dinâmico; ele já é uma sociedade. “[...] esses elementos últimos aos quais chega
toda ciência, o individuo social, a célula viva, o átomo químico, só são últimos da perspectiva
de sua ciência particular. Eles próprios são compostos [...]” (TARDE, 2007, p. 57). Assim
como Newton revela um universo múltiplo, dinâmico e ilimitado, deslocando o cosmos de sua
unidade e harmonia aristotélicas, Tarde realiza o mesmo percurso, ao desregular a
funcionalidade do todo, reestabelecendo a importância das partes, essas já plurais e abertas.
Como diz Latour, “Tarde offers a very odd type of reductionism since the smallest entities are
always richer in difference and complexity than their aggregates or that the superficial
appearances that we observe from far away” (LATOUR, 2011, p. 4).

IMITANDO A DANÇA DIONISIACA

O principio imitativo nada mais é do que o desdobramento específico da repetição no


universo humano, embora seja necessário prestar maiores considerações a ela, o que acaba
nos levando direto até a polêmica com Durkheim. Se a cadeia explicativa durkheimiana para
os fenômenos sociais é vertical, priorizando instancias autônomas e externas como
responsáveis por condutas e discursos, Tarde, ao contrário, aposta num principio horizontal,
sem mudanças de níveis, isto é, imanente. O conceito de rizoma, em Deleuze (1975),
esclarece bem essa proposta e principalmente a capacidade de expansão do movimento
imitativo e sua avidez em conquistar tudo à sua volta1. Sem pontos de partida ou teleologias, o
rizoma não é uma criatura, um objeto, mas sim uma força motriz, um impulso que se propaga
com o passar do tempo, tomando tudo ao seu redor. Isso significa que é impossível sugerir
uma explicação de um processo rizomático, no sentido de compreender analiticamente esse
fenômeno, desmembrando variáveis e expondo conexões necessárias. Ao contrário, eu
participo do rizoma, ainda que acredite em uma espécie de pureza científica. Assim como os
“fluxos de desejo e vontade” em Tarde, o rizoma deleuziano não é um simples elemento
explicativo, ele induz à participação, ao envolvimento instantâneo. Assim como o olhar
genético lança o sociólogo direto no espaço que deveria explicar, transformando-o num
combatente, num justificador engajado, o rizoma já demanda afecção, já força um encontro,
por mais asséptico que pareça o cientista com seu jaleco branco e sua postura moderna,
confiante. O processo imitativo, logo, é

[...] uma ação á distancia de um cérebro sobre outro. Ela pode ser consciente ou
inconsciente, voluntária ou involuntária, vaga ou precisa, unilateral ou reciproca,
mas não pode deixar de ser produzida à distancia, em uma espécie de ‘geração à
distancia’, pois assim perderia sua especificidade (VARGAS, 2000, p. 226).

Tarde diferencia dois tipos de imitação: o inovador (as forças plásticas) e o


institucionalizante (as forças funcionais). O primeiro, condicionado pela mudança, impulsiona
o movimento imitativo para frente, para uma expansão cada vez maior, quase que almejando
o inédito a qualquer custo. A segunda, por outro lado, seria um percurso mais identitário,

1
Sobre isso Tarde dirá: “Já que o ser é o haver, segue-se que toda coisa deve ser ávida.” (TARDE, 2011, p. 123)
ligado a fixação e a reprodução de certos conteúdos. Existem outros exemplos de processos
imitativos, como aqueles ligados à moda ou ao costume, embora haja sempre um
denominador comum entre todos, permitindo uma convergência para o mesmo potencial
expansivo, contagiante. Seu movimento é centrifugo, ou seja, começa do centro, esse já
bastante diferenciado e infinitesimal, seguindo lentamente para a borda, esta menos
diferenciada e mais rara.

Segundo Tarde, o que efetivamente se propaga por imitação? Seriam ações dispersas,
de indivíduos atomizados, progressivamente se expandindo, ou talvez representações
coletivas, de alguma forma disseminadas para outras consciências, ou mesmo intuições
kantianamente difundidas? Nenhuma delas, diria Tarde. O que é propagado são “crenças e
desejos” (TARDE, 2007, p. 22), uma espécie de ânsia por novos agenciamentos, um
verdadeiro fio tencionado entre dois polos complementares e inseparáveis: a transformação e
a manutenção. Quase como o jogo nietzschiano de Apolo, o Deus da forma, e Dionísio, o
Deus do excesso, ambos engajados numa dança quase reconciliatória, ao menos para o
Nietzsche do nascimento da tragédia. Num certo momento do seu livro monodologia e
sociologia, Tarde afirma que “[...] a crença e o desejo desempenham no eu, em relação às
sensações, precisamente o papel exterior do espaço e do tempo em relação aos elementos
materiais.” (TARDE, 2007, p. 67). Essa analogia kantiana das crenças e dos desejos acaba por
esclarecer melhor a pretensão epistemológica de Tarde, ao fazer dessas características (crença
e desejo) a condição necessária da existência do eu, assim como o espaço e o tempo seriam as
condições para a própria experiência, como o próprio Kant descreve em sua estética
transcendental. Em Kant, por outro lado, a identidade também é um pré-requisito da
experiência, instantaneamente enquadrando tudo em categorias definidas, em sínteses cada
vez mais elaboradas. Em Tarde, ao contrário, o a priori, digamos assim, é a diferença, e, nesse
caso, o aspecto identitário dos fenômenos seria apenas um instante passageiro dentro de
encontros infinitesimais. Essa pequena “re-revolução copernicana” vai se afastando aos
poucos de uma hipótese epistemológica de mundo e começa a marchar para uma ontologia,
priorizando assim muito mais o movimento do que elementos e critérios formais. O que de
sólido existe é criado internamente pelo mundo, consumido ao mesmo tempo por ele e sua
velocidade. Sem dúvida o entendimento (a razão) possui dentro de si elaboradas associações
de ideias, abstratas correlações de conceitos, embora esses instantes sejam apenas a porção
mínima, um simples aperitivo do que realmente acontece, deixando transparecer uma miríade
de encontros, desde o envolvimento sensível com um mundo sempre mutuante, até a serie
infinitesimal de conexões cerebrais entre sinapses em torno de um certa ideia cada vez mais
difusa, rizomática.
Se em Latour o conhecimento deixa de operar por saltos, como acontecia em um
processo representacional qualquer, através do conceito de mediação, por outro lado,
contrapondo à fixidez do intermediário (LATOUR, 1979), Tarde utiliza uma imagem
parecida ao se referir aos “[...] operários ocultos que colaboram para a realização de algum
plano de reorganização específico concebido e desejado [...]” (TARDE, 2011, p. 64). Esses
operários ocultos, uma vez ocultados pela unidade e autonomia de certos fenômenos, passam
a ser vistos como o elo adequado entre tudo o que se constitui, ao passo que cria as condições
necessárias para o próprio aspecto infinitesimal da realidade.

Em razão desse processo imitativo, o que seria, de fato, uma sociedade humana?
Pergunta o positivista curioso. Se para Durkheim ela se define por sua autonomia e
coercitividade, como uma coisa objetiva e representável, quase como uma vontade geral
rousseauniana, quais seriam as suas características principais para Tarde? Ele é mais modesto,
nesse caso, definindo as sociedades humanas como “[...] a possessão recíproca, sob formas
extremamente variadas, de todos por cada um.” (TARDE, 2007, p. 112). Não há uma
preocupação em definir fronteiras que a circunscreveriam dentro de um certo espaço, o que só
reforça mais ainda sua ideia de uma sociologia universal. Existem apenas sociedades, não
importa se elas sejam compostas por humanas, por estrelas, por corais, e assim por diante.
Como em qualquer modelo vitalista, o dualismo é substituído por um monismo poderoso,
onde tudo é atravessado por um mesmo princípio vital, quebrando o que Latour chamou de
uma antropologia assimétrica.

A DIFERENÇA DIFERINDO

A hipótese tardiana, logo, rompe com a proposta evolucionista de figuras como


Spencer, em que o universo, seja ele humano ou não, segue um deslocamento linear e
progressivo, saindo de uma etapa homogênea para uma meta diferenciada e complexa.
Haveria um crescente, uma seta evolutiva atravessando desde um aglomerado de corais, até as
relações internas de uma sociedade humana, passando pela religião, ciência e filosofia. Para
Tarde, ao contrário, não se trata mais de

[...] [uma barreira] intransponível[...] entre a natureza dos seres inorgânicos e a


natureza dos seres vivos, já que vemos uma idêntica evolução, a de nossas
sociedades, modificar sucessivamente os traços dos segundos e os traços dos
primeiros (TARDE, 2007, p. 83).

Se a “diferença vai diferindo” (TARDE, 2007, p. 94), mesmo seus elementos mais
básicos, mesmo os fenômenos mais rústicos, teriam um nível de diferenciação inclusive muito
maior do que as formas “mais bem acabadas” e “desenvolvidas”. A diferenciação
durkheimiana pela crescente divisão do trabalho, nesse caso, é também questionada por
Tarde, já que Durkheim enxerga nas sociedades tradicionais uma zona indiferenciada,
progressivamente se diferenciando, na medida em que alcança momentos mais complexos.
Para o autor de Monodologia e Sociologia, a homogeneidade dos fenômenos é um sintoma de
uma falha ou, no mínimo, de uma ignorância, já que o desconhecimento sobre as coisas
tropeçaria nessa conclusão reducionista, tomada por muitos como a referencia do
conhecimento. Segundo ele, ao contrário, essa hipótese do homogêneo, do linear, do
constante, do estável, é logo descartada na exata medida em que ocorre um contato mais
próximo com o objeto de estudo, o que Latour (2001) chamou da “abertura da caixa preta”. A
diferença, diria Tarde, é “o alfa e o ômega” (TARDE, 2007, p. 102) de tudo o que existe, seu
princípio fundante, seu suporte constituinte.

Se havia sentido apostar num “eu transcendental” à moda de Kant, uma instância
ordenadora e a priori, condição para a identidade do sujeito e do próprio conhecimento, Tarde
sugere, por outro lado, uma aposta na diferença, reservando ao apelo identitário apenas um
momento casual, um instante passageiro. Como diria Merleau Ponty, “among Kantian
consciousnesses harmony can always be taken for granted.” (MERLEAU-PONTY, 1964. p.
32), o que já não acontece em Tarde, em que a harmonia das coisas, sua identidade, não é um
a priori, um ponto de partida, nem muito menos uma meta. Ela é um instante perdido no fluxo
diferencial, nada mais do que uma centelha prestes a desaparecer e ressurgir. O que é a
diferença? Pergunta que não faz sentido, já que ela “não é”, ou seja, não carrega dentro de si
nenhum predicado que a caracterizaria, nenhum critério que a definiria, como se fosse, por
exemplo, alguma potencialidade hegeliana ou algo do gênero. Ela é movimento, ela é difusão,
assim como a “rede” latouriana ou o “rizoma” deleuziano. Isso não significa que “pequenas
transcendências” (LATOUR, 2013, p. 267) não venham a brotar desse percurso infinitesimal,
mas sim que essas continuidades são transitórias, simples cartas lançadas ao vento.

PARTE 2: DOIS PENSAMENTOS, UMA MESMA MOEDA

Um mesmo mundo, dois olhares distintos. O vitalismo é uma espécie de rio que flui
por baixo das teorias de Tarde-Durkheim, Deleuze-Foucault e Latour-Bourdieu, constituindo
um terreno único, um solo adequado em que suas teorias foram se configurando ao longo do
tempo, criando raízes, ou melhor, rizomas. Se existem diferenças, o que sem dúvida é o caso,
e que já foram infinitamente discutidas, elas são mais de grau do que de substância. A
realidade descentrada, a existência diferida e tudo aquilo implicado numa boa concepção
vitalista, são signos recorrentes nos escritos desses três pares de escritores, apesar de existir
aqui um tipo de escala de temperamento, uma “oscilação teórica” de humor, digamos assim,
saindo de um otimismo declarado, quase uma apologia a contingencia e ao fluxo, e chegando
a um pessimismo nada sutil, com uma aposta em atrofias, constrangimentos, repressões, etc.
São duas faces de uma mesma moeda, assim como as figuras do “amor fati” e do
“ressentimento” são, em Nietzsche, partes complementares de um mesmo mundo, de um
mesmo solo vital, não importando as estratégias simbólicas que atravessam cada um. O
primeiro grupo abraça o fluxo em pura afirmação, sem transcendências, ou pelo menos, não
aquela transcendência metafísica. Estão preocupados em afirmar a ontologia vitalista, esse
solo descentrado e em fluxo. O segundo grupo, ao contrário, se volta para os instantes daquilo
que Heidegger (1986) chamou de esquecimento do Ser, um tipo de atrofia no solo ontológico,
ao cair no pragmatismo cotidiano. Enquanto o primeiro grupo (Tarde, Deleuze e Latour) se
concentra no debate ontológico, e no modo como a realidade opera, quase em um elogio ao
devir, o segundo grupo (Durkheim, Foucault e Bourdieu), por outro lado, analisa o modo essa
ontologia é devorada pelo pragmatismo. Em outras palavras, uma coisa é o mundo enquanto
tal, outra muito diferente é a forma como indivíduos vivem, muitas vezes negando sua própria
ontologia de fundo. A tese que costura essas linhas, essa ideia de enxergar o pragmatismo
como distinto da ontologia, muitas vezes até oposto, é compartilhado não só por Heidegger e
Nietzsche, mas por autores contemporâneos como Graham Harman (2007) e Tom Sparrow
(2014), embora muitas críticas pudessem, e podem, ser feitas a esse modelo, principalmente
por autores que não reconhecem essa distinção entre ontologia e pragmatismo, como Stengers
(2002), Savransky (2016), Donna Haraway (2008) e muitos outros.

A relação entre Deleuze e Foucault é simplesmente clássica, um tipo de vínculo não


apenas teórico, mas afetivo também, envolvendo muitos encontros, conversas, além de
discussões, crises e rupturas. Deleuze entendia seu parceiro, seu antípoda intelectual, como
um vitalista assombrado por um espectro de pessimismo (DELEUZE, 1992), o que, na
verdade, nunca foi um problema, mas uma fórmula interessante e até divertida rumo a novas
articulações. A amizade dos dois ultrapassava qualquer barreira temperamental, criando assim
uma combinação impactante de duas versões distintas, mas complementares, de uma mesma
forma de pensamento, de uma mesma ontologia. Sem dúvida Michel Foucault lançou mão de
todo um arsenal do vitalismo, desde sua ideia de uma de história descontinua, como um
movimento descentrado e autofágico, em vigiar e punir (FOUCAULT, 1975), até o seu
conceito de poder rizomático, em história da sexualidade (FOUCAULT, 1999a). Além, claro,
de noções como “linhas de força” em seu livro “a verdade e as formas jurídicas”
(FOUCAULT, 1973), indicando assim um paralelo óbvio não apenas com Nietzsche, mas
com as ideias do próprio Tarde, ainda que esse vínculo seja indireto, no limite quase do
exagero. Em outras obras, contudo, essa “dinâmica vital” se perde no turbilhão de dispositivos
históricos, presa em vários horizontes transcendentais, em epistemes, fazendo com que nas
“palavras e as coisas” (FOUCAULT, 1999b) a linguagem seja o local da verticalidade, que
em “verdade e as formas jurídicas”, o devir seja violentado pelo signo e, finalmente, em
“defesa da sociedade” (FOUCAULT, 1999c), o poder seja entendido como o atrofiamento de
uma rede.

Bourdieu e sua teoria da eficácia simbólica acaba escorregando no mesmo lugar que
Foucault, já que aposta num vitalismo nebuloso, obscuro, constrangido, embora presente,
deixando apenas transparecer seus conteúdos em instantes específicos, em momentos de
ruptura e desencantamento. Como um discípulo de Bachelard, e por isso um aprendiz indireto
da psicanálise freudiana, Bourdieu desconfia da linguagem, desconfia da sua linearidade,
solidez e pureza. Ele busca entender o modo como o pragmatismo digere a ontologia, como as
práticas cotidianas não apenas se estabilizam, como imagina o primeiro grupo (Tarde,
Deleuze e Latour), mas principalmente como essas práticas se atrofiam, congelam.
Linguagem, ao menos aquela banal, comum, e pragmática, não é mais “a casa do Ser”
(HEIDEGGER, 2005), o acolhimento de uma ontologia, muito pelo contrário. Enquanto a
nevoa da identidade e das justificações bem elaboradas não se dissipa, enquanto o campo
permanece bem opaco pela ilusio (BOURDIEU, 2007), e sua transcendentalidade sufocante, é
impossível falar de qualquer traço ontológico, embora seja possível intuir que o fluxo está lá,
que o vitalismo continua presente. Quase como numa versão sociológica de Nietzsche, em
Bourdieu os próprios atores sociais seriam como criaturas ressentidas, desejantes e inseguras,
dispostas a tudo para manter previsível e constante a realidade a sua volta, ainda que os custos
disso sejam enormes e o próprio corpo e as próprias mediações se vejam em perigo.

O pragmatismo cotidiano e a necessidade de orientação razoável impelem os atores a


uma trágica atrofia, um ocultamento daquela parcela do mundo taken for granted para os
membros do primeiro grupo (Tarde, Deleuze e Latour), ou seja, sua vitalidade. A dimensão
pragmática consome a esfera ontológico, negando seus contornos, ao manter as aparências. O
vitalismo não é um ponto de partida para Bourdieu (Foucault ou Durkheim), mas uma meta,
um horizonte a ser alcançado, na medida em que o cotidiano se dissolve em identidades e
centramentos, o que em filosofia se chama de estrutura transcendental. A investida genética
bourdiesiana, ou a genealogia foucaultiana, podem ser entendidas como estratégias para
contornar a linguagem, uma forma de produzir um furo no centro de uma cadeia de
significantes rígida. Elas acabam sendo uma tentativa de resgate, um pedido de socorro dentro
de uma série de agenciamentos congelados, constrangidos por critérios transcendentais. A
linguagem, em seu percurso cotidiano, pragmático, “[...] esquematiza, ignora as diferenças,
assimila as coisas entre si, e isto sem nenhum fundamento em verdade.” (FOUCAULT, 1973,
p. 25), obscurecendo a riqueza da vida, limitando seu potencial em nome de alguma
funcionalidade qualquer. O primeiro grupo (Tarde, Deleuze, Latour), com seu olhar mais
suave, otimista, entende que entre sujeito e mundo não existe nada, nenhuma fronteira, a não
ser uma continuidade que dispensa qualquer forma de dualismo. Sujeito e mundo chegam a se
confundir, em uma dança quase fenomenológica, muitas vezes. O segundo grupo (Durkheim,
Foucault e Bourdieu), ainda que compartilhe de uma mesma ontologia, de um mesmo solo
vitalista, entende, ao contrário, que entre sujeito e mundo existe sim uma fronteira, ou melhor,
uma prisão. Essa prisão de significantes, com grades transcendentais, lança sobre o vitalismo
um olhar mais pessimista, se comparado com o otimismo do primeiro grupo. Enquanto Tarde,
Deleuze e Latour já vivem em um espaço vital, descentrado e em fluxo, tomando como óbvio
a ontologia, Durkheim, Foucault e Bourdieu, por outro lado, compreendem essa mesma
ontologia como uma jornada, uma meta, algo que não temos acesso no começo, mas
podemos, talvez, alcançar.

Em Bourdieu e Foucault, não tanto em Durkheim, a ontologia vitalista é entendida


como uma coisa que deve ser resgatado, extraído, já que algo a sufoca, como na própria ideia
do “esquecimento do Ser” em Heidegger. Nesse movimento de “resgate de mediações”, e
apenas na medida em que isso acontece, os fenômenos podem migrar para novos encontros e
novos agenciamentos, e os atores, enfim, podem vê a si mesmos dentro de uma rede complexa
e plural. Caso contrário, seria o mesmo que encontrar algum rastro de responsabilidade nos
olhos indiferentes de um Eichmann (ARENDT,1998). No universo totalitário, perdido na
banalidade do mal, essa figura desconhece justamente a dinâmica do fenômeno ao seu redor,
desconhece (e nega) suas mediações e, por isso, como pedir a ele que entenda o vinculo entre
suas praticas cotidianas, seus menores gestos justificatórios, seu horizonte, no sentido
fenomenológico, e aquela instância autônoma, sólida e impositiva à sua frente? Como cobrar
criatividade (responsabilidade) de alguém assim? Eichmann é o protótipo do outro lado do
vitalismo, sua porção atrofiada e seu ressentimento.
Bourdieu, ao longo de todas as suas obras, desde o desencantamento do mundo
(BOURDIEU, 1979) até a dominação masculina (BOURDIEU, 2002), apresenta um
compromisso genealógico evidente, em especial quando investe sua crítica contra o
pragmatismo que passeia e fundamenta a linguagem humana (BOURDIEU, 1996a), o que em
sua sociologia ganha nomes como habitus e campo. Mas não se enganem... algo aqui
transborda, algo para além desses dois conceitos tão exageradamente desgastados em artigos,
pesquisas e palestras. O método de Bourdieu, com sua “genealogia genética”, é quase um
esforço, uma tentativa de esclarecer justamente aquilo que seria óbvio para o primeiro grupo
de vitalistas (Tarde, Deleuze e Latour): uma ontologia vital. Sua análise “[...] é capaz de trazer
à luz o que torna [uma coisa] necessária, ou seja, a fórmula formadora [...]” (BOURDIEU,
1996b, p. 15), resgatando do interior atrofiado do pragmatismo uma multiplicidade de
experiências, além de um corpo aberto, relacional. “Se aprendemos pelo corpo”
(BOURDIEU, 2007, p. 172), se ele é um critério importante, isso já sugere um traço de uma
certa ontologia de fundo, ainda que a estrutura pragmática do campo, e do próprio habitus,
acabem tornando tudo nebuloso. Se existe conservadorismo em seu pensamento, e não tem
como negar, principalmente em seus estudos sobre educação (BOURDIEU, 2007), isso é
menos pelas restrições do campo, já que é apenas um conjunto de feixes arbitrários e casuais,
e mais pelo esforço dos próprios atores e da própria linguagem em manter a “peça
transcendendo”. Esforço esse não apenas dos dominantes, o que é óbvio, mas dos próprios
dominados, igualmente favorecidos pela moeda transcendental que circula e alimenta a todos,
encaixando tudo dentro de um espaço previsível, sólido e conveniente.
Mesmo o habitus é incorporado na medida do movimento, no instante mesmo da experiência
do sensível, e por isso jamais é exterior e imposto verticalmente. Sem uma cadeia complexa
de justificações e sem a própria prisão transcendentalista da linguagem, nada marcaria o corpo
desse agente, por mais bem elaborado que fosse o campo, por mais enrijecido que se
apresentasse. Esse procedimento não é tão claro no conceito de habitus quanto é no de
processus (BOURDIEU, 1979), na medida em que deixa transparecer, por trás de tanto
pragmatismo, um solo encharcado de uma ontologia vitalista, um solo mais fundamental, mais
rico e que jamais ser reduzido a “estruturas estruturantes” e “estruturas estruturadas” ou a
qualquer outro trocadilho estruturalista. O papel do sociólogo genético, nesse sentido, é o
mesmo que o de um psicanalista, ou seja, trazer a criatividade e as conexões de volta à vida,
aliviar o peso de uma atitude natural constrangedora, apesar de todo o esforço contrário do
agente com seu desejo de autoconservação. O “pragma” cotidiano, associado a uma
linguagem transcendental, acaba demandando não diferença, mas identidade, não
descentramento, mas centralidade, e não contingência, mas necessidade. Em outras palavras,
é preciso resgatar a ontologia das garras do pragmatismo, libertando seus contornos, ao
mesmo tempo que garante novas articulações.
A narrativa desse “sujeito conservador”, mergulhado em uma pragmática não tão
agradável, é construída para gerar impacto, eficácia, o que impede que o vitalismo, dissonante
que é, seja simplesmente apreendido nas relações diárias, ao contrário do que pensa o
primeiro grupo (Tarde, Deleuze e Latour), em que os instantes de atrofiamento não são a
regra, mas ao contrário, são a exceção diante de práticas sempre vitais, sempre descentradas e
sempre em fluxo. Enquanto em Durkheim, Bourdieu e Foucault é a identidade o princípio
determinante, apesar do fluxo vital de fundo, para os outros três autores, ao contrário, “[...] a
identidade é apenas um mínimo, e portanto apenas uma espécie, e uma espécie infinitamente
rara, de diferença, assim como o repouso é um caso do movimento, e o círculo uma variedade
singular da elipse.” (TARDE, 2007, p. 30). Aquilo que para Durkheim, Bourdieu e Foucault
são momentos constantes da linguagem e da interação humana, carregado de um
transcendentalismo inescapável, ou seja, os seus constrangimentos e atrofias, para Latour
(1994), ao contrário, são personificações daquilo que chamou de “moderno”, uma espécie de
desvio, de falha dentro de um mundo sempre diferencial e rizomático. O que para o segundo
grupo (Durkheim, Foucault e Bourdieu) é uma conquista, um resgate, para o primeiro (Tarde,
Deleuze e Latour) é um dado, uma obviedade. Um toma como ponto de chegada o que o outro
toma como ponto de partida, embora, claro, exista um mesmo projeto ontológico, um
vitalismo de fundo, ainda que muitas vezes sutil. Se, por alguma razão, não parece claro essa
convergência de ideias, se parece existir um abismo intransponível entre esses dois grupos,
isso se deve mais a uma pura conveniência e ao espírito combativo do francês, da sua
necessidade de marcar fronteira, mesmo quando não é necessário. Embora o clima sempre
tenha sido tenso entre esses dois grupos, não é ruim propor uma pequena trégua provisória,
ainda que novas brigas brotem no futuro. Existe, repito, apenas uma fronteira de grau entre
eles, não de substância, de temperamento, não de ontologia. A proximidade desses dois
grupos é tão grande, a evidência de um mesmo projeto ontológico é tão claro, que leva
Deleuze a sugerir que “Seria preciso confrontar o pensamento de Foucault e a sociologia das
‘estratégias’ de Pierre Bourdieu: em que sentido esta constitui uma microssociologia. Talvez
também fosse necessário remeter ambas à microssociologia de Tarde.” (Grifo meu.
DELEUZE, 2005, p. 82).

Assim como Foucault é o Outro em relação a Deleuze, a parcela contraria de uma


mesma moeda, e também Bourdieu em relação a Latour, seria exagerado admitir o mesmo
com Tarde e Durkheim? Não haveria mais complementaridades do que distanciamentos?
Talvez a ânsia quase obsessiva por mais espaço intelectual, além do ressentimento pelas
décadas varridas do pensamento sociológico, acabe erguendo fronteiras teóricas e dicotomias
retóricas indefensáveis em outras circunstancias. Sem dúvida, Gabriel Tarde demanda
afirmação, demanda um novo resgate de seu pensamento, cada vez mais presente e mais
firme. Não é de se surpreender que fronteiras sejam sustentadas, quem sabe até forçosamente
instituídas. Não haveria, claro, problema algum nessas instituições, nessa criação de fronteiras
e rivalidades teóricas, desde que concebidas como arsenais simbólicas, estratégias
pragmáticas de indivíduos interessados, deixando Tarde e Durkheim “eles mesmos” na névoa
do misticismo metafísico, perdidos para sempre nos agenciamentos de um “devir-leitura”,
como diria Deleuze.
CONCLUSÃO?

Apesar do combate ser interessante, e divertido, sem dúvida, existem outras formas de encarar
as ciências sociais, uma forma menos acusatória e mais reconciliatória, como bem sugeriu
Stengers (2002). Uma postura menos ressentida e mais construtiva, uma atitude que aproxima,
ao invés de afastar. Esse ensaio pode ser visto muito mais como uma provocação, uma
tentativa de ir além do esperado, ao sair do mesmo, da circularidade do pensamento. Muitos já
se cansaram de ver Tarde lutando contra Durkheim, Deleuze contra Foucault, Latour contra
Bourdieu, embora essa abordagem bélica seja interessante e abra espaço para muitos debates e
alternativas. Meu objetivo não foi negar essa linha de raciocínio, mas sugerir uma possível
alternativa, um tipo de escape de uma linguagem previsível. Espero que tenha conseguido
pelo menos provocar algumas dúvidas, ainda que tenha gerado, no processo, um certo
desconforto. Para muitos nas ciências sociais, propor uma aproximação entre Latour e
Bourdieu é quase um sacrilégio, algo de outro mundo, uma postura tão absurda quanto
aproximar Skinner e Freud, Kubrick e Michael Bay, Zizek e Peterson, Cézanne e Pollock,
Stanislavski e Artaud, Flaubert e Beckett.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Rio de Janeiro: Edições 70, 1970.


BADIOU, Alain. Deleuze: o clamor do ser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BALZAC, Honoré. A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada. São Paulo: Globo, 2012.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas: O que Falar Quer Dizer? São Paulo, 1996a.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte e a gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996b.
BOURDIEU, Pierre. Desencantamento do mundo: Estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das letras, 1990
DELEUZE, Gilles. Kafka por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Editora Imago,1975.
DELEUZE, Gilles. Conversações:1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005
DURAN, Martin Savransky. The adventure of relevance: An Ethics of Social Inquiry. London: palgrave
macmillan, 2016.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. São Paulo: Vozes, 1975.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1999a.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 1973.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 1999b.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999c.
HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo brasileira, 1990
HARAWAY, Donna Jeane. When Species Meet. London: University of Minnesota Press, 2008.
HARMAM, Graham. The importance of Bruno Latour for Philosophy! Cultural Studies Review, vol. 13, no. 1,
March 2007, pp. 31-49.
HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. São Paulo: Centauro, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. São Paulo: Vozes. 1986.
NIETZSCHE, Friedrich. Para uma genealogia da moral. São Paulo: Editora Sabotagem, 1874.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Cézanne’s Doubt. In:________. Sense and Non-Sense. Illinois: Northwestern
University Press, 1964
LATOUR, Bruno; An inquiry into modes of existence: an anthropology of the moderns. Cambridge: Harvard
University Press, 2013.
LATOUR, Bruno. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Editora Relumé
Dumará, 1979.
LATOUR, Bruno. Como falar sobre o corpo? Portugal: Edições Afrontamento, 2007.
LATOUR, Bruno. Esperança de Pandora. São Paulo: Edusc, 2001.
LATOUR, Bruno. Gabriel Tarde and the End of the Social. In: PATRICK, Joyce(Org.). The Social in Question.
London: Routledge, pp.117-132
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: Ensaio de uma antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira.
SPARROW, Tom. The end of phenomenology. UK: Ednburgh University Press, 2014.
STENGERS, Isabelle. A invenção das ciências modernas. São Paulo: ed. 34, 2002
TARDE, Gabriel. Monodologia e sociologia. São Paulo: Cosacnaify, 2007.
VARGAS, Viana Eduardo. Antes Tarde do que nunca: Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de
Janeiro: ContraCapa, 2000.
ZIZEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo histórico. Rio de Janeiro: Boitempo, 2012.

Das könnte Ihnen auch gefallen