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DO PEQUENO AO INFINITO:
TARDE, VITALISMO E O TEMPERAMENTO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
E lá vai ele subindo uma ladeira irregular, empurrando uma pedra muito maior do que
seu corpo... e lá vai ele agora descendo a mesma ladeira não tão alta, quase um morro, mas
ainda assim reforça em detalhes toda a tragédia da cena, sua repetição, sua infinita repetição
frustrada. Esforço inútil, estéril, retirando tudo aquilo de dinâmico, tudo de intenso, ao mesmo
tempo que dissolve qualquer coisa em um fluxo de pura indiferença. A monotonia do
movimento, aliada ao suor que escorre por cada contração de músculo, por cada esforço
localizado, parece adicionar mais peso nas costas do pobre Sísifo, personagem infeliz
condenado por Zeus a uma pena inimaginável. Como desistir de tudo isso em nome do lançar
de dados deleuziano, da verdadeira repetição e não daquela sinônimo de monotonia? Sísifo
não é um bom jogador, ao menos aos olhos do crupiê, Diosinio, essa criatura curiosa e
desejante que observa toda aquela cena patética e pouco afirmativa. Sísifo deixa o
ressentimento cegar suas possibilidades, negando, ao mesmo tempo, a chance de um
verdadeiro esforço criativo, de pura afirmação. “Quem ele é?” Pergunta o positivista curioso,
já que adora proposições simples e objetivas. Sísifo é basicamente uma metáfora, além de ser
também o objetivo de todo esse ensaio: “Compreender o vitalismo na Teoria Social e sua
dupla ramificação encontrada nas abordagens de Tarde/Durkheim, Deleuze/Foucault,
Latour/Bourdieu”
Dentre os vários conceitos que circulam pelo seu universo, e que caracterizam não
apenas sua sociologia, mas a própria tradição vitalista que utiliza, existem três que circulam
pelos seus textos: a repetição, a diferença e a imitação. Esses três conceitos são importantes
não pela inevitável centralidade que ocupam no pensamento de Gabriel Tarde, o que pode ser
o caso, mas sim porque são três pontes convergentes para a tradição “vitalista” e suas
ramificações no campo da Teoria Social, como vai ficar claro em breve. Entender o papel do
“vitalismo” nas ciências sociais, passando pela ancestralidade de Tarde, é o principal objetivo
desse ensaio, rompendo ao mesmo tempo fronteiras arbitrárias entre autores e tradições
sociológicas. A hipótese é simples, mas arriscada: existe uma mesma matriz interpretativa
atravessando muitos de nossos sociólogos, principalmente aqueles que consideramos rivais e
inconciliáveis (Tarde/Durkheim, Deleuze/Foucault, Latour/Bourdieu). Na verdade, o simples
fato de existir dissenso entre eles, e oposição, já é um claro sinal de que algo em comum
passeia pelos bastidores e garante a própria possibilidade desse mesmo dissenso. Se não
tivessem nada em comum, se fossem de mundos opostos, o silêncio e a indiferença seriam as
únicas coisas existentes e não o debate e a polêmica. O estudo é preliminar, ainda um esboço,
sendo muito mais uma experiência arriscada e provocativa, um campo interessante de
possibilidades, saindo assim do óbvio espaço das polarizações e conflitos acadêmicos.
Embora a sociologia francesa goste de polêmicas, e esse detalhe não tem nenhuma novidade,
podemos ainda assim arriscar um outro percurso, mais reconciliatório.
Existe, sem dúvida, um jeito mais imediato, meio senso comum, de conceber a
“repetição”, afinal, usamos esse substantivo várias vezes durante o dia: “O menino repetiu de
ano”, “Essa cena é repetida”, “Não precisa repetir a mesma coisa”, etc. Para Gabriel Tarde,
por outro lado, esse conceito nada tem a ver com permanência, hábito ou regularidade, ou
seja, com aquilo que normalmente é associado a esse termo. O que é repetido, assim como em
Deleuze, não é uma serie causal, uma esteira idêntica de fenômenos, “[...] mas uma
virtualidade de certo tipo” (TARDE, 2007, p. 121), uma espécie de inclinação ao novo. A
repetição sempre adiciona alguma coisa no fenômeno, quase como o “evento” de Badiou
(1997) e Savransky (2016), isto é, uma instância que sempre força novas remodelagens. Os
três termos tardianos (diferença, repetição e imitação), nesse caso, convergem dentro de um
mesmo solo vitalista, ao abrir espaço não para realidades definidas, representações
sobrepostas, ou categorias transcendentais. O que é repetido guarda dentro de si um potencial
intenso, transbordante, ao despencar em novos agenciamentos, deslocando as continuidades e
permanências de seu centro epistemológico. Em outras palavras, a “identidade” não deixa de
existir em Tarde, assim como as categorias sujeito-objeto em Latour, embora elas se
encontrem, por outro lado, descentradas de uma posição de excelência e transformadas em
instantes passageiros, em momentos casuais, lançados num fluxo repetitivo, vitalista. Como
para esse sociólogo “toda coisa é uma sociedade” (TARDE, 2007, p. 81), desde uma simples
célula até um cardume se agrupando num coral, passando por encontros religiosos e
polêmicas politicas, a repetição atravessa tudo, permitindo que humanos e não-humanos
cooperem num jogo rico de virtualidades, todos num ritmo sempre inédito de descobertas e
articulações. Nesse solo vitalista, de um puro fluxo, tudo está “at the same footing”
(GRAHAM, 2007, p. 22), em um mesmo plano de experiências, sem hierarquias ou
distinções. Não importa se estamos falando da repetição ondulatória, gravitacional,
hereditária ou imitativa (TARDE, 2007); todas implicam num mesmo princípio repetitivo e
“profusor”, num mesmo solo heideggeriano contrário a predicados e fronteiras, a não ser uma
contínua série de encontros. O que existe apenas é excesso e avidez, assim como a célula
nietzschiana, sempre em busca de mais expansão e potência, sempre desejando novas
agenciamentos.
O indivíduo, por consequência, não é uma célula isolada, um corpo ascético e bem
esboçado, ou talvez um núcleo causal brotando de alguma transcendentalidade qualquer. Ele
(o indivíduo), “[...] é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo (NIETZSCHE, 1874, p.
16). Isso implica o abandono do rótulo de individualismo metodológico quando falamos de
Tarde, já que não há indivíduos no seu esquema de pensamento, mas apenas mônadas
lançadas numa esteira infinitesimal ou, em outras palavras, um feixe de múltiplos contatos,
um espaço completamente descentrado. Seu projeto é de uma monodologia renovada, ao
resgatar, como ponto de partida, as reflexões de Leibniz e sua filosofia monista, embora
ultrapasse suas conclusões, dando ao conceito de mônoda um aspecto mais diferencial e mais
aberto. Seria a mônoda um átomo, um tipo de particula elementar indivisível? Não. Para
Tarde, mesmo esse átomo não deixa de ser “[...] um turbilhão, um ritmo vibratório de certo
gênero, algo de infinitamente complicado segundo todas as aparências [...]” (TARDE, 2007,
p. 22).
Com essas premissas não há lugar para dualismo, nem entre sociedade e cultura,
muito menos entre eu, entendido como núcleo individual, e o coletivo, algo autônomo e sui
generis. Essa unidade metafísica chamada eu, e toda sua identidade bem a priori, responsável
pelo ordenamento da experiência e sua síntese necessária, é desmontada na exata medida em
que ocorre a repetição no universo humano, ou seja, quando ocorre o processo imitativo e seu
crescimento rizomático, seu deslocamento descentrado. O individuo já é um feixe diferencial,
complexo e dinâmico; ele já é uma sociedade. “[...] esses elementos últimos aos quais chega
toda ciência, o individuo social, a célula viva, o átomo químico, só são últimos da perspectiva
de sua ciência particular. Eles próprios são compostos [...]” (TARDE, 2007, p. 57). Assim
como Newton revela um universo múltiplo, dinâmico e ilimitado, deslocando o cosmos de sua
unidade e harmonia aristotélicas, Tarde realiza o mesmo percurso, ao desregular a
funcionalidade do todo, reestabelecendo a importância das partes, essas já plurais e abertas.
Como diz Latour, “Tarde offers a very odd type of reductionism since the smallest entities are
always richer in difference and complexity than their aggregates or that the superficial
appearances that we observe from far away” (LATOUR, 2011, p. 4).
[...] uma ação á distancia de um cérebro sobre outro. Ela pode ser consciente ou
inconsciente, voluntária ou involuntária, vaga ou precisa, unilateral ou reciproca,
mas não pode deixar de ser produzida à distancia, em uma espécie de ‘geração à
distancia’, pois assim perderia sua especificidade (VARGAS, 2000, p. 226).
1
Sobre isso Tarde dirá: “Já que o ser é o haver, segue-se que toda coisa deve ser ávida.” (TARDE, 2011, p. 123)
ligado a fixação e a reprodução de certos conteúdos. Existem outros exemplos de processos
imitativos, como aqueles ligados à moda ou ao costume, embora haja sempre um
denominador comum entre todos, permitindo uma convergência para o mesmo potencial
expansivo, contagiante. Seu movimento é centrifugo, ou seja, começa do centro, esse já
bastante diferenciado e infinitesimal, seguindo lentamente para a borda, esta menos
diferenciada e mais rara.
Segundo Tarde, o que efetivamente se propaga por imitação? Seriam ações dispersas,
de indivíduos atomizados, progressivamente se expandindo, ou talvez representações
coletivas, de alguma forma disseminadas para outras consciências, ou mesmo intuições
kantianamente difundidas? Nenhuma delas, diria Tarde. O que é propagado são “crenças e
desejos” (TARDE, 2007, p. 22), uma espécie de ânsia por novos agenciamentos, um
verdadeiro fio tencionado entre dois polos complementares e inseparáveis: a transformação e
a manutenção. Quase como o jogo nietzschiano de Apolo, o Deus da forma, e Dionísio, o
Deus do excesso, ambos engajados numa dança quase reconciliatória, ao menos para o
Nietzsche do nascimento da tragédia. Num certo momento do seu livro monodologia e
sociologia, Tarde afirma que “[...] a crença e o desejo desempenham no eu, em relação às
sensações, precisamente o papel exterior do espaço e do tempo em relação aos elementos
materiais.” (TARDE, 2007, p. 67). Essa analogia kantiana das crenças e dos desejos acaba por
esclarecer melhor a pretensão epistemológica de Tarde, ao fazer dessas características (crença
e desejo) a condição necessária da existência do eu, assim como o espaço e o tempo seriam as
condições para a própria experiência, como o próprio Kant descreve em sua estética
transcendental. Em Kant, por outro lado, a identidade também é um pré-requisito da
experiência, instantaneamente enquadrando tudo em categorias definidas, em sínteses cada
vez mais elaboradas. Em Tarde, ao contrário, o a priori, digamos assim, é a diferença, e, nesse
caso, o aspecto identitário dos fenômenos seria apenas um instante passageiro dentro de
encontros infinitesimais. Essa pequena “re-revolução copernicana” vai se afastando aos
poucos de uma hipótese epistemológica de mundo e começa a marchar para uma ontologia,
priorizando assim muito mais o movimento do que elementos e critérios formais. O que de
sólido existe é criado internamente pelo mundo, consumido ao mesmo tempo por ele e sua
velocidade. Sem dúvida o entendimento (a razão) possui dentro de si elaboradas associações
de ideias, abstratas correlações de conceitos, embora esses instantes sejam apenas a porção
mínima, um simples aperitivo do que realmente acontece, deixando transparecer uma miríade
de encontros, desde o envolvimento sensível com um mundo sempre mutuante, até a serie
infinitesimal de conexões cerebrais entre sinapses em torno de um certa ideia cada vez mais
difusa, rizomática.
Se em Latour o conhecimento deixa de operar por saltos, como acontecia em um
processo representacional qualquer, através do conceito de mediação, por outro lado,
contrapondo à fixidez do intermediário (LATOUR, 1979), Tarde utiliza uma imagem
parecida ao se referir aos “[...] operários ocultos que colaboram para a realização de algum
plano de reorganização específico concebido e desejado [...]” (TARDE, 2011, p. 64). Esses
operários ocultos, uma vez ocultados pela unidade e autonomia de certos fenômenos, passam
a ser vistos como o elo adequado entre tudo o que se constitui, ao passo que cria as condições
necessárias para o próprio aspecto infinitesimal da realidade.
Em razão desse processo imitativo, o que seria, de fato, uma sociedade humana?
Pergunta o positivista curioso. Se para Durkheim ela se define por sua autonomia e
coercitividade, como uma coisa objetiva e representável, quase como uma vontade geral
rousseauniana, quais seriam as suas características principais para Tarde? Ele é mais modesto,
nesse caso, definindo as sociedades humanas como “[...] a possessão recíproca, sob formas
extremamente variadas, de todos por cada um.” (TARDE, 2007, p. 112). Não há uma
preocupação em definir fronteiras que a circunscreveriam dentro de um certo espaço, o que só
reforça mais ainda sua ideia de uma sociologia universal. Existem apenas sociedades, não
importa se elas sejam compostas por humanas, por estrelas, por corais, e assim por diante.
Como em qualquer modelo vitalista, o dualismo é substituído por um monismo poderoso,
onde tudo é atravessado por um mesmo princípio vital, quebrando o que Latour chamou de
uma antropologia assimétrica.
A DIFERENÇA DIFERINDO
Se a “diferença vai diferindo” (TARDE, 2007, p. 94), mesmo seus elementos mais
básicos, mesmo os fenômenos mais rústicos, teriam um nível de diferenciação inclusive muito
maior do que as formas “mais bem acabadas” e “desenvolvidas”. A diferenciação
durkheimiana pela crescente divisão do trabalho, nesse caso, é também questionada por
Tarde, já que Durkheim enxerga nas sociedades tradicionais uma zona indiferenciada,
progressivamente se diferenciando, na medida em que alcança momentos mais complexos.
Para o autor de Monodologia e Sociologia, a homogeneidade dos fenômenos é um sintoma de
uma falha ou, no mínimo, de uma ignorância, já que o desconhecimento sobre as coisas
tropeçaria nessa conclusão reducionista, tomada por muitos como a referencia do
conhecimento. Segundo ele, ao contrário, essa hipótese do homogêneo, do linear, do
constante, do estável, é logo descartada na exata medida em que ocorre um contato mais
próximo com o objeto de estudo, o que Latour (2001) chamou da “abertura da caixa preta”. A
diferença, diria Tarde, é “o alfa e o ômega” (TARDE, 2007, p. 102) de tudo o que existe, seu
princípio fundante, seu suporte constituinte.
Se havia sentido apostar num “eu transcendental” à moda de Kant, uma instância
ordenadora e a priori, condição para a identidade do sujeito e do próprio conhecimento, Tarde
sugere, por outro lado, uma aposta na diferença, reservando ao apelo identitário apenas um
momento casual, um instante passageiro. Como diria Merleau Ponty, “among Kantian
consciousnesses harmony can always be taken for granted.” (MERLEAU-PONTY, 1964. p.
32), o que já não acontece em Tarde, em que a harmonia das coisas, sua identidade, não é um
a priori, um ponto de partida, nem muito menos uma meta. Ela é um instante perdido no fluxo
diferencial, nada mais do que uma centelha prestes a desaparecer e ressurgir. O que é a
diferença? Pergunta que não faz sentido, já que ela “não é”, ou seja, não carrega dentro de si
nenhum predicado que a caracterizaria, nenhum critério que a definiria, como se fosse, por
exemplo, alguma potencialidade hegeliana ou algo do gênero. Ela é movimento, ela é difusão,
assim como a “rede” latouriana ou o “rizoma” deleuziano. Isso não significa que “pequenas
transcendências” (LATOUR, 2013, p. 267) não venham a brotar desse percurso infinitesimal,
mas sim que essas continuidades são transitórias, simples cartas lançadas ao vento.
Um mesmo mundo, dois olhares distintos. O vitalismo é uma espécie de rio que flui
por baixo das teorias de Tarde-Durkheim, Deleuze-Foucault e Latour-Bourdieu, constituindo
um terreno único, um solo adequado em que suas teorias foram se configurando ao longo do
tempo, criando raízes, ou melhor, rizomas. Se existem diferenças, o que sem dúvida é o caso,
e que já foram infinitamente discutidas, elas são mais de grau do que de substância. A
realidade descentrada, a existência diferida e tudo aquilo implicado numa boa concepção
vitalista, são signos recorrentes nos escritos desses três pares de escritores, apesar de existir
aqui um tipo de escala de temperamento, uma “oscilação teórica” de humor, digamos assim,
saindo de um otimismo declarado, quase uma apologia a contingencia e ao fluxo, e chegando
a um pessimismo nada sutil, com uma aposta em atrofias, constrangimentos, repressões, etc.
São duas faces de uma mesma moeda, assim como as figuras do “amor fati” e do
“ressentimento” são, em Nietzsche, partes complementares de um mesmo mundo, de um
mesmo solo vital, não importando as estratégias simbólicas que atravessam cada um. O
primeiro grupo abraça o fluxo em pura afirmação, sem transcendências, ou pelo menos, não
aquela transcendência metafísica. Estão preocupados em afirmar a ontologia vitalista, esse
solo descentrado e em fluxo. O segundo grupo, ao contrário, se volta para os instantes daquilo
que Heidegger (1986) chamou de esquecimento do Ser, um tipo de atrofia no solo ontológico,
ao cair no pragmatismo cotidiano. Enquanto o primeiro grupo (Tarde, Deleuze e Latour) se
concentra no debate ontológico, e no modo como a realidade opera, quase em um elogio ao
devir, o segundo grupo (Durkheim, Foucault e Bourdieu), por outro lado, analisa o modo essa
ontologia é devorada pelo pragmatismo. Em outras palavras, uma coisa é o mundo enquanto
tal, outra muito diferente é a forma como indivíduos vivem, muitas vezes negando sua própria
ontologia de fundo. A tese que costura essas linhas, essa ideia de enxergar o pragmatismo
como distinto da ontologia, muitas vezes até oposto, é compartilhado não só por Heidegger e
Nietzsche, mas por autores contemporâneos como Graham Harman (2007) e Tom Sparrow
(2014), embora muitas críticas pudessem, e podem, ser feitas a esse modelo, principalmente
por autores que não reconhecem essa distinção entre ontologia e pragmatismo, como Stengers
(2002), Savransky (2016), Donna Haraway (2008) e muitos outros.
Bourdieu e sua teoria da eficácia simbólica acaba escorregando no mesmo lugar que
Foucault, já que aposta num vitalismo nebuloso, obscuro, constrangido, embora presente,
deixando apenas transparecer seus conteúdos em instantes específicos, em momentos de
ruptura e desencantamento. Como um discípulo de Bachelard, e por isso um aprendiz indireto
da psicanálise freudiana, Bourdieu desconfia da linguagem, desconfia da sua linearidade,
solidez e pureza. Ele busca entender o modo como o pragmatismo digere a ontologia, como as
práticas cotidianas não apenas se estabilizam, como imagina o primeiro grupo (Tarde,
Deleuze e Latour), mas principalmente como essas práticas se atrofiam, congelam.
Linguagem, ao menos aquela banal, comum, e pragmática, não é mais “a casa do Ser”
(HEIDEGGER, 2005), o acolhimento de uma ontologia, muito pelo contrário. Enquanto a
nevoa da identidade e das justificações bem elaboradas não se dissipa, enquanto o campo
permanece bem opaco pela ilusio (BOURDIEU, 2007), e sua transcendentalidade sufocante, é
impossível falar de qualquer traço ontológico, embora seja possível intuir que o fluxo está lá,
que o vitalismo continua presente. Quase como numa versão sociológica de Nietzsche, em
Bourdieu os próprios atores sociais seriam como criaturas ressentidas, desejantes e inseguras,
dispostas a tudo para manter previsível e constante a realidade a sua volta, ainda que os custos
disso sejam enormes e o próprio corpo e as próprias mediações se vejam em perigo.
Apesar do combate ser interessante, e divertido, sem dúvida, existem outras formas de encarar
as ciências sociais, uma forma menos acusatória e mais reconciliatória, como bem sugeriu
Stengers (2002). Uma postura menos ressentida e mais construtiva, uma atitude que aproxima,
ao invés de afastar. Esse ensaio pode ser visto muito mais como uma provocação, uma
tentativa de ir além do esperado, ao sair do mesmo, da circularidade do pensamento. Muitos já
se cansaram de ver Tarde lutando contra Durkheim, Deleuze contra Foucault, Latour contra
Bourdieu, embora essa abordagem bélica seja interessante e abra espaço para muitos debates e
alternativas. Meu objetivo não foi negar essa linha de raciocínio, mas sugerir uma possível
alternativa, um tipo de escape de uma linguagem previsível. Espero que tenha conseguido
pelo menos provocar algumas dúvidas, ainda que tenha gerado, no processo, um certo
desconforto. Para muitos nas ciências sociais, propor uma aproximação entre Latour e
Bourdieu é quase um sacrilégio, algo de outro mundo, uma postura tão absurda quanto
aproximar Skinner e Freud, Kubrick e Michael Bay, Zizek e Peterson, Cézanne e Pollock,
Stanislavski e Artaud, Flaubert e Beckett.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS