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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Março de 2006
Felipe Gomberg
Felipe Gomberg
Ficha Catalográfica
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410398/CA
Gomberg, Felipe
120 f. ; 30 cm
CDD: 302.23
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410398/CA
Aos meus pais, José Elias e Miriam, por tudo, inclusive por terem permitido que
eu chegasse até aqui.
A Fernando Sá, pelas aulas diárias sobre o “negócio do livro”, pela troca de idéias
e pelo incentivo.
Palavras-chave
Livro impresso; escrita; história do livro; indústria cultural; mercado
editorial.
Abstract
Keywords
Printed book; writting; book’s history; cultural industry; book’s market.
Sumário
1. Introdução 10
3.3. As bibliotecas 71
3.4. Livro e poder 73
3.5. O homem moderno e o livro 75
5. Conclusão 111
social moderna. Mas, para que os diferentes povos chegassem a discutir uma
comunicação mundializada, as formas de comunicar tiveram que se transformar
até que adquirissem a importância social que possuem à entrada do século XXI.
Não podemos pensar em estudar a sociedade complexa dos tempos atuais
sem levar em conta a atuação dos meios de comunicação e a importância que o
próprio indivíduo lhe confere. Desde a revolução tecnológica do último quartel do
século XX, com a invenção dos microprocessadores, dos computadores pessoais,
enfim da tecnologia digital, principalmente no Ocidente, o papel da mídia tem
sido cada vez mais debatido. A televisão desponta como um dos bens de consumo
mais presentes nos lares brasileiros, ultrapassando até o número das geladeiras.
Na atualidade, os meios eletrônicos e digitais, como a televisão e a
internet, garantem uma quase imediaticidade na transmissão de informações pelo
mundo. No entanto, mesmo com este avanço tecnológico estrondoso, ainda não se
tem notícias da “tão anunciada morte” do livro impresso – que foi, de fato, o
primeiro produto da comunicação consumido de forma massiva pela sociedade
moderna.
Muito antes da invenção dos televisores ou dos computadores, o próprio
livro já havia sido considerado como uma tentativa de se alcançar a sonhada
universalidade na comunicação. Um dos principais teóricos da história do livro na
atualidade, o francês Roger Chartier (2003), relata que, da mesma forma que se
11
O sonho de Kant era que cada um fosse ao mesmo tempo leitor e autor, que
emitisse juízos sobre as instituições de seu tempo, quaisquer que elas fossem e
que ao mesmo tempo pudesse refletir sobre o juízo emitido pelos outros (Chartier,
1998, p.134).
lixeira, como fazemos com outros produtos culturais, como jornais, CD’s, DVD’s,
fitas de vídeo, revistas etc.
A respeito dessa costumeira relação que fazemos entre a compra de livros
e uma ascensão cultural, um crescimento pessoal do indivíduo, em 1851, no
tratado Sobre livros e leitura, o filósofo Arthur Schopenhauer sentenciava: “Seria
bom comprar livros se pudéssemos comprar também o tempo para lê-los, mas, em
geral, se confunde a compra de livros com a apropriação de seu conteúdo”
(Schopenhauer, 1993, p.41).
Anualmente, no dia 29 de outubro, comemora-se, em nosso país, o Dia
Nacional do Livro. Como em todos os anos, diferentes mídias destacam a
passagem da data. Em 2004, além da cobertura habitual da imprensa, os jornais O
Globo e Extra promoveram uma campanha para a doação de livros que estivessem
“esquecidos nas estantes”.
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preparadas, a um baixo custo, para o grande público, mas que não eram
“necessariamente compradas para serem lidas” (p.104).
O texto da propaganda, portanto, tinha o objetivo de induzir o leitor a doar
seus livros, informando-o de que o importante é que ele “faça parte desta história,
que está ajudando a levar cultura e cidadania a milhares de pessoas”. O redator
desta campanha baseou-se, para a produção de seu texto publicitário, em duas das
principais características que o livro adquire como produto cultural: é um bem
durável (não descartável) e oferece cultura a quem o lê.
Em um trecho de sua palestra proferida na Universidade de Belgrano
(Argentina), em 1978, sob o título de “O livro”, Jorge Luis Borges demonstra um
pouco essa relação que os indivíduos estabelecem com os livros, estes passando,
muitas vezes, a transcender a sua utilidade como veículo, ao se transformarem em
bens preciosos:
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Janeiro e São Paulo – mais de 600 mil pessoas, que não são leitores assíduos, mas
não deixam de visitar a feira para render homenagens a este objeto, que há mais
de 500 anos existe com a mesma forma e utilidade.
Foi a partir dessa constatação que começamos a delimitar este estudo. O
nosso objetivo passa a ser, portanto, estudar as peculiaridades desse objeto, o livro
tipográfico, em relação aos demais meios de difusão da cultura no intuito de
compreender como foi construída esta aura em torno dele. Iremos discutir nestas
páginas o Livro (com maiúscula) como um objeto que surge no seio da cultura
ocidental, como um meio de comunicação, faculdade que só lhe pode ser ofertada
a partir de Gutenberg, com a capacidade da imprensa de reproduzir obras
velozmente e em grandes tiragens, e como mais um entre os produtos do mercado
de bens culturais, para entender a sua permanência e a sua aura.
Para tanto, quando estivermos falando genericamente em livro, leia-se
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desta discussão, por entendermos que esses programas e aparelhos podem vir a
cair em desuso, e seus manuais passam, em seguida, a serem considerados
materiais descartáveis, assim como outros produtos produzidos pela indústria
cultural.
Ao mesmo tempo em que delimitamos as fronteiras do nosso estudo, é
importante fazer uma distinção capital entre o trabalho de escrita e a fabricação do
livro. Os livros não são de modo algum escritos; são manufaturados por escribas e
outros artesãos, por mecânicos e por impressoras. Portanto, ainda que o livro seja
uma das formas como se dá a ler um texto, é necessário recordar que “não existe
nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um
escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele
chega ao seu leitor” (Chartier, 1990, p.127).
Um dos propósitos desta dissertação será compreender por que, ainda que
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bem reprodutível como outro qualquer da indústria cultural, o livro poderia ser
considerado um objeto singular, na medida em que, por mais que sejam
produzidas centenas de milhares de cópias de um determinado título, um texto
impresso sob a forma de livro sempre remeterá a um tempo e a um espaço
próprios, de onde ele surgiu e se constituiu como uma obra única, instaurando um
conhecimento e uma visão de mundo únicos a partir dele? Qualquer livro seria
provido de aura?
A hipótese deste trabalho é a de que o livro, apesar de ser um produto da
indústria cultural, continuaria investido de uma “aura”, que, tal como foi proposta
por W. Benjamin, é responsável por singularizar o bem cultural. Mas esta nova
“simulação de aura”, reapropriada da “aura” original benjaminiana, operaria
simbolicamente transformando os bens culturais reproduzidos tecnicamente em
bens singulares, fazendo com que cada livro pareça ser uma obra única. A
biblioteca seria o espaço clássico de culto desse bem que, mesmo sendo um
produto industrial, é apropriado como obra intelectual individual, e, portanto,
única.
Ao mesmo tempo em que levantamos a possibilidade de sua auratização,
faz-se necessário abrir um importante parêntesis ao falar sobre o livro impresso.
Da mesma forma como é possível enxergar esta centralidade do discurso escrito
positivamente, tendo surgido até uma literolatria, há também pesadas críticas a
19
essa posição hegemônica que o livro ocupa como meio de propagação da cultura
ocidental e moderna.
Nesse sentido, em O poder das bibliotecas no Ocidente, Christian Jacob, vai
afirmar:
[Os livros] são signo e instrumento de poder. Poder espiritual da igreja. Poder
temporal dos monarcas, dos príncipes, da aristocracia, da nação e da república.
Poder econômico de quem dispõe dos recursos necessários para comprar livros,
impressos ou manuscritos, em grande quantidade. Poder, enfim, intelectual e sobre
os intelectuais, tanto é verdade que o domínio dos livros tem como corolário o
direito de autorizar ou de proibir sua comunicação, ampliá-la ou retringi-la (Baratin
& Jacob, 2000, p.14).
Para que possamos entender o livro como possuidor de uma aura que o
singularizaria perante os demais produtos culturais e meios de comunicação, será
necessário, então, estudar os signos que estão associados ao livro em diferentes
fases. Como poderíamos pensar hoje este objeto moderno como capaz de portar
uma aura, se ele é também um produto da indústria cultural – tão criticada pelos
teóricos da Escola de Frankfurt?
No estudo que realiza dos fenômenos comunicacional e cultural presentes
nas sociedades contemporâneas, Nestor García Canclini alarga o conceito de
cultura, definindo-a não apenas como um conjunto de objetos, de obras de arte e
de livros facilmente identificável, mas pelos processos sociais que estão por trás
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destes signos culturais. Um dos lugares-comuns das análises que se referem aos
usos do livro no Ocidente é associá-lo sempre à Cultura, porque não costumamos
analisar os processos a que os objetos estão sujeitos, e sim apenas aos signos que
representam. Como afirma Canclini (1997), “parte da dificuldade de falar da
cultura vem do fato de que ela circula, se produz e se consome na sociedade”
(p.32).
Muitas vezes não levamos em conta que um objeto pode transformar-se
em seu uso social. É comum que os objetos tenham seu valor de uso alterado
pelos receptores/consumidores; o seu próprio produtor, não raras vezes, aprova
este novo sentido dado ao objeto projetado por ele. Nesse processo de
transformação, “não há por que sustentar que o significado do objeto se perdeu, na
maioria dos casos ele apenas se transformou” (Canclini, 1997, p.36).
Tendo em vista, portanto, que o objeto livro como materialidade existe há
mais de 500 anos, podemos pensar em uma razoável quantidade de significados
que, ao longo dessa trajetória como produto da cultura ocidental, o acompanharam
desde então.
No primeiro capítulo desta pesquisa, trataremos de discutir o livro como um
objeto que nasce de uma opção da sociedade por uma nova técnica: a da escrita.
Para que possamos entender o porquê da permanência e da valorização do livro
tipográfico na esfera cultural, devemos remontar às suas origens, o que nos levará
21
passaria então a não abrir mais mão do texto escrito sob a forma de livro como um
meio, ou talvez o principal meio de desenvolvimento da vida social moderna. Que
desenvolvimentos, no campo cultural, favoreceriam a opção pelo livro e fariam
dele um objeto e um meio crescentemente cobiçado/desejado? O que acarretaria,
por exemplo, ao homem moderno a opção por um ensino institucionalizado
baseado na obtenção de conhecimentos pelo texto lido, porque escrito?
No terceiro capítulo, daremos relevo ao estudo do livro, que não é apenas
um objeto cultural e um meio de comunicação, mas também um produto no
mercado. Buscaremos compreender os mecanismos de afirmação do mercado
editorial hoje, com seus atores e casas editoras, relacionando a estruturação desse
mercado com o momento da Revolução Industrial na Europa, etapa fundamental
em que o livro passaria a ser amplamente comercializado, nascendo a indústria
cultural. Esta discussão prioriza o período atual, da sociedade do consumo, em
que enfocaremos as questões contemporâneas sobre o comércio e as relações do
livro com o jornal e com os novos meios eletrônicos. A discussão proposta por
este estudo se encerraria numa análise das possibilidades existentes hoje para o
veículo com o aprimoramento da tecnologia das mídias digitais.
3
Texto extraído do site do movimento religioso judaico Chabad na internet:
ttp://www.chabad.org.br.
2
A preeminência da escrita na cultura ocidental
4
O Talmude consiste na compilação das leis, tradições, comentários e interpretações judaicas
registrados pelos doutos na Babilônia e em Israel, abrangendo um período de mais de 1.000 anos
(do séc. V a.C. ao V d.C). O livro foi ultrajado, difamado e lançado às chamas inúmeras vezes na
Idade Média por anti-semitas.
24
2.1
E surge a escrita...
palavras, mas sílabas, o que fez surgir as escritas silábicas. Os primeiros povos
que se utilizaram da escrita silábica foram as populações sírias e mediterrâneas a
partir do segundo milênio a.C.. As sílabas, unidade mínima desse sistema, mais
tarde passariam a ser decompostas, agora em consoantes e vogais, para que
chegássemos ao primeiro alfabeto: o fenício, surgido em meados do segundo
milênio a.C.. O desenvolvimento de sistemas de escrita foram uma peculiaridade
das culturas sedentárias; as populações nômades não criaram escritas, nem
desenvolveram outras artes, como a arquitetura.
Foi a partir da invenção da escrita consonantal, ou alfabética, que
evidenciamos a primeira grande multiplicação dos registros escritos. O alfabeto –
um sistema muito mais complexo do que os precedentes na história da escrita –,
este sim, viria a se tornar um dos importantes alicerces da cultura ocidental, na
medida em que se baseia em um sofisticadíssimo meio para a propagação das
idéias humanas.
Mas, para que o alfabeto pudesse ser amplamente empregado como meio
de se registrar e guardar informações consideradas valiosas, a escrita – que passou
a receber a qualidade de alfabética – teve que desenvolver-se em íntima relação
com a evolução dos materiais que lhe serviram de suporte. Quando refletimos
sobre o desenvolvimento das técnicas de escrita, temos que analisar
simultaneamente os efeitos dos materiais utilizados para a sua concretização. Pois,
26
como aponta o lingüista Charles Higounet (2003, p.15), “do ponto de vista
material, toda escrita é traçada sobre um suporte ou, como se diz, sobre um
registro ‘material subjetivo’, com auxílio de um instrumento manejado mais ou
menos habilmente por um gravador ou por um escriba”.
As primeiras escritas de que temos notícias, como as escritas sintéticas ou
analíticas, eram realizadas sobre superfícies duras; eram talhadas em pedras ou
gravadas em tabuletas de argila fresca, que levadas ao forno, permitiam a fixação
das inscrições. Simultaneamente no Oriente, os chineses já faziam uso do bronze e
do casco de tartaruga para gravar seus caracteres.
A utilização de materiais duros para registrar informações, ou mesmo para
cumprir rituais em culturas que faziam uso dessa “primeira escrita”, por si só
dificultava o avanço desse costume, que posteriormente se universalizaria. Para
que o ato de escritura fosse realizado com menos complexidade e atingisse um
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Apesar dos aperfeiçoamentos que lhe foram trazidos no curso do tempo, a técnica
de escritura é difícil de demoniar e exige rara competência. Suas diversas fases
são assumidas pelo mesmo homem: composição da tinta, dimensão do cálamo ou
27
do livro manuscrito, uma vez que forneciam ilustrações e adornos tanto para o seu
miolo5 quanto para a capa que o recobria.
Mas, para seu desenvolvimento, o objeto livro, assim como a escrita, não
dependeu apenas de pessoas aptas a produzi-lo. O estabelecimento das medidas
espaciais foi também uma etapa fundamental no aparecimento e no
desenvolvimento da escrita. Na visão de Anne-Marie Christin (2004),
pesquisadora do Centro de Estudos da Escrita francês, a “delimitação de uma
determinada forma e eventualmente também de um volume” para o escrito,
indissociáveis dele por fazerem parte da constituição desse escrito como objeto,
isto é, serem seu contorno e matéria – “são carregados de sentidos eles mesmos”
(p.289).
O estudo da constituição física do objeto escrito é de extrema relevância
quando o assunto em questão é compreender por que se priorizou – e se valoriza
até hoje – a prática da escrita entre nós. Se o suporte dessa escrita é uma tabuinha
redonda na mão, a mensagem escrita pode ser lida de perto e oferece certos modos
de interação com esse texto escrito. Os egípcios, por exemplo, puderam cultuar a
“fala dos deuses”, porque aqueles registros hieroglíficos eram esculpidos em
5
Chamamos miolo todas as páginas internas de um livro, ou outro tipo de publicação,
correspondendo, sem a capa.
28
obeliscos de pedra para sua fixação. Da mesma forma, Moisés precisou se valer
desse suporte (a inscrição em pedra) para transmitir ao povo hebreu as palavras de
Deus, já que naquela época os povos ainda desconheciam suportes flexíveis para a
escrita. Como a pedra não era um suporte adequado a textos longos, ele só
conseguiria transmitir integralmente os ensinamentos de Deus pela palavra oral,
uma das razões pelas quais até hoje os judeus acreditam em uma dupla
transmissão, no monte Sinai, da Palavra de Deus a Moisés: uma pela Torá6 escrita
e outra pela Torá oral. A Torá oral seria composta de uma série de declarações,
que, organizadas por assunto, explicam as leis e fundam a tradição e a história
judaicas. Apesar de os judeus crerem que seu conteúdo foi transmitido no monte
Sinai juntamente com a Tábuas da Lei, escritas, a Moisés, algumas de suas
declarações são atribuídas a mestres e às escolas de pensamento que as elucidou e
difundiu7.
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6
A Torá é a bíblia judaica. É formada pelos cinco primeiros livros do Antigo Testamento (o
Pentateuco): Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Estes seriam os livros que
conteriam a Palavra Sagrada, que teriam sido entregues diretamente de Deus a Moisés.
7
Desde o monte Sinai, a Torá oral foi transmitida somente pela oralidade. No entanto, após a
destruição do Segundo Templo, os judeus temeram que a Torá oral, por sua complexidade,
acabasse se perdendo no tempo, em razão da dominação romana e a conseqüente diasporização do
povo judeu. Em 188 a.C., o sábio Yehudá ha-Nassi terminaria o trabalho de compilação da
Mishná. Por volta do século IV, Rav Ashi iniciaria a preparação do Talmude.
29
2.2
A opção pela escrita
58
Se não tiveres cuidado de guardar todas as palavras desta lei, que estão escritas
neste livro, para temeres este nome glorioso e temível, o Senhor teu Deus;
59
Então o Senhor fará espantosas as tuas pragas, e as pragas de tua descendência,
grandes e permanentes pragas, e enfermidades malignas e duradouras;
segundo ocorreu durante o Império Bizantino, nos séculos VIII e IX, quando os
adeptos da iconolatria passaram a ser perseguidos; e o terceiro veio no bojo da
Reforma protestante, em um retorno às Sagradas Escrituras. Mas como muito bem
destaca Machado, o mais interessante é que, além da proibição ao culto de
imagens, os períodos iconoclastas estavam baseados numa “crença inabalável no
poder, na superioridade e na transcendência da palavra, sobretudo da palavra
escrita”. Para o iconoclasta, a Verdade só poderia estar na Escritura Sagrada. “No
princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (João: 1,1).
Em um ensaio sobre o que Arlindo Machado denominaria a literolatria,
sob o título de Do culto aos livros, Jorge Luis Borges elenca uma série de provas
do que, na sua visão, se constituiu no culto milenar da sociedade aos livros e à
escrita. Um dos exemplos desse culto à escrita e ao livro está no conteúdo do
Sefer Yetsirah (Livro da Criação), redigido pelos cabalistas da Síria, por volta do
século VI d.C.. Nesse importante documento da tradição judaica, os sábios judeus
relatam que Jeová, Deus dos Exércitos, Deus de Israel, Todo-Poderoso, haveria
criado o universo por meio das 22 letras que compunham (e até hoje compõem) o
alfabeto hebraico e das sefirot (emanações divinas): “Vinte e duas letras
8
Manifesto sob a forma de horror às imagens (do grego eikon, imagem + klasmos, ação de
quebrar).
31
seria aquele que interpreta as informações a partir do sentido literal das palavras.
No entanto, como cada letra hebraica antecederia à própria Criação, Deus também
teria usado as palavras da Torá (isto é, a junção dessas letras) com o intuito de
transmitir outras informações importantes sobre o mundo que Ele estava criando.
Essas informações são as que se encontram codificadas9. Os judeus entendem que
somente após muitos anos de dedicação ao estudo do texto bíblico, o estudioso
começa a compreender a Torá nos seus outros níveis, em que as palavras ligadas
entre si passariam a transmitir as demais verdades divinas, que o leitor comum da
Bíblia não conseguiria reconhecer nas passagens.
O judaísmo acredita até os dias atuais na santidade das letras e das
palavras contidas no Livro Sagrado. Para a produção textual de uma Torá, a
tradição judaica recorre ao sofer, profissional especialista em escrever as
passagens da Bíblia judaica. Ao detalhar a escrita bíblica, desenhando as letras
hebraicas em seus pormenores, o sofer atrairia santidade para as palavras.
Segundo a tradição judaica, isto só ocorre se o escriba autorizado transmitir
pureza a suas intenções e a seus pensamentos no ato de escrever.
9
O jornalista Michael Drosnin escreveu recentemente o livro O código da Bíblia, que já virou um
best-seller. Nele, o autor relata que o matemático israelense Eliahu Rips já teria conseguido
decifrar o código da Bíblia por meio de operações matemáticas. Segundo consta no livro, o código
teria previsto o Holocausto, a morte de Itzhak Rabin, a presidência de Bill Clinton, entre outros
acontecimentos importantes do século XX.
32
2.3
A escrita por meio do alfabeto
Uma das obras mais importantes sobre a escrita fonética, The Alphabet, foi
publicada em 1948 por David Diringer. Nela o autor destaca, entre as diversas
questões tratadas, que, com a invenção do alfabeto, “a escrita generalizou-se e se
fez comum” (p.37). O alfabeto foi o último dos sistemas de escrita desenvolvidos.
Talvez não será o último deles, mas dissertar sobre isso é trabalho para
futurólogos. Mesmo que alteremos o suporte em que escrevemos por meio do
alfabeto, como ocorre no caso da escrita eletrônica, que hoje está sendo usada em
larga escala com a expansão dos microcomputadores e a explosão do veículo
internet – e que traz surpresas não apenas como suporte, mas também como
responsável pela recriação dos modos de se escrever –, continuamos a fazer uso
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10
Desde o século X a.C., a escrita arcaica de Biblos (por meio do alfabeto fenício) se difundiu
amplamente. A escrita páleo-hebraica, que foi a escrita dos reinos de Israel e de Judá no mesmo
período, só se destacava da de Biblos por algumas particularidades gráficas. Mas foi sobretudo a
cidade de Tiro, que assegurou, pela atividade de seus navegadores e comerciantes e pela fundação
de suas colônias, a propagação do alfabeto fenício.
34
combinados, formam palavras. Estes sinais, além das letras que representam,
também significam sons. Este reconhecimento de que as letras dos alfabetos, na
verdade, são a transposição para o registro escrito dos sons que emitimos na
língua falada teria favorecido a tradução das línguas vulgares e o conseqüente
intercâmbio entre culturas. Isto quer dizer que, a partir do momento que uma
cultura faz uso da tecnologia alfabética, sua tradição poderá ser transmitida para
uma outra tradição por meio da tradução. Este procedimento é apenas facilitado
em culturas alfabéticas. Outras culturas que se utilizam de escritas não-alfabéticas
também podem ser traduzidas, mas este se torna um trabalho muito mais
complicado. A separação única que introduzem entre som e visão, de um lado, e o
conteúdo verbal e semântico, de outro, transformaram os alfabetos do mundo
ocidental na mais radical de todas as tecnologias culturais, no sentido de uma
homogeneização cultural.
Segundo McLuhan, “o alfabeto é um absorvedor e transformador agressivo
e militante de culturas” (1977, p.82). Este poder atribuído por McLuhan ao
alfabeto e, claro, à escrita por meio dele é justificável, quando analisamos algumas
diferenças que este sistema instaurou em relação às sociedades pré-alfabéticas.
Diferentemente dos sistemas de escrita anteriores à sua criação, o alfabeto podia
ser aprendido em poucas horas. Pelo fato de que cada letra é semanticamente
36
2.4
A escrita como pharmacón
11
Hoje, em veículos que dispõem de formato eletrônico de apresentação do discurso, como
celulares, computadores e palm-tops, temos evidenciado uma escrita que se utiliza de abreviativos,
questionando a necessidade de transposição para o papel de idéias e textos.
38
ser mantido via treinamento contínuo. Com sua invenção as pessoas não serão
mais obrigadas a treinar a memória. Lembrar-se-ão não por esforço interno, mas
por virtude de um esforço externo”.
No entender do filósofo Jacques Derrida – expresso em A Farmácia de
Platão –, a tradução corrente de phármakon por remédio – droga benéfica – seria,
de certa forma, inexata. Esta tradução por remédio desfaz, por sua saída da língua
grega, o outro pólo reservado à palavra phármakon. Contudo, como explica
Derrida (1997), “é também evidente que a intenção declarada de Theuth, sendo a
de fazer valer seu produto, ele faz girar a palavra em torno do seu estranho e
invisível eixo e a apresenta sob apenas um, o mais tranqüilizador, dos pólos”
(p.44).
Sócrates compara os textos escritos que Fedro trazia consigo a uma droga.
O pharmacón operaria por sedução, e teria feito com que Fedro saísse do rumos e
das leis gerais, habituais. Diferentemente do lugar habitual do diálogo, que ocorria
sempre no interior da cidade, o pharmacón, isto é, as folhas de escritura, atraíram
Fedro e Sócrates para fora da cidade:
facilmente me farás circular atráves de toda a Ática, e ainda além, onde bem
quiseres! (Platão apud Derrida, 2004, p.15).
informação.
Na República, pela mesma razão que condena-se a escrita, condenam-se os
poetas, que, segundo o filósofo, deveriam ser expulsos da cidade para que esta se
tornasse ideal. O conceito de mimesis que aparece nos livros III e X da República
é considerado central para o entendimento de o que são a poesia e o poeta na
concepção platônica. Para ele, os poetas desenvolvem suas narrativas poéticas por
meio da imitação (mimesis). A poesia, para Platão, seria então definida como se
estivesse afastada três vezes da forma ou idéia original. Ou seja, há a idéia da
coisa, a coisa em particular e a sua representação artística. Quanto a esta imitação
que seria empreendida na poesia, afirma Platão, utilizando o exemplo de um
pintor:
A arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é
pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de
uma aparição. Por exemplo, dizemos que o pintor nos pintará um sapateiro, um
carpinteiro, e os demais artífices, sem nada conhecer dos respectivos ofícios. Mas
nem por isso deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes, se for bom
pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe com a semelhança,
que lhe imprimiu, de um autêntico carpinteiro (Platão, 2002, p.296).
41
pelo da máquina. Mas se, por um lado, nos comunicamos com auxílio de
instrumentos que, há 15 anos, poderiam nos parecer supérfluos, por outro lado,
como bem argumentou Eco, isto vem a reforçar o poder humano e as
possibilidades de trocas comunicacionais. A título de ilustração, ainda que a cada
dia nos sintamos menos hábeis em escrever à mão – já que nos valemos sempre
dos computadores para redigir textos –, a redução no tempo de redação está
produzindo um homem capaz de registrar muito mais em menos tempo. Como
essa supercapacidade produtiva do homem irá afetar na produção de livros
impressos? Neste primeiro capítulo, de importância capital será compreender
como a introdução das técnicas de escrita foi transformando pouco a pouco uma
sociedade que se baseava na oralidade.
2.5
Da oralidade à escrita: alguns atalhos
escrita. Mas esses cidadãos gregos não formavam uma elite (ao contrário do que
aconteceria mais tarde durante a Idade Média); na verdade, os primeiros perito-
letrados foram os artífices gregos, e o fato de se dominar a escrita não era visto
como capaz de elevar intelectualmente a pessoa. Era encarado como mais um
entre outros artifícios técnicos com os quais o homem poderia manter contato. O
escriba grego tinha, a princípio, tanta (talvez menos) importância quanto um
carpinteiro. A escrita em si mesma não era valorizada, pois “prejudicava a
memória” e “estava três vezes distante da verdade”, como vimos acima nos textos
platônicos.
Mas no decorrer do tempo, o alfabeto iria introduzir uma divisão clara da
experiência, libertando o homem de uma sociedade tribal, da importância da
palavra mágica e da teia do parentesco. O famoso antropólogo Lévi-Strauss, em
Tristes Trópicos (1955), relatava uma das muitas experiências de encontro que
teve com os índios brasileiros. O texto etnográfico de Lévi-Strauss apresenta as
tensões entre o mundo europeu, ocidental, da Escritura cristã e as tradições orais
do mundo “selvagem”, ou da sociedade de uma oralidade primária:
Quanto à escrita, seja santa ou profana, não apenas [os índios] a desconheciam,
como também, o que é pior, não possuíam quaisquer caracteres para significar
qualquer coisa: no começo quando cheguei ao seu país para aprender-lhes a
língua, escrevia algumas sentenças e depois as lia diante deles que julgavam fosse
uma feitiçaria, e diziam um ao outro: Não é maravilhoso que este que ontem não
43
saberia dizer uma palavra em nossa língua, em virtude desse papel que possui e
que o faz falar assim seja agora entendido por nós? (Lévi-Strauss apud Certeau,
1982, p.216).
2.5.1
A sociedade da oralidade primária
das culturas existentes. Como lembra Lévy, naquele tipo de sociedade, quase todo
o edifício cultural estava fundado sobre as lembranças dos indivíduos.
Walter Benjamin cunha o termo experiência (Erfahrung) para designar o
tipo de relação que era estabelecida entre os homens habitantes da sociedade oral.
Diferentemente da noção de experiência amplamente divulgada pelo senso
comum – que remeteria ao conhecimento de vida dos mais velhos –, este termo
“experiência” desenvolvido principalmente nos escritos juvenis de Benjamin
estaria ligado a uma experiência totalizante, que só seria possível em sociedades
orais. E esta ausência hoje do que o filósofo chama de experiência se relaciona à
perda de uma memória individual e coletiva e ao declínio da tradição.
Na modernidade, houve uma ruptura com o passado que se ligava à
tradição, à aura de um objeto cultural autêntico, ao “aqui e agora do original”.
Como coloca a filósofa Kátia Muricy (idem, p.184), estudiosa dos escritos
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poderosa por duas funções atribuídas à escrita, como atesta Jack Goody, em A
domesticação do pensamento selvagem:
2.5.2
A sociedade da oralidade mista
sociedade estritamente oral para uma sociedade que passaria a cohabitar com a
escritura e a oralidade no mesmo tecido social. No seu relato, ele afirma que a
disseminação da escrita pela Europa e o desmoronamento do feudalismo teriam
sido responsáveis, no longo prazo, por arruinar com a classe dos recitadores,
cantores e contadores de história profissionais – leitores e escritores. No entanto,
no decorrer dos séculos XIV e XV toda corte européia ainda possuía seus
menestréis. As igrejas igualmente contratavam cantores para fazer a sua
publicidade junto aos peregrinos.
Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem
dúvida, pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à
manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e
confirmando os mitos, revestida nisso de uma autoridade particular, embora não
claramente distinta daquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio
(Zumthor, 1993, p.67).
sugerem que o livro, na frente deles [leitores públicos] sobre o facistol, pode ser
apenas um tipo de acessório que serve para dramatizar o discurso”.
O exemplo do leitor público Román Ramírez é didático. Quando a
Inquisição foi atrás dele, o mourisco confessou que lia pacotes de folhas em
branco. Ele havia aprendido de cor os capítulos da obra, assim como nomes de
lugares de personagens. Quando os recitava, acrescentava, condensava e suprimia
informações de acordo com a sua vontade, utilizando a “linguagem dos livros”.
Isto porque não somente os recitadores tinham total liberdade na hora de ler,
interpretar, um texto, como também era claro que a “linguagem dos livros” era
uma forma de comunicação completamente diferente da maneira como narravam
histórias os intérpretes.
Este caso de Román Ramírez demonstra a inexistência de preocupação, na
transmissão oral dos textos, em dar o nome daquele personagem que originou a
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cada sociedade atribui aos símbolos verbais” (p.28). Isso porque a relativa
continuidade das categorias do conhecimento na transmissão cultural
intergeracional só pode ser mantida pela utilização da linguagem.
A transmissão cultural pela oralidade é compreendida, na visão de Goody,
como uma longa cadeia de conversas que se interligam entre os membros da
sociedade, em que os valores, as crenças e o conhecimento são compartilhados e
comunicados às gerações seguintes no contato face-a-face. Nesse tipo de grupo,
toda a herança cultural é guardada na memória humana, e não há como atribuir
diferentes significados para um mesmo significante. Existe uma relação direta
entre o símbolo e o referente.
Numa sociedade letrada, falamos em “definições do dicionário” para se
contrapor a outros significados que um mesmo vocábulo pode vir a adquirir. As
palavras muitas vezes se desligam dos seus sentidos originais, já que transitam em
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Nessas sociedades, aquele que vai além do simples reconhecimento dos signos,
depois da lenta decifração, torna-se um ‘ledor’, às vezes um possuidor de livros e
distingue-se por isso, como se semelhante saber redobrasse ou até mesmo
instaurasse a diferença social (Fabre, 1996, p.203).
Portanto, isto quer dizer que aqueles que sabiam ler ou desempenhavam
funções necessariamente ligadas à escrita eram, por isso, considerados os eleitos
da sociedade. O acesso às funções políticas locais havia ficado restrito aos
52
Como o livro vem da escola, toma-se um cuidado extremo com ele; é coberto de
papel, ‘fechado’ no aparador do armário, enquanto almanaque, menos prestigioso,
é simplesmente ‘posto na beira da chaminé’. O lugar do ledor é sempre o mais
iluminado; contra o fogo, à noite, ou no vão da janela, quando há sol, senta-se na
cadeira que lhe é reservada. (...) De fato, jamais lêem os livros da biblioteca em
voz alta, mas acompanham sua leitura com um zumbido que intriga e impõe
respeito (Fabre, 2004, p.206).
Este relato deve ser lido não somente como uma conseqüência do
investimento da sociedade dos pirineus àquela época em relação à escrita e à
leitura, mas também é relevante para compreender o papel que o livro passaria a
desempenhar no seio daquela comunidade, como índice de contato de cada
indivíduo com a cultura francesa. Não é à toa que os livros mais consultados pela
comunidade eram os associados às leis e aos costumes franceses, assim como as
gramáticas da língua, uma vez que o acesso ao texto escrito permitia àquela
população uma maior condição de cidadania.
Neste primeiro capítulo, portanto, buscamos mergulhar no universo da
escrita, precondição para a produção do livro, para entender o porquê de até hoje
se pensar o livro como um objeto central da cultura ocidental, como capaz de reter
53
Provocadas entre os iletrados, não menos que entre os sábios, pela escritura na
sociedade medieval, essas atitudes e práticas tão diversas não teriam um substrato
mental comum, alguma coisa como a percepção de uma espécie de sobre-
humanidade – ou desumanidade – da escritura? (1993, p.114).
Formava-se uma nova classe burguesa que iria buscar a educação por
intermédio do letramento e do livro. Os centros de vida intelectual se deslocaram
então dos scriptoria medievais para as universidades, onde os eruditos, os
57
textos que podiam ser divulgados e lidos pelos alunos, já que a universidade era a
responsável pelo estabelecimento e sucesso dessa disseminação das obras.
A dificuldade de multiplicação do original – pelo tempo que era
demandado para se realizar a cópia – resultaria na criação da tipografia. O papel,
insumo necessário à impressão de textos nas oficinas, já havia sido introduzido na
Europa, se desenvolvido como suporte para a confecção de textos manuscritos e
se adaptaria muito bem a esta nova forma de produção/reprodução dos escritos. A
grande vantagem do papel sobre outros suportes que o precederam, como o
pergaminho, era a facilidade de fabricação e obtenção do trapo, que era a sua
matéria-prima. O pergaminho, ainda que mais resistente, precisava ser obtido a
partir da pele de veado novo; era mais complicado de ser produzido pela própria
necessidade de se matar o animal a fim de retirá-lo a pele.
Do século XIV – quando começa a ser utilizado – até o século XVIII, a
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sobre a imprensa tem apontado, com toda a propriedade, a indicação das páginas
de rosto como sendo a mais significativa das novas características associadas ao
formato do livro impresso, em relação ao texto que se apresentava sob a forma de
manuscrito (Eisenstein, 1998, p.89).
Vespasiano da Pisticci foi um mercador florentino de livros que ganhou
certa notoriedade entre os poetas humanistas, e que passou a ser chamado por eles
de o “príncipe dos editores”. Em suas memórias, ele escreveria que um livro
impresso se sentiria envergonhado em companhia de livros manuscritos ricamente
encadernados. Vespasiano teria que encerrar sua brilhante carreira de livreiro em
1478, porque se negava a comerciar livros impressos. A sua observação que
desdenha o livro gutenberguiano era preconceituosa, uma vez que os leitores do
século XV passariam pouco a pouco a preferir o livro originado da prensa.
Eisenstein se utiliza da expressão “devaneios nostálgicos e irrealizáveis”, para
explicar o rechaço do famoso mercador aos livros que se industrializavam (1998,
p.35).
Os bibliófilos florentinos já mandavam comprar livros impressos em
Roma, desde 1470. Sob a direção de Guidobaldo da Montefeltro, a biblioteca
ducal de Urbino adquiriu edições impressas e mandou-as encadernar com as
mesmas capas magníficas então usadas para os manuscritos. A mesma corte
patrocinou o estabelecimento de uma impressora pioneira em 1482.
60
Bíblia e de outras obras inspiradas nela se tratava de negócio rentável, como até
hoje o é (mas esse tema será aprofundado no próximo capítulo). As primeiras
grandes realizações da imprensa foram a produção de duas Bíblias: a de 36 e a de
42 linhas. Portanto, os livros continuariam recebendo as honrarias do período
manuscrito, sendo auratizado também porque, em sua maioria, divulgavam textos
sagrados.
Além de tornar a Bíblia diretamente acessível a um número maior de
leitores, uma das principais tarefas da imprensa, em seus primórdios, foi fornecer
aos estudantes e aos doutores das universidades os grandes tratados do arsenal
escolástico tradicional: clássicos da filosofia e da teologia medieval, que se
destinam a este público muito mais restrito que os interessados nos textos
religiosos, mas não menos importante: “Vários milhares de estudantes em Paris, e
mesmo em Colônia; para eles, os editores empreendem a edição das obras que
figuram no programa e daquelas que constituem os instrumentos de trabalho
indispensáveis aos estudos (p.358)”.
62
3.1
A ascensão de uma nova classe de “homens de letras”
terminar em um livro”.
Do século XV ao XVIII, os acadêmicos se denominavam a si mesmos
como cidadãos da “República das Letras”. Em realidade, não existia um espaço
territorial onde os literatos habitavam. Este termo foi por eles cunhado, pois se
sentiam pertencentes à comunidade das letras, uma sociedade imaginária que
transcendia as fronteiras nacionais. Os letrados formavam um grupo de estudiosos
leigos cultos, em geral médicos e advogados, habitantes das cidades.
Foi somente com a formação das grandes cidades européias e o incremento
das atividades que se ligavam às universidades que este grupo se tornaria visível,
já que esses primeiros letrados europeus eram vinculados às instituições de ensino
universitário. Em meados do século XVII, por exemplo, era comum, embora ainda
fosse arriscado, escritores e estudiosos que viviam da própria pena, numa mistura
de patrocínios e publicações:
12
O livre de Mallarmé seria diferente da concepção ocidental de livro. O sonho do poeta era
propor um novo tipo de livro, que apenas recentemente com a internet pudemos imaginar como
seria. Ele queria um livre a venir (livro do futuro), em que o conteúdo não ficasse preso ao modelo
de escritura convencional. O texto teria uma forma móvel, as páginas não obedeceriam uma ordem
fixa, uma obra inacabada, isto é, sem começo ou fim, em constante processo de reelaboração.
64
grupo pequeno mas influente pode ser apresentado na linguagem de nossos dias
como “intermediários da informação” como “administradores do conhecimento”,
porque tentavam organizar o material, além de coletá-lo (Burke, 2003, p.31).
saber convencional que vigorava nas universidades por meio dos escolásticos, o
grupo de teólogos e filósofos que dominavam o meio acadêmico no início do
século XVI. Esse grupo de intelectuais do Renascimento criaria as academias,
estabelecimentos que tinham como objetivo a promoção de debates fora do
ambiente universitário. Por volta de 1600, aproximadamente 400 academias
haviam sido fundadas somente na Itália. Nelas se ensinava um currículo menos
tradicional do que o das universidades; elas estavam mais voltadas para um
público de homens de negócios, e menos para os nobres, que eram maioria na
universidade.
A Revolução Científica é o segundo movimento ligado à consolidação dos
intelectuais europeus e ocorreria a partir do século XVII. Tinha como objetivo
incorporar conhecimentos alternativos ao saber estabelecido. Saberes como a
química ou a botânica passam a receber atenção dos estudiosos. Uma série de
intelectuais viria a criticar o trabalho realizado nas universidades, chegando ao
ponto de classificar a filosofia escolástica como preocupada com “especulações
inúteis e estéreis”. Este movimento se tornaria responsável pela criação de
sociedades científicas, além do desenvolvimento de organizações de fomento à
pesquisa.
66
Uma obra de referência pode ser definida como um livro que não se destina a ser
lido “de fio a pavio”, mas a ser “consultado” por alguém que “passa os olhos” ou
“se refere” a ele em busca de peça específica de informação, um atalho para o
conhecimento (Burke, 2003, p.164).
Nos primórdios da Europa moderna, o conhecimento estava ligado cada vez mais
intimamente ligado à produção via impressão, e isso levou a um sistema de
conhecimento mais aberto. A invenção da prensa tipográfica efetivamente criou
um novo grupo social com interesse em tornar público o conhecimento. O
mercado de informações cresceu em importância ao longo do período. Até
mesmo o conhecimento “puro” ou acadêmico foi afetado por essa tendência
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(idem, p.158).
3.2
A Enciclopédia
A obra que agora começamos (e que desejamos terminar) tem dois objetos: como
Encyclopédie ela deve expor, tanto quanto possível, a ordem e o encadeamento
dos conhecimentos humano; como Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et
des métiers, deve conter, sobre cada ciência e sobre cada arte, seja liberal seja
mecânica, os princípios gerais que estão na sua base e os detalhes mais essenciais
que fazem o seu corpo e a sua substância.
criticando os jornais: “Todos esses papéis [os jornais] são o alimento dos
ignorantes, o recurso dos que querem falar e julgar sem ler, o flagelo e o desgosto
dos que trabalham. Nunca levaram um bom espírito a produzir uma boa linha,
nem impediram um mau autor de fazer uma obra má”. Em 1755, Rousseau diria:
“O que é um livro periódico? Uma obra efêmera, sem mérito e sem utilidade, cuja
leitura, negligenciada e desprezada pelos letrados, só serve para dar às mulheres e
aos tolos vaidade sem instrução”.
Tanto na grandiosidade da Enciclopédia, com sua quantidade expressiva
de volumes para a época, como nos objetivos que foram arrazoados pelos próprios
editores para publicá-la é possível notar a valorização do livro impresso, como
meio de transmitir conhecimento.
Concorreu para isso uma mudança fundamental na concepção de
conhecimento na primeira metade do século XVII: uma nova visão do
conhecimento como cumulativo. Em 1605, Francis Bacon publicaria seu livro O
avanço do conhecimento. Nele e em outros títulos de sua autoria, o filósofo e
ensaísta britânico faria uso de uma imagem chamativa que simbolizava seu desejo
de transformar a sociedade: a de um “mundo intelectual”, ilustrado pela figura de
um globo e um barco velejando em busca de novas “possessões”.
O “avanço do conhecimento” foi contido, de início, pelo alto custo que se
pagava para ter acesso à Enciclopédia, o que impôs um limite à sua difusão, por
69
O livro é rei. A ele se prende todo um imaginário, que o século XVII já tinha
sugerido: ele é o veículo privilegiado do saber – quem poderia duvidar disso? –
pois a escritura fixa para sempre a verdade e parece fugir – apesar das afirmações
70
uma função ritual moderna, já que “o modo de ser aurático nunca se destaca
completamente de sua função ritual” (Benjamin, 1985, p.171).
3.3
As bibliotecas
são signo e instrumento de poder. Poder espiritual da Igreja. Poder temporal dos
monarcas, dos príncipes, da aristocracia, da nação e da república” (Baratin e
Jacob, 2000, p.14).
Desde o fim da Idade Média, o Antigo Regime construiu inúmeras
“bibliotecas reais”, que tinham a finalidade não apenas de deleite para o monarca,
mas de utilidade para o público. Em 1627, Gabriel Naudé, um precursor da
biblioteconomia no século XVII, afirmaria que não existia naquela época um meio
mais honesto e seguro de aquirir fama do que construir bibliotecas e oferecê-las ao
público. “Grandes reis gostaram e procuraram particularmente acumular grande
número de livros e mandar construir bibliotecas muito curiosas e bem providas”
(p.184).
Ainda no século XVIII, um livro impresso poderia vir a ser dedicado por
seu autor ao seu soberano. Essa constituía uma das melhores formas de captar a
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habitado, até seus confins, querendo se apropriar de todos os traços escritos por
todos os povos, em todas as línguas e em todos os lugares, e traduzindo-os para o
grego, isto é, importando-os e aculturando-os no espaço lingüístico, cultural e
mental do helenismo (Baratin e Jacob, 2002, p.49).
3.4
Livro e poder
Lévi-Strauss acredita que “talvez não seja fortuito” em que justamente nas
sociedades onde surge a imprensa, e ocorre uma mudança de ordem de grandeza
do papel da escrita na vida social, a arte se torne “coisa de uma minoria que nela
procura um instrumento ou uma forma de desfrute íntimo” (Charbonnier, 1989,
p.57). O consumo de livros seria, portanto, um privilégio de uma minoria que teria
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livros contra os costumes e contra a religião, que são grandes objetos do comércio
desse homem, pelos quais ele me parece no centro de todas as manobras e
fraudes. Não posso duvidar de que ele se envolva com os livros que não
respeitam nada... (idem, ibidem)
3.5
O homem moderno e o livro
esfera pública literária esteve na origem de uma nova esfera pública democrática,
na qual toda autoridade passa a estar sujeita ao exame crítico da opinião pública.
O desenvolvimento da opinião pública fez com que se tornasse cada vez
menor o poder do Estado ou da Igreja sobre a publicação de livros e,
conseqüentemente, sobre a circulação das idéias. Para Chartier (1991), a vida
familiar, a sociabilidade do convívio e o isolamento individual constituem os três
pilares da vida ocidental, em que a leitura é de vital importância. O homem
moderno, individualizado, passaria a fazer da leitura um dos hábitos mais
desenvolvidos por ele no decorrer da modernidade. Habermas (1984, p.62)
relacionou a leitura de romances em voz alta nos saraus literários com a
publicização da subjetividade desse homem moderno. Os salões representavam o
espaço fora dos ambientes privados, em que os indivíduos se aglutinavam em um
público, constituindo-se no espaço de mediação entre a esfera privada e a esfera
pública. A leitura de livros funcionava como mediadora entre as duas esferas. O
homem moderno constitui a sua personalidade, forma o seu intelecto, a partir dos
livros e das mensagens neles inscritas por outros indivíduos isolados, e a partir daí
o prestígio do livro só cresceria. A aura do livro impresso, moderno, estaria
presente na tradição que este objeto funda quando do momento de seu “culto” pela
sociedade ocidental. Assim como Benjamin acreditava que a aura de um objeto
residiria em seu valor de culto, na tradição a que o objeto remeteria, à sua
77
um produto habitual porque isso o habilita a acreditar que sua aquisição, seu uso,
podem proporcionar a ele experiências que ele, até então, não encontrou na
realidade”. Está aí, portanto, a razão pela qual Campbell destaca a produção
crescente de romances modernos e o aparecimento de um público ledor de ficção
como uma das características principais da revolução do consumo no século
XVIII. Para ele, a prática visível do consumo de romances, entre outros livros, por
exemplo, é justificada pelo modelo hedonista que se instaura com a modernidade.
McLuhan (1977) sentencia: “o caráter portátil do livro, à semelhança do cavalete
do pintor, muito contribuiu para o novo culto do individualismo” (p.280).
O livro aparece na modernidade com uma dupla função: fonte de
informação ou de conhecimento e ao mesmo tempo capaz de oferecer o lazer ao
homem moderno. “A cidade constitui um universo cultural original, onde a escrita
representa algum papel mesmo para aqueles que não a decifram” (Chartier, 1996,
p.177). No fim do século XVII, em Paris, 85% dos homens e 60% das mulheres
eram capazes de assinar seus próprios testamentos. De acordo com o sociólogo,
professor da Universidade de Paris, a posse do livro aumenta para todos, mas
segue uma hierarquia: a das fortunas e a das qualificações. Mesmo que a leitura
média sofra um incremento, permanece baixo o índice relacionado às camadas
inferiores. O mundo urbano passou a ser consumidor de livros, que não seriam
79
mais monopólio dos que “administram a cidade e as almas” (idem, p.197). O que
esta última afirmação quer dizer?
Que, por volta do ano 1200, a escrita se secularizava em sua utilização
notarial, comercial e jurídica. Que, entre o século XII e XIV, o número bruto de
leitores havia crescido significativamente, mas por motivos pragmáticos, já que a
escritura se fazia presente nas cortes dentro das áreas administrativa e contábil. À
essa época, os príncipes já estavam de acordo a respeito dos poderes da leitura e
da escritura: o saber de um nobre deveria comportar a capacidade de ler todas as
línguas (Zumthor, 1996, p.108). Mais tarde, a formação maciça da consciência
nacional coletiva foi somente possível, segundo McLuhan (1979), graças à ação
da tipografia, “na medida em que a língua vernácula se fazia visível, centralmente
importante e unificada pela ação da nova tecnologia [a tipografia]” (p.271).
O nacionalismo deve em grande parte ao livro impresso a sua existência,
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pois depende ou deriva de um ponto de vista fixo, que nos chega com a palavra
impressa. Esta é eficaz em “permitir a visualização da língua vernácula e, depois,
em criar aquele modo homogêneo de associação que viria tornar possíveis a
indústria moderna, os mercados e o gozo visual da condição, do status nacional”
(McLuhan, 1979, p.301). Os espanhóis, por exemplo, enxergaram no livro
impresso um instrumento para a atividade militante da Contra-reforma. Na
Inglaterra do século XVI, o aprimoramento e adorno da língua materna eram
considerados como o próprio fim da literatura. O texto impresso haveria
permitido, no entender de McLuhan, a confrontação visual direta dos estilos
antigos em toda a sua fixidez e imobilidade. Os humanistas teriam se surpreendido
ao notarem que o modo como eles pronunciavam oralmente o latim diferia
sobremaneira do modo clássico de uso dessa língua. Tomaram então a decisão de
ensinar o latim por meio da página impressa: “a tipografia estendeu seu próprio
caráter à regularização e fixação das línguas” (McLuhan, 1977, p.309).
Já a administração “das almas” não era mais um monopólio exercido pela
Igreja, que até a invenção da prensa tipográfica era detentora do controle sobre o
conhecimento em duas vias: era a responsável pelos maiores acervos literários de
então, assim como os leitores daquela época eram os membros do clero, uma vez
que somente eles haviam sido alfabetizados. A Reforma protestante, em conjunto
80
Não é inteiramente evidente por si mesmo, hoje em dia, que a tipografia iria ser
ao mesmo tempo o instrumento e a oportunidade para o individualismo e a auto-
expressão pessoal na sociedade. Que tivesse sido o meio para a promoção de
hábitos de propriedade particular, de vida privada, e de muitas formas de
‘encerramento’ talvez o fosse. Mais óbvio, entretanto, é o fato de ser a publicação
impressa o meio direto para conduzir à fama e à perpetuação do nome. Pois, até o
advento do filme moderno, não havia no mundo nenhum meio que se comparasse
ao livro impresso, para a propagação da imagem de um homem privado
(McLuhan, 1977).
81
mesmo sendo um produto no mercado, pode ainda conter uma aura, que o
diferencia dos demais produtos culturais?
4
O mercado editorial e a aura do livro
taxativo: não deve entrar no negócio dos livros quem dele espera apenas um
retorno financeiro. Portanto, esta análise do mercado editorial parte de um
paradoxo: que este segmento específico do mercado cultural, diferentemente dos
demais, não objetiva exclusivamente construir fortunas, ou pelo menos não faz
disso seu objetivo maior.
Recuperemos o conceito antropológico de cultura. A cultura é, em última
análise, a responsável por estabelecer uma diferenciação do ser humano em
relação aos demais seres do mundo animal. Ao contrário de chipanzés, ratos ou
baratas, o homem se diferencia por ser o único animal a estabelecer essa relação
única com a natureza: a cultural. José Carlos Rodrigues cita como exemplo a
forma como a cultura humana influencia o homem na procura por alimento, que é
uma das necessidades básicas de sua sobrevivência como espécie.
13
Jason Epstein foi protagonista de uma das mais criativas e marcantes carreiras do mercado
editorial. Ele foi responsável pela publicação de escritores como Norman Mailer, E. L. Doctorow,
Philip Roth e Gore Vidal e atuou como diretor da Random House por 40 anos.
83
de fábrica que tenha saída, varra isto da cabeça. Tão cedo o livro não será negócio
de dar dinheiro no Brasil” (Carrenho e Diogo, 2005, p.46).
Como, culturalmente, convencionou-se associar o livro à aquisição de
conhecimento, de detenção do saber, muitas razões, que não somente as
mercadológicas, podem ser enumeradas para que um indivíduo opte por seguir,
por exemplo, a carreira de editor de livros. Se nos rituais de alimentação não
devemos falar ao mesmo tempo em que mastigamos ou “não se coloca o cotovelo
na mesa”, se “quem paga a conta é quem senta na cabeceira da mesa”, existem
também, na cultura livresca, diversos rituais e normas que se relacionam,
intimamente, à produção, à comercialização e ao consumo de livros impressos,
inserindo este objeto na esfera cultural, e devolvendo-lhe de certa maneira a aura
que Walter Benjamin acreditava ter sido retirada do livro, quando Gutenberg
inaugurou a prensa tipográfica e a reprodutibilidade técnica.
Procuraremos, nas linhas seguintes, debater algumas questões
contemporâneas da organização, da atuação e da ritualização da indústria do livro
hoje, desde o início do processo de sua produção/edição, normalmente sob a
responsabilidade de uma editora comercial, até a outra ponta do negócio, na
comercialização e nos modos de consumo por parte dos leitores. A partir do
estudo da prática, será possível concluir se o livro se constitui apenas como mais
um mass media, como entendiam os teóricos da Escola de Frankfurt, ou se ele
84
4.1
As editoras de livros
nem sempre publica livros com bom potencial de vendas. Uma vez que trabalha
com cultura, esse profissional precisa se preocupar com a imagem da editora
perante os formadores de opinião, um fator quase tão influente quanto as vendas
para que a empresa sobreviva. (...) Além de clássicos, editores abrem as portas
também para autores premiados, sendo o mais irresistível, evidentemente um
ganhador de Nobel de literatura. Nesse caso a editora lança até os cadernos de
poesia que o laureado tenha rabiscado aos quinze anos, por saber que serão
resenhados e comentados em todos os meios culturais de prestígio (Bacellar,
2001, p.95).
anunciada uma televisão tela plana de 21 polegadas todos os dias no horário nobre
pelo próprio meio, a televisão.
O mercado editorial é constituído por meio das editoras comerciais, que,
na maioria dos casos, são as responsáveis por fabricar o produto livro, e, na outra
ponta do processo, pelas livrarias que somente o vendem, os PDVs (pontos de
venda) dos livros. Além dos editores ditos comerciais, existem também os
prestadores de serviço gráfico, que produzem livros sob encomenda. Isso ocorre
quando um autor procura um empresário do ramo gráfico para que este orce o
serviço completo de edição de sua obra. Neste caso, o prestador de serviço tem
seu lucro garantido com a venda do serviço gráfico diretamente ao autor. Mas na
maioria dos títulos produzidos pelo mercado, não é assim que ocorre.
Os autores normalmente procuram as editoras comerciais, que custeiam
integralmente a edição de seus títulos, apostando no seu potencial de vendas nas
livrarias para obter lucro e garantir a continuidade dos seus negócios. A editora
comercial assume os riscos financeiros de publicação dos originais que a ela são
submetidos. Isto quer dizer que quando um editor recebe um original para
avaliação, para ser possivelmente transformado em livro, ele necessariamente tem
87
que analisar o peso comercial da obra. Nenhum editor desejaria publicar um livro,
se tivesse certeza de que este viraria encalhe14.
No entanto, às vezes mais do que a capacidade de vendas de um único
título, o que permite a sobrevivência de um empreendimento editorial é a
construção de um catálogo forte. O maior ativo de um editor é o seu catálogo. Se,
ao longo da história de seu empreendimento, ele produziu títulos aclamados pelo
público e crítica, certamente provocará o interesse dos principais autores de o
procurarem a fim de que este editor de sucesso seja o responsável por publicar
seus próximos textos sob a forma de livro: “É mais bem visto pela academia e
pelo mercado em geral o autor ser selecionado por uma editora, especialmente
uma editora com um nome conhecido”. Esta é a visão de Laura Bacellar,
experiente editora que trabalhou durante muitos anos na Brasiliense. Para se
construir um catálogo de respeito, que faz a casa editorial diferenciar-se, os
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editores nem sempre publicarão apenas obras de grande apelo comercial, já que
muitas vezes um título considerado relevante do ponto de vista cultural pode vir a
ser um fracasso de vendas.
Façamos uma comparação entre a potencialidade comercial das peças de
teatro de Nelson Rodrigues em contraposição à dos livros religiosos. O que tem
mais possibilidade de venda hoje no Brasil? Certamente, os livros religiosos. De
acordo com os dados de 2000 do IBGE, apenas 7,40% dos brasileiros declaravam
àquele ano não pertencer a qualquer religião. É um público imenso. Ao passo que
os amantes do teatro e da obra de Nelson Rodrigues são uma minoria entre os
brasileiros. Por outro lado, se a publicação das peças de Nelson Rodrigues em
livro pode não reverter em vendas substanciais, podem dar muito mais prestígio
ao editor que está à frente dessa empreitada – e “peso” ao seu catálogo – do que a
edição de mais um livro entre tantos que surgem diariamente para o público
religioso.
O que seria, em termos práticos, um catálogo forte? Um conjunto de
títulos que pudesse reconstruir no leitor o imaginário do livro como depositário do
conhecimento. Esta figura que desde o início da modernidade acompanha o livro
impresso. As principais editoras – aquelas que conseguiram destacar-se e hoje
14
“Encalhe” é uma expressão usada com freqüência no mercado editorial para uma obra que não
tenha bom índice de vendas, e que permanece nos estoques das editoras por um longo período sem
procura pelas livrarias.
88
O editor, que se preze como tal, vive sempre oscilando entre dois pólos, bem
caracterizados pelo livro de Orígenes Lessa, O Feijão e o Sonho. Se ele se dedica
só ao feijão, ele não é bom editor. E se ele se dedica só ao sonho, ele quebra a
cara muito rapidamente, numa sociedade capitalista ele está fadado ao insucesso.
O contraponto feijão/sonho é que dá a justa medida da qualidade de um editor
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Expressão utilizada pelos editores para descrever um título com um menor índice de vendas. É
vendido de vez em quando.
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Estamos nos referindo aqui à edição de um determinado tipo de livro, como os que
convencionamos classificar como literatura, isto é, livros relacionados à figura de um escritor, de
alguém que seguirá a carreira de escritor.
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que não simpatize com o editor, ou vice-versa, seguirão o processo. Esses dois
personagens precisam estar em sintonia.
Esta situação é, em certa medida, análoga à de uma futura mãe, que precisa
escolher o médico-cirurgião que fará o parto do seu primeiro bebê. Não são raras
as vezes em que o editor, no momento de avisar ao escritor que a sua obra já se
encontra impressa, se utiliza da frase: “nasceu o seu bebê”. Isto porque os
escritores, assim como as futuras mães (que planejam o momento apropriado para
ter seu bebê), passam anos escrevendo um texto, uma idéia que precisa ser
maturada para se tornar um livro, objeto que será apresentado ao público. Os
escritores acabam se relacionando com as suas obras, “os seus filhos”, de maneira
apaixonada. Portanto, mães e escritores se parecem muito, já que ambos
costumam ser muito sensíveis ao cuidarem ou planejarem a sua cria.
A gestação dessa “criança”, desta obra, é uma tarefa a ser realizada e
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concebida a partir da relação entre autor e editor. O primeiro passo desse caminho
é dado no encontro em que o autor apresenta o original ao editor (ou no momento
em que a futura mãe chega ao médico e anuncia: “Doutor, acho que estou
grávida”). Assim como no caso da consulta ao médico, o editor fará um “exame”
para saber se o diagnóstico é gravidez, ou seja, para descobrir se original tem
qualidades para se tornar um livro. Esta avaliação já pressupõe uma certa aura ao
objeto livro. Isto porque não é todo texto escrito que tem a qualidade para tornar-
se livro. Muitas vezes autores de originais permanecem anos percorrendo
inúmeras editoras comerciais, a fim de encontrar um editor que decida pela
publicação de seu texto sob a forma de livro. Muitos dos escritores que passam
por situações como essa acabam ficando traumatizados e desistem de publicar
seus escritos.
Em sua obra Escreva seu livro, a editora de livros Laura Bacellar passa
importantes informações àqueles que buscam tornar-se escritores no sentido da
forma como deve estabelecer-se a relação entre autores e editora. Inclusive um
dos objetivos desse livro é retirar um pouco da culpa que muitos escritores sentem
por não terem conseguido “seduzir” com seus escritos os editores. Ela ensina os
pretendentes a autores a pensar com a cabeça dos editores. Em um dos capítulos,
ela informa as atitudes que o autor deve e as que não deve tomar, enquanto
aguarda a posição final da editora quanto à publicação de seu original:
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Por esse apego a que o autor não raras as vezes mantém com o seu
original, ele muitas vezes acaba acreditando piamente que o seu escrito é uma
obra formidável, que todo bom editor publicaria. Na maioria dos casos, ele se
equivoca e, depois de algum tempo, acaba voltando à realidade.
Se, por outro lado, o original é aprovado, o processo de edição da obra se
inicia com o editor de livros fazendo o anúncio ao novo autor. A partir desse
momento, o editor – assim como o médico, que precisa convencer uma futura mãe
de sua destreza – normalmente procura criar vínculos fortes com os seus autores
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por meio de uma relação intimista, a fim de garantir a simpatia do autor e a sua
permanência como “autor da casa”. Muitas vezes um autor de sucesso irá preferir
publicar seu título por uma editora menor, mas contando com a chancela e a
atenção do seu editor de confiança: “Como você mesmo pode conferir se entrar
em qualquer boa livraria ou site de venda de livros, este (mercado de livros) ainda
é um setor em que microempresas estão muito presentes e têm seus produtos
expostos lado a lado com o das grandes holdings” (Bacellar, 2001: 86).
Portanto, devido à grande concorrência e a um mercado em que os
mecanismos da propaganda e merchandising interferem de forma reduzida, o que
fará um leitor se interessar pelos autores e seus objetos de pesquisa não será tanto
fruto de um modismo ditado por técnicas publicitárias; ao contrário, será o
interesse específico de cada leitor que impera no ato da compra de um título. E,
nesse sentido, o autor passa a ser o ativo de maior valor das editoras.
O editor Jason Epstein (2002) relata uma história emblemática para retratar
um pouco dessa relação íntima que editor passa a estabelecer normalmente com
seus autores. Quando ele era editor da Anchor Books, escreveu certa vez uma
carta a Edmund Wilson oferencendo-lhe um adiantamento pela permissão de
inclusão de um texto de sua autoria em um título que viria a ser publicado. Em
resposta, o autor convidou Epstein a visitá-lo em sua casa:
92
Naquele fim de semana Wilson e eu nos tornamos amigos, e depois disso ele e
sua encantadora esposa, Elena, e Barbara (esposa de Epstein) e eu trocamos
várias visitas. Ao término de um final de semana do Dia de Ação de Graças
vários anos mais tarde, quando eu e Bárbara nos despedíamos dos Wilson,
Edmund me convidou ao seu estúdio e me entregou um manuscrito em dois
fichários pretos. Explicou-me, com sua voz de alto timbre e um tanto sem fôlego,
que o autor era seu amigo, Volodya Nabokov, e que o romance que me entregava
era repulsivo e não podia, por lei, ser publicado, mas que eu deveria lê-lo assim
mesmo (Epstein, 2002, p.76).
Por esta relação de amizade entre Epstein e Edmund Wilson, este autor,
que era amigo de Nabokov, entregou ao editor os originais de Lolita para serem
avaliados pelo editor para que fosse publicado. Se não tivesse se tornado amigo e
ganhado a confiança do autor Wilson, provavelmente Epstein não teria tido a
oportunidade de publicar esse clássico.
Editor e autor, portanto, são os dois personagens que, em última medida e
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4.2
O ritual da noite de autógrafos: o “batizado”
4.3
Como os livros são consumidos
caracterizá-la.
Esse fenômeno do fetichismo da mercadoria, por sua vez, seria
responsável por atribuir um valor de uso aos produtos culturais massificados, que
são consumidos nos momentos de ócio do proletariado. A relação que
consumidores estabelecem com esses objetos capitalistas de desejo traria uma
nova “aura” para os produtos diferenciados, prestigiosos, como o livro se nos
apresenta hoje. Karl Marx, em O capital, definiu este conceito de fetichismo da
mercadoria para explicar o sistema capitalista moderno. Com o fetichismo, a
forma-mercadoria ocultaria o trabalho social intrínseco aos produtos-mercadorias.
A troca social passaria a ser regida pela lei do valor. Isto quer dizer que a troca
não ocorreria mais por necessidade social, e sim segundo os atributos relacionados
intimamente com o produto-mercadoria. Esse fetichismo fica mais explícito
quando o produto se transforma em uma marca de distinção social, como é o caso
dos livros.
Realmente promove uma distinção social para o consumidor de livros,
uma vez que o Brasil possui apenas cerca de 1.500 livrarias (projeções apontariam
como 10 mil o número ideal para elas) e quando em 89% dos municípios
brasileiros não são providos de um sequer ponto-de-venda de livros. São poucos
os brasileiros que possuem acesso aos livros. O texto abaixo, escrito por Paulo
Thiago de Mello e publicado no caderno Prosa&Verso, do O Globo, é um
98
notada a existência de poltronas para leitura, além de pequenos bares, para os que
gostam de tomar um café enquanto folheiam páginas de livros que podem ou não
vir a ser adquiridos, após o fim da investida. Dependendo da intensidade da
relação que o indivíduo estabelece com o objeto livro, ele pode chegar ao limite
mesmo, como citado na passagem acima, de cheirar o livro, e atribuir a este ritual
um poder de interferência sobre o consumo de uma obra.
O livro tem uma significação e lógica de uso próprias. Quanto mais antigo,
mais valorizado um exemplar ou uma edição se torna. Um exemplo do ponto de
vista mercadológico do culto ao livro antigo, ao “exemplar empoeirado”, é a
proliferação de sebos que se espalham cada dia mais pelas cidades. Os leitores que
desejam se desfazer de livros não os jogam fora; normalmente eles os vendem aos
sebos por valores simbólicos, para que estes os coloquem novamente à venda. A
aura do livro pode ser notada no cotidiano do consumo desses livros dos sebos,
quando, em contato com exemplares antigos, os leitores encontram dedicatórias
preciosas ou anotações feitas nas margens das publicações a lápis. Essas
inscrições sobre o impresso funcionam como forma de distinguir aquele exemplar
anotado de todos os demais que possam ser encontrados daquela edição. A partir
daquele momento, o valor do exemplar é renovado, na medida em que mais
individualizado se torna. Há leitores que se especializam em encontrar essas
99
preciosidades nos exemplares que hoje estão à nossa disposição nos sebos, e se
apaixonam pelo que encontram.
O valor simbólico do objeto livro não está presente somente quando
pensamos nessa sua permanência e indescartabilidade. Um exemplo da força do
livro como um signo da nossa sociedade está evidenciado, por exemplo, nas
bienais. Durante as duas semanas em que esta feira ocorre – mesmo com a
baixíssima média de leitura de livros pela sociedade brasileira (por ano, cada
brasileiro adulto e alfabetizado lê, em média, apenas 1,2 livro) – todos os anos as
bienais de livro não param de bater recordes de público e de venda. Isso nos faz
crer que a presença do público neste evento se torna como que obrigatória, se
transformando mesmo em um ritual em nossa sociedade. Esta visita maciça do
público é uma demonstração do apreço e da valorização da cultura ocidental com
o livro, e é, portanto, pela distinção de estar em contato com tão nobre objeto que
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4.4
O livro nos meios de comunicação: no jornal, no cinema, na TV e na
internet
Essas edições, que pelo próprio apelo visual do projeto gráfico, não parecem ter
um objetivo meramente didático, tiram partido da popularidade do audiovisual e
do prestígio remanescente da cultura livresca, movimentando o mercado editorial:
do livro primeiro, literário, passa-se para as telas e, depois, retorna-se ao livro,
que se alimenta da relação entre o primeiro e o segundo produto. O livro, como
meio de comunicação ainda capaz de evocar a esfera de uma cultura elevada,
legitima esses textos relacionados a uma fase pré-filme, que alcançam um novo
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status, como registros de uma memória cultural que deve ser preservada.
quer pela adaptação da trama de uma obra de ficção, em qualquer um dos dois
casos, a televisão estaria ajudando a romper o círculo de desinformação que isola
o potencial leitor do universo da literatura (Reimão, 2001, p.15).
eletrônica não torna o livro tradicional, de papel, obsoleto. Prova disso é que um
dos primeiros sites de comércio eletrônico da rede, a Amazon.com, é uma livraria
virtual, que tem como especialidade a venda de livros impressos (portanto, não
nos referimos aqui a e-books). E, até hoje, um dos setores mais fortes do comércio
eletrônico é justamente o da venda de livros impressos.
A internet apresenta importantes diferenciais em relação ao livro impresso.
Entre eles estão a sua velocidade de transmissão e a capacidade de
armazenamento da informação. “Até há pouco tempo não podíamos pensar uma
coisa e tê-la feita nesse preciso momento. As mudanças numa página escrita ou
numa tela pintada levavam pelo menos alguns minutos a serem feitas. Agora, a
velocidade de interação atingiu a imediaticidade” (Kerckhove, 1997, p.81). Uma
das principais novidades trazidas pela internet e que a diferenciam dos meios
impressos é a sua velocidade de interação.
A interação proporcionada pela internet não se destaca apenas pela
imediaticidade na captura de informações. O banco de dados disponível na rede
para pesquisas, a possibilidade de constituição de comunidades virtuais para o
debate de temas de interesse para pesquisadores, a facilidade com que
informações dos mais diferentes tipos são obtidas, tanto na forma escrita, como
através de arquivos audiovisuais, em sites jornalísticos; todas essas ações são
107
Com a expansão das redes de megastores, as boas livrarias que existiam nos
bairros foram desaparecendo, face a uma maior capacidade de estocagem e um
maior giro das grandes livrarias situadas nos shopping centers:
Entre as muitas tiranias a serem superadas pela Web estarão as exigências de giro
dos livreiros no varejo. Nas prateleiras da internet infinitamente expansíveis,
haverá espaço para uma variedade virtualmente ilimitada de livros, que poderão
ser impressos a pedido ou reproduzidos nos hand-held readers ou dispositivos
similares. A invenção do tipo móvel criou oportunidades para os escritores que
não podiam ter sido previstas nos tempos de Gutenberg. As oportunidades à
espera dos escritores e leitores no futuro próximo são imensuravelmente maiores
(Epstein, 2002, p.156).
Conclusão
resquícios de aura no livro impresso e de que maneira este objeto poderia herdar a
aura que seu antecessor manuscrito detinha. Esta aura existiria em função da
relação simbólica que a sociedade atual mantém com os livros. Embora não mais
atrelada à autenticidade de um exemplar único, a aura persistiria em função do
valor de culto que ainda se atribui ao livro. O valor de culto de uma obra, para
Benjamim, era uma das características intrínsecas ao objeto aurático:
O que dizer, por exemplo, das coleções pessoais de livros? O que faz um
indivíduo montar a sua biblioteca, mesmo possuindo TV, internet, rádio e cinema
ao seu alcance? Por que, durante todas as nossas vidas, colecionamos livros,
mesmo que não tenhamos tempo para ler todos eles? Por que cuidamos deles com
tanto esmero? A biblioteca se apresenta, portanto, como o espaço de culto desse
bem que, mesmo sendo um produto industrial, é apropriado como obra intelectual
individual, e, portanto, de uma certa forma, única. A biblioteca particular aparece
como um símbolo de distinção por parte do seu proprietário.
Programas de televisão não possuem valor de culto. Muito raramente
quando despertam um pouco mais nosso interesse são gravados em fitas-cassete.
Mas mesmo assim voltamos a apagá-los, e outras atrações televisivas são
“gravadas por cima”. O rádio e a TV muitas vezes compõem o som e a imagem
ambiente do nosso cotidiano, e o fato de estarem tão presentes em nossas vidas
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constitui uma das razões pelas quais não são auratizados. Ouvimos rádio nos táxis,
ante-salas de consultórios médicos, assistimos à TV em bares com amigos, nas
lojas de eletrodomésticos dos shoppings. Hoje em dia, é comum encontrar
instalados rádios e TVs até em cozinhas ou banheiros. A própria internet, pela
variedade de tecnologias e utilidades a ela associadas, é consumida de maneira
muito diversa. Uns até buscam informação por meio dela, mas na maioria dos
casos a associamos com diversão ou com um meio para aproximar pessoas e
lugares distantes. O livro, ao contrário, ainda está associado à intimidade, à vida
privada dos indivíduos.
Não devemos esquecer, no entanto, que a reorganização tecnológica e
industrial da produção em escala transnacional e a aquisição das editoras locais,
pelos grandes grupos econômicos multilingües estrangeiros, estão tornando o livro
um produto cada vez mais inserido no contexto da globalização. A produção de
cada país corre o risco de ficar subordinada à “programação de uma política de
bestsellerização” (Canclini, 2003, p.142-143). Recentemente um novo gerente do
grupo Bertelsmann provocou muitas críticas ao declarar que não publicaria mais
livro com vendas inferiores aos cinco mil exemplares por ano. Esta aproximação
maior do livro com o mercado retiraria parte do seu prestígio como produto
cultural e promoveria uma redefinição do espaço do bem de consumo livro dentro
da prática do capitalismo.
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Com-Arte, 1992.
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Site do programa Fome de Livro: http://www.bn.br/script/FbnFomePrincipal.asp