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Felipe Gomberg

A aura do livro na era de sua


reprodutibilidade técnica
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410398/CA

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Comunicação Social do Departamento
de Comunicação da PUC-Rio.

Orientadora: Profa. Vera Lúcia Follain de Figueiredo

Rio de Janeiro
Março de 2006
Felipe Gomberg

A aura do livro na era de sua


reprodutibilidade técnica
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410398/CA

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social do Departamento
de Comunicação Social do Centro de Ciências Sociais
da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.

Profa. Vera Lúcia Follain de Figueiredo


Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio

Prof. José Carlos de Souza Rodrigues


Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio

Profa. Sandra Lúcia Amaral de Assis Reimão


UMESP

Prof. João Pontes Nogueira


Vice-Decano de Pós-Graduação do CCS

Rio de Janeiro, 10 de março de 2006


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização do autor, da
orientadora e da universidade.

Felipe Gomberg

Graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em


Jornalismo na PUC-Rio. Cursou pós-graduação lato sensu,
MBA em Marketing, no IAG/PUC-Rio. Atualmente é
professor do Departamento de Comunicação Social da
PUC-Rio e assistente de edição da PUC-Rio.

Ficha Catalográfica
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Gomberg, Felipe

A aura do livro na era de sua reprodutibilidade


técnica / Felipe Gomberg ; orientadora: Vera Lúcia
Follain de Figueiredo. – Rio de Janeiro : PUC,
Departamento de Comunicação, 2006.

120 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Comunicação.

Inclui referências bibliográficas.

1. Comunicação – Teses. 2. Livro impresso. 3.


Escrita. 4. História do livro. 5. Indústria cultural. 6.
Mercado editorial. I. Figueiredo, Vera Lúcia Follain de.
II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Comunicação. III. Título.

CDD: 302.23
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Ao meu querido avô, Jayme Rosenthal,


que deixará saudades para sempre.
Agradecimentos

Aos meus pais, José Elias e Miriam, por tudo, inclusive por terem permitido que
eu chegasse até aqui.

À minha irmã, Evelyn, leitora e revisora não-oficial do texto.


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A Giovana, pelo amor e apoio de sempre.

À minha orientadora, professora Vera Follain, pela dedicação, carinho e paciência


comigo e com meu trabalho.

A Fernando Sá, pelas aulas diárias sobre o “negócio do livro”, pela troca de idéias
e pelo incentivo.

A todos os meus amigos que me apoiaram nessa jornada.

Aos professores do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social.

Ao professor Renato Cordeiro Gomes, coordenador do Programa de Pós-


graduação em Comunicação Social.

À Secretaria do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social.


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Ao lermos um livro antigo, é como se o


estivéssemos lendo ao longo de todo o tempo que
transcorreu até nós desde o dia em que foi escrito. Por isso,
convém manter o culto ao livro. Nele pode haver muitas
erratas, podemos não estar de acordo com as opiniões do
autor. Ainda assim, porém, o livro conserva algo de divino,
não implicando um respeito supersticioso, mas o desejo de
encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.

Jorge Luis Borges, O livro


Resumo

Gomberg, Felipe; Figueiredo, Vera Lúcia Follain de (Orientadora). A aura


do livro na era de sua reprodutibilidade técnica. Rio de Janeiro, 2006.
120p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Comunicação Social,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Com a reprodutibilidade técnica, segundo Walter Benjamin, a obra de arte,


ao aproximar-se do humano, sendo difundida em inúmeras cópias circulantes,
perderia o caráter único que a distinguia na sua sacralidade pré-industrial, isto é,
perderia a aura. A hipótese deste trabalho é a de que o livro impresso, apesar de
ser um produto da indústria cultural, preservaria ainda hoje algo dessa aura de que
nos fala Benjamin, como um traço remanescente de sua longa história. Nesse
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sentido, faz-se um recuo no tempo, partindo-se da preeminência da escrita na


cultura ocidental como fato fundamental no processo de auratização do livro, com
o objetivo de refletir sobre as possíveis razões da sobrevivência de seu prestígio
como meio de comunicação e como produto cultural no início do século XXI, isto
é, numa época caracterizada pela revolução comunicacional gerada pelo avanço
dos meios eletrônicos e digitais.

Palavras-chave
Livro impresso; escrita; história do livro; indústria cultural; mercado
editorial.
Abstract

Gomberg, Felipe; Figueiredo, Vera Lúcia Follain de (Advisor). The aura of


the book in the age of its mechanical reproduction. Rio de Janeiro, 2006.
120p. MSc. Dissertation – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

According to Walter Benjamin, with the mechanical reproduction, work of


art has came near to the human being, loosing its aura – the sacred uniqueness of
the objects that distinguish themselves in pre-industrial society. The hypotesis of
this written essay is that the printed book, although being a industrial culture
product, could preserve something of this aura, that Benjamin told us about, as a
remaining vestige of the book’s long history. In this sense, we come back on time
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line, starting on the pre-eminence of the writing on the occidental culture as a


fundamental fact to the process of book’s auratização, with the objective of
reflect about the possible reasons of the survival of its prestige as a media and as a
cultural product in the beginning of the 21st century, that is, in a period
characterized by a communicational revolution generated on the advances of
electronic and digital media.

Keywords
Printed book; writting; book’s history; cultural industry; book’s market.
Sumário

1. Introdução 10

2. A preeminência da escrita na cultura ocidental 23


2.1. E surge a escrita... 24
2.2. A opção pela escrita 29
2.3. A escrita por meio do alfabeto 33
2.4. A escrita como pharmacón 37
2.5. Da oralidade à escrita: alguns atalhos 41
2.5.1. A sociedade da oralidade primária 43
2.5.2. A sociedade da oralidade mista 47

3. A auratização moderna do livro 54


3.1. A ascensão de uma nova classe de “homens de letras” 62
3.2. A Enciclopédia 67
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3.3. As bibliotecas 71
3.4. Livro e poder 73
3.5. O homem moderno e o livro 75

4. O mercado editorial e a aura do livro 82


4.1. As editoras de livros 84
4.2. O ritual da noite de autógrafos: o “batizado” 92
4.3. Como os livros são consumidos 95
4.4. O livro nos meios de comunicação: no jornal, no cinema, na TV e na
internet 101

5. Conclusão 111

6. Referências bibliográficas 117


1
Introdução

Atualmente discute-se e escreve-se muito, tanto no mundo acadêmico,


como na sociedade ocidental de um modo geral, sobre o fenômeno da dimensão
global da comunicação. Este tema tem transcendido a sua própria área de estudos,
a Comunicação Social, e hoje adquire características transdisciplinares, na medida
em que tem servido para ampliar e auxiliar em questões relativas a outros campos,
como os da História, Sociologia, Antropologia, Economia ou Administração. É
motivo de debate corrente tanto na mídia como em seminários científicos no
mundo ocidental, por ter afetado, de maneira substancial, a dinâmica da vida
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social moderna. Mas, para que os diferentes povos chegassem a discutir uma
comunicação mundializada, as formas de comunicar tiveram que se transformar
até que adquirissem a importância social que possuem à entrada do século XXI.
Não podemos pensar em estudar a sociedade complexa dos tempos atuais
sem levar em conta a atuação dos meios de comunicação e a importância que o
próprio indivíduo lhe confere. Desde a revolução tecnológica do último quartel do
século XX, com a invenção dos microprocessadores, dos computadores pessoais,
enfim da tecnologia digital, principalmente no Ocidente, o papel da mídia tem
sido cada vez mais debatido. A televisão desponta como um dos bens de consumo
mais presentes nos lares brasileiros, ultrapassando até o número das geladeiras.
Na atualidade, os meios eletrônicos e digitais, como a televisão e a
internet, garantem uma quase imediaticidade na transmissão de informações pelo
mundo. No entanto, mesmo com este avanço tecnológico estrondoso, ainda não se
tem notícias da “tão anunciada morte” do livro impresso – que foi, de fato, o
primeiro produto da comunicação consumido de forma massiva pela sociedade
moderna.
Muito antes da invenção dos televisores ou dos computadores, o próprio
livro já havia sido considerado como uma tentativa de se alcançar a sonhada
universalidade na comunicação. Um dos principais teóricos da história do livro na
atualidade, o francês Roger Chartier (2003), relata que, da mesma forma que se
11

considera a internet revolucionária, por permitir um fluxo instantâneo de


informações entre dois pontos remotos no mapa mundi, o homem do século XVIII
via na possibilidade de circulação “universal” do livro impresso a condição para o
progresso das Luzes:

O sonho de Kant era que cada um fosse ao mesmo tempo leitor e autor, que
emitisse juízos sobre as instituições de seu tempo, quaisquer que elas fossem e
que ao mesmo tempo pudesse refletir sobre o juízo emitido pelos outros (Chartier,
1998, p.134).

Muitos teóricos que estudam os meios de comunicação apostavam –


alguns ainda apostam – na falência do modelo de livro impresso como meio de
difusão cultural e na sua substituição por tecnologias que seriam mais
englobantes, como a da informática, por meio da internet, que se nos apresenta
hoje como um veículo capaz de mesclar a cultura escrita com a audiovisual. Essas
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previsões pessimistas em relação ao futuro do livro em sua forma tradicional


parecem haver falhado, ou pelo menos não tem se sustentado nos últimos tempos.
McLuhan é ainda um dos principais avatares dessa teoria. Em Os meios de
comunicação como extensões do homem, o teórico canadense afirmaria:

Os padrões americanos fincados na escrita como tecnologia uniforme aplicável a


todos os níveis – educação, governo, indústria e vida social – estão agora
ameaçados pela tecnologia elétrica. A ameaça de Stalin ou Hitler era externa. A
tecnologia elétrica está dentro dos muros e nós somos insensíveis, surdos, cegos e
mudos, ante a sua confrontação com a tecnologia de Gutenberg, na e através da
qual se formou o modo americano de vida (McLuhan, 1979, p.33).

No caso do Brasil, ao contrário do que se poderia imaginar, a indústria do


livro tem se desenvolvido e se destacado, com novos investimentos, que têm sido
realizados para que a sociedade tenha mais contato com o objeto livro, seja por
meio de Bienais (estas glamourosas feiras de livros, hoje presentes em quase todas
as principais capitais do país), seja pela expansão da rede de bibliotecas públicas,
entre outras ações. Além disso, campanhas publicitárias são planejadas com o
intuito de estimular a doação de livros para bibliotecas de escolas públicas e para
comunidades carentes.
O livro tem se tornado cada vez mais objeto de políticas públicas. O
governo federal tem se esforçado, a seu modo, para fazer do livro um produto
12

cultural mais consumido e estratégico para a difusão cultural. Recentemente, por


exemplo, reduziu a carga de impostos para as editoras de livros, fazendo com que
a produção se torne menos onerosa.
O mercado editorial vem sendo aquecido por ações que visam à
valorização do livro e que partem não apenas dos órgãos públicos, mas da
sociedade como um todo. Os próprios meios de comunicação, como os jornais de
grande tiragem, continuam acreditando no apelo exercido pela publicação de
livros. Recentemente, o Globo e a Folha de S. Paulo lançaram a coleção
Biblioteca, de livros clássicos que foram vendidos encartados às suas edições de
domingo. Textos reconhecidamente de alto valor cultural, escritos por autores dos
mais variados segmentos (da filosofia à ficção). Como são tidos como livros
indispensáveis, passaram a ser oferecidos aos leitores desses jornais, que é o
público que poderia interessar-se em adquirir uma coleção como essa.
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Nesse tipo de oferta, o jornal está associando a sua marca a um produto de


inegável valor para a sociedade: o livro. Ao contrário dos jornais direcionados às
classes média e baixa que estimulam as vendas nas bancas por meio do sorteio de
brindes (como TVs, jogos de panelas etc.), o Globo e a Folha se diferenciam e
oferecem livros consagrados numa coleção que visa demonstrar o apreço do
próprio veículo ao livro como um produto cultural. O leitor, por sua vez, terá uma
boa oportunidade de rechear a estante de sua sala de estar com um belo adorno
que é a coleção. Como sabemos, muitos livros são comprados como forma de a
família demonstrar e explicitar uma preocupação com a educação, já que é um dos
lugares-comuns em relação ao consumo de livros dizer ou achar que por meio
deles o indivíduo se torna mais culto, entre outros adjetivos similares. Logo, nada
melhor do que expor livros em grandes estantes, ou até em bibliotecas
particulares, a fim de demonstrar a preocupação dessa família com o saber, com a
obtenção de cultura. Assim, é comum notar nas residências a exposição de
enciclopédias ou outras grandes coleções.
Então estes encartes (leia-se os livros da coleção) são guardados; os jornais
não. Os jornais diários, no dia seguinte à sua publicação, normalmente são
jogados fora; os livros dificilmente são abandonados. Acumulamos livros durante
anos em nossas estantes, sem termos a coragem de dá-los, ou de jogá-los na
13

lixeira, como fazemos com outros produtos culturais, como jornais, CD’s, DVD’s,
fitas de vídeo, revistas etc.
A respeito dessa costumeira relação que fazemos entre a compra de livros
e uma ascensão cultural, um crescimento pessoal do indivíduo, em 1851, no
tratado Sobre livros e leitura, o filósofo Arthur Schopenhauer sentenciava: “Seria
bom comprar livros se pudéssemos comprar também o tempo para lê-los, mas, em
geral, se confunde a compra de livros com a apropriação de seu conteúdo”
(Schopenhauer, 1993, p.41).
Anualmente, no dia 29 de outubro, comemora-se, em nosso país, o Dia
Nacional do Livro. Como em todos os anos, diferentes mídias destacam a
passagem da data. Em 2004, além da cobertura habitual da imprensa, os jornais O
Globo e Extra promoveram uma campanha para a doação de livros que estivessem
“esquecidos nas estantes”.
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Uma propaganda da campanha, impressa na página do caderno “Mundo”,


do Globo trazia a seguinte assertiva: “(...) Você também pode participar,
contribuindo com livros novos ou aqueles que já estão esquecidos no fundo do
armário”. A imagem da campanha era a de um livro em chamas, e estava
acompanhada da seguinte legenda: “Isto (o livro em chamas) é tão triste quanto
um livro abandonado numa estante”.
A publicidade recorre a uma imagem que, para o indivíduo moderno, é
considerada chocante – a de um livro em chamas –, com o intuito de sensibilizar o
público a doar livros em desuso. Trata-se de uma propaganda forte para o
imaginário ocidental, pelo fato de o livro sempre ter sido considerado como um
bem fundamental à aquisição cultural. Como então chocar o leitor? Basta fazê-lo
lembrar de episódios da história do Ocidente, como a Inquisição ou o Nazismo de
Hitler, que censuravam a liberdade de expressão e de imprensa por meio da
promoção da queima de livros em larga escala.
Sensibilizar o público com uma imagem tão forte passa a ser necessário
quando uma maioria já possui esta propensão a não se desfazer de sua biblioteca
particular, não importando se os textos foram lidos ou quanto tempo estão
abandonados às estantes. Quanto a esta segunda utilidade dos livros – livros que
não eram lidos, mas apenas possuídos –, Chartier (1996) oferece como exemplo o
caso dos “livros azuis” franceses. Eram edições de ensaios consagrados,
14

preparadas, a um baixo custo, para o grande público, mas que não eram
“necessariamente compradas para serem lidas” (p.104).
O texto da propaganda, portanto, tinha o objetivo de induzir o leitor a doar
seus livros, informando-o de que o importante é que ele “faça parte desta história,
que está ajudando a levar cultura e cidadania a milhares de pessoas”. O redator
desta campanha baseou-se, para a produção de seu texto publicitário, em duas das
principais características que o livro adquire como produto cultural: é um bem
durável (não descartável) e oferece cultura a quem o lê.
Em um trecho de sua palestra proferida na Universidade de Belgrano
(Argentina), em 1978, sob o título de “O livro”, Jorge Luis Borges demonstra um
pouco essa relação que os indivíduos estabelecem com os livros, estes passando,
muitas vezes, a transcender a sua utilidade como veículo, ao se transformarem em
bens preciosos:
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Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo


enchendo minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição
de 1966 da Enciclopédia Brokhaus. Senti sua presença em minha casa – eu a senti
como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma
letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver. E, no
entanto, o livro estava ali. Eu sentia como que uma gravitação amistosa partindo
do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade de que
dispomos, nós, os homens (Borges, 1985, p.10).

Ao longo de sua trajetória como produto cultural, o livro tornou-se o


símbolo de aquisição de conhecimento, de detenção do saber. Além disso, quem lê
livros é considerado culto, intelectual, e recebe reconhecimento da sociedade na
forma de status social, contrapondo-se aos consumidores de outras mídias, como a
televisão que, para autores como o crítico literário norte-americano Harold
Bloom, em Gênio, seria promotora do achatamento do intelecto.
Nestor García Canclini, importante teórico latino-americano que discute as
transformações sociais ocorridas nos grandes centros urbanos globalizados, tem
apresentado estudos sobre as narrativas contemporâneas que estariam associadas
ao fenômeno cultural. Segundo o autor, a primeira narrativa que nos vêm à mente
quando falamos em cultura hoje é aquela que está identificada com a valorização
de uma cultura que seria resultado da educação, ilustração, refinamento ou
15

obtenção de vasta informação pelo indivíduo. Nessa perspectiva, o homem culto


seria aquele que, entre outras iniciativas, teria contato com o livro.
Em um país como o Brasil – onde uma parcela expressiva da população
não conclui o ensino médio e ganha por mês o mínimo necessário para a
subsistência1 –, o livro pode, sim, possuir um status semelhante ou até superior ao
que lhe é atribuído nos países mais desenvolvidos, donos de estatísticas bem mais
animadoras no que se refere à educação de seus cidadãos. Portanto, se o baixo
índice de escolarização do país se consolida em estatísticas desfavoráveis de
leitura2, é até em razão desse fato inegável que o livro se nos apresenta como um
produto cultural de status diferenciado.
São diversos os fenômenos que concorrem para deixar em evidência a
importância que o livro tem como um produto diferenciado na sociedade
brasileira: autores de livros são freqüentemente entrevistados em badalados talk-
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shows da televisão, os jornais de grande circulação continuam a imprimir


semanalmente suplementos literários – apesar de não serem cadernos atraentes do
ponto de vista comercial –, a internet – diferentemente do que poderíamos
imaginar depois da promessa de explosão do e-book – aparece como um ponto-de-
venda bem-sucedido para os livros impressos, e o cinema adapta grandes obras
literárias, assim como lança em livro seus roteiros e as biografias de seus
produtores. O lançamento de obras literárias e o trabalho intelectual dos famosos
autores são, portanto, assuntos que interessam e atravessam as diferentes mídias.
Mesmo com as rápidas e importantes transformações no campo das
comunicações que são uma das características deste começo de milênio, como o
avanço no consumo das mídias eletrônicas, o livro continua a ser prestigiado por
jornais, pela televisão e pela própria internet. Um evento como a Bienal
Internacional do Livro congrega anualmente – alternadamente entre Rio de
1
De acordo com o III Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional (Inaf, 2003), apenas 25%
dos brasileiros entre 15 e 64 anos têm habilidades plenas de leitura. Ou seja, são capazes de ler
textos mais longos, localizar neles mais de uma informação, comparar a informação contida em
diferentes textos e estabelecer relações diversas entre eles. Descontados os 8% de analfabetos
absolutos, na mesma faixa etária, o restante é formado pelos chamados analfabetos funcionais.
Deste total, 30% são capazes de localizar informações simples em enunciados com uma só frase,
enquanto 37% têm desempenho um pouco melhor: lêem e entendem textos curtos, como cartas.
2
A pesquisa “Retrato da Leitura no Brasil”, realizada nos primeiros dias de 2001, trazia os
seguintes dados: apenas 20% da população brasileira alfabetizada compravam algum livro. Mesmo
assim, 14% se consideravam leitores correntes. Destes 55% possuíam nível superior de
escolarização, e 53% viviam na Região Sudeste, sendo mais da metade destes habitantes das
metrópoles.
16

Janeiro e São Paulo – mais de 600 mil pessoas, que não são leitores assíduos, mas
não deixam de visitar a feira para render homenagens a este objeto, que há mais
de 500 anos existe com a mesma forma e utilidade.
Foi a partir dessa constatação que começamos a delimitar este estudo. O
nosso objetivo passa a ser, portanto, estudar as peculiaridades desse objeto, o livro
tipográfico, em relação aos demais meios de difusão da cultura no intuito de
compreender como foi construída esta aura em torno dele. Iremos discutir nestas
páginas o Livro (com maiúscula) como um objeto que surge no seio da cultura
ocidental, como um meio de comunicação, faculdade que só lhe pode ser ofertada
a partir de Gutenberg, com a capacidade da imprensa de reproduzir obras
velozmente e em grandes tiragens, e como mais um entre os produtos do mercado
de bens culturais, para entender a sua permanência e a sua aura.
Para tanto, quando estivermos falando genericamente em livro, leia-se
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Livro. Não estaremos tratando de algum segmento do mercado editorial ou tipo


específico de livro; estaremos debatendo as perspectivas e estratégias globais
referentes a esse veículo – o livro tipográfico gutenberguiano – sem a
preocupação de ater-nos a este ou aquele tipo de editor, autor, estilo ou gênero.
Usaremos, portanto, esta noção vulgar ou familiar de livro, a partir da qual
o definimos como um corpo de papel impresso, que não se apresenta em estado de
papéis avulsos, ou seja, um conjunto de cadernos que sofreu os efeitos de uma
compilação. Uma ordenação de páginas que, impostas umas sobre as outras e
protegidas por uma capa e contracapa revestidas com papéis de gramatura maior,
costuradas e/ou coladas por meio da lombada, adquirem o padrão ao qual
Gutenberg o submeteu. Esta noção familiar de livro consiste não apenas na
apresentação desse objeto como o triunfo da técnica tipográfica, mas também em
atribuir a ele uma função, que desde sempre teria sido desempenhada por meio
dele, e que conferiria a este objeto uma aura, uma diferença em relação aos
demais que, assim como ele, são disseminados pelas indústrias – e, entre elas, a
cultural –, e que hoje nos assombram, pela sua capacidade quase que infinita de
reprodução técnica.
Os manuais técnicos – aqueles livretos que nos ensinam a operar
programas computacionais ou aparelhos eletrônicos – assim como os catálogos
são publicações que, mesmo possuindo o formato de livro, retiraremos da pauta
17

desta discussão, por entendermos que esses programas e aparelhos podem vir a
cair em desuso, e seus manuais passam, em seguida, a serem considerados
materiais descartáveis, assim como outros produtos produzidos pela indústria
cultural.
Ao mesmo tempo em que delimitamos as fronteiras do nosso estudo, é
importante fazer uma distinção capital entre o trabalho de escrita e a fabricação do
livro. Os livros não são de modo algum escritos; são manufaturados por escribas e
outros artesãos, por mecânicos e por impressoras. Portanto, ainda que o livro seja
uma das formas como se dá a ler um texto, é necessário recordar que “não existe
nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um
escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele
chega ao seu leitor” (Chartier, 1990, p.127).
Um dos propósitos desta dissertação será compreender por que, ainda que
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estejamos imersos em uma sociedade fascinada pelos meios eletrônicos de


comunicação, o livro tipográfico – um veículo tão antigo – continua sendo visto
como fundamental para a transmissão de saberes. Que características e estratégias
fizeram com que o livro impresso permanecesse prestigiado pela sociedade e se
diferenciasse dos outros suportes, emprestando credibilidade aos outros meios de
comunicação que para ele se voltam? Como é possível entender o poder e o
fascínio gerados pelo livro na sociedade brasileira, se, por ano, cada brasileiro
adulto e alfabetizado lê, em média, apenas 1,2 livro? Por que homenageamos e
valorizamos tanto este meio de comunicação que, nas prateleiras das livrarias, não
é consumido na mesma proporção de seu consumo simbólico pela sociedade?
O objetivo desta pesquisa é buscar as razões pelas quais o livro teria
mantido uma “aura”, que confere a ele uma posição de prestígio como produto
cultural e meio de comunicação, diferentemente dos demais existentes. A noção
de “aura” está sendo usada aqui tal como proposta por Walter Benjamin, em A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.
A possibilidade de se reproduzir produtos culturais em larga escala – em
função dos avanços obtidos com a industrialização e o novo ritmo da vida
moderna –, segundo Benjamin, introduziria uma nova forma de fruição do mundo,
sensorial, veloz, dessacralizada e superficial. Dessa maneira, a obra perderia
justamente a sua “aura”. De acordo com ele, a aura seria “uma figura singular,
18

composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa


distante, por mais perto que ela esteja” (Benjamin, 1985, p.170). Com a
reprodutibilidade técnica, o objeto, antes aurático, ao aproximar-se do humano,
sendo encontrado nas diferentes cópias circulantes, perderia a unicidade que o
caracterizara na sua sacralidade pré-industrial.
Como bem argumenta Lewis Munford, em Arte e técnica, nos estágios mais
antigos da cultura, “o interesse simbólico” normalmente se sobrepunha ao
“interesse técnico” no desenvolvimento das diferentes artes. Mas, no seu entender,
a imprensa demonstraria de que modo a arte e a técnica poderiam estar integradas
(Munford, 2001, p.62).
Recontextualizando a noção de aura para a atualidade, a questão principal
seria a seguinte: o livro impresso poderia portar uma aura, apesar de ele não ser
dotado desse caráter único que Benjamin exigia ao objeto? Ainda que seja um
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bem reprodutível como outro qualquer da indústria cultural, o livro poderia ser
considerado um objeto singular, na medida em que, por mais que sejam
produzidas centenas de milhares de cópias de um determinado título, um texto
impresso sob a forma de livro sempre remeterá a um tempo e a um espaço
próprios, de onde ele surgiu e se constituiu como uma obra única, instaurando um
conhecimento e uma visão de mundo únicos a partir dele? Qualquer livro seria
provido de aura?
A hipótese deste trabalho é a de que o livro, apesar de ser um produto da
indústria cultural, continuaria investido de uma “aura”, que, tal como foi proposta
por W. Benjamin, é responsável por singularizar o bem cultural. Mas esta nova
“simulação de aura”, reapropriada da “aura” original benjaminiana, operaria
simbolicamente transformando os bens culturais reproduzidos tecnicamente em
bens singulares, fazendo com que cada livro pareça ser uma obra única. A
biblioteca seria o espaço clássico de culto desse bem que, mesmo sendo um
produto industrial, é apropriado como obra intelectual individual, e, portanto,
única.
Ao mesmo tempo em que levantamos a possibilidade de sua auratização,
faz-se necessário abrir um importante parêntesis ao falar sobre o livro impresso.
Da mesma forma como é possível enxergar esta centralidade do discurso escrito
positivamente, tendo surgido até uma literolatria, há também pesadas críticas a
19

essa posição hegemônica que o livro ocupa como meio de propagação da cultura
ocidental e moderna.
Nesse sentido, em O poder das bibliotecas no Ocidente, Christian Jacob, vai
afirmar:

[Os livros] são signo e instrumento de poder. Poder espiritual da igreja. Poder
temporal dos monarcas, dos príncipes, da aristocracia, da nação e da república.
Poder econômico de quem dispõe dos recursos necessários para comprar livros,
impressos ou manuscritos, em grande quantidade. Poder, enfim, intelectual e sobre
os intelectuais, tanto é verdade que o domínio dos livros tem como corolário o
direito de autorizar ou de proibir sua comunicação, ampliá-la ou retringi-la (Baratin
& Jacob, 2000, p.14).

O antropólogo José Carlos Rodrigues, em artigo sobre os meios de


comunicação, lembra:
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Embevecidos pela escrita, achamos conveniente esquecer que ela só existiu em


sociedades de classes. Considerando-a um bem quase absoluto, no limite queremos
que seja de modo simultâneo “democratizada” e “obrigatória” para todos os seres
humanos. Sequer percebemos que nesse desejo duplo reside uma enorme
contradição. A aura que atribuímos à escrita nos faz desprezar o fato de que desde
os tempos mais remotos ela venha sendo um dispositivo fundamental de
coletividades fundadas na desigualdade.
Encantados com as grandes obras que inegavelmente propiciou, poucas vezes nós
lembramos que as classes que detiveram a escrita nunca diferiram das que
controlaram o poder. Também não costumamos levar em consideração que um dos
seus empregos originais foi – e em grande medida continua a ser – o de, como
instrumento de Estado, fixar leis escritas. Estabelecer normas que deveriam ser
impostas a pessoas em geral analfabetas. Outorgar leis que se pretendem superiores
às tradições e aos costumes e que, de cima para baixo e de fora para dentro, visam a
os moldar, asfixiar ou abolir (Rodrigues, 2005, p.13).

Jesús-Martin Barbero (2004), por exemplo, trava uma discussão em torno da


aplicação do livro na escola, como o meio capaz de transmitir os conhecimentos
no ensino institucionalizado. O autor irá associar o aprendizado pelo livro-texto na
escola a um modo de transmissão de mensagens, que se transformou também em
um modo de exercício do poder baseado na escrita:

A atitude defensiva [da escola e do sistema educativo] limita-se a identificar o


melhor do modelo pedagógico tradicional com o livro, e anatematizar o mundo
audiovisual com o mundo da frivolidade, da alienação e da manipulação; a fazer
20

do livro o âmbito da reflexão, da análise e da argumentação em oposição ao


mundo da imagem feito sinônimo de emotividade e sedução (Barbero, 2004,
p.342).

Para que possamos entender o livro como possuidor de uma aura que o
singularizaria perante os demais produtos culturais e meios de comunicação, será
necessário, então, estudar os signos que estão associados ao livro em diferentes
fases. Como poderíamos pensar hoje este objeto moderno como capaz de portar
uma aura, se ele é também um produto da indústria cultural – tão criticada pelos
teóricos da Escola de Frankfurt?
No estudo que realiza dos fenômenos comunicacional e cultural presentes
nas sociedades contemporâneas, Nestor García Canclini alarga o conceito de
cultura, definindo-a não apenas como um conjunto de objetos, de obras de arte e
de livros facilmente identificável, mas pelos processos sociais que estão por trás
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destes signos culturais. Um dos lugares-comuns das análises que se referem aos
usos do livro no Ocidente é associá-lo sempre à Cultura, porque não costumamos
analisar os processos a que os objetos estão sujeitos, e sim apenas aos signos que
representam. Como afirma Canclini (1997), “parte da dificuldade de falar da
cultura vem do fato de que ela circula, se produz e se consome na sociedade”
(p.32).
Muitas vezes não levamos em conta que um objeto pode transformar-se
em seu uso social. É comum que os objetos tenham seu valor de uso alterado
pelos receptores/consumidores; o seu próprio produtor, não raras vezes, aprova
este novo sentido dado ao objeto projetado por ele. Nesse processo de
transformação, “não há por que sustentar que o significado do objeto se perdeu, na
maioria dos casos ele apenas se transformou” (Canclini, 1997, p.36).
Tendo em vista, portanto, que o objeto livro como materialidade existe há
mais de 500 anos, podemos pensar em uma razoável quantidade de significados
que, ao longo dessa trajetória como produto da cultura ocidental, o acompanharam
desde então.
No primeiro capítulo desta pesquisa, trataremos de discutir o livro como um
objeto que nasce de uma opção da sociedade por uma nova técnica: a da escrita.
Para que possamos entender o porquê da permanência e da valorização do livro
tipográfico na esfera cultural, devemos remontar às suas origens, o que nos levará
21

à questão da preeminência da escrita na cultura ocidental. Um momento crucial


foi a passagem de uma sociedade até a Idade Média estritamente oral, para uma
cultura que viveria – e até hoje vive – apoiada em uma urbanização esclarecida e
dependente da escrita. A escrita é então o pré-requisito e o ponto de partida para
compreender as bases nas quais foram construídas este objeto que hoje
denominamos apenas como livro.
Em A Letra e a Voz, Paul Zumthor irá falar, por exemplo, que a distância,
em termos antropológicos, entre o que entendemos atualmente por escritura (o
texto impresso) e a manuscritura medieval é tão grande quanto a do manuscrito
para a oralidade primária. Seria por meio do desenvolvimento das técnicas de
escrita, e pela opção por ela em detrimento da voz, que o Ocidente pôde chegar a
conceber o livro como objeto e a valorizá-lo. Este será um dos principais temas
debatidos no capítulo que inaugura esta dissertação. Se a escrita é preeminente e
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instaura o livro como um objeto no seio da história do Ocidente, precisamos


compreender por que, nesta sociedade ocidental, o escrito passou a valer mais e a
palavra pronunciada pela voz perdeu sua força. A importância da palavra escrita
passaria a ser sentida por meio das Escrituras Sagradas – nas Tábuas da Lei que
foram entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai.
A partir dessa constatação histórica, o livro já não seria entendido somente
como um objeto cultural, mas também como um meio de comunicação e, por que
não, de integração. Sem a Torá escrita, o texto sagrado judaico, os judeus não
teriam sobrevivido como um povo. Aqueles homens da terra de Canaã foram
expulsos do solo com o qual se identificavam e tiveram o seu segundo templo
destruído (incendiado em 70 a.C.) pelo Império Romano, e a única chama que os
manteve vivos e unidos como grupo étnico até hoje foi a Escritura Sagrada. O
livro passaria a ocupar o espaço da palavra profética; os judeus fizeram da escrita
e do livro os substitutos da perda do segundo templo. Não é à toa que os judeus
passariam a ser chamados de “o povo do livro”, por ser o Livro Sagrado, a Torá, o
meio pelo qual esse povo sempre se sentiu unido.
22

Desde os dias de Moisés, os judeus têm vivido segundo as leis estabelecidas na


Torá. Se isso se apoiasse apenas no hábito, teria aos poucos desaparecido quando os
judeus foram exilados e dispersos. Mas os judeus jamais se contentaram com o
hábito. Acreditavam não apenas em manter a lei, mas também em estudá-la3.

O segundo capítulo terá a seguinte questão central: que desenvolvimentos


estariam então intimamente relacionados com esta sociedade cada vez mais ligada
ao livro? Por que o livro se desenvolveria na Idade Moderna e se tornaria um dos
mais importantes, senão o mais divulgado, meio de expressão do pensamento e de
divulgação das idéias? Se hoje estudamos os textos antigos e temos acesso a eles,
foi muito em razão de terem sido recuperados nos scriptoria medievais, ou, antes
ainda, pelos bibliotecários. E se hoje valorizamos a obtenção do saber por
disciplinas e por meio do livro, devemos compreender que este modo de aquisição
cultural foi incentivado sobremaneira pelo movimento iluminista. Portanto, caberá
a este trabalho compreender a partir de quais momentos o homem moderno
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passaria então a não abrir mais mão do texto escrito sob a forma de livro como um
meio, ou talvez o principal meio de desenvolvimento da vida social moderna. Que
desenvolvimentos, no campo cultural, favoreceriam a opção pelo livro e fariam
dele um objeto e um meio crescentemente cobiçado/desejado? O que acarretaria,
por exemplo, ao homem moderno a opção por um ensino institucionalizado
baseado na obtenção de conhecimentos pelo texto lido, porque escrito?
No terceiro capítulo, daremos relevo ao estudo do livro, que não é apenas
um objeto cultural e um meio de comunicação, mas também um produto no
mercado. Buscaremos compreender os mecanismos de afirmação do mercado
editorial hoje, com seus atores e casas editoras, relacionando a estruturação desse
mercado com o momento da Revolução Industrial na Europa, etapa fundamental
em que o livro passaria a ser amplamente comercializado, nascendo a indústria
cultural. Esta discussão prioriza o período atual, da sociedade do consumo, em
que enfocaremos as questões contemporâneas sobre o comércio e as relações do
livro com o jornal e com os novos meios eletrônicos. A discussão proposta por
este estudo se encerraria numa análise das possibilidades existentes hoje para o
veículo com o aprimoramento da tecnologia das mídias digitais.

3
Texto extraído do site do movimento religioso judaico Chabad na internet:
ttp://www.chabad.org.br.
2
A preeminência da escrita na cultura ocidental

Quando os israelitas estavam reunidos ao pé do Monte Sinai, a


fim de firmar a solene Aliança com D’us, desceu de repente do
céu, ficando miraculosamente suspenso sobre suas cabeças, uma
aparição do Livro e, ao lado dela, uma da Espada. ‘Escolham!’,
ordenou a Voz Celestial. ‘Podem ter uma coisa ou outra, mas não
as duas (o Livro ou a Espada). Se escolherem o livro, devem
renunciar à Espada. Se escolherem a Espada, então o Livro
perecerá’. O autor rabínico desse episódio do Talmud4 concluía
então, exultante, que os israelitas tomaram uma decisão
memorável na história da humanidade: escolheram o Livro! Em
seguida, Deus disse a Israel: ‘Se respeitarem o que está escrito no
Livro, serão preservados da Espada, mas se não o respeitarem, a
Espada os destruirá!’ (Glasman, 2001).
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O livro tal como o concebemos hoje – isto é, o livro tipográfico – foi


fabricado pela primeira vez há aproximadamente 500 anos. É dono de uma
história recente, se comparamos à história dos registros escritos. O livro, objeto
que nascia nas tipografias européias, para muitos teóricos, foi um dos, senão o,
primeiro bem industrial originado na Europa, em uma prévia do período histórico
que posteriormente levaria o nome de a Revolução Industrial. Da tipografia do
alemão João Gutenberg sairia o primeiro livro moderno, impresso; até hoje esse
ourives é reconhecido como o inventor dos tipos móveis e o responsável pela
criação do que viria a ser um dos mais importantes suportes da comunicação em
sociedade.
Mas a experiência de impressão de um texto é apenas um dos capítulos da
História da escrita. Para que os manuscritos chegassem a este período em que se
tornariam produtos em escala industrial, impressos para que fossem consumidos
pelas massas européias, a sua imprescindível precondição foi a instituição e a
prevalência da escrita como meio de armazenamento das informações e do
conhecimento na Europa. Até o desenvolvimento dessa técnica, a Humanidade se

4
O Talmude consiste na compilação das leis, tradições, comentários e interpretações judaicas
registrados pelos doutos na Babilônia e em Israel, abrangendo um período de mais de 1.000 anos
(do séc. V a.C. ao V d.C). O livro foi ultrajado, difamado e lançado às chamas inúmeras vezes na
Idade Média por anti-semitas.
24

valia dos registros mnemônicos para a transmissão da herança cultural das


civilizações. E nessa passagem oral das crenças e dos costumes de gerações para
gerações muita informação acabava se perdendo; com o passar do tempo, era
apagada das memórias das sociedades estritamente orais.
O teórico canadense Marshall McLuhan, em Os meios de comunicação
como expressões do homem (1979), construiu uma teoria apoiada na idéia de que
“a ‘mensagem’ de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência
ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas” (p.22).
Segundo a proposição mcluhaniana de “o meio é a mensagem”, se desejamos
estudar o livro tipográfico e sua aura, precisamos antes entender como se deu a
preeminência da escrita como técnica de armazenamento ou veículo por
excelência da transmissão de informações. Porque, se o conteúdo da palavra
escrita era a palavra oralizada, a fala, o conteúdo ou a mensagem que o livro –
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objeto concebido a partir da imprensa – transmite é a escrita como medium. A


escrita seria, então, a mensagem que o livro tipográfico carrega consigo.
O nosso intuito, neste primeiro capítulo, é aventurar-nos no estudo da
escrita como técnica sem a qual o livro tipográfico não poderia vir a ser
reconhecido como um subproduto da cultura ocidental.

2.1
E surge a escrita...

Anteriormente a uma escrita como a conhecemos hoje, sobre a folha de


papel ou mesmo eletrônica, com a ajuda de teclado, houve uma etapa pré-histórica
desse costume, que remonta às sociedade primitivas. As inscrições e os desenhos
em pedras de sítios pré-históricos da Península Ibérica – existentes da Europa às
Ilhas do Pacífico – são vestígios de uma simbologia ritual presente nessas
sociedades, mas também são considerados como os primeiros sinais da invenção
da arte da escrita. Esta primeira tentativa de reter informações independentemente
da memória cerebral foi classificada por lingüistas como escrita sintética, já que se
tratava de uma escrita de idéias, que não permitia a decomposição destas em
frases.
25

O primeiro tipo de escrita decomponível de que se teve notícia foi o


cuneiforme. Seus sinais eram normalmente traçados sobre tabuletas de argila com
a ajuda de um junco cortado obliquamente, que tinha a função que hoje
desempenha uma caneta moderna. Esta tecnologia foi desenvolvida na região da
Mesopotâmia por volta dos quarto e terceiro milênios a.C., tendo como
beneficiários dessa, operacionalmente falando, complicada técnica os sumérios, os
responsáveis por inaugurar o primeiro modelo de escrita analítica ou de palavras.
O principal uso da escrita cuneiforme foi na contabilidade e administração, como
registro de bens, marcas de propriedade, cálculos e transações comerciais.
Com o passar do tempo, os sistemas de escrita se sofisticaram e os seus
usos se expandiram igualmente. Um sinal ou desenho que antes representava uma
idéia era substituído por outros sinais que passariam a representar palavras. A
escrita se desenvolveria mais e mais, até que os sinais não mais viriam a denotar
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palavras, mas sílabas, o que fez surgir as escritas silábicas. Os primeiros povos
que se utilizaram da escrita silábica foram as populações sírias e mediterrâneas a
partir do segundo milênio a.C.. As sílabas, unidade mínima desse sistema, mais
tarde passariam a ser decompostas, agora em consoantes e vogais, para que
chegássemos ao primeiro alfabeto: o fenício, surgido em meados do segundo
milênio a.C.. O desenvolvimento de sistemas de escrita foram uma peculiaridade
das culturas sedentárias; as populações nômades não criaram escritas, nem
desenvolveram outras artes, como a arquitetura.
Foi a partir da invenção da escrita consonantal, ou alfabética, que
evidenciamos a primeira grande multiplicação dos registros escritos. O alfabeto –
um sistema muito mais complexo do que os precedentes na história da escrita –,
este sim, viria a se tornar um dos importantes alicerces da cultura ocidental, na
medida em que se baseia em um sofisticadíssimo meio para a propagação das
idéias humanas.
Mas, para que o alfabeto pudesse ser amplamente empregado como meio
de se registrar e guardar informações consideradas valiosas, a escrita – que passou
a receber a qualidade de alfabética – teve que desenvolver-se em íntima relação
com a evolução dos materiais que lhe serviram de suporte. Quando refletimos
sobre o desenvolvimento das técnicas de escrita, temos que analisar
simultaneamente os efeitos dos materiais utilizados para a sua concretização. Pois,
26

como aponta o lingüista Charles Higounet (2003, p.15), “do ponto de vista
material, toda escrita é traçada sobre um suporte ou, como se diz, sobre um
registro ‘material subjetivo’, com auxílio de um instrumento manejado mais ou
menos habilmente por um gravador ou por um escriba”.
As primeiras escritas de que temos notícias, como as escritas sintéticas ou
analíticas, eram realizadas sobre superfícies duras; eram talhadas em pedras ou
gravadas em tabuletas de argila fresca, que levadas ao forno, permitiam a fixação
das inscrições. Simultaneamente no Oriente, os chineses já faziam uso do bronze e
do casco de tartaruga para gravar seus caracteres.
A utilização de materiais duros para registrar informações, ou mesmo para
cumprir rituais em culturas que faziam uso dessa “primeira escrita”, por si só
dificultava o avanço desse costume, que posteriormente se universalizaria. Para
que o ato de escritura fosse realizado com menos complexidade e atingisse um
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número maior de pessoas, ou melhor, que estas passassem a escrever ao invés de


inscrever, houve a necessidade do desenvolvimento de técnicas que fizessem
opção por materiais menos duros e flexíveis.
Os materiais mais flexíveis garantiram que as escritas fossem pouco a
pouco se tornando mais livres e cursivas, o que permitiu também a invenção de
sistemas de escrita cada vez mais complexos. A escrita cursiva sempre dependeu
de uma relação entre velocidade e legibilidade. Este modo de escrever existe
desde a Roma Antiga, por volta de 55 e 56 d.C.. Mesmo tendo sido proibida pelo
imperador Frederico II no século VIII pela falta de legibilidade dos escritos que se
utilizavam dela, a escrita cursiva tornou possível um aceleramento do processo de
fabricação de um texto. Por meio dela, o calígrafo tornava seu trabalho de
escritura ininterrupto.
Até o surgimento da imprensa, com o alemão Gutenberg, a escrita era
realizada à mão e dependia da perícia daqueles que se apresentavam como
especialistas dessa arte, a realização do trabalho árduo de manufatura do livro
manuscrito. Paul Zumthor (1993) narra as dificuldades pelas quais passavam
aqueles que se aventuravam em ser escritores no período medieval.

Apesar dos aperfeiçoamentos que lhe foram trazidos no curso do tempo, a técnica
de escritura é difícil de demoniar e exige rara competência. Suas diversas fases
são assumidas pelo mesmo homem: composição da tinta, dimensão do cálamo ou
27

da pena e, às vezes, preparação do suporte antes de traçar os caracteres. O


material dá trabalho, ou por sua fragilidade (como a pena) ou porque exige um
longo tratamento prévio (como o pergaminho) (Zumthor, 1993, p.99).

Portanto, até o século XV quando falamos em livro, sempre nos referimos


ao livro manuscrito. A este artesanato era então confiado, em primeiro lugar, o
artista intelectual, autor do texto. Este sempre foi e será necessário, não
importando a que tipo de livro estamos nos reportando. Forçosamente, se
conformamos este texto na forma de livro, ainda que nos refiramos ao período
anterior à reprodutibilidade técnica da imprensa, sempre fez-se necessário
escrevê-lo sobre um suporte material: o pergaminho, o papiro ou o próprio papel.
Logo, um especialista na produção desses insumos também era convocado a
prepará-lo. E como era produzido para um mercado consumidor – mesmo que
restrito e seleto –, um copista tratava de reproduzir cópias autorizadas do original.
Além disso, iluminadores eram também personagens importantes na elaboração
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do livro manuscrito, uma vez que forneciam ilustrações e adornos tanto para o seu
miolo5 quanto para a capa que o recobria.
Mas, para seu desenvolvimento, o objeto livro, assim como a escrita, não
dependeu apenas de pessoas aptas a produzi-lo. O estabelecimento das medidas
espaciais foi também uma etapa fundamental no aparecimento e no
desenvolvimento da escrita. Na visão de Anne-Marie Christin (2004),
pesquisadora do Centro de Estudos da Escrita francês, a “delimitação de uma
determinada forma e eventualmente também de um volume” para o escrito,
indissociáveis dele por fazerem parte da constituição desse escrito como objeto,
isto é, serem seu contorno e matéria – “são carregados de sentidos eles mesmos”
(p.289).
O estudo da constituição física do objeto escrito é de extrema relevância
quando o assunto em questão é compreender por que se priorizou – e se valoriza
até hoje – a prática da escrita entre nós. Se o suporte dessa escrita é uma tabuinha
redonda na mão, a mensagem escrita pode ser lida de perto e oferece certos modos
de interação com esse texto escrito. Os egípcios, por exemplo, puderam cultuar a
“fala dos deuses”, porque aqueles registros hieroglíficos eram esculpidos em

5
Chamamos miolo todas as páginas internas de um livro, ou outro tipo de publicação,
correspondendo, sem a capa.
28

obeliscos de pedra para sua fixação. Da mesma forma, Moisés precisou se valer
desse suporte (a inscrição em pedra) para transmitir ao povo hebreu as palavras de
Deus, já que naquela época os povos ainda desconheciam suportes flexíveis para a
escrita. Como a pedra não era um suporte adequado a textos longos, ele só
conseguiria transmitir integralmente os ensinamentos de Deus pela palavra oral,
uma das razões pelas quais até hoje os judeus acreditam em uma dupla
transmissão, no monte Sinai, da Palavra de Deus a Moisés: uma pela Torá6 escrita
e outra pela Torá oral. A Torá oral seria composta de uma série de declarações,
que, organizadas por assunto, explicam as leis e fundam a tradição e a história
judaicas. Apesar de os judeus crerem que seu conteúdo foi transmitido no monte
Sinai juntamente com a Tábuas da Lei, escritas, a Moisés, algumas de suas
declarações são atribuídas a mestres e às escolas de pensamento que as elucidou e
difundiu7.
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Coincidência ou não, os judeus somente decidiriam retirar a Torá oral do


odmínio da tradição, isto é, escrevê-la ou fixá-la sob alguma superfície, em uma
época em que suportes flexíveis como o papiro e o pergaminho já haviam sido
desenvolvidos. Tomemos ainda o exemplo da tradição milenar judaica para
compreender como a relação do homem com a escrita se alteraria
significativamente com a passagem do texto em volumen (rolos) para o códex (em
cadernos). Não menos do que três pessoas eram necessárias para manejar textos
que se apresentavam sob a forma de rolo. Duas pessoas seguravam o rolo (cada
uma ficava responsável pela abertura de um dos rolos) e a terceira lia e
decodificava o texto ali gravado. Nos rituais de leitura da Torá – o livro sagrado
dos judeus –, até hoje são chamados a subir às binot (altares) das sinagogas três
membros das congregações para fazer a leitura do Livro Sagrado do judaísmo.
Os materiais utilizados como suportes da escrita se sofisticaram tanto, que
hoje em dia quando estamos diante do ato de escritura de um texto (normalmente
eletrônica, com o auxílio do computador), não apenas pensamos no tipo de

6
A Torá é a bíblia judaica. É formada pelos cinco primeiros livros do Antigo Testamento (o
Pentateuco): Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Estes seriam os livros que
conteriam a Palavra Sagrada, que teriam sido entregues diretamente de Deus a Moisés.
7
Desde o monte Sinai, a Torá oral foi transmitida somente pela oralidade. No entanto, após a
destruição do Segundo Templo, os judeus temeram que a Torá oral, por sua complexidade,
acabasse se perdendo no tempo, em razão da dominação romana e a conseqüente diasporização do
povo judeu. Em 188 a.C., o sábio Yehudá ha-Nassi terminaria o trabalho de compilação da
Mishná. Por volta do século IV, Rav Ashi iniciaria a preparação do Talmude.
29

linguagem que iremos utilizar para transmitir a informação (formal ou informal),


mas também nas possibilidades que o suporte eletrônico oferece à produção de
nossa própria escrita. A título de ilustração: os editores eletrônicos de texto
(softwares do tipo Word) têm nos oferecido recursos como o “copiar e colar”
(mecanismo pelo qual podemos utilizar trechos de textos de outros autores para
servir como interlocutores da nossa fala), a correção com o backspace
(antigamente usávamos corretores líquidos para corrigir os erros impressos, ou
perdia-se o trabalho), corretores ortográficos automáticos (também como recurso
desenvolvido para limitar erros em relação às normas ortográficas), inserção
instantânea de notas de rodapé ou de fim, de tabulação, de fontes a serem usadas,
de tabelas e de imagens que podem ser incorporadas ao texto escrito com uma
facilidade impressionante. Isso sem contar com elementos ainda mais novos,
advindos da explosão da internet e antes impensáveis, como o hipertexto,
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tornando possíveis novas relações entre partes do ensaio e outros escritos


existentes na rede, interferindo, de certa forma, nos modos de leitura dessas obras.

2.2
A opção pela escrita

No entanto, milênios antes de o homem criar essas maravilhas


tecnológicas que só facilitam o ato de escrever e o tornam cada dia mais banal, a
opção pelo registro escrito dos valores e crenças dos povos – em detrimento, por
exemplo, do culto às imagens – já se fazia presente no Antigo Testamento. Uma
passagem clássica ao interdito bíblico às imagens foi o momento em que Moisés é
chamado ao cume do monte Sinai por Deus, e recebe Dele as tábuas da lei com os
dez mandamentos. Na descida, com as Tábuas da Lei erguidas em seus próprios
punhos, Moisés as quebra, quando vê que o povo de Israel estava adorando a
imagem de um bezerro. Esse interdito bíblico à adoração de imagens é até hoje
respeitado por judeus e protestantes. Os judeus ortodoxos não toleram o contato
com representações visuais, posto que, na concepção desse grupo religioso, a
relação com as imagens poderia vir a ser confundida com iconofilia ou idolatria.
O Antigo Testamento é repleto de trechos em que a palavra “livro” é
mencionada no sentido de provar a relevância da coisa escrita sobre qualquer
30

outro tipo de registro ou forma de comunicação possível. Em Deuteronômio (28:


58,59), Deus avisa ao povo de Israel que todas as leis estão escritas na Bíblia, e
que, se não a lessem e a respeitassem, coisas ruins poderiam acontecer aos
homens.

58
Se não tiveres cuidado de guardar todas as palavras desta lei, que estão escritas
neste livro, para temeres este nome glorioso e temível, o Senhor teu Deus;
59
Então o Senhor fará espantosas as tuas pragas, e as pragas de tua descendência,
grandes e permanentes pragas, e enfermidades malignas e duradouras;

De acordo com Arlindo Machado (2001), a história da cultura humana


presenciou três surtos de iconoclasmos8: o primeiro foi esse relatado acima, que se
inaugurou com a cultura bíblica judaico-cristã-islâmica e se desenvolveu mais
tarde com a tradição filosófica platônica, como veremos ainda neste capítulo; o
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segundo ocorreu durante o Império Bizantino, nos séculos VIII e IX, quando os
adeptos da iconolatria passaram a ser perseguidos; e o terceiro veio no bojo da
Reforma protestante, em um retorno às Sagradas Escrituras. Mas como muito bem
destaca Machado, o mais interessante é que, além da proibição ao culto de
imagens, os períodos iconoclastas estavam baseados numa “crença inabalável no
poder, na superioridade e na transcendência da palavra, sobretudo da palavra
escrita”. Para o iconoclasta, a Verdade só poderia estar na Escritura Sagrada. “No
princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (João: 1,1).
Em um ensaio sobre o que Arlindo Machado denominaria a literolatria,
sob o título de Do culto aos livros, Jorge Luis Borges elenca uma série de provas
do que, na sua visão, se constituiu no culto milenar da sociedade aos livros e à
escrita. Um dos exemplos desse culto à escrita e ao livro está no conteúdo do
Sefer Yetsirah (Livro da Criação), redigido pelos cabalistas da Síria, por volta do
século VI d.C.. Nesse importante documento da tradição judaica, os sábios judeus
relatam que Jeová, Deus dos Exércitos, Deus de Israel, Todo-Poderoso, haveria
criado o universo por meio das 22 letras que compunham (e até hoje compõem) o
alfabeto hebraico e das sefirot (emanações divinas): “Vinte e duas letras

8
Manifesto sob a forma de horror às imagens (do grego eikon, imagem + klasmos, ação de
quebrar).
31

fundamentais: Deus desenhou-as, gravou-as, combinou-as, permutou-as e, com


elas, produziu tudo o que é e tudo o que será”.
Se Deus, na sua onipotência e onipresença, cria o universo com a ajuda de
letras, logo estas letras se fazem necessárias e antecedem à própria obra da
Criação. Segundo o judaísmo, Deus as haveria criado para que, com elas, pudesse
criar o mundo. Desse modo, os estudiosos judeus da Bíblia passaram a crer que as
letras possuiriam uma santidade inerente a elas, pois Deus pronunciou-se através
das mesmas. Segundo a Cabala, ou o misticismo judaico, os textos da Torá, além
de serem escritos em hebraico antigo ou aramaico, estão codificados por Deus, o
que torna praticamente impossível para os não-iniciados entender seu significado.
Segundo a crença judaica, haveria quatro níveis de compreensão do texto
do Pentateuco (os primeiros cinco livros do Antigo Testamento, que teriam sido
escritos por Moisés sob orientação divina). O nível elementar de compreensão
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seria aquele que interpreta as informações a partir do sentido literal das palavras.
No entanto, como cada letra hebraica antecederia à própria Criação, Deus também
teria usado as palavras da Torá (isto é, a junção dessas letras) com o intuito de
transmitir outras informações importantes sobre o mundo que Ele estava criando.
Essas informações são as que se encontram codificadas9. Os judeus entendem que
somente após muitos anos de dedicação ao estudo do texto bíblico, o estudioso
começa a compreender a Torá nos seus outros níveis, em que as palavras ligadas
entre si passariam a transmitir as demais verdades divinas, que o leitor comum da
Bíblia não conseguiria reconhecer nas passagens.
O judaísmo acredita até os dias atuais na santidade das letras e das
palavras contidas no Livro Sagrado. Para a produção textual de uma Torá, a
tradição judaica recorre ao sofer, profissional especialista em escrever as
passagens da Bíblia judaica. Ao detalhar a escrita bíblica, desenhando as letras
hebraicas em seus pormenores, o sofer atrairia santidade para as palavras.
Segundo a tradição judaica, isto só ocorre se o escriba autorizado transmitir
pureza a suas intenções e a seus pensamentos no ato de escrever.

9
O jornalista Michael Drosnin escreveu recentemente o livro O código da Bíblia, que já virou um
best-seller. Nele, o autor relata que o matemático israelense Eliahu Rips já teria conseguido
decifrar o código da Bíblia por meio de operações matemáticas. Segundo consta no livro, o código
teria previsto o Holocausto, a morte de Itzhak Rabin, a presidência de Bill Clinton, entre outros
acontecimentos importantes do século XX.
32

O trabalho, que é aprendido em cursos sérios de Sofrut (Escrita Sagrada)


ao redor do mundo, tem características que fazem desse ofício uma verdadeira
arte: as letras são distintas e devem ser destacadas entre si, cada uma tem um
espaçamento próprio, não havendo possibilidade de serem unidas; o escriba tem
que manter seu pensamento completamente direcionado para o texto e, antes de
escrever, deve pronunciar em voz alta todas as palavras; além disto, deve pedir
também que Deus se manifeste no mundo por meio do Livro da Torá. Essa
transmissão de santidade e vida às letras só pode ser introduzida por um ser
humano. Por isso, os Sifrei Torá (Livros da Torá) até hoje são escritos à mão por
escribas profissionais sobre o pergaminho. A religião não permite à nenhuma
máquina impressora esse poder.
O próprio judaísmo sempre dependeu do Livro (a Torá) para se manter até
os dias de hoje como um povo graças à sua unidade conquistada nas leis e
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tradições descritas e mantidas a partir da leitura da Torá. Leopold Zunz,


historiador da religião judaica do século XIX, disse que a Bíblia tinha servido de
“pátria portátil para os judeus”. Idéia semelhante tinha sido expressa nove séculos
antes pelo rabino Saádia, o Reitor da Ieshivá (Academia) de Sura: ”Israel só é um
povo graças à Torá”. Retomando a epígrafe desse capítulo, os judeus tiveram que
escolher entre a espada e o livro. Porque lhes disse Deus: “Se respeitarem o que
está escrito no Livro, serão preservados da Espada, mas se não o respeitarem, a
Espada os destruirá!”. E então fizeram a opção por tornar-se o povo do livro. Esse
trecho bíblico é explicado no Talmude pelas autoridades rabínicas por volta do
século V d.C., e demonstra que os israelitas desde essa época já cultuavam o livro:
“O autor rabínico desse episódio do Talmude concluía então, exultante, que os
israelitas tomaram uma decisão memorável na história da humanidade:
escolheram o Livro!” (Glasman, 2001).
Outro exemplo mencionado por Borges de literolatria está no texto do
Livro Sagrado do Islamismo, o Alcorão, também chamado pelos muçulmanos de
o Livro (Al Kitab). No capítulo XII dele, está escrito: “O Alcorão se copia em um
livro, se pronuncia com a língua, se recorda no coração, sem embargo, segue
perdurando no centro de Deus e sua passagem pelas folhas escritas e pelo
entendimento humano não o alteram”.
33

2.3
A escrita por meio do alfabeto

Uma das obras mais importantes sobre a escrita fonética, The Alphabet, foi
publicada em 1948 por David Diringer. Nela o autor destaca, entre as diversas
questões tratadas, que, com a invenção do alfabeto, “a escrita generalizou-se e se
fez comum” (p.37). O alfabeto foi o último dos sistemas de escrita desenvolvidos.
Talvez não será o último deles, mas dissertar sobre isso é trabalho para
futurólogos. Mesmo que alteremos o suporte em que escrevemos por meio do
alfabeto, como ocorre no caso da escrita eletrônica, que hoje está sendo usada em
larga escala com a expansão dos microcomputadores e a explosão do veículo
internet – e que traz surpresas não apenas como suporte, mas também como
responsável pela recriação dos modos de se escrever –, continuamos a fazer uso
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da escrita alfabética, e não parece que deixaremos de fazê-lo.


O alfabeto não foi substituído até hoje, e é, sem lugar a dúvidas, de um
sucesso inconteste. Esta invenção atribuída aos fenícios10, e que passsou a ser
utilizada em larga escala pelos gregos, está atravessando aproximadamente quatro
milênios de história hegemônica. Ainda que sua expansão pela sociedade tenha se
dado lentamente – até hoje encontramos pessoas não alfabetizadas –, ter acesso a
ele e utilizá-lo correntemente para fixar idéias (como agora fazemos neste texto)
não são mais privilégios exclusivos de classes sacerdotais como acontecia no
Egito, na Mesopotâmia ou na China:

O ensino se reduziu em grande parte a uma questão de leitura escrita, e fêz-se


acessível a todos. O fato de haver a escrita alfabética sobrevivido por três e meio
milênios, com modificações relativamente pequenas, a despeito da introdução da
máquina de impressão e da máquina de escrever e do uso intensivo da escrita
estenográfica, é a melhor prova de sua eficiência e aptidão para atender às
necessidades de todo o mundo moderno. Foi tal simplicidade, adaptabilidade e
conveniência que garantiram o triunfo do alfabeto sobre os outros sistemas de
escrita (Diringer, 1948, p.37).

10
Desde o século X a.C., a escrita arcaica de Biblos (por meio do alfabeto fenício) se difundiu
amplamente. A escrita páleo-hebraica, que foi a escrita dos reinos de Israel e de Judá no mesmo
período, só se destacava da de Biblos por algumas particularidades gráficas. Mas foi sobretudo a
cidade de Tiro, que assegurou, pela atividade de seus navegadores e comerciantes e pela fundação
de suas colônias, a propagação do alfabeto fenício.
34

Diringer aponta a simplicidade, a adaptabilidade e a conveniência do


alfabeto como as características que teriam feito dele o sistema de escrita
hegemônico. Vivemos sob a égide de um mundo que é modelado pelo alfabeto
fonético e por sua linearidade, seqüencialidade, causalidade e lógica. Hoje em dia,
no Ocidente, praticamente tudo o que nos é oferecido em termos culturais está
apresentado e representado por meio da escrita alfabética. Até quando trata-se de
programas de televisão ou de rádio, a leitura dessa escrita está presente, ainda que
camuflada nos scripts e teleprompters invisíveis ao telespectador ou ouvinte. Hoje
publicamos livros sobre praticamente tudo, ou melhor, sobre tudo o que
conseguimos contar e fixar por meio do alfabeto. Roteiros de filmes, debates
falados no rádio, entrevistas na televisão, todos esses produtos culturais,
travestidos com índices de oralidade, são, na realidade, escritos, e portanto passam
também a ser oferecidos sob a forma de livros.
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A adoção da escrita pela sociedade garante a hegemonia do pensamento


lógico e crítico, que não é possível com a oralidade. As teorias contribuem para
que este tipo de pensamento floresça na sociedade da escrita. Segundo Pierre
Lévy, “o alfabeto fonético grego teria desempenhado um papel fundamental
quanto a isso, ao fazer com que os textos ‘falassem’ realmente, enquanto que os
primeiros sistemas de escrita envolviam apenas signos mnemotécnicos, mais ou
menos fáceis de decifrar” (1993, p.94).
Marshall McLuhan, em seu célebre A Gáláxia de Gutenberg, vai mais
além. Enquanto Diringer enumeraria as vantagens da escrita por meio do alfabeto
em relação às suas predecessoras, como por exemplo a de aliar a idéia da
consoante ao registro da vocalização, ou seja, às vogais, McLuhan desenvolveria
uma de suas principais teorias a respeito da adoção do alfabeto pela humanidade
como principal sistema de fixação do pensamento, e que é discutida hoje em
praticamente todos os cursos de Comunicação Social. Segundo o pesquisador
canadense, “foi somente pelo alfabeto que os homens se destribalizaram ou
individualizaram para criar a ‘civilização’” (1977, p.80). De acordo com ele, as
culturas poderiam elevar-se artisticamente sem a civilização, mas sem o alfabeto
fonético permaneceriam tribais.
Para o McLuhan de Os meios da comunicação como extensões do homem,
com a invenção do alfabeto fonético, e mais tarde com a tipografia, o sentido da
35

visão se tornaria o dominante, já que, até então, o sentido prevalente era o da


audição. Ele acredita que, como conseqüência da invenção da escrita e sua adoção
pelas sociedades, os demais sentidos humanos se desagregariam. E esta dispersão
dos sentidos provocaria o fenômeno da “destribalização”. O homem que antes
dependia e vivia de sua tribo agora se separaria da comunidade e se tornaria,
propriamente, indivíduo – da mesma maneira que se dá a separação dos sentidos,
que passam a atuar isoladamente, o homem se separa dos outros homens pela
consciência individual. Com as tecnologias de hoje, da electricidade, há
novamente a possibilidade de uma reunificação dos sentidos, um retorno ao
audiotátil. McLuhan acredita que esta interação dos sentidos se tornaria
responsável pela “retribalização” do homem.
Como a utilização da escrita alfabética teria promovido a destribalização
do homem? A invenção do alfabeto não desenvolveu apenas sinais que,
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combinados, formam palavras. Estes sinais, além das letras que representam,
também significam sons. Este reconhecimento de que as letras dos alfabetos, na
verdade, são a transposição para o registro escrito dos sons que emitimos na
língua falada teria favorecido a tradução das línguas vulgares e o conseqüente
intercâmbio entre culturas. Isto quer dizer que, a partir do momento que uma
cultura faz uso da tecnologia alfabética, sua tradição poderá ser transmitida para
uma outra tradição por meio da tradução. Este procedimento é apenas facilitado
em culturas alfabéticas. Outras culturas que se utilizam de escritas não-alfabéticas
também podem ser traduzidas, mas este se torna um trabalho muito mais
complicado. A separação única que introduzem entre som e visão, de um lado, e o
conteúdo verbal e semântico, de outro, transformaram os alfabetos do mundo
ocidental na mais radical de todas as tecnologias culturais, no sentido de uma
homogeneização cultural.
Segundo McLuhan, “o alfabeto é um absorvedor e transformador agressivo
e militante de culturas” (1977, p.82). Este poder atribuído por McLuhan ao
alfabeto e, claro, à escrita por meio dele é justificável, quando analisamos algumas
diferenças que este sistema instaurou em relação às sociedades pré-alfabéticas.
Diferentemente dos sistemas de escrita anteriores à sua criação, o alfabeto podia
ser aprendido em poucas horas. Pelo fato de que cada letra é semanticamente
36

destituída de significados, sendo cada uma delas relacionada a um som, instaurou-


se uma rígida divisão entre o mundo visual e o auditivo.

A palavra fonética escrita sacrificou mundos de significado e percepção, antes


assegurados por formas como o hieróglifo e o ideograma chinês. (...) Isto nada
tem a ver com o conteúdo das palavras, mas é o resultado da súbita ruptura entre
as experiências auditiva e visual do homem (McLuhan, 1977, p.102-103).

Culturas tribais podem ser tão ou mais desenvolvidas que as ocidentais na


extensão de suas percepções e expressão. No entanto, para McLuhan, essas
culturas tribais não conseguem compreender seus membros como figuras isoladas,
individualizadas. O alfabeto, ao contrário, é uma tecnologia que permite a
separação dos indivíduos e a continuidade do espaço e do tempo, pois estes
indivíduos irão igualar-se, posteriormente, perante a lei escrita.
Segundo McLuhan (1977, p.105), “a civilização se baseia na alfabetização
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porque esta é um processamento uniforme de uma cultura pelo sentido da visão,


projetado no espaço e no tempo pelo alfabeto”. A estruturação linear da vida
racional se deve, em grande parte, à linearidade e à seqüencialidade por meio das
quais expressamos nosso pensamento, no que fazemos uso da escrita fonética.
Na medida em que o uso do alfabeto foi se popularizando e sua arte
dominada, suas características próprias foram resultando num crescente e gradual
aumento da consciência a respeito do discurso oral. Aquilo que era tido como um
fluxo contínuo, dependente de um ser humano para o enunciar, passa a ser visto
como algo independente, concreto, composto de unidades menores e discretas.

Qualquer cultura de alfabeto fonético pode facilmente cair no hábito de dispor as


coisas uma sob outra ou uma dentro de outra, devido estar o leitor sob constante
pressão causada pelo fato subliminar de que o código escrito traduz para ele uma
experiência de “conteúdo”, que é a linguagem falada.

O discurso, sendo transcrito em sinais gráficos eficientes, separa-se


daquela pessoa que o pronunciou. O conteúdo das declarações feitas torna-se
também independente, objetivado como pensamento, idéia, noções que têm
existência própria. A comunicação escrita elimina a mediação humana contextual
(quando alguém enunciava um mito, este mito vinha sempre “recontado”, sempre
37

o mesmo mas sempre diferente). McLuhan aponta a tecnologia do alfabeto


fonético como a responsável por criar a noção do homem civilizado: “indivíduos
separados que são iguais perante a lei escrita. A separação do indivíduo, a
continuidade do espaço e do tempo e a uniformidade dos códigos são as primeiras
marcas das sociedades letradas e civilizadas” (1977, p.103).

2.4
A escrita como pharmacón

Assim como hoje levantamos questões pertinentes ao futuro da escrita – no


entendimento de que esta última revolução tecnológica abre espaço para uma
comunicação audiovisual que poderia tornar a escrita prescindível em várias
situações e oferece formas antes impensáveis de utilização da escrita
alfabética11 –, quando esta mesma escrita alfabética tomou corpo e importância na
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Grécia, os filósofos resolveram se debruçar sobre ela e questioná-la como


acontece com toda novidade até hoje.
Na segunda metade do século V a.C. começou a afluir a Atenas uma nova
espécie de homens, que se propunham a ensinar a virtude política. Os sofistas,
assim eram chamados, desenvolveram uma técnica de argumentação para debater
e discursar com uma atitude crítica em relação aos valores da tradição. Um
cidadão de Atenas, Sócrates, assimilou essa técnica e se transformou no principal
nome entre eles. O efeito das conversas atribuídas a Sócrates era extraordinário.
Depois da sua condenação e morte, vários discípulos tentaram reconstituir suas
conversas, sendo o mais famoso deles, Platão.
Platão nasceu por volta do ano 427 a.C., muito tempo depois da difusão do
alfabeto no mundo grego. Muitas das instituições características das sociedades
letradas já haviam surgido na Grécia platônica: já haviam aparecido as escolas
para crianças acima de seis anos e profissionais das letras, e filósofos, como os
sofistas, passaram a fazer a transmissão da tradição do passado, em substituição às
nobres famílias, como os Eupatridai, que haviam sido investidos no direito de
interpretar as leis.

11
Hoje, em veículos que dispõem de formato eletrônico de apresentação do discurso, como
celulares, computadores e palm-tops, temos evidenciado uma escrita que se utiliza de abreviativos,
questionando a necessidade de transposição para o papel de idéias e textos.
38

Na concepção platônica, é importante saber como se conhece e através do


quê se conhece. Sua época é de mudanças: a tragédia e a poesia começam a ser
deixadas de lado como sistemas únicos de transmissão de cultura, substituídas
progressivamente pela escrita. Platão, entre os diversos temas que abordou em
seus diálogos, dissertou sobre como esta prática ou arte que se difundia afetaria a
pólis grega. É aproximadamente dessa época (século IV a.C.) o surgimento da
palavra grammatikós, utilizada para designar uma pessoa capaz de ler.
O modo de pensamento transforma-se em filosófico, analítico, se
distanciando do mítico. Platão vai negar aspectos fundamentais da cultura oral na
República, condenando a poesia, e vai condenar igualmente a escrita no Fedro.
Ele defende o pensamento analítico, mas não o percebe como fruto da técnica da
escrita. Ele crê em uma memória como sinônimo de inteligência, mas não percebe
que ela se mantém às custas da poesia. Em muitos aspectos, a concepção platônica
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a respeito da linguagem continuou vigente, de certa forma, até hoje. Mesmo


aqueles teóricos que negaram as “teorias” platônicas sobre a linguagem
mantiveram vivos aspectos ligados ao logocentrismo platônico.
O logocentrismo ou fonocentrismo é a crença de que a origem da verdade
encontra-se na presença do lógos (razão, ciência ou palavra). No entanto, a escrita
seria exatamente o lugar onde o lógos (isto é, a razão, a ciência) não está. Segundo
os defensores do logocentrismo, a ciência deveria expressar-se por meio de
sistemas de notação não-fonéticos, e sim pela presença da palavra oralizada. O
significante lógos, em grego, receberia então um duplo significado: tanto pode
expressar “razão”, como também adquiriu o significado de “palavra”. Não é
coincidência que o vocábulo “palavra” em grego seja expresso pelo significante
lógos. Onde estaria a palavra estaria também a razão, o pensamento científico.
Para isso toda a filosofia e ciência, toda a história e literatura deveriam apagar de
suas consciências o uso da escrita, já que na escrita a palavra aparece apartada do
discurso, da oralidade.
No diálogo Fedro, Platão explicita suas preocupações em torno da adoção
da escrita pela sociedade grega. Nele Sócrates relata a desaprovação do rei egípcio
Thamus em relação à invenção da escrita pelo deus Theuth. Ao criar a escrita,
Theuth teria oferecido à humanidade uma receita para a memória e a razão. No
entanto, Platão, por meio do personagem Thamus, iria contraargumentar essa
39

visão positiva atribuída à escrita. Para o filósofo, se os homens passassem a se


servir da escrita, iriam implantar o esquecimento em suas almas. Deixariam de
exercitar a memória, porque passariam a crer no que estaria escrito. Não mais
lembrariam das coisas por eles mesmos, mas sim por marcas externas ao homem.
Jacques Derrida, ao analisar o texto de Platão, irá se fixar no vocábulo
phármakon – palavra grega que pode designar tanto remédio como veneno. A
escrita poderia ser considerada remédio, porque, por um lado, o alfabeto garantiria
a memória do passado – já que os feitos passariam a se fixar em pedras, telas,
papiros, barro etc. Mas é também veneno, por outro lado, porque a memória
deixaria de habitar o coração dos homens. Ao confiarem na escrita, os homens
deixariam de recordar os acontecimentos, pois não mais os teriam no coração, que
seria a sede da memória. Esta preocupação é demonstrada por Platão, claramente
nas palavras de Thamus: “Meu hábil Toth, a memória é o maior dom que precisa
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ser mantido via treinamento contínuo. Com sua invenção as pessoas não serão
mais obrigadas a treinar a memória. Lembrar-se-ão não por esforço interno, mas
por virtude de um esforço externo”.
No entender do filósofo Jacques Derrida – expresso em A Farmácia de
Platão –, a tradução corrente de phármakon por remédio – droga benéfica – seria,
de certa forma, inexata. Esta tradução por remédio desfaz, por sua saída da língua
grega, o outro pólo reservado à palavra phármakon. Contudo, como explica
Derrida (1997), “é também evidente que a intenção declarada de Theuth, sendo a
de fazer valer seu produto, ele faz girar a palavra em torno do seu estranho e
invisível eixo e a apresenta sob apenas um, o mais tranqüilizador, dos pólos”
(p.44).
Sócrates compara os textos escritos que Fedro trazia consigo a uma droga.
O pharmacón operaria por sedução, e teria feito com que Fedro saísse do rumos e
das leis gerais, habituais. Diferentemente do lugar habitual do diálogo, que ocorria
sempre no interior da cidade, o pharmacón, isto é, as folhas de escritura, atraíram
Fedro e Sócrates para fora da cidade:

O campo e as árvores nada me ensinam, mas sim os homens da cidade. Tu,


contudo, pareces ter descoberto a droga para me fazer sair! Não é agitando, diante
dos animais, quando eles têm fome, um ramo ou um fruto, que os conduzimos?
Assim tu fazes para mim: com discursos em folhas que seguras diante de mim,
40

facilmente me farás circular atráves de toda a Ática, e ainda além, onde bem
quiseres! (Platão apud Derrida, 2004, p.15).

Segundo Derrida, “Fedro lembra que os cidadãos mais poderosos e mais


venerados, os homens mais livres, sentem vergonha de ‘escrever discursos’”
(1997, p.12). Isto se justifica pelo fato de que estes temiam ser julgados pela
posteridade como sofistas. O autor do discurso escrito estaria na posição de
sofista: o homem da não-presença e da não-verdade. A escrita é, para Derrida,
parricida, por matar o pai do discurso, uma vez que o texto escrito prescindiria da
presença daquele que o redigiu para obter eficácia. Transcrito por meio de
eficientes sinais gráficos, o discurso independe da atuação pública do seu autor
para ganhar notoriedade. Além de prescindir do autor do texto, o escrito esconde
também as circunstâncias nas quais o discurso foi produzido. É uma dupla
ausência: a não-presença do autor e do lugar em que se pensou em fixar aquela
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informação.
Na República, pela mesma razão que condena-se a escrita, condenam-se os
poetas, que, segundo o filósofo, deveriam ser expulsos da cidade para que esta se
tornasse ideal. O conceito de mimesis que aparece nos livros III e X da República
é considerado central para o entendimento de o que são a poesia e o poeta na
concepção platônica. Para ele, os poetas desenvolvem suas narrativas poéticas por
meio da imitação (mimesis). A poesia, para Platão, seria então definida como se
estivesse afastada três vezes da forma ou idéia original. Ou seja, há a idéia da
coisa, a coisa em particular e a sua representação artística. Quanto a esta imitação
que seria empreendida na poesia, afirma Platão, utilizando o exemplo de um
pintor:

A arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é
pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de
uma aparição. Por exemplo, dizemos que o pintor nos pintará um sapateiro, um
carpinteiro, e os demais artífices, sem nada conhecer dos respectivos ofícios. Mas
nem por isso deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes, se for bom
pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe com a semelhança,
que lhe imprimiu, de um autêntico carpinteiro (Platão, 2002, p.296).
41

Então, na concepção de Platão, artes como a pintura e a poesia seriam


negativas e, portanto, deveriam estar fora da cidade ideal, pelo que ela engana as
pessoas. A criação não passaria de imitação.
Como irá dizer Umberto Eco (em De Gutenberg à Internet), para Platão “a
escrita era perigosa porque reduzia o poder da mente, oferecendo aos seres
humanos uma alma petrificada, uma caricatura da mente, uma alma mineral”. Era
compreensível, então, a preocupação do Faraó Thamus naquela época. Thamus
rejeitou a escrita, porque temia que, apreendendo a escrita, os homens deixassem
de cultivar o dom da memória. Se utilizada, a escrita, assim como se pode pensar
em relação às nossas tecnologias de hoje, poderia vir a “entorpecer o poder
humano, que ela substitui e ao mesmo tempo reforça”.
É realmente fato comum hoje, com a massificação das tecnologias ligadas
à comunicação, que sintamos, no dia-a-dia, essa substituição do trabalho humano
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pelo da máquina. Mas se, por um lado, nos comunicamos com auxílio de
instrumentos que, há 15 anos, poderiam nos parecer supérfluos, por outro lado,
como bem argumentou Eco, isto vem a reforçar o poder humano e as
possibilidades de trocas comunicacionais. A título de ilustração, ainda que a cada
dia nos sintamos menos hábeis em escrever à mão – já que nos valemos sempre
dos computadores para redigir textos –, a redução no tempo de redação está
produzindo um homem capaz de registrar muito mais em menos tempo. Como
essa supercapacidade produtiva do homem irá afetar na produção de livros
impressos? Neste primeiro capítulo, de importância capital será compreender
como a introdução das técnicas de escrita foi transformando pouco a pouco uma
sociedade que se baseava na oralidade.

2.5
Da oralidade à escrita: alguns atalhos

Ainda que, na maioria das vezes, dialoguemos, em presença ou não, com


diversos interlocutores, por meio da língua falada, na incessante busca pela
obtenção de consensos a fim de formar nossas opiniões, quando queremos torná-
las públicas ou fixá-las para a posteridade, precisamos escrevê-las. Como exemplo
disso, o próprio esforço de realização deste trabalho não é nada mais nada menos
42

que a transposição de idéias desconexas, fragmentadas, desordenadas, para o


ordenamento imposto pela língüa escrita, pela escrita alfabética, através de seu
código linear, fixo, em português, portanto, orientado por um finito número de
vocábulos da esquerda para a direita. Mas esse código não se apresentou sempre
dessa forma…
Para McLuhan (1977, p.101), a invenção e utilização em larga escala do
alfabeto fonético “significou o poder, a autoridade e o controle das estruturas
militares, à distância. Quando combinado com o papiro, o alfabeto decretou o fim
das burocracias templárias estacionárias e dos monopólios sacerdotais do
conhecimento e do poder”.
A Grécia – local onde a escrita cumpre papel importante na formação da
democracia – foi, a princípio, detentora de uma sociedade perito-letrada, ou seja,
apenas algumas pessoas especializadas mantinham o domínio da técnica da
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escrita. Mas esses cidadãos gregos não formavam uma elite (ao contrário do que
aconteceria mais tarde durante a Idade Média); na verdade, os primeiros perito-
letrados foram os artífices gregos, e o fato de se dominar a escrita não era visto
como capaz de elevar intelectualmente a pessoa. Era encarado como mais um
entre outros artifícios técnicos com os quais o homem poderia manter contato. O
escriba grego tinha, a princípio, tanta (talvez menos) importância quanto um
carpinteiro. A escrita em si mesma não era valorizada, pois “prejudicava a
memória” e “estava três vezes distante da verdade”, como vimos acima nos textos
platônicos.
Mas no decorrer do tempo, o alfabeto iria introduzir uma divisão clara da
experiência, libertando o homem de uma sociedade tribal, da importância da
palavra mágica e da teia do parentesco. O famoso antropólogo Lévi-Strauss, em
Tristes Trópicos (1955), relatava uma das muitas experiências de encontro que
teve com os índios brasileiros. O texto etnográfico de Lévi-Strauss apresenta as
tensões entre o mundo europeu, ocidental, da Escritura cristã e as tradições orais
do mundo “selvagem”, ou da sociedade de uma oralidade primária:

Quanto à escrita, seja santa ou profana, não apenas [os índios] a desconheciam,
como também, o que é pior, não possuíam quaisquer caracteres para significar
qualquer coisa: no começo quando cheguei ao seu país para aprender-lhes a
língua, escrevia algumas sentenças e depois as lia diante deles que julgavam fosse
uma feitiçaria, e diziam um ao outro: Não é maravilhoso que este que ontem não
43

saberia dizer uma palavra em nossa língua, em virtude desse papel que possui e
que o faz falar assim seja agora entendido por nós? (Lévi-Strauss apud Certeau,
1982, p.216).

Nesse relato, Lévi-Strauss faria ainda importantes observações a respeito


das implicações desse contato entre europeus letrados e índios selvagens. Os
Tupinambá pensavam que a escrita seria uma espécie de feitiçaria. Outros índios
acreditavam que as missivas dos espanhóis falavam. Já os europeus imaginavam
que a utilização da escrita era fruto da superioridade européia sobre humanos
inferiores. Eles enxergavam o domínio da técnica de escrita como “um dos dons
singulares que os homens da parte de cá receberam de Deus”. O poder cultural da
escrita era referendado pelo absoluto: isto não é apenas um fato, mas um direito
europeu, o efeito de uma eleição, uma herança divina. Nesse sentido, o discurso
europeu cristão se aproxima do discurso bíblico judaico que crê na escrita como
necessária e uma precondição à obra da Criação.
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Na compreensão de Michel de Certeau (1982), em Escrita da História,


“não existe escrita senão onde o significante pode ser isolado da presença”
(p.217). Lévi-Strauss aponta esta como uma das principais vantagens do ato de
escrever, na etnografia de Tristes Trópicos: “Nós temos esta vantagem que sem
sair de um lugar, por meio da escrita e das cartas que enviamos, podemos declarar
nossos segredos a quem quisermos, estejam eles afastados até o fim do mundo”.

2.5.1
A sociedade da oralidade primária

Segundo Pierre Lévy, em As tecnologias da inteligência, a história seria


dividida na era da oralidade primária, na era da escrita e na era das tecnologias
eletrônicas, da sociedade atual, que é profundamente influenciada e mediada por
novas mídias e dispositivos. O período da oralidade primária seria aquele que
antecede ao da sociedade que adotou a escrita como principal meio de comunicar
e transmitir a herança cultural às futuras gerações.
Na oralidade primária, a palavra oral desempenhava a função que hoje é
outorgada a veículos, como o livro, em que se é capaz de armazenar a memória
44

das culturas existentes. Como lembra Lévy, naquele tipo de sociedade, quase todo
o edifício cultural estava fundado sobre as lembranças dos indivíduos.
Walter Benjamin cunha o termo experiência (Erfahrung) para designar o
tipo de relação que era estabelecida entre os homens habitantes da sociedade oral.
Diferentemente da noção de experiência amplamente divulgada pelo senso
comum – que remeteria ao conhecimento de vida dos mais velhos –, este termo
“experiência” desenvolvido principalmente nos escritos juvenis de Benjamin
estaria ligado a uma experiência totalizante, que só seria possível em sociedades
orais. E esta ausência hoje do que o filósofo chama de experiência se relaciona à
perda de uma memória individual e coletiva e ao declínio da tradição.
Na modernidade, houve uma ruptura com o passado que se ligava à
tradição, à aura de um objeto cultural autêntico, ao “aqui e agora do original”.
Como coloca a filósofa Kátia Muricy (idem, p.184), estudiosa dos escritos
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benjaminianos, “desvinculado da tradição, entendida como experiência


comunicável e coletiva, o patrimônio cultural torna-se um fardo morto, um
obstáculo à construção do novo.” Neste sentido, a experiência cede lugar ao seu
par moderno, a “vivência”.
A vivência, outro conceito benjaminiano, se relaciona com a solidão, a
experiência privada do indivíduo: “Esta perda de experiência comunicável
acarreta o divórcio entre os interesses interiores do homem e os de sua vida
coletiva. A realidade histórica desse fenômeno encarna-se na figura do burguês
citadino” (idem, p.188).
É neste sentido então que Benjamin descreve o ato de ler um romance
como uma expressão típica da “vivência”. Este gênero literário marcaria a perda
da experiência transmissível. A tradição oral, ao contrário da impressa que seria
conseqüência da “vivência”, promovia o encontro entre as pessoas, que, como em
um ritual, compartilhavam a experiência de se contar histórias.
O romance, cujo aparecimento coincide com o desenvolvimento da Era
Moderna, dependeria exclusivamente do livro, que é a “reprodução técnica da
escrita” e elimina a experiência, no que induz a vivência. No entender de
Benjamin, a padronização e a produção em série de mercadorias e bens culturais –
como, por exemplo, o romance que se nos apresenta sob a forma impressa –
45

sacrificariam a aura da obra e acabariam por disseminar bens padronizados para a


satisfação de consumidores com necessidades iguais.
No texto “O Narrador”, Benjamin disserta sobre a impossibilidade de
existência de um narrador nos tempos atuais, como era o narrador oral das
sociedades anteriores à escrita. Para ele, os homens modernos não possuem mais a
capacidade de intercambiar experiências, e se sentem em situação de embaraço
quando lhe pedem que narrem uma estória. Esse fenômeno estaria relacionado
com o fato de as ações de experiência estarem hoje em baixa e próximas da
extinção.
De acordo com Benjamin, “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a
fonte a que recorreram todos os narradores” (p.198). Logo, o narrador hoje estaria
desaparecendo da esfera social porque ele não é um homem da experiência. Ele
diria inclusive que as melhores narrativas escritas seriam aquelas que mais se
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aproximassem dos relatos orais, estes em relação direta com a tradição.


Segundo Muricy (1998, p.191), “o declínio da experiência equivale ao
processo de perda da aura, entendida como o conteúdo da experiência da obra de
arte” (idem, p.191). Na noção de aura estão presentes, portanto, os principais
elementos que caracterizariam também a experiência, por exemplo, da narrativa
oral: a autenticidade, a originalidade, a unicidade.
O surgimento do romance como gênero literário do início do período
moderno era conseqüência do fim da narrativa como experiência totalizante das
sociedades orais, que ocorreu pelo mesmo motivo que a obra de arte aurática
estaria em vias de extinção: a capacidade infinita de produzir cópias a partir de
uma obra original. A tradição oral teria uma natureza distinta da que caracteriza o
romance. Enquanto o narrador nato sabia contar uma história na interação com
seus ouvintes, transmitindo sabedoria numa experiência original – dificilmente
reprodutível por parte de outros narradores, porque ocorria no face-a-face –, o
romancista segrega-se para escrever, e o faz seguinte um padrão instaurado por
escritores que o precederam.

O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a


relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus
ouvintes. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe
conselhos nem sabe dá-los (Muricy, 1998, p.201).
46

A narrativa é o que Benjamin chama de uma “forma artesanal de


comunicação”, assim como o são as obras originais auráticas. Diferentemente da
lógica instaurada pela imprensa, a narrativa não se interessa em transmitir a coisa
narrada como uma informação ou notícia: “Ela mergulha a coisa na vida do
narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (idem, p.205).
Tanto em sociedades com escrita como nas que não dependem dela, a
acumulação de elementos na memória faz parte da vida cotidiana. No entanto, um
narrador em uma sociedade oral – diferentemente, por exemplo, do romancista,
que só existe em função da escrita – não irá utilizar-se da memória histórica para
relatar eventos ou para dramatizar o seu discurso. Ele constrói o seu texto a partir
do que Jacques Le Goff denomina memória coletiva. “O primeiro domínio onde
se cristaliza a memória coletiva dos povos sem escrita é aquele que dá um
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fundamento – aparentemente histórico – à existência das etnias ou das famílias,


isto é, dos mitos de origem” (1990, p.428).
Nas sociedades sem escrita há especialistas da memória, homens-
memória. Seriam uma espécie de depositários da memória da sociedade,
guardiões de uma história “objetiva” e uma história “ideológica” de determinado
povo. Os homens-memória são, de fato, narradores, e não desempenham o mesmo
papel que os mestres de escolas (já que a escola só aparece com a escrita). As
sociedades orais não sentiam a necessidade de memorização integral dos fatos,
palavra por palavra; este gênero de atividade era raramente sentido como
necessário.
Le Goff associa a rememoração mnemônica palavra por palavra a uma
exigência das sociedades letradas. “O aparecimento da escrita está ligado a uma
profunda transformação da memória coletiva.” A escrita provocou, então, um
duplo progresso em relação à memória coletiva dos povos. Por um lado, as
sociedades passaram a comemorar certos acontecimentos, que passaram a ser
lembrados e ritualizados, com o auxílio de inscrições que eram realizadas com o
objetivo mesmo de lembrar feitos. Em pedras ou mármores, em templos, praças e
cemitérios, as gravações atingiram seu auge na Grécia e Roma antigas, que
chegaram a ser chamadas de civilizações da epigrafia. Por outro lado, com o
auxílio dos documentos escritos, esta memória coletiva se tornaria ainda mais
47

poderosa por duas funções atribuídas à escrita, como atesta Jack Goody, em A
domesticação do pensamento selvagem:

Uma é o armazenamento das informações, que permite comunicar através do


tempo e do espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização
e registro. A outra: ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual, permite
reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas (Lévi-Strauss apud
Le Goff, 1990, p.432).

2.5.2
A sociedade da oralidade mista

Até hoje pertencemos a uma cultura de oralidade mista. O computador é


um meio que se utiliza tanto do áudio como do visual. Paul Zumthor, em seu
estudo A letra e a voz, debruça-se sobre as implicações da passagem de uma
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sociedade estritamente oral para uma sociedade que passaria a cohabitar com a
escritura e a oralidade no mesmo tecido social. No seu relato, ele afirma que a
disseminação da escrita pela Europa e o desmoronamento do feudalismo teriam
sido responsáveis, no longo prazo, por arruinar com a classe dos recitadores,
cantores e contadores de história profissionais – leitores e escritores. No entanto,
no decorrer dos séculos XIV e XV toda corte européia ainda possuía seus
menestréis. As igrejas igualmente contratavam cantores para fazer a sua
publicidade junto aos peregrinos.
Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem
dúvida, pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à
manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e
confirmando os mitos, revestida nisso de uma autoridade particular, embora não
claramente distinta daquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio
(Zumthor, 1993, p.67).

A palava poética recitada por esses intérpretes do mundo medieval


garantiu a migração de mitos, de temas narrativos, de formas de linguagem e até
de moda por áreas imensas, uma vez que muitos desses recitadores, cantadores,
eram nômades. A dispersão de sua clientela tornou possível que áreas
geograficamente distantes viessem a fazer uso de idiomas comuns, transcendendo
dialetos locais, ainda antes da explosão da escritura nas sociedades medievais.
Diferentes áreas geográficas receberam influência de um mesmo recitador/leitor
48

público, o que teve conseqüências importantes em termos de herança cultural para


as populações de um extremo a outro da Eurásia.
Durante o século XV, a comunidade de leitores ainda era reduzida; e os
textos também eram copiados em pequena quantidade. Quando eram copiados ou
recopiados, utilizava-se o tipo contínuo de escrita, com a ausência de espaçamento
entre as palavras ou sinais de pontuação. Um tipo de escrita impensável dentro
dos padrões atuais. A distinção das palavras e a introdução dos sinais de
pontuação eram uma tarefa dos leitores públicos, que então tinham a incubência
de interpretar o original.
Ao estudar o tipo de comunicação desenvolvida pelos intérpretes
medievais, Zumthor faz uma diferenciação entre os termos oralidade e vocalidade.
A vocalidade seria uma longa tradição de pensamento que valorizaria a voz como
portadora de uma linguagem. Ele não retira a importância da enunciação da
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palavra, que se trataria da manifestação mais comum da oralidade no contexto


medieval, mas quer destacar com o emprego do termo vocalidade que é somente
pela voz, por um “trânsito vocal”, que os textos medievais podiam ser
socializados com o público. Zumthor considera a Idade Média um período de
oralidade mista, onde a vocalização teria convivido com a escrita. Mas a primeira
não estaria destacada dos sentidos atruibuídos às palavras; e a segunda, por sua
vez, ainda não teria se apartado da oralização, que passa a ser regida
crescentemente por uma lógica linear.
A maioria dos textos que chegaram até nós como legado da literatura
medieval são escritos anônimos. Durante a Idade Média, não havia o conceito de
propriedade intelectual como hoje o concebemos. Os textos eram dinamicamente
alterados pela atuação dos diferentes intérpretes. Eles (ainda que se apresentassem
como simples leitores públicos) representavam uma presença fundamental para a
transmissão dos textos. Podiam até decorar os textos que recitavam, mas eram os
autores empíricos daquela mensagem, operando o “jogo de um indivíduo
particular” (Zumthor, 1993, p.71).
Os cantores, recitadores, enfim, os responsáveis pelo divertimento
trabalhavam tanto com a memória quanto com o olho na apreensão do texto que
apresentavam. As leituras e performances eram consideradas um verdadeiro
espetáculo. Segundo Zumthor (1993, p.62), “muitas representações figurativas
49

sugerem que o livro, na frente deles [leitores públicos] sobre o facistol, pode ser
apenas um tipo de acessório que serve para dramatizar o discurso”.
O exemplo do leitor público Román Ramírez é didático. Quando a
Inquisição foi atrás dele, o mourisco confessou que lia pacotes de folhas em
branco. Ele havia aprendido de cor os capítulos da obra, assim como nomes de
lugares de personagens. Quando os recitava, acrescentava, condensava e suprimia
informações de acordo com a sua vontade, utilizando a “linguagem dos livros”.
Isto porque não somente os recitadores tinham total liberdade na hora de ler,
interpretar, um texto, como também era claro que a “linguagem dos livros” era
uma forma de comunicação completamente diferente da maneira como narravam
histórias os intérpretes.
Este caso de Román Ramírez demonstra a inexistência de preocupação, na
transmissão oral dos textos, em dar o nome daquele personagem que originou a
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mensagem: o autor. No entanto, ainda que, naquela sociedade medieval, não


importasse quem originalmente era o produtor intelectual da obra, o registro
escrito já ocupava um lugar de importância considerável naquele tipo de
sociedade de oralidade mista, uma vez que o recitador público baseava sua
narração num texto que havia sido fixado pela manuscritura.
Numa sociedade que não conhece a escrita, o tipo de experiência acima
descrito não ocorre. De acordo com o antropólogo Jack Goody (1968), a
transmissão da herança cultural no seio de uma sociedade não-letrada é realizada
da seguinte forma: primeiro, a sociedade transmite a seus membros seus atributos
materiais, isto é, os recursos naturais que estão disponíveis para os membros do
grupo; em segundo lugar, transmite-se certos modos que assume o
comportamento humano no cotidiano daquela cultura, tais como os modos de
cozinhar e de lidar com as crianças e nas mais diversas situações. A cultura, desse
modo, é transmitida pela oralidade, mas não somente comunicada por meio
verbal. Essas práticas do dia-a-dia são herdadas por imitação direta dos gestos e
do comportamento corporal dos membros, e estes sim são os únicos responsáveis
pela manutenção dos laços sociais que unem pessoas.
Mas como o mesmo Goody (1968) não nega, “os elementos mais
significativos de qualquer cultura humana são, sem margens a dúvidas,
transmitidos por meio de palavras, e residem na particular teia de significados que
50

cada sociedade atribui aos símbolos verbais” (p.28). Isso porque a relativa
continuidade das categorias do conhecimento na transmissão cultural
intergeracional só pode ser mantida pela utilização da linguagem.
A transmissão cultural pela oralidade é compreendida, na visão de Goody,
como uma longa cadeia de conversas que se interligam entre os membros da
sociedade, em que os valores, as crenças e o conhecimento são compartilhados e
comunicados às gerações seguintes no contato face-a-face. Nesse tipo de grupo,
toda a herança cultural é guardada na memória humana, e não há como atribuir
diferentes significados para um mesmo significante. Existe uma relação direta
entre o símbolo e o referente.
Numa sociedade letrada, falamos em “definições do dicionário” para se
contrapor a outros significados que um mesmo vocábulo pode vir a adquirir. As
palavras muitas vezes se desligam dos seus sentidos originais, já que transitam em
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diferentes culturas, e, portanto, na medida em que está em um novo contexto


sociocultural, pode vir a receber um novo significado. Numa sociedade não-
letrada, não há a possibilidade de ocorrência dessa situação, uma vez que a
palavra sempre será pronunciada pelo pai do discurso, que, dessa forma, poderá
explicar as intenções e usos verbais da sua fala. Logo, como resultado, “a
totalidade das relações entre símbolo e referente é mais imediatamente
experienciada pelo indivíduo numa cultura exclusivamente oral” (Goody, 1968,
p.29).
Numa sociedade sem contato com a escrita, a memória é continuamente
construída e vivificada pelo laço social. O que o indivíduo retém em sua memória
é o que normalmente se apresenta como de importância capital nas suas relações
sociais. Ao contrário dessa realidade, nas sociedades letradas, a memória do grupo
está armazenada sob a forma de livros. Os indivíduos não precisam reter
mnemonicamente as informações relevantes, transmitidas por seus pares, já que,
no mundo letrado, o homem é convidado, desde sua mocidade, a freqüentar
instituições de ensino, locais onde compulsoriamente passa a ter contato com
livros, objetos riquíssimos em informações que, interpretadas de maneira correta,
oferecerão o arcabouço cultural necessário ao convívio social, e se constituem na
memória coletiva das sociedades letradas.
51

Uma invenção que surge com a sociedade alfabetizada é a ortografia. “É


de presumir ser impossível praticar um erro de gramática numa sociedade não-
alfabetizada, pois ninguém jamais ouviu falar de algum” (McLuhan, 1977, p.323).
A diferença entre as ordens oral e visual é que vai gerar as confusões que
resultariam na incorreção gramatical. No entanto, é do interesse que mais do que
essa diferenciação visual, a correção ou incorreção no modo de escrever uma
língua iria provocar também uma diferenciação entre leitores, o que não ocorre
numa sociedade oral. Aqueles indivíduos que não dominam a escrita e que por sua
vez têm dificuldades com a leitura se sentem menos aptos a interagir socialmente
dentro de uma sociedade baseada na cultura escrita.
Nesta interseção entre as culturas oral com a escrita, encontravam-se os
pirineus languedocianos, uma população rural da região montanhosa da França,
durante a segunda metade do século XIX. O antropólogo Daniel Frabre realizou
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importante estudo sobre essa comunidade, que à época recebia as primeiras


influências da cultura letrada. Cultura que, aos poucos, viria a ser valorizada
naquela região.
Segundo o etnólogo, por volta daquele período, quase todas as
comunidades da França já eram providas de escolas, e eram cada vez mais
freqüentadas. O arquivo local se apresentava como o órgão responsável pelos
controles administrativos. Após a sua instalação, passaria a permear todas as
relações sociais. À mesma época, a imprensa começou a circular, provocando uma
separação entre letrados e iletrados. Ainda que estes fatos trouxessem uma
diversidade para a vida social da comunidade – a presença de indivíduos que se
comunicavam oralmente e aqueles que já possuíam o saber letrado –, mascaravam
um fato capital em relação ao avanço dos costumes associados à escrita e à leitura:

Nessas sociedades, aquele que vai além do simples reconhecimento dos signos,
depois da lenta decifração, torna-se um ‘ledor’, às vezes um possuidor de livros e
distingue-se por isso, como se semelhante saber redobrasse ou até mesmo
instaurasse a diferença social (Fabre, 1996, p.203).

Portanto, isto quer dizer que aqueles que sabiam ler ou desempenhavam
funções necessariamente ligadas à escrita eram, por isso, considerados os eleitos
da sociedade. O acesso às funções políticas locais havia ficado restrito aos
52

notários, curas, professores e comerciantes, todos estes com um denominador


comum: decifravam o Código: “O senhor tinha o Código; ele fazia um pouco às
vezes de advogado na casa do Juiz de Paz, em Belcaire. Ele não tinha feito
estudos especiais, mas encomendou um Código. Quando tínhamos um caso, ele o
lia e dava conselhos” (Fabre, 1996, p.203).
Este depoimento de um habitante da região dos Pirineus aponta para o
crescente letramento da comunidade de Belcaire e a importância que era dada ao
contato com o livro. Como relata Fabre, as pessoas que possuíam livros e
conseguiam decifrar os Códigos existentes – o Código eleitoral, o Anuário da
Comarca, a Gramática francesa etc. – se tornavam “prestigiosos leitores” (Fabre,
1996, p.204).
Mas não era somente o prestígio daqueles que eram alfabetizados e sabiam
ler que ficava evidenciado nessa etnografia. Havia também sido construído um
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ritual em torno da prática de leitura de livros, que tornavam a sua contemplação


uma atividade que se diferia das demais existentes, auratizando a sua presença na
casas e bibliotecas:

Como o livro vem da escola, toma-se um cuidado extremo com ele; é coberto de
papel, ‘fechado’ no aparador do armário, enquanto almanaque, menos prestigioso,
é simplesmente ‘posto na beira da chaminé’. O lugar do ledor é sempre o mais
iluminado; contra o fogo, à noite, ou no vão da janela, quando há sol, senta-se na
cadeira que lhe é reservada. (...) De fato, jamais lêem os livros da biblioteca em
voz alta, mas acompanham sua leitura com um zumbido que intriga e impõe
respeito (Fabre, 2004, p.206).

Este relato deve ser lido não somente como uma conseqüência do
investimento da sociedade dos pirineus àquela época em relação à escrita e à
leitura, mas também é relevante para compreender o papel que o livro passaria a
desempenhar no seio daquela comunidade, como índice de contato de cada
indivíduo com a cultura francesa. Não é à toa que os livros mais consultados pela
comunidade eram os associados às leis e aos costumes franceses, assim como as
gramáticas da língua, uma vez que o acesso ao texto escrito permitia àquela
população uma maior condição de cidadania.
Neste primeiro capítulo, portanto, buscamos mergulhar no universo da
escrita, precondição para a produção do livro, para entender o porquê de até hoje
se pensar o livro como um objeto central da cultura ocidental, como capaz de reter
53

a aura dos objetos originais, que existiam em um período anterior a esta


capacidade atual da indústria cultural de reproduzir tecnicamente, quase que
infinitamente, um mesmo original.
Como vimos, os escritos foram pouco a pouco adquirindo uma
importância capital na sociedade ocidental. No próximo capítulo, dedicaremos
nosso estudo à seguinte questão: por que os livros se tornaram um elemento
sempre presente e importante nos desenvolvimentos sociais? Se, como diz Michel
de Certeau, “a escrita faz a história”, como o livro passaria a ser não apenas objeto
capaz de armazenar informações, mas sujeito das transformações sociais que
ocorrem a partir da invenção da imprensa e da multiplicação dos escritos pela
tipografia?
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3
A auratização moderna do livro

No capítulo anterior, discutimos como ocorreu o avanço das técnicas de


escrita, com o desenvolvimento do alfabeto e do letramento da sociedade
ocidental que culminam com esta opção pelo sentido da visão, como iria dizer
McLuhan, e que teve (e ainda tem) o livro como um dos principais meios de
registrar, armazenar e transmitir por inúmeras gerações o conhecimento humano.
Logicamente, um objeto que só poderia desenvolver-se como produto da
sociedade letrada. A constituição do livro como objeto, tal como verificamos no
primeiro capítulo, ocorre em um período em que a imprensa ainda não havia sido
criada pelo alemão Gutenberg. Os textos escritos eram transmitidos, conservados
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e consagrados de geração para geração sob a forma de texto manuscrito. Somente


no final do século XV a tipografia inaugura o que os teóricos da Escola de
Frankfurt denominam como a reprodutibilidade técnica do objeto cultural, nesse
caso a do livro, que, até Gutenberg, por seu modo de produção artesanal,
preservava o caráter singular, ou nos dizeres de Walter Benjamin, autêntico;
aurático.
Benjamin, em A obra de arte em sua reprodutibilidade técnica, afirmaria
que em princípio toda obra sempre foi reprodutível. “O que os homens faziam
sempre podia ser imitado por outros homens.” (1985, p.166). A imitação dos
originais era praticada por discípulos, por um lado, para garantir a difusão da obra,
e por terceiros interessados nos lucros que poderiam obter com a comercialização
das cópias. O teórico fazia uma advertência: a autenticidade dos objetos seria
extinta com a reprodutibilidade técnica. Seguindo seu pensamento, pode-se dizer
que o livro reproduzido em larga escala pela imprensa estaria se distanciando do
seu original, e se constituindo como bem impossível de ser classificado como
aurático, posto que a autenticidade seria um dos elementos que justificariam a
aura do objeto.
A aura, que era assegurada no entender de Benjamin, pela unicidade e
autenticidade do objeto único, poderia ter sido deslocada (em vez de liquidada)
55

para as representações do livro impresso, já que passa a ser reprodutível


tecnicamente? Poderia este novo livro portar ainda uma aura, sendo ele um
produto, mais um bem de consumo entre tantos outros?
Da queda do Império Romano até o século XII, o livro manuscrito se
encontrava no que os historiadores chamam de sua fase monástica. Os mosteiros e
outros estabelecimentos eclesiásticos detinham o controle sobre a cultura livresca.
Como sabemos, os textos eram controlados pelos letrados da Igreja, que
monopolizavam o conhecimento e operavam como os verdadeiros editores
daqueles tempos. Eles eram os responsáveis por decidir que obras deveriam ser
recuperadas, quais mereceriam ser mais difundidas, isto é, aquelas que viriam a
ser reproduzidas pelos copistas em tiragens que podiam chegar a 500 exemplares
de cada original.
As técnicas de reprodução e edição dos livros naqueles tempos eram
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incipientes. Os monges na Idade Média herdaram os cuidados editoriais que os


bibliotecários de Alexandria haviam iniciado no começo da Era Comum, mas,
ainda assim, como cada texto original reproduzido era ditado em voz alta para a
sua transcrição pelos copistas, as cópias diferiam muito umas das outras. Um
trabalho que não raras as vezes os monges-editores precisavam realizar era o
estabelecimento de versões definitivas para diferentes cópias de um mesmo
original que muitas vezes haviam sido publicadas (leia-se copiadas) em momentos
e forma distintos.
Até o século XII, este sistema coordenado pelos monges funcionou de
forma satisfatória em razão da pequena parcela letrada da população européia,
apesar de ter sido responsável por haver restringido os textos que deveriam nos ser
legado, limitando-os ao conjunto de ensaios que as autoridades eclesiásticas
acreditavam ser importantes. Para estes monges, a escritura não era apenas uma
atividade como as outras; tratava-se antes de tudo de um dom de Deus: “O letrado
não toca na escrita a não ser pelo comentário da paráfrase; uma análise
desconstrutiva pareceria profanadora” (Zumthor, 1993, p.112).
Como vimos no capítulo anterior em que abordamos a questão da escrita,
antes de Gutenberg muitas vezes os livros se confundiam com o Livro. A palavra
escrita se apresentava às vezes como a Palavra. O Livro Sagrado – a Bíblia –,
considerado a expressão do Verbo Divino, constituía e era entendido como a
56

prova viva da Palavra de Deus. As obras religiosas, portanto, se revestiam de uma


santidade e mantinham o livro, objeto, sob o domínio da tradição. Parcela muito
pequena da sociedade européia dominava até o século XIII as técnicas da leitura e
da escrita. Nesse sentido, Platão pode ser considerado um profeta por ter se
preocupado em seus escritos com o poder que seria conferido ao homem com o
desenvolvimento da escrita e a invenção do alfabeto e o conseqüente avanço do
registro por escrito.
Foi a partir da segunda metade do século XIII que a produção e
comercialização do livro manuscrito cresceria de forma mais significativa no
Ocidente, devido a uma também crescente demanda por novos textos. No final do
século XII, profundas mudanças no seio da sociedade medieval européia iriam
alterar a partir daquele momento o que havia sido até então entendido como o
interesse humano pelos livros. Mudanças que se relacionavam principalmente
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com a fundação das universidades e o crescente desenvolvimento da instrução


entre os leigos. Mas a escrita e o livro não perderiam o poder que adquiriram com
a sacralidade, e por que não dizer, da aura do Livro Sagrado. Segundo Paul
Zumthor (1993), “a cultura ocidental, à medida que, desde o século XII, se
laicizava, transferia assim aos detentores da escrita a velha concepção teológica
do Locutor divino” (p.280). Até pelo menos o século XIII, encontram-se fórmulas
de julgamento e adivinhação pelo livro. “O livro é então funcionalizado mais
como objeto ritual do que como escritura”. Não foi à toa que, em Paris, em 1240,
o Talmude (um dos livros sagrados do judaísmo) fora queimado publicamente
como se fosse um herege. Zumthor se questiona sobre a importância da escritura,
no momento em que esta sociedade, ainda não totalmente dependente pela escrita,
toma a decisão de punir os livros:

Provocadas entre os iletrados, não menos que entre os sábios, pela escritura na
sociedade medieval, essas atitudes e práticas tão diversas não teriam um substrato
mental comum, alguma coisa como a percepção de uma espécie de sobre-
humanidade – ou desumanidade – da escritura? (1993, p.114).

Formava-se uma nova classe burguesa que iria buscar a educação por
intermédio do letramento e do livro. Os centros de vida intelectual se deslocaram
então dos scriptoria medievais para as universidades, onde os eruditos, os
57

professores e os estudantes organizariam um intenso comércio de livros


manuscritos.
Com a criação dos centros universitários, passaria a se demandar uma
produção maior de textos que deveriam ser discutidos nas salas de aula. “Para
preparar suas aulas, os professores vão precisar de textos, de obras de referência,
de comentários. (Sabe-se a importância que ocupa no ensino medieval a glosa, a
discussão, o comentário de um texto que tinha autoridade e isso em todos os
ramos do conhecimento.)” (Febvre & Martin, 1992).
O surgimento e o crescimento da importância das universidades é uma
inovação no campo cultural por demais relevante para se entender a expansão da
cultura livresca no Ocidente. Quando surgem as universidades, os textos
disponíveis ainda precisavam ser copiados, ou por monges ou por copistas
particulares, a fim de que fossem consumidos por professores e alunos. O ensino
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universitário baseou sua atuação sobremaneira na leitura e debate de textos, uma


arte que ficou conhecida como a disputatio. Acalorados debates eram promovidos
dentro das salas de aula após as leituras dos textos.
Para garantir a circulação dos textos no ambiente das universidades,
desenvolveu-se o sistema das peciae, que aceleraria a capacidade de copiá-los e
permitiria às universidades exercerem um controle econômico e intelectual sobre
a circulação de livros, até aquele momento manuscritos.
Como funcionava o sistema das peciae? Tratava-se de um sistema de
empréstimo de manuscritos controlados e revistos, organizado pelas universidades
com o objetivo de garantir a qualidade editorial das cópias que eram realizadas –
sem alteração do texto original e sem especulação abusiva por parte dos copistas.
O manuscrito modelo, o exemplar, era emprestado pelos stationarii (livreiros
localizados no interior das universidades e empregados dela) ao aluno, que podia
alugar apenas um caderno desse exemplar por vez. O preço do aluguel das peças
era fixado pela universidade. O texto, por ser emprestado em peças, em cadernos,
permitiria uma maior velocidade de cópia de um mesmo original a diferentes
alunos, uma vez que um mesmo modelo podia estar sendo copiado por diferentes
alunos ao mesmo tempo, desde que tivessem alugado diferentes peças do texto.
Esse sistema contribuía também para que houvesse um controle permanente dos
58

textos que podiam ser divulgados e lidos pelos alunos, já que a universidade era a
responsável pelo estabelecimento e sucesso dessa disseminação das obras.
A dificuldade de multiplicação do original – pelo tempo que era
demandado para se realizar a cópia – resultaria na criação da tipografia. O papel,
insumo necessário à impressão de textos nas oficinas, já havia sido introduzido na
Europa, se desenvolvido como suporte para a confecção de textos manuscritos e
se adaptaria muito bem a esta nova forma de produção/reprodução dos escritos. A
grande vantagem do papel sobre outros suportes que o precederam, como o
pergaminho, era a facilidade de fabricação e obtenção do trapo, que era a sua
matéria-prima. O pergaminho, ainda que mais resistente, precisava ser obtido a
partir da pele de veado novo; era mais complicado de ser produzido pela própria
necessidade de se matar o animal a fim de retirá-lo a pele.
Do século XIV – quando começa a ser utilizado – até o século XVIII, a
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técnica de preparação do papel evoluiu muito pouco. A sua matéria-prima em todo


esse período era o trapo, que, triturado em água ensaboada, aquecido e depois
enformado, transformava-se em folha alva para as prensas modernas. Para garantir
a manutenção da produção de papel, freqüentemente os papeleiros recorriam aos
trapeiros, responsáveis por apanhar os trapos em locais remotos. “À medida que
um centro produtor se desenvolvia, o trapo tornava-se mais raro e era preciso
procurá-lo mais longe” (Febvre & Martin, 1993, p.51).
Agudizaria-se, no século XVIII, a crise de matéria-prima que desde o
século XVII já podia ser sentida na França e em outros países europeus. No
começo desse século, portanto, eram iniciadas pesquisas para a substituição do
trapo por outro material para a obtenção do papel. Mas foi somente em 1844, ou
seja, no século seguinte, que uma massa mecânica de madeira foi adicionada à dos
trapos criando a fórmula da palha, que, por volta de 1860, substituiria
definitivamente o trapo para a fabricação do papel. Esta tecnologia baratearia o
custo de confecção do papel e foi um dos principais fatores relacionados com a
produção para a disseminação do livro pela Europa.
O livro impresso, feito de trapo ou de madeira, em seus primórdios
conhecido como incunábulo, tinha praticamente a mesma feição do livro
manuscrito. Os primeiros impressores levavam ao extremo a preocupação em
imitar os manuscritos. Eles não tinham o intuito de promover a dissociação
59

estética entre o livro manuscrito e o seu sucessor. A famosa Bíblia de 42 linhas,


impressa por Gutenberg, havia sido composta com os mesmos caracteres da
escrita manuscrita dos missais da região renana. Os tipos escolhidos para os textos
impressos eram os consagrados e instituídos pela tradição manuscrita. As iniciais
do livro impresso continuariam por algum tempo a ser rubricadas a mão, da
mesma maneira que os calígrafos faziam com os manuscritos.
Os historiadores Lucien Febvre e Henry-Jean Martin, em O aparecimento
do livro, defendem a hipótese de que talvez fosse um desejo do impressor
“enganar” o comprador da obra, uma vez que o leitor dos primeiros tempos de
indústria tipográfica se receava do novo processo. Segundo os autores, os
impressores conseguiam imitar as formas do livro manuscrito tão bem que “um
profano deveria examinar com bastante atenção uma obra antes de determinar se
ela é impressa ou escrita a mão” (1992, p.117). A maior parte dos estudos feitos
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sobre a imprensa tem apontado, com toda a propriedade, a indicação das páginas
de rosto como sendo a mais significativa das novas características associadas ao
formato do livro impresso, em relação ao texto que se apresentava sob a forma de
manuscrito (Eisenstein, 1998, p.89).
Vespasiano da Pisticci foi um mercador florentino de livros que ganhou
certa notoriedade entre os poetas humanistas, e que passou a ser chamado por eles
de o “príncipe dos editores”. Em suas memórias, ele escreveria que um livro
impresso se sentiria envergonhado em companhia de livros manuscritos ricamente
encadernados. Vespasiano teria que encerrar sua brilhante carreira de livreiro em
1478, porque se negava a comerciar livros impressos. A sua observação que
desdenha o livro gutenberguiano era preconceituosa, uma vez que os leitores do
século XV passariam pouco a pouco a preferir o livro originado da prensa.
Eisenstein se utiliza da expressão “devaneios nostálgicos e irrealizáveis”, para
explicar o rechaço do famoso mercador aos livros que se industrializavam (1998,
p.35).
Os bibliófilos florentinos já mandavam comprar livros impressos em
Roma, desde 1470. Sob a direção de Guidobaldo da Montefeltro, a biblioteca
ducal de Urbino adquiriu edições impressas e mandou-as encadernar com as
mesmas capas magníficas então usadas para os manuscritos. A mesma corte
patrocinou o estabelecimento de uma impressora pioneira em 1482.
60

Mesmo com uma aparente continuidade na passagem do manuscrito para o


impresso em relação à forma de apresentação do livro, o modus operandi de
fabricação de um livro sofreria com a imprensa uma drástica mudança. “A
ausência de quaisquer mudanças visíveis no produto combinava-se com uma
mudança completa nos modos de produção, dando origem a uma combinação
paradoxal de continuidade aparente e mudança radical” (Eisenstein, 1998, p.37).
O homem apenas passaria a controlar a máquina, esta sim responsável pela
impressão das folhas de papel do livro impresso. Até então o artesão copista, o
ilustrador ou o próprio livreiro eram senhores do processo de produção que fazia o
texto manuscrito repousar sobre uma capa, sob a forma de códice. Segundo Lewis
Munford,

a imprensa exemplifica a transição ampla, que continua em nossos dias, do


instrumento para a máquina manual e da máquina para o dispositivo auto-
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regulado completamente automático, em relação ao qual, no fundo, fica eliminada


quase toda a intervenção da pessoa humana, exceto mesmo, no início, na
programação dos trabalhos e no final, no consumo do produto. (...) Ela demonstra
no curso do seu próprio desenvolvimento como a arte e a técnica podem ser
integradas, e como é necessário, mesmo para o desenvolvimento técnico, fazer
com que a pessoa que preside ao processo se possa constantemente ir refrescar às
fontes da vida das quais o símbolo, nas formas mais puras, emerge (Munford,
2001, p.62).

Nas primeiras décadas de funcionamento, os prelos europeus estiveram


associados aos poderes divinos que eram a eles atribuídos. Eles permitem uma
circulação da escrita numa escala inédita. Eisenstein (1998) confirma: “Quer
vissem a nova arte como dádiva ou maldição, quer a atribuíssem a Deus ou ao
Diabo, o fato é que o aumento inicial de produção impressionou os observadores
contemporâneos como sendo algo notável, a ponto de sugerir uma intervenção
sobrenatural” (p.36). Portanto, o livro perderia a aura benjaminiana, uma vez que
não era mais a expressão da “aparição única” de um objeto, mas a própria
invenção da tipografia já sugeria uma nova aura para esse livro reprodutível, que
emergia do próprio encantamento com os poderes atribuídos à nova tecnologia. O
texto sob a forma de livro tipográfico passaria a portar um dos dons de Deus: a
onipresença. Ele se deslocaria das cortes européias, que encomendavam livros
manuscritos sob encomenda para os escribas da Idade Média, para o mundo, com
a tipografia. “Após Gutenberg, é toda a cultura do Ocidente que pode ser
61

considerada uma cultura do impresso” (Chartier, 1990, p.139). Os produtos dos


prelos e da composição tipográfica não eram reservados, como na China ou na
Coréia, ao uso das administrações e dos cleros; irrigavam todas as relações, todas
as práticas.
Os números relativos aos primeiros livros impressos dão indicações de que
esta nova arte tenha servido ao clero como uma “arte divina”. A Bíblia pauperum
praedicatorum, por exemplo, surgiu, nesses primeiros momentos, como uma
bíblia ilustrada com o objetivo atingir os pobres pregadores, possuidores de
escassos conhecimentos de latim, mas que utilizavam as ilustrações como guias.
Cerca de 45% dos livros impressos até 1500 eram obras religiosas. Depois vinham
os demais temas: 30% eram livros clássicos, de caráter literário, um pouco mais
de 10% de livros de direito, e 10% eram os de caráter científico.
Numa época em que a maioria dos leitores era de clérigos, a impressão da
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Bíblia e de outras obras inspiradas nela se tratava de negócio rentável, como até
hoje o é (mas esse tema será aprofundado no próximo capítulo). As primeiras
grandes realizações da imprensa foram a produção de duas Bíblias: a de 36 e a de
42 linhas. Portanto, os livros continuariam recebendo as honrarias do período
manuscrito, sendo auratizado também porque, em sua maioria, divulgavam textos
sagrados.
Além de tornar a Bíblia diretamente acessível a um número maior de
leitores, uma das principais tarefas da imprensa, em seus primórdios, foi fornecer
aos estudantes e aos doutores das universidades os grandes tratados do arsenal
escolástico tradicional: clássicos da filosofia e da teologia medieval, que se
destinam a este público muito mais restrito que os interessados nos textos
religiosos, mas não menos importante: “Vários milhares de estudantes em Paris, e
mesmo em Colônia; para eles, os editores empreendem a edição das obras que
figuram no programa e daquelas que constituem os instrumentos de trabalho
indispensáveis aos estudos (p.358)”.
62

3.1
A ascensão de uma nova classe de “homens de letras”

No início da Idade Moderna, surge no interior dos centros universitários


uma quantidade expressiva de estudiosos e homens de letras que se destacam
pelos trabalhos realizados nos campos da erudição e das ciências. O campo
acadêmico-científico passaria por uma mudança fundamental. Antes da imprensa,
os textos que circulavam eram considerados nada mais do que cópias adulteradas
em relação a um original. Com o trabalho realizado dentro das oficinas
tipográficas, os textos começaram a apresentar-se crescentemente em edições
melhoradas. Essa transformação do modo como se apresentava o texto ao público,
com um maior cuidado editorial desenvolvido nos centros impressores, iria gerar
efeitos positivos sobre a totalidade da Comunidade do Saber.
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“O Poder que a Imprensa nos confere de aperfeiçoar e corrigir


continuamente nossos Tratados em edições sucessivas parece-me a principal
vantagem dessa arte”, diria David Hume ao seu editor. Trata-se de uma
importante observação desse expoente do Iluminismo em relação aos efeitos da
tipografia sobre seu trabalho intelectual. A máquina impressora irá formar
gerações de estudiosos e conseqüentemente justificará o poder que as pessoas
atribuem a ela na consolidação de uma modernidade baseada no protagonismo do
livro entre os demais meios de comunicação.
Discute-se se o hábito de leitura silenciosa de um texto seria uma inovação
que acompanha a introdução da imprensa e o maior consumo de livros, que é uma
de suas características. Haveria sido equivocadamente atribuído à imprensa o
desenvolvimento desse costume, uma vez que, na época dos escribas, já havia se
verificado a leitura em silêncio entre grupos alfabetizados. Mas, se por um lado, o
livro tipográfico não pode ser intrinsecamente associado à contemplação
individualizada do texto, por outro, provocou um emudecimento, ou melhor, um
silenciamento dos professores. Eles passaram a utilizar-se menos da palavra
falada, quando perceberam que poderiam ser beneficiados, com seu carisma
pessoal engrandecido, pela palavra impressa. O que isto quer dizer? Os
professores não falam em uma sala de aula de uma sociedade baseada na cultura
impressa?
63

Não é exatamente isso. É lógico que a profusão de textos impressos


contribuiu para o emudecimento desse personagem, que antes baseava a
transmissão do seu conhecimento por meio de palestras em aula. Com a difusão
da tecnologia da imprensa, nota-se uma multiplicação, antes inimaginada, dos
textos. Se cada professor é um especialista em uma disciplina e domina as
técnicas da escrita, ele muitas vezes vai acabar transformando-se também em
autor. O livro, quando incorpora a tecnologia tipográfica no processo de sua
fabricação, garante esta possibilidade aos literatos: a de escrever seus próprios
textos e publicá-los sob a forma de livro. O veículo livro permite o culto à
personalidade do erudito, intelectual escritor que passa a ser eternizados em seus
escritos. É comum dizer-se que, por meio dos livros, somos capazes de penetrar
na alma dos escritores. Como iria dizer Stéphane Mallarmé12, o mesmo que um
dia sonhou com um tipo de livro diferente, “tudo no mundo existe para algum dia
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terminar em um livro”.
Do século XV ao XVIII, os acadêmicos se denominavam a si mesmos
como cidadãos da “República das Letras”. Em realidade, não existia um espaço
territorial onde os literatos habitavam. Este termo foi por eles cunhado, pois se
sentiam pertencentes à comunidade das letras, uma sociedade imaginária que
transcendia as fronteiras nacionais. Os letrados formavam um grupo de estudiosos
leigos cultos, em geral médicos e advogados, habitantes das cidades.
Foi somente com a formação das grandes cidades européias e o incremento
das atividades que se ligavam às universidades que este grupo se tornaria visível,
já que esses primeiros letrados europeus eram vinculados às instituições de ensino
universitário. Em meados do século XVII, por exemplo, era comum, embora ainda
fosse arriscado, escritores e estudiosos que viviam da própria pena, numa mistura
de patrocínios e publicações:

Por volta de 1600, era claro um processo de diferenciação estrutural entre os


letrados europeus. Os escritores formavam um grupo semi-independente, sendo
sua crescente autoconsciência marcada, como na França do século XVII, pelo uso
cada vez mais freqüente de termos como auteur (autor) e écrivain (escritor). Um

12
O livre de Mallarmé seria diferente da concepção ocidental de livro. O sonho do poeta era
propor um novo tipo de livro, que apenas recentemente com a internet pudemos imaginar como
seria. Ele queria um livre a venir (livro do futuro), em que o conteúdo não ficasse preso ao modelo
de escritura convencional. O texto teria uma forma móvel, as páginas não obedeceriam uma ordem
fixa, uma obra inacabada, isto é, sem começo ou fim, em constante processo de reelaboração.
64

grupo pequeno mas influente pode ser apresentado na linguagem de nossos dias
como “intermediários da informação” como “administradores do conhecimento”,
porque tentavam organizar o material, além de coletá-lo (Burke, 2003, p.31).

No século XVIII escrevia-se e lia-se cada vez mais. O consumo de livros,


assim como o de outros objetos que eram confeccionados para serem
comercializados, só conseguiria expandir-se graças ao crescimento das classes
médias burguesas alfabetizadas. Como destaca Darnton, o alfabetismo de adultos
franceses do sexo masculino subia de 29% em 1686-90 para 47% em 1786-90. Se
os europeus passaram a alfabetizar-se, também adquiriram aos poucos o hábito de
comprar livros. O pesquisador germânico Walter Wittmann havia realizado um
estudo no qual obteve o seguinte dado: no final do século XVIII em Frankfurt
100% dos funcionários mais graduados, 51% dos comerciantes, 35% dos mestres
artesãos e 26% dos artesãos já possuíam livros.
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Quando hoje associamos o livro impresso a um objeto privilegiado de


leitura, indiretamente estamos nos remetendo a este imaginário construído em
torno dele: de um objeto do mundo escolar, ou que, utilizado na escola como
apoio no ensino dos diferentes saberes, acaba recebendo um papel de destaque na
formação do intelectual moderno. O livro impresso deveu em grande parte o seu
sucesso a esta função de desenvolvimento do intelecto humano desde a mocidade
por meio da escola: “Sua influência é inevitável, sendo encontrado em todas as
etapas da escolarização de um indivíduo: é cartilha, quando da alfabetização;
seleta, quando da aprendizagem da tradição literária; manual, quando do
conhecimento das ciências ou da profissionalização adulta, na universidade”
(Zilberman, 2001, p.121).
O conhecimento gerado e mediado na escola continua até hoje
dependente do livro. Se por um lado existe consenso a respeito do papel
fundamental e, pela maioria dos teóricos da educação, insubstituível do livro na
primeira alfabetização formal, há uma crítica dura também no que se refere à
maneira como a escola se apega ao livro: “A escola continua a utilizar-se do livro,
apenas. Como se todo o conhecimento emergisse dele e fora dele não houvesse
salvação. Todas as etapas de aprendizagem têm como parâmetro a leitura da
linguagem escrita, e o saber livresco, repetido pelo aluno” (Baccega, 2002, p.6).
65

A escola por servir-se apenas do livro desconhece a cultura da imagem e


das oralidades:

A leitura da imagem é mais livre, o poder de absolutizar o entendimento fica


restringido. Por isso, o medo que a escola tem da imagem e, portanto, da
televisão, que se utiliza de uma linguagem que sincretiza o verbal e o não-verbal.
Ao usar a imagem, a escola procura dificultar a polissemia, que é de sua natureza,
utilizando-a como mera ilustração do escrito ou colocando-lhe legendas que
conduzam a interpretação (idem, p.7).

Foram os três séculos de mudança intelectual, iniciada no século XV, que


transformariam esses letrados – professores e escritores – em importantes
personagens no processo de valorização, e por que não, de uma auratização do
livro tipográfico. O primeiro movimento responsável pelo reconhecimento do
trabalho intelectual realizado na Europa foi o Renascimento e o humanismo que
surgiu como elemento que o integrava. Os humanistas renascentistas criticavam o
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saber convencional que vigorava nas universidades por meio dos escolásticos, o
grupo de teólogos e filósofos que dominavam o meio acadêmico no início do
século XVI. Esse grupo de intelectuais do Renascimento criaria as academias,
estabelecimentos que tinham como objetivo a promoção de debates fora do
ambiente universitário. Por volta de 1600, aproximadamente 400 academias
haviam sido fundadas somente na Itália. Nelas se ensinava um currículo menos
tradicional do que o das universidades; elas estavam mais voltadas para um
público de homens de negócios, e menos para os nobres, que eram maioria na
universidade.
A Revolução Científica é o segundo movimento ligado à consolidação dos
intelectuais europeus e ocorreria a partir do século XVII. Tinha como objetivo
incorporar conhecimentos alternativos ao saber estabelecido. Saberes como a
química ou a botânica passam a receber atenção dos estudiosos. Uma série de
intelectuais viria a criticar o trabalho realizado nas universidades, chegando ao
ponto de classificar a filosofia escolástica como preocupada com “especulações
inúteis e estéreis”. Este movimento se tornaria responsável pela criação de
sociedades científicas, além do desenvolvimento de organizações de fomento à
pesquisa.
66

A partir desse momento já se notaria uma consciência crescente da


necessidade de buscas para que o conhecimento fosse sistematizado. Os
governantes passariam a apoiar os sábios: “pagavam salários para que realizassem
investigações, permitindo que seguissem carreiras fora das universidades pelo
menos em tempo parcial” (Burke, 2003, p.49).
E finalmente o Iluminismo aparece como o terceiro movimento em que os
letrados aparecem engajados, principalmente na França, em reformas de cunho
social, político e econômico. Organizações ainda menos formais como os salões e
os cafés teriam papel de destaque na comunicação das idéias durante o
Iluminismo. Eram nesses ambientes que se operava o projeto iluminista. Essas
instituições permitiam o encontro entre as idéias e os indivíduos. Peter Burke
ressalta a importância da imprensa que atuaria de forma indireta, mas crescente,
na vida intelectual, contribuindo para a “difusão, coesão e poder da comunidade
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imaginada da República das Letras” (idem, p.51).


Em 1784, escrevia Immanuel Kant sobre o movimento iluminista:

O Iluminismo é a saída do ser humano do estado de não-emancipação em que ele


próprio se colocou. Não-emancipação é a incapacidade de fazer uso de sua razão
sem recorrer a outros. Tem-se culpa própria na não-emancipação quando ela não
advém de falta da razão, mas da falta de decisão e coragem de usar a razão sem as
instruções de outrem. Sapere aude! (Ouse saber!).

O Iluminismo ou Esclarecimento, portanto, foi um movimento intelectual


surgido na segunda metade do século XVIII (o chamado “século das luzes”) que
enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo.
Na passagem para o século XVIII, uma mudança estrutural no formato dos
livros deixaria claro que muitos deles não seriam utilizados a partir dali somente
como leitura intensa: o surgimento e a proliferação de índices remissivos e
sumários nas obras demonstram que o livro passaria a tornar-se também objeto de
consulta – como obras de referência. Certos tipos de livro eram organizados de
maneira a resistir a tentativas de lê-los do princípio ao fim, como os atlas e os
dicionários.
67

Uma obra de referência pode ser definida como um livro que não se destina a ser
lido “de fio a pavio”, mas a ser “consultado” por alguém que “passa os olhos” ou
“se refere” a ele em busca de peça específica de informação, um atalho para o
conhecimento (Burke, 2003, p.164).

Nesse período, as enciclopédias se tornaram mais numerosas, maiores,


mais pesadas e mais caras. A sua compilação começava a aparecer como um
ofício especializado. O contrato de Diderot em 1747, por exemplo, lhe garantiria
7.200 libras para editar a Enciclopédia. A propagação da pesquisa e da escrita
coletivas era uma tendência.

Nos primórdios da Europa moderna, o conhecimento estava ligado cada vez mais
intimamente ligado à produção via impressão, e isso levou a um sistema de
conhecimento mais aberto. A invenção da prensa tipográfica efetivamente criou
um novo grupo social com interesse em tornar público o conhecimento. O
mercado de informações cresceu em importância ao longo do período. Até
mesmo o conhecimento “puro” ou acadêmico foi afetado por essa tendência
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(idem, p.158).

3.2
A Enciclopédia

O ápice do Iluminismo foi a edição da Enciclopédia, que depois acabaria


sendo reconhecida como o grande empreendimento intelectual iluminista. Editada
por Jean le Rond d'Alembert e Denis Diderot, compreendia 28 volumes, 71.818
artigos e 2.885 ilustrações. D'Alembert deixou o projeto antes do término, sendo
os últimos volumes obra de Diderot. Muitas das mais notáveis figuras do
Iluminismo francês contribuíram para a obra, incluindo Voltaire, Rousseau, e
Montesquieu. Os escritores da Enciclopédia a viam como a destruição das
superstições e o acesso ao conhecimento humano.
O ideal de sua realização foi de inspiração socrática: somente os
ignorantes poderiam ser maus. A prática do bem estaria ligada ao conhecimento;
se conhecemos mais, nos tornamos mais virtuosos. Como diria D’Alembert nos
Éléments des Sciences, é necessário transmitir informação para produzir “um
maior número de juízes esclarecidos”. No Discurso Preliminar (1751), escreveria:
68

A obra que agora começamos (e que desejamos terminar) tem dois objetos: como
Encyclopédie ela deve expor, tanto quanto possível, a ordem e o encadeamento
dos conhecimentos humano; como Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et
des métiers, deve conter, sobre cada ciência e sobre cada arte, seja liberal seja
mecânica, os princípios gerais que estão na sua base e os detalhes mais essenciais
que fazem o seu corpo e a sua substância.

Para Robert Darnton, em O Iluminismo como negócio – livro dedicado à


análise do que foi o projeto da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert –, esta obra
se baseava em “uma tentativa de mapear o mundo do conhecimento segundo
novas fronteiras, determinadas única e exclusivamente pela razão” (p.19-20), isto
é, tinha o objetivo de medir a atividade humana com padrões racionais.
Diderot, na Enciclopédia, e Rousseau, ambos durante o século XVIII,
demonstrariam o seu apreço pelos livros em críticas que fariam à imprensa
periódica daqueles tempos. Diderot reforçaria os objetivos da Enciclopédia,
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criticando os jornais: “Todos esses papéis [os jornais] são o alimento dos
ignorantes, o recurso dos que querem falar e julgar sem ler, o flagelo e o desgosto
dos que trabalham. Nunca levaram um bom espírito a produzir uma boa linha,
nem impediram um mau autor de fazer uma obra má”. Em 1755, Rousseau diria:
“O que é um livro periódico? Uma obra efêmera, sem mérito e sem utilidade, cuja
leitura, negligenciada e desprezada pelos letrados, só serve para dar às mulheres e
aos tolos vaidade sem instrução”.
Tanto na grandiosidade da Enciclopédia, com sua quantidade expressiva
de volumes para a época, como nos objetivos que foram arrazoados pelos próprios
editores para publicá-la é possível notar a valorização do livro impresso, como
meio de transmitir conhecimento.
Concorreu para isso uma mudança fundamental na concepção de
conhecimento na primeira metade do século XVII: uma nova visão do
conhecimento como cumulativo. Em 1605, Francis Bacon publicaria seu livro O
avanço do conhecimento. Nele e em outros títulos de sua autoria, o filósofo e
ensaísta britânico faria uso de uma imagem chamativa que simbolizava seu desejo
de transformar a sociedade: a de um “mundo intelectual”, ilustrado pela figura de
um globo e um barco velejando em busca de novas “possessões”.
O “avanço do conhecimento” foi contido, de início, pelo alto custo que se
pagava para ter acesso à Enciclopédia, o que impôs um limite à sua difusão, por
69

ter permanecido acima do poder aquisitivo de camponeses e artesãos. Mas, de


edição em edição, a Enciclopédia teve seus custos de produção reduzidos, com
diminuição do formato, do número de ilustrações e da qualidade do papel de
impressão, permitindo a ampliação progressiva de assinantes, e demonstrando a
imagem que Bacon havia construído de “avanço do conhecimento” na Europa.
Na verdade, a Enciclopédia era em si um compêndio do conhecimento,
para usar as palavras de Robert Darnton, e esse foi um dos principais argumentos
para a sua venda. Um trecho da carta escrita por um dos sócios do
empreendimento para outro era revelador das razões pelas quais um indivíduo
setecentista compraria os livros que compunham a publicação: “É preciso
começar por distinguir e classificar sob duas classes todos aqueles que se
abasteceram conosco: uns são homens de letras ou curiosos de instruir-se com a
ajuda dessa compilação; os outros foram guiados apenas por uma espécie de
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vaidade, vangloriando-se de possuir uma obra tão renomada” (Darnton, 1996,


p.207).
A aquisição dos volumes da Enciclopédia era muitas vezes confundida
com o conhecimento que a leitura dos seus livros poderia transmitir. A sua
disposição em estantes demonstrava “a excelência de seus possuidor em três
aspectos: como um homem de bom gosto, um homem culto e um filósofo” (idem,
ibidem).
Esse livro, a Enciclopédia, adquiriu a importância de Livro. Ele não era
apenas um objeto a ser comprado como tantos outros que surgiam com a
modernidade. Ele era veículo do conhecimento; apresentava-se dessa forma.
Transmitia os ideais do Iluminismo: “a obra representava algo maior do que ela
própria, um movimento, um princípio. Converteu-se na corporificação do
Iluminismo” (Darnton, 1996, p.401).
“Não há saber novo que se exprima fora do livro” (idem, p.259). Essa foi a
síntese do momento do livro impresso no século XVIII com o Iluminismo, no
entender de Jean-Marie Goulemot, quando discute o crescimento vertiginoso do
impresso e a difusão cada vez maior do livro naquele período.

O livro é rei. A ele se prende todo um imaginário, que o século XVII já tinha
sugerido: ele é o veículo privilegiado do saber – quem poderia duvidar disso? –
pois a escritura fixa para sempre a verdade e parece fugir – apesar das afirmações
70

de Rousseau sobre as virtudes enganadoras, suas ambigüidades – aos riscos da


palavra, incerta e flutuante, constantemente ameaçada, mas ele é também o meio
de uma subversão pela qual as almas se perdem e as instituições se desfazem.

Nesse sentido, o livro iluminista é detentor de uma aura, não mais


decorrente do fato de ser suporte de textos sagrados, mas, ao contrário, por
veicular conhecimentos conquistados pela razão humana. Razão, que, como
assinala Castoriadis, será mitificada, tomando o lugar de Deus. O livro é portador
da “luz” contra as trevas do “obscurantismo religioso”. A importância do livro, o
seu valor, escapa à inserção no mercado, não está atrelado somente à venda.
Mesmo porque adquirir uma Enciclopédia significava muito mais do que apenas
ter mais um livro, entre tantos outros, para distrair-se. Robert Darnton afirma: “A
Enciclopédia era, em si mesma, uma biblioteca”.
Esta sua aura, como um livro, seria novamente presentificada no
“Avertissement des nouveaux éditeurs” do seu primeiro volume:
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Os dois editores que conceberam o projeto da Enciclopédia fizeram dela a


biblioteca do homem de bom gosto, do filósofo e do erudito. Esse livro nos
dispensa de ler quase todos os outros. Seus editores, iluminando o espírito
humano, surpreendem-no com freqüência pela imensa variedade de seus
conhecimentos, e mais freqüentemente ainda pela novidade, a profundidade e a
ordem sistemática de suas idéias. Ninguém conheceu melhor do que eles a arte de
elevar-se das conseqüências aos princípios, de destacar a verdade da miscelânea
dos erros, de prevenir contra o abuso das palavras, que é a sua principal fonte, de
poupar esforços à memória que recolhe as idéias, à razão que as combina, à
imaginação que as embeleza (Darnton, 1996, p.206).

Os editores da Enciclopédia afirmam nessa nota ao primeiro volume que


esse compêndio tem como um dos seus objetivos “iluminar o espírito humano e
surpreendê-lo”. Esta assertiva se relaciona com os próprios ideais do Iluminismo,
mas também sugere que a aquisição da Enciclopédia e seu uso social pelo
indivíduo associam-se a um culto dessa obra, no que ela representaria em termos
da valorização do conhecimento.
Como Benjamin teoriza em A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica, assim como as mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual
– mágico, depois religioso – e a inserção delas na tradição se traduziu por meio do
culto, a Enciclopédia poderia manter uma aura, como ocorria com as obras
antigas, não pela sua unicidade, mas se considerarmos a ciência como possuindo
71

uma função ritual moderna, já que “o modo de ser aurático nunca se destaca
completamente de sua função ritual” (Benjamin, 1985, p.171).

3.3
As bibliotecas

Se a Enciclopédia encarnava o ideal de avanço do conhecimento como um


“ritual” moderno, e se Francis Bacon idealiza um mundo do conhecimento para
ser explorado e conquistado por “embarcações” ávidas por livros, nesse sentido as
bibliotecas se apresentariam como o templo e o porto onde esses fiéis em seus
barcos precisariam atracar e das quais se utilizariam para abastecer-se.
Universidades, centros de pesquisa, academias, os intelectuais de um modo
geral vão recorrer às bibliotecas para aprofundar seus conhecimentos, ou saber
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mais, uma vez que o acúmulo de informações era considerado o ideal de


conhecimento. A biblioteca, sem dúvida, cresceu em importância com o advento
da prensa tipográfica. Dentro das universidades, ela rivalizaria com a sala de
conferências.
Robert Darnton, em um artigo a Folha de S. Paulo, em 2001, resumiria a
importância das bibliotecas nas sociedades:

Bibliotecas. Vistas de dentro de grandes monumentos, elas parecem


indestrutíveis. Mas, de fato, a história mostra que bibliotecas estão sempre sendo
destruídas, e cada vez que uma biblioteca vem abaixo muito da civilização desaba
com ela. A Biblioteca de Alexandria parecia que iria durar tanto quanto as
pirâmides e, de fato, sobreviveu quase um século, mas, quando foi destruída,
perdemos a maior parte da informação então disponível sobre a Grécia antiga,
700 mil volumes. Perdemos o maior repositório de conhecimento sobre a Europa
medieval quando Monte Cassino foi bombardeada na Segunda Guerra Mundial.
Mais recentemente, a destruição da Biblioteca Nacional do Camboja pelo Khmer
Vermelho deu cabo do maior estoque de informações sobre a civilização
cambojana (Darnton, 2001).

Portanto, o poder das bibliotecas não se situa apenas no mundo das


palavras e no conhecimento que o indivíduo pode obter por dela servir-se para
acumular ou adquirir novos conhecimentos. O domínio da memória escrita e da
acumulação de livros cumpriram sempre significações políticas: “Eles [os livros]
72

são signo e instrumento de poder. Poder espiritual da Igreja. Poder temporal dos
monarcas, dos príncipes, da aristocracia, da nação e da república” (Baratin e
Jacob, 2000, p.14).
Desde o fim da Idade Média, o Antigo Regime construiu inúmeras
“bibliotecas reais”, que tinham a finalidade não apenas de deleite para o monarca,
mas de utilidade para o público. Em 1627, Gabriel Naudé, um precursor da
biblioteconomia no século XVII, afirmaria que não existia naquela época um meio
mais honesto e seguro de aquirir fama do que construir bibliotecas e oferecê-las ao
público. “Grandes reis gostaram e procuraram particularmente acumular grande
número de livros e mandar construir bibliotecas muito curiosas e bem providas”
(p.184).
Ainda no século XVIII, um livro impresso poderia vir a ser dedicado por
seu autor ao seu soberano. Essa constituía uma das melhores formas de captar a
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benevolência real. Geralmente, a dedicatória ao príncipe ocorria em relação a um


livro em particular, que iria enriquecer suas coleções. Francisco I, em torno de
1520, fundaria uma nova “livraria” real em Fontaineblau e pediria em seguida o
depósito de um exemplar de todas as “obras dignas de serem vistas”. A razão de
se constituírem bibliotecas nos reinos, na maioria dos casos, ultrapassava os
interesses pessoais dos monarcas. Elas se tornaram “centros de salvaguarda, que
protegem do desaparecimento todos os livros que não merecem”, como explica
Roger Chartier (1994, p.184).
Mesmo que a reprodutibilidade técnica tenha reduzido a importância de
cada exemplar de um título – já que uma mesma obra poderá quase infinitamente
impressa –, as bibliotecas conseguiram constituir-se como a memória viva das
sociedades letradas, tanto das anteriores como das posteriores à imprensa. Além
disso, elas se tornaram centros de estudos, locais da sociabilidade culta e de troca
de informações e idéias, além de serem lugares de leitura. Para os monges
medievais, produtores culturais daqueles tempos, o respeito se estendia ao próprio
lugar em que se efetua a escritura, em que se conservavam seus produtos. “Do
século IX ao XV os testemunhos se sucedem; o cuidado que se dedica à
conservação dos livros chegará até a atrapalhar as consultas” (Zumthor, 1993,
p.112).
73

O sonho de uma biblioteca que reunisse todos os saberes acumulados,


todos os livros escritos, permeou a história do Ocidente. Este sonho foi pela
primeira vez idealizado por Ptolomeu Sóter, quando em 306 a.C. começa a
construir a famosa Biblioteca de Alexandria. Esta importância que Alexandria
adquiriria residia menos na monumentalidade da biblioteca como projeto
arquitetônico, e mais na decisão, política e intelectual, de reunir em um único
espaço físico todos os livros da Terra. Essa intenção marcou provavelmente o
início do diálogo entre culturas. Foi em Alexandria que se inaugurou a primeira
política de traduções, sendo a mais célebre entre as realizadas a dos cinco livros
do Pentateuco, a Torá, o Livro Sagrado dos judeus. Essa política, segundo
Christian Jacob,

é de fato a expressão de uma vontade simbólica de poder, em que Alexandria,


novo centro do mundo, afirma seu predomínio sobre a totalidade do mundo
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habitado, até seus confins, querendo se apropriar de todos os traços escritos por
todos os povos, em todas as línguas e em todos os lugares, e traduzindo-os para o
grego, isto é, importando-os e aculturando-os no espaço lingüístico, cultural e
mental do helenismo (Baratin e Jacob, 2002, p.49).

3.4
Livro e poder

A idéia de que os livros são investidos de poder ou conferem poder aos


seus proprietários é um legado que trazemos conosco desde sociedades arcaicas.
O imperador romano Tibério, antes da Era Comum, haveria mandado queimar as
Histórias do senador-historiador Cremutius Cordus: “Quanto a seus livros, os
senadores encarregam os edis de queimá-los, mas eles subsistiram, escondidos e
depois puiblicados” (Canfora, 2003). Ovídio, poeta perseguido por Augusto, teve
que deixar Roma e seus livros foram excluídos da biblioteca pública.
Os livros, ao longo da história, se associaram com o poder em duas vias.
Foram utilizados como forma de demonstrar o poder político dos soberanos
quando imperadores e reis patrocinavam a criação de bibliotecas e numerosos
acervos, mas também quando estes mesmos mandatários exerceram um controle
(para mais ou para menos) rigoroso sobre a circulação dos livros, cerceando a
plena divulgação das obras, censurando-as.
74

Claude Lévi-Strauss, no livro Arte, linguagem, etnologia, relacionava o


aparecimento da escrita à divisão das sociedades em castas:

Quando perguntamo-nos à qual grande fenômeno social a aparição da escrita se


encontra ligada, sempre e em todos os lugares, concordamos, creio, que a única
realidade concomitante foi o aparecimento de fissuras, de clivagens,
correspondendo a regimes de castas ou classes, pois a escrita surgiu em seus
primórdios como meio de submissão de homens a outros homens como meio de
comandar homens, e de apropriar-se das coisas (Charbonnier, 1989, p.56).

Lévi-Strauss acredita que “talvez não seja fortuito” em que justamente nas
sociedades onde surge a imprensa, e ocorre uma mudança de ordem de grandeza
do papel da escrita na vida social, a arte se torne “coisa de uma minoria que nela
procura um instrumento ou uma forma de desfrute íntimo” (Charbonnier, 1989,
p.57). O consumo de livros seria, portanto, um privilégio de uma minoria que teria
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acesso a eles e poderia adquiri-los para seu deleite privado.


Por outro lado, segundo Marco Antônio de Almeida (2001), “o imaginário
do qual o livro é o portador se articula como espaço de prazer e liberdade; utopia
muitas vezes solitária, independente das mediações ideológicas – fator que o torna
um dos meios de subversão mais eficazes e, portanto, mais perseguidos”. De 213
a.C., época em que o imperador chinês Houang-ti (o mesmo responsável pela
construção da Grande Muralha) mandou queimar todos os livros até o 10 de maio
de 1933, dia em que a polícia nazista queimaria livros de oponentes ao regime
nazista em praça pública, a história esteve sendo escrita, mas muitas vezes
reescrita, quando não perdida, em momentos como esses, em que os livros –
considerados os objetos-memória da sociedade letrada – sofreram com
perseguição, censura e destruição.
Na França do século XVIII, caracterizada pelo Iluminismo e que tinha
Paris como a capital das Luzes e o grande centro da edição legal, os livros que
fossem impressos fora das condições aceitas pelo monarca eram censurados. O
mundo da edição parisiense se submetia à concessão do privilégio. E o que era
esse privilégio?
Apenas 36 mestres-impressores e uma centena de livreiros detinham o
privilégio de poder editar, imprimir e comercializar livros naquele período.
75

Portanto, tratava-se de um privilégio no sentido estrito da palavra. No final de


qualquer livro impresso, havia a reprodução da carta do privilégio concedida pelo
rei ou carta de aprovação dos censores legais. Para que um livro obtivesse esse
status de oficial, deveria percorrer uma longa burocracia: a Direção do Comércio
de Livros, a Chancelaria e a Câmara Sindical da Comunidade dos Livreiros e
Impressores. De acordo com Robert Darnton (1992), “graças à censura, à polícia e
ao monopólio da comunidade dos livreiros e impressores de Paris, quase todos os
livros que inovaram em literatura e filosofia eram editados fora da lei” (p.37).
Os vendedores ambulates ou mascates, como os chamavam os livreiros,
foram agentes fundamentais para a difusão dos livros proibidos. A polícia se
preocupava com a ação desses agentes. Os inspetores acusavam o mascate Gille,
um dos contraventores da época, de ser um dos responsáveis por disseminar
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livros contra os costumes e contra a religião, que são grandes objetos do comércio
desse homem, pelos quais ele me parece no centro de todas as manobras e
fraudes. Não posso duvidar de que ele se envolva com os livros que não
respeitam nada... (idem, ibidem)

Tratados de filosofia libertária, libelos políticos ultrajantes, crônicas


escandalosas e romances pornográficos eram os livros entre os mais vendidos da
clandestinidade na França. Portanto, a afirmação de McLuhan (1977) de que “o
poder intensamente centralizado e unificado só se tornou possível com a
mecanização da escrita” (p.115) tem seu contraponto no movimento de circulação
de livros clandestinos que, de uma forma ou de outra, iam contra à ordem
estabelecida.

3.5
O homem moderno e o livro

Joan DeJean, em Antigos contra modernos, se debruçou sobre o tema da


“invenção do público para a literatura”. Para que o século XVIII pudesse verificar
esse intenso comércio de livros (tanto oficialmente quanto de forma clandestina),
o século anterior presenciava o surgimento de um público, no sentido moderno
desse termo, de audiência, para a literatura. O desenvolvimento da esfera pública
76

se tornaria então devedor do crescimento em importância da indústria editorial, da


cultura impressa, para o seu pleno estabelecimento. Como afirmaria a autora:
“enquanto qualquer crescimento potencial de uma audiência teatral só poderia ser
limitado, o tornar público associado com a nova possibilidade de leitura e os
novos gêneros com o poder de atrair novos leitores, teoricamente, não possuía
limites” (DeJean, 2005, p.70).
Jürgen Habermas foi um dos principais defensores da idéia largamente
aceita de que a esfera pública é um projeto iluminista, estabelecida como
fenômeno burguês, “quando indivíduos privados começaram a fazer uso de
raciocínio no terreno literário” (idem, ibidem). O próprio termo publicação
passaria a designar “livro, folheto, revista ou qualquer obra impressa para
divulgação”, e público, o “conjunto das pessoas atingidas por um veículo de
comunicação” (Barbosa e Rabaça, 2001, p.485). Segundo a teoria de Habermas, a
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esfera pública literária esteve na origem de uma nova esfera pública democrática,
na qual toda autoridade passa a estar sujeita ao exame crítico da opinião pública.
O desenvolvimento da opinião pública fez com que se tornasse cada vez
menor o poder do Estado ou da Igreja sobre a publicação de livros e,
conseqüentemente, sobre a circulação das idéias. Para Chartier (1991), a vida
familiar, a sociabilidade do convívio e o isolamento individual constituem os três
pilares da vida ocidental, em que a leitura é de vital importância. O homem
moderno, individualizado, passaria a fazer da leitura um dos hábitos mais
desenvolvidos por ele no decorrer da modernidade. Habermas (1984, p.62)
relacionou a leitura de romances em voz alta nos saraus literários com a
publicização da subjetividade desse homem moderno. Os salões representavam o
espaço fora dos ambientes privados, em que os indivíduos se aglutinavam em um
público, constituindo-se no espaço de mediação entre a esfera privada e a esfera
pública. A leitura de livros funcionava como mediadora entre as duas esferas. O
homem moderno constitui a sua personalidade, forma o seu intelecto, a partir dos
livros e das mensagens neles inscritas por outros indivíduos isolados, e a partir daí
o prestígio do livro só cresceria. A aura do livro impresso, moderno, estaria
presente na tradição que este objeto funda quando do momento de seu “culto” pela
sociedade ocidental. Assim como Benjamin acreditava que a aura de um objeto
residiria em seu valor de culto, na tradição a que o objeto remeteria, à sua
77

autenticidade, o livro moderno, impresso em escala industrial, construiria na sua


modernidade a sua tradição; a sua autenticidade estaria ligada ao progresso social,
às mudanças na esfera social que ele protagoniza, tornando-se um dos
responsáveis pela construção do projeto moderno.
O teórico do consumo Colin Campbell, em A ética romântica e o espírito
do consumismo moderno, aponta uma mudança no ser humano em sociedade que
viria a alterar de modo decisivo a relação do homem com o mundo, e que
conseqüentemente abriria o caminho para o industrialismo e o consumo: o fim da
manipulação simbólica coletiva da emoção. Nos tempos modernos, as emoções
deixaram de localizar-se no mundo e passaram a originar-se dentro do indivíduo.
Até a Idade Média, “palavras como ‘medo’ e ‘alegre’ não denotavam sentimento
localizado dentro de uma pessoa, mas atributos de acontecimentos externos,
referindo-se ‘medo’ a uma acontecimento repentino e inesperado e ‘feliz’ a uma
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peculiaridade de coisas como o dia ou a ocasião” (Campbell, 2001, p.106).


Segundo o autor, esta desemocionalização do mundo e a introjeção da
emoção como interior ao homem foram os prerrequisitos para o que ele
denominou o hedonismo moderno, conceito que cunha para justificar o
consumismo moderno. Até a Era Moderna, os prazeres eram obtidos com a
satisfação de carências. Quando se tinha fome, o simples ato de comer já era
considerado uma atividade prazerosa, na medida em que aliviava a sensação
desagradável de estômago vazio. Este era o retrato do que Campbell
convencionou chamar de o hedonista tradicional.
O hedonismo moderno, ao contrário, só tem condições de existência em
sociedades onde a satisfação das carências torna-se um acontecimento regular. O
homem então deslocou a sua preocupação das sensações para as emoções.
“Crenças, ações, preferências estéticas e respostas emocionais já não eram ditadas
automaticamente pelas circunstâncias, mas ‘determinadas’ pelos indivíduos”
(Campbell, 2001, p.109).
É neste mundo governado pelo prazer, localizado na individualidade de
cada homem, que o gosto próprio a cada um é capaz de desenvolver-se e, então, se
é possível entender o porquê de, na Era Moderna, as sociedades haverem sentido a
necessidade da produção industrial de diferentes objetos para o consumo. “Uma
esfera de intimidade se cria entre o leitor e o texto, na qual o intercâmbio se
78

intensifica enquanto o contexto exterior se distancia e se apaga” (Zumthor, 1993,


p.106). Foi neste contexto que o termo escrever passaria a ter a conotação de
compor uma obra, um texto, um livro.
Neste sentido, compreendemos por que o livro se tornaria um
objeto/produto tão consumido tempos depois, na Revolução do Consumo na
Inglaterra do século XVIII, objeto de estudo de Campbell. Ele não atém sua
análise ao consumo de livros genericamente; prefere estudar o romance, já que
este se constituiria como o gênero literário que atingiria o maior consumo pelas
classes médias letradas burguesas. O “romance” havia surgido por volta de 1160-
70, na junção da oralidade com a escritura. Mas só se desenvolveria plenamente
por meio da última. Segundo Zumthor (1993, p.267), o romance permite a crítica
pessoal do ouvinte, envolvendo-o em uma busca de sentido, irrealizável sem a
intervenção do escrito. “O consumidor moderno desejará um romance em vez de
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um produto habitual porque isso o habilita a acreditar que sua aquisição, seu uso,
podem proporcionar a ele experiências que ele, até então, não encontrou na
realidade”. Está aí, portanto, a razão pela qual Campbell destaca a produção
crescente de romances modernos e o aparecimento de um público ledor de ficção
como uma das características principais da revolução do consumo no século
XVIII. Para ele, a prática visível do consumo de romances, entre outros livros, por
exemplo, é justificada pelo modelo hedonista que se instaura com a modernidade.
McLuhan (1977) sentencia: “o caráter portátil do livro, à semelhança do cavalete
do pintor, muito contribuiu para o novo culto do individualismo” (p.280).
O livro aparece na modernidade com uma dupla função: fonte de
informação ou de conhecimento e ao mesmo tempo capaz de oferecer o lazer ao
homem moderno. “A cidade constitui um universo cultural original, onde a escrita
representa algum papel mesmo para aqueles que não a decifram” (Chartier, 1996,
p.177). No fim do século XVII, em Paris, 85% dos homens e 60% das mulheres
eram capazes de assinar seus próprios testamentos. De acordo com o sociólogo,
professor da Universidade de Paris, a posse do livro aumenta para todos, mas
segue uma hierarquia: a das fortunas e a das qualificações. Mesmo que a leitura
média sofra um incremento, permanece baixo o índice relacionado às camadas
inferiores. O mundo urbano passou a ser consumidor de livros, que não seriam
79

mais monopólio dos que “administram a cidade e as almas” (idem, p.197). O que
esta última afirmação quer dizer?
Que, por volta do ano 1200, a escrita se secularizava em sua utilização
notarial, comercial e jurídica. Que, entre o século XII e XIV, o número bruto de
leitores havia crescido significativamente, mas por motivos pragmáticos, já que a
escritura se fazia presente nas cortes dentro das áreas administrativa e contábil. À
essa época, os príncipes já estavam de acordo a respeito dos poderes da leitura e
da escritura: o saber de um nobre deveria comportar a capacidade de ler todas as
línguas (Zumthor, 1996, p.108). Mais tarde, a formação maciça da consciência
nacional coletiva foi somente possível, segundo McLuhan (1979), graças à ação
da tipografia, “na medida em que a língua vernácula se fazia visível, centralmente
importante e unificada pela ação da nova tecnologia [a tipografia]” (p.271).
O nacionalismo deve em grande parte ao livro impresso a sua existência,
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pois depende ou deriva de um ponto de vista fixo, que nos chega com a palavra
impressa. Esta é eficaz em “permitir a visualização da língua vernácula e, depois,
em criar aquele modo homogêneo de associação que viria tornar possíveis a
indústria moderna, os mercados e o gozo visual da condição, do status nacional”
(McLuhan, 1979, p.301). Os espanhóis, por exemplo, enxergaram no livro
impresso um instrumento para a atividade militante da Contra-reforma. Na
Inglaterra do século XVI, o aprimoramento e adorno da língua materna eram
considerados como o próprio fim da literatura. O texto impresso haveria
permitido, no entender de McLuhan, a confrontação visual direta dos estilos
antigos em toda a sua fixidez e imobilidade. Os humanistas teriam se surpreendido
ao notarem que o modo como eles pronunciavam oralmente o latim diferia
sobremaneira do modo clássico de uso dessa língua. Tomaram então a decisão de
ensinar o latim por meio da página impressa: “a tipografia estendeu seu próprio
caráter à regularização e fixação das línguas” (McLuhan, 1977, p.309).
Já a administração “das almas” não era mais um monopólio exercido pela
Igreja, que até a invenção da prensa tipográfica era detentora do controle sobre o
conhecimento em duas vias: era a responsável pelos maiores acervos literários de
então, assim como os leitores daquela época eram os membros do clero, uma vez
que somente eles haviam sido alfabetizados. A Reforma protestante, em conjunto
80

com a expansão das tipografias européias, propiciou a multiplicação das Bíblias


na Europa e sua compra pelo homem moderno burguês.
A Bíblia até o século XVI era escrita apenas em hebraico ou aramaico. Era
conhecida, portanto, pelos poucos letrados da Igreja, que traduziam os textos para
os fiéis ignorantes. A mediação com o divino era realizada por meio da Igreja, dos
clérigos, únicos capazes de interpretar a Bíblia.
Martinho Lutero, artífice da Reforma, discordava do monopólio do saber
bíblico por parte do clero. Foi o responsável pela tradução do texto da Bíblia para
o alemão, pois defendia que todo fiel tinha o direito de ler e conhecer as palavras
do Livro Sagrado, sem necessidade de intermediação da Palavra de Deus.
Com isso, o livro impresso passaria por um processo de sacralização, já
que se tornava o meio de acesso direto ao transcendente. As escrituras sagradas
em papel libertaram o crente da dependência em relação a um saber clerical. Com
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a posse da Bíblia – única fonte de verdade divina –, cada homem deveria


interpretá-la de acordo com a sua consciência e capacidade: é o reinado da razão.
Segundo o princípio luterano, a autoridade deriva apenas da Bíblia. A ligação com
o divino podia ser estabelecida diretamente pelo homem na leitura do Livro
Sagrado, hoje o livro mais impresso e lido no mundo.
A leitura individual da Bíblia e as interpretações do homem moderno para
o Livro Sagrado, conquistas advindas da Reforma, prepararam o terreno para a
expansão, a partir daí sem fim, do mercado editorial. Até esse momento, o livro
ainda competia com a voz. O texto, mesmo o impresso, era oralizado pelo
sacerdote, que religava o homem a Deus. Com a liberdade adquirida pelo homem
de interpretar os textos, os livros impressos se disseminariam por todo o mundo.

Não é inteiramente evidente por si mesmo, hoje em dia, que a tipografia iria ser
ao mesmo tempo o instrumento e a oportunidade para o individualismo e a auto-
expressão pessoal na sociedade. Que tivesse sido o meio para a promoção de
hábitos de propriedade particular, de vida privada, e de muitas formas de
‘encerramento’ talvez o fosse. Mais óbvio, entretanto, é o fato de ser a publicação
impressa o meio direto para conduzir à fama e à perpetuação do nome. Pois, até o
advento do filme moderno, não havia no mundo nenhum meio que se comparasse
ao livro impresso, para a propagação da imagem de um homem privado
(McLuhan, 1977).
81

A prática de multiplicar textos literários por meio da tipografia produziu


uma profunda mudança em nossa atitude para com o livro e em nossa apreciação e
valorização das diferentes atividades ligadas à produção literária.
Este será o principal tema do capítulo seguinte. A partir da análise de
algumas práticas e rituais do mercado editorial brasileiro atual, da produção e do
comércio de livros – que desde o século XVIII se instauraram primeiro na Europa
com vigor e sob a forma industrial, buscaremos compreender como os homens
modernos apreciam e valorizam, atualmente, o produto livro. Esta aura que surge
com os poderes que foram associados à escrita (com o Livro Sagrado) e que
reapareceria na modernidade, relacionada ao saber, ao conhecimento que seria
oferecido por meio desse objeto – questionamos – chegaria ao século XXI como
um elemento inseparável do livro, ainda que este não seja mais único, uma vez
que é reprodutível tecnicamente, em larga escala? O livro impresso, moderno,
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mesmo sendo um produto no mercado, pode ainda conter uma aura, que o
diferencia dos demais produtos culturais?
4
O mercado editorial e a aura do livro

O negócio da edição de livros é por natureza pequeno, descentralizado,


improvisado, pessoal; mais bem desempenhado por pequenos grupos de pessoas
com afinidades, devotadas ao seu ofício, zelosas de sua autonomia, sensíveis às
necessidades dos escritores e aos diversos interesses dos leitores. Se o dinheiro
fosse o principal objetivo, essas pessoas provavelmente teriam de ter escolhido
outras carreiras (Epstein, 2002).

Esta passagem abre o primeiro capítulo da obra O negócio do livro, de


autoria de Jason Epstein13, e ilustra as muito peculiares características
relacionadas ao mercado editorial e a quem deseja iniciar um projeto editorial na
atualidade. A começar se pensarmos no objetivo maior do empreendimento
capitalista – o lucro. Este bem-sucedido editor de livros norte-americano é
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taxativo: não deve entrar no negócio dos livros quem dele espera apenas um
retorno financeiro. Portanto, esta análise do mercado editorial parte de um
paradoxo: que este segmento específico do mercado cultural, diferentemente dos
demais, não objetiva exclusivamente construir fortunas, ou pelo menos não faz
disso seu objetivo maior.
Recuperemos o conceito antropológico de cultura. A cultura é, em última
análise, a responsável por estabelecer uma diferenciação do ser humano em
relação aos demais seres do mundo animal. Ao contrário de chipanzés, ratos ou
baratas, o homem se diferencia por ser o único animal a estabelecer essa relação
única com a natureza: a cultural. José Carlos Rodrigues cita como exemplo a
forma como a cultura humana influencia o homem na procura por alimento, que é
uma das necessidades básicas de sua sobrevivência como espécie.

Uma complexa gramática de convenções estipula o que é alimento, para quem e


sob quais condições. Regras distinguem “alimentos” de “não-alimentos” e
decidem que certos alimentos são impróprios ou proibidos para certas pessoas:
alguns são interditados às crianças, outros aos velhos, às mulheres menstruadas,
aos doentes, aos mortos... (Rodrigues, 2003, p.66).

13
Jason Epstein foi protagonista de uma das mais criativas e marcantes carreiras do mercado
editorial. Ele foi responsável pela publicação de escritores como Norman Mailer, E. L. Doctorow,
Philip Roth e Gore Vidal e atuou como diretor da Random House por 40 anos.
83

Da mesma forma que a cultura nos diferencia a ponto de serem definidas


regras rígidas quanto à forma de preparação e ao destino de certos alimentos,
outros objetos –igualmente produtos da cultura humana – como os livros
gutenberguianos seguirão convenções próprias que surgem para o seu uso.
A valorização do letramento por parte do homem ocidental tornou o livro
impresso um produto cultural indispensável e de caráter permanente a tal ponto
que pode ser capaz de subverter a lógica de mercado, que normalmente
privilegiaria a lucratividade nos negócios. Como reafirma Epstein (2002) em outro
trecho da sua reflexão: “(...) publicar livros não é um negócio convencional.
Assemelha-se mais a uma vocação ou a um esporte amador, em que o objetivo
principal é a atividade em si em vez do seu resultado financeiro” (p.21). Monteiro
Lobato, no início do século XX, já expunha suas preocupações: “Quanto a ganhar
dinheiro com livro, e essas esperanças de criar um ‘nome vendável’, uma marca
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de fábrica que tenha saída, varra isto da cabeça. Tão cedo o livro não será negócio
de dar dinheiro no Brasil” (Carrenho e Diogo, 2005, p.46).
Como, culturalmente, convencionou-se associar o livro à aquisição de
conhecimento, de detenção do saber, muitas razões, que não somente as
mercadológicas, podem ser enumeradas para que um indivíduo opte por seguir,
por exemplo, a carreira de editor de livros. Se nos rituais de alimentação não
devemos falar ao mesmo tempo em que mastigamos ou “não se coloca o cotovelo
na mesa”, se “quem paga a conta é quem senta na cabeceira da mesa”, existem
também, na cultura livresca, diversos rituais e normas que se relacionam,
intimamente, à produção, à comercialização e ao consumo de livros impressos,
inserindo este objeto na esfera cultural, e devolvendo-lhe de certa maneira a aura
que Walter Benjamin acreditava ter sido retirada do livro, quando Gutenberg
inaugurou a prensa tipográfica e a reprodutibilidade técnica.
Procuraremos, nas linhas seguintes, debater algumas questões
contemporâneas da organização, da atuação e da ritualização da indústria do livro
hoje, desde o início do processo de sua produção/edição, normalmente sob a
responsabilidade de uma editora comercial, até a outra ponta do negócio, na
comercialização e nos modos de consumo por parte dos leitores. A partir do
estudo da prática, será possível concluir se o livro se constitui apenas como mais
um mass media, como entendiam os teóricos da Escola de Frankfurt, ou se ele
84

consegue manter-se como veículo privilegiado de transmissão do saber devido a


resquícios de uma aura que ele ainda apresente e que o diferencie dos demais
meios de comunicação deste início de século XXI.

4.1
As editoras de livros

A cultura de massa já engatinhava na Europa do século XIX. A


escolarização obrigatória e a ascensão da literatura de entretenimento – barata e de
consumo fácil – foram dois fatores entre os preponderantes para a formação de um
mercado editorial. Entre os séculos XVIII e XIX, houve a explosão de um público
capaz de consumir livros impressos. Se entre 1500 e 1750 a leitura na Europa
ocidental era intensiva – liam-se poucas obras repetidamente (a Bíblia, alguns
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livros de devoção, o almanaque, a Biblioteca Azul) –, ao final do século XVIII


liam-se muito e diversos textos entre os burgueses no sentido amplo da palavra,
pessoas instruídas que habitavam as cidades européias. Nas cidades da França
ocidental, desde o reinado de Luís XIV (1643-1715) os nobres e os notáveis, pela
fortuna ou pelas profissões independentes, eram 100% alfabetizados. Em Paris,
por volta de 1700, os homens assalariados já eram 61% alfabetizados. No reinado
de Luís XVI (1715-1774), quase 100% dos criados já assinavam seus próprios
nomes. Estes dados provam que a Europa foi, aos poucos, se tornando um lugar
propício para uma subseqüente explosão do mercado de livros.
O que diferenciaria os livros impressos de outros textos que circulavam na
Europa, naquele momento, era o modo como sempre os livros gutenberguianos
foram produzidos. Desde o surgimento da imprensa, os livros não são apenas
escritos. Eles são manufaturados por mecânicos e outros engenheiros, por
impressoras e outras máquinas. Como afirma Chartier (1990), “não existe nenhum
texto fora do suporte que o dá a ler, não há compreensão de um escrito, qualquer
que seja, que não dependa das formas através das quais ele chega a seu leitor
(p.127)”. Segundo Chartier, dois dispositivos devem ser separados: os que
decorrem do texto em si, das estratégias de escrita e das intenções do autor e
aqueles que são produzidos pela decisão editorial e que só podem ser concebidos a
85

partir de uma massificação do consumo de livros impressos e do desenvolvimento


do seu mercado, práticas que pretendemos analisar nestas linhas que seguem.
Se nos primórdios da imprensa, os comerciantes de livros estavam
preocupados em abastecer a intensa demanda por textos, que seriam objetos de
estudo por parte dos universitários europeus, a partir do século XIX destaca-se a
figura do editor, que, de modo diferente do impressor do século XV, estava
preocupado com a disseminação do texto por ele editado por uma massa que já
era capaz de ler e entreter-se por meio do livro.

O modo de produção capitalista tem sua cota de participação no processo, pois os


interesses econômicos prescrevem que mercadorias apareçam e circulem, e entre
elas contam-se obras impressas, consideradas tanto melhores se gerarem
dividendos aos investidores (Zilberman, 2001, p.86).
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No século XIX, inovações técnicas – como o aprimoramento na fabricação


do papel e a melhoria das técnicas de impressão – alterariam substancialmente o
perfil de consumo do livro. Esse período se relaciona tecnicamente com a
Revolução Industrial. O livro impresso transforma-se em produto de consumo
intenso. Portanto, passa a ser visto como bem a ser consumido, da mesma forma
que outros produtos, no tempo de lazer.
Segundo Regina Zilberman, no momento em que a modernidade européia
gera as condições para o aparecimento do mercado editorial, de certa maneira este
mercado acaba por ser contaminado pelo modo de produção capitalista, que tem
como uma de suas características o fato de seus produtores não poderem descartar
o lucro, um de seus pilares. No entanto, a lógica do comércio de livros não se
baseia nas mesmas prerrogativas de outros mercados igualmente desenvolvidos
neste modo de produção.
Quando as Casas Bahia realizam o seu “Saldão de Natal”, a intenção do
capitalista, detentor desse empreendimento, é maximizar as vendas, colocar em
suas vitrines os produtos que ele sabe ser um sucesso para o público, os aparelhos
eletrônicos que se tornaram necessidades básicas em nossa sociedade, as
novidades que vão atrair a atenção dos consumidores compulsivos que adoram os
crediários. Já o editor
86

nem sempre publica livros com bom potencial de vendas. Uma vez que trabalha
com cultura, esse profissional precisa se preocupar com a imagem da editora
perante os formadores de opinião, um fator quase tão influente quanto as vendas
para que a empresa sobreviva. (...) Além de clássicos, editores abrem as portas
também para autores premiados, sendo o mais irresistível, evidentemente um
ganhador de Nobel de literatura. Nesse caso a editora lança até os cadernos de
poesia que o laureado tenha rabiscado aos quinze anos, por saber que serão
resenhados e comentados em todos os meios culturais de prestígio (Bacellar,
2001, p.95).

Esta diferença é clara entre o mercado de livros e outros mercados, como,


por exemplo, o de eletrodomésticos. As Casas Bahia comercializam produtos que
são transformados em objetos de desejo do consumidor capitalista por meio de
campanhas publicitárias agressivas. Já as livrarias oferecem obras individuais,
produtos do pensamento humano. Desde sempre foi isso que provocou o interesse
dos consumidores de livros: compreender e conhecer o que os seus pares pensam
sobre os mais diversos assuntos. Logo, não se vende um livro, como hoje é
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anunciada uma televisão tela plana de 21 polegadas todos os dias no horário nobre
pelo próprio meio, a televisão.
O mercado editorial é constituído por meio das editoras comerciais, que,
na maioria dos casos, são as responsáveis por fabricar o produto livro, e, na outra
ponta do processo, pelas livrarias que somente o vendem, os PDVs (pontos de
venda) dos livros. Além dos editores ditos comerciais, existem também os
prestadores de serviço gráfico, que produzem livros sob encomenda. Isso ocorre
quando um autor procura um empresário do ramo gráfico para que este orce o
serviço completo de edição de sua obra. Neste caso, o prestador de serviço tem
seu lucro garantido com a venda do serviço gráfico diretamente ao autor. Mas na
maioria dos títulos produzidos pelo mercado, não é assim que ocorre.
Os autores normalmente procuram as editoras comerciais, que custeiam
integralmente a edição de seus títulos, apostando no seu potencial de vendas nas
livrarias para obter lucro e garantir a continuidade dos seus negócios. A editora
comercial assume os riscos financeiros de publicação dos originais que a ela são
submetidos. Isto quer dizer que quando um editor recebe um original para
avaliação, para ser possivelmente transformado em livro, ele necessariamente tem
87

que analisar o peso comercial da obra. Nenhum editor desejaria publicar um livro,
se tivesse certeza de que este viraria encalhe14.
No entanto, às vezes mais do que a capacidade de vendas de um único
título, o que permite a sobrevivência de um empreendimento editorial é a
construção de um catálogo forte. O maior ativo de um editor é o seu catálogo. Se,
ao longo da história de seu empreendimento, ele produziu títulos aclamados pelo
público e crítica, certamente provocará o interesse dos principais autores de o
procurarem a fim de que este editor de sucesso seja o responsável por publicar
seus próximos textos sob a forma de livro: “É mais bem visto pela academia e
pelo mercado em geral o autor ser selecionado por uma editora, especialmente
uma editora com um nome conhecido”. Esta é a visão de Laura Bacellar,
experiente editora que trabalhou durante muitos anos na Brasiliense. Para se
construir um catálogo de respeito, que faz a casa editorial diferenciar-se, os
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editores nem sempre publicarão apenas obras de grande apelo comercial, já que
muitas vezes um título considerado relevante do ponto de vista cultural pode vir a
ser um fracasso de vendas.
Façamos uma comparação entre a potencialidade comercial das peças de
teatro de Nelson Rodrigues em contraposição à dos livros religiosos. O que tem
mais possibilidade de venda hoje no Brasil? Certamente, os livros religiosos. De
acordo com os dados de 2000 do IBGE, apenas 7,40% dos brasileiros declaravam
àquele ano não pertencer a qualquer religião. É um público imenso. Ao passo que
os amantes do teatro e da obra de Nelson Rodrigues são uma minoria entre os
brasileiros. Por outro lado, se a publicação das peças de Nelson Rodrigues em
livro pode não reverter em vendas substanciais, podem dar muito mais prestígio
ao editor que está à frente dessa empreitada – e “peso” ao seu catálogo – do que a
edição de mais um livro entre tantos que surgem diariamente para o público
religioso.
O que seria, em termos práticos, um catálogo forte? Um conjunto de
títulos que pudesse reconstruir no leitor o imaginário do livro como depositário do
conhecimento. Esta figura que desde o início da modernidade acompanha o livro
impresso. As principais editoras – aquelas que conseguiram destacar-se e hoje
14
“Encalhe” é uma expressão usada com freqüência no mercado editorial para uma obra que não
tenha bom índice de vendas, e que permanece nos estoques das editoras por um longo período sem
procura pelas livrarias.
88

representam marcas de qualidade e prestígio – formaram catálogos “auráticos”, ou


que associam-se a esta imagem do livro como o veículo privilegiado do saber.
Para tanto, são compostos por obras ditas culturalmente importantes, de um lado,
e de autores consagrados, de outro.
O estabelecimento de catálogos, bem como a separação das obras por
áreas de interesse e das editoras por segmentos no mercado, são conseqüências da
atuação dos produtores de mercadorias culturais e dos profissionais de marketing.
Como o mercado editorial é parte integrante da indústria cultural, nota-se uma
tendência à uniformização do gosto e das práticas de leitura pelo grande público, o
que muitas vezes inibe os editores a inovarem e arriscarem mais. Cada vez mais
são utilizadas pesquisas de opinião que apontam para uma ou outra tendência e
guiam os interesses e preferências comerciais dos homens de decisão (os editores)
no mercado. Mas mesmo com todos os aspectos negativos da massificação da
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cultura no interior da indústria cultural, no entender de Sandra Reimão,

o livro é o ramo de maior margem de maleabilidade na sua industrialização (até


pelo seu baixo custo de produção em relação aos outros ramos) e é o ramo no
qual a esfera de atuação da liberdade do receptor é mais ampla – por exigir dele
uma atitude mais ativa, um esforço mais pessoal e domínio no tempo de fruição
(Reimão, 1998).

As tendências no mercado existem, é claro, e devem ser contabilizadas,


quando um editor está cara a cara com um original, tomando a decisão de aprová-
lo ou não, para formar parte do catálogo de sua editora. Só que o livro é um
produto que não sofre o mesmo tipo de influência do mercado que sofrem outros
ramos. Quando a Philips, por exemplo, desenvolve uma nova linha de televisores,
a empresa está apoiada nessas tendências do sistema capitalista e tem como
objetivo vendê-los para as massas. O produto é serializado e produzido em
milhões de unidades de cada modelo. O livro impresso também é padronizado.
Cada tiragem é feita de, em média, dois mil exemplares, iguais uns aos outros. No
entanto, atinge um público muito seleto, sempre muito específico. Não se
anunciam livros na televisão por causa disso. Não há uma massa para consumi-
los. Como Sandra Reimão assinala, o mercado de livros possui um custo baixo de
produção. Este relativo baixo custo para a produção de um título permite ao editor
89

muitas vezes arriscar mais na publicação de obras de consumo restrito. Em outras


indústrias, isso é mais difícil de ocorrer, porque como se produz em altíssima
escala, um insucesso nas vendas pode significar o fim do empreendimento. No
mercado editorial, o editor pode trabalhar com este baixo custo a seu favor. Ora
produz obras que são mais vendáveis, ora decidirá por publicar obras que lhe
darão um maior prestígio, um requinte ao seu catálogo, mas que sairão na base do
pinga-pinga15. Ênio Silveira, responsável pela construção da famosa marca
Civilização Brasileira, acredita que é nesta contradição que está o caminho para o
sucesso do editor:

O editor, que se preze como tal, vive sempre oscilando entre dois pólos, bem
caracterizados pelo livro de Orígenes Lessa, O Feijão e o Sonho. Se ele se dedica
só ao feijão, ele não é bom editor. E se ele se dedica só ao sonho, ele quebra a
cara muito rapidamente, numa sociedade capitalista ele está fadado ao insucesso.
O contraponto feijão/sonho é que dá a justa medida da qualidade de um editor
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(Ferreira, 1992, p.97).

Diferentemente de outras indústrias que têm mais facilidade de utilizar


estratégias de marketing para incrementar vendas, o livro é um objeto que possui
barreiras de entrada muitas vezes intransponíveis ao seu consumo. Requer já de
início uma familiaridade muito grande do leitor com o idioma em que o texto foi
publicado e com o próprio discurso escrito. Mas, supondo que o consumidor em
questão tenha uma predisposição à leitura, o que o fará em última instância se
interessar por uma dentre as milhares de obras que estão disponíveis nas
prateleiras de uma livraria é mesmo a afinidade de interesses entre o autor do
texto e o receptor, o leitor.

O ritual da edição de livros16 passa, de certo modo, por uma procura de


autores que irão reforçar o catálogo da editora e farão dela um empreendimento de
sucesso. Logo, um dos rituais básicos do processo de edição é uma certa bajulação
em torno do escritor. Autor e editor estabelecem uma relação de confiança mútua
que irá ser fundamental para o sucesso na edição da obra. Dificilmente um autor

15
Expressão utilizada pelos editores para descrever um título com um menor índice de vendas. É
vendido de vez em quando.
16
Estamos nos referindo aqui à edição de um determinado tipo de livro, como os que
convencionamos classificar como literatura, isto é, livros relacionados à figura de um escritor, de
alguém que seguirá a carreira de escritor.
90

que não simpatize com o editor, ou vice-versa, seguirão o processo. Esses dois
personagens precisam estar em sintonia.

Esta situação é, em certa medida, análoga à de uma futura mãe, que precisa
escolher o médico-cirurgião que fará o parto do seu primeiro bebê. Não são raras
as vezes em que o editor, no momento de avisar ao escritor que a sua obra já se
encontra impressa, se utiliza da frase: “nasceu o seu bebê”. Isto porque os
escritores, assim como as futuras mães (que planejam o momento apropriado para
ter seu bebê), passam anos escrevendo um texto, uma idéia que precisa ser
maturada para se tornar um livro, objeto que será apresentado ao público. Os
escritores acabam se relacionando com as suas obras, “os seus filhos”, de maneira
apaixonada. Portanto, mães e escritores se parecem muito, já que ambos
costumam ser muito sensíveis ao cuidarem ou planejarem a sua cria.
A gestação dessa “criança”, desta obra, é uma tarefa a ser realizada e
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concebida a partir da relação entre autor e editor. O primeiro passo desse caminho
é dado no encontro em que o autor apresenta o original ao editor (ou no momento
em que a futura mãe chega ao médico e anuncia: “Doutor, acho que estou
grávida”). Assim como no caso da consulta ao médico, o editor fará um “exame”
para saber se o diagnóstico é gravidez, ou seja, para descobrir se original tem
qualidades para se tornar um livro. Esta avaliação já pressupõe uma certa aura ao
objeto livro. Isto porque não é todo texto escrito que tem a qualidade para tornar-
se livro. Muitas vezes autores de originais permanecem anos percorrendo
inúmeras editoras comerciais, a fim de encontrar um editor que decida pela
publicação de seu texto sob a forma de livro. Muitos dos escritores que passam
por situações como essa acabam ficando traumatizados e desistem de publicar
seus escritos.
Em sua obra Escreva seu livro, a editora de livros Laura Bacellar passa
importantes informações àqueles que buscam tornar-se escritores no sentido da
forma como deve estabelecer-se a relação entre autores e editora. Inclusive um
dos objetivos desse livro é retirar um pouco da culpa que muitos escritores sentem
por não terem conseguido “seduzir” com seus escritos os editores. Ela ensina os
pretendentes a autores a pensar com a cabeça dos editores. Em um dos capítulos,
ela informa as atitudes que o autor deve e as que não deve tomar, enquanto
aguarda a posição final da editora quanto à publicação de seu original:
91

O truque é se apresentar da maneira mais profissional possível, para se diferenciar


da grande massa de completos diletantes, e adotar a atitude correta. Basicamente,
você não tem o direito de pressionar a editora. Publicar a sua obra é um risco
financeiro alto, que a editora assume se quiser. Evite, portanto, se irritar ou
colocar quem atende você contra a parede. E se você enviou sua obra há seis
meses sem obter resposta pode, como regra geral, considerá-la recusada.

Por esse apego a que o autor não raras as vezes mantém com o seu
original, ele muitas vezes acaba acreditando piamente que o seu escrito é uma
obra formidável, que todo bom editor publicaria. Na maioria dos casos, ele se
equivoca e, depois de algum tempo, acaba voltando à realidade.
Se, por outro lado, o original é aprovado, o processo de edição da obra se
inicia com o editor de livros fazendo o anúncio ao novo autor. A partir desse
momento, o editor – assim como o médico, que precisa convencer uma futura mãe
de sua destreza – normalmente procura criar vínculos fortes com os seus autores
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por meio de uma relação intimista, a fim de garantir a simpatia do autor e a sua
permanência como “autor da casa”. Muitas vezes um autor de sucesso irá preferir
publicar seu título por uma editora menor, mas contando com a chancela e a
atenção do seu editor de confiança: “Como você mesmo pode conferir se entrar
em qualquer boa livraria ou site de venda de livros, este (mercado de livros) ainda
é um setor em que microempresas estão muito presentes e têm seus produtos
expostos lado a lado com o das grandes holdings” (Bacellar, 2001: 86).
Portanto, devido à grande concorrência e a um mercado em que os
mecanismos da propaganda e merchandising interferem de forma reduzida, o que
fará um leitor se interessar pelos autores e seus objetos de pesquisa não será tanto
fruto de um modismo ditado por técnicas publicitárias; ao contrário, será o
interesse específico de cada leitor que impera no ato da compra de um título. E,
nesse sentido, o autor passa a ser o ativo de maior valor das editoras.
O editor Jason Epstein (2002) relata uma história emblemática para retratar
um pouco dessa relação íntima que editor passa a estabelecer normalmente com
seus autores. Quando ele era editor da Anchor Books, escreveu certa vez uma
carta a Edmund Wilson oferencendo-lhe um adiantamento pela permissão de
inclusão de um texto de sua autoria em um título que viria a ser publicado. Em
resposta, o autor convidou Epstein a visitá-lo em sua casa:
92

Naquele fim de semana Wilson e eu nos tornamos amigos, e depois disso ele e
sua encantadora esposa, Elena, e Barbara (esposa de Epstein) e eu trocamos
várias visitas. Ao término de um final de semana do Dia de Ação de Graças
vários anos mais tarde, quando eu e Bárbara nos despedíamos dos Wilson,
Edmund me convidou ao seu estúdio e me entregou um manuscrito em dois
fichários pretos. Explicou-me, com sua voz de alto timbre e um tanto sem fôlego,
que o autor era seu amigo, Volodya Nabokov, e que o romance que me entregava
era repulsivo e não podia, por lei, ser publicado, mas que eu deveria lê-lo assim
mesmo (Epstein, 2002, p.76).

Por esta relação de amizade entre Epstein e Edmund Wilson, este autor,
que era amigo de Nabokov, entregou ao editor os originais de Lolita para serem
avaliados pelo editor para que fosse publicado. Se não tivesse se tornado amigo e
ganhado a confiança do autor Wilson, provavelmente Epstein não teria tido a
oportunidade de publicar esse clássico.
Editor e autor, portanto, são os dois personagens que, em última medida e
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necessariamente, precisam estar em sintonia constante até o lançamento da obra,


para que o livro seja publicado de maneira correta e com a aprovação do autor. O
autor de um título, que, à sua revelia, tenha sofrido alterações importantes na sua
edição dificilmente voltaria a publicar novos originais de sua autoria com a
editora que o tenha ignorado durante o processo. O mesmo ocorre com um
médico, que durante uma gravidez não tenha acompanhado corretamente o
desenvolvimento do feto, ou cometido erro grave durante um parto. Se a mãe
engravidar uma segunda vez, com certeza buscará outro profissional. Tudo isto
aponta para o fato de o mercado livreiro não seguir exatamente os princípios
impessoais que caracterizam outros campos da produção e comercialização de
bens na sociedade capitalista.

4.2
O ritual da noite de autógrafos: o “batizado”

Após a publicação do título, autor e editor voltam a ficar lado a lado em


um ritual que finaliza o processo de uma edição bem-sucedida: a noite de
autógrafos, o batizado daquele “filho” que acaba de nascer.
93

É a ponta do processo de edição, de gestação da obra, mas também o


momento mais esperado pelo autor. A noite de autógrafos é o evento em que o
autor recebe de seus amigos e colegas os cumprimentos por ter publicado uma
obra. A noite de autógrafos para ser sucesso depende exclusivamente dos contatos
do autor: “Isso porque as únicas pessoas que se locomovem até uma livraria para
obter o autógrafo de um autor – quando não se trata de alguém famoso – são seus
parentes e amigos” (Bacellar, 2001: 132).
Esse ritual só faz sentido, é claro, em uma sociedade em que não apenas
existe uma cultura letrada, como também se caracterize por valorizar o acúmulo
de saberes por parte do indivíduo. Segundo o historiador Robert Darnton (1990,
p.130), “a presença dos livros na prestação de juramentos, na troca de presentes,
na concessão de prêmios e na doação de heranças oferece pistas sobre seu
significado para diferentes sociedades”. Somente nesse pano de fundo pode-se
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pensar em gerar um acontecimento ritualístico dessa natureza, que tenha por


objetivo venerar uma pessoa, que é diferente das demais pelo fato de ela ter
brindado a sociedade com a publicação de uma obra literária de sua autoria.
Nessa comemoração, o autor normalmente não apenas opina em relação ao
lugar em que ele dará os autógrafos, como também resolve os mínimos detalhes
da noite: se há iluminação suficiente para que ele assine os livros, a qualidade dos
vinhos que serão servidos aos convidados e, é claro, a livraria em que ocorrerá a
confraternização. Os autores costumam escolher livrarias que são como
“cúmplices” da publicação da obra, isto é, aqueles espaços em que os autores
freqüentaram durante anos em busca de livros que os tivessem inspirado a
produzir a obra final, motivo da festa.
Ninguém freqüenta noite de autógrafos por prazer. A presença nela é uma
obrigação para os amigos mais íntimos do autor que lança a obra. Por isso, é
comum marcar os lançamentos às segundas-feiras, dias da semana em que
normalmente não se costuma ter eventos sociais para prestigiar. Sem a
concorrência de peças de teatro, formaturas, festas de aniversário etc., a noite de
autógrafos acaba recebendo público, já que dificilmente há a desculpa de ter um
evento ocorrendo simultaneamente a ela. O lançamento de um livro assemelha-se
muito a uma formatura de colégio ou faculdade. Assim como nas formaturas a
família e os amigos mais próximos do laureado não podem ausentar-se da
94

cerimônia e os amigos mais próximos devem ficar na primeira fila, no caso da


noite de autógrafos, família e amigos não podem faltar e têm que estar na fila que
é formada pelos convidados para receber das mãos do autor a dedicatória da obra
publicada.
Podemos estabelecer outras associações entre a noite de autógrafos e a
formatura. Em ambos os casos, as pessoas estão se reunindo para celebrar um
novo status social, tanto para o formando quanto para o autor. O formando terá
concluído o segundo ou terceiro grau, enquanto o autor terá realizado um grande
sonho na vida dele: ter publicado um livro. Diz o ditado popular que todos,
durante a vida, devemos plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Este
reconhecimento da sociedade em torno dessa nova conquista – a publicação de um
livro – se dá tanto por meio da noite de autógrafos quanto por mais uma
importante linha no currículo do celebrado. Se o formando está concluindo um
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curso de graduação, deverá fazê-lo constar em seu currículo. Da mesma forma,


um escritor que tenha publicado um livro deve igualmente mencionar esse feito
entre suas conquistas profissionais, entre os fatos relevantes de sua existência.
As próprias editoras costumam vangloriar-se do produto que colocam no
mercado – o livro –, e acabam por transmitir indiretamente a idéia de que esse
objeto estaria investido de uma aura, mesmo com toda a concorrência eletrônica
dos e-books ou da incompatibilidade benjaminiana de associar um produto da
indústria cultural com a aura. Na página web da Companhia das Letras, uma das
mais importantes editoras brasileiras da atualidade, encontramos a seguinte frase:
“Diante da página impressa de um livro, o leitor está sozinho com sua imaginação,
o único lugar onde cada um pode viver a vida que deseja”. Este trecho do texto
institucional da empresa apresenta o livro como um objeto capaz de transformar a
vida dos indivíduos. Por meio dele e com o auxílio da imaginação, o leitor seria
capaz de viver uma outra vida. Isto é como dar um poder divino ao livro, que
poderia vir a ser promotor de uma mudança interior no indivíduo. Esta opinião,
presente não somente nessa frase institucional, mas compartilhada na sociedade
ocidental em relação ao consumo de livros impressos se contrapõe à visão dessa
mesma sociedade no que se refere ao uso dos demais meios de comunicação.
Associado ao prestígio da cultura letrada, considera-se o livro um meio
com poderes especiais, que somente traz benefícios ao seu usuário, o leitor, no
95

que contribuiria para desenvolver o seu raciocínio e transmitir cultura. Já outros


meios, como, por exemplo, a televisão, associados à cultura de massa, são vistos
como veículos da “baixa cultura”.
Nesse sentido, recentemente o governo federal iniciou um esforço de
valorização do livro, a partir da criação do projeto Fome de Livro. A idéia é
disseminar a cultura do livro pelo Brasil, uma vez que as estatísticas brasileiras
ligadas à educação e principalmente à leitura precisam ser melhoradas. Eis o texto
do governo, divulgado no site oficial da campanha, atestando qual deveria ser a
posição oficial do país sobre a importância do Fome de Livro e do próprio livro
como meio:

O programa Fome de Livro tem como objetivo central assegurar e democratizar o


acesso ao livro e à leitura a toda a sociedade, a partir da compreensão do valor da
leitura e da escrita como instrumento indispensável para que as pessoas possam
desenvolver plenamente suas capacidades humanas, exercer seus direitos,
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participar efetivamente da sociedade, melhorar seu nível educativo, fortalecer os


valores democráticos, criar, conhecer os valores e modos de pensar de outras
pessoas e culturas e ter acesso ao conhecimento e à herança cultural da
humanidade mediante a palavra escrita.

4.3
Como os livros são consumidos

Diferentemente do conteúdo informativo veiculado nos demais meios de


comunicação, o texto impresso sob a forma de livro é autoral, e o próprio objeto,
quando do momento de sua aquisição, passa a possuir um dono. Na televisão, um
programa televisivo possui vários idealizadores e produtores. No jornal impresso
ou eletrônico, igualmente notamos que sua produção faz parte de um esforço
coletivo para o acúmulo das informações que formam uma única edição. No livro,
o autor é a única pessoa responsável pela fidedignidade do texto, pela veracidade
das informações, que ele mesmo produziu ao cabo de anos de pesquisa e
dedicação a um assunto. Não é coincidência, portanto, quando encontramos no
texto de apresentação da editora Nova Fronteira a importância da figura do autor
para o sucesso do empreendimento: “Publicar os melhores autores nacionais e
estrangeiros sempre foi o trabalho e a principal fonte de inspiração da Editora
Nova Fronteira”.
96

E é esse aspecto peculiar ao livro que o faz também adquirir características


auráticas como objeto. Ainda que possamos reproduzi-lo hoje a uma velocidade e
quantidade inimagináveis antes de Gutenberg, e que segundo Benjamin “a
autenticidade das cópias não tem nenhum sentido”, o livro sempre foi e será
produzido de forma “singular”, composto de elementos espaciais e temporais, que
o aproximam da aura, tal como definida por Benjamin. Não seria mais uma
“aparição única de uma coisa distante”, porque a reprodutibilidade técnica retirou
do livro o seu caráter único. No entanto, mesmo sendo um bem reprodutível como
outro qualquer da indústria cultural, o livro ainda possui uma singularidade como
objeto, na medida em que, por mais que sejam produzidas centenas de milhares de
cópias de um determinado título, um texto impresso sob a forma de livro sempre
remeterá a um tempo e a um espaço próprios, de onde ele surgiu e se constituiu
como uma obra literária.
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A aura de uma obra estaria também relacionada a esta sua característica de


ser encontrada em uma produção artística com a finalidade de transformação do
cotidiano. Por mais que um livro possa, hoje em dia, ser “n” vezes reproduzido,
ainda conseguimos ver o escritor como um artista que cria o seu objeto
individualmente, com uma “beleza que parece natural e orgânica”, para utilizar
uma definição de aura feita por Andréas Huyssen (1997, p.30).
Essa aura também se associa diretamente com o próprio suporte impresso
do livro. Desde a invenção da prensa tipográfica por Gutenberg, o formato do
livro permanece o mesmo até hoje. Essa permanência na sua materialidade
garante uma singularidade ao livro impresso, que o contrapõe aos demais produtos
da indústria cultural, que mudam constantemente para se adequar às necessidades
do consumidor. A aura também se presentifica na forma única que constitui o
livro impresso, e que remete à época da passagem do livro manuscrito de sua
apresentação como volumen para sua orientação como códice.
Para Adorno e Benjamin, a autonomia da obra de arte era garantida pela
distância em que ela se colocava em relação à vida, e pela aura de autenticidade e
de unicidade que a constituía. A padronização e a produção em série de
mercadorias e bens culturais sacrificariam a aura da obra e acabariam por
disseminar bens padronizados para a satisfação de consumidores com
97

necessidades iguais, no que Adorno afirma que “a cultura contemporânea confere


a tudo um ar de semelhança” (Adorno, 1969: 127).
Se há por um lado esta visão adorniana/benjaminiana de não crer em uma
aura advinda dos bens produzidos pela indústria cultural, por outro lado existe a
posição de Andreas Huyssen, teórico que lança um outro olhar sobre a cultura
fabricada industrialmente para as massas.
Segundo Huyssen (1997), a ascensão de uma indústria cultural ocidental
coincide com o declínio da vanguarda histórica. “Nos dois grandes sistemas de
dominação do mundo contemporâneo, a vanguarda perdeu sua explosividade
cultural e política e se tornou ela própria um instrumento de legitimação” (p.29). E
é aí quando a vanguarda perde seu poder de crítica, despolitizando-se, que surge
então uma cultura afirmativa, incorporando a vanguarda ao sistema, e na qual o
fetiche da mercadoria se apresenta como um elemento fundamental que passa a
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caracterizá-la.
Esse fenômeno do fetichismo da mercadoria, por sua vez, seria
responsável por atribuir um valor de uso aos produtos culturais massificados, que
são consumidos nos momentos de ócio do proletariado. A relação que
consumidores estabelecem com esses objetos capitalistas de desejo traria uma
nova “aura” para os produtos diferenciados, prestigiosos, como o livro se nos
apresenta hoje. Karl Marx, em O capital, definiu este conceito de fetichismo da
mercadoria para explicar o sistema capitalista moderno. Com o fetichismo, a
forma-mercadoria ocultaria o trabalho social intrínseco aos produtos-mercadorias.
A troca social passaria a ser regida pela lei do valor. Isto quer dizer que a troca
não ocorreria mais por necessidade social, e sim segundo os atributos relacionados
intimamente com o produto-mercadoria. Esse fetichismo fica mais explícito
quando o produto se transforma em uma marca de distinção social, como é o caso
dos livros.
Realmente promove uma distinção social para o consumidor de livros,
uma vez que o Brasil possui apenas cerca de 1.500 livrarias (projeções apontariam
como 10 mil o número ideal para elas) e quando em 89% dos municípios
brasileiros não são providos de um sequer ponto-de-venda de livros. São poucos
os brasileiros que possuem acesso aos livros. O texto abaixo, escrito por Paulo
Thiago de Mello e publicado no caderno Prosa&Verso, do O Globo, é um
98

exemplo de um ritual fetichista praticados por leitores quando estão em contato


com os livros nas livrarias e percorrem as prateleiras em busca do “encontro que
poderia mudar a sua vida para sempre”, como relata o autor:

Um amigo com quem percorria sebos e livrarias, costumava examinar os livros


nas prateleiras, percorrendo-os simultaneamente com os olhos e o dedo indicador,
que passeava pelas lombadas perfiladas (...) De repente, parava. (...) Retirava
então o livro da estante, com reverência, e o abria aleatoriamente, deixando as
páginas deslizarem por seus dedos (...) Depois, fechando os olhos, cheirava o
livro, prazerosamente. Diante do meu espanto, esclarecia que o cheiro do papel é
um bom indicador da qualidade do livro.

Os freqüentadores de livrarias se distinguem dos consumidores de outros


bens culturais na maneira como se comportam no ponto-de-venda. É comum que
o leitor de livros permaneça muitas vezes durante horas entre as prateleiras que
compõem o acervo de uma livraria. Nas maiores lojas, é também freqüentemente
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notada a existência de poltronas para leitura, além de pequenos bares, para os que
gostam de tomar um café enquanto folheiam páginas de livros que podem ou não
vir a ser adquiridos, após o fim da investida. Dependendo da intensidade da
relação que o indivíduo estabelece com o objeto livro, ele pode chegar ao limite
mesmo, como citado na passagem acima, de cheirar o livro, e atribuir a este ritual
um poder de interferência sobre o consumo de uma obra.
O livro tem uma significação e lógica de uso próprias. Quanto mais antigo,
mais valorizado um exemplar ou uma edição se torna. Um exemplo do ponto de
vista mercadológico do culto ao livro antigo, ao “exemplar empoeirado”, é a
proliferação de sebos que se espalham cada dia mais pelas cidades. Os leitores que
desejam se desfazer de livros não os jogam fora; normalmente eles os vendem aos
sebos por valores simbólicos, para que estes os coloquem novamente à venda. A
aura do livro pode ser notada no cotidiano do consumo desses livros dos sebos,
quando, em contato com exemplares antigos, os leitores encontram dedicatórias
preciosas ou anotações feitas nas margens das publicações a lápis. Essas
inscrições sobre o impresso funcionam como forma de distinguir aquele exemplar
anotado de todos os demais que possam ser encontrados daquela edição. A partir
daquele momento, o valor do exemplar é renovado, na medida em que mais
individualizado se torna. Há leitores que se especializam em encontrar essas
99

preciosidades nos exemplares que hoje estão à nossa disposição nos sebos, e se
apaixonam pelo que encontram.
O valor simbólico do objeto livro não está presente somente quando
pensamos nessa sua permanência e indescartabilidade. Um exemplo da força do
livro como um signo da nossa sociedade está evidenciado, por exemplo, nas
bienais. Durante as duas semanas em que esta feira ocorre – mesmo com a
baixíssima média de leitura de livros pela sociedade brasileira (por ano, cada
brasileiro adulto e alfabetizado lê, em média, apenas 1,2 livro) – todos os anos as
bienais de livro não param de bater recordes de público e de venda. Isso nos faz
crer que a presença do público neste evento se torna como que obrigatória, se
transformando mesmo em um ritual em nossa sociedade. Esta visita maciça do
público é uma demonstração do apreço e da valorização da cultura ocidental com
o livro, e é, portanto, pela distinção de estar em contato com tão nobre objeto que
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faz-se necessário ir ao seu templo de culto e exposição no intuito de contemplá-lo.


Uma pesquisa realizada em 2004 pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros
(SNEL), “O retrato da leitura no Brasil”, informa que 89% dos brasileiros vêem
no livro um meio de transmissão de idéias. E dentre os que têm acesso ao livro,
78% manifestam tê-lo em alto apreço.
O ritual de fruição do livro continua fora das livrarias, bienais e sebos e
atinge a vida privada dos indivíduos. Outros traços distintivos no consumo de
livros e que formam diferentes categorias de leitores são possíveis de serem
percebidos e estão presentes na relação que estes consumidores estabelecem com
o objeto livro no ambiente privado das suas residências.
Uma “regra” que é própria ao mercado de livros e demonstra o quanto a
sociedade valoriza este objeto e, de certa forma, o cultua é o fato de os leitores
não jogarem, de forma alguma, no lixo livros usados ou que não tenham mais
utilidade. Os jornais diários, no dia seguinte à sua publicação, são jogados fora; as
revistas ficam guardadas, no máximo, um mês; os livros nunca os descartamos.
Algumas pessoas vão a sebos vender livros, mas nossa sociedade ainda não se
acostumou com a idéia de desfazer-se deles, após serem lidos. Acumulamos livros
durante anos em nossas estantes, sem termos coragem de doá-los, ou de jogá-los
na lixeira, como fazemos com outros produtos culturais não-duráveis, como CD’s,
fitas de vídeo, revistas, jornais, aparelhos de televisão usados ou antigos e mesmo
100

peças de computadores (ainda que estejamos na era da eletrônica). Mesmo os


livros não intelectualizados, como livros de auto-ajuda, de piadas, ou então
aqueles com dicas de culinária, nenhum deles é considerado descartável.
A própria disposição dos livros no interior das casas demonstra o apreço e
culto a este bem cultural. Normalmente, nas casas das camadas médias urbanas, os
livros estão perfilados em grandes prateleiras de móveis situados nas salas-de-
estar. O livro, portanto, se torna um dos elementos mais importantes da residência,
na medida em que fica exposto no cômodo da casa mais utilizado, local de
circulação irrestrita de pessoas e onde são recebidos os visitantes. E não raras as
vezes encontramos uma enciclopédia, no centro da estante, como o símbolo do
conhecimento que pode ser transmitido por meio do livro.
Nas casas em que os livros não estão presentes na sala-de-estar, eles
ganham um cômodo próprio, onde serão protegidos das mãos e olhares intrusivos
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dos visitantes. É a biblioteca particular, que se trata de um fenômeno um pouco


menos recorrente nas residências, mas que aparece como um símbolo de distinção
por parte do seu proprietário. Normalmente, quem possui uma biblioteca
particular é o leitor por excelência, o chamado intelectual. Como disse certa vez o
estadista britânico Winston Churchill, “nada faz um homem tão respeitado quanto
uma biblioteca”.
Existe ainda uma mais moderna forma de exposição de livros no ambiente
privado: o livro como um objeto de adorno. Os chamados “livros de arte”,
produzidos com requinte, capa dura, papel couchê, impresso em quatro cores,
estão com freqüência dispostos nas mesas de centro das salas-de-estar, ou então
em prateleiras dispostas nos quartos de dormir, como um signo da importância
atribuída à leitura, ou à aquisição de conhecimentos por meio do livro por parte
dos membros de uma família.
101

4.4
O livro nos meios de comunicação: no jornal, no cinema, na TV e na
internet

Apesar das estatísticas baixas de leitura – dos 26 milhões de brasileiros


acima de 14 anos que dizem ter o hábito de ler, 47% têm, no máximo, 10 livros
em casa –, o livro possui status de meio de comunicação de prestígio na sociedade
brasileira. Programas de entrevistas na televisão freqüentemente dão destaque aos
autores brasileiros e estrangeiros, os jornais de grande circulação continuam a
produzir semanalmente suplementos literários – apesar de não serem cadernos
atraentes do ponto de vista comercial –, a internet aparece como um grande ponto-
de-venda de livros impressos17 e o cinema adapta grandes obras literárias, assim
como lança em livro seus roteiros e as biografias de seus produtores. Essa empatia
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dos produtores e reprodutores da cultura de massa com o livro pode ser


evidenciada pela série de homenagens rendidas cotidianamente a ele nas páginas
dos jornais, programas de televisão e sites da internet.
Os suplementos literários dos jornais representam muito bem a
importância que os meios de comunicação na atualidade ainda dão ao livro
impresso. Os cadernos literários diferem em grande medida das demais editorias
do jornal impresso. Primeiro, porque, apesar de noticiarem os lançamentos do
mercado editorial, não se caracterizam por utilizarem a linguagem jornalística.
Diferentemente dos conteúdos objetivos que estão presentes e são veiculados nos
demais cadernos, nos suplementos literários a resenha é a forma encontrada para
transmitir a notícia da publicação de livros. Suprime-se, dessa forma, a lógica
limitadora do lide jornalístico e abre-se um espaço para a reflexão e a
interpretação das obras que chegam às livrarias diariamente – tanto as presentes
em espaços tradicionais nas cidades, quanto as virtuais, na internet. Na maioria
das vezes, a resenha é elogiosa, escrita por um especialista que atesta a
importância da obra publicada.
Ao criarem um suplemento para falar especificamente de livros – mas que
poderia falar de outro empreendimento cultural, como teatro ou culinária –, os
17
Hoje, 17% do faturamento da Livraria Cultura, de São Paulo, são provenientes da venda de
livros impressos pela internet, bem como 19% do total de vendas da Livraria Saraiva durante o ano
de 2004, ultrapassando a cifra de R$ 51 milhões.
102

editores dos jornais se distanciam do objetivo principal de uma publicação


periódica jornalística: que é a de informar sobre fatos que sejam do interesse
público. E, com isso, dessa forma, acabam por estabelecer – a partir de critérios
não revelados – que o livro é um objeto que deve – ou deveria, pelo menos – ser
contemplado pelos diversos grupos/segmentos sociais que adquirem a edição de
sábado dos jornais.
Seria ilusão achar que a maioria dos consumidores de jornais lê livros e
desejaria um caderno que os tivesse como tema principal. Se essa fosse realmente
uma necessidade do leitor – que tivesse sido relevada por uma das muitas
pesquisas de marketing realizadas conosco por atendentes simpáticas – os
suplementos literários não seriam postos praticamente após todos os demais
cadernos pelo encadernador, no ordenamento dos cadernos de uma edição de
jornal. Nas edições de sábado do O Globo – dia em que se publica o Prosa&Verso
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– todas as editorias aparecem na frente do caderno de livros. Sinal de que é um


grupo restrito de leitores que se interessa pelo tema. A ausência de anunciantes
nas páginas dos suplementos literários é outro indicativo das limitações desse
assunto do ponto de vista mercadológico. Se não há anunciantes, ou se há poucos
pelos menos, provavelmente são também poucas as pessoas que chegam a folhear
aquelas páginas.
Ora, se o caderno de livros não é lucrativo no que se refere à venda de
publicidade – diferentemente dos cadernos sobre carros, internet, turismo, que
vivem basicamente dos anúncios – e possui poucos leitores assíduos, por que o
livro continua sendo assunto de um suplemento próprio nos jornais de circulação
nacional? Uma das hipóteses que podemos levantar é a de uma predisposição dos
editores/produtores de promover o livro como um objeto cultural. Se a
permanência do “culto aos livros” nos jornais de grande circulação não pode ser
explicada pela aferição de lucro por parte dos proprietários desses veículos de
comunicação, poderíamos pensar no prestígio, na distinção social que se torna
promover a cultura livresca, frente a uma cultura brasileira que é
predominantemente oral e televisiva. Trata-se de um movimento silencioso
liderado por intelectuais – incluindo-se aí os jornalistas e editores que idealizam e
produzem cotidianamente as páginas dos jornais – e se apoiaria na visão de
cultura como algo a ser adquirido pelos indivíduos, através do acúmulo de
103

conhecimentos. O livro se tornaria o símbolo, por excelência, dessa crença, por


ser por meio desse objeto que, desde o final do século XV – se não contarmos
com os manuscritos –, o homem registra e difunde os seus conhecimentos, as suas
ciências.
Essa importância do livro é evidenciada nas crenças que compartilham os
intelectuais acerca das funções do objeto na sociedade. Se adquirir um livro
significa acumular conhecimento, e isso, por sua vez, me faz um indivíduo culto,
mais instruído do que outras pessoas que não consomem livros, logo não seria
difícil supor a razão por que os jornais possuem suplementos literários. Mesmo
que não se leia o que lá se escreve sobre a publicação das mais variadas obras,
confere prestígio ao veículo falar a respeito de um objeto tão nobre, que na visão
de muitos garante a “aquisição da verdadeira cultura”.
No caderno literário, os jornalistas possuem também uma maior
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flexibilidade em relação às normas estabelecidas pela direção dos jornais para a


produção dos textos informativos. Em nenhum outro caderno do jornal, uma
empresa recebe menção em um lide jornalístico, sem que a matéria seja paga. No
caderno de carros, a matéria nunca começará com: “Por iniciativa da General
Motors...”. Mas o suplemento literário tem o costume de prestigiar a editora que
traz para o mercado um título importante, fazendo muitas vezes no próprio lide
referência a ela. A casa editorial, diferentemente de outras empresas que trazem
para o mercado carros, utensílios domésticos e outras invenções tecnológicas,
publica livros, que nessa visão da cultura como acúmulo/aquisição de
conhecimento se torna um objeto carregado de valor simbólico. E que é, portanto,
capaz de subverter as normas das empresas jornalísticas, porque o que está em
discussão é a “aquisição de cultura”. Subvertendo, portanto, a lógica do
jornalismo impresso, que é dependente dos anunciantes – isto é, mesmo sem ter
editoras e livrarias como anunciantes semanais –, o livro continua a ser
homenageado e cultuado em caderno próprio, e editoras e livrarias são
“premiadas” com publicidade gratuita, sob a forma de produto jornalístico. São
notas e reportagens sobre as obras que elas editam e comercializam, tendo o nome
de suas empresas divulgadas, e é bom que se frise, sem ter que gastar um centavo
para isso.
104

Se a presença do livro nos jornais não se traduz em receita através de


publicidade, o destaque a ele, por sua vez, se justifica pelo seu valor simbólico
assumido na sociedade – este sim interessa aos jornais e confere prestígio ao
veículo que fala dele:

Os suplementos literários transmitem uma idéia de livro e de literatura e


significam prestígio para os jornais e status para quem trabalha neles. São
freqüentes os casos de suplementos literários deficitários, cuja receita de
publicidade não chega a cobrir o seu custo. Mas a relação custo-benefício para
um jornal, assim como para uma sociedade, não se mede apenas pelo seu valor
financeiro. É como se o jornal se valorizasse na valorização do seu leitor
(Travancas, 2001).

É comum os produtores dos cadernos literários divulgarem gratuitamente


as últimas novidades do mercado editorial, fazendo uso da imagem de capa de
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livros pré-selecionados e uma frase, ou no máximo uma notinha, sobre cada um


deles. As frases, na maioria das vezes, informam a “razão” pela qual o leitor
deveria comprar a obra em questão. Por exemplo, Três verões, de Julia Glass,
“ganhou o prestigiado National Book Award”. Édipo é uma “reunião de contos
premiada pela União Brasileira dos Escritores”. Normalmente, nessas frases são
destacadas qualidades da obra que é divulgada, classificando-a através de critérios
não explicitados pelos editores. Mas, mesmo sem serem revelados, são quase
sempre identificados, se o observador é um leitor mais treinado. Seriam razões
para divulgar uma obra: se for relevante do ponto de vista da temática (temas
pouco familiares do leitor médio), ou que recebeu ótima crítica (leia-se da crítica
especializada), que recebeu prêmios (internacionais ou dos nacionais mais
importantes), ou se for obra de “intelectual de primeira linha”. A importância da
obra acaba sendo medida por esse paradigma classificatório e hierarquizante que o
modelo de “aquisição de cultura” engendra. Consumimos então o livro que
recebeu o prêmio Jabuti, apreciamos os clássicos, pois são “livros que
ultrapassaram a época de sua publicação, e são lidos por gerações e gerações”.
Tendo em vista essa lógica, é natural que o caderno de livros nos oriente quanto a
adquirir o livro “certo”, a obra que “irá fazer a diferença”, fazendo com que nos
tornemos pessoas “intelectualizadas”, “distintas”, “cultas”.
105

O cinema tem buscado também cada vez mais utilizar-se do prestígio do


livro, enquanto o mercado editorial encontrou uma forma de alimentar-se do
sucesso das telas. Surgem a cada dia mais e mais publicações derivadas de filmes.
Hoje em dia, há uma extensa oferta de obras impressas que são produtos da
indústria cinematográfica – como os roteiros que se publicam atualmente em
volumes separados ou os textos que contam as histórias de realização de filmes. A
respeito desses últimos observa Vera Follain (2006):

Essas edições, que pelo próprio apelo visual do projeto gráfico, não parecem ter
um objetivo meramente didático, tiram partido da popularidade do audiovisual e
do prestígio remanescente da cultura livresca, movimentando o mercado editorial:
do livro primeiro, literário, passa-se para as telas e, depois, retorna-se ao livro,
que se alimenta da relação entre o primeiro e o segundo produto. O livro, como
meio de comunicação ainda capaz de evocar a esfera de uma cultura elevada,
legitima esses textos relacionados a uma fase pré-filme, que alcançam um novo
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status, como registros de uma memória cultural que deve ser preservada.

A televisão é outro meio que irá tirar partido da importância social


atribuída ao livro como meio de comunicação, para dar status intelectual à parte
da sua programação. A televisão oferece programas que promovem o lançamento
de obras literárias, como são os casos do “Programa do Jô”, da TV Globo e do
“Espaço Aberto”, apresentado pelo jornalista Pedro Bial, na Globonews. Em
ambos os programas nota-se que a maioria dos entrevistados são escritores. De
uma certa forma, isto demonstra o respeito dos produtores de TV à cultura
livresca.
Além disso, a televisão acaba por incentivar as vendas no mercado
editorial, na medida em que empresta a ele seu incrível poder de comunicar para
as massas para divulgar autores e suas obras literárias lançadas cotidianamente,
como aponta Sandra Reimão:

É preciso considerarmos que a leitura de livros é um ato que, de alguma forma,


sempre sofre uma certa pré-configuração e pré-orientação. Em nossa sociedade
midiática, as representações dos livros nos demais meios de comunicação de
massa são espaços privilegiados dessa pré-codificação implícita ao ato de leitura;
no incentivo à leitura, quer pelo fato de o autor ser uma personalidade midiática,
106

quer pela adaptação da trama de uma obra de ficção, em qualquer um dos dois
casos, a televisão estaria ajudando a romper o círculo de desinformação que isola
o potencial leitor do universo da literatura (Reimão, 2001, p.15).

Mesmo com a popularização da televisão, do cinema e o avanço da


internet – veículos de comunicação que são objetos de inúmeros estudos da área
de Comunicação – o livro impresso permanece aurático na distinção que promove
entre os indivíduos, nos poderes que são a ele atribuídos pela sociedade e que são
conferidos aos que, por meio dele, se informam.
E não são apenas o jornal, a televisão e o cinema que vão valer-se da aura
do livro para distinguirem seus produtos. A internet, ainda que tenha construído o
conceito de e-book (livro eletrônico), tem se apresentado como um veículo
alternativo ao livro tradicional, mas não substitutivo. E em muitas situações toma
emprestada essa aura do livro impresso para desenvolver seus subprodutos.
O fato de o conteúdo do objeto livro ser transportado para uma mídia
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eletrônica não torna o livro tradicional, de papel, obsoleto. Prova disso é que um
dos primeiros sites de comércio eletrônico da rede, a Amazon.com, é uma livraria
virtual, que tem como especialidade a venda de livros impressos (portanto, não
nos referimos aqui a e-books). E, até hoje, um dos setores mais fortes do comércio
eletrônico é justamente o da venda de livros impressos.
A internet apresenta importantes diferenciais em relação ao livro impresso.
Entre eles estão a sua velocidade de transmissão e a capacidade de
armazenamento da informação. “Até há pouco tempo não podíamos pensar uma
coisa e tê-la feita nesse preciso momento. As mudanças numa página escrita ou
numa tela pintada levavam pelo menos alguns minutos a serem feitas. Agora, a
velocidade de interação atingiu a imediaticidade” (Kerckhove, 1997, p.81). Uma
das principais novidades trazidas pela internet e que a diferenciam dos meios
impressos é a sua velocidade de interação.
A interação proporcionada pela internet não se destaca apenas pela
imediaticidade na captura de informações. O banco de dados disponível na rede
para pesquisas, a possibilidade de constituição de comunidades virtuais para o
debate de temas de interesse para pesquisadores, a facilidade com que
informações dos mais diferentes tipos são obtidas, tanto na forma escrita, como
através de arquivos audiovisuais, em sites jornalísticos; todas essas ações são
107

possíveis de serem realizadas no espaço privado, na relação que indivíduos em


pontos remotos do planeta estabelecem em interação com computadores pessoais,
portanto, não dependendo mais de outros agentes e espaços para torná-las
possíveis.
O acesso à informação é instantâneo. Não precisamos mais sair de nossas
casas, nos transportar para livrarias, conversar com livreiros e outros leitores, a
fim de saber dos últimos títulos lançados e adquiri-los. Podemos realizar tudo isso
sem sair de nossas casas, plugados a computadores e mediados pela internet e
pelas relações virtuais que hoje em dia podemos estabelecer com seu auxílio.
Essas vantagens são indiscutíveis. O livro tradicional não oferece ao leitor
esse nível de interação com outras fontes. A internet oferece enciclopédias virtuais
e amigos virtuais sem custos financeiros ou de tempo adicionais. O livro
impresso, ao contrário, não foi planejado para o ritmo agitado da modernidade
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tardia. Quando estamos lendo um texto sob a forma de livro impresso e


precisamos consultar um dicionário ou uma enciclopédia, faz-se necessário
interromper a atividade de leitura, ir à biblioteca, encontrar o outro livro que
precisa ser consultado, percorrê-lo, achar o verbete e voltar à leitura anterior. Com
o suporte eletrônico, estas atividades são reduzidas a minimizar a janela virtual em
que se encontra publicado eletronicamente o texto e maximizar a janela do
dicionário ou buscador virtual.
Uma das principais dificuldades hoje de basear um estudo ou adquirir
conhecimento pela internet está no problema da credibilidade das fontes. Para
cada assunto das diferentes áreas de interesse, surgem cotidianamente inúmeras
páginas na web com informações diversas e muitas delas duvidosas quanto à sua
veracidade. Qualquer pessoa pode acessar à internet, construir sua página com
informações e escrever lá o que desejar. Não há censuras prévias. O livro
impresso, ao contrário, é um bem tangível e de credibilidade.
Muitos teóricos acreditavam que, com o surgimento do livro eletrônico, a
cadeia de produção da indústria do livro impresso não se faria mais necessária, e
qualquer pessoa que estivesse conectada ao mundo virtual poderia tornar real o
sonho de publicar uma obra de sua própria autoria. Dessa maneira, o processo
tradicional de edição de livros impressos deixaria de existir. As casas editoras não
controlariam mais a produção, a edição e a diagramação de textos. Os autores
108

contariam com o auxílio direto de computadores pessoais dotados de softwares de


editoração eletrônica. O original seria oferecido diretamente do autor em direção
ao leitor/consumidor. Os conselhos editoriais não fariam sentido. Não haveriam
que discutir as linhas editoriais, uma vez que cada autor teria a sua página web,
por meio da qual poderia vender os seus próprios títulos para seu público. A
distribuição e a venda não precisariam ser realizadas em livrarias, pois o objeto
livro não mais existiria como ainda hoje o concebemos; a relação se estabeleceria
diretamente entre autor e leitor via internet.
Jason Epstein é um dos entusiastas da versão eletrônica do objeto. Na sua
visão, as práticas editoriais tradicionais impõem obstáculos entre leitores e
escritores, que, com a transposição da indústria do livro para o ambiente virtual,
deixariam de existir. Para esse editor, um dos principais problemas do mercado
editorial tradicional está na dependência dos consumidores em relação às livrarias.
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Com a expansão das redes de megastores, as boas livrarias que existiam nos
bairros foram desaparecendo, face a uma maior capacidade de estocagem e um
maior giro das grandes livrarias situadas nos shopping centers:

Entre as muitas tiranias a serem superadas pela Web estarão as exigências de giro
dos livreiros no varejo. Nas prateleiras da internet infinitamente expansíveis,
haverá espaço para uma variedade virtualmente ilimitada de livros, que poderão
ser impressos a pedido ou reproduzidos nos hand-held readers ou dispositivos
similares. A invenção do tipo móvel criou oportunidades para os escritores que
não podiam ter sido previstas nos tempos de Gutenberg. As oportunidades à
espera dos escritores e leitores no futuro próximo são imensuravelmente maiores
(Epstein, 2002, p.156).

O que propõe este editor é que, com a expansão do e-commerce de livros e


o desenvolvimento de novas tecnologias para a impressão de livros eletrônicos, o
leitor/consumidor se libertarias da tirania das livrarias, que hoje em dia detêm o
controle sobre a qualidade dos livros que são consumidos e a quantidade de títulos
que se produz na indústria. Epstein acredita que, com a capacidade infinita de
estocagem das obras eletrônicas, os leitores serão beneficiados pelo crescimento
principalmente no número de originais que serão oferecidos ao público.
Outras questões são deixadas por ele deixadas de lado. A aura do objeto
livro, sua materialidade que se mantém intacta há mais de 500 anos sob a forma
109

de códice, é justamente o que não permanece no seu correspondente eletrônico. A


internet não oferece ao leitor capas para os textos, lombadas, quarta-capas,
orelhas, cheiro do papel impresso, e outras tantas características que fazem do
livro um objeto singularizado.
Além disso, por força da forma como é constituído/projetado, ou seja, em
virtude de sua grande capacidade de conservação e de permanência – o que está
escrito em livro impresso será durante muito tempo acessível e sem possibilidade
de alteração. Isto não ocorre com o suporte eletrônico: se se descobre algum tipo
de erro em texto eletrônico, este pode ser rapidamente corrigido e reenviado ao
leitor com a devida correção em fração de segundos. O livro impresso precisa ser
reimpresso para, aí sim, ser corrigido. Esta capacidade infinita de atualização do
original eletrônico geraria uma dificuldade nos leitores, que se deparariam com
textos que dificilmente poderiam ser classificados como definitivos, tamanha é a
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facilidade de reescrevê-los ou corrigi-los.


Outro aspecto que diferencia o livro impresso do eletrônico, sobremaneira,
é a sua portabilidade. O livro impresso, encadernado, costurado ou colado, pode
ser levado para qualquer lugar. O texto eletrônico para ser lido fora da tela precisa
ser impresso. As impressoras pessoais, por mais que a cada dia sejam melhores,
exigem dos leitores que eles próprios imprimam seus textos. Então, nesse caso, a
tecnologia viria para desacelerar a rapidez proporcionada pela eletrônica. E como
diria Millor Fernandes, “livro não enguiça”.
Quando um livro impresso é publicado e posto nas livrarias para a venda,
subentende-se que algumas pessoas leram aqueles escritos, o revisaram, o
diagramaram e até foram levados a especialistas na área, caso os editores tivessem
dúvidas quanto à veracidade das informações dispostas neles. Portanto, pela
própria fluidez das informações que habitam a internet nossa sociedade deverá por
algum tempo recear-se de basear nossa transmissão cultural por meio desse
veículo que ainda está em fase exploratória. Pode-se até imaginar que, daqui a
algum tempo, a idéia de texto definitivo não tenha mais valor, mas somente o
transcorrer dessa revolução na Comunicação poderá nos confirmar.
Ao longo deste estudo, acompanhamos como simbolicamente o livro
recebe uma aura, representada no valor que este objeto possui para a sociedade. O
livro impresso existe há 500 anos e se mantém desde então como um dos
110

principais veículos da comunicação cultural, se não for o principal deles.


Pergunta-se: quanto tempo a internet precisará existir para ser tão respeitada e
prestigiada quanto o livro impresso? Só a História poderá encarregar-se de
responder.
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5

Conclusão

Com apenas 15 anos de idade, Gustave Flaubert (1821-1880) escrevia o


conto Bibliomania. Nele, o autor conta a história do livreiro Giácomo, um
apaixonado por livros. Não o importava se fossem antigos manuscritos ou
impressos. Era analfabeto, mas era “feliz em meio a toda essa ciência cujo alcance
moral e valor literário mal penetrava” (p.27). Não se cansava de folheá-los,
examinar suas douraduras, a capa, os tipos... Essa paixão o absorvia
completamente.
Certo dia o livreiro Giácomo recebeu a notícia de que o livreiro rival em
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sua cidade, Baptisto, possuía um exemplar de O Mistério de São Miguel, talvez o


único manuscrito em todo o reino que sobrou dessa obra. Giácomo passou a
desejar possuí-lo e decidiu ir até o rival fazer-lhe ofertas para adquirir esse
exemplar. Baptisto ouviu as propostas de Giácomo, mas não aceitou fazer
negócio.
Dias depois, a livraria de Baptisto estava em chamas. Giácomo, quando
fica sabendo sobre o incêndio, vai até a construção, que estava sendo consumida
pelo fogo, a fim de tentar resgatar o exemplar de O Mistério. Consegue achá-lo
em meio às labaredas e fica com o exemplar. A polícia local incrimina Giácomo
como o responsável pelo incêndio. Segundo as autoridades, ele teria provocado o
incidente para poder ficar com o único exemplar existente do manuscrito, que
pertencia ao rival. Pelo crime que não cometeu, seria condenado à morte. No
esforço para salvá-lo, seu advogado descobre que havia um outro exemplar do
manuscrito, fato que poderia mudar o destino do livreiro, pois não haveria mais
um motivo convincente para que fosse ele o autor do crime. Entretanto, Giácomo
resolve não aceitar como verdadeira a revelação: a dor de reconhecer que seu
exemplar de O Mistério de São Miguel não era único era maior que a de cumprir a
pena e perder a vida.
Bibliomania é um conto que se apresenta como um verdadeiro hino de
amor aos livros. Flaubert retrata nele como ocorria a auratização do livro
112

manuscrito. Caberia, então, perguntar se, hoje, quando valorizamos exemplares de


livros antigos e raros que encontramos nos sebos, não nos comportamos, de certa
forma, como continuadores da paixão de Giácomo. Assim também caberia
indagar se este sentimento não é explorado pelo mercado editorial quando lança,
nos dias atuais, edições especiais que desejam provocar no leitor um imaginário
que associe o livro impresso ao artesanato, ao raro, ao autêntico. Exemplo disso é
a edição especial da novela clássica de Herman Melville, Bartleby, o escrivão,
publicada recentemente pela editora Cosac Naify. Para conseguir abrir o livro, o
leitor precisa descosturar a capa, puxando para baixo uma linha vermelha que a
lacra e cortar suas páginas não refiladas com uma espátula plástica que
acompanha cada exemplar. O intuito é fazer o leitor interagir com o processo da
produção de seu exemplar. Mesmo em publicações não customizadas, a opção por
sobrecapas, alto-relevos, vernizes e ilustrações inéditas ou pitorescas tanto em
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capas quanto em miolos contribui para uma sacralização contemporânea do objeto


livro.
O exemplo acima nos remete à questão maior – anunciada já no título
deste estudo – que nos propusemos desenvolver: seria possível que o livro
impresso à entrada do século XXI, permanecesse auratizado em seu consumo
simbólico pela sociedade atual? Para pensar essa possibilidade de uma aura para o
livro, nos baseamos no conceito de aura, tal como o desenvolvido por Walter
Benjamim no texto “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. Nele,
o teórico afirma que a aura das obras de arte, bem como de outras expressões
culturais (entre elas, o livro), não resistiria à industrialização da cultura. A aura,
no entender de Benjamin, só poderia ser resguardada se a obra se mantivesse em
sua forma original. O que Benjamim estava querendo dizer com isso? Que os
objetos perdem a autenticidade, na medida em que passavam pelo processo de
mudança que todo bem da indústria cultural estava fadado a sofrer: a
reprodutibilidade técnica.
A bíblia pauperum foi um dos primeiros livros reproduzidos em larga
escala por Gutenberg, e, para os teóricos de Frankfurt (dentre eles, Benjamim),
um exemplo preliminar do que, séculos mais tarde, se tornaria corrente na
indústria cultural: “a adequação do gosto e da linguagem às capacidades
receptivas da média”. Esta adaptação dos objetos culturais à média dos gostos
113

surgia devido à necessidade de construção de bens que pudessem vir a ser


consumidos pelas massas. E foi somente inserido neste contexto da
estandardização dos produtos da cultura que apareceu com vigor o livro impresso
como meio de comunicação da modernidade.
Tínhamos, então, um impasse: ou concordávamos com as premissas
benjaminianas, e não seguiríamos adiante, uma vez que ao livro não lhe seria
permitido possuir aura, ou compreendíamos os temores de Benjamim em relação
ao momento em que vivia: de ceticismo em relação ao futuro da cultura – que
estava, pouco a pouco, sendo entregue aos empresários do entretenimento e às
ditaduras estatais, como foi no caso da Alemanha de Hitler, a U.R.S.S. de Stalin
ou o Brasil de Getúlio Vargas – e que esta situação o impossibilitava de, por
exemplo, pensar em aura nos produtos da indústria cultural.
Decidimo-nos pela segunda hipótese: a da possibilidade de estudar os
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resquícios de aura no livro impresso e de que maneira este objeto poderia herdar a
aura que seu antecessor manuscrito detinha. Esta aura existiria em função da
relação simbólica que a sociedade atual mantém com os livros. Embora não mais
atrelada à autenticidade de um exemplar único, a aura persistiria em função do
valor de culto que ainda se atribui ao livro. O valor de culto de uma obra, para
Benjamim, era uma das características intrínsecas ao objeto aurático:

As mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente


mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é que esse modo de
ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual:
o valor único da obra de arte “autêntica” tem sempre um fundamento teológico.
(…) Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira
vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual (Benjamim,
1985, p.171).

Ao contrário da premissa benjaminiana, a reprodutibilidade técnica, no


caso do livro impresso, não o destaca de sua função ritual. O valor de culto do
livro permanece e está evidenciado nos símbolos e rituais que relacionamos
diretamente com o objeto, isto é, quando o livro é Livro Sagrado, que se apresenta
como a Palavra de Deus impressa, ou no livro iluminista como a Enciclopédia,
símbolo de aquisição de conhecimento, de detenção do saber pelo homem
moderno.
114

O que dizer, por exemplo, das coleções pessoais de livros? O que faz um
indivíduo montar a sua biblioteca, mesmo possuindo TV, internet, rádio e cinema
ao seu alcance? Por que, durante todas as nossas vidas, colecionamos livros,
mesmo que não tenhamos tempo para ler todos eles? Por que cuidamos deles com
tanto esmero? A biblioteca se apresenta, portanto, como o espaço de culto desse
bem que, mesmo sendo um produto industrial, é apropriado como obra intelectual
individual, e, portanto, de uma certa forma, única. A biblioteca particular aparece
como um símbolo de distinção por parte do seu proprietário.
Programas de televisão não possuem valor de culto. Muito raramente
quando despertam um pouco mais nosso interesse são gravados em fitas-cassete.
Mas mesmo assim voltamos a apagá-los, e outras atrações televisivas são
“gravadas por cima”. O rádio e a TV muitas vezes compõem o som e a imagem
ambiente do nosso cotidiano, e o fato de estarem tão presentes em nossas vidas
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constitui uma das razões pelas quais não são auratizados. Ouvimos rádio nos táxis,
ante-salas de consultórios médicos, assistimos à TV em bares com amigos, nas
lojas de eletrodomésticos dos shoppings. Hoje em dia, é comum encontrar
instalados rádios e TVs até em cozinhas ou banheiros. A própria internet, pela
variedade de tecnologias e utilidades a ela associadas, é consumida de maneira
muito diversa. Uns até buscam informação por meio dela, mas na maioria dos
casos a associamos com diversão ou com um meio para aproximar pessoas e
lugares distantes. O livro, ao contrário, ainda está associado à intimidade, à vida
privada dos indivíduos.
Não devemos esquecer, no entanto, que a reorganização tecnológica e
industrial da produção em escala transnacional e a aquisição das editoras locais,
pelos grandes grupos econômicos multilingües estrangeiros, estão tornando o livro
um produto cada vez mais inserido no contexto da globalização. A produção de
cada país corre o risco de ficar subordinada à “programação de uma política de
bestsellerização” (Canclini, 2003, p.142-143). Recentemente um novo gerente do
grupo Bertelsmann provocou muitas críticas ao declarar que não publicaria mais
livro com vendas inferiores aos cinco mil exemplares por ano. Esta aproximação
maior do livro com o mercado retiraria parte do seu prestígio como produto
cultural e promoveria uma redefinição do espaço do bem de consumo livro dentro
da prática do capitalismo.
115

O livro impresso, portanto, é, por um lado, fetichizado como os demais


produtos no mercado pelo seu valor de exposição (uma vez que a mercadoria
fetichizada só possui valor de exposição, nas prateleiras e vitrines, em
concorrência com os demais produtos, e é deste valor que se define parte de seu
preço no mercado), mas, por outro lado, continua a possuir valor de culto, que o
faz aurático. O livro impresso é um bem da indústria cultural que ainda cumpre
uma função ritual e que, portanto, continua aurático.
Para que chegássemos a estas conclusões, a pesquisa se desenvolveu em
três etapas. Em um primeiro momento, retomou as origens do livro, apontando o
avanço das técnicas de escrita, assim como o processo de alfabetização, como
fatos fundamentais que culminariam com a opção pelo livro como um dos
principais meios de registrar, armazenar e transmitir por inúmeras gerações o
conhecimento humano. A sua auratização pela sociedade estava inicialmente
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associada aos poderes que eram atribuídos à escrita e à sacralização do Livro


Sagrado (a Palavra de Deus), a Bíblia.
A segunda etapa do estudo se debruçou sobre a construção da “sociedade
do livro” a partir da invenção de Gutenberg, quando esta se tornou o veículo, por
excelência, do registro e da difusão cultural na sociedade ocidental. O livro
passaria a ser não apenas objeto capaz de armazenar informações, mas sujeito das
transformações sociais que ocorrem simultaneamente à multiplicação dos escritos
pela tipografia. A aura do livro moderno está presente, portanto, na capacidade
deste objeto de ser portador do conhecimento e por meio dele cultuar-se a razão.
O terceiro momento desta dissertação consistiu numa reflexão sobre a
auratização do livro e as especificidades do mercado editorial, na
contemporaneidade, chamando-se a atenção para a permanência de práticas
rituais, como, por exemplo, as noites de autógrafos. Analisamos também a tensão
que se estabelece entre o culto do livro, presente na publicidade, no jornalismo
cultural e nas campanhas oficiais, e a tendência para a sua equiparação aos demais
produtos da cultura de massa. Por outro lado, assinalamos que, ao contrário do
que se esperava, a revolução comunicacional em curso não decretou a morte do
livro, sendo que a internet – um dos principais expoentes dessa nova fase da
Comunicação –, tem se alimentado da aura desse objeto da indústria cultural,
através de suas livrarias virtuais e de seus sites literários.
116

Mudanças rápidas no comportamento e nas atividades que os indivíduos


desempenham cotidianamente continuam a ocorrer, mas não abalaram o prestígio
da cultura livresca, embora possam ter contribuído para a diminuição do consumo
de livros. O valor de culto do livro, e, portanto, sua aura, está evidenciado
justamente nessa permanência da importância e desses símbolos que atribuímos
ao objeto livro.
Finalizamos este estudo com uma previsão derridiana. Para o filósofo, o
livro impresso – com a reestruturação da cultura e do saber (em curso por meio da
revolução comunicacional) – na medida de sua rarefação na sociedade tenderá a
ser mais auratizado e fetichizado: “Esse fetichismo sacralizará, re-sacralizará o
livro, a aura da cultura ou do culto livresco, o corpo do livro e o corpo habituado
ao livro, ao tempo, à temporalidade e ao espaçamento do livro, a compleição do
amor do livro que se encontrará re- e supervalorizado” (Derrida, 2004, p.33).
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