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Dossiê | Bento Prado Júnior: filosofia sem lugar

Vladimir Safatle
5 de junho de 2017

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Bento Prado Júnior em 1993 (Foto: Arquivo da família)

Em 12 janeiro de 2007 morria Bento Prado Júnior, deixando como legado uma das mais singulares
experiências filosóficas que já ocorreram em solo nacional. Este dossiê procura falar um pouco de tal
singularidade, que se serviu principalmente da forma ensaio para colocar em circulação uma filosofia capaz
de apropriar-se continuamente de objetos que lhe pareciam exteriores. Literatura, antropologia, psicanálise,
ciências cognitivas: em cada um destes campos, Bento Prado foi capaz de encontrar os objetos que a
reflexão filosófica exige para refletir sobre os problemas de sua tradição e história. Mas esta dispersão de
horizontes era manifestação de uma ausência mais profunda de limites no interior do próprio campo da
tradição filosófica. Entre filosofia analítica e pós-estruturalismo francês, entre vitalismo bergsoniano e
teoria da consciência de moldes sartrianos: analisando os movimentos de Bento Prado Júnior, pode-se
acreditar que ele habita um lugar impossível. No entanto, à sua maneira, Bento Prado forneceu uma
resposta possível ao problema da especificidade da filosofia em um país como o Brasil.

De forma periódica, aqueles que fazem filosofia no Brasil se perguntam sobre o que seria a “filosofia
nacional”. Haveria alguma forma de perspectiva própria do fazer filosofia no Brasil, um lugar de fala que
fosse nosso? Mas do que estamos a dizer quando falamos em “filosofias nacionais”? Por exemplo, não é
certo que “filosofia inglesa” descreva um conjunto de experiências intelectuais que, à sua maneira,
partilhariam algum nível de estilo ou assinatura comum. Talvez não haja absolutamente nada em comum,
no sentido forte do termo, entre Alfred Whitehead e John Austin, a não ser o fato de eles serem cidadãos do
mesmo Estado-nação e se submeterem ao mesmo poder político. Seria possível fazer a mesma consideração
para todas as tradições que conhecemos: Habermas e Nietzsche, Foucault e Gabriel Marcel.
Poderíamos levar este jogo de dissociação ao paroxismo e transformá-lo em um jogo de inversões. Por
exemplo, não é completamente disparatado afirmar que, do ponto de vista do desdobramento de tradições,
Heidegger é um filósofo muito mais “francês” do que “alemão”, já que sua influência em solo gaulês é
muito mais forte, rica e decisiva do que em solo propriamente teutônico. A história do heideggerianismo, se
levarmos em conta principalmente os processos de recepção, está talvez mais vinculada à França. Da
mesma forma, o “pós-estruturalismo francês” é uma invenção tipicamente norte-americana criada para
acomodar em seu solo experiências de pensamento que não se viam contempladas pelo figurino reduzido da
filosofia analítica. Do ponto de vista de seus desdobramentos, também não seria um disparate dizer que
Derrida é um filósofo norte-americano.

Este jogo de embaralhamento territorial não é apenas expressão de um espírito gratuito de contenda. Ele é
uma maneira de lembrar que boa parte do que chamamos de estilos nacionais talvez não se sustentem mais
por serem, na verdade, construções culturais heteróclitas de burguesias locais que procuravam, a partir do
século 19, justificar seu controle e suas fronteiras econômicas produzindo tradições, criando a ilusão de
uma organicidade de ideias e formas que expressariam de maneira privilegiada o “espírito” de um povo.
Espírito este que deveria encontrar seu lugar natural nos Estados-nação em vias de consolidação identitária.
A filosofia não ficou imune a tal dinâmica de criação de tradições. Assim, o país de Siemens, metalurgia, do
Ruhr, precisava também de um “made in Germany” composto pelo Grund, pela ilusão de continuidade entre
Mestre Eckhart e Hegel, por uma filosofia moral, como a kantiana, que (ao menos segundo Marx) era o
esforço desesperado de transformar a impotência política e econômica de sua burguesia em culto à “boa
vontade”, assim como precisava de uma música na qual a “profundidade” se expressasse no jogo sinfônico
de contrastes de caracteres.

Tudo isto nos leva a uma pergunta: para que serve e a quem interessa insistir atualmente na existência de
“filosofias nacionais”? Elas servem para, de fato, descrever o jogo de forças imanentes a experiências
filosóficas singulares, experiências estas que se fazem, na verdade, através não do respeito, mas da
desqualificação de tradições, do salto improvável em direção ao que não andava junto (como Deleuze e sua
“tradição” composta pelo inglês Hume, pelo francês Bergson, pelo holandês Spinoza e pelo alemão
Nietzsche)? Ou elas servem para reiterar a existência de um espírito que só existe para dar alguma
organicidade à monstruosidade institucional chamada de Estado-nação com seu símile intangível e
“imaterial”, a saber, a “cultura nacional”?

É tendo questões desta natureza em mente que podemos medir o tamanho da inovação empreendida por
Bento Prado. Em vez de procurar afirmar uma especificidade nacional, ou de se filiar a alguma tradição
filosófica historicamente constituída, Bento insistiu em pensar sem lugar. Isto significa: pensar ouvindo as
ressonâncias a respeito das quais a filiação a projetos e tradições nos deixou surdos. Pensar desconsiderando
os limites que a identidade da adesão a filiações nos impõe. A distância em relação aos centros produtores
dos textos que compuseram o cânon da história da filosofia, o descentramento em relação à sua geografia,
não aparece como um desterro, mas como a possibilidade de uma escuta sem limites.

Pelas suas mãos, a distância não é mais uma falta, um desfibramento, como sempre ouvimos através da
tópica do Brasil como um país desfibrado. Ela é a condição do exercício de um movimento de relações que
exige os fluxos contínuos de tradução, a reconstrução em linguagens que não foram aquelas nas quais os
problemas em questão foram inicialmente originados. Como se só fosse possível pensar traduzindo os
problemas em uma língua “errada”. Mas “errada” não porque incorreta. “Errada” porque fruto de uma
errância, de um deslocamento parecido àquele que Samuel Beckett se autoimpôs ao decidir escrever em
uma língua que não era a sua.
Mas notemos a aposta maior que tal operação pressupõe. Aposta aterradora para alguns, inaceitável para
outros, mas presente no horizonte do pensamento de Bento Prado. Se o lugar do pensar é o desabamento
dos lugares, se sua geografia é a anulação dos limites dos espaços, é porque todo pensar efetivo é aquilo que
se deixa impulsionar por uma experiência comum que, no entanto, não tem língua própria. Um fundo
comum que é fundamento, Grund, mas ao mesmo tempo abismo, Abgrund. Assim, invertem-se os polos dos
horizontes que pareciam fornecer as condições normativas de nosso pensar. Não há uma gramática comum
que faria de todas as tradições a emulação dos mesmos problemas, um esperanto filosófico. No entanto,
toda gramática específica é atravessada por aquilo que ela não apreende integralmente e que produz
experiências que nos levam a “metamorfoses categoriais”. A aposta de Bento Prado era de que deveríamos
pensar a partir deste atravessamento, confrontando-se com este comum desprovido de linguagem própria,
mas que se revela no quiasma entre incompatíveis (como poderiam ser incompatíveis Deleuze e
Wittgenstein). Ao fim e ao cabo, por mais improvável que possa parecer, esta era a melhor resposta sobre o
que significava fazer filosofia no Brasil. Foi esta resposta que Bento Prado nos legou.

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