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S EMINÁRIO I NTERNACIONAL
N OVO M UNDO NOS TRÓPICOS
Recife, 2000
© Fundação Gilberto Freyre, 2000
326 p.
APRESENTAÇÃO
Fátima Quintas
O SEMINÁRIO, 09
. Apresentação, 11
. Objetivos, 11
. Programação, 12
. Comissão executiva, 15
. Realização, 16
21 a 24 de março de 2000
Recife – Pernambuco – Brasil
Apresentação
Objetivos
Programação
Coquetel Regional
Comissão executiva
Dia 22 de março
COORDENADOR:
Antônio Pedro de Lucena Pignatelle Correa e Aguiar
Cônsul de Portugal no Recife – Brasil
Assombração e Invenção: a Poética do
Passado em Gilberto Freyre
_______________________
Notas
1
Graça Aranha, Chanaan, Rio, Garnier, 1902.
2
Sílvio Romero, O Elemento Português no Brasil, Lisboa, Tipogra-
fia da Companhia Nacional Editora, 1902.
3
Neide Almeida Fiori, "A cultura luso-brasileira ameaçada? Con-
trovérsias dos tempos da Segunda Guerra Mundial", in Dinâmicas
Multiculturais, Novas Faces, Outros Olhares, Actas do III Congres-
so Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, II Vol., Lisboa, 1996,
p. 621 e segts.
4
Henri Lefebvre, Le Marxisme, Paris, PUF, 1968, p. 39.
5
Edson Nery da Fonseca, "Gilberto Freyre: Conciliador de contrá-
rios", in Ciência e Trópico, nº 2, Recife, Julho-Dezembro de 1987,
p. 171.
6
Fernando Neves, Negritude, Independência, Revolução, Paris,
ETC., 1975.
7
Fernando Neves, Ibidem, pp. 139-140.
8
Apud Eduardo dos Santos, A Negritude e a Luta pelas Indepen-
dências na África Portuguesa, Lisboa, Minerva, 1975, p. 36.
9
Eduardo dos Santos, Ibidem, p. 38.
10
Eduardo dos Santos, Ibidem, p. 30.
11
Gilberto Freyre, O Brasil em face das Áfricas Negras e Mestiças,
Lisboa, 1963, p.
12
Jorge Borges de Macedo, "Questões sobre a Cultura Portugue-
sa", Revista Icalp, nº 4, Março de 1986, p. 72.
13
Adriano Moreira, "O futuro da população de Expressão Portu-
guesa (o Luso-tropicalismo hoje)", in Ciência e Trópico, Recife, nº
1, Junho /Julho, 1990, p. 51.
14
Fernando Cristóvão, Notícias e Problemas da Pátria da Língua, 2ª
ed., Lisboa, Icalp, 1987.
O presente artigo tem por objeto o es- da Academia"), de que apenas se publicaram
tudo do contexto social e estético da obra ro- dois números por interdição das autoridades
manesca do escritor cabo-verdiano Germano coloniais. Este grupo passou à história das le-
Almeida. Dar-se-á especial relevo ao roman- tras cabo-verdianas com o nome de "geração
ce Os Dois Irmãos (Lisboa 1995; 1998), con- de 40" e nele destacou-se, conquanto à data
frontando o contexto social que o legitima, da publicação fosse já estudante de medicina
em termos estéticos, com a leitura que Gil- em Lisboa, o escritor Henrique Teixeira de
berto Freyre fizera da realidade cabo-verdiana Sousa, de certa forma o patrono ideológico
há cerca de cinqüenta anos, no seu livro Aven- do grupo (Venâncio 1992: 20). Afastando-se
tura e Rotina: Sugestões de uma Viagem à Pro- do fatalismo e da resignação da geração dos
cura das Constantes Portuguesas de Carácter "claridosos", para quem as difíceis condições
e Acção (Lisboa: Livros do Brasil s.d.). Mesmo de vida a que o arquipélago sujeitava as suas
que indiretamente, haverá ainda a ocasião gentes radicavam sobretudo na sua geografia,
para se tecerem algumas referências aos dois entendida então como elemento catalisador
tipos de discurso em apreço, o romanesco e de uma identidade e de uma cabo-
o ensaístico, ainda que este apresente carac- verdianidade expiável no chamado
terísticas de literatura de viagens. evasionismo2, os da geração da Certeza pro-
Germano Almeida é um escritor cabo- curam ser politicamente mais engajados e
verdiano da nova geração. É hoje provavel- nesse fato residiu, aliás, a proibição da sua
mente o escritor cabo-verdiano mais conhe- publicação por parte das autoridades coloni-
cido em Portugal. Os seus romances têm sido ais. Diferentemente dos "claridosos", respon-
publicados pela Editorial Caminho, uma das sabilizaram, mesmo que timidamente, o sis-
maiores editoras do país, numa coleção que, tema político vigente pelo statu quo do
ao longo dos anos, tem vindo a granjear pres- arquipélago.
tígio no panorama literário português. Refi- Outras diferenças poderão ainda ser
ro-me à coleção Uma Terra sem Amos, onde apontadas aos dois grupos ou gerações. A da
tem igualmente publicado Mia Couto, outro Claridade teve particulares afeições pela ex-
escritor lusófono, de origem moçambicana, periência da revista Presença, sem que, com
igualmente conhecido. isso, os seus membros descurassem a leitura
Germano Almeida trouxe com o seu pri- do semanário Diabo (cf. entrevista a Manuel
meiro romance, O Testamento do Sr. Lopes in Venâncio 1992: 69), que, enquanto
Napumoceno da Silva Araújo, publicado ini- jornal de crítica literária e artística, foi mais
cialmente em Cabo Verde 1 e depois em Lis- heterodoxo do que a Presença. Pois nele tan-
boa (1991), um novo alento à literatura cabo- to colaboraram presencistas, neo-realistas,
verdiana, continuando embora a tradição da como até figuras ligadas ao integralismo lusi-
Claridade, revista de arte e letras, cujo pri- tano, tais como Antônio Sardinha. A par des-
meiro número foi publicado em 1936 e, à sua tas influências, vindas de Portugal, os
volta, reuniu nomes como o de Baltasar Lopes, "claridosos" foram ainda influenciados pelo
Jorge Barbosa e Manuel Lopes. As conquistas modernismo brasileiro, mormente pelo cha-
estéticas deste movimento, por vezes apeli- mado "romance do Nordeste". Menos
dado de "claridoso", foram posteriormente prolífero em influências foi o grupo da Certe-
continuadas, salvaguardadas as diferenças za, mantendo-se fiel ao ideário neo-realista
adiante apontadas, pelos jovens liceais que (Ferreira 1977: I/45; Venâncio 1992: 20).
estiveram na origem da revista Certeza ("Fôlha A grande diferença, porém, entre os
Notas Bibliografia
Ilídio do Amaral
Geógrafo – Universidade de Lisboa – Portugal
"(...) Mundo que, como conjunto de valores EUA, Venezuela), africanos (África do Sul e
essenciais de cultura, como realidade psico- outros) e australiano. De modo idêntico po-
social, continua a existir. demos dizer de outras diásporas, como ser-
Sobrevive à desarticulação do império vem de exemplos a brasileira e a
simplesmente político. Resiste à pressão de
caboverdiana. Do segundo caso citamos as co-
outros impérios meramente econômicos ou
políticos" (G. Freyre, O Mundo que o Português munidades residuais do Oriente, em Goa,
Criou, Lisboa, 1940, p. 30). Damão e Diu (que foram enclaves coloniais
na margem ocidental da Índia até 1961), na
Em Lisboa, a 17 de Julho de 1996, foi cidade de Macau (no sul da China, no estuá-
constituída, formalmente, a Comunidade de rio do Rio das Pérolas), e de Timor Leste (par-
Países de Língua Portuguesa (CPLP), engloban- te de uma ilha entre a Indonésia e a Austrália,
do, referidas por ordem alfabética, as Repú- muito mais próxima da primeira do que da
blicas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné- segunda).
Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Timor Leste, antiga colônia portuguesa
Príncipe. (área global de 18 899 km 2, compreendendo
São cinco estados africanos, dois dos a parte oriental da ilha, o enclave de Oe-Cusse
quais microinsulares, e um sul-americano, de na outra parte, a que pertence à Indonésia, a
grandeza subcontinental, que foram partes de Ilha de Ataúro e o Ilheu Jaco; cerca de 875
um vasto império ultramarino, gerado a partir 000 habitantes em 1997) está na ordem do
dos séculos XV e XVI por uma metrópole euro- dia, pelos terríveis acontecimentos que aí ti-
ibérica (Portugal), que após as independênci- veram lugar há poucos meses. Ocupada pela
as das colónias africanas, em 1974 e 1975, e Indonésia nos últimos vinte e cinco anos (1974
a devolução de Macau à China, em dezem- a 1999), a maioria da população optou, por
bro passado, regressou, definitivamente, à sua referendo realizado em finais de agosto do ano
dimensão continental original, com duas re- passado, com a supervisão das Nações Uni-
giões autônomas arquipelágicas (Açores e das, pela autodeterminação, como forma de
Madeira). transição para a independência do mais jo-
Na sua diversidade de tamanhos e for- vem estado do Mundo: Timor Lorosae, isto é,
mas, bem como de importâncias econômica Timor-Terra do Sol nascente.
e política, têm de comum os alicerces históri- Infelizmente, as forças militares
cos da língua portuguesa, usada por cerca de indonésias estantes no território e grupos de
200 milhões de pessoas, e da lusitanidade. São timorenses afectos ao regime indonésio, com-
os povos do espaço lusófono que, num senti- pondo as "milícias" pró-integracionistas, não
do mais amplo, abarca também os núcleos de aceitaram os resultados e, em pouco tempo,
emigrantes de fala portuguesa residentes em mataram, pilharam e destruíram quanto
diversos países de outras línguas dos cinco quizeram e puderam, deixando o território
continentes, num valor global mal conheci- literalmente desvastado. Houve que constituir
do, mas que se sabe ser bastante elevado, e uma força militar internacional, com predo-
algumas comunidades residuais. minância australiana, pela proximidade com
Do primeiro caso são exemplos os im- Timor, para intervir no território, de modo a
portantes núcleos de portugueses e seus des- fazer parar a onda da barbárie que chocou os
cendentes em países europeus (Espanha, Fran- sentimentos de todo o mundo.
ça, Bélgica, Alemanha, Luxemburgo, Suíça, A ONU assumiu a sua administração,
Grã-Bretanha, etc.), americanos (Canadá, colocando em Díli, a capital timorense, um
Dia 22 de março
COORDENADOR:
Levy Cruz
Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
Basta Recordar os Pés das Chinesas: Notas
sobre Gilberto Freyre e o Carnaval do
Brasil
Roberto DaMatta
Antropólogo – Universidade de Notre Dame – EUA
Meu título rememora uma passagem do trais, fazendo, além disso, que aderissem a
Cap. IV do livro Sobrados e Mucambos, obra "penteados elaboradíssimos"(pag. 98).
na qual Gilberto Freyre faz referência ao Car- A essas observações de cunho
naval brasileiro, mencionando, sem – entre- eminentamente etnográficos, devo acrescen-
tanto estudá-lo exaustivamente – algumas de tar um ponto não tocado por Freyre, a saber:
suas funções sociais em exatamente seis pa- por que, afinal de contas, esse foco nos pés
rágrafos, marcados pelo viés histórico e um das chinesas e das mulheres em geral? Por que
estilo interpretativo pioneiramente freudiano. esse empacotamento em espartilhos, "cintos",
Não deixa de ser significativo que, na- cintas, corpetes, soutiens e penteados extra-
quela ocasião, Gilberto tenha sido levado ao vagantes? A resposta é óbvia: tais modos de
Carnaval e, mais precisamente, ao "baile mas- construção (e "deformação" para usar um ter-
carado" de 1848, realizado no Teatro Apolo mo mais etnocêntrico, valorativo e dramáti-
em Recife, no contexto de uma discussão vol- co, repetindo Gilberto) do corpo feminino sa-
tada para uma das oposições mais marcantes lientam o lugar de flagrante imobilidade da
da "sociedade patriarcal brasileira": a tensa e mulher no sistema. Era uma expressão explí-
dinâmica dualidade entre o homem e a mu- cita de uma sociedade que destinava à mu-
lher. lher um quase-congelamento de movimentos,
É, pois, nesse capítulo, na página 98 da fazendo dela, por outro lado, um símbolo aca-
edição publicada pela Livraria José Olympio bado de estabilidade, de estoicismo e de
Editora, 1 que surge essa frase que é quase um sacríficio, valores mais do que apropriados à
adágio e mais uma prova da notória sensuali- gerência da casa e à manutenção da família,
dade gilbertiana: "Basta recordar os pés das da parentela e do círculo de amigos, em con-
chinesas deformados ao último ponto" – diz traste com a mobilidade e a velocidade e a
ele. mudança constitutivas do mundo masculino
Adágio arrematador do argumento se- e da rua. A honra e a vergonha, como sabe-
gundo o qual, nas relações entre os sexos no mos, ligam-se ao controle e ao ocultamento,
Brasil, a demanda patriarcal de distinção às dimensões e aos espaços internos que,
inapelável entre homem e mulher, distinção como sabem os poetas, operam como mura-
vantajosa para os homens, pois eliminava a lhas e portais. No quadro das representações
mulher da vida pública e da competição eco- ocidentais, o pudor está vestido, coberto, ta-
nômica e política, haveria de criar tanto a pado, escondido. 2
moça pálida e fraca, quase tísica de tanto co- O contraponto complementar e polar
mer caldos e de não apanhar sol, quanto desses modelos de deformação e exagero fe-
matronas de ancas e coxas moles e arredon- mininos – àquele contraponto característico
dadas, pesadas e densas nas suas gorduras, da escrita e da reflexão de Gilberto Freyre –
nas suas rezas e no seu aprisionamento ao seria um tipo de homem dominador e senho-
âmbito da casa, da parentela e das mucamas. rial que moldava e oprimia suas mulheres
Trata-se, deixe-me acentuar, de um estilo de (mais as esposas e filhas, menos as "mães",
construção dos gêneros que tinha como foco acrescentaria eu, refinando a análise), distan-
os pés, as cinturas e os cabelos das mulheres ciando-se delas tanto quanto distinguiam-se
nascidas e criadas no universo patriarcal. Foco pela vestimenta, gestos, insígnias, bengalas e
que promovia uma ênfase capaz de deformar, tetéias dos seus criados e escravos (eis um
tanto quanto numa China igualmente viri- outro contraponto).3
centrada, os pés e a cintura de nossas ances- Na demonstração pioneira de que a
Este trabalho tem por objetivo abordar médicos e administradores da burocracia es-
questão controversa na obra de Gilberto tatal. Sobretudo, o exercício da usura e a fun-
Freyre, isto é: a imagem do judeu em Casa- ção de financistas são fontes inspiradoras para
Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Gilberto Freyre utilizar a metáfora da "ave de
Ela permite, contudo, contemplar dois aspec- rapina" e a considerar essas atividades como
tos fundamentais: 1º) as relações entre raça e uma especialidade "quase biológica" dos ju-
cultura; 2º) os primórdios da modernidade no deus. A usura, por sua vez, é também consi-
Brasil. Há contenda em torno deste tópico, derada fonte de interação, de casamentos
em função da emergência, em passado recen- entre membros das elites portuguesas
te, de uma produção acadêmica que conce- endividadas e prósperos homens de negócios
be como anti-semita (Needell, 1995; Ferraz, de origem judaica (Freyre, 1938, p. 162).
1995) um conjunto de reflexões sobre o per- Não obstante caracterizar "a poderosa
fil judaico elaborado por Freyre. máquina de sucção [judaica] operando sobre
Tenho uma posição oposta a essa lite- a maioria do povo" um problema "quase bio-
ratura. Ainda que a narrativa do sociólogo dê lógico", Freyre associa, em seguida, circuns-
margem para se evidenciar a presença de uma tâncias históricas que redundaram no perfil
linguagem racialista, sugiro que o argumento de povo afeito ao comércio. Para fundamen-
substantivo de Freyre, influenciado pela con- tar sua tese, baseia-se em Max Weber quan-
cepção neolamarckiana de raça e pelo do o sociólogo alemão, na interpretação de
enfoque weberiano acerca dos fundamentos Freyre, “...atribui o desenvolvimento dos ju-
do capitalismo moderno, leva à incorporação deus em povo comercial a determinações
positiva dos judeus à nova sociedade criada ritualistas proibindo-lhes, depois do exílio, de
nos trópicos. Na verdade, o judeu freyreano se fixarem em qualquer terra e, portanto, na
é mais uma evidência da formação étnica plu- agricultura. E salienta-lhes o dualismo de éti-
ral constitutiva da identidade luso-brasileira ca comercial, permitindo-lhes duas atitudes:
(Maio, 1999). Para dar consistência a minha uma para com os correligionários; outra para
apresentação, investigo, de início, a análise do com os estranhos. Contra semelhante
sociólogo sobre os judeus em Portugal, para, exclusivismo era natural que se levantassem
em seguida, deter-me no quadro da socieda- ódios econômicos. Em virtude daquela ética
de colonial brasileira. Por fim, apresento o ou moralidade dupla, prestaram-se os judeus
papel dos judeus no processo de decadência em Portugal aos mais antipáticos papéis na ex-
do sistema patriarcal que leva Gilberto Freyre ploração dos pequenos pelos grandes” (idem).
a denominá-los como "gente quase de casa". No livro História Econômica Geral, ci-
tado por Freyre, Weber afirma que os judeus,
Os judeus em Casa-Grande & Senzala investidos do "dualismo primitivo universal
Em Casa-Grande & Senzala, na parte entre moral de grupo e moral em relação aos
dedicada ao estudo da sociedade portugue- estranhos", em face dos constrangimentos da
sa, os judeus aparecem como segmento ur- sociedade, por ser minoria no período do exí-
bano munidos de diversas identidades, a sa- lio, foram estimulados a exercitar, com o pú-
ber: agentes da empresa marítimo-colonial; blico externo, condutas comerciais que não
usurários; financistas, uma espécie de judeus eram realizadas com o público interno, como
da corte à serviço de ordens religiosas, dos era o caso da usura. Segundo Weber, o anti-
nobres, dos grandes proprietários; homens de- semitismo medieval estimulou um "capitalis-
dicados às atividades intelectuais, da ciência; mo de párias", diferente do capitalismo racio-
_______________________
Notas
1
Este trabalho faz parte de um projeto mais amplo de investiga-
ção sobre os judeus no pensamento social brasileiro. No caso des-
te texto, trata-se da primeira incursão da pesquisa sobre os judeus
em Sobrados e Mucambos.
2
Em posição oposta, Gustavo Barroso, em seu livro Brasil: Colônia
de Banqueiros (1934), um dos libelos do anti-semitismo dos anos
30, chega a absolutizar a importância da família Rotschild face às
mazelas da economia brasileira. Sobre o pensamento anti-semita
de Gustavo Barroso, ver: Maio, 1992.
Bibliografia
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e paz: Casa-Grande & Sen-
zala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Edito-
ra 34, 1994.
FERRAZ, Silvia Cortez. Tempos de casa-grande. São Paulo, 1995.
Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo,
1995.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família bra-
sileira sob o regime de economia patriarcal. 3. ed. Rio de Ja-
neiro: Maia & Schmidt, 1938.
________________. Sobrados e mocambos: decadência do patri-
arcado rural e desenvolvimento do urbano. 2. ed. Rio de Ja-
neiro: José Olympio, 1951.
MAIO, Marcos Chor. Estoque semita: a presença dos judeus em
Casa-Grande & Senzala. Luso-Brazilian Review. Madison, v. 36,
n.1, p.95-110, 1999.
_______________. O mito judaico em Casa-Grande & Senzala.
Arché. v.4, n. 10, p.85-102, 1995.
_______________. Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamento anti-
semita de Gustavo Barroso. Rio de Janeiro: Imago, 1992. 161p.
NEEDELL, Jeffrey. Identity, cace, gender and modernity in the
origins of Gilberto Freyre’s ouevre. American Historical Review.
v.100, n.1, p.51-77, feb. 1995.
WEBER, Max. Historia económica general. México: Fondo de Cul-
tura, 1964.
Os grandes mitos começam a ser parte dutivos e carentes de tudo. Incapazes para o
das diversas mesas sobre os 500 anos do Bra- trabalho da nova ordem econômica e para a
sil, especialmente no que se refere à forma- cidadania da modernidade. Milhões de pes-
ção daquilo que somos, baseado naquilo que soas indígenas pagaram com suas vidas todo
um dia fomos. A chegada de Pedro Álvares esse processo, e outros tantos que fugiram fo-
Cabral na costa atlântica em busca de novos ram perseguidos, contatados, "amansados" e
investimentos econômicos, novas conquistas transformados em dependentes do
de povos e terras. Tudo em nome de um de- assistencialismo e do paternalismo, que tam-
senvolvimento ou plano geo-político hoje bém foi uma forma de dominação.
conhecido como globalização. Depois de 500 anos, restaram apenas
Existe uma estimativa de que, naquele 350 mil pessoas com direito a 11% do territó-
tempo, havia por aqui mais de cinco milhões rio nacional, falando ainda 180 línguas, en-
de pessoas que falavam mais de mil línguas e quanto na outra face do Brasil indígena, sur-
que faziam dessas terras o Brasil 1005 indíge- giam 160 milhões de pessoas de várias origens,
na. Logo depois do primeiro encontro, das com olhos negros, verdes, azuis, castanhos,
primeiras observações lusitanas, colonizado- que cantam e dançam uma musicalidade que
ras ou catequizadoras, houve um consenso de identifica a maneira de ser brasileiro. São to-
que os primeiros brasileiros, denominados a nalidades diferentes de fazer um Brasil, e nós,
partir desse encontro de índios, deveriam ser os povos indígenas, sabemos que de alguma
"orientados", "pacificamente", para um novo maneira nossos antepassados deixaram suas
modelo de vida onde os valores tradicionais marcas nessa nova conformação, quer seja nos
nada representavam, sendo necessário, olhares, no aspecto físico, como também nas
ensinamentos básicos para a nova vida. As diversas praças, rios, pessoas e áreas que car-
vestes indígenas, a economia sustentável, a regam um nome tradicional como o Kari-oca,
riqueza sociocultural e ambiental, tudo deve- Ipanema, Anhangabau, Piracicaba, etc., o que
ria ser substituído por novos valores, que demonstra que sempre existe, em alguém ou
credenciariam aqueles povos nativos para a em algum lugar, um pedaço de índio.
nova civilização. Por outro lado, era necessá- Em todos esses aspectos, os povos indí-
rio, também, ensinar os valores religiosos, genas destacam a importância, inclusive es-
substituindo a relação direta e sagrada da for- tratégica, da mulher indígena, como ocorreu
ça espiritual com o Grande Criador através na Bahia com Catarina Paraguassu, como
de ritos e cantos, por dogmas cuja palavra ocorreu com Bartira e tantas que foram es-
chave era: pecado. quecidas pelo processo histórico, muitas ve-
Assim, aquilo que poderia ser uma gran- zes utilizando-se da sua inteligência e beleza,
de aliança entre os donos das terras e os sem para proteger os aspectos da sobrevivência e
terras de Portugal virou uma relação antagô- da continuidade de um povo, especialmente
nica, sem nenhuma contrapartida para os do ponto de vista da identidade cultural e lin-
povos indígenas a não ser a obediência, a güística. Uma mulher indígena jamais foi tra-
dominação e a aculturação física e social. tada ou considerada como uma prostituta
Os povos indígenas que sempre vive- nessa relação, mas como uma mulher digna
ram livres, que jamais conheceram o traba- da sua opção na defesa dos valores tribais. Vale
lho escravo, nunca aceitaram a subordinação, ressaltar também que numa relação interna
e, assim, de amigos foram transformados pelo da família indígena, a mulher sempre teve
sistema colonizador em preguiçosos, impro- papel preponderante nas negociações e nas
Dia 22 de março
COORDENADOR:
António Gomes da Costa
Presidente do Real Gabinete Português de Leitura – Brasil
O Luso e o Trópico Revisitado
Narana Coissoró
Vice-Presidente da Assembléia da República Portuguesa/Professor e Vice-
Reitor da Universidade Internacional de Lisboa – Portugal
Dia 22 de março
COORDENADOR:
Cesario Melatonio Neto
Ministro Chefe da Acessoria de Relações Federativas do Ministério das
Relações Exteriores – Brasil
Gilberto Freyre y Alemania
Hanns-Albert Steger
Cientista Social – Universidade de Erlagen Nuremberg – Alemanha
_______________________
O livro Vida, Forma e Cor , como se em uma aproximação empática do autor para
sabe, reúne alguns textos de crítica literária com a qualidade do vivido. E, finalmente, a
elaborados por Gilberto Freyre, sendo, por- terceira – "o que é o Brasil?" –, por ser esta a
tanto, um conjunto bastante variado de en- questão que obseda Gilberto Freyre e que
saios curtos, escritos em circunstâncias e épo- permeia toda a sua obra. Em Vida, Forma e
cas muito distintas, como, aliás, esclarece o Cor há, de fato, a sugestão de um Brasil que
próprio autor, na apresentação que faz ao é, mais do que uma realidade espaço-tempo-
volume. É, por isso, no meu entender, um tan- ral, uma matéria de tradução estética de
to refratário a abordagens que pretendam quantos se debruçam sobre ele; uma "figura",
tomá-lo como peça inteiriça, portadora de um na qual todas as épocas e suas substâncias são
sentido e de critérios homogêneos para o tra- contemporâneas entre si porque as suas res-
tamento de todos os temas arrolados ali. A pectivas existências não se confundem com o
variedade presente na coletânea e a riqueza tempo cronológico, sendo, antes, expressões
de referências históricas, literárias e filosófi- intelectuais conferidas a estados fugitivos ou
cas com que lida Gilberto Freyre recomen- a potencialidades a que se presta pouca aten-
dam, no mínimo, alguma cautela aos leitores ção. O Brasil, portanto, seria um espaço mo-
interessados em fornecer uma visão sintética derno de experiências, que se presta à reve-
da obra. Mas, se me fosse sugerido fazê-lo, lação. Revelação – esse o sentido mais forte
eu diria que Vida, Forma e Cor, é um livro que Gilberto Freyre empresta à literatura,
construído sobre três perguntas: "quem escre- quando praticada por intérpretes geniais,
ve sobre o Brasil?" "o que é escrever literaria- empaticamente mergulhados na matéria
mente?" e "o que é o Brasil?" compósita brasileira. Pareceu-me, então, que
A primeira indagação – "quem escreve os ensaios críticos de Gilberto Freyre poderi-
sobre o Brasil?" – se justifica porque grande am ser interpelados a partir dessas três inda-
parte dos ensaios têm em comum a preocu- gações, cujo efeito resulta ser a produção de
pação em indicar um extenso elenco de au- um amplo quadro de referências para se pen-
tores que, mesmo quando não tratam do Bra- sar o Brasil, os seus intérpretes e suas respec-
sil, inspiram os autores brasileiros, como é o tivas formas de interpretação.
caso de Amy Lowell, que Gilberto Freyre con- Com base nessas afirmações prelimina-
sidera uma forte presença na poesia de Ma- res, creio ser relevante apresentar um desses
nuel Bandeira. A segunda – "o que é escre- autores geniais do Brasil, que embora menci-
ver? " –, porque o livro resulta em uma onado em algumas das críticas que compõem
apresentação de variadas concepções acerca Vida, Forma e Cor, não é tratado aí. O autor é
da escritura literária, ora para combater os Euclides da Cunha que, como se sabe, foi tema
críticos que, segundo o autor, são "demasia- de dois ensaios curtos, que participam do Perfil
do intransigentes" para reconhecerem valor de Euclides e Outros Perfis. O primeiro texto
literário no ensaio social, ora para defender, se intitula O Engenheiro Físico, Alongado em
explicitamente, a literatura contida em ensai- Social e Humano e o segundo, Revelador da
os interpretativos das experiências humanas, Realidade Brasileira. Euclides é tomado aqui
mediante a observação de aspectos particu- como referência porque Gilberto Freyre re-
lares, desordenados, de fragmentos conhece nele um autor que atingiu a qualida-
descontínuos dessa experiência. Uma litera- de literária da revelação – por isso entendida
tura, pois, da experiência, apresentada sob a a capacidade, por exemplo, de surpreender
forma do ensaio social e elaborada com base no Brasil de sua época, isto é, da passagem
Não tenho a pretensão de esgotar nes- educadores, entre outros. Portanto, durante
se texto toda a contribuição de Gilberto Freyre a permanência de Gilberto Freyre em
para o desenvolvimento da Antropologia. Colúmbia, os Estados Unidos viviam um perí-
Quero salientar, todavia, algumas dimensões odo de grande criatividade na área das ciên-
de seu trabalho, que considero, historicamen- cias humanas, tendo como um de seus focos
te, cruciais e que mantêm ainda hoje um ca- principais a temática indivíduo e sociedade.
ráter inovador. Gilberto Freyre, como mostrou Seja sob o ponto de vista da interação social
Sebastião Vila Nova (1998), estudou e teve seja sob o ponto de vista de cultura e perso-
contato, durante sua estadia nos Estados Uni- nalidade, produzia-se um volume de traba-
dos, com os grupos mais destacados da ciên- lhos e idéias que constituíram-se em impor-
cia social daquele país. Numa época em que tantes subsídios para a obra de Gilberto Freyre
as fronteiras disciplinares e departamentais que soube digerí-los e elaborá-los no decor-
eram mais fluidas, teve acesso não só à antro- rer de sua carreira, contribuindo, decisivamen-
pologia e história de Colúmbia, mas também te, por sua vez, para esse campo de debates.
à sociologia de Chicago, associada à antropo- Como intelectual universalista, bebeu em vá-
logia no mesmo departamento, até o final dos rias fontes, na antropologia britânica, na es-
anos vinte. cola sociológica francesa e no pensamento
Essa relativa fluidez permitia e estimu- social e filosófico alemão, além da ciência so-
lava o florescimento de debates cial norte-americana, produzindo, assim, um
interdisciplinares, com implicações para toda perfil singular.
a área que classificamos atualmente como A conjuntura nos Estados Unidos pós-
Ciências Sociais ou até, de modo mais amplo, primeira grande guerra apresentava essa ca-
para as humanidades em geral. A intelligentsia racterística de ser favorável à convivência e
norte-americana do final do século XIX e pri- encontro de várias tradições intelectuais. O
meiras décadas do século XX era fortemente contato com a Europa era freqüente e inten-
marcada pelo darwinismo, ao mesmo tempo so, com intercâmbio permanente desde o fi-
que alguns de seus importantes expoentes nal da Guerra Civil. Esse processo foi se acen-
professavam ou vinham de famílias de religião tuando, envolvendo não só intelectuais, mas
protestante, como Albion Small e George H. variados setores da elite, preocupados com
Mead, figuras fundamentais da Escola de Chi- uma cultura cosmopolita e sofisticada (Simon,
cago (Bulmer, 1984 e Joas, 1997). Essa com- 1998). Sabemos que Gilberto Freyre já tinha
binação de evolucionismo e religiosidade, com um perfil intelectual se delineando quando
todos os conflitos, teve consideráveis impli- parte para Nova Iorque, mas lá, ainda muito
cações para o desenvolvimento de uma atitu- jovem, teve oportunidade de ampliar, signifi-
de e postura de reforma social. Mas é, sobre- cativamente, seu quadro de referências, tor-
tudo, no pragmatismo, com suas diferentes nando-se um sintetizador e um inovador. A
ênfases e correntes, que vai se encontrar a cultura e suas relações com a personalidade
principal tendência do pensamento social individual, certamente, foi um dos eixos fun-
norte-americano da época. Intelectuais do damentais da construção de seu trabalho.
porte de William James e John Dewey assu- Antropólogos contemporâneos seus como
miram um papel proeminente e liderança Edward Sapir, Ruth Benedict e Margaret
notável. O seu impacto nas ciências sociais Mead, influenciados, mais ou menos direta-
foi decisivo, estabelecendo um campo de dis- mente, por Franz Boas, desenvolveram estu-
cussão para filósofos, sociólogos, psicólogos e dos e reflexões sobre esse tema. Cabe, no
Dia 23 de março
COORDENADOR:
Diógenes da Cunha Lima
Presidente da Academia Norte-Riograndense de Letras – Brasil
Algumas Influências na Formação
Intelectual de Gilberto Freyre
_______________________
Notas
1
Freyre, Gilberto. "Advertência do autor", Retalhos de jornais ve-
lhos; 2ª ed. Revista e aumentada de Artigos de Jornal. Recife: Casa
Mozart, 1934, p. XXV.
2
Chacon, Vamireh. Gilberto Freyre: uma biografia intelectual. Re-
cife/São Paulo: Editora Massangana/Editora Nacional, 1993, p. 45.
3
Concluindo seu famoso livro, James diz que "the practical needs
A influência britânica sobre nós brasi- viveu seis anos no Brasil e escreveu um diá-
leiros foi grande, diversificada e remonta mes- rio.
mo ao século XVI ou aos inícios da nossa co- Já no século XVI registrava-se a presen-
lonização. Não se restringiu, como muitos ça dos corsários ingleses ou os históricos
pensam, ao lado puramente tecnológico, às "English privateers" 1 nas costas brasileiras. Fo-
maquinarias, ao desenvolvimento das manu- ram eles, entre os mais famosos, William
faturas, à indústria têxtil, às nossas estradas- Hawkins; Edward Fenton; Walter Raleigh
de-ferro ou ao telégrafo. "Os ingleses, quase (mais tarde Cavaleiro do Império Britânico);
tanto quanto os franceses, madrugaram sob a Cavendish (com suas célebres táticas de guer-
forma de piratas, aventureiros e negociantes, rilha naval) e James Lancaster (com as
nas praias da América tropical descobertas por investidas em Pernambuco). Lancaster, em
portugueses e espanhóis, e distanciando-se dos seguida, iria ser Governador Geral da East
franceses, por largos anos seus rivais, os ingle- India Co, e também agraciado com o título
ses acabaram alcançando entre nós, sob a for- de Cavaleiro ou Sir no Império Britânico.
ma de negociantes e técnicos, uma prepon- A Caesalpina brasiliensis, a ibirapitanga
derância econômica que, ostensivamente nos para os tupis ou o nosso pau-brasil, era ma-
dias de Dom João VI regente e depois rei – deira para marcenaria de luxo e ótimo corante
quando aquela predominância assumiu aspec- para a indústria têxtil européia. Por isso, ele
tos francamente imperialistas e não apenas marcou o primeiro período da vida econômi-
imperiais – acentuou-se de 1835 a 1912, para ca da colônia e foi também um chamariz para
só então começar a declinar lentamente os corsários. As costas brasileiras imensas, o
vencida pela expansão norte-americana e mi- gentio, as feitorias, o açúcar, os portos e as
nada pela alemã", escreve Gilberto Freyre, no cidades foram sempre atração suficiente para
livro Ingleses no Brasil, obra notável de análi- os ingleses, excelentes navegadores. Cessada
se dos aspectos da influência britânica sobre a União Ibérica em 1640, voltam Portugal e
a vida, a paisagem e a cultura do Brasil e, com Inglaterra ao estado de ''ótimas relações”. A
certeza, uma contribuição definitiva para a amizade luso-inglesa tinha se mantido desde
compreensão da história das relações anglo- o início da história de Portugal, quando cru-
brasileiras. zados britânicos haviam ajudado portugueses
Registrando inúmeros aspectos dessa na expulsão dos árabes para o Sul e na toma-
influência, Freyre foi o primeiro autor brasi- da do porto de Tejo.
leiro a transcrever, num livro-ensaio, essa pre- Essa aliança luso-inglesa já fora tão ínti-
sença. O livro, como se sabe, é quase o único ma que várias famílias nobres de Portugal eram
no gênero e é resultado de extensiva pesqui- de origem inglesa. O enlace de Carlos II da
sa em várias fontes. Também conta com ilus- Inglaterra com Catarina de Bragança, em
trações demonstrativas do império inglês no 1622, deu aos britânicos o direito de estabe-
mundo, contém trechos de diários, aponta- lecer feitorias em domínios portugueses como
mentos, notas e referências de obras impor- Goa, Diu, Cochim, Bahia e Pernambuco. Em
tantes e "accurate" sobre o Brasil, seu povo, 1654, no tratado entre Portugal e os ingleses,
seus costumes e hábitos. Sem deixar de estar feito por Cromwell, reservou-se à Marinha
atento a outra grande influência no Brasil, a Britânica o monopólio sobre o comércio das
francesa, Gilberto Freyre já havia escrito o mercadorias inglesas com outros países, inclu-
notável Um Engenheiro Francês no Brasil, so- sive Portugal, sem direito à reciprocidade; e
bre o engenheiro Loius Léger Vauthier que permitia-se, pois, aos ingleses, negociar dire-
Descobri Gilberto Freyre muito tardia- mesmo os vários anúncios que Freyre aí faz
mente. Para mim como para tantos outros de de futuros estudos seus sobre o assunto não
minha geração que freqüentaram universida- parecem ter sido desenvolvidos, e a influên-
de no final dos anos 60, Gilberto Freyre pare- cia inglesa na formação do brasileiro ainda
cia uma figura pouco atraente. Levados por permanece um terreno relativamente
razões ideológicas, talvez muito tolamente, inexplorado.
muitos de nós nos privamos de ler, naquela Antes dessa obra, Freyre já anunciara
altura, as obras mestras de um dos mais emi- seu interesse pelo tema e assumira, por assim
nentes intelectuais brasileiros. Foi só no iní- dizer, sua anglofilia. Em Casa-Grande & Sen-
cio da década de 80 que vim a descobrir Gil- zala, por exemplo, deixara claro que as infor-
berto Freyre, lendo não uma de suas obras mações dos viajantes ingleses eram superio-
mais conhecidas, mas, sim, Ingleses no Brasil. res às dos franceses em "lisura, exatidão e
Na época, estava iniciando meu doutorado honestidade de narrativa"1. Em Sobrados e
sobre um tema da história cultural inglesa e Mucambos são muitas as referências ao papel
esse ensaio de Freyre me descortinou dimen- dos ingleses na transformação da paisagem
sões insuspeitas sobre a influência da cultura cultural brasileira, tanto material quanto inte-
britânica no ethos brasileiro. Nunca o encon- lectual, e já fica evidente que a influência bri-
trei pessoalmente, mas tive, também nessa tânica na formação brasileira era um tema que
ocasião, a oportunidade de conhecer sua ge- o fascinava e para o qual não usava meias
nerosidade intelectual. Tendo lhe enviado palavras. O técnico britânico, o humilde ma-
uma carta para a qual, na verdade, não con- quinista, por exemplo, é equiparado ao Pri-
tava com a resposta, tive a agradável surpresa meiro Ministro de uma monarquia constitu-
de me ver – eu, uma mera doutoranda – pron- cional que tivera o mérito de minar a
tamente atendida no meu pedido de maiores importância do antes todo-poderoso senhor
informações. de engenho e de fazer os mestiços ascende-
Falar sobre Ingleses no Brasil significa, rem socialmente e transformarem-se em classe
portanto, tratar de uma obra que tem para média. 2 Mas é na pequena coletânea de en-
mim um valor especial, pois foi através dela saios, Ingleses, de 1942, que G. Freyre, movi-
que a riqueza e a originalidade da obra do em parte pelo papel liberador que a Ingla-
freyriana primeiramente se revelaram. E o as- terra desempenhava na II Guerra, revela seu
sunto que tem me fascinado nos últimos anos imenso entusiasmo pelo legado britânico e
– o estudo das marcas inglesas na obra de deixa entrever seu grande interesse em difun-
Freyre – talvez tenha me sido sugerido exata- dir a importância do impacto da cultura britâ-
mente pelo entusiasmo com que ele próprio nica no Brasil. É aí tambem que, enaltecendo
discorreu, na década de 40, sobre as marcas o que a Inglaterra fizera e fazia pelo mundo
deixadas pela cultura inglesa na história e no não só político como cultural, Freyre expõe e
etos brasileiro. declara sua anglofilia alto e bom tom. Seu
Qual o lugar que ocupa Ingleses no Bra- olhos, como dizia, talvez estivessem "turva-
sil na obra de Freyre? Seguramente este não é dos por um amor físico e ao mesmo tempo
um de seus livros mais conhecidos. Publicado místico à Inglaterra".3
em 1948 e jamais reeditado ou traduzido, Ingleses no Brasil não segue, no entan-
poucas são as referências a ele em estudos to, a mesma linha de Ingleses, livro composto
sobre a formação da cultura brasileira. As inú- basicamente de flashes variados e, em geral,
meras sugestões de trabalhos aí contidas, e apologéticos, de traços e figuras significativos
Peter Burke
Historiador – Universidade de Cambridge – Inglaterra
Dia 23 de março
COORDENADOR:
Alberto da Costa e Silva
Escritor – Embaixador – Brasil
Aventuras e Desventuras em Tempo
Morto e Outros Tempos
“Um diário não é só registro de sucessivos uma vida plena de momentos excepcionais a
encontros – ou desencontros – de um ser desfrutados, gozados, fruídos.
indivíduo alongado em pessoa, consigo Em 1915, a aventura é um dos concei-
mesmo. Envolve outros indivíduos. Outras tos que exsudam da pena do jovem Gilberto
pessoas. Instituições. Conflitos de indivíduo Freyre para tratar com nostalgia de sua infân-
ou de pessoa com grupos, convenções, cia. O trem elétrico, os blocos de madeira com
tendências do seu tempo e do seu meio os quais construiu cidades, igrejas e "castelos
social. Revoltas. Resistência a esse tempo e a das fantasias vãs". "Também os soldados de
esse meio. Quixotismo. E também chumbo desmilitarizados em simples e paisa-
pancismos: acomodações, transigências, nos homens e mulheres e tornados a parte
subordinações” (Gilberto Freyre, prefácio a viva e humana do meu mundo – diz ele – um
Tempo Morto e Outros Tempos, 1975). mundo que durante anos criei à minha ima-
gem como se sozinho, em recantos quase se-
Esse texto começa com várias pergun- cretos da casa, e depois num sótão que se
tas. Por exemplo, teria jamais Gilberto Freyre tornou meu quase domínio absoluto, eu brin-
sonhado com aventuras, tal como o fez o jo- casse de ser Deus".2 Constrangidos por uma
vem Flaubert ao embarcar, em 1849, para o vida excessivamente feliz, os sonhos de ex-
Egito? O que terá encontrado de suas própri- plorações impossíveis do então menino de
as projeções, daquelas vividas em sonho ou quinze anos eram realizados nas batalhas ima-
nascidas de coisas lidas, espécie de espirais ginárias ou nos esconderijos criados por ve-
do presente no passado, no mundo que des- lhos móveis de madeira, abandonados nos
bravou entre seus quinze e trinta anos e cujo desvãos do telhado. Apelo à plenitude ou à
registro nos legou em Tempo Morto e Outros incandescência de viver, o desejo de aventu-
Tempos? Um diário onde se escreve e se des- ra do adolescente exigia o despojamento das
creve uma vida não é também a invenção da antigas fidelidades, o abandono de "bugigan-
existência e de seu sentido? Não é o diário o gas e brinquedos amados" que o ridiculariza-
espaço mesmo da descrição de aventuras vam frente a primos e vizinhos. "Agora – con-
marcadas pelo imprevisto e pelo inesperado, fessa o menino ao diário – esse mundo se
como afirma o próprio autor no prefácio do desfez, o meu novo mundo só conserva do
livro? velho as minhas garatujas".3 Gilberto deixava
Esclareçamos, contudo, o ponto de par- para traz os parâmetros de segurança da casa
tida de nossa análise: a aventura não existe patriarcal para mergulhar num universo de
em si. Ela existe, sim, no espírito de quem a incertezas: "Como se explica que me faça cho-
persegue. A aventura celebra o encontro do rar o fim do carnaval? " pergunta-se, ansioso
homem com o imprevisível, arrancando-o da por construir uma personalidade sem entra-
quietude que o protege de si mesmo e do ves, endossando o papel de múltiplos perso-
mundo. As circunstâncias nas quais se vivem nagens condensados dentro de si, para vivê-
aventuras, desarmam as rotinas ventilando a los nem que fosse por um dia. Tais
existência com um sopro inédito, novo, súbi- personagens se alternavam. Havia o que fre-
to1. A aventura é o dom de sonhar, parte es- qüentava a "república" de estudantes de Di-
condida em cada indivíduo, fazendo-o vibrar reito leitor de Nietzche e Conte, dando aulas
com a escuta ou a leitura de uma narrativa de de latim e grego aos alunos mais velhos, um
perigos e prazeres. A aventura o deixa pres- "prodígio" de erudição4 capaz de dirigir, como
sentir uma existência sem "tempos mortos", redator chefe, "O lábaro", o jornal da escola. 5
Notas
1
Essa é a opinião de Victor Segalen, Essai sur l'exotisme, Paris,
Biblo-essais, 1986. Empresto a David Le Breton, seu conceito de
aventura no prefácio à L'Aventure – la passion des détours, Paris,
Autrement, 1996.
2
Tempo morto e outros tempos, trechos de um diário de adoles-
cência e primeira mocidade, Rio de Janeiro, José Olympio, 1975,
p. 3.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, p. 5.
5
Idem, p. 6.
6
Idem, p. 14.
7
Idem, p. 6.
8
Idem, p. 13.
9
Idem, p. 9.
10
Idem, p. 14.
11
Idem, p. 20.
12
Idem, p. 27.
13
Idem, p. 27.
14
Idem, p. 30.
15
Idem, ibidem.
16
Sobre o relativismo ver o que diz Tzvetan Todorov, in Nous et les
autres, la réflexion française sur la diversité humaine, Paris, Seuils,
1989.
17
Gilberto Freyre, op. cit. p. 32.
18
Idem, p. 25.
19
Idem p. 71.
20
O conceito de aventura é extraído do seu "Sont-ils des
aventuriers, ces írates occidentaux..." in David Le Breton, op. cit.,
p. 161-165
21
Idem p. 52.
22
Idem, p. 81.
23
Arnold Hauser, História social da literatura e da arte, São Paulo,
Meste Jou, s/d, volume II, p. 1135. Sobre Bergson ver, M. Merleau-
Ponty, Éloge de la philosophie, Paris, Gallimard, 1953; H. Gouthier,
Bergson et le Christ des Évangiles, Paris, Fayard, 1961, G. Deleuze,
Le Bergsonisme, Paris, P.U.F., 1989; V. Jankélevitch, Bergson, Paris,
P.U.F., 1975.
24
Gilberto Freyre, op. cit., p. 113.
25
Idem, p. 115.
26
Idem, p. 92.
27
Arnold Hauser, op. cit., pp. 1116 e passim.
28
La rebelión de las masas, 1930.
29
Philippe Chenaux, Maurras et Maritain, une génération
intellectuelle catholique (1920-1930), Paris, Cerf, 1999, p. 227.
Agradeço a José Mário Pereira a gentil indicação dessa obra.
30
Ver seu Le passé d'une illusion. Essai sur l'idée communiste au
XXe. siècle, Paris, Gallimard, 1995.
31
Phillippe Chenaux na introdução ao seu Maurras et Maritain,
une génération intellectuelle catholique (1920-1930), chega a falar
em "déficit historiográfico" sobre essa questão.
32
Gilberto Freyre, op. cit, p. 93.
33
Idem, p. 96.
"Em Portugal rever talvez seja maior delícia balho que ele vai se demorar na análise de
do que ver" (AR, p. 16). um conjunto de transformações que, preten-
dendo desde o início do século XIX associar o
Este trabalho pretende apenas levantar Brasil ao processo de civilização dos costu-
algumas questões sobre Aventura e Rotina mes típico da modernidade ocidental, substi-
(1980 [1953]), volume que reúne as observa- tui o diversificado e colorido mosaico de tra-
ções de Gilberto Freyre sobre uma viagem dições culturais presentes no período colonial
que, de agosto de 1951 a fevereiro de 1952, – paralelamente ao despotismo e à violência
o levou a visitar Portugal e algumas de suas instaurados pelo regime escravocrata – por um
então colônias na Ásia e na África. Este cará- sistemático, uniforme e inflexível modelo de
ter introdutório do texto, aliás, torna-se ainda inspiração européia, totalmente incapaz de to-
mais saliente pelo fato de que, por limitações lerar a variedade, os excessos e a instabilida-
de tempo, serei obrigado a me concentrar na de que marcavam até então a experiência
fase portuguesa da mencionada viagem, dei- nacional.
xando para outra oportunidade uma avalia- Assinale-se, de imediato, que Gilberto
ção mais ampla e aprofundada do livro como escreve repetidamente contra essa uniformi-
um todo. zação dos costumes, esta "reeuropeização do
Muito bem: apresentadas as necessári- Brasil", tentando sempre encontrar maneiras
as explicações, creio que valha a pena iniciar por intermédio das quais ao menos uma par-
lembrando que, se houvesse necessidade de cela do espírito daquele mosaico colonial
se encontrar uma fórmula que resumisse a poderia ser reanimado, passando assim a
argumentação de Gilberto em AR, ela talvez moderar e portanto a alterar a rígida
pudesse ser retirada da sua página 141, quan- modernidade implantada no País. Ora, a mi-
do nosso autor afirma que procura "explica- nha impressão é a de que são precisamente
ções para costumes ou tendências que pare- essas diferenças culturais, esses antagonismos
cendo às vezes peculiares ao Brasil têm origens em equilíbrio que ele vai procurar em Portu-
lusitanas". Essa fórmula, que converte a via- gal, dando continuidade, em outro contexto,
gem em uma espécie de ponte, um instrumen- a uma das suas mais consistentes preocupa-
to capaz de promover a busca de continuida- ções intelectuais e políticas.
des entre Portugal e o Brasil, precisa, E, realmente, não leva muito tempo
evidentemente, ser complementada por ou- para que Gilberto venha a identificar lugares
tras hipóteses. Afinal, há que se estabelecer e situações aparentemente bastante compa-
não só a natureza dos valores perseguidos por tíveis com os valores que se esforça em de-
Gilberto como também as próprias formas fender. Desse modo, já na página 25, referin-
pelas quais eles poderiam ser percebidos, em do-se aos bosques e jardins das quintas de
Portugal, no meio do século XX. Sintra, ele vai observar que
Na verdade, creio que será possível
"[...] se alguém for reparar em porme-
encontrar um primeiro caminho para respon-
nores, descobrirá, no meio deste arvoredo
der a essa indagação se levarmos em consi-
castiçamente português – sobreiros, salguei-
deração outro livro de Gilberto, Sobrados e
ros, vinhas –, muita planta vinda do Ultramar
Mucambos , publicado originalmente em
tropical e aqui já ajustada ao todo castiço da
1936, mas reeditado, com muitas e sérias
paisagem. Sinal de que a quinta, entre outras
modificações, no mesmo ano dessa sua via-
virtudes, tem tido a de domesticar em Portu-
gem, 1951. Isso ocorre porque é nestes tra-
Bibliografia
ARAÚJO, Ricardo. Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra
de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34,
1994.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1936.
______________. Tempo morto e outros tempos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1975.
______________. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio,
1980.
SOUZA, Jessé (Org.). Simmel e a modernidade. Brasília: UnB, 1998.
Dia 23 de março
COORDENADOR:
Carlos José Garcia da Silva
Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco – Brasil
Dona Sinhá, o Filho e o Dogmatismo
Exorcizado
Elizabeth Marinheiro
Escritora – Universidade Federal da Paraíba – Brasil
1964! Rio de Janeiro, editora José Em sua defesa da vida comum, Michel
Olympio. Dona Sinhá e o Filho Padre sai às de Certeau reconhece gêneros de discurso ex-
ruas dizendo que por aqui "amor, amizade, purgados pela razão científica em busca de
religião e sexo se confundem do começo ao lugar próprio e marca "o imenso campo de
fim ". Insinua-se já a parceria das vozes uma arte de fazer diferente dos modelos que
encapsuladas no espaço estereográfico da reinam de cima para baixo da cultura habili-
narrativa gilbertiana. tada pelo ensino". Pegando esta "carona", de-
Inspirada pela construção artesanal da fendo a ordinariedade de Dona Sinhá não
obra, elegi dois pilares que se destacam no como número ou vitrine. O vaivém bem
texto, vinculando-os à estória do menino e à humorado do texto empina um dia-a-dia que,
estória da obra. Em seguida, procurei obser- não se prendendo "no passado, nas zonas ru-
var até que ponto Dona Sinhá debilita os rais ou nos primitivos", junta os "escritos de
dogmas. Se produzi uma "colagem", não im- vosmicê" e as etimologias gregas estudadas por
porta... Afinal de contas que Teoria Literária Paulo Tavares em Oxford; o mau olhado da
terei criado eu?... Certa estou de que tentei velha do Pátio do Terço e os melhores remé-
uma espécie de multiperspectivismo crítico, dios da Europa; as avenidas de Paris e as va-
não para obter interpretações definitivas e sim randas dos sobrados recifenses, onde o mu-
para me afastar das gramáticas autoritárias. lherio sem fregueses gritava palavrões. Em vez
de reenviar à uniformidade do consumo
A estória do menino mediático, a ordinariedade em Dona Sinhá
Remetendo ao saber comum, a estó- representa aquilo que a sociedade tem de
ria do menino envolve um entrelaçamento inarraigável: os gestos de cada dia integram
de lexias históricas, científicas, artísticas, os contratos da própria existência.
genealógicas e gastroliterárias; estas – ao lado Por meio da interdependência, a cida-
de outras procedentes das formas simples e de também encena a família. O corpus do
do discurso da moda – evidenciam os afluxos saber, ligado "por uma solidariedade final" à
da voz do saber. voz da pessoa, produz os significados de
Do ambiente católico-patriarcal deriva- conotação que aquecem "a verdade" textual.
se a temática da infância e, através dela, pode- Haveria, pois, que enfocar Dona Sinhá, a mãe
se filtrar o espaço da cidade. Se a cidade "é castradora; Inácia, a mucama supersticiosa e
por excelência lugar de circulação incessante submissa; Paulo Tavares , um tropical-
– de pessoas, coisas, imagens, símbolos de to- estrangeirado. Detive-me apenas no menino
dos os tipos", posso olhar o cenário de Dona José Maria, pondo em relevo algumas impli-
Sinhá como poliedro entramado em variações cações técnicas e estéticas, o que faço sem
e trocas. Por essa perspectiva é possível expli- nenhuma pretensão psicanalítica.
car a articulação do imaginário espacial reli- O menino escapa de uma diarréia. Irá
gioso com as "astúcias" do cotidiano urbano. ser padre em cumprimento ao voto da mãe
A obsessão atávica do narrador e sua volun- repressora. Alvo, cabelinhos alourados que
tária remissão às romarias de Santo Amaro, às nem os anjos, preso às saias e beatices de
procissões de Ipojuca, à moda Paris/Recife, Dona Sinhá, a criança é logo objeto da zom-
etc. sugerem aproximações entre grandes ca- baria coletiva. Efebo precoce. Muito cedo
pitais e pequenas cidades. Não se trata da ade- descobre o prazer do sexo. Os "dedinhos"
são ao exótico porque o traço aproximativo eram seu principal instrumento erótico: des-
incorpora-se à análise. montava gaitas, bonecos, lagartixas. Amolegar
_______________________
Vamireh Chacon
Cientista Político – Univesidade de Brasília – Brasil
Região e tradição: fatores de permanen- Pará, Pernambuco ou Ceará com São Paulo,
tes tensão, entre outros subjacentes em mais Rio Grande ou Paraná?"
uma das várias globalizações atravessadas pelo Num País tão extenso e diversificado e
mundo, por conta de sucessivas ondas de re- de população tão grande, tem-se de pensar
novação tecnológica. regionalmente, mesmo para entendê-lo naci-
Região e Tradição: retrato do artista onalmente.
quando jovem, como diria James Joyce, auto- Diante de Franklin Távora no próprio
retrato de jovem Gilberto, véspera do seu prefácio ao seu romance O Cabeleira de 1876
desabrochamento, Casa-Grande & Senzala – "uma verdade irrecusável": "Norte e Sul são
publicado em 1933, iniciado em Lisboa, 1931, irmãos, mas são dois". Cada um tem suas as-
está no prefácio à primeira edição; prossegui- pirações, seus interesses, e há de ter, se já não
do na Universidade de Stanford, Califórnia, tem, sua política"– e perante o Euclides da
concluído no recifense Sítio do Carrapicho de Cunha do ensaio magistral, porque científico
volta do exílio pela Revolução de 1930 da e épico, Os Sertões, 1902 – "Duas sociedades
Aliança Liberal. (Norte e Sul) em formação, alheadas por des-
Região e tradição será, para Gilberto tinos rivais – uma de todo indiferente ao modo
Freyre, um dos temas do nosso tempo, no sen- de ser da outra, ambas, entretanto, envolven-
tido orteguiano recorrente em outros dos fu- do sob os influxos de uma administração úni-
turos, os que ora vivemos, como se verá em ca" – diante disto Sílvio Romero preferia "afir-
Insurgências e Resurgências: uma das obras de mar a unidade na multiplicidade".
final de vida. Enquanto o Presidente Artur Bernardes,
Região e tradição: inspirações da Sema- envolto pelas agitações até armadas que le-
na Regionalista de 1926 e do livro Nordeste varão em breve à Revolução de 1930, suspei-
de 1937. Sem bairrismo nem saudosismo, José tava de separatismo na Semana Regionalista
Lins do Rego entendeu-o muito bem no pre- nordestina de 1926, já em 1924 um certo
fácio a Região e Tradição, livro: "O Brasil pre- Moraes Coutinho, na revista Ilustração Brasi-
cisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às leira no Rio de Janeiro, nº 46 de junho de
suas fontes de vida, às profundidades de sua 1924 (primeiro centenário da Confederação
consciência". do Equador), distinguia "federalismo centrífu-
Já Sílvio Romero em sua História da Li- go" estadualista e "federalismo centrípeto"
teratura Brasileira, 1888, mostrava como "não regionalista. E José Lins do Rego, no artigo
sonhamos um Brasil uniforme, monótono, Contra o Separatismo no Jornal de Alagoas de
pesado, indistinto, nulificado, entregue à di- Maceió em 18 de janeiro de 1931, lembrava
tadura de um centro regulador das idéias". "A que "a experiência nos diz, uma separação
grandeza futura do Brasil virá do desenvolvi- seria mais uma ruína, seria o calabrote estran-
mento autonômico de suas províncias, hoje geiro como no Egito e a Índia".
estados". Pois, "se não é possível confundir as Desde 1926 que Gilberto Freyre insis-
populações do Norte com as do Sul em pe- tia que "a maior injustiça que se poderia fazer
quenos países europeus; se é exata a diferen- a um regionalismo como o nosso seria con-
ça entre o Algarve e o Minho, a Provença e a fundi-lo com separatismo ou com bairrismo.
Normandia, a Suábia e o Meclemburgo, o Com anti-internacionalismo, antiuniversalismo
Piemonte e Nápoles, a Escócia e a Inglaterra, ou antinacionalismo. Ele é tão contrário a
as Astúrias e a Andaluzia, em pequenos Esta- qualquer espécie de separatismo que, mais
dos da Europa, por que se hão de confundir o unionista que o atual e precário unionismo
Giralda Seyferth
Antropóloga – Museu Nacional – Brasil
Bibliografia
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Homi K. Nation and Narration. London: Routledge, 1990.
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nacional. Mana. Estudos de Antropologia Social. v.3, n.1.
WILLEMS, Emílio. Assimilação e populações marginais no Brasil.
São Paulo: Companhia Editora Nacional.
Raul Lody
Antropólogo – Brasil
_______________________
Dia 23 de março
COORDENADOR:
Marcos Formiga
Superintendente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste –
Brasil
Eça de Queiroz e Gilberto Freyre:
Algumas Aproximações
Apesar do seu ostensivo apreço pela li- que notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e
teratura ficcional, expresso não apenas no entusiasmos, que acabam logo em fumo, e jun-
modo quase romanesco do seu discurso tamente muita persistência, muito aferro quan-
ensaístico, mas, inclusive, na sua crença no do se fila à sua idéia... A generosidade, o des-
potencial, ao menos heurístico, da obra de leixo, a constante trapalhada nos negócios, e
ficção como ponte proveitosa de informações o sentimento de muita honra, uns escrúpulos,
sobre sociedades do passado onde tal gênero quase pueris, não é verdade?... A imaginação
literário existe,1 não deixa de ser curioso, em que leva sempre a exagerar até à mentira, e ao
se tratando de um sociólogo, que, ao tentar mesmo tempo um espírito prático, sempre
uma síntese da fisionomia moral do portugu- atento `a realidade útil. A viveza, a facilidade
ês, em Casa-Grande & Senzala, 2 recorra Gil- em compreender, em apanhar... A esperança
berto Freyre a um ficcionista, Eça de Queiroz. constante nalgum milagre, no velho milagre de
É precisamente dos últimos parágrafos de A Ourique, que sanará todas as dificuldades... A
ilustre Casa de Ramires que Freyre vai-se va- vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma
ler, através da descrição que o personagem simplicidade tão grande, que dá na rua o bra-
João Gouveia faz do modo de ser do protago- ço a um mendigo... Um fundo de melancolia,
nista daquele romance, Gonçalo Mendes apesar de tão palrador, tão sociável. A descon-
Ramires, para traçar o caráter social do por- fiança terrível de si mesmo, que o acovarda, o
tuguês, já no 11º parágrafo do Capítulo I de escolhe, até que um dia se decide, e aparece
Casa-Grande & Senzala, "Características gerais um herói, que tudo arrasa... Até aquela arran-
da colonização portuguesa do Brasil: forma- que para a África... Assim todo completo, com
ção de uma sociedade agrária, escravocrata e o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me
híbrida". E é com indisfarçavel entusiasmo que lembra?
se refere ao texto de Eça: "- Quem? ...
"- Portugal."4
"[...] o luxo de antagonismos no caratér
português surpreendeu-o magnificamente Eça E, arrematando a citação, comenta
de Queiroz. O seu Gonçalo, d' A Ilustre Casa Freyre;
de Ramires, é mais que a síntese do fidalgo – é
" Extremos desencontrados de
a síntese do português de não importa que
introversão e extroversão ou alternativas de
classe ou condição. Que todo ele é e tem sido
sintonia e esquizoidia, como se diria em mo-
desde Ceuta, da Índia, da descoberta e da
derna linguagem científica."5
colonização do Brasil como Gonçalo Ramires
[...] ". Que Eça de Queiroz esteja presente no
ambiente doméstico de Freyre já desde a sua
O texto, não transcrito na íntegra por
infância é constatação da qual há indícios sig-
Freyre, é a seguir reproduzido sem omissões:
nificativos a partir mesmo do fato de que o
autor de Os Maias figurava entre os autores
"- Pois eu tenho estudado muito o nosso
preferidos do Professor Alfredo Freyre, pai de
amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe
Gilberto, como este evoca:
o Sr. Padre Soeiro quem ele me lembra?
"- Quem? "Seus clássicos prediletos eram Camões,
"- Talvez se riam. Mas eu sustento a se- Frei Luís de Souza, Castilho e Herculano. Den-
melhança. Aquele todo de Gonçalo, a franque- tre os brasileiros, Vieira. Mas sem deixar de
za, a doçura, a bondade, a imensa bondade, saborear o seu Oliveira Martins, o seu Ramalho
_______________________
Bibliografia
AMARAL, Ilídio do. A geografia tropical de Gilberto Freyre. Lisboa:
s. n., 1990.
CASTELO, Cláudia. O Modo Português de estar no mundo: o luso-
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48p.
_______________ . Um brasileiro em terras portuguesas: introdu-
ção a uma possível luso-tropicologia acompanhada de confe-
rências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusita-
nas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1953. 438p. (Documentos Brasileiros,
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_______________ . Conferências na Europa. Rio de Janeiro: Mi-
nistério da Educação e Saúde, 1938. 112p.
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das relações sociaes e de cultura do Brasil com Portugal e as
colônias portuguesas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.
164p. (Documentos Brasileiros, 28).
_______________ . Tempo morto e outros tempos: trechos de um
diário de adolescência e primeira mocidade, 1915-1930. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1975. 268p.
RIBEIRO, Orlando. A colonização de Angola e o seu fracasso. Lis-
boa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1981.
_______________________
Notas
1
Cláudia Castelo, O Modo Português de Estar no Mundo. O luso-
tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961), Porto,
Edições Afrontamento, 1999, p. 140.
2
idem, p. 6. Recorde-se que a formação dessa imagem de que
fala Valentim Alexandre é muito anterior ao século XIX. Os
"colonialistas" (como se chamavam a si próprios) portugueses dos
finais do século XIX, princípios do século XX, consideravam-se
"continuadores dos descobridores". A auto-imagem da vocação
ecumênica, de uma missão divina em benefício da Humanidade,
encontra-se abundantemente registrada nos autores portugueses
do século XV e sobretudo XVI, e porventura o seu maior reflexo
encontra-se no Mestre Rafael Hitlodeu, a principal personagem
da Utopia de Thomas More. (Ver, por ex., J. S. da Silva Dias, Os
Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI, Coimbra,
Universidade de Coimbra, 1973, p.191 ss.).
3
Ver a este propósito o trabalho entretanto publicado de Ivo Car-
neiro de Sousa, O Luso-tropicalismo e a Historiografia Portugue-
sa: Itinerários Críticos e Temas de Debate, in Adriano Moreira e
José Carlos Venâncio (Orgs.), Luso-Tropicalismo. Uma Teoria So-
cial em Questão, Lisboa, Vega Editora, 2000, pp. 66-81.
4
Furando também o "bloqueio", o Jornal de Letras dedicou grande
parte do seu nº 772 (3 a 16 de Maio de 2000) a Gilberto e ao luso-
tropicalismo. Ver tb. o nº 773 (17 a 30 de Maio de 2000), p. 46.
5
Donato Gallo, Antropologia e Colonialismo. O Saber Português,
Lisboa, Editores Reunidos/Heptágono, 1988, p. 10.
6
Yussuf Adam, Portugal-Moçambique: A Procura de uma Relação,
in Estudos Moçambicanos, nº 9, 1991, Maputo, Centro de Estudos
Africanos/Universidade Eduardo Mondlane, (pp.37-72) p. 62; O
Primeiro Painel de Historiografia decorreu em Maputo, de 31de
Julho a 3 de Agosto de 1991, e as comunicações encontram-se em
Alexandrino José e Paula Meneses (Orgs.), Moçambique. 16 Anos
de Historiografia (Focos, Problemas, Metodologias, Desafios para a
Década de 90), Maputo, s/e (Centro de Estudos Africanos/Univer-
sidade Eduardo Mondlane), 1991.
7
Eduardo Mondlane, Lutar por Moçambique, Lisboa, Livraria Sá
da Costa Editora, 1975 (1ª ed. 1969), p. 249.
8
Léopold Sédar Senghor, Lusitanidade e Negritude (Comunica-
ção à Academia das Ciências em 27/1/75), Lisboa, Academia das
Ciências de Lisboa (Instituto de Altos Estudos- nova série, fascícu-
lo I), p. 55.
9
Refiro-me concretamente ao trabalho de Cláudia Castelo anteri-
ormente apontado.
10
Cfr. Pedro Borges Graça, O Projecto de Eduardo Mondlane (Uma
Biografia), no prelo.
11
Cfr. Pedro Borges Graça , Gilberto Freyre na Correspondência
de Melville J. Herskovits: O Luso-Tropicalismo frente ao Afro-
Americanismo, in Adriano Moreira e José Carlos Venâncio (Orgs.),
Luso-Tropicalismo. Uma Teoria Social em Questão, op. cit., pp. 48-
65.
12
Cfr. Michel Laban, Mário Pinto de Andrade. Uma Entrevista,
Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1997.
13
idem, p. 83.
14
Cfr. Pedro Borges Graça , O Africanismo Lusófono, in AAVV,
Conjuntura Internacional , Lisboa, Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas, 1996, pp. 285-300; Sobre o marxismo como
"força conceptual dominante" nas universidades americanas, eu-
ropéias e africanas, ver Jan Vansina, Living With Africa, Madison,
The University of Wisconsin Press, 1994, passim.
Helena Balsa
Jornalista – Rádio e Televisão Portugueses – Portugal
No mais profundo de si, Gilberto Freyre mães das mangueiras hoje tão do Brasil como
sabia que iria a Goa. Tinha cinquenta e um se fossem americanas e não indianas; coquei-
anos quando realizou, finalmente, a viagem ros dos chamados da Baía mas na verdade da
até à Índia Portuguesa, em Novembro de Índia. Em compensação, a Índia portuguesa
1951. Havia pelo menos vinte anos que o recebeu do Brasil, pela mão do português, o
sociólogo ansiava por esta visita. coqueiro, a mandioca, o tabaco, o mamoei-
No início dos anos trinta, quando es- ro.
creveu Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre Esta interpenetração de valores não só
surpreendeu-se com a enorme quantidade de de cultura como de paisagem, deram a Gil-
orientalismos dissolvidos no complexo brasi- berto Freyre a sensação de, estando na Índia
leiro de cultura. Parecia-lhe evidente ter sido portuguesa, estar no Brasil. Sensação tanto
na Índia que os portugueses alcançaram a sá- mais real quanto, como destaca o sociólogo,
bia aprendizagem de vida nos Trópicos; quan- o Português que escuta em Goa é muito mais
do chegam ao brasil, apenas puseram em prá- o Português do Brasil do que o Português de
tica a licção aprendida. Portugal. Os portugueses não só adaptaram
Com um espírito um tanto proustiano, os costumes e estilos de vida indianos, como
Gilberto Freyre dirigiu-se a Goa em busca, os levaram para o Brasil. Esses valores estão
segundo as suas próprias palavras, "menos de hoje tão integrados na vida brasileira que, es-
um tempo perdido que de uma presença de creve o sociólogo, "parecem oriundos da ter-
certo modo perdida"– a presença portugue- ra americana ou próprios da cultura
sa. O que acaba por encontrar em Goa sur- ameríndia".
preendeu profundamente o sociólogo que em Gilberto Freyre não poupa elogios ao
"Aventura e Rotina" escreve: "Para o brasilei- pioneirismo do português que se antecipou a
ro é, como se, em pleno Oriente, chegasse qualquer outro povo europeu, não receando
ao Brasil, com o qual a Goa antiga se parece as críticas nomeadamente as provenientes dos
extraordináriamente: mais do que com Por- ingleses que ainda nos fins do século XIX, viam
tugal. nessa adaptação aos Trópicos "excesso de tran-
A paisagem e população goesas reve- sigência de europeus superiores com orien-
lam-se de tal modo familiares a Gilberto Freyre tais inferiores." A experiência de miscigena-
que o sociólogo vê confirmadas todas as suas ção cultural protagonizada pelos portugueses
intuições segundo as quais muitos traços da foi tanto mais extraordinária quanto a exis-
paisagem e da cultura brasileiras têm origem tência de castas na sociedade indiana se mos-
na Índia graças aos portugueses que levaram trava intransigente. No seu livro Aventura e
para a América velhas culturas e experiências Rotina Gilberto Freyre alerta para o facto do
orientais. Ao percorrer Goa, recorde-se que espírito de casta sobreviver dentro do próprio
Goa é desde 1961 o vigéssimo quinto estado Cristianismo com a conivência do clero.
da União Indiana, o sociólogo anota: "Aqui A passagem pela Índia Portuguesa re-
se encontram as varandas de casa, hoje tão velar-se-ia decisiva para o cimentar da teoria
da arquitectura doméstica do Brasil; o copiar do Luso-tropicalismo. É ainda no livro Aven-
ou o telheiro em frente da casa, que se esten- tura e Rotina que vamos encontrar a seguinte
deu aqui não só às igrejas como aos próprios definição: "Creio ter encontrado nesta expres-
cemitérios cristãos, protegidos contra as chu- são luso-tropical a caracterização que me fal-
vas; a canja, que, no Brasil, é ainda mais pra- tava para o complexo de cultura hoje forma-
to nacional que em Portugal; mangueiras, do pela expansão portuguesa em terras
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Dia 24 de março
COORDENADOR:
Creuza Aragão
Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
Gilberto Freyre: Ciência Social e
Consciência Pessoal
Uma das dificuldades que se apresen- toricamente três objetos diversos e indepen-
tam na constituição de qualquer ciência é o dentes, o problema que isto nos coloca é mais
problema de onde encontrar o seu objeto. Nas espinhoso ainda: trata-se agora de saber se as
ciências naturais, esse objeto está dado em distinções entre as três ciências que recebe-
torno e pode ser apreendido pelos sentidos. ram ao longo do tempo o mesmo nome de
Mas mesmo essa aparente facilidade é enga- física correspondem a distinções objetivas, isto
nosa; primeiro, porque os limites entre as es- é, às fronteiras que separam os entes entre si,
pécies de seres da natureza são ou se refletem apenas três distintas direções
freqüentemente ambíguos e nebulosos; se- possíveis da atenção humana, projetada aci-
gundo, porque os objetos naturais não vêm dentalmente sobre entes, propriedades e aci-
com rótulos informando quais as perguntas dentes escolhidos a esmo.
que devemos fazer a respeito deles; e, quan- Que existem fronteiras entre os entes,
do começamos a fazer essas perguntas, não que eles não se apresentam fundidos e indis-
raro os objetos a que nos referíamos nos res- tintos numa mixórdia universal, a mais banal
pondem que elas não se aplicam propriamen- experiência o confirma.
te a eles, mas sim a algum outro tipo de obje- A obviedade desta constatação pode
tos adjacentes ou circunvizinhos, ou mesmo dar lugar a situações cômicas. Quando o fale-
a entes que não existem na natureza e que cido presidente Jânio Quadros, indagado por
foram apenas inventados por nós mesmos. que bebia, respondeu que bebia porque se
Para eludir essa dificuldade, costuma- tratava de líquido, já que se fosse sólido o
mos apegar-nos à unidade das palavras que comeria, talvez não tivesse a idéia de enunci-
designam áreas inteiras da realidade dada. ar um princípio de metodologia científica, mas
Usamos, por exemplo, a palavra física, supon- de fato o fez. O "comer" pode ser uma metá-
do que existe no universo um campo, ou uma fora do "conhecer". Se não podemos comer o
faixa, correspondente a objetos que chama- líquido ou beber o sólido, não podemos co-
mos físicos. Mas com um pouco de estudo nhecer todas as coisas pelos mesmos modos
descobrimos que essa palavra significava uma ou instrumentos. Não podemos conhecer a
coisa para Aristóteles, outra para Newton, estrutura de um mineral pela memória afetiva,
outra para Planck. Aí não temos alternativa nem a vida de Napoleão Bonaparte por de-
senão perguntar se essas três significações dução geométrica. Em última instância, o de-
dadas à palavra designam três aspectos per- lineamento do campo de uma ciência apare-
cebidos sucessivamente no mesmo objeto ou ce quando ela esbarra em fronteiras
três objetos completamente diferentes. No ontológicas intransponíveis. Edmund Husserl
primeiro caso, contraímos a obrigação de des- dizia que não pode haver uma geometria dos
cobrir qual a unidade ou substância da qual leões ou uma embriologia dos triângulos – o
esses três aspectos são as propriedades ou que faz dele, no mínimo, um precursor do
acidentes. E, quando tivermos a felicidade de presidente Jânio Quadros.
descobri-lo, teremos inaugurado uma quarta Mas, na prática científica, raramente
acepção da palavra física, incumbida de de- chegamos a essas situações limite: uma boa
signar o estudo científico do objeto unitário parte das investigações e debates se desenro-
cujos aspectos separados foram estudados su- la numa zona fronteiriça sujeita às mais
cessivamente por Aristóteles, Newton e alucinantes disputas de jurisdição. O proble-
Planck. Na segunda hipótese, isto é, se des- ma torna-se ainda mais desesperador porque,
cobrimos que o termo escolhido designou his- uma vez constituído um sistema de distinções
"(...) é evidente que vários discípulos de integrante do presente e do futuro não é, ne-
Comte participaram da Revolução republica- cessariamente, uma atitude reacionária que
na no Brasil, não sob a cor dos radicais fizesse uma apologia do passado como mo-
absolutos mas como revolucionários anima- mento hiperidealizado de perfeição social –
dos (...) de espírito autoritário (...)." ou divina. Penso que esta consideração – e
Gilberto Freyre digo consideração, não aprovação – do pas-
sado evita que julguemos autoritariamente
A primeira edição de Ordem e Progres- ideologias, povos, raças, religiões e tradições
so1 de Gilberto Freyre data de 1959. Se ela se que não nos agradam.
distancia, no tempo, de outros clássicos do Muitos exercícios de poder nascem – e
mesmo autor, seu próprio título pode ser vis- os brasileiros de hoje bem o sabem – das ide-
to como emblemático de características fun- ologias (que dizem não gostar deste nome) do
damentais de tantos trabalhos de Freyre. Progresso como meta irretorquível da felici-
Na verdade, aí se dispõem dade humana. Por conseqüência, tudo o que
concomitâncias – não necessariamente se- não faz parte desta Ideologia do Progresso –
qüências – temporais que se relacionam de ou desta Mitologia do Mercado Global, no
forma mais ou menos estrita e que fazem da caso – deveria ser eliminado em nome da Ra-
teoria freyriana do tempo algo complexo e de zão Triunfante.
construção intelectual sofisticada. Se há uma Gilberto, então, nos faz compreender
proposição de evolução social e cultural, esta o tempo como uma conjunção de diferenças
não tem como decorrência obrigatória uma cujas regras de manifestação deverão ser ob-
superação de momentos anteriores. O que se servadas também de perto, caso a caso.
propõe ao estudo da história é a tarefa de es- Há, em Ordem e Progresso, esta convi-
tabelecer os múltiplos modos pelos quais po- vência, de grandes recortes histórico-
dem ser desenhados "tipos" ou "períodos" e, conceituais e de uma miríade de exemplos,
ao mesmo tempo, perceber a precariedade digamos locais, daquilo que se manifestaria
de sua existência (de "tipos" ou "períodos"). no âmbito de cada um desses grandes recor-
Precariedade que advém do caráter tes. O trabalho de Gilberto Freyre, aqui e além,
impiedosamente relacional de tais recortes, ou é uma singular tensão entre conceitos de gran-
seja, eles não têm uma vida autárquica; de- de generalidade e uma agitada, animada po-
pendem – para viver – de se nutrir de outros pulação de fatos e ilustrações que ajudariam,
tipos ou de outros períodos. não só a colorir o discurso ou a comentar suas
Assim, sua identidade nunca se baseia proposições, mas, também, teriam o efeito de
em uma essência ou fundação, ela se expres- neutralizar as inclinações imperiais dos
sa por uma permanente inter-remissão tem- macroconceitos.
poral. Tal inter-remissão – fazendo jogar mo- Estes, por sua vez, inibiram uma ten-
mentos históricos vistos analiticamente como dência à indeterminação dos fatos e ilustra-
distintos – faz com que não se possa pensar ções e sua inclinação a servirem aos senhores
com facilidade na idéia de que a história ca- do empiricismo e da reificação. Há, portanto,
minha pela eliminação de estágios julgados uma tensão que articula flashes instantâneos
obsoletos e prejudiciais a uma suposta "fle- e durações, freqüentemente longas.
cha do tempo" de teleologia considerada "cer- Assim, vemos que os macroconceitos se
ta". referem, se remetem, a outros e, também, a
Esta consideração pelo passado como microconceitos, que seriam apresentados
Renato Ortiz
Sociólogo/Antropólogo – Universidade de Campinas – Brasil
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Dia 24 de março
COORDENADOR:
Morvan Moreira
Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
A Atualidade do Pensamento Freyriano e
o Japão
Muitas são as leituras possíveis desse li- Gilberto deu valor às relações íntimas, duais,
vro. A minha é parcial, como todas, e uma aos sentimentos, aos contatos físicos e aos pe-
entre tantas possíveis. Mas procurei manter quenos gestos. Mais ainda, falou de assuntos
uma lealdade ao texto que me parece impres- que não faziam parte ainda do repertório so-
cindível, embora tenha extraído dele o que ciológico. Contudo, não o fez em benefício
encontrei de mais importante para entender da construção de um discurso teórico, como
os temas que hoje estudo no mesmo país em Simmel, mas sim em prol do entendimen-
amado por Gilberto Freyre, sem patriotadas to ou da interpretação de uma sociedade con-
nem ufanismos. A crítica que nele encontrei à creta – a brasileira – documentando muito
formação social do Brasil foi ácida e profun- bem as etnografias que dela fez. Antes de
da. Norbert Elias, outro autor alemão que se in-
O que mais me impressionou na leitura teressou pelos dados desconsiderados como
refeita de Sobrados e Mucambos foi a sua atu- superficiais ou fúteis, e que publicou seu livro
alidade, decorridos sessenta e quatro anos O Processo Civilizatório em 1939, em alemão,
desde a sua primeira publicação. Primeiro, um Gilberto Freyre publicou Casa-Grande & Sen-
regozijo. A obra de Gilberto Freyre, brasileiro zala em 1933, mas já em 1922 concluíra em
de Pernambuco, é tão inovadora que não inglês Social Life in Brasil in the middle of the
pode deixar de ser considerada precursora do 19th Century.
que hoje se apresenta como hegemônico na De fato, os dados etnográficos que re-
Sociologia e na História Social contemporâ- colhe são, sem favor nenhum, revolucionári-
neas: o estudo do cotidiano, com os materiais os. A alimentação e a comida, a maneira de
que nem sempre foram considerados os mais comer e de receber, o arranjo interno das ca-
adequados para deslindar as estruturas e as sas, a arquitetura, a sexualidade, as doenças,
tramas das sociedades estudadas. Segundo, a higiene, o vestuário etc. vão fornecer-lhe os
um grande desapontamento realista. O Brasil instrumentos para pensar os antagonismos e
dos séculos XVIII e XIX apresentava os mes- acomodações, os conflitos e submissões, que,
mos problemas urbanos, econômicos, sociais no mais das vezes, longe de serem abertos,
e políticos com os quais nos debatemos hoje. são sutis, subliminares, representados em dan-
Já então, há sessenta e quatro anos atrás eles ças, vestes, dizeres, hábitos alimentares, rela-
eram descritos e desvendados por Gilberto ções sexuais, casamentos, meios de transpor-
Freyre nos sobrados e mucambos, nas ruas das te, habitações, permanência na rua. Suas
cidades do Recife, Salvador e Rio de Janeiro, fontes são igualmente diversificadas e amplas:
as maiores de então. E justiça seja feita, as crí- livros das câmaras municipais, onde eram
ticas postas por sociólogos paulistas à obra de registrados os crimes e conflitos, os jornais da
Gilberto Freyre pela sua suposta época, os artigos e anúncios, nunca antes uti-
desconsideração com a dinâmica das classes lizados, desenhos, cartas de jesuítas, cartas de
sociais não se aplica a Sobrados e Mucambos, militares, cartas de ilustres nomes, cartas de
por alguns considerado o seu melhor livro. pessoas comuns, biografias, anais de socieda-
Na metodologia, apropriou-se parcial- des médicas e livros dos mais variados auto-
mente da melhor tradição do sociólogo ale- res sobre os mais variados assuntos referentes
mão Simmel, por sua vez mestre de Franz à vida nas cidades e à relação delas com as
Boas, com quem Gilberto estudou nos Esta- propriedades rurais.
dos Unidos. Muito embora sem negar a ima- Sua perspectiva teórica apontada ora
gem negativa que aquele tinha das cidades, como eclética, ora como múltipla, na verda-
Em primeiro lugar quero agradecer aos estilo tão admirado aqui no Brasil me parecia
organizadores deste evento pela oportunida- afetado e com uma licença poética não exa-
de de estar agora em Recife para poder tam- tamente condizente com um trabalho conven-
bém debater a significação de Gilberto Freyre. cional de antropologia. Como muitos da mi-
Uma honra. nha geração, classifiquei Gilberto Freyre de
Nesta intervenção, quero refletir sobre mais um "ideólogo" do salazarismo. A nossa
o que considero uma recente mudança na exegese foi, como qualquer outra, construída
apreciação da obra de Gilberto Freyre, uma a partir cos conceitos e dos preconceitos do
espécie de revival, que, sugiro, está relacio- nosso próprio pensamento fincado num con-
nado a transformações significativas na con- texto social determinado.
jugação da "questão racial" nos últimos anos. Por obra da contingência estruturada
E, para ilustrar, quero sugerir como Sobrados que é a história de todos nós, acabei migran-
e Mucambos pode inspirar uma análise das do em 1970 para o país de Gilberto Freyre,
recentes formas de "ascensão do bacharel e ex-colônia de Portugal. A essa altura, de ple-
do mulato." na guerra fria e ditadura militar no Brasil, des-
Meu primeiro encontro com a obra de cobri que a minha "exegese" de Gilberto Freyre
Gilberto Freyre foi na década de sessenta. Ti- era compartilhada pelos jovens cientistas so-
nha acabado de fazer pesquisa de campo na ciais que me cercavam em Campinas. As crí-
antiga Rodésia do Sul, onde, como todos os ticas desenvolvidas por Perry Anderson con-
jovens da minha geração, desenvolvi uma tra o colonialismo português eram, mutatis
emocional e emocionante simpatia pelos mo- mutandi, as mesmas desenvolvidas indepen-
vimentos de descolonização. Enquanto escre- dentemente no Brasil, sobretudo em São Pau-
via a minha tese encontrei um pequeno livro lo (e Campinas, onde lecionava), por aqueles
de Gilberto Freyre escrito em inglês e publi- que repudiavam o racismo neste País e que
cado em Lisboa, Portuguese Integration in the via em Gilberto Freyre o arauto da ideologia
Tropics (Freyre, 1961). Fiquei espantado. Era da "democracia racial", que apenas mascara-
uma apologia da colonização portuguesa va este racismo para os sujeitos sociais, assim
como algo distinto e melhor da colonização impedindo qualquer solidariedade anti-racis-
britânica. Parecia um delírio, sobretudo por- ta. Preciso lembrar que, naquele momento na
que compartilhava com muitos ingleses uma história brasileira, a crítica ao racismo não era
visão que a colonização portuguesa nada já muito bem tolerada pelo poder militar.
abonadora. Influenciado muito por Perry Cheguei a escrever um pequeno artigo raivo-
Anderson (Anderson, 1966), acreditava que a so no qual critiquei o Gilberto Freyre e argu-
ideologia da especificidade da colonização mentei que a transformação de símbolos ou-
portuguesa com a sua insistência na assimila- trora étnicos em símbolos nacionais tirava o
ção e da unidade de todos sob o manto do tapete, por assim dizer, da movimentação
catolicismo era apenas bizarra e mistificadora, negra no País (Fry, 1982). Vale aqui notar que
mascarando uma realidade de um racismo o mesmo não ocorreu na antropologia do Rio,
sem limites e a mais brutal exploração. E quan- nem tampouco, é claro, do Recife.
do li pela primeira vez Casa-Grande & Senza- Com o passar do tempo, porém, a mi-
la, fiquei estarrecido. Parecia mais romance nha leitura de Freyre começou a mudar, não
que obra científica, sobretudo quando se tra- apenas por ter sido muito influenciado pela
tava das relações sexuais "sado-masoquistas" antropologia boasiana temperada com o es-
entre senhores e escravos. Além do mais, o truturalismo francês de Marshall Sahlins,1 mas
_______________________
Notas
1
Cultura e Razão Prática (Sahlins, 1979) em particular me conven-
ceu da necessidade de entender a razão simbólica atrás das ações
aparentemente utilitárias.
Bibliografia
ANDERSON, Perry. Portugal e o Fim do Ultracolonialismo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e paz: Casa-Grande & Sen-
zala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Edito-
ra 34, 1994.
DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. The world of goods:
towards an anthropology of consumption. Suffolk: Penguin
Books, 1980.
FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas: introdu-
ção a uma possível luso-tropicologia acompanhada de confe-
rências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusita-
nas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1953. 438p. (Documentos Brasileiros,
76).
_______________ . The portuguese ans the tropics: sugestions
inspired by portugueses methods of integrating autocthones
peoples and cultures differing from the europen in a new, or
luso-tropical complex of civilisation. Lisbon: Executive
Committee for the Commemoration of the Vth Centenary of
the Prince Henry the Navigator, 1961. 296p.
_______________ . Sobrados e mucambos: decadência do patri-
arcado rural e desenvolvimento do urbano. 9. ed. Rio de Ja-
neiro: Record, 1996.
FRY, Peter. Feijoada e Soul Food: notas sobre a manipulação de
símbolos étnicos e nacionais. In: XXVIII Reunião da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, Brasília, 1976.
MAIO, Marcos Chor A história do projeto Unesco: estudos e ciên-
cias sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro, 1997.
MAIO, Marcos Chor. Estoque semita:a presença dos judeus em
Casa-grande & senzala. Luso-Brazilian Review. Madison, n. 36,
v. 1, p.95-110, 1999.
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito
racial de origem. In NOGUEIRA, Oracy. Tanto Preto quanto
branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz,
1985. p. 67-94.
SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar,
1979.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995
Dia 24 de março
COORDENADOR:
Nilzardo Carneiro Leão
Vice-Presidente do Conselho Diretor da Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
Centenário de Nascimento do Autor de
Casa-Grande & Senzala
_______________________
Notas
1
Barbara Freitag: "Die sozio-ökonomische Entwicklung Brasiliens
aus der Sicht drei brasilianischer Sozialwissenschaftler: G.Freyre,
F. Fernandes und C. Furtado", Freie Universität Berlin, Fakultät für
Sozialwissenschaften, Berlin, 1967 – 270 pp.
2
Freyre, Gilberto (1953). Aventura e Rotina. Sugestões de uma
viagem à procura das constantes portuguêsas de caráter e de ação.
Rio: Livraria José Olympio Editora (dedicado a Manoel Bandeira).
Trata de uma viagem do autor, umaq "peregrina;ção de sete me-
ses pelos vários Portugais".
3
Merquior, José Guilherme (1972). Saudades do Carnaval. Intro-
dução à crise da cultura. Rio: Forense.
Insurgências e Ressurgências Atuais. Cru- berto é um teórico das relações raciais com
zamentos de Sins e Nãos num Mundo em Tran- suas teses sobre as peculiaridades da miscige-
sição (Editora Globo Porto Alegre 1983) é um nação racial no Brasil e em outros âmbitos do
dos últimos livros de Gilberto Freyre. Faz par- mundo ibérico a partir do estudo da coloni-
te, junto com Além do Apenas Moderno, de zação e do sistema escravocrata. Essa discus-
um conjunto de obras nas quais a reflexão são sobre a formação de uma sociedade hí-
sobre o futuro e a situação da cultura con- brida, multicultural e multirracial continua até
temporânea combina-se com visões retrospec- hoje em um mundo no qual o conflito racial
tivas referentes a suas etapas precoces de for- está longe de ser superado. As idéias de Gil-
mação. Se Gilberto Freyre, como Michelet, berto Freyre devem obrigatoriamente ser in-
nunca pôde fazer história estritamente sem corporadas à agenda de discussão no contex-
ao mesmo tempo incorporar sua própria me- to de uma discussão plural da modernidade.
mória, desde sua monografia inicial Vida So- Um terceiro aspecto da contribuição de Freyre
cial no Brasil nos Meados do Século XIX (1922) parece-me estar mais no terreno do que po-
e em Casa-Grande & Senzala (1933), essa ten- demos chamar filosofia social ou moral, um
dência acentua-se nestes últimos escritos. Não tipo de reflexão de caráter especulativo e
se trata de trabalhos que possam ser conside- ensaístico na qual Gilberto Freyre incursionou
rados, quanto a sua arquitetura e seus proce- freqüentemente em seus textos sobre a civili-
dimentos de pesquisa, no mesmo nível de suas zação lusotropical, a tropicologia e em suas
obras maiores. Há em Gilberto Freyre uma considerações sobre a ecologia humana e o
tripla condição de autor que é importante homem tropical. Nessas linhas de trabalho que
deslindar para poder-se avaliar mais exata- ocuparam em parte as atividades de Gilberto
mente a natureza e variedade de sua contri- Freyre desde os anos 50 em livros como Aven-
buição. Gilberto Freyre é em primeiro lugar tura e Rotina, Um Brasileiro em Terras Portu-
um inovador antropólogo histórico com deci- guesas, Além do Apenas Moderno e este que
sivas contribuições empíricas e metodológicas nos ocupa, identifica-se explicitamente com
no terreno da história social e cultural, nesse uma linha de pensadores na tradição ibérica
sentido perfeitamente comparáveis a outros de antropologia filosófica como Luis Vives,
grandes historiadores do século XX, os quais Miguel de Unamuno, e Julian Marías. A con-
contribuíram decisivamente para o desenvol- tribuição de Gilberto Freyre merece, é claro,
vimento da imaginação histórica moderna, ser avaliada em cada um desses setores do
como Fernand Braudel, Lucien Febvre, Carlo pensamento que se podem ser distinguidos
Ginzburg, Asa Briggs, Emmanuel Le Roy analiticamente, ainda que obviamente se re-
Ladourie. Especialmente em sua trilogia Casa- lacionem entre si. Creio que a distinção é útil,
Grande & Senzala (1933), S o b r a d o s e porque de algum modo cada um das áreas de
Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959) contribuição se dirige a especializações dife-
Gilberto Freyre explorou novos territórios do rentes.
conhecimento histórico e apresentou sugesti- Essa última linha de pensamento, uma
vas hipóteses sobre a formação histórica da filosofia social humanista de raízes hispânicas
sociedade patriarcal brasileira. Essa contribui- com suas incursões em filosofia da cultura,
ção central encontra-se presente em outros teve expoentes de variada qualidade ao lon-
de seus livros e em centenas de artigos que go do século XX. José Guilherme Merquior
registram sugestivas observações sobre a an- observou que o humanismo de Gilberto
tropologia histórica do Brasil. Além disso, Gil- Freyre, diferentemente de muitos outros
_______________________
Bibliografia
GRAY, John. Elightenment’s wake: politics and culture at the close
of modern age London: Routledge, 1995.
HANNERZ, Ulf. Cultural complexity: studies in the social
organization of meaning. New York: Columbia University Press,
1992.
HEARN, Lafcadio. Two years in the french west Indias. New York:
1923.
HOSBAWM, Eric; RANGER, Terence. The invention of tradition.
Cambridge: s. n., 1983.
HUNTINGTON, Samuel.P., The Clash of Civilizations and the
Remaking of World Order, Simon and Schuster, New York 1996
PAZ, Octavio. Tempo nublado. Barcelona: Seix Barral, 1983.
SCHWARZ, Roberto: Seqüências brasileiras. São Paulo: Compa-
”Las naciones, en efecto, laborioso producto a relação entre diferentes grupos étnicos e ra-
histórico, han de morirse tarde o temprano, y ciais tendia a produzir sociedades
creo y espero y deseo que mucho antes de lo miscigenadas cultural e racialmente, no inte-
que nos figuramos. Les sobreviverán, de un rior das quais pólos inicialmente antagônicos,
modo o de otro, los pueblos, su distanciados pela situação colonial, acabari-
imperecedera sustancia. La obra mayor tal am por se aproximar num processo de supe-
ração de conflitos seculares.
vez de la historia sea crear razas históricas y
dar a los pueblos personalidad No contexto latino-americano, o Brasil
diferenciándolos, y preparar así la representava uma situação paradigmática: sua
integración futura de la universal familia formação estava ligada a uma escravidão
humana, bajo el padre comun.” sistêmica, o País havia mantido sua unidade
Miguel de Unamuno (1898) 2 política e, há muito, intelectuais, diplomatas
e viajantes observavam com espanto um uni-
Em Interpretação do Brasil 3 Gilberto
verso à primeira vista resistente à criação de
Freyre reúne um conjunto de conferências
guetos e que, mesmo hierárquico, desigual e
apresentadas em instituições norte-america-
injusto, cultivava uma relação no mínimo fra-
nas em 1944 e pensadas, portanto, tendo em
terna entre os diferentes grupos que compu-
conta o público estrangeiro. Sua leitura, con-
nham o todo nacional.
tudo, revela um momento crucial de sua obra.
Para uma Europa atormentada diante
De um lado, a reafirmação do programa inau-
de uma tentativa radical de lidar com a diver-
gurado com Casa-Grande & Senzala, e mes-
sidade étnica e religiosa no interior de uma
mo a tentativa de apresentar uma síntese; de
mesma fronteira nacional; para os Estados
outro, o anúncio da radicalização (e simplifi-
Unidos que ainda não tinham superado a di-
cação) de suas propostas interpretativas para
visão entre o Norte e o Sul do país, este últi-
todo o "mundo português" – projeto iniciado
mo marcado por rigorosas leis que amputa-
com O mundo que o português criou, de
vam a cidadania da população de
1940. 4 Observa-se uma inflexão, uma passa-
afro-descendentes; para a África do Sul que
gem, como que uma interpretação geral do
caminhava a passos largos em direção à
Brasil no tempo e no espaço a informar a
institucionalização do apartheid; e para todos
universalização de sua teoria luso-tropical.
aqueles que previam a inevitável
Interpretação do Brasil traduz a impor-
descolonização violenta da África e da Ásia, a
tância crescente que o Brasil e as representa-
simples idéia da existência de uma possível
ções construídas em torno de sua realidade
superação de conflitos pela via relacional e
passam a ter num mundo cada vez mais pre-
mesmo pela miscigenação, poderia ser um
ocupado com as conseqüências potencial-
alento. Tal realidade deveria ser investigada.
mente violentas e dramáticas de contatos en-
É nesse contexto que intelectuais nor-
tre povos, culturas e religiões. Em meados da
te-americanos e europeus começam a olhar
década de 1940, ganhava força a idéia de que
para o Brasil e a se interessar por seus pensa-
na América Latina em geral, no Brasil em par-
dores. Buscava-se compreender um padrão
ticular, o padrão de relações interétnicas era
diferenciado de relações raciais e, ao que tudo
específico quando comparado aos Estados
indicava, o Brasil poderia fornecer um bom
Unidos, à Europa ou aos continentes coloni-
modelo. Para além de constituir um campo
zados na última onda imperial: o catolicismo
privilegiado de observação e análise, uma tra-
teria deixado por aqui marcas universalistas e
dição de pensamento nativa se propunha a
_______________________
Dia 24 de março
COORDENADOR:
Clóvis Cavalcanti
Economista – Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
Além do Apenas Moderno
Bruno Tolentino
Escritor – Brasil
Ao encerrar-se um século habitualmen- poral proposto por tanto pincéis febris até on-
te identificado com a noção de ruptura, cons- tem em constante esgrima histórica. Para além
tatamos, meio surpresos, que sua herança seja de rebeldes e justiceiros, o novo herdeiro da
bem mais unitária do que nos acostumáramos inesperada riqueza de um campo de batalha,
a supor. Os cacos do vitral contemporâneo tornado campo de colheita, vai encontrar, pela
nem por conta de sua estridente variedade primeira vez na história, quer me parecer uma
configuram menos uma evidente convergên- inédita noção do tempo.
cia de tensões tão rica e desafiante quanto E aqui entra a reflexão principal desse
promissora é bem mais que uma cacofonia. papel que é sobre o tempo gilbertiano, a no-
De fato, o exaltado coral do século XX apare- vidade da visão de tempo de Gilberto. Ne-
ce-nos hoje como um exuberante embate de nhum tema ou problema ocupou ou torturou
contrapontos em torno, senão mesmo em mais o espírito do novecentos do que essa
busca, de uma continuidade do conhecimen- inquisição, essa busca do que fosse ou pudesse
to, a qual surpreendentemente nos depara- ser o tempo para além de uma mera suposi-
mos hoje como um menino maravilhado que, ção de cunho conceitual, ou seja, tempo
na manhã seguinte, descobre-se o dono ines- quantitativo, linear, supostamente neutro por
perado a cornucópia de estilhaços sobrante natural e o tempo cíclico ou histórico por
da festa furiosa dos adultos. Todos os cômo- humanizado entrecruzaram-se em aparente
dos da conturbada mansão do pensamento, contradição durante todo o século XX. Ao lon-
cá neste pedaço do Ocidente que é o Brasil, go dele, todo o esforço especulativo e criador
estão enfim abertos ao exercício da invenção convergiria, de um modo ou de outro, para o
maravilhada, a um ludismo enfim legítimo por ideal de uma síntese que liberasse esse tem-
alegre, vital e livre, vale dizer a um só tempo po, por assim dizer, humanizado da nossa
verificatório e restaurador. Isso porque os do- aparente escravidão ás suas exigências. Por
nos da festa, nossos tantos severos instruto- isso mesmo a intimação de liberdade com que
res, desbravadores e contestadores, á falta de subitamente nos deparamos hoje pode pare-
se entenderem em torno de uma visão regi- cer suspeita ainda. Será que teremos finalmen-
mental da realidade, acabaram por harmoni- te, realmente, acesso livre a todos os cômo-
zar-se na magnífica arquitetura do vário e fi- dos da mansão temporal do Ocidente? Esse
nalmente como sob as volutas duma só arcada filho incontestável da história, ou seja, da enu-
uniram-se no merecido repouso heróico dos meração compartimentalizada? Se assim for,
guerreiros exaustos, sem mais cura de vitória nós, ao menos os brasileiros do terceiro milê-
ou de derrota. Toda uma ancestralidade ilus- nio cristão, estaríamos devendo também a
tre repousa hoje irmanada e apaziguada, to- Gilberto Freyre o atrevido sentimento dessa
dos, segundo a evocação do mestre Bandei- nova liberdade. Refiro-me á sua noção de
ra, "dormindo profundamente" o sono dos tempo tríbio, esse neologismo seu que, como
justos em que vão desaguar as mais sabemos, não superpunha ou justapunha três
contrastantes hipóteses: "Under sleep where momentos de uma mesma leitura temporal,
the waters meet" no verso lapidar de Eliot. antes fazia coexistir, num mesmo enlace
Ora, é naquela espécie de cristal de mil presentificante, os três segmentos que nos
prismas, configurado por toda visão acostumáramos a Ter como elementos sepa-
apaziguada, que o espírito livre, o espírito de rados e codificados em passado, presente e
infância, habitante do olhar surpreso pelo jú- futuro.
bilo, vai encontrar hoje o amplo painel tem- Essa particular versão freyriana do tem-
_______________________
Antonio Dimas
Escritor – Universidade de São Paulo – Brasil
Além do Apenas Moderno é um livro da românticos e abre espaço para atividades ar-
maturidade. Gilberto Freyre se permite fazer tísticas e culturais. O ócio pode mudar con-
sugestões explícitas para o homem do futuro, venções rígidas, do que faz o homem e do
em geral, e para os possíveis futuros do ho- que deve fazer a mulher. Os governos não ad-
mem brasileiro, em particular. Dentre as di- ministram o tempo livre do homem médio.
versas sugestões apresentadas dois temas me São os exploradores comerciais, como os do-
chamaram atenção, de forma singular: a Re- nos de casas de bingo, hoje em dia, que sa-
volução Biossocial e o Crescente Tempo Li- bem explorar o tempo livre. E haja passatem-
vre, o culto ao ócio. po. O tempo livre pode trazer problemas que
O momento pessoal e intelectual do costumam afetar os ricos blasés, aqueles que
Gilberto Freyre é sintomático. Ele tem mais tem fadiga e um tédio que os leva às drogas,
de 70 anos, tendo esgotado a análise de ques- ao suicídio, ao abuso do álcool, a calmantes e
tões-chaves da Sociologia, se permite chegar sedativos.
à Futurologia, num tom de aconselhamento, O tempo livre pode ser dedicado a pra-
sem nenhuma prepotência mas com seguran- zeres gregários ou da solidão como ouvir
ça. Ele chama de Futurologia a análise de so- música, remar, namorar, amar, gozar o sexo,
brevivência, profecias e antecipações. dançar, ir ao teatro, ao cinema, ver TV, rezar
Para Gilberto Freyre não basta ao ho- em templos bonitos, acompanhar procissão,
mem ser apenas moderno. É preciso ter a vi- nadar, fumar cachimbo, tomar cerveja em ter-
são dos tempos pós-modernos quando é im- raços de cafés ou comer pratos deliciosos.
perativo o entendimento do tempo tríbio, Cabe lembrar, apesar do autor não ter feito
passado, presente e futuro, interdependentes. referência ao fato, que o ócio não é mais um
Esta noção se desenvolve no contexto de uma inconveniente social, uma ameaça à ordem,
Revolução Biossocial que consiste numa adap- como foi no Brasil do início da República. A
tação do Homem ao ambiente, pela ideologia republicana logo faz um decreto de
tecnologia e do ambiente ao homem, para número 181, em 24 de janeiro de 1890, con-
atender suas pós-modernas necessidades. Isto tra o ócio "onde os costumes civilizadores ven-
leva ao progresso da chamada Engenharia cerão a preguiça dos desocupados".
Humana, dedicada ao bem-estar do homem, Desde 1888, há no Brasil um projeto
como, por exemplo, a melhoria da refrigera- de repressão à ociosidade. Há obrigatoriedade
ção, o aumento da média de vida e assim por legal do trabalho e a preocupação de educar
diante. o liberto. Este decreto é contra o pervertido
A Revolução concentra-se na anulação moral. A vadiagem leva ao crime, o ócio e a
de fronteiras rígidas entre sexos, na legalida- pobreza são contra a segurança individual. O
de de formas intermediárias de sexo e de amor Código Penal de 1890 tem artigo contra os
homossexual e da quebra de fronteiras étni- vadios.
cas. O homem moderno pode bordar, cozi- O Brasil, segundo Gilberto Freyre, esta-
nhar, fazer doce, atividades tipicamente fe- va em fase de transição, na era neotécnica,
mininas em tempos passados. sem completa automatização. Ainda se iden-
A Revolução Biossocial consiste, tam- tifica, aqui tempo com dinheiro e acredita-se
bém, na automação crescente das necessida- que é imperdoável perder tempo. Não se
des cotidianas, o que resulta no gozo de mais pode, entretanto, passar do arcaico para "ape-
tempo livre, quebrando a máxima do time is nas moderno". É preciso construir adequa-
money. O tempo livre traz de volta arcaísmos damente a modernidade.
Dia 21 de março
PRESIDENTE DA SESSÃO :
José Aparecido de Oliveira
Secretário de Estado dos Assuntos Internacionais de Minas Gerais – Brasil
Da Europa nos Trópicos aos Trópicos na Europa
À medida que o tempo passa, acentua- atuante. Foi assim que identificou o seu obje-
se a evidência das duas perspectivas da inter- to como o mundo que o português criou,
venção gilbertiana na avaliação da presença para o comparar com o mundo que o inglês
lusíada nos trópicos. Tratou em primeiro lu- criou, mais acidentalmente com o mundo que
gar de recortar o objeto do seu estudo dentro o francês criou, aproximando esse
da questão geral do encontro das culturas, que lusotropicalismo pelo fim da sua vida ativa,
teve teóricos, seus contemporâneos, de gran- da hipótese mais abrangente do
de projeção. Tal foi o caso de Toynbee, que iberotropicalismo que deixou apontado mas
se destaca porque também parece ter sido o não desenvolveu.
mais influente entre os que se ocuparam por Tem importância salientar, se a obser-
esse tempo do fenômeno multicultural den- vação tem fundamento, que a primeira, e logo
tro da geografia do antigo império português, brilhante análise levada a efeito, teve como
espalhado pela área dos 3-A, isto é, Ásia, Áfri- campo de observação o Brasil tal como se
ca e América Latina. apresentava no começo do século XX, e não,
A tipologia de Toynbee incluiu a refe- por essa data, qualquer outra área geográfica
rência identificadora de um poder de ação lusotropical.
autonomizador das áreas culturais submeti- Este ponto parece importante para si-
das à lei do confronto, do seu crescimento, e tuar com rigor o pensamento gilbertiano, e
da decadência e morte, um fato que Valéry também responder com rigor a críticas ideo-
enunciava em forma mais literária, ao subli- lógicas que atingiram o seu labor e as suas
nhar que finalmente sabíamos que as civiliza- conclusões, quando o racismo antieuropeu
ções são mortais. transbordou da ação política descolonizadora,
A análise gilbertiana limitou uma área iniciada em Bandung na década de 50, para
bem definida da ação ocidental, identificada a análise sociológica comprometida com a
pela referência a uma parcela daquilo que foi ação, nem sempre intencionalmente, mas ao
a supremacia euromundista, esta como resul- menos pelo simples fato de que as ciências
tado da congregação das missões e ações as- sociais são intervenientes desde que se pro-
sumidas por cada uma das múltiplas sobe- nunciem.
ranias que mutuamente se reconheciam como Foi, então, freqüente pretender, naque-
européias. la linha crítica, que o pensamento gilbertiano
Mas pareceu-lhe, e depois concluiu, era justificativo de toda a violência inerente
que existiam diferenças bem específicas nos aos processos colonizadores e absolutório dos
domínios de ação de cada uma das parcelas fatos que o pensamento moderno qualifica de
desse poder global europeu, por vezes em crimes contra a humanidade.
disputas internas, mas reconhecido como uni- O genocídio é certamente o elemento
tário pelo mundo, que foi objeto de uma do- mais grave desse processo, fortemente desen-
minação geralmente colonial. volvido no espaço norte-americano pelos co-
A ocidentalização do mundo em varia- lonizadores europeus, sendo paralelos os efei-
dos domínios, que primeiro se desenvolveu tos colaterais que no Sul resultaram da
como europeização do globo, e no final do violência da ocupação das terras a que se re-
segundo milênio tende para se mostrar sobre- fere a lenda negra castelhana, ou do regime
tudo americana, espalhou-se em modelo de de trabalho escravo ou compelido geralmen-
arco-íris, multiplicando as cores geográficas e te imposto em toda a parte onde o
humanas em função da soberania específica euromundo se instalou.
_______________________
Dia 23 de março
PRESIDENTE DA SESSÃO :
Edson Nery da Fonseca
Escritor – Brasil
O que Portugal Deve a Gilberto Freyre
O Brasil está celebrando o primeiro cen- penetrante intuição para entender os fenô-
tenário de Gilberto Freyre, nascido na sua menos de vivência coletiva vieram depois a
amada terra do Recife, em 15 de março de marcar-lhe o destino da imortalidade.
1900. A vossa Pátria eleva a glória do escritor Desde a sua passagem pela Universida-
que merece ser considerado o mais universal de de Baylor, depois fortalecida pela da
dos homens de pensamento que o Brasil ge- Columbia, que Gilberto Freyre intuira não
rou durante o século XX. Mas tão justa home- haver História sem a marca que o humano
nagem não deve circunscrever-se ao plano na- nela deixou impressa. Quando, vinte anos de-
cional, porque também comunga dela a pois, conheceu Lucien Febvre, que ensinava
cultura luso-brasileira, de que ele foi um mes- em S. Paulo, não lhe foi difícil entender que o
tre e um servidor. Pelo seu legado científico, seu espírito já tinha aderido à concepção do
a língua materna deixou o espaço lusófono fundador dos Annales. Quero eu dizer, de que
para ganhar maior audiência internacional, "a História é a ciência do Homem ou dos
sendo hoje lida e traduzida nas cinco partes Homens no Tempo". A antecipação do mes-
do mundo. Torna-se, pois, inteiramente justo tre brasileiro em relação à historiografia fran-
que neste Simpósio Internacional, consagra- cesa prova-se mesmo na 1ª Edição da Casa-
do à sua vida e pensamento, eu venha Grande & Senzala , aparecida no Rio de
enaltecer a dívida de Portugal para com a obra Janeiro no ano de 1933. Como escreveu a sua
de Gilberto Freyre. E faço-o não apenas como fiel discípula, Dra. Maria Elisa Dias Collier: "Na
seu velho admirador desde a minha juventu- Casa-Grande & Senzala, o passado que se evo-
de, mas ainda em nome da Academia Portu- ca é um tempo que não morreu, pois vem-se
guesa da História, onde ele foi titular da ca- transformando em presente e projetando-se
deira nº. 33 e, desde o ano de 1980, num futuro que, pela sua rapidez, já é tam-
Acadêmico de Mérito. bém presente".1
Se chegamos ao fim do século XX com Os ingredientes científicos de "Homem"
uma visão histórica e científica correta sobre e de "Tempo" estavam, pois, em gestação no
a presença do homem português no Brasil, pensamento de Gilberto Freyre, quando ele
na África e no Oriente, decerto que o ficamos compôs a obra que lhe conferiu a celebrida-
a dever às inovadoras teses sobre o luso- de. A razão porque o consideramos, na sua
tropicalismo de Gilberto Freyre. Com o ade- aplicação ao Brasil, um precursor da Moder-
quado recurso à metodologia das ciências so- na História veio depois a ser reconhecida por
ciais e humanas, tornou-se possível ao nosso Braudel. Os motivos não se afiguram difíceis
grande ausente lançar obras de traçado ino- de explicar quando sentimos, nos anos 30, a
vador sobre os processos da aculturação na profunda ânsia de mestre Gilberto em
fase posterior aos descobrimentos. Mestre aprofundar as raízes do seu próprio ser, como
Gilberto era senhor de uma invulgar bagagem homem nascido e situado no Trópico. Não era
erudita, para não dizer espantosa em varia- possível dar um passo em frente sem antes
dos domínios da Cultura, fruto de milhares buscar o exemplo do primeiro europeu que
de leituras a que procedera desde a juventu- tentara essa aventura do espírito. E esse ho-
de. Juntem-se a esse cabedal de conhecimen- mem, vindo do extremo ocidental da Europa,
tos alguns dons específicos, que muito rara- era o português que primeiro se fixara no Bra-
mente se encontram reunidos numa mesma sil, para neste lançar as raízes de uma adapta-
e só pessoa. A sua extraordinária capacidade ção ao viver tropical. Tais as raízes da fasci-
de observação do mundo envolvente e uma nante pesquisa de Gilberto Freyre, para
Dia 24 de março
PRESIDENTE DA SESSÃO :
Gustavo Krause
Advogado – Brasil
Giants of the Earth: Brazil and the
United States as Successful Mega-States
Brazil and the United States have long cultural differences, what do Brazil and the
been compared with respect to their United States share that would help explain
commonalities such as great physical size, this success?
large population, similar historical experience, Countries like Brazil and the United
and cultural as well as racial diversity. Scholars States are rare occurrences. They are among
and journalists have repeatedly sought to de- the few mega-states or "monster countries,"
fine these commonalities, as have officials and as they have been called by the great
agencies of both governments. Among the key statesman and pundit of international relations
contributors to the theme have been George F. Kennan, existing today, or that have
propagandists in the U.S. Information Agency ever existed historically. 3 China and the
and the Brazilian Foreign Service. Recently, Russian Federation are the only others that
for example, the cultural section of the combine the essential twin characteristics of
Embassy of Brazil in Washington published a vast territory and huge population. Canada
pamphlet called Brazil and the USA: What Do would qualify in terms of size but not in
We Have in Common? 1 For decades Gilberto population, while India and Indonesia have
Freyre also gave his attention to this theme. enough people but not enough land area. As
Through lectures, articles, and books he for being successful mega-states, if this means
explored not only the major commonalities being cohesive, stabilized countries, free from
of the two countries, but also their significant the likelihood of dismemberment, and
differences. He saw both as original variants possessing internal strength of a voluntarily
of European civilization that had been shaped held national identity sufficient to weld
in distinctive ways by their New World together their populations into a lasting whole,
context.2 then Brazil and the United States stand alone
Yet, what should be their most obvious as examples of success. China and Russia still
and transcendent commonality-the fact that face further tests of their national viability
they are the two most successful giant nation- within new contexts of democratic choice and
states that the world has ever produced-has internal peace. The only other potential mega-
not been squarely addressed. How have these state on the horizon is a united Europe which
two geographically vast and highly populated might well develop in a future supranational
areas (Brazil is the fifth in the world in both cultural era.
land area and population, the United States is Examining the most salient
fourth and third respectively) developed into commonalities of Brazil and the United States
effective, long-lived national states both with respect to political reality, historical
culturally and politically? How have they been experience, and cultural development should
able to maintain their integrity, strength, and help to explain their unique success as mega-
cohesiveness in the face of forces that might states. As a point of departure, here are ten
well have torn them asunder? Today, as we focuses suggested for critical comparative
enter the new millennium after more than two reassessment. These are intended to channel
centuries of the nation-state building process, further study along what might prove to be
neither country has faced a serious separatist productive lines, not to answer the underlying
threat in more than a hundred years and in all question as to why their success has been
likelihood will not face one in the foreseeable possible.
future. What, then, accounts for this 1. The New World Setting. The
remarkable achievement? Despite their many geographic location of Brazil and the United
CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO
Dia 24 de março
PRESIDENTE DA SESSÃO :
Marco Antônio Maciel
Vice-Presidente da República Federativa do Brasil
O Tempo do Trópico em Gilberto Freyre 1
Eduardo Portella
Escritor – Academia Brasileira de Letras / Presidente da Fundação
Biblioteca Nacional / Presidente da Conferência da UNESCO – Brasil
É sempre com grande satisfação que Vamos tentar surpreender alguns mo-
volto ao Recife. Gilberto Freyre uma vez, es- mentos do percurso freyriano, degraus talvez
crevendo sobre mim, disse alguma coisa que primordiais de uma escalada infatigável. Ad-
me tocou muito. Dizia ele: "É um baiano do mitamos provisoriamente, e até segunda or-
Recife", e eu igualmente me sinto profunda- dem, seis referências elucidativas: um, o prin-
mente recifense. Hoje, portanto, aqui estamos cípio identitário e a descoberta da diferença;
para celebrar os cem anos de nascimento de dois, a referência étnica; três, a referência
Gilberto Freyre. Não me lembro de outro in- laboral; quatro, a referência simbóllica,
térprete do processo brasileiro que tenha sido interativa, nas suas extensões, sobretudo, re-
tão matizado e tão abrangente, nem tão plu- ligiosas, míticas e lúdicas; cinco, a razão im-
ral, nem tão singular, como ele. De tal modo pura sob a luz dos trópicos; e, finalmente, seis,
que aproximar-se de Gilberto Freyre vem a a racionalidade aberta.
ser predispor-se ou dispor-se a conviver amis- A referência laboral parece saltar o li-
tosa ou inamistosamente com a complexida- mite estreito do balcão de empregos. Deixa
de. Essa complexidade se esconde ou se mos- de haver o determinismo categórico das rela-
tra indiferente às incompreensões, sobretudo ções de produção e, no seu lugar, toma cor-
às incompreensões monodisciplinares. Ne- po, e vida, a produção de relações. Portanto,
nhuma disciplina isolada seria capaz de dar já não a mítica relação de produções, mas,
conta, é fácil constatar, desse dispositivo sobretudo, a esfera interativa na sua diversi-
hermenêutico, sagaz, e não raro imprevisível. dade.
Quem designar Gilberto Freyre como soció- O desempenho de Gilberto Freyre va-
logo, como historiador, como antropólogo, loriza, igualmente, todo um conjunto de re-
como filósofo, estará dizendo uma parte da presentações que se perderia, em plena
verdade. Ele é um mobilizador de disciplinas modernidade, ao reconhecer o mal-estar da
afins, é um crítico pluridisciplinar. Seu raio de civilização (Freud) e o desencantamento do
preocupação, o alcance do seu olhar, impli- mundo (Weber). Abre ele passagem para as
ca, portanto, um horizonte crítico que esteja instâncias do afeto na contracena de olhares
para além das demarcações disciplinares. permissivos, intercâmbios simbólicos clara-
Quando houve ou se instalou uma cri- mente abandonados, paixões proibidas, fes-
se no âmbito das ciências sociais, cada uma tas pagãs e rituais sagrados que se desdobram
delas pretendeu modelizar para as demais ci- entre o medo e o prazer. Na Europa do
ências irmãs. Todas elas guardaram da velha Iluminismo alemão ou da Ilustração francesa,
filosofia aquela ambição imperial, e pensaram a luz clareava o entendimento, por isso o seu
que poderiam produzir modelos que fossem século foi chamado o Século das Luzes. No
igualmente suficientes nas diferentes áreas do trópico, a luz bronzeia a alma. Da vontade
saber. Todas saídas do velho tronco da filoso- imperativa da fusão, passou-se ao bem que-
fia grega clássica. Evidentemente esse movi- rer da infusão. Na infusão ficam asseguradas,
mento de inserção numa espécie de gueto alternadamente, efusão e afeição.
disciplinar provocou algumas paralisias ou al- O trópico não é só uma geografia, ou
gumas mortes por claustrofobia. Daí a neces- apenas um território: é antes a usina que re-
sidade básica, fundamental, de estabelecer siste, com as suas vivências, as suas percep-
parcerias disciplinares, formas novas de coa- ções, os seus ícones e fetiches, até o seu fogo
bitação no interior do conhecimento. A pro- vivo, que me perdoe o grande romancista José
posta e a obra de Freyre assim o exigem. Lins do Rego. A alta modernidade e a baixa
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