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ANAIS DO

S EMINÁRIO I NTERNACIONAL
N OVO M UNDO NOS TRÓPICOS

Organizado por Fátima Quintas

Recife, 2000
© Fundação Gilberto Freyre, 2000

Fundação Gilberto Freyre

Presidente: Sonia Maria Freyre Pimentel


Vice-presidente: Maria Cristina Suassuna de Mello Freyre
Superintendente Geral: Gilberto Freyre Neto

Coordenação Editorial: Jamille Barbosa


Projeto gráfico e diagramação: Mônica Lira

ANAIS do Seminário Internacional Novo Mundo nos Trópicos


(Recife, 21 a 24 de março de 2000) / Organizado por Fátima
Quintas. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2000.

326 p.
APRESENTAÇÃO

Falar em Gilberto Freyre é penetrar nos linguagem e de metodologia, para assumir a


matizes que compõem o quadro exegético leveza do escritor que persegue o social, sem
brasileiro. A sua obra se desdobra em um cres- o tédio das formulações definitivas. O homem
cente dégradé que vai desenhando o colori- não é imutável, logo, nada também o é. E o
do de rostos de múltiplas gentes. Com o in- olhar freyriano se abre na infinita perspectiva
tuito de apreender o arco-íris étnico, Freyre do que é substância e existência em um cos-
explora ao máximo a sua inclinação para o mos pleno de contradições. Sob a égide do
sentir e para o ver. Enxergou como ninguém a caleidoscópio cultural, a vida, para ele, se
contingencialidade do humano, debruçando- transforma num excitante movimento de sen-
se sobre o tempo, para daí estabelecer vívi- sações, num ambicioso desejo de trazer o uni-
dos nexos de ancestralidade, sem, em mo- verso ao colo, num perceber-se para além de
mento algum, desviar a máquina fotográfica si mesmo. O redemoinho de fecundas inter-
do foco por ele escolhido. Foi um homem rogações, tão freyrianamente legítimas, leva-
profundamente tocado pelo sociológico, por- me a repetir Fernando Pessoa: "Serei eu o in-
que sabia que a sua construção cognitiva ja- tervalo entre o que desejo ser e o que os
mais poderia escapar dos entornos circuns- outros me fizeram?" O seu espírito inquiridor
tanciais. Essa inquietação o acompanhou tão multiplica as perplexidades por entre anteci-
de perto que afirmou sem tergiversar: "Creio pações que o tocam desde menino, quando,
que nenhum estudante russo, dos românti- então, rejeita racionalidades de todo despre-
cos, do século XIX, preocupou-se mais inten- zíveis em nome do processo criador. Faz ques-
samente pelos destinos da Rússia do que eu tão de abraçar jorros introspectivos, apelos
pelos do Brasil. Era como se tudo dependesse intuitivos, impulsos de percepção, como fer-
de mim e dos de minha geração; da nossa ramentas indispensáveis à visão de mundo.
maneira de resolver questões seculares". Ao Para Freyre, o ver e o sentir balizam os cami-
penetrar na malha do passado, envolveu-se nhos recorrentes da sua metodologia. Não
com caminhos reveladores da sua identidade teme expressar-se enfaticamente: " Tenho sido
e, conseqüentemente, da identidade coleti- sociológico, muito mais vendo sociologica-
va. Interessava-lhe romper a fronteira das épo- mente o social, do que lendo a respeito os
cas para garantir continuísmos capazes de te- escritos de outros sociólogos. Tenho lido mui-
cer heranças culturais. Um legado temporal to. Mas tenho visto ainda mais do que lido.
que lhe serviu de lastro estruturante na cap- Visto do Brasil todas as suas regiões mais ca-
tação de vivências e convivências de modos racterísticas. Visto do mundo vários países,
brasileiramente brasileiros. E ninguém melhor vários costumes, vários ritos, vários tipos de
do que Manuel Bandeira para exaltar a capa- homem, de mulher, de criança, várias formas
cidade de transbordar-se, ele, Freyre, em vá- de casa. Visto algumas dessas formas de ho-
rios Freyres e em vários alongamentos de um mens e de casas, desenhando-as. Fixando-as
mesmo homem : "Eu vi os céus! Eu vi os céus!/ mais em desenhos do que em palavras. Te-
Oh, essa angélica brancura/ Nem uma nuvem nho me valido, para tanto, de um gosto pelo
de amargura/ Eu vi o mar! Lírios de espuma/ E desenho que ainda muito pequeno nos meus
vi a Via-Láctea ardente.../ Vi carros triunfais ... primeiros anos de menino em idade escolar,
troféus.../ Pérolas grandes como a lua.../ Eu vi foi bem maior do que meu quase nenhum
os céus! Eu vi os céus!" entusiasmo por ler, escrever e contar... (...)
Freyre e Bandeira viram demais. Ami- Enchi cadernos com garatuja das coisas que
gos íntimos, perseguiram avidamente a essên- via antes de enchê-los com os meus primei-
cia do homem. Se Bandeira enveredou para ros escritos. "
a poesia no seu stricto sensu, Freyre, não me- Ver e sentir. Sentir para a ter a consci-
nos poeta, sempre ávido pelo dizer literaria- ência de deixar de sentir. Mas sentir de todas
mente refinado, seguiu os caminhos da ciên- as maneiras. Sem ferir o chamamento de ir
cia, revertendo noções rígidas e positivistas de além do que se vê. Autobiográfico, proustiano,

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indisciplinado, define-se: "Confesso-me anárquico, um tanto
personalista, um tanto impuro, um tanto contraditório, um tanto
desordenado." Na turbulência das suas ambigüidades, pulsões
se entrelaçam através de um diálogo sistemático entre o tem-
po morto e o tempo vivo, sem que um predomine sobre o
outro, antes, se unam na rememoração de narrativas justa-
postas em passados, presentes, futuros. Fragmentado em va-
riados eus, Freyre oferta autonomia a cada um deles, garan-
tindo a sua condição de homem assustadoramente irrequieto.
A reunião dos textos discutidos no Seminário Internaci-
onal Novo Mundo nos Trópicos, realizado para lembrar os 100
anos de nascimento de Gilberto Freyre, resulta de um esforço
coletivo, por demais gratificante em face da excelente quali-
dade do produto final. São 52 artigos de eminentes professo-
res/pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que discorreram
livremente, alguns em concordância, outros em discordâncias,
todos elaborando e reelaborando, nas mais variadas nuances,
os eixos centrais da mística freyriana.
Eis, pois, agora apresentado sob a forma de livro, o rico
efeito dessa mescla plural do pensamento de Gilberto Freyre.
O resultado, de sólida consistência, exibe um passeio nas suas
idéias que vai desde O Mundo que o Português Criou ao Além
do Apenas Moderno, um palco completo em coreografias
interdisciplinares. Percebe-se que as proposições se integram
em interfaces nítidas, o que caracteriza a mandala, quase
freudiana, que Freyre elabora. Falo em mandala, mas não
quero, com isso, reportar-me a fechamentos. Antes, pelo con-
trário, aponto para a dimensão multifacetada do seu idearium,
que, por não se ordenar em tópicos disciplinadores, possui
tantos contrastes que encerra um círculo humanamente hu-
mano. O leitor terá oportunidade de verificar a amplitude das
análises que permeiam as abordagens aqui expostas. Resta
iniciar a leitura e saborear os infinitos desdobramentos que
surgirão do processo reflexivo. O livro é seu.
Por feliz coincidência, o centenário de nascimento de
Freyre transcorre justamente no final do século, quando o olhar
restrospectivo sugere momentos de intensa meditação. O ver
e o sentir freyrianos, tão intrínsecos à sua personalidade, ga-
nham certos fetiches diante da penetrante interpretação da
sociedade brasileira. Tudo isso faz crescer a sedução de ex-
plorar o livro, de um fôlego só, com a volúpia de quem deseja
conhecer em pormenor o retrato da maior civilização tropical
portuguesa. Não direi mais nada. Já me fogem as palavras.
Prefiro voltar aos versos de Manuel Bandeira: "Ser como um
rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas
da noite./ Se há estrelas no céu, refleti-las."

Fátima Quintas

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SUMÁRIO

O SEMINÁRIO, 09
. Apresentação, 11
. Objetivos, 11
. Programação, 12
. Comissão executiva, 15
. Realização, 16

MESA-REDONDA 1 – O MUNDO QUE O PORTUGUÊS CRIOU, 17


. Assombração e Invenção: a Poética do Passado em Gilberto Freyre,
19
. A Cultura Lusófona, uma Cultura Ameaçada?, 26
. Relendo Gilberto Freyre: o Contexto do Romance Os Dois Irmãos de
Germano Almeida, 36
. Sobre O Mundo que o Português Criou: Reflexões no Limiar do
Século XXI, 43

MESA-REDONDA 2 – HOMEM, CULTURA E TRÓPICO, 53


. Basta Recordar os Pés das Chinesas: Notas sobre Gilberto Freyre e o
Carnaval do Brasil, 55
. A Estratégia de Sobrevivência da Caatinga e o Uso Sustentável da
Terra no Nordeste, 65
. Os Judeus no Pensamento de Gilberto Freyre, 67
. Os Povos Indígenas e o Mito da Miscigenação, 71

MESA-REDONDA 3 – O L USO EO TRÓPICO, 73


. O Luso e o Trópico Revisitado, 75
. A Mulher no Universo de Casa-Grande & Senzala, 79
. A Recepção do Luso-Tropicalismo em Portugal, 84

MESA-REDONDA 4 – VIDA , FORMA E COR, 97


. Gilberto Freyre y Alemania, 99
. A Invenção do Brasil entre Clio e o Mythos: Contraponto com
Gilberto Freyre de Interpretación de Brasil, 103
. A Propósito de Vida, Forma e Cor e do Perfil de Euclides da Cunha,
111
. O Significado da Obra de Gilberto Freyre para a Antropologia
Contemporânea, 115

MESA-REDONDA 5 – INGLESES NO BRASIL, 117


. Algumas Influências na Formação Intelectual de Gilberto Freyre,
119
. Alguns Aspectos da Influência Britânica sobre a Vida Brasileira e
Comentários em Torno do Livro Ingleses no Brasil de Gilberto Freyre,
124
. Ingleses no Brasil: um Quase-Manifesto, 131
. The Place of Material Culture in Ingleses no Brasil, 140

MESA-REDONDA 6 – AVENTURA E ROTINA , 147


. Aventuras e Desventuras em Tempo Morto e Outros Tempos, 149
. Castelos no Ar: Notas sobre Portugal em Aventura e Rotina, 155
. Coordenadas Epistemológicas de Gilberto Freyre, 159
. Gilberto Freyre: as Cidades, 163

MESA-REDONDA 7 – REGIÃO E TRADIÇÃO , 169


. Dona Sinhá, o Filho e o Dogmatismo Exorcizado, 171
. Região e Tradição no Jovem Gilberto Freyre, 177
. O Regionalismo da Tradição na Perspectiva Nacionalista: a
Identidade Regional Segundo Gilberto Freyre, 180
. Sol & Açúcar: Ecologia e Processos de Sedução em Gilberto Freyre,
187

MESA-REDONDA 8 – UM BRASILEIRO EM TERRAS PORTUGUESAS , 195


. Eça de Queiroz e Gilberto Freyre: Algumas Aproximações, 197
. Gilberto: Portugal, Brasil e Trópico, 202
. A Incompreensão da Crítica ao Luso-Tropicalismo , 208
. Um Olhar Freyriano Sobre Goa, 213

MESA-REDONDA 9 – ORDEM E PROGRESSO, 217


. Gilberto Freyre: Ciência Social e Consciência Pessoal, 219
. A Inconclusão do Progresso e a Mistura da Ordem: Notas sobre
Gilberto Freyre e o Positivismo no Brasil do Século XIX, 223
. Ordem e Progresso, 227
. Ordem e Progresso e o Tempo do Trópico em Gilberto Freyre, 231

MESA-REDONDA 10 – SOBRADOS E MUCAMBOS, 237


. A Atualidade do Pensamento Freyriano e o Japão, 239
. A Desordem Urbana e os Antagonismos e Acomodações entre
Sobrados e Mucambos, 243
. Revisitando o Mundo que o Português Criou, 248
. Sobre a Pertinência de Sobrados e Mucambos para a Compreensão
da Dinâmica Racial no Brasil Contemporâneo: ou o Sorriso do Mulato,
255

MESA-REDONDA 11 – INSURGÊNCIAS E RESSURGÊNCIAS, 261


. Centenário de Nascimento do Autor de Casa-Grande & Senzala, 263
. Insurgências e Ressurgências Atuais: Cruzamentos de Sins e Nãos
num Mundo em Transição, 267
. O Local e o Universal na Obra de Gilberto Freyre: Notas sobre
Interpretação do Brasil, 271
. A Propósito do Livro Insurgências e Ressurgências Atuais de
Gilberto Freyre, 281

MESA-REDONDA 12 – ALÉM DO APENAS MODERNO , 287


. Além do Apenas Moderno, 289
. Além da Diferença, o que Há?, 293
. Uma Senhora Incoveniente, 299
. O Tempo no Futuro, 303

CONFERÊNCIA 1 – GILBERTO: A TEORIA CIENTÍFICA E A APROPRIAÇÃO PELA


IDEOLOGIA DE ESTADO, 305
. Da Europa nos Trópicos aos Trópicos na Europa, 307

CONFERÊNCIA 2 – A DÍVIDA DE PORTUGAL PARA COM A OBRA DE


GILBERTO FREYRE, 311
. O que Portugal Deve a Gilberto Freyre, 313

CONFERÊNCIA 3 – NOVO MUNDO NO HEMISFÉRIO OESTE, 319


. Giants of the Earth: Brazil and the United States as Successful
Mega-States, 321

CONFERÊNCIA 4 – O T EMPO DO TRÓPICO EM GILBERTO FREYRE /


CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO, 325
. O Tempo do Trópico em Gilberto Freyre, 327
. O Século de Gilberto Freyre, 329

Índice dos Artigos, 332

Índice dos Autores, 334


O SEMINÁRIO

21 a 24 de março de 2000
Recife – Pernambuco – Brasil
Apresentação

O Seminário Internacional Novo Mundo nos Trópicos constituiu um marco significa-


tivo na análise do pensamento de Gilberto Freyre, oferecendo a oportunidade de discussão
ampla e verticalizada entre as diversas nuanças que perpassam o seu idearium.
A partir de um modelo plural, interdisciplinar e crítico-analítico, congregou-se um nú-
mero relevante de estudiosos do Brasil e do exterior, trazendo à luz variados pontos da máxi-
ma relevância para o entendimento da obra freyriana.
As mesas-redondas e as conferências permitiram uma visão consistente, estabelecendo
contrapontos necessários à crítica e à revisão da obra do escritor.
O público diversificado garantiu o caráter multiplicador da proposta do seminário, pois
acredita-se que o pensamento de Freyre deve fluir e refluir nos mais remotos "redutos" da
intelectualidade universal.

Objetivos

Com o intuito de mergulhar profunda- aos objetivos previamente propostos. A essas


mente na essência do pensamento de Gilber- mesas somaram-se 4 conferências com temas
to Freyre, três perspectivas balizaram o Semi- escolhidos pelos palestrantes. Neste item, pre-
nário: valeceu a plena liberdade de escolha.

a) Extrair, o mais possível, da própria obra do b) Pretendeu-se reunir um número conside-


escritor os elementos necessários a uma rável de estudiosos de diversos pontos da Eu-
“dinamização acadêmica”, isto é, a uma ropa, Japão, Estados Unidos, Índia e África,
polemização de idéias, que, todavia, não se assim como dos estados brasileiros
restringisse a modelos simplistas de aborda- circunvizinhos ou mais distanciados. Uma
gem. Buscando abraçar as versões freyrianas massa de intelectuais respeitados preenche-
na sua totalidade, incursionou-se nos títulos ria o leque de nomes do sul do país. Esses
de algumas de suas obras, de modo a evitar pesquisadores não somente apresentariam
qualquer deslize teórico. Assim, o Seminário seus textos como interagiriam, na qualidade
agregou-se ao tronco germinador e às conse- de público participativo, nas mais variadas ses-
qüentes ramificações que dele cintilam. To- sões acadêmicas, contribuindo sobremaneira
das as mesas-redondas foram inspiradas em para valorizar a discussão. Sociólogos, histo-
livros do autor, procurando-se obedecer a riadores, cientistas, antropólogos, escritores,
uma seqüência temática. Houve, portanto, economistas estariam presentes, elegendo tó-
uma lógica de encadeamento dos assuntos picos que ensejassem múltiplas perspectivas
enfocados. Não se priorizaram atitudes alea- a partir de um núcleo substantivamente
tórias. Partiu-se do Mundo que o Português polivalente. A multi e a interdisciplinaridade
Criou para chegar-se ao Além do Apenas Mo- guiaram os passos dos organizadores, e não
derno. Leia-se: de 1500 a 2000, um processo poderia ser de outro modo, tratando-se de
gradual que se instalou no curso dos séculos um evento cuja finalidade era repensar a obra
colonizadores e pós-colonizadores. O de Freyre, tão plural e tão adepta a versões
somatório de 12 mesas-redondas atendeu humanistas.

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c) Estimular o debate com o público correspondeu à terceira proposição do Seminário. Dian-
te de um grande número de estudantes, fazia-se indicado a interlocução, visando a estabele-
cer um diálogo fecundo em opiniões, não somente de expoentes das Ciências Sociais do
Brasil e dos diversos países assinalados, como também de estudantes universitários, ávidos
por conhecerem de perto os pontos essenciais da “epifania” freyriana.

Programação

DIA 21.3 (T ERÇA-FEIRA)

16H30 – SESSÃO S OLENE I NAUGURAL


Presidência: Governador Jarbas Vasconcelos
Falas de Abertura:
Presidente da Fundação Gilberto Freyre – Sonia Maria Freyre Pimentel
Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações – Edson Nery da Fonseca
Coordenadora Geral do Seminário – Fátima Quintas

Lançamento do Vídeo Seletas Gilbertianas, produzida pela Massangana Multimídia Produções.

17H00 – CONFERÊNCIA DE A BERTURA – GILBERTO: A TEORIA C IENTÍFICA E A APROPRIAÇÃO PELA I DEOLOGIA DE


ESTADO.
Presidente da Sessão: José Aparecido de Oliveira (Secretário de Estado dos Assuntos Internaci-
onais de Minas Gerais - Brasil)
Conferencista: Adriano Moreira (Presidente do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino
Superior / Academia Internacional da Cultura Portuguesa / Professor Catedrático da Universi-
dade Técnica de Lisboa)

Coquetel Regional

DIA 22.3 (Q U ARTA-FEIRA)

10H00 – MESA -REDONDA 1 – O MUNDO QUE O PORTUGUÊS C RIOU


Coordenador: Antônio Pedro de Lucena Pignatelle Correa e Aguiar (Cônsul de Portugal no
Recife)
Participantes:
1. Beatriz Jaguaribe – Professora de Literatura Comparada (Universidade Federal do Rio de
Janeiro – Brasil)
2. José Carlos Venâncio – Sociólogo (Universidade da Beira Interior – Covilhã – Portugal)
3. Fernando Alves Cristovão – Professor Catedrático de Literatura Brasileira (Universidade Clás-
sica de Lisboa – Portugal)
4. Ilídio do Amaral – Geógrafo (Universidade de Lisboa – Portugal)

10H00 – MESA -REDONDA 2 – HOMEM, C ULTURA E TRÓPICO


Coordenador: Levy Cruz – Sociólogo (Fundação Joaquim Nabuco – Brasil)
Participantes:
1. Roberto DaMatta – Antropólogo (Notre Dame University)
2. Marcos Chor Maio – Cientista Político (Fundação Oswaldo Cruz – RJ – Brasil)

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3. Toshie Nishizawa – Geógrafo, Ambientalista (Seitoku University – Japão)
4. Marcos Terena (Coordenador Geral dos Direitos Indígenas da FUNAI – Brasília – Brasil)

14H30 – MESA -REDONDA 3 – O LUSO E O TRÓPICO


Coordenador: Antônio da Costa (Presidente do Real Gabinete Português de Leitura – Rio de
Janeiro – Brasil)
Participantes:
1. Cláudia Castelo – Historiadora (Universidade de Lisboa – Portugal)
2. Cecília Westphalen – Historiadora (Universidade Federal do Paraná – Brasil)
3. Narana Coissoró (Vice-Presidente da Assembléia da República Portuguesa / Professor e Vice
Reitor da Universidade Internacional de Lisboa – Portugal)

14H30 – MESA -REDONDA 4 – VIDA, FORMA E C OR


Coordenador: Cesário Melantônio Neto (Ministro-Chefe de Assessoria de Relações Federati-
vas do Ministério das Relações Exteriores)
Participantes:
1. Hanns-Albert Steger – Cientista Social (Universidade de Erlagen Nuremberg – Alemanha)
2. Maria Alice Rezende de Carvalho – Socióloga (IUPERJ – Rio de Janeiro – Brasil)
3. Gilberto Velho – Antropólogo (Museu Nacional – Rio de Janeiro – Brasil)
4. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes – Escritor (Professor da UFCE – Fortaleza – Brasil)

DIA 23.3 (Q UINTA-FEIRA)

10H00 – MESA -REDONDA 5 – I NGLESES NO BRASIL


Coordenador: Diógenes da Cunha Lima – Escritor (Presidente da Academia Norte-Riograndense
de Letras – Natal – RN)
Participantes:
1. Paulo Donizetti Siepieski – Historiador (UFRPE – Recife – Brasil)
2. Peter Burke – Historiador (Universidade de Cambridge – Inglaterra)
3. Maria Lúcia Pallares-Burke – Historiadora (Universidade de Cambridge – Inglaterra)
4. João Hélio Mendonça – Antropólogo (Universidade de Pernambuco / FJN – Recife – Brasil)

10H00 – MESA -REDONDA 6 – AVENTURA E ROTINA


Coordenador: Alberto da Costa e Silva (Embaixador / Diplomata / Escritor – Rio de Janeiro –
Brasil)
Participantes:
1. Guillermo Giucci – Historiador (UERJ – Rio de Janeiro – Brasil)
2. Mary del Priore – Historiadora (USP – São Paulo – Brasil)
3. Ricardo Benzaquen Araújo – Antropólogo (IUPERJ – Rio de Janeiro – Brasil)
4. José Esteves Pereira – Professor Catedrático de Filosofia (Universidade Nova de Lisboa-
Portugal)

14H30 – MESA -REDONDA 7 – REGIÃO E TRADIÇÃO


Coordenador: Carlos José Garcia da Silva (Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco)
Participantes:
1. Giralda Seyferth – Antropóloga (Museu Nacional – Rio de Janeiro – Brasil)
2. Vamireh Chacon – Cientista Político (UnB-Brasília – Brasil)
3. Elizabeth Marinheiro – Escritora (Campina Grande – Brasil)
4. Raul Lody – Antropólogo (Fundação Gilberto Freyre / FUNARTE – Brasil)

14H30 – MESA -REDONDA 8 – UM BRASILEIRO EM TERRAS P ORTUGUESAS


Coordenador: Marcos Formiga – Economista (Superintendente da SUDENE – Recife – Brasil)

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Participantes:
1. Pedro Borges Graça – Historiador / Especialista em Estudos Africanos (Universidade Técnica
de Lisboa – Portugal)
2. Helena Balsa – Jornalista (Rádio e Televisão Portugueses – Portugal)
3. Sebastião Vila Nova – Sociólogo (Fundação Joaquim Nabuco – Recife – Brasil)
4. Manuel Correia de Andrade – Historiador / Geógrafo (Fundação Joaquim Nabuco – Recife –
Brasil)

17H30 – CONFERENCIA 2 – A DÍVIDA DE PORTUGAL PARA COM A O BRA DE GILBERTO FREYRE


Presidente da Sessão: Edson Nery da Fonseca – Escritor / Crítico Literário / Ensaísta.
Conferencista: Joaquim Veríssimo Serrão – Historiador (Professor Catedrático da Universidade
Técnica de Lisboa / Presidente da Academia Portuguesa da História – Lisboa – Portugal)

DIA 24.3 (S EXTA- FEIRA)

9H00 – CONFERÊNCIA 3 – NOVO M UNDO NO HEMISFÉRIO OESTE


Presidente da Sessão: Gustavo Krause – Advogado (Consultor de Empresas – Recife – Brasil)
Conferencista: Ludwig Lauerhass, Jr – Historiador (Universidade da Califórnia – Los Angeles –
EUA)

10H00 – MESA -REDONDA 9 – ORDEM E PROGRESSO


Coordenador: Creuza Aragão (Fundação Joaquim Nabuco – Recife – Brasil)
Participantes:
1. Élide Rugai Bastos – Socióloga (UNICAMP – Campinas – Brasil)
2. Renato Ortiz – Sociólogo / Antropólogo (UNICAMP – Campinas – Brasil)
3. Luiz Felipe Baeta Neves – Antropólogo (UERJ – Rio de Janeiro – Brasil)
4. Olavo de Carvalho – Filósofo (Diretor do Seminário de Filosofia do Centro Universitário do
Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil)

10H00 – MESA -REDONDA 10 – SOBRADOS E MUCAMBOS


Coordenadora: Morvan Moreira (Fundação Joaquim Nabuco – Brasil)
Participantes:
1. Alba Zaluar – Antropóloga (UERJ – Rio de Janeiro – Brasil)
2. Carlos Guilherme Mota – Sociólogo (USP – São Paulo – Brasil)
3. Chiyoko Mita – Antropóloga (Universidade de Sofia – Tóquio – Japão)
4. Peter Henry Fry – Antropólogo (UFRJ – Rio de Janeiro – Brasil)

14H30 – MESA -REDONDA 11 – INSURGÊNCIAS E RESSURGÊNCIAS


Coordenador: Nilzardo Carneiro Leão (Vice-Presidente do Conselho Diretor da FJN – Recife –
Brasil)
Participantes:
1. Enrique Rodriguez Larreta – Antropólogo (Universidade Cândido Mendes – Rio de Janeiro –
Brasil)
2. Omar Ribeiro Thomas – Antropólogo (CEBRAP – São Paulo – Brasil)
3. Barbara Freitag – Socióloga (UnB – Brasília – Brasil)
4. Tarcísio Burity – Advogado – Consultor Jurídico (João Pessoa – Brasil)

14H30 – MESA -REDONDA 12 – ALÉM DO APENAS M ODERNO


Coordenador: Clóvis Cavalcanti – Economista (Fundação Joaquim Nabuco – Recife – Brasil)
Participantes:
1. Antônio Dimas – Escritor (USP – São Paulo – Brasil)
2. João Camilo de Oliveira Pena – Professor de Literatura Comparada – (UniverCidade – Rio

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de Janeiro – Brasil)
3. Bruno Tolentino – Escritor (São Paulo – Brasil)
4. Rosa Maria Barbosa de Araujo – Historiadora (Universidade Cândido Mendes – Rio de
Janeiro – Brasil)

18H00 – SESSÃO S OLENE DE E NCERRAMENTO


Presidencia: Marco Antônio Maciel (Vice-Presidente da República Federativa do Brasil – Brasília
– Brasil)

C ONFERÊNCIA 4 – O TEMPO DO TRÓPICO EM GILBERTO FREYRE


Conferencista: Eduardo Portella – Escritor (Academia Brasileira de Letras / Presidente da Fun-
dação Biblioteca Nacional / Presidente da Conferência da UNESCO – Rio de Janeiro – Brasil)

20H00 – RECEPÇÃO DE E NCERRAMENTO


Lançamento nacional do selo comemorativo do Centenário do Nascimento de Gilberto Freyre
– Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos.
Apresentação da Orquestra Sinfônica do Recife.

Comissão executiva

COORDENAÇÃO GERAL: Fátima Quintas

FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO


Ana Arruda
Ariane Riveca
Cláudia Braga
Graças Santos
Jan Souto Maior
Leda Rivas
Uiara Wanderley

FUNDAÇÃO GILBERTO FREYRE


Germana Kaercher
Patrícia Kneip

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Realização

Núcleo de Estudos Freyrianos

Promoção: Fundação Gilberto Freyre

Patrocínio: Governo do Estado de Pernambuco e Secretaria de


Cultura/FUNDARPE

Apoio: Governo Federal, Ministério da Educação (MEC), Ministério da


Cultura (MINC), Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE) e Fundação Joaquim Nabuco (FJN).

A união dos esforços dessas instituições possibilitou a realização do


Seminário, pelo que aqui se externa os mais sinceros agradecimentos.

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MESA-REDONDA 1
O M UNDO QUE O P ORTUGUÊS CRIOU

Dia 22 de março
COORDENADOR:
Antônio Pedro de Lucena Pignatelle Correa e Aguiar
Cônsul de Portugal no Recife – Brasil
Assombração e Invenção: a Poética do
Passado em Gilberto Freyre

Beatriz Jaguaribe – jaguar@ax.apc.org


Professora de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de
Janeiro/Escola de Comunicação – Brasil

Modernidade: nostalgia e ruptura A modernidade constrói e desconstrói


seus próprios referentes interpretativos. Ao
Na prateleira, as fileiras de feijoada em lado do afã do progresso e da consciência de
lata. No Barra Shopping, a réplica fake da Pra- ruptura com o passado, há a necessidade de
ça XV, nosso passado colonial, ladeada por ancorar a fugacidade do tempo através de uma
lojas de fast-food e boutiques. Na televisão, o narrativa do passado. A amnésia promovida
rebolado midiático de Valéria Valenssa, a pela cultura do consumo no seu perpétuo
mulata Globeleza, cuja nudez escultural é desfile de novidades tem sua contrapartida na
vestida de pinturas techno e emoldurada pe- rememoração nostálgica que essa própria cul-
los efeitos especiais do seu criador. tura promove. Mas cada cultura contempo-
A vendagem da comida nacional enla- rânea terá não só suas narrativas específicas
tada, o pastiche arquitetônico colonial e o que buscam construir ambos um diálogo en-
samba da mulata midiática nos falam de uma tre o passado e o presente, como também seus
presentificação da cultura na qual o passado ícones míticos que assinalam tanto o impulso
é aniquilado como experiência vivida e da mudança quanto o afã da continuidade.
reimpacotado como mercadoria? Nessa argu- A nostalgia que permeia a revisitação
mentação, o passado seria um gênero e estilo do passado na cultura de consumo assinala
de consumo passível de ser contido na seção um sentimento de desterro ou descompasso
nostalgia das lojas de disco. Nas estantes das com o presente. Nesse veio, o historiador
videolocadoras, ao lado dos filmes classifica- Peter Fritzsche argumenta que a nostalgia
dos como aventura, comédia, romance, eró- pode ser entrevista não apenas como a
tico, haveria outra categoria: passado. Nos sentimentalização piegas do pretérito, mas
lançamentos imobiliários, os já antigos con- enquanto uma consciência crítica. 1 Essa cons-
domínios convivem com shopping centers ciência crítica lança um olhar sobre o passa-
citativos do passado nacional e europeu. E, do mediante seu estranhamento no presen-
finalmente, na telinha, o desfile narrativo do te. As reflexões de Fritzsche são centradas nas
passado nacional em programas televisivos narrativas memorialistas de figuras ilustres da
abrange desde a colônia em A Muralha, à es- pós-Revolução Francesa e não enfocam a pro-
cravidão na famosa telenovela da Escrava blemática da nostalgia na cultura de consu-
Isaura, até em seriados tais como Anos Dou- mo contemporânea. Entretanto, sua
rados e Anos Rebeldes. reavaliação das poéticas da nostalgia
No escoamento do tempo e na complementam o pensamento de antropólo-
mutabilidade das imagens midiáticas, o mo- gos como Arjun Appadurai que examina a fa-
mento presente está sempre prestes a ser des- bricação da "pátina da história" na cultura de
cartado como notícia velha. O impulso da consumo contemporânea. 2 Nesse sentido, a
novidade liquifaz referentes e o passado se cultura da nostalgia não seria apenas uma fal-
fabrica cotidianamente. Na lógica do consu- sa consciência, mas também uma forma de
mo, entre o passado imediato e o passado reaver os desejos coletivos, os sonhos de rea-
antigo há um achatamento. Imagens, objetos lização contidos nos objetos caducos. Tal é o
e eventos flutuam irreais numa galeria pensamento de Walter Benjamin no seu
descontextualizada, ou padecem no depósi- mapeamento das memórias da modernidade
to de lixo, ou se escondem nos brechós poei- nas passagens de Paris.3
rentos ou são valorizados enquanto monu- No âmago da nostalgia melancólica, há
mentos do tempo nas vitrines do museu. a realização de que o passado jamais voltará,

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de que antigos mundos ruíram e o presente jaz em modernidade na colagem do inesperado, na capaci-
fragmentos destroçados. Esse estranhamento do pre- dade de unir tempos diversos num mesmo motivo sim-
sente cristaliza o passado de forma mais desejável do bólico. Leitor assíduo dos surrealistas, Benjamin, como
que o presente. A nostalgia melancólica abraça um se sabe, admirava enormemente o livro de Aragon,
cadáver esfumaçado, vive numa atmosfera de hálitos Um Camponês em Paris. Os passeios de Aragon e os
antigos e tateia o presente sem palavras para defini- devaneios de Breton por Paris enfatizam um ponto
lo. Há uma assombração, mas esta conversa com os singular. O surgimento de uma nova mitologia do co-
mortos não altera o fato de que o tempo morto jamais tidiano moderno e a revisitação do passado enquan-
voltará e que, quando o último testemunho do preté- to estranhamento. No brechó, no mercado de pul-
rito morrer, este mundo cessará de existir. Ou seja, os gas, nas galerias vetustas das passagens, os objetos
fantasmas vetustos são conhecidos, são espíritos da caducos falam aos surrealistas de uma poética de pas-
memória, uma memória individual e geracional. sado que irrompe novamente no presente.
Em contraposição à essa nostalgia melancólica, Sabemos como a revolta vanguardista foi do-
o século XIX foi pródigo na industrialização da feliz mesticada. A vertente futurista em imaginários técni-
rememoração do passado. Aqui, ao lado das falsas cos-publicitários e o maravilhoso surreal em clichês
ruínas que desde o século XVIII garantiam a "pátina batidos do estranhamento. Uma visita contemporâ-
da história" para os proprietários rurais, temos, para nea aos recantos históricos europeus frustra qualquer
os menos abastados, a fabricação dos souvenirs. As caçador de fantasmas. Mediante a massa compacta
louças comemorativas do jubileu da rainha Vitória, o de turistas acotovelando-se nos corredores históricos
cartão-postal da viagem e a revisitação dos estilos do é impossível assegurar um espaço mínimo para a co-
passado nos edifícios do presente. O kitsch na apro- reografia fantasmagórica. Isso sem mencionar os shows
priação de símbolos de arte ou status do passado, agora de som e luz que recriam passados virtuais, em horá-
feitos em versão barata para o deleite da pequena rios previstos, para os pagantes de ingressos. A indús-
burguesia. E o pastiche da repetição do passado com tria de souvenirs e o comércio fazem das pequenas
os materiais do presente na tentativa de forjar um con- cidades européias shopping malls ao céu aberto. Os
tínuo temporal. Nesses objetos aconchegantes, o pas- museus não são mais os cemitérios como sentencia-
sado volta suavizando a aridez do presente como numa ram os futuristas. Os museus são centros de exibição
filmagem escapista. cultural onde o passado é lançado novamente em
Mas este passado não é o passado da ruptura exposições diversas.
presente na nostalgia melancólica. Este passado ofe- Mas isso significa que no umbral do século XXI
rece um alívio semelhante à excitação produzido pelo iremos viver somente no virtualizado mundo
exótico e à felicidade promovida pela publicidade do baudrillariano do simulacro e não mais no mundo dos
futuro. Numa sala de estar européia do final do sécu- velhos fantasmas? A assombração histórica do passa-
lo XIX, podemos colocar as louças do jubileu da rai- do terminou e estaríamos, pelo menos no Primeiro
nha ou de outra figura oficial, a reprodução de qua- Mundo, vivendo uma nova realidade da tecnologia
dros orientalistas de Alma Tadema e o panfleto virtual, da experiência sempre voyeurística porque
anunciando os benefícios das novas máquinas para o interceptada pela maquinária virtual, dos corpos que
conforto do lar. se comunicam como espíritos na internet sem nunca
Entretanto, o tempo deposita uma "pátina da se encontrarem, da realidade fagocitada pelas ima-
história" aos objetos inicialmente tidos como corriquei- gens?
ros e banais. Assim, essa prateleira dos clichês do final Isso nos traz novamente às imagens da cultura
do século exala uma atmosfera única das memórias nacional suscitadas no início deste ensaio: o samba
de uma modernidade. O olhar da melancolia alegóri- "efeito especial" da Globeleza, a feijoada em lata e a
ca que Walter Benjamin tece sobre esses resíduos do maquete fake da arquitetura colonial. A cultura naci-
passado são do historiador que recolhe os sonhos do onal como mercadoria não oblitera manifestações
cotidiano. 4 A banalidade dos objetos ultrapassados culturais vivenciadas no dia-a-dia. Existem milhares
denota as aspirações coletivas daquele momento his- de mulatas anônimas sambando nos carnavais do Bra-
tórico. Esse olhar, portanto, também possui uma den- sil afora, a feijoada feita em casa e o velho casarão
sidade arqueológica. A escavação de parentescos e em ruínas nos falam da continuidade de práticas cul-
correspondências entre objetos díspares. As passagens turais. Mas o que tornam relevantes esses ícones da
de Paris prestes a ruírem sob a pressão da especula- cultura nacional em sua versão mercadoria é o efeito
ção imobiliária são entrevistas como as catacumbas silenciador e anestésico dos domínios do consumo.
de Pompéia. Mas, em diálogo direto com o inusitado Parece-me particularmente interessante ressaltar a fi-
surrealista, a alegoria de Benjamin revela a gura da mulata como alegoria do corpo nacional. Seu

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corpo sintetiza a ambigüidade entre a Niemeyer. 6
espetacularização do nacional e a conturbada traje- A inovação modernista, portanto, não descar-
tória histórica brasileira. No rebolado da Globeleza tou o passado mas o congelou na monumentalização
não há possibilidade de assombração. Seu corpo patrimonial ou o renegou enquanto legado escravista,
mestiço remonta a uma trajetória histórica colonial – caudilhismo político e colonialismo imitativo. Tanto
a miscegenação racial entre europeus e africanos. Mas, na sátira modernista quanto nas diversas ideologias
na superfície da televisão e na lisura das fotografias, o da modernização brasileira que surgiram em diferen-
que captamos é uma nova versão da alegria carnava- tes versões desde meados do século XIX, o presente
lesca que perde espessura e suor na vinheta fugaz.5 deveria ser diverso do passado para marcar a quebra
entre modorra rural e inovação citadina; atraso cultu-
Poética da assombração ral e cosmopolitismo; subdesenvolvimento e desen-
Nas páginas a seguir quero enfocar como a in- volvimento.
terpretação do passado, na obra extremamente rica Na apropriação surreal que mencionamos an-
de Gilberto Freyre, sugere uma poética da assombra- tes, o passado ressuscita como estranhamento,
ção. Essa poética da assombração inspira uma visão desestabilizando o presente. Semelhantes às imagens
da história, um ethos cultural e uma relativização da estocadas no inconsciente, o passado é reprimido e
modernidade. Ao pensarmos na contribuição excep- irrompe à tona provocando o inusitado. O passado
cional de Freyre na década de 30, pontuada pela apa- não se perfila como continuidade de práticas sociais,
rição de Casa-Grande & Senzala, em 1933, e de So- mas como uma aparição no mundo do novo, no âm-
brados e Mucambos , em 36, vemos como sua bito do moderno, na fantasmagoria das mercadorias.
percepção do passado difere da invenção modernis- André Breton olfateia os mortos nas praças de Paris,
ta dos paulistas Mário e Oswald de Andrade. Com Aragon escuta palavras dos lábios marmóreos das es-
isso não negligencio a diferença fundamental entre a tátuas e Max Ernst coloca o absurdo em suas colagens
pesquisa socioantropológica de Freyre e a proposta de atmosferas decorosas vitorianas – o torso de imen-
vanguardista de construção de um novo vocabulário sa mulher nua, os seios descobertos contrastando com
estético nos modernistas paulistas. Tampouco o educado coque, emerge da biblioteca de ilustre ca-
desconsidero as diferencas estéticas entre Mário de valheiro. Este a contempla como se ela fosse mais uma
Andrade e Oswald de Andrade. Entretanto, ambos lombada de seus livros.7
partilharam um entusiasmo pelas rupturas da vanguar- Nem modernista nos sentidos de Mário e
da, buscaram decifrar o novo mundo maquinico e Oswald de Andrade e nem surreal, a vivência do pas-
inventaram o primitivismo vanguardista literário bra- sado em Freyre possui algumas analogias com a visão
sileiro. Assim com Gilberto Freyre, tratavam o passa- do real maravilhoso do escritor cubano Alejo
do recente da retórica ornamental bacharelesco e o Carpentier. 8 O real maravilloso para Carpentier era a
imitativo da arquitetura belle époque com repulsa e expressão transcultural da fusão entre os legados eu-
chacota. O tupi tangendo um alaúde, o canibal de- ropeus, africanos e indígenas em novas construções
vorando máquinas e a paisagem brasileira pintada arquetípicas. No busto de Sócrates cultuado como um
no quadro técnico-naïf de Tarsila são alguns ingredi- Orixá dos bosques, na construção da fortaleza imi-
entes desta nova agenda. Por outro lado, a viagem tando Versalhes pelos escravos rebeldes no Haiti.
dos modernistas à Ouro Preto e a redescoberta e va- Exemplos que nos evocam as Nossa Senhoras e Anjos
lorização do colonial por parte de Mário de Andrade, Amulatados de Freyre. Entretanto, na literatura e na
dos intelectuais do patrimônio histórico e do arquite- produção ensaística de Carpentier, o real maravilloso
to modernista, Lucio Costa, revelam um apreço pelo se estagna num certo imobilismo cultural. Sobretudo,
barroco enquanto repositório de uma autenticidade a configuração arquetípica se constrói mediante a
cultural. Essa autenticidade se configura no patrimônio revisitação a um ponto de origem, os passos perdidos
histórico da edificação barroca, na colheita do folclo- do encontro colonial. Falta intimidade e subjetivida-
re e costumes brasileiros e na tentativa de construir de na orquestração desta visão da história como um
no "novo" da arquitetura modernista uma nova fun- embate entre configurações míticas e mutações histó-
dação nacional. Os azulejos que adornam o Palácio ricas.
Gustavo Capanema, antigo Ministério da Educação e Na escrita de Freyre o passado se atualiza como
da Saúde no Estado Novo getulista, deveriam ser do presença que anima e permeia o cotidiano pessoal e
mesmo azul dos azulejos portugueses do Outeiro da coletivo. Vendo o tabuleiro de doces das baianas no
Glória. Em Brasília, a tábula rasa da cidade modernis- centro velho de Salvador, observando o cafuné e es-
ta no planalto relembrava, tenuemente, o passado cutando a cadência dos diminutivos na fala brasileira,
colonial nas formas curvilíneas dos edifícios de Freyre relembra as origens da fundação patriarcal e as

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práticas da cultura sincrética. Não há o estranhamento blinha a reação de Lucio Costa diante das casa velhas
surreal do insólito, tampouco existe a noção moder- de Sabará, São João del-Rei, Ouro Preto, Mariana,
nista do resíduo do passado incongruente, mas aflora das velhas casas-grandes de Minas e cita as palavras
a percepção da matéria plástica da identidade que se do arquiteto: "A gente como que se encontra...E lem-
sedimenta e transforma nas configurações do que bra de cousas que a gente nunca soube, mas estavam
poderíamos chamar de modernidades alternativas. lá dentro de nós; não sei, Proust devia explicar isso
Freyre poderia ter feito suas as palavras de Joaquim direito."12 Niemeyer chega, inclusive, a mencionar sua
Nabuco quando este expressa: "Os filhos de pesca- saudade das velhas casas que guardam memórias e
dores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das vivências: "Uma das coisas que marcam nossa vida de
areais da praia e ouvirão o ruído da vaga. Eu, por ve- forma inesquecível são as casas onde nós moramos.
zes, acredito pisar a espessa camada de canas caídas O ambiente familiar nelas vivido, os problemas en-
da moenda e escuto o rangido longínquo dos grandes frentados pela vida afora... E uma vontade de voltar
carros de bois..."9 Se Gilberto Freyre não teve a vivência atrás, de outra vez viver aqueles velhos tempos, leva-
de infância do engenho de cana-de-açúcar evocado nos a lembrar as casas antigas que, da juventude à
por Nabuco, reteve essa memória como parte de um velhice, nos deram abrigo. Algumas já desaparecidas,
repertório de identidade histórica. outras resistindo ainda, como nós, batidas pelo tem-
Digamos que existem várias "madeleines" po, com as suas paredes sem o antigo vigor, os pisos
proustianas de veio histórico e subjetivo na narrativa em desníveis e os telhados ou lajes vencidos pelas in-
da fundação nordestina de Freyre. Essas epifanias do filtrações inevitáveis."13 A "vontade de viver aqueles
passado animam uma poética de espaços e corpos velhos tempos" em nada altera a realização de que os
que se inscrevem numa trajetória cultural. Essa traje- velhos tempos não voltam e que as casas modernistas
tória cultural brasileira, relembrada desde a casa-gran- criadas na novidade eram parte de um projeto
de ou do sobrado semi-patriarcal, nos coloca diante transformativo de Brasil.
de um dilema central de automodelação escindida Creio que nenhum pesquisador no Brasil tenha
entre amos e escravos. Tendo despendido enorme sido capaz de dar tanto sabor e relevo às correspon-
energias de sua vida pública em prol da abolição da dências entre espaço arquitetônico e moldagem cor-
escravidão, Joaquim Nabuco rememora, em sua au- poral e subjetiva como Freyre. Recriou para si o so-
tobiografia, Minha Formação, sua "nostalgia do escra- brado em Apipucos e soube como ninguém conversar
vo". Com isso, Nabuco não quis sublinhar as sauda- com os fantasmas, os mortos de sobrecasaca, as sinhás
des do ganho econômico proporcionado pelo trabalho engaioladas detrás de gelosias.
escravo, mas a nostalgia de uma gratuidade afetiva Na sua análise da sociologia da assombração
daqueles que nada possuíam. Amamentado pelo "lei- nos Estados Unidos, Avery Gordon enfoca o mundo
te preto", Nabuco torna-se o libertador redentor. O sem densidade da vivência suburbana onde seres
término da escravidão implica a cessação desta desenraizados habitam suas casas com "f urniture
automodelação libertadora de Nabuco. Embora de- without memories". 14 Para Gordon, a assombração e
sejoso de ser um cidadão do mundo e ciente dos avan- a figura do fantasma são "uma figura social... sua in-
ços técnicos expressos nas palavras: "Sou antes um vestigação nos leva ao local onde a história e a subje-
espectador do meu século do que do meu país: a peça tividade constroem a vida social". Gordon julga que
é para mim a civilização e esta se está representando há uma tendência, na narrativa ficcional e sociológica
em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo americana contemporânea, em enfatizar a
telegráfo", Nabuco não renega uma linhagem pater- hipervisibilidade do pós-moderno como sendo: " a
na. Ao contrário, sua grande obra, Um Estadista no realidade estruturada televisivamente, a
Império, é dedicada à figura do seu pai. 10 Para as ge- commodificação do mundo cotidiano, a falta de sen-
rações modernistas das vanguardas dos anos 20 e 30, tido e a onipresença da informação infinita, o fascínio
o legado brasileiro anterior não oferecia o instrumen- inexóravel com catástrofes e o anúncio da morte do
tal crítico e nem os códigos estéticos para forjar uma autor, do referente e da realidade objetiva emoldura-
nova consciência nacional. da pelas imagens que tecem a conexão eletrônica
Quanto aos arquitetos Lucio Costa e Oscar entre a vida, morte, sexo".15
Niemeyer, construtores do novo ethos arquitetônico Gordon problematiza essa imagem totalizadora
brasileiro, a memória do passado se registra nas des- do pós-moderno buscando uma espessura de história
crições das casas da infância e no apreço pelo legado que estilhaça os domínios da virtualidade americana
barroco. Lucio Costa relembra em Registro de uma com as poeiras e os vestígios incômodos do passado
Vivência suas moradas européias.11 Em seu prefácio à nacional. Contra essa realidade do subúrbio
primeira edição de Casa-Grande & Senzala, Freye su- desmemoriado, Gordon aciona o espectro da escra-

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vidão. Os espectros do passado escravocrata ameri- da pesquisa da história que anima a escrita de Gilber-
cano emergem como vítimas exigindo reparações. Há to, pois: "Estudando a vida doméstica dos antepassa-
uma divisória intransponível entre brancos e negros, dos sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro
vítimas e opressores. Nessa dialética americana do amo meio de procurar-se o tempo perdido. Outro meio
e do escravo, as posições são de permanente con- de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes
frontação. Uma das debilidades da análise da soció- de nós; e cuja vida se antecipou à nossa. É um passa-
loga americana é sua moralização dos contrastes en- do que se estuda tocando em nervos; um passado
tre brancos e negros no processo histórico em que que emenda com a vida de cada um; uma aventura
não há uma discussão das ambigüidades sociais e de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa
identitárias que são fabricadas na tessitura do contá- pelos arquivos."18 Nessa versão, a assombração se
gio cultural. Os espectros negros são vítimas que exi- manifesta em crenças, sabores, práticas, muitas vezes
gem reparações. inconsciente, do passado no presente. A ambigüida-
Na poética do passado gilbertiana, podemos de dessa presentificação do passado no presente se
distinguir pelo menos duas formas distintas de assom- refere às origens escravocratas deste mesmo passado
bração. A primeira se refere à assombração no seu e da superação da dialética do amo e escravo através
literal como sendo a aparição insólita dos mortos no da valorização da cultura híbrida e do contágio. Um
mundo dos vivos. Freyre cita exemplos deste imagi- contágio que tem como cenário os trópicos. A pró-
nário da assombração no mundo patriarcal. As moti- pria prosa sensorial de Gilberto nos envolve no
vações da aparição dos fantasmas ou da movimenta- mormaço deste calor tropical: "É uma natureza, essa
ção de objetos por espectros invisíveis são as injustiças, dos trópicos, a espreguiçar-se toda pelo chão
seja na forma de roubo, suplício ou crime, que foram dolemente e a intoxicar-nos dum como suor viscoso
cometidas contra eles. O culto aos mortos ativando de sexualidade. No meio dela o puro pensar é como
este mesmo imaginário da assombração, pois: "Abai- uma tortura de virgindade de adolescente. De virgin-
xo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierar- dade supliciada. E aqui só os heróis pensam. E são
quia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o ainda heróis os que se interessam pelas idéias. Há al-
mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos. Em guma coisa de heróico em ler um soneto de Mallarmé
muita casa-grande conservaram-se seus retratos no ou uma página de Browning ou de Lessing à sombra
santuário, entre as imagens dos santos, com direito à maternal de uma jaqueira".19 Mas a obra de Freyre é
mesma luz votiva de lamparina e às mesmas flores um pensar nos trópicos que se sobrepõe ao espregui-
devotas. Também se conservavam às vezes as tranças çar "Ah, que preguiça" de Macunaíma, herói sem ne-
das senhoras, os cachos dos meninos que morriam nhum caráter, como também se esquiva do
anjos."16 Adiante esclarece: "Os dois fortes motivos das emparedamento do europeizado solitário, do herói
casas grandes acabarem sempre mal-assombradas, romântico agônico, do positivista categórico, do inte-
com cadeiras de balanço se balançando sozinhas so- lectual frustrado, e do importador das "idéias fora do
bre tijolos soltos que de manhã ninguém encontra; lugar".20 O desafio de pensar no trópicos implica en-
com barulho de pratos e copos batendo de noite nos tender o passado no presente, inovar na tradição e
aparadores; com almas de senhores de engenho apa- unir o abstrato ao concreto, o sexo ao pensamento.
recendo aos parentes ou mesmo estranhos pedindo Nessa recuperação e invenção, a paisagem tropical
padres-nossos, ave-marias, gemendo lamentações, ganha signos culturais. Ela não é somente o receptá-
indicando lugares com botijas de dinheiro. ...Noutras culo das afetividades carentes de história e cultura,
casas-grandes só se têm desencavado do chão ossos como delineiou Nabuco, mas uma tapeçaria cultural
de escravos, justiçados pelos senhores e mandados resultante da confluência de vários legados.
enterrar no quintal, ou dentro da casa, à revelia das Ao dotar essa paisagem tropical de valor cultu-
autoridades. ...Os mal-assombrados das casas-gran- ral e histórico, Freyre também a povoa de fantasmas.
des se manifestam por visagens e ruídos que são qua- Fantasmas visíveis em plena luz tórrida sob a forma
se os mesmos por todo o Brasil. ...Eram barulhos de da encenação do passado no presente e fantasmas da
louça que se ouviam na sala de jantar; risos alegres e escuridão saídos dos porões das casas-grandes, do
passos de dança na sala de visita; tilintar de espadas; tronco, das camas de parto, dos confessionários.
ruge-ruge de sedas de mulher; luzes que se acendi- Na narrativa dessa fundação da erótica inter-
am e se apagavam de repente por toda a casa; gemi- racial, há uma desestabilização e, ao mesmo tempo,
dos; rumor de correntes se arrastando; choro de me- uma hierarquização das polaridades entre brancos e
nino; fantasmas do tipo cresce-míngua."17 negros. Essa erótica possui várias tonalidades narrati-
A outra manifestação da assombração é mais vas. Freyre sublinha, diversas vezes, o caráter sádico e
metafórica, mais palpável e mais ambígua. Ela é parte cruel das relações sociais no Brasil. Degradação terrí-

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vel inerente ao próprio sistema escravista onde seres breia o mundo da fazenda de café numa agonia da
humanos são transformados em objetos. Nesse con- irreconciliabilidade já que ela era um mediadora mítica
texto, dá-se a crueldade e o sadismo no estupro da entre a casa-grande e a senzala. Chamada para subs-
escrava negra pelo amo, nos ciúmes e vinganças da tituí-la, sua irmã mais velha, Carlota, não consegue
sinhá sobre a mucama, no abuso do homem branco assumir os contornos míticos da menina adorada. A
sobre a mulher branca e, finalmente, na tirania dos morte da menina paira sobre um mundo rural em
adultos sobre a criança. Por outro lado, celebra, nes- ruição. Sobretudo, sua morte torna visível o que an-
se quadro de degradação, a acomodação cultural en- tes era abafado na retórica da afetividade. Para a ma-
tre casa-grande e senzala, entre sobrados e mucambos. nutenção da ordem sobre o verniz da
Oferece narrativas que retratam como a cultura do consensualidade, era preciso ter a filha submissa ex-
escravo negro penetrou e alterou o legado ibérico do pressando carinho, a esposa dominada demonstran-
amo. A figura fortemente erotizada da mulata do devoção e o escravo explorado cantando alegrias.
condensa ambas narrativas: o suplício e o deleite. No seu estranhamento de mundo, na sua recusa em
Numa colagem contemporânea poderíamos assumir os contornos afetivos da menina morta e na
relacionar a mulata carnavalesca da erótica e da ale- sua impossibilidade de perpetuar o legado paternal
gria nacional com a mulata supliciada. A Globeleza e escravocrata, Carlota sofre uma conversão negativa:
a Escrava Anastácia. Ou seja, a escrava Anastácia como "...ergueu a cabeça e todo o seu corpo vibrou com
uma assombração atual desse legado trágico e surda e irreprimível alegria, e a convicção inescrutável
expoliativo da escravidão. Em sua configuração con- de que espalhava a morte e a ruína em torno dela a
temporânea, a Globeleza oferece a versão midiática encheu de sinistro orgulho".21 Carlota aniquila seu
da pasteurização dos consagrados clichês nacionais: papel de sinhá, de dona de escravos, de senhora da
o exótico, o erótico, a alegria. Mas, na trajetória que casa-grande e com isso declara: "Eu é que sou a ver-
leva à sua invenção, temos uma itinerário povoado dadeira menina morta – eu é que sou essa que pesa
de fantasmas. Entre estes está a escrava Anastácia. Na agora dentro de mim com sua inocência perante
Praça de Benfica, no Museu que leva seu nome em Deus... Aquela que morreu e se afastou, arrancando
Madureira e no modesto salão do Museu do Negro, do meu ser o seu sangue para desaparecer na noite,
anexo à Igreja do Rosário no centro do Rio de Janei- não sei mais quem é... e a mim me foi dada a liberda-
ro, o busto da escrava Anastácia enfatiza seu suplício. de, com sua angústia, que será minha força".22
O busto é de gesso colorido e nos retrata uma jovem Desfechos diversos para o legado escravocrata.
mulher negra com olhos azuis. Olhos espantosamen- A encenação da plasticidade cultural na aproximação
te azuis na pele escura de um rosto sem boca. A boca e no contágio, na fundação miscigenadora, na sexua-
encontra-se amordaçada por uma máscara de flandres lidade inter-racial, na invenção da mulata. E o confli-
e a garganta enlaçada por uma gargantilha de ferro. to social e inter-racial expresso pela reivindicação da
Essa assombração contida na figura da escrava liberdade individual ou coletiva contra as hierarquias
criou impasses ficcionais para a fabricação do roman- do poder.
ce fundador nacional no século XIX brasileiro. Vemos Por último, a assombração do passado no mun-
como, em José de Alencar, o mito da fundação nacio- do das imagens midiáticas e dos anseios de consumo.
nal é realizada através da romantização do par con- Nem todos os fantasmas que ressurgem das sombras
quistador português e indígena. Já romances são vítimas caladas pela história. Muitos espectros se
abolicionistas como A Escrava Isaura, de Bernardo atualizam nos caudilhos políticos, nas práticas
Guimarães, têm o cuidado de empalidecer a heroína patrimonialistas, na violência e na impunidade. Mas,
escravizada ao ponto de, seus dedos, de tão alvos, se no mundo da assombração, há o reencantamento do
confundirem com as teclas de marfim do piano. cotidiano e a intensificação da experiência. A mítica
Coube a Cornélio Pena, com o romance Meni- mulata, a escrava Anastácia atrai milhões de fiéis em
na Morta, escrito em 1954, retratar os conflitos inter- busca de dádivas. Sua saga romanceada foi tema de
nos do sistema escravocrata numa fazenda no Vale minissérie. A escrava Anastácia adquiriu assim maior
do Paraíba no final do império. O livro de Pena ofere- visibilidade e multiplicou seu valor no mercado. Ao
ce um precioso diálogo com a obra de Freyre uma lado da venda de sua oração e das réplicas de seu
vez que ele irá postular impasses na relação amo-es- rosto supliciado, houve também a audiência televisiva.
cravo que cancelam a possibilidade de uma fundação No recanto discreto do Museu do Negro, seu busto é
nacional. Menina Morta é um romance anti-fundador coroado por fotografias daqueles que foram agracia-
da assombração. Sua história se centra na dissolução dos. Nessas imagens, rígidos retratos em três por qua-
do mundo escravocrata após a morte da menina ado- tro, fotos coloridas de cenas familiares felizes ou foto-
rada, filha do fazendeiro. A morte da menina som- grafias de posse mostrando a conquista do objeto

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24
almejado, há uma epifania da identificação e da su- 13
Ver o livro de Marcos Sá Correa, Oscar Niemeyer, Rio de Janei-
peração. A escrava Anastácia, que estudiosos afirmam ro, Relume Dumara,1996, p. 56.
14
Ibid, 5, p. 4 e p. 8.
nunca ter existido, encarna um mito: o mito da liber- 15
Ibid, 5, p. 14.
dade, generosidade e transcendência pairando aci- 16
Ver Casa-Grande & Senzala, p. lix.
ma das torturas da história.23 A assombração do so- 17
Ibid, p. lxi.
frimento e sua redenção. O reencantamento do 18
Ibid, p. ixv.
mundo no diálogo pós-mortem entre vivos e mortos, 19
Ver Gilberto Freyre, em Diario de Pernambuco, 07/10/23.
brancos e negros, homens e mulheres. 20
Para uma discussão sobre a importação de idéias européias pela
elite brasileira do império ver o famoso ensaio de Robert Schwarz,
_______________________ " As idéias fora do lugar", em Ao vencedor as batatas, São Paulo,
Duas Cidades, 1977.
Notas 21
Ver Cornélio Pena, Menina Morta, em Romances Completos,
Rio de Janeiro, Aguilar, 1958, p. 1278.
1
Peter Fritzsche, "Nostalgia as Exile: The Culture of Displacement 22
Ibid, p. 1296.
and the narrative of History" (inédito). 23
Sobre a ficcionalidade da escrava Anastácia ver as declarações
2
Ver Arjun Appadurai, em particular, o capítulo " Consumption,
de Monsenhor Guilherme Schubert, Escrava Anastácia, no Jornal
Duration and History", em Modernity at Large:Cultural Dimensions
of Globalization, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1996, do Brasil, 1987, p. 11.
ps. 66-85.
3
Para uma discussão sobre as relações entre assombração,
modernidade e cidade, ver o belo ensaio manuscrito de Kevin
Hetherington, City, Ruin, Ghost: Towards a Theory of Disclosure.
4
Para uma discussão sobre Walter Benjamin e as fantasmagorias
do consumo ver o importante livro de Susan Buck Morss, The
Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project,
Cambridge, The MIT University Press, 1993.
5
Em seu livro Ghostly Matters: Haunting and the Sociological
Imagination, sobre a fenômeno da assombração enquanto evento
social, a socióloga americana Avery Gordon ressalta a negação do
assombramento na cultura televisiva suburbana americana. Em
contraste ao mundo desmemoriado da virtualidade, Gordon sele-
ciona romances específicos da escritora afro-americana Toni
Morrison e da escritora argentina Luisa Valenzuela como ficções
que problematizam a memória histórica ao evocar as feridas pro-
fundas e os traumas do passado desenterrado. A escravidão ame-
ricana e os desaparecidos na ditadura militar argentina são os exem-
plos escolhidos para configurar um sociologia da assombração.
No seu sentido metafórico, a assombração traz à tona figuras do
passado cujos conflitos foram soterrados, mas não resolvidos. Para
Gordon, o espectro da escravidão se enfiltra nas relações raciais
americanas e os corpos desaparecidos ombreiam a história recen-
te da Argentina. Ver Avery Gordon, Ghostly Matters: Haunting and
the Sociological Imagination, Minneapolis, University of Minnesota
Press, 1997.
6
Para uma discussão sobre a relação modernista com o passado
nacional, ver o livro de Lauro Cavalcanti, As Preocupações do Belo,
Rio de Janeiro, Taurus, 1995. Para um excelente estudo e fontes
documentais sobre o debate cultural em torno do edifício da Edu-
cação e da Saúde, ver o livro imprescindível de Maurício Lissovsky
e Paulo Sérgio Sá, As Colunas da Educação, Rio de Janeiro, Edi-
ções do Patrimônio, 1996.
7
Para uma discussão sobre o estranhamento surreal ver o livro de
Hal Foster, Compulsive Beauty, Cambridge, The MIT University
Press, 1995.
8
Ver os ensaios literários de Alejo Carpentier em La nueva novela
latinoamericana en vísperas de un nuevo siglo, México, Siglo
Veintiuno.
9
Ver a autobiografia de Joaquim Nabuco, Minha formação, Brasília,
Editora da Universidade de Brasília, 1981, p. 130.
10
Ibid, p. 108.
11
Ver Lucio Costa, Registro de uma vivência, São Paulo, Impremsa
das Artes, 1997.
12
Citado em Gilberto Freyre, prefácio à primeira edição de Casa-
Grande & Senzala, Rio de Janeiro, Record, 1992, p. lxv.

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A Cultura Lusófona, uma Cultura
Ameaçada?

Fernando Alves Cristóvão


Professor Catedrático de Literatura Brasileira da Universidade Clássica de
Lisboa – Portugal

A notável capacidade de antecipação no perigos que, tanto na frente internacional,


entendimento dos fenómenos sociais e políti- como no interior do próprio Brasil, ameaça-
cos manifestada por Gilberto Freyre está cla- vam ou tentavam pôr a ridículo a cultura luso-
ramente patente na sua conferência de 1940, brasileira para a enfraquecer ou anular.
Uma Cultura Ameaçada: a Luso-Brasileira,
ponto de convergência de toda a sua obra A ameaça dos imperialismos do século XIX
construída ao longo de quase setenta anos. Não foi esse alarme o primeiro.
Apelidamos essa conferência de ponto Antes dele, e pelas mesmas razões, nos
de convergência, dirigindo para ela também finais do século XIX, outros grandes vultos da
a obra escrita posteriormente a essa data, por- história brasileira lançaram alertas ainda mais
que as idéias ali expostas constituem como veementes que o de Gilberto Freyre: Graça
que uma summa de todas as reflexões sobre Aranha, no romance Canaã 1, e Sílvio Romero,
a colonização portuguesa do Brasil e sobre os em notável conferência intitulada O Elemen-
diversos tipos de relacionamento da cultura to Português no Brasil 2, proferida no Rio de
luso-brasileira com as outras culturas, no con- Janeiro.
texto lusófono e mundial. Observando as movimentações políti-
Seja-me permitido, por coerência para cas das grandes potências européias depois
com a obra de Gilberto, tornar extensiva a das duas Conferências de Berlim, Sílvio
todo o mundo lusófono atual essa interroga- Romero alertava brasileiros e portugueses para
ção de 1940: será a cultura lusófona uma cul- as ameaças dos novos imperialismos sobre as
tura ameaçada? nações pequenas ou pouco desenvolvidas,
Interrogação essa que julgamos legíti- considerando que tanto o Brasil como Portu-
ma, embora seja diferente o teor lusófono das gal estavam ameaçados pela "segunda parti-
nações africanas que foram colônias portugue- lha do mundo": "Nossas regiões do Amazo-
sas, em relação ao Brasil, pois o que está em nas, do Madeira, do Purús e do Acre sentem
causa não são, diretamente, territórios e ri- arregalados enormes olhos sobre elas em
quezas analisáveis quantitativamente, mas os nome dessa brutalidade da força do marco e
laços culturais e históricos que unem os sete da libra esterlina" (p. 23).
países, criando redes de sentimentos e soli- E quanto a Portugal: "o heróico Portu-
dariedades com inevitáveis repercussões so- gal, que também faz parte das nações peque-
ciais e políticas. nas, também pertence ao grupo dos ameaça-
E também porque a História está a de- dos, quando não diretamente, nas suas plagas
monstrar que algumas ameaças que no pas- européias, de modo inequívoco em suas co-
sado pairaram sobre o Brasil não são muito lônias da África" (p. 3).
diferentes das que atingiram, e ainda conti- Com efeito, desde o final do século XVIII
nuam a atingir, do mesmo modo, Portugal e que se generalizou a cobiça imperialista das
as nações africanas. grandes potências, especialmente da Alema-
Até com o objetivo de tirarmos algumas nha e da Inglaterra.
ilações possivelmente válidas para toda a Depois que a Rússia, em 1877 e 1878,
Lusofonia, apesar de ela ainda estar a dar os invadiu a Turquia, apagando grande parte da
primeiros passos. sua influência nos Balcãs pelo tratado que lhe
Em 1940, em plena Segunda Guerra impõe, tudo começou a movimentar-se.
Mundial, Gilberto Freyre lançou o alerta pre- As outras potências européias não acei-
cavendo brasileiros e portugueses contra os taram o tratado, tendo-se realizado então uma

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grande conferência em 1878 para regular o diferendo, ricaturas e teatro de Raul Pompéia, fazendo o mesmo
sob mediação e liderança da Alemanha de Bismark, em relação aos portugueses e seus governantes.
que, logo ali, começou a mostrar as suas ambições, Coragem notável de historiador que sabe des-
somadas às dos outros parceiros europeus. trinçar entre o essencial e o acessório, ou de homem
Ambições essas que tomariam grande amplitu- de Estado a quem não perturbam as pequenas quere-
de na Conferência de Berlim de 1878, também sob a las internas.
liderança de Bismark, e que dividiu a África em várias Coragem e sentido de antecipação, quer ao pre-
zonas de influência segundo regras e princípios que ver a formação de blocos de nações para atuação
pretendiam regular as ocupações territoriais, dando política comum, quer ao perceber, ainda antes de
por não definitivas as anteriores, e abrindo as portas a Fernando Pessoa e dos filólogos em geral, a impor-
todas as cobiças. tância decisiva de uma língua como eixo fundamen-
Dessas decisões de um "imperialismo ávido e tal de culturas, para além de reivindicar para a língua
turbulento que se apoderou da orgulhosa Europa" saiu portuguesa o lugar que só agora lhe começa a ser re-
Portugal gravemente prejudicado e fragilizado, relati- conhecido.
vamente aos seus territórios africanos. São palavras suas, recorde-se, em 1902: "Bas-
Ao identificar os efeitos dessas políticas e o que taria o fato extraordinário, único, inapreciável, trans-
elas constituíram de ameaça para o Brasil, Sílvio cendente, da língua, para marcar ao português o lu-
Romero lamenta os "grandes erros" cometidos duran- gar que ele ocupa em nossa vida, em nossas letras,
te o século anterior, preconizando o regresso ao espí- em nossas aspirações; bastaria a língua para definir-
rito da colonização dos três séculos passados portu- nos e extremar-nos de quaisquer concorrentes estra-
gueses, "cujo espírito foi outro e a cujos ensinamentos nhos que porventura sonhem embaraçar-nos em nossa
é preciso, é indispensável voltar, no intuito de conser- marcha. Ela, só por si, na era presente, serve para in-
var, preponderante, ileso, inapagado o caráter funda- dividualizar a nacionalidade" (p. 12).
mental de principal fator de nossa formação" (p. 8), E, com uma visão algo profética do que viriam
concluindo: "Nossa tese é: da conveniência de forta- a ser cinqüenta anos mais tarde os grandes blocos
lecer no Brasil o elemento português (...) a conveni- linguístico-políticos da Commonwealth, Francofonia
ência de reforçar no Brasil os elementos que o consti- ou Lusofonia, acrescenta: "não deixa de ser coisa dig-
tuíram historicamente uma nação luso-americana, os na de meditação de pensadores e estadistas britâni-
elementos que falam a língua portuguesa, ou ainda e cos aliar e confederar todos os povos que falam a lín-
como conseqüência de tudo isso: de como de todas gua inglesa, por mais separados que pareçam pelos
as colonizações que possam vir ao Brasil a mais con- azares e vaivéns da política. E que outra coisa são es-
veniente é a portuguesa" (p. 6). sas aspirações do pan-germanismo, do pan-eslavismo,
Toda a conferência vai ser a demonstração da esse sonho de pan-americanismo? Este último especi-
verdade dessas asserções, achando ele que uma mai- almente, para ser prático, terá de formar três grandes
or aproximação do Brasil com Portugal era, afinal, tão seções independentes: os anglo-americanos, os luso-
lógica e imperativa como as que se realizavam entre a americanos, os hispano-americanos" (p. 12).
Espanha e os países latino-americanos, entre a Ingla- Por outras palavras, pelas que empregamos
terra e os Estados Unidos e outras nações, entre a Fran- hoje: os povos da Lusofonia têm de agrupar-se como
ça e a Argélia (p. 7), etc. o fazem os da anglofonia do Commonwealth.
Não deixa de merecer o maior apreço à cora- E porque a língua não é só eixo decisivo da iden-
gem manifestada, em toda essa questão, por Sílvio tidade nacional, mas também fator de união entre os
Romero. povos que a falam, bem como fronteira das indepen-
Apesar de se encontrar no auge do seu prestí- dências (da política à cultural), era urgente para Sílvio
gio, não hesitou em pô-lo em causa com uma pro- Romero a sua defesa. E, dentro dela, importava tam-
posta dificilmente aceitável. É que se estava em maré bém a manutenção e valorização das culturas, como
alta de antilusitanismo. a melhor defesa contra a ameaça dos novos imperia-
Incidentes vários entre portugueses e brasilei- lismos.
ros tinham ocorrido, nada favorecendo a aproxima- Seja-nos ainda permitido juntar uma citação fi-
ção: as seqüelas da Revolta da Armada e do rompi- nal a essas considerações: "Em tais conjunturas, numa
mento diplomático entre Portugal e o Brasil, os época de ameaças, imposições, de violências de um
incidentes em questões de imprensa e de pescas e, imperialismo íngreme, não é muito que procuremos
sobretudo, a atmosfera social envenenada tanto pe- revigorar o caráter brasileiro, revivescendo, por assim
las chacotas de Camilo, Ramalho e Eça pondo a ridí- dizer, nele os bons sentimentos portugueses de
culo os brasileiros e o seu Imperador, como pelas ca- intransigência e aferro ao solo, os generosos afetos

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que nos acalentaram durante os fortes tempos colo- de 1824.
niais pela integridade da pátria, digna herança dos Muitos europeus emigrantes sonhavam com a
nossos antepassados" (p. 13). reconstituição das suas pátrias no Novo Mundo do
Brasil e se mostraram não só relutantes em se integra-
A ameaça do racismo xenófobo rem como em falarem a língua do País e aceitarem os
Foi de transcendente importância a decisão de seus costumes e leis. Isso chegou a atingir aspectos
D. João VI de transferir a sua corte de Lisboa para o graves no Rio Grande do Sul, em incidentes com a
Rio de Janeiro, em 1808, no seguimento do Tratado colônia alemã.
de Fontainebleau e da conseqüente invasão de Por- Não só ali estava em perigo a identidade brasi-
tugal pelos exércitos napoleônicos. leira, rejeitada em favor de uma cultura alemã substi-
Apesar de um contexto conjugal e pessoal des- tuta, mas também estava em jogo a própria integrida-
favorável, D. João VI, Rei de Portugal e Imperador do de territorial do Brasil. Contra essa situação se levantou
Brasil, empreendeu obra extraordinária a que se pode a voz de Sílvio Romero, sem que se possa encontrar
atribuir, com inteira justiça, ter sido decisiva para a nas suas palavras qualquer sentimento xenófobo. Síl-
emancipação política, econômica e cultural brasilei- vio Romero não estava só. Outro intelectual, Graça
ra. Aranha, jurista, magistrado, diplomata, escritor, gran-
Para além da abertura dos portos e alfândegas, de agitador cultural do Modernismo, também lavrou
o derrube dos obstáculos aduaneiros permitiu um o seu protesto contra a situação.
desenvolvimento agrícola e industrial sem preceden- Naquele mesmo ano de 1902, editou um ro-
tes, que iria contribuir, decisivamente, para a aboli- mance intitulado simbolicamente Canaã, em que re-
ção da escravatura, pela substituição do braço escra- presentava o Brasil como a nova terra da promissão,
vo pelo braço imigrante e pelo desenvolvimento de para emigrantes ou emigrados políticos de todo o
uma nova mentalidade mais exigente quanto aos di- mundo, que ali encontrariam não só a abundância
reitos do Homem. que lhes era negada em seus países mas, sobretudo,
Até porque com a abertura dos portos veio a uma nova e mais ampla liberdade.
abertura das mentalidades: o estabelecimento do en- Porém, nem tudo estava a correr bem nesse
sino superior, a criação da imprensa régia, o desen- novo paraíso. Algumas perturbações ali ocorriam, es-
volvimento das letras e das artes, a entrada livre de tando na base de todas elas a interrogação sobre o
todas as imigrações, os intercâmbios culturais diversi- que essa pátria aberta a todos iria ser no seu futuro.
ficados, especialmente com a França, a criação das Graça Aranha constrói o romance segundo uma intri-
instituições de base político-administrativas de gover- ga centrada num debate fundamental: que Brasil que-
no. remos?
Esses treze anos de efetivo reinado de D. João No interior de uma colônia de imigrantes ale-
VI foram verdadeiramente decisivos para que a inde- mães, Lentz e Milkau, duas personagens que mais
pendência se realizasse nas condições mínimas de parecem personificações de idéias, debatem os seus
êxito, até porque o próprio rei chegou a sugerir a seu projectos de intervenção. Lentz, em representação do
filho que a protagonizasse. imperialismo e racismo germânicos, quer um Brasil
No caso que nos interessa aqui considerar, a ariano. Milkau, que perfilha as teses monistas e idea-
abertura do País à imigração é particularmente rele- listas da evolução das raças, acredita e aceita um Bra-
vante, tanto para a construção do Brasil como para sil em transformação especial.
pôr à prova a solidez da colonização portuguesa feita O autor de Canaã conhecia, por experiência, o
quase em exclusivo (a presença holandesa em que narrava na ficção, pois tinha vivido em Cachoeiro
Pernambuco é uma exceção honrosa e valorativa, mas de Santa Leopoldina, no Estado de Espírito Santo, onde
curta), durante quase trezentos anos. fora juiz municipal.
Contudo, tão grande mudança e de tão gran- Milkau e Lentz, recentemente chegados ao Bra-
des conseqüência, não podia acontecer sem pertur- sil, procuravam adquirir terras na área dominada pela
bações. Algumas regiões mais densamente ocupadas colônia alemã para aí se fixarem e, naturalmente, di-
por imigração de outras culturas e etnias o iriam fazer alogam sobre o seu futuro e o do país em que se ins-
sentir. Por exemplo, nas regiões do Sul, especialmen- talaram.
te no Rio Grande do Sul. Como em pano de fundo, esses diálogos
Foi em 1818 que a imigração estrangeira co- germânicos decorrem sob a desconfiança e revolta dos
meçou, com a experiência do suíço Sebastião Nicolau brasileiros natos que vivem em condições de pobre-
Gachet, compadre do rei, de que resultaria o núcleo za. Sentem-se discriminados pelos governantes, que
de Nova Friburgo. E depois, com a imigração alemã, mais se interessam pelos imigrantes estrangeiros que

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por resolver os seus problemas, e não admitem ser as raças virgens, selvagens, que está o repouso con-
tratados por esses adventícios com sobranceria e des- servador, o milagre do rejuvenescimento da cultura.
prezo. Arrogância de gente que se julga superior, e O frágil dos povos superiores é o instintivo impulso
nem se dá ao trabalho, sequer, de aprender a língua do desdobramento da cultura, transferindo de corpo
da terra, o português. a corpo o produto dessa fusão (...) o progresso se fará
Lamenta-se Felicíssimo, "brasileiro amável": "há numa evolução constante e indefinida" (p. 42-43).
gente na colônia, entrada há mais de trinta anos, que Fazendo a apologia da liberdade e do amor,
não fala uma palavra de brasileiro. É uma vergonha! acrescenta: "o princípio do amor me sustenta e me
O que acontece é que os nossos tropeiros e trabalha- protege (...) refletindo sobre a condição humana, o
dores todos falam o alemão" (p. 71). meu pensamento se esclareceu quando vi a marcha
Mas a verdadeira ameaça que nesse romance da humanidade partindo da escravidão inicial... No
se perfila é a do racismo claramente inspirado no Essai princípio era o caos (...) mas um dia chegará para es-
sur L' Inegalité des Races Humaines de J. Gobineau, e tes a hora da criação; o amor os reclamará à vida (...)
na filosofia da vontade de poder do super-homem de o mundo é a expressão da harmonia e do amor uni-
Nietzsche, protagonizada por Lentz: "Não vejo pro- versal" (p. 43-60).
babilidade da raça negra atingir a civilização dos bran- Como resulta deste conjunto de idéias e proje-
cos (...) Não acredito que da fusão com espécies radi- to de integração da harmonia do cosmos, Milkau acei-
calmente incapazes resulte uma nova raça sobre que ta de bom grado a miscigenação que Lentz odiava,
se possa desenvolver a civilização. Será sempre uma mas dentro de um processo evolutivo e, portanto, tran-
cultura inferior, civilização de mulatos, eternos escra- sitório.
vos em revoltas e quedas. Enquanto não se eliminar a Mas, no fundo, também Milkau é racista e adep-
raça que é o produto de tal fusão, a civilização será to da superioridade da raça branca, pois, como foi
sempre um misterioso artifício, todos os minutos ro- citado, entende que ela, pela sua superior força, irá
tos pelo sensualismo, pela bestialidade e pelo servilis- purificando as outras, reconhecidamente inferiores,
mo inato do negro. O problema social para o pro- elevando-as e enobrecendo-as porque, em última
gresso de uma região como o Brasil está na substituição análise, não lhes reconhece nem validade nem no-
de uma raça híbrida, como os mulatos, por europeus" breza próprias, a não ser as que forem adquirindo no
(p. 43). processo de transmissão conduzido pela raça branca.
E, continua Lentz, depois de narrar as motiva- Assim, Graça Aranha equacionou em termos
ções familiares que o levaram a demandar a terra bem explícitos as diversas formas de atuação do ra-
brasílica: "E parti então para a virgindade destas sel- cismo germânico no sul do Brasil, a que Getúlio Vargas
vas, com o ímpeto de viver nelas solitário, na exaltação viria a pôr cobro.
do meu ideal ou de um dia as transformar em um Apesar do estilo simbolista, em que o vago e o
império branco que é o que desejo e a razão do meu nebuloso envolvem os diálogos e as ações, são de gran-
sangue" (p. 52). de nitidez os dois tipos de ameaças que pairam sobre
Não admira, pois, que, com tais princípios, se- o Brasil: a do imperialismo racista externo, e a da co-
jam delirantes as suas visões imperiais imaginando que laboração ou conivência interna de alguns grupos de
"os alemães chegariam, não em pequenas divisões imigrantes e de brasileiros, subservientes e medrosos.
humildes de escravos e traficantes, não para lavrar a Sob esse ponto de vista, são esboçadas várias
terra para recheio do mulato, não para mendigar a caricaturas de comportamentos dúbios ou alinhados
propriedade defendida por soldados negros (...) Eles pelo exterior encarnados por funcionários judiciais e
viriam numa ânsia de posse e de domínio, com sua administrativos, mas sempre reprovados pela gente
áspera virgindade de bárbaros, em coortes infinitas, do povo.
matando os homens lascivos e loucos para ali forma- Assim resumirá o juiz municipal, Maciel, o am-
rem um novo império (...) Então, Lentz viu pairar so- biente das conversas dessa classe superior e média:
bre a terra do Brasil a águia negra da Germânia " (p. "é o debate diário da vida brasileira... Ser ou não ser
90). uma nação... Momento doloroso em que se joga o
Diferente é a concepção de Milkau, represen- destino de um povo... Ai dos fracos!... Que podemos
tando a outra face da emigração. fazer para resistir aos lobos? (...) Pobre Brasil!... Foi
Para ele e para a sua filosofia idealista de fundo uma tentativa falha de nacionalidade. Paciência..." (p.
hegeliano, darwinista, embalada pela mitologia do 168).
progresso de Wolff, a evolução era imparável e contí- Tal covardia da classe dirigente, merece ao es-
nua: "O tempo da África chegará. As raças civilizam- crivão Pantoja o seguinte comentário: "Não há mais
se pela fusão; é no encontro das raças adiantadas com patriotismo, não há mais nada. Os senhores podem

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querer entregar a pátria ao estrangeiro, podem vendê- no papel unificador da língua portuguesa.
la, mas, enquanto houver um mulato que ame este Nesse fundo cristão e católico, reconhecia Gil-
Brasil, que é seu, as coisas não vão tão simples, meus berto, como Jaime Cortesão ou Leonardo Coimbra,
doutores" (p. 164). um franciscanismo sociológico e cultural que ultra-
É contra essa ameaça racista e correspondente passava o religioso e o ético, e se projetava num modo
mentalidade derrotista que se insurge Gilberto Freyre muito próprio de se ser português e brasileiro.
em Uma Cultura Ameaçada: a Luso-Brasileira, tornan- Franciscanismo a que também outros acrescentaram
do explícito, numa espécie de manifesto, a sua repul- uma visão naturalista da realidade e um lirismo tipi-
sa, demonstrada por longa e intensa obra de investi- camente lusitano. Particularmente lúcida é a obser-
gação científica pluridisciplinar que se impõe a partir vação do papel desempenhado pela língua portugue-
de Casa-Grande & Senzala, de 1933. sa como elemento aglutinador, aliás em perfeita
Desmitificando os conceitos de raça, de superi- sintonia com Sílvio Romero, que a esse aspecto dedi-
oridade rácica, e exaltando a eficácia e originalidade cou boa parte da citada conferência sobre o "elemen-
da colonização portuguesa do Brasil, equacionou o to português", e com as idéias de Fernando Pessoa
conjunto das suas idéias na teoria luso-tropicalista. sobre um Quinto Império cultural português baseado
Através dela, Gilberto Freyre não só lavrou um pro- na língua.
testo como edificou a refutação dos argumentos ra- E razões muito objetivas tinha para isso, por-
cistas e imperialistas. que o ataque à língua portuguesa, ora ostensivo ora
Nessa notável conferência-manifesto, consagrou disfarçado, fazia parte da estratégia contra uma cultu-
a reabilitação anteriormente feita da colonização por- ra acusada de menor e de degenerada.
tuguesa nos trópicos, por tanto tempo caluniada, rea- A língua portuguesa é para Gilberto "instrumento
bilitando a cultura luso-brasileira, "ameaçada hoje, de intercomunicação entre os elementos de proce-
imensamente mais do que se pensa, por agentes cul- dências diversas de raça e cultura que constituem o
turais de imperialismos etnicocêntricos, interessados Brasil", e mal avisados andam os que fazem a "propa-
em nos desprestigiar como raça que qualificam de ganda contra a língua portuguesa como a língua naci-
mestiça, inapta, corrupta – e como cultura que des- onal e oficial do Brasil inteiro", estejam eles disfarça-
denham como rasteiramente inferior à sua"(p. 28), na dos de geógrafos, estetas ou sociólogos (p. 52).
continuidade da denúncia de Sílvio Romero e de Graça Tão importante considera essa questão que, no
Aranha. breve prefácio que escreveu para a edição de 1980
Cultura em perigo "por parte daquela Europa da conferência, lembra que o ataque à língua "era um
cujas deficiências de organização – algumas na ver- dos argumentos nazifascistas: o Brasil degradamente
dade enormes, mas ainda assim preferíveis aos substi- mestiço não possuía sequer uma língua de valor lite-
tutos mais prováveis, no caso de um triunfo maciça- rário. Fingia-se ignorar Os Lusíadas. Ignorar Fernão
mente neo-pagão etnicocêntrico exclusivista ao seu Mendes Pinto. Ignorar Vieira. Ignorar Machado e
jeito" (p. 43). Euclides" (p. 17).
Daí passou à refutação das justificações teóri- Entendeu ainda Gilberto Freyre que não podia
cas adversas, negando os pressupostos científicos da deixar de exorcizar um tipo de ameaça que lavrava
chamada "raça pura" e dos muitos que a acompanham, no interior do próprio Brasil, a daqueles que, influen-
pois "nenhuma base científica existe a fundamentar a ciados pelas ideologias anti-lusófonas e pelos interes-
existência de raças superiores ou puras". ses das culturas estrangeiras de que eram originários,
Em simultâneo, Gilberto exaltou a democracia sabotavam a identidade nacional.
racial brasileira da miscigenação, o alvo principal das Desses provinham as campanhas de desmorali-
ofensivas e do desprezo das ofensivas arianas, por- zação e desprestígio disfarçadas em análises culturais:
que "Na colonização do Brasil, não dominou, segun- "Ninguém ousará negar o enriquecimento que tem
do as melhores evidências, nenhum tipo físico ou an- resultado para a vida e a cultura do Brasil da actividade
tropológico de português que excluísse outros tipos dos grupos de europeus não-portugueses estabeleci-
de massa ou da elite. Sempre a variedade dos san- dos em vários pontos do território brasileiro, de pre-
gues, a pluralidade das aptidões, a dualidade capital ferência dos estados do Sul. O perigo não está nem
de tendências – a da aventura e a da rotina – a se nunca esteve neles: o perigo sempre esteve e está in-
unirem na América portuguesa como num imenso tensamente neste momento em agentes de organiza-
campo de experimentação biológico e social" (p. 41). ções políticas que os exploram, disfarçados em pasto-
A essa defesa da miscigenação juntou o ilustre res evangélicos, em mestres disso ou daquilo, até em
pernambucano a das características de civilização padres, frades e professores católicos (...) Não exage-
baseadas num fundo cristão de cultura e crenças, e ro nem faço retórica: cada uma das palavras que aca-

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bo de pronunciar se baseia no conhecimento, na ob- de alguns intelectuais pelos problemas da identidade
servação e na verificação de factos e documentos" (p. – cujas múltiplas motivações nem sempre são explíci-
50). tas e que levam à sistemática substituição da palavra
Grande foi a repercussão da atitude de Gilber- "nação" pela palavra "pátria" (não avaliamos bem os
to Freyre nesse ano de 1940. Tão verdadeira e objeti- ganhos semânticos daí resultantes) e da palavra "naci-
va que merece ser reeditada no contexto atual de uma onalismo" pela palavra "patriotismo", esta sim, plena-
lusofonia mais vasta. mente justificada pelas deturpações fascistas e nazis
Não perderam essas palavras e razões força, também denunciadas por Gilberto Freyre – tem leva-
nem por causa dos defeitos pessoais de Gilberto do a incompreensões e má informação sobre as ver-
Freyre, como o da sua enorme e antipática vaidade, dadeiras posições de Gilberto Freyre.
nem pelo fato do próprio ter caído no mesmo erro É caso típico disso a comunicação ao Congresso
dos seus adversários ao querer justificar e patrocinar Luso-Afro-Brasileiro de Lisboa,de 1996, apresentada
um novo imperialismo, o imperialismo africano de pela professora Neide Almeida Fiori. Numa comuni-
Salazar e Marcelo Caetano. cação bem elaborada e cheia de observações muito
Esse foi o erro trágico de Gilberto Freyre, que pertinentes sobre o enriquecimento que representou
mais tarde procuraria emendar, dando cobertura a para o Brasil a imigração estrangeira, são pouco feli-
uma concepção adversa às independências africanas, zes os comentários sobre a conferência de Gilberto
sob o pretexto de, na base luso-tropicalista, a política Freyre a respeito da nossa cultura como ameaçada.
do Estado Novo português poder construir um impé- Segundo a referida professora da Universidade
rio multirracial, esquecendo que o processo em curso de Santa Catarina, entre as causas próximas da toma-
era contrário à vontade das colônias africanas, as quais, da de posição de Gilberto estão o novo tipo de rique-
tal como o Brasil, queriam tornar-se nações indepen- za não resultante da posse da terra, a ameaça
dentes. protagonizada pelos imigrantes estrangeiros que não
Do mesmo modo que a ideologia racista ariana se integravam na cultura do País, a vontade das elites
deu cobertura ao imperialismo germânico, ao qual pôs paulistas em controlarem o poder crescente desses
termo a Segunda Grande Guerra, do mesmo modo imigrantes, o surto de nacionalismo agudo típico dos
que a ideologia marxista adotada pelo leninismo deu governos autoritários de Getúlio Vargas, os "Congres-
força para se edificar o imperialismo soviético, que sos de Brasilidade" dos anos 40, etc.3
ruiu fragorosamente em 1989, também o regime po- No que se equivoca a ilustre professora é que
lítico de Salazar e Marcelo Caetano, com o apoio do as questões levantadas por Gilberto Freyre já vinham
luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, pretendeu cons- de antes de 1902, sem que essas situações e
truir um outro imperialismo, o “do first and last protagonismos por ela apontados existissem, como
empire”, a que as antigas colônias da África e a Revo- afirma, tendo sido denunciadas por Sílvio Romero e
lução de Abril puseram termo. Graça Aranha, entre outros. Gilberto Freyre, afinal,
Assim, uma perspectiva antropológica e mais não fez do que constatar e denunciar uma situa-
humanística de grande validade e comprovação his- ção anômala que persistia.
tórica se viu gravemente adulterada e comprometida Adianta a referida professora que a imigração
numa aventura que em muito prejudicou a validade alemã no Sul era sete vezes menor que a italiana, mas
da teoria luso-tropicalista. tal em nada modifica para melhor a questão, antes
Mas, injustamente, porque ela não é, como as pelo contrário, demonstrando até, esse pormenor, que
outras duas ideologias imperialistas, um projeto de o problema não era tanto de natureza quantitativa
domínio, mas uma forma de humanismo válida e fe- mas qualitativa.
cunda como utopia criadora e aglutinadora, tanto nos A dita ameaça cultural não era fruto de um
seus aspectos culturais, como nos sociais da lusofonia. circunstancialismo político de nacionalismo artificial
O lastro científico das suas idéias e a conseqüen- programado, mas resultado de um forte sentir popu-
te adequação à realidade lusófona, ainda que desi- lar e oficial, como claramente o mostrou Graça Ara-
gual nos cinco países africanos, permanece de pé, e nha no seu romance, repita-se, de 1902.
só não é mais evidente porque os novos racismos, os
interesses e os processos, por vezes inconfessáveis, As incompatibilidades do marxismo e de uma cer-
de algumas culturas estrangeiras que procuram no ta negritude
Brasil um lugar de maior relevância, as incompatibili- O marxismo de Marx e Engels, sobretudo quan-
dades das ideologias marxista, da negritude radical e do se tornou a doutrina oficial do comunismo elabo-
outras não o permitem. rada por Lenine, passou a ser a ideologia dominante
Deve ainda acrescentar-se que o atual desfavor do século que terminou, com forte presença e influ-

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ência principalmente nos países do Terceiro Mundo, cráticos, como se comprova nas sociedades livres em
a que pertence boa parte dos países lusófonos. que a conciliação de interesses opostos se pode obter
Não tem sido fácil essa convivência, e não é pela negociação e, não poucas vezes, pela concertação
difícil entender o porquê, e por que motivos não pou- social.
cas vezes essa ideologia se transformou em ameaça. Este é, aliás, o grande obstáculo para os que
Logo a começar pela sua concepção básica da rejeitam a teoria luso-tropicalista: a incapacidade de
realidade. Entende o marxismo que na base de qual- entenderem uma cultura de conciliação, convencidos
quer valoração ou juízo está a matéria, sendo o mate- de que na base da evolução racial está o conflito. E
rialismo dialético a sua forma canônica de evolução. também para aqueles que, isolando do seu contexto
Daí a importância decisiva e infraestrutural dos os erros da colonização, são manifestamente incapa-
fatores econômicos e das relações de produção zes de um juízo de valor desapaixonado.
condicionando as instituições, assim consideradas su- Lucidamente Edson Nery da Fonseca assim re-
perestruturas, bem como os comportamentos sociais, sumiu esta cultura: "Esta permanente conciliação de
religiosos, psicológicos e políticos, em clara oposição contrários (...) é talvez uma atitude inspirada pelo re-
à concepção espiritualista e cristã da cultura lusófona. lacionamento nem sempre conflituoso, mas, ao con-
Não ignora esta que os problemas sociais e a trário, freqüentemente amoroso, entre senhores e
urgência em se vencerem as dificuldades e injustiças escravos, dominadores e dominados na formação so-
devem passar pela prioridade dos valores do espírito cial do Brasil".5
e pela vontade de ser a partir deles que se chegue a Na mesma rota de colisão entre as duas cultu-
soluções justas na repartição das riquezas e na obten- ras, a marxista e a lusófona, está também o entendi-
ção da harmonia e da paz. mento racial da miscigenação, quer biológica quer
Impossível, por isso, conciliar o marxismo e cultural, fora do "diktat" das normas do partido e da
outras filosofias materialistas com os direitos de Deus ideologia determinando o que devem produzir os es-
e do homem, entendido este como ser por Ele criado critores e artistas e castigando os "desvios".
e para Ele orientado, através da religião e de uma con- Depois do colapso do império soviético, o mar-
cepção de amor e de família que nada têm a ver nem xismo perdeu grande parte da sua força, mas ainda
com o materialismo dialético, nem com a luta de clas- subsiste, talvez por inércia, nos hábitos mentais de
ses. Pelo contrário, o marxismo-leninismo é que re- alguns saudosistas.
presenta uma forma de alienação dos maiores valo- Estreitamente ligado ao marxismo e com incom-
res do espírito. patibilidades semelhantes, se processou uma corren-
Resumindo o pensamento de Marx, Henri te radical da negritude, aquela que vem, sobretudo,
Lefebvre afirma: "Il montre que l' aliánation de l' de Aimé Césaire.
homme ne se définit pas religieusement, Com efeito, segundo Fernando Neves 6, na
métaphisiquement ou moralement. Au contraire, les redescoberta da África pelos africanos, três foram as
métaphysiques, les religions et les morales vias principais de acesso: a "via cultural da negritude",
contribuaient à aliéner l' homme à l' arracher à soi- a política do "Pan-africanismo" e a revolucionária do
même, à la détourner de la conscience véritable et de "socialismo científico mundial", tendo-se a negritude
ses véritables problémes". 4 imposto, sobretudo no campo cultural, como de gran-
E a mesma incompatibilidade se passa em rela- de influência entre os intelectuais.
ção à doutrina e prática da luta de classes, o verda- No início era um fenômeno simplesmente lite-
deiro motor da história, para os marxistas, luta essa rário, porém depressa se transformou numa ideologia
que, segundo Marx, conduz à ditadura do proletaria- política e revolucionária, não só defendendo os valo-
do, utopicamente entendida como transitória, desti- res da cultura negra e a emancipação dos povos afri-
nada à abolição das classes e ao restabelecimento de canos, mas também combatendo a cultura e as insti-
uma sociedade sem classes. tuições que, na sua óptica, julgava identificarem-se
Como conciliar essa concepção conflitual da com a opressão e o colonialismo.
sociedade, oposta a uma natural conseqüência do li- Apareceu primeiro a dar continuidade aos mo-
vre exercício da liberdade, com o ideal humanista e vimentos Back to Africa e Black Renaissance america-
cristão da lusofonia que vê na harmonia racial e soci- nos dos fins do século XIX e aos movimentos Haitianos,
al, e na paz, um dos comportamentos a pôr em práti- Cubanos, da Martinica e Antilhanos, mas foi a partir
ca, entendendo que não é pela supressão da liberda- dos anos 30 do século XX que se impôs como movi-
de, pela repressão feita por qualquer tipo de ditadura mento de real significado, com a "legitime défense" de
ou controle que se resolvem os problemas. Mesmo o Aimé Césaire e com Leopold Senghor, em especial.
problema da injustiça é solúvel por processos demo- Na década seguinte, saiu o movimento reforça-

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do com o grupo da revista Présence Africaine, de Sobretudo depois dos anos 50, da Conferência
Alioune Diop, e com o patrocínio de intelectuais fran- de Bandung, de 1955, claramente anti-clerical 9 , de-
ceses com o prestígio de Jean-Paul Sartre e Albert senvolvendo a idéia lançada em 1945 pelo V Con-
Camus. gresso Pan-Africano de Manchester, que tinha acusa-
Embora fosse nas décadas seguintes perdendo do o cristianismo de se identificar, na África Ocidental,
prestígio e influência até aos anos 70, realizou, uma com a exploração política e econômica dos povos
sementeira de incompatibilidades nada favoráveis aos oeste-africanos.
conceitos da lusofonia maximamente na hostilidade Ainda o mesmo Sartre reconhece que "a maio-
militante sempre manifestada para com a teoria ria dos poemas da negritude são de ponta a ponta
gilbertiana do luso-tropicalismo. anti-cristãos".10
É certo que a corrente, originada em Senghor, Assumida como luta de classes e luta de raças,
de um humanismo universal de cultura, é uma como poderia a negritude entender o luso-
negritude de diálogo, mas assim não aconteceu com tropicalismo e as idéias de Gilberto Freyre quando
o radicalismo e racismo de Aimé Césaire, Depestre e afirmou: "a mestiçagem unifica os homens separados
outros. pelos mitos raciais. A mestiçagem reúne sociedades
Até porque a negritude mais em evidência foi, divididas pelas místicas raciais em grupos inimigos. A
desde o começo, inspirada e muito baseada no mar- mestiçagem reorganiza nações comprometidas em sua
xismo. unidade e em seus destinos democráticos pelas su-
Para Aimé Césaire, escreve Senghor: "O branco perstições sociais. A mestiçagem completa Cristo (...)
simboliza o capital, como o negro o trabalho... Atra- A mestiçagem é a democracia social em sua expres-
vés dos homens de pele negra da sua raça, ele conta são mais pura. Sem ela fracassa o próprio Marx no
a luta do proletariado mundial". E Sartre corrobora: que a sua ideologia tem de melhor".11
"sem dúvida não é por acaso que os bardos mais ar-
dentes da negritude são, ao mesmo tempo, militantes As ameaças como estímulos ao reforço da identi-
marxistas". dade
Aliás, na antologia La Nouvelle Poésie Nègre et Quando, nos anos 80, era responsável pelo Ins-
Malgache de Langue Française, editada por Senghor, tituto de Cultura e Língua Portuguesa (Icalp), que atu-
o famoso prefácio de Sartre Orphée Noir, "La question almente tomou o nome de Instituto Camões, publi-
primordiale était, en fait, négritude et marxisme. Les cava o referido Instituto a Revista Icalp. Essa revista,
tenants de la Négritude estiment que leur doctrine em 1986, tomou a iniciativa de realizar um inquérito
est pour le continent africain, la seule réponse valable a relevantes personalidades portuguesas sobre a cul-
au Marxisme, étant entendu qu' il s'agit beaucoup tura nacional. Ao historiador Jorge Borges de Macedo
moins de récuser celui-ci, qui est une méthode, que foi acrescentada uma pergunta sobre o que pensava
de rejeter ses modéles historiques, russe, chinois ou ele da afirmação de Gilberto Freyre de que a nossa
autres, simples masques des néo-impérialismes. Il s' era uma cultura ameaçada. Respondeu o notável his-
agit en quelque sorte d' assimiler le marxisme, de le toriador (perdoe-se-nos que seja extensa a citação)
négrifier. 7 que "as culturas estão sempre ameaçadas. Em minha
Não era esta a negritude de Senghor, que, em- opinião, igualmente, isso não é um perigo, mas uma
bora no início a aceitasse como um racismo anti-ra- vantagem, desde que as culturas tenham consciência
cista necessário, se pautou pela aproximação cultural dessa ameaça e possam estudar e considerar os mei-
e pelo diálogo, naturalmente mal vistos por aqueles os ao seu alcance para lhe responder. Uma cultura
que, seguindo René Depestre, defendiam também sem desafio perde a memória das condições de cria-
uma "negritude de classe", considerando a proposta ção a que esteve sujeita para se constituir e desenvol-
de Senghor como "uma tese irracional, perigosa e ver como proposta autônoma de vida. Tende, nesse
mistificadora, subproduto do nacionalismo [que] ser- caso, a estereotipar-se e a automatizar as respostas,
viria de base cultural à penetração neo-colonialista esbatendo as condições essenciais de observação e
na África e na América".8 criatividade, indispensável à formulação de novas res-
Assim composta de luta de classes e de racis- postas. Uma cultura não é uma oferta, é uma criação
mo, essa negritude radical nunca viu com bons olhos viva (...) Ora o aparecimento de outra cultura a desa-
a Lusofonia, cujos ideais, repita-se, se baseiam no di- fiar uma primeira é um fenómeno constante na histó-
álogo, na concertação, nos princípios espiritualistas e ria das civilizações".12
cristãos. E também não descurou essa negritude a luta Poderíamos acrescentar nós, por outras pala-
contra o cristianismo, tendência que já vinha de Aimé vras, sem que isso seja um truísmo, que a verdadeira
Césaire. cultura quando existe, resiste. Isto é, só as culturas

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não artificiais, possuidoras de força interna e autenti- humanizada.
cidade provada pela história, poderão olhar o futuro Refletindo sobre o que se poderá chamar o luso-
com confiança. Não são as ameaças externas que as tropicalismo pós-gilbertiano, Adriano Moreira cons-
amedrontam. tata a alteração profunda que se deu em Portugal e
Dessa capacidade de resistência tem dado pro- no mundo, e as modificações daí resultantes no en-
vas abundantes a cultura portuguesa ao longo dos tendimento do luso-tropicalismo.
séculos. Agostinho da Silva afirmava mesmo que a Em artigo publicado em 1990 na Revista Ciên-
capacidade de resistência a Castela era uma das ca- cia e Trópico, lembra que, sendo o poder político "uma
racterísticas essenciais da cultura portuguesa. das condicionantes freqüentemente esquecida do
Do Brasil algo de semelhante se pode afirmar, conhecimento daquilo que o Gilberto chamou o mun-
de que é sinal a persistência das suas fronteiras terres- do que o português criou", ele sofreu nos últimos tem-
tres herdadas desde os tempos coloniais e a sua capa- pos alterações muito profundas que obrigam a rever
cidade de integração dos imigrantes na conjugação a "moldura Gilbertiana".
das suas diversidades com a unidade nacional. Alterações decorrentes do 25 de Abril em Por-
Borges de Macedo, como Gilberto Freyre, acres- tugal e da entrada do nosso país, em 1986, na União
centava ainda: "a maior ameaça à nossa cultura é a Européia, acontecimentos vários envolvidos pelo pro-
crise agravada de confiança a que temos estado sujei- cesso histórico da constituição de grandes espaços e
tos". Com efeito, nada é pior que uma cultura blocos de poder criaram uma nova dinâmica interna-
desmotivada, descrente de si própria, situação a que cional.
é especialmente propícia a atual atmosfera pós-mo- Daí que tenha caducado, definitivamente, muita
derna. coisa do projeto político gilbertiano e, porque não
Segundo alguns dos seus melhores teóricos, acrescentá-lo, também do projeto africano de Adriano
Tofler, Lipovetzki, Jean François Léotard, é precisamen- Moreira, pois tudo agora se equaciona de maneira
te nessa espécie de vazio, de ausência de idéias e va- diferente, e em função dos blocos a que se pertence.
lores, de abolição das grandes referências motivadoras Nessa profunda alteração da ordem tradicional,
históricas, metafísicas e religiosas, que caracteriza o Adriano Moreira vê a necessidade de uma nova es-
nosso tempo, que está agora o maior perigo. tratégia, até porque, apesar de tudo, os pequenos
Perigo sublinhado pela moderna ressaca das países não deixaram de ter alguma capacidade de in-
ideologias destroçadas que, sobretudo por ocasião das tervenção.
diversas comemorações do descobrimento das Amé- Sugere, por isso, que "as relações entre o poder
ricas, e utilizando as várias técnicas da desconstrução político e os sistemas ou projetos culturais recebam
e alguma perícia na manipulação dos documentos, uma atenção que anda fora das tradições dessa maté-
tudo põem em causa, numa manifesta incapacidade ria, tendo sobretudo em vista que não estamos agora
de visão histórica, mas de sobeja capacidade de sujei- nos altos domínios dos centros cientificamente domi-
ção ideológica e de radicalismo. nantes, mas na área da língua e dos modelos de com-
É, pois, com alguma preocupação que observa- portamentos da sociedade civil".
mos essa ameaça interna que também se manifesta É que a fragilidade da situação em Angola e
na persistência de uma forma demasiado chocarreira Moçambique e o regresso de Macau à China devem
de evocar as figuras históricas nacionais e outros gran- ter um equacionamento diferente do que poderia ser
des vultos da nossa civilização e cultura. o anterior projeto do luso-tropicalismo.
Atitude esta que tem pouco a ver com a saudá- Como que respondendo a Adriano Moreira, o
vel tradição humorística e irônica no modo de enca- recente acesso à independência de Timor ainda mais
rar a vida e os fatos do passado, ou com o jeito tão vem confirmar a aposta na língua e na cultura que os
luso-brasileiro das cantigas de escárnio e mal-dizer, políticos teimam em não entender.
pois se alimentam principalmente da incapacidade de Referindo-se à importância do papel desempe-
optar e de se ser solidário. nhado pela língua, e na velha tradição de Romero,
A Lusofonia será o que quiserem os lusófonos. Graça Aranha, Gilberto Freyre e Fernando Pessoa, afir-
A cultura lusófona, originada nas relações luso- ma: "Em toda a parte aquilo que avulta como menos
brasileiras, inspirada nos ideais do Quinto Império de vulnerável, e como cimento mais forte, é realmente a
Vieira e Pessoa, apoiada pela teoria luso-tropicalista língua, e com ela, se a capacidade existir e a vontade
gilbertiana e pós-gilbertiana, pode constituir-se como não faltar, o veículo da cultura capaz de disputar o
um espaço linguístico e cultural importante não só seu espaço e de o fazer crescer".13
para a vivência dos que a integram, mas também para Observação esta que vem reforçar a posição que
utilidade no diálogo internacional de feição mais sempre defendemos desde os anos 80 no Instituto de

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Cultura e Língua Portuguesa (atual Instituto Camões),
com Agostinho da Silva e outros de que, embora a
Lusofonia possa vir a ter uma formulação política, não
era por ela que se devia começar nem investir mais.
É que essa outra superestrutura só será possível
depois de consolidadas as suas bases linguísticas e
culturais através de instituições e de medidas de polí-
tica linguística sólidas e atuantes que desde há muito
vimos reclamando, como a da criação do Instituto In-
ternacional da Língua Portuguesa, e de medidas
legislativas favoráveis à "defesa e ilustração" da nossa
língua comum e das culturas que nela se fazem.14
Certos de que as ameaças do exterior só refor-
çam a Lusofonia, importa meditar no significado das
fraquezas e covardias internas para, através de uma
mais clara proposição dos valores, incutir nas novas
gerações, sem postiços ufanismos patrioteiros, o sen-
tido da dignidade da pessoa, do respeito pelos que
nos antecederam e legaram exemplos notáveis de
humanismo, de coragem, honestidade, religiosidade
e de solidariedade cordial, a força acrescida que po-
demos ter estando unidos num bloco de sete, oito
países, contando desde já com Timor.

_______________________

Notas
1
Graça Aranha, Chanaan, Rio, Garnier, 1902.
2
Sílvio Romero, O Elemento Português no Brasil, Lisboa, Tipogra-
fia da Companhia Nacional Editora, 1902.
3
Neide Almeida Fiori, "A cultura luso-brasileira ameaçada? Con-
trovérsias dos tempos da Segunda Guerra Mundial", in Dinâmicas
Multiculturais, Novas Faces, Outros Olhares, Actas do III Congres-
so Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, II Vol., Lisboa, 1996,
p. 621 e segts.
4
Henri Lefebvre, Le Marxisme, Paris, PUF, 1968, p. 39.
5
Edson Nery da Fonseca, "Gilberto Freyre: Conciliador de contrá-
rios", in Ciência e Trópico, nº 2, Recife, Julho-Dezembro de 1987,
p. 171.
6
Fernando Neves, Negritude, Independência, Revolução, Paris,
ETC., 1975.
7
Fernando Neves, Ibidem, pp. 139-140.
8
Apud Eduardo dos Santos, A Negritude e a Luta pelas Indepen-
dências na África Portuguesa, Lisboa, Minerva, 1975, p. 36.
9
Eduardo dos Santos, Ibidem, p. 38.
10
Eduardo dos Santos, Ibidem, p. 30.
11
Gilberto Freyre, O Brasil em face das Áfricas Negras e Mestiças,
Lisboa, 1963, p.
12
Jorge Borges de Macedo, "Questões sobre a Cultura Portugue-
sa", Revista Icalp, nº 4, Março de 1986, p. 72.
13
Adriano Moreira, "O futuro da população de Expressão Portu-
guesa (o Luso-tropicalismo hoje)", in Ciência e Trópico, Recife, nº
1, Junho /Julho, 1990, p. 51.
14
Fernando Cristóvão, Notícias e Problemas da Pátria da Língua, 2ª
ed., Lisboa, Icalp, 1987.

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Relendo Gilberto Freyre: o Contexto do
Romance Os Dois Irmãos de Germano Almeida

José Carlos Venâncio – rop88985@mail.telepac.pt


Sociólogo/Antropólogo – Universidade da Beira Interior – Portugal

O presente artigo tem por objeto o es- da Academia"), de que apenas se publicaram
tudo do contexto social e estético da obra ro- dois números por interdição das autoridades
manesca do escritor cabo-verdiano Germano coloniais. Este grupo passou à história das le-
Almeida. Dar-se-á especial relevo ao roman- tras cabo-verdianas com o nome de "geração
ce Os Dois Irmãos (Lisboa 1995; 1998), con- de 40" e nele destacou-se, conquanto à data
frontando o contexto social que o legitima, da publicação fosse já estudante de medicina
em termos estéticos, com a leitura que Gil- em Lisboa, o escritor Henrique Teixeira de
berto Freyre fizera da realidade cabo-verdiana Sousa, de certa forma o patrono ideológico
há cerca de cinqüenta anos, no seu livro Aven- do grupo (Venâncio 1992: 20). Afastando-se
tura e Rotina: Sugestões de uma Viagem à Pro- do fatalismo e da resignação da geração dos
cura das Constantes Portuguesas de Carácter "claridosos", para quem as difíceis condições
e Acção (Lisboa: Livros do Brasil s.d.). Mesmo de vida a que o arquipélago sujeitava as suas
que indiretamente, haverá ainda a ocasião gentes radicavam sobretudo na sua geografia,
para se tecerem algumas referências aos dois entendida então como elemento catalisador
tipos de discurso em apreço, o romanesco e de uma identidade e de uma cabo-
o ensaístico, ainda que este apresente carac- verdianidade expiável no chamado
terísticas de literatura de viagens. evasionismo2, os da geração da Certeza pro-
Germano Almeida é um escritor cabo- curam ser politicamente mais engajados e
verdiano da nova geração. É hoje provavel- nesse fato residiu, aliás, a proibição da sua
mente o escritor cabo-verdiano mais conhe- publicação por parte das autoridades coloni-
cido em Portugal. Os seus romances têm sido ais. Diferentemente dos "claridosos", respon-
publicados pela Editorial Caminho, uma das sabilizaram, mesmo que timidamente, o sis-
maiores editoras do país, numa coleção que, tema político vigente pelo statu quo do
ao longo dos anos, tem vindo a granjear pres- arquipélago.
tígio no panorama literário português. Refi- Outras diferenças poderão ainda ser
ro-me à coleção Uma Terra sem Amos, onde apontadas aos dois grupos ou gerações. A da
tem igualmente publicado Mia Couto, outro Claridade teve particulares afeições pela ex-
escritor lusófono, de origem moçambicana, periência da revista Presença, sem que, com
igualmente conhecido. isso, os seus membros descurassem a leitura
Germano Almeida trouxe com o seu pri- do semanário Diabo (cf. entrevista a Manuel
meiro romance, O Testamento do Sr. Lopes in Venâncio 1992: 69), que, enquanto
Napumoceno da Silva Araújo, publicado ini- jornal de crítica literária e artística, foi mais
cialmente em Cabo Verde 1 e depois em Lis- heterodoxo do que a Presença. Pois nele tan-
boa (1991), um novo alento à literatura cabo- to colaboraram presencistas, neo-realistas,
verdiana, continuando embora a tradição da como até figuras ligadas ao integralismo lusi-
Claridade, revista de arte e letras, cujo pri- tano, tais como Antônio Sardinha. A par des-
meiro número foi publicado em 1936 e, à sua tas influências, vindas de Portugal, os
volta, reuniu nomes como o de Baltasar Lopes, "claridosos" foram ainda influenciados pelo
Jorge Barbosa e Manuel Lopes. As conquistas modernismo brasileiro, mormente pelo cha-
estéticas deste movimento, por vezes apeli- mado "romance do Nordeste". Menos
dado de "claridoso", foram posteriormente prolífero em influências foi o grupo da Certe-
continuadas, salvaguardadas as diferenças za, mantendo-se fiel ao ideário neo-realista
adiante apontadas, pelos jovens liceais que (Ferreira 1977: I/45; Venâncio 1992: 20).
estiveram na origem da revista Certeza ("Fôlha A grande diferença, porém, entre os

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dois grupos ou gerações não reside tanto nas suas tes romances, às tendências estéticas experimentadas,
filiações estético-ideológicas em nível externo, mas, a seu tempo, pela sua geração, não deixou de ser
sim, na interpretação que fizeram do destino cabo- notória a aproximação de Teixeira de Sousa do ideário
verdiano, eventualmente sob alguma influência des- político do Partido Africano para a Independência de
sas filiações. Olhando ambas Cabo Verde a partir de Cabo Verde – PAICV, 5 o que é sobretudo visível nos
dentro da natureza humana e social do arquipélago, últimos romances, sem que, contudo, deles se possa
donde emerge – aliás – a autenticidade estética de inferir o entendimento de Cabo Verde como uma re-
ambos os olhares, Certeza afastou-se do grupo da Cla- alidade africana, uma das tendências interpretativas
ridade ao posicionar-se, mesmo que timidamente, da cabo-verdianidade, sustentada, como vimos, pelo
como antievasionista, o topos que, mais tarde, se cons- menos até certo momento, pelo PAICV, enquanto
tituirá como uma das bandeiras da "geração de 50", a herança ideológica de Amílcar Cabral.
"geração nacionalista". Este é, em traços gerais, o ambiente estético-
A ruptura propriamente dita em relação à tra- literário em que emerge O testamento do Sr.
dição "claridosa" é, pois, ensaiada mais tarde nas pá- Napumoceno da Silva Araújo. A breve referência que
ginas do boletim Cabo Verde, publicado na cidade da fiz ao arquitexto cabo-verdiano permite-nos, pois,
Praia, no qual Amílcar Cabral fizera, em 1952, (28:5- localizar a obra de Germano Almeida e entender os
8) apelo a uma literatura politicamente mais empe- motivos que me levaram, no início do texto, a consi-
nhada e onde Gabriel Mariano e Ovídio Martins, desta derar o romance em apreço como uma lufada de ar
feita no primeiro e único número do Suplemento Cul- fresco nas letras cabo-verdianas. Seguiram-se outros
tural do referido boletim, saído em 1958, publicaram títulos6 que vieram confirmar a promessa de O testa-
poemas onde era notória a influência do movimento mento do Sr. Napumoceno... que, como igualmente
nacionalista que, nessa altura, dominava a vida políti- tive a preocupação de frisar, não é propriamente de
ca e social do continente africano. Um ano depois, ruptura em relação à tradição "claridosa". Desses títu-
em 1959, coube aos que deram voz ao Boletim dos los, por razões de apreciação estética e por motivos
Alunos do Liceu Gil Eanes percorrer, a partir do que se prendem com o objeto do presente texto, des-
Mindelo, os mesmos trilhos estético-políticos. tacarei dois: O meu Poeta (Lisboa 1992) 7 e Os Dois
O antievasionismo acentua-se com essa gera- Irmãos, sobre o qual, aliás, me debruçarei, em por-
ção. "Gritarei / Berrarei / Matarei / Não vou para menor, no âmbito desta análise.
Pasárgada", versos de Ovídio Martins, confirmam-no. O meu Poeta é, na minha apreciação, o melhor
Mas mais. Com esses jovens, certamente por impulso romance do autor. Confirma a inovação estética anun-
de Amílcar Cabral, o rumo da cabo-verdianidade, ciada com O Testamento do Sr. Napumoceno... Nele
enquanto interpretação do destino cabo-verdiano, o autor expõe, em termos satíricos, senão sarcásticos,
começa a passar por África, pelo continente africa- a postura dos governantes e das elites culturais cabo-
no3 . Conseqüentemente ganha expressividade a verdianas após a independência. Sendo uma crítica
dualidade entre a tradição estético-política inaugura- ao entendimento da cultura e da literatura pelo pris-
da pelos "claridosos" e, de certa forma, continuada ma da política, do politicamente correto, posição apa-
pelos da "geração de 40", e a posição da "geração de rentemente defendida pelo PAICV enquanto go-
50", no fim, a "geração nacionalista", como referi, vin- verno, o romance não deixa de ser igualmente uma
do muitos dos seus elementos a integrar as fileiras do crítica, conquanto sutil, mas não menos mordaz por
Partido Africano para a Independência da Guiné e isso, ao regime de partido único. A vítima, ou seja, o
Cabo Verde – PAIGC, o movimento que conduziu, anti-herói do romance é o meu poeta. De tão perso-
quase que exclusivamente, a luta de libertação nos nificado que é, pensaram alguns críticos literários, com
dois países. alguns conhecimentos da vida cultural e política do
Entretanto Teixeira de Sousa manteve acesa até arquipélago, que tal personagem teria um nome civil.
aos anos 90 a chama da Certeza. É, após a indepen- Das conversas que mantive com o autor a esse res-
dência e, pelo menos, durante uma década, o roman- peito, negou-me tal fato.
cista cabo-verdiano de referência. Deve-se-lhe um Um dos excertos mais elucidativos do que aca-
conjunto de romances, escritos e publicados numa bei de mencionar é provavelmente o que a seguir
fase avançada da vida. Refiro-me a romances como transcreverei:
Ilhéu de Contenda (Lisboa s.d.), Capitão de Mar e Ter- "Pelo caminho fui-lhe contando que o Meu Po-
ra (Lisboa 1984), Xaguate (Lisboa 1987), Djunga (Lis- eta pretendia ser uma espécie de embaixador
boa 1990), Na Ribeira de Deus (Lisboa 1992) e Entre itinerante da nossa cultura, quer através da própria
Duas Bandeiras (1994), todos publicados pelas Publi- sua pessoa, quer através da sua poesia e da música
cações Europa-América. 4 Dando continuidade, nes- nacional, até porque descobrira que arranhava alguns

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instrumentos. Claro que vai ser, disse logo Vasco. Lem- parado contra João a uma distância de 20 metros. Ain-
bra-te que politicamente a nossa cultura nasceu com da segundo os autos, João ter-se-á prostrado de ime-
a independência ou pelo menos só a partir daquele diato, o que levou as testemunhas oculares a pensa-
marco ela é válida. Assim, um texto, um poema, uma rem que fora tal devido ao tiro. Tanto mais que, depois
música valem em beleza, graça e harmonia e até em de João estar no chão, começou a sangrar do ouvido
utilidade à medida que glorificam o regime, atacam o direito. A autópsia, porém, não confirmou o veredic-
colonialismo ou louvam os dirigentes. Por isso o teu to das testemunhas oculares. "O relatório (...) acabou
Poeta tem largo futuro à sua frente, até porque de finalmente por dar como assente que João não tinha
burro nada tem" (p. 196). sofrido qualquer agressão com arma de fogo" (...)
A ironia implícita nesse excerto é de uma ri- (p.173).
queza semântica e de uma sutileza espantosa. Mostra Pouco interessam estes pormenores para o al-
e critica a superficialidade inerente a um olhar sobre cance estético da obra. Eles mais não são do que
o fenômeno cultural e literário pelo ângulo político. mestrias do autor para enriquecer o enredo do ro-
Evidentemente que há um grande exagero na mance, relevando, por oposição, a verdadeira trama
caricaturização da postura estética em questão, da res- da história que narra: um fratricídio que é mais devi-
ponsabilidade do Estado pós-colonial, cujo governo do à comunidade que envolve os dois irmãos do que
era liderado pelo PAICV. Germano Almeida procura propriamente ao fratricida. Em termos sociológicos
ridicularizar o que se poderá considerar como estéti- poder-se-ia dizer que as razões sociais que explicam
ca marxista, que, estando presente em movimentos o ato de André, explicariam igualmente o seu suicí-
como o realismo socialista, o neo-realismo, influen- dio, caso ele tivesse optado por essa via. Estaríamos
ciou, como vimos, a seu tempo, a "geração de 40" e o então perante o que Durkheim designa por suicídio
grupo da Certeza, [por via do neo-realismo português altruísta.
(cf. entrevista de Teixeira de Sousa in Venâncio 1992: Enquanto fratricídio socialmente imputável, o
73 e segs.)], e que foi perpetuada, para além da inde- julgamento de André foi inconclusivo. Melhor, o au-
pendência, pela ação de alguns dos literatos da "gera- tor, trazendo a sociedade de André para dentro da
ção nacionalista". Distanciando-se de tal postura es- textura narrativa, não teve outra opção, sob perigo
tética, acaba também por se afastar da orientação de empobrecer semanticamente o texto, senão dei-
política então dominante e é, com este duplo senti- xar em suspenso a decisão do tribunal e do juiz sobre
do, que O Meu Poeta consolida, numa feliz simbiose a culpabilidade de André pelo ato que cometeu. Sig-
entre forma e conteúdo, a renovação anunciada com nifica este procedimento que muita da valorização
O Testamento do Sr. Napumoceno... estética de Os Dois Irmãos reside assim na expectati-
Os Dois Irmãos continua o percurso inaugura- va e nos valores da sociedade de André. Trata-se de
do pel'O testamento... O enredo do romance anda à um romance social, remetendo para um certo tipo de
volta de um fratricídio causado por uma relação adúl- sociedade, que, não obstante o arquipélago cabo-
tera de um dos irmãos, João, com a mulher do outro, verdiano pertencer em termos de coordenadas geo-
André, que entretanto vivia emigrado em Portugal. gráficas ao continente africano, a sua sociedade e a
Pelas palavras iniciais do autor, o acontecimento ter- sua cultura não podem, de modo algum, ser tidas
se-á, na verdade, passado na ilha de Santiago "pelos como tipicamente africanas ou, talvez melhor, não
anos de 1976". A pressão social exercida sobre André correspondem totalmente ao padrão cultural reinan-
era intensa, vinda nomeadamente da parte do pró- te no continente.
prio pai, que praticamente o ignorou por ele tardar A constelação social que está por detrás do ato
em repor a honra desfeita, o que só seria consumado de André cumpre o que alguns antropólogos, anglo-
com o assassínio do irmão adúltero, como, na reali- saxônicos sobretudo, designam por síndrome da honra
dade, veio a acontecer. e vergonha, com que procuram justificar a área do
Evidentemente que, pela descrição do autor, fei- mediterrâneo como uma unidade cultural (Gilmore
ta sobre o decurso do julgamento a que André foi 1987). Independentemente da justificada crítica a esta
submetido, a causa direta da morte do João não fo- teoria ou proposição teórica, por invocação nomea-
ram as facadas que o irmão lhe deu. Depois de esfa- damente da postura reducionista e de dominação que
queado, levantou-se e dirigiu-se para a frente da casa lhe subjaz (Cabral 1991: 69 e segs.), o certo é que,
dos pais, onde começou a blasfemar contra o próprio enquanto elemento de contextualização e de com-
pai, acusando-o do sucedido, o que fazia acompa- paração (nomeadamente com o universo africano),
nhar com o arremesso de pedras. Dos autos constava não deixa de ser útil. Permite-nos, aliás, definir o con-
que, nesse momento, André, que se refugiara na casa texto social para que remete o romance Os Dois Ir-
dos pais, terá saído com uma arma de caça e terá dis- mãos.

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Nunca, na verdade, na África, isto é, no mundo Osvaldo P. Maurício e de Antônio J. Silva. 10
rural africano, como é o do romance em apreço, da- A morna, a coladera, a coexistência de instru-
ria azo a que uma relação de adultério tivesse tal des- mentos musicais como os ferrinhos e a gaita de foles,
fecho. É essa, aliás, a opinião de Asúa Altuna (1985), ambos portugueses, com o batuque africano na Ilha
autor que alia a sua experiência, enquanto missioná- de Santiago (Mariano 1991: 48), assim como tantos
rio, ao estudo das culturas banto, junto das quais exer- outros elementos culturais são outras provas do cará-
ce a sua atividade, e que, a esse propósito, nos diz ter híbrido das ilhas. O crioulo, não obstante as varia-
que são (...) "exceção os casos em que o marido ciu- ções que regista de ilha para ilha, das ilhas do Barla-
mento mata a esposa" (p. 345). Vejamos, porém, o vento para as do Sotavento, é outro elemento distintivo
que nos diz, em termos mais concretos, Antônio Fon- e culturalmente unificador do arquipélago. Trata-se
seca, um estudioso angolano, a propósito de adulté- de um mundo que, na sua hibridez, se tem reprodu-
rio entre os bakongo, povo do norte de Angola (os zido como tal, deixando antever, por essa razão, uma
protagonistas do chamado Reino do Congo), do qual grande força anímica.
é ele próprio originário: Foi esse mundo que Gilberto Freyre descreveu,
"Entre os kikongo (a designação dos bakongo em notas de viagem, no seu livro Aventura e Rotina:
através da língua que falam), o adultério pode ser re- Sugestões de uma Viagem à Procura das Constantes
solvido pelo pagamento de uma indenização por par- Portuguesas de Caráter e Ação. A viagem, a convite
te do sedutor ao marido ofendido. A esta multa cha- do então Ministro do Ultramar, Almirante Sarmento
ma-se kizumba ou kozi. Caso o marido não queira Rodrigues, inicia-se em agosto de 1951 e termina em
continuar com a mulher, tem direito à devolução par- fevereiro do ano seguinte. O prefácio data desse ano,
cial do mbongo (dote) dado" (Fonseca 1985: 66). isto é, de 1952, assinado pelo autor na sua casa de
Mesmo que tenhamos em conta o fato de os Apipucos, no Recife.
bakongo serem uma etnia onde vigora a filiação Enquanto viajante, a sua descrição de Cabo
matrilinear, podendo-se, por essa razão, levantar a Verde e doutras possessões coloniais portuguesas foi
suspeita de que entre etnias com sistemas de filiação sobretudo impressionista. As suas observações não têm
patrilineares, mormente entre as islamizadas,8 serem outra legitimidade do que a que deriva do fato de ter
mais evidentes as formas de organização social patri- olhado a realidade humana e social em apreço de
arcais e, como tal, o adultério assumir uma significa- fora para dentro, o que seria, aliás, de esperar. Nem
ção próxima da que tem na Europa do sul, o certo é outro propósito, que não esse, o terá movido nessa
que, de modo algum, o adultério na África, enquanto longa viagem pelas então possessões portuguesas à
fator infringidor da honra do marido, assume propor- procura das constantes culturais e antropológicas dessa
ções próximas do que se passa na Europa. Nessa me- presença lusa. Fê-lo sob uma perspectiva ética, em
dida, a honra ofendida de André é-o em função de muito determinada pela sua vivência pernambucana
uma constelação de valores que têm muito mais a ver ou, talvez melhor, do Nordeste canavieiro, a faixa li-
com o ambiente europeu do que com o africano. toral que se estende para o interior numa distância
Aliás, à vigência de tais valores, sem que de não superior a 50 km. Esse compromisso da sua escri-
modo algum tenhamos a pretensão de olhar Cabo ta e da construção teórica que ensaia com a matriz
Verde como uma unidade cultural totalmente homo- social e histórica nordestina é, assim, recorrente em
gênea, corresponde todo um conjunto de formas hí- toda a sua obra, mesmo naquela que se refere espe-
bridas da chamada cultura material, que passam pela cificamente à realidade brasileira, isto é, aos outros
coexistência entre o moinho (europeu) e o pilão (afri- espaços brasileiros que não o nordestino.
cano), que são grandes almofarizes de madeira, 9 cujo As suas impressões do arquipélago, circunscri-
movimento de trituração se processa num vaivém ver- tas às ilhas de Santiago, São Vicente e Sal, chocaram a
tical. sensibilidade dos intelectuais cabo-verdianos. Os co-
Outros elementos de ordem material poderiam mentários que teceu em relação ao grau de
ser adicionados ao moinho para ilustrar de que forma mestiçagem, considerando os cabo-verdianos mais
Cabo Verde sendo, em termos geográficos, parte da africanos do que europeus, a desconsideração do cri-
África, o não é completamente em termos culturais. oulo, enquanto meio de expressão cultural e
A agricultura em terraços, modo de apropriação e de identitário que é hoje, aos nossos olhos, tão digno
aproveitamento do terreno arável em declive que, como o português ou outro idioma qualquer, e as re-
sendo universal, no caso de Cabo Verde, tudo nos ferências à não existência de uma arte popular, uma
leva a pensar que se trata de uma herança européia, (...) "arte popular que seja característica do arquipéla-
mediterrânica, a mesma que se reflete nos terraços go" (...) (p. 252), foram, no fundamental, as observa-
da ilha da Madeira. Esta é, por exemplo, a opinião de ções que feriram a sensibilidade cabo-verdiana. E a

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resposta não tardou. Baltasar Lopes, ausente do ar- tempo houve uma separação rígida entre os objetos
quipélago quando da visita, respondeu-lhe aos mi- de estudo e os instrumentos metodológicos da Socio-
crofones da Rádio Barlavento com apontamentos logia e da Antropologia. Enquanto a primeira discipli-
posteriormente publicados em opúsculo (Lopes 1956). na se dedicava ao estudo de sociedades complexas,
A resposta consistiu fundamentalmente em demons- modernas e industrializadas, constituíam as socieda-
trar a especificidade cultural e social cabo-verdiana, des primitivas o objeto de estudo privilegiado da An-
que, na verdade, passou, por várias razões, desperce- tropologia. "With regard to sociology (...) My work is
bida a Gilberto Freyre. De significativo teve ainda a entirely in anthropology" (...), responde Herskovits a
resposta o fato de ter partido de um dos protagonistas Gilberto Freyre.12
do movimento "claridoso", o movimento que, para No rol de interesses da Antropologia cabia ou,
(re)descobrir a identidade cabo-verdiana, se inspirara talvez melhor, começou a ser igualmente contempla-
no regionalismo nordestino, do qual se destacara a da, por essa altura, a diáspora africana no Novo Mun-
figura de Freyre. Para o grupo da Claridade, as seme- do, alargamento que se deu em muito por iniciativa
lhanças entre as realidades cabo-verdiana e nordesti- do próprio Herskovits, assim como de sociólogos como
na eram, pois, evidentes. Robert Park (1864-1944), o grande impulsionador da
Uma das explicações do comportamento de chamada Escola de Chicago, e do seu discípulo,
Freyre residirá na expectativa que alimentou em rela- Donald Pierson, autor do livro Negroes in Brazil (1942),
ção ao grau de mestiçagem em Cabo Verde. Como o mas que, de qualquer modo, não estudaram propria-
próprio confessa, tinham-lhe dito, pois, que iria (...) mente as sobrevivências culturais dos negros no Novo
"encontrar em Cabo Verde uma paisagem e uma po- Mundo, mas sim as relações raciais despoletadas pela
pulação semelhante às de certas áreas do Nordeste" sua presença no Novo Mundo.
(...) (p. 239). O Nordeste em referência é o da zona De fora, ainda por alguns anos, ficaram as soci-
canavieira de Pernambuco e da Paraíba, onde o grau edades híbridas, isto é, as sociedades onde se verifi-
de miscigenação tende mais para o claro do que para cava uma mistura de culturas e raças relativamente
o escuro, o que é, na verdade, diverso da cor de pele consolidadas e que, como tal, se reproduziam. A abor-
dominante na Ilha de Santiago. dagem a essas sociedades, entendidas, afinal, como
Mas creio que não foram apenas as expectati- sociedades sem futuro, era, por essas mesmas razões,
vas que trazia de Lisboa que o terão levado a inter- feita a partir do ponto de vista ocidental, a cuja cultu-
pretar a sociedade e a cultura cabo-verdianas da for- ra os processos de miscigenação deveriam, em prin-
ma que o fez. Para além da coloração de pele, cípio, ser reversíveis. Nas palavras que Freyre dedi-
referiu-se igualmente, em termos pouco lisonjeiros, cou a Cabo Verde é, pois, possível detectar esse
ao crioulo, a língua de berço em Cabo Verde. Ilídio mesmo princípio orientador. Surge de forma explícita
do Amaral, em conferência proferida na Sociedade em Freyre, e dele não está completamente livre, o
de Geografia de Lisboa, no âmbito do colóquio "Gil- estudo, entretanto tornado clássico, de Michel Leiris
berto Freyre: o Homem, a Obra e a Teoria Social"11, sobre os Contacts de Civilizations en Martinique et
apresentou como justificação de tal inadvertência o Guadeloupe (Paris: Unesco 1955). Insere-se o mes-
fato de não haver na altura uma definição de crioulo mo numa série de estudos patrocinados pela Unesco
enquanto sistema lingüístico. E, na verdade, ao longo (programa de 1952), com o objetivo de se fazer "un
do livro, Freyre apenas emprega o termo crioulo para inventaire critique des méthodes et des techniques
a caracterização (bio-cultural) das pessoas, fazendo- employées pour faciliter l'intégration sociale des
o, aliás, por derivação do sentido que o termo assu- groupes qui ne participent pas pleinement à la vie de
me ou assumiu em algumas partes do continente la communauté nationale" (...) (in préface). Especifica-
americano, mormente no Brasil. mente a propósito da reversibilidade dos processos
Para além dessa, existe ainda uma outra expli- de miscigenação à matriz européia ou ocidental, diz-
cação que não será de somenos importância. Tem esta se ainda no mesmo prefácio:
a ver com o fato de as Ciências Sociais, à altura, não "Il ne suffit pas de s'étonner que les descendants
disporem nem da postura epistemológica, nem dos des esclaves libérés en 1848 soient devenus en trois
instrumentos metodológicos adequados ao estudo e générations des citoyens au même titre que les
à valorização de sociedades socioculturalmente híbri- Normands, les Bourguignons ou les Picards, il faut
das, como era e é Cabo Verde. Na correspondência encore examiner les étapes de cette transformation
entre Melville J. Herskovits e Gilberto Freyre, compi- et, en étudiant la situation présente dans un esprit
lada por Pedro Borges Graça, é possível verificar, so- scientifique, évaluer la nature et l'étendue d'une
bretudo numa carta de Herskovits (datada de 6 de telle assimilation" (negrito meu).
agosto de 1935), como, na verdade, durante muito Postura diferente teve, anos mais tarde, Manu-

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el Ferreira quando publicou o seu livro A Aventura 1
Editado em Cabo Verde, pela Ilhéu Editora em 1989.
Crioula (1967). Abordou por dentro a cultura cabo-
2
Evasionismo traduz-se, no contexto cabo-verdiano, na conside-
ração da partida, eventualmente da emigração, como a panacéia
verdiana, fato, aliás, reconhecido pelo prefaciador,
dos males que afligiam as gentes do arquipélago. Trata-se de um
Baltasar Lopes. E fê-lo, por conseqüência, a partir de sentimento recorrente em quase todos os "claridosos" e que teve
um ponto de vista epistemológico que diferiu das pers- em Baltasar Lopes, no seu poema "Itinerário para Pasárgada", es-
pectivas que orientaram as observações e aproxima- crito sob influência do poeta brasileiro Manuel Bandeira (autor do
poema "Vou-me embora pra Pasárgada"), um dos mais altos mo-
ções quer de Gilberto Freyre (em relação a Cabo Ver-
mentos doutrinários.
de), quer de Michel Leiris (sobre duas ilhas das 3
Um dos pioneiros desse percurso terá sido Aguinaldo Fonseca
Antilhas). Diríamos, aliás, que a atitude de Manuel que, em 1951, quando já se encontrava em Portugal, publica Li-
Ferreira se aproxima da perspectiva epistemológica nha do Horizonte. Excetua-se, nessa apreciação, a expressão de-
dos chamados Cultural Studies. E essa aproximação vida a Pedro Cardoso, poeta da "geração nativista", que, mais por
razões sentimentais do que por conotação política, invocou a Áfri-
dá-se por dois lados; pelo que é consubstanciado pela ca num dos versos do Jardim das Hespérides (1926) (Cf. Ferreira
resistência de uma subcultura [que não é operária, 1977: I/48).
como aconteceu em dada fase do desenvolvimento 4
Essa série de publicações foi antecedida pela publicação de uma
dos British Cultural Studies (Kellner 1997), mas, sim, coletânea de contos, Contra Mar e Vento (Lisboa s.d.), onde o au-
tor republicou o conto Dragão e eu, um conto fundacionista, em
"crioula" e pela valorização das manifestações popu-
termos estéticos, do que veio, na verdade, a ser a "geração de 40".
lares, ou seja, pela inclusão no estudo de manifesta- 5
Sigla que o PAIGC adaptou em Cabo Verde após o golpe de Esta-
ções artísticas e culturais que não pertencem ao do- do de João Bernardo Vieira (Nino Vieira) na Guiné-Bissau, a 14 de
mínio da alta cultura, onde geralmente gravitam os novembro de 1980. Até aí o PAIGC era o partido dirigente dos
interesses das teoria e ciência literárias. dois países, situação que, com o golpe de Estado e com o corte de
relações diplomáticas entre os dois países, naturalmente se alte-
O ensaio de Manuel Ferreira antecipou-se igual- rou.
mente à postura que o pós-modernismo 6
O Dia das Calças Roladas (Mindelo: Ilhéu Editora 1992), A Ilha
(inclusivamente os Cultural Studies, desta feita influ- Fantástica (Lisboa: Caminho 1994), Estórias de Dentro de Casa (Lis-
enciados pelos paradigmas pós-modernistas ou pós- boa: Caminho 1996) e A Família Trago (Lisboa: Caminho 1998).
fordistas) tem vindo a desenvolver em relação à valo-
7
Igualmente publicado pela Ilhéu Editora.
rização do que é culturalmente diferente e, por vezes,
8
É, por exemplo, o caso dos Mandingas (mormente entre os des-
cendentes do Reino de Pakao), descritos por Schaffer e Cooper
marginal. No cruzamento de culturas e gentes que a (1987). Dizem estes autores: como (...) "many peoples, the
globalização proporciona ou condiciona e a que os Mandinko have prohibitions against incest and adultery. Adulterers
paradigmas pós-modernistas procuram dar resposta, are beaten or fined, although in some cases they are not punished
seria hoje, pois, impensável não valorizar o percurso except for the stigma society attaches to them. The punishment
for adultery in previous centuries was more drastic, ranging from
identitário cabo-verdiano (e outros congéneres), não enslavement (...) to execution if the adulterer were a slave or poor
dar a devida atenção à sua crioulofonia. Aí reside a person and the partner of higher rank (...)" (p. 85). Nada é dito
especificidade da sua identidade, fruto de um con- quanto ao fato de ser o "humilhado" a exercer a represália como
texto social e estético que, informando o romance Os forma de lavar a sua honra, como, na realidade, acontece com o
síndrome da honra e vergonha da "cultura mediterrânica".
Dois Irmãos , igualmente o legitima como cabo- 9
Sendo raros em Portugal, são usuais na ilha de Porto Santo, onde
verdiano. são designados por pias ou cochos. P Pe. Eduardo Pereira conside-
A título de conclusão, diria que a legitimação rou o cocho como um "vestígio seguro da influência africana na-
social e estética de Os Dois Irmãos, que não é euro- quela ilha". Cf. Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e
Benjamim Pereira, 1983, Tecnologia Tradicional Portuguesa: Siste-
péia nem africana, mas, sim, cabo-verdiana, no que
mas de Moagem, Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Cien-
se configura a particularidade do arquipélago no sis- tífica: 22.
tema-mundo, não desvaloriza, numa relação de cau- 10
In Breve Historial sobre Conservação de Solos e Água (CSA) em
salidade directa, as observações e as descrições de Santo Antão, in Atas do 1º Seminário Nacional de Conservação de
Gilberto Freyre em Aventura e Rotina. Estas são fruto Solos e Água (Vila da Ribeira Grande, Santo Antão, de 9 a 12 de
Novembro de 1987), editadas por Evert Kloosterboer, Wageningen
de uma época, pelo que dificilmente se poderá esta- 1988, pp. 7 e segs. Agradeço ao Prof. Ilídio do Amaral as informa-
belecer entre os textos em apreço relações de exclu- ções que me prestou a respeito desta matéria, mormente a indi-
sividade ou de complementaridade. Creio ter, contu- cação bibliográfica que citei.
do, contribuído para uma releitura das apreciações 11
O colóquio teve lugar no dia 28 de Abril de 2000. A sua organi-
de Freyre sobre Cabo Verde, apreciações que tanta zação coube ao Centro Português de Estudos do Sudeste Asiático
e destinou-se a comemorar o 1º centenário do nascimento de
polêmica geraram e, provavelmente, continuarão a Freyre.
gerar. 12
O estudo de Pedro Borges Graça intitula-se Gilberto Freyre na
Correspondência de Melville J. Herskovits: o Luso-tropicalismo Fren-
_______________________ te ao Afro-americanismo, in Adriano Moreira e José Carlos.

Notas Bibliografia

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


41
ASÚA ALTUNA, P. Raul Ruiz. Cultura tradicional banto. Luanda:
Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, 1985.
CRISTÓVÃO, Fernando. Introdução: para uma teoria da literatura
de viagens. In: CRISTÓVÃO, Fernando. Condicionantes cultu-
rais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Lisboa:
Cosmos, 1999. p.13-52.
FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa.
Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.
FONSECA, António. Sobre os Kikongos de Angola. Luanda: União
dos Escritores Angolanos, 1985.
GONÇALVES, António Custódio. Questões de antropologia social
e cultural. Porto: Afrontamento, 1997.
KELLNER, Douglas. Critical theory and cultural studies: the missed
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Londres: Sage Publications, 1997. p.12-41.
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VENÂNCIO, José Carlos. Literatura e poder na África lusófona. Lis-
boa: Ministério da Educação / ICALP, 1992.

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42
Sobre O Mundo que o Português Criou: Reflexões
no Limiar do Século XXI

Ilídio do Amaral
Geógrafo – Universidade de Lisboa – Portugal

"(...) Mundo que, como conjunto de valores EUA, Venezuela), africanos (África do Sul e
essenciais de cultura, como realidade psico- outros) e australiano. De modo idêntico po-
social, continua a existir. demos dizer de outras diásporas, como ser-
Sobrevive à desarticulação do império vem de exemplos a brasileira e a
simplesmente político. Resiste à pressão de
caboverdiana. Do segundo caso citamos as co-
outros impérios meramente econômicos ou
políticos" (G. Freyre, O Mundo que o Português munidades residuais do Oriente, em Goa,
Criou, Lisboa, 1940, p. 30). Damão e Diu (que foram enclaves coloniais
na margem ocidental da Índia até 1961), na
Em Lisboa, a 17 de Julho de 1996, foi cidade de Macau (no sul da China, no estuá-
constituída, formalmente, a Comunidade de rio do Rio das Pérolas), e de Timor Leste (par-
Países de Língua Portuguesa (CPLP), engloban- te de uma ilha entre a Indonésia e a Austrália,
do, referidas por ordem alfabética, as Repú- muito mais próxima da primeira do que da
blicas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné- segunda).
Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Timor Leste, antiga colônia portuguesa
Príncipe. (área global de 18 899 km 2, compreendendo
São cinco estados africanos, dois dos a parte oriental da ilha, o enclave de Oe-Cusse
quais microinsulares, e um sul-americano, de na outra parte, a que pertence à Indonésia, a
grandeza subcontinental, que foram partes de Ilha de Ataúro e o Ilheu Jaco; cerca de 875
um vasto império ultramarino, gerado a partir 000 habitantes em 1997) está na ordem do
dos séculos XV e XVI por uma metrópole euro- dia, pelos terríveis acontecimentos que aí ti-
ibérica (Portugal), que após as independênci- veram lugar há poucos meses. Ocupada pela
as das colónias africanas, em 1974 e 1975, e Indonésia nos últimos vinte e cinco anos (1974
a devolução de Macau à China, em dezem- a 1999), a maioria da população optou, por
bro passado, regressou, definitivamente, à sua referendo realizado em finais de agosto do ano
dimensão continental original, com duas re- passado, com a supervisão das Nações Uni-
giões autônomas arquipelágicas (Açores e das, pela autodeterminação, como forma de
Madeira). transição para a independência do mais jo-
Na sua diversidade de tamanhos e for- vem estado do Mundo: Timor Lorosae, isto é,
mas, bem como de importâncias econômica Timor-Terra do Sol nascente.
e política, têm de comum os alicerces históri- Infelizmente, as forças militares
cos da língua portuguesa, usada por cerca de indonésias estantes no território e grupos de
200 milhões de pessoas, e da lusitanidade. São timorenses afectos ao regime indonésio, com-
os povos do espaço lusófono que, num senti- pondo as "milícias" pró-integracionistas, não
do mais amplo, abarca também os núcleos de aceitaram os resultados e, em pouco tempo,
emigrantes de fala portuguesa residentes em mataram, pilharam e destruíram quanto
diversos países de outras línguas dos cinco quizeram e puderam, deixando o território
continentes, num valor global mal conheci- literalmente desvastado. Houve que constituir
do, mas que se sabe ser bastante elevado, e uma força militar internacional, com predo-
algumas comunidades residuais. minância australiana, pela proximidade com
Do primeiro caso são exemplos os im- Timor, para intervir no território, de modo a
portantes núcleos de portugueses e seus des- fazer parar a onda da barbárie que chocou os
cendentes em países europeus (Espanha, Fran- sentimentos de todo o mundo.
ça, Bélgica, Alemanha, Luxemburgo, Suíça, A ONU assumiu a sua administração,
Grã-Bretanha, etc.), americanos (Canadá, colocando em Díli, a capital timorense, um

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alto funcionário, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, (os de desenvolvimento humano elevado), de 65 a
que está a ser coadjuvado pelo Conselho Nacional da 130 (médio) e de 131 a 175 (baixo).
Resistência Timorense (CNRT), o qual tem como pre- No conjunto dos sete países da CPLP, seis dos
sidente o carismático Comandante Xanana Gusmão, quais situados na faixa tropical, agiganta-se o Brasil
ex-prisioneiro dos indonésios durante vários anos, e em tamanho e em volume populacional, pois tem
pela Igreja católica, representada pelos bispos D. cerca de 80 p.100 do total de um e de outro. Os
Ximenes Belo, de Díli, e D. Basílio Nascimento, de pouquíssimos índices do Quadro I suscitam as gran-
Baucau. des diferenças que vão do enorme país sul-america-
No tateamento de medidas para a reconstru- no ao microestado insular africano de São Tomé e
ção das estruturas físicas e recuperação das comuni- Príncipe. Em relação ao Índice de Desenvolvimento
dades humanas há uma que aqui pomos em evidên- Humano (IDH), apenas Portugal tem lugar no primei-
cia, defendida pelo CNRT: a reposição da língua ro escalão, o dos países de desenvolvimento humano
portuguesa como língua oficial e reforço dos laços com elevado, enquanto o Brasil, Cabo Verde e São Tomé e
Portugal. Bem aceito por uma pequena parte da po- Príncipe estão no segundo, de desenvolvimento hu-
pulação, sobretudo pelas pessoas que nasceram e vi- mano médio, e os restantes três no terceiro, de de-
veram sob o regime português, todavia não se mos- senvolvimento humano baixo.
tram tão favoráveis a isso muitos dos nascidos e
educados em tempos da ocupação indonésia, falan- Num mundo marcado pelo aceleramento dos
tes de tétum, uma língua franca entre os vários gru- processos de mundialização da economia, provoca-
pos etno-lingüísticos do território, e obrigatoriamen- do pela espantosa evolução tecnológica e pela
te escolarizados em bahasa , a língua nacional liberalização da política econômica, iniciada na dé-
indonésia, com aprendizagem do inglês. cada de 80, mas também dividido em grandes blocos
É natural que, numa primeira fase, de cinco a político-econômicos e outros agrupamentos regionais,
seis anos, o bahasa continue a ser utilizado no ensi- sobressaem os do Atlântico Norte.
no, para se evitarem as conseqüências negativas de De um lado está o conjunto de quinze estados
uma ruptura imediata, até porque existem os forma- da União Européia (UE), participantes de um projeto
dores e os instrumentos de lecionação preparados nes- de união econômica, política e social, verdadeira "Tor-
sa língua, particularmente livros de leitura e gramáti- re de Babel" reunindo países de várias línguas, de raízes
cas. Entretanto, é de esperar que a língua portuguesa germânica, anglo-saxônica, latina, grega e nórdica, mas
venha a recuperar o seu lugar em crescendo. tendo como veiculares predominantes a inglesa, a fran-
Mas há mesmo quem se pergunte até que pon- cesa e a alemã; e do outro lado a coligação aduaneira
to Portugal, um país que não é rico, nem proeminen- de três estados do Acordo de Livre Comércio da Amé-
te na teia de negócios internacionais, situado nos rica do Norte (Nafta), dois com predomínio da língua
antípodas, poderá ajudar o desenvolvimento, preten- inglesa e um de língua espanhola.
dido rápido, de Timor Lorosae, pequena parcela lo- Portugal, logicamente, está no primeiro conjun-
calizada entre a Indonésia e a Austrália. to. Com os seus 10 milhões de habitantes (volume
Relativamente ao Índice de Desenvolvimento populacional semelhante aos da Bélgica e da Grécia,
Humano (IDH), nos relatórios do Pnud os 175 países ficando entre o daquele e o da Suécia), na periferia
do Globo estão seriados em três escalões: de 1 a 64 meridional, ocupa o nono lugar dos membros da

QUADRO I – Dados estatísticos dos sete países da CPLP

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União Européia atual, que somam um total de cerca do Sul (Mercosul), visando acelerar o crescimento
de 372 milhões de habitantes: ao lado, cinco grandes econômico, reúne o Brasil, o único país de língua
(Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Espanha), portuguesa, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai e ain-
com populações entre cerca de 82 e 40 milhões de da a Bolívia e o Chile, como estados associados, to-
habitantes, estão dez pequenos cujas populações vão dos de língua espanhola. Em valores globais, assenta
dos 400 mil (Luxemburgo) a 16 milhões (Holanda). numa população de cerca de 230 milhões de habi-
À escala mundial, o volume demográfico não tantes que vive em 13,7 milhões de km 2; só o Brasil
só reflete o peso dos falantes de uma determinada tem perto de 71% dessa população e mais de metade
língua, mas também, quando associado a grande de- da área.
senvolvimento econômico e tecnológico, pode influ- Na África, apesar de numerosas tentativas de
enciar, em certa medida, a decisão política sobre pro- integrações regionais, como as da Comunidade Eco-
jetos de instituições comunitárias. Ora Portugal, pelas nômica da África Ocidental (Ceao), que tem assumi-
suas próprias particularidades e outras que lhe são do outras formas; da Comunidade Econômica dos
exteriores, não está no grupo dos poderosos e isso Estados da África Central (CEEAC); da Comunidade
traduz-se na secundarização dada à língua e cultura para o Desenvolvimento da África Austral (mais co-
portuguesas. nhecida pela sigla inglesa de SADC, inicialmente foi
A associação aduaneira da Nafta, apenas com uma simples Conferência, a SADCC), que visa a coo-
três membros, os EUA, o Canadá e o México, tem um peração entre os seus onze membros, dos quais ape-
mercado potencial de cerca de 394 milhões de habi- nas dois não são de língua oficial inglesa (por ordem
tantes, o que representa um total superior ao da União alfabética, África do Sul, Angola, Botsuana, Lesoto,
Européia. Na associação predomina a língua inglesa, Malavi, Moçambique, Namíbia, Suazilândia, Tanzânia,
na versão estado-unidense, e os EUA têm posição Zâmbia e Zimbábue); e outras, as instabilidades polí-
quase hegemônica, acrescida pelo fato de ser a gran- ticas, que muitas vezes têm degenerado em conflitos
de superpotência mundial, contra a qual se reforça a armados, as dificuldades do desenvolvimento econô-
coligação da UE. mico, os níveis extremos de pobreza não têm sido
Ambas as organizações tendem a crescer. A favoráveis à sobrevivência das integrações regionais
União Européia, inicialmente pensada para seis mem- e, muito menos, à formação de blocos capazes de
bros, os fundadores de 1957, tem sofrido sucessivos competir com os do Norte. Deste modo, o Atlântico
alargamentos com a adesão ou adição de outros paí- meridional continuará a ser como que um fosso, so-
ses, prevendo-se que, em futuro próximo, venham a bre o qual são raras as pontes de ligações econômicas
ser 27 membros (em números atuais, um total de Sul-Sul.
478,5 milhões de habitantes), dos quais a maioria será O estado insular saheliano de Cabo Verde e o
de países pequenos, com volumes populacionais abai- continental chuvoso de Guiné-Bissau, cujas indepen-
xo de 16 milhões de habitantes, contra apenas sete dências, em 1974 e 1975, tiveram o patronato de um
considerados grandes, cujas populações variam entre mesmo partido político (Partido Africano para a Inde-
cerca de 23 milhões (Roménia) e 82 milhões (Alema- pendência da Guiné e Cabo Verde – PAIGC), pouco
nha) de habitantes. Juntar-se-ão, assim, outras raízes ou nada têm hoje de comum, salvo a língua portu-
lingüísticas. A Nafta cresce por insuflação de riqueza guesa. Separados desde 1980, por rompimento dos
e, desde que passe a Pafta, por adesão de países do laços partidários, as trocas são mínimas. A democra-
Pacífico Norte, continuará em posição dianteira. cia caboverdeana tem evoluído serenamente e o
Ainda que apresentados, somente, os valores PAICV já foi substituído por um outro partido no po-
populacionais, estão implícitas as rivalidades econô- der, sem que disso resultassem perturbações na vida
micas dos dois grandes blocos, cujas actividades em- das ilhas. Já o mesmo não se pode dizer da Guiné-
presariais tendem para o gigantismo, que parece ser a Bissau, sede de dois golpes de estado, em 1980 e
opção inamovível das grandes economias actuais. 1999, o segundo dos quais com maior violência e
Entrementes, continua firme o expansionismo da lín- degradação total da economia e da vida social. O país,
gua inglesa na versão estado-unidense, e o way of life bastante pequeno (área total de 36.125 km 2), com
norte-americano vem sendo adaptado universalmen- uma larga faixa litoral insular e de terras baixas (8.125
te. km 2), freqüentemente inundada pelas marés e águas
Mantêm-se as diferenças entre o Norte desen- de estuários fluviais, está encravado entre dois outros
volvido e fortemente industrializado, onde impera o que foram colônias da França, 5 e 7 vezes maiores do
Grupo dos 7, e o Sul menos desenvolvido, endivida- que ele (Senegal e Guiné-Conacri). Para contrabalan-
do e dependente do primeiro, desprovido de blocos çar a sua economia, que é uma das mais pobres do
competitivos. Na América do Sul, o Mercado Comum continente africano, e a reforçar a sua posição políti-

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ca, tem procurado tirar partido das relações com os dos e a sua maior dependência em relação aos mais
seus vizinhos, membros da Comunidade de países de desenvolvidos; a exploração do espaço exterior com
língua francesa, e obter um lugar nesta associação. a utilização de satélites, as viagens à Lua e as pesqui-
Em várias ocasiões a Guiné-Bissau tem sido alvo sas interplanetárias; a tecnologia da miniaturização
de interferências do Senegal e da Guiné-Conacri, com aplicada em inúmeros instrumentos e aparelhos; as
inelutável apoio da França, desejosa de alargar a sua grandes descobertas médicas e farmacêuticas com
área de influência numa porção do continente que já fortes incidências no aumento da esperança de vida à
esteve sob o seu domínio. nascença, mas também a relação entre pobreza e
Na parte meridional da África ficam Angola e degradação do meio ambiente; os progressos explo-
Moçambique, dois grandes territórios separados um sivos dos meios de transporte e das telecomunicações;
do outro por larguras enormíssimas de territórios per- a globalização dos mercados; o fim da bipolaridade
tencentes a três países de língua oficial inglesa: política mundial com a queda do muro de Berlim e a
Zâmbia, Malavi e Zimbábue. Se Angola confina a norte hegemonia da democracia capitalista; o fim de certos
e leste com países de língua oficial francesa, em de- impérios e federações dando lugar ao aparecimento
gradação política e econômica (Congo-Brazzaville e de novos estados, com ressurgimento de nacionalis-
República Democrática do Congo), e a sul com um mos exacerbados, manifestações raciais e xenófobas;
muito estável, onde o inglês é a língua dominante os conflitos regionais em todos os cantos do mundo;
(Namíbia), Moçambique está completamente rodea- etc., etc.
do por países de língua oficial inglesa (Tanzânia, Quanto mais progride a mundialização da eco-
Malavi, Zâmbia, Zimbábué, África do Sul e nomia, quanto mais se acentua a tendência para a
Suazilândia), gozando de situações relativamente es- instauração de um estilo de vida global, mais se evi-
táveis, quando vistas à luz do que se passa na África, dencia um movimento contrário a essa
com os quais mantem trocas comerciais e culturais homogeneização, que se pode chamar de nacionalis-
importantes. Não admira pois que o seu governo ti- mo cultural – a diferenciação por meio da língua,
vesse procurado obter um lugar na Commonwealth das raízes históricas, da cultura – um dos desafios que
britânica. temos de saber entender para encontrar as melhores
Poderá parecer estranha a utilização de refe- soluções. E gostemos ou não, os índices numéricos,
rências demográficas e econômicas quando a nossa as referências descritivas, as intervenções de fundo
preocupação fundamental é a da língua e cultura, mas têm tido as marcas incontestáveis do país onde está
isso justifica-se pelo fato das primeiras existirem com sediada a ONU, organização internacional que tem
elevado grau de fiabilidade e serem facilmente com- em vista salvaguardar a paz e a segurança internacio-
paráveis, o que já não sucede com as informações nais e instituir entre as nações uma cooperação eco-
nos domínios lingüístico e cultural, mesmo quando nômica, social e cultural.
existem. Por outro lado, não esqueçamos que são cada Outros sinais evidentes, mais do quotidiano de
vez mais estreitas as relações entre evolução cada um de nós, traduzem as tendências hegemônicas
demográfica, crescimento econômico e afirmação lin- de uma língua e cultura que invadem todo o univer-
güística e cultural. so. Vejamos alguns exemplos de artigos de produção
Com todo o excurso anterior quizemos chamar em série, visíveis ou audíveis em todas as latitudes e
a atenção para o fato de, no limiar do século XXI, o longitudes, nos países mais desenvolvidos e nos me-
"Mundo que o português criou" estar a confrontar-se, nos desenvolvidos, nas aglomerações urbanas e nos
em todas as frentes, com investidas de processos de meios rurais, nos bairros ricos e nos bairros pobres:
globalização, que não são apenas os do setor econô- Coca-Cola, hamburger, jeans, jazz, rock and roll e pop.
mico, mas também os dos setores lingüístico e cultu- Na era da comunicação instantânea, as nossas crian-
ral. E estes são as bases de sobrevivência daquele ças aprendem mais rapidamente o léxico estranho da
Mundo particular. informática, todo ele em língua inglesa, do que o da
Se quisermos indicar alguns sinais sua língua materna: hardware, software, mainframe,
caracterizadores da segunda metade do século XX, bites, ram, CD, CD-ROM, bug, com a agravante de
depois da Segunda Guerra Mundial, teremos de algumas expressões corresponderem a abreviaturas
elencar, forçosamente, de várias categorias, a multi- esotéricas – CD provem de Compactdisk; Rom de
plicação de estados independentes, muitos deles Readonly memory; Ram de Random access memory;
microestados, empenhados na afirmação das suas pró- e bit e byte de Binary digit byte; www de World Wide
prias identidades culturais e nacionais, que implicam Web, para só citarmos algumas das mais usuais e que
também as lingüísticas e culturais; o crescimento estão na base da utilização de qualquer computador,
demográfico acelerado em países menos desenvolvi- o instrumento que, cada vez mais, constitui o prolon-

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gamento da nossa mão e da nossa memória, já para do Sul, confinante com sete países de língua espa-
não dizer da nossa presença-ausente. nhola (Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Paraguai,
Por via dos meios de transporte e de comunica- Argentina e Uruguai), aos quais temos de juntar o
ção modernos os povos do mundo têm sido aproxi- Equador, o Chile e mais três de outras línguas (Guiana-
mados cada vez mais uns dos outros, em todo o Glo- inglesa, Suriname-holandesa e Guiana Francesa, com
bo as distâncias de terra para terra, de indivíduo para os quais o Brasil confina a norte).
indivíduo tendem a ser encurtadas, graças ao uso de Excluídos os três últimos, de certo modo pode-
computadores e das redes a que estão conectados se tomar a América do Sul como uma réplica da Pe-
(com relevo para a Internet), o que faz com que o nínsula Ibérica, com as suas semelhanças e diferen-
telefone, o rádio transistorizado e o televisor percam ças, de onde partiram os argonautas e conquistadores
os espaços que detinham, ou se fundam com aqueles que mudaram a face do mundo nos séculos XV e XVI.
e mais as impressoras e máquinas de fax na indústria Vejamos algumas referências muito sintetizadas.
das telecomunicações. Portugal cresceu de um pequeno condado entre os
Foi propositada a utilização de palavras ingle- rios Douro e Minho, oferecido por soberano de al-
sas nos exemplos anteriormente referidos porquanto, guns reinos do norte da Península como dote de ca-
subjacentes a todos esses processos, superdinamizados samento, de uma filha bastarda, realizado em 1094.
na segunda metade do século XX, estão um suporte e Uma vez conseguida a autonomia em 1140, ainda
veículo lingüístico e cultural: o inglês, na sua variante que o reconhecimento papal demorasse mais 39 anos,
da superpotência estado-unidense, e a cultura forja- os seus soberanos foram expandindo o pequeno rei-
da no caldeamento de gentes de várias origens e ra- no para sul e para leste, por conquista de terras sob
ças que, desde o século XVII, começaram a entrar domínio muçulmano, até ao Algarve, cuja posse total
maciçamente nas terras promissoras do que viria a ser ficou garantida em 1249. Decorridos um pouco me-
a república federativa dos EUA desde o Tratado de nos de 50 anos, isto é, em 1297, Portugal adquiria as
Paris de 1783 e, mais apropriadamente, após ratifica- suas fronteiras, muito próximas das atuais, e Lisboa
ção da Constituição de 1789. Tem sido imparável a ganhava a qualidade de capital do novo país, conver-
expansão do "Mundo que o americano criou". tendo-se, rapidamente, em metrópole internacional,
Recordemos, porém, que a montante dessa lín- graças, em grande parte, à excelência do seu porto.
gua veícular universal e da sua história cultural estão Foi dela que partiram as caravelas das descobertas de
as de origem, do Reino Unido, o construtor do maior outras partes do Globo, marítimas, insulares e conti-
império colonial. Na sua época mais áurea, em finais nentais.
do século XIX / princípios do século XX, da sua altura Em contrapartida, a formação da Espanha, como
meã de cerca de 1 metro e meio, a rainha Vitória po- tal, só teria início em finais do século XV por união
dia olhar, num planisfério, a extensa mancha de terri- dos reinos de Aragão e de Castela, em 1492, na se-
tórios que, em todos os continentes e mares, estavam qüência de casamento dos respectivos soberanos, a
sob a sua soberania: o "Mundo que o inglês criara” e que se juntaram outros (Navarra, Leão, Astúrias e
que continuava em expansão. Catalunha, para só citar os mais importantes). De Se-
Argumentos idênticos poderiamos expender vilha, um porto e cidade no vale do Rio Guadalquivir,
relativamente a outras línguas e culturas do Ociden- sairiam as primeiras naus das descobertas, partilhan-
te, como a espanhola, a francesa e a holandesa que, a do com os portugueses o achamento de "novos mun-
partir dos séculos XV e XVI, também procederam à dos".
criação e expansão dos seus "Mundos". E, se tivermos Compartilhando a mesma Península do sul da
em conta alguns casos do Oriente, com a reserva da Europa, os dois países mantiveram sempre rivalida-
expansão das suas línguas e culturas terem ficado des políticas, exacerbadas pelas "corridas" da expan-
acantonadas no Índico e no Pacífico, chegaríamos a são ultramarina, mesmo quando tiveram de
conclusões muito próximas. contratualizar entre si, pelo célebre Tratado de
Achamos útil esta nota, como ponderação para Tordesilhas, assinado em 1494, a primeira partilha do
o fato de ser necessário ver o "Mundo que o portugu- mundo feita em todos os tempos, ficando para Portu-
ês criou" não como uma parcela isolada, uma "ilha" gal tudo quanto estivesse a oriente da famosa linha
no "oceano" universal, mas sim como uma parte de de 370 léguas traçada a ocidente das ilhas de Cabo
um todo e, sobretudo, descobrir como foram e têm Verde e para a Espanha o que estivesse para ocidente
sido as suas relações com os outros "Mundos". E o dele. É interessante notar que Cristóvão Colombo pro-
melhor caso de estudo está, justamente, no país e no curou nunca citar tal linha ou meridiano, preferindo
continente em que decorre esta reunião: o Brasil, o a referência a "uma linha imaginária que mandaram
único e imenso país de língua portuguesa da América assinalar sobre as ilhas de Cabo Verde e as dos Aço-

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res, cem léguas de pólo a pólo", como se pode ler, ração, pois desintegrou-se ao fim de onze anos; os
por exemplo, no seu testamento de 22 de Fevereiro períodos que precederam e sucederam a indepen-
de 1498. dência da Bolívia foram dolorosos, com perdas de ter-
Portugal saiu beneficiado com a inclusão, no seu ritórios, incluíndo a costa marítima; o Peru foi dos úl-
hemisfério, do canto nordeste subequatorial do Novo timos a ascender à independência, em 1824.
Mundo, fracamente povoado por grupos tupi- De qualquer modo, tal como no "Mundo que o
guaranis, a partir do qual se desenvolveria o imenso português criou", constituem parcelas do "Mundo que
território brasileiro, partilhado, primeiramente, em o espanhol criou", às quais se juntam as importantes
capitanias litorâneas. Para a Espanha ficou o resto, comunidades de emigrantes de língua espanhola que
ganho de forma rápida por conquistadores que residem em países de outras línguas e as residuais (o
raziaram os impérios densamente povoados e ricos, caso das Filipinas).
de variados povos e civilizações (de Mexica e Maya
ao complexo Inca) que iam do México ao Chile. As- Regressemos ao "Mundo que o português criou",
sim, logo desde o princípio da intrusão européia nes- dando maior atenção aos jovens estados africanos de
sas terras das "Índias", como as baptizou Cristóvão língua oficial portuguesa, que procuram afirmar as suas
Colombo em 1492 (recordemos que a designação de identidades próprias, as suas posições políticas,
"América", atribuída pela primeira vez em 1507, não económicas e culturais no contexto da lusofonia e
se deveu a qualquer descobridor ou conquistador, mas numa ordem mundial em transformação dinâmica.
a um obscuro clérigo de Saint Dié, Vosges-Lorena, Os dois microestados, Cabo Verde e São Tomé
Martin Waldseemueller, cosmógrafo e admirador de e Príncipe, fronteiros à costa da África, criados de raiz
Américo Vespúcio, pela leitura das suas célebres des- pela colonização portuguesa, pois que as ilhas esta-
crições de viagens), elas ficaram na posse dos dois rei- vam desertas quando foram achadas, e os três esta-
nos ibéricos. dos continentais, que os portugueses encontraram
O mais curioso é que, decorridos quatro sécu- povoados por gentes em diferentes estádios políticos,
los de colonização, da parte portuguesa nasceu um econômicos e sociais, debatem-se com problemas
estado nacional imenso, mas coeso, que não é exa- lingüísticos e culturais importantes. Após cinco sécu-
gero considerar como uma espécie de réplica de Por- los de colonização, ao obterem as independências
tugal (como estado-nação mais antigo da Europa), mas afirmaram-se como países africanos de língua oficial
de dimensões muitíssimo mais ampliadas. Além dis- portuguesa (Palops), sem contudo deixarem de salva-
so, constituíram casos únicos da história os fatos de a guardar os propósitos de implementação das línguas
colônia brasileira ter sido, durante 14 anos, de 1808 nacionais, problema que o Brasil não teve.
a 1821, a capital do império, quando, por virtude das Pretende-se que a Comunidade de Países de
invasões napoleônicas, a soberana e a sua família, a Língua Portuguesa (CPLP) seja uma instituição aberta,
corte e os ministérios trocaram Lisboa pelo Rio de Ja- que contribua para o reforço dos laços humanos, a
neiro; de D. João VI ter aí ascendido ao trono, em solidariedade e a fraternidade entre todos os povos
1816, por morte de sua mãe, que era a soberana; e que têm a língua portuguesa como um dos fundamen-
de a independência do Brasil ter assumido o caráter tos da sua identidade específica, desenvolva relacio-
de um acto de transferência de poderes na mesma namento estreito e profícuo com outras entidades e
família reinante – em 1822, D. João VI, rei de Portu- organizações internacionais, quer no âmbito univer-
gal, do Brasil e dos Algarves, etc., entretanto regressa- sal, quer no âmbito regional.
do a Lisboa, deixou de o ser do Brasil em favor de seu Dito de outra forma, estatuíram-se como impe-
filho D. Pedro, o imperador aclamado a 13 de outu- rativos a consolidação da realidade cultural nacional
bro. Os levantamentos e revoltas nunca foram tão for- e plurinacional que confere identidade própria aos
tes que pusessem em perigo a coesão do país. países de língua portuguesa, refletindo o relaciona-
O mesmo não se pode dizer do que aconteceu mento especial existente entre eles e a experiência
na parte espanhola. Cedo conheceria a divisão em acumulada em anos de profícua concertação e coo-
vice-reinos que se digladiavam; e, no século XIX, num peração; o empenhamento na progressiva afirmação
processo generalizado de balcanização, as indepen- internacional do conjunto dos países de língua portu-
dências foram obtidas a custo, com muitas revoltas e guesa que, apesar de constituírem um espaço geogra-
guerras sangrentas. Vejamos alguns exemplos: as Pro- ficamente descontínuo, se identificam pelo idioma
víncias Unidas do Rio da Prata proclamaram a inde- comum; a reiteração do compromisso de reforçar os
pendência antes do Brasil, em 1816; em 1819 Simón laços de solidariedade e de cooperação que os unem,
Bolívar criou a federação da Grande Colômbia (atuais conjugando iniciativas para a promoção do desenvol-
Colômbia, Equador e Venezuela), que teve fraca du- vimento econômico e social e para a afirmação e di-

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vulgação da língua portuguesa, que constitui, entre trar na realidade histórica ocidental regiões até então
os povos que a falam, um vínculo histórico e um pa- lendárias, de permitir à Europa o conhecimento de
trimónio comum resultante de uma convivência outras terras e outras gentes, de se assumir em pleno
multisecular que deve ser valorizada, pois é um meio como "transplantador para os trópicos de valores es-
privilegiado de difusão da criação cultural entre os senciais de cultura européia e quase-européia" (G.
povos que falam português e de projecção internaci- Freyre, 1940, p. 40), e de fundar, em meios tão dis-
onal dos valores culturais, numa perspectiva aberta e tantes e díspares uns dos outros, com etnias diversas,
universalista, fundamento, no plano mundial, de uma áreas culturais que se conservam até hoje predomi-
atuação conjunta cada vez mais significativa e influ- nantemente portuguesas nos seus motivos mais pro-
ente. fundos da vida.
Perante tais desígnios, conflui no nosso espírito Gilberto Freyre não se cansava de sublinhar o
o quanto Gilberto Freyre pôs em relevo no seu livro papel importante da mestiçagem dinâmica, ativa,
O Mundo que o Português criou, escrito há mais de diferenciadora, comum às sociedades que o portugu-
cinqüenta anos, sobretudo a esperança depositada no ês criou nos diversos continentes tropicais, como fa-
Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura, que deveria tor de ligação entre os vários grupos de luso-descen-
abranger estudos muito mais latos do que aqueles que dentes no estabelecimento de unidade psicológica e
se propõe fazer o atual Instituto Internacional de Lín- de cultura, transformado como que numa "consciên-
gua Portuguesa (IILP), cujos objetivos fundamentais são cia de espécie" transnacional ou supranacional daquela
os de incrementar "o intercâmbio cultural e a difusão união luso-afro-asiático-americana (G. Freyre, 1940,
da criação intelectual e artística no espaço da língua pp. 45-46). Ora, a sua história geral e comparada, que
portuguesa, utilizando todos os meios de comunica- inclui formas de mobilidade biológica e de mobilida-
ção e os mecanismos internacionais de cooperação". de social horizontal e vertical, continua por escrever,
A proposta de Gilberto Freyre era muito mais ainda que já haja muitos estudos parcelares, talvez
ambiciosa, no sentido da criação de uma instituição mais abundantes no Brasil do que em Portugal e nos
que se debruçasse sobre a "unidade não só nacional, outros países lusófonos.
como transnacional, baseada em afinidades de cultu- Nas palavras de outro ilustre tropicólogo que
ra e de comportamento que excedem as fronteiras aqui recordamos, o nosso amigo Almerindo Lessa, os
simplesmente políticas para se firmarem em muralhas portugueses dos séculos XV e XVI promoveram, à es-
de cultura viva. Muralhas que, não isolando de ou- cala universal, três grupos de fenômenos cujas dimen-
tros povos, dão-nos personalidade moral entre eles. sões geográficas causaram uma verdadeira revolução
Definem-nos como uma das grandes federações mo- no pensamento científico do Ocidente (A. Lessa, "Se-
dernas de cultura" (G. Freyre, 1940, p. 47). mear a semente", No tempo do meu espaço. No espa-
Consubstanciava assim o seu conceito de ço do meu tempo, Lisboa, 1995, pp. 145-154): do
lusotropicologia, da análise e teorização dos fenôme- achamento e da exploração direta do mundo não-
nos histórico-sociais com características comuns rea- europeu (ações de âmbitos cultural, científico e eco-
lizados por sociedades tropicais marcadas indelevel- nômico), da europeização da faixa tropical (ações de
mente pela língua e cultura portuguesa ou portadoras âmbitos religioso, psicotécnico e também normativo)
de testemunhos evidentes de cultura portuguesa. e da formação do mestiço tropical – americano, afri-
Num mundo de contatos cada vez mais estrei- cano, asiático – simbiose do mundo europeu com o
tos, a caminho da sociedade que se diz da informa- mundo não-europeu (ações cultural, psicossomática
ção, sob o domínio das forças da globalização, que e também genética).
também tendem para a homogeneização cultural, Não esqueçamos que Portugal, pequeno país
cabe-nos a tarefa difícil de preservar e transmitir, en- europeu forjado pelo cruzamento de povos e cultu-
riquecido, esse "sexto continente", não territorial, mas ras, foi receptáculo das ações de vários colonizado-
lingüístico e cultural, de O Mundo que o Português res, que lhe deixaram marcas profundas, definidoras
criou, casa-grande onde terão lugar todos os da sua identidade, de que destacamos, pelas suas
interlocutores que, dotados de verdadeiro espírito de importâncias formativas, a romana, nos séculos II a.C.
ajuda mútua, afetiva e intelectual, queiram dialogar a I d.C., e a muçulmana, nos séculos VIII a XII. Na
sem subterfúgios. construção da língua, que também usam os seis paí-
Gilberto Freyre realçava o fato de Portugal dos ses lusófonos, predominaram os vocábulos de origem
séculos XV e XVI, na ponta mais extremada da Euro- latina, a que se juntaram cerca de meio milhar de pa-
pa, apesar da sua pequenez e relativo atraso econô- lavras herdadas do árabe. A língua e a cultura evoluí-
mico – um país de economia agrária e marítima, em ram graças a contribuições da espontaneidade popu-
circuito quase fechado –, ter sido capaz de fazer en- lar, da diversidade regional, da sabedoria acadêmica

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e da importação estrangeira. ção, dado que, em tempos coloniais, a utilização
No caso dos países de língua oficial portuguesa merecia reservas, e por vezes repressão, das autori-
há que considerar diferenças muito importantes. O dades administrativas, de agentes de ensino e mesmo
cimento da federação do Brasil, imensa nação homo- da igreja católica. Em muitos casos tornaram-se lín-
gênea, o quinto país do mundo em tamanho e em guas oficiais, reconhecidas constitucionalmente, como
população, está na língua portuguesa. Ainda que com sucedeu na Guiné-Bissau. Dada a dificuldade da lín-
diferenças culturais introduzidas pelas gentes de ori- gua portuguesa assumir o papel de língua de comuni-
gens diversas que o povoam e pelos produtos de mis- cação interétnica e à improbabilidade de uma das lín-
cigenação, pelos regionalismos e localismos que guas étnicas preencher o vazio (INDE, Língua de ensino
se foram desenvolvendo, não há dialetos, nem língua na Guiné-Bissau, Bissau 1986), o crioulo adquiriu o
franca que possam competir com a língua nacional. estatuto de língua nacional, capaz de se impôr em
Já o mesmo não sucede nos outros estados da todo o território e de assumir também o papel de sím-
Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Em Cabo bolo nacional; passou a ser utilizado pelos responsá-
Verde e em São Tomé e Príncipe, criações de raiz da veis políticos e pela Rádio Nacional nos seus discur-
colonização feita com a introdução de europeus e afri- sos e programas, com o fim de terem maior eficácia
canos em ilhas desertas, além da língua portuguesa junto das massas populares; e nos centros urbanos,
comum são utilizados os seus crioulos na vida corren- cosmopolitas, é usado como instrumento de comuni-
te, sem que seja falada qualquer língua africana. Em cação num contexto multilingüe.
contrapartida, na Guiné-Bissau, país multiétnico, se o No momento atual expressões como
português é a língua oficial e de relação, o crioulo e crioulidade, crioulismo, crioulófono e crioulólogo ga-
diversos dialetos africanos têm mantido lugares pre- nharam direitos de cidadania nos meios acadêmicos.
ponderantes. E nos dois grandes territórios de Angola Fala-se correntemente de países crioulófonos, uns li-
e Moçambique, habitados por numerosos grupos ét- gados à língua portuguesa (Cabo Verde, Guiné-Bissau
nicos, muitos deles com profundas diferenças históri- e São Tomé e Príncipe), outros à língua francesa (Haiti,
cas, lingüísticas e culturais, que lhes dão todos os atri- Guadalupe e Martinica, Guiana, Maurícia, Rodrigues,
butos de nação, nunca se desenvolveram crioulos; Seychelles, para só citar alguns exemplos), outros à
falam-se o português e línguas africanas. língua inglesa (Jamaica, Barbados, Seychelles, etc.), e
Algumas explicações para essa falta de crioulos ainda outros à língua espanhola (Curaçau, Aruba,
em Angola e Moçambique poderão estar na vastidão Bonaire, etc.), e há quem vislumbre a constituição de
dos territórios e no isolamento relativo em que podi- uma Comunidade de Países Crioulófonos.
am viver muitos dos grupos étnicos, no fato de os con- Relativamente à importância e reabilitação das
tatos entre os portugueses e os autóctones do sertão línguas africanas basta ter em consideração o que se
ter sido menos direto e menos estreito do que nas passa na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique.
outras colónias; houve sempre intermediários, na No primeiro, os cerca de 1 milhão de habitantes dis-
maior parte das vezes agentes de comércio, escravos tribuem-se por numerosos grupos etnolingüísticos,
libertos e mestiços de confiança dos mandantes, co- com relevo para os balanta (cerca de 27% da popula-
nhecidos como "pombeiros", "moçambazes", "sertane- ção total, na sua maioria animistas), fula (23%, na sua
jos", "funantes", todos bilíngües ou plurilíngües. maioria muçulmanos), mandinga (12%, também com
Os especialistas dos crioulos definem-nos, atu- predominância de muçulmanos), manjaco (11%, na
almente, como sistemas lingüísticos autônomos de sua maioria animistas), papel (10%, também com pre-
origens mistas, provenientes dos contatos de línguas domínio de animistas) e, mais distanciados, brame e
européias com línguas indígenas (africanas, asiáticas, beafada (cada um 3%, os primeiros animistas e os se-
etc.) ou importadas, que se tornam línguas maternas gundos muçulmanos) e outros. Apenas 11% da popu-
e línguas principais de comunidades humanas lação total usa correntemente a língua portuguesa,
(Benjamim Pinto Bull, O crioulo da Guiné-Bissau. Fi- 45% recorre ao crioulo como forma de expressão
losofia e sabedoria, Lisboa, 1989). Trata-se afinal de quotidiana, e perto de 46% do total da população é
uma riqueza lexical dinamizada através de processos poliglota, isto é, fala mais de duas línguas.
de relexificação de uma língua de base (a portuguesa, Em Angola, a Constituição da República defi-
por exemplo) e das línguas de substrato (como as afri- niu várias línguas nacionais principais corresponden-
canas), e ainda pelos diferentes processos de neologia tes aos grande grupos étnicos (fiote, humbe, kicongo,
no seio destas. kimbundu, kuanhama, lutchase, mbundu, mucubal,
Com o acesso à soberania de antigas colônias tchokwe, umbundo). Vejamos um pequeno exemplo.
européias de povoamentos mistos, onde se desenvol- No último recenseamento demográfico da cidade de
veram os crioulos, tem-se procedido à sua reabilita- Luanda e da sua região circundante, feito com sufici-

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ente rigor, em 1983, mas de que não foram publica- ências humanas, em muitos aspectos únicas e incom-
dos os quadros analíticos, da população de 5 anos de paráveis, de muita riqueza e profundidade, que ain-
idade e mais que habitava no município urbano de da não foi possível abarcar e compreender em todos
Rangel (um bairro periférico), num total de 103 938 os seus significados, do passado e do presente.
pessoas, quase 99% utilizava vulgarmente a língua Muitos estudos valiosos, apoiados em pesqui-
portuguesa, mas metade preferia uma língua nacio- sas pormenorizadas e cuidadas, têm tratado dos mais
nal; dentre estas, como seria de esperar, o kimbundu diversos aspectos dessas experiências, mas continu-
destacava-se das outras (44 087 dos inquiridos), pois am a faltar as interpretações comparativas que rele-
a cidade está inserida na área dos dessa língua, se- vem a dimensão determinante do "Mundo que o por-
guindo-se o kicongo (4 972) e o umbundo (3 442), tuguês criou", no presente e no futuro, que envolve
áreas confinantes com a primeira. milhões de seres humanos.
Em Moçambique a situação é idêntica à anteri- É urgente retomar o projeto de Gilberto Freyre,
or, com vários grandes grupos etnolingüísticos (swahili, de criação de uma instituição aberta, apolítica, com
macua-lomué, makonde, yao, ngoni, marave, um conselho de sábios que ditem as linhas de rumo
zambeze, shona, thonga, chope, bitonga). de estudos interdisiplinares, sistematizados e articula-
Naturalmente que nesse caso, como no ango- dos, da "cultura transnacional ou supranacional for-
lano e no guineense, ainda são grandes as distâncias mada pelos diversos povos que a capacidade portu-
a vencer para se passar das formas orais originais para guesa" (G. Freyre, 1940, p. 62) espalhou pelo Globo,
as formas escritas das línguas africanas, pois que, na em continentes e ilhas. Este é, porventura, o maior
sua evolução, nenhum dos povos do continente che- desafio que, a par dos outros, nos permitimos lançar,
gou à invenção da escrita. A redação do Tarikh al'Sudan nesta mesa-redonda sobre O Mundo que o Português
e do Tarikh al'Fattash, datados de meados do século Criou, do Seminário Internacional intitulado Novo
XVII e tidos como os textos mais antigos elaborados Mundo nos Trópicos, em ano do centenário do nasci-
por autores nitidamente africanos, da África ao sul do mento do homem mui ilustre que ora homenagea-
Sara, foi feita em escrita árabe. mos, considerado oficialmente "Ano Nacional Gilber-
Contudo, em todos os jovens estados, que fo- to de Mello Freyre".
ram colônias, se arraigou a determinação do desen-
volvimento das línguas maternas como forma de ins- _______________________
truir as suas populações, de afirmação da
transnacionalização das suas diversas identidades cul-
turais, procedendo ao estudo e criação de instrumen-
tos de base, como vocabulários, dicionários, gramáti-
cas, etc. que no futuro possam substituir, ainda que
parcialmente, a língua dos antigos colonizadores, to-
mada como oficial.

Tendo em conta tudo quanto ficou referido e


ainda a velocidade estonteante das modificações glo-
bais, políticas, econômicas, sociais e culturais, é lícito
questionar sobre o que será, no fim do próximo sécu-
lo, ou mesmo antes, o "Mundo que o português criou".
À porta do século XXI, após cinco séculos de
colonização, Portugal regressou, definitivamente, às
suas fronteiras metropolitanas tradicionais, delimita-
das no século XII, o que lhe confere o primeiro lugar
como Estado-nação mais antigo da Europa. Da sua
ação brotaram os estados da Comunidade dos Países
de Língua Oficial Portuguesa e outros territórios, des-
de o Brasil, que acedeu à independência em 1822, à
devolução de Macau à China no dia 19 de dezembro
último.
Foram cinco séculos de participação ativa na
construção do mundo moderno por ações levadas a
cabo em todos os continentes e mares. Foram experi-

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MESA-REDONDA 2
HOMEM , C ULTURA E TRÓPICO

Dia 22 de março
COORDENADOR:
Levy Cruz
Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
Basta Recordar os Pés das Chinesas: Notas
sobre Gilberto Freyre e o Carnaval do
Brasil
Roberto DaMatta
Antropólogo – Universidade de Notre Dame – EUA

Meu título rememora uma passagem do trais, fazendo, além disso, que aderissem a
Cap. IV do livro Sobrados e Mucambos, obra "penteados elaboradíssimos"(pag. 98).
na qual Gilberto Freyre faz referência ao Car- A essas observações de cunho
naval brasileiro, mencionando, sem – entre- eminentamente etnográficos, devo acrescen-
tanto estudá-lo exaustivamente – algumas de tar um ponto não tocado por Freyre, a saber:
suas funções sociais em exatamente seis pa- por que, afinal de contas, esse foco nos pés
rágrafos, marcados pelo viés histórico e um das chinesas e das mulheres em geral? Por que
estilo interpretativo pioneiramente freudiano. esse empacotamento em espartilhos, "cintos",
Não deixa de ser significativo que, na- cintas, corpetes, soutiens e penteados extra-
quela ocasião, Gilberto tenha sido levado ao vagantes? A resposta é óbvia: tais modos de
Carnaval e, mais precisamente, ao "baile mas- construção (e "deformação" para usar um ter-
carado" de 1848, realizado no Teatro Apolo mo mais etnocêntrico, valorativo e dramáti-
em Recife, no contexto de uma discussão vol- co, repetindo Gilberto) do corpo feminino sa-
tada para uma das oposições mais marcantes lientam o lugar de flagrante imobilidade da
da "sociedade patriarcal brasileira": a tensa e mulher no sistema. Era uma expressão explí-
dinâmica dualidade entre o homem e a mu- cita de uma sociedade que destinava à mu-
lher. lher um quase-congelamento de movimentos,
É, pois, nesse capítulo, na página 98 da fazendo dela, por outro lado, um símbolo aca-
edição publicada pela Livraria José Olympio bado de estabilidade, de estoicismo e de
Editora, 1 que surge essa frase que é quase um sacríficio, valores mais do que apropriados à
adágio e mais uma prova da notória sensuali- gerência da casa e à manutenção da família,
dade gilbertiana: "Basta recordar os pés das da parentela e do círculo de amigos, em con-
chinesas deformados ao último ponto" – diz traste com a mobilidade e a velocidade e a
ele. mudança constitutivas do mundo masculino
Adágio arrematador do argumento se- e da rua. A honra e a vergonha, como sabe-
gundo o qual, nas relações entre os sexos no mos, ligam-se ao controle e ao ocultamento,
Brasil, a demanda patriarcal de distinção às dimensões e aos espaços internos que,
inapelável entre homem e mulher, distinção como sabem os poetas, operam como mura-
vantajosa para os homens, pois eliminava a lhas e portais. No quadro das representações
mulher da vida pública e da competição eco- ocidentais, o pudor está vestido, coberto, ta-
nômica e política, haveria de criar tanto a pado, escondido. 2
moça pálida e fraca, quase tísica de tanto co- O contraponto complementar e polar
mer caldos e de não apanhar sol, quanto desses modelos de deformação e exagero fe-
matronas de ancas e coxas moles e arredon- mininos – àquele contraponto característico
dadas, pesadas e densas nas suas gorduras, da escrita e da reflexão de Gilberto Freyre –
nas suas rezas e no seu aprisionamento ao seria um tipo de homem dominador e senho-
âmbito da casa, da parentela e das mucamas. rial que moldava e oprimia suas mulheres
Trata-se, deixe-me acentuar, de um estilo de (mais as esposas e filhas, menos as "mães",
construção dos gêneros que tinha como foco acrescentaria eu, refinando a análise), distan-
os pés, as cinturas e os cabelos das mulheres ciando-se delas tanto quanto distinguiam-se
nascidas e criadas no universo patriarcal. Foco pela vestimenta, gestos, insígnias, bengalas e
que promovia uma ênfase capaz de deformar, tetéias dos seus criados e escravos (eis um
tanto quanto numa China igualmente viri- outro contraponto).3
centrada, os pés e a cintura de nossas ances- Na demonstração pioneira de que a

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determinação sexual não se esgota na biologia pois poderiam ter, os pecados e desejos eram "escoados"
"homem" e "mulher" são ideologicamente definidos pelo confessor" (pag. 94) numa cultura que – eis um
em diferentes sociedades e culturas, um ponto que, outro paradoxo – tratava a mulher talvez mais huma-
diga-se de passagem, remete às separações entre de- namente do que a sociedade da América Puritana que,
terminação sexual e orientação cultural, realizadas na sem confissionário ou padre – eis um argumento da
mesma década por Margaret Mead, 4 Gilberto acaba mais pura estirpe weberiana – não tinha espaço para
por independentemente descobrir uma diferenciação o escoamento dos seus desejos e enlouqueciam.6
básica vigente nos bons "estudos feministas" contem- O fato é que:
porâneos: a distinção entre sexo (como dado biológi-
"A extrema diferenciação e especialização do
co) e gênero (como construção cultural).
sexo feminino em 'belo sexo' e 'sexo frágil' fez da mu-
Com isso, Sobrados e Mucambos apresenta uma
lher de senhor de engenho e de fazenda e mesmo a
surpreendente consciência de que as atitudes tradici-
iaiá de sobrado, no Brasil, um ser artificial e mórbido.
onais que vêm a mulher como passiva, intuitiva, pre-
Uma doente, deformada no corpo para ser a serva do
sa à casa e à família (ou a própria "espécie" como quis
homem e a boneca de carne do marido" (94).
Simone de Beauvoir no livro O Segundo Sexo), têm
origem social, fazendo parte de um variado repertó- Outra manifestação do patriarcalismo seria o
rio de formas ou estilos pelas quais o masculino e o "culto pela mulher" que se exprime abertamente na
feminino são culturalmente construídos e marcados. literatura, na música e na pintura, mas que, de fato,
Há culturas com homens femininos e mulheres mas- seria um disfarçado,
culinas, as tais mulheres que destoavam do padrão
"Culto narcisista do homem patriarcal, do sexo
patriarcal e que Gilberto gostava de chamar de
dominante, que se serve do oprimido – dos pés, das
"machonas", mulheres que faziam (eis uma imagem
mãos, das tranças, do pescoço, das coxas, dos seios,
deliciosa) “os seus irmãos padres parecerem moças”.
das ancas da mulher, como de alguma coisa de quen-
Uma ambiguidade, aliás, tabú nos estudos brasileiros
te e doce que lhe amacie, lhe excite e lhe aumente a
da época e que foi elaborado na sua "semi-novela",
volutuosidade e o gôzo. O homem patriarcal se roça
Dona Sinhá e o Filho Padre (publicada em 1964).
pela mulher macia, frágil, fingindo adorá-la, mas na
Tomado, pois, não como um dado biológico,
verdade para sentir-se mais sexo forte, mais sexo no-
mas como uma ideologia, um "sistema cultural" ou
bre, mais sexo dominador" (pag. 98).
um "fato social total" (como diriam, respectivamente,
Clifford Geertz e Marcel Mauss), as relações entre os É, pois, no curso desta leitura culturológica ori-
sexos apresentam manifestações culturais sintomáti- ginal dos sexos e dos papéis femininos que, fala da
cas e sistemáticas, institucionalizadas, que caberia es- moça, sem elaborar muito a virgem e o papel simbó-
tudar no caso brasileiro. lico da virgindade; que desenha mais a matrona do
Uma delas seria a opressão e a repressão da que a mãe e que, curiosamente, não toca na mere-
mulher que, nos confessionários e, posteriormente, triz, na mulher da vida ou da rua – mulher dona do
com os médicos de família, dariam vasão aos seus seu destino, sensualidade e eventualmente de homens
anseios e desejos. Observação que permite Gilberto – ficando somente com as mulheres da casa, que Gil-
aproximar com brilho a "medieval" confissão Católica berto acentua o primado da cultura sobre aquilo que,
da moderna psicánalise, roubando o confissionário à até o advento da Antropologia Cultural Boasiana, sem-
religião e comentando, com muita ironia – certamen- pre foi lido como biologicamente determinado: as
te para assustar ao mesmo tempo os progressistas e os relações entre o homem e a mulher. 7 De fato, um dos
reacionários – o fato paradoxal de como a Igreja, ao subtextos mais importantes deste capítulo, é o foco
"reprimir" pecados, ajudava na "higiene" e no "sanea- na cultura como o operador que deforma e tolhe o
mento mental" das nossas avoengas. Seria esse espa- corpo da mulher porque, para esse pioneirissímo Gil-
ço confessional que se imagina foco de atraso e re- berto, o físico é englobado e constituído pela cultura.
pressão que, muito antes de Freud, permitiu que viesse Se isso ainda não é aceito hoje em dia, imagine em
à luz "muito pecado, muito desejo reprimido que dou- 1936!
tro modo aprodreceria dentro da pessoa oprimida e A prova final deste argumento culturalista, no
recalcada". qual se demonstrava como as roupas, os enfeites, os
Para esse Gilberto revolucionariamente feminis- espartilhos e, sobretudo, os sapatos, moldavam os pés
ta, que obviamente lia de fora e individualisticamente das mulheres, distinguido-os dos pés dos escravos e
essas mulheres (pois nem sempre as pessoas se con- dos seus senhores, era o de que "Basta recordar os
fessam porque têm pecado ou desejos sufocados 5), pés das chinesas, deformados ao último ponto" (pag.
dotando-as de um horizonte psicológico que elas não 98).

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Mas qual é a relação desses pés deformados com brasileira, o jogo do bicho, Gilberto Freyre tem duas
o Carnaval? teorias do Carnaval.8 De um certo ângulo, são teorias
Conforme toquei acima, não deixa de ser curi- complementares, pois uma apela para uma suposta
oso que Gilberto discorra sobre o baile de máscara origem histórica e a outra para a sociologia da festa.
como modernização do velho entrudo, num capítulo Mas de outra perspectiva, elas revelam um ecletismo
dedicado às relações entre os sexos. De fato, nada é teórico que pode ser visto como o limite da originali-
mais flagrante no Carnaval brasileiro do que essa li- dade e do pioneirismo. O desejo especulativo era de
bertação das mulheres do âmbito familiar e caseiro, tal ordem que Gilberto não hesita em insinuar uma
quando a licença ritual lhes faculta uma conduta que origem indiana para o Carnaval brasileiro. Um ponto
as rotinas só permitem aos homens: aos pais, irmãos, que, subitamente transforma o antropólogo boasiano,
maridos e filhos. Conduta marcada por uma imbuido de que cada cultura é um universo a ser vis-
agressividade destoante dos padrões sociais correntes to em si mesmo e assim interpretado, num difusionista
e que não passou despercebida a Thomas Ewbank, vitoriano da estirpe de Elliot Smith e William Perry. 9
viajante americano de Nova York, que, descrevendo Aqueles que traçavam a origem das pirâmides aztecas
o Rio de Janeiro de 1849, revela sua surpresa para e maia ao Egito, esquecidos de que suas funções soci-
com o comportamento das mulheres no entrudo. ais eram radicalmente diferentes. No mundo ameri-
Comportamento desinibido que fazia as mulheres fa- cano as pirâmides eram altares sacrificiais, dedicados
larem com desconhecidos, pregarem peças a estra- a renovarem a vida e o mundo; no antigo Egito eram
nhos, contarem mentiras e, naturalmente, darem ba- túmulos.10
nhos de bola de cera nos transeuntes. "As mentiras Mas é preciso fazer justiça a Gilberto para dizer
do entrudo não são pecados", diz uma senhora a um que a primeira teoria do Carnaval fica mais no terre-
atordoado Ewbank (Cf. Vida no Brasil: Diário de uma no da sugestão e da argumentação; ao passo que a
visita à Terra do Cacaueiro e da Palmeira. São Paulo e segunda tem a convição e a força gilbertianas. Ade-
Belo Horizonte: Editora da USP e Livraria mais, confirmando a mera sugestão, a primeira é apre-
Itatiaia,1976: 82-83). sentada em citações que se sucedem, como num jogo
No plano de uma sociologia brasileira, portan- de caixas chinesas, como que para salvar o autor da
to, não causa espanto que seja justamente num capí- ousadia difusionista. Assim, quando Gilberto sugere o
tulo dedicado à discussão dos elos entre os sexos, o Carnaval como um orientalismo, ele primeiramente
momento escolhido para Gilberto incorporar à tese se refere a Ewbank, mas, ao citá-lo, usa um texto des-
em desenvolvimento a memória de um baile de más- se mesmo Ewbank publicado num obscuro Boletim
caras que facultava, tal como ocorria no entrudo, in- Informativo da Embaixada da Índia no Rio de Janeiro,
verter padrões, liberando a muher da casa e dos reca- em fevereiro de 1949 (Cf. Freyre, 1961: 481), cujo
tos da vida familiar, bem como de comportamentos redator anônimo divide com o viajante americano a
marcados pela hierarquia expressa num enorme res- sugestão que Gilberto ambígua e cautelosamente,
peito e distância social. apóia. 11
Distância que Gilberto analisa como parte de Vejamos essas duas teorias em detalhe.
um "de um cavalheirismo exagerado" que obrigava o
uso dos "Minha Senhoras" e dos "Exma. Senhoras Do- A Primeira Teoria do Carnaval
nas" quando os homens dirigiam-se às mulheres que São as considerações gilbertianas sobre o "Ori-
era dissolvida nos entrudos pelas brincadeiras e, so- ente e o Ocidente" (expostas no capítulo com o mes-
bretudo, pelo combate das bolas de cera que ele toma mo título de Sobrados e Mucambos), 12 que ensejam a
como manifestação patente e importante de referência ao Carnaval. Neste capítulo, como se sabe,
"orientalismo". Deste modo, tanto nos entrudos, quan- Gilberto desenvolve a tese de que havia um "paren-
to nos carnavais dos bailes de máscaras, os carnavais tesco ecológico" entre o Oriente e o Ocidente no Bra-
que, no meu trabalho, chamei da "casa", em contras- sil. Um amálgama antigo e equilibrado que só foi rom-
te com os "de rua", libera-se a mulher das idealizações pido com a vinda da Côrte para o Rio de Janeiro, em
masculinas correntes, seja como "boneca de carne", 1808, e com o posterior domínio comercial inglês e o
seja como matrona mole, ambos os tipos dominados advento da influência francesa.
pelo macho senhorial. Nesse sentido, Gilberto faz uma listagem impres-
Mas o que diz Gilberto Freyre do Carnaval? Qual sionante de objetos ou "coisas" de origem oriental:
a perspectiva pela qual ele enquadra a folia carnava- "O palanquim, a esteira, a quitanda, o chafariz,
lesca? Que considerações e reflexões tece sobre essa o fogo de vista [fogos de artifício], a telha côncova, o
festa? bangüê, a rótula ou gelosia de madeira, o xale e o
Tal como ocorre com outra instituição popular turbante de mulher, a casa caiada de branco ou pin-

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tada de cor viva e em forma de pagode, as pontas de lugar social no qual esses traços se combinam e, aci-
beiral de telhado arrebitadas em cornos de lua, o azu- ma de tudo, recebem novos significados, daí a neces-
lejo, o coqueiro e a mangueira da Índia, a elefantíase sidade de estudar os interesses e a integração dos tra-
dos árabes, o cuscuz, o alfenim, o arroz-doce com ços culturais regularmente importados e exportados
canela, o cravo das Molucas, a canela de Ceilão, a em contexto culturais específicos.
pimenta de Cochi, o chá da China, a cânfora de Qualquer que seja o ponto teórico, porém, é
Bornéu, a muscadeira de Bandu, a fazenda e a louça neste contexto de "orientalismos" ou de influências
da China e da Índia, os perfumes do Oriente, haviam orientais no Brasil onde aparece a sugestão de uma
se aclimatado com o mesmo à-vontade que no Brasil, origem indiana do Carnaval.
e formado com valores indígenas, europeus e de ou- Citemos o texto:
tras procedências o mesmo conjunto simbiótico de
"E não nos esqueçamos – diz Gilberto – de que,
natureza e cultura que chegou a formar no nosso País"
indiana a origem do Carnaval brasileiro, como pare-
(pag. 425 – o grifo é meu).
ceu a Thomas Ewbank, teríamos aí – e não apenas
Listagem que inevitamente traz à mente uma
nos santo-antônios, nos são joões e nos são pedros e
passagem famosa de Ralph Linton, também aluno de
nas festas de igreja celebradas com muito fogo de ar-
Boas, no livro The Study of Man, publicado em 193613
tifício, à moda oriental – tão profunda marca de influ-
quando, no Capítulo XIX, ele dramatiza a realidade
ência oriental sôbre os estilos brasileiros de recrea-
da difusão falando da rotina de um americano co-
ção, como sôbre os estilos de vestuário, de transporte,
mum que "desperta num leito construido segundo
de arquitetura doméstica, de adorno pessoal." (pag.
padrão viginário do Oriente Próximo, sai de cobertas
449).
feitas de algodão cuja planta se tornou doméstica na
Índia (…). Ao levantar – continua Linton – esse cida- Em seguida, vém a nota 41 que diz:
dão, usa mocassins inventados pelos índios das flo-
"Thomas Ewbank, Life in Brazil – or Journal of a
restas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto
Visit to the Land of cocoa and the Palm, Nova Iorque,
de banho cujos aparelhos são uma mistura de inven-
1856. Para o assunto voltou-se ultimamente o reda-
ções européias e norte-americanas (…). De caminho
tor do Boletim Informativo publicado pelo Serviço de
para o breakfast, pára para comprar um jornal pagan-
Informações da Embaixada da Índia no Rio de Janeiro
do-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No res-
(fevereiro, 1949), que salientou:14
taurante, toda uma série de elementos tomados de
'Num livro fascinante, intitulado Life in Brazil –
empréstimo o espera. Prato é feito de uma espécie de
Land of Cocoa and the Palm – Thomas Ewbank nos
cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga
fala duma possível origem indiana do carnaval brasi-
feita pela primeira vez na Índia do Sul, o garfo foi in-
leiro. Dá-nos o autor uma descrição vívida do "Holi",
ventado na Itália medieval, são do Mediterrâneo, o
descrição essa que, por si só, talvez venha a explicar
melão da Pérsia, a melancia africana. Toma café, planta
muito do que hoje ainda sobrevive de uma tradição
da Abissínia.(…)" Acabando de comer, o americano
já esquecida, cujo significado o povo não mais co-
fuma, fazendo uso de um hábito dos indígenas das
nhece.
Américas. Depois ele "lê notícias do dia, impressas em
Segundo Ewbank, o carnaval chamava-se
caracteres inventados pelos antigos semitas, em ma-
Intrudo na época em que ele visitou o Rio de Janeiro
terial inventado na China e por um processo inventa-
– 1849. Da descrição abaixo, do Intrudo, poderá o
do na Alemanha. Ao interar-se das narrativas dos pro-
leitor verificar a relação profunda existente entre o
blemas estrangeiros, se fôr um bom cidadão – conclui
carnaval brasileiro e o "holi" indiano. Diz Thomas
um Linton irônico e relativizador – agradecerá a uma
Ewbank:
divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato
'As estranhas coincidências na linguagem, cos-
de ser cem por cento americano". (Cf. Linton,
tumes e outros hábitos que constituem a intimidade,
1968:350).
ou mesmo a identidade entre os povos primitivos da
Só que Linton não sugere uma redução
Europa Ocidental e da Ásia Central, já foram freqüen-
difusionista, contentando-se em indicar que a impor-
temente observadas. Não me consta que o Intrudo
tação e a exportação de items, traços e complexos é
tenha sido interpretado dessa maneira. Quer me pa-
algo rotineiro nas sociedade humanas. O fato cultural
recer, entretanto, que pouca dúvida resta de que o
a ser levado em conta, não é apenas a indicação do
mesmo seja o Hohlee do Hindustão – festival que data
emblema de origem, mas o fato de que esses traços
de tempos mitológicos, e, portanto, envolto no mais
se combinam e refazem, formando configurações cul-
denso mistério.
turais específicas. Constituindo "complexos culturais"
Mr. Broughton, que teve ensejo de participar
singulares que, conforme afirma Linton, configuram o

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dêsse festival na corte de um principe hindu, nos dá tra semelhança. Consta-nos que o Hohlee 'é festejado
uma descrição detalhada da sua experiência: praticamente ao mesmo tempo que a nossa Quarta-
'O entretenimento do Hohlee consiste em ati- feira de Cinzas, precedendo também a Quaresma ou
rar uma quantidade de farinha feita de uma noz aqu- Época Expiatória dos Indus – coincidência de tempo
ática, o singaram, e tingida de vermelho. É conhecida e finalidade tão extraordinárias, como extraordinário
como abeer. O divertimento principal é jogar essa fa- é o fato de esses dois festivais serem celebrados com
rinha nos olhos, boca e nariz dos participantes, ao pó e àgua – com bolas de arremesso e bisnagas. O
mesmo tempo que se lhes aplica um banho de água Hohlee é celebrado por todas as classes da Índia –
alaranjada. Muitas vezes o abeer é misturado com talco sendo motivo de festejo universal" (pag. 481).
em pó, a fim de torná-lo brilhante, sendo bastante
A par das dificuldades vigentes em toda pro-
doloroso se penetrar nos olhos. Outras vezes, o abeer
posta baseada numa relação histórica puramente
é colocado dentro de pequenas bolas feitas de uma
conjectural, pois, como dizia Edmund Leach, "é tão
substância gelatinosa, do tamanho de um ovo, e que
difícil reconstruir o passado quando prever o futuro",
servem como arma de ataque. Todavia, são tão deli-
o maior problema com essa teoria é o pressuposto
cadas que precisam ser tratadas com o máximo cui-
difusionista de que práticas sociais semelhantes têm o
dado, pois se desmancham sob a menor pressão…
mesmo significado sociológico.
'Alguns minutos após ocuparmos os nossos lu-
Não há nenhuma dúvida que a dissolução de
gares, enormes bandejas de bronze cheias de abeer e
fronteiras entre segmentos e categorias sociais, a
das bolinhas acimas descritas, foram colocadas dian-
neutralização da hierarquia, a invenção de uma igual-
te dos espectadores, juntamente com água amarela-
dade festiva e mítica, ausente das práticas rotineiras,
da e grandes bisnagas de prata. O Muha Raj em pes-
caracterizam tanto o Entrudo (e o Carnaval) quanto o
soa iniciou então o divertimento, lançando sobre os
Holi. 15
assistentes um pouco de água amarela ou vermelha
Mas os ritos de inversão podem estar ancora-
dos goolabdans – pequenos vasos de prata usados para
dos em mitos ou justificativas simbólicas – textos, dir-
pôr água-de-rosas durante as visitas de cerimônia.
se-ía agora – os mais diversos. Parece óbvio que Gil-
Cada um principiou então em atirar o abeer e a jogar
berto compreende essa dificuldade. Tanto que,
água nos vizinhos. A etiqueta proíbe que alguém lan-
conforme assinalei, sendo conhecedor do texto orignal
ce qualquer cousa sobre o Rajá; contudo. Fora ele
de Thomas Ewbank, Gilberto deixa de mencionar o
informado que estávamos determinados a atacar todo
pensamento conclusivo do viajante americano sobre
aquele que nos havia atacado, tendo ele respondido
o Entrudo e o Holi. Uma passagem importante, por-
jovialmente: 'De todo o coração' – disse – 'estaria ele
que revela como Ewbank tinha consciência de como
pronto para nos enfrentar, e veriamos quem sabia ata-
era tênue a sua hipótese difusionista, ligando direta-
car melhor'. Descobrimos logo, porém, que contra ele
mente o festival indiano e o brasileiro. De fato, diz
nada podiamos fazer; pois, além de um pano com
Ewbank, modificando a hipótese indiana e compli-
que os seus servos lhe protegiam o rosto, em poucos
cando substancialmente a tese da difusão do Carna-
minutos havia ele mandado colocar em suas mãos uma
val da Índia para o Brasil:
grande mangueira de extintor de incêndio, cheia de
água amarela, e que estava sendo trabalhada por meia "Em diversos aspectos o festival asiático asse-
dúzia de homens. Os resultados foram tais que den- melha-se à antiga Saturnália e ao moderno carnaval,
tro de pouco tempo não restava um único homem sendo permitidas as maiores liberdades às pessoas de
dentro da tenda que não estivesse encharcado dos todas as categorias. Já foi comparado ao 'Hilaria' cele-
pés à cabeça'. brado em Roma no equinócio vernal em honra da
'Às vezes, voltava ele o jato da mangueira con- mãe dos deuses, quando sua estátua era levada em
tra os que se achavam mais próximos, com tamanha procissão acompanhada por pessoas fantasiadas que
fôrça que, dificilmente, a vítima conseguia se manter por seus trajes e maneiras assumiam então a máscara
no seu lugar. Toda oposição a essa máquina formidá- da personalidade que lhes agradava. Na verdade –
vel era vã. O abeer era lançado aos montões, seguido conclui Ewbank, desmanchando o seu argumento e
imediatamente de uma chuva de água amarela, en- lançando mão de uma hipótese verdadeiramente inó-
quanto que nós nos viámos assim alternadamente cua – quase todas as nossas antigas festas religiosas
empoados e encharcados, até que dentro em o pou- são ligadas a instituições semelhantes da Índia, Egito,
co o chão sôbre o qual estávamos sentados encontra- Grécia e Roma". (Cf. Ewbank, 1976:86; a ênfase é
va-se coberto de uma densa lama rosada. Jamais pre- minha).
senciara cena igual em toda a minha vida'.
Realmente, se focalizarmos sociologicamente o
"O Intrudo e o Hohlee apresentam, ainda, ou-

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festival indiano, veremos que suas semelhanças com se o festival fosse avesso à sua própria historização. O
o Carnaval são muito mais estruturais do que históri- Carnaval, respondemos, liga-se à grande fuga das ro-
cas. Ou seja: ambos os festivais são claras manifesta- tinas diárias e àquilo que Vinicius de Moraes rotulou,
ções de ritos de inversão, de supressão de fronteiras com um inegável ranço marxista, como "uma grande
sociais e de troca de lugar. São festas ilusão". Como uma possibilidade efêmera de mudar
"carnavalizadoras", no dizer de Bakhtin, o que resol- de lugar para logo ser novamente devorado pela "dura
ve a questão de algumas de suas semelhanças, sem realidade" do mundo, do trabalho e da vida. Mas o
ter a necessidade de propor um elo histórico entre fato é que tanto em narrativa quanto na prática, o
elas.16 Carnaval permanece multivocalizado, descentraliza-
Esse argumento é sustentado pelas narrativas do e fragmentado, exprimindo-se por meio de múlti-
míticas dessas festas. O Holi, conforme nos ensina plos eventos, músicas, danças, vestimentas, gestos,
McKim Marriott (1966:200) na sua excelente personagens e "planos", como disse uma vez (Cf.
etnografia, funda-se numa episódio mítico preciso: o DaMatta, 1979: Cap. 2).19
perdão do herói mitológico indiano – Prahlad – quan- Desse modo, se há um "texto de referência" para
do ele escapa da fogueira preparada por sua irmã, o o Carnaval, esse texto remete a própria história do
demônio Holika, que, como é comum nos contos de Deus encarnado e, com ela, a uma temporalidade sin-
fada, acaba devorada pelo fogo que ela mesma pro- gular: o momento situado entre o nascimento (o Ad-
duziu como uma armadilha para Prahlad, numa fla- vento) e a Paixão de Cristo. Àquela Quaresma, desti-
grante traição da solidariedade axiomática que deve nada a penitência, a oração e a abstinência de carne
presidir as relações entre irmãos de sexos opostos, elo que começa depois do Carnaval (donde o nome "car-
crítico do parentesco indiano. 17 Antes de morrer, po- ne levare" [ = carnaval]) e termina com a Ressurrei-
rém, ela pede perdão ao jovem Prahlad. Daí, igual- ção de Cristo. De um lado com a morte da carne pe-
mente, as fogueiras que singularizam o Holi, bem los excessos; do outro, pelo seu englobamento pelo
como a álacre atividade de coleta de materiais com- espírito por meio da penitência. Quaresma que sem
bustíveis por grupos de jovens que vão de casa em nenhuma dúvida exprime a ambivalência do cristia-
casa recebendo doações ou simplesmente furtando nismo católico relativamente ao corpo e ao sexo. Uma
esse tipo de material. Uma "violação-brincadeira" tí- moralidade que oscila na condenação e na exaltação
pica da festividade que tem como pretexto a comuni- do corpo e da alma, da vida e da morte, promovendo
cação desinibida entre as castas. por isso mesmo a sua profunda relação.
Já o vermelho e o amarelo das bisnagas e bolas Não há a menor dúvida que tanto o Holi quan-
que as pessoas jogam umas nas outras, têm ligação to o Carnaval são rituais de inversão. Em ambos os
com o romance entre Krishna e Radha que, diz uma festivais há uma notável reversão de posicionamentos
lenda divulgada pelo Governo indiano, 18 reforçando sociais criando um momento de alegre subversão so-
Marriott, parecia muito branca aos olhos do amante, cial ou "loucura. Ambos os ritos realizando uma
mais escuro. Reclamando dessa discrepância com sua relativização periódica da ordem social e de suas hie-
mãe, ela aconselha a Krishna que pintasse o rosto da rarquias.20
namorada, pois assim ela se aproximaria dele. Daí o Como Ewbank não conhecia a narrativa do Holi,
espetáculo dos pós coloridos; e, certamente, o culto ele não pôde distinguir o estilo performativo do festi-
fálico, a linguagem e os gestos obscenos com que os val da sua justificativa simbólica, uma postura típica
praticantes imitam o comportamento de Krishna nas da atitude difusionista.
suas brincadeiras com suas esposas, e para com as Diante de tudo isso, é inevitável concluir que a
filhas dos seus vaqueiros. teoria difusionista do Carnaval proposta por Ewbank
Em conclusão, o Festival do Amor indiano, tem e marginalmente endossada por Gilberto não passa
um foco e um centro. Trata-se, como ocorre com as de uma sugestão ousada, defendida com gosto, mas
festas de aniversário, as inaugurações, os casamentos, sem muita convicção. Tanto que, nessas reflexões ele
os funerais e as instalações em cargos superiores, de não menciona a outra teoria, exposta no primeiro
um ritual comemorativo, com um foco definido e sem- volume, de que iremos tratar em seguida.
pre referido pelos seus praticantes. No caso do Car-
naval, conforme chamei atenção mais de uma vez no A Segunda Teoria do Carnaval
meu trabalho, trata-se de um festival sem centro e Vimos que a segunda teoria do Carnaval surge
sem dono. O que o Carnaval comemora? Qual o seu quando Gilberto estuda as relações entre os sexos no
mito de origem? Quem são os seus fundadores? Con- Brasil. Mais especificamente, quando trata das mu-
forme sugeri em Carnavais, Malandros e Heróis a res- danças que acompanham o século XIX brasileiro,
posta a essas questões é difusa e não-marcada, como quando começa a surgir uma nova sociedade e um

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outro tipo de mulher. "É certo – êle diz – que êsse carnaval elegante,
Mulher que é sintomaticamente admoestada fino, silencioso, de fantasias de seda, não matou o
por um moralista da época, o Padre Padre Lopes outro: o grosseiro, plebeu, ruidoso, com oportunida-
Gama, porque lê romances franceses, começa a per- des para os moços expandirem sua mocidade, para
der a devoção religiosa, confessa-se menos, fica me- os negros exprimirem sua africanidade (de certo
nos em casa com as mucamas e tem no médico de modo recalcada em dias comuns), para pretos, escra-
família figura mais importante que o padre e, no tea- vos, moças, meninos gritarem, dançarem,e pularem
tro, um espaço mais sedutor do que a igreja. como se não fossem de raça, de classe, de sexo e de
"O próprio 'baile mascarado', diz Gilberto con- idade oprimidos pelos senhores dos sobrados." (pag.
cluindo estes argumentos, atraindo senhoras de so- 110, a ênfase é minha)
brado" (pag. 110).
Mas, além dos moços, dos negros e das mulhe-
Esse baile que seria uma das novidades do sé-
res, quem mais seria oprimido naquela sociedade?
culo XIX e que era realizado "em teatro público e não
Quem seriam esses outros oprimidos que se expandi-
apenas em casa particular ou em casa semiparticular,
am dentro das "fantasias de seda"?
semipública". Esses bailes públicos que seriam, acres-
Seriam, claro está, os "efeminados" que se traja-
cento, prefigurações dos bailes nos clubes modernos.
vam de modo semelhante as mulheres e também ao
Bailes, acrescento, repetindo uma observação reali-
que Gilberto chama de "mulheres meio masculinas"
zada em outros trabalhos (Cf. DaMatta, 1979, 1981),
que se vestiam ou, para ser mais preciso, no contexto
curiosos que, em vez de confirmarem a exclusão
da festa, se fantasiavam como homens.
clubística, marcada por classe social, algum interesse
Mas além desses segmentos e categorias margi-
ou traço particular de um grupo ou segmento social,
nais, o Carnaval atingia o próprio núcleo do sistema,
universalizam-se e, invertendo sua postura, abrem o
dando também "A oportunidade a homens obrigados
clube muitas vezes exclusivo à população em geral,
por ofício ou condição social a uma solenidade quase
pois vendem ingressos como "convites", permitindo
fúnebre a pularem, saltarem e dançarem como se fos-
assim que qualquer pessoa possa, pelo menos no Car-
sem estudantes de curso jurídico".
naval, ir ao Baile do Iate Clube do Rio de Janeiro, do
A essa observação, segue um argumento socio-
Fluminense, do Sírio e Libanês, do Monte Líbano, bem
lógico impecavelmente "estruturalista". Argumento,
como ao grande baile da cidade, realizado em con-
aliás, que eu me penitencio por não ter mencionado
formidade com as desconstruções do momento
quando primeiro me vi as voltas com o mesmo fenô-
Momesmo, no templo de cultura erudita e cosmopo-
meno quando escrevi "O Carnaval como um Rito de
lita da urbe: o Teatro Municipal.
Passagem", ensaio-programa, publicado em 1973.
Mas quais são, mais especificamente, os pontos
Ausência que me custou uma justissíma admoestação
ressaltados por Gilberto?
de Gilberto, intitulada "Talvez uma Omissão do pro-
Primeiro: a partir de 1844, o baile é sintoma de
fessor Roberto da Matta", feita à pag. 71 do ensaio
mudança social. Mudança tanto da posição da mu-
Modos de Homem & Modas de Mulher. Falta da qual
lher, quanto de um modo de celebração social.
aproveito a oportunidade para me penitenciar. Pois,
"Estava lançada – salienta Gilberto – a moda e
àquela época, a não leitura de Gilberto Freyre era
desviado o carnaval fino da cidade no Brasil da tradi-
quase obrigatória. E foram os temas e o estilo de aná-
ção de 'entrudo', ao que parece oriental ou indiana,
lise, mais do que um clima intelectual politizado que
para baile de máscara à maneira francesa ou italiana"
excluía alguns autores em detrimendo da boa produ-
(pag. 110).
ção intelectual, que me aproximaram dos seus livros
Sua segunda observação se expressa num típi-
e de sua reflexão.
co e sábio contraponto. Nele, Gilberto não separa o
Diz, então, nesta segunda teoria, um Gilberto
Entrudo do Carnaval como festividades, tipos e estan-
efetivamente sociológico, mas como acentuei, mar-
ques, diferenciadas entre si, pois acentua que ambos
cado por um viés psicológico, já que as relações entre
tinham como ponto central de suas sociabilidades, um
homens e mulheres na sociedade patriarcal brasileira
espaço onde segmentos e categorias sociais mais opri-
seriam estruturadas pela repressão e opressão:
midos podiam se manifestar. Assim sendo, tanto o
Carnaval como o entrudo seriam englobados pelo "Numa sociedade como a patriarcal brasileira,
"ethos" da inversão e da liberação, um valor que per- cheia de repressões, abafos, opressões, o carnaval agiu,
mitiria a expressão de temas, sentimentos, gestos, rou- como, em plano superior, agiu a confissão: como meio
pas, cânticos e danças, de outro modo marginaliza- de se livrarem homens, mulhres, meninos, escravos,
dos e abafados no cotidiano. negros, indígenas, de opressões que, doutro modo, a
Citemos Gilberto: muitos teria sobrecarregado de recalques, de ressen-

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timentos e fobias. Os bailes de máscaras juntaram-se movida pela festa. Uma inversão que seria menos de
ao entrudo como meios de desobstrução psíquica e, fantasias e máscaras e muito mais centrada num exa-
ao mesmo tempo, social de uma população obriga- gero do feminino, conforme sugeri no livro Universo
da, nos dias comuns, a normas de comportamento do Carnaval. Na sua exibição. Na possibilidade da
que, em muitos, sufocaram tendências instintivas mulher aparecer como mulher e não apenas como
para alegrias ruidosas e tradições extra-européias de esposa, mãe e virgem. Mulher aproximada à figura
dancas sensuais. Que acentuavam um europeísmo latente e paradoxal da prostituta que controla e do-
artificial ou postiço." (pág. 111). mina homens porque pratica o sexo sem subordiná-
lo à reprodução, à paternidade e ao universo da casa
Mas, para finalizar, não seria abusado explicitar
e da família. Mulher que está livre das figuras
o que Gilberto não fez ou não viu.
controladoas dos maridos, pais, irmãos patriarcais ou
Inicialmente deve-se pôr em relevo que as in-
pós-patriarcais.
terpretações gilbertianas do fenômeno carnavalesco,
Ampliar e aprofundar essas diferenças, mostran-
centram-se no psicológico e, dentro dele, nos seus
do a linha interpretativa que descobri e desenvolvi na
efeitos catárticos e terapêuticos. O foco das observa-
minha obra seria – como diria Kipling – uma outra
ções não é no Carnaval como um modo de expressão
história. Seria sobretudo um exercício de leitura do
do Brasil – uma janela pela qual se pode "ler" a socie-
meu próprio trabalho que, no momento, deve ser si-
dade brasileira – mas, sobretudo, na população su-
lenciada diante da gigantesca dívida que todos temos
bordinada que usa o entrudo e os bailes para aliviar
com esse Gilberto Freyre que, mesmo quando
"as opressões" que a "sobrecarregava de recalques, de
tangencia temas, é tão notavelmente original, provo-
ressentimentos e fobias". Trata-se de um conjunto de
cador e intuitivo.
observações originalíssimas, mas que não têm como
sujeito a sociedade e o ritual que permite vê-la de _______________________
certo modo e por um dado ângulo, mas focalizam o
Carnaval como um mecanismo sociopsicológico des- Notas
tinado a desreprimir. 1
Edição revisitada e refeita e, como diz o próprio Gilberto, "de tal
Por outro lado, Gilberto também não usa a idéia modo renovado que, sob alguns aspectos, é trabalho novo". (Pre-
de hierarquia, presente na sua obra, como um ele- fácio à segunda edição, p. xxxiii). O que, sejamos francos, torna
difícil avaliar a originalidade, origem e momento de alguns argu-
mento básico da construção carnavalesca, fundada mentos.
numa igualdade anti-hierárquica e anti-burguesa e, 2
Sobre esse ponto, ver Norbert Elias (1987). Gilberto poderia tam-
por isso mesmo, festiva e licenciosa. Ademais, ele não bém falar da rigidez, do peso, dos fechos problemáticos (impossí-
vê o Carnaval como fazendo parte de um conjunto veis de serem abertos pelos homens, como os dos soutiens) que,
de outros rituais, todos baseados em exibições (desfi- significativamente, pareciam requerer a anuência feminina para
abri-los. E, mais importante, que essa construção da mulher e do
les, procissões, paradas militares) que são, de fato, feminino como uma entidade relativamente imóvel, tem seu lado
outras possibilidades de leitura do Brasil por si mes- positivo. Assim, a constrição dos movimentos, com a exigência
mo. Como eu tenho enfatizado na minha obra, o Brasil dos pés pequenos antigamente e, hoje, com os saltos altos e
não se esgota nem no Carnaval, nem nas festas religi- atamancados, que impedem as mulheres, mesmo as mais atléti-
cas, de correr, ressaltavam e desenhavam áreas do corpo que por
osas, nem nas festas cívicas. Mas esses momentos ce- serem redifinidas eram, por isso mesmo, alvo de desejo e de ad-
rimoniais permitem intuir isso que denominamos "Bra- miração. O fato é que, como diz Ann Hollander (1996), a partir
sil" ou "sociedade brasileira". São momentos em que, do século XVIII a moda masculina retrai-se enquanto a feminina
permitam-me a metáfora estruturalista, o Brasil se se expande, mostrando e escondendo partes selecionadas do cor-
po da mulher. Ou seja, à imobilidade também correspondia um
permite uma auto-reflexão especial – totalizada, sin- conjunto de positividades, tanto quanto à mobilidade correspondia
cronizada, coordenada e coerente – dramática – de si uma quota de deveres e obrigações, entre elas, um famoso e não
mesmo. Para Gilberto, porém, o Brasil é que faz o menos coercitivo noblesse oblige.
Carnaval. Propôr o inverso seria certamente conside-
3
Devo, porém, fazer justiça a Gilberto mencionando suas obser-
vações sobre o poder de controle e domínio moral da maternida-
rado uma démarche impensável ou um erro. de, tanto em Sobrados e Mucambos, quanto de modo talvez mais
Em outras palavras, Gilberto centra sua análise solto, no texto ficcional, por ele qualificado de "semi-novela", Dona
nos aspectos catárticos ou emocionais, deixando de Sinhá e o Filho Padre (Rio de Janeiro:Ediouro, 2000).
lado a dimensão política da festa. Mas ele vê muito 4
Penso sobretudo no livro Sex and Temperament in Three Primitive
bem o Carnaval como mediação simbólica de um Societies, publicado em 1935.
5
Em relação a essa tese que equaciona "desejos sufocados" e con-
conflito entre "normas de comportamento" e como
fissão, penso que seria preciso situar melhor melhor este sacra-
ponte entre tendências endógenas e exógenas. Do mento no contexto do catolicismo patriarcal brasileiro. Formando
mesmo modo, ele vê o Carnaval como instrumento com a Eucaristia, o Batismo, o Casamento, o Crisma, a Ordem e a
de liberação dos segmentos oprimidos, sobretudo da Extrema-Unção, um dos sete sacramentos, a Confissão (ou Peni-
tência) é um sacramento de "cura". Ao lado da Eucaristia, a Confis-
mulher, mas não fala na feminização do mundo pro-

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são não tem ligação direta e obrigatória com ritos de crise de vida obra foi modificada em 1949 e 1961. Infelizmente, nem o Autor
ou "ritos de passagem" como é o caso do Batismo, do Casamento, nem o Editor alertam para as modificações realizadas nessas da-
do Crisma, da Ordem e da Extrema-Unção. Sendo um rito de tas, o que impede uma avaliação mais detida da origilinalidade de
cura, a confissão tem singularidades. A mais óbvia é que ela pode certos argumentos, pois o que seria pioneiro em 1936, não tem o
ser realizada rotineiramente, dependendo da sensibilidade do fiel, mesmo peso em 1949 ou 1961. Veja a nota seguinte.
do elo entre o devoto e o confessor, bem como da rotina religiosa 12
Trata-se, como assinala Gilberto no prefácio á segunda edição,
do grupo. Sabe-se que a confissão semanal obrigatória é comum de capítulo novo que, ao lado dos títulos "Ainda o Sobrado e o
em seminários e colégios católicos. Neste caso, a confissão seria Mucambo"; "Raça Classe e Região"; “Animal, Escravo e Máquina"
um rito terapêutico e catártico, mas também um gesto rotineiro e e "Em Torno de uma Sistemática da Miscigenação no Brasil Patriar-
formal. Deste ângulo, pode-se arguir, contra Freyre, que na socie- cal e Semipatriarcal", constituem essa nova edição que é, reteiro,
dade patriarcal brasileira, as mulheres certamente se confessavam citando Freyre, "trabalho novo"(Cf. Freyre, 1949-1961: xxxiii).
menos por estarem sufocadas de desejo e muito mais não esta- 13
Uso a edição brasileira de 1968, publicada pela Editora Martins,
rem dando a atenção que deviam aos seus maridos repressores, de São Paulo, intitulada O Homem: Uma Introdução à Antropolo-
pois sua auto-estima dependia de uma dedicação abnegada. Ade- gia, traduzida por Lavínia Vilela, numa importante coleção de tex-
mais, a confissão era requerida antes da comunhão, fazendo par- tos de Ciências Sociais dirigida por Donald Pierson, então profes-
te de uma rotina. Esse argumento relativiza a tese central de Gil- sor da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, e um dos
berto, segundo a qual haveria uma associação indiscutível entre divulgadores mais ativos do pensamento sociológico americano
confissão e desejo de cunho sexual. Um ponto, aliás, associado à entre nós.
imaginação masculina – individualista e moderna – para quem a 14
Neste contexto, devo acentuar que existem diferenças no texto
confissão seria uma forma de relacionamento extraordinário. citado por Gilberto e na tradução feita por Jamil Almassur Haddad,
6
Vale lembrar o que diz Max Weber exatamente a esse respeito: na edição brasileira de Vida no Brasil, publicada em 1976, pela
"O sacerdote era um mágico que realizava o milagre da Editora da USP em associação com a Livraria Itatiaia.
transubstanciação e que tinha em suas mãos a chave da vida eter- 15
Em relação a essas inversões, diz, o antropólogo Milton Singer,
na. O indivíduo podia voltar-se para ele arrependido e petinente. falando exatamente do culto comemorativo das relações entre
Ele dispensava reparação, esperança e graça, certeza de perdão Radha e Krishna na cidade de Madras e estranhamente ecoando o
e, assim, garantia o relaxamento desta tremenda tensão à qual o
que eu mesmo disse sem tê-lo lido do Carnaval brasileiro: "O ob-
calvinista estava condenado por um destino inexorável que não
servador americano dos bhajana (cânticos devocionais) de Radha-
admitia alívio algum" (Cf. Weber, 1992: 81).
Krishna tende a interpretar a atmosfera amistosa de sociabilidade
7
O papel e o lugar da prostituta no campo da ideologia brasileira informal, o contato entre as castas e seitas, os abraços e prostra-
foi sem dúvida bem mais elaborada nas suas implicações socioló- ções mútuos, como expressões de um espírito democrático de
gicas na ficção de Jorge Amado. igualdade" (Cf. Singer, 1966:123). Três páginas além, diz um parti-
8
No livro que escrevi com Elena Soárez sobre o jogo do bicho, cipante indiano para o antropólogo Singer: "Esta relação de com-
notei que Gilberto interpreta essa loteria do mesmo modo. Há pleta igualdade entre os devotos é sómente o seu ideal" (pág. 126).
uma teoria histórica, que apresenta o jogo do bicho como uma Mais adiante, no mesmo livro, salienta o igualmente antropólogo
sobrevivência indígena, em Casa-Grande & Senzala; e uma teoria e indianista McKim Marriot: "(…) de um estudo de N. K. Bose, eu
efetivamente sociológica, que lê esse jogo um código de comuni- deduzo que festivais da primavera que apresentam fogueiras, um
cação entre segmentos sociais distanciados pela cor, pela riqueza certo grau de licença sexual e um generalizado comportamento
e pela educação, em Ordem e Proegresso. Nesta segunda teoria, o dissoluto e "saturnálio", tem provavelmente existido em aldeias
jogo do bicho seria um modo brasileirissimo de criar espaços in- em muitas partes da Índia pelo menos por boa parte dos últimos
termediários e mediações entre grupos polares (Cf. DaMaatta e dois mil anos". (Marriot, 1966:210).
Soárez, 1999). 16
A respeitável e sempre precisa Encyclopeadia of Religion and
9
Ou num repetidor de Eneida (1958) quando, com Mario Souto Ethics, editada por James Hastings, no seu artigo sobre "Carnival",
Maior escreve, em 1974, sobre as origens e a história do carnaval assinada por C. Rademacher, nada diz de uma possível relação
brasileiro, deixando de lado seus aspectos sociológicos e culturais. entre o carnaval e o holi indiano. Mas o ensaio obviamente alude
Cf. Freyre e Souto Maior, 1974. sôbre as raízes greco-romanas dos carnavais e Fasenacht europeus.
10
Robert H. Lowie, aluno e seguidor de Boas, diz do mestre a Veja-se Hastings, Vol. III.
respeito de sua atitude vis-à-vis a difusão de elementos culturais: 17
Não será preciso ser especialista no campo do parentesco para
"Boas relaciona culturas como um todo, mas tem como regra o compreender que, na India, o sistema de parentesco é baseado
fato de estarem em regiões adjacentes". (Lowie, 1937:159). Nessa na "troca de irmãs", para seguir o vocabulário clássico de Claude
obra, Lowie lembra como Smith e Perry favoreciam o Egito como Lévi-Strauss (1949). Neste sistema, como ensina Louis Dumont, a
um centro mundial de difusão, pois o ponto de partida desses afinidade é concebida como sendo anterior à consangüidade. O
estudiosos era o postulado de que os seres humanos pouco inven- justo oposto ocorre entre nós dificultando a compreensão dos cha-
tavam. Diante dessa visão cautelosa de Boas, não deixa de ser mados sistemas fundados em "alianças matromoniais" como é o
interessante assinalar que Gilberto abraça explicitamente o caso da Índia (Cf. Dumont, 1961).
difusionismo, evitando contudo entregar ao evolucionismo. Assim, 18
No site: www.http://india.indiagov.org./culture/festival/
não se encontra em sua obra nenhuma referência a escalas de holi.htm .Veja-se também os verbetes "Sacred Rites and
atraso ou progresso ou, ainda, sub ou pré-desenvolvimentismo. Ceremonies" e "Holi", na Encliclopédia Britanica. Sabe-se, ademais,
Evitando uma visão universalista da sociedade humana, Gilberto que Krishna e Radha não são marido e mulher, mas amantes, o
manteve-se fiel aos ensinamentos de Boas, dando mais atenção à que os liberta das obrigações matrimoniais que governam o casa-
difusão de traços culturais de uma sociedade para outra, do que mento indiano, com a mulher sendo englobada pelo marido. É
lendo a dinâmica social por meio de "fases" ou "etapas" inevitáveis claro que o Holi celebra, entre outros aspectos, essa singular
e preestabelecidas, como faz o evolucionismo. Com isso, Gilberto individualização do amorosa entre Krishna e Radha. Para um estu-
foi mais capaz de perceber as diferenças da sociedade brasileira, do notável do amor e destas relações, veja-se Mello, 1994.
do que suas semelhanças relativamente a outros sistemas. O caso 19
Sobre essa fragmentação, veja-se também Bakhtin (1974) e
dos marxistas tem sido o exato oposto.
Goethe (1991), cujas notas sobre o Carnaval Romano dos 1780'
11
Ao leitor atento fica o mistério de como um livro datado de referem-se às suas várias facetas e episódios.
1936, cite uma fonte de 1949 até que ele tenha em mente que a

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20
Não resisto a tentação de dizer que o observador americano e LINTON, Ralph. O homem: uma introdução à antropologia. São
imbuído de espírito e ethos protestante, interpreta a festa de Paulo: Martins, 1968.
Krishna como sendo um exercício periódico de desconstrução do LOWIE, Robert H. The history of ethnological theory. New York:
mundo social, contrastando essa visão com a idéia do Juizo Final Holt, 1937.
Cristão. Deste modo, para McKim Marriot, o Holi indiano seria MARRIOT, McKim. The feast of love. In: SINGER, Milton (Org.).
um exercício periódico de fim do mundo, ao passo que no univer- Krishna: myths, rites, and attitudes. Chicago: Chicago University
so cristão tal momento só ocorreria uma vez. Caso, entretanto, Press, 1966.
McKim Marriot tivesse conhecimento do Carnaval, ele certamen-
MELLO, Josefina Lúcia Pimenta Lobato de. A gestão do amor:
te mudaria sua interpretação pois, no universo católico, o Carna- domesticação e disciplina. Brasília, 1994. Tese (Doutorado em
val (tal como o Holi) ensaia anualmente uma desconstrução do Antropologia). Universidade de Brasília. 1994.
mundo. Só que se trata de uma catástrofe festiva e risonha o que,
por outro lado, aproxima a cosmologia cristã na sua variante cató- SINGER, Milton. The radha-krishna bhajans of madras city. In:
lica de Krishna, pois ambas relativizam e, no limite, rejeitam, este SINGER, Milton (Org.). Krishna: myths, rites, and attitudes.
mundo. Chicago: Chicago University Press, 1966.
WEBER, Max. A ética protestante e o espiríto do capitalismo. São
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______, ______. Sobrados e mocambos: decadência do patriarca-
do rural e desenvolvimento do urbano. 3. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1961.
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das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regi-
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transição do trabalho escravo para o trabalho livre e da mo-
narquia para a república. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
2v.
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64
A Estratégia de Sobrevivência da
Caatinga e o Uso Sustentável da Terra no
Nordeste
Toshie Nishizawa
Geógrafo/Ambientalista – Seitoku University – Japão

É uma grande honra para mim partici- Recentemente investiguei, ao redor de


par deste Seminário Internacional, por oca- Petrolina e Juazeiro, o uso sustentável de ter-
sião do centenário do Doutor Gilberto Freyre ras agrícolas. Atualmente existem 8 (oito) pro-
e é também um grande prazer apresentar mi- jetos da Codevasf ao redor desstas cidades.
nha idéia sobre A estratégia de sobrevivência A região é freqüentemente chamada de:
da caatinga e o uso sustentável da terra no "a segunda Califórnia", por causa de sua pro-
Nordeste, na seção Homem, Cultura e Trópi- dução de frutas tropicais, que todos conhe-
co. cem.
Durante 30 anos (deste 1971) realizo Na pesquisa ecológica da caatinga, que
pesquisas de campo nos Trópicos Brasileiros: realizei em conjunto com o Dr. Akio Tsuchiya
Amazônia e Nordeste. Nestes trabalhos de (Universidade de Hiroshima) e Profa.
campo aprendi muitas coisas, e não apenas Magdalena Vieira Pinto, identifiquei, através
Ecologia e aspectos do Meio Ambiente, mas das árvores, uma característica especial da
também particularidades da vida Brasileira. caatinga sob o clima semi-árido.
Lembro-me especialmente do termo brasilei- Identifiquei que a taxa de resposta das
ro "bagunça organizada". Em minha primeira árvores ao acúmulo anual de água e a tole-
viagem de pesquisa ao Brasil, minha dileta rância ao "stress" do déficit anual de água,
amiga, que tem sido como uma irmã para podem ser analisados pelos anéis dos troncos
mim, Maria Magdalena Vieira Pinto, que mora das árvores. A figura mostra a relação entre a
no Rio de Janeiro, ensinou-me esta expressão taxa de resposta e o grau de tolerância ao
que impressionou-me. Eu nunca a esqueci e "stress" em 16 espécies. Essas espécies foram
penso que esta seja uma importante idéia para classificadas em três grupos:
a paz no mundo. Grupo A: inclui três espécies, que tive-
Em janeiro passado, fiz uma conferên- ram fracos índices de tolerância ao "stress",
cia para trezentas pessoas no Japão (homens embora com taxa de resposta grande.
de negócio), sobre o seguinte tema: Aprendi- Grupo B: varia um pouco do grupo A
zado sobre o espírito de harmonia e simbioses com respeito à tolerância ao "stress", mas tam-
resultante das pesquisas de campo no Brasil. bém com a taxa de resposta grande.
Quase todos aqueles homens de negócio gos- Grupo C: inclui árvores cuja resposta é
taram da minha conferência. Eu acredito que semelhante ao Grupo B, mas sua tolerância é
tenha ensinado um novo procedimento diri- a maior de todas.
gido à paz do mundo, através do espírito de Quando comparamos esses resultados
harmonia, baseado no significado da expres- com a composição florística mantida pela ca-
são "bagunça organizada" e do conceito de atinga, pode-se estimar que as espécies do-
simbioses. minantes transitam do grupo A para o grupo
Dirigi muitos projetos de pesquisa so- B e do grupo B para o grupo C. Árvores do
bre a seca e suas causas meteorológicas no grupo A são espécies dominantes no primei-
Sertão do Nordeste e além desses trabalhos, ro estágio de sucessão das plantas, o que in-
dirigi pesquisas de campo sobre a ecologia da clui espécies pioneiras.
caatinga, especialmente sobre a composição Árvores do grupo C são dominantes no
de suas espécies e suas estratégias de sobrevi- estágio adulto e árvores do grupo B perten-
vência no clima semi-árido tropical. Por últi- cem ao estágio de transição entre o grupo A e
mo realizei uma pesquisa adicional, sobre as o grupo C.
utilidades das árvores da caatinga. Podemos reconhecer a característica da

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simbiose a partir da estratégia de sobrevivência das prietários sentiram seriamente a necessidade de me-
árvores da caatinga, porque elas têm uma individuali- lhorar os sistemas de drenagem do solo.
dade que é expressa pela taxa de resposta e pela to- Curaçá foi instalada em 1983 e dois anos de-
lerância ao "stress", e cada árvore tem uma ordem es- pois ocorreu o prejuízo da salinização do solo. Afor-
pecial na sucessão vegetal. tunadamente o senhor Mamuru Yamamoto, que é o
Essas características de resistência da caatinga pioneiro do cultivo de uvas no semi-árido tropical, já
exercerão um importante papel, na reabilitação das tinha construído um sistema de drenagem em seus
áreas degradadas da caatinga e no uso sustentável de vinhedos perto de Petrolina. Os outros proprietários
suas árvores. em Curaçá também construíram sistemas de drena-
O desenvolvimento sustentável dos recursos gem, aplicando a experiência do Sr. Yamamoto, e ti-
naturais é muito importante para os limitados recur- veram o apoio financeiro da Cooperativa Agrícola de
sos naturais e de terra do mundo. Para alcançar as Cotia.
metas de desenvolvimento econômico tanto da terra Hoje eles estão capacitados para protegerem-
como dos recursos naturais, necessitamos, não ape- se contra a salinização e praticam a produção susten-
nas do desenvolvimento científico, mas igualmente da tável de frutas tropicais, como por exemplo: uvas,
cooperação entre todos os povos com suas habilida- mangas, acerola, etc. Estes proprietários recebem
des e trabalho, como por exemplo: pesquisadores, igualmente assistência dos técnicos brasileiros para a
fazendeiros, comerciantes, homens de negócio etc. manutenção da sustentabilidade do uso agrícola do
Penso que essa cooperação deve ser estabelecida em solo.
harmonia, a qual pode ser traduzida pelo espírito da A Codevasf reconheceu a necessidade de in-
"bagunça organizada" e pelo conceito da idéia de cluir sistemas de drenagem adequados desde os está-
simbioses. gios de planejamento dos projetos, como podemos
Os projetos de pesquisa da Codevasf no Médio ver nas linhas de drenagem demarcadas no mapa de
São Francisco, próximo de Petrolina e Juazeiro, são planejamento.
excelentes exemplos de como essa harmonia tem sido Atualmente sistemas de drenagem são
praticada. construídos pelos pequenos proprietários com a aju-
Em 1973, fiz minha primeira visita ao Projeto da da Codevasf . Como mencionamos acima, a
Bebedouro – primeiro projeto da Suvale. Depois des- Embrapa está dirigindo as pesquisas de drenagem
sa visita, voltei muitas vezes a essa região para desen- desde 1974 e a Codevasf também tem acumulado
volver minhas pesquisas relacionadas com as medi- conhecimento técnico e científico em drenagem.
ções ecológicas da resistência da caatinga, como o uso Esses conhecimentos científicos e tecnológicos
da terra para agricultura de frutas tropicais e com os estão influenciando as operações agrícolas dos pro-
diferentes projetos da Codevasf . prietários brasileiros e nipo-brasileiros. Além disso,
No começo de meu trabalho de campo, dese- creio que eles estão se relacionando uns com os ou-
nhei e fotografei as árvores da caatinga e suas flores. tros, para a troca de informações sobre o sistema de
Também aprendi os nomes científicos das árvores da irrigação e drenagem, com o objetivo de melhorar o
caatinga com os botânicos, especialistas em plantas uso sustentável das terras do semi-árido tropical no
do Inpe e Embrapa. Quando fecho meus olhos posso NE.
recordar cada árvore da caatinga, como se fosse um Aproximadamente 13 anos se passaram desde
amigo. que o conceito do desenvolvimento sustentável foi
O mais importante no manejo da terra na agri- apresentado em Our common future por World
cultura da região do semi-árido tropical é o controle Comission on Environment and Development –
da salinização do solo, devido a irrigações e drena- WCED.
gens. Sobre isso, a Embrapa está desenvolvendo uma O mesmo tema – desenvolvimento sustentável
pesquisa sobre o sistema de irrigação e drenagem – foi discutido também na UNCD em 1992.
desde o início do Projeto Bebedouro, também dirigi- A cooperação entre as Agências Brasileiras: a
do pela Embrapa. Embrapa e Codevasf , e proprietários e técnicos brasi-
Em 1985, choveu naquela região quantidade leiros e nipo-brasileiros é muito importante para a
maior que o dobro de pluviosidade anual. Por causa agricultura sustentável da terra nessa região e essa
dessa grande quantidade de chuva o nível d'água no cooperação deve se basear no conceito de "bagunça
solo subiu e o sal ficou acumulado junto das raízes. organizada" e simbiose, os quais nos ajudam mais com
Essa salinidade prejudicou muito a terra dos proprie- relação à caatinga.
tários do Projeto Curaçá (japoneses e brasileiros), um
dos muitos projetos da Codevasf . Dessa forma os pro- _______________________

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Os Judeus no Pensamento de Gilberto
Freyre 1

Marcos Chor Maio


Cientista Político – Fundação Oswaldo Cruz – Brasil

Este trabalho tem por objetivo abordar médicos e administradores da burocracia es-
questão controversa na obra de Gilberto tatal. Sobretudo, o exercício da usura e a fun-
Freyre, isto é: a imagem do judeu em Casa- ção de financistas são fontes inspiradoras para
Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Gilberto Freyre utilizar a metáfora da "ave de
Ela permite, contudo, contemplar dois aspec- rapina" e a considerar essas atividades como
tos fundamentais: 1º) as relações entre raça e uma especialidade "quase biológica" dos ju-
cultura; 2º) os primórdios da modernidade no deus. A usura, por sua vez, é também consi-
Brasil. Há contenda em torno deste tópico, derada fonte de interação, de casamentos
em função da emergência, em passado recen- entre membros das elites portuguesas
te, de uma produção acadêmica que conce- endividadas e prósperos homens de negócios
be como anti-semita (Needell, 1995; Ferraz, de origem judaica (Freyre, 1938, p. 162).
1995) um conjunto de reflexões sobre o per- Não obstante caracterizar "a poderosa
fil judaico elaborado por Freyre. máquina de sucção [judaica] operando sobre
Tenho uma posição oposta a essa lite- a maioria do povo" um problema "quase bio-
ratura. Ainda que a narrativa do sociólogo dê lógico", Freyre associa, em seguida, circuns-
margem para se evidenciar a presença de uma tâncias históricas que redundaram no perfil
linguagem racialista, sugiro que o argumento de povo afeito ao comércio. Para fundamen-
substantivo de Freyre, influenciado pela con- tar sua tese, baseia-se em Max Weber quan-
cepção neolamarckiana de raça e pelo do o sociólogo alemão, na interpretação de
enfoque weberiano acerca dos fundamentos Freyre, “...atribui o desenvolvimento dos ju-
do capitalismo moderno, leva à incorporação deus em povo comercial a determinações
positiva dos judeus à nova sociedade criada ritualistas proibindo-lhes, depois do exílio, de
nos trópicos. Na verdade, o judeu freyreano se fixarem em qualquer terra e, portanto, na
é mais uma evidência da formação étnica plu- agricultura. E salienta-lhes o dualismo de éti-
ral constitutiva da identidade luso-brasileira ca comercial, permitindo-lhes duas atitudes:
(Maio, 1999). Para dar consistência a minha uma para com os correligionários; outra para
apresentação, investigo, de início, a análise do com os estranhos. Contra semelhante
sociólogo sobre os judeus em Portugal, para, exclusivismo era natural que se levantassem
em seguida, deter-me no quadro da socieda- ódios econômicos. Em virtude daquela ética
de colonial brasileira. Por fim, apresento o ou moralidade dupla, prestaram-se os judeus
papel dos judeus no processo de decadência em Portugal aos mais antipáticos papéis na ex-
do sistema patriarcal que leva Gilberto Freyre ploração dos pequenos pelos grandes” (idem).
a denominá-los como "gente quase de casa". No livro História Econômica Geral, ci-
tado por Freyre, Weber afirma que os judeus,
Os judeus em Casa-Grande & Senzala investidos do "dualismo primitivo universal
Em Casa-Grande & Senzala, na parte entre moral de grupo e moral em relação aos
dedicada ao estudo da sociedade portugue- estranhos", em face dos constrangimentos da
sa, os judeus aparecem como segmento ur- sociedade, por ser minoria no período do exí-
bano munidos de diversas identidades, a sa- lio, foram estimulados a exercitar, com o pú-
ber: agentes da empresa marítimo-colonial; blico externo, condutas comerciais que não
usurários; financistas, uma espécie de judeus eram realizadas com o público interno, como
da corte à serviço de ordens religiosas, dos era o caso da usura. Segundo Weber, o anti-
nobres, dos grandes proprietários; homens de- semitismo medieval estimulou um "capitalis-
dicados às atividades intelectuais, da ciência; mo de párias", diferente do capitalismo racio-

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nal, afinado à ética protestante, que definiu os princi- judaica. O judeu é um ser móvel e, ao mesmo tempo,
pais contornos da modernidade (Weber, 1950 [1927], estável dependendo do vínculo que viesse a estabe-
p. 359-360). lecer com o meio (Freyre, 1938 [1933]).
Freyre não leva em conta o papel do anti- Neste momento, gostaria de matizar mais uma
semitismo tradicional, caracterizado pela exclusão e vez a imagem do judeu como "ave de rapina", agora
tolerância (o "mal necessário") – na perspectiva de confrontado com a de "estoque semita". Entre a defi-
Hannah Arendt – no qual a usura é importante ele- nição de judeu como usurário, ligado à esfera da cir-
mento de mediação. Todavia relativiza a "vocação bi- culação monetária e avesso a atividades produtivas, e
ológica judaica" para a usura, atribuindo importância outra constituída por uma certa plasticidade e voca-
à ética judaica, ou seja, ao mundo da cultura e dos ção empreendedora.
valores. Considero que essas identidades, em certo sen-
Ao se voltar para o processo de colonização do tido opostas, possam ser alinhavadas por meio da con-
Brasil, em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre cepção neolamarckiana de raça. Como mostra Ricardo
apresenta uma outra versão do papel dos judeus. Nele, Benzaquen de Araújo, em seu livro Guerra e Paz,
aparece a contribuição do "estoque semita". Gilberto Freyre não teria propriamente, como tradicionalmente
Freyre o conceitua como “... gente de uma mobilida- se afirma, operado um deslocamento do foco da “raça"
de, de uma plasticidade, de uma adaptabilidade tan- para a "cultura", mas procurou, na verdade, integrar
to social como física que facilmente se surpreendem esses dois pontos de vista, integração que se tornou
no português navegador e cosmopolita do século XV. possível a partir da adoção de uma perspectiva
Hereditariamente predisposto `a vida nos trópicos por neolamarckiana. Esta concepção parte da possibilida-
um longo habitat tropical, o elemento semita, móvel de de consideração simultânea de elementos tão he-
e adaptável como nenhum outro, terá dado ao colo- terogêneos como as influências biológicas, mesológicas
nizador português do Brasil algumas das suas princi- e culturais na determinação da especificidade de uma
pais condições físicas e psíquicas de êxito e de resis- formação social (Araújo, 1994, cap. 1).
tência. Entre outras, o realismo econômico que desde Desse modo, o português, já influenciado pelo
cedo corrigiu os excessos de espírito militar e religio- judeu, ao deparar-se com a aventura colonial acio-
so na formação brasileira. A mobilidade foi um dos nou sua memória plástica em novas terras. Como afir-
segredos da vitória portuguesa” (Freyre, 1938 [1933], ma Freyre:
p. 5-6). “...Para os portugueses o ideal teria sido não
O judeu, mais uma vez, é um indicador preciso uma colônia de plantação, mas outra Índia com que
da formação híbrida, mestiça do português, de sua israelitamente comerciassem em especiarias e pedras
capacidade de incorporar características raciais e cul- preciosas; ou um México ou Peru donde pudessem
turais de outros povos. É interessante observar, que extrair ouro e prata. Ideal semita. As circunstâncias
os conceitos-chave são: adaptação, plasticidade e americanas é que fizeram do povo colonizador... com
mobilidade. Pelo menos dois desses conceitos são o sentido agrário mais pervertido pelo mercantilismo,
emprestados à biologia e mais especificamente, à tra- o mais rural de todos: do povo que a Índia transfor-
dição lamarckista. É nesta chave explicativa que o perfil mara no mais parasitário, o mais criador” (Freyre, 1938
judaico delineado oferece a possibilidade de enten- [1933], p. 23).
dimento das associações estabelecidas por Freyre en- Por influência dos supostos ideais semitas, o
tre raça e cultura na formação colonial brasileira (Maio, português, a princípio, estaria destituído dos valores
1995, p. 91-94). que associariam trabalho à produção de riqueza. Adi-
A plasticidade do "estoque semita" freyreano se ante, no entanto, curvou-se à nova realidade ameri-
revela na tipologia das formas de ocupação do terri- cana, tropical. Este novo meio ambiente, elemento
tório brasileiro. O primeiro exemplo de domínio so- intermediário entre raça e cultura, condicionou a cri-
bre o espaço é o pré-colonial, uma espécie de estado ação de uma civilização distinta, agrícola e produtiva
de natureza hobbesiano, no qual degredados e cris- nos trópicos. O judeu que já havia influenciado a for-
tãos-novos fazem parte de uma constelação junto com mação étnica portuguesa, em contato com um novo
aventureiros, que não deixaram qualquer traço de ci- meio físico e social teria revelado sua vocação em-
vilização. A segunda forma de ocupação seria a ativi- preendedora.
dade canavieira que, de fato, colonizaria o território.
Através dela aparece o "feitor judeu". Por último, re- Os judeus em Sobrados e Mucambos
vela-se o espírito semita corporificado no bandeiran- Diferentemente de Casa-Grande & Senzala, em
te, atraído pela aventura e o gosto pelo comércio. Em Sobrados e Mucambos os judeus têm uma inserção
todos os exemplos, verifica-se a suposta plasticidade social mais definida, operando assim uma nova inver-

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são do perfil judaico. A análise da decadência do pa- segunda metade do século XIX, com a
triarcado rural brasileiro está associada diretamente "reeuropeização" do Brasil, processo de
ao florescimento da cultura urbana no Brasil. Esse pro- ocidentalização influenciada pela Europa burguesa e
cesso, que se consolida a partir da vinda da família não mais ibérica. Nova formação do Estado, mudan-
real portuguesa ao Brasil, já estava em curso na ex- ças econômicas, materializadas na introdução da má-
pansão da empresa agromercantil do açúcar, na colo- quina e na constituição de um incipiente mercado
nização holandesa, na descoberta das minas, na visi- capitalista, foram acompanhadas também por mudan-
bilidade de algumas cidades coloniais, no crescente ças ideológicas e morais importantes, como a valori-
domínio sobre a esfera privada (familismo e o zação de elementos ocidentais e individualistas. Tão
mandonismo). importantes quanto as mudanças econômicas foram
Gilberto Freyre apresenta uma extensa discus- também transformações sociais amplas implicando
são sobre o caráter parasitário ou produtivo dos ju- novos hábitos, papéis sociais, profissões e, não me-
deus no Brasil Colônia. Eles são identificados com pro- nos importante, uma nova hierarquia social. Neste
cessos de diferenciação, intermediação, urbanização, cenário, Freyre assinala a centralidade do imperialis-
em suma, de autonomia. Seriam um dos agentes do mo inglês, por meio dos interesses comerciais e in-
processo de expansão da economia açucareira atra- dustriais.
vés do poder financeiro. Como Freyre assinala, “...sem Os judeus, "gente quase de casa", de origem
o intermediário judeu, é quase certo que o Brasil não oriental, não participam da reeuropeização à brasi-
teria alcançado domínio tão rápido e completo sobre leira. Freyre não os encontra nos primórdios do capi-
o mercado europeu de açúcar a ponto de só o produ- talismo moderno no Brasil. Neste sentido, coloco em
to dos engenhos de Pernambuco, de Itamaracá e da dúvida a hipótese de Needell (1995) que sugere que
Paraíba render mais à Coroa, nos princípios do século o anti-semitismo de Gilberto Freyre é uma reação à
XVII, que o comércio inteiro da Índia, com todo o seu modernidade. Em Sobrados e Mucambos, a impor-
brilho de rubis e [...] de sedas. (Freyre, 1951, p. 129). tância dos judeus é atribuída ao processo de financia-
O judeu foi também elemento de mediação mento da economia açucareira e à dinâmica da urba-
entre as tensas relações entre a "casa" e a "rua", atra- nização que estariam intimamente ligadas ao universo
vés da presença dos médicos sefarditas que penetra- rural. Talvez por influência de Weber, Freyre, ao tra-
ram na "casa", competindo com os padres no apazi- tar do capitalismo moderno que seria definido pelo
guamento da alma e do corpo das mulheres e, conceito de "reeuropeização" não atribui importân-
limitando assim, o poder patriarcal. Da mesma for- cia alguma aos judeus. Nem os banqueiros da família
ma, os mascates judeus estreitaram as relações entre Rothschild, que tiveram função primordial como agen-
a "casa" e a "rua" mediante a circulação de mercadori- te financeiro no Império e na República Velha foram
as. Intermediários do comércio do açúcar, médicos, privilegiados.2 Pelo contrário, à medida que analisa o
mascates, os judeus adquirem certa visibilidade na incipiente desenvolvimento capitalista brasileiro do
sociedade patriarcal de corte urbano. Estavam longe século XIX, sob forte influência inglesa, Freyre valori-
do estigma do parasitismo. za cada vez mais a presença dos judeus sefarditas e os
Não obstante diferenciações e distanciamentos incorpora ao mundo do Oriente em face do Ociden-
que caracterizaram as relações entre a casa e a rua, te.
entre sobrados e mucambos, Freyre acredita que, até
o século XIX, esse mundo ainda era dominado pelo Considerações Finais
Oriente, apesar das marcas européias. Diversificado, Considero que os judeus são um importante
miscigenado, distintas partes participando de um todo testemunho da "vocação portuguesa" para a miscige-
que se expressava na paisagem colorida do cenário nação. Desta forma, os judeus freyreanos não podem
urbano. Neste quadro, os judeus, que seria sinônimo ser identificados com os estigmas anti-semitas relaci-
de diferenciação, aparecem como seres supostamen- onados ao contexto político-ideológico dos anos 30,
te exóticos. Como observa Gilberto Freyre: “...a colo- a saber: a pouca afeição deste povo à assimilação, o
nização, aparentemente exótica, de Sefardins, no Bra- seu suposto enquistamento, o seu grau zero de
sil [...] foi, na realidade, colonização de gente quase fusibilidade detectado por Oliveira Viana, e, não me-
de casa. Colonização que não viria perturbar nas suas nos importante, a sua suposta vocação parisitária e
raízes o processo da integração social da nova colô- sua capacidade política de dominar o mundo medi-
nia portuguesa. Viria quase equilibrar a diferenciação ante ações conspiratórias.
com a integração” (Freyre, 1951, p. 598). Neste sentido, o uso de metáforas racialistas
A condição dos judeus como "gente quase de atribuídas aos judeus não importa à suspensão do
casa" surge a partir do contraste, principalmente, na exercício de conversão do judeu freyreano à cultura

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69
dominante (ibérica, incorporadora e holista) e, por
conseguinte, à comunidade imaginada nos trópicos.
Em pleno processo de centralização política, de imi-
gração seletiva e de tentativa de construção definitiva
de uma identidade nacional, o judeu freyreano é um
judeu híbrido, mestiço, não escapando ao ideário de
Gilberto Freyre de um Brasil mestiço, objeto de aca-
lorados debates ainda hoje.

_______________________

Notas
1
Este trabalho faz parte de um projeto mais amplo de investiga-
ção sobre os judeus no pensamento social brasileiro. No caso des-
te texto, trata-se da primeira incursão da pesquisa sobre os judeus
em Sobrados e Mucambos.
2
Em posição oposta, Gustavo Barroso, em seu livro Brasil: Colônia
de Banqueiros (1934), um dos libelos do anti-semitismo dos anos
30, chega a absolutizar a importância da família Rotschild face às
mazelas da economia brasileira. Sobre o pensamento anti-semita
de Gustavo Barroso, ver: Maio, 1992.

Bibliografia
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zala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Edito-
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1995.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família bra-
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neiro: Maia & Schmidt, 1938.
________________. Sobrados e mocambos: decadência do patri-
arcado rural e desenvolvimento do urbano. 2. ed. Rio de Ja-
neiro: José Olympio, 1951.
MAIO, Marcos Chor. Estoque semita: a presença dos judeus em
Casa-Grande & Senzala. Luso-Brazilian Review. Madison, v. 36,
n.1, p.95-110, 1999.
_______________. O mito judaico em Casa-Grande & Senzala.
Arché. v.4, n. 10, p.85-102, 1995.
_______________. Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamento anti-
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NEEDELL, Jeffrey. Identity, cace, gender and modernity in the
origins of Gilberto Freyre’s ouevre. American Historical Review.
v.100, n.1, p.51-77, feb. 1995.
WEBER, Max. Historia económica general. México: Fondo de Cul-
tura, 1964.

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


70
Os Povos Indígenas e o Mito da
Miscigenação

Marcos Terena – marcosterena@uol.com.br


Coordenador Geral dos Direitos Indígenas da Fundação Nacional do Índio –
Brasil

Os grandes mitos começam a ser parte dutivos e carentes de tudo. Incapazes para o
das diversas mesas sobre os 500 anos do Bra- trabalho da nova ordem econômica e para a
sil, especialmente no que se refere à forma- cidadania da modernidade. Milhões de pes-
ção daquilo que somos, baseado naquilo que soas indígenas pagaram com suas vidas todo
um dia fomos. A chegada de Pedro Álvares esse processo, e outros tantos que fugiram fo-
Cabral na costa atlântica em busca de novos ram perseguidos, contatados, "amansados" e
investimentos econômicos, novas conquistas transformados em dependentes do
de povos e terras. Tudo em nome de um de- assistencialismo e do paternalismo, que tam-
senvolvimento ou plano geo-político hoje bém foi uma forma de dominação.
conhecido como globalização. Depois de 500 anos, restaram apenas
Existe uma estimativa de que, naquele 350 mil pessoas com direito a 11% do territó-
tempo, havia por aqui mais de cinco milhões rio nacional, falando ainda 180 línguas, en-
de pessoas que falavam mais de mil línguas e quanto na outra face do Brasil indígena, sur-
que faziam dessas terras o Brasil 1005 indíge- giam 160 milhões de pessoas de várias origens,
na. Logo depois do primeiro encontro, das com olhos negros, verdes, azuis, castanhos,
primeiras observações lusitanas, colonizado- que cantam e dançam uma musicalidade que
ras ou catequizadoras, houve um consenso de identifica a maneira de ser brasileiro. São to-
que os primeiros brasileiros, denominados a nalidades diferentes de fazer um Brasil, e nós,
partir desse encontro de índios, deveriam ser os povos indígenas, sabemos que de alguma
"orientados", "pacificamente", para um novo maneira nossos antepassados deixaram suas
modelo de vida onde os valores tradicionais marcas nessa nova conformação, quer seja nos
nada representavam, sendo necessário, olhares, no aspecto físico, como também nas
ensinamentos básicos para a nova vida. As diversas praças, rios, pessoas e áreas que car-
vestes indígenas, a economia sustentável, a regam um nome tradicional como o Kari-oca,
riqueza sociocultural e ambiental, tudo deve- Ipanema, Anhangabau, Piracicaba, etc., o que
ria ser substituído por novos valores, que demonstra que sempre existe, em alguém ou
credenciariam aqueles povos nativos para a em algum lugar, um pedaço de índio.
nova civilização. Por outro lado, era necessá- Em todos esses aspectos, os povos indí-
rio, também, ensinar os valores religiosos, genas destacam a importância, inclusive es-
substituindo a relação direta e sagrada da for- tratégica, da mulher indígena, como ocorreu
ça espiritual com o Grande Criador através na Bahia com Catarina Paraguassu, como
de ritos e cantos, por dogmas cuja palavra ocorreu com Bartira e tantas que foram es-
chave era: pecado. quecidas pelo processo histórico, muitas ve-
Assim, aquilo que poderia ser uma gran- zes utilizando-se da sua inteligência e beleza,
de aliança entre os donos das terras e os sem para proteger os aspectos da sobrevivência e
terras de Portugal virou uma relação antagô- da continuidade de um povo, especialmente
nica, sem nenhuma contrapartida para os do ponto de vista da identidade cultural e lin-
povos indígenas a não ser a obediência, a güística. Uma mulher indígena jamais foi tra-
dominação e a aculturação física e social. tada ou considerada como uma prostituta
Os povos indígenas que sempre vive- nessa relação, mas como uma mulher digna
ram livres, que jamais conheceram o traba- da sua opção na defesa dos valores tribais. Vale
lho escravo, nunca aceitaram a subordinação, ressaltar também que numa relação interna
e, assim, de amigos foram transformados pelo da família indígena, a mulher sempre teve
sistema colonizador em preguiçosos, impro- papel preponderante nas negociações e nas

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71
decisões sobre o controle familiar, administração agrí- nome de um modelo copiado da modernidade que
cola e até nas estratégias da guerra. O homem indíge- separa povos irmãos em nome da religiosidade, da
na nunca menosprezou essa capacidade de resistên- paz e da geografia.
cia da mulher, inclusive por uma relação de afeto Os povos indígenas continuam caminhando na
maternal, também com a mãe terra. direção do futuro, um futuro que possa fazer o Brasil
Dessa forma, apesar de todo o processo de co- de nossos sonhos, com terra demarcada, urbaniza-
lonização que ocorreu contra os povos indígenas, a ção e reforma agrária compatível com as necessida-
raiz da miscigenação oriunda dos aspectos indígenas des de cada um daqueles que formam a grande Na-
foi conduzida por um processo no qual a mulher in- ção, onde os caminhos podem ser diferentes, mas os
dígena teve um papel preponderante, pois apesar de objetivos serão únicos e comuns. O mais importante
muitas vezes forçadas a isso, souberam, com o será o reconhecimento dessa possibilidade. O Índio
surgimento de um filho diferente, não tribal, transmi- não será índio como foi imposto, mas será Xavante,
tir os valores básicos das relações humanas indígenas, Fulni-Ô, Karajá, Terena, etc., com suas formas de se
como os cuidados com o meio ambiente, a família e verem e de serem vistos, muito diferente do modelo
as tradições, o que sempre foi contestado pela nova padronizado de tinturas e formas, afinal, 500 anos
família não indígena, fazendo com que todo um tra- depois, há um Brasil em busca de si mesmo e uma
balho de ensinamento bicultural, como no primeiro geração que precisa saber os valores de ser e de estar
encontro, não tivesse continuidade, pois, apesar de em uma terra que comportava a alegria e a riqueza
tudo, o objetivo de extinção dos povos indígenas con- do bem viver, baseado principalmente nos
tinuava ainda em curso. ensinamentos de cada território e cada povo deve ser
Agora quando olhamos para o Brasil do Século valorizado e respeitados como é, numa homenagem
XXI não podemos deixar de olhar o passado, raiz da ao grande Criador e à própria magia da vida!
origem de todos os brasileiros, e considerar os valores
tirados, mesmo aqueles impostos, que fez surgir um _______________________
povo que faz do seu dia-a-dia uma maneira de lutar
em busca do melhor. O Brasil, terra de nossos ante-
passados, continua com muitos valores íntegros, como
as águas doces, as águas salgadas, o cerrado, a Mata
Atlântica e principalmente o Pantanal e a Amazônia.
Sabemos que não existe uma terra com tantos valores
místicos, culturais, recursos minerais e ambientais,
como a ainda incógnita biodiversidade. Uma terra
protegida pelo sangue de nossos antepassados indí-
genas, mas que possui ainda grande força, pois acre-
ditamos, devido à força espiritual dos povos tradicio-
nais como o negro e o índio, que souberam conduzir
esses valores distante do domínio do colonizador,
indecifrável como arma de sobrevivência.
Quando os povos indígenas falam em demar-
cação das terras, não se deve olhar isso apenas como
um direito histórico, mas como um direito moral e
futurista, pois, na maioria desses territórios onde es-
tão concentrados os grandes mananciais ecológicos,
o olhar dos povos indígenas está no compartilhar dessa
responsabilidade e do usufruto das gerações futuras,
os filhos indígenas e do homem branco também.
O Brasil Indígena, o Brasil Afro ou o Brasil Eu-
ropeu devem ser vistos pela mesma forma como foi
premeditada, profetizada como um país multicultural
e multirracial, onde, segundo os costumes indígenas
deveriam ser mantidos suas diferenças, mas não que
isso devesse ser usado como mecanismo para o pre-
conceito e a discriminação que tanto tempo, deser-
tou povos inteiros, famílias e gerações, por vezes em

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72
MESA-REDONDA 3
O LUSO E O TRÓPICO

Dia 22 de março
COORDENADOR:
António Gomes da Costa
Presidente do Real Gabinete Português de Leitura – Brasil
O Luso e o Trópico Revisitado

Narana Coissoró
Vice-Presidente da Assembléia da República Portuguesa/Professor e Vice-
Reitor da Universidade Internacional de Lisboa – Portugal

O tema que eu queria trazer hoje aqui, ês Criou.


e desenvolver sucintamente, é o caso dos ter- Quem estiver disposto hoje a ler vinte
ritórios do Oriente: o Estado Português da páginas que Goa ocupa no O Luso e o Trópi-
Índia, fundado por Afonso de Albuquerque co verificará facilmente que Gilberto Freyre
em 1510, reconquistado depois em 1515 e vai ali confirmar um conhecimento daquilo
integrado por força das armas, por invasão que ele já pressentia ou, melhor dito, "sentia
militar da União Indiana, em 18 de Dezem- saber". Um grande admirador de Garcia
bro de 1961 na actual República da India, bem D'Horta, um profundo conhecedor da
como de Macau e Timor. epopeia dos portugueses nos séculos XV, XVI
Goa representa um caso especial, para e XVII, principalmente em Goa nos séculos
não dizer excepcional, de lusotropicalismo. XVI e XVII, conhecedor da história pré-portu-
Não me admira nada que Gilberto Freyre te- guesa de Goa, ciente da obra São Francisco
nha ficado não só entusiasmado como encan- Xavier, passando pela Inquisição, e do legado
tado com terras e gentes de Goa, quando, em dos vice-reis e governadores-gerais, avaliador
1951, pisou aquela terra. Diz Gilberto Freyre da forma e substância do poder político, mili-
que foi ali, em Goa, na Academia de Goa – tar e económico que Goa tinha no Extremo
que se chamava Instituto Vasco da Gama, hoje Oriente devido ao facto de ser a sede do Vice-
rebaptizado de Instituto Menezes Bragança, Reinado com domínio e jurisdição para todo
porque Vasco da Gama era um estrangeiro e o Extremo Oriente, incluindo Macau e Timor
o nome tinha de ser de um autóctone depois e, do lado ocidental na costa do Indico, ou
da invasão – que, pela primeira vez, segundo seja Moçambique. O meio-mundo português
ele próprio nos informa, pronunciou a sua que se chamou o Estado da Índia.
conferência na qual tentou demonstrar a Nos poucos dias que Gilberto Freyre
cientificidade do conceito do lusotropicalismo. está em Goa, dedica-se inteiramente a esco-
Diz o sociólogo, que hoje homenageamos, lher as pessoas que o hão-de informar em
que nesse dia sentiu um ímpeto interior que concreto sobre a realidade sociológica local.
não sabe descrever e, depois de ter verifica- É verdade que a maior parte daquilo que ele
do e calcorreado aquele pequeno território, escreve sobre Goa é fruto do seu conhecimen-
sentiu o ânimo necessário para passar de uma to anterior. Descreve os monumentos grandi-
mera intuição, aquilo que ele chama um co- osos da Velha Cidade e explica por que o são,
nhecimento de experiência adquirido, para um explica a razão da Inquisição, detendo-se a
estádio superior da sua doutrina temática, que particularmente no apartheid entre cristãos e
era a cientificidade da sua tese. Isto é, verifi- hindus, cultivado e imposto pelas Ordens
cou em Goa que, afinal, o lusotropicalismo Religiosas estabelecidas, pondera sobre a for-
poderia deixar de ser uma mera explicação ma como Portugal impôs uma cultura, uma
casual, pontual, descritiva, daquilo que, atra- língua e um determinado vestiário para os
vés de outras viagens pelo mundo português, convertidos ao catolicismo, entusiasma-se
tirando o Brasil, está claro, ele tinha acumu- com o intenso intercâmbio que os jesuítas e
lado no seu vasto saber, para dar uma nova outros religiosos fazem entre Brasil e Índia,
dimensão a esta sua conceptualização que trazendo frutas e árvores do Brasil para Índia,
depois desenvolveu em exemplos concretos como, por exemplo, levando caju do Brasil
– a integração portuguesa nos trópicos, e prin- para Goa em troca do coqueiro de Goa para
cipalmente a que já vinha de trás a partir da o Novo Mundo, o grande vai-vem que há das
Aventura e Rotina e O Mundo que o Portugu- ervas medicinais, de espécies de animais, e

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75
obviamente, além das especiarias e outras mercado- Goa, em 1951. Conhecedor daquilo que se passava
rias de consumo das elites europeias da época. A aten- no subsolo político, não há uma linha, no seu relato
ção de Gilberto Freyre, em 1951, vai servir principal- sobre Goa, sobre esse aspecto importantíssimo da
mente para testar a sua tese, com a perfeita consciência "questão de Goa" face à União Indiana e Portugal, que
de que o lusotropicalismo é uma força imanente à vai ocupar as chancelarias dos dois países e a ONU
própria sociedade lusa fixada nas zonas quentes nas durante os treze anos subsequentes. Esta situação, para
margens dos grandes oceanos, independentemente nós sabermos que não o deixou de preocupar, esta
do poder soberano ou do poder político e económico, vaga de fundo que se está a surgir, aparece mais tarde
e onde deixa antever que a língua portuguesa é de- nos seus escritos quando publica outro livro no qual
pendente da soberania para se firmar, e corre ris- fala da Conferência da Bandung, da independência
cos de extinção se não for garantida ou não for da Índia, da morte Gandhi, da possível projecção que
efectivamente apoiada em qualquer modalidade de estes enormes eventos asiáticos podem ter sobre o
poder político. E tinha razões para pensar assim, como futuro do império português do Oriente, devido às
hoje verificamos em muitas partes. independências asiáticas e as independências africa-
Quando Gilberto Freyre desembarca em Goa, nas, mas isso tudo é revisto cerca de dez anos depois.
a situação de Goa politicamente é muito frágil. A Ín- É extremamente consolador ler hoje, como Gil-
dia tinha alcançado a independência em 15 de Agos- berto Freyre visionou com a sua autoridade e experi-
to de1947, portanto três anos antes e o assassinato ência, de que suceda o que suceder a Goa ali estão
de Gandhi, o Pai Pátria Libertada, é de 1948, com lançadas as raízes que Portugal quis deixar para man-
enorme repercussão na Índia. As populações hindus, ter uma cultura goesa própria.. "Fixou-se o português
cristãs, muçulmanas de Goa querem prestar a home- em Goa como quem deitasse raízes nos trópicos, acen-
nagem aos restos mortais do Grande Apóstolo laico tue-se este esforço que nunca mais acabará por pior
do nosso século como em todos os recantos da União que sejam investidas que venham de qualquer outro
Indiana, e é uma das formas que Nehru encontrou lado" escreve com convicção cheia. Essas "raízes" são
para servir-se deste estremecimento colectivo para completamente diferentes na economia da obra
reforçar o sentimento da independência, construir o gilbertiana, diferentes daquilo que ele estudava e da-
difícil projecto da unidade indiana da Índia, passe a quilo que ele pensava e divulgava em geral sobre o
expressão, ao mandar as cinzas de Gandhi, dentro de lusotropicalismo . Por quê? Porque em Goa não há
pequenas bilhas de barro, para as mais variadas terras uma imigração dos europeus como há no Brasil e
para serem deitadas nas águas dos respectivos rios com mesmo em Angola nos meados do século XX.
o cortejo das populações que sentiam a dor do desa- Em Goa não há distinção de raças, não é um
parecimento do "santo politico", segundo os ritos melting pot, não é um cruzamento de etnias diferen-
hinduistas. O Governador-Geral de Goa da altura, tes, não há lá negros nem mestiços nem amarelos. Há
General Bernard Guedes, não deu conta que isso os goeses – indianos de diferentes religiões, mas to-
pudesse realmente fomentar qualquer surto de naci- dos da mesma etnia, ramos da mesma árvore genéti-
onalismo indiano, porque mesmo depois da indepen- ca, não há qualquer cultura imigrante que tivesse pro-
dência de 1947, não se tinham sentido as ondas do vocado o fenómeno forte de sincretismo cultural. Ao
choque em Goa. A vida corria normalmente. Havia, é contrário, encontramos em Gilberto Freyre, como
certo, um grupo integracionista clandestino e os mo- encontramos em todos outros relatos, principalmen-
vimentos dos "satyagratics", mas a maioria da popula- te a partir de Pierre de Lassale, o fenómeno
ção pensava que o problema haveria de ser resolvido multisecular da absorção pela civilização indiana, pela
diplomaticamente entre Lisboa e Nova Délhi, em que cultura hindu, dos atributos civilizacionais dos portu-
a população não teria muito que ver. Portanto, "vivia- gueses ou outros exteriores ao núcleo duro da
se habitualmente", na expressão de Salazar. Mas foi goanidade. Quando o português, nos séculos XV e
esta chegada das cinzas de Gandhi que trouxe, à Praia XVI, se fixa na Índia, adopta os usos e costumes lo-
de Gaspar Dias, isto é, à capital, do pequeno Estado, cais: vestir-se como os goeses, usar o fio sagrado que
na foz do Rio Mandovi onde haviam de ser lançadas era o sinal dos bramanes , andar de palanque, as
ao mar, uma multidão nunca dantes vista em Goa. mulheres enrolam-se em panos garridos, fazem o seu
Parecia que toda a Goa se sentia desolada com a morte darbar, isto é, a assembleia dos dignatários locais, e
do líder de dimensão universal, a quem queria pres- convivem com os brâmanes para se aconselharem.
tar as últimas homenagens . Há conflito surdo entre o poder político com técnicas
A situação política de Goa começa a partir daí a de missionação, a administração quer a cor local, aqui-
dar sinais de que nunca o futuro será como dantes. E lo que se chama a localização hoje em dia, isto é, são
é nessa encruzilhada política que Gilberto Freyre pisa raros, tirando os cargos cimeiros que os portugueses

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76
ocupam no Estado da Índia. Nasce uma economia mo tempo que condena a direita austríaca!.
paralela ao comércio intercontinental e, como hoje Quem visita Goa, não vê , qualquer idéia de
se diria, vigora o principio “um Estado, dois sistemas”; diferenciação religiosa. Hoje há casamentos inter-re-
há o sistema do comércio oceânico, que é inteiramen- ligiosos. O sistema de castas vai-se debilitando ao con-
te dominado pelos portugueses, no Índico e no Atlân- trário do que se passa na Índia onde há casos de quei-
tico e depois no Índico e no Pacífico percorrendo o mar as moças que não trazem o dote pedido pela
Extremo Oriente até ao Japão e em Goa há o sistema família do noivo; o sistema do casamento português
exportado de estrutura de poder português, o Estado civil e do casamento católico vigora ainda hoje duma
moderno europeu, adaptado à realidade indiana. Pen- maneira normal; o convívio com os estrangeiros, prin-
se-se, por exemplo na teoria do governo local através cipalmente com os turistas portugueses, é usual e
das "comunidades aldeãs" e o código de usos e costu- afectivo. Na culinária como nas artes, na arquitectura,
mes de populações não-cristãs de Goa. Os próprios como na literatura local ou mesmo nas relações quo-
hindus renunciam, face à superioridade do código ci- tidianas, quem transpõe a fronteira de Índia com a
vil português ao seu direito tradicional; temos as ins- Goa verifica que transpôs uma fronteira humana. Isto
tituições portuguesas, o Município, os Tribunais com passa-se hoje volvidos trinta anos sobre a integração
a célebre Relação de Goa, o Governador Geral, os de Goa na União Indiana.
administradores no poder local, mas quasi sempre Nos primeiros anos, depois da integração for-
esses últimos lugares são preenchidos pelos próprios çada, foram impostos os chefes administrativos india-
goeses. Esta foi a prática até 1961, principalmente nos em Goa: não duraram cinco anos. Pretendeu-se
quando foi abandonada a cidade da Velha Goa, devi- impor a língua marata do estado Maharastra que cir-
do à peste em 1768 e a capital se deslocou para a cunda Goa, os goeses recorreram ao referendo e ga-
Nova Goa, hoje Panagi, e os poucos portugueses que nharam-no. Quiseram integrar Goa dentro do estado
lá estavam abandonaram a Índia portuguesa. vizinho, os goeses pediram novamente o referendo e
Goa perdeu o comércio oceânico no século obtiveram o seu Estado da União separado. Hoje Goa
XVIII e com ele o principio "um Estado, dois sistemas".. tem deputados seus no governo central da República
Perdeu os portugueses porque não ficaram lá, e o da Índia; tem um governo local, com um ministério
poder, com a excepção do Governador Geral, foi in- local e parlamento local . A cozinha, o turismo e a
teiramente entregue aos goeses embora subordinado arquitectura fazem lembrar os velhos tempos de exis-
totalmente a Lisboa. É essa realidade goesa que, en- tência do poder português, não se mudaram sequer
tregue a si própria, mantém valores da civilização por- os nomes das ruas; simplesmente tiraram a estátua de
tuguesa, onde há mais de umas centenas de famílias, Afonso de Albuquerque e substituiram-na pela de
que falam como língua materna o português, onde se Gandhi, mas a Rua 5 de Outubro, a Rua 31 de Janei-
cultiva a religião católica que representava em 1961 ro, que nenhum goês sabe o que representam, ali
cerca de 30% da população, adoptando os ritos vi- continuam na toponimia da cidade.; a Avenida do
gentes em Portugal. Há casamentos entre goeses e por- Povo de Lisboa foi inaugurada há quatro anos, quan-
tuguesas, que vêm para Portugal para continuar seus do o Dr. Mário Soares, Presidente de Portugal, visitou
estudos e regressam sem qualquer dificuldade . Não oficialmente Goa; a Rua José Falcão lá está a intrigar
há, nem houve, casas-grandes, nem senzalas, nem os naturais; todas essas ruas que eram as ruas princi-
escravatura como disse atrás. Mantém-se até hoje o pais de Goa continuam exactamente com a mesma
sistema das castas, e a religião católica admite em Goa importância. Houve há dois anos, organizado pela
o sistema das castas quando não as fomenta, como Ordem dos Advogados de Portugal com a Associação
fez no século XVI, quando adoptou diferentes formas dos Juristas de Goa, um encontro para estudarem a
para converter os brâmanes e outros autoctones para aplicação não apenas o código civil português – cha-
converter os goeses ao cristianismo. Há uma tolerân- mam-lhe hoje "portugoes"- para as relações privadas,
cia na convivência das três religiões que não se verifi- como organizarem um código administrativo, um có-
ca no resto da Índia. digo comercial e leis de ambiente de feição portu-
Basta abrir hoje os jornais de Índia para ver as guesa. E o exemplo é de tal maneira impressivo que a
guerras que existem por causa do governo que está própria Índia está a pensar em modificar alguma par-
no poder, em Nova-Delhi, um governo nacionalista, te de sua legislação para vir ao encontro da legislação
de direita conservadora, muito mais radical, muito mais de Goa. O que é que isso significa? Significa que, por
nacionalista do que do velho partido de Nehru e onde o português passou, com poder ou sem poder,
Gandhi, mas a Índia é convidada hoje por Portugal quando quis deixar uma marca da sua natural manei-
para uma cimeira portuguesa e indiana, durante a ra de ser, soube trazer para os seus valores aqueles
Presidência de Portugal da União Europeia, ao mes- que lhe estavam próximos ou que podiam ser assimi-

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lados e trazer também para si, para Portugal, muitos ção, a fraternidade com os povos por onde Portugal
dos valores da Índia, que hoje são valores correntes passou e como Jordan fazia a prova sem saber, o por-
tanto na língua, como na culinária, como no vestir, tuguês firmou a cultura própria nas várias latitudes sem
etc. A grande moda portuguesa anunciada do próxi- saber. ..
mo verão é o sari, o traje de Goa com aquelas cores Gilberto Freyre foi o génio que soube antever
vivas que os europeus tanto apreciam. essa realidade. Ninguém terá hoje a coragem de afir-
Portanto, o que nós hoje verificamos é que o mar que fez um favor político ou prestou um serviço
lusotropicalismo não é uma fabricação colonial para ao imperialismo salazarista como foi acusado pelas
o benefício do colonialismo português ou uma dou- esquerdas e os nacionalistas anti-colonialistas da épo-
trina ao serviço de uma ideologia imperial que pas- ca, mas o lusotropicalismo constitui a própria nature-
sou definitivamente. É exactamente quando o poder za do português, a sua própria maneira de ser. Como
colonial em Goa já desapareceu em 1961, o dizia Agostinho Silva, "O brasileiro é um português à
lusotropicalismo ressuscitou e está de boa saúde e está solta", o lusotropical é o português perdido no mun-
a progredir, como Gilberto Freire previu. do. Gilberto Freire provou-o à saciedade. Vale a pena
Em Macau, apesar da transferência da sobera- reler O Luso e o Trópico.
nia, a Escola Portuguesa, pela primeira vez, tem oito-
centos alunos depois de quinhentos anos. Nunca pas- _______________________
sava de trinta, quarenta ou cinquenta alunos no Liceu
Camilo Pessanha. Foi preciso entregar Macau à sobe-
rania chinesa para que os estudantes de cinqüenta ou
sessenta, passassem para oitocentos. Foi preciso nas-
cer a Região Administrativa Especial de Macau da
República Popular da China, para que as mulheres
chinesas começarem a vestir à portuguesa, deixando
as suas cabaias, desde o dia 20 de Dezembro de 1999,
e mostrar ostensivamente, como sinal exterior de sua
identidade cultural macaense, símbolos portugueses:
a cor verde e vermelha, os pratos, as louças, as porce-
lanas e pedirem, segundo confirmei em recente visi-
ta, em alguns restaurantes, garfo e faca que substitu-
em os paus milenários. Não sei se a moda vai passar,
mas há este retomar do lusotropicalismo: a soberania
não existe, mas está ali alguma coisa que nós sabe-
mos que ficará em Macau , menos a língua portugue-
sa.
Lemos o relato do que se passa em Timor. A
grande afeição que há pelos portugueses e como Por-
tugal inteiro se levantou quando foi dos massacres
indonésios de Timor. Os timorenses referem-se aos
soldados portugueses como os "nossos soldados" que
estão ali ao lado dos soldados australianos; a vontade
que há de reintroduzir o Escudo, como moeda nacio-
nal; a adopção do português como língua oficial de
Timor ao lado de tetum; o desejo de que seja só Por-
tugal a reconstruir a administração portuguesa, refa-
zer a alfândega portuguesa, a fornecer os quadros à
universidade timorense, reconstruir a vida económica
com bancos portugueses mostra que novamente o
lusotropicalismo não é uma doutrina ao serviço do
colonialismo português.
Há males que vêm para bem: se a
descolonização foi desastrada, se deixou traumas pro-
fundos no povo português, há uma coisa que se de-
monstra: que a sociedade tem valores culturais, a afei-

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A Mulher no Universo de Casa-Grande &
Senzala

Cecília Maria Westphalen


Historiadora – Universidade Federal do Paraná – Brasil

Ubi tu Caius, ego Caia e a mulher fora de casa, a mulher senhora da


casa-grande, a mulher escrava da casa-gran-
Na amplidão do tema fundamental, a de. Enfim, no rodar desses pares, a mulher e
formação da família patriarcal brasileira, Casa- o homem, envolvendo o namoro, o casamen-
Grande & Senzala abrange incontáveis assun- to, os filhos, a fidelidade, o adultério, a sedu-
tos, situações, comportamentos, de homens ção, os parentes, os amigos, os escravos, os
e mulheres que, no exercício de seus múlti- agregados.
plos papéis, desnudam seu cotidiano, sua vida Não está hoje entre as minhas preocu-
e sua morte. pações, discutir a tese perfilhada por Gilberto
Gilberto Freyre apreendeu e compre- Freyre, no sentido de que, "tanto no sul dos
endeu o que se passava no íntimo da casa- Estados Unidos, em Cuba, como no Brasil, a
grande e no seu entorno, realizando, particu- criança e a mulher sofreram passivamente nas
larmente pelos novos objetos apresentados, casas-grandes dos engenhos e das fazendas
novas abordagens reveladas, novas de café, em virtude do sistema de produção
metodologias praticadas, como já tive opor- econômica e de organização patriarcal da fa-
tunidades de comentar, a antenova história mília" 1.
social do Brasil. Desejo, nos limites do formato da co-
No universo da casa-grande cruzam e municação, circunscrever-me ao conhecimen-
entrecruzam homens e mulheres, meninos e to da mulher na ciranda da casa-grande, se-
meninas, sejam sinhôs e sinhás, escravos e jam as negras seminuas, quase despidas como
escravas, moleques e molecas. Desnecessá- costumavam andar, sejam as negras vestidas
rio será a todos nominar nessa verdadeira de seda, cobertas de jóias e cordões de ouro.
dança e contradança. No rodar, lento ou ve- E, nos seus pares contrastantes, as mulheres
loz dos dias e das noites, todos estão ali pre- brancas simplesmente trajadas de saias de
sentes, seja de frente ou de través, na luz ou chita, e as mulheres brancas vestidas de se-
na sombra. das, cetins, cambraias ou cassas bordadas,
Hoje, entre os historiadores, particular- capas de rebuços, mantilhas de seda ou ren-
mente após as contribuições da demografia da.
histórica, privilegia-se a história de gênero, As mulheres nascidas vivas e salvas da
sobretudo a história da mulher, a história de morte por milagre, desde pequenas, a elas
todas as mulheres, como, aliás, o fez Gilberto "negou-se tudo o que de leve parecesse inde-
Freyre ainda nos anos 30. pendência". Até levantar a voz na presença
Nesta comunicação, procurarei colocar dos mais velhos era objeto de reprovação. As
em evidência no mundo que o luso criou no respondonas eram castigadas com beliscões.
trópico, como o revelou Gilberto Freyre ao O "ar humilde que as Filhas de Maria ainda
nosso conhecimento, a mulher no universo conservam nas procissões", até os meados do
de Casa-Grande & Senzala, um dos temas, ali- nosso século, "... as meninas de outrora con-
ás, de maior recorrência e cuja observação é servavam o ano inteiro", 2 observa Gilberto
substantiva para o seu complexo entendimen- Freyre.
to. Mais do que aos meninos, exigia-se bom
Interagindo diante de nós estão a mu- comportamento das meninas. Não podiam
lher branca e a mulher negra, a mulher casa- correr, saltar, pular, subir nas árvores, andar
da e a mulher solteira, a mulher indulgente e pelo quintal. Ainda me lembro que minha avó
a mulher impiedosa, a mulher dentro de casa Totonha, filha e mulher de fazendeiros, sem-

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pre conservou em seus aposentos, o temível mulher. Aliás, "sempre prisioneira, a menina branca
"Manequinho", chicote com o qual fustigava nossas estava sob as vistas de pessoa mais velha ou de
pernas quando de nossas travessuras de meninas en- mucama de confiança. À noite, a vigilância era redo-
diabradas. brada. Para as meninas e moças, reservava-se na casa-
As meninas, em geral, não tinham brinquedos. grande a alcova, ou camarinha, bem no centro da casa,
Os meninos sempre tiveram a bola, o leva-pancadas. rodeada de quartos de pessoas mais velhas". Era, na
Somente as pequenas negrinhas, filhas das amas-de- verdade, mais uma prisão do que aposento de gente
leite e das mucamas. Afinal, bonequinhas vivas com livre.5
as quais todas as judiações eram possíveis. Interes- As negrinhas molecas podiam gozar de maior
sante notar que a planta do Engenho Noruega não desenvoltura na casa-grande ou na senzala. Muitas
inclui meninas no pátio, mesmo as mulecas. Também, vezes seminuas, outras vestidas com pano da Costa.
os desenhos de Tomás Santa Rosa e os bicos-de-pena Todavia, para elas, a infância era ainda mais breve,
de Poty. logo defloradas e exploradas, sobretudo pelos bran-
Todavia, elas estão presentes nas cantigas de cos. "Foram os corpos das negras, às vezes meninas
ninar, registradas por Gilberto Freyre, entoadas pela de dez anos... que livraram as mulheres brancas do
senhora ou pela escrava mãe-de-leite. assédio sexual". Muito da virtude das senhoras bran-
cas, da sua pureza e castidade, "manteve-se à custa
Senhora Sant'Ana da prostituição da escrava negra... à custa da promis-
ninai milha filha; cuidade e da lassidão estimuladas nas senzalas pelos
vede que lindeza próprios senhores brancos" 6. Muita negrinha virgem
e que maravilha. serviu de depurativo aos brancos sifilíticos.
Esta menina Havia o contraponto, de iaiás solteironas e de
não dorme na cama, senhoras sem filhos que criavam molequinhos. O Pa-
dorme no regaço dre Lopes Gama relata o caso "de uma respeitável Si-
da Senhora Sant'Ana. 3 bila que, criando uma negrinha, que hoje terá os seus
As meninas, como a Virgem Maria, eram entre- 14 anos, esta não vai de noite para cama sem que
gues aos cuidados de Sant'Ana. primeiramente se deite no regaço de sua gorda iaiá..."7.
Sem muitos que fazeres e distrações, logo che- As meninas brancas viviam sob a tirania dos pais.
gava o dia da Primeira Comunhão, quando as meni- Depois de casadas daquela dos maridos. Mesmo an-
nas deixavam de ser crianças: tornavam-se sinhás- tes do desabrochar do corpo feminino, a menina aba-
moças. Tão importante era esse dia que, já no século fada em sedas, babados e rendas, era casada aos tre-
XIX, menina de família tirava fotografia. O próprio ze, aos catorze anos. Solteira ainda aos quinze anos
Gilberto Freyre deu-lhe presença nas ilustrações de era já objeto de preocupações.
Casa-Grande & Senzala. Os maridos eram da escolha ou da conveniên-
Gilberto, aliás, com precisão de cronista de cia dos pais. Em geral, homens mais velhos ou desco-
modas, descreve com pormenores o traje da nova nhecidos. A minha já referida avó Totonha, foi dada
menina-moça: “Vestido comprido todo de cassa guar- em casamento pelo pai, estancieiro de gado no Rio
necido de folhos e pregas. O corpete franzido. A faixa Grande do Sul, ao meu avô Luiz, tropeiro da Lapa,
de fita azul caindo para trás, com pontas largas, sobre duas vezes mais velho e a quem conhecia apenas pelo
o vestido branco. A bolsa esmoleira de tafetá. O véu espreitar nas frinchas das portas.
de filó. A capela de flor de laranja. Os sapatinhos de Namoro quase não havia, pela ausência de
cetim. As luvas de pelica. O livrinho de missa enca- oportunidades e vigilância dos mais velhos e das
dernado de madrepérola. O terço, o cordãozinho de mucamas. Diz Gilberto Freyre que, algumas, mais atre-
ouro. Cruz também de ouro”.4 vidas, namoravam nas festas, sobretudo religiosas, mas,
É verdade, como observa Gilberto Freyre, que "assim mesmo namoro e sinais de leque, de lenço ou
a maioria não sabia ler o seu livrinho. Nesse tempo, de recados trazidos pelas negras boceteiras...".8 Con-
mulher não precisava saber ler. Os pais se opunham tudo, era preciso muito cuidado, pois, havia os fuxicos
mesmo a que as mulheres fossem instruídas. É certo e as delações.
que houve exceções, de meninas alfabetizadas na Havia, é certo, casos de rebelião contra a von-
própria casa ou em Recolhimentos. O Livrinho de tade paterna. "Nem sempre os pais foram obedecidos
Missa, de madrepérola, chegou até a mim, com um nas suas escolhas de noivos para as filhas". Era co-
pormenor, era francês, trazido da Europa para minha mum os casamentos entre parentes, principalmente
mãe, pela sua madrinha, Nházinha. entre tios e sobrinhas, entre primos, motivados pelos
A instrução significava certamente liberação da interesses econômicos da família. Se atentarmos, por

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exemplo, para a genealogia do Barão dos Campos muitas que serviam também para práticas ilícitas e
Gerais, são óbvias estas alianças que efetivam mesmo criminosas.
sem o saber a velha política tu, felix Austria, nube. Temidas e respeitadas foram também as feiti-
Mas o caminho para a libertação das imposições dos ceiras coloniais. Portuguesas de origem, as bruxarias
pais eram os raptos e as fugas, nem sempre românti- foram logo dominadas pelos negros.
cas e bem-sucedidas. Havia sempre um escravo ou As mulheres de cor tiveram maior presença nas
uma mucama para favorecê-los. ruas das cidades, exercendo seus ofícios; o mais fre-
Canta-se muito a beleza de negras e mulatas. qüente, o da prostituição. Entre as negras de ganho,
Mas, as mulheres brancas, casadas, mocinhas ou me- incluíam-se as prostitutas negras e mulatas, muitas
ninas, elas não eram feias. De olhos vivos, dentes bo- vezes exploradas pelas suas próprias senhoras.
nitos, maneiras alegres aos catorze anos. Porém, abor- Também, houve prostituição de brancas, em
tos e filhos, filhos e abortos seguidos, aos dezoito anos geral oriundas de famílias de brancos pobres que "não
eram matronas. Depois dos vinte anos eram, como deixando às filhas outra herança que a da ociosidade
notou Avé-Lallement no baile de 7 de setembro de e do preconceito contra o trabalho manual, depois
1858, em Curitiba, como um lírio murcho. de adultas se valem delas para poderem subsistir".11
"Eram elas que, apesar de mais moças, iam Entre as negras de ganho, escravas ou libertas,
morrendo (primeiro) e eles (embora velhos) casando sobressaíam nas ruas das cidades, as vendedoras de
com irmãs mais novas ou primas da primeira mulher. quitutes. Negras doceiras de tabuleiro e negras de fo-
Quase uns barba-azuis".9 gareiro. Umas percorriam as ruas, outras mantinham
Na vigência do casamento, fuxicos e delações pontos fixos nos pátios ou nas esquinas.
eram o tormento das senhoras da casa-grande, so- Não só prostitutas ou quituteiras, as mulheres
bretudo motivado pelo ciúme do marido em relação negras souberam alcançar a posição de caseiras e de
às negras e às mulatas, as quais foram sempre consi- concubinas de homens brancos. Deixavam de ser ape-
deradas mais bonitas, mais sadias e mais frescas para nas para o prazer físico e aumento de capital. Até de
os brancos da casa-grande. padres que muitas vezes tinham comadres, com as
Não que as iaiás, como já se disse, não fossem quais viviam como casados, criando os afilhados ou
também bonitas. "Nem todas as modinhas celebram sobrinhos. Dessas uniões muitas foram com mulheres
o quindim das mulatas das senzalas, muitas exalta- de cor, escravas ou ex-escravas, mas outras com mu-
ram também as iaiás da casa-grande, filhas de senho- lheres brancas. Não somente as de cor serviam de
res de engenhos. Anjos louros, pálidas madonas, "eram tentação.
de fato umas Nossas Senhoras: quando saíam de De outro lado, se às muitas mulheres negras e
palanquim ou de liteira, nos ombros dos negros de mulatas faltava o comedimento e sobrava a liberação,
libré, eram como se saíssem de andor...".10 outras eram virtuosas; das senzalas, não vinha apenas
Mas, os filhos seguidos, o modo de vida na casa- o desregramento. Também, vinham boas influências,
grande, muito cedo as fazia fenecer, além dos emba- amor, carinho, com as mães negras e mucamas virtu-
tes motivados pelas rivalidades femininas. osas e honradas. Mães negras, cuja religiosidade era
A mulher branca, a senhora da casa, poucos exemplar.
ofícios domésticos exercia diretamente. Sempre hou- Houve quem sustentasse que "castidade, ver-
ve, em relação a homens e mulheres, o preconceito gonha, recolhimento, sisudez e modéstia, foram in-
contra o trabalho manual. signe distintivo das mulheres brasileiras, nelas não
Na organização da família patriarcal, encontrando nenhum traço de leviandade".12
escravocrata, estabeleceu-se uma hierarquia de ser- É certo que não são poucas as histórias de filhas
viços domésticos. Entre as mulheres, a mãe preta, as e esposas assassinadas ou mandadas matar pelos pa-
mucamas damas de companhia, as pagens; as triarcas. Pais e maridos, mais do que flagrantes, deixa-
mucamas arrumadeiras, mulatas bonitas e dengosas. vam-se levar pelas delações, "ou de frade ou de es-
Na cozinha, cada mulher tinha sua função bem defi- crava". Principalmente destas. E, como notou Gilberto
nida, no forno e no fogão: quituteiras, cozinheiras, Freyre, "as mulheres nunca se deviam considerar so-
doceiras. As criulinhas em geral cuidavam do asseio zinhas, nem mesmo para os inocentes namoros de
dos vasilhames. leques ou de lenços".13
Ofício de mulheres era aquele de fazer partos, Não nos iludamos, contudo. Nem sempre as
tanto brancas, negras ou caboclas eram parteiras. Os brancas eram flor que se cheirasse. São conhecidas
anjinhos que subiam ao céu eram incontáveis. As pró- aventuras de meninas-moças com crioulos da casa e,
prias mães não choravam os filhos natimortos. Ou- sobretudo, as judiarias que sinhazinhas ou sinhás pra-
tros filhos viriam e lá estavam as comadres parteiras, ticavam com as negrinhas, suas companheiras de brin-

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81
quedos na infância. das quase do tamanho de reinos...".18
A mulher, "vítima do domínio ou do abuso do Mulheres que, como observa Gilberto Freyre,
homem, reprimida, por sua vez, descarregava os seus foram capazes de exercer o poder patriarcal quase
ódios e frustrações sobre os escravos". É conhecido o com o mesmo vigor dos homens, "às vezes com maior
sadismo da grande senhora, sobre as mulatas, "por energia do que os maridos já mortos, ou ainda vivos,
ciúme ou inveja sexual". Tal sadismo aguçava-se "pela porém dominados excepcionalmente por elas".19 En-
fixidez e monotonia nas relações da senhora com a tre nós, no Sul, os homens ausentes, ocupados nas
escrava...".14 lides do tropeirismo, as fazendas eram dirigidas por
Porém, de outro lado, havia "senhoras que le- elas.
vavam aos próprios seios, mulequinhos, filhos de ne- Estamos distantes "da mulher-esposa que não
gras falecidas durante o parto, alimentando-os do seu se queria ouvir a voz na sala, entre conversas de ho-
leite de brancas finas".15 mens, a não ser pedindo vestido novo, cantando
Na dialética da vida da casa-grande, devem ain- modinha, rezando pelos homens".20
da ser observadas as relações de poder entre o se- E como sabiamente concluiu Gilberto Freyre
nhor e a senhora da casa, não entre homens brancos sobre o tema, "um sistema complexo como foi o pa-
e mulheres de cor, entre os quais, Gilberto Freyre afir- triarcal no Brasil, tinha que ser, como foi, um sistema
ma que "se estabeleceram relações de vencedores e de base biológica superada pela configuração socio-
vencidos",16 mas entre o senhor branco e a senhora lógica. Um sistema em que a mulher mais de uma
branca, sua esposa e mãe de seus filhos legítimos. vez, tornou-se sociologicamente homem para efeitos
A tese que perpassa toda Casa-Grande & Sen- de dirigir a casa, chefiar a família, administrar a fazen-
zala, é a do inteiro domínio do marido e da inteira da".21
submissão da mulher ao poder do patriarca. Todavia, No auge do pater-potestas, os antigos, gregos e
na própria Casa-Grande & Senzala, tais comportamen- romanos, conheciam a posição da mulher. Aquela
tos revelam nuances, do baixo ao mais elevado grau, casada segundo os ritos era a dona da casa.
sobretudo à medida que avançava o tempo para o Fustel de Coulanges, uma única vez ligeiramente
século XIX. referido por Gilberto Freyre, em uma nota, a partir de
A senhora da casa, boa mãe de família, devia Macróbio e de Dionísio de Halicarnaso, define clara-
ocupar-se unicamente com a sua administração. Para mente a posição da mulher, "obedecendo em tudo a
os seus afazeres o dia começava cedo, a fim de super- seu marido, era a dona da casa tanto como êle pró-
visionar os trabalhos domésticos: o rachar da lenha, o prio".22
acender do fogo na cozinha, ver pegar a galinha para A releitura atenta sobre a mulher no universo
a canja, ordenar o jantar das quatro horas. Dirigir os da Casa-Grande & Senzala e ante a complexidade do
trabalhos de costura feitos pelas mucamas e as molecas regime patriarcal no Brasil, apontada por Gilberto
que também remendavam, cerziam, remontavam Freyre, leva-me a concluir com a fórmula ritual que a
peças, alinhavavam a roupa da casa, lavavam, engo- mulher pronunciava no casamento romano Ubi tu
mavam, passavam. Seguia também a fabricação do Caius, ego Caia. 23 Ou seja, a mulher também podia
sabão, da vela, das torcidas. Vigiava o preparo do vi- assumir o comando da casa-grande e da senzala, na
nho, quando era o caso, dos licores, dos doces, das ausência, na omissão do marido e, por que não? Quan-
geléias. Tudo era fiscalizado pela iaiá branca que, às do estava disposta a fazê-lo de modo substantivo,
vezes, não tirava o chicote da mão. mesmo pela tentativa da sua eliminação, como foi o
Todavia, entre essas mulheres, muitas vezes caso da fazenda Fortaleza, nos Campos Gerais, rela-
franzinas, "dentro de casa cosendo, embalando-se na tado por Saint-Hilaire.24.
rede, tomando ponto dos doces, gritando para as
molecas, brincando com os periquitos... houve (aque- _______________________
las) sobretudo senhoras de engenho em que explo-
Notas
diu uma energia social, e não simplesmente domésti-
ca, maior que a comum dos homens. Energia para
1
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal. 20ª ed. Rio de Ja-
administrar fazendas, para dirigir a política partidária neiro/Brasília. Livraria José Olympio Editora/INL-MEC. 1980, p. 378.
da família, energia guerreira...".17 São conhecidos os 2
Idem. p. 421.
exemplos das pernambucanas contra os holandeses 3
Idem. p. LXVIII.
e das paulistas contra os emboabas. 4
Idem. p. 344.
E senhoras de engenhos de fazendas desse fei- 5
Idem. p. 338.
tio "não foram raras. Várias famílias guardam a tradi- 6
Idem. p. 450.
ção de avós quase rainhas que administraram fazen-
7
Idem. p. 375.

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82
8
Idem. p. 421.
9
Idem. p. 360.
10
Idem. p. 344.
11
Idem. p. 449.
12
Idem. p. 423, 425.
13
Idem. p. 421, 422.
14
Idem. p. 51, 333.
15
Idem. p. 454.
16
Idem. p. 426.
17
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: introdução à história
da sociedade patriarcal no Brasil. 2. decadência do patriarcado
rural e desenvolvimento urbano. 9ª ed. Rio de Janeiro. Record.
1996. p. 94-95.
18
Idem. p. 95.
19
Ibidem. Ibidem.
20
Idem. p. 108.
21
Idem. p. 133.
22
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Estudos sobre o culto,
o direito e instituições da Grécia e de Roma. Lisboa. Livr. Clássica
Editora. 1945. v.I. p. 144.
23
Idem. p. 143.
24
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem a Curitiba de Província de San-
ta Catarina. Belo Horizonte / São Paulo. Itatiaia / Edusp. 1978, p.
42-43.

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83
A Recepção do Luso-Tropicalismo em
Portugal

Cláudia Castelo – claucastelo@hotmail.com


Historiadora – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa –
Portugal

Introdução como objeto de estudo a condição colonial


no Brasil dos séculos XVI e XVII, mais especi-
O presente trabalho aborda a recepção ficamente o Nordeste açucareiro, sob o regi-
em Portugal do luso-tropicalismo, doutrina me de economia de plantação de base
elaborada pelo sociólogo brasileiro Gilberto escravagista, estruturada em torno da casa-
Freyre (1900-1987), e a sua influência na ide- grande e da família patriarcal dirigida pelo
ologia colonial portuguesa entre 1933 e 1961. senhor do engenho. A especificidade dessa so-
As barreiras cronológicas escolhidas relacio- ciedade resultaria da intensa miscigenação
nam-se com o percurso de estruturação do nela efetuada, quer no plano biológico, atra-
luso-tropicalismo: a primeira corresponde ao vés de freqüentes cruzamentos entre brancos,
ano de publicação de Casa-Grande & Senza- índios e negros, quer no plano cultural, pela
la, obra em que são lançados os fundamen- adoção recíproca de valores e comportamen-
tos da doutrina luso-tropicalista; a última, ao tos dos vários povos em contato.
ano de publicação de O Luso e o Trópico, li- Numa época em que o racismo se de-
vro em que a doutrina surge no seu estado senvolve nos Estados Unidos da América e na
'acabado'. Curiosamente, no panorama polí- Alemanha, e, no Brasil, as correntes dominan-
tico português, em 1933 entra em vigor a tes consideram a "mistura de raças" uma das
Constituição do Estado Novo, que considera causas principais da "degeneração" do povo
as disposições do Ato Colonial matéria cons- brasileiro, 1 Freyre valoriza a mestiçagem e vê
titucional (art. 132º); e em 1961 tem início a nela um processo positivo de constituição do
guerra colonial em Angola, é abolido o Esta- tipo ideal de homem moderno para os trópi-
tuto do Indigenato e chega ao fim a sobera- cos. Em Casa-Grande & Senzala , o autor
nia lusa sobre Goa, Damão e Diu. enaltece o contributo africano e ameríndio na
A primeira parte deste texto é dedicada formação da sociedade brasileira, "de todas
à gênese e estruturação do luso-tropicalismo. as da América a que se constituiu mais har-
Analisa-se o processo de construção da dou- moniosamente quanto às relações de raça:
trina, através da leitura das suas obras funda- dentro de um ambiente de quase reciproci-
doras. Depois, estuda-se a recepção ao luso- dade cultural que resultou no máximo apro-
tropicalismo em dois momentos distintos: o veitamento dos valores e experiências dos
do acolhimento inicial à obra de Gilberto povos atrasados pelo adiantado; no máximo
Freyre (anos 30-40) e o da apropriação (recri- de contemporização da cultura adventícia
ação) do luso-tropicalismo pelo Estado Novo com a nativa, da do conquistador com a do
(no pós-Segunda Guerra Mundial). No interi- conquistado".2
or de cada um deles, colocam-se em confron- Por outro lado, propõe uma leitura
to diferentes leituras oriundas dos campos psicocultural do passado brasileiro "escorada
cultural, político e acadêmico. na hipótese geral de que o conquistador por-
tuguês já trazia em si traços de caráter recor-
1. A Construção do Luso-Tropicalismo rentes" 3: plasticidade social, versatilidade,
1.1. As obras fundadoras apetência pela miscigenação, ausência de or-
Uma incursão prévia na bibliografia de gulho racial. O "ajustamento hábil" do portu-
Gilberto Freyre permite constatar que os fun- guês ao mundo tropical é explicado através
damentos teóricos do luso-tropicalismo são de uma interpretação causalista da mentali-
lançados logo na sua primeira obra publicada, dade e da cultura portuguesas. É aqui que se
Casa-Grande & Senzala (1933). Esse livro tem encontram com maior nitidez as raízes do

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


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luso-tropicalismo. O autor 'abre' o livro dizendo que, tem melhor do que os outros europeus às regiões
"Quando em 1532 se organizou economica e civil- quentes da América. "Ao contrário da aparente inca-
mente a sociedade brasileira, já foi depois de um sé- pacidade dos nórdicos, é que os portugueses têm re-
culo inteiro de contato dos portugueses com os trópi- velado tão notável aptidão para se aclimatarem em
cos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão regiões tropicais".10
para a vida tropical".4 A seguir passa a explicar que "a Um segundo momento de maturação do luso-
singular predisposição do português para a coloniza- tropicalismo tem tradução pública em 1937, nas con-
ção híbrida e escravocrata dos trópicos" radica no "seu ferências proferidas por Gilberto Freyre no King's
passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido College (Universidade de Londres) e nas Universida-
entre a Europa e a África".5 Essa indefinição entre os des de Lisboa, Porto e Coimbra. Essas conferências,
continentes europeu e africano, essa "espécie de divulgadas no ano seguinte no Rio de Janeiro, 11 são
bicontinentalidade" faz do português "O tipo do revistas pelo autor e reeditadas sob o título O Mundo
contemporizador. Nem ideais absolutos, nem precon- que o Português Criou (1940). Nessa obra, o campo
ceitos inflexíveis", simultaneamente "o escravocrata de pesquisa alarga-se do Brasil a todas as áreas de
terrível" e "o colonizador que melhor confraternizou colonização portuguesa. Freyre justifica o alargamen-
com as raças chamadas inferiores".6 to dizendo que "Portugal, o Brasil, a África e a Índia
No comportamento do português sente-se a portuguesas, a Madeira, os Açores e Cabo Verde cons-
tensão entre as duas culturas, a européia e a africana, tituem (...) uma unidade de sentimentos e de cultu-
a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista... ra".12
Só levando em linha de conta esses antagonismos de O autor parte do pressuposto que essa unidade
cultura, e a flexibilidade, a indecisão, a harmonia ou existe e que o português é o seu elemento fundador e
a desarmonia deles resultantes, é que se compreen- aglutinador. As características do português, já anali-
de, na opinião de Gilberto Freyre, o especialíssimo sadas em Casa-Grande & Senzala, é que conferem co-
caráter que tomou a colonização do Brasil, a forma- erência interna ao mundo por ele criado. Entre os
ção sui generis da sociedade brasileira, igualmente povos do "mundo português" ter-se-iam desenvolvi-
equilibrada desde sempre em antagonismos. Desse do "motivos e estilos de vida essencialmente os mes-
dualismo de cultura e de raça decorrem três caracte- mos, dentro da tendência geral para a mestiçagem
rísticas do povo português – a mobilidade, a que importa em pendor para a democratização soci-
miscibilidade e a aclimatabilidade – analisadas nas al".13 O amor do homem pela mulher e do pai pelos
primeiras páginas de Casa-Grande & Senzala. filhos, acima dos preconceitos de cor, de raça e de
A mobilidade, característica herdada de um dos classe, conferiu à mestiçagem, nas áreas de coloniza-
elementos que se juntam para formar a nação portu- ção lusitana, um pendor mais humano e mais cristão,
guesa, os judeus, teria sido um dos segredos da vitó- tendo permitido uma intensa mobilidade e adoçado
ria de Portugal; sem ela não se explicaria que um país as durezas do sistema de trabalho escravo. A atitude
quase sem gente, "um pessoalzinho ralo, insignifican- positiva do português para com o mestiço, considera-
te em número", tivesse "conseguido salpicar virilmen- da "única em povo europeu moderno", revela um "ele-
te do seu resto de sangue e cultura populações tão mento fortíssimo de caraterização psicológica e soci-
diversas e a distâncias tão grandes umas das outras: ológica do bloco de sentimentos e de cultura"
na Ásia, na África, na América, em numerosas ilhas e constituído pelo "mundo português".14
arquipélagos".7 Recorrendo à expressão cunhada por
No convívio com os índios e os negros, e mais Giddings,15 Freyre fala de uma "consciência de espé-
concretamente, na miscigenação, "nenhum povo co- cie" que une os luso-descendentes uns aos outros, e
lonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou que se baseia num acontecimento social e cultural –
os portugueses".8 "Para tal processo preparara-os a a miscigenação – que é a negação do purismo étnico.
íntima convivência, o intercurso social e sexual com Essa consciência, porém, não anula as diferenças re-
raças de cor, invasoras ou vizinhas da península, uma gionais: "Para o mundo transnacional ou supranacional
delas, a de fé maometana, em condições superiores, que constituimos pelas nossas afinidades de sentimen-
técnicas e de cultura intelectual e artística, à dos cris- to e de cultura, portugueses e luso-descendentes, a
tãos louros".9 mestiçagem representa, ao mesmo tempo que um ele-
A terceira condição que favoreceu o português mento de integração (...), um elemento de diferencia-
na conquista de terras e no domínio de povos tropi- ção e, por conseguinte, de criação, de iniciativa, de
cais foi a aclimatabilidade. Nas condições físicas do originalidade".16 Realidades aparentemente contradi-
solo e do clima, Portugal assemelha-se mais a África tórias, "unidade" e "regiões", harmonizam-se e com-
do que à Europa; daí que os seus habitantes se adap- pletam-se.

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Em Casa-Grande & Senzala, Freyre sustenta a contato com mouros e judeus... No entanto, o "pa-
sua interpretação psicocultural da formação da socie- rentesco sociológico do português civilizador dos tró-
dade brasileira numa leitura pessoal das predisposi- picos com o árabe ou o maometano – dominador mais
ções de caráter do colonizador português. Em O Mun- antigo do mesmo espaço".19 – ganha agora ainda mai-
do que o Português Criou faz o mesmo. Agora para or relevo. 20 Freyre defende que o método mouro de
um universo mais vasto e diversificado. A interpreta- "conquista pacífica" de povos, de raças e de culturas
ção das outras áreas de colonização lusa (na África e foi assimilado pelos lusos e posto ao serviço da ex-
na Ásia) volta a assentar numa interpretação causalista pansão cristã nos trópicos. O português, à semelhan-
da mentalidade e da cultura portuguesas. Sem um ça do maometano, primou não só pela mistura racial,
verdadeiro conhecimento das novas realidades que mas também pela adaptabilidade ecológica e
elege como objeto, o autor limita-se a generalizar a sociocultural.
partir do caso brasileiro. A especificidade das relações estabelecidas pe-
Ao longo dos anos de 1940, o quadro teórico los portugueses com os povos dos trópicos obedecia,
acima descrito não conheceu elementos verdadeira- portanto, a um modelo aprendido com os mouros e
mente novos. Embora Freyre continuasse o seu labor diferente do adotado pelos norte-europeus. A capa-
intelectual e bibliográfico, regressou à interpretação cidade para "confraternizar lirica e franciscanamente"
do Brasil. Os fundamentos do luso-tropicalismo, po- com africanos, ameríndios e asiáticos, para amar as
rém, já estavam lançados; passado o tempo de con- suas mulheres, para incorporar os seus valores é úni-
cepção, aproximava-se o tempo da formulação explí- ca no português. Contudo, ao "dissolver-se amorosa-
cita. A visita de Freyre a Portugal e às colônias mente" noutros povos, ele nunca perdeu "a alma ou o
portuguesas, no início da década de 50, a convite do sentido cristão da vida".21
ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues, seria A idéia de que a expansão portuguesa foi ani-
determinante nesse processo. mada por "desígnios cristãos" conhece, no âmbito da
formulação do luso-tropicalismo, novos contornos.
1.2. A formulação de um novo conceito Freyre defende que "só um povo europeu se está re-
É o próprio Freyre que confessa que na sua via- velando nos trópicos mais cristocêntrico do que
gem por "terras portuguesas" sentiu confirmada uma etnocêntrico. Esse povo é (...) o português, tipicamente
intuição antiga17 e encontrou a expressão que lhe fal- português, desde a Ásia conhecido mais por cristão
tava para caracterizar "aquele tipo de civilização lusi- do que por luso ou por português". 22 Também esta
tana que, vitoriosa nos trópicos, constitui hoje toda característica lusitana é associada ao contacto do cris-
uma civilização em fase ainda de expansão (...). Essa tianismo com o islamismo na Península Ibérica. Nos
expressão – luso-tropical – parece corresponder ao portugueses, o modo de ser nacionalmente portugu-
fato de vir a expansão lusitana na África, na Ásia e na ês terá sido superado pelo modo de ser cristão: um
América manifestando evidente pendor, da parte do modo de ser cristão à maneira do mouro ser
português, pela aclimação, como que voluptuosa e maometano.
não apenas interessada em áreas tropicais".18 Aquela Ao mesmo tempo que formula explicitamente
confirmação tem eco, ainda durante a viagem, nas o luso-tropicalismo, Freyre propõe a criação e a in-
conferências lidas em Goa – "Uma cultura moderna: trodução nos currículos universitários de uma
a luso-tropical (Instituto Vasco da Gama, novembro "subciência" capaz de estudar o modo português de
de 1951) – e em Coimbra – "Em torno de um novo estar e se relacionar nos trópicos; chama-lhe luso-
conceito de tropicalismo" (Universidade de Coimbra, tropicologia". Estes novos estudos, eminentemente
janeiro de 1952). O luso-tropicalismo é formulado multidisciplinares, especializam-se na análise e na in-
pela primeira vez nestas conferências, reunidas na obra terpretação do conjunto luso-tropical de cultura: con-
Um Brasileiro em Terras Portuguesas (1953). A intro- junto transnacional a que o autor aplica o critério de
dução a esse livro representa, segundo o próprio au- área. 23
tor, uma tentativa de sistematização da nova doutri- Gilberto Freyre vai escrever mais duas obras
na. sobre a temática do luso-tropicalismo: Integração Por-
As idéias mestras do luso-tropicalismo já apare- tuguesa nos Trópicos (1958) e O Luso e o Trópico
ciam em Casa-Grande & Senzala e em O Mundo que (1961). Relativamente à teorização de 1951, que já
o Português Criou. A especificidade do caráter do por- circulava em meios universitários europeus e norte-
tuguês: as suas predisposições para a "aventura ultra- americanos e obtivera a adesão de estudiosos brasi-
marina ou tropical", para a miscigenação, para a leiros, portugueses e outros, o ensaio de 1958 não
interpenetração de valores e costumes; a "dualidade traz novidades de fundo. Registre-se apenas o tom
étnica e de cultura" da sua formação; a influência do cada vez mais político e menos sociológico, a intro-

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dução dos conceitos de integração e simbiose, o acen- entre as maneiras de estar no mundo de portugueses
tuar da tendência para a generalização e o alargamen- e espanhóis que os diferenciam dos outros europeus.
to do horizonte geográfico a todas as áreas de coloni- O convívio com mouros e judeus na Península Ibéri-
zação ibérica dos trópicos. ca ter-lhes-ia deixado alguns traços comuns. Pelo
Quanto ao primeiro aspecto, cabe a Freyre ex- menos, uma idêntica sensibilidade aos métodos, às
plicar que pretende tornar a luso-tropicologia prag- técnicas e aos valores dos povos tropicais.
mática, funcional, encerrando um projeto de ação e O Luso e o Trópico reúne um conjunto de en-
um sentido político: "Político na acepção de uma po- saios, alguns já divulgados em conferências ou publi-
lítica de cultura e de uma política de migração den- cados em revistas, em torno de diferentes aspectos
tro do mundo lusotropical. No sentido, também, de do luso-tropicalismo: ecológicos, biológicos, sociais,
uma política econômica. No sentido, ainda, de afir- culturais, artísticos, lingüísticos e religiosos. No prefá-
mação ou reafirmação de uma política de democra- cio, o autor confirma que esses ensaios têm um senti-
cia étnica que avigore em todos os membros da co- do comemorativo: assinalar a passagem do quinto cen-
munidade lusotropical a resistência aos etnocentrismos tenário da morte do infante D. Henrique, "que
vindos de povos vizinhos ou de minorias étnico-cul- concorreu decisivamente para dar às relações de eu-
turais que se concentrem dentro da própria comuni- ropeus com não-europeus, de brancos com povos de
dade, em desarmonia com as tradições e os sentimen- cor, um rumo peculiarmente luso-cristão".26 Não dei-
tos castiçamente lusitanos".24 Na verdade, a civilização xa, no entanto, de referir a sua "atualidade", numa
que Gilberto Freyre descreve e interpreta não existe, conjuntura internacional em que se tornava "neces-
é antes uma aspiração, um destino. Ancorando-a em sário e essencial ao mundo que se reorganize o en-
pressupostos psicológicos e históricos, o autor vai nos contro, sob a forma de um encontro entre iguais do
falando das suas características, para no fim agendar Ocidente com o Oriente (...), através da miscigena-
a sua plena concretização para os próximos decêni- ção e da interpenetração de culturas".27
os. Esses ensaios não põem em causa os conceitos
A "integração" inscrita no título refere-se ao pro- e as sugestões em que o autor vem insistindo desde O
cesso simbiótico, iniciado no século XV, de união dos Mundo que o Português Criou. Seguem a mesma li-
portugueses com os trópicos, ou melhor, de fusão, sob nha de raciocínio; para depois a ultrapassarem. Por
a égide de Portugal, de elementos diversos, em ter- outras palavras: à primeira vista parece que o autor se
mos geográficos, biológicos e culturais, numa nova repete, mas, quando nos aproximamos dos textos com
civilização, a civilização luso-tropical. Ao contrário de mais atenção, reparamos que, a par das idéias já nos-
outros europeus, os portugueses teriam utilizado, no sas conhecidas, surge uma conclusão mais ousada.
sistema de relações sociais que estabeleceram nas re- Estaria em curso um processo de formação de um ter-
giões quentes, "métodos de integração" e não de sub- ceiro homem ou de uma terceira cultura,
jugação ou mesmo de assimilação. Souberam buscar simbioticamente luso-tropicais. Uma nova forma de
na experiência dos outros povos, valores, técnicas e civilização, que não tinha sido considerada na tipologia
costumes que lhes permitissem viver em harmonia de Toynbee.28
com as condições físicas e humanas tropicais, sem, A tese luso-tropicalista, assumida como méto-
no entanto, deixarem de ser cristãos e civilizados. do novo e dinâmico de interpretar, mas também de
Refira-se, por outro lado, o acentuar da tendên- reorientar o comportamento dos portugueses e brasi-
cia para a generalização. Do "sucesso" brasileiro, Freyre leiros, em face da nova conjuntura internacional,29
tira ilações aplicáveis a todos os espaços colonizados ganha projeção, sobretudo, por intermédio da vonta-
por Portugal. Os fatores culturais portugueses, em de política dos primeiros. Essa vontade ecoa também
contato com qualquer região, povo ou cultura das em trabalhos de investigadores portugueses de diver-
terras quentes, dão origem ao mesmo processo sas áreas científicas.
simbiótico de criação de sociedades luso-tropicais. No Curiosamente, o luso-tropicalismo, aproveita-
seu conjunto, formam uma civilização com traços pró- do em alguns dos seus aspectos pelo Estado Novo para
prios que a distinguem e individualizam. justificar a permanência de Portugal no ultramar, não
Finalmente, importa chamar a atenção para o contraria, no plano teórico, o desejo de independên-
posicionamento da luso-tropicologia no quadro mais cia das colônias portuguesas. Na comunidade luso-
geral da hispano-tropicologia. 25 Situando-se o Brasil tropical ("unidade de sentimento e de cultura") pode
na América do Sul, parece que Freyre sentiu necessi- haver lugar para diversas realidades nacionais: "Pátri-
dade de alargar o ângulo de análise a todas as áreas as independentes e comunidade interdependente.
de colonização hispânica. O autor chega à conclusão Povos enlaçados numa federação de pátrias e de quase
que existe uma semelhança histórica e sociológica pátrias que se completem tanto com suas diferenças

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como com suas semelhanças".30 bre o trabalho ciclópico executado no Brasil pelos afri-
canos da costa ocidental portuguesa", mas também
2. A recepção inicial (anos 30-40) em perscrutar "até ao âmago uma sociedade criada
2.1. No campo cultural pela colaboração do homem branco e do homem
Com o objetivo de surpreender a recepção às preto".36
primeiras obras de Gilberto Freyre no campo cultural Gilberto Freyre faz parte da delegação brasilei-
português, efetuamos uma pesquisa, tanto quanto ra ao I Congresso da História da Expansão Portuguesa
possível sistemática, em revistas culturais e em pági- no Mundo, realizado em Lisboa no verão de 1937.
nas literárias de jornais portugueses. Durante a sua estadia em Portugal, profere conferên-
A primeira referência a Casa-Grande & Senzala cias nas universidades de Lisboa, Porto e Coimbra e
que encontramos na imprensa portuguesa é da auto- estabelece contatos com intelectuais portugueses.
ria de José Osório de Oliveira, que se correspondia Nessa ocasião, João de Barros manifesta, no Diário de
com Gilberto Freyre desde 1931. 31 A referência surge Lisboa, a sua concordância com a idéia de que a au-
num artigo intitulado O Negro: contribuição brasilei- sência de problemas raciais em Portugal e no Brasil é
ra para o seu estudo, publicado na revista O Mundo um elemento de aproximação dos dois países e exal-
Português, em abril de 1934. O autor refere-se à afir- ta o contributo de Freyre na divulgação desse "con-
mação, entre investigadores e escritores brasileiros, ceito amplo e original".37
de uma nova forma de olhar o negro e de avaliar o Em novembro do mesmo ano, Maria Archer
seu contributo na formação do Brasil. Destaca o pa- publica, na Seara Nova, um texto sobre Sobrados e
pel do psicanalista Arthur Ramos, do poeta Jorge de Mucambos.38 A leitura da mais recente obra de Freyre
Lima, do romancista Raul Bopp e do "livro notável" conduz essa escritora à reflexão sobre a colonização
Casa-Grande & Senzala na valorização do negro e da portuguesa fora do Brasil. O livro despertou-lhe re-
sua cultura. E incita Portugal a "acompanhar de perto cordações de paisagens africanas e de aspectos soci-
os estudos de africanologia feitos no Brasil, pelos pro- ais da presença lusitana na África. "Recordações e in-
gressos já registados no conhecimento psicológico do terrogações. Porque é caso para cismas, este de vermos
negro – elemento da nossa acção ultramarina e valor o português, em face de terra tropical, com o negro
importante do nosso Império".32 escravo domado ao trabalho, e idênticas condições
Em novembro de 1934, Osório de Oliveira vol- de insalubridade no clima e resistência dos naturais,
ta a publicar em O Mundo Português um artigo que, produzir na América uma civilização característica e
embora não inclua nenhuma referência explícita a na África manter a colonização estacionária, incolor,
Gilberto Freyre, reflete a leitura da sua obra e a ade- em regime de exploração e não em gestação de naci-
são a uma das 'traves-mestras' do seu pensamento: a onalidade".39 Os resultados diferentes obtidos no Brasil
importância da mestiçagem na colonização portuguesa e na África intrigam Maria Archer. A autora conclui
do Brasil. 33 A apologia da miscigenação como pro- que "o milagre não deu gêmeo" e propõe duas expli-
cesso colonizador das terras tropicais é, tal como na cações para esse fato: "a política colonial tendente a
obra de Freyre, fundamentada na história. 34 desmerecer a mestiçagem" e a ausência de amor no
Ainda em 1934, Carlos Malheiro Dias inclui um contato do português com o negro e a África. 40
capítulo dedicado a Casa-Grande & Senzala no seu Três recensões críticas assinalam a recepção em
livro Pensadores Brasileiros. Os pequenos reparos que Portugal da obra Conferências na Europa, no ano da
faz ao trabalho de Freyre não comprometem uma sua publicação no Rio de Janeiro (1938).41 Os seus
apreciação global extremamente favorável. Este inte- autores são Antônio Sérgio, Manuel Múrias e Vitorino
lectual monárquico defende que "nunca os trabalhos Nemésio.
anteriores dedicados no Brasil a este complexo capí- Antônio Sérgio reporta-se exclusivamente à pri-
tulo da sociologia (...) atingiram a solidez deste mo- meira conferência incluída no livro: Aspectos da in-
numento de inteligência dirigida pela erudição, tanto fluência da mestiçagem sobre as relações sociais e de
no seu realismo como no senso objectivo que o ani- cultura entre portugueses e luso-descendentes. Con-
ma".35 A ausência de preconceitos na valorização do corda que existe uma "aspiração comum" aos "luso-
papel do negro na formação da sociedade brasileira e descendentes". E cita a este propósito uma passagem
no tratamento de temas como a mestiçagem e a se- da conferência em que Freyre defende que "a nova
xualidade merecem-lhe elogio. A grande novidade e cultura transnacional de origem portuguesa" já se está
principal mais-valia da obra Casa-Grande & Senzala, revelando "em expressões as mais diversas" de "vigor
"logo considerada clássica no sentido da consagração, híbrido", "marcadas por um desejo ou uma aspiração
e que nenhum colonialista português tem o direito comum, ainda indefinida".42
de ignorar", reside não só em projetar "luz intensa so- A citação dá lugar à interrogação: "se é ainda

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indefinida a aspiração comum", "o que nos é dado social, realizada pela criação de um agente de coloni-
fazer para que se defina e afirme, para que realce e zação extremamente móvel: o mestiço".49
avulte"? O problema parece-lhe "bifronte", com uma A primeira referência, contudo, vai para a
face que se volve para a inspeção do passado, e para metodologia utilizada por Freyre: "(...) compromisso
o futuro a outra. Sérgio concorda com Freyre no que entre a construção histórica de tipo heurístico e
diz respeito à primeira face e remete o leitor para o evocativo e o recurso às ciências do físico e do ético,
seu compêndio de História de Portugal (Barcelona, destinadas a dar ao desenho histórico a consistência
Labor). Nessa obra, apresenta um retrato do portugu- de que a fluidez dos terrenos de explicação é a gran-
ês semelhante ao traçado em Casa-Grande & Senzala. de inimiga".50 Depois surge "a idéia mais interessante"
Quanto à face do problema voltada para o fu- que Nemésio retira destas conferências: "(...) a identi-
turo, não a enquadra no domínio da história social, dade fundamental que subsiste, no pensamento his-
mas no domínio da filosofia, da moral e da pedago- tórico de Gilberto Freyre, entre o agente europeu e o
gia. Por isso, considera que Freyre, ao elogiar e exal- reagente sul-americano na formação do Brasil. Gil-
tar o pendor português para a hibridação de povos e berto Freyre vai tão longe nessa linha geral da sua
culturas, para o transnacionalismo, para a democra- visão do Brasil que a integra num arco amplíssimo,
cia social, "não se esquiva à responsabilidade de um transnacional, o que ele chama um ‘bloco de senti-
julgamento ético; e acrescenta assim ao critério do mento e de cultura, uma pátria maior, que é a unida-
sociólogo o critério do filósofo e do moralista: não só de cultural formada pelas várias expressões humanas
diz o que é mas o que deve ser".43 de esforço português espalhadas sobre o mundo mo-
Manuel Múrias, que opta por recensear o con- derno e a tão grandes distâncias umas das outras’.51
junto da obra, considera que esta pode "ajudar a es- Em fevereiro de 1939, José Osório de Oliveira
clarecer alguns pontos ainda obscuros da história por- regressa à problemática da miscigenação. Agora para
tuguesa e do feitio próprio dos portugueses nas suas questionar "a suposta inferioridade do mestiço".52 A
relações com os povos que foram encontrando na favor da sua argumentação, convoca "o autorizado
África, na América e no Oriente, a partir da primeira Gilberto Freyre". Com citações abundantes retiradas
metade do séc. XV".44 Congratula-se com o alargamen- da obra Conferências na Europa, procura evidenciar
to às colônias portuguesas de idéias que Freyre já apre- as qualidades intelectuais, artísticas e morais dos mu-
sentara em Casa-Grande & Senzala para a formação latos brasileiros. Mas faz questão de considerar que
do Brasil. Por exemplo, a predisposição para a essas qualidades se devem à singular colonização lu-
mestiçagem que "se pode verificar ainda hoje em cer- sitana.
tas colônias portuguesas, como Angola (...), apesar de Osório de Oliveira aproveita também para 'es-
já não escassear a mulher branca".45 clarecer' um aspecto do pensamento de Freyre que,
A importância da teoria de Freyre reside, se- em sua opinião, tem sido deturpado e se presta a con-
gundo Múrias, em reconhecer que a tendência geral fusões. Trata-se da expressão democracia social. Com
do colono português para a mestiçagem conferiu aos o uso de tal expressão, o sociólogo brasileiro não pre-
povos da América, da Ásia e da África de formação tendia elogiar a democracia política, nem associá-la à
lusitana, condições especialíssimas de unidade psico- obra de colonização lusitana.
lógica e de cultura. 46 Adverte, no entanto, que "mais Curiosamente, em 1940, não encontramos ne-
importante do que a mestiçagem, em si, [talvez] seja nhuma recensão ao livro O Mundo que o Português
a capacidade de mestiçagem, quer dizer: a carência Criou, publicado naquele ano no Rio de Janeiro. 53 Tal-
de preconceito racista, a consciência de fraternidade vez porque o seu conteúdo já era conhecido dos in-
de portugueses sem diferença de raça ou de cor, que telectuais portugueses mais atentos à vida cultural bra-
foi normal no Brasil-colônia, como é hoje nas provín- sileira. Tratava-se de uma reedição das Conferências
cias ultramarinas de Portugal".47 na Europa, com alterações pontuais. De totalmente
Na conclusão, depois de elogiar a densidade e novo só o prefácio, assinado por Antônio Sérgio.
a riqueza das sugestões contidas nestes estudos, Múrias Leitor atento da obra de Gilberto Freyre, Antô-
critica o vocabulário usado por Freyre, nomeadamente nio Sérgio tem uma perspectiva problematizadora do
a expressão democracia social, que considera enga- seu pensamento e não se deixa obnubilar pelo prestí-
nadora e capaz de dificultar a compreensão das teori- gio que os seus livros deram à capacidade de coloni-
as expostas.48 zação dos portugueses; aliás, porque não se pensa
Vitorino Nemésio, por seu turno, põe em evi- sob a categoria do nacional.54 Depois de um prévio
dência "o que Gilberto Freyre tem como flor do gênio elogio à clareza, à distinção intelectual e à precisão
colonizador do português e, ao mesmo tempo, fer- científica com que Freyre define o aspecto de criação
mento do Brasil": – "a tendência para a democracia social da obra dos portugueses no Brasil e procura a

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explicação desse fenómeno nas características psico- Grande & Senzala e as Conferências na Europa foi acen-
lógicas, etno-culturais e históricas do povo portugu- tuada entre outros por Osório de Oliveira, Malheiro
ês, Sérgio vai levantar a sua questão de fundo: "(...) a Dias e Maria Archer.
amplidão e originalidade da criação portuguesa no Uma recepção favorável, porém, nem sempre
campo propriamente social-econômico em regiões implica leituras idênticas. Parece-nos que os intelec-
tropicais da América do Sul contrasta com a modéstia tuais de direita, sobretudo Osório de Oliveira e Ma-
do que fazemos na Europa".55 nuel Múrias, fazem uma interpretação nacionalista da
Se o êxito do português na colonização do Bra- teoria gilbertiana; põem a tônica na especificidade da
sil provém de certas qualidades intrínsecas que o tor- colonização portuguesa e, de certa forma, manipu-
naram mais apto a triunfar nos trópicos que os outros lam as idéias de Freyre. Por seu turno, os intelectuais
povos europeus, porque é que essas qualidades não de esquerda são geralmente mais críticos; fazem uma
lhe garantiram o triunfo na Europa? leitura mais profunda da doutrina, confrontando-a
Aceitando que o caráter do português é emi- com a realidade histórica e com a prática colonial na
nentemente plástico, e que foi essa qualidade intrín- África no presente. As divergências aparecem em tor-
seca que lhe permitiu adaptar-se aos trópicos, Sérgio no do termo democracia social (repudiado por Múrias,
considera que se terá de buscar em fatores extrínsecos considerado passível de equívocos por Osório de Oli-
as causas do seu insucesso na Europa. Mais concreta- veira e destacado por Nemésio) e da generalização
mente nos factores ambiente físico e relações de pro- do modelo brasileiro a todo o "mundo português", que
dução. Defende que só no Brasil o português encon- agrada a Múrias e levanta dúvidas a Maria Archer e a
trou condições físicas francamente propícias para um Antônio Sérgio.
gênero determinado pela cultura básica; na metró-
pole essas condições agro-climáticas não se verifica- 2.2. No campo político
ram. Nos anos 30 e 40, o pensamento de Gilberto
Em jeito de conclusão, o vaticínio: se no seu Freyre não conhece qualquer aceitação oficial junto
território original o português tivesse, para uma cul- do regime português. Também não colhe adeptos
tura básica, para um produto essencial, as facilidades entre os colonialistas republicanos. "Estava-se na época
de que gozam outros povos, ou aquelas que para a de afirmação do império, dos valores da Raça (uma
cana-de-açúcar lhe ofereceu o Brasil, ver-se-ia agora suposta raça portuguesa)" 58 a impor a povos conside-
noutro nível no seio da civilização européia56. rados selvagens. Acreditava-se que a miscigenação ti-
Nos anos 40, Gilberto Freyre é citado na im- nha consequências negativas e que os mestiços eram
prensa portuguesa, nomeadamente em textos sobre biologicamente inferiores. A solução estaria na colo-
questões coloniais e o intercâmbio cultural luso-bra- nização étnica, isto é, no "povoamento das colônias
sileiro. João de Barros, por exemplo, dedica-lhe al- africanas por uma população branca numerosa, de
guns dos artigos que publica no Diário de Lisboa, a ambos os sexos, para evitar a mistura racial" 59. Esta
partir de 1946. 57 perspectiva é defendida por diversos ideólogos do
No campo cultural metropolitano, a reflexão colonialismo português, nomeadamente por Vicente
sobre a obra de Gilberto Freyre mobilizou intelectu- Ferreira, numa comunicação ao II Congresso da União
ais de origens político-ideológicas muito diversas: dois Nacional (1944) que encerra uma forte crítica às teses
antigos integralistas convertidos ao salazarismo (Osório de Freyre.
de Oliveira e Manuel Múrias), um monárquico con- Para Vicente Ferreira, a mestiçagem produz efei-
servador (Malheiro Dias), um católico progressista (Pe. tos nefastos: "degenerescências dos caracteres psíqui-
Joaquim Alves Correia) e republicanos oposicionistas cos e, porventura, também dos caracteres somáticos".60
(Antônio Sérgio, João de Barros, Maria Archer, Vitorino O retrato que faz dos crioulos e dos mulatos, carrega-
Nemésio). Em comum, tinham o interesse pelas ques- do de preconceitos, é extremamente negativo. Cha-
tões coloniais ou pela atividade cultural brasileira. As ma em defesa da sua tese racista alguns antropólo-
reações foram, em geral, positivas. Saudou-se a gos, nomeadamente os portugueses Germano Correia
metodologia e a temática, a erudição e o estilo literá- e Mendes Correia e o francês René Martial. Demar-
rio, o trabalho histórico e a exortação para o futuro. A ca-se nitidamente das ideias de Gilberto Freyre, autor
centralidade da mestiçagem biológica e cultural no de Casa-Grande & Senzala, obra "de pouco valor ci-
pensamento de Freyre foi reconhecida e bem aceita entífico".61
(principalmente por Osório de Oliveira e Maria Com o objetivo de impedir a miscigenação e
Archer). O retrato do português foi quase consensual. mesmo o convívio entre brancos e pretos nas zonas
A conveniência de divulgar em Portugal, particular- de colonização étnica, assim como a concorrência
mente junto dos "colonialistas portugueses", Casa- econômica entre os trabalhadores das duas "raças",

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Vicente Ferreira propõe que se estabeleça e aplique Osório de Oliveira, 65 é dar a conhecer ao sociólogo
com rigor uma política indígena especial para as regi- brasileiro o "Ultramar português", para que ele o per-
ões de povoamento europeu. Deve promover-se uma corra "com olhos de homem de estudo" 66 e, depois,
política de segregação racial que proibisse, nomeada- produza um trabalho de reflexão sobre as realidades
mente, a utilização de mão-de-obra indígena pelos observadas. Será durante esta viagem, que assinala o
colonos portugueses.62 início da apropriação das teorias de Gilberto Freyre
Essa posição não constitui novidade na época. pelo regime salazarista, que o sociólogo brasileiro usa-
Vinte anos antes, Norton de Matos, como alto-comis- rá pela primeira vez a expressão luso-tropical para
sário da República em Angola, tinha defendido "a mais caracterizar o modo de adaptação dos portugueses
escrupulosa separação" entre europeus e "indígenas", aos trópicos.
"até chegar o dia em que a mesma educação, a mes- A 13 de agosto de 1951, Gilberto Freyre chega
ma instrução igualmente espalhada, a mesma menta- a Lisboa, onde é alvo de uma recepção "calorosa".67
lidade afastem a diferença secundária da cor" 63. Durante a sua estadia em Portugal, Freyre encontra-
Norton acreditava na superioridade da civilização se com largas dezenas de escritores e intelectuais (de
européia; inseria-se numa corrente etnocêntrica. diferentes quadrantes políticos), e com altos repre-
Nas décadas de 30 e 40, a política colonial do sentantes do aparelho de Estado, nomeadamente com
Estado Novo anda longe do etnocentrismo e mais lon- Salazar. 68 e com Craveiro Lopes. Organismos gover-
ge ainda das idéias de Freyre. Armindo Monteiro, mi- namentais, universidades, associações, institutos e
nistro das Colônias (1931-1935) e principal ideólogo homens de letras organizam-lhe recepções e sessões
da mística imperial, filia-se nas teses do darwinismo de homenagem. Sarmento Rodrigues, José Osório de
social. Não concebe o relacionamento harmonioso e Oliveira, João de Castro Osório, Antônio Sérgio, Cu-
fraterno, numa base igualitária, entre brancos e ne- nha Leão, Nuno Simões, Mendes Correia, Henrique
gros. Atribui a Portugal o "dever histórico" de civilizar de Barros, Joaquim Paço d'Arcos, Tomás Kim, Luís
as "raças inferiores" que se encontram sob o seu do- Forjaz Trigueiros, Vieira Machado, os Condes de Au-
mínio. Trata-se de proteger os "indígenas", de os con- rora, o general Norton de Matos, entre outros, rece-
verter ao cristianismo, de os educar pelo (e para o) bem-no na intimidade das suas casas.69 Só "velhos
trabalho, de os elevar moral, intelectual e material- camaradas portugueses" de "Esquerda" não o procu-
mente. A oposição rígida entre "civilizados" e "primiti- ram.70
vos" acarreta a negação dos valores alheios e inviabiliza Vitorino Nemésio, João de Barros e Leitão de
a perspectiva de reciprocidade cultural. Barros, respectivamente em editoriais do Diário de
Outra das resistências ao luso-tropicalismo re- Notícias, do Diário de Lisboa e do Século, congratu-
sulta do peso que Freyre dá ao fundo árabe na cons- lam-se com a viagem do sociólogo brasileiro e refe-
tituição do caráter nacional português. Essa idéia con- rem-se-lhe em termos claramente elogiosos.71 Os jor-
trariava a perspectiva geralmente difundida em nais (oficiais, oficiosos e independentes; da metrópole
Portugal que valorizava quase exclusivamente a "re- e das colônias) fazem uma ampla cobertura do even-
conquista cristã" e, por conseqüência, a influência to: todos os dias saem notícias sobre a visita de Gil-
européia. berto Freyre; a cada nova etapa do percurso, publi-
Parece-nos que o único aspecto do pensamen- cam-se entrevistas ao visitante, contribuindo para a
to de Gilberto Freyre que merece o aplauso unânime divulgação das linhas gerais do seu pensamento junto
dos colonialistas do regime, nos anos 30-40, prende- dos leitores portugueses; sucedem-se os artigos de
se com a confirmação da capacidade especial dos adesão às teses luso-tropicalistas, explicitadas na con-
portugueses para a colonização. Uma idéia muitas ferência lida no Instituto Vasco da Gama, em Goa.
vezes proclamada em Portugal, "sobretudo desde o A visita de Gilberto Freyre a Portugal e às colô-
último quartel do século XIX, face às pressões e ata- nias portuguesas marca também o momento de alar-
ques externos" 64. gamento e consolidação da rede de relações do soci-
ólogo brasileiro com personalidades da vida cultural
3. Apropriação do Luso-tropicalismo (anos 50-60) e política portuguesa, com o é possível confirmar pela
3.1. Um brasileiro em terras portuguesas análise da correspondência que lhe foi enviada por
Em agosto de 1951, dois meses depois da portugueses. O círculo restrito dos que se
integração do Ato Colonial na Constituição Portugue- correspondem com Freyre nas décadas de 20, 30 e
sa e da concomitante afirmação da unidade nacional, 40 (Antônio Sardinha [1923-1924], Fidelino de
Gilberto Freyre inicia uma visita por "terras lusitanas", Figueiredo [1923-1957], José Osório de Oliveira
a convite do ministro do Ultramar, Sarmento [1931-1953], Antônio Sérgio [1940-1955], Hernâni
Rodrigues. O objetivo da viagem, sugerida por José Cidade [1939/1961], Visconde de Carnaxide [1942-

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1952]) reforça-se com largas dezenas de outros no- a clássica e tradicional orientação portuguesa, (...) uma
mes nos anos 50 e 60. 72 espécie de paternalismo". 78
3.1.1. Reacções a Aventura e Rotina Segundo Vilhena, "o conceito de luso-
Da jornada de Freyre por Portugal e pelo ultra- tropicalismo está certo, na essência; o que está erra-
mar português nascem dois livros: Aventura e Rotina, do é o fazer, dentro dele, da miscigenação (...) a con-
diário de um viajante em trânsito pelos "vários dição forçada da ação portuguesa na África e o
Portugais espalhados pelo Mundo",73 e Um Brasileiro remédio para todos os nossos males, presentes e fu-
em Terras Portuguesas, coletânea de conferências e turos".79 O diretor da Companhia de Diamantes repu-
discursos proferidos durante a visita, antecedidos de dia a mistura racial; parece-lhe que "não é necessá-
uma Introdução a uma possível luso-tropicologia, como rio, e que é mesmo absolutamente dispensável, que
indica o subtítulo. Essas duas obras são publicadas no pretos e brancos durmam na mesma cama".80
Rio de Janeiro, em 1953, e em Lisboa, no ano seguin- Norton de Matos, embora por razões diferen-
te. tes, também não esconde as suas reservas de fundo
Embora a generalidade das recensões críticas e ao luso-tropicalismo. Reconhece que a leitura dos li-
das notícias na imprensa portuguesa seja muito vros de Gilberto Freyre lhe permitiu consolidar algu-
elogiosa, as reações negativas não se fazem esperar. mas das suas idéias, nomeadamente sobre a impor-
O escritor cabo-verdiano Baltasar Lopes, em aponta- tância da língua para a unidade nacional.81 No entanto,
mentos lidos ao microfone da Rádio Barlavento, da defende que não se deve repetir em Angola, em
cidade da Praia, critica as páginas de Aventura e Roti- Moçambique e na Guiné a experiência brasileira.
na dedicadas a Cabo Verde. Considera que Gilberto Considera que na formação do Brasil "houve um es-
Freyre visitou o arquipélago "a correr" e transmite uma forço comum de gente branca da Metrópole, de índi-
visão superficial e deturpada das realidades cabo- os brasileiros e de escravos pretos da África", que re-
verdianas. Um dos aspectos que mais desagrada a sultou numa fusão étnica e cultural equilibrada. Ao
Baltasar Lopes é a forma como o sociólogo brasileiro seu "ser fortemente individual, mas também fortemen-
aborda a questão do crioulo, desvalorizando-o (erra- te agarrado à nação a que pertence", repugna-lhe a
damente) enquanto instrumento literário. 74 possibilidade de simbiose luso-tropical na África.
José Osório de Oliveira também fica desapon- Por fim, registre-se o teor da recensão de Óscar
tado com a "superficialidade" de Aventura e Rotina. Lopes, professor da Faculdade de Letras do Porto, a
Num artigo publicado no jornal O Comércio de An- Aventura e Rotina. 82. À semelhança de Gilberto Freyre,
gola, a 10 de janeiro de 1954, destaca os dois aspec- este autor concorda que "a boa tradição portuguesa
tos que mais lhe desagradaram naquele livro: o trata- (pois cada povo tem a boa e a má tradição) não reco-
mento do Museu do Dundo e sobretudo de Cabo nhece o feiticismo da latitude e da longitude como
Verde. Afinal, era na interpretação gilbertiana do ar- divisórias a rasgar a unidade fundamental da experi-
quipélago cabo-verdiano que Osório de Oliveira pu- ência humana"; concorda que a cultura não se reduz
nha mais expectativas.75 à produção literária e artística: "a canela, o café e o
A crítica mais violenta parte do comandante açúcar, como artigos de consumo para milhões de
Ernesto de Vilhena, diretor da Companhia dos Dia- pessoas, são uma criação da cultura portuguesa, fe-
mantes de Angola. Em Aventura e Rotina, Freyre acu- cundada pela experiência de outros povos, do Orien-
sa-o de dirigir "um sistema que em algumas das suas te e do Ocidente"; concorda com a valorização das
raízes e em várias das suas projeções não é sociologi- conquistas anônimas de portugueses como João
camente português, prejudicado, como se acha, por Ramalho, Silva Porto ou Fernão Mendes Pinto. Sali-
um racismo que é de origem belga e por um excesso enta a clareza de certas relacionações: "o muito que
de autoritarismo que é também exótico em sua ori- há de árabe, o muito que há de sombra monástica na
gem e em seus métodos".76 vida portuguesa", por exemplo. Mas a sua posição de
Ernesto Vilhena responde desvalorizando Aven- intelectual comprometido com o marxismo leva-o a
tura e Rotina: "longe do monumental trabalho que é criticar o fato de Freyre exaltar o mundo agrário em
Casa-Grande & Senzala", "é um livro excessivamente detrimento do industrial, divorciar a análise socioló-
longo, confuso e difuso na tradução do que se quis gica da histórica, omitir "a lei de desenvolvimento di-
dizer, hesitante em certas apreciações, pelo receio de nâmico dos fenômenos" sociais, "isolando-os em pai-
ferir à direita ou à esquerda".77 Depois, procura reba- néis pitorescos mas estáticos" 83.
ter as acusações de Freyre. Considera que "afirmar que
a política da Companhia é de racismo e que esse ra- 3.2. Aproveitamento pelo Estado Novo
cismo é de origem belga são duas tolices". E justifica: No seio do regime salazarista, o aproveitamen-
"a política indígena da Companhia é essencialmente to de certos aspectos do luso-tropicalismo não signifi-

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ca a sua adaptação à prática administrativa, nem mes- so de Altos Estudos Ultramarinos, ministrado no Insti-
mo a sua adoção como doutrina oficial. Nos anos 50, tuto Superior de Estudos Ultramarinos/ Instituto de
perante a necessidade de afirmar o caráter uno de Ciências Sociais e Política Ultramarina. 84 A doutrina
uma nação espalhada por quatro continentes, o Esta- freyriana passa a ser sistematicamente ensinada aos
do Novo envereda antes por uma via assimilacionista, futuros quadros da administração colonial portugue-
de cariz etnocêntrico, próxima da defendida por sa e a inspirar numerosos trabalhos teóricos e de cam-
Norton de Matos. A idéia a que se dá maior ênfase é po, dissertações de licenciatura e de doutoramento. 85
a da difusão dos valores da civilização ocidental junto Muitos desses trabalhos são depois publicados pelo
de populações "atrasadas" ou "primitivas", sem expres- ISEU/ISCSPU e pelo Centro de Estudos Políticos e
são cultural a ter em conta. Entre os ideólogos Sociais, na coleção Estudos de Ciências Políticas e So-
arregimentados há quem tema que as premissas do ciais.
luso-tropicalismo se possam confundir com "estímu- Na disciplina de História do Brasil, assegurada
los à desnacionalização" (Mendes Correia) e que o no início dos anos 60 na Faculdade de Letras de
conceito de cultura luso-tropical implique a diluição Coimbra pelo professor brasileiro Guilhermino César,
da cultura portuguesa e a perda da identidade nacio- o pensamento de Gilberto Freyre serve de base à abor-
nal. dagem da formação e evolução da sociedade brasilei-
No contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, ra. 86 Na mesma década, mas na Faculdade de Letras
desfavorável ao racismo e ao colonialismo, a de Lisboa, Vitorino Nemésio divulga nas suas aulas de
receptividade à obra de Gilberto Freyre em Portugal Literatura Brasileira a obra do "mestre de Apipucos".
extravasa o campo cultural e 'contamina' o campo do E na cadeira Portugal contemporâneo, dos cursos de
poder. No entanto, se excetuarmos o breve período língua e cultura portuguesas para estrangeiros, João
em que Adriano Moreira é ministro do Ultramar Pereira Neto dedica o último ponto do programa à
(13.04.1961 – 04.12.1962), o luso-tropicalismo ser- Política de Integração Multirracial, dando especial aten-
ve principalmente objetivos de política externa. O Es- ção ao caso de Angola e reproduzindo as máximas do
tado Novo põe em prática uma estratégia clara no luso-tropicalismo sobre a relação dos portugueses com
sentido de reverter a seu favor o prestígio internacio- os trópicos.87
nal de Freyre. É um trunfo que o regime utiliza peran- O grupo restrito de intelectuais que nos anos
te a comunidade internacional (na ONU, nas campa- 30-40 refletiu sobre a obra de Gilberto Freyre alarga-
nhas de propaganda do país no exterior, nas se agora aos estudantes do ISEU/ISCSPU e das facul-
declarações dos altos representantes do Estado à im- dades de letras de Lisboa e Coimbra. Enquanto a re-
prensa estrangeira) sempre que se trata de defender a flexão inicial se traduzia na produção de recensões
tese da natureza especial da colonização portuguesa. críticas aos livros de Freyre, no período em análise o
Neste cenário, são publicados por organismos luso-tropicalismo é incorporado no discurso acadê-
estatais dois livros de Gilberto Freyre especificamente mico e o critério luso-tropical passa a presidir ao tra-
sobre a temática luso-tropical: Integração Portuguesa tamento das "questões ultramarinas".
nos Trópicos (1958) e O Luso e o Trópico (1961). Esses
livros, largamente divulgados na imprensa nacional, Conclusão
são remetidos às embaixadas portuguesas para que O pensamento de Gilberto Freyre sobre a rela-
os diplomatas portugueses sejam 'iniciados' no luso- ção de Portugal com os trópicos é recebido no campo
tropicalismo e saibam usá-lo na defesa da presença cultural português com interesse e entusiasmo, por
lusa além-mar. intelectuais de diferentes quadrantes político-ideoló-
gicos. Já no campo político, a tese do sociólogo brasi-
3.3. Reflexos no campo acadêmico leiro foi inicialmente ignorada ou rejeitada, devido à
Internamente, nas margens do discurso oficial, importância que conferia à mestiçagem e à
o luso-tropicalismo vai encontrando receptividade interpenetração de culturas. As idéias de Freyre tive-
junto de especialistas de diversas áreas do saber: Jor- ram que esperar pela década de 50 para conhecer
ge Dias (Antropologia), Orlando Ribeiro e Francisco uma recepção mais favorável no seio do Estado Novo.
José Tenreiro (Geografia), Adriano Moreira (Ciência Nessa altura, o regime salazarista adotou uma "vulgata
Política), Mário Chicó (História da Arte), Henrique de luso-tropical" como discurso oficial para consumo
Barros (Agronomia), Almerindo Lessa (Ecologia Hu- externo. À mudança de atitude não foi alheia a con-
mana); António Quadros (Filosofia), etc. juntura internacional saída da Segunda Guerra Mun-
No ano letivo de 1955-56, Adriano Moreira in- dial e a necessidade de o governo português afirmar a
troduz o estudo do luso-tropicalismo no programa da unidade nacional perante as pressões externas favo-
sua cadeira de Política Ultramarina, do 2º ano do cur- ráveis à autodeterminação das colônias. A partir de

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meados dos anos 50, também se assistiu à penetra- João Paulo II, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa).
ção do luso-tropicalismo no meio acadêmico, o que
26
Gilberto Freyre, O Luso e o Trópico, Lisboa, Comissão Executiva
do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961, p. 3.
determinou a produção de diversos trabalhos teóri- 27
Idem, p. 4.
cos e de campo orientados por aquele quadro 28
Arnold Toynbee (1889-1975) desenvolveu na obra A Study of
conceptual. Desde então, uma versão simplificada do History (12 vols., Londres, Oxford University Press, 1934-1961) a
luso-tropicalismo foi entrando no imaginário nacio- teoria da história das civilizações. Segundo esta teoria, nos últimos
nal contribuindo para a consolidação da auto-ima- seis mil anos houve 30 civilizações, 21 alcançaram pleno desen-
volvimento, 13 morreram, cinco não atingiram a maturidade, qua-
gem em que os portugueses melhor se revêem: a de
tro abortaram, sete ainda vivem, mas estão a ser absorvidas pela
um povo tolerante, fraterno, plástico e de vocação 21ª, a civilização ocidental. Caberá ao cristianismo fazer ressurgir
ecumênica. a harmonia social perdida. As civilizações atravessam quatro fa-
ses: a gênese, o desenvolvimento ou progresso, a decadência e a
_______________________ desagregação.
29
Gilberto Freyre, Op. cit., p. 2.
Notas 30
Gilberto Freyre, O Brasil em Face das Áfricas Negras e Mestiças:
1
A esse respeito ver Lilia Moritz Schwarcz, O Espetáculo das Ra- conferência proferida no Gabinete Português de Leitura do Rio de
ças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870-1930, Janeiro, Lisboa, 1963, p. 28-29.
São Paulo, Companhia das Letras, 1993. A autora mostra que en-
31
Na primeira carta, datada de Lisboa, fevereiro de 1931, José
tre os "homens de ciência" brasileiros os modelos deterministas Osório de Oliveira pede a Gilberto Freyre um artigo para a revista
raciais foram muito populares até a década de 1930. Descobrimento, da qual é secretário. Explica que só conhece um
2
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, Lisboa, Livros do Brasil, trabalho do destinatário – Apologia da sua geração [Apologia pro
[1957], p. 99. generatione sua] – que leu "graças à amizade pessoal de Antônio
3
Alfredo Bosi, A Dialética da Colonização, São Paulo, Companhia Sardinha". E esclarece que aquele texto e "as referências do queri-
das Letras, 1992, p. 27. do amigo e poeta Ribeiro Couto bastam para que descobrimento
se sinta honrada com a colaboração" do sociólogo brasileiro. Vd.
4
Gilberto Freyre, Op. cit., p. 17. série correspondência de portugueses, Arquivo Documental Gil-
5
Idem, p. 18. berto Freyre, Fundação Gilberto Freyre (Recife).
6
Idem, p. 191. 32
José Osório de Oliveira, "Negro: contribuição brasileira para o
7
Idem, p. 21. seu estudo", in O Mundo Português, vol. I, n.º 4, abr. 1934, p. 138.
8
Idem, p. 22. 33
Cf. José Osório de Oliveira, "A mestiçagem. Esboço duma opi-
9
Idem, ibidem. nião favorável", in O Mundo Português, vol. I, n.º 11, nov. 1934,
10
Idem, p. 24. pp. 367-9.
11
Cf. Gilberto Freyre, Conferências na Europa, Rio de Janeiro, Mi-
34
Idem, p. 367.
nistério da Educação e Saúde, 1938. 35
Carlos Malheiro Dias, "Gilberto Freyre", in Pensadores brasilei-
12
Gilberto Freyre, O Mundo que o Português Criou, Lisboa, Livros ros, Lisboa, Livraria Bertrand, pp. 105-6.
do Brasil, [1951], p. 39. 36
Idem, p. 105.
13
Idem, p. 43-44. 37
Cf. João de Barros, "Aproximação", in Diário de Lisboa, agosto
14
Idem, p. 45. de 1937, p. 1.
15
Mestre de Gilberto Freyre na Universidade de Columbia, Franklin
38
Cf. Maria Archer, "Aspectos da paisagem social na África portu-
Henry Giddings (1855-1931) ocupa um lugar destacado na escola guesa e no Brasil do passado sugeridos pelos livros de Gilberto
sociológica norte-americana. Giddings procurou estabelecer uma Freyre", in Seara Nova, n.º 536, 20 nov. 1937, pp. 166-70 (conti-
compreensão crítica entre o indivíduo e o grupo, numa perspecti- nuação: n.º 537, 27 nov. 1937, pp. 198-200).
va de ordem humana e social em que interviessem fatores vários, 39
Idem, p. 167.
desde os físicos aos psíquicos (cf. Jorge Borges de Macedo, O Luso- 40
Cf. idem, p. 168.
Tropicalismo de Gilberto Freyre, Lisboa, Icalp, 1989, p. 106-108). 41
O livro, porém, não esteve à venda nas livrarias portuguesas e o
16
Gilberto Freyre, Op. cit., p. 51. número de exemplares enviados para Portugal foi, na opinião de
17
Gilberto Freyre, Um Brasileiro em Terras Portuguesas, Lisboa, Manuel Múrias, reduzido. Cf. Manuel Múrias, "Bibliografia. Con-
Livros do Brasil, [1954], p. 10. ferências na Europa, por Gilberto Freyre, Rio de Janeiro, 1938", in
18
Idem, p. 134. Ocidente, vol. II, Out. 1938, p. 477.
19
Idem, p. 35.
42
António Sérgio, "Para a definição da aspiração comum dos po-
20
Freyre esclarece que o aprofundamento do tema surge na se- vos luso-descendentes (a propósito de uma conferência de Gil-
qüência de conversas com Franz Boas, em 1938. Cf. Idem, p. 29. berto Freyre)", in Ensaios, 3.ª ed., tomo VI, Lisboa, Livraria Sá da
21
Idem, p. 98. Costa Editora, 1980, p. 164. Este texto foi escrito em 8 de agosto
de 1938, em Lisboa.
22
Idem, p. 48. 43
Idem, pp. 173.
23
O critério de área é um critério moderno na época. A área luso-
tropical resulta de um conjunto descontínuo em termos geográfi-
44
Manuel Múrias, "Conferências na Europa, por Gilberto Freyre",
cos, mas marcado por uma unidade psicocultural, biossocial e lin- in Ocidente, vol. II, 1938, p. 469.
güística. Cf. idem, p. 104-106.
45
Idem, p. 471.
24
Gilberto Freyre, Integração Portuguesa nos Trópicos, Lisboa, JIU,
46
Cf. idem, p. 472.
1958, p. 64. 47
Idem ibidem.
25
Pela correspondência trocada entre Freyre e Sardinha, nota-se
48
Cf. idem, p. 477.
que o primeiro foi influenciado pelo conceito de hispanidade des- 49
Vitorino Nemésio, "Crítica ao Ensaio Conferências na Europa,
te último (cf. Espólio de Antônio Sardinha, Biblioteca Universitária por Gilberto Freyre, Rio de Janeiro, Ministério da Educação", in

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Revista de Portugal, Coimbra, n.º 5, out. 1938, p. 129. Século, 27/09/1951.
50
Idem, p. 128. 72
Vd. série correspondência de portugueses, Arquivo Documen-
51
Idem ibidem. tal Gilberto Freyre, Fundação Gilberto Freyre (Recife).
52
Título de um artigo de José Osório de Oliveira publicado em O 73
Idem, p. 9.
Mundo Português, vol. VI, n.º 62, fev. 1939, pp. 57-60. 74
Cf. Baltasar Lopes, Cabo-Verde visto por Gilberto Freyre, Praia,
53
A primeira edição portuguesa só será publicada em Lisboa, pe- Imprensa Nacional – Divisão de Propaganda, 1956.
los Livros do Brasil, em setembro de 1951. 75
Numa informação, datada de 25 de janeiro de 1951, dirigida ao
54
Cf. António Sérgio, "Prefácio à 1.ª edição brasileira", in Gilberto Agente Geral das Colônias por Osório de Oliveira, enquanto dele-
Freyre, O Mundo que o Português Criou, Lisboa, Livros do Brasil, gado da Agência Geral das Colônias junto do Secretariado Nacio-
s.d., pp. 9-10. nal de Informação, este afirma que teria o maior interesse para
55
Idem, p. 10. Gilberto Freyre e para Portugal que ele "pudesse visitar, ao menos,
56
Cf. idem, p. 27. mas com uma certa demora, o Arquipélago de Cabo-Verde, dada
a identidade de formação que apresenta com o Nordeste do Bra-
57
Esses artigos foram compilados na obra Adeus ao Brasil, Lisboa, sil" (cópia enviada a Gilberto Freyre, in Arquivo Documental Gil-
Livros do Brasil, s.d. berto Freyre, Fundação Gilberto Freyre, Recife).
58
Valentim Alexandre, Origens do Colonialismo Português Moder- 76
Gilberto Freyre, Aventura e Rotina, p. 352.
no, 1.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1979, p. 7. 77
Ernesto de Vilhena, Aventura e Rotina: crítica de uma crítica,
59
Idem, pp. 7-8. Lisboa, 1955, p. 7.
60
Vicente Ferreira, Colonização Étnica da África Portuguesa, estu- 78
Idem, p. 38.
do apresentado ao II Congresso da União Nacional, Lisboa, 1944,
p. 39.
79
Idem, p. 8.
80
Idem, p. 39.
61
Idem, p. 41. 81
Cf. Norton de Matos, A Nação Una: organização política e admi-
62
Idem, p. 78.
nistrativa dos territórios do ultramar português, Lisboa, 1953, p.
63
Norton de Matos, A Província de Angola, Porto, 1926, p. 233.
240.
64
Valentim Alexandre, "Luso-tropicalismo", in Dicionário de His- 82
Vd. a rubrica "A crítica do livro" por Óscar Lopes, in Suplemento
tória de Portugal: suplemento, vol. VIII, Porto, Figueirinhas, 2000, de Cultural e Arte, Comércio do Porto, 9 de março de 1954.
p.. 83
Idem.
65
"Devo a José Osório de Oliveira, com o seu generoso e vibrátil 84
Cf. Adriano Moreira, "O Luso-Tropicalismo", in Política Ultrama-
espírito, sempre atento aos rumores que vêm do Brasil intelectu-
rina, col. ECPS, n.º 1, Lisboa, JIU, 1956.
al, o ter-me avisado da provável vinda de Gilberto Freyre à Europa
e da possibilidade do seu interesse em conhecer o Ultramar Por-
85
Veja-se, a título de exemplo, as teses de doutoramento de Óscar
tuguês" (Sarmento Rodrigues, "Discurso de despedida do ministro Soares Barata, A Questão Racial: introdução, Lisboa, ISCSPU, 1964;
do Ultramar de Portugal, comandante Sarmento Rodrigues, no e de João Pereira Neto, Angola: meio século de integração, Lisboa,
salão nobre do ministério", in Gilberto Freyre, Um Brasileiro em ISCSPU, 1964.
Terras Portuguesas, Lisboa, Edições Livros do Brasil, s.d., p. 271).
86
Cf. João Paulo Avelãs Nunes, A História Econômica e Social na
Este propósito, veja-se também a correspondência de Osório de Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: o historicismo
Oliveira e de Sarmento Rodrigues para Gilberto Freyre no Arquivo neo-metódico: ascensão e queda de um paradigma historiográfico:
Documental Gilberto Freyre, Fundação Gilberto Freyre (Recife). 1911-1974, Lisboa, IIE, 1995, p. 132.
66
Gilberto Freyre, Aventura e Rotina, Lisboa, Edições Livros do
87
Cf. Anuário da Universidade de Lisboa.
Brasil, [1954], p. 13.
67
Diário da Manhã e Diário de Notícias, 14/08/1951, 1.ª p.
68
Antes do encontro, Sarmento Rodrigues emprestou alguns livros
de Freyre ao presidente do Conselho. "Como Vossa Excelência
deve receber na próxima semana o Dr. Gilberto Freyre e para a
hipótese de não conhecer o seu discurso na Assémbleia Constitu-
inte, envio a Vossa Excelência a revista Atlântico que o traz e tam-
bém alguns livros dele, entre os quais O Mundo que o Português
Criou, que eu já tinha, Nordeste e Quase Política, que ele agora
me ofereceu." (Carta de Sarmento Rodrigues, ministro do Ultra-
mar, para o presidente do Conselho, datada de Lisboa, 21 de Agos-
to de 1951, AOS/CP – 242 Pt. 7.242.16, fl. 548). Salazar, no seu
diário, registra unicamente a leitura de Quase política, nos dias 23
e 26 de Agosto de 1951 (AOS/DI – 5). Provavelmente, até então,
Salazar nunca tinha lido nenhum livro de Freyre. Só a partir de
1954 começam a dar entrada na biblioteca do presidente do Con-
selho obras do sociólogo brasileiro (cf. AOS/BP – 4 e 5).
69
Cf. Gilberto Freyre, Um Brasileiro em Terras Portuguesas, p. 223.
70
Gilberto Freyre, na obra Aventura e Rotina, refere-se em parti-
cular a Manuel Mendes. "Noto certo retraimento da parte de ve-
lhos camaradas portugueses como o Mendes: não me procuram.
(...) O fato de eu ser hóspede do Estado deve estar a distanciar de
mim mais de um ortodoxo da Esquerda. Paciência. A mim basta o
fato de ser um governo honrado, intransigentemente honesto, como
é, para eu aceitar dele uma homenagem que é antes nacional que
oficial" (p. 17).
71
Cf. Diário de Notícias, 19/08/1951; Diário de Lisboa, 08/09/1951;

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MESA-REDONDA 4
V IDA , F ORMA E C OR

Dia 22 de março
COORDENADOR:
Cesario Melatonio Neto
Ministro Chefe da Acessoria de Relações Federativas do Ministério das
Relações Exteriores – Brasil
Gilberto Freyre y Alemania

Hanns-Albert Steger
Cientista Social – Universidade de Erlagen Nuremberg – Alemanha

Gilberto Freyre participó activamente en Consecuencia: Alemania busca en el año


los dos Coloquios "de Ultramar", que celebra- 2000 no menos que 70.000 peritos en el
mos en los primeros años de los 60 en la extranjero, más allá de las fronteras de la
Universidad de Múnster en Westfalia/ Comunidad europea (mediante de la famosa
Alemania (1962 y 1967). Era el gran evento 'green card' de los norteamericanos), en el
central de los Coloquios, el ortogamiento del mismo momento en cual tenemos más que 4
grado de Doctor honoris causa a Gilberto milliones de desempleados. Nosotros
Freyre. Era la última vez en la historia de pronosticamos este tipo de problemas, y por
nuestras Universidades alemanas en el oeste eso tratábamos de fundar una nueva
de nuestro país, que se efectuó este rito com Universidad capaz de evitar tal situación. Gil-
los trajes medievales y com los "chapéus" berto Freyre participó muy activamente en las
tradicionales. Gilberto había trajido el "cha- discusiones pertinentes. En el texto de 1966
péu" famoso de su Doctor honoris causa de la del documento oficial proponiendo la
Universidad de Coimbra, y asseguró así el fundación de un centro de investigaciones
accento llamativo del evento, la fotografía que interdisciplinarios en la Nueva Universidad,
dispuse en aquel momento (v. Chacon, C. se dice verbalmente: "Uno de los temas
Furtado, G. Freyre, Fl. Fernandes) há obtenido centrales del Centro sería la investigación so-
posteriormente, motivado por el desarrollo de bre la influencia europea (especialmente la
la historia brasileña, una cierta importancia alemana) en la historia socia y cultural de
histórico-política, muchas veces publicada. América Latina." Sigue el texto: "Seria
Para nuestro público universitario necesario de reunir a un grupo de científicos
alemán de los años 60, todo eso tenía un as- expertos, viniendo de todo el mundo; sería
pecto bastante exótico. Casi todos éramos necesario de llamar en todo caso al Profesor
aislados en un autismo científico y Gilberto Freyre, Brasil, quién es el espíritu
provincionado dentro del cual la investigación central de este tipo de investigaciones para
buscó sus verdades primordialmente en los toda América Latina".
años "20" o antes de la primeira guerra mun- Este programa se puso en marcha com
dial. – Poco tiempo después de '62 empezó 2 primeros pasos:
la implosión de nuestro sistema universitario 1) Gilberto Freyre impulsó los
en Alemania occidental; – quedaron nuestras "Coloquios de Estudos teuto-brasileiros". El
universidades reducidas a escuelas primero se realizó en Porto Alegre entre el 24
postsecundarias y regionales, encargadas de y el 30 de julio de 1963. El Discurso inaugu-
la formación profesional de peritos ral de Gilberto Freyre, leido en Porto Alegre,
académicos, capacitados dentro del marco de se terminó com la frase siguiente: "Esta, a gran-
las exigencias de la sociedad industrial en sua de força do sistema socio-cultural brasileiro:
estructura actual. La concecuencia era (y es), a de ser ao mesmo tempo uno e plural. Di-
que las universidades están preparando namicamente uno e dinamicamente plural (p.
expertos y peritos que van empezar su carrera 20).
profesional 10 o 15 años después de su en- 2) El otro paso era, al mismo tiempo, la
trada en la Universidad. La situación hoy en fundación en Alemania, de um programa de
día es, consecuentemente, que nuestras uni- contactos com la investigación social en Amé-
versidades alemanas no han producido los rica Latina. Gracia a este programa se organizó
expertos en el campo de la infomática, disci- la primera investigación de campo en las
plina que se ha formado en los últimos 5 años. ciencias sociales que jamás se hizo en

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Alemania en los estudios latinoamericanos. El director Melville J. Herskovits, Gilberto Freyre, y otros mas.
de este investigación era nuestro colega Achim Gilberto trató de hacer posible una permanencia
Schrader, quien posteriormente fundó en la prolongada de Thomas Mann en Brasil. El, com la
Universidad de Münster/Westfalia un Instituto impor- madre brasileña, "de la cual", dice Gilberto Freyre en
tante de estudios latinoamericanos, sobre todo su contestación oficial al Embajador Alemán, en la
brasileños. Su asistente era Manfredo Berger de Rio ceremonia del otorgamiento de la Gran Cruz del
Grande do Sul: un "teuto-brasileiro" que escribió su Mérito de la República Federal de Alemania (11 de
tesis doctoral sobre "Educação e dependência" (1976), agosto de 1980), "de la cual se puede decir que no
de mención brillante. Después de su regreso, murió tenía sangre europe", era teuto-brasileiro par
com toda su familia en un accidente automobilítico excelence, pero no conoció Brasil, y en la
terrible y trágico. correspondencia com Gilberto Freyre dijo que sería
Podemos decir, que Gilberto Freyre era el mo- para él una satisfacción enorme de conocer el país de
tor espiritual de las relaciones "teuto-brasileiras" de su madre. Freyre fracasó com su tentativa, porque se
aquel tiempo, es decir, hace apróximadamente 35 dijo en los llamados 'circulos respetados' que no sería
años: es un lapso más grande de tiempo que entre el digno de una invitación brasileña: para los unos sería
comienzo de la primera guerra mundial (1914) y el un Nazi, y para los otros un comunista. – Cito aquí las
fin de la segunda (1945). informaciones escritas por Gilberto Freyre, sin hacer
Con todo eso hay qye ponerse hoyendía 2 ningún comentario al respecto.
preguntas: 1) cual há sido la motivación de Gilberto? En la lista de los miembros destacados del
2) cuales son las consecuencias observables hasta hoy? Seminario de Franz Boas no mencionamos los
1) Para contestar la primera pregunta, es nombres de Edward Sapir (1884-1939) y Benjamin
necesario de referirse a los estudios de Gilberto en la Lee Whorf (1897-1941), los fundadores de la teoría
"Columbia University" en Nueva York. Gilberto lingüística de los contenidos de una expresión verbal,
perteneció al Seminario de Franz Boas. Boas era de nacida directamente del contacto estrecho con el
origen alemán, nacido en Minden/Westfalia, en 1858 Seminario de Boas. Esta teoría de la relatividad
(murió en Nueva York en 1942). Son notables sus via- linguística no correspondió de ninguna manera a la
jes a la isla de Baffinland en el nordeste extremo de "scientific correctness" de la época (hasta hoy en día
Canada, entonces una expedición súmamente está rechazada vehementemente por los próceres de
aventurosa, y sus estudios de los Esquimales (1883/ la "scientific correctness"). La causa del rechazo es la
84, a la edad de 25 años);/posteriormente iba a visi- suposición de la teoría, que finalmente haya una
tar los Indios de la Costa del nord-oeste de América pluralidad de lógicas, y esto contradice
del Norte (1886 y años siguientes). Habia emigrado a diametralmente a la filosofia del ser en la historia
los Estados Unidos en 1887; desde 1899 era Profesor cristiana del Occidente.
de la Columbia University; se especializó en los I con eso estamos en le centro mismo de las
estudios de las culturas y de los idiomas de los Indios preocupaciones científicas de Gilberto Freyre, cuando
de América del Norte, y además organizó estudios habla del complejo "luso-tropical" de civilización. –
antropológicos de inmigrantes en los Estados Unidos. Dentro del marco de la filosofía de Whorf y Sapir –
El problema era la integración de los nuevos elemen- que combina Wilhelm von Humboldt (hermano de
tos en la cultura ya establecida. Com eso tuvo muy Alejandro) y Franz Boas – se dice que la expresión
mala suerte: sus muy 'amables' colegas no podían idiomática no está definida por sua utilización para
comprender porque Boas defendió la neutralidad de entenderse mútuamente, sino se defina como
los Estados Unidos en la Primera Guerra Mundial, "energeia", es decir, energía, una faculdad de
hasta que se divulgó el rumor que Boas haya sido ex- instrumentalización espiritual que se realiza dentro de
pulsado de la "Smithsonian institution" por eso. La las diferentes lenguas maternales: entre el hombre y
realidad bastante divergente explica nuestro amigo y la realidad se establece un mundo intermediario, den-
colega Vamireh Chacon en su "Biografía intelectual tro del cual los aspectos del mundo exterior están 'di-
de Gilberto Freyre" (1993): hubo discusiones feridos' espiritualmente y definen así las valorizaciones
vehementes dirigidas en contra de Franz Boas, hasta de una comunidad humana específica. Se llega así a
que le difamaron de haber sido espía del Imperio una verbalización del mundo (la muy discutida palabra
Alemán. Pero Boas, siempre, hasta su muerte, defendió alemana "das Worten").
vigorosamente su posición anti-racista. Se pueden Es óbvio: Gilberto Freyre interpreta las culturas
descubrir muy bien estos rasgos intelectuales y como 'lenguas' en este sentido: la cultura portuguesa
emocionales, en los escritos de los miembros del (o alemana en nuestro caso) produce un mecanismo
Seminario de Boas: Ruth Benedict, Margaret Mead, (un 'Ergon'), – una lógica 'luso-tropical', es decir, un

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100
mundo intermediario entre lo portugués y lo culturales, para llegar al 'mundo intermediario' del cual
autóctono del Brasil. Gilberto Freyre desarrolló así una ya hablamos. Gilberto Freyre contestaría que esta
teoría (y práctica) de la relatividad de los procesos exigencia se cumple mediante "el elemento vertical
vitales y culturales. de la creencia y de la irracionalidad" que llamamos el
Tengo que confesar que nosotros no sabíamos espíritu, – el "espíritu mesianicamente poético" que
absolutamente nada de esas implicaciones teóricas de conduce a la superación de lo lógico por lo poético; –
los "Estudos teuto-brasileiros" cuando nos veíamos 'Olanda' – lo horizontal, lo técnico, lo racional, – con-
confrontados com el 'Ergon' de Gilbero Gryre; – éra- tra 'Olinda' – lo vertical, lo creencial, lo mítico, que se
mos todavía asfixiados por el trauma de la Guerra. – transforma "en una nación, y – más – en una
El Conde Luis de Schönfeldt, amigo de Gilberto, civilización de un nuevo tipo, ligada a su pasado por
tradujo en 1964/65 Casa-Grande & Senzala y Sobra- la sobrevivencia de la fé católica, e impregnada por
dos e Mucambos en la gaveta durante 15 años; final- un mesianismo activo y creador com una proyección
mente, después de los esfuerzos combinados de hacia el futuro. – Es esta teoría cultural una sublimación
muchos amigos de Gilberto se publicó en otra edito- genial de las ideas del grupo formado por Franz Boas:
rial en 1982. Hay que confesar que estas la teoría de la relatividad linguística, transformada en
complicaciones reflejan la situación intelectual de teoría de la relatividad cultural. Es, finalmente, el
nuestra sociedad exactamente: todavía (en al años descubrimiento de lo brasileño como transformación
2000) no sabemos manejar bien nuestro de una población ingénua, y en parte europea,
comportamiento en Alemani hacia los inmigrantes, mayoritariamente mestiza y perdida en un espacio tro-
sobre todo islámicos (turcos), en nuestra sociedad ca- pical muy amplio, no solamente en una nación, sino
tólico-protestante, y estamos muy lejos de aceptar un – además – en una civilización inédita, nueva, – "luso-
'mundo intermediario' en nuestras ciudades. Com todo tropical".
eso nuestras preocupaciones científicas se concentran En los últimos años se iniciaron muchas
en los estudios latinoamericanos en campos bastante investigaciones 'horizontales' (en el sentido de la
especializados (literatura, geografía, ciencias sociales, argumentación arriba presentada); relativamente poco
etc.), pero olvídan la cohesión colectiva de la se hizo en el campo de los estudios 'verticales'. Gil-
convivencia cultural. Justamente no pueden ver el berto Freyre trató en sus estudios de presentar el
núcleo de la visión de Gilberto; no existe, parece. No cruzamiento de los análisis culturales 'horizontales'
pueden captar lo que Gilberto Freyre quiso decir, com los análisis 'verticales' en una forma ya totalmen-
cuando escribió sobre la diferencia entre 'Olinda y te integrada, o – en las palabras del mismo Gilberto
'Olanda': "Olanda a conquis Olinda; mais Olinda s'est Freyre – con ocasión de la inauguración del Primer
libérée quelques dizaines d'années plus tard" (cito de Coloqui de Estudos teuto-brasileiros, ya citadas mas
la versión francesa de O Luso e o Trópico, que Gilber- arriba: "Este, a grande força dos sistema sócio-cultu-
to me dedicó en 1965, hace 35 años). El subtítulo ya ral brasileiro: a de ser ao mesmo tempo uno e plural.
contiene todo su programa científico: "Sugestões em Dinamicamente uno e dinamicamente plural".
torno dos métodos portugueses de integração de po- Hay continuación, sin embargo, de esta
vos autóctones e de culturas diferentes da européia argumentación de Gilberto Freyre, presentada por sua
num complexo novo de civilização: o lusotropical." ilustre discípulo Vamireh Chacon en un libro obse-
Gilberto describe así "la victoria del espíritu pre- quiado a nuestra Universidad de Erlanger-Nuremberg;
burgués de "Olinda" sobre la técnica burguesa y refi- su título: "Deus é brasileiro – o imaginário do
nada de "Olanda". "Olanda" se encuentra sobre todo Messionismo político no Brasil" (1990); se presentó
en el sur y en el centro de Brasil, – y "Olinda" sobrevi- com ocasión del otorgamiento del grado de Doctor
ve principalmente dentro de los brasileños pobres e honoris causa a Vamireh Chacon en nuestra
desheredados del nord-este y de la Amazonia. La ca- Universidad. En este libro explica Vamireh Chacon
racterística central de Brasil sería un luso-cristianismo para los Brasileños y para los no-Brasileños la
fraternal, una democracia étnica veritable, de la cual 'verticalidad' del ser brasileño en todos sus detalles. El
lo contraria ejemplar sería la 'apartheid' sud-africana. libro tiene dos Prefacios: uno para Brasileños, – y outro
Hasta hoy en día, no nos fué posible en Europa para extranjeros. Vamireh Chacon cita en el texto para
central de liberarnos de nuestro autismo científico y los europeos al escritor cubano Alejo Carpentier com
aceptar el relativismo cultural Gilbertiano; y con todo esta frase: "Mas que é a História de toda América La-
eso ya se anuncia outra, segunda, relatividad dentro tina senão uma crônica do real maravilhoso?"
del processo de la llamada globalización. – Por eso es En los 35 años desde el otorgamineto del Doctor
necesario de preguntarse como sería posible de har- honoris causa a mi muy estimado maestro Helmut
monizar todas estas contradiciones étnicas, raciales, Schelsky aquí en Recife en la famosa Faculdad de

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Derecho , y bajo los auspicios de Gilberto Freyre,
hicimos muchos esfuerzos para captar algo de la 'teuto-
tropicalidad' posible en Brasil. Como ya dije, todavía
no hemos nosotros podido combinar lo 'horizontal'
com lo 'vertical'. Falta mucho. Sin embargo, en
situaciones de esta clase Gilberto Freyre tenía a su
disposición una 'ironia mesiánica' – 'vertical' y 'hori-
zontal' simultáneamente. Eso nos demonstró cuando
festejamos el Doctorado de Helmut Schelsky en una
cena: Habíamos hablado en la tarde anterior de la
importancia de los patos en la realidad cotidiano del
Brasil. Todos sabemos, que Gilberto era un gastrónomo
aficionado a las buenas comidas. No era por eso una
sorpresa cuando se no ofreció un pato nordestino;
sin embargo, cuando leíamos el menú, nuestra
sorpresa era muy sincera: leíamos "pato a la manera
de Helmut Schelsky": el pato nordestino habia sido
transformado en un legítimo pato "teuto-brasileiro".
Siguió una noche muy alegre, de integración, y en
cual todos encontrábamos una nueva identidad, –
"dinâmicamente una e dinâmicamente plural", pasada
y futura al mismo tiempo, y vigente hasta hoy en día.

Posdata: La aplicación del concepto de Gilber-


to Freyre – "dinámicamente uno y dinámicamente plu-
ral" – a la política cultural centro-europea sería más
que viable, si la 'political and cultural correctness' de
la actualidad lo permitiera, lo que lastimosamente no
es el caso.

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A Invenção do Brasil entre Clio e o Mythos:
Contraponto com Gilberto Freyre de
Interpretación de Brasil

Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes


Escritor/professor – Universidade Federal do Ceará – Brasil

Preliminares: Que é isso que chamamos de seu "descobrimento" e de sua construção


Brasil? social, econômica e cultural, nos termos da
“O estudo da literatura e da arte não há semântica cujas regras nos foram impostas pe-
de reservar-se exclusivamente à crítica literá- los que dominaram esta área da geopolítica
ria ou estética; incide também no campo do do Atlântico a partir de 1500. Mas é óbvio
sociólogo, do historiador social, do antropólo- que possuímos também uma longa pré-histó-
go e do psicólogo social: através de sua litera- ria, em particular na sua contribuição indíge-
tura e de sua arte é que os homens mais pare- na, freqüentes vezes velada ou minimizada, e
cem revelar sua personalidade e seu ethos na reposição negro-africana no Novo Mundo
nacional. Através das artes eles descrevem as mediante sua imensa diáspora forçada.
condições sociais mais angustiosas e revelam Assim, se o real se compõe de coisas ou
seus desejos mais revolucionários. E ainda, atra- sistemas de fatos e eventos, ele só se dá para
vés das artes, exprimem os aspectos particu- nossa consciência, como representação cole-
larmente contidos, tanto como os mais tiva, mediante atos e falas. É do
vigorosamente dinâmicos de sua personalida- entrecruzamento de um sem-número desses
de e de seu ethos nacional.” Gilberto FREYRE atos e falas ao longo do tempo histórico e dos
(1945: 165) diferentes espaços sociais que essa realidade
chamada Brasil vem sendo inventada e
A apropriação do real pelo ser humano reinventada, e cujo produto mutante vai sen-
é sobretudo um processo operatório e do transformado por nosso imaginário social
semiótico. Noutras palavras, é algo que se dá e condensado como experiência compartilha-
mediante operações de classificação, de com- da em nossos códigos de sensibilidade e de
paração, de diferenciação, e de atribuição de conduta, valores e crenças que a memória
sentido e de valor às realidades com que se coletiva preserva, assegurando a sua singula-
convive. Dentre estas, destaca-se naturalmen- ridade contrastiva entre outros povos e na-
te a vida social, a coletividade, os grupos, a ções.
nação, enfim, o País. Temos uma ilustração significativa des-
Diferentemente do que acreditavam as se processo de construção ou invenção se
tradições tanto idealistas quanto positivistas e acompanharmos a produção da cartografia do
realistas, o que chamamos de real é sobretu- Brasil desde o século XVI: da ilha presumida
do para nós um construto, uma invenção, ou, nos inícios das primeiras expedições
antes, uma reinvenção permanente, individual exploratórias, pouco a pouco não só as técni-
e coletiva, no plano semiótico e conceptual. cas de elaboração dos mapas e representa-
Com maior razão, isso se dá no caso de uma ções geográficas foram sendo refinadas, mas
realidade histórico-cultural de extrema com- também a ocupação do espaço e o conheci-
plexidade e mutação incessante como é um mento da terra foram sendo retificados e aper-
país, um povo, uma nação. No caso que nos feiçoados. Mas fomos, de começo, a imagem
interessa aqui, quero referir-me ao Brasil, produzida pelo espanto de olhares estrangei-
como problemática interpretativa. ros. E a primeira e saborosa expressão disso
Ao contrário de outras nações cujas ori- está na Carta de Pero Vaz de Caminha, que
gens se perdem em tempos imemoriais, o Bra- Capistrano de Abreu dizia ser nossa certidão
sil atual, resultando da expansão marítima e de nascimento.
mercantil de Portugal na disputa pela coloni- Durante os três séculos do nosso perío-
zação de novas terras, possui uma data oficial do Colonial, foram sobretudo esses olhares es-

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103
trangeiros que construíram a nossa imagem, a consci- tações, etc.) que, muito mais por simplificação e co-
ência do que somos: portugueses, judeus, mouros, modidade, costumamos chamar de cultura brasilei-
espanhóis, franceses, africanos, italianos, alemães, ho- ra.
landeses, e, ao longo do tempo, vieram mais: suíços, Se tomarmos como mera ilustração desse es-
norte-americanos, russos e outros eslavos, etc., que, forço de invenção nacional a recolha de textos signi-
aventureiros, colonos, missionários, comerciantes, ficativos feita por Djacir Menezes, em seu já clássico
prostitutas, traficantes, negreiros, degredados, foragi- O Brasil no Pensamento Brasileiro, veremos que não
dos, escravos, artesãos, naturalistas e homens de ci- passa de simples amostra do que tem produzido a
ência, viajantes e visitantes, foram todos construindo inteligência brasileira que se debruça sobre a tarefa
essa imagem sempre mutante, única e múltipla. de interpretar e criticar as características de nossa re-
É interessante observar que, nos inícios, esse alidade. Na verdade, posto sejam importantes os tex-
olhar de espanto e de deslumbramento em face do tos que a compõem, eles produzem uma imagem ex-
Novo Mundo produziu imagens ora paradisíacas, ora pressiva das qualidades e defeitos do Brasil, porém
negativas, em que sobressaem a terra, a natureza exu- nitidamente parcial e fragmentária. Com efeito, cons-
berante e grandiosa, mas também a sua gente e seus tituem apenas parte da produção ensaística de pen-
costumes. O Padre Anchieta, por exemplo, ao escre- sadores, estadistas, economistas, historiadores, que
ver a primeira arte de gramática da língua geral mais buscaram interpretar a nossa realidade. Estão excluí-
falada na costa do Brasil, na frase inicial de seu texto, das todas as demais expressões de nossa produção
afirma que os primitivos habitantes desta terra não simbólica ou discursiva, tais como a poética, a
possuíam em sua linguagem nem f, nem l, nem r, por- dramaturgia, a crônica, a prosa de ficção, etc. Enfim,
que eles não têm nem Fé, nem Lei, nem Rei. Ou seja, tudo isso que constitui nossa tradição afortunada, a
ele nos definia pela negação, pois em seu viés saber, nossa crítica literária e nossa própria literatura,
etnocêntrico não encontrava aqui as mesmas insti- sempre voltadas para a missão de dizer o que somos,
tuições que conhecia no Velho Mundo. E Narciso sem- e que, sob muitos aspectos, é amplamente superior
pre acha feio tudo que não é espelho... em alcance interpretativo e criativo de nossa realida-
Com o fim do exclusivo português e do pacto de do que toda a nossa produção em economia, soci-
colonial, o Brasil independente ou incipiente abriu- ologia, ciência política, etc. Há muito mais captação
se à curiosidade universal e sobretudo à intensa ex- de nossa gênese e de nosso caráter nacional em
pansão das ciências naturais de que fomos o principal Gregório de Matos Guerra, nos Inconfidentes, num
fornecedor de matéria-prima, por nossa imensa di- Antônio José (o Judeu – trucidado pela Inquisição),
versidade biológica e ecológica. Boa parte do avanço em Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, José Lins
dos conhecimentos científicos nesse domínio e dos do Rego, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Gui-
acervos das universidades e museus de História Na- marães Rosa, etc. do que em nossas ciências sociais,
tural do mundo todo se formou a partir dessas expe- exceção feita para a ensaística e a história social so-
dições, que duram até os nossos dias. Aliás, isso ocor- bretudo a de inspiração antropológica e do Moder-
re de fato desde os sábios trazidos pela administração nismo para cá.
de Nassau, na primeira metade do século XVII, quan- Destaque-se ainda que os textos escolhidos,
do inclusive se instalou o primeiro observatório astro- embora importantes e até indispensáveis, estão res-
nômico em terras do Novo Mundo. Mas provieram tritos aos escritores pertencentes à nossa ilustração,
também de artistas de todo gênero, que contribuíram à nossa tradição letrada. Toda a riquíssima produção
significativamente para a construção de nossa imagem: de nossa cultura popular está fora de cogitação nes-
é riquíssima a iconografia do Novo Mundo e do Brasil se tipo de escolha. Aliás, diga-se, sumariamente, que
em particular. a desmesurada tarefa de construir um quadro consis-
Paralelamente a essa presença dominante do tente como resposta a nossa aporia ôntica, como povo
olhar, da fala e da conduta dos estrangeiros, e em re- e como cultura, implicaria o cometimento de muitos
lação dinâmica, ora convergente ora antagônica, com especialistas que explorassem a elaboração da ima-
estes, foi se constituindo o nosso povo, com seus sen- gem do Brasil pelo menos nos seguintes segmentos
timentos, normas e valores, códigos e costumes, que discursivos: a) nos que se exprimiram sobre isso nas
se singularizam lentamente e vão pouco a pouco cons- diferentes fases de nossa história; b) nas diversas regi-
tituindo o nosso perfil peculiar, inclusive pela apro- ões de nosso continente sociocultural; c) nos vários
priação dessa realidade por meio de nossa própria fala olhares forasteiros que nos estudaram e apreciaram;
e nosso próprio olhar, mediante múltiplas linguagens d) no pensamento de nossa «ilustração» e nas ima-
(músicas, ritmos, danças, rituais, festas, arquiteturas, gens da literatura ficcional e poética, incluindo aí as
pinturas, decorações, narrativas, poéticas, represen- visões de ufanistas contumazes e as dos críticos pessi-

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104
mistas; e) nas concepções de nossas elites políticas e até desconfio que carecemos de tal escala métrica –,
econômicas e nas das massas e classes subalternas. mas por certo, dentre os cultores das Ciências Sociais
Para não falar de outras formas de expressão tais como no Brasil, nenhum supera Gilberto Freyre em volume
a pintura, a arquitetura, o cinema, a música, a dança, e variedade de homenagens, comendas e referênci-
o carnaval, os esportes, o humor, etc. Em suma, é do as: a maioria destas elogiosas, algumas porém cáusti-
conúbio entre Clio e o Mythos que nasce a invenção cas ou preconceituosas. Guerreiro Ramos, por exem-
de um país, produto de ciência e arte, trabalho e de- plo, em seus cursos, no finado ISEB, sempre se referia
vaneio, análise e utopia. a Gilberto Freyre como «o romancista de Apipucos»:
pretendia ele com isso menosprezar sua obra socio-
Gilberto Freyre e seu estilo cognitivo: uma dialética lógica, sem saber que prestava a maior homenagem a
da medianiz ou uma acrobacia hermenêutica quem fora antes de tudo excelente escritor.
“Gilberto Freyre não procura fabricar uma uni- Mas cheguemos mais próximo do nosso autor.
dade ideal dos fenômenos isolados em si mesmos, mas Gilberto Freyre é sobretudo um escritor saboroso e
busca, de um modo que deve servir de exemplo (aos envolvente. Mestre em enumerações pitorescas e ilus-
sociólogos europeus), a unidade efetiva desses fenô- trações de perfil folclórico, que no entanto operam
menos, seguindo uma pluralidade de métodos-chave.” um efeito de sedução sobre o leitor. Mesmo quando
Jean POUILLON (Paris) este é mais crítico e discorda de várias de suas con-
cepções, não há negar o encanto ou o fascínio que a
Dizia Karl Jaspers, referindo-se a Max Weber, riqueza plurívoca e temática de seu pensamento exer-
que «a maneira de honrar a um grande homem está ce sobre ele.
em apropriar-se de sua obra e tentar trabalhar em suas Eis por que intitulei este tópico de minha fala
idéias para prosseguir a realização, que ele tornou com a expressão «acrobacia hermenêutica». De fato,
possível, de cada uma de suas distintas partes.» [1953: nas suas elaborações teóricas, ele se move num espa-
1]. ço epistêmico que inclui sempre o território da Histó-
Portanto, não prestam tal homenagem ao seu ria, iluminado pela perspectiva socioantropológica,
real valor aqueles que se excedem ao qualificar Gil- estética, literária, psicológica, etc. – ele até se aventu-
berto Freyre com hipérboles do tipo desta: «o desco- ra a freqüentes ousadias de interpretações psicanalíti-
bridor do Brasil» – visto que só por amnésia cultural cas, quase sempre um tanto inconsistentes –, ou seja,
profunda é possível apagar todas as gerações que o ele é livremente multidisciplinar. Seu estilo cognitivo
precederam nessa tarefa ingente de esclarecimento é dominantemente estético e se elabora num movi-
de nossa formação, de quem ele era o primeiro a re- mento metodológico do quase, do talvez e sobretu-
conhecer a contribuição. Tampouco segue o judicio- do do semi-, inclinação metodológica que se expres-
so conselho de Jaspers alguém que, como João sa na constância com que emprega esses termos, que
Gabriel, assevera não ser «exagero dizer que seu livro são os mais freqüentes de seu discurso intencional-
Casa-Grande & Senzala está para a sociologia nacio- mente oscilante, sinuoso, nietzschiano e talvez
nal assim como o Gênesis para a Bíblia» [VEJA, 15/09/ dialético. Uma dialética da medianiz, pois, como
99, p.70]. Mais sóbrio foi o gesto da Universidade de sabemos, a medianiz é o espaço em branco entre duas
Poitiers, na França, que, no dia 15 de março do cor- linhas ou duas páginas impressas, aquele espaço em
rente ano (2000), realizou um colóquio internacional torno da costura. Tomo pois a sugestão metafórica da
«Gilberto Freyre e a França», em comemoração ao seu costura dos extremos para ilustrar essa capacidade de
centenário. Gilberto Freyre de se apropriar dos interstícios do pen-
Por decreto da Presidência da República, pu- samento para construir sua própria interpretação.
blicado no Diário Oficial de 13 de julho de 1999, o Além disso, seus termos dizem sempre mais do que
ano 2000 foi proclamado Ano Nacional Gilberto de impõem as tradições semânticas sedimentadas. Tudo
Mello Freyre. Doutor honoris causa de uma dezena se passa como se, em sua lucidez intuitiva, visasse aos
de universidades americanas e européias, professor tons em claro-escuro, entre o preto e o branco, entre
convidado de quase todas as grandes universidades o bem e o mal, entre o lícito e o proibido, entre es-
da Europa e das Américas, recipiendário de numero- querda e direita, entre tradição e transformação, en-
sos prêmios literários e científicos, membro honorá- tre estrutura e processo. Uma espécie de dialética
rio das mais importantes sociedades científicas em ci- particular que tenta apanhar uma realidade cambian-
ências humanas, poucos intelectuais souberam te e pendular, como o Brasil, com o jogo de cintura
administrar tão bem, como Gilberto Freyre, a própria de nossas carnavalescas mulatas: isso que foi fixado
imagem, e isso desde cedo até sua morte. num momento arquitetônico, naquela forma levíssima
Não saberia eu avaliar se o mais importante – e e bela com que Oscar Niemeyer fechou a Praça da

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Apoteose, no sambódromo do Rio, evocando por trás vícios, erros, prazeres, lazeres, etc., para construir, ain-
o movimento da passista que se curvasse para tocar o da que imperfeito, um novo retrato do Brasil.
chão telúrico de seu país natal.
Sem dúvida, o pensamento gilbertofreyriano é Interpretación de Brasil, primeiro ensaio de sínte-
sinuoso e nada linear, sem conotação pejorativa, já se
que se trata de deliberada astúcia de seu espírito, que “Somos, por tudo isso, uma República Mestiça,
bebeu, talvez, nos oxímoros da obra-prima de étnica e culturalmente; não somos europeus nem "la-
Euclydes da Cunha, seu parceiro de ginástica mental, tino-americanos"; fomos tupinizados, africanizados,
para dar conta de uma realidade que exprime a tor- orientalizados e ocidentalizados. A síntese de tantas
tuosa aventura histórica de um povo e não um teorema antíteses é o produto singular e original que é o Brasil
de elementar geometria. Assim, ao longo de seus tex- atual.” José Honório RODRIGUES [1982]
tos, ele costuma afirmar algo, para logo em seguida
negá-lo sob outra forma; reafirmando mais tarde o Não podemos esquecer que, na inteligência
anterior, para negá-lo mais uma vez, e assim, sucessi- brasileira, Gilberto Freyre é um dos maiores exem-
vamente, ele vai construindo um quadro claudicante plos de fidelidade a uma paixão e a um projeto con-
que é expressão do nosso próprio movimento históri- cebido desde a juventude, visto que dedicou toda a
co e social. Sua argumentação nasce da lógica da sua vida consciente à tarefa de compreensão e inter-
finesse pascaliana, existencial, cultural, e não daque- pretação empática, mas também analítica, deste País
la do rigor formal e cartesiano. Seu pensamento dis- em sua complexidade, na unidade de sua variedade,
tancia-se da lógica dicotômica, de termos mutuamente conforme costumava dizer. E de sua rica e numerosa
exclusivos. O que eu chamei sua dialética da medianiz obra, eu escolhi um dos seus livros, talvez um dos
admite o terceiro excluído mediante a costura do 'é' e menos conhecidos, para o exercício desse contraponto
do 'não é', do sim e do não, espécie de terceira mar- intelectual.
gem do rio eqüidistante dos extremos. Por isso ele Portanto, não elegi de propósito trabalhar com
causa incômodo às mentes acantonadas em suas for- Casa-Grande & Senzala, visto como essa estrada real
talezas ideológicas. está repleta de estudos e ensaios. Não é, pois, por aí
Enfim, a vigência cultural de sua contribuição que quero desenrolar meu percurso mais modesto.
teve um efeito inovador sobretudo em nossa Pretendo simplesmente empreender uma releitura de
historiografia. Esta até então tinha como espinha dorsal um livro seu, um só, que caiu em minhas mãos, quan-
seu eixo político-administrativo, que tendia a ocultar do ainda jovem estudante, já lá vão quarente e qua-
todas as demais dimensões que entretecem a trama tro anos, adquirido, se não abuso da memória, numa
da existência coletiva. Embora utilizando conceitos por livraria do Recife à extremidade oriental da Ponte da
demais amplos e do nosso senso comum – nação, raça, Imperatriz. Refiro-me a Interpretación de Brasil, as-
cultura, homem brasileiro, caráter nacional, cultura sim mesmo em sua versão em espanhol, editado pelo
brasileira, etc. – embora usando de preferência um Fondo de Cultura Económica, do México, em 1945,
estilo ensaístico em busca de harmonias criadoras que, e que traz esta nota editorial: «Traducción del original
posto não desconheça a tradição marxista, deixam de inédito por Teodoro Ortiz». A edição original em in-
lado as análises histórico-estruturais que privilegiam glês sairia no mesmo ano, pois que o livro resultara
o modo de produção, o conflito, os antagonismos de das notas de aula do curso que Gilberto Freyre minis-
classe e as relações de dominação; suas contribuições trara na Universidade de Indiana, no ano anterior.
renovaram de forma inusitada o modo de escrever a Sabe-se que um princípio básico de leitura re-
História. É, nesse sentido, um continuador de side em tomar em consideração as condições de pro-
Capistrano de Abreu, enriquecendo-o ao acentuar o dução de uma obra. Assim, a um primeiro exame,
valor da dimensão sociocultural, da vida quotidiana, estranha a ausência de fontes brasileiras nas referên-
do povo, da mulher, das crianças, do negro, da misci- cias do autor. Todavia, se atentarmos ao fato de que
genação, no modo de considerar a historiografia bra- este texto se destinava na origem, fundamentalmen-
sileira; realiza uma como deseroicização dessa te, a um público norte-americano, entenderemos por
historiografia, tomando como unidade básica a famí- que ele menciona sobretudo trabalhos em língua in-
lia, empregando amplamente as fontes populares e glesa. Além disso, em face da riqueza de informações
propondo novo fulcro de interesse, centrando-se na e temas que compõem Casa-Grande & Senzala, o pre-
vida íntima e privada. Esboça assim, como pioneiro, sente livro se apresenta bem mais modesto, já que
uma história do desejo e da sexualidade do povo bra- pretendia em particular realizar uma primeira síntese
sileiro. Foi, sem dúvida, o primeiro a ter a ousadia de interpretativa, espécie de balanço resultante dos seus
juntar os fragmentos dessa história, sobretudo em seus estudos anteriores.

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Como quer que seja, uma leitura atenta cons- parte e sobre a qual, como antropólogo e como soció-
tata inevitavelmente estranho silêncio do autor em logo e um tanto historiador, se sentia no dever científi-
relação a outros estudiosos brasileiros que explora- co de ser, quanto possível, objetivo. Daí uma perspec-
vam problemática semelhante, e cuja obra por certo tiva empática, ao mesmo tempo que objetiva, de
ele não ignorava. Menciono, para ilustrar, apenas dois análise. Um tanto, já de análise interpretativa. Mas não
casos significativos. O primeiro é o sergipano Manoel ainda de síntese...» [1971: XVIII]. Portanto, o livro, de
Bomfim que, muito antes dele, assestou como um cru- que darei aqui meu contraponto crítico, nasceu do
zado seus instrumentos analíticos contra o racismo desafio proveniente da recepção à sua obra maior.
dominante da inteligência brasileira de então, como Esquematicamente, essa obra, que realiza uma
chave desqualificada da explicação de nosso atraso primeira síntese interpretativa do seu pensamento
cultural. Com efeito, ele o fez desde 1905, logo após sobre o Brasil, compõe-se de seis capítulos tratando
a obra de Euclydes da Cunha, no seu A América Lati- das seguintes matérias: as raízes européias da história
na – males de origem. É verdade que, com base em brasileira; a fronteira e as plantations no Brasil; uni-
fundamentos históricos da mesma origem, ele chega dade e diversidade regional brasileira; condições ét-
a conclusões radicalmente opostas às de Gilberto nicas e sociais no Brasil moderno; a política externa e
Freyre: enquanto este engrandece a experiência co- a situação étnica, cultural e geográfica; e a literatura
lonizadora de Portugal; aquele, movido de intensa moderna e os problemas sociais. Não me move, po-
lusofobia, põe no legado português a causa dos defei- rém, a pretensão de resumir aqui a riqueza de aspec-
tos de nossa formação. O outro caso é a obra original tos que explora neste ensaio curto mas denso.
e pioneira de Pedro Calmon – História Social do Bra- Respigarei apenas aqui e ali um ou outro ponto que
sil – cujo primeiro tomo, dedicado ao «Espírito da So- forneça os elementos básicos de sua argumentação e
ciedade Colonial», foi publicado na mesma época de que me permitam algum comentário mais significati-
Casa-Grande & Senzala, com uma perspectiva analíti- vo.
ca muito próxima e examinando temas semelhantes No que tange ao tema inicial, o autor sublinha,
aos desta obra, mas sem a mesma grandeza. desde logo, o caráter ibérico e católico do Brasil. Na
O escopo dessa obra, objeto desta comunica- seqüência, porém, do seu desdobramento, ele vai
ção, enquadra-se numa espécie de tese geral adota- matizando e enriquecendo essas duas características,
da por Gilberto Freyre, segundo a qual ele realiza a primeiro mostrando a complexa formação étnica dos
«tentativa de interpretar não apenas o Brasil, como povos ibéricos e do português em especial, acentu-
tal, porém como expressão pioneira de um novo tipo ando em particular seu intenso intercâmbio com
de cultura e de civilização – civilização moderna ao mouros e árabes, bem como a forte presença judia,
mesmo tempo que ecológica – em desenvolvimento sem esquecer as condições físicas e geográficas. Há
em espaço ou dentro de ambiente tropical» [1971: um trecho que, no meu entender, sintetiza sua argu-
prefácio, p. XVII]. Tanto é assim que, no título da nova mentação e expressa o típico de seu estilo: «A diversi-
versão aumentada e modificada deste livro, o autor dade regional das condições peninsulares do solo, da
enfatiza um dos eixos argumentativos da tese: Novo situação geográfica e do clima é algo que devem ter
Mundo nos Trópicos. Título que amplifica sua genera- em conta todos os que estudem as raízes européias da
lidade, porém com a omissão de tratar-se de uma sín- história brasileira, raízes que não são puramente euro-
tese interpretativa do Brasil. Eis por que dou prefe- péias, senão também africanas; não só cristãs, senão
rência, nesta comunicação, à versão original que assim mesmo judias e islâmicas; não só agrárias, como
primeiro me veio às mãos e onde esse desiderato é o indica a importância dos agricultores nos primeiros
claro desde logo. tempos de Portugal, senão igualmente militares; não
Ora, os primeiros críticos do Gilberto Freyre de só industriais, como as desenvolveram os árabes e os
Casa-Grande & Senzala, como o sergipano João Ri- mouros, senão ainda marítimas e comerciais, que de-
beiro, acusavam-na de ser uma obra sem conclusões. senvolveram nórdicos e judeus; notáveis não só pela
E o próprio autor reconhece que o espírito que presi- capacidade para o trabalho penoso, contínuo e mo-
dia aquela fase de seu trabalho era sua tendência «prin- nótono, e pela inclinação à vida sedentária da agricul-
cipalmente analítica ou indagadora, em face do as- tura, mas também o espírito de aventura... e o des-
sunto já, naqueles dias, de sua máxima preocupação: dém pelo trabalho agrícola.» [1945: 12 e 17]. Essas
o Brasil como país – e como cultura – situado em es- duas últimas características evocam idéias desenvol-
paço, quase todo, tropical; o Brasil como cultura, qua- vidas por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do
se toda mestiça... O que mais buscou naquele livro foi Brasil.
analisar, compreender, fixar sob nova perspectiva, uma Além disso, insiste o autor em que, por maior
situação complexa da qual, como brasileiro, se sentia que tenha sido o papel das camadas dominantes por-

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tuguesas, «deve-se repetir uma vez mais que a força cessos de centralização e unificação política da cultu-
criadora mais constante [em nossa colonização] foi ra estimuladas pelos interesses e pelas forças política e
provavelmente a dos camponeses analfabetos, alguns economicamente imperialistas. (...) O estudo da his-
de sangue norte-africano: árabe, mouro e ainda ne- tória social brasileira e das condições sociais parece
gro. O resultado de sua obra pode apresentar-se hoje indicar que no Brasil, como em outras nações vastas e
ao mundo como um dos esforços mais afortunados de complexas, deve permitir-se a cada um desenvolver
colonização, não já europeus, senão semieuropeus, na uma lealdade particular para sua comunidade básica,
América tropical: no Brasil.» [Ib.: 29-30]. E ele conclui sua região ou sua província. Ainda que em seus afetos
asseverando que na história social do Brasil está por transnacionais possa ir tão longe que chegue a conver-
fazer-se ainda a tarefa de reunir informação suficien- ter-se num verdadeiro cidadão do mundo, contudo,
te sobre a vida, a atividade e a influência das massas sua condição como membro de um grupo primário
populares, informes sobre os contatos socioculturais local parece ser essencial para a saúde pessoal e soci-
básicos, que permitam obter um conhecimento ade- al.» [pp. 74 e 96].
quado do nosso desenvolvimento. Contudo, entre Na verdade, o capítulo que se segue, acerca das
alguns reparos que se pode fazer à sua exposição, está condições étnicas e sociais do Brasil moderno, é um
por exemplo o fato de que ele repete constantemen- desdobramento do antecedente, e é tão denso quan-
te equívocos de Sílvio Romero e sua geração ao qua- to o outro. O autor tem aqui a oportunidade de de-
lificar como "sistema feudal" nosso modo de produ- senvolver seus argumentos a favor da miscigenação e
ção colonial agro-exportador. contra a antropologia racista, de que cita alguns auto-
O capítulo seguinte, posto contenha como sem- res para contestá-los com exemplos e testemunhos
pre algumas observações preciosas, decepciona um significativos. Expõe a divisão das regiões brasileiras
pouco o leitor pela não correspondência ao seu título segundo princípios ecológicos, inclusive de ecologia
que promete tratar de "fronteira e plantations". Na humana, tal como foi proposta por von Ihering, daí
realidade, o autor dedica duas ou três páginas ao pri- derivando longa argumentação em defesa de nossa
meiro tema. Todo o resto do texto é dedicado a uma miscigenação e da fundamental contribuição africana
apologia, um tanto nostálgica, do regime senhorial dos para a nossa formação como povo e cultura. Situa-se
engenhos, entremeada de observações folclóricas: no quadro da Velha República para estudar as trans-
festa de São João, bolos, briga de galo, banhos de rio, formações daí decorrente e caracterizar os grupos em
corrida de cavalo, etc. – adotando um andamento disputa pela liderança política do País e na realização
meio dispersivo, em que qualquer coisa serve a diva- de seus projetos de progresso material, diferencian-
gações, às vezes antropológicas, porém de perfil ca- do-os por sua composição étnica, por seus interesses
leidoscópico. econômicos e intelectuais, e por sua origem social.
Inegavelmente é o terceiro capítulo, sobre a Aqui, ele formula críticas a essas elites políticas que
unidade e diversidade regional brasileira, que consti- no fundo perseguiam os mesmos propósitos, sem re-
tui um dos mais interessantes e densos do livro. Par- alizarem um efetivo contacto «com a realidade brasi-
tindo de definições e distinções conceptuais relativa- leira humana, social e cultural. Creram que se revela-
mente rigorosas, ele analisa as características de nossas riam consumados mestres na arte de governo realista
diferenças regionais e os ajustamentos e antagonis- tratando de resolver os aspectos mesquinhamente eco-
mos entre uniformidade e divergência, centralismo e nômicos e os tecnicamente financeiros e materiais dos
autonomia, etc. Percorre o perfil psicológico de cada problemas sociais brasileiros. Descuidaram seus aspec-
região principal do Brasil, destacando seu caráter do- tos humanos e étnicos, por exemplo, o importantíssi-
minante, e chega a sugerir a hipótese de construção mo de conduzir a transição de um grande número de
de uma tipologia regional brasileira em função do brasileiros do trabalho escravo ao trabalho livre. (...)
modo como cada área festeja o Carnaval. Mais de Daí por que concentraram sua atenção em problemas
meio século depois, com as atuais pressões de progresso material, numa política de empréstimos
globalizadoras, ainda mantêm gritante atualidade al- e de edificações, e de atração do capital estrangeiro...»
gumas de suas observações, como esta: «Alguns dos [p. 113]. Segue-se ainda longa discussão da política
que têm estudado a situação social internacional que de migrações para o País e da ingerência das potênci-
se desenvolveu no mundo após a Revolução industrial as estrangeiras, bem como da velha questão da assi-
na Europa – a conquista industrial do mundo baseada milação de índios, negros e outros grupos à cultura
em ideais de estandardização de todos os lugares de brasileira, que ele examina criticamente desde as po-
acordo com os padrões dos estados capitalistas mais sições dos jesuítas e passando pelo plano apresenta-
poderosos – têm reconhecido a necessidade de um do por José Bonifácio para integração dos índios. Isso
regionalismo criador em oposição aos numerosos ex- lhe fornece a ocasião de examinar e elogiar aberta-

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mente a obra desenvolvida pelo Marechal Rondon cos. Na verdade, sempre que se refere à questão, ele
nesse sentido. emprega sistematicamente o termo «democracia ét-
A política exterior e a situação étnica, cultural e nica e social». Ora, para quem viveu a experiência da
geográfica, que constitui o tema do quinto capítulo, clivagem racial profunda dos Estados Unidos, como
inicia-se por afirmações que são o resultado das refle- ele, é fácil supor a significação que ele atribui à sua
xões desenvolvidas nos capítulos precedentes: «O visão na relatividade comparativa de sua semântica,
status nacional do Brasil não é a expressão de uma inclusive pela fluidez com que usa o conceito de de-
consciência de raça, pois não o fez uma raça única... mocracia quase como sinônimo de tolerância. Toda-
Sua mística de unidade ou pureza foi de status religio- via, mais do que um argumento, esse corolário de sua
so ou de religião – a religião católica romana ou o status tese geral sobre o Brasil vem repetido por ele como
cristão – e não de raça. O status nacional do Brasil é um leitmotiv no conjunto de sua obra, como se ele
etnicamente negativo. Poucas nações modernas são tão fosse uma espécie de pastor evangélico que se vê na
heterogêneas do ponto de vista étnico como a única obrigação de pregar essa nova revelação oportune et
república de fala portuguesa do continente america- importune.
no. No Brasil, nenhuma minoria ou maioria étnica exer- O capítulo final, por sua própria temática – a
ce realmente uma dominação absoluta, sistemática e literatura moderna e os problemas sociais – é
permanente, cultural e social, sobre elementos da po- indubitavelmente o mais saboroso do livro por sua
pulação política e economicamente menos ativos.» [p. riqueza e fecundidade de reflexão. Por isso epigrafei
131]. Mas em seguida, depois de comparar o Brasil, o início deste trabalho com a citação de seu primeiro
nesse particular, à União Soviética, ele faz o reparo parágrafo. Na dificuldade de resumi-lo aqui, sublinho
de que não se deve ver em sua visão a pretensão sua que se trata de suas reflexões originais sobre arte e
de apresentar o Brasil como uma perfeita democracia literatura no Brasil em suas relações com a substância
étnica e social. social e cultural da nação: são observações preciosas
Todo este longo capítulo é uma retomada de sobre Gregório de Matos, uma aguda análise política
seus argumentos e novas ilustrações de sua conheci- da estética de Aleijadinho, apreciações fecundas so-
da posição nesse campo, por isso volta a contestar as bre várias expressões da cultura popular, ou o desta-
opiniões de autores racistas contra a mestiçagem, re- que que atribui à caricatura e à sátira como aspectos
forçando-se com referências a autores científicos que dominantes de várias de nossas expressões culturais,
lhe são favoráveis, incluindo alguns estudiosos brasi- ou quando aponta as deformações de visão de nossos
leiros como Roquete Pinto. Retoma a questão das intelectuais mediante a análise que empreende do
migrações estrangeiras e das novas relações decorren- Canaã, de Graça Aranha, ou enfim seus reparos sobre
tes do desenvolvimento industrial, para terminar pro- o movimento modernista e a originalidade do regio-
feticamente projetando uma posição de liderança do nalismo nordestino do período.
Brasil sobre o conjunto do mundo lusófono e do seu
papel civilizatório por sua experiência singular: «Pa- Preciso concluir esta comunicação. Mas tam-
rece que o Brasil tem que fornecer uma contribuição bém aqui Gilberto Freyre não apresenta bem conclu-
peculiar ao desenvolvimento da personalidade huma- sões, merecendo provavelmente os mesmos reparos
na no mundo moderno. Essa contribuição virá prova- dos críticos de Casa-Grande & Senzala. Ou seja, seu
velmente do tipo extra-europeu de civilização que es- esforço de interpretação do Brasil continuará sendo
tão desenvolvendo os grupos mais dinâmicos e criativos uma obra aberta. Por isso, para fechar sem concluir,
da população brasileira, apesar das inúmeras dificul- gostaria de poder transcrever aqui o lúcido e provo-
dades com que tropeçam. (...) [e o maior grau de tole- cante prefácio de Monteiro Lobato, seu contemporâ-
rância das jovens gerações brasileiras em relação ao neo que talvez melhor compreendeu o significado ou
caráter mestiço da nação constitui prova] de que exis- o espírito de sua obra, prefácio que escreveu para o
te uma capacidade de construir uma civilização nova livro biográfico sobre Gilberto Freyre que fez Diogo
e original no continente americano...» [pp. 159 e 161]. de Melo Meneses [1944]. Como se trata, porém, de
Idéia esta longamente acalentada também por Darcy um texto muito longo, menciono apenas alguns frag-
Ribeiro. mentos:
Antes de passar ao último capítulo, gostaria de “Em todos esses capítulos... outra coisa não fez
sublinhar o fato de que, em nenhum momento deste G. F. senão revelar-nos a nós mesmos, contar o que
livro, Gilberto Freyre fala de "democracia racial" no somos e porque somos assim e não de outro modo.
Brasil. Aliás, do mesmo modo que o "homem cordial" Toma-nos a mão, e vai nos ensinando a ver claro nas
de Sérgio Buarque de Holanda, esta expressão tem coisas do Brasil.
padecido da incompreensão de muitos de seus críti- G. F. tem o destino dos Grandes Esclarecedores.

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Antes de sua amável e pitoresca lição vivíamos num tura Económica, 1945.
caos impressionista, atrapalhadíssimos com os nossos _____________. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a
vida e paisagem do Nordeste do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro:
ingredientes raciais, uns a negá-los, como os que têm
José Olympio, 1961.
como "patriótico" esconder o negro, clarear o mulato _____________ . Novo mundo nos trópicos. São Paulo: C.E.N. /
e atribuir virtudes romanas aos índios; outros a con- Edusp, 1971. (Coleção Brasiliana, 348).
denar isto em nome daquilo – tudo impressionismo _____________. Novos estudos afro-brasileiros: segundo tomo. Rio
duma ingenuidade absoluta e muito revelador da mais de Janeiro: Civilização Brasil, 1937. Trabalhos apresentados
ao 1º Congresso Afro-brasileiro do Recife (1934)
completa ausência de cultura científica em nossa gen-
_____________. Problemas Brasileiros de Antropologia. Rio de Ja-
te culta e até em nossos sábios. (...) neiro: Casa do Estudante do Brasil, 1943.
G. F. ensinou... essa deliciosa composição que é GILBERTO Freyre, o inventor do Brasil. In: Cult: Revista Brasileira
a ciência misturada com a arte – com todas as artes, de Literatura. São Paulo, a.3, n. 32. Mar. 2000. (Incluí artigos
inclusive a culinária, tão vital nos destinos humanos, e de Stélio Marras, Antonio Dimas, Cláudia Cavalcanti e João
a erótica, a mais cultivada de todas. E tornou-se o Gran- Alexandre Barbosa).
GÖRGEN, Hermann M. Gilberto Freyre: mestre e consciência da
de Desasnador, o delicioso mestre da verdadeira ciên- nação. Cadernos Germano-Brasileiro. a. 19, n. 1, p. 5-8. 1980.
cia sociológica como a entendem os homens de gênio. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 4. ed. Brasília:
(...) UnB. 1963.
A grande inimiga de Gilberto tem sido sempre a JASPERS, Karl. Balance y Perspectiva. Madrid: Revista de Occidente,
mediocridade – na crítica, no governo, no leitor co- 1953.
mum... Podemos até dizer que o melhor teste quanto JUREMA, Aderbal, et al. Homenagem a Gilberto Freyre. Brasília: s.
n., 1980.
ao valor duma inteligência é pô-la diante de um livro
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro: história de
de Gilberto. A inteligência medíocre fatalmente o re- uma ideologia. São Paulo: Pioneira, 1969.
pelirá com o mesmo ímpeto com que o acolherá a LIMA, João Gabriel de. O Baú do Gênio de Apipucos. VEJA. São
inteligência de escol.” Paulo, p.70-77, 15 set. 1999.
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. São Paulo:
_______________________ Cultrix, Edusp, 1979.
MEDEIROS, Maria Alice Aguiar. O Elogio da Dominação: relendo
Bibliografia Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
MENESES, Diogo de Melo. Gilberto Freyre: notas biográficas com
AMADO, Gilberto et al. Gilberto Freyre - sua ciência, sua filosofia,
ilustrações, inclusive desenhos e caricaturas. Rio de Janeiro:
sua arte: ensaios sobre o autor de “Casa-Grande & Senzala” e
C.E.B., 1944.
sua influência na moderna cultura do Brasil, comemorativos
do 25o aniversário da publicação deste seu livro. Rio de Janei- MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. A Cultura Brasileira “desco-
ro: José. Olympio, 1962. 576p. bre” o Brasil, ou ‘Que país é este?!’ uma pergunta à cata de
resposta. Revista USP. São Paulo, n. 12, p. 76-93, 1992.
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110
A Propósito de Vida, Forma e Cor e do
Perfil de Euclides da Cunha 1

Maria Alice Rezende de Carvalho


Socióloga – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Brasil

O livro Vida, Forma e Cor , como se em uma aproximação empática do autor para
sabe, reúne alguns textos de crítica literária com a qualidade do vivido. E, finalmente, a
elaborados por Gilberto Freyre, sendo, por- terceira – "o que é o Brasil?" –, por ser esta a
tanto, um conjunto bastante variado de en- questão que obseda Gilberto Freyre e que
saios curtos, escritos em circunstâncias e épo- permeia toda a sua obra. Em Vida, Forma e
cas muito distintas, como, aliás, esclarece o Cor há, de fato, a sugestão de um Brasil que
próprio autor, na apresentação que faz ao é, mais do que uma realidade espaço-tempo-
volume. É, por isso, no meu entender, um tan- ral, uma matéria de tradução estética de
to refratário a abordagens que pretendam quantos se debruçam sobre ele; uma "figura",
tomá-lo como peça inteiriça, portadora de um na qual todas as épocas e suas substâncias são
sentido e de critérios homogêneos para o tra- contemporâneas entre si porque as suas res-
tamento de todos os temas arrolados ali. A pectivas existências não se confundem com o
variedade presente na coletânea e a riqueza tempo cronológico, sendo, antes, expressões
de referências históricas, literárias e filosófi- intelectuais conferidas a estados fugitivos ou
cas com que lida Gilberto Freyre recomen- a potencialidades a que se presta pouca aten-
dam, no mínimo, alguma cautela aos leitores ção. O Brasil, portanto, seria um espaço mo-
interessados em fornecer uma visão sintética derno de experiências, que se presta à reve-
da obra. Mas, se me fosse sugerido fazê-lo, lação. Revelação – esse o sentido mais forte
eu diria que Vida, Forma e Cor, é um livro que Gilberto Freyre empresta à literatura,
construído sobre três perguntas: "quem escre- quando praticada por intérpretes geniais,
ve sobre o Brasil?" "o que é escrever literaria- empaticamente mergulhados na matéria
mente?" e "o que é o Brasil?" compósita brasileira. Pareceu-me, então, que
A primeira indagação – "quem escreve os ensaios críticos de Gilberto Freyre poderi-
sobre o Brasil?" – se justifica porque grande am ser interpelados a partir dessas três inda-
parte dos ensaios têm em comum a preocu- gações, cujo efeito resulta ser a produção de
pação em indicar um extenso elenco de au- um amplo quadro de referências para se pen-
tores que, mesmo quando não tratam do Bra- sar o Brasil, os seus intérpretes e suas respec-
sil, inspiram os autores brasileiros, como é o tivas formas de interpretação.
caso de Amy Lowell, que Gilberto Freyre con- Com base nessas afirmações prelimina-
sidera uma forte presença na poesia de Ma- res, creio ser relevante apresentar um desses
nuel Bandeira. A segunda – "o que é escre- autores geniais do Brasil, que embora menci-
ver? " –, porque o livro resulta em uma onado em algumas das críticas que compõem
apresentação de variadas concepções acerca Vida, Forma e Cor, não é tratado aí. O autor é
da escritura literária, ora para combater os Euclides da Cunha que, como se sabe, foi tema
críticos que, segundo o autor, são "demasia- de dois ensaios curtos, que participam do Perfil
do intransigentes" para reconhecerem valor de Euclides e Outros Perfis. O primeiro texto
literário no ensaio social, ora para defender, se intitula O Engenheiro Físico, Alongado em
explicitamente, a literatura contida em ensai- Social e Humano e o segundo, Revelador da
os interpretativos das experiências humanas, Realidade Brasileira. Euclides é tomado aqui
mediante a observação de aspectos particu- como referência porque Gilberto Freyre re-
lares, desordenados, de fragmentos conhece nele um autor que atingiu a qualida-
descontínuos dessa experiência. Uma litera- de literária da revelação – por isso entendida
tura, pois, da experiência, apresentada sob a a capacidade, por exemplo, de surpreender
forma do ensaio social e elaborada com base no Brasil de sua época, isto é, da passagem

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do século XIX ao XX, regiões inteiras vivendo um tem- história geográfica e colonial do Nordeste, junto a
po social diverso, retrógrado, distinto do que poderia geólogos e ao próprio Pimenta da Cunha, primo de
ser considerada a contemporaneidade da Rua do Euclides e engenheiro também. Enfim, para a elabo-
Ouvidor, um tempo, enfim, sem qualquer sintonia com ração de Os Sertões Euclides teria mobilizado vários
a cronologia litorânea. É como se Gilberto Freyre iden- de seus amigos e conhecidos, certamente que mais
tificasse na obra de Euclides uma antecipação da sua informados sobre alguns aspectos envolvidos naque-
própria forma de figurar o Brasil, certamente que mais le empreendimento. Gilberto Freyre fala ainda das
rudimentar do que a que seria elaborada por ele, dado dificuldades que Euclides encontrava no ato de es-
que Euclides mantinha-se preso à noção de "realida- crever, o "caráter pensado" de todos os seus registros,
de" e a uma idéia de revelação ainda muito próxima inclusive dos seus bilhetes e cartas íntimas, a serieda-
da noção de descoberta, de verificacão científica da de que emprestava à atividade intelectual.
existência de um espaço de experiências que, afinal, O contraponto que Freyre faz a esse perfil do
se mantivera subtraído da história por força da intelectual rigoroso e sistemático é, claramente, Lima
impenetrabilidade dos sertões. De qualquer modo, a Barreto, que, no livro Vida, Forma e Cor, é apresenta-
admiração com que Gilberto Freyre se refere a Os do como um escritor que, com o seu poder de obser-
Sertões permite sugerir que ele reconhece em Euclides vação, teria chegado ao plot de Casa-Grande & Sen-
um antecessor da sua abordagem, no que ela tinha zala em 1903. A ambição de Lima Barreto em produzir
de reveladora empática da pluralidade de tempos bra- uma reconstituição do Brasil patriarcal e escravocrata
sileiros. Há, assim, a pretensão de estabelecimento é confessada no seu diário íntimo e citada por Gilber-
de uma linhagem, de uma linha sucessória entre os to Freyre: "não realizou Lima Barreto, de modo espe-
intérpretes do Brasil, pela qual Gilberto Freyre procu- cífico, seu sonho de obra-prima. Nem sob a forma de
raria se alinhar. E é sobre o pertencimento de Gilber- história, como a princípio pretendeu, nem sob o as-
to à linhagem euclidiana que vou procurar tecer algu- pecto de romance, no que depois desejou adoçar
mas considerações, ainda que um tanto improvisadas. aquela tarefa, na verdade, áspera. Talvez lhe faltasse
Para um leitor mais exigente, essa proposição sistema de estudo ou critério de pesquisa que lhe per-
talvez pareça absurda, dada a disparidade de objetos, mitisse elaborar livro tão difícil e complexo". E, mais à
de estilos, de recursos intelectuais, de concepções frente, Freyre continua: "a Lima Barreto faltou forma-
acerca, principalmente, da questão racial e até mes- ção universitária ou seu justo equivalente. O conhe-
mo de preferências estéticas entre os dois autores. cimento que reuniu sobre os assuntos de sua predile-
Assim, por exemplo, na caraterização que Gilberto ção, vê-se pelo seu diário íntimo, que foi um saber
Freyre faz de Euclides, está presente o fato de que a desordenado e, como ele próprio, boêmio. No ro-
este "como que repugnava na vegetação tropical e na mancista mulato o poder de observação dos fatos era
paisagem dominada pelo engenho de açúcar, o gor- quase sempre agudo; mas quase nenhuma sua assi-
do, o arredondado, o farto, o satisfeito, o mole das milação desses fatos em saber sistemático."
formas. Atraía-o o anguloso, o ossudo, o hirto dos re- Em tecendo elogios à obra literária de Lima
levos ascéticos ou, quando muito, secamente mascu- Barreto, Gilberto Freyre registra, contudo, a grande
linos do agreste e dos sertões". Apesar dessa afirma- distância que o separava de Euclides da Cunha. Se
ção tão contundente de Gilberto Freyre acerca das Euclides primava pela disciplina, pelo caráter pensa-
diferenças entre ambos, tentarei sublinhar alguns as- do de sua escritura, pela observância das regras en-
pectos da aproximação entre eles que reconheço volvidas na produção de um conhecimento rigoroso,
como mais evidentes no perfil construído sobre Lima Barreto, ao contrário, era capaz de observar agu-
Euclides da Cunha. damente o mundo a sua volta, sem, no entanto, con-
O primeiro aspecto dessa aproximação, o mais seguir organizar as suas impressões. Essa deficiência,
óbvio e talvez o mais fraco, porém não de todo pois, não o qualificara para o trabalho de reconstru-
irrelevante, diz respeito ao tema do rigor devotado à ção imaginativa da sociedade brasileira, típica do en-
pesquisa, isto é, o elogio ao tratamento rigoroso das saio histórico. Ademais, a figura do boêmio, do inte-
fontes documentais, à atividade crítica, à produção lectual dos cafés, era extremamente negativa para
de uma interpretação concebida como um mix de Gilberto Freyre. Era-lhe desagradável o ambiente das
originalidade e de orientação estritamente escolar. cidades literatizadas e de seus personagens, pois con-
Gilberto Freyre se refere longamente ao auxílio que siderava aquele um mundo convencional, estetizado,
Euclides da Cunha teria buscado junto a alguns espe- de sentimentos decalcados, um mundo em nada com-
cialistas em temas de seu interesse, como, por exem- patível com o cenário do homem íntimo, subjetivo,
plo, junto a Teodoro Sampaio, a quem procurou para sexual. Essa cidade literatizada estava mais próxima,
obter alguns esclarecimentos acerca da geografia e da segundo Gilberto Freyre, de Machado de Assis, por

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112
exemplo, uma espécie de "inglês" desgarrado no tró- nheiro seria autor de uma obra que não está fora dele;
pico, embora resignado à doçura da vida suburbana de uma obra que narra o efeito dos sertões sobre a
do chá com torrada. Era uma cidade mais próxima, alma daquele brasileiro torto, que era Euclides da
também de Joaquim Nabuco, que, segundo Gilberto, Cunha.
mal conseguia se referir às jaqueiras exuberantes e A necessidade de uma paisagem que
quase obscenas de Pernambuco. Era o cenário de um correspondesse às aflições do autor, ao seu estágio de
Afonso Arinos, que conseguiu descrever o sertão mi- desenvolvimento pessoal, à sua dinâmica formadora,
neiro com elementos da paisagem européia. Em suma, parece ser o ponto que mais emociona Gilberto Freyre
porquanto fossem autores e intelectuais apreciados e em sua leitura de Os Sertões. O livro assume, assim, a
merecedores de elogios, Gilberto Freyre guardava em característica de um encontro: uma civilização
relação a eles uma certa distância, atribuindo-lhes uma inacabada e um autor inacabado encontram-se na
excessiva estetização, uma filiação radicalizada à "for- produção de uma obra que, afinal, completa a identi-
ma" e, portanto, uma incapacidade de lidar com a dade do autor pelo reconhecimento público que ela
vida. Aqueles eram homens de Corte, homens de sa- foi capaz de lhe fornecer. Há, aliás, entre Euclides,
lão e da vida mundana. E nessa ambiência, Freyre re- Gilberto e Lima Barreto uma similaridade que não
conhecia a exclusão de muitos dos talentos literários pode ser desconsiderada, embora Freyre sempre fi-
que lhes eram contemporâneos, com as conseqüên- zesse questão de se distinguir do mulato boêmio. Os
cias previsíveis do ressentimento e da boemia que três, de fato, pensaram em escrever uma obra-prima,
nutriam, por exemplo, um Lima Barreto. Em suma, um clássico brasileiro, capaz de marcar o momento
embora fossem considerados antípodas, Machado de de sua entrada, a aparição de cada um, na grande
Assis e Lima Barreto apresentavam, segundo Freyre, a cena intelectual.
mesma dificuldade em associar vida e forma, com a Com Os Sertões , Euclides conheceria a fama –
diferença de que cada um deles habitava um dos pó- autor e obra teriam atingido um acabamento mútuo.
los característicos da Corte literária: Machado, o so- Os Sertões deixavam de ser uma região ignota para se
lar; Lima Barreto, o noturno. constituírem em uma "qualidade" da experiência bra-
A matriz que Euclides inaugura em meio a esse sileira, uma espécie de símbolo de um País em busca
cenáculo de intelectuais da Corte é de outra nature- de afirmação, cujo principal ator passava a ser o, até
za. É uma matriz que Gilberto Freyre definiu como então desconhecido, tabaréu. Valorizados em sua
adequada a um "tapuia presbiteriano". Tapuia era a potencialidade heróica, os caboclos vulgares, anôni-
visão que Euclides tinha de si; a ela, Gilberto Freyre mos e, até certo ponto, canhestros transformavam-
associa o presbiterianismo que participou da forma- se, pela lente euclidiana, em titãs acobreados e po-
ção do engenheiro. Nessa matriz – a do tapuia tentes, figuras hirtas e densas, em um inesperado
presbiteriano –, o aspecto que se afigura mais impor- movimento de assemelhamento ao autor. O Euclides
tante, e que eu diria ser reconhecido por Gilberto tabaréu, tornado um herói da interpretação e das ex-
Freyre como uma antecipação da sua própria abor- pedições científicas que, nas décadas seguintes cru-
dagem, é o que se traduz na capacidade de o autor se zariam o Brasil, concluíra o círculo em que se mistu-
deixar "desmanchar" – ou, para usar uma palavra ravam vida e obra.
gilbertiana, enlanguescer –, diante do seu objeto. Esse, O sertão é o lugar que transforma o
então, o segundo aspecto da aproximação que pro- inacabamento em heroísmo, dimensão que Capristano
curo estabelecer entre Euclides e Gilberto. Tal aspec- de Abreu levará mais adiante, ao apontar a vocação
to consiste na valorização de um procedimento em irredentista de um Brasil desconhecido, de um Brasil
que o autor se dissolve, empaticamente, no seu obje- profundo, interior, "de dentro". Gilberto Freyre, con-
to, na paisagem de sua devoção, deixando-se mergu- tudo, não se estende em suas considerações sobre
lhar no que Freyre considerava "as estridências brasi- Capistrano. Reconhece apenas que ele teria prolon-
leiras", aqueles ruídos que não poderiam ser gado e aprofundado essa percepção do antagonismo
capturados pela contenção da forma a que se viam presente na trajetória brasileira, teria fixado essa di-
obrigados os intelectuais da Corte. Euclides, eviden- mensão da história como conflito, já presente em
temente, austero como a natureza descrita em Os Euclides da Cunha. E embora anote que ambos com-
Sertões, absorvera, em si, a paisagem intelectual, a partilhavam um mesmo parâmetro para a compreen-
paisagem moral, a paisagem estética do seu objeto. são do Brasil, deixa entrever que a caracterização
Era um sertanejo anguloso. Gilberto fizera o mesmo, euclidiana de Canudos como uma potência não rea-
e se tornara farto como os grandes canaviais. O texto lizada, como um movimento que poderia ter ensejado
de Gilberto sobre Euclides, a partir daí, segue de per- a construção de uma nação autêntica e que, uma vez
to a sugestão de Afrânio Peixoto, para quem o enge- desbaratado, adiava, para um tempo incerto, o reen-

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113
contro dos brasileiros com a sua originalidade, con- jo. Raro na palestra se animava, é a informação que
trastava, claramente, com a percepção que Capistrano nos dá Teodoro Sampaio, que acrescenta: não era ver-
tinha daquele processo. É que, com Euclides, a der- boso, nem álacre, nem causticante no discretear ordi-
rota de Canudos assumia as cores de uma epopéia nário. Preferia pensar, refletir, ouvir antes que dizer o
negativa; com Capistrano; as de uma derrota históri- que traía natural propensão, mais para acolher do que
ca. Para este, o final do século XVIII é coincidente para dispartir as jóias do seu espírito".
com a derrota do que havia de genuinamente brasi-
Segundo Gilberto Freyre, o contentamento, al-
leiro, sendo o País, desde então, uma repetição amar-
gum e discreto, que ainda poderia mobilizar Euclides
ga e permanente da civilização que a monarquia luso-
da Cunha era uma certa maledicência, uma certa
brasileira concebeu para nós, isto é, de uma civilização
mordacidade que ele praticava em suas cartas ínti-
luso-brasileira, estrangeira, exógena, artificial, alheada
mas como, por exemplo, a de chamar Joaquim
do Brasil dos sertanejos.
Nabuco de "artista velho": parecia um ator velho, ti-
É claro que, dessa perspectiva, a oposição de
nha pelo menos a voz de um ator velho. Enfim, exce-
Gilberto Freyre em relação a Capistrano e aos moder-
tuando essa prática, nada mais o tornava farto ou lar-
nistas paulistas a quem ele inspirou em sua crítica ao
go. Sua austeridade foi tomada, por Gilberto Freyre,
nosso legado luso estava evidenciada. E, nesse caso, a
como um exemplo de ascetismo e economia, ainda
valorização que faz da obra de Euclides é, também,
que, de passagem, se possa observar que o texto de
de porte a sublinhar as suas diferenças em relação a
Euclides é, notoriamente, o oposto disso – rebusca-
um autor – Capistrano –, a quem se atribuía o honro-
do, barroco, gordo. Mas essa consideração não apa-
so título de continuador da problemática inaugurada
rece em Gilberto. Por que?
pelo Os Sertões. Gilberto preferia, como Euclides, a
Talvez porque Gilberto Freyre estivesse em bus-
sugestão de um Brasil como potência, como possibili-
ca de uma figura contrastante, que, desse modo, es-
dade de afirmação do novo, sem o receituário que
clarecesse a sua própria. Assim, é interessante consta-
Capistrano extraíra da derrota de Canudos, ou seja,
tar a presença freqüente do personagem Dom Quixote
sem a preconização de uma ruptura com a nossa ori-
em seu texto sobre Euclides. E eu concluo essas notas
gem, a nossa marca luso-brasileira.
com a sugestão de que as disparidades entre o ma-
Finalmente, uma terceira e rapidísima sugestão
gro, anguloso, e o farto, gordo; entre o duro e o mole;
quanto à aproximação de Gilberto Freyre à linhagem
entre o discreto e o excessivo pudessem ser identida-
euclidiana. Uma aproximação por contraste, uma
des construídas como um antagonismo em equilíbrio,
reedição marota dos chamados "antagonismos em
como um intérprete coletivo do Brasil, atravessando
equilíbrio", forma típica da construção de Casa-Gran-
diferentes épocas, sem a precedência histórica de um
de & Senzala, por exemplo. Ela remonta à descrição
sobre o outro, de Euclides sobre ele mesmo, Gilberto
da personalidade do autor – um homem triste. É de
Freyre. Na linhagem que Gilberto Freyre está procu-
Gilberto Freyre a caracterização que se segue sobre
rando construir, não cabe uma evolução, já que a
Euclides da Cunha:
temporalidade brasileira é a de simultâneos e não a
"...nem moças bonitas, nem danças, nem janta- de sucessivos. Nesse sentido, o par Dom Quixote e
res alegres, nem almoços à baiana, com vatapá, caruru, seu escudeiro me parece ser representativo dessa di-
efó, nem feijoadas à pernambucana, nem vinho, nem nâmica de identificações que Gilberto estabelece en-
aguardente, nem sobremesas finas, segundo velhas tre Euclides e a sua maneira de produzir o ensaio so-
receitas de iaiás de sobrados, nem churrascos, nem cial literário.
mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, açaís, sopa
de tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias _______________________
de Semana Santa, nem ceias de siri com pirão, nem Notas
galos de briga, nem canários do império, nem caçadas
Esse texto foi elaborado a partir da transcrição da comunicação
de onça ou de anta nas matas das fazendas, nem ba- apresentada no Seminário Internacional Novo Mundo nos Trópi-
nho nas quedas d'água dos rios do engenho, em ne- cos, guardando, por isso, a informalidade que caracteriza as ex-
nhuma dessas alegrias, caracteristicamente brasileiras, posições orais. Agradeço, nessa oportunidade, aos organizadores
Euclides da Cunha se fixou. Nem mesmo no gosto de do evento, e especialmente a Dra. Fátima Quintas, a oportunida-
de de participar daquele encontro.
conversar e de cavaquear, às esquinas ou à porta das
lojas, de todos os brasileiros, desde a Rua do Ouvidor
à menor botica do centro de Goiás, principalmente
dos baianos, dos quais, aliás, Euclides procedia, em-
bora sua personalidade se enquadre menos no tipo
regional do baiano do Recôncavo que no do sertane-

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114
O Significado da Obra de Gilberto Freyre
para a Antropologia Contemporânea

Gilberto Velho – gvelho@alternex.com.br


Antropólogo – Departamento de Antropologia do Museu Nacional /
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil

Não tenho a pretensão de esgotar nes- educadores, entre outros. Portanto, durante
se texto toda a contribuição de Gilberto Freyre a permanência de Gilberto Freyre em
para o desenvolvimento da Antropologia. Colúmbia, os Estados Unidos viviam um perí-
Quero salientar, todavia, algumas dimensões odo de grande criatividade na área das ciên-
de seu trabalho, que considero, historicamen- cias humanas, tendo como um de seus focos
te, cruciais e que mantêm ainda hoje um ca- principais a temática indivíduo e sociedade.
ráter inovador. Gilberto Freyre, como mostrou Seja sob o ponto de vista da interação social
Sebastião Vila Nova (1998), estudou e teve seja sob o ponto de vista de cultura e perso-
contato, durante sua estadia nos Estados Uni- nalidade, produzia-se um volume de traba-
dos, com os grupos mais destacados da ciên- lhos e idéias que constituíram-se em impor-
cia social daquele país. Numa época em que tantes subsídios para a obra de Gilberto Freyre
as fronteiras disciplinares e departamentais que soube digerí-los e elaborá-los no decor-
eram mais fluidas, teve acesso não só à antro- rer de sua carreira, contribuindo, decisivamen-
pologia e história de Colúmbia, mas também te, por sua vez, para esse campo de debates.
à sociologia de Chicago, associada à antropo- Como intelectual universalista, bebeu em vá-
logia no mesmo departamento, até o final dos rias fontes, na antropologia britânica, na es-
anos vinte. cola sociológica francesa e no pensamento
Essa relativa fluidez permitia e estimu- social e filosófico alemão, além da ciência so-
lava o florescimento de debates cial norte-americana, produzindo, assim, um
interdisciplinares, com implicações para toda perfil singular.
a área que classificamos atualmente como A conjuntura nos Estados Unidos pós-
Ciências Sociais ou até, de modo mais amplo, primeira grande guerra apresentava essa ca-
para as humanidades em geral. A intelligentsia racterística de ser favorável à convivência e
norte-americana do final do século XIX e pri- encontro de várias tradições intelectuais. O
meiras décadas do século XX era fortemente contato com a Europa era freqüente e inten-
marcada pelo darwinismo, ao mesmo tempo so, com intercâmbio permanente desde o fi-
que alguns de seus importantes expoentes nal da Guerra Civil. Esse processo foi se acen-
professavam ou vinham de famílias de religião tuando, envolvendo não só intelectuais, mas
protestante, como Albion Small e George H. variados setores da elite, preocupados com
Mead, figuras fundamentais da Escola de Chi- uma cultura cosmopolita e sofisticada (Simon,
cago (Bulmer, 1984 e Joas, 1997). Essa com- 1998). Sabemos que Gilberto Freyre já tinha
binação de evolucionismo e religiosidade, com um perfil intelectual se delineando quando
todos os conflitos, teve consideráveis impli- parte para Nova Iorque, mas lá, ainda muito
cações para o desenvolvimento de uma atitu- jovem, teve oportunidade de ampliar, signifi-
de e postura de reforma social. Mas é, sobre- cativamente, seu quadro de referências, tor-
tudo, no pragmatismo, com suas diferentes nando-se um sintetizador e um inovador. A
ênfases e correntes, que vai se encontrar a cultura e suas relações com a personalidade
principal tendência do pensamento social individual, certamente, foi um dos eixos fun-
norte-americano da época. Intelectuais do damentais da construção de seu trabalho.
porte de William James e John Dewey assu- Antropólogos contemporâneos seus como
miram um papel proeminente e liderança Edward Sapir, Ruth Benedict e Margaret
notável. O seu impacto nas ciências sociais Mead, influenciados, mais ou menos direta-
foi decisivo, estabelecendo um campo de dis- mente, por Franz Boas, desenvolveram estu-
cussão para filósofos, sociólogos, psicólogos e dos e reflexões sobre esse tema. Cabe, no

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entanto, a Freyre, um lugar de particular destaque, fluências na sociologia norte-americana. Acredito se-
devido à ousadia de sua interpretação do Brasil e dos rem muito fortes as afinidades de Freyre com a sua
brasileiros. Os trabalhos do grupo de Colúmbia, liga- obra, principalmente no que se refere à temática in-
dos ao que veio a ser conhecido como Escola de Per- divíduo e sociedade e à questão da subjetividade. A
sonalidade e Cultura, até os anos trinta tinham como partir daí, encontramos a elaboração de reflexões que
referência principal sociedades tribais, tradicionais e estão no limite entre uma antropologia cultural e uma
de pequena escala, como nos estudos de Margaret psicologia social. O estudo das relações raciais, das
Mead na Nova Guiné e de Ruth Benedict com índios relações entre gêneros e gerações traz essa caracte-
norte-americanos. rística marcante de juntar processos sociais com traje-
A importância de Casa-Grande & Senzala, com tórias individuais, antecipando, por exemplo, o tra-
suas origens na tese defendida em Colúmbia, nos iní- balho de Hans Gerth e C. Wright Mills (1954) e
cios dos anos vinte, foi, no quadro do desenvolvimento enriquecendo a produção da Escola de Personalida-
da Antropologia, ter tido como objeto uma sociedade de e Cultura. O interesse e cultura literários de Freyre,
complexa moderno-contemporânea. Podemos identi- certamente, contribuíram também para a sua preo-
ficar várias razões que concorrem para isso. O inte- cupação estético-afetiva com personagens. As leitu-
resse e cultura históricos do autor, alimentados, espe- ras nas literaturas de línguas portuguesa, francesa e
cialmente, pelo conhecimento da história do Brasil e inglesa influenciaram-no de modo decisivo.
de Portugal e por uma familiaridade com o pensa- Portanto, a preocupação com a singularidade
mento social europeu, levam-no a analisar a socieda- e, simultaneamente, com o significado sociológico da
de brasileira, como um todo, numa visão dinâmica experiência individual é uma das principais contribui-
de transformação e de processo. Assim ções de Freyre para a antropologia contemporânea.
complementam-se as abordagens sincrônica e A sua perspectiva histórica, voltada para o processo
diacrônica, embora a primeira tenha a proeminência social, amplia também o escopo de sua teoria da cul-
da marca antropológica. Com essa perspectiva, privi- tura. A valorização da heterogeneidade sócio-cultu-
legiou a construção de modelo interpretativo de ca- ral brasileira permite-lhe estar atento e valorizar o fe-
ráter mais geral a partir, no entanto, de pesquisas de nômeno da reciprocidade e das trocas socioculturais.
fontes, documentos, entrevistas e observação Não se tratava de desconhecer contradições e confli-
etnográfica. Suas hipóteses são baseadas em dados tos, mas de vê-los como dimensão da vida social, apa-
variados e preciosos, obtidos através do olhar de um recendo tanto na sociedade como um todo, como nas
observador e intérprete possuidor de poderoso apa- próprias trajetórias individuais, aproximando-o de
rato teórico-conceitual. Particularmente importantes Simmel (1964 e 1971). Finalmente, sem esgotar, repi-
são as histórias da vida, as cartas, os diários e os de- to, sua notável contribuição, quero ressaltar a lição
poimentos que confirmam a importância das biogra- de sua prosa, clara e cativante, expressão de um espí-
fias e trajetórias individuais para a compreensão dos rito sofisticado, que busca comunicar-se com os seus
modos de ser, paradigmas e projetos. Certamente seu leitores, sem espantá-los pelo hermetismo ou pelo
conhecimento da Escola de Chicago foi também im- tédio.
portante nesse caminho (Thomas e Znaniecki, 1918).
A preocupação com a mudança social afirma- _______________________
se na investigação dos universos de parentesco, redes
Bibliografia
familiares e de alianças, diante das transformações da
sociedade tradicional. A habitação, a alimentação, o BULMER, Martin. The Chicago School of Sociology:
institutionalization, diversity and the rise of sociological
vestuário, a mobília, as técnicas do corpo, as práticas research. Chicago: The University of Chicago Press, 1984.
sexuais, os sentimentos são expressão de uma cultura GERTH, Hans; MILLS, C. Wright. Character and social structure:
e, por sua vez, atuam de volta, reinventando-a, per- the psychology of social institutions. London: Routledge & K.
manentemente. Assim, o cotidiano é objeto privilegi- Paul, 1954.
ado, como locus de continuidade e também de mu- JOAS, Hans. G.H. Mead: a contemporary re-examination of his
thought. Cambridge, The MIT Press, 1997.
dança. Trata-se, portanto, de um culturalismo
SIMMEL, Georg. Conflict. New York: Free, 1964.
dinâmico, oposto a qualquer idéia de imobilismo so- SIMON, Linda. Genuine Reality: a life of William James. New York:
cial. Os agentes são os indivíduos, não como mônadas, Harcourt Brace Company, 1998.
mas como membros atuantes de redes e grupos soci- THOMAS, William I.; ZNANIECKI, F. The Polish Peasant in Europe
ais. Creio que, diretamente, ou através da escola de and America. Boston: Badger, 1918.
Chicago, com R. Park, W. I. Thomas etc. Freyre reto- VILA NOVA, Sebastião. Donald Pierson e a Escola de Chicago na
sociologia brasileira: entre humanistas e messiânicos. Lisboa:
ma com originalidade o pensamento de G. Simmel.
Veja, 1998.
O grande pensador alemão foi uma das maiores in-

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


116
MESA-REDONDA 5
INGLESES NO B RASIL

Dia 23 de março
COORDENADOR:
Diógenes da Cunha Lima
Presidente da Academia Norte-Riograndense de Letras – Brasil
Algumas Influências na Formação
Intelectual de Gilberto Freyre

Paulo Donizéti Siepierski


Historiador – Universidade Federal Rural de Pernambuco/Núcleo de Estudos
Freyreanos – Brasil

A importância de Gilberto Freyre não mação de nossa identidade nacional, Gilber-


reside no número de obras que publicou nem to Freyre fez, na verdade, uma incursão em
nos diversos prêmios e homenagens que re- seu próprio passado. Passado biológico, pas-
cebeu. A relevância de seu pensamento en- sado histórico. Passado dele e passado nosso.
contra-se no fato de que ele foi um verdadei- Passado que se desdobra no presente e se
ro criador, e como tal, suas conclusões projeta no futuro. Passado, presente e futuro,
ultrapassaram em muito os recursos juntos. Tempo tríbio. Gilberto Freyre saiu de
metodológicos por ele utilizados. Conclusões si mesmo para se aventurar em seu passado e
gerais, intuitivas, geradas pela perspicácia, pela ali se achar, na casa-grande, na senzala, no
inteligência, e que se confirmam, quase to- sobrado, no mocambo-mais na casa-grande
das, pela pesquisa científica mais rigorosa pos- e no sobrado do que na senzala e no
terior, levada a efeito por seus críticos, dos mocambo-para depois se encontrar novamen-
mais simpáticos aos mais hostis. Pesquisa mais te no presente, fruto dessa viagem. Presente
rigorosa e por isso mesmo menos criativa. também movimento, também viagem, cujo
E de onde veio essa criatividade genial destino futuro não é só construção do passa-
de Gilberto Freyre? Ora, um gênio não se cria. do mas também do presente. Daí a importân-
Ele existe e pronto. É necessário apenas des- cia do conhecimento da biografia de Gilberto
tampar a garrafa e ele se revela. Em outras Freyre para a compreensão de seu conheci-
palavras, é preciso que haja condições propí- mento. Homem e obra não se separam. E, se
cias para o florescimento e desabrochar da é verdade, como defendem os estudiosos de
genialidade daqueles que, mais aquinhoados sua obra, que em sua tese de mestrado, de-
pela natureza, conseguem dar vida a novas fendida na Universidade Colúmbia, quando
idéias, novos conceitos. Como em um jardim, contava com apenas vinte e dois anos de ida-
florescimento e desabrochar estão sujeitos a de, ele antecipou basicamente toda a sua
muitas influências. Neste pequeno ensaio genialidade, sendo o restante de sua obra
quero apresentar algumas influências na for- desdobramentos desse fiat lux criador, então
mação intelectual de Gilberto Freyre. Primei- será suficiente, pelo menos por enquanto,
ramente, é bom lembrar que sua genialidade conhecermos seus passos do sobrado em que
está em que ele, melhor do que ninguém, nasceu ao mestrado que alcançou, para com-
conseguiu nos dizer quem somos nós. Foi ele preendermos sua formação intelectual.
quem forneceu um relato coerente da forma- Gilberto de Mello Freyre nasceu no
ção de nossa identidade nacional, nossa bio- Recife em 15 de março de 1900 no seio de
grafia como nação. Ele estruturou um mito uma família descendente da decadente aris-
fundador que nos explica quem somos e por- tocracia do açúcar. O término do século
que somos assim. Mas um mito bastante dife- dezenove assistira ao golpe final na econo-
rente daqueles mitos gregos que invariavel- mia escravista e seu impacto nas relações so-
mente terminam em tragédia. Ao explicar o ciais, mais simbólico do que prático. A Aboli-
passado brasileiro Gilberto Freyre declara uma ção expressara a forma legal última do longo
fé inabalável no futuro deste povo, resultado processo de dissolução das bases de nossa
de experiência singular histórica que fundiu colonização. A introdução do trabalho assa-
em uma só três vertentes raciais, com suas tra- lariado no mundo do açúcar sinalizara que
dições, crenças, genialidades. Fusão ainda esse processo era irreversível, a moderniza-
inacabada, ainda conflituosa. ção inevitável. No grande ciclo dessa transi-
Ao intuir e posteriormente relatar a for- ção dois deslocamentos se destacam altisso-

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119
nantes com todas as suas maiúsculas implicações: o após sua formatura no Colégio Americano Batista para
engenho deu lugar à usina e a casa-grande ao sobra- os Estados Unidos, para a Universidade Baylor, uni-
do. Herdeiro da casa-grande de engenho, Gilberto versidade batista no Texas.
Freyre nasce em um sobrado. Mas o Colégio Americano Batista não era ape-
Menino de sobrado, Gilberto Freyre herda nas proselitismo religioso. Primava também pela alta
imensurável capital social e cultural, tanto do lado qualidade de seu ensino. Ali Gilberto Freyre entrou
materno quanto do paterno. Não obstante, já na sua em contato com as obras de grandes intelectuais como
infância ele se revela contrário aos convencionalismos, Taine, Comte e Spencer. Destes, o que mais o influ-
quase um iconoclasta, resistindo ao aprendizado da enciou foi o último, Herbert Spencer (1820-1903),
leitura. Seu pai, o professor e juiz de direito Alfredo sobre quem fez uma conferência em 1916 na capital
Freyre, ao perceber que alguns consideravam tal re- da Paraíba, intitulada Spencer e o problema da edu-
sistência um retardo mental, buscou outros métodos cação no Brasil e de quem mais tarde diria ter recebi-
para despertar o intelecto do filho. Primeiramente foi do "uma das maiores influências que me orientaram
o desenho, aos pés do famoso paisagista Teles Júnior. ou estimularam a formação intelectual".1 Filósofo e
Depois foi a língua inglesa, junto ao inglês anglicano sociólogo inglês, Spencer abraçou a teoria da seleção
Mr. E. O. Williams, que sendo também desenhista, natural proposta por Darwin e cunhou a famosa ex-
conseguiu compreender e estimular o menino, fazen- pressão “survival of the fittest” ["sobrevivência dos mais
do com que ele aprendesse a ler, a escrever e a con- adaptados"]. Segundo um dos principais biógrafos de
tar. Tudo isso mais na língua de Shakespeare do que Freyre, as influências duradouras de Spencer sobre
na de Camões. ele foram o gosto pelos pormenores do cotidiano e o
Alfredo Freyre, sendo admirador da concepção ecologismo. 2 Eu acrescentaria o mencionado
protestante de ensino, que ele julgava superior à ca- "sobrevivencialismo spenceriano", refletido na percep-
tólica, a ponto de ser professor de latim e de portugu- ção da plasticidade do português que o capacitou para
ês no protestante Colégio Americano Gilreath, fun- vencer nos trópicos, aspecto fundamental da forma-
dado no Recife em 1906, hoje Colégio Americano ção da família brasileira sob o regime de economia
Batista, levou Gilberto Freyre a cursar ali o primário e patriarcal. Plasticidade que faltou aos outros compe-
o secundário, de 1908 até 1917. Anglo-americanófilo, tidores europeus, principalmente os holandeses
Gilberto Freyre aprenderá também a língua francesa, calvinistas.
mas esta não o fascinará tanto quanto a inglesa. De Uma outra influência recebida no Colégio Ame-
seu tempo no Colégio Americano Batista talvez o que ricano Batista foi a do filósofo e psicólogo americano
terá influência mais decisiva em sua formação e na William James (1842-1910), o principal expoente do
análise que fará da sociedade brasileira não será a pragmatismo norte-americano, que formulou uma
educação protestante mas sua experiência religiosa definição funcional de verdade e, na psicologia, in-
puritana. troduziu o conceito de experiência consciente indivi-
Os professores do Colégio eram na sua quase dual, esta considerada como uma série contínua de
totalidade missionários batistas. Homens como H. H. ocorrências. O discurso que Gilberto Freyre profere
Muirhead, professor de história, e W. C. Taylor, pro- como orador de sua turma na formatura de segundo
fessor de grego, que tanto despertaram a admiração grau no Colégio Americano Batista, em 26 de novem-
de Gilberto Freyre, eram além de educadores, bro de 1917, reflete bem o pragmatismo de James,
proselitistas. Estes, juntamente com os clássicos do tão ao gosto dos batistas, que ao culto religioso deno-
protestantismo, como o puritaníssimo The Pilgrim's minam "trabalho", tradução livre do "service" ameri-
Progress [O progresso do peregrino] de John Bunyan cano. Batistas que Freyre mais tarde abandonaria, in-
(1628-88) e a biografia do famoso missionário esco- fluenciado pelo mesmo William James, que em The
cês David Livingstone (1813-1873), conduziram Gil- Varieties of Religious Experiences [ As variedades de
berto Freyre ao batismo, marca indelével dos batistas, experiências religiosas] golpeava o conceito monolítico
na Primeira Igreja Batista do Recife, em setembro de de verdade religiosa, cerne do fundamentalismo reli-
1917. Apenas mais uma etapa de sua experiência re- gioso, apresentando o pluralismo das experiências
ligiosa, uma vez que ainda menino já freqüentava a religiosas.3 O paraninfo da turma foi o ministro Oli-
escola dominical e participava das atividades veira Lima, então residente nos Estados Unidos, para
evangelizadoras da igreja. Jovem, versado no Velho e onde Gilberto Freyre rumaria em breve e onde des-
Novo Testamentos, admirador do misticismo frutaria da amizade do ministro.
eclesioclasta de Leon Tolstoi (1828-1910), prega a Na Universidade Baylor, sustentado em parte
mensagem batista pelo Recife afora e sonha em ser pelos batistas e em parte pela família, Gilberto Freyre
missionário. E é com esse intuito que ele embarca logo conheceu A. J. Armstrong, professor de literatura in-

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


120
glesa e especialista em Robert Browning (1812-89), o eclesioclasta. Não retorna ao catolicismo, mas desen-
grande poeta inglês autor de Men and Women [Ho- volve o conceito de uma cultura luso-católica, plásti-
mens e mulheres] e The Ring and the Book [O anel e o ca e absorvente, e por isso mesmo cristocêntrica.
livro]. Foi nos fortes braços de Armstrong que Gilber- Gilberto Freyre, ao abandonar os batistas, in-
to Freyre tornou-se realmente um verdadeiro escri- verte sua admiração pelo puritanismo, e isso terá enor-
tor, e essa dívida ele jamais esqueceu. Armstrong in- mes conseqüências em sua futura análise da forma-
troduziu Gilberto Freyre ao movimento imagista da ção social brasileira pois esta será, segundo ele próprio,
New Poetry [Nova Poesia]. Esse movimento, em revol- "um conjunto que talvez constitua uma autobiografia
ta contra o Romantismo, buscava clareza de expres- coletiva de quase todo o brasileiro, partindo da de
são através do uso de imagens precisas. Desde cedo um indivíduo não só socializado em pessoa como
inclinado ao desenho, Gilberto Freyre rapidamente aculturado em, além de participante, analista e intér-
acolheu o imagismo, o qual frutificou em Casa-Gran- prete da cultura nacional por ele como
de & Senzala, repleta de imagens. autobiografada".5 Assim, o intérprete é, como povo,
Também foi em Baylor, e novamente por inter- sujeito e objeto de sua interpretação, da interpreta-
médio de Armstrong, que Gilberto Freyre travou con- ção de quem é o brasileiro, este, que é, "como gente,
tato com dois outros poetas cujas influências seriam na sua maioria mais dionisíaca do que apolínea".6
perenes na obra gilbertiana. Quando do jubileu da E nessa interpretação de quem é o brasileiro,
universidade, em 1920, Armstrong organizou uma de quem é si mesmo, Gilberto Freyre utiliza um eixo
série de conferências, trazendo os principais poetas e central que lhe permite se deslocar o tempo todo por
escritores da época. Entre eles estavam a americana todo o tempo, para trás e para frente, tribiamente,
Amy Lawrence Lowell (1874-1925) e o irlandês articulando seus pensamentos, por vezes paradoxais,
William Butler Yeats (1865-1939). Amy Lowell-irmã se tomados em suas singularidades, dando-lhes uma
do famoso astrônomo Percival Lowell (1855-1916), coerência sistemática. Esse eixo central é a religião e
que antecipou a existência de um nono planeta após a religiosidade do brasileiro, e, de certa forma, do bra-
Netuno e por isso, quando Plutão foi descoberto em sileiro Gilberto Freyre. Embora ele mesmo não tenha
1930 seu nome carregou as iniciais de Percival Lowell- produzido nenhum texto de caráter especificamente
seguia a linha imagista, tendo publicado em 1916 Men, religioso, seus mais argutos críticos já observaram a
Women and Ghosts [Homens, mulheres e fantasmas] centralidade da religião em sua interpretação da soci-
no qual realizou diversas experiências com a prosa edade brasileira. De fato, Benzaquen de Araújo, após
polifônica. Gilberto Freyre travará frutífera amizade ponderar sobre o "enorme e quase paradoxal desta-
com Amy Lowell, amizade que se intensificará quan- que recebido pela religião e, mais especificamente,
do de sua mudança para Colúmbia, mais perto da pelo catolicismo em CGS ", prossegue para sugerir que
bostoniana Amy Lowell, e que se perenizará na "a reflexão de Gilberto é atravessada, de ponta a pon-
polifonia de Casa-Grande & Senzala. Já Yeats era inte- ta, por uma referência negativa e raramente explicitada
ressado no simbolismo e, sobretudo, no misticismo e ao puritanismo , referência que se comporta como se
no oculto. Em 1923 seria laureado com o prêmio fosse uma espécie de fio quase invisível que procura
Nobel de literatura. Segundo Vamireh Chacon, Gil- costurar praticamente todas as partes do raciocínio
berto Freyre teria herdado de Yeats a preocupação do nosso autor".7 Semelhantemente, Fonseca, talvez
com o sobrenatural difuso, preocupação essa cristali- o maior gilbertólogo vivo, após notar que "logo no
zada em Assombrações do Recife Velho. 4 primeiro capítulo de Casa-Grande & Senzala Gilberto
Mas em Baylor Gilberto Freyre não foi influen- Freyre observa que 'o Catolicismo foi realmente o ci-
ciado apenas pela literatura. Waco, cidade onde se mento da nossa unidade'", afirma que "o cimento da
localiza Baylor, fica no centro do Texas, não muito unidade freyreana é, na diversidade temática de sua
distante de San Antonio e do famoso Forte Álamo, de obra, a cosmovisão cristocêntrica".8 Cristocentrismo
Davy Crockett e seus voluntários que morreram no cultural, incompatível com o puritanismo.
embate entre as forças mexicanas e os defensores da E assim, abandonando seus planos para ser mis-
independência do Texas. É uma região de encontro sionário batista e rejeitando sua formação puritana,
de duas culturas, a espanhola-mexicana e a anglo- Gilberto Freyre, ao concluir o bacharelado em Baylor
saxã. Ali Gilberto Freyre descobriu sua ibero- parte para a cosmopolita Nova Iorque, para o
americanidade, e esta em conflito com sua anglofilia. mestrado na Universidade de Colúmbia. Mestrado
Duas culturas, uma católica, dionisíaca, a outra pro- possibilitado por uma bolsa de estudos conseguida
testante, apolínea. E ali, numa universidade batista, graças a intercessão dos batistas de Baylor e do diplo-
ele vai abandonar o protestantismo em favor de um mata historiador Oliveira Lima, complementada pela
cristianismo abrangente, sem dogmas nem doutrinas, família. Saindo de Baylor como escritor, será em

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


121
Colúmbia que ele se tornará também cientista social- da morte deste, Gilberto Freyre frisa que o cardeal
sociólogo-antropólogo-historiador sob a orientação de em vida "não se descuidava da etiqueta, da pompa,
Franz Boas (1858-1942), um dos pioneiros da mo- do cerimonial das solenidades." Ou quando do faleci-
derna antropologia. mento do papa Benedito XV, oportunidade em que
Em Nova Iorque Gilberto Freyre travará conta- diz que o darwinismo fizera grande número de pro-
to com o pensamento do jornalista e crítico literário testantes perder o rumo: "uns aceitando-o, renuncia-
H. L. Mencken (1880-1956). Este se opunha forte- ram a mais vaga fé no sobrenatural; outros o recusa-
mente ao domínio da cultura européia na América e ram intransigentemente da torre gótica do seu
em um dos seus mais famosos livros, publicado em literalismo bíblico."9 Para Gilberto Freyre a cultura
1919, no tempo em que Gilberto Freyre estava em católica era mais plástica, mais flexível, com maior
Baylor, intitulado The American Language [ A língua capacidade de assimilação, ao passo que a cultura
americana], despertou a crítica dos puristas literários protestante, mais dura, mais rigorosa, mais intransi-
ao defender o vigor e a versatilidade do uso coloquial gente, era menos receptiva à diversidade e menos rica
da língua inglesa na América. Gilberto Freyre também em termos estéticos. Essa percepção será fundamen-
suscitará críticas semelhantes ao rechear Casa-Gran- tal para a construção do argumento central de Casa-
de & Senzala com coloquialismos. Grande & Senzala.
Também em Nova Iorque Gilberto Freyre lerá E será das boas mãos de Franz Boas que Gilber-
George Santayana (1862-1952), filósofo, poeta e no- to Freyre receberá o instrumental necessário para ela-
velista nascido na Espanha mas radicado nos Estados borar uma argumentação com aspirações de
Unidos. Seguidor do esteticismo, Santayana publica- cientificidade sobre a plasticidade da cultura luso-ca-
ra em 1896 The Sense of Beauty [O sentido da bele- tólica, plasticidade esta que permitira a miscigenação
za], onde ensinava que o ponto fundamental para a do português com o índio e o negro, formando um
nossa vida é a experiência: aceitamos como real aquilo povo adequado à vida nos trópicos. Longe de ser uma
que os nossos sentidos nos trazem; invariável e eter- corrupção, a miscigenação teria sido a solução para a
no não é o reino das idéias, mas a matéria. Não ocupação européia dos trópicos. Tal miscigenação
obstante esse materialismo, Santayana será simpático somente fora possível graças à plasticidade da cultura
ao catolicismo devido, sem dúvida, ao potencial esté- luso-católica. Esse é o argumento básico de Casa-Gran-
tico deste. Em Harvard, onde Santayana lecionou até de & Senzala .
1912, dizia-se que ele não acreditava em Deus, mas Franz Boas era de uma família judaica aculturada
estava convencido de que Deus nascera de Nossa na Alemanha e migrara para os Estados Unidos em
Senhora. Nesse contexto é fácil entender porque Gil- 1888. Em Colúmbia desde 1896, Boas desenvolvia
berto Freyre, escrevendo de Nova Iorque ao irmão estudos antropológicos caracterizados pelo
Ulysses, diz que "Santayana é a minha grande desco- ateoricismo e pela propensão etnográfica. Assim, evi-
berta. É ele quem está me reconciliando com o cato- tando qualquer generalização teórica e buscando des-
licismo. Sinto que a sua interpretação mais do que crever o mais acuradamente possível uma cultura,
filosófica, poética, da concepção católica da vida, Boas se opunha às três escolas que dominavam o ce-
corresponde a alguma cousa de profundo que escapa nário das teorias racistas da época. A primeira era a
aos filósofos simplesmente filosóficos." Não é de ad- escola etnológico-biológica, que afirmava que a pres-
mirar-se, portanto, que da pena de Santayana sairia, suposta superioridade da raça branca se evidenciava
mais tarde, em 1935, uma espécie de epitáfio da tra- nas diferenças físicas (medidas cranianas, estruturas
dição cultural norte-americana, o romance The Last do esqueleto, etc.) em relação às outras raças. Nesta
Puritan [O último puritano]. escola a antropologia física pretensamente fornecia a
A reconciliação de Gilberto Freyre com a cultu- base científica de suas afirmações. A segunda escola
ra católica em Nova Iorque será acompanhada pela lançava mão da História para defender que as raças
ampliação de sua ibero-americanidade em latino- estavam em diferentes estágios civilizatórios, sendo
americanidade quando de sua visita a Montreal. Sen- que a raça branca estava na vanguarda do processo
tido-se em casa no Canadá francês, Gilberto Freyre de civilização. A terceira escola, denominada
aprofunda sua percepção das contradições existentes darwinismo social, defendia que na marcha evolutiva
entre o bloco cultural latino e o bloco cultural anglo- para formas superiores de vida natural apenas os mais
saxônico. E em nenhum outro lugar tais contradições aptos sobreviveriam, num processo de seleção natu-
se expressaram melhor do que na arena religiosa. De ral. Assim, as raças superiores predominariam enquan-
um lado o catolicismo, dionisíaco, e de outro o pro- to as inferiores definhariam e por fim desapareceri-
testantismo, apolíneo. Assim é que, ao falar sobre o am.
cardeal Gibbons, arcebispo de Baltimore, na ocasião Com Boas Gilberto Freyre aprenderá a distin-

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


122
guir entre raça e cultura; os diferentes estágios and experiences of religion seem to me sufficiently met by the
civilizatórios não seriam frutos de relações puramen- belief that beyond each man and in a fashion continuous with him
there exists a larger power which is friendly to him and to his
te genéticas mas da herança cultural e das influências ideals. All that the facts require is that the power should be both
do meio. Em sua tese de mestrado, defendida em other and larger than our conscious selves. Anything larger will do,
1922, intitulada Social Life in Brazil in the Middle of if only it be large enough to trust for the next step." James, William.
the 19 th Century [Vida social no Brasil nos meados do The Varieties of Religious Experiences: a Study in Human Nature.
Nova Iorque, Mentor Books, 1958, p. 396.
século XIX], Gilberto Freyre já expressará tal distinção, 4
Chacon, op. cit., p. 79.
mas será em sua obra-mestra que ele reconhecerá toda 5
Freyre, Gilberto. Insurgências e ressurgências atuais: cruzamen-
sua dívida para com Franz Boas: "Foi o estudo de tos de sins e nãos num mundo em transição. Rio de Janeiro, Globo,
Antropologia sob a orientação do Professor Boas que 1983, pp. 53-54.
primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo 6
Idem, p. 63. Foi Nietzche quem ressuscitou os cadáveres mitoló-
gicos de Apolo e Dionísio na era moderna, identificando o primei-
valor – separados dos traços de raça os efeitos do
ro com a racionalidade moderna em oposição ao segundo.
ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a con- 7
Araújo, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa-Grande &
siderar fundamental a diferença entre raça e cultura; Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro,
a discriminar entre os efeitos de relações puramente Editora 34, 1994, pp. 75 e 98.
genéticas e os de influências sociais, de herança cul- 8
Fonseca, Edson Nery da. "Gilberto Freyre e sua cosmovisão
tural e de meio. Neste critério de diferenciação fun- cristocêntrica", em Ciência & Trópico, Recife, (18), p. 176.
9
Freyre, Gilberto. Tempo de aprendiz: artigos publicados em jor-
damental entre raça e cultura assenta todo o plano nais na adolescência e na primeira mocidade do autor (1918-1926).
deste ensaio."10 Volume 1. São Paulo e Brasília, IBRASA e INL, 1979, pp. 117 e
Do sobrado ao mestrado, a formação intelectu- 207.
al de Gilberto Freyre foi múltipla e variada. Sua as- 10
Freyre, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 12ª ed. Brasileira e
cendência aristocrática possibilitou-lhe recursos finan- 13ª ed. em língua portuguesa. Brasília, Editora Universidade de
Brasília, 1963, p. 5.
ceiros, uma grande rede de relacionamentos e um
ambiente propício para a expressão de sua
genialidade. Dos primeiros desenhos e letras com Mr.
Williams até as teorias mais complexas com Franz
Boas, Gilberto Freyre esteve sempre em contato com
a vanguarda do pensamento de sua época, o qual lhe
era continuamente apresentado por seus mestres. Sua
experiência com o protestantismo, do qual se afastou
mais tarde, permitiu-lhe um olhar mais distanciado
da cultura luso-católica e posteriormente, quando do
aprendizado com Franz Boas, a construção da teoria
da formação da identidade brasileira. Sua ida para os
Estados Unidos, onde apercebeu-se de sua ibero-
americanidade no encontro com a cultura mexicano-
espanhola e de sua latino-americanidade no encon-
tro com a cultura francesa do Canadá, colocou-o no
circuito intelectual internacional da época. Assim foi
a formação intelectual de Gilberto Freyre e tais foram
as condições propícias para o florescimento e desa-
brochar de sua genialidade, genialidade esta expres-
sa de forma inequívoca em Casa-Grande & Senzala ,
talvez o livro mais importante sobre a identidade bra-
sileira.

_______________________

Notas
1
Freyre, Gilberto. "Advertência do autor", Retalhos de jornais ve-
lhos; 2ª ed. Revista e aumentada de Artigos de Jornal. Recife: Casa
Mozart, 1934, p. XXV.
2
Chacon, Vamireh. Gilberto Freyre: uma biografia intelectual. Re-
cife/São Paulo: Editora Massangana/Editora Nacional, 1993, p. 45.
3
Concluindo seu famoso livro, James diz que "the practical needs

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


123
Alguns Aspectos da Influência Britânica
sobre a Vida Brasileira e Comentários em
torno do Livro Ingleses no Brasil, de Gilberto
Freyre.
João Hélio Mendonça
Antropólogo – Universidade de Pernambuco/Fundação Joaquim Nabuco –
Brasil

A influência britânica sobre nós brasi- viveu seis anos no Brasil e escreveu um diá-
leiros foi grande, diversificada e remonta mes- rio.
mo ao século XVI ou aos inícios da nossa co- Já no século XVI registrava-se a presen-
lonização. Não se restringiu, como muitos ça dos corsários ingleses ou os históricos
pensam, ao lado puramente tecnológico, às "English privateers" 1 nas costas brasileiras. Fo-
maquinarias, ao desenvolvimento das manu- ram eles, entre os mais famosos, William
faturas, à indústria têxtil, às nossas estradas- Hawkins; Edward Fenton; Walter Raleigh
de-ferro ou ao telégrafo. "Os ingleses, quase (mais tarde Cavaleiro do Império Britânico);
tanto quanto os franceses, madrugaram sob a Cavendish (com suas célebres táticas de guer-
forma de piratas, aventureiros e negociantes, rilha naval) e James Lancaster (com as
nas praias da América tropical descobertas por investidas em Pernambuco). Lancaster, em
portugueses e espanhóis, e distanciando-se dos seguida, iria ser Governador Geral da East
franceses, por largos anos seus rivais, os ingle- India Co, e também agraciado com o título
ses acabaram alcançando entre nós, sob a for- de Cavaleiro ou Sir no Império Britânico.
ma de negociantes e técnicos, uma prepon- A Caesalpina brasiliensis, a ibirapitanga
derância econômica que, ostensivamente nos para os tupis ou o nosso pau-brasil, era ma-
dias de Dom João VI regente e depois rei – deira para marcenaria de luxo e ótimo corante
quando aquela predominância assumiu aspec- para a indústria têxtil européia. Por isso, ele
tos francamente imperialistas e não apenas marcou o primeiro período da vida econômi-
imperiais – acentuou-se de 1835 a 1912, para ca da colônia e foi também um chamariz para
só então começar a declinar lentamente os corsários. As costas brasileiras imensas, o
vencida pela expansão norte-americana e mi- gentio, as feitorias, o açúcar, os portos e as
nada pela alemã", escreve Gilberto Freyre, no cidades foram sempre atração suficiente para
livro Ingleses no Brasil, obra notável de análi- os ingleses, excelentes navegadores. Cessada
se dos aspectos da influência britânica sobre a União Ibérica em 1640, voltam Portugal e
a vida, a paisagem e a cultura do Brasil e, com Inglaterra ao estado de ''ótimas relações”. A
certeza, uma contribuição definitiva para a amizade luso-inglesa tinha se mantido desde
compreensão da história das relações anglo- o início da história de Portugal, quando cru-
brasileiras. zados britânicos haviam ajudado portugueses
Registrando inúmeros aspectos dessa na expulsão dos árabes para o Sul e na toma-
influência, Freyre foi o primeiro autor brasi- da do porto de Tejo.
leiro a transcrever, num livro-ensaio, essa pre- Essa aliança luso-inglesa já fora tão ínti-
sença. O livro, como se sabe, é quase o único ma que várias famílias nobres de Portugal eram
no gênero e é resultado de extensiva pesqui- de origem inglesa. O enlace de Carlos II da
sa em várias fontes. Também conta com ilus- Inglaterra com Catarina de Bragança, em
trações demonstrativas do império inglês no 1622, deu aos britânicos o direito de estabe-
mundo, contém trechos de diários, aponta- lecer feitorias em domínios portugueses como
mentos, notas e referências de obras impor- Goa, Diu, Cochim, Bahia e Pernambuco. Em
tantes e "accurate" sobre o Brasil, seu povo, 1654, no tratado entre Portugal e os ingleses,
seus costumes e hábitos. Sem deixar de estar feito por Cromwell, reservou-se à Marinha
atento a outra grande influência no Brasil, a Britânica o monopólio sobre o comércio das
francesa, Gilberto Freyre já havia escrito o mercadorias inglesas com outros países, inclu-
notável Um Engenheiro Francês no Brasil, so- sive Portugal, sem direito à reciprocidade; e
bre o engenheiro Loius Léger Vauthier que permitia-se, pois, aos ingleses, negociar dire-

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124
tamente entre Brasil e Portugal, rompendo pela pri- indústria têxtil, de usinas de açúcar, de fundição, de
meira vez o monopólio colonial português no Brasil. maquinaria em geral e de eletrificação teve a partici-
Sabe-se que os ingleses tinham um status pação britânica, pois aquele século corresponde ao
privilegiadíssimo em Portugal e nas suas colônias. Ape- auge daquele império, quando existiu uma verdadei-
nas os ingleses dispunham em Portugal de liberdade ra dominação de nossa economia pela Inglaterra. E
de culto e imunidade do alcaide, o que significava Pernambuco, pela sua localização mais oriental, por
que eles só podiam ser presos com mandato judicial. sua maior proximidade em relação à Europa e ao he-
Registre-se que pouquíssimos lusos detinham tal pri- misfério Norte, foi centro de especial interesse inglês,
vilégio. Nas colônias de Portugal, como o Brasil, os como ponto economicamente estratégico para ope-
ingleses dispunham até de seus próprios juízes, para rações comerciais. A documentação é vasta sobre essa
julgá-los ou expedir mandato de prisão e possuíam presença. Ela está na história de nossas agências ma-
total liberdade de culto. rítimas, na história dos bancos, nas associações e jun-
Cedo os ingleses se convenceram de que en- tas comerciais, nas companhias de eletricidade, nos
contrariam no Brasil excelente oportunidade para a transportes, nas fábricas, nos clubes e no bairro do
expansão do seu comércio e de sua indústria e assim porto. E sabe-se que o Porto do Recife chegou ao seu
a sua presença e a sua influência entre nós foram tão auge no século XIX, pois foi este o de seu maior de-
marcantes que mesmo os portugueses que aqui che- senvolvimento, o dos grandes veleiros, das viagens de
gavam vinham contagiados por essa influência2. Mui- estudos e da intensificação da navegação a vapor.
to do Brasil colonial, sobretudo nos aspectos econô- Em luxuosa e exclusiva edição bilíngüe, come-
micos, foi decidido pelos ingleses quando a metrópole, morativa dos 125 anos do Lloyds Bank no País, A Pre-
diante do mercantilismo crescente daquele país, já sença Britânica no Brasil é estudada. O livro, com mui-
potência privilegiada, revendia nossos produtos à Ilha3. tas gravuras, registros e depoimentos, se constitui
Diferente da influência francesa, que foi mais nítida numa amostra das mais significativas sobre essa
nas camadas e na cultura refinada do país, a inglesa temática. Nas suas primeiras páginas, o autor de In-
com seus técnicos, comerciantes, mecânicos, gleses no Brasil, respondendo à pergunta: O que era
telegrafistas, marinheiros e aventureiros chegou tam- inglês no Recife no século XIX?, enumera: o chefe das
bém ao homem do povo. Essa influência é refletida empresas ferroviárias e de navegação; o engenheiro;
em vários aspectos da nossa vida, indo desde o artís- o importador de bacalhau, de vidros, de ferragens, de
tico-literário e os sofisticados das classes altas, mas tam- manteiga, de bebidas, de tecidos; o leiloeiro; o "alto
bém atravessando o médio e chegando ao homem negociante"; a "firma sólida". O que mais o represen-
comum brasileiro. O golfe e o tênis foram influências tava: a roupa de brim branco, a casimira, o boné, o
típicas das classes sofisticadas e altas. O futebol, cer- chapéu de cortiça, o paletó de xadrez à príncipe de
tamente o esporte mais popular do Brasil, foi uma in- Gales, o cachimbo, o uísque, o gim, o rum, as grades
fluência sobre as classes baixas. de ferro nas casas, o rosbife, o sabonete, o pijama,
alguns tipos de barba, o gramado do jardim, o cabo
Influência inglesa no Brasil e em Pernambuco do submarino, o chá, a louça, a novela policial, a casa de
século XIX campo, o sanduíche – já feito, às vezes, alimento
Sobre a influência inglesa no Brasil, embora um aculturado o pão de trigo (comprado na Inglaterra),
tema ainda não muito aprofundado pela historiografia, com salsicha alemã e tomate de Pesqueira (tudo isso
existe, conforme já assinalado, a obra notável de Gil- acabou no cachorro-quente) – o footing, o gosto pelo
berto Freyre, Ingleses no Brasil. Nesse livro está regis- cavalo e pelo buldogue, o piquenique, o presunto, o
trado que com o "mister" o brasileiro aprendeu muita clube, o futebol, o golfe, o olho azul das misses não
coisa e pode-se atribuir a ele a introdução no País do só para inglês ver, os anglicismos, a pontualidade bri-
terno branco, do chá, do pão de trigo, da cerveja e tânica, o cemitério dos ingleses, onde foi enterrado
depois do uisque, do gin, do rum, do bife com bata- Abreu e Lima, a Igreja Anglicana da Rua da Aurora,
tas, do rosbife, da costeleta de carneiro e do pijama com renques de pitangueiras e o livro inglês em tra-
de dormir. Ainda do rifle esportivo, do tênis e de ou- dução francesa.
tros esportes, de métodos modernos de ensino de É que em Pernambuco essa influência foi, entre
meninos, do acréscimo da educação física à intelec- as regiões do Brasil, das mais marcantes, com o algo-
tual, do hábito ou o gosto pelo lanche ou pelo sandu- dão, com a indústria têxtil, com as usinas de açúcar,
íche, do piquenique, do interesse pelas maneiras fi- com as estradas de ferro e com os clubes e os bares
nas, etc. É que, no Brasil do século XIX, quase tudo fundados por ingleses. O bar, até há pouco o mais
do comércio, da importação e da exportação, dos antigo do Recife, o The British Shipchandler foi de in-
transportes marítimos e ferroviários, do algodão e da gleses. No Recife, existe também um cemitério de in-

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125
gleses o The British Cemetery. O historiador James C. Fletcher – deixaram, em língua inglesa, depoimen-
Henderson, autor da History of the Brazil, das primei- tos e relatos interessantíssimos sobre a história e a vida
ras histórias publicadas sobre o Brasil, editada em social do Brasil colonial e são, sem qualquer dúvida,
Londres no ano de 1821, no capítulo sobre uma das fontes mais ricas para a compreensão e o
Pernambuco, além de falar sobre vários subúrbios do estudo da história social do Brasil5.
Recife como Monteiro, Boa Vista e Santo Amaro, cha- O inglês Henry Koster, por exemplo, não foi só
ma a atenção para o cemitério e escreve "the English cronista e visitante de Pernambuco. Aqui ele fixou
have a burying ground at St. Amaro, not far from Boa residência, foi comerciante de tecidos e senhor de
Vista". “Os ingleses têm um cemitério em Santo Amaro, engenho. Durante sua permanência entre nós, de mais
não longe da Boa Vista”.3 de dez anos, o depoimento desse inglês de família de
Noutro trecho dessa história, Henderson escre- Liverpool, que chegou a ser conhecido pelos brasilei-
veu porque a localidade de "Boa Viagem", no Recife, ros como Henrique Costa, é dos mais importantes
hoje importante bairro turístico e residencial, é assim sobre o porto; a vida social e comercial; a etnografia
denominada: tradicional do povo, do sertanejo; os meios de trans-
porte; as viagens; etc. Suas crônicas sobre o Brasil fo-
It was formely the general Antigamente era costume,
custom and is at present not e ainda hoje, que navegado-
ram publicadas no livro Travels in Brazil, editado em
uncommon for navigators and res e outros, antes de embar- Londres no ano de 1816. Transcrevendo pequenos
others previously to embark- carem no oceano apresentas- trechos desse cronista, sobre o porto e o Bairro do
ing upon the ocean, to present sem oferendas nesse lugar, Recife, vê-se sua grande capacidade de observação.
offerings here, receiving in re- recebendo em retorno as ora- Quando chegou ao porto do Recife, a bordo do pa-
turn the prayars of the padre ções do padre para uma boa
quete Lucy, vendo uma jangada, escreveu:
for a good voyage; and hence viagem, daí o lugar ser chama-
the place is called Boa Viagem. do Boa Viagem.
Nothing this day created so much Nada do que vimos nesse dia
Muitos arredores e subúrbios do Recife foram Astonishment on board our ship, Criou tanto espanto a bordo
amongst those who had not been Do nosso navio entre aqueles
marcados pela presença inglesa, pois esses locais eram before upon this coast, as the Que não tinham visitado esta
sempre preferidos por eles para suas residências. É o "jangadas", sailing about in all costa, como as jangadas
caso dos arrabaldes de Parnamirim, Ponte D'Uchoa, directions ( Koster, 1816:3). navegando
Monteiro, Apipucos e Casa Forte, onde se encontra- Em todas as direções.
The town of Santo Antonio do
vam inúmeras moradias de ingleses, formadas por chá- Recife, A Vila de Santo Antônio do
caras e sítios. Houve influência, particularmente in- commonly called Pernambuco, Recife,
glesa também no desenvolvimento dos seus subúrbios. though the lather is properly Comumente chamada
Essa influência "que se iniciou em 1808 e que foi mais the name of the captaincy, Pernambuco, embora
consists Este seja propriamente o nome
suburbana do que propriamente urbana, é suscetível of three compartments Da capitania, consiste em três
de ser observada nos chalés e chácaras mais antigos connected bairros ligados por duas pontes...
dos bairros ribeirinhos", diz Evaldo Cabral de Mello by two bridges...
no seu estudo sobre as formas e as cores do Recife (E. A extremidade sul desse banco se
The Southern extremity of the this alarga e forma o local desta parte
Cabral de Mello, 1951:21). bank da cidade, particularmente
O escritor pernambucano Mario Sette, no seu expands and forms the site of that chamada
livro Maxambombas e Maracatus, faz referência aos part of the town particulary Recife, colocada precisamente
ingleses que habitavam o arrabalde do Parnamirim, called dentro
Recife, as being immeditely dos recifes.
na época formado por magníficas chácaras e sítios e within the reef
preferido por eles para residência (M. Sette, O primeiro bairro da cidade é
1981:224). Daí ser fácil compreender por que no sé- The first division of the town is composto de casas de tijolos,
culo passado foi maior o número de viajantes e cro- composed of brick houses of com
three, four, três, quatro e mesmo cinco
nistas ingleses que visitaram e até residiram no Nor- and even five stories in height; andares.
deste do Brasil. E do Nordeste era a província de most of the streets are narrow, Estreitas em sua maioria, as
Pernambuco, com o seu porto do Recife, que detinha and casas mais antigas que são
a maior importância. some of the older houses in the situadas
minor streets are of only one em ruas estreitas não têm sequer
Nenhum curioso verdadeiro ou amante de story um andar (Koster, 1978:30).
Pernambuco pode deixar de se interessar pela crôni- height (Koster, 1816:6).
ca dos numerosos viajantes que passaram por aqui,
sobretudo os ingleses. Esses cronistas – entre os quais, Koster, como outros viajantes de língua inglesa
Henry Koster, Maria Graham, James Henderson, em Pernambuco no século XIX, comentava e achava
Richard Burton, Charles Darwin, Daniel Kidder, James estranho a altura e o número de andares dos prédios

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126
e casarões dos bairros centrais do Recife. Quase to- by three bridges, and divided de água doce, ligada por três
dos escreveram também sobre as particularidades e a into as many parts; Recife, pontes, e dividida em muitas
formação natural do porto e de seus arrecifes. Sobre properly so called, where are partes; Recife, como é propri-
the castles of defence, and he amente denominado, é onde
o porto anotou Koster: dockyard, and the traders; ... estão os fortes de defesa, o
(M Graham, 1824:100) porto e os comerciantes...
The upper harbour of O porto superior do Re-
Recife, called The Mosqueiro, cife, chamado O Mosqueiro, I was struck by the grat Fiquei chocada pela gran-
as has been already said is como já tenho dito, é forma-
preponderance of the black de preponderância da popu-
formed by the reef of rock do por uma cadeia de rochas, population. By the last census lação negra. Pelo último cen-
which runs parallel with the correndo paralelamente à ci-
the population of Pernambuco so a população de
town at a very small distance. dade e a uma pequena dis-
including Olinda was seventy Pernambuco, incluindo
The lower harbour, for vessels tância. O porto inferior, para thousand, of which not above Olinda, somava setenta mil,
of 400 tons and upwards, navios de 400 toneladas ou
one third are white; the rest dos quais não acima de um
called the Poço, is very danger- mais, chamado Poço, é muito are mulattoes or negroes (M. terço são brancos; e o resto
ous as it is open to the sea, and perigoso, aberto para o mar,
Graham, 1824:125) são mulatos ou negros.
the beach opposite to it is very e a baía oposta é escarpada.
steep.
Péssima impressão teve do Recife o ilustre ci-
A senhora inglesa Maria Graham foi também entista, pai da teoria da seleção das espécies, Charles
presença importante na província de Pernambuco no Darwin, que, a bordo do H. M. S. Beagle, visitou
século passado, escrevendo o livro: Journal of a Voyage Pernambuco e anotou no seu diário, no dia 12 de
to Brazil, and residence there during part of the years agosto de 1832, períodos não muitos lisonjeiros so-
1821, 1822, 1823; publicado em Londres no ano de bre a cidade.
1824, e de valor inestimável do ponto de vista da his-
tória social e da sociologia. Visitando Pernambuco pela On the 12th we ran into No dia 12 aportamos em
Pernambuco, a large city on Pernambuco, grande cidade
segunda vez, na época da revolução de 1824 ou da
the coast of Brazil, in latitude na costa do Brasil, latitude 8o
Confederação do Equador, Mrs. Graham, então viúva 8o South. We anchored out- Sul. Largamos âncora fora dos
do Comandante da fragata inglesa Doris, o Capitão side the reef; but in a short recifes, não tardou porém veio
Thomas Graham, teve relevante papel como interme- time a pilot came on board and ter conosco um piloto que nos
diária entre o Almirante Cochrane e Manuel de Car- took us into the inner harbour, conduziu ao ancoradouro in-
valho Paes de Andrade. Thomas Cochrane, Conde de where we lay close to the terior, onde ficamos bem pró-
town. ximos da cidade.
Dun Donald e Marquês do Maranhão, foi um almi-
Pernambuco is built on Pernambuco acha-se
rante inglês a serviço do governo brasileiro que co- some narrow and low sand- construída sobre bancos de
mandou o bloqueio contra Pernambuco e contra Ma- banks, which are separated areia estreitos e altos, separa-
nuel de Carvalho Paes de Andrade, presidente da from each other by charcoal dos um do outro por canais
Confederação. Mas seu diário ou Journal não se resu- Channels of salt water. The rasos de água salgada. As três
me à sua participação na Confederação. Muito pelo three parts of the town are partes da cidade estão ligadas
connected together by two entre si por meio de compri-
contrário: "seu diário é a descrição viva, movimenta- long bridges built on wooden das pontes sobre pilares de
da, animada, cheia de interesse humano pela sorte piles. The town is in all part madeira. A cidade é por toda
das pessoas, dos bichos, das plantas, das coisas e de disgusting the streets being parte detestável, as ruas estrei-
tudo que formava a paisagem e servia para agitar as narrow, ill-paved, and filthy; tas, mal calçadas e imundas,
cenas a que assistiu", assinalou o escritor Waldemar the houses, tall and gloomy. as casas altas e lúgubres. A es-
The season of heavy rains had tação das chuvas acabava ape-
Valente no livro sobre essa dama inglesa: Maria
hardly come to an end, and nas de findar-se, de maneira
Granham: uma Inglesa em Pernambuco nos Começos hence the surrounding coun- que a região adjacente quase
do Século XIX. try, which is scarcely raised não se acha acima do nível do
Alguns trechos de seu diário: above the level of the sea, was mar e apresenta-se completa-
flooded with water, and I failed mente alagada, pelo que não
The town of Recife de A cidade do Recife de in all my attempts to take long logrei fazer passeios distantes.
Pernambuco, or the Reef of Pernambuco, ou o Recife de walks. No terreno plano e pan-
Pernambuco built by the Pernambuco, construída pelos The flat swampy land on tanoso, no qual se acha
Dutch, under Maurice of holandeses, sob Maurício de which Pernambuco stands Is Pernambuco, está cercado na
Nassau, and by them called Nassau, e então denominada surrounded, at the distance of distância de alguns quilôme-
Maurice town. It is a singular por eles cidade Maurícia. É a few miles, by a semicircle of tros, por um semicírculo de
spot, well fitted for trade; it is um sítio singular, bem dotado low hills, or rather by the edge colinas baixas ou melhor, por
situated upon several sand para o comércio; e é situado of a country elevated perhaps uma crista de elevação, atin-
banks, divided by salt water sobre vários bancos de areia, two hundred feet above the gindo talvez 70m acima do
creeks and the mouth of two dividida por enseadas de água sea. The old city of Olinda nível do mar. A velha cidade
fresh water rivers, connected salgada e na boca de dois rios stands on one extremity of this de Olinda está situada em

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127
range. One day I took a ca- uma das extremidades dessa de que na língua inglesa tem a conotação de título,
noe, and proceeded up one of crista. Tomei um dia uma ca- apólice, bônus ou debênture, veio a significar entre
the channels to visit it; I found noa e segui por um dos canais nós o próprio veículo ou o tram, que é um veículo
the old town from its situation na idéia de visitá-la e encon-
both sweeter and cleaner that trei-a pela sua situação, mais
elétrico de transporte urbano que se move sobre tri-
of Pernbambuco. I must here agradável e mais asseada que lhos. Os bondes operaram até os fins dos anos 50 no
commemorate what hap- Pernambuco. Devo aqui co- Brasil e eram o meio de transporte principal das cida-
pened for the first time during memorar o que aconteceu, des brasileiras. Em Pernambuco, a Pernambuco
our nearly five years wander- pela primeira vez, durante Tramways com seus bondes; em São Paulo, a The São
ing, namely, having met with quase todo espaço de cinco
Paulo Railway Light and Power Co. Ltd; no Rio de Ja-
a want of politeness: I was re- anos em que peregrinamos, a
fused in a sullen manner at two saber: falta de civilidade: fui
neiro a Rio de Janeiro Tramways, Light and Power Co.
different houses, and obtained recusado de uma maneira eram as companhias que forneciam transportes cole-
with difficulty from a third, grosseira em duas casas e ob- tivos às populações.
permission to pass through tive, com dificuldade, numa Em muitas cidades brasileiras, o planejamento
their gardens to an unculti- terceira, permissão para atra- e o desenvolvimento urbano não escaparam da influ-
vated, hill, for the purpose of vés de seus jardins, um morro
ência e participação direta dos britânicos. O caso do
the viewing the country. I feel não plantado, ter visão da pai-
glad that this happened in the sagem. E me sinto contente Jardim América, em São Paulo, projetado por arqui-
land of the Brazilians, for I bear que isso tenha acontecido na tetos ingleses e muitos outros bairros daquela cidade
them no good will a land also terra dos brasileiros, pois não que pertenceram a firmas inglesas como a City of São
of slavery, and therefore of desejo nenhuma benevolência Paulo improvements and freehold Land Co. Ltd. A ci-
moral debasement. para eles – um país de escra- dade de Belém do Pará, na mesma época, foi total-
vidão e conseqüentemente de
humilhação moral.
mente arborizada por mangueiras trazidas da Índia
por alguns ingleses, que comerciavam com borracha,
E já que falamos de cronistas ingleses que visi- e os jardins de algumas praças de São Luís do
taram ou escreveram sobre Pernambuco e suas cos- Maranhão foram remodelados e redesenhados "à in-
tas, por que não citar Daniel Defoe (1660-1731) com glesa". Mas foi na arquitetura que a influência inglesa
seu clássico livro Robison Crusoe? Pois o deixou a marca da revolução industrial no Brasil, cons-
conhecidíssimo personagem Robison Crusoe, inven- truindo uma civilização de ferro em gradis, portões,
tado por Defoe e celébre pela sua experiência de ná- escadarias, abóbodas e estruturas as mais variadas.
ufrago sobrevivente numa ilha deserta, viveu no Bra- Exemplos da arquitetura do ferro dos ingleses: o Palá-
sil. Chegou a falar até português, foi senhor de cio de Cristal, em Petrópolis; a Estação da Luz, em
engenho e negociante de escravos na cidade de Sal- São Paulo; o Mercado Municipal e a Alfândega de
vador, na Bahia. Partindo de Salvador, numa viagem Manaus; chafarizes diversos no Brasil; inúmeras esta-
para compra de escravos na África, juntamente com ções ferroviárias por todo o País e fábricas e vilas ope-
outros senhores de engenho da Bahia, Mister Robison rárias. Muitas construções com influência da arquite-
ou o "Seignor ingles" navegando pelas costas de tura inglesa existem no Recife, em Fortaleza e em
Pernambuco escreveu: Belém. Em Belém, o famoso mercado de Ver-o-Peso.
Em Pernambuco, nas estações ferroviárias, em
We had very good weather Tivemos um tempo muito fábricas, em prédios e em muitas residências subur-
only excessively hot, all the bom, só que excessivamente banas. Residências nos bairros preferidos pelos ingle-
way upon our own coast, till calorento durante todo o per-
we came the height of Cape curso ao longo de nossa cos-
ses como o de Apipucos com a da família Lorimer,
St. Augustine, from whence, ta, até alcançarmos os altos do exemplo de uma casa arquitetonicamente anglo-bra-
keepinf further off the sea, we Cabo de Santo Agostinho, e sileira. Ainda a Estação Central, no bairro de Santo
lost sight of land, and steered daí em diante prosseguimos Antônio, hoje, o Museu do Trem. Inaugurada em
as if we were bound for the isle mar adentro, até perdermos a 1880, possui as mesmas características da Estação Es-
Fernando de Noronha... (p.40 terra de vista e navegamos
trada-de-Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro.
– Robinson Crusoe by D. como que na direção da Ilha
Defoe Thomas Nelson Printers de Fernando de Noronha.
Foi construída pela concessionária inglesa The Great
Ltd, London and Edinburgh). Western of Brazil Railway Limited, nos mesmos mol-
des das estações ferroviárias da Europa do século XIX.

Ingleses na urbanização do Brasil Futebol, ingleses e brasileiros


Como o bonde ou tram, na língua inglesa, e o Das marcas e influências inglesas importantes
street car para os norte-americanos, os ingleses parti- sobre nós destaca-se o futebol. Trazido e incentivado
ciparam na nossa urbanização com linhas de bonde pelos britânicos que semearam e começaram a orga-
instaladas em várias cidades brasileiras. A palavra bon- nizar os primeiros times e jogos, entre nós, desde 1885,

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o futebol é, hoje, o esporte mais popular do Brasil. tos e trajes, sem ao menos aprenderem regularmente
Charles Miller, anglo-brasileiro de São Paulo é consi- a língua do País, mesmo após longos anos de perma-
derado o pai do futebol no Brasil, pois tendo ido es- nência. O sentimento de conforto, eles o trazem de
tudar na Inglaterra conheceu esse esporte, entusias- sua Ilha para o Brasil e os lugares mais pitorescos e
mou-se e o introduziu no País. Foi no Clube Atlético mais saudáveis são ocupados sempre por essa colô-
de São Paulo ou no "São Paulo Athletic Club", funda- nia. No Rio de Janeiro, na Tijuca, em Santa Tereza,
do pela colônia inglesa em 3 de maio de 1888, onde Laranjeiras ou Flamengo. No Recife, Monteiro,
ele propagou tanto o futebol que a paixão pelo cricket Apipucos, Casa Forte e Ponte D'Uchoa. Sua influên-
no clube diminuiu bastante. E o SPAC terminou for- cia étnica é quase nula, mas sua influência social é
mando uma equipe de futebol que se tornaria famo- considerável. Foram poucos ou raros os ingleses que
sa e vencedora de muitas competições, graças a Miller. no Brasil se dedicaram ao trabalho de campo ou a
Durante três anos consecutivos, Miller foi capitão da quaisquer outros ofícios inferiores. Eles estavam sem-
valorosa equipe do SPAC que detivera o título de cam- pre na direção, na contabilidade das suas casas ban-
peã na capital de São Paulo. Foi, sem dúvida, no "ve- cárias, nas grandes companhias férreas, de navega-
lódromo" aos domingos, na capital paulista, que o fu- ção, de transportes, têxteis, telegráficas, de iluminação,
tebol foi conseguindo mais e mais espectadores e saneamento, exploração de minas e muitas indústri-
tornando-se mais popular. Charles Miller tinha sua as. Os ingleses também trabalharam em grandes fir-
característica própria de jogar, e foi, além de introdutor, mas brasileiras, mas sempre em cargos de chefia ou
popularizador desse esporte para todo o Brasil, pois de muita proximidade com os proprietários.
se tornou um jogador famoso com seus chutes e
dribles. Passou a ser conhecido pela corruptela de _______________________
"chaleira", uma derivativa brasileira de Charles Miller, Notas
que morreu em 30 de junho de 1953, aos 79 anos de 1
A Inglaterra esteve em estado de guerra com Portugal (União
idade, e é incontestavelmente considerado o pai do Ibérica) até 1640. Os privateers eram navios armados, de particu-
futebol brasileiro. lares, com autorização do governo inglês para atacar e capturar
barcos mercantes de bandeiras inimigas.
Uma palavra sobre as colônias inglesas no Brasil 2
Otávio Tarquínio de Souza, no prefácio de Ingleses no Brasil.
Em muitos pontos do Brasil, depois da abertura
3
Gilberto Freyre. Ingleses no Brasil.
4
J. Henderson – 1821 : 385
dos portos (1808), os ingleses se instalaram com insti- 5
São muitos os livros de impressões de viajantes britânicos nou-
tuições e agências de penetração econômica, política tras regiões do país, além de Pernambuco, como os de John Mawe,
e intelectual. Em Pernambuco, além dos inúmeros R. Walsh, G. Gardner, John Luccock, Chamberlaim, Waterton e
estabelecimentos econômicos, eles mantinham con- Mansfield.
sulado, capelas anglicanas, médicos, cirurgiões,
Bibliografia
governantas, hospitais e cemitérios. Noutros pontos
brasileiros, como no Rio de Janeiro e em São Paulo, BURT ON, Richard. The highlands of the Brazil. London: Tinsley
Brothers, 19—.
possuíam ainda professor e escola em língua inglesa,
DARWIN, Charles. The voyage of the beagle: the natural history
hospital, capelas, médicos próprios, bibliotecas, library. New York: Anchor books, 19—.
governantas, juiz conservador, capelões e jornais em DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. London: Thomas Nelson.
língua inglesa. Com a colônia inglesa passa-se justa- FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil: aspectos da influência britâ-
mente o contrário do que se passa com os portugue- nica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. Rio de
ses e italianos. Pouco numerosos, os ingleses que se Janeiro: José Olympio, 1948.
estabeleceram no Brasil traziam, geralmente, consi- ______________. Um engenheiro francês no Brasil. Livraria José
Olympio Editora Rio de Janeiro, 1940.
go, em vez do braço de trabalho, o capital para ali ser
GRAHAM, Maria. Journal of a voyage to Brazil, and residence there
empregado, e daí resulta que, em vez da situação de during part of the years 1821, 1822, 1823. London: Printed for
dependência em que ficavam os outros, eles adquiri- Longman, Hurst, Rees, Orme, Brown, and Green, Paternoster
am desde logo uma preponderância natural. Eram eles Row and J. Murray Albermale street, 1824.
que ocupavam o primeiro lugar na fundação das in- HENDERSON, James. The History of the Brazil. London, Longman,
Husrt, Rees, Orme, and Brown, Paternoster Row, 1821.
dústrias brasileiras, e o nome inglês numa empresa
KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London, Longman Husrt, Rees,
qualquer era, para o nacional, uma garantia de boa Orme, and Brown, Paternoster row, 1816.
administração, como o Made in England, de boa qua- MELLO, Evaldo Cabral de. Recife: uma introdução ao estudo das
lidade. Etnicamente a sua influência foi quase nula, suas formas e das suas cores. Recife: Região, 1952.
sendo raros os casamentos ingleses fora da própria MENDONÇA, João Helio. Cronistas ingleses em Pernambuco no
colônia. Eles formavam uma sociedade à parte, com século XIX. Arrecifes. Recife, n.6, p.83-97, jul/dez., 1992
______________. Robinson Crusoé no Brasil: uma aventura des-
seus clubes esportivos e de diversões, com seus hábi-

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129
conhecida. Diário de Pernambuco. Recife, p.1, 4 fev. 1983.
Secção B.
______________. O Diário e os agentes marítimos. 23 fev. 1994.
______________. Bares tradicionais do Recife (II). Diário de
Pernambuco. Recife, 21 dez. 1994. C6.
PINTO, Estevão. História de uma estrada-de-ferro no nordeste. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1949.
PRESENÇA Britânica no Brasil - 1808-1914 (The British Presence
in Brazil - 1908-1914): Loyds Bank - 125 anos de Brasil. S. l. :
Pau-Brasil, 1987.
SETTE, Mario. Maxambombas e Maracatus. Recife: Fundação de
Cultura Cidade do Recife, 1981.
VALENTE, Waldemar. Maria Graham: uma inglesa em Pernambuco
nos começos do século XIX. Concórdia, 1957.

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130
Ingleses no Brasil: um Quase-Manifesto

Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke


Historiadora – Universidade de Cambridge – Inglaterra

Descobri Gilberto Freyre muito tardia- mesmo os vários anúncios que Freyre aí faz
mente. Para mim como para tantos outros de de futuros estudos seus sobre o assunto não
minha geração que freqüentaram universida- parecem ter sido desenvolvidos, e a influên-
de no final dos anos 60, Gilberto Freyre pare- cia inglesa na formação do brasileiro ainda
cia uma figura pouco atraente. Levados por permanece um terreno relativamente
razões ideológicas, talvez muito tolamente, inexplorado.
muitos de nós nos privamos de ler, naquela Antes dessa obra, Freyre já anunciara
altura, as obras mestras de um dos mais emi- seu interesse pelo tema e assumira, por assim
nentes intelectuais brasileiros. Foi só no iní- dizer, sua anglofilia. Em Casa-Grande & Sen-
cio da década de 80 que vim a descobrir Gil- zala, por exemplo, deixara claro que as infor-
berto Freyre, lendo não uma de suas obras mações dos viajantes ingleses eram superio-
mais conhecidas, mas, sim, Ingleses no Brasil. res às dos franceses em "lisura, exatidão e
Na época, estava iniciando meu doutorado honestidade de narrativa"1. Em Sobrados e
sobre um tema da história cultural inglesa e Mucambos são muitas as referências ao papel
esse ensaio de Freyre me descortinou dimen- dos ingleses na transformação da paisagem
sões insuspeitas sobre a influência da cultura cultural brasileira, tanto material quanto inte-
britânica no ethos brasileiro. Nunca o encon- lectual, e já fica evidente que a influência bri-
trei pessoalmente, mas tive, também nessa tânica na formação brasileira era um tema que
ocasião, a oportunidade de conhecer sua ge- o fascinava e para o qual não usava meias
nerosidade intelectual. Tendo lhe enviado palavras. O técnico britânico, o humilde ma-
uma carta para a qual, na verdade, não con- quinista, por exemplo, é equiparado ao Pri-
tava com a resposta, tive a agradável surpresa meiro Ministro de uma monarquia constitu-
de me ver – eu, uma mera doutoranda – pron- cional que tivera o mérito de minar a
tamente atendida no meu pedido de maiores importância do antes todo-poderoso senhor
informações. de engenho e de fazer os mestiços ascende-
Falar sobre Ingleses no Brasil significa, rem socialmente e transformarem-se em classe
portanto, tratar de uma obra que tem para média. 2 Mas é na pequena coletânea de en-
mim um valor especial, pois foi através dela saios, Ingleses, de 1942, que G. Freyre, movi-
que a riqueza e a originalidade da obra do em parte pelo papel liberador que a Ingla-
freyriana primeiramente se revelaram. E o as- terra desempenhava na II Guerra, revela seu
sunto que tem me fascinado nos últimos anos imenso entusiasmo pelo legado britânico e
– o estudo das marcas inglesas na obra de deixa entrever seu grande interesse em difun-
Freyre – talvez tenha me sido sugerido exata- dir a importância do impacto da cultura britâ-
mente pelo entusiasmo com que ele próprio nica no Brasil. É aí tambem que, enaltecendo
discorreu, na década de 40, sobre as marcas o que a Inglaterra fizera e fazia pelo mundo
deixadas pela cultura inglesa na história e no não só político como cultural, Freyre expõe e
etos brasileiro. declara sua anglofilia alto e bom tom. Seu
Qual o lugar que ocupa Ingleses no Bra- olhos, como dizia, talvez estivessem "turva-
sil na obra de Freyre? Seguramente este não é dos por um amor físico e ao mesmo tempo
um de seus livros mais conhecidos. Publicado místico à Inglaterra".3
em 1948 e jamais reeditado ou traduzido, Ingleses no Brasil não segue, no entan-
poucas são as referências a ele em estudos to, a mesma linha de Ingleses, livro composto
sobre a formação da cultura brasileira. As inú- basicamente de flashes variados e, em geral,
meras sugestões de trabalhos aí contidas, e apologéticos, de traços e figuras significativos

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da cultura britânica. Segue, sim, ao invés, obra anteri- cozinheiros franceses que difundiram a cultura fran-
or a Ingleses, publicada em 1940, intitulada Um En- cesa no Brasil do século XIX. Ao mesmo tempo, era
genheiro Francês no Brasil. Nela, a partir da atividade sua ambição desmentir a noção de que a influência
do engenheiro Louis Vauthier durante seis anos (1840- inglesa sobre a cultura brasileira se confinava aos as-
1846) no Recife, Freyre estudara a influência da cul- pectos econômicos e que intelectualmente a influên-
tura francesa sobre a brasileira através de seus agen- cia francesa era soberana.
tes técnicos. Recebida pela crítica nacional com No conjunto da obra de Freyre, pode-se dizer
desconfiança ou indiferença, essa obra, no entanto, que Ingleses no Brasil representa mais um esforço no
fazia um esforço pioneiro para ampliar a perspectiva sentido de recompor o processo de formação do Bra-
dos estudos da formação da cultura brasileira. Focali- sil nos seus aspectos mais íntimos, tal como fora inici-
zando, não a influência grandiosa da alta cultura fran- ado em Casa-Grande & Senzala. Sem um estudo do
cesa, mas, sim, a influência mais trivial ou cotidiana impacto da cultura britânica na nossa fomação, argu-
da cultura técnica, comercial e industrial – ou seja, de mentava Freyre, faltaria um elo importante da histó-
uma cultura dita "menor" – Freyre enfrentava nessa ria íntima do brasileiro e seria impossível compreen-
obra uma questão intrigante e inexplorada: a de sa- der o caráter de um povo tão marcado, como o nosso,
ber como a atividade essencialmente material de um pelos aspectos materiais e imateriais da cultura britâ-
técnico (a construção de pontes e de monumentos, nica.
por exemplo) podia deixar marcas espirituais ou À primeira vista pode parecer que Ingleses no
imateriais numa cultura. Entusiasmado com o feito de Brasil pouco mais é do que um variado, colorido e
Freyre, o sociólogo Paul Arbousse-Bastide foi enfático muitas vezes confuso mosaico descritivo das marcas
ao dizer que Freyre tivera o grande mérito de ter re- materiais aqui deixadas pelos ingleses ao longo de sua
velado todo o interesse sociológico dos contactos téc- aventura colonizadora. Um mosaico pintado, eviden-
nicos em aparência os mais humildes e de ter salienta- temente, por mãos de um mestre na arte de "surpre-
do que este tipo de contacto desempenhou um papel ender a vida onde a vida estiver"8, que conseguia fa-
considerável nas relações franco-brasileiras, habitual- zer com que as "coisas" e hábitos ingleses recuperassem
mente consideradas sob uma luz exclusivamente inte- o frescor da experiência humana fugidia e complexa
lectual e artística. E mais ainda, G. Freyre soube mos- dos brasileiros do século XIX. Descrição, pois, aliada
trar que estes dois aspectos de influência cultural eram a comentários perspicazes e sugestivos feitos num ca-
estreitamente ligados. O mais humilde dos artesãos racterístico tom de conversa e entremeados de algu-
franceses sempre trouxe com seus utensílios uma cer- mas referências pessoais cheias de humor – como a
ta concepção de vida, indissoluvelmente ligada ao exer- autocrítica que faz ao seu feitio "lamuriento" e ao seu
cício de seu ofício. 4 egoísmo de se sentir invadido no seu "latifúndio inte-
Cumpre lembrar que, desde muito cedo, Freyre lectual" por um outro estudioso da influência britâni-
pendia para um tipo de história pouco convencional. ca – comporiam essa obra fundamentalmente infor-
Em 1921, quando já manifestara o desejo de escrever mativa sobre as marcas inglesas na paisagem brasileira.
uma história inédita sobre o menino brasileiro, ele Lendo suas densas páginas, o leitor se inteirava da
reconhece que as histórias eram, em geral, muito genealogia de muitos dos hábitos, modas e objetos,
excludentes, deixando de lado não só as crianças, mas que no século XIX, reeuropeizaram o Brasil e que, de
também as mulheres, os artistas, os comerciantes, os tão notórios, teriam gerado a queixa de que a presen-
intelectuais, os servos e os escravos. Só se importam ça britânica "londonizava nossa terra".9 Eram, por
em glorificar os adultos, "e dentre os adultos, só os exemplo, as vidraças substituindo as tradicionais ve-
homens; dentre os homens, só os importantes como nezianas de madeira, a cerveja e o chá substituindo
políticos e militares".5 E um ano mais tarde, muito es- os sucos de frutas tropicais, os chapéus e as capas subs-
timulado pelo curso que Alfred Zimmern – um histo- tituindo os xales, eram até mesmo fantasmas ingleses
riador "diferente" que tanto marcaria seus futuros tra- de cabelos claros sendo associados aos nossos fantas-
balhos 6 – ministrava na Universidade da Columbia, mas nativos e morenos, e palavras inglesas sendo in-
Freyre fala aos seus conterrâneos no Recife sobre a corporadas ao nosso vocabulário que Freyre fazia
importância da história não excludente para o alarga- descortinar nesse "imenso rol"10 de nossa dívida para
mento dos horizontes intelectuais.7 É, pois, continu- com ingleses.
ando nessa linha que, em 1948, ao introduzir sua obra Esse volumoso e pioneiro trabalho de pesquisa,
sobre o impacto da cultura britânica no Brasil, Freyre por si só extremamente valioso, tem, todavia, uma
deixa claro que procurava com ela continuar o traba- importância muito maior do que faz supor o seu mo-
lho sobre os franceses de 1940. Nela, ele iria evocar a desto subtítulo – "Aspectos da Influência Britânica so-
ação de britânicos tão obscuros como os padeiros e bre a Vida, a Paisagem e a Cultura do Brasil". Diria

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132
que, por trás desse imenso e variado rol ou inventá- ção branca, macia", suave, sem sangue, diz Freyre com
rio, essa obra contém não só na sua introdução, mas admiração. 14
esparso ao longo de suas páginas, o que sou tentada a Pode-se dizer que a ambição de corrigir o que
chamar, mesmo com o risco de ser anacrônica, de via como estereótipos e visões deturpadas dos súdi-
Manifesto para uma Antropologia Histórica. Ou, sen- tos da Inglaterra imperial foi um dos móveis que le-
do mais prudente, um quase-manifesto, consideran- vou Freyre a escrever sobre eles no Brasil. É em tom
do que as características leveza e informalidade do apaixonado que defende os ingleses dos que os acu-
discurso de Freyre, tão pouco afeito à sisudez e ao sam de irremediavelmente hipócritas, etnocêntricos
rigor acadêmico comumente associados a manifestos, e insulares. Os que assim os qualificam, dizia Freyre,
não deixam de estar aí também muito presentes.11 só estão vendo "meias-verdades". “Esses anglos foram
Idéias já lançadas anteriormente são, nessa obra, não às vezes anjos para os brasileiros e para a humanida-
só mais explicitadas e sistemazidas como também de toda”, corrige Freyre.15
acentuadas, um novo conceito é ensaiado e muito do A pesquisa pioneira que era ali divulgada mos-
desenrolar do livro, por mais fragmentário que pare- trava ingleses tenazes e até heróicos que, enfrentan-
ça, pode ser visto como ilustrativo dos princípios de- do com bravura a febre amarela, a cólera, as serpen-
fendidos nesse quase-manifesto. Nele Gilberto Freyre tes e outros desconfortos, desmentiam a idéia de que
esclarece as premissas das quais partem suas pesqui- somente o lucro material era o que os movia. Esses
sas, revela sua visão da história e da natureza humana jovens e destemidos cientistas e técnicos que desbra-
e, em decorrência disso, elege as fontes que conside- vavam terras inóspitas tinham que ser louvados, se-
ra especialmente privilegiadas de acesso ao passado gundo Freyre, como os verdadeiros agentes da mo-
brasileiro. É sobre esses aspectos que gostaria de me dernização brasileira. 16 É com eloqüência que Freyre
deter, ainda que brevemente. se refere aos médicos, professores, engenheiros, mis-
sionários, mineiros e outros desconhecidos ingleses
O Olhar Antropológico de Freyre: "olhos-de-inglês" como guerreiros e revolucionários que no Brasil par-
Ao longo das páginas de Ingleses no Brasil, o ticiparam da "revolução técnica" e "das guerras contra
autor assume suas simpatias e preferências culturais, a rotina, contra a ignorância, contra a doença" que
deixando muito evidente sua profunda empatia para iriam aos poucos liberar o País.17 E mesmo os comer-
com os ingleses, seu objeto de estudo. Como se sabe, ciantes ingleses que aqui se estabeleciam a contra-
Freyre os conhecera de perto quando estivera em gosto dos locais, davam, a maioria deles, verdadeiras
Oxford, num período descrito por ele próprio como lições de "sobriedade e de ética profissional", no que
"a melhor temporada de minha vida".12 Lá, num am- contrastavam com os exageros e até o charlatanismo
biente sofisticado e aristocrático que o fascinou, en- dos demais europeus. Só entre os anúncios de nego-
trara em contato com a elite intelectual e social ingle- ciantes ingleses, lembrava Freyre, poder-se-iam en-
sa, e o que fora inicialmente mera simpatia e contrar exemplos espantosos de lisura comercial como
curiosidade logo se transformou no amor e na admi- os que informavam ao público sobre a venda de "'di-
ração que tão profundamente iriam marcar, desde versas fazendas com algum defeito' ou biscoitos de 'qua-
muito cedo, suas opções intelectuais.13 É assim que lidade inferior'”.18
Freyre passa a vê-los e compreendê-los nos seus as- A tão decantada frieza inglesa também era
pectos contraditórios, nas suas virtudes e fraquezas. contrabalançada com evidências de que, apesar das
Em Ingleses no Brasil, assim como fizera já an- aparências, os britânicos eram, na verdade, "grandes
tes em Ingleses, Freyre os elogia pela sua "habilidade sentimentais, dissimulados em secarrões", neles coe-
de contemporizar, harmonizar e equilibrar antagonis- xistindo muito bem a emotividade e o sentimentalis-
mos". Esse "dom angélico" tão distintamente inglês, que mo "com a sobriedade, a fleuma, a dignidade britâni-
faz com que conflitos de toda ordem – entre homens, ca". 19 Quanto à dita insularidade e etnocentrismo dos
classes, raças, gerações, doutrinas, etc. – sejam sabia- britânicos, Freyre mostrava que não havia nada que
mente harmonizados, faz também com que os ingle- mais desmentisse ou amenizasse esses traços do que
ses se imponham no mundo com uma qualidade a observação das sábias adaptacões dos ingleses à
grandemente apreciada por Freyre: a de serem "ad- cultura local e a leitura dos relatos fiéis e minuciosos
miráveis revolucionários contemporizadores, ou con- que deixaram do país que os acolhia. Não poderiam
servadores". No Brasil, a maioria das transformações ser acusados de alienados aqueles estrangeiros nórdi-
que provocaram não implicou "substituição radical" cos que se adaptavam aos costumes de "matutos ser-
do que aqui existia. Diferentemente dos franceses – tanejos", que sabiam apreciar o que aqui encontra-
esses revolucionários "radicais ou absolutos" – os in- vam (como, por exemplo, as tradições da arquitetura
gleses são exímios na arte de provocar uma "revolu- brasileira) e que traçavam retratos do Brasil que eram

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verdadeiros "modelos de precisão e objetividade". 20 De humano, que a "teia da vida" é composta de fios mis-
fato, salienta Freyre, devemos a muitos desses técni- tos, de "cores intermediárias" e que o modo de tratá-
cos, cientistas e missionários britânicos informações la é, pois, "não tentar provar que tudo é preto ou tudo
imparciais, precisas e perspicazes sobre nossa própria é branco". 26 O que, então, atraía a atenção de Freyre
realidade. Eles "sempre conseguiam surpreender o lado nos documentos estudados sobre a história das rela-
oposto ou oculto dos fatos", comenta Freyre.21 Aos ções do Brasil com a Grã-Bretanha era a evidência de
construtores de estradas de ferro, por exemplo, de- que nem sempre os ingleses apareciam como heróis
vemos, em grande parte, a desmistificação do Brasil, e defensores dos direitos humanos dos escravos, as-
tido pelos ingênuos como um "pedaço do Paraíso per- sim como nem sempre os brasileiros haviam sido vi-
dido", como país de "fertilidade insuperável" e de su- lões desumanos e inveterados.
cesso garantido não fosse ele vítima da "ganância do Da mesma maneira, acompanhando o desen-
chamado 'capital colonizador'". 22 E é também graças rolar dos encontros das duas culturas no âmbito eco-
aos próprios ingleses, mais do que a ninguém, reco- nômico, Freyre pudera apreciar a inadequação de
nhece Freyre, que nos inteiramos de muitos dos abu- muitas das usuais visões extremadas sobre os malefícios
sos do próprio imperialismo britânico, da insolência e do "chamado capitalismo colonizador". Sem negar que
esnobismo de muitos de seus súditos e da "grossa ve- este capitalismo tivesse, às vezes, devastado "com den-
lhacaria" de negociantes ingleses, envolvidos não só tes de piranha" os países que não se protegiam de sua
com o tráfico de escravos como também com o con- ganância exagerada, ele também trouxe consigo be-
trabando de cobre e com a falsificação de moedas.23 nefícios econômicos e sociais, lembrava Freyre. Se é
Anos antes Freyre confessara que vira Portugal inegável, por exemplo, que as estradas de ferro servi-
com os "olhos de inglês", que viajara pelo país "im- ram inicialmente aos interesses da monocultura
pregnado de literatura inglesa". "Erram os que acredi- escravocrata e do capitalismo imperial britânico, elas
tam na frase: para-inglês-ver", afirmara Freyre. "O in- não foram, no entanto, a causa de nossos males eco-
glês não se deixa enganar pelo superficial ou pelo nômicos, como querem os "patriotas sonhadores" .
postiço, mas sabe descobrir na paisagem, na arte po- Com o tempo, na verdade, elas acabaram preparan-
pular, nos vinhos e nas tradições populares dos outros do o caminho para a policultura democrática e para a
povos alguns dos seus encantos mais íntimos, muitas legislação em defesa do trabalhador. 27
vezes desprezados pelos próprios naturais." 24 Acredi- Outro exemplo eloqüente nesse sentido encon-
to que, em certo sentido, o mesmo se repetia no caso tra-se nos resultados positivos das violentas medidas
brasileiro e que Freyre estava a ver seu próprio País, governamentais impostas pelo edito de 1808. Nessa
aí incluindo os ingleses no Brasil, também com "olhos ocasião, provavelmente sob pressão de negociantes
de inglês". Esse seria, por assim dizer, o seu olhar an- ingleses, o governo brasileiro impusera a substituição
tropológico. Guiado e inspirado pelos relatos de in- das urupemas e gelosias das construções brasileiras
gleses sobre o Brasil, bem como pela experiência in- pelas janelas envidraçadas. Num prazo de seis meses
glesa e pelas leituras dos ensaístas ingleses, que tão as casas – pelo menos as da alta burguesia – deveriam
essenciais foram para sua formação, Freyre teria ad- se libertar dessas marcas "bárbaras", "góticas", "turcas"
quirido distância e se predisposto a perceber aspec- e adquirir um dos símbolos da moderna civilização
tos que passavam despercebidos a muitos outros es- européia. Nesse particular, é interessante salientar que
tudiosos.25 isso, ironicamente, acontecia na mesma época em
Uma das coisas que Freyre aprendera a apreci- que, na Inglaterra, o imposto sobre janelas – que vi-
ar e a ter olhos para buscar nos documentos gorou de 1696 a 1851 –, fazia com que muitos pro-
pesquisados era exatamente o caráter contraditório prietários as emparedassem (ou as camuflassem, se
da influência inglesa no Brasil, fruto da própria irre- espertos!) para fugir ao fisco. 28 Assim, enquanto na
gularidade do caráter ou comportamento dos ingle- terra cinzenta dos produtores de vidro as casas se es-
ses, em nada diferentes nisso, como afirma Freyre, de cureciam e se fechavam, aqui, numa terra ensolarada,
todos as outros povos. "Tudo o que é humano é con- as casas se abriam e se clareavam. Ora, lembra Freyre,
traditório, não havendo leis absolutas que definam o se é inegável que a maciça importação de vidro – im-
caráter dos homens ou a história de um povo", diz ele posta pela astúcia ou velhacaria britânica interessada
como se fosse uma profissão de fé, uma filosofia de em manter o nossa economia “passivamente colonial"
vida. É assim que polaridades, absolutos, tudo ou nada, – alterou profundamente a paisagem brasileira, vio-
preto ou branco, são categorias que parecem não fa- lentando uma arquitetura harmonizada com as con-
zer parte da estrutura do pensamento de Freyre. Uma dições tropicais, de outro acabou sendo benéfica para
das lições que o ensaísmo inglês lhe ensinara é que a o desenvolvimento da cultura intelectual brasileira.
complexidade é a marca indelével de tudo o que é Sim, pois ao lado de vidros para portas e janelas, aqui

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134
também chegavam em abundância vidros para ócu- curas, que "sozinhas não se levantam da sepultura dos
los, lunetas e telescópios, novidades que representa- arquivos". Pretende, como diz, livrar do esquecimen-
ram um acréscimo positivo ao País. Como lembra to histórico "os marias-borralheiras da história, consi-
Freyre, "a importação de vidros para ler coincidiu, com derada em seus aspectos menos grandiosos; estudada
efeito, com a maior produção e importação de livros, nas pessoas dos que, junto aos borralhos das fábricas,
revistas e jornais". 29 das fundições, das oficinas, dos armazéns, das loco-
Do mesmo modo, lembrava Freyre que os exa- motivas, dos vapores, das máquinas, também concor-
gerados privilégios econômicos concedidos à Ingla- reram para que culturas diferentes se aproximassem
terra por D. João VI e seus sucessores não tiveram ou se interpenetrassem". Pois, na verdade, os maqui-
somente um efeito devastador sobre o Brasil. Se, de nistas, foguistas, mecânicos, engenheiros, mágicos,
um lado, é verdade que sufocaram as incipientes ati- leiloeiros, e outros "marias-borralheiras" revelam os
vidades industrial e comercial do País (que até dispu- aspectos menos grandiosos, mas talvez mais profun-
nha de seus próprios navios), bem como a sadia damente significativos das influências culturais. Das
policultura que despontava no fim do século XVIII e influências tais como elas se expressam na trivialida-
início do XIX, de outro, fizeram com que o Brasil par- de doméstica, no cotidiano das oficinas, das fundi-
ticipasse desde muito cedo da "revolução com R ver- ções, dos vagões, etc.
dadeiramente maiúsculo", a Revolução Industrial.30 São os detalhes triviais minuciosamente investi-
Com isso, diz Freyre, ficamos na dianteira de Portu- gados que podem nos levar à compreensão de uma
gal, Espanha e mesmo Itália, que, envolvidos em suas realidade que nos escapa, argumenta Freyre, na mes-
"revoluçõezinhas simplesmente políticas de 'liberais', ma linha que seria anos mais tarde desenvolvida por
de 'miguelitas,...'de republicanos'...", etc., ficaram "`a Carlo Ginzburg a partir das idéias de um historiador
margem da civilização carbonífera". 31 da arte, Giovanelli Morelli. Assim como este mostrara
que detalhes triviais como o lobo da orelha e a forma
Uma história feita de nuances da unha permitiam distinguir a pintura original de uma
Enfim, levando em conta esses e outros exem- cópia, "pequenos indícios", diz Ginzburg, podem nos
plos semelhantes, a história que Freyre parece querer levar a fenômenos mais gerais. "Apesar de a realidade
nos contar é uma história multifacetada, feita de poder parecer opaca, há zonas privilegiadas – sinais,
nuances e de resultados imprevisíveis, até mesmo para indícios – que nos permitem penetrar nela”, diz ele.34
seus agentes mais poderosos; uma história complexa Coincidentemente, também é um historiador da arte,
e às vezes desconcertante, que abala a crença em pro- como veremos logo a seguir, que parece ter reforça-
gressos ou em insucessos abolutos. do nessa ocasião a lição que Freyre primeiramente
É em defesa de tal história que Freyre escreve aprendera com os ensaístas ingleses, ou seja, "o infini-
o seu quase-manifesto para uma antropologia históri- to significado das pequeninas coisas". 35 Agora, estu-
ca. Uma história das influências de uma cultura sobre dando o encontro de duas culturas, ele novamente
a outra, feita de nuances, requer que nela se inclua o reconhece que sob uma perspectiva histórica mais
estudo do que Freyre chama de "pormenores signifi- abrangente, os “pequenos nadas das relações entre os
cativos" e de personagens mais ou menos obscuros.32 povos", se revelam como tendo "maior significação
É difícil notar a eloqüência com que tais aspectos são humana que os episódios grandiosos”.36
tratados sem imediatamente nos lembrarmos de E. P. Os franceses Paul Arbousse-Bastide e Roger
Thompson e Carlo Ginzburg, dois dos maiores inova- Bastide já haviam reconhecido o dom freyriano de
dores da história contemporânea. O modo como as chegar ao global a partir do individual, de recuperar
figuras ditas "menores" são anunciadas como impor- o "o clima desaparecido... do velho Brasil" a partir da
tantes "agentes da cultura britânica no Brasil" faz-nos, apreciação de inúmeros detalhes que se mostram, sob
por exemplo, lembrar da famosa frase com que E. P. sua arte de "pintor e de romancista", especialmente
Thompson anunciou seu estudo de 1963 sobre a clas- significativos.37 Entusiasmado com tal elogio, Freyre
se trabalhadora inglesa. O que ele pretendia, como retoma e amplia tal analogia, defendendo, em Ingle-
diz, era "livrar ...da enorme condescendência da pos- ses no Brasil, a idéia de que a história muito ganharia
teridade" os humildes artesãos, tecelões e agriculto- se seus autores se apropriassem da "técnica" ou méto-
res que viveram as ansiedades e tensões da emergen- do dos retratistas, que consiste em atentar rigorosa-
te Revolução Industrial. 33 Freyre, com ênfase mente ao particular, ao detalhe, para atingir o univer-
semelhante, nos diz que os personagens mais ilustres sal. O interesse de Freyre em levar avante essa idéia
e o fatos mais grandiosos contam só uma parte da fica evidente na introdução do livro, quando o vemos
história. O que ele quer, com seu estudo, é resgatar a recorrer à obra que o historiador da arte Lionello
memória daquelas figuras importantes apesar de obs- Venturi acabara de publicar, em 1947, Painting and

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Painters. Apoiando-se em suas considerações sobre outros, não foram jamais completados.41
as retratos de Ticiano, El Greco, Rembrandt e Rafael, Nas quase quatrocentas páginas em que Freyre
Freyre sugere que sua ambição é ser o Ticiano ou o El explora os anúncios e a correspondência, ao mesmo
Greco da história brasileira. Quer, em outras palavras, tempo em que vai tomando corpo o quadro de um
pintar o retrato psicosociológico de seu povo, não a País feito de encontros, trocas e também recusas cul-
partir de um ideal ou abstração a ser imposto sobre a turais, vai também se esclarecendo a importância da-
realidade, como fizera Rafael, mas a partir do registro quelas fontes na metodologia freyriana. A correspon-
de um "momento particular" do retratado, como dência consular, por exemplo, é vista como
Ticiano e El Greco haviam feito. Venturi mostrara que especialmente importante para os estudiosos das re-
o valor dos retratos de Ticiano, El Greco e Rembrandt, lações entre culturas diferentes, tais como elas se
não residia tanto na sua beleza, mas na capacidade manifestam não nos grandes eventos políticos ou di-
que tinham de evocar a vida e a atmosfera que rode- plomáticos, mas no varejo, por assim dizer, no dia-a-
ava seus modelos a partir do registro de momentos dia da sociedade, ou no que aparenta ser, como diz
individuais e "impressões fugidias". 38 É nessa arte que Freyre, “pequenos nadas das relações entre os povos". 42
Freyre os quer imitar. Se fosse bem-sucedido, diz ele, Essa documentação – que diferente da rigorosamen-
seu quadro da sociedade brasileira iria combinar o te diplomática não registra assuntos políticos impor-
social com o pessoal, o universal com o individual. É tantes – mostra que os cônsules, além de suas funcões
interessante aqui salientar que a pintura de Ticiano burocráticas, aqui exerciam papéis de verdadeiros
foi tanto elogiada quanto criticada, em sua própria "detetives" e até mesmo de "caixeiros-viajantes". Tra-
época, por traços semelhantes aos que atrairiam elo- balhando, como diz Freyre, "em mangas de camisa",
gios e críticas à obra de Freyre: por seu estilo fluido e eles obtinham informações tanto de ordem comerci-
até meio grosseiro, que dava a suas pinturas um ar de al como policial. Em sua correspondência, pode-se,
inacabadas e que apesar de "feitas com grande esfor- por exemplo, ter acesso tanto ao declínio de importa-
ço, pareciam não ter exigido nenhum". 39 ção da cerveja inglesa, que vai sendo substituída pela
E levando adiante a apreciação de Arbousse- alemã, como à astúcia dos traficantes de escravos, ou
Bastide sobre sua arte de romancista, Freyre recorre mesmo a informacões sobre ingleses envolvidos no
novamente a Proust – que desde Casa-Grande fora "nefando tráfico" que o seu próprio país tão ferozmente
apresentado como inspirador de seu projeto de es- combatia. Enquanto detetives especializados no tráfi-
crever um "roman vrai"– e o louva como um retratista co ilegal de escravos, eles estavam "à altura do povo
à la Ticiano. Mas agora, ao lado dos franceses Proust que viria notabilizar-se pela sua Scotland Yard", co-
e Goncourts, Freyre nos fala sobre a qualidade retra- menta Freyre. Para os interessados em retratar uma
tista dos romancistas e memorialistas ingleses, como sociedade como Ticiano retratara seus modelos, os
James Boswell e Rebecca West. Esses são também documentos consulares são de inegável valor, exata-
mestres a imitar, sugere Freyre, pois na "técnica da mente porque registram as recorrências, ou seja, "o
fixação do pormenor significativo", em que o social e fato miúdo e sem importância, a princípio", mas que,
o pessoal aparecem se interpenetrando, eles são exí- repetido, torna-se "sociologicamente significativo". 43 E
mios.40 aqui, nessa ligação entre o papel dos detetives na
busca dos "pormenores significativos", cabe, mais uma
Duas fontes privilegiadas e uma abordagem pro- vez, aproximar Freyre a Ginzburg. No conhecido ar-
missora tigo mencionado acima, o historiador italiano discu-
É então com seu olhar antropológico, seus tiu o que chama de "paradigma indiziario" a partir de
"olhos-de-inglês" que Freyre se debruça longamente três mestres na arte da adivinhação: o detetive
sobre as fontes que considera especialmente férteis Sherlock Homes (o famoso personagem de Conan
para recuperar esse pormenores eloqüentes sobre Doyle), Sigmund Freud e Giovanni Morelli. Mostran-
realidade vivida por nossos antepassados e para po- do como esses mestres chegavam a conclusões im-
der traçar o retrato psicos sociológico do Brasil: os portantes a partir de detalhes aparentemente triviais
anúncios de jornais e a correspondência consular. e de evidências indiretas, ao invés de por meio de
Quanto aos relatos deixados por ingleses sobre o Bra- evidências maciças e diretas, Ginzburg defende, por
sil, Freyre se detém rapidamente nas páginas deixa- assim dizer, a idéia de uma história escrita por histori-
das pelo cronista do navio britânico onde se refugiou adores-detetives, exímios na arte de atinar com os
D. Pedro I em 1831. Era, ao que tudo indica, para pormenores significativos. De modo semelhante, mas
servir somente como uma pequena amostra da décadas antes, como vimos, Freyre também ensaiara
potencialidade desse tipo de fonte, a ser explorada tal idéia. Anos mais tarde, e acentuando esta coinci-
mais profundamente num futuro trabalho, que, como dência de perspectiva entre ele e Ginzburg, o vemos

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136
claramente confessar sua admiracão pela "a rt of menores significativos" de nossa história social. As no-
detection", para a qual não há "minúcias desprezíveis. tícias de leilões entreabriam para o público brasileiro
Pois o menor objeto ou gesto ou lapso de linguagem as residências inglesas, e freqüentá-los se tornou um
pode ser a chave de uma descoberta: o indício capaz hábito chic no século XIX, argumenta Freyre. Atraídos
de tornar-se revelação". 44 por anúncios chamativos, os brasileiros ali iam satisfa-
Quanto aos anúncios de jornais, a outra fonte zer seu gosto bisbilhoteiro e adquirir sem grande es-
amplamente explorada por Freyre em Ingleses no Bra- forço o "gosto europeu mais moderno – o gosto da
sil, diria que ela ocupa um papel de proeminência na Europa burguesa e nórdica, da Europa da máquina e
metodologia freyrina, se se levar em conta a eloqüên- da Revolução Industrial". Não há como negar que os
cia com que suas virtudes são louvadas. Os anúncios leilões foram verdadeiras "aulas práticas de
revelam o lado mais humano do passado, aquilo so- europeização" e que foi especialmente por meio de-
bre o que os documentos oficiais em geral se calam, les que o nosso meio social foi se alterando, se
diz Freyre. "Não só o pitoresco, o dramático, o único anglicizando. A essa "revolução branca, macia", que
irrompe nos anúncios: também o comum, o que se Freyre tanto admira, devemos novos gostos, não só
repete, o que em certas ciências se chama o demons- de estilos de móveis e louças, como também de leitu-
trativo em contraste com o denominado atípico". 45 ra (Benthan, Pope, Adam Smith, Milton, etc.), novos
Mas eles não são somente importantes como hábitos de higiene e muito mais.47
veículos de informação de pormenores significativos. Finalmente, um último ponto que gostaria de
Mais do uma imersão no passado, a leitura dos anún- salientar é o que diz respeito ao modo inovador com
cios de jornais nos dá acesso ao fenômeno da que Freyre aborda o encontro cultural entre o Brasil e
anglicização da sociedade brasileira em pleno proces- a Inglaterra nesse quase-manifesto. Sem negar que
so. Sim, pois como argumenta Freyre, se é verdade eram duas culturas desiguais a se encontrar, Freyre,
que a conquista do Brasil pela Inglaterra se deu "sem no entanto, não se satisfaz com a noção de que a
efusão de sangue", sua invasão envolveu, no entanto, influência se deu somente da mais rica e dominante
"muita efusão só de tinta de imprensa: a empregada para a mais pobre, atrasada e subalterna. A penetra-
nos anúncios com que os ingleses, desde 1808, come- ção britânica, tal como ele a apresenta, apesar de em
çaram a surgir aos olhos de parte considerável da po- grande parte macia e suave, encontrou resistências,
pulação brasileira como portadores de mercadorias ou teve que se acomodar, muitas vezes, à cultura local e
produtos das fábricas britânicas de uma sedução foi, em algum grau, também penetrada pela cultura
irresistível para burgueses despertados do seu longo mais pobre.
sono de homens quase segregados do norte da Euro- Na obra anterior sobre o impacto da cultura
pa: o ferro, o vidro, o cobre, a lã, a cutelaria fabricados técnica francesa no Brasil, Freyre parece não estar tão
pela Inglaterra". 46 Ou seja, a anglicização brasileira se alerta para as nuances dos encontros culturais, e mes-
deu pelo processo de imitação, e este se desenvolveu mo Paul Arbousse-Bastide na apresentação do livro
grandemente por intermédio dos anúncios de produ- não se mostra sensível às influências que a cultura fran-
tos ingleses nos jornais da época. Dirigindo repetida- cesa teria porventura recebido no seu contacto com
mente para o público suas ofertas sedutoras, os anún- a brasileira. O que o empolga e orgulha é a novidade
cios teriam finalmente conseguido criar uma nova de encontrar reconstituída na obra de Freyre "uma
demanda e um novo gosto. Gosto por veraneio na parte pouco conhecida da história da radiação france-
serra, pelo chá das cinco, pelas carruagens sa fora da França"; de aí se ver como as ações de um
envidraçadas, por tocar piano, por lições públicas de engenheiro francês revelam "a influência de uma cul-
arte, política, química, pelo uso da tração eqüina (que tura já formada e avançada – a francesa – sobre uma
muito concorreu para o fim da escravidão), pelo ba- cultura nascente, a brasileira."48
nho de mar, e assim por diante. Em certo sentido, pois, Em Ingleses no Brasil o que se nota, no entanto,
os anúncios podem ser vistos como expressão e veí- é um Freyre que vê o País não só se europeizando, se
culos da anglicização do País. afrancesando e se anglicizando, mas também, por as-
Dentre os vários tipos de "anúncios", "avisos" e sim dizer, abrasileirando o "invasor"; o que se nota é,
"notícias particulares" – de negociantes e técnicos bri- pois, um Freyre mais atento às nuances das relações
tânicos anunciando a chegada de mercadorias impor- culturais entre os povos e muito ansioso por encon-
tadas e vendendo seus serviços, de professores anun- trar, no material pesquisado, evidências do papel ati-
ciando cursos de língua inglesa e de lojas vendendo vo da cultura dita pobre e subordinada. Um papel
livros ingleses, desde romances e filosofia até manu- ativo não somente enquanto cultura "misturadora" ,
ais técnicos –, os anúncios de leilões são os que se que funde e recria "tudo a seu jeito", mas também
revelam mais importantes para a recuperação dos "por- como uma cultura doadora, que é conquistada, mas

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137
que também, muitas vezes, conquista a "invasora". 6
M. L. G. Pallares-Burke, "O caminho para a Casa-Grande: Gil-
Talvez inspirado por Fernando Ortiz e seu conceito berto Freyre e suas leituras inglesas", Primeira edição crítica de
Casa-Grande & Senzala, Coleção Arquivos da Unesco (no prelo).
de "transculturação", exposto pela primeira vez em 7
G. Freyre, Tempo de Aprendiz, 2 vol., S. Paulo, Ibrasa, 1978, I, p.
1940, Freyre insiste no que chama várias vezes de 189.
"interpenetração de culturas". 49 Mesmo sem ter usado 8
J. Lins do Rego, Prefácio in Ingleses, p. 11.
o termo de Ortiz, Freyre parece estar vislumbrando o 9
Citado em G. Veiga, História das idéias da Faculdade de Direito
mesmo conceito quando deixa claro que o que en- do Recife, IV, p. 332.
tende por "aculturação" (termo que, ao que parece,
10
O. Tarquinio de Sousa, Prefácio, Ingleses no Brasil, Rio de Janei-
ro, José Olympio, 1948, p. 17 (daqui em diante essa obra será
usa uma única vez no texto) implica mudanças não só abreviada por I. B.)
em uma, mas nas duas culturas que se encontram, 11
Estudando o Manifesto Regionalista, Antonio Dimas também se
tanto na tida como mais superior, como na inferior. 50 refere ao modo pouco convencional com que Freyre usa a noção
Já desde as primeiras páginas, Freyre se refere à reci- de manifesto e cultura, reinventado as palavras e delas subtraindo
procidade de influências. "Pois enorme como foi a in- "qualquer traço de elaboração intelectualizada e, portanto,
inapreensível." (cf. A. Dimas, "Um Manifesto Guloso", Prefácio à
fluência britânica no Brasil, a cultura técnica e literari- 7a. Edição, Manifesto Regionalista, Fátima Quintas org., Recife,
amente superior não agiu de modo absoluto, ou sempre Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1996, p. 41).
soberanamente, sobre a inferior", diz ele.51 As marcas 12
G. Freyre, Ingleses, p. 116.
deixadas pela cultura brasileira sobre a britânica não 13
Cf. M. L. G.Pallares-Burke, "Gilberto Freyre e Inglaterra: uma
são, no entanto, facilmente reconhecíveis, admite história de amor", Tempo Social, Vol. 9, n. 2, outubro 1997, p.13-
38.
Freyre. É preciso ter olhos muito penetrantes para vê- 14
G. Freyre, Ingleses, p. 24-5; I. B., p. 214-17.
las. Ao longo do texto, encontramos indícios dessa 15
G. Freyre, Ingleses, p. 34.
influência, por assim dizer, de "contra-mão", quando 16
G. Freyre, I. B., p. 97, 106, 128 e passim.
Freyre se refere, por exemplo, a ingleses fazendo siesta, 17
ibidem, p. 61.
imitando o nosso "inteligente uso de guarda-pó" (que 18
ibidem, p. 257, 179.
talvez tenham levado para suas colônias tropicais) e 19
ibidem, p. 109. 242, passim.
abandonando seus móveis angulosos de "linhas 20
ibidem, p. 299, 108-9, 119-20, 184-6, e passim.
anglicanamente secas" em prol de um estilo feminino, 21
ibidem, p. 320.
curvo e gracioso. Era "a Inglaterra modificando-se no
22
ibidem, p, 119-21.
Brasil", diz ele.52 Mas mais do que indícios muito pal-
23
ibidem, p. 360-3, passim.
24
G. Freyre, Ingleses, p. 119-20.
páveis, o que o texto faz com relativa insistência em 25
Cf. M. L. G.Pallares-Burke, "O caminho para a Casa-Grande:
suas páginas é acenar com vivacidade e convicção para Gilberto Freyre e suas leituras inglesas", ob. cit. Darcy Ribeiro se
a relevância de pacientes estudos sobre as marcas bra- refere ao fato de G. Freyre – que era, na verdade, "dois: o
sileiras na cultura inglesa. Pois não há dúvida, segun- pernambucano e o inglês" – ter trazido do estrangeiro " um olhar
do Freyre, que enquanto o Brasil se europeizava e se inquisitivo", que lhe permitia observar o que era familiar como se
fosse novidade. (D. Ribeiro, Prólogo, Casa-Grande & Senzala, Bi-
anglicizava, os ingleses também se abrasileiravam.53 blioteca Ayacucho, Caracas, 1977, p. XVIII).
Resta saber o que eles levavam da cultura brasileira 26
W. Hazlitt, Lectures on the English Comic Writers, London,
na sua bagagem de volta, além dos tão estimados pa- Everyman's Library, 1910, p. 91-105.
pagaios e macacos, do gosto pelo doce com queijo, 27
G. Freyre, I. B., p. 107-9; 119-21; 122-133, passim.
das vitórias-régias e dos móveis arredondados e sen- 28
Cf. M. Medlycott, "Window and other assessed taxes", in J.
suais, com pernas que lembravam pernas de moças Gibson, M. Medlycott, D. Mills, Land and Window tax assessments,
second edition, London, 1998, 13-14.
robustas ou, ao menos, mais cheinhas do que as in- 29
G. Freyre, I. B., 194-204, passim.
glesas. Dentre os muitos estudos sugeridos por Freyre, 30
ibidem., 204-220, passim.
este seguramente ainda está para ser feito. 31
ibidem, p. 220.
32
ibidem, p.295.
_______________________ 33
E. P. Thompson, The Making of the English Working Class, London,
V. Gollancz, 1963, p. 12.
Notas 34
C. Ginzburg, "Clues: Roots of an Evidential Paradigm", Myths,
1
G. Freyre, Casa-Grande & Senzala, 29a. Ed., Rio de Janeiro, Ed. Emblems, Clues, London, Hutchinson Radius, 1986, p. 123-24.
Record, 1992, p. 424. 35
Cf. M. L. G.Pallares-Burke, "O caminho para a Casa-Grande:
2
G. Freyre, Sobrados e Mucambos, 2 volumes, Rio de Janeiro, José Gilberto Freyre e suas leituras inglesas", op. cit.
Olympio, 1961, II, p. 533-34. 36
G. Freyre, I. B.,p. 39, 44, 295, passim.
3
G. Freyre, Ingleses, Rio de Janeiro, José Olympio, 1942, p. 21. 37
P. Arbousse-Bastide, Prefácio, Um Engenheiro Francês no Brasil,
4
P. Arbousse-Bastide, Prefácio, Um Engenheiro Francês no Brasil, I, p. 4-6; R. Bastide, cit. In P. Arbousse-Bastide, ibidem, p. 5-7.
2 vols., Rio de Janeiro, José Olympio, 1960, I, p. 27. 38
L. Venturi, Painting and Painters – How to look at a Picture, from
5
G. Freyre, Tempo Morto e Outros Tempos – Trechos de um Diário Giotto to Chagall, London, C. Scribner's Sons, 1947, p. 72, 84,
de Adolescência e Primeira Mocidade 1915-1930, Rio de Janeiro, 112-15.
José Olympio, 1975, p. 60. 39
Cf. H. P.Chapman, Rembrandt's Self-Portraits – A Study in

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Seventeenth-Century Identity, Princeton, Princeton University Press,
1990, p. 75.
40
G. Freyre, I. B., p. 27-29, 37-38.
41
ibidem, p. 383-394.
42
ibidem, p. 295-6.
43
ibidem, p. 296-8; 309-11, passim.
44
G. Freyre, Dona Sinhá e o Filho Padre, Rio de Janeiro, Ediouro,
2000, p. 72.
45
ibidem, p.149.
46
ibidem, p. 212.
47
ibidem, p. 217, 220, 228, passim.
48
P. Arbousse-Bastide, Prefácio, Um Engenheiro Francês no Brasil,
I, p. 1, 22.
49
F. Ortiz, Contrapuenteo cubano del tabaco y el azucar, (1a. ed.,
1940), Havana, Universidad Central de las Villas, 1963.
50
G. Freyre, I. B., p. 231.
51
G.Freyre, I. B., p. 35.
52
ibidem, p. 192, 222-23, passim.
53
ibidem, p. 214, 231, 278, passim.

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The Place of Material Culture in Ingleses
no Brasil

Peter Burke
Historiador – Universidade de Cambridge – Inglaterra

Ingleses no Brasil (henceforth IB) can be everyday, on on private life, or as Freyre


discussed from many points of view: the one I himself said, stories of interesse humano (294),
shall privilege today is that of Freyre”s or (following the Goncourt brothers) História
description and interpretation of material Íntima. História Íntima was a reaction against
culture, especially in the second of the book”s the traditional assumption of the “dignity of
four essays, Os Ingleses nos Anuncios. What I history” and a plea for the study of ordinary
should like to do now is to discuss what he people, humble objects, and apparently trivi-
says about material culture in two contexts. al details, pormenores. A project which has of
The first is that of his other books, his lifetime course enlisted many recruits in the last few
of a interpretação do Brasil (35). The second years under the banner of the new cultural
context into which to place the book is that history, but one which in the 1940s was still
of other studies of material culture, whether relatively unusual, if not downright eccentric.
by architects, historians, sociologists or Freyre’s interest in everyday things
anthropologists, whether concerned with began early in his career. Originally, perhaps,
South America or with Europe, or indeed with it was an aesthetic or a sentimental response,
other regions such as Japan. A comparative encouraged by his reading of English essayists
approach comes naturally to an outsider like and especially of Walter Pater 1. By Freyre’s
myself and is what I can best contribute to early adulthood, however, this interest was
this collective re-assessment of Freyre”s work. already taking an anthropological or
If Gilberto”s books were like paintings, sociological turn. Already in 1922, on a visit
such as the portraits of Titian he mentions early to Berlin, he confessed himself to be Deliciado
in IB (27), they were especially like the Dutch com os museus da antropologia e etnologia
paintings of the seventeenth century, by artists da Alemanha que venho visitando, orientado
such as Pieter de Hooch or Frans Post, pelo meu mestre Boas 2. Boas, it should be
recording careful observations of things as well remembered, had begun his career in the
as people. Of all the major works of Gilberto museum world before turning to teaching and
Freyre, Ingleses no Brasil is the one in which becoming a professor at Columbia University,
most attention is devoted to what Henry James and he wrote extensively about the material
called the empire of things, to material culture. culture of the American Indians as well as
The author also has much of interest to say about the idea of race. Freyre1’s social history
about people, such as engineers and consuls of things owes something important to his old
(and even un “mágico”); about language; teacher in anthropology.
about practices, from football to parliamentary Boas paid great attention to detail but
democracy; and about values, from religion he was often reluctant to make generalisations.
to the dignity of labour, comfort and Oswald Spengler, on the other hand, whose
punctuality (itself something of a religion, as inspiration Freyre acknowledged in the
Africans observed about Englishmen whose preface to the first edition of Casa-Grande &
god was their watch). All the same, things Senzala , produced grand generalisations
dominate the book. illustrated with occasional concrete examples.
The study of things, Freyre’s archaeology In his famous Decline of the West (1918),
of Brazil as we might call it, was clearly part of Spengler asserted that “of all expressions of
his lifetime project of a social history or race, the purest is the house”, which reflects
historical sociology or historical anthropology. “every trait of original custom and form of
Essential to this project was the focus on the being”, including family organisation 3. He

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140
made a similar point about what he called “the their furnishings).
completely unstudied basic (i. e. customary) forms of It was only to be expected that the author of of
pots, weapons, clothing”. For example, “the evolution a study “em torno da Etnografia, da História e da Soci-
of the Northern seat-furniture is, right up to the club ologia do doce no nordeste canavieiro (1939) would
arm-chair, a piece of race-history and not of what is have something of interest to say about food, on one
called style-history” 4. As we might say, an analysis of side the entrance into Brazilian life of British beef and
the changing forms of furniture should be located cheese, beer and tea, bread and biscuits, and on the
within the context of cultural history. other the discovery (on the part of a few Englishmen
I also suspect, though I cannot prove this, that at least) of the delights of cachaça and carne seca. A
Freyre learned something about the social meanings fascinating but tantalisingly brief passage introduces
of things from the American sociologist Thorstein readers to the social history of snuff: “o uso do rapé
Veblen, whose work he knew well and whose Theory não era então um simples requinte volutuoso: tam-
of the Leisure Class, published in 1899, includes some bém unm hábito profilático ou de higiene pessoal quem
striking passages about what Veblen was the first to sob ese aspecto, talvez não tenha tido ainda o estudo
call “conspicuous consumption”, especially que merece” (234).
consumption on clothes, ranging from the top hat to Clothes are less prominent in IB than in some
the corset and viewed as the insignia of leisure 5. other places in Freyre’s work, but this book too has
As for Freyre, the articles he wrote in the 1920s something of interest to say about the introduction
for the Diario de Pernambuco are sufficient testimony into Brazil of the dinner jacket, the redingote, the xale,
to his interest in the social and historical significance the casaca de casemira, the chapéu-de-sol and the
of toys, food, clothes, buildings and their furnishings. chapéu redondo, replacing traditional items such as
The points which he originally made in these early the chapéu triangular, the mantilha, the capuz, the
articles were to be developed more fully in Casa-Gran- casaco de brim and so on (57, 182, 189, 194, 278).
de & Senzala and in Sobrados e Mucambos – as the It was once more only to be expected that the
titles of these books indicate; in Nordeste, which was author of CGS and SM would have remarks to make
built around the idea of a “civilização de açúcar”; in about housing, or more generally about what is known
later studies such as Ordem e Progresso; and most fully today as “vernacular architecture”. About the
in IB. bungalow, for example (65-6), the railway station
What follows is divided into three parts, (118), the sobrado (for the third time), and more
beginning with a description of the aspects of materi- especially about the suburban chácara (184-6, 216).
al culture on which Gilberto concentrates his attention ML has already mentioned the importance given by
in IB; in the second place, discussing the interpretation Freyre to the replacement of traditional gelosias by
he gives to them; and finally, considering the influence glass windows imported from England. Another
of his work, especially on more recent studies of novelty were iron varandas, a topic to which I shall
Brazilian culture in the nineteenth and twentieth return.
centuries. Freyre devoted even more attention to the
Faithful to the informal tradition of the essay, interiors of houses than to their exteriors. For example,
Freyre presents his ideas and examples in a deliberately he noted the rise of the hall and the W. C. in the chá-
unsystematic way. He has something of interest to say caras modernised by their new English owners (186).
about a wide range of material objects, for example He discussed the interest shown by early nineteenth-
the history of the body or the history of various means century Brazilians in the style of interior decoration
of transport such as carriages, trains, trams and which had been developed in late eighteenth-century
bicycles. More generally, the author points out that England by Robert Adam (1728-92) and his brother
the Brazilians owed to the British “as primeiras fundi- James, following the model of ancient Roman interiors
ções modernas, o primeiro cabo submarino, as primei- recently rediscovered following excavations at Pompeii
ras estradas de ferro, os primeiros telégrafos, os pri- and Herculaneum.
meiros bondes, as primeiras moendas de engenho Turning to furnishings, Freyre has even more to
moderno de açúcar, a primeira iluminação a gás, os say about the use in Brazilian homes of English cutlery
primeiros barcos a vapor, as primeiras redes de esgo- and crockery (including aparelhos de chá ), and
tos” (52, the first example in IB of Freyre’s extensive furniture, from the mesa de chá to the bufete or apa-
use of what might be called the rhetoric of lists, cf. rador (56), not forgetting the piano, which receives
56f, 76, 111, 154, 169, 200). However, what follows particular attention as a symbol of civilization (220f).
will emphasise the classic trilogy of topics, food, There will be more to say about pianos later. The
clothes, and houses, especially houses (not forgetting author does not forget his favourite brinquedos (156-

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141
7), objects which had enticed him into social history, “acculturation” (231). These concepts are all associated
since the book which eventually became CGS had with the attention which Freyre gives, as usual, to so-
originally begun as a project on the history of cial symbols, to things as expressions of mentalities
childhood in Brazil. and values.
It was in the context of the interiors of Brazilian This student of material culture was not a
houses that Freyre praised the traveller Maria Graham materialist. Indeed, he pokes fun at the místico do
for her remarkable powers of observation, “olhos que Materialismo Histórico com M e H maiúsculos(121),
lembram os das boas romancistas inglesas, tal a sua while continuing, semi-seriously, to describe
capacidade para destacar os pormenores significati- nineteenth-century England as a civilização carbonífera
vos”(188, cf 217). The eye for domestic details is (220), in the same way as he had described the North
perhaps a predominantly feminine one, illustrated by East as a civilização de açúcar. His attitude to the
Jane Austen and George Eliot as well as by Maria relation between material and immaterial culture offers
Graham. Yet the phrase, “capacidade para destacar a typical example of Freyre’s many-sidedness
os pormenores significativos” is one which applies (otherwise known as his conceptual “fluidity”), his
equally well to Gilberto himself. capacity to look at the same phenomena from a variety
For IB is not a work of antiquarianism, like the of points of view, which, perhaps on purpose, he never
few earlier studies in the field such as Clado Ribeiro reconciles in a definitive synthesis.
de Lessa’s article on mobiliário brasileiro 6. What makes To return to the velvet revolution. It is presented
the details in IB significant is the author’s awareness as a consequence of an encounter between unequals,
that they reveal something about the whole culture, a “superior” and “inferior”. On many occasions this
point which he had been repeating in articles and encounter is described by the author in the strong
books from the early 1920s onwards. Culture, he still language of “imperialism” (31), “domination” (33),
found it necessary to warn his readers in 1948, “no “invasion” (133), “conquest” (164) and “penetration”
sentido sociológico” (66) including the Condições (238), in the sense of the “substitution” of traditional
Materiais de Vida (90). The lessons he had learned items of culture for new ones (278). At times, as in the
from Boas and Spengler nearly thirty years earlier had case of the introduction of glass windows into Brazilian
not been forgotten. houses, Freyre argues that cultural change came about
The integration of a multitude of concrete details for economic reasons, that the British were in a
into a general picture, which makes the great strength position to impose their supplies without waiting for
of IB, was assisted by the author’s interest in the local demand (196f).
analysis of the process of cultural change. The book However, faithful to the author’s many-
moves from the a first stage describing what the English sidedness, this strong thesis about British cultural
did in order to create homes for themselves in Brazil, imperialism is qualified in two important ways. Freyre
to a second stage, describing how the Brazilians notes not only the penetration of the weak by the
transformed their houses and their habits following strong but an “interpenetração de culturas”. He argues
the English example. The author introduces two that “a cultura técnica e literariamente superior não
important ideas. The first of these, mentioned only agiu de modo absoluto, ou sempre soberanamente,
briefly, is the idea of an old regime, a semi-oriental sobre a inferior. Do contacto dos britânicos com a so-
old regime in houses and furnishings, “a arquitetura ciedade brasileira resultaram também influências bra-
das casas, cheia de reminiscencias orientais, móveis sileiras sobre a cultura do povo imperial” (35).
de estilo indiano”, and “louça da mesa ... da China, da For example, Freyre quotes examples of indivi-
India ou do Japão(182). The second key idea, repeated dual Englishmen who “went native”, as their
several times, is that of a revolution, a gentle, velvet compatriots would have said, developing a taste for
revolution (a revolução branca, macia), inspired by the carne seca, feijoada, farinha, or doce de goiaba (103,
British (195-6, 198, 217, 220). 107), not to mention “as doçuras do pecado quase
The idea of “revolution” is accompanied by a nefando de possuir escravos” (231). He also hints at
whole arsenal of other concepts. “Modernisation” the influence of Brazil on the English people in gene-
occurs on occasion (90, 215, 220), though the idea ral (35, 136), although he only produced anecdotal
does not receive much emphasis. Among the most evidence and admitted that “as expressões inconfun-
important concepts which recur in IB are three: in díveis de influência brasileira sobre britânicos” were
the first place, “europeanisation” (or “re- rare (one reason for the difficulty, one might add, was
europeanisation”); secondly, “influência ”(a term because the influence of the tropics entered England
already used in the book’s the sub-title); and in the in the age of imperialism from Asia and Africa as well
third place, following the anthropologists, as from the Americas).

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142
Still more important a qualification to the other scholars concerned with the consequences of
imperialism thesis is Freyre’s stress on active reception: cultural encounters in different parts of the world, just
on the transformation, adaptation (186-7, 193), or as he was aware of the ecological theories of the
domestication (233) of the foreign in order to fit into a American sociologists Robert Park and Ernest Burgess.
new environment, “o Brasil misturando, fundindo, re- It is obvious that IB, the first volume of a planned
creando tudo ... a seu jeito” (231). The ecological series of essays, could have been developed further
approach already apparent in Nordeste can also be in all sorts of ways. So far as method is concerned,
found in IB (167-8, 183, 213). The old missionary term texts describing things could have been supplemented
of “accommodation” is one which Freyre sometimes by the study of the things themselves. The use of
likes to use in this context (33, 216, 233). His famous images, which generally do little more than decorate
concern with processes of hybridisation, mixture or the text of IB, could have been more systematic. For
mestiçagem is here expanded and developed to example, a reference to an engraving of Recife (218)
include Anglo-Brazilian cultural relations (the emphasis is not accompanied by an illustration. Topics such as
falls on culture, for examples of Englishmen marrying the social history of snuff or the anglicising architecture
Brazilians are mentioned only in passing). Not so much of hotels or railway stations deserved – and still deserve
“substitutions” as “meias substituições” (278). – to be discussed at greater length. A chapter on
One form of mixing described by Freyre offers railway stations might have been illustrated with
Brazilian examples of what writers on nineteenth and photographs, including the Estação da Luz in São Pau-
twentieth-century Japan have called the “double life”. lo 8. It was of course inevitable that a volume of essays
The phrase refers to the segregation of innovations to on a large subject would leave many aspects of its
a particular domain of life, with the private sphere topic unstudied, and in any case the author had plans
remaining traditional long after the public sphere has for further volumes (plans which are printed in IB itself).
been modernised. For example, films as well as Freyre was always extremely fertile in suggestions for
sociologists have shown the Japanese office worker or future research, for himself or for others.
“sarariman” wearing a western suit in the office but Alas, few of his suggestions have actually been
slipping into a traditional kimono at home. In similare taken up, though his remarks on the piano have found
fashion, Freyre shows us some nineteenth-century an echo. Independently of Freyre, a history of Australia
Brazilians wearing a casaco de casemira and a tie in published in 1970 discussed the import of pianos in
the street, but a traditional casaco de brim in their the nineteenth century as a “symbol of higher values”
own house (189) 7. and “the inevitable accompaniment of colonial hopes
Adaptation is one of the major themes in IB. and despairs” 9. The more recent film, The Piano
On one side, there is anglicisation: the English in Brazil (1993) set in nineteenth-century New Zealand, also
adapted houses to their own tastes. “Uma vez instala- uses the instrument as a symbol of the civilisation
dos em chácaras ou em sitios, os ingleses os inglesavam which the heroine has left behind her.
no que era possível. Procuravam dar as baixas de ca- Yet, extraordinary as it may seem, there is no
pim o aspecto de gramados” (215). On the other side, book like IB – at least no book known to me – which
there is brasilianisation. Freyre described the style of deals in this manner with the cultural influence of the
the new Brazilian interior in the style of the brothers English in other parts of the world; in China, in Japan,
Adam as that of “um Adams já portuguesado”, and or in their formal empire in Africa and above all in
claimed to see “O estilo inglês de móvel arredondan- India, the country which most influenced the English
do-se no clima brasileiro” (223), in place of “Essas li- in return. No discussion of parliamentary procedure
nhas anglicanamente secas”. In similar fashion, so he in India, or the Sandhurst-trained officer class in
argued, the evidence concerning the posessions of Pakistan, or the rhetoric of Indian newspapers (which
Brazilian families derived from the advertisements in remind an English visitor like myself of The Times of a
the Jornal do Comércio and other papers of hundred years ago). Today, more than half a century
forthcoming auctions of their goods, suggested that after Indian independence, some upper-class
the crockery and cutlery imported from England were Englishmen, including Prince Charles, still wear
“domesticated” or adapted to their new environment jodhpurs and play polo. Some middle-class families
in the New World. live in bungalows with verandas (Indian words referring
Beyond domestication, there was a place in the to Indian things before they gradually became part of
book’s conceptual apparatus for the idea of English culture) 10. Even the English working-class now
“resistance” (133, 172, 249). Freyre wears his theory enjoys eating curry with papadums and mango
lightly but it is clear enough that he is familiar with the chutney.
work of Bronislaw Malinowski, Fernando Ortiz and Despite the temptation to say more about both

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143
a British India and an Indian Britain, I should like to investment” in the purchases, so many signs of Europe,
end this paper by returning to Brazil. A few of Freyre’s in other words civilisation. The point is a fair one, but
points about the English in Brazil have been developed it is not confined to Brazil, or even to peripheries.
by later historians, notably by two Americans, Richard Needell might have added that clothes carry a load of
Graham and Jeffrey Needell, though with less social symbolism in most cultures, in London and New
reference to Freyre than he surely deserves. York just as much as in Rio de Janeiro or Buenos Aires.
Graham focusses on a later period, 1850-1914, To conclude. IB was not Freyre’s best book but
and his main theme is “modernisation”. He is an it made an essential contribution to his enterprise of
economic historian who argues that “It was the export- interpreting Brazil, a contribution which has not been
oriented economy that drove Brazil into the modern taken as seriously as it deserves. Plans are afoot for an
world” 11. In the fourth chapter, “the urban style”, he English translation, and I wish this project success. Let
looks at imports from England, from football to town us hope too that Freyre’s book inspires imitators and
planning (for example, Higienópolis in São Paulo, laid that points which he made only briefly will be
out from 1911 onwards by the City of San Paulo developed further. Such a social history of things might
Improvements and Freehold Land Company 12 . take advantage of technological change and make
Graham’s first footnote to this chapter refers to IB and more use of images, as well as of objects themselves
the author subsequently cites Ordem e Progresso, but as sources for their own history.
these two brief references are scarcely an adequate There is also a need to look at the twentieth
expression of what the author owes to Freyre’s century in the same sort of way. Gilberto himself was
example. He draws on the same sources, such as the part of this story, with his whisky, the tweed jacket he
Jornal do Commercio; makes similar points about the wore in the hot summers of Recife and his beloved
Brazilian enthusiasm for foreign products and about bicycle. More recent developments such as the con-
similar products, such as cheese, soap, umbrellas, pi- domínio and the shopping all deserve an analysis in
anos, sideboards, wash-stands; and advances a simi- the manner of Freyre on the chácara and the
lar interpretation, though he has rather more to say bungalow. The Brazilian cult of the foreign continues,
about modernity, concluding that “Plumbing and although England is no longer the principal object of
soccer, beer and pianos, umbrellas and streetcars were devotion. So when will a Brazilian historian write about
the ritual dress and sacred instruments in the rites of the influence of the USA on Brazil? To write a true
passage from traditional to modern” 13. social history of Coca-Cola and McDonald’s, of T-shirts
Unlike Freyre, Graham has little to say about and Levis, of Cadillacs and Chevrolets, integrating them
adaptation to local circumstances. In his Tropical Belle into the history of Brazil in the 20th century – that
Epoque, which refers to Freyre only in passing, Jeffrey would surely be a task worthy of a new Gilberto Freyre
Needell focusses on late nineteenth-century Rio and 16.

the Brazilian failure or more exactly their refusal to


adapt imported articles, French or English, to their tro- _______________________
pical environment. Needell’s favourite examples
Notas
concern clothes, such as thick black frock coats. He
quotes, for example, the remark of G. Amado that “A
1
Maria Lúcia G. Pallares-Burke, “Gilberto Freyre e a Inglaterra”,
Tempo Social 9 (1997), 13-38, especially 27f.
well-to-do family was distinguished by the thickness 2
Gilberto Freyre, Tempo Morto, 88.
of the cloth that it wore”, and L. E. da Costa’s memories 3
Oswald Spengler The Decline of the West (1918: English
of wearing “English cashmere, thick, stiff and very hot translation London 1924), vol. 2, 120-1, 329-30.
for a climate like ours” 14. The examples are vivid ones, 4
Spengler (1918), vol. 2, 121-2.
which Veblen would have appreciated – since the use 5
Gilberto Freyre, Sociologia (4th edition, 1967), vol. 2, 364, 419.
of heavy clothes in a hot climate doubtless signified, 6
Ribeiro de Lessa (1939).
among other things, that the wearer was a lady or
7
On the double life, J. Witte, Japan zwischen zwei Kulturen (Leipzig,
1928); Edward Seidensticker, Low City, High City: Tokyo from Edo
gentleman of leisure. But it should be added that Freyre
the the Earthquake, 1867-1923 (London, 1983).
too was aware of the use of objects “fora do lugar”, 8
An example of a photograph relevant to Freyre’s theme, the image
and that he had already discussed “a falta de adapta- of the ferry terminal at Rio, with the word FERRY in capitals on the
ção do trajo brasileiro ao clima” in CGS, and once pediment, a photograph by Gilberto Ferrez, is reproduced in Robert
again in Ordem e Progresso, noting the medical criti- M. Levine, Images of History (Durham and London, 1989).
9
Humphrey McQueen, A New Britannia (Harmondsworth, 1970),
ques of fashion 15.
117-9.
Following Marx and Benjamin, Needell 10
Cf Anthony D. King, Colonial Urban Development (London,
describes this type of consumption as “consumer 1976).
fetichism”, noting what he calls the “fantasy 11
Richard Graham, Britain and the Onset of Modernisation in Brazil,

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144
1850-1914 (Cambridge, 1968), 123.
12
Graham, 119ff.
13
Graham, 124.
14
Jeffrey Needell, A Tropical Belle Epoque (Cambridge 1987), 156-
77: the reference to Freyre on p. 153. G. Freyre, Casa-Grande &
Senzala (1933: Rio, 19xx, 581); G. Amado, Influência, 23-4; L. E.
da Costa, Rio, vol. 1, 74-7.
15
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala (1933: 29th ed., Rio
1992), 415f; id, Ordem e Progresso (Rio, 1959), 707.
16
Once again, Gilberto himself shows the way, for example in his
remarks on the “ianquização” of Brazil in Ordem e Progresso, 196,
682.

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146
MESA-REDONDA 6
AVENTURA E ROTINA

Dia 23 de março
COORDENADOR:
Alberto da Costa e Silva
Escritor – Embaixador – Brasil
Aventuras e Desventuras em Tempo
Morto e Outros Tempos

Mary del Priore


Historiadora – Departamento de História da Universidade de São Paulo –
Brasil

“Um diário não é só registro de sucessivos uma vida plena de momentos excepcionais a
encontros – ou desencontros – de um ser desfrutados, gozados, fruídos.
indivíduo alongado em pessoa, consigo Em 1915, a aventura é um dos concei-
mesmo. Envolve outros indivíduos. Outras tos que exsudam da pena do jovem Gilberto
pessoas. Instituições. Conflitos de indivíduo Freyre para tratar com nostalgia de sua infân-
ou de pessoa com grupos, convenções, cia. O trem elétrico, os blocos de madeira com
tendências do seu tempo e do seu meio os quais construiu cidades, igrejas e "castelos
social. Revoltas. Resistência a esse tempo e a das fantasias vãs". "Também os soldados de
esse meio. Quixotismo. E também chumbo desmilitarizados em simples e paisa-
pancismos: acomodações, transigências, nos homens e mulheres e tornados a parte
subordinações” (Gilberto Freyre, prefácio a viva e humana do meu mundo – diz ele – um
Tempo Morto e Outros Tempos, 1975). mundo que durante anos criei à minha ima-
gem como se sozinho, em recantos quase se-
Esse texto começa com várias pergun- cretos da casa, e depois num sótão que se
tas. Por exemplo, teria jamais Gilberto Freyre tornou meu quase domínio absoluto, eu brin-
sonhado com aventuras, tal como o fez o jo- casse de ser Deus".2 Constrangidos por uma
vem Flaubert ao embarcar, em 1849, para o vida excessivamente feliz, os sonhos de ex-
Egito? O que terá encontrado de suas própri- plorações impossíveis do então menino de
as projeções, daquelas vividas em sonho ou quinze anos eram realizados nas batalhas ima-
nascidas de coisas lidas, espécie de espirais ginárias ou nos esconderijos criados por ve-
do presente no passado, no mundo que des- lhos móveis de madeira, abandonados nos
bravou entre seus quinze e trinta anos e cujo desvãos do telhado. Apelo à plenitude ou à
registro nos legou em Tempo Morto e Outros incandescência de viver, o desejo de aventu-
Tempos? Um diário onde se escreve e se des- ra do adolescente exigia o despojamento das
creve uma vida não é também a invenção da antigas fidelidades, o abandono de "bugigan-
existência e de seu sentido? Não é o diário o gas e brinquedos amados" que o ridiculariza-
espaço mesmo da descrição de aventuras vam frente a primos e vizinhos. "Agora – con-
marcadas pelo imprevisto e pelo inesperado, fessa o menino ao diário – esse mundo se
como afirma o próprio autor no prefácio do desfez, o meu novo mundo só conserva do
livro? velho as minhas garatujas".3 Gilberto deixava
Esclareçamos, contudo, o ponto de par- para traz os parâmetros de segurança da casa
tida de nossa análise: a aventura não existe patriarcal para mergulhar num universo de
em si. Ela existe, sim, no espírito de quem a incertezas: "Como se explica que me faça cho-
persegue. A aventura celebra o encontro do rar o fim do carnaval? " pergunta-se, ansioso
homem com o imprevisível, arrancando-o da por construir uma personalidade sem entra-
quietude que o protege de si mesmo e do ves, endossando o papel de múltiplos perso-
mundo. As circunstâncias nas quais se vivem nagens condensados dentro de si, para vivê-
aventuras, desarmam as rotinas ventilando a los nem que fosse por um dia. Tais
existência com um sopro inédito, novo, súbi- personagens se alternavam. Havia o que fre-
to1. A aventura é o dom de sonhar, parte es- qüentava a "república" de estudantes de Di-
condida em cada indivíduo, fazendo-o vibrar reito leitor de Nietzche e Conte, dando aulas
com a escuta ou a leitura de uma narrativa de de latim e grego aos alunos mais velhos, um
perigos e prazeres. A aventura o deixa pres- "prodígio" de erudição4 capaz de dirigir, como
sentir uma existência sem "tempos mortos", redator chefe, "O lábaro", o jornal da escola. 5

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149
Havia o que se esgueirava até a enferrujada cama de ele, a aventura não chegaria de forma intempestiva.
vento da "Mulatinha A.", "sereia de cuja voz parecia Seria, pelo contrário, conquista. Seria avanço caute-
correr mel irresistível"6, – confessa – para cometer loso sobre terras incógnitas, seria desbravamento de
pecados de menino7. Havia o que mudara a relação novos saberes, seria mergulho num mundo quase
com a mãe e as irmãs em função das descobertas do desconhecido para seus contemporâneos brasileiros.
sexo. Os vários personagens só comprovam as múlti- E essas terras e esse mundo eram os novos autores
plas facetas do adolescente cuja aspiração era ser o que freqüentaria nas universidades americanas: Mil-
que ainda não era. "Lendo Kant com toda a intensida- ton, Bacon, Dryden além do que chamava "leituras
de de atenção e toda a vontade de compreensão de mais aventurosas do que dirigidas"12, das obras de
que sou capaz", anotava, sério, desejando-se outro. Ruskin, Swift, Macaulay entre outros. A torrencial pro-
Outro mais velho e mais forte, capaz de perder-se no dução estrangeira, velha, ou melhor, madura por sé-
corpo a corpo com o mundo. culos de interpretação, não atemorizava a juventude
Mas a vida mais tranqüila, mesmo num sono- do leitor. O desejo de comunicar-se, de estabelecer
lento e "pobre" Recife8, não estava ao abrigo de en- trocas intelectuais marcaria, por outro lado, o conta-
contros como o que o leva à Paraíba "quase fugido de to com professores como Franz Boas ou Amy Lowell.
casa, quase secretamente"9, – registra – para fazer uma A ausência de malícia e de dissimulação na maneira
conferência. Seu quotidiano tampouco se encontra- de ser de Gilberto só acentuavam o frescor do conta-
va ao abrigo do desejo irreprimível, nascido de uma to entre os intelectuais e o menino. Ensaios exausti-
imagem: "Preciso sair daqui. Esta guerra é o diabo", vamente relidos, a percepção de que os estudos po-
queixa-se, ansiando por uma Europa que para ele não diam ter uma dimensão simultaneamente sociológica,
passava, então, de "uma lua refletida no espelho de biológica e psicológica, 13 o nível de exigência de mes-
bolso".10 Menos ainda ao abrigo do tédio que exigia tres como Amstrong, professor de literatura, a clan-
pronta reação, pois para o jovem de quinze anos, a destinidade da língua portuguesa e de seus autores,
adolescência era – como ele mesmo declarava – a tornavam a aventura americana uma sucessão de obs-
idade da "busca de aventuras e de ânsias de glória". táculos a serem vencidos. Um abismo de tempo in-
"Eu próprio escaparei à mediocridade tribal para me vestido e de esforços sem limites. A aventura ainda
portar como herói em alguma guerra ou revolução",11 não exaltava o precoce aventureiro. Só importava a
perguntava? A decisão não estava fora de sua iniciati- missão que o transformaria, em menos de um ano,
va, mas ela não dependia tampouco só dela. A aven- em "genius".14 Gênio, que segundo ele mesmo, era
tura implicava uma luta contra as adversidades, aque- "apelido nada simpático [...] dos que criam distâncias
las dos homens ou a dos elementos. Ela projetava entre os distinguidos por eles e a massa".15
Gilberto, ainda menino, numa outra dimensão da exis- A aventura nos Estados Unidos o obrigara, tam-
tência, longe dos apoios familiares e de toda a forma bém, a olhar o Outro: o americano. E a experiência,
de rotina pessoal. Ela induzia a uma intensidade de o vivido, o confronto com outros homens e hábitos
existir, sem par na vida quotidiana. funcionavam como uma verdadeira iniciação, mudan-
Nesse quadro, ele parte. Tinha, então, dezoito do a consciência do mundo que o cercava. Seu olhar
anos. A bordo do Curvelo, registra: "Viajo cheio de avaliava, fundado na distinção puramente relativista,
saudades. Mas também animado de uma grande cu- entre o bom e o ruim16. A mesmice culinária o fazia
riosidade: saber o que me espera nos Estados Uni- crer estar comendo "papelão". Julgava negativamente
dos. Como serão meus estudos?" Tinha a convicção o tipo físico igualmente "estandartizado", ("o tipo de
que mais do que um fato biográfico, a ida aos EUA, óculos é um só. Único. Uniforme. O penteado tam-
ou seja, a aventura americana, seria o advento cuja bém. A barba quando aparece é convencional [...]
privilegiada duração – o tempo de estudos – daria à nenhuma barbicha que marque de personalidade um
luz um novo homem, homem transfigurado pelas cir- rosto menos estandartizado"). O bairro negro de Waco,
cunstâncias, estrangeiro ao fastio e ao aborrecimen- habitado por gente "amarga, mas resignada", criticava
to. decepcionado, era "imundo e nojento. Uma vergo-
Tendo passado sua juventude num colégio in- nha para a civilização filistina que enviava missionári-
glês e protestante, o jovem Freyre devia entender a os aos pagãos".17 E o que dizer das reuniões de cren-
aventura não como uma jazida esperando para ser tes em igrejas rurais, repletas de gritos, desmaios e
explorada graças a certa forma paradoxal de labor e uma "exibição tremenda de histeria religiosa" de uma
tenacidade. Tal como a graça do luterano não bastava gente que queria converter os "católicos supersticio-
reclamá-la do convés do navio, enquanto sucediam- sos”? 18 Nova York, diagnosticava, era uma cidade de
se as coloridas paisagens antilhanas ou cruzavam-se homens em tudo "médios: na inteligência, na cultura,
os submersos e silenciosos submarinos alemães. Para na moralidade, no corpo".19 A experiência de convi-

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150
ver com o Outro nutria-se de conflitos originando um antecedem os estudos em Oxford. Na Europa dos anos
"aprendizado” como diria Goethe, ou uma 20, assistiu ao descarte dos valores pictóricos tradici-
"fenomenologia", segundo Hegel. Essa "educação", onais, das imagens poéticas e da tonalidade musical.
como bem diz Jean Duvignaud, 20 ou seja, o percurso Ouviu a estrutura harmônica pura e fria de Debussy
de um ciclo de peripécias que são simultaneamente impor-se contra o romantismo. Impressionou-se com
para o indivíduo um ciclo de mortes e nascimentos, o teatro alemão que alterara a noção de tempo. Lera
espécie de embriologia contínua, inseriam a aventura Joyce e Kafka, que discorriam sobre a absurdidade da
na vida quotidiana de Freyre, desnudando uma per- vida. Em tudo, percebera o abandono de enredos, o
sonalidade em nada prisioneira de uma carreira fe- abandono de heróis, marca, aliás, da produção artís-
chada. Como ele bem diz, "Conheço aqui vários re- tica do entre-guerras. Outra característica, era a pre-
cém-formados no grau de Ph.D. Quase todos uns sença, em todos os gêneros e tendências da arte, da
cretinos. Ignorantes como eles sós".21 Mas ele, ao con- noção bergsoniana de tempo. Tempo que, para o fi-
trário, era alguém atraído pelo tormento do possível, lósofo parisiense, filho de pai polonês e de mãe ingle-
do acaso e desdenhoso das calmas evidências do pre- sa de confissão judaica, era "simultaneidade dos esta-
sente. Rebelde contra a pasmaceira ordem das coi- dos das alma".23 Em toda a parte, esbarrava em
sas. Hei-lo em Nova Iorque, afirmando altaneiro em assustador niilismo: "Em literatura, sua expressão mais
1921: "Sem escravizar a eles (os graus da universida- nítida, me parece que é o espírito enxuto – enxuto,
de americana) meus livres e aventurosos estudos. Fa- mas não ósseo – dos Gide e dos Joyce”.24 Sua grande
zendo, neste particular, muito espanholamente, o que preocupação era o estilo, isso que para os europeus
nos dá la gana". fora substituído quer pela descrição direta dos fatos
Na verdade, a aventura começara para Gilber- da vida, quer pela experiência irracional ou pela ima-
to Freyre, quando este vira o vapor afastar-se do gem mitológica e metafísica. Gilberto queixava-se;
lamarão, deixando no rastro salgado igrejas e coquei- "Dentre os modernos – no sentido lato da palavra mo-
ros do Recife. Tomava aí consciência de que nada o derno – Alphonse Daudet foi estilista; estilistas foram
impediria de perseguir seu caminho. Era o único a os Goncourt; [...] foi Chateaubriand; foi Vigny; foi
decidir que significado imprimiria à sua existência. Sua Musset; foi Renan; foi Rimbaud. Até chegarmos aos
aventura consistia no espaço de liberdade que se da- superestilistas ou perfeccionistas do tipo que culmi-
ria ao trabalho de escalar. Com Oliveira Lima, amigo nou em Mallarmé. Como não admirá-lo. Mas como
que o adotou como a um filho, repete um aforismo não sentir nele uma letra que, por vezes, reduz a vida
cujo sentido vai orientar sua vida e sua reflexão: cada a uma insignificância? Um verbo a que falta a vibra-
homem é um mundo. É preciso estudá-lo e descobri- ção da carne? Ou como nos mais que modernos Péguy
lo. Na América, ele descobre outra América: a portu- e Psichari – a vibração da alma?" 25 Essa vibração da
guesa, a sua, seus homens, suas raças misturadas, suas alma ele ia buscar na pintura de El Greco, nas carran-
culturas imbricadas, sobrepostas, mestiças. Quando cas da catedral de Notre Dame, no museu de escul-
instado a trocar de cidadania, reage, pois já tinha fei- turas de Rodin.
to sua escolha: "Será que ele (Amstrong) pensa que o Recém-terminada a primeira guerra, o estado
Brasil é uma terra de bárbaros?" Elíptica, fechada em de espírito nos países vencedores era, de maneira
si mesma, a vida americana amarrada a padrões bur- geral, de confiança contínua. A atmosfera em que vi-
gueses e pouco criativos o incitava, volta e meia, a via a burguesia, excetuando a baixa classe média,
pensar o Brasil: o valor da língua, a inserção cultural obrigava-a a lutar contra contrariedades, nem sem-
do mundo ibérico, a valorização do mulato "que mui- pre desesperadoras. O mesmo não se dava no país
tos brasileiros chamam hoje o brasileiro Jeca". vencido. Não escapara a Gilberto a situação grave nas
Em 1922, Freyre chega à Europa, Eldorado de ruas das cidades germânicas: "Pobre Alemanha! A in-
conhecimentos, em plena Idade de Ouro de entre- flação vai chegando aqui a extremos terríveis. Há muita
guerras. As primeiras reações à continuação de sua miséria ostensiva. Alemães com bigodões imperiais,
aventura merecem realce: "A Europa é para um brasi- majestosos de porte, kaiserianos de feitio, mas, repi-
leiro verdadeiramente outro mundo: o "Velho Mun- to, sapatos cambados e rotos e fatos remendados ou
do" da frase feita, em contraste com o modo do Brasil já rasgados".26 A verdadeira crise, contudo, só viria em
ser novo; parte nem sempre nova do chamado Novo 29, com a derrocada, na América, crise que encerra-
Mundo. Enfim, dois mundos distintos do Brasil da ria o período de prosperidade do após-guerra. Crise
América do Sul".22 Novas leituras a fazer, novos auto- reveladora da falta de planejamento internacional da
res a descobrir, a presença do expressionismo alemão produção e da distribuição. No plano das idéias, o
no teatro e na pintura, os japonismos de Vicente do momento era delicado e convém situá-lo. Nesse iní-
Rego Monteiro. Paris, Berlim, Munique e Londres cio de década, começava a tomar forma um período

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151
de crítica social, de realismo, de ativismo, de mento em que freqüentou os bares filibistes, (ou seja,
radicalização de atitudes políticas, disseminando a "de gente que em literatura segue Mistral e hoje, em
crença de que os partidos moderados eram ineficientes política, Maurras e Leon Daudet – explicava o jovem
e apenas uma solução extremada poderia ter utilida- viajante) na companhia de Regis de Beaulieu, Maurras
de. De maneira geral, explica Hauser, 27 as camadas colocava a energia de suas polêmicas e sua pena a
intelectuais tomavam posição ao lado das formas au- serviço de intelectuais liberais e estudantes
toritárias de governo, exigindo ordem e disciplina. A antigermânicos. É apenas a partir de 30, depois da
atração que o fascismo exercia sobre as camadas condenação pelo papa Pio XII, em função de suas acu-
enervadas, em confusão provocada pelo vitalismo de sações consideradas anticlericais e da publicação de
Nietzche e Bergson, consistia na mera aparência dos obras consideradas perigosas e postas no Index, que
valores absolutos, sólidos, inquestionáveis que nele muitos elementos do movimento maurrasiano passa-
existem e na esperança de se libertarem da responsa- ram ao fascismo, participando em milícias
bilidade de tudo que estivesse relacionado ao colaboracionistas. Germanófobo convicto, Maurras
racionalismo e individualismo. Ainda, segundo Hauser, atraia às suas palestras e conferências, um público jo-
do comunismo as classes intelectuais vão haurir um vem e arejado, mas ansioso por afirmar sobretudo a
possível contato direto com as massas e a redenção superioridade da cultura francesa sobre a alemã. Sua
de seu próprio isolamento da sociedade. Nada é mais influência, assim como a da Action Française nas eli-
típico da dominante filosofia da cultura do período tes intelectuais do mundo de língua francesa, é
do que a tentativa de tornar a que Ortega y Gasset explicada por Philippe Chenaux29 como fruto do em-
denominava, em 1930, de "rebelião das massas"28 res- bate entre duas nações, ou melhor, duas civilizações:
ponsável pela alienação e degradação da cultura mo- a latina e católica de um lado, a germânica e protes-
derna e pelo ataque que contra essa se desencadeia, tante de outro. Em 1924, já de volta ao Brasil, Gilber-
em nome da mente e do espírito. A maioria dos ex- to, por correspondência, fica sabendo que Maurras
tremistas professa a crença no criticismo da cultu- perdera a sua indicação para a Academia Francesa,
ra, criticismo um tanto confuso que encontrava-se na sendo substituído por político favorável à "americani-
base dessa filosofia. É certo que os dois lados consi- zação" da Europa, fato que lhe parecia, bem como ao
deravam aquele criticismo como significando coisas missivista, lamentável. Que fique claro: foi esse o
totalmente diferentes e fazem a guerra ao conceito Maurras freqüentado por Gilberto aos 22 anos.
de "mundo desprovido de alma", tendo na mente por François Furet30 demonstrou largamente que nessa
um lado o positivismo e por outro, o capitalismo. Mas década, podia-se ser ao mesmo tempo antiliberal e
é muito desigual o modo como os intelectuais, na não comunista sem ser forçosamente fascista. Havia
época em que Freyre estava na Europa, se dividem um espaço ideológico que as correntes de pensamento
entre os dois campos. A maioria é tradicionalista e nascidas do catolicismo ocuparam com tantas outras,
abre caminho para o posterior fascismo sob as idéias sem confundir-se com o fascismo e seus derivados.31
de Bergson, Maurras, Ortega y Gasset, Spengler e tan- Aos 23 anos, Freyre retorna ao Brasil. A aventu-
tos outros. ra física que começara há cinco anos passados volta
Se Gilberto teve contato com tais leituras e tais ao seu ponto de partida. Na bagagem emoções, coi-
autores, é bom que se diga, ambos, leituras e autores sas do espírito, conhecimentos. Outra aventura, a in-
estavam, nesse momento, longe de identificar-se com terior, esculpira um Freyre cioso de compreender seu
a forma que tomou o nazi-fascismo, posteriormente. país, sua cultura e de encontrar plenitude – por que
Charles Marie Photius Maurras, o mais citado em Tem- não dizer, felicidade?– nesta compreensão. Desta du-
po Morto e Outros Tempos talvez seja o melhor exem- pla jornada, emergia a excelência do viajante das pa-
plo. Muito provavelmente uma indicação de Oliveira lavras e das leituras, a engenhosidade daquele que
Lima, também um monarquista, defendia uma dou- sabia interpretar a mestiçagem de nossa cultura, a as-
trina "nacionalista integral" em artigos publicados, túcia do explorador capaz de decifrar os segredos dos
desde 1908, no jornal L'Action Française. Ou seja, uma elementos de nossa geografia humana. A aventura de
monarquia tradicional, autoritária, hereditária, um herói que se moveu no tempo e no espaço, acom-
antiparlamentar e descentralizada. Antes de 1914, panhou-se do inventário de viagens interiores, ultra-
seus textos prepararam a guerra de revanche contra passando barreiras da alma. Sua aventura foi também
os alemães. Depois dessa, o fecundo jornalista esgri- inventário de maravilhas percebidas, de coisas vistas,
miu contra o acerto de contas pacífico dos litígios eu- de curiosidades e de amostras intercambiadas. Mas,
ropeus propostos por Jaurès e depois de 1918, contra sobretudo, um inventário em que a noção de apego à
a política de reconciliação franco-alemã inaugurada terra, de amor à pátria – isso que hoje chamaríamos
por Briand. Enquanto Gilberto esteve em Paris, mo- de brasilidade – é nevrálgica. "Voltarei ao Brasil mes-

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152
mo para o pior fracasso intelectual ou artístico32" di- ra com Franz Boas, a essência brasileira deveria ser a
zia-se quando elogiado e convidado a permanecer resultante do estudo de estruturas materiais somadas
em Oxford. "Se nasci brasileiro e dentro do Brasil e ao estudo de representações de valores e crenças atra-
dos limites de Pernambuco, não será dentro das fron- vés das quais os homens modelariam seus comporta-
teiras do Brasil e dos limites de Pernambuco, e se- mentos. Mais.
guindo as imposições das minhas origens que devo Era preciso dar a essas informações um texto
viver? Este é o meu ideal para um indivíduo da minha capaz de devolver ao leitor, tal como fizeram os ir-
formação não só intelectual, como até certo ponto, mãos Goncourt, "...os homens no seu saber intima-
pessoal. Minha mãe, meu pai, minha cidade, minha mente psicológico, os segredos mais sutis da natureza
terra, me reclamam pelo que há em mim, de outras humana".37 Essa tarefa, ou nova aventura, exigia dele
raízes que, não sendo as intelectuais, parecem ser a disposição ímpar de "reintegrar-se completamente"
raízes ainda mais fortes. O que me faz querer reinte- ao país – e sublinha – atolando-se "na sua carne e no
grar-me no Brasil não é um senso puritano de dever, seu massapé",38 mergulhando em suas próprias raízes.
mas uma necessidade de ser, ou desejar ser, autênti- Era esse o verdadeiro significado de voltar ao Brasil.
co, na minha condição de homem" 33. Não apenas estar aqui, mas compreender e interpre-
O retorno marca a inflexão entre o menino e o tar seu chão, sua gente, seu corpo e sua alma. Indig-
homem: "Vejo agora o Capiberibe com olhos de ho- nava-se, inclusive, com os que, sem jamais ter deixa-
mem e a impressão que me dá repito que é, ainda, a do a terra brasileira, teimavam em adotar modelos
da mais tremenda realidade recifense. Também alguns estrangeiros, dando continuidade ao europocentrismo
dos velhos sobrados azuis, encarnados, verdes, ama- tão vivo entre os da nossa elite: "É curioso como os
relos, do Recife do meu tempo de menino, volto a inquietos hoje de vinte e trinta anos – anotava – bus-
contemplá-los agora, com olhos de homem, sem que cam, talvez com mais intensidade do que nunca, mun-
eles tenham perdido o prestígio que outrora tiveram dos ideais distantes ou remotos; Regis de Beaulieu,
para minha imaginação de criança de província. Con- meu amigo francês, chega a admitir que eu no Brasil
tinuam profundos e misteriosos".34 O objetivo da aven- esteja num mundo paradisíaco em contraste com o
tura que ora se iniciava será decifrá-los. Sua identifi- francês que, com seus Anatole France, teria resvalado
cação com as coisas de sua terra era total: as mulheres, a extremos de mediocridade impotente. Enquanto
os sobrados, os engenhos, as assombrações, a comi- isso, os chamados modernistas do Rio e de São Paulo
da dos tabuleiros, as ruas, a influência negra ou é para a França, para a Europa, alguns para os Estados
mourisca, os velhos papéis na Biblioteca Pública ou Unidos, como Ronald de Carvalho, que se voltam
nos baús das Casas-Grandes. "A verdade é que eu me como para mundos ideais, dando as costas ao Brasil;
sinto identificado com o que o Brasil tem de mais bra- ao que no Brasil há de verdade de ser descoberta ou
sileiro",35 confessava, enquanto fazia pesquisa de cam- redescoberta por jovens poetas, por jovens críticos,
po sobre crenças e devoções dos pescadores ribeiri- jovens pensadores dispostos a fazer alguma coisa de
nhos, ou freqüentava a mesa de Adão, o todo diferente, de novo, de moderno; de contrário ao es-
poderoso babalorixá. Sua obsessão pela língua, lín- tabelecido, de oposto ao aceito"39. Não era esse o
gua que fosse capaz de traduzir a complexidade cul- modelo que queria para si, mas um outro. Outro que
tural do país era total: "Entretanto – argumentava – lhe permitisse ressuscitar "o passado brasileiro mais
falta a grande parte de nossa literatura – ou quase íntimo [..] até – afirma – esse passado tornar-se carne.
literatura? – para ser regionalista, sem caipirismo, uma Vida. Superação de tempo".40
língua como que tropicalmente brasileira, que não A grande aventura de Gilberto Freyre seria des-
deixe nunca de ser portuguesa, como língua portu- de então o Brasil. Aventura a qual se dedicaria apai-
guesa, para tornar-se subportuguesa, de tão oral. Os xonadamente e cujos rodeios, desvios e descaminhos
temas regionais e tropicais estão à espera de roman- o trariam sempre ao mesmo lugar. Sua aventura não
cistas, contistas, dramaturgos que se exprimam [...] seria mais um parênteses – como foram suas sucessi-
Através dessa língua, se afirmaria entre nós, não só no vas viagens ao exterior – mas um modo de vida, uma
ensaio – gênero tão nobre – como na ficção e no tea- forma de luta, uma escolha sem tréguas, a permanên-
tro, uma maior tendência, da parte da nossa literatu- cia de uma relação com o mundo. Nos anos 30, exi-
ra, para exprimir um sentido social e, ao mesmo tem- lado em Portugal, garatujava desolado no diário "Mi-
po, humano do drama que vem sendo vivido pelo nha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves
Brasil de modo regionalmente diverso, embora sem- que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá". Sim. Sua
pre, em essência brasileiro".36 Gilberto sabia que a aventura continuava viva em seu espírito. Sem ela, a
identidade do País passava pela recuperação de sua grande sonolência – que tantas vezes se abate sobre
memória, de sua cultura histórica. Tal como aprende- os homens quando repetem o que outros pensaram

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153
por eles – transformar-se-ia em trevas. Gilberto Freyre 34
Idem, p. 126.
sabia, contudo, que arriscar-se na complexa e fasci-
35
Idem, p. 128.
nante aventura que era o Brasil, não significaria dei-
36
Idem, p. 130.
37
Idem p. 146.
xar o mundo. Mas, ao contrário, iluminá-lo definiti- 38
Idem, p. 134.
vamente com a luz que lhe faltava. 39
Idem, p. 135.
40
Idem, p. 176.
_______________________

Notas
1
Essa é a opinião de Victor Segalen, Essai sur l'exotisme, Paris,
Biblo-essais, 1986. Empresto a David Le Breton, seu conceito de
aventura no prefácio à L'Aventure – la passion des détours, Paris,
Autrement, 1996.
2
Tempo morto e outros tempos, trechos de um diário de adoles-
cência e primeira mocidade, Rio de Janeiro, José Olympio, 1975,
p. 3.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, p. 5.
5
Idem, p. 6.
6
Idem, p. 14.
7
Idem, p. 6.
8
Idem, p. 13.
9
Idem, p. 9.
10
Idem, p. 14.
11
Idem, p. 20.
12
Idem, p. 27.
13
Idem, p. 27.
14
Idem, p. 30.
15
Idem, ibidem.
16
Sobre o relativismo ver o que diz Tzvetan Todorov, in Nous et les
autres, la réflexion française sur la diversité humaine, Paris, Seuils,
1989.
17
Gilberto Freyre, op. cit. p. 32.
18
Idem, p. 25.
19
Idem p. 71.
20
O conceito de aventura é extraído do seu "Sont-ils des
aventuriers, ces írates occidentaux..." in David Le Breton, op. cit.,
p. 161-165
21
Idem p. 52.
22
Idem, p. 81.
23
Arnold Hauser, História social da literatura e da arte, São Paulo,
Meste Jou, s/d, volume II, p. 1135. Sobre Bergson ver, M. Merleau-
Ponty, Éloge de la philosophie, Paris, Gallimard, 1953; H. Gouthier,
Bergson et le Christ des Évangiles, Paris, Fayard, 1961, G. Deleuze,
Le Bergsonisme, Paris, P.U.F., 1989; V. Jankélevitch, Bergson, Paris,
P.U.F., 1975.
24
Gilberto Freyre, op. cit., p. 113.
25
Idem, p. 115.
26
Idem, p. 92.
27
Arnold Hauser, op. cit., pp. 1116 e passim.
28
La rebelión de las masas, 1930.
29
Philippe Chenaux, Maurras et Maritain, une génération
intellectuelle catholique (1920-1930), Paris, Cerf, 1999, p. 227.
Agradeço a José Mário Pereira a gentil indicação dessa obra.
30
Ver seu Le passé d'une illusion. Essai sur l'idée communiste au
XXe. siècle, Paris, Gallimard, 1995.
31
Phillippe Chenaux na introdução ao seu Maurras et Maritain,
une génération intellectuelle catholique (1920-1930), chega a falar
em "déficit historiográfico" sobre essa questão.
32
Gilberto Freyre, op. cit, p. 93.
33
Idem, p. 96.

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Castelos no Ar: Notas sobre Portugal em
Aventura e Rotina*

Ricardo Benzaquen de Araújo


Antropólogo – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro –
Brasil

"Em Portugal rever talvez seja maior delícia balho que ele vai se demorar na análise de
do que ver" (AR, p. 16). um conjunto de transformações que, preten-
dendo desde o início do século XIX associar o
Este trabalho pretende apenas levantar Brasil ao processo de civilização dos costu-
algumas questões sobre Aventura e Rotina mes típico da modernidade ocidental, substi-
(1980 [1953]), volume que reúne as observa- tui o diversificado e colorido mosaico de tra-
ções de Gilberto Freyre sobre uma viagem dições culturais presentes no período colonial
que, de agosto de 1951 a fevereiro de 1952, – paralelamente ao despotismo e à violência
o levou a visitar Portugal e algumas de suas instaurados pelo regime escravocrata – por um
então colônias na Ásia e na África. Este cará- sistemático, uniforme e inflexível modelo de
ter introdutório do texto, aliás, torna-se ainda inspiração européia, totalmente incapaz de to-
mais saliente pelo fato de que, por limitações lerar a variedade, os excessos e a instabilida-
de tempo, serei obrigado a me concentrar na de que marcavam até então a experiência
fase portuguesa da mencionada viagem, dei- nacional.
xando para outra oportunidade uma avalia- Assinale-se, de imediato, que Gilberto
ção mais ampla e aprofundada do livro como escreve repetidamente contra essa uniformi-
um todo. zação dos costumes, esta "reeuropeização do
Muito bem: apresentadas as necessári- Brasil", tentando sempre encontrar maneiras
as explicações, creio que valha a pena iniciar por intermédio das quais ao menos uma par-
lembrando que, se houvesse necessidade de cela do espírito daquele mosaico colonial
se encontrar uma fórmula que resumisse a poderia ser reanimado, passando assim a
argumentação de Gilberto em AR, ela talvez moderar e portanto a alterar a rígida
pudesse ser retirada da sua página 141, quan- modernidade implantada no País. Ora, a mi-
do nosso autor afirma que procura "explica- nha impressão é a de que são precisamente
ções para costumes ou tendências que pare- essas diferenças culturais, esses antagonismos
cendo às vezes peculiares ao Brasil têm origens em equilíbrio que ele vai procurar em Portu-
lusitanas". Essa fórmula, que converte a via- gal, dando continuidade, em outro contexto,
gem em uma espécie de ponte, um instrumen- a uma das suas mais consistentes preocupa-
to capaz de promover a busca de continuida- ções intelectuais e políticas.
des entre Portugal e o Brasil, precisa, E, realmente, não leva muito tempo
evidentemente, ser complementada por ou- para que Gilberto venha a identificar lugares
tras hipóteses. Afinal, há que se estabelecer e situações aparentemente bastante compa-
não só a natureza dos valores perseguidos por tíveis com os valores que se esforça em de-
Gilberto como também as próprias formas fender. Desse modo, já na página 25, referin-
pelas quais eles poderiam ser percebidos, em do-se aos bosques e jardins das quintas de
Portugal, no meio do século XX. Sintra, ele vai observar que
Na verdade, creio que será possível
"[...] se alguém for reparar em porme-
encontrar um primeiro caminho para respon-
nores, descobrirá, no meio deste arvoredo
der a essa indagação se levarmos em consi-
castiçamente português – sobreiros, salguei-
deração outro livro de Gilberto, Sobrados e
ros, vinhas –, muita planta vinda do Ultramar
Mucambos , publicado originalmente em
tropical e aqui já ajustada ao todo castiço da
1936, mas reeditado, com muitas e sérias
paisagem. Sinal de que a quinta, entre outras
modificações, no mesmo ano dessa sua via-
virtudes, tem tido a de domesticar em Portu-
gem, 1951. Isso ocorre porque é nestes tra-

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155
gal os exotismos vindos dos trópicos, ao ponto de mesmo quando plebeu, um equivalente, na culinária,
harmonizá-los com as velhas árvores desta parte já do que a aquarela é na pintura, com sua harmonização
quase tropical da Europa. A quinta é também uma de cores. Enquanto nas composições espanholas, por
expressão do pendor português para harmonizar va- mais ricas, os ingredientes como que se conservam
lores tropicais com os europeus". dentro de suas fronteiras. Deixam-se decompor, mais
facilmente do que os ingredientes dos pratos portu-
Não cessa aí, porém a proximidade entre cos-
gueses, em cores, sabores, aromas e formas como que
tumes brasileiros e portugueses: deslocando-se de
autônomas: autônomas a ponto de qualquer dos in-
Sintra para o Alentejo, ele se entusiasma diante de
gredientes poder ser saboreado ou apreciado só. O
"Um almoço quase tropical no que junta de chei-
arroz separado da galinha, a galinha separada da ver-
ros fortes a gostos picantes sem que, entre os extre-
dura, a verdura separada dos dois".
mos, deixem de acariciar o paladar menos plebeu na
Assim, só para tornar bem claro o ponto, ele
sua capacidade não sei se diga teológica de distinguir
enfatiza que, por sua vez, o
e subdistinguir, nuanças angélicas de gosto e de chei-
“prato castiçamente espanhol – o puchero, por
ro. Gostos e cheiros que resultam de profunda
exemplo – em sua variedade – mas não harmonia – de
mestiçagem culinária. Pois o Alentejo é uma região de
composição tinha de tudo; e fácil seria decompô-lo
valores mistos – mistos de raça e de sexo – tanto de
em vários pratos – cada qual mais atraente – como se
culinária como de vestuário e de arte popular. A re-
decompõe uma composição cubista. E como se de-
gião de rendas feitas no mais duro ferro – os das va-
compõe, aliás, um puchero: um plato único cotidiano
randas de Évora – por homens com mãos ao mesmo
ou normalmente espanhol. Decompor um prato
tempo de gigante forte e de mulher dengosa e de so-
castiçamente português não me parece tão fácil: cada
pas feitas por mãos como que bissexuais de mulheres
prato português tende a harmonizar valores que sepa-
de buço de rapaz."
rados deixam de atrair ou agradar o paladar e a pró-
Mas será que se pode efetivamente apontar uma
pria vista. A verdura ou o arroz que, em Portugal, acom-
identidade absoluta entre a "mestiçagem" colonial e
panha certos peixes ou certas aves, só tem graça dentro
essa que Gilberto encontra em Portugal? Creio que
das combinações liricamente tradicionais a que per-
há no mínimo um ponto, particularmente importan-
tencem. Separados, perdem quase todo o encanto. A
te, no qual elas parecem divergir, e este diz respeito
culinária portuguesa seria, assim, em termos pictóri-
justamente à intensidade emocional em que aqueles
cos, do caráter da pintura que se convencionou classi-
antagonismos em equilíbrio eram experimentados em
ficar, nos seus exageros mais recentes, 'expressionista';
uma e outra situação. De fato, enquanto a sociedade
a espanhola se deixaria definir melhor como 'cubista'.
organizada em torno da escravidão e das casas-gran-
Picasso talvez tenha-se inspirado numa culinária de
des criava condições para que aquelas distintas tradi-
acentuada tendência à composição como que dramá-
ções se relacionassem em uma atmosfera saturada de
tica de sabores e cores para desenvolver, a seu modo,
paixões, onde excessos de toda espécie podiam su-
e ao modo dos espanhóis e sob o estímulo de várias
ceder, o hibridismo cultural encontrado pelo nosso
outras sugestões, o cubismo que desenvolveu na pin-
autor em sua viagem está envolvido em um clima de
tura. Um cubismo à espanhola" (pp. 81-82).
extrema moderação, no qual, como a passagem so-
Como se vê, refeição espanhola cultiva um es-
bre as quintas de Sintra já sugeria, a harmonização e
tilo bastante próximo daquele que caracterizava, se-
o arredondamento das diferenças permitiam o
gundo Gilberto, o Brasil colonial (cf. Araújo, 1994),
surgimento de um equilíbrio eminentemente estável,
ao passo que os ingredientes da culinária portuguesa
bem distante do nosso turbulento passado colonial. É
parecem seguir uma rota que os conduz à harmonia,
mais ou menos como se, ao contrário da experiência
à suavidade e até mesmo à interdependência, com a
brasileira, onde o vivo colorido das contribuições ne-
conseqüente diminuição do sincretismo e da ambi-
gras, brancas e indígenas foi substituído pelo preto-e-
güidade que tal movimento, quase inevitavelmente,
branco – ou cinza – da elegante moda européia, as
produz.
cores portuguesas tivessem continuado a brilhar, só
Não se imagine, contudo, que essa preocupa-
que desbotadas, esmaecidas, só para frisar, modera-
ção com a moderação esteja meramente associada à
das.
modernidade, ou seja, a necessidade de Portugal ade-
Tal moderação pode ser encontrada ao longo
quar seu variado legado ao sóbrio e homogêneo pa-
de todo o texto, mas é curiosa e admiravelmente re-
drão burguês. Ao contrário, em vez de responsabili-
sumida em um trecho em que Gilberto, comparando
zar qualquer pressão externa por essa alteração,
a cozinha portuguesa com a espanhola, argumenta
Gilberto vai desenvolver um argumento, sobre o des-
que
tino da cultura portuguesa, que coloca em primeiro
"[...] o prato castiçamente português tende a ser,

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156
plano exatamente as duas categorias que dão título postos, limites que fariam com que o seu "primeiro
ao livro, Aventura e Rotina. ímpeto fo[sse] recusar o convite afetuosamente por-
Dessa forma, cabe lembrar, antes de mais nada, tuguês para visitar ... Portugal e o Ultramar". Trata-se,
que a idéia de aventura no texto aparece com fre- por conseguinte, de um "convite que lamento não ter
qüência, por um lado, reduzida ao processo de ex- recebido há vinte anos. Os homens de estudo de cam-
pansão ultramarina desencadeado em Portugal nos po são um tanto como aqueles hotéis e aqueles baila-
séculos XV e XVI e, por outro, estreitamente vincula- rinos de que há pouco falei: têm uma mocidade cur-
da à incorporação pela metrópole de um sem núme- ta. As viagens de estudo são rudes. Para os homens
ro de experiências culturais oriundas dos povos con- de gabinete é que quase não há limites de tempo nem
quistados. Este ponto, que ressalta a permeabilidade restrições de idade à atividade criadora. Mesmo sem
do colonizador lusitano, capaz de construir um impé- saúde, como o débil Rui Barbosa, podem chegar à
rio sem se preocupar em impor uma regra única, acei- extrema velhice, trabalhando, escrevendo, produzin-
tando plasticamente as mais diferentes influências, do obras-primas" (AR, p. 5).
também deixa claro que a mentalidade aventureira Sabemos, naturalmente, que ele desafia os seus
atingiu a sua plenitude apenas quando o português limites e aceita o repto que lhe é lançado, mas esse
era um povo ainda jovem, intenso e disponível, pas- gesto não apaga a imagem que ele começa a cons-
sando daí em diante a ser substituída pela rotina. truir de si mesmo, senão vejamos: visitando o ances-
Acontece que a idéia de rotina, tal como discu- tral do Brasil, Gilberto leva consigo, além de sua es-
tida por Gilberto, não deve de maneira nenhuma ser posa, Dona Madalena, seus filhos e também o avô
entendida como o oposto, a antítese da aventura. deles, seu pai. Essas três gerações de Freyres, todas
Longe disto, ele insiste em ressaltar casos como o de mencionadas na narrativa, relacionam-se todavia com
Dom João de Castro e sua "saudade ... no meio das Portugal de maneira flagrantemente diferente, pois,
guerras no Oriente, da terra que deixara em Sintra ... enquanto o "velho Freyre" e as crianças são claramen-
Pelo seu gosto, depois dos 40 anos, teria vivido entre te associadas, por caminhos distintos, aos portugue-
as árvores de Sintra, vida tranqüila de rotina, e não no ses da época do descobrimento, Gilberto nunca dei-
Oriente, vida de aventura... Caso típico. Como Castro xa de se identificar com a suavidade e a maturidade –
Forte, outros portugueses ... têm sempre sonhado em quase velhice – que define os seus anfitriões.
se aquietarem um dia na doce rotina de vida suburba- Assim, se o Doutor Alfredo sempre marca a sua
namente agrária em alguma quinta, senão em Sintra, presença por "lembrar-se do muito de Camões e de
que é o sítio ideal para as quintas desse tipo, em re- Herculano que sabe de cor, deixa[ndo] de ter setenta
cantos menos famosos pela situação ou pela paisagem e seis anos para sentir-se um adolescente" (pp. 25-
ou pelo solo, mas onde possam cultivar suas couves, 26), e aproximando-se, portanto, metonimicamente
suas vinhas, suas oliveiras" (AR, p. 24). do glorioso passado português, os jovens Sônia e
A rotina, portanto, não é aqui definida como Fernando são metaforicamente vinculados aos aven-
um estado simultâneo, paralelo à aventura, ao qual tureiros
esta irá se contrapor e ao mesmo tempo acentuar (cf.
"sugestionados no Oriente e nos trópicos por
Simmel, 1998). Ao contrário, a aventura acaba sendo
novas ... formas e cores [,] por eles surpreendidas ...
tratada como se fosse um sacrifício, um esforço dota-
com olhos de descobridores. Com olhos quase de
do de uma teleologia, orientado para um objetivo fi-
meninos, como os desses portuguesinhos e
nal, que seria precisamente a possibilidade de se des-
europeuzinhos que vimos hoje os Freyres adultos ao
frutar do "doce" e "suave" cotidiano cujo maior
lado dos nossos dois pequenos já um tanto iniciados
emblema parece ser as quintas portuguesas. Nesse
em coisas dos trópicos como bons brasileiros que são,
sentido, Portugal nos anos 50 do século XX termina
mas admirando pela primeira vez – fora de circos –
sendo descrito por Gilberto como um país pronto,
elefantes, javalis, hienas, macacos grandes da África,
digno e maduro, envolvido por um idealizado clima
camelos, girafas, zebras, hipopótamos, leões, tigres. E
de tranqüilidade, às vezes um tanto ou quanto deca-
regalando-se de contentes diante de tantas formas bi-
dente, mas perfeitamente compatível com a sua defi-
zarras de animais que apenas conheciam de livro ou
nição como um "jardim a beira-mar plantado".
de fita de cinema. Pelo regalo destas crianças diante
O que mais me chama a atenção, entretanto, é
de animais dos trópicos, imagina-se a emoção de me-
que a mesma abordagem que Gilberto dispensa a
ninos grandes que os portugueses experimentaram ao
Portugal será também reservada ao modo pelo qual
verem na África os primeiros elefantes ou os primeiros
ele próprio irá se definir ao longo de AR. Com efeito,
rinocerontes. Ao que parece, foram os portugueses,
desde as suas páginas iniciais, nosso autor já mencio-
que, antes de que qualquer outro europeu, avistaram
na os seus "cinqüenta anos" e os limites por eles im-
em matas ou campinas africanas, e triunfalmente sol-

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157
tas, essas e outras feras tropicais, hoje curiosidades de
jardins zoológicos da Europa" (AR, pp. 45-46).
Gilberto, por sua vez, atravessa Portugal defi-
nindo-se como "um brasileiro de idade quase
provecta, é certo, mas sempre estudante" (p. 79), do-
tado de "olhos já quase de velho, mas ainda estudan-
te". É evidente que tanto a realização da viagem quanto
a própria redação do livro desmentem, até certo pon-
to, as afirmações do nosso autor – quase velho, ainda
e sempre estudante. Nem por isto, todavia, elas dei-
xam de criar um elo entre o suave e tranqüilo Gilber-
to dos anos 50 e o rotineiro e moderado Portugal com
cuja voz a sua, em uníssono, chega praticamente a se
fundir. Prova disto, aliás, é o próprio fato de que, ao
contrário das suas viagens de juventude, descritas em
Tempo Morto e Outros Tempos (1975), esta transcor-
re praticamente sem surpresas, sem sobressaltos, sem
eventos, percorrendo "paisagens macias" (AR, p. 5)
cujas antigas divergências foram sendo paulatinamente
aparadas, distinguindo cores que, como já foi menci-
onado, harmonizam-se pouco a pouco em uma aqua-
rela.

Bibliografia
ARAÚJO, Ricardo. Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra
de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34,
1994.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1936.
______________. Tempo morto e outros tempos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1975.
______________. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: José Olympio,
1980.
SOUZA, Jessé (Org.). Simmel e a modernidade. Brasília: UnB, 1998.

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158
Coordenadas Epistemológicas de
Gilberto Freyre

José Esteves Pereira


Professor Catedrático de Filosofia – Universidade Nova de Lisboa – Portugal

A celebração do autor de Casa-Grande dos tempos idos", desde os românticos tanto


& Senzala, marco incontornável para a com- se extremam".2
preensão e interpretação da História do Bra- Importa a este propósito ver como, mais
sil e do espaço luso-tropical, impõe que se tarde, se verifica uma reflexão mais informa-
celebre, igualmente à obra teórica, o cuidado da mas que não infirma as intuições iniciais
epistemológico de Gilberto Freyre. Este deli- correspondentes a uma percepção compre-
neamento de ensaio não pretende ser mais ensiva do real sem esquecer o uso de formas
do que uma singela contribuição sobre alguns embora sem cair num formalismo sem subs-
aspectos que me parecem essenciais sobre as tância:
posições e opções epistemológicas que supor- "A parte mais plástica, mais perecível e
tam a vasta obra freyriana. Para tanto, utilizei mais variável no tempo e no espaço físico e
muitas das páginas da segunda edição de So- social do mesmo conjunto que nos ossos – as
ciologia, prefaciadas por Anísio Teixeira no formas sociais, meios de expressão dos pro-
cotejo com injunções teóricas de outros tex- cessos e das funções sociais – se exprimiria
tos. menos individualmente, menos plasticamen-
A configuração muito especial daquilo te e menos perecivelmemte. Mas sem que
que, em termos de projeto de investigação, ossos ou carne, independentes, constituam o
Gilberto Freyre se propunha realizar levou-o, conjunto social, que só pode ser estudado
bem cedo, a um estudo cuidadoso das cor- compreensivamente pelo sociólogo nas suas
rentes de sociologia do seu tempo, com o formas, processos e funções, animados por
objetivo de compreender melhor os fenôme- conteúdos: como vida inteira e como conjun-
nos sociológicos no Brasil. to. 3
O conceito e a operacionalidade das A atenção prestada ao biologismo que
sociologias especiais, que privilegia, leva-o a procura situar e integrar ajuda-nos, por outro
dizer que tal atitude se enquadra em revolta lado, a perceber a solidez do trabalho cientí-
contra o geral, contra uma espécie de imperi- fico a empreender. Importa dizer, ainda, que
alismo quanto ao domínio de estudo da soci- a leitura intensa de todas as correntes socio-
ologia enquanto ciência social.1 Afasta-se, por lógicas ou de envolvimento teórico que à so-
isso mesmo, da sociologia pura ou de uma ciologia interessariam foram objeto de cuida-
história confinadamente social. Havia nisso doso estudo por parte de Gilberto Freyre.
uma confessada atitude romântica que é Teremos, assim, ao longo da obra do autor de
enunciada, desde logo, na tese Vida social no Ordem e Progresso de seguir o seu próprio
Brasil me meados do século XIX: envolvimento, por vezes
"Mais do que estudo de História Social desassombradamente crítico, mas sempre
é aquele trabalho de adolescente,ensaio um aberto à compreensão do outro. Tal exercício
tanto à la Goncourt – tal o seu modo realista é particularmente evidente quando se acerca
e, ao mesmo tempo, romântico, nunca, po- da sociologia biológica como aconteceria, por
rém, novelesco. Tentativa de reconstituição de exemplo, com The Physical Basis of Personality,
alguns aspectos menos ostensivamente públi- de Stockard. Se é certo que admite, em me-
cos e menos brilhantemente oficiais, nem por ditação sobre este autor, a interação contínua
isto, menos sociológica e psicologicamente do indivíduo e do ambiente tal injunção tem
significativos do viver em família (...) "Român- a ver com sublinhada advertência relativamen-
tico ele por não lhe faltar um pouco daquela te ao biologismo extremo:
simpatia pelo passado em que os "louvores "Na sua fase de expansão no século pas-

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159
sado, a Sociologia tomou da Biologia, então triunfante "ente cultural" era também um "ser natural": e as "cha-
com Darwin e seus intérpretes, não só a terminologia madas escolas naturalista e social", julgava-as
– organismo, seleção, variação, etc. – como a filosofia "exclusivistas": "consideram natureza e cultura ou
predominante entre os biólogos: a evolucionista. Paul como duas coisas estúpidamente idênticas ou como
von Lilienfeld tornou-se um dos intérpretes mais lógi- duas coisas inteiramente autonômicas e irredutíveis,
cos e exatos da tendência exageradamente biológica pontos de vista de todo errôneos".8
em sociologia: a de fazer-se da Sociologia simples ex- Gilberto Freyre aliou, ainda, à apreciação
tensão da Biologia. É dele o conceito de sociedade elogiosa de Romero a estranheza da antecipação
como "organismo natural, "(...) continuação da Natu- gnoseológica, com que se identifica, citando-lhe es-
reza", "manifestação mais alta das mesmas forças que tas palavras :
se encontram à base de todos os fenômenos naturais." "A verdadeira escola do Direito, da Moral, da
E em latim de herege para a maioria dos sociólogos de Estética, da História, da Crítica, da Sociologia, da ati-
hoje: Sociolugos nemo, nisi biologus. Pois nihil est est vidade humana, em suma será aquela que reunir os
in societate quod non prius fuerit in natura. Sobre esse fatores da natureza e os da civilização, os factores so-
latim, hoje quase de herege, repousou entretanto, por ciológicos e os psicológicos, os biológicos e os soci-
longos anos, a ortodoxia sociológica, embora as ais".9
discordâncias e os protestos não faltassem contra ela. Essa asserção, que o surpreendia favoravelmen-
Até mesmo os protestos extremos: Não há sociologia! te, era tanto mais de reter por vir de "um brasileiro do
Gritos em alemão – o de Treitschke, por exemplo – fim do século XIX" permitindo, em todo o caso, ob-
que seriam repetidos em português asperamente zan- servar o pendor superador (e de algum modo
gado pelo nosso Tobias Barreto, nesse ponto refutado integrador) do positivismo nas suas formulações
com inteligência e até equilíbrio por Sílvio Romero". 4 evolucionistas estritas à medida em que lhe importa-
No fundo, Gilberto Freyre, na senda da supera- va atender a um estudo de relações inter-raciais, so-
ção biologista positivista e evolucionista, inscreve-se, bre a sua perspectiva, no terreno das contribuições
naturalmente, na visão diferenciadora da explicações biológicas, embora sem concessão a um determinismo
mecânicas dos fenômenos sociais sem por isso deixar estrito. A centralidade antropológica e (histórica) que
de reivindicar espaço próprio para o domínio socio- emergirá das injunções teóricas de Freyre torna-se aqui
lógico. iniludível na medida exata em que o processo bioló-
O comentário à polêmica de Tobias Barreto e gico da hibridização se completa, necessariamente,
Sílvio Romero tal como a revive, em apontamento através de processos sociais de competição ou domi-
sobre a história da sociologia no Brasil, mostra bem o nação. A problematização epistemológica que pro-
posicionamento crítico relativamente às persistências vasse a insuficiência do biologismo justifica-la-á Gil-
positivistas. berto Freyre ao longo de todo o capítulo II de
De Tobias Barreto e da sua desconfiança total Casa-Grande & Senzala.
no que diz respeito à sociologia, na linha de Treitschke, Questão distinta, embora conexa com a dimen-
dirá Freyre que o pensador sergipano se insurgia prin- são biológica, é suscitada pela chamada de atenção
cipalmente contra as "explicações mecânicas do Ho- para a importância do meio, arrastando tudo aquilo
mem, da Família, do Estado,da Sociedade em geral".5 que em apreciação crítica a Mukerjee (Regional
Era o pendor sociolátrico que levava Tobias Barreto Sociology) 10 seria avaliado em termos de uma neces-
ao exagero seu, bem conhecido, de que os sociólo- sária sociologia genética, ou seja de uma Sociologia
gos em geral não são homens com quem se possa Coordenadora. Não significaria, porém, tal atitude a
falar sério".6 Socorria-se, na circunstância, de Kant, substituição da Sociologia Geral na sua configuração
através do argumento de que "em relação à forma dos supra-histórica e supra ecológica, relativamente ao
organismos, há sempre um resto que a mecânica não domínio temporal e espacial, por uma conformação
explica, aumentando essa inexplicabilidade na medi- puramente historicista e genética. O que Freyre real-
da do maior desenvolvimento dos mesmos organis- mente pretende provar, aproximando-se das ideias de
mos e maior complexidade das suas funções".7 von Wiese, é que entre sociologia "sistemática", geral,
Gilberto Freyre, sem preocupações explícitas de e aquela que é propriamente histórica o que existe
uma reivindicação culturalista, ao mesmo tempo que são critérios ou pontos de vista de uma mesma reali-
comentava e aproveitava a argumentação polêmica dade.
defendia Sílvio Romero e a sua mediação de natureza A visitação às concepções conflitantes do siste-
e cultura: mático e do histórico seria igualmente ocasião opor-
"É que para o Sílvio Romero de 1895 podia har- tuna para Freyre sublinhar a pouca importância dada
monizar-se natura com cultura; o homem sendo um então "à perspectiva histórica" pelos sociólogos nor-

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160
te-americanos, atitude consonante, aliás, com asserção empalidece para tomar mais relevo sua história social
mais geral recolhida em artigo de 1934 sobre a "The e cultural. Mas uma história se alonga na outra, sem
general ahistoricity of american thinking" embora se se poder determinar sempre, de modo absoluto, onde
apresse a apresentar exemplo que contradiga tal ge- a história social de uma instituição, grupo ou pessoa
neralização, como era o caso de Giddings.11 social – a mulher com status de mãe, por exemplo –
Penso que nos acercamos aqui da posição começa a absorver a história natural da mesma pes-
epistemológica fulcral de Gilberto Freyre e de uma soa social. Essa discriminação pouco interessa, aliás, à
intuição fundamental para a vasta pesquisa sociológi- Sociologia genética ou histórica, para a qual é históri-
ca. No fundo, importava interferir no campo da pró- co tanto o que a natureza chamada original do ho-
pria feição epistemológica de alguma historiografia mem possa oferecer como repetição no comporta-
corrente, ainda presa ao fetichismo do positivismo mento do homem social.18
fáctico" – em saborosa imagética o autor refere-se Não é, porém, a incorporação histórica,
àqueles historiadores que "muçulmanamente aceitam centrada no individual, no existencial, sinônimo de
tudo o que se encontra escrito em documentos" 12 – e esquecimento de critérios gerais que importam "ao
arredar uma história natural das instituições que na estudo de formas e situações de convivência e dos
auto-invocação de natural se contradiz, sendo certo processos pelos quais estas operam e aquelas se reali-
que a natureza (como dizia Dilthey) só pela imagina- zam, organizando-se e desorganizando-se constante-
ção a compreendemos. Será importante atender, a este mente através de pessoas, personalidades e grupos
respeito, a relação intelectual e pessoal de Gilberto múltiplos, diferentes em seus motivos e funções e em
Freyre com as figuras cimeiras da escola dos Annales 13 suas condições de extensão (espacialidade) e de de-
até para compreender asserções como esta: "É uma senvolvimento (temporalidade).19
história a do homem, impossível de reduzir-se a sim- Já no Prefácio da 2ª edição de Sociologia, Gil-
ples história natural. Tanto mais quanto o sociólogo é berto Freyre se situava do seguinte modo perante cor-
capaz de percepção íntima e de especial compreen- rentes do pensamento que lhe foram contemporâne-
são dessa história como participante efetivo de suas as :
sobrevivências e empático, dos antecedentes ou das "Para que esta (a Sociologia) seja estudo menos
situações básicas".14 do homem social abstrato que do concreto não é pre-
Depois, com a leitura e a reflexão crítica de Max ciso que o viver do Homem em grupo deixe de ser
Weber, a propósito dos tipos ideais, Freyre definirá considerado forma, dentro da qual se admita diversi-
melhor os seus pontos de vista. Os Idealtypen perfi- dade de conteúdo histórico ou etnográfico. Apenas
lam-se, tão só, como meios, como hipóteses de se esse conteúdo diverso não tem para o sociólogo de
descobrirem interpelações em que a fuga do natura- hoje importância como unidade substancial como vem
lismo é compensada pela não adesão ao historicismo sendo a tendência das ciências, em geral, e não ape-
absoluto. 15 E, citando, também, com propriedade, Berr nas da Sociologia, para a interpretação do mundo,
e Fevbre para ele "há História na natureza, há nature- através do que o Professor G. Niemeyer, citado pelo
za na História". 16 Professor Robert King Merton, no seu Social Theory
Gilberto Freyre, convicto da fecundidade de um and Social Structure (Glencoe, 1951), chama de "terms
método funcional, é no primado do existencial, da of interconnection of operation t...]". Ou seja, a pro-
circunstância, que incorpora, por inspiração inicial e cura da "realidade", não em "substâncias", mas na cha-
perdurável de Franz Boas,17 a distinção fulcral de raça mada "interação funcional", sem que isto implique em
e de cultura, de relações puramente genéticas, por estreito "funcionalismo. 20
um lado, e de marcantes influências sociais, por ou- É, em definitivo, em coordenadas como as que
tro. Trata-se de uma diferenciação que se resolve em apresentamos de forte sentido antropológico, históri-
perspectiva de análise em que a herança cultural se co e psicológico, com "percepção íntima" e "compre-
cruza com a influência do meio: ensão ativa" – isto é, "compreendendo o comporta-
"Com efeito, o grupo e a instituição que pode- mento dos seres humanos em relação com os
mos considerar básicos da organização social – a fa- significados dos atos que constituem os mesmos com-
mília e o casamento, tal sua correspondência com portamentos" – que Gilberto Freyre haveria de inter-
expressões naturais ou fisiológicas da vida humana: o rogar, superando a mera adesão ao fático ou ao
sexo e a infância longa do ser humano – deixam-se valorativo (embora situando os valores e compreen-
retratar em história natural em que a natureza come- dendo-os no seu contexto relativo) o sistema patriar-
ça por estar mais na história do que a história na na- cal, latifundiário e escravocrata, do Brasil miscigenado.
tureza. À proporção, porém que tal grupo e tal insti-
tuição se relacionam com outros, sua historia natural _______________________

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161
Notas a suas complexas conexões de causa por tê-la estudado exausti-
vamente sob critério a que a geração seguinte pode acrescentar
1
Gilberto Freyre, Sociologia, Introdução ao estudo dos seus princí- pontos de vista novos" (...) "Pois na sociologia histórica e pura de
pios, Rio de Janeiro, Livr. José Olympio Editora, 1957, 2ª Edição, Max Weber, a formulação de conceitos constitui meios heurísticos
2º tomo, p. 319. de organização da realidade empírica resultando daí um processo
2
Idem, Vida social no Brasil nos meados do século XIX, Recife, de concentração de tal modo "elástico" – a expressão é de um
Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 1985,3ª ed. revista, crítico de Weber, o Professor Abel (Theodore Abel, Systematic
p. 27 (texto do Prefácio à primeira edição da obra). Sociology in Germany, Nova York, 1929) – que pode acomodar-se
3
Gilberto Freyre, Sociologia cit., 1º tomo, pp. 208-209. às exigências de situações diversas" (Idem, p. 511).
4
Idem, p. 324. 16
Idem, p. 508.
5
Idem, p. 325. 17
"O reconhecimento maior naturalmente a Boas: "A figura de
6
Idem, p. 399. mestre de que me ficou até hoje maior impressão'. "Foi o estudo
7
Idem, ib. de Antropologia sob a orientação do Professor Boas que primeiro
8
Idem, p. 327. me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos
traços de raça os efeitos de ambiente ou de superioridade cultu-
9
Idem, ib.
ral. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e
10
"O próprio Mukerjee, parecendo identificar o estudo da Socio- cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente ge-
logia com o da Ecologia humana sob critério quase principalmen- néticas e os de influências sociais, da herança cultural e de meio.
te biológico, reconhece a necessidade de uma Sociologia genéti- Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura
ca, por ela elevada a uma sociologia geral". assenta todo o plano deste ensaio Casa-Grande & Senzala. A nin-
11
"Giddings como que fez da experiência histórica de sociedades guém mais Gilberto Freyre prestou semelhante preito de gratidão
diversas um laboratório de material histórico de interesse ou ex- intelectual, para ele "nunca será demasia salientar-se a importân-
pressão sociológica quando procurou estudar nessa diversidade cia da obra científica de Franz Boas. Genealogia gilbertiana da-
de experiência, fenômenos de composição de população por ida- quela escola, que melhor se denominaria de início como Escola
de, sexo, raça; de amalgamento de raças; de concorrência de es- de Columbia, remontando a Kroeber, dos primeiros grandes discí-
pécie; de organização social; de personalidade social. Para isso pulos de Boas, e estendendo-se a Ruth Benedict e os contempo-
valeu-se de seleções de numerosos estudos e documentos históri- râneos de mestrado de Gilberto Freyre, Melville J. Herskovits e
cos nos quais deu vida sociológica pela comparação de vários as- Margaret Mead", in Vamireh Chacon, ob. cit., p. 124.
pectos do mesmo fenômeno em tempos e espaços diversos (...)Tra- 18
Giberto Freyre, Sociologia, cit., p. 508.
ta-se de uma aventura de método, perigosa na, prática, mas que 19
Idem, p. 322.
importa no reconhecimento da importância da Sociologia históri-
ca em relação com a Sociologia pura e com a própria Sociologia
20
Idem, tomo 1º, pp. 20-21.
aplicada que Giddigss denominava "sociologia da probabilidade".
Em iniciativas como a de Giddings é que pensava talvez Hertzler
ao considerar o passado um grande laboratório experimental,
embora seja para estranhar que destaque a ausência de qualquer
realização ou esforço especial para tornar o material histórico aces-
sível a propósitos sociológicos e saliente "The general ahistoricity
of American thinking". Esquece o trabalho nada desprezível de
Giddings", Idem, p. 408.
12
Idem, p. 500.
13
Sobre a consonância de posições e o relacionamento de Gilber-
to Freyre nomeadamente com Fernand Braudel que prefaciou a
tradução italiana de Casa-Grande & Senzala. Ver Vamireh Chacon,
Gilberto Freyre, Uma biografia intelectual, Brasiliana, vol. 387, Re-
cife/ S.Paulo, Fundação Joaquim Nabuco – Ed. Massangana/ Com-
panhia Editora Nacional, 1993, 245-249. Vamireh. Chacon cha-
ma a atenção para a demonstração de Peter Burke sobre a
influência de Gilberto Freyre em Braudel.
14
Giberto Freyre, Sociologia, op. cit., p. 502.
15
"... a Sociologia histórica, cujos horizontes Max Weber alargou
como ninguém, pode ser considerada uma antecipação da pró-
pria História pela claridade que a construção ideal – típica de
dada situação – a transformação, por exemplo, de uma economia
artesã em economia capiatlista-projeta sobre os motivos e condi-
ções que teriam detreminado a mesma situação. Condições e
motivos que, comparados com os registrados pela História con-
vencional ou que esta possa vir a registrar podem apresentar tra-
ços que necessitem de rectificação excessos que necessitem de
apara, sem ter, entretanto, deixado de haver antecipação do
Idealtypus sobre a representação puramente histórica" ( Idem, p.
512). A importância de uma abertura transfinita, relativa também,
a um questionamento sobre a facticidade histórica, que importa-
va à sociologia histórica, sugeriu a Freyre um acescento a Max
Weber ao afirmar que "não há problema de Sociologia histórica
definitivamente resolvido em todos os seus aspectos; nem ocor-
rência histórica da qual um de nós possa dizer-se senhor de todas

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162
Gilberto Freyre: as Cidades

Guillermo Giucci – giucci@openlink.com.br


Historiador – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Brasil

Cidades ca de recantos originais e que observa a di-


versidade de tipos humanos como se folheas-
Quando o jovem Freyre descreve as ci- se um livro de estampas. Mulheres bonitas,
dades que visita, ou nas quais vive, no exteri- envoltas em peles que protegem do frio a
or, temos o adolescente absorvendo a experi- nudez dos decotes, "snobs" de fraque e corpo
ência da novidade. A viagem como processo esbelto, provincianos endinheirados do Meio
de formação, de Bildung. Assim como Joaquim Oeste, judeus barbudos, italianos pálidos e es-
Nabuco, Freyre possuía uma ambição sem li- critores de monóculo folheando revistas na
mites de conhecer homens célebres e luga- livraria Brentano. Um dia em Nova Iorque é
res. Mas no caso de Nabuco, a viagem estava pura aventura, nada de rotina: "No mesmo dia
mediada pelo guia de viagem Baedeker. "Os pode o curioso volver os olhos da azafamada
mais preciosos livros da minha estante íntima Wall Street, onde os reis da finança estudam
são os meus Baedeker" escreve Nabuco em as cotações da Bolsa, para o Ghetto, o bairro
Minha Formação. Freyre compra e lê livros pobre, com seu pitoresco napolitano, seus ga-
sobre cidades. Seu modelo de Bildung, po- rotos esfarrapados, suas velhotas gordas, de
rém, dispensa o Baedeker em favor do conta- xale encarnado, vendendo frutos e legumes e
to direto com estátuas e monumentos, com a os seus restaurantes, onde italianos palreiros
cor, sons e cheiros urbanos. Um marcado in- comem macarrão a garfadas; ouvir missa na
teresse pelo variado, a cor local, a mistura da Catedral de St. Patrick, entre vitrais de cor e
tradição e a modernidade. De Louisville pilastras majestosas e descer a um 'cabaret'
(Kentucky) envia a primeira crônica ao Diario alegre de Greenwich Village, o bairro da folia
de Pernambuco, iniciando a série Da Outra e da pândega; vagar encantado pelas salas do
América. Uma silhueta bem americana, a de Metropolitan, entre quadros preciosos arran-
Louisville, repontada de chaminés, bueiros, cados à Europa pelos tentáculos do Senhor
clarabóias e torres de igrejas. Casas sólidas e Dólar Todo Poderoso e atravessar a pé a ponte
simples, e belas igrejas quebrando a rude ar- de ferro de Brooklyn, orgulho da engenharia
quitetura industrial. 'yankee'; assistir a uma comédia de Bernard
Anos depois é o descobrimento de Nova Shaw num teatro da Broadway ou Times
Iorque. Podemos dizer, o descobrimento do Square e visitar a casa humilde, feita de tábu-
urbano. É a fascinação pela diferença, uma as, em que Poe escreveu 'O Corvo'; furar pelas
multidão de impressões que se apresentam ruas estreitas do bairro chinês, entre caras
embaralhadas e confusas, como os arabescos amarelas e lanternas de papel de seda e parar
e as cores de um tapete persa. O menino gu- às montras faustosas da Fifth Avenue."
loso diante de um doce, o jovem provinciano Tal fascinação pela diferença e pelas
percorrendo deslumbrado a maior das cida- histórias cruzadas, não constitui no entanto
des. Enquanto Paris expressava a paixão cos- uma celebração da modernidade. Neste ponto
mopolita da sensibilidade latino-americana na se afasta Freyre dos modernistas e da tenaz
década de 20, Freyre – leitor de Randolph celebração do novo. Há um precoce registro
Bourne – registra a ascensão do moderno na tradicionalista, uma aposta nas tradições que
dimensão transnacional de Nova Iorque. convivem pacificamente com o
Na crônica número 15 (DP 20-2-21), transnacionalismo, uma etnografia juvenil do
enviada de Nova Iorque, detectamos o ado- presente reconciliada com suas origens.
lescente com a roupagem do flâneur Por outro lado, atua um elemento de
baudelairiano, que atravessa a cidade em bus- Kulturkritik, dirigido em particular para as for-

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


163
mas técnicas da modernização e para a imposição da jante inteligente. Compreendidos os edifícios e as es-
razão instrumental como modelo civilizador. Sinto- tátuas, mais fácil que compreender os homens, no seu
maticamente, do Woolworth Building, o mais alto dos gosto, na sua estética, na sua moral, nos seus hábitos
arranha-céus de Nova Iorque na época, "feio e arro- sociais." (DP 30-9-23)
gante, um desafio a Deus e ao mundo", Freyre reflete O artigo que Freyre dedicou a Fritz Baedeker,
sobre a relatividade do triunfo moderno: "Aos olhos por motivo de sua morte, retoma o tema da viagem.
de Deus, que mora num lugar mais alto que o minarete Baedeker como um mediador plástico entre Nossa
de Woolworth, Nova Iorque deve parecer menor ain- Senhora dos Navegantes e o mundo que viaja. Espé-
da talvez pouco mais que um pontinho negro, no azul cie de nome-tutelar dos turistas. Principalmente para
da distância." Na mesma linha se situam os comentá- aqueles que viajam menos para ver que para ser vis-
rios da crítica à modernidade mecânica quando escu- to. "Limita-se o viajante que se entrega à carinhosa
ta a conferência de Rabindranath Tagore no piso 19 tirania do Baedeker e da Cook a rolar ou a boiar, do-
de um arranha-céu, ou a descortesia comum a essa cemente e sem esforço, pelas cidades, pelos campos,
cidade alternativa nas entranhas de Nova Iorque que pelos lagos, pelos mares, pelas montanhas suíças, pe-
é o subway. las praias mediterrâneas, pelos gelos da Escandinávia,
Freyre voltará a Nova Iorque várias vezes de- pelas areias do Saara como bolas de celulóide ou de
pois de sua época de estudante na Universidade de borracha. Baedeker e Cook transformam em pés de
Colúmbia, sempre com a mesma sensação da grande anjo os próprios pés de boi."
cidade misturada. Nenhuma outra cidade nos Esta- Reencontramos muito do vitalismo de Nova
dos Unidos ou na Europa lhe causa este impacto do Iorque na Bahia, especialmente no poema Bahia de
descobrimento do urbano. Washington é uma cidade todos os santos e de quase todos os pecados (1926) e
nova, limpa, sem uma rua estreita ou em ziguezague, no artigo enviado ao Diário de Pernambuco, Bahia à
sem um sobrado lôbrego, sem um toque de arcaís- tarde (19-3-26). Enquanto a Paulicéia desvairada de
mo. É o melhor exemplo das vantagens e desvanta- Mário de Andrade deriva do verso livre e da como-
gens de uma cidade que cresceu cientificamente. E, ção pelo progresso épico da indústria presente em
obviamente, para o turista as vantagens são inferiores Les villes tentaculaires de Émile Verhaeren, o poema
às desvantagens. Falta a Washington o pitoresco e a Bahia é em grande parte o resultado tropical do
cor local, o elemento boêmio que estimula artista. Imaginismo da New Poetry americana. Ambos são,
Montreal é uma cidade curiosa, francesa, inglesa e nesse sentido, produtos do chamado Modernism. O
americana no Canadá. Porém lhe falta algo de defini- ataque de Freyre à figura de Rui Barbosa ("eu detesto
tivo: o caráter. Cidade sem cor local, sem uma cor teus oradores, Bahia de todos os santos / teus ruys
predominante. barbosas teus octavios mangabeiras / mas gosto dos
Na Alemanha deve-se ir a Nuremberg, uma ci- teus angús e das tuas mulatas") forma parte do
dade de contrastes. Porém mais que a descrição da questionamento do espírito formalista e juridicista do
vida cotidiana e da cidade, Freyre se ocupa do Museu bacharel brasileiro, transferindo o elemento positivo
Nacional Germânico, museu que lhe comunica a sen- para a cultura vital do cotidiano. Quase um "manifes-
sação preciosa de estar passeando, não entre restos to", este trecho poético em que ataca os baianos con-
fúnebres de épocas antigas, mas sim através das pró- sagrados.
prias épocas, como um intruso feliz de suas intimida- Freyre atualiza em seu poema Bahia o desco-
des. brimento do urbano como mistura, como cruzamen-
Como viajar? Como conhecer uma cidade? to de culturas e tradições: incorpora a denominada
Deve-se começar pelos edifícios e pelas estátuas. "cultura popular". O artigo Bahia à tarde procede na
Freyre condensou seu "método" do seguinte modo: mesma linha, destacando a fecundidade tropical, os
"Há viajantes que chegando a uma cidade mandam contrastes deliciosamente grotescos, a irregularidade
rodar o táxi para a primeira tabacaria à procura dum do casario, a presença de pretalhonas imensas e de
indicador. Alguns chegam já munidos dum Baedeker frades que rezam em latim. Isso pode ser uma banali-
ou dum Muirhead. E em vez de atentarem no que diz dade hoje, na época do "blend", na qual tudo se mis-
a própria cidade pelos seus prédios, pelos seus 'cha- tura, porém certamente não era assim na década de
lés', pelas suas colunas, pelos sinais de todos esses seus 20, quando começava na América Latina a poética
dedos de pedra onde às vezes se erguem, como em da cidade moderna.
Pittsburg, negros charutos de chaminés, contentam-se Já o Rio de Janeiro está longe de ser essa "cida-
em ler o que diz o Baedeker ou o Muirhead. de maravilhosa" dos guias de turismo. Uma cidade que
Num lugar novo, o principal é compreender seus não lhe oferece a sensação de concentração urbana,
edifícios e suas estátuas. É o que procura fazer o via- aparecendo unida à natureza, vegetação, beleza mo-

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rena, praia. E a arquitetura da capital federal, que es- os olhos para o texto. O resultado foi perfeito."
panto! "Orlam a frontaria do edifício grupos de escul- Para elaborar o texto Gilberto utilizou as cole-
tura. Figuras nacionais. Figuras da história brasileira. E ções da Revista do Instituto Archeologico, Historico e
estas figuras brasileiras, por um critério engraçadíssi- Geographico Pernambucano, o Diario de Pernambuco,
mo de harmonia ou de classicismo, vestidas à romana. A Província e o Jornal Pequeno; o Diário de Pero Lopes,
É de um relevo de figura de 'vaudeville' e o assunto já na edição anotada por Eugenio de Castro; as crônicas
foi aproveitado em revista teatral a figura do Coronel de Loreto Couto e Barleus; diários de família. Na pre-
Benjamin Constant, com barbicha e 'pince-nez', de paração do manuscrito e na revisão das provas con-
saiote romano, braços e pernas nuas, a segurar as ré- tou com o auxílio de Sylvio Rabello, José Antônio
deas do fogoso cavalo do General Deodoro. Este tam- Gonsalves de Mello, Diogo de Melo Meneses, Manu-
bém, à romana. Ergue uma espada do tamanho de el Diegues e Maurício Gomes Ferreira.
uma faca de cozinha. Tudo, enfim, de um ridículo in- Freyre observa a cidade de Recife como um tex-
crível. Dir-se-ia formidável sátira inspirada pelo espíri- to. Um texto múltiplo, particular, altamente singular.
to diabólico do Sr. Carlos de Laet." (DP 25-3-26). Minimiza-se a busca de unidade e concede-se a mai-
or importância à diversidade. Nada se tem do mode-
Guia prático, histórico e sentimental da cidade do lo evolutivo que identifica o popular como uma fase a
Recife ser superada; nada se tem de universalismo abstrato
Terminou-se a impressão do Guia prático, his- nem de sentido normativo. Apresenta-se a cultura
tórico e sentimental da cidade do Recife nas oficinas desde um sentido descritivo que combina atualidade,
gráficas de The Propagandist em julho de 1934. Era o vitalidade, plasticidade e mestiçagem. De modo se-
resultado de uma complicada relação de amor com a melhante o Recife antigo – o Recife dos holandeses e
cidade, com seu passado e seu presente. viajantes estrangeiros, dos senhores de engenho e es-
Os desenhos de Luís Jardim para o Guia eram cravos – não está textualmente incorporado como su-
todos feitos a mão. Alguns desses desenhos estavam peração das diferentes fases evolutivas da cultura. Pelo
prontos em fins de janeiro. O resultado alentou a contrário, o passado enriquece o presente com seus
Freyre, que passou a considerar justificado o alto pre- fantasmas e histórias.
ço do livro. Já pensa na publicação de uma edição A desconfiança com as teses difusionistas e as
popular, que crê "cheia de possibilidades". Porém, em generalizações são evidentes. Que vínculo existe en-
meados de fevereiro ainda não havia concluído sua tre o indivíduo e a cultura? A formação boasiana se
parte. É uma das razões para postergar a visita a José faz presente no trópico: o método indutivo e intensi-
Lins do Rego em Alagoas, sendo a outra a falta de vo do "case study". A observação direta e preocupada
dinheiro. Em carta a Lins do Rego, Freyre oferece mais com os detalhes, o contato com a realidade, a análise
detalhes: "O Guia, trabalho moroso da parte de Zé e a descrição das situações cotidianas. Para isso não
Maria, irregular da parte de Jardim, ainda não está faz falta aprender a língua, depender de informantes
prompto. Mas creio que um dia desses teremos a sur- ou realizar entrevistas. Freyre é o próprio nativo, que
presa de vel-o terminado". utiliza o treinamento profissional no conhecimento
Gilberto escreveu o Guia prático, histórico e da cidade que o circunda. E o panorama resultante
sentimental da cidade do Recife na sala de trabalho está marcado pela relatividade cultural. Tem a mesma
da Biblioteca Pública. Ocasionalmente consultava li- importância o menino vendedor de balaios que o
vros e manuscritos. Controlou todos os detalhes e di- quadro Barcaças e jangadas perto do Recife do pintor
rigiu pessoalmente a edição. Com Luís Jardim discu- Telles Júnior; a vendedora de bonecas de pano na
tiu os pormenores das ilustrações, sempre orientadas feira que o Palácio da Justiça; as crenças e costumes
por Gilberto, já que ele mesmo desenhava muito bem. que a arte e a política.
O então adolescente José Antônio Gonsalves de Mello Além de um princípio metodológico e
lembra seu encanto quando ouviu pela primeira vez epistemológico, a dissolução das hierarquias reafirma
o título do Guia e recorda um pormenor miúdo, mas a concepção da relatividade da cultura. A atenção
que ilustra a atenção de Gilberto para as ilustrações. concentra-se no específico situado no interior de um
A grande letra capitular que abre o texto está decora- conjunto singular. O importante é compreender tais
da com um coqueiro e uma jangada com vela aberta. particularidades dentro do contexto cultural próprio,
Segundo Gonsalves de Mello, a posição da vela indi- assim como a formação histórica de esta síntese origi-
cava que a jangada dirigia-se à esquerda, como para nal chamada "Recife".
fora do texto. Mas Gilberto convenceu Jardim a mu- Entre os livros de cabeceira de Ribeiro Couto,
dar de posição, "de forma que a jangada e sua vela em sua viagem a Europa em 1935, se encontrava o
fossem orientadas no sentido da direita, a encaminhar Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Re-

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cife. Ribeiro Couto considerou o livro "uma das coisas esboço histórico, por exemplo, é retórica, salpicado
mais interessantes feitas ultimamente no Brasil" e brin- de adjetivos grandiloqüentes. A diferença mais evi-
cava dizendo que o levava para não se perder. Trata- dente é em relação à figura do estrangeiro. No guia
va-se de fato de um trabalho original, mistura de guia oficial os primeiros franceses e ingleses chegados a
turístico e estudo cultural. Porém pouco acessível ao Pernambuco são piratas invasores valentemente
leitor comum. Uma edição especial de 105 exempla- rechaçados pelos portugueses. Inclusive os holande-
res, todos em papel Vidalon-Montval, com ilustrações ses recebem um tratamento hostil, a exceção da figu-
coloridas a mão por Luís Jardim, gravuras, fotografias ra singular de Maurício de Nassau. Em outras pala-
documentais e artística. Preço de cada exemplar: vras, a história de Recife é uma expressão da heróica
100$000. Edição para bibliófilos. intervenção portuguesa e do caráter indomável da
Carolina Nabuco notou a originalidade do tex- "alma pernambucana" diante dos ataques das nações
to e assinalou os limites da construção idiossincrática: inimigas.
"Com este livro, Gilberto Freyre introduziu no Brasil A versão de Freyre enfatiza a heterogeneidade
um methodo delicioso de fazer guias, methodo que e a acumulação de estratos históricos e afetivos da
requer talento para ser imitado. Só se lhe apontará o cultura regional. Assim a presença do pirata inglês
defeito de ser antes agradável à leitura do que James Lancaster, que no século XVI saqueou os arma-
commodo para o manuseio dos verdadeiros turistas. zéns de açúcar, simboliza outro Recife, que desmen-
Um índice minucioso poderá conferir-lhe a utilidade te a impressão única, monótona, de ruas claras, pon-
dos guias clássicos, sem sacrificar a desordem harmo- tes modernas e gente quase toda morena. É a forma
niosa do texto, à qual o autor de certo tem amor. E imaginativa da história proposta por um ensaísta como
com toda razão." o mexicano Alfonso Reyes em sua Visión de Anháuac,
No Guia de 1934 devemos destacar especial- atualizando o passado no presente e a mitologia na
mente a palavra "sentimental". Como mero guia de natureza; ou a de um escritor como o cubano Alejo
viagem, resulta pouco prático. Posteriores edições, Carpentier, em sua noção do "real maravilhoso". Nes-
revisadas e muito aumentadas pelo autor, passariam se sentido, devemos diferenciar o modelo imaginati-
a incluir um índice geral, um índice de ilustrações, vo da história do tema literário da viagem na cidade,
numeração de páginas, uma lista de endereços úteis como praticado em Ulysses de James Joyce, Le paysan
e constantes subtítulos a fim de orientar leitor e sim- de Paris de Louis Aragon, Nadja de André Breton,
plificar a leitura. Não que a leitura do texto original Macunaíma de Mário de Andrade, Rayuela de Julio
fosse difícil. Nada disso. Porém estamos ante um tex- Cortázar.
to continuado, sem cortes nem indicações. O difícil é No caso de Freyre, o Guia funciona como o es-
encontrar um ponto de referência. Especialmente paço literário onde, escapando aos compêndios de
porque o livro carece de paginação e porque o estilo história, às publicações eruditas e aos livros grandes e
livre e evocativo do autor responde menos a uma or- solenes, se incorpora esse outro Recife não oficial. O
dem cronológica que a um método de exposição pes- Recife do pirata inglês Lancaster, saído quase de uma
soal. novela de Stevenson; o Recife do Conde Maurício de
De que método falamos? De um método que, Nassau e seu séquito de homens louros, que cons-
combinando a pesquisa sociológica e a expressão li- truiu o primeiro observatório astronômico na Améri-
terária, busca distanciar-se da árida exposição históri- ca, o primeiro jardim zoológico, e dois palácios à
ca ou numérica recriando os fantasmas do passado e margens do rio – um deles, o de Vrigburg, cercado de
dando cor e som aos ambientes locais. Passado e pre- coqueiros e das mais belas árvores tropicais. Uma his-
sente se cruzam em uma cidade que prefere enamo- tória atravessada por pintores, cientistas, eruditos; uma
rados sentimentais a admiradores imediatos. Recife cidade pioneira que por algum tempo reuniu "a po-
aparece retratada como uma cidade híbrida, marcada pulação mais heterogênea do continente – louros,
pelas influências culturais mais diversas. morenos, pardos, negros – catholicos, protestantes,
Comparando um guia oficial publicado em vá- judeus – portuguezes, caboclos, flamengos, africanos,
rios idiomas em 1935 pela Prefeitura Municipal do inglezes, allemães – fidalgos, soldados de fortuna,
Recife – Guia da Cidade do Recife – com o Guia de christãos novos, aventureiros, plebeus, degredados –
Freyre as diferenças são evidentes. O Guia da Prefei- gente das mais diversas procedências, credos, culturas
tura Municipal caracteriza-se pela objetividade da que aqui se misturou, fundindo-se num dos typos mais
apresentação. É informativo, claro, oficial, prático, suggestivos de brasileiro; o Recife das revoluções, dos
utilitário. Porém por detrás da pretendida objetivida- crimes, das assombrações, das cabeças de padres
de se esconde todo um panorama "nacionalista" da ideologos rolando pelo chão, dos phantasmas de mo-
cidade e da "alma pernambucana". A linguagem do ças appareçendo a frades devassos, dos papa-figos

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pegando menino, de maridos ciumentos esfaqueando "Para vêr um banho popular, vá ao Pina. O europeu
mulheres, das serenatas de rapazes, pelo Capiberibe, achará curiosissimo, num banho como o do Pina, a
nas noites de lua – todo esse Recife romantico, mal variedade de côr da gente recifense. Domina um mo-
assombrado, passa despercebido ao turista." reno avermelhado, mas vêem-se de todas aquellas
Recife é o ponto de contato entre o global e o 'côres de fructo' que Lafcadio Hearn achou tão bonitas
regional. Na cidade esteve Charles Darwin, atraído nas mestiças de Martinica. Desde um amarello cor de
pelo caráter especial da formação geológica das rocas casca de banana ao negro lustroso, azulado, quasi afri-
do litoral. Sobre essas formações rochosas escreveu cano. A mulatinha do Recife, esta é um encanto, e seu
Darwin um ensaio: On a remarkable bar of sandstone quindim tem admiradores illustres, tanto entre
of Pernambuco on the coast of Brazil. Porém o prazer recifenses antigos como entre forasteiros."
do leitor deriva menos do conhecimento da viagem Este elemento popular distingue o guia oficial
do naturalista inglês a Recife que de uma curiosa iden- do guia sentimental. Ele está nas descrições das pro-
tificação proposta no Guia: Darwin e Cabelleira. Em cissões religiosas, nas canoas dos pescadores, nas su-
duas casas os moradores lhe proibiram a passagem perstições, no culto do recifense pelo mar, nos pas-
pelo fundo do quintal. É possível que o naturalista seios de lancha pelo Capibaribe, nos mercados, nas
inglês, escreve Freyre, "feio como era, tivesse feito esquinas das ruas velhas, nos vendedores ambulan-
medo às mulheres e creanças, horrorisadas talvez com tes, no carnaval, nos xangôs. E a maneira de apresen-
as barbas e o cabello grande do extrangeiro, num tem- tar o material está orientada pela vontade de recriar,
po em que por toda a Provincia era ainda enorme o ante os olhos do leitor, a presença sensual do objeto
pavor do Cabelleira: Fecha a porta Rosa/ Cabelleira descrito. "A cidade está cheia de vendedores ambu-
eh vem/ Matando mulheres/ Meninos também!" lantes – de peixe, de macacheira, de fructa, de
Recife está favoravelmente localizada na rota gallinha. De manhãsinha cedo elles já estão gritando:
do comércio. Os vínculos com o exterior são múlti- banana prata e maçã madurinha! Machacheira!
plos, seja por linha aérea ou marítima. Na primeira Miudo! Figo! Curimã! Sioba! Tainha! Cavalla perna
edição do Guia aparece inclusive o Zepelim como de moça! Dourado! Carapeba! ... O freguez de
meio de transporte aéreo. De fato, o Zepelim tinha gallinha vem a cavallo, com dois cassuás ou garajaus
no Recife a principal estação de América do Sul. Foi cheios. O negro velho das ostras vem com um balaio
Recife a primeira cidade brasileira alcançada pelos enorme à cabeça e gritando: Ostra! É chegada agora!
aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura é chegada agora, é chegada agora! O de vassouras e
Cabral em seu memorável vôo de Portugal ao Rio de espanadores faz verdadeiros discursos, treme a voz,
Janeiro em 1922. Foi também a primeira cidade ame- canta que nem um napolitano: Olha o vassoureiro!
ricana que recebeu os aviadores espanhóis do Plus O vassoureiro vae passando! O vassoureiro vae em-
Ultra no famoso vôo de 1926. bora!".
A relação da cidade com os estrangeiros ingle- A mesma vontade de "presença" que recobre a
ses, holandeses, norte-americanos e franceses (os por- informação relativa a igrejas e conventos se nota na
tugueses não são considerados estrangeiros) está vi- descrição de promessas, festas, missas, pontes, ruas,
vamente registrada na descrição das tradições, mercados e comidas. É como um segundo texto invi-
vestimentas, gostos, rituais e festas de seus habitan- sível que se adere ao primeiro, onde os emblemas
tes. Dos ingleses deriva grande parte da moderniza- urbanos e os rituais sociais convergem no que Gastão
ção da cidade e a divulgação de esportes como o tê- Cruls definiu de "narrativa precursora que faz presen-
nis, o futebol e as corridas de cavalos. Também o uso te o passado". Um observador participante: a empatia
de chá, do pão, da roupa branca, do whisky – que do sujeito se projetando nas cenas cotidianas da cida-
alguns bebem pernambucanamente misturado com de. E os sentidos se impondo sobre a barreira criada
água de coco. Os franceses foram famosos como en- entre o viajante e a cidade. Sociabilidade franciscana,
genheiros, costureiros, retratistas, cabeleireiros, car- popular, fraternal e sensual que, segundo Benzaquen
pinteiros. São exemplos que privilegiam a história dos de Araújo, diminui o relacionamento indireto com o
contatos entre as culturas e rastreiam as genealogias exterior, minimizando os conflitos e as distâncias.
das tradições. Se, por um lado, Recife aparece como uma ci-
Recife tinha na década do 30 uns 400.000 ha- dade cosmopolita, por outro "cheira a fructa". Na des-
bitantes. Era a época em que começava a populari- crição dos mercados estão os passeios do olho socio-
zar-se o banho de mar. Em particular, nas praias de lógico, observando, provando, dialogando, rastreando
Boa Viagem e de Olinda. Porém o Guia apresenta, a origem distante de algumas tradições e examinando
em adição ao banho chique de Boa Viagem e de o processo de adaptação ao contexto local. Igualmente
Olinda, uma opção popular: o banho de mar em Pina. o carnaval ilustra a combinação de diversas tradições

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culturais. "Hoje, o carnaval do Recife guarda muita cotidiana: ruas de bairros, mucambos, telhados de
reminiscência dos cantos e das dansas dos antigos es- casas velhas, vendedoras de bonecas de pano, um
cravos; a marcha-de-carnaval recifense tem alguma canoeiro, uma negra de xale, estivadores no cais de
cousa de banzo africano no meio de sua alegria quen- Apolo, jangadas, um menino vendedor de balaios.
te e contagiosa; os clubes, alguma cousa de velhos cul-
tos totemicos e animistas, é claro que já muito dissi- _______________________
mulados. O turista achará bem interessante assistir a
um carnaval no Recife, em que a esses traços africanos
se misturam alegrias e brinquedos europeus. Confetti.
Lança-perfume. Serpentina. As phantasias tradicionais
dos europeus. Carros allegoricos. Corso."
Menos conhecidos para os turistas, como para
muitos recifenses, eram os xangôs. Na década de 30
ainda havia vários em Recife. Uns em mucambos, à
sombra de grandes gameleiras ou entre coqueiros,
outros em casinhas de barro. O turista devia encon-
trar um guia idôneo para ir a um xangô. Eram, segun-
do Freyre, verdadeiras religiões, "com suas dansas, seus
maracás, seus santos a que se fazem sacrifícios de co-
mida e de azeite de dendê, seus paes de terreiro, suas
gallinas pretas, seus ramos de Jurema, suas folhas de
macunha que fumadas fecham o corpo do crente e
lhe dão sonhos de amor. Josephina Minha Fé, a
pretalhona mais sympathica do Recife, tem um
cavallinho de pao a quem se fazem pedidos como a
um ministro ou politico, escrevendo uma petição e
botando papel por baixo do bicho. No dia seguinte
Josephina tira o papel e lê mysticamente o despacho."
Estava a baiana Joanna, de Bomba Grande, que
trabalhava com galinha negra, e uma porção de seitas
africanas. A de Cosme e Damião, a de São Sebastião,
a de Santo Antônio, a de Xambá, a de Obaruidá, a de
Obaomim, a de Pai Adão, que havia estado na África
e falava iorubano. O clima de verão constante, os
passeios pelos parques, a riqueza da flora e da fauna,
são informações correntes sobre a cidade de Recife.
Completam o Guia prático, histórico e sentimen-
tal da Cidade do Recife uma série de desenhos e foto-
grafias. O texto está ricamente adornado. A cada pá-
gina corresponde uma ilustração que cobre grande
parte da página seguinte. A história da cidade está
visualmente narrada na caravela, na figura do Conde
Maurício de Nassau, nas várias fotografias do Recife
antigo. Recife em tempos dos holandeses; o mercado
de escravos do Recife colonial no princípio do século
XIX; Recife em 1848 e em 1878, com seus sobrados e
bondes à tração animal; Recife no início do século XX
e em 1934.
Muito bem representadas estão as igrejas. O
mesmo não ocorre com a arquitetura política, sobre a
qual encontra-se apenas uma referência: o Palácio da
Justiça. Uma única foto do poder político, confirman-
do o desinteresse de Freyre pela arquitetura oficial. A
maior parte das fotografias representam cenas da vida

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MESA-REDONDA 7
REGIÃO E TRADIÇÃO

Dia 23 de março
COORDENADOR:
Carlos José Garcia da Silva
Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco – Brasil
Dona Sinhá, o Filho e o Dogmatismo
Exorcizado

Elizabeth Marinheiro
Escritora – Universidade Federal da Paraíba – Brasil

1964! Rio de Janeiro, editora José Em sua defesa da vida comum, Michel
Olympio. Dona Sinhá e o Filho Padre sai às de Certeau reconhece gêneros de discurso ex-
ruas dizendo que por aqui "amor, amizade, purgados pela razão científica em busca de
religião e sexo se confundem do começo ao lugar próprio e marca "o imenso campo de
fim ". Insinua-se já a parceria das vozes uma arte de fazer diferente dos modelos que
encapsuladas no espaço estereográfico da reinam de cima para baixo da cultura habili-
narrativa gilbertiana. tada pelo ensino". Pegando esta "carona", de-
Inspirada pela construção artesanal da fendo a ordinariedade de Dona Sinhá não
obra, elegi dois pilares que se destacam no como número ou vitrine. O vaivém bem
texto, vinculando-os à estória do menino e à humorado do texto empina um dia-a-dia que,
estória da obra. Em seguida, procurei obser- não se prendendo "no passado, nas zonas ru-
var até que ponto Dona Sinhá debilita os rais ou nos primitivos", junta os "escritos de
dogmas. Se produzi uma "colagem", não im- vosmicê" e as etimologias gregas estudadas por
porta... Afinal de contas que Teoria Literária Paulo Tavares em Oxford; o mau olhado da
terei criado eu?... Certa estou de que tentei velha do Pátio do Terço e os melhores remé-
uma espécie de multiperspectivismo crítico, dios da Europa; as avenidas de Paris e as va-
não para obter interpretações definitivas e sim randas dos sobrados recifenses, onde o mu-
para me afastar das gramáticas autoritárias. lherio sem fregueses gritava palavrões. Em vez
de reenviar à uniformidade do consumo
A estória do menino mediático, a ordinariedade em Dona Sinhá
Remetendo ao saber comum, a estó- representa aquilo que a sociedade tem de
ria do menino envolve um entrelaçamento inarraigável: os gestos de cada dia integram
de lexias históricas, científicas, artísticas, os contratos da própria existência.
genealógicas e gastroliterárias; estas – ao lado Por meio da interdependência, a cida-
de outras procedentes das formas simples e de também encena a família. O corpus do
do discurso da moda – evidenciam os afluxos saber, ligado "por uma solidariedade final" à
da voz do saber. voz da pessoa, produz os significados de
Do ambiente católico-patriarcal deriva- conotação que aquecem "a verdade" textual.
se a temática da infância e, através dela, pode- Haveria, pois, que enfocar Dona Sinhá, a mãe
se filtrar o espaço da cidade. Se a cidade "é castradora; Inácia, a mucama supersticiosa e
por excelência lugar de circulação incessante submissa; Paulo Tavares , um tropical-
– de pessoas, coisas, imagens, símbolos de to- estrangeirado. Detive-me apenas no menino
dos os tipos", posso olhar o cenário de Dona José Maria, pondo em relevo algumas impli-
Sinhá como poliedro entramado em variações cações técnicas e estéticas, o que faço sem
e trocas. Por essa perspectiva é possível expli- nenhuma pretensão psicanalítica.
car a articulação do imaginário espacial reli- O menino escapa de uma diarréia. Irá
gioso com as "astúcias" do cotidiano urbano. ser padre em cumprimento ao voto da mãe
A obsessão atávica do narrador e sua volun- repressora. Alvo, cabelinhos alourados que
tária remissão às romarias de Santo Amaro, às nem os anjos, preso às saias e beatices de
procissões de Ipojuca, à moda Paris/Recife, Dona Sinhá, a criança é logo objeto da zom-
etc. sugerem aproximações entre grandes ca- baria coletiva. Efebo precoce. Muito cedo
pitais e pequenas cidades. Não se trata da ade- descobre o prazer do sexo. Os "dedinhos"
são ao exótico porque o traço aproximativo eram seu principal instrumento erótico: des-
incorpora-se à análise. montava gaitas, bonecos, lagartixas. Amolegar

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a "piroquinha", no banho morno, passou a ser seu seu discurso.
maior segredo e, assim, "guardava consigo o seu peca- As estratégias infraliterárias – antes
do de menino já sem inocência". A paixão por Paulo secundarizadas e recusadas – interagem com o literá-
Tavares. Beijos e agarrados que nunca atingiriam os rio, aquecendo a dinâmica da arquitextualidade. En-
"extremos da realização pessoal". Interno, no seminá- quanto os discursos jornalístico, ensaístico, histórico
rio de Olinda, José Maria não conseguia abafar a ima- e biográfico são mais explícitos, o diário, a carta e o
gem de Paulo: sentia "um cheiro de sexo reprimido bilhete não se assumem como tal na textualidade de
mas não vencido". Antes de se tornar sacerdote, ado- Dona Sinhá. Maximizei a vertente biográfica por sua
ece. É levado de volta para casa e, inobstante a luta cumplicidade com o eu e, conseqüentemente, com a
da mãe, José Maria morre de tísica, sem nenhum si- memória.
nal de dor, porém esboçando "uma espécie de procu- Na oscilação da representação mimética, a pri-
ra de outra boca que o beijasse na sua própria boca". meira pessoa biparte-se: há o eu que se ocupa do
A excitação provocada pela água que, em ne- relato familiar e outro eu que, através de subgêneros,
nhum momento, liberta José Maria do si mesmo; o questiona as dicotomias autor/escrita e realidade/fan-
culto aos peixes, metáfora do seu mundo fechado; o tasia: "Mas afinal que estou escrevendo é ensaio ou
deleite das mãos que dilaceravam brinquedos e pás- romance? Dissertação ou novela?” E mais: "Como é
saros porque desejavam saber "Como seria a tetéia então que minha Dona Sinhá e a real coincidiam em
por dentro?" são situações que complementam o tema tanta coisa".
da repressão sexual, sublinhando o percurso do lúdico Ao gravitar entre os dois "eus", a memória trans-
enquanto gozo. cende o jogo gênero/contragênero, expondo sua pro-
Ao reconstituir quadros do viver familiar, pensão transfigurante. Não sendo mera propriedade
priorizando manifestações pre-genitais da sexualida- modal, ela favorece o enfraquecimento do repertório
de infantil, o narrador abala as "perigosas urgências puramente factual, como se quisesse desfazer a cha-
de expressão pessoal". Considerando-se que a visão mada "ilusão autobiográfica". Poderá não se estatuir
da criança é substituída pela visão que ele (narrador) como modo fundacional de Literatura, mas, no mo-
tem da infância, é fácil admitir que, no momento da mento em que intensifica a reversibilidade fato/ficção,
rememoração, a retrospectiva passada, acoplada ao a memória de Dona Sinhá é um tipo de conhecimen-
presente da escrita, alavanca os dois imaginários (cri- to que acredita nos possíveis.
ança/escritor) em função do embate modal da narra- A meu ver, o agenciamento da memória acele-
tiva. ra a p o l i m o d a l i d a d e , ou seja, a instância
Por sua mobilidade, a enunciação total passa a homodiegética não protagoniza a primeira pessoa e
sinalizar o trajeto sublimado do "maricas", atraído tan- a atitude interventiva possibilita juízos e comentári-
to pelos "beijos do amigo másculo", quanto pela ima- os. Por outra via, a conjugação foco onisciente/foco
gem de São Luiz Gonzaga, "santo de sua preferência". interno penaliza a visão externa e, conseqüentemen-
Agarrado ao que lhe falta e guardando o silêncio de te, as expectativas em torno dos atores. Apresentan-
suas pulsões, ele é um "está a mais" ao sabor dos ou- do como lhe apraz a interioridade dos personagens e
tros e das circunstâncias. Nesta paisagem, simultane- desmantelando a ótica monológica, o narrador
amente cenográfica e diegética, as práticas cotidianas gilbertiano favorece as digressões, "elemento funda-
proliferam e o comportamento incomum represa a mental da obra" e assegura as semelhanças do eu-
conduta mecânica da urbs. narrador com o eu-narrado, numa demonstração de
Órfão apenas de pai, o menino conota que entre ambos existe aquela "relação ambígua e
emparedamento, assemelhando-se ao solitário que complexa de continuidade e ruptura", pontuada por
vive como "ostra fechada" num intrincado duplo que V. M. de Aguiar e Silva.
possibilita várias abordagens do real. E sua estória as- Depreende-se, portanto, que a precária distin-
socia-se ao estrangeiro que "não enuncia sua ção entre discurso de narrador e fala de personagem,
discordância" e "se enraiza no seu próprio mundo de ligada à freqüente utilização da focagem múltipla, dis-
rejeitado" . pensa buscas em torno de Paulo como retrato literá-
rio do autor e/ou de José Maria como uma das másca-
A estória da obra ras do narrador, mesmo que pesem as analogias
Uma leitura rigorosamente técnica vincaria os biográficas entre escritor e obra.
paratextos, arquitextos e focalizações que alicerçam Ao escapar do isto ou aquilo, a narrativa man-
Dona Sinhá e o Filho Padre. Ao meu exercício bastará tém a suplementariedade indiciada desde o subtítu-
pinçar algumas referências arquitextuais, já que, lo, onde o signo SEMI denuncia a contaminação e a
nesta obra, o narrador é produtor e testemunha do recíproca interpelação do linear com o implausível.

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Enunciando constantemente o desenvolvimen- permutando o especular por um saber feito de mo-
to do seu projeto narrativo, o sujeito obedece/amea- mentos díspares. A enunciação globalizadora rompe
ça, batiza/desbatiza, na atitude de quem "arrisca re- leis fixas e o sujeito-narrador, ao largar o seu eu, se-
duzir ao caos o seu pensamento e a sua palavra". A gue procurando "acumular experiências passadas e
fusão transtextual, imbricada nos conflitos do narrador inventariar as possíveis". Daí, toda a significação de
com a escrita, põe os antagonismos em equilíbrio, mar- seu timbre vacilante. É Gilberto Freyre teatralizando
cando a perplexidade ante as hierarquias genológicas. o enigma!
Entretanto a concomitância dos dois pilares nar- Noutra clave, a construção dos personagens
rativos, interpostos pela memória, reescreve uma também camufla os dogmatismos. Dona Sinhá, por
montagem que produz o "efeito real", confirmando o exemplo, é a personagem detonadora dos
corte nas relações verdade/ilusão. O simultaneísmo questionamentos em torno de verdade e ficção. Pro-
modo vital x modo estético metaforiza as zonas não- vam-nos os reiterados comentários do narrador. "É
demarcadas do não-ser em trânsito. certo que eu vinha imaginando fazer de uma Dona
Sinhá, talvez semelhante àquela, personagem de uma
O recalcamento dos dogmas espécie de romance em que ela aparecesse ao lado do
Baseada nos tópicos anteriores, convenho que filho padre. Agora, para meu assombro, essa figura fic-
a ausência de uma imago-princeps transforma Dona tícia me declarava que não era fictícia: que existia".
Sinhá num "tabuleiro de gostos", sem curvar-se a ne- A indecisão diante das duas "sinhás" tece o dile-
nhum deles. A mescla, sustentada pelas inclusões ma que se alastra no texto. Reafirmadas as tensões
mútuas, põe o saber-memória (lembranças) em entre a cópia e o original, tem-se a verossimilhança
contraponto com a memória-saber (experimentação), do narrado, constituída pela própria seminovela, e a
consumando o ritual de iniciação em que se converte verdade do factum, corporificada na "Dona Sinhá" do
o saber-fazer gilbertiano. bairro recifense: "O processo dessa transformação de
Recorro a esse saber-fazer para matizar algu- original em cópia era se não um mistério, uma série de
mas rupturas, em obra publicada nos anos 60. Numa coincidências", esclarece o narrador-artifice.
primeira visada reporto-me aos desvios do cotidiano Mais uma vez a relação dialética da verossimi-
urbano, os quais desafiam a horizontalidade das ce- lhança reunifica o existente e o poético, de modo que
nas. Mais topológica que tópica, Dona Sinhá circula as "sinhás" modificam o ato, mas permanecem prisio-
em espaços diversificados, visita personagens de cen- neiras dos confusos arranjos que articulam identida-
tro e periferia, acolhe a prosa dos dias, e o faz sem des alternativas. É Gilberto Freyre perseguindo as téc-
nenhum teor nostálgico. A ordinariedade, portanto, nicas de um inquérito.
entra como recurso necessário à troca dos saberes! Outra marca da descanonização é o desenvol-
Ela não remete (é claro...) às prateleiras dos gadgets, vimento do homossexualismo masculino. Limito-me
porém a tematização dos costumes citadinos equiva- ao caso José Maria x Paulo Tavares, embora o texto
le à combinação de estilos de uso trabalhados artisti- aponte deformações sexuais entre padres e freiras. O
camente. É Gilberto Freyre desenhando o dia-a-dia tema da sexualidade, colado à infância e à adoles-
como prática informal. cência, é fartura na literatura de muitas épocas. Em
Outro lance: a miscigenação arquitextual não Dona Sinhá, já o disse, não se tem propriamente a
é um expediente técnico gratuito. Ao minimizar o visão do menino e sim a ótica do narrador que revive
aparato puramente estilístico, ela deverá ser recebida a estória. Todavia, o ângulo homodiegético evidencia
como discurso polimorfo que problematiza a reali- a semivirgindade de José Maria e Paulo Tavares.
dade e põe a memória em tensão heterológica. O relacionamento sexual dos dois personagens
Por um lado, a camada referencial não banali- não vai além dos beijos e agarrados que se sucediam
za a criatividade pois os diversos gêneros de discurso nos escondidos da escola. Numa espécie de gozo
escorregam entre o comum e o excepcional: a mistu- epicuriano, José e Paulo alimentavam um sexualismo
ra elimina as significações prontas. Na qualidade de lírico, "sem decorrências de prática ou de ato erótico".
representação autonímica, Dona Sinhá debruça-se Daí que "o filho de Dona Sinhá não morreu virgem
sobre si mesma porém deixa entrever o outro. É Gil- mas semivirgem".
berto Freyre desestabilizando o estatuto dos gêne- A erupção lírica em que se transforma o sexo
ros. oral destroniza as amigações lúbricas e/ou a conduta
Por sua vez, a vertente memorialista também dos pederastas passivos recorrentes na ficção brasilei-
trai a visibilidade concreta. Tratada como modo de ra. Amizade platônica ou romantização do tema, não
discurso e não como "gênero menor", a memória re- importa. A esta leitura bastará considerar que, se os
laciona-se com todos os eventos da matéria efabulada, agarrados nunca foram aos extremos da realização

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sexual, a seminovela de Freyre nega o preconceito Mesmo reticente diante das qualificações ditas
contra o meio-sexo, vigente em sua época. Ao soter- literárias, Freyre, em sendo escritor canônico, afronta
rar a degradação, a obra desautomatiza o enredo e o os paradigmas do seu momento ao insinuar a tendên-
ímpeto sexual instala-se como purgação. Percebe-se cia extraterritorial. Não se observando o
claramente uma desmontagem no sistema ligado à cosmopolitismo extremado, há que considerar estra-
categoria do gender: Maria permanece mais forte que tégias que exercem e burlam as "divindades territoriais"
José. A infidelidade aos dogmas é uma forma de resis- para que falem as distintas vozes da subjetividade, ou
tência às totalizações. seja, evitando linhas divisórias, Dona Sinhá esboça uma
lógica de dispersão e reunião.
No meio do caminho? Quanto ao espaço intersubjetivo , posso
Sinalizar as infrações ao cânone foi o objetivo. compará-lo à "esfera pública da linguagem e da ação
Entretanto, elaborei um tópico embasador de uma que deve se tornar ao mesmo tempo o teatro e a tela
releitura que estou desenvolvendo acerca da ficção para a manifestação das capacidades da agência hu-
de Gilberto Freyre. Seguem-se considerações (umas mana" (12). Vale dizer que ao desistoricizar os even-
redundantes, outras necessárias) que inserem a con- tos, Dona Sinhá subverte as "grandes narrativas" e pri-
dição modal de Dona Sinhá na luta contra as pontes vilegia o imaginário social, aqui, da comunidade. Ao
que separam e que, a meu ver, é mais um significativo invés da "auto-imagem única", tem-se o dia-a-dia na
avanço do autor em sua época. cidade e na periferia instigando o ritmo mutante e
Falei em ordem existencial, ordem arquitextual. liberatório do presente enunciativo.
Evocação subjetiva do mundo e revulsivos caminhos Se a intersubjetividade é o reduto do social e
dos discursos. Desejo, interdição, modelos do fazer da outridade, não se pode reduzir o texto gilbertiano
literário. Elos da memória. Plano humano e plano à mera tematização das configurações tradicionais do
escritural engendrando verossimilhança e desconfian- contar. Isto porque a cisão de José Maria, o
ça. Ambos os níveis textuais encontraram o denomi- despatriamento de Paulo Tavares, os prá-lá/prá-cá de
nador comum na indeterminação. Recife, os por dentro/fora dos gêneros e do gender
Driblada, a imago-princeps. Uma construção (em ambos os níveis narrativos) engendram um ter-
em disfarce proíbe acordos entre o mistério e a coin- ceiro locus, onde "a identidade é reivindicada a partir
cidência. Traída, a lógica das ações. Adesão aos de uma posição de marginalidade ou em uma tentati-
descentramentos. Contestação à ordem estabelecida. va de ganhar o centro: em ambos os sentidos, ex-
Mantidos, os contrapontos da vida e os contrapontos cêntrica" .
de gênero têm um mesmo destino – o ex-cêntrico. O Eis, portanto, os signos do presente enunciativo
narrador faz-se detetive e sua movência emblematiza confirmando a indecidibilidade do "nem/nem" e/ou
o vir-a-ser. É essa movência que me sugere, talvez a significando a precariedade de uma viagem que só
contrapelo, a feição supranacional emergindo da pode ser entendida a meio caminho de: José Maria
heterogeneidade gilbertiana. tanto é macho como fêmea; Dona Sinhá e o Filho
Desde sua tendência duplicadora, Dona Sinhá Padre nem é novela, nem é romance...
delineia o processo liminar de nação. Não se trata de Ao minimizar o imperialismo da linguagem e o
um novo aparato da nacionalidade ou dos grandes imperialismo cultural, a seminovela cria o clima da
deslocamentos sociais, mas da emergência das mino- "não-sentença". Em sendo um texto atado às margens
rias; de uma antipatia à pureza homogênea, enfim, da sociedade e às margens dos gêneros canônicos e,
de uma certa "re-locação do lar e do mundo". ao mesmo tempo, "incerto quanto a elas", Dona Sinhá
Quando os temas "impuros" e as escritas do si visita todas as rodas para saber quem mora ao lado...
comprometiam a chamada "alta literatura", Freyre Por meio desse roteiro, os apelos extraterritoriais e
desliga-se do etnocentrismo e trava seu diálogo críti- extratextuais não se confundem com astúcias de
co com as "Maria Borralheira" da História... Infensa à Dédalo. Contrariamente, a ordinariedade representa
serialidade sucessiva e transportando a mucama (afri- a cultura fraturada, cujas maneiras de viver parecem
cana?), o moleque, a semivirgindade masculina, a re- recusar o "muitos como um", atingindo o alto coefici-
pressão da mulher, a educação castradora, a obra na ente de hibridização, onde todas "as coisas" perdem
obra desembarca na Recife mestiça e europeizada, o eixo. É na temporalidade do imprevisível que se ins-
trazendo uma dicção mais transnacional do tala o "fora da sentença": as vidas das sinhás, os sexos
sincretismo. A estranheza que embasa as de José Maria, as pátrias de Paulo Tavares conotam o
renegociações do lugar traz à tona questões ligadas espanto na cena dupla da escrita.
ao território, ao espaço intersubjetivo, à não-senten- Em sua marcha para o exterior, Dona Sinhá abri-
ça. ga a contrariedade intrínseca, mantendo uma dança

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metafórica. Como metáfora do inquérito, ela modaliza se admitir que em Dona Sinhá e o Filho Padre fala-se
o processo investigador, mas as conjeturas quedam- sobre e fala-se como. Deserdados, refugiados ou exi-
se em aberto. Por aqui, até os retalhos de jornal e lados, os personagens divididos minam a sintaxe
crônica podem ser suspeitos... Até a memória poderá predicativa na obra em que as diferenças não são le-
embrenhar-se na mentira... sadas porque preservadas no contágio imune aos li-
Enquanto metonímia da desterritorialização, mites.
"as várias terras de sua terra" grifam a liminaridade Para mim é difícil forjar uma conclusão... Fren-
fabular e a liminaridade discursiva, como se espaço te à incerteza tudo foge, tudo flutua. A cidade, os ti-
doméstico e espaço genológico correspondessem ao pos, o cotidiano, a trivialidade, os costumes, os obje-
terreno movediço, sem presente pleno, sem passado tos, os cheiros são discursos instáveis porque alterados
eterno. Por tal ótica, as duas memórias "são ligadas pela própria lembrança. Alterada, a memória é mais
através de uma temporalidade intervalar que toma a possibilidade que resposta.
medida de habitar em casa, ao mesmo tempo em que Perplexo, o narrador. Excêntrica e ex-centrica,
produz uma imagem do mundo da história". Esse é o a efabulação. Vítimas das artimanhas da linguagem,
momento em que José Maria, silêncio do não dito e as sinhás, os Josés Marias, os Tavares continuarão no
Paulo Tavares "incapaz de tornar a ser nativo" simboli- não-lugar. Na definitiva descontinuidade do texto, os
zam a incompletude dos marginais e dos integrados. gumes da lâmina escondem um enigma. Enigma que
Reatualizando o mito da Labrys, e s s a a desdogmatização pós-moderna e as diásporas do
seminovela incrementa o que chamo semântica da pós-colonial ainda não responderam...
metade. Por uma brecha, as identificações Ficará a pergunta na estreiteza de uma "meia
ambivalentes, "sempre incompletas ou abertas à tra- passagem"... Ficará o fechamento que não conclui
dução cultural", ratificam e, ao mesmo tempo, com- porque é a "interrogação liminar" do outro lado da
prometem a identidade. Por outra, o vaivém das prá- lei... Ficará a não-definição como momento
ticas discursivas invalida o "era uma vez" e o olhar intervalar.
destorcido de Dona Sinhá despacha radicalmente os Materializando alegoricamente a negação da
"fechos de segurança". Por sua estrutura performativa, figura paterna, Dona Sinhá tem casa, mas é estranha
a semântica do meio instaura-se como soma, onde ao lar. É cidade, mas evoca o mundo. É a cartografia
não há redução da variedade à unidade. Lado a lado, transcultural que vira o dentro para fora, mas perma-
a liberdade da viagem e a simbologia sacrificial do ato nece na fluidez do habitual e do conflitante. Com sua
criador. lógica fundada no suplemento, a seminovela de Freyre
Claro está que o deslizamento enunciativo trans- procura dizer tanto isto quanto aquilo.
forma a hesitação na poderosa invariante que domi- Finalmente, há que vincar o sotaque precursor
na todos os níveis da leitura. Nesses territórios em que dessa seminovela, publicada nos anos 60: o dia-a-
a única lei é a ambigüidade, a crítica contrapontística dia como prática informal; a desestabilização dos gê-
reinscreve a diversidade cultural nas tensões da cida- neros; a presença das técnicas da ficção-inquérito; as
de. Carregando os significados metafóricos do "sentir- aporias do falso-verdadeiro; os temas "impuros" e o
se em casa", o cotidiano urbano torna-se o espaço homossexualismo sublimado prenunciam as teorias
"obscuro e úbiquo de viver" as instâncias da alteridade. híbridas da atualidade.
Será, portanto, naquele "algum ponto" que Dona Sinhá Órfãos de pai, Paulo Tavares recorda a França
é estranha para si mesma e Recife, figura doméstica, que já não habita e José Maria, o macho que já não
projeta "a condição de exílio". No exílio, José Maria é possui. Na fenda, eles não decidem entre um lá e um
um estranho para seu próprio corpo; Paulo Tavares, cá porque Dona Sinhá vai se dirigindo para lugar ne-
para sua comunidade; o fazer arquitextual, para o nhum. No entre-tempo da recordação e/ou nas
cânone. intersecções espaço-temporais, algo começa a acon-
Ao realinhar a perspectiva estrangeira, a prer- tecer...
rogativa metafórico-metonímica da metade consoli- Para além da demanda descanonizadora, Gil-
da a dimensão transcultural da ficção gilbertiana. Ao berto Freyre não viajou para ver-se a si mesmo. Numa
tempo em que cidade e textualidade – permanente- antevisão da identidade híbrida e dos conceitos alter-
mente em confronto com seus duplos – rompem as nativos da nacionalidade, ele escolheu a terceira
grades, os atores de Freyre vagueiam entre o "um no margem para escrever a nação com a fala dos exclu-
outro" e o "como outro": alienados em suas geografi- ídos. Tudo isso quando o nacional era enquadrado
as, assemelham-se aos viajantes que partiram do nada na lógica redutora!
e da ausência. Encerro com a sensação de que o migrante de
Se a medida liminar é morada da dúvida, pode- Apipucos antecipa a citação indo-britânica: "Sou a

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favor de outro lugar e de outra coisa".

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Região e Tradição no Jovem Gilberto
Freyre

Vamireh Chacon
Cientista Político – Univesidade de Brasília – Brasil

Região e tradição: fatores de permanen- Pará, Pernambuco ou Ceará com São Paulo,
tes tensão, entre outros subjacentes em mais Rio Grande ou Paraná?"
uma das várias globalizações atravessadas pelo Num País tão extenso e diversificado e
mundo, por conta de sucessivas ondas de re- de população tão grande, tem-se de pensar
novação tecnológica. regionalmente, mesmo para entendê-lo naci-
Região e Tradição: retrato do artista onalmente.
quando jovem, como diria James Joyce, auto- Diante de Franklin Távora no próprio
retrato de jovem Gilberto, véspera do seu prefácio ao seu romance O Cabeleira de 1876
desabrochamento, Casa-Grande & Senzala – "uma verdade irrecusável": "Norte e Sul são
publicado em 1933, iniciado em Lisboa, 1931, irmãos, mas são dois". Cada um tem suas as-
está no prefácio à primeira edição; prossegui- pirações, seus interesses, e há de ter, se já não
do na Universidade de Stanford, Califórnia, tem, sua política"– e perante o Euclides da
concluído no recifense Sítio do Carrapicho de Cunha do ensaio magistral, porque científico
volta do exílio pela Revolução de 1930 da e épico, Os Sertões, 1902 – "Duas sociedades
Aliança Liberal. (Norte e Sul) em formação, alheadas por des-
Região e tradição será, para Gilberto tinos rivais – uma de todo indiferente ao modo
Freyre, um dos temas do nosso tempo, no sen- de ser da outra, ambas, entretanto, envolven-
tido orteguiano recorrente em outros dos fu- do sob os influxos de uma administração úni-
turos, os que ora vivemos, como se verá em ca" – diante disto Sílvio Romero preferia "afir-
Insurgências e Resurgências: uma das obras de mar a unidade na multiplicidade".
final de vida. Enquanto o Presidente Artur Bernardes,
Região e tradição: inspirações da Sema- envolto pelas agitações até armadas que le-
na Regionalista de 1926 e do livro Nordeste varão em breve à Revolução de 1930, suspei-
de 1937. Sem bairrismo nem saudosismo, José tava de separatismo na Semana Regionalista
Lins do Rego entendeu-o muito bem no pre- nordestina de 1926, já em 1924 um certo
fácio a Região e Tradição, livro: "O Brasil pre- Moraes Coutinho, na revista Ilustração Brasi-
cisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às leira no Rio de Janeiro, nº 46 de junho de
suas fontes de vida, às profundidades de sua 1924 (primeiro centenário da Confederação
consciência". do Equador), distinguia "federalismo centrífu-
Já Sílvio Romero em sua História da Li- go" estadualista e "federalismo centrípeto"
teratura Brasileira, 1888, mostrava como "não regionalista. E José Lins do Rego, no artigo
sonhamos um Brasil uniforme, monótono, Contra o Separatismo no Jornal de Alagoas de
pesado, indistinto, nulificado, entregue à di- Maceió em 18 de janeiro de 1931, lembrava
tadura de um centro regulador das idéias". "A que "a experiência nos diz, uma separação
grandeza futura do Brasil virá do desenvolvi- seria mais uma ruína, seria o calabrote estran-
mento autonômico de suas províncias, hoje geiro como no Egito e a Índia".
estados". Pois, "se não é possível confundir as Desde 1926 que Gilberto Freyre insis-
populações do Norte com as do Sul em pe- tia que "a maior injustiça que se poderia fazer
quenos países europeus; se é exata a diferen- a um regionalismo como o nosso seria con-
ça entre o Algarve e o Minho, a Provença e a fundi-lo com separatismo ou com bairrismo.
Normandia, a Suábia e o Meclemburgo, o Com anti-internacionalismo, antiuniversalismo
Piemonte e Nápoles, a Escócia e a Inglaterra, ou antinacionalismo. Ele é tão contrário a
as Astúrias e a Andaluzia, em pequenos Esta- qualquer espécie de separatismo que, mais
dos da Europa, por que se hão de confundir o unionista que o atual e precário unionismo

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brasileiro, visa a superação do estadualismo, lamen- regiões não apenas brasileiras como lusotropicais";
tavelmente desenvolvido aqui pela República – este ainda mais quebrando "a ilusão de ser o Brasil cultura
sim, separatista – para substituí-lo por novo e flexível ou nação monolítica em seu modo de ser cultura ou
sistema em que as regiões, mais importantes que os de ser nação".
estados, se completem e se integrem ativa e Também não é verdade animar-se o regionalis-
criadoramente numa verdadeira organização nacio- mo, ou regionalismos, gilbertianos, com saudosismos,
nal". tanto assim a importância pioneira do ecologismo
Daí a convocação gilbertiana já de 1926: "Os neles. E mais, ainda a palavra com o próprio Gilberto:
animadores desta nova espécie de regionalismo de- "Não é exato ter eu, quando moço, iniciado um 'movi-
sejam ver se desenvolverem no País outros regionalis- mento literário' no Recife que tenha sido um movi-
mos que se juntem ao do Nordeste, dando ao movi- mento 'tradicionalista' ao mesmo tempo que
mento o sentido organicamente brasileiro e até antimoderno. Ao chegar, em ano já remoto, ao Recife,
americano, quando não mais amplo que ele deve ter". não dos Estados Unidos, mas da Europa, a orientação
Portanto, de nordestino a brasileiro, ibero e latino- que procurei opor aos 'ismos' então em voga em nosso
americano, universal. País, foi a de valorizar ao mesmo tempo estes aparen-
A convocação foi ouvida: na presidência tes contrários: região, tradição e modernidade".
Kubitschek surgiram as grandes experiências de pla- Região e Tradição, 1941, é onde estão reuni-
nejamento regional da Sudene no Nordeste, Sudam dos, por Gilberto Freyre mesmo, seus textos, repita-
depois Suframa na Amazônia, Sudeco no Centro- se, da adolescência à maturidade, o período de for-
Oeste, Sudesul no Sul do Brasil. Grandes experiênci- mação do artista quando jovem a caminho de
as merecedoras de grandes avaliações. Casa-Grande & Senzala. Numa grande coerência, a
Qual a definição metodológica gilbertiana de acompanhar-lhe nisto o resto da vida, o concluinte
região, base dos regionalismos? do curso secundário, hoje se diz segundo grau, após
A resposta está logo na primeira página do pre- dez anos no Colégio Americano do Recife, numa
fácio de Gilberto Freyre ao seu Nordeste de 1937, antevisão de suas contínuas posições futuras o quase
atente-se bem à data, quando Ecologia ainda era pou- menino de dezessete anos afirmava: "É tempo do Brasil
co conhecida e longe de tornar-se modismo: "Este desapegar-se das fórmulas vagas, procurando ver e
ensaio é uma tentativa de estudo ecológico do Nor- observar os seus problemas em vez de ater-se ao que
deste". "O critério deste estudo já disse que é um cri- está escrito nos livros estrangeiros". "Não sejamos
tério ecológico": "O homem colonizador, em suas re- meros ideólogos nem simples utilitaristas práticos".
lações com a terra, com o nativo, com as águas, com Sete anos depois, 1924, de volta do bacharela-
as plantas, com os animais da região ou importados do e mestrado nos Estados Unidos, numa época em
da Europa ou da África". que raros o faziam lá, pois costumavam preferir a Eu-
Até então, década de 1930, confundia-se nou- ropa principalmente França, retorno ao Brasil pela
tras partes do Brasil o Norte com Nordeste, como se Inglaterra de Oxford, foi no Teatro Santa Rosa da ca-
vê no título do ensaio crítico de Alceu Amoroso Lima- pital da Paraíba – terra de José Américo e José Lins
Tristão de Athayde sobre o romance A Bagaceira de tão ligada a Pernambuco – onde Gilberto Freyre faz
José Américo de Almeida em fins da década anterior: seu primeiro grande pronunciamento no Brasil, em
Romancista ao Norte. A partir de 1937 foi que Nor- meio a artigos de jornais, a Apologia pro generatione
deste de Gilberto Freyre fixou a distinção, mais que sua. Título inspirado no grande convertido Newman,
terminológica, entre as duas macro-regiões, cada uma admiração que também acompanhará Gilberto Freyre
subdividida em tantas mais; daí ser o próprio Gilberto para sempre, ao dizer ali: "Os da mesma geração so-
quem publicará, na Coleção Documentos Brasileiros, mos uns como compatriotas ligados uns aos outros
por ele inicialmente dirigida na Livraria José Olympio pelos destinos comuns e pelos deveres de lealdade
Editora no Rio de Janeiro, o livro de Djacir Menezes recíproca". Jacques Maritain, outra das antecipações
O Outro Nordeste, anunciado e previsto naquele pre- gilbertianas no Brasil, ali já vem citado.
fácio de primeira edição do Nordeste gilbertiano. Mas estes e vários mais estrangeiros referidos,
Em 1963, numa conferência no Instituto de apenas contribuem para fortalecer o jovem de vinte e
Antropologia Tropical da Faculdade de Medicina da quatro anos na brasilidade: "Também à geração nova
Universidade do Recife, depois Federal de do Brasil se impõe uma série de retificações e de com-
Pernambuco, Gilberto Freyre voltava sua atenção à pensações, em relação com excessos dos antecessores",
Amazônia nas pegadas de Arthur Cezar Ferreira Reis "em continuação ao começo de reação contra elemen-
e seus discípulos Leandro Tocantins e Samuel tos artificiais de economia e de cultura intelectual e
Benchimol, entre outros: "uma das mais importantes artística que nos impuseram aqueles líderes (da pro-

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clamação e implantação da República), procurando de viagem como Kidder e Fletcher, entre tantos.
desenvolver entre nós, por simples cópia do estrangei- Daí Gilberto Freyre poder concluir aquele seu
ro, sistemas sem raízes nos nossos antecedentes e nas discurso de gratidão aos que homenageavam mais um
nossas atualidades..." dos seus regressos, a propósito da grandeza das tradi-
Referia-se evidentemente ao positivismo políti- ções e dos valores brasileiros: "Quem os criou, foram
co e ao americanismo institucional republicanos; para os ricos da terra? Foram os governadores? Foram os
combatê-los e a outras estrangeirices, convoca gera- açucareiros? Foram os homens que se gabam do seu
ções, paralelamente ao apelo no mesmo sentido por juízo e do seu senso prático? Foram os deputados?
Ortega y Gasset, de quem Julián Marías foi discípulo Foram os senadores? Não, fomos nós, médicos, inte-
e sucessor, e dos amigos de Gilberto Freyre. lectuais, pintores, trabalhadores, artistas, vigários do
A linha de continuidade telúrica prossegue em interior, babalorixás, estudantes".
Região e Tradição com artigos de 1925 a 1927 no Di- É a História maior, a da nação inteira – povo de
ario de Pernambuco, onde organizará e coordenará a ontem, hoje e amanhã – heróis, todos os que cum-
publicação do Livro do Nordeste, comemorativo do prem sua missão e suas tarefas.
primeiro centenário daquele mais antigo jornal em Estará superado o regionalismo? Relegado a ar-
circulação em toda América Latina. Ao qual Gilberto caísmo?
Freyre então comparece com o artigo-ensaio Aspec- Guenther Ammon na Universidade de Erlangen-
tos de um Século de Transição Social no Nordeste. Sem Nuremberg demonstra, em duas importantes pesqui-
saudosismo e sim com rigorosa crítica, no seu caso de sas, as aproximações regionais transfronteiriças até
nordestino até uma auto-crítica, reconhece: "Com- como entidades administrativas próprias, em A Euro-
parando o Nordeste de 1825 com o de 1925 tem-se pa das Regiões, e, em francês com Michael Hartmeier,
quase a impressão de dois países diversos. A própria Federalismo e Centralismo (O Futuro da Europa entre
paisagem, o próprio físico da região, alterou-se nestes o Modelo Alemão e o Modelo Francês), respectivamen-
cem anos. É outra a sua crosta. Outra a fisionomia". te exemplares, quanto à flexibilidade ou inflexibilida-
Decompunha-se o engenho bangüê agrícola, sob o de de limites estatais mesmo federados, ou confede-
peso da industrialização da usina, no amplo painel a rados. Richard Balme e outros chegam a falar de
ser pintado por José Lins do Rego, em parte por con- neo-regionalismos. É a força das raízes.
fessada influência gilbertiana, como se vê no prefácio Os textos juvenis reunidos em Região e Tradi-
de José Lins a Região e Tradição. ção, mais a Semana Regionalista de 1926 e Nordeste,
Em 1936, de volta de mais uma de suas ausên- têm assim uma validade paradigmática além, muito
cias, embora apenas físicas, do Recife, de Pernambuco, além, do brasileiro Nordeste açucareiro, mesmo com
do Nordeste, do Brasil, em jantar em sua homena- O Outro Nordeste de Djacir Menezes que o comple-
gem, Gilberto Freyre agradece "orgulhoso de suas tra- ta, um Nordeste vindo de Minha Formação de Joa-
dições e dos seus valores, de província e de região, quim Nabuco, o outro de Os Sertões de Euclides da
dentro das tradições e valores brasileiros, luso-brasi- Cunha, duas das admirações gilbertianas maiores.
leiros e hispânicos". Note-se esta outra recorrência, a
da iberidade, Gilberto nela continuará insistindo mui- _______________________
tas e muitas vezes, chegou até a pensar em reuní-las
num livro intitulado Um Brasileiro na Espanha, ou
mesmo nas Hispânias, ou sob o título O Ibérico e o
Trópico, em suas obras completas.
Além de não ser bairrista, nem saudosista, o
regionalismo gilbertiano também não é elitista,
lembremo-nos sempre que em Casa-Grande & Sen-
zala e Sobrados e Mucambos, ainda por isso pionei-
ras, há uma história social sem heróis convencionais,
individualmente famosos; os heróis são o povo brasi-
leiro: os escravos, os senhores, as donas-de-casa, as
mucamas, os trabalhadores então já livres, até os es-
trangeiros menos imigrados que em trânsito. Portan-
to, mesmo os pastores protestantes missionários, não
só padres e freiras: missionários presbiterianos e
metodistas escoceses e anglo-americanos, inclusive
com grande capacidade documental em seus diários

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179
O Regionalismo da Tradição na Perspectiva
Nacionalista: a Identidade Regional Segundo
Gilberto Freyre

Giralda Seyferth
Antropóloga – Museu Nacional – Brasil

Num pequeno trabalho voltado para o Os textos de Gilberto Freyre enfocando


tema da "crise de identidade" do indivíduo temáticas regionalistas são importantes para
moderno, Stuart Hall afirma que as culturas compreender a dinâmica da construção e re-
nacionais devem ser pensadas como "consti- construção da identidade regional, tomada
tuindo um dispositivo discursivo que repre- também como expressão da nacionalidade,
senta a diferença como unidade ou identida- através do jogo simbólico evidenciado nas
de. Elas são atravessadas por profundas referências ao movimento modernista de São
divisões e diferenças internas, sendo Paulo (1922) e outros regionalismos concor-
'unificadas' apenas através do exercício de di- rentes, configurando uma busca do monopó-
ferentes formas de poder cultural". (Hall, lio da definição e da divisão legítima de que
1998: 62). A referência, aqui, é a pluralização fala Bourdieu (1989). Trata-se da construção
das identidades e suas conseqüências políti- cultural de uma regionalidade que represen-
cas, dado que o autor considera as "culturas ta a nação. Na verdade, ao fazer um discurso
nacionais'' como discursos que produzem sobre a região, Gilberto Freyre estava narran-
sentidos sobre a nação e com os quais se cons- do a nação1 – não apenas como entidade
troem identidades. política mas, sobretudo, cultural e social, qua-
Enfatizar a dimensão simbólica da cul- lificando o Nordeste como região mais legiti-
tura no âmbito da formulação da identidade mamente brasileira, apesar da fluidez dos seus
é senso comum no contexto do nacionalismo limites geográficos e simbólicos.
e dos seus alótropos – especialmente a Aí estão delineadas algumas constantes
etnicidade (cf. Jenkins, 1997) e o regionalis- em escritos de Freyre: a identidade regional
mo. As virtualidades da identificação são quase unívoca sob certos aspectos mas, na verdade,
sempre as mesmas, embora revelem fenôme- fragmentada; o fato social da miscigenação; a
nos de natureza distinta. A noção de diferen- representatividade do Nordeste na constru-
ça cultural, portanto, serve de base à ção da nação e, nela, a consagração do pas-
reinvindicação de univocidade que tem mui- sado e do tradicional remissivo, também, ao
to de situacional, dada a multiplicidade de folclore, ao popular, à paisagem – pois, como
identidades com a qual se confrontam os in- observou Oliven (1992: 43), "no Brasil o na-
divíduos no mundo social. cional passa também pelo regional". Vou pri-
A idéia de região, mais do que expres- vilegiar a primeira dessas constantes, articula-
são de um espaço geográfico, é uma repre- das a um regionalismo da tradição em
sentação simbólica, portanto, uma construção perspectiva nacionalista.
cultural; ou, conforme Bourdieu (1989), um A definição do Nordeste, presente tan-
objeto de lutas entre agentes de diferentes to em artigos agrupados na coletânea Região
campos do saber. Assim, reportar à região e Tradição, como no Manifesto Regionalista
como um lugar geograficamente circunscrito (Freyre, 1941, 1976) 2, é concretizada a partir
está longe de refletir os sentidos da identida- de um olhar pernambucano, apesar do
de regional, posto que o regionalismo consti- englobamento da região geográfica que vai do
tuiu-se, sobretudo, como representação (sim- Maranhão à Bahia. A representação da iden-
bólica) sobre a cultura, especialmente aquelas tidade está articulada à noção de cultura regi-
formas subsumidas pelo rótulo do folclore – onal, cujos elementos são buscados na tradi-
que tem a capacidade de ser, ao mesmo tem- ção em contraposição à modernidade. Se, por
po, regional, nacional e universal conforme um lado, existe uma explicitação do ''espírito
sua definição desde o romantismo alemão. do regionalismo" articulada à valorização de

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180
temáticas regionais na literatura e nas artes – além zinha dos senhores de engenho (Freyre, 1941: 203),
das ciências sociais –, por outro aponta o que seria a impregnada pelo açúcar, e nos sobrados do Recife.
contribuição popular, entrando em cena africanos e Há uma exacerbação da comida como compo-
indígenas, além da base lusitana, para apresentar os nente representativo do "bom regionalismo", eviden-
principais componentes da regionalidade: a cozinha, ciada na forma panfletária de defesa de uma culinária
a linguagem, a casa, o engenho, a mestiçagem – ameaçada pela modernização.
permeados pela paisagem, um trópico marcado por "Pela região inteira, a arte do doce está melan-
sua especificidade cultural. colicamente murchando em indústria de goiabada de
Sob este aspecto, Freyre não se afasta do mito fábrica.'' (Freyre, 1941: 211).
fundacional da nação – aquele que aponta para a for- A figura de retórica tem como premissa uma
mação histórica de raíz portuguesa e plasmada pela cozinha tradicional definida como arte em oposição
mistura de três raças – mas constrói a particularidade ao mecanicismo pasteurizado da indústria moderna
do Nordeste pela proporcionalidade das partes que confere homogeneidade, eliminando a diferen-
constitutivas da cultura nacional. Isto é, as influências ça.
portuguesa, negra e indígena estão em qualquer lu- A culinária como símbolo da identidade é algo
gar, mas no Nordeste elas se apresentam equilibra- bastante comum: aparece também nas etnicidades e
das. A cozinha é o sinal diacrítico básico acionado nos nacionalismos, embora nem sempre com a vee-
como demonstração, aparecendo com certo desta- mência mostrada por Freyre no Manifesto Regionalista.
que no próprio Manifesto Regionalista3. Ela é particularmente significativa porque passa por
cima das distinções de classe e tem profundidade his-
"Onde parece que essas três influências melhor
tórica – que permite sua classificação nos domínios
se equilibraram ou harmonizaram foi na cozinha do
do folclórico, portanto, na esfera da primordialidade
Nordeste agrário onde não há nem excesso português
e da nacionalidade.
como na capital do Brasil nem excesso africano como
A cozinha, no sentido gastronômico, é o
na Bahia nem quase exclusividade ameríndia como no
apanágio da mistura e da igualdade no discurso de
extremo Norte, porém o equilíbrio. O equilíbrio que
Freyre – especialmente a cozinha do engenho do nor-
Joaquim Nabuco atribuia à própria natureza
deste patriarcal formada pela influência tanto portu-
pernambucana." (Freyre, 1976: 66).
guesa quanto negra e indígena. Por seu passado, tem
A passagem acima é significativa porque atribui a propriedade da tradição e da arte, tornando-se um
ao Nordeste a prerrogativa de uma brasilidade mais instrumento legítimo de confrontação com os "mo-
genuína e, ao mesmo tempo, estabelece uma frontei- dernistas" de lastro diverso e de outros lugares:
ra cultural que exclui a Bahia por um lado, e transfor-
"Que me desculpem a caturrice o escritor Graça
ma Pernambuco no celeiro da tradição, por outro. Na
Aranha, os outros "modernistas" do Rio e de São Paulo
conferência pronunciada no Conselho Federal de
e seus correspondentes nos Estados menores: da mi-
Cultura em 04.05.1976, a propósito do
nha parte considero a arte de cozinha a mais brasilei-
cinqüentenário do Movimento definido como
ra das nossas artes. A mais expressiva do nosso caráter
Regionalista Tradicionalista e, a seu modo, Modernis-
e a mais impregnada do nosso passado e das suas cons-
ta do Recife (Freyre, 1976) é perceptível a centralidade
tantes. Pode-se dizer que o temperamento brasileiro
de Pernambuco e a configuração do Nordeste agrário
se revela mais artisticamente no tempero das comidas
do engenho como fundamentos da idéia de região.
patriarcais e de rua que na poesia, em geral destem-
Nesse caso, a comida serve como metáfora da
perada e só de escândalo, dos 'modernistas' e
diferença, elemento de contraste que também repre-
'universalistas'. Exceptuando, é claro, um ou outro
senta a mistura equilibrada – portanto, remete à mis-
Manuel Bandeira: esse extraordinário Manuel Bandei-
cigenação e ao espaço social do engenho de açucar
ra que não conheço pessoalmente mas de quem aca-
pernambucano. Dentro dos princípios do "mecanis-
bo de receber palavras de simpatia – ia dizendo de
mo lusitano de colonização", os portugueses incorpo-
apoio – à campanha a favor da cozinha regional e das
raram muitos elementos das culturas dos índios e do
tradições pernambucanas de doce-feito-em-casa ..."
seu conhecimento da natureza tropical (Freyre, 1941:
(Freyre, 1941: 199-200)
195) – portanto, a cozinha da miscigenação tem seu
suporte na gastronomia lusa e no conhecimento culi- Esse trecho, um tanto longo, mostra que a idéia
nário indígena. O outro elemento de legitimidade de região foi construída a partir de uma oposição ao
acionado no texto é a sua configuração afro-brasilei- modernismo – adjetivado no texto por enfáticas as-
ra, que tem como uma de suas figuras a negra de ta- pas – com a valorização do passado e da cultura da
buleiro, mas cuja característica conspícua está na co- tradição que, entre outras coisas, passa pelo popular.

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181
Uma forma de se contrapor ao estilo da Semana de A paisagem tropical é um símbolo da identida-
Arte Moderna de 1922 e aos modernismos mais de no Nordeste e aqui, mais uma vez, percebe-se a
hegemônicos dos estados marcados também pela influência do Romantismo, quase como um oposto
modernidade econômica. Freyre, porém, não se afas- do moderno, no modo de descrever as cores e o bri-
ta das temáticas, digamos, mais eruditas, pois a iden- lho do meio ambiente e a variedade (histórica) dos
tidade da região depende, igualmente, dos seus poe- tipos humanos. O elogio do trópico (e suas partes
tas, romancistas, antropólogos, sociólogos, folcloristas, constitutivas) se aproxima do ideal de pátria construído
pintores, e mesmo da sua aristocracia! Mas nos seus pelo nacionalismo romântico alemão, no qual o ter-
escritos tem relevância os elementos de identificação mo Heimat tem um sentido mais localizado do que a
que passam pela cultura popular e que podem ser outra categoria designativa da pátria, Vaterland. O
expressão de relações sociais. Daí a alusão ao equilí- primeiro termo designa antes a região compreenden-
brio das partes quando fala da cozinha, e que passa, do também a noção de terra natal, Lar (Heim), en-
do mesmo modo, pelos termos cunhados na sua obra quanto o segundo refere-se à nação por inteiro. Freyre
– metarraça, luso-tropical, morenidade, etc. – e por faz várias referências ao Romantismo alemão em sua
outros símbolos de mesma natureza como a casa vertente mais nacionalista, especialmente ao pensa-
melhor adaptada ao trópico (o mucambo) e a singula- mento de Herder e dos irmãos Grimm (que abriram
ridade da paisagem geográfica e humana. espaço para a cultura popular na definição do nacio-
Essa unidade precípua tem como proeminên- nal).4
cia discursiva a cor, destacada no último parágrafo da O discurso de Gilberto Freyre sobre o Nordeste
conferência de 1976 que celebra o colorido da pertence ao contexto da dominação simbólica no sen-
metarraça brasileira como algo quase incompatível tido de criar ou inventar 5 a região enquanto realida-
com o cinzento da modernidade: de objetiva numa arena de disputas (políticas) em tor-
no da representação da Nação. Nesse sentido, é
"Para os renovadores do Recife, as cidades bra-
interessante observar que o Nordeste só eventualmen-
sileiras, ao se modernizarem com arranha-céus
te é definido por contraste com entidades homólogas
cinzentamente cosmopolitas, estavam correndo o ris-
(o Norte, por exemplo). Algumas unidades da federa-
co de perderem a tropical 'vária cor' – segundo a ex-
ção (estados) ou grupos com qualidades de antípodas
pressão camoneana – das fachadas dos seus edifícios.
do Movimento Regionalista de Recife (os "modernis-
'Vária cor' nos edifícios que correspondesse à 'vária-
tas" do Rio de Janeiro e São Paulo) servem para con-
cor' de uma população panbrasileira crescentemente
trastar brasilidades de diversos graus, que no Nordes-
miscigenada, e, no Nordeste, miscigenadíssima. Mo-
te atingem seu ponto máximo. Assim, pode falar de
rena em vários graus conforme as misturas de sangue,
um "narcisismo gaúcho", enquanto modelo de regio-
no Nordeste tão abrangentes: juntando aos sangues
nalismo influenciado pelo progresso material e por
indígenas com que se vinham misturando os europeus
descendentes de imigrantes europeus que aos pou-
desde os começos do século XVI, os sangues negros.
cos vão se abrasileirando, como parte de um
Tendência que, para os renovadores do Recife, um deles
"narcisismo nacional" (Freyre, 1941: 241-255). No
discípulo de Franz Boas, acentuando-se formaria no
entanto, em outro texto da mesma, época (Freyre,
Brasil uma democracia sem privilégios raciais. Através
1940) mostra sua preocupação de nacionalista com a
de uma miscigenação abrasileirante ao mesmo tempo
organização comunitária étnica teuto-brasileira no sul.
que democratizante. Metarracial". (Freyre, 1976: 35).
De fato, reconhece a brasilidade em qualquer lugar
(Ênfase adicionada).
do Brasil; mas é uma brasilidade que se caracteriza
A individualização do Nordeste, assim, passa pela pluralidade. Unívoca é a região: a nação é plu-
pela configuração racial – a miscigenação ral, o que permite encontrar seus elementos
abrasileirante tem sua variedade nordestina destaca- constitutivos mesmo naquelas áreas que receberam
da através do reforço aumentativo na adjetivação. A grandes contingentes de imigrantes – caso do Rio
metarraça brasileira tem nuanças no seu colorido. Grande do Sul. No entanto, a noção de pluralismo
A aproximação entre cor/raça e paisagem evi- cultural no pensamento de Freyre está subordinada
dencia-se, igualmente, no artigo Algumas notas sobre ao conceito de assimilação. Tal subordinação tem um
a pintura no Nordeste do Brasil (Freyre, 1941: 79-106), significado lógico: a pluralidade é mais legítima nos
em que lamenta que o colorido tropical e das gentes limites fixados pela formação nacional herdada dos
do povo passa despercebido na arte da pintura, no tempos coloniais, mais preservada no Nordeste – lu-
passado e no presente. Reclama: "Nenhum pintor gar onde a mistura das três tradições (portuguesa, in-
moderno se dedica, no Nordeste, a pintar mulatas, dígena e negra) está em equilíbrio. Dentro dos limites
caboclas, negras". (Freyre, 1941: 98) de uma pluralidade que se pretende assimilacionista

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182
(portanto, uma contradição), não há espaço para di- Não cabe aqui aprofundar o conflito simbólico
ferenças fundadas na etnicicidade. Nesse ponto a po- entre etnicidade teuto-brasileira e nacionalismo; ele
sição de Gilberto Freyre, nos textos citados, não di- aconteceu exatamente em torno da questão da lín-
verge de outros autores da mesma época, gua e da raça. Para Gilberto Freyre a mestiçagem cul-
coadunando-se com o princípio do nacionalismo e tural e racial é o lastro sobre o qual se construiu um
apoiada nas teorias de assimilação e aculturação apro- Brasil plural, aberto a influências culturais advindas
priadas pelas Ciências Sociais no Brasil. Essas teorias da imigração desde que seja conservada a grande tra-
ajudaram a construir um modelo de sociedade onde dição herdada da formação nacional, juntamente com
as diferenças étnicas são classificadas como "residu- a língua portuguesa. Como nacionalista, Freyre atri-
ais" dada a hegemonia da cultura e sociedade nacio- bui à língua a propriedade da unidade.
nal. A pluralidade, assim, está articulada a imagem
Existe conciliação possível entre regionalismo e de um País mestiço cuja unidade foi assegurada pelo
nacionalismo, mas a lógica da etnicidade – exatamente modo lusitano de colonizar, ilegitimando, portanto,
por operar com elementos primordialistas de mesmo qualquer distintividade de língua e cultura no forma-
tipo – contraria a idéia central de "cultura nacional" e to assumido pela colonização germânica. As passa-
formação do povo. Isso é perceptível na conferência gens de manifesta xenofobia em relação às diferenças
sobre a cultura luso-brasileira pronunciada por Freyre étnicas certamente têm a ver com a presença nazista
no Gabinete Português de Leitura de Pernambuco em e o desmonte da infra-estrutura partidária encontra-
02 de junhode 1940, significativamente intitulada da em algumas cidades. A retórica racista do nazismo
Uma Cultura Ameaçada: a Luso-Brasileira", reveladora chegou a ser condenada em algumas publicações
da situação de estranhamento em relação ao teuto-brasileiras mas para o nacionalismo exacerba-
germanismo das "colônias alemãs" do sul do Brasil. do a divulgação do material pelos órgãos policiais foi
Seu tom mais panfletário não faz concessões às dife- mais um argumento para imaginar que a população
renças étnicas, sobretudo quando elas são usadas para de origem gemânica era partidária do nacional-socia-
marcar fronteiras grupais. Publicada no formato de lismo e seus ideais expansionistas. (Freyre, 1940). As
opúsculo, no mesmo ano, a conferência foi uma rea- observações sobre esse conflito tem o propósito de
ção ao pluralismo nacional reinvindicado nos meios mostrar os limites da noção de pluralidade quando
teuto-brasileiros e totalmente divergentes daquele que estão em jogo interesses nacionalistas. O regionalis-
Freyre advoga quando fala da região. mo defendido por Gilberto Freyre é, principalmente,
Na década, de 1930 várias publicações teuto- um regionalismo pautado na tradição que não inter-
brasileiras, algumas editadas na Alemanha, outras no fere com a identidade nacional – implícito na forma
sul do Brasil, bem como matérias de jornais em lín- como seus elementos constitutivos são construídos
gua alemã6, se empenharam na defesa da através da culinária, da arte, da paisagem dos tipos
distintividade étnica reinvindicando a oficialização do humanos, etc. Ao contrário da diversidade cultural
uso da língua alemã, a permanência do sistema étni- produzida pelos imigrantes, o regionalismo é algo
co de ensino fundamental (atingido pela campanha positivo porque não altera o princípio do nacionalis-
de nacionalização em 1937) e o respeito à mo – aqueles elementos que, juntamente com a mis-
especificidade cultural e às instituições comunitárias cigenação, plasmaram a unidade do País.
nas áreas de colonização germânica. Freyre escreveu
"Cultura de origem portuguesa tornada aqui plu-
o texto num período conflituoso das relações entre
ral, aberta a outras culturas, conservados os valores
teutos e brasileiros: a denúncia seguida da repressão
tradicionais portugueses como o necessário lastro co-
às atividades nazistas no País (que não estavam restri-
mum, conservada a língua portuguesa como instru-
tas às "colônias"), a exacerbação do nacionalismo que
mento nacional único de intercomunicação verbal
produziu a campanha de nacionalização do Estado
entre brasileiros de todas as regiões e de todas as pro-
Novo (cujo propósito era impor a assimilação aos imi-
cedências". (Freyre, 1940: 24)
grantes em geral e seus descendentes), e a Segunda
Guerra Mundial, marcaram o final da década de 1930 Assim o pluralismo regionalista pode ser exten-
e toda a década de 1940. As distinções identitárias sivo à realidade da imigração quando afirma que o
formalizadas através de textos escritos ou no cotidia- Brasil plural, com base lusitana, está aberto à contri-
no estavam referidas ao uso da língua alemã e à ma- buição de outras culturas desde que mantidas a tradi-
nutenção da estrutura comunitária germanizada, além ção e a língua portuguesa. Tradição, aqui, significa o
dos argumentos primordialistas sobre endogamia, nos passado colonial, a formação nacional baseada na
quais a idéia de preservação da raça sinalizava a con- mistura, na mestiçagem, na idéia de metarraça tropi-
denação da mestiçagem. cal consolidada após a Independência.

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183
A dura crítica de Freyre à pretensa equiparação subjetividades contidas em expressões de
da tradição teuto-brasileira com a luso-brasileira, pertencimento como pernambucanidade,
reinvindicada pelos arautos mais radicais do paraibanidade, alagoanidade, etc. (Cf. Freyre, 1976:
germanismo, tem razões bem precisas, nenhuma re- 53).
lacionada ao contexto da conferência (o Gabinete As implicações são claras: a definição da região
Português de Leitura). Esse postulado de distintividade obedece a imperativos de natureza política e, certa-
cultural e lingüistica contrariava a idéia de unidade mente, de hegemonia acadêmica, mas não consegue
nacional, mas também estava "ameaçado" pelo ficar imune ao que o próprio Freyre chamou de
"abrasileiramento" que o próprio Freyre observou na "provincialismo" – isto é, o sentimento de pertença
sua viagem ao sul (Freyre, 1941: 241-255) 7. Sobretu- que tem como limite as fronteiras estaduais – o que
do, o palavrório nazista acerca da superioridade aria- mostra, mais uma vez, as múltiplas dimensões conti-
na e Lebensraum (espaço vital), a visibilidade do pró- das nas categorizações identitárias mais abrangentes.
prio partido nacional-socialista muito além das Como representação, o Nordeste engloba as
"colônias alemãs" (estruturado em cidades como São especificidades estaduais nele contidas (e traduzidas
Paulo, Curitiba, Porto Alegre, por exemplo) e, depois, no discurso de Freyre como parte da realidade mais
a própria 2ª Guerra Mundial8, haviam reacendido, no ampla, que vai até a nação) – para chegar a uma uni-
Estado Novo, a discussão sobre a velha ameaça sepa- dade respaldada pela tradição e, claro, politicamente
ratista dos tempos do pangermanismo – o "perigo ale- mais forte.
mão". Provavelmente influenciado pelos acontecimen- Gilberto Freyre e o movimento que representa
tos de 1939, Freyre, como outros nacionalistas, produziram uma identidade regional legitimada por
externaliza sua preocupação com o apregoado atributos mais próximos do pertencimento nacional,
"enquistamento étnico" das colônias alemãs, imagina- sancionada pela nova divisão geográfica que deu lo-
das como possível base territorial para a expansão calização específica ao Nordeste até então parte do
germânica. Nesse sentido, a conferência de 1940 lem- Norte. No entanto, esse Norte mais abstrato ainda é
bra uma outra, de Silvio Romero, em contexto seme- um referencial simbólico da identidade de muitos
lhante e idêntica temática9, onde defende a imigra- migrantes oriundos do Nordeste (estabelecidos num
ção portuguesa em nome da formação nacional e Sul igualmente abstrato), para os quais as categorias
recrimina a concentração de alemães no sul – o que nortista e nordestino são equivalentes, conforme ob-
considera ameaça à unidade do Estado-Nação. servou Lúcia A. Morales (1995) em pesquisa realiza-
Verifica-se que a convivência com diferenças da no Rio de Janeiro. Pode-se dizer que tal Norte é
mais fortemente demarcadoras de uma condição ét- para o Nordestino o nordeste. E sua identificação passa
nica são pensadas como ameaçadoras da unidade do pela apropriação de uma tradição popular às vezes
Brasil nação. Já as diferenças regionais, dentro dos li- localizada, mas imaginada como representativa da
mites luso-brasileiros, são legítimas. Isso permite região e não de um estado em particular, próxima
retornar à imagem do Nordeste como o lugar onde a daquela noção de tradição expressada por Freyre.
contribuição das três raças se encontra equilibrada. A mesma pesquisa aponta, ainda, para a auto-
Na verdade, a imigração e os indígenas vão fazer a identificação através de categorias correspondentes
diferença pois Freyre vê na Amazônia um peso maior aos estados – fato que tem implicações nas relações
da tradição indígena, no Rio de Janeiro uma espécie sociais, evidenciando a complexidade de um fenô-
de excesso lusitano (dada a presença mais intensiva meno, a identidade regional que é, sobretudo, repre-
da imigração portuguesa pós-Independência), e no sul sentação sobre cultura e território (Seyferth, 1995). O
um sobejo imigrantista onde certos grupos ameaçam estudo de Morales foi realizado na Feira de São Cris-
a unidade da federação. Nessa perspectiva o Nordes- tóvão (cidade do Rio de Janeiro), um espaço definido
te mais tradicional é o guardião da brasilidade – tema como "nordestino". Apesar da abrangência da identi-
que não é exclusivo do autor e aparece com certa dade regional – que às vezes tem caráter de estigma
freqüência nas justificativas da campanha de nacio- sobretudo quando reportada à categoria pau-de-ara-
nalização10 . ra, definidora do imigrante pobre, no passado recen-
Não existe uma constância na definição do Nor- te transportado em caminhões –, ficaram evidentes
deste: os referenciais são, antes de tudo, as distinções culturais e, às vezes, raciais associadas a
pernambucanos, apesar do Manifesto Regionalista cada estado. Baiano e paraíba são as identidades mais
registrar que o "sentido da regionalidade" deve estar marcantes nessa sub-categorização porque remetem
acima da divisão federativa. No entanto, identidades a distinções de natureza fenotípica que podem assu-
especificamente atribuídas a cada um dos estados mir um caráter de estigma. Na definição do baiano,
aparecem com certa constância até para assinalar as mesmo por outros nordestinos, pesa a identificação

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pela cor da pele – é sinônimo de preto. Paraíba é viajar de palanquim, de rede, de cadeira aos ombros
uma identidade pejorativa, atribuída a indivíduos com dos escravos negros. De modo que baiano tornou-se
determinados "sinais" corporais, como cabeça despro- no Brasil termo ao mesmo tempo de valorização e
porcional, pescoço curto, etc., e situados na classe desvalorização do indivíduo por circunstâncias regio-
trabalhadora. De fato, essa classificação estigmatizante nais de origem e de formação social. E o mesmo se
aparece entre os próprios nordestinos, mas é, sobre- verificou com o gaúcho" (Freyre, 1968: 369).
tudo, uma construção dos outros – isto é, dos cario-
Está claro que tais categorias referem-se antes à
cas (Morales, 1995). Obviamente, trata-se de uma das
elite do que ao homem comum e, definidas por opo-
dimensões possíveis de um fenômeno social comple-
sição, são, de alguma forma, socialmente
xo, revelada por uma pesquisa circunscrita ao espaço
desqualificadoras. A bravura do gaúcho da fronteira,
do lazer e sociabilidade de uma população migrada
dominando a arte da cavalaria, está em oposição ao
que ali busca seus referenciais identitários na comida,
baiano efeminado e educado. Mas, por outro lado, o
na música, na dança, etc., que simbolizam a origem
gaúcho é olhado pelos outros como sujeito rústico,
regional.
enquanto atribui-se ao baiano o apanágio de ser civi-
Esses referenciais são mencionados por Freyre
lizado. Freyre ainda menciona o caráter desabonador
em Sobrados e Mucambos11 – um trabalho em que a
da designação dos habitantes do Rio de Janeiro pela
região aparece como uma das variáveis explicativas
categoria carioca, "hoje purificada de qualquer senti-
da sociedade brasileira, juntamente com raça e clas-
do pejorativo" (Freyre, 1968: 370).
se. Ali, aponta para as "configurações regionais de
Enfim, juntando os numerosos registros sobre
cultura" (a região definida como espaço físico-cultu-
os regionalismos e suas definições, em Sobrados e
ral) citando sertanejos, caipiras e gaúchos, etc. – ti-
Mucambos e outros textos, temos um grande painel
pos regionais plasmados desde os tempos coloniais.
sobre a diversidade cultural e racial do país, numa
Diversidade cultural presente dentro de cada segmen-
perspectiva histórica. Mas é sobretudo no Nordeste
to constitutivo da formação nacional, daí insistência
que encontra o ponto de equilíbrio que configura a
com que fala em índios e não num índio singular. Mas
unidade a partir da diversidade. Os escritos de Gil-
a representação dos diferentes tipos está longe de ser
berto Freyre sobre região e tradição, e a caracteriza-
apenas cultural – é, também, racial e de classe; e as
ção do Nordeste como o lugar mais apropriado para
três condições, tomadas em conjunto, caracterizam a
encontrar os elementos constitutivos da nacionalida-
formação brasileira.
de, revelam como são produzidos os conceitos que
É significativo que uma parte substancial dessa
criam identidades, especialmente aquelas marcadas
análise é dedicada à europeização, principalmente das
por critérios mais emblemáticos de pertencimento
elites e da população urbana, para o qual a imagem
objetivados através de uma imagem de unidade an-
do violão vencido pelo piano inglês (Freyre, 1968: 394)
corada na tradição cultural de um dado território. A
expressa metaforicamente a situação de mudança só-
força simbólica da definiçào do Nordeste, tal como se
cio-cultural no século XIX.
encontra no Manifesto Regionalista, num certo plano,
De certa forma, Freyre mostra a historicidade
transformou a região numa realidade política e cultu-
de certas categorias definidoras de identidades regio-
ralmente circunscrita, apesar da qualidade fragmen-
nais – como gaúcho, baiano e carioca – embora al-
tada do seu regionalismo.
gumas representações recentes apresentem mudan-
ça no sentido de atribuição. Gaúcho e baiano, tal
_______________________
como aparecem em Sobrados e Mucambos, não se
aproximam muito dos tipos característicos das defini- Notas
ções folclóricas, ou das representações sociais levan- 1
Cf. conceito de Bhabha (1990) sobre a tradição do pensamento
tadas na pesquisa de Morales (1995). Os dados de político e literário do Ocidente que, ao longo da História, construíu
a idéia de nação.
Freyre mostram que a identidade do gaúcho estava 2
A natureza política do Manifesto foi objeto de análise em traba-
fundada na "aristocracia da bravura", independente- lhos voltados para o tema da construção da identidade nacional
mente da cor ou situação social, e na arte de cavalgar brasileira. Cf. Ortiz, 1985; Oliven, 1992.
– numa supravalorização da origem ou da situação 3
Existem divergências quanto à época em que foi escrito o Mani-
regional – daí seu desdém pelos brasileiros do Norte, festo Regionalista – se em 1926, por ocasião do Movimento
Regionalista, ou em 1952, quando surgiu publicado por Gilberto
incapazes de montar o cavalo com destreza,
Freyre (Ver Inojosa, 1978; Oliven, 1992). No que diz respeito à
"associando essa incapacidade à condição de dimensão identitária, porém, essa polêmica é destituída de im-
portância.
baiano. Ser baiano era ignorar a arte máscula de ca- 4
De certa forma, atribui aos regionalistas do Recife o resgate do
valaria. Era ser excessivamente civilizado: quase passado brasileiro e da vida regional (formas também universais
efeminado. Quase mulher. Quase sinhá. Era só saber de expressão), à maneira do Romantismo. Ver Freyre, 1941: 37-

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185
38.
5
O sentido dado aqui é o de tradição inventada, conforme defini-
ção de Hobsbawm (1984).
6
Percebe-se a influência nazista em muitas publicações e jornais,
mas qualquer generalização é infundada. A maior parte das mani-
festações escritas envolvendo pertencimento étnico tem uma pers-
pectiva teuto-brasileira.
7
O primeiro trabalho de Emílio Willems sobre a assimilação dos
alemães no Brasil foi publicado em 1940.
8
Como bem observou o Professor Vamireh Chacon, a conferência
de Freyre aconteceu num momento particularmente dramático,
pois em 1940 a Alemanha nazista estava vencendo a guerra.
9
A conferência de Silvio Romero, intitulada O elemento portugu-
ês no Brasil foi pronunciada no Gabinete Real (Português) de Lei-
tura do Rio de Janeiro e publicada em Lisboa em 1902. A expan-
são imperialista da Alemanha e a configuração étnica das colônias
alemães davam respaldo às especulações sobre um possível sepa-
ratismo teuto-brasileiro.
10
Sobre isso, ver Seyferth, 1997.
11
Ver Freyre, 1968, capítulo VIII.

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1941.
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Universidade Federal do Rio de Janeiro - Museu Nacional,
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186
Sol & Açúcar : Ecologia e Processos de
Sedução em Gilberto Freyre

Raul Lody
Antropólogo – Brasil

Uma orientação estética abastece de Tão preciosa a grama do açúcar como


maneira diversa e complexa o olhar seletivo a grama do ouro – especiaria para a saúde,
de Gilberto Freyre perante o imaginário natu- depois para a mesa, para a geração de hábi-
ral e as representações da cultura – imaginá- tos bem nossos, brasileiros, especialmente no
rio que testemunha e nasce das relações soci- Nordeste, onde os doces são mais doces.
ais. Relações emblematizadas no Nordeste. Generais de Alexandre Magno (327
Nordeste também idealizado por a.C.) teriam trazido para a Europa notícias
amorosidade e vivência cotidiana. sobre a cana sacarina, assim descrita: "Uma
Aí se vê a cana-de-açúcar convivendo espécie de bambu que produzia mel sem in-
com outras ocupações de uma botânica tervenção das abelhas, servindo também para
mundializada – contato entre o Ocidente e o preparar um bebida inebriante."
Oriente feita pela mão do homem português. Pio Correia defende as datas de 1502 e
As rotas de Diogo Cão (1482), Vasco da 1503 como introdutórias da cana sacarina no
Gama (1497 e 1498), Gaspar Corte Real Brasil, proveniente da Ilha da Madeira, e
(1500), Pedro Álvarez Cabral (1500), Francis- acrescenta que trinta anos mais tarde vieram
co Serrão (1512) e Fernão de Magalhães (1519 as canas para a Capitania de São Vicente, por
e 1521) fazem os contatos, descobrem e di- ordem de Martim Afonso de Souza.
fundem as culturas, introduzem novos hábi- Sem dúvida, o açúcar fez o Brasil, des-
tos de ver, de ser, de crer, transportam frutas,
truiu as matas, matou os animais, matou os
espécies vegetais diversas, intercambiam os índios, poluiu as águas, contudo, fez o Brasil.
continentes, aproximam os homens pelas di- Um Brasil doce pelo açúcar que o Nordeste
ferenças. legou ao Reino e ao mundo. Açúcar que mar-
Pois navegar é preciso. Navegar é pre- cou, determinou a ocupação colonial. Colo-
ciso para buscar alimentos, condimentos, es- nos lusitanos e africanos, tão colonos como
peciarias. os oficiais, também já africanizados no pró-
prio Portugal, trazem um jeito de chegar mais
Não me temo de Castela
mestiço, mais luso-africano.
Donde ainda guerra não soa
Gilberto Freyre compreende o sentido
Mas temo-me de Lisboa
do doce na formação ética, moral, hierárqui-
Que ao cheiro desta canela
ca, nos diferentes papéis de homens e mu-
O Reino nos despovoa.
lheres vivendo para o açúcar.
Sá de Miranda
Descobridor, transgressor, inovador e,
A cana sacarina é preciso. Assim, a especialmente provocador, Gilberto Freyre em
monocultura monótona, de lençóis verdes, Açúcar: em torno da etnografia, da história e
invade a Mata Atlântica, seus animais, sua da sociologia do doce no Nordeste canavieiro
água, sua gente nativa. do Brasil, dá numerosas e raras receitas de
A cana sacarina, suporte econômico dos doces e bolos da região e, para efeito de com-
descobrimentos, financiou a empresa de Por- paração, de algumas de outras áreas brasilei-
tugal. ras e outras tantas de Goa (Índia portuguesa),
Como se sabe, a cana sacarina é origi- reunidas e selecionadas pelo autor, agora é
nária da Ásia, onde é cultivada há milênios, livro e, especialmente, é o olhar sensível de
principalmente para a preparação de uma um Gilberto Freyre sempre atual, motivando
bebida. "Não ho sabem fazer, senão melaço e e dirigindo o leitor a descobrir, em texto far-
vinho que chamam quilão." Gabriel Rabelo to, como se oferecesse um cardápio de op-

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ções, dizendo que o ato de comer é um ato global. A tradição de doçaria européia, especialmente
Come-se com o corpo inteiro. Primeiro come-se com a de Portugal, abastecida do viço muçulmano, desen-
os olhos, depois, come-se com o olfato; come-se com volve-se nos conventos e mosteiros, locais onde os
o tato; come-se finalmente com a boca, com o pra- laboratórios de sabores tinha tempo necessário para
zer, um sentido tão aguçado que já é um sentimento. refletir, provar, experimentar e, especialmente desco-
Contudo, ainda se come simbolicamente, comendo- brir misturas de ovos, temperos, especiarias e o açú-
se a cultura, comendo-se a história, a civilização e, de car, tão especiaria e tão raro para o mundo medieval
uma certa maneira, comendo-se também o homem, como qualquer outro produto importado do Oriente.
uma metáfora antropofágica, pois comem-se os valo- O doce é um testemunho permanente da His-
res e os significados plenos do que é oferecido em tória e das transformações tecnológicas, dos diferen-
alimento e, diria ainda, come-se a si próprio, como tes momentos sociais, econômicos e culturais.
em um contato quase litúrgico e profundo da intimi- A mundialização de Portugal no século XVI re-
dade do eu individual com o eu coletivo, com a pró- fletiu-se na cozinha, nos hábitos alimentares, com as
pria cultura. novas ofertas de espécies e de gulodices. O cuscuz
Comer, um ato biológico, indispensável e, prin- dos muçulmanos, alfenim, os filhós ou filhoses ates-
cipalmente simbólico, ritualizado, seguindo os padrões tam a forte presença civilizadora dos filhos de Alá na
da cultura, das ofertas do meio ambiente, das manei- Península Ibérica. Outro expressivo caso da doçaria
ras de misturar, preparar e servir, sendo certamente o do sul de Portugal é o tão popular Dom Rodrigo – figo
ato mais pleno do homem, somente comparado ao seco prensado com amêndoa, homenagem ao rei
sexual. visigodo Dom Rodrigo, à época das primeiras inva-
O açúcar adoçou tantos aspectos da vida brasi- sões dos emires do Marrocos em terras portuguesas.
leira, que não se pode separar a civilização dele. O doce celebra, identifica, nomeia, compõe e
O açúcar no cotidiano brasileiro, na formação ainda alimenta, tem gosto e sabor.
da nossa sociedade, é uma saga plantada com a cana Gilberto Freyre aponta permanentemente para
sacarina, chegando pelas mãos de mercadores mu- ele em sua obra, e convida o leitor a sentir uma emo-
çulmanos, traduz um comércio de especiarias acom- ção contextualizada e por isso interativa, co-
panhado pelo cravo-da-índia, pela canela, do Ceilão, participativa. Açúcar é um livro memorial que traz um
e pelas pimentas secas, aqui comumente chamadas valor civilizador, como tão civilizador é o açúcar para
do Reino. o brasileiro e, em especial, para o nordestino, mais
Ressalta Gilberto Freyre que, na civilização do ainda para o pernambucano.
açúcar, houve uma chegada colonial e co-formadora O acervo documental, histórico, sempre acom-
para o ethos nacional, com os diferentes povos e civi- panhou Gilberto em toda a sua produção acadêmica,
lizações africanos. transitando com liberdade entre as citações e as ob-
O homem africano dá ao Brasil um sentido es- servações de campo, certamente tão novas e
pecial, uma fixação de padrões, costumes, formas de questionadoras como as teorias culturalistas de Franz
representar, significar, enfim, de ser africano no mo- Boas – uma das mais notadas influências do olhar de
mento mais crucial da diáspora, porque por um perí- Gilberto – e para a compreensão do homem e de suas
odo longo, de 350 anos, foram arrancados da África, representações simbólicas, enfim, a cultura.
na condição escrava, mais de 4.000.000 de homens A cozinha brasileira é tão ampla que abraça o
e mulheres. peixe, o leite de coco, o dendê, o arroz-doce, os do-
Na fé, nas artes, na cozinha, nas composições ces de coco, o coco, fruta da Índia, assim como a jaca
multiétnicas, na maneira de ver e de representar o e a fruta-pão da Indonésia, a manga também da Ín-
mundo está o patrimônio afro-descendente integra- dia, carambola das Ilhas Molucas, tantas frutas exóti-
do ao nosso povo. "Uma multidão de brasileirismos, cas, hoje tão nossas, brasileiras, dos nossos quintais,
muitos deles de origem africana, que só faltam se des- pomares, das feiras, dos mercados, dos sucos, dos
manchar na boca da gente: bangüê, ioiô, felô, quin- sorvetes, cremes, bolos, tortas, entre tantas delícias
dim, xangô, dondon, dendê." de ver e de comer.
Da Terra, do Reino e da Costa são as maneiras
"Mas toda essa influência indireta do açúcar –
tradicionais de nominar, indicar e identificar produ-
de adoçar maneiras, gestos, palavras, no sentido de
tos e pessoas que, juntos, formaram o nosso cardápio
adoçar a própria língua portuguesa – não nos deve
racial, social, mudança e vão formatando um país cha-
fazer esquecer a sua influência direta, que foi sobre a
mado Brasil.
comida, sobre a cozinha, sobre as tradições portugue-
Da Terra, do local de origem, do espaço desco-
sas do bolo e do doce."
berto, a América, terra dos ameríndios; do Reino,

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aquilo que vem de Portugal e, diga-se, de um Portu- Para os anos 30, época da primeira edição de
gal mundializado, também da China, da Índia, da açúcar, um homem interessado por receitas de bolo,
Indonésia, do Oriente; da Costa, o que chega da Cos- de doces de frutas e mais ainda por papel de seda
ta africana – pimenta da Costa, palha da Costa, pano recortado como se fosse renda para enfeitar os pratos
da Costa, de toda a Costa Ocidental e Austral do con- e tabuleiros, era um verdadeiro escândalo. Como um
tinente que aporta na nossa costa. Tendo o Atlântico sociólogo na cozinha? Sim, na cozinha, na intimidade
por divisa e como caminho de idas e vindas de um da casa e, mais ainda, na intimidade de quem fazia a
amplo comércio, de um amplo intercâmbio entre casa pulsar, o fogão funcionar, as receitas reviverem
homens e culturas. As mesas, os cardápios, as manei- os mosteiros, as vendas e os ganhos nas ruas por es-
ras de fazer, de servir e de comer expressam os mui- cravas e ex-escravas, das sobremesas dos restauran-
tos contatos entre a Terra, o Reino e a Costa. tes populares aos hábitos de comer e de beber em
casa, na rua, no cotidiano e no tempo da festa.
"A marmelada, o caju e a goiabada transforma-
A compreensão de Gilberto Freyre da socieda-
ram-se, desde os tempos coloniais nos grandes doces
de brasileira flui por toda a sua obra, destacando a
das casas-grandes. A banana, assada ou frita com ca-
casa e o homem como algo inseparável, na qual os
nela, uma das sobremesas mais estimadas das casas
símbolos materiais vivem pelos símbolos emocionais,
patriarcais, ao lado do mel de engenho com farinha
e pelas escolhas que chegam pela cultura, pelos pa-
de mandioca, cará ou macaxeira; depois aparece o
péis dos mundos masculino, feminino e infantil.
sabongo e o doce de coco verde, mais tarde, do doce
Casa-Grande & Senzala, Sobrados & Mucambos,
dessas frutas com queijo – combinação tão saborosa-
Oh! De Casa, Nordeste e Açúcar, certamente falam
mente brasileira."
entre si, em um texto hiperampliado pela vocação
A intimidade entre o doce e a família, receitas humanista de Gilberto em entender o homem situa-
exclusivas, projeções e estilos das casas, de cozinhas do no Trópico, com todos os seus projetos e
quase – santuários; senhoras tão especializadas como enfrentamentos perante a mudança, nos territórios da
os mestres de engenhos, fazendo o suco da cana virar tradição, da natureza – ecologia – dos técnicos que
açúcar. servem para simbolizar e autenticar e, ao mesmo tem-
po, singularizar sociedades e indivíduos.
"Inventaram-se as casas-grandes (...) doces e
bolos que tomaram nomes de família ou de engenho – "O luxo da mesa brasileira – da mesa das casas-
Souza Leão, Guararapes –, cujas receitas se conserva- grandes em dia de festa (...), principalmente o luxo da
ram por muito tempo em segredo, às vezes passando sobremesa, dos doces e das guloseimas de açúcar –
de mãe para filha. Houve no Brasil uma maçonaria estas de criação mais pernambucana do que baiana."
das mulheres ao lado da maçonaria dos homens, a das
A mulher, na sua condição do lar, deveria ocu-
mulheres se especializando nisto: em guardar segredo
par-se da casa, dos filhos, procriar e reinar na cozi-
das receitas de doces e bolos de família."
nha, além de no estômago, o coração da casa.
O olhar contextualizado de Gilberto diante da Aliás, Gilberto Freyre, também pioneiro na his-
civilização do açúcar e do doce revelou especial inte- tória das mentalidades e na história do cotidiano, des-
resse pela estética de cada prato, artes feitas com os taca em sua obra um valor simbólico especial à casa;
mesmos cuidados artesanais próprios do fazer e do diferentes casas, não menos diferentes espaços e re-
apresentar o prato – textos iconográficos tão precisos presentações de seus ocupantes, de vidas e de cultu-
como uma pintura, um desenho que será consumido ras que atestam a família patriarcal, os mocambos, a
e, assim, incorporado ao humor, ao hábito que nasce senzala, a capela, o engenho, as formas de urbanizar,
em casa, no tabuleiro da rua, na banca do mercado, as relações entre a rua e a casa; entre o que é privado
na vitrine de uma confeitaria, nas escolhas que se- e o que é público. Assim, perpassando por todo esse
guem formatos, corres e materiais combinando-se com texto de profundas relações hierarquizadas e
os bolos, balas, tortas, frutas cristalizadas, pastéis, definidoras de muitos papéis sociais, a civilização do
compoteiras com caldas açucaradas e perfumadas pelo açúcar vem criar um estilo próprio, nordestino e tam-
cravo e pela canela. bém nacional, brasileiro, que vai convivendo com o
ouro, o café, o tabaco, e outras ocupações econômi-
"Servido em potes indígenas, em terrinas patri-
cas e sociais ungidas pelo doce dominador, doce que
arcais; enfeitado de papel azul, cor-de-rosa, amarelo,
até hoje define relações, humores, estilos, identida-
verde, picado ou rendilhado, segundo modelos dos
des, maneiras de ser do brasileiro.
séculos passados; recortado em corações, meias-luas,
Embora a pitanga marque o ideário das frutas
estrelas, cavalinhos, patinhos, vaquinhas, segundo ve-
nacionais, nativas, Gilberto destacou outras frutas
lhas formas sentimentais."

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emblemáticas do brasileiro. O caju, a fruta da terra, e que abriram na vida, na paisagem e no caráter da gen-
o coco, que já é da terra por adoção, inventivas de te as feridas mais fundas (...)."
usos e inclusões decisivas em cardápios, e ainda no A pesquisa de campo, o estar em campo, en-
imaginário tropical, nordestino, especialmente de quanto maneira de fazer sociologia e antropologia e,
Pernambuco e do Recife. no caso, fazer ecologia, reflete as fortes influências
antievolucionistas e indicadoras de vertentes culturais
"O cajueiro, tão ligado à vida indígena, deu à
para o entendimento complexo do homem e de sua
cozinha pernambucana, em particular e à nordestina
sociedade.
em geral, alguns dos seus melhores sabores; a casta-
Os jeitos já nacionais, regionalmente nordesti-
nha, que, confeitada, ou dentro do bolo, da cocada,
nos, são trabalhados como soluções que indicam a
do doce e do peru, se tornaria tão característica dos
formação de identidades, de padrões culturais, de
quitutes da região; o doce em calda e o doce seco do
encarar e se relacionar com o mundo natural. São
próprio caju; o licor, o vinho – quase simbólicos da
assim vistas, como avisa Gilberto, as chegadas
hospitalidade patriarcal do Nordeste. "
etnoculturais do luso, do africano, dos relacionamen-
Aliada à civilização do açúcar, o caju ganha um tos com os autóctones. De qualquer forma, há uma
valor nativo, como fruta da terra, aliada ao sabor asi- sinalização de amor à terra.
ático (da cana trazida pelo norte da África), aclimatada As peculiaridades da Região Nordeste e as
na Ilha da Madeira, nos Açores, ganha o Brasil, destinações naturais do litoral, da Zona da Mata, do
Pernambuco, com ele nasce um acervo de formas e Agreste e do Sertão oferecem distintas ocupações em
de sabores e de convivências com a tradição e a um diálogo permanente entre o sol e a água. Em vi-
modernidade. são ancestral e mitológica. O masculino e o feminino.
Uma relação em que os resultados idealizados são a
"O coqueiro deu a essa boa mesa patriarcal, o
fertilidade, a vida da terra, as plantas e os animais.
feijão de coco e o peixe de coco; e para a sobremesa,
Há também, em Nordeste , um avanço da
a tapioca seca, a tapioca molhada, o beiju, o doce de
etnobotânica, quando, em quantidade e variedade,
coco verde (...) uma variedade de bolos, em que o gosto
espécimes chegaram do Oriente, da Europa, da Áfri-
do coco se faz sentir junto ao do açúcar ou do mel de
ca e aqui no Brasil nacionalizaram-se, aclimataram-
engenho."
se, ganharam novos usos, preservaram outros usos,
Chegadas, permanências, sugestões, informa- junto àqueles tradicionais, convivendo com as plan-
ções gerais, olhares pontuais de experiências pesso- tas da terra, como os bichos da terra, quando e onde
ais, etnografias participativas, festas de santos, especi- Gilberto explicitamente é telúrico, é nordestino, é
almente aqueles de junho, com rica culinária à base pernambucano, é cabra: cabra pelo poder de resistir,
de milho, festas em casa com a família, festas no tem- enfrentar, adaptar e, principalmente, de criar. Os usos
po do carnaval, com filhoses e suas caldas perfuma- botânicos, foram feitos nas casas, nos engenhos, nas
das, ou no Natal, com pastéis de carne temperada e feiras e mercados, fazendo com que a natureza assu-
que, depois de prontos são pulverizados com açúcar, misse um Sentido/Sentimento profundamente
verdadeiros laboratórios de gostos, de buscas e de integrador e ao mesmo tempo, singular.
descobertas, pela boca e pela emoção. Incluir é um verbo da preferência de Gilberto
Alerta e sensível aos entornos culturais, sociais, Freyre na sua permanente auto-referência de compre-
econômicos, históricos e ecológicos, Gilberto Freyre ensão do Nordeste.
declara no livro Nordeste: aspectos da influência da Exemplo disso, em símbolo e uso, é o tão cele-
cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil, brado coco verde, que é da Índia. Considerado pelos
no prefácio da primeira edição, o seguinte: "O crité- orientais como uma planta providencial, porque dos
rio deste estudo é um critério ecológico." seus órgãos se tira tudo aquilo que o homem necessi-
Imbui-se de vocação impressionista, lê estudos ta para viver, desde o alimento ao vestuário, do mate-
botânicos, faz vigorosas críticas à poluição, descreve rial para construir habitação até aqueles para se de-
como etnógrafo viajante, sua região de maneira qua- fender das doenças, do sol. Se algum dia tivesse havido
se lírica e fala sobre a saga de uma ocupação desi- paraíso terrestre, com certeza o coqueiro ocuparia nele
gual. um lugar de destaque.
A Zona da Mata de Pernambuco era o territó- Mas, se há uma fruta que emblematiza Gilber-
rio preferido por Gilberto, para viajar e viver, incor- to, essa é a pitanga. Há uma devoção quase religiosa
porar técnicas recentes do field work, uma evidente perante o fruto e a folha de aroma tão peculiar, mar-
herança de Boas. "A monocultura, a escravidão, o lati- cado, determinado como o próprio homem nordesti-
fúndio – mas principalmente a monocultura – aqui é no. Homem situado no Trópico.

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Realmente da terra, a pitanga, ou pitanga-da- canaviais, dos jardins-pomares, com ruas arborizadas
praia, ou Eugenia pitanga; em tupi, vermelho, é a fru- e centenárias gameleiras.
ta que Gilberto uniu a sua história de vida. Uniu com
"Sol agressivo este meu sol do Recife. Vejo-o qua-
a boa cachaça, da cana sacarina, compreendendo
se esbofetear os estrangeiros, tal a intensidade da luz e
assim uma civilização que se autentica pela boca. A
de calor. (...)
pitanga, na forma e no estilo de conhaque (conhaque
Só quem goste de sol, vibre com o sol, sinta com
de pitanga), foi a escolha ecológica de Gilberto por
o sol, pode verdadeiramente sentir, amar e compreen-
uma fruta da terra e por uma bebida que, de maneira
der o trópico."
muito particular, ritualizava as relações na sua casa
em Apipucos, Recife. Sol revisto e revisitado nas fogueiras dos santos
Beber o conhaque de pitanga sob os olhos aten- de junho. Antônio, João e Pedro. Sol que é fogo. Sol
tos de Gilberto e de D. Madalena era um ato de in- tropical, que aguça cores, que celebra o calor, que
clusão, uma quase confraria de amigos. Amigos ungi- provoca a busca pela água, água de beber, de banhar,
dos pela boca, pelo açúcar, pela fruta, pelo cenário de viver.
da casa, pela paisagem do sítio e pela proximidade Santo da casa e da devoção particular é Santo
do Rio Capibaribe. Antônio, cujas representações estão em azulejo e no
O ideal tropical ecológico de Gilberto, além de imaginário de madeira, pontuando a casa, exibindo
dedicar total atenção à morfologia da natureza, o com- uma fé que ampliou-se para a família Freyre, sendo
preendia, e como o compreendia, sensivelmente, por este santo, o patrono venerado e unido à trajetória
meio de texto, pintura e desenho realizados como de vida de Gilberto.
linguagens intercomplementares e que têm sua co- Novas concepções de corpo e de sexualidade
municação perfeitamente integrada na formação da com o hábito dos banhos. Banho de rio, de mar, de
sua obra. açude, de chuveiro, de banheira, de piscina, corpo
Folhas de canela para forrar o chão em dias de banhado, corpo mais liberto. Corpo ecologicamente
festa. Odor que integra e faz o local ser mais analisado por Gilberto.
pernambucano, mais recifense. O entorno tropical – luminosidade, clima, ve-
Jardins florestais do Recife e de Olinda, altos, getação, hábitos, roteiros e ruas, o litoral, os rios, os
densos, reunindo plantas para os remédios, para a tipos humanos, as cores da natureza e dos
cozinha; árvores frutíferas, pomares – para serem vis- processamentos vindos das mãos do homem – inte-
tos pela beleza e pelo aroma das frutas. gra a construção do ver, que não se isola do ouvir, do
Flores, algumas genuinamente tropicais, ou sentir, do perceber globalmente as direções e solu-
viuvinhas, tão ao agrado de Gilberto e D. Madalena. ções da região.
O verde tropical, ecológico, foi profundamente O sentimento humanista orienta para o enten-
vivenciado por Gilberto no sítio que circunda sua casa, dimento do que é viver no Trópico. É a geração de
hoje casa-museu da Fundação Gilberto Freyre, cha- um conjunto de métodos e de caminhos teóricos e
mado por ele de sítio ecológico. conceituais construídos por Gilberto, daí a
O acervo verde é constituído, principalmente, Tropicologia.
por cajueiros, cajazeiros, açaizeiros, pitombeiras, Há na Tropicologia uma proposta também esté-
oitizeiros-da-praia, pitangueiras, jaqueiras, manguei- tica. São escolhas, tipos, cores, produtos, alimentos e
ras, dendezeiros, macaibeiras, acácias grandes, pal- roupas, entre outros símbolos que apontam as convi-
meiras imperiais, goiabeiras, flamboyants, juazeiros, vências e conivências de estar sob o sol, o sol domi-
viuvinhas, coqueiros, seriguelas, que servem de abri- nante, o sol que indica comportamentos e maneiras
go e alimento para canários, sanhaços, beija-flores, de ser.
bem-te-vis, sabiás, ratos silvestres, sagüis, lagartos-teju,
"O próprio coco verde é aqui considerado tão
camaleões, calangos, entre outros que vivem ou pas-
vergonhoso como a gameleira, que os estetas munici-
sam pelo ambiente vizinho de um pedaço de Mata
pais vêm substituindo pelos ficus benjamin, quando a
Atlântica e frontal ao Capibaribe.
arborização que as nossas ruas, parques e jardins pe-
A morfologia botânica, os animais, a arquitetu-
dem é a das boas árvores matriarcais da terra ou aqui
ra que pontua a Mata Atlântica, as relações e repre-
já inteiramente aclimatadas: pau d'arco, mangueira,
sentações étnicas no trato com a natureza revelam
jambeiro, palmeira, gameleira, jaqueira, jacarandá."
soluções estéticas profundamente integradas com a
(Freyre, 1976:57)
vida tropical. Há um reconhecimento do sol – luz do-
minante, que escolhe cores primárias, juntamente com Sensorial, sedutor pelo que relata e especial-
o branco – para sinalizar e conviver com o verde dos mente pelo que provoca, Gilberto sugere um mergu-

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191
lho inteiro no seu Nordeste, no seu Pernambuco, no bronze, mármore, pedra que marque o herói, o fabu-
seu Recife. loso; árvores-monumento, pelo que traduzem de co-
É uma relação carnal, relação telúrica com o tidiano, de sombra, de fruto, de valor religioso, étni-
seu território, com o seu Nordeste. Há uma vocação co.
alimentada pelos livros, pelos desenhos e pinturas e, Baobá na Praça da Repúblicas, no centro do
especialmente, pelas escolhas de comidas, bebidas, Recife. Gameleira no Terreiro Obá Ogunté, seita afri-
festas e em especial pelo encontro com a natureza. cana Obaomin, no bairro de Água Fria. O terreiro é
Gilberto encontra no rural e no urbano suas importante xangô, matriz do Nagô, sendo casa/tem-
paisagens preferenciais e escolhe ambientes plo onde o famoso babalorixá Adão viveu sua África e
construídos de pedra e cal – casas-grandes, senzalas, cultivou seus orixás e antepassados, cultivando tam-
sobrados ou com folhas de coqueiro, barro e madeira bém grande amizade por Gilberto Freyre. Assim, cer-
– os mocambos. tamente foram reforçados os laços de Gilberto com a
cultura afro-pernambucana.
"O mal dos mucambos, no Recife, como em
A importância da árvore foi tema que Gilberto
outras cidades brasileiras, não está propriamente nos
sempre incluiu com preocupação botânica, de utili-
mucambos mas na sua situação em áreas desprezíveis
dade, de símbolo – função da cultura. Ecológica, po-
e hostis à saúde do homem: alagados, pântanos, man-
liticamente ecológica. Pois o que aponta em estética
gues, lama podre (...)
une-se ao vigor de uma obra onde a causa ecológica
É que o mucambo se harmoniza com o clima,
perpassa pela ideológica; pela militância, por uma
com as águas, com as cores, com a natureza, com os
atualidade presente nas denúncias que Gilberto apre-
coqueiros e as mangueiras, com os verdes e os azuis
senta no livro Nordeste. "Ao velho Recife o gênio dos
da região como nenhuma outra construção."
mouros, mestres em tanta coisa, por portugueses – aos
O ideal arquitetônico e ecológico de Gilberto quais entretanto deram o mau exemplo, tão seguido
transita pela estética, buscando o sentido humanista pelos brasileiros, do horror à árvore (...)"
do viver no trópico. É também a compreensão de uma A mata, o verde do litoral, o verde recuperado
ecologia modelada na história do açúcar, de uma co- nos jardins-florestais, quase mimese da floresta; da
lonização, como enfatiza Gilberto, bi-africana, de um exuberância de espécies da terra, unidas às do Orien-
olhar minimalista sobre as relações sociais, sobre os te, da África, conjunto já brasileiros leva a leituras além
papéis hierarquizados, sobre o gênero, e especialmen- do valor etnobotânico, pontuando o que é patrimonial
te, sobre chegadas e permanências na natureza. ao significado da emoção e da identidade; o verde e
A natureza que Gilberto aponta é sensual, é a árvore assumem sinais – de alteridade, diferença,
apolínea e dionisíaca, e certamente ele inclui-se como de singularidade. "Conheci uma negra velha que toda
personagem de muitas vivências, em especial no seu tarde conversava com uma jaqueira como se conver-
tão querido Recife. sasse com uma pessoa íntima." (Freyre, 1976:67-68)
Interno na casa, na senzala, no sobrado, no
"O Recife é uma cidade sereia: tem encantos
mocambo, na igreja, no xangô; contudo externo nos
anfíbios a que muita gente de fora vem sucumbindo."
seus entornos, dos verdes escolhidos das paisagens
Águas. De mar, de rio, de cachoeiras, de açu- construídas para integrar arquitetura, homem – cená-
des. rios das relações; o ethos do pernambucano, eixo pre-
O Recife marca a construção ecológica e estéti- ferencial na obra de Gilberto, é um tema permanen-
ca de Gilberto, é germinal, pois o encanto sereia tam- te, de referência, de profunda e explícita amorosidade.
bém seduziu seu filho, recifense de nascimento. Os livros Nordeste (1937), Açúcar (1939), em
Recife, cidade meio-terra, meio-água. Cidade especial o primeiro, são frutos dos anos 30, período e
das águas, águas onde os maracatus querem chegar contexto dos mais favoráveis à explosão de Gilberto,
para voltar, apontar em Luanda, Angola. Dançam reis, encadeando textos ampliando livros, uns aos outros,
rainhas, baianas, damas do passo, como se remassem inaugurando, avançando, falando pioneiramente so-
ar movimentando os braços, como se nadassem para bre ecologia no Brasil.
o encontro além-água, água-mar, voltar, chegar. Águas Os anos 30 são marcados por uma vanguarda
do Capibaribe, também território de Oxum, que é intelectual que de certa maneira assume uma missão
Nossa Senhora do Carmo, santa padroeira do Recife. de falar pelo povo e de organizar a sociedade.
Pois a cidade é sinalizada e ocupada simbolicamente, Gilberto Freyre, decididamente integra essa van-
formando territórios comuns do povo do Recife. guarda, integrando também a intelligentsia do Bra-
Árvores tombadas. Árvores patrimoniais, tão sil, buscando raízes, fundamentos de cultura, na cons-
monumentos como qualquer outro monumento em trução de uma identidade nacional que seja coerente

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192
e testemunhe a própria história brasileira.
Pelo seu caráter genial, Gilberto revoluciona o
pensamento social brasileiro, sugerindo uma Nação
pensada pela cultura, pela civilização.
Singularidade, identidade, descobertas concre-
tas; desvendar a cultura, a história da vida cotidiana,
a história social, a história do passado colonial são os
principais ingredientes das formulações de Gilberto,
que também assume atitude proustiana em reencon-
trar nesse amplo percurso seus próprios antepassa-
dos.
Revela-se Gilberto ao se desdobrar em vários
outros, para assim reencontrar a sua própria identida-
de.
Um passado de matas; Mata Atlântica, florestas
de jacarandá, de águas limpas, de rios e de mar; de
bichos vivendo seus hábitos, de povos que conhecem
o valor da natureza.
As novas narrativas estão encharcadas de cul-
tura, de escolhas por padrões estéticos que, de certa
maneira, têm também uma harmonia ecológica.
Sem dúvida, vigoram estímulos nacionalistas que
convivem com uma energia chamada Nordeste, que
é Zona da Mata; que é Pernambuco – expondo Gil-
berto e sua obra. Expõe, enfrenta e seduz. E tão en-
cantador como a sereia, meio-gente, meio-bicho;
meio-água, meio-terra.
Agora entendo o porquê de uma necessidade
quase pragmática, em finalizar o meu comunicado.
Finalizo, no entanto sem ser o fim; coerente a
Gilberto, encontro um processo; um comunicado em
pleno processo.

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194
MESA-REDONDA 8
UM BRASILEIRO EM TERRAS PORTUGUESAS

Dia 23 de março
COORDENADOR:
Marcos Formiga
Superintendente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste –
Brasil
Eça de Queiroz e Gilberto Freyre:
Algumas Aproximações

Sebastião Vila Nova


Sociólogo – Fundação Joaquim Nabuco – Brasil

Apesar do seu ostensivo apreço pela li- que notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e
teratura ficcional, expresso não apenas no entusiasmos, que acabam logo em fumo, e jun-
modo quase romanesco do seu discurso tamente muita persistência, muito aferro quan-
ensaístico, mas, inclusive, na sua crença no do se fila à sua idéia... A generosidade, o des-
potencial, ao menos heurístico, da obra de leixo, a constante trapalhada nos negócios, e
ficção como ponte proveitosa de informações o sentimento de muita honra, uns escrúpulos,
sobre sociedades do passado onde tal gênero quase pueris, não é verdade?... A imaginação
literário existe,1 não deixa de ser curioso, em que leva sempre a exagerar até à mentira, e ao
se tratando de um sociólogo, que, ao tentar mesmo tempo um espírito prático, sempre
uma síntese da fisionomia moral do portugu- atento `a realidade útil. A viveza, a facilidade
ês, em Casa-Grande & Senzala, 2 recorra Gil- em compreender, em apanhar... A esperança
berto Freyre a um ficcionista, Eça de Queiroz. constante nalgum milagre, no velho milagre de
É precisamente dos últimos parágrafos de A Ourique, que sanará todas as dificuldades... A
ilustre Casa de Ramires que Freyre vai-se va- vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma
ler, através da descrição que o personagem simplicidade tão grande, que dá na rua o bra-
João Gouveia faz do modo de ser do protago- ço a um mendigo... Um fundo de melancolia,
nista daquele romance, Gonçalo Mendes apesar de tão palrador, tão sociável. A descon-
Ramires, para traçar o caráter social do por- fiança terrível de si mesmo, que o acovarda, o
tuguês, já no 11º parágrafo do Capítulo I de escolhe, até que um dia se decide, e aparece
Casa-Grande & Senzala, "Características gerais um herói, que tudo arrasa... Até aquela arran-
da colonização portuguesa do Brasil: forma- que para a África... Assim todo completo, com
ção de uma sociedade agrária, escravocrata e o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me
híbrida". E é com indisfarçavel entusiasmo que lembra?
se refere ao texto de Eça: "- Quem? ...
"- Portugal."4
"[...] o luxo de antagonismos no caratér
português surpreendeu-o magnificamente Eça E, arrematando a citação, comenta
de Queiroz. O seu Gonçalo, d' A Ilustre Casa Freyre;
de Ramires, é mais que a síntese do fidalgo – é
" Extremos desencontrados de
a síntese do português de não importa que
introversão e extroversão ou alternativas de
classe ou condição. Que todo ele é e tem sido
sintonia e esquizoidia, como se diria em mo-
desde Ceuta, da Índia, da descoberta e da
derna linguagem científica."5
colonização do Brasil como Gonçalo Ramires
[...] ". Que Eça de Queiroz esteja presente no
ambiente doméstico de Freyre já desde a sua
O texto, não transcrito na íntegra por
infância é constatação da qual há indícios sig-
Freyre, é a seguir reproduzido sem omissões:
nificativos a partir mesmo do fato de que o
autor de Os Maias figurava entre os autores
"- Pois eu tenho estudado muito o nosso
preferidos do Professor Alfredo Freyre, pai de
amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe
Gilberto, como este evoca:
o Sr. Padre Soeiro quem ele me lembra?
"- Quem? "Seus clássicos prediletos eram Camões,
"- Talvez se riam. Mas eu sustento a se- Frei Luís de Souza, Castilho e Herculano. Den-
melhança. Aquele todo de Gonçalo, a franque- tre os brasileiros, Vieira. Mas sem deixar de
za, a doçura, a bondade, a imensa bondade, saborear o seu Oliveira Martins, o seu Ramalho

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Ortigão e o seu Eça, a quem perdoava os galicismos não se confina à dimensão espiritual da personalida-
por amor ao que, no autor de Os Maias, era graça de de Eça de Queiroz, mas inclui até mesmo certos
literária, ironia viva, coragem de crítica social."6 aspectos somáticos, como, notadamente, as mãos –
"mãos aristocraticamente finas, com alguma coisa, tal-
Note-se que Eça aparece na citação ao lado de
vez, de mãos de mulher."13 Quem, tendo conhecido
dois dos seus mais chegados companheiros, ambos
Freyre pessoalmente, ou mesmo através de fotogra-
participantes do Cenáculo, fato significativo, ao qual
fia, não lembrara, nessa descrição, das mãos do pró-
voltarei neste ensaio.
prio Freyre?
Que Freyre tenha lido Eça ainda adolescente é
Quem mais cioso da sua condição de ensaísta,
fato revelado em seu "diário de adolescente e primei-
quem mais consciente das suas excepcionais qualida-
ra micidade."7 Em confissão registrada em 1916, re-
de de a escritor literário quanto o autor de alguns dos
vela o adolescente Gilberto: "Eça já li quase todo; é o
mais brilhantes ensaios na língua portuguesa do que
autor mais lido pelos estudantes da ´república` de
o autor de Nordeste? Quem mais esteta do que o so-
Mário [Severo] que me emprestou um livro de Eça que
ciólogo, antropólogo e historiador que, na maturida-
eu não conhecia: Prosas Bárbaras. Meu entusiasmo é
de, preferia definir-se como "escritor literário",14 não
pelo Os Maias”.8
tendo pejo algum em afirmar que o "sociológico, o
Difícil não cogitar tenha Eça causado impres-
antropológico, o historiador, cientista social, o possí-
são indelével e influência marcante em quem o tenha
vel pensador são em mim ancilares do escritor"? 15
lido tão jovem. Como um realista, embora não orto-
Quando, no encontro imaginado por Freyre,
doxo, Eça foi inevitavelmente um cronista de costu-
entre Eça e o Dr. Paulo Tavares, juntamente com seus
mes, um ficcionista etnográfico e sociologista, ao modo
patrícios radicados em Paris, Roberto Camargo, um
de Balzac e, principalmente, Flaubert e Zola. Cabe, a
dos visitantes, "cometeu sua gafezinha dizendo que
esta altura, especular: em que medida o etnografismo
no Brasil precisava de Eça",16 o escritor responde ca-
ostensivo e o inevitável sociologismo, tão afiados em
tegórico:
Eça, não terão despertado a inteligência e a sensibili-
dade do adolescente que viria a torna-se uma das mais "Não, não precisa [...]. Precisa de um Oliveira
penetrantes e refinadas expressões nos estudos soci- Martins historiador, sociólogo, pensador, ensaísta em
ais no Brasil? profundidade.
Na sua segunda seminovela, O outro amor do [...] E Portugal nada seria sem Oliveira Martins."17
Dr. Paulo, 9 desdobramento de Dona Sinhá e o filho
padre, 10 Freyre faz introduzir Eça de Queiroz como Desta vez, projeta-se Freyre em uma outra per-
personagem. No Capítulo 14, o protagonista, Paulo sonalidade intelectual, no caso, Oliveira Martins.
Tavares, através da intercessão de Eduardo Prado (na Quem com maior empenho, com maior paixão, bus-
vida real grande amigo de Eça, tendo inclusive servi- cou fazer-se e viver-se, no Brasil, "historiador, soció-
do de modelo, em alguns aspectos, para o Jacinto de logo, pensador, ensaísta em profundidade" do que
Tormes da primeira parte de A cidade e as serras ),vi- Freyre? E quem, diante da afirmação de Eça de O outro
sita, com alguns amigos brasileiros, o então cônsul Eça amor do Dr. Paulo de que "Portugal nada seria sem
de Queiróz em Paris. Informa o narrador-personagem Oliveira Martins", não lembrará da afirmação análoga
que os visitantes, não tendo lido os romances de Eça de Darcy Ribeiro de que "não passaríamos sem Casa-
e conhecendo apenas "seus ensaios publicados em Grande & Senzala sem sermos outros"18 e de que, nas
jornal do Rio".11 eram, no entanto, “jovens devotos palavras do mesmo Darcy Ribeiro, "Gilberto Freyre,
de literatura e admiravam em Eça o jornalista ou o de certa forma, fundou – ou pelo menos espelhou – o
ensaista, tão artista literário, tão pensador social, tão Brasil no plano cultural tal como Cervantes à Espanha,
esteta com alguma coisa de sociólogo, como o pró- Camões à Lusitânia, Tolstói à Rússia, Sartre à Fran-
prio romancista."12 ça"?19
Que descrição poderia caber melhor a Freyre – Que não se interprete, porém, vale reiterar, as
excetuando o "com alguma coisa de sociólogo" – do afirmações postas na boca do Eça de O Outro amor
que a sua projeção sobre Eça, projeção, se assim pu- do Dr. Paulo como simples projeções das qualidades
dermos dizer, de retorno, uma espécie de reverse do próprio Freyre sobre outras personalidades inte-
projection, projeção às avessas de quem, tendo rece- lectuais, mas, antes, como retribuição pela influência
bido influência de um autor, projeta, em retorno, as decorrente da grande admiração, desde a juventude,
marcas assimiladas daquele autor, já então cristaliza- de Freyre por aquelas personalidades: a de Eça, mas
das na sua personalidade, sobre o escritor admirado, também a de Oliveira Martins.
como alguém que, diante de um espelho, descreves- Mas não fica apenas na conjunção do historia-
se a si mesmo como outro? Trata-se de projeção que dor com o sociólogo, do pensador com o ensaísta, a

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


198
possível marca de Oliveira Martins, tão querido e tão traste da vida requintada em cidade estrangeira com a
admirado por Eça, sobre Freyre. Quem com mais "en- de casa tradicional e simples enraizada ao solo nativo.
genho e arte" terá combinado preocupação científica Sempre a preocupação da casa como extensão da pes-
em relação à fundamentação da narrativa e da inter- soa humana."24
pretação histórica em fontes fidedignas com recria-
Haverá preocupação mais forte, mais ostensi-
ção imaginativa, romanceada quase, do que Oliveira
vamente marcante, na obra de Freyre do que a fixa-
Martins? Basta ler, na sua História de Portugal, 20 as
ção obsessiva com "a casa como extensão da pessoa
descrições, tão ricas em plasticidade, da Jornada da
humana", como referência e símbolo nuclear das re-
África, 21 conduzida por D. Sebastião, e o desapareci-
lações e das hierarquias sociais? Não há esquecer, di-
mento deste na célebre batalha, bem como a descri-
ante das palavras de Freyre sobre a casa em Eça, do
ção – "cinematográfica, diríamos hoje – do "terramoto"
sentido emblemático da casa em sua própria obra: a
de Lisboa, em 1755, 21 para que se tenha a dimensão
casa-grande e a senzala, o sobrado e o mucambo,
das qualidades excepcionais do "escritor literário", para
como opostos que se complementam na formação da
usarmos a expressão tão cara a Freyre, de ensaísta
sociedade brasileira. Como fugir à hipótese de uma
personalíssimo e brilhante, capaz do tipo de descri-
possível sugestão de Eça sobre o espírito do jovem
ção pictoricamente expressiva, senão expressionista,
Gilberto prolongando-se na sua obra de adulto?
nas acentuações de formas e cores, prerrogativa dos
No volume 1, Memórias e notas, d` A corres-
grandes escritores, como foi o caso de Freyre. Como
pondência de Fradique Mendes, porventura o mais
descartar, então, a possibilidade de influência tam-
elaborado de todos os personagens da vasta conste-
bém de Oliveira Martins sobre o ensaísta-pintor Gil-
lação de personagens da obra de Eça e, ao mesmo
berto Freyre? As pouco mais de seis páginas de O ou-
tempo, seu alter ego, comentando a "saloia
tro amor do Dr. Paulo, por si mesmo, pela riqueza de
macaqueação"25 das coisas da França e, de modo par-
suas sugestões, poderão render ensaio mais extenso
ticular, de Paris, pelas elites lisboetas, e a constatação,
do que as hipóteses aqui sugeridas permitem.
atribuída ao seu personagem, de que "Lisboa é uma
Outras relações entre a visão do mundo e a "so-
cidade traduzida do francês em calão", 26 afirma Eça
ciologia" da ficção queiroziana merecem atenção.
que, em Fradique:
Como um realista ou naturalista – realista ou natura-
lista pouco ortodoxo – Eça de Queiróz é, ipso facto, "apenas transpunha Santa Apolônia [...] a sua
sociologista, repita-se, como o foram Flaubert e, so- ansiedade perpétua era então descobrir, através da
bretudo, Zola. E, como escritor do ficção sociologista, frandulagem do francesismo, algum resto do genuíno
Eça é, como foram os seus modelos franceses, além Portugal.
de Charles Dickens, tão da sua admiração, um "Logo a comida constituía para ele um real des-
dissecador do cotidiano, e não, como Tolstói, um pin- gosto. A cada instante, em cartas, em conversas, se
tor de vastos painéis dos grandes fatos históricos, dos lastimava de não poder conseguir 'um cozido verná-
acontecimentos sociais extraordinários. E é como ana- culo' ! – ' Onde estão os pratos veneráveis do Portugal
lista do cotidiano que o autor de Os Maias está atento português, o pato com macarrão do século XVIII, a al-
não somente ao humano, mas, igualmente, às suas môndega indigesta e divina do tempo das Descober-
projeções materiais, como, por exemplo, a casa como tas, ou essa maravilhosa cabidela de frango, petisco
referência sociologicamente significativa na experiên- predileto de Dom João IV [...]? As coisas mais delicio-
cia do convívio humano. Como, com argúcia, perce- sas de Portugal, o lombo de porco, a vitela de Lafões,
be Gilberto Freyre: "De Eça não nos esqueçamos que os legumes, os doces, os vinhos, degeneraram,
o melhor e o maior dos seus romances é a história de insipidaram..."26
uma casa portuguesa afidalgada: o Ramalhete."22
E, ainda a propósito da preocupação de
Como do mesmo modo ocorre com o trem de
Fradique com a culinária vernácula portuguesa, con-
ferro em A besta humana, de Zola, "a casa é o perso-
ta Eça:
nagem principal do romance",23 conforme observa
Freyre. E continua: "Só uma ocasião, nesta especialidade considerá-
vel, o vi plenamente satisfeito. Foi numa taverna da
“Os homens passam pelas páginas do livro a que Mouraria [...], diante de um prato complicado e pro-
dão o nome em função da casa dramática que resume fundo de bacalhau, pimentos e grão-de-bico. Para go-
vivos mortos, homens e paisagens, a terra e o mar. Esta zar com coerência, Fradique despiu a sobrecasaca. E,
é que é a realidade mais forte do drama: a casa no como um de nós lançara casualmente o nome de
sentido mais largo; como n` A ilustre casa de Ramires, Renan, ao atacarmos o pitéu sem igual, Fradique pro-
a grande realidade é a casa do fidalgo com a sua torre. testou com paixão:
N`A cidade e as serras também: o drama é um con-

S EMINÁRIO IN T E R N A C I O N A L NO V O M UNDO NOS TR Ó P I C O S


199
" – Nada de idéias! Deixem-me saborear esta mem de Póvoa de Varzim."32
bacalhoada, em perfeita inocência de espírito, como Mas é o "pobre homem de Póvoa de Varzim"
no tempo do senhor Dom João V, antes da democra- quem afirma: "Os meus romances, no fundo, são fran-
cia e da crítica!" 27 ceses, como eu sou, em quase tudo, um francês."33
Se não é do meu conhecimento nenhuma frase
Como, diante do apaixonado apreço de
semelhante de Freyre em relação ao seu tão querido
Fradique pela velha e boa culinária portuguesa, não
Santo Antônio de Apipucos, nele é notória a tensão/
lembrar o Freyre do Manifesto Regionalista? Lamenta
conciliação do intelectual cosmopolita com o homem
Freyre:
inarredavelmente, amorosamente ligado ao Recife, ao
"Raras são hoje as casas do Nordeste onde ain- seu Santo Antônio de Apipucos, do qual não se afas-
da se encontram mesa e sobremesa ortodoxamente tou depois dos quarenta anos, a não ser por breves
regionais: forno e fogão onde se cozinhem os quitutes períodos, para pronunciar conferências e ministrar
tradicionais à boa moda antiga. O doce de lata domi- cursos no Brasil e no estrangeiro, um Freyre que, em
na. A conserva impera. O pastel afrancesado reina."28 entrevista a TV Cultura, de São Paulo, na década de
setenta, afirmou: "Gosto dos meus chinelos e gosto
E conclui:
dos meus sapatos. "Do mesmo modo que é impossí-
"Toda essa tradição está em declínio ou, pelo vel encontrar escritor português simultaneamente tão
menos, em crise, no Nordeste. E uma cozinha em crise cosmopolita, tão afrancesado, tão do seu Portugal, da
significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de sua Póvoa de Varzim, das serras e da boa culinária do
descaracterizar-se."29 seus país, não é possível encontrar no Brasil persona-
lidade intelectual tão consciente e cultivadamente
No entanto, alegra-se ainda ao constatar que:
cosmopolita, em sua formação e em seus valores, e,
"Quando aos domingos saio de manhã pelo Re- ao mesmo tempo, tão afetuosamente brasileiro,
cife – pelo velho Recife mais fiel ao seu passado – e em pernambucano, recifense, tão do seu Santo Antônio
São José, na Torre, em Casa Amarela, no Poço ainda de Apipucos.
sinto vir de dentro de muita casa o cheiro de munguzá
e das igrejas o cheiro de incenso, vou almoçar tranqüi- _______________________
lo o meu cozido ou o meu peixe de cocô com pirão."30
Notas
Mas não é apenas no Freyre do Manifesto 1
Ver, a propósito: FREYRE, Gilberto. Heróis e vilões no romance
Regionalista que flagramos essa preocupação e esse brasileiro; em torno das projeções de tipos socioantropológicos
amor, análogos aos de Fradique/Eça, em relação à em personagens de romences nacionais do século XIX e do atual.
Texto organizado e apresentado por Edson Nery da Fonseca. São
autêntica culinária vernácula. Quem, conhecendo os Paulo: Cultrix, 1979.
artigos da primeira fase da colaboração de Freyre no 2
FREYRE,Gilberto. Casa-Grande & Senzala; formação da família
Diario de Pernambuco, no período de 1922 a 1925, brasileira sob o regime de economia patriarcal. 34. Ed. Rio de
não há de lembrar, em cotejo com as idéias de Janeiro: Record, 1998.
Fradique/Eça sobre gastronomia o saboroso texto so-
3
Ibid., p. 7.
bre "O pirão, glória do Brasil"? Quem não há de lem-
4
QUEIROZ, Eça de. A ilustre casa de Ramires. Porto Alegre: L&PM,
1999.
brar o entusiasmo com que Freyre refere-se a essa 5
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande... p. 7.
glória nacional? "Divino pirão: Nunca no Brasil se pin- 6
FREYRE, Gilberto et al. Homenagem a Alfredo Freyre por um
tou um quadro nem se escreveu um poema nem se grupo de discípulos e amigos. Recife: s. ed., 1964, p. 27.
plasmou uma estátua nem se compôs uma sinfonia 7
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos; trechos de um
que igualasse em sugestões de beleza a um prato de diário de adolescência e primeira mocidade. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1975.
pirão."31 8
FREYRE,Gilberto. Tempo morto... p. 9.
Mais importante, contudo, neste paralelo entre 9
FREYRE, Gilberto. O outro amor de Dr. Paulo. Rio de Janeiro:
Eça/Fradique e Freyre não é simplesmente a identida- José Olympio, 1977.
de de preocupações quanto à descaracterização da 10
FREYRE, Gilberto. Dona Sinhá e o filho padre. Rio de Janeiro:
culinária nacional, mas o que essa atitude revela, tan- José Olympio, 1964.
to em Eça quanto em Freyre, de tensão e, ao mesmo 11
FREYRE, Gilberto. O outro amor... p. 88.
tempo, equilíbrio entre o intelectual simultaneamen-
12
Idem.
te cosmopolita e localita, moderno e tradicional, cio-
13
Ibid., p. 90.
so dos valores universais sem deixar de prezar os va-
14
MEAD, George Herbert. Mind, self, and society; from the
standpoint of a social behaviorist. Edited and with an Introduction
lores singulares do seu povo, da sua pátria, da sua by Charles W. Morris. Chicago: The University of Chicago Press,
região. Que admirador de Eça não lembra a sua fa- 1972 (originalmente publicado em 1934).
mosa auto-definição? "Eu sou apenas um pobre ho- 15
FREYRE, Gilberto. Tempo morto... p. 12.

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200
16
Ibid., p. 19
17
Ibid., p. 19-20.
18
Ibid., p. 20.
19
FREYRE, Gilberto et al. Homenagem a Alfredo Freyre... p. 4.
20
Ver nota 11.
21
FREYRE, Gilberto. Como e porque sou e não sou sociólogo.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1968, p. 165.
22
Idem.
23
FREYRE, Gilberto. O outro amor... p. 9l.
24
Idem.
25
RIBEIRO, Darcy. Gentidade. Porto Alegre: L&PM, p. 9.
26
Idem.
27
MARTINS, Oliveira. História de Portugal. 19. ed. Lisboa: Gui-
marães Editores, 1987.
28
Ibid., Livro Quinto: "A Catástrofe", Capítulo III: "Jornada da Áfri-
ca (D. Sebastião)", p. 262-277.
29
Ibid., Livro Sexto; "A decomposição", Capítulo V: "O terremoto
– O Marquês de Pombal", p. 349-373.
30
QUEIROZ, Eça de. Os Maias. Introdução por Esther de Lemos.
Lisboa: Ulisseia, s.d.
31
FREYRE, Gilberto. Oh de casa! Rio de Janeiro, 1979, p. 156.
32
Idem.
33
QUEIROZ, Eça de. A correspondência de Fradique Mendes; Vol.
1 – Memórias e notas. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 78.

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201
Gilberto: Portugal, Brasil e Trópico

Manuel Correia de Andrade


Historiador/Geógrafo – Fundação Joaquim Nabuco – Brasil

Gilberto Freyre, o intelectual viajante Indonésia.


Ele não conseguia separar o que era por-
Não é fácil desenvolver o tema desta tuguês, no sentido amplo, do que era brasi-
mesa-redonda, considerando-se o título da leiro, a ponto de afirmar "tal é o meu amor a
mesma, apenas em seus aspectos físicos, na Portugal, tal o meu amor ao Brasil, tão desin-
presença de um brasileiro, no caso Gilberto teressado de recompensas, tão desdenhoso de
Freyre, em terras de Portugal. Tratando-se de condecorações, tão indiferente aos agradeci-
um cientista social, ele pode se encontrar em mentos oficiais, ou a consagrações acadêmi-
um determinado lugar, no pensamento e nas cas, que me dá, talvez, o direito, além de me
reflexões, sem ir até lá. Chesterton, afirmou impor o dever, de dizer a portugueses, numa
certa vez, que se pode dar a volta ao mundo solenidade como esta (na Associação de Fe-
de duas formas, ou viajando em torno da Ter- derações Portuguesas), inconveniências iguais
ra, ou andando no próprio quarto, lendo so- as que tenho dito, em circunstâncias seme-
bre as várias porções do planeta. lhantes, a brasileiros" (1962,20). Certamente
No caso de Gilberto Freyre, o mundo o seu amor se estenderia às demais nações
para ele, e Portugal em particular, têm a di- portuguesas do Atlântico, da África, da Índia
mensão fornecida pela informação, pela re- e da Oceania.
flexão e pela imaginação, da mesma forma Isto porque, ele raciocinava em função
que pela visualização. E a sua trajetória cien- de uma comunidade de língua portuguesa
tífica e literária foi feita nas duas dimensões: cuja unidade era mais cultural do que lingüís-
a real e a da imaginação. tica ou racial. Comunidade que apresentava
Como homem muito viajado e muito uma grande diversidade, no qual a unidade
lido, ele foi, dialeticamente, um cosmopolita não se dissolvia na diversidade e que, na oca-
e um localista. Tinha, desse modo, a capaci- sião em que ele falou, já estava no início de
dade de ver, ao mesmo tempo, o todo e as um processo de desagregação. Temia ele que
partes. Assim, ele via o mundo, de cujos pro- se formassem grupos e partidos de brancos,
blemas tinha grande preocupação, e o Reci- de negros e de mulatos que se hostilizassem,
fe, ou até mesmo o seu bairro, Apipucos, dando origem a guerras e revoluções que se
como unidades diversas e, ao mesmo tempo, prolongassem por dezenas de anos.
como unidades complementares. Os contrá- Gilberto Freyre foi um cosmopolita; aos
rios não são rigorosamente contrários, mas 18 anos, concluído o curso secundário no
são, quase sempre, posições de um mesmo Recife, transferiu-se para os Estados Unidos
ponto. E isto para Gilberto, discípulo de onde foi estudar ciências sociais, em Baylor,
Seligman, seu mestre na Universidade de transferindo-se depois para Nova York onde
Colúmbia, a História Econômica, é fundamen- se tornou mestre em artes, com uma tese so-
tal. bre a sociedade nordestina no século XIX. Em
Ao refletir sobre Portugal, ele o faz, ao 1922, concluída sua pós-graduação, viajou
mesmo tempo, sobre o próprio país europeu, para a Europa, passando meses na França (Pa-
assim como sobre o Império Português, que ris) e na Inglaterra (Oxford), aperfeiçoando os
só se desmembrou após 1975, sobre a Co- seus estudos. Antes de regressar ao Brasil, ou
munidade Luso-Afro-Brasileira, que ele defen- ao Recife, ele viajou pela Alemanha, Espanha
deu e analisou, e até sobre os resíduos do e Portugal, fazendo contatos com instituições
antigo império que se desligaram do mesmo acadêmicas e com personalidades do mundo
pela conquista de outras potências – Índia e das ciências, das artes e das letras. Voltando

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202
ao seu Recife, ele, que conhecia a América do Norte vros de história portuguesa, como o Épocas de Portu-
e a Europa, nunca havia estado no Rio de Janeiro nem gal Econômico, um verdadeiro clássico, escreveu tam-
em São Paulo. Fixando-se no Recife, desenvolveu seus bém livros importantes sobre o Brasil, como A Vida
estudos em torno de temas como o regionalismo, a do Padre Antônio Vieira e outro sobre Os Cristãos
miscigenação racial, a cultura negra, o patriarcalismo, Novos no Grão Pará. Velho e recolhido em um casa-
a ecologia, a política oligárquica da Primeira Repúbli- rão de Lisboa, ele continuava os seus estudos sobre
ca, ao mesmo tempo que vivia tanto no seu meio de Portugal e o Brasil, e deu a maior atenção ao jovem
origem – a oligarquia açucareira – como entre as clas- brasileiro que se iniciava nos estudos histórico-soci-
ses populares, em xangôs, clubes carnavalescos, res- ais, como que prevendo a contribuição que o mesmo
taurantes humildes, etc. daria ao desenvolvimento das ciências sociais no Bra-
A partir dessas informações, escolhemos qua- sil. Em Coimbra, ele esteve com o filósofo e historia-
tro viagens específicas de Gilberto Freyre a Portugal, dor Joaquim de Carvalho, autor de livro famoso sobre
os contatos feitos e as suas realizações. Essas viagens os descobrimentos.
poderão dar uma dimensão das ações de Gilberto Interessante é que Gilberto Freyre, um desen-
Freyre na antiga metrópole portuguesa. A primeira foi cantado da democracia política e partidário de uma
em 1923, no término da sua viagem à Europa, de re- democracia social, procurasse contatos, em Portugal,
gresso de seus estágios em Paris e Oxford, quando com Antônio Sardinha, famoso líder do movimento
realizou os primeiros contatos com Portugal e os por- político em favor de um sistema corporativista que
tugueses. A segunda, em 1930, como exilado políti- combatia a combalida república portuguesa. Repú-
co, acompanhando o ex-governador Estácio Coimbra, blica que abolira a monarquia em 1910, mas que ain-
iniciando suas pesquisas em arquivos lusitanos, para da não conseguira se consolidar. Antes, ele já entrara
a elaboração do livro que seria Casa-Grande & Senza- em contato, em Paris, com intelectuais políticos da
la; a terceira, em 1937, quando, já famoso com a mesma linha ideológica, como Charles Maurras, par-
publicação de Casa-Grande & Senzala e de Sobrados tidário da restauração da monarquia e com discípulos
e Mucambos, foi participar do I Congresso sobre a de Sorel, que tentavam viabilizar um sindicalismo re-
Expansão Portuguesa, onde proferiu conferências no volucionário.
Porto, em Coimbra e em Lisboa e, finalmente, a quar- E Gilberto Freyre tinha sido muito influenciado,
ta viagem, em 1951/52, a convite do governo portu- nos Estados Unidos, ou melhor, na Universidade de
guês, permanecendo por seis meses em Portugal e Colúmbia, pelos ensinamentos de Seligman, que de-
colônias situadas nas ilhas do Atlântico, na África e na fendia um marxismo não ortodoxo, não sectário; e
Índia. Não visitou Macau nem o Timor nem Açores. ele próprio, refletindo sobre o Brasil lastimou que o
A análise dessas viagens nos dá uma idéia do nosso Rui Barbosa estivesse alheio ao conhecimento
seu relacionamento com Portugal dos meados do sé- de Marx, que poderia tê-lo feito ficar mais aberto aos
culo XX, quando ele se preparava para se transformar problemas sociais (1975, p. 79).
de um país conservador e colonialista em um país Inegavelmente, Gilberto deixou-se impressionar
moderno. por Portugal, pela cultura portuguesa, que ele conhe-
cia, até então, através de livros, veio mergulhar nas
A viagem de 1923 suas reflexões sobre a sociedade brasileira e viver o
Em 1923, Gilberto Freyre, que concluíra os seus Recife, não só no convívio com os seus valores tradi-
estudos, estava decidido a voltar ao Brasil e a se fixar cionais, como a "nobreza" do açúcar, já decadente,
no Recife, apesar dos conselhos que recebera, de se mas também com o povo, com os descendentes de
fixar no exterior, naturalizando-se inglês ou america- escravos, com que ele passou a conviver nas ruas e
no (1975, 40), ou, teimando em voltar ao seu país, nas reuniões populares.
fixar-se no Rio de Janeiro ou em São Paulo. No Reci-
fe, assegurava-lhe o seu amigo Oliveira Lima, ele não A viagem de 1930
teria condições de desenvolver os seus trabalhos. E A viagem de 1930, foi bem mais difícil; após
foi o próprio Oliveira Lima, na sua viagem de regres- mais de seis anos no Recife, trabalhando como jorna-
so, que o aconselhou a ir a Portugal. Aí esteve em lista, como auxiliar do governador Estácio Coimbra e
Lisboa, com o conde de Sabugosa, aristocrata de por- como professor de Sociologia na Escola Normal, teve
te britânico e amante da literatura, e em seguida via- que sair do País para o exterior às pressas, para viver
jou a Coimbra e Porto. com Estácio Coimbra e outros políticos brasileiros, o
Dentre os intelectuais que visitou em Portugal que chamou de "a aventura do exílio". A vida do gru-
destacou-se João Lúcio de Azevedo, grande escritor po em Lisboa foi difícil, como sempre o é para os exi-
que viveu muitos anos no Pará e que, ao lado de li- lados que não têm reservas em disponibilidade; Gil-

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203
berto aproveitou o tempo para ensinar inglês a alguns dou a alguns setores de intelectuais portugueses e
dos exilados e para fazer pesquisas em arquivos e bi- desagradou a outros.
bliotecas portuguesas. Nessa viagem Gilberto Freyre deveria proferir
A médio prazo, essa estada em Lisboa lhe foi três conferências em Portugal: uma em Lisboa, outra
útil para conhecer melhor a natureza humana, as di- em Coimbra e uma terceira no Porto; mas tendo que
ferenças que atingem os que politicamente estão no regressar ao Brasil por problemas de saúde em pes-
poder e os que, depostos, são atingidos por necessi- soa de sua família, deixou-as para serem lidas pelo dr.
dades. Saíra do Brasil com certa rapidez, partindo de Manuel Murias (1940, p. 31), o que ocorreu, tendo
Salvador para Lisboa sem tempo de preparar as coi- sido publicadas, inicialmente com o título de Confe-
sas usuais de que necessitava, era natural que sentis- rências na Europa, em 1938. Dois anos depois foram
se angústia. Esta angústia aumentava ao ver o seu chefe as mesmas conferências e uma quarta, feita em
e amigo, Estácio Coimbra, arrasado com os aconteci- Oxford, lida pelo Embaixador do Brasil, acrescidas de
mentos e até chorando em sua presença (1975, p. artigos e notas de autores portugueses, publicadas no
250), pela notícia que recebeu de que os "revolucio- livro O Mundo que o Português Criou (1940). Para esta
nários" haviam ocupado a casa de sua família, na nova edição foi escrito um prefácio, pelo grande es-
Madalena, e a incendiado. Imaginava a situação em critor português, Antônio Sérgio, que analisa a obra
que os seus viviam em uma ocasião como aquela. de Gilberto Freyre, e retifica, a seu modo, o livro de
O que salvou Gilberto Freyre desta situação di- João Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Econômi-
fícil de exilado foi um convite que lhe fizeram para co.
ser professor visitante em Stanford, nos Estados Uni- Antônio Sérgio, escritor de grande influência
dos, o que permitiu aguardar os acontecimentos polí- marxista, procurou mostrar como as condições natu-
ticos do Brasil e que lhe amenizasse a situação eco- rais e o modo de produção dominantes, levaram Por-
nômica em que se encontrava. tugal – país que vivia, inicialmente, da produção de
sal e da pesca – a se tornar um país de navegadores,
A viagem de 1937 possibilitando que desenvolvesse as grandes navega-
Em 1937, Gilberto Freyre voltou a Portugal ções, a partir do século XV.
como membro da delegação brasileira ao I Congresso As três conferências de Gilberto Freyre, lança-
de História da Expansão Portuguesa no Mundo. Ele já vam, de forma sistemática, as bases de sua teoria do
era, nesta ocasião, homem famoso, de vez que publi- luso-tropicalismo, cujos princípios já haviam sido lan-
cara, em 1933, o livro Casa-Grande & Senzala e em çados em Casa-Grande & Senzala. Assim, na primeira
seguida Sobrados e Mucambos. Esses livros contraria- conferência Aspectos da influência da mestiçagem so-
vam posições de estudiosos famosos no Brasil que bre as relações sociais e culturais entre portugueses e
combatiam os portugueses como colonizadores e pro- luso-descendentes, ele resume a importância das re-
curavam apresentar os negros e indígenas como de lações sociais no Brasil, no período colonial, com uma
raças inferiores e, consequentemente, a miscigena- civilização dominada pelo latifúndio/monocultura/es-
ção como um mal. Achavam que o Brasil devia de- cravidão, desenvolvendo com um grande senso an-
senvolver uma política de branqueamento de sua tropológico as relações sociais e raciais derivadas des-
população, a fim de que se tornasse uma Europa tro- te sistema produtivo; na segunda conferência
pical. Importância dos estudos de história social e cultural
Em livros em que se propunha analisar o pro- para as relações entre portugueses e luso-descenden-
cesso de desenvolvimento da família patriarcal no tes, ele relaciona a existência de trabalhos e de auto-
Brasil, ele defendia a contribuição do negro e do in- res que desenvolviam ou estavam desenvolvendo pes-
dígena, do negro sobretudo, no desenvolvimento da quisas neste sentido, dando a entender que a história
civilização brasileira, tentando demonstrar que o Brasil social e cultural tem uma importância tão grande ou
era um País mestiço e não um País branco. Valorizava até maior do que a simples história política. Dá uma
o português como colonizador por achar que a Pe- grande ênfase ao trabalho de síntese histórica de João
nínsula Ibérica, por suas condições climáticas, pela Ribeiro.
longa dominação moura no seu território e por suas Na terceira conferência, ele dá uma ênfase "à
relações com a África Mediterrânea, a princípio, e cooperação luso-brasileira no estudo de problemas
negra em seguida, não era rigorosamente um euro- da arte culta e popular". A quarta conferência, lida
peu, mas já um mestiço. Que em suas ações ele era em Oxford, versa sobre O Nordeste do Brasil e seus
mais cristocêntrico do que eurocêntrico. Tinha mais pontos de contato com outras áreas americanas
habilitações para tratar com os povos dos trópicos e especializadas na produção de açúcar. Trata-se de uma
maior facilidade de se adaptar à região. Essa tese agra- velha preocupação de estudiosos brasileiros, com as

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204
semelhanças e contrastes existentes entre áreas ores e observando paisagens e problemas enfrenta-
açucareiras em vários pontos do território americano, dos.
sobretudo com o Caribe. Nessa viagem, ele esteve na atual Guiné Bissau
Essa edição de O Mundo que o Português Criou e em seguida em Cabo Verde, dando informações de
incorporou o magnífico prefácio de Antônio Sérgio e que, apesar de se encontrar no continente, a Guiné é
trechos de uma série de escritores portugueses e bra- um país em que os portugueses tem pontos fixos, como
sileiros, a respeito do pensamento luso-tropicalista do as antigas feitorias brasileiras do século XVI, fortificadas,
sociólogo brasileiro. Destacando-se entre estes estu- onde fazem o comércio com a população nativa, muito
dos, os de Maria Archer, na revista Seara Nova, os do numerosa e muito diversificada do ponto de vista ét-
padre J. Alves Correia, de João de Barros, de Luís nico; apesar de sua pequena extensão territorial, é
Robalinho Cavalcanti, de José Osório de Oliveira, de um verdadeiro mosaico de povos africanos, havendo
Rui Coutinho, de Arnon de Mello, de Manuel Murias, uma forte influência islâmica, o que dificulta a difu-
de Vitorino Nemésio e de Robert Smith Jr. são do cristianismo. Cabo Verde, porém, era um ar-
Estes comentários têm grande importância por- quipélago desabitado que os portugueses ocuparam,
que, em grande parte deles, observa-se uma aprova- na segunda metade do século XV, e utilizado para o
ção às idéias gilbertianas, mas há também algumas cultivo de plantas tropicais e como entreposto de es-
discordâncias, sobretudo quando se tenta unificar a cravos aprisionados em Guiné e depois transportados
ação e os resultados da ação colonial dos portugue- para o Brasil, e onde há uma dominação maciça de
ses nos trópicos, mostrando as diferenças do que ocor- mestiços, apresentando alguma semelhança racial com
reu em Cabo Verde e no Brasil, com grande o Brasil.
mestiçagem, com o que ocorreu na África Colonial – Trata-se de um país muito pequeno (4.033 km 2)
Angola, Moçambique e Guiné – onde a sociedade e muito pobre, formado por cerca de 10 ilhas, distan-
permaneceu dominantemente negra, com um peque- tes uma das outras e muito dependentes de ajuda
no percentual de brancos e mestiços. Bem diverso foi externa. Em todo caso havia um movimento literário
o que ocorreu em Goa, no Timor e em Macau. Os expressivo, muito aberto à literatura brasileira
portugueses também reagiram à comparação do cli- (Castello, 1999, 93) e que esperava ter tido um maior
ma da Península Ibérica com o tropical da África e do contato com o sociólogo de Apipucos, o que não ocor-
Brasil, como se pode observar em textos de geógrafos, reu em face do pouco tempo de que ele dispunha.
como Orlando Ribeiro e Ilídio do Amaral (1990). Gilberto teve um grande encantamento em Goa,
Era natural que uma tese ousada como a de na Índia, onde observou, após rápida passagem por
Gilberto Freyre, provocasse apoio e contestação, ora vários países do Oriente, que se tratava de um estado
mais ora menos forte e conduzisse o governo portu- semi-estrangulado pela União Indiana, em uma oca-
guês, ao procurar uma legitimidade política para a sua sião em que Nehru tentava fazer a unificação da Ín-
atuação, que convidasse Gilberto Freyre (Castelo, dia. Observou que os habitantes da então província,
1998), a visitar e estudar o seu mundo colonial, in eram, em sua maioria, indianos, do ponto de vista ét-
loco, em contato com a sociedade e os administrado- nico, que haviam absorvido muito da cultura portu-
res dos chamados territórios do ultramar. guesa. Observou também que havia entre as pessoas
que o contataram, aqueles que desejavam manter o
A viagem de 1951/52 status quo e outros que desejavam a integração à Ín-
Na quarta viagem, ele foi a Portugal e as então dia. O assunto chegou a lhe ser aventado pessoalmen-
chamadas províncias de ultramar – Guiné, Cabo Ver- te por um indiano de Goa. Chamou a sua atenção
de, São Tomé e Príncipe, Goa, Angola e Moçambique. como antropólogo eminente, que muito da civiliza-
Na volta ao Brasil, deteve-se na Ilha da Madeira. Fi- ção indiana não havia sido destruída pela dominação
caram fora apenas Macau, Timor e os Açores. A via- portuguesa, a não ser parcialmente, de vez que era
gem se estendeu de agosto de 1951 a fevereiro de comum, mesmo entre os católicos, ser respeitada a
1952, em pleno período do após guerra, quando foi rígida divisão da população em castas.
iniciado o processo de descolonização de outros im- Em seguida, visitou São Tomé e Angola, este,
périos. país considerado como uma espécie de novo Brasil,
No livro, Aventura e Rotina: Sugestões de uma pela sua extensão territorial, pela sua riqueza mineral
Viagem à Procura das Constantes Portuguesas no Ca- e pelas relações que mantinha com o Brasil no perío-
ráter e Ação", publicado em 1953, constata-se que é do anterior à independência do nosso País. Em São
um livro de viagens no qual o autor descreve paisa- Tomé, pequena colônia produtora de cacau e habita-
gens, contatos pessoais, conversas e observações, uti- da principalmente por negros, sua demora foi peque-
lizando conhecimentos adquiridos em leituras anteri- na, mas em Angola havia muito a estudar e observar,

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205
não se limitando a sua visita às cercanias de Luanda. norte, a chamada província da Beira. Em Moçambique
Esteve em Mocamedes, onde existia uma coloniza- a situação era diferente da de Angola, de vez que, em
ção agrícola semelhante a do Nordeste do Brasil, e face a da vizinhança da África do Sul, este país tinha
onde se encontravam descendentes de colonos de uma grande influência na então província portuguesa
origem brasileira, e em Dondo, onde havia uma in- e também por haver na mesma um grande contigente
tensa exploração, em moldes capitalistas, de diaman- de população de origem indiana, que aspirava uma
tes. O número de brancos era pouco expressivo em união com a União Indiana.
1952, quando Gilberto Freyre visitou o país, e a mai- Em uma visão geral, a leitura do livro, deve ser
oria deles se retirou durante a guerra da independên- completada por outro – Um Brasileiro em Terras Por-
cia e a separação de Angola de Portugal, em 1975. tuguesas –, que reúne quatro conferências feitas a res-
Havia, porém, mulatos em não pequeno número, de peito do luso-tropicalismo, sobretudo de numerosos
vez que os portugueses que em geral migravam para discursos e saudações nas quais são externadas as
Angola, eram muito mais numerosos do que nas co- opiniões do mestre. Opiniões que procuram caracte-
lônias vizinhas, – o Congo Belga, hoje República Po- rizar o processo de colonização lusitana como dife-
pular do Congo, a Zambésia, hoje Zâmbia inglesa, e a rente do processo de colonização de outros povos
União Sul Africana, dominada sobretudo pelos boers, europeus, como os ingleses, os franceses, os holan-
de descendência holandesa. Gilberto coletou nume- deses, por serem lusitanos já um povo mestiço, étnica
rosas informações e levantou sugestões para estudos e culturalmente e por terem maiores afinidades com
ligados às ciências sociais, lamentando que as institui- povos tropicais, como os muçulmanos, árabes, e os
ções portuguesas conduzissem as suas pesquisas ape- negros islamizados.
nas em direção à Antropologia Física e a Etnográfica, Do ponto de vista político, apresentava uma
nenhum comprometimento com as ciências sociais. forte reação contra os movimentos revolucionários de
Lastimou ainda que não se tivessem implantado uni- esquerda, sobretudo os comunistas, mas dizia que
versidades na África portuguesa, lembrando o caso muitas vezes estes movimentos eram menos comu-
do Brasil, onde, no período colonial, os lusitanos não nistas do que movimentos apenas antieuropeus, de
implantaram nenhuma universidade. Revoltou-se com defesa da identidade cultural dos povos coloniais. E
a ação da Companhia de Diamantes, que mantinha defendia a formação de comunidades multinacionais
um relacionamento capitalista dos mais rigorosos, não que irmanassem Portugal, o Brasil e as antigas colôni-
facilitando a convivência de negros e brancos, e des- as africanas. Convém salientar ainda que ele, como
se aos seus operários um tratamento desumano, fa- antropólogo, não apresentou o mundo luso-afro-bra-
zendo uma exploração desenfreada, semelhante à dos sileiro como uma unidade, mas como áreas com gran-
belgas no Congo e dos ingleses na África do Sul. des diversidades nacionais, regionais e locais, e que
Quando algum africano levantava a idéia da muitas vezes estas diversidades se complementavam.
necessidade de independência política, falando, in- Sabemos que as divergências muitas vezes conduzem
clusive, no exemplo do Brasil, ele lembrava que isso a convergências.
era um problema de cada colônia, mas que, talvez, Ainda se pode observar que o tempo cronoló-
em lugar de uma independência política pura e sim- gico não é sempre o mesmo do tempo social e que,
ples, o ideal fosse a organização de uma comunidade enquanto no Brasil o processo de ocupação do espa-
de metrópole com colônia ou colônias. ço e de produção do território foi relativamente rápi-
Lembrava que no momento em que era inten- do, em Angola, devido a uma série de fatores ele foi
sa a luta pela independência de países da Ásia e da muito mais lento, não tendo havido oportunidade de
África, as metrópoles européias procuraram organi- se plasmar um estado com certa uniformidade.
zar comunidades – a britânica e a francesa – que subs-
tituíssem o regime colonial. Não se podia prever, en- Conclusões
tão, o fracasso que ocorreria com a política em que a É interessante se meditar sobre as viagens
metrópole concedia formalmente a independência, efetuadas por Gilberto Freyre a Portugal, para que se
passando o poder a elites locais anteriormente pre- tenha uma idéia de como ele, com formação norte-
paradas, e mantendo o sistema colonial de explora- americana mas com forte origem lusitana, abeberou-
ção econômica. Nem sequer fizeram reestruturação se do conhecimento da sociedade portuguesa e for-
de fronteiras políticas, que foram herdadas das anti- mulou uma concepção que hoje norteia a
gas colônias. comunidade luso-brasileira, em um momento de
Em seguida, Gilberto Freyre visitou transformações geopolíticas formadas pela
Moçambique, tanto a área meridional onde se situa a globalização e pela reação contra a mesma.
capital, Lourenço Marques – hoje Maputo –, como o A partir das obras citadas, podemos ver que as

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206
antecipações foram feitas por Gilberto Freyre, tão pre-
ocupado que esteve com problemas ecológicos e so-
ciais.

_______________________

Bibliografia
AMARAL, Ilídio do. A geografia tropical de Gilberto Freyre. Lisboa:
s. n., 1990.
CASTELO, Cláudia. O Modo Português de estar no mundo: o luso-
tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961).
Porto: Argumento, 1998.
FREYRE, Gilberto. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem a
procura das constantes portuguêsas de caráter e ação. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1953. 557p. (Documentos Brasileiros,
77).
_______________ . O Brasil em face das Áfricas negras e mestiças.
Rio de Janeiro: Federação das Associações Portuguesas, 1962.
48p.
_______________ . Um brasileiro em terras portuguesas: introdu-
ção a uma possível luso-tropicologia acompanhada de confe-
rências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusita-
nas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1953. 438p. (Documentos Brasileiros,
76).
_______________ . Conferências na Europa. Rio de Janeiro: Mi-
nistério da Educação e Saúde, 1938. 112p.
_______________ . O mundo que o português criou: aspectos
das relações sociaes e de cultura do Brasil com Portugal e as
colônias portuguesas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.
164p. (Documentos Brasileiros, 28).
_______________ . Tempo morto e outros tempos: trechos de um
diário de adolescência e primeira mocidade, 1915-1930. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1975. 268p.
RIBEIRO, Orlando. A colonização de Angola e o seu fracasso. Lis-
boa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1981.

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207
A Incompreensão da Crítica ao Luso-
Tropicalismo

Pedro Borges Graça – bgraca@africa.iscsp.utl.pt


Historiador/Especialista em Estudos Africanos – Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa – Portugal

O critério científico do Luso- Mundo. O luso-tropicalismo e a ideologia co-


tropicalismo é um dos temas mais polêmicos lonial portuguesa (1933-1961), título que re-
entre os universitários lusófonos. E não é exa- mete de imediato, pelo estereótipo difundi-
gerado afirmar que predomina a perspectiva, do ao longo dos anos, para a repetida
nomeadamente em Portugal e nos Países Afri- acusação, falsa, da relação subserviente de Gil-
canos Lusófonos, de que o luso-tropicalismo berto Freyre com Salazar e o Estado Novo.
é uma ideologia ou servilista ou reprodutora Com efeito, a tese de Claúdia Castelo traduz
do colonialismo português, ou, no mínimo, o trabalho de uma jovem, muito jovem,
numa atitude pretensiosamente benevolen- mestranda com qualidades formais de inves-
te, uma teoria romântica produzida por um tigação e redacção, obediente à orientação,
autor cientificamente diminuído. Gilberto porém embrenhada num labirinto de fatos
Freyre encontra-se por isso intencionalmen- aparentemente coerentes e de ideias tão cla-
te excluído dos currículos universitários, ras quanto contraditórias, de argumentos sem
excepto para ser ferozmente criticado, como saída. Quem ler com atenção o trabalho, cons-
uma espécie de autor maldito, sujeito a tatará que o objeto se encontra "confusamen-
epítetos como colonialista, fascista e, até, ra- te" definido e delimitado, mas o objetivo é pre-
cista, o que representa, por apriorismo políti- ciso: trata-se de provar que a tradicional
co-ideológico, por má-fé ou por pura e sim- vocação humanista e universalista portugue-
ples ignorância, uma completa subversão do sa é um mito, uma invenção, uma "constru-
seu pensamento e comportamento. ção" do discurso do Poder entre o século XIX
A verdade é que a maior parte da críti- e o século XX, e neste último por intermédio
ca ao luso-tropicalismo não tem sido objeti- do luso-tropicalismo, que marcou de tal modo
va, e por isso muito pouco acadêmica e cien- a mentalidade das elites portuguesas que es-
tífica. Omitindo toda a sistemática e paciente tas ainda hoje são guiadas pelas ideias de Gil-
construção metodológica de Gilberto Freyre berto Freyre, as quais, de acordo com as suas
(já devidamente analisada, entre outros, por palavras finais, "libertas da componente
Adriano Moreira, Borges de Macedo, Vamireh colonialista que o Estado Novo lhes imprimiu,
Chacon e Sebastião Vila Nova), insiste-se na servem agora para justificar a criação formal
tese de que se trata de uma ideologia, igno- de uma comunidade lusófona com propósitos
rando o seu significado próprio: uma teoria culturais, econômicos e de cooperação em
interdisciplinar de base sociológica que matéria de política externa". 1 Ou seja, embo-
explica a originalidade da adaptação da ra o trabalho de Cláudia Castelo apresente
cultura portuguesa a ambientes tropicais, uma abordagem temporalmente delimitada
partindo de um estudo de caso, profusa- (1933-1961), a intenção nuclear de tal tese
mente documentado, que é o Brasil, ou de mestrado, tendo em vista a sua direção,
melhor, a História Social do Brasil desde o foi a de mostrar o papel do luso-tropicalismo
século XVI. enquanto aditivo e fio condutor do naciona-
Assim, se procurarmos, na produção lismo português (entendido, desde logo, de
científica e universitária portuguesa e africa- forma pejorativa) entre o século XIX e o sécu-
na lusófona pós-25 de Abril, estudos críticos lo XX, chegando aos dias de hoje. Como es-
e aprofundados refutadores do Luso- creve Valentim Alexandre no prefácio:
tropicalismo, encontramos apenas um: a tese "Mas, como Cláudia Castelo mostra, o
de mestrado de Cláudia Castelo (publicada luso-tropicalismo não foi apenas um instru-
em 1999), O Modo Português de Estar no mento nas mãos do governo e dos meios ofici-

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208
ais portugueses. O seu raio de influência é bem mais do seu contributo para o Brasil, muito difusas no Bra-
largo, tocando sectores diversos no campo das ciênci- sil".
as sociais e, de modo mais geral, envolvendo as elites A única iniciativa dedicada a Gilberto em Por-
no seu conjunto. Assim se reforçam as ideias de fundo tugal nos últimos tempos, foi o colóquio Revisitar o
que marcavam o nacionalismo português desde o sé- Luso-tropicalismo, realizado na Sociedade de Geogra-
culo XIX, contribuindo para o enraizamento da ima- fia de Lisboa, há um ano atrás, patrocinado pela Fun-
gem que o país constituia de si próprio como nação dação Oriente e sob a figura tutelar de Adriano
de vocação colonial ou, em versão mais recente, de Moreira, com a dedicação e o empenho de José Carlos
vocação ecuménica. O maior mérito do livro agora Venâncio, o qual, para além do que já escreveu sobre
apresentado está certamente no contributo que dá para o assunto, ao que julgo saber não se tem poupado a
um reflexão sobre essa mesma imagem". 2 esforços para furar o ambiente de verdadeiro ostra-
O resto da crítica tem sido realizada em passa- cismo a que Gilberto tem sido votado no meio acadê-
gens breves de outros estudos, que de uma ou outra mico lusófono, particularmente no campo dos estu-
forma se relacionam com a História Colonial de Por- dos africanos.4
tugal, primando quase exclusivamente pelo ataque Com efeito, em Portugal e nos países africanos
intencionalmente destrutivo e não documentado, isto lusófonos existem mais africanistas que brasilianistas
é, sem qualquer referência bibliográfica ou comentá- (estes últimos, exceptuando no campo literário, pro-
rio ilustrado com as palavras do criticado. 3 Aliás, é vavelmente não enchem os dedos de uma mão), o
curioso verificar que a crítica a Gilberto e ao luso- que faz com que o luso-tropicalismo, cada vez que é
tropicalismo, no ambiente universitário lusófono (ex- evocado, explícita ou implicitamente, caia imediata-
travasando para o campo dos políticos, intelectuais e mente no seu raio de ação, para logo ser rejeitado e
jornalistas) circula principalmente por via oral nas re- invalidado enquanto teoria explicativa da sociedade
lações inter-pessoais. Gerou-se assim, nos últimos vinte quer colonial quer pós-colonial. Para se ter uma ideia
e cinco anos, uma espécie de senso comum acadêmi- do fenômeno, vejamos dois exemplos que, apesar de
co que se tem imposto como critério de avaliação da- já terem algum tempo, não deixam de estar atualizados
quilo a que podemos chamar competência universi- pois traduzem aquele ambiente:
tária; por outras palavras, basta que seja emitida uma - O primeiro é uma passagem do prefácio de
opinião, simples, sobre o luso-tropicalismo, para se Alfredo Margarido ao livro do italiano Donato Gallo,
verificar se o locutor é científicamente, intitulado Antropologia e Colonialismo. O Saber Por-
universitáriamente, academicamente, enfim, tuguês. Escreve Alfredo Margarido: "De fato, não seria
políticamente correto ou não. É talvez por esta razão, possível não referir a criação do lusotropicalismo por
ou melhor, é seguramente por causa deste ambiente parte do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, na medi-
que, neste preciso momento de comemoração do V da em que esta noção fantasiosa forneceu uma
Centenário (março de 2000), em que os jornais, con- legitimação aos portugueses permitindo-lhes prolon-
cretamente em Portugal, todos os dias, desde há al- gar a guerra colonial bem para além do que seria de
gumas semanas, publicam artigos sobre a História e a esperar. " 5
Sociedade brasileira, o nome de Gilberto Freyre se - O segundo exemplo provém de um africano,
encontra completamente omitido, repito, completa- Yussuf Adam, investigador do Centro de Estudos Afri-
mente omitido, com excepção de uma pequena notí- canos da Universidade Eduardo Mondlane, num mo-
cia, publicada no passado dia 15, sobre a realização mento em que em Moçambique, após a queda do
deste nosso Seminário; e mesmo aí, não apareceu uma muro de Berlim, se realizou uma espécie de
única vez a palavra luso-tropicalismo, sendo antes reformulação acadêmica oficial da epistemologia mar-
substituída, e uma única vez, pela expressão civiliza- xista (mas para todos os efeitos muito incompleta),
ção "eurotropical" (note-se as aspas que incluíram neste num colóquio designado como Primeiro Painel de
último termo). Mas pior ainda é, sem dúvida, a exclu- Historiografia. Escreve Yussuf Adam: "O paradigma de
são de Gilberto e do luso-tropicalismo de toda e qual- análise que só vê os aspectos de violência/exploração
quer iniciativa da Comissão Nacional para as Come- ou violência/contestação/rebeldia deve-se transformar
morações dos Descobrimentos Portugueses, num paradigma que seja capaz de captar as nuances
nomeadamente na seção respeitante ao Brasil, den- das evoluções dos contatos entre povos e países e as
tre cujos objetivos estratégicos consta, e passo a citar, influências mútuas. O 'lusotropicalismo' ao tentar apre-
"dar prioridade a manifestações (...) que destaquem os sentar a convivência de culturas como uma caracterís-
mais fortes contributos portugueses para a construção tica cultural portuguesa não capta a essência da ex-
do Brasil (...) que desmontem imagens negativas e in- pansão portuguesa no Mundo, reduzindo qualquer
justas de Portugal, dos portugueses, da sua história e explicação a uma recordação romântica do passado

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209
transformado em sonho."6 maneira de ser, se encontravam também no grupo de
Quanto ao primeiro, e à ideia de que o Luso- línguas africanas senegalo-guinéu, presumindo assim
tropicalismo foi uma causa direta e nefasta da guerra "que esta afinidade luso-negra não é senão uma das
colonial prolongada, não deixa de ser interessante expressões dum parentesco mais profundo." Elogian-
confrontá-lo com a observação comprometida de um do, enquanto processo histórico e gradualmente uni-
dos principais atores, talvez o mais ilustre, da luta ar- versal, a mestiçagem biológica e cultural, e o Brasil
mada anti-colonial, o fundador e primeiro presidente como paradigma, Léopold Senghor afirmaria ainda:
da FRELIMO, Eduardo Mondlane, detentor de um
"É assim que o Brasil se mostra à sua verdadeira
doutoramento, obtido nos Estados Unidos, na área
luz, como a síntese harmoniosa dos homens de todas
da Sociologia. No seu livro Lutar por Moçambique,
as raças, melhor, de todas as confissões e civilizações.
pouco tempo antes de ser assassinado, a propósito
E a nação não tem deixado de pressionar os imigrados
dos problemas socioculturais, de natureza étnica e
alemães e japoneses até que aceitem fundir-se nela.
tradicional, com que se debatia nas chamadas zonas
Como se realizou, durante os séculos XVII e XVIII,
libertadas, Mondlane considerava que o prolonga-
esse milagre da civilização moderna, eis o que nos en-
mento da guerra contribuiria para atenuar alguns des-
sinou o grande sociólogo brasileiro Gilberto Freyre
ses problemas, concluindo o seguinte: "Se amanhã o
numa obra magistral, intitulada Casa-Grande & Sen-
Governo Português resolvesse entregar Moçambique,
zala e traduzida em francês, demasiado dramaticamen-
este trabalho teria ainda que ser iniciado em todo o
te, Senhores e Escravos (Maîtres et Esclaves)."8
resto do país; se os portugueses forem ficando outros
cinco ou dez, ou mais anos, esse trabalho terá avança- Ora, num espírito de debate leal, como deve
do mais."7 ser o universitário por natureza, e como o era Gilber-
Com efeito, a situação colonial encerrava mui- to Freyre, penso que é pois desconcertante, para quem
tos mais problemas do que qualquer noção simplista, criticar o luso-tropicalismo de boa-fé, deparar com
dialética, possa tentar fazer crer. Estava-se perante um estas palavras de Léopold Senghor, mais, com toda
complexo processo de mudança social e cultural que esta longa análise, de cerca de sessemta páginas, das
abrangia estruturas sociais pré-coloniais e coloniais, seculares relações entre a cultura portuguesa e a(s)
as quais em certo momento foram envolvidas por um cultura(s) africana(s), que intitulou Lusitanidade e
conflito armado, determinado por um conjunto de Negritude. Esta análise é pois incontornável e não pode
causas igualmente complexas. Atribuir hoje a Gilber- ser reduzida simplesmente a mais um título de biblio-
to Freyre e ao luso-tropicalismo qualquer culpa, dire- grafia no final de um livro, sem qualquer tratamento
ta ou indireta, na guerra colonial, ou é má-fé ou é, no da sua perspectiva, por ser contrária à abordagem do
mínimo, distração. autor (neste caso autora) 9 e à corrente dominante da
Quanto a Yussuf Adam e à sua crítica ao luso- crítica ao luso-tropicalismo.
tropicalismo, nomeadamente ao conceito de convi- Na verdade, quando estudamos Gilberto Freyre
vência, instrumento operacional caro a Gilberto na e o luso-tropicalismo, sem apriorismos político-ideo-
abordagem da dinâmica da cultura portuguesa em lógicos, sem complexos colonialistas ou pós-
ambientes tropicais, é também interessante confrontá- colonialistas, de superioridade ou inferioridade, veri-
lo com outro africano, insuspeito no que toca à sua ficamos como a sua metodologia foi original e
africanidade e atitude anti-colonial: Léopold Senghor. elaborada. Não é possível traçar aqui, pelo tempo dis-
Com efeito, numa comunicação à Academia das Ci- ponível, um quadro analítico, minimamente compos-
ências de Lisboa, em janeiro de 1975, ladeado pelo to, dessa metodologia, tarefa que, aliás, já foi execu-
Presidente Costa Gomes e pelo Primeiro-Ministro tada por outros. O próprio Gilberto referiu-se-lhe por
Vasco Çonçalves, num momento em que a autocrítica inúmeras vezes, pois até ao final, até Insurgências e
colonial portuguesa se encontrava no seu auge, Ressurgência Atuais, nunca deixou de refletir também
Léopold Senghor produziu uma longa e profunda aná- sobre os fundamentos do Conhecimento. Sublinho
lise do luso-tropicalismo e aconselhou os portugueses apenas a sua atitude profundamente humanista e
a não descurarem o seu passado como base sólida de universalista, que o levou à aplicação cientificamente
projeção de uma futura comunidade luso-afro-brasi- controlada do conceito de empatia (basilar em toda a
leira. Apontando algumas características, considera- sua obra), o pioneirismo da abordagem interdisciplinar,
das por si essenciais, da cultura portuguesa, como a predominantemente sociológica (na qual se incluía já
cortesia, a delicadeza e a xenofilia, segundo as suas nos anos 30 a perspectiva ecológica), o conceito de
palavras, "tão rara no mundo", Senghor enunciou sete tempo tríbio (instrumento operacional decisivo do
sentidos da palavra saudade para logo de seguida afir- ponto de vista epistemológico), a observação dos mais
mar que os mesmos, traduzindo um sentimento, uma pequenos detalhes do quotidiano (de modo a

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210
decompô-los para depois os reintegrar enquanto par- ra dos colonizadores), que passava por, segundo as
tes do todo e complexo social), o apêlo à imaginação suas palavras, "cortejar as mulheres negras, para se ser
e à intuição para captar a dimensão não mensurável inteiro". 13
das culturas e, sobretudo, o recurso constante ao con- Estas duas "correntes" evoluíram assim parale-
ceito de convivência para explicar o processo social, lamente ao longo dos anos 60 e 70, tendo pois em
em contraposição ao de conflito ou ao de coexistên- comum a crítica à permanência de Portugal em Áfri-
cia. ca, associando-lhe o luso-tropicalismo como princi-
Ora, é precisamente este conceito de convivên- pal base ideológica justificadora e sustentadora dessa
cia social, muitas vezes de modo não explícito, que mesma permanência. O desenvolvimento dos estu-
mais desperta a incompreensão e os ataques dos dos africanos nesse mesmo período, com a criação de
seus críticos, principalmente quando derivam, cons- um número considerável de centros de ensino e in-
ciente ou inconscientemente, da epistemologia mar- vestigação em várias universidades americanas, euro-
xista, estruturalmente impossibilitados de verem a di- péias e africanas, foi um campo fértil de propagação
nâmica social de outra forma que não seja a do conflito da idéia de que o luso-tropicalismo era ou uma ideo-
e da luta de classes. E também quando esses críticos logia ou uma teoria romântica sem qualquer critério
são informados e influenciados pela produção de ori- científico. E esta fertilidade aumentou grandemente
gem anglo-saxônica (nomeadamente americana) no quando, em meados dos anos 60, o marxismo se tor-
campo dos estudos africanos, que vem exportando a nou na força conceptual dominante dos estudos afri-
perspectiva políticamente correcta do Afro- canos, acabando por "inundar" Portugal e os países
americanismo, a qual propõe a adopção de quotas de africanos lusófonos após 1974. 14
mobilidade social ascendente pela chamada discrimi- Os efeitos atuais de tamanha incompreensão,
nação positiva. para o mundo lusófono, estão à vista. Para além do
Com efeito, as principais origens da crítica ao enorme desperdício que se está fazendo da
luso-tropicalismo, produzida em em Portugal e nos metodologia gilbertiana enquanto instrumento apu-
países africanos lusófonos, encontram-se nos anos 50 rado (mas não isento de adaptações) de compreen-
e chegaram até nós através de duas vias que, após são dos fundamentos socioculturais das ex-colônias
1974, convergiram direta e poderosamente na cria- africanas de Portugal, existe uma dinâmica de alimen-
ção do ambiente de ostracismo científico e universi- tação constante da imagem negativa do luso-
tário de Gilberto Freyre. Uma provém dos Estados tropicalismo e, liminar ou subliminarmente, de
Unidos da América sob a "liderança" dinâmica, em conotação com a lusofonia. Daí que este último con-
importantes meios acadêmicos, do antropólogo ceito tenha tendência para ser encarado como um
Melville J. Herskovits, o qual não só foi um seu "sucedâneo" pela maior parte das elites africanas;
influenciador da nova política africana dos america- e também dos africanistas que, por sua vez, são
nos após a 2ª Guerra Mundial, como também conse- maioritariamente de origem anglo-saxônica e consti-
lheiro de William Du Bois, o chamado "pai" do Pan- tuem um núcleo ainda militante de concerned
Africanismo, e ainda promotor do percurso scholars, ainda influente naquilo que deve ser a per-
universitário de Eduardo Mondlane;10 a ideia de que cepção políticamente correta da realidade social dos
o luso-tropicalismo é uma teoria romântica (no senti- países africanos lusófonos e, conseqüentemente, do
do pejorativo do termo) deve-se em grande medida a legado colonial português, que é formalmente visto
Herskovits.11 A outra via, sob a influência conjunta do de modo totalmente negativo.
movimento da Negritude e do Pan-Africanismo, pro- A crítica ao luso-tropicalismo (e a exclusão de
vém dos estudantes das colônias portuguesas que se Gilberto Freyre) em Portugal e nos Países Africanos
exilaram principalmente em Paris, os quais eram pre- Lusófonos deve pois ser entendida neste contexto,
dominantemente marxistas;12 s e n d o e s t e s marcado actualmente pela tentativa de construção e
maioritariamente mestiços e, por isso, oriundos de um projecção internacional de um espaço lusófono .
nível intermédio da estrutura social colonial onde a Estamos, na verdade, perante um problema de con-
consciência de superioridade de estatuto relativamen- senso histórico lusófono, isto é, de imagens recíprocas
te aos negros era um fato, o luso-tropicalismo apare- divergentes entre brasileiros, africanos e portugueses
cia como uma espécie de revelador quer da sua con- quanto ao passado comum (que é a História Colonial
dição quer da sua contradição, uma vez que no de Portugal) e, portanto, às bases da edificação de um
discurso desses jovens, como bem explicou Mário Pin- possível futuro comum. A questão fundamental, ain-
to de Andrade, sobressaía a necessidade de da não frontalmente debatida, subjacente à polêmica
"reafricanização dos espíritos" (por oposição à aliena- em torno do luso-tropicalismo e da Lusofonia, é a se-
ção que consideravam ter sido provocada pela cultu- guinte: há ou não há algo de positivo no legado co-

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211
lonial português?
À frente do tempo, Gilberto Freyre, sem
descurar a dimensão negativa, achava que havia.

_______________________

Notas
1
Cláudia Castelo, O Modo Português de Estar no Mundo. O luso-
tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961), Porto,
Edições Afrontamento, 1999, p. 140.
2
idem, p. 6. Recorde-se que a formação dessa imagem de que
fala Valentim Alexandre é muito anterior ao século XIX. Os
"colonialistas" (como se chamavam a si próprios) portugueses dos
finais do século XIX, princípios do século XX, consideravam-se
"continuadores dos descobridores". A auto-imagem da vocação
ecumênica, de uma missão divina em benefício da Humanidade,
encontra-se abundantemente registrada nos autores portugueses
do século XV e sobretudo XVI, e porventura o seu maior reflexo
encontra-se no Mestre Rafael Hitlodeu, a principal personagem
da Utopia de Thomas More. (Ver, por ex., J. S. da Silva Dias, Os
Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI, Coimbra,
Universidade de Coimbra, 1973, p.191 ss.).
3
Ver a este propósito o trabalho entretanto publicado de Ivo Car-
neiro de Sousa, O Luso-tropicalismo e a Historiografia Portugue-
sa: Itinerários Críticos e Temas de Debate, in Adriano Moreira e
José Carlos Venâncio (Orgs.), Luso-Tropicalismo. Uma Teoria So-
cial em Questão, Lisboa, Vega Editora, 2000, pp. 66-81.
4
Furando também o "bloqueio", o Jornal de Letras dedicou grande
parte do seu nº 772 (3 a 16 de Maio de 2000) a Gilberto e ao luso-
tropicalismo. Ver tb. o nº 773 (17 a 30 de Maio de 2000), p. 46.
5
Donato Gallo, Antropologia e Colonialismo. O Saber Português,
Lisboa, Editores Reunidos/Heptágono, 1988, p. 10.
6
Yussuf Adam, Portugal-Moçambique: A Procura de uma Relação,
in Estudos Moçambicanos, nº 9, 1991, Maputo, Centro de Estudos
Africanos/Universidade Eduardo Mondlane, (pp.37-72) p. 62; O
Primeiro Painel de Historiografia decorreu em Maputo, de 31de
Julho a 3 de Agosto de 1991, e as comunicações encontram-se em
Alexandrino José e Paula Meneses (Orgs.), Moçambique. 16 Anos
de Historiografia (Focos, Problemas, Metodologias, Desafios para a
Década de 90), Maputo, s/e (Centro de Estudos Africanos/Univer-
sidade Eduardo Mondlane), 1991.
7
Eduardo Mondlane, Lutar por Moçambique, Lisboa, Livraria Sá
da Costa Editora, 1975 (1ª ed. 1969), p. 249.
8
Léopold Sédar Senghor, Lusitanidade e Negritude (Comunica-
ção à Academia das Ciências em 27/1/75), Lisboa, Academia das
Ciências de Lisboa (Instituto de Altos Estudos- nova série, fascícu-
lo I), p. 55.
9
Refiro-me concretamente ao trabalho de Cláudia Castelo anteri-
ormente apontado.
10
Cfr. Pedro Borges Graça, O Projecto de Eduardo Mondlane (Uma
Biografia), no prelo.
11
Cfr. Pedro Borges Graça , Gilberto Freyre na Correspondência
de Melville J. Herskovits: O Luso-Tropicalismo frente ao Afro-
Americanismo, in Adriano Moreira e José Carlos Venâncio (Orgs.),
Luso-Tropicalismo. Uma Teoria Social em Questão, op. cit., pp. 48-
65.
12
Cfr. Michel Laban, Mário Pinto de Andrade. Uma Entrevista,
Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1997.
13
idem, p. 83.
14
Cfr. Pedro Borges Graça , O Africanismo Lusófono, in AAVV,
Conjuntura Internacional , Lisboa, Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas, 1996, pp. 285-300; Sobre o marxismo como
"força conceptual dominante" nas universidades americanas, eu-
ropéias e africanas, ver Jan Vansina, Living With Africa, Madison,
The University of Wisconsin Press, 1994, passim.

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Um Olhar Freyriano sobre Goa

Helena Balsa
Jornalista – Rádio e Televisão Portugueses – Portugal

No mais profundo de si, Gilberto Freyre mães das mangueiras hoje tão do Brasil como
sabia que iria a Goa. Tinha cinquenta e um se fossem americanas e não indianas; coquei-
anos quando realizou, finalmente, a viagem ros dos chamados da Baía mas na verdade da
até à Índia Portuguesa, em Novembro de Índia. Em compensação, a Índia portuguesa
1951. Havia pelo menos vinte anos que o recebeu do Brasil, pela mão do português, o
sociólogo ansiava por esta visita. coqueiro, a mandioca, o tabaco, o mamoei-
No início dos anos trinta, quando es- ro.
creveu Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre Esta interpenetração de valores não só
surpreendeu-se com a enorme quantidade de de cultura como de paisagem, deram a Gil-
orientalismos dissolvidos no complexo brasi- berto Freyre a sensação de, estando na Índia
leiro de cultura. Parecia-lhe evidente ter sido portuguesa, estar no Brasil. Sensação tanto
na Índia que os portugueses alcançaram a sá- mais real quanto, como destaca o sociólogo,
bia aprendizagem de vida nos Trópicos; quan- o Português que escuta em Goa é muito mais
do chegam ao brasil, apenas puseram em prá- o Português do Brasil do que o Português de
tica a licção aprendida. Portugal. Os portugueses não só adaptaram
Com um espírito um tanto proustiano, os costumes e estilos de vida indianos, como
Gilberto Freyre dirigiu-se a Goa em busca, os levaram para o Brasil. Esses valores estão
segundo as suas próprias palavras, "menos de hoje tão integrados na vida brasileira que, es-
um tempo perdido que de uma presença de creve o sociólogo, "parecem oriundos da ter-
certo modo perdida"– a presença portugue- ra americana ou próprios da cultura
sa. O que acaba por encontrar em Goa sur- ameríndia".
preendeu profundamente o sociólogo que em Gilberto Freyre não poupa elogios ao
"Aventura e Rotina" escreve: "Para o brasilei- pioneirismo do português que se antecipou a
ro é, como se, em pleno Oriente, chegasse qualquer outro povo europeu, não receando
ao Brasil, com o qual a Goa antiga se parece as críticas nomeadamente as provenientes dos
extraordináriamente: mais do que com Por- ingleses que ainda nos fins do século XIX, viam
tugal. nessa adaptação aos Trópicos "excesso de tran-
A paisagem e população goesas reve- sigência de europeus superiores com orien-
lam-se de tal modo familiares a Gilberto Freyre tais inferiores." A experiência de miscigena-
que o sociólogo vê confirmadas todas as suas ção cultural protagonizada pelos portugueses
intuições segundo as quais muitos traços da foi tanto mais extraordinária quanto a exis-
paisagem e da cultura brasileiras têm origem tência de castas na sociedade indiana se mos-
na Índia graças aos portugueses que levaram trava intransigente. No seu livro Aventura e
para a América velhas culturas e experiências Rotina Gilberto Freyre alerta para o facto do
orientais. Ao percorrer Goa, recorde-se que espírito de casta sobreviver dentro do próprio
Goa é desde 1961 o vigéssimo quinto estado Cristianismo com a conivência do clero.
da União Indiana, o sociólogo anota: "Aqui A passagem pela Índia Portuguesa re-
se encontram as varandas de casa, hoje tão velar-se-ia decisiva para o cimentar da teoria
da arquitectura doméstica do Brasil; o copiar do Luso-tropicalismo. É ainda no livro Aven-
ou o telheiro em frente da casa, que se esten- tura e Rotina que vamos encontrar a seguinte
deu aqui não só às igrejas como aos próprios definição: "Creio ter encontrado nesta expres-
cemitérios cristãos, protegidos contra as chu- são luso-tropical a caracterização que me fal-
vas; a canja, que, no Brasil, é ainda mais pra- tava para o complexo de cultura hoje forma-
to nacional que em Portugal; mangueiras, do pela expansão portuguesa em terras

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tropicais; e que tem na identidade de condições tro- a inquietação humana".
picais de meio físico e na identidade de formas gerais "Inquietação" é o título de um dos mais belos
de cultura as mais diversas – as suas condições básicas livros de Tagore. Gilberto Freyre conheceu o célebre
de existência e de desenvolvimento". poeta indiano na Universidade de Columbia e ficou
Numa recente deslocação a Goa pude testemu- profundamente impressionado com a sabedoria, o
nhar uma forte adesão ao movimento que reivindica sentido de justiça social e entendimento das
para todo o território de Velha Goa o estatuto de pa- consequências da existência de castas na Índia. Con-
trimónio da Humanidade e não apenas que desta ca- sidero o encontro de Freyre com Tagore, na altura um
tegoria façam parte alguns edifícios como sucede velhinho de longas barbas, da maior importância para
actualmente. Num destes edifícios – a Sé de Goa, a interpretação da herança cultural deixada pelos
eregida em honra de Santa Catarina, assistiu Gilberto portugueses na Índia que o sociólogo viria a fazer.
Freyre a uma missa solene com a sensação de estar a De Goa, trouxe Gilberto Freyre uma relíquia
assistir a um ballet que "juntasse ao latim das palavras preciosa: um pedacinho do manto com que foi se-
e ao latim dos gestos alguma coisa de oriental, de que pultado São Francisco Xavier – o apóstolo das Índias.
os romanos dos trópicos fossem portadores sem o sa- A relíquia, uma oferta do reitor da Basílica do Bom
berem. "Coexistindo com a ortodoxia católica mani- Jesus ao sociólogo brasileiro, está hoje exposta na Casa
festavam-se as raízes hindus numa simbiose cultural Museu Magdalena-Gilberto Freyre, em Apipucos,
que nos nossos dias continua presente em diversas Recife.
manifestações da vida e da cultura goesas. A identida- Conhecer São Francisco Xavier talvez tenha sido
de própria de Goa está subjacente às modernas con- a grande aventura espiritual de Fernão Mendes Pinto.
cepções de turismo cultural que está a ser Numa das mais belas páginas de Aventura e Rotina,
incrementado como uma das formas de desenvolvi- Gilberto Freyre recria o encontro dos dois homens:
mento de Goa. "O aventureiro conheceu o padre no Oriente. Tinha
Quem passeia hoje por Velha Goa não pode Xavier os pés feridos de tanto caminhar; parecia do-
deixar de ficar surpreendido com a monumentalidade ente além de cansado. Era a negação de toda a gran-
dos conventos e igrejas; esta característica da deza humana e de toda a opulência ibérica do traje.
arquitectura foi assinalada por Gilberto Freyre ao es- Mas dentro dele um santo já estava ao serviço de Cristo
crever: "Os portugueses que construiram Goa não no Oriente. Um santo que quando caía em transe ti-
souberam ser senão loucamente monumentais nas nha alegrias de menino. Que vivia a sua vida de mis-
formas que deram a igrejas e conventos, dos quais as sionário como se fosse a mais bela das aventuras,
simples ruínas chegam para assombrar o homem de não só para o seu espírito como para o seu corpo de
hoje. Nenhum europeu teve o arrojo que tiveram os asceta lírico e de religioso pobre. Que contagiava os
portugueses em Goa, de opôr ao monumentalismo outros com o seu modo esquisito de ser feliz.
do Oriente o cristão". Se o encontro com Francisco Xavier perturbou
O companheiro espiritual que Gilberto Freyre Fernão Mendes Pinto, a morte do santo, na ilha de
escolheu na sua passagem pela Índia portuguesa não Sanchoão em 1552, levou o aventureiro a querer tor-
é Camões, nem Afonso de Albuquerque é o célebre nar-se servo de Deus; começou por doar grande par-
autor de "Peregrinação"– Fernão Mendes Pinto um te da sua fortuna à Companhia de Jesus partindo em
escritor tão incomum que talvez deva ser considera- seguida para o Extremo Oriente à procura de novas
do o maior em língua portuguesa, assim pensa o au- aventuras de "Peregrinação" que veio dar unidade à
tor de "Casa Grande & Senzala". No âmbito das co- multiplicidade de aventuras que Fernão Mendes Pin-
memorações dos quinhentos anos da chegada dos to viveu. Creio não ser errado afirmar que a leitura de
portugueses ao Brasil, seria bem-vinda uma reedição Fernão Mendes Pinto cimentou o conceito de tempo
do livro de Fernão Mendes Pinto; o mais extraordiná- tríbio tão do agrado de Gilberto Freyre. Nas páginas
rio homem-orquestra que já nasceu em Portugal, no de Aventura e Rotina encontramos um dos mais ex-
dizer de Gilberto Freyre para quem o aventureiro por- plícitos elogios à acção dos padres em defesa dos
tuguês abriu caminho a um novo tipo de literatura valores da cultura portuguesa: "Sem os jesuítas, sem
aparentemente só começado na nossa época: "aque- os franciscanos, sem os frades, os padres, as freiras,
la literatura de que o personagem principal é o tem- não teria havido Goa como não haveria hoje o Brasil:
po. Um tempo vivido em diferentes ritmos de acordo com todos os seus exageros de gula, os seus erros de
com diferentes espaços. "Ao ultrapassar os limites da pedagogia, as suas traições aos votos de castidade e
história nacionalmente lusitana de Portugal, Fernão de pobreza, o seu policialismo teocrático às vezes tão
Mendes Pinto, continuando a citar Freyre, "pôs Portu- anticristão e tão antiportuguês no seu modo de pro-
gal em contacto com o mundo, com o homem e com mover a expansão da Igreja contra o gentio e defen-

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der a sua ortodoxia contra os hereges; foram eles que
tornaram possível a consolidação da parte mais no-
bre da cultura portuguesa em terras tropicais".
Ainda hoje os padres católicos desempenham
um papel fundamental na defesa da identidade cul-
tural de Goa. Um desses padres, Tomás de Aquino, é
o grande animador do grupo "Gavana" criado para
manter viva a tradição do Mandó a canção-dança
emblemática de Goa. O Mandó alia a influência da
música ocidental, nomeadamente as modinhas brasi-
leiras, à herança da música indiana. Cantdo em
Concanim, a língua oficial de Goa, o Mandó era exe-
cutado por ocasião de grandes reuniões familiares
como casamentos e baptizados. Hoje, é raramente
ouvido o que vem aumentar a importância do grupo
"Gavana" que já actou no Brasil.
Antes de terminar, gostaria de citar uma vez mais
Gilberto Freyre: "Não se compreende que o Brasil se
ausente de uma Índia Portuguesa com a qual as suas
afinidades são profundas. Não se compreende que o
Brasil, com uma música que é, na verdade, uma das
expressões mais vigorosas e originais da sua cultura
luso-tropical, não faça chegar, de modo mais vivo, essa
música aos chamados "italianos do oriente", que são
os luso-indianos". Esta passagem de Aventura e Rotina
parece escrita hoje. Em tempo de globalização, o pen-
samento de Gilberto Freyre continua pleno de
actualidade em particular para a comunidade de lín-
gua portuguesa herdeira de uma miscigenação cultu-
ral que se anuncia como salvadora para o novo sécu-
lo.

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216
MESA-REDONDA 9
ORDEM E PROGRESSO

Dia 24 de março
COORDENADOR:
Creuza Aragão
Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
Gilberto Freyre: Ciência Social e
Consciência Pessoal

Olavo de Carvalho – olavo@olavodecarvalho.org


Filósofo – Diretor do Seminário de Filosofia da Universidade da Cidade –
Rio de Janeiro – Brasil

Uma das dificuldades que se apresen- toricamente três objetos diversos e indepen-
tam na constituição de qualquer ciência é o dentes, o problema que isto nos coloca é mais
problema de onde encontrar o seu objeto. Nas espinhoso ainda: trata-se agora de saber se as
ciências naturais, esse objeto está dado em distinções entre as três ciências que recebe-
torno e pode ser apreendido pelos sentidos. ram ao longo do tempo o mesmo nome de
Mas mesmo essa aparente facilidade é enga- física correspondem a distinções objetivas, isto
nosa; primeiro, porque os limites entre as es- é, às fronteiras que separam os entes entre si,
pécies de seres da natureza são ou se refletem apenas três distintas direções
freqüentemente ambíguos e nebulosos; se- possíveis da atenção humana, projetada aci-
gundo, porque os objetos naturais não vêm dentalmente sobre entes, propriedades e aci-
com rótulos informando quais as perguntas dentes escolhidos a esmo.
que devemos fazer a respeito deles; e, quan- Que existem fronteiras entre os entes,
do começamos a fazer essas perguntas, não que eles não se apresentam fundidos e indis-
raro os objetos a que nos referíamos nos res- tintos numa mixórdia universal, a mais banal
pondem que elas não se aplicam propriamen- experiência o confirma.
te a eles, mas sim a algum outro tipo de obje- A obviedade desta constatação pode
tos adjacentes ou circunvizinhos, ou mesmo dar lugar a situações cômicas. Quando o fale-
a entes que não existem na natureza e que cido presidente Jânio Quadros, indagado por
foram apenas inventados por nós mesmos. que bebia, respondeu que bebia porque se
Para eludir essa dificuldade, costuma- tratava de líquido, já que se fosse sólido o
mos apegar-nos à unidade das palavras que comeria, talvez não tivesse a idéia de enunci-
designam áreas inteiras da realidade dada. ar um princípio de metodologia científica, mas
Usamos, por exemplo, a palavra física, supon- de fato o fez. O "comer" pode ser uma metá-
do que existe no universo um campo, ou uma fora do "conhecer". Se não podemos comer o
faixa, correspondente a objetos que chama- líquido ou beber o sólido, não podemos co-
mos físicos. Mas com um pouco de estudo nhecer todas as coisas pelos mesmos modos
descobrimos que essa palavra significava uma ou instrumentos. Não podemos conhecer a
coisa para Aristóteles, outra para Newton, estrutura de um mineral pela memória afetiva,
outra para Planck. Aí não temos alternativa nem a vida de Napoleão Bonaparte por de-
senão perguntar se essas três significações dução geométrica. Em última instância, o de-
dadas à palavra designam três aspectos per- lineamento do campo de uma ciência apare-
cebidos sucessivamente no mesmo objeto ou ce quando ela esbarra em fronteiras
três objetos completamente diferentes. No ontológicas intransponíveis. Edmund Husserl
primeiro caso, contraímos a obrigação de des- dizia que não pode haver uma geometria dos
cobrir qual a unidade ou substância da qual leões ou uma embriologia dos triângulos – o
esses três aspectos são as propriedades ou que faz dele, no mínimo, um precursor do
acidentes. E, quando tivermos a felicidade de presidente Jânio Quadros.
descobri-lo, teremos inaugurado uma quarta Mas, na prática científica, raramente
acepção da palavra física, incumbida de de- chegamos a essas situações limite: uma boa
signar o estudo científico do objeto unitário parte das investigações e debates se desenro-
cujos aspectos separados foram estudados su- la numa zona fronteiriça sujeita às mais
cessivamente por Aristóteles, Newton e alucinantes disputas de jurisdição. O proble-
Planck. Na segunda hipótese, isto é, se des- ma torna-se ainda mais desesperador porque,
cobrimos que o termo escolhido designou his- uma vez constituído um sistema de distinções

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entre os campos do saber, por mais provisório que de pelo menos noventa por cento da produção cien-
seja, esse sistema se materializa imediatamente numa tífica na área de humanas, que é o pendor kantiano
estrutura administrativa: a divisão dos departamentos de constituir o objeto segundo as exigências do mé-
numa universidade ou instituto de pesquisa. Aí o con- todo, em vez de adaptar o método às exigências do
flito de jurisdições entre conceitos lógicos se converte objeto. Esse vício torna-se ainda mais grave nos paí-
num conflito entre poderes, prestígios e interesses ses jovens, cuja elite intelectual, ansiosa de ombrear-
humanos, do qual, para usar o termo mais comedido, se a seus mestres estrangeiros, empenha tanto esfor-
direi que é uma confusão dos diabos. ço em dominar os métodos que acaba não lhe
Ora, se essa confusão dos diabos pode instalar- sobrando tempo de prestar atenção no objeto. Como
se no seio mesmo da ciência natural, a ponto de por sua vez a opinião dos cientistas tende a ser imita-
Michel Foucault e Thomas Kuhn não lograrem expli- da nos debates públicos, o Brasil que se discute na
car as mudanças de orientação da imagem física do mídia e no parlamento acaba se parecendo muito mais
cosmos de época em época senão como rotações aci- com uma alucinação de cientistas sociais do que com
dentais e em última análise irracionais do eixo das o país onde vivemos nossa vida de todos os dias. Um
atenções, quanto mais desorientador não deve ser o exemplo são as discussões atuais sobre discriminação
panorama no campo das ciências ditas humanas, onde racial. Lemos na Teoria da Justiça de John Rawls, que
o objeto não está dado à percepção sensível mas tem todos os conceitos constitutivos da idéia de democra-
de ser apreendido no curso da nossa participação cia se resumem, em última instância, no conceito de
pessoal na produção e modificação dessa coisa – se é igualdade. Ficamos maravilhados porque isto nos dá
que é coisa – denominada sociedade humana? Nesse um método até mesmo quantitativo para medir o co-
campo de conhecimento, jamais chegamos a saber eficiente de democracia de um país, e a disparidade
ao certo se o nosso objeto existe ou se ele passou a de renda entre brancos e negros surge como uma pro-
existir porque dissemos que existe. Um exemplo ca- va inequívoca de que no Brasil não existe democracia
racterístico é o conceito de ideologia de classe. As clas- racial nenhuma. Se, além disso, lemos no prof.
ses economicamente distintas "têm" seus respectivos Florestan Fernandes que as relações entre raças
discursos ideológicos ou passam a tê-los desde o ins- correspondem à estrutura da dominação de classes
tante em que um intelectual, fundado no conceito de (que na verdade é uma doutrina enunciada muito
ideologia de classe, ensina a cada uma o que ela de- antes por Stálin), aí pouco falta para nos persuadir-
veria dizer em defesa de seus próprios interesse de mos de que a sociedade brasileira é nazista. Então
classe? Outro exemplo é o "inconsciente" freudiano. ouvimos o presidente Clinton declarar, no seu discur-
Cada um de nós "tem" um inconsciente pessoal ou so em Kosovo, que o Exército americano é um exem-
adquire um na hora em que o psicanalista o ensina a plo de integração racial, ficamos profundamente en-
assumir como parte de si um amálgama de pensamen- vergonhados de não ser tão democráticos como os
tos semipensados – pequenas percepções, chamava- americanos e, ato contínuo, sentimos a urgência de
as Leibniz – que andam soltas no ambiente familiar, copiar o modelo americano de integração racial, onde
social e físico? o Estado surge como o mediador entre grupos raciais
Dos nossos cientistas sociais, nenhum se preo- separados e socialmente incomunicáveis. Olho para
cupou mais com essas questões do que Gilberto tudo isso e não posso deixar de sentir que estou em
Freyre. Ora, a elucidação delas é o fundamento mes- outro planeta. Mas o que aconteceria se, em vez de
mo da possibilidade de uma ciência social. Sondar até projetarmos sobre o objeto os métodos de Rawls e de
o fundo essa indistinção de fronteiras, submergir co- Stálin tivéssemos nos perguntados como esse objeto
rajosamente nesse "mare magnum" onde todas as cor- se constituiu e como ele chegou ao nosso conheci-
rentes se entremesclam, impregnar-se da variedade e mento? Aí veríamos que, entre a Abolição da Escrava-
da confusão sem perder o ideal de unidade e coerên- tura e os nossos primeiros passos para ingressar no
cia, eis a única esperança de que as ciências sociais moderno capitalismo industrial, na década de 30,
venham a ter um objeto que não seja apenas a proje- decorreram nada menos de quarenta anos. Ou seja:
ção de um método previamente escolhido – um pre- os escravos libertos tiveram quarenta anos para mul-
conceito, no sentido mais rigoroso do termo. tiplicar-se sem que a evolução da economia multipli-
Dos nossos cientistas sociais, repito, nenhum casse concomitantemente os empregos. Eles não fo-
levou mais a fundo essa impregnação na natureza plás- ram expelidos dos empregos por serem pretos.
tica e omnímoda do seu objeto, nem mais longe sua Simplesmente não havia empregos. Que é que isso
disposição de abrir-se a todas as correntes, a todas as tem que ver com a discriminação racial? Para não di-
hipóteses, a todas as perguntas. zer que não tem nada, lanço a seguinte hipótese: nós,
Só com isso ele já se isenta do vício redibitório racistas brancos, decidimos de propósito não indus-

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220
trializar o Brasil para não dar emprego aos malditos las terá de consistir em articulá-las, o que faz da ciên-
pretos. Fora essa hipótese, é melhor vocês lerem o cia social, inseparavelmente, um exercício de
estudo do prof. Alberto Oliva, Florestan Fernandes: autoconsciência. Aquele que não sabe por onde e
Ciência e Ideologia, e comprovarem que Eric Voegelin como a sociedade humana veio até ele e o constituiu
tinha toda a razão ao declarar que a perversão ideo- ao mesmo tempo como membro dela e como indivi-
lógica das ciências sociais nem sempre vem de uma dualidade distinta nada sabe da sociedade humana
falsificação intencional da realidade (coisa de que o exceto pelos meros nomes que, nos tratados de soci-
prof. Florestan não seria capaz), mas do simples vício ologia, designam os produtos da abstração que outras
kantiano de aderir a um método antes de esperar que inteligências operaram sobre ela. Esses nomes podem
o objeto diga a quê veio. ser combinados numa infinidade de sentenças, que
Em comparação com isso, o que faz Gilberto em sua mera formulação verbal podem ser compre-
Freyre? Ele se pergunta, antes de tudo, como o objeto endidas por pessoas que, jamais tendo contado a si
veio ao seu conhecimento pessoal. A evocação da mesmas a história de seu próprio ingresso na socieda-
infância não é a expressão de um simples pendor au- de humana, não têm a condição de tornar presentes
tobiográfico, literário. Ela expressa a consciência de à sua consciência os objetos de que elas falam. Pode-
que o objeto das ciências sociais não é dado aos sen- se compreender e até discutir um tratado inteiro de
tidos, mas à pessoa concreta, ao eu autoconsciente sociologia, psicologia ou ciência política sem quase
que ele próprio se autoconstitui à medida que res- nada saber da sociedade. A prova inequívoca de que
ponde a um chamado, obedece ordens, formula pe- isto acontece se evidencia quando o estudioso não é
didos, ocupa um lugar, desempenha funções, etc. O capaz de apreender sua própria realidade pessoal com
modo de apresentação do objeto das ciências sociais a mesma grade de conceitos com que discute socio-
é esse e somente esse. Ele não existe em parte algu- logia. Isto se verifica da maneira mais eloqüente quan-
ma do cosmos se não existe na biografia dos seres do as próprias circunstâncias concretas em que uma
humanos. Ora, do objeto das ciências físicas os pri- teoria é enunciada desmentem o conteúdo que ela
meiros sábios não hesitaram em concluir, desde mui- afirma. Por isto mesmo, em ciência social, o
to cedo, que seu modo de se apresentar revelava algo argumentum ad hominem nem sempre é desprezível
de sua constituição. Se eles se manifestavam afetan- mas pode ser utilmente integrado no método. Ele
do os nossos sentidos, eles podiam ser conhecido pela permite averiguar quando uma teoria é uma visão que
ação que exerciam sobre o nosso corpo, distinguindo um homem pode projetar sobre o mundo exterior mas
o que era sua ação própria do que era nossa reação na qual não pode ele próprio se instalar como perso-
corporal. Quando falamos de "propriedades da luz", nagem. O exemplo clássico é, de novo, a teoria da
compreendemos que em parte o que sabemos da luz ideologia de classe. Se a ideologia tem um vínculo
vem de uma reação corporal à estimulação luminosa, essencial com a classe economicamente definida, a
mas em parte vem de algo que, não podendo ser ex- possibilidade de um homem ter a ideologia de uma
plicado por essa simples reação, constitui aquilo que classe que não a sua deve ser uma exceção, não a
a luz é "nela mesma". Um cão adormecido, quando regra. Mas como em geral os proletários só aderem à
estimulado por uma luz forte, desperta imediatamen- ideologia proletária quando alertados pelos intelec-
te. Mas nós, além de sermos despertados pela luz, tuais e estes aderem a ela sem nenhuma ajuda prole-
isto é, de sabermos o que a luz faz conosco, sabemos tária, o fato mesmo de que tantos intelectuais procla-
que a luz "é" luminosa. Por isso ela pode ser estudada mem um vínculo essencial entre classe e ideologia é
não apenas no poder estimulante que tem sobre nós, um forte indício de que esse vínculo é acidental.
mas em suas "propriedades", naquilo que lhe é pró- Eis por que tanto da ciência social moderna tem
prio, que é dela. Esta distinção, que o filósofo basco a aparência inconfundível de um fingimento
Xavier Zubiri não hesita em definir como o específico histeriforme, como no caso de um sujeito que saia
da percepção humana, está na base de todo conheci- gritando que não consegue falar. Para escapar dessa
mento científico possível. Mas para apreender o ob- armadilha, Gilberto Freyre vai à fonte mesma onde se
jeto das ciências humanas não basta, como no caso constitui o objeto da ciência social, que é a constitui-
do objeto natural, distinguir o que é ação dele e o ção da própria consciência pessoal na sua interação
que é resposta minha, e não basta precisamente por- com os demais personagens da trama social.
que, ao contrário do que acontece com a luz, na qual Giambattista Vico assinalava que conhecemos melhor
estão fisicamente separadas as propriedades dela e as aquilo que nós próprios fazemos do que as coisas que
reações da minha fisiologia, minha resposta à socie- nos chegam prontas. A constituição da própria perso-
dade humana faz parte constitutivamente dessa soci- nalidade é, assim, o único lugar onde podemos en-
edade. Não podendo separá-las, o modo de conhecê- contrar, em estado puro, o objeto da ciência social. É

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por onde me conheço que conheço a sociedade. Não vida pessoal concreta. A autobiografia não é apenas o
por coincidência, no instante mesmo em que Gilber- começo da ciência social, é o seu perpétuo recome-
to iniciava sua autobiografia da família patriarcal bra- ço, o cíclico mergulho da abstração científica na fon-
sileira, um outro grande cientista social, o alemão te da eterna juventude.
Eugen Rosenstock, publicava seu livro Revoluções Eu- Exercício de generalização científica a partir de
ropéias, que se apresentava como o projeto de uma um exercício de autoconsciência e vice-versa, a ciên-
"autobiografia da Europa". Autobiografia no sentido cia social é, assim, um capítulo essencial da prática da
de que a expansão da consciência histórica de um sabedoria.
indivíduo, até abranger uma evolução de alguns mi- Eis a lição mais alta que Gilberto Freyre, entre
lênios, era ali mostrada como resultado e retorno re- os grandes cientistas sociais do mundo, encarnou com
flexivo dessa mesma evolução. Cada sinal deixado pela a máxima perfeição. Eis por que, mais que um mes-
evolução passada transparecia em episódios da vida tre, ele se tornou para nós um modelo, alguém a quem
de Eugen Rosenstock, e a evolução pessoal de Eugen voltaremos sempre não só em busca de ensinamento,
Rosenstock era, ao mesmo tempo, uma reconquista mas de inspiração.
do sentido do passado histórico. Em nenhum momen-
to consciência pessoal e consciência histórica se se- _______________________
paravam.
Mas, em Rosenstock, a palavra "autobiografia"
tinha o sentido de uma chave interpretativa apenas.
Em Gilberto ela torna-se instrumento material de in-
vestigação: ele parte da sua autobiografia pessoal para
as autobiografias dos outros, para os registros de me-
mórias familiares, para as histórias ouvidas de velhas
escravas, para as cartas íntimas de políticos e senho-
res de terras – e, ampliando o horizonte em círculos
concêntricos, vai chegando passo à passo à autobio-
grafia do Brasil.
Quando ele diz que descobriu o Brasil, esta fra-
se deve ser compreendida num sentido muito mais
profundo e vital do que geralmente se faz. Gilberto
descobriu o Brasil na sua própria alma à medida que
esta alma se constituía descobrindo o Brasil.
Nenhuma ciência lida com fatos concretos. O
concreto não é o fato isolado no desenho da sua es-
sência, mas o fato integrado na multidão de acidentes
que o possibilitam. Toda ciência, para apreender seu
objeto, deve destacá-lo por abstração, fazendo dele
uma essência ideal que possa ser objeto de proposi-
ções gerais, as quais em seguida serão verificados por
experiências ou constatações também seletivas e
abstrativas. Mas o objeto da ciência social demanda
um tipo especial de abstração. A essência abstrata ideal
que ela visa a obter é nada mais nada menos que a
essência abstrata da própria sociedade considerada
na sua existência concreta, vivente, total. Por isto a
abstração, em ciência social, jamais alcança aquele
nível de generalização em que já não é mais preciso o
retorno cognitivo à experiência direta e pré-científi-
ca. A marca dos grandes cientistas sociais é justamen-
te sua capacidade de ir e vir entre a esfera dos con-
ceitos estabilizados e a realidade social em perpétua
mutação e reconstituição; mas esta realidade só é
encontrada, de novo e de novo, na experiência hu-
mana do próprio homem de ciência no curso de sua

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A Inconclusão do Progresso e a Mistura da
Ordem: Notas sobre Gilberto Freyre e o
Positivismo no Brasil do Século XIX

Luiz Felipe Baêta Neves


Antropólogo – Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro – Brasil

"(...) é evidente que vários discípulos de integrante do presente e do futuro não é, ne-
Comte participaram da Revolução republica- cessariamente, uma atitude reacionária que
na no Brasil, não sob a cor dos radicais fizesse uma apologia do passado como mo-
absolutos mas como revolucionários anima- mento hiperidealizado de perfeição social –
dos (...) de espírito autoritário (...)." ou divina. Penso que esta consideração – e
Gilberto Freyre digo consideração, não aprovação – do pas-
sado evita que julguemos autoritariamente
A primeira edição de Ordem e Progres- ideologias, povos, raças, religiões e tradições
so1 de Gilberto Freyre data de 1959. Se ela se que não nos agradam.
distancia, no tempo, de outros clássicos do Muitos exercícios de poder nascem – e
mesmo autor, seu próprio título pode ser vis- os brasileiros de hoje bem o sabem – das ide-
to como emblemático de características fun- ologias (que dizem não gostar deste nome) do
damentais de tantos trabalhos de Freyre. Progresso como meta irretorquível da felici-
Na verdade, aí se dispõem dade humana. Por conseqüência, tudo o que
concomitâncias – não necessariamente se- não faz parte desta Ideologia do Progresso –
qüências – temporais que se relacionam de ou desta Mitologia do Mercado Global, no
forma mais ou menos estrita e que fazem da caso – deveria ser eliminado em nome da Ra-
teoria freyriana do tempo algo complexo e de zão Triunfante.
construção intelectual sofisticada. Se há uma Gilberto, então, nos faz compreender
proposição de evolução social e cultural, esta o tempo como uma conjunção de diferenças
não tem como decorrência obrigatória uma cujas regras de manifestação deverão ser ob-
superação de momentos anteriores. O que se servadas também de perto, caso a caso.
propõe ao estudo da história é a tarefa de es- Há, em Ordem e Progresso, esta convi-
tabelecer os múltiplos modos pelos quais po- vência, de grandes recortes histórico-
dem ser desenhados "tipos" ou "períodos" e, conceituais e de uma miríade de exemplos,
ao mesmo tempo, perceber a precariedade digamos locais, daquilo que se manifestaria
de sua existência (de "tipos" ou "períodos"). no âmbito de cada um desses grandes recor-
Precariedade que advém do caráter tes. O trabalho de Gilberto Freyre, aqui e além,
impiedosamente relacional de tais recortes, ou é uma singular tensão entre conceitos de gran-
seja, eles não têm uma vida autárquica; de- de generalidade e uma agitada, animada po-
pendem – para viver – de se nutrir de outros pulação de fatos e ilustrações que ajudariam,
tipos ou de outros períodos. não só a colorir o discurso ou a comentar suas
Assim, sua identidade nunca se baseia proposições, mas, também, teriam o efeito de
em uma essência ou fundação, ela se expres- neutralizar as inclinações imperiais dos
sa por uma permanente inter-remissão tem- macroconceitos.
poral. Tal inter-remissão – fazendo jogar mo- Estes, por sua vez, inibiram uma ten-
mentos históricos vistos analiticamente como dência à indeterminação dos fatos e ilustra-
distintos – faz com que não se possa pensar ções e sua inclinação a servirem aos senhores
com facilidade na idéia de que a história ca- do empiricismo e da reificação. Há, portanto,
minha pela eliminação de estágios julgados uma tensão que articula flashes instantâneos
obsoletos e prejudiciais a uma suposta "fle- e durações, freqüentemente longas.
cha do tempo" de teleologia considerada "cer- Assim, vemos que os macroconceitos se
ta". referem, se remetem, a outros e, também, a
Esta consideração pelo passado como microconceitos, que seriam apresentados

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como o inumerável elenco dos atores singulares e da Esta relação com um aspecto da materialidade
interminável seqüência de cenas dos fenômenos his- do discurso – dos aspectos políticos, intelectuais e
tóricos. institucionais que condicionam a ventura ou fracasso
A relação entre macroconceitos e de sua intervenção no mundo – também pode ser vista
microconceitos não deve ser vista como uma relação no esforço de sedução que procuraria alcançar o lei-
de dependência, digamos, entre um plano de deter- tor. Há um esforço teórico-prático de fazer do que é
minada generalidade e outro. Os microconceitos – apresentado aos leitores – à sociedade – como algo
fatos, ilustrações, exemplos – não são a expressão sim- especialmente relevante e pouco (ou nada) conheci-
ples de macroconceitos; não têm suas características do ou reconhecido. Trata-se de uma atitude retórica
nem suas propriedades. Não são as "partes de uma no sentido de que se propõe o discurso como traba-
totalidade" que contivessem, em ponto menor, aqui- lho que não se encerra em sua dimensão estritamen-
lo que a totalidade conteria. Os macroconceitos, por te analítica; requer uma atividade de persuasão e con-
sua vez, não são o resultado de uma soma – ou de vencimento que procuraria aliados em diferentes
uma média – de uma dispersão de supostos eventos auditórios. Gilberto busca, então, uma pragmática da
ou coisas empíricas de que seriam a manifestação leitura, uma construção intelectual da ação, que faria
conceitual. de sua produção algo animado pela intenção de ser
Muitas vezes, de algum tempo a esta parte, tem- conhecida e de ser operante.
se falado de um Gilberto Freyre precursor dos estu- Quanto ao aspecto sedutor do discurso
dos concernentes ao quotidiano – ou, pelo menos, freyriano, muito ainda pode ser investigado. Quanto
como um de seus primeiros artífices. É pertinente que a Ordem e Progresso, parece haver muito de sedutor
ele seja assim considerado desde que se mantenha a não só no conjunto do texto, em seu estilo geral, mas
articulação deste quotidiano com os amplos quadros em momentos que podem ser delimitados. Penso, em
conceituais que concebia e que se aplicavam a ex- especial, nos extensos parágrafos que dedica à
tensões temporais vastas. exemplificação histórica de suas proposições. São
E mais que isto: é preciso focalizar o quotidia- encantadoras – ou melhor, encantatórias – as listas de
no da própria obra do grande ensaísta. Chamo, hábitos, móveis, objetos, comportamentos, atitudes,
figuradamente, de quotidiano da obra – em Ordem e etc. que são apresentadas ao leitor de forma tão eru-
Progresso como em outros livros – o esforço de seu dita quanto ligeira em sua enumeração galopante –
autor por situar a obra em sua circunstância históri- cortada por vírgulas que acicatam sua velocidade. Este
co-teórica. Ou, mais precisamente, penso na aplica- enunciado de caráter aparentemente apenas descriti-
ção de Gilberto Freyre em estabelecer ligações de suas vo escapa do anedótico por sua articulação tensa,
análises com outras produzidas por outros autores ou como dissemos há pouco, com as propostas
por outras linhagens teóricas. macroconceituais e por uma demarcação, uma dis-
Gilberto – em muitas introduções, prefácios, tância que guarda da narrativa.
notas – ou no miolo mesmo de seu texto procura se É sempre bom se ter em conta que Gilberto
situar fazendo alianças ou lançando ataques a adver- Freyre, apesar de sua pluralidade e polivalência, não
sários. As alianças visariam claramente um apoio a suas é autor que possa, impunemente, ser visto como um
proposições – apoio oriundo daqueles que conside- defensor da multiplicidade como sinônimo de disper-
rava expoentes intelectuais – ou institucionais – e que são absoluta. Isto é, sempre é bom lembrar que uma
viriam, senão a legitimar, ao menos a reforçar uma de suas ambições conceituais centrais é a de estabe-
posição tão ameaçada quanto valorosa. É neste cam- lecer sínteses, permanências, constantes, situações ou
po beligerante que se vê, com clareza, uma espécie figuras típicas. Parece inútil tentar encurralar seu per-
de afastamento apaixonado de um autor por sua obra. curso, quer empurrando-o para o beco sem saída da
Gilberto fala de seu trabalho como um analista tão mera crônica de costumes, quer lançando-o aos des-
exterior quanto enamorado. penhadeiros da "teoria geral da essência do Homem
Procura estabelecer um espaço para si que con- Brasileiro".
sidera em perigo. Perigo que, com freqüência, tem a Contra estes perigos podemos invocar a pró-
curiosa conotação do desconhecimento que se aba- pria letra freireana e, a ela, procurar infundir uma in-
teria sobre o limitado mundo de muitos de seus cole- terpretação. Lembro de tantos dos títulos de seus li-
gas brasileiros quanto às preocupações teóricas de vros que contêm o signo mesmo da articulação e da
Gilberto. O mundo exterior – e alguns brasileiros de relativização na palavra e. Outros analistas já o apon-
talento – teria correlatos à produção de Freyre e, mes- taram, como Roberto DaMatta e Raul Lody. Minha
mo, saberia reconhecer e elogiar seu empenho ino- modesta proposta seria a de imaginar que se acres-
vador. centasse um outro e a esta análise; teríamos, então,

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"Casa-Grande & Senzala e...". Guardaríamos, desse Enquanto o título é curto, sintético em sua alta signifi-
modo, duas linhas-de-força da obra em questão: a cação simbólica produzida pela coincidência com a
marca relacional e o aspecto inconclusivo. determinação escrita na bandeira nacional brasileira,
Nada em Freyre é conclusivo; mesmo quando fruto da República, o subtítulo é vincado não pela
"conclui" por alguma posição, ele próprio imediata- modernidade, mas pela pátina do tempo; lembra an-
mente – ou em outro momento – acaba por olhar tal tigos títulos de livros que pareciam, tais títulos, inter-
conclusão de viés, de forma parcial ou relativizadora mináveis, descritivos, informativos sobre o que se apre-
– ou, até mesmo, acaba por negá-la. Assim, não acre- sentaria a seguir, folheada a capa. O que se verifica,
dito epistemologicamente possível imaginar um pois, é um contraste, uma constituição gráfica, cuja
oxímoro que faria de algo relacional – Ordem e Pro- materialidade mesma é a do ponto-e-contraponto, tão
gresso – como fechado em si, definitivo, completo, distantes quanto articuláveis.
acabado. Vários outros aspectos mereceriam destaque
Este novo e abre a dimensão temporal – ou neste pequeno truque freyreano, neste atraente jogo
melhor, mantém aberta a dimensão temporal – para de conjuntos de palavras tão aparentemente casual e
que seja possível, por exemplo, sua operação de fe- desinteressado quanto expressivo de sua paixão pela
cundação com outros tempos (passados ou futuros). ourivesaria do estilo. Para mencionar apenas um pon-
Além de permitir, igualmente, sua interação com no- to, escolhamos a palavra quase em "(...) um quase meio
vos espaços sociais relacionais. século de transição (...)". O que quase de imediato se
poderia dizer seria quanto à patente imprecisão do
Para o imaginário social do e freyreano, os perí- termo que, justamente, trata de alguma coisa imagi-
odos de transição social são privilegiados. São quase nada precisa – os números, a quantidade bem delimi-
uma decorrência espontânea do lugar central atribu- tada de um século. Ora, o subtítulo sequer diz de que
ído à coexistência, permanentemente relançada, ati- século se tratará (ou de quais séculos, se a análise
va, de passado, presente e futuro. Em um certo senti- contemplar partes de dois séculos...), o que já é uma
do, todos os momentos históricos poderiam ser espécie de repto, de provocação aos que, bons histo-
teoricamente constituídos como transicionais, visto riadores que se pretendem ser, têm como prova de
que todos têm – ou podem ter – elementos temporal- sua precisão, de sua umbilical relação com os fatos
mente díspares. A contemporaneidade de um momen- empíricos, de sua honestidade profissional.
to histórico dado não seria, jamais, transparente, com- Gilberto Freyre manifesta, no corpo do livro,
posta de uma exclusiva temporalidade. distância em relação a métodos quantitativos, julga-
O trabalho do analista social não é o de reco- dos por ele, entre outras coisas, como superados. Mas
nhecer uma homogeneidade; é aquele de construir tal senilidade das limitadas práticas quantitativas se
conceitualmente a articulação singular de diferenças. alia à imprecisão dos números históricos na constru-
Existiria, então, para nosso autor, uma miscelânea ção de algo necessário e permanentemente
permanente de conteúdos, formas e ritmos tempo- inacabado.
rais, uma mistura de andamentos, uma miscigenação Esta construção inacabada para sempre não é a
de cenas e durações. figura de um fracasso; é a afirmação da impossibilida-
Esse caráter transicional aponta para uma "ins- de – e/ou do desinteresse – de o analista social ser um
tabilidade-em-equilíbrio" que dificulta a imposição de preciso engenheiro da vida humana. A sociedade não
fronteiras rígidas ou de aduanas excessivas. A possibi- é o lugar da exatidão – e não é, tampouco, o lugar da
lidade de viagem, de troca, de transação fica, por seu unidade. A sociedade é, sobretudo, plural, excessiva
turno, facilitada. Basta lembrar o subtítulo de Ordem em seus relançamentos de ações (e estagnações) e em
e Progresso que é não menos que: "Processo de desin- sua virtualidade. Virtualidade que evita o fechamento
tegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no absoluto e a conclusão definitiva dos edifícios históri-
Brasil sob o regime de trabalho livre; aspectos de um cos.
quase meio século de transição do trabalho escravo
para o trabalho livre; e da Monarquia para a Repúbli- Gilberto Freyre atribui, em Ordem e Progresso,
ca". especial importância ao positivismo no período que
Observando brevemente a escolha de Gilber- observa da história brasileira. A análise do ideário e
to, o que salta aos olhos, de início, é a relação de da ação positivistas permite compreensão bastante rica
contraste entre título e subtítulo. Enquanto o primei- daquele momento – e de tantos outros ... – de nossa
ro é sucinto, três palavras com dois substantivos arti- sociedade, mas, além disso, suscita curioso confronto
culados por um e, o segundo, o subtítulo, é longo, do imaginário do comtismo nacional e o do imaginá-
desdobrado, numeroso em suas trinta e sete palavras. rio freyreano. Vamos, de modo incipiente, propor al-

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guns itens que merecem desdobramento futuro.
Assim, o tema da transição, da passagem de uma _______________________
determinada configuração histórico-cultural, tem no
Notas
positivismo, para Gilberto Freyre, uma solução enge-
nhosa: "Aos Positivistas é evidente que a substância
1
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Processo de desintegra-
ção das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regi-
monárquica no Brasil se afigurava arcaica; mas não a me de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de tran-
forma autoritária de governo. Ao contrário; eles subi- sição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da Monarquia
ram ao poder procurando (...) avivar no novo tipo de para a República. 3.ed. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/INL,
governo a autoridade do executivo ou o poder efetivo 1974.
dos governantes, para que a causa do progresso con-
dicionado pela ordem não fosse sacrificada ao perigo
do progresso desordenado; nem a da ação refletida à
do verbo irresponsável." (p.17) Neste exemplo, a no-
ção de autoridade parece ter caráter decisivo; é ela
que permite a ligação entre um momento instaurador,
de progresso e combate ao arcaismo, e um elemento
pré-existente (a autoridade monárquica) capaz de
evitar a demasia, o descontrole, a rutura.
A ordem é, portanto, indispensável à manuten-
ção do progresso; o progresso é uma evolução da ra-
zão que não deve abrir mão desta para triunfar. O
progresso, nesse sentido, é uma superação relativa:
enfrenta o que é arcaico, no presente, para edificar o
futuro. Ou seja, não nega todo o passado (apenas o
que dele ficou no presente: o arcaico) e procura
rearranjar elementos considerados úteis para a nova
situação que se instaura na sociedade. Assim fazen-
do, observa o passado como thesaurus capaz de con-
ter parcelas férteis para o presente (e, pois, para – ao
menos parcial ou potencialmente – o futuro).
Vale a pena ver como, para nosso autor, a con-
tinuidade histórica pode se dar não apenas por um
elemento analiticamente cernível, mas por uma po-
derosa rede cultural: "O 'coração íntimo' do brasileiro
da época que se seguiu à proclamação da República,
se examinado de perto (...) haveria de mostrar (...) que
existia entre a gente do Brasil, do Norte ao Sul do
País, uma unidade nacional já tão forte, quanto às
crenças, aos costumes, aos sentimentos, aos jogos, aos
brinquedos dessa mesma gente, quase toda ela de
formação patriarcal, católica e ibérica (...) que não seria
com a simples e superficial mudança de regímen po-
lítico, que aquele conjunto de valores e de constan-
tes de repente se desmancharia". (p.CLXVII)
A cultura brasileira já tem, àquele ponto, uma
espessura trazida pela unidade nacional que alcança-
ra, fruto espacial de uma duração temporal capaz de
afirmá-la. E dela fazer algo determinante historicamen-
te; sua profundidade contrasta – e domina – varia-
ções epidérmicas, como a da mudança do regime
político do País no final do século XIX. Esta cultura
profunda é tão central e indispensável à vida histórica
quanto o coração é para o corpo – e para a alma – de
todos nós.

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Ordem e Progresso

Renato Ortiz
Sociólogo/Antropólogo – Universidade de Campinas – Brasil

O fio da minha argumentação será tra- tir da escola.


çado através de alguns temas que eu já traba- No seio deste processo de construção
lhei bastante e que são uma tradição no Bra- nacional existem várias respostas possíveis (a
sil. Trata-se da identidade nacional, da cultura vertente estadonovista é uma delas). A origi-
brasileira e da modernidade. É dentro desta nalidade e a especificidade da resposta de
perspectiva mais ampla que situarei a obra de Gilberto Freyre é uma entre outras existen-
Gilberto Freyre. tes, mas eu diria, todas se dão dentro de um
Chamo a atenção para um primeiro as- contexto determinado. Partilham portanto,
pecto, o da questão nacional, tema central apesar de suas diferenças, aspectos comuns.
para Gilberto Freyre. Para não ser repetitivo Pode-se considerar a problemática que
sublinho alguns pontos. É importante que a estamos discutindo em termos ainda mais
obra seja vista dentro de um contexto, o da abrangentes. Por exemplo, inserindo a ques-
década de 30, da Revolução de Vargas, da tão da identidade e da modernidade não ape-
modernização do Brasil e da integração Naci- nas em relação à sociedade brasileira, mas
onal. Para exprimir o que penso o resumiria tomando a América Latina como um todo (di-
assim: devemos lembrar algo que se tornou mensão usualmente ausente do debate entre
um pouco óbvio entre nós, mas que não o nós). "Nós" que inclusive comemoramos os
era antes, o fato de o Brasil, no momento em 500 anos da América a partir do descobrimen-
que nos interessa, não ser ainda inteiramente to de Cabral e não de Colombo. Curioso, o
uma nação. Isso é importante porque o con- Brasil é o único país da América Latina no qual
ceito de nação, para falarmos como Cristóvão Colombo é um personagem secun-
Hobsbawm, é um elemento novo na história dário da história. Mas deixo isso de lado, a
das sociedades humanas. A nação é fruto da dimensão latino-americana nos permite co-
Revolução Industrial, ela implica um todo in- locar algumas questões importantes. A primei-
tegrado, uma totalidade econômica, territorial, ra delas, e Gilberto vai enfrentá-la, diz respei-
política, lingüística e cultural. Quando Gilberto to ao outro. Para os países da América Latina,
Freyre escreve seus primeiros livros essa tota- assim como para o Brasil, o outro encontra-
lidade encontra-se ainda em processo de se na Europa ou nos Estados Unidos, é atra-
construção. Por exemplo, não há um merca- vés dessa alteridade distante, e muitas vezes
do nacional pois segundo os economistas ele inalcançavel, que espelhamos o nosso desti-
irá se consolidar somente na década de 50. no. Friso, a refrência é a modernidade do fi-
Outro ponto importante: não há uma nal do século XIX trazendo com ela a eletrici-
política nacional integrada, inclusive educa- dade, a indústria química, o petróleo, as
cional. Isso somente ocorre com o do gover- reformas urbanas, as estradas-de-ferro, e não
no Vargas. Se lembrarmos que a escola é ex- a primeira modernidade industrial com as ci-
tremamente importante no processo de dades lúgubres, povoadas pelas classes peri-
construção nacional na Europa e nos Estados gosas. O Brasil deseja um outro moderno
Unidos observamos a que ponto esse traço é quando é ainda uma sociedade agrária recém
tardio entre nós. Mais ainda, Vargas incentiva saída do escravismo. A construção da identi-
uma política da língua (que nós esquecemos dade fundamenta-se assim na noção de falta;
sempre) proibindo nas escolas de imigrantes falta algo em nossa "essência" e é esse algo
o ensino das crianças na língua materna. O que se busca. Gostaríamos de ser aquilo que
português torna-se assim a língua legítima e não éramos. É dentro desse hiato que se ex-
legal favorecendo a integração cultural a par- prime a defasagem entre a intenção e o que

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não se é, aí se localizam os dilemas identitários. tidade construída nos encerrava num impasse; se so-
Este dilema vincula-se às próprias condições mos filhos de mestiços, do cruzamento de uma raça
históricas dos países latino-americanos. Basta consi- superior e duas inferiores, estamos condenados à de-
derar alguns países asiáticos para explicitar as dife- cadência, isto é, a ausência do progresso. A
renças. No caso da Índia, China e Japão, temos uma mestiçagem é vista de um ponto de vista negativo –
tradição, muitas vezes, mas nem sempre, milenar. A não estou aqui usando nenhum julgamento de valor -
construção da modernidade deve se apoiar neste le- ela qualifica a identidade mas impede o caminhar da
gado da história. As tradições confucionista, budista, história. Dito de uma outra forma, o debate revela
bramânica, implicam em processos civilizatórios que uma perspectiva pessimista em relação ao futuro. Isso
tem implicações no Império chinês, no bakufu japo- não ocorre apenas no Brasil trata-se de uma "verdade
nês, influenciando diretamente o processo de coloni- epstemológica" em toda América Latina.
zação nesses lugares. Existem portanto, antes da co- Gilberto Freyre vai, de fato, reverter esta desva-
lonização, poderosas matrizes civilizatórias que servem lorização do mestiço transformando-o em elemento
de cimento ao Estado. A partir dessas matrizes a pro- positivo. Afirmação extremamente importante do pon-
blemática da modernidade se coloca. A revolução to de vista heurístico. Eu chamaria a atenção para o
Meiji pode ser resumida na seguinte frase: ciência fato do mesmo tipo de afirmação ter sido feita tam-
ocidental + técnica oriental, isto é japonesa. A frase bém no México por Vasconcelos, filósofo que escre-
resume a ideologia modernista do Japão na era Meiji. ve sobre a Quinta Raça. Segundo ele, seríamos, nós,
No caso das sociedades latino-americanas temos uma latino-americanos, a mais bem acabada mescla de
situação diversa; a tradição não existe enquanto ma- todas as raças do mundo, o que trai um otimismo, no
triz anterior à colonização ou à modernidade. Gilber- mínimo, exagerado. Porém, importa entender dentro
to Freyre tem toda a razão, ela é produto da deste tipo de visão (certamente idílica) que o elemen-
mestiçagem, da confluência de influências distintas. to mestiço perde sua condição de negatividade e pas-
O dilema dos intelectuais do final do século XIX sa a ser visto como positividade. Não estou sugerindo
e parte do século XX é como constituir a identidade que Gilberto Freyre tenha se inspirado nas teses de
de um país cuja modernida ainda não existe plena- José Vasconcelos que publica seu livro em 1925. Não
mente. As coisas se complicam quando sabemos que creio nisso, estou apenas dizendo que os mesmos
os quadros do pensamento da época eram marcados contextos vão gerar respostas homólogas, mas não
pelas teorias, que eufemisticamente chamávamos de, necessariamente semelhantes. José Vasconcelos após
raciológicas. Na verdade, são teorias racistas, todos a Revolução Mexicana, e Gilberto Freyre depois da
sabemos. Elas se fundamentavam na idéia de progres- Revolução de 30, exprimem em seus escritos as mu-
so, pressupunham uma visão teleológica da histórica, danças radicais existentes em suas sociedades.
e afirmavam a superioridade da raça branca sobre as Um outro aspecto merece ainda ser enfatizado,
populações indigéna, negra e mestiça. Essa obssessão ele diz respeito à questão da modernidade. Não pos-
pelas explicações raciológicas, às quais se somam o so obviamente recuperar todo o debate sobre a
determinismo geográfico, não são particulares ao Bra- modernidade, quero porém chamar a atenção para o
sil, elas predominam no pensamento latino-america- fato de que a construção da nação se faz, na Europa e
no como um todo. O mesmo quadro interpretativo nos Estados Unidos, através da modernidade. Dito de
se estende do Brasil à Argentina, da Colômbia ao outra forma, a modernidade se realiza através da na-
México. Geografia e raça são as categorias centrais ção. Historicamente há uma conjunção dos dois ter-
deste tipo de interpretação. mos. No século XIX, a emergência das nações, fran-
As explicações produzidas pelos intelectuais têm cesa, britânica, alemã, se faz pari passu com a
algumas "vantagens" e uma enorme desvantagem. modernidade.
Quando digo "vantagem" refiro-me ao nível No caso dos países latino-americanos há um
explicativo, o que nada tem a ver com justiça, demo- descompasso entre a necessidade da construção na-
cracia, fraternidade ou igualdade. Vantagem porque cional e a relização material da modernidade. O mo-
é possível num primeiro momento, afirmar: de forma derno é um projeto, uma utopia, algo deslocado no
ideológica que somos brasileiros pois vivemos num futuro. Essa defasagem no tempo não significa que
território específico e somos o cruzamento de várias não haja nada anteriormente nesses países, significa
raças. Basta lermos a Literatura Brasileira de Sílvio que as tradições mestiças existentes estão em
Romero onde ele explica que o atraso brasileiro se descompasso com a modernidade sonhada. Dentro
deve aos ventos alísios. Interpretação bizarra mas que desse contexto os intelectuais brasileiros devem "to-
tinha na época, pelo menos entre a classe dominan- mar partido" e, obviamente, Gilberto Freyre assim o
te, sua veracidade. Mas desvantagem porque a iden- fará. Mas não devemos confundir "tomar partido" com

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a discussão entre modernistas e não-modernistas, tema ou seja, desenraizado, móvel, volátil. Estabilidade so-
amplamente discutido pela crítica literária. O debate cial, tradição. Mobilidade, modernidade. O tema tra-
é muito mais amplo, nele se insere as dúvidas em re- tado por Gilberto Freyre transborda sua obra.
lação ao destino da nação. Discussão que ecoa em Mas o que se pode dizer hoje sobre esses mes-
campos distintos, cultural, intelectual, científico e po- mos temas? Eu diria que a noção de identidade naci-
lítico. onal passou a ser percebida de uma outra forma. Para
Pode-se ler a posição tomada por Gilberto os autores da década de 30, e até mesmo dos anos
Freyre de duas formas: a primeira mais conservadora, 50 e 60, a identidade nacional era algo tangível. Exis-
antimoderna, a outra, mais nuançada, na qual admi- tiria como tradição, ou projeto a ser realizado no fu-
te-se a modernidade cum granum salis. Pode-se ob- turo (é o caso dos isebianos). Essa é uma visão tanto
servar isso quando se analisa a questão da "raíz", tema substancialista, ela pressupõe a existência de um "Ser"
central no debate sobre a identidade e a modernidade. nacional. Como pude avançar em "Cultura Brasileira
Em Gilberto Freyre sempre me chamou a aten- e Identidade Nacional", a identidade é uma constru-
ção, e pode ser que me equivoque, a clara oposição ção simbólica que se faz em relação a um referente,
entre o Nordeste e São Paulo. O Nordeste para ele é por isso varia segundo os autores e os grupos políticos
terra, o Nordeste é telúrico, o Nordeste é raiz que se que lhes dão sustentação. Isso significa que as cons-
implanta no solo agrário brasileiro. Porém o Brasil não truções de identidade em relação ao referente Esta-
é só Nordeste é também São Paulo. São Paulo é loco- do-Nação transformam-se ao longo da história. Den-
motiva, São Paulo é industrialização, São Paulo é téc- tro dessa perspectiva, faz pouco sentido falarmos em
nica. Dito de outra maneira, a raíz, enquanto profun- identidade "autêntica" ou "falsa", toda identidade é
didade telúrica está do lado do Nordeste, a "verdadeira" desde que seja plausível, isto é, seja
horizontalidade estende-se à São Paulo. Gilberto construída socialmente e partilhada por um grupo de
Freyre imagina, na minha leitura, que é possível exis- atores sociais.
tir uma modernidade alicerçada numa raiz tradicio- O segundo ponto tem a ver com as transforma-
nal. É como se pudesse jogar nos dois tabuleiros, sus- ções ocorridas no Brasil nos anos 70/80. O Brasil pós-
peito porém que ele não estava muito satisfeito com 64 se distancia em muito do Brasil dos anos 30 e 40,
essa resposta. momento em que Gilberto Freyre realiza parte consi-
O tema do desenraizamento é intrínseco ao derável de sua obra. Ele passa por uma segunda revo-
debate sobre a modernidade, por exemplo Marx lução industrial, é um país cada vez mais urbano, e
quando nos descreve o desenraizamento dos campo- conhece o florescimento de uma indústria cultural.
neses como uma necessidade estrutural ao capitalis- Constitui-se assim entre nós uma "moderna tradição
mo industrial. Um autor norte-americano, David brasileira" (título de um livro meu). Essa moderna tra-
Landes, estudioso da história econômica no século dição está presente no cotidiano das pessoas, na ci-
XIX, exprime muito bem, no título de um de seus li- dade e no campo, nas classes altas e baixas. A idéia
vros, Prometeu Desacorrentado, este traço da de moderno irá portanto se transformar, já não pode
modernidade. O capitalismo industrial desacorrenta ser mais a mesma dos anos 20 e 30. Isso repõe a dis-
Prometeu, liberando-o de seus limites anteriores, cussão da identidade, sobretudo sabendo que as in-
entrentanto, esse mesmo capitalismo já não sabe mais dústrias culturais redefinem a problemática cultural
o que fazer com o seu fantasma que, aos poucos, se em termos totalmente distintos do que até então pre-
apodera de tudo. Ruptura que revela o processo de valecia.
desenraizamento, desde a mão-de-obra migrante, à Um último aspecto, recente, tem a ver com o
mobilidade do flâneur do qual trata Benjamin. processo de globalização da sociedade e da
No caso de Gilberto Freyre, chama atenção mundialização da cultura. Temos agora uma ruptura
como ele caracteriza a casa-grande. Nela os móveis do elo entre nação e modernidade. Se os nossos mo-
são tão pesados que eles deitam "raízes" no chão, não dernistas na década de 20 diziam, "para sermos mo-
podem portanto serem mudados segundo o capricho dernos é preciso sermos nacionais"; hoje, pode-se afir-
de seus donos. Na verdade o "peso" do mobiliário re- mar: "é possível ser moderno sem ser nacional", o que
vela a estabilidade de uma ordem patriarcal na qual a implica em mudanças substantivas (algumas nefastas)
"leveza", isto é, a mudança, encontra pouco espaço da capacidade do Estado-nação conferir uma identi-
para se alojar. A análise de Freyre se aproxima assim dade inteiramente válida para todos os seus cidadãos.
da leitura que Benjamim faz do mobiliário burguês A cisão da relação nação-modernidade retira do Esta-
na Paris do século XIX. Ele diz que essas mobílias são do-Nação o monopólio da definição da identidade
parte da identidade burguesa, constituem a sua raiz. nacional. Por isso estamos vivendo um momento de
Isso antes do modern style que torna tudo mais "leve", crise, no qual múltiplas identidades se confrontam.

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Uso a idéia de monopólio no sentido que Weber atri-
bui ao termo. Com isso quero dizer que a pluralidade
de identidade não é necessariamente algo novo no
Brasil, no entanto, até um certo momento, a diversi-
dade dos grupos identitários encontrava-se subsumida
à hegemonia da identidade nacional. Mas a concor-
rência com o Estado-nação não se faz apenas inter-
namente, no plano mundial, surgem ainda identida-
des desterritorializadas. Ao contrário do mobiliário da
casa-grande, o que se faz via Internet e meios de co-
municação tem a ver com todo um processo que toma
o mundo como um "lugar", ou seja, um espaço
desterritorializado à disposição da construção de iden-
tidades locais ou mundializadas.
Como ler Gilberto Freyre dentro deste contex-
to. Evidentemente as mudanças atuais demandam do
pensamento novas categorias para compreendê-las
melhor. Creio porém que uma reflexão sobre Gilber-
to Freyre é antes de tudo uma homenagem ao traba-
lho intelectual em si, pois se trata de um escritor ori-
ginal que dedicou sua vida ao esforço de compreensão
da sociedade de sua época. O mundo no qual vive-
mos, de certa forma é adverso ao trabalho intelectu-
al, pois os mecanismos valorizados são principalmen-
te aqueles vinculados ao mercado. Pensar é
percebermos além das forças dominantes em cada
momento histórico. Nesse sentido Florestan Fernandes
e Gilberto Freyre são grandes pensadores. Seus traba-
lhos são distintos, porém o esforço intelectual que
pensa os fenômenos sociais de maneira original, es-
pecífica, é semelhante. A afirmação deste esforço,
desta vontade, não pode ser perdida pelas gerações
atuais. Apenas ela nos permite voltarmos para o en-
tendimento do mundo atual.
O trabalho de Gilberto, como de outros, nos
mostra que talvez a sina de toto intelectual é ser con-
temporâneos do seu próprio tempo, seja vivendo em
um país, numa região ou na modernidade mundo.

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Ordem e Progresso e o Tempo do
Trópico em Gilberto Freyre

Elide Rugai Bastos 1

Socióloga – Universidade de Campinas – Brasil

A Introdução à História da Sociedade nas a articulação temática que compõe a


Patriarcal no Brasil, de Gilberto Freyre, con- trilogia, mas novos debates que se abrem
junto composto por Casa-Grande & Senzala, explicitando a relação intelectual que Gilber-
Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso 2 to estabelece com diversos autores nacionais.
pode ser analisada a partir de dois planos dis- Esse diálogo diz respeito à sua compreensão
tintos: um plano temporal e um plano a respeito das Ciências Sociais e envolve dois
temático. Embora a obra como conjunto não pontos principais: a questão da narrativa em
tenha sido planejada inicialmente em sua in- Sociologia e o problema da temática privile-
tegridade quando da escritura do primeiro li- giada nessa área do conhecimento.
vro, o plano temporal é aquele imaginado pelo
autor. CGS corresponde ao estudo da forma- Outra Narrativa
ção pré-nacional e nacional do Brasil, dedi- Um ponto que salta logo à vista é a con-
cando-se a analisar a vida do país no período cepção do texto e a narrativa escolhida, ambas
colonial ou, como o próprio subtítulo indica, totalmente diferenciadas, se comparadas aos
um "Estudo da formação da família brasileira estudos anteriores. Gilberto elabora um ques-
no regime da economia patriarcal". SM enfoca tionário, que envia a vários intelectuais nasci-
o século XIX, desde a vinda da corte portu- dos entre 1850 e 1900, recebendo resposta
guesa até o momento republicano, estudan- de 183 deles. Reúne os dados, as histórias de
do a decadência do patriarcado rural e o de- vida, etc. e faz uma exposição mais ou menos
senvolvimento das cidades. OP estuda as duas linear desse material. Muitas vezes os críticos
últimas décadas do século XIX e as três pri- assinalaram a dimensão menor do texto se
meiras do século XX, analisando a desintegra- comparado com CGS e SM, que compõem
ção da sociedade patriarcal num quadro de com OP a trilogia.. Tomar este último livro em
transição do trabalho escravo para o trabalho sua verdadeira dimensão é reconhecer o lu-
livre. Assim, sucedem-se na análise períodos gar que ocupa no conjunto da obra do autor,
diferentes da história brasileira: a Colônia, o ou seja, sob a aparência pouco organizada,
Império e a Primeira República. nele são desenvolvidas idéias originais sobre
Considerado o plano temático, não a Primeira República. Acrescente-se que co-
conscientemente visado por Gilberto, temos loca, ainda, indagações sobre as transforma-
outra ordem de textos: CGS e SM seriam com- ções que afetam, no momento em que é es-
pletados pelo livro Nordeste. Ou seja, os três crito, o papel das regiões na definição da
elementos explicativos da formação nacional, questão nacional. Não entrarei no mérito des-
segundo Gilberto – a interpenetração etnias/ sa questão, mas vou assinalar as semelhanças
culturas, o patriarcado e o trópico – parecem e as diferenças existentes entre os três textos.
articulados nos estudos, mas é possível reco- Já chamei atenção para o fato de não
nhecer um peso maior de cada um deles nos só a narrativa de OP ser diferenciada em rela-
diferentes livros. A questão das etnias e cultu- ção aos estudos anteriores, como a forma de
ras é tema central de CGS; o patriarcado é o captação do material de pesquisa ser outra.
eixo central de SM; o trópico, o tema de Nor- Gilberto organiza um inquerito entre aqueles
deste. Nessa direção, não podemos reconhe- brasileiros nascidos no século XIX e recolhe,
cer uma dimensão especial de um dos ele- também, algumas autobiografias entre eles. A
mentos explicativos em OP e sim uma escolha de um método para coleta de dados
combinação dos três componentes. Assim, muito diferente daquele que funda CGS e SM
nesse trabalho é necessário buscar não ape- pode ser explicada pelo debate que se de-

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senvolvia no Brasil a respeito do lugar da Sociologia blicos, parlamentares, políticos, jornalistas,
na explicação da realidade nacional, discussão que babalorixás, homens do mundo, mulheres das cha-
tem ponto importante na crítica que se fez às teses madas alegres, antigos escravos ou negros nascidos
freyrianas expostas nos textos precedentes. Talvez isso na época da escravidão, 3 – garantiria a variedade de
explique o porquê da extensão da parte introdutória pontos de vista. É que, para Gilberto, "de um só pon-
– que ocupa em torno de 150 páginas, em numera- to de vista, que obrigue o observador a uma única
ção romana, que adicionadas às outras 794 do texto atitude ou posição, fixa e sempre a mesma, não se
somam 963 – constituída de Prefácio, Nota consegue ver de uma época senão um aspecto. Para
Metodológia, Nota Bibliográfica, Índice Biográfico e vê-la o mais possível em conjunto, de modo a conse-
Tentativa de Síntese. Voltaremos a esta questão mais guir-se uma síntese das suas contradições, dos seus
adiante. vários tempos em conflito, dos seus diversos interes-
A motivação principal do trabalho encontra-se ses em jôgo, impõe-se aquela variedade de pontos
na resposta à pergunta: como, na mudança de regi- de vista. Dessa variedade de pontos de vista é de es-
me se mantêm a organicidade da sociedade e a uni- perar que decorram repetições, semelhantes às im-
dade nacional? Se no Império a simbiose monarquia pressões de déjà vu que possa nos dar uma paisagem
e patriarcado favoreceu uma ordem de certa forma vista do alto, depois de ter sido observada de lado." 4
democrática, no momento republicano, o que possi- Das respostas dadas foi selecionada uma parte, "ape-
bilitará sua continuidade? A dupla explicação consti- nas aquelas que, pela idoneidade dos depoentes e
tue o arcabouço do livro. Forças simultaneamente de pelo especial cuidado por eles dispensado às princi-
equilíbrio e de conflito atravessam a sociedade: de pais perguntas que lhes foram dirigidas, permitem que
um lado a permanência de certos ritos que compõem sejam suas reações aos estímulos, sempre os mesmos,
a legitimidade do sistema e permitem sua reprodu- (...)." 5 Por essa escolha, o uso do inquérito deixa de
ção; de outro, mudanças resultantes da decadência ser de caráter quantitativo/qualitativo para fixar-se
do patriarcado e da alteração da composição étnica somente no parâmetro qualitativo. Essa restrição que
da população como produto da vinda de imigrantes, leva, naturalmente, a certa condução da interpreta-
alteram a facies da sociedade brasileira. Assim, trans- ção no caminho da tese da permanência dos arranjos
formações de caráter cultural, econômico, social e sociais, tornou a pesquisa objeto de várias críticas em
político – linguagem, crenças, moda, higiene, função dos novos caminhos trilhados pela Sociologia
sanitarismo, urbanização, instituições, deslocamento brasileira, resultantes da institucionalização dos cur-
regional da economia – alteram profundamente o sos de Ciências Sociais fundados nos anos 30.
perfil da comunidade nacional. O recorte espacial/temporal é explicado por
Retomando a proposta do tempo tríbio, da arti- Gilberto pelo próprio enfoque teórico-metodológico
culação passado, presente e futuro, já desenvolvida que preside sua investigação: "os estudos de nossa
nos trabalhos anteriores, Gilberto mostra como nas predileção se conformam antes com o critério históri-
diferentes regiões do país essas transformações ga- co-sociológico ou histórico-antropológico do estudo
nham arranjos diversos. Misturam-se várias ordens e de tendências, tipos e instituições sociais e de cultura
vários progressos. Pode-se apontar para cada região ( nem sempre coincidentes, em seu desenvolvimen-
um especial modo de organização da sociedade e de to, com as épocas ou os períodos políticos do desen-
ordenação política que teriam sua origem simultane- volvimento de um povo), do que com o critério prin-
amente nas formas culturais e sociais. Assim, a atuali- cipalmente político e rigorosamente cronológico, em
dade da tese reside em sua inserção nos debates so- geral adotado. Daí o período político constituído pelo
bre o regionalismo acionados pelo projetos fim do reinado de Pedro II e pelos primeiros decênios
desenvolvimentistas em curso no final dos anos 50, da República não ser por nós considerado válido, para
nos quais o Nordeste constitue-se em tema privilegia- efeitos de generalização ou interpretação sociológi-
do. ca, senão em seus aspectos sociais e culturais, que
É a combinação simultaneidade, alternância de nem sempre se deixam comprimir pelas fronteiras
tempos e diversidade que preside a escolha dos en- apenas políticas e jurídicas dos seus concomitantes
trevistados e o recorte espacial/temporal do estudo, políticos e jurídicos." 6 Assim, as várias regiões às quais
ancorando a proposta central do trabalho. A origem o patriarcado conferiu "consistência, brilho e prestí-
diversa dos que prestam depoimentos – segundo as gio (...) o Norte açucareiro, a princípio e depois a re-
palavras do autor, barões do império, senhores de gião cafeeira do Sul" conhecem formas diversas de
engenho, fazendeiros do café, cônegos, vigários, mé- acomodação aos diferentes tempos políticos. Estudar
dicos, advogados, engenheiros, militares, comercian- esse processo só seria possível, segundo o autor, con-
tes, caixeiros, operários, industriais, funcionários pú- siderando-se a simbiose dos elementos culturais, so-

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ciais, econômicos e políticos. Tempo e espaço devem mudanças que afetam a ordem social; no entanto, no
ser pensados como uma unidade. Ou ainda, para Gil- seio da sociedade residem forças de renovação.
berto o tempo é espacial. Não é sem sentido que, ao O debate sobre a decadência em OP ganha uma
propor uma abordagem sociológica adequada à reali- outra demarche. Trata-se de uma etapa que se fecha.
dade brasileira, escolha como solução a articulação Assim, há a procura de uma relação causa/efeito. A
entre as sociologia ecológica ou regional e a sociolo- explicação ganha linearidade. Mas o saboroso estilo
gia genética ou histórica. 7 Em outros termos, o méto- freyriano emerge em muitas páginas do texto confe-
do genético-ecológico é a solução que encontra para rindo a marca especial de escritor diferenciado no
indicar a especificidade da formação brasileira – uma quadro da sociologia brasileira.
sociedade de passado colonial e de solo oligárquico – É importante refletir sobre o sentido dessa op-
, sua organicidade e sua continuidade temporal. Esse ção narrativa. Gilberto assinala muitas vezes o fato de
é o campo analítico a partir do qual explica os vaivéns ser um pensador de tradição ibérica, o que marcaria
da sociedade, os avanços e as regressões, "as altera- o traço principal de seu perfil intelectual: o ajusta-
ções de domínio ou de posição de dadas tendências mento da palavra à personalidade e não o contrário,o
ou instituições no espaço social ou no plano cultu- que o torna um escritor mais de campo do que de
ral."8 Segundo sua visão, é esse método que permite gabinete.13 Isso o autorizaria a reproduzir o traço
ao sociólogo afastar-se de posições extremamente li- marcante dessa formação: a possibilidade de defor-
mitadas e radicais, possibilitando-lhe uma visão mais mar as descrições para efeitos de síntese ou de inten-
equilibrada da sociedade. É ainda a partir dessa posi- sificação da realidade, interpretando-a a partir de uma
ção que justifica se não o rompimento pelo menos o perspectiva personalista. Fernão Mendes Pinto, do
recurso não exclusivo às fontes históricas convencio- século XVI, autor de Peregrinação, é um dos modelos
nais – os documentos, muitas vezes apologéticos de que indica para ilustrar as qualidades desses traços.
feitos dos heróis oficiais. Busca abrir-se a uma história Transmitir a experiência vivida intensificando os fatos
tanto quanto possível natural de instituições, grupos é a façanha desse escritor. O método impressionista,
e pessoas situadas em determinado espaço ou época tantas vezes invocado pelo autor de OP, tem aí sua
social, estudadas nas suas relações com outras insti- raiz.
tuições, grupos ou pessoas.9 Assim, a sociologia histó- Em sua avaliação, essa tradição o autoriza a es-
rica transforma-se no espaço onde a história será fe- crever à revelia de quase todas as convenções literári-
cundada pela antropologia e pela psicologia. Por isso, as, juntando às velhas crônicas de feitos heróicos muito
a sociologia "não é ciência nem da natureza, nem do de pitoresco e até de vulgar e chulo. A intensificar a
logos, mas da realidade, isto é, da realidade de nossa realidade, justificando a invenção do real, substituin-
vida. Da realidade vital ou existencial."10 do uma perspectiva única por perspectivas empáticas
As teses da articulação tempo-espaço e a dos e simultâneas da mesma realidade. A redimensionar
tempos superpostos requerem uma narrativa especi- o mundo baseando-se na intensificação de fatos, mis-
al, não linear. Gilberto a realizou principalmente atra- turando pessoas e tempos diversos e buscando novas
vés da escritura em abismo 11, característica de CGS e combinações de relações reais de pessoas com paisa-
SM. Em OP a forma linear prevalece, talvez pelo modo gens. A trabalhar com a autobiografia, não sendo in-
através do qual o autor organiza o material recolhido. ventor de personagens ou de mitos, mas, tendo por
Exemplifico: o debate sobre decadência em SM su- base a própria experiência, a operar sobre os mes-
põe uma construção especial onde a narração é com- mos de modo criativo. A ser realista sem ser prisionei-
ponente fundamental da própria argumentação, que ro dos simples fatos, mesclando-os com a experiência
propõe uma visão cíclica do fenômeno.. Confundem- e com a imaginação. A ser capaz de buscar um modo
se narrador e narrado, os tempos históricos, o tempo de escrever no passado, nas tradições de um povo,
torna-se espacial. Em outros termos ocorre o que sem tornar-se arcaico. 14 É interessante notar que Gil-
Foucault denomina "dialética da representação trans- berto assinala que esse exercício especial de ver o
parente e da auto-representação reflexiva".12 No caso mundo e descrevê-lo só é possível em épocas de dis-
da decadência, Gilberto a pensa inserida em um ciclo solução de alguns estilos de vida, de conduta e de
de vida; aborda a sociedade levando em considera- etiqueta e de substituição por outras. Nada mais ade-
ção a origem, consolidação, decadência/renovação, quado ao momento da escritura dos vários livros da
consolidação e decadência, em um ciclo interminá- trilogia.
vel. Pensa o processo como uma espiral. Percebe-se a Sabe-se que o momento histórico em que foi
presença de dois eixos articuladores da argumenta- escrito SM é marcado por renovações políticas: a cen-
ção, segundo o modelo usual da análise freyriana. O tralização do Estado, a marginalização do modelo as-
momento da decadência é transitório, resultado de sentado no pacto oligárquico e a consequente

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extinção da política dos governadores. A crise de 20 aí ou seja exclusiva dessa perspectiva.
levou a que os intelectuais brasileiros refletissem so-
bre esses problemas, apontando algumas saídas para Outra Temática
o impasse. O livro, aliás bastante citado por Gilberto Primeiramente, há que se indagar quais são as
em OP, À Margem da História da República, de Vicente continuidades entre os livros anteriores e Ordem e
Licínio Cardoso, onde as questões regional, nacional Progresso; e quais são as diferenças existentes entre
e da centralização das políticas aparecem como te- eles. Assim, que teses estão presentes? Evidentemen-
mas centrais, é representativo do debate. Trata-se de te, as teses centrais são aquelas em relação à ordem e
texto comemorativo dos cem anos da Independência ao progresso.
e que pretende fazer um balanço das mudanças ocor- Em relação à ordem, o autor pergunta, confor-
ridas no período. Ora, SM é escrito em meados da me já assinalamos, como, com a mudança de regime,
década de 30, momento em que a renovação marcada se mantêm a organicidade da sociedade e a unidade
pela centralização administrativa já afetara decisiva- nacional, isto é, na passagem da monarquia para a
mente o papel das elites regionais no jogo político do República. Essa indagação está presente tanto nas
país. Ao mostrar o secular papel ordenador da socie- perguntas aos entrevistados como na indagação que
dade brasileira desempenhado pelo patriarcado (ou o próprio Gilberto se faz e tenta responder no texto.
pelas oligarquias familistas, para usar um termo mais Assim, indaga como e por que razões essa ordem foi
preciso) na construção da ordem nacional, Gilberto mantida no Império apesar das crises: por exemplo, a
alerta para os problemas que podem advir da quebra Guerra do Paraguai, o Manifesto Republicano, a pri-
dessa ordem. Apontar para esse fato, na década de são dos bispos. Responde: manteve-se graças à
30, significava relembrar que as instituições políticas simbiose entre a forma monárquica e a patriarcal,
surgidas no processo de centralização do Estado eram, simbiose que favorece de um lado a ordem e de ou-
de certa forma, postiças pois não levavam em consi- tro, garante a presença de muitos aspectos democrá-
deração as diferenças das regiões e seu específico ticos, apesar da escravidão. Mesmo considerando a
modo de organização social. Assim, diferentemente amenidade da escravidão, como havia apontado nos
dos autores de 20, Gilberto toma sob outra perspecti- livros anteriores, obviamente reconhece que se trata
va a relação Estado-sociedade, mostrando que os "ve- de uma restrição à liberdade.
lhos" setores, os setores tradicionais da sociedade con- Mas a questão se desdobra: e no momento re-
tinuavam, em algumas regiões do Brasil, publicano, o que garantiu essa ordem? Aqui existe uma
desempenhando papel social importante na manu- dupla entrada da tese, segundo o próprio modelo
tenção da ordem no país. freyriano tão bem apontado por Ricardo Benzaquen.
Embora sem a devida demonstração da hipóte- De um lado, a permanência: o que garante a ordem é
se acima levantada, que sem dúvida é polêmica, a a permanência de certos ritos que compõem a legiti-
partir dela creio ser possível afirmar que a obra midade do sistema e não simplesmente a legalidade.
freyriana de 30 é fundamental para ancorar a concili- Gilberto sempre procura apontar para os elementos
ação política que se dá naquele momento. que garantem a legitimidade do sistema. É isso que
Na mesma direção, devemos lembrar que Or- permite a reprodução deste. Ora, essa legitimidade
dem e Progresso é escrito durante a década de 50 e encontra sua explicação na própria raiz da socieda-
publicado ao final desse período. Portanto, o momento de. Nessa direção é fundamental que reconstitua os
político é outro, diferente daquele de 30, quando a elementos da sociabilidade presente no país. Já foi
discussão sobre a questão regional ganha outra tona- bastante discutida pela bibliografia a existência de uma
lidade. Trata-se de conjuntura em que os setores regi- certa circularidade nessa argumentação que funda a
onais estão sendo incorporados ao projeto idéia de equilíbrio da sociedade, o que me poupa do
desenvolvimentista. Cabe, então, uma outra concep- desenvolvimento da questão. É esse perfil de equilí-
ção sobre a decadência, diversa daquela anteriormen- brio que Gilberto se propõe a demonstrar através dos
te desenvolvida. Gilberto, ao discutir a Primeira Re- depoimentos expostos em Ordem e Progresso.
pública, diz que a decadência, ganha uma outra De outro lado, a tese contrária, a mudança: essa
démarche, mostrando que em relação ao patriarcado sociedade constituída naquela ordenação está atra-
é uma etapa que se fecha. Assim, no texto, procura vessada por mudanças que são vistas como progres-
estabelecer uma relação de causa-efeito não presen- so, mas que muitas vezes geram um clima messiânico
te nos textos anteriores; a explicação ganha que acabam por resultar em provocações à ordem
linearidade. Porém, embora seja possível encontrar estabelecida. Por exemplo, os movimentos militares,
razões de ordem narrativa que expliquem a diferença que aponta, no mais das vezes, como movimentos de
entre os trabalhos, não creio que a explicação resida caráter messiânico e ingênuos. Em outros termos, com

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a República surgem problemas que afetam a ordem anteriormente a industrialização e o desenvolvimen-
social porque se altera a feição da sociedade brasilei- to econômico. Mostra, novamente, a possibilidade de
ra, tensões que se exprimem nos atentados à ordem, propiciar-se uma mudança que trará desequilíbrio à
na decadência do patriarcado e na mudança da com- ordem social anteriormente estabelecida.
posição étnica da população. Portanto, o equilíbrio e Por outro lado, não há que se esquecer o con-
a harmonia existentes no passado, garantidos pela "sá- texto nacional e os impasses dos quais Gilberto não
bia" política patriarcal, que propiciou uma base cultu- estava afastado, inserido que estava nas discussões
ral capaz de absorver os conflitos, estão ameaçados. sobre os problemas do Nordeste. Exemplo ilustrativo
Como se dá essa ameaça? Gilberto responde a inda- é aquele da temática desenvolvida nas pesquisas e
gação a partir da discussão sobre o que significa pro- nos debates presentes no Instituto Joaquim Nabuco (
gresso. depois Fundação Joaquim Nabuco) fundado e lidera-
A partir da tese do progresso, opera um desdo- do por ele. Assim, novamente a questão remete ao
brar de outras questões. O progresso significa trans- sentido da análise do regionalismo e do lugar político
formações de ordem cultural que afetam a facies da de sua discussão.
sociedade. A substituição da mão-de-obra escrava Isso diz respeito diretamente à questão da So-
pelo trabalho livre figura no ideário nacional como ciologia; com o diálogo que enfrenta com os críticos
um progresso; mas o que significou essa substituição? de sua visão sobre as Ciências Sociais, mas principal-
A vinda de trabalhadores estrangeiros que trouxeram mente com o papel que aquelas interpretações de-
alterações na linguagem, nas crenças, na moda, na sempenhavam na configuração das forças sociais do
higiene, no sanitarismo, na urbanização e no regime país. Nesse sentido, a discussão sobre a Sociologia ti-
político. Isso o leva a buscar nos depoimentos o que nha uma inserção política, não se tratando de discus-
foi adotado como novo e o que persiste do passado. são simplesmente acadêmica. Assim, a crítica à obra
Assim, chega à conclusão de que os depoentes que e as respostas de Gilberto devem ser entendidas nes-
viveram nas duas últimas décadas do Império se pa- sa direção. Isso explica, o porque o autor se dedica a
recem menos com os seus antepassados do que com uma longa explicação metodológica presente em Or-
seus contemporâneos das gerações mais novas, mas dem e Progresso. Esse motivo talvez explique, em
que, embora houvesse alterações de forma, perma- parte, sua extensa discussão sobre processos sociais.
nece a substância das relações sociais. E ainda, a afirmação do porquê no trópico os proces-
sos de adaptação, acomodação e assimilação têm pre-
Outra Análise cedência sobre o de competição. Creio que a partir
Aqui passa para outro plano analítico. O defini- dessa ótica de compreensão da produção freyriana
tivo declínio do patriarcado significou a substituição do final dos anos 50 seja possível recolocar em outras
de sua direção social e política, que passa a ser bases seu debate sobre a Sociologia. Mais ainda, ex-
exercida por outras instituições que não o patriarca- plicarem-se os embates em torno de um tema que
do. Nesse processo surgem conflitos cujos principais aparentemente é acadêmico, mas que tem uma im-
são aqueles existentes entre os valores rurais e urba- portante dimensão política.
nos. Mais ainda, mostra o desequilíbrio existente en-
tre as mudanças que são absorvidas na ordem priva- _______________________
da, adaptadas num plano íntimo, resultando em Notas
alterações que não afetam o equilíbrio social, e aque- 1
Professora livre-docente do Departamento de Sociologia da
las transformações que se dão na ordem pública, es- Unicamp. O presente trabalho foi possível graças ao apoio de pes-
sas, sim, caracterizadas por um transplante sem adap- quisa recebido da Capes e do CNPq.
tação e por isso mesmo ameaçadoras do equilíbrio 2
Passarei a designar os livros pelas siglas: CGS – Casa-grande &
da sociedade. Senzala; SM – Sobrados e mucambos; OP – Ordem e Progresso.
Há mais um ponto a ser lembrado sobre o con-
3
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 1959, pp.XIX-XX.
4
Idem, p..CXVIII.
teúdo da argumentação, embora o apontemos bre- 5
Idem, p.LXXXVI.
vemente. Retomando a tese orteguiana, do tempo 6
Idem, p.XLVII.
tríbio, mostra a não simultaneidade dos tempos nas 7
FREYRE, Gilberto. Sociologia. 1957.
diferentes regiões do país. Portanto, assinala a pre- 8
Idem, p.447.
sença simultânea de várias ordens e vários progres- 9
Idem, p.449.
sos. De certo modo, as teses que estão presentes em 10
Idem, p.525.
30 estão retomadas nos anos 50, a partir da idéia da 11
O tema é desenvolvido no livro de COUTINHO, Edilberto.
expansão do projeto nacional para as outras regiões 12
Foucault
do território que não aquelas que haviam figurado 13
FREYRE, Gilberto. Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo.

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235
1968, p.171.
14
Idem, pp.172-176.

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236
MESA-REDONDA 10
SOBRADOS E MUCAMBOS

Dia 24 de março
COORDENADOR:
Morvan Moreira
Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
A Atualidade do Pensamento Freyriano e
o Japão

Chiyoko Mita – c-mita@hoffman.cc.sophia.ac.jp


Antropóloga – Diretora do Centro de Estudos Luso-Brasileiros da
Universidade Sophia – Japão

Introdução Freyre e os problemas da sociedade japonesa


em meio à era da globalização.
A obra de Freyre é vista sob dois pontos
de vista antagônicos. Quer seja como um dos A importância e a atualidade da obra de
principais e mais importantes representantes Freyre
das ciências sociais no Brasil1, ou, no outro O ponto de vista básico para a compre-
extremo, os que consideram sua obra Casa- ensão da história da sociedade brasileira ex-
Grande & Senzala não como um estudo soci- pressa por Freyre, tanto em Casa-Grande &
ológico, mas como mera pornografia ou como Senzala quanto em Sobrados e Mucambos,
uma interpretação preconceituosa das rela- vem a ser que o sistema social é que determi-
ções raciais no Brasil.2 na os costumes e as atitudes de seus mem-
Pode-se dizer que uma das idelogias bros. Ou seja, ver-se os negros como repre-
que dominan o século XX foi o relativismo cul- sentantes da luxúria é conseqüência da atitude
tural. Tendo estudado sob a égide de um dos de superioridade resultante do sistema
pioneiros do relativismo cultural, Franz Boas, escravocrata, o qual possibilitava, assim, o
da Universidade de Chicago, Freyre veio a ser abuso racial das escravas negras. Conforme
o primeiro a interpretar a sociedade colonial abaixo:
brasileira segundo esse mesmo ponto de vis-
Nas condições econômicas e sociais fa-
ta, de misturas raciais.
voráveis ao masoquismo e ao sadismo cria-
Com as particularidades apontadas pela
das pela colonização portuguesa – coloni-
corrente do relativismo cultural, na atualida-
zação, a princípio, de homens quase sem
de, não sendo possível usá-la, somos chama-
mulher – e no sistema escravocrata de or-
dos a interessar-nos por uma nova ideologia,
ganização agrária do Brasil; na divisão da
a do pluralismo cultural ou do
sociedade em senhores todo-poderosos e
multiculturalismo. No entanto, absorvendo as
em escravos passivos é que se devem pro-
influências do seu meio histórico-sociológico
curar as causas principais do abuso de ne-
e refletindo-os nos seus modos e costumes, a
gros por brancos, através de formas sadistas
visão de Freyre e como se constroem cada
de amor que tanto se acentuaram entre nós;
aspecto do seu caráter, servem em grande
e em geral atribuídas à luxúria africana. [sic.]
parte como meio de abordagem dos atuais
Por "abraçar e beijar" – eufemismo que
problemas de preconceito racial ou de segre-
indica várias formas de priapismo – foram
gação feminina.
degredados de Portugal para o Brasil nume-
Neste texto, tomando-se por base as
rosos indivíduos; e a esse elemento branco
obras-primas de Freyre euquanto antropólo-
e não à colonização negra deve-se atribuir
go vinculado ao relativismo cultural, ou seja,
muito da lubricidade brasileira. Um elemen-
Casa- Grande & Senzala, e Sobrados e
to de colonização porutuguesa do Brasil,
Mucambos, procura-se reavaliar-se essa visão
aparentemente puro, mas na verdade
dentro do contexto atual, introduzindo-se a
corruptor, foram os meninos órfãos trazi-
situação presente dos estudos freyrianos no
dos pelos jesuítas para seus colégios. Infor-
Japão e avaliar-se porque essas mesmas obras
ma Monteiro que nos "livros de nefando são
que atingiram renome internacional não che-
citados com relativa frequência". 3
garam ainda a ser devidamente introduzidas
e apreciadas. Por fim, vistos esses aspectos, Da mesma forma e como resultado do
reflete-se sobre uma possível conexão entre mesmo sistema de controle exercido sobre as

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239
mucamas e/ou os moleques é que se pode interpre- de uma acepção superior do sexo masculino, fazen-
tar a forma imperativa da fala das senhoras brancas do a deformação física da mulher, conforme abaixo:
na sociedade brasileira no tempo de Freyre, por cau-
Essa especialização e esse culto têm-se feito
sa de que o mundo social colonial era muito peque-
acompanhar nas sociedades patriarcais e
no para a mulher, a qual tinha pouco contato fora da
semipatriarcais, de diferenças nas modas de pente-
família e dos escravos. Isso pode ler-se abaixo:
ado, de calçado e de vestido entre o sexo dominan-
... Sobre a criança do sexo feminino, principal- te e o oprimido, que até em deformação do físico
mente, se aguçava o sadismo, pela maior fixidez e da mulher se extremaram às vezes. Basta recordar
monotonia nas relações da senhora com a escrava, os pés das chinesas, deformados ao último ponto.
sendo até para admirar, escrevia o mesmo Koster [sic.] A cintura da mulher que em época bem próxi-
em princícpios do século XIX, "encontrarem-se tan- ma da nossa – na segunda metade do século XIX –
tas senhoras excelentes, quando tão pouco seria até na Europa já burguesa conservou-se extrema-
de surpreender que o caráter de muitas se ressen- mente artificial, entre nós se deformou
tisse da desgraçada direção que lhes dão na infân- exageradamente pelo uso do estpartilho. 5
cia". Sem contatos com o mundo que modificas-
Portanto, o costume chinês de deformar os pés
sem nelas, como nos rapazes, o senso pervertido
femininos não é a prova do atraso sociocultural em
de relações humanas; sem outra perspectiva que a
comparação com a sociedade européia. É incrível,
da senzala vista da varanda da casa-grande, con-
hoje, notar que Freyre já percebera ao escrever So-
servavam muitas vezes as senhoras o mesmo do-
brados e Mucambos que não há sociedades nem mais
mínio malvado sobre as mucamas que na infância
atrasadas nem mais avançadas culturalmente. Esta
sobre as negrinhas suas companheiras de brinque-
mesma visão é comprovada hoje tanto por mim mes-
do. "Nascem, criam-se e continuam a viver rodeadas
ma como pelo antropólogo americano, da corrente
de escravos, sem experimentarem a mais ligeira
do relativismo cultural, Philip K. Bock em seu livro
contrariedade, concebendo exaltada opinião de sua
Modern Cultural Anthropology – An Introduction, de
superioridade sobre as outras criaturas humanas, e
1974. Neste seu livro, Bock, ao analisar as várias for-
nunca imaginando que possam estar em erro", es-
mas que os indivíduos passam na sociedade para se-
creveu Koster das senhoras brasileiras. Além disso,
rem aceitos como seus membros efetivos, ou seja,
aborrecendo-se facilmente. Falando alto. Gritan-
enculturação, toma como exemplo a cerimônia de
do de vez em quando. Fletcher e Kidder, que esti-
passagem para a fase adulta. 6
veram no Brasil no meado do século XIX, atribuem
Bock introduz exemplos dessas cerimônias em
a fala estridente e desagradável das brasileiras ao
várias "sociedades primitivas", como a dos masai. Na
hábito de falarem sempre aos gritos, dando ordens
conclusão dessa sua análise, apresenta com detalhes
às escravas.4
e segundo a visão etnográfica a cerimônia de passa-
Ressaltamos a coragem e a originalidade da obra gem à fase adulta na etnia "nacirema" 7 (Talvez, no caso
de Freyre ao expor positivamente a miscigenação so- de português pode se chamar de "onacirema"). Esta
cial no Brasil numa época em que se via a ofensiva etnia "nacirema" vem a ser os norte-americanos, onde
das concepções étnicas nazistas na Europa. Assim é a cerimônia de formatura, com todo o seu aparato e
que, com o fim da Guerra, a obra de Freyre e a socie- programa, não apresenta grande diferença das ceri-
dade brasileira passaram a chamar a atenção na Eu- mônias de passagem à fase adulta das "sociedades
ropa, tomando como fonte de inspiração a relação primitivas". Isto é o que se pode depreender desta
racial brasileira para superar o racismo nazista. leitura. Do ponto de vista do relativismo cultural, as
A atualidade do pensamento freyriano pode funções sociais da cerimônia de passagem à fase adulta
também ser vista na forma como se refere, dentro da não são distintas nem nas "sociedades primitivas" nem
perspectiva do relativismo cultural, tornando seme- na atual sociedade norte-americana. Já é possível per-
lhantes as funções sociais dos costumes chineses e ceber-se este ponto de vista do relativismo cultural,
europeus nas sociedades patriarcais e semipatriarcais. que tornou-se a base da apreensão das diferentes
Tomamos por exemplo a concepção comum entre as culturas no século XX, em Casa-Grande & Senzala e
duas culturas (chinesa e européia) no século XIX e Sobrados e Mucambos, escritos na década de 30.
começo do século XX de criar-se um sexo feminino Ainda ressaltamos a interpretação dada por
fraco – no caso europeu com o espartilho; no caso Freyre à influência do patriarcalismo sobre a vida dos
chinês, com o uso de faixas muito apertadas e de sa- indivíduos na sociedade brasileira. A importância da
patos menores que os próprios pés para deformá-los virilidade masculina levando ao aparecimento e à ge-
até o último ponto – apenas para servir à construção ração de grande número de filhos naturais. A fraque-

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240
za feminina criando uma imagem ideal de mulher mem sobre a mulher." 9
obediente, mas que acabou por gerar também situa- É essa mesma a forma como devemos compre-
ções de ciúme e crueldade, por vezes, exacerbados ender a posição da mulher na sociedade, decidida
conforme abaixo: pelas circunstâncias do seu sexo e não do seu gênero.
Quanto à maior crueldade das senhoras que dos O pensamento freyriano no Japão
senhores no taratamento dos escravos é fato geral-
Embora no mundo ocidental a obra Casa-Gran-
mente observado nas sociedades escravocratas. [sic.]
de & Senzala seja aclamada e reconhecida como obra
Os viajantes, o folclore, a tradição oral. Não são
básica para se entender e conhecer a sociedade bra-
dois nem três, porém muitos os casos de crueldade
sileira, essa não é, infelizmente, a situação no Japão.
de senhoras de engenho contra escravos inermes.
A obra New World in the Tropics foi traduzida
Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de
para o japonês, duas vezes por diferentes tradutores,
mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido,
respectivamente em 1961 e 1979(10).
à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce
No que concerne a trabalhos específicos sobre
e boiando em sangue ainda fresco. [sic.] Outras que
Freyre e a sua obra, segundo pesquisa que realizamos
espatifavam a salto de botina detaduras de escra-
com vistas a esta conferência na base de dados da
vas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar
Biblioteca Nacional da Dieta do Japão, foram até este
as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma
momento publicados cinco artigos sobre Freyre pro-
série de judiarias. 8
priamente e um artigo sobre a democracia racial, no
Enfraquecidas pelo patriarcalismo restou às qual se reporta muito a Freyre. São esses artigos, res-
mulheres da sociedade colonial, como único recurso pectivamente:
para afirmar-se na sociedade predominantemente 1) "Considerações sobre a formação cultural
masculina, esta forma de crueldade. Essa interpreta- segundo Gilberto Freyre: ressaltando o grau de con-
ção condiz com a visão atual dos estudos de "gênero". tribuição de Freyre para a pesquisa cultural luso-afro-
Dessa forma, Freyre pôs por terra a visão de que a brasileira",de autoria do Prof. Jorge Dias, da Universi-
promiscuidade brasileira tinha origem na colonização dade de Estudos Estrangeiros de Kyoto, em 1982 (o
portuguesa, sendo na verdade, uma conseqüência, ao original é em português).11
mesmo tempo, do patriarcalismo e do sistema 2) "A situação atual das relações raciais no Bra-
escravocrata. sil: o aparecimento da crítica sobre a democracia ra-
Vale ressaltar também que Freyre contribuiu cial", de autoria do Prof. Fumio Nakagawa, da Uni-
para ultrapassar-se o preconceito racial e, assim, para versidade Internacional de Josai, em 1986. 12
ultrapassar o preconceito contra as minorias sociais 3) "Cultura luso-brasileira nos trópicos: memó-
(feminina e de grupos étnicos). Aí está outro ponto da rias sobre Gilberto Freyre na ocasião do seu
sua atualidade, apesar de ter escrito há mais de ses- passamento", de minha autoria, em 1988. 13
senta e cinco anos atrás: como os indivíduos têm que 4) "A concepção de 'Civilização Portuguesa' se-
proceder para viver numa sociedade global. Quando gundo Gilberto Freyre", de autoria do Prof. Shigeru
se fala hoje em globalização, em multiculturalismo, Suzuki, da Universidade de Estudos Estrangeiros de
em aceitar-se uma sociedade híbrida, é-nos impossí- Tóquio, em 1992. 14
vel esquecer que Freyre já tenha pensado nisso bem 5) "A essência da sociedade brasileira: investi-
antes. gação comparada entre as teorias de Gilberto Freyre
Por fim, dentro de meus estudos sobre gênero, e Sérgio Buarque de Holanda", de autoria do Prof.
procuro ter Freyre como referência na forma de como Tsuneaki Nakazono, da Universidade Waseda, em
tornar-se livre dos parâmetros impostos, pelo sistema 1995. 15
social e pelas relações mútuas entre personalidades, 6) "Gilberto Freyre e luso-tropicalismo – Os pen-
a ambos os gêneros, feminino e masculino, sugestões sadores e pensamentos que transpassaram oceanos",
essas que podem ainda ser apreendidas de algumas de autoria de Abel Lopes Larbac (pseudômino de um
passagens do seu Sobrados e Mucambos. estudioso), em 1999. 16
Como, por exemplo, no início e seguindo pelo À parte esses trabalhos, é preciso ressaltar o fato
capítulo IV, intitulado própriamente A Mulher e o de Freyre ser sempre comentado, mesmo que de leve,
Homem, podem-se encontrar as seguintes palavras: em vários trabalhos em que se analisa quer seja a cul-
"O mesmo critério histórico-cultural pode ser aplica- tura, quer seja a sociedade brasileira, além de estar
do, como pretendem vários estudiosos da sociologia incluído como item em seis dicionários enciclopédi-
dos sexos – que convém não confundir com a genéti- cos publicados no Japão. 17
ca! – ao estudo da pretendida superioridade do ho- Pode-se apresentar como duas as causas para

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241
Freyre não ter sido ainda propriamente divulgado no soais. Acreditamos que com esta maneira de apreen-
Japão, a saber: der as obras freyrianas sobre a sociedade híbrida ou
1) Excluindo-se as relações econômicas e de seja, com variedade seja possível absorver-se algo que
imigração, do ponto de vista sociopolítico e histórico- contribua para uma melhor compreensão da nova
cultural, o Brasil e o Japão ainda continuam a ser rea- sociedade japonesa que se volta para a era da
lidades distantes. Além do que, mesmo quanto a es- globalização e para o século XXI também.
tes aspectos, o centro das relações entre ambos os
países se concentra em São Paulo e no Sul do Brasil, _______________________
realidades estas bem distintas das apresentadas por
Notas
Freyre em suas obras.
2) A diferença de formação social entre os dois
1
Segundo Fernand Braudel, historiador francês, Freyre é o mais
importante sociólogo do século XX. (Braudel, F, "Através de un con-
países não contribuiu para criar um maior interesse tinente de historia: Brasil y la obra de Gilberto Freyre", Revista Me-
no Japão acerca da sociedade brasileira. No caso bra- xicana de Sociologia, vol. 61, núm.2, abril-junio, 1999, p. 167).
sileiro, a sociedade foi se formando através das várias 2
Leite, Dante Moreira, O caráter nacional brasileiro: História de
correntes migratórias e das mais diferentes etnias ao uma ideologia, 3a.ed., São Paulo, Editora Brasiliense, 1986, p. 46,
longo do tempo, criando uma sociedade rica em vari- Bastos, Elide Rugai, "Gilberto Freyre e a questão nacional," Inteli-
gência Brasileira, São Paulo, Editora Brasiliense, 1986, p. 46
edades e especificidades étnico-culturais de seus ci- 3
Casa-Grande & Senzala, 19ª edição, Rio de Janeiro, José
dadãos. No caso japonês, por sua vez, estabeleceu- Olympio,1978, pp. 321 e 322.
se, em grande parte, a existência de uma sociedade 4
Ibid. p. 337.
de etnia única. Na verdade, mesmo sem precisar re- 5
Sobrados e Mucambos (2vols. 6ª edição, Rio de Janeiro, José
correr a um passado longínqüo, trata-se de uma soci- Olympio, 1981, vol. 1, p. 98.
edade que compreende também cidadãos de origem
6
Philip K. Bock, Moden Cultural Anthropology – an Introduction,
New York, Alfred A. Knopf, Inc., 1974, p.180-193 ( vol.1, edição
cultural diversa da predominante (como é o caso dos
japonêsa).
coreanos, chineses, okinawenses e ainus), diversida- 7
Ibid. p.193 (vol.4).
de esta que ao longo do tempo não foi aceita pela 8
Casa-Grande & Senzala, p. 337.
sociedade japonesa como um todo. Recentemente, 9
Sobrados e Mucambos, volume 1, p.106.
sobretudo com o Ano Internacional dos Povos Indí- 10
Nettai no Shinsekai – Genndai Burajiru Bunkaron, M.Yamashita
genas, essa idéia preconcebida vem se modificando, (trad.), Tokyo, Nourin-Suisangyou Seisansei Koujou Kaigi, 1961.
mas ainda se conserva como a predominante. Isso se Nettai no Shinsekai – Burajiru Bunkaron no Hakken, M. Matsumoto
(trad.), Tokyo, Shin-Sekaisha, 1979.
deve em grande parte a que, considerando-se o perí- 11
Dias, Jorge, "Gilberto Freyre no Bunka-Keisei nikansuru Ichi
odo histórico, a maioria dos estrangeiros que chega- Kousatu", Cósmica, no. 12, pp. 85-101.
ram ao Japão foram asiáticos, o que não contribuiu 12
Nakagawa, Fumio,"Burajiru niokeru Jinshu Kankei – Jinshu
para uma variedade fenotípica (como no caso brasi- Democracy Hihan Taitou-ka deno Genkyou", Asia Keizai, vol. 27,no.
leiro) da sociedade japonesa. 6, pp. 2-25.
Assim sendo, excluindo-se alguns poucos pes-
13
Mita, Chiyoko, "Nettai no Luso-Burajiru Bunnka – Kaisou no Gil-
berto Freyre", Sophia, vol. 37,no. 2,pp. 187-198.
quisadores sobre o Brasil (mesmo dentre os pesquisa- 14
Suzuki, Shigeru, "Gilberto Freyre no 'Porutogaru Bunkaken' Kousou
dores sobre a América Latina), a importância da obra – 'Luso-Tropicalismo' Saikou", Rekishi Hyouron, no. 501, pp. 19-36.
de Freyre como estudioso do relativismo cultural é 15
Nakazono, Tsuneaki, "Burajiru Sahakai no Honshitu – Gilberto
ainda pouco reconhecida. Freyre to S. B. de Holanda no Riron no Hikakukentou," Waseda
Daigakuin Bungaku-Kenkyuka Kiyou, no. 41, pp. 121-131.
Considerações finais 16
Larbac, A. L., "Gilberto Freyre to Luso-Tropicalismo – Umi wo
Koeta Shisouka to Shisou" Ishizuka, M. (org.), Umigoe no Shisouka-
A visão avançada de Freyre, para a sua época, tachi, Tokyo, Shakai-hyouron-sha, 1999, pp. 163-174.
de analisar-se a forma como os colonizadores, os bra- 17
Sekai Denki Dai-Jiten (Grande Enciclopédia Biográfica Mundial),
sileiros nativos (índios) e os escravos negros ao se Vol. 9, Tokyo, Horupu-Shuppan, 1981, pp. 215-216.
miscigenarem levaram à formação de sociedade hí- Dai-Hyakka-Jiten (Grande Enciclopédia), Vol. 13, Tokyo, Heihon-
brida, deve ser apreendida e refletida por nós japo- sha, 1985, p. 236.
Sekai-Dai-Htkka-Jiten (Grande Enciclopédia Mundial), Vol. 25,
neses, no momento em que, do ponto de vista Tokyo, Heibon-sha, 1988, p. 236.
sociocultural na era da globalização, é chegado o mo- 20 seiki Seiyou Jinmei-Jiten (Dicionário Biográfico Ocidental do Séc.
mento de repensar-se a sociedade japonesa. XX), Vol. 2, Tokyo, Nichigai-Associate, 1995, p. 1487.
Além disso, através das interpretações freyrianas Kabayama, K, e outros (orgs.), Jinbutu 20 seiki (Século XX pelas Pes-
sobre as relações das pessoas na sociedade patriarcal soas), Tokyo, Koudan-sha, 1998, p. 926.
rural ou seja, urbana podemos saber que o meio am- Oonuki, Y. e outros (orgs.), Raten-Amerika wo shiru Jiten (Enciclo-
pédia para conhecer America Latina), Edição aumentada, Tokyo,
biente e os sistemas sociais são os fatores importantes Heibon-sha, 1999, p. 356.
para determinar os comportamentos e atitudes pes-

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242
A Desordem Urbana e os Antagonismos e
Acomodações entre Sobrados e Mucambos

Alba Zaluar – alba@uerj.br


Antropóloga – Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro – Brasil

Muitas são as leituras possíveis desse li- Gilberto deu valor às relações íntimas, duais,
vro. A minha é parcial, como todas, e uma aos sentimentos, aos contatos físicos e aos pe-
entre tantas possíveis. Mas procurei manter quenos gestos. Mais ainda, falou de assuntos
uma lealdade ao texto que me parece impres- que não faziam parte ainda do repertório so-
cindível, embora tenha extraído dele o que ciológico. Contudo, não o fez em benefício
encontrei de mais importante para entender da construção de um discurso teórico, como
os temas que hoje estudo no mesmo país em Simmel, mas sim em prol do entendimen-
amado por Gilberto Freyre, sem patriotadas to ou da interpretação de uma sociedade con-
nem ufanismos. A crítica que nele encontrei à creta – a brasileira – documentando muito
formação social do Brasil foi ácida e profun- bem as etnografias que dela fez. Antes de
da. Norbert Elias, outro autor alemão que se in-
O que mais me impressionou na leitura teressou pelos dados desconsiderados como
refeita de Sobrados e Mucambos foi a sua atu- superficiais ou fúteis, e que publicou seu livro
alidade, decorridos sessenta e quatro anos O Processo Civilizatório em 1939, em alemão,
desde a sua primeira publicação. Primeiro, um Gilberto Freyre publicou Casa-Grande & Sen-
regozijo. A obra de Gilberto Freyre, brasileiro zala em 1933, mas já em 1922 concluíra em
de Pernambuco, é tão inovadora que não inglês Social Life in Brasil in the middle of the
pode deixar de ser considerada precursora do 19th Century.
que hoje se apresenta como hegemônico na De fato, os dados etnográficos que re-
Sociologia e na História Social contemporâ- colhe são, sem favor nenhum, revolucionári-
neas: o estudo do cotidiano, com os materiais os. A alimentação e a comida, a maneira de
que nem sempre foram considerados os mais comer e de receber, o arranjo interno das ca-
adequados para deslindar as estruturas e as sas, a arquitetura, a sexualidade, as doenças,
tramas das sociedades estudadas. Segundo, a higiene, o vestuário etc. vão fornecer-lhe os
um grande desapontamento realista. O Brasil instrumentos para pensar os antagonismos e
dos séculos XVIII e XIX apresentava os mes- acomodações, os conflitos e submissões, que,
mos problemas urbanos, econômicos, sociais no mais das vezes, longe de serem abertos,
e políticos com os quais nos debatemos hoje. são sutis, subliminares, representados em dan-
Já então, há sessenta e quatro anos atrás eles ças, vestes, dizeres, hábitos alimentares, rela-
eram descritos e desvendados por Gilberto ções sexuais, casamentos, meios de transpor-
Freyre nos sobrados e mucambos, nas ruas das te, habitações, permanência na rua. Suas
cidades do Recife, Salvador e Rio de Janeiro, fontes são igualmente diversificadas e amplas:
as maiores de então. E justiça seja feita, as crí- livros das câmaras municipais, onde eram
ticas postas por sociólogos paulistas à obra de registrados os crimes e conflitos, os jornais da
Gilberto Freyre pela sua suposta época, os artigos e anúncios, nunca antes uti-
desconsideração com a dinâmica das classes lizados, desenhos, cartas de jesuítas, cartas de
sociais não se aplica a Sobrados e Mucambos, militares, cartas de ilustres nomes, cartas de
por alguns considerado o seu melhor livro. pessoas comuns, biografias, anais de socieda-
Na metodologia, apropriou-se parcial- des médicas e livros dos mais variados auto-
mente da melhor tradição do sociólogo ale- res sobre os mais variados assuntos referentes
mão Simmel, por sua vez mestre de Franz à vida nas cidades e à relação delas com as
Boas, com quem Gilberto estudou nos Esta- propriedades rurais.
dos Unidos. Muito embora sem negar a ima- Sua perspectiva teórica apontada ora
gem negativa que aquele tinha das cidades, como eclética, ora como múltipla, na verda-

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243
de baseia-se na busca das linhas de conflito e dos la- to nos alerta desde o início que a acomodação e a
ços de entrecruzamento, que ele denomina acomo- submissão de uma raça à outra, de uma classe à ou-
dação, entre categorias sociais diversas, que incluíam tra, de várias culturas a uma só nunca foi idílica nem
as classes sociais, mas não e reduziam a elas. Destarte, completa. Com a urbanização, o aparecimento nas
isso nada mais é do que uma recusa a um grande, cidades de sobrados e mucambos correspondeu a uma
único e totalizador discurso teórico, baseado num ou sociedade ainda mais cheia de tensões e conflitos por
noutro mecanismo social. Hoje, no final do século XX, que mais diversificada. O sistema casa-grande e sen-
saudamos tal postura como pós-moderna. Gilberto, zala teria se fragmentado ao meio, mas também em
já nas primeiras décadas do século não hesita em ca- muitos pedaços. O equilíbrio entre os brancos dos
racterizar a cultura brasileira, cujos processos de for- sobrados e os pretos, caboclos e pardos dos mucambos
mação reconstituía, como híbrida, sincrética, mistu- não seria o mesmo que entre os brancos da casa-gran-
rada. Hoje, sociólogos americanos e europeus de e os pretos das senzalas.
colocam na sua pauta de discussões o hibridismo cul- Em alguns momentos, chega mesmo a dizer que
tural e o sincretismo religioso. Tardiamente, por cau- surgiram então duas metades antagônicas ou indife-
sa da imigração recente de latinos, negros e asiáticos rentes uma a outra (e não existe maior afastamento
aos seus países de origem, tais conceitos surgem na social do que a indiferença), em que os mucambos
interpretação das novas manifestações culturais que teriam perdido a proteção e o amparo dos sobrados,
aí se formam, como se hibridismo e sincretismo fosse o que significa dizer a quebra de qualquer laço social
referência apenas a uma mistura problemática. Tardi- entre eles. Seria esse o início das cidades partidas bra-
amente também porque tomam uma cultura original sileiras, nosso destino para alguns? Se fosse essa a in-
como se fosse pura, apagando os efeitos de intensas terpretação correta, faz sentido o que se propõe hoje
trocas mercantis, políticas e culturais que movimen- como saída para a questão social, baseada na carida-
tou os povos europeus, africanos e asiáticos desde de, uma tentativa de recuperar o paternalismo. Mas
milênios antes da era cristã, nem tampouco as inva- essa não me parece ser a interpretação mais leal ao
sões, migrações em massa e colonizações das quais que escreveu Gilberto nesse livro sobre os sobrados e
resultaram muitas formas de intercâmbio cultural e mucambos, no qual visualizava o esfacelamento do
racial. Enfim, negam o que Gilberto Freyre jamais ne- patriarcalismo predominante e incontestável no siste-
gou, como discípulo de Franz Boas e como todos os ma anterior. De fato, para ele, as acomodações não
antropólogos anti-racistas que afirmaram sempre não teriam desaparecido, mas se tornado muito mais di-
existir raça pura, nem cultura que não seja híbrida de ferenciadas e extensas, portanto mais precárias, en-
alguma forma. Para sorte nossa, Gilberto fez dessa afir- volvendo vários novos personagens urbanos. A misci-
mação da mistura, desse reconhecimento da miscige- genação continuara e maiores oportunidades de
nação, a nossa marca cultural, que iria nos distinguir ascensão social surgiram para aqueles dotados de ap-
principalmente dos Estados Unidos da América e ou- tidões artísticas ou apelo sexual, apagando as frontei-
tros países de colonização anglo-saxã. ras nítidas iniciais da formação brasileira que opunha
Na reconstituição dos processos culturais que senhor a escravo. O senhor patriarcal tivera também
vão gerar a formação social brasileira, ele trabalha, que dividir o seu poder e a sua influência sobre as
simultaneamente com os processos de distanciamento mulheres, os filhos, os parentes, os agregados e os
e aproximação, ruptura e união. A classe, a raça, a escravos com várias outras figuras: o médico, o juiz,
cultura estão segmentadas por outras vetores sociais: os comerciantes, os advogados, os padres, os profes-
o gênero, a idade, a família. A classe, a raça e a cultu- sores e até os atores de teatro. A rua estabelecia o seu
ra, que se diferenciam no distanciamento e no con- confronto com a casa, antes inexistente. Meninos e
fronto, vão perdendo seus contornos nítidos e suas mulheres começaram pouco a pouco a freqüentá-la,
separações pelos muitos contatos advindos daquilo marcando outra brecha no poder patriarcal. Ele resu-
que Marcel Mauss chamou de circuitos da reciproci- me:
dade, também eles carregados de ambivalências e ten- "Mas mesmo desprestigiada pela rua e diminuí-
sões que lhes trazem dinâmica e criatividade. Nessas da nas funções patriarcais…; diminuída pela matriz,
trocas duais, tão intensas entre a casa-grande e a sen- pela catedral, pela fábrica, pelo colégio, pelo hotel,
zala (sempre mencionados no singular), perdem os pelo laboratório, pela botica – a casa do século XIX
sobrados e mucambos (referidos no plural), abrindo continuou a influir, como nenhuma dessas forças so-
brechas naquele sistema dual, gerando múltiplas di- bre a formação social do brasileiro da cidade… E a
versificações e conflitos antes inexistentes. rua, a praça, a festa da igreja, o mercado, a escola, o
Aprofundemos esses temas. Embora mantenha carnaval, todas essas facilidades de comunicação en-
o centro de suas atenções ainda sobre a casa, Gilber- tre as classes e de cruzamento entre as raças foram

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244
atenuando os antagonismos de classe e de raça e for- operário, talvez escravo (os eternos suspeitos, os que
mando uma média, um meio termo, uma são processados, n.a.) ou por sovinice do proprietário
contemporização mestiçamente brasileira de estilos de (que desejava seus prédios construídos com o menor
vida, de padrões de cultura e de expressão física e psi- gasto possível, devendo-se ter na lembrança o fato de
cológica de povo". 1 que grande parte do capital empregado em sobrados
Ganha a cidade, portanto, novos circuitos de urbanos no Brasil foi o de capitalistas impossibilitados
reciprocidade, muito mais amplos, nos quais a troca e de continuarem a negociar com a importação legítima
a mistura se refazem: a rua cada vez mais freqüenta- ou clandestina de africanos); ou ainda, por
da pelos filhos da casa, que deixam de ser muleques desonestidade do fornecedor de material, que vendia
por isso, e pelas mulheres, apesar de toda a inferiori- às vezes pelo preço da telha ou do tijolo de primeira,
dade a ela atribuída, maior que a da raça. 2 As festas e o de segunda ou de terceira. …material, o pior possí-
sobretudo o carnaval mantêm sua face pública, "gros- vel: tijolo mal fabricado, argamassa de areia de água
seira" e popular, enquanto vai se tornando mais fino e salgada; … operários de terceira ordem ou simples
elegante nos bailes dos sobrados e dos teatros, onde escravos (que os de primeira e livres só trabalhavam
todos de algum modo "desobstruíam" seu psiquismo por salários que os ricaços achavam exagerados)”.4
das obrigações rotineiras e do "europeísmo artificial
E para concluir:
ou postiço". 3 "Na sociedade patriarcal brasileira, cheia
de repressões, abafos, opressões", diz ele, o carnaval "A fiscalização do governo, nula."
agiu como (a confissão) um meio de delas livrarem
O item falcatruas e negociatas percorre todo o
homens, mulheres, meninos, escravos, negros evitan-
livro, aliás. Vai desde as brilhantes páginas sobre os
do que estes vivessem recalcados, ressentidos, fóbicos.
atravessadores e monopolizadores da distribuição aos
Gilberto, sem empregar a linguagem de Marcel Mauss,
habitantes urbanos dos víveres, também muito caros,
que talvez não conhecesse, descreve um fato social
até os hábitos nada nobres de roubar escravos, mer-
total. A acomodação ganha novos significados e mui-
cadorias, terras etc. praticados pelos que portavam
tas possibilidades de rupturas.
sobrenomes aristocráticos. A casa-grande aparece
De fato, muito embora o tema da acomodação
então em novo enredo e com novos disfarces. Senho-
predominante em Casa-Grande & Senzala continue
res de engenhos esmagados por dívidas e hipotecas
assombrando os sobrados e mucambos, os conflitos e
poderiam optar por diversos caminhos. Apoiar-se nos
antagonismos superam-no. Para nos determos naquele
parentes deputados, ministros funcionários públicos,
que os críticos de Gilberto não conseguiram encon-
o que o faz repetir a frase de Joaquim Nabuco que
trar na sua obra – o que opõem classes sociais – são
diz ter sido o Estado o "grande asilo das fortunas des-
abundantes as informações sobre o papel que
baratadas da escravidão". Decair e empobrecer ainda
atravessadores e monopolizadores tinham no abaste-
mais por se deixar enganar por comerciantes e co-
cimento de víveres da cidade, sobre os altos preços
missários desonestos, negocistas e caloteiros da cida-
desde logo adquiridos pela moradia, por causa da
de, considerados os principais mistificadores, muitos
concentração do capital ou dos empréstimos gover-
identificados como judeus, mas não os únicos. Pois
namentais nas mãos de poucos e nada honestos cons-
outros senhores de ilustres famílias evitaram a ruína
trutores. Lendo-o hoje parece que estamos diante do
porque foram eles próprios os caloteiros, roubando
roteiro de um filme de terror – "A maldição do mate-
no açúcar e no café, falsificando o açúcar ao misturá-
rial de terceira" – que resultou no desmoronamento
lo com cal e farinha de mandioca. 5 Estava inventado
dos prédios construídos no Rio de Janeiro pela em-
desde então o hábito de malhar a droga para aumen-
presa do mineiro Sérgio Naya. Neste episódio, conse-
tar os lucros, tão usado hoje numa outra mercadoria
guiu-se juntar todas as falcatruas mencionadas por Gil-
branca.
berto como usuais nos séculos XVIII e XIX nas maiores
Do mesmo modo, o roubo organizado de es-
cidades brasileiras de então. No caso dos edifícios
cravos serve para Gilberto afirmar que a polícia e a
Palace I e II, os materiais de construção utilizados não
justiça locais ainda estavam "dominadas pelos interes-
são nada criativos. E as atitudes dos construtores são
ses agrários", especialmente nas províncias. Enquanto
as de sempre: a falta de responsabilidade, espírito
no Rio de Janeiro os ladrões de escravos eram severa-
público e controle estatal que infestam a economia
mente perseguidos pela polícia, nas províncias "pare-
do País ainda na entrada do terceiro milênio. Para
ce que esses ladrões nunca eram encontrados". Expli-
explicar o excesso de umidade e a fragilidade das pa-
cando melhor: mesmo quando os nomes de fidalgos
redes de sobrados, diz ele:
e famílias importantes eram citados entre os indigitados
"O que sucedia era a má fabricação da pasta… nos livros das Câmaras Municipais ou nos jornais da
ou por imperícia técnica do mestre de obras ou do época, como contrabandistas, fraudadores ou falsifi-

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245
cadores de dinheiro, mas principalmente no contra- ticular. O furto de autos e o uso privado dos cartórios
bando e roubo de escravos, nada se investigava e nin- para legalizar a propriedade urbana teriam feito com
guém era preso. O tráfico ilegal de mercadorias é, que os "grandes sítios " se esparramassem "pelas
portanto, secular no Brasil. E a polícia já então havia sesmarias da cidade, encarecendo o terreno, obrigan-
feito, desde então, sua opção preferencial pelos po- do as casas menores a se ensardinharem ao pé dos
bres, acompanhada pela justiça com a sua cegueira. morros e até nos mangues, subindo depois pelos mor-
Difícil falar de "banda podre" diante do quadro de ros"7.
podridão que ele apresenta na formação do Brasil, Relendo-o agora, chego à conclusão que: pri-
sua sociedade e suas instituições. Não está numa só meiro, a história das favelas precisa ser recontada, pois
instituição nem restrita às fronteiras de um estado ou não surgiram há cem anos num certo morro do Rio
região. Está em toda parte. Mas há os que denunci- de Janeiro. Segundo, que a história da desordem ur-
am, exigem reformas, alertam as consciências. Em bana também precisa ser refeita. A participação das
1846, um bravo padre Lopes Gama usa a imprensa grandes famílias agrárias e dos novos comerciantes e
para acusar ilustres famílias de Pernambuco em texto construtores da cidade foi desde o início muito mais
reproduzido por Gilberto: importante do que se notara. O crime negócio, é pre-
ciso dizer, não é invenção da economia globalizada e
"Que importa que o Barão da Boa Vista por uma
da volatilidade dos capitais nos seus mercados finan-
parte promovesse obras publicas, e desse impulso a
ceiros; ele já estava lá, desde o começo da cidade
teatros, e bailes, se por outra parte os contrabandos
brasileira, fosse ela cosmopolita ou não, europeizada
ferviam no norte e no sul; se as cédulas falsas introdu-
ou não. E as nossas vetutas instituições, a polícia e a
ziam-se escandalosamente na circulação, se as mes-
justiça, muito cedo mostraram seus pendores para
mas obras publicas eram uma mina para certos sujei-
imiscuir-se com tais negócios de fachada legal e ativi-
tos, se vários parentes do mesmo Barão roubaram e
dade ilegal.
matavam a torto e a direito, e os homicídios se haviam
Sem dúvida, Gilberto cometeu erros. Uma das
multiplicado a tal ponto que..." 6
afirmações mais comuns sobre as relações raciais no
Nas páginas seguintes, Gilberto discorre de Brasil é a de que os negros teriam sido privados ao
modo a contestar a idealização feita das grandes fa- longo da história de suas criações culturais como sinal
mílias rurais que, segundo ele, não tiveram na sua diacrítico da sua identidade, absorvidos que foram pela
maioria "a atuação sempre cavalheiresca sobre os des- identidade nacional, justamente aqueles apontados
tinos e a moral política do Império". Ele evitou, contu- por Gilberto como a grande contribuição das culturas
do, o erro trágico e de conseqüências políticas funes- africanas à brasileira. Por isso, dizem, os negros brasi-
tas que alguns sociólogos alemães cometeram ao leiros teriam ido buscar na música negra americana
idealizar o mundo agrário alemão e apresentar a ci- os símbolos da diferença que lhe teriam sido tomados
dade como o locus da imoralidade, da ausência de e que lhes permitiriam explicitar o conflito racial da-
regras, do colosso de cimento armado frio e indife- qui, encoberto com esse truque e com a falsa idéia da
rente. Pois afirma repetidas vezes que tampouco fo- democracia racial propalada por ele. Ora, este é jus-
ram puros e conservadoramente sensatos os senho- tamente um ponto de contraste com os Estados Uni-
res de engenho diante dos "homens sofisticados das dos não suficientemente ressaltado por Gilberto. Lá,
cidades – centros de usura e de falsificações de di- embora tivessem sido proibidos de batucar – uma sé-
nheiro e de gêneros alimentícios". Das cidades saíram rie de leis estaduais baniram o uso de qualquer forma
nossas maiores figuras de reformadores na adminis- de tambor pelos escravos após uma rebelião em 9 de
tração, na política, no planejamento da higiene e da setembro de 1739 – os negros inventaram um
saúde da população, que já sofria com a falta de pla- sapateado nos estados do Sul, de maior influência fran-
nejamento e controle na construção de moradia, na cesa e espanhola, sem que essa autoria africana tives-
distribuição de víveres e nos hábitos que poderiam se sido reconhecida. Os negros brasileiros, ao contrá-
resultar no respeito à limpeza dos logradouros públi- rio, apesar das proibições policiais no início do século,
cos. não sofreram esta perda por que nunca houve leis
Algumas outras figuras sagradas são tranqüila- que proibissem o exercício de suas manifestações
mente desmascaradas por Gilberto, como um famoso musicais ou de lazer. Muitas formas de ritmos africa-
padre Luiz de Albuquerque que teria se notabilizado nos, batuques e inúmeros instrumentos de percussão
por ter "tantas terras furtado para a religião", contra as foram incorporados nas manifestações musicais dos
posturas da cidade do Rio de Janeiro que visavam pro- negros, mulatos e até de alguns brancos nas festas re-
teger e fixar a importância e os direitos da rua, o pú- ligiosas e, é claro, no Carnaval. Na segunda metade
blico, contra os abusos e os privilégios da casa, o par- do século XIX, essa mistura se cristaliza em gêneros

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246
musicais novos, criados no Brasil. Surgiram, então, os mentos fora de prazo e fora das exigências
primeiros músicos populares e eruditos a fazer uma laboratoriais, o das drogas classificadas como
música que poder-se-ia chamar de brasileira, com psicoativas, o de armas, etc. – iriam provocar na vida
marcas únicas de gênero e estilo musical. política, social e econômica do País. Nem poderia ima-
Estranhamente, Gilberto omite essa importante con- ginar o quanto nossas instituições, especialmente a
quista da mistura européia, indígena e africana obti- polícia, viriam a ser afetadas por tais tráficos, tornan-
da nas poucas cidades brasileiras da época, em espe- do-as não apenas defensoras de alguns "interesses
cial no Rio de Janeiro. A nacionalização e a agrários", mas de muitos interesses de uma burguesia
profissionalização nos cafés, bares e teatros da boemia sem controle governamental, sem limites institucionais,
urbana, ocorridas na Segunda metade do século XIX, uma burguesia que criou a desordem urbana por prá-
e, posteriormente, a cristalização do samba enquan- ticas ilegais e dela se aproveitou para enriquecer mais
to gênero musical brasileiro no início do século XX, rápida e facilmente.
fez aparecer no cenário nacional a figura do músico e Muitos foram os que se inspiraram nele, mes-
artista popular, então associado ao malandro, que mo sem admiti-lo, vários os que o deturparam para
adquire aos poucos a capacidade de viver de sua pro- melhor criticá-lo. Mas todos nós, brasileiros, temos
dução e abre uma das mais importantes veredas de nesse livro um retrato cruel, porque real, das secula-
ascensão social do negro e do mulato até agora exis- res e atuais mazelas públicas e privadas, da rua e da
tentes no País. casa, mas sobretudo das instituições deste país. Ao
Contudo, isso não ocorreu apenas no Brasil, o mesmo tempo, sem negar esse retrato cruel, ele faz
que nos faz concluir que a mistura não é só nossa. A aflorar à nossa consciência o inequívoco investimen-
teoria sociológica de Gilberto Freyre tinha um alcan- to no prazer e na alegria, presentes em tantas cria-
ce mundial de que nem mesmo ele tinha idéia clara. ções culturais por ele descritas nesse e em outros li-
Com efeito, a história social do jazz , tal como vros, assim como a enorme criatividade advinda das
reconstituída por Eric Hobsbawn8, guarda notáveis si- misturas cultural e racial que deixaram de ser nega-
milaridades com a história do samba no Brasil. Se- das ou disfarçadas em grande medida pelo papel in-
gundo esse autor, o jazz também teria sido absorvido telectual que ele exerceu ao desvendá-las e assumi-
pela cultura oficial, assim como o music hall na Ingla- las como marca diferenciadora do Brasil.
terra, o cabaret na França e o flamenco na Espanha,
por uma combinação de democracia, transformação _______________________
nos meios de comunicação de massa e orgulho naci-
Notas
onal. Dessa forma, o jazz, tanto quanto o samba bra-
sileiro e as esculturas africanas, tornou-se produto
1
Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, Livraria José Olympio/
MEC, Rio de Janeiro, 5 a edição, 1977, pg. XLVI.
exótico de nobre selvagem para representar a dife- 2
Ibidem, ibidem, pg 127.
rença nacional entre os Estados Unidos e o mundo9. 3
Ibidem, ibidem pg. 110-112.
Simultaneamente, no final do século XIX, as manifes- 4
Ibidem, ibidem pg. 210.
tações de cultura popular que antecederam esses gê- 5
Ibidem, ibidem pg. 19-20.
neros musicais foram transferidas para cafés e teatros 6
Ibidem, ibidem pg 51.
onde iniciaram a sua profissionalização. Nessa 7
Ibidem, ibidem pg XLIV.
profissionalização, a simplicidade dos gêneros popu- 8
Esse livro foi inicialmente publicado, sob o pseudônimo de Francis
lares sofisticou-se com a mistura de elementos erudi- Newton, The Jazz Scene. Já está traduzido para o português – A
História Social do Jazz – com o nome verdadeiro do autor, Eric
tos de diferentes procedências, sem se deixar engolir Hobsbawn.
por estes. O mesmo aconteceu com o jazz, derivado 9
Ibidem, pg. 7.
do ragtime de ritmo sincopado mas acrescido de con- 10
Ibidem, pg. 37.
tribuições diversas, numa "mistura de elementos eu-
ropeus e africanos que se cristalizaram"10. Dos espa-
nhóis, os ritmos da habanera; dos espanhóis e
franceses, a tradição católica de profusos festivais pú-
blicos, carnavais, paradas e fraternidades em que sur-
giram as bandas com seus instrumentos de sopro (exa-
tamente como no samba); e dos anglo-saxões a música
religiosa e a língua.
Por fim, Gilberto não vaticinou o imenso estra-
go que outros tráficos ilegais – o de influências, o de
ouro e pedras preciosas, o de armas, o de medica-

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Revisitando o Mundo que o Português
Criou

Carlos Guilherme Mota


Sociólogo – Universidade de São Paulo – Brasil

Um paulistano em Apipucos tico-culturais de Pernambuco contra meu


nome, e, com isso criou-se essa "maldição" que
Desejo agradecer o convite formulado carrego com um sorriso, sobretudo quando
por Sônia e Fernando de Mello Freyre para algumas de minhas apreciações são estendi-
estar presente neste encontro em que se co- das a uma vaga "USP" que, por sua vez, seria
memora, em Pernambuco, o centenário de toda ela antigilbertiana… O que talvez não
nascimento de Gilberto Freyre, certamente o se saiba é que também tenho críticas a alguns
mais conhecido intérprete do Brasil no sécu- setores da universidade em que me criei e le-
lo XX. Sou grato também à professora Fátima cionei por muitos anos. Ao próprio conceito
Quintas, filha de meu dileto amigo e grande de universidade aí cultivado. Afinal, nos anos
historiador da Praieira e de 1817, o saudoso 40, quando as idéias por assim dizer liberais
professor Amaro Quintas, que sempre soube de Gilberto ecoavam no Brasil, nossa Facul-
cativar o coração dos estudantes paulistanos. dade de Filosofia era obrigada a engolir as te-
Vivo estivesse, mestre Amaro completaria 90 ses exóticas do interventor Alfredo Ellis Júnior
anos em 2001. Evocá-lo aqui, no centenário sobre os bandeirantes e "suas qualidades
de seu amigo, o sociólogo e escritor Gilberto rácicas"…
Freyre, constitui uma homenagem a ambos. Nada obstante, nunca neguei minhas
Em meus trabalhos universitários, em parti- posições antifreyrianas, que reiterei em vári-
cular em Nordeste 1817. Estudo das formas os escritos, entrevistas a canais de televisão e
de pensamento (Ed. Perspectiva, 1972), utili- jornais. Nem tampouco deixei de admirar o
zei alguns dos livros do sociólogo, sobretudo que de bom há em sua produção intelectual.
Sobrados e Mucambos e Nordeste, e as im- Como negar que Freyre foi um grande pes-
portantes obras sobre a insurreição nordesti- quisador e um notável escritor, um precursor
na de 1817, 1824 e 1848, do historiador e da hoje famosa História das Mentalidades,
professor. como tem demonstrado Peter Burke ? Como
Estou ciente de que minha presença negar que na USP, àquela altura, não havia
neste encontro é controversa, dada a polêmi- intelectual mais importante e interessante que
ca que se armou nos anos 70 e 80 em torno ele? E que sua obra, no contexto dos anos 30
de meu livro Ideologia da Cultura Brasileira. e 40, constituía um avanço, estando alinhada
Um livro francamente, e por variadas razões, com frentes e vanguardas da época? Afinal, a
antigilbertiano. O livro aliás não era sobre o própria esquerda norte-americana, em que se
sociólogo, mas sobre o poderoso e situava seu notável tradutor, Samuel Putnam,
desmobilizador sistema ideológico construído o valorizou extremamente. Putnam, tradutor
a partir de suas teses e de sua atuação após o também de Os Sertões, de Euclides da Cu-
golpe de Estado de 1964. Oposicionista da nha, para o inglês, personagem notável des-
ditadura, criticara eu em 1975 e 1977 não conhecido pela intelectualidade brasileira,
sómente a noção de cultura por ele veiculada que aguarda um pesquisador à altura.
– por ele e por outros intelectuais e políticos De todo modo, agradeço sensibilizado
do Conselho Federal de Cultura, por exem- o convite para aqui expor de viva voz tanto
plo –, mas sobretudo os usos que os sistemas minhas discordâncias como meu apreço, nesta
ditatoriais no Brasil e em Portugal fizeram des- espécie de glasnost à brasileira, portanto tar-
sa noção de "cultura", e alguns políticos da dia. E a oportunidade para reencontrar ami-
hora ainda fazem hoje. Com isso, formou-se gos pernambucanos, como Manuel Correia de
um certo clima hostil em alguns círculos polí- Andrade e Vamireh Chacon, ou

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"pernambucanos" por afinidade, como os professores Godinho, em Portugal, o inglês Perry Anderson, o
Steger e Portela, amigos todos eles com quem venho angolano Mario de Andrade sempre estiveram vigi-
dialogando e aprendendo ao longo da vida. É para lantes na crítica à essa visão paralisante de História –
mim um momento interessante também enquanto que abrigava uma auto-satisfeita consciência amena
pesquisador, fazer essa visita etnográfica ao universo de atraso, distanciando-nos da contemporaneidade
de Apipucos, a Sônia e Fernando, pensar in loco no da história mundial.1
significado e capacidade de penetração dessa pode- Também no Brasil a crítica desde muito cedo se
rosa ideologia cultural, com seus mitos, modos e ma- manifestou contra a interpretação freyriana, defenso-
nias, no lugar em que foi gerada a ideologia mais for- ra de uma suposta especificidade do Novo Mundo nos
te do século XX brasileiro. A casa de Gilberto, esse Trópicos. Se Casa-Grande & Senzala, a obra-mestra e
verdadeiro Lampedusa nordestino. Momento também impactante de Gilberto Freyre, aparece em 1933 com
para repensar meus notáveis revolucionários de 1817, ingredientes modernizantes, de vanguarda (neste País
os verdadeiros fundadores do Liberalismo no Brasil, atrasado chegou a provocar repúdio de setores mais
gente com quem "convivi" em meu livro Nordeste reacionários por dessacralizar os heróis da raça bran-
1817, o que mais gosto, e que me fez apreciar ainda ca gerados nos Institutos Históricos e Geográficos),
mais os brasileiros nordestinos. note-se que naquele mesmo ano também surgia, com
Ao trabalho, pois. Não vou fazer história, até menor repercussão embora, a crítica do historiador
porque é vasta a bibliografia sobre a figura de Freyre. Caio Prado Júnior (Evolução Política do Brasil e Ou-
Meus citados amigos já produziram obras importan- tros Estudos). O conjunto de suas obras, de Caio e
tes, que se alinham aos livros e estudos de mérito dos Freyre, representa o início do redescobrimento do
professores Élide Rugai Bastos, Ricardo Benzaquen e Brasil, em suas duas principais vertentes – a liberal-
Vila Nova. Mas creio que talvez possa oferecer alguns modernizante e a marxista –, como indiquei em meu
contrapontos e uma contextualização para outra apre- livro Ideologia da Cultura Brasileira. Nessa perspecti-
ciação do significado da obra freyriana para a forma- va, são eles os dois founding-fathers, constituindo as
ção do Brasil contemporâneo. duas vigasmestras do pensamento contemporâneo no
Brasil.
O mundo freyriano em face da crítica De Gilberto muito se escreveu, até porque seu
Minha observação preliminar refere-se ao fato livro inaugural polemizava, de saída, com uma certa
de que, no chamado mundo luso-afro-brasileiro, a direita, representada por Oliveira Vianna, e com a
ruptura mais profunda já ocorreu no plano cultural latu esquerda, representada por Astrojildo Pereira. Mais,
sensu. O "mundo que o português criou" gilbertiano desafiava as interpretações sobre o Brasil produzidos
ruiu nos anos 70, com a Revolução dos Cravos e as pela Igreja Católica e por academias e institutos ran-
independências das ex-colônias portuguesa. Como çosos, rompendo não somente com os valores mas
conseqüência, desestruturou-se essa equivocada con- com as periodizações correntes da historiografia. Já
cepção lusotropicalista de história. Ou seja, a visão Caio Prado, anunciava "um método relativamente
de uma suposta especificidade cordial e adaptativa novo" dado pela interpretação materialista da histó-
dos portuguêses aos trópicos, com suas peculiarida- ria. O historiador paulistano organizou as informações
des de miscigenadores democratizantes, do ponto de de maneira a não incidir e esgotar o enfoque "na su-
vista étnico. perfície dos acontecimentos – expedições sertanistas,
Vamos ao ponto: não pertencemos mais àque- entradas e bandeiras; substituições de governos e
la fabricação ideológica, ao mesmo "todo", ao menos governantes; invasões ou guerras". Para o historiador
àquele conjunto de instituições que mantiveram por paulistano, esses acontecimentos constituem apenas
longos séculos um dos mais pesados, abafantes e um reflexo (termo que parasitará muitas das explica-
desmobilizadores aparelhos burocráticos de toda a ções posteriores) exterior daquilo que se passa no ín-
História, de que o sistema colonial, o escravismo, o timo da História. Caio redefiniu a periodização cor-
corporativismo, a repressão ideológica da Contra-Re- rente, valorizando os movimentos sociais do século
forma e suas sutis remanescências de longue durée XIX como Cabanada, Sabinada e Praieira e demons-
foram componentes indissociados. trando que "os heróis e os grandes feitos não são he-
Nesta retomada crítica, vale revisitar toda uma róicos e grandes senão na medida em que acordam
linhagem de pensamento que, no Brasil, em Portugal com os interesses das classes dirigentes em cujo be-
e na Africa, opôs-se sistematicamente à poderosa con- nefício se faz a História oficial". Uma crítica vigorosa e
cepção de cultura harmônica desse mundo resultan- fundamentada à historiografia oficial ficava
te da expansão colonial "civilizadora". Pensadores de estabelecida, ao mostrar que autores difundidos como
primeira plana, como o historiador Vitorino Magalhães Rocha Pombo, em volumes alentados e em manuais,

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249
dedicavam simples notas de rodapé a movimentos em que se combine o progresso com a conservação
populares do porte da Cabanada (Pará, 1833-1836). dos traços anteriores cararcterísticos. Tudo estará jus-
A preocupação em explicar as relações sociais a par- tificado se trouxer a marca do mundo que o português
tir das bases materiais, apontando a historicidade do criou e que nós vamos desenvolvendo e preservando,
fato social e do fato econômico, colocava em xeque a sim senhor, com a ajuda de Deus e de Todos os Santos
visão mitológica que impregnava a explicação históri- Unidos. (...) Aí está um caso em que o método cultural
ca dominante. carrega água para o monjolo da Reação." 2
Com Gilberto e Caio, criava-se um novo
Essa crítica de Antônio Cândido sinalizava a pas-
paradigma: era o início da crítica à visão monolítica
sagem dos anos 40 para os anos 50, quando o Brasil
do conjunto social, gerada no período oligárquico da
transitou da consciência amena de atraso para a trá-
recém-derrubada Primeira República (1889-1930).
gica constatação de permanecer "País subdesenvolvi-
Com as interpretações de Caio Prado Júnior, porém,
do".
as classes emergem pela primeira vez nos horizontes
de explicação da realidade social brasileira – enquan- A contraposição de Faoro
to categoria analítica. Seus outros livros (Formação do
Enquanto a maior parte da intelectualidade se
Brasil Contemporâneo,1942, em especial) aprimora-
empenhava em fabricar teorias e ideologias para a
ram nosso instrumental conceitual, formulando uma
superação do subdesenvolvimento, mobilizando re-
sofisticada teoria das classes, da colonização enquan-
cursos (seja no Iseb, na Cepal ou alhures) para a afir-
to sistema e, não menos importante, das idéias. Mas
mação de uma cultura nacional, de uma "Cultura Bra-
note-se: estudou o sentido da colonização e o peso
sileira", para harmonizar as diferenças e integrar o
dos componentes do sistema colonial para avaliar suas
"Brasil arcaico" no “Brasil moderno", eis que aparecia
persistências na vida brasileira.
em 1958 o livro notável de Raymundo Faoro, O s
Pouco depois, no fim do Estado Novo, Antonio
Donos do Poder. Percorrendo o longo caminho desde
Cândido, professor de Sociologia na USP e perten-
a particular Idade Média portuguesa até o século XX
cente a um grupo-geração mais jovem, formado sob
brasileiro, Faoro revelou a formação histórica do
o Estado Novo (1937-1945), já manifestava em de-
patronato político brasileiro, concluindo de modo ra-
poimento à Plataforma da Nova Geração (1944) seu
dical e surpreendente seu percurso: a genuína cultu-
repúdio ao funcionalismo nos estudos de cultura, pois
ra brasileira jamais emergiu à luz dos tempos. Após
tal teoria apagava as diferenças e "suavizava" os cres-
examinar seis séculos de História, notou ele a persis-
centes conflitos vividos pela sociedade brasileira na
tência de um forte estamento burocrático,
esteira das greves de 1917 e dos movimentos de 1922,
desmobilizando sistematicamente as formas de expres-
24, 26, 30, 32 e 35. E colocava Freyre à frente desse
são que pudessem trazer à tona projetos sociais sinto-
modismo:
nizados com a contemporaneidade do mundo: -"...a
"A concepção de ciclo ou círculo cultural (...) leva principal consequência cultural do prolongado domí-
quase que necessariamente à de função; à de nio do patronato do estamento burocrático é a frus-
interdependência necessária entre os traços de uma tração do aparecimento da genuína cultura brasilei-
cultura e da sua existência em função uns dos outros. ra". 3
Está certo e muito bem. No entanto, a concepção de Mas vale registrar que essa crítica passou quase
funcionalidade pode levar perigosamente a uma justi- despercebida; primeiro, por conta da força crescente
ficação e, portanto, aceitação de 'todos' os traços ma- da ideologia da "Cultura Brasileira", que consolidava
teriais e espirituais, dado o seu caráter 'necessário'. E a idéia de pertencermos a um todo monolítico; se-
vem a tendência para aceitar "in totum" um complexo gundo, porque vivia-se o clima de euforia
cultural e defender a sua inevitabilidade funcional, di- desenvolvimentista-populista do período de Jusceli-
gamos assim, em detrimento do raciocínio que tende no Kubitschek, em que setores de uma burguesia pro-
a revelar suas desarmonias. Não é uma conseqüência gressista acenavam com as reformas de base – que
fatal da sociologia da cultura, está visto. É um abuso jamais ocorreram. Ao contrário, no plano das ideolo-
possível, uma deformação contra a qual chamo a aten- gias culturais observou-se o reforço da idéia de Cul-
ção, num país em que ela vai entrando a toque de tura Brasileira, da qual seus representantes máximos
caixa. Veja você o nosso mestre Gilberto Freyre,– a que foram Gilberto Freyre, cada vez mais conservador, e,
ponto está levando o seu culturalismo. Suas últimas numa esquerda peculiar, Jorge Amado, progressiva-
obras descambam para o mais lamentável sentimen- mente "tropicalizado".4
talismo social e histórico; para o conservadorismo e o As lutas pelas reformas de base e por um ali-
tradicionalismo. Enamorado do seu ciclo cultural luso- nhamento terceiro-mundista do Brasil logo esbarra-
brasileiro, é levado a arquitetar um mundo próprio, ram em sólidas e conservadoras concepções de soci-

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edade e de cultura, enraizadas nos setores dirigentes. "democracia racial", etc.
O golpe civil-militar de 1964 ocorre nesse Em síntese, novos paradigmas foram construídos
realinhamento do País dentro dos quadros da Guerra e pensados em obras como as de Caio Prado Júnior,
Fria, reavivada após as Revoluções de Cuba, da Argé- Celso Furtado, Raymudo Faoro, Antonio Candido,
lia e de notícias de guerrilha da Africa portuguesa. Florestan Fernandes e muitos outros cientistas soci-
Apesar do intenso trabalho de intelectuais como Pau- ais, juristas, historiadores, nem todos – grife-se – per-
lo Duarte, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, tencentes à universidade. Dentre eles, destaca-se, por
Ferreira Gullar, Antonio Callado, Wanderley Guilher- sua trajetória marcada por uma busca constante de
me e tantos outros, que vinham denunciando as for- um padrão moderno nas Ciências Sociais e pela críti-
mas de dominação econômica, política e cultural vi- ca ao nosso assustador atraso, o sociólogo (e historia-
gentes no Brasil, a desmobilização cultural tornou-se dor) Florestan Fernandes.
a pedra-de-toque desse poderoso sistema político-
ideológico. Numa modernizada visão da varanda – O outro sociólogo: Florestan Fernandes
marcada pela concepção estamental de cultura – a Com efeito, já nos anos 40, época em que pro-
casa-grande se reaproximava da senzala, e as ideolo- duziu seu inaugural A função social da guerra entre os
gias da "morenidade" e do homem cordial voltavam a Tupinambás, Antonio Candido localizava-o como per-
suavizar as diferenças. No plano político, a tradução tencendo a "essa geração crítica, crítica e mais críti-
dessa concepção de cultura revitalizou a metodologia ca"; nos anos 50 inicia com Roger Bastide o amplo
da Conciliação – velha de mais de um século na His- projeto sobre relações raciais no Brasil, do qual sairi-
tória do Brasil – com a vitória da Contra-revolução am as obras extremamente inovadoras – de inspira-
preventiva e permanente. ção marxista heterodoxa, em geral e que constituem
Fora do paradigma freyriano, avultava a crítica a chamada escola histórico-sociológica de São Paulo
vigilante de intelectuais como Caio Prado Júnior, que – como as de Otávio Ianni, Fernando Henrique Car-
vinha denunciando desde os anos 50 em sua Revista doso, Luiz Pereira, projeto que culmina em 1964 com
Brasiliense os perigos de um fechamento contra-re- sua notável Integração do Negro na Sociedade de Clas-
volucionário, aliás teorizado depois do golpe em A ses (1850-1950); nos anos 60 avança sua teorização
Revolução Brasileira (1966). E também a polêmica in- sobre a sociedade de classes e a questão do subde-
terpretação do historiador carioca José Honório senvolvimento; nos anos 70, amplia sua discussão
Rodrigues, em Conciliação e Reforma no Brasil (1964), sobre o capitalismo dependente na América Latina e
em que analisa o caráter cruento da História do Bra- a Revolução burguesa no Brasil; e nos anos 80, lança
sil, na qual sempre predominou o espírito anti-refor- uma série profusa de reflexões sobre o socialismo con-
mista – ou seja, quando nas conciliações,os acordos temporâneo e sobre o papel dos intelectuais no con-
feitos, "sempre sem nenhum benefício nacional e po- texto mundial.
pular, demoravam muito, os dissidentes indignavam- Portanto, ao lado e contra a vertente ideológica
se e conspiravam. Foi esse o papel dos liberais na his- em que se formulava a visão endulcorada da
tória brasileira"... Note-se que José Honório escrevera lusotropicologia e, subproduto desta, a ideolodia da
em 1961 seu agudo Brasil e Africa, outro horizonte, Cultura Brasileira, da "Segurança e Desenvolvimento"
título aliás sugerido por Guimarães Rosa. Ele, com e de "Brasil Potência Emergente", existia e existe a
Charles Ralph Boxer e outros, não era bem-visto nos outra: à tradição "afortunada" opõe-se a tradição crí-
círculos culturais do salazarismo. 5 tica. Essa a oposição, em poucas palavras, entre a "Es-
Compõem esses cientistas sociais e escritores cola freyriana" e a assim denominada "Escola de São
uma vertente crítica e generosa escapada aos tentá- Paulo", ou entre Gilberto Freyre e a "Universidade de
culos e à blandície da tentadora ideologia da Cultura São Paulo", como por vezes se simplifica essa história
Brasileira. Sistema ideológico em que, como escreve de desencontros.
Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Bra- Por fim, a obra de Freyre, que revelou e anteci-
sileira, "tudo se dissolve no pitoresco, no 'saboroso', pou tantas novidades sobre temas que hoje os adep-
no 'gorduroso', no apimentado do regional".6 tos da Nouvelle Histoire fazem tanto alarde, teve tam-
Nessa ampla vertente de pensamento, esboça- bém muitas vezes o efeito de um apagamento. Ao
se uma autêntica cultura de resistência em oposi- soldar as contradições sociais, culturais, políticas, fez
ção à ideologia da "Cultura Brasileira". Apesar de a "Cultura Brasileira", em verdade uma fabricação ide-
suas variadas origens, estímulos e compromissos teó- ológica, parecer um conjunto forte, independen-
ricos, seus militantes contrapõem-se à visão idílica de te, autônomo. Ora, o professor Florestan sempre cha-
um Brasil "diferente", a um "caráter nacional" específi- mou a atenção para uma outra história, a história do
co, mais propício a certos avanços de uma suposta capitalismo nos países de origem colonial. Tanto que,

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251
em 1981, alertava ainda uma vez: criticou o paradigma "cuja forma de conhecimento
proceda pela transformação da relação eu/tu em re-
" O que é grave é que o problema da
lação sujeito/objeto, uma relação feita de distância,
descolonização não foi e continua a não ser colocado
estranhamento mútuo e subordinação total do obje-
enquanto tal. Ele é diluido e pulverizado, como se não
to ao sujeito (um objeto sem criatividade nem res-
existisse e, substantivamente, o que importassem fos-
ponsabilidade).14
sem apenas as debilidades congênitas do capitalismo
Para o ultrapassamento do velho paradigma,
neocolonial e do capitalismo dependente" (Poder e
duas condições devem ocorrer. A sucessão de crises
Contrapoder na América Latina, p. 80).
que se acumulam no interior desse paradigma – até
porque os "objetos" falam, pensam, sentem, reagem
Qual mundo luso-afro-brasileiro? às "soluções" propostas pelos "sujeitos" – e o conheci-
Nos anos 70, fora dos sistemas ditatorias dos mento até então científico entra num processo de
dois lados do Atlântico, o "todo" luso-afro-brasileiro derrapagem. A segunda condição para o
também já não era mais considerado homogêneo. ultrapassamento pressupõe circunstâncias sociais e
Afinal, de que história se falava? Quais culturas? Em teóricas "que permitam recuperar todo o pensamen-
1970, o historiador português Vitorino Magalhães to que não se deixou pensar pelo paradigma e que foi
Godinho respondia: sobrevivendo em discursos vulgares, marginais,
subculturais (tanto lumpendiscursos como discursos
"Não são, é certo, as mesmas exactamente as
hiperelitistas)".15
escolhas que se nos põem do lado de cá do oceano:
Note-se também que o problema situa-se no
mas estão estruturalmente conexas. E por isso importa
plano da linguagem, e não no das realidades históri-
num esforço conjunto estarmos atentamente a par do
co-concretas. Não basta já dizermos – num esforço
no Brasil se faz como informarmos do que fazemos.
literário de união transcontinental supra-classes, numa
Não que nosso destino (como sói dizer-se) seja neces-
fórmula gasta, – que "minha pátria é minha língua". A
sariamente atlântico, em antagonismo com a ligação,
formulação mais avançada nesse sentido encontrasse
indispensável, à Europa. Mas nesse emaranhado de
na poética de Caetano Veloso, refletindo sobre a "úl-
raízes está o cerne das resistências que hoje uns e ou-
tima flor do Lácio" e passando da afirmação anterior à
tros temos de vencer se não queremos apenas sobre-
indagação atual:
viver como museus de revolutas eras mas sim
afirmarmo-nos pela capacidade de construir num mun- "Flor do Lácio Sambódromo
do em perpétua mudança". Lusamérica latim em pó
O que quer
Em 1973, Amílcar Cabral, um dos principais
O que pode
teóricos dos movimentos de libertação das ex-colôni-
Esta língua?"
as portuguesas, assassinado nquele mesmo ano por
forças colonialistas portuguesas, conceitou: "Cultura, A desconjunção dessas histórias luso-afro-bra-
fator de libertação? Não, libertação, fator de cultura..." sileiras – refletida no imenso cipoal conceitual que
Nesta inversão, com certo sabor paulofreiriano, ora precisamos deslindar – impõe uma renovação da
mas sem o tom cristão do educador nordestino, suge- reflexão hermenêutica para articular-se num mesmo
ria-se o novo paradigma, produto de uma rotação de campo cognitivo discursos e saberes tão díspares como
perspectiva, ponto de partida para a revisão histórica o discurso literário, o poético, o estético, o político, o
– a busca de uma outra memória – no bojo de uma religioso, o econômico e sobretudo o histórico.
revolução cultural. Para tanto, passou-se a proceder A tarefa é imensa, e pressupõe humildade, pa-
a um aprofundamento da crítica histórico-cultural, sem ciência e senso de "longue durée" para melhor apre-
a qual não se desvendariam nossas possíveis identifi- endermos a complexidade de novos quadros mentais
cações, nem nossas inescapáveis diferenças. e a especificidade de uma história enquanto povo. E
A expressão mais forte da crise ora vivida nesta muita atenção, pois a oposição ciência/senso comum
etapa de nossa história comum não reside apenas no está abalada: "senso comum", para as consideradas
razoável desconhecimento recíproco no plano mera- formas subordinadas de "subculturas", constitui fre-
mente factual histórico, ou na atualização do "quem qüentemente o fermento de culturas de resistência –
é quem" das ciências sociais em língua portuguesa. A que por vezes se manifestam em lutas de libertação,
expressão mais funda dessa crise localiza-se na des- como as que ocorreram há nem tanto tempo no "mun-
confiança dos paradigmas da própria ciência moder- do que o português criou".16
na e de sua aplicabilidade nestas partes. O sociólogo
português Boaventura de Souza Santos comentou e Em busca de um novo conceito de cultura

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252
A partir dos anos 70, novas formulações sobre paradigmas para reequacionar-se a questão da cultu-
a questão da cultura se apresentaram no mundo luso- ra.
afro-brasileiro. Em Portugal, a busca de um "homem As reflexões de Amílcar Cabral ressaltam num
novo" responta em obras como as de Vitorino Maga- amplo espectro da produção e da crítica, por sinaliza-
lhães Godinho – sobretudo em seus ensaios em defe- rem significativa rotação de perspectiva. Dentre suas
sa da "cidadania" ligada à "dignidade de trabalho a teses, sistematizadas em 1972, avultam as seguintes:
todos os portugueses", para que "nosso país deixe de 1. A luta de libertação não é apenas "um fato
ser fábrica de braços e cérebros para exportar”.17 Tam- cultural, mas também um fator de cultura". Logo, seu
bém nas reflexões de militares portugueses como Melo conceito ultrapassa o saber a história para o "fazer a
Antunes, encontra-se a preocupação em considerar a história".
"questão nacional" na Africa como o tema básico a 2. Como a luta de libertação é essencialmente
ser discutido com "a intelligentzia das colônias", aten- um ato político, "só os métodos políticos (incluindo o
ta aos reclamos dos "danados da terra",18 fazendo no- uso da violência para liquidar a violência, sempre ar-
tar até um certo "atraso" com que os movimentos ar- mada da dominação imperialista) podem ser usados
mados de libertação nacional se iniciaram nas antigas no decurso de seu desenvolvimento".
colonias portuguesas naquele continente.19 Lá, a cons- 3. "A cultura, portanto, não é nem poderia ser
trução de um homem novo – agente e produto do uma arma ou um método de mobilização de grupo
processo emancipador – também esteve presente nas contra o domínio estangeiro. É bem mais do que isso.
principais formulações à época da independência, Com efeito, é na consciência concreta da realidade
sobretudo nas de Agostinho Neto. 20 local, em particular da realidade cultural, que se fun-
No Brasil, a dessacralização da noção de Cultu- dam a escolha, a estruturação e o desenvolvimento
ra Brasileira – tal como formulada pela lustropicologia dos métodos mais adequados à luta. Donde a neces-
gilbertiana e incorporada pelo Sistema – é completa- sidade, para o movimento de libertação, de conceder
da com a republicação em 1974 de Os Donos do Po- uma importância primordial, não só às características
der, de Faoro e com a publicação em 1975 de A Re- gerais da cultura da sociedade dominada, mas ainda
volução Burguesa no Brasil, de Florestan. No primeiro, às de cada categoria social, porquanto, se bem que
a conclusão sobre a frustração do aparecimento de ela tenha um caráter de massa, a cultura não é unifor-
uma "genuína cultura brasileira" permanecia a mes- me nem se desenvolve igualmente em todos os
ma de 1958, e atual. Em Florestan, a "abertura" era sectores, horizontais ou verticais da sociedade.
denunciada, desnudando-se o modelo autocrático- 4. "O que é importante para o movimento de
burguês implantado. O sistema político-militar ven- libertação não é provar a especificidade ou a não
cera (período Costa e Silva / Médici) a luta armada, especificidade da cultura do povo, mas proceder à
em nome de uma ideologia nacional. análise crítica desta cultura em função das exigências
Cumpria então revelar que essa Cultura "nacio- da luta e do progresso e de a situar, sem complexo de
nal" não existia – com seu cortejo de valores que superioridade ou de inferioridade, na civilização uni-
propagandeavam a democracia racial, a harmonia versal, como uma parcela do patrimônio comum da
social e a "a nossa especificidade". Enfim, cumpria humanidade, com vista a uma integração harmoniosa
denunciar, já nos quadros da massificação, a ideolo- no mundo atual".
gia da Cultura Brasileira: nesse sentido, "não existe Nessa perspectiva, decerto revolucionária, im-
uma Cultura Brasileira no plano ontológico, mas sim põe-se ao estudioso do mundo luso-afro-brasileiro
na esfera das formações ideológicas de segmentos al- uma reflexão sobre qual o instrumental conceitual
tamente elitizados da população, tendo atuado, ide- mais adequado para a crítica e a reconstrução histó-
ologicamente, como um fator dissolvente das contra- rica de nossos variadíssimos universos socioculturais,
dições reais".21 para que os conheçamos em suas estruturas e
historicidades próprias. Ou seja, em suas diferenças.
A perspectiva histórico-cultural de Amilcar Cabral Somente então poder-se-á pensar em "nossa"
Mas talvez tenha sido na Africa que se formu- integração, se possível harmoniosa, no mundo atual.
lou a crítica cultural mais aguda, no calor das lutas de Mas (re)conheçamo-nos primeiro, indagando das pos-
libertação colonial. Para além da dessacralização das sibilidades de afirmação em nossos países dos valores
formas de dominação, e das noções de cultura e "as- de uma nova sociedade civil socialista e democráti-
similação", ou de discussões sobre a "especificidade" ca.
dessa história, formularam-se novos conceitos de cul-
tura, trabalho, sociedade que indicam a emergência V. Para um melhor entendimento entre os cientis-
de novas matrizes de pensamento, talvez novos tas sociais do chamado mundo luso-afro-brasileiro

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Dentre as propostas que se podem apresentar p. 269.
para um melhor entendimento entre os cientistas so-
4
(sobre) Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1962 (ed. comemorat. dos 25 anos de Casa-
ciais e intelectuais em geral do variadíssimo comple-
Grande & Senzala; vários autores). Freyre também colaborou com
xo luso-afro-brasileiro nesta passagem de século, que- a Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da Re-
ro ressaltar as seguintes: pública (1969)
a. Devemos proceder, por meio da pesquisa e 5
Conciliação e Reforma no Brasil, RJ, Civ. Bras.,1965, p. 11. A 3a.
da crítica histórico-sociológica, à eliminação de ed. de Brasil e Africa: Outro Horizonte saiu pela Ed. Nova Frontei-
ra em 1982, revisada e com capítulo abrangente até 1980.
remanescências ideológicas do lusotropicalismo cul- 6
São Paulo, Cultrix, 1970, p. 457.
tural, mas também dos mecanicismos supostamente 7
Penso sobretudo nas formulações de Norberto Bobbio.
marxizantes que obscureceram no último meio sécu- 8
Penso sobretudo nas formulações de Amilcar Cabral em 1971, A
lo os diagnósticos sobre as culturas do mundo luso- Nação-Classe, in Bragança e Wallerstein já cit., p. 126.
afro-brasileiro, dificultando a compreensão do direi- 9
Boaventura de S. Santos, Social Crisis and the State, in Kenneth
to à diferença. Maxwell(ed), Portugal in the 1980's. London Grrenwood Press,
1986, p. 190.
b. Devemos examinar, em contrapartida, os vá- 10
Introdução ao vol. I de Quem é o Inimigo?, de Aquino de
rios conceitos de "cultura" que fomentam a contra- Bragança e I. Wallerstein, já cit., p. 24.
revolução preventiva (José Honório Rodrigues, 1963, 11
Cf. Boaventura de S.Santos, ob. cit., p. 192, que se utiliza de tais
e Florestan, 1981), permanente em nossos países. conceitos com restrições.
c. Finalmente, cabe a nós, agora, a partir do re- 12
Florestan Fernandes, Poder e Contrapoder na América Latina,
conhecimento de nossas diferenças e da necessidade RJ, Zahar, 1981, p. 33.
de revisarmos os paradigmas científico-culturais
13
Boaventura de S. Santos, Introdução a Uma Ciência Pós-Moder-
na. Rio de Janeiro, Graal, 1989, p. 13.
que regeram o "mundo que o português criou", auxi- 14
Ibidem, p. 34/35.
liar na elaboração de instrumental conceitual que 15
Sobre o processo de crise final do paradigma da ciência moder-
permita contruir essa outra História. Para tanto, urge na e sobre a renovação da reflexão hermenêutica, v. na ob. cit. os
examinarmos criticamente o que a mídia veicula, caps. 2, 3 e 4.
magnifica ou sonega sobre nossas realidades político-
16
Numa obra de crítica aguda aos mitos de nossas histórias, ver
Luís Reis Torgal, História e Ideologia, Coimbra, Livraria Minerva,
culturais. E abrirmos nossas universidades, escolas, ins-
1989. Exemplifica com a noção de "Ultramar" e indica até a exis-
titutos e museu aos novos tempos, reformulando cur- tência de projeto sobre a História da Guerra Colonial.
rículos e programas de pesquisa, adequando-os às 17
Ver nos Ensaios do professor Vitorino Magalhães Godinho, vol.
nossas reais necessidades. IV, em seu polêmico e notável prefácio, de grande atualidade para
d. Nesta abertura do século XXI, precisamos o debate sobre conceitos histórico-sociológicos e sua aplicabilidade
ao mundo luso-afro-brasileiro.
construir e cultivar uma ciência sociohistórica com- 18
No importante prefácio de Melo Antunes à obra cit. de Aquino
prometida com a "contemporaneidade do amanhã dos de Bragança e I. Wallerstein (p. 14).
que não têm ontem nem hoje" (Vinicius de Morais, O 19
Ibidem p.13.
Haver). 20
Christian Geffray, Fragments d'un discours du pouvoir (1975-
1985): du bon usage d'une méconaissance scientifique, em Politique
_______________________ Africaine, n. 29, mars 1988. Ver também "La crise du Nationalisme",
de Michel Cahen, na mesma revista, e ainda Luís de Brito no seu
Notas importante artigo "Une relecture nécessaire: la genèse du parti-
État FRELIMO". Sobre o "homem novo", uma das principais formu-
1
Vitorino Magalhães Godinho, sobretudo seus Ensaios, sobre His- lações foi a de Agostinho Neto, "A nossa cultura e o Homem Novo"
tória de Portugal, Teoria da História e Historiografia e História (1972), em Quem é o Inimigo?, op. cit., vol. III.
Universal (Lisboa, Sá da Costa, 1968-1971, 4 vol.). E do angolano 21
Carlos Guilherme Mota, Ideologia da Cultura Brasileira. Pontos
Mario de Andrade (Buanga Fele), em seu ensaio O Que É o de Partida para uma Revisão Histórica. 6a. ed., São Paulo, Atica,
Lusotropicalismo? (1955) in Quem é o Inimigo ?, vol. I, dir. Aquino 1990, p. 287.
de Bragança e I. Wallerstein, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1978,
no cap. Formas de Opressão Cultural. Perry Anderson marcou os
anos 60 com seu livro-denúncia Portugal e o Ultracolonialismo,
fartamente ilustrado com fotos dos massacres que tropas portu-
guesas cometeram na Africa. Retomo aqui algumas idéias por mim
apresentadas no 1º Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências So-
ciais, org. pelo professor Boaventura de Sousa Santos e pelo Cen-
tro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universida-
de de Coimbra, 2 a 5 de julho de 1990, nas comemorações dos
700 anos daquela Universidade. Da mesa de abertura participa-
ram, dentre outros, os professores Fernando Henrique Cardoso e
Marilena Chauí, além do organizador do congresso.
2
Em Mario Neme (org.), Plataforma da Nova Geração, Porto Ale-
gre, Globo, 1945.
3
Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, Porto Alegre, Globo, 1958

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Sobre a Pertinência de Sobrados e Mucambos
para a Compreensão da Dinâmica Racial no
Brasil Contemporâneo: ou o Sorriso do Mulato

Peter Henry Fry


Antropólogo – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil

Em primeiro lugar quero agradecer aos estilo tão admirado aqui no Brasil me parecia
organizadores deste evento pela oportunida- afetado e com uma licença poética não exa-
de de estar agora em Recife para poder tam- tamente condizente com um trabalho conven-
bém debater a significação de Gilberto Freyre. cional de antropologia. Como muitos da mi-
Uma honra. nha geração, classifiquei Gilberto Freyre de
Nesta intervenção, quero refletir sobre mais um "ideólogo" do salazarismo. A nossa
o que considero uma recente mudança na exegese foi, como qualquer outra, construída
apreciação da obra de Gilberto Freyre, uma a partir cos conceitos e dos preconceitos do
espécie de revival, que, sugiro, está relacio- nosso próprio pensamento fincado num con-
nado a transformações significativas na con- texto social determinado.
jugação da "questão racial" nos últimos anos. Por obra da contingência estruturada
E, para ilustrar, quero sugerir como Sobrados que é a história de todos nós, acabei migran-
e Mucambos pode inspirar uma análise das do em 1970 para o país de Gilberto Freyre,
recentes formas de "ascensão do bacharel e ex-colônia de Portugal. A essa altura, de ple-
do mulato." na guerra fria e ditadura militar no Brasil, des-
Meu primeiro encontro com a obra de cobri que a minha "exegese" de Gilberto Freyre
Gilberto Freyre foi na década de sessenta. Ti- era compartilhada pelos jovens cientistas so-
nha acabado de fazer pesquisa de campo na ciais que me cercavam em Campinas. As crí-
antiga Rodésia do Sul, onde, como todos os ticas desenvolvidas por Perry Anderson con-
jovens da minha geração, desenvolvi uma tra o colonialismo português eram, mutatis
emocional e emocionante simpatia pelos mo- mutandi, as mesmas desenvolvidas indepen-
vimentos de descolonização. Enquanto escre- dentemente no Brasil, sobretudo em São Pau-
via a minha tese encontrei um pequeno livro lo (e Campinas, onde lecionava), por aqueles
de Gilberto Freyre escrito em inglês e publi- que repudiavam o racismo neste País e que
cado em Lisboa, Portuguese Integration in the via em Gilberto Freyre o arauto da ideologia
Tropics (Freyre, 1961). Fiquei espantado. Era da "democracia racial", que apenas mascara-
uma apologia da colonização portuguesa va este racismo para os sujeitos sociais, assim
como algo distinto e melhor da colonização impedindo qualquer solidariedade anti-racis-
britânica. Parecia um delírio, sobretudo por- ta. Preciso lembrar que, naquele momento na
que compartilhava com muitos ingleses uma história brasileira, a crítica ao racismo não era
visão que a colonização portuguesa nada já muito bem tolerada pelo poder militar.
abonadora. Influenciado muito por Perry Cheguei a escrever um pequeno artigo raivo-
Anderson (Anderson, 1966), acreditava que a so no qual critiquei o Gilberto Freyre e argu-
ideologia da especificidade da colonização mentei que a transformação de símbolos ou-
portuguesa com a sua insistência na assimila- trora étnicos em símbolos nacionais tirava o
ção e da unidade de todos sob o manto do tapete, por assim dizer, da movimentação
catolicismo era apenas bizarra e mistificadora, negra no País (Fry, 1982). Vale aqui notar que
mascarando uma realidade de um racismo o mesmo não ocorreu na antropologia do Rio,
sem limites e a mais brutal exploração. E quan- nem tampouco, é claro, do Recife.
do li pela primeira vez Casa-Grande & Senza- Com o passar do tempo, porém, a mi-
la, fiquei estarrecido. Parecia mais romance nha leitura de Freyre começou a mudar, não
que obra científica, sobretudo quando se tra- apenas por ter sido muito influenciado pela
tava das relações sexuais "sado-masoquistas" antropologia boasiana temperada com o es-
entre senhores e escravos. Além do mais, o truturalismo francês de Marshall Sahlins,1 mas

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255
também pelo que eu vi quando voltei para a África, tro das ciências sociais e "cultural studies" pós-moder-
agora pós-colonial, em particular Moçambique e a ex- nos e pós-coloniais o fascínio com o hibridismo, con-
Rodésia, Zimbábue. Percebi nitidamente que havia ceito este utilizado por Freyre desde Casa-Grande &
sim uma enorme diferença entre as culturas coloniais Senzala, cresceu. Mas penso também que começou a
de Portugal e da Inglaterra. Racismo havia em toda haver uma reação como que nacionalista contra o que
parte, mas a sua configuração era distinta em um lu- começou a ser percebido como uma "americaniza-
gar e outro. Assim voltei à obra de Gilberto Freyre, ção" do campo afro-brasileiro. Receosos de uma im-
em particular Um Brasileiro em Terras Portuguesas posição das estratégias anti-racistas dos Estados Uni-
(Freyre 1953) na qual achei observações bastante ar- dos no Brasil, vários ativistas e intelectuais começaram
gutas sobre os portugueses e o ingleses na África. E a chamar a atenção para a especificidade do Brasil. E
quando voltei para Casa-Grande & Senzala, comecei como Gilberto Freyre construiu a sua imagem do Bra-
uma nova "exegese," desta vez bastante diferente da sil em contraste com os "arianos" do Norte, surgiu de
primeira. Em primeiro lugar, tentei ser menos novo com fonte de inspiração.
etnocêntrico na minha leitura. Difícil, deve-se dizer. Mas parece também que haja uma relação en-
(Ler Casa-Grande & Senzala foi uma espécie de pes- tre a própria dinâmica social e econômica dos últi-
quisa de campo, pouco familiar como sou com os ter- mos poucos anos e estas mudanças de moda univer-
mos e nomes regionais, sem falar do riquíssimo voca- sitária. Penso, por exemplo, na crescente preocupação
bulário e fluxos de reflexão mais próprios ao romance entre intelectuais e ativistas de ir além da denúncia
que à prosa acadêmica.) do preconceito e da discriminação (sem nunca deixá-
Onde estava a “democracia racial”? Não acha- la de lado, é claro) para reflexões e ações sociais que
va. Onde estava o paraíso racial? Também não acha- visam a diminuição das desigualdades sociais entre
va, pois mesmo se Freyre falava das relações amisto- pessoas de cores e aparências distintas. Ao mesmo
sas e lúbricas entre senhores e escravos, o segredo do tempo, à medida que os gurus da econometria re-
"equilíbrio de antagonismos", também falava de uma descobrem a educação como indicador principal da
crueldade quase que impensável. Casa-Grande & Sen- diferenciação econômica e, portanto, o caminho mais
zala fala da coexistência de amor e ódio e é justamen- seguro para a mobilidade social, ativistas de várias
te por isso que descreve as relações entre os senhores cores se juntaram nos últimos dez anos para fundar
e seus escravos de sadomasoquitas. Olhando agora cursos pré-vestibulares para negros em toda parte para
para Sobrados e Mucambos e também Ordem e Pro- abrir os caminhos para a universidade. Simultanea-
gresso, percebo a mesma coisa. O Brasil do Império e mente, os xamãs do mercado de bens e serviços pa-
da Primeira República que Freyre descreve não é ab- recem ter descoberto uma "nova classe média negra"
solutamente um "paraíso racial." É verdade que Freyre e incluem pessoas de cores distintas nos seus anúnci-
celebra as uniões sexuais entre pessoas de cores dis- os e comerciais de serviços bancários, indumentária,
tintas, o que chama de miscegenação. É verdade tam- comida e bebidas. Mas também surgem mercadorias
bém que se jubila com a ascensão social dos mulatos específicas, particularmente cosméticos para cores de
através da educação no Brasil e no exterior. Mas é pele e cabelos diversos que são veiculados através de
também verdade que reconhece a aborre a presença uma revista especializada, Etnic. Uma outra revista,
de noções de superioridade e inferioridade racial que Raça Brasil, que é dirigida à população negra, que trata
encontra em toda parte. Se não, como interpretar o de muitos assuntos mas que também dedica muito
sorriso sedutor dos mulatos, e a sua vontade de supe- espaço à cosmética, é louvado por alguns como um
rar os supostos refinamentos culturais dos brancos ou fator bastante importante no fortalecimento de um
quase brancos? "orgulho negro" no País, mesmo se criticado pelos bons
Mas a minha nova leitura não era um ato indi- pensantes de plantão como apenas mais uma arma
vidual, como não o foi da primeira vez. Percebo que na guerra implacável dos capitalistas de provocar o
faço parte de um como que movimento social que "consumismo". Mas, como Mary Douglas (Douglas and
encontra em Gilberto Freyre inspiração para enten- Isherwood, 1980) e Marshall Sahlins (Sahlins, 1979)
der melhor o nosso presente. Penso em, por exem- observaram tantos anos atrás, não é na natureza ins-
plo, Ricardo Benzaquem de Araújo (Araújo, 1994), trumental das mercadorias que devemos entendê-los.
Marcos Chor Maio (Maio, 1997; Maio, 1999) e As mercadorias são os tótens da vida moderna,
Hermano Vianna (Vianna, 1995). materializações de categorias sociais que as deman-
É um lugar-comum observar que os estudiosos dam e que vêm a existir através delas numa relação
não produzem num vácuo social. Acima, indaguei verdadeiramente dialética entre produtores e consu-
sobre alguns fatores contextuais que me influencia- midores, e mediada pelos xamãs do marketing. Há
ram no sentido de reler Freyre. Mas há outros. Den- fortes razões para argumentar que os novos cosméti-

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cos e as novas revistas não apenas se dirigem a um peliram para se distanciar cultura e esteticamente dos
segmento negro da população, mas que, ao assim fa- seus parentes e amigos menos afortunados. "Divergi-
zer, o constrói, tanto na subjetividade dos indivíduos mos de Ulisses Pernambucano de Melo", diz Freyre,
quanto nas representações sociais mais generalizadas. "quando afirma que as condições de vida dos negros
Além disso, outros negros e mulatos entram não diferem, sob qualquer outro ponto de vista, da
paulatinamente no hall da fama brasileiro. Os joga- dos brancos e mestiços das classes populares – a mai-
dores de futebol são muito mais que jogadores ape- oria dos doentes por ele examinados. Quer nos pare-
nas. São garotos-propaganda das grandes firmas de cer que mesmo entre as classes pobre atuam às vezes
material esportivo, automóveis, roupas, relógios etc. influências desfavoráveis aos negros – desfavoráveis
e não hesitam em oferecer seus pontos de vista sobre ao seu sucesso ou triunfo social e sentimental no amor,
qualquer coisa quando indagados. Desta forma, po- por exemplo. Influências que podem muito bem in-
dem ser vistos como formadores de opinião. Os bem tervir na sua saúde mental e na sua normalidade soci-
pensantes repudiam os seus altos salários, mas pare- al de vida". (Freyre 1996, p. 639) E prossegue, citan-
ce que, do ponto de vista da maioria, merecem, for- do uma série de exemplos do preconceito racial
mando uma galáxia de estrelas admiradas e deseja- agindo contra mulatos e negros manifesto sobrema-
das, sexualmente inclusive. Mais de um já posaram neira em ditadas e trovas populares e na vida cotidia-
nus para revistas gay, cujos leitores não são necessari- na. O jovem "alourado" tentando esconder sua avó
amente da mesma persuasão sexual! ou mãe "mulata vasta e culatrona," ou um outro "es-
Ao mesmo tempo surgem múltiplos grupos de condendo o irmão ou a irmã escura, o "tira-teima" da
pagode, com uma música que é rechaçada pelos arau- família, ou tal ou a tal em quem se revelassem com
tos do bom gosto da música popular brasileira mas toda a nitidez de traços, a cor ou a origem menos
que é consumida avidamente pelo povo em geral. nobre ou menos ariana de todos" (op.cit., p. 643). É
Como os jogadores de futebol, são heróis, figuras ad- por isso, observa Freyre, que os negros e mulatos que
miradas e desejadas. Quem os viu em programas de queriam uma vida melhor optaram por emular até
televisão aos domingos não poderia deixar de reparar exageradamente os modos dos brancos, se tornando,
a força de atração sexual que exercem sobre as meni- oficialmente, "brancos". É nesse ponto do texto que
nas adolescentes (bastante claras, devo notar) que os se detém sobre a simpatia e sorriso dos mulatos, oriun-
cercam e aplaudem. Fico imaginando como Gilberto dos não de uma disposição racial qualquer, mas da
Freyre interpretaria a ascensão dos negros e mulatos sua posição subordinada na estrutura social. "O mu-
neste período da revolução tecnológica, da lato formado, em competição com o advogado bran-
globalização acelerada e do consumo cada vez mais co, com o médico, com o político, procurou vencer o
segmentado. competidor, agradando, mais do que eles, aos clien-
Sobrados e Mucambos, sobretudo seus penúlti- tes, ao público, ao eleitorado, ao ‘Povo’; e em seu auxí-
mo e último capítulos, Ascensão do Bacharel e do lio moveram-se, sem dúvida mais facilmente do que
Mulato, e Em Torno de uma Sistemática da no branco, os músculos do rosto negróide, mais pode-
Miscegenação no Brasil, oferecem algumas pistas rosos de ascensão profissional, política, econômica;
riquíssimas. Gilberto Freyre foi pioneiro no seu inte- uma das expressões mais características de sua
resse na variada estética brasileira, muitas vezes es- plasticidade, na transição do estado servil para o de
condida sob a palavra então na moda, eugenia, e des- mando ou domínio ou, pelo menos, de igualdade com
creve com arte e humor o processo de adesão dos o dominador branco, outrora sozinho, único. Na pas-
jovens mulatos bacharelados em Coimbra à moda dos sagem não só de uma raça para a outra como de uma
brancos. Creio que ele teria se divertido muito com classe para outra. Alguns deles – mulatos triunfantes –
esta nova situação em que se formam estilos cada vez no meado do século XIX, já se sentiam mais ‘celtas’ ou
mais elaborados das pessoas de diversas cores se tor- mais europeus na aparência – e não apenas na cultura
narem atraentes, tanto para parceiros sexuais quanto de bacharéis ou doutores – do que brancos há longo
para mercado de trabalho. Aliás, falando em aparên- tempo fixados no Brasil" (Ibid., p. 645).
cias, podemos talvez louvar Gilberto Freyre por ter Quão arguto Gilberto Freyre. Até hoje é mais
percebido o quanto são importantes numa sociedade que comum ouvir de profissionais negros a queixa de
que Oracy Nogueira descreveria com mais preocupa- que devem ser mais prestimosos, mais eficientes, en-
da com a "marca" que a "origem" (Nogueira, 1985). fim mais profissionais, que os brancos para marcar pre-
Em primeiro lugar, é importante enfatizar nova- sença tanto nos bancos escolares quanto no mundo
mente que Gilberto Freyre reconhece claramente as do trabalho. E não são poucos os membros dos movi-
desvantagens estruturais que os mulatos e negros en- mentos negros que se queixam disso, acusando as
frentaram na sua tentativa de ascensão, o que os im- revistas negras e os marketeiros de projetar imagens

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257
de negros "enbranquecidos," com traços finos e pele erótica ao menos voluptuosa entre o ídolo mulato e
morena. Plus ça change, plus c'est la même chose. seus adeptos. "Nada [...] mais natural que essa prefe-
Mas queria terminar esta pequena intervenção rência pelos heróis em cujas figuras a massa encontre
com trechos de Sobrados e Mucambos que, acredito, o máximo de si mesma. Seu nariz, sua boca, seus olhos,
ajudam a entender um pouco o surgimento dos no- seus vícios, seus gestos, seu riso. Há mesmo aí uma das
vos ídolos aos quais me referi há pouco. Quando formas mais poderosas de integração vencendo a dife-
Freyre discute a questão da miscigenação, ele não foge renciação: o herói, o santo, o gênio se diferenciam pelo
da sua realização, ou seja, o encontro amoroso e se- excepcional da coragem, da santidade, da inteligên-
xual entre pessoas de cores diferentes. E, além disso, cia; a massa, porém, o reabsorve pelo muito ou pelo
não cai no lugar comum de muitos outros autores que pouco que encontra nele de si mesma. Afinal, não existe
implicitamente presumem que o "miscigenador" é herói, nem gênio, nem mesmo santo, que não tenha
branco e masculino. Freyre trata de relações entre ho- retirado da massa alguma coisa de sua grandeza ou de
mens brancos e mulheres escuras, sim, mas também sua virtude; que não guarde traços da massa em sua
entre homens de cor e mulheres brancas, ou quase superioridade de pessoa excepcional. [...] Há no culto
brancas, como costuma dizer, para fugir das classifi- dos heróis um pouco de agrado de gato – o clássico
cações simples ou simplistas. Ao contrário do que afir- agrado do gato ao homem: parecendo estar fazendo
mou em Casa-Grande & Senzala, fantasiosamente, que festa à perna do dono, o gato afaga voluptuosamente
o desejo sexual dos negros era tão pouco que era ne- o próprio pêlo. Assim a massa negróide ou caboclo
cessária muita dança para se excitarem enquanto o quando encontra herói ou santo de caboclo de índio
senhor branco com sua mão de mulher e pé de crian- ou de barba encarapinhada regozija-se nele mais do
ça era um imenso membrum virile, sempre pronto para que num herói louro; é um meio de afagar os próprios
a ação sexual, Freyre em Sobrados e Mucambos dedi- pêlos nos do herói, nos do gênio, nos do santo." (Ibid.,
ca algumas páginas para a atração que os mulatos exer- pp. 654-5)
ceriam sobre as mulheres brancas. Fala da "aura" do Essa interpretação religiosa e erótica do poder
mulato: "o 'cabra sarado' do folclore, o 'mulato bam- emblemático dos mulatos/santos/heróis pode nos di-
ba', o 'mulato escovado', o 'mulato sacudido', o 'mula- zer tanto do autor como dos fatos que procura inter-
to bicho-cacau'. Correm boatos sobre vantagens de pretar, como pode dizer tanto de quem vos fala, que
ordem física que fariam dele ou do negro o superior nela achou valor. Penso que, com um pouco de paci-
do branco puro e louro no ato do amor. Vantagens ência e cuidado com esses e outros insights de Gilber-
ainda mais concretas que as de natureza priápica atri- to Freyre podemos começar a entender melhor al-
buídas à mulata, em comparação com a branca fina, guns dos desenvolvimentos dos campos da marketing,
considerada mulher mais fria" (Ibid., p. 603). É difícil do esporte e do espetáculo musical, onde homens (e
não perceber uma continuidade entre o apelo sexual principalmente homens) de cor mais escura estão a
dos negros e mulatos do século XIX e os fenômenos florescer.
desportivo-músico-eróticos aos quais me referi logo Os novos heróis negros e mulatos representam,
acima. penso, um contraponto muito potente contra os an-
Mas o erotismo mulato, segundo Gilberto tagonismos "raciais" que de quando em vez se mani-
Freyre, está mesmo na base também do apelo dos festam. Penso, por exemplo, nos arrastões nas praias
ídolos populares, a começar com os santos escuros do Rio de Janeiro, que ficaram nomeadas como re-
que surgiram com o catolicismo no Brasil. O catolicis- voltas "negras", bem como um outro estilo musical que
mo "se amorenou e se amulatou, os santos adquirin- se opõe estruturalmente ao pagode, o rap. Os Racio-
do dos homens da terra uma cor mais quente ou mais nais MCs, que podem ser tomados como exemplares
de carne do que a européia. Adaptou-se assim às nos- desse estilo, recusam contato com o "establishment
sas condições de vida tropical e de povo de formação branco", enquanto as suas letras, calcadas numa de-
híbrida" (Ibid., p. 651). Sobre os ídolos seculares, cita núncia das desigualdades de "raça" e de classe, con-
Azevedo Amaral, para quem os heróis autênticos são trastam marcadamente com os pagodeiros que flo-
"os que exprimem nas suas atittudes e nos seus gestos rescem debaixo das luzes e câmaras da Rede Globo e
os traços mais fortemente antieuropeus do psiquisimo cujas letras são quase sempre dedicadas ao amor e ao
brasileiro. Os traços negróides e caboclos. E contrasta prazer sexual. Foi assim que pensou Gilberto Freyre
a indiferença pela figura de branco de Caxias com o quando olhou para as transformações na sociedade
entusiasmo pelos traços caboclos de Floriano" (Ibid., brasileira na passagem da casa-grande e da senzala
p. 652). Em seguida vem uma brilhante análise do para o sobrado e a mucambo. "Mesmo [...] a essa fase
carisma desses heróis (sem nenhuma referência a Max de maior diferenciação social entre sobrados e
Weber), que, novamente, sugere uma relação se não mucambos, correspondente à maior desintegração do

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258
sistema patriarcal entre nós, não têm faltado elemen-
tos ou meios de intercomunicação entre os extremos
sociais ou de cultura. De modo que os antagonismos
que não foram nunca absolutos, não se tornaram ab-
solutos depois daquela desintegração. E um dos ele-
mentos mais poderosos de intercomunicação, pelo seu
dinamismo de raça e, principalmente, de cultura, tem
sido, nessa fase difícil, o mulato." (Ibid., p. 959)

_______________________

Notas
1
Cultura e Razão Prática (Sahlins, 1979) em particular me conven-
ceu da necessidade de entender a razão simbólica atrás das ações
aparentemente utilitárias.

Bibliografia
ANDERSON, Perry. Portugal e o Fim do Ultracolonialismo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e paz: Casa-Grande & Sen-
zala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Edito-
ra 34, 1994.
DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. The world of goods:
towards an anthropology of consumption. Suffolk: Penguin
Books, 1980.
FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas: introdu-
ção a uma possível luso-tropicologia acompanhada de confe-
rências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusita-
nas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1953. 438p. (Documentos Brasileiros,
76).
_______________ . The portuguese ans the tropics: sugestions
inspired by portugueses methods of integrating autocthones
peoples and cultures differing from the europen in a new, or
luso-tropical complex of civilisation. Lisbon: Executive
Committee for the Commemoration of the Vth Centenary of
the Prince Henry the Navigator, 1961. 296p.
_______________ . Sobrados e mucambos: decadência do patri-
arcado rural e desenvolvimento do urbano. 9. ed. Rio de Ja-
neiro: Record, 1996.
FRY, Peter. Feijoada e Soul Food: notas sobre a manipulação de
símbolos étnicos e nacionais. In: XXVIII Reunião da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, Brasília, 1976.
MAIO, Marcos Chor A história do projeto Unesco: estudos e ciên-
cias sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro, 1997.
MAIO, Marcos Chor. Estoque semita:a presença dos judeus em
Casa-grande & senzala. Luso-Brazilian Review. Madison, n. 36,
v. 1, p.95-110, 1999.
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito
racial de origem. In NOGUEIRA, Oracy. Tanto Preto quanto
branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz,
1985. p. 67-94.
SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar,
1979.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995

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259
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260
MESA-REDONDA 11
INSURGÊNCIAS E RESSURGÊNCIAS

Dia 24 de março
COORDENADOR:
Nilzardo Carneiro Leão
Vice-Presidente do Conselho Diretor da Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
Centenário de Nascimento do Autor de
Casa-Grande & Senzala

Barbara Freitag – bfreitag@uol.com.br


Socióloga – Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília –
Brasil

Introdução Nordeste; Brasil. Brasis. Brasília; Como e por-


que sou e não sou sociólogo, entre tantos ou-
Quando em julho de 1967 defendi a tros, o livro jamais foi citado nas matérias co-
minha tese sobre o autor de Casa-Grande & memorativas dos cadernos e suplementos dos
Senzala na Universidade Livre de Berlim1, não grandes jornais brasileiros, de projeção naci-
tinha conhecimento do livro de Gilberto onal e internacional.
Freyre, intitulado: Insurgências e ressurgências Qual o significado "freyriano" dos ter-
atuais. Cruzamentos de sins e nãos num mun- mos "Insurgências" e "Ressurgências" presen-
do em transição. Porto Alegre: Editora Globo, tes no título e freqüentemente usados no
1983. decorrer do texto a partir de múltiplas óticas e
A razão é simples, o livro ainda não ti- em diferentes contextos semânticos ? Qual o
nha sido escrito! Essa desculpa é fraca, pois conteúdo do volumoso texto de trazentas pá-
somente vim a saber da existência do livro ginas ?
muito recentemente, quando meu nome foi Minha contribuição para o debate des-
cogitado para integrar essa mesa redonda. ta mesa procurará dar algumas respostas a
Confessar essa "lacuna" não me parece "ver- essas questões abertas.
gonhoso", levando em conta que esse livro fi-
gura entre os livros "raros" de Gilberto Freyre. Insurgências e Ressurgências: forma e con-
Em minhas buscas pelas bibliotecas de teúdo.
Brasília, ele somente figurava no acervo da a) Quanto à forma :
Biblioteca do Senado, a mais completa da Em suas Advertências ao leitor, Gilberto
nova Captial, como se sabe. Somente a Bibli- Freyre ressalta:
oteca Nacional no Rio e a Biblioteca da da "... prepare-se para defrontar-se com
USP em São Paulo também possuíam um um livro desordenado; mais do que isto,
exemplar. desconchavado; cheio daquelas repetições
O título criava problemas para as bibli- que, desde Casa-Grande & Senzala desapon-
otecárias e seus programas especiais para ta leitores de livros corretos e até modelares
localizá-lo nos sistemas de computador! Bons no seu modo de ser livros." (p. 77)
conhecedores da obra de Gilberto Freyre fran- Nessa mesma advertência, o autor es-
ziam a testa. De fato, eu não era a única a tabelece uma "afinidade eletiva" do livro de
desconhecer essa obra, que talvez possa ser 1983 com a arquitetura de Gaudi em Barce-
vista como a última obra de volume e subs- lona: que estaria opondo formas curvas a re-
tância do mestre de Apipucos, publicada qua- tas, "formas surpreendentemente tronchas a
tro anos antes de sua morte, em 1987. formas convencionalmente corretas". O livro
Antes de lê-lo com a seriedade em questão, como destaca Freyre, está cheio
germânica que aprendi dos meus mestres de "com repetições. Com desconchavos. Curvo.
Berlim, indaguei-me se Insurgências e Torto. Com à-vontades de expressão, em que
Ressurgências poderia ser visto como um li- uma possível espontaneidade faça às vezes de
vro "menor", uma obra à margem da grande excessiva racionalização, calculada e apolínea
trilogia – Casa-Grande & Senzala, Sobrados e do pensar e do sentir de um a seu modo ana-
Mucambos, Ordem e Progresso – que havia lista de cruzamentos atuais de insurgências e
lido com tanta atenção e interesse. Mesmo ressurgências não só de pensar e sentir coleti-
comparado a outros livros dos mais de ses- vos como de formas de agir, de amar, de co-
senta que completam a obra de Freyre, como mer, de beber, de cantar, de crer. De crer, ao

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263
que parece, mais do que de descrer. " (p. 77) Cabe esclarecer, quais os sentidos atribuídos por
Vale para este livro um comentário feito por meu Gilberto Freyre, aos dois termos contrapostos no títu-
colega da UnB, Roberto Lyra Filho, hoje já falecido, lo de seu livro: "Insurgências" e "Ressurgências".
sobre outro livro de Freyre – Como e porque sou e Para tal, vou valer-me da metodologia ensaiada
não sou sociólogo – publicado pela Editora da UnB pelo grande mestre de Apipucos, aproximando-me da
(1968) : "A fartura do volume, inclusive na feição questão central por intermédio de "círculos concên-
estilística e na disposição caprichosa do material, lem- tricos".
brando Ortega, pelos giros concêntricos do pensamen- O exemplo mais óbvio de "Insurgência" foi para
to e da expressão, desnorteia o leitor desprevenido, Gilberto Freyre a Revolução Francesa!
que só registra a presença marcante e ostensiva do Trata-se, pois, de um levante violento de certos
autor." (Prefácio, p. 15) grupos sociais (no caso os burgueses) contra a monar-
Mas o leitor de Insurgências e ressurgências foi quia preponderante na França do século 18. (p. 90)
prevenido! Para melhor aproveitar a leitura, sugiro que Como "Ressurgência", usa como exemplo as
este leitor se entregue aos "giros concêntricos do pen- Capitanias hereditárias no Brasil. Refere-se neste con-
samento e da expressão", como a um redemoinho de texto à reintrodução, em outro lugar e tempo, do sis-
uma correnteza de rio. Pois é impossível resistir à ar- tema feudal europeu, nas condições da colonização
gumentação do autor "narcísico", como ainda nos ad- portuguesa na América. (p. 114)
vertem Mariza Veloso e Angélica Madeira no capítulo Chama de "insurgentes" os hereges, os audazes,
dedicado a Gilberto Freyre em seu livro os inconformados, não-bitolados, os poéticos, os es-
recententemente publicado, Leituras Brasileiras. (Rio, téticos, os proféticos (cf.p. 90).
1999, p. 157) Em contraposição seriam "ressurgentes": os bu-
Cabe ainda acrescentar sobre o livro em deba- rocratas, os tecnocratas...
te, o que Elide Rugai Bastos escreveu recentement Como exemplo de uma dialética entre
sobre Casa-Grande & Senzala (1933), que "Insurgência" e "Ressurgência" menciona o CARNA-
freqüentemente "insurge"e "ressurge" como traço VAL brasileiro, como estudado por José Guilherme
mnêmico, como citação ou como modelo no novo Merquior , porque nele estariam "ressurgindo como
livro de 1983. Escreve a comentarista da Unicamp: reações a puritanismos racionais ofendidos por suas
"O estilo ao mesmo tempo vivo, espontâneo, vigoroso insurgências, resíduos das influências psicosociais não
e acre, o cuidadoso emprego das palavras, a utilização ocidentais, como a afro-negra e a ameríndia, presen-
de expressões populares, a ironia, a irreverência con- tes na civilização brasileira, tão singularmente mista"
quistam o leitor, que se prende irremediavelmente aos (p. 61). 3
vaivéns da argumentação do autor. Em narrativa Outro exemplo da dialética entre "Insurgência"e
construída em forma de espiral, o autor expõe suas "Ressurgência" seria para Freyre a nova capital brasi-
teses desenhando círculos que não se completam, leira: Brasília. Isso porque, acidade seria inovadora e
abrindo passo para uma nova argumentação, que no- insurgente face aos valores tradicionais e ressurgente,
vamente coloca outro aspecto do argumento... ad por não ser mais predominante vertical, mas sim, per-
infinitum."(em: Introdução ao Brasil: Um banquete no mitindo-se que reapareçam elementos horizontais na
Trópico, São Paulo,1999, p. 218) fisionomia urbana da cidade, inclusive nos prédios
Nesses termos, Insurgências e Ressurgências públicos.
pode ser considerado uma continuação refletida, re- Em uma quase definição dos dois termos apren-
petida, reelaborada das principais teses desenvolvi- demos (ainda na introdução longa ao livro) que no
das na grande trilogia do nosso autor homenageado, caso de "Insurgências" trata-se, entre outras, de rebel-
Casa-Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos dias a tiranias metodológicas, "anarquicamente plu-
(1936) e Ordem e Progresso ( 1952). rais em vez de logicamente singulares" (p. 32).
Trata-se ainda de reflexões desenvolvidas no E, sobre o adjetivo "ressurgente", aplicado à cul-
contexto da reedição de outro livro, um diário de vi- tura lemos, aí mesmo:
agens, escrito em 1953 por ocasião de uma visita do "Cultura ressurgente é a cultura capaz de res-
autor, a convite do governo português a Angola, surgir, quando , ou depois de, por algum tempo,
Moçambique, Goa e ao Oriente, intitulado Aventura artificailmente oprimida ou violentamente reprimida
e Rotina 2 no qual tratou de "terras e gentes do Orien- ou submetida a jugo político, econômico, tecnológico
te e da Africa marcadas por presenças portuguesas e ou religioso. Capaz de definir-se em formas regionais
por afinidades com o Brasil", contendo "audácias e ou transnacionais a que não falte categoria além de
previsões". antropológica, sociológica, de formas que se impo-
b) Quanto aos conteúdos: nham como criativamente socioculturais." (p. 31)

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264
Com relação a sua obra-prima, Casa-Grande & tolicismo suas fontes míticas e místicas, combatendo
Senzala, Gilberto Freyre fala do "caráter insurgente" a secularização excessiva do mundo ocidental e ape-
desse texto. Ele seria "não-positivista, não-racionalista, lando para a maior compreensão entre povos e religi-
anárquico, não- convencionalmente acadêmico"! (p. ões. Ressurge, assim, com este papa um elemento
191) constituinte do catolicismo original: maior solidarie-
dade e espírito cristão genuíno, num mundo excessi-
3. A grande mensagem do livro vamente voltado para a economia e a técnica.
No livro em discussão, Gilberto Freyre vai bem Ainda em nível nacional, Gilberto Freyre deixa
além de questões conceituais ou adjetivas. Trata de um alerta para melhor controlar o desenvolvimento
questões substanciais da contemporaneidade com brasileiro em dois fatos sociais de interesse nacional e
grande intuição e clarividência. A grande novidade transnacional: a preservação da Amazônia e o con-
do livro é que ele não se preocupa primordialmente trole urbano, com foco especial em Brasília, a nova
com o passado colonial brasileiro, ou com aspectos capital.
sociohistóricos da sociedade brasileira do século 19, A colonização da Amazônia não pode ser en-
temas dos livros famosos de sua já citada trilogia. Gil- tregue aos americanos, sem o conhecimento especi-
berto Freyre, no final de sua vida, preocupa-se com o alizado de engenheiros e ecologistas brasileiros inteli-
século 20 e o que nele emerge de novo, ressurge como gentes. (Imagino que se estivesse referindo ao Projeto
preocupante ou promissor, o que nele se insurge con- Ludwig, autorizado nos anos 70/80 pelos militares, e
tra a ordem social estabelecida. cujo controle passou posteriormente aos brasileiros).
Longe de limitar-se à reconstrução da ordem Apesar dos muitos elogios dispendidos ao gê-
colonial escravocrata, patrialcal, rural ou sua passa- nio arqutetônico e urbanístico de Oscar Niemeyer e
gem para uma sociedade patriarcal urbana e o ad- Lúcio Costa, Gilberto Freyre se ressente de que ao
vento da República, Freyre ocupa-se das grandes ten- lado do planejamento urbano, arquitetônico, técni-
dências do seu tempo, do final do século vinte, em co, tenha sido ignorado, omitido, o elemento sócio-
termos trans-nacionais mais que em termos nacionais. cultural, se assim quisermos: uma competente enge-
Essa me parece ser a grande novidade deste livro. nharia social.
Freyre aponta para a emergência de uma nova
força política no cenário mundial: o ISLÃ (no Irã), como Insurgências e ressurgências futuras
um levante contra o mundo ocidental, contra o Tendo aprendido com o autor deste livro a con-
racionalismo e a hegemonia do europeu e america- trabalançar os aspectos positivos e negativos, seja das
no, contra a predominância do cristianismo no mun- insurgências, seja das ressurgências, a saber: o que
do. Trata-se de uma força com poder explosivo que derrubar e o que incorporar do passado, o que evitar
precisa ser reconhecida e incorporada no contexto e o que concretizar no futuro, levanta-se no final da
das forças que garantem (ou não) o equilíbrio da paz leitura desta obra tardia do mestre uma questão de
mundial. fundo: O novo conceitual de Gilberto Freyre, consti-
Em sua "busca do tempo perdido", em Casa- tui um instrumento de análise inovador para repen-
Grande & Senzala, Freyre relembra que já havia apon- sar velhos e novos antagonismos que se encarnam no
tado para esta força do Islã, no período da coloniza- tempo "tríbio", para usar outra criação do autor, ou
ção portuguesa. Naquela época contudo, relembra, seja, aquele tempo que envolve simultaneamente pre-
que os portugueses haviam sido mais hábeis, incor- sente, passado e futuro?
porando elementos islâmicos aos cristãos, mantendo Se reexaminássemos certos fenômenos deste
um equilíbrio saudável nas suas colônias da África. O novo milênio, que freqüentemente se resumem em
Portugal moderno do século 20 perdeu essa habilida- oposições ou antagonismos como:
de, incorporou, demasiadamente os elementos pro- 1. tradição x modernidade
testantes dos colonizadores franceses, ingleses, holan- 2. local x global
deses e belgas da África. 3. o intuído e o logicamente ordenado
O Irã dos aiatolás insurge-se contra o mundo 4. o Islã x o catolicismo novo
ocidental como um todo e se politiza, constituindo 5. cidades coloniais (históricas) x cibercities (pós-
hoje uma força política com um potencial mais modernas)
disruptivo que integrador. para mencionar somente alguns, à luz das no-
Como reação ou até mesmo como velha força vas catergorias freyreanas da "insurgência" e
religiosa e política, ressurge, no contexto do cristia- "ressurgência" certamente chegaríamos a novos
nismo ocidental, um catolicismo NOVO, guiado pelo insights. Ou seja, a resultados surpreendentes. Con-
Papa João Paulo II, que procura preservar para o ca- voco os integrantes dessa mesa e o público aqui pre-

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265
sente a participar desse exercício de reflexão para
convencer-se – na prática reflexiva – que a obra e as
categorias criadas por Gilberto Freyre continuam vi-
vas e atuantes, como nos tempos de sua criação.

_______________________

Notas
1
Barbara Freitag: "Die sozio-ökonomische Entwicklung Brasiliens
aus der Sicht drei brasilianischer Sozialwissenschaftler: G.Freyre,
F. Fernandes und C. Furtado", Freie Universität Berlin, Fakultät für
Sozialwissenschaften, Berlin, 1967 – 270 pp.
2
Freyre, Gilberto (1953). Aventura e Rotina. Sugestões de uma
viagem à procura das constantes portuguêsas de caráter e de ação.
Rio: Livraria José Olympio Editora (dedicado a Manoel Bandeira).
Trata de uma viagem do autor, umaq "peregrina;ção de sete me-
ses pelos vários Portugais".
3
Merquior, José Guilherme (1972). Saudades do Carnaval. Intro-
dução à crise da cultura. Rio: Forense.

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Insurgências e Ressurgências Atuais:
Cruzamentos de Sins e Nãos num Mundo em
Transição

Enrique Rodriguez Larreta – larreta@candidomendes.br


Antropólogo – Instituto de Pluralismo Cultural da Universidade Cândido
Mendes – Brasil

Insurgências e Ressurgências Atuais. Cru- berto é um teórico das relações raciais com
zamentos de Sins e Nãos num Mundo em Tran- suas teses sobre as peculiaridades da miscige-
sição (Editora Globo Porto Alegre 1983) é um nação racial no Brasil e em outros âmbitos do
dos últimos livros de Gilberto Freyre. Faz par- mundo ibérico a partir do estudo da coloni-
te, junto com Além do Apenas Moderno, de zação e do sistema escravocrata. Essa discus-
um conjunto de obras nas quais a reflexão são sobre a formação de uma sociedade hí-
sobre o futuro e a situação da cultura con- brida, multicultural e multirracial continua até
temporânea combina-se com visões retrospec- hoje em um mundo no qual o conflito racial
tivas referentes a suas etapas precoces de for- está longe de ser superado. As idéias de Gil-
mação. Se Gilberto Freyre, como Michelet, berto Freyre devem obrigatoriamente ser in-
nunca pôde fazer história estritamente sem corporadas à agenda de discussão no contex-
ao mesmo tempo incorporar sua própria me- to de uma discussão plural da modernidade.
mória, desde sua monografia inicial Vida So- Um terceiro aspecto da contribuição de Freyre
cial no Brasil nos Meados do Século XIX (1922) parece-me estar mais no terreno do que po-
e em Casa-Grande & Senzala (1933), essa ten- demos chamar filosofia social ou moral, um
dência acentua-se nestes últimos escritos. Não tipo de reflexão de caráter especulativo e
se trata de trabalhos que possam ser conside- ensaístico na qual Gilberto Freyre incursionou
rados, quanto a sua arquitetura e seus proce- freqüentemente em seus textos sobre a civili-
dimentos de pesquisa, no mesmo nível de suas zação lusotropical, a tropicologia e em suas
obras maiores. Há em Gilberto Freyre uma considerações sobre a ecologia humana e o
tripla condição de autor que é importante homem tropical. Nessas linhas de trabalho que
deslindar para poder-se avaliar mais exata- ocuparam em parte as atividades de Gilberto
mente a natureza e variedade de sua contri- Freyre desde os anos 50 em livros como Aven-
buição. Gilberto Freyre é em primeiro lugar tura e Rotina, Um Brasileiro em Terras Portu-
um inovador antropólogo histórico com deci- guesas, Além do Apenas Moderno e este que
sivas contribuições empíricas e metodológicas nos ocupa, identifica-se explicitamente com
no terreno da história social e cultural, nesse uma linha de pensadores na tradição ibérica
sentido perfeitamente comparáveis a outros de antropologia filosófica como Luis Vives,
grandes historiadores do século XX, os quais Miguel de Unamuno, e Julian Marías. A con-
contribuíram decisivamente para o desenvol- tribuição de Gilberto Freyre merece, é claro,
vimento da imaginação histórica moderna, ser avaliada em cada um desses setores do
como Fernand Braudel, Lucien Febvre, Carlo pensamento que se podem ser distinguidos
Ginzburg, Asa Briggs, Emmanuel Le Roy analiticamente, ainda que obviamente se re-
Ladourie. Especialmente em sua trilogia Casa- lacionem entre si. Creio que a distinção é útil,
Grande & Senzala (1933), S o b r a d o s e porque de algum modo cada um das áreas de
Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959) contribuição se dirige a especializações dife-
Gilberto Freyre explorou novos territórios do rentes.
conhecimento histórico e apresentou sugesti- Essa última linha de pensamento, uma
vas hipóteses sobre a formação histórica da filosofia social humanista de raízes hispânicas
sociedade patriarcal brasileira. Essa contribui- com suas incursões em filosofia da cultura,
ção central encontra-se presente em outros teve expoentes de variada qualidade ao lon-
de seus livros e em centenas de artigos que go do século XX. José Guilherme Merquior
registram sugestivas observações sobre a an- observou que o humanismo de Gilberto
tropologia histórica do Brasil. Além disso, Gil- Freyre, diferentemente de muitos outros

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culturalistas hispânicos vagamente inspirados pelo nir a cultura, delimitar sua relação com outros mode-
historicismo alemão, não foi reacionário, excludente, los de organização social, ao mesmo tempo que é di-
negador da ciência e da tecnologia, mas sim que, pelo fícil prescindir do argumento cultural. Nesse sentido,
contrário, foi aberto, inclusivo, atento às conquistas como no caso das diversas dimensões da carreira de
intelectuais e técnicas das ciências tanto sociais, quan- Gilberto Freyre a que aludimos antes, essas questões
to naturais. estão estreitamente relacionadas entre si e parecem
No momento em que foi publicado, com uma estar presentes no fundo de conflitos de interpreta-
forte presença da teoria da modernização como mo- ções fundadas em diversas epistemologias.
delo de desenvolvimento do mundo contemporâneo Das produções presentes na época da publica-
e do positivismo como a epistemologia dominante em ção desses livros de Gilberto Freyre, Christopher Lasch
ciências sociais, a filosofia social ao estilo desses tra- e Daniel Bell podem ser mencionados como cientístas
balhos de Gilberto Freyre não podia contar com mai- sociais que convergem com as preocupações
or favor, sendo descartada simplesmente como ideo- especificadas por Gilberto. Um autor que pela mes-
logia e expressão de um ensaísmo anacrônico. ma época vinha produzindo ensaios com reflexões
Enquanto o processo de resistência crítica de muitos comparáveis é Octavio Paz em livros como Tempo
paradigmas das ciências sociais e as transformações Nublado, no qual se realizam observações similares
da modernidade-mundo deu origem a uma nova dis- às de Freyre sobre a vingança dos particularismos. Nos
cussão comparativa sobre os encontros entre civiliza- mesmos anos, a partir de uma perspectiva diferente,
ções. Juan Goytisolo, em alguns ensaios significativos de in-
Essas novas circunstâncias aceleradas especial- terpretação da cultura espanhola, reintroduziu
mente através das mudanças na relação tempo/espa- Américo Castro sobre as raízes mouriscas de Espanha.
ço, provocadas pelas tecnologias do transporte e da O livro talvez tivesse ganhado com um traba-
comunicação, assim como por certos processos polí- lho de edição mais rigoroso. Algumas das repetições
ticos de transcendência mundial (1989), voltaram a são desnecessárias, e as constantes digressões dificul-
reatualizar a reflexão cultural como quadro explicativo tam às vezes a leitura. Entretanto, para um leitor ha-
para explicar fenômenos sociais globais. A questão do bitual de Freyre, é interessante observar a amplitude
choque ou encontro civilizatório, a noção de comu- de interesses e a curiosidade do autor no final de sua
nidade, identidade e tradição reapareceram com enor- vida e como as mais variadas referências se entrela-
me força nesta última década. çam com uma visão central e um conjunto de idéias
A crítica à modernidade ocidental formulou-se constantes já desde seus primeiros livros. A última
como questionamento da psicologia social e da teo- parte da obra de Gilberto Freyre foi marginal em rela-
ria da história da Ilustração (John Gray1995), como ção com o que se estava produzindo no mesmo mo-
um problema de "renovação da identidade ocidental" mento na área acadêmica brasileira. O conflito apa-
(Samuel Huntington, 1996) ou de desenvolvimento rece veladamente nas várias críticas ao "Phdeísmo"
de formas de imaginação moral que facilite a comu- contidas no texto e ao marxismo vulgar. Por conheci-
nicação entre culturas (Amartya Sem 2000); o certo é das circunstâncias históricas, a Universidade brasilei-
que a necessidade de uma teoria da cultura o seja ra encontrava-se na época em conflito com o regime
dos modos de produção de significados socioculturais político e fortemente marcada por um compromisso
esteve mais e mais no centro da análise de um con- oposicionista. As discussões sobre a sociedade pós-
junto importante de pensadores contemporâneos. Um industrial à Daniel Bell e os ensaios inspirados no cli-
resultado interessante destas buscas foi a comprova- ma de contracultura foram minoritários ou quase
ção de que pensadores eminentes das mais variadas inexistentes em comparação à presença central da
disciplinas não têm a última palavra e na verdade ne- sociologia da dependência e do marxismo. Mais que
nhuma das disciplinas pode aspirar à preeminência em termos de cultura, os universos sociais se dividiam
quando se trata de discutir este tema. A teoria cultu- em termos ideológicos. Inclusive a leitura frankfurtiana
ral da Antropologia foi posta à prova e é objeto hoje do marxismo não foi a influência dominante nessa
de uma animada discussão: (Lila Abu Lughod, Ulf época (Roberto Schwartz 1999). A crítica cultural do
Hannerz, Arjun Appadurai, Clifford Geertz); os filó- capitalismo chegaria bastante mais tarde. É sugestivo
sofos vêm participando no debate (Jacques Derrida, o modo como Gilberto se mostra sensível a essas in-
Martha Nussbaum, Richard Rorty, Gianni Vattimo, fluências. Daniel Bell, Theodor Roszak são muito
Charles Taylor) e, no campo da ciência política e a mencionados nas análises do autor.
sociologia, além do próprio Samuel Huntington e John O tema do livro é as condições sociais e cultu-
Gray, Anthony Giddens, Ulrich Beck e Roland rais da modernidade e a forma é uma combinação de
Robertson, a discussão continua aberta. É difícil defi- amplas notas de leitura com reflexões sobre sua pró-

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pria obra, influências intelectuais e observações. entais no Ocidente.
As noções de insurgência e ressurgência estão A discussão sobre tradição nos últimos anos
no título e organizam a reflexão. Encontram-se em- ocupou um lugar importante nas ciências sociais
pregados em uma forma alusiva e literária, que suge- (Anthony Giddens, Eric Hobsawm) e é neste sentido
re mais do que argumenta de modo concludente. Para uma continuação dos debates que Gilberto Freyre
os conhecedores de outros de seus livros são interes- contribui para apresentar neste livro. na coleção de
santes alguns aspectos da teoria da cultura de Gilber- ensaios organizada por Eric Hobsawm – The Invention
to Freyre que aparecem nessas notas. of Tradition (1983) – as tradições inventadas são defi-
O conceito de insurgência corresponde aproxi- nidas como um conjunto de práticas rituais e simbóli-
madamente à noção de revolução, com seus traços cas que buscam inculcar certos valores e normas ti-
de novidade, mudança qualitativa e ruptura com o dos como ancestrais mediante a repetição. Definem-se
quadro histórico prévio. Assim, a Revolução Francesa como respostas a situações novas que adotam a for-
ou a Puritana de Cromwell na interpretação de ma de referência a um passado tido como não muda-
Chesterton (89). A ressurgência, enquanto isso, é um do.
contramovimento de tradições reprimidas, um fundo Somente em parte os movimentos de
cultural que os processos radicais de racionalização ressurgência discutidos por Gilberto Freyre
tentaram suprimir. A ressurgência representada, por correspondem a essa noção. Mais que a reivindica-
exemplo, pela Restoration inglesa é uma forma de ção de um passado inamovível, as ressurgências ca-
irrupção de uma parte da natureza humana que não racterizariam-se pela explicitação de valores não con-
estava contemplada no intolerante racionalismo pu- templados pelos contrapoderes hegemônicos. Podem
ritano. Freyre traça um paralelo com a mística islâmica ser emergências de costumes "networks of convention
diante do domínio do imperialismo racionalizante de and routine" (Hosbawm,1983), hábitos e memórias
Ocidente. Propõe uma adaptação não radical das locais não exatamente "invented traditions"
insurgências e das ressurgências, realizando uma se- inamovíveis. Na interpretação de Gilberto Freyre, as
leção que leve em conta as circunstâncias de tempo e oposições Ocidente – Oriente e Insurgência –
espaço social. Ressurgência correspondem, em grandes traços, ao
Suas preferências valorativas vão no sentido de dualismo razão-emoção razão – instintos, como no
um racionalismo ampliado que integre o mais direta- contraponto nietzscheano Apolo – Dionísio, popula-
mente racional, no sentido instrumental, com o rizado por Oswald Spengler e que fundou os tipos
emotivo e o simbólico. Do mesmo modo, sua posição culturais de Ruth Benedict .
é de equilíbrio e de incorporação da tradição na mu- A adaptação civilizatória do português ao trópi-
dança sem rupturas nem extremismos bruscos. É uma co, um tema que ocupou Gilberto ao longo de sua
perspectiva conservadora, ainda que aberta à inova- vida com variadas inflexões, reaparece neste livro que
ção, especialmente no domínio da vida social. Um destaca a importância para as ciências humanas de
tipo de filosofia social que Merquior identifica como uma perspectiva ecológica que esteja atenta às dife-
um – anarquismo conservador – caracteristicamente rentes repercussões que tem sobre um grupo huma-
inglês.e que se encontra presente em autores como no sua situação no espaço e no espaço-tempo. Nes-
G.K Chesterton, muito apreciado na América Latina sas passagens e nas considerações finais sobre a
nas primeiras décadas do século por Jorge Luis Borges mistura racial brasileira é como filósofo social que
e Pedro Henríquez Ureña. Gilberto Freyre fala. O que transmite é uma sabedo-
Nesse livro de final de vida, Gilberto Freyre co- ria lírica fundada em um conjunto de saberes
menta estudos de história da idéias como H. Stuart empíricos, mas não redutível a estes. Trata-se de um
Hughes Consciouness and Society (1958), que exami- projeto de exposição dos valores possíveis de uma
na a importância das correntes vitalistas no pensamen- modernidade alternativa.
to europeu, e encontra ali ratificadas algumas das prin- Gilberto, desde seus primeiros escritos nos anos
cipais influências de seus anos de formação: Henri 20, influenciados pela leitura de Lafcadio Hearn, que
Bergson, Georges Sorel, William James. lhe revelou a estética do trópico e nas críticas da civi-
A discussão de Gilberto Freyre sobre as lização industrial do século XIX com sua religião do
ressurgências antecipa fenômenos que se estenderão progresso encontrada em autores como George
na sociedade contemporânea, como é o caso dos Santayana e Walter Pater, vinham preparando o ter-
movimentos étnicos, o ressurgimento dos nacionalis- reno para uma filosofia social na qual a temporalidade
mos e mudanças na sensibilidade contemporânea em não se encontrasse subsumida na linearidade abstra-
relação à natureza e à incorporação de outras tradi- ta da produção industrial e na qual a tradição recupe-
ções religiosas na forma de influências de cultos ori- rada de modo seletivo e os mitos sociais encontras-

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269
sem seu lugar. "O comportamento humano, em soci- nhia das Letras,1999.
edades e em culturas, escaparia a racionalizações: SEN, Amartya. East and west: the reach of reason. The New York
Review of Books. New York, v. 47, n.12, jul. 2000.
teriam que ser aceitos como, em grande parte, não
racionais. Daí a importância dos mitos sociais, do con-
ceito de Georges Sorel: mitos por seu próprio caráter
de mitos vindos de raízes ou impulsos menos lógicos
ou racionais que intuitivos. Como seriam as pelo pro-
fessor Julian Marías chamadas "vigências sociais", quase
sempre de um vigor menos lógico ou racional que
intuitivo: um intuitivo reforçado por consagrações em
mores, em instituições, em normas: mesmo em nor-
malidade." (180) O que expõe aqui Gilberto Freyre a
partir de Sumner, e Georges Sorel – mas também po-
deria ter citado Hegel, Durkheim ou Louis de Bonald
– é a densidade do social que não se deixa reduzir
totalmente a lógicas formais ou modos totalmente
conscientes de acordo racional. Mas até que ponto?
Qual é o papel da reflexão consciente na seleção de
valores e modos de adaptação humana? Qual a
especificidade das formas jurídico-políticas que não
se deixam subsumir na totalidade social? Gilberto
Freyre foi um precursor e um pioneiro na
contextualização sociocultural da história do Brasil,
tirando-a de uma limitada história dos acontecimen-
tos e do evolucionismo social. Esse, nos termos do
historiador Evaldo Cabral de Melo, foi o "ovo de
Colombo" freyriano, a relação sincrônica entre histó-
ria e antropologia cultural, um tipo de olhar celebra-
do neste escrito tardio. Nos momentos em que o en-
saio desliza em direção à livre especulação nos
territórios da filosofia da cultura, é preciso deixar-se
levar pelo impulso da curiosidade de Gilberto Freyre
e encontrar muitas observações agudas dentro de uma
reflexão aberta sobre os encontros culturais do mun-
do contemporâneo; parece-me que é necessário res-
gatar mais o programa de investigação que as inter-
pretações específicas inclusive voltando a alguns de
seus estudos metodologicamente mais complexos,
especialmente seus livros maiores de história cultural.

_______________________

Bibliografia
GRAY, John. Elightenment’s wake: politics and culture at the close
of modern age London: Routledge, 1995.
HANNERZ, Ulf. Cultural complexity: studies in the social
organization of meaning. New York: Columbia University Press,
1992.
HEARN, Lafcadio. Two years in the french west Indias. New York:
1923.
HOSBAWM, Eric; RANGER, Terence. The invention of tradition.
Cambridge: s. n., 1983.
HUNTINGTON, Samuel.P., The Clash of Civilizations and the
Remaking of World Order, Simon and Schuster, New York 1996
PAZ, Octavio. Tempo nublado. Barcelona: Seix Barral, 1983.
SCHWARZ, Roberto: Seqüências brasileiras. São Paulo: Compa-

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O Local e o Universal na Obra de Gilberto
Freyre: Notas sobre Interpretação do Brasil 1

Omar Ribeiro Thomaz – omarte@zip.net


Antropólogo – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Brasil

”Las naciones, en efecto, laborioso producto a relação entre diferentes grupos étnicos e ra-
histórico, han de morirse tarde o temprano, y ciais tendia a produzir sociedades
creo y espero y deseo que mucho antes de lo miscigenadas cultural e racialmente, no inte-
que nos figuramos. Les sobreviverán, de un rior das quais pólos inicialmente antagônicos,
modo o de otro, los pueblos, su distanciados pela situação colonial, acabari-
imperecedera sustancia. La obra mayor tal am por se aproximar num processo de supe-
ração de conflitos seculares.
vez de la historia sea crear razas históricas y
dar a los pueblos personalidad No contexto latino-americano, o Brasil
diferenciándolos, y preparar así la representava uma situação paradigmática: sua
integración futura de la universal familia formação estava ligada a uma escravidão
humana, bajo el padre comun.” sistêmica, o País havia mantido sua unidade
Miguel de Unamuno (1898) 2 política e, há muito, intelectuais, diplomatas
e viajantes observavam com espanto um uni-
Em Interpretação do Brasil 3 Gilberto
verso à primeira vista resistente à criação de
Freyre reúne um conjunto de conferências
guetos e que, mesmo hierárquico, desigual e
apresentadas em instituições norte-america-
injusto, cultivava uma relação no mínimo fra-
nas em 1944 e pensadas, portanto, tendo em
terna entre os diferentes grupos que compu-
conta o público estrangeiro. Sua leitura, con-
nham o todo nacional.
tudo, revela um momento crucial de sua obra.
Para uma Europa atormentada diante
De um lado, a reafirmação do programa inau-
de uma tentativa radical de lidar com a diver-
gurado com Casa-Grande & Senzala, e mes-
sidade étnica e religiosa no interior de uma
mo a tentativa de apresentar uma síntese; de
mesma fronteira nacional; para os Estados
outro, o anúncio da radicalização (e simplifi-
Unidos que ainda não tinham superado a di-
cação) de suas propostas interpretativas para
visão entre o Norte e o Sul do país, este últi-
todo o "mundo português" – projeto iniciado
mo marcado por rigorosas leis que amputa-
com O mundo que o português criou, de
vam a cidadania da população de
1940. 4 Observa-se uma inflexão, uma passa-
afro-descendentes; para a África do Sul que
gem, como que uma interpretação geral do
caminhava a passos largos em direção à
Brasil no tempo e no espaço a informar a
institucionalização do apartheid; e para todos
universalização de sua teoria luso-tropical.
aqueles que previam a inevitável
Interpretação do Brasil traduz a impor-
descolonização violenta da África e da Ásia, a
tância crescente que o Brasil e as representa-
simples idéia da existência de uma possível
ções construídas em torno de sua realidade
superação de conflitos pela via relacional e
passam a ter num mundo cada vez mais pre-
mesmo pela miscigenação, poderia ser um
ocupado com as conseqüências potencial-
alento. Tal realidade deveria ser investigada.
mente violentas e dramáticas de contatos en-
É nesse contexto que intelectuais nor-
tre povos, culturas e religiões. Em meados da
te-americanos e europeus começam a olhar
década de 1940, ganhava força a idéia de que
para o Brasil e a se interessar por seus pensa-
na América Latina em geral, no Brasil em par-
dores. Buscava-se compreender um padrão
ticular, o padrão de relações interétnicas era
diferenciado de relações raciais e, ao que tudo
específico quando comparado aos Estados
indicava, o Brasil poderia fornecer um bom
Unidos, à Europa ou aos continentes coloni-
modelo. Para além de constituir um campo
zados na última onda imperial: o catolicismo
privilegiado de observação e análise, uma tra-
teria deixado por aqui marcas universalistas e
dição de pensamento nativa se propunha a

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271
interpretar as nossas particularidades. Tradição que modernismo, "eventualmente distinto daquela postu-
não era unívoca, pois implicava diferentes visões so- ra a um só tempo nacionalista e modernizadora que
bre o País, sua viabilidade política, social e cultural se tornava gradualmente hegemônica entre nós":7 o
em meio a um debate que acompanhava a sua pró- nacionalismo far-se-ia sentir nas peculiaridades das
pria transformação. Assim, se desde meados do sécu- diferentes regiões do País. E, na falta de um movimento
lo XIX a idéia de que a compreensão do País exigia muralista nos moldes do mexicano entre nós, Casa-
especial atenção para os grupos raciais e étnicos for- Grande & Senzala acaba por constituir um verdadeiro
madores – indígenas, portugueses e africanos –, o lu- mural da vida brasileira, a partir de estímulos que evo-
gar ocupado por cada um desses grupos no passado, cam a um só tempo "imagens" e "sentidos". Retomo
no presente e, sobretudo, no futuro da nação e do aqui a ênfase dada pelo antropólogo Ricardo
povo despertava acalorados debates. Benzaquen de Araújo à oralidade característica da
Entre as décadas de 1920 e 1940, deparamos obra de Gilberto Freyre: é a partir de uma escrita cujo
com uma urbanização crescente, com o fortalecimen- referencial são os termos da vida cotidiana que Freyre
to de gerações de migrantes e a afirmação de corren- dialoga com o leitor, transformando-o num partícipe
tes culturais que pregavam uma revisão da tradicional do drama nacional; assim, Freyre nos introduz num
relação do Brasil com os centros metropolitanos de universo profundamente sensorial, povoado de chei-
produção cultural. Artistas e pensadores propunham- ros, sons, sabores e imagens que, inevitavelmente,
se a revisitar o Brasil com outros olhos, buscando não evocam a memória do leitor. Memória não da experi-
apenas aquilo que se considerava a nossa carência, ência individual, mas aquela que diz respeito ao mito,
mas apontando para a nossa especificidade. às histórias que escutamos uma e outra vez na infân-
É certo que tal movimento de busca de uma cia e adolescência, que não nos levam a um tempo
"identidade nacional" era antigo, uma tradição que preciso, mas a qualquer um da nossa história coletiva
remonta, pelo menos, ao nosso Romantismo. Sabe- e individual. Memória que nos leva, enfim, ao
mos, contudo, que o modelo a partir do qual se pen- transtempo característico de Casa-Grande & Senzala.
sava o "nacional" dizia respeito antes a ideais estran- É o próprio Freyre quem dá um dos sentidos de
geiros do que, propriamente, à realidade do País. Tal sua obra em Interpretação do Brasil: a glorificação de
processo já produzira resultados curiosos, para não um povo, responsável último pela formação de uma
dizer aberrantes, como a defesa simultânea de idéias cultura e de uma sociedade. Tal como os muralistas
liberais e da escravidão, levando a um paradoxo já mexicanos, tratava-se não da busca de heróis indivi-
apontado por Roberto Schwartz.5 Em todo caso, a jo- duais, mas daqueles representativos dos esforços da
vem república brasileira inaugura o século XX quase coletividade. Nas suas palavras, "gostaria de ver inclu-
que envergonhada de si mesma, quando muito pro- ído num monumento à plantação a senhora de enge-
jetando para um futuro longínquo a sua realização nho, o escravo do campo, o moleque, companheiro
nacional, pensada em termos de "civilização": a mar- paciente e às vezes masoquístisco do senhor-moço, e
cha inevitável do progresso, aliada à migração euro- ainda a mulata que no Brasil ficou sendo chamada de
péia, ao branqueamento progressivo da população e a mucama: a companheira da senhora branca".
às altas taxas de mortalidade verificadas entre pretos Ao grande mural da gênese do Brasil, onde cada
e pardos acabariam por fazer da "cultura de salão" a elemento parece repor a dinâmica do todo que, evi-
"cultura nacional", a valsa deveria, enfim, vencer o dentemente, tende a se reproduzir – daí o criticado
lundum, e o piano se sobrepor ao cavaquinho. 6 funcionalismo característico do autor –, Freyre suce-
Tal situação, no mínimo desconfortável, seria su- de outro grande afresco que incorpora o tempo, a
perada a duras penas e, para tanto, contribuíram de- história. E se Casa-Grande é um grande mural que
cisivamente movimentos que, de diferentes formas, sintetiza o Brasil na sua totalidade, Sobrados e
identificavam-se com o mote modernismo. Era urgente Mucambos, publicado poucos anos depois, introduz
a superação da cópia de padrões artísticos e o movimento, a transformação: a urbanização, que
comportamentais estrangeiros, o estilo postiço dos remonta ao ciclo do ouro e às Minas Gerais, ganha
cafés de Lisboa e Paris deveria ser substituído por um uma dinâmica inusitada com a vinda da corte,
genuinamente nacional, que atentasse para a nossa prolegômenos de um verdadeiro processo civilizatório
realidade. E foram as próprias vanguardas européias entre nós. E se novas ambigüidades são introduzidas
que, num primeiro momento, dotarão de forma a nesta segunda grande obra, novos antagonismos pa-
ousadia de jovens paulistas, mineiros e cariocas em recem ameaçar o nosso grande mural colonial: afinal,
torno da máxima de Oswald de Andrade, "Tupi or not a contrapartida da europeização do branco no sobra-
tupi". do, de seu distanciamento da luxúria e do desenfreio
Paralelamente temos a afirmação de um outro sexual da Colônia, é a reafricanização do negro no

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mocambo. Mas um elemento dinamizador é mais for- tura brasileira não estaria ameaçada: seu poder se
te: o mulato, produto mais acabado da nossa história expressava na sedução exercida sobre os estrangeiros
social, é plástico por excelência, se europeíza no so- que rapidamente eram devorados por uma nação di-
brado, se africaniza no mocambo, e representa, em nâmica que, no entanto, tendia a reproduzir uma sé-
última instância, a superação possível dos novos an- rie de constantes. Dentre estas constantes, a mais sig-
tagonismos criados pela distância entre o salão e o nificativa seria a capacidade de assimilação.
cortiço, o sobrado e o mocambo, repondo, enfim, a Assimilação do índio e do negro, mas não só: tam-
harmonia entre os contrários, aquela totalidade ten- bém do alemão, de outros colonos europeus e japo-
dente ao equilíbrio constituída na nossa gênese colo- neses. Verdadeira política social que prescindiria de
nial. Para além do mulato, continuaria desempenhan- uma ação efetiva do Estado. 8
do um papel central a mulher, negras e mulatas, O Brasil tem que encarar ainda o problema da
cozinheiras, amas-de-leite ou mucamas, que trazem, assimilação de certas tribos ameríndias e também da-
para o sobrado, concepções e histórias do mocambo, queles pequenos grupos de descendentes de negros
sobretudo através de suas relações com as crianças. cuja cultura conserva-se ainda predominantemente
Os aspectos fundamentais da obra de Gilberto africana. Embora existam brasileiros com preconcei-
Freyre estavam, assim, desenhados em suas duas pri- tos de raça, que consideram desgraça afastarmo-nos
meiras grandes obras. Interpretação do Brasil será con- de qualquer modo dos padrões de moral, de costu-
cebido quase dez anos após à primeira publicação de mes, e jurídicos consagrados pela Europa ou pela Igre-
Sobrados e Mucambos (cuja segunda edição será subs- ja, a tendência geral, entre os espíritos mais esclareci-
tancialmente modificada), e, se guarda com suas obras dos do Brasil é no sentido de mantermos em relação
primeiras uma relação de compromisso, anuncia no- a tais africanos tanto como em relação aos ameríndios,
vos movimentos e mesmo uma inflexão que há todo uma política lenta e inteligente de assimilação, de
o interesse em investigar. maneira que o grupo assimilador possa incorporar à
sua cultura valores de interesse geral ou de importân-
O primeiro ponto a ser salientado é a própria cia artística que se encontrem vivos entre sub-grupos
idéia de "interpretação". Às tradicionais questões em ou sub-culturas profundamente diferenciados da eu-
torno do "Brasil" – e o diálogo de Freyre é aqui, nova- ropéia.
mente, com a tradição brasileira, José Bonifácio, Von Uma política semelhante provavelmente terá
Martius, Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Nina que ser praticada em relação só aos alemães e a ou-
Rodrigues, Euclides da Cunha, Manuel Bonfim, Oli- tros colonos europeus, e também com japoneses nas
veira Viana –, de sua natureza e "viabilidade", junta- sub-regiões do Brasil onde tais elementos têm vivido
se a originalidade do método, a sustentar uma inter- por mais de uma geração em estado de isolamento
pretação geral do País, nos seus poucos séculos de ou segregação. 9
história, da Amazônia ao Pampa gaúcho. Haveria algo, É a análise do processo de assimilação que per-
para além de um território cercado por fronteiras mais mite uma correta interpretação do Brasil. Diz respeito
ou menos definidas, para além das, por vezes inefica- aos seus primórdios, que nos lançam às terras da Eu-
zes, estruturas de um moderno Estado nacional, que ropa, da África e do Oriente e, sobretudo, diz respei-
criaria uma comunhão de espírito entre todos os bra- to a um padrão que tende a se reproduzir no tempo e
sileiros. Elementos, associados inicialmente à desor- no espaço. Resistente à história, à transformação, pois
dem, rapidamente seriam incorporados, deglutidos, se reproduz ao longo do tempo e,
pelo todo nacional brasileiro. Já em O mundo que o concomitantemente, produtor de história, pois res-
português criou (1940), Freyre chamara atenção para ponsável pela formação de uma nova entidade políti-
a capacidade da cultura brasileira de, ca, social e cultural em território tropical. A descober-
antropofagicamente, assimilar os migrantes que pre- ta deste padrão levaria, enfim, a vislumbrar o futuro:
dominavam em regiões do Sul do País: numa viagem a assimilação característica da sociedade brasileira ten-
a cidades habitadas sobretudo por descendentes de deria a incorporar os elementos exógenos que, longe
alemães, Freyre observa a capacidade sedutora da de representar possível desordem, acabariam por se
totalidade luso-brasileira, e vê alemães comendo ar- adaptar às bases dos valores culturais luso-brasileiros,
roz com feijão e farofa, e ruivas rebolando na cadên- responsáveis pela formação de uma comunidade cris-
cia baiana com sandálias nordestinas. Entretanto, es- tã, de fala portuguesa e sem preconceitos de raça.
tes mesmos alemães aportariam à cultura nacional O subtítulo "Aspectos da formação social brasi-
produtos culturais de seu país de origem, criando no- leira como processo de amalgamento de raças e cul-
vas realidades sincréticas que guardariam elementos turas" é extremamente significativo: uma correta in-
comuns com as demais regiões do País. Enfim, a cul- terpretação do Brasil implica, por um lado, o

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reconhecimento da diversidade cultural e racial da sua somar amor com servidão, evita conflitos e, sobretu-
população, e por outro, a análise de processos que do, acaba por estabelecer uma verdadeira política de
levam não à formação de guetos, mas a um amálgama, assimilação, independente de poderes como o Esta-
sob a batuta de uma inteligente política (social) de do ou a Igreja.
assimilação. Sabemos os múltiplos significados do verbo co-
Associar a assimilação à antropofagia obriga a mer no português popular do Brasil: a assimilação dar-
enfrentar um outro traço da obra de Freyre, se-ia aqui pela deglutição sexual do outro13; o fruto
reproduzida em Interpretação do Brasil: a centralidade desta antropofagia, o mulato ou o mestiço, seria cria-
da vivência sexual para uma correta interpretação da do junto à casa-grande e reconhecido como filho do
nossa formação. E aqui, novamente, Freyre retoma – senhor; teria, enfim, um lugar na sociedade brasilei-
sem a mesma riqueza de detalhes que encontramos ra. Como afirma Freyre,
em Casa-Grande & Senzala – a importância da atra-
(...) era comum, entre senhores de engenho, edu-
ção do homem português pela mulher morena, pela
car os filhos mulatos, ou ilegítimos, dando-lhes a mes-
negra, índia e, por fim, pela mulata. Mote primeiro
ma instrução que aos legítimos desde que mostrassem
da assimilação, o processo não se dava no plano jurí-
talento ou gosto pelas letras. (...) Isto quer dizer que
dico, administrativo ou a partir de instituições escola-
no Brasil nem o sistema de plantação nem o sistema
res (tal como se pretendia nos modernos impérios co-
monárquico se fecharam duramente à democracia so-
loniais português e francês): é no ato sexual que temos
cial ou à igualdade política. 14
um primeiro movimento no sentido de assimilar o
outro (ou melhor, a outra), quase sempre morena. 10 Deparamos aqui com um dos elementos que
Qual a origem desta peculiar atração? É, novamente, provocará a maior confusão entre os estudos de
na história de Portugal que encontramos as bases da "colonialismos comparados": a idéia de que a
liberdade sexual da Colônia: “homens sós, aventurei- mestiçagem corresponderia a uma peculiaridade luso-
ros, encontraram inicialmente na índia e, posterior- brasileira. Hoje sabemos que o mestiço é uma reali-
mente, na negra, o paralelo a um ideal de beleza há dade em todos os processos coloniais, do inglês, ao
muito presente na cultura lusitana: a moura encanta- belga ou holandês. A questão não é a existência do
da. mestiço, mas o lugar por ele ocupado na sociedade
colonial. Ao contrário do Brasil, onde o mestiço era
(...) a idealização pelo povo português da mu-
reconhecido pelo senhor branco e mesmo podia her-
lher morena, ou da moça ou mulher moura feita o tipo
dar seu nome, ocupando, assim, um lugar na hierar-
supremo de beleza humana, teve certamente grande
quia funcional do sistema, em outros contextos, o
efeito sobre as relações do colonizador lusitano com
mestiço, ao não ser reconhecido pelo pai que lhe
as índias, ou ameríndias, do Brasil.
negava o nome, ou bem era assimilado pelo grupo da
Místicos e poéticos, cheios de idealizações em
mãe – situação recorrente em contextos africanos –
torno do seu passado, gostando das belas plantas tan-
ou bem passava a ocupar um "não lugar", rejeitado
to como das plantas comerciais e úteis, os portugue-
pelos colonizadores e colonizados – fenômeno ob-
ses romantizaram alguns de seus bosques e das suas
servado em determinadas colônias do Oriente, como
fontes envolvendo-os em fascinantes lendas de prin-
a Indonésia ou Hong-Kong.15
cesas mouras. Assim, o jovem que tem a sorte de des-
cobrir e tratar bem o animal ou a planta em que se
Em 1944, Gilberto Freyre volta a falar de raça,
disfarça alguma bela princesa mourisca do passado,
já no título do seu ensaio. Não teria sido ele um gran-
com ela se casará para ser rico e feliz a vida inteira. E
de crítico de uma noção biológica de raça que por
em todas as histórias e lendas sempre a moça morena,
tanto tempo havia caracterizado o pensamento social
moura ou mourisca, é olhada como o supremo tipo de
brasileiro? Não era seu objetivo primeiro a superação
beleza e de atração sexual; e os mouros considerados
da vergonha que, entre fins do século XIX e início do
superiores e não inferiores aos portugueses puramen-
XX, havia imprimido um caráter postiço a uma elite
te brancos”.11
que procurava reproduzir modos europeus em terras
Retoma, assim, em Interpretação do Brasil o tropicais e se acostumara a olhar com desprezo para
tema clássico de Casa-Grande que, entretanto, já ha- a malta a quem resistia denominar "povo"?
via aparecido em outros autores (de outra perspecti- É fundamental retomar aqui a idéia de "raça"
va) como Paulo Prado: a liberdade sexual12 da Colô- que irá percorrer toda a obra de Gilberto Freyre, so-
nia não apenas como estratégia de povoamento de bretudo porque, ao contrário do que se afirma, o so-
terras pouco densas demograficamente, mas como ciólogo não procede a uma simples substituição ou
fundadora de uma sociabilidade específica que, ao superação da noção de "raça" a partir da idéia de "cul-

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tura" como fizeram supor muitos dos seus críticos e fácil, mercantil, para o agrícola; organizada a socieda-
comentadores.16 de colonial sobre base mais sólida e em condições mais
Não deixa de provocar, por vezes, um certo estáveis que na Índia ou nas feitorias africanas, no Bra-
desconforto quando aqui e acolá uma idéia suposta- sil é que se realizaria a prova definitiva daquela apti-
mente superada de "raça", como um conjunto de ca- dão.
racterísticas inatas transmitidas geneticamente, reapa- (...)
rece com toda a força em Interpretação do Brasil. E A singular predisposição do português para a
devemos questionar sobre a que classe de assimila- colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, expli-
ção se refere Freyre se estamos lidando com um ca-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes,
patrimônio genético preestabelecido. Como assimilar cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África.
socialmente um patrimônio genético? Nem intransigentemente de uma, nem de outra, mas
E a idéia de "raça" que surge em Interpretação das duas”. 18
do Brasil – às vezes par a par com a noção de "etnia" – O tema dos antecedentes da formação do Bra-
é a mesma elaborada por Freyre em Casa-Grande & sil será novamente retomado por Freyre e, em última
Senzala, descortinada com maestria por Ricardo instância, é a base de uma interpretação razoável da
Benzaquen de Araújo. 17 Com efeito, não temos um "integração, ou equilíbrio, de elementos antagôni-
simples fortalecimento da idéia de "cultura" em detri- cos",19 pois também na Península, na Espanha ou em
mento da noção de "raça" – como tantas vezes foi alar- Portugal, o mouro conviveu com o cristão que convi-
deado pelo próprio Gilberto Freyre quando tratava veu com o judeu. Se houve, afirma Freyre, períodos
de enfatizar sua dívida com o culturalismo norte-ame- de intolerância, também os houve os de "compreen-
ricano, em particular com Franz Boas: mais do que a são e cooperação".20 E foram esses períodos de tole-
"raça" ser responsável por comportamentos e aptidões rância que teriam criado um tipo histórico portador
de um grupo específico, ela é um resultado complexo de um padrão de comportamento, de um ethos res-
da história deste grupo, em profunda relação com o ponsável pela construção de uma nova "raça históri-
meio geográfico. Produto de uma relação dinâmica ca" no Brasil: adaptada ao meio, fruto do próprio
entre meio e história, migrações e contatos interétnicos ambiente ecológico, e do encontro de raças (portu-
teríamos a formação de uma raça histórica, que, de gueses, cristãos novos, bantos, tupis, tapuias, etc.) ora
sua parte, seria promotora de transformações históri- violento, ora cooperativo. Antagonismos que tendem
cas inerentes ao seu padrão de comportamento. ao equilíbrio e à harmonia, tal é a nossa herança ibé-
Assim, não apenas no Brasil haveria a formação rica, no texto de Freyre transformada em algo positi-
de uma nova "raça histórica", produto da especial vo, do qual deveríamos nos orgulhar.
aclimatabilidade lusitana na adaptação às terras e às
gentes dos trópicos: o próprio tronco luso seria uma E uma das bases da realidade peninsular é sua
"raça histórica" para a qual concorreram uma varie- própria condição geográfica, fronteira entre a Europa
dade imensa de grupos étnicos e culturais, de judeus e o Norte da África, entre Oriente e Ocidente, o que,
a mouros, de celtas a africanos, todos conjugados com muitas vezes, fez com que Freyre visse nos ibéricos
a particularidade ecológica da Península que obriga- um povo semelhante ao russo, com a mesma riqueza
va este povo a se lançar no mar Oceano. cultural, o mesmo universo de contradições e, sobre-
Um País que se considerava sem história vê, as- tudo, com a mesma capacidade de adaptação e assi-
sim, a sua origem nos anos que antecederam o seu milação. 21 Nas palavras de Gilberto Freyre,
próprio "descobrimento": uma interpretação adequa-
“E como na Rússia, as concepções e condições
da do Brasil nos obrigaria, segundo Freyre, a uma aná-
antagônicas de vida dos espanhóis e portugueses não
lise cuidadosa da realidade portuguesa peninsular e
chegam nunca a um ponto de equilíbrio sem enorme
das andanças lusitanas pelas ilhas Atlânticas, pela costa
conflito. Mas sempre o processo de fusão, de acomo-
africana e pelo longínquo Oriente. Pois nestas peculi-
dação, de assimilação, mostrando-se com o poder
aridades encontraremos constantes que se imporiam
maior.
na formação do País. Já no primeiro parágrafo de Casa-
(...)
Grande & Senzala, afirmava Gilberto Freyre:
Isto não impede que, sob outros aspectos, rus-
“Quando em 1532 se organizou econômica e
sos e hispanos sejam não somente mais dramáticos,
civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um
porém psicologicamente mais ricos e culturalmente
século inteiro de contato dos portugueses com os tró-
mais complexos do que os povos sem aquela
picos; de demonstrada na Índia e na África sua apti-
duplicidade de alma, que lhes desenvolve uma capa-
dão para a vida tropical. Mudado em São Vicente em
cidade especial não apenas para suportar contradições
Pernambuco o rumo da colonização portuguesa do
mas para harmonizá-las. E esta capacidade é que os

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russos agora nos revelam de uma maneira impressio- Freyre, e, sobretudo, promovia, sem violência (sic), a
nante e que é a mesma, diga-se, já revelada pelos por- russificação da sua periferia e de minorias étnicas e
tugueses e espanhóis nas fases mais criadoras da sua nacionais (assimilação); e se a Península Ibérica, tal
história; e entre os primeiros como entre os últimos como a Rússia, resultava numa fronteira entre Orien-
revelada sempre através dos mesmos e clássicos mé- te e Ocidente, o Brasil, tal como a União Soviética,
todos pelos quais os indivíduos e grupos acabam re- não apenas possuía imensas fronteiras a serem ocu-
solvendo os seus problemas mais íntimos de persona- padas, mas promoveria o encontro entre povos, raças
lidade”.22 e culturas que, inicialmente antagônicas pela violên-
cia da estrutura social reinante, acabaria por resultar
Métodos que evocam a intimidade das relações
na superação do secular enfrentamento entre Orien-
interpessoais antes da ação do Estado: esta seria a gran-
te e Ocidente.25
de herança ibérica no Brasil.
Mas há outro ponto a ser destacado nessa com-
Creio que o Brasil, como comunidade nacio-
paração entre a União Soviética (a Rússia) e o Brasil:
nal, deve ser interpretado em termos de uma comu-
o caráter messiânico a partir do qual Freyre interpre-
nidade cada vez mais consciente do seu status ou do
tava ambas realidades. Se o regime soviético preten-
seu destino de democracia. Social e étnica.
dia, ao exportar a Revolução, combater o obscuran-
Neste particular só lhe fica acima a Rússia mo-
tismo e superar a desigualdade entre as classes sociais
derna, a União Soviética, única que vem em lugar mais
prevalecente na grande parte do globo, a missão do
destacado que o Brasil como comunidade quase ofi-
Brasil seria a exportação da nossa democracia social e
cialmente, senão oficialmente, comprometida a de-
étnica, independente do regime político existente no
senvolver uma política abertamente igualitária em re-
País. Ressalva importante: a realidade social e cultu-
lação a raças.23
ral não necessariamente está atrelada a uma
Mais adiante:
institucionalidade política. A democracia americana
“Não estive nunca na União Soviética (...). Mas não conseguia garantir a igualdade entre as raças; o
sei que o Brasil, embora longe de estar inteiramente autoritarismo soviético parecia bem corresponder a
livre de preconceito de raça, tem contudo instituições uma realidade havia muito presente neste imenso ter-
oficiais, tanto como semi-oficiais e privadas, mais avan- ritório, qual seja, aquela produto de relações secula-
çadas do que algumas organizações ostensivamente res entre povos, raças e culturas, não desprovidas de
cristãs, no que se relaciona com os problemas de rela- conflito, mas tendente a constituir um todo marcado
ções entre raças, consideradas sob o critério demo- pela troca, diversidade e harmonia; no Brasil, sob re-
crático e cristão. gime autoritário ou democrático, nossa democracia
(...) era garantida pela sociedade, pela cultura. Se por es-
A União Soviética e o Brasil, ainda que funda- sas terras o "contrato social" se distanciava de uma
mentalmente diferentes no modo de conceberem ou constituição precisa quanto aos termos da relação
entenderem o que seja democracia de organização entre as partes, é no encontro de subjetividades que
social, se unirão provavelmente, em futuro próximo, temos um outro contrato social, distinto do america-
como pioneiros de um movimento no sentido de fazer no.
da igualdade social das raças problema internacional
a ser enfrentado quer sob o aspecto político ou jurídi- Em Interpretação do Brasil é evidente o diálogo
co, quer sob o aspecto econômico”. 24 de Freyre com pensadores espanhóis e portugueses
(e latino-americanos). A denominada "herança ibéri-
Grande impacto deve ter tido nos Estados Uni-
ca", interpretados por muitos como responsável pelos
dos a comparação feita entre o Brasil e a União Sovi-
males do Brasil – a partir da eterna comparação entre
ética! Ainda que longe dos anos da Guerra Fria, e mes-
a América Latina, católica, agrária, arcaica com a
mo considerando que nos Estados Unidos houvesse,
América Anglo-saxônica, protestante, industrializada
à época, um grande esforço em tornar a realidade
e moderna – exigia de Freyre uma resposta contun-
soviética simpática ao americano médio, posto que
dente. Quando tratava de positivar as heranças afri-
ambas potências possuíam, então, um inimigo comum,
cana e indígena, o esforço de compreensão da nossa
comparar o Brasil e a União Soviética num item dedi-
base lusitana e hispânica era mais do que necessário.
cado às relações internacionais revela alguns elemen-
Nesse sentido, Freyre não apenas olha para Portugal
tos significativos da interpretação de Freyre. Tal como
e dialoga com portugueses como olha para a Espanha
o Brasil, a União Soviética possuía um imenso territó-
e dialoga com espanhóis e latino-americanos há mui-
rio ainda por ser explorado e ocupado; o gigante so-
to às voltas com a idéia de "hispanidad". E a Espanha
viético também se caracterizava por uma grande di-
corresponderia, por sua riqueza, diversidade e com-
versidade de povos, raças e culturas, nos termos de

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plexidade política, a uma realidade política e cultural como a Argentina e o Uruguai, e incorporar países
de extremo interesse. Na visão de Freyre, tal como o com maioria indígena – como Bolívia ou Peru –, de
Brasil, a Espanha possui unidade política combinada marcante presença mestiça como o México ou de
com diversidade étnica e cultural; a centralidade marcas inquestionáveis de culturas africanas como os
madrilenha tem como conseqüência tensões seme- países do Caribe. É nesse contexto que o hispanismo
lhantes àquelas provocada pelo centro político cario- entra na modernidade, na tentativa de afirmar,
ca; os interesses nacionais são continuamente enfren- concomitantemente, o universal e o particular.
tados aos de natureza regional que, entretanto, devem De certa forma, a idéia de um "mundo lusófono"
sacrificar-se em prol do Estado e da "nação". tem uma interface com o universalismo do hispanismo
E Freyre assume aqui uma postura, novamente, e é mesmo dele subsidiário. A equação seria simples
ambígua. De um lado, critica a constituição da Repú- se, na realidade peninsular, o hispanismo não repre-
blica Velha pelo excesso de fragmentação e de poder sentasse uma ameaça constante à própria existência
dado aos Estados – numa cópia da constituição nor- de Portugal, fator para o qual Freyre não parece aten-
te-americana fadada ao fracasso; de outro, contudo, tar, embora reconheça os excessos pouco recomen-
se opõe ao centralismo exacerbado – característico dáveis de Madri. Não é casual, assim, que seu diálogo
do Império e, sobretudo, do Estado Novo, – que com- se dê, entre outros, com o pensador e romancista
para à supremacia de Castela em relação às regiões basco Miguel de Unamuno, uma das grandes figuras
ou sub-regiões sob tutela de Madri. Freyre se atém à da passagem do século na Espanha. Como aponta o
idéia de uma unidade luso-brasileira que, contudo, próprio Freyre, Unamuno revela uma dimensão
respeitaria a diversidade cultural e regional presente "europeísta" do pensamento espanhol, aquela que
no País como um todo: deve haver unidade e mesmo desejasse a completa europeização de Portugal e
uma certa uniformidade no que diz respeito aos valo- Espanha. Unamuno representa o que se poderia cha-
res luso-brasileiros, deve existir um mínimo "saudá- mar de dimensão "basco-espanhola" do País Basco
vel" de uniformidade cultural que tenha como base contemporâneo, aquela que, como chama a atenção
valores culturais lusos ou hispânicos. Quais valores? o pensador e filólogo basco Jon Iuriasti, 28 procura dar
O mais importante, a língua portuguesa; em seguida, a dimensão universalista ao particularismo local basco:
valores predominantemente lusitanos ou hispânicos, é no fato preponderante espanhol – e não numa
mas não exclusivamente lusitanos ou hispânicos: a su- irredutibilidade basca – que encontraríamos a pró-
premacia desses "valores" não se deveria fazer num pria possibilidade não apenas da sobrevivência da lín-
processo de exclusão daqueles africanos ou gua e da cultura bascas (estudadas detalhadamente
ameríndios. por Unamuno), mas a sua adequada inserção no mun-
Destaquemos que o hispanismo em Freyre es- do contemporâneo. 29
tava em consonância com toda uma corrente de pen- O hispanismo – assim como a idéia de um "mun-
samento espanhola e latino-americana que, no limi- do português" – deveria ser defendido diante de
te, se questionava sobre a viabilidade dos respectivos investidas particularistas, o que não significa a consti-
países de origem hispânica. 26 Era viável o Estado Es- tuição de um Estado forte, autoritário, repressor,
panhol enquanto nação? Como combinar o ressurgi- centralizador e uniformizador como, entretanto, ha-
mento das pequenas nacionalidades periféricas (geo- via se transformado a Espanha franquista, mas a pos-
graficamente) – galegos, bascos e catalães – com o sibilidade de, concomitantemente, garantir o regio-
projeto centralista de Estado moderno promovido por nal e, portanto, o particular – tão defendido por Freyre
Madri pelo menos desde fins do século XVIII?27 Como – ao tempo em que se afirma o nacional e o univer-
garantir uniformidade, diálogo, comunicação diante sal, única forma de expressão das particularidades lo-
da afirmação não apenas de interesses regionais, mas cais. Em consonância com Ortega y Gasset,30 mas
de particularidades regionais "irredutíveis" na medida abrindo mão do seu pessimismo, a possível
em que procuram se afirmar enquanto nação ou etnia "vertebração" de países marcados por uma diversida-
diferenciada? de cultural e social tão grande como o Brasil estaria,
É evidente que no Brasil o processo era muito justamente, na harmonia dos contrários, no diálogo
diferente. Mas é curioso que mais de uma vez Freyre dos diferentes, a partir de um denominador comum:
tenha apelado para o hispanismo, que deveria dar aquele universal dado, neste caso, pela cultura, lín-
conta não apenas dos conflitos peninsulares como gua e religião portuguesas ou hispânicas, responsá-
também da própria diversidade dos países hispano- veis pela deglutição do outro, incorporando aquilo
americanos. Tratava-se de uma tradição de pensamen- que, diverso, é responsável pela riqueza de uma na-
to que procurava englobar a realidade de países cuja ção.
base européia era, naquele momento, inquestionável,

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Na sua síntese interpretativa, e num esforço que mo com rebeliões de escravos, desmentindo um su-
procura descortinar o homem na sua relação com o posto idílio luso-tropical do nosso período colonial. A
meio e, sobretudo, sua capacidade criadora diante de violência estaria, assim, sempre presente: na captura
determinadas condições ecológicas, Freyre retoma em dos índios, na escravidão dos africanos, nas sevícias
Interpretação do Brasil o que seria a "base material" de negras, índias, mulatas e caboclas.
da formação brasileira. Base material que só ganha O sociólogo não deixa porém de perpetuar cer-
sentido quando associada à realidade racial e cultural tas representações em torno da suposta qualidade de
de seus habitantes, índios, brancos e negros. A trans- vida dos escravos no Brasil do XIX, tema amplamente
formação da terra não se daria apenas pelo trabalho explorado no seu primeiro trabalho escrito nos Esta-
africano: graças ao colonizador português novos pro- dos Unidos em 1922 e, curiosamente, não tratado
dutos seriam introduzidos na nossa geografia e, à iden- em Casa-Grande & Senzala, onde as páginas sobre as
tidade histórica e cultural existente entre as diferen- violências cometidas contra os escravos se impõem
tes colônias e ex-colônias de Portugal, se sobreporia ao lado da intimidade que se construía. Nos
uma identidade na paisagem que traria como conse- primórdios da colonização, havia rebeliões, que eram,
qüência uma tradutibilidade de cheiros e sabores. contudo, menos freqüentes que em outras paragens,
Assim, ao universo social criado pela casa-grande e nas palavras de Freyre, "talvez porque o tratamento
pela senzala, se sucederia aquele fruto da interven- dado pelos portugueses aos escravos e, mais tarde,
ção humana em terras tropicais, as plantações de açú- pelos brasileiros, provocasse menos o desejo de re-
car e as espécies exógenas a constituir uma nova pai- belião da parte dos oprimidos". Recuperando seu tra-
sagem, aqui e alhures. balho de juventude, e tendo viajantes como parte fun-
Construíram ainda esses grandes plantadores, damental de suas fontes, Freyre volta a afirmar que o
com o mesmo nobre e resistente material das suas escravo negro no Brasil gozaria de condições de vida
próprias casas, as suas igrejas ou capelas e os edifícios mais adequadas que os trabalhadores ingleses ou po-
dos seus engenhos ou fábricas de açúcar, cercando- loneses. Freyre deixa de lado os imperativos presen-
se por vezes de imponentes árvores de vida secular, tes no sistema escravocrata e procura demonstrar a
trazidas da Ásia, da África, da Europa: palmeiras, man- existência de uma certa dose de felicidade nos cati-
gueiras, jaqueiras; e, também, de animais nobres e vos brasileiros, elemento que passa a ser fundamen-
úteis, importados de civilizações mais antigas: cava- tal para afirmar o universo relacional que se formava.
los, vacas, bois, gatos.31 Tal visão idílica da escravidão no Brasil seria
Ancorar a identidade na paisagem será funda- continuamente desmentida nas páginas de Casa-Gran-
mental para a posterior operação luso-tropical de de & Senzala e Sobrados e Mucambos e mesmo em
Freyre. Na viagem à África sob domínio português e a algumas passagens de Interpretação do Brasil, quan-
Goa, no início da década de 1950, Freyre evocaria do lembra as torturas e sevícias a que eram submeti-
sua relação visceral com os espaços visitados nos sen- dos os escravos. Frisemos ainda que o "erro" de Gil-
tidos: em todos os lugares vê plantas que relembram berto Freyre diz respeito, na verdade, aos estudos mais
o Recife antigo, em todos sente cheiros que remon- amplos de "escravidão comparada" que incorrem na
tam aos odores brasileiros.32 Tal realidade só foi possí- busca de uma escravidão "melhor" que outra e que
vel por obra do colonizador português. E não apenas tinham como parâmetro determinados elementos
por obra daquele fundador que Freyre denomina de empíricos fornecidos pelo Sul dos Estados Unidos. Ora,
vertical – o senhor de engenho -, mas, sobretudo, pelo a pergunta em si não faz sentido: a escravidão é um
aventureiro horizontal, o desbravador de fronteiras, sistema que encerra uma violência inescapável, ao
aquele que, mais do ninguém, conseguia aprender pesquisador não cabe adjetivá-la, mas descobrir o seu
com as populações ameríndias e "eram mais dóceis às locus privilegiado. 33
leis da natureza tropical do que os plantadores", mis- Em todo o caso, pelo menos no caso do Brasil,
turavam-se com as índias e davam origem a novos céu e inferno se misturam na constituição de um novo
grupos de gente da terra, bandeirantes, paulistas, espaço, ora moldado pela mão humana. Ao avançar
cearenses, a criar uma nova raça histórica formadora suas hipóteses para todo o "mundo português", Freyre
e produto desta região da América do Sul. perderá em sutileza e não perceberá a violência ca-
Nesse processo de ocupação do espaço, a aven- racterística do novo sistema colonial.
tura se sucede à rotina, almejada por parte daqueles
que saíam de Portugal. E o refinamento dos senhores Entre os pontos que sempre chamaram a aten-
de engenho, segundo Freyre quase nobres feudais, ção no trabalho de Freyre, para além de sua erudi-
foi duramente conquistado, pois haviam de ver-se, ção, deparamos com o ecletismo com que circulava
continuamente, com os ataques de indígenas e mes- entre fontes de diferente natureza, de documentos

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históricos, a sua memória pessoal, de histórias que dade, o exagero e a caricatura, a paisagem, os materi-
haviam lhe sido contadas na sua meninice, a obras ais e a nossa realidade social.
secundárias, diários pessoais ou documentação E, nesse último item, sobre A literatura Moder-
epistolar, dos registros deixados pela arquitetura, às na no Brasil, Freyre, recordando Silvio Romero, dis-
obras de arte e à literatura. Tal ecletismo foi, muitas corre sobre artistas consagrados pela história e novos
vezes, interpretado como falta de método rigoroso. movimentos culturais do Brasil de sua época, mas não
O que dizer de tal juízo quando, nas últimas décadas, só: é também na arte popular, nos ex-votos, nas pin-
os historiadores têm se lançado às mais variadas fon- turas ingênuas que encontrará um espírito criador res-
tes para investigar a intimidade, a capacidade criado- ponsável pela nossa especificidade nacional. Literatu-
ra ou o cotidiano dos homens do passado! ra aqui configura a criação artística reveladora de um
Em Interpretação do Brasil, encontramos este espírito genuinamente nacional. É, assim, no diálogo
Freyre múltiplo, a transformar tudo em objeto de re- entre o erudito e o popular que está a chave da nossa
flexão sociológica ou antropológica. E como tudo ser- afirmação no mundo, de afirmação da nossa autenti-
ve para o propósito do autor, a saber, demonstrar a cidade cuja base se encontra na relação entre grupos
funcionalidade do complexo formado inicialmente antagônicos. O resultado, o Brasil, liberto dos "exces-
pela casa-grande e pela senzala e que tende a se re- sos de subordinação" colonial à Europa e aos Estados
produzir no tempo e no espaço tropical ali onde che- Unidos, auto-confiante, que teria, enfim, algo a ensi-
gar o homem português, muitas vezes nos pergunta- nar ao mundo.
mos o porquê de Gilberto Freyre acabar o seu livro
num ponto e não noutro. E nesta coletânea de confe- Logo na abertura dessa introdução a Interpre-
rências, Freyre finaliza tratando da literatura numa tação do Brasil, a epígrafe de Miguel de Unamuno
chave que interessa recuperar aqui. pretendeu não apenas sublinhar a aproximação do
De início, alerta para a pertinência da análise pensador basco-espanhol e de Gilberto Freyre: os di-
da obra de arte e da literatura por parte do sociólogo, lemas colocados então, ao que tudo indica, perma-
antropólogo, historiador ou psicólogo social. Não se necem. Daí a leitura renovada de Unamuno por par-
trata, assim, do trabalho de um crítico, mas de todos te de jovens e intelectuais de toda a Europa; daí,
aqueles interessados em descobrir o ethos de uma provavelmente, o vivo interesse que desperta a obra
determinada coletividade.34 de Gilberto Freyre nos dias que correm. Num mundo
É na arte e na literatura que encontraremos, dito "globalizado", a tensão entre o local e o universal
assim, o esforço brasileiro de superar uma situação – preocupação de nossos clássicos – se recoloca em
incômoda: se somos devedores do nosso período co- termos que anunciam uma nova "dependência", ora
lonial, no nosso processo formativo haveríamos de expressa no consumo de bens culturais mediados
romper as amarras com a pátria mãe na afirmação de pelos meios de comunicação de massa e, sobretudo,
uma produção cultural e artística plenamente nacio- no fosso tecnológico que afasta os países ditos "em
nal. E é no próprio período colonial que temos os desenvolvimento" ou "subdesenvolvidos" daqueles
primeiros passos na constituição de uma arte brasilei- outrora centros metropolitanos. Gilberto Freyre nun-
ra, não por acaso pelas mãos de um artista mulato, ca propôs algo semelhante a um "isolacionismo" e, tal
filho de pai português e de mãe negra, o Alejadinho, como Unamuno, procura uma fórmula no interior da
que, na sua obra, expressa, segundo Freyre, um dese- qual o "local" seja expressão do "universal". E se a obra
jo genuinamente brasileiro. de Freyre permite muitas vezes uma leitura regressi-
É ao genuíno brasileiro, o mestiço, mulato ou va, na medida em que, inúmeras vezes, constitui um
caboclo, que caberia romper as amarras da escravi- verdadeiro hino àqueles elementos da "nacionalida-
dão – injusta e violenta – e da situação colonial. Alei- de" arcaicos, tais como a hierarquia ou a afirmação
jadinho anteciparia a intenção política de pintores la- da servidão por via amorosa, sua busca incessante de
tino-americanos e, na distorção que nos apresenta da compreensão do "local", do "genuíno" e do "nacional"
forma humana, seria uma espécie de El Greco brasi- revela – e assim observamos em inúmeras passagens
leiro, um clássico que não deixaria nada a dever aos de Interpretação do Brasil – um apego à independên-
grandes artistas do barroco metropolitano. cia que muito tem de emancipatório.
E o escultor mineiro antecipa ainda os roman-
cistas e poetas que, na modernidade, procuram asso- _______________________
ciar a arte e a criação aos problemas sociais de um Notas
Brasil que deve ser extra-europeu e não mera repro- 1
Este texto é devedor de inúmeros debates com Ricardo Benzaquen
dução dos centros metropolitanos. A "imitação" de de Araújo, responsável, com toda a certeza, por uma importante re-
padrões europeus se impõem as marcas da nacionali- novação nos estudos sobre pensamento social brasileiro. Tive o privi-

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279
légio de apresentá-lo, em março de 2000, no seminário celebrativo nebuloso: o vago período das "Grandes Navegações", pontuada por
do centenário do nascimento de Gilberto Freyre na cidade do Recife; fatos históricos, mas transbordante de significados. O período das
agradeço o convite e a calorosa acolhida de Fátima Quintas, bem "Grandes Navegações" como mito de origem diz respeito, sobretudo,
como de todos os organizadores do evento. Uma primeira versão a uma tradição portuguesa que, pelo menos desde as primeiras cele-
deste texto foi elaborada no Núcleo da Cor, da UFRJ, e contou com o brações do centenário de Camões, adotou o período "glorioso" dos
apoio e comentários de Mônica Grin, Yvonne Maggie e Peter Fry. Sua descobrimentos como ponto genético e explicativo do passado, pre-
finalização não teria sido possível sem o apoio constante de minha sente e futuro de Portugal. Cf. Omar Ribeiro Thomaz. Op. Cit.
equipe no Cebrap, em particular Maurício Fiore e Gonçalo Giordano 19
Gilberto Freyre, 1947: 47.
de Oliveira; Adrián Gurzan Valle se revelou, mais uma vez, um leitor 20
Idem: 45.
imprescindível. Uma versão modificada e reduzida corresponde a 21
A idéia de "fronteira" percorre grande parte do pensamento que se
"Apresentação" da reedição de Interpretação do Brasil, organizada
enfrenta com a particularidade dos hispânicos (entre eles os portu-
por mim e realizada pela Companhia das Letras no interior da cole-
gueses). Veja-se, por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda em Raízes
ção Retratos do Brasil. Agradeço o apoio de todos os organizadores
do Brasil. A idéia de "fronteira" a dotar Portugal de um singularidade
da coleção, em particular a Lilia Schwarcz pela confiança e leitura diante de seus vizinhos europeus é retomada recentemente por
atenta. Pedro Puntoni, amigo, cúmplice e companheiro de trabalho, Boaventura de Souza Santos. "Modernidade, identidade e a cultura
me revelou, nas páginas dos seus textos, histórias de Pernambuco.
de fronteira" in Pela mão de Alice. Cortez, São Paulo, 1995.
2
Miguel de Unamuno: "Muera Don Quijote!" in Vida Nueva, Madri, 22
Gilberto Freyre, 1947: 43, 44.
15 de junho de 1898. Obras Completas de Miguel de Unamuno. 23
Idem: 230.
3
As referências, neste ensaio, serão à primeira publicação em língua
portuguesa, de 1947 (José Olympio, Rio de Janeiro). Interpretação
24
Idem: 233, 235.
do Brasil foi publicado, em 1945, em inglês (Estados Unidos) e
25
Não podemos esquecer que, no mesmo período, um grande pen-
castelhano (México). sador mexicano fazia uma reflexão que ia na mesma direção: José
Vasconcelos define o processo de mestiçagem observado na América
4
José Olympio, Rio de Janeiro, 1940.
Latina como aquele capaz de superar antagonismos ancestrais e cria-
5
Ao vencedor as batatas. Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1992.
dor de uma raça cósmica: uma raça síntese, integral, feita com a
6
Sobre o projeto de civilização concebido por diferentes grupos de contribuição de todos os povos, portadora da verdadeira fraternidade
intelectuais ver Lilia Schwarcz. O espetáculo das raças. Cia das Le- e de uma visão realmente universal. Cf. José Vasconcelos. La raza
tras, São Paulo, 1993. cósmica. México/Buenos Aires, 1948. Sobre este debate na América
7
Ricardo Benzaquen de Araújo. Guerra e Paz. Casa-Grande & Senza- Espanhola ver Leopoldo Zea. El pensamiento latinoamericano. Ariel,
la e a obra de Gilberto Freyre dos anos 30. Editora 34, Rio de janeiro, Barcelona, 1976.
1994: 21. 26
Destaque-se que Interpretação do Brasil foi publicado em castelhano
8
"Prescindir do Estado" é um dado fundamental na constituição de em 1945, no México, dois anos antes de sua publicação brasileira.
"um mundo português": realidade antes espiritual e subjetiva expres- 27
Cabe relativizar a idéia da existência de um projeto unívoco e
sa, sobretudo, pela língua comum que se expandiria na criação de centralista na Espanha desde as reformas burbônicas de fins do sécu-
novas realidades sincréticas. Sobre a idéia de "mundo português" Cf. lo XVIII. O que temos são oscilações entre acordos e tensões entre o
Omar Ribeiro Thomaz. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o poder central e os diversos poderes locais ("os foros"), que nem sem-
império português. Editora da UFRJ / FAPESP, Rio de Janeiro (no pre- pre se traduziu num projeto de uniformização da Espanha como que-
lo). rem os nacionalistas contemporâneos. Um texto polêmico, mas inte-
9
Gilberto Freyre, 1947: 221,222. ressante, é o interessante trabalho de Juan Ramón Lodares. El paraíso
10
Lembraria que em Portugal, num primeiro momento, a idéia de poliglóta: historias de las lenguas en la España moderna contadas sin
universalizar para as colônias portuguesas na África tal padrão de com- perjuicios. Taurus, Madri, 2000.
portamento sexual provocaria vivas manifestações de repúdio. Sobre 28
El bucle melancólico: historias de nacionalistas vascos. Espasa, Madri,
as leituras de Freyre em Portugal cf. Cláudia Castelo. "O modo portu- 1998.
guês de estar no mundo". Afrontamento, Porto, 1998. Omar Ribeiro 29
Cf. Juan Pablo Aizpúrua: "Introducción: Unamuno y el País Vasco"
Thomaz. Op. Cit. in Miguel de Unamuno. Paz en la guerra. Alianza Editorial, Madri,
11
Gilberto Freyre, 1947: 68. 1988.
12
Saliente-se que, para Freyre, a liberdade e o desenfreio sexuais são 30
José Ortega y Gasset. España invertebrada. Revista de Occidente
responsáveis pela proliferação não apenas de mestiços e pela civiliza- en Alianza Editorial, Madri, 1921.
ção de negros e indígenas, mas também da sífilis, que os portugueses 31
Gilberto Freyre, 1947: 92.
introduziram no Oriente e no Brasil. 32
Esta viagem dará origem a dois livros: Um brasileiro em terras por-
13
Com Freyre, acabamos por descobrir que, ao lado dos tupinambás tuguesas. Introdução a uma possível luso-tropicologia, acompanhada
(antropófagos responsáveis pela deglutição do bispo Sardinha, fato de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusita-
que os intelectuais do movimento antropofágico associam à gênese nas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico (1953), onde ex-
do Brasil), os portugueses também seriam afeitos à antropofagia. põe o seu programa luso-tropical, e Aventura e rotina. Sugestões de
14
Gilberto Freyre, 1947: 115. uma viagem a procura das constantes portuguesas de caráter e ação
15
Para uma discussão sobre a mestiçagem cf. Gerald Bender. Angola (1953), o seu diário de viagem.
sob o domínio português: mito e realidade. Sá da Costa, Lisboa, 1980; 33
Manuela Carneiro da Cunha. Negros, Estrangeiros. Brasiliense, São
Luiz Felipe de Alencastro: "A geopolítica da mestiçagem" in Novos Paulo, 1986.
Estudos Cebrap, n. 11, São Paulo. 34
Poderíamos definir ethos como sendo um conjunto de disposições
16
Luiz Costa Lima há tempo chamou a atenção para o uso peculiar culturais gerais, reproduzido no aprendizado social, determinado por
da noção de "raça" na obra de Freyre. Cf. Luiz Costa Lima: "A versão regularidades objetivas e que encontra expressão no comportamen-
solar do patriarcalismo: Casa-Grande & Senzala" in Aguarras do tem- to dos indivíduos. A passagem da cultura para o indivíduo se produz
po. Rocco, Rio de Janeiro, 1989. a partir da cristalização de um psicologia objetiva: o ethos.
17
Ricardo Benzaquen de Araújo. Op. Cit.: pag. 31 e seguintes.
18
Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. José Olympio, Rio de
janeiro, 1987: 5. Como na linguagem dos mitos, o "passado" é aqui

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A Propósito do Livro Insurgências e
Ressurgências Atuais de Gilberto Freyre

Tarcísio de Miranda Burity


Advogado/Consultor Jurídico – Brasil

O centenário do escritor, sociólogo e também, e sobretudo, do mestiço, ecologica-


antropólogo, Gilberto Freyre, torna-se referên- mente adaptado aos trópicos, desbravador dos
cia nacional obrigatória, especialmente em sertões, consolidador de nossa expansão
época comemorativa dos quinhentos anos da territorial, profundamente criativo e
descoberta das terras brasileiras pelo, naque- dionisiacamente reinante nessas vastidões do
les tempos, reino de Portugal. Porque se trata interior brasileiro.
de seu maior intérprete. Daquele que soube, O escritor e embaixador José Guilher-
mais do que ninguém, apreender e compre- me Merquior, prematuramente falecido, em
ender a sua gente, os seus costumes, a sua notável conferência pronunciada na Paraíba,
maneira de ser, os seus sentimentos, os seus em 1988, durante as homenagens prestadas
valores, a sua arte, a sua cultura, em síntese, à memória do grande escritor e sociólogo,
a alma brasileira na plenitude de suas mani- ressaltou que, "até o livro Casa-Grande & Sen-
festações, no que ela possui de mais típico, zala, a visão que do Brasil tinham os seus in-
de mais inconfundivelmente seu. Narrou a telectuais era quase toda ditada pelos
nossa formação histórica e social, de maneira determinismos biológicos do século passado;
absolutamente original: não mediante clichês e, por ser ditada por esses determinismos bi-
esteriotipados da ciência sociológica do mo- ológicos, era uma visão predominantemente
dismo de então, com emprego de categorias negativa e pessimista a respeito do país".
lógicas, de tipificações abstratas, de classifica- Merquior propõe denominar esse pessimis-
ções as mais das vezes arbitrárias, de instru- mo de etnopessimismo, para distingui-lo do
mentais epistemológicos excessivamente pessimismo histórico, na visão de certos pen-
formalistas, os quais perturbam e deformam, sadores europeus da época. Já no caso dos
mais do que exprimem com exatidão, a reali- brasileiros, continua ele, "da época de Sílvio
dade que se apresenta para a análise. Narrou Romero até a geração Euclides da Cunha, o
essa formação, de dentro para fora, procuran- ponto axial, que emprestava um colorido tão
do revelar a sua intimidade, que nada mais é sombrio acerca da viabilidade do Brasil en-
do que a sua realidade existencial viva, palpi- quanto nação, era o fator raça. A mestiçagem
tante, sensorial, com sabores, sons, cores, brasileira nos condenaria irremediavelmente
paisagens, perfis humanos, enfim tudo o que à inviabilidade e ao fracasso como nação, a
constitui o caráter nacional. Mais do que isso: vegetarmos numa espécie de inércia cultural
soube, como poucos, aliar o rigor da análise permanente". Aconteceram "algumas exce-
científica à arte de escrever, do sempre se ex- ções que, apesar do esforço, ainda não re-
primir literariamente, do fazer da estética a presentam uma ruptura completa com a men-
maneira peculiar de transmitir a realidade. Isto talidade etnopessimista, como a do conde
porque, assegura ele, "nem tudo que é hu- Afonso Celso (mais civismo do que análise
mano é apenas natureza. É também arte. É científica), Paulo Prado, em Retrato do Brasil,
cultura. E, para compreender-se o que é hu- que ainda mantém a visão pessimista, com a
mano no homem, é preciso juntar-se uma sua interpretação da "tristeza metafísica" e da
busca artística, e não apenas científica, de suas "sexualidade desenfreada" própria do brasilei-
realidades." ro". "Depois, de forma mais decidida, embora
Pioneiríssimo em perceber o valor da ainda não permitindo uma reestruturação re-
mestiçagem na formação da sociedade brasi- alista dos quadros mentais necessários a uma
leira. Não apenas o valor isolado do negro, verdadeira superação do mito racista, surgi-
ou do índio, ou do português colonizador, mas ram Manoel Bonfim, médico sergipano, com

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281
o seu livro América Latina, Mal de Origem, Alberto ele contemplava o canavial, a senzala, a maloca dis-
Torres e Roquette Pinto. Houve também, e agora no tante", demonstra fartamente o seguinte: ou eles não
plano da busca de nova expressão estética, a corren- leram Gilberto Freyre, ou, o que é pior, leram e deci-
te da chamada Antropofagia, dos líderes do Moder- didamente não o entenderam.
nismo paulista, e o aparecimento do romance Hoje, na comemoração do centenário do seu
regionalista do Nordeste, com José Américo e José Lins nascimento, coincidindo com os quinhentos anos de
do Rego, este último sob direta influência de Gilberto Brasil, repitamos: a figura de Gilberto agiganta-se pe-
Freyre, embora o movimento da Antropofagia tenha rante o País e o estrangeiro, como alguém que me-
sido mais projeto do que realização estética, enquan- lhor interpretou e compreendeu a gente brasileira e a
to o romance regional do Nordeste constituiu-se em civilização luso-tropical.
autêntica realização estética". Pois bem, em seu livro Insurgências e
Segundo ainda Merquior, "Gilberto Freyre vai Ressurgências Atuais, Gilberto aprofunda vários temas
ser o primeiro a oferecer, no plano do ensaio, o já tratados em obras anteriores e acrescenta outros,
arcabouço científico, a análise socioantropológica resultantes de suas observações pessoais, por ocasião
objetiva, oferecendo condições reais para a total rup- de viagens feitas ao continente africano e terras do
tura com a ideologia do etnopessimismo". O embai- Oriente, documentadas nos seus livros Aventura e Ro-
xador tem para isso uma expressão curiosa, sem que- tina e Um Brasileiro em Terras Portuguesas.
rer ele desmerecer os dois grandes gênios da literatura Trata-se de um livro, como diz, "que está longe
nacional, a saber: "Gilberto foi o homem que, no Bra- de ser apolíneo na apresentação do material que reú-
sil, deixou de pensar como Ruy Barbosa e de escrever ne, sem procurar arregimentá-lo, ordená-lo, discipliná-
como Euclides da Cunha". lo, racionalizá-lo. Chega a ser insolitamente dionisíaco.
Inovador na análise socioantropológica do Bra- E mais: é livro com repetições. Com desconchavos.
sil; inovador no emprego do pluralismo metodológico, Curvo. Torto. Com à vontades de expressão em que
com o objetivo de uma visão integral da realidade his- uma possível espontaneidade faça as vezes de excessi-
tórico-social; inovador na utilização dos processos va racionalização, calculada e apolínea, do pensar e
intüicionais, com vistas à percepção da realidade no do sentir de um a seu modo analista de cruzamentos
seu fluir existencial; inovador em fazer história e soci- atuais de insurgências e de ressurgências não só de
ologia, procurando ver a realidade na sua intimidade pensar e de sentir coletivas como de formas de agir, de
mesma e nunca tentando observá-la munido apenas amar, de beber, de dançar, de cantar, de crer. De crer,
de régua, compasso, balança, estatística, índices eco- ao que parece, mais do que descrer".
nômicos, categorias puramente lógicas, tipologias ar- Diríamos: é livro-conversa, livro-prosa, em que
tificialmente inventadas, como se o fenômeno vital espontaneamente se focalizam assuntos vários, mas
pudesse ser, no seu jorrar perene, captado mediante possuindo todos aspectos comuns, como expressões
elementos apenas de mensuração matemática; ino- de valores universais, que surgem e ressurgem em rit-
vador em procurar estudar o homem e a sociedade mo revelador do próprio pulsar da vida das coletivi-
como fatores situados, situados e datados, mergu- dades, tomadas isoladamente, ou em intercorrências
lhados em suas circunstâncias, circunstâncias de tem- com outras coletividades, algumas delas de estilo
po e espaço e, no caso brasileiro, de "tempo tríbio" e diametralmente oposto àquelas que foram às vezes
espaço tropical, ou ainda luso-tropical, Gilberto objeto de seu domínio.
Freyre estava a anos luz na frente dos seus contem- Insurgências e Ressurgências Atuais é livro des-
porâneos brasileiros, em sua especialidade socioan- dobramento de reflexões já antecipadas, principal-
tropológica, principalmente distante dos sociólogos da mente em Aventura e Rotina. Em suas próprias pala-
USP. Daí as apreciações precipitadas e bobas sobre o vras: "Comentário atualíssimo e assuntos feridos no
seu pensamento, publicadas por alguns tidos como livro antigo e alguns deles, hoje, inquietantes: a
corifeus da sociologia brasileira. Hoje, em leitura quase ressurgência islâmica como poder ou desafio a um
hilariante, vemos o quanto eles se perderam, demons- cristianismo em crise – necessitadíssimo da vigorosa
trando que não tiveram a capacidade de entender a liderança só há pouco surgida com João Paulo II".
grande revolução provocada por Gilberto Freyre, no Nessas análises, à base do rico material obtido
campo das letras brasileiras, da história, da sociolo- ao vivo, durante aquelas viagens, Gilberto Freyre cada
gia, da antropologia e das artes em geral. A crítica, vez mais se convence, a meu ver, da veracidade de
que alguns sociólogos da USP fizeram e continuam suas teses defendidas em obras anteriores, sobretudo
fazendo a Gilberto, a respeito de seu conceito de "de- daquelas que serviram para interpretar a civilização
mocracia racial", a ponto de afirmarem que "era da brasileira, como civilização de gente majoritariamen-
varanda clara e fresca da casa-grande nordestina que te mestiça e situada nos trópicos, fruto da ação de

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282
outra civilização européia, de anterior experiência de descolonização, acontecidos especialmente na África
colonização nesses mesmos trópicos: a civilização e no Oriente, a partir do fim da Segunda Guerra Mun-
portuguesa. A África e o Oriente, para Gilberto, tor- dial. O da independência da Índia, com Mahatma
naram-se laboratórios eficazes para observações his- Gandhi, por exemplo, ou das populações africanas,
tórico-socioantropológicas, não só relativamente à ou da própria Revolução Chinesa, revoltas ou guerras
colonização de portugueses, mas à interessante ex- de libertação animadas "menos de espírito positiva-
pansão islâmica em estilo original de se mesclar com mente comunista do que de sentido antieuropeu,
as populações autóctones, na África ou no Oriente, anticapitalista e antiimperialista de vida; como uma
estilo até certo ponto imitado pelo colonizador por- revolta antes de culturas ressurgentes que de popula-
tuguês, este com mais erros do que acertos, em sua ções politicamente insurgentes".
maneira de convivência com as populações dessas Vejam o que profeticamente escreveu, ainda em
regiões. Estilo de convivência as mais das vezes bas- 1951, a respeito, por exemplo, de Moçambique: "Um
tante diferente do empregado no Brasil colonial. Portugal com pretensões a imperialmente europeu,
Escreve Gilberto, dando maior precisão à idéia etnocêntrico, ariano, é um Portugal tão sem futuro na
de insurgência e ressurgência: "O ritmo – ou a arritmia África quanto a Holanda na Ásia".
– , insurgência, ressurgência podem ser considerados Ressurgências outras identificadas por ele no
uma constante do desenvolvimento cultural e na bus- campo religioso. Por exemplo, na orientação nova
ca de interpretação do que seja a relação cultura- dada pelo Papa João Paulo II, em termos de valoriza-
vivência, com o senso comum por vezes chamado a ção de ritos que estariam talvez em crise, fazendo-se
opinar sobre hipóteses científicas em conflito nessa o catolicismo romano sentir, de modo impressionan-
procurada interpretação. Daí poder-se sugerir que res- te, religião mística, em evoluções quase também má-
postas em torno de problemas de cultura quase nunca gicas, míticas ou litúrgicas. Poderíamos nós acrescen-
serem de todo precisas, isto é – pode-se acrescentar – tar, nesse particular, o recente movimento
, deixarem quase sempre portas abertas a opostos. A católico-carismático, em que a fé, como sentimento,
complexa exatidão científica na explicação do que é o substituiu a fé, como adesão racional da inteligência
humano, social, cultural, psicossocial, parece não ser a possíveis verdades dogmáticas.
atingida nunca. O analista precisa de contentar-se Vale ressaltar que Gilberto Freyre, na análise
quase sempre com o incompleto de aproximações ou desses fenômenos de ressurgências culturais, refere-
com o risco de opções por uma explicação, o senso se sempre a choques decorrentes entre culturas
comum advertindo para não se desprezar de todo o marcadamente apolíneas e as claramente dionisíacas.
oposto". Conflitos entre civilizações predominantemen-
No caso de Gilberto Freyre, naquelas viagens, te tecnocráticas, racionais e civilizações em parte in-
acontece mais uma vez a sua visão antecipadora de tuitivas, místicas, instintivas, mágicas.
acontecimentos fantásticos de ressurgências de cultu- Dada a riqueza de sugestões para reflexões no
ras que pareciam bastante adormecidas mas que, em mundo cultural apresentadas por Insurgências e
certo momento, e sem falar das demais manifestações Ressurgências Atuais, vale realçar alguns temas que,
culturais, despertam com o ímpeto de verdadeiros em ritmo recorrente, Gilberto Freyre insiste nesse li-
vulcões sociais, manifestados sobretudo em valores vro e, praticamente, em toda a sua obra de uma so-
religiosos e políticos, tal como aconteceu no Irã do cioantropologia de caráter "existencial". Por exemplo,
aiatolá Komeine. o tema relativo à necessidade da utilização do
Gilberto, a esse respeito, já observava os pri- "pluralismo metodológico". Pluralismo metodológico
meiros ruídos, ainda nos idos 1951, 52, 53. mais no sentido do que hoje denominamos
Ressurgências de culturas que, embora tendo sofrido "interdisciplinaridade", vale dizer: "no estudo dos fe-
impactos europeizantes, começavam a "reencontrar nômenos socioantropológicos, ao se empregarem os
raízes e a antecipar, à base de tais reencontros, possi- processos cientificamente sociais, em particular, e ci-
bilidades de virem a reaparecer sob novas formas de entíficos ou tecnológicos em geral, não se deixar de
expressão". Às vezes, como escreve ele, "ressurgências considerar os conhecimentos de outras áreas ou sa-
com qualidade de "revanches" contra primados das beres, inclusive os conhecimentos que vêm dos infor-
culturas do Ocidente , da parte de um Oriente – ou mes humanísticos, literários e até poéticos".
de vários Orientes e de outras tantas Áfricas – venci- A respeito ainda da natureza dos métodos a
dos, mas não convencidos, por impactos serem utilizados com o objetivo da apreensão da rea-
europeizantes ou ianquizantes". lidade social, Gilberto também insiste acertadamente
Seguindo essa linha gilbertiana, podemos, sem em mostrar a importância da valorização dos proces-
dúvida, estender a análise aos movimentos de sos intucionais, ao lado dos processos meramente

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283
discursivos da razão. Foi o que ele fez sempre, de que lhe evita perder a personalidade e o sentido das
forma pioneira no Brasil, desde os primeiros traba- coisas, no meio das quais vive. Mas o ser humano
lhos e, principalmente, a partir de Casa-Grande & Sen- também é o seu projeto de vida para o futuro. Como
zala. Situava-se, por isso, na linha dos grandes pensa- escreve Miguel Reale, comentando Bergson: "para
dores contemporâneos, sobretudo daqueles que poder descobrir a ferramenta, enquanto tal o homem
mostraram a especificidade do objeto cultural, como tem de lançar os olhos por cima de suas necessidades
um Dilthey, ou Edmund Husserl, ou ainda um Henri imediatas, libertando-se de impulsos momentâneos,
Bergson, um Max Scheler, um Nicolai Hartmann, um para pensar em necessidades "possíveis", o que impli-
Heidegger. Sempre partindo daquela convicção de ca certa "previsão, um antecipar-se conquistando o
que, no mundo da cultura, o que mais importa é o futuro". O "tempo tríbio" compara-se, dentro da filo-
universo de suas significações, são os valores de que sofia de Henri Bergson, ao conceito de tempo como
ele está impregnado. E não se atingem os valores ape- duração. E "duração" quer dizer que "a pessoa huma-
nas mediante processos de mensuração. Com efeito, na vive o presente com a memória do passado e a
o ser humano não é tão somente um ser que pensa, antecipação do futuro. Fora da consciência, o passa-
mas um ser que pensa, age e sente. Por isso, ele não do não é mais e o futuro ainda não é. Passado e futu-
apenas discursa, mas também intui e o faz de forma ro só podem viver em uma consciência que os liga ao
racional, volitiva e emocional. presente".
Assim, a antecipação de Gilberto Freyre, entre No final do livro, relativo ao capítulo Antecipa-
vários aspectos, foi esse toque de genialidade em ções do autor à sua atual perspectiva de cruzamentos
mostrar, numa época marcada pela predominância de de insurgências e ressurgências, Gilberto aborda tema
mentalidades tão eivadas de "ismos" ideológicos, ou para ele muito caro: os métodos de expansão do
de formalizações pseudocientíficas, com o objetivo de islamismo em terras africanas, métodos esses em gran-
interpretar a realidade nacional, que essa mesma rea- de parte assimilados pelos portugueses, métodos de
lidade apenas seria apreendida na plenitude de suas miscigenação racial e cultural. Escreve ele: "Conquis-
dimensões, se a observássemos sem preconceitos de tadores, os árabes, cujas conquistas tiveram por cen-
qualquer natureza, na inteireza mesma de sua reali- tro, não uma raça, mas um sistema: o cultural, social
dade existencial, tal como é ou como foi, com suas ou moral de disseminação de ethos e de cultura
qualidades ou mazelas, com suas belezas ou feiuras, maometana. O que fosse biológico ou étnico, a pure-
com suas felicidades ou tragédias, com suas generosi- za de raça ou de sangue, eram considerações secun-
dades ou crueldades, com seu modo de conquista e dárias à margem desse sistema de expansão cultural,
dominação ou de libertação, e não tal como ela de- religiosa, lingüística". E daí a sua precisa observação
veria ter sido ou deveria ser, conforme "ismos" ideo- de que o maometano parece vir sobrevivendo ao eu-
logicamente pobres em suas possíveis interpretações ropeu como dominador e civilizador de numerosos
do mundo. "Ismos" nada científicos, que falseiam a grupos africanos. E chega mesmo a afirmar que o pa-
realidade, tentando impor inexistentes absolutismos rentesco sociológico do português com esse árabe
e excluindo relativismos mais consentâneos com a islâmico, ou mouro maometano, "pede um estudo que
maneira própria do homem, ao perceber ou ao pen- espanta não ter sido ainda feito".
sar a realidade que o cerca. Pois bem, Gilberto Freyre, mais uma vez, como
O ecológico sempre esteve presente nesta e em diria Merquior, assumiu o nosso édipo histórico, já
todas as obras de Gilberto Freyre, onde tudo é envol- que "você não pode compreender lucidamente a his-
vido ou banhado pela luz, pelas cores, pelos cheiros, tória, se você é vítima de um édipo, de uma matriz
pelos sabores, pelos sons de uma terra tropical, o que emocional tão carregada de conflitos que, evidente-
é fator decisivo para a compreensão integral da gente mente, priva você da capacidade de contemplar, ob-
brasileira. Repitamos: é o estudo do homem mergu- jetivamente, este objeto do seu ódio-amor ou do seu
lhado em suas circunstâncias de tempo e de espaço; amor-ódio". Gilberto, com seus estudos de luso-
de "tempo tríbio" e de espaço tropical, ou luso tropi- tropicalismo, fez uma verdadeira catarse que facilitou
cal; "tempo tríbio" que sugere que "nunca é, social- a compreensão de nossa formação histórica. Nesse
mente, apenas passado ou somente presente ou ex- relacionamento Brasil-Portugal, assumimos a nossa
clusivamente futuro, mas uma constante e simultânea situação com mais leveza, "sem cair numa espécie de
interpenetração dos três tempos sociais". Na verdade, dependência ou mesmo escravidão inconsciente a essa
o ser humano, em seu tempo presente, é resultado mesma história". Fizemos "as pazes com nosso édipo
de seu tempo passado, pois sem a memória do passa- histórico". E tudo dentro de uma visão eminentemen-
do ele jamais teria a consciência do que ele é no seu te objetiva, encarando a realidade tal como ela foi,
presente. É a sua continuidade histórico-psicológica ou é, e não como deveria ter sido, ou deveria ser.

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Finalmente, entre tantos méritos, destaquemos
o de Gilberto Freyre buscar no circunstancial, no re-
gional, no quase bárbaro, no natural, valores univer-
sais, porque valores profundamente humanos.

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MESA-REDONDA 12
ALÉM DO A PENAS MODERNO

Dia 24 de março
COORDENADOR:
Clóvis Cavalcanti
Economista – Fundação Joaquim Nabuco – Brasil
Além do Apenas Moderno

Bruno Tolentino
Escritor – Brasil

Ao encerrar-se um século habitualmen- poral proposto por tanto pincéis febris até on-
te identificado com a noção de ruptura, cons- tem em constante esgrima histórica. Para além
tatamos, meio surpresos, que sua herança seja de rebeldes e justiceiros, o novo herdeiro da
bem mais unitária do que nos acostumáramos inesperada riqueza de um campo de batalha,
a supor. Os cacos do vitral contemporâneo tornado campo de colheita, vai encontrar, pela
nem por conta de sua estridente variedade primeira vez na história, quer me parecer uma
configuram menos uma evidente convergên- inédita noção do tempo.
cia de tensões tão rica e desafiante quanto E aqui entra a reflexão principal desse
promissora é bem mais que uma cacofonia. papel que é sobre o tempo gilbertiano, a no-
De fato, o exaltado coral do século XX apare- vidade da visão de tempo de Gilberto. Ne-
ce-nos hoje como um exuberante embate de nhum tema ou problema ocupou ou torturou
contrapontos em torno, senão mesmo em mais o espírito do novecentos do que essa
busca, de uma continuidade do conhecimen- inquisição, essa busca do que fosse ou pudesse
to, a qual surpreendentemente nos depara- ser o tempo para além de uma mera suposi-
mos hoje como um menino maravilhado que, ção de cunho conceitual, ou seja, tempo
na manhã seguinte, descobre-se o dono ines- quantitativo, linear, supostamente neutro por
perado a cornucópia de estilhaços sobrante natural e o tempo cíclico ou histórico por
da festa furiosa dos adultos. Todos os cômo- humanizado entrecruzaram-se em aparente
dos da conturbada mansão do pensamento, contradição durante todo o século XX. Ao lon-
cá neste pedaço do Ocidente que é o Brasil, go dele, todo o esforço especulativo e criador
estão enfim abertos ao exercício da invenção convergiria, de um modo ou de outro, para o
maravilhada, a um ludismo enfim legítimo por ideal de uma síntese que liberasse esse tem-
alegre, vital e livre, vale dizer a um só tempo po, por assim dizer, humanizado da nossa
verificatório e restaurador. Isso porque os do- aparente escravidão ás suas exigências. Por
nos da festa, nossos tantos severos instruto- isso mesmo a intimação de liberdade com que
res, desbravadores e contestadores, á falta de subitamente nos deparamos hoje pode pare-
se entenderem em torno de uma visão regi- cer suspeita ainda. Será que teremos finalmen-
mental da realidade, acabaram por harmoni- te, realmente, acesso livre a todos os cômo-
zar-se na magnífica arquitetura do vário e fi- dos da mansão temporal do Ocidente? Esse
nalmente como sob as volutas duma só arcada filho incontestável da história, ou seja, da enu-
uniram-se no merecido repouso heróico dos meração compartimentalizada? Se assim for,
guerreiros exaustos, sem mais cura de vitória nós, ao menos os brasileiros do terceiro milê-
ou de derrota. Toda uma ancestralidade ilus- nio cristão, estaríamos devendo também a
tre repousa hoje irmanada e apaziguada, to- Gilberto Freyre o atrevido sentimento dessa
dos, segundo a evocação do mestre Bandei- nova liberdade. Refiro-me á sua noção de
ra, "dormindo profundamente" o sono dos tempo tríbio, esse neologismo seu que, como
justos em que vão desaguar as mais sabemos, não superpunha ou justapunha três
contrastantes hipóteses: "Under sleep where momentos de uma mesma leitura temporal,
the waters meet" no verso lapidar de Eliot. antes fazia coexistir, num mesmo enlace
Ora, é naquela espécie de cristal de mil presentificante, os três segmentos que nos
prismas, configurado por toda visão acostumáramos a Ter como elementos sepa-
apaziguada, que o espírito livre, o espírito de rados e codificados em passado, presente e
infância, habitante do olhar surpreso pelo jú- futuro.
bilo, vai encontrar hoje o amplo painel tem- Essa particular versão freyriana do tem-

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po veio de Proust, efetivamente fez mais, faz mais do seja mais estreita tão pouco cedia a amplificações es-
que meramente recuperar o perdido. E isso na exata peciosas, que a identificassem com tal ou tal instaura-
medida que supõe a continuidade da aventura hu- ção mais ou menos arbitrária. Foi dessa ordem seu
mana, numa simultaneidade de valores tão imbrica- distanciamento das propostas da Semana da Arte
dos quanto mutuamente implícitos e inseparáveis. E, Moderna de 1922, que ele via como especificamente
se inseparáveis, por que não constituintes da noção paulista ou então, no caso, insuficientemente nacio-
de uma unidade contínua, pressuposta em todo o es- nal, no que seu instinto não o enganava, como vimos.
forço civilizatório. Porque se as premissas advindas da Paulicéia eram
Quando Freyre nos fala de algo apenas moder- basicamente corretas e certamente férteis, essa fertili-
no não recusa a noção de modernidade, antes, pro- dade de daria a ver nos fatos a surgirem no resto do
tege-a contra a injusta estreiteza de seus próprios e País, sobretudo no Nordeste, em Minas Gerais e no
sempre um tanto arbitrários limites. Assim, quando Rio de Janeiro. Desses três baluartes provados do ve-
nos fala de tradição, do mesmo modo expande natu- lho Brasil, viria, com seu tempo tríbio, a renovação
ralmente o conceito para diante de todo e qualquer de sua sensibilidade, da sensibilidade nacional. De lá,
passado e isso porque tendo em mente uma pereni- desses três velhos, velhíssimos redutos, não do Pla-
dade sempre renovada e eminentemente renovável nalto abençoado, uma vez mais, estranhamente ava-
de dados, modos e valores. Em seu discurso tudo é ro em grandes e perenes criações das artes da lingua-
abrangente, amplo, retrospectivo, nele não se trata gem, os grandes nomes da primeira metade do século
nunca apenas de estilos mais ou menos definidores XX, da literatura do Brasil, são, na esteira de Gilberto
de uma época ou de um gosto e, sim, de um movi- Freyre e ombro-a-ombro com o autor de Casa-Gran-
mento perene, a ajustar-se sem cessar a de & Senzala, os nordestinos Manuel Bandeira, Jorge
instantaneidade do real que ele não veja mais, de um de Lima, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Joa-
ponto de vista imediato e menos ainda imediatista. quim Cardoso, Clarice Lispector, João Cabral de Melo
Ajustar o presente ao passado ou este àquele não são Neto, Ferreira Gullar, Alberto da Cunha Melo; ou os
operações válidas em sua cosmovisão, cotejá-los, para mineiros Carlos Drummond de Andrade, João Gui-
descobrir-lhes a unidade intrínseca, sim. Nesse senti- marães Rosa, Abgar Renault, Henriqueta Lisboa,
do, sua lição permanece atual para além do apenas Adélia Prado; ou ainda, finalmente, na velha Corte,
isso ou aquilo, e não é de admirar que o tenham ro- Cecília Meireles, Vinicíus de Moraes, Augusto
tulado de conservador, tradicionalista ou mesmo rea- Frederico Schmidt, Marques Rebelo, Dante Milano, e
cionário. Mas se Freyre sempre reagiu a alguma coisa assim por diante; da Paulicéia instauradora, nada de
foi, sem dúvida, a uma identificação do temporal com comparável, certamente nada de maior, Macunaíma,
o imediato. Sua oposição a triunfalismos reducionistas uma curiosidade superfaturada, ou, no dizer, nas pa-
do tipo moderno, tão ao gosto de nossas vanguardas lavras do seu próprio autor, uma obra-prima que não
invariavelmente atrasadas e sua ânsia de saiu uma obra-prima.
contemporaneidade, foi sempre do tipo reflexivo e Mas, ao ser assim, o que de fato aconteceu nes-
sempre tendo em vista uma abrangência de diversi- tes últimos setenta e tantos anos de que tanto se ou-
dades no tempo, como no espaço, especialmente, no viu falar do que não existe? É simples, enquanto o
espaço cultural brasileiro. Destarte, porque sua leitu- resto do Brasil erguia sua nova Literatura, sua grande
ra do movimento perene da nossa civilização foi sem- literatura, e diga-se de passagem um momento maior
pre recuperativa, Freyre não se identificou com ne- do gênio Nacional, São Paulo construía a USP, aquela
nhum momento particular e menos ainda (é melhor rir para não chorar) Rive Gauche do Tietê,
revolucionário de nossa cultura. Para ele toda parti- o polvo do mil tentáculos catedráticos, ao qual deve-
cularidade pertencia naturalmente a um todo que a mos a novologia paulista, vale dizer, o mundo como
legitimava ou não passava de um modismo, sua leitu- idéia, exportado para o País inteiro por golpes de
ra pessoalíssima de um tempo tríbio, leia-se integral e matracas, diga-se de passagem, ia carregar no bojo a
integrado, na busca de expressão artística como na visão miudamente bairrista de uma literatura, da qual
formulação conceitual de todo esforço civilizacional, eles, os minimalistas e piadistas paulistas, notórios
impedia-o de ceder a esta ou aquela visão do mundo maus autores, teriam sido o germe e constituiriam o
reduzido ao aqui e agora, ainda quando em nome de eixo, o norte magnético, o nec plus ultra, balelas.
uma renovação liberadora. Balelas incansavelmente repetidas que qualquer lei-
No gênio freyriano, a noção de atualidade não tura atenta dos textos referenciais, que eles mesmos
dispensava, menos ainda descartava, o acervo pere- escolheram canonizar pro domo sua, instantaneamen-
ne de um passado que, justamente, não acabava nun- te desmente e pulveriza a hidra de sete cabeças, que
ca de passar segundo a amplitude de sua visão, a qual tem na Medusa uspiana sua alma mater e na mentida

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de Cátedra o seu instrumento cirúrgico, é poderosa,
mas falsa, além de patética. A grandeza da arte e do
pensamento do Brasil absolutamente nada lha deve
além de um bombardeio de mesquinharias fantasiosas
e insistentes que, não por acaso, haveriam de
demonizar Gilberto Freyre.
A vastidão minuciosa e aberta da visão freyriana
é naturalmente inóspita a qualquer projeto de impe-
rialismo cultural, justamente o prêmio consolação rei-
vindicado pela indigência criadora dos subescritores
paulistas, ou talvez haja nisso um pleonasmo, basta-
ria dizer os escritores paulistas. A noção de tempo
três vezes maior que sua redução a um mero instante
é o grande desafio do autor da obra máxima de nossa
inteligência de nós mesmos e do mundo que enri-
quecemos e, por isso mesmo, continua a ser a supre-
ma ofensa pessoal que um grande espírito teria feito a
uma coleção de pigmeus togados. A USP e suas filiais
no País inteiro, com razão, nada têm a comemorar
hoje, quanto mais cresce o gigante Gilberto Freyre mais
diminui a sombra triste e estridente da patética lílipute
universitária, que um dos seus fundadores, Paulo
Arantes, recentemente descreveu como Departamen-
to Francês de Ultramar. Talvez et pour cause.
Mas, dado que é com obras e não com mani-
festos e panfletos que se constrói a grandeza e a
pertinência de uma literatura, de um cultura, de uma
civilização, nós, os que aqui nos reunimos para re-
pensar um dos mais sólidos alicerces que foi também
um dos mais altos cumes do vigoroso gênio brasileiro,
temos muito que celebrar. Quanto mais não fosse o
gradual, mas inexorável empaledecimento de uma
pseudoverdade cultural novologista, totalmente ma-
nufaturada em São Paulo para uso exclusivo de um
projeto hegemônico que até agora tem produzido
apenas dinheiro e propaganda onde o resto do País
produz arte, talento e realidade. Creiam-me, pois, este
ano 2000 não é apenas por decreto o Ano Gilberto
Freyre, é também o primeiro sinal inequívoco de uma
inevitável eclipse, ou seja, onde o Brasil se reconheça
inteiro empalidecerá certamente a olhos vistos e rapi-
damente a farsa como história. Mais do que nunca,
parodiando o verso de Manuel Bandeira, "São os do
Norte que têm". O resto é calúnia.

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Além da Diferença, o que Há?

João Camilo de Oliveira Pena


Professor de Literatura Comparada – UniverCidade – Rio de Janeiro – Brasil

O título Além do Apenas Moderno 1 cluísse o sujeito, mas ao contrário, o utilizas-


contém uma marca contraditória: por um lado se como guia essencial do pensamento analí-
"além" designa um movimento de superação, tico, "integrado" ao dado da pesquisa antro-
e por outro "apenas" o de uma insuficiência. pológica. O registro projetivo, i.é, de projeção
Superação e insuficiência da modernidade, do dado "particularíssimo" sobre o todo,
remetendo a um tema contemporâneo de simplica o procedimento clássico de Freyre: a
periodização histórica: o pós-moderno. O autobiografia não é mais substancializada em
substantivo "além" (Jenseits em alemão), pa- história coletiva em que se lê o inconsciente
rece citar o título de obras-mestras do pensa- do Brasil a partir da perpectiva da sua história
mento europeu em língua alemã: Além do particular e das histórias da sua família, neste
Bem e do Mal de Nietzsche e Além do Princí- inconsciente individual-familiar-coletivo. Aqui
pio do Prazer de Freud, que consistem em o próprio "eu" se reencontra em forma frag-
ambos os casos nas respectivas obras de am- mentária nas leituras e discussões de proble-
bos os pensadores em momentos de supera- mas do futuro, que repetem as antigas obses-
ção de formulações anteriores.2 Além do Ape- sões freyrianas em outra chave, não mais
nas Moderno não está entre as grandes obras integradas e internalizadas no corpo da pes-
de Gilberto Freyre. Coleção de palestras, uma quisa, e sim dispersas em livros e questões,
espécie de "plano de ação para as futuras ge- como que citando aquelas obsessões que ou-
rações", note-se, no entanto, que, em comum tras obras souberam converter em matriz de
com estas obras, há um mesmo deslocamen- investigação.
to dos velhos problemas tratados: ao invés de O que em outras lugares era elemento
tratar do passado (tempo de preferência de genético, aqui se torna elemento final, com
Freyre, em suas grandes obras) passa-se ao uma ponta sintomática de vaidade e
futuro, de uma temporalidade retrospectiva a autocelebração. O que antes estava embuti-
uma projetiva. Por outro lado, enquanto nas do na pesquisa, agora se transforma em defe-
obras-mestras de Freyre a perspectiva autobi- sa aberta de posições explícitas. No presente
ográfica é matriz da investigação científica, 3 trabalho vai se tratar de vistoriar algumas des-
aqui, talvez pelo formato e registro destes tas recorrentes marcas de uma escrita que
ensaios teóricos sobre a atualidade do futuro sempre se quis ao mesmo tempo autobiográ-
(e do passado), encontramos um procedimen- fica e histórica, 4 e onde se dá não tanto a trans-
to inverso, ou apenas simplesmente uma re- formação de Freyre em "personagem de si
dução e simplificação do procedimento ante- mesmo", como quer Ricardo Benzaquen, mas
rior: o autor procura confirmações de si a citação de uma personagem já tratada em
mesmo e de suas próprias teorias, na biblio- outras obras.5 Estes vestígios, assinaturas ou
grafia que lê e nos problemas contemporâne- rastros de uma experiência pessoal refletida
os que aborda. O texto multiplica as assinatu- ao longo de todo o seu percurso intelectual,
ras de Gilberto Freyre, à maneira de um constituem a sua mise en abyme, ou seja, um
Velásquez, representando a si mesmo em Las reflexo em miniatura que figura a totalidade
Meninas "ao seu cavalete, a sua do percurso. 6
palheta…projetando-se em pessoa sobre o
tempo futuro através de uma das suas cria- Como indica Guillermo Giucci, o tema
ções". Referência citada por Freyre em Além do "pósmodernismo" aparece na obra de
do Apenas Moderno (p.16), como emblema Freyre ainda nos anos 30, no contexto de uma
de um método de investigação que não ex- superação do modernismo paulista de 1922,

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no prólogo que escreveu para o livro de Flávio Carva- espaços da diferença, por assim dizer, no seio do mes-
lho, Ossos do Mundo (1936).7 Este relato de viagem à mo. Por outro, no que toca especificamente ao Brasil,
Europa, contendo elementos de uma técnica de re- abrem-se duas alternativas: a de seguir ao pé da letra
construção do passado e da memória a partir da re- este movimento de uniformização, posição que infe-
cuperação propriamente arqueológica de fragmentos lizmente Freyre vê como predominante (estamos, é
e resíduos marcados afetivamente pelo narrador, in- preciso lembrar, nos anos 70, ou seja, no auge do pro-
teressa a Freyre que claramente identifica ali a sua cesso de modernização conservadora do regime mili-
própria metologia da "sociologia empática". A polê- tar brasileiro), ou a de perseguir e valorizar as marcas
mica com o modernismo, enquadrando não por aca- de uma cultura residual no interior deste processo,
so o relato de uma viagem à Europa, vai girar aqui remanescente de um luxo de vida e de sentimentos
como em outros textos da mesma época, em torno que ainda se encontravam no Brasil atual. Na oposi-
da relação entre cosmopolitismo e tradicionalismo, e ção à opção econômico-cultural do Brasil, que, como
de um diferendo a respeito da apropriação da na época do modernismo paulista, prefere ser mo-
modernidade (cosmopolita) no Brasil. A troca de acu- dernoso a se olhar direito, encontrar-se-á o cerne da
sações de provincianismo de ambas as partes, como crítica de Freyre à política contemporânea.
que refletida no espelho, e tendo como sintoma o
recurso à uma legitimação cosmopolita em ambos os O debate em torno do futuro é centrado em
casos, é resumida por Guillermo Giucci da seguinte alguns temas vindos da futurologia. As referências vão
maneira: Gilberto Freyre é o "provinciano cosmopoli- desde a história da ciência, de livros como Technics
ta" que ironiza os "cosmopolitas provincianos" and Civilization de Lewis Munford, ou The Engineer in
paulistas.8 Society de John Mill, até ecologia, The Forest and the
Em 1973, muita coisa obviamente mudou, mas Sea, de Marston Bates, até a futurologia propriamen-
permanece o diagnóstico da insuficiência da te dita, com Inventing the Future de Dennis Gabor,
modernidade, aqui relida no contexto das socieda- por exemplo. Podemos avaliar o teor das questões
des pósindustriais do capitalismo tardio, no que se examinando o livro Choque do Futuro (1970) de Alvin
convencionou chamar a pós-modernidade. A solução Toffler, cuja leitura impressionou muito a Freyre.10 A
freyriana para o dilema de uma modernidade que se idéia que parece lhe interessar (onde ele reconhece
define pela generalização do que Max Weber desig- uma problemática sua), é a de que a tecnologia da
nou de "racionalidade instrumental" 9 aponta, como informação e a mecanização industrial, configurando
de praxe, como insuficiente a simples "atualização" uma terceira revolução industrial, como Toffler
(modernizante) do Brasil, e o emparelhamento com teorizaria mais tarde em sua Terceira Onda (1980), ao
os temas e técnicas contemporâneas, e vislumbra, ao contrário de produzir uma centralização crescente da
contrário, uma reserva anti-modernista que surgiria sociedade, como se esperava, provocaria uma maior
simultaneamente, e por caminhos inversos, nos paí- descentralização e maiores possibilidades de
ses mais avançados e nos menos avançados. A afini- individualização (que Toffler cuidadosamente diferen-
dade entre o provinciano que não se esquivaria do cia de "individualismo"). A superação da produção de
autoconhecimento, e o cosmopolita que tivesse ido massas, conduziria a humanidade em direção a um
realmente fundo no cosmopolitismo, na síntese processo de des-massificação, definido pelo acesso das
"regionalista" do debate com o modernismo paulista, pessoas desvinculadas dos centros de capital-indús-
se repete aqui, numa nova afinidade entre os países tria-negócios aos meios de comunicação e produção.
avançados e os em desenvolvimento. A diferença re- A visão de Toffler, baseada em pesquisas realizadas
sultaria tanto do processo de modernização em sua entre 1965 e 1970, contatos com os primeiros inves-
conclusão, quanto seria permanência residual nos tigadores sobre inteligência artificial no início dos anos
países que passaram por um processo de moderniza- 60, e visitas à fábrica da IBM que na época construía
ção desigual (ao Brasil se junta aqui a Espanha, o sul os primeiros main frames em San Jose, no que consti-
dos Estados Unidos, em outros lugares Portugal), ves- tui a pré-história do vale do silício, profetiza a inven-
tígios arcaicos de uma sociabilidade outra, heterogê- ção dos PCs, e um acesso particular à tecnologia, que
nea, dentro do processo de uniformização capitalista. só ocorreria efetivamente em finais dos anos 70.
Por uma lado, Freyre parece confiar no poder Ora, apesar do inusitado sabor ficção científica
da própria modernidade, leia-se americanização de toda esta narrativa, para alguém que sempre se
desumanizante (o que em Sobrados Mucambos era interessou pelo passado, podemos perceber de que
diagnosticado como "europeização" do Brasil, e hoje maneira uma proposta deste tipo confirma e cita uma
se chamaria "globalização") de gerar alternativas, so- antiga hipótese de trabalho elaborada nos trabalhos
bretudo nos países desenvolvidos, de que se criem anteriores de Freyre. O seu tema clássico da valoriza-

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ção dos particularismos regionais, da heterogeneidade constituindo um exemplo contemporâneo (mas na
num quadro nacional, por oposição ao gradativo pro- verdade sempre praticado por Freyre, é o que está
cesso de standartização imposto pela modernização, implícito nesta discussão) desta nova síntese possível.11
encontra aqui respaldo futurológico: o próprio futuro Futuro e história se combinam, da mesma forma que
configuraria uma sociedade em que a diferença, ou a autobiografia individual pode se confundir com pro-
vontade de diferenciação (para falar como Nietzsche), jeto coletivo. Em Ordem e Progresso ele havia se ba-
seria a conseqüência lógica do processo de mecani- seado em autobiografias retrospectivas, agora, com a
zação, de forma que a herogeneidade encontrar-se- metodologia futurológica, poder-se-iam imaginar au-
ia no final do processo de modernização, e não ape- tobiografias projetivas, que traçariam a história social
nas em seus primórdios, quando os efeitos deletérios do futuro (p.89). O sociólogo, próximo ao artista, vis-
da "mesmização" ainda não se fizeram sentir por com- to sobretudo como escritor, enquanto aquele que uti-
pleto. De uma certa maneira, em estrito procedimen- liza suas experiências pessoais como janela para che-
to homeopático, seria como se o próprio veneno pu- gar ao objeto científico, emblematizaria esta nova (e
desse trazer a cura para o problema. A lógica do velha, já que sempre praticada por Freyre) ciência-
argumento assume a forma de um paradoxo: o capi- síntese demonstrando a necessidade do processo cri-
talismo produziria sua própria zona improdutiva, a ativo na pesquisa científica. Velásquez se inclui
desumanização provocada pelo produtivismo geraria "hispanicamente" em seu quadro Las Meninas, num
seu contrário: uma valorização da arte, da cultura, vislumbre do pós-moderno em pleno século XVII, as-
cuja necessidade se faria sentir com força renovada, sim como Lévi-Strauss, em seu Tristes Tropiques, junta
como complemento necessário do produtivismo. De experiências autobiográficas ao processo analítico.
maneira simétrica, assistiríamos, no campo Ambos não se incluem por excesso de vaidade, mas
epistemológico, à constatação crescente da insufici- por necessidade da metologia científica (p.16). A es-
ência das ciências exatas caso não sejam temperadas crita em si é uma ocupação criadora que depende do
com um um pouco do humanismo das ciências hu- ócio, e não pode ser medida através do tempo
manas. cronométrico-produtivista.
Freyre detecta quatro pontos básicos de supe- Freyre participa de duas reuniões em Corning,
ração da modernidade, em Além do Apenas Moder- nos Estados Unidos, em que estão presentes intelec-
no, na "condição pós-moderna": primeiro, as revoltas tuais da estatura de Julian Huxley, John dos Passos,
da juventude que vinham ocorrendo, a partir de 1968, Salvador de Madagiaga (e é claro, o próprio Freyre),
em escala mundial, num processo de representantes das indústrias, dos sindicatos, onde se
transnacionalização de resistências sociais, caracteri- discutia as posições a serem tomadas no contexto da
zadas por uma aproximação cada vez maior entre "neo-industrialização". Tudo aqui parece indicar uma
culturas nacionais que caminharia para um eventual humanização do trabalho: a descentralização das fá-
desaparecimento de contornos culturais nacionais; bricas permitiria que os operários fossem também
segundo, a automação crescente da indústria, possi- pequenos fazendeiros; um industrial espanta Freyre
bilitando um aumento do tempo de lazer das pesso- ao sugerir que caberia à próprias empresas sustentar
as; terceiro, o crescimento da vida média dos seres a cultura, mais do que construir aquedutos ou estra-
humanos; e por último, a superação da divisão estru- das (p.135). Como se situa o Brasil diante deste tema,
tural entre ciências exatas e humanas, quantitativas e freqüente nos 70 nos debates internacionais sobre
qualitativas, subjetivas e objetivas, no sentido de uma tecnologia, de uma espécie de reserva humanitária e
combinação necessária das duas. A civilização mun- artística exterior à produtividade que surgiria no capi-
dial se encontraria num ponto de transição em que o talismo tardio? De maneira ambígua: por um lado bem
"afã" obsessivo "pelos negócios", da valorização do tem- dotado em tradições culturais que valorizam justamen-
po-dinheiro (do time is money do capitalismo ameri- te este ideal do ócio, por exemplo, nas festas coleti-
cano), do tempo-cronométrico no processo de indus- vas que dão "uma dignidade do lazer" (p. 134), mas
trialização, manifestado epistemologicamente pelo por outro lado, completamente dominado pela lógi-
privilégio das ciências exatas, se substituiria por um ca da produtividade, do management, em suma da
crescente papel do ócio, e da defesa de uma função modernização industrial.
imaginativa na ciência, da qual a futurologia seria um O ponto de intervenção de Freyre, a perspecti-
exemplo característico. va prática e ética de seu texto, se situa justamente na
A futurologia enquanto ciência social projetiva, oposição a esta civilização do negócio, à civilização
utilizando de maneira essencial a imaginação, moderna, demasiadamente moderna, a que o Brasil,
conduzida pela observação científica do presente, si- ao contrário dos outros países de primeiro-mundo,
tuar-se-ia na junção entre vivência pessoal e coletiva, ainda estaria submetido. A pós-modernidade se defi-

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ne por uma relação nova entre gastar e tempo, em ança entre a antropologia e a sociologia mais moder-
uma interpretação nova "do que sejam homens gas- na e o latifúndio mais arcaico? Não se trata aqui da
tos pelo tempo e do que seja tempo gasto pelos tão falada harmonização de contrários, da casa-gran-
homens"(p.22), como formula Freyre de maneira la- de com a senzala? Vocês me dirão que jovens se en-
pidar. "Homens gastos pelo tempo", ou seja, os ve- contram em uma chave completamente diferente dos
lhos, "tempo gasto pelo homem", ou seja, o problema escravos e que velhos não podem ser comparados à
do tempo-dinheiro, e sua contrapartida pós-moder- aristocracia latifundiária.
na, da valorização do ócio, mais que do negócio. Mas num artigo de jornal de 1923, entitulado
Para Freyre, a civilização moderna dos últimos "Cultura e Aristocracia Intelectual", encontramos a
três séculos no Ocidente (em linhas gerais, é o capita- confirmação desta tese. Freyre ataca ali o que ele cha-
lismo que é aqui visado), se caracteriza pelo domínio ma de "mediocracia", ou falsa democracia de sua épo-
dos homens de meia-idade, homens que configuram ca, e defende também uma associação de extremos,
"uma espécie de classe média ou de equivalente da entre uma "aristocracia intelectual de supra-dotados"
burguesia, empenhados na defesa de interesses que e "uma reserva de rústicos de pouca ou quase nenhu-
são principalmente os de ordem, de organização, de ma cultura alfabética":
estabilidade, através de métodos principalmente ra- Esses extremos-será de fato impossível sua coe-
cionais, lógicos, jurídicos" (p.27). (Vê-se bem a idéia xistência em face de uma já sob vários aspectos triun-
weberiana de racionalização informando as fante mediocracia disfarçada em democracia? – im-
postulações de Freyre.) pediriam a uma burguesia semi-intelectual
A este modelo, baseado num sistema demasiadamente forte de se constituir, pelo simples
organizacional eficaz, centrado no tempo-trabalho e fato de ser alfabetizada, semiletrada, semiculta, num
no tempo-dinheiro, se opõem jovens e velhos, que, a sistema de uniformização cultural".12
partir de perspectivas diferentes, lutam contra um ini- Esta mediocracia seria inimiga de morte tanto
migo comum. A proposta de Freyre é que se organi- dos intelectuais supra-dotados, quanto dos analfabe-
zem "brigadas revolucionárias de choque contra os tos, da mesma maneira como, 50 anos depois, este
representantes, por excelência, da ordem "equivalente da burguesia" que é a faixa etária média
estabelecida" compostas destes grupos minoritários, combateria jovens e velhos, os desprezaria e os con-
de velhos e jovens, integrando "os extremamente jo- sideraria um resto dispensável da cultura da eficácia
vens e os passados dos setenta anos". racional e da ordem. Não se trata em ambos os casos
Ao falar aqui de velhos "passados dos setenta de versões da mesma aliança básica, de princípio,
anos", Freyre (que tinha 73 anos na época da publica- entre a senzala e a casa-grande, que parece ser a
ção do livro) inscreve a si mesmo e ao seus colegas de matriz de todas estas alianças?
geração, no meio de uma discussão teórica, num pro-
cedimento que chamamos acima de mise en abyme. Mais do que qualquer outro livro de Freyre,
Trata-se aqui de um exemplo desta recorrente reins- Além do Apenas Moderno é um livro de
crição de sua assinatura, como que perdida no meio posicionamentos políticos. Ali encontramos um Freyre
das informações obtidas através das fontes documen- leitor das questões da atualidade, participando de
tais. O interessante é que além de deslocar estes te- congressos internacionais, discutindo os caminhos do
mas antigos de Freyre (a busca do heterogêneo, a va- mundo e do Brasil em especial. Trata-se de um Freyre
lorização do particularismo contra a generalidade, ou mais intervencionista, embora a questão política, no
de uma margem improdutiva dentro do sistema pro- sentido de uma crítica da modernidade, o acompa-
dutivo) para a atualidade futura, identificando em nhe em todos os seus livros. Freyre vê na constituição
autores, ou discussões contemporâneas suas velhas de um espaço do lazer a possibilidade mesma de
obsessões, – o interessante é que além disso eles de- reestruturar uma espécie de aristocracia do saber, da
vam ser autorizados pelo sujeito Freyre que emerge ciência e da arte, que deveriam ser sustentados pelo
aqui como participante (não como informante) no estado para fazerem o que quiserem. Elogia a Rússia
meio de uma discussão sobre política atual. que concede a seus homens de ciência e artistas, "ho-
Esta aliança contra o moderno, que paradoxal- mens de gênio" regalias de lazer, e estas regalias aca-
mente associa os extremos, o ultra-moderno, o mais bam por beneficiar a própria maioria com obras que
jovem das revoltas estudantis, ao tradicional, o velho a entretenham. Critica Brasília, fruto de uma defor-
de mais de setenta anos, reescreve e repete os mes- mação "socialista" que desvaloriza o trabalho huma-
mos termos fundadores da aliança que estrutura toda no, ao desvalorizar o lazer como parte essencial do
a sua obra. Vejamos por exemplo Casa-Grande & Sen- trabalho. Deveríamos poder no Brasil, através de um
zala. Não se trata aqui exatamente disso: de uma ali- novo socialismo de estado, "flexivelmente brasileiro",

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295
proporcionar a homens "superiores em qualquer arte Neste sentido há um contraste interessante: da
ou ciência ou saber" (p.136) a oportunidade de fixa- mesma forma que, nas caracterizações sucessivas da
rem residência em qualquer lugar, para produzirem sociedade brasileira na trilogia, a crítica se pautava
suas obras. num modelo ausente porque passado, remanescente
Neste tempos pós-modernos, o papel do inte- no presente em pequenas arestas residuais, e perma-
lectual estaria também se redesenhando. Ressalta-se necendo por assim dizer impossível de ser
aqui um posicionamento ético que Freyre detecta por reconstituído, senão como espécie de negativo de
exemplo no físico nuclear Robert Oppenheimer, um tudo o que existe,14 agora a situação pós-moderna
dos inventores da bomba atômica, que faz parte de proporciona espaços de diferença igualmente residu-
um mundo em que a especialização do cientista se ais no presente, e que se projetam no futuro.
complementaria com um caráter propriamente Em Além do Apenas Moderno, Freyre multipli-
generalista da perspectiva ética do intelectual diante ca os tipos de tempo, acrescentando algumas outras
dos problemas da humanidade atual (p.217).13 formas às já antes elaboradas sob a égide do "tempo
Existe assim um preceituário da missão intelec- tríbio", noção que colhera em Ortega y Gasset, e ex-
tual que se redefinia com os novos rumos da mecani- pusera na "nota metodológica" de Ordem e Progres-
zação e do lazer. O intelectual deve se caracterizar so. A perspectica aqui, no entanto, é a polêmica opo-
por sua "independência criadora", e ser uma força es- sição entre uma temporalidade monolítica,
sencialmente anárquica e engajada numa prática não unidimensional, diria Marcuse, dos norte-americanos,
subsumível a qualquer credo ou doutrina política, a os quais, segundo Freyre, com exceção do sul dos Es-
qualquer associação a partido, seita ou estado. Engajar- tados Unidos, "têm um só tempo", e uma outra
se em ideologias específicas faria deles "intelectuários", temporalidade complexa, baseada no constante en-
e não intelectuais. O exemplo citado é Malraux, mo- trelaçamento entre passado, presente e futuro, no
delo de intelectual brilhante, mas que, ao dedicar-se Brasil 15. O enfoque que era metodológico em Or-
ao estado francês, perdera sua independência, o fio dem e Progresso adquire valor diferencial, e marca a
de sua "força criadora", e teria passado a servir sim- civilização aristocrática, tropical do luxo dos sentidos,
plesmente a uma facção política, e um grupo qual- aqui localizada no mundo hispânico, a partir da gran-
quer. Ao contrário disso, há o intelectual ético, aliado de reconfiguração "ibérica" dos temas freyrianos.
dos jovens, e em oposição aos burgueses de meia- Freyre cita a Américo Castro, em seu livro La realidad
idade que controlam o mundo, pautados nos valores histórica de España. Castro descreve a experiência dos
do dinheiro e do trabalho. sentidos a partir de um "tempo total" que fundiria su-
jeito e objeto, vivido e objetivo, num instante único
O tema da superação da modernidade, e do em que coexistem todos os três tempos. O espanhol
modernismo, sempre foi a questão essencial de Freyre. por exemplo acorda alegre ou triste. Neste caso não
No entanto, o nó górdio de sua crítica era a tradição, é o dia ou o tempo fora dele que é alegre ou triste,
o passado remoto, como uma saída para os males da mas ele próprio dentro do tempo, ou o tempo dentro
modernidade e do processo de modernização, e como dele que é alegre ou triste (p.14, 15).
fórmula da vontade diferencial. Aqui no entanto, apre- A coexistência dos diversos tempos é elevada
senta-se uma saída no futuro. Para usar uma metáfora aqui à categoria de diferencial cultural, mas deve
de pintura, a linha de fuga do quadro, o ponto em corresponder também a uma nova metodologia cien-
que o quadro inteiro se desfaz e que é ao mesmo tífica. A mesma no entanto que fora sempre praticada
tempo o critério organizacional de toda a perspectiva por Freyre em seus estudos clássicos. A metodologia
está em um caso situado no passado e no outro no a ser utilizada pelo pesquisador deve ser múltipla, não
futuro. Repare-se no entanto que a utopia freyriana, quantitativa; ela deve ser empática, e combinar um
seja no passado, nos primórdios da colonização do pouco de tudo. Mais uma vez, trata-se da questão do
Brasil com o engenho de cana de açúcar, ou no futu- equilíbrio de contrários. Da mesma forma, a tecnologia
ro da pós-industrialização, onde se viabiliza uma mar- também serviria para aproximar o "artista analfabe-
gem improdutiva e artística ao produtivismo capitalis- to", e as "artes rústicas" de seu público. (Freyre prevê
ta, tem os mesmos traços. É a mesma cultura do ócio, aqui o que virá a ser, por exemplo, a World Music,
do refinamento, da genialidade de certos homens de como fenômeno comercial "pós-moderno", que con-
ciência, da aristocracia de sentimentos, em oposição siste exatamente na associação do mais profundamen-
à ocidentalização como processo de achatamento de te local com o globalizado, através dos meios de co-
diferenças que está em jogo aqui. A diferença é que a municação de massa.)
imagem idealizada oposta à realidade criticada está O tema da coexistência de diversos tempos ou
localizada aqui no futuro e não no passado. abordagens como método científico não é novidade

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em Freyre. Em "Como e porque sou sociólogo" ele identidade como resíduo do processo de moderniza-
compara o método sociológico a uma pintura cubista ção e uniformização (diríamos de ocidentalização) que
em que as formas e instituições fixas poderiam ser o intelectual projeta, a maneira de uma mise en abyme,
combinadas, em "totalidades de pespectivas", onde sobre os outros que encontra em seu passeio pelo
coexistiriam todos os tempos, técnica que permite a mundo.
Picasso, por exemplo, "apresentar, de uma só vez, to-
dos aqueles aspectos de um objeto que, de ordinário, _______________________
só poderiam ser vistos cada um de uma vez e de ân- Notas
gulos diferentes".16 O problema é que o ecletismo de 1
Freyre, Gilberto. Além do Apenas Moderno. Sugestões em torno
abordagens e a multiplicidade temporal parecem sem- de possíveis futuros do homem, em geral, e do homem brasileiro
pre ser reabsorvidos por um "eu" que eternamente em particular. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
retorna enquanto forma organizadora, que busca nos 2
No caso de Nietzsche, Além do Bem e do Mal (1887) é a primeira
outros confirmações de si mesmo, assim como vimos obra publicada depois de Assim Falou Zaratustra, que marca a gran-
de virada no pensamento nietzchiano, centrando-o na vontade
Freyre fazer sistematicamente neste livro tardio que é
de poder como vontade de diferenciação,e no eterno retorno como
Além do Apenas Moderno. Sua reformulação pós- critério repetitivo de avaliação. Trata-se aqui da superação do bem
moderna de velhos problemas e antigas posições, o e do mal como critérios da avaliação moral, apontando para uma
projeto de uma cultura heterogênea e particular, con- transavaliação, e para uma filosofia do futuro, a do super-homem,
ou “além-do-homem”. No caso de Freud, Além do Princípio do
siste basicamente em identificar e citar em obras de
Prazer (1920) inaugura a chamada segunda tópica na obra
outros autores, e em discussões contemporâneas, seus freudiana, caracterizada por uma reconfiguração do “aparelho
próprios temas, que lhe são devolvidos alterados e psíquico”. Trata-se de uma uma superação do sistema realidade/
atualizados, mas sempre na verdade os mesmos. prazer, caminhando para a formulação do princípio de morte, como
repetição do princípio do prazer. É importante ressaltar a impor-
O que será portanto da diferença nos dias atu-
tância em ambos os casos de um princípio repetitivo (eterno re-
ais? Quem sabe o procedimento que isolamos nestra torno para Nietzsche e princípio de morte para Freud), como pos-
obra de Freyre não seja marginal à obra de Freyre sibilidade de superação teórica dos dilemas que as obras
como um todo, nem a nós outros seus contemporâ- apresentavam anteriormente. Da mesma forma, em Além do Ape-
nas Moderno, Freyre repete os antigos temas de sua obra, na cha-
neos, mas consista num componente essencial do pós-
ve voluntarista, subjetiva e discursiva. Deixando o território da in-
moderno? Talvez possamos ler Além do Apenas Mo- vestigação para o da especulação teórica.
derno como sintoma de algo que o livro exemplifica, 3
Este tema, já tão vasculhado e apontado pela crítica freyriana,
e desta forma poderemos contribuir para o entendi- não precisa ser aqui esmiuçado mais uma vez. Basta, talvez, lem-
mento do projeto de Gilberto Freyre. brar o papel dado por Freyre, de forma emblemática e na origem
de sua pesquisa, às histórias ouvidas de Dona Francisca Barrado
Hoje em dia assistimos a um esgotamento do da Cunha Teixeira de Mello, uma “prima nossa”, na gênese de
modelo pós-moderno, enquanto valorização da Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX. ( Recife: Instituto
heterogeneidade, do múltiplo, e da diferença. Minha Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1964), p.13.
hipótese é que este modelo é baseado em uma an- 4
Em Freyre encontramos este projeto sistematizado em
tropologia que constrói as diferenças a partir do olhar metodologia, de “saciólogo” e não “sociólogo”, diria ele, com auto-
ironia, aproximando-se mais do romancista, onde a ortodoxia ana-
subjetivo do antropólogo viajante das diferenças. Será lítica se combinasse com uma visão da “ poesía y fantasmagoría”
que não estaríamos assistindo agora ao esgotamento pessoal, no dizer de Unamuno. Como e Porque Sou e Não Sou
deste modelo turístico da antropologia, baseado no Sociólogo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1968, p.67.
olhar generoso do antropólogo aristocrata que valori-
5
Benzaquen de Araújo, Ricardo. Guerra e Paz. Casa-Grande & Sen-
zala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Edi-
za o outro, estetizando-o? O paradigma da viagem, tora 34 Letras, 1994, p.189.
tipicamente pós-moderno, ligado a um sujeito cos- 6
A designação de mise en abyme foi cunhada por André Gide, em
mopolita que passeia pelos espaços diferenciais, que seu diário de 1893. O termo vem da heráldica e designa o centro
circula pelo meio dos outros, mas que pensa sempre (abîme, abismo) de um escudo. No Dictionnaire historique de la
o outro a partir de si mesmo, não estaria mostrando langue française de Alain Rey o verbete mise en abyme conclui
dizendo: “Sua especialização em heráldica para designar o centro
hoje em dia suas inevitáveis limitações? Minha hipó- do escudo (1671) forneceu a [André] Gide a expressão mise en
tese é que a diferença como categoria que pensa as abyme que restabelece o “y” etimológico [a grafia moderna é
multiplicidades coexistentes, o "equilíbrio de contrá- abîme]. Essa expressão designa um procedimento artístico ou lite-
rios", para usar a expressão que Ricardo Benzaquem rário de repetição ou espelho reduzido, do assunto ou ação” (Pa-
ris: Dictionnaires Le Robert, 1992).
elege como emblemática do pensamento freyriano, 7
Giucci, Gullermo. “Gilberto Freyre e o (pós)modernismo”. Texto
pensa sempre o outro, ou a diferença a partir de sua manuscrito.
própria diferença, no caso, a identidade do intelectu- 8
Giucci, Guillermo. Idem, p. 6.
al aristocrático, reserva de luxo dos sentidos, homem 9
Em Além do Apenas Moderno abundam as referências a Weber.
do refinamento que aprecia a diferença como um doce Por exemplo, na p.67, quando explica que o “processo de racio-
nalização”, envolvendo o homem moderno em constantes mu-
gostoso a ser degustado. É, no entanto, a sua própria

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danças devidas à aplicação das novas ciências e técnicas, se carac-
teriza por uma perda do “mito”.
10
Mais do que tudo impressiona a Freyre em Choque do Futuro o
tema dos avanços da tecnologia aplicada à genética, que levariam
ao “planejamento da prole”, e à instituição de “babytoriums”, ou
“espécie de equivalente de banco de sangue no qual se adquiram
embriões classificados segundo os característicos de cada um…”
(Além do Apenas Moderno, loc.cit., p.49).
11
“Já é de vários cientistas e pensadores sociais modernos com
alguma coisa de pós-moderno a atitude de ser possível o emprego
de métodos cientificamente imaginativos ou empáticos que se
acrescentem aos empíricos, quando os empíricos se revelam inca-
pazes de certas abordagens”. (Além do Apenas Moderno, loc.cit.,
p. 94)
12
Freyre, Gilberto. Retalhos de Jornais Velhos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1964, p.139.
13
Também Foucault vê em Oppenheimer um momento de transi-
ção no posicionamento do intelectual frente aos fatos políticos de
seu tempo. Ele se situa entre o “intelectual universal” derivado do
modelo do “jurista notável” e o “intelectual específico”, derivado
do modelo técnico do “sábio-expert”. Oppenheimer, enquanto
físico nuclear, ciência que exemplifica a especialização científica
contemporânea, se posiciona a respeito de problemas universais
do seu tempo, não como intelectual universal (Voltaire, Sartre),
mas como cientista. Foucault, Michel. Entrevista com M. Fontana
“Vérité et Pouvoir”. In L’Arc. La crise dans la Tête, número 70,
1978, p.23.
14
Veja-se, por exemplo, a maneira com a qual, após uma longa
descrição dos “males da escravidão” Freyre conclui, em Casa-Gran-
de & Senzala: “Mas aceita, de modo geral, como deletéria a influ-
ência da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasi-
leiro da casa-grande, devemos atender às circunstâncias
especialíssimas que entre nós modificaram ou atenuaram os ma-
les do sistema. Desde logo salientamos a doçura nas relações de
senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que
em qualquer outra parte da América”. Freyre, Gilberto. Casa-Gran-
de & Senzala, Rio de Janeiro: José Olympio, 11ª edição, segundo
tomo, p.490. A apologia do sistema brasileiro aparece assim num
pequeno desvio sintático, na sombra de uma adversativa, que
“modifica” ou “atenua” o rigor do mal.
15
(Ordem e Progresso, Rio de Janeiro: José Olympio, 1959, p. xl).
Mais adiante Gilberto prosegue no contraste: “E Pois somos um
povo, mais que o anglo-americano, ligado, em nossa existência,
ao passado, embora também americanamente sensível ao pre-
sente e ao futuro que entre nós, como entre os anglo-americanos,
são solicitações de tempo progressivo, utópico, messiânico associ-
ado às de espaço ainda por dominar.”
16
Freyre, Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo, loc.cit., p.76.

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Uma Senhora Inconveniente

Antonio Dimas
Escritor – Universidade de São Paulo – Brasil

Quando se põe a desenhar os papéis ses do sexo dominante e da sociedade organi-


masculino e feminino dos brasileiros zada sobre o domínio exclusivo de uma clas-
urbanizados do século XIX, Gilberto Freyre se, de uma raça e de um sexo. ” 2
capricha nos contornos físicos para explicar Dentro dessa construção social em pa-
os sociais, que com aqueles se misturam, se tamares, na qual um dos resultados pernicio-
confundem e confundem. Com o habitual sos é o cerceamento da criatividade femini-
privilégio de sua plasticidade estilística, o so- na, dá-se uma enfiada de prejuízos essenciais,
ciólogo de Sobrados & Mucambos esculpe um dos quais, segundo ainda o antropólogo,
uma figura feminina passiva e caricata, com o é o predomínio paradoxal da subjetividade
propósito de derrubá-la, em seguida, sob o masculina sobre a objetividade feminina,
argumento de que aquela imagem fragilizada ambas também supostas e construídas, é cla-
aproveita apenas à volúpia de mando do ma- ro. Segundo essa tese desenvolvida por Gil-
cho. “Não é certo, afirma Gilberto Freyre, que berto Freyre, em âmbito de forte marca patri-
o sexo determine de maneira absoluta a divi- arcal vê-se inibida a excelência da mulher
são do trabalho, impondo ao homem a ativi- naquela zona da criação concreta, 3 o que re-
dade extradoméstica, e à mulher, a domésti- dundaria em enfraquecimento dos compo-
ca.” 1 Tamanho equívoco foi-se moldando ao nentes pragmáticos da atuação social. Estu-
longo dos séculos, graças ao predomínio so- dando-se a história política e literária do Brasil
cial de um sexo sobre o outro, e seu resulta- durante a fase patriarcal, diz Gilberto, “um
do mais eficaz e evidente constituiu-se na su- traço que nos impressiona nos indivíduos da
perioridade enganosa do masculino sobre o classe dominante – na maioria deles – é a pre-
feminino. Assim como, anos antes, em Casa- ponderância do subjetivismo – embora um
Grande & Senzala, Gilberto desmitificara a subjetivismo, em geral, ralo e medíocre.
suposta inferioridade inata do negro, em So- Encontramo-lo na literatura como na política.
brados & Mucambos o alvo é outro: não é Especialmente durante o Império. Ao lado des-
mais o estigma da cor que está em pauta, mas se subjetivismo ralo, uma grande falta de inte-
o estigma do sexo; não é mais o negro do eito resse pelos problemas concretos, imediatos,
que está em jogo, mas a fêmea da sala e das locais. Uma ausência quase completa de ob-
alcovas; não é mais o espaço rural, mas o ur- jetividade. O que em parte se pode atribuir a
bano. pouca ou nenhuma intervenção de mulher
Na iniciativa de contestar e de transfor- naquelas zonas de atividade artística e políti-
mar um juízo consolidado, interesseiro e per- ca. ” 4
verso, o jovem estudioso, de olho no forte Em suma: da mulher não se esperasse
residualismo patriarcal deste país, adverte: “A outra atitude senão a rigorosamente domésti-
verdade é que a especialização de tipo físico e ca, atrelada à cozinha, à sala de visitas, aos
moral da mulher, em criatura franzina, neuró- cuidados com as crianças e com a criadagem.
tica, sensual, religiosa, romântica, ou então, Em bom e sonoro português: casa, criança e
gorda, prática e caseira, nas sociedades patri- capela. Que se levantassem cedo para “dar
arcais e escravocráticas, resulta, em grande andamento aos serviços, ver se partir a lenha,
parte, dos fatores econômicos, ou antes, soci- se fazer o fogo na cozinha, se matar a galinha
ais e culturais, que a comprimem, amolecem, mais gorda para a canja, dar ordem ao jantar,
alargam-lhe as ancas, estreitam-lhe a cintura, que era às quatro horas, e dirigir as costuras
acentuam-lhe o arredondado das formas, para das mucamas e mulecas, que também remen-
melhor ajustamento de sua figura aos interes- davam, cerziam remontavam, alinhavam a rou-

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pa da casa, fabricavam sabão, vela, vinho, licor, doce, to esquivo de repulsa controlada, era a primeira vez
geléia, etc. Mas tudo devia ser fiscalizado pela iaiá bran- “que o braço de Seixas enlaçava a cintura de Aurélia.
ca, que às vezes não tirava o chicote da mão. ” 5 Explica-se pois o estremecimento que ambos sofreram
Nesse contexto de reclusão e de submissão à ao mútuo contacto, quando essa cadeia viva os pren-
vontade masculina, não deve ter faltado alguma re- deu.” 7 Aos primeiros acordes da música, a heroína
belde que se atrevesse a desafiar os preceitos de en- toma a dianteira e o comando da ação, declarando
tão; alguma mulher, jovem ou adulta, que, mesmo que não sabia valsar de modo lento. Para quem, mi-
arriscando sua própria pele, se indispusesse contra nutos antes, confessara não saber dançar a valsa, a
mandamentos tão constritivos; alguma mocinha que intenção de acelerar o ritmo constitui-se em desmen-
afrontasse a tirania da barba espessa, fosse pela cora- tido coquete e clara demonstração de iniciativa, que
gem, fosse pela insinuação. Cabe à história procurá- deixa o parceiro à mercê da sua vontade. Não bastas-
las, recuperá-las e valorizá-las. Mas cabe também à se isso, o diálogo entrecortado e rápido que se segue
literatura conjecturá-las, ainda que de forma simbóli- acompanha o ritmo da dança, bem como simula a
ca, mas sintomática de situações latentes. Foi essa uma precipitação do ato sexual que ainda não ocorrera,
das tarefas que Alencar tomou para si, além de deli- tanto tempo depois do casamento. Em vez do ato ín-
near um vasto mapa cultural e histórico do país, pro- timo e recolhido na quietude do espaço particular, o
jeto que deixou muito claro em seu clássico prefácio sucedâneo do rodopio público, em frases
a Sonhos d'Ouro (1872). Com seus perfis femininos, entrecortadas e completas, esgrimindo-se em verbo
Alencar elabora um mapa social – se não for socioló- aquilo que a carnalidade lhes negava. Que o diga o
gico – da burguesia carioca do século 19, aquela mes- romance:
ma de que se ocupa Gilberto Freyre em Sobrados e “Aos primeiros compassos principiou este rápi-
Mucambos. Com Senhora (1875), mais especificamen- do diálogo, cortado pelas evoluções da dança:
te, o romancista vasculha um território delicado, o das - Não sei valsar devagar.
relações amorosas convertidas em econômicas, cujo - Pois apressemos o passo.
leme escorrega da mão masculina para se alojar nas - Não lhe tonteia?
femininas de Aurélia Camargo. E esse deslocamento, - Não; a cabeça é forte.
perceptível e sistemático em inúmeros detalhes do - E o coração?
romance, parece dar o tom da narrativa, imiscuindo- - Este já calejou.
se o tempo todo nela, dela fazendo parte intrínseca e - Pois eu sou o contrário.
gerando, por fim, um deslocamento da expectativa - O coração?
do leitor, habituado com a passividade da mulher ro- - Nunca vacilou.” 8
mântica, cuja conduta se pautava tão somente pela Depois dessa cena, esmera-se o narrador em
motivação amorosa. Com Aurélia Camargo, a valsa considerações sobre o potencial afrodisíaco da valsa,
toca em outro ritmo, menos langoroso talvez; um sugerindo com ênfase (se a expressão não parecer
pouco mais picado, com certeza. contraditória...) que aquele tipo de música carrega,
Veja-se, por exemplo, passagem fundamental em si, capacidade igual à do defloramento físico. Sen-
do romance, cena em que Aurélia e Fernando Seixas, tencia o narrador: “É realmente a desfolha da mulher,
seu marido, dançam uma valsa, em sua própria casa e a despolpa de sua beleza e de sua pessoa, o que a
na frente de vários convidados. Seis meses depois de valsa impudica faz no meio da sala, em plena luz, aos
casados, em matrimônio que ainda não se consuma- olhos da turba ávida e curiosa. ” 9 Senhora da casa, do
ra fisicamente, por impedimentos éticos e não físicos salão, da festa e daquele marido que adquirira como
– que esses não faltavam nem a Fernando, nem a traste indispensável às mulheres honestas, 10 Aurélia
Aurélia – o par rodopia em frente à sociedade local, exibe-se vitoriosa, dominando a situação, esbanjan-
promovendo um invejável faz-de-conta de felicidade do vitalidade, controlando a aproximação dos corpos,
conjugal. Tocavam-se fisicamente, pela primeira vez, engolfando o marido, apalpando-o como bem enten-
seis meses depois da cerimônia de casamento, em si- de, submetendo-o à movimentação que ela própria
mulada harmonia, que o narrador se encarrega de determina e conduz. Felina ondulosa, 11 como anota
desfazer rápido quando monta imagem de Alencar, Aurélia mantém a presa sob sua garra e guar-
indisfarçável antagonismo de borboleta pousada so- da, fazendo-a, exangue, abdicar de toda sua vontade
bre cacto: “Aurélia pousara a mão no ombro do mari- e consciência. 12 Sem esta, nem aquela perdeu-se o
do, e imprimindo ao talhe um movimento gracioso e macho, naquele instante entregue aos desígnios da
ondulado, como o arfar da borboleta que palpita no fêmea que, meses antes, o comprara através de um
seio do cacto; [sic] colocou-se diante de seu cavalhei- contrato rigorosamente comercial.
ro e entregou-lhe a cintura mimosa. ”6 Nesse movimen- Convém não esquecer, aliás, que uma termino-

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logia adequada às transações de caráter comercial já se colocou. Foi um relance, diz Alencar. “O elegante
emoldura o romance. Não é à toa que as quatro par- par sumira-se atrás da folhagem, e já emergia da som-
tes em que a obra se divide são designadas por "Pre- bra e nadava na claridade deslumbrante da sala que ia
ço", "Quitação", "Posse" e "Resgate". Mais que uma de novo atravessar na elipse fugaz.” 15
disputa amorosa, cujas dificuldades não terminam com Para não perder o feroz auto-controle que a
a mística do casamento, antes começam com ele, a sustentava, Aurélia escapa rápido do simulacro de
narrativa das relações entre Fernando e Aurélia cons- mata umbrosa que a seduz, como seduziu Iracema
titui-se em barganhas recíprocas, próprias de uma ou Marabá, e retoma a claridade deslumbrante, que
negociação tensa. Em crítica recente, Luís Filipe Ri- a ajuda a ver melhor e a se controlar melhor. Na dis-
beiro apontou bem para essa particularidade do ro- puta entre Alice e Adélia, prevaleceu Adélia, a
mance: “O fato de nomear-lhe as partes indicia uma urbanizada cheia de vontade e menos submissa. Ao
intenção de influir no entendimento do que se há de contrário daquela moça abafada em sedas, babados e
ler em seguida. Tudo deve ser lido na moldura de um rendas ou daquelas outras tísicas ou anêmicas ou ain-
contrato comercial ou das normas que o regem. E, além da “daquelas mães de meninos que nasciam mortos
disso, desloca a questão do casamento que, numa pri- ou daquelas mães de anjo ou de outras que morriam
meira abordagem e no quadro da cultura literária de de parto”,16 Aurélia traça seu próprio caminho, pelo
então, encontrava seu lugar nas relações amorosas. Ele menos enquanto dura o romance. Daí o perigo de
[o casamento], brutalmente, e antes mesmo da leitu- sua exemplaridade. Perigo que não escapou a uma
ra, aponta para o campo das relações comerciais, onde astuta dama baiana do fim do século, como lembra o
o interesse financeiro predomina absoluto e sem opo- próprio Gilberto Freyre: “Bem dizia em 1885 D. Ana
sição. ” 13 De forma enganosa, Alencar ludibria o leitor Ribeiro de Góis Bittencourt, ilustre colaboradora baiana
romântico, deslocando a expectativa do casamento do #Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro#,
para um universo de tensão e não de distensão. alarmada com as tendências românticas das novas ge-
Gilberto Freyre dedicou um belíssimo ensaio à rações – principalmente com as meninas fugindo de
importância fundacional de Alencar no romance bra- casa com os namorados – que convinha aos pais evitar
sileiro, acentuando a farta utilização da natureza que as más influências junto às pobres mocinhas. O mau
neles ocorre. Em ponto alto desse ensaio, hoje reco- teatro. Os maus romances. As más leituras. Os roman-
lhido em Vida, forma e cor, Gilberto se vale de duas ces de José de Alencar, por exemplo, com ‘certas ce-
heroínas alencarianas, Alice a Adélia, dO Tronco do nas um pouco desnudadas’ e certos ‘ perfis de mulhe-
Ipê (1871), para tipificar o comportamento res altivas e caprichosas [...] que podem seduzir a uma
europeizado, o de Adélia, e o comportamento mais jovem inexperiente, levando-a a querer imitar esses ti-
brasileiro, o de Alice. Implícito nessa diferença, assim pos inconvenientes na vida real’.” 17
a lemos nós, está o comportamento formal e Advertência parecida com essa, ecoava ainda,
urbanizado de Adélia em oposição à espontaneidade anos depois, numa versão cabocla e curiosa do Index
e naturalidade ruralizada de Alice. Ou, se quiserem Librorum Prohibitorum, como a confirmar e a esten-
de modo mais claro e ainda mais mais fundo, a oposi- der a impertinência de uma senhora que, mesmo fic-
ção entre o campo e a cidade, a Europa e a América. tícia, incomodava. Por meio de um guia para as cons-
Alice vive solta e muito mais “em harmonia com a ciências, o Frei Pedro Sinzig, em livro à espera de um
paisagem brasileira; Adélia é sinhazinha de sobrado, atento estudioso da cultura brasileira, demonstrava
de casa atapetada, de salão afrancesado de corte. ” 14 preocupação com o bem estar da família brasileira e
Estabelecido o caráter comercial de Senhora e desaconselhava a leitura de Senhora. Para ele, trata-
essa antinomia que Gilberto localizou nO Tronco do va-se de romance “extremamente exaltado, com amo-
Ipê, voltemos ao salão onde rodopiam, elétricos, res de esposos separados e que, portanto, não pode
Aurélia e Fernando. impressionar bem. ” 18
Já mais para o fim da dança, quando ambos es-
tão perturbados e cansados da tensão reprimida, abre- _______________________
se um átimo para o descanso, quando Aurélia e Notas
Fernando se afastam do centro do salão e, rapidamen-
te, deslocam-se para um de seus cantos, enfeitado de
1 Gilberto Freyre – Sobrados e Mucambos. 3ª ed. Rio
farta vegetação, onde uma folhuda bananeira prote- de Janeiro: J. Olympio, 1961. p. 96.
2 Id. ib., p. 96.
ge a passagem do par. Nesse instante minúsculo, 3 Id. ib., p. 107.
Aurélia e Fernando quase se entregam a um beijo, o 4 Id. ib., p. 108.
que anularia a cautela da heroína, aniquilaria seus 5 Id. ib., p. 109.
planos e a deslocaria da superioridade moral em que

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6 José de Alencar – Senhora. 6ª ed. Pref. J. Luiz
Lafetá. São Paulo: Ática, 1975. p. 162.
7 Id. ib., p. 162.

8 Id. ib., p. 163.

9 Id. ib., p. 164.

10 Id. ib., p. 65.

11 Id. ib., p. 165.

12 Id. ib., p. 165.

13 Luís Filipe Ribeiro – Mulheres de Papel. Um

estudo do imaginário em José de Alencar e


Machado de Assis. Niterói: EDUFF, 1966. p. 145.
14 Gilberto Freyre – Vida, Forma e Cor. Rio de

Janeiro: J. Olympio, 1962. p. 124.


15 José de Alencar – Senhora. p. 166.

16 Gilberto Freyre – Sobrados e Mucambos. p. 177.

17 Id. ib., p. 132.

18 Frei Pedro Sinzig – Através dos Romances. Guia para

as consciências. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1925. p. 49.


[1ª ed.: 1914].

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O Tempo no Futuro

Rosa Maria Barboza de Araújo – rmaraujo@candidomendes.br


Historiadora – Universidade Cândido Mendes – Brasil

Além do Apenas Moderno é um livro da românticos e abre espaço para atividades ar-
maturidade. Gilberto Freyre se permite fazer tísticas e culturais. O ócio pode mudar con-
sugestões explícitas para o homem do futuro, venções rígidas, do que faz o homem e do
em geral, e para os possíveis futuros do ho- que deve fazer a mulher. Os governos não ad-
mem brasileiro, em particular. Dentre as di- ministram o tempo livre do homem médio.
versas sugestões apresentadas dois temas me São os exploradores comerciais, como os do-
chamaram atenção, de forma singular: a Re- nos de casas de bingo, hoje em dia, que sa-
volução Biossocial e o Crescente Tempo Li- bem explorar o tempo livre. E haja passatem-
vre, o culto ao ócio. po. O tempo livre pode trazer problemas que
O momento pessoal e intelectual do costumam afetar os ricos blasés, aqueles que
Gilberto Freyre é sintomático. Ele tem mais tem fadiga e um tédio que os leva às drogas,
de 70 anos, tendo esgotado a análise de ques- ao suicídio, ao abuso do álcool, a calmantes e
tões-chaves da Sociologia, se permite chegar sedativos.
à Futurologia, num tom de aconselhamento, O tempo livre pode ser dedicado a pra-
sem nenhuma prepotência mas com seguran- zeres gregários ou da solidão como ouvir
ça. Ele chama de Futurologia a análise de so- música, remar, namorar, amar, gozar o sexo,
brevivência, profecias e antecipações. dançar, ir ao teatro, ao cinema, ver TV, rezar
Para Gilberto Freyre não basta ao ho- em templos bonitos, acompanhar procissão,
mem ser apenas moderno. É preciso ter a vi- nadar, fumar cachimbo, tomar cerveja em ter-
são dos tempos pós-modernos quando é im- raços de cafés ou comer pratos deliciosos.
perativo o entendimento do tempo tríbio, Cabe lembrar, apesar do autor não ter feito
passado, presente e futuro, interdependentes. referência ao fato, que o ócio não é mais um
Esta noção se desenvolve no contexto de uma inconveniente social, uma ameaça à ordem,
Revolução Biossocial que consiste numa adap- como foi no Brasil do início da República. A
tação do Homem ao ambiente, pela ideologia republicana logo faz um decreto de
tecnologia e do ambiente ao homem, para número 181, em 24 de janeiro de 1890, con-
atender suas pós-modernas necessidades. Isto tra o ócio "onde os costumes civilizadores ven-
leva ao progresso da chamada Engenharia cerão a preguiça dos desocupados".
Humana, dedicada ao bem-estar do homem, Desde 1888, há no Brasil um projeto
como, por exemplo, a melhoria da refrigera- de repressão à ociosidade. Há obrigatoriedade
ção, o aumento da média de vida e assim por legal do trabalho e a preocupação de educar
diante. o liberto. Este decreto é contra o pervertido
A Revolução concentra-se na anulação moral. A vadiagem leva ao crime, o ócio e a
de fronteiras rígidas entre sexos, na legalida- pobreza são contra a segurança individual. O
de de formas intermediárias de sexo e de amor Código Penal de 1890 tem artigo contra os
homossexual e da quebra de fronteiras étni- vadios.
cas. O homem moderno pode bordar, cozi- O Brasil, segundo Gilberto Freyre, esta-
nhar, fazer doce, atividades tipicamente fe- va em fase de transição, na era neotécnica,
mininas em tempos passados. sem completa automatização. Ainda se iden-
A Revolução Biossocial consiste, tam- tifica, aqui tempo com dinheiro e acredita-se
bém, na automação crescente das necessida- que é imperdoável perder tempo. Não se
des cotidianas, o que resulta no gozo de mais pode, entretanto, passar do arcaico para "ape-
tempo livre, quebrando a máxima do time is nas moderno". É preciso construir adequa-
money. O tempo livre traz de volta arcaísmos damente a modernidade.

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Os urbanitas pensam que não se deve desper- de anarquia, de maior emoção, mais lazer e menos
diçar tempo. É gente que jamais "perderia" tempo sor- trabalho. Gilberto Freyre refere-se ao livro de Walter
vendo café, tomando refresco de coco, comendo pas- Kerr, Declínio do Prazer (p.62) em que o autor prova
tel, sentado numa confeitaria ou num botequim. Estes que os americanos não sabem usar o tempo. O título
são os chamados urbanitas por Freyre. Eles são con- me reporta ao de meu livro, A vocação do prazer: a
tra o almoço ou o jantar demorado. Preferem comer cidade e a família no Rio de Janeiro republicano, (Edi-
sem vinho e sem cerveja, tomando água. Adoram car- tora Rocco, 1993, 1a ed. 1996, 2a ed) no qual defen-
ne assada sem molho e sem tempero, tendo por so- do a tese de que o Rio de Janeiro desenvolveu uma
bremesa uma fruta, nunca um doce. Claro, o urbanita vocação para a diversão, para o bom humor, para o
quer ser delgado. lazer na medida em que a família foi atraída à rua no
A modernidade criou jovens saudosistas, os que início da República, fosse para a mulher trabalhar, a
voltam às cabeleiras e barbas de 1830 e cultivam for- criança estudar, o velho ir para o hospital e principal-
mas românticas de arte, música, cultura e até de amor. mente para todos usufruírem as atrações urbanas da
Criaram-se formas biossociais de convivência, como cidade reformada por Pereira Passos.
George Sand, que vestia-se de homem. O homem pós- Gilberto Freyre lembra a capacidade lúdica dos
moderno é anfíbio na aparência. Nem só rapaz, nem hispano-tropicais e dos luso-tropicais no qual o desfi-
só moça. le das Escolas de samba do Rio de Janeiro é o exem-
As uniões amorosas, segundo Gilberto Freyre, plo máximo. As escolas passam o ano inteiro prepa-
só se mantêm monogâmicas de forma permanente, rando o Carnaval, apogeu da alegria.
com estímulos de convivência. Por isso há uma ten- As considerações de Gilberto Freyre sobre o
dência a aventuras poligâmicas. É preciso considerar tempo, o ócio, o lazer são extremamente pertinentes
o aumento da média de vida e do tempo desocupa- mas cabe levantar aqui uma questão avassaladora.
do. Isto leva à busca de satisfação no pendor para o Como reagiria Freyre nos dias de hoje à comunicação
místico, denotando uma vitória sobre a ciência. O via Internet? Será que aumentou nosso tempo livre?
homem pós-moderno não deve ser racional e sim sen- Parece-me que com a Internet e o telefone celular
sível ao mistério da religiosidade. acabou a semana inglesa, o repouso remunerado, o
Nos tempos modernos o ócio ganhou prestígio. horário regulamentado de trabalho.
Enquanto o negócio, business, tem caráter negativo, Será que Freyre faria um outro livro sobre Além
o ócio é positivo. Vence quem tem maior capacidade do Apenas Arcaico? Fica a questão.
de preencher o tempo livre com o lúdico, a arte, a
cultura, a ciência, a meditação, a recreação. É o fim _______________________
da glorificação do trabalho.
É fácil prever futuros diversos para o tempo li-
vre, quando cada um deve seguir seu pendor, sua ap-
tidão. É comum hoje ver-se velhos na universidade
ao mesmo tempo que um analfabeto civilizado e fe-
liz.
Vejamos a contraposição do conceito ibérico do
tempo justaposta ao conceito inglês. Os mexicanos,
centro-americanos, africanos são contra o horário rí-
gido, a tirania do relógio, a que tende a aproximar-se
da harmonia com a natureza. O conceito ibérico vai
além do moderno. Cultiva viver ludicamente. É o tem-
po telúrico contra o mecânico, o experimental contra
o matemático, o mexicano contra o americano, os
compromissos adiáveis contra o tempo exato.
A tirania do ponteiro do relógio é coisa de polí-
cia. Ela leva a problemas cardíacos, neuroses e divór-
cios. Gilberto Freyre endossa a visão dos nativos da
Rodésia do Norte que são indiferentes em relação ao
tempo e têm boa saúde. Não há preocupação com o
tempo presente e futuro. Ninguém pinta cabelo ou
faz plástica.
Por isso as sociedades precisam de um pouco

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CONFERÊNCIA 1
GILBERTO: A TEORIA CIENTÍFICA E A
APROPRIAÇÃO PELA IDEOLOGIA DE ESTADO

Dia 21 de março
PRESIDENTE DA SESSÃO :
José Aparecido de Oliveira
Secretário de Estado dos Assuntos Internacionais de Minas Gerais – Brasil
Da Europa nos Trópicos aos Trópicos na Europa

Adriano Moreira – adriano.moreira@cnaes.pt


Presidente do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior –
Portugal

À medida que o tempo passa, acentua- atuante. Foi assim que identificou o seu obje-
se a evidência das duas perspectivas da inter- to como o mundo que o português criou,
venção gilbertiana na avaliação da presença para o comparar com o mundo que o inglês
lusíada nos trópicos. Tratou em primeiro lu- criou, mais acidentalmente com o mundo que
gar de recortar o objeto do seu estudo dentro o francês criou, aproximando esse
da questão geral do encontro das culturas, que lusotropicalismo pelo fim da sua vida ativa,
teve teóricos, seus contemporâneos, de gran- da hipótese mais abrangente do
de projeção. Tal foi o caso de Toynbee, que iberotropicalismo que deixou apontado mas
se destaca porque também parece ter sido o não desenvolveu.
mais influente entre os que se ocuparam por Tem importância salientar, se a obser-
esse tempo do fenômeno multicultural den- vação tem fundamento, que a primeira, e logo
tro da geografia do antigo império português, brilhante análise levada a efeito, teve como
espalhado pela área dos 3-A, isto é, Ásia, Áfri- campo de observação o Brasil tal como se
ca e América Latina. apresentava no começo do século XX, e não,
A tipologia de Toynbee incluiu a refe- por essa data, qualquer outra área geográfica
rência identificadora de um poder de ação lusotropical.
autonomizador das áreas culturais submeti- Este ponto parece importante para si-
das à lei do confronto, do seu crescimento, e tuar com rigor o pensamento gilbertiano, e
da decadência e morte, um fato que Valéry também responder com rigor a críticas ideo-
enunciava em forma mais literária, ao subli- lógicas que atingiram o seu labor e as suas
nhar que finalmente sabíamos que as civiliza- conclusões, quando o racismo antieuropeu
ções são mortais. transbordou da ação política descolonizadora,
A análise gilbertiana limitou uma área iniciada em Bandung na década de 50, para
bem definida da ação ocidental, identificada a análise sociológica comprometida com a
pela referência a uma parcela daquilo que foi ação, nem sempre intencionalmente, mas ao
a supremacia euromundista, esta como resul- menos pelo simples fato de que as ciências
tado da congregação das missões e ações as- sociais são intervenientes desde que se pro-
sumidas por cada uma das múltiplas sobe- nunciem.
ranias que mutuamente se reconheciam como Foi, então, freqüente pretender, naque-
européias. la linha crítica, que o pensamento gilbertiano
Mas pareceu-lhe, e depois concluiu, era justificativo de toda a violência inerente
que existiam diferenças bem específicas nos aos processos colonizadores e absolutório dos
domínios de ação de cada uma das parcelas fatos que o pensamento moderno qualifica de
desse poder global europeu, por vezes em crimes contra a humanidade.
disputas internas, mas reconhecido como uni- O genocídio é certamente o elemento
tário pelo mundo, que foi objeto de uma do- mais grave desse processo, fortemente desen-
minação geralmente colonial. volvido no espaço norte-americano pelos co-
A ocidentalização do mundo em varia- lonizadores europeus, sendo paralelos os efei-
dos domínios, que primeiro se desenvolveu tos colaterais que no Sul resultaram da
como europeização do globo, e no final do violência da ocupação das terras a que se re-
segundo milênio tende para se mostrar sobre- fere a lenda negra castelhana, ou do regime
tudo americana, espalhou-se em modelo de de trabalho escravo ou compelido geralmen-
arco-íris, multiplicando as cores geográficas e te imposto em toda a parte onde o
humanas em função da soberania específica euromundo se instalou.

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307
Trata-se de um excesso crítico asseverar que das as variáveis em termos de conseguir prognosticar
Gilberto ignorava ou pretendia omitir todo esse dolo- o ponto ómega terrestre da evolução de uma socie-
roso passivo da generalidade das soberanias do conti- dade tão múltipla, ligada pela unidade nacional que
nente americano ou que tivesse a pretensão de lhe é o tecido conjuntivo das diferenças.
conseguir diminuir a gravidade e a dimensão. E por isso introduziu o que podemos chamar o
O evidente é que a sua percepção, método e conceito do talvez, que eventualmente desenvolveu
objetivos, foram determinados por uma diferente e em termos que chamou quase-política, quase-nove-
original perspectiva, em face do ao conceito dialético la, quase-poesia, e que se poderia multiplicar para
que orienta em regra os seus críticos. referir as quase-integrações de alguns setores da po-
Partiu do reconhecimento da diferença entre, pulação, ou a quase-metarraça que viria a imaginar
por um lado, a eliminação física ou social das etnias ser o resultado final da miscegenação de todos os gru-
diferentes pelo ocupante colocado em posição de pos, biologicamente misturados, e culturalmente tro-
supremacia totalitária, para o qual a sobrevivência dos cando padrões de comportamentos em todos os do-
grupos aborígenes é um efeito colateral, sendo esta mínios da vida, o caminho que conduz à tese do seu
uma conclusão dramática expressa no famoso apelo livro matricial, Casa-Grande & Senzala, ainda quando
dos iroqueses ao presidente dos EUA; e, por outro vai ficando longe ou é suspensa a democracia políti-
lado, a imposição do poder e da concepção do mun- ca.
do e da vida aos grupos que os dominadores preten- Este foi o núcleo duro do modelo observado
deram assimilar, tendo como efeitos colaterais a es- que se divulgou em todo o mundo que o português
cravatura, a expropriação da identidade política, a criou, tendo o Brasil como objeto da observação, mas
modificação qualitativa e quantitativa do pluralismo não incluindo na observação nenhum dos territórios
étnico-cultural, como largamente aconteceu no Bra- que ficariam ainda sob a soberania portuguesa até
sil. 1974.
Foi desse enquadramento que partiu para deli- Desde 1825, data do reconhecimento oficial
mitar o seu campo de observação, uma observação português da independência brasileira, até à década
que não teve por objeto o processo histórico sobeja- de sessenta em que o processo descolonizador da
mente conhecido, criticado, e até condenado pela li- ONU implicou o envolvimento do Brasil, foi sem re-
teratura do seu tempo. levância, talvez, melhor dizendo, inexistente, o con-
Aquilo que o preocupou, o que pretendeu iden- tato de intelectuais brasileiros com o império portu-
tificar, conceitualizar e racionalizar, foi o conjunto das guês subsistente.
emergências que convergiam na identidade do Brasil Isso não impediu que o pensamento gilbertiano
em que lhe aconteceu nascer, o Brasil brasileiro de fosse recebido e avaliado nos meios intelectuais por-
que por vezes fala, o Brasil que percorreu o trajeto tugueses, e até que, como é frequente com pensado-
que ele iluminou quando escreveu o Brasil, Brasis, res sociais, viesse a ser incluído na ideologia do Esta-
Brasília, isto é, a terra encontrada e guardada dentro do, agora como modelo observante.
de fronteiras politicamente impostas (Brasil), a Quando Gilberto, pela década de cinquenta,
multiplicidade de gentes e regiões (Brasis), a unidade foi convidado pelo Ministro do Ultramar Almirante
na multiplicidade afirmada no Planalto (Brasília). Sarmento Rodrigues, a visitar as colónias portugue-
É desta unidade positiva, que emergiu de um sas, não pôde deixar de verificar que o modelo
processo cujos efeitos colaterais não impediram as observante, em que as suas conclusões se tinham
convergências e as sínteses, que se ocupa, certo de transformado, não encontrava no terreno a suposta
que as gerações vivas e solidárias na brasilidade não implantação afirmada em relação ao Brasil. Os bre-
ignoravam as injustiças gritantes subsistentes, não ves cinqüenta anos de presença efetiva portuguesa
omitiam as contradições e as lutas, não renunciavam nas colônias africanas, não podiam produzir resulta-
à reforma ou à revolução, tinham consciência cres- dos equivalentes aos que se processaram no Brasil
cente de uma constante necessidade de mudança, desde 1500, mas é certo que afirmou a vigência do
com o limite dogmatizado de terem finalmente alcan- espírito animador do seu modelo.
çado a condição de comunidade nacional, brancos, Talvez tenha de aceitar-se que toda essa inves-
negros, ameríndios, mestiços, todos brasileiros. tigação sobre a Europa nos trópicos recuperou atuali-
Parece ter sido esta sensibilidade para diagnos- dade e uso quando, nesta entrada no terceiro milê-
ticar e apreender a mudança em progresso que inspi- nio, é a presença dos trópicos na Europa que fez
rou uma das mais curiosas contribuições gilbertianas crescer algumas das sérias preocupações dessa antiga
para a definição dos conceitos operacionais. sede do governo do mundo.
Não é avisado pretender estar na posse de to- Quando o anônimo marinheiro, do Roteiro da

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viagem de Vasco da Gama à Índia, explicou à chega- vivência.
da que iam em busca de cristãos e de especiarias, tra- Mas, assim como os que apenas procuram aco-
çou o quadro principal desta problemática. lher-se ao mercado de trabalho procuram cobrir-se
Para os trópicos brasileiros foi encaminhada com o estatuto de refugiados, também o volume des-
grande parte dos escravos com que a África contri- ses refugiados faz com que na própria União Euro-
buiu forçadamente para a emergência daquele país péia suspeitem que a alegação é muitas vezes falsa, e
agora famoso, e nesse doloroso capítulo do transpor- não omitem procura relacionar o caudal de emigran-
te não foi da cristandade que se cuidou. tes com a criminalidade internacional.
Uma concepção da economia e da mobilização No seu Relatório de 1998, a Áustria, então na
da força de trabalho esteve na base da articulação da presidência da União Europeia, admitiu que a Europa
escravatura, que era estrutural na África, com a vio- ocidental estaria a acolher anualmente mais de um
lenta novidade do transporte dos homens obtidos pela milhão e meio de pessoas, com a ilegalidade em pro-
compra ou pela captura, e que no local do destino, gresso.
longe das terras de origem e das instituições tradicio- O Mediterrâneo passou a ter os seus boat-
nais, com isso viram aumentar o calvário da sua con- peoples, e os dramas multiplicam-se, numa vastidão
dição, e não tinham mais amparo senão o do próprio geográfica que tem os seus pontos mais críticos nas
senhor, a Casa-Grande a que aderiram sem outra op- margens da península Ibérica e da Itália.
ção. Enquanto que os EUA sustentaram um modelo
Acontece que a Europa que foi obrigada a cha- multirracial, embora com uma ordem longamente
mar as legiões a Roma, abandonando os trópicos co- baseada nas discriminações de pretos, de aborígenes,
loniais depois da guerra de 1939-1945, nessa data de hispânicos, a Europa, que expandiu o poder colo-
assiste a uma crescente presença dos trópicos em to- nial assimilador para outros continentes, adotou o
dos os países que nos fins do século XIX, depois da objetivo do Estado nacional que implica uma essenci-
Conferência de Berlim, correram para África em bus- al uniformidade étnico-cultural, mantendo
ca de mercados e de matérias-primas garantidos pela contenciosos internos contra os separatismos, com
imposição das soberanias. expressão violenta atual na Irlanda do Norte e no País
Agora, no ano 2000, a primeira variável Basco.
identificável, para explicar o movimento de popula- Mas a economia de mercado exige ainda uma
ções vindas do mundo pobre em direção à Europa, é mão-de-obra que os avanços da técnica não dispen-
a que simplesmente reconhece que os homens com sam, e que a ONU anunciou este ano que rondará os
fome se dirigem para onde supõem haver alimenta- 150 milhões de imigrantes nos próximos anos, sob
ção. pena de regressão econômica.
De novo, todavia, as exigências do mercado, Mas o fluxo de imigrantes, com acento tônico
que agora globalizam a submissão aos princípios libe- na clandestinidade, com origem no sul africano ou
rais da economia, recebem essa mão-de-obra em es- no Leste pobre e recentemente liberto do regime so-
tado de necessidade, e por isso, aceitando a ilegalida- viético, fazem nascer fortes receios da parte da etnia
de de recrutamento, dos salários minguados, da falta branca indígena, impondo barreiras que rapidamen-
de direitos sociais, da clandestinidade. te são étnicas, e se traduzem em colônias interiores
O conflito de princípios é evidente, aparecen- acantonadas em reservas de miséria, em conflitos físi-
do em primeiro plano o direito de estar, de andar e ir cos, em ressuscitar todas as ameaças dos mitos raci-
de um lugar para o outro, que é, depois do direito à ais.
vida, a base de todos os outros direitos originários ou Com novas estruturas de constrangimento, di-
naturais. ferentes da escravidão e do transporte, é ainda o
Todavia, entre as causas da mudança distin- modelo econômico ocidental que espera pela mão-
guem-se, como principais, por um lado a busca de de-obra, são condições econômicas na origem que
uma diferente e nova liberdade a que se acolhem os alimentam o caudal, são ambições de mais valias que
refugiados perseguidos por regimes políticos que de- engrossam a dimensão da clandestinidade e da ilega-
safiam, e por outro lado a busca de uma qualidade de lidade da prestação de serviços, e finalmente regres-
vida pelo menos diferenciada da que constitui o pa- sam os mitos raciais, com todo o seus histórico corte-
drão da geografia da fome. A Convenção sobre o es- jo de conflitualidades, que impedem ou atrasam a
tatuto dos Refugiados, de 1951, inspirada no melhor emergência de uma nova sociedade civil democráti-
do ideário democrático ocidental, orienta-se no sen- ca, depois de pago o preço do encontro, da compre-
tido de que não sejam penalizadas eventuais viola- ensão, da articulação dos modelos de comportamen-
ções regulamentares justificadas pela busca da sobre- to.

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309
A dramática invasão dos trópicos pela Europa,
que encontrou em Gilberto um dos mais atentos e
seguros teorizadores, está agora a ter réplica na inva-
são da Europa pelos trópicos, e não se afigura que o
processo, mudada a sede geográfica do drama, seja
menos semeado de dramatismo. O que tudo aconse-
lha uma revisitação do modelo observante gilbertiano,
para imaginar a capacidade de prospectivar e acom-
panhar construtivamente o processo irreversível.

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CONFERÊNCIA 2
A D ÍVIDA DE PORTUGAL PARA COM A OBRA DE
GILBERTO F REYRE

Dia 23 de março
PRESIDENTE DA SESSÃO :
Edson Nery da Fonseca
Escritor – Brasil
O que Portugal Deve a Gilberto Freyre

Joaquim Veríssimo Serrão


Historiador – Professor Catedrático da Universidade Técnica de Lisboa/
Presidente da Academia Portuguesa da História – Portugal

O Brasil está celebrando o primeiro cen- penetrante intuição para entender os fenô-
tenário de Gilberto Freyre, nascido na sua menos de vivência coletiva vieram depois a
amada terra do Recife, em 15 de março de marcar-lhe o destino da imortalidade.
1900. A vossa Pátria eleva a glória do escritor Desde a sua passagem pela Universida-
que merece ser considerado o mais universal de de Baylor, depois fortalecida pela da
dos homens de pensamento que o Brasil ge- Columbia, que Gilberto Freyre intuira não
rou durante o século XX. Mas tão justa home- haver História sem a marca que o humano
nagem não deve circunscrever-se ao plano na- nela deixou impressa. Quando, vinte anos de-
cional, porque também comunga dela a pois, conheceu Lucien Febvre, que ensinava
cultura luso-brasileira, de que ele foi um mes- em S. Paulo, não lhe foi difícil entender que o
tre e um servidor. Pelo seu legado científico, seu espírito já tinha aderido à concepção do
a língua materna deixou o espaço lusófono fundador dos Annales. Quero eu dizer, de que
para ganhar maior audiência internacional, "a História é a ciência do Homem ou dos
sendo hoje lida e traduzida nas cinco partes Homens no Tempo". A antecipação do mes-
do mundo. Torna-se, pois, inteiramente justo tre brasileiro em relação à historiografia fran-
que neste Simpósio Internacional, consagra- cesa prova-se mesmo na 1ª Edição da Casa-
do à sua vida e pensamento, eu venha Grande & Senzala , aparecida no Rio de
enaltecer a dívida de Portugal para com a obra Janeiro no ano de 1933. Como escreveu a sua
de Gilberto Freyre. E faço-o não apenas como fiel discípula, Dra. Maria Elisa Dias Collier: "Na
seu velho admirador desde a minha juventu- Casa-Grande & Senzala, o passado que se evo-
de, mas ainda em nome da Academia Portu- ca é um tempo que não morreu, pois vem-se
guesa da História, onde ele foi titular da ca- transformando em presente e projetando-se
deira nº. 33 e, desde o ano de 1980, num futuro que, pela sua rapidez, já é tam-
Acadêmico de Mérito. bém presente".1
Se chegamos ao fim do século XX com Os ingredientes científicos de "Homem"
uma visão histórica e científica correta sobre e de "Tempo" estavam, pois, em gestação no
a presença do homem português no Brasil, pensamento de Gilberto Freyre, quando ele
na África e no Oriente, decerto que o ficamos compôs a obra que lhe conferiu a celebrida-
a dever às inovadoras teses sobre o luso- de. A razão porque o consideramos, na sua
tropicalismo de Gilberto Freyre. Com o ade- aplicação ao Brasil, um precursor da Moder-
quado recurso à metodologia das ciências so- na História veio depois a ser reconhecida por
ciais e humanas, tornou-se possível ao nosso Braudel. Os motivos não se afiguram difíceis
grande ausente lançar obras de traçado ino- de explicar quando sentimos, nos anos 30, a
vador sobre os processos da aculturação na profunda ânsia de mestre Gilberto em
fase posterior aos descobrimentos. Mestre aprofundar as raízes do seu próprio ser, como
Gilberto era senhor de uma invulgar bagagem homem nascido e situado no Trópico. Não era
erudita, para não dizer espantosa em varia- possível dar um passo em frente sem antes
dos domínios da Cultura, fruto de milhares buscar o exemplo do primeiro europeu que
de leituras a que procedera desde a juventu- tentara essa aventura do espírito. E esse ho-
de. Juntem-se a esse cabedal de conhecimen- mem, vindo do extremo ocidental da Europa,
tos alguns dons específicos, que muito rara- era o português que primeiro se fixara no Bra-
mente se encontram reunidos numa mesma sil, para neste lançar as raízes de uma adapta-
e só pessoa. A sua extraordinária capacidade ção ao viver tropical. Tais as raízes da fasci-
de observação do mundo envolvente e uma nante pesquisa de Gilberto Freyre, para

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entender a "formação de uma família brasileira sob o com o Dr. Fidelino de Figueiredo, que haveria, mais
regime de uma economia patriarcal". tarde, de ensinar na Universidade de S. Paulo. Mas
pouco mais sabemos desta estância, assim como do
Forçoso é hoje reconhecer que, no mais íntimo seu exílio em Lisboa, quando da revolução de 1930.
de Gilberto Freyre, habitava desde a meninice uma Vinha como secretário de Estácio Coimbra, antigo
profunda atração pelas raízes lusitanas. Vinha do san- governador de Pernambuco. Haviam feito escala por
gue de família, do conjunto de suas linhas sangüíneas Dacar, como Gilberto Freyre confessava: "Foi aí que
que desaguaram nos Freyres pernambucanos. Um dos mais se definiu em mim o desejo de escrever o Livro
mais amados discípulos do Mestre, refiro-me a que se tornaria Casa-Grande & Senzala. Mas isto no
Vamireh Chacon, já destrinçou a série dos cruzamen- meio de angústia interna: a de saber saqueada a casa
tos que remontam a João Maurício de Nassau, conde de meus pais. Saqueada e incendiada". Escreveria Gil-
e governador do Brasil flamengo. Mas, sem dúvida berto Freyre mais tarde que a permanência em Lis-
que foi mais forte e duradoura a progênie oriunda de boa foi difícil, porque o dinheiro era escasso e cada
Portugal, do casamento do fidalgo Jerónimo de um dispunha apenas de um terno e duas camisas.
Albuquerque com a filha de Cristóvão de Melo, fidal- Salvou-os da difícil situação, Assis Chateaubriand, que
go com ligações ao Nordeste. A linha seguinte com os enviou 80 mil escudos, por duas vezes, a Gilberto
Cavalcanti, naturais de Paraíba, fortaleceu mais a pro- Freyre para as despesas quotidianas. Mas eis que a
gênie que entroncou no Velho Félix, senhor de enge- situação se resolve com o convite que lhe chega para
nho e tradicionalista de gema 2. E assim se chega a dar aulas na Universidade de Stanford na Califórnia,
Alfredo Alves da Silva Freyre, com o mesmo nome do de Palo Alto. Em Lisboa embarca num transatlântico
avô, que tendo casado com D. Francisca Teixeira de italiano com destino aos Estados Unidos, onde daria
Melo, foi o progenitor de Gilberto, o "Velho Freyre", mostras da sua capacidade docente, numa das raras
sempre por seu filho muito amado. vezes em que Gilberto aceitou ser professor universi-
Lembrando, com Vamireh Chacon, as raízes tário.
antigas dos Nassau, dos Albuquerques, dos Melos e
dos Cavalcantis, pode, contudo, afirmar-se que a as- Gilberto Freyre visitou com freqüência Portu-
cendência próxima de Gilberto Freyre tinha apelidos gal, umas vezes em visitas prolongadas, outras em bre-
bem portugueses. Tal fato constitui a prova evidente ves passagens com destino ou no regresso da Europa.
da madre luso-brasílica que formara as duas primei- A partir de 1950 essas passagens foram mais freqüen-
ras gerações do Segundo Império. Cabe nos limites tes, sobretudo quando a pasta das Colônias foi assu-
do possível que o saudoso Mestre pudesse haver se- mida pelo comandante, mais tarde almirante,
guido estudos superiores em Coimbra, não apenas Sarmento Rodrigues. Convidou este antropólogo a
pelo prestígio que a antiga Universidade auferia no visitar as províncias ultramarinas, para dar o seu tes-
Brasil, como por chamamento de antigos familiares temunho, isento de paixões, sobre o que vira e aus-
com assento na velha Lusitânia. Os laços já então con- cultara nas possessões lusas de África e do Oriente. O
traídos com o Dr. Oliveira Lima, o diplomata e histo- convite era feito a Gilberto Freyre, sem constrangi-
riador brasileiro tão amigo de Portugal, seriam de mento de qualquer ordem, assistindo-lhe o direito de
molde a encaminhar o jovem Gilberto para um outro ouvir todas as correntes de opinião e de formular as
destino. Mas, além da Europa estar a viver os traumas críticas que entendesse merecidas à política colonial
da 1ª Guerra Mundial, a situação portuguesa não ga- portuguesa. Desde a maravilhosa Ilha da Madeira ao
rantia o sossego que o velho Freyre sonhara para os longínquo Estado da Índia, o Mestre podia expor cla-
filhos. Foi assim que Gilberto Freyre e o irmão, a par- ramente as impressões colhidas e deixá-las no livro
tir de 1920, seguiram para os Estados Unidos. que prometera escrever após o seu regresso ao Brasil.
No estudo Oliveira Lima e Gilberto Freyre: dois Sendo um espectador livre de tutela do Gover-
pernambucanos lusófilos" (Lisboa, 1999), o Professor no ou de favores pessoais, Gilberto haveria de zelar
Vamireh Chacon prova que Gilberto Freyre, no ano pela sua dignidade de escritor. Após a experiência vi-
de 1923, passou por Lisboa a caminho do Brasil. Bus- vida no Brasil e que pudera historiar em Casa-Grande
cava ao tempo encontrar dados para aprofundar o & Senzala, aceitava conhecer as outras possessões,
problema da escravidão no Brasil. Durante a curta ainda ao tempo integradas no Portugal de além-mar.
presença em Portugal, conviveu com Antônio Sardi- E confessava ser verdade que a sua posição fora obje-
nha, o chefe do movimento realista do "Integralismo to do respeito das autoridades de Lisboa: "Porque vi-
Lusitano"; esteve em Coimbra, onde rendeu elogio ajo para ver e ouvir, assinalar o que vejo e o que ouço,
ao saber histórico e filosófico do Doutor Joaquim de até o que entrevejo e entreouço, de forma discreta,
Carvalho; e estabeleceu um convívio mais duradouro mas proveitosa". Foi assim que, desde o mês de agos-

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to de 1951, a fevereiro do ano seguinte, podemos do português aos trópicos, não ao jugo imperial, mas
acompanhar o mestre da luso-tropicalidade nas suas à especialíssima visão transeuropéia da gente portu-
andanças por Cabo Verde, Guiné, por S. Tomé e Prín- guesa. Não só transeuropéia: especificamente tropi-
cipe e Angola, por Moçambique e Goa, na ânsia do cal."
cientista que pretendia conhecer as linhas-mestras de Com a obra Um Brasileiro em Terras Portugue-
um processo colonizador. Precisamente o que Portu- sas, o mais universal dos pensadores brasileiros com-
gal realizara para o intercâmbio de usos e costumes, parava o homem português a Ulisses de Ítaca. Como
de formas de viver e de sentir, que eram, ao tempo, a o herói de Homero, também o homem nascido nas
prática vivencial para o melhor conhecimento dos montanhas e junto ao mar da velha Lusitânia, sentira,
povos. Em dezembro de 1952, o saudoso Mestre fir- numa hora da sua história, a atração pelas terras quen-
mava em Santo Antônio de Apipucos o prefácio do tes, onde imperam o sol ardente e a cor morena dos
seu novo livro Aventura e Rotina. No laboratório da seus habitantes. Mestre Gilberto compara "les mar-
sua inteligência crítica, Gilberto Freyre demonstrava ches vers le soleil" da Antiguidade homérica à força
que, entre os Estados da Idade Moderna, fora Portu- humana e telúrica que levou os portugueses do sécu-
gal o que mais largamente praticara a fusão racial, lo XV a embrenharem-se no oceano, em busca das
como prova do seu humanismo de essência cristã: novidades colhidas no encontro com outras terras e
"Depois de uma viagem que foi quase uma aven- outras gentes. O ilustre cientista documenta o seu
tura, voltei à rotina do meu retiro de Santo Antônio de ponto de vista:
Apipucos. Trago os olhos cheios de Portugal: do Portu- "o português é grande por esta sua singularida-
gal que vi no Oriente e nas Áfricas, em Cabo Verde e de magnífica: a de ser um povo luso-tropical. Toda a
S.Tomé, no Algarve e em Trás-os-Montes [...]. A via- vez que tem pretendido ser, como o inglês, o belga, o
gem por tantos Portugais – alguns dos quais ignorados holandês e o francês, um europeu nos trópicos, um
pelo brasileiro e pelo próprio português da Europa – senhor branco de povos tropicais e de cor, ele se tem
revelou-me aspectos novos do que alguém já chamou, amesquinhado em ridícula caricatura daquelas nações
a propósito de modernos estados brasileiros em torno imperiais. Nações imperiais hoje em rápida dissolu-
de assuntos lusitanos, "Lusologia", mas serviu também ção. Pois já não há gentes de cor dispostas a ser todo o
para confirmar em mim critérios de estudo e audácias sempre inermes reservas de trabalho quase animal a
de generalizações esboçadas em antecipação do que serviço de exploradores brancos.
acabo de ver com os próprios olhos e tocar com os Esta é a grandeza portuguesa que particularmen-
dedos [...]. Donde a verdade e não retórica que en- te me atrai: o fato de se ter quase um povo inteiro
contrei na expressão "luso-tropical" para designar com- antecipado [...] na realização de uma vocação que fixa
plexo tão diverso; mas quase tudo disperso só pelos o destino de toda uma civilização transnacional: a luso-
trópicos [...]. Chegou a época de partirem do Brasil tropical de que o Brasil faz parte". 3
para as terras portuguesas, brasileiros que retribuam Gilberto Freyre estava certo, no ano de 1955,
aos Peros Vaz de Caminha as suas palavras de revela- que a sua intuição de Casa-Grande & Senzala (Rio,
ção de paisagens e valores ignorados..." 1936) constituía uma tese assente na realidade histó-
rica. Pudera e soubera então provar as vias formado-
4. No ano de 1955 saiu a primeira edição do ras de uma família brasileira sob o regime da econo-
complemento da Aventura e Rotina, a que Gilberto mia patriarcal. Vinte anos passados já não tinha dúvida
Freire deu o título de Um Brasileiro em Terras Portu- de que a sua argúcia de observador batera certo ao
guesas (Lisboa, 1955). Considerando que se tratava lançar a público a obra O Mundo que o Português
da Introdução a uma possível teoria do luso- Criou. Tendo examinado as relações políticas e cultu-
tropicalismo, o livro vinha enriquecido com as confe- rais que, desde o século XVI, Portugal estabelecera
rências e discursos que o ilustre viajante havia profe- com o Brasil, estava seguro de aplicar a doutrina ao
rido em vários locais onde a história de um povo restante mundo colonial português. Na mesma linha
continuava viva nos seus costumes e tradições: "em da sua visão sociológica, o mestre de Apipucos obser-
terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do vara, com a nitidez dos raios do sol que iluminam a
Atlântico". A tese enunciada para o Brasil, de que Por- verdadeira história, que a compreensão do Brasil co-
tugal fora a única nação da Europa que absorvera o lonial somente podia entender-se no quadro huma-
ideal de tropicalismo, revelava-se também para a Áfri- no e social da sua ligação de três séculos à velha
ca e o Oriente em toda a sua força aglutinante. Que Lusitânia.
era, afinal, a luso-tropicologia? Não hesita Gilberto Em nome do meu País e da sua cultura, agrade-
Freyre em a definir como "o estudo literário de todo ço a Gilberto Freyre ter demonstrado que a fixação
um conjunto ou de todo um complexo de adaptação do homem português nos trópicos se define como um

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verdadeiro milagre da aculturação. Antes mesmo de março de 1965. Falecera, entretanto, o Dr. João Ne-
lançar ao prelo Um Brasileiro em Terras Portuguesas ves da Fontoura, titular da cadeira n.33, e o Conselho
(Lisboa, 1955), o mestre tinha já confirmado, no la- Acadêmico entendeu que a hora era chegada de Gil-
boratório da sua inteligência indagadora e crítica, que berto Freyre ascender a membro titular. Na proposta
o processo da miscigenação se havia defrontado, ao de elevação, assinada pelo Padre António da Silva
longo da Idade Moderna, com a marca dominadora Rego, reconhecia-se que o mestre de Apipucos con-
do racismo praticado pelos povos da Europa latina e seguira, no decurso de uma laboriosa existência, tor-
germânica. Mas agora, em Dezembro de 1952, que nar-se numa figura ímpar da cultura luso-brasileira. E
voltava à "rotina" de Santo Antônio de Apipucos, Freyre a mencionada proposta, com data de 20 de dezem-
sentia a força da consciência, ou seja, a "aventura" bro de 1974, acrescentava: "Publicou desde 1922,
que a Nação Portuguesa havia realizado através do mais de duas dezenas de estudos de notável enverga-
mundo. Pergunto: de um Portugal uno na geografia, dura e de que cumpre destacar O Mundo que o Por-
no trabalho, no sentimento, na realização, nos dons e tuguês Criou (1951), Em torno de um novo conceito
vontades, no sentimento e na religião, nos defeitos e de Tropicalismo (1952), Intervenção Portuguesa nos
carências? Ou de um Portugal que na sua diversidade Trópicos (1958), Casa-Grande & Senzala (1958), So-
humana e psicológica continha a força motriz de uma brados e Mucambos (1963).
nação vocacionada para "ser e estar no mundo"? Vol- Constitui uma máxima da sabedoria antiga de
to, mais uma vez, à lição perene do notável pensador que nunca é tarde para prestar justiça a quem a me-
a cuja memória hoje prestamos a merecida reverên- rece. Tamanha verdade, tanto respeita às instituições
cia: nem sempre apreciadas na sua obra criadora, como
"De modo que o complexo luso-tropical não o em relação a grandes autores que consagraram a vida
descobri nem por acaso, nem através de técnica se- a dois nobres objectivos: erguer ciência pioneira e
melhante à sociodramática, em viagem pelas várias duradoura e fazer dela um vínculo de aproximação
terras portuguesas que acabo de visitar. Esta viagem, entre os povos e as nações. Tive o ensejo de referir
apenas confirmou em mim a intuição de que agora, em 1978, quando acolhemos Gilberto Freyre na com-
mais do que nunca, me parece uma clara realidade: a panhia de D. Maria Madalena, sua devotada esposa,
de que existe no mundo um complexo social, ecológi- no Palácio da Rosa, que a Academia Portuguesa da
co e de cultura, que pode ser caracterizado como "luso- História sentia um orgulho imenso por promover tão
tropical". Um complexo em expansão. Talvez se possa merecida consagração.
acrescentar sem exagero: em triunfante expansão". 4 A razão deste juízo continua a traduzir um sen-
Portugal terá sempre uma dívida em aberto para timento modelar por Gilberto Freyre, um "Grande
com o autor de O Luso e o Trópico (Lisboa, 1961). Senhor da Cultura Lusíada" expressa em todos os pa-
Nos anos de 50, quando a posição histórica portu- íses e continentes. Cultivando a mais completa de to-
guesa era posta em causa quanto à dependência das das as ciências, a antropologia histórica, ninguém
possessões ultramarinas, nunca Gilberto Freyre dei- melhor do que ele soube encontrar as raízes profun-
xou de chamar a atenção do mundo político e diplo- das da "maneira de ser" que Portugal implantou nos
mático para o carater específico da colonização por- Trópicos. Pela postura da sua visão histórica, quando
tuguesa. A sua posição era a do observador do passado tantos outros analistas e comentadores deturpam as
que buscava, à luz das ciências sociais, definir o luso- linhas de força da Expansão Portuguesa, bem merece
tropicalismo como uma genuína explicação do pre- que a sua obra seja considerada um marco de bronze
sente. Contra ventos e marés, sofrendo críticas injus- no tempo histórico em que nos é dado viver.
tas, mas sem olhar a preconceitos ocasionais, nem a Entretanto, o ilustre Mestre fechou os olhos em
interesses de grupo, Gilberto Freyre deixou um teste- Apipucos, no dia 18 de julho de 1987, rendendo a
munho isento acerca da formação da sociedade bra- alma a Deus e deste recebendo a imortalidade nos
sileira e da que Portugal forjou nas antigas colônias. E Céus, que completava a que recebera já em vida como
tornou-se o pioneiro da doutrina da Luso- homem, como escritor e como brasileiro. Impunha-
Tropicalidade, que pode afirmar-se ser hoje aceite sem se que não houvesse rupturas na Academia Portuguesa
reservas. da História, de que fora um dos mais preciosos orna-
mentos. Impunha-se escolher alguém que, pelo valor
Uma das formas de exprimir a mestre Gilberto científico, pela riqueza da obra e pelo prestígio do
Freyre a nossa gratidão foi a de o incluir entre os mem- nome fosse digno de manter viva a luz acesa pelo ful-
bros da Academia Portuguesa da História, para onde gor gilbertiano. Não podíamos encontrar figura mais
entrou como supranumerário em 18 de Julho de 1938, adequada que a de seu fiel discípulo, o Professor
ascendendo à categoria de correspondente em 19 de Vamireh Chacon, catedrático de Ciência Política na

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Universidade de Brasília. Natural do Recife, onde nas- escrevia Gilberto Freyre, "uma engenharia social com
ceu em 1934, viveu a juventude no círculo de ouvin- os fermentos da língua, do sentimento e da cultura".
tes eleitos por Gilberto Freyre e sem nunca ocultar a Abençoada seja para todo o sempre a memória do
dívida de gratidão para com o Mestre contraída. No sábio brasileiro a quem a terra de Pernambuco deu a
dia 9 de outubro de 1996, ao ser acolhido como novo vida e guarda a sepultura, envolto na imortalidade que
titular da cadeira nº 33, elevou um hino à memória a sua obra lhe conferiu. O mundo português agrade-
do antecessor, numa oração plena de beleza literária: ce a Gilberto Freyre a projeção universal do seu lega-
"Este o Gilberto Freyre lusófilo amantíssimo de do humano e científico!
Portugal, porque amantíssimo da África, Ásias e
Oceanias luso-tropicais, acima de tudo porque _______________________
brasileiríssimo. Recordar Gilberto Freyre é revivê-lo,
Notas
ele viverá enquanto existir a língua e a cultura luso-
tropicais. Inevitável concluir com Fernando Pessoa: a
1
Gilberto Freyre, Antologia, Ediciones Cultura Hispânica, Madrid,
1977, p. 235.
Pátria é a língua. Todos os luso-tropicais somos tam- 2
Gilberto Freyre. Uma Biografia Intelectual , Brasiliana, vol. 387,
bém compatriotas de Gilberto Freyre". Recife/S. Paulo, 1993.
3
Um Brasileiro em Terras Portuguesas, pp. 9-10.
Mas se uma obra é o espelho do escritor que a 4
Ibidem, p.10.
concebe com o seu engenho criador, não é menos
verdade que o autor deixa nela a marca do espírito
que lhe deu a vida. Quero eu dizer que o "homem"
Gilberto Freyre não pode ser esquecido quando apre-
ciamos a sua forma de ser e de pensar. Quem era e
como foi, na sua essência humana, a figura que aqui
hoje nos congrega? A Dra Maria Elisa Dias Collier, sua
discípula amada, ofereceu-nos um retrato em corpo
inteiro do homem Gilberto, com os seus gostos, os
seus costumes e as suas vivências, no constante afã
de transformar o sonho em realidade:
"É humano, simples, comunicativo umas vezes,
outras esquivo e silencioso. Oscila entre os extremos
da solidão e da conversa. Aprecia mais as velhas ami-
zades que a fácil camaradagem. Um dos seus defeitos
é que poucas vezes responde às cartas que recebe.
Encanta-o o convívio com os jovens e estes encontram
nele uma simpatia e uma compreensão raras. Gosta
de caminhar, nadar e tomar banhos de sol. Levanta-se
cedo e escreve toda a manhã, sempre com lápis e nun-
ca com máquina. Escreve numa cadeira de couro, com
as pernas sobre um dos braços. Durante a manhã, até
às 12, não responde ao telefone, nem recebe visitas,
para pensar e escrever"
Exmas Senhoras e Senhores:
No dia em que o Mundo culto celebra o pri-
meiro centenário da Luso-Tropicologia, graças sejam
rendidas ao seu fundador por ter erguido, em língua
portuguesa, uma antropologia de base científica,
humanística e filosófica. Partindo do estudo da socie-
dade brasileira na época colonial, Gilberto Freyre deu
vida a um novo tipo biosocial do homem: o
lusotropical. Um dos êxitos da colonização do Brasil
veio dessa realidade feita do encontro de três etnias
como modelos de miscigenação. Miscigenação que
não se reduziu ao cruzamento dos sangues, porque
gerou sobretudo uma aliança de almas. Foi, como

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CONFERÊNCIA 3
NOVO M UNDO NO HEMISFÉRIO OESTE

Dia 24 de março
PRESIDENTE DA SESSÃO :
Gustavo Krause
Advogado – Brasil
Giants of the Earth: Brazil and the
United States as Successful Mega-States

Ludwig Lauerhass Jr.


Historiador – Universidade da Califórnia – EUA

Brazil and the United States have long cultural differences, what do Brazil and the
been compared with respect to their United States share that would help explain
commonalities such as great physical size, this success?
large population, similar historical experience, Countries like Brazil and the United
and cultural as well as racial diversity. Scholars States are rare occurrences. They are among
and journalists have repeatedly sought to de- the few mega-states or "monster countries,"
fine these commonalities, as have officials and as they have been called by the great
agencies of both governments. Among the key statesman and pundit of international relations
contributors to the theme have been George F. Kennan, existing today, or that have
propagandists in the U.S. Information Agency ever existed historically. 3 China and the
and the Brazilian Foreign Service. Recently, Russian Federation are the only others that
for example, the cultural section of the combine the essential twin characteristics of
Embassy of Brazil in Washington published a vast territory and huge population. Canada
pamphlet called Brazil and the USA: What Do would qualify in terms of size but not in
We Have in Common? 1 For decades Gilberto population, while India and Indonesia have
Freyre also gave his attention to this theme. enough people but not enough land area. As
Through lectures, articles, and books he for being successful mega-states, if this means
explored not only the major commonalities being cohesive, stabilized countries, free from
of the two countries, but also their significant the likelihood of dismemberment, and
differences. He saw both as original variants possessing internal strength of a voluntarily
of European civilization that had been shaped held national identity sufficient to weld
in distinctive ways by their New World together their populations into a lasting whole,
context.2 then Brazil and the United States stand alone
Yet, what should be their most obvious as examples of success. China and Russia still
and transcendent commonality-the fact that face further tests of their national viability
they are the two most successful giant nation- within new contexts of democratic choice and
states that the world has ever produced-has internal peace. The only other potential mega-
not been squarely addressed. How have these state on the horizon is a united Europe which
two geographically vast and highly populated might well develop in a future supranational
areas (Brazil is the fifth in the world in both cultural era.
land area and population, the United States is Examining the most salient
fourth and third respectively) developed into commonalities of Brazil and the United States
effective, long-lived national states both with respect to political reality, historical
culturally and politically? How have they been experience, and cultural development should
able to maintain their integrity, strength, and help to explain their unique success as mega-
cohesiveness in the face of forces that might states. As a point of departure, here are ten
well have torn them asunder? Today, as we focuses suggested for critical comparative
enter the new millennium after more than two reassessment. These are intended to channel
centuries of the nation-state building process, further study along what might prove to be
neither country has faced a serious separatist productive lines, not to answer the underlying
threat in more than a hundred years and in all question as to why their success has been
likelihood will not face one in the foreseeable possible.
future. What, then, accounts for this 1. The New World Setting. The
remarkable achievement? Despite their many geographic location of Brazil and the United

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States in a "New World (the western hemisphere)" seen of powers, federalism, religious toleration (and at
as something distinct from the "Old World (Europe)" different times separation of church and state), and
has had both a formative and a continuing impact on equality under the law. Caste status, aristocracy, and
the two countries. The newness of the area was clearly slavery were eliminated over time while democracy
recognized both in Europe and in the Americas and was increasingly extended-to minorities, the non-
this newness itself suggested the possibility of a fresh propertied, illiterates, and women. The voting age was
start or even a new life for humanity. In the sixteenth lowered and the opportunity for social mobility grew,
century André Thevet spoke of the singularitez of the albeit less vigorously in Brazil. The openness of the
area which was to become Brazil, and in 1630 John political system to individuals of non-Portuguese or
Winthrop, the first governor of the Massachusetts Bay non-English backgrounds is illustrated by the names
Colony, proclaimed "that we shall be as a city upon a of presidents Kubitschek, Goulart, and Geisel in Brazil;
hill, the eyes of all people are upon us." Thus America's Hoover, Eisenhower, and Kennedy in the United
newness was to become exemplary. The European as States. Political reconciliation of differences has been
well as the American imagination was fired by visions key to continued unified existence in both countries.
of a new experimental society and by such ideas as 4. Geographic Separation and Integration .
the earthly paradise and the noble savage. From Traditionally the separation from neighboring countries
William Shakespeare's "Brave new world" to Gilberto has been important to both. Centers of population
Freyre's New World in the Tropics the Americas have and economic activity have generally not been in their
offered a new hope for mankind-Abraham Lincoln's borderlands. While Brazil has coexisted with ten
"last best hope for man." This commonly held, positive neighbors, all have been culturally differentiated in
view of hemispheric newness has been best being non-Portuguese, thus psychologically as well as
summarized by the concept of the American Dream. physically apart. The United States has also been
2. Cultural Newness. The cultures that surrounded by "others"-by colonial holdovers in
developed in Brazil and the United States were also Canada and the Caribbean and a culturally distinct
distinct. Freyre saw them as variants of their Portuguese Mexico with its population centers far to the south.
and English antecedents. Historically both became Over the years both countries have experienced an
increasingly hybrid, mixtures of European, American ever-stronger internal integration based on settlement,
Indian, African, and later Asian elements, both cultu- improved transportation and communications, and
ral and racial. While Brazil has traditionally been more unifying public policies. Through much of their
open to such blending and to minority participation histories their principal international focus has been
across the social spectrum, in recent years both on Europe rather than on their neighbors. Both
countries have placed a more positive value on their became more active participants in the Atlantic
diversity. At the same time, however, both have community, looking toward Europe as a source of
preserved a high degree of linguistic unity. In fact, the trade, investment, immigration, cultural products. In
nationwide uniformity of Portuguese in Brazil and the twentieth century in the face of growing internal
English in the United States has been greater than that cohesion at home, both have become increasingly glo-
maintained in the mother countries, despite the bal in their external outlook. While both have come
admixtures from non-European languages and the later to appreciate the importance of contacts with
cultural input by non-Portuguese or non-English- neighboring countries, even greater attention has been
speaking immigrants. Thus the cultural newness of paid to relations with Europe and Asia, and with each
both countries has embraced diversity within a other.
broadening framework of uniformity and cohesiveness. 5. Crisis Management. In times of gravest threat
3. Political Innovation as New Nations. With the two countries have been blessed with effective
independence both countries established themselves and often charismatic leadership which has assisted
as constitutional democracies-a republic in the United them in overcoming potentially disruptive strains
States (1776-1789), an empire in Brazil (1822 and within their societies. In the independence period
belatedly a republic in 1889). Emerging as they did in leadership came from George Washington and José
what Robert R. Palmer has called the "Age of Bonifácio, in the mid-nineteenth century from
Democratic Revolutions," both developed on a set of Abraham Lincoln and Don Pedro II, and in the 1930s
underlying principles that facilitated innovative and and 1940s from Franklin D. Roosevelt and Getúlio
experimental forms of government. These initiated a Vargas. They were able not only to avoid internal
core of sociopolitical values that was to accompany disorder but also to set agendas for future national
the eventual achievement of genuine nation- development. In Brazil major transitions were made
statehood. Among these were democracy, separation successfully from colony to independence, monarchy

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322
to republic, and in later eras from strident nationalism I and even more so after World War II. First, the societal
to global integration. For the United States transitions weaknesses of Europe and its inability to resolve its
were related to wars of independence and for preser- international differences peacefully in the first half of
ve the union, to the further strengthening of the fede- the century diminished the traditional cultural luster
ral government at the expense of the states, and to it had held for the Americas. Brazil and the United
the shift from isolationism to global leadership. To what States became increasingly attracted to a vision of glo-
extent these successes were a matter of luck, or bal participation, culturally, economically, and
whether certain favorable internal conditions allowed politically. Both assumed the regional leadership of
or encouraged this type of leadership to come to the their continents, most recently the United States in
fore, is still open to question. NAFTA and Brazil in Mercosul. International
6. Tradition and Progress. While a general future recognition of their accomplishments in the realms of
orientation has characterized Brazil and the United elite and popular culture grew while the United States
States-both are never seen as completed and remain gained preeminence in the English-speaking world and
works in progress-both have been tempered and Brazil among Lusophone countries. Psychologically
partially directed by their usable past. Freyre argued both developed a heightened sense of national pride
for a valorization and understanding of the past, in infused with hope, optimism, and a belief in their
part as an explanation of the present and guide for resourcefulness. The American dream and the
the future. Tradition was useful but not to be adhered Brazilian dream persist despite the sporadic setbacks
to slavishly for its own sake as was common in parts of which both countries have experienced.
Europe and many other societies. Together tradition 9. The Legacy of World War II. Brazil, by far the
and progress balanced as fundamental national values most active Latin American participant, joined the
lent themselves to the furthering of a pragmatic, non- Allied cause against Germany. In return the United
doctrinaire variety of nationalism which has been States refurbished the Brazilian army and heavily
primarily inner-directed-exhibited in such programs supported its industrial development, most notably in
as the developmentalism of the Vargas and post-Vargas helping to launch Brazil's national steel industry. Not
regimes and in the New Deal-Fair Deal-Great Society only did their wartime partnership increase the
continuum in the United States. Later, Presidents international standing of both countries-the United
Ronald Reagan and Fernando Henrique Cardoso States emerged from the war as the premier world
within the same spirit offered new paths tied to free power and Brazil as the number one South American
trade and global participation. This nationalist variety and Latin American power-the war effort also had
was not stridently aggressive in the external sphere- long-range effects for women and racial minorities as
neither country had the need for a foreign super well as for sustained economic growth. The effects on
enemy, as was the case, for instance, in Cuba. the Brazilian military were also substantial and long-
7. National Identity. In the roughly two centuries lasting. Trained and equipped by the United States,
of independent statehood each country has pursued Brazil's military was imbued with democratic values
its quest for national identity. The mechanisms and and the sense of carrying on a crusade against the
processes that have promoted a personal sense of totalitarian systems of the Axis. This led to a
Brazilianness or Americanness on the part of their "redemocratization" of Brazil following the war and
populations have increased or accelerated over time, shaped the future view of the military with respect to
especially in the most recent decades. Improved its role in politics. Even with military intervention in
communications, expanded travel, greater cultural the 1960s, its seizure of power was seen as temporary.
production and distribution (national literature, music, The generals in the presidency were changed on a
visual media, and sports), mass education, urban regular basis and administrative control was shared
growth, military service, and governmental propagan- with civilians. Democratic government was eventually
da have all played a role. The direction of both reestablished in a gradual process of abertura
societies has been toward ever-greater nationwide (opening).
integration and the "nationalization" of regional 10. Unity with Decentralization. In mega-states,
cultures. National television networks have proved to federal systems such as those in the United States and
be particularly effective agents in the homogenizing Brazil can help to preserve and promote national unity
of the two cultures across subnational lines. by tempering the rigidities of centralized
8. Self-Image. As national identity strengthened, administration. While maintaining the supremacy of
the older complexes of cultural inferiority which had the national government, a significant sharing of power
been prevalent in much of the nineteenth century have with internal subdivisions (states and municipalities)
tended to fade, most significantly following World War has led to locally innovative programs. Such sharing

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323
has been manifested with respect to legal jurisdictions, identity on some tentative combination of dynamic
budgeting, revenue collection, and social services. In polarities such as migratory and sedentary,
terms of civic pride and identity, people acknowledge individualistic and standardized, competitive and co-
being a San Franciscan, a Californian, a westerner and operative, pious and freethinking, responsible and
an American, or a Recifean, a Pernambucan, a cynical, etc.5
northeasterner, and a Brazilian at the same time. This
"Balancing antagonisms" and "dynamic polarities"
interplay of identities can actually work to reinforce
are seen at the core of Brazilian and American
cohesion of the nation overall. On a functional level it
development. Both countries have been hailed and
allows citizens to have an immediate involvement with
criticized as lands of contrast, but success has stemmed
their governments. Decentralization and states rights
from their ability to confront contradictions and to live
have been gaining favor in recent years in both
with their ambiguities. In general even the gravest
countries in the face of what was seen as an undue
problems arising out of these antagonisms and
concentration of power at the federal level.
polarities have been or are being solved without
Symbolically, the very names United States of America
causing national disintegration. In some areas Brazil
and Federative Republic of Brazil recognize their
has been more successful-race relations, for example;
decentralized forms.
in others the United States-economic expansion and
Central to Gilberto Freyre's interpretation of
political democracy. In some areas the failures have
Brazilian culture and history has been the role he
loomed larger in Brazil-continuation of mass poverty;
ascribes to "balancing antagonisms." This view finds
in others the United States-the disaster of the Civil
resonance in most of the ten areas of suggested
War.
comparative analysis treated above. Moreover, it
A key imponderable for the continued success
applies to the case of the United States as well as to
in the future of both countries is how they handle
that of Brazil, and in somewhat different terms has
power in the international context. While Brazil and
been developed by American historians and cultural
the United States prefer peace and generally pursue
interpreters. Freyre's overarching conclusion was that
their goals with restraint-Brazil more so than the
the
United States-sheer size and the dominant positions
. . . formation of Brazilian society has been in that they exercise within their spheres behoove both
reality a process of balancing antagonisms. Economic to constantly guard against hubris. They must live with
and cultural antagonisms. Antagonisms between and surmount the vulnerability of great countries to
European culture and native culture. Between the dreams of power and glory. As Shakespeare
African and the native between an agrarian and a pas- admonished, "O it is excellent to have a giant's strength,
toral economy, between that of the agrarian and that but it is tyrannical to use it like a giant."
of the mining regions. Between Catholic and heretic.
Jesuit and fazendeiro . The bandeirante and the _______________________
plantation-owner. The Paulista and the emboaba. The
Pernambucan and the mascate. The landed proprietor Notas
and the pariah. The university graduate and the 1
Brazil and the USA: What Do We Have in Common? (Washington
illiterate. But predominant over all these antagonisms D.C.: Brazilian Embassy Cultural Section, 1999).
was the more general and the deeper one: between
2
Geared to the English-language reading public, see, for example,
Gilberto Freyre, New World in the Tropics: The Culture of Modern
master and slave.4 Brazil (New York: Alfred A. Knopf, 1971); The Gilberto Freyre Reader
(New York: Alfred A. Knopf, 1974); and "Brazilian National Character
In the United States, historian Michael Kammen, in the Twentieth Century," Annals of the American Academy of Political
in his collection of essays titled The Contrapuntal Social Science, vol. 870 (March 1967), pp. 57-62.
Civilization, explains the American experience within 3
George F. Kennan, Around the Cragged Hill: A Personal and Political
the frame of reference of "biformity" and quotes the Philosophy (New York: W.W. Norton, 1993), pp. 142-146. Kennan
includes in the category of monster countries the United States, Chi-
noted psychoanalyst Erik Erikson on the American state
na, India, the former Soviet Union, and Brazil. Here he emphasizes
of mind: the negative impacts of great size which leads to a sense of
"remoteness and impersonality on the part of government and of
Most [Americans] are faced with . . . such insignificance and helplessness on the part of the individual."
polarities as: open roads of immigration and jealous 4
Gilberto Freyre. The Masters and the Slaves (Berkeley: University
islands of tradition; outgoing internationalism and of California Press, 1986), pp. 79-80.
defiant isolationism; boisterous competition and self- 5
Michael Kammen. The Contrapuntal Civilization: Essays Toward a
effacing co-operation and many others. . . . Thus, the New Understanding of the American Experience (New York: Thomas
Y. Crowell, 1971), pp. 3-29; the Erikson quote, p. 4.
functioning American, as heir of a history of extreme 6
Kennan. Around the Cragged Hill, pp. 143-146.
contrasts and abrupt changes, bases his final ego

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324
CONFERÊNCIA 4
O TEMPO DO T RÓPICO EM G ILBERTO F REYRE

CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO

Dia 24 de março
PRESIDENTE DA SESSÃO :
Marco Antônio Maciel
Vice-Presidente da República Federativa do Brasil
O Tempo do Trópico em Gilberto Freyre 1

Eduardo Portella
Escritor – Academia Brasileira de Letras / Presidente da Fundação
Biblioteca Nacional / Presidente da Conferência da UNESCO – Brasil

É sempre com grande satisfação que Vamos tentar surpreender alguns mo-
volto ao Recife. Gilberto Freyre uma vez, es- mentos do percurso freyriano, degraus talvez
crevendo sobre mim, disse alguma coisa que primordiais de uma escalada infatigável. Ad-
me tocou muito. Dizia ele: "É um baiano do mitamos provisoriamente, e até segunda or-
Recife", e eu igualmente me sinto profunda- dem, seis referências elucidativas: um, o prin-
mente recifense. Hoje, portanto, aqui estamos cípio identitário e a descoberta da diferença;
para celebrar os cem anos de nascimento de dois, a referência étnica; três, a referência
Gilberto Freyre. Não me lembro de outro in- laboral; quatro, a referência simbóllica,
térprete do processo brasileiro que tenha sido interativa, nas suas extensões, sobretudo, re-
tão matizado e tão abrangente, nem tão plu- ligiosas, míticas e lúdicas; cinco, a razão im-
ral, nem tão singular, como ele. De tal modo pura sob a luz dos trópicos; e, finalmente, seis,
que aproximar-se de Gilberto Freyre vem a a racionalidade aberta.
ser predispor-se ou dispor-se a conviver amis- A referência laboral parece saltar o li-
tosa ou inamistosamente com a complexida- mite estreito do balcão de empregos. Deixa
de. Essa complexidade se esconde ou se mos- de haver o determinismo categórico das rela-
tra indiferente às incompreensões, sobretudo ções de produção e, no seu lugar, toma cor-
às incompreensões monodisciplinares. Ne- po, e vida, a produção de relações. Portanto,
nhuma disciplina isolada seria capaz de dar já não a mítica relação de produções, mas,
conta, é fácil constatar, desse dispositivo sobretudo, a esfera interativa na sua diversi-
hermenêutico, sagaz, e não raro imprevisível. dade.
Quem designar Gilberto Freyre como soció- O desempenho de Gilberto Freyre va-
logo, como historiador, como antropólogo, loriza, igualmente, todo um conjunto de re-
como filósofo, estará dizendo uma parte da presentações que se perderia, em plena
verdade. Ele é um mobilizador de disciplinas modernidade, ao reconhecer o mal-estar da
afins, é um crítico pluridisciplinar. Seu raio de civilização (Freud) e o desencantamento do
preocupação, o alcance do seu olhar, impli- mundo (Weber). Abre ele passagem para as
ca, portanto, um horizonte crítico que esteja instâncias do afeto na contracena de olhares
para além das demarcações disciplinares. permissivos, intercâmbios simbólicos clara-
Quando houve ou se instalou uma cri- mente abandonados, paixões proibidas, fes-
se no âmbito das ciências sociais, cada uma tas pagãs e rituais sagrados que se desdobram
delas pretendeu modelizar para as demais ci- entre o medo e o prazer. Na Europa do
ências irmãs. Todas elas guardaram da velha Iluminismo alemão ou da Ilustração francesa,
filosofia aquela ambição imperial, e pensaram a luz clareava o entendimento, por isso o seu
que poderiam produzir modelos que fossem século foi chamado o Século das Luzes. No
igualmente suficientes nas diferentes áreas do trópico, a luz bronzeia a alma. Da vontade
saber. Todas saídas do velho tronco da filoso- imperativa da fusão, passou-se ao bem que-
fia grega clássica. Evidentemente esse movi- rer da infusão. Na infusão ficam asseguradas,
mento de inserção numa espécie de gueto alternadamente, efusão e afeição.
disciplinar provocou algumas paralisias ou al- O trópico não é só uma geografia, ou
gumas mortes por claustrofobia. Daí a neces- apenas um território: é antes a usina que re-
sidade básica, fundamental, de estabelecer siste, com as suas vivências, as suas percep-
parcerias disciplinares, formas novas de coa- ções, os seus ícones e fetiches, até o seu fogo
bitação no interior do conhecimento. A pro- vivo, que me perdoe o grande romancista José
posta e a obra de Freyre assim o exigem. Lins do Rego. A alta modernidade e a baixa

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327
modernidade vêem o trópico como paisagem mais ou se enredam insolitamente, descomplexadamente.
menos exótica, como fértil território para exploração, Aqui já se pode perceber a distinção entre o
como programa turístico promissor. É um velho modo complexo e o complexado: o complexo é livre; o
de olhar, responsável por tantos mal-entendidos. Até complexado se torna logo refém do trauma. A ideo-
hoje a modernidade não conseguiu desvencilhar-se logia é, portanto, uma categoria que pertence ao do-
da miragem do exótico. O modernismo brasileiro tam- mínio das coisas complexadas e não dos seres com-
bém foi cultor do exótico, particularmente na sua ver- plexos. Por quê? Porque ela opera basicamente em
são verde-amarela, de viés precipitadamente função de oposições jamais mediadas ou pelo menos
fundamentalista. fragilmente mediadas. E, em função dessa operação
Com Gilberto Freyre, o trópico nunca foi o exó- basicamente binária, ela tem uma tendência inevitá-
tico, o fora de ótica, porém um campo ótico carrega- vel a excluir, a promover exterminações. Não é o caso
do de revelações. Por isso, quando falamos de Gilber- de uma leitura que se localize num espaço que seja
to Freyre, não devemos falar da modernidade no ternário e já não apenas binário, onde não persistisse
singular, mas certamente da modernidade no plural. a trapaça da síntese, na hora de promover o encontro
Gilberto Freyre soube evitar o choque inevitável de das duas pontas, de enlaçar. O que se verifica aí é
modernismo e modernidade no Brasil. Não hipote- uma compreensão respeitosa dos elementos que com-
cou o futuro, não leiloou o passado; não fez a trêfega põem a cena do conhecimento e a cena da vida coti-
apologia do presente, porque se equilibrou criativa- diana. No caso específico, as duas cenas se comple-
mente na corda bamba do "tempo tríbio". Soube ser tam: o conhecimento e o saber são vistos de mãos
moderno, sem precisar atirar ao mar a memória e a dadas com a vida do mundo.
tradição: antes uniu-as à invenção. A referência étnica ganha inflexões desconhe-
Freyre percebeu que, para seguir adiante, teria cidas para além do preconceito da ausência do pre-
que desfazer-se do autoritarismo da razão conceito e da ansiedade revanchista. Freyre prefere
hegemônica, unânime, excludente. Ele teria também priorizar e estimular o bem-sucedido esforço de rela-
que começar a admitir possibilidades de confluências ções interpessoais à malograda política de exclusão.
ou esquecidas ou impensadas. A esperança concreta, muito mais do que a utopia
Nesse cenário mais ou menos crispado, é pos- desgarrada, estava introjetada na sua construção da
sível registrar deslocamentos substanciais no eixo da racionalidade.
legitimidade convencionada, capazes de alterar pa- No seu programa interpretativo se fortalece
péis atribuídos a protagonistas e coadjuvantes, a ato- outra racionalidade, voltada para outras centralidades.
res sociais diversos. É nesse mesmo movimento que E quem abriu essa racionalidade foi, no caso, a trans-
se pode escrever novos roteiros sem abrir mão das parência do trópico. O trópico é ecumênico por na-
metáforas transtemporais de Gilberto Freyre. E quan- tureza; falta ser por história. É o que nos faz ver a
do ele aposta em uma sociedade matizada, colorida, hermenêutica plural de Freyre – a narrativa da razão
ecumênica, insubmissa diante das etiquetas petrifica- e da desrazão, das jornadas do trabalho e das jorna-
das e do terrorismo do teorismo. A teoria nele com- das do desejo, do presente, do passado, do futuro si-
parece na medida exata, sem nenhum ímpeto, ne- multâneos, das percepções, das cumplicidades de for-
nhum impulso inflacionário que perturbasse a mas e cores nunca dantes tão íntimas. Sob o calor dos
economia conceitual do saber. trópicos, a plasticidade, a fluidez, o antropomorfismo
As linhas interpretativas postas em movimento insólito, a ambivalência ideológica ou transideológica,
por Gilberto Freyre jamais seriam simétricas a ponto o cortejo dos afetos ainda não classificados, a
de reduzir a compreensão dos fatos isolados. Ou me- porosidade imprevista de uma outra convivência, cres-
lhor, em Gilberto Freyre são menos os fatos, na linha ce e se afirma na lição inconfundível de Gilberto
do positivismo, e muito mais os feitos, ou seja a dinâ- Freyre.
mica dos fatos, que conta. É quando o pluralismo
gilbertiano liberta a idéia de nação do seu bunker _______________________
identitário e desautoriza o vôo cego do
diferencialismo. Nunca faz o jogo do idêntico a si Notas
mesmo, o jogo do puro idêntico, do autocentrado, 1
Palavras gravadas e parcialmente revisadas pelo autor.
do autista; nem se entrega à alteridade por si só, es-
quecida do mesmo. Tampouco se aliou a um
multiculturalismo que fosse, a uma só vez, relativista
e dissolvente. E assim o Brasil emerge na interminável
rede de trocas e misturas, simbólicas e materiais, que

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328
O Século de Gilberto Freyre

Marco Antônio Maciel


Vice-Presidente da República Federativa do Brasil

Considerando a múltipla e inovadora pelo cuidado de suas interpretações, Gilber-


contribuição de Gilberto Freyre para a reno- to revelou para as gerações que o sucederam
vação do pensamento brasileiro no campo das um Brasil reinventado, reinterpretado e recri-
ciências humanas, creio que ninguém hesita- ado pelo seu gênio. Talvez, desculpem-me,
rá em dizer que este, cujos estertores estamos se movido por pernambucanidade, o primei-
vivendo, foi o seu século. Ele significa para o ro gênio brasileiro. Por isso, somos todos seus
Brasil a revolução que Max Weber represen- discípulos, seus seguidores e, para mim pes-
tou, primeiro para a Alemanha, num dos mais soalmente, mais importante ainda: seus de-
trágicos e incertos momentos e também para vedores. Sob este aspecto ele é o primeiro, o
o mundo, com a obra de sistematização da mais influente e o mais permanente dos mo-
sociologia que o imortalizou. O pensamento dernistas que fizeram, como disse Gilberto
brasileiro está impregnado de suas idéias, de Amado referindo-se à Semana de Arte Mo-
sua influência, de sua presença e de sua ex- derna de 22, "renascer o Brasil dentro de nós."
traordinária e benéfica irreverência. É alguém Não há autor brasileiro reconhecido no cam-
que não pode ser julgado apenas pela mais po das ciências sociais, nem brasilianista que
influente de suas obras. E menos ainda pelo não se abeberou em sua sabedoria, embora
conjunto delas, que transcende esta ou aquela nem todos lhe tenham dado crédito pelos
especialidade a que ele se dedicou, na medi- caminhos que o seu pioneirismo abriu para
da em que abarca virtualmente todos os cam- revelar um mundo que só a sua inteligência e
pos do conhecimento que, com destreza e a de ninguém mais, antes dele, foi capaz de
incomparável erudição, ele dominou. esmiuçar, revelar e consagrar em toda a sua
Quem somente aludir ao sociólogo, es- extraordinária dimensão.
tará esquecendo o renovador dos estudos his- Em seus trabalhos sobre o Brasil colo-
tóricos. Quem apenas se referir ao antropó- nial e escravocrata, Gilberto se vale de uma
logo social estará esquecendo o esteta. Quem abordagem multidisciplinar e não cronológi-
estudar o antropólogo estará esquecendo o ca para fazer a crônica de seu tempo, valori-
ensaísta. Os que se especializarem no ensaísta zada pelo seu refinado estilo literário. Estu-
estarão ignorando o escritor. Este o sentido dou a culinária, o mobiliário, a arquitetura, a
de sua obra. Nenhum outro brasileiro versou, vestimenta, a língua e os costumes do perío-
com tanta originalidade e ineditismo mesmo, do colonial brasileiro.
as áreas da ciência em que tenha atuado. Quando estudante na Universidade de
Acresce a esse universalismo de sua produ- Colúmbia, Gilberto Freyre foi aluno de Franz
ção intelectual a dimensão humana daquele Boas, um dos primeiros antropólogos que
que foi, entre todos, sob esse aspecto, com- rechaçaram a idéia de que a raça determina-
parável apenas a Ruy e a Nabuco, este a quem ria o social, uma idéia que permeou a socio-
Gilberto tanto admirava, a ponto de, como logia até o primeiro quarto do século XX. Gil-
Deputado Federal, através de lei, homenageá- berto Freyre substituiu raça por cultura e
lo com a hoje Fundação Joaquim Nabuco, identificou, na miscelânea das diversas raças
certamente o maior pólo de estudos sociais que formaram o Brasil, a originalidade da cul-
interdisciplinares do Norte e Nordeste do País. tura brasileira. Na época do lançamento de
Enfim, ele foi o mais combatível e seguramente Casa-Grande & Senzala, era comum atribuir-
dos mais combatidos militantes da cultura, da se o atraso do Brasil à nossa formação racial.
ciência e da política neste século. Com uma abordagem antropológica, Freyre
Pela originalidade de suas pesquisas e demonstra, de forma original, como as cultu-

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329
ras negra e indígena alteraram os costumes europeus Revista Brasil. Mas as influências vieram mesmo de
e moldaram uma sociedade peculiar. Além de resga- sua reflexão sobre as experiências de sua própria in-
tar o papel do escravo negro, Gilberto Freyre ressalta fância e adolescência. E o Homem, como nos ensina
a importância da miscigenação no Brasil como res- Victor Hugo, é universal em sua individualidade.
ponsável pelo surgimento de uma nova civilização, a Nessa linha de raciocínio, Freyre, como pou-
primeira "civilização nos trópicos. cos, conseguiu ser universal e telúrico. Tal como
Por outro lado, ao considerar o negro escravo Cervantes, Camões, Tolstói e Sartre, ele atinge o uni-
como colonizador do Brasil, uma vez que sem ele não versal em um mergulho profundo naquele cerne mais
teria se consolidado no País a complexa civilização regional de seu ego, isto é, na sua
canavieira, Freyre desmistificou tabus profundamen- pernambucanicidade.
te entranhados na sociedade brasileira. Ele próprio assim se definiu, em entrevista con-
Numa época em que um regime de idéias ra- cedida à TV Cultura de São Paulo: "Sou um brasileiro
cistas medrava na Europa gerando simpatias, Gilberto de Pernambuco. Gosto muito de minha província. Sou
Freyre não apenas se levantava contra o determinismo sedentário e ao mesmo tempo nômade. Gosto da ro-
biológico, assumindo com orgulho nossa mestiçagem. tina e gosto da aventura. Gosto dos meus chinelos e
Gilberto Freyre mergulhou fundo nas raízes gosto de viajar. Meu nome é Gilberto Freyre".
humanas, sociais, culturais, históricas do Brasil e des- É possível ser, a um só tempo telúrico e univer-
cobriu suas entranhas e a realidade desse povo múlti- sal, porque telurismo não é sinônimo de
plo e mestiço. Ele demonstrou ser preciso, como nos provincianidade, assim como ser universal não quer
diz o Presidente Fernando Henrique Cardoso, supe- dizer, necessariamente, ser cosmopolita. Este é um
rar a mentalidade defensiva, excludente e auto-pro- legado importante da sua obra e também um exem-
tetora que caracterizou o pensamento brasileiro por plo que nos deixou vivo, presente, quase que a guiar
tanto tempo e vencer o que ainda resta em nosso País os nossos passos e a servir de lição para a nossa cami-
– para usar a nomenclatura de Oliveira Lima – de atra- nhada.
sado, incompleto e provisório. No mundo pós-moderno em que vivemos, em
Gilberto Freyre ajudou o Brasil a entender sua que o Muro de Berlim é apenas uma lembrança de
verdadeira destinação para a realização de uma vida um mundo bipolar quase distante, sua antevisão é um
tropicalmente situada, fecundamente aberta à convi- exemplo acabado de atualidade e sincronismo com
vência afetiva e efetiva, de uma democracia racial. os novos tempos, que não cabem em receituários ide-
Sendo o apreço pela diferença intrínseco à sua for- ológicos ou dogmatismos prefixados. Freyre costumava
mação, o País é culturalmente integrador, e o dizer que os radicalismos faziam sucesso porque as
pluralismo cultural que trazemos de nossa formação pessoas têm preguiça de refletir e porque adotar um
histórica é um dado que nos fortalece neste momen- slogan é mais fácil do que pensar.
to em que expandimos nossa inserção no mundo Temos que reconhecer que ele não teve só a
globalizado. Por termos sido plasmados por múltiplas primazia do desbravador. Teve a ousadia do criador
influências, nossa essência é universalista. capaz de inovar o que ninguém notou e mostrar o
Freyre identificava o bem do País com a sobre- que para os demais permaneceu oculto e irrevelado
vivência da herança ibérica, em toda a sua riqueza. durante tanto tempo. Se tanto lhe deve o Brasil, ain-
Ao descrever a capacidade assimilatória do coloniza- da mais lhe deve o Nordeste, na medida em que sua
dor português, enfatiza o fato de o seu europeísmo obra foi seguramente a que mais influiu para que o
ter sido amalgamado, primeiro na Europa, pelas mis- Brasil fosse conhecido no exterior e mudou a con-
turas com árabes e judeus, e a seguir, na América, cepção de que, no Nordeste muitos brasileiros havi-
pela mistura com o negro. O resultado dessa miscige- am esquecido de que aqui foram plantadas as raízes
nação o teria preparado para o aprendizado de valio- da civilização que não teria prosperado e sobrevivido
sas lições no relacionamento com povos de outras sem a nossa decisiva contribuição. Nesse sentido, Gil-
terras, crenças e cores. berto é o mais universal dos brasileiros e o mais brasi-
Sua visão de mundo nos ensinou que ao mes- leiro dos nordestinos. Síntese e simbiose que dão a
mo tempo em que a sociedade brasileira, por sua for- exata medida de sua enorme contribuição de intelec-
mação histórica, é única, insere-se, por outro lado, tual e de cidadão ao conhecimento do Brasil e da re-
num todo maior. alidade nordestina. Contribuição, frise-se, que perpas-
No Brasil, Freyre se aproximou daquele que vi- sou também para o território da política, pois deu um
ria a ser seu primeiro mentor intelectual: Monteiro discurso consistente àqueles que, missionariamente,
Lobato que, entre outras coisas, ajudou a divulgá-lo, se voltam para a defesa do Nordeste e de políticas em
na medida em que publicou vários artigos dele na prol de seu desenvolvimento.

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Empenhei-me pessoalmente em tornar este ano,
no centenário do seu nascimento, no Ano Gilberto
Freyre, o que ocorreu por pronta decisão do Presi-
dente Fernando Henrique Cardoso que editou decreto
nesse sentido porque, se alguém o sobreleva, certa-
mente não será pela contribuição intelectual,
inigualável, incomparável e sem paralelo e pela dedi-
cação à maior de todas as causas, a do seu País. Ele
saiu do Brasil para se aprimorar e se informar sobre o
que, na sua época, era a tendência universal de se
valorizar a compreensão do papel da sociedade na
configuração do mundo conturbado e criativo no sé-
culo com o qual ele nasceu e no qual viveu, cumprin-
do a vocação de engrandecer. Não só por isso, mas
sobretudo pela visão que tinha do mundo, ele foi ca-
paz de nos ensinar tudo o que com ele aprendemos.
Não só por isso, mas também por isso, somos
devedores do empenho com que ele nos ensinou que
somos o que somos, que construímos o País que
erigimos e que, somente por essa obra, somos dignos
de nosso destino. Aqui construímos, segundo ele nos
revelou, uma sociedade multirracial, uma civilização
que a despeito de todos os desafios e adversidades
ensejou as condições para ser não apenas o grande
País, mas acima de tudo, uma grande e generosa Na-
ção que, aos seus 500 anos, desponta para ter, ouse-
mos, protagonismo neste século XXI, para o que mui-
to vai ajudar a perenidade de suas lições nas quais
coexistem a análise do passado, o interesse pelo pre-
sente e as preocupações com o futuro.

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Índice dos Artigos

Além do Apenas Moderno, 289


Além da Diferença, o que Há?, 293
Algumas Influências na Formação Intelectual de Gilberto Freyre, 119
Alguns Aspectos da Influência Britânica sobre a vida Brasileira e
Comentários em torno do livro Ingleses no Brasil de Gilberto Freyre,
124
Assombração e Invenção: a Poética do Passado em Gilberto Freyre, 19
Aventuras e Desventuras em Tempo Morto e Outros Tempos, 149
A Atualidade do Pensamento Freyriano e o Japão, 239
Basta Recordar os Pés das Chinesas: Notas sobre Gilberto Freyre e o
Carnaval do Brasil, 55
Castelos no Ar: Notas sobre Portugal em Aventura e Rotina, 155
Centenário de Nascimento do Autor de Casa-Grande & Senzala, 263
Coordenadas Epistemológicas de Gilberto Freyre, 159
A Cultura Lusófona, uma Cultura Ameaçada?, 26
A Desordem Urbana e os Antagonismos e Acomodações entre Sobrados e
Mucambos, 243
Dona Sinhá, o Filho e o Dogmatismo Exorcizado, 171
Eça de Queiroz e Gilberto Freyre: Algumas Aproximações, 197
A Estratégia de Sobrevivência da Caatinga e o Uso Sustentável da Terra no
Nordeste, 65
Da Europa nos Trópicos aos Trópicos na Europa, 307
Giants of the Earth: Brazil and the United States as Successful Mega-
States, 321
Gilberto Freyre y Alemania, 99
Gilberto Freyre: as Cidades, 163
Gilberto Freyre: Ciência Social e Consciência Pessoal, 219
Gilberto: Portugal, Brasil e Trópico, 202
A Incompreensão da Crítica ao Luso-Tropicalismo, 208
A Inconclusão do Progresso e a Mistura da Ordem: Notas sobre Gilberto
Freyre e o Positivismo no Brasil do Século XIX, 223
Ingleses no Brasil: um Quase-Manifesto, 131
Insurgências e Ressurgências Atuais: Cruzamentos de Sins e Nãos num
Mundo em Transição, 267
A Invenção do Brasil entre Clio e o Mythos: Contraponto com Gilberto
Freyre de Interpretación de Brasil, 103
Os Judeus no Pensamento de Gilberto Freyre, 67
O Local e o Universal na Obra de Gilberto Freyre: Notas sobre
Interpretação do Brasil, 271
O Luso e o Trópico Revisitado, 75
A Mulher no Universo de Casa-Grande & Senzala, 79
Um Olhar Freyriano sobre Goa, 213
Ordem e Progresso, 227
Ordem e Progresso e o Tempo do Trópico em Gilberto Freyre, 231
Os Povos Indígenas e o Mito da Miscigenação, 71
The Place of Material Culture in Ingleses no Brasil, 140
A Propósito do Livro Insurgências e Ressurgências Atuais de Gilberto
Freyre, 281
A Propósito de Vida, Forma e Cor e do Perfil de Euclides da Cunha, 111
O que Portugal Deve a Gilberto Freyre, 313
A Recepção do Luso-Tropicalismo em Portugal, 84
Região e Tradição no Jovem Gilberto Freyre, 177
O Regionalismo da Tradição na Perspectiva Nacionalista: a Identidade
Regional Segundo Gilberto Freyre, 180
Relendo Gilberto Freyre: o Contexto do Romance Os Dois Irmãos de
Germano Almeida, 36
Revisitando o Mundo que o Português Criou, 248
O Século de Gilberto Freyre, 329
Uma Senhora Inconveniente, 299
O Significado da Obra de Gilberto Freyre para a Antropologia
Contemporânea, 115
Sobre O Mundo que o Português Criou: Reflexões no Limiar do Século XXI,
43
Sobre a Pertinência de Sobrados e Mucambos para a Compreensão da
Dinâmica Racial no Brasil Contemporâneo: ou o Sorriso do Mulato, 255
Sol & Açúcar: Ecologia e Processos de Sedução em Gilberto Freyre, 187
O Tempo no Futuro, 303
O Tempo do Trópico em Gilberto Freyre, 327
Índice dos Autores

Adriano Moreira, 307 111


Alba Zaluar, 243 Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke,
Antonio Dimas, 299 131

Barbara Freitag, 263 Mary del Priore, 149

Beatriz Jaguaribe, 19 Narana Caissoró, 75

Bruno Tolentino, 289 Olavo de Carvalho, 219

Carlos Guilherme Mota, 248 Omar Ribeiro Thomas, 271

Cecília Maria Westphalen, 79 Paulo Donizéti Siepierski, 119

Cláudia Castelo, 84 Pedro Borges Graça, 208

Chiyoko Mita, 239 Peter Burker, 140

Eduardo Diatahy B. de Menezes, Peter Henry Fry, 255


103 Raul Lody, 187
Eduardo Portella, 327 Renato Ortiz, 227
Elide Rugai Bastos, 231 Ricardo Benzaquen Araujo, 155
Elizabeth Marinheiro, 171 Roberto DaMatta, 55
Enrique Rodriguez Larreta, 267 Rosa Maria Barboza de Araújo, 303
Fernando Alves Cristóvão, 26 Sebastião Vila Nova, 197
Gilberto Velho, 115 Tarcísio de Miranda Burity, 281
Giralda Seyferth, 180 Toshie Nishizawa, 65
Guillermo Giucci, 163 Vamireh Chacon, 177
Hanns-Albert Steger, 99
Helena Balsa, 213
Ilídio do Amaral, 43
João Camilo de Oliveira Pena, 293
João Hélio Mendonça, 124
Joaquim Veríssimo Serrão, 313
José Carlos Venâncio, 36
José Esteves Pereira, 159
Ludwig Lauerhass Jr., 321
Luiz Felipe Baeta Neves, 223
Manuel Correia de Andrade, 202
Marco Antonio Maciel, 329
Marcos Chor Maio, 67
Marcos Terena, 71
Maria Alice Rezende de Carvalho,

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