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UNIVERSIDADE FEEVALE

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO


DISCIPLINA DE MONOGRAFIA II

EVERTON RICARDO BOOTZ

O DECÁLOGO
Características Políticas e Jurídicas

NOVO HAMBURGO
2012
1

Everton Ricardo Bootz

O DECÁLOGO
Características Políticas e Jurídicas

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como requisito parcial à
obtenção do grau de Bacharel em Direito
pela Universidade Feevale.

Orientador: Prof. Dr. Henrique Keske

Novo Hamburgo
2012
Everton Ricardo Bootz

Trabalho de Conclusão de Curso de Direito, com título O DECÁLOGO -


Características Políticas e Jurídicas, submetido ao corpo docente da Universidade
Feevale, como requisito necessário para a obtenção do Grau de Bacharel em
Direito.

Aprovado por:

__________________________________________
Prof. Dr. Henrique Keske
Orientador

__________________________________________
Prof.
Banca Examinadora

__________________________________________
Prof.
Banca Examinadora

Novo Hamburgo, 28 de novembro de 2012.


DEDICATÓRIA

À minha esposa: Lírian Becker Ferreira, pelo


apoio afetivo, incentivo acadêmico e confiança na
capacidade intelectual; e à minha filha: Luiza Bootz,
pelo afeto desmedido.
AGRADECIMENTOS

Ao professor orientador, Dr. Henrique Keske pelos encontros de orientações


acadêmicas, além da amizade mediada por conversas jurídico-teológicas.

A todos os professores da FEEVALE que aportaram conhecimento e


valoraram a querência pelo estudo do Direito.

À Comunidade Evangélica de Confissão Luterana da Ascensão, pelo apoio


eclesiástico ao estudo de Direito.

A todas as pessoas que, ao longo do curso, estiveram comigo e aportaram


amizade, vida e apreço ao Direito.
RESUMO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso de Direito objetiva recuperar o


valor político e jurídico do Decálogo, mormente reconhecido como máximas morais e
meramente religiosas. Através da hermenêutica de GADAMER e da sua teoria da
fusão de horizontes, a recuperação é realizada mediante uma análise sociológica do
contexto existencial do Decálogo, procurando encontrar aspectos políticos e
jurídicos inerente nos primeiros três Mandamentos. O 1º Mandamento desvela o
poder de um Estado virtual, racional, forjado nos primórdios da história humana. O 2º
Mandamento revela o meio jurídico pelo qual aquele poder pôde se manifestar e se
articular. O 3º Mandamento manifesta aportes ao Direito Trabalhista, ao Direito Civil,
ao Direito Econômico e ao Direito Ambiental. A análise hermenêutica demonstra que
o Decálogo emerge de um experimento sociopolítico sui generis no período
compreendido entre 1.250 e 1.050 a.C., fomentando o surgimento de uma
organização distinta das demais de sua época, mediante princípios basilares: a
busca por uma sociedade promotora de liberdade, justiça e igualdade. Este
experimento social resultou na formação de leis pertinentes a estes princípios que
mais tarde se decantaram sinteticamente no Decálogo. Este códice legal, com forte
ênfase política, foi recepcionado pela história, sendo preservado e repassado entre
horizontes superpostos até chegar à idade da razão, norteando os iluministas na
formulação do Contrato Social, uma proposta similar à encontrada na Aliança
mosaica, pacto feito entre uma associação de igualmente despossuídos, desejosos
por liberdade e justiça, e sua divindade.

Palavras Chave: Decálogo. Mandamento. Hermenêutica. Aliança


Mosaica. Contrato Social.

6
ABSTRACT
The present paper of conclusion of Law’s Course aims to recuperate the
politic and juristic values of Decalogue, normally recognized as moral norms and
manly religious. Through the GADAMER`s hermeneutic and his theory oh fusion of
horizons, recuperation realized through a sociological analysis of the Decalogue`s
existential context, searching politic and juristic aspects inside the three
commandments. The first commandant reveals the power of a rational and virtual
State, created at the of beginning of mankind`s history. The second commandment
reveals the juristic means through what that power was able to manifest and to
articulate itself. The third Commandment manifests contribution to Labor`s Law, to
Civil Law, to Economics Law and to Environment Law. The hermeneutic analysis
shows that the Decalogue emerges from a peculiar sociopolitical experiment in
between 1.250 and 1.050 b.C. promoting the development of a distinctive
organization, through fundamental principles: a search for a society which promoted
freedom, justice and equality. This social experiment fomented the formation of laws
pertinent to those principles which were later shaped synthetically as the Decalogue.
This legal law, with strong political emphasis, was introduced in history, being
preserved and passed on to overlapping horizons until reaching the Age of
Enlightenment, helping the thinkers in this age writing about the Social Contract, a
similar proposal to the mosaic alliance, covenant firmed between equally
dispossessed people, desiring freedom and justice, and their god.

Key-Words: Decalogue. Commandment. Hermeneutic. Mosaic Alliance.


Social Contract.

7
LISTA DE TABELAS

8
LISTA DE IMAGENS

Imagem 01 - Estrutura de uma sociedade do tipo reinado.........................................54


Imagem 02 - Estrutura de uma sociedade do tipo teocrática...............................54
Imagem 03 - Estrutura do Pacto Social em Hobbes..............................................98
Imagem 04 - Estrutura do Pacto Social em Rousseau...............................................99

9
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................12

1 CONTEXTO SOCIOLÓGICO DO ISRAEL LIBERTO 1250-1050 A.C...................14


1.1 EMBASAMENTO TEÓRICO.................................................................................14
1.1.1 Crítica hermenêutica de Gadamer..................................................................14
1.1.2 Método histórico-crítico..................................................................................17
1.1.3 Opção pelos pobres.........................................................................................19
1.2 O CONTEXTO HISTÓRICO.................................................................................21
1.3 OS HAPIRUS........................................................................................................25
1.4 A FORMAÇÃO DAS TRIBOS DE ISRAEL............................................................30
1.4.1 Solidariedade econômica................................................................................32
1.4.2 Poder partilhado...............................................................................................33
1.4.3 Leis a serviço da vida......................................................................................34
1.4.4 Fé no Deus libertador......................................................................................36
1.4.5 Culto descentralizado......................................................................................39
1.4.6 Exército popular de defesa.............................................................................41
1.5 A FORMAÇÃO DO DECÁLOGO...........................................................................43
1.5.1 Declínio do sistema tribal e surgimento do reinado em Israel...................44
1.5.2 O Decálogo como compêndio das leis originárias......................................47

2 OS PRIMEIROS TRÊS MANDAMENTOS..............................................................50


2.1 EU SOU O SENHOR TEU DEUS, NÃO TERÁS OUTROS DEUSES DIANTE DE
MIM..............................................................................................................................50
Imagem 01 - Estrutura de uma sociedade do tipo reinado...................................54
Imagem 02 - Estrutura de uma sociedade do tipo teocrática...............................55
2.2 NÃO ABUSE DO NOME DO SENHOR, SEU DEUS............................................59
2.3 SANTIFIQUE O DIA DE DESCANSO...................................................................64
2.3.1 A dimensão laboral..........................................................................................65
2.3.2 A dimensão social............................................................................................69
2.3.3 A dimensão econômica...................................................................................73
2.3.4 A dimensão ecológica......................................................................................78

3 AS TRIBOS DE YAHWEH COMO HORIZONTE HISTÓRICO...............................86

10
3.1 TEORIA DOS HORIZONTES DE GADAMER......................................................87
3.1.1 O horizonte hapiru...........................................................................................91
3.1.2 O horizonte hodierno.......................................................................................93
3.2 A FUSÃO DOS HORIZONTES.............................................................................95
3.2.1 O Contrato Social em Hobbes........................................................................96
Imagem 03 - Estrutura do Pacto Social em Hobbes..............................................98
3.2.2 O Contrato Social em Rousseau....................................................................98
Imagem 04 - Estrutura do Pacto Social em Rousseau..........................................99

CONCLUSÃO...........................................................................................................108

REFERÊNCIAS.........................................................................................................112

11
INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva descortinar as características políticas e jurídicas do


Decálogo. O Decálogo é conhecidíssimo na atualidade, mas o entendimento que se
tem dele parte quase que exclusivamente da religião. O Decálogo é tido como um
receituário moral e pertencente ao universo religioso. Contudo, sua origem é legal;
são leis. Assim, este Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Direito
quer perscrutar a possibilidade de desvelar aspectos essencialmente legais do
Decálogo. Esta presunção parte do fato de que se assim for, se o Decálogo
realmente possuir fundamento político e jurídico, a recuperação desta característica
jurídica interessa ao estudo do Direito, como elemento histórico relevante.
Para tanto, o trabalho precisará de um instrumental de pesquisa para se
aproximar historicamente do Decálogo. Sendo um texto antigo, faz-se mister um
instrumental hermenêutico. Este é o conteúdo do primeiro capítulo. Nele é
apresentado o embasamento teórico, que legitima o uso de uma hermenêutica
textual, para a aproximação do texto do Decálogo. A hermenêutica de GADAMER
indica que a aproximação pode ser a sociológica, através da qual a história originária
pode ser recuperada até certo ponto, pelo menos até o ponto de uma compreensão
mais acurada do Decálogo, com o fito de vislumbrar a existência de um sentido
político e jurídico primários em seu bojo. O instrumental sociológico é usado e a
aproximação textual é exercitada no restante do primeiro capítulo, desvelando o
contexto sociopolítico a partir do qual o Decálogo foi constituído.
Uma vez desvelada a origem sociológica do Decálogo, o conteúdo do
segundo capítulo implicará em uma aproximação do aspecto jurídico dos três
primeiros Mandamentos. Enquanto o primeiro mandamento denota indícios de um
poder supraestatal, o segundo mandamento pode ser entendido como o meio
jurídico (juramento) pelo qual acordos jurídicos eram contratados. Um meio jurídico
de contratar através do qual o próprio “contrato social”, vigente no período entre
1250 e 1050 a.C., é firmado. Este período histórico é conhecido como o período das
Tribos de Yahweh, retratado no primeiro capítulo. No terceiro mandamento, procurar-
se-á desvelar aspectos jurídicos na área trabalhista (sétimo dia para o descanso), na
área política (ano do jubileu), área econômica (ano da remissão) e na área ecológica
(ano sabático); buscar-se-á no contexto das Tribos de Yahweh, os elementos

12
históricos relevantes para esta aproximação mais originária aos primeiros
mandamentos do Decálogo.
O conteúdo do terceiro capítulo vai tratar da hipótese de trabalho de que o
Decálogo pode ser vislumbrado como um “contrato social” entre o povo hebreu e
sua entidade divina. Procurar-se-á identificar traços paralelos entre os mandamentos
analisados (a partir de seu contexto social) e os ideais que constituíram o contrato
social na cultura ocidental europeia do século XVIII. Com isto, a ideia de que os
Mandamentos são de ordem jurídica e política pode ser reforçada. Far-se-á uso do
pensamento de GADAMER, para este intento, mediante sua teoria dos horizontes
(histórico e hermenêutico).
Por fim, na conclusão, procurar-se-á responder se as hipóteses deste trabalho
são justificadas ou não. Procurar-se-á também resgatar aqueles aspectos
importantíssimos para o estudo do Direito, ou seja, um resumo dos aspectos
jurídicos do Decálogo, insinuando-os como basilares para outras legislações que o
sucederam e, deste modo, influenciando as constituições atuais.

13
1 CONTEXTO SOCIOLÓGICO DO ISRAEL LIBERTO 1250-1050 A.C.

1.1 EMBASAMENTO TEÓRICO

1.1.1 Crítica hermenêutica de Gadamer

Nosso objetivo básico é demonstrar a natureza política e jurídica do


Decálogo. Esta natureza política e jurídica não nos está tão clara, pelo motivo dele
estar revestido por uma aura teológica. Tal revestimento que encobre os
Mandamentos os destitui de seu verdadeiro e primordial sentido: o de legislar uma
sociedade alternativa de justiça em meio a sociedades que estabeleciam uma
distribuição desproporcional das riquezas. A Hermenêutica de Hans-Georg
GADAMER pode nos auxiliar neste sentido. Através de sua hermenêutica crítica é
possível constatar como o processo de revestimento teológico paulatino acabou por
encobrir o sentido político e jurídico original do Decálogo.
GADAMER, em seu célebre escrito hermenêutico, Verdade e Método,
descreve como textos antigos passam por uma resignificação, a ponto de perderem
seu sentido primário. Textos politicamente carregados podem ser despolitizados,
privando-os de seu verdadeiro significado crítico 1. Parte deste processo se
desenvolve pelo mecanismo psicológico dos sentimentos das partes envolvidas:
autor ou autores, leitores e contexto local em que a obra está inserida. O sentimento
do leitor interfere na interpretação de determinado texto, projetando sobre este uma
significação distinta da originalmente pretendida pelo autor. Com a morte do autor e
com o distanciamento no tempo, um texto passa a ser reinterpretado
sistematicamente até perder por completo seu sentido original 2. É uma lógica
estética, não objetiva3. Uma comunidade pode projetar sobre um texto uma lógica
estética (ex.: teológica) a tal ponto, que leitores subsequentes passam a vislumbrar

1
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 57.
2
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 65.
3
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 72.

14
apenas este viés ao lê-lo, viés perpetrado pela tradição. O revestimento estético
resignificante altera substancialmente o sentido original do texto.
Essa resignificação não ocorre sem um norte. Há interesses que orientam a
lógica estética. Um aspecto dessa resignificação pode ser considerada no desejo de
estatuir tais regras a partir de um caráter normativo absoluto, colocando-as, assim,
como de origem divina4. Este reforço coercitivo de caráter divino permitiu à Igreja
Medieval, por exemplo, justificar suas pretensões de domínio absoluto sobre a
intermediação entre Deus e o mundo das nações. Isto consolidou a Igreja da Idade
Média como a única intérprete da vontade divina, baseada no constructo do Deus
único, respaldada pelas normas judaicas, de que se dizia herdeira natural.
Este fenômeno da resignificação de um texto se dá com maior desenvoltura
quando um texto traz em seu conteúdo símbolos e imagens (ex.: Deus, imagens,
descanso, pai). GADAMER lembra que um símbolo é polissêmico, podendo receber
distintas interpretações, já que aponta para além de seu significado inicial 5. “Como la
consciencia estética se sabe libre frente a lo mítico-religioso, también el simbolismo
que ella confiere a todo es ‘libre’” 6. Esta liberdade de interpretar símbolos facilita a
resignificação teológica de textos originalmente distintos deste viés. O símbolo
proporciona esta transformação à medida que permite representação de algo que
está ausente. O símbolo possibilita fazer presente algo que está ausente 7. Destarte,
um sentido semântico original pode receber uma representação distinta, forçando
sobre o texto um novo sentido que originalmente não estava aí.
Para tanto, é mister, segundo GADAMER, uma hermenêutica capaz de
restituir o sentido original de um texto esteticamente alterado, se se quiser realizar
uma aproximação da intenção primária do autor.
Sólo porque en las narraciones de la Biblia aparecen
cosas inconcebibles (res imperceptibles), su comprensión
depende de que logremos elucidar el sentido del autor a partir
del conjunto de su obra (ut mentem auctoris percipiamus). Y
4
A ideia de que Deus forja as leis para os povos não era novidade na época da formação dos Dez
Mandamentos. O Código de Hamurabi contém leis impressas numa estela em diorito, cujo ápice
mostra de forma esculpida, o Deus Marduk entregando tais leis para o Rei Khammu-rabi (Hamurabi),
rei da Babilônia no 18º século a.c., que devia assim segui-las como ordenanças divinas. Cf. PINSKY,
Jaime. Código de Hamurabi. Cultura Brasileira. [S.l.], [S.d.]. [Online]. Disponível em:
<http://www.culturabrasil.org/zip/hamurabi.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2011.
5
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 115.
6
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 119.
7
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 205.

15
aquí sí que es efectivamente indiferente el que su intención
responda a nuestra perspectiva; pues nosotros intentamos
conocer únicamente el sentido de las frases (el sensus
orationum), no su verdad (veritas). Para esto hay que
desconectar cualquier clase de actitud previa, incluso la de
nuestra razón (y por supuesto, tanto más la de nuestros
prejuicios).8
Por prejuízo, GADAMER se refere a estas significações projetadas
posteriormente sobre um texto bíblico, por exemplo, que estão fixas em nossa
mente, em nossa maneira de ver e ler o texto a nossa frente. É um juízo (sentido)
preconcebido, pré-formatado, que interfere na leitura, não nos possibilitando
entendê-la objetivamente. A pergunta que GADAMER faz então é sobre o método
hermenêutico capaz de fazer justiça à historicidade da compreensão original de um
texto9. Afinal, como superar o prejuízo que nos priva do sentido original de um texto?
Como transcender a história das tradições que fomentaram estes prejuízos? 10
GADAMER vai responder que a história não necessariamente deve ser superada,
posto que auxilia na aproximação do sentido original ao conectar os horizontes
existenciais: o do passado e do presente, através do fio histórico das tradições. 11
“Comprender es siempre el proceso de fusión de estos presuntos ‘horizontes para sí
mismos’”12. Isto é, tais horizontes são sempre presumidos: podemos nos aproximar
deles, mas não recuperá-los em sua integralidade objetiva.
Portanto, cabe-nos fazer uso da hermenêutica de GADAMER para
desmitificar o sentido religioso do Decálogo. GADAMER nos presenteia com a ideia
de que tampouco há grande distância entre a hermenêutica jurídica e a teológica 13. A
diferença básica está entre a visão do historiador e a do jurista frente a um texto
legal:

El jurista toma el sentido de la ley a partir de y en virtud


de un determinado caso dado. El historiador, en cambio, no
tiene ningún caso del que partir, sino que intenta determinar el
sentido de la ley representándose constructivamente la
8
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 234.
9
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 331ss.
10
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 360ss.
11
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 360-370.
12
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 377.
13
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 396.

16
totalidad del ámbito de aplicación de ésta; pues sólo en el
conjunto de sus aplicaciones se hace concreto el sentido de
una ley.14
Nosso trabalho é jurídico, mas com uma visão de historiador. Queremos
perceber como os Mandamentos, em seu horizonte histórico, determinaram o
surgimento de uma sociedade alternativa sui generis. Mas antes precisamos
apresentar com maior proximidade o método que nos auxiliará a desmitificar a aura
religiosa (moral).

1.1.2 Método histórico-crítico

Pelo fato deste trabalho acadêmico ser da área jurídica, é importante


considerar que o texto no qual os Mandamentos estão inseridos situa-se num
contexto teológico. Portanto, a partir do amparo de GADAMER, precisaremos de um
método capaz de nos auxiliar no processo de desmistificação do Decálogo. O
método usado no ambiente teológico para interpretar textos bíblicos é o Método
Histórico-Crítico: “A teologia, como ensinada nas universidades ao redor do mundo
hoje, tanto no Ocidente e no Oriente, quanto no Norte e no Sul, é baseada no
método histórico-crítico”15. Isto significa que a Bíblia é tomada como um livro como
outro qualquer, ou seja, como um texto. O estudioso da bíblia a tem objetivamente,
sem projetar sobre a mesma uma estética religiosa, sagrada. Os livros bíblicos, suas
narrações e leis são tidos como textos históricos e manejados cientificamente. São
hermeneuticamente perscrutadas assim como um romance de Homero.
Na historiografia crítica, o remanescente antigo e as evidências linguísticas
são usados como fontes de informação sobre uma era passada para a qual o próprio
pesquisador data o remanescente e as evidências. 16 Por linguística, se quer dizer o
estudo semântico presente no texto, ou seja, sua gramática, sintaxe e seu pano de
fundo histórico e cultural. O estudo destas características textuais faz emergir o
sentido anterior à formatação estética. OSBORNE trata com mais detalhe destas
características hermenêuticas em sua obra hermenêutica A Espiral Hermenêutica,

14
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 397.
15
LINNEMANN, Eta. Crítica Histórica da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 95.
16
LINNEMANN, Eta. Crítica Histórica da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 107.

17
uma nova abordagem à interpretação bíblica 17. Em nosso estudo, pelo espaço e
tempo reduzidos, faremos uso tão somente da terceira característica: o pano de
fundo histórico e cultural do texto legal do Decálogo. O autor faz uma análise própria
das leis, com especial atenção aos Dez Mandamentos, como exemplo de uma
interpretação hermenêutica18.
A partir deste pano de fundo histórico e cultural, nosso trabalho vai procurar
auscultar os elementos geográficos, políticos, econômicos, militares, de práticas
culturais e religiosas, assim como as relações destes elementos com outras alusões
legais em outros textos do Antigo Testamento 19. É uma forma de aproximação
hermenêutica mediante a sociologia20: “O desejo é reproduzir não apenas os
pensamentos, mas o mundo do pensamento do texto bíblico” 21, pois a “sociologia
estuda as relações humanas e as mudanças sociais que formam uma sociedade” 22.
Daí a importância do livro “As Tribos de YAHWEH”, de Norman K.
GOTTWALD. Na introdução de seu calhamaço, ele expõe suas pressuposições:
Minha abordagem é influenciada, na sua totalidade,
pelas seguintes suposições fundamentais: 1) os métodos
humanísticos e sociológicos são métodos igualmente valiosos
e complementares para reconstruir a transformação do antigo
Israel; 2) a religião é da melhor maneira encarada como
aspecto de mais vasta rede de relações sociais, nas quais ela
tem funções compreensíveis a desempenhar; 3) as mudanças
no comportamento religioso e no pensamento são otimamente
investigadas como aspectos de mudança na rede mais ampla
das relações sociais e econômicas; e 4) a religião é inteligível
na medida em que ela apresenta comportamento legal e
formas simbólicas predizíveis e retrodizíveis dentro dos

17
OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 198ss.
18
OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 233-240.
19
OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 198-210.
20
OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 217ss.
21
OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 217.
22
OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 217.

18
parâmetros fixados pelas combinações totais variáveis das
relações sociais e econômicas.23
Nossa pesquisa fará, destarte, uso de um estudo sociológico como uma
ferramenta hermenêutica para, como GADAMER defende, procurar um sentido mais
aproximado do Decálogo, com o fito de desvelar seu sentido originário, que segundo
nossa hipótese de trabalho, é político e jurídico, mais do que religioso ou moral.

1.1.3 Opção pelos pobres

Para esta hermenêutica sociológica é mister declararmos o uso de um outro


ponto de partida, de um outro marco teórico (teológico) que completa os dois pontos
acima. Este marco é oferecido pela Teologia da Libertação: a opção pelos pobres, ou
seja, a percepção do texto bíblico, no qual estão inseridos os Dez Mandamentos, a
partir de uma perspectiva do oprimido. Esta perspectiva hermenêutica é apresentada
aqui, pois no transcorrer da análise sociológica se perceberá que os autores últimos
do Decálogo são os hapirus24 (hebreus): os sem identidade jurídica, os sem direitos
sociais, os descartados economicamente, os escravos (os destituídos da liberdade).
Jorge PIXLEY e Clodovis BOFF, teólogos expoentes da Teologia da Libertação,
descrevem estes pobres como um fenômeno coletivo 25, resultado de um processo
conflituoso26, e que por isto reclamam um projeto social alternativo 27.
Quando os refugiados do Egito (hapirus), por exemplo, chegaram à terra
prometida (Canaã), esta já se encontrava ocupada pelos Cananeus. Foi nesta terra,
entretanto, que os hapirus forjaram uma identidade a partir de sua história, em meio
aos cananeus e às cidades-estado que não dividiam a mesma história e os mesmos
valores de vida. Em Canaã havia cidades-estado estruturadas a partir de reis,
23
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 13.
24
Hapiru é uma translação de uma palavra hebraica para o alfabeto português, significando: aquele
que não tem direito jurídico algum, o espoliado. Este termo posteriormente redundará no termo
Hebreu, pois serão estas pessoas (hapirus) que darão formatação ao povo de Israel; conferir PIXLEY,
Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986, p. 19ss. Segundo Albrecht
ALT, “Na linguagem jurídica, ela aparece sobretudo como designação para a pessoa que se vende
como escrava para pagar uma dívida”; cf. ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do
Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 193s.
25
PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986, p. 19ss.
26
PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986, p. 21ss.
27
PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986, p. 23ss.

19
propriedades, cercas, escravidão, endividamento, exército e trabalho quase escravo.
Quando os hapirus chegaram e se confrontaram com este panorama social,
aguçaram-se as diferenças.
A chegada do grupo hebreu (hapiru) deu ao movimento
uma consciência política e social cujo eixo era a confissão de
que Javé era seu único rei. As leis do Sinai (Decálogo) foram
dando coerência ao movimento israelita e uma consciência de
sua diferença dos “cananeus” que habitavam as cidades do
país, que viviam sujeitos a reis humanos e que tinham Baal por
Deus. [...] O relato do êxodo e sua confissão de fé em Javé foi
dando solidez à sua consciência de diferenciação dos
habitantes dos vales e das cidades. Eles eram o povo de Javé
e não tinham reis “como todas as nações”.28 (grifou-se)
No processo de desmistificação do texto bíblico, veremos que Deus não
escreveu os Mandamentos, como mostra as espetaculares imagens
cinematográficas de Hollywood, no premiado filme “Os Dez Mandamentos” (The Ten
Commandments), com Charlton Heston, de 1956. Tanto no texto bíblico quanto no
filme, Deus escreve com fogo, sobre a Montanha do Sinai, os Dez Mandamentos,
forjando-os na pedra, e os entrega ao povo como legislativo divino. Mas numa
análise hermenêutica sociológica, percebe-se que os Dez Mandamentos foram
surgindo paulatinamente, a partir de experiências sofridas. Seus autores são vários,
mas sua condição existencial era a mesma: a da pobreza e marginalização.
Por isto, apresentar a opção pelos pobres como uma base teórica
complementar não é um prejuízo por parte do autor deste trabalho de conclusão,
mas uma necessidade hermenêutica para entendermos o sentido primordial do
códice bíblico. Para nos aproximarmos o mais possível da origem intencional dos
mandamentos é pressuposto conhecer o autor (ou autores) e sua realidade
socioeconômica, pois é este horizonte existencial que vai auxiliar nosso
entendimento em torno dos Dez Mandamentos e seu significado político e jurídico.
A opção pelos pobres também encontra seu fundamento jurídico nas
formulações posteriores do Direito Romano, que serve de base para as construções
jurídicas contemporâneas. Referimo-nos ao princípio "in dubio pro misero"29. Este
aporte pode oferecer um vislumbre sobre uma forma de influência do Decálogo
sobre a história jurídica ocidental: uma sociedade que desenvolve uma percepção
em favor do pobre, tingindo suas leis com este valor e repassando-as

28
PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986, p. 44.
29
DIREITO do trabalho no Brasil. Wikipédia. [S.l.], 6 de novembro de 2012. [Online]. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_do_trabalho_no_Brasil>. Acesso em: 11 nov. 2012.

20
subsequentemente a outras culturas com quem mantém relações comerciais e
diplomáticas; e mesmo constitutivas de seu status quo, ao nos referirmos a posterior
referência do Direito Romano na formação ocidental como um todo.
Concluindo, o marco teórico deste trabalho vai fazer uso 1) da hermenêutica
de GADAMER, para explicar o processo de acobertamento moral sobre o texto
jurídico do Decálogo, além de aportar elementos básicos de uma hermenêutica
capaz de destituí-los deste manto religioso, ressaltando suas características
políticas; 2) do método histórico-crítico como instrumento hermenêutico sociológico
mor no que se refere à interpretação de textos religiosos; 3) da opção dos pobres,
como perspectiva existencial, a partir do fato da autoria dos mandamentos ter como
sujeitos, os hapirus (hebreus).

1.2 O CONTEXTO HISTÓRICO

Para realizar esta tarefa de desmitificar o Decálogo de sua roupagem


religiosa moral, escrita pela própria divindade hebraica, pretende-se neste ponto,
apresentar dados de pesquisas veterotestamentárias que apontam que a formação
dos Dez Mandamentos se deu após a formação paulatina das 12 tribos de Israel,
pelo fim do segundo milênio a.C. Como veremos no ponto 1.5.2, o Decálogo foi
confeccionado somente no século VII a.C., mas sua existência se deve ao
surgimento social das 12 tribos de Israel. Por isto, a seguir, será tratado sobre o
surgimento deste sistema tribal. Para entender a formação dessas tribos é
importante conhecer a história que antecede sua formação. É uma história de
interesses econômicos, políticos e de subjugação humana.
Segundo estudos da história antiga, o Império Egípcio mantinha baixo seu
domínio, a região de Canaã até o século XII a.C., hoje conhecida como Palestina. A
importância desta região reside na sua localização estratégica: a terra da palestina
era uma passagem comercial. Por ela se intermediava o comércio internacional.
Canaã era a intersecção entre três grandes continentes: Ásia, Europa e África.
Quem dominasse este pedaço estreito de terra teria a oportunidade de cobrar os
impostos aduaneiros. Portanto, Canaã, mesmo sendo pequeno e desértico,
representava ser um território econômico e estrategicamente importante para os

21
povos da região. Por esta razão, muitas nações como os Huritas, os Egípcios, os
Assírios, os Babilônios, os Persas, os Gregos e os Romanos procuravam manter aí
seu domínio. As rotas comerciais da região proporcionavam muitas riquezas. 30
Na época do domínio egípcio, Canaã era povoada por cananeus. Sua
organização socioeconômica era estruturada por cidades-estado. Estas cidades-
estado eram autônomas entre si, mas dependentes do Império Egípcio. Os egípcios
permitiam que as cidades-estado dominassem a região em troca de altos tributos. As
cidades-estado logravam pagar estes tributos por que tinham duas fontes de
dinheiro: primeiramente, controle e exploração das rotas comercais internacionais; a
segunda fonte provinha da produção agrícola. As cidades-estado tinham controle de
grandes extensões de terra ao redor de seus muros, as quais eram habitadas por
campesinos que trabalhavam a terra, tirando dela os produtos agrícolas. Os
campesinos não possuíam as terras. Os proprietários eram os reis das cidades-
estado. Os campesinos arrendavam as terras, pagando tributos (parte das colheitas)
pelo uso das mesmas. Era um tipo de feudalismo cananeu, uma relação de trabalho
conhecida como corveia. Assim, o campesino trabalhava para pagar o faraó e o rei
da cidade-estado.31
Esta descrição geral da política econômica da região oferece uma ideia de
como os tributos eram sempre altos e de como estes tributos fomentavam um
processo de paupérie da população campesina e, por consequência, constantes
revoltas. Muitos campesinos se encontravam endividados a ponto de se tornarem
escravos, trabalhando sem pagamento e sem direitos. A escravidão era uma forma
de saldar as dívidas. Primeiro os filhos eram entregues à escravidão para saldar as
dívidas; depois a esposa, caso a situação econômica não se reverte-se; por fim, o
próprio campesino. A outra forma de resolução da dívida era mediante a revolta.
Muitos decidiam por esta forma de resistência, fugindo das terras agrícolas e
refugiando-se nas montanhas, onde formavam bandos marginais que vez ou outra
enfrentavam os exércitos das cidades-estado, guerreando contra seu domínio. 32
Para manter a paz na região, os egípcios esperavam que os pequenos
exércitos cananeus, dos reis das cidades-estado, lograssem abafar qualquer revolta

30
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
25-34.
31
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
40-50.
32
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
51-54.

22
campesina. Isto fazia parte do acordo entre os reis das cidades-estado cananeus e o
Faraó. Se, porém, os exércitos regionais não conseguissem realizar a vitória sobre
determinada revolta campesina, então o Faraó mesmo intervinha, enviando algumas
tropas egípcias para assegurar a soberania e a exploração do território cananeu.
Claro que os reis das pequenas cidades-estado gostavam de tal intervenção. A
resistência não vinha deles, mas sim do campo. Os únicos que saiam perdendo
eram os campesinos que necessitavam pagar dois tipos de impostos, sendo
explorados (corvéia), escravizados e, por fim, levados a revoltas e a lutar contra
exércitos bem preparados, sem lograr, contudo, sucesso significativos neste período
anterior ao século XII a.C.33
A política e a economia deste período estabeleciam uma distribuição
desproporcional das riquezas, destituindo os direitos da população campesina,
fazendo-lhes nascer o sentido de que se tratavam de disposições injustas. Os
egípcios ganhavam muita riqueza de toda esta situação; a corte das cidades-estado
também lucrava outra parte considerável. Os únicos que penavam eram os
campesinos que procuravam uma solução final para toda esta forma de exploração.
Como mencionado anteriormente, havia duas alternativas não muito seguras: i. a
escravatura como forma de pagamento da dívida; ii. e a fuga das terras agrícolas,
controladas pelas cidades-estado, lutando mediante grupos organizados de
fugitivos, que ocasionalmente faziam incursões rápidas e locais, roubando as
colheitas (para auto sustento), trazendo prejuízos para a economia das cidades-
estado. Como as cidades-estado se localizavam nas planícies de Canaã, na sua
parte costeira, estes grupos organizados se refugiavam nas montanhas, local de
difícil acesso ao exército dos reis cananeus, pelo fato do cavalo e da biga do rei,
força bélica da época, não lograrem subir encosta acima. A biga era um instrumento
de guerra da planície, não da montanha. As montanhas não eram habitadas na
época anterior ao século XII a.C. pela dificuldade de se plantar sobre as mesmas.
Por isto, não eram do interesse das cidades-estado. 34
Ao final do XIII a.C., o poder egípcio decresce na região, e os cananeus se
veem livres dele. Isto trouxe esperança para os reis das cidades-estado de se
tornarem os novos donos de toda a Canaã. Cada qual começa a se armar contra os

33
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
40-46, 57.
34
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
59, 63-67.

23
reis vizinhos. Com a retirada do poder egípcio, Canaã se transforma num campo de
lutas, agora entre os pequenos reis que rivalizavam pelo poder sobre toda a
Palestina. Isto implicou num aumento dos impostos sobre o campesinato para
manter os exércitos, aumentando a proliferação de fugitivos às montanhas da
região, incrementando os bandos de guerrilheiros já existentes. 35
Estas pessoas espalhadas por toda região de Canaã e derredores eram
conhecidas como hapirus. O termo hapiru nomeia um grupo político, social e
econômico extenso e diversificado em toda esta região anterior ao século X a.C. A
investigação sociológica identifica a partir deste termo grupos sociais ou pessoas
que perderam seu status socioeconômico e decidiram viver à margem da sociedade
vigente36. Encontram-se grupos sociais denominados hapirus tais como prisioneiros
de guerra37, como proscritos38 (ladrões, rebeldes), como organização de bandos
armados39. Como se nota, o termo hapiru não designa exatamente um grupo étnico,
senão um grupo social heterogêneo, mas com um estado jurídico-social peculiar:
são pessoas consideradas apartadas da sociedade civilmente organizada da época.
É um termo pejorativo, pois ser considerado um hapiru era ofensivo em alguns
círculos sociais. Eram os economicamente empobrecidos, os sem privilégios, os
destituídos de quaisquer direitos políticos. 40

1.3 OS HAPIRUS

Contudo, são exatamente estes hapirus os responsáveis pela formação de


uma sociedade alternativa, sobre as montanhas de Canaã. Procurando solucionar
seu dilema sócio jurídico, estes hapirus lograram criar, à parte da sociedade de reis
e impérios, uma sociedade que satisfizesse suas ansiedades e que fizesse frente às
35
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
59-62.
36
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 410.
37
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 410s.
38
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 223, 412s, 482s.
39
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 412s, 426s, 428-432, 489s.
40
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 223, 402, 415s.

24
injustiças presentes nos poderes de então. São os hapirus, enfim, que, para esta
criação societária, desenvolveram leis que erigiram e deram forma a esta sociedade
personificada por doze tribos. Estas leis, em sua maioria existente na tradição oral,
vão fomentar mais tarde o surgimento do Decálogo. A seguir, queremos desenvolver
esta ideia mediante dados históricos e sociológicos, demonstrando como se deu a
formação do povo hebreu 41, nome etimologicamente oriundo da terminologia hapiru,
como nação (Israel - termo teológico) e como esta formação social sui generis deu
origem à constituição política e jurídica do Decálogo.
Com a queda do domínio egípcio sobre os territórios de Canaã, depois do
século XII a.C., as cidades-estado começaram, como mencionado acima, a lutar
pela supremacia da região. Com a ausência dos egípcios e de qualquer outra
potência que reclamasse sua vez, os reis cananeus aumentaram o processo de
pauperização, devido à demanda de mais impostos para alimentar suas guerras
particulares. Nunca o número de hapirus foi tão grande quanto neste período. Tal
contingente de foragidos e escravos fugitivos se dirigia diretamente para as
montanhas, aumentando consequentemente os grupos de refugiados aí presentes.
Nas montanhas, neste período, havia matas. Isto trazia uma nova possibilidade de
vida, além dos ataques incursionados nas planícies, assaltando as colheitas dos
reis. Contudo, foi neste meio montanhês que surgiu pouco a pouco uma organização
social que, com a ausência de uma potência estrangeira controlando a região, inicia
a ensaiar uma forma alternativa de organização política socioeconômica: os hebreus
(hapiru) ou posteriormente, os israelitas.42
Nestas circunstâncias, as montanhas viabilizaram algo
verdadeiramente novo a partir do final do 13º século. O
assentamento gradativo de camponeses, foragidos do
feudalismo cananeu das planícies, nas novas terras da
montanha desencadeou um novo processo na palestina, sob
novas condições do início da era do ferro, da fuga maciça de
camponeses da planície devido à desintegração do sistema
das cidades-estado em guerra fratricida após a retirada dos
egípcios, e da difusão do uso da cisterna. A ocupação das
montanhas a partir do final do 13º século determinou, durante
séculos, a história da Terra de Canaã.43

41
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 409, 415.
42
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 68-80.
43
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
57.

25
A tradição bíblica relata que a formação do povo israelita se deu a partir da
tradição mosaica, ou seja, que os hebreus (hapirus) que fugiram da escravidão do
Egito, depois de uma travessia do deserto do Sinai, invadiram as terras dos
cananeus e filisteus, conquistando mediante guerras a “terra que mana leite e mel”.
É a teoria da “invasão”44. Há, contudo, uma segunda teoria que defende que os
grupos que vieram do Egito conquistaram a terra de Canaã não tanto mediante
guerras, senão por infiltração gradual 45. Hoje em dia, a investigação
veterotestamentária já logra perceber uma terceira teoria a respeito da formação do
povo de Israel. Ela propõe que a formação de Israel se deu a partir de diferentes
grupos de hapirus (foragidos, bandos de ladrões, escravos fugitivos, etc), de
diferentes tradições (abraâmica, cananeia, mosaica, sinaítica). Nesta teoria, todas
estas tradições que fomentaram o surgimento de Israel eram formadas por
contingentes de hapirus46. Na realidade, a história que se encontra nas páginas da
Bíblia é uma compilação posterior, elaborada pelos sacerdotes israelitas (durante o
período do reinado de Israel – século X a.C.), responsáveis por oferecer uma história
passada de sua nação com coesão e linearidade 47.
A pesquisa sociológica pode identificar quatro grupos sociais diversos, com
tradições (teológicas) distintas, com experiências de sofrimento díspares, mas todos
com um mesmo status jurídico: eram considerados hapirus.
A) Grupo Abrâmico – O primeiro grupo que fomentou a formação das 12
tribos e posteriormente o povo de Israel é o grupo denominado abrâmico, que desde
o século XV a.C., provenientes das terras babilônicas, fugindo da opressão deste
povo, acabou se infiltrando nas montanhas de Canaã pela parte norte. Eles não
viviam nas cercanias das cidades-estado, mas distantes, nas montanhas: “A cidade
era vista basicamente de modo negativo”48. Portanto, não são nem cidadãos de
cidades, nem camponeses que se fixam em determinado lugar. Eram seminômades,

44
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 202ss.
45
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 214ss.
46
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 220ss.
47
BEATO, Joaquim. O Pacto de Moisés e o Pacto de Davi – os dois círculos de tradição do Antigo
Testamento. In: SCHWANTES, Milton. Tradição Mosaica. Traí: Cadernos do Povo – PU, 1981, p. 5ss.
Conferir também SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora
Sinodal, 1984, p. 80. GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião
de Israel liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 13.
48
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
86.

26
criadores de animais de pequeno porte (cabras, ovelhas, etc), marcados tanto pela
transmigração, quanto por transumância constante 49. Sua constituição social é a da
família ou o clã, uma grandeza social auto-suficiente e autárquica 50. Eles são
econômica e juridicamente autônomos51. Estas duas últimas características são
importantes, pois influenciará particularmente a formação estatal das 12 tribos, tendo
como base legal, o Primeiro e Quarto Mandamentos.
B) Grupo Cananeu – São os camponeses sedentários, vivendo nas
cercanias das cidades-estado, trabalhando sob o regime da corveia, explorados a
ponto de fugirem para as montanhas, como já relatado anteriormente. Sua
experiência de sofrimento no trabalho, sem tempo para descanso, onde a terra não
lhes pertencia e onde os reis dominavam mediante leis consideradas por eles como
injustas, é semelhante à experiência das pessoas que se infiltraram pelo sul, vindos
das terras do Egito.
C) Grupo Mosaico – Por mais que a história bíblica nos relate que Moisés
tenha trazido um grupo de foragidos do Egito, a pesquisa mais recente indica que a
infiltração dos grupos oriundos do Egito não foi única, mas inúmeras, durante um
período de duzentos anos. Várias levas de hapirus insatisfeitos fugiam, através de
pequenos grupos, do Egito para outras oportunidades de trabalho e de vida mais
dignos52.
Estas pessoas são camponeses que viviam e trabalhavam nas margens do
rio Nilo, terra fértil, mas que foram cooptados pelo Faraó para a construção da nova
capital de Ramsés II (1290-1224) no delta. A partir das condições inumanas, o
conflito eclode, fomentado pelo sistema familiar destas pessoas. O conflito fez surgir
uma organização como força oposta ao Faraó. Moisés, por exemplo, é um exemplo
de líder que nasce a partir destas resistências organizadas junto às obras. Como as
reivindicações destes grupos organizados não eram aceitas pelo Faraó, uma das
soluções encontradas era a fuga.53

49
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
81ss, 89.
50
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
93.
51
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
94.
52
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
121.
53
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984,
p.138ss.

27
A insatisfação generalizada pode ser apurada nos relatos bíblicos, onde é dito
que trabalhavam forçosamente nas construções faraônicas, cabendo-lhes construir e
fazer tijolos:
São “oprimidos” (Êx 1.11s; 3.7; Dt 26.6s), “escravizados” (Êx
1.13s; 2.23; 5.9; 6.5; Dt 6.21; 26.6), “tiranizados” (Êx 1.13s),
“sobrecarregados” (Êx 6.6s), “amargurados em sua vida” (Êx
1.14). Realizam “trabalhos forçados” (Êx 1.11), são
“carregadores” (Êx 1.11, 6.6s); trabalham sob o comando de
feitores (Êx 1.11) e capatazes (Êx 5). Por isso, “gemem” e
“gritam” (Êx 2.23s; 3.7-9; 6.5; Dt 26.7) Em Êx 1.11-14 há um
verdadeiro catálogo da opressão faraônica.54
É daqui que surge o termo hapiru, pois sua origem é egípcia, “‘hebreu’ não
designa uma raça, mas aqueles setores sociais que, no feudalismo da época,
haviam sido espoliados, explorados e marginalizados” 55. Desta tradição surge a
característica da divindade que liberta da opressão! É o estigma de um Deus
libertador, promovendo libertação política, social e econômica, assim como aquele
que promove igualmente o surgimento de um novo status ao grupo socialmente
designado de Hebreu. Tanto que a divindade desses hapirus egípcios é denominado
Deus dos Hebreus, aqui no sentido de hapiru, ou seja, como o Deus dos espoliados
e daqueles considerados não pertencentes ao estado político e civil da época 56.
D) Grupo Sinaítico – Este grupo é muito importante para nosso trabalho,
pois são dele algumas características que usaremos para fundamentar os aspectos
jurídicos dos capítulos subsequentes. Uma dessas características é a de que o
nome da divindade é a de Javé. Javé é o nome da divindade da montanha, onde o
altar é erigido e onde os cultos são realizados. Uma divindade que preza pela
exclusividade, não admitindo qualquer outra concorrente 57. Esta montanha é
conhecida como a do Sinai, onde a historiografia ainda tem problemas para
determinar sua localização e até sua estrutura (alguns dizem poder ser um vulcão 58).
Outra característica é o aspecto jurídico deste grupo. Essas pessoas vão levar seu
cabedal legal para a formação das 12 Tribos. É daqui que as leis e instruções vão

54
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
118.
55
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
121.
56
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
123ss.
57
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
158.
58
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
148ss.

28
formar a Torá, o livro das leis, a partir das quais a sociedade alternativa das 12
Tribos vai se estruturar juridicamente59. Este grupo social é oriundo do sul das terras
de Canaã. Não são cananeus, nem campesinos, mas criadores de gado pequeno, a
exemplo dos da tradição abrâmica. Mas a divindade do Sinai é localizada, ao
contrário das divindades dos pais, no grupo abrâmico, que caminha junto com seu
povo, onde quer que se dirijam, em suas migrações sazonais 60. Daí o surgimento do
Primeiro Mandamento, não admitindo outros deuses diante dele. Nem o deus dos
cananeu, nem o paterno (abrâmico) apresentam tal característica. 61
Este grupo é composto por pessoas também consideradas como hapirus,
que viviam nas cercanias do Monte Horebe, segundo algumas tradições, mas que
perderam suas terras de pastoreio para latifundiários da região ao sul da Península
do Sinai. São beduínos, pequenos pastores, que precisam procurar por novos
pastos. Sua peregrinação os leva para o norte, para as terras de Canaã, assim como
o foi com o grupo mosaico.62
Em conclusão, estes diferentes grupos sociais (cananeu, abrâmico, mosaico
e sinaíticos), além de outros que não foram preservados pela memória israelita, se
fundiram num determinado momento da história da formação de Israel ocorrido entre
os séculos XV e XI a.C. Destes diferentes grupos de hapirus surgiram as 12 Tribos
de Israel. A partir das diferentes histórias e tradições, surge uma única tradição e
história, mediante o amálgama das características representativas de cada tradição.
GOTTWALD escreve: “Todos os [...] grupos tinham interesses básicos em conservar
sua autonomia que os punha em conflito com a cidade-estado, criando com isso as
condições objetivas para ação cooperativa episódica ou mais duradoura de uns com
os outros”.63

59
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
145s.
60
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
156.
61
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
158.
62
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
160s.
63
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 482.

29
1.4 A FORMAÇÃO DAS TRIBOS DE ISRAEL

Este ponto é importante para a nossa pesquisa, pois desvela as


características desta organização social, da qual nascerá o Decálogo. Ao contrário
do que descreve o Pentateuco, a formação do Decálogo surge trezentos anos
depois deste evento histórico, ou seja, o da organização social das 12 Tribos de
Israel. Veremos isto no ponto subsequente (1.5). Por ora, basta que voltemos nosso
olhar para as características desta sociedade sui generis, com o objetivo de
entender, a posteriori, em que contexto nasceu o Decálogo, e a partir de quê
necessidades. O sistema tribal de Israel surgiu como uma organização social
identificável historicamente ao redor de 1.250 a.C. e se manteve assim por 200
anos, ou seja, até 1.050 a.C. Como mencionado anteriormente, as migrações
sucessivas de hapirus para as montanhas de Canaã fomentaram o surgimento de
uma nação cultural própria e singular. Neste amalgama de diferentes culturas
(abrâmica, sinaítica, cananeu, mosaico e outros) surge uma organização social
estruturadas em 12 Tribos, que perdura por duzentos anos. 64
Essa união foi possível, pois todos esses diferentes grupos tinham alguns
pontos em comum: 1º) Todos eram hapirus, ou seja, todos possuíam uma mesma
condição socioeconômica, por serem os excluídos; 2º) Todos lutaram contra
cidades-estado; 3º) todos realizaram uma fuga de libertação (peregrinação),
concluindo-a nas montanhas de Canaã; 4º) todos tinham uma forte cultura religiosa,
a partir de uma divindade que liberta da opressão. 65 Assim, a despeito de suas
diferentes origens e tradições, estes pontos fizeram com que desenvolvessem
objetivos comuns: “viver livre da opressão, na fraternidade, respeitando-se nas
diferenças que não comprometiam a unidade do novo projeto, mas também optando
conjuntamente por aspectos essenciais para a sobrevivência da experiência
alternativa que estava nascendo”.66
Esta união de diferentes grupos, mas com experiências semelhantes de vida,
gestou a formação de uma sociedade tribal. Cada tribo tinha uma origem histórica,

64
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 496ss.
65
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 63s.
66
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 64.

30
cultural e religiosa própria e desconexa uma das outras; contudo, elas eram
articuladas entre si a partir de alianças para a autopreservação. Estes pactos eram
ratificados e fortalecidos em reuniões periódicas chamadas de assembleias (ex.:
Assembleia de Siquém), as quais reuniam representantes das diferentes tribos.
Cada tribo realizava, contudo, suas próprias assembleias, pois cada tribo era
composta por vários clãs (associações protetoras de famílias) e estes, por sua vez,
eram compostos por aproximadamente 50 famílias. A própria família também era
composta por um número de mais ou menos 50 pessoas, desde esposos, filhos e
parentes próximos.67 Ou seja, várias famílias formavam um clã, vários clãs formavam
uma tribo e a união final de todas as tribos era conhecida como confederação.68
Nos subcapítulos a seguir, pontuar-se-á as características principais que
constituíram a união desses grupos, união a princípio aleatória, mas que redundou
na formação de uma forma de governo sui generis, sociedade tribal, e na elaboração
de leis igualmente peculiares, que redundaram a posteriori, na elaboração do
Decálogo.

1.4.1 Solidariedade econômica

A experiência que os hapirus obtiveram durante o período de opressão lhes


ensinou que os reis, tanto egípcios, quanto cananeus, e os latifundiários da
península do Sinai e da Babilônia, desenvolviam um sistema econômico baseado na
acumulação de riquezas nas mãos de poucos. Como na corveia, os tributos eram
exorbitantes, levando o camponês à escravidão. A partir destas experiências, a nova
sociedade tribal desenvolveu outro sistema econômico. A terra, que antes era de
propriedade do rei ou do latifundiário, agora é declarada propriedade de Deus, não
podendo ser vendida, nem comprada. Podia ser usada. Se pertence a Deus, todos
podem partilhá-la. Leis específicas foram elaboradas para assegurar que cada tribo
tivesse direito a uma cota de terra para plantar e colher o suficiente para os seus,

67
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 67.
68
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 336ss.

31
sem, entretanto, almejar o acúmulo. Quando isto ocorria, se proporcionavam festas
para que fosse eliminado o excedente.69
O modo de produção tribal ou comunitário caracteriza-
se pela ausência de propriedade particular. O meio de
produção é coletivo. A terra na sociedade campesina, as
pastagens e os rebanhos na sociedade pastoril, são
propriedades do clã ou da tribo, em suma de toda a
comunidade. A única condição para o uso dos meios de
produção e para o acesso ao produto social é que se pertença
à comunidade. A apropriação do produto se dá em base
igualitária. Em havendo excesso de produção, este é
consumido em festas. Tenta-se, assim, evitar a possibilidade de
seu acúmulo por parte de indivíduos ou grupos. Intercâmbios
comerciais são absolutamente inexistentes; há apenas um
sistema de troca interno; a divisão do trabalho acontece por
idade e sexo. As questões político-jurídicas são decididas em
assembleias, nas quais a autoridade cabe aos anciãos do
grupo em questão. As lideranças têm caráter emergencial. Não
se apresenta ainda uma estrutura de classe.70
Esta experiência tribal posteriormente influenciará a releitura do êxodo
mosaico, na qual o maná que cai do céu no deserto não podia ser acumulado para o
dia seguinte (Êxodo 16.16-19). O acúmulo de bens é proibido, fomentando destarte
uma sociedade economicamente igualitária, na sua forma de produção. Ao invés do
acúmulo, a partilha é a característica básica na economia desta sociedade tribal
insipiente. Para evitar um desequilíbrio social, havia também o ano sabático e o ano
jubilar, quando então todas as dívidas eram perdoadas, eliminando que alguns
lograssem acumular mais que outros. O objetivo deste ideal era evitar que houvesse
pobres em seu meio (Deuteronômio 15.4).71 Esta última característica será
importante quando tratarmos sobre o Terceiro Mandamento.

1.4.2 Poder partilhado

Na experiência que antecedeu à fuga de seus locais originários, os


diferentes hapirus conheceram a forma de poder centralizado nas mãos do rei. Esta
69
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 70s.
70
DREHER, Carlos A. A Formação Social do Israel Pré-Estatal. 3. ed. São Leopoldo: CEBI, 2002, p.
33.
71
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 71s.

32
centralização tornava-se absoluta e tirânica. A religião do palácio legitimava o rei e
sua autoridade exclusiva. Esta experiência forjou, na mente e na alma deste povo, a
necessidade de criar uma forma de poder completamente distinta, uma que não
legitimasse, nem oportunizasse uma mesma tirania. A forma encontrada pela
sociedade tribal é a da subsidiariedade: o q ue pode ser decidido na base não
deve ser levado para uma instância superior. Os chefes de família tinham autonomia
de decisão dentro de suas respectivas famílias ou comunidades. O que podia ser
decidido no espaço do clã, não devia ser levado para o representante da tribo. E o
que podia ser decidido dentro da tribo, não subia para a confederação. Por outro
lado, havia o princípio da solidariedade, que evitava o monopólio e isolamento das
famílias ou clãs em si mesmos. As famílias tinham obrigação com o clã e os clãs
tinham obrigações com a tribo. Tudo regulado por leis. 72
Para este processo funcionar, houve uma forte ruptura com a estrutura
cananéia, predominante na região. Na sociedade tribal não existia rei (Deus é o rei),
nem palácio, nem burocratização hierarquizada. Era um sistema patriarcal e estava
nas mãos dos anciões, líderes com bastante experiência de vida, presentes nos
espaços decisórios nas famílias, clãs e tribos (por mais que algumas mulheres
obtivessem espaço de liderança). Havia leis que balizavam a autoridade destes
líderes, impedindo-os de se tornarem opressores. Por exemplo, o líder devia ser
irmão do povo (Dt 17.15); não devia ter exército grande, nem levar o povo de volta à
escravidão, como no Egito (Dt 17.16); não podia ter harém com muitas mulheres,
nem seguir outros deuses (Dt 17.17a); não podia ter muitas riquezas (Dt 17.17b); e,
devia seguir a lei de Deus (Dt 17.18ss).73
As decisões eram tomadas em assembleias populares e não por grupos
seletos. Esta característica de poder descentralizado vai influenciar a releitura do
êxodo mosaico, ao escrever a história da descentralização das tarefas de Moisés,
em Êxodo 18.1-27. O projeto igualitário não surge do nada, mas a partir de uma
prática estruturalmente social, a ponto de até estrangeiros poderem dar sua opinião.
Este poder partilhado será perdido quando o reinado de Davi e de Salomão lograrem
trazer para uma só família o poder decisório, dando origem a palácios, exércitos e

72
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 333ss.
73
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 72s.

33
impostos para manter toda esta estrutura de reinado (ponto 1.5.1). 74 Regressaremos
a esta característica do poder partilhado, tendo Deus como rei, em nosso segundo
capítulo, quando tratarmos do Primeiro Mandamento.

1.4.3 Leis a serviço da vida

Como mencionado nas características anteriores, a lei se fez presente para


estabelecer a estrutura da sociedade tribal, segundo parâmetros próprios, contrários
às leis existentes nas cidades-estado. Nestas, a lei estava centrada no desejo do rei
e de sua corte. O suborno era praxe no meio da corte, favorecendo quem mais
possuía bens e/ou poder político. As leis que defendem o novo sistema tribal, ao
contrário, procuravam proporcionar um sistema mais igualitário. Por exemplo, havia
leis que impediam a alienação de terras de uma família por outra; assim se
procurava defender as comunidades mais débeis contra a cobiça de outras. Era uma
lei que se baseava não na força do exército que coíbe, mas no compromisso de
cada um, de cada família, clã e tribo com o novo projeto social nascente nas
montanhas de Canaã.75 Este compromisso era sustentado e alimentado pela fé num
Deus (aliança/contrato), que com o tempo se consolidou na figura de Yahweh (Javé),
dentre as tantas divindades trazidas pelos diferentes grupos de hapirus.76

A panóplia de domínios, dos quais são extraídos títulos e imagens da


divindade por todo o antigo Oriente Próximo, é o mesmo repertório básico
de que Israel se utiliza. Em Israel, no entanto, há uma diminuição decidida
de analogias a começar da natureza e também uma concentração enfática
de analogias nos domínios histórico e social, com especial focalização na
divindade líder, governante e defensor de seu povo. Yahweh, enquanto o
nome próprio do Deus de Israel, acentua o papel ativo da divindade como
guerreiro-líder em trazer à existência uma sociedade intertribal característica
e em defendê-la contra ataque externo. Porém, o fato de este Yahweh ser
equiparado a El, com efeito, é comumente intitulado Yahweh ’Elohe Yisra’el
(Yahweh, o Deus de Israel), coloca a ação iniciadora histórico-social do
Deus contra o fundo do seu papel primordial geral como o poderoso, o
criador de tudo quanto existe, o líder e governante paternal das
comunidades humanas.77
74
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 358ss.
75
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 74ss.
76
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 681ss.
77
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 684.

34
Esta fé religiosa era igualmente uma característica dos diferentes grupos de
hapirus. Uma fé numa divindade que liberta de sistemas sociais com um modo de
opressão escravocrata. A despeito da existência de diferentes divindades, duas se
mantiveram por longa data: Yahweh (Javé) e El (Elohim). Posteriormente, vigou
apenas a figura de Javé. Independente desta filtragem paulatina na esfera teológica,
o importante é apontar que as leis durante este período tribal eram seguidas a partir
de uma aliança entre o povo (tribos, clãs e famílias) com esta divindade paraestatal.
Ela se tornou o poder agregador e normativo da sociedade tribal.78
Na época das 12 Tribos não havia lei escrita. As leis presentes no Pentateuco
foram escritas durante a época do primeiro reinado (século X a.C.), assim como
antes e depois do exílio babilônico (século V a.C.). O próprio Decálogo também se
constituiu posteriormente, como veremos no ponto 1.5.2. O que importa aqui é
verificarmos que as leis tribais estavam a serviço da vida igualitária e libertária, não
permitindo que a sociedade promovesse a escravidão, por exemplo. 79 Para tanto,
havia juízes, não como os concebemos atualmente, segundo o sistema jurídico
brasileiro. Eram pessoas que “julgavam as questões do povo, zelando pela
observância das leis tribais. Eram eles os administradores da justiça.” 80 Uma lista de
nomes deste juízes pode ser encontrada no texto bíblico de Juízes, tanto no capítulo
10.1-5, quanto no 12.8-15.

1.4.4 Fé no Deus libertador

Como já aludido no ponto anterior, a união de diferentes linhas teológicas


fundiu várias destas tradições religiosas numa só teologia, resultando num só Deus.
Isto foi possível, já que as diferentes divindades compartilhavam de uma mesma
característica: eram forças libertadoras e comprometidas com grupos sociais tidos
como hapirus. A religião se torna o esteio da sociedade tribal; a crença num único
Deus, doador de vida e liberdade (Êxodo 3). Claro que o amálgama teológico não se

78
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 689s.
79
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 75.
80
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 75.

35
deu facilmente. Houve um esforço para a superação do politeísmo. Há textos
bíblicos que ressaltam constantemente esta resistência dos grupos minoritários
diante das propostas dos grupos mais fortes (Ex 20.2-11; Josué 24.1-15). Neste
texto de Josué, que retrata a Assembleia de Siquém, é possível perceber a menção
das diferentes tradições (mosaica [v. 5-7], patriarcais [v. 3-4], cananéia [v. 9-13] e
sinaítica [v. 7c]), às quais é exortado que abandonem suas antigas tradições (ex.:
deuses dos pais) para serem fiéis apenas à Yahweh ’Elohe Yisra’el (Yahweh, o Deus
de Israel), título (v. 2) que representaria, a partir daquela data, todas as outras
divindades. A despeito deste esforço, o politeísmo continuou a se fazer presente no
meio israelita por séculos.81
No panteão das divindades das cidades-estado, a hierarquia dos deuses
espelhava a hierarquia do poder do reinado. Havia o deus que mandava nos deuses
menores e mais fracos, assim como o rei detinha o poder sobre os demais
componentes da sociedade, estruturada em hierarquia. A religião da cidade-estado
legitimava o poder do rei. A religião nascente israelita desestrutura a hierarquia dos
deuses ao insistir na devoção a um único Deus, levando, consequentemente, à
desconstrução da estratificação do poder social em classes, entregando-o nas mãos
do povo tribal. Se Deus é um só, então todos são iguais entre si, e ninguém pode se
arrojar ser mais do que o outro. Por isto, a fé num único Deus carrega em seu bojo
este princípio libertador de toda forma de discriminação social e racial. Se o projeto
social tribal é solidário, então basta a existência de um só Deus. Caso contrário, o
mais rico insistirá em ter deuses que o representem de melhor maneira do que o
deus do pobre. É necessária a distinção teológica para que o rico seja considerado
especial, distinto do hapiru.82

Por todas as partes no antigo Oriente Próximo, as cartas religioso-políticas


cósmicas da vida social refletiam e legitimavam submissão ao mundo
estratificado de desigualdade de classe, à dependência dos muitos aos
poucos quanto à manutenção física e à identidade humana. A carta da
aliança do primitivo Israel espelhava e legitimava compromisso na luta rumo
à “desestratificação” propositada do mundo humano, à elevação de todos os
israelitas ao status de produtores livres – tanto das suas vidas físicas como
das suas identidades religioso-culturais. Israel não só “recebeu de volta” um
mundo como também “encheu novamente” um mundo com as realidades e
os significados de seres humanos livres e iguais.83
81
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 84.
82
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 702s.
83
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 702.

36
Esta declaração de GOTTWALD vai ao encontro deste trabalho acadêmico,
pois evidencia a importância deste evento histórico para a formação de uma
consciência social mais democrática, igualitária e livre. Um ideal que nasce a partir
de experiências bem concretas sob o domínio de sistemas com um modo de
produção não igualitário e não livre. Traços destas experiências, por exemplo,
podem ser encontrados em Êxodo 15.1-21, Samuel 2.1-10 e Josué 5.1-32. Estes
três textos contam três cânticos de vitória, alcançadas pela ajuda de Deus. Mostram
o alcance da fé em um único Deus para a derrubada de sistemas escravocratas dos
reis de Canaã; mostram também que esta mesma fé deu origem à criação de uma
sociedade igualitária.84
Quando a Bíblia expressa a existência de um só Deus não está transmitindo
a ideia da unicidade numérica, senão na exclusividade deste Deus. Este Deus
(Yahweh ’Elohe Yisra’el) é distinto dos demais deuses, pois ele não legitima a
opressão e a exploração do trabalhador (campesino ou pastoril); pelo contrário, sua
distinção está no fato dele organizar uma sociedade liberta, desenvolvendo entre os
hapirus uma convivência fraterna e igualitária. Este Deus se compromete com o
projeto social igualitário e o garante.85 Esta ideia é muito importante para este
trabalho, pois será a base para o segundo capítulo, ou seja, um único Deus que
garante a forma do sistema organizacional igualitário, assim como um Estado é
garantidor dos direitos de seus cidadãos.
E é com este Deus que os hapirus fazem uma aliança (contrato), se
comprometendo com o projeto libertário. Assim, ao se comprometerem com Yahweh
’Elohe Yisra’el, a família, clã e/ou tribo não teriam vida fácil, pois estariam lutando
contra outras formas de organização social que apoiavam modos de produção não
igualitários e libertários. Esta exclusividade de Deus para com seu povo, mediante a
aliança mosaica é descrita como uma relação entre noivos, onde Deus é tido como o
noivo e o povo dos hapirus, como a noiva. Com isto, Deus quer ser exclusivo e
aceita ser fiel a seu povo.86 Esta aliança mosaica será melhor trabalhada no segundo
84
Outros textos retratam o mesmo ideal: Isaías 40 a 55, escrito no tempo do cativeiro babilônico, faz
uma crítica ao sistema hierárquico babilônico, fazendo o povo exilado lembrar dos valores igualitários
e libertadores de Deus; Deuteronômio 1-11 traz uma apaixonada exortação para que o povo volte a
se comprometer com o único Deus e com sua lei. 1 Reis 18.1-46, onde é descrito uma luta entre o
único Deus e os falsos ídolos, entre Elias e os falsos profetas, os quais legitimavam um sistema
opressor dos reis de Canaã.
85
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 78s.
86
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 619.

37
capítulo, onde se pretende desvelar o sentido jurídico de um poder supra tribal,
garantidor do sistema organizacional, gestado nas montanhas de Canaã, entre
1.250 e 1.050 a.C.

1.4.5 Culto descentralizado

A religião, nas cidades-estado, estava sob o controle dos sacerdotes. Estes


pertenciam à corte do rei e, portanto, legitimavam-no. A religião mantinha e
solidificava o sistema feudal, escravocrata e hierárquico. Os cultos dos reis de
Canaã e do Egito eram dedicados aos ídolos, cultos nos quais eram narrados os
mitos da criação do mundo, possibilitando o acesso das pessoas aos deuses,
símbolos da estabilidade do status mantido pelos reis, alguns chamados filho de
deus (Ex.: Egito). Os mitos religiosos originários colocavam vassalos, súditos e os
reis em seus devidos lugares, ordenando assim a estratificação social e
solidificando-a.87 O mesmo ocorria no sistema tribal, mediante a religião insipiente no
único Deus, Yahweh, mas legitimando outras histórias, outro modo de produção e de
organização social. O culto em Israel seguia um ritual radicalmente distinto. Quando
o povo (hapiru/hebreu) se colocava diante do altar, de Yahweh, para celebrar sua
presença, as pessoas narravam histórias de libertação, fatos que provocaram a
mudança da escravidão para a liberdade de vida e de outro modo de produção
(Josué 24.17s). Assim, a religião também servia a este novo modo de produção
tribal, oportunizando acesso a Yahweh e ao ideário político nascente.88
O rito era responsabilidade de um grupo de sacerdotes chamados levitas, da
Tribo de Levi. Mas para que estes não pudessem sentir a tentação de dominar pela
ideologia religiosa os hapirus, havia uma lei que proibia que estes possuíssem
terras. Na distribuição das terras entre as tribos, a única que fica sem é a tribo dos
levitas, ou seja, a tribo sacerdotal. Com isto se evitava que esta tribo acumulasse
bens e terras; o sacerdócio deve servir ao povo em nome do único Deus. Em
contrapartida, as tribos restantes se comprometem a manter as famílias destes

87
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
57: “O templo não só é sede do rito, também é central tributária”.
88
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 570.

38
sacerdotes através do sistema do dízimo e através de uma parte dos sacrifícios,
como se pode verificar em alguns dos textos históricos. Em Números 18.20, é dito
que: “Na sua terra, herança nenhuma terás e, no meio deles, nenhuma porção terás.
Eu sou a tua porção e a tua herança no meio dos filhos de Israel”. No texto
subsequente é apregoada a obrigação do dízimo por parte das outras tribos.
Números 35.1-8 narra a possibilidade dos levitas morarem em algumas cidades,
mas as terras ao derredor das mesmas pertencem ao gado. Deuteronômio 18
igualmente faz tal proibição da posse de terra por parte dos sacerdotes, com a
promessa de viverem apenas de dízimos e de sacrifícios. Assim, a legislação bíblica
sobre os levitas é complexa, confusa e até meio contraditória, pois a princípio não
recebem terras, mas depois podem possuir cidades. 89
O importante nesta concepção de organização sacerdotal é que a terra
pertence a Deus e para que os teólogos não a usurpem, é traçada uma medida
legislativa para evitar tal processo de dominação ideológica. Como dito, no sistema
dos reinados de Canaã e do Egito, os sacerdotes eram ricos e latifundiários. Em
Israel, os levitas não podem possuir terras e são pobres. Esta concepção sobre a
tribo dos sacerdotes reflete a ordem do culto e do templo. O templo, por exemplo,
não se situava num único lugar, como na cidade, por exemplo, perto do palácio, para
onde todos deviam se dirigir. Assim ocorria nas cidades-estado. Em Israel, cada tribo
tinha um lugar de adoração, ou seja, na vizinhança de qualquer hapiru. Tampouco
estava o culto sob o poder dos sacerdotes (levitas), e sim sob o controle dos chefes
de famílias, clãs e/ou tribos. A famosa Arca da Aliança era o símbolo da presença de
Yahweh, no meio do povo. Um Deus que caminha com o povo e não exige que o
povo vá até ele. A Arca, assim diz a tradição hebraica, continha as tábuas com os
Dez Mandamentos, a Norma Constitucional, o contrato social entre o povo dos
hapirus e seu Deus, Yahweh, o Deus que liberta da opressão do Egito e que
caminha com o povo pelo deserto. A cada mês, o templo (uma grande tenda) era
desmontado e transportado pelos levitas até a próxima tribo. Assim, a presença de
Deus se fazia presente em cada tribo, mediante o trabalho abnegado dos levitas,
que continuamente narravam a história da libertação, não permitindo que os hapirus

89
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 85.

39
se esquecessem de suas origens, de sua tradição, de suas leis, da aliança mosaica
(contrato social), de seu novo modo de produção. 90

1.4.6 Exército popular de defesa

A experiência dos hapirus com as cidades-estado, assim como no Egito, na


Mesopotâmia e na península do Sinai, demonstrou que os reis e grandes donos de
terras possuíam exércitos para manter a posse das terras e, quando desejado, para
conquistar mais terras. Para se manter estes exércitos era necessário impostos, pois
os soldados não trabalhavam. Eles viviam exercitando-se para tempos de guerra e
de defesa. Além disso, tinha que se manter e comprar constantemente toda uma
parafernália de instrumentos de guerra, como o carro de guerra (biga), roupas
adequadas para a luta, boas espadas, escudos, assim como gastos com a cavalaria.
O exército situava-se dentro da fortaleza da cidade-estado, onde possuía um espaço
apenas para a conservação do poder e do modo de produção da corveia e
escravidão. Em tempo de paz, havia pouco cavalo, mas o harém do rei estava cheio
das filhas de hapirus que foram paulatinamente entregues ao rei como pagamento
de dívidas. Em tempo de guerra, o rei trocava mulheres de seu harém por cavalos.
As mulheres bonitas eram moeda corrente e serviam como mercadoria de troca. 91
Tudo isto foi experimentado pelos hapirus que, quando da oportunidade de
criarem algo diferente, decidiram por não possuir exército, pelo menos não da forma
que os reis das cidades-estado mantinham. Em Israel havia o compromisso da
solidariedade e da ajuda mútua. Em época de crise, de ameaça externa, todos os
campesinos e pastores, de todas as tribos, capazes de manejar armas, se
organizavam para a luta contra o inimigo comum, que era o exército dos reis das
cidades-estado, desejando ampliar suas terras. O livro de Juízes descreve estas
lutas. Mas o exército de Israel lutava apenas para a defesa de suas terras, não pelo
aumento de terras. Portanto, não havia exército profissional em Israel. “De vossas
relhas forjai espadas e de vossas podadeiras, lanças” (Jl 4.10). Terminada a guerra,

90
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 84s.
91
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
52ss.

40
a instrução era inversa: “Das espadas forjarão arados e das lanças, podadeiras” (Mq
4.3; Is 2.4).92 “Os juízes libertadores articulavam a resistência. Sua ação era movida
pela força do espírito (confira Jz 6.3; 11.29; 13.25; 14.6!)” 93.

A base destas narrativas era a luta dos subgrupos em Israel a fim de


garantir o controle firme sobre a sua terra diante de repetidas ameaças dos
cananeus nativos e dos inimigos extracananeus que pressionavam desde o
deserto ou desde a Transjordânia, e mais tarde, no caso dos filisteus, desde
a planície litorânea.94

Como rei supremo (único) de Israel, Deus não podia ficar fora destas guerras.
A guerra era a defesa da terra livre de proprietários, de um modo de produção
socialmente mais justo e estratificado com maior igualdade, e da liberdade
conquistada pelos antepassados e relembrada nos cultos. Yahweh era assim um
Deus dos Exércitos (1 Sm 17.45; 2 Sm 5.10), que vai a frente, sendo carregado
pelos levitas, mediante o símbolo da Arca da Aliança. Sua presença fazia diferença
no desenvolvimento da guerra (Josué 10.12-14). Havia lei também para tempo de
guerra; quando um exército era vencido, tudo deveria ser queimado e destruído. Era
a lei do extermínio conhecida como lei do anátema (Dt 13.13-19; 20.10ss; Js 6.17-
21). Através desta lei se procurava: i. evitar a idolatria, pois muitos ídolos de prata e
ouro eram encontrados entre os mortos; ii. “manter a igualdade entre os membros
das tribos, [ao] impedir que combatentes se apropriassem das riquezas,
enriquecendo a uns em detrimento de outros. Podiam apenas saquear para matar a
fome.”95 [colchetes nosso]
Em conclusão a este 1.4, pode-se perceber, mediante estas seis
características, que os hapirus constituíram uma sociedade sui generis, uma crítica
social às experiências anteriormente sofridas. Para cada circunstância de sofrimento
e para cada situação qualificada de injusta, os hapirus forjaram contrapartidas
políticas para sanar o desequilíbrio sociológico, fazendo florescer durante duzentos
anos uma organização tribal atípica para sua época. De uma sociedade desigual,
surge uma sociedade igualitária; da exploração da força de trabalho, emerge a
autonomia produtiva; do poder centralizado no rei, brota o poder participado; das leis

92
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 86ss.
93
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 87.
94
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 194ss.
95
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 89.

41
que defendiam os interesses do rei, constitui-se leis que defendem a igualdade; do
politeísmo que estratifica, amalgama-se a fé unicamente em Yahweh, Deus que
liberta; do culto centralizado para celebrar mitos reais, floresce o culto
descentralizado para celebrar a vida e as histórias dos antepassados; dos
sacerdotes a serviço do sistema, organiza-se sacerdotes a serviço do povo; do
exército estável e profissional, insurge-se o exército ocasional improvisado.
Contudo, esta nova organização florescente nas montanhas de Canaã não
se deu sem uma estruturação mediada por leis. Foram necessárias normas que
fixassem e estabelecessem as balizas desta nova forma tribal, comunitária e tida
como mais justa. Como mencionado anteriormente, estas leis pertenciam à tradição
oral, sendo repassadas de família a família, de clã para clã, de tribo para tribo, de
juiz para juiz, relembradas e preservadas pelos levitas. O Decálogo, sumo de todas
estas leis originárias, ainda não existia, ao contrário do que testifica o Pentateuco.
Os Dez Mandamentos surgem trezentos anos depois da desestruturação das 12
Tribos, como uma forma de relembrar a aliança uma vez feita entre o povo hapiru e
seu Deus libertador. É disso que se trata o próximo bloco.

1.5 A FORMAÇÃO DO DECÁLOGO

A proposta deste trabalho é identificar os aspectos políticos e jurídicos do


Decálogo. Para tanto, verificou-se nos pontos anteriores, através de uma
hermenêutica sociológica, o surgimento do povo hebreu (hapirus), sua história de
peregrinação e estabilização nas montanhas de Canaã e consequente estruturação
em um sistema tribal com características totalmente contrárias às experimentadas
quando força de trabalho sob o jugo de outros modos de produção. Entretanto, o
estudo sociológico compartilhado nos pontos antecedentes transmite uma
percepção um pouco idealizada do processo de sedimentação deste sistema tribal.
Em verdade, pelos estudos sociológicos e arqueológicos, houve muita confusão e
resistências por parte dos próprios hapirus diante das novas leis que se propunham
a estratificar uma sociedade segundo as características apontadas no ponto anterior
(1.4). Os dois pontos a seguir procuram concluir este primeiro capítulo, apontando,
num primeiro momento, o declínio do sistema tribal, para então, no segundo

42
segmento, mostrar o surgimento do Decálogo como uma tentativa de recuperar o
ideal primordial hebreu, em contraposição à realidade de reinado que se
estabeleceu novamente em Israel.

1.5.1 Declínio do sistema tribal e surgimento do reinado em Israel

Segundo a pesquisa sociológica e histórica, o declínio do sistema tribal das


12 Tribos de Israel não logrou se sustentar além dos duzentos anos pelo surgimento
de um novo inimigo: os filisteus. Este povo veio pelo mar e se instalou nas planícies,
conquistando as cidades-estado uma após outra. Israel sempre teve forças, mesmo
que deficientes, para defender suas terras dos reis das planícies, pois estes não
formavam uma só coligação de reinado para fazer frente às 12 tribos, sobre as
montanhas de Canaã. Eles se digladiavam vez ou outra entre si, enfraquecendo-se.
A confederação das tribos de Israel logrou alguns sucessos diante destes exércitos
divididos, mantendo satisfatoriamente seu sistema tribal. 96
Mas com o surgimento dos filisteus, a situação mudou. Estes conquistaram
os pequenos reinados da costa de Canaã, dominando as planícies e estendendo
suas forças sobre as montanhas. Diante deste exército, unido e forte, o sistema
tribal não tinha como se defender. 97 Era necessária a formação de um exército
profissional, de cavalos e de bigas. “Os filisteus chegaram à Palestina não muito
depois de Israel, e viveram lado a lado com Israel, em conflito intermitente mas cada
vez mais intenso, durante quase todo o período dos juízes. Finalmente, eles
lançaram-se à conquista que levou Israel à ruína total.” 98
Com esta nova situação política, surgiram pessoas que começaram a
alardear a necessidade de se formar um Estado, como os filisteus e, de uma
organização militar capaz de fazer frente ao inimigo declaradamente mais forte e
poderoso. Estes pensamentos de reivindicação de um reinado de Israel provocaram
reações fortes no seio do sistema tribal. 99 Ecos destas reações podem ser
96
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 112.
97
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. 2. ed. São Paulo: Vozes, 2000, v. 1, p.
201ss.
98
BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 238.
99
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. 2. ed. São Paulo: Vozes, 2000, v. 1, p.
197ss.

43
encontrados em Juízes 9.8-15, onde é narrada a alegoria das árvores que fazem
uma assembleia para escolher um rei. A oliveira rejeitou o convite, assim como a
figueira e a videira; mas o espinheiro aceitou e, ao se tornar rei, machucou deveras
seus súditos. O profeta que narra tal alegoria defende que aqueles que desejam o
reinado só lograrão ter dor e sofrimento. Em 1 Samuel 8, os israelitas pedem por um
rei e ouvem estas palavras de Yahweh, por intermédio de Samuel, um líder
carismático (juiz):

Então todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram ter com Samuel,


a Ramá, e lhe disseram: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam nos
teus caminhos. Constitui-nos, pois, agora um rei para nos julgar, como o têm
todas as nações. Mas pareceu mal aos olhos de Samuel, quando disseram:
Dá-nos um rei para nos julgar. Então Samuel orou ao Senhor. Disse o
Senhor a Samuel: Ouve a voz do povo em tudo quanto te dizem, pois não é
a ti que têm rejeitado, porém a mim, para que eu não reine sobre eles.
Conforme todas as obras que fizeram desde o dia em que os tirei do Egito
até o dia de hoje, deixando-me a mim e servindo a outros deuses, assim
também fazem a ti. Agora, pois, ouve a sua voz, contudo lhes protestarás
solenemente, e lhes declararás qual será o modo de agir do rei que houver
de reinar sobre eles. Referiu, pois, Samuel todas as palavras do Senhor ao
povo, que lhe havia pedido um rei, e disse: Este será o modo de agir do rei
que houver de reinar sobre vós: tomará os vossos filhos, e os porá sobre os
seus carros, e para serem seus cavaleiros, e para correrem adiante dos
seus carros; e os porá por chefes de mil e chefes de cinquenta, para
lavrarem os seus campos, fazerem as suas colheitas e fabricarem as suas
armas de guerra e os petrechos de seus carros. Tomará as vossas filhas
para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará o melhor das vossas
terras, das vossas vinhas e dos vossos olivais, e o dará aos seus servos.
Tomará o dízimo das vossas sementes e das vossas vinhas, para dar aos
seus oficiais e aos seus servos. Também os vossos servos e as vossas
servas, e os vossos melhores mancebos, e os vossos jumentos tomará, e
os empregará no seu trabalho. Tomará o dízimo do vosso rebanho; e vós
lhe servireis de escravos. Então naquele dia clamareis por causa de vosso
rei, que vós mesmos houverdes escolhido; mas o Senhor não vos ouvira. O
povo, porém, não quis ouvir a voz de Samuel; e disseram: Não, mas haverá
sobre nós um rei, para que nós também sejamos como todas as outras
nações, e para que o nosso rei nos julgue, e saia adiante de nós, e peleje as
nossas batalhas. Ouviu, pois, Samuel todas as palavras do povo, e as
repetiu aos ouvidos do Senhor. Disse o Senhor a Samuel: Dá ouvidos à sua
voz, e constitui-lhes rei. Então Samuel disse aos homens de Israel: Volte
cada um para a sua cidade. (grifou-se)

Assim surge Saul, Davi e finalmente Salomão que constroem um reinado


forte capaz de fazer frente aos filisteus e dominar a região do Oriente Próximo. Para
esta nova forma de organização social, foi necessário, contudo, uma nova aliança
entre a monarquia e Yahweh. O Salmo 72 é um exemplo desta nova concepção
ideológica, na qual Deus apoia o reinado e sua estrutura. Davi e Salomão,
entretanto, tiveram que lutar internamente, pois a resistência era forte pelos
mantenedores do sistema tribal; para tanto, tiveram que desfazer o esteio da cultura

44
hebraica: a religião. Elegeram Jerusalém, uma fortaleza, como a capital do novo
Estado de Israel e a consagraram santa. Construíram um grande templo de pedra e
esconderam a Arca da Aliança nos porões e obrigaram todas as tribos a virem até
Jerusalém anualmente para prestar culto a Yahweh. Os sacerdotes levitas foram
educados na arte da escrita e vieram a se tornar os idealizadores dos primeiros
escritos do Pentateuco. Textos que acabaram por reunir todas as diferentes
tradições e histórias de libertação numa só, culminando na eleição de Davi e de sua
casa como os únicos capazes de reinar sobre Israel. Somente seus descendentes
poderiam ser reis sobre Israel, segundo a nova Aliança, chamada Davídica. 100 Mas
logo após Salomão, o reinado foi dividido e os sucessores de Salomão se tornaram
reis tão prepotentes como os reis das antigas cidades-estado. Já durante o reinado
de Salomão houve a volta da escravatura: hapiru escravizando hapiru. O Estado de
Israel, nos trezentos anos que se seguiram à derrocada do sistema tribal, esquece
da aliança originária com seu Deus, Yahweh, idolatrando outras divindades, a partir
do comércio internacional.101
É dentro deste escopo histórico que surgem os profetas, com a incumbência
de relembrar os reis da antiga aliança, sendo a voz de Yahweh diante de ouvidos
surdos. Os profetas criticavam os reis quando estes promoviam exatamente o
contrário daquilo que a aliança mosaica havia acordado manter como balizas
básicas para manter a justiça de Deus no meio da sociedade hebraica. Os profetas
eram a memória teológica, criticando não apenas os reis, como também o povo
hapiru, quando estes se esqueciam de suas origens, entregando-se a outros
deuses.102

1.5.2 O Decálogo como compêndio das leis originárias

É neste cadinho de desespero e de luta por manter a chama da antiga aliança


mosaica acessa que surgem os Dez Mandamentos, como uma forma de manter viva
a memória legal que estruturou o sistema tribal e que logrou mantê-lo viável por

100
BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 258ss.
101
BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 356.
102
BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 386ss e 447ss.

45
duzentos anos, como uma forma de legitimar a voz daqueles que gritavam para
Israel olhar para trás e reafirmar a antiga aliança com Yahweh.

Para compreender o decálogo é necessário perceber, em primeiro lugar,


que ele já representa uma reação à profunda crise religiosa, teológica,
política e social não somente do século 9, mas também do século 8. Faz
parte dessa crise, p. ex., o surgimento de fortes contradições sociais em
Israel. Também o surgimento dos grandes profetas de juízo é expressão
dela. Sobretudo o desmantelamento do Reino do Norte e o choque que isso
deve ter causado fazem parte dessa crise. Face a essas experiências
incisivas destacam-se as exigências elementares de Javé: elas são
reunidas no Decálogo e formuladas, pela primeira vez, em tal
concentração.103 [itálico do autor]

Segundo CRÜSEMANN, o Decálogo surgiu ao final do século VII a.C.,


segundo estudos históricos que não encontram indícios de sua menção antes deste
período.104 Seu surgimento se deu com o intuito de fazer com que as pessoas
mantivessem na memória os acontecimentos de cinco séculos antes. Para esta
recuperação da memória, CRÜSEMANN chama a atenção para o versículo 2 de
Êxodo 20, identificando neste verso um pequeno prólogo aos Mandamentos, mas
que para o autor é significativamente relevante para entendê-los em sua essência. O
prólogo é: “Eu sou o Senhor (Yahweh-Elohim), teu Deus, que te tirei da terra do
Egito, da casa da servidão.”105 Para a recuperação da memória, o redator de Êxodo
20 procura recompromissar o ouvinte, o destinatário destes Mandamentos. Deus
vem novamente a seu povo e o interpela acerca da relação que uma vez existia
entre ambos, fundada na história de libertação. Uma história que conectava ambos
numa relação, não de domínio, mas de liberdade. CRÜSEMANN faz uso de uma
terminologia de Michael Theunissen: “liberdade comunicativa”, e o cita para explicá-
la: “significa que um não experimenta o outro como limite, mas como condição da
possibilidade de sua própria auto-realização. Assim ela pode ser a medida da crítica
tanto à indiferença quanto ao domínio”. 106 Isto significa que somente na relação com
Deus o povo pode encontrar a liberdade de outrora, através destes Mandamentos
transmitidos (comunicados) por Yahweh. Somente em Deus a liberdade pode ser
recuperada e esta relação com o divino passa pelas leis que seguem o prólogo. 107
103
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 24.
104
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 22ss.
105
Parênteses nosso.
106
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 35.
107
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 34s.

46
Os destinatários destes Mandamentos não são mais os hapirus das Tribos
de Israel, mas indivíduos hebreus que durante a dinastia dos reinados davídicos se
enriqueceram, a ponto de possuírem escravos e escravas (Êx. 20.10); são pais e
mães (v. 12) e filhos (v. 10; cf. v. 5), pessoas que têm terra de cultivo (v. 12) e gado
próprio (v. 10). Segundo se depreende do Segundo Mandamento, os destinatários
do decálogo têm a liberdade de cultuar outros deuses (v. 3 e 5), e de possuir
imagens de ídolos (v. 4s). Eles podem tomar em vão (por juramento) o nome de
Yahweh (v. 7), participando como testemunhas ou acusados em processos jurídicos
(v. 16). Vivem em vizinhança com pessoas que também possuem mulheres, casas,
escravos e animais (v. 17). Se possuem escravos, é por que são cidadãos livres e se
possuem terras e gado é por que são agricultores. O Decálogo não se dirige a
crianças, nem às mulheres, nem aos escravos, tampouco a pessoas assalariadas.
“O Decálogo foi formulado somente para os homens de determinada classe social
em Israel”.108

Na época anterior à monarquia, esses cidadãos plenos, como poderíamos


chamá-los de modo abreviado, praticamente constituíam sozinhos o povo;
em todo caso, eram o único segmento dominante. Apesar de todas as
restrições, eles continuaram sendo a camada social decisiva em Israel
durante toda a época do reinado. Assim, a eles se dirige não somente o
Decálogo, mas todas as leis de Israel da época anterior ao exílio. 109

Com a derrocada do Reino do Norte (século VII a. C.), essa camada social
se sobressaiu e se tornou uma força política respeitável. São os ricos, os
latifundiários e os senhores de escravos por dívida, denunciados por profetas como
Amós, Isaías e Miquéias; mas também são os pequenos agricultores endividados,
os pobres e humildes, os espoliados e oprimidos. Todos estes pertencem ao mesmo
grupo social de livres proprietários a que se dirige o decálogo. Por isto o uso do
pronome pessoal “tu”, no texto do Decálogo. O redator tem um ideal em mente. Não
dirige a palavra de Deus ao rei para que este dirija a nação, mas Yahweh se dirige
aos indivíduos do povo hebreu (hapiru), mudando a relação até agora defendida
pelos sacerdotes do templo em Jerusalém, idealizadores da aliança davídica. O
redator deste texto aproxima Yahweh do indivíduo que ainda pode ser reconquistado

108
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 25.
109
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 26.

47
pela memória de sua história, burlando a aliança davídica e restaurando a aliança
mosaica, orginal.110
Para CRÜSEMANN, os Dez Mandamentos existem em função do prólogo,
ou seja, o Decálogo é confeccionado para restaurar e preservar a liberdade de
outrora. Como restaurar um sistema tribal em pleno século VII? Seguindo os
Mandamentos. Como síntese de várias leis nascidas no período tribal, o Decálogo
foi constituído com o fito de fazer emergir uma ética da preservação da liberdade
diante de uma realidade que se esqueceu do que isso se trata; de uma ética que se
contrapõe a uma realidade de morte e escravidão. O Decálogo, segundo
CRÜSEMANN, é a bússola dada ao peregrino em meio ao deserto, para que
encontre o caminho de regresso ao lar, aos familiares, à antiga tradição, à antiga
aliança.111 Daí o sentido do título de sua obra: Preservação da Liberdade – O
Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.

110
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 29ss.
111
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 73s.

48
2 OS PRIMEIROS TRÊS MANDAMENTOS112

O objetivo deste trabalho é recuperar os aspectos políticos e jurídicos do


Decálogo. O primeiro capítulo apresentou uma análise sociológica que desvela um
sentido bem localizado no tempo e no espaço para o Decálogo. Foi desmistificada a
ideia de que os Dez Mandamentos tenham sido uma produção divina sobre o monte
Horeb (Sinai). O Decálogo é fruto de um movimento social histórico, que construiu
uma sociedade tribal, com um modo de produção econômico que procurava igualar
as pessoas, que defendia a vida e a liberdade a partir de experiências de outros
modos de produção sociais não desejados; movimento social que se estruturou a
partir de leis balizadoras, as quais promoveram e mantiveram um sistema tribal
durante duzentos anos; leis que foram recapturadas, quando este sistema igualitário
foi suplantado por um sistema hierárquico e tributário dos reinados subsequentes, e
sintetizadas num breviário legal, conhecido como Decálogo.
Nos capítulos que se seguem, serão abordadas com maior propriedade
algumas destas leis originárias, a partir das quais os primeiros três Mandamentos
foram forjados. O objetivo é de respaldar juridicamente os Mandamentos a partir de
seu contexto histórico, ou seja, a partir de seu contexto político, econômico, social e
legal, aproximando-se destarte de seu sentido original o melhor possível; e com isto,
com maior nitidez, destituir o verniz moralista que recobre o Decálogo nos dias de
hoje.

2.1 EU SOU O SENHOR TEU DEUS, NÃO TERÁS OUTROS DEUSES DIANTE DE
MIM

Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em
baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as
servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais

112
Neste capítulo serão usados com maior frequência textos bíblicos.

49
nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. E uso de misericórdia
com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos (Ex 20.2-6).

Este primeiro Mandamento pode ser mais bem compreendido se levado em


consideração seu contexto social originário. O contexto é aquele que antecede o
surgimento do sistema igualitário das Tribos de Yahweh, o qual já foi apresentado no
primeiro capítulo. A formação das Doze Tribos se deu a partir de diferentes grupos
sociais sem status social algum, denominados de hapirus. Eram grupos que
vendiam sua força de trabalho a reis de cidades-estados, ao Faraó, chegando à
posição de escravos por pagamentos de dívidas promovidas pelos altos tributos a
que se viam obrigados a se submeter. Esta experiência de escravidão e submissão
a trabalhos forçados (ex.: corveia), repetida de diferentes modos, em diferentes
contextos, mas sempre com a mesma estrutura (rei/faraó versus hapiru), foi
relembrada no surgimento gradativo do sistema tribal (1 Samuel 25.10). Estes
diferentes grupos, com suas diferentes experiências, contavam suas histórias, as
quais eram repassadas de pai para filho, de geração em geração, fazendo surgir um
ideal comum: a organização de um Estado diverso daquele. Um Estado no qual não
houvesse a estrutura hierárquica de um poder autoritário e centralizador, legitimado
por leis igualmente classistas e, portanto, injustas segundo o entendimento deste
povo emergente: hebreu (=hapiru).
A partir destas experiências dolorosas do passado, o ideal de uma
sociedade mais justa foi sendo formado. Um ideal no qual não deveria haver rei
algum, ou seja, alguém com poder absoluto; pois, consequentemente, na ausência
de tal figura social, não haveria também hapiru algum, ou seja, alguém sem nenhum
poder. Este ideal foi, provavelmente, de difícil solução. Como organizar uma
sociedade sem a presença de reis? Os exemplos de estrutura social estavam em
toda a volta. Todos tinham formas semelhantes de reinado. Mas estes exemplos não
eram queridos, pelo contrário: eram desconsiderados de partida.
A alternativa organizacional da sociedade nascente se deu pelo viés
religioso; “a consciência de solidariedade de Israel não tem causas étnicas, mas
exclusivamente religiosa: Javé se tornou o Deus dos que romperam com a ordem
vigente”113. A importância da influência religiosa na elaboração social é perceptível
quando se compara a relação entre religião e direito nas sociedades Cananéias e a
113
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. 2. ed. São Paulo: Vozes, 2000, v. 1, p.
147.

50
das 12 Tribos. Segundo o estudo de Albrecht ALT 114, a sociedade Cananéia mantinha
um distanciamento acentuado entre religião e direito (quanto a gêneros legais).
Contudo, “o exame de outros gêneros legais no Hexateuco há de fornecer as
evidências de que os israelitas estavam convencidos de que os dois são diretamente
ligados”115. Quando os hapirus se instalaram nas montanhas de Canaã, encontraram
o povo cananeu e com eles se misturaram, adotando muitas de suas tradições. Uma
delas foram algumas formas legais que, uma vez amalgamadas com a forma de
pensamento jurídico das diferentes tradições de hapirus, engendraram
paulatinamente uma forma autóctone, hebraica (israelita). 116
A forma legal emprestada foi suplantada pelo espírito religioso libertário
inerente à história dos diferentes grupos de hapirus, que tingiu estas formas legais
com um sentido próprio. Enquanto as formas legais cananéias legitimavam modos
de produção escravocrata, a formatação jurídica dos hebreus fomentou uma
organização social a partir de um modo de produção mais igualitário, alimentado
pelo ardor religioso, caracterizado pela história de libertação daqueles modos de
produção escravocratas. O direito foi engendrado pela religião e esta por aquele. Foi
neste cadinho fervilhante, no qual se amalgamavam religião e direito, que a ideia de
se eliminar a figura do rei e no seu lugar alocar uma figura divina, a qual faria às
vezes daquele, nasceu e foi assumida por todo o povo hebreu na medida em que
vigou viabilidade organizacional.

A comunidade jurídica que se sabe estar colocada sob sua validade é todo o
povo de Israel. Nela podemos reconhecer também as características do
direito especificamente israelita em oposição ao direito cananeu. No
conteúdo, percebe-se o contraste entre a relação direta com a vontade do
Deus do povo, de um lado, e uma separação quase completa entre direito e
religião, do lado cananeu.117

118
Assim, a caracterização de Deus como um rei, tendo a função de um rei,
na ausência de uma figura real que governe o povo hebreu é sui generis entre os
povos daquele período da história humana. Com esta formatação jurídica-religiosa, o
povo experimentou uma forma de viver mais sustentável no quesito igualdade social.
114
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 179-236.
115
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 196s.
116
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 197s.
117
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 212.
118

51
Isto não significava que a forma retrógrada de reinado não existisse no coração de
algumas pessoas e líderes hebreus. Como vimos no primeiro capítulo, a formação
das 12 Tribos se deu também a partir de cananeus que ali acabaram se submetendo
ao novo povo emergente nas montanhas da Palestina. Havia muitos que
consideravam fortemente a alternativa do reinado. Por isto a necessidade premente
de abafar qualquer resistência à nova proposta de construção jurídico-social. Daí o
imperativo legal do Primeiro Mandamento: Eu (Yahweh) sou o Senhor (rei), teu
Deus, não terás outros deuses (reis) diante de mim.
A figura virtual (religiosa) de um deus-rei exigia que outras formas de
teologias fossem banidas. Este Deus Yahweh é distinto dos outros deuses. Ele não
existia para legitimar a opressão e a exploração, senão que existia para libertar e
para criar uma convivência fraterna entre as pessoas. 119 Ele se comprometeu neste
projeto social e o garantiu, como veremos mais adiante. Os outros deuses (formas
de teologias dissociadas do direito) não tinham poder, mas delegavam este poder ao
rei e serviam apenas para legitimar suas ações e leis. 120

A necessidade teológica da transformação de Deus fundamentada no 1º


Mandamento não é um fim em si mesma nem algo abstrato. Tanto no
Decálogo quanto em textos similares, esse Deus é definido justamente a
partir do conteúdo: é o Deus que se define a si mesmo através da liberdade
concedida aos israelitas, aos quais ele se dirige. Isso é que precisa ser
preservado. Ao lado desse poder de liberdade não deve e não poder haver
outros deuses. Todas as experiências que Israel fazia, fossem elas positivas
ou negativas, feitas por indivíduo ou por pequenos grupos ou pelo povo
como um todo, todas elas deveriam ser relacionadas com esse Javé e, por
conseguinte, deveriam ser medidas pela experiência básica da liberdade.
Voltar-se para outros deuses significava renunciar ao fundamento da própria
liberdade.121

Ter outros deuses denotava a volta a antigos modelos “não libertários”.


Exemplos deste tipo de modelo social são retratados nos escritos
veterotestamentários, como Gênesis 47.13-25. Como mencionado no primeiro
capítulo, a estrutura do reinado é a (i.) presença do rei, (ii.) servos do rei e (iii.) seu
povo, como presente em Êxodo 9.14. A imagem abaixo reflete a estrutura de uma
sociedade do tipo reinado122.

119
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 78.
120
PIXLEY, Jorge. Historia sagrada, historia popular: historia de Israel desde los pobres, 1220 A. de C.
– 135 D. de C. 2 ed. rev. São José: DEI, 1991, p. 12s.
121
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 40.
122
PIXLEY, Jorge. Historia sagrada, historia popular: historia de Israel desde los pobres, 1220 A. de C.
– 135 D. de C. 2 ed. rev. São José: DEI, 1991, p. 12.

52
Imagem 01 - Estrutura de uma sociedade do tipo reinado

Rei R Soberano
ei
Servos do Rei Exército Administração Sacerdotes Aparato estatal

Povo Aldeias

Com o surgimento das Tribos de Yahweh, surge no cenário político local,


uma nova proposta de estrutura organizacional na qual Yahweh é colocado no lugar
do Rei, alterando substancialmente o diagrama acima. Não há mais servos,
escravos, exército, tributos reais, corte e nem rei. “Yahweh era o rei das tribos de
Israel (Js 8.22-23; 1 Sm 8.7; Nm 23.22; Dt 33.4-5). Em termos práticos, isto
significava que os campesinos de Israel não pagavam tributos a ninguém” 123. A
imagem 02 mostra este novo modelo de sistema teocrático:

Imagem 02 - Estrutura de uma sociedade do tipo teocrática


Yahwe
h

Povo/aldeias
Tribo A Tribo B Tribo C

Com isto temos uma autoridade virtual na posição do rei. Uma entidade não
física, não humana, que mantém a ordem, a liberdade, a igualdade e a paz social.
Um sistema teocrático desenvolvido por pessoas desgostosas de modelos de
produção escravocratas, engendrando uma novidade social, cuja estrutura
pressupunha uma entidade estatal virtual (teológica). Este aparato legal
supraindivíduo, supragrupal e supratribal foi articulado por grupos tribais a fim de
que o fascínio pelo poder não seduzisse quem se dispusesse a reinar, fazendo

123
PIXLEY, Jorge. Historia sagrada, historia popular: historia de Israel desde los pobres, 1220 A. de C.
– 135 D. de C. 2 ed. rev. São José: DEI, 1991, p. 21.

53
surgir todo tipo de relação de desigualdade social, legitimado por leis classistas. A lei
teocrática era ideologicamente instituída pela divindade Yahweh, a qual regulava a
ordem social segundo um códice legal, que mais tarde (500 anos) gerará o
Decálogo, assim como é conhecido atualmente.
Mas como esta entidade virtual lograva manter e sustentar sua autoridade?
O rei mantinha seu poder mediante o exército, a ideologia religiosa orientada pelo
viés real e pelos tributos (que mantinham o exército e os ideólogos). Mas como esta
figura virtual, não tangível, puramente ideológica, lograva manter coesa a sociedade
em torno das leis elaboradas pelo povo hapiru nascente? Mediante um pacto,
conhecido como Aliança Mosaica, entre Yahweh e o povo hapiru, estruturado em
tribos, clãs e famílias124.

Ligados por um pacto a um chefe supremo não humano, e pela


solidariedade à comunidade recém formada, esses ‘habiru’ empreenderam
a formação de uma ordem social deliberadamente alternativa, que veio a ser
Israel. [...] O pacto, possibilitando o novo experimento político, caracterizado
por uma ruptura radical com a cultura urbana é, portanto, bastante mais
pertinente à situação no antigo Israel do que se tem reconhecido. O Israel
do pacto representava não apenas uma novidade teológica, mas também
uma novidade como experimento social. [...] Sua visão teológica que os
levava à rejeição dos deuses do Império, resultava na rejeição do modo
como estava organizada a sociedade imperial. [...] Há, portanto, uma
relação íntima entre a visão teológica e organizacional sociológica. Por isso,
a ordem social israelita, de Moisés a Davi, pode ser considerada um
experimento para determinar a viabilidade de uma sociedade alternativa,
sem a sanção dos deuses imperiais.125

Este pacto foi ritualizado e relembrado continuamente na vida do povo


hebreu e depois Israelita, fortalecendo a imagem virtual como verídica e presente
em todo lugar. O povo entrega o poder a Yahweh, delegando-o a tarefa de protegê-
los e mantê-los livres de ameaças externas. Yahweh, por sua vez, entrega leis e
estatutos justos para que esta proteção e qualidade de vida sejam viáveis. Assim,
por um lado, o povo promete obedecer a Yahweh e este, por seu turno, promete
cuidar do povo hapiru. Este pacto, esta aliança entre ambos os lados, caracteriza o
nascedouro do povo hebreu/israelita, conforme diversos textos da época, a exemplo
de Deuteronômio 4.1-20, que expressa bem os vários detalhes até aqui ressaltados:

Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os preceitos que eu vos ensino,


para os observardes, a fim de que vivais, e entreis e possuais a terra que o
Senhor Deus de vossos pais vos dá. Não acrescentareis à palavra que vos

124
BEATO, Joaquim. O Pacto de Moisés e o Pacto de Davi – os dois círculos de tradição do Antigo
Testamento. In: SCHWANTES, Milton. Tradição Mosaica. Traí: Cadernos do Povo – PU, 1981, p. 4ss.
125
BEATO, Joaquim. O Pacto de Moisés e o Pacto de Davi – os dois círculos de tradição do Antigo
Testamento. In: SCHWANTES, Milton. Tradição Mosaica. Traí: Cadernos do Povo – PU, 1981, p. 5ss.

54
mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do
Senhor vosso Deus, que eu vos mando. Os vossos olhos viram o que o
Senhor fez por causa de Baal-Peor; pois a todo homem que seguiu a Baal-
Peor, o Senhor vosso Deus o consumiu do meio de vós. Mas vós, que vos
apegastes ao Senhor vosso Deus, todos estais hoje vivos. Eis que vos
ensinei estatutos e preceitos, como o Senhor meu Deus me ordenou, para
que os observeis no meio da terra na qual estais entrando para a
possuirdes. Guardai-os e observai-os, porque isso é a vossa sabedoria e o
vosso entendimento à vista dos povos, que ouvirão todos estes estatutos, e
dirão: Esta grande nação é deveras povo sábio e entendido. Pois que
grande nação há que tenha deuses tão chegados a si como o é a nós o
Senhor nosso Deus todas as vezes que o invocamos? E que grande nação
há que tenha estatutos e preceitos tão justos como toda esta lei que hoje
ponho perante vós? Tão-somente guarda-te a ti mesmo, e guarda bem a tua
alma, para que não te esqueças das coisas que os teus olhos viram, e que
elas não se apaguem do teu coração todos os dias da tua vida; porém as
contarás a teus filhos, e aos filhos de teus filhos; o dia em que estiveste
perante o Senhor teu Deus em Horebe, quando o Senhor me disse: Ajunta-
me este povo, e os farei ouvir as minhas palavras, e aprendê-las-ão, para
me temerem todos os dias que na terra viverem, e as ensinarão a seus
filhos. Então vós vos chegastes, e vos pusestes ao pé do monte; e o monte
ardia em fogo até o meio do céu, e havia trevas, e nuvens e escuridão. E o
Senhor vos falou do meio do fogo; ouvistes o som de palavras, mas não
vistes forma alguma; tão-somente ouvistes uma voz. Então ele vos anunciou
o seu pacto, o qual vos ordenou que observásseis, isto é, os dez
mandamentos; e os escreveu em duas tábuas de pedra. Também o Senhor
me ordenou ao mesmo tempo que vos ensinasse estatutos e preceitos, para
que os cumprísseis na terra a que estais passando para a possuirdes.
Guardai, pois, com diligência as vossas almas, porque não vistes forma
alguma no dia em que o Senhor vosso Deus, em Horebe, falou convosco do
meio do fogo; para que não vos corrompais, fazendo para vós alguma
imagem esculpida, na forma de qualquer figura, semelhança de homem ou
de mulher; ou semelhança de qualquer animal que há na terra, ou de
qualquer ave que voa pelo céu; ou semelhança de qualquer animal que se
arrasta sobre a terra, ou de qualquer peixe que há nas águas debaixo da
terra; e para que não suceda que, levantando os olhos para o céu, e vendo
o sol, a lua e as estrelas, todo esse exército do céu, sejais levados a vos
inclinardes perante eles, prestando culto a essas coisas que o Senhor vosso
Deus repartiu a todos os povos debaixo de todo o céu. Mas o Senhor vos
tomou, e vos tirou da fornalha de ferro do Egito, a fim de lhe serdes um povo
hereditário, como hoje o sois.

Esta fala foi imputada a Moisés, dias antes da tomada da terra da Palestina
que, como vimos no primeiro capítulo, não se deu como narra o Hexateuco 126, mas
no transcurso de vários decênios. Esse texto, historicamente, foi elaborado muito
tempo depois deste evento da tomada da terra da Palestina; posterior também ao
surgimento do Decálogo. Sua elaboração ocorreu por volta do exílio babilônico, ou
seja, meados do século VI a.C. É a forma como os ideólogos repassaram para a
escrita a história oral de seu povo, estruturando os aspectos basilares do surgimento
de sua nação num único bloco textual.127

126
Os seis primeiros livros do Antigo Testamento.
127
SELLIN Ernst; FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento – Livros históricos e códigos
legais. São Paulo: Paulinas, 1977, v. 1, p. 240ss.

55
No texto de Deuteronômio acima citado se podem perceber alguns detalhes.
Moisés relembra que as leis e estatutos foram entregues pela entidade virtual
Yahweh, num determinado momento, ao pé do Monte Horeb. Neste local houve um
pacto, no qual o povo deveria passar a obedecer tão somente a Yahweh, deixando
os outros deuses para trás. A infração desta lei implicava na pena capital, a exemplo
do que aconteceu a Baal-Peor128. Estas leis e estatutos devem ser ensinadas,
aprendidas e repassadas de geração a geração para pautarem a vida do povo a
partir de preceitos de justiça, em sua história. O comprometimento de todo o povo
redundaria numa sociedade tão justa que outros povos vizinhos ficariam com inveja
do modo de produção alcançado pelos hebreus. O texto é claro e enfático quanto à
virtualidade da entidade Yahweh, ao mencionar que apenas sua voz era audível, ou
seja, sem forma alguma. Esta entidade virtual, sem forma, não humana, propõe um
pacto, no qual é exigida do povo obediência exclusiva a sua lei. Lei não apenas
restrita ao Decálogo, que no nascimento histórico do povo hebreu ainda não existia
na forma como veio a se constituir posteriormente, mas leis e estatutos presentes e
balizadores do movimento social alternativo em sua formação original. Leis que
deveriam ser seguidas ipis litteris, sem alteração de sequer uma letra, inibindo assim
deturpações de cunho oportunista.
Por fim, o pacto proíbe categoricamente a formação de imagens (v. 4s). Se
deuses representavam outras formas de produção, esculpi-los era sinal de pacto
com tal modo de produção, anátema para a massa hapiru insurgente. Tampouco se
podem fazer imagens de seres encontrados na terra ou no céu. Uma imagem é
como um fetiche da própria entidade virtual. Dá-se poder fictício a uma entidade não
real, a um objeto ou imagem, esperando-se da mesma uma proteção ou benção
qualquer. A imagem estabelece uma relação ficcional entre o fiel e sua divindade.
Isto ocorria nos modos de produção de onde os hapirus fugiram. Imagens
defensoras das elites dominantes. Ao abolir tal prática ilusória, Yahweh (ou Estado
virtual) direciona a atenção do cidadão para a realidade do seu viver.

Nos mandamentos bíblicos, é a vida real que Yahweh defende. Qualquer


imagem de Deus que seja incompatível com a vida real será sempre um
ídolo, um fetiche. Nos conduzirá à morte, pois todo ídolo é todo aquele que
constrói sua grandeza com os cacos de nossa miséria, colocando-se no
lugar de Deus às custas da desumanização do homem.129

128
Baal, aliás, é uma divindade da Palestina, deus das estações e plantações.
129
SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentos e seu contexto social. In:
GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 50.

56
Proíbe-se tal ação para evitar com isto a possibilidade de se voltar ao
estágio anterior, quando se adoravam pedras, árvores e elementos da natureza,
entregando a estes o poder de cuidá-los (fetiche). No segundo verso, os ideólogos
destacam que é a entidade teológica, Yahweh, que os havia libertado da casa da
servidão, das correntes de ferro do Egito (e de todas as outras formas de modos de
produção escravocrata), prometendo um futuro mais justo e liberto. Ao delegar poder
(fetiche) a simples forças da natureza, a pessoa esquece-se de seu real libertador. O
poder destas entidades da natureza era de cunho mágico. Este poder não é eficaz
politicamente; não estrutura sociedades. A magia é flexível e pode ser usada
facilmente para legitimar qualquer coisa, até estruturas injustas, defendendo-as
como justas. O poder mágico pode ser manipulado por um indivíduo. Já Yahweh é
uma entidade que tem poder real de libertar sociedades escravocratas e de
estruturar uma nova sociedade mediante uma atuação histórica e contundente,
mediante a ação conjunta de um povo. Este foi o poder (virtual, mas sem fetiches)
que atuou na formação das 12 Tribos.130
Em conclusão a esta parte, o primeiro Mandamento sintetiza o pacto
celebrado entre o povo hapiru (hebreu) e sua entidade divina (virtual e ideológica). A
Yahweh lhe é outorgado o poder de governar sobre o povo, cuidando-o e
protegendo-o. Para tanto, rechaça qualquer outra forma de poder paralelo: nenhum
outro rei ou divindade terá a mesma competência e autoridade. Nem poder mágico
(imagético) lhe é páreo. Yahweh é o único rei e o povo hapiru, sua única
preocupação.

2.2 NÃO ABUSE DO NOME DO SENHOR, SEU DEUS

Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão;


porque o Senhor não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão (Ex 20.7).

130
FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas,
1982, p. 85ss. O autor descreve o conflito entre a fé israelita e a magia: “Em todos os seus modos, as
concepções e os usos mágicos são sempre expressão de determinada forma de ver a existência. O
homem que pratica a magia acredita poder influenciar e dirigir as grandes forças da vida, para seu
benefício e prejuízo dos outros. Assim, tais forças deveriam servir-lhe para dominar a vida, colocá-la a
salvo de todo perigo e obter êxito. Segurança e sujeição em relação às forças do destino; eis a atitude
e o modo de vida do homem que pratica artes mágicas”.

57
Mas uma sociedade não vive apenas de virtualidade. A ideologia tem sua
força, mas não o suficiente para organizar socialmente um povo. Na verdade, assim
como visto no texto de Deuteronômio 4, onde Moisés personifica a entidade virtual
ao declarar que está falando em nome de Yahweh, é mister a existência de uma
estrutura social e jurídica representativa mínima para um Estado vingar. Esta
entidade teológica se concretiza na vida organizacional do povo, em seu dia-a-dia,
mediante leis, estatutos, como também mediante pessoas (juízes 131, ex.: Juízes 3.7-
11; patriarcas; profetas132, ex.: Jeremias 1.4-10). Também mediante festas religiosas
(rituais sociais) de forte cunho político: Pessach (a páscoa judaica, celebrações de
recordação da libertação do Egito); Shavuót (celebra a revelação do livro da Lei ao
povo de Israel, ao pé do Monte Horeb); Simchat Torá (celebra a entrega dos Dez
Mandamentos a Moisés). Sucót (refere-se à peregrinação de 40 anos pelo deserto,
após a libertação do cativeiro do Egito); Chanucá (comemora o fim do domínio
assírio e a restauração do tempo de Jerusalém, por volta do VI a.C.) 133.
Além destas formas sociais, Yahweh exercia seu poder mediante ritos
jurídicos igualmente concretos. O juramento é exemplo disso. O juramento é uma
forma de contrato. Através do juramento, negócios são fechados, acordos
comerciais realizados, venda e compra pactuados, alianças sociais firmadas, ações
jurídicas e penais (testemunho) encontram o devido desfecho. Mediante o
juramento, a teia social cria liames sociais que estruturam e mantém o ordenamento
de uma sociedade. À época, em meio aos hapirus, a escrita era um luxo. Poucos
povos tinham o know-how da escrita, a qual podia ser considerada a ‘tecnologia de
ponta’ da época. O papel não existia; apenas o papiro (feito das fibras entrelaçadas
131
FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas,
1982, p. 300s: “Josué e os chamados “juízes maiores” ainda são expressão da vida tribal, que se ia
consolidando em distritos. Eles eram heróis das tribos e só mais tarde foram considerados pela
tradição como guias de todo o povo de Israel. Com efeito, tratava-se de chefes das milícias das várias
tribos, que se haviam colocado em evidência como homens revestidos de força divina, em virtude de
seus êxitos militares. O exemplo de Josué mostra até onde chegava a influência desses heróis tribais:
depois de conquistado a vitória em nome do novo deus Yahweh (Js 10,1-15) e ter-se feito reconhecer
como chefe da tribo, Josué obrigou o clã a adorar esse deus e elevou o santuário de Siquém a
santuário da tribo (Js 24)”. (grifou-se)
132
FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas,
1982, p. 300s: “A palavra de Deus anunciada pelo profeta age como um martelo que despedaça as
pedras (Jr 23,29); alcança o fim para o qual foi enviada, como a chuva (Is 55,10); crava fundo como
escalpelo que mata (Os 6,5); cai sobre Israel, de modo que todo o povo a experimenta (Is 9,7); na
boca do profeta, torna-se um fogo, que devora o povo como um montão de lenha (Jr 5,14). Por isso, o
país não pode suportar muito tempo as palavras de um profeta (Am 7,10); com efeito, quando
Yahweh levanta a voz, as pradarias dos pastores ficam desoladas e o cimo do Carmelo aridifica-se
(sic) (Am 1,2).
133
JUDAÍSMO. Sua pesquisa.com. [S.l.], [S.d.]. [Online]. Disponível em:
<http://www.suapesquisa.com/judaismo/>. Acesso em: 24 set. 2012.

58
de juncos), o que era caro. “É uma sociedade de cultura oral, sem especialistas na
educação e na religião”134. No dia-a-dia, os negócios eram realizados mediante a
troca de mercadorias ou pagamento pecuniário. Mas quando o pagamento ou troca
não era efetuado no momento da celebração do negócio, então havia a possibilidade
de promessa. Como não existia tabelionato, o juramento fazia a vez do mesmo.
Jurava-se em nome de Yahweh. Assim se fazia, por exemplo, quando determinado
contrato seria finalizado em certa data. “O segundo mandamento quer evitar que se
manipule Deus, encobrindo, em seu nome, o roubo, o suborno, a injustiça. Proíbe-se
o falso juramento, o uso do nome de Deus para fins maléficos e mentirosos” 135.
O livro de Levítico é um texto basicamente jurídico, no qual se encontram as
balizas de como proceder (também juridicamente) diante dos diferentes aspectos do
viver diário da sociedade tribal. Em Levítico 19.11-18; 35-37 se lê:

Não furtareis; não enganareis, nem mentireis uns aos outros; não jurareis
falso pelo meu nome, assim profanando o nome do vosso Deus. Eu sou o
Senhor. Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás; a paga da diarista
não ficará contigo até pela manhă. Não amaldiçoarás ao surdo, nem porás
tropeço diante do cego; mas temerás a teu Deus. Eu sou o Senhor. Não
farás injustiça no juízo; não farás acepção da pessoa do pobre, nem
honrarás o poderoso; mas com justiça julgarás o teu próximo. Não andarás
como mexeriqueiro entre o teu povo; nem conspirarás contra o sangue do
teu próximo. Eu sou o Senhor. Não odiarás a teu irmão no teu coração; não
deixarás de repreender o teu próximo, e não levarás sobre ti pecado por
causa dele. Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo;
mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor. Guardareis
os meus estatutos.[...] Não cometereis injustiça no juízo, nem na vara, nem
no peso, nem na medida. Balanças justas, pesos justos, medida justa, e
justo tereis. Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito.
Pelo que guardareis todos os meus estatutos e todos os meus preceitos, e
os cumprireis. Eu sou o Senhor.

O “não jurareis falso pelo meu nome” vem logo após o não furtar, não
enganar e o não mentir aos outros, encabeçando os demais preceitos normativos.
Assim, a ação de prometer realizar um pagamento em data certa e não fazê-lo, faz
com que o mentiroso profane o nome de Yahweh, pois este nome é como um
depositário de Boa-Fé. Yahweh torna-se, ao ser mencionado num contrato, um
avalista. O não cumprimento da promessa, consequentemente, implica em que o
nome de Yahweh seja profanado, sujo. Assim, quem usar o nome de Yahweh como
promessa de pagamento futuro, que a cumpra, caso contrário, incorrerá na ira do
supremo rei por infringir seu (segundo) Mandamento. A possibilidade de
134
SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentos e seu contexto social. In:
GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 41.
135
GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed. São Leopoldo:
CEBI, 2005, v. 2, p. 78.

59
manipulação era grande por parte dos detentores do poder, promovendo miséria
social e morte do hipossuficiente. “Apresentar um falso testemunho contra alguém
num processo fazia parte do desvio cotidiano do direito em Israel” 136.
O temor, desta forma, faz parte do poder de Yahweh. O texto de Levítico
acima citado aconselha não se fazer o mal; ao invés disso, aconselha temer a
Yahweh. O temor é a força coercitiva do Estado religioso, através do qual os
indivíduos são levados a seguir a lei, mesmo que ninguém os esteja observando. A
lei é ensinada e temida a ponto de ser constitutiva dos indivíduos que compõem o
Estado tribal. A palavra de uma pessoa, ao usar o nome de Yahweh como uma
seguradora, era suficiente para uma negociação ser fechada, pela confiança
existente entre os partícipes da organização social emergente. O segundo
Mandamento, assim, cumpre esta força de coerção, fazendo a lei ser efetiva.

O homem do Velho Testamento não pode retirar-se para o âmbito religioso,


limitando assim a soberania de Deus ao templo, ao sacerdócio e às práticas
religiosas. Pelo contrário, deve recorrer a todas as suas forças para que o
direito divino seja reconhecido e plenamente realizado em sua própria vida e
em cada aspecto da vida toda. [...] todo comportamento é determinado
pelas exigências da vontade divina, que ao mesmo tempo constituem o seu
fundamento e a sua norma: o homem deve ser justo e bom como Deus. Por
isso, [...] deve estar pronto a ajudar o seu povo em qualquer perigo; deve
respeitar direitos e costumes; deve condenar toda transgressão, da mentira
ao homicídio; deve evitar responder ao bem com o mal; deve fazer tudo
para que ninguém o impeça de fazer o bem, mesmo que para isso tenha de
padecer injustiças; deve ser desinteressado e hospitaleiro para com os
estrangeiros; deve opor-se a toda crueldade, mesmo às custas de seu
próprio prejuízo; deve ser compassivo com os fracos e indefesos e fazer
valer os direitos dos oprimidos. Essas exigências não derivam da lógica das
coisas. Por isso, a seriedade do compromisso emerge claramente das
concepções dos povos da época veterotestamentária. Essa situação se
reflete no âmbito do direito: pela primeira vez se reconhece o valor do
homem e se respeita o seu direito, estabelecendo penas mais suaves,
abolindo a punição da mutilação e criando normas em benefício dos
escravos.137

Esta imagem ética do homem hebreu pode ser encontrada nos textos dos
salmos, como por exemplo, no Salmo 15. Nele é expresso que a pessoa de virtude é
aquele que “jura com dano próprio e não se retrata; o que não empresta o seu
dinheiro com usura, nem aceita suborno contra inocente. Quem deste modo procede
não será jamais abalado”. Ou seja, se alguém proceder como descrito não será
abalado. Pode-se interpretar esta promessa religiosamente, considerando que Deus

136
SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentos e seu contexto social. In:
GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 46.
137
FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas,
1982, p. 260s.

60
o abençoará de alguma forma, retribuindo sua obediência e comportamento idôneo.
Mas pode-se também interpretar este verso de forma dedutiva e sistêmica, ou seja,
se cada cidadão assim proceder, consequentemente, não apenas ele, mas todos
serão fortalecidos, protegidos mutuamente. O contrário também é correspondente:
se houver pessoas que juram falsamente (Má-Fé), se retratando a cada instante,
pensando sempre em beneficiar a si, em detrimento do concidadão, então todo o
aparato social estará em constante abalo, insegurança. 138
Um dos textos mais coercitivos encontra-se em Dt 27, no qual se procura,
mediante maldições (penalidades), assegurar que a lei toda seja respeitada. Não
uma lei promulgada por um só indivíduo, mas promulgada por um grupo
representativo (v. 1: Moisés e os anciões) e sentenciada pelo povo (v. 15-26).
Versículo 15: “Maldito o homem que fizer imagem de escultura ou de fundição,
abominável ao Senhor, obra de artífice, e a puser em lugar oculto. E todo o povo
dirá: Amém!” Deus fala de modo imperativo (15a) com a participação do povo (15b):
E todo o povo dirá: que assim seja, que assim seja feito, que assim seja executado.
Do versículo 15 ao 26, cada verso é iniciado com “Maldito aquele que...” e finalizado
com “E todo o povo dirá: Amém!”, desfilando um cordel de leis sociais,
mantenedoras do novo modo de produção. O versículo 25 amaldiçoa a pessoa que
perjura, mediante suborno, levando o inocente à morte. Cada palavra, não só do
cidadão, como da lei, não pode ser usada falsamente. No caso do Decálogo, ao não
cumpri-lo, se está infringindo diretamente o segundo Mandamento. Este segundo
Mandamento é como um invólucro de todo o Decálogo, a exemplo da última
maldição de Dt 27: “Maldito aquele que não confirmar as palavras desta lei, não as
cumprindo. E todo o povo dirá: Amém!” (v.26). O povo pactua com as leis da aliança
mosaica, confirma fidelidade ao contrato social da nova sociedade dos hapirus.
Aquele que se insurge contra a mesma, se insurge contra o todo e todos devem
participar da punição.
O segundo Mandamento, destarte, auxiliou para que o Decálogo (norma
jurídica), entregue por Yahweh a Moisés, fosse viabilizado pela palavra [v. 7a] (um
modelo de nota promissória, título de crédito); palavra através da qual todo o
arcabouço social pudesse ser constituído pelo nome de Yahweh, o avalista final

138
SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentos e seu contexto social. In:
GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 45:
“Pronunciar o nome de Yahweh em prejuízo do próximo era grave delito contra um Deus que se
manifesta nas relações de justiça e solidariedade em qualquer nível da existência”.

61
(Estado virtual), como seu garante. Para tanto, este segundo Mandamento também
foi forjado com um cunho coercitivo [v. 7b], fortalecendo a lei (Decálogo) e
respaldando-a com poder de polícia (maldições e penalidades), lastreando a
transformação paulatina de uma nova prática política e legal, para que toda esta
iniciativa original não fosse em vão.

2.3 SANTIFIQUE O DIA DE DESCANSO

Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás todo o teu
trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse dia não farás trabalho
algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu
animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o
Senhor o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; por isso o
Senhor abençoou o dia do sábado e o santificou (Ex 20.8-11).

A ética hebraica é espraiada a todas as áreas da vida. O trabalho não


poderia ficar de fora, pois foi primordialmente em função deste que os diferentes
grupos de hapirus migraram para as montanhas da Palestina, fomentando o
surgimento de um modo de produção alternativo, fazendo emergir leis trabalhistas
diferenciadas das demais existentes. Este terceiro Mandamento desdobra-se em
quatro subgrupos: a) a dimensão laboral; b) a dimensão social; c) a dimensão
econômica; d) a dimensão ecológica.
Este desdobramento se faz necessário, ao contrário dos dois primeiros, pois
este foi o mandamento que mais sofreu acréscimos e explicações devido a sua
importância139. Esta importância reside no fato dele ser positivamente formulado, ao
contrário de todos os demais (com exceção do quarto Mandamento) 140. Enquanto
que os dois primeiros Mandamentos asseveram proibições e não ações propositivas,
este, por sua vez, propõe uma prática do não fazer, basilar para um modo de
produção alternativo que, em última instância, não visava a produção pela produção,

139
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 46.
140
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 50.

62
mas a produção com um fim social. Sobre esta finalidade ético-social se constroem
as quatro dimensões a seguir.

2.3.1 A dimensão laboral

O surgimento do Decálogo, como visto no ponto 1.5.2, se deu por volta do


século VII a.C. Adquiriu importância depois do século V a.C., quando então foi
revestido de um cunho mais religioso. Contudo, na formação e estabelecimento das
12 Tribos, este terceiro Mandamento tinha um sentido não religioso. O verbo shbt141
significa apenas parar, não fazer nada 142. Em outro texto jurídico se diz: Seis dias
trabalharás, mas, ao sétimo dia, descansarás (shbt), quer na aradura, quer na sega
(Ex 34.21). No início, este Mandamento não tinha a ver com o culto a Yahweh143. Era
simplesmente um benefício de parada depois de seis dias de trabalho. O verbo
santificar, originariamente, significava separar este dia dos outros, dos dias de
trabalho144. O trabalho do agricultor não era agradável. O texto de Gn 3.17ss
descreve o dia-a-dia laboral do agricultor, como sendo penoso, duro, sofrido e
suado145. Mais do que uma exigência, este terceiro Mandamento é um benefício e
caracteriza todos os demais Mandamentos na mesma perspectiva. Os
Mandamentos não são propriamente obrigações, mas procuram isto sim libertar as
pessoas de imposições. O descanso sabático exprime a dádiva do tempo livre.
Posteriormente, no século V a.C., é que esta parada vai receber uma
interpretação cúltica, com exigências de participações em ritos religiosos 146. O
sentido teológico é incutido, comparando-se esta parada laboral com a parada do
sétimo dia da criação (texto babilônico do século VI a.C.). A interpretação religiosa é
estabelecida e o terceiro Mandamento retificado também como de cunho religioso,
141
Transliteração do verbete em hebraico para a grafia ocidental, cujo sentido é parar.
142
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983,
p. 183.
143
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983,
p. 184.
144
OLIVEIRA, Benjamim Carreira de. O Decálogo – Palavras de uma aliança. In: GARMUS, Ludovico
(org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 16. Cf. também WOLFF,
Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983, p. 187.
145
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.
146
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 47s.

63
não apenas social. Ou seja, assim como Yahweh descansou no sétimo dia, o fiel
também descansará no sétimo dia, agora sim por preceito religioso. 147
Contudo, a causa deste Mandamento nada mais foi do que as experiências
negativas com outros modos de produção, anteriores à formação das 12 Tribos 148, a
exemplo do grupo mosaico, hapirus sob o reinado de Ramsés II, que teve uma
amarga experiência de trabalho forçado. Ramsés II transferiu a capital para o Delta
do Nilo, exigindo mão-de-obra para as novas e suntuosas construções, além de
Silos para a produção agrícola. Até pastores semi-nômades foram recrutados para
este trabalho extenuante. Em momentos excepcionais, o Estado precisa passar
além dos limites para extrair o máximo dos trabalhadores em menos tempo. Este
recrutamento forçado se constituiu no foco de discórdia e resistência, como visto no
primeiro capítulo.149
Estas experiências ficaram registradas na memória e foram posteriormente
transcritas. O faraó não dava descanso (Ex 5.7s); não deixava o povo fazer festa (Ex
5.1-5); só queria produção (Ex 5.18). O povo era xingado e batido (Ex 5.14,17).
Eram hapirus, não valiam como gente. Só valiam enquanto produzissem para o
faraó e para os reis, pagando tributo ou fazendo trabalho escravo. Na fuga do Egito,
os hapirus levaram estas recordações do sofrimento laboral, como também a
experiência de um Yahweh que liberta da casa da servidão.
O Decálogo tem no seu primeiro Mandamento: Eu sou o Senhor, teu Deus,
que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Segundo Crüsemann, esta
segunda parte é como um prólogo de todo Decálogo 150. A memória popular,
repassada e mantida pelas festas de libertação, se faz aqui presente, ressaltando a
causa fomentadora de todo o Decálogo, especialmente deste terceiro Mandamento.
Neste prólogo, Yahweh faz recordar que os hapirus eram uma vez escravos num
modo de produção escravocrata, que não os respeitava (Dt 5.15 151); mas agora

147
OLIVEIRA, Benjamim Carreira de. O Decálogo – Palavras de uma aliança. In: GARMUS, Ludovico
(org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 17. Cf. também MESTERS,
Carlos. Os Dez Mandamento (Ex 20.1-17) – Ferramenta da Comunidade. In: GARMUS, Ludovico
(org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 61.
148
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.
149
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
131ss.
150
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 36ss.
151
Porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que Yahweh, teu Deus, te tirou dali com
mão poderosa e braço estendido; pelo que Yahweh, teu Deus, te ordenou que guardasse o dia de
sábado.

64
foram libertos e estão livres para formar um modo de produção no qual nem o
trabalho, nem a produção deste deve orientar o sentido de ser e de viver. O hapiru
não deve mais ser definido por ser um trabalhador, mas por ser um cidadão livre
(hebreu); não mais um servo do faraó, mas a serviço de Yahweh que liberta para
uma terra que mana leite e mel. O sábado, assim, está diretamente conectado ao
trabalho, à produção152. Nele cessam as atividades. “As pessoas podem ficar juntas,
descansar, conversar, cultivar a memória, a amizade, o prazer” 153.
Por isto, quem desobedecia este mandamento por ganância é acusado
pelos profetas, porta vozes de Yahweh, e sentenciado pelo povo (Am 5.8) 154.
Jeremias (17. 21ss) realça o apreço à vida livre proposto pela legalidade deste
terceiro mandamento, que é dada a perder pela preocupação própria. Segundo
Isaías (58.13s), este mandamento é para a segurança social, para gozo do povo.
Portanto, quem infringisse esta normativa do trabalho estava deitando por terra não
apenas um direito pessoal, como também um direito social. A constituição das 12
Tribos é alicerçada neste direito trabalhista; era sua base constitucional, legal.
Yahweh fez uma aliança com o povo hapiru e esta aliança era confirmada a cada
sétimo dia, quando o agriculto parava, relembrando a história de seus pais, escravos
no Egito, e de Yahweh que constituiu uma sociedade sobre novos alicerces sociais.
Guardar o sábado era restabelecer a aliança, o pacto mosaico (social); era
constantemente confirmar a eleição de uma normatividade social e se deixar pautar
continuamente pela mesma; era um “sinal” de fidelidade às normas constitutivas da
nova sociedade em construção. Em Ex 31.13-17 se lê:

Falarás também aos filhos de Israel, dizendo: Certamente guardareis os


meus sábados; porquanto isso é um sinal entre mim e vós pelas vossas
gerações; para que saibais que eu sou o Senhor, que vos santifica. Portanto
guardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele que o profanar
certamente será morto; porque qualquer que nele fizer algum trabalho,
aquela alma será exterminada do meio do seu povo. Seis dias se trabalhará,
mas o sétimo dia será o sábado de descanso solene, santo ao Senhor;
qualquer que no dia do sábado fizer algum trabalho, certamente será morto.
Guardarão, pois, o sábado os filhos de Israel, celebrando-o nas suas
gerações como pacto perpétuo. Entre mim e os filhos de Israel será ele um
sinal para sempre; porque em seis dias fez o Senhor o céu e a terra, e ao
sétimo dia descansou, e achou refrigério. (grifou-se)

152
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 27.
153
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 27.
154
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983,
p. 188.

65
Por isto, ao não cumprimento desta lei, rompe-se a aliança e a consequência
é a morte: “será eliminado do meio do povo” (Ex 31.14s) 155. Um exemplo é Nm
15.32-36, onde um homem é apedrejado à morte por haver trabalhado num sábado.
Esta rigidez normativa não se baseia num desrespeito meramente religioso; é a
quebra de uma aliança feita entre os pais e Yahweh, aliança que mantém a
sociedade justa. A expressão eliminado do meio do povo exprime que a ação de
trabalhar no sétimo dia prejudica a todos: social, econômica e ecologicamente como
se verá nos pontos posteriores. Por isto o elemento danoso precisa ser eliminado do
meio da massa, caso contrário, deteriorará a mesma. Não é uma penalidade que
visa corrigir uma mera ação individual com consequências pessoais. A consequência
pode colocar todo o projeto do novo modo de produção em jogo. Há uma conexão
estreita entre religião, moral e direito no nascedouro das 12 Tribos 156. Daí o
radicalismo penal: morte para se eliminar o mal pela raiz. 157
Segundo ALT, esta forma de direito penal não é encontrada na sociedade
Cananéia, meio no qual emerge as 12 Tribos. Para o autor, isto implica dizer que é
uma lei essencialmente hebreia, não oriunda de outros códices jurídicos. Sua
existência exclusiva se deve exatamente pela novidade política das 12 Tribos, sem
rei, sem faraó, onde a aliança (contrato social) é feita com Yahweh (entidade virtual e
Estatal).158 Segundo ALT, “estas concepções legais de Israel ainda em fase de
formação na Palestina entram em violento conflito com o antigo sistema legal
cananeu, altamente desenvolvido e cuidadosamente formulado” 159. O radicalismo da
pena de morte quer resguardar assim o novo projeto social de qualquer influência
estranha e contrária ao novo modo de produção 160. O surgimento das 12 Tribos
ocorre em meio ao povo cananeu, não no vazio do deserto. Esta emersão de novos
valores político-sociais em meio adverso torna o modelo nascente suscetível,
necessitando de dureza contra a menor infração que se manifestar, objetivando com
isto uma implantação sem vícios.
155
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983,
p. 191.
156
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 215.
157
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983,
p. 191.
158
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 226s.
159
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 234.
160
ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 235.

66
Concluindo este subponto, o terceiro Mandamento visa oferecer ao hapiru
(operário, agricultor, pastor escravo) um espaço de trabalho mais digno. O
Mandamento, mais que uma exigência, é um benefício. O descanso possibilita
renovação das forças, espaço para festejar libertações e momento de reflexão sobre
a vida (pessoal e social). O trabalho e seu descanso têm uma função social; deve
estar a serviço do povo, redundando em benefício social: igualdade social, economia
justa, festa comunitária, harmonia com a terra (fonte da produção e sentido para o
descanso)! A lei do sábado, a parada, o descanso, deve gerar vida (individual e
social) e não morte (individual e social). Ao não respeitá-la é que o ser humano gera
a morte (individual e social). Existe, portanto, uma função social acoplado a este
Mandamento, no seu nascedouro. É sobre esta dimensão social que se tratará no
próximo subponto.

2.3.2 A dimensão social

O terceiro Mandamento tem, a partir do ponto anterior, consequentemente,


uma dimensão social, pois nele é descrito diferentes grupos sociais; e todos eles
devem descansar, independente da hierarquia existente entre as pessoas ali
mencionadas161. Ex 20.10: “Neste dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho,
nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o estrangeiro que
está dentro das tuas portas”. Neste verso é descrito quatro grupos sociais, existente dentro
da casa – famílias (extensas), clãs, tribos. O agricultor livre (tu), filhos (trabalhadores
igualmente braçais), servos (trabalhadores que vendiam sua força braçal ou escravos), os
animais (tratar-se-á no último subponto) e os estrangeiros (o último da lista por ordem de
direitos sociais, mas que também vinha do exterior a procura de trabalho). Todos os estratos
sociais são atingidos por este terceiro Mandamento. Todos os estratos sociais devem se
beneficiar, descansando no sétimo dia, não apenas o grupo dos libertos. A questão de
gênero também é assegurada: nem teu filho nem tua filha, nem teu servo nem tua serva.
Importante recordar que, historicamente, o Decálogo foi constituído formalmente no
VII século a.C., momento no qual os reinados haviam se corrompido e muitos dos princípios
originais das 12 Tribos já se encontravam em crise. Existem escravos entre os próprios
hebreus e abusos contra a antiga aliança. Daí a necessidade de resgate da mesma,
161
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.

67
ressaltando aqueles pontos emergenciais para problemas vigentes na época em questão. O
terceiro Mandamento recebe acréscimos, tais como este verso, fazendo a atenção voltar
para esta dimensão em processo de deterioração. O que era um princípio necessário na
formação das 12 Tribos, agora, no VII século a.C., torna-se premente.162
“Percebe-se que as contradições sociais forçaram esta ampliação” 163. Os senhores
e os mais abastados estavam achando que este Mandamento servia apenas para eles. O
terceiro Mandamento quer ressaltar, pois, que este benefício do descanso é para as
crianças, para os escravos e escravas, para os animais e para os estrangeiros. A lembrança
de que os pais um dia foram estrangeiros no Egito deve sensibilizar os que agora estão no
lugar dos mandatários, tendo estrangeiros sob si. Com isto, “o sábado desatina, por
momentos, as desigualdades. Barra-as. Protesta contra elas. Afirma que toda a gente criada
é igual diante do Criador. A prática do descanso é, pois, um foco de contestação, contra as
injustiças e desigualdades”164.
Em Ex 23.12 se lê: “Seis dias farás os teus trabalhos, mas ao sétimo dia
descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento, e para que tome alento o filho da
tua escrava e o estrangeiro”. Aqui é incluído o filho da serva, destacando quão alentador,
necessário, era o descanso semanal. Ou seja, o trabalho era tão penoso para certas classes
sociais (servos, escravos e estrangeiros, assim como seus filhos) a ponto de desfalecerem.
O sábado lhes dava alento, em contrapartida. A ressalva deste verso alerta que socialmente
algumas classes se beneficiavam do terceiro Mandamento, enquanto outras não. Contudo, a
finalidade do dia de repouso é a renovação das forças, a todos os trabalhadores. São
classes sociais indefesas, tais como os hapirus no século XIII a.C., na casa da servidão.
Com isto, o sábado relativiza as diferenças sociais. Todos são iguais diante de
Yahweh (ente virtual), assim como todos são iguais diante do Estado, como professa a
Constituição Federal (CF) brasileira, de 1988, em seu art. 5º, caput: “Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade”. Em Dt 5.14, se lê: “ para que o teu criado e a tua criada
descansem do mesmo modo como tu” (grifou-se). Não deve haver distinção entre
estas classes trabalhadoras, no que tange este terceiro Mandamento.
Tal era a necessidade de preservar este modo de produção, defendendo-o de
desfalecer diante da desobediência dos cobiçosos que começavam a adquirir mais terras e
escravos, fazendo aumentar as diferenças entre hapirus. Isto faz surgir no desenrolar da
história israelita um desdobramento mais contundente deste Mandamento: o ANO
162
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 21s.
163
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 27.
164
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 27.

68
SABÁTICO. “Já não é mais só o dia que importa, mas também o ano. O ritmo da semana é
transposto para o dos anos. É fascinante ver quão criativa se torna a prática do sábado” 165.
Em Ex 23.10-11 se lê: “Seis anos semearás tua terra, e recolherás os seus frutos; mas no
sétimo ano a deixarás descansar e não a cultivarás, para que os pobres do teu povo
possam comer, e do que estes deixarem comam os animais do campo. Assim farás com a
tua vinha e com o teu olival”. Os alimentos do sétimo ano são para pobres e animais, o que
não eram poucos no sétimo século a.C., considerando que também a vinha e o olival
deviam servir de alimento.
O Ano Sabático, desdobramento do terceiro Mandamento, portanto, visa trazer
justiça e equilíbrio sociais. De sete em sete anos a terra era deixada de mão para que
qualquer um pudesse se alimentar livremente. Isto implicava em renúncia completa à
colheita em favor dos pobres e dos animais selvagens do campo. O Ano Sabático cumpria
uma função essencialmente social, ao distribuir igualmente a receita da produção de seis
anos entre aqueles que viviam no território hebreu, entre aqueles que não partilhavam da
receita igualitariamente. No sétimo ano, no Ano Sabático, todo trabalho parava, tal qual hoje
em dia algumas classes de trabalhadores podem desfrutar de períodos sabáticos, depois de
alguns anos de trabalho regular166, mesmo que para fazer outras atividades, mormente
acadêmicas de capacitação.
Mas caso toda esta gama de leis não surtisse efeito em determinadas situações,
fazendo um hapiru se empobrecer a tal ponto de se vender como escravo, prática comum
na sociedade cananéia e vizinhança, então o outro hapiru deveria refrear aceitá-lo como
escravo. O livro de Levítico é essencialmente um códice legal. Nele se lê, em Lv 25.39:
“Também, se teu irmão empobrecer ao teu lado e vender-se a ti, não o farás servir como
escravo. Como jornaleiro, como peregrino estará ele contigo”. Quer-se evitar a desigualdade
social, recordando-se sempre que também o rico é descendente de hapirus, observando o
empobrecido hebreu como se fosse seu pai, avô, que um dia se vendeu escravo no Egito,
ou aos reis cananeus. Lv 25.55 finaliza esta lei com esta explicação: “Porque os filhos de
Israel são meus servos; eles são os meus servos que tirei da terra do Egito. Eu sou o
Senhor vosso Deus”.
A despeito de todos estes esforços, a escravidão se fez presente. Neste caso,
surge outra lei, igualmente sabática, que libertava por imposição o escravo que se vendeu
em decorrência da estratificação social, como expressa Dt 15.12-15:

Se te for vendido um teu irmão hebreu ou irmã hebréia, seis anos te servirá,
mas no sétimo ano o libertarás. E, quando o libertares, não o deixarás ir de
mãos vazias; liberalmente o fornecerás do teu rebanho, e da tua eira, e do
teu lagar; conforme o Senhor teu Deus tiver abençoado te darás. Pois

165
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 27.
166
Lei 7.109, 13/10/1977, art. 137-142; decreto 2.794, de 1º /10/1998, art. 10º, parágrafo 4º.

69
lembrar-te-ás de que foste servo na terra do Egito, e de que o Senhor teu
Deus te resgatou; pelo que eu hoje te ordeno isso.

Não satisfeito com a lei do terceiro Mandamento, em Ex 20, nem com o


acréscimo a poteriori de Ex 23, surge o texto de Deuteronômio com o fito de ajustar
os desníveis sociais causados pela injustiça promovida pelas classes ascendentes,
com uma interferência mais acurada. O serviço escravo era tolerado até certo
período, quando então deveria ser liberto. Não há escravidão perpétua. Ela tem seu
tempo de tolerância e após seis anos, o escravo não apenas devia ser despedido,
liberto, como devia levar consigo parte da produção que ele mesmo ajudou a
acumular ao longo do tempo de serviço. O escravo não ficava desprotegido quando
liberto. A lei do Ano Sabático o protegia mesmo depois de liberto, oferecendo
condições de recomeço.
Além da escravidão, há uma lei que procurava compensar a posse da terra:
o ANO DO JUBILEU, em Levítico 25. Inicialmente, com a formação das 12 Tribos, a
terra pertencia a Yahweh. Uma vez colonizada pelos hapirus imigrantes, foragidos e
retirantes, a terra que mana leite e mel foi dividida entre as tribos, clãs e famílias
para posse perpétua. A terra pertencia às famílias por dádiva de Yahweh. Portanto,
não podia, nem deveria ser repassada a outrem; o que inevitavelmente veio a
ocorrer, gerando crescimento de empobrecidos (sem-terras) em detrimento daqueles
que acumulavam terra sobre terra (latifundiários). Assim expressa Lv 25.23:
“Também não se venderá a terra em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós
estais comigo como estrangeiros e peregrinos”.
O Ano do Jubileu dita que a cada cinquenta anos (sete vezes sete), todos
deveriam retornar às terras de origem; um tipo de reforma agrária 167. Assim se lê em
Lv 25.8-10:

Também contarás sete sábados de anos, sete vezes sete anos; de maneira
que os dias dos sete sábados de anos serão quarenta e nove anos. Então,
no décimo dia do sétimo mês, farás soar fortemente a trombeta; no dia da
expiação fareis soar a trombeta por toda a vossa terra. E santificareis o ano
quinquagésimo, e apregoareis liberdade na terra a todos os seus habitantes;
ano de jubileu será para vós; pois tornareis, cada um à sua possessão, e
cada um à sua família.

A proposta é de total restauração da igualdade social após cada 50 anos; um


mecanismo legal para compensar os desajustes de crescimento estratificado das
camadas, a partir da posse ou perda da terra. Neste Ano do Jubileu, cada qual pode

167
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 29.

70
retornar às terras de seus antepassados e reassumir suas posses. A terra não
pertence aos acumuladores de terras, mas a Yahweh (entidade virtual, Estado) que
a redistribui a cada cinquenta anos com o fito de aparar as arestas que surgem a
partir da desobediência do Decálogo. Caso a lei jurídica do Decálogo fosse seguida
fielmente, ou seja, se a aliança (contrato social) fosse acatada por todos os cidadãos
hebreus, não teriam surgido acréscimos, nem o Ano Sabático, nem o do Jubileu. A
existência deles denuncia que a legalidade do Decálogo era, em certa medida,
utópica.168

2.3.3 A dimensão econômica

Trabalhar seis dias e parar no sétimo tem efeitos diretos na economia de


qualquer modo de produção, ainda mais que os Estados vizinhos forçavam seus
trabalhadores a trabalhar os sete dias na semana. A tentação de lucrar está na base
deste terceiro Mandamento, assim como o de fomentar um modo de produção
alternativo, não baseado no trabalho extenuante que alimenta minorias em
detrimentos da maioria (memória da casa da servidão), mas num projeto de uma
sociedade igualitária, dignificante e justa.
Segundo SCHWANTES, um dos textos que remonta à formação das 12
Tribos é o de Ex 34.21, no qual é expresso que a parada semanal deve ocorrer tanto
na aradura quanto na colheita, ou seja, nos momentos de maior atividade agrícola.
Com isto, segundo SCHWANTES, há uma indicação implícita de reduzir a produção.
Não é bom o acúmulo. É necessário saber viver sob o conceito da proteção e
sustento de Yahweh (Estado virtual), não tanto no crescimento pessoal. O
crescimento deve ser coletivo, gradual e igualitário. Se há crescimento, todos devem
se beneficiar. O terceiro Mandamento trata de manter sob controle a produção
desordenada.169
Segundo CRÜSEMANN, este descanso asseverado para o tempo das
principais estações agrícolas da semeadura e da colheita (Ex 34.21b) “implicava

168
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 72.
169
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 27.

71
renunciar a uma parte não-desprezível da receita familiar” 170. Segundo ele, “em sua
origem, este mandamento foi concebido justamente para esses períodos
específicos”171. A cobiça e os ávidos por obterem mais riquezas desrespeitavam esta
norma, pelo menos no tempo da semeadura e da colheita, pois este descanso
poderia colocar toda a produção em risco. Mas a ideia do terceiro Mandamento não
é outra senão esta: exatamente quando o tempo aperta é que o trabalhador precisa
parar172, não se deixando ser seduzido pelo trabalho e pela promessa de riqueza
(pessoal) presente no mesmo. Exatamente então, o camponês precisa do dia de
repouso.
É necessário frisar o que estava em jogo: o novo modo de produção
igualitário. Se noventa por cento dos hapirus parava e o restante não, estes tinham
melhores chances de vingar em detrimento da maioria. Por isto surgem os profetas a
partir do século IX a.C., acusando aqueles que querem enriquecer no sétimo dia. “O
profeta Amós condena os mercadores de cereais que não podem esperar o fim do
sábado, porque querem voltar a vender trigo e lograr os compradores com artigos
inferiores, pesos falsos e preços elevados (8.5)” 173. O profeta Jeremias*** escreve:

Assim me disse o Senhor: Vai, e põe-te na porta de Benjamim, pela qual


entram os reis de Judá, e pela qual saem, como também em todas as portas
de Jerusalém. E dize-lhes: Ouvi a palavra do Senhor, vós, reis de Judá e
todo o Judá, e todos os moradores de Jerusalém, que entrais por estas
portas; assim diz o Senhor: Guardai-vos a vós mesmos, e não tragais
cargas no dia de sábado, nem as introduzais pelas portas de Jerusalém;
nem tireis cargas de vossas casas no dia de sábado, nem façais trabalho
algum; antes santificai o dia de sábado, como eu ordenei a vossos pais.
Mas eles não escutaram, nem inclinaram os seus ouvidos; antes
endureceram a sua cerviz, para não ouvirem, e para não receberem
instrução. Mas se vós diligentemente me ouvirdes, diz o Senhor, não
introduzindo cargas pelas portas desta cidade no dia de sábado, e
santificardes o dia de sábado, não fazendo nele trabalho algum, então
entrarão pelas portas desta cidade reis e príncipes, que se assentem sobre
o trono de Davi, andando em carros e montados em cavalos, eles e seus
príncipes, os homens de Judá, e os moradores de Jerusalém; e esta cidade
será para sempre habitada. E virão das cidades de Judá, e dos arredores de
Jerusalém, e da terra de Benjamim, e da planície, e da região montanhosa,
e do sul, trazendo à casa do Senhor holocaustos, e sacrifícios, e ofertas de
cereais, e incenso, trazendo também sacrifícios de ação de graças. Mas, se
não me ouvirdes, para santificardes o dia de sábado, e para não trazerdes
carga alguma, quando entrardes pelas portas de Jerusalém no dia de

170
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 48.
171
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 48.
172
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983,
p. 189.
173
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983,
p. 188.

72
sábado, então acenderei fogo nas suas portas, o qual consumirá os palácios
de Jerusalém, e não se apagará. (grifou-se)

Este texto implicitamente confirma a ideia de que a economia do Estado


israelita está justamente no respeito à lei do sábado, enquanto mantenedora da
igualdade e de crescimento econômico gradual e constante, logrando sucesso
econômico através das relações comerciais com outros reinados vizinhos, que
reconhecem oportuno o comércio, diante de um Estado econômica e politicamente
forte. Por outro lado, a desobediência à lei do sábado, com o dolo da prática
comercial, visando lucros através do trabalho desigual para com os outros
comerciantes, e do logro comercial com pesos e medidas falsas, leva o Estado a ser
consumido pela destruição. Destruição do modo de produção igualitário que se está
defendendo desde a libertação da casa da servidão. Com esta norma sabática, o
interesse do Estado suplanta o interesse pessoal; o sucesso da coletividade, do
povo hapiru, suplanta o sucesso individualizado. A lei do sábado evoca o direito
social em detrimento do direito do indivíduo. A lei do sábado embasa um modo de
produção econômico ímpar, igualitário, fugindo das experiências negativas
existentes nos outros modos de produção. Quer-se gestar algo diferente. É uma
tentativa e precisam-se apostar todas as fichas!
A dimensão econômica fez parte intrínseca do desdobramento do terceiro
Mandamento no ANO SABÁTICO. Se deixar de trabalhar a terra por um dia da
semana já compromete a economia familiar, pode-se imaginar por um ano inteiro.
Em Lv 25.1-7 se lê:

Disse mais o Senhor a Moisés no monte Sinai: Fala aos filhos de Israel e
dize-lhes: Quando tiverdes entrado na terra que eu vos dou, a terra
guardará um sábado ao Senhor. Seis anos semearás a tua terra, e seis
anos podarás a tua vinha, e colherás os seus frutos; mas no sétimo ano
haverá sábado de descanso solene para a terra, um sábado ao Senhor; não
semearás o teu campo, nem podarás a tua vinha. O que nascer de si
mesmo da tua sega não segarás, e as uvas da tua vide não tratada não
vindimarás; ano de descanso solene será para a terra. Mas os frutos do
sábado da terra vos serão por alimento, a ti, e ao teu servo, e à tua serva, e
ao teu jornaleiro, e ao estrangeiro que peregrina contigo, e ao teu gado, e
aos animais que estão na tua terra; todo o seu produto será por mantimento.

A ideia novamente é de barrar o crescimento econômico de alguns,


procurando amortizar as diferenças socioeconômicas com este ano de ajuste. Ao
pensar no empobrecido, dando-lhe oportunidade de participar da produção de seis
anos, está-se comprometendo a riqueza e o acúmulo de um ano de produção. Este
ajuste social tem consequências econômicas tremendas se observado somente pelo

73
viés do lucro. Contudo, visto sob a perspectiva da solidariedade, do apoio entre
famílias, clãs e tribos, este modo de produção sabático promove justiça e igualdade,
quando periodicamente (a cada sete anos) constrange uma parada (shbt) na
produção, forçando a ajuda mútua e a recordação de que todos são iguais diante de
Yahweh (Estado) e de que devem encontrar criativamente saídas para situações
limítrofes resultantes desta lei.174
Esta percepção econômica solidaria é percebida mais claramente no texto
de Dt 15.1-11, que fala do ANO DA REMISSÃO:

Ao fim de cada sete anos farás remissão. E este é o modo da remissão:


todo credor remitirá o que tiver emprestado ao seu próximo; não o exigirá do
seu próximo ou do seu irmão, pois a remissão do Senhor é apregoada. Do
estrangeiro poderás exigi-lo; mas o que é teu e estiver em poder de teu
irmão, a tua mão o remitirá. Para que não haja entre ti pobre algum (pois o
Senhor certamente te abençoará na terra que o Senhor teu Deus te dá por
herança, para a possuíres), contanto que ouças diligentemente a voz do
Senhor teu Deus para cuidares em cumprir todo este mandamento que eu
hoje te ordeno. Porque o Senhor teu Deus te abençoará, como te prometeu;
assim, emprestarás a muitas nações, mas não tomarás empréstimos; e
dominarás sobre muitas nações, porém elas não dominarão sobre ti.
Quando no meio de ti houver algum pobre, dentre teus irmãos, em qualquer
das tuas cidades na terra que o Senhor teu Deus te dá, não endurecerás o
teu coração, nem fecharás a mão a teu irmão pobre; antes lhe abrirás a tua
mão, e certamente lhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua
necessidade. Guarda-te, que não haja pensamento vil no teu coração e
venhas a dizer: Vai-se aproximando o sétimo ano, o ano da remissão; e que
o teu olho não seja maligno para com teu irmão pobre, e não lhe dês nada;
e que ele clame contra ti ao Senhor, e haja em ti pecado. Livremente lhe
darás, e não fique pesaroso o teu coração quando lhe deres; pois por esta
causa te abençoará o Senhor teu Deus em toda a tua obra, e em tudo no
que puseres a mão. Pois nunca deixará de haver pobres na terra; pelo que
eu te ordeno, dizendo: Livremente abrirás a mão para o teu irmão, para o
teu necessitado, e para o teu pobre na tua terra. Se te for vendido um teu
irmão hebreu ou irmã hebréia, seis anos te servirá, mas no sétimo ano o
libertarás. E, quando o libertares, não o deixarás ir de mãos vazias;
liberalmente o fornecerás do teu rebanho, e da tua eira, e do teu lagar;
conforme o Senhor teu Deus tiver abençoado te darás. Pois lembrar-te-ás
de que foste servo na terra do Egito, e de que o Senhor teu Deus te
resgatou; pelo que eu hoje te ordeno isso.

Dois pontos aguçam a atenção: a) o empréstimo ao irmão hebreu (hapiru)


necessitado. O empréstimo aponta para o aspecto solidário, já que este empréstimo
não era feito a juros altos, mas com fito de auxiliar os necessitados. Até na
proximidade do Ano da Remissão dever-se-ia emprestar, pois o que estava em jogo
não era apenas a situação pessoal, mas o novo projeto socioeconômico. Caso os
endividamentos continuassem à revelia, a sociedade iria se estratificar a tal ponto de
se igualar às sociedades das quais os hapirus foram libertos. Estes não seriam

174
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 28 e 38.

74
diferentes daquelas. Mas a memória da casa da servidão e da aliança com Yahweh
os fazia emprestar, mesmo quando o Ano da Remissão estivesse próximo,
confirmando o pacto social. Pois, com respeito ao empobrecido, “sua necessidade
está muito acima do dinheiro”175.
b) Esta dívida por empréstimo, contudo, era automaticamente cancelada
quando o Ano da Remissão era proclamado em todas as tribos. O cancelamento das
dívidas existentes com a chegada do Ano da Remissão (a cada sete ano) tinha
como fito a extinção da pobreza entre os hapirus, como assevera o verso 4: Para
que não haja entre ti pobre algum. O Ano da Remissão objetiva a eliminação do
empobrecido, extinguindo o mecanismo econômico que o promove: o endividamento
paulatino a ponto de se chegar à escravidão por dívida. 176 Mas mesmo que isto
ocorresse então também esta dívida deveria ser cancelada e o irmão escravizado
por dívida devia ser liberto, como visto no ponto anterior. Neste ponto, contudo, é
ressaltado o quesito econômico desta lei, pois a perda da mão de obra também
produz reflexos na produção agrícola e na economia familiar.
Claro que este texto de Dt 15 é utópico. Mas tal utopia logrou construir uma
sociedade viável por 200 anos, na medida em que os pobres (hapirus) se
organizavam para efetivá-la, sempre com a memória da libertação dos antigos
modelos socioeconômicos escravocratas. Também no século VIII a.C., era “preciso
pôr sob controle o dinheiro, os empréstimos, os endividamentos! A cada sete anos
estão cancelados!”177 Memória de modelos de endividamento perpétuo, de
comerciantes vis, contra quem o pobre não encontrava defesa na legislação local;
eram hapirus, os sem direitos. Na formação das 12 Tribos, contudo, eles puderam
ser os artífices legais deste novo modo socioeconômico, procurando criativamente
resolver os desníveis que acabavam surgindo no meio da própria sociedade que
defendia o igualitarismo e a justiça.178
Por último, o ANO DO JUBILEU (Lv 25.13-17) promove um tipo de reforma
agrária, já mencionado no ponto anterior. A cada cinquenta anos, todas as terras
vendidas deviam retornar a seu antigo proprietário. O texto é claro ao ditar que a
compra não é do terreno em si, mas dos meses que antecedem o Ano do Jubileu.
Quanto mais distante, mais caro a compra; quanto menos distante o Ano do Jubileu,

175
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 28s.
176
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 28s.
177
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 29.
178
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 29.

75
menos caro. Um tipo de Comodato, um contrato no qual o comodante entrega a
outrem (comodatário) coisa infungível, para ser usada temporariamente e depois
restituída. Um contrato feito oralmente, também em nossa legislação, segundo a Lei
nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, em seus artigos 579 a 585. A diferença é que
naquela época era uma lei geral válida para toda compra e venda de terreno. Não
havia a possibilidade de aquisição de terras a não ser por comodato. O objetivo era
de cunho social: evitar o acúmulo de terras por alguns, aumentando a estratificação
socioeconômica.179
Concluindo este subponto, o novo projeto social promovido por Yahweh
(ente virtual) encontrava no povo o seu bem maior; para a nação nascente, o bem-
estar do seu povo estava em primeiro lugar, não a economia (seja individual ou
social). A riqueza estava no povo e não no seu trabalho, em sua produção, muito
menos em sua economia. Tudo isto só tinha valor se voltado para o bem-estar do
povo. A aliança com Yahweh era a força promotora de toda esta máquina estatal e é
nela que as ações devem ser depositadas, e não na economia e no trabalho
extensivo (ao sétimo dia).

2.3.4 A dimensão ecológica

A dimensão ecológica está vinculada diretamente com a dimensão


econômica, já pelas etimologias de ambas as palavras. O vocábulo grego comum a
ambas oikos180 significa casa, habitação; quarto, sala; templo; bens, família.
Nómos181 significa uso, costume; opinião geral, máxima; lei. Também pode ser
traduzido a partir da palavra grega nomós182, que significa parte; divisão de território,
província, região; sítio para o pasto, alimento. Eco-nomia, assim, significa a
administração de uma casa, terra, ou do Estado, e pode ser assim definida:

Ciência social que estuda como o indivíduo e a sociedade decidem


(escolhem) empregar recursos produtivos escassos na produção de bens e

179
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 29.
180
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 5. ed. Porto: Livraria Apostolado
da Imprensa, 1976, p. 399.
181
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 5. ed. Porto: Livraria Apostolado
da Imprensa, 1976, p. 391.
182
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 5. ed. Porto: Livraria Apostolado
da Imprensa, 1976, p. 391.

76
serviços, de modo a distribuí-los entre as várias pessoas e grupos da
sociedade, a fim de satisfazer as necessidades humanas. 183

Por sua vez, logós184 significa palavra; dito; revelação divina; argumento;
matéria de estudo; motivo; valor que se dá a uma coisa; justificação. Eco-logia,
assim, surge da necessidade de um estudo da casa em que se vive com o fito de
dar sustentabilidade à mesma. A partir do valor que se dá à casa, à terra (nomós),
esta será condizente ou não para habitação. Economia e ecologia, desta maneira,
se inter-relacionam estreitamente. Isto implica dizer que a construção de um modo
de produção passa inevitavelmente pelo estudo cuidadoso de como aproveitar a
terra para que esta possa sustentar todo o projeto social. 185
Os hapirus, na formulação inicial das 12 Tribos, instituíram a lei do sábado.
Nela a terra e os animais, tanto os meio de produção quanto os selvagens, foram
considerados. “Nem o teu animal” trabalhará (Ex 20.10) 186; Ex 23.12s: “para que
descanse o teu boi e o teu jumento”, meios de produção que antecedem o filho da
serva e o estrangeiro em ordem de prioridade. A explicação para a inclusão dos
animais pode ser encontrada também em Ex 20. 11: “porque em seis dias, fez o
Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou”.
Yahweh cria a natureza e tudo o que nela há. Ao recriar uma sociedade alternativa, o
fez a partir de um modo de produção que levasse em consideração este apreço pela
criação187.
Os legisladores, contudo, foram os hapirus que formularam tal lei, a partir da
sensibilidade que eles mesmos detinham, a partir de sua relação com a natureza,
com a terra, com os animais. A articulação teológica/ideológica veio a posteriori.
MOSCONI considera que “um povo que, de verdade, luta por vida e liberdade
adquire uma grande sensibilidade e convivência com a natureza. [...] a terra é
tratada com dignidade”. Este tratamento não se limita apenas aos animais, mas se
estende a terra. No ANO SABÁTICO, a terra deve descansar; a cada sete anos não
se deve trabalhar a terra. Lê-se em Lv 25.3s:

183
VASCONCELLOS, Marco Antonio S.; GARCIA, Manuel E. Fundamentos de Economia. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 2.
184
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 5. ed. Porto: Livraria Apostolado
da Imprensa, 1976, p. 350.
185
MOSCONI, Luis. E todas as árvores baterão palmas (Is 55.12). In: GARMUS, Ludovico (org.).
BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 51.
186
SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentos e seu contexto social. In:
GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 46.
187
FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In: GARMUS, Ludovico
(org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 45.

77
Seis anos semearás a tua terra, e seis anos podarás a tua vinha, e colherás
os seus frutos; mas no sétimo ano haverá sábado de descanso solene para
a terra, um sábado ao Senhor; não semearás o teu campo, nem podarás a
tua vinha.

A preocupação com o trabalhador hapiru, sentido original do terceiro


Mandamento, é repassada para a terra. Esta também precisa recuperar suas
energias, seus nutrientes. “O solo não pode ser esgotado. A questão aí é ecológica.
Trata-se de preservar o ambiente.” 188 Para FRIGERIO, existe uma relação estreita
entre o meio ambiente e a humanidade. Se um é santificado (separado para uso
distinto do ordinário), o outro também deve ser santificado. “Criação, humanidade,
Espírito estão intimamente ligados na submissão, estão intimamente ligados na
gestação do Novo”189.
A lei do Ano Sabático surge por que a terra não estava sendo respeitada. O
abuso da mesma trazia esgotamento e improdutividade agrícola. O profeta
Jeremias, em 9.12b-15, denuncia:

Por que razão pereceu a terra e se queimou como um deserto, de sorte que
ninguém passa por ela? Diz o Senhor: porque deixaram a minha lei, que
lhes pus diante, e não deram ouvidos à minha voz, nem andaram nela,
antes andaram obstinadamente segundo o seu próprio coração, e após
baalins, como lhes ensinaram os seus pais. Portanto, assim diz o Senhor
dos exércitos, Deus de Israel: Eis que darei de comer losna a este povo, e
lhe darei a beber água de fel.

Isaías confirma que o uso desenfreado da terra traz catástrofes ao próprio ser
humano (Is 24.4-6):

A terra pranteia e se murcha; o mundo enfraquece e se murcha;


enfraquecem os mais altos do povo da terra. Na verdade a terra está
contaminada debaixo dos seus habitantes; porquanto transgridem as leis,
mudam os estatutos, e quebram o pacto eterno. Por isso a maldição devora
a terra, e os que habitam nela sofrem por serem culpados; por isso são
queimados os seus habitantes, e poucos homens restam.

A quebra do contrato social, que visa nortear o respeito à terra, provoca


desolação, solo estéril, fazendo a produção cair. Sem produção, o comércio
enfraquece e a cidade sofre. É como uma maldição de Yahweh, por descobrir a
quebra da aliança, o não seguimento da lei do Ano Sabático. Isaías continua nos
versos 7 e seguintes do mesmo capítulo:

188
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990, p. 28.
189
FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In: GARMUS, Ludovico
(org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 40.

78
Pranteia o mosto, enfraquece a vide, e suspiram todos os que eram alegres
de coração. Cessa o folguedo dos tamboris, acaba a algazarra dos
jubilantes, cessa a alegria da harpa. Já não bebem vinho ao som das
canções; a bebida forte é amarga para os que a bebem. Demolida está a
cidade desordeira; todas as casas estão fechadas, de modo que ninguém
pode entrar. Há lastimoso clamor nas ruas por falta do vinho; toda a alegria
se escureceu, já se foi o prazer da terra. Na cidade só resta a desolaç ão, e
a porta está reduzida a ruínas.

A imagem da terra desolada como consequência do uso inadequado


continua ao final do mesmo capítulo de Isaías 24: “A terra está de todo quebrantada,
a terra está de todo fendida, a terra está de todo abalada. A terra cambaleia como o
ébrio e balanceia como a rede de dormir; e a sua transgressão se torna pesada
sobre ela, e ela cai, e nunca mais se levantará”. A imagem da terra é consequência
da exploração da mesma pelo ser humano: “A exploração do homem pelo homem
gera exploração da natureza e sua devastação. [...] a terra que foi liberada para um
povo liberto, se torna uma terra cativa e desolada por causa de pessoas
gananciosas que pretendem usar e abusar de tudo e de todos” 190.
Nos textos proféticos, a ideia da exploração do “homem pelo homem” tem
relação direta com a saúde da terra. Oséias transmite, em 4.1-3, sua hermenêutica
da situação da seguinte maneira:

Ouvi a palavra do Senhor, vós, filhos de Israel; pois o Senhor tem uma
contenda com os habitantes da terra; porque na terra não há verdade, nem
benignidade, nem conhecimento de Deus. Só prevalecem o perjurar, o
mentir, o matar, o furtar, e o adulterar; há violências e homicídios sobre
homicídios. Por isso a terra se lamenta, e todo o que nela mora desfalece,
juntamente com os animais do campo e com as aves do céu; e até os
peixes do mar perecem.

Neste texto a terra se ressente em função de ações sociais que a princípio


nada têm a ver com o trabalho na terra. Contudo, a visão hebraica do ser humano
perpassa o todo da criação. O ser humano é indiviso em si e parte integrante da
natureza191. “Quando o povo vive livre, livre também é o meio ambiente. Quando o
povo é escravizado, escrava também é a natureza” 192. Oséias afirma, em 8.7:
“porque semeiam ventos, segarão tormentas; então não haverá seara: a erva não
dará farinha”. O uso da analogia vento forte como exemplo de turbulência social
também é aplicável para o vento que sopra sobre a terra seca, erodindo-a. “A terra é
190
FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In: GARMUS, Ludovico
(org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 41.
191
FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In: GARMUS, Ludovico
(org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 40s.
192
FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In: GARMUS, Ludovico
(org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 41.

79
estéril, os seios são secos, humanidade-natureza definham porque estão quebrados
os laços da aliança, o compromisso com a sociedade livre” 193. A desobediência à lei
ecológica transforma a terra em deserto.
Para reverter esta situação, o povo hapiru sabia que precisava descansar a
terra, deixando-a por si. No texto de Ex 23.10s, o verbo no hebraico é shmt, um
verbete oriundo do shbt. Shmt significa, largar, deixar a seu próprio cuidado 194. “A
terra da qual se vive deve ser largada, deve ser entregue a seus próprios cuidados,
deve estar entregue apenas a Deus, num ritmo regular de sete dias e sete anos” 195.
O profeta não faz apenas denúncia; ele também anuncia como renascer, enquanto
sociedade justa. Isaías novamente proclama a lei de Yahweh, em 32.15-18:

Então se derramará sobre nós o espírito lá do alto e o deserto se torn ará em


campo fértil, e o campo fértil em um bosque. Então o juízo habitará no
deserto e a justiça morará no campo fértil. E a obra da justiça será paz; e o
efeito da justiça será sossego e segurança para sempre. O meu povo
habitará em morada de paz, em moradas bem seguras e em lugares quietos
de descanso.

A lei do Ano Sabático quer promover uma reviravolta: onde há corrupção


humana com consequente desgaste da terra, surge renovação das forças da terra
com consequente justiça social. No texto acima, é possível reconhecer o efeito entre
as etapas de reanimação da terra: a) chuva, transformando a terra seca em campo
fértil; b) depois de algum tempo, este campo transforma-se em bosque, mata
exuberante. c) Somente então, a terra poderá dar sustento ao produzir vida social e
consequentemente justiça. A justiça humana vem do bom cultivo da terra (oiko-
nomós). d) Trabalhando-se a terra com cuidado e de maneira devida, é possível
retirar dela, sustentabilidade para vilas e cidades, onde a liberdade de ir e vir é
possível, onde a paz entre os cidadãos deste modo de produção ecológico é colhida
a partir do respeito à natureza, como parceira na produção. Isaías anuncia
novamente, em 41.17-20:

Os pobres e necessitados buscam água, e não há, e a sua língua se seca


de sede; mas eu o Senhor os ouvirei, eu o Deus de Israel não os
desampararei. Abrirei rios nos altos desnudados, e fontes no meio dos
vales; tornarei o deserto num lago d´água, e a terra seca em mananciais.
Plantarei no deserto o cedro, a acácia, a murta, e a oliveira; e porei no ermo

193
FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In: GARMUS, Ludovico
(org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 42.
194
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.
195
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.

80
juntamente a faia, o olmeiro e o buxo; para que todos vejam, e saibam, e
considerem, e juntamente entendam que a mão do Senhor fez isso, e o
Santo de Israel o criou.

A voz profética anuncia que a despeito da ação destruidora humana,


Yahweh pode reverter o processo de devastação em renovação. Ele é o criador. O
Estado (ente virtual) tem poder de, através de suas leis (criação), fazer reverter um
quadro social injusto, promovendo harmonia com a natureza e melhorando a
produção econômica196. A lei do Ano Sabático é um exemplo de normatividade que
procura restabelecer a base para uma sociedade cujo modo de produção respeite a
fonte originária da produção: a terra. Como por exemplo, este texto que anuncia a
estruturação final de um Estado que segue esta normatividade, em Is 65.21-25:

Eles edificarão casas e as habitarão; plantarão vinhas e comerão o fruto


delas. Não edificarão para que outros habitem; nem plantarão para que
outros comam. Porque os dias do meu povo serão como os dias da árvore,
e os meus escolhidos gozarão por longo tempo das obras das suas mãos:
Não trabalharão debalde, nem terão filhos para calamidade, porque serão a
descendência dos benditos do Senhor e os seus descendentes estarão com
eles. E acontecerá que, antes de clamarem, eu os responderei; e estando
eles ainda falando, eu os ouvirei. O lobo e o cordeiro juntos se
apascentarão, o leão comerá palha como o boi; e pó será a comida da
serpente. Não farão mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o
Senhor.

A riqueza de detalhe e de símbolos pode ser encontrada neste texto que


proclama novos céus e nova terra. Se interpretado pelo viés político é possível
verificar a importância do respeito ecológico como sine qua non para o êxito
socioeconômico. A edificação de casas, a partir da produção, pertence àqueles que
a constroem, como lembrança do tempo da casa da servidão, onde produziram para
outros se aproveitarem do produto do suor. Respeitando-se a natureza, mediante as
leis florestais, não há calamidades. O produto da terra devidamente cuidada será
196
Na vigência da elaboração deste TCC, há uma disputa política intensa em torno da aprovação do
Novo Código Florestal: “O Novo Código Florestal Brasileiro (Projeto de Lei no 1.876/99) é uma
proposta de reforma do atual Código Florestal Brasileiro, promulgado em 1965. Desde a década de
1990, a proposta de reforma do Código Florestal suscitou polêmica entre ruralistas e ambientalistas.
O projeto atual tramita há 12 anos na Câmara dos Deputados e foi elaborado pelo deputado Sérgio
Carvalho (PSDB de Rondônia). Em 2009, o deputado Aldo Rebelo do PCdoB foi designado relator do
projeto, tendo emitido um relatório favorável à lei em 2010. A Câmara dos Deputados aprovou o
projeto pela primeira vez no dia 25 de maio de 2011, encaminhando-o ao Senado Federal. No dia 6
de dezembro de 2011, o Senado Federal aprovou por 59 votos contra 7 o projeto de Aldo Rebelo (no
Senado, o projeto adquiriu o nome de "Lei da Câmara nº 30 de 2011"). No dia 25 de abril de 2012, a
Câmara aprovou uma versão alterada da lei, ainda mais favorável aos ruralistas, que comemoraram.
Em maio de 2012, a presidente Dilma Rousseff vetou 12 pontos da lei e propôs a alteração de 32
outros artigos." Após o Congresso aprovar o "Novo Código Florestal", ONGs, ativistas e movimentos
sociais organizaram o movimento "Veta Dilma", pedindo o veto integral ao Projeto de Lei.” Cf. Novo
Código Florestal Brasileiro. Wikipédia. [S.l.], 7 de novembro de 2012. [Online]. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Novo_C%C3%B3digo_Florestal_Brasileiro. Acesso: 18 nov. 2012.

81
constante e duradouro. Tudo isto pode constituir um Estado capaz de responder a
cada necessidade antes mesmo de ser postulada em juízo: um Estado preventivo,
um ouvidor stricto sensu. Ao final do texto, uma imagem utópica: o lobo e o cordeiro
se cuidando e se alimentando como cidadãos num mesmo pasto. Ou seja, a
despeito das diferenças que porventura haja entre os cidadãos deste novo modo de
produção ecologicamente estruturado, há um único ente virtual (Estado) que os
iguala. Tampouco as moléstias que afligem a saúde (serpente) vão se disseminar,
pois o Estado evitará a peste mediante leis que balizam uma relação devida com o
meio ambiente. Haverá harmonia entre o leão e o boi, entre a natureza leonina que
não perdoa e o cidadão hipossuficiente. Haverá paz na casa (oikos).
Os Mandamentos vistos neste segundo capítulo demonstram serem mais
benefícios que exatamente sacrifícios ou exigências morais. Os Mandamentos, uma
vez seguidos livremente, libertam o cidadão hebreu de imposições. São ofertas que
mantêm a ordem estabelecida. Não são ditames religiosos em sua origem, nem
exigem comportamento moral; são antes um catálogo mínimo dos limites cuja
transgressão extinguiria a aliança mosaica (pacto social). O Decálogo é um
desdobramento de uma ética de solidariedade construída por pessoas de uma
mesma camada social (hapiru), que visa à constituição de um novo modo de
produção no qual vicejam harmonia entre o cidadão e o Estado, assim como entre o
trabalhador e a terra. Os Mandamentos, a exemplos destes três primeiros, em seus
primórdios, revelam-se como leis jurídicas cujo objetivo é balizar a construção
política deste novo modo de produção alternativo, barrando a influência de forças
externas, assim com de forças internas. São como normas constitucionais,
referências norteadoras para a criação e manutenção de uma sociedade igualitária.
O Decálogo pode, assim, ser comparado a um Contrato Social (aliança mosaica)
entre iguais (hapirus) e um novo Estado constituinte (Yahweh).

82
3 AS TRIBOS DE YAHWEH COMO HORIZONTE HISTÓRICO

Nos dois últimos capítulos houve uma aproximação ao texto do Decálogo.


Para esta aproximação, se fez uso de um instrumento hermenêutico – a sociologia –
assumindo com sinceridade a distância entre o tempo presente e o tempo do
Decálogo. Esta aproximação, contudo, tem um sentido ulterior, o de conhecer a
histórica política e jurídica do Decálogo. A aproximação com o Decálogo não deixa
de ser também uma aproximação com a realidade atual. A dificuldade da
interpretação de um texto antigo se dá no limite entre ambas as realidades; elas se
comunicam, mas não completamente. Contudo, ao se comunicarem, mesmo que
parcialmente, há uma troca de conhecimento. Com este conhecimento adquirido é
inevitável que quem interpreta acaba se enriquecendo. A capacidade de conhecer o
passado pressupõe, de certo modo, a capacidade de autocrítica de quem faz
hermenêutica.
Compreender significa, como se verá adiante, fusão de horizontes: o
horizonte da compreensão da realidade política e jurídica brasileira, por exemplo, e o
horizonte da compreensão existencial do texto. Se se logra uma aproximação devida
ao texto do passado, então o estudo pode enriquecer a realidade do Direito
brasileiro de um novo modo. Hermenêutica é um exercício de compreensão que
resulta do encontro entre o texto (Decálogo) e a realidade jurídica atual. À primeira
vista, muitas das palavras do Decálogo e demais leis correlatas podem ser
estranhas, até duras e ásperas, como por exemplo, a pena de morte para uma
simples transgressão do descanso sabático. Todavia, ao se aproximar com um olhar
mais rigoroso, é possível que o Decálogo conduza o hermeneuta para uma
percepção mais solidária, de liberdade e benefícios, presentes no Decálogo,
ressaltando aspectos e valores históricos de importância formativa na história do
Direito.
O Decálogo, assim, é uma fonte não apenas para a vida espiritual, religiosa,
como também para o Direito, o qual encontra nele, vazado numa outra linguagem, o
que o Direito próprio só conseguiu elaborar a duras penas durante os últimos
séculos. A importância do Decálogo para o Direito consiste no fato dos hapirus,
através da experiência sociológica, terem viabilizado concretizar no nascedouro
jurídico da humanidade uma sociedade alternativa, embasada em leis sui generis

83
para sua época. Uma sociedade a partir da qual, a despeito de sua forma
rudimentar, se podem ser encontradas características presentes na sociedade
hodierna brasileira. O Decálogo resguarda elementos políticos e jurídicos, enquanto
balizador do experimento social das Tribos de Yahweh, paralelos ao modelo social
emergente no século XVIII, por exemplo. O Decálogo, portanto, mais do que
palavras religiosas (moralistas), é um códice legal, originário de um experimento
embrionário, cuja herança pode ser encontrada nas formas jurídicas e políticas das
sociedades da atualidade.
Este capítulo é estruturado em dois pontos. No primeiro (3.1), será
apresentado o pensamento filosófico da fusão dos horizontes de GADAMER. No
segundo ponto (3.2), serão apresentados traços característicos entre a proposta de
Estado da sociedade tribal das 12 Tribos e a proposta de Estado em Rousseau.

3.1 TEORIA DOS HORIZONTES DE GADAMER

Para verificar a hipótese de trabalho da fusão de horizontes entre a realidade


das 12 Tribos, embasadas nos princípios norteadores do Decálogo, e a proposta de
Estado em Rousseau, o pensamento filosófico (hermenêutico) de GADAMER servirá
para nortear este primeiro ponto do terceiro capítulo.

A partir do trabalho filosófico de Husserl, GADAMER descreve a perspectiva


histórica humana, comparando-a aos limites da visão. A história é conhecida e faz
sentido até certo ponto. Depois vai perdendo seu contorno, até desaparecer por
completo por detrás do horizonte. Depois disso, a vista não alcança e o que resta
após o horizonte fica fora do escopo vigente. Na medida em que se anda, contudo, a
fronteira também se move, permitindo assim que o hermeneuta possa se aproximar
de determinados pontos cardeais, perscrutando o que antes lhe estava vedado
vislumbrar.197 “Um horizonte não é uma fronteira rígida, senão algo que se desloca
com alguém e que convida a seguir entrando nele” 198.

197
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 309.
198
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 309.

84
Consequentemente, o horizonte do passado, do qual emana a tradição
humana, encontra-se em perpétuo movimento 199, sendo assim passível de ser
abarcado pela consciência histórica. Quem tem consciência de que a história é um
processo vivo e contínuo, transcende os limites dos horizontes que o cercam,
enxergando além das cercanias, pois não há horizontes cerrados 200. Contudo, para
aquele que não tem horizontes, que não os leva em consideração, não enxerga
suficientemente, supervalorizando o que se situa próximo a si. Assim, o que é vivo
na tradição no seu nascedouro, para além dos limites do horizonte, fica perdido;
restam-lhe apenas ideias que a tradição engessou através da história, situando-as
nas cercanias da pessoa.201
Este processo de aproximação a um texto do passado, como apresentado
no início do trabalho, implica em um processo hermenêutico. Hermenêutica, dentro
da fusão de horizontes, é um olhar a partir do marco do horizonte que se quer
vislumbrar e não a partir da consciência que enxerga; aquele que procura entender a
tradição sem esta aproximação ao horizonte sofrerá mal-entendidos com respeito
aos significados dos conteúdos daquela. Para a compreensão de suas reais
medidas, a consciência histórica precisa de uma aproximação do horizonte, que vai
comunicar seus dados; mas infelizmente, a consciência histórica não pode constituir
um diálogo com o horizonte. A aproximação do horizonte não implica em diálogo
com o mesmo; é mais um monólogo daquele; a consciência histórica, da qual parte
o interesse de conhecer, apenas escuta, interpreta. 202
Mas para esta escuta ocorrer apropriadamente, é mister ter o próprio
horizonte sempre presente, caso contrário, não há deslocamento de horizontes. A
consciência histórica, ao se aproximar de um horizonte, carrega consigo sua própria
coordenada. Estar consciente da sua posição e de seus preconceitos, evita uma
aproximação sem vínculo com a realidade da qual se parte, executando mais uma
aproximação especulativa do que real. 203 Quem aparta a mirada de si mesmo se

199
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 375.
200
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p.
201
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 373.
202
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 373.
203
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 375.

85
priva justamente do horizonte histórico204. “Ganhar um horizonte quer dizer sempre
aprender a ver mais além das cercanias e das coisas bem próximas, não
desatendendo-as, senão precisamente vendo-as melhor integradas num todo maior
e em padrões mais corretos” 205. Desta forma, respeita-se o sentido próprio presente
no horizonte perscrutado e distante, ao ouvi-lo em sua peculiaridade, reconhecendo
sua diferença.206
Esta diferença se destaca no horizonte e ao se destacar, o faz diante de
quem o observa. Como expressa GADAMER: “Destacar é sempre uma ação
recíproca. O que deve destacar-se tem que destacar-se frente a algo que por sua
vez deverá destacar-se daquele”207. Com isto, o presente não está isolado do
passado, mas é constituído por este. “Na realidade o horizonte do presente está em
processo de constante formação na medida em que estamos obrigados a pôr a
prova constantemente todos os nossos prejuízos. Parte desta prova é o encontro
com o passado e a compreensão da tradição da que nós mesmos procedemos” 208. O
horizonte do presente, assim, não se constitui a margem do passado. Compreender
o horizonte distante é, também, uma autocompreensão. “Compreender é sempre o
processo de fusão destes presumíveis ‘horizontes para si mesmos’” 209.
Este destacar-se, óbvio, gera tensão, pois o destaque implica na diferença e
até na estraneidade do conteúdo da tradição da qual se aproxima. “A tarefa
hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua,
senão desenvolvê-la conscientemente. [...] A consciência histórica é consciente da
sua própria alteridade e por isto destaca o horizonte da tradição com respeito ao que
lhe é próprio”210.
Uma das coisas que se destaca é a experiência. A experiência do outro, de
outra cultura, do passado, é estranha e se destaca quando manipulamos com textos
da tradição; a distinção que destaca é fomentada pelos limites de cada horizonte e
204
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376.
205
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 375.
206
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376.
207
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376.
208
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376.
209
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376s.
210
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 377.

86
de cada existência. Para GADAMER, a experiência humana é sempre experiência
de sua finitude211.

É experimentado no autêntico sentido da palavra aquele que é consciente


desta limitação, aquele que sabe que não é senhor nem do tempo nem do
futuro; pois o homem experimentado conhece os limites de toda previsão e
a insegurança de todo projeto. Nele chega à sua plenitude o valor de
verdade da experiência. Se em cada fase do processo da experiência o
característico é que o que experimenta adquire uma nova abertura para
novas experiências, isto valerá muito mais para a ideia de uma experiência
consumada. [...] A experiência ensina a reconhecer o que é real. Conhecer o
que é, é pois, o autêntico resultado de toda experiência e de todo querer
saber em geral. [...] A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se
faz consciente de sua finitude. Nela encontram seu limite o poder fazer e a
autoconsciência de uma razão que projeta.212

Em resumo, GADAMER defende a ideia de que quando o ser humano atinge


seus limites existenciais e toma consciência dos mesmos, tem a possibilidade de
transcendê-los, ao procurar no acervo histórico resguardado nos horizontes
existenciais, novos modelos que ampliam os limites de sua finitude. Não será uma
recuperação idêntica daqueles, mas um amalgama entre aqueles e a estrutura finita
em que o hermeneuta se encontra, ampliando-a em novidade existencial. Esta
maneira de conceber processos históricos como um amalgama de horizontes
superpostos pode ser identificado neste trabalho hermenêutico.

3.1.1 O horizonte hapiru

Aplicando o pensamento até aqui apresentado, principalmente com a ideia


da experiência em GADAMER, ao projeto acadêmico em desenvolvimento, tem-se
que: a) o povo hapiru, mediante suas experiências de sofrimento vivencial em meio
à sua época (1.500-1.300 a.C.), reconheceu os limites de sua finitude humana
(modos de produção escravocratas). b) Esta consciência da finitude abriu as portas
para a investigação de modelos alternativos que se faziam presentes além das
cercanias, em horizontes distantes distribuídos a partir da coordenada tempo e
espaço hapiru (1.250 a.C./Canaã). c) A experiência hapiru ensinou-os o que não
queriam: ser hapiru. d) A proposta do projeto social das Tribos de Yahweh é
211
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 433.
212
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 433.

87
resultante desta consulta aos horizontes somada e feita a partir de sua finitude
existencial sofrida. e) Um projeto alternativo, novo, que encerra também seus limites
e inseguranças. f) O Decálogo é, assim, um compêndio textual, resultante de todo
este amalgama de horizontes, a partir da finitude humana experimentada pelo povo
hapiru, sempre consciente de seus limites (os sem identidade; sem direitos políticos)
e, por causa desta consciência real, consciente de que outro mundo é possível
(Yahweh que liberta da casa da escravidão para a terra que mana leite e mel).
Se houvesse espaço, poder-se-ia estender uma análise pormenorizada de
cada um desses pontos. Apesar deste limite acadêmico, pode-se demonstrar, a
partir de pelo menos um rápido exemplo, a validade do pensamento sobre a fusão
de horizontes de GADAMER, de dentro do horizonte hapiru. O primeiro Mandamento
declara a existência de um monoteísmo nascente. A construção de uma teologia
monoteísta hebraica, não pode, entretanto, ser considerada originária do povo
hapiru. Esta experiência já havia sido tentada 200 anos antes da experiência das
Tribos de Yahweh. Em 1.364, o faraó Amenófis IV, conhecido como Ecnaton, e sua
esposa Nefretiti, ascendem ao poder, destituem todas as divindades egípcias,
proclamando a existência de apenas um deus: Aton, a personificação do disco do
sol.213
Na mesma época, a derrocada egípcia estava em andamento e muitos
hapirus evadiram das terras egípcias, dirigindo-se às montanhas de Canaã. Canaã
recebeu várias levas de hapirus das terras egípcias, todas fugindo do modo de
produção ali vivenciado, desde o faraó Ecnaton (Amenófis IV) até o surgimento das
Tribos de Yahweh. É o modelo proposto pelo sociólogo GOTTWALD, descrito no
primeiro capítulo deste trabalho 214. A experiência monoteísta, portanto, era conhecida
pelos hapirus. Quando da formação das Tribos de Yahweh se necessitou agrupar
numa só coesão as diferentes divindades, o povo utilizou-se da memória.
Há uma soma de horizontes entre a experiência egípcia em 1.364 a.C. e a
experiência hapiru, em 1.250 a.C. O horizonte hapiru ganha o horizonte egípcio e
consolida o que Ecnaton não logrou. Pois dois anos após sua morte, os sacerdotes
das diferentes divindades desfizeram a reforma religiosa de Ecnaton, restituindo-as

213
SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p.
43s. Cf. também DURANT, Will. Our Oriental Heritage. New York: Simon and Schuster, 1963, p.
205ss.
214
GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israel liberto
1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p.201-243.

88
em seus altares215. A fusão de horizontes pode ser exemplificada nestes poucos
dados da seguinte forma: enquanto Ecnaton promulga um monoteísmo a partir de
um edito imperial, o monoteísmo das Tribos da Yahweh é promulgado pelas
camadas constituintes do povo hapiru. Enquanto que no Egito a experiência
monoteísta não vingou, na experiência tribal dos hapirus, vingou. Ou seja, não
houve uma simples imitação do passado egípcio, caso em que o monoteísmo
também não teria vingado em Canaã, mas um aprendizado que levou em
consideração sua própria coordenação existencial hapiru, um aprendizado
possibilitado pela fusão dos dois horizontes. Esta fusão é que fez com que a
experiência monoteísta intentada novamente, agora pelo povo hapiru, fosse
diferente da egípcia.
Ou seja, a experiência da existência é sempre uma resultante de amalgamas
de horizontes superpostos. O primeiro Mandamento, então, não é algo forjado
exclusivamente pelo povo hapiru, mas foi este quem soube dosar a soma de
experiências do passado e da atualidade hapiru. “Pensar historicamente quer dizer
em realidade realizar a transformação que acontece aos conceitos do passado
quando intentamos pensar neles” (grifou-se). O povo hapiru pensou historicamente,
realizando a transformação de conceitos a ponto de concretizá-los e mantê-los por
séculos. O Decálogo é prova disso.
Este desenvolvimento é importante, pois é GADAMER novamente quem
afirma: “É claro que a experiência do tu tem que ser algo específico pelo fato do tu
não ser um objeto senão que ele mesmo se comporta com respeito a alguém” 216
(grifou-se). No momento em que o Direito brasileiro procura, mediante este trabalho,
descortinar aspectos políticos e jurídicos no Decálogo (tu), vai perceber que este
Decálogo está destacado diante outro (tu) horizonte mais antigo: a formação das
Tribos de Yahweh; e que este, por sua vez, é destacado a partir de outros horizontes
constituintes do mesmo (ex.: experiência monoteísta de Ecnaton).

215
DURANT, Will. Our Oriental Heritage. New York: Simon and Schuster, 1963, p. 213.
216
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 434.

89
3.1.2 O horizonte hodierno

GADAMER chama estas experiências passadas de tradição. O Decálogo,


desta forma, faz parte da tradição do passado da humanidade, da tradição ocidental.
Não é um escrito isolado, sem comunicação com outros horizontes, mas um texto
que intermedeia horizontes tanto do seu passado quanto do seu futuro. Isto
interessa ao Direito brasileiro. Este trabalho parte do horizonte presente, que
procura uma aproximação com o Decálogo, procurando-o compreender a partir
desta fusão de horizontes. “A compreensão da tradição não entende o texto
transmitido como a manifestação vital de um tu, senão como um conteúdo de
sentido livre de toda atadura a quem opina, seja ao eu, seja ao tu” 217. O Decálogo
não é apenas fruto de sua tradição histórica, como igualmente influencia o futuro, o
tempo presente. Não está preso em seu horizonte, cerrado. Está livre para
comunicar.
O conteúdo desta comunicação, contudo, não parte do tu (Decálogo).
“Interpretar significa justamente aportar os próprios conceitos prévios com o fim de
que a referência do texto se faça realmente linguagem para nós” 218. Para esta
comunicação ser efetiva, segundo GADAMER, é preciso saber de que direção
ocorre a aproximação. Esta direção determina o sentido a ser obtido do texto. É
preciso saber qual a pergunta que se faz ao texto. “Compreender um texto quer
dizer compreender esta pergunta” 219. O texto é polissêmico, mas a pergunta
determina qual dos sentidos será obtido.220

Assim pois, aquele que quer compreender tem que retroceder com suas
perguntas mais além do dito; tem que entendê-lo como resposta a uma
pergunta para a qual é a resposta. Retrocedendo assim mais aquém do dito
se pergunta necessariamente mais além do dito. Um texto só é
compreendido em seu sentido quando se há ganho o horizonte do
perguntar, que como tal contém necessariamente também outras respostas
possíveis. Nesta medida o sentido de uma frase é relativo à pergunta para a
qual é resposta, e isto significa que vai necessariamente mais além do que
se diz nela.221

217
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 434.
218
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 477.
219
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 477.
220
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 477s.

90
É o horizonte do perguntar. Este horizonte se mescla com o horizonte do
hermeneuta (Direito brasileiro), que faz a pergunta, fazendo-o se perguntar a
pergunta existente no texto da tradição. “O que há ao princípio realmente é a
pergunta que o texto nos coloca a nós, à nossa própria afeição pela palavra da
tradição, de modo que sua compreensão implica sempre na tarefa da automediação
histórica do presente com a tradição”222. Isto faz com que a relação entre pergunta e
resposta se inverta: o Decálogo, quando aberto, coloca uma pergunta, exigindo uma
resposta. Para esta resposta, é necessário antes compreender qual é a pergunta do
texto, que se revela a partir da própria pergunta feita pelo hermeneuta. Com a
pergunta do hermeneuta se começa, deste modo, um processo de reconstrução
originária do texto, que vai responder devolvendo outra pergunta, interpelando o
interpelante.223

A reconstrução da pergunta que se supõe ser a resposta do texto está ela


mesma dentro de um fazer perguntas com o que nós mesmos intentamos
buscar a resposta à pergunta que nos coloca a tradição. Pois uma pergunta
reconstruída não pode se encontrar nunca em seu horizonte originário. O
horizonte histórico descrito na reconstrução não é um horizonte
verdadeiramente abarcante; está ao invés abarcado pelo horizonte que nos
abarca a nós, os que perguntamos e os afetados pela palavra da tradição. 224

Para GADAMER, se a palavra da tradição nos afeta é por que já se encontra


perdida além do horizonte; faz parte residual do presente, das coisas que se
encontram nas cercanias. Não é mais compreendida. A hermenêutica, possível pela
fusão dos horizontes, permite que um texto do passado desloque o hermeneuta de
sua posição cômoda (prejuízos), permitindo a recuperação de conceitos que podem
engravidar o presente. “Forma parte da verdadeira compreensão, o recuperar
conceitos de um passado histórico de maneira que contenham ao mesmo tempo
nosso próprio conceber. É o que temos chamado de fusão de horizontes” 225.
Finalizando este ponto, o Direito brasileiro é convidado a reconstruir a
pergunta feita pelo texto (Decálogo), ou seja, qual a pergunta dos hapirus que
culminou no Decálogo? Depois da análise sociológica (aproximação) do primeiro e
221
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 478.
222
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 452.
223
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 452.
224
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 452.
225
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. 3. ed.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 453.

91
segundo capítulos, uma resposta poderia ser: “Como desenvolver um corpo
legislativo que proporcione uma sociedade politicamente justa, fraterna (liberta) e
igualitária?” A fusão de horizontes instiga o Direito com esta pergunta da tradição do
Decálogo. Para respondê-la, quer se demonstrar, na sequência, de maneira
hipotética, mas cautelosa, que esta fusão de horizontes, entre o horizonte presente e
o horizonte hapiru, pode ser exemplificada no Contrato Social de Rousseau (ainda
dentro do horizonte presente), identificando traços paralelos entre as características
deste com o Decálogo e seu horizonte abarcante (hapiru).

3.2 A FUSÃO DOS HORIZONTES

A ideia a ser apresentada neste ponto é a de que a experiência insipiente


das Tribos de Yahweh, desenvolvendo uma sociedade sem reis e com uma proposta
libertária e igualitária, foi recuperada, através da fusão de horizontes históricos, por
Hobbes e depois por Rousseau, a partir de seu próprio contexto existencial,
culminando no Contrato Social, hodiernamente vivenciado por várias sociedades
modernas, também no Brasil. O espaço, entretanto, já está esgotado, o que leva a
uma apresentação sucinta desta hipótese de trabalho, neste segundo ponto.

3.2.1 O Contrato Social em Hobbes

É sintomático que Hobbes intitule sua importante obra de “Leviatã” (em


1651), a partir da figura mítica, presente no livro de Jó (Jo 40s), na Bíblia. A ideia
deste monstro nasce da concepção de Hobbes sobre a natureza humana,
comparada a de um lobo: naturalmente, o ser humano tende para a destruição. A
guerra é resultante desta máxima de Hobbes: “guerra de todos contra todos”.
Hobbes, contudo, acresce que ao tomar consciência desta natureza lupina, o ser
humano toma consciência também que pode alterar a maneira de viver, pois a
guerra leva sempre à morte e à destruição. O uso da racionalidade (Iluminismo)
força o ser humano a construir uma sociedade mais altruísta, mesmo não sendo sua

92
inclinação natural. O que leva o ser humano a construir uma sociedade mais justa é
o instinto (também animal) da autoconservação. 226
Hobbes também assevera, a despeito de seu contexto medieval e de castas,
que as pessoas são naturalmente iguais: “A natureza fez os homens tão iguais,
quanto às faculdades do corpo e do espírito; [...] a diferença entre um e outro
homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base
nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como
ele”227. Revertendo a ordem de castas medieval, Hobbes propõe que o povo faça um
contrato entre si, contrato balizado por leis, depositárias num rei que exerceria o
poder de manter a ordem legal e a coesão social 228.

Este poder soberano pode ser adquirido de duas maneiras. Uma delas é a
força natural, como quando um homem obriga seus filhos a submeterem-se,
e a submeterem seus próprios filhos, a sua autoridade, na medida em que é
capaz de destruí-los em caso de recusa. Ou como quando um homem
sujeita através da guerra seus inimigos a sua vontade, concedendo-lhes a
vida com essa condição. A outra é quando os homens concordam entre si
em submeterem-se a um homem, ou a uma assembleia de homens,
voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por ele contra todos
os outros. Este último pode ser chamado de Estado Político, ou um Estado
por instituição. Ao primeiro pode chamar-se um Estado por aquisição.229

Para a sustentação deste Estado Político, mediado por um Contrato Social,


Hobbes postula algumas leis, das quais apenas três são suficientes para traçar
paralelos com o horizonte hapiru. 1ª Lei: Procurar a paz e alcançá-la, defendendo-se
com todos os meios possíveis 230; 2ª Lei: Renunciar ao direito sobre tudo, quando
também os outros renunciam231; 3ª Lei: Respeitar os pactos estipulados, isto é, ser
justo232.
Com este esboço resumido do Contrato Social de Hobbes, é possível traçar
alguns paralelos básicos. 1º paralelo: o povo hapiru desenvolve uma sociedade
alternativa, procurando por paz e alcançando-a, defendem-na com todos os meios
226
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. XIV.
227
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 74.
228
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 103s.
229
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 106.
230
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 78.
231
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 79ss.
232
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 82ss.

93
possíveis. Como estudado no primeiro capítulo, as Tribos de Yahweh só guerreavam
para defender o quinhão de terra plantado. 2º paralelo: o povo hapiru faz uma
aliança com Yahweh, renunciando o poder, poder este delegado a uma divindade. 3º
paralelo: Yahweh entrega um Decálogo através do qual a aliança é exemplificada
por meio de leis que devem ser seguidas, caso o povo deseje sobreviver, tendo
Yahweh como garante. As leis de punição (ex.: morte) servem como poder
coercitivo, mantendo a aliança respeitada.
A diferença é que, na proposta de Hobbes, o garante continua sendo um rei
(ou assembleia de homens). Na prática, a história demonstrou que rei algum é isento
de interesse privados, subjulgando o povo a estes interesses. É um pacto social sob
o regime absolutista. O rei não ficava sob o controle do pacto social. A diferença
entre o período anterior e posterior a Hobbes é que antes o rei era um eleito divino,
enquanto em Hobbes o seria por pacto social. Aqui a figura do Leviatã aparece em
toda a sua grandeza, contrariando a ideia de um deus justo e reafirmando a de um
deus déspota233. O exemplo clássico é o rei Luis XIV, com sua célebre frase: “O
Estado sou eu!” A imagem 03 mostra a similitude com a Imagem 01, no capítulo
dois. Em Hobbes, poder-se-ia postular de maneira um pouco precipitada, que a
humanidade logra avançar no ideal conquistado e elaborado pelas Tribos de
Yahweh, fracassando em alguns pontos, sendo o maior deles o quesito reinado.

Imagem 03 - Estrutura do Pacto Social em Hobbes

Rei R Soberano
ei
Assembleia Exército Administração Aparato estatal

Povo Aldeias

Se comparada à Imagem 01, é possível perceber as verossimilhanças entre


esta estrutura, segundo o Pacto Social em Hobbes, e a estrutura de uma sociedade
do tipo reinado, comum entre as cidades-estados cananéias.

233
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. XVI-XVIII.

94
3.2.2 O Contrato Social em Rousseau

Cem anos após Hobbes, nasce Rousseau, no século XVIII, em 1712,


publicando em 1762 sua importante obra “Do contrato social ou princípios do direito
político”234. Rousseau logra elaborar um ideal de contrato social baseado em
princípios distintos dos princípios de Hobbes. A primeira discrepância com Hobbes
situa-se na visão de ambos acerca do ser humano. Para Rousseau, o ser humano é
naturalmente bom, naturalmente livre e naturalmente igual aos outros seres
humanos; em Hobbes o ser humano é naturalmente egoísta, mau. A segunda
discrepância com Hobbes situa-se no modelo de pacto social. Para Rousseau, o
contrato social é a única forma de associação legítima, manifestada através de um
pacto estabelecido entre o povo e os governantes, e não com um rei. Este pacto
abarca também a submissão dos governantes, assim como de todos os cidadãos, à
vontade geral; em Hobbes, o rei não era abarcado pela norma geral. O rei não
pactua, não é obrigado a se submeter ao pacto geral. 235
Quais são os paralelos entre o horizonte de Rousseau e o horizonte hapiru?
Apontar-se-á quatro grandes paralelos, com os quais se alicerçam a ideia da fusão
dos horizontes, como também a ideia de que o Decálogo é antes um compêndio
jurídico, balizador de uma sociedade politicamente liberta, pactuada e coletiva.
1º Paralelo: Da liberdade da casa da escravidão.
“O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros” 236. A partir
desta afirmação Rousseau descreve o que fez com que o ser humano se
encontrasse a ferros. Descreve que a força de alguns se impôs sobre os demais,
servindo-se para tanto de convenções legais. 237 É preciso poder de dominação, pois
“renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da
humanidade, e até aos próprios deveres” 238. A escravidão imposta pela guerra
tampouco é legítima.

234
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987.
235
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4. ed. São
Paulo: Nova Cultura, 1988, p. XVI.
236
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 22.
237
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 26.
238
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 27.

95
Seja qual for o modo de encarar as coisas, nulo é o direito de escravidão
não só por ser ilegítimo, mas por ser absurdo e nada significar. As palavras
escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente. Quer de
um homem a outro, quer de um homem a um povo, será sempre igualmente
insensato este discurso: “Estabeleço contigo uma convenção ficando tudo a
teu cargo e tudo em meu proveito, convenção essa a que obedecerei
enquanto me aprouver e que tu observarás enquanto for do meu agrado”.239

Imagem 04 - Estrutura do Pacto Social em Rousseau


Estado

Povo/cidades
Cidade A Cidade B Cidade C
Se comparada à Imagem 02, é possível perceber as verossimilhanças entre
esta estrutura, segundo o Pacto Social em Rousseau, e a estrutura de uma
sociedade do tipo teocrática, vigente no tempo das Tribos de Yahweh.
A sociedade das Tribos de Yahweh nasceu a partir de experiências de
escravidão. Hapiru é um termo dado a alguém que se vendeu à escravidão para
pagamento de dívidas. O povo hapiru (hebreu) nasceu sedento por liberdade,
rompendo os ferros que os oprimiam, negando as autoridades dos reis e faraós, ao
fugirem de suas dominações, para uma terra de ninguém, onde se propuseram
construir algo diferente. Repetindo CRÜSEMANN, acerca do primeiro Mandamento:

A necessidade teológica da transformação de Deus fundamentada no 1º


Mandamento não é um fim em si mesma nem algo abstrato. Tanto no
Decálogo quanto em textos similares, esse Deus é definido justamente a
partir do conteúdo: é o Deus que se define a si mesmo através da liberdade
concedida aos israelitas, aos quais ele se dirige. Isso é que precisa ser
preservado. Ao lado desse poder de liberdade não deve e não poder haver
outros deuses. Todas as experiências que Israel fazia, fossem elas positivas
ou negativas, feitas por indivíduo ou por pequenos grupos ou pelo povo
como um todo, todas elas deveriam ser relacionadas com esse Javé e, por
conseguinte, deveriam ser medidas pela experiência básica da liberdade.
Voltar-se para outros deuses significava renunciar ao fundamento da própria
liberdade.240

239
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 29s.
240
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 40.

96
O espírito da liberdade é uma das características básicas entre os dois
horizontes, tanto no horizonte hapiru, quanto no hodierno (em Rousseau). É esta
característica bem humana que fomenta o surgimento racional de uma organização
política livre, justa e igualitária.
2º Paralelo: O Pacto Social da Aliança Mosaica
Para a superação de sociedades despóticas, onde as convenções elegem
reis ou governantes caprichosos, Rousseau aposta, como mencionado acima, num
pacto social: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a
direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro
como parte indivisível do todo” 241. Neste arcabouço social não há reis: “O soberano,
somente por sê-lo, é sempre aquilo que deve ser” 242. Assim nasce o Estado:

A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão,


compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar
força aos outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será
constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a
ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o
garante contra qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui o
artifício e o jogo de toda a máquina política, e é a única a legitimar os
compromissos civis, os quais, sem isso, se tornariam absurdos, tirânicos e
sujeitos aos maiores abusos.243

A análise sociológica do primeiro Mandamento, no ponto 2.1, aludiu em


vários momentos que a divindade Yahweh não deixava de ser um ente virtual,
ideológico, ou seja, produto da racionalidade daqueles que construíram o modo de
produção das Tribos de Yahweh. Rousseau descreve “o Estado como um ente de
razão, porquanto não é um homem” 244. Se comparados, é possível perceber esta
forte semelhança de construção racional tanto na ideologia religiosa, existente nas
Tribos de Yahweh, quanto na ideologia política de Rousseau.
Tabela 01 – Paralelos entre Estados
Tribos de Yahweh Estado em Rousseau
Aliança Mosaica, Pacto de Siquém Pacto Social
Único que dá força aos hapirus Único que dá força aos outros
Força de coerção pela lei Força de constrangimento
Garante das tribos Garante da pátria

241
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 33.
242
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 35.
243
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 36.
244
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 35.

97
O coletivo em detrimento do indivíduo O coletivo em detrimento do cidadão
Compromisso com as tribos Compromisso civis

A constituição societária das Tribos de Yahweh se dá mediante uma


elaboração sui generis para a época: uma sociedade sem reis, nem governantes,
tendo sobre si apenas um ente virtual que garantia a liberdade, a justiça e a
igualdade, mediante leis balizadoras (religiosas/ideológicas). Esta ideia é de uma
superação, poder-se-ia dizer, sem precedentes para aquela época. Ideia tão
inovadora quanto a construção iluminista do contrato social, principalmente em
Rousseau. Este ente virtual (Estado) foi estabelecido mediante um pacto, no qual
diferentes grupos de hapirus se compromissavam a obedecê-lo, ante as leis penais
para quem não o obedecesse. O texto de Josué 24.1-25 retrata este pacto social
entre Yahweh, enquanto entidade virtual, e os diferentes povos hapirus, numa
assembleia popular, em Siquém:

Depois Josué reuniu todas as tribos de Israel em Siquém, e chamou os


anciãos de Israel, os seus cabeças, os seus juízes e os seus oficiais; e eles
se apresentaram diante de Deus. Disse então Josué a todo o povo: Assim
diz o Senhor Deus de Israel: Além do Rio habitaram antigamente vossos
pais, Tera, pai de Abraão e de Naor; e serviram a outros deuses. Eu, porém,
tomei a vosso pai Abraão dalém do Rio, e o conduzi por toda a terra de
Canaã; também multipliquei a sua descendência, e dei-lhe Isaque. A Isaque;
dei Jacó e Esaú; a Esaú dei em possessão o monte Seir; mas Jacó e seus
filhos desceram para o Egito. Então enviei Moisés e Arão, e feri o Egito com
aquilo que fiz no meio dele; e depois vos tirei de lá. Depois que tirei a
vossos pais do Egito viestes ao mar; e os egípcios perseguiram a vossos
pais, com carros e com cavaleiros, até o Mar Vermelho. Quando clamaram
ao Senhor, ele pôs uma escuridão entre vós e os egípcios, e trouxe o mar
sobre eles e os cobriu; e os vossos olhos viram o que eu fiz no Egito.
Depois habitastes no deserto muitos dias. Então eu vos trouxe à terra dos
amorreus, que habitavam além do Jordão, os quais pelejaram contra vós;
porém os entreguei na vossa mão, e possuístes a sua terra; assim os
destruí de diante de vós. Levantou-se também Balaque, filho de Zipor, rei
dos moabitas, e pelejou contra Israel; e mandou chamar a Balaão, filho de
Beor, para que vos amaldiçoasse; porém eu não quis ouvir a Balaão; pelo
que ele vos abençoou; e eu vos livrei da sua mão. E quando vós, passando
o Jordão, viestes a Jericó, pelejaram contra vós os homens de Jericó, e os
amorreus, os perizeus, os cananeus, os heteus, os girgaseus, os heveus e
os jebuseus; porém os entreguei na vossa mão. Pois enviei vespões adiante
de vós, que os expulsaram de diante de vós, como aos dois reis dos
amorreus, não com a vossa espada, nem com o vosso arco. E eu vos dei
uma terra em que não trabalhastes, e cidades que não edificastes, e
habitais nelas; e comeis de vinhas e de olivais que não plantastes. Agora,
pois, temei ao Senhor, e servi-o com sinceridade e com verdade; deitai fora
os deuses a que serviram vossos pais dalém do Rio, e no Egito, e servi ao
Senhor. Mas, se vos parece mal o servirdes ao Senhor, escolhei hoje a
quem haveis de servir; se aos deuses a quem serviram vossos pais, que
estavam além do Rio, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais.
Porém eu e a minha casa serviremos ao Senhor. Então respondeu o povo, e
disse: Longe esteja de nós o abandonarmos ao Senhor para servirmos a

98
outros deuses: porque o Senhor é o nosso Deus; ele é quem nos fez subir, a
nós e a nossos pais, da terra do Egito, da casa da servidão, e quem fez
estes grandes sinais aos nossos olhos, e nos preservou por todo o caminho
em que andamos, e entre todos os povos pelo meio dos quais passamos. E
o Senhor expulsou de diante de nós a todos esses povos, mesmo os
amorreus, que moravam na terra. Nós também serviremos ao Senhor,
porquanto ele é nosso Deus. Então Josué disse ao povo: Não podereis
servir ao Senhor, porque é Deus santo, é Deus zeloso, que não perdoará a
vossa transgressão nem os vossos pecados. Se abandonardes ao Senhor e
servirdes a deuses estranhos, então ele se tornará, e vos fará o mal, e vos
consumirá, depois de vos ter feito o bem. Disse então o povo a Josué: Não!
antes serviremos ao Senhor. Josué, pois, disse ao povo: Sois testemunhas
contra vós mesmos e que escolhestes ao Senhor para o servir.
Responderam eles: Somos testemunhas. Agora, pois, - disse Josué - deitai
fora os deuses estranhos que há no meio de vós, e inclinai o vosso coração
ao Senhor Deus de Israel. Disse o povo a Josué: Serviremos ao Senhor
nosso Deus, e obedeceremos à sua voz. Assim fez Josué naquele dia um
pacto com o povo, e lhe deu leis e ordenanças em Siquém. E Josué
escreveu estas palavras no livro da lei de Deus; e, tomando uma grande
pedra, a pôs ali debaixo do carvalho que estava junto ao santuário do
Senhor, e disse a todo o povo: Eis que esta pedra será por testemunho
contra nós, pois ela ouviu todas as palavras que o Senhor nos falou; pelo
que será por testemunho contra vós, para que não negueis o vosso Deus.
Então Josué despediu o povo, cada um para a sua herança.

Um texto longo, mas contundente em cada linha, detalhando cada ponto do


pacto, desde a quem devem obedecer (Yahweh), porquê devem obedecê-lo (guiou
os pais e os libertou da casa da escravidão), o voto popular (Serviremos ao Senhor
nosso Deus, e obedeceremos à sua voz), as testemunhas do pacto (Somos
testemunhas), o que acontecerá em caso de transgressão ao voto pactuado (então
ele se tornará, e vos fará o mal, e vos consumirá), local do pacto (santuário de
Yahweh), data do pacto (naquele dia em Siquém), símbolo do pacto (pedra
testemunhal). Um pacto, assim como a aliança com Moisés, a partir do qual é escrito
um códice legal, balizador do pacto recém votado (e Josué escreveu estas palavras
no livro da lei de Deus).
Todo pacto social pressupõe um contrato social. A novidade desta segunda
característica reside no fato da aliança social ser firmada com um ente construído
racionalmente, virtual, pacto encontrado tanto no horizonte hapiru, quanto no
horizonte hodierno.
3º Paralelo: A Terra pertence à Yahweh, ao Estado
Rousseau escreve que, na constituição do Estado:

Cada membro da comunidade dá-se a ela no momento de sua formação, tal


como se encontra naquele instante; ele e todas as suas forças, das quais
fazem parte os bens que possui. O que não significa que, por esse ato, a
posse mude de natureza ao mudar de mão e se torne propriedade nas do
soberano, mas sim que, como forças da Cidade são incomparavelmente
maiores do que as de um particular, a posse pública é também, na

99
realidade, mais forte e irrevogável, sem ser mais legítima, [...]. Tal coisa se
dá porque o Estado, perante seus membros, é senhor de todos os seus
bens pelo contrato social, contrato esse que, no Estado, serve de base a
todos os direitos, mas não é senhor daqueles bens perante as outras
potências senão pelo direito de primeiro ocupante, que tomou dos
particulares.245

Esta foi uma grande superação de pensamento político, pois até então a
propriedade pertencia a dominantes que a exploravam, exploração estendida a seus
trabalhadores (vassalos). Ao repassar a propriedade ao Estado virtual, Rousseau
transcende seu contexto medieval, alçando a sociedade a novos patamares de
organização política. Somente assim se pôde manter certa coesão sociopolítica;
onde há donos de terras, há poderes paralelos ao poder do Estado.
Esta ideia já fazia parte da organização social das Tribos de Yahweh. Em
várias partes dos códices legais na Bíblia, Yahweh é declarado o proprietário de toda
a terra (Lv 25.23) e é ele quem a distribui entre as tribos (Ex 23.20-33), como
acentuado na Assembleia de Siquém, no seu término, em Js 25.28. Só assim
puderam as Tribos de Yahweh manter a proposta de igualdade socioeconômica
aplicável ao novo modo de produção tribal. Esta característica foi bem ventilada na
análise do terceiro Mandamento, no qual a venda de terrenos não era viável, pois a
terra pertence a Deus (Yahweh), título da obra de SCHWANTES 246. Isto
proporcionava uma reforma agrária periódica (Ano do Jubileu), mantendo um
equilíbrio social constante. Os animais, enquanto meio de produção, também
estavam resguardados pela lei do Estado tribal, ao terem que descansar no sétimo
dia, assim como os agricultores e trabalhadores sem geral. Como visto na análise do
segundo capítulo, na proposta das Tribos de Yahweh, o direito do indivíduo estava
em segundo plano; o direito do indivíduo só tinha validade se estivesse pautado pelo
direito da coletividade247.
Esta terceira característica destaca-se, como expressa GADAMER, entre os
horizontes, por constituir uma peculiaridade dos dois horizontes em questão, tanto
nas Tribos de Yahweh, como no Contrato Social de Rousseau. Neste, pela quebra
drástica com respeito à propriedade, vindo a terra pertencer ao Estado e,
consequentemente, a todos os associados; naquela, pela mesma quebra, tornando-

245
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 37.
246
SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI, 1990.
247
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983,
p. 277: “No antigo Israel, o indivíduo vive sempre enquadrado firmemente na união da sua família e,
consequentemente, do seu povo”.

100
se a terra propriedade também do ente virtual Yahweh, que a entrega ao povo
deliberadamente, mantendo, em última instância, o controle sobre a mesma,
promovendo uma reforma agrária incomum na história da humanidade, a cada
período de cinquenta anos.
4º Paralelo: A Lei
Por último, mas não menos importante, é apresentado o paralelo da lei, por
ser o objeto deste trabalho: o Decálogo, a lei mor. Rousseau estrutura assim o
Estado: “As leis não são, propriamente, mais do que as condições da associação
civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Só àqueles que se associam
cabe regulamentar as condições da sociedade” 248. Quanto à pena, acresce: “Pode-
se considerar um terceiro tipo de relação entre o homem e a Lei, a saber, a da
desobediência à pena, dando origem as estabelecimento das leis criminais que, no
fundo, instituem menos uma espécie particular de leis do que a sanção de todas as
outras”249.
Nas Tribos de Yahweh, o pacto da Assembleia de Siquém introduz uma lei
norteadora, que estipula obediência total à Yahweh. Este é o garante da sociedade
tribal, e garante mediante leis religiosas, mas de cunho fortemente socioeconômicas.
São as leis constitutivas do pacto entre o ente virtual Yahweh e seu povo. Estas leis
presentes no surgimento das Tribos de Yahweh, entre 1.250 e 1.050 a.C., deram
coesão e sustentabilidade ao modo de produção sui generis, por duzentos anos.
Mas com a introdução do reinado davídico e logo depois o de Salomão, a população
começou a perder vínculos com estas leis mantenedoras da liberdade e promotoras
de justiça e de igualdade social. As leis originárias começaram a perder seu poder.
Daí o surgimento do Decálogo, no século VII a.C., com a intenção de recuperação
do viço a partir da memória do passado (já no horizonte), sistematizando as diversas
leis num só compêndio, não as substituindo, mas recordando-as e revitalizando-as.
O Decálogo foi sendo paulatinamente aceito como a lei da Aliança Mosaica e
recepcionado como lei régia, pactual, a partir do século V a.C., depois do exílio
babilônico, sendo a referência legislativa mais importante. 250

248
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 55.
249
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direito político. 4. Ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 69.
250
CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva Histórico-Social.
São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 24.

101
Como visto no segundo capítulo, as leis também previam leis penais (Ex
34.10-17 e Dt 7.1-5), até capital (Ex 35.2). O objetivo é o mesmo defendido por
Rousseau, sancionar as demais leis, inibindo a ruptura do Contrato Social. Todo
crime é uma quebra do pacto (Ex 34.10,12), feito por todos que se associam ao
corpo político. Merece, portanto, ser punido por ferir a própria constituição do corpo
social. No Decálogo, encontram-se sanções no: 1º Mandamento (Ex 20.5: eu sou o
Senhor, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a
terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem); 2º Mandamento (Ex 20.7:
porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão); 4º
Mandamento (Ex 20.12: Honre teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus
dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá).
Todas as sociedades têm leis. Não é aqui que se encontra o diferencial do
Decálogo. Sua distinção e menção como lei semelhante às leis do Contrato Social
de Rousseau está no fato do Decálogo fomentar e defender leis que embasam uma
sociedade a partir dos princípios da liberdade, justiça e igualdade. Não são leis que
legitimam o poder dos dominantes, como era praxe tanto nas cercanias de Canaã,
como na época absolutista de Rousseau. Mas leis como a do sábado, como função
social que serve como benefício ao povo, assim como as leis decorrentes desta,
como a do Ano Sabático251, o Ano da Remissão252 e do Ano do Jubileu253. Há também
leis mais específicas em favor do pobre 254, do estrangeiro255, dos servos256 e dos
escravos257. Todo este cabedal de leis é escrito pelo povo para o cuidado de si
mesmo, para sua própria proteção e benefício. São leis inovadoras, como a do
primeiro Mandamento, que defendia uma constituição embasada num ente virtual e
não humano, a exemplo do Estado em Rousseau. Esta quarta característica
destaca-se pela distinção da qualidade da lei (desenvolvida e voltada para o povo) e
pela semelhança com o pensamento político e legislativo de Rousseau.
Em conclusão, este terceiro capítulo pretende demonstrar que nenhuma
experiência social ocorre isoladamente, desvinculada do passado e cerrada para
futuras apreensões. Especialmente as experiências inéditas, sui generis. Óbvio que
251
Lv 25.1-7: A cada sete anos a terra tinha que descansar, para que os animais selvagens e os
pobres da terra pudessem se alimentar livremente.
252
Dt 15.1-6, no qual todas as dívidas eram perdoadas.
253
Lv 25.8-34, no qual a terra descansava, e as terras vendidas, voltavam a seus donos originários.
254
Lv 25.35-38 e Dt 15.7-11.
255
Ex 20.10
256
Ex 21.1-11 e Dt 15.12-18.
257
Lv 25.39-55

102
a experiência social das Tribos de Yahweh incorreu em vários erros e que muitas
das leis permaneceram no campo utópico. Contudo, a despeito disso, foram escritas
e existiram! Este capítulo pretende defender a ideia de que a experiência hapiru,
entre 1.250 e 1.050 a.C., período denominado como Tribos de Yahweh, foi um
experimento embrionário de um sistema social que procurava ordenar-se a partir de
princípios humanitários, tais como o da liberdade, justiça e igualdade. Um
experimento social que, mal ou bem, surgiu e se manteve por 200 anos, ou seja,
vingou e deixou marcas na história! O Decálogo é apenas uma dentre outras
marcas. A tese proposta por este terceiro capítulo é que este experimento insipiente,
ao deitar raízes e marcas na história, possibilitou o surgimento racional do Contrato
Social, tanto em Hobbes, mas principalmente em Rousseau. Dito de outra forma, o
desenvolvimento intelectual do século XVII e XVIII não teria chegado aonde chegou
se não houvesse tido preliminares na história política da humanidade, tal como o
experimento hapiru.
Para embasar esta tese, o terceiro capítulo fez uso da teoria da fusão dos
horizontes de GADAMER, procurando demonstrar com maior proximidade
características próprias em ambos os experimentos sociais (prático e teórico) que se
encontram em sintonia. Características descritas na Bíblia e bem acessíveis aos
intelectuais da época de Hobbes e de Rousseau. Ambos, aliás, aportam em seus
escritos temas e textos bíblicos tanto para refutar como para embasar suas teses. A
interpretação de textos antigos, da tradição religiosa do Antigo Testamento, pode ter
influenciado diretamente a formulação das teses de Contrato Social de ambos os
intelectuais medievais. Defender esta tese já seria objeto de outro trabalho
acadêmico. Aqui fica como suspeita. A fusão de horizontes, contudo, oferece indícios
de que o Contrato Social, como corpo teórico, e sua aplicação nas sociedades
hodiernas, posteriores à Revolução Francesa e Iluminista, pôde se constituir por que
no passado houve preliminares dispostas na mesma direção; esta é a hipótese de
trabalho ao final deste capítulo.
O objetivo deste capítulo dentro do todo deste Trabalho de Conclusão de
Curso de Direito é apoiar o fato de que o Decálogo, mais que normas morais e
religiosas, carrega em seu cerne o germe em potência de uma força de libertação
social capaz de engendrar e fomentar a criação de sociedades mais justas e
igualitárias, a exemplo do pensamento teórico do Contrato Social, tanto de Hobbes

103
quanto de Rousseau, e a exemplo da concretização deste ideal teórico nas
sociedades modernas da atualidade do século XXI.

104
CONCLUSÃO

Canaã situava-se no meio de uma das rotas internacionais mais importantes,


ao interligar três continentes, por terra. Durante milênios, este pequeno trecho de
terra foi dominado por potências vizinhas: Assíria (ao norte), Egito (ao sudoeste),
Babilônia (ao leste), exatamente por esta posição estratégica e de grande fonte
econômica (pedágio). A derrota de um império era fomentada por outro que herdava
todas as terras sob o domínio do derrotado. Mas num breve período de quinhentos
anos, entre 1.250 e 750 a.C., os impérios circunvizinhos às terras de Canaã, por
conflitos internos, perderam o poder simultaneamente, permitindo que as terras de
Canaã, sempre dominadas por potências estrangeiras, respirasse livremente pela
primeira vez em milênios. Este vácuo de poder no tabuleiro internacional no Oriente
Crescente permitiu que culturas sobrepujadas por gerações, pudessem florescer
livremente. Esta liberdade possibilitou o surgimento de diferentes experimentos
sociais, desde tentativas de pequenas cidades-estados de ocuparem militarmente o
vazio deixado pelos impérios decadentes, como tentativas socais alternativas ao
modelo vivenciado por séculos.
Dentre estes experimentos sociais, a experiência das Tribos de Yahweh se
destaca pela sua proposta sui generis de organização política. Organizada
basicamente por escravos e fugitivos dos diferentes modos de produção
circunvizinhos – os sem direitos, denominados de hapirus, insatisfeitos com suas
experiências de vida sub-humanas –, esta sociedade tribal é gestada, no vazio
existente das montanhas de Canaã, segundo os princípios da liberdade, da justiça e
da igualdade. Para esta construção, foi necessário um paulatino, mas rigoroso
processo de amalgamas de diferentes culturas que ali se aninharam a procura de
refúgio. E para fazer frente à demanda comum de todos os hapirus, foi necessária a
criação de um modelo alternativo, pautado pela memória da falta de liberdade, da
falta de justiça e da falta de igualdade.
Para tanto, houve busca de modelos no passado das diferentes tradições, a
procura por elementos que pudessem auxiliar na resposta às demandas sociais que
se iam formando ao longo do processo de sedimentação das tribos de hapirus nas
montanhas de Canaã. Mesmo o modo de produção escravocrata egípcio pôde
ofertar subsídios religiosos/ideológicos para esta nova construção social. O

105
monoteísmo foi um exemplo disto. O monoteísmo possibilitou aos hapirus
organizadores deste novo modo de produção libertário, justo e igualitário, constituir
uma federação tribal, cuja coesão provinha de uma entidade divina (virtual); uma
teocracia inédita, sem sacerdotes detentores de poder (ex.: levitas); uma teocracia
monoteísta na qual um único Deus, Yahweh, uma dentre várias divindades hapirus,
foi eleita para ser o garante da federação tribal; uma teocracia embasada numa
aliança conjunta, num contrato social feito, não entre hapirus, mas entre o povo
hapiru e sua divindade eleita. Mais tarde, esta federação tribal, sob o controle de
Yahweh, tornou-se conhecida como as Tribos de Yahweh.
Durante duzentos anos este modo de produção agrícola e pecuarista de
animal de pequeno porte, libertário, justo e igualitário vingou, apoiado por códigos
legais mais rigorosos que os cananeus, no meio dos quais as Tribos de Yahweh
surgiram e se firmaram como povo com identidade e história própria (memória
histórica). Leis que estimulavam a solidariedade e inibiam a estratificação social.
Leis que asseguravam o pacto realizado entre o povo hapiru e seu Deus
nacionalista, o garantidor de todo o projeto social em construção. Leis que forjaram
alianças entre as diferentes culturas que nas montanhas se instalaram, exigindo a
profissão de fé (voto) ao pacto estabelecido por todos os moradores e trabalhadores
da região, não permitindo a influência de outros modos de produção perniciosos ao
projeto inédito e insipiente.
Este projeto foi substituído pelo reinado de Davi, que promoveu uma
reestrutura ideológica, procurando extinguir o poder teocrático das Tribos de
Yahweh, e recolocando no seu lugar o velho modelo de reinado, em 1.050 a.C. Com
o vácuo deixado pelas potências estrangeiras e com o fortalecimento das Tribos de
Yahweh, houve quem desejasse ascender e ocupar militarmente o espaço vazio do
poder na região. Esta mudança permitiu que influências nocivas se infiltrassem na
organização, destituindo-a de seus princípios mais básicos, como os da liberdade,
justiça e igualdade.
Para fazer frente a esta derrocada do modo de produção alternativo e
querido, hapirus politicamente estabelecidos e com a memória sempre presente da
história da formação das Tribos de Yahweh, chamados de profetas, se propuseram a
defender o velho modelo de teocracia, sem reis. O Decálogo nasce em meio a esta
luta ideológica e política, com o fim de resgatar os alicerces de um modelo ímpar,
que ficara registrado na memória do povo como um período mágico, onde Yahweh

106
era o único Senhor, onde todos viviam em liberdade, onde todos encontravam um
aparato legal que os defendia com justiça, e onde todos eram tidos como iguais
diante de um só Senhor: Yahweh.
O Decálogo, assim, surge como um compêndio que sintetiza magistralmente
os princípios norteadores da construção deste modelo social sui generis na história
da humanidade, conhecido como as Tribos de Yahweh. Decálogo que reúne leis
primordialmente políticas e essencialmente jurídicas, mesmo que religiosas.
Decálogo que, a despeito de sua natureza religiosa, reúne leis que foram o motor do
surgimento de uma organização sociopolítica de dimensões históricas para toda a
humanidade. Nesta direção, poder-se-ia dizer que o Decálogo, ao reunir todas estas
leis humanitárias, transformou-se como se numa Constituição de um Estado.
Decálogo que foi registrado em papel e introduzido num cânon sagrado hapiru (Torá)
e repassado à história humana como acerco comum a todas as nações política e
juridicamente instituídas.
Mais de dois mil anos depois, no século XVII e XVIII d.C., surgiram
experimentos teóricos similares ao experimento hapiru. A sociedade moderna deu
seus primeiros passos à instituição de um aparato sociopolítico, estruturado sem rei
ou grupo oligárquico, mas encabeçado por um ente virtual. Uma associação
proposta por iguais, libertos e que procuraram justiça social, e que exigia para tanto,
um pacto entre o povo e este ente virtual, chamado de Estado. Um Estado
coercitivo, alicerçado em códigos legais que confirmavam e mantinham o pacto
social, fomentando segurança (liberdade), justiça judiciária (justiça), igualdade a
despeito das diferenças (igualdade); ou seja, direitos sociais tão humanos e amplos
quanto os encontrados no Decálogo, fruto de um experimento social vivenciado por
duzentos anos, três mil anos antes. Experiências que foram sendo repassadas de
horizonte histórico a horizonte histórico, até o horizonte brasileiro do século XXI.
O Decálogo, assim, é mais que um conjunto de máximas morais, exigindo
das pessoas um comportamento meramente religioso, como: a) não orar para exus
ou outras divindades que não à trindade cristã (1º Mandamento); b) não exclamar
“Santo Deus!”, ou “Jesus Cristo!”, ou “Ave Maria!” em vão (2º Mandamento); c) ir
para a igreja aos domingos, comungar e/ou se confessar (3º Mandamento). Os três
primeiros Mandamentos do Decálogo encobrem uma riqueza muito maior: a)
propõem a segurança de um ente virtual que estrutura sociedades política,
econômica e socialmente concretas; b) viabilizam o comércio e meios seguros para

107
contratos jurídicos; c) defendem benefícios no trabalho, harmonizando o ser humano
física, emocional e socialmente dentro do contexto da natureza, fomentando práticas
ecológicas, de cidadania e de respeito pelo diferente (raças, estrangeiro).
O Decálogo é fruto da história da humanidade e carrega dentro de si a
somatória de experiências sumamente importantes para toda convivência humana.
Nele pulsa em potência o germe da liberdade, da justiça e da igualdade,
desabrochando como semente adormecida sempre que cair em solo fértil, pronto
para brotar e fazer surgir uma nova sociedade sui generis, a partir dos diferentes
contextos onde estes três princípios não existirem, a exemplo da primavera árabe. A
humanidade tem uma alma e... existe um tesouro enterrado no campo (Mt 13.44).

108
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