Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
A SI MESMO
Jean Vaysse
2) Observação de si (05)
PREPARAÇÃO PARA
UMA BUSCA REAL DE SI
Se quisermos realmente viver a nossa vida, talvez sintamos a
necessidade de aprofundar a compreensão que temos dela e dar a ela um
sentido e significação que, com toda a honestidade, ainda não tenhamos
encontrado, ou, em todo caso, encontrado de forma demasiado incompleta.
Quase tudo o que fizemos até agora foi voltado para o exterior e a
vida exterior absorveu a quase totalidade de nossas vidas.
Durante a nossa instrução, os nossos estudos e as nossas atividades da
vida, quase tudo esteve voltado para o exterior. Aprendemos muito pouco a
nos voltar para o interior de nós mesmos; só em determinados momentos e
de maneira episódica.
Se, no entanto, quisermos ir mais a frente na busca de uma presença
forte, lúcida, estável, capaz, temos que voltar para nós mesmos. Temos
necessidade, antes de tudo, de ser plenamente nós mesmos diante da vida e
através dela. Se quisermos chegar a algo realmente válido, é necessário
empreender um trabalho de outra ordem: um trabalho muito mais estruturado.
Temos que adquirir uma experiência e compreensão melhores do que somos e
desenvolver em nós qualidades que ainda nos faltam. Assim como aprendemos
a agir em relação ao nosso trabalho exterior, vamos ter que aprender o que é
um trabalho interior e que espécie de ação ou atividade ele comporta.
O homem deve chegar a uma visão da sua situação, a um conhecimento
do que é e a um trabalho interior de desenvolvimento de si. Deve ver que a sua
personalidade, sustentada pelo seu amor-próprio, usurpa um poder soberano
abusivo e dispõe, para o seu serviço, de um domínio total das funções. Deve
reconhecer que a sua essência, a parte autêntica de si mesmo, permaneceu não
desenvolvida. Deve empreender o restabelecimento do justo equilíbrio em si.
O primeiro trabalho será restabelecer o equilíbrio perdido entre a
essência e a personalidade. Isso requer o enfraquecimento da personalidade,
até que ela seja trazida à sua justa medida. E isso exige, ao mesmo tempo, o
desenvolvimento do ser, tanto através da ação de choques que o despertem,
como por meio de um trabalho de ampliação da compreensão à custa de
experiências conscientemente vividas.
Aprofundar o conhecimento de nós mesmos é um trabalho imenso,
e talvez maior que a aprendizagem de nossa vida exterior.
Trata-se também de um caminho longo, fastidioso, muitas vezes até
desencorajador. Vemos que precisamos de um trabalho muito mais intenso e
de maior fôlego do que jamais o foram todas as nossas tentativas nesse
3
sentido. Isso certamente não poderá ocorrer enquanto a vida exterior nos
arrastar a todo instante.
Poderíamos começar o nosso trabalho por um dos três níveis: afetivo ou
intelectual ou instintivo/motor. O nível orgânico, o nosso corpo parece ser o
mais indicado, pois é através dele que se fazem todos os intercâmbios da
vida e nos chegam todas as energias de que necessitamos; é o instrumento
através do qual percebemos, por meio do qual agimos. Além disso, nosso
corpo é sólido, concreto, com uma forma aparentemente estável, com o qual,
em todo o caso, podemos, numa certa medida, contar. Ele fica de bom grado
em repouso e nos é possível observá-lo. É relativamente obediente e, numa
certa medida, temos algum poder sobre ele.
Se quisermos estudar o nosso corpo, ou pelo menos, a sua parte
motora, o movimento, precisaremos estar ligados a ele.
O que nos liga ao nosso corpo é a “sensação” que temos dele: a
percepção interior do nosso eu físico, a sensação física de si. Mas a
sensação tem uma importância ainda maior, pois, se o nosso propósito for
desenvolver em nós mesmos uma presença estável, a sensação do nosso eu
físico será parte inerente dela. A sensação é a parte mais concreta e
facilmente controlável dela.
Para nos conhecermos e nos observarmos, para estudarmos o nosso
corpo e, mais tarde, para sustentarmos o nosso trabalho, precisamos dispor
dessa sensação. Isso exige que estabeleça em nós uma nova relação, uma
nova situação: eu (consciente da) minha sensação. Precisamos nos tornar
capazes de uma consciência mais estável, mais durável do nosso corpo e da
sua situação.
Haverá sempre duas linhas no nosso trabalho: por um lado, o trabalho
interior em condições apropriadas ao desenvolvimento de determinadas
possibilidades; por outro, a prova da vida, numa medida apropriada ao
desenvolvimento interior realizado. Ou seja, ir para a vida para aí manifestar
plenamente o que tivermos reconhecido ser e para ali realizar o que depende
de nós.
Quanto à sensação de si, precisamos, antes de poder acompanhá-la,
em suas variações durante os nossos movimentos e a nossa vida, conhecê-la
num estado de base, onde possamos sempre reencontrá-la imediatamente,
igual a si mesma, cada vez que, para o nosso trabalho interior, ela nos seja
necessária. Assim como é preciso um zero ou uma norma para toda medição,
precisamos, do mesmo modo, para a apreciação de nós mesmos, de uma
base de referência, a medida de uma situação sempre igual. E, em relação à
sensação de si, só podemos encontrar essa base num relaxamento completo.
Devemos, portanto, nos colocar em condições em que esse relaxamento
seja possível. Uma vez que reconhecemos ser necessária essa tentativa,
assumimos conosco o compromisso de tentá-la todos os dias, na justa medida
das possibilidades, ao menos uma vez, senão duas, e talvez mais.
4
OBSERVAÇÃO DE SI
A observação de si é a primeira etapa de um estudo de si, e deve estar
ligada primeiro à nossa busca e ao nosso desejo de ser plenamente nós
mesmos. A observação de si é, em si mesmo, um instrumento de despertar
para um outro nível de vida e, por conseguinte, é um meio de transformação.
Mas a simples observação de si não é possível sem a “lembrança de si”.
E, enquanto um homem não chegar, de maneira bastante global, a uma
“presença a si mesmo” real, pela lembrança de si, com o conhecimento
relativo de si que nela encontra, as coisas se fazem nele ou através dele, mas
não se fazem em presença dele mesmo, não segundo ele. Só a máquina
funciona, ele próprio não está ai.
É só começando a “lembrar-se de si” que o homem inicia realmente o
acordar, tentando encontrar, reunir, viver por traz dos seus personagens,
aquilo que sentiu ser mais verdadeiramente ele mesmo. Tal tentativa dá uma
“impressão de si” que tem um “sabor” específico e se reconhece sem erro:
nesse momento, o homem que a conheceu começa a não deixar mais que o
seu personagem abuse dele. Na verdade, o que tal tentativa implica não pode
ser descrito em palavras: trata-se de uma experiência individual que , como
toda experiência de consciência, só tem sentido quando vivida, no próprio
momento em que é vivida, e somente para o indivíduo que a vive. Só
começando a “lembrar-se de si” é que o homem pode despertar realmente.
A observação de si exclusivamente não é, suficiente para o despertar. É
apenas uma etapa preliminar que precisa de certo despertar, mas este
permanece, de algum modo, passivo: o homem, nesse ponto, mal emerge do
sono e imediatamente torna a cair nele. Só com o despertar real e bastante
5
VISÃO DE CONJUNTO
DA ESTRUTURA DO HOMEM
Uma observação valida só é efetivamente possível se, antes, nos forem
dadas certas informações sobre o que somos e as perspectivas inerentes à
vida humana. Tais informações só adquirem um valor real para nós, se
podemos, em seguida, verificá-las passo a passo por nós mesmos e chegar a
uma visão de conjunto e uma experiência prática suficientemente
comprovada. Essas informações se referem à própria estrutura do ser
humano, ao seu modo de funcionamento e às mais imediatas de suas
transformações possíveis.
CENTROS E FUNÇÕES
A máquina humana completa compõe de sete formações, cada qual com a
sua função. Quatro delas garantem o funcionamento corrente, a nossa participação
elementar na vida. As outras três, além dessa participação, representam, mais
especificamente, o suporte da individualidade propriamente dita.
7
1) A INTELECTUALIDADE
O pensamento é a função do centro intelectual. Todos os processos
mentais estão compreendidos nele: recepções dos dados intelectuais,
análise, comparação, elaboração de idéias, de raciocínios, de imaginações e
registro na memória intelectual. É essa função, em geral, que nos permite
comparar, julgar, coordenar, classificar e prever.
2) A AFETIVIDADE
FACULDADES FUNDAMENTAIS
As três faculdades fundamentais do homem se encontram, sob diversos
aspectos, em toda forma de vida individual. O seu conjunto permite a
individualidade relativamente autônoma. A sua qualidade testemunha o nível
de vida, o estado de presença, o grau do ser e caracteriza cada estado de
presença, permitindo assim reconhecê-lo e situá-lo. Essas três faculdades
são a “atenção” a “consciência” e a “vontade”.
ESSÊNCIA E PERSONALIDADE
Um dos pontos mais importante no estudo de si é, entre as nossas
motivações e funcionamento, a distinção entre o que nos pertence de fato,
provém de nós, faz parte de nossa própria natureza, e o é proveniente do
meio ambiente e não representando em nós mais que um empréstimo. Deste
ponto de vista, estamos divididos em duas partes: a essência e a
personalidade. Essas duas partes, no homem comum, estão quase sempre
tão mescladas, que são imperceptíveis. Tanto uma como a outra são
necessárias à vida e, se o homem quiser se conhecer, conhecer “a sua vida”,
deverá, em primeiro lugar, ser capaz de distingui-las em si mesmo.
1) ESSÊNCIA (ENCERRA O GERME DE NOSSAS QUALIDADES)
9
FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE
O CORPO ORGÂNICO
A essência e a personalidade têm por suporte um terceiro elemento
constitutivo do homem: o seu corpo orgânico. O centro de gravidade do corpo
é o centro motor; o da essência, o cento afetivo; o da personalidade, o centro
intelectual. Na ordem natural da vida do homem, essas três partes têm um
desenvolvimento independente. Só acidentalmente interfere uma na outra e
têm apenas ligações ocasionais. Entre elas não se estabelece nenhuma
ligação real. O estabelecimento de ligações reais só pode ser o resultado de
um trabalho, especialmente dirigido, do homem sobre si mesmo. Em
conseqüência da natural independência das suas três partes, a
individualidade não é dada ao homem ao nascer. Ela só pode ser o resultado
de um longo trabalho sobre si. O conhecimento do corpo, da essência e da
personalidade é necessário a esse trabalho.
INSTALAÇÃO DE HÁBITOS
Durante a aprendizagem das respostas às exigências da vida aparece a
instalação dos hábitos. A repetição dos mesmos comportamentos em
situações análogas, cria, no indivíduo, uma associação sempre igual das suas
diversas funções. Disso resulta a instalação nele de uma rede particular de
relações, um “modo de aparecer” que se repete automaticamente cada vez
que circunstâncias análogas se repetem. Em pouco tempo, cada um desses
aspectos ou maneira de aparecer constitui um personagem em si, um
pequeno “eu” particular. Desse modo forma-se um “eu” para cada uma das
circunstâncias habituais da vida.
Como esses “eus” se constituem independentemente uns dos outros, eles
não mantêm relação entre si. São tanto concordantes como contraditórios e
cada qual não é mais que um aspecto correspondente de uma determinada
situação. Assim, o homem aparece diferentemente, conforme as circunstâncias,
sob as máscaras de diversos personagens, de pequenos “eus” múltiplos, que
lhe dão uma aparência aprendida, alheia ao seu verdadeiro eu. O conjunto
forma sua personalidade. E, assim, o homem deixa de aparecer, na vida, como
uma ”individualidade”, em que as funções se expressam harmoniosamente, em
todas as circunstâncias, o que ele é profundamente em sua essência.
MECANICIDADE
Uma observação atenta mostra que as cinco funções que garantem a
nossa vida comum estão continuamente em atividade, mas em graus
diferentes. Vemos geralmente uma delas mais ativa predominar e arrastar as
outras, mas tal predominância muda com freqüência sob a ação dos
12
A) A ATENÇÃO
A atenção que temos é comumente uma atenção de sentido único,
dirigida para o que observamos e só leva em conta o que observamos. Com
uma atenção desse tipo e com a atitude que ela acarreta, a observação
16
HÁBITOS MOTORES
A observação da motricidade pode ser empreendida eficazmente
contrariando uns após outros os diversos hábitos motores que formam o
substrato de toda a nossa atividade (o andar, o escrever, os gestos à mesa,
os gestos profissionais, as atitudes, etc). Cada uma dessas atividades é
constituída de múltiplos pequenos hábitos, cuja mudança provocada pode
servir de apoio a observação de si. O comprimento dos passos, a cadência do
andar, o modo de segurar a caneta, a mudança de mão para os gestos, são
exemplos que podem ser multiplicados.
FUNCIONAMENTO INTELECTUAL
O homem que procura ver o funcionamento intelectual percebe que tem,
de fato, certo poder de dirigir o pensamento no começo. Às vezes é possível
mantê-lo ainda durante algum tempo no sentido que escolhemos. Em
seguida, cedo ou tarde, freqüentemente com muita rapidez, ele lhe escapa. O
homem está distraído. O seu mental trabalha continuamente e as idéias estão
sempre presentes, mas aparecem automaticamente, em função dos estímulos
externos e internos, sem que o homem possa fazer alguma coisa. São as
reações automáticas do intelecto, em quaisquer circunstâncias, que se
encadeiam umas às outras associativamente.
Dar-se conta de que cada uma das suas maneiras de pensar não é
única; questionar as maneiras de pensar e esforçar-se por partilhar de outras
maneiras, aprofundá-las, compreendê-las e compreender em que elas não
são suas. Como resultado, fará, assim, valiosas descobertas sobre si e o seu
modo de pensar.
B) A OBSERVAÇÃO DA NOSSA DISTRAÇÃO
A distração é um sinal evidente das insuficiências de nosso centro
intelectual. Começamos a ler, a falar, a ouvir e, de repente, nos distraímos.
Uma observação atenta e difícil (pois o processo é sutil) nos revela que são
duas as causas principais: a imaginação e o devaneio.
A imaginação e o devaneio estão entre os principais obstáculos ao ato de
observar e ver-se tal qual é. Ambos são exemplos do mau funcionamento do
centro intelectual e da sua preguiça. São o contrário de uma atividade mental
útil, isto é, ligada a um objetivo determinado. Para observar e conhecer a
imaginação e o devaneio, o homem deve começar a lutar contra eles,
submetendo-se a tarefas precisas, concretas e definidas.
A imaginação é uma faculdade destrutiva, que o homem nunca pode
controlar, que o arrasta para direções imprevisíveis, sem relação com suas
metas conscientes. Traz impressões de vida inúteis e sem finalidade, criadas
18
para a satisfação funcional pura e não para uma efetiva realização no domínio
da realidade.
O devaneio tem duas origens. Por um lado, a preguiça do centro
intelectual, que encontra, graças a ela, a sua satisfação funcional, evitando
para si todo o esforço de um trabalho definido. Por outro, a satisfação que ele
traz aos centros emocional e motor, oferecendo-lhes a imagem
aparentemente viva de experiências já vividas ou imaginadas, cujas
impressões reencontram ou repetem para reproduzir a sensação de vida -
agradável ou desagradável - que haviam conhecido nela. O devaneio não
passa de um sonho inútil, compreensível, na pior das hipóteses, quando
produz sensações agradáveis, mas mórbido e autodestrutivo, quando se
apóia em associações negativas e depressivas, das quais a mais habitual é a
pena de si.
C) A OBSERVAÇÃO DO NOSSO HÁBITO DE FALAR POR FALAR
A linguagem falada é um material intelectual que a sociedade fornece e
é registrado no centro motor. É uma ferramenta que esse centro põe a serviço
de todos os outros, para que se expressem e comuniquem por meio dela.
É necessário falar e expressar-se, a vida é um intercâmbio. No entanto,
ao lado dessa necessidade, falar torna-se um hábito. Torna-se um hábito
desde a primeira infância, quando ensinamos as crianças a falar por falar e
não para expressar.
Lutar contra o hábito de falar é um meio excelente de observação de si
de que permanentemente dispomos. Lutar contra o hábito de falar e contra
todo o discurso inútil nos obriga a ver o que se levanta em nós para utilizar a
linguagem e, por esse meio, podemos recolher muitas informações
importantes.
FUNCIONAMENTO EMOCIONAL
O estudo da emotividade, mesmo indiretamente, através dos nossos
hábitos emocionais, é mais difícil ainda do que o do centro intelectual, pois,
desde que tentamos observá-la, devemos reconhecer que não temos nenhum
controle sobre ela. Não podemos mudar nada em nossas emoções.
Embora as emoções estejam sempre presentes, só as vemos quando
ultrapassam a medida habitual. Damos a elas então o nome de “sentimento”.
Mas, no entanto, vivemos apenas com reações afetivas automáticas,
emoções que se sucedem a cada instante de nossa vida e fazem com que,
em cada circunstância, alguma coisa nos agrade ou nos desagrade, nos
atraia ou nos repila.
Não sabemos em nome de que se criam as nossas emoções e
repulsões, aceitações e recusas. Elas ocorrem automaticamente em nós.
Uma observação correta da nossa afetividade habitual põe em questão tudo o
19
OS ESTADOS DE PRESENÇA
Para um homem completamente evoluído, há quatro estados de
presença possíveis: os estados de sono, de vigília, de consciência de si e de
consciência objetiva. Mas o homem comum vive apenas em dois estados, os
mais baixos, com clarões do terceiro. Ele pode ter informações teóricas sobre
o quarto estado, mas, na verdade, os dois estados superiores lhe são
inacessíveis.
1) ESTADO DO SONO
20
FUNCIONAMENTO CORRENTE
DA MÁQUINA HUMANA
Se devemos nos estudar e conhecer a nós mesmos, devemos fazê-lo
como se estuda qualquer máquina complexa. É preciso conhecer as suas
peças, o modo como se engrenam, a energia que as anima e como essa
energia põe a máquina em movimento. É preciso também conhecer as
condições do seu trabalho correto e as causas do seu trabalho incorreto.
1) A INTELECTUALIDADE
O pensamento é de diversas espécies e qualidades, segundo o nível em
que o centro trabalha. Em todos os níveis, a função do intelecto é a afirmação
e a negação: sim e não. O intelecto recebe os dados, compara ao que
conhece, coordena, constata e prevê. No nível mais baixo, é o julgamento
crítico automático e a imaginação. Num nível mais elevado, é a confrontação
lógica e a previsão.
A) IDÉIA REATIVA E AUTOMÁTICA
As idéias que constituem o nosso modo intelectual comum são de
ordem puramente mecânica. Por seu surgimento automático diante de cada
impressão que atinge o intelecto, pelo seu fluxo incessante, suas associações
contínuas, suas comparações e respostas reativas sistemáticas, elas formam
em nós o que pode chamar de “aparelho formátorio” ou “mente”, com que
estamos habituados a responder a quase todas as situações da vida. Mesmo
o que chamamos de “reflexo”, na maioria das vezes, faz parte dele.
B) PENSAMENTOS AUTÔNOMOS
24
2) A AFETIVIDADE
O centro emocional “sente”; toda vez que lhe chega uma impressão. Ele
gosta ou não e sente uma aprovação ou desaprovação pessoal que se
manifesta sob a forma de uma emoção. Por isso, toda vez que alguma coisa
atinge a pessoa e o seu funcionamento afetivo, esse o aproxima ou o afasta,
automaticamente, ao mesmo tempo em que se expressa uma emoção
positiva ou negativa. Ela sente essa coisa como desejável ou indesejável.
Em todos os níveis, a função do sentimento é a apreciação e a relação
pessoal; em todos os níveis, o centro afetivo sente, aprecia e consente mais
ou menos. Os sentimentos verdadeiros não são negativos, não tem
negatividade. O centro emocional superior não tem negatividade. No plano
comum, ao contrário, ao nível das emoções, o centro afetivo consente ou
repele; e as emoções com que vivemos podem ser positivas, indiferentes ou
negativas, de acordo com o impacto sobre a emocionalidade, isto é, o amor-
próprio específico que anima cada um dos nossos personagens.
A) EMOÇÃO REATIVA E AUTOMÁTICA
O trabalho do centro afetivo depende inteiramente do nível de presença.
No estado habitual, está presente no homem apenas um dos seus
personagens: por isso trata-se apenas de emoções (afeto parcial inerente a
um único aspecto de si) e não de sentimento real (afeto global inerente a
presença global de um eu realmente constituído). No seu estado normal o
homem não tem sentimentos, só tem emoções automáticas, reativas,
dependentes do personagem presente. Este varia de acordo com as
circunstâncias e os seus “sentimentos” mudam com ele. O homem, porém,
não vê essas mudanças e, em sua emotividade, mais do que em qualquer
outra parte, crê-se dotado de uma permanência e continuidade que não tem.
B) SENTIMENTO VERDADEIRO
25
3) A MOTRICIDADE
Temos uma percepção da nossa forma e do grau da sua atividade pela
sensação. A sensação física de si nos permite, a todo o momento, saber o
que são a nossa atitude e a nossa atividade, e exercer, eventualmente,
controle sobre elas. Daí a sua importância na busca do conhecimento de si.
ESPÉCIES DE ALIMENTO
Os centros utilizam uma energia que é trazida por diversas formas de
“alimento” ou de elementos que penetram o organismo. Tais alimentos são de
três espécies: os alimentos que conhecemos bem, atmosfera que respiramos e
as impressões que recebemos (tudo que nos aconteceu, o que vemos, ouvimos,
fazemos, aprendemos, todos os acontecimentos interiores e exteriores).
O estudo das condições nas quais os diferentes alimentos podem ser
recebidos e assimilados é, para todo homem que deseja trabalhar na sua
própria transformação, uma necessidade “vital”. Ela é uma das condições da
sua evolução.
28
• Com uma atenção cativa, retida pelo que fazemos (o ato, a emoção, ou a
reflexão), estamos na parte emocional.
• Com uma atenção controlada e sustentada por uma escolha persistente,
estamos na parte intelectual.
Outra diferença fundamental entre os centros é a grande diferença
existente entre as suas velocidades, isto é, a velocidade respectiva das suas
funções. O centro mais lento é o intelectual. Em seguida, e já muito mais
rápido, vem o centro motor. O centro instintivo, que trabalha em estreita
relação com o centro motor, é, no entanto, mais rápido ainda. O mais rápido
de todos é o cento emocional, cujas impressões, quando ele trabalha
normalmente, nos parecem instantâneas, mas que, no estado habitual do
homem, não trabalha, na maioria das vezes, a não ser a velocidades
inferiores as dos centros instintivos e motor.
O centro emocional, quando trabalha por outro centro, leva com ele a
sua sensibilidade, a sua rapidez, a sua intensidade, e, sobretudo, um
particularismo egocêntrico que o traí mais que qualquer outro indício. Quando
ele trabalha no lugar do centro intelectual, leva a um nervosismo, uma febre,
uma presa inútil, onde seriam precisos, pelo contrário, um juízo e uma
deliberação serena. No lugar do centro motor, ele leva a impulsividade e a
veemência, em vez do movimento correto. No lugar do centro instintivo, leva o
descomedimento e o excesso tanto para mais como para menos.
B) O MAU TRABALHO DO CENTRO INTELECTUAL
O centro intelectual, quando trabalha por outro centro, traz a discussão,
a tergiversação e a frieza. Traz, finalmente, certa rigidez. Ele é, por um lado, o
mais lento de todos os centros; por outro, não é suficientemente sutil para
discernir as particularidades e pontos delicados de uma situação e ainda
menos as das suas progressivas modificações. A sua intervenção resulta
assim em reações inadaptadas ou falsas, atitudes rígidas, demasiado gerais e
muitas vezes fixadas de uma vez por todas. É, na verdade, incapaz de
compreender os matizes e sutilezas da maioria dos acontecimentos:
situações que parecem completamente diferentes ao centro motor ou
emocional são idênticas para ele, e suas decisões não são as que esses
outros centros teriam tomado.
O pensamento não pode compreender os matizes do sentimento e, com
ele, um cálculo frio substitui a emoção vivida. Assim, quando um homem se
contenta em raciocinar sobre as emoções do outro, mesmo se tenta imaginá-
las, ele próprio não sente nada e o que o outro sente continua sendo letra
morta para ele. O mesmo se passa com o domínio instintivo: o homem
saciado não compreende o homem faminto, mas para este último a fome é
muito real, e os argumentos ou decisões do outro, isto é, do pensamento,
parecem ligeiramente incompreensíveis. O centro intelectual não pode
também substituir o centro motor nem controlar os movimentos; para ele a
sensação não existe: é coisa morta que ele substitui por representações.
C) O MAU TRABALHO DO CENTRO MOTOR
O centro motor, quando tenta se encarregar do trabalho de outro centro,
traz a sua regularidade, a sua potência, a sua submissão, a sua faculdade de
imitação, mas traz também a sua preguiça, a sua inércia e a sua tendência ao
hábito e automatismo.
Com freqüência ele faz o trabalho do centro intelectual ou, mais vezes
ainda, continua, por inércia, o trabalho que este havia começado. Com efeito,
durante o trabalho que empreendeu, o centro intelectual se deixa muitas
vezes distrair por alguma coisa que capta a sua atenção; algumas vezes por
outro trabalho útil, a maioria das vezes pelo devaneio ou a imaginação. O
centro motor empreende o trabalho no seu lugar ou continua sozinho o
trabalho que havia empreendido com ele. Isso produz, por exemplo, a leitura
34
DESPERTAR DE SI MESMO
CAMINHO DE COMPREENSÃO
Sem uma quantidade suficiente de informações e saber adquirido, e
“não próprio dele” um homem não pode empreender um trabalho real sobre
si, num caminho de compreensão. Do mesmo modo, sem um
desenvolvimento suficiente da essência, não é possível um trabalho real
sobre si.
O drama comum do homem é que a personalidade tomou nele o lugar
do ser. Ela forma uma carapaça que isola a essência e impede que algo ainda
chegue a ela. É a personalidade que recebe todas as solicitações, todas as
impressões, todos os choques da vida; ela responde ao seu modo e dirige
tudo, segundo as suas próprias regras, para o seu proveito. Responde em
função da sua estrutura, de um modo reflexo, superficial, imediato: a
personalidade reage. Ela vive e se nutre dessas reações, cada uma das quais
reforça a sua estrutura, confirma os seus condicionamentos, e esse conjunto
é mantido por uma aparelhagem emocional de alta sensibilidade: o seu amor-
próprio.
O ser não pode reagir. Quando uma impressão chega a ele, o ser a
confronta de imediato com a experiência já vivida, “compreende-a” e, segundo
essa compreensão, responde. O ser vive e se nutre desse processo de
compreensão e de resposta, durante o qual assimila o conteúdo da nova
experiência: desse modo, a essência cresce. Mas o processo dessa resposta
é muito mais lento do que a reação da personalidade. No estado habitual do
homem, desde que uma impressão é recebida, a personalidade reage
imediatamente e se apodera dela. Nada tem tempo de chegar até a essência,
e esta é, de certa forma, roubada, interceptada. Cada vez, pelo menos que
seja, a personalidade cresce, e a essência definha. Finalmente, a
personalidade forma uma verdadeira gangue que ocupa todo o espaço, no
centro do qual a essência dorme e se atrofia.
Dar um lugar à consciência moral interior, ter essa necessidade de
sinceridade consigo mesmo, é a primeira das qualidades necessárias a quem
quer empreender um trabalho de conhecimento de si. Há, com efeito, em todo o
homem, um lado seu mais ou menos enterrado, mais ou menos adormecido,
que se interessa pela compreensão dele próprio, da sua vida e, de maneira mais
ampla, da vida em geral. É um centro de interesse que faz parte da
personalidade, não do ser; é um interesse por si, voltado para a compreensão
36
OBSTÁCULOS AO DESPERTAR
1) PRIMEIRO OBSTÁCULO - IGNORÂNCIA
A vida do homem comum transcorre no sono de seu Eu verdadeiro e o
homem não vê esse sono. O homem, tal qual é em geral, está praticamente
na impossibilidade de ver o seu estado real. Arrastado pela vida e pelas suas
incessantes exigências, a que ele se obriga a atender, recusa-se a ver que é
37
mecânico e que está adormecido. Não lhe sobra tempo para dar à sua
exigência interior nem ao seu desejo de ser.
2) SEGUNDO OBSTÁCULO - ILUSÃO
Um obstáculo maior aprisiona o homem nessa situação: a convicção,
solidamente enraizada nele, de que possui efetivamente, tal qual é, uma
individualidade autêntica, com as qualidades fundamentais (como presença
permanente e a liberdade ou livre escolha) que estão ligadas a ela e as
faculdades que dela resultam: um estado de consciência, a capacidade de
atenção e a possibilidade de querer ou fazer.
O que dá ao homem a ilusão de unidade ou de integridade é, por um lado,
a sensação que tem do seu corpo físico, de forma aparentemente constante;
por outro, o seu nome, pelo qual o “conhecem” e que, em geral, não muda,
apesar da sucessão de personagens diferentes, além disso, certo numero de
mecanismos e hábitos, implantados nele pela educação ou adquiridos por
imitação e, finalmente, o sistema de ”amortecedores”, que neutralizam nele
toda contradição. Na realidade, salvo essa aparência exterior, não há nada
permanente nele; tudo muda continuamente; não há um centro único de
comando nem Eu permanente, e o personagem que representa o homem na
vida não passa de uma construção artificial.
Mas, de um modo geral, o homem se sente bem tal qual é. Pensa que
suas insuficiências e o seu mal-estar provêm apenas de imperfeições
exteriores, e as mudanças a serem feitas, segundo ele, se referem somente a
modificações de equilíbrio, eliminação de certos defeitos ou reforço de certas
qualidades.
3) TERCEIRO OBSTÁCULO - ESQUECIMENTO DE SI
O homem vive num esquecimento cada vez mais profundo do seu ser,
do seu verdadeiro Eu. O seu interesse muda e se desloca continuamente;
esquece-se de como havia pensado e falado. E esses fenômenos ocorrem,
com especial freqüência, com relação a tudo que se refere a ele próprio e,
mais especificamente, a toda tentativa de trabalho sobre si.
Não tendo nenhuma base fixa em si mesmo, as suas teorias, opiniões,
comportamentos, mudam sem cessar e são desprovidos de qualquer
estabilidade e precisão. É somente uma estabilidade artificial, que ele adquiri
com ajuda de associações educadas nele, de hábitos instalados e
condicionamentos que dependem de concepções mentais, estas também
criadas artificialmente pelo meio ambiente, tais como a “honra”, a
“honestidade”, o “dever”, a “lei”, sem nenhuma relação, salvo acidental. Com
o que seria a sua verdadeira honestidade, a sua verdadeira honra, se fosse
consciente de si.
4) QUARTO OBSTÁCULO - IDENTIFICAÇÃO
38
HÁ MAIS, NO ENTANTO.
A soma das interpretações pessoais e das ilusões que constitui o
personagem ou os personagens com que o homem aparece na vida é
ciosamente defendida, tanto nas suas manifestações exteriores quanto nas
40
A partir daí, não sente mais os choques que resultam da colisão de pontos de
vista, e emoções e de palavras contraditórias.
Os “amortecedores” são dispositivos que permitem ao homem sempre
ter razão; eles o impedem de sentir a sua consciência e tranqüilizam o seu
amor-próprio. Os “amortecedores” formam-se lenta e gradativamente. A
grande maioria é criada artificialmente pela “educação”. Outros devem sua
existência à influência hipnótica de toda a vida que o rodeia. Imitando as
pessoas nas suas opiniões, ações e palavras, o homem cria, voluntariamente
em si mesmo, “amortecedores” análogos, que lhe tornam a vida mais fácil.
Mas estes impedem qualquer possibilidade de desenvolvimento interior,
porque são feitos para amortecer os choques, mas os choques, e somente
eles, podem tirar o homem do estado em que vive, isto é, despertá-lo.
Os “amortecedores” embalam o sono do homem, dando-lhe a
agradável e plácida sensação de que tudo irá bem, de que não
existem contradições e de que ele pode dormir em paz.
QUALIDADE DE VIDA
REALIZAÇÃO