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COPYRIGHT 2014 © Lauro Kociuba

LEITURA CRÍTICA
Kyanja Lee

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS E REVISÃO


Ana Lúcia Merege

CAPA
Sergio Artigas

ILUSTRAÇÕES
Erike Miranda

DIAGRAMAÇÃO
Gabriella Regina

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Bibliotecária responsável: Ana Lúcia Merege – CRB-7 4667
Kociuba, Lauro
A liga dos artesãos : alvores livro 1 / Lauro Kociuba ; ilustrações de
Erike Miranda. Primeira Edição – Curitiba : Alvores, 2014
ISBN: 978-85-918328-0-4
1. Ficção brasileira I. Título
CDD 869.93

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Ficção : Literatura Brasileira 869.93
Ao Ulisses, que me fez começar,
e à Yara, que me fez terminar.
SUMÁRIO
Prefácio
Prólogo
Capítulo 1 - Troca
Capítulo 2 - Caçada
Capítulo 3 - Túneis
Interlúdio - Irmãos
Capítulo 4 - Khur
Capítulo 5 - Alma
Capítulo 6 - Sangue
Interlúdio - Cartas
Capítulo 7 - Visita
Capítulo 8 - Segredos
Capítulo 9 - Vapor
Interlúdio - Anônimo
Capítulo 10 - Influências
Capítulo 11 - Presente
Capítulo 12 - Chave
Interlúdio - Esperança
Capítulo 13 - Toca
Capítulo 14 - Iniciativa
Capítulo 15 - Supremacia
Final: Parte I - Carne
Final: Parte II - Metal
Epílogo
Extras
Agradecimentos
Fantasia x Realidade
Personagens
Apoio
Links
PREFÁCIO
O ano era o de 2013 e eu estava trabalhando na divulgação do meu
primeiro romance quando conheci o Lauro Kociuba. Na época, eu tinha — e
ainda tenho, sempre que possível — travado contato com vários blogueiros e
produtores de conteúdo para promover o livro. Uma destas páginas foi a
Fantasioteca (hoje, desativado), que era administrada pelo Lauro. Trocamos
algumas mensagens e impressões — eu me lembro que, quando ele ficou
“grávido”, procurou por livros infantis e infanto-juvenis de fantasia e eu dei
várias dicas, pois já tinha passado por isso com os meus dois guris.
Até que, num belo e iluminado dia, quando Lauro estava trabalhando
no site do PaisGeeks (paisgeeks.com.br) — a sensacional jornada de um pai
geek no universo da paternidade —, ele e a Yara resolveram fazer uma
campanha para adquirir enxoval de inverno para as famílias carentes que,
como eles, iriam receber a cegonha no auge do inverno. E em Curitiba, como
aqui no Rio Grande do Sul, sabemos bem como é um inverno rigoroso —
yes, the winter is comming and is not good for crying babys.
A campanha era simples: vários autores, editora e afins estavam
doando livros. Quem doasse para a campanha, ganharia tickets virtuais e
concorria aos volumes. Como pai de duas crianças, nunca deixaria de ajudar
uma ação desta natureza: enviei o meu romance para ele. Alguns dias depois,
recebo a mensagem de Lauro, entusiasmado com o livro. A partir daí, nasceu,
realmente, a nossa amizade — no meio de livros e bebês.
E a partir de nossos contatos mais frequentes, nasceu o incentivo ao
projeto de Lauro. Quando ele me falou pela primeira vez da sua ideia, da
concepção de Alvores, sabia que algo especial estava nascendo. E também
sabia da angústia daquele momento. Escrever é mágico, libertador e dá um
prazer indescritível.
Mas também é solitário, perturbador e terrivelmente angustiante.
Passaram-se meses. De vez em quando, recebia alguma mensagem e enviava
outra. Tive o privilégio de ver o livro seu nascer, com poucas páginas, para
depois ganhar forma, conteúdo e substância.
E, então, veio o Catarse e os projetos paralelos — artbooks, bonecos
e sketches. Só podíamos torcer para que tudo desse certo. Não consigo
imaginar a angústia do Lauro em ver o dinheiro entrar, a conta-gotas, em
enxurradas, muito num dia, pouco no outro, e o tempo passando, inexorável.
Mas, pouco a pouco, o projeto foi financiado e a literatura fantástica nacional
ganhou um novo autor.
Agora, está na hora de mergulharmos. Esqueça o que você sabe
sobre a realidade. Esqueça as histórias que lhe contaram. Fundamentalmente,
esqueça o quotidiano. Entraremos na zona do desconhecido, na região cinza
das grandes cidades, onde olhares escorregadios podem atrair muito mais que
um trombadinha atrás de uma carteira mal cuidada. Nos aventuraremos por
Curitiba e além, seguindo o rastro daqueles que tiveram a coragem de
destravar as tortuosas trilhas por nós.
Porque escrever é um ato de coragem.
Mas ler também o é.
Aventure-se em Alvores... se for capaz.

A.Z. C ORDENONSI
Santa Maria, outubro de 2014.
PRÓLOGO
— Não creio que chegará mais alguém. Vamos começar.
Era o ano de 2009 e Aer’delo chamara todos os elfos e encantados
que conhecia para a reunião. Havia décadas — desde a Grande Guerra — que
não se realizava um Conselho Élfico. Conforme as horas do dia se passaram,
seus medos se provaram reais. Todos os filhos das florestas sentiram o
encantamento que os chamava a Glastonburry, um dos últimos redutos com
alguma influência no plano etéreo, mas apenas outros dois elfos
compareceram. Só podiam imaginar se havia outros sobreviventes,
enlouquecidos pelo sofrimento do mundo ou perdidos.
Além dos três elfos presentes, havia quinze descendentes diretos dos
elfos com humanos, chamados de encantados. Entre eles um casal, Evana e
Moro, com um filho de 11 anos chamado Tales. Atento a tudo ao seu redor, o
garoto conversava com desenvoltura com vários dos presentes, pois falava
inglês, italiano, espanhol e português. Os pais moravam em Londres havia
alguns anos.
Todos pararam de conversar assim que Aer’delo abriu a discussão.
Acima de tudo, debateu-se sobre a decadência da raça dos elfos. A
era dos homens já durava milênios e as raças Alvores, todas as que chegaram
ao mundo no início dos tempos, estavam se extinguindo. Aer’delo ainda se
lembrava de quando os anões e elfos haviam tentado conviver com os
humanos, mas o espírito e a chama curta da vida dos homens mostrou que
eles estavam fadados ao orgulho e à busca pelo poder.
Foi na Idade Média que todos os Alvores — elfos, anões, orcs e
criaturas fantásticas — passaram a ser caçados.
Os anões começaram a ser vistos como aberrações e precisaram
descobrir algum modo de sobreviver, prolongar sua existência. Esconderam-
se então em montanhas e cidades subterrâneas, desenvolvendo tecnologias
próprias e perpetuando seus costumes e cultura; livros de medicina que antes
louvavam os conselhos e interferências élficas os culpavam por enfermidades
e falta de sorte; e os orcs, que pareciam ter sido feitos para viver nas sombras,
aproveitaram para aprender um pouco sobre a política e modo de agir
humanos. Mas, ainda assim, à sombra dos homens.
As criaturas Alvores, místicas e milenares, tinham sido caçadas
pelos homens e exibidas como troféus até desaparecerem. Foi então que
todos os seres que tinham alguma inteligência e organização começaram a se
esconder. Durante a Grande Guerra, travada em paralelo com as duas Guerras
Mundiais dos homens, a maioria dos elfos, encantados e anões sobreviventes
pereceram, mortos por orcs e seus aliados. A Grande Guerra foi o último
esforço para destruir a influência das raças obscuras sobre o reino dos
homens.
Mas, no final das contas, o objetivo do Conselho foi buscar a
sobrevivência da raça. Com o debate, decidiu-se criar uma organização para
buscar e reunir os encantados e elfos restantes. Os três elfos se espalharam
pelo mundo: Aer’delo foi designado às Américas, Ais’envar à Europa, e
Aes’sëa à Ásia. Os encantados também aceitaram a demanda e se dividiram
entre os continentes com o mesmo objetivo.
Depois das declarações finais, enquanto todos estavam se
despedindo, Evana e Moro, que foram designados para trabalhar na África, se
aproximaram de Aer’delo, cada qual segurando uma das mãos de Tales.
— Aer’delo, esse é nosso filho, Tales. De certo modo, sabe que ele
não existiria sem sua interferência. Somos gratos a você por toda a ajuda que
nos deu há anos. E é de livre arbítrio e desejo que honramos a tradição de
nosso sangue élfico e oferecemos nosso filho como aprendiz. Ele é forte e
curioso, aprende rápido, ensinamos tudo o que sabemos a ele: idiomas,
matemática, ciências e um pouco de arqueria. Não sabemos muito sobre a
viagem no plano etéreo. Seria uma honra se o aceitasse como o seu protegido.
— Seria uma honra. — Aer’delo abaixou-se para olhar o garoto nos
olhos. — Parece que esse Conselho já se mostrou como algo valoroso para a
nossa raça. Aceito Tales como o meu aprendiz, tomo a sua educação e vida
como minha responsabilidade, até que vocês o reclamem ou ele atinja a
maioridade. Passarei todos os conhecimentos e habilidades que puder.
Moro e Evana abraçaram seu filho e explicaram a importância da
decisão, mesmo que já o tivessem feito antes. Mas não temiam pelo garoto,
que desde o nascimento demonstrava uma personalidade forte, com uma sede
insaciável por descobertas. Haviam chegado ao limite do que podiam ensinar,
viajando por toda parte da Europa e mostrando o mundo dos homens ao filho,
mas agora ele demandava mais. Demandava uma educação Alvor.
Os pais se despediram do garoto com sorrisos e lágrimas. Tales
também chorou, mas, ao secar as suas lágrimas e olhar para cima, forneceu
aos pais um lampejo e antevisão de sua força e de seus feitos futuros.
Seu nome seria lembrado.
CAPÍTULO 1 - TROCA
Quatro anos depois...

A rotina noturna de Tales se repetira nos últimos cinco dias. Ele


aguardava no alto da torre da Igreja Presbiteriana enquanto a madrugada
avançava, e, exceto por um bêbado na escadaria da Igreja dos Rosários, a
Praça Garibaldi continuava vazia. Jurara a si mesmo que seria a última noite
em vigília, pois, mesmo que Aer’delo tivesse sido claro sobre o tempo e o
local, a semana estava passando e nada suspeito acontecera. “Os mestiços
estão alvoroçados, parece que descobriram algo grande e marcaram um
encontro importante na Praça do Cavalo”, dissera seu mentor.
Os mestiços representavam o antagonismo dos encantados; enquanto
os últimos descendiam de elfos, os filhos e netos de orcs com humanos eram
chamados de mestiços. Assim como os seus antepassados, eles tinham
instintos de aglomeração e reprodução muito fortes, o que acabara por fazê-
los crescer em número e manter as características da raça. Foram quase
dizimados na Grande Guerra, mas os poucos que restavam pareciam se
multiplicar rapidamente.
A praça ficava no Largo da Ordem, perto do Centro de Curitiba —
uma das partes mais antigas e tradicionais da cidade. Bem no meio
localizava-se a conhecida fonte com um cavalo vertendo água pela boca. Era
limitada, ao norte, pela Igreja do Rosário; ao sudoeste, pela Igreja
Presbiteriana e, ao leste, pelo relógio das flores. Durante a semana era
movimentada — aos domingos acontecia a famosa Feira do Largo da Ordem,
sendo quase impossível caminhar pelo local —, e, ao final das tardes, os
bares da região começavam a se encher de vida noturna.
Mas, durante a madrugada, depois de fecharem os bares tradicionais,
ali se tornava um território arriscado para passeios. Grupos de skinheads,
punks e arruaceiros faziam suas rondas pela área. No entanto, exceto por um
ou outro mendigo e alguns casais que passavam apressados pela praça, o
lugar estava deserto e quieto nos últimos dias, motivo que reforçava a
presença de Tales ali todas as noites. Pelo menos ele tinha mais algum tempo
para praticar seus rascunhos: desde que Aer’delo testara seus dons e
descobrira o talento para as artes visuais, ele usava todo o tempo livre para
desenhar.
Tales parecia um garoto comum de 15 anos: cabelos castanhos
ondulados, olhos escuros, uma barba fina que ele se esforçava para mostrar
no rosto quase delicado. Era alto para a idade, acima da média dos garotos
que via nas ruas, mas, por mais que se alimentasse, não conseguia aumentar o
seu peso.
Não tinha traquejo social. Aer’delo era o seu mestre havia quase
quatro anos, mas, mesmo antes disso, sua vida tinha sido nômade. O trabalho
de escritor de seu pai exigia que viajassem constantemente, o que aumentara
o conhecimento de culturas e línguas de Tales, mas, ao mesmo tempo,
destruíra a sua capacidade de fazer amigos e conviver com pessoas a longo
prazo. Com Aer’delo, sua interação social se resumia a alguns trabalhadores
da Biblioteca Pública, um ou dois vizinhos de apartamento, e só. Os treinos
de arco e flecha eram feitos sem testemunhas, em estandes posicionados em
florestas e bosques no entorno da cidade.
Foram morar em Curitiba logo após o fim do Conselho. Aer’delo já
fizera algumas viagens pela região e decidiu se mudar para a cidade com o
garoto. Tales estudara teoria por mais de quatro anos, enfatizando seus
conhecimentos de linguística e história. Finalmente Aer’delo permitira que
iniciasse novos estudos. Já estava aprendendo um pouco sobre história
moderna dos Alvores e, por escolha própria, pediu para Aer’delo falar sobre a
Grande Guerra. Sabia pouco sobre a história de seus pais, mas tinha certeza
de que alguns fatos dessa guerra é que tinham servido para uni-los. Além
disso, passou a treinar arco avançado e aprendeu técnicas práticas de campo.
Estava em sua quarta lição — aparentemente de paciência e
capacidade de ficar acordado — e, além do silêncio estranho da praça, só
permanecia no local por ter sido autorizado a levar uma arma para a missão.
Recebera a maleta de Aer’delo uma semana antes, contendo um novo tipo de
arco. Acostumado com os arcos de treino (de madeira e tradicionais quando
estava com Aer’delo, arriscando com sintéticos quando treinava sozinho),
estranhou a estrutura diferente. Era um arco dobrável, com duas articulações
que o deixavam compacto para caber na maleta. Tinha peças em madeira e
outras claramente sintéticas; as flechas tinham entalhes em espiral e uma
ponteira diferente.
Aer’delo tinha dito que fora o pagamento de uma dívida antiga por
um mestre artesão anão, que modificara um arco élfico antigo, mas não
entrou em detalhes (Tales aprendera que insistir no assunto não trazia frutos).
A maleta de madeira tinha enfeites em metal e entalhes élficos em sua
superfície; o arco se encaixava dobrado sobre um fundo de espuma e as
flechas ficavam armazenadas no interior do tampo, flechas de tipos
diferentes, formando camadas sobrepostas. Apesar de ter feito apenas uma
rodada de treino com ele, sabia que os arcos que usara antes equivaliam a
estilingues perto desse: acertara o alvo em todas as tentativas.
Relembrando as outras missões — acompanhar a entrega de uma
encomenda, analisar os meios de invadir uma residência, descobrir os meios
de fugir de outra construção, seguir uma pessoa aleatória pela cidade —, ele
percebeu que realmente o risco aumentara, pois vigiar um mestiço suspeito
era algo novo. Mas, depois de quatro noites de sono e provavelmente umas
500 páginas de atraso — seu mentor condenava a paixão por literatura
fantástica (principalmente as que pintavam uma caricatura bizarra dos elfos),
mas não o proibia de ler —, Tales decidiu que exigiria de Aer’delo algum
livro raro caso isso se estendesse por mais um dia.
Estava terminando o rascunho do arco em seu caderno de desenhos
quando estranhou o silêncio ainda maior na praça. Amaldiçoou sua distração
ao perceber que a Fonte da Memória estava havia algum tempo sem jorrar
água. Ao olhar para baixo, viu um sujeito de sobretudo próximo à mureta da
fonte; era pelo menos duas cabeças mais alto que ele e pesava por volta de
quatro vezes mais, sua postura lembrava algo militar. Um chapéu de feltro
escondia seu rosto enquanto levantava as mãos para acender um charuto.
Sem desviar os olhos, Tales jogou o caderno de lado, abriu a maleta
do arco e começou a montá-lo. As mãos trabalhavam hábeis e se apressaram
ao ouvir um veículo vindo da Rua do Rosário. Os olhos registraram um
brilho azulado nas peças metálicas do arco e nas ponteiras das flechas
enquanto sua atenção estava direcionada ao movimento abaixo.
Já estava com o arco montado em mãos e encaixava uma flecha de
alcance quando o veículo chegou; era uma limusine prateada, com detalhes
pretos nas laterais. Parou ao lado da fonte, e o suspeito caminhou até ele
enquanto retirava um embrulho de papel pardo do bolso interno do casaco.
Passou o embrulho pela janela oposta à visão de Tales e em troca recebeu do
motorista um saco de couro um pouco maior que o seu punho.
Tales analisou a cena e perguntou-se sobre a necessidade de agir.
Controlando a respiração, concentrou a percepção, ritual ensinado por
Aer’delo para buscar seus instintos de encantado. Enquanto os elfos tinham
normalmente uma percepção diferente do tempo e realidade, os descendentes
filhos de humanos precisavam buscá-la dentro de si mesmos.
O tempo pareceu escorrer mais lentamente e seus sentidos se
aguçaram. Percebeu o som da marcha sendo engatada e o cavalo voltando a
verter água; mesmo a respiração do bêbado era audível do alto da torre. O
suspeito alto era claramente um mestiço — o cheiro orc era forte nele —, e
isso atiçou o desejo natural de ataque em Tales. Sem tirar os olhos do seu
alvo, notou o carro arrancar e se afastar da praça.
As instruções de Aer’delo foram claras: não bancar o herói, não usar
o arco sem necessidade, o alvo devia ser apenas observado. Se houvesse
qualquer tipo de ameaça, a fuga devia ser a escolha imediata. Se não fosse
possível evitar, atirar para matar. Afinal, se o alvo tivesse uma chance, não
hesitaria em aniquilar qualquer ameaça.
O carro já estava fora de vista quando o mestiço começou a dar a
volta à fonte, num passo firme e sem pressa. Tales se escondeu ao máximo
junto à coluna da torre, acompanhando o movimento com o arco, até que o
alvo parou. Numa velocidade aparentemente incompatível com o seu
tamanho, ele se virou; Tales apenas percebeu o brilho do revólver na mão
direita antes que o instinto o fizesse soltar a flecha.
Várias coisas aconteceram no espaço de um instante. Entre a
percepção do risco e a dança da flecha no ar, Tales se lembrou do trecho de
um dos seus livros favoritos, “... eu mato com o coração”. Ele sorriu,
observando o brilho azulado do metal da flecha se tornar um borrão e
ouvindo um trovão soar à frente. Nem chegou a ver se a flecha atingiu o alvo,
pois apagou com um coice na lateral da cabeça.
CAPÍTULO 2 - CAÇADA
— Maldição! — Bro-Thum praguejou ao ouvir o tiro.
Ele estava seguindo a limusine a menos de quinhentos metros e
freou sua moto. Deixara seu irmão, Bro-Muir, vigiando a área. Ambos
sabiam sobre Tales; Aer’delo tinha avisado que estaria investigando a
transação e pediu para os irmãos ficarem de olho nele. Tudo mudou quando
descobriram que o próprio general Shkrenee era um dos lados da transação.
Ele era um dos Dedos da Mão Negra, organização suprema dos mestiços, e
estava desaparecido havia décadas.
Eles próprios não sabiam como agir. Sem tempo de planejar ou
receber instruções superiores, decidiram se separar quando um veículo entrou
na equação. Bro-Thum pegou sua motocicleta, estacionada a meia quadra da
igreja, e mal havia começado a acompanhar a limusine a distância quando a
situação se complicou. Imaginou que o general tivesse percebido um dos
observadores; com certeza não era um tiro de seu irmão e tampouco de Tales
— ele não tinha nenhuma arma de fogo, segundo Aer’delo.
Bro-Thum amaldiçoou Trot, o Deus da Sorte, e deu meia volta em
direção à praça. Sua moto já havia sido remodelada e renovada diversas
vezes, mas o chassi devia ter mais de 40 anos. Trocara recentemente o motor
por uma nova versão do antigo Shovelhead 1970 (uma fábrica havia
comprado os projetos e direitos dos modelos antigos da Harley e estava
produzindo versões atualizadas, o que ele achou incrível). Esse em específico
trazia boas lembranças e ele nunca trocaria o modelo. Não se preocupou com
o barulho e acelerou para a praça, deixando o som da Harley acalmá-lo um
pouco.
Desligou e saltou da moto próximo ao ponto de observação. Seu
irmão o aguardava no beco oculto, e ele suspirou aliviado. Assim que viu a
cena, percebeu o corpo do mestiço imóvel no meio da praça, a poça de
sangue aumentando sob sua cabeça. No alto da torre, Tales cambaleava
devido a um ferimento que recebera na cabeça, mas também assistia à cena.
Aparentemente, ele podia esperar um pouco; assim que os irmãos
resolvessem o que fazer com Shkrenee, levariam Tales a Khur.
Era uma missão de observação e captura. Os irmãos não esperavam
nem se prepararam para muita resistência: usavam coturnos com feltro nas
solas para abafar o som, calças jeans com trama reforçada, jaquetas de lona
com retalhos de couro costurados no interior e um colete à prova de balas.
Nada muito gritante ou destoante; caso fossem vistos, seriam descritos como
dois anões motoqueiros (não que isso já não chamasse atenção). No entanto
se vissem as armas ocultas por baixo da jaqueta, provavelmente a descrição
seria diferente: com um machado prateado de uma mão e um revólver de
calibre absurdo — no mínimo diriam tratar-se de maníacos.
Bro-Thum olhou mais atentamente para o mestiço e percebeu que
ele respirava. Não ousaria negar que Tales era um bom arqueiro: a flecha
havia atingido e trespassado a garganta. O general tivera um pouco de sorte
(se é que poderia se chamar assim), pois Bro-Thum reconheceu a flecha
fincada no chão. Fora projetada com entalhes no corpo e uma ponteira
especifica para velocidade e penetração. Tales potencializara essa função e,
mesmo depois de sair do alvo, a flecha penetrara quase uma polegada no piso
de pedra.
Ao captar um movimento com o canto do olho, Bro-Thum se
escondeu ainda mais, praguejando em silêncio quando viu dois wargs vindo
das sombras da Igreja do Rosário em direção a Shkrenee. Criaturas
aparentadas de lobos gigantes, os wargs possuíam um senso cruel de
inteligência e eram conhecidos por trabalhar junto com orcs e mestiços.
Tinham aproximadamente dois metros da cabeça à cauda, com pelos sujos e
desgrenhados, olhos pequenos e vermelhos, um focinho comprido e patas
curtas. Movimentavam-se furtivamente, com a cabeça e o olhar inquieto,
observando tudo ao seu redor.
Uivaram simultaneamente assim que chegaram ao mestiço; então,
uma terceira besta chegou da direção oposta, provavelmente observando a
cena para garantir que não seriam atacadas. Logo que se reuniram, dois wargs
começaram a limpar o sangue do chão, lambendo com voracidade. O maior
dos três se ocupou em limpar o sangue do corpo e o ferimento. Assim que
terminaram, ele se abaixou ao lado do corpo, aguardou que colocassem o
mestiço sobre ele e se levantou tão gentilmente quanto podia. Lentamente, as
bestas regressaram à direção de onde tinham vindo.
Parecia que a noite não se cansava de trazer surpresas. Os anões
tinham conhecimento das tentativas de criação de wargs, mas não podiam
imaginar que existissem animais adultos e tão leais a essa altura. A
manipulação genética de bestas Alvores era uma ciência vaga e lenta, mesmo
para os elfos e anões. Eles tinham certeza de que demoraria décadas para que
os mestiços criassem bestas decentes e domesticáveis. Aqueles wargs,
provavelmente, não eram os únicos; se fosse assim, eles não os arriscariam
daquela forma.
Bro-Muir aguardou por alguns instantes e levantou-se para seguir os
lobos. Seu irmão o seguiu e desviou alguns passos para resgatar a flecha de
Tales e guardá-la num dos vários bolsos internos da jaqueta. O sangue denso
do mestiço fora quase todo limpo e, sem a flecha, nada ali chamaria a atenção
depois do amanhecer. Seguiram o estranho quarteto até perto das entradas
dos túneis antigos, atrás da Igreja do Rosário.
Bro-Thum observou seu irmão levando as mãos às costas, por dentro
da jaqueta, e — pela terceira vez — praguejou, percebendo que iriam atacá-
los. Beijou os dedos da mão esquerda, tocou suavemente a cicatriz do pulso
direito e depois levou as mãos às costas, cruzando os braços; com a mão
esquerda, soltou habilmente as amarras que prendiam o machado e o puxou,
ao mesmo tempo que sacava o revólver do coldre sob sua axila.
O peso confortável da arma, somado à lâmina bem cuidada de seu
machado, lhe trouxe a segurança de que precisava. Abriu o tambor do
revólver e sorriu para as quatro balas. O branco do metal era reluzente, apesar
das marcas de uso: cada uma das cápsulas havia passado por pelo menos três
disparos. Todos certeiros.
As armas dos anões são robustas. Pesando mais de 3 quilos, são
construídas artesanalmente, assim como a munição. O projétil é feito de ferro
meteórico com uma coluna interna de tungstênio e uma ponteira de diamante
bruto. Ao atingir o alvo, quanto maior a sua resistência, maior a pressão que o
diamante gera sobre a coluna temperada, o que a estilhaça e fragmenta o ferro
meteórico. A arma é idealizada para penetrar qualquer superfície; mesmo as
escamas de dragões anciões cederiam a um tiro certeiro. O projétil é
encapsulado por uma liga branca de cobre e aço, motivo pelo qual a munição
é chamada de fantasma. O problema é o custo alto para se produzir uma bala,
o que exige cautela e uso apenas em casos críticos.
Com a arma em punho, Bro-Thum olhou para seu irmão mais velho,
que conferia suas armas: o revólver e a maça. O irmão sempre fora um pouco
menos elegante, preferindo uma maça com espinhos durante a batalha, pois
dizia gostar do balanço da arma. Respirando profundamente, eles se olharam
e acenaram um para o outro, apontando as armas para as costas dos wargs
antes de começarem a correr.
Bro-Thum já perdera a conta de quantas vezes ouvira aquilo, mas o
som ensurdecedor do tiro sempre o surpreendia. O fogo da batalha queimava
em seu peito; era como se vapor corresse em suas veias, enquanto percebia as
labaredas da bala saindo do cano e aspirava o cheiro da fumaça da explosão
em seu rosto. Ele mal notou os tiros certeiros atingindo os lobos quase
simultaneamente; seu tiro explodira a cabeça de um warg, enquanto o de Bro-
Muir partira as costelas de outro. Sentindo o coração enviar adrenalina e fúria
aos braços, Bro-Thum guardou o revólver no coldre e, sem parar de correr,
jogou o machado da mão esquerda para a destra.
O risco de acertar Shkrenee era alto, e qualquer chance de capturar
um dos líderes mestiços não podia ser desperdiçada. Um warg, ainda que
imenso, não parecia apresentar muito risco para os dois irmãos armados;
provavelmente a excitação da luta ajudava a deixá-los temerários.
— KHUR-BARATHOR, BUR-DAEM-BARATAHOR! — gritou Bro-Thum
lançando-se ao ataque.
A líder dos wargs, uma fêmea, soltou o mestiço que estava sobre
suas costas assim que o cão de cada uma das armas foi acionado. Apesar de
serem seus filhotes, ela não se abalou com a queda de seus companheiros,
pois não tinha nome nem noção de matilha. Seus únicos instintos eram o de
sobrevivência e o de ataque. Ela recuou e retesou os músculos, esperando o
primeiro golpe enquanto farejava o ar; havia um cheiro familiar em seus
atacantes.
Dois passos à frente de seu irmão, Bro-Muir direcionou o golpe para
a cabeça da warg, que se esquivou, desequilibrando o anão e fazendo-o cair
para a frente. A fera forçou todos os músculos das pernas e do quadril para
saltar sobre ele e, antes que caísse, fechou os dentes no ombro esquerdo de
Bro-Muir. O anão segurou o corpo do warg, a fim de evitar que o dano fosse
muito profundo. Mas, sem equilíbrio, a força da mordida foi amplificada por
estar correndo em direção ao lobo. Deu um grito quando caiu de costas com a
besta sobre ele, expulsando todo o ar de seus pulmões. Antes de uma segunda
mordida, Bro-Thum já estava brandindo o machado em direção ao pescoço
da fera.
Sua fúria era tamanha que decapitou o animal.
Bro-Thum chutou para o lado o corpo que estava sobre seu irmão.
Bro-Muir abriu a jaqueta e o colete: a mordida atravessara tecido, couro,
kevlar e penetrara um pouco a carne. Caso estivesse com menos proteção,
mesmo a constituição pétrea dos anões não evitaria a mandíbula de atravessar
os ossos e chegar ao coração. Mas, ainda assim, os ferimentos sangravam,
feitos por uma dezena de dentes.
— Muir, consegue caminhar? Precisamos levar Shkrenee para Khur.
— Isso aqui? — Bro-Muir apontou para o ombro. — Isso é um
arranhão. Vamos.
Eles já estavam praticamente em cima da entrada dos túneis antigos.
As galerias, construídas pela primeira geração de anões de Khur, eram usados
para comércio e até trânsito para o clero da época. Eram tão rasos e óbvios
que pelo menos três trechos — incluindo o que estavam abrindo entre eles —
já tinham sido tornados públicos na mídia dos homens.
Apesar de tudo, a entrada ainda era um segredo dos anões: uma
fresta nas pedras do calçamento servia como fechadura. Dois metros à frente,
um estalo quase inaudível indicava o ponto de entrada, onde um metro de
parede e um metro de piso se abriam como alçapão. A descida para os túneis
era mais uma rampa do que uma escada.
Eles arrastaram os corpos dos wargs até os jogarem dentro do espaço
aberto. O sangue era tão fétido e escuro que seria confundido com um rastro
de esgoto. Acenderam alguns sinalizadores e jogaram no meio dos corpos das
bestas. Depois, levantaram juntos Shkrenee e entraram com calma pelo
alçapão. Assim que passaram, Bro-Thum fechou a entrada e observou o
espaço abaixo.
Era uma área circular, com no máximo quatro metros de diâmetro.
Ali mal cabiam os dois anões, o mestiço e os corpos dos wargs. As paredes
eram de tijolos antigos e gastos, algumas fiações elétricas novas se
misturavam com tubulações antigas. No sistema antigo de túneis, havia
apenas uma saída do espaço, mais baixa e estreita que o espaço no qual se
encontravam.
— Pela bigorna... Como eles conseguiam usar esses túneis? Parecem
ter sido feitos para crianças — Bro-Muir soava cansado, e não parecia muito
bem sob a luz vermelha e esfumaçada dos sinalizadores. — Vamos descer
logo, não sei quanto tempo ainda aguento carregar esse aí.
Bro-Thum limpou o piso e procurou a entrada, usando sua chave de
acesso aos novos túneis. Uma abertura de um metro quadrado se abriu com
alguns estalos e revelou uma descida vertical, com lâmpadas de filamento
contornando a escada metálica.
Com medo do cheiro — mais do que o sangue — atrair suspeitas,
jogaram os corpos das bestas no túnel novo. Provavelmente daria algum
trabalho limpar aquilo, mas não podiam conceber um caos na superfície,
principalmente com o que estavam lidando. Desceram lentamente as escadas
carregando o mestiço moribundo. A respiração dele era irregular e havia
perdido muito sangue, mas a saliva do warg ajudou a fechar o ferimento.
Ao atingirem o piso, seguiram pelos novos túneis, altos e amplos, até
chegar a Khur. Estava tudo escuro, exceto pelas luzes de emergência que
indicavam os elevadores. Desceram ao andar hospitalar e, assim que as portas
se abriram, as luzes foram acionadas automaticamente.
Havia uma cela no setor para cuidados com prisioneiros, e lá
prenderam Shkrenee com algemas reforçadas. Enquanto Bro-Muir se sentava
para retirar sua roupa empapada em sangue, Kur-Dour, o médico real, entrou
na cela.
Ele não exigiu muitas informações aos irmãos, que lhe pediram para
cuidar do general primeiro. Bro-Muir levantou o polegar e deu um sorriso
torto para encorajar o médico. Precisavam garantir que Shkrenee
sobrevivesse mais alguns dias, pelo menos até falar tudo o que sabia.
Os irmãos saíram e foram até um dos quartos de repouso. Bro-Muir
terminou de tirar o colete e seu irmão começou a limpar os ferimentos. A
pequena quantidade de sangue não deixava que se percebesse a dimensão do
ferimento, pois a pele dos anões era muito resistente a cortes.
Bro-Thum estava limpando a última marca de dente quando Kur-
Dour entrou na sala retirando um par de luvas cirúrgicas sujas de sangue.
— E então Dour, como está o general? — Bro-Thum ajudava seu
irmão a se deitar na maca.
— Parece que foram feitos mesmo para sobreviver e se multiplicar
pela terra, essa raça... Ele não vai cantar tão bem, a garganta foi atingida por
um tiro certeiro, mas não tem risco de vida exatamente pela velocidade da
flecha. — Kur-Dour era jovem, tinha pouco mais de sessenta anos e nenhum
salpico de cinza na barba ou nos cabelos longos. Era mais alto que os irmãos
e usava uma túnica vermelho vivo. — Quem foi que atirou no general? Sei
que não foi um de vocês, ou então ele estaria uma cabeça mais baixo.
— Foi Tales, o protegido de Aer’delo, mas pode colocar na minha
conta o arco e a flecha — Bro-Thum afirmou com um sorriso orgulhoso.
— Definitivamente foi um belo tiro. E agora vamos ver esse seu
ombro, Muir. Parece que também vai precisar de alguns pontos, e de algumas
vacinas e antibióticos. Se meus olhos não me enganam, isso aí é coisa de
warg.
O médico se aproximou de Bro-Muir e começou a trabalhar,
limpando mais profundamente os ferimentos, ignorando as reclamações de
seu paciente.
Percebendo que não iria ajudar muito mais ali, Bro-Thum foi
resolver a questão de Tales.
CAPÍTULO 3 - TÚNEIS
Tales acordou com um uivo. Antes mesmo de abrir os olhos, a dor
lancinante o fez levar a mão à lateral da cabeça. Estava grogue e demorou a
notar que a umidade era sangue. Concentrou-se e se lembrou de estar na
torre, o arco composto caído ao seu lado. E, enquanto se questionava se o
mestiço era ou não um sonho, lembrou-se da arma e do trovão. Um lampejo o
trouxe à realidade: o tiro que levara tinha sido de raspão e, pela consistência
do ferimento e do sangue, fazia poucos minutos.
Esforçando-se para levantar com o apoio do parapeito, escorou-se
numa das colunas de sustentação da cúpula e buscou a origem dos uivos.
Wargs! Aer’delo havia falado sobre essas bestas; mais do que fruto da
criatividade dos escritores, os lobos gigantes realmente existiam. Suas
matilhas habitavam tocas sob a morada dos orcs e mestiços, muitas vezes
convivendo com eles e partilhando seus alimentos.
E realmente eram lobos gigantes — que até então só imaginara em
suas leituras — andando pela praça de sua cidade. Desviou o olhar ao meio
do jardim público e percebeu o mestiço caído sobre uma poça de sangue. Ele
estava de lado com a mão direita segurando o pescoço e não era possível
distinguir se respirava ou não. Surpreendeu-se ao ver a sua flecha fincada no
calçamento; imaginou um tiro limpo, que atravessou a garganta do general.
Os wargs se aproximaram do corpo. Um deles farejou a flecha e
urinou sobre ela; depois pisou sobre o charuto ainda em brasa e retornou para
perto dos companheiros. As outras duas bestas começaram a limpar o sangue
no chão ao redor do mestiço — Tales não sabia dizer se para não desperdiçar
o sangue, ou para apagar os rastros —, enquanto o maior dos três limpava o
ferimento no pescoço.
Assim que terminaram, conseguiram de algum modo colocar o
mestiço inconsciente sobre o líder da matilha e se dirigiram, sem muita
pressa, para a alameda ao lado da Igreja do Rosário. Ignoraram o bêbado
deitado nas escadarias e, Tales teve certeza, o último dos três Wargs dirigiu o
olhar para o alto da torre — diretamente para ele — antes de desaparecer ao
lado da construção.
Mesmo que tivesse uma chance, no estado em que estava seria
impossível envergar o arco, quanto mais mirar e acertar algum dos wargs.
Decidiu sentar e avaliar a situação. Tateou com mais atenção a região do seu
ferimento; nenhuma fratura e o corte parecia superficial.
Pegou o arco e começou a desmontá-lo: desprendeu a corda e
pressionou os dois pinos que soltavam as travas das articulações, espalhou
uma camada de óleo nas peças. Independentemente da situação, sua mente
exigia que cumprisse o ritual; Aer’delo não perdoaria um descuido como
esse. Ele encaixou tudo na espuma da caixa que estava aberta e conferiu as
placas de encaixe das flechas no tampo. Passou os dedos pelo espaço vazio
de uma flecha.
Enquanto processava os acontecimentos, guardou seu caderno de
rascunhos na caixa, imaginando como explicaria as coisas a seu mestre. Dois
tiros ecoaram na direção da Igreja, que aos ouvidos de Tales soou como algo
muito maior que um tiro — pareciam canhões. Escutou um claro grito de
batalha numa língua que não reconheceu. Levantou-se rápido e, usando a
chave mestra da construção, que Aer’delo fornecera, entrou novamente na
Igreja.
As luzes estavam apagadas, mas Tales havia decorado o caminho
nos últimos dias. Desceu a escada em espiral que dava acesso à nave, seguiu
à direita dos bancos até a porta frontal e a destrancou, saindo então para o
silêncio da madrugada.
Tales caminhou até o ponto onde estava a mancha de sangue e
estranhou o fato de a flecha ter desaparecido, pois ele a vira havia no máximo
vinte minutos. Percebeu o ponto onde ela penetrara no calçamento, mas, além
disso, havia apenas um traço da sujeira do sangue. Escutou o som de pedras
rolando ao lado da Igreja do Rosário e se dirigiu rapidamente até onde
acreditava ser seu local de origem. Não encontrou nada além de um rastro
escuro e grosso como piche que sumia na calçada, a meio caminho da parede
da igreja.
Desistindo de tentar compreender o acontecido, resolveu ir para
casa. As oito quadras que levavam a seu apartamento passavam pelas ruas
estreitas do bairro antigo de Curitiba. Desviou um pouco do caminho para
passar pela Praça do Homem Nu e foi pelo lado esquerdo do Passeio Público;
lamentando o fato de um dos parques mais próximos de sua casa ser tão
malvisto e frequentado nos últimos anos, deu a volta no parque e chegou ao
seu prédio.
Não era uma construção luxuosa, as paredes pediam uma nova mão
de pintura (se não uma reconstrução), a parte de baixo era uma loja de móveis
usados durante o horário comercial. O acesso aos apartamentos era feito pela
porta metálica ao lado da entrada da loja. Tales a destrancou e subiu as
escadas. Desviou da moça do 101, que dormia no alto da escada, encostada
no corrimão — nunca falara com ela, mas conhecia cada rosto do prédio.
Em frente ao 106, o apartamento de Aer’delo, parou para ver se
havia algum movimento e não percebeu nenhuma iluminação por baixo da
porta. Abriu as três fechaduras do 107, olhou para os dois lados do corredor e
esperou alguns segundos para ver se mais alguém abria a porta de entrada.
Quando achou que não estava sendo seguido, entrou.
O apartamento de Tales era simples, um único cômodo com espaços
delimitados pelos azulejos do piso e móveis característicos. Móveis e
eletrodomésticos, visto que principalmente a cozinha parecia ilustração de um
catálogo da década de 60. Todos os membros das raças Alvores, assim como
os encantados, em menor intensidade, possuem uma incompatibilidade com
tecnologia. Celulares, computadores, displays e placas eletrônicas entram em
pane perto deles.
A ideia mais aceita é de que a interferência magnética produzida por
eles, devido a parte de sua essência estar ligada ao plano etéreo, interfere nos
equipamentos. Para Tales, a maior decepção era a dificuldade para ouvir
músicas e assistir filmes, uma vez que os amplificadores distorciam o som e
os projetores mecânicos.
Cerca de um quarto do piso à esquerda da entrada era rebaixado em
alguns centímetros; azulejos brancos de arabescos azuis em uma faixa na
parede ornavam o espaço designado como cozinha. Geladeira e fogão
fabricados em meados de 1960, uma pia com tampo branco, mesa e duas
cadeiras simples encostadas na parede. O restante do apartamento tinha o
piso em tacos encerados e sem falhas; uma das exigências de Aer’delo era o
zelo pelo espaço.
Toda a parede à direita era uma grande sequência de estantes de
livros, confirmando e reforçando o vício literário de Tales. Sem ordem
nenhuma para um observador externo, cada um dos nichos estava abarrotado
de volumes: romances, dramas, antologias, poesias e, acima de tudo, ficção
fantástica. Uma das estantes, inclusive, tinha uma porta de vidro e livros em
diversas línguas e encadernações antigas, na maioria primeiras edições e
livros raros. Era o tesouro de Tales: Júlio Verne, Charles Dickens, H.G.
Wells, Tolkien... Raridades de literatura fantástica que somavam uma
pequena fortuna.
Além disso, havia uma poltrona reclinável com uma luminária alta
em um dos lados, e uma mesinha no outro onde se empilhavam três livros.
Nos fundos do quarto havia uma cama de solteiro, com um baú grande de
madeira nos seus pés, uma arara com roupas variadas penduradas e duas
portas, levando ao banheiro e à varanda.
Depois de entrar e trancar a porta, Tales empurrou a maleta para
baixo da cama e foi tomar um banho. Precisando relaxar, acionou o registro
antigo da banheira de louça. O ruído alto do encanamento provavelmente
acordaria Aer’delo, em alguns instantes ele bateria à porta. Enquanto a
banheira enchia, foi ao espelho analisar o ferimento na cabeça, molhou uma
toalha na água quente que enchia a banheira e limpou o sangue dos cabelos e
rosto.
O ferimento fora superficial e o sangramento estava contido. Tales
respirou fundo, tirou as roupas sujas e entrou na banheira. Lembrando o
momento em que soltou a flecha, não teve nenhum arrependimento ou
dúvida, parecia certo e natural.
Terminou o banho e vestiu roupas confortáveis. Estava em dúvidas
sobre cochilar um pouco ou ir ao apartamento de Aer’delo quando ouviu três
batidas na sua porta. Olhou o relógio sobre a porta: cinco da manhã, o sol
ainda demoraria alguns minutos para nascer. Podia ser o elfo que acordara
com o barulho, ou Caio, o garoto de onze anos do 110, com esperança de
pegá-lo acordado para devolver o terceiro volume de “Percy Jackson” e pedir
o quarto antes de ir para a escola. Foi graças a ele que Caio começou a pegar
gosto pela leitura, ainda estava trabalhando para convencê-lo a ler Tolkien.
Usando o olho mágico, viu apenas um gorro vermelho de lã. O
garoto devia estar doente, visto que era outubro e o clima não justificava um
gorro.
— Entre, entre, já vou pegar seu livro, mas vai ter que levar “O
Hobbit” junto e não quero saber de não como resp... — Começou a falar
conforme abria a porta e quase se afogou ao ver quem estava de pé ali.
Tales esqueceu tudo o que acontecera na noite anterior diante do
anão à sua porta. Ele usava um gorro vermelho, a barba ruiva longa e
trançada caía em seu peito com adornos de anéis dourados. Tinha algumas
rugas ao redor dos olhos e na testa, faltava-lhe a orelha direita, enquanto na
esquerda havia três brincos de argola. Usava uma regata branca e uma jaqueta
de lona por cima, ambas com respingos pretos. Uma calça jeans e botas
pretas completavam a vestimenta.
Ele tinha no máximo um metro e meio de altura, os braços e pernas
eram curtos e robustos. Assim que Tales parou de falar, o anão sorriu e
retirou o gorro. Estava claramente se esforçando para não rir.
— Dwalin, às suas ordens! — disse ele, fazendo uma grande
reverência.
— O quê? — disse Tales olhando o anão parado em sua porta, ainda
abaixado em sua reverência. Só conseguia pensar que devia ter desmaiado na
banheira, ou até mesmo no alto da torre. Levou a mão à cabeça e a dor do
ferimento mostrou que estava bem acordado. Ele sabia que existiam cidades
de anões no mundo, e que eles eram até mais numerosos que os elfos, mas o
que um deles estava fazendo em sua porta?
— Desculpe-me, Tales. Não consegui evitar a brincadeira... Foi você
que mencionou “O Hobbit”! — O anão estendeu a mão, pequena, com dedos
grossos e forte o bastante para quebrar os ossos de Tales com um aperto. —
Meu nome é Bro-Thum e, não, você não está sonhando. Na verdade estou me
estendendo, e minha esposa já disse que meu humor ainda vai me levar para a
cova. Vamos, vamos, vamos... Aí dentro é mais seguro, podemos?
Apontou para dentro com a mão direita e ergueu a sobrancelha,
esperando. Ainda atordoado com a surpresa, Tales não conseguiu esboçar
outra reação além de dar um passo para o lado e sinalizar para que Bro-Thum
entrasse. Assim que ele o fez, o rapaz trancou a porta e se virou para o anão,
que estava bebendo de uma garrafa que Tales não havia visto.
— Tá, estamos aqui dentro, agora explique-se. Minha madrugada
não foi muito calma e agora um anão bate em minha porta? Não sabia que
havia anões em Curitiba... O que é isso?!
— Isso? — Bro-Thum apontou para a garrafa. — Cerveja artesanal
de anões, minha companheira para trabalhos com palavras. E nós sempre
estivemos aqui, guri. Bem debaixo do seu nariz... Literalmente. Estou aqui
porque você corre perigo.
— Perigo?
— É da minha raça não ser sutil, guri, então vamos lá. Estávamos na
praça mais cedo ontem, não pude ajudá-lo, pois tinha problemas mais graves.
De qualquer modo, Aer’delo pediu para ficarmos de olho em você e, caso o
matem, eu não quero nenhum remorso nas minhas costas. O apartamento dele
está vazio, e aposto que ele tem um bom motivo para não voltar, mas não
recomendo esperar para perguntar. Estou aqui para resgatar você.
— Impossível! No final da tarde de ontem ele estava lá, a porta dele
está trancada! Ele provavelmente está dormindo! — Tales articulava,
apontando para a parede conjugada com o apartamento de seu mestre.
— Tales, escute, acredite em mim... Você está correndo perigo, os
mestiços não vão deixar isso passar. Com certeza eles sabem da sua
existência, devem estar só esperando ordens para agir, se dependesse só
deles, garanto que já estaria morto. Precisamos sair daqui agora... E decida
rápido, minha cerveja está terminando. — Bro-Thum saboreava o último gole
da garrafa enquanto Tales analisava as possibilidades e riscos.
No final das contas, não havia muito tempo para dúvidas ou
questionamentos. Se o anão sabia de tudo isso, devia merecer algum mérito.
Além disso, se quisesse matá-lo, ele não estaria analisando as alternativas
agora. Seu mestre tinha idade mais do que suficiente para se virar, e isso
parecia bem algo do feitio dele. Ia seguir o anão, mas antes...
— Só preciso de cinco minutos! — Tales correu à sua estante de
livros raros, retirou dois pinos das laterais e empurrou-a para dentro da
parede até que afundasse por completo, depois a fez correr à direita por trás
da divisória. Assim que a estante toda ficou oculta, soou um estalo e uma
parede falsa foi projetada para o espaço, ocultando a coleção e o mecanismo.
Depois correu até a cama, jogou umas roupas numa mochila, pegou
a maleta, dois volumes dos livros comuns e voltou ao anão, que já havia
terminado sua cerveja e esperava na frente da porta.
— Guri, você deve gostar mesmo desses livros aí — disse Bro-
Thum. Apontando para a maleta, continuou: — O elfo o tem em alta conta, é
uma arma digna de um rei. Mas infelizmente terei que pedir para deixar o
arco aqui, visitantes com armas não são permitidos nos salões de Khur.
Tales não gostou da ideia, mas, como estava sem tempo e um arco
não seria de grande valia contra vários anões, decidiu deixá-lo. Então abriu o
baú que estava ao lado da sua cama, retirou um fundo falso e, depois de
posicionar a maleta dentro, recolocou o fundo e jogou cobertores sobre ele. O
baú era fixado no piso por parafusos reforçados.
— Certo, agora deixe-me ver essa sua cabeça, já parou de sangrar?
— Bro-Thum se aproximou e baixou a cabeça de Tales para verificar a região
do corte e fazer um curativo simples. — Você deu muita, muita sorte, guri. O
tiro não fez um ferimento profundo, a bala quase não o tocou. Vamos, siga-
me.
— E as coisas de Aer’delo?
— Não tenho como carregar. Além disso eu não me meto com
fechaduras de elfos, e tenho dó dos primeiros mestiços que estiverem no
corredor caso tentem invadir o apartamento dele.
Antes de sair, Tales pegou “O Hobbit” e “A Batalha do Labirinto”
da estante para entregar a Caio. Bro-Thum saiu primeiro, caminhando em
direção às escadas de serviço que levavam até a garagem. Tales deixou os
dois livros na porta do 110 e seguiu o anão escada abaixo, descendo seis
lances de escada até o andar de acesso para os carros.
No subsolo, Bro-Thum tirou uma espécie de chave do bolso interno
da jaqueta e começou a esquadrinhar o piso. Caminhando até um ponto
próximo à parede oposta à da escada, ajoelhou-se e inseriu a chave em uma
fenda quase imperceptível no meio do padrão preto e branco dos ladrilhos.
Com ela traçou uma linha de um metro no chão, revelando uma abertura,
girou-a noventa graus e repetiu o processo até desenhar um quadrado. Assim
que terminou, retirou a chave e o desenho se revelou um alçapão, que se
elevou alguns centímetros do chão.
— Uma mãozinha aqui? — Bro-Thum encaixava os dedos numa das
laterais e indicou com a cabeça o outro lado para Tales.
— Vocês têm um desse em todos os prédios de Curitiba? — Ajudou
o anão a levantar o tampo mais alguns centímetros e liberar a dobradiça,
possibilitando a abertura.
— Em todos não, só nos nossos. Em pelo menos metade das
construções do centro.
Ao ajudar a abrir o alçapão, Tales havia criado a expectativa de um
buraco estreito com vigas instáveis de madeira, mas não poderia estar mais
errado. Era uma descida maior e circular, com paredes de chapas e tubos
metálicos formando uma escada, e luminárias incandescentes que emitiam
uma suave luz vermelha. A descida continuava por pelo menos quarenta
metros.
— Esperava menos luz e mais sujeira, não é guri? — Bro-Thum
percebeu a surpresa no rosto do garoto. — Bah... Somos anões, não toupeiras
ou orcs.
Iniciaram a descida, com Tales na dianteira, ditando o ritmo. Assim
que passaram pela entrada, Bro-Thum fechou o alçapão e girou uma
maçaneta na parte interna, lacrando o espaço. O caminho se revelou
incrivelmente arejado, com degraus de fácil acesso e equidistantes um do
outro. Os tubos tinham ranhuras que facilitavam e garantiam o apoio.
Demoraram cerca de dez minutos na escada. Chegaram a um
corredor largo e de teto ovalado, com altura e largura suficientes para quatro
adultos caminharem lado a lado. A iluminação era mais clara e intensa que a
da descida, com diversas colunas de vidro posicionadas no alto do teto ao
longo do comprimento do caminho. Seguia por alguns quilômetros nos dois
sentidos, mas se inclinava num ângulo negativo no lado que seguia para o sul.
— Vamos para cá — disse Bro-Thum, apontando com o polegar
para a esquerda. — Vou levá-lo ao Salão do Trono, o famoso Salão de
Pedraluz. Se subirmos para o lado esquerdo vamos dar no acesso aos túneis
antigos do Colégio Estadual, deu um trabalhinho esconder aqueles.
— Esse caminho não parece antigo. — Durante todo o caminho,
havia diversos túneis verticais semelhantes ao que fora usado para eles
descerem.
— Esse é um dos novos. Nos últimos anos tivemos que reorganizar
toda a nossa rede, descendo-a em mais de vinte metros. Além desse, existem
outros corredores novos se cruzando alguns metros acima e abaixo; se não
tiver um guia ou um mapa, provavelmente se perderá aqui. — Depois de
alguns minutos andando chegaram ao fim do túnel, que conduzia a um outro
um pouco maior e mais baixo. Desceram dois degraus para acessar o caminho
e viraram à direita. — Conseguimos adiar em décadas a construção do metrô,
mas a pressão está grande demais. Eu diria que eles vão aproveitar nossos
túneis antigos, seria um desperdício se não o fizessem. Provavelmente o Rei
Bur-Daem deve ter vendido uns bons quilômetros deles ao governo da
superfície.
— Vocês negociam com o governo? Eles sabem e concordam com
esses túneis sob a cidade?
— Se eles sabem e concordam?! Nós fundamos essa cidade, guri!
Ainda temos uma boa caminhada pela frente, e acho que é bom você
aprender um pouco da nossa história da cidade, principalmente antes de ter
com o rei...
Bro-Thum contou a versão da história de Khur que está nos livros e
relatos Alvores:

No final do século XVI, um grupo de mestiços fugiu da fortaleza anã


de Barum-Dâr, na África, e atravessou o mar. Os descendentes de orcs já
eram prisioneiros havia anos e entre eles se encontravam dois orcs machos.
Rapidamente, oitenta anões, entre eles o príncipe Bur-Dair, se organizaram
para perseguir o navio. Ocuparam dois navios de batalha e zarparam dois
dias depois da fuga, mas os anões nunca foram famosos pela sua capacidade
de navegação, e enfrentaram muitas dificuldades. Após meses em alto mar,
já estavam próximos da costa da América do Sul quando conseguiram
afundar a embarcação inimiga.
Retornar seria uma loucura, o grupo estava reduzido a 40 membros
que decidiram se estabelecer; as anãs guerreiras são respeitadas e aceitas
nas batalhas como qualquer anão, e havia casais dentre os sobreviventes.
Em busca de uma área mais propícia à sobrevivência, atravessaram as
montanhas. A pouco mais de cem quilômetros da costa, descobriram alguns
veios de ouro e pedras preciosas, e ali construíram a cidade de Khur (que
significa “novo”). Quase um século depois, sabendo sobre a mineração
nessa região, homens procuraram trabalho com os anões. Algumas lendas
dos Alvores ainda eram conhecidas pelos antigos, e respeitavam-se os anões
como os mestres artesãos que são.
Vários chegaram e continuavam vindo, mas, como havia bastante
trabalho na região, não houve recusa. Khur contava então com quase uma
centena de anões e Bur-Dair assumira como o Rei Bur-Dair, senhor dos
Anões do Ocidente. Já nessa época as minas e galerias dos anões
começaram a crescer e se fundir no projeto de uma cidade subterrânea. A
região da superfície também prosperou e cresceu.
Os anões, que nunca foram reconhecidos pela sua simpatia (talvez
isso tenha influenciado na fama dos habitantes), começaram a se isolar em
seu espaço subterrâneo. Os homens, por sua vez, ao perceber que a região
era menos rica em metais preciosos — pelo menos fora dos complexos dos
anões —, buscaram meios alternativos para obter renda, dedicando-se ao
cultivo de gado e plantações, deixando a mineração para os anões.
Não demorou para que o reino de Khur se tornasse independente de
Curitiba. Em um dos últimos encontros públicos dos governantes das duas
cidades, um monumento foi colocado na superfície para que se lembrassem
das origens da cidade. E até hoje o símbolo do clã Bur, um quadrado com
quatro gemas em formato de gota, com o lado agudo convergindo para o
centro, pode ser visto no monólito da Praça Tiradentes.
O nome da cidade da superfície começou como uma brincadeira:
“Khur-i-Tibah” diziam os anões e repetiam os moradores, cujo termo
significa “Khur de cima”. Depois de algum tempo os habitantes gostaram da
sonoridade e a palavra foi passando de boca a boca até se tornar Curitiba.
Essa versão, a verdadeira, foi substituída pela mais aceitável, de “muitos
pinheiros” em tupi significar “kuri tiba”. No final das contas, é uma
explicação plausível para esconder a participação de Alvores na fundação
da cidade, e é também a melhor escolha, inclusive para os anões.
— Por sinal, Tales, estamos chegando no coração da nossa cidade,
que fica sob a área do monólito de Bur que mencionei. Logo mais à frente
está a entrada de Khur, o renomado Salão de Pedraluz, casa do Trono da
Montanha.
Olhando à frente, Tales percebeu uma entrada maior à direita. Um
corredor curto à esquerda, com dez metros de largura, terminava em uma
porta articulada metálica. Era feita de lâminas de metais reforçados, cor de
chumbo, e tinha um entalhe prateado na superfície. Se antes Tales o
reconhecia como um dos mais famosos símbolos de Curitiba, agora se
revelava claramente como sendo o símbolo da dinastia dos Bur, refletindo a
iluminação do corredor. Entraram e percorreram os dez metros até a porta.
Bro-Thum tirou do bolso a mesma chave usada para abrir o alçapão
na garagem do prédio e a inseriu por completo no centro do símbolo. Assim
que a girou e retirou, um estalo soou e as laterais da porta começaram a silvar
num tom agudo, que lembrou a Tales o som de locomotivas a vapor. A porta
começou a subir, retraindo-se e ficando oculta numa fenda no teto, justa e
projetada para apenas a espessura da porta, de mais de um palmo.
Quando a porta se abriu por completo, nem mesmo a leitura de
dezenas de obras fantásticas se mostrou suficiente para preparar Tales para a
visão do Salão de Pedraluz, o coração do poder dos anões do Ocidente.
INTERLÚDIO - IRMÃOS
Bro-Thum nasceu no primeiro ano do século XX. Tinha um irmão
mais velho chamado Bro-Muir e era filho de Bro-Khuir e Dwa-Lea — que
morreu durante o parto. Naquele ano, o conflito da Grande Guerra ainda
não havia começado para os humanos. Mas os Alvores já estavam sabendo
das influências e maquinações mestiças e começaram a se organizar na
Europa.
Depois de dez anos, todos os nobres Alvores foram convocados a
levantar seus estandartes. Os clãs de anões e elfos deviam liderar os
batalhões e construir as máquinas de guerra. Os mestiços estavam crescendo
em número, influência e poder; era necessário frear esse processo.
Bro-Ogur, seu tio, mestre dos ferreiros e mecânico real,
acompanhou a corte de Khur à guerra. Levou com ele Bro-Muir, que —
apesar de ainda não ter atingido a maturidade — era aprendiz de mecânico e
teve a honra de servir como escudeiro do rei Bur-Draim.
Bro-Khuir assumiu o cargo do irmão e começou a ensinar ao seu
filho, Bro-Thum, o ofício da família. Com o decorrer da guerra, ele cresceu
praticamente como filho único, apesar de a presença do primogênito ser
lembrada com orgulho e reverência por todos. Com os relatos de feitos e
vitórias, Bro-Thum aprendeu a idolatrar e se espelhar em seu irmão, herói
de guerra, guerreiro e artesão ímpar.
Sempre que possível trocavam cartas entre si, porém as batalhas
estavam se tornando cada vez mais frequentes. Além disso, o
desenvolvimento de uma nova tecnologia demandava grande parte do tempo
de Bro-Muir.
O príncipe Bur-Daem, já com seus vinte anos, começou a organizar
o reino e delegar funções. Ainda era uma criança aos olhos de muitos, mas o
reinado a distância de seu pai estava desestruturando Khur. O príncipe
sempre se mostrou sábio além de sua idade, e também um grande regente.
Trabalhando na oficina com seus pais, desenvolvendo ferramentas e
peças para a cidade, Bro-Thum se destacou como aprendiz de ferreiro.
Chamou a atenção do príncipe, que ainda era jovem e gostava de contrariar
os anciãos, dando cargos na corte a mais jovens do que ele.
Com dezoito anos, idade em que os anões deixam de ser crianças,
Bro-Thum já dominava a produção do aço. Deixou de produzir ferramentas e
começou a aprender o ofício bélico: desenvolver e aprimorar armas,
armaduras e máquinas de guerra. Os anões já haviam abandonado quase um
século antes as grandes máquinas a vapor, dando lugar aos motores de
explosão, mas Bro-Thum tinha uma paixão pelas máquinas antigas.
Desenvolvia projetos próprios para locomotivas e sistemas complexos com
pistões e válvulas movidas a vapor.
Na verdade, tinha duas paixões: além das máquinas a vapor, era
obcecado pelas motocicletas criadas pelos humanos. Ele sempre gostou da
raça da superfície: o que os anões ganhavam em habilidade e competência
na manipulação de materiais, perdiam na criatividade e adaptabilidade. As
máquinas dos homens, em especial as desenvolvidas pela Harley-Davidson,
fascinavam Bro-Thum.
Entre as guerras dos homens, foram travadas as maiores batalhas
dos Alvores. E, nessa época, as trocas de cartas e contatos entre os irmãos se
tornou impossível. Fora do eixo principal da guerra também ocorriam
disputas, com os mestiços que fugiram da Europa para os outros continentes
oferecendo resistência. Bro-Thum chegou a participar algumas vezes da
frente de batalha.
As notícias que recebiam em Khur sobre a guerra se tornaram ainda
mais esparsas e resumidas, o temor de espiões era alto. Só sabiam que, no
início da década de 40, uma nova tecnologia deu luz à possibilidade de
vitória dos Alvores.
Bro-Thum já tinha cicatrizes de batalha, era um dos principais
mecânicos e ferreiros da casa real e foi convidado a fazer parte da Liga dos
Artesãos. Seu pai morreu antes de ver o primogênito retornar: um bando de
mestiços fez um último esforço para tentar invadir Khur, num ataque
surpresa noturno. Eles foram rechaçados, mas a custo de vários guerreiros.
O filho assumiu o lugar do pai como mestre interino dos ferreiros,
guardando o posto de seu tio. Presenciou o retorno do rei e recebeu todas as
informações da guerra, mas seu irmão decidiu ficar mais alguns anos na
Europa. Aparentemente, não recebeu muito bem a notícia da morte do pai e
decidiu usar seu luto reconstruindo o que fora destruído no conflito.
Bro-Thum passou o cargo de direito a Bro-Ogur e foi aceito como
Segundo no Comando. As tecnologias e descobertas da guerra
proporcionaram incontáveis possibilidades aos anões, e eles então
começaram a desenvolver os Mecanos, máquinas de guerra únicas.
Com uma redução da demanda e caos gerados pela guerra, Bro-
Thum desenvolveu uma adaptação à motocicleta tradicional, ajustando
altura e peças ao seu alcance. Ele estava adaptando o motor recém
fabricado da Harley, um Shovelhead 1970, para sua moto quando o irmão
saiu do elevador para o galpão de máquinas. Mais de meio século separando
os dois pareceram se esvair; eles se abraçaram em silêncio e riram.
Não precisaram conversar muito; Bro-Muir olhou para a moto do
irmão, olhou para o galpão e toda a estrutura que havia se desenvolvido em
Khur e imediatamente soube o que devia fazer. Pegou uma chave na maleta
do irmão e sentou-se ao lado dele, frente à Motocicleta.
— Parece que precisa de uma ajuda aqui — Bro-Muir disse,
sorrindo, enquanto soltava um dos parafusos de ajuste do motor.
— Se for sua, preciso sempre, meu irmão.
CAPÍTULO 4 - KHUR
Depois que a porta se abriu, Tales demorou alguns segundos para
acreditar que estava acordado e, mais do que isso, ainda sob Curitiba.
Segundo as indicações de Bro-Thum, o salão ficava na área abaixo da
Catedral Nossa Senhora da Luz. Mas o espaço era imenso, caberiam pelo
menos quatro catedrais sem problemas.
O salão retangular media duzentos por cem metros, sendo as paredes
leste e oeste as mais longas. Tales havia entrado pela parede sul, seguido por
Bro-Thum, que parecia estar se divertindo com o vislumbre do encantado.
Mais duas entradas grandes nas paredes à esquerda e à direita eram acessíveis
por uma rampa que descia alguns metros em relação ao piso.
Havia oito colunas de sustentação com mais de cinco metros de
diâmetro. No lado oposto da visão de Tales, uma plataforma ocupava toda a
largura, um terço do comprimento e tinha sete degraus de altura. Sobre a
plataforma, duas mesas com bancos longos e repletos de pessoas serviam um
banquete. Atrás dessas mesas percebia-se um trono e uma construção baixa
que ocupava todo o comprimento no fundo do salão.
O piso era feito de pedra escura e opaca com pequenos pontos que se
destacavam, cintilando e refletindo a iluminação ambiente. As paredes
lembravam mármore, negras com ramificações brancas e prateadas; diferente
do piso, eram polidas. Todo o espaço era bem iluminado, uma luz branca
ambiente que parecia inquieta e viva, como se viesse de diversos pontos
alternadamente.
Ao olhar para cima, buscando a fonte da iluminação, Tales perdeu o
fôlego.
As oito colunas subiam por cerca de cem metros até mergulhar num
mar de luz branca e viva, pulsando em incontáveis formas geométricas num
ritmo próprio e interminável. O teto fora construído com uma rede de
cristais projetada para refratar e refletir a luz num ciclo constante, cada
elemento alimentando e reforçando a luz dos seus adjacentes, apenas para
receber a mesma luz renovada depois de algum tempo. Era impossível
contabilizar a estrutura, com facetas maiores do que um palmo e outras
menores do que um grão de areia. O movimento criado pela arquitetura
tinha um efeito quase hipnotizante nos visitantes.
Bro-Thum começou a andar em direção à plataforma e chamou a
atenção do encantado, que o seguiu. Caminharam junto à linha direita das
colunas, que possuíam desenhos e padrões entalhados em toda sua área. Tales
reconheceu padrões de água, barcos e armas de batalha numa delas,
elementos que remetiam à história que ouvira de Bro-Thum. Imaginou que as
estruturas fossem também registros históricos, além de sustentação.
Conforme avançavam e subiam os degraus, Tales percebia que em
cada uma das mesas havia pelo menos cinquenta pessoas. Faziam um
desjejum simples, composto principalmente por frutas, caldos e pães
integrais. Pouco mais atrás, via-se entre as mesas o trono dos anões
assomando, grandioso.
Tinha pelo menos três metros de altura e uma aparência contrastante
com o resto do salão. Podia ser descrito como o topo de uma montanha, um
pico de ângulo bem agudo. Nessa estrutura, o assento fora entalhado com
formas simples e angulosas. Tales percebeu o simbolismo sem dificuldades: o
regente se torna parte da montanha e elemento da terra, mãe dos anões,
segundo Aer’delo. Não havia nenhum material além da pedra, nada que
trouxesse luxo ou até mesmo conforto a quem sentasse. Tales sorriu com
outra lembrança literária: “Não é um assento confortável, sor”. Realmente
não era, mas indiscutivelmente transmitia imponência.
Conforme subiu os degraus, sentiu que era observado de lado, mas
ninguém interrompeu as conversas ou a refeição para prestar atenção nele,
talvez por estar caminhando com um membro da corte. Na verdade, quase
ninguém, a não ser um anão da cabeceira da direita.
Era relativamente jovem e de olhar astuto; uma cicatriz corria da
têmpora ao canto da boca, deixando a dúvida de um sorriso e uma falha na
barba, que usava longa como os cabelos, negros e soltos sobre os ombros e
peito. As sobrancelhas espessas emolduravam olhos de um tom cinza-escuro.
Até onde Tales percebeu, ele era o único da mesa que usava uma armadura
completa, um peitoral prateado com ombreiras e linhas negras em toda a
superfície.
Sob o conjunto, podia-se ver uma cota de malha que cobria os braços
e descia até os joelhos. As mãos repousavam sobre a mesa e, ao lado da mão
esquerda, destacava-se a coroa simples, com dois elos dourados encimados
por quatro espigões de pedras preciosas que se inclinavam convergindo para
o centro. Assim que concluiu que era observado pelo rei, Tales se ajoelhou no
último degrau e baixou a cabeça. Bur-Daem riu alto e olhou para o
encantado.
— Então, finalmente vemos o protegido de Aer’delo? Não achei que
pudesse escondê-lo por muito mais tempo. Venha encher sua barriga, o
desjejum está servido e ainda é cedo demais para diplomacia.
Um anão trouxe uma cadeira para Tales se sentar ao lado do rei.
Constatou que estava com fome e colocou algumas frutas num prato
enquanto o rei terminava seu caldo de carne com pão caseiro. Sentia-se
inseguro sobre como agir frente a um rei; tentava conter sua língua ao mesmo
tempo que admirava a grandiosidade do salão, dos anões e do soberano ao
seu lado.
— Já havia ouvido falar de Khur? Seu mentor já tinha lhe contado
sobre nós? — perguntou o rei, entre os bocados de pão molhado no caldo.
— Não, eu... desconhecia que houvesse anões nessa região. — Tales
parou para pensar no que sabia, e percebeu que era pouco. Desejou que
tivesse tido mais tempo de estudo. — Aer’delo apenas me ensinou algumas
runas e contou sobre terem uma sociedade organizada. Infelizmente, posso
dizer que conheci mais sobre os anões com Bro-Thum nas últimas horas do
que com meu mestre, mas acho que é por eu ser um pouco lento para
aprender.
— Elfos têm noções diferentes de tempo e lentidão. Além disso,
Aer’delo tem seus... procedimentos. Mas ele é um aliado nosso e, antes disso,
foi um grande amigo de meu pai. — Percebendo o olhar de preocupação de
Tales, o rei continuou: — Não temos notícias recentes dele, mas espero logo
saber de algo.
— Esperamos, pai. Eu, particularmente, espero, ansioso. — Um
anão mais novo estava bebendo café preto em um copo pequeno.
— Tales, esse é meu filho, Bur-Tuir. — O rei indicou o anão que
falou; e este apenas acenou para Tales e levantou o copo, antes de beber mais
um gole. — Não ligue para ele, está na crise dos cinquenta.
O príncipe lembrava muito o pai, apenas tinha o semblante mais
pesado e os olhos castanhos. Os cabelos curtos eram penteados para trás;
usava um cavanhaque longo, trançado, que descia até a altura do peito, e
tinha alguns anéis para prendê-lo. Usava uma jaqueta jeans por cima de uma
camiseta do Rhapsody, calças jeans e coturno.
— Pai, com licença, mas preciso ir. — Levantou-se e, logo depois de
fazer uma reverência ao rei, se retirou.
— Não ligue para ele Tales, ele é chefe da guarda e está estranhando
a calmaria das últimas semanas — disse uma anã que estava ao lado de Bur-
Tuir, e ocupou o lugar dele assim que saiu. — Eu também estou estranhando,
mas não deixo que isso estrague um bom desjejum.
— Essa é Dwa-Ella, minha esposa, rainha de Khur e do meu coração
— o rei a indicou, sorrindo.
— Deve ter aprontado uma das suas para justificar esse galanteio —
riu Dwa-Ella.
A rainha tinha longos cabelos claros e trançados sobre as costas, a
pele morena, os mesmos olhos castanhos de Bur-Tuir e uma risada sonora.
Usava um vestido longo de algodão, branco com mangas curtas, e um colar
com o símbolo real em pedra negra e diamantes. Tales estranhou uma cicatriz
em seu pulso esquerdo que parecia uma queimadura, mas no formato de elos
de corrente.
O rei percebeu que Tales estava quieto e tentando absorver as
novidades, e continuou mostrando a distância alguns membros da corte, que
conversavam e comiam alheios ao encantado.
Dwa-Tabo e Dwa-Tago, dois anões gêmeos com moicanos trançados
e bigodes longos caindo sobre o peito também trançados com tiras de couro.
Eles usavam regatas brancas para exibir os braços musculosos e cheios de
cicatrizes de batalha. O rei explicou que eram guerreiros implacáveis e
comandavam a guarda real.
Bro-Ogur, o chefe das máquinas, responsável por toda a tecnologia e
equipamentos reais, era o maior anão que Tales poderia imaginar,
provavelmente com mais de 1,60m, de ombros largos e mãos enormes. Ele
não tinha cabelo ou barba. O rei riu, explicando que o trabalho com as
máquinas e motores normalmente lhe queimava esses pelos, então achou
mais fácil raspá-los.
Um pouco mais perto do final da mesa, um humano se destacava
pela altura entre os anões e um violão amarrado nas costas. Ele se chamava
Marcel, tinha um sorriso sincero e fácil, era moreno, usava a barba por fazer e
o cabelo aparado curto. Foi apresentado pelo rei como o atual bardo a seu
serviço. Tales se surpreendeu. Sabia algo sobre a Guilda dos Bardos e as
classes de manipuladores, Aer’delo havia mencionado em uma das primeiras
aulas dos Alvores.
Os bardos verdadeiros possuem o dom de manipular e encantar
pessoas, animais e — em alguns casos — elementos da natureza. Podem
incitar paixão, fúria, calma ou até destruição utilizando notas e acordes.
Quando Aer’delo lhe disse que um bardo verdadeiramente talentoso e
treinado corretamente conseguiria dobrar a vontade de qualquer um, Tales se
lembrou de imediato de um personagem que convenceria o diabo a tocar fogo
no próprio corpo, se tivesse alguma motivação para fazê-lo. Nunca se
esqueceu disso.
Observando mais a mesa, viu outros humanos além de Marcel, pelo
menos uma dúzia. Ia comentar sobre essa diversidade com Bur-Daem quando
percebeu algo que o surpreendeu. No fundo da mesa, viu as orelhas pontudas
de um elfo, que ali estava sozinho e cabisbaixo, Os cabelos longos de um tom
prateado caiam sobre os ombros, as mãos levavam o alimento mecanicamente
à boca e o olhar estava estático. Não parecia doente, apenas ausente. Comia
um pão com geleia e bebia água com naturalidade, mas alheio a tudo, como
se estivesse envolto em uma sombra.
— Ele se chama Ael’evendi... — o rei disse ao perceber a direção do
olhar surpreso de Tales. — Não sei se caberia a mim dizer, mas parece que
você é minha responsabilidade agora. Ele foi encontrado por membros de
nossa Liga no norte da África há algumas semanas, recebemos uma carta dele
há alguns anos, mas não havia indicação clara de sua localização. Enviei um
grupo de busca para encontrá-lo, acharam-no vivendo em uma caverna e
recebendo ajuda de um vilarejo próximo, onde era tratado como um ser
místico. Não disse mais do que o próprio nome e balbuciou outras coisas sem
nexo... Mas parece que sua essência se perdeu, meu pai disse que elfos
podem se separar de seu corpo. Eu mesmo não sou um estudioso da natureza
Alvor, mas sinto que ele não está aqui. Nós o estamos tratando como o
senhor élfico que é, mas acho que um membro da família poderia fazer mais
por ele.
— Membro da família? — Tales questionou observando o elfo.
— Ael’evendi é pai de Evana. — O encantado se assustou ao escutar
o nome da mãe, olhou para o rei, que continuou. — Ele é seu avô.
O rei continuou indicando e nomeando mais alguns dos presentes,
mas Tales não conseguiu registrar muito do que ouviu. O cansaço, a fuga, o
ferimento... Tudo se tornou secundário após ouvir as palavras “Ele é seu
avô”.
O encantado trocava cartas regularmente com seus pais, mas, para
manter a segurança e sigilo do trabalho deles, nunca usavam seus nomes ou
mencionavam coisas importantes. Escreviam trivialidades, ele dizia como
estava o aprendizado ou como seu professor era chato; Evana e Moro
respondiam falando da saudade que sentiam, da África, das dificuldades do
trabalho e das viagens.
Eles usavam uma caixa postal em Johanesburgo e as cartas
chegavam a ficar meses sem resposta. Mas Tales nunca se sentiu esquecido
ou abandonado, entendia perfeitamente a importância dos pais e do trabalho
deles, recebia as cartas com carinho e amor. Queria, entretanto, ter um pouco
mais de liberdade e meios para saber sua própria história familiar.
Aer’delo sempre fora reticente a esse respeito, dizia não ser um
direito dele falar sobre o passado de outros. Mas, com tempo e empatia, Tales
conseguiu alguns retalhos de informações:

Ael’evendi, o pai de sua mãe Evana, foi um elfo, e não havia nada
além disso para Tales. Ela foi criada na Itália pela mãe Sebile, uma
jornalista humana que sabia da existência dos elfos e conhecia Aer’delo.
Já Moro, seu pai, era filho de Ais’emora com Érico. Ela era uma
líder dos arqueiros e lutava na Grande Guerra junto a elfos e anões, mas
faleceu em uma batalha perto do fim da guerra. Érico não lidou bem com a
perda de sua esposa, e via Moro como uma lembrança constante da dor.
Decidiu entregar o filho para ser criado pelos elfos logo depois do fim da
Guerra. Desse modo, Érico acabou se tornando um dos fatores que
aproximou os pais de Tales.
Aer’delo foi um dos sobreviventes da Grande Guerra e cuidou de
Moro junto com outros elfos, mas as obrigações e demandas constantes de
seus responsáveis estavam tornado o garoto arredio e irritado. Então, em
1950, Sebile recebeu Moro em sua casa a pedido de Aer’delo. Ele tinha cinco
anos e foi aceito como protegido, lá conheceu Evana e, anos depois, se
apaixonaram. Quando se casara, decidiram começar a pesquisar sobre os
costumes e a história dos elfos.
Os encantados têm uma vida mais longa que a dos homens. Quando
estavam no auge da juventude — para eles, mais de cinquenta anos —,
Evana e Moro engravidaram de Tales. Viram o filho como uma dádiva,
tinham a honra e responsabilidade de um filho de dois encantados. Não
havia como prever como seria a vida dele, e por isso decidiram que, depois
de uma infância com todo amor, educação e dedicação de seus pais, dariam
a ele a chance de ser criado como um de seus antepassados Alvores.

Ao resumir assim os fatos, Tales viu que realmente não sabia muito
sobre seus pais. Voltou a atenção para a mesa: alguns anões e humanos
estavam retirando os próprios pratos e os de vizinhos; enquanto a maioria
saiu, alguns dos presentes continuaram sentados. Viu Ael’evendi sendo
levado pela rainha e levantou-se para segui-los, mas o rei tocou seu braço e o
interrompeu.
— Temos um registro dos Alvores que conhecemos e de boa parte
das suas ramificações, não é tão completo quanto gostaríamos, mas sua
linhagem está lá. Prometo que veremos isso mais tarde, poderá falar com ele
e inclusive me ajudar com isso. Mas agora chegou a hora da diplomacia, e
acho que vai querer saber por que você está aqui e o que mais aconteceu
ontem à noite.
CAPÍTULO 5 - ALMA
Tales respeitou a solicitação do rei, lembrou-se de Aer’delo e voltou
a se sentar. Ficou observando a direção para onde a rainha levava seu avô,
como se o elfo necessitasse ser guiado, apesar de não parecer cansado ou
fraco. Quando restava cerca de uma dúzia de pessoas, Bur-Daem pegou a
coroa da mesa, se levantou e começou a caminhar. Todos os presentes
acompanharam o movimento e o seguiram em direção à construção baixa.
Marcel tirou o violão das costas e começou a dedilhar uma melodia enquanto
caminhavam.
O rei se ajoelhou perante o trono, colocou sua coroa e levou a mão à
lateral do assento para pegar sua arma. Tales não havia reparado, ao entrar no
salão, no martelo de guerra, o cabo da altura do anão, escuro com uma rede
prateada que contrastava com o tom sombrio do metal. A cabeça era um
bloco prateado de corte simples como o trono, com o símbolo real formado
por quatro pingentes de rubi em cada uma das faces. Na extremidade do cabo
um cristal bruto transparente remetia ao teto do salão.
Bur-Daem levantou a arma real com uma leveza incompatível com a
sua aparência, acariciou os rubis e apoiou o martelo sobre o ombro enquanto
caminhava para a construção.
— Bonita, não? Chama-se Duthah-i-Bur, Coração dos Bur. Veio do
além-mar com o avô do rei e é uma das relíquias dos anões — Marcel disse a
Tales enquanto alterava o estilo e tom do dedilhado no violão. — Como era
mesmo?
O bardo iniciou uma melodia simples a três tempos e, quando estava
embalado no ritmo, cantarolou um trecho da canção que falava sobre o rei de
Khur.
“Armaduras, elmos, escudos
Quebrados, marcados a frio
Quatro gemas mar adentro
Feroz coração dos Bur”

— Essa é a parte que cabe à Duthah-i-Bur, que acompanha a família


há séculos. Cada um dos descendentes tem a honra de acrescentar algum
detalhe pessoal à arma — Marcel sorriu e acenou para a frente, o rei estava
chegando à porta de entrada. — Quem sabe depois, com mais tempo, posso
lhe cantar toda a balada dos Bur. Ouvi a canção de minha tutora, ela a
compôs em honra ao rei Bur-Dair.
A construção ocupava boa parte da área do salão e tinha pelo menos
dez metros de altura, com duas escadas na parede externa dando acesso ao
teto. A porta de entrada que Marcel mencionou era dupla e de pedra, com um
martelo entalhado em uma das folhas e uma bigorna na outra. Nas laterais das
portas, dois navios estavam simetricamente entalhados na parede, com as
proas apontando para a entrada.
O rei abriu e atravessou a porta, com o grupo seguindo logo atrás.
Entraram numa sala grande, com um piso rebaixado e uma mesa oval no
centro. Corredores saiam do fundo do cômodo à esquerda e à direita.
Algumas tapeçarias e pinturas cobriam as paredes; Tales reconheceu a
reprodução de uma batalha de navios, representando a caçada que resultou na
fundação de Khur; a coroação do rei, com a entrega da coroa e do martelo de
guerra; além de uma pintura do salão real, com o teto iluminando toda a
estrutura.
O rei sentou-se e indicou a Tales a cadeira à sua esquerda. Ele se
sentou e logo depois os outros integrantes da reunião se posicionaram. Bro-
Thum ficou ao lado de Tales e os demais ocuparam boa parte das cadeiras.
Pouco depois, o príncipe Bur-Tuir chegou de um dos corredores com
a mãe à sua esquerda e uma caneca alta na mão direita. A rainha trazia uma
bandeja com várias bebidas como a do filho. Além dela, duas anãs a
acompanhavam com bandejas cheias. Enquanto Bur-Tuir se sentava ao lado
direito do pai, elas começaram a distribuir bebidas aos presentes.
Tales contou quinze pessoas além dele na reunião. As duas anãs
eram mais novas que a rainha e riam enquanto entregavam as canecas. Assim
que entregaram as últimas a Dwa-Tabo e Dwa-Tago, eles as puxaram para
sentar no colo deles. Tales notou a mesma marca da rainha no pulso esquerdo
delas, bem como nos braços direitos dos gêmeos.
— Bro-Thum — O encantado falou baixo e tocou o ombro do anão,
era com ele que tinha um pouco mais de contato. — Essas marcas no pulso
de alguns anões... O que representam?
— Um antigo costume anão — respondeu Bro-Thum, enquanto
mostrava seu próprio pulso direito com os elos marcados. — Representa o
nosso equivalente a um casamento. Quando duas pessoas entendem que se
amam e precisam ficar juntas, o rei preside a cerimônia e abençoa a união
com o aço e fogo. Para nós, são os elementos que representam a estabilidade,
confiança, vida e paixão. Com as mãos entrelaçadas, uma corrente de aço
aquecida em brasa é fechada nos pulsos do casal, que mergulha as mãos em
óleo frio. Assim temperam o aço, tornando-o mais forte. Nossa pele é muito
resistente, em algumas horas a marca se cicatriza e podemos continuar com
pelo menos três dias de celebração.
A rainha entregou uma caneca a Tales e outra ao rei, afagando seu
esposo. Tales sorriu e levou a bebida à boca para depois perceber que era
cerveja. Ele já havia provado bebidas escondido de Aer’delo, que
desaprovava qualquer coisa alcoólica, mas nada como aquilo. Era encorpada
e quase podia sentir seu coração mais leve e o corpo pronto para uma batalha.
— Cerveja anã, guri... — Bro-Thum sorriu ao ver a reação de Tales
e levantou sua bebida em um brinde. — Eu te disse.
— Tales, antes que comecemos, essa reunião é de um grupo seleto e
você é hoje um convidado, uma exceção pela sua situação... Especial de
ontem à noite — o rei começou a explicar para Tales. — Quando meus
antepassados começaram a construir Khur, descobriram que alguns mestiços
haviam feito a travessia do Atlântico e tinham passado a controlar algumas
regiões. Decidimos criar uma organização para manter a ordem: reunimos os
que tinham conhecimento e vontade. Nós nos chamamos de ‘A Liga dos
Artesãos’, para remeter ao nosso ofício e despistar suspeitas, e começamos a
trabalhar.
— Bro-Thum me contou um pouco da história de Khur, então vocês
protegem essa cidade? — Tales perguntou, bebendo mais alguns goles de
cerveja.
— Na verdade é um pouco mais, a Liga dos Artesãos está
plenamente estruturada nas Américas. Além disso, temos contatos e membros
espalhados por todo o mundo. Por isso encontramos seu avô e o trouxemos
para cá, acredito que ele saiba algo sobre o que os mestiços estão tramando. É
a esse respeito que eu disse que gostaria de sua ajuda.
— Não acho que eu vá fazer alguma diferença — Tales quase
desanimou ao pensar no avô, que o fez se lembrar dos pais e de Aer’delo. —
Mas desejo conversar com ele.
As risadas começaram a diminuir conforme a cerveja ia chegando ao
fim, os gêmeos despediram-se de suas esposas e a rainha se sentou ao lado do
filho.
— Depois terá sua oportunidade. Parece que estamos todos prontos,
podemos começar. — O rei se levantou, tocou no cristal de seu martelo e
elevou a voz ao dirigir-se aos presentes. — Eu, Bur-Daem III, Rei de Khur e
dos Anões do Oeste, líder da Liga dos Artesãos, dou início à reunião dos
membros da Liga. Alguém questiona minha autoridade?
Todos os presentes baixaram a cabeça em silêncio.
— Pois bem... Bro-Thum, conte a todos sobre o ocorrido de ontem à
noite. — O rei voltou a sentar e começou a ouvir o relato.
— Conseguimos capturar Shkrenee... — Bro-Thum deixou de lado o
rosto alegre e começou a contar o ocorrido da noite. Ao fim do relato, Tales
conseguiu encaixar mais algumas peças do quebra-cabeça. — Depois de
tudo, eu fui buscar o Tales. Agora meu irmão ainda deve estar sendo
paparicado e Shkrenee, preso lá embaixo. Mandei subir uma caixa com tudo
que ele estava carregando.
Bro-Thum se sentou, olhou para Tales e, baixando o tom de voz,
pediu desculpas por não ter ido imediatamente ajudá-lo.
— Eu ouvi a história, e sou grato por ter ido me buscar. Não há de
que se desculpar. — Tales pensou no risco que correra e no que poderia ter
acontecido se tivesse ficado em casa.
O rei aguardou alguns segundos e se levantou, respondendo a Bro-
Thum.
— Somos gratos, Bro-Thum, minhas melhoras a Bro-Muir. E muito
obrigado, Tales, desculpe-me se você não possuía muitas informações sobre
ontem. Nós mesmos estávamos andando um pouco às cegas nesse caso,
acabamos pegando algo maior do que poderíamos imaginar. Shkrenee é um
dos líderes mestiços, um dos Dedos da Mão Negra. Se soubéssemos que seria
algo dessa magnitude, teríamos alertado Aer’delo — o Rei olhava para Tales
enquanto agradecia e explicava. — E afinal, onde estão os itens? Desejo
saber o que era tão importante para que um dos Dedos participasse
pessoalmente da transação.
Bro-Thum se levantou e entregou a caixa com os pertences do
prisioneiro ao rei. Havia uma carteira com documentos e notas de diversos
valores, um vidro sem rótulo com pílulas, um 38 preto e uma caixa de
madeira. O rei ignorou os outros itens e pegou o último objeto. Tinha pouco
mais de um palmo de comprimento e metade disso de largura.
Tales captou o lampejo de reconhecimento e temor no olhar do
regente enquanto encarava os entalhes na caixa. Eram antigos e gastos, mas
percebia-se uma mistura das linhas fluidas dos elfos e as marcas simples dos
anões. O rei hesitou alguns segundos antes de soltar o pequeno trinco e abrir
a caixa.
O pesar que passou pelos olhos de Bur-Daem gerou um desconforto
geral na mesa. Ele tomou o item na mão direita sem hesitação e o retirou da
caixa, fechando-a e colocando sobre a mesa.
— Poderia jurar pelo martelo e pela bigorna que nunca mais veria
um desses... Mas parece que não somos nós que teimamos em não
desaparecer. Infelizmente. — Levantou ainda mais a mão direita, exibindo a
peça a todos os presentes.
Era um tubo de ensaio de um vidro espesso e transparente, com a
boca fechada por um aparato metálico. O aparato era dourado e parecia fazer
parte de um conjunto. Os anões praguejaram ao ver a peça e Bro-Ogur
esmurrou a mesa.
— Majestade... parece que a maioria dos presentes sabe o que é isso,
mas eu desconheço. — Tales percebeu alguns olhares curiosos na multidão,
dentre a maioria que demonstrava seu desconforto.
— Tales... Isso é o que chamávamos de alma do Berserker. Nós
somos uma raça de artesãos e armeiros, criamos e construímos com nossas
mãos usando o material que a terra nos dá. Temos armas, armaduras,
máquinas de guerra, mas isso... Isso é algo que foi além da ferramenta e se
tornou um risco aos guerreiros. Foi absolutamente útil para a vitória dos
Alvores na Guerra, mas a sua utilização beira a desonra, além de ser fatal aos
operadores...

Em paralelo com as Guerras Mundiais dos homens, os nossos


antepassados também lutaram. Essa foi a chamada Grande Guerra Oculta,
onde anões, elfos e aliados combateram as hordas dos orcs e criaturas
malignas. Descobrimos que estes estavam manipulando a guerra dos homens
e lutamos pela sobrevivência do planeta, mas nosso lado estava perdendo. As
baixas eram incontáveis e o extermínio parecia próximo. Os maiores elfos
mestres de encantamentos se reuniram com os grandes anões artífices para
construir uma máquina de guerra invencível.
Os anões modelaram um gigante, alto como dois homens, um
humanoide gigante sem rosto. Todos os engenheiros anões foram chamados
para implantar seu sistema de movimentação. Tendões sintéticos, pistões
hidráulicos e a vapor. Nessa época foi desenvolvida ao máximo nossa
tecnologia geotérmica. Armas de alto calibre foram colocadas nos braços e
peito do gigante metálico.
Os elfos fizeram traços de circulação de energia vital por toda a
superfície, ligaram com linhas de magia a estrutura hidráulica que os anões
construíram. Criaram o núcleo de sinapse, um sistema nervoso da máquina,
que ligava a arma ao operador.
Os guerreiros Berserkers já eram conhecidos nos campos de batalha
nórdicos, combatentes em fúria frenética. Foi assim que nomearam aquelas
armas. Foram sete Berserkers criados, cada um com características e
poderes únicos, mas irmãos entre si e pais da destruição.
Eles entrariam no campo de batalha e seriam imbatíveis, um
operador daria um pouco de seu sangue para a máquina e ela se ligaria a
ele, dando-lhe a sua visão e força no campo de batalha. Esse é um dos
pontos da desonra, não é necessário que o operador entre em batalha, ele
pode ficar repousando em um lugar seguro e comandar o Berserker como se
fosse ele próprio.
É a força de vontade amplificada pela sinapse que faz a máquina
replicar suas intenções de movimento. Porém, a ligação demandava demais
do operador, e consumia rapidamente sua força vital. Elfos e anões não
sabiam mais o que fazer, o vínculo durava menos de uma hora e esgotava
qualquer um que utilizasse a arma.
Air’elifar era um dos elfos mais antigos, nascido antes da era dos
homens, e conhecia poderes inimagináveis. Ele trouxe um líquido dourado e
espesso para os anões e pediu que o colocassem na estrutura, como um novo
fluido de automação. Então ele próprio bebeu um pouco do líquido antes de
oferecer seu sangue à máquina.
A sincronia foi perfeita, a máquina se tornara pelo menos três vezes
mais ágil na resposta dos impulsos. Três elfos e três anões se ofereceram
como operadores, e em todos os casos o líquido se mostrou eficiente. Os
Berserkers foram indispensáveis, só com eles a guerra foi vencida e os orcs
destruídos. Os anões apenas participaram para estar na frente de batalha, e
exigiram adaptações em suas máquinas para que pudessem estar — ainda
que inconscientes — na batalha.
Mas, pouco tempo depois descobriu-se que se os operadores não
tinham sua força vital drenada pelo Berserker, ela era consumida pelo poder
do líquido. Sua essência entrava em combustão como uma folha seca e sua
existência era encurtada. As máquinas foram consideradas uma necessidade
na época, mas depois de cumprirem sua missão se tornaram mau agouro e
um risco. Air’elifar garantiu ter destruído todo o líquido e sete elfos
aceitaram o fardo de esconder as máquinas de guerra e dar a vida para
mantê-las ocultas.

— E é por isso, Tales, que achei que nunca veria um desses. Meu
próprio pai foi um dos operadores e morreu pouco tempo depois de empunhar
um Berserker. Eu o vi mais vivo do que nunca em seus últimos dias, até que
seu coração bateu pela última vez e ele deu seu último suspiro antes de se
unir à terra.
— Mas então... O que é isso? — Tales olhava para o recipiente nas
mãos do rei. Um líquido espesso e dourado se movimentava mais rápido do
que o normal em seu interior.
— Isso é algo que não deveria mais existir, é a única coisa capaz de
ativar as armaduras de batalha supremas criadas pelos anões e elfos. Isso,
Tales... É sangue de dragão.
CAPÍTULO 6 - SANGUE
Depois de ter aberto a caixa, o rei designou situação de alerta e
enviou membros da Liga para entrar em contato com os membros da Europa,
a fim de indagar sobre qualquer movimento referente aos Berserkers. Ia
esperar algumas horas até Shkrenee estar consciente, para então interrogá-lo.
O rei também enviou Tales à enfermaria para cuidar do ferimento na cabeça.
Mais tarde Bur-Daem iria conversar com Ael’evendi e precisaria dele
descansado e atento.
Tales recebeu do rei uma chave com três serrilhados em formato de
Y. Ela daria acesso a alguns dos setores principais da cidade. A rainha se
ofereceu para indicar o caminho; os dois caminharam até o fundo da sala de
reuniões e seguiram pelo corredor à esquerda, onde uma série de portas
gradeadas indicava a entrada de diversos elevadores. Havia pelo menos uma
dúzia. A rainha mostrou que a placa acima de cada entrada indicava o destino
do elevador e se dirigiu ao quinto, que indicava “Ala Médica”. Então,
apontou a fechadura para Tales. A chave entrou sem resistência: com um
terço de volta as luzes do elevador se acenderam; dois terços acionaram o
mecanismo e um som grave reverberou no elevador; a volta completa
destrancou a grade e empurrou a chave para fora.
A rainha abriu a grade e entrou, seguida por Tales. O espaço interno
era simples e bem iluminado, sem muitos adornos ou detalhes. Havia um
botão que deslizava e se alternava entre a posição ‘Salão Real’ e ‘Ala
Médica’. Assim que Dwa-Ella movimentou o botão, a reverberação do
maquinário recebeu um chiado baixo de vapor e começou a descer.
Ao parar no andar médico, Tales abriu a porta gradeada e entrou
numa sala grande, de paredes brancas e bem iluminada. Kur-Dour estava
esperando por ele e estendeu a mão para o encantado enquanto acenava para
a rainha, que voltou para cima sem ter saído do elevador.
O médico real era um anão muito velho, com manchas na cabeça e o
rosto bem mais enrugado do que o padrão da raça. Tinha a cabeça calva no
topo e cabelos curtos brancos nas laterais e nuca. Usava suíças longas e
óculos de lentes quadradas. Indicou uma porta, esperou que Tales entrasse e
baixou a cabeça dele para examinar o ferimento.
— Teve muita sorte, um corte limpo. Três pontos e um bom tanto de
repouso. — Agilmente, pegou gaze, linha, agulha e demais apetrechos,
borrifou um líquido que anestesiou a área e terminou a sutura. Fez um
curativo e indicou uma porta a Tales. — Pode repousar ali, se precisar de
mim, não hesite em chamar.
Tales caminhou até o quarto e se sentou na cama. Foi então que seu
corpo exigiu o descanso que ele estava negando. Cinco noites mal dormidas,
e um início de dia como aquele, tinham sido o bastante para levar o
encantado à exaustão. Nem se lembrou de quando deitou ou adormeceu.
Um movimento no quarto fez Tales acordar sobressaltado. Um anão
ruivo entrava pela porta. Tinha os cabelos bem curtos e um bigode farto que
escondia sua boca. Percebeu a semelhança com Bro-Thum e o curativo
enorme no seu ombro com uma faixa cruzando o peito. Trazia duas taças nas
mãos.
— Estava passando e pensei que gostaria de beber um pouco. Tales,
já bebeu hidromel antes? — Tales balançou a cabeça em negativa e meio
sonolento ainda. Bro-Muir entregou-lhe uma das taças e levantou a outra em
um brinde. — Devo parabenizá-lo por aquela flechada, Shkrenee mal saiu
vivo. Um brinde à sua mira.
O anão arrastou a cadeira do canto do quarto para perto da cama e
sorriu para Tales. A taça era pequena; ele a esvaziou num gole e Tales o
imitou, saboreando. O líquido era menos forte do que imaginava e o gosto de
mel no fundo da língua lhe agradou.
— Seu irmão contou sobre a briga com os wargs, creio que também
merece um brinde. Como está seu ombro?
Tales estava começando a acordar e tomar consciência de onde
estava.
— Isso não foi nada, devia ter me visto na Grande Guerra. Thum era
novo demais para batalhar, ele tinha só trinta anos, mas eu estive na linha de
frente. Nossas incursões atualmente parecem um passeio no parque, lutando à
sombra dos homens.
— À sombra dos homens?
— Esqueça, já perdi a conta das minhas taças e devo estar com a
língua solta. Mas enquanto eu estava aqui embaixo sendo costurado e
enfaixado, como foram as coisas lá em cima? Alguma notícia de Aer’delo?
— Nada ainda. O rei tinha dito que iria falar sobre ele, mas acho que
os Berserkers e o sangue do dragão acabaram por deixar isso de lado...
— Ah sim, os espólios do general devem ter intrigado o nosso rei. E
outra coisa, havia um elfo na reunião? Ael’evendi.
— Não, ele saiu no final do desjejum.
— Sabe onde ele está? E o sangue do dragão?
— Eu... Não sei — a vista de Tales começou a embaçar e falhar.
Bro-Muir se levantou e deixou sua taça na mesa ao lado da cama.
Começou a caminhar para a porta enquanto dizia:
— Pena, garoto, sinto muito por isso, de verdade. Mas foram claros
sobre seu destino... Adeus!
— Mas por quê? — A fala de Tales saiu pesada e pastosa.
Sem olhar para o encantado, o anão parou antes de cruzar a porta e
desabafou:
— Você é uma criança, Tales. Não viu a grande guerra, não viu o
que os homens fizeram. Nós lutamos por eles, mas continuamos sob seus pés
agora mesmo. Eles assistem ao pôr do sol enquanto nós nos contentamos com
um jogo de luzes aos pés de um rei fraco. Cansei de me esconder, os homens
não merecem o mundo que cedemos.
As palavras soavam abafadas para Tales. Deixou a taça cair e
imaginou ter escutado algo quebrando, mas parecia muito distante.

TALES SENTIA ESTAR dentro da terra, que o abraçava e confortava. Ao


abrir os olhos, percebeu que alguém vinha em sua direção. Um deles tinha a
pele feita de cascas antigas de árvore e seus cabelos pareciam musgo espesso.
Duas esferas esmeralda cintilavam em suas órbitas. À sua esquerda
caminhava um anão feito de rochas e terra. O chão rolava e subia em colunas
conforme os pés andavam, sempre ligando o anão ao solo. Ele tinha um
pequeno sol na mão esquerda. Uma fonte de luz dourada que pulsava e
lançava labaredas ao seu redor, ao mesmo tempo iluminando e pedindo para
queimar tudo.
— Onde estou? — Tales perguntou.
— Na terra e embaixo da terra — disse o homem-árvore. — Você
está onde os esquecidos aguardam.
Notou as cicatrizes na mão e rosto do anão e soube que era Bur-
Daem, mesmo que ele não lhe dirigisse a palavra. Mas não reconheceu o
outro.
— Quem é você, e quem são os esquecidos? — Tales perguntou ao
ser que se aproximava.
— Sou Ael’evendi, pai de sua mãe. E creio que você seja um
esquecido. Meu sangue élfico corre em suas veias, o que faz com que em
algumas situações especiais sua essência possa visitar este plano.
Infelizmente uma das situações é a de estar morrendo, por isso não temos
muito tempo.
— Morrendo? — Conseguia se movimentar e talvez até levantar se
quisesse, mas lhe parecia errado e arriscado fazê-lo, como se isso o fizesse
“escapar”.
— Está certo em não se mover, seu corpo está parado e não é bom se
distanciar muito dele, isso o enfraqueceria demais. Você foi envenenado, não
adiante o processo. Logo sua essência irá se separar de sua carne e você
ficará preso aqui até desaparecer. Este não é um plano para humanos, mesmo
que de uma linhagem Alvor.
— O que devo fazer?
— Eu mesmo não estou aqui em minha plenitude, fui invocado pelo
rei, tomei uma decisão equivocada há anos, se soubesse dos desígnios de
Aerle eu teria feito diferente. Mas o que está feito, está feito; ainda que
equivocada, essa foi minha escolha. Minha essência está desligada de meu
corpo e terei que trabalhar com Bur-Daem para salvá-lo. A essência dos
anões é mais ligada à terra do que ao plano etéreo, é um esforço para o rei
permanecer aqui conosco. Não percamos mais tempo.
Ael’evendi reverenciou o rei e abraçou a mão direita de pedra que
segurava o pequeno sol com os dedos longos e nodosos de árvore. Abaixou-
se e, com a outra mão em concha, sussurrou no ouvido de Bur-Daem algo
que Tales não podia ouvir. O rei estendeu a mão esquerda, onde havia
algumas manchas vermelhas com lampejos esverdeados, como se fosse
algum tipo de óleo. Levantou então a fonte de luz sobre a palma estendida e,
com o auxílio e instruções do elfo, derrubou uma gota do brilho na mão. A
gota caiu mais rápido do que deveria, como se estivesse faminta e acelerasse
a queda. Assim que chegou às manchas vermelhas, o anão fechou a mão e
prendeu o brilho.
— Não imaginei que houvesse mais desse material. Não devia haver.
A última notícia de dragões tem mais de três séculos. Mas essa amostra tem
no máximo uma década. Não se preocupe, não irá matá-lo, estamos
misturando o sangue do dragão a um pouco de meu sangue, e isso vai
amenizar os efeitos no seu corpo. Pense nisso como uma ajuda para amarrá-lo
à vida.
Bur-Daem se dirigiu a Tales e abriu sua boca. Levantou o punho
fechado sobre a cabeça do encantado e deixou a gota escorrer. Ela caiu, com
o brilho mais fraco, saciado. Antes mesmo que tocasse sua língua, Tales foi
tomado por uma explosão de adrenalina. Sobrevoou um campo de batalha de
cavaleiros e lanceiros que se transformaram em tanques e soldados com
metralhadoras; estava amordaçado dentro de uma jaula; olhou para cima e viu
o céu moldado por um círculo de pedra, como no fundo de um poço; viu
escuridão.
— Tales.
Ele estava dormindo e foi chamado. Não era hora ainda, não sabia
quantos anos ou décadas se passaram, mas alguém o havia tocado,
alcançado. Quem ousaria, o tempo havia escorrido bastante. Pelo menos um
século havia se passado desde que adormecera.
— Tales!
Podia sentir seus irmãos, mas estavam distantes, não era um deles
que o buscava. Possuía sangue élfico, mas era um garoto... Não tinha nem
duas décadas. Sua chama estava se apagando e estava no plano etéreo.
Estava perto... bem perto...
— TALES!
INTERLÚDIO - CARTAS
Ael’evendi acordou assustado na escuridão, havia perdido
completamente a noção de tempo desde que se trancou no vagão de trem.
Sabia que estava viajando para o leste europeu, que estava sendo seguido e
longe de sua família.
Soube do risco que corria desde que começou a trabalhar com
Air’elifar. A Mão Negra tinha espiões em todos os degraus de poder, mesmo
nas linhas Alvores. Assim que o Sangue de Dragão foi descoberto como
combustível e elemento de ligação eficiente entre os Berserkers e os
Operadores, a balança da guerra mudou.
Em meses os orcs foram derrotados e dizimados, as armas estavam
em todas as frentes de batalha, quebrando as linhas mestiças e orcs e
abrindo espaço para os exércitos dos anões e as flechas dos elfos. Mas ao
mesmo tempo, a Mão Negra — organização suprema dos Orcs que tinha uma
luta própria para manter a linhagem — se retirou como fumaça da Guerra.
No furor da vitória, ninguém fez a associação, mas os envolvidos
nas pesquisas e desenvolvimento começaram a ser assassinados. Ael’evendi
não temia apenas por si: sua filha acabara de nascer, ele amava Sebile
imensamente, e Evana era a coisa mais preciosa em seu mundo. Viu amigos
desaparecerem junto com suas famílias e não podia suportar a ideia do
mesmo acontecer com ele.
Aproximou-se de Aer’delo, um dos elfos de menor poder e influência
no projeto, que provavelmente não seria alvo, e pediu que ajudasse sua
esposa e filha. Deu instruções para que explicasse o mínimo a Sebile e
implorasse seu perdão, mas seria necessário que seu marido desaparecesse,
para segurança deles. Reuniu algum dinheiro e mantimentos para uma
viagem longa e alugou um vagão num trem para o Oriente Médio.
Desde que chegou lá, em busca de sobrevivência e fuga,
desenvolveu uma paranoia que se converteu rapidamente em loucura. A
batalha de sentimentos conflitantes era exaustiva, décadas em dúvida sobre o
risco de voltar, o dever com a família, a falta de notícias, a perseguição...
Tudo o levou a perder-se. Estava morando numa caverna em algum lugar da
África quando desistiu.
A batalha interna para retomar sua identidade, entender o que
aconteceu e remontar os fatos o destruiu. Destruiu sua mente e o fez tomar
uma decisão que ele mesmo condenara em outros elfos por tantos séculos.
Assim como os homens, os elfos têm o livre arbítrio, o dom da
escolha e liberdade relativa para tomar um caminho. Mas diferente dos
homens, o suicídio é algo inconcebível e impossível. Os elfos sentem o peso
do mundo, junto com a visão do caminho que sua raça e cultura estão
tomando, e isso os consome a cada momento. O máximo que eles podem ter
da sua existência antiga e gloriosa é buscar os planos etéreos, locais onde a
realidade física é mais maleável e os conceitos se perdem um pouco com a
magia natural. Lá, os Alvores são seres mais próximos de sua magnitude.
A questão é que alguns elfos não suportam o peso da vida na terra e
passam mais tempo no plano etéreo do que no físico, e isso tem um preço.
Depois de certo período, o desligamento é definitivo: a essência do ser fica
presa, sem conseguir voltar ao seu corpo, que continua eterno e passa a ter
apenas os instintos básicos de sobrevivência.
Ael’evendi repudiava os elfos que cometiam por escolha esse ato,
chamado de Torpor, mas pelo jeito a ironia seria mais um peso para seus
ombros. Antes de se perder no plano imaterial, escreveu uma carta em
código, enviou para um endereço que tinha de memória, na América Latina,
e se esforçou para prender algumas informações o mais fundo possível em
seu cérebro físico. Se tivesse sorte, o encontrariam e ele poderia dizer pelo
menos quem era.
Fechou então os olhos e navegou para o reino dos elfos, a fim de se
encontrar com os seus e viver o resto de seus dias num mundo faz-de-conta.

Depois de alguns anos, a carta chegou ao destino. Era um papel em


branco escrito no modo secreto dos Grandes Pais — uma técnica que
protegia a tinta escrita de ser queimada. Era necessário cuidado e
conhecimento para queimar o papel sem destruir a escrita.
Curiosamente, as primeiras linhas diziam “A Sua Majestade Bur-
Draim, Rei dos Anões do Ocidente, Operador do Obliterae e Senhor de
Khur.” Quem leu a carta, porém, não foi o destinatário, mas sim seu filho, o
Rei Bur-Daem, que organizou imediatamente buscas para encontrar o
remetente.
CAPÍTULO 7 - VISITA
Bur-Daem estava tentando acordar Tales, que delirava numa língua
que ele já ouvira, mas que há tempos fora esquecida e não era feita para
lábios de elfos, orcs, anões ou humanos. Dois minutos depois do rei ter
pingado a gota do sangue de Ael’evendi misturado com o sangue do dragão,
Tales abriu os olhos e piscou com a inesperada luminosidade do quarto. O
garoto se viu deitado com as roupas molhadas de suor e a respiração
ofegante.
— Parece que temos mais uma surpresa — Bur-Daem olhava
surpreso para o frasco em suas mãos. — O dragão do qual esse sangue foi
tirado está vivo. Provavelmente hibernando, ou você entraria em combustão
pelo controle dele. O sangue de Ael’evendi e um bocado de sorte o salvaram.
— Ele sabia quem eu era, ou pelo menos estava me procurando. —
A sensação de fuga ainda estava forte em Tales, ele olhou para os lados
procurando pelo elfo. — Onde está Ael’evendi? Eu o vi há pouco...
— Sim, estava aqui, a consciência dele pelo menos, achei que havia
esperança de ele não ter feito a partida, mas infelizmente está desligado do
seu corpo. Embora continue fisicamente saudável e possa viver eternamente,
retém apenas os instintos básicos de sobrevivência, como alimentação e sono.
Sua essência fica retida no plano etéreo. Gostaria de saber mais sobre isso,
mas é extremamente exaustivo para mim permanecer lá.
— Como podemos saber mais sobre isso, ou encontrá-lo... Há como
trazê-lo de volta?
— Há meios, mas estão além da nossa escolha, Tales. O que você
viu? O que aconteceu? Eu não consegui me manter no plano logo depois do
sangue entrar em contato com você.
— Não senti nada com muita lógica, vi um campo de batalhas, céu e
escuridão. Ele sabia que eu estava no plano etéreo e também que eu estava
morrendo. Procurou por semelhantes e sentiu irmãos, estavam distantes, mas
sentiu. E ele disse estar perto... — Tales tentou lembrar mais algumas coisas,
mas tudo parecia um sonho que se perdia ao tentar alcançar.
— Entendo. Espero que não tenhamos acordado algo para nos
complicar ainda mais, mas você está bem?
— Eu? — Tales parou para analisar. Apesar de não ter dormido no
dia anterior, ter tido apenas uma refeição assim que chegou em Khur, se
sentia bem. Na verdade, melhor do que poderia imaginar: não sentia nenhum
cansaço ou efeito colateral do envenenamento, estava sem fome e com
energia suficiente para correr uma maratona. — Estou excelente.
— Excelente? Deve ser um efeito colateral; eu não usaria o sangue,
mas não parecia haver alternativa. Não sabemos muito sobre os dragões, há
alguns vivos na terra, mas, até onde sabemos, todos vivem no magma do
planeta, estão lá há milênios. — O rei se aproximou de Tales — Mas agora
preciso saber o que aconteceu aqui. Não temos ideia de onde está Shkrenee,
espero que tenha alguma informação. Ele sumiu há três dias, nossos
batedores da superfície voltam de mãos vazias e nenhum dos nossos
informantes tem alguma notícia, nem mesmo os bardos conseguem algo...
Bro-Muir também está sumido, e Kur-Dour disse que ele lhe visitou antes de
desaparecer.
— Três dias?! Mas Bro-Muir me visitou hoje cedo!
— Na verdade não, estamos no terceiro alvorecer desde que chegou
aqui. Demoramos para encontrar e acordar a essência de Ael’evendi, quase
não acreditei que sobreviveria. Mas por favor, preciso insistir e pedir que seja
claro, o que aconteceu aqui?!
Tales contou ao rei o que lembrava da visita e não foi interrompido
em nenhum momento. Quando terminou de ouvir, o rei se levantou.
— Obrigado Tales, são notícias pesadas e tristes para nosso reino.
Acredito que Bro-Thum virá para receber a história pessoalmente, ele se
afeiçoou a você e não acho que vá lhe fazer algum mal. Mas sinceramente
não sei como ele vai encarar isso tudo — Bur-Daem começou a sair do
quarto, mas antes de fechar a porta virou-se para Tales, — Aproveite para
descansar. Mesmo que não precise, uma tempestade se aproxima, e espero
poder contar com você. Não conversamos muito, mas nós, anões, temos um
tato quase infalível para irmãos de armas, e algo me diz para confiar em você,
apesar de chegar em um momento de turbulência.
Tales achou que estava bem demais para dormir, mas, no final das
contas, assim que fechou os olhos e virou para o lado, adormeceu sem sonhos
ou pesadelos.
Poderia jurar que tinha acabado de fechar os olhos quando Bro-
Thum veio chamá-lo para o desjejum. Antes que ele começasse a falar, o
anão estendeu a mão aberta e lhe sorriu.
— Não se preocupe, Tales, já ouvi a história e não duvido de nada,
na verdade acho que nem me surpreendo. Desde que voltou das guerras, Muir
não é mais o mesmo. Eu percebia o quanto ele estava incomodado, mas não
achei que chegaria a esse ponto.
— Sinto muito, Bro-Thum.
— Não se sinta responsável, guri, eu acredito em você. Mas não vou
mentir, ele é meu irmão e estou tentando digerir isso tudo. Falando em
digestão, está convidado para almoçar em minha casa. Primeiro vamos ao
salão real tomar o desjejum e depois eu mostro um pouco mais da cidade.
Está bem o suficiente para andar?
— Estranhamente, eu me sinto bem o suficiente para descer a Serra
do Mar a pé.
Bro-Thum sorriu e abriu a porta para que saíssem. Seguiram o
corredor até o único elevador do andar, que já estava ali, e entraram para
subir ao Salão de Pedraluz. Conforme subiam, Tales perguntou ao anão sobre
os elevadores.
— São no total nove, sendo que um deles é dedicado ao rei, com
acesso a todos os andares. Os outros param em níveis diferentes para facilitar
o fluxo e solucionar emergências. Você pegou o elevador para a ala médica,
há ainda o do galpão de armas, da oficina, do refeitório, do dormitório e o da
superfície. Os outros dois elevadores são os principais e levam à cidade de
Khur.
— Mas isso não é a cidade de Khur?
— Na verdade não, você está na fortaleza e portão de entrada da
cidade, chamamos essa construção de Khur-dâr. Mais tarde poderemos
conhecer a cidade, agora vamos comer, por favor?
Saindo do elevador, entraram no corredor e chegaram para o
desjejum um pouco tarde. Bur-Daem e Ael’evendi não estavam presentes, o
príncipe Bur-Tuir fazia o papel de anfitrião e conversava com os presentes na
mesa, mas assim que viu Tales e Bro-Thum levantou-se para ir ao encontro
dos dois.
— Tales, devo me desculpar pelo nosso primeiro encontro. Estava
com alguns problemas e preocupações que pareciam só o prenúncio dessa
onda que chegou em nosso reino. Fico aliviado por ter sobrevivido e espero
que possamos conversar — o príncipe acenou e se virou para Bro-Thum. —
Amigo, confio em você, todos nós confiamos. A traição de seu irmão não
respingará em sua honra.
Bro-Thum esforçou-se para esconder o desgosto e assentiu às
palavras do príncipe. Este retribuiu com um aceno e se virou, voltando para a
mesa. Todos já estavam terminando de comer quando eles se sentaram; havia
ovos mexidos, pães e cereais.
Apesar de não ter nenhum mal-estar ou sensação de fome, Tales
descobriu que seu corpo sentia saudades de alimento, e fez questão de
demonstrar isso. Assim que terminaram, Tales e Bro-Thum se levantaram e
foram ao outro corredor de saída do salão.
— Podemos pegar o elevador, mas acho que gostará um pouco mais
da vista por esse caminho, tem certeza de que está bem para andar? —
perguntou o anão, apontando para o final do corredor.
— Garanto que sim.
O corredor terminava bruscamente numa parede de pedra no
tamanho exato do caminho, era lisa e sem nenhum detalhe aparente, exceto
por um círculo de um palmo de diâmetro com uma fechadura no centro. Bro-
Thum introduziu uma chave e, assim que girou, uma dezena de faixas
circulares concêntricas se destacou. Tinham uma polegada de largura, e o
anão moveu algumas delas com cuidado e precisão; assim que girou a mais
externa em quase 180 graus, a parede se abriu, revelando ser uma porta.
Era mais larga do que aparentava — três folhas de pedra com pelo
menos um palmo de espessura que deslizaram em direções independentes. À
frente se revelou um caminho que descia em linha reta por aproximadamente
cem metros numa escada. As paredes eram de pedras rústicas, antigas e lisas
pelo tempo. Havia globos de luz regulares no teto.
Depois de descerem os degraus em linha reta, o caminho começou a
virar para a esquerda numa curva suave. Tales percebeu que era uma espiral e
mais à frente notou que a parede externa da curva se abria num parapeito.
Desceu um pouco mais, observando o espaço entre a escada e o teto se abrir,
então se inclinou e olhou para baixo. Assustou-se com a magnitude do
espaço, o fundo estava a mais de cem metros de distância, de onde uma
cidade assomava. Estimou o diâmetro do espaço que via em quase três
quilômetros.
A cidade construída em volta da coluna era descendente, com as ruas
principais partindo do centro, assemelhando-se a raios de uma roda, com
ruazinhas interligando e conectando caminhos menores. Não havia fios ou
estruturas altas à vista de Tales, no máximo postes com luminárias que se
desligavam a intervalos regulares em todas as ruas. Os caminhos para
veículos e pedestres eram brancos e limpos, com as calçadas e paredes das
casas variando em tons ocres e pastéis. Mas o que fascinou Tales foram os
telhados, pintados com tons claros de cores diversas, de acordo com a área
onde estavam, lembrando uma paleta de aquarela.
As pessoas caminhavam atarefadas pelas calçadas ou entravam e
saíam de veículos robustos, similares a trens, que iam e vinham pelas ruas
maiores. Grandes e dourados, esses veículos se movimentavam numa
velocidade lenta o bastante para que entrassem e saíssem sem necessidade de
parada. Pôde identificar lojas, ferreiros, algumas praças pequenas com
crianças brincando.
Tales voltou a descer a escada para ver o outro lado e entender o teto
do espaço. Enquanto andava, estimou que a coluna tivesse pelo menos
cinquenta metros de diâmetro. Dando a volta, reparou na construção ligando
o piso ao teto da cidade; entendeu que eram os sistemas de elevadores e os
andares inferiores da Fortaleza de Khur-Dâr. Uma estrutura com uma base de
cem metros no comprimento e metade disso na largura, nos portais de
entrada, que possibilitava a vários anões circularem para dentro e fora do
edifício, que ficava relativamente afastado da coluna.
Olhando para cima, viu que o teto era pintado de negro esmaltado,
quase um espelho plano em praticamente toda a sua área. Havia pouco mais
de uma dezena de fontes luminosas posicionadas regularmente no teto, no
formato de calotas com cinco metros de diâmetro e emitindo uma forte luz
branca que iluminava a cidade e lançava múltiplas sombras nos edifícios.
Não sabia dizer que tipo de tecnologia era usada pelos anões, mas com
certeza eles tinham uma estrutura grande embaixo de Curitiba.
— Esse é o Salão das Estrelas, foi escavado há pouco mais de dois
séculos pelos nossos pais e avós. Nosso trabalho é achar meios de melhorar e
cuidar dele. Pode ver as fontes de água, toda a região é abundante em lençóis.
Ali fazemos o tratamento da água que utilizamos, e depois a limpamos e
devolvemos a outras áreas subterrâneas para nossa utilização — Bro-Thum
apontava orgulhoso enquanto mostrava as estruturas da cidade.
— Isso é incrível! Quantas famílias moram aqui? Não imaginava
que haveria tantos!
— Ah, não se engane, há casas sobrando, pois somos meio lentos
para nos multiplicarmos. Mas não por falta de tentar, se é que me entende —
Bro-Thum riu para Tales. — Há espaço para nossa população e para seu
crescimento regular para alguns séculos. Mas agora acho que devemos nos
apressar se quisermos chegar para ajudar com o almoço. O caminho é muito
longo e pouco utilizado, a poeira está se acumulando no piso. Desde que
colocaram esses elevadores ficamos preguiçosos, vamos?
Bro-Thum voltou a descer os degraus um pouco mais rápido, e logo
Tales o acompanhou.
Demoraram algum tempo para chegar, os dois dias em que Tales
ficara acamado estavam cobrando seu preço. Mesmo tendo sido alimentado
principalmente com líquidos preparados e nutrientes necessários para manter
a sua saúde, o veneno havia desgastado seu corpo. O procedimento que
recebeu naquela manhã foi suficiente para criar uma sensação de plenitude,
mas o efeito estava passando e a descida exigiu muito dele. O treinamento de
arco e exercícios diários que eram sua rotina com Aer’delo ajudaram-no a
chegar até os últimos degraus.
Tales não estava com muito sono ou exausto, só queria comer algo
decente e descansar algumas horas para estar novo. Se não houvesse o risco
de entrar em combustão e morrer, seria capaz de pedir ao rei para tomar
alguns goles do líquido. Ao chegar nas ruas, percebeu que o movimento de
pessoas era um pouco menor do que parecia lá do alto e o trânsito fluía
tranquilo.
Era uma cidade habitada por anões: crianças, homens, mulheres,
embora não em quantidade significativa. A iluminação do teto era suficiente e
dava uma sensação de dia ao ambiente, os postes nas ruas, com lâmpadas de
vidro opaco, estavam apagados. Deveria estar no meio da manhã, faltavam
algumas horas para o almoço e as ruas estavam quase sem movimento.
— Venha, guri, não devíamos ter andado isso tudo, vamos pegar
um Corredor até a minha casa, por aqui — o anão indicou uma das ruas e
caminhou com Tales ao seu lado.
Paralelepípedos regulares e esbranquiçados davam à rua um tom
provinciano. Dois trilhos metálicos discretos, com uma fenda de cinco
centímetros entre eles, corriam por todo o comprimento. Ao passarem por
algumas vendas de roupas, acessórios domésticos, um ferreiro, Tales
percebeu que se sentia confortável com a ausência de equipamentos
eletrônicos e tecnológicos das lojas da superfície.
Junto com três anões, aguardaram um dos veículos que Tales vira de
cima da coluna. Grandes como um vagão de trem, remetiam à ideia de um
bonde. Barras metálicas nas laterais a cada meio metro, com guarda-corpos
alternados entre as barras. Toda a estrutura metálica era de um tom dourado
claro, com marcas que indicavam ter pelo menos duas décadas; o teto,
fechado, com algumas lâmpadas opacas e compridas. Não havia operador e o
veículo era bissimétrico, com dianteiras que lembravam o design de uma
kombi na estrutura e no farol. Os bancos eram visíveis do lado de fora, em
sua maioria largos e baixos, projetados para anões, com dois pares um pouco
mais altos no fundo, todos protegidos por almofadas com um padrão preto e
laranja.
A fonte do movimento devia ser gerada no subterrâneo, pois nenhum
motor ou espaço para tal era visível, o piso do veículo era baixo e as rodas
metálicas corriam em trilhos discretos no chão. Uma fenda de dez
centímetros corria entre os trilhos por todo o comprimento da rua.
Abaixando-se um pouco, Tales percebeu braços que provavelmente ligavam
o Corredor a algum elemento motor dentro da fenda. Ele não se movimentava
tão rápido, chegava no máximo a quinze quilômetros por hora, para que os
passageiros não precisassem esperá-lo parar para subir ou descer.
Os anões estavam conversando entre si num volume baixo demais
para Tales ouvir; cumprimentaram Bro-Thum quando este acenou, mas Tales
percebeu os olhares para ele e se perguntou se as informações sobre Shkrenee
já haveriam chegado na cidade. O veículo se aproximou de onde estavam, no
extremo dos trilhos, e todos caminharam um pouco no mesmo sentido para
facilitar o embarque. Assim que entraram, Bro-Thum se dirigiu ao fundo,
próximo aos assentos mais altos, e indicou a Tales que devia se sentar junto a
ele.
O anão estava lutando para assimilar a traição de seu irmão. Assim
que se sentou, respirou ofegante e baixou a cabeça. Tales respeitou seu tempo
e tratou de observar um pouco da cidade. A rua estava vazia; conforme se
afastavam do centro a região se tornava mais residencial, com ruas menores
cruzando a principal regularmente. Avistou uma praça com algumas árvores
baixas, gramados e bancos, além de brinquedos tradicionais para as crianças.
Passando pela praça, Bro-Thum pareceu acordar de um devaneio e sorriu para
Tales.
— Parece que eu também estou precisando de um cochilo.
Descemos na próxima, cuidado para não cair.
Saltaram do Corredor e continuaram caminhando até o anão indicar
uma construção simples de um pavimento, cuja parede creme era acabada
com um relevo de linhas onduladas em toda sua superfície. A porta e as
janelas eram de madeira, cuidadosamente pintadas de verde escuro com os
detalhes metálicos em dourado. Como a maioria das outras construções, tinha
uma laje como teto e Tales imaginou de que cor seria. Podia ver a ponta da
chaminé e a fumaça branca que subia ao teto escuro com um cheiro
inconfundível de carne assada.
— Está com sorte, guri — Bro-Thum levantou o rosto e cheirou
enquanto abria a porta. — Parece que todos já sabem sobre o que aconteceu
com Muir. Ela só assa javali quando sabe que estou na pior.
— PAPAI! PAPAI! — Uma voz aguda veio correndo ao ouvir a porta
sendo aberta. — O que trouxe para mim, hoje papai? Mamãe disse que me
comportei. E quem é esse moço?
— Esse, minha filha, é Tales. Um encantado a quem estou
apresentando a cidade e os nossos costumes. Vamos ver se tenho algo
guardado para você depois do almoço — a filha de Bro-Thum estendeu os
braços ao seu pai ele a levantou como se não pesasse nada, depois a colocou
sobre os ombros e apontou com o polegar para ela. — Tales, essa é minha
filha, Bro-Nae. Provavelmente já falou mais nos seus sete anos de existência
do que qualquer elfo ancião em sua vida toda.
Os traços de Bro-Nae lembravam muito Bro-Thum, se
desconsiderasse as cicatrizes e a barba e adicionasse cabelos. Os cachos
ruivos eram cortados na altura dos ombros e se mexiam junto com ela quando
corria, os olhos castanhos iguais ao do pai ficavam observando Tales com
curiosidade, sobre os ombros de Bro-Thum ficava com os olhos na altura do
encantado. Tinha sardas no rosto e um sorriso falhado pela ausência de um
dente. Passos soaram do caminho por onde a filha viera.
— E isso porque os seus ouvidos não têm que aguentá-la falando o
dia todo — Kur-Tae era um pouco mais baixa que o marido, com um cabelo
castanho claro encaracolado caindo sobre as costas, olhos cor de mel e sardas
parecidas com as da filha. — Muito prazer Tales, sou Kur-Tae, esposa de
Bro-Thum e mãe de Bro-Nae, a linguaruda.
— Eu não sou linguaruda, eu sou linda! Não é, papai? — perguntou
a menina, enquanto descia do colo para o chão.
— Bem, filha, você também é linda... Tae, temos javali?
— Você merece, querido. — Ela deu um beijo em seu marido e
brincou, cutucando a barriga da filha. — Ainda vai demorar pelo menos duas
horas para tudo ficar pronto, por que não cochilam na sala? Garanto que a
mocinha vai querer me ajudar na cozinha.
— Acho que não vamos recusar, estamos mesmo precisando. Por
favor, Tales, entre.
Tales sorriu e acenou para Kur-Tae e seguiu o casal. Entraram na
casa simples pela sala, onde havia uma poltrona ao lado de um sofá baixo,
uma mesa de centro e uma prateleira com livros. Havia num ponto da sala
uma prateleira mais baixa, provavelmente de Bro-Nae, com uma boneca,
material de desenho e alguns aparelhos mecânicos simples com parafusos e
peças encaixadas. Alguns desenhos, letras e runas estavam desenhados ao
redor da prateleira.
Kur-Tae tirou a filha dos ombros de Bro-Thum e a colocou no chão,
inclinou-se um pouco para falar com ela.
— Agora eu vou cuidar da carne do seu pai e acho que ele vai querer
aquele pudim que te ensinei a fazer, o que acha de fazer uma surpresa para
ele? — Assim que disse isso, a pequena correu rindo por um portal que
provavelmente levava à cozinha — Acho que vai ser mais trabalho para mim,
mas garanto uma hora de descanso para vocês. Fique à vontade, Tales.
Quando estiver mais descansado, nós lhe mostraremos o resto da casa.
— Obrigado, normalmente não faria isso, mas... — Tales bocejou
enquanto falava — acho que se eu não aceitar vou cair no chão logo.
— Também acho. — Ela riu e fingiu falar um pouco mais baixo —
Aconselho ficar com a poltrona, de vez em quando eu mando o Thum dormir
no sofá e ele está bem desconfortável.
— Ora essa! Calúnia! Eu fico com o sofá, mas coloco a culpa no
estofado na necessidade de pular da tagarela! — Bro-Thum riu alto e logo
depois imitou a esposa, falando baixo e rindo. — E só não levo você pra
dormir no nosso quarto porque está mais bagunçado do que sua mente
poderia suportar.
O casal riu e trocaram beijos antes de Kur-Tae ir à cozinha e Bro-
Thum entrar no corredor e voltar logo depois com dois cobertores. Jogou um
para Tales, sugerindo que dormissem. O encantado mal se deitou e apagou.
Estava mais descansado e disposto ao ser acordado por Bro-Thum,
apesar de não ter sentido que se passara nem um instante. Assustou-se com o
cheiro de assado na casa.
— Não se preocupe, guri, eu acordei agora. E você tem sorte de Nae
não ter a intimidade para pular na sua barriga enquanto puxa sua barba. Se
quiser lavar as mãos e o rosto antes de comermos, o banheiro fica ali.
Tales agradeceu e se levantou para ir até a porta indicada. Espantou-
se ao ver seu rosto no espelho, parecia pelo menos cinco anos mais velho,
com marcas embaixo dos olhos, o cabelo sujo e emaranhado e as roupas
amassadas. Nada absurdo o bastante para passar vergonha, ainda mais
levando em conta os últimos dias, mas definitivamente pediria a Bro-Thum
para tomar um banho. Resolveu lavar logo o rosto e as mãos e riu ao sentir
sua barba um pouco mais espessa; saiu do banheiro em direção ao portal da
cozinha.
Assim que avistou a geladeira e o fogão antigos de ferro fundido,
Tales se sentiu quase em casa. No grande forno aberto havia uma forma
enfeitada; dentro, uma grande peça de carne com frutas, batatas e legumes em
volta. Ficou curioso com o seu funcionamento por não saber de onde
provinha a fonte de calor do forno, não viu gás nem havia espaço para lenha.
A filha do casal puxou-o pela mão sem dizer nada e indicou para que se
sentasse na cadeira ao lado dela; Bro-Thum o olhou como se dissesse, “Você
é quem sabe”. Tales aceitou e se sentou ao lado da menina.
Era uma mesa de quatro lugares. Tales ficou ligeiramente mais alto
que os outros, mas a diferença ficou menor do que acreditava; pelo jeito
havia cadeiras feitas para refeições e reuniões coletivas. O modelo dos anões
era um pouco mais alto do que a de humanos ou elfos, para reduzir a
diferença.
Os pratos e talheres eram prateados, lustrados ao extremo, com
martelos de ferreiro marcados. Canecas de vidro foram tiradas da geladeira e
enchidas com cerveja espumante de um barril metálico, Bro-Thum serviu três
canecas com cerveja e uma menor de metal com água para a pequena.
Quando todos estavam sentados, com os pratos prontos na mesa, Tales se
preparou para se servir. Bro-Nae segurou sua mão e fez o sinal de silêncio,
com o indicador nos lábios. Então fechou os olhos como os pais, tocou os
lábios com os dedos indicador e médio da mão direita, levou o mesmo sinal à
garganta, e depois tocou o peito com a palma espalmada. Baixaram então a
mão e começaram a comer.
Tales se sentiu em um banquete e aproveitou cada porção, o assado
se revelou absolutamente macio e suculento. Achou indelicado perguntar
como fora cozida a comida. Enquanto saboreava o prato, observou a filha
querendo saber do pai os detalhes do dia e como era a superfície; de vez em
quando repetia a pergunta para Tales, claramente perdendo sua timidez.
Assim que seu prato estava limpo, ela pediu licença para ir brincar e saiu
correndo.
— Achei que deveria esperar até comermos e descansarmos para
depois lhe entregar isso — Kur-Tae não parecia muito animada ao entregar
um cilindro metálico do tamanho de uma lanterna com o símbolo real na
extremidade. — Chegou antes de vocês.
— Bem, se já esperou até agora, acho que podemos aproveitar uma
sobremesa — Bro-Thum levantou a voz, olhando para a sala pelo portal da
cozinha. — O que será que temos de sobremesa para hoje?
Não demorou mais do que dois segundos para uma voz aguda vir
correndo da sala com uma chave de fenda na mão e um bloco de metal com
alguns parafusos, porcas e peças montadas.
— Eu que fiz a gelatina! Não foi mesmo, mamãe? — disse a menina,
enquanto jogava o brinquedo e a ferramenta no colo do pai. Depois correu
para a geladeira e trouxe uma travessa cheia de gelatina com marcas de
colher em cima. — Mamãe avisou, mas eu tinha que ver se estava dura o
bastante.
— E teve que conferir três vezes — Kur-Tae chegava com pequenas
vasilhas metálicas e começou a servir a todos.
Bro-Nae riu e começou a comer sua parte, e ficou feliz quando todos
a acompanharam e elogiaram o sabor. Assim que terminaram, a menina foi
continuar sua brincadeira e Bro-Thum tomou em suas mãos a mensagem
dentro do frasco.
— Pelo menos não estragaram o meu apetite — Bro-Thum abriu
com descaso o cilindro e desenrolou um pedaço de papel enquanto Kur-Tae
saía levando os pratos. — Estava demorando...
— O que é? — Tales não queria interferir nos assuntos do anão, mas
achava que tinha algo a ver com ele.
— Já vamos descobrir, guri, o rei nos convocou — ele amassou o
papel e o enfiou dentro do cilindro. — Não diz sobre o que é, mas eu
imagino.
— Imagina?
— Meu irmão é competente demais para os batedores do príncipe.
Parece que vou ter que ir atrás dele.
CAPÍTULO 8 - SEGREDOS
— Aer’delo! — Tales quase não acreditou que seu mentor estava ali,
na sala de reuniões. Não escondeu sua surpresa e correu para abraçá-lo. —
Pensei que estivesse morto!
— Morto? Posso ter me arriscado um pouco, mas não cheguei nem
ao menos perto de morrer. — Aer’delo sorriu para Tales e aceitou o abraço.
Era mais alto do que ele, de pele morena e com cabelo escuro rente. Não
aparentava ter mais do que quarenta anos, apesar de ter visto o início da Era
dos Homens. — E parece que você teve algumas complicações e sobressaltos
nos últimos dias. O rei me relatou os ocorridos dos últimos dias.
— Desculpe-me, Majestade, boa tarde. — Tales envergonhou-se ao
perceber as outras pessoas presentes na sala. O rei Bur-Daem, o príncipe Bur-
Tuir, Marcel, Dwa-Tabo e seu irmão Dwa-Tago, todos sorriam ao observá-lo
— Boa tarde a todos.
— Tales, Bro-Thum. Boa tarde. — O rei acenou com a cabeça e fez
sinal para que sentassem. — Não há motivos para desculpas. Nós estávamos
esperando vocês para decidir os próximos passos da Liga. Aer’delo chegou
há pouco e creio que tem algumas informações que ajudarão a nortear nosso
caminho.
— Quando descobri sobre o general e o objeto da troca, já era quase
o horário do ataque; eu estava muito distante e não tive como interferir.
Suspeitava que fosse sobre o Berserker, pois os mestiços estavam
alvoroçados na região. Sabia que Tales iria se virar, ou que no máximo vocês
o ajudariam — Aer’delo indicou Bro-Thum ao dizer isso e levou a mão ao
coração em agradecimento. — Não desci imediatamente para Khur, pois
precisava confirmar que o refúgio estava intocado; guardei o lugar e busquei
alguma brecha durante dois dias, sem encontrar nada. Depois do que ouvi
hoje, sei que deveria ter descido aqui muito antes.
— Que refúgio? Onde você estava, Aer’delo? E que Berserker? — O
rei estava confuso, não imaginava que qualquer pessoa poderia saber mais do
que ele sobre a região.
— Desculpe não ter lhe revelado antes, Majestade, mas era da
vontade de seu pai que ninguém além de mim soubesse disso. Bur-Draim foi
um dos anões que empunhou um Berserker na Grande Guerra dos Alvores, e
foi o único não-elfo a assumir para si a guarda de um deles. Aceitaram devido
ao seu valor como combatente e sua honra inabalável, mas exigiram que um
elfo o acompanhasse e soubesse de seu segredo. Eu fui o responsável por
acompanhar e prosseguir com o legado de seu pai após a sua morte. Mas o rei
tinha planos próprios, você conheceu a teimosia de seu pai, ele construiu uma
câmara subterrânea oculta na cidade e não revelou a ninguém a localização.
A única coisa que sei é que a região da entrada é o centro de Curitiba, o
coração da cidade dos homens. Foi escolhida por ele para garantir que o local
não fosse descoberto por novos túneis ou escavações da superfície.
— E onde fica esse refúgio? — Um pouco do bom humor de Bur-
Daem desapareceu, mas, mesmo incomodado por algo ocorrer em Khur sem
seu conhecimento, entendia e respeitava a vontade suprema de seu pai.
— Por incrível que pareça, a única entrada da superfície fica oculta
no Passeio Público. Não tenho nenhum conhecimento de outra entrada ou
caminho, por cima ou por baixo. Não creio que ele deixaria uma brecha para
que seus batedores encontrassem.
— Meu pai... Ele proibiu escavações e construções na área por
instabilidade do lago e redirecionamento do Rio Belém na superfície — Bur-
Daem sorriu enquanto lembrava de seu pai e da época. — Disse que havia
feito um reforço estrutural na área e selado o acesso, lacrando a área para
qualquer reforma e manutenção. Fez questão de repassar isso ao governo da
superfície, mas naquele momento eu nem cogitei a hipótese de ser algo além
da manutenção realmente. Estávamos nos recuperando da Guerra e ainda
celebrando o retorno de meu pai. Ele trabalhava como um louco, movido pela
força do sangue dracônico, e com certeza seria capaz de construir algo
enorme nesse meio-tempo.
— Não só pela força do sangue, mas também pelo desejo de ocultar
essa arma de destruição. Entretanto, pode ser que esse esforço esteja com os
dias contados. Os mestiços devem estar com algum tipo de equipamento de
busca, eu ousaria dizer que conseguiram colocar as mãos nos protótipos de
Air’elifar; eles seriam capazes de sintonizar o material para direcionar as
buscas. Mas, seja o que for, eles estão aqui e sabem que há algo na região. —
Olhou para Bro-Thum. — O fato de seu irmão estar com ele só piora as
coisas. Bro-Muir nunca aceitou bem o fato de nos escondermos depois de
termos vencido a guerra, para a salvação dos homens. Provavelmente boatos
de recrutamento dos mestiços ou algum bardo a serviço deles chegaram ao
seu irmão. E agora temos um anão, que conhece a região e o trabalho de
escavação, trabalhando junto com os mestiços para localizar um dos maiores
instrumentos de destruição já criados. Precisamos nos apressar.
— Empenhei todos os meus recursos para encontrá--los, mas, se eles
foram para os túneis de Khur, conseguirão escapar facilmente. — O rei
apertou as mãos, pensativo. — Eu não sabia sobre isso, ou já teria mandado
rastrearem os túneis atrás deles. A lógica era terem ido à superfície, saído do
nosso território, foi para lá que direcionei a minha atenção. Eles podem estar
escavando há dias! Ogur, há alguma máquina de escavação perdida?
— Nenhuma! — Bro-Ogur respondeu prontamente. — Verifiquei
todo o equipamento ontem, todos estão lá.
— Ele não precisaria de uma máquina real. Nós tínhamos uma. —
Bro-Thum falou pela primeira vez, parecia esgotado. — Nós a usávamos
principalmente para minerar. Gostávamos de usar o material extraído para
pequenos testes e projetos pessoais. A insistência de construir um foi de meu
irmão, que dizia: “Não vamos importunar o rei com coisas pequenas”. Como
pude ser tão estúpido? Tudo indica que havia anos ele estava esperando esse
momento. Usávamos a rede geotérmica aberta e tínhamos três motores a
diesel para os locais mais afastados. Não é uma máquina pequena, e ele sabe
operá-la como ninguém.
— Maldição! — O rei se levantou e levou a mão ao martelo de
guerra. — Precisamos agir agora! Se conseguirmos alcançá-los antes de
chegarem a esse tal refúgio, podemos resolver esse problema.
— É um pouco mais complexo que isso, Majestade. — Aer’delo
falava olhando para o rei. Sendo alto, sentado estava com o rosto na mesma
altura de Bur-Daem. — Eles sabem agora onde está a arma, precisamos
mudar o local de repouso do Berserker. Garanto que não houve nenhum
movimento grande deles e ainda não descobriram por onde entrar, eu saberia
se isso acontecesse. Mas não podemos esperar, é necessário descobrir um
modo de ocultá-lo. Vossa majestade conhece melhor o subterrâneo do que eu,
o que pode ser feito?
Todos na sala olhavam para o rei, que permaneceu pensativo durante
alguns instantes. Sustentou o olhar em Aer’delo e depois em seu filho por um
tempo, até que se dirigiu a todos os presentes na sala.
— Bro-Thum, Dwa-Tago, Dwa-Tabo e Bro-Ogur. Vocês virão
comigo, vamos buscar o general no subterrâneo! Bur-Tuir, você irá com
Aer’delo, Marcel e Tales à superfície para procurar a construção subterrânea
de meu pai e, se conseguirem achá-la, entrar nela. Espero que ela continue
intocada, mas, se bem conheço o velho, vocês terão trabalho. Temos três
horas até o pôr do sol, é o tempo de nos prepararmos. Vamos.
Seguiram para os elevadores, o rei chamou e falou em particular
com os que iriam com ele. Bro-Ogur, Dwa-Tago e Dwa-Tabo foram ao
arsenal para organizar o equipamento necessário e Bro-Thum desceu à cidade
buscando rastros e informações de seu irmão. Assim que foram, Bur-Daem
pediu licença a Aer’delo e chamou Tales.
— Eu já lhe disse que gostaria de mais tempo para conversarmos,
mas quanto mais precisamos dele, mais se faz escasso. — O rei retirou um
pacote de um compartimento sob o tampo da mesa. — Pedi para prepararem
algo para você; pode me agradecer depois e dizer se foi útil, caso
sobrevivamos a mais essa noite. Agora vá, Aer’delo não está com bons olhos
para mim.
Antes de seguir para o elevador exclusivo, o rei ainda chamou seu
filho e trocou algumas palavras com ele; quando se despediram, Bur-Daem
desceu ao arsenal. O príncipe então se dirigiu aos que restavam no salão.
— Se precisarem de algum tempo para se organizar, nos
encontraremos na saída principal em uma hora e meia. Marcel, gostaria do
parque livre para nós.
Marcel acenou confirmando e foi preparar a viagem enquanto o
príncipe se dirigia aos seus aposentos.
— Tales, vamos ao apartamento — Aer’delo disse, caminhando
apressado. — Preciso de algumas coisas que deixei lá.
Pararam em frente ao primeiro elevador, bem maior que os outros. O
elfo tirou uma chave de um dos bolsos do casaco e abriu a porta. Diferente
dos outros elevadores, esse era mais robusto e reforçado, sem adornos ou
indicadores. A porta de entrada não era apenas uma grade, mas parecia
blindada. Era feita de aço, maciça, espessa e com um visor de vidro.
Internamente, as paredes eram de um cinza opaco, em contraste com o tom
acobreado dos outros.
Tales se esforçava para não explodir em uma avalanche de perguntas
a seu mestre. O elevador subiu por alguns instantes e, logo que a luz de um
cômodo começou a entrar pelo visor da porta, reduziu a velocidade. Assim
que parou, a porta se abriu para uma sala, que parecia mais com uma
despensa de materiais. A lâmpada incandescente pendurada por um fio no
teto iluminava as prateleiras com jornais antigos, pedaços de lona preta e
teias de aranha. Assim que o encantado seguiu Aer’delo para fora do
elevador, a porta se fechou às suas costas e o elevador começou a descer.
Não havia estrutura sobre o equipamento, nem cordas, motores ou
engrenagens para levantá-lo, era como uma cabine telefônica descendo para a
terra. Apenas uma estrutura metálica destoava dessa caixa simples, uma peça
com mais de trinta centímetros de espessura e com encaixes e travas à mostra.
Assim que desceu completamente e desapareceu sob o solo, a peça se
encaixou no espaço aberto no piso e um estalo indicou o fechamento.
Com todos os acontecimentos dos últimos dias, mais a sequência
frenética de eventos e descobertas, Tales estranhou o silêncio do cômodo.
Além disso, sentiu o baque da realidade antiga, visto que nada indicava a
existência do elevador gradeado, do salão real ou mesmo de Khur sob aquele
cômodo.
Aer’delo abriu as três trancas da única porta metálica do cômodo;
assim que saíram da saleta, ela também se fechou, como o elevador. Estavam
em uma sala bem maior, retangular, e as lâmpadas penduradas no teto
estavam apagadas, mas, como a parede oposta à da porta era de vidro,
conseguiam enxergar o ambiente. Havia latas de tinta, jornais e entulhos
espalhados pela sala, Tales demorou um pouco a perceber onde estava, mas o
corredor atrás dos cartazes colados na parede de vidro era conhecido por ele.
Estavam dentro de uma das salas da galeria subterrânea da Rua José
Bonifácio, ao lado da Igreja Matriz na Praça Tiradentes.
Exasperado pelo silêncio de Aer’delo, Tales disse:
— Acho que mereço alguma palavra sua, mestre! — Ele parou
enquanto observava entre as tintas e cartazes o fluxo de pessoas passando na
galeria. Aer’delo parou a meio caminho da porta de saída.
— Tales, temos pouco mais de uma hora para voltar. Realmente
deseja parar aqui e agora? Se quiser confabular, que seja a caminho. Eu
adoraria algum conforto, mas um táxi em Curitiba a essa hora é impossível
— continuou avançando para a porta, destrancou-a com a mesma chave
usada anteriormente e virou-se para Tales. — Acredito que ainda tenho mais
algumas coisas a lhe ensinar antes do final do dia. Venha.
Saíram da galeria subindo rapidamente as escadas. Tales piscou com
o sol do fim da tarde e imediatamente se lembrou das palavras de Bro-Muir:
“Eles assistem ao pôr do sol e nós nos contentamos com um jogo de luzes”.
O encantado nunca tinha tido ideia da verdadeira história dessa cidade, e só
conseguiu imaginar quantas histórias ocultas deve haver no mundo,
distorcidas pelos homens. Tudo se curva ao tempo: a história, o aço, os
anões... Até mesmo os elfos. Ele se pegou observando Aer’delo correndo ao
seu lado, uma testemunha da decadência liderando uma tentativa de
sobrevivência racial contra um vórtice de tempo e realidade.
— Os túneis dos anões não transportam apenas veículos e pessoas,
Tales. Todas as palavras proferidas no subterrâneo chegam de algum modo
ao Rei Bur-Daem, cuide muito do que é dito sob a terra. Digo isso para
explicar meu silêncio — Aer’delo falava enquanto andava rápido, olhar fixo à
frente sem reduzir o ritmo. — Cuidado com os anões, eles são aliados
valiosos dos elfos e também são indispensáveis ao mundo, mas uma palavra
ou ação errada e você vai lidar com a parte menos agradável de um machado.
— Mas eles parecem ter você em alta conta, mestre — Tales o
acompanhava, próximo o bastante para não precisar falar muito alto. O
descanso e a refeição na casa de Bro-Thum se mostravam revigorantes.
— Sim, e eu os tenho no mesmo valor, mas nem por isso vou
colocar minha vida nas mãos deles. Precisamos descobrir como tirar o
Berserker de lá. Além disso, também é necessário recuperar a alma que está
com o rei, aquilo não pode cair em outras mãos. Na época os líderes élficos
erraram ao aceitar colocar o último Berserker aos cuidados de um mortal, e
agora cabe a mim resolver isso. Todos as outras armas estão guardadas por
um elfo, e eles abriram mão de sua existência para deixá-las esquecidas no
tempo, é assim que deve ser. Cabe a mim corrigir mais essa falha.
— Mas quer dizer que você irá ficar com a armadura? — Tales
começou a entender as implicações que isso acarretaria.
— Achei que havia lhe ensinado mais lógica, rapaz, demorou isso
tudo para deduzir isso? — Aer’delo se virou para Tales e sorriu. — Sei que
você irá se virar bem, eu lhe ensinei o bastante para trabalhar com seus pais.
Gostaria de ter mais alguns anos e ver você em sua plenitude, mas essa causa
é minha, devo resolver um problema de anos atrás.
— Achei que havia concordado com o rei e trabalhado com ele na
época...
— Ah... Sim, trabalhei com ele. Mas ele fez questão de ser o único a
saber da localização e segredos em torno do santuário. Nem em seu leito de
morte me revelou como chegar ao Berserker para eu poder assumir a guarda.
Por isso nós moramos ao lado do Parque, mas nunca tive sucesso nas buscas.
Estavam próximos ao parque. Assim que atravessaram a rua, o
Passeio Público assomou à frente. O parque fora criado no final do século
XIX, para resolver uma área de banhado. O Rio Belém passava por ali e foi
canalizado em um lago para o parque. Sempre foi um dos mais importantes
símbolos da capital, expondo fauna e flora, além de sediar eventos culturais.
Parecia visivelmente abandonado nos últimos anos, mas ainda tinha seu ar
curitibano.
Continuaram em direção ao apartamento. Tales observava o parque
do outro lado da rua, à esquerda. Os bancos e mesas de concreto estavam
todos sendo usados, principalmente por idosos jogando dominó, cartas ou
damas. Policiais tranquilos observavam de pé na varanda do posto da PM.
Algumas pessoas corriam pela via asfaltada com fones de ouvido e outras
com um cachorro acompanhando. Mais à frente, próximo ao final do parque,
casais deitados na grama lendo livros, mendigos encostados nas grades e
estruturas e crianças brincando. Parecia um mundo paralelo e alheio a tudo o
mais.
— Eu me admirava com isso, mas me acostumei — Aer’delo
percebeu o olhar de Tales. — Eles não sabem de nada, eles nunca sabem. Sob
seus pés está Khur, além da entrada para o recinto de uma poderosa máquina
de guerra, e eles nada sabem. Reclamam do descaso da prefeitura para com o
Parque, como se a culpa fosse apenas dela. Os mestiços sabem de alguma
coisa, devem ter algum tipo de faro... Não faço ideia, mas algo os atrai para
cá, são eles que estão espreitando pelas sombras das árvores e sob as pontes.
Isso acaba por atrair toda sorte de maus elementos, está cada vez pior, mesmo
os animais estão começando a ficar inquietos.
— Mas, mestiços aqui, ao nosso lado?
— Sim, alguns você pode ver, outros sabem se esconder. Pode ser
até que estejam aqui inconscientemente, atraídos pela tendência do local e
instinto coletivo. Mas não são burros a ponto de não perceber, e cedo ou tarde
teríamos que agir. Melhor hoje do que amanhã.
Aer’delo parou, entrou à direita no prédio residencial e subiu
correndo os três lances de escada. Tales se esforçava para não demonstrar
cansaço diante da atividade, rotineira em seu treinamento; Aer’delo não
estava com muita paciência.
— Tome — jogou um par de chaves para Tales. — São do seu
apartamento, imagino que não esteja com as suas.
— Não... Ficaram na casa de Bro-Thum, não achei que voltaríamos
tão cedo.
— Como eu lhe disse, cuide de suas coisas Tales, e não dê tanta
confiança aos anões. Precisamos nos cuidar, não gosto muito de dever
favores e nem era para terem levado você a Khur... Mas agora não temos
tempo de lamentar. — Aer’delo começou a destrancar seu apartamento. —
Vá e pegue o que precisa para se proteger, preciso de vinte minutos, nos
encontramos em seu apartamento para nos prepararmos. Creio que teremos
uma noite agitada.
CAPÍTULO 9 - VAPOR
— O aríete completo, majestade? Achei que iríamos perseguir um
mestiço e um anão pelo subterrâneo, não enfrentar um exército. Não é um
exagero?
O mestre de máquinas carregava meia dúzia de mangueiras
metálicas sobre o ombro esquerdo. Grossas como o polegar do anão, as
mangueiras eram bem maleáveis e tinham encaixes para conexão nas
extremidades. Dwa-Tabo e Dwa-Tago acompanhavam mais atrás, cada um
com outras quatro mangueiras. Todas vinham de orifícios independentes; à
esquerda da porta do elevador pelo menos uma centena de conexões similares
eram visíveis.
— Minha esperança é que seja, Ogur — o rei trançava os cabelos e
barba enquanto caminhava —, mas é possível que tudo se torne mais do que
uma busca por fugitivos. Não sei se eles estão sozinhos lá embaixo, ou se eles
irão... Encontrar algo mais. Tudo está vago e, por mais que isso me
incomode, não temos tempo para planejamento.
— Se eles encontrarem o que buscam, que a terra guie seus passos e
alimente sua força, meu rei. Pois vi essas máquinas em ação, e não é nada
agradável — Bro-Ogur levou a mão esquerda ao amuleto em seu pescoço e
esfregou o polegar nele; os entalhes estavam gastos no ponto de contato.
Os seis caminhavam junto à parede, luzes fracas no piso iluminavam
parcamente seus passos. Era possível distinguir várias portas de aço ao longo
do trajeto, todas distanciadas a cinco passos uma da outra. Havia em frente a
cada porta palavras e símbolos correspondentes entalhados no chão: Árvore,
Pólvora, Fumaça, Lâmina, Roda, Escudo, Água, Luz, Martelo, Lança, Vento,
Fogo. Depois das doze entradas, a iluminação do piso acabava indicando o
final da sala, e na parede oposta ao caminho dos anões, podia-se ver o vulto
de uma porta maior. Com a altura de pelo menos dois anões e larga o bastante
para três entrarem lado a lado, a porta tinha o símbolo dos Bur.
Pararam assim que se aproximaram das portas.
— E então, Tabo e Tago, já se decidiram? — o rei perguntou com
um sorriso no rosto. Mesmo com toda a tensão e medo, podia sentir o calor
da batalha se aproximando, e sabia que os irmãos sentiam o mesmo.
— Elas é que mandam, chefe — Dwa-Tago respondeu, enfiando a
mão em um pequeno saco de couro que estava em sua cintura. Retirou duas
peças retangulares de madeira, do tamanho de dominós. Jogou uma das peças
para o irmão e levantou a sua para ver o desenho. — Lança.
— Nós só conduzimos a dança — Dwa-Tabo disse enquanto pegava
a peça no ar. — Escudo.
Os irmãos caminharam até as inscrições correspondentes às peças
sorteadas. Cada um aproximou uma das mangueiras que carregava a uma
conexão logo à esquerda da marca no piso.
— Realmente é necessário trabalharmos nessa escuridão? — Dwa-
Tago reclamou enquanto encaixava o seu conector. — Ainda consigo
enxergar bem no escuro, mas um pouco mais de luz ajudaria nessa operação.
— Deixe de se queixar, se ficasse comendo e rindo menos no Salão
de Pedraluz, seus olhos não estariam reclamando — Bro-Ogur falou baixo e
riu de um dos gêmeos.
— Tago, não sabemos bem com o que vamos enfrentar mais à
frente. Quando escolhi quem iria comigo, só escolhi anões para podermos
trabalhar sem luz — o rei continuava caminhando para a porta maior junto
com Bro-Ogur. — E não se esqueçam das máscaras antes de acionar os
Mecanos, pelo menos até o vapor se estabilizar e verificarem vazamentos.
— Bah... Vazamentos — Bro-ogur resmungou alto o bastante para
ser ouvido pelo rei. — Garanto que não há, pelo menos enquanto eu estiver
responsável por eles.
— O deus do Azar adora garantias, Ogur. E as máscaras estão ali
para isso. Vocês têm meia hora, rapazes.
Cada um dos gêmeos pisou sobre a inscrição correspondente no piso
e imediatamente a mangueira foi tensionada. Um som de vapor soou sob os
seus pés enquanto o mecanismo de abertura da porta era acionado num ritmo
lento e constante. Assim que a fresta inferior se abriu, o ar entrou no
compartimento e luzes se acenderam dentro do espaço.
Quando lacrado, o ar rarefeito ajudava a garantir a preservação das
máquinas. Assim que a porta subiu completamente, os anões entraram nos
compartimentos. Eram salas pequenas, cerca de dois metros e meio de largura
e quatro metros de comprimento. Armários com portas de vidro eram
embutidos nas paredes e havia ainda uma mesa retrátil, com ferramentas para
montagem e manutenção, além de uma mangueira para testes.
Os irmãos piscaram para ajustar a visão à luminosidade forte do
espaço confinado. Ambos já haviam operado vários Mecanos, mas sempre se
surpreendiam com os equipamentos. Eram armaduras, armas e veículos
criados pelos anões depois de décadas de aperfeiçoamento e renovação. Ao
todo, foram desenvolvidas doze máquinas, cada qual com uma especialidade.
Dwo-Tago havia recebido a Lança e, assim que entrou, reconheceu
as quatro peças posicionadas nas paredes ao seu redor. À esquerda e direita
os membros inferiores eram como pernas de uma armadura, simples e
resistentes.
Internamente, havia válvulas e pistões pneumáticos nas articulações
de joelho e calcanhar. Todo o conjunto respondia ao mínimo de movimento,
ampliando e reforçando as ações naturais do corpo. As pernas tinham uma
proteção de chapas sobrepostas e articuladas, projetadas para dar o máximo
de agilidade e destreza. No ponto mais alto de cada uma das peças havia uma
esfera de articulação e entrada para a válvula de vapor.
Na parede ao fundo, um corselete de metal reforçado por um
chapeamento duplo. Nas paredes ficavam os canais internos para ligação e
passagem do vapor entre as peças independentes. A temperatura elevada era
um dos fatores que restringia o uso dos Mecanos por outras raças; alguns
clãs de anões, entretanto, não sentiam o menor desconforto em altas
temperaturas. Sem muitos detalhes e relevos, a armadura era prática e
condizia com o estilo anão. Nas laterais da cintura e na parte de trás dos
ombros ficavam os conectores de esfera com retentores de vapor e
condutores hidráulicos.
Pendurada acima do peitoral estava a parte que dava nome ao
Mecano: um braço robusto, com proteção similar à das pernas, que oferecia
mobilidade. O braço terminava em uma manopla fechada: a mão do operador
se encaixava um pouco antes da extremidade, numa peça similar à palma de
uma luva, onde os dedos se inseriam em três anéis ligados a eixos que
acionavam o sistema da lança.
A arma era formada por dois conjuntos de anéis retráteis
posicionados no antebraço, que podiam se expandir em décimos de segundo,
alcançando dois metros de comprimento para a frente ou para trás, de acordo
com os comandos do operador.
As peças das extremidades eram praticamente maciças e
terminavam num ângulo agudo. Poderia se abrir em seta, gancho ou, ainda,
ser lançada num tiro como última alternativa. Todo a estrutura do Mecano,
desde o corpo até a lança, era uma liga de tungstênio e cobre, o que dava um
tom entre o dourado e o prateado ao conjunto. Os parafusos, rebites e peças
de atrito eram revestidos com ferro meteórico.
Dwa-Tabo sorriu ao reconhecer a cor tão conhecida e bela dos
Mecanos. O Escudo se assemelhava muito à Lança, um Mecano de batalha.
Com a diferença de ser, em essência, usado para defesa. Era carinhosamente
chamado de Tanque entre os Clãs de Operadores.
As pernas tinham uma estrutura mais robusta, além de terem pistões
maiores e abas nas laterais externa. Tudo para aumentar a capacidade de
absorção de danos. O peitoral tinha mais dois encaixes inferiores para
sustentar o peso das pernas e do conjunto. O que o operador perdia em
agilidade era recompensado por proteção e absorção de impacto.
Havia duas peças para os membros superiores, posicionadas
simetricamente acima do peitoral. Eram protegidos e reforçados como as
pernas, com mais conexões reforçando o peitoral e as axilas. Um dos braços
terminava em uma manopla com o polegar e quatro dedos unidos e respondia
a comandos simples de abrir e fechar do operador. No outro braço não havia
movimento na mão, mas sim um escudo circular de um metro de diâmetro e
mais de uma polegada de espessura. Sob ele, um conjunto de lâminas que, ao
ser acionadas, ampliavam a área de proteção para quase dois metros na altura.
Assim que entraram no local, os anões retiraram uma máscara de gás
que estava pendurada ao lado da entrada. A máscara cobria completamente o
rosto, tinha um visor amplo e uma caixa para filtragem de ar.
Toda a ativação e movimentação dos Mecanos é feita por meio das
válvulas e pistões pneumáticos, devido à incompatibilidade dos Alvores com
tecnologia eletrônica. A energia usada é geotérmica, vapor proveniente da
própria terra. Havia tempo que se estudava um modo de utilizar as grandes
reservas de água subterrânea, profundas demais para servir como água
potável, tanto por ser tóxica devido aos minerais aos quais estava exposta
quanto por conta da pressão elevada, que fazia com que qualquer vazamento
se transformasse em vapor.
Esse vapor foi canalizado pelos anões há décadas, e um sistema de
injeção de água nos bolsões subterrâneos de água renova e fecha o ciclo,
transformando o sistema numa fonte virtualmente infinita e limpa de energia.
Infelizmente os minerais tóxicos da água não desaparecem ao vaporizar,
fazendo com que o vapor seja extremamente prejudicial se inalado. A
conhecida perícia dos anões reduz o risco de algo dar errado, mas, ainda
assim, o cuidado é extremo.
Posicionaram as pernas no chão, liberando a pressão da trava de
segurança e a parte de trás das peças se abriu para o Operador. Encaixaram
duas das mangueiras e imediatamente elas começaram a preencher o sistema
hidráulico.
Enquanto aguardavam o processo, vestiram o peitoral, liberando a
trava de modo similar ao das pernas e depois fechando-o em seu peito. Não
estavam juntos, mas, ao mesmo tempo, pegaram um charuto do bolso da
calça, riscaram um palito de fósforo na parede da sala e o acenderam
enquanto as pernas do Mecano eram acionadas. Deram uma tragada profunda
e continuaram a montagem, caminhando até o ponto onde as pernas estavam
tensas e abertas, como que os aguardando. Assim que se colocaram no lugar e
encaixaram as travas e as articulações, o peitoral começou a travar e
esquentar. O fluido circulando e testando a tubulação.
Os anões testaram o Mecano até esse ponto da montagem,
caminhando pela sala e esticando as pernas. A compensação de peso e
equilíbrio estava sincronizada e imediata. Apesar de estarem com mais que o
dobro do peso (ou o triplo, no caso de Tabo e Escudo) sem armaduras, o
esforço era similar ou menor do que o necessário para se movimentar
livremente.
Repetiram o processo com os membros superiores, encaixando os
dedos nos anéis de comando e movimentando-os para liberar e testar os
pistões de comando. A lança, pela quantidade de movimentos e versatilidade
independente do braço, exigia uma mangueira de alimentação exclusiva. Era
esse o motivo da limitação de um braço para o Mecano.
— Parece que eles já estão terminando, majestade. Em menos de
dois minutos, a vontade de combater está forte nos garotos — Bro-Ogur
largou as mangueiras no chão em frente à primeira de três portas maiores.
Eram similares às doze anteriores, mas com o dobro de largura e altura, e
feitas de uma pedra negra e opaca. Além disso, no piso as inscrições traziam
os quatro pingentes símbolos dos Bur. — Senhor? Está pronto para
começarmos?
Absorto em seus pensamentos, o rei observava a porta enquanto
soltava as travas de sua armadura. A barba, assim como o cabelo, já estava
em uma única trança, presa com anéis metálicos. Bur-Daem começou a soltar
as presilhas de sua armadura. As peças caiam no chão e ressoavam na galeria,
mais alto do que qualquer um poderia imaginar; o conjunto usado
diariamente por ele fora projetado para ter uma liga três vezes mais densa que
o aço.
A raça dos anões, desde a sua criação, é dividida em clãs. Cada um
desses clãs tem características passadas hereditariamente e que definem a
função e capacidades principais dos seus membros. O uso dos Mecanos não é
livre a todos os anões, apenas alguns clãs possuem a capacidade Resistência
para suportar as temperaturas extremas do uso. Esses clãs, entre eles os Dwa,
são os operadores.
Outros são mestres da construção e manipulação de materiais.
Conseguem entender o mecanismo de uma máquina apenas ouvindo-a
funcionar, ou especificar a liga de determinado metal simplesmente com o
tato. Desenvolvem a habilidade Manipulação, e os Bro se destacam entre
eles.
Há diversos outros clãs e habilidades, mas a que se destaca e que é
usada para designar a linhagem real é a Supremacia. Os Bur têm essa
capacidade. Os seus limites de força, resistência a alta temperatura,
vitalidade, são virtualmente ilimitados. Ao ser exposto a uma situação
extrema, o corpo do anão irá sofrer, queimar, cansar e dobrar. Mas a
adaptabilidade e recuperação é maior e mais rápida do que a de qualquer
outro Alvor ou humano conhecido.
Enquanto Bur-Daem jogava ao seu redor as peças da armadura, que
somavam um quarto de tonelada, Bro-Ogur observava as linhas brancas,
queimaduras antigas desenhando todo o corpo do rei e se misturando aos
elos de seu pulso. Quando tirou a última peça e ficou apenas com uma calça
de algodão cru, Bro-Ogur pegou uma das mangueiras e levou à lateral da
entrada, encaixando no sistema da porta.
Abrindo e fechando as mãos, o rei observava a porta de pedra à sua
frente, com o símbolo de sua família e a palavra “Aríete” entalhada.
— Majestade? Está pronto? — repetiu Bro-Ogur.
O rei abriu um sorriso para o seu mestre de máquinas.
— Pronto? Não totalmente... Mas é aí que está o tempero, não é
mesmo?
INTERLÚDIO - ANÔNIMO
Marcel nunca foi o primeiro da classe nas notas e normalmente era
um dos últimos a ser escolhido para os times. Na verdade, se você
perguntasse para qualquer um dos colegas dele, não se lembrariam muito do
garoto comum que sentava na terceira cadeira do lado esquerdo da sala.
Mesmo os que estudaram por mais de seis anos com ele não saberiam dizer
quem era Marcel Rodrigues, um garoto de altura mediana, cabelos curtos e
escuros.
Mas com certeza se lembrariam de quando a diretora decidiu que
“Run to the Hills” era muito melhor do que a tradicional campainha da
escola; do ano em que o Carlos “o Carrasco” Silva, professor sádico de
matemática, aceitou arredondar as notas até um ponto para cima; e o
inesquecível ano em que o uniforme de natação foi alterado para biquíni
(uma onda de protestos pelas mães das alunas impediu a efetivação da
alteração). Além de outros fatos, sem aparente relação entre si, que se
tornaram lenda numa escola pública de São José dos Pinhais.
Durante o segundo ano do Ensino Médio, procurando alguns
hobbies, Marcel descobriu que podia tocar violão, e tocar muito bem. Pegou
o instrumento do pai, que ficava juntando poeira na garagem, decorou as
posições dos acordes e daí em diante aprendeu sozinho. Juntou três meses do
pagamento do estágio na papelaria do colégio, comprou uma guitarra e um
amplificador. Reuniu outros três caras da sala, que demoraram a se
convencer de que Marcel não era um aluno novo, e formou uma banda. Por
não se sentir muito seguro, não assumiu o vocal. Provavelmente foi a
primeira banda da escola onde até o baterista chamava mais atenção do que
o guitarrista, e com certeza não era pela habilidade musical.
Marcel fazia a melodia e as letras, e a banda foi um sucesso; em
menos de dois meses, as músicas deles estavam nas rodas de amigos por toda
a escola. Tinham até alguns fãs que gravaram as músicas em fitas K7. Então,
durante as férias no final do segundo ano, os outros membros da banda
afirmaram incompatibilidade de estilos e o expulsaram do grupo. No dia
seguinte, descobriu que haviam sido chamados para uma audição em São
Paulo. Bastaram algumas ligações dele para a gravadora cancelar a viagem
sem muitos detalhes.
Marcel terminou o segundo grau e não foi à formatura, com medo
de que esquecessem seu nome na lista de entrega de diplomas. Decidira não
fazer parte de nenhum grupo. Seus pais eram adeptos da criação desapegada
e ele tinha liberdade para tocar guitarra em alguns bares à noite, contanto
que não fizesse muito barulho ao voltar para casa. Tocava blues e jazz
improvisando com bandas, e de vez em quando ensaiava na praça com estojo
do violão aberto à sua frente.
Tentou o vestibular para a Escola de Música e Belas Artes do
Paraná. Depois de muito estudar, passou raspando na teoria e com folga na
prova prática de violão. Desenvolveu um gosto pela música erudita e deixou
a guitarra de lado. Estudou durante anos no instituto, mas, quando acreditou
ter extraído o máximo que podia dos professores, largou os estudos e voltou
a estudar sozinho.
Não tinha problemas em arranjar mulheres, nunca tivera, bastavam
algumas palavras para convencê-las a ficar com ele, mas a magia parecia se
quebrar em alguns dias, como sempre acontecera. Até que, aos vinte e oito
anos, no final de 2010, bateram à porta de sua casa. Seus pais estavam
viajando, era perto da meia-noite, e Marcel correu para abrir a porta
achando que era uma emergência. Ao abrir, demorou alguns segundos para
redescobrir como se respirava.
Parada em frente à sua porta, estava a mulher mais bela que já vira,
ou pelo menos o que estava vendo o fazia pensar assim. Usava um moletom
de corrida cinza, com uma listra amarela nas laterais da calça e da blusa, e
calçava um tênis de corrida num branco impecável. O capuz escondia o
cabelo e deixava parte do rosto nas sombras, mas podia perceber o brilho
nos olhos verdes, com um formato quase oriental, um nariz pequeno e fino e
lábios vermelhos e parados num sorriso oblíquo.
A pele do rosto era perfeita, sem nenhuma falha ou ruga, mas não
sabia dizer a idade dela; podia estar em qualquer ponto entre dezoito e
quarenta. Os ossos do rosto eram fortes e bem definidos, marcando a sua
expressão de modo sensual e quase animal. Ainda estava absorvendo aquilo
tudo quando ela falou.
— Marcel, creio que deva fechar a boca e respirar. E depois disso,
convidar-me para entrar.
A voz dela o fez tremer. Grave e bem pontuada, com um sotaque
indistinto e uma ascendência no tom que indicava um pedido, uma súplica,
mas firme como uma ordem. Recusar aquilo seria impossível, inadmissível e
quase doloroso, era...
— Não. — A voz de Marcel não soou tão firme quanto ele gostaria,
mas o esforço para encontrar sua força de vontade soterrada em meio a uma
avalanche de sugestões foi exaustivo. — Quem é você, como sabe meu nome
e o que faz aqui?
— Ah, então é verdade, achei que não houvesse mais humanos com
nossa linhagem — a visitante riu, mostrando seus dentes perfeitos, com os
caninos um pouco exagerados, e o som de sua risada preencheu o coração
de Marcel; era aquilo que ele queria fazer para viver, fazê-la rir. —
Desculpe-me Marcel, fui um pouco rude. Não nos conhecemos, apesar de eu
saber um pouco sobre você, principalmente sobre seu dom. Estou aqui para
tirá-lo desse tédio, fazê-lo parar de gastar seu tempo. Mas para isso, eu
gostaria de sentar, nossa conversa será um pouco longa.
Marcel hesitou, mas a voz dela aos poucos parou de causar
confusão em sua vontade. Ele não viu muita vantagem em ficar de pé na
porta e deu um passo para trás, permitindo a entrada. A mulher passou pela
sua frente e o perfume o lembrou de algo indiano, provavelmente canela.
Indicou a poltrona da sala e se sentou no meio do sofá de três lugares.
— Obrigada — ela se sentou e colocou a mão no bolso da blusa,
retirando um envelope pequeno, que jogou para Marcel — Foi isso o que me
trouxe aqui.
Marcel abriu o envelope e retirou uma fita de dentro. Havia anos
que não via uma daquelas, mas a reconheceu. A garota que gravara
algumas músicas da banda antiga dele fazia questão de desenhar com
caneta esferográfica em todos os cantos da fita. Mas não achava que ainda
existisse algum desses cassetes, e tinha certeza de que não tinha um toca-
fitas em casa.
— Não se preocupe em reproduzi-la. Eu mesma não cheguei a ouvir
e com toda a certeza, se o fizesse, ouviria apenas estática. — Ela falava
numa melodia cadenciada, era extremamente simples de entender e aceitar
tudo o que dizia. — A questão é que uma das músicas que escreveu há anos
chamou a atenção do nosso grupo, e, desde então, nós o observamos. Você
tem um dom, algo que ainda não entendemos como é adquirido, ainda que eu
creia no humor duvidoso dos deuses.
— Humor dos deuses? E quem está me observando? — Marcel
estava confuso, mas totalmente disposto a prestar atenção naquele assunto
tão interessante.
— Nós, pode dizer que somos um Colégio. Eu já me formei e estou
trabalhando com a Liga dos Artesãos, mas meu empregador está precisando
dos meus serviços em outro lugar, e, como não temos tempo para enviá-lo a
um lugar próprio para ser formado, vai ter aulas comigo.
Isso, esse sorriso, adoraria ter aulas contigo, pode me ensinar.
— Aulas do quê? — as ideias de Marcel demoravam a engrenar,
como se estivessem mergulhadas em petróleo.
— Bem, pode-se dizer que são aulas de música — a palavra música
foi entoada com uma elevação leve de tom. E a frase foi pontuada com um
sorriso.
— Eu adoro música... — petróleo não, mel. Definitivamente mel.
Esforçando-se, Marcel retomou um pouco de controle e sanidade, ainda que
não conseguisse imaginar como expulsá-la de casa, queria pelo menos
entender um pouco mais. — Dona, vai com calma, não sei o que está
acontecendo aqui e nem comigo. Mas acho melhor começar do começo, essa
noite está bem surreal...
— Gostei de você, menino. Acho que é uma ideia boa, o começo —
Retirando o capuz da blusa, a visitante levantou o rosto e respirou fundo
antes de olhar para Marcel. Ela tinha as laterais da cabeça raspadas,
enquanto o restante do cabelo era repicado e jogado para trás. O cabelo era
loiro, num tom muito claro, e a ponta de uma tatuagem era visível no
pescoço esguio. — Primeiro vou falar um pouco sobre o nosso dom. Está
ouvindo?
— Aham...
— Tudo o que existe no mundo, seja nos planos físicos ou etéreos, é
feito de algum tipo de material. E as partes fundamentais que formam esses
materiais têm uma sensibilidade de ressoar com determinados comprimentos
de onda, sons. Falando em termos leigos, todas as coisas do universo reagem
a algum som, a alguma nota musical, seja ela qual for. E é com isso que
trabalhamos, estudamos mais do que a matéria, estudamos qual o
comprimento e tipo de onda que interfere na matéria.
— E isso serve para...?
— Tudo! Com o nível certo de som, podemos desintegrar qualquer
coisa, literalmente qualquer coisa. Mas isso é muito simples, o nosso objetivo
é maior e mais complexo. Nós estudamos os elementos que compõem os seres
humanos, hormônios, células, tecidos. E aprendemos a manipular esses
elementos com notas musicais. Você nunca se sentiu extasiado com um
cantor ou enfurecido em um solo de bateria? Às vezes isso é feito
inconscientemente por músicos, nosso trabalho é encontrar melodias que
manipulem os seres humanos do modo que desejarmos: alegria, fúria,
tristeza, dúvida, certeza, tudo isso em algumas notas em nossas mãos.
— Como vocês se chamam? — Marcel estava preocupado: estava
entendendo bem demais aquilo tudo, e estranhamente confortável com a
ideia. Mais que isso, excitado com a possibilidade.
— Como nós nos chamamos, Marcel. Você é um de nós. Somos
bardos.
— Moça, tá certo. Você consegue fazer melhor que isso, tem mais
alguma coisa? Porque não tem como ficar mais doido do que isso.
Ela riu, e Marcel não conseguiu evitar aquela sensação (Foi para
isso que eu nasci, para fazê-la rir).
— Sempre tem, isso é um fato. Abra a mente. Estou abrindo as
portas de um mundo novo para você, e é bom começar a rever seus
conceitos. Suas certezas são questionáveis, o inesperado sempre é certo e a
dúvida não é uma opção.
— Certo, estou ouvindo.
— O que você sabe sobre elfos, anões e orcs?
CAPÍTULO 10 - INFLUÊNCIAS
Marcel saiu do subterrâneo listando em sua mente o que devia
preparar dali a algumas horas. Isolar o parque e o trânsito da região seria a
prioridade, teriam problemas se o posto da polícia militar dentro do Passeio
Público estivesse ocupado. Além disso, precisaria retirar o público do local.
Assim que saiu da galeria pegou o seu celular e fez uma busca rápida
nos contatos. Um dos maiores trabalhos que tivera durante seu treinamento —
além das aulas de anatomia, química e esgrima — fora compilar toda a rede
de contatos e informantes da Liga e de sua tutora, Aye’lena. Havia cadernos
com endereços e alguns telefones anotados para membros da liga que não era
Alvores ou descendentes próximos. Demorou meses para compilar tudo
aquilo e teve de adquirir um celular novo que suportasse o tamanho e
complexidade da agenda.
Identificou Aline, uma analista da prefeitura, entre os contatos
antigos de Aye’lena. Menos de dois toques e ela atendeu, provavelmente
reconhecendo o número, visto que durante seu treinamento foi apresentado a
cada um dos influenciados por sua tutora. Fez algumas perguntas rápidas
sobre as suas necessidades e sobre quem poderia autorizar as suas demandas.
Não houve hesitação na resposta de Aline, sob a influência duradoura e forte
de Aye’lena. Marcel ansiava pelo dia em que seria tão eficiente.
Agradeceu pelas respostas e aproveitou para fazer alguns pedidos
simples a ela, instruções que foram aceitas sem hesitação. Marcel então
agradeceu e desligou. Colocou o celular no bolso e ajeitou o estojo com o
violão nas costas, retomando a caminhada para a Avenida Cândido de Abreu.
O trajeto até a prefeitura não era tão longo e poderia elaborar seu repertório.
A base devia ser rápida e sequencial, mas não poderia ficar só nisso ou o
efeito não seria profundo o bastante. As pessoas que influenciaria eram
políticos e estudiosos preocupados com problemas, ainda que ouvir música
derrubasse muitas barreiras.
Começaria com algo simples, definindo a influência, as notas que
ressoariam com os hormônios corretos e que a cada modificação de humor se
alterariam — na mesma proporção e ampliando o ciclo. Colocaria mais
arpejos e notas para deixar o processo suave e gradativo, distraindo e
envolvendo os ouvintes (e vítimas), numa evolução quase infinita e
indefinida, ao tecer uma melodia que os deixasse abertos a uma sugestão, tão
lógica e óbvia, que lhes pareceria ideia própria.
Escolheu os acordes e escalas, montou a afinação em sua mente e já
tinha decidido sobre o que ia tocar quando chegou no coração do Centro
Cívico. Caminhou até a frente do prédio da prefeitura e olhou para o relógio:
tinha pouco mais de duas horas de expediente. Sabia dos três alvos que teria
de influenciar — os bardos tinham uma memória vasta — e, apesar de não
saber muito sobre a estrutura, conhecia praticamente todos os membros do
alto escalão da política.
O prédio da prefeitura era moderno, como as demais edificações ao
redor. Um prédio retangular, com painéis brancos entre as janelas e mosaicos
imensos que formavam os faróis do saber. Tinha um jardim extenso com
palmeiras e uma calçada que dava acesso à entrada principal. Foi no começo
dessa calçada, próximo à rua, que Marcel parou.
Essa parte de seu planejamento consistia em esperar, então decidiu
experimentar parte da música que executaria dali a pouco. Deixou o estojo
aberto no chão, retirou o violão e começou a tocar, de pé. O violão era antigo,
do começo do século XX, o corpo era de tom vermelho vivo e o braço negro,
havia arabescos levemente entalhados por toda a superfície do instrumento,
as peças de metal brilhavam como prata nova. As cordas metálicas
ressoaram, quase de modo agradecido, assim que Marcel dedilhou as cordas
de sua querida Helena.
Não havia lugar melhor para um ensaio, e começou a executar a
peça, uma melodia de quatro notas, repetida por alguns segundos até que
Marcel adicionava uma nova nota ou um par delas complementando e
renovando a música. O andamento também se modificava, num mantra em
que o próprio Marcel gostava de se perder. Diferente de sua tutora, ele
encontrava o prazer e calma no caos, precisava deixar um pouco da obra
inacabada, para que o improviso a tornasse unicamente perfeita.
Percebeu-se mordendo os lábios e riu enquanto decidiu tocar os
últimos acordes, de olhos fechados; não sabia dizer se haviam se passado
trinta segundos ou trinta minutos. Seu foco estava unicamente na
manipulação dos elementos químicos que regem as ações e sensações,
trabalhando no sentido contrário do corpo, induzindo e convencendo o
cérebro e o corpo dos ouvintes.
Ainda em dúvida sobre como terminaria a interpretação, decidiu
sustentar a última nota até o silêncio. Assim que tudo se aquietou, abriu os
olhos e viu-se cercado de pessoas sorrindo, com um olhar bobo para ele. A
caixa do violão estava com várias notas e moedas. Alguns dos espectadores,
ainda parados no meio do caminho com a nota na mão, o observavam como
se esperassem alguma coisa. Sorriu com o objetivo alcançado e se inclinou
para a plateia, agradecendo. Aos poucos todos se dispersaram, jogando notas
e moedas na caixa do violão e saindo, ainda com um sorriso resplandecente.
Sentiu o celular vibrar no bolso enquanto terminava de guardar o
violão. Depois de ler a mensagem que chegara, dirigiu-se até a entrada do
Palácio do Iguaçu e informou ao segurança que tinha uma apresentação em
meia hora no café do palácio. Observou-o franzir as sobrancelhas e pegar o
rádio; Marcel ainda não tinha habilidade suficiente para colocar melodia em
sua fala sem causar estranheza. Conformou-se em torcer para que seu contato
já tivesse preparado tudo conforme combinaram.
Quando o segurança acenou a cabeça para ele, sorrindo e pedindo
que abrisse a caixa para vistoria de rotina, soube que os deuses estavam lhe
sorrindo. Depois da revista do material e de ter passado pelo detector de
metais, Marcel correu ao café, pois a apresentação não era uma mentira, mas
uma feliz coincidência. Havia um grupo vocal que se apresentaria ali para
alguns convidados; bastou substituir o grupo e encaminhar o convite a outros
membros da casa. Enquanto entrava no espaço, Marcel torcia para que os três
alvos estivessem reunidos dentro de alguns minutos.
A estrutura já estava montada, com cinco microfones posicionados e
um par de caixas de som amplificadas. Começou a retirar os equipamentos,
deixando espaço apenas para um banco onde se sentaria com o violão; logo
depois comeu alguma coisa no café e foi ao banheiro lavar o rosto e ajeitar
um pouco o cabelo. Assim que saiu do lavabo, os convidados começaram a
chegar. Logo que o primeiro deles entrou no espaço, Marcel amaldiçoou seu
descuido. O secretário torceu o nariz olhando-o de cima a baixo, Marcel não
estava maltrapilho, mas a camiseta branca, calça jeans azul clara e um par de
tênis contrastavam muito com o terno e gravata do outro.
O bardo pensou rápido numa forma de não deixar que isso
atrapalhasse seu plano. Não havia tempo de arranjar uma roupa, então
escolheu colocar mais um instrumento na equação, aumentando a
complexidade e efetividade das melodias. Ainda não conseguia manipular
bem seu poder vocal, mas acompanhar no violão e amplificar poderiam ser a
diferença hoje. Recuperaria um dos microfones do grupo e colocaria
novamente os amplificadores na sala. Assim que terminou de reestruturar o
espaço, teve tempo apenas de verificar a afinação do violão e percebeu a
grande quantidade de convidados ocupando quase todas os lugares. Estava
inseguro e totalmente diferente de quando tocara na rua alguns minutos antes.
Passou a mão nos cabelos e limpou a ponta dos dedos da mão direita no braço
esquerdo, uma mania que ajudava a acalmá-lo. Era uma de suas maiores
missões, e estava com medo, trabalhava sozinho como bardo havia poucos
meses.
O medo durou até soar a primeira nota; como se a sua melodia o
ajudasse — manipulando também seu próprio humor —, sentiu-se impelido a
fazer daquilo algo excepcional. Aguardou até alcançar a plenitude da
melodia, quando parou de cantar do lado de fora e a sequência de notas e
arpejos elevaram os níveis de serotonina e endorfina. Então adicionou sua
voz à mistura. Como não havia tido tempo de compor uma letra para a
melodia, improvisou a princípio com Bocca Chiusa, acompanhando o violão
com notas mais longas feitas com a boca fechada. Quando se sentiu mais
seguro, fechou os olhos e aumentou a velocidade, adicionando batidas além
de dedilhados e se perdendo na melodia, de um modo preciso e bom. Abriu a
boca para deixar sua música tomar forma; sempre que tocava desse modo
lembrava-se do motivo que o fizera aceitar a proposta e entrar nesse mundo.
Tinha nascido para tocar assim e, com essa consciência, sua música era o
mais perto de magia que podia imaginar.
Sua intenção era tocar três músicas, o combinado com o grupo vocal
que estava ali — no máximo dez minutos. Quando resolveu olhar o relógio
do café e percebeu que sua música era o único som do prédio havia quase
vinte minutos, a voz ameaçou falhar. Sabia que poderia continuar brincando e
caminhando desse modo o dobro desse tempo, e o rosto dos presentes
reforçava — e pedia encarecidamente — que fizesse isso. O prazo, no
entanto, estava acabando. Correu os olhos pela sala, percebeu que os três que
precisava influenciar estavam ali, com outros cinco secretários e o próprio
prefeito, todos sorrindo. Além disso, de pé, esticando o pescoço para espiar
da entrada do café, provavelmente metade dos funcionários da prefeitura
assistia à apresentação.
Ele parou de cantar e tocou um último acorde no auge da música,
cortando-o logo em seguida de modo seco. Intencionava deixá-la inacabada e
ressoando para o público. Levantou-se e agradeceu, recebeu aplausos e
sorrisos, além de olhares perdidos. Ficou com um pouco medo de ter se
empolgado demais nos sentimentos, mas não podia perder tempo com isso.
Agradeceu a todos e saiu rapidamente. Um dos principais pontos
para que a influência perdure o máximo possível é o anonimato. Por isso a
tendência de passar despercebido é inerente a cada um deles: a lembrança
junto com a última sensação é muito mais encantadora do que a realidade, e
quanto mais incerta a lembrança, melhor. Reforçar a fantasia criada pela
mente dos ouvintes faz parte da técnica dos bardos.
— Desculpem-me pela apresentação alongada, apenas desejei
compensar a alteração no programa de hoje e espero que tenha sido
satisfatório para todos. Infelizmente preciso correr para meu próximo
compromisso, uma boa tarde a todos e bom final de semana.
Guardou seu violão assim que terminou de falar e, apertando a mão
de alguns dos presentes, se esforçou para sair o mais rápido possível. Uma
vez fora do Palácio, deu a volta e entrou num espaço mais tranquilo, à
esquerda do prédio. Relembrou a sensação dos últimos momentos,
reproduzindo os acordes no próprio antebraço por 10 minutos enquanto
esperava. Ligou novamente para Aline.
— Olá, Marcel, consegui dar uma escapada e vi você tocar, foi tão
lindo. Quando vamos ter um tempo maior para conversar?
Um dos problemas do bardo ter informantes era que precisava se
tornar importante para eles, ser lembrado, o que podia se tornar uma
complicação na prática.
— Ah, sabe que meu trabalho ocupa todo meu tempo, mas prometo
conseguir uma folga para você se conseguir terminar o nosso combinado, o
que acha? — Marcel nem se preocupava mais em influenciá-la.
— Já está a caminho, meu bem, encaminhei os e-mails e fiz as
ligações assim que todos retornaram às salas. Acho fofo você querer cuidar
do parque além de ser um músico lindo! Vou mandar os detalhes via
mensagem para você, o pessoal já está me olhando torto aqui.
— Obrigado, Aline, eu te ligo no começo da semana para
marcarmos. Beijos.
Aline estalou um beijo no telefone antes de desligar. Depois de três
minutos chegou a mensagem dela em seu celular: o aviso emergencial estava
sendo emitido naquele instante para fechar toda a área a duzentos metros do
parque. Uma falha nas tubulações de contenção e direcionamento do lago,
que poderia comprometer toda a estrutura de esgoto da região, ameaçava
desmoronar ruas ou até prédios. Como suspeitou, não houve nenhuma
necessidade de verificar ou atestar o fato. Ditara o e-mail e as ordens para
Aline na primeira ligação e não tinha dúvidas do sucesso depois da
apresentação. Conseguiu até a ordem de um caminhão com caçamba para
detritos, que seria útil caso precisassem carregar o Berserker pela superfície.
Provavelmente, quando os envolvidos se dessem conta do absurdo
dessas informações, já teriam resolvido o problema. Marcel só torceu para
que nenhum outro pedido inusitado fosse feito a qualquer um dos seus
ouvintes nos próximos minutos.
CAPÍTULO 11 - PRESENTE
Tales sentiu um misto de estranhamento e alívio ao entrar em sua
casa devido à pressa e à quantidade de descobertas. Deixou o pacote que
recebera do rei sobre a cama e foi ao banheiro para um banho rápido.
Permitiu-se alguns minutos de relaxamento, aproveitando para assimilar tudo
que descobriu nos últimos dias. Preocupado com o tempo, se enxugou
rapidamente e correu para preparar as suas coisas.
Apesar de ainda não estar com fome depois do banquete na casa de
Bro-Thum, foi à geladeira e preparou um sanduiche para comer enquanto se
organizava.
Começou pelo pacote que Bur-Daem lhe dera. Na correria com
Aer’delo, decidiu deixar para depois, até para evitar irritá-lo. Era um
embrulho simples de papel pardo, com o tamanho de uma mochila pequena,
amarrado com barbante. Era pesado e macio ao toque.
Desamarrou os barbantes e abriu o embrulho, pegou a peça de tecido
nas mãos e se surpreendeu com o toque, pois conhecia o material. Ao
desdobrar, viu que era um macacão justo e feito sob medida, costurado com
linhas de kevlar. Tales conhecia o material devido aos seus estudos de
materiais com Aer’delo. A trama tinha algumas áreas com mais elastano para
as articulações e outras com a trama mais densa e acolchoada, procurando
proteger áreas vitais e músculos.
Além disso, na parte interna do antebraço havia um cordão próximo
ao pulso com uma argola discreta na extremidade. Quando puxada, o cordão
tensionava uma série de peças metálicas que se encaixavam e travavam
formando uma couraça na região que ia do cotovelo ao final da manga.
Enquanto esticada, pressionar um ponto próximo ao ombro liberava a tensão
entre as peças, retornando à área a textura de tecido.
Antes de vestir, Tales havia achado a peça muito pesada,
principalmente devido ao antebraço e às partes reforçadas da trama, visto que
kevlar era um material sintético de alta densidade por natureza. Mas, assim
que abriu o zíper na parte de trás do macacão e o vestiu, o peso se distribuiu
de modo uniforme e parecia que estava usando roupas leves, comuns. A
estrutura ajudava a distribuir o peso. Alongou-se, experimentando a
elasticidade e possibilidades do tecido. Fez uma nota mental para agradecer
ao rei pelo presente, caso se vissem novamente. Tales terminou de comer o
sanduiche e foi verificar o arco que havia escondido.
Encontrou a maleta ainda do fundo falso do baú, abriu e montou o
arco para flexionar a madeira e tensionar a corda, deixando-o armado sobre a
cama. Sob o compartimento de encaixe da arma, havia uma aljava de couro e
um acessório feito de tiras de couro que poderia ser vestido como um colete e
fora projetado para prender o arco nas costas. Grampos de pressão para
encaixe na peça permitiam fixar a arma aberta ou mesmo fechada, prendendo
o segmento central do arco.
Tales desmontou e dobrou o arco, encaixando-o depois nas costas
com o acessório. Olhou-se no espelho e percebeu que iria, no mínimo,
chamar a atenção. Colocou calças soltas de corrida, tênis confortáveis e um
moletom largo com capuz, que deixou solto para disfarçar um pouco do arco.
Assim que terminou de se arrumar, ouviu uma batida na porta e
virou-se enquanto Aer’delo entrava no apartamento. Estava vestido com um
sobretudo largo; sabendo que o clima não justificava isso, Tales imaginou
que não era o único com surpresas sob a roupa. Aer’delo ainda carregava um
case de violão, uma caixa no formato do instrumento, na mão direita. Algo
dizia ao encantado que não encontraria um violão ali dentro.
— Essa noite é uma daquelas decisivas, Tales — o elfo disse,
enquanto caminhava pelo apartamento para sentar na poltrona de leitura. —
Não consigo prever o que o amanhã nos reserva, mas garanto que será algo
novo e decisivo.
— O Berserker representa tanto assim? — Tales se sentou nos pés
da cama, perto de Aer’delo, para conversarem.
— Na verdade ele é um símbolo, ele é realmente uma arma de
destruição poderosa, mas não pode subjugar um exército. Poderia fazer a
diferença em uma batalha, ou na invasão a uma fortaleza. O que ele
representa é a derrota dos mestiços e a supremacia dos anões e elfos; é isso
que está em jogo — inspirou fundo e continuou: — Nós estamos
desaparecendo, Tales, mesmo os mestiços sabem disso. Todos os nossos
esforços agora são para a sobrevivência, não podemos mais apenas reagir, é
preciso tomar as rédeas da situação. Você viu seu avô?
— Sim, vi seu corpo e sua essência — Tales franziu a testa ao
lembrar.
— É uma escolha, claro. Mas, eu mesmo não entro no plano etéreo
há séculos, temo não conseguir voltar — Aer’delo observava as mãos abertas
no colo enquanto falava. — Tantos dos meus partiram, que estão fazendo
nosso lugar ser o outro lado. Talvez, se todos ainda estivessem aqui,
poderíamos lutar melhor pela nossa sobrevivência.
— Bur-Daem disse que não há meios para retornar.
— Bur-Daem não foi totalmente sincero. Os anões respeitam o livre
arbítrio e a honra acima de tudo, e por isso, para ele, não há meios de fazê-los
retornar aos seus corpos — Aer’delo levantou o rosto e olhou diretamente
para Tales. — Mas há um modo. Lembra-se do que ensinei sobre como
funciona a influência dos bardos?
— Sim, algo sobre teoria das cordas e ressonância.
— Existe um material, dizem que foi concebido por Felor, deus do
sono e regente do plano etéreo. Ele consegue vibrar numa sintonia que
alcança os elfos que adormeceram, e possibilita abrir as portas do corpo para
a reincorporação. Foi criado antes da Era dos Homens. Durante as guerras e
batalhas por território, os Sinos de Felor eram usados para convocar e chamar
elfos às armas, acionando a plenitude de seus sentidos — Aer’delo se
levantou enquanto falava, excitado pelas possibilidades que aquilo trazia. —
Pesquisei durante séculos sobre isso, todos os sinos haviam sido destruídos
ou perdidos. O material era extremamente raro e os registros, escassos e
vagos. Todos os rastros que descobri se perderam, menos um.
Aer’delo parou de falar de repente, estava agitado e sua respiração
denunciava a ansiedade. Tales entendeu e aguardou seu mestre retomar o
relato.
— Apenas um. Há duas décadas tive acesso a alguns registros sobre
a transferência dos túneis e salões de Khur. Havia um inventário de tesouros,
e, entre eles, um documento com runas élficas feitas por mãos milenares.
Pensei a princípio que fosse algo referente ao berserker, mas Bur-Draim não
deixaria algo assim exposto. — Aer’delo caminhava enquanto falava,
olhando para Tales a cada frase, como que verificando se o pupilo o
acompanhava. — Tudo ficou claro quando vi o selo do Colégio de Bardos de
Castela, datada de 1492. A última informação que eu tive era de que um dos
sinos estava guardado nesse colégio. Ao chegar lá, em 1600, não havia
nenhum registro do sino ou resquício de informações. Mas não foi difícil
ligar os pontos e a história.

Desde sempre os Alvores tiveram espiões nas altas camadas de


governo. Juan de la Cosa é um famoso encantado. Entre os reinos dos
homens suspeitava-se de que fosse um agente duplo de Portugal e Espanha,
quando na verdade trabalhava para o Colégio de Bardos de Castela, uma
das instituições mais prestigiadas, formando, desde o início do segundo
milênio, bardos e lutieres virtuosos. Juan servia ao Colégio transportando
tesouros, criaturas e, às vezes, passageiros Alvores pela costa da África e
Ásia durante as Navegações.
Era dono do navio Marigalante, famoso nos portos da Espanha.
Isso, aliado aos contatos e habilidades de navegação, proporcionou uma
oportunidade única de resolver um problema do Colégio.
Os sinos são considerados uma dádiva e uma maldição, pois
intervêm no livre-arbítrio dos elfos. Forçam um retorno ao corpo definitivo
e, ao ressoar com a ponte da essência e do corpo, destroem a possibilidade
de escapar, deixando-os permanentemente presos ao corpo. Entenda
também que o alcance de uma badalada é de uma centena de quilômetros.
Depois de algumas rebeliões e muito sangue Alvor derramado, a maior
parte dos sinos foi destruído. Um foi deixado para estudo, sob a
responsabilidade e tutela dos altos elfos do Colégio.
Mas o risco se tornou grande. Algumas investidas de mestiços, e
mesmo de ativistas élficos, forçaram o colégio a decidir pela ocultação da
peça. Colocaram-na no navio de Juan que, junto a outras duas caravelas,
empreendeu uma longa viagem. Ao chegar próximo à costa, no local de
destino, Juan simulou um naufrágio, transportou os mantimentos de seu
porão e os passageiros para uma das outras embarcações e voltou para a
Espanha.
Mas assim como o navio não naufragou, tampouco o porão foi
totalmente esvaziado. Era o maior dos três navios e o único que poderia
transportar um dos sinos. Juan foi acusado de forçar o naufrágio, e mesmo
livros de história relatam isso. Mas o navio tinha mecanismos para flutuar
novamente e, assim que o fez, uma tripulação que se escondera no continente
assumiu e navegou, margeando a praia até chegar a um ponto conhecido dos
Alvores.
Bur-Dair provavelmente estava na costa quando o navio aportou na
praia, e ajudou a carregar o sino para seu primeiro salão em Khur. Este já
foi fechado e lacrado durante as novas escavações no século XXI, e era isso
que alguns dos documentos encontrados por Aer›delo revelava: o antigo
salão real se tornara a sala de tesouro de Khur.
Aer’delo só foi entender uma coisa depois de remontar essa história.
Juan amava aquela embarcação e desejava que ela se tornasse eterna. Então
fez um trato: o navio foi totalmente desmontado e enviado de volta à
Espanha. Não poderia ser inteiro, ou colocaria todo o plano em risco.
Depois foi remontado e está à vista de todos os bardos e lutieres Castelares,
ancorado no meio do pátio murado do Colégio.

— Eu falei com o rei sobre isso, uma única vez. Mas ele negou
veementemente qualquer possibilidade, desconhecendo inclusive sobre
qualquer informação relativa aos sinos. Acredito nele, um segredo só pode
ser verdadeiramente mantido por uma pessoa, e algo poderoso assim não
estaria à mostra — Aer’delo tornara a se sentar. — Mas eu sei que está lá e,
mesmo com todas as intempéries que poderiam ocorrer, acredito que seja a
ferramenta mais poderosa para a glória élfica. Nosso tempo está se acabando,
precisamos ir. Seja forte e seguro com seu arco e sobreviverá, estarei ao seu
lado. Vai se surpreender com o que um velho como eu pode fazer.
Aer’delo ria enquanto se levantava. Esticou então as costas, tomou o
case de violão na mão e foi até a porta. Antes de abrir, Tales interrompeu.
— Mestre, só uma coisa que não entendi. Disse que poderia ler
sobre isso nos livros de história. História dos Alvores?
— Na verdade não, Tales. Marigalante era um dos nomes da
caravela. Era também conhecida como Santa Maria, e as outras duas
embarcações foram Pinta e Niña.
CAPÍTULO 12 - CHAVE
Bur-Tuir estava com medo. Ele se odiava por isso.
O lado B do LP já havia terminado. A agulha estava no sulco final,
batendo no limite da etiqueta e voltando para o mesmo sulco. O som
constante e rítmico o acalmava e ajudava a pensar no que estava por vir. O
príncipe usava o mesmo ritmo para martelar a adaga em sua bigorna, o aço
estava rubro e faíscas caiam aos seus pés.
Seu quarto era simples, com pouco mais de vinte metros quadrados,
e em uma das paredes havia um painel forrado de armas, peças e ferramentas
penduradas. Sob o painel uma bancada longa com motores abertos e peças de
Mecanos, além de diversos livros e folhas de projetos. Uma cama de casal
sem muitos luxos, um guarda roupa e dois stands de armadura.
Mergulhou a adaga no óleo, sentiu o cheiro de combustível
queimado, colocou o outro lado da arma na bigorna e voltou a martelar.
Desde sempre fora treinado, ensinado e direcionado para ser um
regente perfeito. Sempre fora um desafio viver à sombra do pai, que, na sua
idade, já regia Khur havia décadas. Compensava sua frustração trabalhando
todas as habilidades e ocupando os cargos que pudesse.
Aproximou o rosto do metal incandescente, percebeu o padrão do
aço, camada sobre camada, têmpera sobre têmpera.
Era o chefe da Guarda Real havia duas décadas. Embora tivesse
herdado a habilidade para operar Mecanos Reais, parecia não possuir os
instintos que fizeram seu pai ser o mais jovem operador dessas máquinas. Ele
se perdia nos comandos e não conseguia “tornar a máquina parte de si”, como
seu pai tentava lhe ensinar.
Jogou a peça no óleo. Não conseguiria uma boa arma naquele estado
de espírito.
Manejava armas brancas, de contusão ou de fogo com precisão, não
deixava a desejar na luta corpo a corpo e nem em estratégias de batalha.
Estudara história dos Alvores e tinha um orgulho fervoroso de sua raça e seus
ascendentes. Nunca aceitou muito bem a ideia da amizade entre elfos e anões,
gostava da independência que o subterrâneo oferecia.
Não tinha problemas com os humanos, que não se intrometiam nos
assuntos deles e ficavam nisso. Gostava de ouvir LPs em seu aparelho de
som analógico, não era nada pequeno, mas conseguia reproduzir seus discos
de heavy metal.
Mas não estava com cabeça para isso hoje, não depois de ouvir seu
pai falando sobre os riscos. Não depois de ouvir seu pai falando para ele estar
pronto. Para uma possível sucessão. Amava seu pai e, embora frustrado pela
sua própria limitação, admirava-o imensamente. Era inadmissível pensar em
substituí-lo, mas ali estava, fora uma ordem de seu rei e devia cumpri-la se
necessário.
Seu medo era pelo tom com o qual seu pai falara. Bur-Daem sempre
fora considerado por todos como um rei bom e carismático, que podia ser
visto almoçando na mesa do cidadão mais simples de Khur. Seu filho podia
reclamar de viver à sombra da grandiosidade de seu pai, mas nunca de não ter
sido amado ou recebido tempo suficiente.
Quando pensava em seu pai, lembrava-se da voz acalentadora e
presente. E dessa vez recordou o tom de voz do rei, que não foi nada rude,
pelo contrário, mas foi irredutível e claro em sua frase. E sem abertura para
réplica:
“Filho, vou precisar de você amanhã. Sei que temos nossas
diferenças, eu mesmo tinha com meu pai. Mas devemos trabalhar juntos
nessa hora. Não pense nisso como algo simples, é grande... Maior do que
pode imaginar. Tome essa chave, meu pai me entregou em um dos últimos
momentos de sanidade, ou quase isso. Enquanto me entregava, ele repetia:
‘Três chaves. Uma que é de todas, uma que é nossa, e uma que é de sangue.
Três chaves’. Eu não havia entendido, e ainda não entendo... mas pode ser
que precise disso. E esteja pronto para qualquer coisa que aconteça comigo.
Tenho orgulho de meu filho e herdeiro; será um grande rei.”
Bur-Tuir se recordava das palavras do pai, e ainda sentia a força do
abraço que se seguira, enquanto encarava a chave mestra. Ele mesmo já havia
feito algumas, era um dos primeiros desafios dados às crianças ao
aprenderem a brincar com ferramentas. Anões sempre foram conhecidos
pelas suas trancas e fechaduras, mas essa era diferente de tudo o que já
tivesse visto: do tamanho e formato de uma caixa de baralho, cabia na palma
de sua mão. Já vira seu pai, pensativo, segurando esse objeto, mas não
imaginava que fosse uma chave ou mesmo uma criação de seu avô.
Era feita de um metal avermelhado e, à primeira vista, não se viam
imperfeições ou marcas em toda a peça. Apenas quando se esforçou percebeu
um ponto minúsculo no centro da face maior. Ao pressionar o ponto com o
polegar direito, imediatamente sentiu uma fisgada. Suportou a dor enquanto
observava a caixa se alterar; na verdade, desejou que ela se alterasse. Uma
agulha se projetou de uma das faces menores da chave. Uma agulha fina
como um fio de cabelo e que se expandia conforme Bur-Tuir desejava; ao
ampliar sua vontade, a agulha se ramificou em quatro linhas que saíam
perpendiculares entre si e ao ramo original. Abriu os quatro ramos em mais
dezesseis e retirou o dedo. Uma gota de sangue ficara onde seu dedo estava
tocando e lentamente foi sugada pelo objeto; conforme o líquido desaparecia
dentro da chave, as ramificações recuavam. Em alguns segundos a chave
estava inerte, conforme a recebera de seu pai.
A chave era um experimento de Bur-Draim, misturando um pouco
da tecnologia desenvolvida para os Berserkers, mais operação de mecanismos
com a força de vontade. Manipulando ligações temporárias entre partículas
de pó de ferro meteórico, as possibilidades de formas eram muito altas. Não
serviria como uma arma, pois o sangue do outro interferiria nas ligações, mas
era absolutamente eficiente como chave mestra. Qualquer Alvor conseguiria
operá-la, mas os anões, como mestres de mecanismos, poderiam usá-la para
abrir qualquer tranca.
O príncipe deixou a chave sobre a cama e foi vestir sua armadura de
batalha; não ia subestimar os medos de seu pai. O equipamento fora feito sob
medida por Bro-Ogur, tinha cor de chumbo, uma armadura de batalha grossa
e pesada. Com marcas de golpes cortantes e perfurantes em diversos pontos,
demonstrava que era muito utilizada por Bur-Tuir. Era simples e sem entalhes
ou desenhos em sua superfície, além do símbolo dos Bur marcado no
peitoral.
Guardou as manoplas, botas e sua arma real em uma mala grande de
viagem. Fechou a mala e estava se preparando para sair quando escutou uma
batida na porta. Retirou a agulha do disco e colocou no descanso, desligou o
aparelho e abriu a porta. Sorriu ao ver sua mãe do outro lado; ela entrou e
ajustou algumas amarras e encaixes da armadura do filho.
— Lembro quando você se escondia dentro da armadura de seu pai,
certa vez ficamos horas procurando. Seu pai só o encontrou quando estava se
armando para avançar ainda mais longe, suspeitando de sequestros... Você
tinha cochilado enquanto esperava. — O semblante de Dwa-Ella passou de
saudoso para concentrado. — Sei que deixará seu pai orgulhoso, a ele e toda
Khur.
— Eu não... — Bur-Tuir levantou o rosto e encontrou o olhar da
mãe. — Obrigado, mãe.
A rainha trajava uma roupa de luta, calças justas e confortáveis e
uma blusa acolchoada. Usava a coroa simples, apenas um aro de metal com o
triângulo dourado dos Dwa em sua fronte. Havia uma espada curta em seu
cinto e não carregava nenhuma joia.
— A senhora minha mãe estava ocupada? — O príncipe imaginara
que sua mãe devia estar se preparando para ser diplomática na ausência de
dois membros da realeza e boa parte da corte, mas ela parecia ter outros
planos.
— Não se preocupe, estava treinando para desanuviar minha mente
dos problemas. Irei me preparar para cumprir minha função em breve. E
agora você deve ir. — Ela se despediu do filho com um beijo em sua testa
antes de sair do quarto.
O príncipe vestiu um sobretudo e fechou-o sobre sua armadura,
verificou as travas de sua mala grande de viagem, colocou a chave mestra de
seu avô no bolso e caminhou para liderar seu grupo.
Mesmo tendo seguido para a suíte real, a rainha não ia retirar a roupa
de treinamento, precisaria dela para realizar o pedido do rei. Amava o marido
exatamente pelo que ele era, antes mesmo de usar uma coroa, e sabia que ele
faria um sacrifício pelo bem maior. Mas, no que dependesse dela, o sacrifício
não seria necessário.
Se dependesse dela, haveria mais uma linha de frente contra os
mestiços. Já fazia mais de uma hora que seu marido havia descido para o
Arsenal, esperaria mais meia hora e desceria também. Enquanto fazia esses
cálculos, alisava os elos da corrente em seu pulso esquerdo. Se levantasse as
mangas da blusa acolchoada de treino, veria as linhas brancas de queimadura
pelo manuseio de Mecanos Reais.
INTERLÚDIO - ESPERANÇA
Shkrenee aguardava aquela oportunidade havia décadas: finalmente
o momento de conseguir alguma glória para sua raça. Ao lado da fonte do
cavalo, acendeu um charuto enquanto recordava tudo que o levara até esse
instante.
Como um mestiço, descendente de orcs, vinha de uma das mais
puras linhagens da raça. Assim que nasceu, foi separado de seus pais — esse
era o modo dos seus — e treinado para ser um guerreiro.
Aprendeu a história de seus ascendentes, desenvolveu seus sentidos
ao extremo do limite e treinou diversas artes marciais. Não tinha muita
capacidade de raciocínio nas ciências e em exatas, mas se destacava entre os
de sua classe em História dos Alvores e Táticas de Guerra.
O ódio aos elfos e anões era uma constante, repetida pelo
aprendizado e exemplo que encontrava nos livros de História, sempre
contada pelos vencedores. Desde que os homens colocaram os pés na terra,
foi para destrui-la e sugar seus recursos. Os seus antepassados, Orcs
guerreiros e territoriais, lutavam com selvageria e fúria extrema contra o
domínio dos homens, e isso lhes trouxe má fama.
Os anões e elfos nunca aprovaram os modos orcs, e os humanos
conseguiram alimentar essa rixa de algum modo. Os primeiros, com suas
tecnologias, e os elfos, com magias e encantamentos, logo conquistaram os
homens. Entretanto, o tempo provou a verdadeira natureza humana; mesmo
os outros Alvores foram marginalizados e tiveram de se recolher em suas
próprias organizações, mas a rixa com os orcs já estava enraizada em sua
cultura.
Os orcs tiveram de se esconder em cidades sem estrutura e em
lugares escusos; não tinham espaço nas florestas dos elfos, cavernas dos
anões ou cidades humanas. O orgulho da sua raça se misturou ao ódio da
exclusão e eles começaram a lutar pela supremacia, para sobreviver e ter
seu espaço. Mesmo com o ódio aos homens, abriram os braços para receber
os párias da sociedade humana, para quem os orcs representavam uma
possibilidade de sobrevivência. Dessa improvável união nasceram os
mestiços, filhos de homens e orcs, que sofriam com o preconceito das duas
raças. Eles tinham que se provar dignos da atenção e respeito dos orcs, e
eram expulsos do convívio dos homens pela sua aparência quase animalesca.
Durante séculos viveram assim, trabalhando para perpetuar a
linhagem e traços da raça guerreira enquanto sobreviviam em seus vilarejos
e bairros sem estrutura. Aprenderam também com os homens que precisavam
ser mais do que lutadores; precisavam estudar e desenvolver o intelecto. Os
mestiços tinham boa parte do raciocínio dos homens, e isso os destacou para
ensinar e fazer avançar a sociedade.
O estudo era voltado para o interesse nato da raça: táticas de
guerra, história geral, cutelaria. Com isso, desenvolveram uma hierarquia
mais organizada, produziram tecnologias próprias e passaram a entender a
política dos homens. Não há como precisar quando surgiu a organização,
mas dez dos principais mestiços, filhos de linhagens puras, criaram a
organização mais poderosa de sua raça, chamada Mão Negra. Os dez
generais tomaram para si a responsabilidade de retornar a glória de seus
antepassados.
Começaram a procurar, nas florestas e recantos intocados pelos
homens, remanescentes das bestas Alvores que tinham afinidade com os
orcs: wargs, trolls e outras criaturas que poderiam trabalhar com eles para
a vitória da raça. Além disso, não demoraram a descobrir que o instinto
destrutivo dos homens podia ser uma arma eficiente. Infiltraram-se na
política humana e implantaram alguns assassinatos, boatos e intrigas,
armando o palco para a chamada Primeira Guerra Mundial.
Esse feito deixaria em frangalhos a supremacia dos homens e
facilitaria o processo de tomada de poder pela Mão Negra. Mas os outros
Alvores não compartilhavam dessa linha de pensamento, e, em vez de
observar o declínio dos homens, decidiram atacar os orcs e mestiços. Quanto
aos elfos e anões, que já tinham uma estrutura e cultura própria
desenvolvidas, não tiveram que lutar para sobreviver e nem usaram a união
com os homens como uma oportunidade de crescimento.
Com o início da Primeira Guerra Mundial, começou também a
Grande Guerra dos Alvores, que destruiu a maior parte das raças antigas.
Os mestiços eram muito numerosos e contavam com infiltrados na
organização dos homens, que conseguiam armas, veículos e mantimentos
essenciais. Embora fosse inegável que a técnica e organização de batalha
dos anões e elfos superava em muito o furor dos Orcs e mestiços, os
recursos, o terreno e - principalmente — a quantidade de guerreiros em suas
fileiras fizeram a balança da vitória pender para a Mão Negra.
Mesmo em desvantagem, os elfos e anões começaram a aprender.
Colocaram seus próprios infiltrados na política, mais para anular os
esforços dos oponentes do que para manipular os homens. Apesar desse
esforço, a vitória parecia certa para os mestiços. Os anões eram supremos
em suas cavernas e subterrâneos; os elfos, em suas florestas, mas isso não
era o bastante para vencer uma guerra. Pouco a pouco foi diminuindo a
resistência ao exército numeroso e incansável dos mestiços.
A Guerra dos homens foi dividida em duas partes, principalmente
por intervenção na política por parte dos elfos e anões, e se aproximava do
auge quando surgiu um golpe inesperado. Shkrenee ainda não era nascido,
mas os mestres de Táticas de Guerra e História dos Alvores eram generais
da Mão na época, e viram de camarote seu castelo ruir.
Com a confiança inflada, a Mão Negra notou os exércitos dos anões
e elfos organizados, mais numerosos do que nas últimas duas décadas, e,
imaginando ser um último esforço, decidiu enviar todo seu poderio e se
tornar a última raça Alvor sobre a terra. Dizem que quatro dos Dedos se
mataram quando viram as frentes dos exércitos mestiços se abrindo, sendo
despedaçadas como papel por máquinas de guerra. Nenhum dos espiões
havia avisado sobre aquilo, e nada poderia desestabilizar mais um exército
do que tamanha surpresa.
Quase meio século sem ouvir a palavra ‘recuar’, os orcs
continuaram a batalhar os Berserkers - descobriram em pouco tempo o nome
das máquinas - do jeito que sabiam. O inesperado os fez retomar o furor de
batalha orc. No fim das contas não foram as máquinas que os derrotaram —
elas eram poderosas e incansáveis —, e sim o excesso de confiança e a
destruição da organização do exército, que os fizeram cair sob os machados
dos anões e as flechas dos elfos.
Os mestiços que ainda estavam infiltrados nos governos dos homens
foram assassinados ou desapareceram em uma semana. Algumas batalhas
ainda foram travadas, mas mais como uma tentativa desesperada de retardar
os inimigos a fim de possibilitar uma fuga dos líderes do que propriamente
pela esperança de vitória.
Os poucos que sobraram do exército se reuniram novamente,
chorando as perdas e amaldiçoando a derrota. O ódio pelos outros Alvores
superou o que tinham pela raça humana, e os Berserker se tornaram o
motivo de tudo. O que restou da Mão Negra desenvolveu uma necessidade de
afirmação: destruir tudo que as outras raças criassem, aproveitar cada
oportunidade para interferir nas ações de homens, anões e elfos.
Foi nessa época que começaram a fechar sua sociedade mais do que
nunca, incentivando o nascimento de mestiços das linhagens mais puras e
treinando-os de modo ainda mais rígido. Shkrenee nasceu em 1975, com a
sociedade mestiça se reestruturando e o militarismo mais forte do que nunca.
Aos vinte anos já treinava seu próprio batalhão, aos vinte e cinco foi
nomeado general das tropas e aos trinta assumiu como um dos Dedos da
Mão Negra. A Mão contava com seis membros, ninguém assumiria a
vergonha de ocupar o posto dos suicidas.
Quando receberam uma carta anônima com detalhes sobre o
funcionamento dos Berserkers, inclusive com a localização de um deles,
havia também um encontro marcado pelo remetente para dali a um mês.
Shkrenee não hesitou em tomar para si a responsabilidade; desejava
reacender o orgulho de seu povo, e essa possibilidade não devia ser
descartada. Pegou um navio para atravessar o mar até o sul do Brasil.
Um mês depois, teve que usar toda a resistência e controle para não
arrancar a cabeça do elfo que entrou no bar no dia e horário marcado.
Sentou-se à mesa calmamente e pediu uma garrafa de vinho em um
português fluente enquanto Shkrenee penava com um inglês sofrível pelos
últimos dias. Não simpatizou com o elfo, mesmo quando este lhe deu
instruções relativamente precisas da localização, inclusive de um possível
combustível para a máquina.
— Daqui a onze dias — explicou o elfo, num inglês articulado e
lento, para facilitar o entendimento ao seu interlocutor — posso lhe entregar
o combustível, contanto que me traga uma amostra intocada do sangue de
Ut.
— Rashkronik — blasfemou Shkrenee enquanto se levantava. As
poucas palavras da língua materna orc que ainda eram conhecidas se
resumiam a palavrões.
Ut fora um dos últimos orcs puro sangue. Falecera durante a
Grande Guerra com mais de cem anos. Uma de suas últimas ordens foi a de
guardarem amostras de seu sangue, antevendo que um dia a raça pura
pudesse voltar a caminhar sobre a terra. Era uma informação conhecida
apenas pelos Dedos; seria inconcebível revelar a informação da existência
de DNA orc, quanto mais ceder esse material.
— Acalme-se, general — o elfo sorriu e acenou para que sentasse.
— O fato de eu conhecer e mencionar Ut prova a minha boa vontade para
com a sua raça. Estou cansado desse jogo, quero mais do que me esconder e
observar meu mundo ser sugado.
Shkrenee sentou-se devagar e analisou a situação. Não daria uma
amostra do sangue intocado; se realmente o elfo estivesse a par de tudo,
também saberia disso, era impossível. Mas decidiu entrar na dança e ver
como as coisas correriam.
— Digamos que eu aceite. É só isso?
— Ah, não... Isso é só a passagem de entrada para o reino dos
anões. Não estou sozinho em minha insatisfação com a situação atual; farei
com que você seja capturado por dois anões, sendo que um deles o ajudará
a invadir o reino. De lá, espero que possam chegar à máquina que tanto
odeia e começar uma reação para mudar nossa balança de poderes. Mas
termine sua cerveja, tenho algum tempo ainda para lhe explicar os
detalhes.
— Absurdo... Simples assim? — Shkrenee estava confuso, parecia
algum tipo de truque ou emboscada, mas se fosse verdade, o golpe seria
mais profundo do que ele conseguia imaginar.
— Nunca é simples como planejamos, general. Mas creio que você
consegue lidar com imprevistos.
CAPÍTULO 13 - TOCA
Shkrenee amaldiçoava Tales mais uma vez enquanto trocava as
bandagens de seu pescoço. Já estava conseguindo falar e engolir com mais
facilidade, o que ainda não chegava nem perto do suficiente. Mas não havia
pus nem vermelhidão na ferida, o que era no mínimo um alento.
Aproveitou para adicionar o elfo e a si próprio na maldição. Aquele
maldito dissera que não haveria risco: um dos anões iria atirar nele para
deixá-lo ferido e em troca seria atacado por um dos wargs. Mas, em vez
disso, ele teve de contar com toda a agilidade e um punhado de sorte para
sobreviver ao arqueiro do alto da torre, além de ter errado o tiro. O anão
cumpriu sua parte do acordo, mas isso não eximia o elfo.
Pelo menos reforçaria sua antiga regra: não confiar.
— Algo para a dor? — O anão, que disse se chamar Bro-Muir,
estava jogando mais uma pílula garganta abaixo enquanto descansava do
trabalho.
— Guarde essa porcaria para você; a dor me mantém alerta. Não
posso renegar a minha melhor professora. — O mestiço terminou de fechar a
atadura e levantou olhando em volta. Estava começando a se sentir em casa.
— E a segunda amostra do sangue, está com você?
Bro-Muir tirou do bolso uma ampola de metal, mais simples do que
a original que estava em posse do rei. Fazia parte do plano deixar aquela em
poder deles; a segunda amostra estava dentro do corpo da mãe dos wargs, e o
anão tivera apenas alguns instantes para escondê-la no bolso da calça sem seu
irmão perceber.
— Tome — disse, enquanto atirava a ampola para o general. —
Espero que isso valha a pena, e que revire, de uma vez por todas, esse mundo.
Shkrenee pegou a peça no ar e a admirou por alguns segundos, antes
de guardá-la em segurança na bolsa de couro presa ao cinto. Lembrou-se dos
treinamentos da juventude; estavam sob a luz de duas lanternas a óleo em
uma toca rústica recém cavada pela máquina do anão. A toca surgiu quando a
bússola indicou o leste e o túnel seguia para o norte. Sabia que essa hora
chegaria, mas pensou que andariam um pouco mais para longe do trono.
Tivera de subornar alguns bardos para criar uma Bússola de
Sintonia, artefato geralmente produzido com materiais raros e escassos. Para
executar sua função era necessário ter, em sua constituição, parte do material
que se propunha a buscar; então, ao chegar a poucas centenas de metros do
elemento similar, podia indicar a direção e sentido dele. Para construi-la, teve
de ceder uma herança dos mestiços: um pedaço de Berserker, uma lasca de
poucos centímetros que só se soltou com muito custo e foi recolhida no meio
da batalha.
O sinal estava forte e claro à frente, e conectaram a máquina
escavadora a um dos dutos de vapor que havia nos túneis dos anões. Eles
nunca suspeitariam de traições dos próprios operadores. A máquina era
simples: uma gaiola com alavancas e um conjunto de brocas que giravam em
sincronia, abrindo um buraco de um metro e meio de diâmetro. Até agora
vinham cortando macio.
Bro-Muir pediu uma pausa para resfriar a máquina — cinco minutos
bastariam —, e aproveitaram para se organizar. O anão riu ao abrir o mapa
dos túneis e perceber que estavam se dirigindo ao Passeio Público. O maldito
mestiço estava com sorte: aquela área era protegida e não havia muitos
serviços passando por ali. Não queria a simpatia do General da Mão Negra,
mas pelo menos podia receber um pouco de respeito.
Ele estava ali por escolha própria, e não se arrependia disso. Sentia
pelo seu irmão, principalmente, mas ele haveria de entender. Quando os
homens tivessem caído e se rendido aos Alvores, quando o mundo fosse
dividido e redistribuído, Bro-Thum entenderia e se juntaria a ele. Mas até
então teria que ser um peão do jogo, um escavador.
Construíra a escavadora já pensando nessa necessidade, usando
peças sobressalentes das escavadoras reais. Ela provavelmente aguentaria até
o local da armadura, e lá veria como procederiam. O mestiço afirmou que
alguns dos seus estariam esperando na superfície. Indicou inclusive para que
escavasse num ângulo ascendente, estavam a quase 30° de elevação desde o
começo da escavação.
Era o ângulo para o qual apontava a bússola de Shkrenee, um
artefato curioso, alguns centímetros de metal flutuando dentro de uma esfera
de vidro com pontos cardeais desenhados e marcações de ângulo e distância.
Antes que, curioso, abrisse a boca para perguntar algo e recebesse uma
resposta torta, Bro-Muir levantou-se.
— Já é o bastante, podemos continuar — disse, enquanto prendia as
luminárias na sua escavadeira e ligava novamente o equipamento a vapor.
Tinha ainda o motor sobressalente, a diesel e com o tanque cheio, que
esperava não ter que usar, visto que a mangueira geotérmica tinha mais de
duzentos metros de comprimento.
A máquina avançava rapidamente — na velocidade de uma
caminhada —, as brocas abriam e compactavam a terra nas paredes e no solo,
forçando o passo conforme escavavam. Shkrenee caminhava alguns passos
atrás do anão, constantemente de olho na sua bússola e com a mão numa
espada curta que trazia na cintura, presente do anão para tentar compensar os
imprevistos.
Bro-Muir tinha certeza de que fazia o certo; a cada passo que
avançavam, estavam mais próximos de encontrar o Berserker de seu rei. Ele
mesmo sabia que o havia usado, mas não imaginava que o tinha trazido para
tão perto de seu reino. Os mestiços odiavam aquelas máquinas com toda a
sua alma, e com razão, visto que elas foram a causa principal de sua ruína.
Mas não foram a única causa. Com o silêncio sob a terra, ele se
lembrava da Grande Guerra, de quando aprendeu a regular os motores da
armadura de seu rei em meio a uma luta desenfreada. De quando ele mesmo
precisou pegar em armas e enfrentar mestiços que ousavam atacar seu rei.
Lembrou-se do orgulho de ser anão, do orgulho Alvor.
Já haviam avançado mais quase cem metros quando a escavadeira
travou.
Bro-Muir desligou-a rapidamente e saiu do veículo, para verificar o
que ocorrera. Era uma parede construída por anões, não havia dúvida, a solda
e a liga eram extremamente resistentes. Mas ele confiava em seu mecanismo,
tinha certeza de que a ponteira das brocas romperia a estrutura metálica.
— Anão, algum problema? — Shkrenee perguntou, aproximando-se.
— Por que paramos? Estamos próximos demais.
— Nenhum problema — Bro-Muir voltou para dentro da
escavadeira e acionou novamente a transmissão a vapor. — É melhor se
afastar um pouco, isso vai fazer algum estrago.
Ele baixou o ângulo de corte e a rotação, forçando o torque ao
máximo para perfurar a câmara criada pelo seu antigo rei. Lembrou-se de
quando era um garoto ainda e ajustava os medidores de pressão na armadura
de batalha de Bur-Draim. A admiração e orgulho de estar ali e lutar ao lado
de seu rei eram incomparáveis.
Conforme as brocas giravam e raspavam metal, e fagulhas caíam
sobre os bigodes e cabelos de Bro-Muir, ele se perdia nas lembranças da
guerra. O choque das armaduras, o som de espadas em armaduras e balas
ricocheteando, e no meio daquilo tudo os motores dos anões soando alto.
Sentia-se vitorioso e pleno, nascera para o campo de batalha, e não queria
mais viver no subterrâneo.
Não foram os Berserkers que venceram a guerra, foi o orgulho. Eles
apenas quebraram a linha de batalha, mas foram os anões que continuaram:
lâmina, diesel e vapor. Quando seu rei saiu de seu Berserker em uma das
últimas batalhas da Grande Guerra, estava amanhecendo. Lembrava-se do sol
lavando os campos e se refletindo no metal e no rosto de seus companheiros.
Era aquilo que ele desejava acima de tudo.
Engatou uma velocidade maior na escavadeira. A parede estava
começando a ceder, podia ver isso claramente. Não havia quem fizesse frente
a eles em batalha; Bro-Muir não ligava para a briga entre humanos, mestiços,
elfos ou anões... Apenas queria que todos percebessem aquilo: que foram eles
os vitoriosos, que fora graças a eles que o mundo não havia se despedaçado.
Não ouviu o general mestiço gritando ao seu ouvido enquanto corria
para trás; urrava uma antiga canção de batalha anã, sem letra, apenas sílabas
que lembravam o martelo moldando o metal. E as faíscas que saiam das
brocas da escavadeira brilhavam como estrelas — aumentou um pouco mais
a velocidade —, assemelhavam-se ao sol, como no dia da vitória.
E, num instante, o sol escureceu.
As brocas travaram todas ao mesmo tempo, abrindo uma fresta
mínima na parede, antes que o motor começasse a rugir como louco,
emperrado e sendo forçado ao máximo. Bro-Muir voltou do seu transe, mas
não tinha mais tempo de desligar a máquina, que continuava tentando girar e
escavar a liga suprema de um dos grandes reis anões. O anão saltou de seu
assento e correu para baixo, saindo do túnel. Podia ver a silhueta do general
mestiço avançando à frente, quase saindo da toca que cavaram. Olhou para
trás por mais um instante, a ponto de ver a escavadeira girando em torno de
seu eixo e puxando as mangueiras de vapor para sí. Quando percebeu o que
viria, mal teve tempo de virar o rosto e se jogar no chão.
E, um instante depois, o sol brilhou mais forte e quente do que
nunca.
A explosão fez tremer os alicerces dos túneis anões; o tanque cheio
de diesel, com a pressão do vapor e o espaço limitado da toca, fez Shkrenee
ser arremessado contra a parede na explosão, roupas e ataduras carbonizadas,
e os pelos do seu rosto queimados. O mestiço desmaiou com o choque.

Algum tempo depois, acordava com metal ressoando em seus


ouvidos. Não havia como saber quanto tempo se passara, mas o ar ainda
estava relativamente quente. Lançou-se para dentro do buraco escavado
rapidamente, a ponto de vislumbrar uma máquina de guerra imensa, quase do
tamanho do Berserker, vir correndo para o ponto onde estava, junto com
outros dois anões. Mas ele não conseguiria segui-lo ali, era grande demais.
Shkrenee avançou na velocidade que suas pernas permitiam. As
paredes estavam carbonizadas e, mais à frente, depois do que restara da
escavadeira, notou um rasgo no metal, grande o bastante para que passasse
para o outro lado. Ele percebeu que estava iluminado: uma luz azulada
passava pela fresta e iluminava seus passos.
Quase tropeçou no anão que o ajudara a chegar até ali. Desviou e
observou metade de seu rosto e suas costas carbonizados. Queimado quase
até os ossos pela explosão. Não se deu ao trabalho de verificar se ainda
respirava, não era essa sua prioridade. Nem precisava mais da bússola, que
havia quebrado na explosão: sabia que encontraria ali o Berserker.
Segurou a forma da ampola reserva no cinto enquanto se dirigia para
a fresta, atravessando-a. Mas antes olhou para trás e viu o Mecano Real
destruindo o túnel atrás dele, forçando sua passagem e a dos outros anões.
Metal em fúria abria espaço, mas o general sabia o que desejava, e
estava perto. Muito perto.
CAPÍTULO 14 - INICIATIVA
O sol estava quase se pondo. Na Rua de São Francisco — famosa
pelos seus pubs, restaurantes e vida noturna — os garçons posicionavam
mesas e cadeiras em frente aos estabelecimentos. A rua mantinha o visual
antigo da cidade, com pavimento de pedras e fachadas seculares. Ela era
proibida para carros, servindo de caminho para pedestres que queriam visitar
as construções turísticas, comércios tradicionais e bares do local. Em dias de
muito movimento, a fronteira entre os clientes dos diferentes bares era
indistinta e passear pelo local era quase impossível.
Mas estavam no início da semana e, apesar do calor de início da
primavera, o movimento seria tímido.
Aer’delo e Tales subiam a rua, voltando para a galeria. O elfo
carregava uma maleta grande que parecia o case de uma guitarra e o
encantado, um saco simples de tecido. Assim que passaram pelos
funcionários organizando o espaço, chegaram ao Largo da Ordem. A entrada
da galeria ficava à esquerda, mas viram o bardo mais à frente sentado em um
banco, afinando o violão, e decidiram esperar ali. Sentaram-se no banco ao
lado de Marcel e aproveitaram o entardecer enquanto escutavam as notas
esparsas do violão.
A praça era circular, feita com o mesmo pavimento da rua, e tinha
três vias de acesso: ao sul, pela galeria; ao leste, vindo do passeio público, e
ao oeste, das ruínas de São Francisco. No centro da praça havia um
monumento pequeno: um bebedouro antigo feito de pedras escuras, usado
principalmente por pombas ou para a folia de crianças nos dias quentes.
Enquanto observavam algumas famílias caminhando pela praça,
ouviram Bur-Tuir antes mesmo de vê-lo. O príncipe subia as escadas,
arrastando uma mala de viagem quase tão alta quanto ele. Assim que chegou
no piso da praça avistou o grupo, ergueu a alça retrátil da mala e a inclinou
para usar as rodas.
— Tudo certo? — perguntou, deixando a mala de pé e olhando para
Marcel. Este acenou em resposta. — Bem. Tenho uma ideia geral de onde
está a entrada, mas, sinceramente, sem a mínima noção do que encontraremos
lá. Peço para que estejam atentos e armados. Meu avô era meio... louco.
— E astuto, alteza, insanamente astuto — Aer’delo disse, sorrindo.
— Haverá armadilhas lá, com certeza. E provavelmente alguns desafios além
da entrada. Estou armado e pronto para lutar, se necessário. Apesar de
acreditar que não encontraremos muito aqui por cima, vejo mais
possibilidades de seu pai encontrar uma entrada para a câmara.
— Bem, se continuarmos conversando aqui não conseguiremos
nada, vamos.
O príncipe inclinou a sua mala e começou a caminhada para a saída
leste, sendo seguido pelos três companheiros.

Chegaram ao final da Rua São Francisco e avistaram algumas


barreiras fechando o trânsito da região. A Barão do Cerro Azul estava repleta
de carros andando vagarosamente. Os desvios com certeza seriam
insuficientes para o fluxo imenso do horário, mas isso não importava a eles:
tinham problemas maiores a resolver mais à frente. Atravessaram a avenida e
seguiram pela via abarrotada de carros que logo começariam a buzinar,
desviaram a barreira e entraram na Presidente Carlos Cavalcante, uma rua
menor que dava acesso próximo à entrada principal do parque.
Enquanto caminhavam pela rua, um fiscal da prefeitura que vinha
no sentido oposto foi ao encontro deles. Marcel adiantou o passo e tirou
um papel do bolso para apresentar ao fiscal. Tales não conseguiu ouvir o
que diziam, só percebeu o olhar de dúvida do homem e a insegurança nas
respostas ao bardo. Pouco depois, ele cedeu e continuou caminhando;
cruzou com os três e seguiu para a avenida.

— Deu menos trabalho do que imaginei, ele já está doido para ir


para casa e não resistiu muito ao incentivo. Daqui a diante estamos sozinhos,
há fiscais posicionados em todas as ruas de acesso, as quadras ao redor do
parque estão vazias. Temos mais algumas horas até a troca de turno e ronda
no local. — O grupo continuou caminhando até chegar na esquina e avistar a
entrada do Passeio Público. Marcel disse em voz baixa: — Nunca entendi o
porquê de ser um cemitério de animais.
— O que disse, Marcel? — Bur-Tuir perguntou enquanto parava e
começava a abrir a mala.
— Nada. Acho que aqui é um lugar como qualquer outro para nos
prepararmos.
Estavam sob a marquise de um brechó, a entrada era um pouco
recuada e dava certa proteção e privacidade ao grupo. Aproveitaram e se
organizaram para a missão que viria a seguir.
Aer’delo retirou o sobretudo e o moletom largo que usava, revelando
uma armadura prateada e leve. Era justa no corpo e tinha entalhes brancos em
sua superfície. Prestando mais atenção, Tales notou que os entalhes
formavam a imagem de uma árvore. Os galhos e folhas corriam pelo peitoral
e se alongavam pelos braços, o tronco era evidente na cintura e nas coxas da
armadura e nas caneleiras se iniciava a raiz da árvore.
Abrindo o case de violão, retirou as luvas e botas da armadura. Eram
articuladas e vestiam com perfeição o elfo, que se alongou para ajustar todas
as peças. Retirou então um longo embrulho em tecido antigo, ao abri-lo
revelou um par de espadas em bainhas.
Eram espadas médias, para uma mão; as bainhas eram negras com
bordados em linhas brancas em motivos que lembravam chamas; o punho era
num tom claro prateado muito similar ao da armadura. A guarda levemente
curvada para dentro, protegendo as mãos do guerreiro, com pedras preciosas
transparentes enfeitando todo o conjunto.
O elfo retirou as armas das bainhas e observou as lâminas brancas e
opacas. Sorrindo, guardou-as novamente e as prendeu num cinto que fechou
em sua cintura. A última peça que estava guardada era o elmo, que cobria o
rosto, deixando uma faixa em formato de T. As laterais eram como folhas de
árvores sobrepostas, que subiam pela peça e gradativamente se convertiam
em chamas. Na testa ficava uma esmeralda, única peça cuja cor destoava de
todo o conjunto.
O príncipe tirou o sobretudo e exibiu sua armadura de batalha, que
contrastava com o brilho e elegância da de Aer’delo. Abriu a maleta para
vestir as manoplas e botas e retirou as peças de sua arma tradicional: um
machado de guerra.
A arma estava desmontada, o cabo era dividido em três partes que
emitiam um som de pressão e trava ao se encaixarem. Tinha apenas uma
lâmina larga e em leque, com sulcos e entalhes para otimizar o corte e evitar
que ficasse presa. Uma peça com o formato de um martelo no lado oposto da
lâmina servia como contrapeso e arma de contusão. Bur-Tuir terminou de
montar a peça e jogou o machado sobre o ombro.
Tales estava pronto. Retirou a roupa que ocultava o traje recebido de
Bur-Daem e alongou os membros para se preparar. Percebeu o olhar de
Aer’delo para o presente real, mas não era hora para resolver problemas.
Retirou o arco das costas e o armou, abriu o saco de pano e retirou a aljava,
que ajustou nas costas. Guardou as roupas que tirara e colocou junto das
malas dos outros.
Marcel retirou a mochila que estava nas costas, uma mochila jeans
simples praticamente oculta sob buttons de bandas, animes e sentais. Tirou de
dentro da mochila uma besta toda feita de metal e com detalhes élficos no
punho, além de uma peça retangular pouco mais fina que uma caixa de
sapatos. Encaixou a peça na besta e abriu uma portinhola na parte superior,
para verificar se o sistema de recarga automática estava livre. Travou uma
das cordas, armando a besta, e encaixou a outra em um gancho à frente da
arma que, ao ser acionado durante o tiro, deixava o próximo virote pronto
para ser atirado.
Prendeu então a besta num gancho à esquerda do cinto, apoiou o
violão no ombro esquerdo e começou a recitar mentalmente os acordes e
arpejos correspondentes aos sete círculos de emoções. Os quatro
companheiros se alinharam, preparando-se para entrar no Passeio Público.
Caminharam até o tapume, próximo ao portal de entrada, onde uma
corrente com dois cadeados prendia uma placa ao conjunto. Bur-Tuir quebrou
a corrente com seu machado, jogando a placa no chão para entrar no parque.
O pórtico de entrada era antigo, tendo sido construído no começo do
século XX seguindo as linhas do portão do Cemitério dos Cães de Asnières,
de Paris. Os quatro passaram sob o portal e entraram na cobertura de árvores
a tempo de observar os últimos raios do pôr do sol nas folhas acima de suas
cabeças.
Havia árvores altas e antigas em todo o parque, diversas ruas
pavimentadas que se cruzavam e serviam para passeio dos visitantes.
Vários lagos eram interligados, sob pontes, subterrâneos ou mesmo por
pequenas cascatas canalizadas.
Não viam ninguém no espaço próximo às jaulas dos animais e nem
no restaurante, apesar de todo iluminado pelos postes recentemente
reformados, com suas luzes amareladas.
— Marcel, preciso que busque este metal — o príncipe disse,
entregando a chave mestra. — É o mais próximo que temos de um Berserker,
e é com o que teremos de trabalhar.
O bardo tomou a peça na mão direita e a aproximou do rosto, recitou
notas e melodias durante alguns segundos e entregou a chave novamente para
Bur-Tuir. Com um floreio, posicionou o violão nos braços e tocou um acorde
levemente dissonante. Aguardou um instante, tocou novamente e olhou para
o norte.
— Não está longe. Ali — apontou para o caminho asfaltado que
levava a uma ponte logo adiante.
Os quatro começaram a correr para a direção indicada; à luz tênue,
perceberam uma construção um pouco diferente que se destacava do outro
lado da ponte. Ficava em uma ilhota, isolada por dois rios e duas pontes feitas
de concreto simples, largas o suficiente para apenas dois atravessarem lado a
lado.
Caminharam lentamente sobre a ponte e, assim que tocaram os pés
na ilha, um estrondo soou no parque. Pararam em posição de ataque: Tales
posicionou uma flecha em seu arco, Marcel armou sua besta e Bur-Tuir
puxou de cima do ombro direito uma espingarda de cano curto.

— Podem parar. — Uma voz grave soou às costas deles, na


extremidade oposta da ponte.
Cerca de dez mestiços saíam da água e caminhavam para o outro
lado da ponte. Estavam molhados, usando roupas escuras para se ocultar, e
armados de modo quase improvisado: barras de ferro, correntes, pedaços de
madeira, garrafas e umas poucas armas. Um deles, provavelmente o que
gritou, tinha o olhar vidrado e apontava um revólver antigo para o alto, de
onde um filete de fumaça saía do cano.
— Podem ir parando aí mesmo, e baixando essas armas — repetiu,
enquanto apontava o revólver para o grupo. — E, se acham que dão conta, é
melhor olharem para a outra ponte.
Eles se viraram e viram pelo menos mais quarenta mestiços que se
aproximavam, armados de modo semelhante aos outros. Estavam protegidos
com jaquetas de lona, alguns com capacetes de motoqueiro e botas. Todos
caminhavam lentamente em direção às pontes, prontos para atravessar para a
ilha.
— Maldição! — resmungou baixo Bur-Tuir, falando entre dentes. —
São apenas quatro armas de fogo, e tenho certeza de que apenas duas
funcionam. Esses malditos estão mais armados com vontade do que com
balas.
— Baixem as armas e se entreguem — gritou o mestiço com o
revólver. Os dois grupos começaram a atravessar as pontes simultaneamente.
— Aer’delo, quero você segurando o avanço da ponte mais distante.
Tales, proteja-se e tente atingir quantos puder. Eu irei segurar os deste lado. E
Marcel, descubra logo onde fica essa maldita entrada. Vamos!
Assim que o príncipe deu o grito, todos aceleraram o passo. Tales se
deslocou correndo em direção à construção estranha, que se mostrava a única
proteção possível na ilhota. Era feita de pedra, com cerca de três metros de
altura; uma escada em espiral escondida por uma mureta levava a um plano
circular de cerca de dois metros de diâmetro. Enquanto corria os dez metros
que o separavam desse espaço, Tales atirou pelo menos meia dúzia de flechas
e metade delas alcançou seus alvos.
Marcel ia ao seu lado. Ele havia encaixado o violão nas costas e,
logo depois de atirar algumas setas com a besta automática, começou a correr
enquanto levava a mão direita ao ouvido, emitindo algumas notas leves,
buscando se concentrar.
Aer’delo sacou as duas espadas e correu em direção à segunda
ponte. Saltou os dois últimos metros que o separavam da base dela para
golpear um mestiço que estava prestes a concluir a travessia. O elfo não
emitia nenhum som enquanto golpeava; uma das suas lâminas desceu sobre o
ombro direito do mestiço e a outra se projetou à frente para impedir o avanço
de um segundo.
Bur-Tuir usou a parte das costas da lâmina de seu machado como
um martelo, em um golpe contra a ponte. O mestiço com o revólver estava
apontando para ele enquanto corria, e, no instante em que se desequilibrou,
puxou o gatilho. A bala ricocheteou no ombro esquerdo do príncipe, que logo
em seguida brandiu sua arma contra o mestiço, jogando-o para trás sobre os
outros.
— Marcel! — Bur-Tuir gritou sobre o ombro em direção ao
encantado e o bardo. — Estou com um pouco de pressa!
Uma corrente surgiu do meio dos mestiços e atingiu o braço direito
de Aer’delo, enrolando-se. O elfo puxou o braço, girando o corpo, e, usando
a lâmina esquerda, atingiu o peito de seu agressor. Não teve tempo de se
livrar da corrente, apenas de proteger o rosto ao perceber a garrafa voando em
sua direção.
Tales e Marcel terminaram de subir os degraus em espiral que
levavam ao topo. Um pedestal, com trinta centímetros de largura e meio
metro de altura, estava posicionado no centro do espaço; as paredes eram
feitas de pedra bruta e dele subia o tronco de uma árvore esculpido em pedra,
com as runas dos anões desenhadas no sentido do comprimento. Na base do
tronco, uma fenda, grande o bastante para colocar a mão e regular o bastante
para ter sido feita intencionalmente.
— É aqui! — o bardo gritou para Bur-Tuir, que trocava golpes com
um mestiço.
O príncipe girou a arma para trás e aproveitou o impulso para correr.
Percebeu que Aer’delo também seguia em direção à construção e baixou a
cabeça ao escutar outra bala passar próximo à sua cabeça e se cravar na
parede de pedras à frente.
— Vá na frente, alteza — Aer’delo parou na base da escada
enquanto o príncipe prendia o machado nas costas e pegava a chave mestra,
subindo os degraus dois a dois.
Os mestiços já estavam chegando à base e começaram a atirar as
facas, garrafas e tudo que tinham contra os quatro. Alguns, mais ousados,
investiam contra o elfo, que já tinha um olho sangrando por um ferimento e
mancava, a corrente ainda presa ao seu braço direito. Já havia recuado dois
degraus quando o príncipe encontrou o encaixe e posicionou o polegar na
chave mestra.
Imediatamente colocou a mão com o objeto dentro da fenda do
tronco de pedra e sentiu que algo atraía a liga de metal. Por alguns instantes,
se perdeu no mecanismo, impossível de ser acionado de outro modo, tamanha
a complexidade de trancas e dispositivos. Cerca de quinze segundos se
passaram, Tales e Marcel se desviando dos projéteis e atirando flechas e
virotes nos mestiços abaixo.
Aer’delo já havia derrotado dezenas de mestiços, mas parecia que o
número continuava aumentando, chegando de diversos pontos do parque e se
amontoando na base da escada. Com o canto do olho limpo, podia ver as
costas de Bur-Tuir. Escutou o estalo do mecanismo e notou um quarto do
chão se abrir.
— Venha, Aer’delo!— O príncipe gritou enquanto retirava a mão de
dentro da fenda. No momento em que fez isso, a abertura começou a se
fechar.
O elfo percebeu e subiu os últimos cinco degraus correndo, atingiu o
anão com o ombro e tomou a chave das mãos dele. Com a mão esquerda,
pressionou o ponto que a acionava e a colocou novamente na fenda.
— Vá, meu príncipe! Eu posso segurá-los aqui até vocês
atravessarem. VÃO! — E chutou o anão para dentro do espaço aberto no chão.
Virou-se rápido e com a lâmina direita, golpeou freneticamente os
mestiços que tentavam subir e alcançá-los. Marcel se atirou logo depois de
Bur-Tuir entrar, mas Tales ficou parado na beira da entrada, observando seu
mentor.
— Parece que sempre tenho algo a lhe ensinar, Tales — Aer’delo
disse, alto o bastante para que o encantado o ouvisse, sem demonstrar estar
cansado ou ofegante. Atirou-se contra Tales, empurrando-o para dentro do
espaço, pela abertura. Logo depois retirou a mão com a chave de dentro da
fenda, virou-se novamente em direção aos invasores e, rindo, dirigiu-se uma
última vez ao seu aprendiz pelo espaço que se fechava: — Corram, seus
tolos!
O teto se fechou para os três que haviam passado pela entrada.
Depois de um segundo de silêncio absoluto, contrastante com o som da
batalha, uma explosão soou e o teto tremeu; pedaços de concreto caíram de
uma rachadura sobre suas cabeças.
E, então, o silêncio.
CAPÍTULO 15 - SUPREMACIA
Um pouco enferrujado com a rotina do Salão de Pedraluz, fazia
alguns meses que o rei não entrava em um dos Mecanos Reais. A armadura
tinha quase três metros de altura, era de formato humanoide, com pernas
curtas e reforçadas, além de um tronco grande o bastante para o anão ficar de
pé dentro dele e esticar os braços.
Logo que Bro-Ogur acionou a porta de entrada do Mecano Real, esta
se abriu, fazendo o rei sorrir. Aberto, o peito do gigante metálico parecia
querer abraçá-lo. As pernas estavam arqueadas e os braços longos, esticados,
dividiam o peso, deixando o aríete inclinado para a frente.
Bur-Daem caminhou até o Mecano e tocou o interior da carcaça. Era
projetado para que o operador ficasse suspenso dentro da máquina. Travas e
fivelas prendiam as pernas do anão e sua cintura, os braços entravam em
luvas com anéis similares aos dos Mecanos menores, mas com maior
sensibilidade. O peito era também afivelado e ele vestia um elmo.
O elmo servia para proteger o operador não contra choques, mas
contra o calor intenso gerado dentro do Mecano. A pressão extrema e a
quantidade de vapor eram o que o tornava tão poderoso e, ao mesmo tempo,
de uso restrito a poucos. Bro-Ogur entregou uma espada curta ao rei, sem
muitos adornos, exceto por um entalhe na extremidade que fazia o papel de
chave. Bur-Daem posicionou a ponta da lâmina numa fenda escondida junto
às suas costas e soltou a espada para encaixar no núcleo de força do Aríete,
acionando-o.
Uma vez posicionado, Bur-Daem acenou para que Bro-Ogur
fechasse o Mecano e terminasse as preparações. O mecânico real travou e
selou a máquina, ligou outra dezena de mangueiras geotérmicas nos
conectores do gigante metálico e se afastou para que o rei pudesse testar seus
movimentos.
Depois de alguns segundos, toda a estrutura soltou um chiado de
vapor e pressão; os pistões dos braços se acionaram simultaneamente e
socaram o chão, jogando o Mecano Real para a posição ereta. As pernas se
tensionaram e a cabeça se posicionou no lugar. Os vidros no peito da
máquina estavam escuros, mas Bro-Ogur sabia que o rei o enxergava
claramente, pois caminhou para fora da porta e parou a centímetros dele.
Dwa-Tabo e Dwa-Tago saíram dos compartimentos de seus
Mecanos, Lança e Escudo, e caminharam para perto de seu rei. Vestiam os
elmos e estavam prontos para acompanhá-lo.
A porta do elevador se abriu novamente, e Bro-Thum saiu de lá com
sua motocicleta.
— Meu rei, é meu irmão que está lá, e, mesmo que eu não seja um
operador, peço permissão para acompanhá-los — disse enquanto sentava e
ligava o motor da Harley.
— Então vamos! — O rei tinha de gritar para ser ouvido através do
elmo e da armadura. Conforme dava os passos, sentia a pressão em seu corpo
aumentar.
Bro-Thum tomou a dianteira para guiar os anões à região próxima ao
Passeio Público. Havia dois túneis que davam acesso até lá, e torcia para que
pegassem o certo. Seu tio, Bro-Ogur, ficou na Sala de Máquinas para
organizar os Mecanos restantes e se preparar para qualquer problema.
Estavam em uma bifurcação quando sentiram a explosão.
Toda a estrutura dos túneis tremeu e algumas das lâmpadas
estouraram. O rei teve de descer os braços ao chão para evitar sua queda,
enquanto os gêmeos se detinham em meio à corrida. Imaginando que aquilo
tivesse a ver com seu irmão e a escavadeira, Bro-Thum acelerou na direção
da explosão: o túnel M, que passava no sentido Sul-Norte pouco abaixo da
altura do Passeio.
Mas o Mecano real já estava aquecido, suas passadas eram largas e
em um ritmo frenético, e aos poucos ultrapassou a motocicleta de Bro-Thum.
Os braços do rei pinicavam no ponto onde os sensores das luvas tocavam a
pele, assim como nas pernas e cintura. As velhas queimaduras se abriam
novamente, fechando rápido; os músculos da perna tensionados numa corrida
frenética — era como se arrastasse um touro em suas costas.
Bur-Daem jogava os braços alternadamente para a frente e para trás,
a fim de equilibrar e impulsionar o gigante em sua corrida. Tinha consciência
de que seu tempo era curto e não podia hesitar. Assim que virou uma curva,
percebeu o vulto entrando num buraco escavado na parede. Sabia que era o
mestiço e não reduziu seu passo.
Os gêmeos estavam ao seu lado, as pernas trabalhando rápido; tinha
centenas de metros de tubulação e pressão suficiente para se virar por mais
alguns minutos, se fosse necessário. Seu filho já devia ter encontrado a
entrada da superfície a essa hora, e não poderia dar essa chance a Shkrenee.
Tensionou os braços sem parar de correr e se atirou contra a cratera
aberta pela escavadeira, apoiou as pernas do Mecano na parede oposta,
chamuscada pelo fogo, e usou toda a força de seus braços como pás a fim de
ampliar o diâmetro do túnel o suficiente para passar.
Avançava rápido, travando as pernas do Mecano e se atirando a cada
cinco ou sete metros. Podia ver o mestiço avançando para cima. Estranhou a
fresta de luz que saía da câmara — ela não deveria estar aberta, e já era noite
na superfície. Mas ignorou os pensamentos e se concentrou em avançar.
Porém, assim que avistou Bro-Muir caído alguns metros à frente,
reduziu o avanço e, com toda a delicadeza que o Mecano permitia, segurou-o
próximo ao seu tronco, longe o bastante para não queimar ainda mais com o
calor do metal. Então, virou-se para trás.
Os gêmeos estavam em seu encalço, apenas esperando para avançar,
enquanto Bro-Thum, um pouco mais atrás, subia a pé pelos escombros. O rei
deitou Bro-Muir no chão, entre os gêmeos que abriram espaço, e Bro-Thum
correu para abraçar o corpo do irmão.
Ele não ouviu as mangueiras se acionando novamente ao seu redor e
o Mecano Real voltando a cavar, nem os gêmeos ansiosos logo atrás do rei,
esperando a passagem ser aberta para a batalha. Ele só conseguia ver o rosto
de seu irmão, sujo de terra e fuligem, o rosto queimado e inerte do irmão
mais velho.
Quando o abraçou, no entanto, sentiu sua respiração. Fracamente,
mas respirava. Jogou como pôde o irmão em seus ombros e subiu na moto,
roncando alto o acelerador, e correu tanto quanto podia de volta para o
arsenal. Deu graças aos deuses por ver Bro-Ogur ainda lá.
— Meu tio! Rápido, ajude a levá-lo para Dour, não importa o quanto
custe, quero-o vivo! — Bro-Thum entrou com o tio no elevador para ir ao
médico real. — Eu tenho algumas perguntas para aquele mestiço maldito.
Assim que o deixou lá, voltou para o elevador. Precisava chegar a
Shkrenee.

O rei, quase chegando ao ponto da fissura, socava e abria o mais


rápido que podia a passagem. Já conseguia visualizar as lâmpadas de bulbo,
grossas de poeira, que iluminavam o caminho. Faltava pouco para a entrada
ser aberta; mais alguns centímetros e poderia passar. Provavelmente aquela
era uma antessala, um fosso antes da câmara principal; tinha certeza de que
encontraria o general preso ali dentro.
Assim que conseguiu passar pela barreira metálica, se assustou com
a magnitude da câmara. Não era uma antessala, mas sim a própria câmara do
Berserker.

Era um espaço oval, com pelo menos trinta metros de comprimento.


O túnel que havia sido escavado chegava à câmara diretamente na parede,
dez metros acima do nível da água. No lado oposto, havia uma porta
metálica; partindo dela, uma rampa de pedra com três metros de largura subia
até o centro da câmara. Ao redor dessa plataforma, foi escavado um fosso
profundo e preenchido com água até o nível da porta.
A rampa subia até o nível da visão de Bur-Daem, alcançando até
pouco mais que o meio da câmara. Lá, no meio da plataforma, uma caixa
metálica, maior do que o próprio Mecano Real. O rei podia até imaginar as
inscrições no metal e o ponto de inserção da alma do Berserker que se
encontrava em segurança ali dentro.
Metade das lâmpadas do teto estava acesa; outras ainda piscavam,
indicando que haviam sido recém-acendidas. Algo devia tê-las acionado.
Lembrou-se imediatamente de seu filho e procurou-o pelo salão, sem
sucesso. Mas viu que o general havia terminado de atravessar o lago e
escalava a plataforma, no lado mais próximo ao Berserker.
Teria de arriscar para chegar até lá, pois haviam entrado pela parte
de trás da câmara; era quase um penhasco para chegar até o fundo, dar a volta
e chegar à plataforma de acesso. Ignorando os riscos, forçou os pistões das
pernas de seu Mecano e desceu o paredão até o lago. No meio do caminho,
acionou os pistões ao máximo e saltou até a plataforma oposta.
Cravou as mãos metálicas e começou a escalar até o ponto mais alto,
pouco à frente do Mecano. Quando chegou em cima parou, exausto pelo
esforço, mas sem o demonstrar. Shkrenee estava com uma ampola um pouco
menor em mãos e se dirigia até a caixa metálica pelo lado oposto ao seu. O
general mestiço encarava Bur-Daem dentro de sua máquina de guerra, em
desafio.
O Aríete estava soltando fumaça enquanto a água em sua superfície
evaporava com o calor. O general percebeu que os irmãos gêmeos haviam
descido o paredão para onde o buraco saía e davam a volta para encurralá-lo
ali. Mas não iria desistir; tinha o sangue do dragão em mãos e o Berserker ao
seu alcance, seria invencível!
Estava levantando o braço direito com a ampola, pronto para abrir a
caixa, quando um urro soou do outro lado da porta, no início da plataforma.
A porta, de quatro metros de altura e um palmo de espessura, foi arrebentada
com um estrondo e lançada para a frente, contra a caixa, que, ao ser atingida,
rodopiou antes de começar a cair pelo lado direito da rampa. Shkrenee havia
desviado da porta e se atirou na direção da caixa.
O rei estava prestes a se jogar sobre o general e acabar com aquilo
quando o urro soou novamente. Agora ele podia ver duas pernas, grossas
como troncos de árvore, paradas em frente à porta. Relembrando histórias há
muito tempo perdidas, reconheceu as marcas e os padrões dos músculos
imediatamente; só uma criatura poderia estar sobre aquelas pernas: um troll.
Mas não foi isso que fez o rei parar, e sim um grito familiar que soou
um pouco mais baixo que o urro da besta.
— Por Bur-Daem! Bur-Daem-Barathor! — gritava seu filho.
FINAL: PARTE I - CARNE
Depois de alguns segundos de silêncio, Tales se deu conta do que
acontecera e começou a esmurrar o piso e gritar pelo nome de seu mestre. Na
escuridão total, as mãos sentiram o chão de pedra, duro e limpo, exceto pela
sujeira que caíra do teto. Gritou mais alto e deixou suas lágrimas molharem o
piso. Mas tudo continuou escuro e em silêncio.
Marcel tirou uma caixa de fósforos do bolso e riscou um palito; a
chama acendeu e se manteve firme. Estavam num espaço pequeno — um
quadrado de dois por dois metros —, o teto tinha uma rachadura que ia de
lado a lado, mas não se percebia nenhum movimento na superfície. Além
disso, havia uma porta que ocupava quase uma parede inteira. Era de pedra
lisa, limpa e sem entalhes, apenas um espaço retangular pequeno, no qual se
encaixaria perfeitamente a chave-mestra de Bur-Draim. O palito se acabou e
o bardo acendeu o próximo.
— Tales, levante-se, precisamos de você. — O rei colocou a mão
no ombro do encantado. — Aer’delo estava lutando, e não podemos
afirmar qual o seu destino. Mas ele acreditava em nosso caminho, e
devemos honrar o desejo dele.
Bur-Tuir ajudou Tales a levantar-se e acenou enquanto ele enxugava
o rosto.
— Marcel, alguma outra indicação? — O rei voltou sua atenção para
a porta.
— Nada, meu príncipe, sem dobradiças ou fechaduras, apenas esse
encaixe — disse o bardo, acendendo o terceiro fósforo.
— Maldição, espero que não seja espessa demais. Afastem-se! —
Bur-Tuir levantou sobre o ombro direito o seu machado de guerra, virando a
lâmina para o lado oposto da porta, para usar a face de martelo. Tales e
Marcel ficaram do lado esquerdo do príncipe, o mais longe do alcance
possível.
Girou o tronco enquanto desenhava um arco com a arma, atingindo o
meio da porta, que se desfez em pedaços sem nenhuma dificuldade.
Um cheiro nauseabundo invadiu o pequeno espaço; imediatamente o
trio se armou para qualquer ameaça, mas o silêncio continuou. Marcel
esperou um pouco e riscou outro fósforo, que revelou uma escada estreita
como a porta e com degraus altos, descendo em espiral. Seguiram pelo
caminho por alguns minutos até que chegaram a um curto corredor que dava
para um portal simples, acesso para uma sala mais ampla. Luzes estavam
piscando no cômodo e o príncipe decidiu entrar no espaço, seguido pelos
outros.
— Pela bigorna, isso é loucura! — Bur-Tuir estacou, com Tales e
Marcel ao seu lado. A única reação deles foi baixar as armas, observando o
corpo da besta colossal que estava acorrentada, pendurada no teto.
— Isso é... — Tales começou.
— .... um troll das montanhas — o anão continuou. — Extinto há
séculos, teoricamente. Aquele velho era insano.
A sala era bem maior do que a anterior, com pelo menos cinco
metros de pé-direito, tinha várias lâmpadas incandescentes no teto — mais da
metade delas acesas — e era mais que o suficiente para iluminar o espaço.
As paredes eram escavadas com simplicidade, sem muitos entalhes e
com marcas de luta em alguns pontos. Outra porta se destacava, trancada,
muito mais elaborada que a anterior: metálica, podiam-se ver as barras e
engrenagens que a fechavam. Barras grandes como o braço do anão. Uma
porta dupla, com pelo menos três metros de altura e quatro de largura.
Ao lado da porta, estava encostada uma máquina dos anões. Um
modelo antigo de Mecano, movido a combustível e fechado, com algumas
marcas de ferrugem em alguns espaços. Provavelmente era usado pelo antigo
rei para trabalhar na câmara e não tivera como ser retirado depois do
fechamento.
Mas sem dúvida, nada chamava mais a atenção do que o troll
pendurado no teto. Era um adulto, com pelo menos três metros de altura; as
correntes entravam em alguns pontos da carne dos braços e ombros,
mostrando que ele crescera no tempo em que estava lá. Uma lâmina
serrilhada atravessava o peito da criatura, e uma linha de sangue escuro
descia da ponta da serra até um buraco no piso.
Havia mangueiras presas a alguns tonéis de vidro no teto, que
continham pela metade um líquido rubro. Estas iam até os braços do troll e
eram conectadas nele por agulhas. Assim que notaram as mangueiras,
perceberam que a linha de sangue se reduzira a algumas gotas, e um leve
tremor tomou o corpo da criatura.
— Isso não está acontecendo — Bur-Tuir correu os olhos para trás, e
percebeu um cabo rompido que estava preso ao batente da porta pela qual
entraram.
O cabo mantinha um sistema pneumático pelo qual a lâmina ficava
num movimento contínuo, impedindo que o troll se regenerasse. Enquanto
isso, os nutrientes continuavam alimentando-o e mantendo-o vivo. Durante
mais de meio século, isso o deixara mais forte e com um sistema de cura
intensificado. E, ao quebrarem a porta, acionaram a armadilha.
— Maldição! Tales, atire todas as suas flechas nele! Marcel, esvazie
sua besta, ganhem tempo! — Bur-Tuir começou a correr, sacou sua arma e
esvaziou os últimos tiros no peito do troll, no ponto onde a lâmina ainda saía.
Vendo que os outros dois haviam recuperado os sentidos e atiravam
ao perceber o perigo, o príncipe seguiu até a porta. O mesmo encaixe da porta
anterior, e nenhuma chance de destruir esta. A criatura respirava, um som
grave e perto de um rugido. Observando o resto da sala, Bur-Tuir constatou
que seria quase impossível vencerem um troll adulto armados apenas com um
machado. Amaldiçoou o planejamento de seu avô enquanto corria ao Mecano
antigo, ao mesmo tempo que orava a todos os deuses para que tivesse algum
combustível, e, se tivesse, que tudo funcionasse.
Já havia usado um modelo desses antes que fossem substituídos
pelos movidos a vapor; eles faziam uma fumaça danada, mas eram fortes e
serviam como exoesqueletos, de modo similar aos modernos. Verificou o
tanque de combustível, que estava cheio, começou a abrir os braços e pernas
para vesti-lo, quando o troll soltou o seu primeiro urro.
A criatura estava começando a tensionar os músculos do braço e a
piscar os olhos pequenos. O peito tinha quase duas dezenas de penas de
flechas saindo, além de alguns virotes metálicos. A munição de Marcel havia
acabado; então ele levou a mão ao ouvido e começou a murmurar algumas
notas, enquanto Tales atirava mais algumas flechas, mas sua aljava também
estava ficando vazia.
Bur-Tuir acelerou ainda mais e armou o Mecano. Fez uma última
prece e acionou o pedal da ignição, sem nenhuma resposta. Correu para abrir
as velas dos quatro motores e limpá-las, verificou as mangueiras de
alimentação rapidamente e acionou novamente o pedal. O mecanismo
respondeu, mas sem ligar; o som das correntes do troll sendo esticadas o fez
tentar novamente, e então sim.
O motor chiou e roncou alto, dois canos de escapamento na parte
traseira jogaram fumaça preta para cima e a máquina se armou, ficando de pé.
O príncipe não esperou os motores aquecerem e subiu na máquina.
Posicionou as pernas e afivelou a regulagem, fechou as alças sobre os ombros
e encaixou os braços nos mecânicos da máquina.
Vestiu a luva de comando e começou a testar a máquina;
praticamente todos os comandos estavam respondendo. E bem a tempo, pois
o troll arrebentou uma das correntes, livrando o braço esquerdo, enquanto
urrava novamente. O anão usou o braço direito do Mecano para pegar seu
machado e se preparar.
Tales deixou três flechas na aljava e deu alguns passos para trás,
admirando o príncipe. Marcel parou de cantarolar e foi para junto do
encantado, puxando o violão das costas e tocando alguns acordes.
— Não aprendi nada sobre trolls... Nem devo ter nada para aprender
sobre eles — falava enquanto tocava os acordes freneticamente e esperava.
A criatura usou a mão esquerda para livrar o outro braço. Então
empurrou o teto com as duas mãos e urrou de dor e fúria enquanto a lâmina
passava novamente pelo seu peito, e pela última vez. O troll caiu com os
quatro membros no chão e levantou o rosto, farejando. Bur-Tuir viu as penas
das flechas de Tales saindo dos pequenos olhos da besta e agradeceu
silenciosamente ao encantado: um sentido a menos.
A música do bardo parecia estar fazendo algum tipo de efeito. O troll
balançava a cabeça, abrindo as mãos e testando um passo. As correntes se
misturavam aos seus músculos e caíam no chão ao seu redor, penduradas. O
couro era avermelhado com um tom de chumbo, a cabeça era pequena e
desproporcional, com orelhas e um nariz grandes.
Cabelos embolados caíam pelas costas peludas do troll. Ele levantou
a cabeça, farejando, e virou-se rapidamente para o anão. O príncipe jurou
ouvi-lo gritando “BUR!” antes de arremeter às cegas em sua direção, e não
achou que fosse por carinho ao seu antigo captor.
Bur-Tuir acionou as pernas no último instante e se desviou do
caminho para ver a criatura se chocando contra a porta, que foi lançada longe.
Após segundos que levou para se recuperar do choque, o troll se virou para
ele novamente. O anão levantou o machado na mão mecânica direita e
começou sua corrida contra a besta.
— Por Bur-Daem! Bur-Daem-Barathor! — gritou Bur-Tuir,
enquanto forçava ao máximo os motores e direcionava o machado em direção
à cabeça do troll.
O troll também correu em direção a ele, estendendo as duas mãos à
frente. O príncipe mal pôde perceber, sob o som ensurdecedor dos motores e
de seu próprio grito, mas Marcel estava segurando uma nota a plenos
pulmões a fim de influenciar o gigante. No último instante, o troll hesitou um
pouco e baixou as mãos.
Bur-Tuir aproveitou a velocidade da criatura, da máquina e forçou
todos os seus músculos para ajudar o machado a descer, enquanto com o
braço esquerdo empurrava o braço direito do oponente. Mas, antes do
choque, a cabeça do troll desviou para a direita, e o machado se afundou
sobre o ombro, descendo sobre carne e músculo até esconder toda a sua
lâmina.
O troll berrou de dor e se contorceu, mas não parou; ao sentir o
toque em seu braço direito, empurrou no sentido oposto, fechando a mão.
Bur-Tuir viu seu braço engolido pela mão colossal e a puxou
desesperadamente, para retirá-la do Mecano.
Forte como um torno, o aperto se fechou ainda mais, esmigalhando
máquina e anão, desfigurando o braço esquerdo. Bur-Tuir bufou e reuniu suas
últimas forças para largar o machado preso e enfiar o braço direito na antiga
ferida do peito.
O troll abriu a mão direita, soltando pedaços de metal e do braço do
anão, e a levantou. Estava fechando o punho para finalizar o golpe derradeiro
no príncipe quando três tiros explodiram em suas costas.
— Olhe para cá, seu maldito! — Bur-Daem, flanqueado pelos
gêmeos, corria em direção à criatura.
O gigante virou a cabeça para o novo oponente e gritou, sem tempo
de descer o braço no golpe, pois foi atingido nas costas e jogado de lado. O
Mecano Real era quase tão grande quanto o troll, e em instantes estava sobre
ele, retirando o Mecano antigo com Bur-Tuir do caminho e deixando-o o
mais longe possível.
— Protejam-no! O troll é meu! — o rei gritou para ser ouvido pelos
gêmeos.
E sem se importar com energia ou defesa, atirou-se sobre a criatura.
Fechou a mão sobre o machado do filho e afundou-o ainda mais na carne,
enquanto segurava o braço esquerdo do inimigo. Acuado e preso pelo recém-
chegado, o troll tentava desesperadamente se atirar para longe. Mas o Aríete
não o largou, continuando a forçar o machado, que rasgava mais do que
cortava, até chegar no meio do tronco.
Os gritos de fúria de Bur-Daem soavam quase tão altos quanto os
urros de dor da fera, que, em um último esforço, buscava atingir a cabeça do
inimigo com a própria. O Mecano Real se inclinou, esperando o ataque, e, no
momento do iminente choque de cabeças, acionou o mecanismo que dava
nome à armadura. O pescoço da máquina se estendeu cerca de um metro em
um piscar de olhos e destruiu o pescoço do troll, decepando-o.
O rei jogou o corpo inerte para a frente e soltou as luvas e fivelas
que o prendiam, dando o comando para abrir sua armadura imediatamente.
Uma onda de vapor invadiu o ambiente conforme Bur-Daem se atirava para
fora e corria para seu filho. Ele estava ofegante, com os cabelos e barba
empapados de suor. As marcas de seu peito e braços estavam vermelhas onde
as peças haviam tocado, e boa parte do vapor continuou saindo dele enquanto
corria para Bur-Tuir.
Os gêmeos já o haviam tirado do Mecano antigo e desligado a
máquina. Tales e Marcel faziam os primeiros socorros e providenciavam um
torniquete improvisado na altura do ombro. O rei trazia uma espada na mão
direita, cuja bainha — que ficava no núcleo de força — estava avermelhada
por conta do calor do Mecano. Numa tentativa para salvar a vida de seu filho,
Bur-Daem gritou enquanto cortava o braço dele pouco abaixo do ombro, com
a arma ainda quente o bastante para cauterizar a ferida.
Abraçou-o, então, enquanto chorava com medo.
FINAL: PARTE II - METAL
O rei mal teve tempo de pensar em seu filho; um grito de agonia
vindo da sala do Berserker desviou seu olhar para lá.
— Ele já bebeu...
Shkrenee se inclinava sobre a caixa do Berserker, que estava aberta.
Ele tremia e ria freneticamente ao encaixar a ampola nas costas da máquina.
Logo que posicionada, todo o sangue foi injetado para dentro do mecanismo
e os pistões se acionaram. O corpo de Shkrenee caiu, inerte, enquanto a
máquina se levantava, assumindo a posição em que antes estivera o mestiço.
Tinha quase quatro metros de altura, com o tronco robusto o bastante
para uma pessoa ocupar seu interior. Os braços longos e grossos tinham
dedos finos e diversas armas presas em sua extensão. Conforme se levantava,
lâminas retráteis saíam dos punhos e os joelhos fraquejavam um pouco, como
se estivesse incerto.
Controlando o Berserker, a consciência de Shkrenee abriu o
compartimento do peito e abaixou-se para pegar seu corpo, inconsciente, e
colocar-se em segurança. Ele estava nas mãos do Berserker quando a
máquina estacou. Por alguns segundos, todos observavam a cena sem reação.
O corpo de Shkrenee entrou em chamas, numa insuspeitada
combustão, de dentro para fora. O Berserker não se moveu enquanto o corpo
crepitava e se tornava cinzas que caíam rapidamente pelos seus dedos.
De repente, ele se levantou totalmente, as pernas longas se esticaram
e pararam. Os braços desceram e ficaram ao lado do corpo. O metal
esbranquiçado, com linhas douradas no padrão élfico, reluzia sob a
iluminação do salão.
Aproveitando o momento, dois anões surgiram subindo a
plataforma, próximos à porta, e vieram correndo para dentro. Com as roupas
pingando, hesitaram ao ver o corpo do troll parado próximo à entrada, mas se
desviaram e apressaram o passo para se reunir aos outros. A rainha e Bro-
Thum haviam se encontrado no arsenal e aceleraram ainda mais ao verem o
rei e o príncipe.
— Desculpe, querida... Eu cheguei tarde... — Bur-Daem estava
ainda abraçado ao seu filho inconsciente.
A rainha se ajoelhou à frente do marido e analisou os ferimentos de
Bur-Tuir.
— Meu rei, ele está vivo, se nos apressarmos podemos salvá-lo. —
A rainha tocou o rosto de seu marido e o olhou nos olhos. — Precisamos de
você.
— Sim, podemos... — O rei lentamente se levantou e deixou o filho
com a rainha, observou o Berserker parado e as cinzas à sua frente. — Parece
que a jogada de Shkrenee saiu pela culatra, precisamos selar e organizar isso.
Mas, meu filho precisa de pressa. Tago, seu Mecano é mais rápido que o de
seu irmão, corra como o vento e leve-o a Dour. Vá!
Dwa-Tago deu uma última tragada em seu charuto e cuspiu o que
restou dele no chão. Então, tomou o príncipe nos braços do modo mais
seguro possível e direcionou toda sua concentração e habilidade para correr o
mais rápido possível para Khur. Em menos de um minuto, ele já havia
entrado no túnel escavado, enquanto os outros analisavam a sala e o que
teriam de organizar.
A atenção de todos foi desviada para um som agudo emitido com
brevidade pelo Berserker. Ele estava se movendo, lentamente se colocando
com as mãos e pés no chão. A cabeça ia de um lado para o outro, confusa,
como se tentasse entender onde estava e o que estava acontecendo.
— O dragão! — O rei apontou para a porta — Tabo! A porta, agora!
O anão entendeu imediatamente e correu com seu Mecano para a
porta, acionando o escudo em sua amplitude e travando as barras de reforço
das pernas.
— Tales, Marcel, escondam-se! Não há nada que possam fazer aqui,
voltem para a outra sala agora! — E, virando-se para Dwa-Ella: — Preciso
voltar ao Aríete. Tabo não suportará nem alguns segundos.
— Absurdo, meu rei! — A rainha segurou Bur-Tuir e o abraçou. —
Seu corpo não aguentaria; a Supremacia corre em meu sangue, e honrarei sua
armadura.
E, ao dizer isso, tomou a espada que ainda estava nas mãos do rei e o
empurrou com delicadeza, mas firmeza, para o lado, fazendo-o cair. O
esforço de escavar e batalhar com o troll havia exaurido Bur-Daem, que se
levantou, mas não conseguiu correr atrás de sua rainha. Ela entrou no
Mecano Real e com determinação colocou as luvas e peças de pilotagem. A
máquina ainda estava quente e rapidamente se posicionou, ereta, apontando
para a pequena porta.
— Proteja-se, meu rei! — E virou-se para Dwa-Tabo, que recebeu o
primeiro impacto.
O Berserker ainda estava testando seus movimentos, e sua primeira
investida fora fraca, deslocando o Mecano Escudo um metro para trás, mas
sem danificar sua estrutura. Ele se esforçou para voltar à posição, mas, na
segunda investida, foi jogado para trás, quebrando o piso onde caiu.
Imediatamente a rainha correu sobre o Berserker e, aproveitando a
posição propícia dele, puxou-o pela perna de volta para a plataforma,
conseguindo arrastá-lo. Bro-Thum correu para o rei e ajudou-o a ir para o
cômodo menor e mais protegido. Logo depois, respirou fundo e correu para
a câmara onde a rainha batalhava. Puxou o machado prateado das costas e
continuou correndo. Como Dwa-Tago estava com a armadura e a perna da
armadura avariada, Bro-Thum acenou para que protegesse o rei e continuou
correndo.
Posicionada sobre a máquina de guerra, a rainha segurava os braços
e travava as pernas com os joelhos, enquanto acionava os projéteis do peito
do Mecano Real. A explosão foi alta, mas não conseguiu romper o casco. O
Berserker usou os braços e pernas para se impulsionar contra o chão, saltando
vários metros para cima e atingindo o teto com a rainha em suas costas, que o
soltou pela força do impacto.
O Aríete caiu sobre as próprias pernas, que travaram e emperraram
devido ao esforço. O Berserker percebeu os cabos que saíam da máquina real,
segurou todos com as duas mãos e os rompeu, espalhando uma nuvem de
vapor na câmara. A alimentação havia sido cortada, e em instantes o Mecano
não teria mais energia.
De onde se encontrava, Bro-Thum, ao analisar a movimentação do
Berserker, percebeu o ponto da sinapse — ele era o Mecânico real e a
Manipulação era forte nele, isso devia lhe valer de algum modo. Um tiro
direto poderia desestabilizar o vínculo e resolver o problema, mas como
chegaria tão perto? O acesso era difícil e deveria ser um tiro à queima-roupa.
O Aríete baixou os braços, liberando uma fumaça de vapor, e
estagnou. O Berserker se aproximou lentamente e farejou o Mecano Real,
colocou-se de pé apoiando-se nas pernas e levantou os braços para um golpe
direto no corpo do oponente. As mãos desceram num arco com os dedos em
forma de garra, enquanto as lâminas retráteis do pulso se abriram, prontas
para cortar o metal.
No último segundo, entretanto, a rainha inclinou o corpo para trás e
as mãos do Berserker desceram até o chão, onde se cravaram. Percebendo a
oportunidade, o Aríete juntou os dois punhos no ar, voltou o corpo à posição
ereta e direcionou toda a pressão para os braços. Disparou os projéteis do
pulso para dar uma última guinada no golpe, atingindo a nuca do Berserker e
conseguindo desestabilizá-lo.
A máquina da Grande Guerra tombou no chão, prensada como um
metal sob o martelo que eram as duas mãos do aríete. Tentou se levantar, mas
as engrenagens do ombro rangiam com o esforço. A rainha usou os últimos
resquícios de vapor para abraçar o Berserker e levantá-lo de ponta-cabeça,
com os braços presos junto ao corpo. Travou todos os pistões no ponto
máximo de aperto.
Preso, o autômato tentava desesperadamente mover os membros,
mas a resistência do aríete era muito grande. Movia a cabeça para se libertar,
sem sucesso.
Correndo em direção à cabeça — o ponto era no meio das costas, e
se apoiasse um pouco na mão do aríete, poderia alcançá-lo facilmente —,
Bro-Thum prendeu o machado nas costas e preparou a subida. Mas, no
momento em que deu a volta para escalar ao ponto de sinapse, o Berserker
jogou a cabeça para trás e atingiu-o no peito, jogando-o para longe. Bro-
Thum voou alguns metros e girou, vendo a beira da plataforma passar.
Esticou o braço para tentar alcançar o chão antes que passasse, mas os dedos
se fecharam no ar.
Até que outra mão segurou seu braço e interrompeu sua trajetória,
fazendo-o descer e bater na parede, ficando pendurado. Ao olhar para cima
viu o rosto de seu irmão sorrindo para ele — o lado recém-queimado do rosto
estava com um aspecto melhor, com alguns pedaços de tecido leve
embebidos em algo para reduzir a dor e auxiliar a recuperação. O braço
estava queimado também, e Bro-Muir grunhiu enquanto erguia o irmão sobre
a beirada, de volta para cima.
— Corri assim que acordei. Deu um trabalho chegar, mas acho que
deu tempo. — Terminou de ajudar o irmão a subir e escalou junto.
Levantaram lado a lado e ele continuou, sorrindo: — Parece que precisa de
uma ajuda aqui.
— Se for sua, preciso sempre, irmão.
Atirando-se juntos sobre as costas do Berserker, ajudaram-se a subir
e alcançaram o ponto da sinapse. O autômato estava com as engrenagens
rangendo ao máximo enquanto a estrutura do Aríete começava a ceder. Bro-
Thum sacou o revólver e colocou a ponta do cano sob uma placa metálica
que ficava entre as omoplatas do gigante. A posição na qual ele estava preso
facilitava a operação.
Bro-Thum disparou uma vez, e o Berserker parou repentinamente,
para logo em seguida abrir os braços com toda a força e cair no chão. Os
irmãos se esforçaram para se segurar nas placas do autômato — Bro-Thum,
que se apoiara com apenas uma mão enquanto dava o tiro, soltou a arma, que
acabou presa entre as placas.
Bro-Muir percebeu o aquecimento e o consumo de energia da
máquina e soube o que aconteceria. Colocou a mão direita dentro das placas e
segurou o revólver enquanto garantia sua posição, travando as pernas. Então,
levantou um pouco o irmão com o outro braço e aproximou o seu rosto do
dele.
— Perdão, Thum — E o empurrou para dentro do lago. — Por tudo!
E a última imagem que Bro-Thum teve antes de mergulhar no lago
foi a de seu irmão, sorrindo de pé, nas costas do Berserker. O autômato
estava se levantando e levando as mãos às costas quando três tiros foram
disparados. O metal se expandiu e as linhas brilharam, vermelhas, por um
instante, antes de se tornarem uma esfera crescente de fogo e energia que
engolfou todo o ambiente num caos de chamas.
E depois, o silêncio.
EPÍLOGO
Bro-Thum sobreviveu graças ao irmão. A rainha foi protegida de boa
parte do calor pela armadura, mas seus cabelos ficaram queimados por conta
das chamas que entraram pelas rachaduras feitas durante a batalha com o
Berserker. Dwa-Tabo conseguiu levar seu Mecano até a porta menor e usou o
escudo para proteger o rei, Tales e Marcel.
Bur-Daem retornou com os outros até o reino e enviou
imediatamente um grupo para verificar o Passeio Público. Os corpos dos
mestiços desapareceram, e não havia sinal de Aer’delo. Eles apagaram as
runas da estrutura da ilha e fecharam o espaço da chave; só não tiveram como
remediar a rachadura no chão.
O príncipe acordou durante a manhã, com os pais ao seu lado. Ao
receber as notícias, agradeceu ao pai por tê-lo salvado e se abraçaram. Bur-
Tuir exigiu celebrar essa vitória, aceitando com dignidade permanecer em
uma cadeira de rodas ao lado do pai durante a festa. Todos tiveram seus feitos
louvados e Marcel prometeu compor uma canção sobre a batalha, tendo os
próprios olhos como testemunhas.
Tales teve uma primeira surpresa no começo da tarde, quando estava
repousando em seu quarto e recebeu um chamado do rei para ir à sala de
reuniões. Ao chegar lá, encontrou-o sentado ao lado de Ael’evendi e
conversando com dois humanos. Assim que se viraram, surpreendeu-se com
a visão de seus pais; Evana estava com um bebê no colo. Correu na direção
deles e todos se abraçaram.
— Tales, essa é sua irmã — seu pai indicou a menina de seis meses
no colo da mãe. — Bia.
— Pai, mãe... Está tudo bem? — Tales sentia anos de saudades
exigindo o contato, mas os acontecimentos recentes o haviam deixado com
medo.
— Até onde sabemos, sim. Aer’delo não enviou notícias por mais de
um mês, e estávamos sozinhos lá. Sem instruções, decidimos voltar para ver
o que estava acontecendo. Sua mãe acabou conhecendo o pai dela, e o rei nos
explicou um pouco do que aconteceu aqui.
— Eu... não o conhecia, nunca entendi o motivo de minha mãe
defendê-lo — Evana sorria ao dizer isso e olhar para seu pai, que não
esboçava nenhuma reação aos presentes. — Mas ele tinha seus motivos para
fugir. E você, meu filho, depois de tudo que fez nos últimos dias, sinto-me
honrada em ser sua mãe!
— Mas, Aer’delo... — Tales começou a falar.
— Nós sabemos, filho.
— Na verdade, não temos certeza — Bur-Daem falou,
interrompendo a conversa. — Não encontramos nada que prove que algo
aconteceu com ele. Seu mestre é sábio, já passou por dificuldades maiores do
que essa e saiu ileso. Confie.
Todos sorriram e acenaram, agradecendo ao rei.
— O rei disse que se encontraram no plano etéreo, Tales — a mãe
disse, segurando as mãos de Ael’evendi. — Eu gostaria de saber de seus
lábios o que aconteceu.
— Prometo lhe contar tudo, mãe.
— Perdoem minha grosseria — Bur-Daem interrompeu —, mas
temos algo em aberto para resolver. Uma demanda de máxima urgência, e
precisarei de Tales nesse assunto. Nós iremos caçar um dragão.
Tales ia argumentar quando sua mãe deu um grito e levou as mãos à
boca. Ael’evendi estava puxando o ar com força; esticou a palma das mãos
para a frente e gritou:
— Não, Aer’delo! Você não deve fazer isso!
Todos observavam o elfo, imóveis. Ele piscou por alguns instantes,
se localizando, olhou a todos na sala como se reconhecesse, mas de outro
modo. E seu olhar era de puro desespero:
— Aer’delo... Não achei que ele faria... mas o fez. Aer’delo tocou o
sino e convocou os elfos de volta.
EXTRAS
AGRADECIMENTOS
Esse livro nasceu como uma resolução de ano novo, a primeira da
minha vida que deu certo. Que exigi que desse certo na verdade. Meu filho,
Ulisses, nasceu em 2013 e me fez querer ser mais, querer alcançar mais. Esse
trabalho que está em suas mãos é o resultado disso, e tenho muito orgulho.
Então meu agradecimento maior é a ele: obrigado meu filho, por me
fazer querer ser mais. Agradeço à minha esposa, Yara, por exigir que eu
terminasse algo, por ser extremamente crítica e sincera em suas opiniões e
por me tirar das nuvens de vez em sempre. Obrigado aos meus pais, por
sempre incentivar a fantasia em minha vida e ajudar a criar minha paixão por
livros, quadrinhos e esse mundo de faz-de-conta.
Obrigado aos Beta Readers! Malucos que se ofereceram (foram
convocados) para ler as primeiras versões tortas desse texto. Tem coisas que
só vocês viram e foi pela sinceridade de vocês que algo incerto se tornou
como está agora, além de tantos amigos que ajudaram com toques e dicas
para que esse projeto se tornasse bem sucedido. Vinícius, Gunnar, Marlon,
Cesar, Kleber, Madson, Fernanda, Danilo, Daniela, Enderson, Augusto, Luiz,
Carol, Marcel, Iuri e perdoem se esqueci algum nome.
Agradecimentos ao escritor que se tornou um amigo e foi
(inconscientemente) o empurrão final para eu começar a escrever: Andre
Zanki Cordenonsi. E obrigado por aceitar escrever o prefácio, por todas as
indicações e por ser um Beta Reader sem dó!
No processo de produção desse livro, conheci alguns profissionais
fantásticos! Kyanja Lee, que se empolgou com o livro e ajudou a resolver
alguns vícios de escrita e engasgos da história; Ana Lúcia Merege, que não
teve dó de comentar e pontuar as correções e observações; Gabriella Regina,
que entrou no final do projeto para dar identidade e um visual a ele; Sergio
Artigas, que estava lá desde o começo com suas observações e intervenções
perfeitas em cada detalhe; Daniel Künzle, um talentoso amigo que se dispôs
a, literalmente, esculpir um devaneio meu; e Erike Miranda, que se dispôs a
dar sua visão para a minha história.
Um beijo para a Prefeitura de Curitiba, a prefs, que divulgou esse
projeto e abriu várias portas para seu sucesso.
Além disso, um agradecimento aos ilustradores que estão
trabalhando nesse momento em ilustrações baseadas no universo do Alvores,
vocês são demais!
E, é claro, obrigado a todos que tornaram esse sonho possível através
do Catarse. Uma ferramenta fantástica de financiamento coletivo que, após
dois meses de luta e esforço imensos, permitiu que o Alvores fosse mais do
que uma ideia. Obrigado ao próprio Catarse e a todos vocês, cada um teve
participação essencial no processo todo:

Adilson Farias, Alan José Guedes, Alan Mazzilli, Alberto Vosgerau,


Alfredo Teixeira Antonio, Alfredo Vinicius Andrade Guimarães, Aline Miwa
Shirai, Allan Martins Mohr, Allyne Janiski, Amanda Moretti Nunes, Ana
Lúcia Merege Correia, Anderson de Almeida, André Galdino, Andre
Kuchacki, André Martuscelli Do Amaral, Andre Zanki Cordenonsi, Aníbal
Gabriel Martins Vilela, Arantxa Eckhardt, Átila Müller, Augusto L. Passos,
Bartos Batista Bernardes, Bianca Pinheiro Cristaldi da Silva, Breno Monteiro
Cabral dos Santos, Bruno Bonfim, Bruno Hjort, Bruno Philippsen, Bruno
Silva, Bryan Khelven da Silva Barbosa, Camila Cristina de Araújo, Camila
Picheth, Carlos De Souza Oliveira, Carlos Eduardo Cavalcanti Teixeira,
Carlos Renato Duarte, Carol Bosi Beatriz, Caroline Portugal, Cecília
Zacharias, Cesar Camillo, Chris Jenkins, Clarisse de Almeida e Alvarenga,
Cristiane Brasil, Daniel, Daniela Soares, Danilo Mattiazzo Gorjon, Diego
Fiuza, Diego José Ribeiro, Diego Neves Gonçalves, Diego Pontes Floriano,
Diogo Benedito, Diogo Dolla, Douglas Leal, Edilaine Cristina de Oliveira
Costa, Eduardo Rodrigues, Enderson Nobre Santos, Enéias Tavares, Erick
Costa da Silva, Éverton Fernandes, Fabio Demetrio, Felipe Carvalho, Felipe
Vilas, Fernanda Dutra, Fernanda Noemberg Lazzari, Filipe Oliveira Falcone,
Flávio Ferreira Jardim, Francis Angelo Sbalqueiro Ortolan, Fred Scuta
Garcia, Gabrielle Vizcaino, Geisa Laranjeira Rigonatto, Gianpaolo Celli,
Giovani Falcometa da Cunha, Giovani Medine, Gisele C. Sanches da Silva,
Giulia Barder, Glauber Lopes, Graziele A. Resende, Guilherme Dobrychtop,
Gunnar Santos, Gustavo Girardi Brasman, Helena Brenner Bernardes,
Henrique Seiji Ono Martins, Isa Maria de Souza Fernandes Ferrari, Isabel
Palumbo, Itsumi Nozu, Iuri Camargo, Jaqueline Nogueira Santos, Jeanne
Rocco, Jeferson Zeferino Dos Santos, Jessica Aline E. Santo, Jhonnatan
Lopes, João Auro de Oliveira Sogabe, Joiari Pimenta, José Henrique da Silva
Martins, Josemar Strelow, Juan Carlos Trevisan da Silveira, Julia
Konieczniak, Julia Mont Alverne Martins, Júlia Oliveira, Juliana Muller,
Katia Regina Duarte Dias, Kawany Estevam, Kelly Cristina de Almeida,
Kleber Mateus, Kyanja Lee, Larissa Lilge, Larissa Pelosi de Souza, Laura
Maria Toledo, Leonardo Silva, Leoš Brasil, Lilian Vargas Pereira, Liliane
Santetti, LoboLimão, Loren Meri da Silva Faria de Lima, Lucas Azevedo,
Lucas Lima de Souza, Lucas Lins Viveiros, Luciana Cruz Bianco, Luciana
Liscano Rech, Lúcio Denner Andrade de Oliveira, Luiz Calcagno
Fettermann, Luiz Felipe Oliveira dos Santos, Luiz Fernando Souza, Luiz
Guilherme Costa Pellizzaro, Luiz William dos Santos, Madson Fernando
Mariano de Campos, Magnon de Oliveira Almeida, Manoel Roberto, Manu
Gunner, Marcelo Bittencourt, Marcelo Goossen, Marcelo Marques Lopes,
Marcelo Shiratori, Marcos Gomes, Marcos Nogas, Mariana Mattevi, Marilles
Fuchs, Marlon Ortiz Do Nascimento, Marlus Mikio Hara, Mateus José Alves
Pinto, Matheus Eduardo de Araujo, Matheus Fellipe Reguta, Max Pereira,
Melina Teles, Melissa Mundim, Miriam Sester Retorta, Myriam Rachel
Benayon Scotti, Naiá Lusvarghi, Natália Junghans, Nelson Almeida, Pablo
Alves, Paulo Kielwagen, Pedro Henrique Souza, Pedro Mauro Silva Silvério,
Philippe Lejeune, Priscila Barone, Rafael Barros Sicheroli, Rafael Negrini,
Rafael Santos, Raphael Souza Freitas, Rejane Cunha ,Renata Bittencourt,
Ricardo Guerra, Ricardo Müller da Costa, Ricardo Riamonde, Ricardo Rizzo
Takeyama, Roberto Valer, Robson Araujo Gonçalves, Rodolfo Salles,
Rodrigo Menezes, Rodrigo Queiroz, Rogerio Karam Salltori, Ronaldo de
Melo, Rubens Antonio Brito Júnior, Samuel de Almeida, Sandra Maciel,
Seung Beom Kim, Sidnei Puzzine Carvalho, Silvana Kocinba Custodio da
Silva, Stefânia Caixeta Magalhães, Stella Adriana Zanchett, Tamires
Rodrigues de Barros, Tathiana Jinno de Oliveira, Thais Lopes, Thel Menezes,
Thiago Fernandes, Thiago Fontes Carvalho de Queiroz, Tiago Dienstbach,
Ton Messa, Tuyne Ribatski Bertolazzo, Vagner Silva, Vanessa Bencz,
Vanessa Oliveira, Vinicius Gomes Barros, Viviane Cervati, Wagner Cunha,
Will Filus, Yara Teodora de Magalhães Teles Kociuba, Yoko de Magalhães
Teles, Zerzil Reis.

E, além disso, obrigado a Tolkien por construir o castelo, a Neil


Gaiman por abrir a porta e a Patrick Rothfuss por me convencer a entrar.
FANTASIA X REALIDADE
Apesar da liberdade criativa que o autor pode ter ao desenvolver
uma fantasia, procurei me prender bastante ao mundo real para as
características técnicas e históricas. Ao desenvolver a moto de Bro-Thum, por
exemplo, conversei com o Sérgio Artigas — além de ilustrador conhece
bastante sobre motocicletas — acerca da necessidade que eu tinha de criar
algo plausível, uma adaptação de uma moto real para as necessidades e
limitações de um anão.
O mesmo pode-se ver com relação à tecnologia a vapor. Em nenhum
momento tive pretensões SteamPunk, acho as possibilidades e obras com o
tema fantásticas (já citei um pouco da minha inspiração e referência em
Leviatã), mas eu queria algo moderno. A limitação de contato dos Alvores
com tecnologia veio naturalmente para mim, parecia algo certo a se escrever
e representa um pouco da teimosia das raças em permanecer vivas na Era dos
Homens.
Além disso, eu queria máquinas de guerra para os anões, queria
meios de transporte e possibilidades tecnológicas. Pesquisando sobre algumas
alternativas modernas, procurando fugir da tecnologia de combustíveis
fósseis e eletricidade, me deparei com a energia geotérmica. Ela já existe em
processo semelhante ao que descrevi, com uso do vapor de lençóis freáticos e
renovação com a injeção de mais água no subterrâneo.
Realmente, o vapor é tóxico, e isso se configura num dos grandes
empecilhos da utilização da tecnologia de modo mais abrangente, além da
dificuldade de localização, canalização e controle. Mas fiquei bem feliz e
satisfeito com a possibilidade e aplicação aos anões.
A história de Curitiba foi pincelada e introduzi os anões no meio da
realidade. O objetivo dos primeiros habitantes foi a exploração mineral, que
não se mostrou abundante, forçando-os a partir para agricultura e
agropecuária. Assim a região se desenvolveu e cresceu na Curitiba como é
(Curitiba realmente significa Terra de Muitos Pinheiros em Tupi).
O símbolo dos Bur, que está no Monólito da Praça Tiradentes, é na
verdade o Símbolo da Ordem Militar de Cristo que financiava a Escola de
Sagres (se ainda não perceberam, é o negativo da versão de uma “cruz de
malta”). A geografia que exploro da cidade é bem próxima da realidade, e
não pedi autorização aos donos dos imóveis e comércios para citá-los aqui;
espero que se sintam tão surpresos quanto os leitores. E não sei dizer o
motivo pelo qual Curitiba não tem metrô, isso está além da minha
compreensão.
O Passeio Público realmente tem aquela curiosa construção em uma
ilhota, com uma escada em espiral e um pedestal no topo. Se for lá hoje, vai
ver que a rachadura no piso está lá, a entrada para a chave se encontra
fechada com cimento e as runas estão apagadas. A Prefeitura está com um
Plano de revitalizar o Parque e fico muito feliz com isso, pois tenho
lembranças valiosas da minha infância nele.
PERSONAGENS
Aer’delo — Elfo. Um dos três que foram ao Conselho, recebeu
Tales como aprendiz e o cria como filho.
Ael’evendi — Elfo. Pai de Evana, acreditava-se perdido há décadas
até que foi trazido para Khur por Aer’delo.
Air’elifar — Elfo. Idealizador do combustível para os Berserkers
durante a Grande Guerra.
Ais’emora — Elfa. Mãe de Moro e avó de Tales. Morreu na Batalha
do Mediterrâneo, perto do final da Grande Guerra.
Aye’lena — Elfa. Antiga barda de Khur e mestra de Marcel.
Bur-Daem — Anão. Rei de Khur e dos Anões do Oeste, líder da
Liga dos Artesãos.
Bur-Dair — Anão. Avô de Bur-Daem e primeiro Rei de Khur.
Liderou a campanha que atravessou o Atlântico caçando mestiços.
Bur-Draim — Anão. Pai de Bur-Daem, antigo Rei de Khur e
Operador de um dos Berserkers.
Bur-Tuir — Anão. Filho de Bur-Daem e príncipe, membro da Liga
dos Artesãos.
Bro-Ogur — Anão. Mestre de máquinas de Khur.
Bro-Khuir — Anão. Pai de Bro-Muir e Bro-Thum
Bro-Thum — Anão. Primeiro anão que Tales conhece, batedor da
superfície e membro da Liga dos Artesãos.
Bro-Muir — Anão. Irmão mais velho de Bro-Thum, membro da
Liga dos Artesãos.
Bro-Nae — Anã. Filha de Bro-Thum e Kur-Tae.
Dwa-Lea — Anã. Mãe de Bro-Muir e Bro-Thum
Dwa-Tabo — Anão. Irmão gêmeo de Dwa-Tago e um dos
comandantes da guarda real.
Dwa-Tago — Anão. Irmão gêmeo de Dwa-Tabo e um dos
comandantes da guarda real.
Kur-Dour — Anão. Médico real de Khur.
Kur-Tae — Anã. Esposa de Bro-Thum.
Evana — Encantada de 1° Geração. Mãe de Tales, faz parte da
equipe que busca elfos e encantados na África. Filha de Sebile e Ael’evendi.
Érico — Humano. Pai de Moro e avô de Tales. Depois da morte da
esposa, não desejou criar Moro, que foi adotado por Sebile.
Marcel — Humano. Bardo de Khur e aprendiz de Aye’lena.
Moro — Encantado de 1° Geração. Pai de Tales, faz parte da equipe
que busca elfos e encantados na África. Filho de Érico e Ais’emora.
Sebile — Humana. Mãe de Evana e avó de Tales. Quando a filha era
pequena, recebeu Moro como protegido a pedido de Aer’delo.
Shkrenee — Mestiço. Um dos principais generais dos mestiços, foi
capturado durante uma troca de mercadorias.
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