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LEITURA CRÍTICA
Kyanja Lee
CAPA
Sergio Artigas
ILUSTRAÇÕES
Erike Miranda
DIAGRAMAÇÃO
Gabriella Regina
A.Z. C ORDENONSI
Santa Maria, outubro de 2014.
PRÓLOGO
— Não creio que chegará mais alguém. Vamos começar.
Era o ano de 2009 e Aer’delo chamara todos os elfos e encantados
que conhecia para a reunião. Havia décadas — desde a Grande Guerra — que
não se realizava um Conselho Élfico. Conforme as horas do dia se passaram,
seus medos se provaram reais. Todos os filhos das florestas sentiram o
encantamento que os chamava a Glastonburry, um dos últimos redutos com
alguma influência no plano etéreo, mas apenas outros dois elfos
compareceram. Só podiam imaginar se havia outros sobreviventes,
enlouquecidos pelo sofrimento do mundo ou perdidos.
Além dos três elfos presentes, havia quinze descendentes diretos dos
elfos com humanos, chamados de encantados. Entre eles um casal, Evana e
Moro, com um filho de 11 anos chamado Tales. Atento a tudo ao seu redor, o
garoto conversava com desenvoltura com vários dos presentes, pois falava
inglês, italiano, espanhol e português. Os pais moravam em Londres havia
alguns anos.
Todos pararam de conversar assim que Aer’delo abriu a discussão.
Acima de tudo, debateu-se sobre a decadência da raça dos elfos. A
era dos homens já durava milênios e as raças Alvores, todas as que chegaram
ao mundo no início dos tempos, estavam se extinguindo. Aer’delo ainda se
lembrava de quando os anões e elfos haviam tentado conviver com os
humanos, mas o espírito e a chama curta da vida dos homens mostrou que
eles estavam fadados ao orgulho e à busca pelo poder.
Foi na Idade Média que todos os Alvores — elfos, anões, orcs e
criaturas fantásticas — passaram a ser caçados.
Os anões começaram a ser vistos como aberrações e precisaram
descobrir algum modo de sobreviver, prolongar sua existência. Esconderam-
se então em montanhas e cidades subterrâneas, desenvolvendo tecnologias
próprias e perpetuando seus costumes e cultura; livros de medicina que antes
louvavam os conselhos e interferências élficas os culpavam por enfermidades
e falta de sorte; e os orcs, que pareciam ter sido feitos para viver nas sombras,
aproveitaram para aprender um pouco sobre a política e modo de agir
humanos. Mas, ainda assim, à sombra dos homens.
As criaturas Alvores, místicas e milenares, tinham sido caçadas
pelos homens e exibidas como troféus até desaparecerem. Foi então que
todos os seres que tinham alguma inteligência e organização começaram a se
esconder. Durante a Grande Guerra, travada em paralelo com as duas Guerras
Mundiais dos homens, a maioria dos elfos, encantados e anões sobreviventes
pereceram, mortos por orcs e seus aliados. A Grande Guerra foi o último
esforço para destruir a influência das raças obscuras sobre o reino dos
homens.
Mas, no final das contas, o objetivo do Conselho foi buscar a
sobrevivência da raça. Com o debate, decidiu-se criar uma organização para
buscar e reunir os encantados e elfos restantes. Os três elfos se espalharam
pelo mundo: Aer’delo foi designado às Américas, Ais’envar à Europa, e
Aes’sëa à Ásia. Os encantados também aceitaram a demanda e se dividiram
entre os continentes com o mesmo objetivo.
Depois das declarações finais, enquanto todos estavam se
despedindo, Evana e Moro, que foram designados para trabalhar na África, se
aproximaram de Aer’delo, cada qual segurando uma das mãos de Tales.
— Aer’delo, esse é nosso filho, Tales. De certo modo, sabe que ele
não existiria sem sua interferência. Somos gratos a você por toda a ajuda que
nos deu há anos. E é de livre arbítrio e desejo que honramos a tradição de
nosso sangue élfico e oferecemos nosso filho como aprendiz. Ele é forte e
curioso, aprende rápido, ensinamos tudo o que sabemos a ele: idiomas,
matemática, ciências e um pouco de arqueria. Não sabemos muito sobre a
viagem no plano etéreo. Seria uma honra se o aceitasse como o seu protegido.
— Seria uma honra. — Aer’delo abaixou-se para olhar o garoto nos
olhos. — Parece que esse Conselho já se mostrou como algo valoroso para a
nossa raça. Aceito Tales como o meu aprendiz, tomo a sua educação e vida
como minha responsabilidade, até que vocês o reclamem ou ele atinja a
maioridade. Passarei todos os conhecimentos e habilidades que puder.
Moro e Evana abraçaram seu filho e explicaram a importância da
decisão, mesmo que já o tivessem feito antes. Mas não temiam pelo garoto,
que desde o nascimento demonstrava uma personalidade forte, com uma sede
insaciável por descobertas. Haviam chegado ao limite do que podiam ensinar,
viajando por toda parte da Europa e mostrando o mundo dos homens ao filho,
mas agora ele demandava mais. Demandava uma educação Alvor.
Os pais se despediram do garoto com sorrisos e lágrimas. Tales
também chorou, mas, ao secar as suas lágrimas e olhar para cima, forneceu
aos pais um lampejo e antevisão de sua força e de seus feitos futuros.
Seu nome seria lembrado.
CAPÍTULO 1 - TROCA
Quatro anos depois...
Ael’evendi, o pai de sua mãe Evana, foi um elfo, e não havia nada
além disso para Tales. Ela foi criada na Itália pela mãe Sebile, uma
jornalista humana que sabia da existência dos elfos e conhecia Aer’delo.
Já Moro, seu pai, era filho de Ais’emora com Érico. Ela era uma
líder dos arqueiros e lutava na Grande Guerra junto a elfos e anões, mas
faleceu em uma batalha perto do fim da guerra. Érico não lidou bem com a
perda de sua esposa, e via Moro como uma lembrança constante da dor.
Decidiu entregar o filho para ser criado pelos elfos logo depois do fim da
Guerra. Desse modo, Érico acabou se tornando um dos fatores que
aproximou os pais de Tales.
Aer’delo foi um dos sobreviventes da Grande Guerra e cuidou de
Moro junto com outros elfos, mas as obrigações e demandas constantes de
seus responsáveis estavam tornado o garoto arredio e irritado. Então, em
1950, Sebile recebeu Moro em sua casa a pedido de Aer’delo. Ele tinha cinco
anos e foi aceito como protegido, lá conheceu Evana e, anos depois, se
apaixonaram. Quando se casara, decidiram começar a pesquisar sobre os
costumes e a história dos elfos.
Os encantados têm uma vida mais longa que a dos homens. Quando
estavam no auge da juventude — para eles, mais de cinquenta anos —,
Evana e Moro engravidaram de Tales. Viram o filho como uma dádiva,
tinham a honra e responsabilidade de um filho de dois encantados. Não
havia como prever como seria a vida dele, e por isso decidiram que, depois
de uma infância com todo amor, educação e dedicação de seus pais, dariam
a ele a chance de ser criado como um de seus antepassados Alvores.
Ao resumir assim os fatos, Tales viu que realmente não sabia muito
sobre seus pais. Voltou a atenção para a mesa: alguns anões e humanos
estavam retirando os próprios pratos e os de vizinhos; enquanto a maioria
saiu, alguns dos presentes continuaram sentados. Viu Ael’evendi sendo
levado pela rainha e levantou-se para segui-los, mas o rei tocou seu braço e o
interrompeu.
— Temos um registro dos Alvores que conhecemos e de boa parte
das suas ramificações, não é tão completo quanto gostaríamos, mas sua
linhagem está lá. Prometo que veremos isso mais tarde, poderá falar com ele
e inclusive me ajudar com isso. Mas agora chegou a hora da diplomacia, e
acho que vai querer saber por que você está aqui e o que mais aconteceu
ontem à noite.
CAPÍTULO 5 - ALMA
Tales respeitou a solicitação do rei, lembrou-se de Aer’delo e voltou
a se sentar. Ficou observando a direção para onde a rainha levava seu avô,
como se o elfo necessitasse ser guiado, apesar de não parecer cansado ou
fraco. Quando restava cerca de uma dúzia de pessoas, Bur-Daem pegou a
coroa da mesa, se levantou e começou a caminhar. Todos os presentes
acompanharam o movimento e o seguiram em direção à construção baixa.
Marcel tirou o violão das costas e começou a dedilhar uma melodia enquanto
caminhavam.
O rei se ajoelhou perante o trono, colocou sua coroa e levou a mão à
lateral do assento para pegar sua arma. Tales não havia reparado, ao entrar no
salão, no martelo de guerra, o cabo da altura do anão, escuro com uma rede
prateada que contrastava com o tom sombrio do metal. A cabeça era um
bloco prateado de corte simples como o trono, com o símbolo real formado
por quatro pingentes de rubi em cada uma das faces. Na extremidade do cabo
um cristal bruto transparente remetia ao teto do salão.
Bur-Daem levantou a arma real com uma leveza incompatível com a
sua aparência, acariciou os rubis e apoiou o martelo sobre o ombro enquanto
caminhava para a construção.
— Bonita, não? Chama-se Duthah-i-Bur, Coração dos Bur. Veio do
além-mar com o avô do rei e é uma das relíquias dos anões — Marcel disse a
Tales enquanto alterava o estilo e tom do dedilhado no violão. — Como era
mesmo?
O bardo iniciou uma melodia simples a três tempos e, quando estava
embalado no ritmo, cantarolou um trecho da canção que falava sobre o rei de
Khur.
“Armaduras, elmos, escudos
Quebrados, marcados a frio
Quatro gemas mar adentro
Feroz coração dos Bur”
— E é por isso, Tales, que achei que nunca veria um desses. Meu
próprio pai foi um dos operadores e morreu pouco tempo depois de empunhar
um Berserker. Eu o vi mais vivo do que nunca em seus últimos dias, até que
seu coração bateu pela última vez e ele deu seu último suspiro antes de se
unir à terra.
— Mas então... O que é isso? — Tales olhava para o recipiente nas
mãos do rei. Um líquido espesso e dourado se movimentava mais rápido do
que o normal em seu interior.
— Isso é algo que não deveria mais existir, é a única coisa capaz de
ativar as armaduras de batalha supremas criadas pelos anões e elfos. Isso,
Tales... É sangue de dragão.
CAPÍTULO 6 - SANGUE
Depois de ter aberto a caixa, o rei designou situação de alerta e
enviou membros da Liga para entrar em contato com os membros da Europa,
a fim de indagar sobre qualquer movimento referente aos Berserkers. Ia
esperar algumas horas até Shkrenee estar consciente, para então interrogá-lo.
O rei também enviou Tales à enfermaria para cuidar do ferimento na cabeça.
Mais tarde Bur-Daem iria conversar com Ael’evendi e precisaria dele
descansado e atento.
Tales recebeu do rei uma chave com três serrilhados em formato de
Y. Ela daria acesso a alguns dos setores principais da cidade. A rainha se
ofereceu para indicar o caminho; os dois caminharam até o fundo da sala de
reuniões e seguiram pelo corredor à esquerda, onde uma série de portas
gradeadas indicava a entrada de diversos elevadores. Havia pelo menos uma
dúzia. A rainha mostrou que a placa acima de cada entrada indicava o destino
do elevador e se dirigiu ao quinto, que indicava “Ala Médica”. Então,
apontou a fechadura para Tales. A chave entrou sem resistência: com um
terço de volta as luzes do elevador se acenderam; dois terços acionaram o
mecanismo e um som grave reverberou no elevador; a volta completa
destrancou a grade e empurrou a chave para fora.
A rainha abriu a grade e entrou, seguida por Tales. O espaço interno
era simples e bem iluminado, sem muitos adornos ou detalhes. Havia um
botão que deslizava e se alternava entre a posição ‘Salão Real’ e ‘Ala
Médica’. Assim que Dwa-Ella movimentou o botão, a reverberação do
maquinário recebeu um chiado baixo de vapor e começou a descer.
Ao parar no andar médico, Tales abriu a porta gradeada e entrou
numa sala grande, de paredes brancas e bem iluminada. Kur-Dour estava
esperando por ele e estendeu a mão para o encantado enquanto acenava para
a rainha, que voltou para cima sem ter saído do elevador.
O médico real era um anão muito velho, com manchas na cabeça e o
rosto bem mais enrugado do que o padrão da raça. Tinha a cabeça calva no
topo e cabelos curtos brancos nas laterais e nuca. Usava suíças longas e
óculos de lentes quadradas. Indicou uma porta, esperou que Tales entrasse e
baixou a cabeça dele para examinar o ferimento.
— Teve muita sorte, um corte limpo. Três pontos e um bom tanto de
repouso. — Agilmente, pegou gaze, linha, agulha e demais apetrechos,
borrifou um líquido que anestesiou a área e terminou a sutura. Fez um
curativo e indicou uma porta a Tales. — Pode repousar ali, se precisar de
mim, não hesite em chamar.
Tales caminhou até o quarto e se sentou na cama. Foi então que seu
corpo exigiu o descanso que ele estava negando. Cinco noites mal dormidas,
e um início de dia como aquele, tinham sido o bastante para levar o
encantado à exaustão. Nem se lembrou de quando deitou ou adormeceu.
Um movimento no quarto fez Tales acordar sobressaltado. Um anão
ruivo entrava pela porta. Tinha os cabelos bem curtos e um bigode farto que
escondia sua boca. Percebeu a semelhança com Bro-Thum e o curativo
enorme no seu ombro com uma faixa cruzando o peito. Trazia duas taças nas
mãos.
— Estava passando e pensei que gostaria de beber um pouco. Tales,
já bebeu hidromel antes? — Tales balançou a cabeça em negativa e meio
sonolento ainda. Bro-Muir entregou-lhe uma das taças e levantou a outra em
um brinde. — Devo parabenizá-lo por aquela flechada, Shkrenee mal saiu
vivo. Um brinde à sua mira.
O anão arrastou a cadeira do canto do quarto para perto da cama e
sorriu para Tales. A taça era pequena; ele a esvaziou num gole e Tales o
imitou, saboreando. O líquido era menos forte do que imaginava e o gosto de
mel no fundo da língua lhe agradou.
— Seu irmão contou sobre a briga com os wargs, creio que também
merece um brinde. Como está seu ombro?
Tales estava começando a acordar e tomar consciência de onde
estava.
— Isso não foi nada, devia ter me visto na Grande Guerra. Thum era
novo demais para batalhar, ele tinha só trinta anos, mas eu estive na linha de
frente. Nossas incursões atualmente parecem um passeio no parque, lutando à
sombra dos homens.
— À sombra dos homens?
— Esqueça, já perdi a conta das minhas taças e devo estar com a
língua solta. Mas enquanto eu estava aqui embaixo sendo costurado e
enfaixado, como foram as coisas lá em cima? Alguma notícia de Aer’delo?
— Nada ainda. O rei tinha dito que iria falar sobre ele, mas acho que
os Berserkers e o sangue do dragão acabaram por deixar isso de lado...
— Ah sim, os espólios do general devem ter intrigado o nosso rei. E
outra coisa, havia um elfo na reunião? Ael’evendi.
— Não, ele saiu no final do desjejum.
— Sabe onde ele está? E o sangue do dragão?
— Eu... Não sei — a vista de Tales começou a embaçar e falhar.
Bro-Muir se levantou e deixou sua taça na mesa ao lado da cama.
Começou a caminhar para a porta enquanto dizia:
— Pena, garoto, sinto muito por isso, de verdade. Mas foram claros
sobre seu destino... Adeus!
— Mas por quê? — A fala de Tales saiu pesada e pastosa.
Sem olhar para o encantado, o anão parou antes de cruzar a porta e
desabafou:
— Você é uma criança, Tales. Não viu a grande guerra, não viu o
que os homens fizeram. Nós lutamos por eles, mas continuamos sob seus pés
agora mesmo. Eles assistem ao pôr do sol enquanto nós nos contentamos com
um jogo de luzes aos pés de um rei fraco. Cansei de me esconder, os homens
não merecem o mundo que cedemos.
As palavras soavam abafadas para Tales. Deixou a taça cair e
imaginou ter escutado algo quebrando, mas parecia muito distante.
— Eu falei com o rei sobre isso, uma única vez. Mas ele negou
veementemente qualquer possibilidade, desconhecendo inclusive sobre
qualquer informação relativa aos sinos. Acredito nele, um segredo só pode
ser verdadeiramente mantido por uma pessoa, e algo poderoso assim não
estaria à mostra — Aer’delo tornara a se sentar. — Mas eu sei que está lá e,
mesmo com todas as intempéries que poderiam ocorrer, acredito que seja a
ferramenta mais poderosa para a glória élfica. Nosso tempo está se acabando,
precisamos ir. Seja forte e seguro com seu arco e sobreviverá, estarei ao seu
lado. Vai se surpreender com o que um velho como eu pode fazer.
Aer’delo ria enquanto se levantava. Esticou então as costas, tomou o
case de violão na mão e foi até a porta. Antes de abrir, Tales interrompeu.
— Mestre, só uma coisa que não entendi. Disse que poderia ler
sobre isso nos livros de história. História dos Alvores?
— Na verdade não, Tales. Marigalante era um dos nomes da
caravela. Era também conhecida como Santa Maria, e as outras duas
embarcações foram Pinta e Niña.
CAPÍTULO 12 - CHAVE
Bur-Tuir estava com medo. Ele se odiava por isso.
O lado B do LP já havia terminado. A agulha estava no sulco final,
batendo no limite da etiqueta e voltando para o mesmo sulco. O som
constante e rítmico o acalmava e ajudava a pensar no que estava por vir. O
príncipe usava o mesmo ritmo para martelar a adaga em sua bigorna, o aço
estava rubro e faíscas caiam aos seus pés.
Seu quarto era simples, com pouco mais de vinte metros quadrados,
e em uma das paredes havia um painel forrado de armas, peças e ferramentas
penduradas. Sob o painel uma bancada longa com motores abertos e peças de
Mecanos, além de diversos livros e folhas de projetos. Uma cama de casal
sem muitos luxos, um guarda roupa e dois stands de armadura.
Mergulhou a adaga no óleo, sentiu o cheiro de combustível
queimado, colocou o outro lado da arma na bigorna e voltou a martelar.
Desde sempre fora treinado, ensinado e direcionado para ser um
regente perfeito. Sempre fora um desafio viver à sombra do pai, que, na sua
idade, já regia Khur havia décadas. Compensava sua frustração trabalhando
todas as habilidades e ocupando os cargos que pudesse.
Aproximou o rosto do metal incandescente, percebeu o padrão do
aço, camada sobre camada, têmpera sobre têmpera.
Era o chefe da Guarda Real havia duas décadas. Embora tivesse
herdado a habilidade para operar Mecanos Reais, parecia não possuir os
instintos que fizeram seu pai ser o mais jovem operador dessas máquinas. Ele
se perdia nos comandos e não conseguia “tornar a máquina parte de si”, como
seu pai tentava lhe ensinar.
Jogou a peça no óleo. Não conseguiria uma boa arma naquele estado
de espírito.
Manejava armas brancas, de contusão ou de fogo com precisão, não
deixava a desejar na luta corpo a corpo e nem em estratégias de batalha.
Estudara história dos Alvores e tinha um orgulho fervoroso de sua raça e seus
ascendentes. Nunca aceitou muito bem a ideia da amizade entre elfos e anões,
gostava da independência que o subterrâneo oferecia.
Não tinha problemas com os humanos, que não se intrometiam nos
assuntos deles e ficavam nisso. Gostava de ouvir LPs em seu aparelho de
som analógico, não era nada pequeno, mas conseguia reproduzir seus discos
de heavy metal.
Mas não estava com cabeça para isso hoje, não depois de ouvir seu
pai falando sobre os riscos. Não depois de ouvir seu pai falando para ele estar
pronto. Para uma possível sucessão. Amava seu pai e, embora frustrado pela
sua própria limitação, admirava-o imensamente. Era inadmissível pensar em
substituí-lo, mas ali estava, fora uma ordem de seu rei e devia cumpri-la se
necessário.
Seu medo era pelo tom com o qual seu pai falara. Bur-Daem sempre
fora considerado por todos como um rei bom e carismático, que podia ser
visto almoçando na mesa do cidadão mais simples de Khur. Seu filho podia
reclamar de viver à sombra da grandiosidade de seu pai, mas nunca de não ter
sido amado ou recebido tempo suficiente.
Quando pensava em seu pai, lembrava-se da voz acalentadora e
presente. E dessa vez recordou o tom de voz do rei, que não foi nada rude,
pelo contrário, mas foi irredutível e claro em sua frase. E sem abertura para
réplica:
“Filho, vou precisar de você amanhã. Sei que temos nossas
diferenças, eu mesmo tinha com meu pai. Mas devemos trabalhar juntos
nessa hora. Não pense nisso como algo simples, é grande... Maior do que
pode imaginar. Tome essa chave, meu pai me entregou em um dos últimos
momentos de sanidade, ou quase isso. Enquanto me entregava, ele repetia:
‘Três chaves. Uma que é de todas, uma que é nossa, e uma que é de sangue.
Três chaves’. Eu não havia entendido, e ainda não entendo... mas pode ser
que precise disso. E esteja pronto para qualquer coisa que aconteça comigo.
Tenho orgulho de meu filho e herdeiro; será um grande rei.”
Bur-Tuir se recordava das palavras do pai, e ainda sentia a força do
abraço que se seguira, enquanto encarava a chave mestra. Ele mesmo já havia
feito algumas, era um dos primeiros desafios dados às crianças ao
aprenderem a brincar com ferramentas. Anões sempre foram conhecidos
pelas suas trancas e fechaduras, mas essa era diferente de tudo o que já
tivesse visto: do tamanho e formato de uma caixa de baralho, cabia na palma
de sua mão. Já vira seu pai, pensativo, segurando esse objeto, mas não
imaginava que fosse uma chave ou mesmo uma criação de seu avô.
Era feita de um metal avermelhado e, à primeira vista, não se viam
imperfeições ou marcas em toda a peça. Apenas quando se esforçou percebeu
um ponto minúsculo no centro da face maior. Ao pressionar o ponto com o
polegar direito, imediatamente sentiu uma fisgada. Suportou a dor enquanto
observava a caixa se alterar; na verdade, desejou que ela se alterasse. Uma
agulha se projetou de uma das faces menores da chave. Uma agulha fina
como um fio de cabelo e que se expandia conforme Bur-Tuir desejava; ao
ampliar sua vontade, a agulha se ramificou em quatro linhas que saíam
perpendiculares entre si e ao ramo original. Abriu os quatro ramos em mais
dezesseis e retirou o dedo. Uma gota de sangue ficara onde seu dedo estava
tocando e lentamente foi sugada pelo objeto; conforme o líquido desaparecia
dentro da chave, as ramificações recuavam. Em alguns segundos a chave
estava inerte, conforme a recebera de seu pai.
A chave era um experimento de Bur-Draim, misturando um pouco
da tecnologia desenvolvida para os Berserkers, mais operação de mecanismos
com a força de vontade. Manipulando ligações temporárias entre partículas
de pó de ferro meteórico, as possibilidades de formas eram muito altas. Não
serviria como uma arma, pois o sangue do outro interferiria nas ligações, mas
era absolutamente eficiente como chave mestra. Qualquer Alvor conseguiria
operá-la, mas os anões, como mestres de mecanismos, poderiam usá-la para
abrir qualquer tranca.
O príncipe deixou a chave sobre a cama e foi vestir sua armadura de
batalha; não ia subestimar os medos de seu pai. O equipamento fora feito sob
medida por Bro-Ogur, tinha cor de chumbo, uma armadura de batalha grossa
e pesada. Com marcas de golpes cortantes e perfurantes em diversos pontos,
demonstrava que era muito utilizada por Bur-Tuir. Era simples e sem entalhes
ou desenhos em sua superfície, além do símbolo dos Bur marcado no
peitoral.
Guardou as manoplas, botas e sua arma real em uma mala grande de
viagem. Fechou a mala e estava se preparando para sair quando escutou uma
batida na porta. Retirou a agulha do disco e colocou no descanso, desligou o
aparelho e abriu a porta. Sorriu ao ver sua mãe do outro lado; ela entrou e
ajustou algumas amarras e encaixes da armadura do filho.
— Lembro quando você se escondia dentro da armadura de seu pai,
certa vez ficamos horas procurando. Seu pai só o encontrou quando estava se
armando para avançar ainda mais longe, suspeitando de sequestros... Você
tinha cochilado enquanto esperava. — O semblante de Dwa-Ella passou de
saudoso para concentrado. — Sei que deixará seu pai orgulhoso, a ele e toda
Khur.
— Eu não... — Bur-Tuir levantou o rosto e encontrou o olhar da
mãe. — Obrigado, mãe.
A rainha trajava uma roupa de luta, calças justas e confortáveis e
uma blusa acolchoada. Usava a coroa simples, apenas um aro de metal com o
triângulo dourado dos Dwa em sua fronte. Havia uma espada curta em seu
cinto e não carregava nenhuma joia.
— A senhora minha mãe estava ocupada? — O príncipe imaginara
que sua mãe devia estar se preparando para ser diplomática na ausência de
dois membros da realeza e boa parte da corte, mas ela parecia ter outros
planos.
— Não se preocupe, estava treinando para desanuviar minha mente
dos problemas. Irei me preparar para cumprir minha função em breve. E
agora você deve ir. — Ela se despediu do filho com um beijo em sua testa
antes de sair do quarto.
O príncipe vestiu um sobretudo e fechou-o sobre sua armadura,
verificou as travas de sua mala grande de viagem, colocou a chave mestra de
seu avô no bolso e caminhou para liderar seu grupo.
Mesmo tendo seguido para a suíte real, a rainha não ia retirar a roupa
de treinamento, precisaria dela para realizar o pedido do rei. Amava o marido
exatamente pelo que ele era, antes mesmo de usar uma coroa, e sabia que ele
faria um sacrifício pelo bem maior. Mas, no que dependesse dela, o sacrifício
não seria necessário.
Se dependesse dela, haveria mais uma linha de frente contra os
mestiços. Já fazia mais de uma hora que seu marido havia descido para o
Arsenal, esperaria mais meia hora e desceria também. Enquanto fazia esses
cálculos, alisava os elos da corrente em seu pulso esquerdo. Se levantasse as
mangas da blusa acolchoada de treino, veria as linhas brancas de queimadura
pelo manuseio de Mecanos Reais.
INTERLÚDIO - ESPERANÇA
Shkrenee aguardava aquela oportunidade havia décadas: finalmente
o momento de conseguir alguma glória para sua raça. Ao lado da fonte do
cavalo, acendeu um charuto enquanto recordava tudo que o levara até esse
instante.
Como um mestiço, descendente de orcs, vinha de uma das mais
puras linhagens da raça. Assim que nasceu, foi separado de seus pais — esse
era o modo dos seus — e treinado para ser um guerreiro.
Aprendeu a história de seus ascendentes, desenvolveu seus sentidos
ao extremo do limite e treinou diversas artes marciais. Não tinha muita
capacidade de raciocínio nas ciências e em exatas, mas se destacava entre os
de sua classe em História dos Alvores e Táticas de Guerra.
O ódio aos elfos e anões era uma constante, repetida pelo
aprendizado e exemplo que encontrava nos livros de História, sempre
contada pelos vencedores. Desde que os homens colocaram os pés na terra,
foi para destrui-la e sugar seus recursos. Os seus antepassados, Orcs
guerreiros e territoriais, lutavam com selvageria e fúria extrema contra o
domínio dos homens, e isso lhes trouxe má fama.
Os anões e elfos nunca aprovaram os modos orcs, e os humanos
conseguiram alimentar essa rixa de algum modo. Os primeiros, com suas
tecnologias, e os elfos, com magias e encantamentos, logo conquistaram os
homens. Entretanto, o tempo provou a verdadeira natureza humana; mesmo
os outros Alvores foram marginalizados e tiveram de se recolher em suas
próprias organizações, mas a rixa com os orcs já estava enraizada em sua
cultura.
Os orcs tiveram de se esconder em cidades sem estrutura e em
lugares escusos; não tinham espaço nas florestas dos elfos, cavernas dos
anões ou cidades humanas. O orgulho da sua raça se misturou ao ódio da
exclusão e eles começaram a lutar pela supremacia, para sobreviver e ter
seu espaço. Mesmo com o ódio aos homens, abriram os braços para receber
os párias da sociedade humana, para quem os orcs representavam uma
possibilidade de sobrevivência. Dessa improvável união nasceram os
mestiços, filhos de homens e orcs, que sofriam com o preconceito das duas
raças. Eles tinham que se provar dignos da atenção e respeito dos orcs, e
eram expulsos do convívio dos homens pela sua aparência quase animalesca.
Durante séculos viveram assim, trabalhando para perpetuar a
linhagem e traços da raça guerreira enquanto sobreviviam em seus vilarejos
e bairros sem estrutura. Aprenderam também com os homens que precisavam
ser mais do que lutadores; precisavam estudar e desenvolver o intelecto. Os
mestiços tinham boa parte do raciocínio dos homens, e isso os destacou para
ensinar e fazer avançar a sociedade.
O estudo era voltado para o interesse nato da raça: táticas de
guerra, história geral, cutelaria. Com isso, desenvolveram uma hierarquia
mais organizada, produziram tecnologias próprias e passaram a entender a
política dos homens. Não há como precisar quando surgiu a organização,
mas dez dos principais mestiços, filhos de linhagens puras, criaram a
organização mais poderosa de sua raça, chamada Mão Negra. Os dez
generais tomaram para si a responsabilidade de retornar a glória de seus
antepassados.
Começaram a procurar, nas florestas e recantos intocados pelos
homens, remanescentes das bestas Alvores que tinham afinidade com os
orcs: wargs, trolls e outras criaturas que poderiam trabalhar com eles para
a vitória da raça. Além disso, não demoraram a descobrir que o instinto
destrutivo dos homens podia ser uma arma eficiente. Infiltraram-se na
política humana e implantaram alguns assassinatos, boatos e intrigas,
armando o palco para a chamada Primeira Guerra Mundial.
Esse feito deixaria em frangalhos a supremacia dos homens e
facilitaria o processo de tomada de poder pela Mão Negra. Mas os outros
Alvores não compartilhavam dessa linha de pensamento, e, em vez de
observar o declínio dos homens, decidiram atacar os orcs e mestiços. Quanto
aos elfos e anões, que já tinham uma estrutura e cultura própria
desenvolvidas, não tiveram que lutar para sobreviver e nem usaram a união
com os homens como uma oportunidade de crescimento.
Com o início da Primeira Guerra Mundial, começou também a
Grande Guerra dos Alvores, que destruiu a maior parte das raças antigas.
Os mestiços eram muito numerosos e contavam com infiltrados na
organização dos homens, que conseguiam armas, veículos e mantimentos
essenciais. Embora fosse inegável que a técnica e organização de batalha
dos anões e elfos superava em muito o furor dos Orcs e mestiços, os
recursos, o terreno e - principalmente — a quantidade de guerreiros em suas
fileiras fizeram a balança da vitória pender para a Mão Negra.
Mesmo em desvantagem, os elfos e anões começaram a aprender.
Colocaram seus próprios infiltrados na política, mais para anular os
esforços dos oponentes do que para manipular os homens. Apesar desse
esforço, a vitória parecia certa para os mestiços. Os anões eram supremos
em suas cavernas e subterrâneos; os elfos, em suas florestas, mas isso não
era o bastante para vencer uma guerra. Pouco a pouco foi diminuindo a
resistência ao exército numeroso e incansável dos mestiços.
A Guerra dos homens foi dividida em duas partes, principalmente
por intervenção na política por parte dos elfos e anões, e se aproximava do
auge quando surgiu um golpe inesperado. Shkrenee ainda não era nascido,
mas os mestres de Táticas de Guerra e História dos Alvores eram generais
da Mão na época, e viram de camarote seu castelo ruir.
Com a confiança inflada, a Mão Negra notou os exércitos dos anões
e elfos organizados, mais numerosos do que nas últimas duas décadas, e,
imaginando ser um último esforço, decidiu enviar todo seu poderio e se
tornar a última raça Alvor sobre a terra. Dizem que quatro dos Dedos se
mataram quando viram as frentes dos exércitos mestiços se abrindo, sendo
despedaçadas como papel por máquinas de guerra. Nenhum dos espiões
havia avisado sobre aquilo, e nada poderia desestabilizar mais um exército
do que tamanha surpresa.
Quase meio século sem ouvir a palavra ‘recuar’, os orcs
continuaram a batalhar os Berserkers - descobriram em pouco tempo o nome
das máquinas - do jeito que sabiam. O inesperado os fez retomar o furor de
batalha orc. No fim das contas não foram as máquinas que os derrotaram —
elas eram poderosas e incansáveis —, e sim o excesso de confiança e a
destruição da organização do exército, que os fizeram cair sob os machados
dos anões e as flechas dos elfos.
Os mestiços que ainda estavam infiltrados nos governos dos homens
foram assassinados ou desapareceram em uma semana. Algumas batalhas
ainda foram travadas, mas mais como uma tentativa desesperada de retardar
os inimigos a fim de possibilitar uma fuga dos líderes do que propriamente
pela esperança de vitória.
Os poucos que sobraram do exército se reuniram novamente,
chorando as perdas e amaldiçoando a derrota. O ódio pelos outros Alvores
superou o que tinham pela raça humana, e os Berserker se tornaram o
motivo de tudo. O que restou da Mão Negra desenvolveu uma necessidade de
afirmação: destruir tudo que as outras raças criassem, aproveitar cada
oportunidade para interferir nas ações de homens, anões e elfos.
Foi nessa época que começaram a fechar sua sociedade mais do que
nunca, incentivando o nascimento de mestiços das linhagens mais puras e
treinando-os de modo ainda mais rígido. Shkrenee nasceu em 1975, com a
sociedade mestiça se reestruturando e o militarismo mais forte do que nunca.
Aos vinte anos já treinava seu próprio batalhão, aos vinte e cinco foi
nomeado general das tropas e aos trinta assumiu como um dos Dedos da
Mão Negra. A Mão contava com seis membros, ninguém assumiria a
vergonha de ocupar o posto dos suicidas.
Quando receberam uma carta anônima com detalhes sobre o
funcionamento dos Berserkers, inclusive com a localização de um deles,
havia também um encontro marcado pelo remetente para dali a um mês.
Shkrenee não hesitou em tomar para si a responsabilidade; desejava
reacender o orgulho de seu povo, e essa possibilidade não devia ser
descartada. Pegou um navio para atravessar o mar até o sul do Brasil.
Um mês depois, teve que usar toda a resistência e controle para não
arrancar a cabeça do elfo que entrou no bar no dia e horário marcado.
Sentou-se à mesa calmamente e pediu uma garrafa de vinho em um
português fluente enquanto Shkrenee penava com um inglês sofrível pelos
últimos dias. Não simpatizou com o elfo, mesmo quando este lhe deu
instruções relativamente precisas da localização, inclusive de um possível
combustível para a máquina.
— Daqui a onze dias — explicou o elfo, num inglês articulado e
lento, para facilitar o entendimento ao seu interlocutor — posso lhe entregar
o combustível, contanto que me traga uma amostra intocada do sangue de
Ut.
— Rashkronik — blasfemou Shkrenee enquanto se levantava. As
poucas palavras da língua materna orc que ainda eram conhecidas se
resumiam a palavrões.
Ut fora um dos últimos orcs puro sangue. Falecera durante a
Grande Guerra com mais de cem anos. Uma de suas últimas ordens foi a de
guardarem amostras de seu sangue, antevendo que um dia a raça pura
pudesse voltar a caminhar sobre a terra. Era uma informação conhecida
apenas pelos Dedos; seria inconcebível revelar a informação da existência
de DNA orc, quanto mais ceder esse material.
— Acalme-se, general — o elfo sorriu e acenou para que sentasse.
— O fato de eu conhecer e mencionar Ut prova a minha boa vontade para
com a sua raça. Estou cansado desse jogo, quero mais do que me esconder e
observar meu mundo ser sugado.
Shkrenee sentou-se devagar e analisou a situação. Não daria uma
amostra do sangue intocado; se realmente o elfo estivesse a par de tudo,
também saberia disso, era impossível. Mas decidiu entrar na dança e ver
como as coisas correriam.
— Digamos que eu aceite. É só isso?
— Ah, não... Isso é só a passagem de entrada para o reino dos
anões. Não estou sozinho em minha insatisfação com a situação atual; farei
com que você seja capturado por dois anões, sendo que um deles o ajudará
a invadir o reino. De lá, espero que possam chegar à máquina que tanto
odeia e começar uma reação para mudar nossa balança de poderes. Mas
termine sua cerveja, tenho algum tempo ainda para lhe explicar os
detalhes.
— Absurdo... Simples assim? — Shkrenee estava confuso, parecia
algum tipo de truque ou emboscada, mas se fosse verdade, o golpe seria
mais profundo do que ele conseguia imaginar.
— Nunca é simples como planejamos, general. Mas creio que você
consegue lidar com imprevistos.
CAPÍTULO 13 - TOCA
Shkrenee amaldiçoava Tales mais uma vez enquanto trocava as
bandagens de seu pescoço. Já estava conseguindo falar e engolir com mais
facilidade, o que ainda não chegava nem perto do suficiente. Mas não havia
pus nem vermelhidão na ferida, o que era no mínimo um alento.
Aproveitou para adicionar o elfo e a si próprio na maldição. Aquele
maldito dissera que não haveria risco: um dos anões iria atirar nele para
deixá-lo ferido e em troca seria atacado por um dos wargs. Mas, em vez
disso, ele teve de contar com toda a agilidade e um punhado de sorte para
sobreviver ao arqueiro do alto da torre, além de ter errado o tiro. O anão
cumpriu sua parte do acordo, mas isso não eximia o elfo.
Pelo menos reforçaria sua antiga regra: não confiar.
— Algo para a dor? — O anão, que disse se chamar Bro-Muir,
estava jogando mais uma pílula garganta abaixo enquanto descansava do
trabalho.
— Guarde essa porcaria para você; a dor me mantém alerta. Não
posso renegar a minha melhor professora. — O mestiço terminou de fechar a
atadura e levantou olhando em volta. Estava começando a se sentir em casa.
— E a segunda amostra do sangue, está com você?
Bro-Muir tirou do bolso uma ampola de metal, mais simples do que
a original que estava em posse do rei. Fazia parte do plano deixar aquela em
poder deles; a segunda amostra estava dentro do corpo da mãe dos wargs, e o
anão tivera apenas alguns instantes para escondê-la no bolso da calça sem seu
irmão perceber.
— Tome — disse, enquanto atirava a ampola para o general. —
Espero que isso valha a pena, e que revire, de uma vez por todas, esse mundo.
Shkrenee pegou a peça no ar e a admirou por alguns segundos, antes
de guardá-la em segurança na bolsa de couro presa ao cinto. Lembrou-se dos
treinamentos da juventude; estavam sob a luz de duas lanternas a óleo em
uma toca rústica recém cavada pela máquina do anão. A toca surgiu quando a
bússola indicou o leste e o túnel seguia para o norte. Sabia que essa hora
chegaria, mas pensou que andariam um pouco mais para longe do trono.
Tivera de subornar alguns bardos para criar uma Bússola de
Sintonia, artefato geralmente produzido com materiais raros e escassos. Para
executar sua função era necessário ter, em sua constituição, parte do material
que se propunha a buscar; então, ao chegar a poucas centenas de metros do
elemento similar, podia indicar a direção e sentido dele. Para construi-la, teve
de ceder uma herança dos mestiços: um pedaço de Berserker, uma lasca de
poucos centímetros que só se soltou com muito custo e foi recolhida no meio
da batalha.
O sinal estava forte e claro à frente, e conectaram a máquina
escavadora a um dos dutos de vapor que havia nos túneis dos anões. Eles
nunca suspeitariam de traições dos próprios operadores. A máquina era
simples: uma gaiola com alavancas e um conjunto de brocas que giravam em
sincronia, abrindo um buraco de um metro e meio de diâmetro. Até agora
vinham cortando macio.
Bro-Muir pediu uma pausa para resfriar a máquina — cinco minutos
bastariam —, e aproveitaram para se organizar. O anão riu ao abrir o mapa
dos túneis e perceber que estavam se dirigindo ao Passeio Público. O maldito
mestiço estava com sorte: aquela área era protegida e não havia muitos
serviços passando por ali. Não queria a simpatia do General da Mão Negra,
mas pelo menos podia receber um pouco de respeito.
Ele estava ali por escolha própria, e não se arrependia disso. Sentia
pelo seu irmão, principalmente, mas ele haveria de entender. Quando os
homens tivessem caído e se rendido aos Alvores, quando o mundo fosse
dividido e redistribuído, Bro-Thum entenderia e se juntaria a ele. Mas até
então teria que ser um peão do jogo, um escavador.
Construíra a escavadora já pensando nessa necessidade, usando
peças sobressalentes das escavadoras reais. Ela provavelmente aguentaria até
o local da armadura, e lá veria como procederiam. O mestiço afirmou que
alguns dos seus estariam esperando na superfície. Indicou inclusive para que
escavasse num ângulo ascendente, estavam a quase 30° de elevação desde o
começo da escavação.
Era o ângulo para o qual apontava a bússola de Shkrenee, um
artefato curioso, alguns centímetros de metal flutuando dentro de uma esfera
de vidro com pontos cardeais desenhados e marcações de ângulo e distância.
Antes que, curioso, abrisse a boca para perguntar algo e recebesse uma
resposta torta, Bro-Muir levantou-se.
— Já é o bastante, podemos continuar — disse, enquanto prendia as
luminárias na sua escavadeira e ligava novamente o equipamento a vapor.
Tinha ainda o motor sobressalente, a diesel e com o tanque cheio, que
esperava não ter que usar, visto que a mangueira geotérmica tinha mais de
duzentos metros de comprimento.
A máquina avançava rapidamente — na velocidade de uma
caminhada —, as brocas abriam e compactavam a terra nas paredes e no solo,
forçando o passo conforme escavavam. Shkrenee caminhava alguns passos
atrás do anão, constantemente de olho na sua bússola e com a mão numa
espada curta que trazia na cintura, presente do anão para tentar compensar os
imprevistos.
Bro-Muir tinha certeza de que fazia o certo; a cada passo que
avançavam, estavam mais próximos de encontrar o Berserker de seu rei. Ele
mesmo sabia que o havia usado, mas não imaginava que o tinha trazido para
tão perto de seu reino. Os mestiços odiavam aquelas máquinas com toda a
sua alma, e com razão, visto que elas foram a causa principal de sua ruína.
Mas não foram a única causa. Com o silêncio sob a terra, ele se
lembrava da Grande Guerra, de quando aprendeu a regular os motores da
armadura de seu rei em meio a uma luta desenfreada. De quando ele mesmo
precisou pegar em armas e enfrentar mestiços que ousavam atacar seu rei.
Lembrou-se do orgulho de ser anão, do orgulho Alvor.
Já haviam avançado mais quase cem metros quando a escavadeira
travou.
Bro-Muir desligou-a rapidamente e saiu do veículo, para verificar o
que ocorrera. Era uma parede construída por anões, não havia dúvida, a solda
e a liga eram extremamente resistentes. Mas ele confiava em seu mecanismo,
tinha certeza de que a ponteira das brocas romperia a estrutura metálica.
— Anão, algum problema? — Shkrenee perguntou, aproximando-se.
— Por que paramos? Estamos próximos demais.
— Nenhum problema — Bro-Muir voltou para dentro da
escavadeira e acionou novamente a transmissão a vapor. — É melhor se
afastar um pouco, isso vai fazer algum estrago.
Ele baixou o ângulo de corte e a rotação, forçando o torque ao
máximo para perfurar a câmara criada pelo seu antigo rei. Lembrou-se de
quando era um garoto ainda e ajustava os medidores de pressão na armadura
de batalha de Bur-Draim. A admiração e orgulho de estar ali e lutar ao lado
de seu rei eram incomparáveis.
Conforme as brocas giravam e raspavam metal, e fagulhas caíam
sobre os bigodes e cabelos de Bro-Muir, ele se perdia nas lembranças da
guerra. O choque das armaduras, o som de espadas em armaduras e balas
ricocheteando, e no meio daquilo tudo os motores dos anões soando alto.
Sentia-se vitorioso e pleno, nascera para o campo de batalha, e não queria
mais viver no subterrâneo.
Não foram os Berserkers que venceram a guerra, foi o orgulho. Eles
apenas quebraram a linha de batalha, mas foram os anões que continuaram:
lâmina, diesel e vapor. Quando seu rei saiu de seu Berserker em uma das
últimas batalhas da Grande Guerra, estava amanhecendo. Lembrava-se do sol
lavando os campos e se refletindo no metal e no rosto de seus companheiros.
Era aquilo que ele desejava acima de tudo.
Engatou uma velocidade maior na escavadeira. A parede estava
começando a ceder, podia ver isso claramente. Não havia quem fizesse frente
a eles em batalha; Bro-Muir não ligava para a briga entre humanos, mestiços,
elfos ou anões... Apenas queria que todos percebessem aquilo: que foram eles
os vitoriosos, que fora graças a eles que o mundo não havia se despedaçado.
Não ouviu o general mestiço gritando ao seu ouvido enquanto corria
para trás; urrava uma antiga canção de batalha anã, sem letra, apenas sílabas
que lembravam o martelo moldando o metal. E as faíscas que saiam das
brocas da escavadeira brilhavam como estrelas — aumentou um pouco mais
a velocidade —, assemelhavam-se ao sol, como no dia da vitória.
E, num instante, o sol escureceu.
As brocas travaram todas ao mesmo tempo, abrindo uma fresta
mínima na parede, antes que o motor começasse a rugir como louco,
emperrado e sendo forçado ao máximo. Bro-Muir voltou do seu transe, mas
não tinha mais tempo de desligar a máquina, que continuava tentando girar e
escavar a liga suprema de um dos grandes reis anões. O anão saltou de seu
assento e correu para baixo, saindo do túnel. Podia ver a silhueta do general
mestiço avançando à frente, quase saindo da toca que cavaram. Olhou para
trás por mais um instante, a ponto de ver a escavadeira girando em torno de
seu eixo e puxando as mangueiras de vapor para sí. Quando percebeu o que
viria, mal teve tempo de virar o rosto e se jogar no chão.
E, um instante depois, o sol brilhou mais forte e quente do que
nunca.
A explosão fez tremer os alicerces dos túneis anões; o tanque cheio
de diesel, com a pressão do vapor e o espaço limitado da toca, fez Shkrenee
ser arremessado contra a parede na explosão, roupas e ataduras carbonizadas,
e os pelos do seu rosto queimados. O mestiço desmaiou com o choque.
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