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15. Cada ser humano é, na concepção de Bakhtin, único e ocupa um lugar único na existência (por
isso, diz ele sem piedade – em Toward a Philosophy of the Act, p. 40 – que ninguém tem álibi
para a existência, ninguém tem como escapar da sua responsabilidade existencial: temos o dever
de responder. Trata-se, nesse sentido, de uma ética sem concessões).
16. No entanto, cada um de nós é efeito da alteridade: nada sou fora das relações com os outros; nós
nos constituímos e vivemos nas relações com a alteridade. Ou, nas palavras dele nos
apontamentos para a reformulação do livro sobre Dostoiévski (Estética da criação verbal, p.
341):
Ser significa conviver. A morte absoluta (o não-ser) é o estado de não ser ouvido, de
não ser reconhecido, de não ser lembrado. Ser significa ser para o outro e, através do
outro, ser para si. O ser humano não tem um território interior soberano, está todo e
sempre na fronteira; olhando para dentro de si ele olha para os olhos de outro ou com
os olhos de outro.
17. Por isso também é que Bakhtin vai dizer que viver é responder, é assumir, a cada momento, uma
posição axiológica frente a valores. Viver é participar desse diálogo inconcluso que constitui a
vida humana. A dialogia é, portanto, fundante do nosso ser no mundo e da nossa própria
consciência.
18. Na expressão consciência individual há, na concepção bakhtiniana, uma contradictio in adjecto,
porque a consciência é sempre plural, no sentido de ser ela povoada por inúmeras vozes sociais
que ali estão como efeito do nosso existir no diálogo inconcluso com a alteridade. Nossa
consciência é sempre uma realidade plurivocal (heteroglóssica):
19. Mas a consciência de cada um não é um mero repositório dessas vozes, um tesouro acumulado.
A consciência é um universo em movimento contínuo na medida em que funciona sob a batuta
da dialogia. É, em outros termos, uma plurivocalidade (uma heteroglossia) dialogizada. As
vozes sociais que a povoam estão postas ali em contínuas relações dialógicas, seja porque essas
relações já estão dadas no social (e nós as reproduzimos), seja porque nos posicionamos
continuamente frente às vozes sociais e suas relações, seja ainda porque novas relações se
estabelecem singularmente (e de forma imprevisível) em cada consciência. Não podemos jamais
prever quais relações dialógicas poderão ocorrer em cada consciência, porque as relações
dialógicas podem se estabelecer entre dois quaisquer enunciados, mesmo separados um do outro
no espaço e no tempo e que nada saibam um do outro previamente a seu encontro.
20. A consciência é plurivocal (heteroglóssica) porque a sociedade em que ela se constitui e vive é
plurivocal (heteroglóssica). Para Bakhtin, a realidade social da linguagem é sempre heterogênea,
não apenas no sentido tradicional da heterogeneidade dialetológica e sociolingüística, mas
fundamentalmente pela estratificação axiológica (ver, em especial, a discussão desse assunto no
artigo “O discurso no romance”).
21. A língua enquanto língua, isto é, enquanto gramática, enquanto sistema de signos (ou sistema de
sistemas de signos), embora reconhecida como relevante por Bakhtin, não lhe interessa. Ele a
deixa para os lingüistas. Interessam-lhe as manifestações verbais concretas (ora chamadas de
enunciados, ora chamadas de textos – naquela variabilidade terminológica bem nossa conhecida
e explicitamente reconhecida pelo próprio Bakhtin – Estética da criação verbal, p. 392). E estas
não são entendidas primordialmente como atualizações do sistema da língua, mas como
manifestações da heteroglossia, isto é, da estratificação socioaxiológica da língua em vozes
sociais. Em princípio, o que ocorre é que a mesma língua é apropriada de maneira diferente por
diferentes grupos sociais. Ou, dito com outras palavras, cada grupo reacentua à sua maneira o
que é lingüisticamente comum. Nesse sentido, as comunidades lingüísticas não se confundem
com as comunidades verbo-axiológicas.
22. Bakhtin conceitua as vozes como complexos verbo-axiológicos cuja existência decorre do fato
inescapável de que as nossas relações com o mundo ao mesmo tempo que o refletem, o
refratam. Nossa cognição é necessariamente historicizada e semioticizada. Assim, nós nunca
podemos alcançar uma relação direta e pura (não-mediada) com o mundo; ele sempre é
apropriado de forma refratada, isto é, no interior de horizontes sociais de valores.
23. Esta heterogeneidade axiológica se materializa nas vozes sociais. É ela que torna polissêmicos
os signos lingüísticos. E polissêmicos não porque as palavras têm muitos sentidos (como
costumeiramente lemos nos manuais de lingüística), mas porque a semântica de nossos
enunciados remete sempre a diferentes modos refratados de dizer o mundo: eles significam em
relação a vozes sociais.
24. O que mais interessa Bakhtin, porém, não é propriamente a heteroglossia, mas sua dialogização.
As vozes sociais, pela boca dos falantes, vivem em múltiplos e contínuos contatos que
constituem uma imensa teia dialógica a que Bakhtin dá o nome de heteroglossia dialogizada.
Nela as vozes sociais se interiluminam, se interpenetram, se apoiam mutuamente, entram em
conflito, se contradizem, se rejeitam total ou parcialmente. É esse tenso embate dialógico que dá
dinamicidade à língua enquanto realidade social vivida.
25. Interessante notar de passagem, neste ponto, que a concepção sociológica subjacente em
Bakhtin é, assim, a de uma sociedade atravessada por conflitos e não uma sociedade saída do
contrato e do consenso. Nesse sentido, ele está mais próximo de Gramsci do que de Habermas.
26. Nesse amplo quadro de referências, ser autor é, a cada vez, orientar-se no caldo da
heteroglossia dialogizada; é assumir uma posição axiológica frente ao já multiplamente
valorado, é assumir um lugar nos embates da heteroglossia dialogizada, é ser dialogicamente
ativo, respondendo ao que já está dito. Não se produzem textos ex-nihilo ou por mera
atualização de potencialidades lingüísticas e/ou textuais.
27. Seria ingênuo, diz Bakhtin (Estética da criação verbal, p. 177), acreditar que a única coisa de
que o autor precisa é a língua qua gramática: no nosso fazer verbal, não tiramos o verbo da
gramática e as palavras do dicionário; nós tiramos dos lábios dos outros. A consciência
lingüística está sempre envolvida pela heteroglossia e de modo algum por uma só língua.
Sempre e em toda parte a consciência lingüística se encontra com línguas (vozes) sociais e não
com uma língua. Em cada uma de suas manifestações verbais, ela se coloca diante da
necessidade de se orientar ativamente nesse caldo plurivocal, de ocupar uma posição, de eleger
uma voz social, de construir relações dialógicas, de orquestrar dialogicamente a plurivocalidade
social. Mesmo quando selecionamos palavras, estruturas sintáticas, recursos coesivos, não o
fazemos tendo como referência o “estoque” da língua, mas os valores que saturam estes
elementos lingüísticos no contexto (na atividade) em que estamos.
28. Como a consciência lingüística é plurivocal e sua atividade verbal depende, a cada vez, de um
posicionamento frente à heterogeneidade, o autor do texto não se confunde com a pessoa física
que o enuncia, mas é entendido como uma função interna ao texto, como o elemento ordenador
da totalidade de sentido do texto.
29. Para se transformar em autor, a pessoa física tem de assumir, a cada vez, uma posição
axiológica (dentre as muitas que transitam em sua consciência), isto é, tem de assumir uma voz
social. A partir dela, construirá seu produto verbal, mobilizando enunciados heterogêneos
vindos de diferentes vozes sociais que ressoarão explícita e/ou implicitamente no texto. Vai
ordenar esses enunciados e responder a eles das mais diversas maneiras.
30. Nesse sentido, pode-se dizer que todo texto está marcado pela bivocalidade (isto é, pela voz que
o ordena e pelas vozes mobilizadas e que estão ali ressoando). No capítulo 5 do livro sobre
Dostoiévski, Bakhtin comenta alguns desses processos bivocalizadores. Não há ali nenhuma
intenção sistematizadora ou exaustiva. Como todas as taxonomias bakhtinianas, esta também é
apenas aproximativa, sugestiva e só serve mesmo para ilustrar suas idéias. Seria um equívoco
evidentemente tomá-la como modelo analítico.
31. Ainda sobre o texto, Bakhtin, em vários momentos, insiste que não se pode olhar o texto apenas
como um artefato, como uma coisa em si, como um objeto apenas verbal. É preciso pensá-lo
fundamentalmente como (e aqui embarcamos de novo na variabilidade terminológica
bakhtiniana) “obra”, como “texto implícito” ou (a propósito do texto poético) como objeto
estético – termos que podem ser compreendidos como designando o complexo de relações de
que o texto participa.
32. A unidade do texto não é dada primordialmente pela sua forma externa, mas no plano da “obra”,
isto é, a unidade é dada pelo amplo e complexo quadro de relações axiológicas que presidem a
atividade de produzi-lo (as condições concretas da vida dos textos, suas interdependências e
suas interrelações).
33. É este plano (que em alguns momentos é chamado de forma arquitetônica) que vai governar a
construção da massa verbal, a construção do todo do artefato (construção que, em alguns
momentos, recebe o nome de forma composicional), inclusive a seleção do material verbal (dos
elementos lingüísticos estrito senso).
34. Estudar o texto é, obviamente, estudá-lo em todas essas dimensões, interpretando sua forma
arquitetônica, isto é, explicitando as interrelações dialógicas que o constituem e dando a elas
uma resposta, já que toda compreensão é necessariamente responsiva. E também descrevendo,
na perspectiva da forma arquitetônica, a forma composicional.
35. Nesse trabalho analítico, é preciso – alerta-nos Bakhtin (Estética da criação verbal, p. 313) –
nos precavermos permanentemente de uma pretensão a uma análise abstrata exaustiva
(lingüística, por exemplo), porque a vida do texto está nas relações dialógicas que ele condensa
e no diálogo que ele suscita, diálogo que não conhece acabamento. Como ele diz na última coisa
que escreveu (Estética da criação verbal, p.410):
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico
(este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do
passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis
(concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no
processo de desenvolvimento subseqüente, futuro do diálogo. Em qualquer momento
do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos
esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo,
em seu curso, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo
contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de
renovação. Questão do grande tempo.
36. Por fim, gostaria de dizer que Bakhtin nunca se ocupou de questões propriamente pedagógicas.
No entanto, acredito que duas de suas reflexões podem ser úteis para nossas preocupações
concernentes a como ensinar nossos alunos a produzir textos. A primeira é a crítica que ele faz
ao teoreticismo (à separação abstrata entre o mundo da cognição e o mundo da vida) e sua
defesa da necessidade de reconstruir a unidade perdida. A tradição escolar, conteudística e com
pretensões enciclopédicas, está enraizada no teoreticismo. Ao trabalharmos como educadores,
temos, portanto, um desafio imenso (e eu me pergunto se ele é, de fato, realizável no contexto
da tradição escolar) de romper com o teoreticismo em nossas práticas e obter o envolvimento
existencial dos educandos (como pessoas concretas, socialmente organizadas) na experiência de
ser autor e de ser leitor ativamente partícipe do vasto diálogo cultural.
37. Por outro lado, no processo de ser autor, temos de conseguir que o educando rompa com uma
consciência lingüística que Bakhtin chama de ptolomaica (isto é, aquela consciência que,
embora plurivocal, não se percebe como tal e está dogmaticamente dominada por vozes sociais
incapazes de se verem umas pelos olhos de outras). Romper com essa consciência ptolomaica e
substituí-la por uma consciência que Bakhtin chama de galileana, uma consciência lingüística
relativizada capaz de se ver pelos olhos da bivocalidade, pelo mútuo aclaramento crítico das
vozes sociais.
38. Como educadores, somos desafiados a contribuir para desencadear e/ou acirrar o processo de
formação da consciência verbo-axiológica de nossos educando. Cabe-nos criar condições para
que as línguas da plurivocalidade entrem em interrelações dialógicas: conflitem entre si,
experimentem contradições, sejam bivocalizadas das mais diferentes maneiras (estilização,
paródia, polêmica, carnavalização).
39. Será neste embate dialógico continuado que a consciência individual se libertará da linguagem-
mito, isto é, não se entregará incondicionalmente às vozes que se apresentam como vozes de
autoridade, mas dará a todas as vozes um caráter internamente persuasivo (na terminologia
bakhtiniana), isto é, submeterá cada uma delas à dialogização máxima, aquela que põe à vista a
relatividade de todas as vozes.
40. Trata-se, então, de desenvolver nos nossos educandos uma consciência que não apenas reproduz
as vozes sociais como verdades absolutas, mas percebe-as, no fundo, como verdades relativas e
é capaz de trabalhá-las criativamente. Uma consciência assim, que opera com a palavra
internamente persuasiva, percebe, como diz Bakhtin (Discourse in the novel, p. 346-7 –
tradução minha):
... a sua abertura semântica para nós, sua capacidade para a vida criativa contínua no
contexto de nossa consciência ideológica [no sentido bakhtiniano do termo, isto é,
axiologicamente saturada], seu inacabamento e a inesgotabilidade da interrelação
dialógica contínua com ela. Nós ainda não aprendemos com ela tudo o que ela tem a
nos dizer, podemos colocá-la numa nova situação de modo a arrancar-lhe novas
respostas, novos insights referentes à sua significação e até mesmo arrancar-lhe novas
palavras que lhe são próprias (já que o discurso alheio, se produtivo, traz à luz uma nova
palavra nossa em resposta).
41. A esse propósito, encerro com uma última citação de Bakhtin sobre a consciência galileana
(Discourse in the novel, p.367 – tradução minha):
O que está envolvido aqui é uma revolução muito importante, uma revolução
efetivamente radical nos destinos do discurso humano: a libertação fundamental das
intenções semântico-culturais e emocionais face à hegemonia de uma língua única e
unitária e, conseqüentemente, a perda simultânea de uma percepção da língua como
mito, isto é, como uma forma absoluta de pensar. Desse modo, não basta apenas
desvelar a multiplicidade de línguas num mundo cultural ou da diversidade discursiva no
interior de uma língua nacional particular – temos de enxergar o coração desta
revolução, todas as conseqüências que dela emanam e isso só é possível em condições
sócio-históricas muito específicas.