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VERMELHOS
VARRIDOS
(fARSA EM 3 ATOS REINCIDENTES)
2018
AOS VERMES
QUE
MATARAM MARIELLE, APRISIONARAM
LULA
E INSTIGARAM MEDOS,
DEDICO
COMO REVOLTOSA LEMBRANÇA
ESTA
PROMESSA DE DESASSOSSEGO.
Índice
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próximas horas de civilidade. Um café
sonâmbulo e expresso. Arrasto a xícara à
borda da boca. As gotas me reverberam ao
fundo do recipiente humano. A necessidade
de café pra se suportar o dia é inversamente
proporcional à vida. E isso, não me engano,
é mais cálculo que poesia.
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crescente de um nude. Mas são tempos de
photoshop… E a celulite é o que me
apetece. Vestígios de carne, de realidade,
daquilo que possa se abocanhar. Uma
angústia me interrompe. A nota de um
drama pendente. Há dias o computador do
escritório dando sinais de que vai sucumbir.
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antecede a minha. O vestido me resvala no
passo até a porta. Se sou alvo do percurso
de sua vista, eu só saberia lhe voltando os
olhos. Por tão somente um olhar de viés,
tudo que vejo são incertezas.
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pobre. Aos ricos, meus grandes amigos, vou
servindo de piada e capacho. Proletários do
mundo, uni-vos? Finjo que nem é comigo.
Devo ser um milionário disfarçado.
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Por fim me sento e é dada a largada.
Um secreto e vil expediente. Entre uma e
outra planilha, as mesquinharias do dia se
alastram. Em mim mesmo já constato o
contágio. Um vexame ou outro no peito.
Quando auge do dia é o fracasso alheio, a
vida já se foi há muito tempo... Às vezes
acontece: alguém morre. Faz-se vaquinha
para uma coroa de flores. E o morto então
nos redime, sendo a última palavra a que
conta. Pois bem, já foi tarde. Que deus te
tenha e não nos devolva. Sou mais um
mesquinho, confesso, mas a merda que
penso eu ainda não falo. Guardo. Escrevo-
as. Me faço tricheira de deboche e ironia.
Caladinho melhor fica quem não tem nada
a dizer. Vovó e suas lições de guerrilha. A
merda não pode vencer.
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O telefone não toca. Voz alguma me
invoca. Um longo feriado à vista. A cada
pequena felicidade que vem, minha vida se
leva um pouco mais adiante. A cada
pequena felicidade que vai, me flagro
gritante no quão pouco que eu tenho. Não
tenho planos para o fim de semana.
Expectativa alguma me incita. Nada além
do primeiro passo, além dos muros para
fora daqui. Os amigos eu perdi pra igreja,
pra política rasa, pro intolerável discurso...
Quanto às mulheres, já não me iludo: só me
querem de mãos dadas em público. Penso
no meu refúgio, quatro paredes me isolando
do mundo, o encosto macio do sofá e,
quem sabe, netflix. Tomar emprestado a
emoção do dia. A coerência que me escapa
afora. Conceber que a distopia desta vida é
paraíso em outras mil realidades... Assim diz
minha empatia, mas o que prevalece é o
desprezo. Eu deveria ser o mínimo. Deveria
ser proibido ser menos.
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Tive um sonho na última noite. Uma
praia deserta. Eu chegava sem plano. Sob
um azul sem sol à vista, sentava-me à beira
de seu mar sem nome. E, por um tempo,
nada mais houve. A calmaria se estendia no
horizonte. As ondas, languidamente
constantes, se quebravam e se esticavam até
meus pés. Um molhar bem sorrateiro. De
pouco em pouco me levando. Minucioso,
fui me deixando. E de repente era tarde
demais. Fez-se em mim um insensível
absoluto. Estava oco. Carecia de tudo. Sem
vestígios do meu próprio abandono, me
lancei em desespero ao mar gelado. E fui de
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todo ao fundo. Alcancei o alto-mar. Nada de
barco, sequer um vento, nenhum perigo que
me alcançasse. O corpo anestesiado. O não
sentir se consolidava. Quando por fim avistei
um banhista, só havia uma coisa a fazer.
Nadei furtivo ao seu encontro. Uma mão
sobre a cabeça, outra lhe envolvendo
pescoço. Não houve resistência. Não houve
culpa. Não houve o choque que me traria de
volta. A expectativa da vida redescoberta na
morte, minhas mãos não a encontraram: sob
estas, apenas o corpo, e uma irrevogável
condenação. Prisão perpétua. Tudo acabado.
Eu aqui dentro, a vida lá fora, seguindo sem
o mínimo remorso. Então era isso a vida,
espiava eu através das grades. E a imagem
não me alcançava. Eu era o sonho a espiar a
mim, que espiava a vida através das grades.
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mínimo da vida que eu salvo a cada dia de
trabalho? Pizza de palmito e alho com
borda recheada de catupiry. As pequenas
felicidades têm seu preço, e é com apreço
que eu me sujeito a ser tão menos. Pontual
no serviço, revolução adiada. A utopia ficou
para as férias. Uma agência me prescreve o
itinerário. Às quartas levo putas no cinema
e, pervertido, me faço namorado. O
computador trava. Reinicio. Só voa quem se
lança do ninho. O primeiro dia de um novo
eu: semana que vem, sem falta. Hoje já não
tenho mais forças. Hoje o sistema venceu.
E o que é o sistema, meudeus? Fosse ele
homem, faria dele um homem morto.
Enquanto ele vive, vivo eu no limiar: entre
o medo de perder meu lugar e a fortuna que
me espera. E o que espero eu da fortuna? O
vazio é insubornável. Sigo socando no cu
consolos mais sofisticados. Ontem, na fila
da lotérica, um mendigo definhava ao meu
lado. Um real investido na sorte me pareceu
melhor que na miséria. Sou um animal no
cio. Necrófilo. Reinicio. O gabinete leva um
tapa. Hoje tem jogo do Barça. E essa greve,
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de quem agora? vai foder com todo o
tráfego. O celular me vibra a rodo:
novidades pornográficas. Entre elas, um
bom dia aos amigos (com a Graça do
Senhor, é claro). Aproveito o ensejo e fuço
no face: uma remota candidata à mulher da
minha vida. Cantava os Beatles e os Rollings
Stones, e hoje pede intervenção militar. Em
todo post, uma indireta, sem a sutileza do
que as indiretas já foram. Parecem todas
dialogar comigo. Me sinto no dever de
acompanhá-la. E a maior decepção nem é a
mediocridade, o senso comum, a ignorância
histórica: é que a maldita tá ainda mais
gostosa. Empenhou os livros pra pagar a
academia. Rio sozinho. O chefe me encara.
O computador trava, travo eu. Oito horas e
catorze minutos para o fim do expediente...
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Agora é assim!
“And now you do what they told ya.”
(Rage Against The Machine)
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Que horror! Mas amanhã tem
Curíntia. Tem churrasco no sábado,
no fim do mês show do Chico. E as provas, já
estudou para as provas? De repente a
notícia é de um conhecido.
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Alguém protesta, mas é só
uma opinião. Alguém protesta,
mas e a liberdade de expressão? Agora
o protesto é o vilão. Querem o direito do
desprezo ao próximo, do desprezo ao fato, do
desprezo à história: era tudo melhor quando vocês
sabiam. Sabiam do quê? Do seu devido lugar. Na
margem do mundo, o devido lugar, a vida se
esvai e o silêncio ecoa. Mas o preto
ousa. O viado ousa. A vadia
ousa me abandonar:
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É piada de mal gosto? Também, e deputado.
Candidato a presidente. Ah, mas nosso
povo, tão amistoso e tão festivo,
toda essa gente miscigenada
votar num caricato nazista? Trágico,
mas preciso: a ameaça comunista. Unicórnios
sadomasoquistas estão vindo nos sodomizar. Você
tem certeza? Absoluta: eu tenho um celular...
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virou tudo bandido, e
bandido bom é bandido morto.
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de igreja, adere à violência
e manda Cristo pra Cuba. Amai
ao próximo não rende fortuna. Lavai
as mãos ao recolher o dízimo. Eis o evangelho
do bilionário bispo: começai matando uns trinta mil...
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Se o senhor fosse presidente?
Daria o golpe no mesmo dia.
Heil Hitler?
Não é para tanto.
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Nada
“Me deixem cantar até o fim.”
(Elza Soares)
A princípio, ninguém
entendeu muito bem. Foi
confundido com uma quarta-
feira nublada. Era a falsa calma à
vista das falsas janelas em falsa
hora inusitada. Fotos, vídeos,
impetuosos juízos... A coisa ia
crescendo e se perdendo do seu
fato. As margens envoltas
cedendo sem conceber uma
razoável palavra. O que não se
esperava, o que sequer foi
cogitado, é que o nada fosse isso
mesmo que não era: nada.
Metade do continente já
não havia quando o nada se fez
entender. Quanto ao resto, era
questão de tempo, de pedaço do
mundo entre o nada e eles. Um
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governo se reuniu, outros
governos se reuniram àquele, e
logo o mundo dispunha das
Nações Unidas pelo Nada.
Foram meses no encalço de
alguma medida que lhe coubesse.
Enquanto nada se fazia, só a
evacuação era certa. Não havia
segredo: o nada vinha de um
lado, era só correr para o outro.
Mesmo que não houvesse lá
muita coisa, bem... Era melhor
do que nada.
A lógica não convenceu a
todos. No meio do caminho, um
Tal convencido: há quarenta
anos na mesma casa, nada o faria
se mover. Era pintor. Artista
recluso. Reprovava o rumo que
humanidade tomara. E se
quisessem saber de seu melhor
rumo, só por entrevista com
hora marcada.
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Armou a tela no quintal
de sua casa. Passou dias
retratando a paisagem. Apontava
ao inevitável horizonte em que
despontaria o anunciado nada. E
este chegou antes da hora:
branco como o Tal o imaginava.
Não havia imaginado a
indiferença: nenhum respeito aos
limites entre o céu e a terra. Veio
desfazendo nuvens e morros,
toda uma trilha de casas
amarelas, pinceladas de uma
brancura inequívoca que, sem
trégua, o alcançava. E o Tal as
repetia em seu quadro, no
mesmo ritmo, no mesmo traço,
na pretensão de que sua arte se
fundisse enfim à realidade. A
última pincelada não teve certeza
de quem deu.
De repente, o Tal
somente: nu, sem chão, à beira
de si mesmo... Girava em torno
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de seu próprio eixo, inerte e
submisso a sua gravidade. Ao
redor, via um só branco.
Absoluto. Interminável.
Nenhum alento, um sequer
obstáculo. Voltas e mais voltas e
ainda a mesma volta. Eterna
volta incompleta nos confins de
um completo nada.
E a hora já não era. Ou
todas as horas eram agora.
Quando um ponto lhe riscou a
vista, já estava convencido do
cansaço. Mas o ponto veio então
crescendo... Veio ganhando
forma. Veio até que se distinguiu
num homem tão nu quanto o
Tal se encontrava. Com
movimentos de um mergulhador,
o homem alcançou o artista,
pondo fim a sua rotação com uma
pegada firme no ombro. Tinha a
face toda lisa. A cara mesmo
chapada. Uma ordem cosmética
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impecável que o cabelo
emoldurava. E o corpo era sem
pelos. A postura, bastante altiva.
Mantinha movendo braços e
pernas como se fosse afundar se
não o fizesse.
Algum sinal de resgate?
O Tal lhe mirou a fundo:
quem viria nos resgatar?
O progresso, ora, como
sempre.
Progresso?
Progresso, civilização, um
Mcdonalds, pelamordedeus...
A resposta seguinte
hesitou. E, vendo que hesitava, o
homem foi direto: isso não tá te
cheirando coisa daqueles árabes?
Pronto, dito e feito: o Tal já
desprezava o Tipo. Ainda era seu
dever, no entanto, contestar toda
e qualquer palermice. Enfim, é o
fim, meu caro. O mundo por fim
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minguou. Teu progresso,
movido à ganância, foi o que nos
trouxe a este grande nada. Ou
melhor, ficou na encruzilhada: o
nada de um lado, do outro a
inércia. E o nada, que há tanto
esperava, veio ele impaciente ao
nosso encontro.
Uma vaga lembrança
tomou o Tipo enquanto o Tal
ainda discursava: chorosas
multidões avenida abaixo sob a
vista de um merecido escritório.
Ao final, bufou cansado.
Relaxou as mãos sob a nuca.
Nadava de costas ao redor do
Tal, batendo agora somente as
perninhas: No que você acredita,
meu querido? O que eu
acreditava há muito se perdeu. O
Tipo riu, Deve ser um consolo,
agora todo resto está perdido
também. Minha arte era a
negação do nada, mas o mundo
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nunca me compreendeu. Negar
o nada, meu querido, não te
levou mais longe que ninguém.
Vocês foderam com o mundo,
para onde mais eu poderia ir?
Quem quer, apenas vai, só quem
pode lhe impedir é o divino.
E reiniciou as braçadas o
Tipo, já cansado da lenga-lenga.
Sem cerimônia, foi seguindo de
novo por aquele oceano de
inexistência. O Tal ainda
reclamava um direito enquanto
ia ficando para trás... E a ideia de
ali permanecer lhe tocou
aflitiva naquele momento:
Espere, espere! Como você faz
isso? Sigo a correnteza, foi só o
que respondeu o Tipo.
Seguiram nadando juntos.
E, juntos, se puseram a sondar:
saídas, significados, quanto
daquele nada os envolvia?
Chegaram por fim aos lamentos
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e descobriram-se irmãos no que
perdiam. As perdas, no entanto,
se revelaram há muito tempo
perdidas, já desprovidas de
qualquer vestígio de que houve
um dia de fato: o nada vinha
somente corroborar cada
ausência. Na mais íntima
desolação, foram ao resgate de
seus instantes, qualquer coisa
ainda vívida no abismo de suas
memórias. Insuficientes a si
mesmos, reinvocavam então um
ao outro, implorando
reconhecimento nas migalhas de
vida de seus relatos. Preenchiam-
se do que restava, mas os restos
teimavam em vazar de seus
peitos. Tentavam, em vão, vedar
o peito quando um novo ponto
surgiu no horizonte. Veio se
aproximando constante,
confirmando a figura de uma
nova nudez.
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A nudez distinta os
deixou desconcertados: Uma
mulher! os dois constataram.
Abaixo ou acima, não se sabe ao
certo, mas uns dez metros os
desnivelavam. Em vez de nadar,
a mulher caminhava, e assim Ela
ia passando por Eles. Passava
assertiva. O passo urgente.
Passava tão perto sem sequer
avistá-los. E o Tipo e o Tal, que
se acreditavam acima, deixaram
afundar-se ao nível daquela. Não
encontrando chão algum,
tornaram a recorrer às braçadas.
Era preciso chegar até Ela, fez-se
o consenso numa troca de
olhares. Estavam agora contra a
correnteza. O Tal, como nunca,
acelerou o seu nado. Alcançou-
lhe ofegante. Tocou o seu
ombro. Num último fôlego,
lançou-lhe a questão:
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Consegue sentir o chão?
Sem interromper o passo, Ela lhe
voltou o olhar desentendido. Pra
andar, o Tal se explicou, Onde
afinal você pisa? Não parei pra
pensar nisso, e voltou-se para
frente de novo. O Tipo a
alcançou em seguida. Foi
acompanhando a mulher lado a
lado: Você sabe pra onde está
indo? Sei de onde eu quero sair.
Do outro lado, o Tal reatava: E o
que você acha que é esse nada?
Ora, o nada não é. Não pode ser
além de nada. Queria o quê, uma
metáfora? O Tipo riu e, de riso
no rosto, buscou-lhe uma
confiança mais prosaica: Qual é
sua história, minha querida? Eu
só estou é inconformada.
Inconformada com o quê?
Como com o quê? Não tem
nada, mais nada! E isso quando
eu ainda sou alguma coisa...
Também eram eles ainda. Ainda
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e a apesar de. Deram o braço por
fim a torcer e seguiram nadando
atrás daquela.
Engraçado, pensou vago
um deles, a vida toda busquei a
uniformidade. E agora, em meio
ao nada, tão somente o que
destoa é que me torna
esperançoso...
Passou-se uma hora.
Passou-se um século. Talvez
sincronia de tempos diversos.
Certo mesmo é que surgiu um
quarto ponto. Ou ali sempre
esteve até que se fez visto.
Surpreendeu a Eles, que ainda
nadavam, e teimavam em ser
surpreendidos. Mas a Ela, que
caminhava, era como se desde o
princípio o soubesse. Tratava-se
então de um Outro. Um
estranho Outro. Em nada
evidente. Algo comovente em
sua definição ainda frágil, ou já
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convicto da indefinição que lhe
coube. Em todo caso, algo
repugnante sob olhos mais
arcaicos... Postava-se ereto.
Braços cruzados. Alheio e de
olhar insolente. No desafio
daqueles olhos, Ela confirmava o
destino dos seus: Não
conseguem sentir? Eles não
sentiam. Estamos na origem
deste vasto nada. Isso quer dizer
que... Esse é o culpado pelo...
Não, caras pálidas: é justamente
quem ainda resiste! E já
caminhando de encontro ao
Outro, sua paciência lhes deu um
ultimato: Querem agora parar
com esses braços? Eles
prontamente obedeceram,
sentindo afinal os pés sobre o
chão.
O Outro se mantinha
impassível à presença que lhe
rodeava. Ela, com dedos atentos,
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foi deduzindo à margem de seu
toque: O nada e você não
convive. O nada não te quer
como parte. Então resiste, já não
se move, todos os fluxos te
conduzem à morte. O nada é
branco, homogêneo e conforme,
e você se afirma no seu contrário.
Desfazendo a ti, serei eu a
próxima e, um dia, até mesmo
Eles: quando sós se restarem em
vossas escassas singularidades...
Ela lhe tomou a mão e ali
marcou um terno beijo. Os olhos
áridos se moveram, buscando
pela própria mão. Umedeceram
até certo ponto. As frontes
vieram de encontro. Ela lhe
afagando a cabeça ferida, o
Outro se pondo a enredar seus
cabelos. Somos um, Ela agora
afirmava, somos um, como se
entoasse uma canção. Mas o
Outro, até então sem encará-la,
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de repente lhe cravou os olhos:
Não. Eu sou, você é. Somos
dois. E daqui só me arredo sendo
mais. Sentiu firme o toque do
Outro. Sorriu reconhecendo o
engano. Sim, Ela sorria, e agora
chorava, por ambos, Sim,
acenando a cabeça, fronte a
fronte resvalando, Sim eu sou,
sim você é, sim sim sim...
Em segundo plano, os
pontinhos se atentavam: entre
Ela e o Outro, nem vestígio do
nada. Tudo estava ali.
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Flávio Komatsu
nasceu em 1981, em Uberlândia (MG), e reside em
São Carlos (SP) desde 2013. É autor do romance
hipertextual Terminal. Escritor em dívida,
procrastinou a vida: esperava que esta começasse
aos 40. Foram anos adiando a literatura,
convencido de que viver era outra coisa...
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