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A quietude e a aceitação são decididas por aqueles que superam condições existenciais
extremadas.
…me amam braços que trabalham
contentes do mundo descontentes
e os arranhões acumulados no peito
exaurido do meu irmão atrás
das espigas, da estação, como rubis
mais rubros que o sangue…
[Adonis - Poemas, trad. Michel Sleiman]
Sofia Castro percorreu as Salas e Galeria do MNSR e a advertência estética assinalou-lhe duas
obras: a Cabeça de São Pantaleão e a pintura de Joaquim Vitorino Ribeiro, O Mártir Cristão
(1879). O pintor nasceu no Porto em 1849, tendo falecido em 1928. Foi contemporâneo de
Soares dos Reis, Silva Porto, Marques de Oliveira, Henrique Pousão e Artur Loureiro. Após uma
estadia em Paris, onde privou e foi tutelado (numa certa perspetiva) por Alexandre Cabanel,
radicou-se no Porto, assumindo as funções de Conservador da Galeria de Arte da Santa Casa
da Misericórdia do Porto. Deu continuidade à sua atividade artística, integrando o acervo da
Misericórdia do Porto, significativas pinturas privilegiando as suas criações enquanto retratista.
Ao tempo, em 1880, O Mártir fora exposto em Paris, sendo bem acolhida esta composição, tão
enigmática quanto impositiva. Acerca desta sua extraordinária pintura, comentou Cabanel:
"Un figure d'un trés joli sentiment" que lamentava o fato do artista não ser francês, como se lê:
“Voici M. Ribeiro, un artiste que à tout ce qu'il en faut pour devenir grand; c'est domage qu'il
ne soit pas français.” [citação a partir da notícia publicada quando 1º centenário do
nascimento do pintor, in Recortes de Jornais da FCG]. Estava certo. Joaquim Vitorino Ribeiro
foi ausentado das referências historiográficas da Arte que lhe cabiam, aliás à semelhança de
outros notáveis autores portugueses. Essa não-menção tendencialmente será remissiva,
atendendo à lúcida perspetivação de pesquisas que atualmente se desenvolvem quer na
academia, quer em plataformas concomitantes.
Uma das modalidades mais distintivas e relevantes para assinalar obras e autores
“esquecidos” consiste na decisão de artistas atuais eu, caso de Sofia Castro têm o rasgo de os
tomar como referência e sobre eles pesquisar em prol de uma criação própria e que os
celebra. Sofia Castro, soprou vida, deu uma nova alma estética ao centrar-se na figura pintada
do Mártir Cristão. Da pintura lisa e configurada dentro de seus contornos, soube transplantar-
lhe carne lívida e dramática. Reiterou os termos trágicos de uma estética expressiva, agónica…
A figura gerada por Sofia Castro, e que se estende contorcida na dor que também é
sua, introjetada sob égide do Mártir Cristão, quase está em estado de ausência, alheamento,
levantado misteriosamente do solo que a poderá acolher depois da eternidade. Cobre-a uma
velatura que é levíssima ainda que a imobilize, como pensou a Artista. Ambas figuras, a de
Joaquim Vitorino Ribeiro e a de Sofia Castro – convocam mulheres e homens sem nome que
simbolizam a saga do humano no mundo – agonizam por decisão da terra que as clama. A
tridimensionalidade do manequim, é uma metáfora da impotência quer do Mártir, quer do seu
Autor. A melancolia, a aquiescência tácita talvez se nutra de uma revolta intensa, ao mesmo
tempo que endereçam uma intencionalidade utópica. Pela demanda definitiva da aniquilação,
redimem-se as gerações vindouras. O Mártir Cristão significa, quiçá, a consciência que Joaquim
Vitorino Ribeiro teve, quanto à anulação do seu lugar na História da Pintura Portuguesa.
Plácida, imóvel, expurgando a dor e expressando o conflito – não mais aceitando - a
peça/figura tridimenionalizada, concebida especificamente por Sofia Castro, traz voz surda do
grito que reclama o lugar do Vitorino Ribeiro. Reclama-se o lugar de cada um de nós num
mundo que nos ignora, corrompe, anula, onde se impõem vontades de poder gratuitas e
cegas.