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As escrituras gnósticas e as origens cristãs

The Gnostic scriptures and Christian origins

Las escrituras gnósticas y los orígenes cristianos

Elisa Rodrigues

RESUMO
O artigo introduz nas características básicas de escritas gnósticas e
interpreta a intenção dos seus autores não como oposição radical a
tradição judaica e cristã, mas como re-leitura das suas escritas fun-
dantes na base do conhecimento a partir de uma conciencia superior.
Palavras-chave: Gnosticismo; cristianismo primitivo; Bíblia; her-
menêutica bíblica.

ABSTRACT
The article introduces the basic characteristics of the Gnostic scrip-
tures and interprets the intention of the authors not as radical oppo-
sition to Jewish and Christian traditions, but as a re-reading of its ba-
sic scriptures based in knowledge of a superior conscience.
Keywords Gnosticism; primitive; Christianity; Bible; Biblical Herme-
neutic.

RESUMEN
El artículo introduce las características básicas de los escritos gnósti-
cas e interpreta la intención de sus autores, no como oposición radi-
cal a la tradición judaica y cristiana, sino como relectura de sus es-
critos que tienen como fundamento el conocimiento a partir de una
consciencia superior.
Palabras clave: gnosticismo; cristianismo primitivo; Biblia;
hermenéutica bíblica.

[Edição original página 21/22]

Revista Caminhando, v. 11, n. 1 [17], p.19-30, 2010 [2ª ed. on-line 2010; 1ª ed. 2006] 19
[Edição original página 22/23] tram "a diversidade e riqueza espiritual"
dos primeiros séculos da EC. Assim co-
A guisa de introdução
mo Elaine Pagels ficamos curiosos com a
A discussão sobre o gnosticismo prin- sugestão de que se textos gnósticos fos-
cipia com a descrição do grupo que for- sem incluídos no cânon oficial, talvez a
mou o movimento. Primeiramente, o expressão cristã de hoje fosse diferente.
sentido histórico do termo gnóstico de-
signa o nome auto-atribuído por um
grupo de cristãos antigos, os gnõstikoi. Resumo da narrativa
Em segundo lugar, entende-se por
O mito Realidade dos Governantes é
gnóstica a literatura que apresenta os
iniciado com a evocação de um escrito
temas fundantes e a cosmovisão desse
Paulino (Ef 6.12): "Por causa da realida-
grupo. Os gnósticos pautavam sua rela-
de das autoridades, inspirado pelo espí-
ção com a divindade a partir do que lhes
rito do pai da verdade, o grande apósto-
era fundante: a gnose (substantivo do
lo — referindo-se às autoridades das
verbo gignósko que significa conhecer).
trevas — disse-nos que 'nosso combate
Gnose (gnôsis) significava o conheci-
não é contra carne e sangue; mas con-
mento, o contrário da ignorância. Seria
tra as autoridades do mundo e as hostes
um estado de consciência superior, co-
espirituais de maldade'" (RG 86,2-25).
mo "discernimento".
Em seguida, é relatado que Ialdabaõth
Neste ensaio discutiremos o gnosticismo
foi punido com cegueira por querer ser
como expressão religiosa de certos gru-
como Deus, o Pai da totalidade. Por isso,
pos cristãos. Utilizaremos o mito
foi chamado Samuel, que quer dizer
gnóstico A Realidade dos Governan-
deus cego em aramaico e indica o senti-
tes ou Hipóstase dos Arcontes da Bi-
do de ignorância. Depois disso, os go-
blioteca de Nag-Hammaddi' para inves-
vernantes viram a imagem da Incorrup-
tigar como os gnósticos concebiam a o-
tibilidade refletida sobre as águas e de-
rigem do cosmos e da humanidade.
sejaram possuí-la, como eles eram "de
Partimos do pressuposto que seus mitos
baixo" e a Incorruptibilidade "de cima"
fundantes expressavam a maneira como
isso não foi possível. Então, eles mode-
se relacionavam religiosa, social e politi-
laram um ser humano conforme o corpo
camente com o mundo. Tal expressão à
deles e conforme a imagem de Deus.
medida que refletia a cultura também
Esse ser, porém, não podia levantar-se
produzia a cultura gnóstica. As escritu-
e arrastava-se pelo chão. Embora o go-
ras gnósticas e as origens cristãs ilus-

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vernante-chefe tenha soprado sobre a mente souberam que estavam "nus do
face do ser, somente quando o espírito elemento espiritual". Por causa disso,
desceu e habitou depois de interrogados pelo governante-
chefe, Adão e Eva foram expulsos do
[Edição original página 23/24] jardim e a serpente, sem o espírito, foi
amaldiçoada.
nele, o humano deixou de ser animado e A expulsão do jardim resultou numa vi-
passou a ser alma-vivente. O ser huma- da de trabalho árduo para Adão e Eva.
no chamou-se Adão e logo foi incumbin- Eles tiveram como filhos Caim, Abel e
do pelos governantes de nomear os a- Set. O último, segundo Eva, substituiu
nimais da criação. Também dos gover- Abel que foi assassinado por Caim por
nantes veio o privilégio e a responsabili- causa da inveja que ele sentia de seu
dade de viver e zelar pelo jardim. Eles o irmão pastor, cujas ofertas votivas fo-
instruíram para que não comesse a "ár- ram aceitas por Deus. Depois, Eva deu à
vore do conhecimento do bem e do mal" luz Nõrea que, posteriormente, tendo
e lhe deram a mulher, que retiraram de sido impedida de embarcar na grande
seu lado e preencheram com carne, arca construída por Noé por orientação
chamada Eva. A partir da criação de dos governantes, soprou e destruiu a ar-
Eva, Adão retornou ao estado de ser ca que teve de ser novamente construí-
meramente animado e o espírito passou da. Os governantes vieram até Eva e
a habitar em Eva. desejaram-na também, mas ela os recu-
Depois disso, os governantes viram Eva sou chamando-os de "governantes das
e se agitaram. Desejaram possuí-la, trevas" e "malditos". Nõrea reafirmou
mas novamente a tentativa foi fracassa- que eles eram "de baixo" e os renegou,
da. O espírito que habitava em Eva riu- mas, tendo sido ameaçada pelos gover-
se deles, pois eram como ignorantes, e nantes, clamou pelo auxílio do deus da
disfarçou-se em árvore enquanto eles Totalidade e foi atendida. Um anjo,
desonravam apenas sua sombra. Então, Eleleth (prudência), veio em seu auxílio
o espírito, agora chamado de princípio e a instruiu sobre sua raiz.
espiritual feminino, deixou a árvore e Então se inicia uma nova parte do mito
passou para uma serpente que falou em que Nõrea é a narradora. Nesta
com Eva e instruiu-lhe a tomar e comer parte, a narrativa se parece com uma
do fruto da árvore do bem e do mal. Se- revelação e o mediador é o anjo que diz
gundo a serpente, esse fruto abriria os a Nõrea que os governantes não tinham
olhos de Eva e Adão e ambos seriam poder algum sobre ela. Ela era a raiz da
como deuses. Os seres meramente ani- verdade e "por causa dela ele é manifes-
mados comeram do fruto e imediata- tado no fim dos tempos e estas autori-

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dades serão dominadas". Depois dessas sofreram alterações na forma de apre-
coisas, o anjo revelou a origem do cos- sentação e nos conteúdos.
mos e da humanidade. Disse que Os textos que descrevem relatos sobre
Ialdabaoth era um ser andrógino gera- as origens do cosmos e da humanidade
do nas sombras, com forma de leão e, com caráter sagrado e de revelação di-
que, por ter ciúme de deus, foi conde- vina são considerados mitos. Na tradição
nado. Na sua condenação, ele criou o judaico-cristã, assim como na tradição
mundo e sete filhos para os quais se a- de outras civilizações antigas, os mitos
presentou como o deus da totalidade. de origens são comuns. Para G. S. Kirk,
Por causa disso foi lançado ao Tártaro os mitos servem a diferentes funções.
por Zoe, filha de Pistis Sophia. Um dos Isto significa que não são apenas narra-
filhos de Ialdabaoth, em face do poder tivas fantásticas acerca de divindades ou
de Zoe, voltou-se para a divindade e foi das origens. Os mitos possuem funções
encarregado do sétimo céu. O anjo en- como a organização de estruturas soci-
tão revelou que Nõrea era pertencente ais. Por isso, a narrativa mítica é muito
ao pai primevo, do alto e da luz incor- mais do que farsa ou lenda. Por trás do
ruptível. Os governantes não poderiam mito há um conjunto de imagens con-
tocá-la e, após três gerações, nasceria cretas que origina a narrativa e à medi-
aquele que os libertaria definitivamente da que o mito é recitado se materializa
do cativeiro e do erro das auto- em ações e relações sócio-culturais, que
fornecem sentido a seus grupos de ori-
[Edição original página 24/25] gem."
Embora alguns gnósticos refutassem a
ridades. O mito encerra com um poema
autoridade das escrituras reconhecidas
de libertação.
como de origem judaica e pretendessem
substituí-las, tanto a Bíblia Hebraica
A moldura quanto a literatura neo-testamentária
da literatura gnóstica eram produtoras de sentido para esse
Os gnósticos identificavam-se como pes- grupo. A ausência de lideranças instituí-
soas aptas a gnôsis de Deus. Esses das para coordenar os primeiros cristãos
grupos podem ser identificados também provavelmente possibilitou que não hou-
pelos termos setianos, barbeloistas, vesse uniformidade na maneira de inter-
barbelognósticos, ofianos ou ofitas. Sa- pretar e seguir os ensinos de Jesus.
be-se que a maior parte dos textos Embora a literatura gnóstica não faça
gnósticos que se conhece passou pelo parte do cânon oficial da igreja cristã
5
processo de cristianização e, portanto, podia ser encontrada com certa
facilidade nas comunidades cristãs, por

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volta do II e III séculos ainda.' É do universo (estrelas, plantas, terra, in-
provável que entre Roma, Egito e ferno e outros); criação de Adão, Eva e
Alexandria, as diversas escrituras e seus filhos e a história subseqüente da
tradições a cerca de Jesus e seus raça humana'.
ensinos circulassem de modo espon-
tâneo. Após a morte de Jesus, discípulos a) Os campos semânticos
e seguidores do movimento se guiavam
Os mitos gnósticos possuem termos que
pelas memórias dos apóstolos. Quando
aparecem freqüentemente. Os per-
essas testemunhas oculares começaram
sonagens míticos eram descritos em
a morrer foram substituídas, nas
termos de hierarquias celestiais, como:
liturgias das reuniões cristãs, pela
a descendência de Set (semente, poste-
leitura de escritos e das cartas paulinas.
ridade - Gn 4.25); os filhos da luz; a ra-
Provavelmente a expressão "grande
ça perfeita; a raça indómita. Outras ex-
apóstolo" presente em A Realidade dos
pressões importantes são: universo es-
Governantes seja referência a Paulo
piritual (com relação ao lar dos
(Cf. Cl 1.13; Ef 6.12). Essa passagem
gnósticos); grandes eternos éons; imor-
denuncia que, entre os gnósticos, Paulo
tais; totalidade; governantes; poderes;
era uma liderança respeitada. Bentley
autoridades (humanidade não-gnóstica,
considera que os textos gnósticos
os inimigos celestes demoníacos).
destacavam grande originalidade quanto
às interpretações da Bíblia Hebraica e do
b) Temas recorrentes
Novo Testamento, todavia, se
caracterizavam pela oposição ao Dualidades

movimento cristão. Mas, será que a A dualidade característica da estrutura


formulação dos escritos gnósticos de pensamento do mundo antigo e a ri-
validade entre universo espiritual e
[Edição original página 25/26]
material aparecem como fio que permeia
os principais temas dos mitos gnósticos.
teria seu motivo principal na oposição
Entre eles destacamos a renúncia à vida
aos escritos judaico-cristãos, como sus-
material, o ascetismo e a contemplação.
tenta esse pesquisador?
Esses três temas são invocados nos mi-

Mitos gnósticos sobre as origens tos como necessários comportamentos a


fim de que se obtenha o reino ou um
Os mitos gnósticos basicamente se de-
bem maior somente ganho no futuro.
senvolvem em quatro cenas: a expansão
Em geral, há certa similaridade com a
de um solitário princípio (deus) num u-
cos-movisão apocalíptica que compreen-
niverso não material e completo; criação

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de o mundo em termos de oposições judeus, antes e depois de Jesus, ao
(alto/baixo; bem/mal; corpo/espírito e evocarem o Gênesis, ensinavam desde
outros). como deveriam ser as ráticas sexuais
até como a nudez em úblico era
Ascetismo e abstinência
desprezível. O ato sexual era estinado à

Alguns ditos de Tomé demonstram certo procriação".

hermeticismo originado em antigos mo-


Batismo gnóstico
vimentos cristãos grego-egípcios que
promoviam a crença na divinização hu- O batismo era o rito que marcava a vida
mana. De acordo com a crença de uma espiritual do gnóstico. Envolvia renúncia,
essência divina interna, o corpo mortal instrução, aprendizagem e a iniciação de
se tornaria imortal em função do conhe- um novo estado de vida e parentesco.
cimento de si mesmo que conduziria o Com o batismr se recebia mbém a
humano ao conhecimento da natureza gnosis e a capacidade de vencer a
divina. morte. A pureza obtida ritualmente
Outras características dessa iniciação determinava o grau de parentesco com
hermética eram a ênfase na piedade e o divino e atribuía ao indivíduo status de
na pureza, principalmente a abstinência pessoa íntegra, portanto, filho da luz.
dos prazeres proporcionados pelo mun- Sexualidade
do. Porém, isso não significa que todos Para alguns gnósticos o sexo era com-
os herméticos eram ascéticos ou que to- portamento recriminável já que estava
dos os gnósticos fossem abstinentes. Al- ligado diretamente ao corpo que era
guns eram designados para procriar e concebido como matéria irrelevante. No
perpetuar a raça humana. entanto, em A Realidade dos
Governantes a repugnância ao sexo
[Edição original página 26/27] não é clara. Nessa narrativa, a beleza
atribuída ao ser celestial supremo foi re-
Elaine Pagels destacou em seu livro fletida nas águas e desejada pelos seres
Adão, Eva e a Serpente que as inferiores. O texto parece caracterizar a
histórias da tradição judaico-cristã beleza divina, mas o desejo pecaminoso.
falavam a res-ito da sexualidade, da Assim, torna a beleza inacessível e
abstinência ou a pureza sexual sempre enfatiza que o desejo não realizado tor-
por meio dos itos. Sempre que na-se impulso destrutivo. Os seres
mencionados, os rsonagens Adão, Eva e inferiores tentaram tomar a imagem da
a Serpente rviam para explicitar o Incorruptibilidade à força, mas
comportamento sexual judaico-cristão: o fracassaram. O estado de pureza de um
que deveria ou não ser feito. Professores

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gnóstico não assentia à mistura com impura e maldosa. Em oposição a essa
seres de outras espécies; "os de baixo": realidade, a alma
os governantes jamais poderiam se rela-
cionar sexualmente com os que fossem
[Edição original página 27/28]
descendentes de Set: “os filhos da luz”.

Geografia mítica
pura e boa, por meio da qual se chega-
As personagens dos mitos gnósticos se
ria à gnose de deus, submetia-se ao ju-
movimentavam freqüentemente entre os
go de estar presa ao corpo. Deste modo,
éons. Conforme A Realidade dos Go-
os impulsos "carnais" representavam pe-
vernantes, a Incorruptibilidade "do
rigo ao objetivo gnóstico de chegar-se a
alto" olha para baixo e sua imagem é re-
deus. Desejos, paixões e sexualidade,
fletida nas águas. Os governantes, "de
deste modo, entremeavam os mitos e
baixo", a vêem e se apaixonam. Assim,
estabeleciam limites de pureza e impu-
o mito traça espécie de geografia mítica
reza que regulavam a religião e a orga-
por onde as personagens passeiam
nização do grupo.
livremente. Tal jogo também está
Apesar do desejo dos governantes em
presente nos escritos bíblicos e agrega
apoderar-se da imagem perfeita da in-
outros sentidos. Tudo que é do alto é
cor-ruptibilidade refletida nas águas, o
bom (Cf. Lc 24.49; Tg 1.17; 3.15 e 16),
desejo não pôde ser atendido em função
Jesus é do céu e bom (ICo 15.47), mas
da hierarquia celestial, reforçada pela de
o que é de baixo é mal (Jo 8.23) e
geografia mítica. Essa cena lembra o
inferior ao que é do alto1"5. Tais temas
Gênesis: "a terra era sem forma e vazia;
não são exclusivos do movimento
e havia trevas sobre a face do abismo,
gnóstico, ao contrário, apresentam
mas o Espírito de Deus pairava sobre a
características semelhantes a outros
face das águas" (2.1).
grupos como Qumran.

A realidade dos governantes: auto-


Corpo e alma
ria, datação e origem
Os cristãos gnósticos compreendiam o Segundo a pesquisa apresentada por
corpo em termos de realidade material James Robinson, a RG é uma narrativa
finita, assim, chamavam-no anônima que se baseia em Gênesis 1-6
"vestimenta" da alma. Para esse grupo, sob a forma de discurso de revelação. O
o corpo era o depósito da alma, mas em texto denuncia certo toque helenístico,
si carregava o peso da materialidade mas é fortemente marcado por elemen-
tos da tradição judaica. O documento

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que pertence à biblioteca de Nag- protagonistas de duas esferas de poder
Hammadi é provavelmente do fim do sé- que se enfrentam — o bem e r> mal —
culo II e traduzido do grego para o cop- tal como nos mitos de combate orientais
ta. que, posteriormente, cederam suas es-
Os assuntos de data e proveniência são truturas para a teologia cristã do
complicados em decorrência da inter- evangelista João e do apóstolo Paulo.
prefação cristã que usa o Gênesis como Os personagens Imortais são: o Pai da
base. Assim, discurso de revelação, Totalidade — também chamado de
sote-riologia e escatologia teriam sido Verdade ou Luz incontaminada; a Incor-
resultados desse processo de ruptabilidade — que preside à totalidade
cristianização. É plausível que esse texto (onde reside o espírito virgem), superior
seja obra de algum mestre gnóstico com às autoridades do caos (RG 93,31); a
objetivo de instruir sua audiência. Ele, Sabedoria (Pistis Sophia); Vida (Zoe), a
assim como seu grupo, possuía filha de Pistis, Sophia. O Espírito ativo
conhecimento da literatura judaico-cristã na humanidade, Espírito de Vida, é
e submetia-se à autoridade paulina. Eles também o princípio espiritual feminino
seriam familiares à tradição judaica e à (RG 87,4-8).
apocalíptica cuja cosmovisão prevê a Os Governantes ou Autoridades figu-
providência e a esperança para ravam o espaço visível. Eles possuíam
comunidades reprimidas, seja por alma, mas não espírito. Eram animados
perseguição política ou pressão de (psykhikos) e não tinham lei. Eles
1
outros grupos religiosos *. Os gnósticos eram: Ialdabaoth, principal governante
teriam definido sua própria natureza (também chamado Sacia e Samael, deus
espiritual em oposição ao domínio e à dos cegos), Sabaoth, filho de
escravização das autoridades. Assim, os Ialdabaoth, os "Sete descendentes de
cristãos gnósticos podem ter esperado Ialdabaoth" (incluindo Inveja, Morte
que seriam mais duráveis que os arcon- etc) e "O Anjo da Cólera".
tes, e seus destinos celestiais seriam Basicamente a Humanidade dos textos
mais gloriosos. gnósticos fala a respeito de Adão, Eva
(contraparte de Adão) e os filhos Caim
a) Personagens míticos (gerado pelos governantes), Abel
A trama mítica gnóstica é repleta de (gerado por Adão), Set (gerado por
personagens. Em especial, em A deus), Nõrea (filha da
Realidade dos Governantes, os incorruptibilidade) os filhos da luz
personagens são (descendentes de Nõrea).

[Edição original página 28/29]

26 Elisa RODRIGUES. As escrituras gnósticas e as origens cristãs


b) Os filhos da luz versus os filhos Deus submeterá [Belial e toldos os anjos
de seu domínio e todos os homens de [seu
das trevas lote]
(1QM I, 13-15).
Na tradição literária judaico-cristã, ve-
rificamos menções sobre o dia do
Segundo L. Schiavo, no tempo de Jesus
enfren-tamento entre o bem e o mal: a
as idéias de oposição encontravam
batalha escatológica, considerada gêne-
terreno fértil em Qumran. No prólogo da
ro literário. A batalha escatológica alude
Regra da Comunidade o dualismo é
ao conflito que haverá entre os filhos da
afir-
luz (Cf. Lc 16.8; Jo 12,36; Ef 5.8; lTs
5.5) e os filhos das trevas no dia final. [Edição original página 29/30]
Esse conflito será protagonizado pelos
seres espirituais angelicais (liderados mado na divisão entre Filhos da Luz
por Miguel) versus os demônios em conflito com os Filhos das Trevas
(comandados por Belial). Alguns textos (1QS I, 9). Deve-se dar especial atenção
da literatura bíblica mencionam essa ao Tratado dos dois Espíritos (1QS
ocasião por meio de expressões como: 111,13-IV,26), na declaração que Deus
"virá o fim" (Mt 24,14), "dia do juízo" criou o homem para dominar o mundo,
(Mt 10.15) e "naquele dia" (Mt 7.22). e pôs nele os espíritos, para que cami-
Na RG, o Pai da Totalidade e os gnós- nhe por eles até o tempo de sua visita:
ticos enfrentam os Arcontes que repre- são os espíritos da verdade e da falsida-
sentam as autoridades das trevas (Cf. de (...) Na mão do Príncipe das Luzes
RG 97,10-19). De acordo a revelação na está o domínio sobre todos os filhos da
RG, os gnósticos obterão vitória sobre justiça; eles andam por caminhos de luz.
os Arcontes, mas deveriam conhecer E na mão do Anjo das trevas está todo o
essa realidade de autoridades más a fim domínio sobre os filhos da falsidade: e-
de combatê-las {RG 86,26). A oposição les andam por caminhos de falsidade
entre filhos da luz e filhos das trevas é (III, 17-21).
recorrente na tradição judaica. Algo semelhante acontece em II Melqui-
Atestamos sua aparição em diversos ex- sedec (11Q13). Neste texto, Melquise-
tratos de Qumran: dec é reconhecido como juiz
Na guerra, os filhos da luz serão os mais escatológico que realizará o julgamento
fortes durante três lotes para derrotar a
divino sobre Belial com a ajuda dos que
impiedade; e em (outros) três, o exército
de Belial se cingirá para fazer retroceder o estão ao seu lado, "os espíritos angéli-
lote de [...] Os batalhões de infantaria fa-
cos do céu" (11Q13, 7-8).
rão derreter o coração, porém o poder de
Deus reforçará o coração dos filhos da Nas tramas míticas, o combate entre luz
luz]. E no sétimo lote a grande mão de
e trevas era o fio condutor das relações

Revista Caminhando, v. 11, n. 1 [17], p.19-30, 2010 [2ª ed. on-line 2010; 1ª ed. 2006] 27
entre seres celestiais e humanos. Parece mem estigmas diferentes e invertem
que a cosmovisão apocalíptica e o funções, mas e-mergem do mesmo qua-
gnosticismo compartilhavam do mesmo dro de referências culturais.
universo simbólico que fornecia elemen- Apesar de ter sido alvo da interferência
tos fundantes para a formação da identi- de algum editor cristão, o mito gnóstico
dade e da religiosidade de ambos. As interpretou o Gênesis da Bíblia Hebraica,
guerras nas regiões celestiais espelha- fundiu elementos do ascetismo de
vam os conflitos do mundo material. To- Qumran e invocou a autoridade dos en-
davia, a batalha se dava na forma de sinos de Paulo. A incursão por essas lite-
continuidade e essa geografia mítica raturas, a nosso ver, demonstra que o
projetava os limites que delineavam as mestre gnóstico e sua audiência implíci-
comunidades gnósticas. ta não se opunham ao judaísmo e tam-
pouco ao cristianismo. Ao contrário, é
Considerações finais
mais provável que eles viviam essa tra-
Já foi sugerido que os escritos gnósticos
dição, todavia, representavam uma ex-
possuem similaridades com a literatura
pressão religiosa que se relacionava de
paulina. O emprego de termos como "fi-
modo diferente como os textos fundan-
lhos da luz", "filhos das trevas", "hostes
tes do judaísmo e do cristianismo. Ao
espirituais", "carne", "corpo", "alma",
passo que entre judeus e cristãos a ser-
"guerra", universo material e universo
pente simbolizava o desvio, os gnósticos
espiritual demonstram isso. Mas, além
considera-
disso, a lembrança do "grande apóstolo"
evocada no princípio do mito demonstra [Edição original página 30/31]
a relação estabelecida entre gnosticis-
mo, judaísmo e cristianismo dos séculos vam instrutora a sua atuação e revela-
I e II. dor o fruto da árvore. Para eles, o cami-
Assim como as epístolas paulinas abran- nho que os conduziria ao encontro com
giam certamente o perímetro Roma, Egi- Deus era o conhecimento obtido por
to e Alexandria, tais tradições míticas meio de um estado de consciência supe-
também circulavam, mas a recepção das rior.
comunidades era autônoma. Apesar de A Realidade dos Governantes, entre
não serem identificados na literatura ne- outras coisas, fornece pistas sobre con-
o-testamentária, os governantes são si- cepção religiosa e organização social
nônimos dos "principados" e das gnóstica. Para nós, o gnosticismo e sua
"potestades do mal" de Paulo (Cf. Ef literatura refletem o dinâmico panorama
3.10; 6.12; Cl 1.16; 2.15). Com isso, religioso do I século da EC e requer da
percebemos que os personagens assu- exegese reaproximação com referencial

28 Elisa RODRIGUES. As escrituras gnósticas e as origens cristãs


teórico atento às peculiaridades das ori- Gospel of Thomas. Leiden/New York:
gens cristãs, e isento das classificações Brill, 1996.
FALLON, Francis T. "The Gnostic Apoca-
"ortodoxas" e ou "heréticas". As re-
lypses" In: Semeia 14 (1979): p. 123.
formulações gnósticas da herança judai- FRANGIOTTI, Roque. História das He-
co-cristã expressavam a autonomia de resias: Séculos I-VIlConflitos Ideo-
lógicos Dentro do Cristianismo. São
grupos cristãos que se apropriaram da
Paulo: Paulus, 1995.
força simbólica das narrativas sagradas GRUENWALD, Ithamar. From Apo-
e reordenaram suas interações sociais à calypticism to Gnosticism. Frankfurt:
Peter Lang, 1988.
luz dos novos sentidos que atribuíram
KING, Karen. What is Gnosticism.
aos símbolos da tradição. Embora os no- Cambridge: Harvard University Press,
vos sentidos aparentemente sejam con- 2003.
trários à interpretação judaica e cristã, KUNTZMANN, R. e DUBOIS, J. D. Nag
Hamma-di: o evangelho de Tomé.
eles são, para nós, apenas inversões
Textos gnósticos das origens do
que se dão em contextos onde há pro- cristianismo. São Paulo, Paulinas,
cessos de difusão de outros sistemas 1990.
LAYTON, Bentley. As Escrituras
culturais.
Gnósticas. Traduzido por Margarida
Portanto, não se trata de oposição sim- Oliva. São Paulo: Loyola, 2002.
plesmente, mas de inversão ocasionada MARTINUS, Boer de. A influência da
pelos processos de adaptação cultural a apocalíptica judaica nas origens do
cristianismo: género, cosmovisão e
que os cristãos estavam continuamente
movimento social. Tradução de de Paulo
expostos. Augusto de Souza Nogueira. In:
Estudos e Pesquisas em Religião
19(2000), p. 11-24.
PAGELS, Elaine. Adão, Eva e a
serpente. Tradução de Talita M.
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O evangelho desconhecido de Tomé.
um redentor celestial e juiz
Trad. Manoel Paulo Ferreira. Rio de
escatológico. Um estudo de
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