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Elisa Rodrigues
RESUMO
O artigo introduz nas características básicas de escritas gnósticas e
interpreta a intenção dos seus autores não como oposição radical a
tradição judaica e cristã, mas como re-leitura das suas escritas fun-
dantes na base do conhecimento a partir de uma conciencia superior.
Palavras-chave: Gnosticismo; cristianismo primitivo; Bíblia; her-
menêutica bíblica.
ABSTRACT
The article introduces the basic characteristics of the Gnostic scrip-
tures and interprets the intention of the authors not as radical oppo-
sition to Jewish and Christian traditions, but as a re-reading of its ba-
sic scriptures based in knowledge of a superior conscience.
Keywords Gnosticism; primitive; Christianity; Bible; Biblical Herme-
neutic.
RESUMEN
El artículo introduce las características básicas de los escritos gnósti-
cas e interpreta la intención de sus autores, no como oposición radi-
cal a la tradición judaica y cristiana, sino como relectura de sus es-
critos que tienen como fundamento el conocimiento a partir de una
consciencia superior.
Palabras clave: gnosticismo; cristianismo primitivo; Biblia;
hermenéutica bíblica.
Revista Caminhando, v. 11, n. 1 [17], p.19-30, 2010 [2ª ed. on-line 2010; 1ª ed. 2006] 19
[Edição original página 22/23] tram "a diversidade e riqueza espiritual"
dos primeiros séculos da EC. Assim co-
A guisa de introdução
mo Elaine Pagels ficamos curiosos com a
A discussão sobre o gnosticismo prin- sugestão de que se textos gnósticos fos-
cipia com a descrição do grupo que for- sem incluídos no cânon oficial, talvez a
mou o movimento. Primeiramente, o expressão cristã de hoje fosse diferente.
sentido histórico do termo gnóstico de-
signa o nome auto-atribuído por um
grupo de cristãos antigos, os gnõstikoi. Resumo da narrativa
Em segundo lugar, entende-se por
O mito Realidade dos Governantes é
gnóstica a literatura que apresenta os
iniciado com a evocação de um escrito
temas fundantes e a cosmovisão desse
Paulino (Ef 6.12): "Por causa da realida-
grupo. Os gnósticos pautavam sua rela-
de das autoridades, inspirado pelo espí-
ção com a divindade a partir do que lhes
rito do pai da verdade, o grande apósto-
era fundante: a gnose (substantivo do
lo — referindo-se às autoridades das
verbo gignósko que significa conhecer).
trevas — disse-nos que 'nosso combate
Gnose (gnôsis) significava o conheci-
não é contra carne e sangue; mas con-
mento, o contrário da ignorância. Seria
tra as autoridades do mundo e as hostes
um estado de consciência superior, co-
espirituais de maldade'" (RG 86,2-25).
mo "discernimento".
Em seguida, é relatado que Ialdabaõth
Neste ensaio discutiremos o gnosticismo
foi punido com cegueira por querer ser
como expressão religiosa de certos gru-
como Deus, o Pai da totalidade. Por isso,
pos cristãos. Utilizaremos o mito
foi chamado Samuel, que quer dizer
gnóstico A Realidade dos Governan-
deus cego em aramaico e indica o senti-
tes ou Hipóstase dos Arcontes da Bi-
do de ignorância. Depois disso, os go-
blioteca de Nag-Hammaddi' para inves-
vernantes viram a imagem da Incorrup-
tigar como os gnósticos concebiam a o-
tibilidade refletida sobre as águas e de-
rigem do cosmos e da humanidade.
sejaram possuí-la, como eles eram "de
Partimos do pressuposto que seus mitos
baixo" e a Incorruptibilidade "de cima"
fundantes expressavam a maneira como
isso não foi possível. Então, eles mode-
se relacionavam religiosa, social e politi-
laram um ser humano conforme o corpo
camente com o mundo. Tal expressão à
deles e conforme a imagem de Deus.
medida que refletia a cultura também
Esse ser, porém, não podia levantar-se
produzia a cultura gnóstica. As escritu-
e arrastava-se pelo chão. Embora o go-
ras gnósticas e as origens cristãs ilus-
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dades serão dominadas". Depois dessas sofreram alterações na forma de apre-
coisas, o anjo revelou a origem do cos- sentação e nos conteúdos.
mos e da humanidade. Disse que Os textos que descrevem relatos sobre
Ialdabaoth era um ser andrógino gera- as origens do cosmos e da humanidade
do nas sombras, com forma de leão e, com caráter sagrado e de revelação di-
que, por ter ciúme de deus, foi conde- vina são considerados mitos. Na tradição
nado. Na sua condenação, ele criou o judaico-cristã, assim como na tradição
mundo e sete filhos para os quais se a- de outras civilizações antigas, os mitos
presentou como o deus da totalidade. de origens são comuns. Para G. S. Kirk,
Por causa disso foi lançado ao Tártaro os mitos servem a diferentes funções.
por Zoe, filha de Pistis Sophia. Um dos Isto significa que não são apenas narra-
filhos de Ialdabaoth, em face do poder tivas fantásticas acerca de divindades ou
de Zoe, voltou-se para a divindade e foi das origens. Os mitos possuem funções
encarregado do sétimo céu. O anjo en- como a organização de estruturas soci-
tão revelou que Nõrea era pertencente ais. Por isso, a narrativa mítica é muito
ao pai primevo, do alto e da luz incor- mais do que farsa ou lenda. Por trás do
ruptível. Os governantes não poderiam mito há um conjunto de imagens con-
tocá-la e, após três gerações, nasceria cretas que origina a narrativa e à medi-
aquele que os libertaria definitivamente da que o mito é recitado se materializa
do cativeiro e do erro das auto- em ações e relações sócio-culturais, que
fornecem sentido a seus grupos de ori-
[Edição original página 24/25] gem."
Embora alguns gnósticos refutassem a
ridades. O mito encerra com um poema
autoridade das escrituras reconhecidas
de libertação.
como de origem judaica e pretendessem
substituí-las, tanto a Bíblia Hebraica
A moldura quanto a literatura neo-testamentária
da literatura gnóstica eram produtoras de sentido para esse
Os gnósticos identificavam-se como pes- grupo. A ausência de lideranças instituí-
soas aptas a gnôsis de Deus. Esses das para coordenar os primeiros cristãos
grupos podem ser identificados também provavelmente possibilitou que não hou-
pelos termos setianos, barbeloistas, vesse uniformidade na maneira de inter-
barbelognósticos, ofianos ou ofitas. Sa- pretar e seguir os ensinos de Jesus.
be-se que a maior parte dos textos Embora a literatura gnóstica não faça
gnósticos que se conhece passou pelo parte do cânon oficial da igreja cristã
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processo de cristianização e, portanto, podia ser encontrada com certa
facilidade nas comunidades cristãs, por
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de o mundo em termos de oposições judeus, antes e depois de Jesus, ao
(alto/baixo; bem/mal; corpo/espírito e evocarem o Gênesis, ensinavam desde
outros). como deveriam ser as ráticas sexuais
até como a nudez em úblico era
Ascetismo e abstinência
desprezível. O ato sexual era estinado à
Geografia mítica
pura e boa, por meio da qual se chega-
As personagens dos mitos gnósticos se
ria à gnose de deus, submetia-se ao ju-
movimentavam freqüentemente entre os
go de estar presa ao corpo. Deste modo,
éons. Conforme A Realidade dos Go-
os impulsos "carnais" representavam pe-
vernantes, a Incorruptibilidade "do
rigo ao objetivo gnóstico de chegar-se a
alto" olha para baixo e sua imagem é re-
deus. Desejos, paixões e sexualidade,
fletida nas águas. Os governantes, "de
deste modo, entremeavam os mitos e
baixo", a vêem e se apaixonam. Assim,
estabeleciam limites de pureza e impu-
o mito traça espécie de geografia mítica
reza que regulavam a religião e a orga-
por onde as personagens passeiam
nização do grupo.
livremente. Tal jogo também está
Apesar do desejo dos governantes em
presente nos escritos bíblicos e agrega
apoderar-se da imagem perfeita da in-
outros sentidos. Tudo que é do alto é
cor-ruptibilidade refletida nas águas, o
bom (Cf. Lc 24.49; Tg 1.17; 3.15 e 16),
desejo não pôde ser atendido em função
Jesus é do céu e bom (ICo 15.47), mas
da hierarquia celestial, reforçada pela de
o que é de baixo é mal (Jo 8.23) e
geografia mítica. Essa cena lembra o
inferior ao que é do alto1"5. Tais temas
Gênesis: "a terra era sem forma e vazia;
não são exclusivos do movimento
e havia trevas sobre a face do abismo,
gnóstico, ao contrário, apresentam
mas o Espírito de Deus pairava sobre a
características semelhantes a outros
face das águas" (2.1).
grupos como Qumran.
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que pertence à biblioteca de Nag- protagonistas de duas esferas de poder
Hammadi é provavelmente do fim do sé- que se enfrentam — o bem e r> mal —
culo II e traduzido do grego para o cop- tal como nos mitos de combate orientais
ta. que, posteriormente, cederam suas es-
Os assuntos de data e proveniência são truturas para a teologia cristã do
complicados em decorrência da inter- evangelista João e do apóstolo Paulo.
prefação cristã que usa o Gênesis como Os personagens Imortais são: o Pai da
base. Assim, discurso de revelação, Totalidade — também chamado de
sote-riologia e escatologia teriam sido Verdade ou Luz incontaminada; a Incor-
resultados desse processo de ruptabilidade — que preside à totalidade
cristianização. É plausível que esse texto (onde reside o espírito virgem), superior
seja obra de algum mestre gnóstico com às autoridades do caos (RG 93,31); a
objetivo de instruir sua audiência. Ele, Sabedoria (Pistis Sophia); Vida (Zoe), a
assim como seu grupo, possuía filha de Pistis, Sophia. O Espírito ativo
conhecimento da literatura judaico-cristã na humanidade, Espírito de Vida, é
e submetia-se à autoridade paulina. Eles também o princípio espiritual feminino
seriam familiares à tradição judaica e à (RG 87,4-8).
apocalíptica cuja cosmovisão prevê a Os Governantes ou Autoridades figu-
providência e a esperança para ravam o espaço visível. Eles possuíam
comunidades reprimidas, seja por alma, mas não espírito. Eram animados
perseguição política ou pressão de (psykhikos) e não tinham lei. Eles
1
outros grupos religiosos *. Os gnósticos eram: Ialdabaoth, principal governante
teriam definido sua própria natureza (também chamado Sacia e Samael, deus
espiritual em oposição ao domínio e à dos cegos), Sabaoth, filho de
escravização das autoridades. Assim, os Ialdabaoth, os "Sete descendentes de
cristãos gnósticos podem ter esperado Ialdabaoth" (incluindo Inveja, Morte
que seriam mais duráveis que os arcon- etc) e "O Anjo da Cólera".
tes, e seus destinos celestiais seriam Basicamente a Humanidade dos textos
mais gloriosos. gnósticos fala a respeito de Adão, Eva
(contraparte de Adão) e os filhos Caim
a) Personagens míticos (gerado pelos governantes), Abel
A trama mítica gnóstica é repleta de (gerado por Adão), Set (gerado por
personagens. Em especial, em A deus), Nõrea (filha da
Realidade dos Governantes, os incorruptibilidade) os filhos da luz
personagens são (descendentes de Nõrea).
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entre seres celestiais e humanos. Parece mem estigmas diferentes e invertem
que a cosmovisão apocalíptica e o funções, mas e-mergem do mesmo qua-
gnosticismo compartilhavam do mesmo dro de referências culturais.
universo simbólico que fornecia elemen- Apesar de ter sido alvo da interferência
tos fundantes para a formação da identi- de algum editor cristão, o mito gnóstico
dade e da religiosidade de ambos. As interpretou o Gênesis da Bíblia Hebraica,
guerras nas regiões celestiais espelha- fundiu elementos do ascetismo de
vam os conflitos do mundo material. To- Qumran e invocou a autoridade dos en-
davia, a batalha se dava na forma de sinos de Paulo. A incursão por essas lite-
continuidade e essa geografia mítica raturas, a nosso ver, demonstra que o
projetava os limites que delineavam as mestre gnóstico e sua audiência implíci-
comunidades gnósticas. ta não se opunham ao judaísmo e tam-
pouco ao cristianismo. Ao contrário, é
Considerações finais
mais provável que eles viviam essa tra-
Já foi sugerido que os escritos gnósticos
dição, todavia, representavam uma ex-
possuem similaridades com a literatura
pressão religiosa que se relacionava de
paulina. O emprego de termos como "fi-
modo diferente como os textos fundan-
lhos da luz", "filhos das trevas", "hostes
tes do judaísmo e do cristianismo. Ao
espirituais", "carne", "corpo", "alma",
passo que entre judeus e cristãos a ser-
"guerra", universo material e universo
pente simbolizava o desvio, os gnósticos
espiritual demonstram isso. Mas, além
considera-
disso, a lembrança do "grande apóstolo"
evocada no princípio do mito demonstra [Edição original página 30/31]
a relação estabelecida entre gnosticis-
mo, judaísmo e cristianismo dos séculos vam instrutora a sua atuação e revela-
I e II. dor o fruto da árvore. Para eles, o cami-
Assim como as epístolas paulinas abran- nho que os conduziria ao encontro com
giam certamente o perímetro Roma, Egi- Deus era o conhecimento obtido por
to e Alexandria, tais tradições míticas meio de um estado de consciência supe-
também circulavam, mas a recepção das rior.
comunidades era autônoma. Apesar de A Realidade dos Governantes, entre
não serem identificados na literatura ne- outras coisas, fornece pistas sobre con-
o-testamentária, os governantes são si- cepção religiosa e organização social
nônimos dos "principados" e das gnóstica. Para nós, o gnosticismo e sua
"potestades do mal" de Paulo (Cf. Ef literatura refletem o dinâmico panorama
3.10; 6.12; Cl 1.16; 2.15). Com isso, religioso do I século da EC e requer da
percebemos que os personagens assu- exegese reaproximação com referencial
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Tratados filosóficos y cosmológicos.
Madrid: Editorial Trotta, 1997.
ROBINSON, James M. (ed). The Nag
Hammadi Library in English. 3a ed.
San Francisco, Harper &Row/New York,
Grand Rapids, 2000.
RODRIGUES, Elisa (et al). "Batalha
escatológica". In: Palavra de Deus,
Palavra da Gente: as formas
literárias na Bíblia. São Paulo: Paulus,
2004, p. 164-165.
SCHIAVO, Luigi. O mal e suas
representações simbólicas. O universo
mítico e social das figuras de Satanás na
Bíblia. In: Estudos de Religião
19(2000), p. 65-83.