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Ficha Técnica:
Seleção dos textos: Arquivo Público do Estado do Rio Grande
do Sul (APERS) e Associação Nacional de História / Núcleo RS
(ANPUH/RS)
Organização da V Mostra:
Vladimir Ferreira de Ávila, Maria Cristina Kneipp Fernandes, Benito Bisso Schmidt
e Izabel Cristina Bengochea
Revisão:
Jônatas Marques Caratti
Editoração e formatação:
Lilian Lopes Martins – CORAG
Capa:
Sid Monza
M915a
V Mostra de pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul (2007 : Porto Alegre, RS).
Anais : Produzindo História a partir de Fontes Primárias / org.
Vladimir Ferreira de Ávila. – Porto Alegre : CORAG, 2007.
390 p.
Apresentação ........................................................................................................................9
Introdução............................................................................................................................11
1
Estratégia familiar, cultura material e imaterial
2
História agrária, terra e povoamento
A legitimidade da posse da terra em Nossa Senhora das Oliveiras de Vacaria (1854 - 1863)
Juslaine Tonin .................................................................................................................... 73
“E eles aqui vão”: grupos sociais e povoamento do norte do Rio Grande do Sul durante a Primeira
República (1889-1925)
Márcio Antônio Both da Silva.......................................................................................... 83
Experiências sociais de libertos no Rio Grande de São Pedro: trabalho, acesso à terra e relações com
escravos e homens livres (Início do século XIX)
Gabriel Aladrén .................................................................................................................129
&DUDFWHUtVWLFDVPHUFDQWLVGRWUiÀFRQHJUHLURQR5LR*UDQGHGH6mR3HGURF²F
Gabriel Santos Berute ......................................................................................................153
Visibilidade negra: informações e imagens em três jornais de Porto Alegre sobre o Primeiro Congresso
Nacional do Negro no ano de 1958
Arilson dos Santos Gomes ..............................................................................................195
4
História e enfermidades
E o cadáver é escravo: comentários sobre a doença e morte entre a população cativa de Porto Alegre
QRVpFXOR;,;
Paulo Roberto Staudt Moreira e Fabiano Fischer de Queiróz.................................. 213
Os braços da salvação: a mobilização de auxílio aos infectados pela Gripe Espanhola (Porto Alegre,
1918)
Gabrielle Werenicz Alves ................................................................................................ 227
$H[FOXVmRVRFLDODSDUWLUGDURWXODomRGHSDWRORJLDV,MXtD
Alisson Droppa ................................................................................................................ 247
5
Classe, justiça e guerra civil
Crimes semelhantes, réus e penas diferentes: uma análise sobre a justiça brasileira a partir de
SURFHVVRVFULPHVMXOJDGRVQR7ULEXQDOGD5HODomRGH3RUWR$OHJUH
Elaine Leonara de Vargas Sodré .....................................................................................271
%UDVLOHLURV QD *XHUUD &LYLO (VSDQKROD GR IUDJPHQWR j FRQVWUXomR GR PRVDLFR
histórico
Jorge Christian Fernandez ...............................................................................................285
6
História, política e ditadura militar
As relações de Leonel Brizola com os setores subalternos das Forças Armadas entre 1959-1964
César Daniel de Assis Rolim ..........................................................................................301
$RFXSDomRGD)DFXOGDGHGH)LORVRÀDGD8)5*6MXQKRGH
Jaime Valim Mansan ........................................................................................................311
$SROtWLFDHGXFDFLRQDOGD'LWDGXUD0LOLWDUHD8)5*6
Janaína Dias da Cunha ....................................................................................................327
Auditoria Militar de Santa Maria: um novo enfoque sobre a repressão e a oposição ao Regime
Militar
Taiara Souto Alves ...........................................................................................................339
As conexões repressivas entre a ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai: o caso do seqüestro do
cônsul brasileiro pelos tupamaros como denúncia
Ananda Simões Fernandes .............................................................................................349
O “crime das mãos amarradas”: seqüestro, tortura, desaparição e morte do ex-sargento Manoel
Raimundo Soares durante a ditadura civil-militar brasileira (1966)
Caroline Silveira Bauer ....................................................................................................365
17
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
2LQDFLDQRMXVWLÀFDRVXUJLPHQWRHÁRUHVFLPHQWRGHPRJUiÀFRGDFL-
GDGHGH$VVXQomRHPIXQomRGDJUDQGHTXDQWLGDGHGHÀOKRVPHVWLoRVTXH
resultou o contato ocorrido às margens do rio Paraguai. Esta relação entre
índios e colonos se deu, segundo o autor, em função de uma atitude inusitada
– para os espanhóis – dos nativos que, ao se depararem com os estrangeiros,
RIHUHFHUDPVHPTXDOTXHUWLSRGHFRHUomRVXDVÀOKDVSDUDFDVDUHPFRPHV-
tes, assim estabelecendo uma relação parental, denominada pelo jesuíta como
cuñadazgo.
Apesar de parecer uma atitude precipitada e ingênua, em que os indí-
genas teriam demonstrado total desconhecimento sobre quem eram os espa-
nhóis, esta tomada de ação – o darVXDVÀOKDV²WHPFRPREDVHIXQGDPHQWDO
a lógica das dádivas, representada socialmente por meio de trocas incessantes.
Os agentes envolvidos nesta reciprocidade realizam constantes doações apa-
rentemente voluntárias e desinteressadas, praticadas através de ações festivas
envolvendo todo o grupo ou simples trocas pessoais dissimuladas. Porém,
HVWHV DWRV JHQHURVRV ÀFWtFLRV2 encobrem formalismos contratuais obrigató-
rios e de interesse às partes relacionadas. O doador, ao dar um presente, es-
pera do receptor a retribuição do seu ato, e assim que receber tal retribuição
deverá pagá-la3. Desta forma, um ciclo interminável de doações voluntárias,
PDVQHFHVViULDVVHHVWDEHOHFHGHIRUPDDFULDUYtQFXORVGHDÀQLGDGHHQWUHRV
envolvidos, que, sem demonstrar, estarão satisfazendo seus próprios desejos,
já que “não existe a dádiva sem a expectativa de retribuição”4.
Segundo Caillé5, a dádiva é trocada apenas com aqueles nos quais se
DSRVWDXPDDOLDQoDXPDDSRVWDLQFRQGLFLRQDOjVXDFRQÀDQoD(PFDVRFRQ-
WUiULRFRPTXHPQmRVHWHPFRQÀDQoDQmRVHDSRVWDQmRVHUHODFLRQDVH
rivaliza.
Uma relação supõe e exige a relação de dons. Não se troca coisas com
qualquer pessoa. [...] É preciso dar, receber e retribuir, mas apenas
com um certo tipo de pessoas que estabelece com alguém um certo
tipo de relação. (Villela, 2001: 208)
Porém, em sendo uma aposta, Caillé adverte que esta aliança é incon-
GLFLRQDODWpRQGHSRGHVHUHQWUHJDVHWXGRHFRQÀDVHWRWDOPHQWHDWpROLPLWH
2 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, São Paulo: Cosac & Naify, 2003 [1923-24], p. 188.
3 Ibidem, p. 201.
4 LANNA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. In: Revista de Sociologia e Política, Curitiba,
n. 14, 2000, p. 176.
5 CAILLÉ, Alain. Nem Holismo nem Individualismo Metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma da dádiva. In: Revista
brasileira de Ciências Sociais, Out. 1998, v.13, n.38, p. 15.
18
do seguro, fazendo da lógica do dom um “regime que se pode chamar de incondi-
cionalidade condicional”6. É por meio da dádiva que se delimitam os amigos
e os inimigos, e impõem-se atitudes diferenciadas a cada um: “Com um luta-se,
com o outro troca-se”7.
Observando novamente o relato de 1620, percebem-se nele os elemen-
tos existentes na lógica do dom, em que os índios, espontaneamente, iniciam
uma relação de troca com os espanhóis, sem que estes percebam a profun-
GLGDGHVLPEyOLFDTXHHVWDLQLFLDWLYDSRVVXL2SULPHLURDWRGHGDUVXDVÀOKDV
inaugura toda uma troca que deveria se desenrolar reciprocamente.
Salienta-se o fato que esta relação baseada nas trocas recíprocas estava
DVVRFLDGDjIRUPDGHFULDUDOLDQoDVHUHODo}HVGHDÀQLGDGHQDVRFLDELOL]DomR
indígena. Muito antes da chegada dos espanhóis à região platina, os nativos
que ali viviam mantinham vivas as trocas de bens simbólicos (como festas,
banquetes, rituais, favores e objetos), praticadas em âmbito intra-aldeão (entre
membros de uma mesma família, ou entre as famílias), chegando a envolver
aldeias vizinhas8. Eram trocas que obedeciam à lógica do dom, em que as
pessoas envolvidas não depositavam valores econômicos aos bens trocados.
O que estava em questão não era enriquecer ou favorecer-se em detrimento
GRVGHPDLVPDVVLPHVWDEHOHFHUDÀQLGDGHFRPDTXHOHTXHVHWURFDHDFLPDGH
tudo, ter a oportunidade de retribuir. É desta forma que as relações parentais
eram criadas, baseadas nas trocas matrimoniais.
Os grupos indígenas praticavam o casamento exogâmico, de maneira a
criar laços familiares e possibilitar reajustes internos, bem como livrar-se das
relações incestuosas9. Desta maneira, um homem deixa de casar-se com sua
irmã, cedendo-a ao grupo e esperando que um outro indivíduo faça o mesmo.
$VLUPmV²HÀOKDV²VmRFRORFDGDVjGLVSRVLomRFRPDFRQGLomRTXHRdoador
tenha uma futura esposa10. À base de toda esta ritualização matrimonial, en-
contram-se as três obrigações da lógica do dom, onde o homem dá sua irmã,
recebe a irmã do outro e retribui esta operação, garantindo a disponibilidade
GHVXDIXWXUDÀOKD6mRDWLWXGHVHVSRQWkQHDVHQmRIRUPDOL]DGDVHPJHVWRV
6 Ibidem, p. 16, grifo do autor.
7 LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco, Petrópolis: Ed. Vozes, 2003 [1949], p. 100.
8 Cf. KERN, Arno Alvarez. O processo histórico platino no século XVII: Da aldeia guarani ao povoamento missioneiro.
In: Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre: EDIPUCRS, v. XI, n. l, 1985, p. 34; MELIÀ, Bartomeu. A Terra Sem Mal
dos Guarani. Economia e profecia. In: Revista de Antropologia, São Paulo: USP, v.33, 1990, p. 41; SOUZA, José Otávio
Catafesto de. O sistema econômico nas sociedades indígenas Guarani pré-coloniais. In: Horizontes Antropológicos,
Dec., v.8, n.18, 2002, p. 236-37.
9 LÉVI-STRAUSS, Claude. Op. cit., p. 47.
10 Ibidem, p. 105.
19
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
20
Não uma simples doação de mulheres, nem uma hospitalidade genero-
sa e ingênua. Estava-se entregando uma irmã, para um futuro cunhado, que
lhe retribuiria com a sua. Esta é a “troca suprema”, a que se referia Lévi-Strauss;
a aliança em oposição à rivalidade da lógica do dom. E mais: dar é dar um
pouco de si, pois a coisa dada “carrega a alma do doador, é representativa de seu clã
e de seu solo”16. Quem aceita alguma coisa de alguém, aceita também “algo de
sua essência espiritual, de sua alma”, pois a “coisa dada não é uma coisa inerte”17. Ao
oferecer suas mulheres, os índios ofereciam sua organização social, seu mito e
seu sangue, numa complexa lógica de obrigatoriedade social – e inimaginável
para os colonos.
Não só inimaginável como impraticável: a rivalidade entre os índios e
os colonos iniciou justamente quando os primeiros percebem que não estava
nos planos dos espanhóis retribuírem de nenhuma maneira a sua generosida-
GH$DSRVWDLQFRQGLFLRQDOTXHRVLQGtJHQDVÀ]HUDPDRVVHXVIXWXURVFXQKD-
dos é interrompida assim que notaram as suas verdadeiras intenções e abre
precedentes para a inimizade:
el ayudar al español y admitirle en sus tierras fue por via de cuñadasgo
y parentesco. Empero despues viendo los indios que los españoles
no los trataban como a cuñados y parientes sino como a criados se
començaron a retirar y no querer servir al español. el español quiço
obligarle: tomaron las armas los unos y los otros y de aqui se fue en-
cendiendo la guerra la qual ha perseverado casi hasta agora.18
16 LEFORT, Claude. As formas da História – ensaio de antropologia, São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 25.
17 MAUSS, Marcel. Op. cit., p. 200.
18 CORTESÃO, Jaime (Org.). Jesuítas e Bandeirantes no Guairá (1549-1640), Op. cit., p. 167. “Foi por via do cuñadasgo
e do parentesco que os índios ajudaram o espanhol e admitiram-lhe em suas terras. Porém, depois vendo que os espanhóis
não os tratavam como cunhados e parentes, senão como criados, os nativos começaram a se retirar e não querer servir ao
espanhol. Este quis obrigá-lo: tomaram as armas e iniciou-se a guerra, a qual tem perseverado quase até agora.”.
19 MONTEIRO, John Manuel. De Índio a Escravo. A Transformação da População Indígena de São Paulo no Século
XVII. In: Revista de Antropologia, São Paulo: USP, v. 30/31/32, 1989, p. 153-54.
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V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
mente sempre. Isto porque “cada um considera que, em termos gerais, recebe mais do
que dá”20. No momento em que um dos lados não cumpre a sua obrigação, o
outro se sente prejudicado, apto a encerrar a aliança: a sua incondicionalidade
tornou-se condicional. Por isso, o homem branco passa a ser motivo de alerta
HVXDDSUR[LPDomRpWRPDGDFRPGHVFRQÀDQoDVmRRV´maus aliados por excelên-
FLD*HQWHTXHQmRWURFDJHQWHHPFDVDPHQWRPDVTXHPDWDURXEDHHVFUDYL]DJHQWH”21.
Devido a isto, o contato que os inacianos tentaram empreender com
RV tQGLRV WDPEpP ÀFRX EDVWDQWH SUHMXGLFDGR 0RWLYDGRV SRU HVWD VLWXDomR
muitos missionários vão registrar casos em que os espanhóis tentam lograr
os nativos, como o fato de muitos índios venderem aos colonos suas “ÀOKDVH
irmãs por um chapéu ou capa”, pensando que se casariam com elas estabelecendo,
assim, uma relação parental – o que não era o caso, já que os “espanhóis tinham-
nas como escravas para a venda”22.
O padre Montoya relata uma ocasião onde se depara com um espanhol
leigo que a cada dia passava pelos padres sem uma peça de seu vestuário: um
GLDVHPRFKDSpXRXWURVHPVXDFDSDFKHJDQGRSRUÀPDSHQDVFRPXQV
“paninhos brancos e um lenço atado na cabeça”. Inquietos, os padres lhe questio-
nam, ao qual responde:
Vossas Paternidades pregam a seu modo, eu do meu. A mim faltam-
me palavras, e desta forma prego com obras. Reparti tudo quanto tra-
zia ou tinha, para conquistar a vontade dos índios principais porque,
JDQKRVHVWHVRVGHPDLVÀFDUmRjPLQKDYRQWDGH23.
22
Para os jesuítas, sua empresa evangelizadora de catequizar e converter
os indígenas orientando-os à boa vida cristã era matéria penosa, já que, mes-
mo conseguindo alguns seguidores, estes logo se desvirtuavam ao relaciona-
rem-se com os colonos. Se para os espanhóis o ato de dar mulheres era visto
como uma ação de hospitalidade ingênua, para os jesuítas era fruto de enga-
nações e trapaças aos quais os índios haviam sido ingenuamente logrados. Por
isso, para os missionários, seu trabalho consistia em afastar os nativos deste
convívio, catequizando e convertendo-os à cristandade e incorporando-os às
UHGXo}HV7HULDPTXHGHDOJXPDIRUPDJDQKDUDVXDFRQÀDQoDHDVVLPHVWD-
EHOHFHUODoRVGHDÀQLGDGHTXHSRVVLELOLWDVVHPWDOHPSUHVD
Umas das formas que os jesuítas procuraram pôr em prática para se
aproximar e conquistar a amizade dos nativos foi dando-lhes presentes de
forma a tentar seduzi-los com seus objetos. Sem saber que estavam fazen-
do mais do que dar simples regalos, os jesuítas, em suas correspondências,
JORULÀFDYDPVHSRUFRQVHJXLUFRPVLPSOHVSHQWHVDQ]yLVHDJXOKDVJDQKDU
o apreço de muitos índios, ao ponto de recomendar aos Superiores que não
deixassem de enviar objetos como “contas, agulhas e pentes”, já que com isto
“se ganham muitas almas”25. Acreditando que estes instrumentos banais eram,
para os índios, ferramentas inimagináveis e de um grande valor, os jesuítas
acabaram fazendo o que os indígenas do primeiro contato com os espanhóis
GH$VVXQomRÀ]HUDP²GHUDPRSULPHLURSDVVR
Lo que hazemos (es) todas lasueces qalgunos yndios o caciques nos
uienen auisitar. queuienen algunos parauer nro trato yloquepretende-
mos seles habla delas cossas deDios yselesdasiempre decomer o algu-
na delas cossas qtragiamos comoson agujas peines y Chaquiras, y asi
siempre los enviamos muicontentos yalgunos dellos oyen aqui ladoc-
trinaysermon ydicen quequierenenuiarasus hijos aaprender lascossas
deDios loqualtodo damuibuenaesperança.26
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V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
mostrar sua boa intenção: não estavam de todo errado. Para os índios, estes
instrumentos não tinham um valor econômico nem ao menos prático – é
GLItFLOHQFRQWUDUDOJXPUHODWRRQGHRMHVXtWDQRWLÀFDXPtQGLRXVDQGRDOJXP
pente ou agulha –, e sim simbólico. Simbólico, pois, como era a intenção dos
padres, demonstrava o seu caráter generoso e o interesse de aliançarem-se
aos índios. Quando o autor da carta escreve que “lhes enviamos muito contentes”,
declara, sem perceber, que inicia a lógica do dom: dá voluntariamente e, por
KRUDQmRUHFHEHQDGDHPWURFDDQmRVHUDFRQÀDQoDGRVQDWLYRV2SDGUH
Montoya passa pela mesma experiência:
Enviei a seus moradores alguns presentinhos, que consistiam em an-
zóis, facas, contos de vidro e outras coisinhas, sem valor aqui, mas lá
de grande estima. Com isso foi-me possível atrair a algumas pessoas,
para que viessem visitar-me e, comunicando-lhes meus desejos, dis-
VHOKHVVHUJUDQGHPLQKDYRQWDGHGHHQWUDUHPVXDVWHUUDVDÀPGH
anunciar-lhes a salvação eterna 27.
24
reciuiamos les dauamos peines, agujas, chaquiras, yotras menudencias
no poruia depaga sinodadasendon, yassi nunca conlagracia delS.r nos
falto lo necessário.29
1HVWHUHODWRRSDGUH-XDQ%DSWLVWD)HUURÀQRGHVFUHYHDPHVPDWURFDGH
dádivas, porém com a iniciativa dos índios, que lhes dão de comer. Pode-se fazer
um esforço imaginativo e suspeitar que os indígenas davam aos recém-chegados
as suas quinquilharias, aquilo que eles tinham em quantidade e poderia muito bem
ser dado. Em carta de 1610, o padre Lorenzana descreve que, chegando ao po-
voado do cacique Arapicandú, seu colega e ele foram logo recebidos pelos índios
que lhes deram o “que tinham para comer, que foi umas aves cozidas sem sal e um pouco de
farinha de mandioca e alguns milhos”30.
Esses atos generosos mútuos possibilitaram uma aproximação satisfatória
que desencadearia uma relação mais promissora que a obtida entre colonos e in-
dígenas. Mesmo assim, existia certo descompasso no julgamento de valores entre
aquilo que os jesuítas davam e aquilo que os índios retribuíam. Com se viu, para
os padres, dar objetos como pentes e agulhas era uma atitude mecanicista, já que
com eles ganhava-se “uma linhagem de índios”31, acreditando que, para os nativos,
tais presentes teriam valor econômico ou funcionalidade material. Por outro lado,
ao receberem dos índios verdadeiros banquetes, acreditavam que estes estavam
fazendo um grande esforço só para agradá-los, fortalecendo a imagem de indíge-
nas ingênuos que só conseguiam atuar por instinto. Porém, esta atitude nativa não
era um privilégio concedido aos jesuítas: para os índios, a festa e o convite eram
comuns em suas relações de troca. As cauinagens e os banquetes faziam parte
do estabelecimento de suas alianças, onde a comida era “consumida rapidamente em
rituais de ‘abundância’, caracterizando o que é conhecido na Antropologia como ‘complexo de
festas’” 32. O esforço que os jesuítas descrevem sobre os índios que “tiravam riquezas
de sua pobrezaµSRGHWHUVLJQLÀFDGRVPDLVSURIXQGRV´aquilo que parece para alguns
como um mero encontro para o almoço, para outros é um evento radical”33.
Se os padres davam instrumentos de ferro e os índios davam comida,
HUDPSDUDDPERVDVVXDVGiGLYDVSRVVtYHLVHPXPMRJRGHDSRVWDHFRQÀDQ-
29 Documentos para la Historia Argentina, Op. cit., p. 117. “Com tudo isso era tão grande o amor e vontade com que
nos recebiam, que tiravam riquezas de sua pobreza, e não podíamos recusar de receber parte delas sob pena de perder
sua amizade e afrontá-los. Assim recebíamos um pouco de batatas, alguns ovos, mariscos e pescados, mas galinhas jamais
as quisemos admitir. Em retorno do que recebíamos, dávamos pentes, agulhas, contas e outras miudezas, não por via de
pagá-los, e sim por dom, e assim nunca, com a graça do Senhor, nos faltou o necessário”.
30 Documentos para la Historia Argentina, Op. cit., p. 45.
31 Ibidem, p. 129.
32 SOUZA, José Otávio Catafesto de. Op. cit., p. 243; cf. também em MELIÀ, Bartomeu. Op. cit., p. 41.
33 SAHLINS, Marshall. Ilhas de História, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994, p. 191.
25
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
26
de seus xamãs e caciques – como o caso de uma índia reduzida que leva sua
ÀOKDGRHQWHDWpRIHLWLFHLURSDUDFXUiOD37.
Os índios mostraram-se, nesta nova realidade imposta pela situação
colonial, agentes ativos com alta capacidade de dissociação: não conseguindo
PDQWHU ODoRV GH DÀQLGDGH FRP RV FRORQRV HVSDQKyLV HQFHUUDUDP TXDOTXHU
WLSRGHUHODomRDPLVWRVDFRPHVWHVHSDVVDUDPDGHVFRQÀDUGRVHVWUDQJHLURV
Esta posição só mudou quando os jesuítas demonstraram que nem todos os
homens brancos tinham as mesmas intenções de roubar as mulheres nativas
ou escravizá-los. Desta forma, os índios aceitaram a convivência junto aos
padres nas reduções, seguindo a rotina missionária e as condutas cristãs. Po-
rém, mesmo aderindo à empresa evangélica, os indígenas não deixaram de
SHUPDQHFHUÀpLVjVXDFXOWXUD&RQVHJXLUDPGHIRUPDVDWLVIDWyULDPDQWHUXPD
vida nas reduções sem perder seus costumes e tradições, absorvendo aquilo
que necessitavam da nova realidade reducional, dialogando com os padres e
com seus antigos líderes, sem negar nem um, nem o outro. Isto porque, em
situações de contato interétnico, nenhuma sociedade perde sua cultura em
detrimento de outra: o que ocorre é a assimilação de alguns elementos cultu-
rais do outro, sem comprometer a integridade original da sociedade38. Assim, a
sociedade que recebe elementos de outra, readapta-os à sua realidade, fazendo
da cultura algo dinâmico e em constante atualização. Daí entende-se que “as
diferentes ordens culturais têm seus modelos próprios de ação, consciência e determinação
KLVWyULFD²VXDVSUySULDVSUiWLFDVKLVWyULFDV”39.
Sabendo comportar-se frente às adversidades, os índios platinos inicia-
ram e terminaram alianças, bem como se incorporaram ao mundo colonial da
maneira que lhes parecia possível e conveniente. Adaptaram e atualizaram sua
cultura para não perdê-la.
27
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAILLÉ, Alain. Nem Holismo nem Individualismo Metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma
da dádiva. In: Revista brasileira de Ciências Sociais, Out. 1998, v.13, n.38, pp.5-38.
KERN, Arno Alvarez. O processo histórico platino no século XVII: Da aldeia guarani ao
povoamento missioneiro. In: Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre: EDIPUCRS, v.
XI, n. l, 1985, pp. 23-41.
LANNA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. In: Revista de
Sociologia e Política, Curitiba, n. 14, 2000, pp. 173-194.
28
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco, Petrópolis: Ed. Vozes,
2003 [1949].
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, São Paulo: Cosac & Naify, 2003 [1923-24].
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994.
SOUZA, José Otávio Catafesto de. O sistema econômico nas sociedades indígenas Guarani
pré-coloniais. In: Horizontes Antropológicos, Dec., v.8, n.18, 2002, pp. 211-253.
29
UM CASAMENTO NA VILA DE SÃO FRANCISCO DE PAULA
DE PELOTAS: ELEMENTOS DE UMA ESTRATÉGIA FAMILIAR
Carla Menegat*
ʌ Resumo: Analisando documentos paroquiais e alguns inventários busca-se evidenciar de
forma breve algumas das estratégias utilizadas entre uma determinada rede familiar para garantir
a ampliação e manutenção de seu espaço social e econômico. Iniciando pela trajetória de dois
personagens – um casal – as indagações conduzem às perspectivas enunciadas através de uma
TXDQWLÀFDomRVXSHUÀFLDOUHFRQGX]LGDSRUDOJXQVFDVRVHVSHFtÀFRVTXHUHYHODPPDWL]HVQRXVR
estratégico do compadrio, do matrimônio e no trânsito de recursos materiais entre indivíduos
ligados por laços de parentesco.
ʌ Palavras-chave: família – estratégias – charqueadas.
D
e família bem estabelecida na região sul da Província, Ber-
QDUGLQD %DUFHOORV GH /LPD ÀOKD GH %HUQDUGLQR 5RGULJXHV
Barcellos, casa-se, no ano de 1824, com Domingos José de
Almeida, um comerciante que cinco anos antes havia chegado ao Rio Grande
do Sul para organizar tropas de mulas, vindo das Minas Gerais. Deste matri-
P{QLRQDVFHUDPWUH]HÀOKRV
Bernardina nasceu em 1806, no Povo Novo, povoado onde se estabele-
FHUDPDoRULDQRVQRÀQDOGRVpFXOR;9,,,HTXHSHUWHQFLDj9LODGH5LR*UDQ-
de. Filha de uma descendente de franceses e portugueses natural da terra, e
de um descendente de açorianos, nascido em Viamão1, Bernardina passaria a
maior parte de sua vida em Pelotas, imersa na primeira geração da elite char-
TXHDGRUDTXHÁRUHVFHXQR5LR*UDQGHGR6XO
O casamento foi celebrado no oratório da charqueada de João Simões
Lopes3, pai daquele que se tornaria Visconde da Graça, neste local estava
a imagem de Santo Antonio de Pádua, doada por Antônio José Gonçalves
Chaves, amigo e futuro sócio de Domingos no Vapor Liberal3. Ao propor ca-
samento, Domingos já possuía a charqueada contígua à de Bernardino, fruto
de seus negócios como comerciante.
* Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da UFRGS. O presente trabalho foi realizado com o apoio do
&RQVHOKR1DFLRQDOGH'HVHQYROYLPHQWR&LHQWtÀFRH7HFQROyJLFR²&13T%UDVLO
1 NEVES, Ilka. Domingos José de Almeida e sua descendência. Porto Alegre: EDIGAL, 1987. p. 28-30.
2 Bisavô do escritor João Simões Lopes Neto.
3 MAGALHÃES, Mário Osório. “Artigo”. Diário Popular, Pelotas, 07,jul.2006. p.02. Disponível em: < http://
www.diariopopular.com.br/07_07_06/artigo.html> Acesso em 20,out.2006.
31
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
+iDOJXQVHOHPHQWRVDVHUHPGHVWDFDGRV'RPLQJRVHUDÀOKRGHXPSRU-
tuguês com uma natural da Freguesia do Tijuco, nas Minas Gerais. Muitos outros
FDVRVSRGHULDPVHUFLWDGRVDTXLSDUDH[HPSOLÀFDURTXHSRGHVHUXPSDGUmRGR
período. Muito além de pensar tal dado como um indicador de uma estratégia de
inserção de membros externos a uma comunidade – assunto de que trataremos
mais adiante - , pode-se avaliar ainda os índices de imigração, que mostram que
para a Bacia do Rio da Prata, 2/3 dos que buscavam se estabelecer eram homens
solteiros4.
A falta de mulheres brancas disponíveis para casamento é temática cor-
rente dos escritos do período. Antônio José Gonçalves Chaves em suas Memórias
Economo-políticas sobre a administração pública no Brasil de 1822, reclama da falta de
mulheres brancas, e dizendo da necessidade de proibir os pais de enviarem suas
ÀOKDVFDVDGRLUDVDRVFRQYHQWRVSRUTXHDVVLPRVSRUWXJXHVHVTXHYrPDR%UDVLO
não têm com quem celebrar núpcias52DXWRUGHVWDVDÀUPDo}HVKDELWDYDDPHV-
ma localidade de São Francisco de Paula6, portanto era conhecedor deste mundo
fronteiriço, afastado dos grandes centros urbanos do período. Tal relato, mesmo
que utilizado como argumento político, pode ser indício de um padrão de imi-
JUDomRQmREDVHDGRQRQ~FOHRIDPLOLDUPDVQDÀJXUDGHXPKRPHPTXHYHP
para regiões fronteiriças buscando fazer fortuna, e que, como empreendedor, está
desprendido de laços sociais mais sólidos e próximos.
Ao mesmo tempo em que Domingos assumiu relevância como homem de
negócios (em 1835 possuía, além da casa comercial, uma sesmaria de terras, char-
queada e sociedade em um vapor que percorria a Lagoa dos Patos – O Liberal), se
tornou um político de destaque.
O sistema de recrutamento de novos membros para elites em regiões fron-
teiriças, onde tais grupos ainda não estão plenamente estabelecidos, permite a
inserção de diferentes formas, e faz com que certos códigos sociais sejam menos
rígidos, especialmente os referentes às origens econômica/social. Nesse caso es-
SHFtÀFRRQ~FOHRGRVFKDUTXHDGRUHVDLQGDHVWDYDVHIRUPDQGRHKRPHQVFRPR
Domingos, mesmo que chegando em um período no qual as charqueadas não
eram novidade naquelas paragens, podiam se inserir em tal atividade econômica
rapidamente. Discutiremos os mecanismos que tornavam possível a estes indiví-
GXRVVHÀ[DUHJDUDQWLUDPDQXWHQomRGHVVDFRQGLomRPDLVDGLDQWH
4 CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. 4ª ed. São
Leopoldo: Editora da Unisinos, 2004. p. 86;94.
5 Denominação de Pelotas até 1832.
%LEOLRWHFD1DFLRQDO&DWiORJRGH0DQXVFULWRV)XQGR'RFXPHQWRV%LRJUiÀFRV&
32
Em 1835, Domingos era deputado na Assembléia Provincial quando
SDUWLFLSRXGDGHÁDJUDomRGD5HYROWD)DUURXSLOKDRXVHMDGH]HVVHLVDQRVGH-
pois de sua chegada, este senhor já era um indivíduo plenamente integrado ao
grupo dominante. Tanto que seria um dos líderes dos revoltosos em Pelotas,
chegando a ser preso, em outubro de 1835, pelas forças do Império. Depois
que foi assinada a paz com o Império, Domingos José de Almeida iniciou
uma série de petições exigindo o pagamento de dívidas pessoais que havia as-
sumido para munir tropas farroupilhas7. Enviou ao menos três documentos à
corte, onde anexou testemunhos e cartas que constituíam prova dos recursos
ÀQDQFHLURVTXHKDYLDHPSUHJDGReHPPHLRDHVVDFRQWHQGDTXH%HUQDUGLQD
concebeu pela décima quarta vez. E, em 17 de maio de 1846, numa tentativa
de parto frustrada, veio a falecer.
6HXVRLWRÀOKRVVREUHYLYHQWHVVHULDPWRGRVSDUWLFLSDQWHVGRLQYHQWiULR
de seu pai Bernardino Rodrigues Barcellos, realizado em 18578. Cada um de-
les assumiria um destino particular, porém com algumas semelhanças. Junius
%UXWXV&DVVLXVGH$OPHLGDVpWLPRÀOKRVHGHGLFRXjVDWLYLGDGHVFKDUTXHD-
doras por um período mais estendido, conjugando a propriedade vizinha à
do pai com uma fazenda em Uruguaiana. Bernardino Bráulio de Almeida,
WHUFHLURÀOKRWDPEpPVHRFXSRXFRPRFKDUTXH$PERVRFXSDUDPFDGHLUDV
na Câmara Municipal por pelo menos uma legislatura. Epaminondas Pirati-
QLQRGH$OPHLGDGpFLPRWHUFHLURÀOKRGRFDVDODGYRJDGRRFXSRXRFDUJR
de Delegado de Polícia após o advento da República e antes disso, teve papel
preponderante tanto no Clube Abolicionista quanto na organização do Parti-
do Republicano. Luiz Felipe de Almeida, que participou da operação de 1851
no Uruguai como 2º Sargento do Exército Brasileiro – tendo sido inclusive
FRQGHFRUDGR²WRUQRXVHWDEHOLmRHP3HORWDV(UDRTXDUWRÀOKRGRFDVDO
Tiveram em comum a proximidade com os espaços do poder público.
0DULD &DUORWD GH $OPHLGD GpFLPD SULPHLUD ÀOKD JHURX RQ]H ÀOKRV
&XVWyGLD 0DUJDULGD GH $OPHLGD D TXLQWD ÀOKD GH %HUQDUGLQD H 'RPLQJRV
morreu, aos 51 anos, solteira e sem descendência. Seus restos mortais se en-
contram no mesmo depositário que os do pai – e possivelmente da mãe –, e
seu testamento foi anexado ao inventário de Domingos. Maria Izabel, sexta
ÀOKDDSHVDUGHWHUVHFDVDGRPRUUHXDQWHVGRSDLHVHPGHL[DUGHVFHQGHQWHV
$ GpFLPD ÀOKD $EULOLQD 'HFLPDQRQD &DoDSDYDQD GH $OPHLGD DÀOKDGD GH
7 APERS. Inventário de Bernardino Rodrigues Barcellos. Pelotas, nº 430, M. 29. Cartório de Órfãos e Provedoria, 1857.
8 NEVES, Ilka, op. cit., p. 37-118.
33
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Bento Gonçalves e José da Silva Brandão, casou com seu primo irmão Quin-
cio Cincinato Barcellos9.
À exceção de Maria Izabel, todos participaram do inventário de Do-
mingos, que morreu em 1871, sem deixar testamento10, gerando, um processo
de divisão de bens que levaria noventa anos para ser concluído. Tempo muito
maior do que aquele necessário para que o patrimônio fosse acumulado. Desde
1822, quando Domingos desembarcou em Rio Grande com a pretensão de
formar tropas de mulas11, até sua morte transcorreram quase cinqüenta anos.
São Francisco de Paula no momento da chegada de Domingos José de
$OPHLGDDLQGDQmRVHFRQÀJXUDYDQD3HORWDVUHFRQKHFLGDFRPRSyORHFRQ{-
mico da Província, nem o charque tinha a importância que assumiu posterior-
mente. Nem mesmo toda a margem do Arroio Pelotas havia sido ocupada.
São Francisco de Paula não era mais que localidade pertencente à Rio Grande,
seria elevada à Vila somente dez anos depois. Os notáveis locais, em sua maio-
ria, eram naturais de outros pontos da Colônia ou portugueses.
Esta sociedade nascente analisaremos a seguir através de um conjunto
de trajetórias.
E
PSRUDOYDUiGRSUtQFLSHUHJHQWH²FRQÀUPDGRFDQRQLFD-
mente pelo Bispo do Rio de Janeiro – desmembrada da igreja
do Rio Grande surgia a Freguesia de São Francisco de Paula
próxima ao Arroio Pelotas e às suas charqueadas. Mas a pequena igreja que
determinaria o núcleo central da povoação só iniciaria suas obras em 1814
e é deste momento em diante que conta Antônio José Gonçalves Chaves
a fundação, no que ele denominou de “ermo”. Depois de oito anos, seria
possível a Gonçalves Chaves indicar 37 casas de comércio, 22 “fábricas de
carnes” – sendo que desses estabelecimentos derivava então a maior riqueza,
estabilidade e povoação – e 217 casas dentro do povoado, ressaltando que as
WUrVOpJXDVTXDGUDGDVGHVXSHUItFLHGDIUHJXHVLDWLQKDPDSRVLomRJHRJUiÀFD
das mais vantajosas da província12.
9 GUTIERREZ, Ester J. B, op. cit., p. 150.
10 LESSA, Barbosa. Domingos José de Almeida. Porto Alegre: Tchê/RBS, 1985. p. 13.
11 CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. 4ª ed. São
Leopoldo: Editora da Unisinos. P. 217-219.
12 GUTIERREZ, Ester J. B, op. cit., p. 125.
34
7DOYH]HVVDSULYLOHJLDGDSRVLomRJHRJUiÀFDWHQKDVLGRXPGRVDWUDWLYRV
TXHOHYDUDPRV5RGULJXHV%DUFHOORVDVHÀ[DUHPQDVPDUJHQVGR$UURLR3HOR-
tas. O ano de 1814 marca o início do negócio de charqueadas para os irmãos
Bernardino, Inácio, Cipriano e Boaventura, e talvez o abandono para Luís.
Este último vendeu aos três primeiros a suas terras e não foi possível localizar
registros que indiquem sua permanência na localidade. É possível que tenha
realizado uma nova migração, a terceira, já que todos os irmãos eram naturais
de Viamão – seus pais eram açorianos – e até a chegada à São Francisco de
Paula, residiam no Povo Novo e em Piratini13.
De todos os irmãos Boaventura foi o que acumulou maior patrimônio.
$RÀPGDYLGDHUDFRPHQGDGRUKDYLDFRQWUDtGRPDWULP{QLRGXDVYH]HVH
o montante de seu inventário estava avaliado em 182:617$178 réis14. Fora
além de charqueador, prestamista e compôs a Câmara da Vila por pelo menos
cinco legislaturas. Na lista de dívidas ativas de seu inventário constam vários
QRWiYHLVORFDLVHGXUDQWHD5HYROXomR)DUURXSLOKDPHVPRÀFDQGRDRODGR
dos Imperiais socorreu muitos farrapos, como Domingos José de Almeida e
o próprio Bento Gonçalves, o que denota que os laços políticos podiam ser
suplantados por outros graus de relação15. Mas falaremos disso logo mais,
sigamos apresentando os primeiros Rodrigues Barcellos.
Inácio residira em Piratini, onde havia se casado com Emerenciana
0DQXHOD7HL[HLUDFRPTXHPWLQKDWUrVÀOKRV7LQKDFKDUTXHDGDFRQWtJXDDGH
Boaventura, no Areal. Chegaram a ter uma contenda por conta da marcação
dos limites das terras em 1815. Aliás, a marcação de terras seria solicitada no-
vamente pelos herdeiros em 1874, denotando o problema dos limites naturais
utilizados, mas neste momento parte das terras contíguas já pertencia aos
herdeiros de Antônio José Gonçalves Chaves16. A contigüidade das terras dos
Rodrigues Barcellos fazia de Cipriano vizinho de Inácio e ao mesmo tempo
de Bernardino. Os registros encontrados dão conta de que além das duas
propriedades que possuía na Costa do Pelotas, tinha recebido uma Comenda
Imperial17(SRUÀP%HUQDUGLQRFRPVXDVGXDVSURSULHGDGHVHVHXVPXLWRV
ÀOKRV²RLWRFRQVWDPGRLQYHQWiULRPDVKiDRPHQRVPDLVTXDWURORFDOL]DGRV
pelos registros de batismo, que provavelmente não sobreviveram aos pais e
não deixaram herdeiros – como todos era charqueador.
13 APERS. Inventário de Boaventura Rodrigues Barcellos. Pelotas, nº 409, M. 28. Cartório de Órfãos e Provedoria, 1856.
14 AHRGS. Anais. Volume 2. Coleção Varela. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1978-1979. CV- 164. p. 134.
15 GUTIERREZ, Ester J. B, op. cit., p. 125, 137.
16 É referenciado como comendador ao se nomearem as terras de sua propriedade como limítrofes ao menos no seguinte inven-
tário. APERS. Inventário de Inácio Rodrigues Barcellos. Pelotas, nº 55, M. 36. Cartório de Órfãos e Provedoria, 1863.
17 MITRA DIOCESANA DE PELOTAS. Livros de batismo nº1, 2, 3 e 4 da Igreja Matriz São Francisco de Paula.
35
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
18 MITRA DIOCESANA DE PELOTAS. Livros de batismo nº1, 2, 3 e 4 da Igreja Matriz São Francisco de Paula.
36
Mas essa não foi uma estratégia uniforme entre os irmãos Rodrigues
Barcelos. Inácio se tornou compadre de nenhum de seus irmãos charqueado-
UHVGHVGHDFKHJDGDj3HORWDVGHIDWRWHYHDSHQDVXPDDÀOKDGDDVHJXQGD
ÀOKDGHVXDLUPm6LPLDQDRTXHSRGHGHQRWDUXPDIDVWDPHQWRXPDIRUPDGH
marginalização da rede familiar. Por sua vez, Boaventura também não convi-
GRXQHQKXPGHVHXVLUPmRVSDUDVHUSDGULQKRGHVHXVÀOKRVPDVIRLSDGUL-
QKRGHPDLVGHXPÀOKRGH%HUQDUGLQRGH0DQRHOGH6LPLDQD19 e de uma
ÀOKDGH$QQD20. Essa demonstração de uma relação desigual entre os irmãos,
SRGHVHUGHFRUUHQWHGHVHXVXFHVVRÀQDQFHLURRXGHXPDRSomRSRUDPSOLDU
as relações para além das já estabelecidas pela consangüinidade.
A opção por reforçar o parentesco através do compadrio pode ser di-
mensionada em suas diferentes matizes avaliando alguns casos.
-RmR5RGULJXHV%DUFHOORVWHYHRLWRÀOKRVHQWUHRVDQRVGHH
O primeiro, não nomeado no seu registro, teve como padrinhos Cipriano e Si-
PLDQD-RmRRVHJXQGRÀOKRWHYHFRPRPDGULQKD5LWD%HUQDUGDGD6LOYDHV-
SRVDGH&LSULDQR)UDQFLVFDHUDDÀOKDGDGH%RDYHQWXUDH6LPLDQD²QHVVHFDVR
RUHJLVWURQmRGHL[DFODURVHpDLUPmRXDÀOKDGH%RDYHQWXUDTXHWLQKDPR
mesmo nome. A quarta criança teve como madrinha sua prima Bernardina –
TXHOKHGHXRQRPH&LSULDQRHVXDÀOKD&LSULDQDDSDGULQKDUDPDVH[WDÀOKD
também chamada Cipriana. Provavelmente em uma tentativa de reaproximar
RVÀOKRVGH,QiFLR(OHXWpULRH'HOÀQDUHFHEHUDP)UDQFLVFDFRPRDÀOKDGD
3RUÀP6LPLDQDDRLWDYDGDSUROHQHVVHSHUtRGRWHYHFRPRSDGULQKRV%R-
aventura e sua segunda esposa Silvana Eulália de Azevedo. Apenas Angélica
propiciou a seus pais compadres que não fossem parentes sanguíneos21.
Curiosamente João não faz parte do grupo que dentre os irmãos que
se ocupa nas charqueadas e, através disso sua escolha por direta ou indireta-
mente se ligar a cada um destes se faz tão evidente ao observarmos os eleitos
como compadres. É possível que mesmo com o irmão mais afastado, Inácio,
fosse vantajoso estar unido de alguma forma, e se não imediatamente, ao
menos com seus herdeiros, demonstrando algum grau de instabilidade destes
PHFDQLVPRV$VUHODo}HVFRPRVKHUGHLURVGH,QiFLRSRGHULDPVLJQLÀFDUXPD
espécie de fundo de reserva para alguma situação de crise com os demais
irmãos.
19 APERS. Inventário de Boaventura Rodrigues Barcellos. Pelotas, nº 409, M. 28. Cartório de Órfãos e Provedoria,
1856.
20 MITRA DIOCESANA DE PELOTAS. Livros de batismo nº1 e 2 da Igreja Matriz São Francisco de Paula.
21 MITRA DIOCESANA DE PELOTAS. Livro de batismo nº1 da Igreja Matriz São Francisco de Paula.
37
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
38
em casos de disputa internas. Uma posição no mínimo incômoda, que exigia
ser ao menos remediada em curto prazo e dissolvida com o passar dos anos.
Em comum com outros pontos da rede o matrimônio de Simiana e
Boaventura Inácio participa de um padrão de recrutamento de indivíduos
externos a rede familiar: as mulheres nascidas entre os Rodrigues Barcellos
da primeira geração estabelecida na freguesia de São Francisco de Paula casa-
ram-se, em sua grande parte – não necessariamente a maioria – , com homens
nascidos em outros pontos da colônia e que estavam desprovidos de laços
IDPLOLDUHVSUy[LPRVQDTXHOHHVSDoRJHRJUiÀFR3RGHVHGLPHQVLRQDURTXDQ-
to era vantajoso um casamento entre uma família que possuía um núcleo de
charqueadores entremeado por pessoas inseridas em outras atividades. Por
RXWURODGRLQWHUHVVDYDDHVVHJUXSREDVWDQWHGHÀQLGRSRUODoRVVDQJXtQHRV
HSRUXPDDWLYLGDGHHFRQ{PLFDTXHRFXSDYDSDUWHVLJQLÀFDWLYDGHVHXVLQWH-
grantes, ampliar as possibilidades de inserção em outros espaços, mediadas
por agentes não absolutamente imersos num contexto local, mas providos de
uma bagagem de contatos externos.
Um desses indivíduos externos certamente foi Domingos José de Al-
meida. Sua experiência como caixeiro no Rio de Janeiro24, atividade de co-
mércio de grosso trato que desenvolveu a partir de sua chegada à freguesia e
seus contatos políticos podem ter se mostrado como extremamente atraentes.
Não há sugestão de uma racionalidade completa nessa constatação, até por
que isso excluiria a possibilidade de escolha, e certamente Bernardina não
era a única moça casadoira em tal momento – o mesmo sendo válido para
Domingos como pretendente – , e talvez nem fosse a que propiciasse as
melhores conveniências, mas é impossível não reconhecer a existências das
mesmas e que a probabilidade de que tenham atendido os interesses em pauta
é imensa.
Quando apreciamos o viés masculino da questão, as evidências apon-
tam num sentido contrário. Os casamentos dos varões dos Rodrigues Bar-
FHOORV EXVFDYDP MXVWDPHQWH D À[DomR GH LQWHUHVVHV ORFDLV H D VROLGLÀFDomR
de alianças com seus pares próximos. As segundas núpcias de Boaventura
Rodrigues Barcellos são exemplo dessa perspectiva. Ao escolher sua vizinha
Silvana Eulália de Azevedo e Souza25, provavelmente o Comendador não
tinha em vistas a ampliação de seus laços para um patamar além do local. Em
realidade, esse casamento apenas ampliava os vínculos estabelecidos com o
24 Inventário de Boaventura Rodrigues Barcellos. Pelotas, nº 409, M. 28. Cartório de Órfãos e Provedoria, 1856.
25 Inventário de Boaventura Rodrigues Barcellos. Pelotas, nº 409, M. 28. Cartório de Órfãos e Provedoria, 1856.
39
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FDVDPHQWRGHVXDVÀOKDV0DULD$PiOLDH&ODUDFRPRVLUPmRV/XtVH-RVpGH
Azevedo e Souza. Sua posição de viúvo e Comendador poderiam lhe servir o
VXÀFLHQWHSDUDTXHQmRQHFHVVLWDVVHGHYtQFXORVPDLVGLVWDQWHVSRUpPDVSRV-
sibilidades que podemos aventar advindas de um casamento com a herdeira
de uma propriedade contígua às sua se tornam impossíveis de ignorar. Ainda,
temos que precisar a posição do Comendador dentro da malha de relações
dos Rodrigues Barcellos entre si.
Como explicitado anteriormente, Boaventura ocupava um espaço pri-
vilegiado a ponto de se tornar compadre de seus irmãos, padrinho de seus
ÀOKRVSRULQLFLDWLYDGHVWHVHQmRRFRQWUiULR6HXVYtQFXORVVDQJXtQHRVHUDP
reforçados, sem uma necessidade de despender recursos dessa ordem para a
manutenção do arranjo que lhe dava espaço privilegiado. Provavelmente os
recursos que lhe eram exigidos eram de outra ordem, e com isso chegamos
ao último ponto de interesse nos Rodrigues Barcellos: o trânsito de recursos
ÀQDQFHLURVGHQWURGHVVDUHGHIDPLOLDU
A longa lista de dívidas ativas no inventário de Boaventura Rodrigues
Barcellos26 traz nove parentes como devedores: o marido de sua sobrinha
Domingos José de Almeida; o parente de sua esposa Heliodoro de Azevedo
H6RX]DRÀOKR%RDYHQWXUDGD6LOYD%DUFHOORVRFXQKDGR%RDYHQWXUD,QiFLR
Barcellos; e seus irmãos Comendador Cipriano, Inácio, Luiz, João e Bernar-
dino. A dívida deste último não impressiona pelo valor de 898$320 réis, mas
localizado o documento27 que deu origem a ela, a constatação do período de
seu surgimento chama a atenção. Uma lista de valores monetários, utensílios
agrícolas, material de construção e mão-de-obra escrava negociada entre 1830
e 1833, entre as propriedades de ambos os irmãos, denota que a vizinhança
entre as duas charqueadas propiciava não apenas a proximidade das famílias,
PDVXPÁX[RGHUHFXUVRVHQWUHHODVDRPHQRVHPDOJXQVSHUtRGRV
O interessante é que os valores descritos estão colocados como nego-
ciados entre os dois proprietários, mas não há indicação do emprego de juros,
mesmo que o prazo entre a contração da dívida e sua quitação seja de mais de
YLQWHHFLQFRDQRV2IDWRGHTXHRÁX[RVHMDHPGXSORVHQWLGRPHVPRTXH
desigual, pode ser a explicação para a manutenção dos valores. Boaventura
cedeu muito mais que Bernardino, tanto que o que proveu este último consta
FRPRGHGXomRDRÀPGRGRFXPHQWR3URYDYHOPHQWHDFRPSOHPHQWDULGDGH
26 Inventário de Boaventura Rodrigues Barcellos. Pelotas, no 409, M. 28. Cartório de Órfãos e Provedoria,1856.
27 Inventário de Bernardino Rodrigues Barcellos. Pelotas no 430, M. 29. Cartório de Órfãos e Provedoria, 1857.
40
FDXVDGDSHODGLYHUVLÀFDomRGDSURGXomRHQWUHDVGXDVSURSULHGDGHVWDPEpP
tivesse um peso fundamental no equilíbrio dessa relação, guardadas as pro-
porções.
Bernardino possuía uma olaria, mas seus escravos provavelmente não
possuíam especializações necessárias, por exemplo, à manutenção das benfei-
torias. Seu irmão possuía essa mão-de-obra, e negociando de forma privile-
JLDGDSRGHULDQmRDSHQDVÀ[DURSUHoRFRPRJDUDQWLUTXHXPUHFXUVRFRP
capacidade ociosa fosse bem utilizado. O mesmo acontecia com a compra
de gado, negociado em quantidades maiores permitiria um preço mais com-
petitivo e Boaventura possuía o capital necessário. Também deste capital se
necessitava para a compra de ferrarias e todo o sortimentos de equipamentos
DJUtFRODV $SHVDU GH GHVLJXDO R ÁX[R H[LVWLX DR PHQRV QR PRPHQWR GDWD-
do pelas contas apresentadas pela viúva Silvana Eulália, mas é provável que
Bernardino seja apenas mais um dos irmãos que usufruindo da contigüidade
entre suas propriedade tenha se valido dessas possibilidades.
Através destes mecanismos minimamente elencados, é possível visua-
lizar as tramas constituídas entre indivíduos ligados pelo parentesco que per-
mitiram que o maior número de charqueadas de Pelotas se concentrasse nas
mãos dos Rodrigues Barcellos. Certamente não há sugestão de que este é um
grupo coeso ou homogêneo, mas a percepção de que através de solidarieda-
des articuladas esses indivíduos puderam se tornar notáveis locais e ascender
a elite local, e isso só se tornou possível pela aposta – de forma algum ingê-
nua, mas nem por isso plenamente racionalizada – na nascente freguesia de
São Francisco de Paula de Pelotas.
41
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
APERS
BIBLIOTECA NACIONAL
Catálogo de Manuscritos.
)XQGR'RFXPHQWRV%LRJUiÀFRV&
42
LESSA, Barbosa. 'RPLQJRV-RVpGH$OPHLGD Porto Alegre: Tchê/RBS, 1985.
NEVES, Ilka. Domingos José de Almeida e sua descendência. Porto Alegre: EDIGAL,
1987.
43
VIDA ECONÔMICA E MATERIAL DA
PORTO ALEGRE OITOCENTISTA
Fabiano Aiub Branchelli*
ʌ Resumo: Pretende-se analisar o processo de formação, crescimento e desenvolvimento
da cidade de Porto Alegre, incorporando a discussão de temas como história da cidade, a dis-
cussão dos conceitos de modernidade, modernização e consumo, traçando um panorama das
relações sócio-econômicas num contexto de transformação de uma sociedade escravista para
uma capitalista.
ʌ Palavras-chave: Porto Alegre – vida material – vida econômica.
T
rabalhando com a análise e interpretação das práticas de consumo
de segmentos da população porto-alegrense durante a segunda
metade do século XIX, compreendendo o período que vai de
1850 a 1889, a investigação parte da aquisição, uso e descarte da cultura mate-
rial, processos expressos através de diferentes categorias materiais, ou seja, de
fontes escritas e materiais provenientes de testemunhos voluntários e involuntá-
rios. Esta pesquisa contemplará, além do estudo sobre práticas de consumo, um
levantamento sobre a venda de produtos importados da Europa que chegavam
ao mercado consumidor de Porto Alegre, assim como o mapeamento das prin-
cipais redes de importação e distribuição destes artigos, até chegar ao destino
ÀQDOGRVSURGXWRVRGHVFDUWHQXPHVWXGRGDVOL[HLUDVGRPpVWLFDVHFROHWLYDV
que materializam esse processo de consumo revelando formas, diferentes tipos
de objetos, motivos decorativos, marcas, fabricantes, origens, etc.
Na primeira parte da dissertação busco situar historicamente a cidade de
Porto Alegre, numa perspectiva de longa duração, considerando-a enquanto ain-
da era um território de sesmaria, posteriormente como vila e centro de decisão
SROtWLFDGDHQWmR3URYtQFLDGH6mR3HGURHÀQDOPHQWHDSDUWLUGHTXDQGR
teremos um estudo aprofundado do período de Porto Alegre enquanto cidade.
6HUiQHFHVViULRDERUGDUTXHVW}HVIXQGDPHQWDLVFRPRRVUHÁH[RVHGHVGREUDPHQ-
tos da “Revolução” Industrial1 da Inglaterra e as questões relativas às condições
* Mestrando em História pela PUCRS vinculado ao PPGH com área de concentração em Arqueologia, bolsista CNPq,
orientando do Prof. Dr. Arno Alvarez Kern; pesquisador vinculado a linha de pesquisa: sociedade, cultura material e po-
voamento. Pesquisador Júnior Pós-graduando do Projeto Integrado de Investigações Interdisciplinares da Região Platina
Oriental (PROPRATA).
1 Entendemos o desenvolvimento industrial ocorrido na Inglaterra como um processo de longa duração, que acumulou
experiências e desenvolvimentos técnicos ao longo do tempo e não enquanto uma revolução que marca uma mudança mais
radical. Para um aprofundamento desta discussão conceitual ver: WALLERSTEIN, Immanuel. El moderno sistema mundial
III: La segunda era de gran expansión de la economia-mundo capitalista, 1730-1850. México: Siglo ventiuno, 1998.2ed.
45
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
2 Vida material segundo Fernand Braudel: “Vida material, la expression designará pues preferencialmente, em el curso de
este libro, los usos repetidos, los procedimientos emp[iricos, las mui viejas recetas, las soluciones venidas de la noche de
los tiempos, como la moneda o la división de cuidades y campos. Una vida elemental que, sin embargo, no es enteramente
impuesta ni sobre todo inmóvil. Es suscetible de aceleraciones, a veces de sorpresas: plantas nuevas que se aclimatam,
técnicas que mejoram, se difundem, el arte del herrero, del tejedor, também del minero o del constructor de barcos que
VHPRGLÀFDQPX\OHQWDPHQWHELHQHVYHUGDGSHURTXHVHPRGLÀFDQDOÀQ\DOFDER/DPRQHGD\ODVFLXGDGHVQRFHVDQ
de incrementar su función, y ciertas innovaciones son decisivas”. BRAUDEL, Fernand. Civilización Material e Capitalis-
mo,1974. p.10. A última frase do conceito é a que mais interessa nesta pesquisa, por estar estudando exatamente a vida
material das cidade e as inovações advindas do capital.
46
TXHVW}HVHVSHFtÀFDVHSRQWXDLVda cidade ou diretamente relacionadas a ela:
as levas de imigração, processo de povoamento da região, surgimento da vila
e posteriormente da cidade, o processo da abertura de caminhos, os arraiais, o
porto, a alfândega, abertura das ruas, os aspectos de produção e consumo, os
transportes, as construções, as instituições econômicas e administrativas, etc.
Busco com estas questões avançar o máximo possível na análise des-
tes elementos estruturais, e sempre que for viável farei o esforço de chegar
ao nível de percepção de algumas particularidades e individualidades, incor-
porando todo um universo composto pelas mobílias domésticas, os objetos
GH XVR SHVVRDO HQÀP FRQWHPSODQGR R Pi[LPR SRVVtYHO GHVWDV HVIHUDV GH
atividade econômica, social e cultural, sempre que possível chegando até os
personagens históricos (atores sociais) que com suas ações tornaram possível
o surgimento e desenvolvimento da cidade de Porto Alegre ou que através de
seus testemunhos nos tornou possível a execução deste trabalho, que visa, em
última análise, reinterpretar este tempo passado e vivido.
Uma segunda etapa deste trabalho consistirá em sistematizar e rela-
cionar as informações a respeito das lixeiras (domésticas) e depósitos de lixo
(lixeiras coletivas) da cidade de Porto Alegre do século XIX, considerando
principalmente as áreas ao longo das margens do lago Guaíba relacionando
os trabalhos e as intervenções já realizadas pontualmente por outros arqueó-
logos e cientistas sociais, traçando assim um quadro geral das principais carac-
terísticas destes depósitos e seus conteúdos, suas possíveis relações e também
VXDV HVSHFLÀFLGDGHV 8PD YH] UHLQVHULGDV HVWDV LQIRUPDo}HV QR SURFHVVR
de mudança, crescimento e desenvolvimento da cidade, estarão atreladas a
uma outra teoria Braudeliana, das múltiplas temporalidades3, onde segundo
o autor, teremos um tempo longo (longa duração), médio (das estruturas e
conjunturas) e um tempo curto (dos acontecimentos). Em nosso trabalho
as mudanças mais lentas e seletivas estarão relacionadas às esferas sociais,
culturais e políticas (entendidas como tempo longo), o crescimento que dará
especial atenção à população e as estruturas materiais da cidade (entendidas
como conjunturas e estruturas) e o desenvolvimento ao econômico e social
da cidade (ligados ao consumo ao tempo breve ao ato de consumir, o acon-
tecimento).
3 BRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales: « la longue durée », Annales E.S.C.,nº 4,Oct.-déc. 1958, Débats et
Combats, p. 725-753.
47
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
4 Ver PESAVENTO, Sandra. A emergência dos subalternos: trabalho livre e ordem burguesa. Porto Alegre: Ed. Da Uni-
versidade/UFRGS :FAPERGS, 1989: 7 – 35.
5 HODDER, Ian. Interpretación em arqueologia: corrientes actuales. Barcelona: Crítica, 1994.
6 Entendemos por vida econômica o exposto por Fernand Braudel: “Por vida econômica designaremos em princípio,
um nível superior, privilegiado, de la vida cotidiana, de más amplo raio: el cálculo y la atención le reclamam su partici-
pacion constante. Nacida del intercambio, de los transportes, de las estruturas diferenciadas de mercado, del juego entre
países ya industrializados y países primitivos o subdesarrolados, entre ricos y pobres, entre acredores y prestatarios, entre
economias monetárias y premonetarias, es ya en si misma casi un sistema”. BRAUDEL, Fernand. Civilización Material e
Capitalismo. 1974. p.10.
48
merciantes, lojistas e considerando também a atuação de possíveis atraves-
sadores e contrabandistas, possamos esclarecer alguns pontos deste longo
processo comercial e entendermos suas conseqüentes mudanças no campo
sócio-cultural reveladas através de um modelo desigual (ou sobre-posição de
sistemas). Teremos então uma sociedade escravista e imperial em processo de
transição para a República, constituindo-se num atrativo mercado consumi-
dor que entra em contato e estabelece estreitas relações com o sistema capita-
lista industrial que se encontra em contínua expansão7, promovendo assim a
internacionalização não só de mercadorias como também de idéias.
Os itens materiais (arqueológicos e dados obtidos na documentação
escrita) ligados às relações comerciais, somadas às representações sociais
LGHQWLÀFDGDV QD 3RUWR $OHJUH oitocentista, revelam a existência de práticas
que aproximam parcelas da população porto-alegrense das classes burguesas
européias, o que corresponde ao que chamo de processo de inserção do ide-
iULRPRGHUQL]DQWHFDSLWDOLVWDHXURSHX3DUDFKHJDUDWDODÀUPDomRWUDEDOKR
as relações entre as disciplinas Arqueologia e História, empregando conceitos
próprios da Arqueologia Histórica e ferramentas da chamada História Cultu-
ral, que considero fundamentais para a compreensão e execução deste estudo.
Nos trabalhos realizados atualmente (a partir da década de 90) no campo da
Arqueologia Histórica, a relação entre as disciplinas História e Arqueologia é
uma grande via, que visa o desenvolvimento de análises centradas no estudo
combinado da cultura material e dos documentos históricos8.
A Arqueologia Histórica, segundo Charles Orser9, corresponde ao “es-
tudo arqueológico dos aspectos materiais, em termos históricos, culturais e so-
ciais concretos, dos efeitos do mercantilismo e do capitalismo que foi trazido
GD(XURSDHPÀQVGRVpFXOR;9HTXHFRQWLQXDHPDomRDLQGDKRMHµ8WLOL]R
HVWDGHÀQLomRVDEHQGRTXHDPHVPDQmRSRGHVHUDSOLFDGDDWRGRVRVFRQ-
textos arqueológicos (em nível mundial e mesmo nacional como é o caso das
0LVV}HVSRUH[HPSORPDVTXHSDUDHVWHHVWXGRHPHVSHFtÀFRSRGHVHUFHUWD-
mente utilizado. Muitos dos trabalhos na área da Arqueologia Histórica refe-
rem-se a questões ligadas ao colonialismo, ao imperialismo, a temas históricos,
culturais e sociais. Na perspectiva de Orser10 a Arqueologia Histórica refere-se
às manifestações materiais do mundo em rápida transformação, devendo ser
7 Em relação à expansão do sistema capitalista ver: WALLERSTEIN, Immanuel. El moderno sistema mundial III: La
segunda era de gran expansión de la economia-mundo capitalista, 1730-1850. México: Siglo ventiuno, 1998.2ed.
8 KERN, Arno. Apresentação. In: SYMANSKI, Luis Cláudio Pereira. Espaço Privado e Vida Material em Porto Alegre
no século XIX, Porto Alegre : EDIPUCRS,1998:p.6.
256(5&KDUOHV(,QWURGXomRj$UTXHRORJLD+LVWyULFD%HOR+RUL]RQWH2ÀFLQDGH/LYURVS
10 ORSER, Op. cit. p.23
49
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
compreendida não somente como história, e sim como um campo muito di-
verso de investigação que combina um grande número de abordagens11.
Neste projeto os documentos escritos são tão importantes quanto os
registros arqueológicos. Esta é uma das características mais marcantes da Ar-
queologia Histórica - o documento escrito é uma importante informação e o
arqueólogo deve saber como integrar a informação proveniente desta fonte
com registros arqueológicos12. Devemos seguir o exame crítico dos vestígios
do passado como um todo, somente visualizado com as informações advin-
das de diferentes categorias documentais.
Abordando então o estudo da inserção do culto do consumo em sua
fase inicial13, procuro entender mais profundamente seus efeitos sobre o ide-
ário consumista e globalizante dos dias de hoje, este fenômeno de mundia-
lização do sistema capitalista ao longo do tempo14, num processo de longa
duração. Neste trabalho conjunto entre Arqueologia e História, conseqüen-
temente com diferentes categorias documentais, busco chegar a um terceiro
nível de informação, que não é propriamente histórico, nem mesmo arqueo-
lógico15, e sim um resultado das relações e confrontos entre estas categorias
documentais. A idéia de relações e confronto é gerada através do trabalho
com fontes históricas escritas e arqueológicas, resultando em uma nova cons-
trução. Trabalhando cada categoria material isoladamente enquanto testemu-
nhos distintos que são, passando posteriormente às relações e ao confronto
das fontes históricas entre si, e o mesmo é feito com a cultura material, para
SRUÀPID]HURFUX]DPHQWRÀQDOHQWUHDVGXDVFDWHJRULDV
1R SURFHVVR ÀQDO GH UHODo}HV H FRQIURQWR HQWUH DV IRQWHV SURGX]
se um conhecimento que abrange além de simples relações, semelhanças e
contradições entre os artefatos e os textos, criando a possibilidade de visu-
alizarmos e explorarmos as ambigüidades, um campo de interdependência
e complementaridade, de contrariedades e questionamentos. Quanto aos
UHJLVWURV GRFXPHQWDLV UHÀURPH D SURFHVVRV GH LQYHQWiULRV post-mortem; os
50
periódicos de época (em especial o Jornal do Comércio); as Atas da Câmara
de Vereadores de Porto Alegre, os Livros de Registros de compra e venda de
propriedades (amostragens por década 1850-1889), Relatórios da Repartição
dos Negócios da Agricultura,Comércio e Obras Públicas (1866), assim como
LPDJHQVIRWRJUiÀFDVHUHODWRVGHYLDMDQWHVHXURSHXVeWDPEpPGHIXQGDPHQ-
tal importância o conhecimento da legislação da época em relação à indústria
e ao comércio, principalmente as questões relativas a contratos de importação
(licenças e restrições, por exemplo), rastrear a chegada dos bens de consu-
mo através da documentação das Alfândegas (de Porto Alegre, Rio Grande,
6mR -RVp GR 1RUWH H 5LR GH -DQHLUR DOpP GH YHULÀFDU D DGRomR H SUiWLFDV
ligadas à incorporação do pensamento liberal no meio político do Império,
assim como a gestação da idéia de Estado e, posteriormente, de República,
entendidas aqui como as bases da modernidade, ou melhor, do processo de
modernização.
Voltando as fontes, o trato com os registros históricos, trabalhei até o
momento com inventários e jornais, na forma de amostragem, por ter à dis-
posição um grande universo de documentos. No caso dos periódicos a quase
totalidade das informações são úteis, porém priorizo os anúncios de chegada
e venda de produtos europeus, os índices econômicos presentes, os estabe-
lecimentos de comércio destes bens de consumo e a seção de importação. Já
os inventários fornecem indicativos econômicos como os montes de riqueza
e os itens que os compõem, dando acesso à estrutura familiar do inventaria-
GRSRVVLELOLWDQGRYHULÀFDUDUHSUHVHQWDWLYLGDGHHXVRGHVWHVEHQVTXDQGRGR
confronto com outras fontes. No interior do processo do inventário pode-se
FRQWDUFRPDRFRUUrQFLDGHQRWDVÀVFDLVUHFLERVGHHPSUpVWLPRVHGtYLGDV
que revelam a esfera do consumo e acesso a bens materiais.
A pesquisa realizada até o momento compreende uma mostra de in-
ventários da cidade de Porto Alegre ao longo do século XIX, registrados nos
Cartórios 1º, 2º e 3º de Órfãos, 1º e 3º do Cível e Comércio, os quais foram
pesquisados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
A mostra conta até o momento com aproximadamente 200 documentos le-
vantados e analisados (para um ideal de 400), onde procuro por diferentes
representações sócio- econômicas e descrições ligadas aos bens de consumo
e a posse de bens de raiz (neste caso as lojas). Os processos de inventário são
um dos testemunhos materiais de parte da vida e morte dos agentes históri-
FRVHQÀPXPGRFXPHQWRFRPXPDOWRSRWHQFLDOLQIRUPDWLYR
51
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
17 SYMANSKI, Luis Cláudio Pereira. Louças e auto-expressão em regiões centrais, adjacentes e periféricas do Brasil.
Arqueologia da sociedade moderna na América do sul: cultura, material discursos e práticas. ZARANKIN, Andrés e SE-
1$725(0DULD;LPHQDRUJ%XHQRV$LUHV(GLFLRQHVGHOWULGHQWHQFROOHFFLyQFLHQWtÀFDS
52
FONTES CONSULTADAS
REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. In: MICELI, Sergio (org.). São
Paulo: Perspectiva, 1974.
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: UNESP,
2004. 173-260.
53
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. O Mundo dos Bens: para uma antropologia
do Consumo.Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:UFRJ, 2004.
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Arqueologia histórica e cultura material. Campinas, SP:
81,&$03,QVWLWXWRGH)LORVRÀDH&LrQFLDV+XPDQDV
KERN, Arno Alvarez. O papel das teorias como instrumental heurístico para a
reconstituição do passado. 5HYLVWD +LVWyULFD Porto Alegre (APGH-PPGH-PUCRS),
1996: p.7-22.
54
ORSER, Charles E. Introdução à Arqueologia Histórica %HOR +RUL]RQWH2ÀFLQD GH
Livros, 1992.
SLATER, Don. &XOWXUD GR &RQVXPR H PRGHUQLGDGH Trad. Dinah de A. Azevedo. São
Paulo:Nobel, 2002.
SYMANSKI, Luis Cláudio Pereira. Espaço Privado e Vida Material em Porto Alegre no
século XIX. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Alain Touraine; Trad. Elia Ferreira Edel.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
55
2
HISTÓRIA AGRÁRIA, TERRA
E POVOAMENTO
AGRICULTURA E PRODUTORES AGRÍCOLAS EM
SÃO JOÃO DA CACHOEIRA – 1825 - 1834
Lauro Allan Almeida Duvoisin*
ʌ Resumo: 2SUHVHQWHWUDEDOKRWHPRLQWXLWRGHUHÁHWLUVREUHDVEDVHVSURGXWLYDVGR5LR
Grande do Sul no início do século XIX. A visão dicotômica Campo – criação / Mato – agri-
FXOWXUDHPERUDDX[LOLHQRHQWHQGLPHQWRGDGLYLVmRJHRJUiÀFDGDSURGXomRQDSURYtQFLDSRGH
também obscurecer a convivência possível entre agricultura e criação. Assim, a partir do estudo
GDHVWUXWXUDSURGXWLYDGH6mR-RmRGD&DFKRHLUDpSRVVtYHOYHULÀFDUXPDPDLRUFRPSOH[LGDGHGD
economia primária do que geralmente suposta numa primeira aproximação.
ʌ Palavras-chave: História Agrária – Agricultura – Pecuária - Abastecimento – Trigo.
H
á uma grande lacuna na história do Rio Grande do Sul no sé-
culo XIX quando tratamos do tema da agricultura. Em geral a
produção de gêneros de subsistência ou para o abastecimento
local de povoados é diretamente associado ou aos imigrantes açorianos che-
gados na segunda metade do século XVIII, ou aos alemães após a década de
1820, destacadamente na colônia de São Leopoldo. Todo um espaço geográ-
ÀFRIRUDGRHL[R3RUWR$OHJUH²FRO{QLDVDOHPmVpSUDWLFDPHQWHLJQRUDGRHP
relação à produção agrícola. É possível até que seja contestada a existência de
qualquer tipo de cultivo no espaço próximo à fronteira, por ser uma região
PDUFDGDSRUFRQÁLWRVDUPDGRVHSHORSUHGRPtQLRGDVHVWkQFLDVGHFULDomRGH
gado no espaço rural.
Paulo Zarth resume a visão corrente que temos da agricultura no Rio
Grande do Sul nos seguintes termos:
A história da agricultura no Sul tem sido apresentada em três fases
básicas. A primeira fase desenvolveu-se entre 1750 e 1820, quando
os colonos açorianos produziram trigo em larga escala. Uma segunda
fase é apresentada como um período de abandono da agricultura em
IDYRUGDFULDomRGHJDGR$WHUFHLUDIDVHpLGHQWLÀFDGDFRPDH[SDQVmR
da produção agrícola a partir da imigração de colonos alemães e a
colonização. 1
59
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
7HQGRHPYLVWDHVWDTXHVWmRDOpPGHXPDODFXQDDRQtYHOJHRJUiÀFR
RHVWXGRGDDJULFXOWXUDVRIUHXPDGHÀFLrQFLDWHPSRUDOPDUFDGDSRUXPVDOWR
da década de 1820 para a segunda metade do século XIX, quando a produção
colonial articula-se mais intensamente. Este trabalho visa justamente dar uma
FRQWULEXLomR SDUD R SUHHQFKLPHQWR GHVWH YD]LR KLVWRULRJUiÀFR D SDUWLU GR
estudo do caso de São João da Cachoeira.
A questão que tentaremos responder é qual o papel econômico da
DJULFXOWXUDHP&DFKRHLUDHQWUHH&DEHHPHVSHFLDOYHULÀFDUSDUD
o caso particular do Rio Grande do Sul como o cultivo de gêneros pôde
inserir-se dentro de uma economia dominada pela criação. Outras questões
importantes também decorrem desse primeiro problema, principalmente no
que se refere às formas de coexistência possíveis entre a agricultura e a criação
e quanto a sua distribuição no território2.
Analisamos um número total de 58 inventários, 2 da 1ª Vara civil-crime
e 56 da 1º Vara de família localizados no Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul (APERS). Eles formam a totalidade dos inventários que con-
tém bens rurais da freguesia de Cachoeira entre os anos de 1825 e 1834.
O segundo tipo de fonte que analisamos é a Correspondência da câma-
ra do município, desde 1820, localizada no Arquivo Histórico do Rio Grande
do Sul (AHRS). A correspondência tem um conteúdo variado, referindo-se à
condição das milícias, à eleição dos vereadores, reivindicações junto ao presi-
dente da província, bem como indicações importantes sobre algumas condi-
ções econômicas e sociais da região. Esta fonte serviu para complementar a
análise dos inventários.
O território do município de São João da Cachoeira durante o período
DQDOLVDGRFRPSUHHQGLDXPDPSORHVSDoRJHRJUiÀFRTXHLDGHVGHDV0LVV}HV
até o município de Santana do Livramento3, adentrando o território do atual
Uruguai. Dentro da sua jurisdição estavam as povoações de Alegrete, Bagé,
Caçapava, Dom Pedrito, São Vicente, São Gabriel, Lavras, Quarai, Rosário,
Santa Maria e Santana do Livramento. Escolhemos, então, trabalhar com o
município de São João da Cachoeira porque ele englobava naquele momento
3 A divisão entre terras de campo e mato relacionada à criação ou à agricultura, respectivamente, é utilizada por alguns
historiadores no Rio grande do Sul. Em relação a isso ver ZARTH, Paulo Afonso. IBIDEM, 1994; FOLETTO, Arlene
Guimarães. Dos campos junto ao Uruguai aos matos em cima da serra: a paisagem agrária na Paróquia de São Patrício de
Itaqui (1850-1889). Porto Alegre: UFRGS, 2003. Dissertação de Mestrado (mimeo); FARINATTI, Luís Augusto. Sobre
as Cinzas da Mata Virgem: os lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845-1880). Porto
Alegre: PUCRS, 1999. Dissertação de Mestrado (mimeo).
3 FORTES, Amyr Borges. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo,
1963, p. 49-50.
60
tanto a Depressão Central do Jacuí quanto uma parte considerável da campanha
gaúcha. Esta última região é considerada tradicionalmente como o local privile-
giado da criação extensiva de gado, onde habitariam basicamente estancieiros e
peões sendo, portanto, o lugar mais improvável para a prática agrícola. A Depres-
são Central, por seu turno, é considerada favorável aos cultivos, mas neste sentido
sempre foi privilegiadamente destacado o papel dos açorianos. Nossa intenção
é perceber como a agricultura se articula nesses diferentes espaços levando em
conta especialmente a divisão campo-mato proposta por Paulo Zarth.
O recorte temporal, de 1825 a 1834, considera também o tradicional marco
da decadência da produção de trigo na província. A década de 1820 é interpretada
por vários historiadores gaúchos como o período de crise da produção tritícola,
WHQGRGHVWDTXHDSUDJDGDIHUUXJHPHRVFRQÁLWRVGHFRUUHQWHVGDVGuerras Cispla-
tinas, que teriam levado à falência as plantações. Esta perspectiva, no entanto, é
pouco problematizada, sendo considerada em diversos trabalhos mais como um
pressuposto do que como um objeto de pesquisa.
2UHFRUWHWHPSRUDOTXHÀ]HPRVOHYDHPFRQWDWDPEpPRDFHVVRDIRQWHV
históricas regulares, uma vez que este é um período de relativa estabilidade entre
a província rio-grandense e a Banda Oriental. Em 1825 estava se encaminhando
RÀPGRVFRQÁLWRVGDVGuerras CisplatinasLQLFLDGDVSHOROHYDQWHGH$UWLJDVHÀQD-
OL]DGDRÀFLDOPHQWHFRPDFULDomRGD5HS~EOLFDGR8UXJXDLHP'HSRLVGH
um interregno de paz de aproximadamente 10 anos, ocorre a Revolução Farroupilha,
que dura até 1845. Sendo assim, limitamos nosso período de estudo entre os anos
de 1825 e 1834, para priorizar o acesso às fontes seriais, como os inventários, por
exemplo.
A
jurisdição do recém criado município de Cachoeira, assim
como de toda a província rio-grandense, abrangia um espa-
oR JHRJUiÀFR GLYHUVLÀFDGR (VVD FRQIRUPDomR GLYHUVD WHYH
JUDQGH LQÁXrQFLD QD IRUPDomR GD SDLVDJHP DJUiULD GD UHJLmR QD IRUPD GH
apropriação das terras e nos ramos de atividades produtivas desenvolvidas
pela população5. Fica patente que a condição física do território é um fator
fundamental para o entendimento da economia do município.
=$57+3DXOR$IRQVR,%,'(0%(51$5'(61LOR%DVHVJHRJUiÀFDVGRSRYRDPHQWRGRHVWDGRGR5LR
Grande do Sul. Ijui: Unijui, 1997.
61
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
$GLYLVmRJHRJUiÀFDQRkPELWRGDSURGXomRPDLVXWLOL]DGDSHODKLVWyULD
agrária do Rio Grande do Sul foi formulada por Paulo Zarth. Esse historiador
vê a estrutura econômica gaúcha dentro de um universo dicotômico campo/
mato, criação/agricultura. Tal proposição foi formulada originalmente pelo
geógrafo Nilo Bernardes, no intuito de explicar as diferenças no processo de
povoamento do território ligando-o ao tipo de vegetação predominante em
FDGDUHJLmR&RPRÀPGHH[SOLFDUDVGLVFUHSkQFLDVGDVSRSXODo}HVGRQRUWHH
GRVXOGRHVWDGRHRVGLYHUVRVIDWRUHVJHRJUiÀFRVTXHDVWHULDPLQÁXHQFLDGR
o autor relaciona:
Mas, nota-se muito bem, não são as margens dos grandes rios que
exercem esta função aglutinadora da população. Nem mesmo são as
condições de relevo de fraca amplitude, facilitando o trabalho e permi-
tindo a circulação desimpedida. Pelo contrário, as densidades maiores
assinalam-se em zonas de relevo aparentemente mais hostil. Também
RFOLPDQmRLPS{VVHXVSDGU}HVGHPRJUiÀFRVHHFRQ{PLFRVFRUUHV-
pondentes. As repentinas mudanças de paisagens culturais que se as-
sinalam coincidem, na verdade, com os limites das zonas de mata com
o campo. É, pois, a borda da mata que separa áreas tão diferentes7.
62
O fator mais importante para ele é, portanto, a formação vegetal, ainda
TXHRDXWRUQHJXHFDWHJRULFDPHQWHTXDOTXHUGHWHUPLQLVPRJHRJUiÀFR&RQ-
sideremos, no entanto, inadequada uma divisão pré-estabelecida como essa,
pois em São João da Cachoeira a agricultura não parece estar ligada obrigato-
riamente às zonas de mato.
Maria Santa de Jesus, por exemplo, casada de segundas núpcias com
José Marques da Silveira e falecida em 1830, tinha uma sesmaria em Alegrete.
Nela havia mais de 600 cabeças de gado vacum, e 4 bois lavradores, além de ca-
valos, mulas e potros8. A presença de bois lavradores está relacionada à prática
agrícola9. Também são presentes no mesmo inventário 8 enxadas, 2 arados,
7 foices (1 “de roçar” e 6 “de ceifar”) e duas pás cavadeiras. Infelizmente,
quanto às ferramentas e equipamentos, não sabemos se estavam no campo
de Alegrete ou nas duas outras fazendas da inventariada, mas a presença dos
bois lavradores na estância de Alegrete demonstra que era possível o cultivo
da terra naquela região fronteiriça.
A agricultura necessitava de condições propícias e estáveis para ser
viável, e a região mais próxima à fronteira é considerada desfavorável neste
sentido. Spencer Leitman observa as condições para este espaço:
Em resumo, nas zonas de guerra, a pecuária era um risco menor do
que a agricultura. O recrutamento militar nos períodos críticos da
plantação ou da colheita era uma queixa comum. O gado adaptava-
se melhor a uma área de guerras endêmicas e necessitava de menos
cuidados10.
$GLYLVmRJHRJUiÀFDGDSURGXomRFRQFHELGDSRU3DXOR=DUWKOHYDHP
conta essas condições desfavoráveis que surgem nas zonas de fronteira, como
a instabilidade da posse da terra e a escassez de mão de obra, recrutada para
as milícias locais. De fato as precárias condições para os cultivos parecem
ser uma realidade no Rio Grande do Sul, como demonstra esse documento
escrito por pequenos lavradores de Cima da Serra ao reivindicarem a isenção
de sua participação nas tropas locais:
8 1ª Vara de família de São João da Cachoeira; inv. 56; maço 03; 1830.
9 Os bois lavradores deviam ser uma importante fonte de energia motriz para os agricultores. Saint-Hilaire faz referência
DRXVRGHVVHVDQLPDLVQRWUDWRGRPLOKR2YLDMDQWHQDRFDVLmRHVWDYDQRH[WUHPRVXOGDSURYtQFLDHVSHFLÀFDPHQWHQD
região do Chuí: “O milho é plantado em quincêncio à distância de 3 palmos de pé a pé. Dois dos amanhos são feitos
quando o milharal já atingiu cerca de palmo e meio de altura, tendo-se o cuidado de colocar mordaças aos bois para
que eles não comam as plantinhas.” SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul : 1820-1821. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 91.
10 LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
63
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
64
A metodologia utilizada, que considera as ferramentas como indício
da prática agrícola foi utilizada por Helen Osório11. Seguindo esse método,
consideramos como inventários agrícolas todos aqueles que continham pelo
menos dois tipos de ferramentas e equipamentos diferentes relativos à ativi-
dade.
O forno, a roda e a prensa12VmRHTXLSDPHQWRVHVSHFtÀFRVSDUDDSUR-
dução da farinha de trigo, conhecida no Rio Grande do Sul como farinha de
guerra. A roda servia para a ralar a mandioca, a prensa para retirar o excesso
G·iJXDHRIRUQRSDUDVHFDJHPÀQDOGRSURGXWR13. Cabe ressaltar que não leva-
mos em conta o taxo de cobre, que também poderia ser utilizado na secagem
ÀQDO GD IDULQKD SRU WHU XPD SUHVHQoD PXLWR GLVVHPLQDGD QRV LQYHQWiULRV
GHPRQVWUDQGRSRULVVRVHUSRXFRFRQÀiYHOFRPRLQGtFLR
O moinho, assim como a atafona, também era utilizado na moagem de
grãos, principalmente do trigo. A fábrica de fazer farinha e o engenho deviam
ser usadas tanto para moer grãos quanto para a mandioca14.
2DUDGRpXPGRVLQGtFLRVPDLVFRQÀiYHLVSRUWHUXPDIXQomRPXLWR
particular. Ele era aplicado na aragem da terra antes da semeadura, provavel-
mente puxado por bois lavradores, algumas vezes presentes nos inventários.
Era rara a utilização do arado na América nesse período, sendo mais comum
a aplicação do pau cavador nos plantios, manejado unicamente com a força
humana. Provavelmente a cavadeira ou pá cavadeira também presente nos
inventários tenha um papel similar a esse último.
Ressaltamos que foram deixados de fora alguns tipos de ferramentas
de grande generalidade nos inventários. Este é o caso da foice, da enxada e do
WD[RGHFREUH)L]HPRVLVVRDÀPGHWHQWDUJDUDQWLUXPPDLRUJUDXGHFRQÀD-
bilidade aos nossos indícios.
Acrescentando às ferramentas alguns outros indicadores de cultivo,
como a discriminação de alguma colheita, a presença de bois lavradores
que puxavam os arados e dos escravos roceiros como mão-de-obra nas
roças, nosso número de agricultores chega a 30, somando um pouco
11 OSÓRIO, Helen. IBIDEM, 1999, p. 146
12 Muitas vezes esses equipamentos aparecem com uma denominação mais detalhada, como “forno de cobre”, “forno
GHIRUQHDUIDULQKDµH´URGDGHUDODUPDQGLRFDµ$SUHQVDHPJHUDODSDUHFHVHPXPDHVSHFLÀFDomRPDLRUTXHH[SOLFLWHVXD
função na manufatura da farinha de mandioca.
13 CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Bra-
siliense, 1987., p.85-86.
+iHVSHFLÀFDomRGRVGRLVFDVRVQDGHVFULomRGHVVHVHTXLSDPHQWRVGHSHQGHQGRGRLQYHQWiULRDQDOLVDGR$VVLPjV
vezes aparecem menções à “fabrica de fazer farinha de mandioca”, ou “engenho de fazer farinha de trigo”, por exemplo.
65
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
$PHWRGRORJLDXWLOL]DGDHPUHODomRjUHSUHVHQWDWLYLGDGHGDDJULFXOWXUDpPHWRGRORJLFDPHQWHFRQÀiYHOSRLVUHYHOD
o número mínimo de agricultores. Isso porque é muito provável que alguns produtores praticassem o cultivo, mas não
tivessem ferramentas próprias para tal, contando com a solidariedade da vizinhança, de familiares, etc. Isto certamente
devia ser mais recorrente no caso dos lavradores pobres. Sobre a represntatividade dessas camadas pobres nos inventários
YHU*$5&,$*UDFLHOD%RQDVVD2GRPtQLRGDWHUUDFRQÁLWRVHHVWUXWXUDDJUiULDQDFDPSDQKDULRJUDQGHQVHRLWRFHQWLV-
ta. Porto Alegre: PPG-História/UFRGS, 2005. Dissertação de mestrado. p. 21: “a representatividade das camadas mais
despossuídas da sociedade revelada pelos inventários será sempre a mínima. Ou seja, se um dos nossos objetivos é de-
monstrar a existência e representatividade dos homens livres pobres na Campanha rio-grandense, o inventário mostra-se
como uma das fontes mais apropriadas. A margem de pobreza revelada por esta fonte é absolutamente segura, já que será
sempre inferior à presente na sociedade analisada.”
$LQGDTXH2VyULRDÀUPHTXHDHFRQRPLDGRÀQDOGRVpFXOR;9,,,HUDPDLVGLYHUVLÀFDGDTXHQRVpFXOR;,;DLQGD
DVVLPDYLVmRTXHVHWHPGDUHDOLGDGHUXUDOFRPRXPWRGRpH[WUHPDPHQWHVLPSOLÀFDGDPHVPRQRVpFXOR;,;26Ð5,2
Helen. IBIDEM, 1999.
17 CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. 2. ed. São Paulo: Editora do Brasil, [1981], c1956, p. 133.
18 As foices consideradas neste caso foram aquelas que vinham acompanhadas da caracterização “de trigo” na descrição.
As ferramentas referidas como “foice”, não foram utilizadas. Essa escolha será explicada mais adiante no texto.
66
SDWHQWHDWUDYpVGRVLQGtFLRVPDVDSHQDVGRVHWRUWULWtFROD,VVRQmRVLJQLÀFD
por outro lado, a ausência total do trigo nessa época, mas sim o decréscimo
da sua produção. É importante ressaltar esse aspecto porque uma das fontes
utilizadas para demonstrar a decadência do trigo é relativa à exportação, que
GHIDWRWHPXPDTXHGDDFHQWXDGDQRSHUtRGRRTXHQmRVLJQLÀFDSRURXWUR
lado, que a produção acompanhe tal processo na mesma intensidade. É por
isso que encontramos em São João da Cachoeira uma variedade de artigos
agrícolas maior do que costumeiramente se pressupõe para uma área que
engloba também zonas tradicionais de criação de gado.
Tendo em vista esse quadro geral, cabe notarmos que a presença de
agricultura na fronteira rio-grandense entre 1825 e 1834 não se contrapõe ao
argumento de que este espaço era tremendamente desfavorável aos cultivos. A
expansão da criação em direção ao território da Banda Orientall nesse momento
parece ser uma realidade, podendo ser inferido através dos inventários.
67
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
GHWHUUDVHJDGR$LQVWDELOLGDGHGRVFRQÁLWRVHDPLOLWDUL]DomRIDYRUHFHXRV
indivíduos com capacidade bélica própria, ou ligados às milícias19.
Apesar de desfavorecidos pela conjuntura, é possível que produtores
médios e pequenos viessem na retaguarda da primeira onda de ocupação des-
ta fronteira militar e agrária, e também se apropriassem de terras, criando
poucas cabeças de gado ou mesmo praticando a agricultura. Francisco Teixei-
ra da Silva e Linhares teorizam este tipo de processo de ocupação de terras
em outras partes do Brasil:
Como uma atividade menor, do ponto-de-vista do sistema de poder
dominante, apesar de sua extensão e do número de pessoas que ela ocupa,
a agricultura de subsistência torna-se, assim, a retaguarda da atividade maior
que é voltada para o comércio metropolitano20.
Obviamente que aqui os autores estão preocupados com a econo-
mia de plantation do centro do Brasil. Mas acreditamos que é possível que o
processo tenha tido uma dinâmica comparável em alguns pontos para o Rio
Grande do Sul.
É necessário, por isso, resgatar o papel da agricultura na província do
Rio Grande, assim como tem sido feito com outras regiões do Brasil. É evi-
dente que a criação predominou no território ao longo do século XIX, mas a
agricultura de subsistência ganha uma considerável importância ao longo do
século. Por isso, é relevante buscarmos a raiz desta prática, que não é nova na
história da província.
19 Temos um exemplo muito concreto de um indivíduo que possuía capacidade bélica própria. O abaixo assinado dos
lavradores de Cima da Serra discorre que Antonio José de Meneses, antigo agricultor da região, “ [...] pagou a sua custa
huma porção de homens libertos, e escravos seus, vestio, armou, e proveu de todo o perciso para a guerra, dando-lhes a
necessária cavalgadura, e os pôs na campanha; de onde depois de operarem em casos percisos, forão mandados ao Sup.
HHPJUDWLÀFDomRGDVXDOHDOGDGHHSURQWLGmRHHVWHVDLQGDKRMHVHFRQVHUYmRDUPDGRVHSURQWRVQDVXDID]HQGDSDUD
qualquer urgência do serviço de S. M. I. [...]”. AHRS; Correspondência da câmara de Cachoeira do Sul; doc. 96ª; 1826.
20 LINHARES, Maria Yedda; SILVA, Francisco Teixeira da. História da agricultura brasileira. Combates e controvérsias.
São Paulo: Brasiliense, 1981, p.119
68
CONCLUSÕES
A
FRQGLomRGHIURQWHLUDRVFRQÁLWRVHDFULDomRGHJDGRPDUFDP
D KLVWyULD GR 5LR *UDQGH GR 6XO DWp SHOR PHQRV R ÀQDO GR
século XIX. Todavia, a instabilidade e a ameaça da guerra não
impedem os grupos sociais de organizarem a produção agrícola da qual de-
pende sua subsistência. A própria criação de gado não era a priori antagônica
ao cultivo, como demonstra a coexistência de ambos em inúmeras unidades
produtivas registradas em inventários.
A divisão de atividades produtivas de acordo com a vegetação predomi-
nante na província (campo-criação / mato-agricultura) pode ser uma tendên-
cia percebida na paisagem agrária do território rio-grandense, não podendo,
HQWUHWDQWRVHUFRQVLGHUDGDXPDEDUUHLUDLQWUDQVSRQtYHOHPXLWRPHQRVÀ[D$
criação esteve presente, entre 1825 e 1834, nas regiões de mato da província
sob a organização dos lavradores pobres, mas também os produtores agríco-
las da campanha souberam se adaptar às condições adversas nos momentos
GHFRQÁLWRVHQGRTXHPHVPRRVHVWDQFLHLURVSODQWDYDPSDUDRDXWRDEDVWHFL-
PHQWRGDID]HQGDHSDUDDXPHQWDUVXDVUHQGDV3RUWDQWRDDQiOLVHJHRJUiÀFD
proposta por Nilo Bernardes deve ser aprofundada, levando em conta outros
fatores como a condição da comunicação e do transporte de bens, por exem-
plo, que deviam determinar em grande parte a viabilidade dos cultivos.
69
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, Ciro Flamarion S., BRIGNOLI, Héctor Pérez. 2V PpWRGRV GD KLVWyULD
2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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Brasil, [1981], c1956. 327 p.
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2003. Dissertação de Mestrado (mimeo).
70
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Sul. Porto Alegre: Globo, 1963. 497 p.
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V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
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A. da (coord.). República em Migalhas: História regional e local. São Paulo: Editora Marco
Zero, 1990. pp. 17-42.
72
A LEGITIMIDADE DA POSSE DA TERRA EM NOSSA
SENHORA DAS OLIVEIRAS DE VACARIA – 1854 - 1863
Juslaine Tonin*
ʌ Resumo: Este trabalho analisa fontes primárias com o propósito de legitimar a
posse da terra, com base na Lei de Terra de 1850. Busca-se mapear a estrutura fundi-
ária de uma das províncias brasileira do séc. XIX, no Rio Grande do Sul, centrando-se
o olhar sobre a região de Vacaria (1854-1863). Trata-se de um estudo nos domínios da
História Agrária e no que diz respeito ao tratamento de fontes, no campo da História
Serial, a partir da História Regional. Visa a contribuir para o conjunto de estudos
KLVWRULRJUiÀFRVVREUHD+LVWyULD$JUiULD5HJLRQDODUWLFXODUPHQWHDRTXHVHUHIHUHDR
processo de legitimação e ocupação de Vacaria, na segunda metade do século XIX, ou
seja, trazer ao conhecimento histórico o processo pelo qual se projetou a ocupação
territorial, bem como desvendar aspectos obscuros da história regional e agrária do
Rio Grande do Sul.
ʌ Palavras-chave: Estrutura fundiária – Lei de Terras – terra – ocupação.
INTRODUÇÃO
E
ste trabalho tem por objetivo analisar fontes primárias com o
propósito de legitimar a posse da terra, buscando mapear a es-
trutura fundiária de uma das províncias brasileira do séc. XIX,
no Rio Grande do Sul, centrando seu olhar sobre a região de Vacaria (1854-
1863). Tratar-se, portanto, de um estudo nos domínios da História Agrária e
com abordagem serial, ocorrendo um recorte temporal e espacial nas fontes.
A partir disso, teremos uma contribuição quanto à ampliação à concepção
documental, o que propiciará uma abertura aos modos de fazer História.
Durante os séculos XVIII e o princípio do XIX, o pampa sulino foi
apropriado através da concessão de sesmaria, característica que marcaria
profundamente a formação histórica regional. Com isso, o único meio de
se obter a posse da terra era por meio de doações, neste caso, as sesmarias,
TXHH[LVWLUDPDWpFXMRVEHQHÀFLDGRVHUDPVHOHFLRQDGRVSRUVHXVWDWXV
social. Subentende-se que estavam excluídos os “camponeses”, aos quais res-
tava apenas o acesso a terra através da ocupação primária. Na ausência de
XPDOHJLVODomRDJUiULDHVSHFLÀFDDSRVVHWRUQRXVHD~QLFDIRUPDGHVHWHU
acesso a terra no Brasil imperial. Até então, este era um acesso precário, ou
73
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
1 SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas: EdiUnicamp, 1996
2 Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850.
74
No entanto, sua aplicação não foi de forma automática muito menos
de forma homogênea nas diferentes províncias do Império. Segundo Hebe
Castro,3 “sua realização dependeu basicamente das práticas concretas dos ato-
res sociais envolvidos (fazendeiros, pequenos e médios produtores, campone-
VHVHPVLWXDo}HVORFDLVHUHJLRQDLVFRPSOH[DVHGLYHUVLÀFDGDVµ
Diante disso, os registros de terras são concretizados na Lei de Terras
de 1850, o qual foi regulamentado através do decreto nº 1.380 de 30 de ja-
neiro de 1854, segundo o qual, “todos os possuidores de terras, qualquer que
seja o título de sua propriedade ou possessão, são obrigados a fazer registrar
as terras, que possuírem dentro dos prazos marcados pelo presente Regula-
mento [...]”4
Através desta declaração do registro não podemos deixar de dar rele-
vância no sentido de ser um ato interessado, que às vezes revela uma estratégia
de expansão de seus domínios por parte dos declarantes. Portanto, levando-se
a pensar que esta não seja a fonte mais indicada, entre as que utilizei para se
obter uma apropriação com a estrutura fundiária da época.
De acordo com Zarth, o cruzamento dos Registros Paroquiais com as
HYLGrQFLDVLQGLFDGDVSHODKLVWRULRJUDÀDHFRPRVFHQVRVSRVWHULRUHVSRGHULD
minimizar a fragilidade desta fonte. O autor adotou este procedimento em
seu trabalho de mestrado sobre o Planalto Gaúcho, no qual concluiu que
“apesar da fragilidade dessa fonte, os dados coincidem com a evidência que
QRVLQGLFDDKLVWRULRJUDÀDUHJLRQDOUHIHUHQWHjVGHPDLVUHJL}HVGR5LR*UDQGH
do Sul, sobre tudo se considerarmos a estrutura fundiária de anos posteriores,
para os quais temos dados mais precisos”5.
Luis Augusto Farinatti foi um tanto otimista em relação às possibili-
dades de uso destes registros para construção de “uma amostra da estrutura
fundiária” dos territórios analisados. De acordo com o autor: “o Registro
Paroquial de terras de Santa Maria, ainda que não contemple todos os esta-
belecimentos rurais da paróquia, fornece, no mínimo, uma boa amostra da
HVWUXWXUDIXQGLiULDORFDOHPÀQVGDGpFDGDGHµ6
&$6752+HEHDSXG*$5&,$*UDFLHOD%RQDVVD2GRPtQLRGDWHUUDFRQÁLWRVHHVWUXWXUDDJUiULDQDFDPSDQKDULR
grandense oitocentista. Dissertação (Mestrado em História), UFRGS, Porto Alegre, 2005.
4 Art. 91 do Decreto nº 1.318 de janeiro de 1854.
5 ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho – 1850 a 1920. Ijuí: Unijuí, 1997, p. 49.
6 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Sobre as cinzas da mata virgem: lavradores nacionais na Província do Rio Grande
do Sul (Santa Maria, 1845-1880). Dissertação (Mestrado em História), PUC, Porto Alegre, 1999. p. 35.
75
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
7 FOLETTO, Arlene Guimarães. Dos campos junto ao Uruguai aos matos em cima da serra. A paisagem agrária da Paró-
quia de São Patrício de Itaqui (1850-1889). Dissertação de (Mestrado em História), UFRGS, Porto Alegre, 2003. p. 65.
8 ORTIZ, Helen Scorsatto. O Banquete dos ausentes: A Lei de terras e a formação do latifúndio no norte do Rio Grande
do Sul (Soledade, 1850-1889). Dissertação (Mestrado em História). UPF, Passo Fundo, 2006.
9 O tratamento das fontes será explicitado ao longo do texto.
10 BLOCH, Marc. La História rural francesa. Barcelona: Crítica, 1978. p. 48.
76
A partir disso, o estudo trata de documentos que permitam uma vi-
são da estrutura fundiária, dos grupos sociais, das formas de organização do
trabalho, da mobilidade social, ou seja, da família, da herança e das fortunas.
Ocorre uma transformação na distribuição da terra, que se destinavam àque-
les providos de alguns bens ou por ter recebido como uma “premiação” por
ter servido a Coroa com muito esmero, sendo que agora os posseiros e arren-
datários têm um acesso facilitado a terra.
Para trabalhar com a História Agrária, trilharei o caminho do autor
gaúcho Paulo Afonso Zarth11, que aponta para um estudo sobre o planalto
JD~FKRHVSHFLÀFDPHQWHRPXQLFtSLRGH&UX]$OWDDÀUPDQGR´TXHQDV]RQDV
de ocupação mais antigas do Rio Grande do Sul, a apropriação das terras
no planalto começou pelos campos nativos e com a formação das estâncias
pastoris.”. Para tal estudo o autor faz uma reunião de dados a partir de no-
vas concepções de pesquisa, ou seja, utilizando o estudo serial de inventários
post-morten e registros paroquiais, entre outros documentos que se referem
ao município de Cruz Alta. É por meio da abordagem regional, que também
será fundamentada através do viés do mesmo autor, que se aprofundará o
estudo do município de Vacaria, colocando em evidência a estrutura fundiária
que se desenvolveu na região, nos anos de 1854 a 1863.
A relação entre os proprietários, os agricultores e a terra utilizada é
conceituada, pelos estudiosos, como estrutura agrária e estrutura fundiária. A ex-
pressão estrutura agráriapXVDGDHPVHQWLGRDPSORVLJQLÀFDQGRDIRUPDGH
acesso à propriedade da terra e à exploração da mesma, indicando as relações
entre os proprietários e os não proprietários, a forma como as culturas se dis-
tribuem pela superfície da Terra (morfologia agrária) e como a população se dis-
tribui e se relaciona aos meios de transportes e comunicações (habitat rural).
De acordo com José de Souza Martins12 em um importante estudo
sobre a escravidão e a posse da terra. O qual apresenta-nos um pensamento
que consiste “num regime de terras livres o trabalho tinha de ser cativo; num
regime de trabalho livre, a terra tinha de ser cativa” .
Segundo a autora Graciela Garcia, a concessão de Sesmaria era o “re-
conhecimento por parte da Coroa aos considerados merecedores. Estes não
adquiriam a propriedade plena da terra, que permanecia sendo da Coroa, mas
11 ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho – 1850 a 1920. Ijuí: Unijuí, 1997. p. 48.
12 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 7ª. ed. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 32.
13 Sobre esta temática ver: OSÓRIO, Helen. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço
platino. Porto Alegre: UFRGS, 1990.
77
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
14 Abordagem serial, ou seja, eleição de um recorte privilegiado e abordagem extensiva das fontes têm contribuído para
ampliar a concepção documental, o que propicia uma abertura aos modos de fazer História.
15 Encontra-se disponível no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, APERS.
78
Quanto o uso de Inventários, do Cartório de Órfãos e Ausentes e do
Cível e Crime de Vacaria, da segunda metade do século XIX, do Arquivo
Público do Rio Grande do Sul (APERS). Estes documentos pertenceram a
homens e mulheres, em situações diferenciadas na escala sócio-econômica de
Vacaria. As características contidas nos documentos, que são produzidas após
a morte, expressam explícita ou implicitamente o seu passado e o que nele
ÀFRX1HVVHFRQWH[WRDRPLVVmRGHLQIRUPDo}HVFRVWXPDVHID]HUIUHTHQWH
emprestando maior valor aos silêncios e às entrelinhas do texto.
Por meio do uso desses inventários, que compreendem o período (1854
– 1863), será possível organizar algumas séries estatísticas com informações
das próprias unidades produtivas. Dessa forma há a possibilidade de elaborar
quadros que possibilitam fazer uma releitura sócio-econômica e fundiária.
Além disso, a partir dos dados coletados poderão ser analisadas outras infor-
mações como os mecanismos de endividamento e de comercialização. Para o
estudo desta espécie de documento foi elaborado o quadro seguinte
79
CONCLUSÃO
P
ortanto, pensando de acordo com a Lei de terras de 1850, as ter-
UDVGHYROXWDVGHYHULDPVHUGLVWULEXtGDVGHIRUPDSDFLÀFDHOHJDO
mas apenas aqueles que possuíam status social teriam acesso a
terra, enquanto que à camada inferior da sociedade restava apenas o acesso a
terra através da ocupação simples, que se dava de fato, porém não de direito,
embora estivessem amparados pela Lei de Terras de 1850 e seu decreto de
1854, que a regulamenta, através do registro ao vigário.
3RUÀPpQRLQtFLRGRVpFXOR;,;FRPDSDVVDJHPGDWHUUDFRPR
meio produtor para o status de mercadoria, bem como a barreira que se er-
guia entre a posse e a propriedade, aliados a toda conjuntura do mercado
internacional, é que se percebe o caminho que se traçava para a criação da
Lei de Terras de 1850, e que esta se aplicou única e impreterivelmente através
de suas “distorções”, sendo elaborada como parte de um projeto que visava
abranger toda a sociedade, mas sua aplicação à sociedade foi o resultado de
um processo nos quais as diferentes camadas sociais interessadas entraram
HP FRQÁLWR H HQFRQWUDUDP RV PHLRV GH DFRPRGDU R RUGHQDPHQWR MXUtGLFR
aos seus interesses.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Emília Viotti da. 'D 0RQDUTXLD j 5HS~EOLFD PRPHQWRV GHFLVLYRV São Paulo:
Brasiliense, 1987.
FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Sobre as cinzas da mata virgem: lavradores nacionais
QD3URYtQFLDGR5LR*UDQGHGR6XO6DQWD0DULD Dissertação (Mestrado em
História), PUC, Porto Alegre, 1999.
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Paulo: Secretaria de Estado e Cultura, 1990.
MARTINS, José de Souza. 2FDWLYHLURGDWHUUD 7ª. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
ORTIZ, Helen Scorsatto. O Banquete dos ausentes: A Lei de terras e a formação do latifúndio
QRQRUWHGR5LR*UDQGHGR6XO6ROHGDGH Dissertação (Mestrado em História).
UPF, Passo Fundo, 2006.
OSÓRIO, Helen. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço
SODWLQR Porto Alegre: UFRGS, 1990.
SILVA, Lígia Osório. 7HUUDV GHYROXWDV H ODWLI~QGLR HIHLWRV GD /HL GH Campinas:
EdiUnicamp, 1996
81
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
82
E ELES AQUI VÃO: GRUPOS SOCIAIS E POVOAMENTO
DO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL DURANTE
A PRIMEIRA REPÚBLICA (1889-1925)1
P
ara melhor compreender as questões relacionadas à forma como
se deu o encontro entre os grupos que atuaram no povoamento
do Norte do Rio Grande do Sul, durante a Primeira Repúbli-
FDpLPSRUWDQWHSHQVDUDTXHOHHVSDoRFRPRXPDÀJXUDomRVRFLDOUHJLGDSRU
formas de sociabilidade extremamente complexas2. Nesse espaço desenvol-
via-se uma teia de relações onde se faziam presentes vários dos complexos
que caracterizam a vida social. Tais complexos envolvem temas de ampla dis-
cussão como, por exemplo, a dominação, a resistência, a interdependência,
a patronagem, a amizade, o parentesco, a subordinação e a vizinhança, para
citar alguns.
Conseqüentemente, para realizar a análise do povoamento, mais espe-
FLÀFDPHQWHGDVLGHQWLGDGHVYLQFXODGDVDRPHVPRpQHFHVViULR´LPSORGLUµD
1 Este artigo é uma síntese do segundo capítulo de minha tese de doutorado, a qual desenvolvo sob orientação da Profes-
sora Doutora Márcia Menendes Motta e ainda está em andamento.
* Doutorando do curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense/Niterói/RJ. Bolsista
CNPq.
2 Por Norte do Rio Grande do Sul entende-se aqui o espaço formado pelo conjunto dos quatro municípios mais antigos
situados ao Norte do Estado: Cruz Alta, Santo Ângelo, Palmeira das Missões e Passo Fundo. Dentro do território destes
municípios, a partir de 1890, foram fundadas várias colônias; algumas das quais, posteriormente, também se tornaram
municípios.
83
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
84
etano Mosca e Vilfredo Pareto, que escreveram na virada do século XIX para
o XX e compuseram os principais textos a partir dos quais a teoria das elites,
também conhecida como elitismo, vem, ao longo da história, sendo utilizada
nas ciências sociais. No entanto, como demonstra Mário Grynszpan em sua
tese de doutoramento, geralmente os pesquisadores que utilizam a teoria das
elites como marco teórico de suas análises o fazem a partir daquilo que alguns
comentadores dos textos de Mosca e Pareto escreveram sobre estes autores
e suas obras. Assim, um problema comum destes estudos é a sua tendência
em tornar os dois autores e suas formulações homogêneas, não atentando
para as diferenças existentes, isto é, “embora haja elementos recorrentes em
suas formulações, disso não decorre que os autores atribuam a eles os mes-
mos sentidos, ou que sejam idênticos os pesos e os lugares na argumentação
conferidos a cada um deles”.6 Não pretendo, no estudo aqui desenvolvido,
romper com a “tradição”, portanto, continuarei usando o termo elite a partir
daquilo que os comentadores das obras de Pareto e Mosca escreveram sobre
ele, especialmente das formulações elaboradas por Grynszpan.
Por outro lado, não é meu propósito fazer uma apropriação profunda
ou mesmo detalhar as discussões sobre o elitismo e, sobretudo, não objetivo re-
alizar uma abordagem histórica sobre a elite do Rio Grande do Sul na Primeira
República. Em outros termos, a palavra eliteDTXLWHPRVHQWLGRGHLGHQWLÀFDU
um grupo social para, assim, pensar sua relação com outro grupo, mas, de for-
ma alguma, é minha intenção escrever uma SURVRSRJUDÀD desse grupo. Marieta
)HUUHLUDHPVHXHVWXGRVREUHDHOLWHSROtWLFDÁXPLQHQVHQD3ULPHLUD5HS~EOL-
FDIRUQHFHXPDGHÀQLomRTXHVHDSUR[LPDGRVHQWLGRTXHDTXLDQRomRWHUi
Por elite, procuro designar, como faz Ferreira, “os grupos que, no período es-
tudado, monopolizavam os mecanismos de poder mantendo vínculos com a
classe econômica socialmente dominante” o que, por sua vez, não quer dizer
que tal elite era uma “simples executora dos interesses desta classe dentro dos
aparelhos de Estado”8 ou mesmo que ela era fechada. Também não entrarei
na discussão se é mais apropriado usar o termo no plural ou no singular, pois
sua utilização aqui é puramente analítica e pretendo, a partir dela, demarcar
que “em toda sociedade organizada, as relações entre indivíduos ou grupos
que a caracterizam são relações de desigualdades”.9
6 GRYNSZPAN, Mário. Ciência, política e trajetórias sociais: uma sociologia histórica das elites. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 25.
6REUHRVVLJQLÀFDGRVGRFRQFHLWRSURVRSRJUDÀDVXDKLVWyULDHVHXOXJDUGHQWURGDSURGXomRDFDGrPLFDYHU+(,1=
Flávio (Org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2006.
)(55(,5$ 0DULHWD GH 0RUDHV (P EXVFD GD LGDGH GH RXUR DV HOLWHV SROtWLFDV ÁXPLQHQVHV QD 3ULPHLUD 5HS~EOLFD
(1889-1930). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994, p. 30.
9 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Orgs.). Dicionário de Política. Brasília: Editora
UNB, vol. 1., 2004, p. 391.
85
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
86
meu argumento.14 Por outro lado, o fato de os grupos apresentados como
subordinados participarem de forma muito modesta na distribuição da
ULTXH]DGHPXLWRGLÀFLOPHQWHRFXSDUHPFDUJRVSROtWLFRVHGHHQWUDUHPHP
FRQWDWRFRPR(VWDGRQDPDLRULDGDVYH]HVHPIXQomRGHDOJXPFRQÁLWR
condiciona sua subordinação.
Ao longo da análise, como se verá, um dos pontos priorizados é o de
TXHDUHODomRHOLWHVXERUGLQDGRVGHÀQHVHFRPRXPDUHODomRGHSRGHUHHP
sociedade, existem “diferentes modos de poder, cada um deles concernente a
um nível distinto de relações sociais”.15 Por conseguinte, conclui-se que exis-
tem dessemelhanças entre os contatos que os subordinados mantinham com
a elite, daqueles que eles mantinham no interior de suas fronteiras. Ambas
situações, convém registrar, envolvem relações de poder e devem ser levadas
HPFRQWDQDDQiOLVHGRPRGRFRPRHVVHVJUXSRVFRQÀJXUDYDPVXDVRFLDELOL-
dade e suas identidades. Nessa perspectiva, o estudo de tais relações deve ser
realizado levando em conta que o poder, mesmo o resultante da dominação,
produz coisas, induz ao prazer, forma saberes, produz discursos, bem como
é “uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que
uma instância negativa que tem a função de reprimir”.16
Todavia, se diferentes formas de relações sociais repercutem em dife-
rentes modos de poder, algumas dessas relações caracterizam-se por ser de
dominação e, como tal, lembra Max Weber, não envolvem apenas a situação
econômica dos grupos, mas a dominação se expressa quando a “vontade ma-
QLIHVWD ¶PDQGDGR· GR ¶GRPLQDGRU· RX GRV ¶GRPLQDGRUHV· TXHU LQÁXHQFLDU
as ações de outras pessoas (do ‘dominado’ ou dos ‘dominados’), e de fato as
LQÁXHQFLDGHWDOPRGRTXHHVWDVDo}HVQXPJUDXVRFLDOPHQWHUHOHYDQWHVH
-iGHVWDTXHLTXHQmRpPLQKDLQWHQomRID]HUXPDSURVRSRJUDÀDGDHOLWHSROtWLFDULRJUDQGHQVHGXUDQWHRVSULPHLURV
DQRVGRUHJLPHUHSXEOLFDQRPDVH[LVWHXPDSURGXomRELEOLRJUiÀFDFRQVLGHUiYHODUHVSHLWRGRWHPDHTXHRDERUGDDSDUWLU
de diferentes perspectivas. Um exemplo é fornecido por Joseph Love e Bert Barickman no artigo Elites regionais, no qual,
embora os autores estudem as elites de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco da Primeira República, fornecem dados
importantes que podem iluminar os conhecimentos sobre a elite no Rio Grande do Sul. Cf.: LOVE, Joseph, BARICK-
MAN, Bert J. Elites regionais. In.: Flávio Heinz (Org.). Idem, op., cit., p. 77-97. Também existem estudos mais pontuais
TXHWUDWDPHVSHFLÀFDPHQWHVREUHR5LR*UDQGHGR6XOFLWRSRUH[HPSOR*5,-Ð/XL]$OEHUWRHWDO2UJV&DStWXORV
de história do Rio grande do Sul. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004; TARGA, Luiz Roberto Pecotis (Org.). Breve in-
ventário de temas do sul. Porto Alegre: UFRGS: FEE; Lageado: UNIVATES, 1998; FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo,
ERUJLVPRHFRRSWDomRSROtWLFD3RUWR$OHJUH(GLWRUD8)5*6)216(&$3HGUR'XWUD56HFRQRPLDHFRQÁLWRV
políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983; PESAVENTO, Sandra Jatahy. A burguesia gaúcha:
dominação do capital e disciplina do trabalho, RS 1889-1930. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988 e LOVE, Joseph. O
regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975.
15 WOLF, Eric. Encarando o poder: velhos insights, novas questões, p. 325. In.: BIANCO-FELDMAN, Bela; RIBEIRO,
*XVWDYR/LQV2UJV$QWURSRORJLDHSRGHUFRQWULEXLo}HVGH(ULF5:ROI%UDVtOLD81%6mR3DXOR,PSUHQVDRÀFLDOGR
Estado de São Paulo e UNICAMP, 2003, p. 325-345.
16 FOCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 08.
87
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
88
protetora. Entretanto, estes e outros mais são alguns dos pontos, principal-
mente os relativos ao par relacional identidade/representação, que passarei a
desenvolver de forma mais profunda a partir do item II, o qual segue abaixo.
A
R RSHUDU D ´LPSORVmRµ GD FRPSOH[D ÀJXUDomR VRFLDO LQLFLDO-
mente descrita, chamei atenção para o conjunto de relações
que a compõem e, nessa perspectiva, procurei sublinhar a in-
terdependência de todas elas. Ou seja, a análise isolada de qualquer uma das
relações possíveis – elite/subordinados, nacionaisimigrantes, negros/índios,
índios/imigrantes, negros/elite e assim por diante – pode gerar resultados
diferentes. Minha opção é estudar o conjunto das situações objetivando, as-
VLPHQWHQGHURSURFHVVRGHVLJQLÀFDomRHUHVLJQLÀFDomRGDVUHODo}HVVRFLDLV
SULRUL]DQGRQDDQiOLVHRVFRQWDWRVHRVFRQÁLWRVGHOHVUHVXOWDQWHV
Para dar conta desse objetivo, tomo como centro de referência a iden-
tidade. Para ser mais claro, as identidades sociais se constituem nas relações e
estas envolvem contatos entre iguais e diferentes, cuja maioria das vezes, prin-
FLSDOPHQWHTXDQGRHQYROYHGLIHUHQWHVVHWUDGX]HPHPFRQÁLWRVRVTXDLVVmR
UHVXPLGRVQDIyUPXODLGHQWLWiULD´QyVHRVRXWURVµ4XHPGHÀQHDH[LVWrQFLD
GRV´RXWURVµpR´QyVµHYLFHYHUVDOHPEUDQGRTXHDPERVGHÀQHPVHDVL
mesmos e aos seus “outros”, a partir de seus contatos e de suas fronteiras, não
de seu isolamento.20 Para tornar essa constatação mais palpável, utilizo um
exemplo que encontrei em pesquisa realizada anteriormente,21 o qual embora
tratando de um período diferente traslada de forma concreta a situação. Em
janeiro de 1884, no município de Cruz Alta, o lavrador Manuel Corrêa de
20 Cf.: BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In.: POUTIGNAT, Philipe, STREIFF-FENART, Jocelyne.
Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
21 Trata-se de minha dissertação de mestrado: SILVA, Marcio Antônio Both da. Por uma lógica camponesa: caboclos e
imigrantes na formação do agro do planalto Rio-Grandense (1850-1900). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004. (Dissertação de Mestrado).
89
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Moura – vulgo Maneco Biriba – envolve-se numa briga com o curtidor João
+HUPHV'RFRQÁLWRUHVXOWDDPRUWHGR~OWLPR2PRWLYRGDGHVDYHQoDpXP
encontro entre os dois, a partir do qual “Hermes dirigindo-se a Corrêa, dis-
se: ‘você prometeu acabar com os alemães, eles aqui vão’, ao que respondeu
Corrêa: ‘eu não prometi isso, mas sou homem’. Em seguida, lançou mão de
um facão e agrediu Hermes que, por sua vez, lançou mão de uma pistola, no
que foi imitado pelo mesmo Corrêa e assim dispararam-se reciprocamente
dois tiros, sendo que o disparado por Corrêa acertando derrubou por terra o
mencionado Hermes”.22
O acontecido entre Hemes e Fonseca, descreve o quanto as relações
entre os grupos não é fechada e também o quanto pertencer a um grupo
HVHLGHQWLÀFDUFRPHOHVLJQLÀFDVHUMXOJDGRHMXOJDUDSDUWLUGRVSDGU}HVH
valores que esse grupo compartilha. Ou melhor, tanto Hermes como Cor-
rêa reconheciam-se como pertencentes a um grupo ou, pelo menos, como
não pertencentes a um outro, ou seja, o dos alemães que “aqui vão”. Assim,
quando Hermes lança sua frase, ela soa, aos ouvidos de Corrêa, como uma
provocação, a qual só tem sentido ofensivo dentro daquele determinado con-
texto e, igualmente, só foi possível à medida em que existia um “outro”, no
caso, os alemães.
Para analisar esse jogo complexo de situações, considero que as repre-
sentações/nominações elaboradas pelos diferentes grupos, tanto em relação
a si mesmos como em relação aos outros, são atos de “instituição mais ou
menos fundados socialmente, através dos quais um indivíduo agindo em seu
próprio nome ou em nome de um grupo mais ou menos importante numé-
ULFDHVRFLDOPHQWHTXHUWUDQVPLWLUDDOJXpPRVLJQLÀFDGRGHTXHHOHSRVVXL
uma dada qualidade, querendo ao mesmo tempo cobrar de seu interlocutor
que se comporte em conformidade com a essência social que lhe é assim
atribuída”.23
Então, para dar início a análise propriamente dita, um primeiro as-
SHFWRSDUDRTXDOFKDPRDWHQomRpTXHQDSURGXomRELEOLRJUiÀFDGDWDGDGD
época que trata da região e na que trata do estado e do país como um todo,
bem como nas fontes produzidas pelo Estado, é possível encontrar exemplos
GHUHSUHVHQWDo}HVHQRPLQDo}HVSHODVTXDLVEXVFDYDVHGHÀQLUHFRQIRUPDU
as diferentes identidades. Estas representações se traduzem em palavras tais
22 CRUZ ALTA. Processos Crime 1881 a 1884. Porto Alegre: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (Arquivo
Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERGS)), processo n. 1.973, maço 50, 1884.
23 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar o que dizer. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 82.
90
como colono, nacional, matuto, caipira. Tais palavras, por sua vez, carregam ten-
sões como no caso do termo colono que é apresentado enquanto sinônimo de
trabalho, mas também carrega um traço negativo, pois geralmente o colono é
um estrangeiro que aos olhos da elite, principalmente dos representantes do
Estado, devia ser assimilado.
O livro Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, escrito em
1918, condensa de forma exemplar algumas dessas representações. Vianna
preocupa-se em demonstrar como se dá a formação das populações rurais
do Brasil e, para tanto, divide-a em dois grupos. De um lado, estabelece a
existência de “grupos familiares superiores”, caracterizados pelo patriarca-
lismo comum ao latifúndio. De outro, a “família plebéia” distinguida por sua
instabilidade que é resultado de sua formação, cuja base é “a mancebia, a liga-
ção transitória, a poliandria difusa”.24 O “baixo povo dos campos” ou “plebe
rural” ou “baixo povo rural”, segundo Vianna, é formado em sua maioria por
mestiços. Também são chamados de tabaréus, caipiras, matutos, mas tais termos,
de acordo com o autor, são utilizados apenas pelos homens da cidade para
troçar dos “homens de pura formação rural”, ou seja, todos aqueles que vi-
vem no interior, inclusive fazendeiros.
Para Vianna, o mestiço era um nômade, “liberto do trabalho rural,
HJUHVVRGRVHQJHQKRVPDOÀ[RDWHUUDDVXDLQVWDELOLGDGHpHYLGHQWHµ25 Em
conseqüência, transformava-se facilmente no guerreiro, no sertanista, cuja
existência interessa ao senhor rural, pois é esse homem o responsável pela de-
fesa de seus domínios. Da mesma forma, o crescente aumento da população
de mestiços exige a expansão do domínio territorial. Coube a eles, portanto,
no período colonial, o papel de atuar nas bandeiras e serem os responsáveis
pela incorporação de novos territórios. Tarefa que, aponta Vianna, ninguém
melhor que eles poderiam cumprir. Convém ressaltar que essa idéia não era
estranha no Rio Grande do Sul. Inclusive, busquei evidenciá-la ao usar como
epígrafe deste tópico uma frase retirada do livro de memórias de João Neves
da Fontoura, um dos políticos rio-grandenses mais importantes no período.
Fontoura além de ser eleito muitas vezes para os cargos de deputado estadual
e federal durante a Primeira República, era amigo íntimo de Borges de Medei-
ros,26 ocupou em diferentes legislaturas o cargo de vice-presidente do Estado
24 VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, vol. 1, 1938, p. 45-46.
25 Idem, p. 80-82.
26 Antônio Augusto Borges de Medeiros, após a morte de Júlio de Castilhos, foi o principal líder do Partido Republicano
Rio-Grandense (PRR) e, durante a Primeira República, ocupou o cargo de presidente de Estado em diferentes legislaturas.
91
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
27 FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo:
Editora Globo, vol. 1, 1958, p. 34.
28 Evaristo de Afonso Castro era oriundo de Portugal, mudou-se para Cruz Alta em meados do século XIX e, nesse
município, exercia a função de Promotor Público, assim como de liderança política.
29 CASTRO, Evaristo de Afonso. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão,
6mR%RUMD6mR)UDQFLVFRGH$VVLV6mR9LFHQWHH,WDTXL&UX]$OWD7LSRJUDÀDGR&RPHUFLDOS
30 Cf.: KOVARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987.
31 Pierre Bourdieu. Idem, op., cit., p. 100.
32 NORONHA, Francisco de Assis Pereira. Juízo dado pelo Ilmo. Sr. Dr. Francisco de Assis Pereira Noronha sobre o
presente livro, p. IX. In.: Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p.. I-XXVII.
92
A constatação de que os habitantes do espaço Norte, em sua generali-
dade, era destituída dos valores de trabalho e que estava na base dos argumen-
tos que defendiam as políticas de colonização com imigrantes redundava na
elaboração de um tipo ideal de homem que deveria ser guiado pelo trabalho,
pela moralidade e por saber respeitar o seu lugar dentro das estruturas sociais
então existentes. Tal homem, aos olhos da elite e seus representantes, era
o colono imigrante. Entretanto, muitos imigrantes não se encaixaram dentro
de tais ideais, circunstância motivadora de críticas, e aqueles imigrantes que
fugiam a tais preceitos acabavam sendo chamados de acaboclados 33RXLGHQWLÀ-
cados como LQWUXVRV O homem ideal deveria seguir a risca o seguinte preceito,
emanado por Evaristo de Afonso Castro:
$OLEHUGDGHEHPGHÀQLGDHFRPSUHHQGLGDWHPFRPRWRGDVDVFRL-
sas um limite. Ninguém pode consumir sem produzir. Quem trabalha
para si e sua família não faz mais que cumprir um dever que lhe im-
põem a natureza e a sociedade; e para os refratários ao trabalho deve
o governo ter leis e meios que os obriguem. Isto não é tentar contra
a liberdade do cidadão: pelo contrário é concorrer para que ele possa
manter a sua liberdade; porque não há maior escravidão que arrastar a
PLVpULDÀOKDGDRFLRVLGDGHGHSHQGHQGRDVVLPGHWRGRVHGHWXGR34
33 Não é possível aqui aprofundar a análise a respeito do conteúdo desta palavra devido ao espaço reservado a este artigo,
FRQWXGRSDUDÀQVGHFRQWH[WXDOL]DomRGHVWDFRTXH´DFDERFODUVHµpXPDQRomRTXHQDOLWHUDWXUDVREUHRPXQGRDJUiULR
brasileiro, segundo Giralda Seyferth, conceitualmente, indica a passagem de uma prática agrícola considerada racional para
uma agricultura extensiva, cujo traço é o esgotamento da terra rapidamente, fato que leva a procura sistemática e incor-
poração de novas áreas, as quais, por sua vez, em pouco tempo são abandonadas. Cf.: SEYFERTH, Giralda. Identidade
camponesa e identidade étnica (um estudo de caso). Anuário Antropológico/91. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
34 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op., cit., p. 290.
35 CELSO, Afonso. Porque me ufano de meu país. Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1997.
93
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
36 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976, p. 156.
37 CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2006.
38 Para um maior aprofundamento sobre esse tema, ver: ABREU, Regina. O enigma de os sertões. Rio de Janeiro: Fu-
narte: Rocco, 1998..
94
+pUFXOHV4XDVtPRGRUHÁHWHQRDVSHFWRDIHDOGDGHWtSLFDGRVIUDFRVµ´e
o homem permanentemente fatigado”, isto é, um “preguiçoso” que não tra-
balha além da quantidade necessária para subsistir, mas que dentro do seu ha-
bitat natural – o sertão – transmuta-se. Por conseguinte, basta o aparecimento
de uma situação que exija sua energia, como foram as investidas do exército
QDFLRQDODRDUUDLDOGH&DQXGRVSRUH[HPSORSDUDHOHWUDQVÀJXUDUVHH´GD
ÀJXUDYXOJDUGRWDEDUpXFDQKHVWURUHSRQWDLQHVSHUDGDPHQWHRDVSHFWRGR-
minador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente
de força e agilidade extraordinárias”.39
´(VWUDQJHLURVHPVXDSUySULDWHUUDµDVVLP(XFOLGHVGD&XQKDGHÀQH
o sertanejo, cujo diferencial em relação ao homem litorâneo era o fato de ele
viver em outro tempo, pois existiam três séculos separando-os. Outra dife-
rença era que os habitantes do sertão, diferentemente dos homens litorâneos,
não haviam sido contaminados pela Europa e os costumes europeus. Em
conseqüência, eram os únicos que portavam valores verdadeiramente brasi-
leiros e, por conseguinte, o Brasil só poderia ser compreendido e construído
como nação com identidade própria quando entendesse o sertão e os sertanejos.
Entretanto, “a visão do sertanejo como ‘cerne da nacionalidade’ era paradoxal
se levarmos em conta que, paralelamente, Euclides estava imbuído das teo-
rias racistas que encontravam na mestiçagem um obstáculo para o acesso da
sociedade brasileira à civilização”.40 Ou seja, mesmo que na obra de Euclides
da Cunha há um esforço de valorização do sertão 41e de seu habitante típico, o
autor continua pensando estas pessoas como portadoras de “defeitos”.
Em linhas gerais, aqui estão algumas das representações existentes na
época a respeito dos grupos subordinados. Como apontei acima, tais repre-
VHQWDo}HVIRUDPPXLWRXWLOL]DGDVSDUDMXVWLÀFDUDYLQGDGHLPLJUDQWHVHXURSHXV
e sua instalação em espaços que há tempos eram ocupados pelos nacionais,
EHPFRPRSRUQHJURVHtQGLRV7LQKDPRVHQWLGRGHGHÀQLUOXJDUHVVRFLDLV
e exigir comportamentos condizentes com as identidades atribuídas. Podiam
VHU XVDGDV HP EHQHÀFLRSUySULR SHORV GLIHUHQWHVJUXSRV H SULQFLSDOPHQWH
eram possíveis apenas a partir das relações que os grupos mantinham.
95
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CITADAS
CASTRO, Evaristo de Afonso. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo
Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e
,WDTXL&UX]$OWD7LSRJUDÀDGR&RPHUFLDO
NORONHA, Francisco de Assis Pereira. Juízo dado pelo Ilmo. Sr. Dr. Francisco
de Assis Pereira Noronha sobre o presente livro, p. IX. In.: Evaristo de Afonso
Castro. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo,
6mR /XL] %RTXHLUmR 6mR %RUMD 6mR )UDQFLVFR GH $VVLV 6mR 9LFHQWH H ,WDTXL Cruz Alta:
7LSRJUDÀDGR&RPHUFLDO p.. I-XXVII.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
96
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STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras
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FÉLIX, Loiva Otero. &RURQHOLVPR ERUJLVPR H FRRSWDomR SROtWLFD Porto Alegre: Editora
UFRGS, 1996.
97
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HOLWHV Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 77-97.
NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
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IRUPDomR GR DJUR GR SODQDOWR 5LR*UDQGHQVH Porto Alegre: Programa de
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TRINDADE, Hélgio; NOLL, Maria Izabel. Rio Grande da América do Sul: partidos e
HOHLo}HV. Porto Alegre: Editora UFRGS: Sulina, 1991.
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FELDMAN, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder: contribuições
GH(ULF5:ROI%UDVtOLD81%6mR3DXOR,PSUHQVDRÀFLDOGR(VWDGRGH6mR3DXORH
UNICAMP, 2003, p. 325-345.
98
A INFORMAÇÃO ESTÁ PARA O PODER, ASSIM
COMO A TERRA PARA O LATIFÚNDIO
M
ST é a sigla que se atribui ao Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, o qual é a “semente” gerida de uma ques-
tão agrária não resolvida, problema estrutural e histórico do
Brasil. Nasceu da articulação das lutas pela terra, que foram retomadas a partir
GRÀQDOGDGpFDGDGHHDRVSRXFRVIRLDEUDQJHQGRR%UDVLOLQWHLUR2
MST teve sua gestação no período de 1979 a 1984, e foi criado formalmente
no 1º Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra, que se realizou de 20
a 22 de janeiro de 1984, em Cascavel - Paraná. Hoje o MST está organizado
HP(VWDGRVHVHJXHFRPRVPHVPRVREMHWLYRVGHÀQLGRVQRHQFRQWURGH
1984, ou seja: lutar pela terra, pela Reforma Agrária e pela construção de uma
sociedade mais justa.
Se em 23 anos formalmente completados o MST ganhou aliados, por
outro lado também ganhou inimigos. O MST contabiliza muitos números
* Graduando em Arquivologia pela UFRGS
99
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O
objeto de pesquisa aqui é a informação e o tratamento (ex-
posição) dado às reportagens jornalísticas, pelo maior jornal
do Rio Grande do Sul, no que se refere às matérias sobre o
067HPGRLVFDVRVHVSHFtÀFRVHDSDUWLUGHVWDVEXVFDUXPFRQYHQFLPHQWRGD
importância de constituir, no movimento, um centro de memória, pesquisa,
preservação e difusão de sua memória social, enquanto fonte primária.
O caso da Praça da Matriz foi assim chamado, pois foi o resultado
de um confronto entre policiais militares do RS e militantes do movimento
MST que reivindicavam seus direitos em frente ao Palácio Piratini – Sede do
Governo Gaúcho, no dia 08 de agosto de 1990, resultando em muitos feridos
e um policial assassinado.
Tenciono aqui mostrar como o jornal Zero Hora desenvolveu sua re-
portagem, sob a ótica de alguns trechos publicados.
'HLQtFLRFDEHDTXLXPDTXDQWLÀFDomRItVLFDGHVWHMRUQDOGHVWLQDGRj
matéria do dia 09/08/1990, muito embora o objeto de estudo seja o conteúdo
das matérias.
Foram: 68 páginas, 17 sobre a matéria além de 21 fotos.
No dia 09/08/90, o jornal ZH, já evidencia seu posicionamento, não
com o título, mas com o subtítulo que segue respectivamente: “Tensão, tu-
multo e morte”, “Sem-terras ocupam Praça, chocam-se com Brigada e matam
soldado a golpe de foice”.12TXHÀFDHYLGHQWHTXDQGRXVDWHUPRVRQGHREUL-
1 ZERO HORA. Porto Alegre: 09 ago. 1990. p. 1
100
ga seus leitores a interpretar que foram os colonos que iniciaram a briga, o
que, aliás, até hoje se desconhece. O jornal também usa o termo “matam” no
plural para designar que não foi só uma pessoa, mas o MST todo que o fez.
Já na p. 2 sob o título de “A Safra do ódio e da barbárie” uma matéria sem
assinatura relata: “Ao descer do carro o soldado Valdeci de Abreu Lopes, de 27
anos, acabou barbaramente degolado com uma foice, depois de cercado e ataca-
GRFRYDUGHPHQWHSHODVFRVWDVVHJXQGRPDLVGHXPWHVWHPXQKRÀGHGLJQRµ2
Novamente o jornal acusa, como no título da matéria, e nos oferece a
interpretação de que a safra dos colonos é o ódio e a barbárie que estes plan-
tam. E já no conteúdo, usam um termo que impõe a idéia de que arrancaram
a cabeça do soldado, mesmo quando o laudo do processo, segundo Lerrer:
>@DÀUPDTXHHVWiIHULGDIRLSURGX]LGDSRUXPLQVWUXPHQWRGHERUGDV
cortantes, que agiu no corpo do paciente de trás para frente, de cima
para baixo e da esquerda para a direita. Para a medicina legal quando
uma ferida apresenta a forma de uma botoeira, com predomínio da
profundidade, só pode ter sido produzida por um instrumento pérfu-
ro-cortante, ou seja, um punhal, uma adaga ou uma faca.3
101
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
-iTXDVHQRÀQDOGRMRUQDO5X\&DUORV2VWHUPDQFURQLVWDHVSRUWLYR
DÀUPDFRPRPRVWUDDS
Na semana passada foram liberados CR$ 80 milhões de cruzeiros para
comprar 500 mil há de terras em Cruz Alta, local de densa exigência
e antiga reivindicação. Mas mesmo assim se fez a invasão da Praça da
Matriz e mesmo assim a ferocidade de quem reivindicava, transforma-
va a invasão numa tensão crescente.7
Quando o cronista trata de tal exigência em Cruz Alta – RS, ele poderia
ter feito menção que, naquela mesma cidade, no dia 14/06/90, a policia havia
feito uma abordagem violenta, e Ivo Lima, 19 anos, havia levado um tiro na
QXFD FRPR PHVPR DÀUPD D UHSRUWDJHP GH =HUR +RUD GR GLD
“Um confronto entre 80 camponeses sem terra e 100 soldados da Brigada
Militar no início da noite de ontem em Cruz Alta resultou em um ferimento à
bala na cabeça do colono Ivo Lima [...]”.8 Mas claro que isso nem passaria na
construção da matéria, aliás, esta informação passou despercebida quando, na
verdade, foste um dos motivos para o movimento ter vindo a Porto Alegre.
1RÀQDOGDPDWpULDGRGLDRXWURFURQLVWDHVSRUWLYR)HFKDD
matéria, desta vez, Paulo Sant’Ana:
[...] pareceria mais lógico e compreensível que não brandissem foices
e facões em suas manifestações, o que não só as tornaria mais res-
peitáveis, como também as colocaria como moralmente inatacáveis.
Enquanto que justamente as armas ostensivas dos colonos de ontem
VHUYLUDPSDUDMXVWLÀFDUDYLROrQFLDGDUHSUHVVmRQRTXHVHWRUQDDFRQ-
duta dos militantes indesculpável.9
(VVD DÀUPDomR GH TXH RV FRORQRV Vy IRUDP DWDFDGRV SRUTXH IRUDP
insistentes mostra o lado perverso daqueles formadores de opinião que que-
UHPMXVWLÀFDUDo}HVUHSUHVVLYDVGREUDoRDUPDGRGR(VWDGR7DPEpPFDEH
ressaltar que tudo o que o MST realizou até aqui, só o conseguiu por muita
luta. Quase sempre esses colonos precisam “botar a cara pra levar tapa”, caso
contrário suas reivindicações não saem das promessas.
A partir de agora passo a tratar do caso da Fazenda Santa Elmira, mas
SULPHLUDPHQWHRTXDQWLÀFRFRPRRÀ]FRPRFDVRDQWHULRU
Nesta reportagem, coletei trechos de 4 dias, desde 10/03/89 a
13/03/89, estes resultantes da ocupação por parte dos colonos à fazenda no
7 ZERO HORA. Porto Alegre: 09 ago. 1990. p. 64
8 ZERO HORA. Porto Alegre: 15 jun. 1990. p. 41
9 ZERO HORA. Porto Alegre: 09 ago. 1990. p. 67
102
dia 09/03/89. Ao todo foram 13 páginas e 12 fotos. Cabe aqui um paralelo
com as notícias da “Praça da Matriz”, pois no dia 09/08/90, em um único
exemplar, o ZH destinou 17 páginas e 21 fotos, 4 páginas a mais e pratica-
mente o dobro de fotos para ilustrar a “tragédia do PM” assassinado em um
único dia.
No dia 10/03/89 o jornal publica, a respeito dos fazendeiros: “Os
ID]HQGHLURV QR LQLFLR GD QRLWH À]HUDP XPD YHUGDGHLUD URPDULD j ID]HQGD
Santa Elmira. Foram em dezenas de camionetas e todos tinham um só pen-
samento, segundo Etchegoyen, vice-presidente da UDR de Cruz Alta: ‘Isto
precisa acabar”.10
O jornal começa novamente mostrando o seu posicionamento, pois
trata de forma bucólica o “único” pensamento dos fazendeiros, representa-
dos lá pela UDR (União Democrática Ruralista), a qual é representante da
extrema direita no campo político brasileiro.
Já no dia 11/03/89, de forma também “bucólica e neutra”, a matéria
GRUHSyUWHU&DUORV:DJQHUH[S}HHFRPHoDXPDMXVWLÀFDWLYDSDUDDUHSUHVVmR
a qual aconteceria mais tarde:
A maioria deles anda armada com facões e pedaços de pau. Alguns
possuem revolveres de pequeno calibre. A grande maioria é jovem.
Eles andam de calção, chapéu de palha e com os facões pendurados
por uma piola (corda) na cintura. Espalhados em pequenos grupos
pelo acampamento, eles comentam com entusiasmo que estão dispos-
WRVDOXWDUDWpRÀPSHODWHUUD11
103
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
UDR. Aliás, isto só não saiu no Zero Hora, pois o jornal Correio do Povo,
de 13/03/89, nos traz com mais precisão o mesmo relato: “16:30 Um avião
FRPSUHÀ[RFREHUWRVREUHYRRXRDFDPSDPHQWRHODQoRXERPEDVGHJiVµ13
O que também foi denunciado por Görgen: “O primeiro ataque foi aéreo. Foi
H[HFXWDGRSRUGRLVDYL}HVFRPSUHÀ[RVFDPXÁDGRV&RPRRKHOLFySWHURGR
Estado fora negado, e a Brigada Militar não possui aviões, só resta a hipótese
de que eram aviões agrícolas dos fazendeiros da UDR”.14
Já na Zero Hora do dia 13/03/89 há um relato de um soldado entrevis-
tado por o correspondente da ZH, Carlos Wagner: “Nós não caímos em cima
deles de vez, porque achávamos que tinham armas pesadas, quando desco-
brimos que não tinham foi mais fácil”.15 Desta vez o soldado, ingenuamente,
DFDEDFRQÀUPDQGRTXHRVFRORQRVREYLDPHQWHQmRSRGLDPUHVLVWLUjVDUPDV
da polícia, ou seja, contradição com a mídia que prefere taxá-los de bandidos
perigosos, altamente armados. Neste mesmo dia, o jornal novamente é dócil
em retratar o que os colonos vinham sofrendo: “Num dos cantos, 12 deles
foram colocados deitados de barriga para baixo, enquanto os soldados os
cutucavam com o cano de suas armas. Eram as lideranças e outros que esta-
vam sendo acusados de portarem armas de fogo”.16
Estas foram às coberturas que ZH, o “maior” jornal do Estado, apre-
sentou-nos. Moretzsohn complementa com a crítica:
Os documentos publicados por essas empresas jornalísticas não dei-
xam dúvidas quanto ao propósito de falar em nome de toda a so-
ciedade, assumindo o papel de um suposto quarto poder sem outros
interesses a defender que não os dos próprios cidadãos indiferencia-
damente.17
Há nesse discurso, objeto manipulador, que deve permear os nossos
debates, tanto no meio acadêmico quanto na sociedade em geral, lembrando
que tais fatos não podem se resumir isoladamente, pelo contrário, pois carre-
gam consigo a estrutura fundiária do Brasil, logo, deveria o jornal, constituir-
se como facilitador do debate, mas, ao contrário, esconde atrás da mascara
QHXWUDDVXQKDVDÀDGDVGDVXDSDUFLDOLGDGH3RURXWURODGRHVWHWLSRGHDWL-
tude explanada aqui, coloca-nos, arquivistas, na obrigação de criar, organizar,
preservar, mas, sobretudo, disseminar o acesso às fontes primárias.
104
MEMÓRIA SOCIAL, ORGANIZAÇÃO,
PRESERVAÇÃO, DIFUSÃO E ACESSO
L
RJRQRLQtFLRGDUHYLVmRELEOLRJUiÀFDGHSDURPHFRPDVLWXD-
ção relatada, pela pesquisadora e Engenheira Agrônoma Cór-
GXOD(FNHUW´>@GHYHVHPHQFLRQDUDVGLÀFXOGDGHVQRDFHVVR
às informações, conseqüência não só da inexistência de arquivos organizados
dos documentos do período, como também do fato de muitos desses terem
sido perdidos ou destruídos”.18
Passado mais de 20 anos o MST se constituiu como força social prin-
cipal no cenário político brasileiro, instigou a sociedade, fez com que ela se
tornasse mais parcial, ora contrária ao próprio movimento, ora a favor. Isto
porque representou força contrária às elites conservadoras, as quais logo tive-
ram de se manifestar, evidencia-se na criação da UDR, em 1985, como o seu
próprio sítio eletrônico nos apresenta:
A entidade teve sua primeira sede regional fundada em 1985, na cidade
de Presidente Prudente - SP, e posteriormente no ano 1986, na cidade
de Goiânia - GO foi fundada a primeira UDR - Nacional, com sede
em Brasília - DF. Os proprietários rurais sentiram a necessidade de se
mobilizarem para pressionarem o Congresso Nacional. Na época, a
ala da esquerda da recém nascida ‘Nova República’ queria acabar com
o direito de propriedade e os ruralistas decidiram reagir. Com isso,
conseguiu-se colocar na Constituição de 1988, a Lei que assegura este
direito do produtor rural.19
105
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
É por isso que, não somente o MST, mas os mais variados movimentos
sociais devem, respeitar as suas informações e construírem laços com arqui-
vistas, pois além de constituírem sua história, a informação é poder, logo, caso
esteja mal organizada e sem acesso, todo trabalho de luta desses movimentos
será “apagado” da memória da sociedade, em poucos anos, pelo poder insti-
tucionalizado (Estado) e pelas forças conservadoras (elites e mídia).
O que trago aqui é também uma questão ética, a de que enquanto ser
inserido em um meio social, o arquivista deve se manifestar de acordo com
106
os valores democráticos, pela abertura, organização e acesso aos arquivos, até
mesmo para nos constituirmos diferentes daqueles que, por exemplo, falam
de abertura gradativa dos arquivos do período ditatorial de 1.964, mas que
no fundo não vêem interesse algum no sentido da palavra “abertura”. Logo,
acredito, como segue a citação abaixo:
Uma apresentação panorâmica e pretensamente imparcial sobre as di-
versas noções de memória social pode parecer aberta às diferenças,
mas de fato encobre uma pretensão totalizante em que as diferenças se
HVYDHPSRLVVHRFRQFHLWRGHPHPyULDVRFLDODSUHVHQWDVLJQLÀFDo}HV
diferentes, isso não quer dizer que elas sejam equivalentes. Qualquer
perspectiva que tomemos será parcial e terá implicações éticas e po-
líticas.21
ESTRUTURA ORGANIZACIONAL: UM
PARALELO INTERESSANTE...
É
VREHVVDDÀUPDomRVRPDGDDRVSULQFtSLRVGDSURYHQLrQFLDHGH
respeito aos fundos que a organização do centro de memória
fará sentido, pois fundo documental é o conjunto de documen-
tos, independente de suporte, reunidos pela sua relação orgânica. Para deter-
minar um quadro de arranjo na documentação do MST, tomar-se-á conheci-
mento da sua estrutura organizacional e assim realizar avaliação.
*21'$5'2'(%(,2TXHpPHPyULDVRFLDO"5LRGH-DQHLUR&RQWUD&DSDS
22 BELLOTO. arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV. 2004. p. 127-128
107
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
2067VHVROLGLÀFRXHPFDGD(VWDGRGR%UDVLODWUDYpVGHXPDHVWUX-
WXUDRUJDQL]DFLRQDOSRGHURVDHQWUHWDQWRQmRÀ[DSRGHQGRFULDUHH[WLQJXLU
setores, portanto com uma mutabilidade, a qual é de extrema importância
ao movimento, com coordenação, direção, secretarias e setores, porém, so-
bretudo, através das experiências de organização vividas nos acampamentos,
assentamentos, dia a dia do colono. Logo, isto implica uma outra forma de se
SHQVDUDFODVVLÀFDomRGHXPIXQGR6HJXQGR%HOORWWR´>@DIXQomRpPDLV
importante do que o próprio nome do órgão. Este pode mudar, conservando-
se, entretanto, a mesma competência maior”.23
A
V,QVWkQFLDVGH5HSUHVHQWDomRQRPRYLPHQWRUHÁHWHPDVGH-
cisões políticas e são formadas pelo Congresso Nacional, En-
contro Nacional, Coordenação Nacional, Direção Nacional,
Encontro Estadual, Coordenação Estadual, Direção Estadual, Coordenação
Regional, Coordenação de Assentamentos e Coordenação de Acampamen-
tos, como observou Fernandes (1999).24 Já as Formas de Organização são
compostas por secretarias: Secretaria Nacional e Secretarias Estaduais; por
setores: Frente de Massa, Formação, Educação, Sistema Cooperativista dos
Assentados, Comunicação, Finanças, Projetos, Direitos Humanos, Relações
Internacionais e Saúde; por coletivos: mulheres, cultura; por articulação: Arti-
culação dos Pesquisadores, enquanto que a Mística não é formalmente institu-
ída, mas sim a junção de todos na luta cotidiana. (FERNANDES, 1999).25
No MST um coletivo ou uma articulação pode virar um setor, este
pode se tornar um sistema, manter-se nessas formas, ou até mesmo deixar de
H[LVWLUFRQIRUPHDVQHFHVVLGDGHVHGHVDÀRVTXHYmRVXUJLQGRQHVVHSURFHVVR
isto implica também começar a pensar nas funções do movimento, as quais
menos instáveis que a própria estrutura.
23 BELLOTO. arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV. 2004. p. 132
24 FERNANDES. CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO CAMPESINATO BRASILEIRO: FORMAÇÃO E TERRI-
TORIALIZAÇÃO DO MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA - MST (1979 –1999). São Paulo: USP. 1999.
25 FERNANDES. CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO CAMPESINATO BRASILEIRO: FORMAÇÃO E TERRI-
TORIALIZAÇÃO DO MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA - MST (1979 –1999). São Paulo: USP. 1999.
108
A POSIÇÃO DE MEMBROS DIRIGENTES
ESTADUAIS QUANTO À DOCUMENTAÇÃO
P
ara que se inicie um trabalho junto à documentação do MST RS
é muito importante à posição de alguns membros sobre como
eles mesmo vêem a documentação do movimento, por isso bus-
quei realizar entrevistas com membros dirigentes estaduais, entre os quais:
Daniel Cassol e Miguel Enrique Stédile do setor de comunicação. Abaixo
trago a transcrição na integra.
110
De maneira que há fontes que pertencem ao movimento social e que
estão disponibilizadas ao público de diferentes formas em centros de docu-
mentação nas escolas, nos centros de formação, em bibliotecas e assenta-
mentos do Movimento Sem Terra. Enquanto outras fontes já se encontram
inacessíveis, propositalmente ou não.
(João) Por outro lado, achas que a Esquerda tem oferecido o melhor
DFHVVRDRVVHXVDUTXLYRV"
(MST RS) Escolas do movimento, entidades amigas da reforma agrá-
ria e os próprios militantes da organização também possuem seus arquivos,
ou seja, há muito material que não está reunido e sistematizado em um mes-
mo local. No entanto, esta preservação pode e deve exigir outros parâmetros
que não as formas tradicionais de registro e arquivo. E precisam ser pensadas
e localizadas de acordo com os objetivos a serem alcançados com esta política
de memória.
111
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
ssim como o próprio governo Lula, aliás, de quem se esperava
muito mais do ponto de vista econômico, político e social, já
optou por seus aliados, da mesma forma não se pode esperar
nada de popular na mídia, a qual historicamente tem tratado de criminalizar
o MST e os demais movimentos sociais em qualquer parte do mundo, isto
está bem claro, inclusive ao longo dos anos, vide a análise das matérias de
Zero Hora no presente artigo, no entanto o mais interessante nesta pesquisa
é justamente saber, a partir de agora, que qualquer pessoa que se propunha
a realizar um trabalho com a informação do movimento, memória social do
MST, não vai empurrar nada goela a baixo nos Sem Terras, uma vez que
eles já se encontram mais preparados e, que esta pessoa será indagada sobre
suas reais intenções, estas, segundo as respostas dos entrevistados, devem pri-
meiramente contemplar as populações excluídas deste processo histórico que
representa o acesso à informação, principalmente os campesinos, contrários
a um trabalho de memória que apenas se aproprie da documentação, voltan-
do-se somente para o meio acadêmico.
112
FONTES CONSULTADAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ECKERT, Córdula. Movimento dos Agricultores Sem Terra no Rio Grande do Sul: 1960-
1964. Itaguaí, UFRJ, 1984. Dissertação (Mestrado em Ciência do Desenvolvimento
Agrícola) – Curso de Pós-Graduação em Ciências do Desenvolvimento Agrícola.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1984.
113
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
GH3yV*UDGXDomRGRGHSDUWDPHQWRGH*HRJUDÀDGD)DFXOGDGHGH)LORVRÀD/HWUDV
e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 1999.
GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera. O que é memória social? Rio de Janeiro: Contra Capa,
2005.
SOUZA, Helena M. R. de. O Movimento dos Sem-Terras no Rio Grande do Sul: Trajetória
e Identidade (1985-1990). Porto Alegre, UFRGS, 1994. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade Federal do
Rio Grande do SuL, 1994.
114
3
ESCRAVIDÃO E PÓS-ABOLIÇÃO
APREENSÃO, VENDA E EXTRADIÇÃO: EXPERIÊNCIAS
DE UMA CRIOULA ORIENTAL EM TERRAS SUL-
RIO-GRANDENSES (1842 - 1854)
Jônatas Marques Caratti*
ʌ Resumo: Este artigo pretende analisar as apreensões de negros livres no Estado Oriental
GR8UXJXDLDSDUWLUGDWUDMHWyULDGDFULRXODRULHQWDO)DXVWLQDÀOKDGHDIULFDQRVGD&RVWDGDÉIULFD
nascida livre na vila de Melo, Departamento do Serro Largo/Uruguai em 1843, de acordo com a
lei que concedeu liberdade aos escravos na República Oriental (1842). A mesma foi arrebatada do
Uruguai para a Província de São Pedro durante uma incursão militar comandada pelo Barão do
Jacuí, e levada a Jaguarão onde foi vendida como escrava. Posteriormente foi para Pelotas onde
foi vendida mais duas vezes. A partir de um aporte micro-histórico, pretende-se acompanhar a
trajetória de Faustina, desde sua apreensão, venda e posterior extradição para o Uruguai (1854),
por intermédio das pistas fornecidas por fontes primárias como processos-criminais e registros
cartoriais (APERS), jornais (MCSHC), correspodências militares (ANRJ) e da presidência da
Província (AHRS). Sua experiência será confrontada com o contexto em que vivia, ou seja, o
período que medeia a Guerra Grande no Uruguai (1839-1851) Alinça entre Oribes e Rosas,
Tratados de 1851-53, especialmente a de devolução de escravos.
ʌ Palavras-chave: escravização ilegal - fronteira - liberdade - Província de São Pedro -
Banda Oriental do Uruguai.
E
m meados do ano de 1852, passou pelas imediações de Melo
- vila do departamento de Serro Largo/Uruguai - uma co-
luna militar comandada pelo guerrilheiro legalista Francisco
Pedro de Abreu, o Barão de Jacuí. Essa coluna foi requisitada pelo go-
verno de Montevidéu e retornava de sua guarnição naquele ponto estra-
tégico.1 O motivo de tal investida era a guerra contra a aliança de Oribe,
caudilho uruguaio, com o caudilho argentino, Rosas. O Império resolveu
intervir militarmente devido os interesses dos proprietários rio-granden-
ses no oeste da Banda Oriental. Na passagem dessa coluna, quatro in-
divíduos, armados, de chapéu e poncho, invadem um rancho da região
e seqüestram com violência uma preta menor.2 Segundo informações de
alguns espanhóis, viviam ali escravos fugitivos da província de São Pedro,
Império do Brasil. Monta-se aí o cenário inicial.
* Graduando do curso de História da UNILASALLE. Monitor de História do Brasil I na mesma instituição. Bolsista do
setor de pesquisa histórica do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
1 Anais do Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul, vol. 15, CV678, 2006.
2 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Processo-Crime, Pelotas, Cartório Júri, Maço 10ª, nº442.
117
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
118
A fronteira neste período peculiar era palco de passagem de muitos
destacamentos. Nas correspondências militares pesquisadas no Arquivo Na-
FLRQDOIRUDPHQFRQWUDGRVGLYHUVRVLQGtFLRVGHFRQÁLWRVHQWUHDVRUGHQVGD
Corte com as ações dos militares rio-grandenses. Numa carta enviada em
1854 pelo Ministro da Guerra ao Comandante do Cerco de Uruguaiana, foi
pedida atenção e vigilância a bandos e quadrilhas que se aproveitavam da
VLWXDomRGHFRQÁLWRSDUDURXEDUJDGRHDSUHHQGHUQHJURVOLYUHVRULHQWDLV6 Os
jornais também informavam a situação que vivia a Província, bem como as
ações do Barão do Jacuí, e suas califórnias em direção à fronteira.7
É nessa complexa conjuntura política que o caso de Faustina se inse-
re. Suas experiências, desde a apreensão, venda e posterior extradição serão
percebidas a partir dos pressupostos da micro-história. Deve se dizer que a
escolha metodológica deste artigo foi escolhida pela fonte primária utilizada:
o processo-crime. Trata-se de uma rica fonte documental, onde é possível
capturar uma série de valores, planos e vivências dos sujeitos históricos en-
volvidos. Além disso, meu objetivo com essa investigação foi perceber as di-
versas motivações que levaram a seqüestros de negros livres uruguaios para o
Império, a partir das experiências vividas pela crioula oriental Faustina, o que
não seria permitido por fontes mais objetivas e notariais.
Por isso, essas experiências serão apreendidas pelos autos de interro-
gatórios, momento que réus, vítimas e testemunhas contam suas visões sobre
R FDVR 1HVWH VHQWLGR p LPSRUWDQWH DSUHVHQWDU PLQKD UHÁH[mR WHyULFRPH-
todológica, e demonstrar a partir de quais conceitos vejo Faustina, e como a
mesma se relaciona com sua época e com os demais envolvidos.
É de Carlo Ginzburg o conceito de indício.8 Para o historiador ita-
liano, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrar
a realidade social. Considero que os indícios deixados na investigação po-
dem sugerir alguns aspectos da situação diplomática entre os dois países, bem
como os próprios planos, escolhas e incertezas dos indivíduos envolvidos no
processo.
Mas de que forma pode-se vincular a história de uma pessoa com a
HVWUXWXUDVRFLDORQGHVHHVWiLQVHULGD"-DFTXHV5HYHOUHÁHWHVREUHLVVRDSDUWLU
do seguinte excerto:
6 Série Guerra, Gabinete do Ministro, Correspondências militares, Ig1-183, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
7 Jornal O Mercantil, 06 de Julho de 1850, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
8 GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989
119
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Portanto, para Revel é possível analisar uma conjuntura tanto pelo con-
texto social, como pela ótica dos sujeitos envolvidos. Como se trata de dois
níveis diferentes de análise, o jogo entre as escalas é que daria um sentido
dialético, ao ponto que o contexto e o sujeito estariam apresentando suas
HVSHFLÀFLGDGHVPDVQXPDGLUHomRGHFRPSOHPHQWDULGDGH
$FKDPDGDQRYDKLVWRULRJUDÀDGDHVFUDYLGmRWHPLQYHVWLGRHPHVWX-
dos de caso e trajetórias como parte de uma concepção onde o escravo é
também sujeito da história. A pesquisa em arquivos ao lado das renovações
metodológicas, sobretudo a partir da década de 1980,10 trouxe importantes
UHVXOWDGRVSDUDUHÁH[mRHGLVFXVVmRGHREMHWRVMiFRQVDJUDGRVSHODKLVWRULR-
JUDÀDQDFLRQDO3HVTXLVDVUHFHQWHVWrPSRVVLELOLWDGRFRPSUHHQGHUHVSDoRVGH
PRELOLGDGHVRFLDELOLGDGHHUHVLJQLÀFDomRHQWUHDIULFDQRVHFULRXORVDSDUWLU
das próprias vivências desses sujeitos, apreendidas no cruzamento de diversas
fontes primárias, que por sua vez representam os diversos momentos da vida
desse indivíduo.11$SyVHVVDVUHÁH[}HVYROWHPRVDRQRVVRFDVRSRLVHOHVHU-
virá de mote para analisarmos diversos aspectos e estratégias dos africanos e
crioulos da região fronteiriça.
Na época de Faustina, em meados do século XIX, havia certa preo-
cupação das autoridades com seqüestros de negros orientais e sua posterior
YHQGDQD3URYtQFLDGR,PSpULR&RPDDEROLomRGRWUiÀFRGHDIULFDQRVSHOR
Atlântico, a entrada dos mesmos seria reduzida à zero, e seus senhores teriam
que se contentar com reprodução natural dos seus escravos. É nessa época
que o valor dos cativos sobe muito no mercado. Todas essas circunstâncias,
somadas com a diminuição do braço-escravo na Província de São Pedro, em
função do comércio interprovincial, levaram a um ´WUiÀFRGHQRYDHVSpFLH”12 vin-
do do Estado Oriental.
120
A suspeita das autoridades era que Faustina havia sido vítima desse cri-
me. Portanto, nas investigações, foram acusados como ré autora, Dona Maria
Duarte Nobre, e como réu cúmplice, o Capitão Manoel Marques Noronha.
O argumento do Chefe político uruguaio, José Maria Morales, era que os réus
haviam cometido um crime contra a República, porque sendo Faustina livre,
foi escravizada ilegalmente. A hipótese tanto para as autoridades da época
como para o historiador que investigava o caso, era que Faustina havia sido
raptada do Uruguai com o objetivo de ser vendida e escravizada no Brasil.
Vinícius Pereira de Oliveira, em sua dissertação de mestrado, encontrou
casos de seqüestro de negros livres orientais em São Leopoldo. Um processo
instaurado contra José Francisco, Felisbino José, Leandro José e Laurindo
José da Costa, acusava-os de “quererem reduzir ao cativeiro pessoas livres
arrebatadas com violência do Estado Oriental”. Segundo Oliveira, “os irmãos
Costa foram responsáveis pela escravização e introdução de pelo menos três
levas de negros livres uruguaios ao Brasil”.13 Esses negros foram levados pos-
teriormente para São Leopoldo, colônia alemã que não autorizava a compra
de escravos.
Ao longo das investigações, o Capitão Noronha fora acusado de ter
raptado Faustina na época que voltava do Estado Oriental, e Dona Maria Du-
arte como o ponto de venda e repasse da mesma. Realmente, depois de Maria
Duarte, Faustina foi vendida duas vezes, num curto espaço de dois anos.
Segundo os interrogatórios, Manoel Marques Noronha era natural de
Porto Alegre, tinha 58 anos, casado, era lavrador e militar. As coisas começaram
a mudar quando Noronha assume que além de militar e lavrador, apreendia
negros fugidos. Em sua legítima defesa, apresentou ao delegado de Pelotas uma
lista com cerca de 300 nomes de escravos que haviam fugido nos últimos anos.14
O Capitão da Guarda Nacional havia sido contratado por delegados de vários
municípios para apreender escravos fugidos e trazê-los de volta à Província.
Rafael Peter de Lima também encontrou essa possibilidade de militares terem
permissão de agarrarem escravos fugidos.15 Noronha conta que, ao passar por
um rancho na vila de Melo, fora avisado por dois espanhóis que ali moravam
uma família de pretos, e que os mesmos poderiam ser escravos fugidos. Foi então
que Noronha capturou a crioula oriental Faustina e a levou a Jaguarão.
13 (OLIVEIRA, 2006, p. 141)
1DOLVWDDSDUHFLDPHVFUDYRVIXJLGRVGHVGHDWpRTXHFRQÀUPDTXHDVIXJDVRFRUULDPHPSHUtRGRGHFRQ-
ÁLWRVSROtWLFRVHPLOLWDUHV
15 (LIMA, 2006, p. 263)
121
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
122
fugida, Joaquina Maria se refugiou em fazendas na fronteira, do outro lado
do Rio Negro. Não sabemos de que forma fugiu a africana. Segundo Petiz,
as fugas tinham muitas motivações, desde individuais, coletivas, ou a partir de
promessas de liberdade e emprego no Uruguai.17
A africana Joaquina disse que soube de ouvir dizer que no Estado Orien-
tal estavam dando a liberdade a todos os escravos que entrassem lá. Ela in-
terrogada fugiu de Jaguarão, cidade onde servia sua senhora, e se refugiou
em Melo, onde conheceu Joaquim Antônio, também africano, com que se
casou mais tarde, em 1850, constituindo uma família. O fato é que, se Joa-
quina Maria era escrava, ao passar para a fronteira se tornava livre segundo a
OHLGRVROR(SRUFRQVHJXLQWHWRUQDYDVHOLYUHVXDÀOKD)DXVWLQD0DVVHRV
tratados de 1851 retomam este fato, querendo devolver os escravos aos seus
senhores, pode-se pensar quais motivos levariam a República Oriental a isso.
Desta forma, a apreensão de Faustina teria outra visão. A fuga de Joaquina
Maria é considerada aqui como uma estratégia escrava, uma resistência ao sis-
tema escravista. Seriam o batismo de Faustina e o matrimônio com Joaquim
$QW{QLRHVWUDWpJLDVSDUDSHUPDQHFHUHPQD5HS~EOLFD"
As autoridades uruguaias, ao perceberem que se tratava de uma fuga,
argumentaram que mesmo sendo a mãe de Faustina escrava, as leis da Re-
S~EOLFDHUDPFODUDV´QRWHUULWyULRGR(VWDGRQLQJXpPQDVFHUiHVFUDYRÀFD
SURLELGDSDUDVHPSUHRVHXWUiÀFRHLQWURGXomRQD5HS~EOLFDµ(DLQGD´QmR
podem trazer voluntariamente nenhum homem de cor do território brasileiro
HPTXDOLGDGHGHHVFUDYRVHPÀFDUOLYUHGHIDWRHGHGLUHLWRGHVGHTXHSLVHHP
nosso território, porque ao pisá-lo vale a lei do solo”.
É importante observar que Faustina nasceu em 1843, um ano após a lei
de abolição da escravatura no Uruguai. Qual será o impacto da lei abolicionis-
WDXUXJXDLDGH"'HTXHIRUPDHVVDVOHLVLQÁXHQFLDUDPDVYLYrQFLDVGRV
africanos e crioulos que habitavam no espaço fronteiriço da Província de São
3HGURGR5LR*UDQGHGR6XO"
Mas o leitor deve lembrar-se que Faustina foi encontrada em Pelotas
em 1854, na casa do Capitão José Maria Pinheiro. Não teria sido uma rota de
WUiÀFRMiTXH)DXVWLQDIRLYHQGLGDWUrVYH]HVHPDSHQDVGRLVDQRV"
Finalmente, o caso vai tomando forma. Segundo os quesitos conclusi-
vos do processo, o Capitão Noronha logo após ter voltado do Uruguai, levou
)DXVWLQDjVXD´VHQKRUDµ0DV'RQD0DULD'XDUWH1REUHQmRTXHUHQGRÀFDU
123
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
com ela, vendeu-a por 150 patacões em prata a Noronha. Apenas 16 dias
depois, o mesmo a vende em Pelotas por 200 patacões em prata ao ferreiro
Henrique Rochmann. Henrique permaneceu com Faustina como sua escrava
por mais ou menos 10 meses. Não sabemos o motivo pelo qual Henrique
vendeu Faustina, mas o fato é que ele consumou venda com o Capitão José
GD6LOYD3LQKHLURHPGHIHYHUHLURGH2PHVPRÀFRXFRP)DXVWLQD
até maio de 1854, quando começaram as investigações. Se as datas estiverem
certas, as investigações começaram muito tempo depois da entrega do bilhete
ao pai de Faustina, Joaquim Antônio, já que Faustina não estava mais em po-
der de Henrique Rochmann há mais de um ano.
Em 23 de setembro de 1854, depois de quatro meses de investigação,
Faustina é extraditada ao seu país de nascimento. É o indício que o Relatório
do Presidente da Província nos deixa: a preta reclamada acha-se depositada para
VHUGHYROYLGDHPPRPHQWRRSRUWXQR18 Este é o momento que nos despedimos de
)DXVWLQD6REUHVXDYLGDDSyVDH[WUDGLomRQmRWHPRVPDLVQRWtFLDV$RÀQDO
do processo, os réus são condenados e incursos no artigo 177 do Código Cri-
minal, mas posteriormente conseguem absolvição pelo Cartório Júri.
Os poucos anos que pudemos acompanhar Faustina pelos vestígios
documentais, desde sua apreensão em Melo, sua venda em Jaguarão e depois
sua escravização em Pelotas, não nos permitem chegar a conclusões mais exa-
WDVVREUHXPSRVVtYHOWUiÀFRHVSHFLDOL]DGRGHDIULFDQRVHFULRXORVRULHQWDLV
Porque, nesta história, o que era um caso de escravização ilegal em terras sul-
rio-grandenses tornou-se revelador de uma fuga bem sucedida para o além-
fronteira, a constituição de família, redes de apadrinhamento e solidariedade,
demonstrando que as apreensões de negros orientais não podem ser consi-
GHUDGDVDSHQDVFRPDÀQDOLGDGHFRPHUFLDOFRPRDOJRKRPRJrQHRPDVOHYDU
em conta as próprias vivências dos sujeitos.
Somente um estudo de mais fôlego poderá perceber o impacto destas
apreensões de africanos e crioulos orientais para a economia e sociedade rio-
JUDQGHQVH&RPRFRQVLGHUDo}HVÀQDLVS{GHVHSHUFHEHUTXHDVPRWLYDo}HV
SDUD HVVDV DSUHHQV}HV FRQFRUULDP RX D XPD SRVVtYHO URWD GH WUiÀFR LOHJDO
pela fronteira, ou a recuperação – pelos senhores - da posse cativa que havia
fugido. A experiência da crioula oriental Faustina em terras sul-rio-grandenses
nos revela um pouco mais sobre a conjuntura escravista no espaço fronteiriço
entre a Província de São Pedro e a Banda Oriental do Uruguai. Também po-
18 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Relatório do Presidente da Província, 1854.
124
demos considerar como uma, entre muitas outras possibilidades de se com-
preender o contexto em que viviam ambas as regiões. Porque, se de um lado
Faustina estava inserida no contexto da Guerra Grande, dos tratados de 1851
e das fugas para o além-fronteira, também se pode pensar algumas das espe-
FLÀFLGDGHVGHVXDKLVWyULDSDUDUHSHQVDURFRQWH[WRHPTXHYLYLD
125
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
Manuscritas:
- Processo – Crime, Pelotas, Cartório Júri, maço 10A, processo n.º 442
Impressas:
- Anais do Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul, vol. 15, CV678,
2006.
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126
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Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
127
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
128
EXPERIÊNCIAS SOCIAIS DE LIBERTOS NO RIO GRANDE DE
SÃO PEDRO: TRABALHO, ACESSO À TERRA E RELAÇÕES COM
ESCRAVO E HOMENS LIVRES (INÍCIO DO SÉCULO XIX)
Gabriel Aladrén*
ʌ Resumo:(VWHWUDEDOKRSUHWHQGHUHÁHWLUDFHUFDGDVH[SHULrQFLDVVRFLDLVGHOLEHUWRVQR5LR
Grande de São Pedro do Sul, no início do século XIX. Para tanto, analisaremos um caso singular,
do preto forro Pedro Gonçalves. As fontes utilizadas foram o processo criminal aberto após o
seu assassinato, no distrito do Caí, em 1819, bem como inventários post-mortem. As fontes foram
analisadas com o objetivo de reconstituir aspectos da vida de Pedro Gonçalves. Neste sentido,
enfocamos especialmente suas atividades econômicas, a constituição de seu patrimônio e suas
relações com escravos e homens livres.
ʌ Palavras-chave: Libertos – Rio Grande de São Pedro – Inserção social – Atividades
econômicas – Escravidão
INTRODUÇÃO
N
este trabalho procuramos, através da análise do caso de um
liberto que foi assassinado, no ano de 1819, em uma região
rural próxima de Porto Alegre adentrar no universo das ex-
periências sociais dos ex-escravos.
A principal fonte que utilizamos neste trabalho é o processo criminal
aberto por ocasião do assassinato do liberto Pedro Gonçalves. Apesar do
SURFHVVRFULPLQDOVHUXPGRFXPHQWRRÀFLDOFXMRFDUiWHUpQRUPDWLYRFRPD
HVSHFLDOÀQDOLGDGHGHHVWDEHOHFHUDYHUGDGHVREUHDRULJHPHFLUFXQVWkQFLDVGH
determinado fato – o crime – ele tem sido utilizado com sucesso em diversos
trabalhos de história social da escravidão no Brasil.1
3URFXUDQGR FRPSUHHQGHU D VXD IRUPD HVSHFtÀFD GH OLQJXDJHP H XO-
trapassando os limites impostos pela intermediação do escrivão nos depoi-
mentos e falas das testemunhas, réus, autores e vítimas é possível reconsti-
tuir aspectos da vida dos libertos. Os mecanismos de um processo criminal
pautavam-se, ao menos formalmente, pelo objetivo de reconstituir o evento
criminoso fazendo com que os implicados no crime tivessem aspectos de sua
vida cotidiana devassados.
* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
1 Lara (1988); Chalhoub (1990); Mattos (1995); Machado (1987).
129
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
C
hovia muito no sábado, 20 de março de 1819, dia em que
foi assassinado o liberto Pedro Gonçalves. Sua esposa, Roza
Maria da Conceição, preta forra, foi acusada como autora do
FULPH$SyVWHUÀFDGRTXDVHWUrVDQRVSUHVDHODIRLDEVROYLGDHP$FyUGmR
promulgado pela Junta Criminal de Justiça.2
Segundo os depoimentos das testemunhas e dos autos de perguntas fei-
tas aos escravos do casal e à viúva, é possível reconstituir alguns pormenores
do dia em que foi morto Pedro Gonçalves. Essa tarefa torna-se interessante
para o historiador uma vez que permite recuperar alguns aspectos da vida das
pessoas que viviam na casa de Pedro Gonçalves: ele, sua esposa, as escravas
Joanna Cabinda e Rozaura Moçambique, os escravos Antonio “pequeno” e
Antonio Rebolo e o peão Antonio cabra.
Pedro Gonçalves era um preto forro, de aproximadamente 50 anos.
Não era rico, mas alcançou uma posição econômica incomum, no Rio Gran-
GHGH6mR3HGURSDUDXPH[HVFUDYRHPÀQVGRSHUtRGRFRORQLDO3RVVXtD
cativos, um rebanho de 44 reses de marca, uma casa com lavouras e matos.3
(UDFDVDGRPDVVHPÀOKRV7HYHFRQGLo}HVGHVH´DMXVWDUµFRPXPSHmRLVWR
é, contratá-lo a jornais), para ajudá-lo na lida com o gado e em outras tarefas
QDVXD´&D]Dµ'HÀQLWLYDPHQWHHOHFRQTXLVWRXDSRVVLELOLGDGHGH´YLYHUVR-
bre si”4 e alargou suas margens de autonomia na sociedade.
2 Pedro Gonçalves foi assassinado no distrito do Caí, termo da vila de Porto Alegre. A narrativa e análise do assassinato de
Pedro Gonçalves têm como fonte o processo criminal (autos sumários) aberto por ocasião do crime: Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Cartório do Júri. Sumários. Maço 6, processo nº 138. Quando forem utilizadas
outras fontes, elas serão indicadas em nota.
3 Os bens de Pedro Gonçalves foram arrolados no inventário que se procedeu após sua morte e consistiam em: 44 reses
de marca, 10 terneiros pequenos, 18 éguas xucras, 5 cavalos mansos, 4 bois mansos, 1 casal de porcos pequenos, 1 forno de
FREUHQRYRURGDGHUDODUPDQGLRFDFDUURYHOKRURGDGHÀDUDOJRGmRGHVFDURoDGRUGHDOJRGmRPDFKDGRVYHOKRV
4 olhos de enxada, um baú velho e algumas roupas. Os bens mais valiosos eram os escravos: Antonio “pequeno” nação
Rebolo, de 25 anos, Antonio nação Rebolo, de 40 anos, Joana nação Cabinda, de 23 anos e Rozaura nação Moçambique,
de 20 anos. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Inventários post-mortem. Maço 27. Nº 675.
Curiosamente, sua casa, lavouras, cercados, potreiro e terrenos de matos não foram arrolados no inventário, mas sabemos
que ele possuía esses bens pela descrição do crime e depoimentos das testemunhas no processo criminal.
+HEH0DWWRVGHPRQVWUDTXHRUHFRQKHFLPHQWRGDOLEHUGDGHH[SUHVVDYDVHQDLGHQWLÀFDomRGHTXHRVOLYUHV´YLYLDPGHµ
alguma coisa, normalmente “de seus bens e lavouras”, “de seu jornal”, “de seu ofício”, ou “de suas agências” (Mattos,
1995, p. 31-102).
130
Pedro Gonçalves, enquanto preto forro, obteve sucesso na sua vida
econômica. Analisando 26 inventários post-mortem de libertos da região de Por-
to Alegre, entre os anos de 1800 a 1835, constatamos que a vida para a maio-
ria dos ex-escravos não foi tão generosa. Antes de apresentarmos estes dados,
é mister que façamos alguns comentários de caráter metodológico.
Os inventários são fontes privilegiadas para o estudo do patrimônio e
das atividades econômicas exercidas pelos inventariados. No entanto, é preciso
destacar que o inventário é uma fonte socialmente determinada, pois implica
a observação de um extrato economicamente privilegiado de um grupo social.
Aqueles libertos que morreram sem deixar bens ou sem ter constituído um pa-
WULP{QLRVLJQLÀFDWLYRQmRDSDUHFHPQHVWDIRQWH3RUWDQWRRVLQYHQWDULDGRV
que pesquisamos constituem a “elite econômica” do grupo social dos forros.
,VVRQmRVLJQLÀFDTXHRV~QLFRVOLEHUWRVTXHDGTXLULUDPEHQVHFRQVWUX-
tUDPXPSDWULP{QLRVLJQLÀFDWLYRQDUHJLmRHVWXGDGDVHMDPHVVHVLQYHQWD-
riados. Sheila de Castro Faria observa que, conforme a legislação portuguesa,
TXDQGRPRUULDPRVSURSULHWiULRVTXHQmRWLQKDPKHUGHLURVQHFHVViULRVÀ-
lhos, pais, irmãos e parentes até o quarto grau de consangüinidade) e haviam
feito testamento, não era aberto o inventário. Isso explica a exigüidade de
inventários de forros encontrados por ela, na sua pesquisa no Rio de Janeiro
e em São João Del Rei e também os escassos 26 inventários encontrados
por nós em Porto Alegre. Na medida em que os libertos nascidos na África
normalmente não tinham pais ou outros parentes residentes no Brasil, sendo
PXLWDVYH]HVFDVDGRVHQmRWHQGRÀOKRVQmRHUDQHFHVViULRSURFHGHUjUHDOL-
zação do inventário quando eles deixavam testamentos.5
Portanto, é provável que muitos libertos sul-rio-grandenses que cons-
tituíram um patrimônio não tenham deixado inventários. De qualquer modo,
os libertos inventariados estão entre aqueles que ascenderam economicamen-
WHGHIRUPDVLJQLÀFDWLYDRTXHFHUWDPHQWHQmRHUDDUHDOLGDGHGDPDLRULDGRV
forros da região de Porto Alegre. Sendo assim, os dados que seguem demons-
tram como era rara a situação econômica de Pedro Gonçalves.
A maior parte dos 26 forros era formada por lavradores ou por aque-
les que exerciam alguma ocupação urbana. Apenas 3 deles (incluso Pedro
Gonçalves), além de serem agricultores, também criavam gado. Quando ana-
lisamos a estrutura de posse de escravos entre os libertos, Pedro Gonçalves
destaca-se ainda mais:
5 Faria (2001), p. 292-295.
131
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Fonte: 26 inventários post-mortem de libertos de Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão,
dos anos de 1800 a 1835, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
Ele era o único liberto que possuía 4 escravos, sendo que 16 forros
simplesmente não eram proprietários de nenhum cativo. Outro fator impor-
tante é que os escravos de Pedro Gonçalves estavam em plena idade produti-
va, não apresentavam doenças e foram bem avaliados no inventário: Antonio
Rebolo, de 40 anos, foi avaliado em 140$000 réis; Joana Cabinda, de 23 anos,
200$000 réis; Rozaura Moçambique, de 20 anos, 170$000 réis e Antonio “pe-
queno” Rebolo, de 25 anos, foi avaliado em 180$000 réis.
A propósito das atividades econômicas da “Caza” de Pedro Gonçalves,
também devemos fazer algumas considerações. Seria a pecuária que susten-
WDYDVXDXQLGDGHGRPpVWLFD"$FUHGLWDPRVTXHQmR$SHFXiULDHUDUHDOL]DGD
por diversas camadas sociais do Rio Grande de São Pedro, mas os grandes
rebanhos estavam concentrados nas mãos dos maiores proprietários.6 Para se
obter lucros com a criação (venda de couros, carne e outros subprodutos) era
necessária a posse de um grande número de cabeças de gado vacum, tendo
em vista que a taxa de reprodução do rebanho no Rio Grande gravitava em
torno de 21%.2 Considerando que Pedro Gonçalves possuía apenas 44 reses,
era absolutamente imprescindível que praticasse atividades agrícolas em suas
WHUUDVGHIRUPDFRPELQDGDFRPDSHFXiULD(pLVWRTXHVHFRQÀUPDFRPDV
respostas dadas pelos escravos em seus depoimentos.
132
Antonio “pequeno” e Antonio Rebolo, no dia do crime, foram logo
cedo para as roças, onde se plantava mandioca e algodão.8 Quando pergun-
tados de seu ofício, disseram que trabalhavam nas lavouras de seu senhor.
Pedro Gonçalves, por sua vez, teria saído ainda mais cedo que os escravos,
juntamente com o peão Antonio, para “falquejar humas lenhas”. Segundo o
depoimento da escrava Rozaura,
TXDQGRIRLDKRUDVGRDOPRoRYHLR6HX6HQKRUSDUD&D]DHÀFRXR
Pião no Matto; e não querendo almossar pegou em hum frio, e se
incaminhou para a Rossa dizendo hia lá apanhar hum Cavallo que
estava maniado para hir Repontar o gado do fundo do Campo, e que
estivesse nas Rossas, e hindo não voltou mais, e quando foi ao meio
dia chegou do Matto aquele Pião para jantar 10
133
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Outra questão interessante que podemos abordar com base neste caso
é a relação entre hierarquia social, formas de agregação e o acesso à terra
por parte de ex-escravos e dos chamados “livres pobres”. Do ponto de vista
hierárquico, Pedro Gonçalves era o supremo mandatário em sua “Caza”, com
poder sobre seus escravos, agregados (o Peão Antonio foi assim referido nos
depoimentos) e sua mulher. Porém, ele também era um agregado nas terras
do Capitão Jozé Alexandre d’Oliveira, comandante do distrito do Caí.
Apesar de ser um ex-escravo, Pedro Gonçalves era respeitado pela vi-
zinhança e desfrutava de um status social condizente com sua situação eco-
nômica, de pequeno senhor escravista. Tanto era assim que o peão Antonio
cabra, que trabalhava com ele a jornais havia 4 meses quando ocorreu o as-
sassinato, o tratava com deferência e de forma respeitosa, designando-o por
“meu amo”.12 Após ver o corpo de seu patrão sendo carregado para dentro
de casa, o peão teria dito à viúva Roza, “como admirado”: “Minha Ama, que
KpLVWRPDWDUmRDPHX$PR"µ
A admiração que demonstrou o peão Antonio cabra tornou-se suspeita
para as escravas Rozaura e Joanna e para o escravo Antonio “pequeno”, que
WDPEpPFDUUHJDYDPRFRUSR$ÀQDORSHmRMiKDYLDYLVWRVHXDPRPRUWR
HWHULDVDtGRDFDYDORSDUDDYLVDUXPDÀOKDGRGH3HGUR*RQoDOYHV-RDTXLP
preto forro. Os escravos, ao suspeitarem da pergunta, depois inquiriram o
peão, tendo este lhes respondido que, por se achar junto ao pessoal da casa o
vizinho Sebastião (que também ajudava a carregar o corpo), quis ele demons-
WUDUHVWXSHIDomRSDUDQmRFDXVDUGHVFRQÀDQoDYLVWRTXHHUDXPGHVHUWRUGDV
tropas que estavam guarnecidas no Rio Grande de São Pedro.13
12 O tratamento deferente de peões com seus patrões parece ter sido comum no Rio Grande de São Pedro. O preto forro
Manoel Antonio de Alencastro era peão do Tenente Domingos Pereira Maciel e foi acusado de roubar uma vaca na Aldeia
dos Anjos, em 1825. Na sua inquirição ele diz ser inocente, alegando que a vaca teria sido roubada por um escravo de seu
“amo”, o Tenente Domingos. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Cartório do Júri. Sumários.
Maço 11, processo nº 269.
13 O botânico francês Saint-Hilaire, no relato de sua viagem ao Rio Grande do Sul, feita entre os anos de 1820 e 1821,
notou as más condições em que se encontravam as tropas na Capitania sulina: “As tropas estacionadas na fronteira da
Capitania são em número de 3.000 homens, compostas de milicianos da região e de uma legião de paulistas. O soldo
desses homens está atrasado há vinte e sete meses, e há três anos que eles vivem unicamente de carne assada, sem pão,
sem farinha e sem sal. A ração de cada homem é de quatro libras de carne por dia, e somente constituída pelas partes
PDLVJRUGDVHPDLVFDUQXGDVGRVDQLPDLV2VRÀFLDVFRPHPItJDGRFRPDFDUQHjJXLVDGHSmR2VVROGDGRVVXEVWLWXHP
esse alimento fazendo torrar uma parte de suas rações, que comem com o resto, que é assado de modo costumeiro. Os
milicianos da região estão facilmente acostumados a esse regime que pouco difere de seu modo normal de viver. Não
obstante aparecerem moléstias devido ao excesso de alimentação carnívora, principalmente disenterias, sobretudo entre os
paulistas, mais habituados ao uso do feijão e da farinha que ao da carne” (Saint-Hilaire, 1999, p. 33). Note-se a referência
à legião composta por paulistas – da qual, provavelmente, desertou o peão Antonio cabra. Nos autos de perguntas feitas a
Roza Maria da Conceição e à escrava Rozaura, Antonio é designado, respectivamente, como “paulista” e “curitibano”.
134
Este ponto, em torno da falsidade da reação do peão, foi motivo de em-
bates entre o advogado de defesa de Roza Maria da Conceição e a acusação.14
Algumas testemunhas aventaram a possibilidade de que Roza estaria tendo
um caso com ele, e ambos teriam se acertado para assassinar Pedro Gonçal-
ves. De fato, o peão Antonio cabra foi pronunciado como réu, mas três dias
depois do assassinato ele sumiu. Pode ser que ele realmente tenha participado
ou cometido o crime, mas é possível que sua explicação tenha sido sincera.
Sendo desertor, ele certamente não queria retornar às tropas, acusado por
vizinhos de seu amo e ainda na condição de suspeito de assassinato.
Mas o que nos interessa reter no momento é o fato de que Pedro
Gonçalves ascendeu não apenas economicamente, tornando-se um pequeno
senhor escravista, como também recebia um tratamento condizente com sua
VLWXDomRHFRQ{PLFD$ÀQDOPHVPRVHQGRHOHXPH[HVFUDYRXPSUHWRIRUUR
HUDDPRGHXPKRPHPOLYUH&RPRIRLLVVRSRVVtYHO"
Stuart Schwartz propôs uma interpretação da sociedade escravista co-
lonial brasileira, a partir da análise das relações sociais e econômicas no Re-
côncavo baiano. Segundo ele, os princípios gerados na “sociedade do açúcar”
tiveram um papel fundamental na conformação da sociedade brasileira como
um todo, uma vez que eles foram amplamente compartilhados e adaptaram-
se a outras regiões da colônia. Nas palavras de Schwartz,
O Brasil-colônia foi uma sociedade escravista não meramente devido
ao óbvio fato de sua força de trabalho ser predominantemente cativa,
mas principalmente devido às distinções jurídicas entre escravos e li-
vres, aos princípios hierárquicos baseados na escravidão e na raça, às
atitudes senhoriais dos proprietários e à deferência dos socialmente
inferiores. (...) Essa sociedade herdou concepções clássicas e medie-
vais de organização e hierarquia, mas acrescentou-lhes sistemas de
graduação que se originaram da diferenciação das ocupações, raça, cor
e condição social, diferenciação esta resultante da realidade vivida na
América. Foi uma sociedade de múltiplas hierarquias de honra e apre-
ço, de várias categorias de mão-de-obra, de complexas divisões de cor
e de diversas formas de mobilidade e mudança: contudo, foi também
uma sociedade com forte tendência a reduzir complexidades a dualis-
PRV GH FRQWUDVWH ² VHQKRUHVFUDYR ÀGDOJRSOHEHX FDWyOLFRSDJmR
– e a conciliar as múltiplas hierarquias entre si, de modo que a gradu-
ação, a classe, a cor e a condição social de cada indivíduo tendessem
a convergir.15
9iULDVWHVWHPXQKDVDVVLPFRPRRVHVFUDYRVTXHHVWDYDPFDUUHJDQGRRFRUSRFRQÀUPDUDPTXHRSHmR$QWRQLRWHULD
dito isto. Porém, nas perguntas feitas a Roza Maria da Conceição, bem como nas razões de seu advogado, ela diz que o
peão a perguntou se já sabia quem tinha matado a seu amo. De qualquer forma, o que nos interessa é o tratamento defe-
rente que o peão Antonio cabra conferia a Pedro Gonçalves e à sua esposa.
15 Schwartz (1988), p. 209-210.
135
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
2FDUiWHUGDVRFLHGDGHEUDVLOHLUDQRSHUtRGRFRORQLDOMiIRLDPSODPHQWHGLVFXWLGRQDKLVWRULRJUDÀDVHQGRREMHWRGH
estudos clássicos, como os de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre. Muitos historiadores
VHJXHPHVWXGDQGRHVVHSUREOHPDHUHFHQWHPHQWHDOJXPDVFRQWULEXLo}HVIRUDPVLJQLÀFDWLYDVSDUDGHÀQLURHVWDGRDWXDO
da questão. Podemos, a título de exemplo, referir-nos a duas obras, cujos pontos de vista são divergentes (Fragoso, Bicalho
e Gouvêa, 2001; Souza, 2006).
17 Mattoso (1982), p. 202-204; Schwartz (2001), p. 99-101; 146-150.
18 Cardoso (1982), p. 133-154.
19 Reis e Silva (1989), p. 22-31.
136
estavam em suas roças. Indo ao local para “enchutar” os ditos bois e levá-los
ao curral, viram uns urubus mais adiante sobrevoando o corpo.
É possível que, assim como concedia parcelas de terras para que seus
escravos cultivassem, Pedro Gonçalves tenha recebido de seu senhor, quando
era cativo, a mesma concessão. O fato de ser casado, talvez desde os tempos
HPTXHHUDFDWLYRSRGHRWHUEHQHÀFLDGR2VVHQKRUHVFRVWXPDYDPFRQFHGHU
parcelas de terras aos escravos que tivessem vínculos familiares estáveis. Des-
te modo, segundo Hebe Mattos, os senhores fomentariam rivalidades entre os
escravos, o que facilitaria o seu domínio e controle.20 Por outro lado, a família
e o acesso à terra constituíam uma experiência de liberdade:
da mesma forma que a mobilidade espacial, a família nuclear e a rede
de relações pessoais e familiares a ela ligada permanecem essenciais
na experiência dos homens livres por todo o século passado [século
XIX], como já haviam sido no período colonial.21
,QIHOL]PHQWH QmR WHPRV FRPR YHULÀFDU FRP DV IRQWHV GH TXH GLV-
pomos como, originalmente, Pedro Gonçalves obteve acesso às suas terras.
Mas, tendo em vista determinadas contribuições teóricas, podemos aventar
algumas hipóteses.
Giovanni Levi, em Herança imaterial, constatou que o mercado de terras
no Piemonte no século XVII não era regulado pela lei da oferta e procura,
isto é, não funcionava com base nos preços de mercado. O que determinava
os preços das terras era a “qualidade” ou, em outras palavras, a condição
social do comprador e do vendedor e, fundamentalmente, os vínculos paren-
tais entre as famílias camponesas da região.22 Levi baseou-se nas formulações
de Karl Polanyi, economista que demonstrou como a sociedade de merca-
do (onde a economia se constitui enquanto uma esfera autônoma no corpo
social) era um fenômeno histórico e transitório, que surgiu na Inglaterra no
século XIX.23
A sociedade sul-rio-grandense, no início do século XIX, não tinha sua
economia organizada de forma autônoma, e o mercado de terras não era
auto-regulável. Neste sentido, apesar de não sabermos se Pedro Gonçalves
teve acesso à terra através de doação, concessão de seu ex-senhor ou compra
GHXPDVLWXDomRUXUDOUHYHVWHVHGHVLJQLÀFDGRRIDWRGHTXHHOHHUDXPDJUH-
20 Mattos (1995), p. 137-167.
21 Idem, p. 72.
22 Levi (2000), p. 131-172.
23 Polanyi (2000).
137
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
24 Franco (1997).
25 Mattos (1987), p. 107.
26 Idem, p. 92.
138
década de 1870, o número de escravos decresceu, ao mesmo tempo em que
aumentou a quantidade de proprietários rurais. Ora, o preto forro era pro-
prietário de 4 escravos e também explorava uma situação rural. No entanto, é
necessário observar que o período estudado por Mattos foi a segunda metade
do século XIX, quando a propriedade escrava era mais escassa e concentrada.
Por outro lado, no Rio Grande de São Pedro os plantéis eram menores do que
os do Rio de Janeiro, de modo que ser proprietário de 4 cativos em idade pro-
dutiva colocava o liberto em uma posição intermediária no que diz respeito à
estrutura de posse de cativos.
0DVSHQVDQGRHVSHFLÀFDPHQWHQDUHODomRGHDJUHJDomRGH3HGUR*RQ-
oDOYHVFRPR&DSLWmR-R]p$OH[DQGUHG·2OLYHLUDWDPEpPp~WLOUHÁHWLUDFHUFD
das conclusões de Silvia Lara, em Campos da violência$DXWRUDLGHQWLÀFRXQRV
Campos dos Goitacases no período colonial, o agregado como parte de um
nível intermediário na hierarquia social. Assim, ele fazia o papel, junto com
os feitores, de mediador na relação pessoal de dominação entre o senhor e
RHVFUDYR$VFRQGLo}HVHVSHFtÀFDVGRVDJUHJDGRVHUDPPXLWRYDULDGDV3R-
deriam ser claramente distinguidos enquanto homens livres ou forros, sendo
inclusive pequenos proprietários escravistas, ou poderiam ser confundidos
com cativos.27
Assim, levando-se em conta a importância que o agregado tinha para
os grandes proprietários, pode-se entender como Pedro Gonçalves pôde agre-
gar-se e ter uma estabilidade que o permitiu realizar cultivos, possuir escravos
e um pequeno rebanho. Mas, essa situação favorável do liberto não se devia
unicamente aos favores de um grande proprietário. Certamente sua posição
econômica e social era referendada pelo costume, através de relações verti-
cais (com o capitão) e também horizontais (com outros agregados e homens
livres da região).28 Chegando a ser amo de um homem livre, o preto forro
Pedro Gonçalves é um exemplo da restrita mobilidade social que tornava
D HVWUDWLÀFDomR KLHUiUTXLFD GD VRFLHGDGH FRORQLDO EUDVLOHLUD WmR FRPSOH[D H
multifacetada.
139
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
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KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002.
29 As datas indicadas referem-se ao início dos autos sumários, mais próximas da data dos crimes. O conjunto de docu-
mentos que constitui um processo criminal pode ter datas variadas, na medida em que muitos processos estendiam-se
durante vários anos.
140
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São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
141
ÁFRICA NO SUL DO RIO GRANDE NEGRO
Jovani de Souza Scherer*
ʌ Resumo: a comunicação apresenta uma abordagem inicial de como era formada a popu-
lação escrava africana do sul do Rio Grande. Utilizo uma amostra de 355 inventários post-mortem
entre 1825 e 1860 e um resumo da população escrava de 1842, produzido pela subdelegacia da
cidade de Rio Grande. Uma atenção especial é dedicada ao inventário do preto forro Joaquim de
Antiqueira, por concentrar num mesmo indivíduo diferentes aspectos da experiência africana.
ʌ Palavras-chave: Rio Grande – africanos – escravos – inventários – Século XIX
O
preto forro Joaquim de Antiqueira faleceu no ano de 1853,
mais precisamente aos 9 dias do mês de Setembro. Sabemos,
através de seu testamento solene escrito em Pelotas no ano
anterior a sua morte, que ele além de não saber quem eram seus pais, ele não
WHYHÀOKRVGXUDQWHVXDYLGDQHPGHVXDIDOHFLGDPXOKHUFKDPDGD5RVD0DULD
da Conceição, nem da sua companheira seguinte, a também preta forra Maria
GR%RQÀP
0DULDGR%RQÀPIRLQRPHDGDVXDXQLYHUVDOKHUGHLUDSRUIDOWDGHKHU-
deiros “ascendentes ou descendentes” de seu companheiro, o qual, caso me-
OKRUDVVH GD GRHQoD TXH SURYDYHOPHQWH FRQVXPLX VXD YLGD JRVWDULD GH RÀ-
cializar a sua união com a mesma Maria, “com quem pretendo tomar estado
logo que me restabeleça da moléstia de que me acho possuído”. Infelizmente,
a moléstia de Joaquim não deve ter permitido que o casal tomasse estado,
quer dizer, casasse na Igreja. (APERS, Rio Grande, Inventário de Joaquim de
Antiqueira, 2º C e C, n79m3a1853)
Dito isto, quero chamar atenção à pequena passagem do testamento de
Joaquim de Antiqueira que está transcrito no princípio deste texto, nele, este
africano se diz QDWXUDOGD&RVWDGD0LQD,VWRVLJQLÀFDTXHGXUDQWHVXDYLGDGH
escravo, caso tenha sido listado em algum Inventário ou outro documento,
* Mestrando do PPG em História/UNISINOS, bolsista CNPq, orientando do Prof. Dr. Paulo Moreira.
143
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
como uma alforria, por exemplo, muito provavelmente Joaquim teria sido
descrito como Joaquim Mina(VWDHQWmRVHULDDVXDQDomRVXDLGHQWLÀFDomR
sua diferenciação dentro da comunidade escrava, e mais, seu pertencimento a
um grupo dentro da população africana no sul do Rio Grande.
Mas a identidade Mina é descrita por historiadores como uma desig-
nação das mais genéricas, sendo comum para diversos grupos africanos. Daí
a importância das palavras seguintes de Antiqueira na citação inicial: e nascido
em lugar de que me não recordo o nome. O lugar de nascimento de Joaquim seria
importante para ele, caso pudesse lembrar qual era, porque traria para sua
identidade mais um elemento de pertencimento dentro do grupo daqueles
africanos que se consideravam minas. Sob esta denominação se enquadravam
os africanos provenientes da “Costa da Mina”, na costa a leste do Castelo El-
mina, embarcados para o Brasil de portos no Golfo do Benin: eram iorubás,
haussás, tapas, nagôs e grupos menos numerosos no comércio atlântico de
almas.1
Este último trecho do testamento de Joaquim de Antiqueira nos revela
mais. Suspeito que o motivo dele não se lembrar o nome do lugar onde havia
nascido, nem quem eram seus pais, seria o fato de haver sido trazido da África
DLQGDFULDQoD$UHFHQWHSHVTXLVDGH%HUXWHVREUHRWUiÀFRGHHVFUDYRVSDUD
o Rio Grande de São Pedro informa que pelo menos um terço dos escravos
HQYLDGRVHUDPFULDQoDVFRPLGDGHVLQIHULRUHVDGHDQRVHYDLDOpPDÀUPD
que “entre os africanos predominavam as crianças”.2
2WHVWDPHQWRGH$QWLTXHLUDUHYHODDIDFHYLROHQWDGRWUiÀFRDWOkQWLFR
de escravos sobre a sua identidade, privando-o de parte de seu passado, seus
pais e seu local de nascimento. Ao mesmo tempo revela o processo de recria-
omRGHVXDLGHQWLGDGHDÀQDOPHVPRVHPVDEHURQGHQDVFHUD-RDTXLPVHGL]
natural da Costa da Mina, declarando seu pertencimento a uma determinada
comunidade africana, a qual, como veremos, não era desprezível nem na po-
pulação escrava de Rio Grande, tão pouco na liberta.
YHU%HDWUL]0DPLJRQLDQS´'HGHQRPLQDomRSURGX]LGDSHORWUiÀFRGHHVFUDYRVRWHUPR´PLQDµIRLDGRWDGR
SHORVDIULFDQRVFRPRLGHQWLGDGHTXHUHXQLDWRGRVRVDIULFDQRVGD&RVWD2FLGHQWDODLQGDTXHSRUYH]HVHOHVVHLGHQWLÀ-
cassem publicamente pelas denominações dos seus subgrupos.”. J. J. Reis, 2003, p. 328, ressalta também o caráter amplo
da designação mina englobando diversos grupos da África Ocidental, mas diferencia o Rio de Janeiro da Bahia no que diz
respeito a duração desta amplitude da designação mina : “Mas enquanto em outras regiões, como no Rio de Janeiro, essa
designação mais abrangente continuaria a ser utilizada ao longo do Oitocentos, na Bahia mina viria também a designar
XPDQDomRHVSHFtÀFDµ
2 Berute, 2007, p. 8 e 9: “No que diz respeito aos escravos importados, entre 1788 e 1802, constatamos que as crianças
representavam quase 36%; os adultos pouco mais de 11%, os idosos não chegavam a 1% e quase 53% deles não tiveram
a idade informada”
144
Passamos a analisar agora uma documentação quantitativa, com o
intuito de vermos como era formada a população escrava de Rio Grande,
sobretudo no que diz respeito as questões de origem destes escravos, com
especial atenção para os africanos.
145
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
146
Osório nos adverte para o cuidado que se deve tomar com esta fonte
quando se procura estudar padrões de posse de cativos. Por representarem uma
parcela da população que tinha acesso à posse de bens, os inventários tendem
a passar uma imagem destes segmentos, e não de toda a sociedade.5
De acordo com Motta, este seria um dos motivos que levaram a maior
parte dos estudos sobre posse de escravos se concentrarem num período que
vai, mais ou menos, do início do século XVIII até princípios do XIX. A razão
deste recorte temporal está vinculada à existência das listagens nominativas
da população (não para o caso do Rio Grande do Sul), que diferente dos in-
ventários, não se afastariam muito do total da população. Recentemente, diz,
os pesquisadores têm procurado estender a análise para a segunda metade do
Oitocentos. Porém para tal etapa não é possível contar com os arrolamentos
nominativos. Por isso os historiadores passaram a usar Inventários post-mor-
temDVOLVWDVGHPDWUtFXODVGHHVFUDYRVHDVOLVWDVGHFODVVLÀFDomRGH
escravos para emancipação. Estas últimas pesquisas são marcadas pelo caráter
“amostral”, principalmente falando de fontes como inventários e listas de
matrículas.6
A inexistência das listas nominativas para o Rio Grande do Sul levou
Osório - mesmo que concentre sua análise no período colonial - a recorrer à
análise de 541 inventários, considerados de cinco em cinco anos, para todos
os distritos da capitania, entre 1765-1825.
Uma alternativa de amostra de inventários é a adotada por Florentino
e Goés no livro A paz das senzalasRTXDOpGHÀQLGRFRPRXPHVWXGRVREUH
inventários post-mortem e que analisa as relações da existência da família escrava
HRWUiÀFRDWOkQWLFRQR5LRGH-DQHLUR2PpWRGRGHSHVTXLVDHPSUHJDGRIRL
considerar todas as peças terminadas em zero, um, dois, cinco, seis, sete - en-
tre 1790 e 1830 -, um total de 374 inventários com 6.620 cativos. 7
A amostragem empregada por mim trabalha com dados de 355 inven-
tários de anos ímpares do período que vai do ano de 1825 até 1860, chegando
DHVFUDYRVH[FOXLQGRXPDFDWLYDLGHQWLÀFDGDFRPR´FDVWHOKDQDµHXP
cativo como “caboclo” - destes, 491 não apresentaram dados sobre sua ori-
gem africana ou afro-brasileira/crioula, totalizando 1801 cativos com origem
informada, quase 80%.
5 Osório, op. cit. p. 8.
6 Motta, 2004, p.183.
7 Florentino e Góes, 1997, p. 43.
147
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
148
A tabela 3 demonstra como se distribuíram os grupos africanos entre
a população escrava listada nos Inventários de Rio Grande durante o ano de
1825 e 1860. De início vale avisar sobre a diferença entre o número de africa-
nos listados na Tabela 2 e a soma total dos grupos na Tabela 3. Se na primeira
foram encontrados 1041 africanos e na segunda chega-se a 713 isto se deve ao
fato de que 328 africanos eram denominados nas listas de inventários com os
termos genéricos, de “Nação”, “da Costa” e “Africano” ou “Africana”. Eles
SHUPLWHPLGHQWLÀFDUTXHRHVFUDYRHPTXHVWmRHUDSURYHQLHQWHGDÉIULFDPDV
só, nada mais, qualquer tentativa de incorporá-los acarretaria em distorções.
(QWUHRVDIULFDQRVGHJUXSRVLGHQWLÀFiYHLVFKHJDPRVGXUDQWHWRGRR
período analisado, a uma constituição não muito distante dos resultados de
Osório. Africanos Ocidentais eram cerca de 28%, os Orientais quase 10%,
e os do Centro-Oeste quase 62%, um pequeno acréscimo nos primeiros e
segundos de 2% e 7%, respectivamente, e uma queda de 10 pontos percentu-
ais nos últimos. Porém, ao analisarmos a constituição da população africana
escrava de Rio Grande ao longo do período estudado, ela apresenta variações
importantes no tempo, em especial os afro-ocidentais, patrícios do preto for-
ro Joaquim de Antiqueira, mas também, e não menos importantes, os Centro-
Ocidentais do Norte do Congo e do Sul de Angola. Vejamos.
Os escravos africanos do Norte do Congo eram quase 40% no primei-
ro período da amostra de inventários, e foram diminuindo sua participação
gradativamente ao longo do século, chegando a 22% dos africanos após 1850,
passando por 31% entre 1831 e 1850. Os dois principais grupos eram os de-
nominados Congos e Cabindas.
Movimento semelhante ocorreu com os africanos do Sul de Ango-
la, formados quase exclusivamente por aqueles denominados Benguela. Eles
passaram de cerca de um quarto (26%) dos africanos escravos entre 1825 e
1830 para pouco mais de um décimo destes após 1850 (12%), passando por
17% entre 1831-1850.
Os ocidentais que constituíam pouco mais de 10% dos escravos africa-
nos no período 1825-1830 chegaram a impressionantes 40% desta após 1850,
passando por 22% entre 1831-1850. Provavelmente Joaquim de Antiqueira
viu em vida o grupo de africanos do qual fazia parte tornar-se o mais nume-
roso entre os cativos e libertos africanos de Rio Grande,8 contribuindo para
isso não só com a sua liberdade, mas também se tornando senhor de sete
8 Os dois principais grupos de africanos ocidentais, Minas e Nagôs, passaram ao longo do século XIX, de cerca de 12%
dos alforriados africanos de Rio Grande, no período de 1810-1830, a cerca de 65% dos africanos alforriados após 1850
até 1865. Scherer, 2007.
149
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
escravos, entre eles, dois africanos ocidentais, o preto Mina, João Francisco,
e a preta Jeje, Maria.
Antiqueira converge na sua trajetória de vida algumas das experiências
possíveis para os africanos que para o Rio Grande foram trazidos como es-
cravos. Através de seu inventário sabemos que ele veio como escravo para o
Brasil, e nesta condição é uma incógnita quanto tempo viveu, mas seu testa-
PHQWRSDUWHLQWHJUDQWHGRLQYHQWiULRUHYHODDIDFHYLROHQWDGRWUiÀFRDWOkQ-
tico, trazendo-o para esta margem, provavelmente ainda criança, a ponto de
não saber quem eram seus pais, nem lembrar o nome de onde havia nascido.
$PHVPDH[SHULrQFLDGRWUiÀFRIRLVXÀFLHQWHPHQWHPDUFDQWHSDUDHOHVDEHU
que era natural da Costa da Mina, traços do reinvento de sua identidade.
Sua trajetória começa a se afastar da multidão dos demais africanos
escravos quando se tornou liberto, apesar de sabermos que os alforriados de
Rio Grande eram na sua maioria provenientes da África,9 não podemos pen-
sar que a alforria fosse um caminho fácil e acessível para a maioria dos cativos,
era um “privilégio” para poucos. Ainda assim não se compara ao seleto grupo
de ex-cativos que se tornaram senhores de escravos do qual Joaquim fazia
parte, face dramática da reprodução do cativeiro.
Joaquim de Antiqueira, natural da Costa da Mina, viúvo de Rosa Maria
da Conceição, trazido criança para servir como escravo, tornou-se liberto,
como muitos de sua nação, faleceu no sul do Rio Grande em 1853, era então
senhor de sete escravos.
9 Scherer, 2006, p.176. Entre 1835 e 1845, por exemplo, os africanos eram quase 70% dos alforriados de Rio Grande.
150
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151
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
152
CARACTERÍSTICAS MERCANTIS DO TRÁFICO NEGREIRO
NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO, C.1790 - C.1825*
INTRODUÇÃO
O
Rio Grande de São Pedro não realizava negócios diretamente
com a África, e o seu abastecimento de mão-de-obra cativa
era feito, principalmente, através do Rio de Janeiro.1 Assim,
QRVVRREMHWLYRpDQDOLVDUDVFDUDFWHUtVWLFDVPHUFDQWLVGRWUiÀFRGHHVFUDYRVGD
capitania entre os anos de 1790 e 1825. Nesse período, a economia rio-gran-
dense encontrava-se em expansão decorrente da organização mercantil das
charqueadas e da ampliação do seu comércio de cabotagem com os principais
portos da colônia (Rio de Janeiro, Salvador e Recife).2
* Este artigo resume uma parte do terceiro capítulo da dissertação de mestrado intitulada Dos escravos que partem para
RV3RUWRVGR6XOFDUDFWHUtVWLFDVGRWUiÀFRQHJUHLURGR5LR*UDQGHGH6mR3HGURGR6XOFFGHIHQGLGDHP
agosto de 2006 no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisa
FRQWDYDFRPRÀQDQFLDPHQWRGR&13T
** Mestre em História (Programa de Pós-graduação-História/UFRGS) e aluno do curso de doutorado do mesmo PPG.
1 Tratavam-se em sua maioria de africanos recém desembarcados no Brasil (africanos novos) e do sexo masculino. Sobre
DVFDUDFWHUtVWLFDVGHPRJUiÀFDVGRVHVFUDYRVGHVSDFKDGRVSDUDDFDSLWDQLDULRJUDQGHQVHYHU%(587(*DEULHO6DQWRV
'RVHVFUDYRVTXHSDUWHPSDUDRV3RUWRVGR6XOFDUDFWHUtVWLFDVGRWUiÀFRQHJUHLURGR5LR*UDQGHGH6mR3HGURGR6XO
c.1790- c.1825. Porto Alegre: PPG-História/UFRGS, 2006 [dissertação de mestrado], Capítulo I, pp. 34-87.
2 OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio
Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: PPG-História/UFF, 1999 [tese de doutorado], Parte III, pp. 163-229; FRA-
GOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil
em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001 [4ª ed.], pp.
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Ed. Nacional; Brasília: INL, 1984, pp. 85-7; 105-6.
153
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
$LQYHVWLJDomRDERUGDGRLVPRPHQWRVGLVWLQWRVGRWUiÀFRLQWHUQDFLR-
nal de escravos: o primeiro, 1788-1802, corresponde a uma conjuntura de
HVWDELOLGDGHGRWUiÀFR)DVH%HRVHJXQGRGHDIRLR
PRPHQWRGHDFHOHUDomRGRWUiÀFRDWOkQWLFRGHHVFUDYRV)DVH$3
Desse modo, buscamos perceber de que modo esta mudança de conjuntura
DIHWRXRWUiÀFRULRJUDQGHQVH
As fontes utilizadas foram as “guias de transporte de escravos” (AHRS),
para o período entre 1788 e 1802, e os “passaportes e despachos de escravos”
emitidos pela Polícia da Corte (ANRJ), para os anos compreendidos entre
1809 e 1824.4 Os resultados apresentados consistem em uma contribuição
SDUDRFRQKHFLPHQWRGDHVFUDYLGmRVXOLQDEHPFRPRSDUDDDQiOLVHGRWUiÀFR
negreiro na América portuguesa durante o período colonial.
E
ntre 1788 e 1802, de acordo com as “guias”, entraram no Rio
Grande um total de 3.294 escravos, distribuídos em 945 envios.
Na Tabela 1, podemos observar que prevaleceram as remessas
com poucos escravos. Os pequenos envios, com um ou dois escravos, represen-
tavam 69% das remessas, e somente 25% dos escravos. Os envios intermediários,
de onze a cinqüenta escravos, eram somente 7% dos envios, mas correspon-
diam a cerca de 39% dos escravos. Ressalta-se que não havia o que se poderia
chamar de grandes envios, com mais de cinqüenta escravos cada.
)/25(17,120DQROR(PFRVWDVQHJUDVXPDKLVWyULDGRWUiÀFRDWOkQWLFRGHHVFUDYRVHQWUHDÉIULFDHR5LRGH
Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 1997, pp. 44-50; FLORENTINO, Manolo; GÓES, José
5REHUWR$SD]QDVVHQ]DODVIDPtOLDHVFUDYDHWUiÀFRDWOkQWLFR5LRGH-DQHLURFF5LRGH-DQHLUR&LYLOL]DomR
Brasileira, 1997, pp. 48-9.
4 ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Guias de Escravos, 1788-1802. Documentação Avulsa da
Fazenda, maço 29 ao maço 60; ARQUIVO NACIONAL, RIO DE JANEIRO. Intendência de Polícia da Corte. Códice
390, volumes 1, 2, 3, 4 e 5 (1816-1824) e códice 421, volumes 1, 2, 9 e 18 (1809-1811; 1817-1824). Consultamos a última
IRQWHDSDUWLUGREDQFRGHGDGRV)5$*262-RmR/XtV)(55(,5$5REHUWR*XHGHV7UiÀFRLQWHUQRGHHVFUDYRVH
relações comerciais centro-sul (séculos XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Ipea/LIPHIS-UFRJ, 2001 [CD-ROM].
154
7DEHOD&RQFHQWUDomRGRWUiÀFRQHJUHLURHVFUDYRVHQYLDGRVSDUDR5LR
Grande do Sul (1788-1802 e 1809-1824)
155
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
3RUVHWUDWDUGHXPFHQWURUHH[SRUWDGRUGHHVFUDYRVRWUiÀFRGH6DOYD-
dor se apresentou mais concentrado do que o do Rio Grande, região recepto-
ra na redistribuição de cativos. Destaca-se, nesse sentido, que, naquele porto,
os pequenos envios eram menos representativos, e os envios de médio porte
FRQFHQWUDYDP XPD SDUFHOD EDVWDQWH VXSHULRU HP FRPSDUDomR DR YHULÀFDGR
nos despachos para a capitania rio-grandense. Além disso, ao contrário desta
UHJLmR QR FDVR EDLDQR IRUDP YHULÀFDGRV GHVSDFKRV GH JUDQGH SRUWH FRP
mais de 50 escravos.
No que diz respeito ao intervalo 1809-1824, destaca-se, de imediato,
TXHQDSDVVDJHPGD)DVH%SDUDD)DVH$GRPHUFDGRIRLSRVVtYHOYHULÀFDU
um crescimento no número de despachos e no volume total de escravos im-
portados pelo Rio Grande, tanto em termos absolutos como proporcionais.
O número de envios cresceu aproximadamente 29% na passagem de uma
fase para a outra (de 945 passou para 1.216 envios) e o volume de escravos
negociados aumentou em aproximadamente 112%, chegando a 6.984 cativos
importados no período entre 1809 e 1824, contra os 3.294 escravos desem-
EDUFDGRVQRSHUtRGRDQWHULRUYHU7DEHOD2GDGRpDLQGDPDLVVLJQLÀFDWLYR
se lembrarmos que, nesse caso, tratam-se apenas dos escravos desembarcados
QDFDSLWDQLDDWUDYpVGRSRUWRÁXPLQHQVH
Desse modo, esses valores indicam uma tendência de crescimento, uma vez
que não estamos trabalhando com os dados completos em nenhum dos perí-
RGRVHVWXGDGRV2FRPSRUWDPHQWRGRWUiÀFRQHJUHLURVXOULRJUDQGHQVHSD-
UHFHDFRPSDQKDUDPXGDQoDGHFRQMXQWXUDGRPHUFDGRGHHVFUDYRVYHULÀFD-
da através do aumento das entradas de embarcações com africanos novos no
porto do Rio de Janeiro, que saiu de um período de estabilidade (1796-1808)
para um de aceleração (1809-25) dos desembarques. Além disso, provavel-
mente também atendia a uma necessidade maior de mão-de-obra da capitania,
que se encontrava em um período de expansão econômica na passagem dos
séculos XVIII para o XIX. Não obstante, cabe uma ressalva quanto às carac-
terísticas da documentação consultada. Como já mencionamos, apesar das
“guias” (1788-1802) e dos despachos/passaportes de escravos (Códices da
Polícia, 1809-1824) serem o mesmo tipo de fonte, elas foram recolhidas em
pontos distintos. A primeira foi recolhida no destino, e se constituem pelos
GRFXPHQWRVDSUHVHQWDGRVSHORVWUDÀFDQWHVTXDQGRFKHJDUDPDR5LR*UDQGH
HQTXDQWRDVHJXQGDIRLSUHVHUYDGDQDRULJHPHSRUWDQWRVmRPDLVÀGHGLJQDV
em relação àquelas.
Quanto à concentração dos negócios negreiros no Rio Grande de São
Pedro entre os anos de 1809-1824, observamos que a participação dos pe-
156
quenos envios com até dois escravos apresentou uma redução em relação ao
SHUtRGRGHHVWDELOLGDGHGRWUiÀFRDWOkQWLFRSDVVDQGRGHSDUDPHQRVGH
61% dos envios, o que representa aproximadamente 13% dos escravos. De
1788 a 1802, essa faixa de envio concentrava 25% dos cativos. Assim, obser-
va-se uma redução de 11,5% no percentual de envios e de 48% no percentual
dos escravos nessa faixa. Os dados indicam, ainda, uma maior concentração
dos negócios negreiros na conjuntura de aceleração, uma vez que aparecem 7
envios (0,6%) que transportaram 51 ou mais escravos, nos quais foram despa-
FKDGRVFHUFDGHGRWRWDOGHFDWLYRV$OpPGLVVRFUHVFHXVLJQLÀFDWLYDPHQWH
o número de envios e o volume de escravos localizados na faixa intermediária
(11 a 50 cativos), alcançando cerca de 15% dos envios e 56,5% dos escravos,
HQTXDQWRTXHQRSHUtRGRGHHVWDELOLGDGHGRWUiÀFRUHSUHVHQWDYDPGRV
envios e 39% dos escravos.
)HQ{PHQRVHPHOKDQWHIRLYHULÀFDGRSRU$OH[DQGUH5LEHLURQDVVDtGDV
de Salvador para o restante da colônia, entre 1811 e 1820, quando foram
despachados 17.025 cativos em 1.604 remessas. O percentual dos envios com
até dois escravos, em comparação com a década de 1760, baixou de 54%
para 52%, e o volume de escravos transportados passou de 11% para 6% do
total. De acordo com o autor, a maioria (cerca de 80%) dos despachos desse
porto para o Rio de Janeiro e o Rio Grande eram compostos por um ou dois
escravos. Os despachos de mais de 50 cativos passaram de 1,5% para 4%, e
o percentual de escravos despachados passou dos cerca de 25% para aproxi-
madamente 41%. As remessas de 11 a 50 escravos, por sua vez, passaram de
12,5% para 17% dos envios, o que representava 36% dos escravos negociados
a partir do porto baiano no período em questão.7
No caso das tropas de escravos ladinos e novos que partiam do Rio
de Janeiro para várias localidades, entre 1825 e 1830, também predominavam
quantitativamente as pequenas remessas (um ou dois escravos). De um total
de 15.739 despachos, quase 52% tinham até dois cativos e reuniam aproxima-
damente 9% dos 121.448 escravos negociados no período. Aqueles com mais
de 50 escravos representavam cerca de 3% dos despachos e foram responsá-
YHLVSHODUHPHVVDGHDSUR[LPDGDPHQWHGRVHVFUDYRV3RUÀPRVHQYLRV
intermediários (11 a 50 cativos) eram 16% despachos e concentravam quase
50% de todos os escravos despachados.8
5,%(,52$2WUiÀFRDWOkQWLFRGHHVFUDYRV2S&LW7DEHODSS
8 FRAGOSO, João Luís Ribeiro; FERREIRA, Roberto Guedes. “Alegrias e Artimanhas de uma fonte seriada, despachos
de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte, 1819-1833”. Seminário de História Quantitativa, UFOP,
2000, pp. 14-5.
157
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
'HXPDIRUPDJHUDOSRUWDQWRQRWUiÀFRQHJUHLURSDUDR5LR*UDQGH
do Sul, os pequenos envios (1 ou 2 escravos) desempenhavam um papel bas-
tante destacado no funcionamento do mercado. Considerando todo o inter-
valo analisado (1788-1824), percebe-se que 64% dos envios eram compostos
com até dois escravos e reuniam 16% dos cativos comercializados no período.
(PFRPSDUDomRFRPD%DKLDHR5LRGH-DQHLURSRUWRVUHFHSWRUHVGRWUiÀFR
atlântico, observou-se que na capitania sul-rio-grandense as pequenas remes-
sas foram responsáveis pela comercialização de uma parcela consideravelmen-
te maior dos escravos. Uma explicação para essa característica talvez estivesse
QRIDWRGRWUiÀFRSDUDRVXOGDFRO{QLDVHUIHLWRDWUDYpVGDVHPEDUFDo}HVGH
pequeno porte (bergantins, sumacas e escunas) que percorriam o litoral reali-
zando o comércio de cabotagem entre o sul e o sudeste da colônia.
3URYDYHOPHQWHRVDJHQWHVGHVVHFRPpUFLRIRUDPSHTXHQRVWUDÀFDQWHV
não especializados no comércio negreiro, mas que negociavam parte impor-
tante dos escravos, através de suas pequenas remessas. Atraídos pela possi-
bilidade de conquistar algum lucro com a distribuição dos escravos para o
LQWHULRUGDFRO{QLDPXLWRVGHOHVDWXDUDPVRPHQWHHPXPDRFDVLmRQRWUiÀFR
ao longo do período investigado, como podemos perceber ao observar os
dados agregados nas próximas tabelas.
1D7DEHODDQDOLVDPRVRVFRPHUFLDQWHVHQYROYLGRVQRWUiÀFRGHHV-
cravos para o Rio Grande em relação ao total de escravos que cada um deles
despachou. Observa-se que 651 agentes mercantis estiveram presentes no co-
PpUFLRGHHVFUDYRVQDIDVHGHHVWDELOLGDGHGRWUiÀFRHQWUHTXDQGR
remeteram 3.294 escravos em 945 envios. Aqueles que despacharam até 10
escravos (cerca de 89%) concentravam quase 43% dos escravos e aproximada-
mente 77% dos despachos. Destaca-se que 44,5% dos comerciantes carrega-
ram apenas um escravo e foram responsáveis por aproximadamente 9% deles,
em 31% dos envios. Os despachantes de 11 ou mais escravos (quase 11%)
transportaram a maioria dos cativos (57%) em aproximadamente 24% dos
envios. Além disso, apenas 0,3% dos comerciantes carregaram mais de 100
escravos, e foram responsáveis por cerca de 8% dos cativos e 3% dos envios.
$ DPSOLDomR GR YROXPH GH HVFUDYRV LPSRUWDGRV YHULÀFDGR QD )DVH
A do mercado, parece que foi acompanhada de um crescimento no número
de agentes mercantis que tiveram atuação em tal ramo do comércio colonial.
Conforme a Tabela 2, de 1809 até 1824, 825 comerciantes transportaram
escravos para o Rio Grande e quase todos (cerca de 84%) despacharam de 1
a 10 escravos, o que correspondia, em percentuais aproximados, a 23% dos
158
6.984 escravos e 69% dos 1.216 envios. Aqueles que introduziram na capi-
tania apenas um escravo (46%), enviaram apenas 5% dos escravos e quase
31% dos envios. Houve, portanto, uma redução de aproximadamente 39%
em relação ao percentual de escravos negociados por aqueles que despacha-
ram apenas um escravo, de 1788 a 1802, embora os percentuais de despa-
chantes de escravos e de envios nesta faixa tenham se mantido praticamente
os mesmos. A ampliação percentual do número de escravos transportados
SRUHVVHVWUDÀFDQWHVRFDVLRQDLVSRUWDQWRGHYHXVHjDPSOLDomRGDTXDQWLGDGH
dos comerciantes que despacharam um número elevado de escravos, como
podemos ver abaixo.
159
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
160
despacharam, em média, 3,46 escravos. Não obstante, aqueles que realizaram
de 5 a 25 envios (2,5%) carregaram quase 20% dos escravos em 12,5% das
remessas, ou seja, uma média de 40,4 cativos cada. Destaca-se, ainda, que ape-
nas um comerciante (0,2%) realizou vinte envios (2,1%), que representavam
mais de 3% do total de escravos. Os 144 despachantes que realizaram dois
ou mais envios (22%) carregaram 1.864 cativos (quase 56%) em 438 envios
(aproximadamente 46%).
161
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
GHDHVVHV´WUDÀFDQWHVHYHQWXDLVµIRUDPUHVSRQViYHLVSRUDSUR[L-
madamente 57% dos escravos negociados. Há, portanto, uma redução de 7%
no volume de cativos que esse grupo fez chegar ao extremo-sul da colônia e,
na média, cada um foi responsável pela negociação de 5,27 escravos.
Na faixa superior da Tabela 3, observamos que os agentes mercantis
que realizaram de 5 a 25 envios (médios) se mantiveram no mesmo percentual
(quase 2,5%) e foram responsáveis por 13% dos envios, concentrando 25,5%
dos escravos negociados. Assim, na passagem do primeiro para o segundo
SHUtRGRFRQVLGHUDGRHVVHJUXSRGHWUDÀFDQWHVDXPHQWRXVXDSDUWLFLSDomRHP
aproximadamente 5% nos envios realizados, e em 30% o percentual de es-
cravos transacionados. Do mesmo modo, aumentou a média de escravos que
cada um deles negociou: dos 40,4 para 93,6. Assim, os resultados observa-
GRVLQGLFDPPDLVXPDYH]TXHKRXYHXPDFRQFHQWUDomRGRWUiÀFRQHJUHLUR
SDUDR5LR*UDQGHGR6XOQDVPmRVGHSRXFRVWUDÀFDQWHVGLPLQXLXRSHVR
da participação dos pequenos comerciantes, enquanto aqueles poucos que
FRQVHJXLDPDWXDUXPPDLRUQ~PHURGHYH]HVQRWUiÀFRQHJUHLURSDVVDUDPD
UHVSRQGHUSRUXPSHUFHQWXDOPDLRUGRVHVFUDYRVWUDÀFDGRV
Trata-se, conseqüentemente, em todo o período analisado, de um co-
mércio marcado pela presença de especuladores que atuaram apenas uma ou
GXDVYH]HVQR WUiÀFRPDVTXHGHVSDFKDUDP PDLV GD PHWDGHGRV HVFUDYRV
Destaca-se, igualmente, o predomínio daqueles poucos sujeitos que realiza-
ram mais de quatro despachos. Embora fossem em número reduzido, eles
controlavam o mercado ao despacharem de 1/5 a ¼ do total de escravos
negociados. Além disso, na passagem de uma fase para outra, observou-se a
GLPLQXLomRGDSDUWLFLSDomRGRVWUDÀFDQWHVHYHQWXDLVDWpHQYLRVQRYROXPH
total de escravos despachados. Em contrapartida, esse processo foi acompa-
nhado pela concentração do comércio nas mãos daqueles que atuavam com
mais peso e regularidade no mercado (de 5 a 25 envios). Tais características
HVWmRGHDFRUGRFRPDGHVFULomRGH)UDJRVRH)ORUHQWLQRDUHVSHLWRGRWUiÀFR
negreiro e do comércio colonial,11H[FHWRSHORIDWRGHTXHRVWUDÀFDQWHVTXH
DWXDYDPFRQMXQWXUDOPHQWHQRWUiÀFRSDUDR5LR*UDQGHIRUDPUHVSRQViYHLV
SRUXPDSDUFHODPDLVVLJQLÀFDWLYDGRVHVFUDYRVQHJRFLDGRV&KHJDVHDXP
diagnóstico semelhante quando analisamos a freqüência de atuação dos agen-
WHVPHUFDQWLVQRWUiÀFRGHHVFUDYRVFRPRSRGHPRVREVHUYDUDEDL[R
11 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, pp. 187-210; 227-233; FLORENTINO, M. Em costas
negras. Op. cit., pp. 150-154; FRAGOSO, J; FLORENTINO, M. O Arcaísmo como projeto. Op. cit., pp. 192-202.
162
Se a distribuição dos envios e escravos nos informa sobre a concen-
WUDomR GR WUiÀFR D YHULÀFDomR GR Q~PHUR GH DQRV GLIHUHQWHV HP TXH XP
determinado indivíduo atuou nesse comércio nos apresenta um outro índice
da presença marcante daqueles que atuavam esporadicamente no mercado de
escravos, os “comerciantes eventuais”.
Acompanhando na Tabela 4 os dados fornecidos pelas guias de trans-
porte (1788-1802), percebe-se que aproximadamente 86% dos 651 despa-
FKDQWHV DWXDUDP QR WUiÀFR QHJUHLUR HP XP ~QLFR DQR (VWHV SRU VXD YH]
foram responsáveis por quase 66% dos 945 envios, que representam pouco
mais de 57% dos 3.294 escravos que entraram no Rio Grande do Sul entre
HVWHVDQRV2XVHMDHQWUHRVTXHDWXDUDPHPDSHQDVXPDQRQRWUiÀFRKDYLD
comerciantes que participaram mais de uma vez no mesmo ano. Da mesma
forma, os dados agregados na tabela nos informam sobre o nível de concen-
WUDomRGRWUiÀFRQHJUHLURSDUDDFDSLWDQLDXPDYH]TXHRVFHUFDGHTXH
SDUWLFLSDUDPGRLVRXPDLVDQRVGRWUiÀFRÀ]HUDPFKHJDUDR5LR*UDQGHGH
São Pedro 43% dos escravos, embora fossem responsáveis por apenas 34%
do total de envios.
7DEHOD²1~PHURGHDQRVGHSDUWLFLSDomRGRVFRPHUFLDQWHVQRWUiÀFR
negreiro (1788-1802 e 1809-1824)
163
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
164
VHDYHQWXUDUDPQRWUiÀFRQHJUHLURDWUDtGRVSHODSRVVLELOLGDGHGHFRQVHJXLU
algum rendimento, tiveram condições de atuar de forma mais regular em tal
mercado.
Ao investigar as saídas de tropas conduzindo escravos a partir do Rio de
Janeiro, entre 1824-1833, João Fragoso considerou como negociantes regulares de
cativos somente aqueles que atuaram de sete a dez anos no mercado. Estes eram
WUDÀFDQWHVHFRQGX]LUDPDSHQDVHVFUDYRVHQTXDQWRRV
4.297 condutores que atuaram em apenas um ano no mesmo intervalo (quase
80% do total), foram responsáveis por mais de 36% dos escravos negociados
(20.332).122XVHMDHPUHODomRDHVWHVWUDÀFDQWHVÀFDVXJHULGRTXHDIUHTrQ-
cia de atuação dos agentes mercantis que participavam da redistribuição dos
escravos para a capitania sul-rio-grandense era mais instável, pois nenhum
deles permaneceu na atividade em mais de oitos anos diferentes. Apesar disso,
DTXHOHVTXHSDUWLFLSDUDPVRPHQWHXPDQRGRWUiÀFRSDUDR5LR*UDQGHHUDP
a maioria dos agentes mercantis envolvidos e foram responsáveis por mais da
metade dos escravos negociados; superior, portanto, à parcela registrada nas
saídas do Rio de Janeiro. Lembremos, nesse sentido, que a atividade produtiva
do Rio Grande estava voltada para o mercado interno. Sendo assim, tinha
uma menor demanda por escravos, em relação às Minas Gerais e ao interior
GDFDSLWDQLDÁXPLQHQVHRTXHSURYDYHOPHQWHLQÁXHQFLDYDQDFRQÀJXUDomR
dos seus negócios negreiros.
1HVWDFDSLWDQLDULRJUDQGHQVHSRUWDQWRRWUiÀFRGHHVFUDYRVDRTXH
parece, apresentava um caráter fortemente especulativo, uma vez que não
LGHQWLÀFDPRVDRFRUUrQFLDGHFRPHUFLDQWHVFRPPDLVGHRLWRDQRVGHSDUWLFL-
SDomRQRWUiÀFRULRJUDQGHQVH
1D FRQMXQWXUD GH DFHOHUDomR GR WUiÀFR GH HVFUDYRV IRL
SRVVtYHODSDUWLFLSDomRGHXPDJUDQGHPDVVDGHFRPHUFLDQWHVQRWUiÀFRQH-
greiro. Apesar disso, apenas uma pequena parte deles tiveram condições de
tornar a participar desta atividade em mais de um ano, uma vez que nenhum
dos agentes mercantis que atuaram no período conseguiu participar em mais
de quatro anos distintos. Contudo, em ambos os períodos analisados (1788-
1802 e 1809-1824), foram os comerciantes com apenas um ano de atuação
que negociaram a maioria dos escravos (Tabelas 4).
165
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O
SULPHLUR SRQWR D VHU GHVWDFDGR p TXH VH YHULÀFRX XP DX-
mento de 112% no volume de escravos que foram remetidos
para o Rio Grande do Sul quando comparados os intervalos
1788-1802 e 1809-1824. Desse modo, tal crescimento indica que a capitania,
cuja economia encontrava-se em expansão na passagem do século XVIII para
RVHJXLQWHS{GHDFRPSDQKDUDPXGDQoDGHFRQMXQWXUDGRWUiÀFRDWOkQWLFR
de escravos, que passou de um período de estabilidade, a Fase B, para um
PRPHQWRGHDFHOHUDomRD)DVH$HLQWHQVLÀFRXDVXDLPSRUWDomRGHHVFUDYRV
especialmente os africanos recém-desembarcados no Brasil.
A análise da concentração dos negócios, por sua vez, indicou que, em-
bora apresentasse algumas variações de um período para o outro, visto no con-
junto, o comércio de cativos no Rio Grande apresentava padrões semelhantes
DRVYHULÀFDGRVQRPHUFDGRFRORQLDOHVSHFLDOPHQWHRWUiÀFRGHHVFUDYRVHP
suas etapas atlântica e interna). O elevado número de pequenos comerciantes
não especializados que atuavam no mercado negreiro aponta para o papel
estrutural desses “comerciantes eventuais” na reposição da mão-de-obra es-
crava e na própria reprodução da hierarquia econômico-social desigual que
caracterizava a sociedade colonial em questão. Todavia, a participação desses
especuladores, na etapa de redistribuição de escravos para o Rio Grande do
6XOIRLPDLVVLJQLÀFDWLYDWDQWRQRSHUFHQWXDOGRVHQYLRVUHDOL]DGRVTXDQWRQD
parcela de cativos por eles despachada.
166
FONTES CONSULTADAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os Portos do Sul: características do
WUiÀFR QHJUHLUR GR 5LR *UDQGH GH 6mR 3HGUR GR 6XO F F. Porto Alegre: PPG-
História/UFRGS, 2006 [dissertação de mestrado]
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: família escrava e
WUiÀFR DWOkQWLFR 5LR GH -DQHLUR F F . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1997.
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça
PHUFDQWLOGR5LRGH-DQHLUR Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
167
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul: século XVIII.
São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1984.
168
ENTRE IRMANDADES E PALÁCIOS
A TRAJETÓRIA DE UM NEGRO DEVOTO E BUROCRATA
(O CASO AURÉLIO VIRÍSSIMO DE
BITTENCOURT - 1849/1919)
Jonas Moreira Vargas*
Paulo Roberto Staudt Moreira**
Daniela Vallandro de Carvalho***
Sherol dos Santos****
ʌ Resumo: Pretendemos estudar como um homem negro – Aurélio Viríssimo de Bitten-
court (1849-1919) -, com suas redes de relações sociais, políticas e intelectuais, construiu sua
trajetória em um mundo hegemonicamente branco, traçando suas estratégias de ascensão social.
A ação se passa no Rio Grande do Sul, centralizada na cidade de Porto Alegre.
ʌ Palavras-chave: burocracia – irmandades – trajetórias negras
A
o longo de anos viemos estudando as experiências negras no
Rio Grande do Sul Imperial e Republicano, seja em sua inser-
ção como escravos ou como libertos. No decorrer destas pes-
quisas, nos defrontamos repetidas vezes com um personagem, cujo nome in-
sistentemente aparecia nas fontes por nós pesquisadas. Tratava-se de Aurélio
9LUtVVLPRGH%LWWHQFRXUWSHUVRQDJHPFRQKHFLGRSHODKLVWRULRJUDÀDUHJLRQDO
por suas relações com Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. O funcioná-
rio público de carreira $XUpOLR GH %LWWHQFRXUW FRP VXD UHFRQKHFLGD HÀFLrQFLD
HÀGHOLGDGHIRLVHFUHWiULRGRJRYHUQRGHDPERVRV3UHVLGHQWHVGR(VWDGR
gozando principalmente da afeição pessoal de Júlio de Castilhos.1
169
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
170
EYHULÀFDUTXHWLSRGHUHODo}HVHUDPPDQWLGDVHQWUHRVVXEDOWHUQRVHDVHOLWHV
no referido período, c) localizar qual a importância das irmandades religiosas
no interior destes grupos e como elas estavam inseridas neste contexto de
DVFHQVmRVRFLDOHSROtWLFDHGWHQWDUFRPSUHHQGHURTXHVLJQLÀFDYDVHUXP
empregado público numa sociedade pré-industrial, essencialmente agrária e
FXMRVEUDoRVGR(VWDGR,PSHULDOHUDPEDVWDQWHGHÀFLHQWHV
Além desses fatores elencados acima, projetamos este estudo biográ-
ÀFR como um pretexto para descrever com razoável densidade os caminhos
percorridos pela comunidade negra do período. As posturas atuais relativas
DRUHVJDWHGDVELRJUDÀDVEXVFDPXPMRJRGLDOpWLFRHQWUHRLQGLYLGXDOHRFR-
letivo, o micro e o macro.2
Pois a escolha do individual não é vista aqui como contraditória à
do social: ela deve tornar possível uma abordagem diferente deste, ao
DFRPSDQKDURÀRGHXPGHVWLQRSDUWLFXODU²GHXPKRPHPGHXP
grupo de homens – e, com ela, a multiplicidade dos espaços e dos
tempos, a meada das relações nas quais ele se inscreve.
171
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
II – UM NEGRO LETRADO
C
orria o ano de 1848, quando o militar Hypólito Simas de Bit-
tencourt 4 chegou ao porto de Jaguarão. Não sabemos quanto
tempo ali se estabeleceu, mas o certo é que entreteve um rela-
cionamento como uma mulher negra chamada Maria Júlia da Silva.5 Notamos
um certo embaraço do pesquisador Rocha Almeida ao referir-se à relação dos
SDLVGH$XUpOLR6HQRLQtFLRGRYHUEHWHELRJUiÀFRHOHURPDQFHLDTXH´3RU
HVVD pSRFD +LSyOLWR ÀFRX FHUWR GH TXH HQFRQWUDUD QRV HQFDQWRV GH XPD
moça jaguarense, o conforto e o carinho de que necessitava nos curtos inter-
regnos dos longos cruzeiros a que o obrigava a vida do mar”.6
Contudo, ao tratar do casamento, porém, Almeida deixa entrever certo
desconforto ao ter que reconhecer que esta relação foi meramente consen-
sual, não ocorrendo sacramento religioso. Na prática, Hypólito e Maria Júlia
eram amásios ou, segundo o biógrafo: “pelo Natal de 1848 uniram seus destinos”.
Desta relação nasceu em 1.º de outubro de 1849, Aurélio Viríssimo de Bitten-
court.7 Esta relação consensual do Capitão Hypólito com a negra Maria Júlia
nunca foi legalizada na Igreja. Talvez pensando que o fruto gerado por este
contato consensual pudesse prejudicar sua carreira na marinha, Hypólito fez
FRPTXH$XUpOLRIRVVHUHJLVWUDGRFRPR´ÀOKRGHSDLVQmRFRQKHFLGRVµ´H[-
posto”. Foram seus padrinhos Dorotea do Nascimento e o professor e Escri-
vão da Mesa de Rendas Francisco José Valente.8 Não sabemos exatamente em
que momento – e qual o motivo -, mas Dorotea foi apagada das referências
posteriores de Aurélio sobre seu batismo. Talvez ela tenha sido escolha de sua
PmHHLVVRVLJQLÀTXHXPSURFHVVRGHDPQpVLDVRFLDOTXHWUDWRXGHLQYLVLELOL]DU
a parte negra de seu nascimento. O que sabemos com certeza é que Aurélio
passou a vida consagrando-se a Nossa Senhora da Conceição, sua santa de
devoção, que ele dizia ser sua protetora desde o nascimento.
Nosso primeiro contato com a vida familiar de Aurélio ocorreu com
o seu registro de casamento e não eram muito animadoras as possibilidades
4 Segundo seu biógrafo Rocha Almeida, Hipólito era “oriundo de gente humilde”. Nasceu em 14.03.1823 em São Miguel
(SC) e faleceu em 07.01.1884 (Porto Alegre / RS) com 60 anos. Ainda menino, seus pais se transferiram para Rio Grande.
Em 11.04.1841 foi nomeado Piloto Extranumerário da Armada, para servir a bordo do vapor Fluminense e depois no
cutter Guarani (22.07.1842 a 12.10.1844). Serviu em vários barcos, inclusive na canhoneira Capivari contra os Farrapos.
ALMEIDA, 1966: 127.
5 Nascida em Jaguarão - 1829 / 04.08.1874. ALMEIDA, 1966: 128
6 ALMEIDA, op. cit., p. 128-29.
7 Livro de casamentos da Igreja do Rosário n°3, folha 97v. AHCMPOA.
8 Mitra Diocesana de Pelotas - Livros de Batismos de Livres de Jaguarão, Nº 2 (1825 / 1849), Folha 7v.
172
GHHQFRQWUDUPRVDÀOLDomRGH%LWWHQFRXUWYLVWRTXHRUHJLVWURDVVLQDODYDR
FRPRÀOKRGH´SDLVLQFyJQLWRVµ3RUpPFRQVHJXLPRVORFDOL]DURLQYHQWiULR
e testamento do pai de Aurélio e neste fomos brindados pelo reconhecimen-
to da paternidade de Aurélio, pelo Capitão de Fragata Simas Bittencourt.9
Acompanhemos alguns trechos do testamento:10
Declaro que Aurélio Virissimo de Bittencourt, casado, empregado na
6HFUHWDULDGD3UHVLGrQFLDpPHXÀOKRQDWXUDOKDYLGRGH'0DULD-~OLD
da Silva, hoje falecida, mulher solteira e desimpedida, não tendo pois
em tempo algum existido entre mim e ela impedimento que obstasse
RFDVDPHQWRHSRUTXHLVWRpYHUGDGHHVHPSUHRWLYHSRUPHXÀOKR
aqui, como é minha vontade e sempre foi meu desejo, o reconheço
FRPRÀOKRSDUDTXHVHMDSRUHVVDUD]mRRKHUGHLURXQLYHUVDOGHPHXV
EHQV>@'HFODURPDLVTXHRUHIHULGRPHXÀOKRQDVFHXHPSULPHLURGH
RXWXEURGHIRLEDWL]DGRFRPRÀOKRGHSDLVLQFyJQLWRVQD,JUHMD
Matriz da Cidade de Jaguarão, nesta Província, sendo padrinhos Nossa
Senhora da Conceição e Francisco José Vieira Valente.
&DSLWmR7HQHQWHGD$UPDGD%UDVLOHLUDÀOKRGH$QWRQLR-RVp*XHUUDH'DPiVLD&DHWDQDGH6LPDVDPERVIDOHFLGRV
10 APERS - Cartório da Provedoria, 1884, auto 2148, maço 71; testamento - 1884, inventário 822, maço 36.
173
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
lembrança de sua parte negra que gostaria que fosse esquecida. Quanto ao pai
GH$XUpOLRQmRFRQVHJXLPRVYHULÀFDUTXHWLSRGHUHODo}HVPDQWLQKDFRPR
ÀOKRVHpTXHDVPDQWLQKD
Aurélio veio ainda meninote para a capital e não seria de estranhar que
algum protetor, até mesmo o pai, tivesse investido em sua formação. Perce-
bemos que desde cedo havia depositado sobre ele um interesse em constituir
um currículo que lhe fornecesse conhecimento e o habilitasse a ocupar cargos
burocráticos. Aparentemente, alguém (provavelmente seu pai) inclinava Auré-
lio para o acúmulo de capital cultural que sanasse (ou diminuísse) os danos da
herança genética africana.
Neste sentido, o documento mais antigo do acervo particular de Auré-
OLR9LUtVVLPRGH%LWWHQFRXUWGHSRVLWDGRQR,QVWLWXWR+LVWyULFRH*HRJUiÀFR
do Rio Grande do Sul - é justamente uma certidão de 21.11.1861, quando
prestou exame no Seminário São Feliciano, em Porto Alegre, sendo aprovado
em francês (cum laudiHJHRJUDÀD$XUpOLRFRQWLQXRXVHXVHVWXGRVQR/\FHX
Dom Afonso onde em 3 de dezembro de 1863 respondeu exame, sendo apro-
vado plenamente, em Inglês (matérias do 2o. ano), e no dia seguinte aprovado
simplesmente em Desenho (matérias do 2o. ano). Em 28 de novembro de
1864 foi aprovado simplesmente no exame do 1o. ano de latim, 3.o ano de
inglês e 2.o ano de Desenho. Dois anos depois, em 1866, Viríssimo cursava o
Lyceu Dom Afonso e pediu que seus professores atestassem sua assiduidade,
freqüência e aproveitamento, o que foi feito pelos lentes de Matemática (João
Batista de Alencastro – “com assiduidade e bom comportamento”), Dese-
QKRÇQJHOR7KHUH,QJOrVDVVLQDWXUDLOHJtYHO(PÀQVGH$XUpOLRIRL
aprovado plenamente em exame público de francês num colégio particular de
que era Diretor Jesuíno José de Oliveira e professor Antonio Cabral de Melo.
Teve, segundo o professor, “excelente conduta e aproveitamento”.
Depois de seus exames concluídos, parece-nos que Aurélio tentava ga-
UDQWLUHVWDELOLGDGHSURÀVVLRQDOSURMHWDQGRVHPG~YLGDRFDVDPHQWRTXHYLULD
em seguida. Em 11 de fevereiro de 1868, talvez necessitando disso para o
casamento ou um emprego público, ele pediu ao Delegado de Polícia que lhe
providenciasse “folha corrida com as culpas do suplicante, ou sem elas”. Em
15 do mesmo mês, pediu ao Presidente da Província sua aceitação ao con-
curso de amanuense. Nesta ocasião, Aurélio conseguiu ingressar no funcio-
nalismo público – o que não lhe impediu de realizar outras tantas atividades
naquela provinciana Porto Alegre.
174
III – ATIVIDADE JORNALÍSTICA E
MILITÂNCIA ABOLICIONISTA
E
m 18 de junho de 1868, num dia frio do inverno porto alegrense,
cerca de 50 pessoas, entre elas Aurélio Virísimo de Bittencourt,
dirigiram-se à Rua Nova, esquina da Travessa Itapiru, para a ses-
são de instalação da Sociedade Partenon Literário – uma das associações de
maior duração (1868-1885) e versatilidade existente no estado antes da Repú-
blica (HESSEL, 1976:47). Além de ser escolhido para a diretoria provisória
como 2.° secretário, coube a Aurélio, dois dias depois, redigir um folhetim,
publicado no Jornal do Comércio, tratando da instalação do Partenon – que tinha
entre as suas principais lideranças o jovem Apolinário Porto Alegre, amigo de
Aurélio e dono da residência onde a referida sessão acontecera.
A Sociedade não serviu somente para veicular textos, poesias, contos
ou ensaios de seus colaboradores. Entre outras iniciativas, seus integrantes
criaram uma escola noturna gratuita (1872-1885), um museu e uma biblio-
teca própria, que chegou a ter mais de 6.000 volumes, alforriaram escravos,
encenaram peças teatrais, propagaram os ideais abolicionistas e republica-
QRVDVVLPFRPRLQVWLWXtUDPDSHVTXLVDELEOLRJUiÀFDUHVJDWDQGRRUHJLVWUR
das lendas e tradições sul rio-grandenses. Segundo Guilhermino César, a
entidade agremiou prosadores, poetas e homens de teatro, dando-lhes opor-
tunidade de aparecer em conjunto, através de ruidosas manifestações (CE-
SAR, 1956: 49).
Data da mesma época da criação do Partenon uma passagem bastante
VLJQLÀFDWLYDQDYLGDGH$XUpOLR1DQRLWHGHGHGH]HPEURGHjV
horas, quando contava com 19 anos, casou-se com Joana Joaquina do Nasci-
PHQWRÀOKDQDWXUDOGH-RDTXLP0DQXHOGR1DVFLPHQWRH0DULD0DJGDOHQD
da Conceição. Na ocasião, Aurélio foi apadrinhado por seu companheiro
de letras Apolinário. Além disso, é interessante perceber aqui, que Aurélio
escolheu como parceira alguém de sua própria situação social e étnica, pois
DPERVHUDPÀOKRVQDWXUDLVIUXWRVGHUHODo}HVLOHJtWLPDVHUHJLVWUDGRVFRPR
pardos nos assentamentos de óbitos. A cerimônia foi realizada pelo Reveren-
do Vigário José Ignácio de Carvalho e Freitas, na Igreja do Rosário em Porto
Alegre,11 templo principal da devoção católica da população negra local.
&RP-RDQD-RDTXLQDQRVVRSHUVRQDJHPWHYHTXDWURÀOKRV$XUpOLR9LUtVVL-
11 AHCMPOA -Livro 3 da Igreja do Rosário, pg. 97v.
175
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
176
IV – AURÉLIO COMO PEÇA-CHAVE NA
ADMINISTRAÇÃO PALACIANA DO RIO GRANDE
C
omo vimos anteriormente, o ingresso de Aurélio na buro-
cracia rio-grandense aconteceu em 1868, quando foi provido
como amanuense em 6 de abril, permanecendo no cargo até
1871. Em 187115IRLSURPRYLGRSDUDRÀFLDOSHUPDQHFHQGRDWp2X-
tra promoção na burocracia foi em 187616 quando assumiu interinamente a
Diretoria da 2ª seção de fevereiro à julho de 1877.17 Em 1877 foi elevado a
diretoria da 4ª seção e em 1878, foi promovido a diretor da 2ª seção até 1884.18
Sua última promoção na Monarquia deu-se em 1884, quando foi nomeado
RÀFLDO GH JDELQHWH RQGH SHUPDQHFHX DWp 19 Daí até 1892 não encon-
tramos registros de promoções, mas quando em 17 de junho de 1892, os
republicanos deram entrada no Palácio do Governo, com Júlio de Castilhos à
frente, o primeiro ato deste foi chamar Aurélio de Bittencourt que juntamen-
te com o vice-presidente Victorino Monteiro encerraram-se no gabinete do
Presidência.
Com o passar dos anos, Aurélio foi tornando-se elemento chave na
burocracia e política local, pois, conforme as autoridades, preenchia várias
FDUDFWHUtVWLFDVLQGLVVRFLiYHLVGHXPFDUJRGHFRQÀDQoD´*UDQGHLQWHOLJrQFLD
infatigável atividade e perfeita discrição”.20 Na ocasião de sua morte, em 23 de
agosto de 1919, Aurélio foi cercado de homenagens e palavras elogiosas que
apontavam a falta que o mesmo faria ao serviço público e o vazio que deixava
na esfera privada dos governantes.
Ao acompanharmos a trajetória de um burocrata e de suas relações
sociais com as elites e os subalternos vemos a possibilidade de compreen-
GHURSUySULRVLJQLÀFDGRGRHPSUHJDGRS~EOLFRQDTXHODVRFLHGDGH&RPRD
enorme maioria dos Presidentes de Província eram elementos provenientes
de outras regiões do Brasil, o papel dos secretários de governo e dos chefes
de seção era fundamental, pois eram eles que conheciam o funcionamento
177
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
178
pêndios sobre a literatura e o jornalismo no estado, igualmente. Se Aurélio
teve uma grande visibilidade durante sua atuação política, literária e jornalís-
WLFDSRUTXHRVLOrQFLRQDOLWHUDWXUDSURGX]LGDSHORSHUtRGR"(VVDpXPDGDV
questões que gostaríamos de responder com o avanço das pesquisas. Certa-
mente outras facetas deste personagem aparecerão ao longo da pesquisa e as
que já pensamos ter alcançado se transformarão em aspectos diversos. O que
ÀFDHYLGHQWHpTXHRHVWXGRGRLQGLYtGXR$XUpOLR9LUtVVLPRGH%LWWHQFRXUW
pode nos elucidar vários aspectos sobre trajetórias de negros que consegui-
UDPFHUWDDVFHQVmRHGHL[DUDPSLVWDVGRFXPHQWDLVVXÀFLHQWHPHQWHULFDVSDUD
que possam ser acompanhadas com clareza.
179
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ABREVIATURAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GRINBERG, Keila. O Fiador dos Brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de
Antonio Pereira Rebouças. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002
HESSEL, F. Lothar e outros. Partenon Literário e sua obra. Porto Alegre, Flama, Instituto
estadual do Livro, 1976.
180
QUILOMBO DA MORMAÇA: TERRITÓRIOS
ÉTNICOS NO PÓS-ABOLIÇÃO
Sherol dos Santos*
ʌ Resumo: este artigo tem como objetivo apresentar a pesquisa realizada para a elaboração
do relatório sócio-histórico-antropológico de reconhecimento e delimitação da Comunidade Re-
manescente de Quilombo da Mormaça.
ʌ Palavras-chave: quilombos – pós-abolição – campo negro.
O
Quilombo da Mormaça localiza-se no interior do município
de Sertão, distante 50km de Passo Fundo, no planalto médio
rio-grandense.1 A comunidade da Mormaça é formada por
22 famílias que vivem em uma área de 10 hectares, e desde 2001 reivindica a
regularização do perímetro das terras em que vive e de áreas que lhes foram
WRPDGDV D SDUWLU GRV FLFORV HFRQ{PLFRV H GD FRQÀJXUDomR FRORQLDO GR HV-
tado nacional brasileiro. Em convênio celebrado entre o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Núcleo de Antropologia e
Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NACi/UFRGS)
essa demanda da comunidade pôde ser atendida, através da elaboração de um
relatório sócio-histórico-antropológico nos termos da Instrução Normativa
Q,1TXHFRQWRXFRPDSDUWLFLSDomRGHSURÀVVLRQDLVGDViUHDV
GHKLVWyULDDQWURSRORJLDHJHRJUDÀDHGRTXDODDXWRUDIH]SDUWH2
O Quilombo da Mormaça está situado no planalto médio, região que
foi tardiamente incorporada ao território que atualmente conforma o Rio
Grande do Sul. Durante todo o século XVIII a região missioneira foi alvo
de disputas entre as Coroas espanhola e portuguesa, esse ambiente de per-
PDQHQWH FRQÁLWR WURX[H SDUD R IXWXUR WHUULWyULR ULRJUDQGHQVH XP JUDQGH
FRQWLQJHQWHPLOLWDUTXHQRVWHPSRVGHSD]DFDERXÀ[DQGRVHQDUHJLmR(VWD
À[DomRVHGHXDSDUWLUGDGLVWULEXLomRGHORWHVGHWHUUDVVHVPDULDVDRVPLOLWD-
* Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestranda na Universidade do Vale
do Rio dos Sinos (UNISINOS).
1 O município de Sertão está localizado na região norte do estado do Rio Grande do Sul na latitude 27°59’04” e longitude
52°15’01”, com uma área territorial totalizando aproximadamente 444km2, altura média de 731m, distante 320km da
capital (Porto Alegre), tendo como principais vias de acesso a BR-153 e RS-135. Os limites municipais são os seguintes:
ao norte municípios de Estação e Getúlio Vargas, sul município de Coxilha, leste Tapejara e a Oeste os municípios de
(UHFKLPH3RQWmR&RQÀJXUDXPDFLGDGHGHSHTXHQRSRUWHFRPKDELWDQWHV&I6$1726S
2 O convênio celebrado sob nº 3590/2006 previa um relatório de adequação sobre a comunidade da Mormaça, visto que
já pré-existiam dois relatórios sobre a área, elaborados em 2002, que determinavam perímetros diferentes para a área a qual
a comunidade teria direito, essa divergência determinou elaboração de novo convênio, e neste novo trabalho tornou-se
urgente a revisão de pontos fundamentais referentes à história do grupo.
181
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
res, principalmente pela Coroa portuguesa que lançou mão desse expediente
para proteger suas conquistas.
O projeto português de garantir suas fronteiras recém conquistadas
esbarrou no crescente poder e autonomia adquiridos pelos estancieiros-solda-
dos. Sem condições de sustentar as sucessivas campanhas militares em que se
YLXHQYROYLGDD&RURD3RUWXJXHVDGHVGHRLQtFLRGRVFRQÁLWRVODQoRXPmR
GDVPLOtFLDVIRUPDGDVSRUHVWHVHVWDQFLHLURV&RPDSDFLÀFDomRHPHD
LQFRUSRUDomRGHÀQLWLYDGDUHJLmRPLVVLRQHLUDDVSRVVHVSRUWXJXHVDVWRGDD
UHJLmRÀFRXVREDDGPLQLVWUDomRGR&RPDQGDQWHGH6mR%RUMDHHP
foi criado o primeiro município, Cruz Alta, e dele desmembrou-se Passo
Fundo, em 1857.
A região desenvolveu-se rapidamente por conta da abertura do Cami-
nho das Missões que ligava São Borja ao Passo de Santa Vitória, onde unia-se
a estrada de Viamão, principal via de comunicação com Sorocaba (SP), princi-
pal mercado consumidor dos animais produzidos no planalto. Esse caminho
garantiu a prosperidade econômica para os estancieiros locais e atraiu novos
povoadores. Nas propriedades instaladas ao longo desse caminho a principal
atividade era a criação de gado vacum e mulas onde a principal mão-de-obra
foi a escrava. Com as primeiras estâncias os “senhores da guerra” se estabelecem
FRPVHXVDJUHJDGRVHHVFUDYRVHFRPRSULPHLURVEHQHÀFLDGRVFRPDSRVVH
das terras rio-grandenses, tornam-se os “senhores da terra”.
O uso da mão-de-obra escrava na pecuária tem suscitado freqüen-
WHV GHEDWHV QD KLVWRULRJUDÀD ULRJUDQGHQVH SDUWH GRV DXWRUHV GHIHQGH TXH
a escravidão não teve tanta importância nesse tipo de produção quanto nas
produções do tipo plantation instaladas no centro e norte do país, e assim mi-
nimizam, em parte, a presença de africanos e seus descendentes na formação
social do Rio Grande do Sul. De fato, a ausência de plantation típicas diminui o
Q~PHURGHFDWLYRVQR(VWDGRHPFRPSDUDomRDRUHVWRGRSDtVHGLÀFXOWDHP
parte a compreensão do modo como a mão-de-obra escrava foi utilizada no
Rio Grande do Sul, mas ela não pode ser ignorada.
Estudos mais recentes em busca de um modelo de produção que pu-
desse ser comparado as plantations lançam luz sobre esta questão ao focalizar,
como objeto de pesquisa, a produção de charque, atividade de maior concen-
tração de escravos no Estado. Nas charqueadas estes autores encontram os
elementos necessários para compor as estruturas de um sistema efetivamente
HVFUDYLVWDHSDVVDPDDÀUPDUTXHDVHVWkQFLDVGHFULDomRXWLOL]DYDPPmRGH
REUDHVFUDYDHPQ~PHURYDULiYHOGHDFRUGRFRPDUHJLmRJHRJUiÀFDHDpSRFD
182
sem que este tipo de relação de trabalho predominasse.3 Nestes estudos, po-
demos notar a idealização da estância como local privilegiado de democracia
racial onde senhor e escravo convivem em harmonia. No entanto, ao analisar-
PRVXPDHVWDWtVWLFDHODERUDGDHPSRGHPRVLGHQWLÀFDUXPDH[SUHVVLYD
presença escrava em zonas de pecuária:
183
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
so Fundo pudemos notar que dos 148 autos pesquisados, em 55,4% deles os
inventariados possuíam escravos.
5 Ibid. p. 112.
6 Autos de inventário de Maria Salomé. APERS – Inventários de Passo Fundo – Vara de Família (ex-órfãos)
– auto 27 – maço 1 – 1854.
184
3RGHPRVDÀUPDUTXHPHVPRHVWDQGRGHQWURGHXPSURMHWRFRPSUR-
metido com o povoamento da região Missioneira, a ocupação de terras no
planalto, onde modernamente encontramos os municípios de Passo Fundo
e Sertão, onde se localiza o quilombo da Mormaça, privilegiou a grande pro-
priedade ao conceder amplas extensões de terras aos soldados a serviço da
Coroa e que estes guerreiros ao se tornarem estancieiros se dedicaram a ativi-
dade mais lucrativa do período, a pecuária, sem prescindir do uso de mão-de-
obra escrava. As estâncias de criação de gado fundadas a partir das concessões
feitas pelo Império aos chefes de bando formam o núcleo fundamental das
relações sociais e políticas em tempos de paz. Esta estrutura fortalece os grupos
de parentela sob liderança do chefe militar, ao redor do qual orbita um séquito
de agregados, peões e soldados, e escravos ligados às atividades econômicas.
Apesar da legislação de terras aprovada em 1850,7 DLQÁXrQFLDHGRSR-
der dos chefes de clãs locais sob o território diminuía drasticamente as chan-
ces de fracionamento e venda de terras na região, impedindo que o município
atendesse o principio básico da lei: permitir o acesso a terra aos pequenos
lavradores. Em Passo Fundo restava aos pequenos agregar-se aos grandes
proprietários, ocupando as extremidades dos latifúndios e na maioria das ve-
zes “pagando” por essa permissão com seu trabalho e obediência, mas tam-
bém cumprindo um papel de extrema importância na expansão dos grandes
proprietários em direção aos matos, visto que esse era o local onde via de
UHJUDHUDPLQVWDODGRVSRUHVWHVFKHIHVTXHDVVLPMXVWLÀFDYDPVHXGRPtQLR
sobre este espaço.
O 3º distrito de Passo Fundo, que posteriormente tornou-se o municí-
pio de Sertão, era uma zona de matas, e foi nessa direção que as propriedades
se expandiram. Francisco Barros de Miranda e Amancio de Oliveira Cardoso
são os primeiros a expandirem suas propriedades nessa direção. O 3o distrito
era privilegiado por conta de seus matos “desocupados”8 ricos em madeira,
erva-mate, e pinhão, mas também pelos campos irrigados por pequenos rios
e lajeados, propícios para a criação de gado. Com essa prática poucas terras
sobraram para serem consideradas devolutas e vendidas, a Comissão de Ter-
ras de Passo Fundo foi engessada pelo poder local, fortalecido pelas redes de
aliados formadas no início do povoamento da região e os pequenos lavrado-
res foram empurrados para as matas.
7 A Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras de 1850) previa que a terra só poderia ser adquirida através da compra,
não sendo permitidas novas concessões de sesmarias e ocupação por posse, com exceção das terras localizadas a dez léguas do
limite do território (fronteiras), sendo permitida a venda de terras devolutas. Lei no 601 de 18 de setembro de 1850. Coleção das
Leis do Império, 1850, tomo 11, parte 1º, seção 44º, p. 307. AHRS, fundo Legislação – códice L-079.
8 Devemos lembrar que a presença de povoadores brancos pela primeira vez não exclui a anterior presença indígena.
185
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
186
primeiras proprietárias da região).14 Amancio de Oliveira ativa as redes de
sociabilidade iniciadas com o estabelecimento de sua mãe adotiva em Passo
Fundo e rapidamente se insere na elite local.
Durante a guerra do Paraguai, Amancio de Oliveira participa ativa-
mente das campanhas de auxílio aos pobres e às tropas, dessa forma amplia
simultaneamente suas redes de sociabilidade vertical e horizontal, principal-
mente por que no ano em que iniciam os combates (1865) ele já é casado com
Balbina Prudência de Souza, irmã de Maria Prudência de Souza, esposa de
Francisco Barros de Miranda. É através de seu casamento que Amancio for-
talece seus vínculos com a elite local formada pelos pioneiros e grandes pro-
prietários, concunhado de Francisco de Miranda pode agora ser considerado
membro efetivo desse grupo, o que lhe permitia uma maior participação política,
social e econômica na sociedade regional.
Francisco de Miranda e Amancio de Oliveira participam no ano de
1871 da fundação da Sociedade Libertadora do Sexo Feminino que visava
alforriar escravas e incentivar a campanha abolicionista. Sabemos que ambos
possuíam escravos, o primeiro herdara de sua esposa 8 cativos e o segundo
por herança de sua mãe possuía, pelo menos, 4 escravos, mas se considerar-
mos os tamanhos de suas propriedades e investimentos certamente estes in-
divíduos possuíam plantéis maiores.15 No entanto, não sabemos se na ocasião
da fundação da Sociedade algum deles foi libertado.
Amancio de Oliveira é eleito vereador pela primeira vez em 1873, re-
tornando a Câmara em 1883, e nesse novo mandato, a partir de 1884, exerce o
cargo de vice-presidente da Câmara. Nesse ano a campanha abolicionista é re-
tomada, impulsionada principalmente por um decreto de 24 de março de 1884
em que a Província do Ceará decretou a libertação de todos os escravos daquela
Província. É neste ano que Amancio de Oliveira alforria sua escrava Firmina,
pertencente a ele por herança deixada por sua mãe em 1863, quando esta con-
tava ter 5 anos, e que em 1893 dará a luz a Francisca, a Chica Mormaça.
14 Maria Luiza de Oliveira era natural da freguesia da Cutia, província de São Paulo, foi casada em primeiras núpcias com
-RmR9LHLUD&RUGHLURFRPTXHPWHYHXPDÀOKDFKDPDGD0DULD9LHLUDFDVRXVHHPVHJXQGDVQ~SFLDVFRPR7HQHQWH
-RmR%HQWR&DUGRVRPDVQmRWHYHÀOKRV(PVHXWHVWDPHQWRHVFULWRHUHJLVWUDGRHPGHFODUDVHUVHXÀOKRDGRWLYR
Amancio de Oliveira Cardoso. Em 1854, já viúva pela segunda vez, Maria Luiza de Oliveira registra duas posses. Um cam-
po havido por compra que faz divisas com a propriedade de Joaquim Fagundes, Joaquim de Andrada Pereira, Francisco
Antunes e Rosa Mariana de Souza, medindo 1½ x ½ léguas, e outra “sorte de terras” com ½ x ¼ léguas que ela declara
ter recebido por concessão do Comandante Geral em 1831, no lugar denominado Cabeceiras do Lambedor. Este segundo
FDPSRÀFDYDDOHVWHGRSULPHLURHWLQKDFRPROLQGHLURDRVXOVHXÀOKRDGRWLYR$PDQFLRGH2OLYHLUD&DUGRVR$XWRVGH
inventário de Maria Luiza de Oliveira. APERS – Inventários de Passo Fundo – Provedoria – auto 48 – maço 2 – 1863.
$3(56²5HJLVWUR3DURTXLDOGH7HUUDVGH3DVVR)XQGR²Á
15 Salientamos que Francisco Barros de Miranda e Amancio de Oliveira Cardoso faleceram após a abolição da escravatura
(1890 e 1904, respectivamente), portanto não foi possível precisar o número de cativos que ambos possuíam.
187
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
)LUPLQD EDWL]D HP &kQGLGD VXD ÀOKD QDWXUDO QDVFLGD HP
16/01/1876, e nesse assento Firmina é declarada como “solteira, preta escrava
de Amancio de Oliveira Cardoso”, foram padrinhos de Cândida João Cardoso e
Maria, também escravos de Amancio de Oliveira.16 Seis anos mais tarde, em
pEDWL]DGR*HUYiVLRRXWURÀOKRQDWXUDOQDVFLGRHPHQHV-
se registro Firmina ainda é referida como escrava de Amancio,17 mas em 1884,
quando é batizada Ottilia, Firmina consta como “liberta do Capitão Amancio de
Oliveira Cardoso, residente no 3o distrito”.18
Firmina foi trabalhar para Amancio de Oliveira em tenra idade, e cer-
tamente foi encaminhada ao serviço doméstico, fato que provavelmente cola-
borou para que sua alforria tenha sido concedida quando ela ainda tinha em
torno de 26 anos. Não encontramos o documento que formaliza a liberdade
de Firmina, portanto não podemos precisar a data exata19 e nem as razões
pelas quais ela foi liberta, no entanto, alguns indícios, como ter sido liberta
em idade produtiva e ser referida como “liberta” de Amancio, puderam nos
LQGLFDUTXH)LUPLQDIRLXPDFULDGDGDFDVDÀHOHREHGLHQWH&ODUDPHQWHSR-
demos notar que a alforria nesse caso foi utilizada dentro de uma lógica de
GRPLQDomR H VXERUGLQDomR &RP WUrV ÀOKRV PHQRUHV )LUPLQD QmR SRGHULD
prescindir do trabalho na casa de Amancio, e certamente permaneceu em sua
propriedade.
)LUPLQDWHYHPDLVWUrVÀOKRV/DXUHQWLQD)UDQFLVFDH-XVWLPLDQR/DX-
rentina de Oliveira Cardoso nasceu entre 1881/1882, tivemos acesso a suas
informações através de seu registro de óbito, feito em 1938, onde são indica-
dos como seus pais Elisbão Luiz Vieira e Firmina Vieira, Laurentina foi casada
FRP(]HTXLHO0DQRHO$QW{QLRFRPTXHPWHYHÀOKRV)UDQFLVFDQDVFHXHQ-
tre 1892/1894, conforme informações extraídas de sua certidão de casamento,
realizado em outubro de 1911 com Luiz Bernardo da Cruz, com quem teve 4
ÀOKRV$ÀOLDomRGH-XVWLPLDQRIRLGHFODUDGDQRVUHJLVWURVGHQDVFLPHQWRVGRV
ÀOKRVTXHWHYHFRP'HROLQGD9LHLUDGH2OLYHLUDHQWUHH
Nos registros de batismo Firmina é indicada como solteira e seus
ÀOKRVFRPR´QDWXUDLVµRXVHMDLOHJtWLPRVRULXQGRVGHXQL}HVQmRVDFUDPHQ-
WDGDVSHODLJUHMD1RHQWDQWRLVVRQmRVLJQLÀFDTXHRSDLGDVFULDQoDVQmR
16 Cúria Diocesana de Passo Fundo – Registro Paroquial de Batismo – livro 3 – folha 57v.
17 Cúria Diocesana de Passo Fundo – Registro Paroquial de Batismo – livro 3 – folha 92.
18 Cúria Diocesana de Passo Fundo – Registro Paroquial de Batismo – livro 3 – folha 105v.
$ SDUWLU GRV UHJLVWURV GH EDWLVPRV GH VHXVÀOKRV *HUYiVLR H 2WWLOLD SRGHPRV DÀUPDU TXH IRL HQWUH H
28/12/1884.
188
HVWLYHVVH SUHVHQWH 2WWLOLD TXH HP VHX UHJLVWUR GH EDWLVPR p GHFODUDGD ÀOKD
QDWXUDOHPVHXUHJLVWURGHyELWRFRQVWDFRPRÀOKDGH´/LVEmRµGH2OLYHLUD
e “Firmina Ursulina” de Oliveira, mostrando que ela conhecia e reconhecia
este como seu pai. Elisbão provavelmente não é citado nos registros por que
QmR HUD RÀFLDOPHQWH FDVDGR FRP )LUPLQD H GH DFRUGR FRP R VREUHQRPH
adotado por ele, Vieira, é provável que ele fosse escravo ou agregado de The-
obaldo Vieira, vizinho de Francisco Barros de Miranda e casado com Emilia
Prudência de Souza, irmã de Maria Prudência e Balbina Prudência, esposas
de Francisco de Miranda e Amancio de Oliveira, respectivamente. Corrobora
com essa hipótese o fato de que a madrinha de Otília é Francelina Vieira de
6RX]DÀOKDGH7KHREDOGR9LHLUDH(PtOLD3UXGrQFLD
Considerando o tamanho médio das propriedades no 3o distrito e a
SUHVHQoD GH HVFUDYRV HP PDLRULD GHODV SRGHPRV DÀUPDU TXH RV ID]HQGHL-
ros locais utilizavam seus agregados como posteiros e que ex-escravos faziam
parte desse grupo. A doação de terras e de benfeitorias feita aos libertos ou
a permissão para ocupá-las contemplava o interesse senhorial em legitimar a
posse e o domínio sobre as terras que, não raro, eram objeto de intensas dis-
putas. No entanto, não podemos perder de vista que muitas vezes os libertos
eram movidos por interesses pessoais, não só por obediência, pois se caso
seu ex-senhor perdesse o domínio sobre seu território todos seus agregados
SHUGHULDPRSRXFRTXHKDYLDPFRQTXLVWDGRDGXUDVSHQDV,VVRVLJQLÀFDTXH
aquelas famílias que estavam formalmente separadas pela alforria, ou seja,
SDUWHGDIDPtOLDOLEHUWDHRXWUDFDWLYDQmRHVWDYDP´JHRJUDÀFDPHQWHµVHSDUD-
das. E esse parece ser o caso da família de Francisca Vieira.
)LUPLQD H (OLVEmR SURYDYHOPHQWH VH LQVWDODUDP FRP VHXV ÀOKRV QDV
matas que circundavam a propriedade de Francisco Miranda, Theobaldo Viei-
ra e Amancio de Oliveira, os laços de parentesco e aliança que uniam esses
senhores facilitavam o trânsito de seus escravos e agregados entre suas pro-
priedades. Não é possível precisar o local exato onde a família se estabeleceu,
seguramente a medida que as matas foram derrubadas e avançam sobre elas
os campos de criação e lavoura, Firmina e Elisbão deslocam-se em busca de
um lugar que pudessem abrigá-los com mais tranqüilidade e segurança. O
local que atualmente ocupa a comunidade da Mormaça tem características
propícias para esse tipo de abrigo: não é um terreno plano e, segundo a pró-
pria comunidade, era coberto por mata de pinheiros. A família de Elisbão e
20 Indivíduo que instalado estrategicamente na extremidade de uma propriedade, zela por sua integridade.
189
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
Firmina certamente não foi a única a buscar refúgio nas matas da região do 3o
distrito, principalmente após a abolição da escravatura em 1888, a esse local
recorreram outras famílias, agora completamente livres do cativeiro, mas ab-
solutamente desamparadas.21 Nesses espaços são construídas novas famílias
HUHDÀUPDGDVDVUHODo}HVGHSDUHQWHVFRHDOLDQoDFRQVWLWXtGDVQRWHPSRGR
cativeiro.
Quando os primeiros ascendentes da família Mormaça ocuparam a
área que hoje ocupam os atuais residentes, os grandes proprietários da região
possuíam além das terras o domínio político sobre aquele território. Na vira-
da do século, principalmente após a reordenação na política do Brasil e Rio
*UDQGHGR6XODVLWXDomRGHDOJXQVGHOHVÀFDEDVWDQWHFRPSOLFDGDQRFDVR
do 3o distrito temos duas situações distintas e acabaram por determinar os
destinos dos posseiros-agregados.
Francisco Barros de Miranda, o proprietário da Invernada da Arvi-
nha, faleceu em 1890 deixando 5 herdeiros, que mantiveram a propriedade
LQGLYLVDRXVHMDQmRDUHSDUWLUDPGHLPHGLDWRÀFDQGRVXDDGPLQLVWUDomRD
cargo do herdeiro Estanislau de Barros Miranda. Os agregados e posseiros
que viviam dentro de suas terras dependeram apenas das relações com os
herdeiros (no caso com o herdeiro) para ali permanecerem, o que de fato
aconteceu com os descendentes da escrava Cezarina, que atualmente formam
o Quilombo da Arvinha. Amancio de Oliveira Cardoso, ex-senhor de Firmina
e vizinho de Francisco de Miranda, com quem dividia os matos, faleceu em
1904 deixando 13 herdeiros. O fracionamento da propriedade que abriga-
va a família de Elisbão e Firmina abalou a delicada relação de “vizinhança”
construída por eles e os proprietários das mesmas, os herdeiros de Amancio
se desfazem de suas legítimas e abandonam o município, deixando os descen-
dentes dos antigos agregados a mercê dos novos proprietários. Na prática, até
o início dos trabalhos de demarcação da Seção Sertão, estes indivíduos não se
sentiam ameaçados ou expropriados, os compradores das parcelas da heran-
ça de Amancio se manifestam a respeito da propriedade somente em 1920,
portanto foi somente a partir da ação do Estado no local que a tranqüilidade
da posse é atingida.
A partir de 1907 a Comissão de Terras realizou trabalhos no 3o dis-
trito de Passo Fundo, elaborando uma planta onde indica os polígonos a se-
21 Após a abolição da escravatura, além daqueles ex-escravos que deixaram as fazendas e não conseguiram empregar-se
QDVFLGDGHVPXLWRVVHQKRUHVQmRTXLVHUDPFRQWUDWDURVVHUYLoRVGHVHXVH[HVFUDYRVTXHVHGLVSXVHUDPDÀFDUDOJXQVSRU
preconceito e medo da insubordinação e outros por que lhes era economicamente mais vantajoso contratar imigrantes,
mão-de-obra subsidiada pelo Estado e mais barata.
190
rem medidos e demarcados. A área atualmente ocupada pela comunidade
fez parte destes trabalhos e foi medida e demarcada como Linha Uma da
Seção Sertão.22 Nessa linha foram medidos 46 lotes que foram concedidos a
31 concessionários. Analisando a lista dos concessionários percebemos que
muitos deles são parentes diretos ou indiretos de Francisca Mormaça, sendo
que alguns deles podem ser considerados seus ascendentes, logo podemos
concluir que o principal argumento utilizado por estes indivíduos para terem
reconhecidos os seus direitos sobre aquelas glebas foi o de “morada habitual”.
A partir das informações levantadas sobre a localização das propriedades, po-
demos concluir que parte da Linha Uma da seção Sertão contempla os matos
que serviam de limites da propriedade de Amancio de Oliveira, considerada
devoluta pela Comissão de Terras por se tratar de matos e serras não cultiva-
dos pelos herdeiros.
Portanto, podemos concluir que a rede de solidariedade e parentesco que
teve início com os pais de Francisca Mormaça (e mantida por ela e sua descen-
dência por mais de 80 anos) foi a base, e atualmente é o ponto de referência, das
relações que esse grupo familiar estabeleceu com o lugar onde vive. O território
reivindicado pela comunidade se construiu e se fundamenta numa sobreposi-
omRGHDOLDQoDVÀUPDGDVDLQGDQRVWHPSRVGDHVFUDYLGmRTXHIRUDPPDQWLGDVH
DPSOLDGDVSHODVJHUDo}HVVHJXLQWHVUHODo}HVHVWDVVXÀFLHQWHPHQWHVyOLGDVSDUD
resistir as investidas do Estado e de particulares sobre seu território.
Ex-escravos e libertos quando transformados em “população livre” man-
tiveram uma estrutura, ou melhor, um espaço de solidariedade permanente,
baseado principalmente nos elos de parentesco, forjando um verdadeiro espa-
ço de resistência. A resistência nos quilombos formados nos últimos anos da
escravidão e consolidados no imediato pós-abolição se apresenta como uma
reinvenção dos códigos culturais estabelecidos pela escravidão para que se
estabeleçam novas relações, num cenário renovado; não é a fuga do cativeiro
que engendra esses quilombos, são as constantes negociações e adaptações
necessárias a sobrevivência, suas interações com o entorno forjando um mun-
do novo e original, “um verdadeiro campo negro no qual as ações dos variados agentes
históricos envolvidos tinham lógicas próprias, entrecruzando interesses, solidariedades, ten-
V}HVHFRQÁLWRV”.23
22 Infelizmente a documentação referente a esses trabalhos da Comissão de Terras de Passo Fundo é extremamente
exíguo e disperso, não nos foi possível acessar os cadernos de campo, protocolos ou pareceres daquela instituição, onde
poderíamos encontrar mais detalhes sobre como se deu o procedimento de demarcação e delimitação dos lotes coloniais
em Passo Fundo, e em especial, no 3o distrito.
23 GOMES, Flávio dos Santos. O “Campo negro” de Iguaçu: escravos, camponeses e mocambos no Rio de Janeiro (1812-
1883). In: Revista Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 25, pp. 53, 1993.
191
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORRÊA, Amélia Siegel. ,PSUHQVD H SROtWLFD QR 3DUDQi SURVRSRJUDÀD GRV UHGDWRUHV H
SHQVDPHQWRUHSXEOLFDQRQRÀQDOGRVpFXOR;,;. Curitiba, 2006. 230 f. Dissertação (Mestrado
em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, setor de Ciências
192
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre: Ed. da
Universidade/UFRGS, 1996. [2º ed. rev. ampl.]
KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Leitura XXI, 2002.
RIOS, Ana Lugão. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SANTOS, Sherol dos. et. al. Comunidade remanescente Quilombo da Mormaça: História,
Cotidiano e Territorialidade. Relatório antropológico de caracterização histórica,
econômica e sócio-cultural de territórios quilombolas à luz da instrução normativa
20/2005/INCRA, apresentado ao INCRA/RS em janeiro de 2007.
193
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno : o Rio Grande do Sul agrário do século XIX.
Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2002.
194
VISIBILIDADE NEGRA: INFORMAÇÕES E IMAGENS EM
TRÊS JORNAIS DE PORTO ALEGRE SOBRE O PRIMEIRO
CONGRESSO NACIONAL DO NEGRO NO ANO DE 1958
Arilson dos Santos Gomes*
ʌ Resumo: Este artigo pretende abordar e levantar, através de informações localizadas
em fontes jornalísticas, como foram registradas as reportagens sobre o Primeiro Congresso
Nacional do Negro realizado na cidade de Porto Alegre entre os dias 14 e 21 de setembro do
ano de 1958. Esse encontro foi realizado na Câmara Municipal de Porto Alegre e na sede social
da 6RFLHGDGH%HQHÀFHQWH)ORUHVWD$XURUD. Por ocasião desse importante acontecimento a
capital gaúcha recebeu delegações dos estados do Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa
Catarina, São Paulo, Distrito Federal e interior gaúcho, contando com a presença de estudiosos,
pesquisadores e a comunidade negra. Pretende-se apontar as relações existentes entre a imprensa
porto-alegrense e a 6RFLHGDGH %HQHÀFHQWH )ORUHVWD $XURUD por ocasião desse importante
evento, amplamente divulgado pelos ‘veículos jornalísticos’.
ʌ Palavras-chave: Imprensa – História – Visibilidade – Sociedade Floresta Aurora - Con-
gresso Nacional do Negro
E
ste artigo pretende abordar e levantar, através de informações
trazidas das fontes jornalísticas, como foram registradas as re-
portagens sobre o Primeiro Congresso Nacional do Negro
realizado na cidade de Porto Alegre entre os dias 14 e 21 de setembro do ano
de 1958. Esse encontro foi realizado na Câmara Municipal de Porto Alegre e
na sede social da 6RFLHGDGH%HQHÀFHQWH)ORUHVWD$XURUD.
Por ocasião desse importante acontecimento, a capital gaúcha recebeu
delegações dos estados do Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Cata-
rina, São Paulo, Distrito Federal e interior gaúcho, contando com a presença
de estudiosos, pesquisadores, intelectuais e a comunidade negra. Durante as
atividades do encontro foram debatidos três temas centrais: primeiro, a neces-
sidade de alfabetização frente à situação atual do Brasil; segundo, a situação
do homem de cor na sociedade; e em terceiro, o papel histórico do negro no
Brasil e demais nações.
Em pesquisas realizadas até o presente momento, em jornais locali-
zados nos acervos do Museu de Comunicação Social Hipólito José da
* Mestrando em História pela PUCRS vinculado ao PPGH sob orientação da Prof. Dra. Margaret Marchiori Bakos e
Bolsista CAPES.
195
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
1 Para saber mais ver Arilson dos Santos Gomes no artigo intitulado: Análise de conteúdo: o condicionamento das in-
formações sobre o Primeiro Congresso Nacional do Negro Brasileiro realizado em Porto Alegre através dos periódicos
Correio do Povo, Folha da Tarde e Revista do Globo. Artigo publicado no site História e História, junho de 2007.
$6RFLHGDGH%HQHÀFHQWH)ORUHVWD$XURUDIRLIXQGDGDHPDSDUWLUGHGLVVLGHQWHVGD,UPDQGDGHGR5RViULRGH3RUWR
Alegre. É a sociedade negra em atividade mais antiga do Brasil. Para saber mais da Floresta Aurora ver Liane Muller. As
contas do meu rosário são balas de artilharia – Irmandade, jornal e sociedades negras em Porto Alegre, 1889-1920. Dis-
VHUWDomRGH0HVWUDGR3RQWLÀFLD8QLYHUVLGDGH&DWyOLFDGR5LR*UDQGHGR6XO
196
O Jornal Correio do Povo foi fundado em 1º de outubro de 1895 por
Caldas Júnior. Breno Caldas, diretor em 1975, em um artigo publicado por
ocasião das comemorações dos 80 anos de fundação do jornal, nos explica
DVGLÀFXOGDGHVHQIUHQWDGDVSRU&DOGDV-~QLRUSDUDIXQGDUHPDQWHURMRUQDO
Segundo Breno Caldas:
O Correio do Povo nascera em prédio alugado, pobre de recursos e
GHVSURYLGR GD VRÀVWLFDomR WpFQLFD GH TXH GLVSXQKDP QD pSRFD RV
grandes jornais. Por isso, Caldas lhe comprou linotipos, farta provisão
de tipos novos, uma máquina impressora rotativa da marca da moda
– Morinoni- e uma casa na rua da Praia (...) precisou tomar emprésti-
mos e altos investimentos simultâneos(...)3
3 Caldas, Breno.Uma vida dentro da outra. Porto Alegre. Correio do Povo – Caderno Especial - 1º seção. 01/10/1975.
p.20.
4 Para saber mais ver Arilson dos Santos Gomes no artigo intitulado: Primeiro Congresso Nacional do Negro Brasileiro
realizado em Porto Alegre no ano de 1958. Porto Alegre: VI Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos
– PUCRS, Out.2006.
197
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
5 Para saber mais ler Deivison Moacir Cezar de Campos. O Grupo Palmares (1971-1978): Um movimento de subversão
HUHVLVWrQFLDSHODFRQVWUXomRGHXPQRYRHVSDoRVRFLDOHVLPEyOLFR'LVVHUWDomRGH0HVWUDGR3RQWLÀFLD8QLYHUVLGDGH
Católica do Rio Grande do Sul, 2006.p.43-53.
198
Souza, Flávio Silva, Edson Couto e Armando Temperani. Eles iniciam uma
nova etapa ÁRUHVWLQDD tendo como principal meta o ressurgimento material, so-
cial e político da então octogenária Sociedade. Antes e após a posse a atual
diretoria encontra uma sociedade em crise.6
Abaixo, dirigentes da sociedade no período e integrantes da comissão
organizadora do Congresso.
6 Para saber mais ver Arilson dos Santos Gomes no artigo intitulado: Primeiro Congresso Nacional do Negro Brasileiro
realizado em Porto Alegre no ano de 1958. Porto Alegre: VI Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos
- PUCRS.Out.2006.
7 ATAS de reuniões da SBFA de números 255 e 263. Porto Alegre, 06 de julho e 12 de outubro de 1958, [sp].
199
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
200
obtivesse repercussão nacional, já que essa empresa tinha escritórios nas duas
principais cidades brasileiras do período, São Paulo e Rio de Janeiro.
Conforme o discurso proferido por Valter Santos, Presidente da SBFA
no ano de 1958, na abertura do Primeiro Congresso Nacional do Negro,
a ligação entre o Correio do Povo e a SBFA A tem inicio no ano de fundação
do Jornal em 1895, quando, através de um convite feito por Caldas Júnior;
a banda da sociedade tocou na inauguração da empresa. Naquela época, a
sociedade ainda era banda musical, e posteriormente, tornar-se-ia entidade
social. As palavras de Valter Santos impressas no Jornal Folha da Tarde evi-
denciam essas informações e a relação existente entre a Sociedade e o Jornal:
A banda que se celebrizou – frisou o orador – ao ser especialmente
convidada pelo Jornalista Caldas Júnior para abrilhantar os festejos de
fundação do Correio do Povo, a 1º de outubro de 1895. Desse dia em
diante, até ser extinta, a lira da Sociedade Floresta Aurora, anualmente,
comparecia ao “Róseo”, para levar-lhe a sua homenagem na data de
sua fundação. Vem daí a amizade existente entre os jornais da Empre-
sa Jornalística Caldas Júnior e a nossa sociedade.11
11 [s.n]. Homens de cor de vários Estados no I Congresso Nacional do Negro. Porto Alegre: Folha da Tarde,
15/09/1958.p.14.
201
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
12 Caldas, Breno. Uma vida dentro da outra. Porto Alegre: Correio do Povo – Caderno Especial - 1º seção,
01/10/1975. p.20.
202
FRQWULEXLXGHPDQHLUDHÀFD]SDUDRVRUJDQL]DGRUHVGRcongresso, que consegui-
ram atingir amplas camadas da sociedade. As informações diárias do encontro
saíram no outro veículo da empresa.13
Passaremos a abordar as informações registradas e levantadas em dois
jornais com circulação diária na cidade de Porto Alegre em 1958, o jornal A
Hora e o Diário de Notícias. Como esses jornais acompanharam o encontro
HFRPRHOHVGLYXOJDUDPDVDWLYLGDGHV"
O jornal A Hora, fundado em 30 de novembro de 1954, era regional,
sem sucursais em outros estados brasileiros, diferentemente dos jornais da
Empresa Jornalística Caldas Júnior. Em contrapartida, o Jornal A Hora
dirigido por Nelson Dias, ostentava na sua ‘folha de rosto’ a frase: “vespertino
de maior penetração no interior”, ou seja: a matéria que ganhava as páginas
desse jornal teria uma forte repercussão no interior do estado do Rio Grande
do Sul.
Depois dos jornais vinculados a Empresa Caldas Júnior, notamos
que o jornal que mais divulgou o encontro foi o A Hora. Localiza-se em suas
páginas quatro matérias sobre o Congresso Nacional do Negro, todas no
centro do jornal. A primeira matéria é encontrada na página 5 do dia 15 de se-
tembro; a segunda, na página 5 do dia 18 de setembro; a terceira localizada na
página 6 do dia 19 de setembro; e a última é um editorial, localizado na página
4 também no dia 19, com o seguinte título: “Êxito do Primeiro Congresso do
Negro”. As quatro matérias totalizam 285 linhas impressas com 2 fotos.
O jornal é o único que traz dados estatísticos sobre o nível de estudo
do negro brasileiro, dando um destaque especial para um dos temas do con-
gresso, a alfabetização. Além dos elogios destinados aos “excelentes resultados
produzidos pelo congresso”, são localizados os seguintes dados no jornal
referente ao grau de ensino do negro nas regiões do país. Abaixo, a matéria:
13 As informações no Jornal Correio do Povo são localizadas no dia 16 de setembro de 1958, na página 13 e no dia 20 de
setembro de 1958, na página 07. Já as informações diárias do Congresso são localizadas no Jornal Folha da Tarde dos dias
11, 13, 15, 17, 18 e 19 de setembro de 1958. Ambos os jornais são localizados no MCSHJC.
14 [s.n]. Alfabetização intensiva do homem negro brasileiro. Porto Alegre: A HORA, 18/09/1958.p.5.
203
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
15 Idem.
16 Medeiros, Laudelino. Trabalhos do 1º Congresso Nacional do Negro seguem com grande entusiasmo. Porto Alegre:
Diário de Notícias, 18/09/1958. p.11.
204
Abaixo, a imagem da conferência realizada no dia 15 de setembro
às 21 horas.
205
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
206
brasileiro”. O periódico enfatiza que o preconceito no Brasil não é racial e sim
cultural. Conforme registrado no jornal:
$DXVrQFLDGHFRQÁLWRVUDFLDLVQR%UDVLOLQVSLUDFHUWDSUHRFXSDomRHP
face de uma iniciativa como o I Congresso Nacional do Negro, em
Porto Alegre (...) Encarado assim, aquele congresso impõe atitude de
reserva. Mas também há outra perspectiva, mais positiva: o Congres-
so Nacional do Negro pode contribuir para despertar a consciência
moral dos brancos (....) A cultura é, para o individuo, meio de aperfei-
oRDPHQWRHVSLULWXDOHSURÀVVLRQDO2XGHYHULDVHU0DVHPQRVVRDP-
biente a cultura é, muitas vezes, rebaixada a meio de ascensão social. O
diploma de bacharel ou outro, equivalente, é o bilhete de ingresso para
aquilo que se chama, com algum exagêro, a elite do país. É um ídolo
falso; às vezes o diploma é mesmo falso. Não serve para distinguir o
portador. Mas serve para fazê-lo, como se diz, distinto. Esse precon-
ceito de cultura é ruinoso, no Brasil, para quase todos os pretos; mas
também para muitos brancos.17
207
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
IMPRESSAS
MANUSCRITAS
5HJLVWURGH$7$6GD6RFLHGDGH%HQHÀFHQWH)ORUHVWD$XURUD3RUWR$OHJUH-DQHLURD
outubro de 1958, ;sp=.
ARQUIVOS PESQUISADOS
$UTXLYRGD6RFLHGDGH%HQHÀFHQWH)ORUHVWD$XURUD
208
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOMES, Arilson dos Santos. Análise de conteúdo: o condicionamento das informações sobre o
Primeiro Congresso Nacional do Negro Brasileiro realizado em Porto Alegre através dos periódicos
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História, junho de 2007. Disponível no site: http://www.historiaehistoria.com.br/
LQGLFHFIP"WE DOXQRV. Acesso em 24 Jun.2007.
LAZZARI, Alexandre. “Certas coisas não são para que o povo as faça”: Carnaval em Porto
$OHJUH² Dissertação de Mestrado orientada Profa.Dra. Maria Clementina
3HUHLUD &XQKD 'HSDUWDPHQWR GH +LVWyULD GR ,QVWLWXWR GH )LORVRÀD H &LrQFLDV
Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 1998.
209
4
HISTÓRIA E ENFERMIDADES
E O CADÁVER É ESCRAVO: COMENTÁRIOS SOBRE
DOENÇA E MORTE ENTRE A POPULAÇÃO CATIVA DE
PORTO ALEGRE NO SÉCULO XIX (1830-1834)
Paulo Roberto Staudt Moreira*
Fabiano Fischer de Queiroz**
ʌ Resumo: Nos propomos nesta comunicação a apresentar dados preliminares de uma
pesquisa que estamos desenvolvendo junto aos livros de óbito de escravos das paróquias de Por-
to Alegre. Percebemos nos últimos anos o crescimento das pesquisas que tem enfocado a temá-
tica da saúde e das doenças, mas ainda poucas pesquisas voltam-se para a população escravizada.
Nosso objetivo é um estudo que estabeleça como variáveis as causas das mortes, cruzando-as
com as faixas etárias, origem e gênero.
ʌ Palavras-Chave: escravidão – saúde - doença.
N
RÀQDOGDGpFDGDGHXPDVLQLVWUDSURFLVVmRDYDQoDYDSHOD
noite de Porto Alegre, percorrendo um trajeto desde o cais do
porto até o cemitério que se localizava nos fundos da Cate-
dral. Dois escravos carregavam “a pau e corda” o cadáver de um parceiro seu, fa-
lecido devido aos maus tratos recebidos de seu senhor, o carpinteiro da ribeira
Frederico Bier.1 O cadáver, quando ainda respirava, atendia quando chamado
de Lourenço Cabinda, e foi enterrado naquele campo santo deserto.
Sabemos deste sepultamento clandestino, pois ele foi testemunhado
por alguns indivíduos pretos que estavam escondidos em um ponto estratégi-
co de onde podiam bombear2 o que ocorreria com o cadáver de seu parceiro
assassinado. O grupo de vigilantes era liderado pelo forro José Canhoto ou
Cabinda, apontado como Capitão dos Cangueiros, provável liderança entre
os trabalhadores negros que carregavam mercadorias e indivíduos de posses
pelas ruas da capital da Província.
Mas a facilidade com que o corpo do infeliz Lourenço foi abandonado
mal enterrado naquele cemitério localizado no centro de Porto Alegre pode
nos dar uma idéia de como eram precárias as condições funerárias da capital.
Ao vangloriar-se de ter feito a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
213
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
215
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
216
Paróquia de Nossa Senhora Madre de Deus (Catedral)
217
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
'HDFRUGRFRPDWDEHODDFLPDSRGHPRVYHULÀFDUXPDGLIHUHQoDFRQ-
siderável entre a divisão de gênero de crioulos e africanos, o que é facilmente
H[SOLFiYHO SHOD FRPSRVLomR GD SRSXODomR DIULFDQD WUDÀFDGD SHOR $WOkQWLFR
&RQIRUPHDVDQiOLVHVIHLWDVVREUHRWUiÀFRLQWHUQDFLRQDOGHHVFUDYRVVDEH-
mos que através dele vieram, principalmente, africanos do sexo masculino.6 A
tabela abaixo cruza faixa etária, origem e gênero:
Tabela 3 – Número Geral de Óbitos: Faixa Etária, Origem e Gênero.
218
Os homens são a maioria em todas as faixas etárias entre os africanos;
já entre os crioulos percebemos um equilíbrio entre os sexos. A mais jovem
africana falecida nestes anos, foi a Calabar Eva, que morreu de ataque pulmo-
nar com 4 anos em 13 de abril de 1830, e o mais velho o Benguela Antonio,
preto com 100 anos de idade, falecido de moléstias crônicas no mesmo dia
e mês, quatro anos depois.7 É claro que para os africanos a idade sempre é
presumida, de acordo com a aparência física. Segundo a tabela acima, cerca de
74 % dos africanos falecidos estavam entre os 10 e os 40 anos, sendo 31,9 %
entre 21 e 30 e 23,5 % entre os 10 e os 20 anos.
Esta porcentagem considerável de africanos jovens falecidos comprova
os dados levantados pelo historiador Gabriel Berute, que demonstram que os
proprietários de escravos sulinos consumiam cativos infantes.
Os escravos dos habitantes do Rio Grande são outros tantos cavalei-
ros: estes colonos vão e compram escravos de mais de dez anos para
os ensinarem a passar a vida a cavalo.8
7 Ver Eva, na folha 254 e Antonio na 374, do Livro 3 de Óbitos das Catedral.
8 ALMEIDA, Luiz Beltrão de Gouveia de. Memória sobre a Capitania do Rio Grande do Sul. 1806 – Real Academia de
Ciências de Lisboa. BEIRUTE, 2007: 64.
9 O Dr. Felix da Cunha era bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, foi jornalista, poeta, romancista e Deputado
da Assembléia Provincial (1855/1860). Martins, 1978: 171. APERS - 1º Cartório de Órfãos - maço 87, Auto 1852.
219
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
África Ocidental
África Oriental
220
Os dados coletados nos livros de óbitos, entretanto, nos revelam um
grau de africanidade maior do que o demonstrado pelas tabelas acima. Isto
SRGHVHUYHULÀFDGRVHDQDOLVDUPRVRVSRXFRVGDGRVGLVSRQtYHLVVREUHDVPmHV
dos falecidos. Em primeiro lugar, deve ser dito que dados sobre as mães não
são comumente encontrados neste tipo de documento - dos 1.525 registros,
apenas 612 trazem esta informação. Na realidade, o nome da progenitora era
apenas informado para as crianças de até 9 anos, aparecendo em apenas dois
FDVRVGHIDOHFLGRVDFLPDGHVWDLGDGH(QWUHRVDIULFDQRVÀQDGRVDSHQDVDSUH-
ta Josefa, de 8 anos, cuja vida se extinguiu pela bexiga, sabemos que sua mãe
chamava-se Felipa. Ambas eram da Costa, o que indica que provavelmente
YLHUDPMXQWDVQRWUiÀFRWUDQVDWOkQWLFRDSDUWLUGDFRVWD2FLGHQWDODIULFDQD10
Dos 816 crioulos falecidos, 353 tinham mãe africana, ou seja,
43,26 % do total.
2X VHMD HVWHV GHIXQWRV HUDP ÀOKRV GH PmHV DIULFDQDV SRUWDQWR
crioulos no nascimento, mas culturalmente muito ligados ao mundo africano
de suas mães. Para reforçar ainda mais a questão da africanidade, chamamos
DDWHQomRGHTXHGXDVFULDQoDVFULRXODVIDOHFLGDVHUDPÀOKDVGHPmHWDPEpP
crioula, mas o pai era africano.11 Ainda com relação a este tema, merece desta-
TXHTXHHVWHVUHJLVWURVSRGHPQRVWUD]HULQIRUPDo}HVSUHFLRVDVVREUHRWUiÀ-
co internacional e inter-provincial, já que alguns falecidos, ao que parece, eram
recém chegados, seja do Rio de Janeiro ou Bahia. Vejamos alguns exemplos:
10 Josefa faleceu em 01-06-1830 e era escrava de Manoel José de Freitas Travassos - folha 258v do Livro 3 de Óbitos
das Catedral.
11 Na verdade, tratava-se do mesmo casal legítimo formado pela crioula Francisca e do Cabinda Manoel, que perderam
GRLVÀOKRV0DULDHPGHWpWDQRXPELOLFDOHRXWUDÀOKDKRP{QLPDHPGH&RQVWLSDomR
221
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O nosso intento neste artigo, como dissemos, era apenas esboçar al-
guns comentários sobre doença e morte da população escrava. Certamente
ÀFRXFODURTXHRVOHYDQWDPHQWRVDLQGDHVWmRVHQGRIHLWRVHTXHPXLWRDLQGD
pode ser entendido através dos registros (ou atas) de falecimento, principal-
mente quando cruzadas com outras fontes primárias. Se a presença de escra-
&RQWDPRVSDUDDHODERUDomRGHVWHVYHUEHWHVFRPDEROVLVWDGHLQLFLDomRFLHQWtÀFDGD81,6,1263DXOD*LRYDQD$PHV
13 KARASCH, 2000.
223
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
224
ABREVIATURAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERUTE, Gabriel. 5LR *UDQGH GH 6mR 3HGUR GR 6XO XPD DQiOLVH GR WUiÀFR GRPpVWLFR GH
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(Dissertação de Mestrado em História)
FLORENTINO, Manolo. (P &RVWDV 1HJUDV 8PD KLVWyULD GR WUiÀFR GH HVFUDYRV HQWUH D
África e o Rio de Janeiro. São Paulo, Cia. Das Letras, 1997.
MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS; Instituto
Estadual do Livro, 1978.
225
OS BRAÇOS DA SALVAÇÃO: A MOBILIZAÇÃO
DE AUXÍLIO AOS INFECTADOS PELA GRIPE
ESPANHOLA (PORTO ALEGRE, 1918)
Gabrielle Werenicz Alves*
ʌ Resumo: O texto trata da trajetória da “Gripe Espanhola”, epidemia gripal que assolou
o mundo em 1918 e 1919, centrando-se na cidade de Porto Alegre e nos problemas sociais
provocados ou agravados pela epidemia, e na mobilização de auxílio aos doentes e necessitados
no período epidêmico. Na capital gaúcha, tanto os governos do Estado e Município e como a
própria população porto-alegrense criaram estratégias de combate à epidemia e auxílio aos doen-
tes (auxílio este prestado principalmente aos enfermos mais pobres, incapacitados de prover com
sua própria subsistência). Neste momento de crise, alguns grupos da sociedade se destacaram na
ajuda aos doentes e necessitados: a Escola Médico-Cirúrgica, a Maçonaria e a Federação Operária
do Rio Grande do Sul. Em função da importância de suas ações, estes grupos foram estudados
com mais destaque.
ʌ Palavras-chave: epidemia – Gripe Espanhola – Porto Alegre – mobilização social
INTRODUÇÃO
A
gripe é uma doença que acompanha o homem há muitos sé-
culos, e costuma ter um caráter endêmico. Porém, em certos
PRPHQWRV GD KLVWyULD HVWD PROpVWLD VH PRGLÀFRX H JDQKRX
um caráter epidêmico, e até mesmo pandêmico.1 Essa enfermidade, em algu-
PDVRFDVL}HVIRLUHVSRQViYHOSRUXPJUDQGHQ~PHURGHPRUWHVPRGLÀFRX
o cotidiano, deixou transparecer problemas sociais e de saúde pública.2 Essa
situação pode ser observada em 1918 e 1919, quando a pandemia conhecida
FRPR´,QÁXHQ]D+HVSDQKRODµVHDODVWURXSHORPXQGR
Mesmo atingindo todo o planeta, podemos observar semelhanças mas
também diferenças na forma com que cada região enfrentou a doença, buscou
explicar, prevenir e tratar a moléstia, nas medidas governamentais adotadas
227
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
$EUmRDÀUPRXTXHHVWD´PRELOL]DomRHRDSRLRGDGRVSHORVGLYHUVRV
setores da sociedade contribuíram para minorar a fome, a falta de assistência
médica e de medicamentos e, neste sentido, secundaram as ações das auto-
ridades governamentais no combate à epidemia gripal”.4 No entanto, como
o objetivo de Abrão não era se deter no estudo destas questões, ela acabou
discorreu brevemente sobre as ações de auxílio aos necessitados, o que deixou
algumas lacunas envolvendo o assunto.
Partindo destas lacunas deixadas por Janete Silveira Abrão, o problema
que norteou minha pesquisa foi o seguinte: como a sociedade porto-alegrense
se mobilizou para ajudar os doentes e necessitados que padeciam em fun-
omRGDHSLGHPLDJULSDOHGRVSUREOHPDVSURYRFDGRVRXDJUDYDGRVSRUHVWD"
4XDLVDVDo}HVVXUJLGDVGHVWDPRELOL]DomR"4XDLVIRUDPRVJUXSRVTXHPDLV
VHGHVWDFDUDPQHVWHDX[tOLR"4XDORSDSHOGHFDGDXPGHVWHVJUXSRVQHVWD
PRELOL]DomR"
3 ABRÃO, Janete Silveira. Banalização da morte na cidade calada. In: GRAEBIN, Cleusa Maria Gomes; LEAL, Elisabete
(org.). Revisitando o Positivismo. Canoas: Editora La Salle, 1998. p.119-20.
4 ABRÃO, op cit, p.116.
228
A pesquisa se deteve à cidade de Porto Alegre, devido a esta ser a capi-
tal do estado, ter tido um número muito grande de doentes e de mortos e uma
importante mobilização de combate à doença e auxílio aos doentes, tanto por
parte do governo quanto por parte da população.
Quanto ao período estudado, privilegiei os meses de outubro a dezem-
bro de 1918, ou seja, os meses em que a doença foi considerada epidêmica na
cidade. A moléstia provavelmente continuou em 1919, mas como o número
de contaminados e de mortos diminuiu muito até a metade do mês de de-
zembro de 1918, as medidas tomadas contra a enfermidade foram dadas por
encerradas, e a situação perdeu seu destaque na imprensa.
Um conceito chave para este estudo é o conceito de epidemia. A epide-
mia é aqui entendida a partir da sua esfera social: entendo a Gripe Espanhola
não apenas como um vírus que se espalhou pela cidade, mas sim um vírus que
afetou cada grupo social de maneira diferente, em função da condição de vida
das pessoas e de sua exposição à vida urbana. A epidemia é entendida também
como uma ambigüidade. Ao mesmo tempo em que ela promoveu a ruptura
do cotidiano, ela também agravou e deixou transparecer antigos problemas
sociais e de saúde pública. Enquanto que o cotidiano do porto-alegrense foi
alterado devido ao grande número de doentes e grande parte da vida social foi
paralisada, a moléstia trouxe à tona problemas que os habitantes da cidade já
tinham, e que no momento da epidemia acabaram sendo piorados.
A principal fonte utilizada nesta pesquisa foi a fonte jornalística. Fo-
ram consultados os jornais Correio do Povo, A Federação, O Independente e
Gazeta do Povo,5 dos meses de outubro a dezembro de 1918. Optei por prio-
rizar este tipo de fonte por ser aquela que melhor responde aos problemas de
pesquisa formulados. A imprensa gaúcha, durante o auge do surto epidêmi-
co, conseguiu registrar (mesmo com censura à imprensa no período) muitos
detalhes sobre o que estava acontecendo na cidade em relação à doença. Por
deter-se na descrição dos fatos diários, o jornal revelou-se como valioso para
acompanhar a trajetória da doença e as questões relacionadas a ela.
5 Os jornais consultados encontram-se no Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa e no Arquivo Histórico
de Porto Alegre Moysés Vellinho.
229
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
A GRIPE ESPANHOLA
A
epidemia gripal ocorrida em 1918 e 1919, conhecida como
´,QÁXHQ]D+HVSDQKRODµWHPVLGRFRQVLGHUDGDXPDGDVSDQ-
GHPLDV PDLV VLJQLÀFDWLYD GD KLVWyULD (VWD HQIHUPLGDGH DODV-
trou-se por todas as regiões do planeta e deixou o maior número de infec-
tados e mortos, se comparada com as pandemias ocorridas até então.6 Para
a pesquisadora Liane Maria Bertucci, “nada matou tanto em tão pouco tem-
po”.7 Essa epidemia teria vitimado 20 milhões de pessoas em todo o mundo
(mas alguns estudiosos falam em 50 milhões de mortos).8 Em relação aos
enfermos:
>@ DV GLÀFXOGDGHV SDUD R FiOFXOR VmR DLQGD PDLRUHV H RV Q~PHURV
PDLV DVVXVWDGRUHV SDUD XPD SDUFHOD VLJQLÀFDWLYD GH HVWXGLRVRV
milhões de pessoas teriam sofrido com a pandemia gripal, mas alguns
supõem que adoeceram entre 80% e 90% da população do planeta, o
que somaria 1 bilhão de pessoas.9
2XWUDSDQGHPLDTXHIRLLJXDOPHQWHVLJQLÀFDWLYDQDKLVWyULDIRLDIDPRVD´3HVWH1HJUDµPROpVWLDTXHVHDODVWURXSHOD
Europa no ano de 1348. Esta pandemia vitimou um número muito grande de pessoas, mas sua área de contaminação foi
restrita (basicamente a Europa). Já a Gripe Espanhola acabou se alastrando por todo o mundo, e em praticamente todos
os países acabou deixando vítimas.
%(578&&,/LDQH0DULD,QÁXHQ]DDPHGLFLQDHQIHUPDFLrQFLDHSUiWLFDVGHFXUDQDpSRFDGDJULSHHVSDQKRODHP6mR
Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. p.28.
8 Ibidem.
9 Ibidem.
10 ABRÃO, op cit. B, p.109.
11 BERTUCI, op cit., p.28.
12 BRITO, Nara Azevedo de. La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro. História, Ciência,
Saúde – Manguinhos, v.4, n.1, mar.-jun.,1997. p.12.
230
A comunidade médica da época não conseguiu explicar como uma
PROpVWLDEUDQGDHWmRIDPLOLDUSXGHVVHHVWDUPDWDQGRWDQWR$LQÁXHQ]DHUD
uma das patologias menos conhecidas pela medicina da época, e os médicos
puderam fazer pouco para salvar os doentes. Tudo era feito na base da expe-
rimentação.
Esta enfermidade acabou recebendo inúmeros nomes. Os países afeta-
dos atribuíam uns aos outros a culpabilidade pela doença. Na Rússia, a doen-
ça recebeu o nome de Febre Siberiana; na Sibéria, Febre Chinesa; na França e
Inglaterra, Catarro Espanhol ou Peste da Senhora Espanhola; na Espanha, foi
batizada com o nome de Febre Russa...13. A designação que chegou ao Brasil
é ligada à Espanha
A
pós ter assolado a Europa, a epidemia de gripe foi detectada
também em algumas regiões do Brasil. Em outubro de 1918,
D*ULSH(VSDQKRODÀQDOPHQWHFKHJRXD3RUWR$OHJUH3RUpP
antes de falar sobre a trajetória desta epidemia na capital gaúcha, é importante
ressaltar alguns pontos da história desta cidade, para que se possa compreen-
der melhor o que Porto Alegre era na época da epidemia e quais os problemas
que a moléstia ajudou a agravar.
Por volta de 1918, Porto Alegre era o maior centro urbano da pro-
YtQFLD R FHQWUR GDV RSHUDo}HV FRPHUFLDLV H ÀQDQFHLUDV H D UHJLmR RQGH VH
concentravam as fábricas e a massa operária.14 Quando a epidemia chegou
em Porto Alegre, esta cidade estava presenciando acontecimentos (regionais e
internacionais) que estavam afetando a sua população. A epidemia se alastrou
no último ano da Primeira Guerra Mundial e, apesar do campo de batalha ter
sido no outro lado do Oceano Atlântico, e apesar do Brasil ter se mantido
neutro, a guerra acabou interferindo nas vidas dos porto-alegrenses. Durante
a guerra, os espíritos se exaltaram, as simpatias para com diferentes países e
políticas dividiram opiniões. Além disso, no período da guerra, a vida cotidia-
QDÀFRXXPSRXFRPDLVFDUD
Em 1917, os trabalhadores brasileiros realizaram uma greve geral, e
XPDGDVMXVWLÀFDWLYDVSDUDDJUHYHHP3RUWR$OHJUHIRLDFDUHVWLDHRHOHYDGR
231
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
E
m 9 de outubro de 1918, chegou ao porto de Rio Grande o pri-
meiro navio que trazia a bordo tripulantes infectados pela Gripe
Espanhola. Nos dias seguintes, outros navios infectados chega-
ram ao mesmo porto. As embarcações eram desinfectadas e seus tripulantes
enfermos hospitalizados. Após esses procedimentos, prosseguiam viagem,
muitos vindo para Porto Alegre.
$SDUWLUGRGLDGHRXWXEURFRPHoDUDPDVHUYHULÀFDGRVFDVRVGD
doença entre os habitantes de Porto Alegre. A partir daí, o número de doentes
DXPHQWRXDFDGDGLD6HJXQGRRMRUQDO´$)HGHUDomRµRYtUXVGDLQÁXHQ]D
espanhola que havia atacado a população da cidade ia se alastrando de hora
para hora, de pessoa para pessoa.16
Os jornais da época transmitem o pânico que a doença estava causan-
do. O jornal “Correio do Povo” publicou, no dia 25 de outubro, a informação
que a gripe estava tomando o aspecto de uma das maiores epidemias que já
havia assolado a capital gaúcha. Segundo os jornalistas:
15 Correio do Povo. Porto Alegre, 31-7-1917. p.6. Reproduzido em PETERSEN, Silvia Regina Ferraz; LUCAS, Maria Eli-
zabeth. Antologia do Movimento Operário Gaúcho: 1870-1937. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1992. p.197.
16 A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 30 de out. 1918, p.1.
232
Sobem atualmente a alguns milhares os casos de gripe entre nós. Casas
há em que todas as pessoas se acham atacadas da moléstia; de algu-
mas sabemos nas quais existem dez, doze e mais doentes aguardando
leito.17
233
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
N
o período da Gripe Espanhola, o governo do Estado acabou
realizando ações contraditórias ao seu posicionamento tra-
dicional. O partido político no poder - o Partido Republica-
no Rio-Grandense - tinha o positivismo de Augusto Comte como princípio
político. Os positivistas gaúchos defendiam que “cada indivíduo deveria ser
educado nos princípios da ciência para, então, decidir o que adotar quanto à
sua saúde”.23 Porém, apesar de não apoiar qualquer intervenção que ferisse a
liberdade de escolha dos indivíduos, muitas das práticas do governo gaúcho
foram contrárias a este ideário defendido pelo Apostolado. Durante a epide-
mia de 1918, o governo ordenou a realização de inspeções e desinfecções de
21 CORREIO DO POVO, Porto Alegre, 19 nov. 1918, p.2.
22 Apesar dos médicos não terem certezas sobre como tratar a doença, alguns cuidados foram indicados à população. Em
Porto Alegre, por exemplo, foram recomendados cuidados com a higiene corporal, com a habitação e com a dieta alimen-
tar, anti-sepsia da boca, das fossas nasais, garganta e aparelho digestivo e, preferencialmente, o isolamento. Em relação aos
medicamentos, os mais utilizados foram o quinino e seus derivados (sais, sulfatos,...) ministrados com o objetivo de baixar
a temperatura dos gripados. Outros medicamentos utilizados foram os purgantes, que serviam para expulsar do corpo as
toxinas produzidas pela doença, limpando assim o corpo dos humores. Cf. ABRÃO, op. cit., p.83-84.
23 WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo na República Rio-Grandense -
1889/1928. Santa Maria: Ed. da UFSM; Bauru: EDUSC - Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999. p.32.
234
locais suspeitos de estarem contaminados; criou enfermarias (instaladas, por
exemplo, em escolas e batalhões da Brigada Militar); dividiu a cidade em vinte
e cinco quarteirões sanitários, com cada quarteirão possuindo um médico
auxiliado pelos alunos da Faculdade de Medicina,...
Um órgão de caráter assistencialista criado pelo governo do Estado
durante o surto epidêmico foi o Comissariado de Abastecimento e Socorros
Alimentícios. Este órgão tinha por objetivo regularizar os serviços de abas-
tecimento aos hospitais públicos, mas também prestar socorros alimentícios
aos domicílios das pessoas mais pobres, que estivessem sofrendo com a ca-
rência de gêneros de primeira necessidade e de medicamentos.24
Os inspetores do Comissariado deveriam fazer o arrolamento das fa-
mílias ou indivíduos pobres que, por motivo de doença ou alguma outra causa
MXVWLÀFiYHOQmRHVWDYDPHPFRQGLo}HVGHSURYHUDVXDSUySULDVXEVLVWrQFLDH
em conseqüência, careciam de socorros alimentícios; organizar uma relação
GRVGRHQWHVTXHFDUHFHVVHPWDPEpPGHGLHWDVHPHGLFDPHQWRVYHULÀFDUVH
os doentes podiam receber convenientemente tratamento em seus domicílios,
ou se, por não oferecerem estes as necessárias condições higiênicas, seria pre-
ferível removê-los para um dos hospitais públicos.
Nos primeiros vinte dias de funcionamento do Comissariado de Abas-
tecimento, os inspetores atendiam a domicílio, mas, a partir do dia 21 de no-
YHPEURRJRYHUQRHVWDGXDOPRGLÀFRXVXDRUJDQL]DomR2IRUQHFLPHQWRGH
gêneros alimentícios à população não se daria mais a domicílio, mas através
de armazéns instalados em postos de socorros, localizados em vários pontos
da cidade. Segundo o jornal “A Federação”:
[...] a distribuição a domicílio já perdeu a sua razão de ser, não persis-
tindo o seu motivo determinante, pois que com o declínio da epidemia
e o restabelecimento dos primeiros atacados, poucas serão talvez as
famílias que se acharão, hoje, na impossibilidade de procurar os re-
cursos que o Estado continua a fornecer, e essas poucas, porventura
H[LVWHQWHVQmRÀFDUmRQRDEDQGRQRQDGDREVWDQGRTXHVHMDPVRFRU-
ridas em domicílio.25
235
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
AS AÇÕES DA SOCIEDADE
A
sociedade porto-alegrense acabou criando redes de solidarie-
dade para tentar ajudar de alguma forma na superação dos
problemas criados ou agravados pela epidemia. Cada grupo
que participou desta mobilização desenvolveu a sua maneira de ajudar ou de
pedir ajuda. Houve também pessoas que, isoladamente, ofereceram ao gover-
no seus imóveis, para que neles fossem instalados hospitais ou enfermarias,
RXTXHÀ]HUDPGRDo}HVHPGLQKHLURSDUDDTXHOHVTXHHVWDYDPHIHWLYDPHQWH
ajudando no combate à situação epidêmica.
$OJXQVFRPHUFLDQWHVGDFLGDGHSRUH[HPSORÀ]HUDPGRDo}HVGHJr-
neros alimentícios ao governo, para serem entregues aos necessitados pelo
Comissariado de Abastecimento, como noticiou o jornal “Correio do Povo”,
na coluna intitulada “Doações de Gêneros”:
236
Comerciantes atacadistas e varejistas tem oferecido ao Comissariado
de Abastecimentos regulares quantias de mercadorias para serem dis-
tribuídas entre os pobres.29
237
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
A
primeira entidade a se mobilizar para combater a epidemia, e
em torno da qual se formou uma das redes de solidariedade
surgida no período epidêmico, foi a Escola Médico-Cirúrgica
de Porto Alegre. Essa instituição possuía uma Policlínica, que servia de local
de estudos práticos aos alunos e fornecia gratuitamente serviços médicos, far-
macêuticos e dentários aos pobres. Na época da epidemia, a Escola ampliou
estes serviços, tendo um papel fundamental para o atendimento e medicaliza-
ção dos pobres que haviam sido infectados pela gripe. O jornal “A Federação”
noticiou o início dos novos serviços:
Interessada em secundar os esforços do Governo do Estado, a Esco-
OD0pGLFR&LU~UJLFDDFDEDGHFULDUXPSRVWRSHUPDQHQWHFRPRÀP
de ministrar socorros médicos e medicamentos gratuitos à população
pobre, atacada pelo mal. Várias turmas, compostas de estudantes de
VpULHVVXSHULRUHVFKHÀDGRVSRUPpGLFRVSHUFRUUHUmRRVGRPLFtOLRVGH
enfermos de determinadas zonas da cidade [...] O posto médico aten-
GHUiWDQWRGXUDQWHRGLDFRPRDQRLWHRVFKDPDGRVTXHVHÀ]HUHP
para sua sede, na Policlínica da Escola.33
238
MAÇONARIA
A
Maçonaria de Porto Alegre, através da loja “Grande Orien-
te do Rio Grande do Sul”, iniciou sua atuação no combate
à epidemia oferecendo, primeiramente, auxílio às famílias de
maçons doentes.36 Porém, com o agravamento da epidemia e com o pedido
de auxílio por parte de não-maçons, a entidade acabou estendendo as suas
atividades para a população necessitada em geral. No dia 10 de novembro, o
“Correio do Povo” noticiou que:
Tem sido grande o número de pedidos de socorros e auxílios rece-
bidos nos últimos dias na secretaria do Grande Oriente, quer para
famílias de maçons, quer para profanos necessitados em geral e todos
eles tem sido atendidos com a possível brevidade. [...] A Maçonaria
vai iniciar, ampliando a sua ação de socorros, a distribuição gratuita
GHJrQHURVDOLPHQWtFLRVjSREUH]DWHQGRSDUDHVWHÀPDSHODGRFRP
sucesso, para negociantes desta praça que se prestem a auxiliar carido-
samente a iniciativa da Instituição.37
239
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O
último grupo a se mobilizar para prestar auxílio aos neces-
sitados durante o período epidêmico foi a Federação Ope-
rária do Rio Grande do Sul (a FORGS). Os componentes
da FORGS se reuniram apenas no dia 15 de novembro, “por achar-se parte
de seus membros atacados da terrível moléstia, que tantas vidas vem ceifan-
do, no presente momento.”40 Após se reunirem, distribuíram pela cidade um
boletim informando sobre as providencias a serem tomadas pelo grupo. O
boletim informa ter chegado ao conhecimento da instituição que famílias de
operários estavam em precárias condições, mesmo com o governo prestando
auxílio aos necessitados. Por isso, a entidade decidiu distribuir gêneros tanto
para os operários que necessitarem, como para as demais pessoas pobres.
Para realizar essa ação, a Federação também passou a pedir recursos a quem
pudesse dar.41
Além de auxílio material, a FORGS se preocupou também em encon-
trar auxílio médico aos operários sem condições para arcar com seu tratamen-
to, recebendo promessas de atendimento pela Escola Médico-Cirúrgica e pela
Sociedade Médico Rio-Grandense.
Com o passar dos dias, a FORGS aumentava o número de seus colabo-
radores. A Companhia Força e Luz pôs à disposição da FORGS passes para
os operários que estavam servindo nas diversas comissões de socorros aos
necessitados.42 Já a Livraria do Globo:
[...] além de imprimir gratuitamente os cartões, listas e boletins, está
pagando os vencimentos aos seus operários que fazem parte das co-
missões que estão trabalhando na distribuição de gêneros.43
240
Uma preocupação da FORGS foi com relação à situação de seus mem-
bros, que estavam auxiliando na campanha de ajuda aos pobres, e que para
isso estavam afastados de seus empregos. No dia 21 de novembro, o “Correio
do Povo” informou sobre a circular enviada aos empregadores dos membros
da entidade. Diz a circular:
Como não ignorais, a Federação tomou a si o grande e generoso en-
cargo, nomeando uma comissão composta de seus membros, os quais
JHQHURVDPHQWHWXGRIDUmRVHPUHPXQHUDomRDOJXPDSDUDRVÀQVTXH
v.s. naturalmente sois sabedor. Esta, de acordo com o exposto, re-
solverá o que estiver no seu alcance. Portanto, apela para os vossos
sentimentos caritativos, na qualidade de patrão dos nossos incansá-
veis companheiros (vossos empregados) nesta jornada, benemérita,
SHGLQGRQmRVRPHQWHDOLFHQoDDWpRÀPGHVXDQREUHPLVVmRFRPR
também os seus respectivos ordenados. Conhecedora de perto de alto
JUDXGHÀODQWURSLDGHYVYHPFRQYLFWDGHVHUDWHQGLGDQHVWHMXVWR
SHGLGRSRLVVHXÀPpEHORpQREUHHpKXPDQR45
241
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
CONSIDERAÇÕES FINAIS
U
m Manifesto da União Maximalista46 traz a interpretação da
generosidade do governo e dos empresários em não deixar os
pobres morrerem durante a epidemia:
Não há conveniência alguma à burguesia deixar morrer um número
avultado de seu rebanho – operários – porque, se supusermos que a
epidemia possa matar [...] a metade da classe obreira, admitindo que
fossem ainda os atuais desocupados, isso equivaleria à perda quase
total da concorrência braçal, a qual tem sido a causa da contínua dimi-
nuição dos salários. Ora, burguesmentes esse negócio não pode servir,
porque saído o operariado abatido pela enfermidade e reduzido à me-
WDGHWHUiFRPFHUWH]DTXHPHGLWDUDFRPSUHHQGHUSRUÀPPDQGDQGR
ás favas o medo da concorrência braçal, ditando ao mesmo tempo o
preço de seu trabalho à burguesia.47
242
intenção de minorar a situação. Facilitou-se os gêneros, rebaixando-se
seus custos; o governo criou postos de socorros; o comércio ajudou
poderosamente para a extinção da miséria.48
243
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
%(578&&,/LDQH0DULD,QÁXHQ]DDPHGLFLQDHQIHUPDFLrQFLDHSUiWLFDVGHFXUD
na época da gripe espanhola em São Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
BRITO, Nara Azevedo de. La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio
de Janeiro. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v.4, n.1, p.11-30, mar.-jun., 1997.
244
6,/9$-5$GKHPDU/RXUHQoRGD´3RYR7UDEDOKDGRUHVµWXPXOWRVHPRYLPHQWR
operário (estudo centrado em Porto Alegre, 1917). Porto Alegre: UFRG, 1994.
Dissertação (Mestrado em História), IFCH, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, 1994.
245
A EXCLUSÃO SOCIAL A PARTIR DA ROTULAÇÃO
DE PATOLOGIAS (IJUÍ, 1920-1940)
Alisson Droppa*
ʌ Resumo: Este trabalho visa analisar as práticas de sociais desenvolvidas no município
de Ijuí, no interior do Estado do Rio Grande do Sul, apresentando como objeto de estudo as
práticas de controle às populações. Foram utilizados como fontes, documentos relacionados à
prefeitura municipal de Ijuí que se encontram no MADP – Museu Antropológico Diretor Pes-
tana, no AI - Arquivo Ijuí.
ʌ Palavras-chave: Doenças- Alcoolismo- Exclusão.
A
temática da exclusão dos portadores de doenças psíquicas e
dos consumidores de álcool está ligada à forma de controle
das populações, no paradigma eugenista instalado no Brasil no
início do século XX. Este paradigma tinha como princípio a modulação dos
membros da sociedade em um estereótipo determinado pelo sistema capita-
lista de trabalhador. O sujeito normal seria aquele que sairia de casa para o
trabalho todos os dias, sem causar nenhum desvio na perspectiva desenhada
pelos setores dominantes.
Para empreender a presente análise levaremos em consideração os
estudos anteriormente realizados em relação ao processo de exclusão do meio
social dos portadores de doenças psíquicas, atribuindo referência ao trabalho
da professora Vera Lucia Miron, que em sua tese de douramento analisou pela
perspectiva da enfermagem as práticas de segregação desenvolvidas no muni-
cípio de Ijuí na primeira metade do século XX, optamos em realizar um resga-
WHKLVWRULRJUiÀFRGHVVDVSUiWLFDV3DUDWDQWRXWLOL]DPRVXPDJDPDYDULDGDGH
fontes: processos criminais e encaminhamentos ao Hospital Psiquiátrico São
Pedro disponíveis no Arquivo Público do Rio Grande do Sul, notícias e arti-
gos publicados no jornal Correio Serrano de circulação no município de Ijuí.
O Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, onde está localizado
Ijuí, recebeu no início do século XX um grande contingente de imigrantes
vindos com o intuito de ocupar um espaço de fronteira política, que foi foco
de disputa entre os países da chamada bacia do Rio da Prata durante muitos
anos. Esses imigrantes também vinham com o objetivo de instalar uma agri-
cultura moderna, já que, na visão preconceituosa dos dirigentes políticos da
247
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
248
Louco, alienado, débil mental, demente, doente mental. Nos registros
escritos encontrados esses são os termos que denominam as pessoas
que passam por situações vinculadas ao campo dos distúrbios psíqui-
cos. As mesmas expressões reproduzem-se nos depoimentos orais de
IDPLOLDUHVSROLFLDLVSURÀVVLRQDLVGHVD~GHHQWUHYLVWDGRV$OpPGHVVDV
é comum o uso das expressões “sofrendo das faculdades mentais” e
“atacado das faculdades mentais” que acompanham as cartas de apre-
sentação ao Hospital São Pedro.3
VHUYDUDLGHQWLGDGHGRVXMHLWRVHQGRRQRPHDWULEXtGRDRPHVPRÀFWtFLR
4 Auto denominação para representar a cidade, escolhida através de um concurso local na década de 30, analisado pela
Historiadora Regina Weber em Os Operários e a Colméia.
249
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
250
2EVHUYDVHDLQWHQVLÀFDomRGDFDPSDQKDFRQWUDRFRQVXPRGHiOFR-
ol, considerado a substância responsável pela degradação social. O discur-
VRDQWLDOFRyOLFRMXVWLÀFDULDDGHJUDGDomRVRFLDOGRVPHPEURVGDVRFLHGDGH
acometidos pôr tal substância que então deveriam de ser excluídos, com o
intuito de serem tratado, enquadrados na perspectiva do que Foucault chama
de processo de Asilamento.8
Além das constantes prisões e encaminhamentos ao Hospital Psiquiá-
trico São Pedro a campanha contra o álcool também se torna evidente;
É sabido que o alcool é um dos grandes inimigos da humanidade, não
só pelos estragos que causa à saude de quem delle usa como tambem
pelas consequencias desastrosas às quaes leva os que se lhe tornam
escravos. Inumeros delictos contra a vida, contra a moral e contra a
saude são comettidos em estado de embriaguez.9
251
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
252
FONTES CONSULTADAS
Processos Criminais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LE GOFF, J. A história nova. In. LE GOFF, J. A história nova. 3.ed., São Paulo,
Martins Fontes, 1995.
ZARTH, P.A. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí:
UNIJUI, 2002.
___________+LVWyULDUHJLRQDOKLVWyULDJOREDOXPDKLVWyULDVRFLDOGDDJULFXOWXUDQRQRURHVWH
GR5LR*UDQGHGR6XO%UDVLO In.: História debates e tendências. Passo Fundo: UPF,
1999.
253
5
CLASSE, JUSTIÇA E GUERRA CIVIL
O “ESPÍRITO DE ASSOCIAÇÃO” CONSTRUINDO A CLASSE:
O CASO DA SOCIEDADE PROMOTORA DA INDÚSTRIA
RIO-GRANDENSE (RIO GRANDE, 1832-1834)
Álvaro Antonio Klafke*
ʌ Resumo: O texto analisa a constituição da Sociedade Promotora da Indústria Rio-gran-
dense, associação de elite formada principalmente por comerciantes, fundada em 1832, na Vila de
Rio Grande. O estudo é realizado considerando a ampliação dos espaços e mecanismos públicos
de discussão e pressão política vividos no período. Procura-se ressaltar o caráter político de uma
DVVRFLDomRTXHGHIHQGHQGRVHXVLQWHUHVVHVHVSHFtÀFRVMiPRVWUDYDXPSRXFRGDVIRUPDVTXH
DVVXPLULDPRVFRQÁLWRVGHFODVVHTXHPDUFDPQRVVDKLVWyULD
ʌ Palavras-chave: Sociabilidade – associativismo – elites – classe – Estado imperial.
O
estudo das associações – e seus periódicos – das primeiras
décadas do século XIX implica considerar todo um quadro
de mudanças culturais que, grosso modo, pode-se caracte-
rizar como sendo a emergência de atores sociais modernos, em detrimento
GDTXHOHVLGHQWLÀFDGRVFRPRTXHVHFRQYHQFLRQRXFKDPDUGHVRFLHGDGHGH
Antigo Regime.1 François-Xavier Guerra, abordando este tema no contexto
da América hispânica, sustenta que novas formas de sociabilidade, originárias
da ascensão do individualismo, conduzem a uma nova visão da política:
Una política que exigirá un esfuerzo permanente para transformar la
heterogeneidad de los actores sociales en la unidad de la opinión, del
interés o de la voluntad generales. Lo que también exigirá un personal
especializado en esa función, los hombres políticos, y una competición
para apropiarse de la legitimidad salida del nuevo soberano, el pueblo.
Competición en la que el discurso desempeña un papel fundamental,
puesto que la palabra pueblo remite aquí a un ente abstracto y homo-
géneo, mientras que, contrariamente a él, la sociedad no es más que
pura diversidad.2
* Doutorando em História – UFRGS. Trabalho realizado com o apoio do CNPq-Brasil.
(VWDGLIHUHQFLDomRQmRSUHVXPHLJQRUDUDSHUPDQrQFLDGRVWUDoRVGH$QWLJR5HJLPHTXHDSHVDUGDFRPSOH[LÀFDomR
da sociedade, permaneceram e marcaram profundamente o Império do Brasil. Veja-se, a este respeito FLORENTINO,
Manolo e FRAGOSO, João. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma
economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790- c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Sobre o Antigo
Regime em Portugal, importante por conter elementos vigentes também na América portuguesa: MONTEIRO, Nuno
Gonçalo Freitas. Elites e poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais do Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2003.
2 GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. 3. Ed. México:
FCE/MAPFRE, 2001, p. 91.
257
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
3 MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Impe-
rial, 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 268.
4 Um estudo mais detalhado sobre a Sociedade Promotora, e principalmente sobre o periódico mantido pela entidade
– O Propagador da Indústria Rio-grandense – fonte básica para a análise da sua atuação, encontra-se na dissertação de
mestrado na qual este texto está baseado: KLAFKE, Álvaro Antonio. O Império na província: construção do Estado
nacional nas páginas de O Propagador da Indústria Rio-grandense – 1833-1834. Porto Alegre: UFRGS, PPG em História,
2006. (dissertação de mestrado inédita)
5 Manifestavam-se, já neste período, as divergências que culminariam na Revolução Farroupilha. Veja-se, entre outros
GUAZZELLI, César Augusto Barcelos. O horizonte da província: a República Rio-Grandense e os caudilhos do Rio da
Prata (1835-1845). Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 1997 (tese de doutorado inédita) e LEITMAN, Spencer. Raízes sócio-
econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
6 GUERRA, F.X. Modernidad e independencias...Op. cit., p. 239.
258
aqui colocada menos no aspecto político do que em um plano cultural mais
amplo. Trata-se de destacar a percepção, pelos contemporâneos, de se estar
vivendo um novo momento histórico. Não obstante, no caso da Sociedade
3URPRWRUDRTXHWUDQVSDUHFHpTXHRFRPSRQHQWHOLJDGRjLQÁXrQFLDGD(UD
das Revoluções,7 então sendo vivenciada, foi mitigado em favor de um refor-
mismo ilustrado. Assim, privilegiava-se antes o gradualismo das Luzes do que
as rupturas, mas sem nunca deixar de perceber e frisar que se inauguravam
novos tempos, e o Brasil “nascia” como entidade política soberana.
DE ELITES À CLASSE
A
s considerações anteriores não pressupõem uma visão da atu-
ação da Sociedade Promotora baseada exclusivamente na ar-
ticulação entre o discurso e um determinado padrão cultural
de um grupo. Fundamenta-se também na consideração da posição social dos
atores que a compunham. O enfoque político privilegiado está longe de signi-
ÀFDUXPDQHJDomRRXXPDGLPLQXLomRGRVDVSHFWRVHFRQ{PLFRVFRUUHVSRQ-
dendo antes a uma aspiração de análise mais abrangente. Esta abrangência é
GHWHUPLQDGDHMXVWLÀFDGDSHODSUySULDPDQHLUDFRPRRVLQGLYtGXRV²PHP-
bros da Sociedade Promotora – asseguravam seu espaço na rígida estrutu-
ra social do período, inserindo-se simultaneamente em vários “círculos” de
OHJLWLPDomR$VLPSOHVLGHQWLÀFDomRGDVSHVVRDVTXHFRPS}HPD6RFLHGDGH
Promotora permite que se utilize, genericamente, a expressão “elite regional”
SDUDFDUDFWHUL]DUHVVHJUXSRGHÀQLGRSHORGHVWDTXHGHVHXVFDUJRVHYLQFX-
lações políticas e pelo considerável volume dos cabedais envolvidos em suas
atividades econômicas. No entanto, é necessário tentar avançar na discussão
sobre a forma como essa elite vinculava-se aos grupos diretivos de outras par-
tes do Império que, naquele momento, estavam empenhados no que os pró-
prios contemporâneos reconheciam como sendo o trabalho de construção de
uma nação. Assim, quando são usadas as imprecisas expressões “elite”, “elite
provincial” ou similares, devemos ter em mente o momento de construção de
um determinado tipo de Estado que impunha a necessidade de acomodação
nos vários níveis do poder político e econômico.8 Essa acomodação, que não
desconsiderava, é claro, o potencial de disputa que havia entre os vários gru-
7 Cf. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções – 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
8 O que implica considerar as hierarquias. Neste sentido tem razão Nuno Monteiro, que, ao analisar o processo de mo-
dernização das instituições portuguesas, apesar de utilizar “o termo mais inócuo e mais ambivalente de elites” destaca a
hierarquização entre os grupos sociais concretos envolvidos. MONTEIRO, N. Elites e poder...Op. cit., p. 43.
259
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
SRVGHHOLWHVHGDYDVREUHXPDEDVHGHLGHQWLGDGHFRPXPGHFODVVHDÀUPDGD
no pertencimento a um estrato superior. E agora já abrangendo todo o Im-
pério, radicalmente diferenciado das “classes perigosas” (escravos e pobres),
diferenciação que era, em grande medida, o fator de coesão mais forte contra
a dispersão em unidades autônomas.
Ilmar Mattos, em O Tempo Saquarema, analisa os mecanismos através
dos quais as elites imperiais trataram de adequar os seus interesses com os
interesses capitalistas dominantes, porém mantendo suas “singularidades”,
especialmente, é claro, o trabalho escravo. Esse movimento, que demandava
uma certa homogeneização de interesses e diferenciação em relação a outros
grupos, estava na base do processo através do qual se constituía a “classe
senhorial”:
Intimamente ligados ao aparelho de Estado, expandiam seus interes-
ses, procuravam exercitar uma direção e impunham uma dominação.
No momento em que se propunham a tarefa de construção de um
Estado soberano, levavam a cabo o seu próprio forjar enquanto classe,
transbordando da organização e direção da atividade econômica me-
ramente para a organização e direção de toda a sociedade, gerando o
conjunto de elementos indispensáveis à sua ação de classe dirigente e
dominante. Não se constituindo unicamente dos plantadores escravis-
tas, mas também dos comerciantes que lhes viabilizavam e, por vezes,
com eles se confundiam de maneira indiscernível, além dos setores
burocráticos que tornam possíveis as necessárias articulações entre
política e negócios, a classe senhorial se distinguiria nesta trajetória
por apresentar o processo no qual se forjava por meio do processo de
construção do Estado imperial.9
9 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 5. Ed. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 57.
10 Fazendo referência a esse processo, e apoiando-se em E. P. Thompson, diz Mattos que “a natureza da classe e seus
elementos de coesão – sua identidade, em suma – aparecem como resultados de experiências comuns vividas por deter-
PLQDGRVKRPHQVH[SHULrQFLDVHVVDVTXHOKHVSRVVLELOLWDPVHQWLUHLGHQWLÀFDUVHXVLQWHUHVVHVFRPRDOJRTXHOKHVpFRPXP
e dessa forma contrapor-se a outros grupos de homens cujos interesses são diferentes e mesmo antagônicos aos seus”.
MATTOS, I. O Tempo Saquarema. Op. cit., p. 16
260
propriamente histórica, no qual “os que tinham intenção de não apenas domi-
ná-la, mas sobretudo dirigi-la, erigiram como questões a origem e a instituição
da própria sociedade”.11 Tempo este revestido de características peculiares que
determinaram não só a construção de um “passado” para o Império do Brasil
como efetivamente instituiu um determinado tipo de organização social que
LQÁXLXQRGLUHFLRQDPHQWRGDVJUDQGHVTXHVW}HVGDYLGD´QDFLRQDOµ&RQWRX
na sua construção, com o aporte de grupos de elite como o que formou a So-
ciedade Promotora e o Propagador da Indústria Rio-grandense.
TRAMA DE SOCIABILIDADES
A
s estratégias de inserção desse conjunto de “cidadãos
ilustrados” no processo maior de instituição da própria
sociedade, podem ser percebidas na análise da confor-
mação da Sociedade.12
Inicialmente, deve-se destacar que, dos sócios conhecidos, 17 apa-
UHFHP LGHQWLÀFDGRV FRPR FRPHUFLDQWHV FRPR ID]HQGHLURV RX HVWDQFLHL-
ros, 3 como charqueadores e 3 como militares de carreira, independente de
exercerem mais de uma dessas atividades simultaneamente.13 O predomínio
dos comerciantes é inconteste, mesmo considerando eventuais lacunas nas
LQIRUPDo}HV(VWHUHJLVWURpLPSRUWDQWHSRUTXHFRQÀJXUDRJUXSRPDLVUH-
11 Ibidem, p. 296.
8POHYDQWDPHQWRGHLQIRUPDo}HVELRJUiÀFDVVREUHRVFRPSRQHQWHVGD6RFLHGDGH3URPRWRUDIRLUHDOL]DGRQDPLQKDMi
citada dissertação de mestrado. Os limites deste texto impedem a sua reprodução, mas faz-se necessário citá-los nominal-
PHQWHSDUDRDFRPSDQKDPHQWRGDDQiOLVHGRVVHXVYtQFXORVHUHODo}HV6mRDVVRFLDGRVLGHQWLÀFDGRV$QDFOHWR-RVpGH
Medeiros, Anselmo José Pereira, Antonio Correia de Mello, Antonio de Moraes Figueiredo Viseu, Antonio José Affonso
Guimarães, Antonio Teixeira de Magalhães, Bento Gonçalves da Silva, Domingos Rodrigues Ribas, Faustino José Correia,
Francisco das Chagas Santos, Francisco Vieira Braga, Francisco Xavier Ferreira, Gabriel Martins Bastos, Hayes Engerer
e Cia, Ignácio de Oliveira Guimarães, João Alves Pereira, João da Costa Gularte, João de Miranda Ribeiro, João Francisco
Vieira Braga, João Jacintho de Mendonça, José Correia Mirapalheta, José do Brum da Silveira, José dos Santos Magano,
José Joaquim da Cunha, José Luiz Augusto da Silva, José Maria de Sá, José Rodrigues de Oliveira, Manoel Francisco
Moreira, Manoel Vieira da Cunha, Matheus Gomes Vianna, Pedro Rodrigues Fernandes Chaves, Porfírio Ferreira Nunes,
6HEDVWLmR%DUUHWR3HUHLUD3LQWR6HUDÀPGH3DXOD)UHLUH9DVFR0DGUXJDGH%LWDQFXUWH9LFHQWH0DQRHO G·(VStQGROD
KLAFKE, A. O Império na Província...Op. cit., pp. 24-27.
(VWHVGDGRVELRJUiÀFRVIRUDPREWLGRVHPYiULDVIRQWHVGLVSHUVDVDOpPGLVVRPXLWDVGHVWDVSHVVRDVSRVVXHPXPD
ELRJUDÀDDPSODPHQWHFRQKHFLGD2SWHLSRUID]HUXPDSDQKDGRJHUDOGHLQIRUPDo}HVHFLWDUDTXLDVSULQFLSDLVIRQWHV
utilizadas: Correspondência da Câmara de Vereadores de Rio Grande, Livros de Notas de Rio Grande, Anais do AHRGS
(vol. 1 a 12), O Noticiador (1832-1836), O Propagador da Indústria Rio-grandense (1833-1834). Principais fontes biblio-
JUiÀFDV$,7$&DUPHP$;7*XQWHU$5$Ó-29ODGLPLURUJ3DUODPHQWDUHV*D~FKRVGDV&RUWHVGH/LVERDDRVQRV-
sos dias:1821-1996. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 1996. BLAKE, Augusto Victorino Alves
Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883-1902 (7 vol.). PIMEN-
7(/)RUWXQDWR$VSHFWRV*HUDLVGRPXQLFtSLRGH5LR*UDQGH3RUWR$OHJUH2ÀFLQDJUiÀFDGD,PSUHQVD2ÀFLDO
RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Vultos e fatos da Revolução Farroupilha. Brasília: Imprensa Nacional, 1990. ROSA,
2WKHOR9XOWRVGDHSRSpLDIDUURXSLOKD(VFRUoRVELRJUiÀFRV3RUWR$OHJUH*ORER63$/',1*:DOWHU5HYROXomR
Farroupilha. Triunfo: Petroquímica Triunfo S/A, 1987. A pesquisa também foi complementada com uma busca pelos
inventários post-mortem dessas pessoas, realizada na documentação dos cartórios de Órfãos e Ausentes, e Cível e Crime
de Rio Grande e Pelotas. Obtive os inventários de 16 dos sócios, no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
261
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
262
Francisco Vieira Braga e cunhado de Domingos Rodrigues Ribas. Os irmãos
Braga eram primos de Pedro Rodrigues Fernandes Chaves e cunhados de
Antonio José Affonso Guimarães (Guimarães, é importante destacar, era so-
gro do presidente da província Antonio Rodrigues Fernandes Braga, deposto
pelos farrapos em 1835; este, por sua vez, era irmão de Pedro Rodrigues
Fernandes Chaves). João Jacintho de Mendonça era sogro de Manoel Fran-
cisco Moreira, Faustino José Correa era sogro de João Correa Mirapalheta, e
Francisco Xavier Ferreira era tio de Domingos Rodrigues Ribas. Ignácio de
2OLYHLUD*XLPDUmHVFDVRXVHHPVHJXQGDVQ~SFLDVFRPXPDÀOKDGH%HQ-
to Gonçalves da Silva. Essa proximidade anterior e posterior à associação é
reveladora da mescla de comportamentos tradicionais e modernos, apontada
por François-Xavier Guerra como característica das formas de sociabilidade
no mundo hispânico, mas que também pode ser estendida a essa situação
particular. Para o autor, que está se referindo mais às associações políticas, as
solidariedades internas de grupos estruturados por fatores como parentes-
co ou amizade são limitadoras, porque freqüentemente incongruentes com
a lógica individual das novas sociabilidades, segundo a qual as relações entre
seus membros deveriam escapar às paixões e se reger unicamente pelas leis
da razão.17 No caso da Sociedade Promotora, entretanto, parece haver uma
base econômica fundada nos negócios em comum e nas sociedades entre
seus membros. Assim, as ligações parentais atuariam como reforço de coesão
de uma atuação política em grande medida pautada por interesses concretos.
Nesse sentido, a aproximação entre seus membros, mesmo que fundamenta-
das em relações pessoais, não estaria em contradição com as “leis da razão”.
Para além de sobrevivências das sociabilidades típicas de estruturas de
Antigo Regime, a trama de parentesco revela também, quando analisada re-
trospectivamente, uma relativa permanência de um mesmo grupo social em
SRVLomRGHGHVWDTXH6HLVGHVVHVKRPHQVHUDPÀOKRVGHFRPHUFLDQWHVTXHMi
apareciam, em 1808, no rol de negociantes do “Almanak da Villa de Porto
Alegre”, de Manoel Antônio de Magalhães. Parte da Sociedade Promotora,
portanto, era composta por uma nova geração de famílias que já estavam
econômica e socialmente bem estabelecidas mesmo antes da Independência.18
17 GUERRA, F.X. Modernidad e independencias...Op. cit., p. 93.
18 No almanaque, constam como comerciantes em Rio Grande os nomes de Domingos Rodrigues, José de Oliveira
Guimarães, José Vieira da Cunha, Baltazar Gomes Vianna, Manuel Ferreira Nunes e João Francisco Vieira Braga. Estes
homens eram, respectivamente, pais de Domingos Rodrigues Ribas, Ignácio de Oliveira Guimarães, Manoel Vieira da
Cunha, Matheus Gomes Vianna, Porfírio Ferreira Nunes e João Francisco Vieira Braga, membros da Sociedade Promoto-
UD$ÀOLDomRIRLGHWHUPLQDGDJUDoDVDRFUX]DPHQWRFRPREDQFRGHGDGRVLQYHQWiULRVGLVSRQLELOL]DGRVSHODSURI+HOHQ
2VyULR$VOLVWDVGR´$OPDQDNGD9LOODGH3RUWR$OHJUHFRPUHÁH[}HVVREUHRHVWDGRGDFDSLWDQLDGR5LR*UDQGHGR6XOµ
de Manoel Antonio de Magalhães, são devidas a FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior
de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980, pp. 94-97.
263
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
264
Ignácio, por sua vez, devia muito dinheiro a Francisco Vieira Braga. João da
Costa Gularte era credor de Vicente Manoel d’Espíndola, e José dos Santos
Magano tinha créditos com Antonio Teixeira de Magalhães e Porfírio Ferreira
Nunes. Anselmo José Pereira devia a Antonio José Affonso Guimarães, a
João Francisco Vieira Braga e a João de Miranda Ribeiro. É grande o número
de ocasiões nas quais aparece a assinatura, como testemunha ou procurador,
de membros da Sociedade Promotora em processos e ações que envolvem
seus membros, evidenciando uma rede de relações que se mantém por déca-
das após a fundação da efêmera Sociedade.
A constituição desse grupo e as relações detectadas entre as pessoas
que o compunham apontam para uma rede cujo centro de coesão era a praça
comercial de Rio Grande. Dois fatores, entretanto, fazem com que se possa
pensar a sua atuação em um horizonte mais amplo do que o local: a natureza
de seus negócios e o desempenho em cargos políticos. Quanto às ativida-
des econômicas, já foi salientado o predomínio dos comerciantes de “grosso
trato”.23 A esses se impunha, naturalmente, uma atenção aos circuitos mais
amplos da economia nacional e mundial, conferindo à associação um cará-
ter mais abrangente. A reforçar esta percepção, ou antes, complementando-
a, cabe ressaltar as carreiras políticas dessas pessoas. A despeito do grande
número de vereadores (o que não é pouca coisa, diga-se de passagem, em
uma sociedade extremamente excludente), vemos que, nos anos anteriores, e
principalmente posteriores ao período de existência da Sociedade Promotora,
vários de seus membros participaram das Assembléias Provincial e Geral, ob-
tiveram títulos e condecorações nobiliárquicas e administraram outras provín-
cias do Império. Tudo isto demonstra a existência de relações que ultrapassam
RkPELWRGDSURYtQFLDHPDLVVLJQLÀFDWLYRSHUPLWHSHQVDUDDWLYLGDGHFROHWLYD
do grupo para além da defesa de interesses meramente locais.
23 Evidentemente que em nível inferior aos grandes comerciantes da Corte, conforme já o demonstrou, para um período
um pouco anterior, Helen Osório. A pesquisa da autora indica o maior poderio econômico dos comerciantes: “Portanto,
SRGHVH LGHQWLÀFDU RV QHJRFLDQWHV FRPR D HOLWH HFRQ{PLFD GR 5LR *UDQGH GH 6mR 3HGUR H FRPR JUXSR RFXSDFLRQDO
diverso dos grandes proprietários de terra e gado”. p. 247. Ao mesmo tempo, estabelece uma hierarquia nas relações dos
comerciantes locais com os do Rio de Janeiro, estando os rio-grandenses em “posição subalterna, restando-lhes o papel
de administradores ou correspondentes”. OSÓRIO, H. Estancieiros, lavradores e comerciantes...Op. cit., p. 298. O que
SDUHFHQmRWHUPXGDGRVLJQLÀFDWLYDPHQWHPHVPRSDUDXPSHUtRGRPDLVSUy[LPRDRDERUGDGRDTXLFRQIRUPHRPRVWUD
João Fragoso. FRAGOSO, J. Homens de grossa aventura...Op. cit.
265
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
DA PROVÍNCIA AO IMPÉRIO
U
PD VtQWHVH GDV LQIRUPDo}HV ELRJUiÀFDV REWLGDV VREUH HVVHV
indivíduos indica que a Sociedade era, então, majoritariamen-
te composta por negociantes, muitos dedicados ao comércio
de importação e exportação, com relações estabelecidas fora da província e
que ultrapassavam, por vezes, os limites do Império. Era intensa a atividade
política da maioria dos seus sócios. Estavam socialmente “estabelecidos” já
há algum tempo, e continuaram depois do período de existência da entidade,
como sugere o acompanhamento da história familiar de alguns desses ho-
mens. Seu centro de atuação era a vila de Rio Grande, onde se concentrava
o núcleo diretivo, o que não diminuía a pretensão de ter uma abrangência
provincial, conferida pelos sócios residentes em Porto Alegre, São Francisco
de Paula (atual Pelotas) e localidades de fronteira, como Jaguarão.
Essa elite provincial, através da sua rede de relações, extrapolava esse
kPELWRYHQGRVHHPSRVLomRGHLQÁXLUQRSURFHVVRGHFRQVWUXomRGR(VWDGR
e educação da sociedade, tendo como veículo O Propagador da Indústria Rio-
JUDQGHQVHDuas características ressaltam no discurso do periódico: estava vol-
tado para a Corte, discutindo as questões nacionais em detrimento dos temas
locais, buscando vincular-se às elites do centro do Império. Por outro lado,
insistia na diferenciação social e na liderança “natural” e justa a ser exercida
pelas “classes ilustradas”, das quais era porta-voz. Tal combinação de ele-
mentos embasa a visão da Sociedade como entidade de forte caráter político,
atuante na conformação e na defesa de uma classe dirigente em constituição,
ao passo em que, simultaneamente, construía também o Estado sobre o qual
erigiria seu domínio.
Esse processo, bem descrito por Ilmar Mattos, pode ser percebido
com anterioridade ao período do chamado “regresso”, no qual efetivamente
se consolidou a liderança conservadora. A Sociedade Promotora é um exem-
plo de um grupo empenhado, desde a província e imediatamente após a Ab-
dicação, em legitimar-se em uma posição dirigente. Para isto, buscava estreitar
seus laços, econômicos e políticos, com as elites da Corte, ao mesmo tempo
em que contrapunha-se aos segmentos subalternos – escravos e pobres em
JHUDO²DMXGDQGRDÀ[DURVSULQFtSLRVVREUHRVTXDLVDUtJLGDKLHUDUTXLDVRFLDO
do Império se assentava.
266
FONTES CONSULTADAS
Inventários:
Anacleto José de Medeiros – 1º Cart. Cível e Crime/Rio Grande. Nº 79, mç 4,
(1845).
Anselmo José Pereira – 1º Cart. Órfãos e Provedoria/Rio Grande. Nº 489, mç 21,
(1843).
Antonio Correa de Mello – 2º Cart. Cível e Crime/Rio Grande. Nº 131, mç 5,
(1860).
Antonio de Moraes Figueiredo Viseu – 1º Cart. Orf. e Prov./Pelotas. Nº 499, mç 33,
(1860).
Domingos Rodrigues Ribas – 1º Cart. Orf. e Prov./Pelotas. Nº 717, mç 44, (1870).
Faustino José Correa – 1º Cart. Orf. e Prov./Rio Grande. Nº 715, mç 34, (1855).
Francisco Vieira Braga – 1º Cart. Cível e Crime/Pelotas. Nº 61, mç 2, (1870).
Ignácio José de Oliveira Guimarães – 1º Cart. Orf. e Prov./Pelotas. Nº 310, mç 21,
(1852).
João da Costa Gularte – 1º Cart. Orf e Prov./Rio Grande. Nº 626, mç 31, (1853).
João Francisco Vieira Braga (pai) – 1º Cart. Orf. e Prov./Rio Grande. Nº 286, mç 20,
(1847).
João Jacintho de Mendonça – 2º Cart. Cível e Crime/Pelotas. Nº 41, mç 1, (1862).
João de Miranda Ribeiro – 1º Cart. Orf. e Prov./Rio Grande. Nº 1067, mç 50,
(1879).
José de Brum da Silveira – 1º Cart. Orf. e Prov./Rio Grande. Nº 662, mç 31, (1856).
José Rodrigues de Oliveira – 1º Cart. Orf. e Prov./ Rio Grande. Nº 542, mç 24,
(1848).
José dos Santos Magano – 1º Cart. Orf. e Prov./Rio Grande. Nº 707, mç 33, (1859).
Matheus Gomes Vianna – 1º Cart. Órfãos e Provedoria/Pelotas. Nº 263, mç 18,
(1846).
Vicente Manoel de Espíndola – 2º Cart. Cível e Crime/Rio Grande. Nº 179, mç 5,
(1873).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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da Civilização Brasileira. Dir. Sérgio Buarque de Holanda. Tomo II, vol. 2. 6ª Ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
267
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GRAHAM, Richard. Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões novas
e antigas sobre classe, cultura e Estado. In: Diálogos. V. 5, nº 1, 2001.
KLAFKE, Álvaro Antonio. O Império na província: construção do estado nacional nas páginas
GH23URSDJDGRUGD,QG~VWULD5LRJUDQGHQVH²Porto Alegre: UFRGS, PPG em
História, 2006. (dissertação de mestrado inédita)
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 5ª Ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
268
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades
QD&LGDGH,PSHULDO. São Paulo: Hucitec, 2005.
PICCOLO, Helga I. L. Vida política no século 19. Porto Alegre: Ed. Universidade/
UFRGS, 1998.
269
CRIMES SEMELHANTES, RÉUS E PENAS DIFERENTES:
UMA ANÁLISE SOBRE A JUSTIÇA BRASILEIRA A PARTIR
DE PROCESSOS CRIMES JULGADOS NO TRIBUNAL
DA RELAÇÃO DE PORTO ALEGRE, 1874-1889
A
pesar da Independência em 1822 e da Constituição em 1824,
quanto aos assuntos penais, o Brasil permanecia recorrendo
jOHJLVODomRSRUWXJXHVDPDLVHVSHFLÀFDPHQWHjV2UGHQDo}HV
Filipinas1 no seu Livro V, que “FRPRVVHXV7tWXORVHUDDOHLSHQDO²VXEVWDQWLYD
e processual, um verdadeiro ‘catálogo de monstruosidades’”, (Nequete, 2000:49) o pior
deles era o título 133 – Dos tormentos. Marcava tais leis o sentido desigual e
injusto; pois condenava hereges, apóstatas e blasfemos; ao mesmo tempo em
* Doutoranda em História – Programa de pós-graduação em história, PUCRS. Bolsista Cnpq.
1 A principal compilação jurídico-legislativa portuguesa foram as chamadas “ordenações do reino”, também conhecidas
como “leis gerais”, elas serviam como instrumento para operacionalizar as práticas político-administrativas, tanto metro-
politanas, quanto coloniais. Desde 1603, vigiam as Ordenações Filipinas que eram resultado de reformas feitas nas ante-
ULRUHVGHDV2UGHQDo}HV0DQXHOLQDVDVTXDLVWLYHUDPSRUEDVHDV2UGHQDo}HV$IRQVLQDVSULPHLUDFRPSLODomRRÀFLDO
de leis do século XV. As Ordenações Filipinas estavam organizadas em cinco livros, cada um deles tratava de diferentes
assuntos. O Livro I era uma espécie de “estatuto funcional”, onde havia os regimentos dos funcionários da justiça de todas
as hierarquias, com suas exigências, funções e obrigações. O Livro II determinava como seriam as relações do Estado com
a nobreza e o clero. Os últimos três livros se aproximavam mais de códigos jurídicos, o Livro III pode ser descrito como
uma espécie de “código de processo civil”; o Livro IV tratava de questões contratuais, tais como, testamentos, tutelas e
contratos. E o Livro V, mais conhecido e temido, apresentava as questões penais, as infrações e suas respectivas punições.
Gradativa-mente as leis brasileiras substituíam as Ordenações portuguesas. Durante todo o Império surgiram projetos
para o Código Civil, contudo, nenhum deles se efetivou, por isso, até 1916, ano da promulgação do primeiro Código Civil
Brasileiro, se recorria em algumas questões civis, às Ordenações Filipinas. A transcrição literal de todas as Ordenações
pode ser consultada in: www.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/
271
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
TXHGDYDLPXQLGDGHSDUDÀGDOJRVFDYDOHLURVGHVHPEDUJDGRUHVHHVFXGHLURV
Além do mais, as penas eram punitivas e não corretivas. Outra peculiaridade
GDV2UGHQDo}HVHUDDVXDÁH[LELOLGDGHOHJDO$SHVDUGHVHUXP&yGLJRHVFULWR
determinando penas e castigos, deixava precedente para a subjetividade do
jurista, ou seja, não existia o distanciamento legislador-julgador.
A Carta Constitucional de 1824 previa que seriam organizados novos
códigos e eles realmente eram necessários.2 Em 1826, se começava a ouvir
entre os legisladores discursos sobre a necessidade da elaboração de um có-
digo penal brasileiro e a Câmara resolveu empenhar-se em tal tarefa. No ano
seguinte, foram entregues dois projetos de código, um por Clemente Pereira
e outro por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Uma comissão foi organizada
para analisar as duas propostas e optou-se pela do segundo, não sem antes
se demorar alguns anos em discussões, sendo a principal delas referente à
pena capital. Tal questão, fora muito debatida, tanto no processo de votação,
enquanto o projeto tramitava no legislativo, quanto depois, ao longo do Im-
pério, mas não sofreu grandes mudanças.
O debate sobre a pena de morte estava na ordem do dia entre os con-
temporâneos, extrapolando os limites nacionais. Entre os principais argumen-
tos contra ela, estava aquele segundo o qual “o culpado, sendo privado da vida, não
tem tempo de reconhecer o mal por ele causado e qual o seu verdadeiro dever” (Pessoa,
1885:103). O indivíduo condenado a morte não pode redimir-se com a so-
ciedade, logo defendia-se o cumprimento da pena, mas que ela não fosse a
morte. As críticas ultrapassavam o fato de a pena ser capital, questionava-se a
utilização da forca como forma de execução: “tal publicidade não resulta a menor
moralidade? É bárbaro ver conduzir-se ao cadafalso um homem, com o maior aparato e os-
tentação, como um escárnio lançado no seio da civilização” (Pessoa, 1885:104). Aquele
início de século marcava a concretização de mudanças jurídicas que vinham
de longa data e o sistema prisional pretendia, além do encarceramento, ser
corretivo. Nesse contexto se insere a extinção do espetáculo punitivo que
teria sido “XPREMHWLYRPDLVRXPHQRVDOFDQoDGRQRSHUtRGRFRPSUHHQGLGRHQWUH
e 1848” (Foucault, 2002:17), logo, as Casas legislativas brasileiras estavam in-
seridas numa discussão além-fronteiras. Porém, não se pode esquecer uma
VLQJXODULGDGHQDFLRQDODHVFUDYLGmR&HUWDPHQWHD FRQÀDQoDQD ´H[HPSODU
punição com a vida” garantia tranqüilidade a muitos escravistas. Bem como
deve ter freado, em algumas ocasiões, a mão de escravos que podiam atentar
2 Art. 179, Inciso XVIII: “Organizar-se-á, quanto antes, um Código Civil e Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça
e eqüidade”. Constituição do Império do Brasil, 1824.
272
contra a vida de seus senhores. Por esse motivo, não seria tão simples abdicar
GHWmRHÀFLHQWHGLVSRVLWLYROHJDO$VVLPRWH[WRÀQDODSUHVHQWDGRHP
previa a pena de morte e enquanto aquele código vigorou, a pena não foi
legalmente extinta.
O Código Criminal de 1830 manteve algumas penas como as das Ordena-
ções, tais como: mutilação, açoites, degredo, morte; a diferença estava na forma de
aplicá-las: “2VWRUPHQWRVIRUDPDEROLGRVRÀFLDOPHQWHDVVLPFRPRVHFHUFHRXDSHQDGHPRUWH
para casos extremos, executada na forca” (Silva, 2003:227), ou seja, a mudança estava
na proporcionalidade. Houve “XQDGLVPLQXFLyQGHORVFDVWLJRVXQDPRGLÀFDFLyQGHJUDGR
“
más bien que de sustanciaµ)ORU\7DLV 7DLV´DEUDQGDPHQWRVµÀ]HUDPFRPTXH
´DEUDQGDPHQWRVµ À]HUDP FRP TXH
o novo código quando comparado com a lei vigente fosse louvado por sua “ins-
piração liberal e a atenção ao movimento reformista penal moderno” (Silva, 2003:227). Na
verdade, a maioria dos códigos que lhe eram contemporâneos tinham a mesma
LQVSLUDomR7DOYH]DGHÀQLomRPDLVDSURSULDGDpDTXHGL]TXHR&yGLJR&ULPLQDO
representava “um equilíbrio entre as idéias reformistas que de fato estão presentes, e uma
tradição patriarcal e escravista de longa duração no Brasil” (Silva, 2003:232). É sem dúvida
essa eqüidade que acabou favorecendo sua aceitação e longevidade, vigorando até
os anos iniciais da República.
Ao longo do Império, o Código Criminal permaneceu praticamente
inalterado, apenas algumas mudanças pontuais foram realizadas, não havendo
QHQKXPDPRGLÀFDomRHVWUXWXUDO$SHQDGHPRUWHTXHIRLVHPSUHRPRWLYR
das discussões. A partir da década de cinqüenta, passou a ser tratada com mais
atenção. Em Aviso expedido pelo Ministério da Justiça, em 29 de dezembro
de 1853, se lê: “que em caso algum sejam executadas as sentenças de pena de morte sem
proceder decisão do Poder Moderador, ainda mesmo quando tais sentenças sejam proferidas
contra os escravos, que cometeram crimes contra seus próprios senhores”.3 Inicialmente,
supõe-se que esse aviso estava suprimindo a lei de 10 de junho de 1835, na
prática não ocorreu assim.4
3 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRS. B1-109. Aviso do Ministério da Justiça, enviado à presidência da
província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em 29 de dezembro de 1853.
4 A preocupação em vincular o cumprimento da pena capital a aquiescência do Poder Moderador era antiga, a lei de 11
de setembro de 1826 foi editada para que “as sentenças de pena de morte não se executem, sem que primeiramente sejam
presentes ao Poder Moderador”, são três artigos que além de associar a execução da pena ao veredicto do imperador,
trata das circunstâncias urgentes e dos prazos de recursos. Contudo, essa não é uma lei que determine a condição do réu,
ou seja, subentende-se que seja igual para livres e escravos. Já a lei de 10 de junho de 1835 tratava exclusivamente de réus
escravos e determinava “as penas com que devem ser punidos os escravos que matarem, ferirem ou cometerem outra
qualquer ofensa física contra seus senhores, etc.; e estabelece regras para o processo”. Lê se no art. 1º: “Serão punidos
com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem
JUDYHPHQWHRXÀ]HUHPRXWUDTXDOTXHUJUDYHRIHQVDItVLFDDVHXVHQKRUDVXDPXOKHUDGHVFHQGHQWHVRXDVFHQGHQWHVTXH
em sua companhia morarem, a administrador, feitor e as suas mulheres, que com eles viverem. Se o ferimento, ou ofensa
física forem leves, a pena será de açoites a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes”. Além deste há mais
quatro artigos o que se conclui da leitura deles é que há uma intencional “aceleração” da investigação, do inquérito, do
processo e da execução da pena, numa clara, tentativa de punição rápida
273
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
274
Na primeira instância, os juízes de direito seriam nomeados pelo governo
imperial; os demais: juiz de paz, promotor e juiz municipal e de órfãos, eram
escolhidos pelas administrações locais ou pelo voto, o que junto com a inser-
omRGR-~ULFRQÀJXURXDR&yGLJRXPFDUiWHUOLEHUDO2&yGLJRGR3URFHVVR
também previa a nova divisão judiciária, determinando que a primeira ins-
WkQFLDÀFDULDHVWUXWXUDGDHPGLVWULWRGHSD]WHUPRVHFRPDUFDVH[WLQJXLXDV
Ouvidorias e Juntas de Justiça. Esse Código em sua segunda parte, determina
as formas que deveriam ter os processos jurídicos.
Esses dois códigos, o Criminal de 1830 e do Processo Criminal de 1832,
serviram de base para a organização judiciária, propriamente brasileira. No
Rio Grande do Sul, em 1833, seguindo determinações do Código se procedeu
a nova divisão judiciária. Assim estruturava-se na província, a justiça de pri-
meira instância; decidiu-se que haveria cinco comarcas e quatorze termos. No
que se referia a segunda instância, nada mudou; os processos recorridos àque-
la esfera jurídica continuavam sendo encaminhados ao Tribunal da Relação
do Rio de Janeiro e assim permaneceu ao longo dos quarenta anos seguintes.
O artigo 158, da Constituição de 1824, dizia que “para julgar as causas em segunda
e última instância haverá nas províncias do Império as relações que forem necessárias para
FRPRGLGDGHGRVSRYRVµ Apesar desse dispositivo legal, nenhum novo Tribunal de
Relação6 foi criado antes de 1873, ano em que foram criados sete. Entre eles,
o Tribunal da Relação de Porto Alegre, com sede na capital sul-riograndense,
com jurisdição sob toda a província e mais a vizinha de Santa Catarina. Em
fevereiro de 1874, foi instalada a Relação de Porto Alegre, só a partir daí os
processos apelados deixaram de ser enviados para o Rio de Janeiro.
O Tribunal da Relação de Porto Alegre7 será a instituição de justiça uti-
lizada para análise neste trabalho. Os Tribunais de Relação do Império eram
LGHQWLÀFDGRV FRPR &RUWH GH ,QVWkQFLD (QWUHWDQWR HOHV WDPEpP WLQKDP
6 A denominação “Relação” é herdada de Portugal, por ocasião da União das Coroas Ibéricas, o Rei de Espanha, insatisfei-
to com o funcionamento da justiça portuguesa, promoveu algumas mudanças, entre elas, em 1582, foi fundada a Relação
GR3RUWRGHIRUPDVLPSOLÀFDGDXPWULEXQDOSDUDMXOJDUDVDSHODo}HVHRVUHFXUVRV$SDUWLUGDtWRGRVRVGHPDLVWULEXQDLV
recursais criados em território ibérico, bem como nas possessões coloniais foram denominados Relação. No Brasil, as
Relações do Brasil (BA) e Relação do Rio de Janeiro, foram criadas no período colonial e durante o “Reino Unido”, foram
criados dois novos tribunais. Mesmo após a Independência, foi mantida a nomenclatura portuguesa. É comum encontrar-
se tanto a denominação Tribunal de Relação, quanto apenas Relação nas referências aos tribunais de apelação do Império.
1HVWHWH[WRWDPEpPDSDUHFHPDVGXDVIRUPDVHDLQGDHPDOJXQVPRPHQWRVHVSHFLDOPHQWHQRVJUiÀFRVXWLOL]DUHPRVD
abreviatura TR-POA em referência ao Tribunal da Relação de Porto Alegre.
7 Todos os dados referentes ao TR-POA aqui apresentados restringem-se ao período 1874-1889, do ano da instalação
GRWULEXQDODWpRÀPGR,PSpULR2V7ULEXQDLVGH5HODomRIXQFLRQDUDPQR%UDVLODWpSRUYROWDGHRGH3RUWR
Alegre funcionou até 1892. Em 13 de janeiro de 1893, foi instalado o Supremo Tribunal de Justiça; a Corte de Apelação
trocava de nome, de endereço e de determinações legais, pois estava baseada nas orientações dadas pela nova organização
judiciária republicana e pela Constituição Estadual de 1891.
275
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
outras competências, além das apelações. Contudo, neste texto nos restringi-
remos a apresentar as apelações,8 ou seja, aqueles que foram julgados no Tri-
bunal do Júri e por diferentes motivos foram encaminhados para ser julgado
na segunda instância. Ao selecionar apenas as apelações julgadas na Relação
de Porto Alegre entre 1874 e 1889, chega-se a um total de 2.955 processos
TXHHUDPFODVVLÀFDGRVFRPRFULPHFtYHOHFRPHUFLDOHHVWmRGLVWULEXtGRVGD
seguinte forma:
276
$RFRPSDUDURJUiÀFRDFLPDFRPRVFULPHVSUHYLVWRVQR&yGLJR&UL-
minal, constata-se que a grande maioria deles são regulamentados na tercei-
ra parte, dita “Dos crimes particulares” que é dividida em quatro títulos, os
TXDLVGHIRUPDVLPSOLÀFDGDSRGHVHGL]HUWUDWDPGRVFULPHVFRQWUDDSHVVRD
e a propriedade. No Título II – “Dos crimes contra a segurança individual”
estão: homicídios e ferimentos, no capítulo I; e calúnias/injúrias, no II. No
Título III – “Dos crimes contra a propriedade” encontram-se furtos e frau-
des. Na variável “outros” estão delitos como por exemplo: infanticídio, estu-
SURGDQRVDGXOWpULRDPHDoDVWRGRVLGHQWLÀFDGRVQR&yGLJR&ULPLQDOFRPR
“crimes particulares”
A partir daqui vamos privilegiar os processos sentenciados por homicí-
dio, pelo caráter sintético deste texto e por representarem a maioria dos casos.
$OJXQVGRVSURFHVVRVGHVVHJUXSRDSHVDUGHVHUHPFODVVLÀFDGRVSHORFULPH
de homicídio, não houve vítima fatal, sendo assim, iremos nos restringir aos
83 casos em que houve morte. O Código Criminal determinava que os homi-
cídios, quando acompanhados de circunstâncias agravantes,10 eram passíveis
de ser punidos com penas “de morte, no grau máximo; galés perpétuas no médio; e de
prisão com trabalho por vinte anos no mínimo” (art. 192). Sem agravantes, as penas
seriam de “galés perpétuas no grau máximo; de prisão com trabalho por doze anos no
médio; e por seis no mínimo” (art. 193). Observa-se que, o grau médio, do artigo
192 e máximo, do 193 condenavam a galés perpétuas; igualmente repetida,
está a pena de prisão, 20 anos, no mínimo do 192; e 12 ou 6 anos, no artigo
193. Ou seja, é coerente ponderar que haverá muitas sentenças com essas pe-
nas, de fato é o que constatamos. Dos 83 processos em questão, as sentenças
proferidas na primeira instância são distribuídas da seguinte forma: 27% galés
perpétuas, 37% prisão com trabalho (diferente quantidade de tempo) e 7%
pena de morte.11
Além dos casos de homicídio, a pena de morte também era imposta
quando na intenção de roubar se cometesse a morte.12 O meio de execução
10 Se lê no artigo 192: “Matar alguém com qualquer circunstância agravantes mencionadas nos artigos 16, números 2, 7, 10,
11, 12, 13, 14 e 17”. Estes são: “2º) Ter o delinqüente cometido o crime com veneno, incêndio, ou inundação; 7º) Haver o
ofendido a qualidade de ascendente, mestre, ou superior do delinqüente, ou qualquer outra, que o constitua a respeito deste
HPUD]mRGHSDL7HURGHOLQTHQWHFRPHWLGRRFULPHFRPDEXVRGDFRQÀDQoDQHOHSRVWD7HURGHOLQTHQWHFRPHWLGRR
crime por paga, ou esperança da alguma recompensa; 12) Ter procedido ao crime a emboscada, por ter o delinqüente esperado
o ofendido em um, ou diversos lugares; 13) Ter havido arrombamento para a perpetração do crime; 14) Ter havido entrada,
ou tentativa para entrar em casa do ofendido com intento de cometer o crime; 17) Ter precedido ajuste entre dois ou mais
LQGLYtGXRVSDUDRÀPGHFRPHWHUVHRFULPHµ&yGLJR&ULPLQDOGR,PSpULRGR%UDVLO
11 Há um percentual de 17% que tiveram sentenças diferentes, em apenas dois processos houve absolvição, outros foram
julgados improcedentes e há ainda alguns casos em que não está claro a qual dos graus dos artigos 192 e 193 se referem,
por isso não foram agrupados juntos aos demais casos.
$UWLJR6HSDUDYHULÀFDomRGRURXERRXQRDWRGHOHVHFRPHWHUPRUWH²3HQDVGHPRUWHQRJUDXPi[LPRJDOpV
perpétuas no médio; e 20 anos no mínimo. Código Criminal do Império do Brasil, 1830.
277
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
da pena de morte era a forca (art. 38); ela só poderia ser cumprida depois de
terem sido julgados os recursos jurídicos e dada a apreciação do Poder Mode-
UDGRUVHQGRDVHQWHQoDFRQÀUPDGDHPWRGDVDVLQVWkQFLDVVHHIHWLYDULD´no
dia seguinte ao da intimação, a qual nunca se fará na véspera de domingo, dia santo, ou
de festa nacional” (art. 39). A pena tinha o caráter exemplar, pois exigia-se que
o réu preso e com “vestido ordinário” fosse “conduzido pelas ruas mais públicas
até a forca, acompanhado do Juiz Criminal do lugar” o porteiro deveria acompanhar
o cortejo “lendo em voz alta a sentença, que se for executar” (art. 40). Concluída a
execução os corpos dos enforcados seriam “entregues a seus parentes, ou amigos, se
os pedirem aos juízes, que presidirem a execução”. Contudo, não poderiam “enterrá-los
com pompa, sob pena de prisão por um mês a um ano” (art. 42). Ao que parece todos
eram passíveis de execução imediata, com exceção das mulheres grávidas que
seriam executadas quarenta dias após o parto.13
As “galés” iam além do trabalho forçado, “prisão com trabalho” era
outra pena, as galés também encarnavam o sentido da exemplaridade. Os réus
para cumprir a pena de galés deveriam andar “com calceta no pé e corrente de ferro,
juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da província onde tiver sido
cometido o delito, a disposição do governo” (art. 44). As mulheres, os menores de 21
e os maiores de sessenta anos não receberiam essa pena que seria substituída
pela de prisão com trabalho, mesma mudança ocorreria para os homens con-
denados a galés que ao completar sessenta anos estivessem no cumprimento
da pena (art. 45).
Tanto a pena de morte, como a de galés são muito mais punitivas do
que corretivas. Talvez por isso sejam vistas como penas para escravos, porém,
essa é uma interpretação particular. O Código Criminal não fazia tal distin-
omRDOLiVD~QLFDUHIHUrQFLDDSXQLomRHVSHFLÀFDGHHVFUDYRVHVWiQRDUWLJR
que diz: “Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será
condenado na de açoites, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a
trazê-lo com um ferro, pelo tempo, e maneira que o juiz designar”.14 Nos casos julgados
na Relação de Porto Alegre, as duas penas: morte e galés perpétuas foram
13 Artigo 43: Na mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem mesmo ela será julgada, em caso de a merecer,
senão 40 dias depois do parto. Código Criminal do Império do Brasil, 1830.
14 “Do mesmo modo que a pena de morte, a pena de galés também possuía um forte vínculo com a questão da escravi-
dão, constituindo-se também numa pena bárbara para a metade bárbara da sociedade brasileira da época. Numa sociedade
“civilizada”, a pena de galés não atingia o objetivo de exemplaridade nem de utilidade; ao contrário, como aponta Alves
Júnior, ‘Se na Europa civilisada a pena de galés está plenamente condemnada, e esse respeito basta ler o trabalho de Lepel-
letier, entre nós, tal qual é executada, é uma escola prejudicial de vícios e de immoralidades, um exemplo fatal á sociedade’.
O fator prejudicial apontado pelo jurista corresponde ao fato de a pena de galés ser imposta não somente ao escravo, em
que pese este ser o fator principal da sua inserção no Código, mas também ao homem livre”. (Silva, 2003: 411-412).
278
VHQWHQFLDGDV SDUD OLYUHV H SDUD HVFUDYRV (VSHFLÀFDPHQWH QRV MXOJDPHQWRV
GRVSURFHVVRVFULPHVYLDGHUHJUDDVGHFLV}HVQD5HODomRHUDPGHFRQÀUPDU
a sentença proferida na primeira instância. Nestes 83 casos que estamos nos
UHIHULQGRHPGHOHVKRXYHFRQÀUPDomRGDVHQWHQoD4XDQGRVHREVHUYD
em separado os tipos de sentença, vemos que 84% das galés perpétuas, 66%
das de morte e 68%15GDVGHSULV}HVIRUDPFRQÀUPDGDVQDVHJXQGDLQVWkQFLD
Apresentaremos alguns casos que foram condenados a galés perpétuas e a
SHQDGHPRUWHFRPDÀQDOLGDGHGHUHODFLRQDUDFRQGLomRGRUpXFRPDVFRQ-
denações na primeira e na segunda instância. Mostrando que a justiça imputa
penas diferentes a crimes semelhantes.
Nesse intuito, iniciamos com o caso que consideramos “mais bárbaro”.
1DFRPDUFDGH6mR%RUMDPmHHÀOKDIRUDPYLROHQWDPHQWHDVVDVVLQDGDV2
resultado das investigações policiais apontou como suspeito Miguel, escravo
de Francisca Chagas e Oliveira. O próprio Miguel, em dois de seus depoimen-
WRVFRQIHVVRXRVFULPHV$UHVLGrQFLDGH)UDQFLVFD9HQkQFLDGH2OLYHLUDÀFDYD
no distrito do Covary, lugar ermo e distante. Na noite de 28 de março de 1876,
Miguel foi até aquela localidade passou a porteira e entrou para “IRUoDUSDUDÀQV
libidinosos”16 a mulher que lá estava. Essa era Candida Antunes de Oliveira que
QDTXHODQRLWHHVWDYDVyQDFDVDGHVXDPmHFRPDPHQRU-RVHÀQDVXDÀOKD
Candida não aceitou a investida de Miguel e tentou defender-se do ataque.
Contudo, ele passou a agredi-la violenta-mente, ato que resultou em vários
golpes na cabeça “todos eles com grande profundidade”; nas mãos, mais doze talhos,
“ainda um grande golpe no lábio superior que lhe produziu a quebra dos dentes”; os dois
olhos foram vazados, a orelha esquerda ferida, “um grave ferimento no queixo e
uma contusão mais grave no joelho esquerdo, além de muitas outras contusões que tinha
por todo o corpo”; ferimentos esses descritos no auto do corpo de delito, visto
que causaram a morte da ofendida. A gravidade dos ferimentos fez supor que
“foram feitos com instrumentos cortantes, perfurantes e contundentes, e especialmente com
machado de corte, onde junto ao corpo ainda foi encontrado” e também com faca.
15 Nos processos julgados no TR-POA em que a condenação foi a pena de morte, a última informação que pode ser lida
pRHQFDPLQKDPHQWRDR3RGHU0RGHUDGRUSRLVRYHUHGLFWRÀQDOGHSHQGLDGHOH1RVSURFHVVRVQmRKiDUHVSRVWDLPSHULDO
algumas dessas podem ser encontradas nas correspondências trocadas entre o Ministério da Justiça e a presidência da pro-
víncia. Embora não tenhamos feito uma meticulosa estatística destes, na grande maioria se lê “comuta a pena de morte em
JDOpVSHUSpWXDVµHPSRXFRVFDVRVVHYrDSHQDVHUFRPXWDGDHPSULVmRFRPWUDEDOKR7DOSUiWLFDUDWLÀFDRTXHGLVVHPRV
DQWHULRUPHQWHDSyVRLPSHUDGRUGHL[RXGHFRQÀUPDUDVVHQWHQoDVDSHQDGHPRUWH'RFXPHQWRVTXHSRGHPVHU
encontrados no fundo Avisos do Ministério da Justiça (B.1-117 a B.1-121), sob guarda do AHRS.
16 Todas as citações deste parágrafo estão in: APERS – Cartório Superior Tribunal de Justiça, Porto Alegre, maço 181,
processo 163.
279
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
1DTXHODQRLWH0LJXHOWHPHXTXHDSHTXHQD-RVHÀQDTXHWLQKDQRPi-
ximo dois anos de idade poderia denunciá-lo. Após prostrar a mãe volta-se
com igual violência para a criança, que foi encontrada com a “cabeça completa-
mente esmigalhada parecendo ter sido ela agarrada pelas pernas e jogada sobre a parede até
produzir-lhe a morte”. Isso se concluiu, pois ao examinar a parede se observaram
fragmentos de “sangue, crânio e cabelos” que, não restou dúvida, eram da menina.
No entendimento do Júri de São Borja, Miguel mesmo antes de encontrar
Candida já tinha “intenções libidinosas”, logo, estava incurso no agravante
do § 14 do art. 16, do Código Criminal e por conseqüência, também no “grau
PpGLR GR DUW GR &yGLJR &ULPLQDOµ, ou seja, condenado a galés perpétuas.
Porém, tinha o atenuante de ser menor de 21 anos e daí “QDIRUPDGRDUW
GRFLWDGRFyGLJRÀFDVXEVWLWXtGRSRUSULVmRSHUSpWXDµ Diante dessa sentença, apela
o juiz de direito da comarca. Após análise do processo na Relação decidiu-se
pela reforma da sentença. Segundo o parecer do desembargador relator, não
estava provado o agravante citado na sentença do Júri e por isso: “julgam o réu
DSHODGR0LJXHOLQFXUVRQRJUDXPpGLRGRFLWDGRDUWGR&yGLJR&ULPLQDO a pena
GHDQRVGHSULVmRVLPSOHVTXHFXPSULUiQDFDGHLDGDFDSLWDOµ Não resta dúvida da
exatidão no cumprimento da lei, o réu teve sua pena abrandada em dois mo-
mentos, não por ser negro ou branco, livre ou escravo, mas sim por ser menor
de 21 anos e não haver prova da intencionalidade do crime. Contudo, nem
sempre se observava mesma coerência legislativa e imparcial interpretação
jurídica. Para demonstrar isso, citamos outros dois casos.
A Apelação crime de número 53 foi originada pela denúncia do pro-
motor público da comarca de Lages, referente ao assassinato de Silvério Cor-
rea de Oliveira. No dia 17 de outubro de 1873, surgiram boatos de que Sil-
YpULR HVWDULD PRUWR IDWR FRQÀUPDGR SRU DOJXQV SDUHQWHV TXH HQFRQWUDUDP
seu cadáver “com sinais verdadeiros de ter sido a morte perpetrada por outrem e dentro
da casa de moradia”.17 No auto do corpo de delito se lê que o cadáver tinha
um ferimento de dois dedos de largura na testa que causou afundamento do
osso. Ainda observaram os peritos que o queixo estava quebrado e “os dentes
do lado de cima todos tirados; acharam mais um golpe atrás das orelhas; encontraram dois
dedos da mão direita que-brados”. Concluindo, acrescentaram que o corpo deveria
ter sido “arrastado de três quadras mais ou menos deposto da casa onde se deu a morte
FXMRVYHVWtJLRVRXVLQDLVSRURQGHIRLDUUDVWDGRGHPRQVWUDFODUDPHQWHµ Na residência,
vivia junto com Silvério apenas um escravo de nome Bento. Imediatamente,
recaíram as suspeitas sobre esse. Procederam aos tramites de investigação, o
17 Todas as citações deste parágrafo estão in: APERS – Cartório Superior Tribunal de Justiça, Porto Alegre, maço 315,
processo 53.
280
inquérito policial e várias das testemunhas argüidas também indicavam a cul-
pabilidade a Bento e a justiça o considerou como réu. Contudo, Bento jamais
se confessou assassino.
Outro réu não-confesso foi Rafael Fortunato Peres. Inicialmente jul-
JDGRSHOR-~ULGDFRPDUFDGH-DJXDUmRÀJXURXFRPRDSHODQWHHDSHODGRQD
Apelação crime número 610. Os fatos ocorreram em Herval, 1º distrito da-
quela comarca. No dia 11 de novembro de 1881, Pio Abenudio da Porcincula
saiu de sua casa com dois objetivos, visitar sua irmã Dorothéia para pedir
remédios para tratar o reumatismo de uma perna e depois ir a casa de Rafa-
el Fortunato cobrar-lhe uma dívida. Segundo informou Dorothéia, o irmão
esteve na sua casa com aqueles propósitos e de lá saíra “na direção da casa do
seu devedor”.18 No dia seguinte, o cavalo de Pio Abenudio apareceu “na tropilha
em que sempre andava, achando-se encilhado e faltando-lhe apenas o freio” seu dono
não fora mais visto. O desaparecimento suscitou especulações, “esses boatos e
suspeitas, essa opinião pesaram” sobre Rafael Fortunato. Baseado “na voz do povo”,
o subdelegado de Herval iniciou as investigações.
Na residência de Rafael Fortunato foi descoberto o que viria a ser
FODVVLÀFDGR FRPR ´LQGtFLRµ GH FXOSD +DYLD QD SURSULHGDGH FHUFD GH TXD-
tro quadras da casa, vestígios de uma fogueira “de 12 palmos mais ou menos de
FXPSULPHQWRVREUHRXGHODUJXUDµ. Além das cinzas, tudo que foi encontrado
HVWDYDPXLWRFDUERQL]DGRPDVVHFRQVHJXLXLGHQWLÀFDUGRLVERW}HVHDOJXQV
ossos. Sobre os primeiros, se dizia “um de madrepérola, próprio de ceroulas, e outro
arredondado, que mostrava ter sido coberto de fazenda, e pertencia a classe dos que se
HPSUHJDYDPQRVFROHWHVGHKRPHQVµOs ossos foram periciados por dois “doutores
em medicina” residentes na comarca que concluíram serem ossos humanos,
um deles “SHODVXDGLVSRVLomRHFRQÀJXUDomRSHUWHQFHDRSpGLUHLWRXPRXWURIUDJPHQWR
pertencente a extremidade inferior do rádio” e outro “fragmento de osso longo que pela sua
HVSHVVXUDHFRQÀJXUDomRSDUHFHPSHUWHQFHUDRERUGRDQWHULRUGDWtELDµ. Ao ser pergunta-
do sobre a fogueira, Rafael respondeu que fora ele que a fez com o objetivo
de queimar dois ninhos de caturritas. Inquirido sobre os ossos que não pode-
riam ser daquelas aves, ele disse que na mesma ocasião queimou um cão de
sua propriedade, que antes havia matado. Sobre o suposto assassinato de Pio
$EHQXGLRQHJRXWrORFRPHWLGRFRQÀUPRXHPWRGRVRVLQWHUURJDWyULRVTXH
tinha uma dívida de seiscentos mil réis, já tinha pagado uma parte, mas como
não tinha dinheiro, não procurou seu credor, nem para pagá-lo, muito menos
para tirar-lhe a vida.
18 Todas as citações deste e do próximo parágrafo estão in: APERS – Cartório Superior Tribunal de Justiça, Porto Alegre,
maço 318-A, processo 610.
281
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
282
“parecer ser”. Em uma das defesas de Rafael, seu advogado lembra: “É da
letra e do espírito de nossa legislação criminal que não há delinqüente sem que exista delito;
HFRPRpIiFLOGHYHULÀFDUVH²RGHOLWRDWULEXtGRDRDSHODQWHQmRHVWiSURYDGRµ23 o que era
verdade e também não estava errado em dizer que não se sabia se Pio Abenu-
dio “está vivo ou morto, qual o destino, que teve, ainda é ignorado, é um mistério!”. Jamais
haverá certeza da inocência ou culpa de Rafael Fortunato, estamos nos repor-
tando ao século XIX, quando as práticas da ciência criminalista eram muito
precárias, praticamente inexistentes e quando vestígios serviam como provas.
Exatamente por isso a justiça talvez tenha negado a Rafael Fortunato o bene-
fício da dúvida. No julgamento da Relação, o desembargador Souza Martins
anotou e assinou que foi voto vencido: “votei pela absolvição do réu, porque dos
autos não resulta a certeza de ter sido assassinado Pio Abenudio da Porcincula, e apenas,
consta o desaparecimento deste” Rafael Fortunato continuou a negar o crime, após
HVVDVHQWHQoDÀQDOYROWRXDUHFRUUHU243DUDÀQDOL]DUFRQFOXtPRVTXHRTXHVH
observa, nos casos citados e em outros estudados é que crimes semelhantes
foram sentenciados de forma diferente, isso porque havia na legislação penal
dispositivos que permitiam atenuantes e agravantes, vinculados ao estatuto
social e jurídico, ou do réu, ou da vítima.
23 Todas as citações deste parágrafo estão in: APERS – Cartório Superior Tribunal de Justiça, Porto Alegre, maço 318-A,
processo 610.
24 Recorreu mais duas vezes, a última em 1901, nessa ocasião ele solicitou que fosse julgado conforme o novo “Código
penal republicano”. De certa forma logrou êxito, já que sua pena que era perpétua foi comutada para 24 anos de prisão
celular.
283
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Vozes, 2002.
NEQUETE, Lenine. O poder judiciário no Brasil: crônica dos tempos coloniais. Brasília:
Supremo Tribunal Federal, 2000. 1v.
284
BRASILEIRTOS NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA
(1936-1939): DO FRAGMENTO À
CONSTRUÇÃO DO MOSAICO HISTÓRICO
Jorge Christian Fernandez*
ʌ Resumo: Este artigo apresenta aspectos da pesquisa que deu origem a uma Dissertação
de Mestrado que focalizou a trajetória de um grupo de ex-militares do Exército Brasileiro que
À]HUDPSDUWHGDV%ULJDGDV,QWHUQDFLRQDLVHGR([pUFLWR3RSXODU5HSXEOLFDQRGXUDQWHD*XHUUD
Civil Espanhola de 1936-1939. O grupo se insere no dinâmico e complexo quadro político dos
anos 30, sendo sua história marcada por posturas políticas radicais e levantes armados. No Brasil,
o grupo seguiu os caminhos traçados pelos “tenentes” e por Luiz Carlos Prestes, o qual se tornou
XPDÀJXUDSURHPLQHQWHQR3DUWLGR&RPXQLVWD%UDVLOHLUR3&%HQD$OLDQoD1DFLRQDO/LEHUWD-
dora (ANL), um movimento de massas antifascista. Em novembro de 1935, o PCB e a ANL
lançaram uma insurreição com o objetivo de derrubar a ditadura de Getúlio Vargas, e o grupo
esteve envolvido de diversas formas no levante. No cárcere, os ex-militares acompanhavam os
acontecimentos da Espanha. Após libertados, parte deles foram enviados para a Espanha pelo
PCB, enquanto os outros prosseguiram numa manobra conspirativa contra Vargas. Posterior-
mente, o restante do grupo se juntou aos colegas na luta contra o fascismo na Espanha. Para eles,
o fascismo era o “mesmo inimigo, só que em terras distantes”.
ʌ Palavras-chave: Guerra Civil Espanhola – Brigadas Internacionais – nacionalismo – in-
ternacionalismo – antifascismo
A
Guerra Civil Espanhola (GCE), ocorrida de julho de 1936 a
abril de 1939, foi um evento singular num contexto extrema-
mente peculiar como foram os anos 30, período de excepcional
polarização política num complexo quadro de crise mundial. Não foi uma guer-
ra civil “comum”, mas antes uma guerra civil “ideológica” que acirrou a luta de
classes cindindo o mundo em campos opostos. Desta forma, a GCE passou a
adquirir um caráter de “cruzada”, tanto para a direita quanto para a esquerda.
3DUDPLOKDUHVGHSHVVRDVLGHQWLÀFDGDVFRPXPDRSomRSROtWLFDGHHVTXHUGD
a defesa da Espanha Republicana passou a simbolizar a idéia de defesa da hu-
manidade contra o obscurantismo e a barbárie que viam representadas pelo
fascismo e suas diversas variações nacionais. Portanto, enfrentar o fascismo
parecia um desdobramento natural, e em escala aumentada, da luta travada con-
285
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
R
ealizamos a dissertação a partir da pesquisa com dados obti-
dos nas fontes primárias, escritas e orais, amparadas por am-
SODSHVTXLVDELEOLRJUiÀFD,QLFLDPRVFRPXPDDQiOLVHFUtWLFD
WDQWR GDV IRQWHV SULPiULDV TXDQWR GD ELEOLRJUDÀD2 procurando estabelecer
XPDUHODomRGLUHWDHGHGLiORJRHQWUHDSURGXomRKLVWRULRJUiÀFDHDVIRQWHV
1 HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 174-175.
2 FERNANDEZ, Jorge C. “Voluntários da Liberdade” : Militares Brasileiros nas Forças Armadas Republicanas durante a
Guerra Civil Espanhola (1936-1939) . Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS, 2003.
288
GLVSRQtYHLV(QWUHDVGLÀFXOGDGHVHQFRQWUDGDVGHVWDFDPRVDIUDJPHQWDomRH
dispersão das próprias fontes em diversos arquivos do país e do exterior, um
amplo corpus documental de difícil mapeamento e acesso. Outra particularida-
de foi a multiplicidade e diversidade das mesmas, o que nos colocou perante
RGHVDÀRGHWUDEDOKDUVLPXOWDQHDPHQWHFRPWDOKHWHURJHQHLGDGHGRFXPHQWDO
A seguir serão descritas sucintamente as fontes, bem como a metodologia
empregada.
As fontes primárias escritas foram interpretadas levando-se em conta
WUDWDUVH GH XP UHÁH[R GR FRQWH[WR KLVWyULFR SROtWLFR VRFLDO H HFRQ{PLFR
em que foram produzidas, podendo-se observar características diferenciadas
nos jornais e revistas analisados. Não podemos tratar o texto de um jornal,
destinado ao grande público, da mesma forma que o texto de um periódico de
circulação limitada, destinado a um reduzido núcleo de ex-combatentes, por
exemplo. Sabemos que quando um autor aborda um determinado assunto ou
tema, age de acordo com os seus pontos de vista, seus próprios conceitos e
YDORUHVRXLGHRORJLDVSURFXUDQGRDWLQJLUXPOHLWRUHVSHFtÀFRFRPRQRFDVR
de uma publicação dirigida, ou não, tratando-se da grande imprensa. Em vir-
tude de cada escritor ter por alvo um leitor diferenciado, os textos podem ter
caráter predominantemente informativo, persuasivo, expressivo ou literário.
Enquanto textos, os jornais são produto de um determinado discurso, por sua
vez fruto de um processo histórico e inserido em um determinado contexto.
No caso dos jornais brasileiros da época, tivemos de levar em conta elemen-
WRVWDLVFRPRDFHQVXUDDLPSUHQVDHDLGHQWLÀFDomRIRUoDGDRXQmRFRPR
regime de Vargas.
Tivemos também especial cuidado ao tratar das fontes obtidas dos ar-
quivos policiais brasileiros, devido a sua multiplicidade. As fontes encontradas
SRVVXHP RULJHP YDULDGD GRFXPHQWDomR RÀFLDO HQWUH UHSDUWLo}HV UHODWyULRV
GHHVSLRQDJHPFDUWDVSHVVRDLVGHPLOLWDQWHVÀFKDVHKLVWyULFRVFULPLQDLVGRV
“subversivos” e documentação interna do PCB apreendida pela polícia. Ou
seja, cada uma delas foi analisada considerando-se o autor do documento, a
quem ele se dirigiu, e os contextos nos quais se insere. Cuidados semelhantes
foram tomados com respeito ao material colhido nos arquivos da Komintern,
onde encontramos uma variedade imensa de documentos com características
particulares.
Por outro lado, há um fator a ser destacado em relação aos documentos
encontrados nos arquivos policiais, pois embora possuíssem origem múltipla e
diversa, além de redigidos por diferentes autores ocupando posições distintas
289
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
3 SCHWARZSTEIN, Dora. Entre Franco y Perón: Memória y Identidad del Exilio Español en Argentina. Barcelona:
Crítica, 2001, p. xviii, xix, 217, 218.
290
Grande parte do material pesquisado foi extraído do Arquivo Edgard
Leuenroth (AEL) da Unicamp, em Campinas. Neste arquivo encontra-se a
Coleção Arquivos da IC, referente ao PCB e ao movimento comunista no
%UDVLO 6mR GH] URORV GH PLFURÀOPHV FRQWHQGR IDUWD GRFXPHQWDomR GHVGH
DWp2VÀOPHVFRQWrPGLYHUVDVLQIRUPDo}HVVREUHRVEUDVLOHLURV
(ou supostos brasileiros) que estiveram envolvidos na GCE. A maior par-
WHGHVVDGRFXPHQWDomRGRVVLrVSDUHFHUHVÀFKDVELRJUiÀFDVIRLFRQWURODGD
pelo PCE e, quando da derrocada da República Espanhola, embarcada com
destino a URSS, onde permaneceu inacessível até os anos 90, quando foram
doados aos comunistas brasileiros que repassaram os documentos ao Arquivo
Edgard Leuenroth.
No Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) procuramos diretamente
os prontuários da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo
(SSP/SP) que contêm informações policiais sobre alguns dos ex-militares que
combateram na Espanha, além de listas dos envolvidos e processados à raiz
de sua participação na chamada Intentona Comunista.
No Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) também
existem prontuários policiais sobre o grupo em questão, porém muito mais
completos. Eram os arquivos da Delegacia Especial de Segurança Política e
Social (DESPS) do antigo Distrito Federal, onde se centralizavam as ações
repressivas contra a atuação dos dissidentes do regime de Vargas, entre eles,
os comunistas. Logo, o caudal de informações contido em seus dossiês e re-
latórios é enorme. Além dos prontuários ainda é possível consultar diversos
materiais de propaganda e correspondências subtraídas aos comunistas du-
rante as operações policiais.
No Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS) encontramos diver-
sas informações referentes ao meio militar no período abarcado pela pesquisa.
Ainda nas fontes escritas, devemos mencionar a utilização de revistas
e jornais publicados no período em questão, oriundas de arquivos privados
e públicos, tais como o Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, em
Porto Alegre e a Biblioteca del Congreso Nacional em Buenos Aires, Argentina.
Pesquisamos um jornal de grande circulação na época, o Correio do Povo, de
Porto Alegre (1936-1939), para ilustrar como eram veiculadas, na grande im-
prensa, as notícias sobre a Espanha aqui no Brasil. Em contrapartida, conta-
mos com uma revista semanal espanhola, Crónica, de Madrid (1935-1936) e
o jornal argentino Crítica, de Buenos Aires (1936-1939) para captar o clima
YLYLGR QR SHUtRGR LPHGLDWDPHQWHDQWHULRU j GHÁDJUDomR GD JXHUUD civil e o
GHVHQURODUGRFRQÁLWR
291
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
D
e 1936 até 1939, a máquina de propaganda ligada aos parti-
dos comunistas divulgou que os “voluntários da liberdade”,
como eram chamados os brigadistas, foram a Espanha para
lutar contra o fascismo, pela liberdade e pela democracia e, obviamente, ocul-
tava que a organização do aparato de ajuda a Espanha na forma das BI cor-
respondia muito mais aos interesses estratégicos de proteção da URSS do que
a uma mostra de solidariedade desinteressada com a Espanha. Portanto, Stalin
e a Komintern apenas souberam capitalizar para si um movimento espontâneo
de solidariedade internacional que já estava em marcha.
Mas nem todos vieram para defender o governo legalmente constitu-
ído na Espanha, como os homens das BI. Os que haviam chegado primeiro,
aqueles que combateram nas milícias, pretendiam mais que um governo de-
mocrático popular burguês: pretendiam uma autêntica revolução social, fosse
ela anarquista ou socialista. De qualquer forma não podemos imputar aos
voluntários das BI a pecha de “contra-revolucionários”, como fez o discurso
ultra-esquerdista. Embora fossem comunistas em sua maioria e estivessem
cumprindo com zelo a sua função de militantes, acreditamos que não po-
demos colocá-los somente como agentes ou vítimas de uma tática política
oportunista da URSS, o antifascismo. Poderia até ser-lhes atribuída uma boa
dose de ingenuidade, de uma estreiteza da visão política e de um dogmatismo
marcado por uma certa intolerância com respeito ao pluralismo democrático.
1RHQWDQWRHVVHVGHIHLWRVGHYHPVHUHQWHQGLGRVFRPRXPUHÁH[RGRSUySULR
VLJQLÀFDGRGHVHUFRPXQLVWDQRVWHPSRVGH6WDOLQ/RJRHQTXDQWRKRPHQV
de seu tempo, comprometidos com uma causa, os voluntários internacionais
estavam plenamente inseridos no contexto político e ideológico dos anos 30,
quando ser comunista era também ser “stalinista”. E como comunistas-stali-
nistas, os voluntários internacionais serviram efetivamente como suporte para
292
a reestruturação da ordem burguesa na Espanha Republicana. De qualquer
forma, independente das motivações e interesses particulares da elite dirigen-
WHFRPXQLVWDFRPUHODomRDRSUREOHPDGD(VSDQKDSRGHPRVDÀUPDUTXH
para a maioria dos voluntários das BI, a guerra espanhola representou naquele
momento, uma luta genuinamente revolucionária e popular à qual se entrega-
ram sinceramente com fervor pouco visto na História. Pois, ao completar a
“revolução burguesa” na Espanha cumpriam seu dever de comunistas empe-
nhados em vencer etapas rumo a um “futuro socialista radiante”.
Para a pequena delegação dos ex-militares brasileiros,4 a luta na Espa-
nha também representou uma continuidade das lutas no Brasil. As condições
estruturais da sociedade e os processos políticos que se desenvolviam nos
GRLVSDtVHVVRERLQÁX[RGRFRQWH[WRSROtWLFRHHFRQ{PLFRPXQGLDOHGDFOL-
vagem ideológica imperante nos anos 30, permitiram aos nossos atores elabo-
rar uma leitura dos acontecimentos que aproximavam as duas realidades, pois
ambos os países deveriam se encaminhar na concretização de suas respectivas
“revoluções burguesas”. Ou como disse Apolônio de Carvalho, sob a direção
da Frente Popular espanhola, não faremos mais que dar prosseguimento à nossa luta [da
ANL]2PHVPRFRPEDWHVyTXHHPWHUUDVGLVWDQWHV.5
Nesse sentido, o grupo de voluntários, objeto do nosso estudo, con-
siderou que enquanto militares, nacionalistas e comunistas tinham um dever
internacional a cumprir: enfrentar o fascismo que, dentro da óptica comunis-
ta, ameaçava por igual todas as nações do planeta. Como militares, já estavam
acostumados à disciplina e à obediência aos superiores. Logo, a militância
comunista veio reforçar o sentido de obediência e disciplina às rígidas estru-
turas hierárquicas, o que diferenciava os brasileiros da grande maioria dos
voluntários das BI, de origem civil. É relevante considerarmos que o fato do
grupo ser constituído por ex-militares deu ao pequeno contingente brasileiro
XPHOHYDGRJUDXGHSURÀVVLRQDOLVPRDOpPGHFRQVHUYDUQRJUXSRRVFOiVVLFRV
elementos formativos da corporação militar: o nacionalismo, o esprit de corps,
a disciplina e a ordem. Fatores que foram essenciais para manter a unidade
entre eles, mesmo à distância, nas frentes de batalha. Sem mencionar a luta
conjunta que haviam previamente desenvolvido no Brasil e a convivência no
cárcere, que muito serviu para reforçar a identidade do grupo. Por isso po-
demos diferenciá-los do restante dos brasileiros ou estrangeiros saídos do
4 O grupo composto por ex-militares constava de quatorze pessoas. Ainda existem discrepâncias quanto ao numero exato
de brasileiros que combateram na Espanha. A pesquisa aponta 78 nomes, o que não necessariamente indica que sejam 78
SHVVRDVSRLVXPDPHVPDSHVVRDSRGHFRQVWDUFRPGRLVQRPHV$OpPGLVVRPXLWRVRXWURVSRGHPWHUÀFDGRVHPUHJLVWUR
por ter, por exemplo, dupla nacionalidade. A incógnita permanece.
5 CARVALHO, Apolônio de. Vale a Pena Sonhar. Rio de Janeiro: Rocco, 2 ed., 1997, p. 75-76.
293
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
6 REIS, Dinarco. A Luta de Classes no Brasil e o PCB. São Paulo: Novos Rumos, v. 1, 1981, p. 54.
295
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
7 Carta de Carlos da Costa Leite a sua Mãe, 1942. Prontuário de Carlos da Costa Leite n0 7127, APERJ.
296
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297
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
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$UJHQWLQD Barcelona: Crítica, 2001.
298
6
HISTÓRIA, POLÍTICA E
DITADURA MILITAR
AS RELAÇÕES DE LEONEL BRIZOLA COM OS SETORES
SUBALTERNOS DAS FORÇASD ARMADAS ENTRE 1959-1964
César Daniel de Assis Rolim*
ʌ Resumo: A ascensão de Leonel Brizola ao governo do Estado do Rio Grande do Sul,
HPVLJQLÀFRXRLQtFLRGHXPDDGPLQLVWUDomRTXHVHWRUQRXPRGHORSDUDRWUDEDOKLVPRQR
Brasil. Com forte inserção no meio urbano, característica do PTB, Brizola conseguiu articular
OLJDo}HVFRPSDUWHVLJQLÀFDWLYDGDVFDPDGDVPpGLDVGDSRSXODomR$SHVTXLVDVHSURS}HDQDOLVDU
as relações desse político com os setores subalternos das Forças Armadas Brasileiras, em especial
o círculo dos sargentos, interessados em maior participação política, durante o período de 1959-
%XVFDVHYHULÀFDUVHDLQÁXrQFLDGH%UL]RODHPVHWRUHVPLOLWDUHVSURYRFRXXPDGLYLVmRQDV
Forças Armadas Brasileiras nesse período, analisar as conseqüências para o círculo dos sargentos
GHVHXDSRLRSDUDDVDo}HVSROtWLFDVGH%UL]RODHLGHQWLÀFDUDVFRQVHTrQFLDVSROtWLFDVGHVVHDSRLR
SDUDDVDo}HVGRPHVPRGXUDQWHVXDJHVWmRDWpRÀQDOGRJRYHUQR*RXODUW
ʌ Palavras-chave: Leonel Brizola - Forças Armadas - Subalternos.
A
ascensão de Leonel Brizola ao governo do Estado do Rio
*UDQGHGR6XOHPVLJQLÀFRXRLQtFLRGHXPDDGPLQLV-
tração que se tornou modelo para o trabalhismo no Brasil.
Cánepa (2005) destaca alguns pontos importantes do governo Brizola como
a capacidade do governador em mobilizar a sociedade gaúcha na defesa da
OHJDOLGDGHSURYRFDQGRDÀVVXUDQDV)RUoDV$UPDGDVXPDYH]TXHFRQWDQGR
com o apoio do III Exército (sediado no sul), impedia a união da corporação
numa possível consecução de medidas contrárias à ordem constitucional.
Considera-se que a relação entre os militares e a política é um tema bas-
tante estudado. Segundo Rouquié (1980), se o exército brasileiro mantém um
alto nível de coesão institucional, ele não está menos envolvido nas lutas civis
e politicamente fracionado pelos interesses presentes nelas. As experiências
de militares exercendo cargos executivos, em especial durante o chamado pe-
ríodo militar (1964-1985), são conhecidas. A tentativa de políticos exercerem
XPDLQÁXrQFLDQRVFtUFXORVPLOLWDUHVFRQWXGRDVVLPFRPRDVFRQVHTrQFLDV
da mesma para instituição militar, mereceriam uma análise mais detalhada.
(VWDEHOHFHVHFRPRSUREOHPiWLFDSDUDDSUHVHQWHSHVTXLVDLGHQWLÀFDU
as estratégias utilizadas por Brizola para obter o apoio de setores subalternos
das Forças Armadas brasileiras, em especial do círculo dos sargentos, para
suas ações políticas, durante o período em que esteve no governo do Estado
do Rio Grande do Sul (1959-1962), até o golpe civil-militar de 1964.
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História - UFRGS.
301
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
302
Em 12 de setembro de 1963, o STF decidiu pela inelegibilidade dos
sargentos. Depois dessa decisão, segundo Victor (1965, p. 494), o Deputado
Garcia Filho, acompanhado de Brizola, colocou como princípio fundamental
das reivindicações do seu grupo, a derrubada do preceito da Carta Magna que
impedia a elegibilidade dos sargentos.1
)HUUHLUDDÀUPDTXHDDOLDQoDTXHVHHVWDEHOHFLDHQWUHR&RPDQ-
do Geral dos Trabalhadores (CGT), as Ligas Camponesas, organizações de
esquerda e o movimento dos sargentos abria novas perspectivas para as lutas
reformistas, nacionalistas e populares. Para militantes sindicais, estudantis e
de esquerda, surgia a oportunidade de terem o que ainda faltava para o emba-
te com os conservadores: militares em armas. Para os sargentos, o apoio dos
movimentos populares os ajudaria a pressionar a cúpula militar na supressão
de arbitrariedades e discriminações que sofriam nos quartéis, “democratizan-
GRµ DV )RUoDV $UPDGDV 3DUD DV FKHÀDV PLOLWDUHV QR HQWDQWR WXGR DTXLOR
surgia como algo intolerável.
O governo Goulart, contestado pelas forças conservadoras, sofria tam-
bém a pressão das esquerdas. O radicalismo e pregação revolucionária dessa
coalizão, teriam minado a autoridade do presidente e aberto caminho para o
golpe civil-militar de 1964. Analisando os componentes da Frente de Mobi-
lização Popular (FMP), ali estavam presentes líderes sindicais, camponeses,
estudantis e dos subalternos das Forças Amadas, grupos marxistas-leninistas
H SROtWLFRV QDFLRQDOLVWDV )HUUHLUD DÀUPD TXH HVVD HUD D HVTXHUGD GD
pSRFDTXHUHFRQKHFHXHP%UL]RODDOLGHUDQoDGRPRYLPHQWRSRLVHOHXQLÀ-
FDYDDVHVTXHUGDVHGDtVXDRXVDGLDQRGHVDÀR&RPRREMHWLYRGHXQLURVQD-
cionalistas e, desse modo, eleger uma numerosa bancada de parlamentares nas
eleições legislativas de outubro de 1962, Brizola e Mauro Borges, governador
de Goiás, formaram a Frente de Libertação Nacional. A Frente possibilitou o
DXPHQWRVLJQLÀFDWLYRGDEDQFDGDWUDEDOKLVWDQD&kPDUDGRV'HSXWDGRV
2UDGLFDOLVPRGHVHWRUHVSDUODPHQWDUHVpUHÁHWLGRHPPDQLIHVWDo}HV
como a do Programa da Frente Progressista de Apoio às Reformas de Base,
divulgado pelo jornal Correio da Manhã (4 de fevereiro de 1964). Essa Fren-
te que representava unicamente o compromisso de seus componentes e do
Presidente da República de darem apoio e execução ao Programa comum,
consubstanciado neste documento: elegibilidade dos alistados com exclusão
dos analfabetos e com a inclusão dos militares de qualquer categoria, desde
que passem para a reserva ao registrarem as suas candidaturas, mesmo em se
WUDWDQGRGHRÀFLDLVVXSHULRUHV
1 (CARNEIRO, 1989, p. 536)
303
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
304
mentares recebiam o apoio dos sargentos das Forças Armadas, em troca de
que os deputados pressionassem o poder Executivo à aprovar a reforma
eleitoral que possibilitasse às suas candidaturas para cargos legislativos.
$RÀFLDOLGDGHFRQGHQDYDSHUHPSWRULDPHQWHDVDo}HVGRVVHXVVXEDO-
ternos. Após o episódio da Revolta dos Sargentos, em 1963, o Gen. Pery
%HYLODTXDDÀUPDYDHPHQWUHYLVWDSDUDRMRUQDOEstado de São Paulo de 19 de
setembro de 1963, ser humilhante “essa ligação espúria, que arrasta sargentos
a empunhar armas contra a Nação, ludibriados por elementos inimigos da
Pátria, estimulados à sublevação por políticos inescrupulosos.”3
Ainda em setembro de 1963, a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN)4
repudiava as declarações desse general, ao mesmo tempo em que colocava
como princípio fundamental de suas reivindicações o direito de os sargentos
serem representados nos Legislativos do País. A nota à imprensa ressaltava
que “é com esse organismo que o governo conta para realizar as reformas
de base tão reclamadas pelo povo.”5 Entre os parlamentares que assinavam a
nota, encontravam-se Leonel Brizola e o Sargento-Deputado Garcia Filho.
Ao apoio dos subalternos, Brizola retribuía com a defesa da sublevação
dos sargentos. Em entrevista ao jornal Última Hora (1963), o então Deputa-
do Federal pelo estado da Guanabara declarava-se um apoiador do levante,
pois, segundo ele, ocorriam perseguições e transferências injustas por parte
GD RÀFLDOLGDGH GDV )RUoDV $UPDGDV HP UHODomR DRV VHXV VXEDOWHUQRV (VVD
vinculação era feita também por outros órgãos de imprensa como a revista
O Cruzeiro6S(VWDHPHGLWRULDODÀUPDYDTXH%UL]RODHVDUJHQWRV
distanciam-se do governo com uma pressão, feita também por estudantes e
outros setores sociais que antes eram apoiadores, agora opositores.
(VVDLQÁXrQFLDGH%UL]RODQRFtUFXORGRVVDUJHQWRVUHÁHWLDXPDLQ-
gerência externa em relação às Forças Armadas. Exemplo dessa tentativa de
LQÁXrQFLDSRUSDUWHGHVVHSROtWLFRVXOULRJUDQGHQVHRFRUUHXDSyVD5HEHOLmR
dos Marinheiros.7 Em depoimento ao Jornal do Brasil (27 de março 1964), o
3 Atuando entre 1956-1964, a Frente Parlamentar Nacionalista representou no Congresso Nacional a opção nacionalista
de um segmento expressivo da sociedade civil. A autonomia nacional era permanente em seus documentos propositivos.
Segundo Delgado (2003, p. 149), apesar da hegemonia de parlamentares recrutados nos quadros do PTB, reuniu deputa-
dos e senadores de vários partidos e buscou fundamentos teóricos junto a intelectuais ligados à ala mais nacionalista do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Os políticos da Frente assumiram muitas vezes a função de porta-vozes
de organizações como o CGT, as Ligas Camponesas e a UNE, junto ao poder Legislativo.
4 (ESTADO DE SÃO PAULO, 1963)
5 Movimento contrário à ordem de prisão emitida pelo Ministro da Marinha Silvio Mota, em 25 de março de 1964, contra
os participantes da reunião comemorativa ao segundo aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, da
qual, segundo Victor (1965), Brizola participava.
6 (ROUQUIÉ, 1984, p. 127)
305
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
HQWmR'HSXWDGRDÀUPDTXHDRLQYpVGHFHUFHDUDLQGDPDLVDOLEHUGDGHXUJH
a imediata democratização dos regulamentos militares, incorporando nossos
SDWUtFLRVPLOLWDUHVDRSURFHVVRGHPRFUiWLFREUDVLOHLUR(PUHODomRjLQÁXrQFLD
externa de civis nas Forças Armadas, Rouquié entende que “a independência
burocrática da instituição militar, forte em todos os seus mecanismos, é cuida-
dosamente preservada por seus membros. Apenas a muito custo a sociedade
militar admite a ingerência exterior, mesmo quando esta é requisitada através
dos mais altos graduados.”8
A quebra da hierarquia, seria uma conseqüência dessas articulações en-
tre setores militares e setores parlamentares. A agressão à hierarquia interna
das Forças Armadas é lembrada pelo jornal O Globo (1964), em seu candente
HGLWRULDOQRWHUFHLURGLDDSyVRJROSHFLYLOPLOLWDUGH$ÀUPDQGRDH[LV-
tência de um gradual processo de cubanização do país por parte de Goulart,
pois este concitava aos subalternos das Forças Armadas a apoiarem-no em
suas reformas de base.
Em depoimentos de militares, coletados para a construção de sua obra
A origem social dos militares&DVWURSLGHQWLÀFDTXHHPUHODomRjV
razões para o golpe, o destaque que surge em todos os relatos é a questão da
quebra da hierarquia e disciplina nas Forças Armadas. Eventos como a revolta
dos sargentos, revolta dos marinheiros, o comício de Jango no Automóvel
Club, são sempre mencionados como fatores detonadores do movimento.9
Em relação à quebra da hierarquia interna das Forças Armadas, Stepan
OHPEUDTXHYiULRVJUXSRVGHRÀFLDLVHVWDEHOHFHUDPYiULDVDWLYLGDGHV
quais sejam, investigações e circulação de um relatório especial sobre o Movi-
mento dos Sargentos. O documento apontava que os sargentos estavam liga-
dos aos sindicatos mais militantes e, em alguns casos, aos comunistas. Existia,
SRUWDQWRXPDDSUHHQVmRFUHVFHQWHSRUSDUWHGDRÀFLDOLGDGHIUHQWHjPRELOL-
zação, e articulação com outros grupos sociais, dos sargentos.
(VVDDSUHHQVmRGDRÀFLDOLGDGHHUDFRQVHTrQFLDGDYLVtYHOTXHEUDGH
hierarquia interna, pois os subalternos mobilizavam-se contra as determina-
ções institucionais das Forças Armadas que impediam à esses militares can-
didatarem-se à cargos legislativos, sob pena de expulsão dessa instituição. A
mobilização dos subalternos, em consonância com os demais movimentos
VRFLDLVRSXQKDVHIURQWDOPHQWHjRÀFLDOLGDGHTXHGXUDQWHDFRQMXQWXUDHVWX-
dada, articulava-se contra o governo Goulart e seu viés reformista. Somado
à crescente inconformidade de setores militares, a incapacidade, do governo
Goulart, em converter as crescentes reivindicações em programas de gover-
306
QRSURYRFDUDPVHJXQGR6WHSDQXPDUHWUDomRQDFRQÀDQoDFLYLOQR
regime político contribuindo decisivamente para a estruturação do golpe mi-
litar.
O apoio e a conseqüente relação entre parlamentares nacional-refor-
mistas, sob a liderança de Brizola, com os subalternos das Forças Armadas,
FRQWXGRFRQÀJXURXVHHPXPDQtWLGDGLYLVmRLQVWLWXFLRQDOPLOLWDUSRLVDRÀ-
cialidade motivou-se para empreender a conspiração contra o governo Gou-
ODUW$TXHEUDGHKLHUDUTXLDIRLRDVSHFWRFHQWUDODOHJDGRSHORVRÀFLDLVSDUD
reprimir veementemente as ações de seus subalternos.
$IRUWHUHSUHVVmRSRUSDUWHGDRÀFLDOLGDGHDSRLDGDSRUGLYHUVRVyUJmRV
de imprensa, em uma conjuntura de crescente oposição ao governo Goulart
e aos movimentos sociais, para com os seus subalternos, foi a característica
marcante para esses setores militares. Os subalternos não conseguiram obter
o direito de candidatarem-se à cargos parlamentares e os participantes da
5HYROWD GRV 6DUJHQWRV IRUDP LPSODFDYHOPHQWH SXQLGRV UHÁHWLQGRVH QXPD
visível depuração interna aos apoiadores de Brizola e dos parlamentares na-
cional-reformistas.
307
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946).
Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Acesso em: 12 de dez. 2006.
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V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
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TOLEDO, Caio Navarro. 2 JRYHUQR *RXODUW H R JROSH GH São Paulo: Brasiliense,
1982.
310
A OCUPAÇÃO DA FACULDADE DE FILOSOFIA
DA UFRGS (JUNHO DE 1968)
A
bordar um evento que durou praticamente vinte e quatro ho-
ras e cuja repercussão, a despeito de estar bastante presente na
memória de algumas pessoas que o presenciaram, foi relati-
vamente pequena, pode parecer um tanto desnecessário ou pouco relevante.
Contudo, se observados com atenção, os acontecimentos desenvolvidos na
)DFXOGDGHGH)LORVRÀDGD8)5*6HQWUHRVGLDVHGHMXQKRGH
serão reveladores daquele contexto histórico. É nesse sentido que a comuni-
cação ora proposta se insere na pesquisa, iniciada na graduação e atualmen-
te em desenvolvimento como projeto de dissertação de mestrado, que versa
sobre os expurgos de professores da UFRGS durante a ditadura civil-militar
EUDVLOHLUD$RFXSDomRGD)DFXOGDGHGH)LORVRÀDpXPIDWRGHJUDQGHVLJQLÀ-
cância nesse sentido, no mínimo porque seus desdobramentos contemplaram
expurgos de professores e estudantes envolvidos, de uma forma ou de outra,
no protesto. Como ensinam os historiadores vinculados a uma perspectiva
microanalítica, a aproximação com o tecido histórico, de fato, proporciona
vislumbrar aspectos de sua trama que, de outra forma, não seriam notados.1
* Licenciado em História pela UFRGS. Mestrando em História pela PUCRS, bolsista CAPES.
1 Ver a esse respeito, a título de ilustração, Revel (1998).
311
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O
ano de 1968 entrou para a História como o ano das mobiliza-
ções estudantis. As expressões “Maio de 1968” ou “Primave-
ra de Praga” se tornaram, em termos simbólicos, sinônimos
de uma geração extremamente politizada e reivindicadora. Mulheres e homens
que não silenciaram perante um mundo que entendiam estar dissonante em
relação a seus ideais. Aquele ano se constituiu em um “divisor de águas”.2 Foi,
em um primeiro momento, uma explosão de manifestações de vários e varia-
dos conteúdos em grande parte do planeta, de crítica às sociedades em seus
mais diversos aspectos e instituições, com grande ênfase para a universitária.
Os principais pontos de tangência entre as manifestações estavam nas críticas
ao DPHULFDQZD\RI OLIH, ao imperialismo de modo geral e especialmente ao nor-
WHDPHULFDQRDRFRQVHUYDGRULVPRH[SUHVVRGHDFRUGRFRPDVHVSHFLÀFLGDGHV
de cada sociedade. Incluindo todos esses e outros mais, a essência consistia na
oposição ao poder instituído, institucional, do Estado à família, e social, da luta
de classes à liberdade sexual.
(PXPVHJXQGRPRPHQWRSRUpPDVPRELOL]Do}HVVRIUHUDPRUHÁX[R
das distintas formas de repressão, particulares a cada região, mas que tiveram
um eixo comum composto pelo reacionarismo, pela transformação da con-
testação em mercadoria, pela degradação progressiva dos ideais utópicos e
especialmente pela perseguição física, política e ideológica dos que haviam se
levantado na luta por mudanças.3
1R%UDVLOKRXYHHVSHFLÀFLGDGHVSDUDDVTXDLVVHGHYHDWHQWDU6HDV
PRELOL]Do}HVDRUHGRUGRPXQGRHHVSHFLDOPHQWHQD)UDQoDLQÁXHQFLDUDP
o movimento estudantil brasileiro, paralelamente, o contexto interno nacional
foi decisivo para os fatos que caracterizaram aquele ano no país.
Vivia-se então a “primeira fase da ditadura”, segundo uma divisão do
SHUtRGRGLWDWRULDOEDVWDQWHXWLOL]DGDSHODELEOLRJUDÀDHVSHFtÀFD4 Foi o período
compreendido entre o golpe de 31 de março de 1964 e a promulgação do Ato
2 PADRÓS, Enrique Serra. “Introdução – 1968: contestação e utopia”. In: Holzmann, L.; Padrós, E. S. (Org.). 1968:
contestação e utopia. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 2003, p. 26.
3 Padrós, op.cit., pp. 22-26.
4 É pioneiro nesse sentido o trabalho de Maria Helena Moreira Alves, que propôs, em 1985, a divisão do período ditatorial
brasileiro em três fases de institucionalização, a saber: 1964-1968, 1968-1974 e 1974-1984. ALVES, Maria H. M. Estado e
oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1985.
312
Institucional nº 5 (AI-5). A distinção entre as três fases da ditadura, ainda que
em todos os governos do período tenha ocorrido a prática do terrorismo de
Estado, mostra-se especialmente útil na compreensão da primeira fase como
uma dupla escalada: a contestatória, por parte de diversos segmentos sociais
LQFOXLQGRFRPVLJQLÀFDWLYDSDUWLFLSDomRRPRYLPHQWRHVWXGDQWLOXQLYHUVLWi-
rio, e a repressiva, através das diversas modalidades utilizadas pelos grupos
dirigentes, militares e civis, que tomaram o poder em 1964, através de um
golpe de Estado.5 Esse embate progressivo culminou no AI-5, quando con-
VHJXLXSUHSRQGHUkQFLDRJUXSRGHRÀFLDLVPLOLWDUHVTXHDSHVDUGHDOJXPDV
divergências ideológicas sutis, tendiam para o lado do que se convencionou
chamar de “linha dura”, por oposição a outros, comparativamente modera-
dos, simbolizados por Castello, Golbery e a intelectualidade militar oriunda
da Escola Superior de Guerra. Promulgado em 13 de dezembro de 1968, o
AI-5 transformou o cenário brasileiro, marcando a “maioridade” do Estado
terrorista brasileiro e encerrando, junto com aquele emblemático ano, a maio-
ria das possibilidades de contestação que vinham sendo postas em prática por
setores sociais descontentes. Dentre elas, as ocupações, como a da Faculdade
GH)LORVRÀDGD8)5*6
O estopim da escalada de protestos acima mencionada foi o assassina-
WRGRHVWXGDQWHVHFXQGDULVWD(GVRQ/XLVHPXPDPDQLIHVWDomRSDFtÀFDQR
Restaurante Calabouço, no Rio, por seu não-fechamento, em 28 de março de
eVLJQLÀFDWLYRGHWDOSURJUHVVmRFRQWHVWDWyULDRIDWRGHTXHGHPDUoRD
dezembro, não houve um mês em que os estudantes gaúchos não tenham se
manifestado publicamente contra a ditadura, através de passeatas, atos, greves
e ocupações. O mesmo ocorria em outros grandes centros urbanos do país.
5 Há uma certa polêmica em torno da aplicabilidade do conceito de terrorismo de Estado para o caso brasileiro, na avalia-
omRFRPSDUDWLYDHQWUHDVGLWDGXUDVGHVHJXUDQoDQDFLRQDOGR&RQH6XOGD$PpULFD/DWLQD&RQWXGRSRGHVHDÀUPDUVHP
sombra de dúvida que, ainda que existam descompassos temporais e diferenças percentuais quanto a indivíduos repri-
PLGRVDVVDVVLQDGRV´GHVDSDUHFLGRVµWRUWXUDGRVH[SXUJDGRVFDVVDGRVSUHVRVH[LODGRVKiFRLQFLGrQFLDVVLJQLÀFDWLYDV
no papel central da Doutrina de Segurança Nacional como base ideológica, no caráter classista dos golpes, nas classes e
grupos sociais prioritariamente atingidos, na função central desempenhada pelos EUA, entre outras similitudes. Se houve
no Brasil um número comparativamente pequeno de assassinatos e “desaparecimentos”, a quantia de torturados e exi-
ODGRVIRLEDVWDQWHJUDQGHLQFOXVLYHHPWHUPRVUHODWLYRV$VVLPSHUFHEHVHFRPRHÀFLHQWHRFRQFHLWRTXDQWRDRFDVRGD
ditadura civil-militar brasileira, vigente de 1964 a 1985. Ver, a título de exemplo: FRONTALINI, Daniel; CAIATI, María
Cristina. El mito de la guerra sucia. Buenos Aires: CELS, 1984; e DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argen-
WLQR4XLQFHDxRVGHVSXpVXQDPLUDGDFUtWLFD%XHQRV$LUHV(8'(%$&RPRDÀUPDHVWH~OWLPRVREUHDSUiWLFD
do terrorismo de Estado, “no se trata sólo ya del Estado militarmente ocupado, asaltado por su brazo militar, donde la
FRHUFLyQKDUHHPSOD]DGRDODVGHFLVLRQHVGHPRFUiWLFDV\GRQGHHODXWRULWDULVPRVHFRQÀJXUDHQHOPDQHMRGLVFUHFLRQDOGHO
aparato del Estado y en la abrogación de los derechos y libertades de los ciudadanos. Por el contrario, implica un cambio
cualitativo y profundo en la propia concepción del Estado, se trata de un nuevo Estado, una nueva forma de Estado de
Excepción” (p. 217).
313
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
A
V UDt]HV GD )DFXOGDGH GH )LORVRÀD GD 8)5*6 PHVFODPVH
com as da universidade. Nesse sentido, entende-se importante
apontar algumas características da formação de ambas.
No Brasil, diferentemente dos países de colonização espanhola da
América Latina, e justamente pelas diferenças na política colonizadora entre
as metrópoles ibéricas, não se tem uma longa tradição universitária. Faculda-
des e escolas de ensino superior surgiram no país, como unidades isoladas,
QR ÀP GR VpFXOR;,; $V SULPHLUDV XQLYHUVLGDGHV QR %UDVLO IRUDP FULDGDV
na década de 1930, o que é sintomático daquele contexto. Em contrapartida,
em outras áreas da América Latina já havia instituições universitárias desde o
século XVI.
Em 28 de novembro de 1934, por iniciativa estadual, foi criada a Uni-
versidade de Porto Alegre (UPA), embrião da futura UFRGS. Era a junção de
escolas já existentes sob uma administração comum.6 Pouco depois, em 30 de
março de 1936 criou-se formalmente a Faculdade de Educação, Ciências e Letras,
que compreendia os cursos de Matemática, Ciências Físicas, Ciências Quí-
PLFDV+LVWyULD1DWXUDO)LORVRÀD)LORORJLD(GXFDomR*HRJUDÀDH+LVWyULD
Esta, porém, só recebeu autorização para funcionamento da área de ciências
em 1942, passando a denominar-se )DFXOGDGHGH)LORVRÀD. As demais áreas pu-
deram iniciar efetivamente no ano seguinte, desdobradas nos seguintes cur-
VRV)LORVRÀD*HRJUDÀDH+LVWyULD/HWUDV1HR/DWLQDVH/HWUDV$QJOR*HU-
mânicas, Pedagogia e Didática.7
De 1946 a 1950, a Universidade de Porto Alegre foi transformada em
Universidade do Rio Grande do Sul (URGS), com a incorporação paulatina das
faculdades de Direito e Odontologia de Pelotas e da Faculdade de Farmácia
de Santa Maria. Em 4 de dezembro de 1950 ocorreu a federalização da URGS,
que passou a denominar-se Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
nomenclatura vigente desde então até os dias atuais. A lei estadual nº 1439 de
16 de fevereiro de 1951 transferia para a União o patrimônio da universidade,
complementando o processo de federalização.8 Em março de 1953 a Facul-
314
GDGHGH)LORVRÀDGHL[RXGHIXQFLRQDUQRVSUpGLRVGD)DFXOGDGHGH'LUHLWR
e dos institutos de Química e de Física, com exceção dos cursos de Ciências.
Mudou-se para a construção próxima à Reitoria e, em 1954, também se trans-
feriram os cursos de ciências, para o prédio recém construído do Instituto de
Ciências Naturais. Nesse mesmo ano desmembraram-se os cursos de Histó-
ULDH*HRJUDÀDHIRLFULDGRR,QVWLWXWRGH)LORVRÀDYLQFXODGRGLUHWDPHQWHj
Reitoria.9(PVHULDLQFOXtGRQRUROGHFXUVRVGD)DFXOGDGHGH)LORVRÀD
o de Ciências Sociais.10
Essa breve retrospectiva, um tanto árida e factual, se faz necessária
para que se tenha uma noção um pouco mais densa do que era a Faculdade de
)LORVRÀDHPÓQLFDGLVWLQWDGDVGHPDLVHVFRODVHVSHFLDOPHQWHSRUVXD
IRUPDomRPXOWLIDFHWDGDHUDXPD´SHTXHQDXQLYHUVLGDGHµFRPRDGHÀQLXVHX
diretor em junho de 1967. Exatamente um ano antes da ocupação, no prefácio
GHXPDSXEOLFDomRDOXVLYDDRVDQRVGDTXHOHLQVWLWXWRtPSDUDÀUPDYDFRP
certa mágoa o Prof. Angelo Ricci que “estamos às vésperas da Reforma uni-
versitária que impiedosamente desmembrará esta pequena universidade que é
D)DFXOGDGHGH)LORVRÀDVHPGHL[DUOKHVHTXHURQRPHµ11 A Lei de Reforma
Universitária, lei nº 5540 de 11 de novembro de 1968, de fato fragmentou-a
em diversos departamentos, alguns agrupados em torno do Instituto de Filo-
VRÀDH&LrQFLDV+XPDQDVH[LVWHQWHGHVGHHQWmR&RQWXGRRTXHQmRSRGHULD
prever o Prof. Angelo Ricci é que, poucos meses antes da reforma, ele haveria
de se deparar com a complicada situação da ocupação.
O
jornal Correio do Povo, periódico diário de circulação esta-
dual, apresentou no dia 28/06/1968, em quase metade de
suas páginas, notícias relativas ao movimento estudantil. Não
foi algo efêmero, o que se constata da análise dos jornais daquele mês. A
mobilização estudantil típica do ano de 1968 não poderia ser ignorada, pois
era uma questão candente, não só pela conjuntura mundial, mas também pelo
próprio desenvolvimento histórico brasileiro, pelas contradições sociais da
ditadura cada vez mais evidentes.
315
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
316
A OCUPAÇÃO EM DEBATE NO CONSUN
A
ata da 380º reunião do Conselho Universitário (Consun), re-
DOL]DGDXPGLDDSyVVHUGHVRFXSDGDD)DFXOGDGHGH)LORVRÀD
traz diversas informações interessantes.12 Tal fonte primária
LPSOLFD HP SUHFDXo}HV PHWRGROyJLFDV HVSHFtÀFDV HVSHFLDOPHQWH DV TXH VH
referem à necessária observância dos sujeitos que se expressam através dela,
jIRUPDGHH[SUHVVmRVHPSUHÀOWUDGDSHORUHGDWRUHUHÀOWUDGDQDYHULÀFDomR
GDUHGDomRÀQDOSRUSDUWHGRVPHPEURVGRFRQVHOKRHDFLPDGHWXGRjVL-
tuação na qual aqueles indivíduos estavam colocados e se expressando. Eram
membros do supremo órgão decisivo da universidade, portanto, indivíduos
com um considerável poder de ação dentro do ambiente universitário. Os
diálogos e opiniões eram sempre “traduzidos” de acordo com o entendimen-
to do redator da ata que, por outro lado, submetia à avaliação dos membros
GRFRQVHOKRDUHGDomRÀQDO1HVVHVHQWLGRRWH[WRDSURYDGRGDDWDDRTXDO
se tem acesso, é uma interpretação dos debates e, portanto, uma redução ou
síntese onde sempre há perdas, mas que, por outro lado, obteve aprovação de
seus enunciadores, sendo assim um indicador do conteúdo básico das idéias
GHIHQGLGDV3RUÀPpIXQGDPHQWDOWHUVHHPFRQWDTXHDTXHOHVLQGLYtGXRV
HVWDYDPDWXDQGRHPXPDVLWXDomRRQGHFDGDDÀUPDomRPDOFRORFDGDSRGHULD
VLJQLÀFDUSUREOHPDVIXWXURV
$UHXQLmRFRPHoRXFRPDDÀUPDomRGR5HLWRUGHTXHQmRVHULDXWLOL-
zado nenhum “instrumento extra-universitário” na UFRGS, do que se suben-
tende recorrer ao aparato repressivo do Estado ditatorial. A seguir, narrou di-
vergências, ocorridas desde o início daquela semana, entre a Reitoria e alguns
diretórios acadêmicos, bem como o ato da ocupação, no dia 27, comunicado
por telefone pelo Prof. Ricci. No dia seguinte, o Reitor, que já buscava me-
didas para a retomada do prédio, foi avisado por dois professores que “havia
uma forte tendência, por parte dos estudantes, no sentido de devolver espon-
WDQHDPHQWHRSUpGLRGD)DFXOGDGHµ(QWmRSHGLXTXHR3URI5LFFLÀ]HVVHD
leitura do relatório que produzira a seu pedido.13
O texto, de cinco páginas, foi transcrito na íntegra. Nele, o Prof. Ricci
narrou detalhadamente os fatos, marcando o horário das 19:10 como início
da ocupação e destacando fundamentalmente sua divergência em relação aos
12 Ata de reunião da 380º sessão do Conselho Universitário da UFRGS, em 29/06/1968. In: Atas de Reunião do Conse-
lho Universitário da UFRGS. Arquivo do Conselho Universitário da UFRGS, Porto Alegre / RS.
13 Ata de reunião da 380º sessão..., p. 2.
317
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
ocupantes, bem como os esforços empreendidos por ele, pelo Reitor e pelos
professores Xausa e Victor de Britto Velho no sentido da não-intervenção
policial-militar no ambiente. Apontou o estudante Luis Carlos Prado, que
poucos anos depois seria expurgado, como um “conhecido agitador” e que
´HYLGHQWHPHQWHHQFDEHoDYDRPRYLPHQWRµ$ÀUPRXDLQGDTXHRUHODWRGRV
acontecimentos, feito pelo Correio do Povo daquele dia, “apesar das falhas
e das imprecisões”, estaria correto, especialmente no que dizia respeito à sua
atitude “quando se refere ao fato da entrega das chaves de algumas salas, sob
protesto”. Mas complementou que, diferentemente do que veiculara a im-
prensa, a chave principal do prédio não havia sido entregue aos estudantes.14
A seguir, destacou o Reitor que recorreu ao governador do Estado e a
“autoridades responsáveis pela segurança pública”, no sentido da permissão
da passeata, pois “a decisão dos estudantes era a de realizar a passeata, com
ou sem autorização das autoridades”, não conseguindo o intento devido a
“fatores extra-universitários”. Contou que tais informações teriam sido re-
passadas aos diretórios acadêmicos envolvidos e que, às 19:00, o Prof. Ricci
encaminhou-se ao prédio, após receber uma delegação de estudantes, para
sua devolução.15
Na seqüência, o Prof. Ricci destacou a ação da Profª Aurora Desidério
que, atendendo a seu pedido, colocou a Escola de Artes à disposição para a
conclusão da defesa de livre-docência de Carlos Roberto Velho Cirne Lima,
TXHRFRUULDQD)DFXOGDGHGH)LORVRÀDTXDQGRGDRFXSDomR/iFRQWLQXRXD
defesa no dia 27, concluída no dia seguinte. Na Escola de Artes, no dia 28,
UHFHEHXR3URI5LFFL´GRLVDOXQRVGD)DFXOGDGHGH)LORVRÀDRVTXDLVOKHFR-
PXQLFDUDPTXHHOHGHYHULDGLULJLUVHDRSUpGLRGD)DFXOGDGHDÀPGHUHFHEr
ODµ$ÀUPRXDLQGDR3URI5LFFLTXHFRPHOHVIRLDWpD5HLWRULDGHRQGHGL-
ULJLXVHj)DFXOGDGHGH)LORVRÀDMXQWRDRXWURVWUrVSURIHVVRUHV%RUQDQFLQL
Britto Velho e Xausa. Em frente ao prédio, teriam encontrado professores e
alunos. Os discentes entregaram a Ricci um documento que, em linhas gerais,
além de esclarecer os acontecimentos, corroborando a história veiculada pelo
Correio do Povo de que a ocupação teria ocorrido em função de mudança de
planos em relação à passeata originalmente planejada para aquele dia, protes-
tava contra a situação universitária e a mercantilização do ensino, destacando
como objetivos de luta dos estudantes “ensino livre e gratuito”, “liberação
318
imediata de todas as verbas para a educação”, “participação efetiva dos alu-
nos e professores na elaboração de um novo projeto de Reforma Universi-
tária”, “libertação dos estudantes presos”, e “eleições livres e diretas para as
entidades de representação estudantis”. Assinavam o documento os centros
DFDGrPLFRVGDVIDFXOGDGHVGH)LORVRÀD'LUHLWR$UTXLWHWXUD*HRORJLDH%L-
blioteconomia, bem como o “Diretório Central dos Estudantes da UFRGS
livre”.16(VWHKDYLDVLGRFULDGRHPRSRVLomRDR'&(´RÀFLDOµHPIXQomRGH
divergências políticas.
Destacou o Prof. Ricci como pediu aos alunos que fechassem a porta,
DÀPGHSURYDUTXHHOHVQmRWLQKDPDFKDYHSULQFLSDODVVLPFRPRDH[LJrQFLD
GHLQVSHomRSDUDYHULÀFDUDRFRUUrQFLDGHGDQRVRTXHQmRIRLHQFRQWUDGR
Agradeceu àqueles seis alunos que, segundo ele, teriam sido os que “domina-
ram o tumulto que se delineava” e “demonstraram maturidade universitária
e sensatez”. Enfatizou a presença de secundaristas e de “pessoas outras, que
não estudantes”, além dos estudantes da UFRGS, na ocupação.
O Prof. Ruy Cirne Lima propôs, então, que o Conselho exprimisse
publicamente sua solidariedade ao Reitor, ao Prof. Ricci e àqueles que os
DVVHVVRUDUDP R TXH WDPEpP IRL IHLWR GH SDUWH GD )DFXOGDGH GH )LORVRÀD
como comprova carta enviada à imprensa local em 3 de julho daquele ano, no
sentido de “emprestar irrestrita solidariedade à conduta do Diretor Professor
'RXWRU$QJHOR5LFFLµHQIDWL]DQGRD´ÀUPH]DHVHUHQLGDGHµFRPTXHDJLX
durante o episódio, “na defesa assim das prerrogativas de seu cargo, como
da integridade do patrimônio da Escola e da manutenção da ordem e da paz,
seriamente ameaçadas, no transcorrer da grave crise”.17,VVRpVLJQLÀFDWLYRGD
preocupação com a repercussão daqueles fatos.
A seguir, travou-se no Consun um debate acerca da abrangência do in-
quérito que deveria apurar os fatos. Discordante de outros membros que su-
JHULDPXPDVLQGLFkQFLDDSHQDVQRkPELWRGD)DFXOGDGHGH)LORVRÀDR3URI
Ricci defendeu amplamente a importância da instauração de uma Comissão
Especial que apurasse os fatos em toda a universidade.18 O Prof. Carrion,
habilmente, posicionou-se contra a instauração de inquéritos ou medidas pu-
319
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
MEMÓRIAS DA OCUPAÇÃO
U
m dos pontos mais presentes na memória dos que vivencia-
ram aqueles momentos é a possibilidade de que a atitude dos
professores envolvidos, como Ricci e Xausa, frente às reivin-
dicações estudantis de ocupação da faculdade, tenha sido um dos motivos
principais para seus afastamentos arbitrários, cerca de um ano depois, junto a
outros colegas docentes. Assim, há alguns anos, a Profª Maria Luiza Martini,
estudante de História de 1964 a 1968, lembrava que, “quando os estudan-
WHVWRPDUDPD)DFXOGDGHGH)LORVRÀD5LFFLSUHIHULXHQWUHJDUOKHVDVFKDYHV
democraticamente, do que deixar a polícia entrar na Universidade”.22 Pouco
tempo depois, complementou: “Ele não chamou a polícia. E ele foi penaliza-
do por aquilo. Mas eu acho que foi mais. Eu acho que devia estar na mira de
certas pessoas de direita e que eram mesmo olheiros”.23
Nas lembranças da Profª Lorena Holzmann, estudante de Ciências So-
ciais em 1968, percebe-se novamente a menção ao expurgo do Prof. Ricci
como motivado fundamentalmente por sua postura durante a ocupação: “Os
alunos diziam que ele era de direita. Que ele era de direita, mas que ele era,
digamos assim, um cara democrata, e que o pecado dele foi entregar o prédio
pros alunos, que isso aí não foi perdoado”.24
No dia 27 de junho, quando da ocupação, ocorria nas dependências
da faculdade a defesa de livre-docência do Prof. Carlos Roberto Velho Cirne
Lima. Sua banca, segundo ele mesmo, era “toda de extrema-direita”, compos-
ta inclusive por Miguel Reale e Conceição Tavares.
19 Idem, pp. 16-18.
20 Idem, pp. 18-19.
21 Idem, p. 24.
22 MARTINI, Maria Luiza Filippozzi. “Maio de 1968 no Rio Grande do Sul”. In: Holzmann; Padrós (Org.), op. cit., p. 112.
23 Trecho da entrevista realizada com a professora Maria Luiza Filippozzi Martini, por Jaime Valim Mansan, em
11/04/2006, em Porto Alegre / RS.
24 Trecho da entrevista realizada com a professora Lorena Holzmann, por Jaime Valim Mansan, em 25/01/2006, em
Porto Alegre / RS.
320
E eu, naquele formalismo, me defendendo. Apagou a luz. Eu conti-
nuei. Miguel Reale estava argüindo violentamente contra mim: ‘dialé-
tica é marxismo, isso é só disfarce, fala de Hegel pra disfarçar’. Bom,
aí, com a luz apagada, de repente alguém aparece na sala, na porta,
com uma lanterna, mostra o rosto: era o diretor Angelo Ricci. E ele
mostrou assim... Passou pelo povo e apontou para uma janela do ou-
tro lado da porta principal, que tinha a ponta de uma escada magirus
e dois policiais com metralhadora. E disse: ‘a banca vai ser evacuada
SRUDOLHRS~EOLFRWHPTXHÀFDUDTXLDWpTXHHXFRQVLJDID]HUFRPRV
estudantes um acordo pro público poder sair. Estava tudo tomado, as
portas, as... Bom, eu não sei como é que o público saiu. Eu sei que eu
desci a escada magirus com o Miguel Reale argüindo. Durante a descida,
ele disse: ‘olha, eu tenho que argüir durante a descida’. E nós, então,
quando chegamos ao chão, fomos cercados por policiais armados de
metralhadora. Tinha um ‘quadrado’, puseram ao redor de nós, e o
chefe da banca disse: ‘continue argüindo, e continue respondendo’. E
assim nós saímos, no escuro, e fomos pro Instituto de Belas Artes. 25
25 Trecho da entrevista realizada com o professor Carlos Roberto Velho Cirne Lima, por Jaime Valim Mansan, em
17/01/2006, em Porto Alegre / RS.
26 VARGAS, Índio Brum. Guerra é guerra, dizia o torturador. 2ª ed. Coleção Edições do Pasquim, vol. 78. Rio de Janeiro:
CODECRI, 1981, pp. 37-39.
321
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
27 XAUSA, Leônidas. “1968”. In: Trindade, H.; Leite, L. O. (Org.). Leônidas Xausa. Porto Alegre: Ed. da Universidade
/ UFRGS, 2004, p. 487.
28 TRINDADE, Hélgio. “O Político e o Professor”. In: Trindade; Leite (Org.), op. cit., p. 562.
29 Trecho da entrevista realizada com o Prof. João Carlos Brum Torres, por Jaime Valim Mansan, em 12/07/2006, em
Porto Alegre / RS.
30 HOHLFELDT, Antonio. “Universidade – um tempo de decisão”. In: Guedes, P. C.; Sanguinetti, Y. (Org.). UFRGS:
Identidade e memórias. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 1994, p. 205.
322
CONCLUSÕES
O
objetivo da miscelânea de lembranças acima composta foi
demonstrar o quanto o episódio da ocupação tem sido asso-
ciado nos últimos tempos ao afastamento de alguns de seus
participantes. Entende-se que tal percepção seja embasada por raciocínios
individuais fundamentados conjuntamente nos acontecimentos vividos e nos
fatos conhecidos a posteriori, ainda que se perceba traços de uma memória
coletiva comum àqueles que vivenciaram o período. Os expurgados de 1969
VHTXHUÀFDUDPVDEHQGRGLIHUHQWHPHQWHGRVGHGRTXHHVWDYDPVHQGR
acusados, ainda que em ambos os casos as acusações prescindissem de provas
concretas. Nesse sentido, é compreensível que se busque, ainda hoje, explica-
ções para o fato. Nesse sentido, associar a postura de professores como Ricci,
Xausa e Britto Velho, que teriam defendido os estudantes da ação repressiva,
a seus expurgos pouco tempo depois, acaba sendo o raciocínio mais imedia-
to e lógico, especialmente para aqueles que vivenciaram aquele período na
UFRGS.
O jornal daquele dia mostra ao historiador de hoje um pouco do que
foi transmitido a uma parcela da comunidade local sobre os acontecimentos.
O periódico procurou manter um certo distanciamento opinativo; por segu-
rança, pode-se inferir. Não atuou, portanto, de forma polêmica, reconhecen-
do o caráter ordeiro da ocupação, ainda que, através de posicionamentos con-
tundentes como o do governador Peracchi Barcellos, tenha sido o protesto
condenado. O veículo de comunicação, assim, manteve uma segura distância
crítica, o que é compreensível, dado o contexto.
No Consun, as divergências de opinião e as lutas contra ou a favor de
repressão ao corpo universitário aparecem nas entrelinhas, o que aponta para
possibilidades de ação entendidas como uma espécie de “resistência interna”,
ainda que em uma situação pouco provável. Por outro lado, a atitude que
supostamente teve o Prof. Ricci, denunciando a ação de Luis Carlos Prado e
outros estudantes junto à ocupação, é indício de que, talvez, sua postura não
tenha sido de plena defesa dos estudantes ou, ao menos, não de todos os es-
tudantes envolvidos. Isso foge um pouco a essa imagem do Prof. Ricci que as
memórias delineiam de modo geral.
A partir desses vários enfoques, vislumbrou-se por instantes trajetó-
rias cruzadas em um dado momento da história da UFRGS. Estudantes que
enfrentaram a repressão violenta, estudantes que defenderam a repressão a
323
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
324
FONTES CONSULTADAS
Documentação pública
Periódico Correio do Povo. Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. Porto
Alegre, RS.
Depoimentos publicados
TRINDADE, Hélgio; LEITE, Luis Osvaldo. Leônidas Xausa. Porto Alegre: Ed. da
Universidade / UFRGS, 2004;
VARGAS, Índio Brum. Guerra é guerra, dizia o torturador. 2ª ed. Col. Edições do
Pasquim, vol. 78. Rio de Janeiro: CODECRI, 1981.
Entrevista com Carlos Roberto Velho Cirne Lima, realizada por JVM em
17/01/2006.
Entrevista com João Carlos Brum Torres, realizada por JVM, em 12/07/2006.
Entrevista com Maria Luiza Filippozzi Martini, realizada por JVM em 11/04/2006.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
325
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino: Quince años después, una
mirada crítica. Buenos Aires: EUDEBA, 1999.
MARTINI, Maria Luiza Filippozzi. “Maio de 1968 no Rio Grande do Sul”. In:
Holzmann, Lorena; Padrós, Enrique Serra (Org.). FRQWHVWDomR H XWRSLD Porto
Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 2003, pp. 109-120.
VARGAS, Índio Brum. Guerra é guerra, dizia o torturador. 2ª ed. Coleção Edições do
Pasquim, vol. 78. Rio de Janeiro: CODECRI, 1981.
326
A POLÍTICA EDUCACIONAL DA DITADURA
MILITAR E A UFRGS (1964-1970)
Janaína Dias Cunha*
ʌ Resumo: A política educacional adotada durante a ditadura civil-militar brasileira impôs
GHIRUPDDXWRULWiULDXPDVpULHGHPRGLÀFDo}HVQRVVLVWHPDVGHHQVLQRGRSDtV$UHIRUPDXQL-
YHUVLWiULDFRQVWLWXtDXPDUHLYLQGLFDomRDQWHULRUDRJROSHPDVIRLPRGLÀFDGDGHIRUPDDDGHTXDU
a universidade brasileira ao modelo de desenvolvimento econômico implementado pelo regime
militar. A proposta deste trabalho é analisar como alguns aspectos da política educacional desse
período repercutiram na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Serão utilizados como fon-
tes primárias alguns materiais produzidos por professores e estudantes dessa instituição, como as
SXEOLFDo}HVGLVFHQWHVHDVDWDVGR&RQVHOKR8QLYHUVLWiULRHWDPEpPRVGRFXPHQWRVRÀFLDLVWDLV
como relatórios e publicações do governo e a legislação do período.
ʌ Palavras-chave: Política educacional – Reforma universitária – Ditadura
civil-militar – UFRGS.
O
objetivo deste trabalho é apresentar os resultados parciais
de uma pesquisa que está sendo desenvolvida no curso de
0HVWUDGRHP(GXFDomR7DOSHVTXLVDWHPSRUÀQDOLGDGHLQ-
vestigar o impacto da política educacional adotada durante o período inicial
da Ditadura Militar brasileira, bem como da reforma universitária imposta
naquele período, no processo de reestruturação da Universidade Federal do
5LR*UDQGHGR6XOFRQVLGHUDQGRDLQÁXrQFLDGRVDFRUGRVLQWHUQDFLRQDLVHRV
aspectos locais. O estudo encontra-se ainda em estágio inicial, portanto, não
serão inferidas conclusões sobre o tema, mas serão levantados alguns questio-
namentos que estão servindo de ponto de partida para a investigação.
O debate sobre o problema da reforma universitária foi caracterizado
por uma proliferação de propostas, de diversos setores sociais, ao longo de
toda a década de 1960. Em um período de quase dez anos, os mais variados
planos para a reformulação do ensino foram apresentados e discutidos em
vários espaços comuns da sociedade.
A demanda pela reformulação de ensino universitário, característica
da década de 1960, era resultado das transformações sociais e econômicas
ocorridas no país nas duas décadas anteriores. A urbanização e o aumento da
LQGXVWULDOL]DomRDWUDYpVGRPRGHORTXHÀFRXFRQKHFLGRFRPR´VXEVWLWXLomR
327
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
328
No início da década de 1960, foram promovidos pela União Estadual
GRV(VWXGDQWHV81(WUrVVHPLQiULRVQDFLRQDLVFRPDÀQDOLGDGHGHGHED-
WHU D TXHVWmR GR HQVLQR VXSHULRU 1RV HQFRQWURV TXH ÀFDUDP FRQKHFLGRV
como I, II e III Seminários Nacionais da Reforma Universitária, realizados
em Salvador (1961), Curitiba (1962) e Belo Horizonte (1963), respectivamen-
te, foram abordados os problemas do sistema de ensino e foram sugeridas
SURSRVLo}HVSDUDDVROXomRGDTXHVWmRXQLYHUVLWiULD$RÀQDOGHFDGDHQFRQ-
tro, foram publicados os documentos com as resoluções dos estudantes.2 As
críticas e demandas do movimento estudantil, constantes nos manifestos, não
se restringiam à questão do ensino superior. Os problemas políticos, econô-
micos e sociais da realidade brasileira também eram questionados. A estrutura
da universidade era criticada, pois representava, na opinião dos estudantes, a
estrutura oligárquica da sociedade brasileira. Para a UNE, a universidade era
elitista e antidemocrática, pois permanecia privilégio de poucos, não sendo
acessível à maioria da população. A reforma universitária deveria integrar um
projeto mais amplo de reforma social, que contemplasse a promoção do de-
senvolvimento, a reformulação total da estrutura sócio-econômica do país, a
reforma agrária e a eliminação das disparidades regionais. A luta pela reforma
universitária deveria incorporar toda a sociedade, integrando na sua campa-
nha o operário e o camponês.3
Os estudantes da UFRGS,4 através da Federação dos Estudantes da
Universidade do Rio Grande do Sul (FEURGS), também organizaram em
agosto de 1961, um seminário sobre a reforma universitária na instituição.5 O
documento com as resoluções do I Seminário de Reforma da URGS, prepa-
UDGRSHORSUySULRyUJmRGHUHSUHVHQWDomRGLVFHQWHDRÀQDOGRHQFRQWURDSUH-
sentava demandas e reivindicações similares às apresentadas nos manifestos
dos seminários nacionais da UNE. Na publicação da FEURGS, também eram
questionados a realidade brasileira, a democratização do ensino e do ingresso à
Universidade, a assistência universitária, o problema do professor universitário,
a democratização do magistério superior e adequação do magistério às funções
do ensino, e a reforma dos métodos de ensino universitário. Aplicavam para o
SODQRUHJLRQDORTXHHVWDYDVHQGRGHÀQLGRSDUDRSODQRQDFLRQDO
2 Os documentos foram publicados com os títulos “Declaração da Bahia” (1961), “Carta do Paraná” (1962) e “UNE: Luta
atual pela Reforma Universitária” (1963).
3 FÁVERO, Maria de Lourdes. A UNE em Tempos de Autoritarismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.
4 Apesar de ter sido federalizada em 1950, a sigla URGS continuou a ser utilizada nas publicações discentes e em alguns
GRFXPHQWRVRÀFLDLVGDXQLYHUVLGDGHDWpPHDGRVGDGpFDGDGHTXDQGRDVLJOD8)5*6SDVVDDVHUDGRWDGD
5 As resoluções foram publicadas no documento I Seminário de Reforma da URGS.
329
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
6 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1985. p. 40-41.
7 Id. ibid. p. 66-69.
8 ASSOCIAÇÃO DOS DOCENTES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Universidade
e repressão: os Expurgos na UFRGS. Porto Alegre: L&PM, 1979. p. 23-24.
9 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Conselho Universitário. “Ata da 328ª Sessão do Conse-
lho Universitário (04/06/1964)” In: Atas do Conselho Universitário. p. 2.
10 Id. ibid. p. 5-6.
330
Ainda no campo da representação estudantil a CEIS recomendava ao
Consun para que fosse “cerceada aos estudantes indiciados, nas investigações
efetuadas por esta Comissão, a participação em quaisquer atividades relativas
à política estudantil, dentro do âmbito universitário”.11 Tal medida foi pronta-
PHQWHDGRWDGDSHOR&RQVHOKR$)(85*6VHULDRÀFLDOPHQWHH[WLQWDHPQR-
vembro de 1964, com a Lei Suplicy,12 sendo substituída pelo Diretório Central
dos Estudantes (DCE), órgão criado por tal ato.
Após a Lei Suplicy, o Estatuto da Universidade foi adaptado, de forma
a adequar-se a essa norma, regulando os órgãos de representação estudantil.
Destacava-se o artigo 107, onde constava que “A tais Associações é veda-
da qualquer ação, manifestação ou propaganda de caráter político-partidário,
bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos es-
colares ou administrativos”, e o artigo 128, que previa que “Os atuais órgãos
de representação estudantil deverão proceder à reforma de seus Regimentos,
adaptando-os à referida Lei nº 4.464, submetendo-os aos Conselhos Técnicos
Administrativos ou Conselhos Departamentais, ou ao Conselho Universitário
quando se tratar de órgão do Diretório Central dos Estudantes, dentro do
prazo improrrogável de 60 dias”.13
Ainda no campo educacional, além das medidas repressivas aplicadas
pelo regime, o projeto de reforma universitária foi retomado, mas adaptado
conforme a ideologia do governo autoritário. O discurso pela democratização
do ensino foi substituído pelo discurso da urgência da modernização do ensino.
A educação passou a ser considerada como instrumento do desenvolvimento
econômico do país. A reforma universitária passou a ser considerada como
uma questão técnica, não mais como um problema social, como era considerada
antes do golpe.
A modernização do ensino superior seria garantida através da assistên-
cia técnica proporcionada pelos acordos de cooperação internacional, assina-
dos entre os governos brasileiro e norte-americano, através do Ministério da
Educação e Cultura (MEC) e da United States Agency for International Develop-
ment86$,'7DLVDFRUGRVTXHÀFDUDPFRQKHFLGRVFRPR$FRUGRV0(&
USAID, foram possibilitados pela reaproximação entre os dois países e pela
política externa adotada pela ditadura militar alinhada aos Estados Unidos.
11 Idem. “Ata da 331ª Sessão do Conselho Universitário (04/09/1964)” In: Atas do Conselho Universitário. p. 12.
12 A Lei Suplicy, Lei nº 4.464, de 9 de novembro de 1964, regulava os órgãos de representação estudantil, extinguia a
UNE e as Uniões Estaduais de Estudantes e criava, em substituição, o Diretório Nacional dos Estudantes e os Diretórios
Estaduais de Estudantes. Para as universidades, estabelecia os Diretórios Centrais de Estudantes como órgãos legais auto-
rizados para representação estudantil e os Diretórios Acadêmicos para a representação nos cursos.
13 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Conselho Universitário. “Ata da 335ª Sessão do Con-
selho Universitário (30/12/1964)” In: Atas do Conselho Universitário. p. 19.
331
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
14 O documento foi publicado em 1969, com o nome de “Relatório da Equipe de Assessoria ao Planejamento do Ensino
Superior EAPES (Acordo MEC-USAID)”.
332
Na medida em que a Universidade estiver preparando e formando
SURIHVVRUHV WpFQLFRV FLHQWLVWDV H SURÀVVLRQDLV LPHGLDWDPHQWH GHVWL-
nados às necessidades do desenvolvimento do país, estará cumprindo
VXDVQHFHVVLGDGHVHVSHFtÀFDV'DtRFXLGDGRHVSHFLDOTXHPHUHFH
na estrutura da Universidade, o estudo do mercado de trabalho pro-
ÀVVLRQDOVREUHWXGRSDUDDRUJDQL]DomRGDVFDUUHLUDVHGRVUHVSHFWLYRV
currículos.15
15 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Diretoria do Ensino Superior. Relatório da Equipe de Assessoria ao Pla-
nejamento do Ensino Superior EAPES (Acordo MEC-USAID). Brasília: MEC / Departamento de Imprensa Nacional,
1969. p. 71.
16 Id. ibid. p. 56.
17 O relatório intitulado “Rumo a reformulação da universidade brasileira”.
18 ATCON, Rudolph. Rumo à Reformulação Estrutural da Universidade Brasileira: Estudo realizado entre junho e setem-
bro de 1965 para a Diretoria do Ensino Superior do Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro: MEC, 1966. p. 82.
ATCON, Rudolph. Rumo à Reformulação Estrutural da Universidade Brasileira: Estudo realizado entre junho e setembro
de 1965 para a Diretoria do Ensino Superior do Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro: MEC, 1966. p. 82.
333
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
(PGHQRYHPEURGRPHVPRDQRÀFDYDHVWDEHOHFLGDD/HLQ
que determinava as diretrizes para a reforma. A Lei de Reforma Universitária
aplicava a maioria das medidas propostas do Grupo de Trabalho. Adotava
o ensino indissociável à pesquisa, estabelecia o regime de fundações de di-
reito público para as universidades, a estrutura orgânica em departamentos,
D FULDomR GR &RQVHOKR GH &XUDGRUHV R YHVWLEXODU XQLÀFDGR H R UHJLPH GH
dedicação exclusiva.
O governo militar já havia promulgado, antes de 1968, dois decretos-
leis que apontavam para uma reformulação das universidades federais. O De-
creto-Lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, que estabelecia que os princípios
SDUDDQRYDRUJDQL]DomRGDVXQLYHUVLGDGHVIHGHUDLVÀFDQGRSURLELGDDGXSOL-
FDomRGHPHLRVSDUDÀQVLGrQWLFRVRXHTXLYDOHQWHV(R'HFUHWR/HLQGH
28 de fevereiro de 1967, que estabelecia que as universidades seriam divididas
em departamentos.
A Lei nº 5.540, assinada em 1968, apenas deu continuidade às mudanças
já estabelecidas nos decretos-leis nº 53/66 e 252/67, e acrescentou as suges-
tões apresentadas nos estudos realizados pelas comissões da EAPES, do Ge-
neral Meira Mattos e do Grupo de Trabalho, encomendados pelo Ministério.
Uma das universidades visitadas pelos técnicos da USAID e pelo pro-
fessor Atcon, foi a UFRGS. O objetivo da visita, realizada em agosto de 1965,
era debater com os professores da instituição o plano de reestruturação da
universidade.19 Além das recomendações publicadas em seu relatório, Atcon
também assinalava o interesse e a disposição para a reestruturação da Univer-
sidade demonstrados pelos professores da UFRGS:
Evidenciou-se, de todos os lados, um genuíno interesse por tudo o que
se relacionava com a temática do planejamento e da reformulação ins-
WLWXFLRQDOGHPRGRTXHQmRSXGHGHL[DUGHÀFDUEHPLPSUHVVLRQDGR
com o ambiente sério e o vivo interesse encontrado nas duas universi-
dades. (...) Existe em Porto Alegre tudo para fazer uma obra modelar,
de transformar uma universidade, em grande parte ainda tradicional,
numa instituição em plena sintonia com seu meio, servindo-o de for-
ma efetiva e contribuindo, desse modo, para o progresso universitário
nacional.20 [Grifos no original]
334
Em junho de 1965, os órgãos colegiados das Faculdades e Escolas da uni-
YHUVLGDGHKDYLDPÀFDGRHQFDUUHJDGRVGHHODERUDUVHXVSODQRVGHWUDEDOKR
HGHQHFHVVLGDGHVHGHDSRQWDUDVSRVVtYHLVGLÀFXOGDGHVGRVFXUVRVSDUD
receberem aos assessores norte-americanos e para remeterem à Comissão
de Planejamento, a comissão do Consun responsável pela elaboração do
plano de reestruturação.21
Entre os anos 1966 e 1968, o plano de reestruturação da UFRGS foi
formulado, reformulado e debatido entre os professores do Consun. Neste
período, o projeto de reforma da instituição foi ganhando forma, e a univer-
sidade foi sendo “modernizada” conforme o modelo sugerido pelos técni-
cos da ditadura. Foram adotados o sistema departamental, a matrícula por
GLVFLSOLQDVHRH[DPHYHVWLEXODUXQLÀFDGR$)DFXOGDGHGH)LORVRÀDIRLGHV-
membrada e, em seu lugar, foram criados os institutos de Matemática, Física,
Química, Geociências, Biociências, Ciências Humanas, Letras e Artes, além
das faculdades de Educação e Meios de Comunicação Social, essa última in-
tegrada à Biblioteconomia.
Em 1969 e 1970, aprovado o plano de reestruturação, os professores
GR&RQVHOKR8QLYHUVLWiULRSDVVDUDPDWUDEDOKDUQDPRGLÀFDomRGRHVWDWXWR
da instituição, de forma a adequá-lo conforme a Lei da Reforma Universitária
e o decreto-lei complementar. O novo estatuto, aprovado em 1970, estabele-
cia a nova estrutura da UFRGS. A reforma universitária começou a ser apli-
cada a partir do ano seguinte.
No seu relatório de gestão, o reitor Prof. Eduardo Zácaro Faraco
(1968-1972), destacava os principais pontos de reestruturação promovidos
durante sua gestão. Dentre elas estavam a mudança na organização curricular,
DVQRUPDVSDUDFRQFXUVRGRFHQWHHRYHVWLEXODUXQLÀFDGR22
Pode-se concluir que a legislação educacional imposta pelo regime a
partir de 1964 operou, com base em dois princípios: reestruturação do sistema
de ensino e contenção ao movimento estudantil. Nesse sentido, os Decretos-
leis nº 53/66 e 252/67 estabeleciam as primeiras medidas para a reformulação
estrutural das instituições de ensino, com base nas propostas apresentadas
DR*RYHUQRHLQÁXHQFLDGDVSHORVIXQGDPHQWRVRIHUHFLGRVSHORVWpFQLFRVGD
USAID. A Lei nº 5.540/68 e o Decreto-lei nº 464/69 deram continuidade a
21 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Conselho Universitário. “Ata da 340ª Sessão do Con-
selho Universitário (30/06/1965)” In: Atas do Conselho Universitário. p. 38
22 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório da Gestão Eduardo Faraco 1968-1972. Porto
Alegre: Edições UFRGS, 1972.
335
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
336
FONTES CONSULTADAS
Arquivos Eletrônicos:
'RFXPHQWDomR2ÀFLDO3XEOLFDGD
337
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Maria Helena Moreira. (VWDGR H 2SRVLomR QR %UDVLO Petrópolis:
Vozes, 1985.
338
AUDITORIA MILITAR DE SANTA MARIA:
UM NOVO ENFOQUE SOBRE A REPRESSÃO
E A OPOSIÇÃO AO REGIME MILITAR
D
e acordo com o livro Brasil: Nunca Mais,1 a oposição ao re-
gime militar tem como marco divisório o Ato Institucional
Nº. 5 (AI-5), que segundo Fico,2 representou um processo
de “maturação da linha dura”, pois a repressão ocorreu desde o primeiro
momento da instauração do regime. Entre abril de 1964 e às vésperas d1e ser
decretado o AI-5 a repressão voltou-se principalmente contra o movimento
sindical, as mobilizações nacionalistas entre militares, atividades estudantis e
yUJmRVGHUHSUHVHQWDomRGDVRFLHGDGHFLYLO(QWUHWDQWRDSyVHVVHSHUÀO
foi alterado, concentrando-se principalmente na militância de organizações
partidárias proibidas e na luta armada.
Pela importância dos fatos ocorridos a oposição ao regime militar no
5LR*UDQGHGR6XOHVSHFLÀFDPHQWHHDVXDUHSUHVVmRDLQGDFDUHFHPGHHVWX-
dos históricos, pois alguns trabalhos de destaque, sobre a luta armada, enfo-
cam apenas o centro do país.
A necessidade de buscar mais informações sobre a luta armada no Rio
Grande do Sul está justamente na sua importância para a esquerda brasileira,
* Apresentadora: Mestranda do PPG em História da Universidade Federal do rio Grande do Sul sob orientação da pro-
fessora Carla Simone Rodeghero.
1 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. 34. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.p. 87.
2 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jor-
ge; DELGADO, Lucilia Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos
sociais do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 4, p 183.
339
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
340
mesmo modo, a partir do material encontrado na Auditoria Militar de Santa
Maria e no documento Relatório Anual de Informações percebe-se que justamen-
te no período em que a guerrilha urbana esteve mais ativa no estado, o ano de
1970, foi o momento em que a repressão teve suas ações mais incisivas.8 Foi
neste ano que ocorreu a tentativa de seqüestro do cônsul norte-americano,
sendo que esse acontecimento provocou a prisão de muitas pessoas, o apri-
moramento dos métodos de tortura e a vinda de agentes do Rio de Janeiro e
São Paulo para auxiliar nessas tarefas.
Devido à existência de poucas ações armadas, mas de uma ação repres-
siva muito forte, entende-se que é necessário situar essa experiência da luta
armada a partir de um quadro maior das ações de oposição ao regime militar
e das formas de repressão empregadas no Rio Grande do Sul.
Dessa forma, o objeto de estudo foi direcionado com o objetivo geral
de caracterizar a oposição ao regime militar no Rio grande do Sul a partir dos
alvos da repressão considerando os processos da Auditoria Militar da cidade
de Santa Maria.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
P
ara alcançar o objetivo geral desta proposta, já foi iniciada uma
UHYLVmRELEOLRJUiÀFDHROHYDQWDPHQWRGHIRQWHVVHPDVTXDLV
QmRVHULDSRVVtYHOYHULÀFDUDSRVVLELOLGDGHGHH[HFXWDUWDOHVWXGR
e o levantamento do problema suscitado.
Com as leituras a respeito das memórias de ex-militantes pretende-se
entender como se desenvolveu a atuação dos grupos de esquerda no Rio
Grande do Sul e a partir disso como a guerrilha no Estado se inseriu no ce-
nário nacional. Para isso, foram realizadas as leituras dos clássicos a respeito
da luta armada, como Combate nas Trevas de Jacob Gorender,9 A revolução faltou
ao encontro de Daniel Aarão Reis Filho10 e O fantasma da revolução de Marcelo
Ridenti11HQWUHRXWURV$OpPGLVVRIRUDPIHLWDVDOJXPDVOHLWXUDVHVSHFtÀFDV
sobre os grupos guerrilheiros para buscar os seus referenciais teóricos, táticos
e estratégicos.
7 Acervo Contra a Ditadura. Relatório Anual de Informações. Atividades Subversivas. 1971. SOPS/LV_1._.108.1.1.
8 Os civis processados por crimes contra a segurança nacional na Auditoria Militar de Santa Maria também se concentram
nesse ano.
9 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2. ed. São Paulo:
Ática, 1987.
10 REIS FILHO, Daniel Aarão. A Revolução faltou ao encontro: Os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1989.
11 RIDENTI, Marcelo. O Fantasma da Revolução brasileira. São Paulo Universidade Estadual Paulista, 1993.
341
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
%XVFRXVHLJXDOPHQWHFRPSUHHQGHUDWUDYpVGDUHYLVmRELEOLRJUiÀFDD
estruturação do sistema repressivo implantado no período da ditadura. Para
complementar essas leituras, também foi realizado um levantamento sobre a
produção acadêmica (dissertações e teses) referente á temática proposta para
que se tivesse uma visão geral do conhecimento produzido sobre a questão,
YHULÀFDQGRVHTXHDSURGXomRDHVVHUHVSHLWRpOLPLWDGDWRUQDQGRVHHQWmR
XPDVVXQWRUHOHYDQWHSDUDDKLVWRULRJUDÀDGR5LR*UDQGHGR6XOHGR%UDVLO
O levantamento documental foi iniciado no Acervo da Luta Contra a
Ditadura e na Auditoria Militar de Santa Maria. A partir do material encontra-
GRQHVVHVORFDLVEXVFRXVHFODVVLÀFDURVWLSRVGHDo}HVSUDWLFDGDVQR(VWDGR
e analisar as razões pelas quais as pessoas eram processadas.
No decorrer do presente estudos, estão sendo aprofundadas às leituras
já iniciadas, enfocando-se de maneira especial a constituição e atuação do
sistema repressivo e dos grupos de luta armada que agiram no Rio Grande do
Sul, além da estruturação e funcionamento da Justiça Militar e da legislação
vigente no período.
Considera-se a possibilidade de ampliar o enfoque dado no momento à
Auditoria Militar de Santa Maria para as demais Auditorias do Estado situadas
HP3RUWR$OHJUHH%DJp(QWUHWDQWRpQHFHVViULRYHULÀFDURDQGDPHQWRGD
pesquisa para considerar essa possibilidade.
O material da Auditoria Militar já se encontra catalogado, para serem
IHLWDVDVSRVWHULRUHVTXDQWLÀFDo}HVGRVGDGRVHDSDUWLUGRVTXDLVVHUiSRVVtYHO
caracterizar a militância, as ações praticadas e as condenações ou absolvições
dos processados.
Na caracterização da militância serão consideradas informações pes-
soais como a idade, o sexo, a naturalidade, o estado civil. O objetivo desse
levantamento é saber quem se opôs ao regime militar no Estado e se esse
SHUÀOVHDSUR[LPDFRPDPLOLWkQFLDGRVRXWURVHVWDGRVGRSDtV
No levantamento das ações praticadas, serão analisados os decretos-leis
em que essas pessoas foram enquadradas e a partir disso serão diferenciadas
DVDo}HVDUPDGDGDVQmRDUPDGDV&RPLVVRVHUiSRVVtYHOLGHQWLÀFDUTXDLV
as ações que tiveram maior incidência de condenação e penas mais pesadas.
Como o material apresenta um grande número de pessoas absolvidas por
falta de provas, serão analisadas as ações que aparecem com maior incidência
neste item. Com isso pretende-se compreender como a repressão atuou no
combate às ações de oposição ao regime.
342
Essas informações da Auditoria Militar de Santa Maria serão cruzadas
com os dados das outras fontes, como os materiais encontrados no Acervo da
luta Contra a Ditadura, o material do Projeto Brasil Nunca Mais existente no
Solar dos Câmaras e com as notícias existentes na imprensa de Porto Alegre.
Além, é claro de outras fontes que poderão surgir no decorrer da pesquisa e
que serão exploradas ao longo do trabalho.
Dessa forma, será possível se traçar um quadro da repressão no Estado
contra os movimentos de oposição à ditadura militar e situar dentro desse
contexto, a luta armada desenvolvida no Rio Grande do Sul.
P
ara compreender no que consistiu a luta armada no Rio Grande
do Sul está sendo feito um levantamento documental em Porto
Alegre, no Acervo da Luta Contra a Ditadura localizado no Me-
morial do Rio Grande do Sul e na Biblioteca do Solar dos Câmaras situada
na Assembléia Legislativa do Estado. Em Santa Maria o principal enfoque foi
dado á Auditoria Militar da cidade, mas também foram feitas consultas no
Arquivo Público Municipal.
No Acervo da Luta Contra a Ditadura foi encontrada até o momento
a seguinte documentação: “Relação dos elementos que interessam ao Departamento
Central de Informações” 12, trata das ações praticadas pelos militantes de grupos
de esquerda no Rio Grande do Sul. Entre as ações que foram enquadradas
em algum artigo do Decreto- Lei n° 898 de 29 de setembro de 1969 da Lei
de Segurança Nacional, encontram-se as práticas relacionadas à propaganda
VXEYHUVLYDFRPRFRPtFLRVSLFKDo}HVHSDQÁHWDJHPRXDOLFLDPHQWRGHSHV-
soas no local de trabalho ou de ensino. Os artigos também fazem referência à
formação e atuação de grupos de esquerda no Estado, armados ou não com
ÀQDOLGDGHFRPEDWLYDHGHSDUWLGRVSROtWLFRVH[WLQWRVSRUGHFLVmRMXGLFLDOSRU
serem considerados prejudiciais à segurança nacional. Quanto às ações arma-
GDVID]HPSDUWHRVDVVDOWRVDEDQFRVHDSDUWLUGHDUWLJRVHVSHFtÀFRVDSRQWD-
dos como incitação à guerra ou subversão à ordem político-social, prática de
atos destinada à guerra revolucionária subversiva e a tentativa de subverter a
RUGHPRXHVWUXWXUDSROtWLFRVRFLDOYLJHQWHQR%UDVLOFRPRÀPGHHVWDEHOHFHU
ditadura de classe, de partido político, de grupo ou indivíduo, é possível infe-
rir a intenção da esquerda gaúcha em instaurar a Revolução Socialista.
12 Acervo da Luta Contra a Ditadura: Relação dos elementos que interessam ao Departamento Central de Informações.
1972. SOPS/LV _ 1.2.1081.13.5
343
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
13 Acervo da luta Contra a Ditadura: Relatório Anual de Informações-Atividades Subversivas. 1971. SOPS/LV_1._
.108.1.1
14 Acervo da Luta Contra a Ditadura: Indivíduos banidos do território Nacional com vinculação no Rio Grande do Sul.
1971. SOPS/LV_1.2.1011.12.5
15 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Op cit. p. 22.
344
Nos livros tombo, da Auditoria Militar de Santa Maria, consta algu-
mas informações a respeito das pessoas processadas como nome, estado civil,
naturalidade e idade, além de dados referentes ao processo como a data do
crime, o local onde foi instaurado o inquérito, a data da prisão preventiva, a
data da denúncia do crime, com o(s) referido(s) artigo(s) da Lei de Segurança
Nacional em que se enquadram, o promotor que fez a denúncia e, quando
absolvido a data e o fundamento da absolvição (falta de provas na maioria dos
os casos) e quando condenado a duração da pena e o(s) artigo(s) pelo qual foi
enquadrado.Também consta quando a promotoria ou a defesa recorriam e a
decisão tomada pelo Supremo Tribunal Militar.16 Os tipos de ações apontadas
são as mesmas existentes no documento citado anteriormente.
Entre as informações relevantes que constam nos livros tombo, desta-
ca-se o grande número de civis denunciados nos anos de 1970 e 1971. Esse
é um dado muito interessante, pois entre 1964 e 1969 pouquíssimos civis são
acusados ou enquadrados em algum decreto-lei, em geral são soldados. Nos
anos de 1970 e 1971 essa característica é invertida sendo a maioria dos acusa-
dos, civis enquadrados em algum artigo do Decreto-Lei nº. 898. A partir de
RSHUÀOGRVDFXVDGRVUHWRPDVHXVWUDoRVDQWHULRUHV
Assim, considera-se que é possível utilizar o material encontrado na
Auditoria Militar de Santa Maria como base para o presente trabalho e as
demais fontes como elementos que reforçam e complementam as suas infor-
mações. Analisando os dados encontrados nos livros tombo da Auditoria e
nos documentos encontrados no Acervo da Luta Contra a Ditadura é pos-
VtYHOWUDoDUXPTXDGURFDUDFWHUL]DQGRRSHUÀOGDPLOLWkQFLDDWXDQWHQRVDQRV
GHD$OpPGHWUDoDUXPSHUÀOSHVVRDOFRPRVGDGRVTXHMiIRUDP
mencionados acima, com o auxílio da legislação vigente na época será pos-
sível caracterizar detalhadamente as ações praticadas em oposição ao regime
militar e a resposta da repressão a isso.
No Arquivo Público de Santa Maria foi consultado o jornal local “A
Razão” nos anos de 1970 e 1971 com o objetivo de encontrar notícias refe-
rentes ás ações armadas no Estado. Constam reportagens sobre a tentativa de
seqüestro do cônsul norte-americano Curly Curtiss Cutter, realizada em Porto
Alegre em 5 de abril de 1970, da prisão de alguns de seus participantes, além
de notícias sobre assaltos á bancos realizados na região metropolitana.
16 O Supremo Tribunal Militar (STM) é a segunda instância da Justiça Militar na qual cabem os recursos das Auditorias
Militares.
345
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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347
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
348
AS CONEXÕES REPRESSIVAS ENTRE A DITADURA
CIVIL-MILITAR BRASILEIRA E O URUGUAI: O
CASO DO SEQÜESTRO DO CÔNSUL BRASILEIRO
PELOS TUPAMAROS COMO DENÚNCIA1
INTRODUÇÃO
A
s Ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul estabeleceram
uma conexão repressiva internacional com a Operação Con-
dor, fundada em 1975. Essa conexão instituiu uma rede de
cooperação entre si, com o propósito de interligar os sistemas repressivos e
de informações entre esses países. Entretanto, o que a Operação Condor rea-
OL]RXIRLUHGLPHQVLRQDUHRÀFLDOL]DUUHODo}HVTXHMiH[LVWLDPHQWUHRVUHJLPHV
de Segurança Nacional, pois desde 1964, quando o primeiro país de uma série
– o Brasil – sofreu o golpe de Estado, foi acionada a coordenação repressiva.
O regime civil-militar brasileiro foi percebido como “laboratório” e também
como exportador de técnicas repressivas no “combate à subversão”.
Assim, o Brasil exportou certas práticas como a tortura e a detenção
de oposicionistas (que no governo Médici tornaram-se sistemáticas), além de
1 Esta pesquisa está vinculada à minha dissertação de mestrado em andamento, sob orientação do professor Enrique
Serra Padrós.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bolsista do
Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES).
349
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
AS “FRONTEIRAS IDEOLÓGICAS”
N
a década de 1960, começaram a ser instalados regimes civis-
militares na América Latina, sendo que o Brasil foi o primeiro
país, em 1964, em que o golpe que o constitui era baseado na
Doutrina de Segurança Nacional (DSN), formulada pelos Estados Unidos.
No caso brasileiro, à DSN foi acrescentado o projeto geopolítico de expan-
sionismo, já presente na intelectualidade militar brasileira desde a década de
1930, mas notadamente importante a partir da fundação da Escola Superior
de Guerra (ESG), em 1949. Desse modo, o Brasil inaugurou um modelo
SROtWLFRGHGRPLQDomRPLOLWDULQÁXHQFLDQGRSUDWLFDPHQWHWRGRVRVSDtVHVUHV-
tantes da América Latina.
A geopolítica brasileira tinha três objetivos: “a ocupação de um territó-
rio imenso e praticamente vazio, a expansão na América do Sul em direção ao
3DFtÀFRHDR$WOkQWLFRVXOHDIRUPDomRGHXPDSRWrQFLDPXQGLDOµ2 Também
se destacam as teorias de guerra, de revolução e de subversão interna elabo-
radas pela ESG: “A Guerra Revolucionária ² FRQÁLWR QRUPDOPHQWH LQWHUQR
estimulado ou auxiliado do exterior, inspirado geralmente em uma ideologia,
e que visa à conquista do poder pelo controle progressivo da nação”.3
Na concepção de guerra revolucionária, a guerra ideológica substituiu
a guerra convencional entre Estados delimitados por fronteiras nacionais.
Desse modo, o conceito de soberania passou a ser reformulado, pois não se
EDVHDULDPDLVHPOLPLWHVHIURQWHLUDVJHRJUiÀFDVPDVVLPQRFDUiWHUSROt-
tico e ideológico dos regimes. Assim, em tese, os países da América Latina
poderiam intervir em outros países do subcontinente que estivessem tendo
sua “democracia” ameaçada por movimentos de orientação comunista. Dessa
forma, foram estabelecidas as “fronteiras ideológicas”.
2 COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978. p. 73.
3 BRASIL. Escola Superior de Guerra. Manual básico. Rio de Janeiro: ESG, 1976. p. 78. A edição do ano de 1976 foi
consultada; entretanto, cabe ressaltar que anualmente eram impressas novas edições, mas sem revisões. Assim, o conceito
retirado dessa obra não foi elaborado na década de 1970, e, sim, na década de 1960.
350
Possíveis e reais intervenções militares brasileiras na América Latina
RFRUUHUDPGHVGHDGHÁDJUDomRGRJROSHHP'XUDQWHDJXHUUDFLYLOTXH
VH HVWDEHOHFHX QD 5HS~EOLFD 'RPLQLFDQD HP R %UDVLO HQYLRX RÀFLDO-
mente 1.100 soldados, quando os Estados Unidos decidiram invadir o país da
América Central, para derrubar o governo nacionalista de Juan Bosch. Foram
constantes as ameaças de intervenção de tropas brasileiras no Uruguai, desde
1965,4 até a Operação Trinta Horas,5 em 1971. O Brasil também contribuiu
na preparação do golpe civil-militar no Chile, que derrubou o presidente so-
FLDOLVWD6DOYDGRU$OOHQGHHQYLDQGRUHFXUVRVÀQDQFHLURVHPDWHULDOEpOLFRSDUD
a organização de direita “Patria y Libertad”, posicionando, também, navios na
FRVWDGR3DFtÀFRFDVRIRVVHQHFHVViULDDLQWHUYHQomR6
O surgimento de governos com tendências reformistas preocupa-
va a ditadura brasileira: no Peru, em 1968, o general Juan Velazco Alvarado
instituiu um regime militar nacionalista; na Bolívia, em 1970, o general Juan
José Torres, apoiado por militares de cunho nacionalista e setores popula-
res, destituiu o antigo general governante, com posições conservadoras. Por
outro lado, no Uruguai, houve a formação da guerrilha urbana “Movimento
de Libertação Nacional – Tupamaros” (MLN), em 1966. Assim, o gover-
no brasileiro considerava-se isolado na América Latina, rodeado por países
hostis: “más temprano o más tarde el país [Brasil] deberá enfrentarse con
enemigos localizados en las fronteras”.7 Criou-se, então, a “Teoria do Cerco”,
que postulava que a subversão estava nas fronteiras brasileiras e que a Amé-
rica Latina seria a base logística para o avanço do comunismo no Ocidente.
Para os militares brasileiros, o país se transformaria em uma fortaleza sitiada,
tornando-se o defensor da civilização democrática e cristã no subcontinente
latino-americano.8
4 Em 1965, houve um acordo promovido entre o ministro de Guerra do Brasil, Costa e Silva, e o chefe do Exército argen-
tino, Onganía, para ambos os países intervirem militarmente no Uruguai, caso a atividade sindical ali persistisse.
5 Plano arquitetado pela ditadura brasileira para invadir o Uruguai, se a Frente Ampla (coalizão de esquerdas) ganhasse
as eleições presidenciais ocorridas em 1971. Trinta horas seria o tempo necessário, segundo estrategistas, para as tropas
brasileiras ocuparem o país vizinho.
6 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Estado Nacional e política internacional na América Latina: o continente nas rela-
ções Argentina-Brasil (1930-1992). 2. ed. São Paulo: Ensaio, 1993.
7 SCHILLING, Paulo. El expansionismo brasileño. México, D. F.: El Cid, 1978. p. 63.
8 VILLALOBOS, Marco Antônio Vargas. Ditadura e resistência democrática. República Oriental do Uruguai: 1968-1985.
304 p. Porto Alegre: PUCRS, 2003. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade
GH)LORVRÀDH&LrQFLDV+XPDQDV3RQWLItFLD8QLYHUVLGDGH&DWyOLFDGR5LR*UDQGHGR6XO3RUWR$OHJUH
351
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
C
entenas de exilados brasileiros foram procurar refúgio no
Uruguai, país que, até a década de 1960, era fortemente mar-
cado pela presença do Estado, com níveis sociais bem altos
em comparação com o restante da América Latina. Entretanto, desde 1964,
o Brasil, em cooperação com o Uruguai, possuía um sistema de informações
para averiguar as ações dos exilados, ainda mais porque a fronteira uruguaia
era constantemente atravessada pelos chamados “pombos-correios”, brasi-
leiros vinculados ao ex-governador Leonel Brizola que levavam informações
para os exilados e depois retornavam para o Brasil. Em 1965,9 com a criação,
no Uruguai, do “Movimento Nacionalista Revolucionário” (MNR), encabe-
çado por Brizola, essa rota de passagem começou a ser fortemente controlada
e vigiada pelo aparato repressivo brasileiro, pois havia se constituído “o eixo
político da rebelião que atemorizava o nascente regime militar brasileiro”.10
1HVVH VHQWLGR DR PHVPR WHPSR HP TXH H[LVWLD HVVH DÁX[R GH EUD-
sileiros tendo contatos com os exilados, essa rota de passagem também foi
utilizada por espiões e agentes policiais que, além de controlarem os exilados
que ali estavam, passaram a ensinar e treinar agentes uruguaios nas medidas
repressivas, principalmente no tocante à tortura. Integrantes do Esquadrão
da Morte ajudaram a esquematizar e a aperfeiçoar o Esquadrão da Morte
uruguaio,11 que tinha como principal alvo o MLN.
2VWXSDPDURVDQXQFLDUDPVHRÀFLDOPHQWHFRPRPRYLPHQWRDUPDGR
em 1966. Inicialmente, suas ações se restringiam ao estilo “Robin Hood”:
assaltavam bancos e distribuíam o dinheiro entre as camadas pobres da po-
pulação da capital uruguaia, e denunciavam políticos vinculados à corrupção.
A partir de 1968, quando as Medidas Prontas de Seguridad (medidas de exceção
usadas por um tempo determinado que restringiam liberdades individuais)
9 No Acervo da Luta Contra a Ditadura há documentação expedida pelo III Exército com listas de nomes de pessoas que
estavam foragidos da Justiça Militar, residindo no Uruguai, e das pessoas que freqüentavam reuniões de asilados neste país.
Fundo: Secretaria de Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil / Departamento de Polícia do Interior / 11ªa Região
Policial / Delegacia Regional de Erexim / SOPS/E – 1.2.92.3.1
10 PADRÓS, Enrique. Como el Uruguay no hay… Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai (1968-1985): do
Pachecato à ditadura civil-militar. 2 v. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
*UDGXDomRHP+LVWyULD,QVWLWXWRGH)LORVRÀDH&LrQFLDV+XPDQDV8QLYHUVLGDGH)HGHUDOGR5LR*UDQGHGR6XO3RUWR
alegre, 2005. p. 299.
11 HEVIA COSCULLUELA, Manuel. Pasaporte 11333: Uruguay … ocho años con la C.I.A. Montevideo: Liberación
nacional, 1985
352
começaram a ser usadas constantemente pelo governo uruguaio, os tupama-
ros optaram pelo confronto aberto e agressivo. Essas medidas levaram ao
aumento da repressão policial, sendo que a tortura tornou-se prática comum
nos interrogatórios.
O governo brasileiro não estava somente preocupado com o seu “ini-
migo interno” localizado em outro país, no caso o Uruguai com os exilados.
Estava também preocupado com o “inimigo interno” desse país, como a
guerrilha tupamara, conforme documento a seguir:
6(&5(7$5,$'(6(*85$1d$3Ó%/,&$
DEPARTAMENTO CENTRALIZADO DE INFORMAÇÕES
DELEGACIA REGIONAL DE RIO GRANDE
Assunto: PRISÃO DE TUPAMAROS NO CHUY (URUGUAI)
Rio Grande, 07 de junho de 1972.
Em continuidade ao rádio nº. 244/72/DOPS/RG, informamos que
Ângelo Silva foi preso como Tupamaro (sedicioso), possuindo ele um
bar nas proximidades do cemitério do Chuy (ROU), na vila Samuel
onde vivia com uma mulher que se dizia sua esposa.
2QRPLQDGRH[HUFLDDLQGDDSURÀVVmRGHPHFkQLFR
353
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
O SEQÜESTRO
E
m julho de 1970, o juiz Pereyra Maneli, denunciado de ser co-
nivente com torturadores, foi seqüestrado pelo MLN. Logo
depois, também foram seqüestrados o agente norte-america-
no Anthony Dan Mitrione,13 da Agência Internacional de Desenvolvimento
(AID), e o cônsul brasileiro, Aloysio Dias Gomide. Os três seqüestros faziam
parte do chamado “Plan Satán”, organizado pelos tupamaros.
O seqüestro era uma prática recorrente utilizada pelo MLN, principal-
mente para a obtenção de informações e denúncias políticas, sendo que os
alvos escolhidos eram, segundo Fernández Huidobro (um dos principais lí-
deres do movimento): “personas del régimen, esbirros de la represión, repre-
sentantes extranjeros, y hombres claves para el governo en general”.14 Para os
tupamaros, “las prisiones revolucionarias […] han demostrado en la práctica
VHUXQDGHODVIRUPDVPiVHÀFDFHVGHWUDVWRUQDUORVSODQRVGHOUpJLPHQ0iV
HÀFDFHVTXHRWUDVXVDGDVFOiVLFDPHQWHFRPRHOKRVWLJDPLHQWRµ15 Cabe salien-
tar que as ações de seqüestro do MLN não se davam de maneira aleatória, ou
seja, resultavam da escolha de alvos que representavam instituições estatais
e/ou governamentais uruguaias ou de outros países que ofereciam apoio ao
processo de autoritarismo implantado pelo então presidente Pacheco Areco.
Dan Mitrione e Dias Gomide foram os primeiros estrangeiros seqües-
trados pelo MLN, sendo que também foi a primeira vez que houve o pedido
de troca por prisioneiros políticos. O movimento armado brasileiro inaugu-
rou esse tipo de ação na América Latina, com o seqüestro do embaixador
norte-americano, durante o período da Junta Militar, que acabou sendo tro-
FDGRSRUTXLQ]HSUHVRVSROtWLFRV(VVHVVHTHVWURVÀ]HUDPSDUWHGDVDo}HV
dos tupamaros, num momento em que estavam abandonando a fase “Robin
Hood” para assumir uma postura mais agressiva na ação de desgaste do go-
verno Pacheco Areco.
Dias Gomide, vinculado ao grupo “Tradição, Família e Propriedade”
7)3IRLOLEHUWDGRSHORVWXSDPDURVDSyVWHUÀFDGRVHWHPHVHVVHTHVWUDGR
na Cárcel del Pueblo16 – quando sua esposa conseguiu pagar o resgate, exigido
13 Mitrione foi seqüestrado por estar vinculado à Companhia de Inteligência Americana (CIA) e por ser responsável por
treinar agentes para, através da tortura, extrair informações em interrogatórios de presos políticos. Antes da sua chegada
no Uruguai, em 1969, havia passado pelo Brasil, entre 1960 e 1963, e posteriormente, em 1967, e pela República Domi-
nicana, em 1964. Acabou executado pelos tupamaros, uma vez que o governo uruguaio rejeitou trocar a sua liberdade
pelos prisioneiros políticos.
14 FERNÁNDEZ HUIDOBRO, Eleutério. Actas tupamaras. 2. ed. Montevideo: TAE, 1987. p. 16.
15 Idem, ibidem. p. 17.
16 Esconderijo da guerrilha com certa infra-estrutura para esconder pessoas por tempo prolongado.
354
pelo MLN para a sua libertação, após o governo uruguaio rejeitar qualquer
negociação com a guerrilha –, postura essa que criou mal-estar nas relações
com o Brasil. Entretanto, o governo brasileiro insistia em não negociar dire-
tamente com os seqüestradores, mas pressionou para que o governo uruguaio
aceitasse a exigência dos tupamaros, conforme se afere do telegrama enviado
da Embaixada do Brasil em Montevidéu para o Itamaraty:
SECRETO URGENTÌSSIMO
Em 31 de julho de 1970.
Seqüestro do Cônsul do Brasil em Montevidéu pelos Tupamaros.
Instruções.
Refseutel 244. Como Vossa Excelência terá observado, as instruções
FRQWLGDVQRGHVSDFKRWHOHJUiÀFRQVmRQRVHQWLGRGHTXHDUHV-
ponsabilidade exclusiva pela segurança e libertação do Cônsul Gomi-
de cabe às autoridades uruguaias. O Governo brasileiro, obviamente,
tem o maior empenho na libertação do referido diplomata e fará tudo
que legitimamente lhe couber para assegurar quanto antes esse obje-
tivo. Entretanto, não podemos manter entendimento direto com os
seqüestradores cujas comunicações só podem ser feitas às autoridades
uruguaias.17
3RUpPHVVDIRLDDWLWXGHRÀFLDOGDGLWDGXUDEUDVLOHLUD2JRYHUQREUD-
sileiro teria concentrado unidades de pára-quedistas no Rio Grande do Sul,
na fronteira com o Uruguai, enviando também especialistas em contra-in-
surgência urbana e integrantes do Esquadrão da Morte em busca do cônsul
brasileiro, informações que o Brasil se empenhou em desmentir:
Ao mesmo tempo que a diplomacia brasileira pressionava de diver-
sas formas o governo uruguaio para que atendesse às exigências dos
seqüestradores, as autoridades de Brasília procuravam, também por
todos os meios, evitar ou esvaziar qualquer clima de tensão na fron-
teira entre os dois países. Assim, a informação de que oito jatos trans-
portando pára-quedistas haviam chegado às proximidades de Santana
do Livramento – principal cidade junto à fronteira uruguaia – foi des-
mentida com energia na última quarta-feira. E, em seguida, o Exército
brasileiro anunciou a decisão de suspender manobras militares pro-
gramadas para junto da fronteira uruguaia, para não haver qualquer
possibilidade de mal-entendidos.18
17 Ministério das Relações Exteriores. Fundo: Embaixada do Brasil em Montevidéu. Telegrama Secreto-Urgentíssimo n.
198 AAA/DSI/922.2 (42) (44) 600 (44).
$'LSORPDFLDGR3UDWD%UDVLO$UJHQWLQD8UXJXDLDPLJRV"9HMD5LRGH-DQHLURDJRS
355
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
(VVDDWLWXGHVHLQWHQVLÀFRXDSDUWLUGDH[HFXomRGH'DQ0LWULRQH2V
tupamaros deram um ultimato ao governo Pacheco Areco: se os presos políti-
cos não fossem libertados, o agente da CIA responsável por ensinar a tortura
aos policiais seria assassinado. O governo não cedeu, no que foi apoiado pe-
los Estados Unidos. O MLN sofreu uma ruptura após a execução, perdendo
grande parte do apoio da população, pois esses tipos de ações não eram rea-
lizadas pela guerrilha. O governo brasileiro passou a desacreditar de uma so-
lução dada pelo governo Pacheco Areco, principalmente porque considerava
que o “inimigo interno” desse país estava controlando o Uruguai:
DA EMBAIXADA EM MONTEVIDÉU
EM /19/ 19/ VIII/ 70
SECRETO URGENTE
SEQÜESTRO DO CÔNSUL DO BRASIL EM MONTEVIDÉU.
348 – quarta-feira – 18:20 – lamento não ter nenhuma notícia anima-
dora a transmitir a vossa execelência. o ambiente é, ao contrário, de
perplexidade e desânimo; pareceria que o próprio governo tem uma
sensação de impotência. o ministro do interior, o homem mais forte e
HQpUJLFRGRJDELQHWHFRPTXHPFRQYHUVHLHVWDPDQKmQDPLVVDRÀ-
cial por dan mitrione, disse-me que não devíamos perder as esperanças
mas era evidente que estava muito triste e cansado. a intensa atividade
policial dos últimos dias, com poucos elementos já esgotados, tem
dado parcos resultados; apenas se pode apontar como efeito das “ba-
tidas” o fato que os terroristas tenham abandonado em vários lugares
muitas armas e munições. enquanto isto, parecem serem os terroristas
os donos do país: seus partidários falam alto todos os dias no con-
gresso; a universidade lançou proclamação francamente revolucioná-
ria, na qual apenas menciona, sem deplorar e de passagem, “a morte
angustiante do assessor norte-americano das forças de repressão poli-
cial”, a faculdade de direito manifestou-se de forma semelhante; e no
sindicato dos médicos, um grupo que protestou contra os seqüestros
reconheceu ser “setor minoritário” dentro do sindicato. a justiça uru-
JXDLDFRPRWDPEpPRPDJLVWpULRpPXLWRPDLVGRTXHLQÀOWUDGDp
quase toda partidária dos terroristas; isto sabíamos todas as pessoas
informadas e hoje está diariamente nos jornais; sob a proteção dos
juízes, os presos políticos continuam, das prisões onde se encontram,
a comunicar-se livremente com o exterior e até a orientar a atividade
de seus companheiros de segunda linha ainda em liberdade.
356
Cabe registrar que, as Forças Armadas uruguaias foram marcadas por
XPIRUWHSURÀVVLRQDOLVPRHXPDSROtWLFDGHDEVWHQomRDWpDGpFDGDGH
TXDQGRQDFRQMXQWXUDGD*XHUUD)ULDRVRÀFLDLVFRPHoDUDPDID]HURVFXU-
sos de formação oferecidos pelos Estados Unidos. Entretanto, a atuação dos
militares no cenário político uruguaio se delineia a partir do esgotamento
econômico que este país vinha sofrendo – aliado às agitações e mobilizações
sociais e sindicais, e o surgimento da guerrilha tupamara. Soma-se a isso a
formação da Frente Ampla em 1970. Essa participação das Forças Armadas
já começava a ser divisada:
País onde não existe o serviço militar obrigatório, o Uruguai percebeu
nestes últimos dias uma participação mais concreta e pouco usual das
Forças Armadas na sua vida política. O comunicado distribuído pelo
*HQHUDO$QWRQLR)UDQFHVHPLQLVWURGR,QWHULRUÀ[DQGRDSRVLomRGH
não negociar com os seqüestradores, precedeu a manifestação pública
do Presidente Areco e, pelo menos, deu mais condições a Areco para
assumi-la. Ao mesmo tempo em que preparam seus esquemas para
a campanha eleitoral do próximo ano, os políticos dos dois grandes
partidos tradicionais, ambos divididos em várias alas, se indagam so-
bre essa importante crescente dos militares e as incertezas que possa
VLJQLÀFDUQRIXWXURGH´EODQFRVµH´FRORUDGRVµ20
20 O ex-país da paz: o Uruguai descobre a violência. Veja, Rio de Janeiro, 12 ago. 1970, p. 38.
357
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
358
integrantes do movimento não ajudou a polícia a descobrir o esconderijo dos
seqüestradores. A tortura já era um método utilizado nos interrogatórios, e
provavelmente poderia ser utilizada contra os tupamaros presos, o que fez
com que os seqüestradores divulgassem um comunicado:
Alguns minutos mais tarde, os nove prisioneiros foram apresentados
à imprensa, uma atitude que pode ter sido tomada apenas para mos-
trar ao povo que a rocambolesca carreira guerrilheira de Sendic estava
terminada. Mas a apresentação pode ter sido também uma resposta da
polícia a mais um comunicado dos subversivos, deixado horas antes
HPXPEDUSUy[LPRj&KHIDWXUDHPTXHÀ]HUDPSHODSULPHLUDYH]
alusão à morte dos seqüestrados – se Raúl Sendic ou outro preso so-
fresse qualquer tipo de tortura.23
23 O seqüestro sem resposta: uma semana depois, ainda o suspense. Ve- ja, Rio de Janeiro, 12 ago. 1970, p. 32.
359
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
AG – Sim, mas as pessoas valem por si mesmas, e não pelo posto que
ocupam.
VK – Os seus seqüestradores poderiam pensar que o senhor foi no-
meado para esse cargo porque compartilhava as opiniões de seu go-
verno.
AG – Eu concordo com a posição do meu governo. Isso não posso
negar. Mas os problemas do Uruguai são problemas do Uruguai e eu
não tenho nada a ver com isso. 24
360
Portanto, apesar das negativas constantes do cônsul, os tupamaros o
questionaram sobre as técnicas repressivas que o Brasil exportava para o Uru-
guai – a tortura e o modelo do Esquadrão da Morte.
Dessa maneira, pode-se apreender que, desde o início da ditadura ci-
vil-militar no Brasil, o exílio de brasileiros no Uruguai era monitorado e vi-
giado, pois pelas premissas das “fronteiras ideológicas”, o governo brasileiro
entendia que era sua obrigação cercar o “inimigo interno”, mesmo quando
localizado em um país vizinho. O surgimento do MLN (e posteriormente da
Frente Ampla) tornou o Uruguai alvo de preocupações do projeto geopolíti-
FREUDVLOHLURGHLQÁXrQFLDUHJLRQDO
Após a decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-5), o governo brasi-
OHLURTXDOLÀFRXVHXDSRLRjDGPLQLVWUDomR3DFKHFR$UHFRH[SRUWDQGRDH[-
periência contra-insurgente adquirida no combate à oposição interna e suas
técnicas repressivas. Assim, o seqüestro do cônsul brasileiro teria sido uma
reação contra o governo que ele representava, denunciando-o também por
dar sustentação à espiral autoritária do governo Pacheco Areco.
361
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FONTES CONSULTADAS
O ex-país da paz: o Uruguai descobre a violência. Veja, Rio de Janeiro, 12 ago. 1970, p. 38.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
362
BRASIL. Escola Superior de Guerra. 0DQXDOEiVLFR Rio de Janeiro: ESG, 1976.
CAULA, Nelson; SILVA, Alberto. Alto el fuego: FF.AA. y tupamaros. 3. ed. Montevideo:
Monte Sexto, 1986.
LANGGUTH, A. J.. $ IDFH RFXOWD GR WHUURU Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
363
O “CRIME DAS MÃOS AMARRADAS”: SEQÜESTRO,
TORTURA, DESAPARIÇÃO E MORTE DO EX-
SARGENTO MANOEL RAIMUNDO SOARES DURANTE
A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (1966)
INTRODUÇÃO
U
ma primeira versão deste texto foi apresentada como parte
da dissertação de Mestrado intitulada “Avenida João Pessoa,
2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia po-
lítica do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul
(1964-1982)” defendida em abril de 2006 junto ao Programa de Pós-gradua-
ção em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. No entanto,
RDVVDVVLQDWRGH0DQRHO5DLPXQGR6RDUHVTXHÀFRXFRQKHFLGRFRPR´FULPH
das mãos amarradas”, não recebera uma atenção particular naquela análise,
pois estava inserido em uma extensa lista de exemplos de arbitrariedades co-
metidas pelo Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul
(DOPS/RS).
Devido às práticas empregadas pelos órgãos da repressão do Estado,
à repercussão na imprensa regional e nacional e ao impacto na sociedade
que, pela primeira vez de forma explícita, tomava conhecimento das ações
repressivas da ditadura civil-militar brasileira, acredito que o “crime das mãos
amarradas” mereça toda a atenção neste breve artigo.
* Professora de História e historiadora, doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
365
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
M
anoel Raimundo Soares nasceu em Belém do Pará, no dia 15
de março de 1936. Sua família era de origem muito pobre, e,
como possibilidade para melhorar de vida, Manoel foi para
o Rio de Janeiro, em 1955, seguir carreira militar. Quatro anos mais tarde, já
era segundo sargento do Exército.1
Nesta época, o movimento dos sargentos acompanhava o clima de
efervescência política da sociedade brasileira. A luta pelas reformas de base
DWLQJLXDV)RUoDV$UPDGDVRQGHSDUWHGDEDL[DRÀFLDOLGDGHVRPRXVHjPR-
bilização social do início da década de 1960. Manoel era considerado uma
liderança em seu quartel no Rio de Janeiro.
Como represália a sua atividade política, Soares foi transferido, em
agosto de 1963, para uma unidade do Exército em Campo Grande, onde se
HQFRQWUDYDQRPRPHQWRGDGHÁDJUDomRGRJROSHGH'HYLGRDRVHXKLV-
tórico, os militares golpistas determinaram sua prisão, mas Manoel fugiu antes
que o prendessem. A partir de então, Soares passou a viver na clandestinida-
de. Sua expulsão do quadro das Forças Armadas brasileiras foi determinada
por decreto presidencial de 30 de julho de 1964.2
Logo após o golpe, em uma das ações da “Operação Limpeza”, que
visava expurgar da administração pública e das Forças Armadas indivíduos
que possuíssem qualquer vinculação com o governo deposto de João Gou-
1 BRASIL. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. Tortura e morte do Sargento Manoel Rai-
mundo Soares: discurso pronunciado na sessão de 28 de maio de 1984, pelo deputado Jacques D’Ornellas. Brasília:
Coordenação de Publicações, 1984. p. 7. Acervo da Luta contra a Ditadura.
2 PODER JUDICIÁRIO. Justiça Federal. Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. Circunscrição Porto Alegre. 5ª Vara
Federal. Ação ordinária 88.0009436-8 (Processo de indenização à Elizabeth Chalupp Soares pela morte de Manoel Rai-
mundo Soares), p. 1811. Acervo da Luta contra a Ditadura.
366
ODUWIRLDEHUWRXP,QTXpULWR3ROLFLDO0LOLWDU,30SDUDDYHULJXDURTXHÀFDULD
conhecido como “Movimento dos Sargentos”, do qual Manoel era acusado
de participação. Tratou-se de um IPM aberto em 20 de abril de 1964, “tendo
em vista a Portaria nº. 1, de 14 de abril de 1964, do Comando Supremo da re-
YROXomRTXHHQFDUUHJRXGDLQVWDXUDomRGR,QTXpULWR3ROLFLDO0LOLWDUDÀPGH
apurar os fatos e as devidas responsabilidades de todos aqueles que, no país,
tenham desenvolvido ou estejam desenvolvendo atividades capituláveis nas
/HLVTXHGHÀQHPRVFULPHVPLOLWDUHVHRVFULPHVFRQWUDR(VWDGRHD2UGHP
Política e Social.”3 Conforme esse inquérito, a acusação que recaía a Soares era
de desvio de armas, de cooptação de sargentos e de orientação do “Movimen-
to de Defesa das Reformas de Base”, sob o pseudônimo de “Equinócio”.4
A denúncia do IPM assim descrevia os fatos:
“I
Os fatos ora denunciados abrangem o período de vários meses, ante-
rior a 1º de abril do corrente ano, e constam de atividades exercidas
QDV)RUoDV$UPDGDVHVSHFLÀFDPHQWHMXQWRDRV6DUJHQWRVGR([pUFLWR
QRVHQWLGRGHGRXWULQDomRSROtWLFDHLGHROyJLFDFRPDÀQDOLGDGHGH
implantar no país regime político e social, contrário à ordem legal e
institucional, aliciando e incitando aqueles militares, não só a adotar
aquela linha ideológica como a passar a ação direta, usando de meios
violentos para tentar subverter a ordem política e social, para estabele-
cer uma nova forma de Governo, de natureza ditatorial.
II
Além disso, é notório que toda essa atividade vinha sendo desenvol-
vida nos moldes indicados por nações e organizações estrangeiras,
obedecendo aos mesmos moldes a nova ordem que tentava implantar.
[...]
VI
Assim, aqueles civis e uma parte dos militares, agiram como cabeças,
não só na aliciação e incitamento, como na tentativa de mudar e sub-
verter a ordem constituída, e, por sua vez, obtiveram a colaboração de
outro grupo de militares, que com eles passou a trabalhar nos mesmos
objetivos.” 5
O IPM prosseguiu até 1967, quando a sentença foi declarada. No en-
tanto, a culpabilidade de Soares fora extinta devido a sua morte.
3 Ibid., p. 319.
4 BRASIL. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. Tortura e morte... Op. cit., p. 24.
5 PODER JUDICIÁRIO. Justiça Federal. Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. Circunscrição Porto Alegre. 5ª Vara
Federal. Ação ordinária 88.0009436-8 (Processo de indenização à Elizabeth Chalupp Soares pela morte de Manoel Rai-
mundo Soares), p. 311. Acervo da Luta contra a Ditadura.
367
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
A
maioria das prisões efetuadas durante a ditadura civil-militar
brasileira foi realizada de forma ilegal, desrespeitando as pró-
prias normas criadas pelo regime. As prisões eram geralmente
efetuadas sem o mandato de prisão expedido pelo juiz. Além disso, antes das
detenções serem legalizadas – ou seja, comunicadas a uma instância hierarqui-
camente superior – a vítima poderia ter passado alguns dias em poder das for-
ças de segurança, o que fez com que muitas vezes a data de prisão constante
nos documentos não representasse o verdadeiro dia da detenção. Esta é uma
evidência de que as vítimas eram seqüestradas e não presas pelo regime.
A utilização massiva do seqüestro como método de detenção apre-
senta, conforme a lógica das ditaduras de segurança nacional, uma série de
vantagens, como o terror (que desestrutura psicologicamente o indivíduo),
DHÀFLrQFLDDDXVrQFLDGHEXURFUDFLDVSDUDDFRQVHFXomRGDVRSHUDo}HVHD
impunidade (não havia provas das ações perpetradas pelos agentes repres-
sivos). Esta estratégia repressiva permitia manter a vítima, durante o tempo
que fosse necessário, isolada do mundo exterior e privada de qualquer forma
de defesa, sem nenhum tipo de controle judicial. Desta forma, pode-se apli-
car de forma ilimitada e sistemática a tortura física e psicológica durante os
interrogatórios.6
Manoel viveu na clandestinidade desde sua deserção, em 23 de abril
de 1964, até o momento de sua prisão em Porto Alegre, em 11 de março de
1966. Após sair de Campo grande, foi para o Rio de Janeiro, onde encontrava
sua mulher em pontos combinados, pois era perseguido.
Em encontros clandestinos com sua esposa, Elizabeth Chalupp Soares,
Manoel informou-a que estaria mudando-se para Porto Alegre e logo a levaria
também. Numa das vezes que veio a Porto Alegre, em 5 de agosto de 1965,
Manoel alugou com o nome falso de Thomé Andrade Vieira o apartamento
nº 43 do edifício 1304 da rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre. O local
IRL XWLOL]DGR FRPR JUiÀFD SDUD FRQIHFomR GH SDQÁHWRV R TXH VHULD FRQÀU-
PDGRPDLVWDUGHTXDQGRR'23656LQYDGLXRDSDUWDPHQWRHFRQÀVFRXR
material “subversivo”.7
6 CELS. El secuestro como método de detención. Buenos Aires: Gama, 1982. p. 19.
7 PODER JUDICIÁRIO. Justiça Federal. Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. Circunscrição Porto Alegre. 5ª Vara
Federal. Ação ordinária 88.0009436-8 (Processo de indenização à Elizabeth Chalupp Soares pela morte de Manoel Rai-
mundo Soares), p. 1823-1824. Acervo da Luta contra a Ditadura.
368
Manoel foi seqüestrado no dia 13 de março de 1966, por volta das
16 horas, em frente ao Auditório Araújo Viana em Porto Alegre, numa ci-
lada empreendida por Edu Rodrigues Pereira – um “dedo-duro”, agente
de informações do Serviço Nacional de Informações (SNI) e da Polícia do
Exército (PE).8 Manoel, que estabelecera um contato com Edu, foi preso
por sargentos da PE e levado para o quartel da 6ª Companhia. A prisão de
Manoel se fez por determinação de um major, sem ordem judicial e sem a la-
YUDWXUDGRÁDJUDQWHGHOLWR9 Soares tinha em seu poder uma bolsa preta com
UHFRUWHVGHMRUQDLVVREUHDGLWDGXUDPLOLWDUHSDQÁHWRV2VSDQÁHWRVHUH-
cortes de jornais carimbados com “Abaixo a ditadura” e “Abaixo ao ditador
Castelo” seriam distribuídos na visita do general-presidente Castelo Branco
a Porto Alegre.10 Desse modo, por volta das 18 horas, foi conduzido pelos
PHVPRVPLOLWDUHVSDUDR'23656'XUDQWHHVWDVGXDVKRUDVHPTXHÀFRX
detido no quartel da PE, Manoel foi torturado, tendo recebido um golpe
com cassetete em seu olho esquerdo, que o deixou praticamente cego.
A TORTURA NO DOPS/RS
A
tortura foi um método aplicado pelas ditaduras de segurança
QDFLRQDOGR&RQH6XOFRPGLYHUVDVÀQDOLGDGHVREWHULQIRUPD-
ções, desmobilizar a população através do exemplo, punir as
vítimas e produzir sua destruição física e psíquica. É característico da tortura
o fato “de que a violência é monopolizada por apenas uma das partes, que a
emprega contra a outra parte indefesa. Os carrascos, que torturam o conspira-
dor caído na rede da polícia, o submetem a uma violência crescente com o in-
tento de quebrar sua resistência [...].”11 Segundo a pesquisa Brasil: Nunca Mais,
GLÀFLOPHQWHKRXYHSHVVRDVTXHSDVVDUDPSHORVSURFHVVRVGHHODERUDomRGRV
inquéritos policial-militares sem terem sido torturadas.12 Nos 707 processos
que compõem a pesquisa, existem 6.016 denúncias de torturas,13 sendo que
122 pertencentes ao Rio Grande do Sul, onde 43% remetem ao DOPS/RS.
Durante o período da ditadura militar brasileira, a tortura foi regra, e
não exceção, nas práticas policiais aplicadas a presos políticos e comuns. En-
8 Ibid., p. 1796.
9 Ibid., p. 5.
10 O “Caso das Mãos Amarradas”. COOjornal, Porto Alegre, out. 1978. p. 30. Acervo da Luta contra a Ditadura.
11 BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: UnB, 1995. p. 1295-1296, v.2.
12 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 173.
13 Brasil Nunca Mais – Tomo V – Volume 1 – p. 64. Biblioteca Borges de Medeiros – Solar dos Câmara – Assembléia
Legislativa do Rio Grande do Sul.
369
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
370
Vários presos políticos que se encontravam detidos no DOPS/RS fo-
ram testemunhas das torturas aplicadas em Soares.
8PGHOHVDÀUPDTXH6RDUHV´PRVWUDYDYiULRVVLQDLVGHVHYtFLDVµ
e, em um momento em que estava sem camisa, pode perceber “as mar-
cas de queimaduras e sinais de violento espancamento a tal ponto que
não podia engolir alimentos sólidos”. Manoel fora torturado “quase
todas as noites pela madrugada”, o que podia ser comprovado “pelos
gritos da vítima e que também pelo aspecto físico que apresentava
quando era trazido de volta a sua cela”.18
Outro, percebeu que Soares “demonstrava sinais de sevícias tendo um
olho roxo e os braços marcados por hematomas que demonstravam as tortu-
ras sofridas”. Em uma conversa com Manoel, este revelou-lhe “que tinha sido
submetido ao processo de torturas denominado ‘pau de arara’, que segundo o
sargento, consiste em dependurar a vítima, de pés e mãos amarradas, comple-
tamente nu, em uma vara, sendo, então, infringidas várias torturas”. Segundo
o sargento, o motivo das torturas era atribuído ao fato “de não ter revelado
RQRPHGDSHVVRDTXHOKHHQWUHJDUDDOJXQVSDQÁHWRVSDUDVHUHPGLVWULEXtGRV
nessa cidade”.19
A ILHA DO PRESÍDIO
18 COMISSÃO Parlamentar de Inquérito que investiga as circunstâncias da morte do ex-sargento do Exército nacional
Manoel Raymundo Soares, bom como tratamento dispensado a presos políticos. Relatório. Anais da Assembléia Legis-
lativa do Estado do Rio Grande do Sul. 27 de junho de 1967. p. 148. Biblioteca Borges de Medeiros – Solar dos Câmara
– Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
19 Idem.
20 PODER JUDICIÁRIO. Justiça Federal. Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. Circunscrição Porto Alegre. 5ª Vara
Federal. Ação ordinária 88.0009436-8 (Processo de indenização à Elizabeth Chalupp Soares pela morte de Manoel Rai-
mundo Soares), p. 1797. Acervo da Luta contra a Ditadura.
371
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
372
A FALSA SOLTURA DE MANOEL
P
orém, Manoel permaneceu preso durante o dia 13 no DOPS,
conforme o depoimento de Gabriel de Medeiros Albuquerque
Filho, que, ao assumir seu plantão, às 17 horas daquele dia, ainda
viu Manoel em uma das celas desse departamento,25 tendo permanecido até
RÀQDOGHVHXSODQWmRjPHLDQRLWHDSHVDUGHFRQVWDUQROLYURGHRFRUUrQFLDV
do DOPS a soltura de Soares às 13:30.26
No dia 20 de agosto de 1966, o DOPS/RS recebeu um telegrama do
Supremo Tribunal Militar, pedindo informações se estava detido naquele ór-
gão o ex-sargento Manoel Raymundo Soares, visto que foram impetrados
pela mulher do ex-sargento três habeas corpus (o primeiro de 29 de junho de
1966, o segundo de 15 de julho de 1966 e o terceiro de 15 de agosto de 1966)
pedindo a soltura do marido – informação negada pelo DOPS/RS nas três
oportunidades: “Informo pessoa Manoel Raimundo Soares não se encontra
preso ou detido.”27 “CRIOU-SE, em conseqüência do comprometedor envol-
vimento de altas autoridades gaúchas – as policiais – a NECESSIDADE do
desaparecimento do infortunado preso, e tal foi feito.”28
Um dos delegados do DOPS/RS, acompanhado de outras duas pes-
soas, próximo às 10 horas e 30 minutos do dia 20 de agosto de 1966, foi
ao Instituto Médico Legal, situado ao lado do Palácio da Polícia, sede do
Departamento, perguntando “se ali se encontrava o cadáver de algum des-
conhecido”.29 O auxiliar de necropsia mostrou um cadáver e perguntou ao
delegado se se tratava de quem procurava. Diante da resposta negativa de um
dos homens que acompanhavam o delegado, os três se retiraram.
O DESAPARECIMENTO DE MANOEL E O
APARECIMENTO DO CADÁVER
O
PpWRGRUHSUHVVLYRPDLVVRÀVWLFDGRGRWHUURULVPRGH(VWDGR
utilizado pelas ditaduras civil-militares de segurança nacional
do Cone Sul da América Latina foi a desaparição forçada de
pessoas. Poderia ser considerado o crime perfeito, já que, dentro de sua lógica
25 Idem.
26 Ibid., p. 1831.
27 Ibid., p. 437.
28 Ibid., p. 1800.
29 Idem.
373
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
30 THEISSEN, Ana Lucrecia Molina. La desaparición forzada de personas en América Latina. KO’AGA ROÑE’ATA
se.vii (1998). Disponível em: http://www.derechos.org/vii/molina.html Acesso em: 6 mai. 2004.
31 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Op. cit., p. 260.
32 Idem
33 Idem.
374
No entanto, foi uma prática sempre negada pelas Forças Armadas des-
ses países, enquanto estiveram no poder. Segundo generais do Exército brasi-
leiro, há somente quatro possibilidades de desaparecimento de uma pessoa:
“ela teria sido executada por sua própria organização, que jogaria a cul-
SDQR([pUFLWRHODSRGHULDÀFDUWmRGHVHVWUXWXUDGDPHQWDOPHQWHTXH
romperia com todos os conhecidos e sua família a ajudaria a se mudar
para o exterior alegando que seu ente sumiu; o suposto desapareci-
GRVHULDQDYHUGDGHXPPHPEURLQÀOWUDGRSHODVIRUoDVGHVHJXUDQoD
nacional, que, ao terminar seu serviço, fazia plástica e recuperava sua
antiga identidade; ou morto por acidente, mas que o Exército não
permitiu publicidade do fato.” 34
375
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
38 PODER JUDICIÁRIO. Justiça Federal. Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. Circunscrição Porto Alegre. 5ª Vara
Federal. Ação ordinária 88.0009436-8 (Processo de indenização à Elizabeth Chalupp Soares pela morte de Manoel Rai-
mundo Soares), p. 1812. Acervo da Luta contra a Ditadura.
39 Auto de necropsia de Manoel Raymundo Soares. In: Brasil: Nunca Mais. Tomo V, v. 4. p. 254-255. Biblioteca Borges de
Medeiros – Solar dos Câmara – Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
40 Exame de cronotanatognose de Manoel Raymundo Soares. In: Brasil: Nunca Mais. Tomo V, v. 4. p. 265. Biblioteca
Borges de Medeiros – Solar dos Câmara – Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
41 PODER JUDICIÁRIO. Rio Grande do Sul. Comarca de Porto Alegre. Ação Ordinária. 10 ago. 1973. In: PODER
JUDICIÁRIO. Justiça Federal. Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. Circunscrição Porto Alegre. 5ª Vara Federal. Ação
ordinária 88.0009436-8 (Processo de indenização à Elizabeth Chalupp Soares pela morte de Manoel Raimundo Soares),
p. 4. Acervo da Luta contra a Ditadura.
376
FONTES CONSULTADAS
Brasil Nunca Mais – Tomo V – Volume 1. Biblioteca Borges de Medeiros – Solar dos
Câmara – Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Brasil: Nunca Mais – Tomo V – Volume 4. Biblioteca Borges de Medeiros – Solar dos
Câmara – Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
377
OS ARQUIVOS VIRTUAIS SOBRE OS REGIMES REPRESSIVOS
Enrique Serra Padrós*
ʌ Resumo: O presente texto destaca a importância dos arquivos que disponibilizam docu-
mentação produzida por/sobre regimes repressivos, em especial os correspondentes às ditaduras
latino-americanas de Segurança Nacional dos anos 60 e 80. Em particular, aponta-se para os
arquivos virtuais, especialmente, o National Security Archive, o qual disponibiliza, tanto em suporte
ItVLFRSDSHOTXDQWRHPPHLRHOHWU{QLFRRVGRFXPHQWRVGHVFODVVLÀFDGRVSHODDGPLQLVWUDomRHV-
tadunidense. Tal documentação, produzida e divulgada pela rede diplomática dos EUA na região
(embaixadas e consulados) sob as diretrizes de Washington, abrange uma diversidade de informa-
ção alimentada pelos órgãos de inteligência de cada uma das ditaduras assim como pelo material
expropriado das organizações de oposição às mesmas. Essa informação coletada, processada e
LQWHUSUHWDGDIRLFRORFDGRjGLVSRVLomRGRVJRYHUQRVDXWRULWiULRVGDUHJLmRFRQÀUPDQGRDFR-
nexão dos EUA com aqueles regimes assim como o grau de conhecimento que possuía sobre a
violência produzida pelos mesmos.
ʌ Palavras-chave: Ditaduras de Segurança Nacional - Conexão EUA-América Latina – Ar-
quivos Repressivos – National Security Archive
R
HÁHWLU VREUH R SDSHO TXH GHVHPSHQKDP RV GHQRPLQDGRV
Arquivos Repressivos implica, inicialmente, em ressaltar a
função social primeira dos arquivos, ou seja, resguardar a
produção, organização e conservação de objetos que documentam as marcas
da ação humana produzidas individualmente, coletivamente e institucional-
PHQWH6HJXQGRDGHÀQLomRGDDUTXLYtVWLFDRDUTXLYRpDOpPGRHVSDoRItVLFR
UHFHSWRUGHXPPDWHULDOHVSHFtÀFRRFRQMXQWRGHGRFXPHQWRVTXHUHVXOWDGD
acumulação do registro valorativo das atividades de pessoas (físicas/jurídicas,
públicas/privadas). O mesmo é, por sua vez, processado por agentes que o
FODVVLÀFDPRRUJDQL]DPFXLGDPGDVXDH[LVWrQFLDHGDVXDFRQVXOWDHGHÀ-
QHPVHXVXVRVHÀQDOLGDGHV1
É de singular importância considerar que o “mundo do arquivo” é
perpassado pelas disputas que se estabelecem entre agentes especializados e
interessados (arquivistas, historiadores, diretores institucionais, etc.), que dis-
379
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
FXWHPGHÀQHPHGHFLGHPRTXHGHYHVHUJXDUGDGRHWUDQVPLWLGRDVVLPFRPRDV
diretrizes e regras quanto a sua preservação, destinação e acessibilidade. Tal situ-
ação se torna mais complexa quando vinculada aos denominados Arquivos Re-
pressivos, ou seja, aqueles constituídos por documentos produzidos pelas forças
de segurança de Regimes Repressivos (Forças Armadas e policiais e serviços de
inteligência)2 e por documentos e objetos apropriados das vítimas durante ações
de captura (batidas, perseguições, seqüestros, desaparecimentos, etc.).3
Os Regimes Repressivos são caracterizados, de forma geral, pela exis-
tência de cadeias de comando e por uma organização burocrático-militar
constituída por instituições policiais, militares e de inteligência que produzem
registros, redigem informes, elaboram prontuários e organizam arquivos.
Em realidade, todos os Regimes Repressivos geram importantes ar-
quivos policiais, mantidos e alimentados rotineiramente. Dentro da lógica de
funcionamento de tais regimes, a imposição de uma cultura de medo se baseia
em uma estrutura de controle, vigilância e violência que demanda a existência
de importante sistema burocrático de informação e produção de inteligência.
2TXHVLJQLÀFDUHFRQKHFHUTXHVXDIXQomRGHGLVFLSOLQDPHQWRVHVXVWHQWDD
SDUWLUGHXPVLJQLÀFDWLYRDUFDERXoRGRFXPHQWDOQRTXDOVHGHVWDFDPSURQWX-
ários e dossiês contra ativistas opositores.
A recuperação democrática e as demandas cidadãs de sociedades ci-
vis reprimidas durante décadas de experiência autoritária (casos da América
/DWLQDGXUDQWHDVGLWDGXUDVGH6HJXUDQoD1DFLRQDOFRORFDUDPGHVDÀRVTXH
deram centralidade ao acesso da documentação produzida por aqueles regi-
mes. A instalação de Comissões de Verdade e Justiça, a solicitação de anistia
e as exigências de medidas indenizatórias levaram o Conselho Internacional
de Arquivos, em 1995, a constituir um grupo de trabalho sob a coordenação
GRDUTXLYLVWD$QWRQLR*RQ]iOH]4XLQWDQD1RLQIRUPHÀQDOIRLDSUHVHQWDGD
a situação de arquivos repressivos de países com experiências autoritárias,
(VSpFLHGHDUTXLYRVGRV´SRU}HVµ6mRPDWHULDLVTXHQmRGHYHULDPYLUDS~EOLFRVHXXVRGHYLDÀFDUUHVWULWRjGLQkPLFD
da clandestinidade e da ilegalidade da ação repressiva. Em contrapartida, houve também uma espécie de arquivos das
“catacumbas”, produzidos com motivações de denúncia e resistência em condições extremadas. Transformaram-se em
material fundamental para responder à urgência dos fatos com intensa utilização desde o exílio. Um caso exemplar foi
RXVRGHGHQ~QFLDFRQIHULGRjVIRWRJUDÀDVGHSUHVRVSROtWLFRVXUXJXDLRVSXEOLFLWDGDVQRH[WHULRUSHORH[IRWyJUDIRGD
Marinha, Daniel Rey Piuma, após sua fuga do país. REY PIUMA, Daniel. Um marino acusa. Informe sobre la violación
de los derechos humanos en el Uruguay. Montevideo: TAE, 1988.
3 Parte desses documentos “guardados” foram, portanto, materiais roubados e seqüestrados (folhetos, livros, cartas, ano-
WDo}HVSDQÁHWRVIRWRJUDÀDVHMRUQDLVOHYDGRVFRPR´WURIpXVµRXSDUDVHUYLUHPGH´SURYDµFRQWUDLQGLYtGXRVHLQVWLWXL-
ções (partidos políticos, movimentos sociais, jornais, associações civis, grêmios estudantis, etc.). A Coleção Brasil Nunca
0DLVDORFDGDQR$UTXLYR(GJDUG/HXHQURWK81,&$03FRQÀUPDH[HPSODUPHQWHHVVDVLWXDomRGHURXERHDSURSULDomR
perpetrado pelo regime repressivo. Da sua documentação fazem parte centenas de documentos de organizações sociais e
partidárias expropriados pelas forças de segurança.
380
no período 1974-1994, entre os quais Espanha, Grécia, Portugal, Zinbabwe,
África do Sul, o Cone Sul latino-americano e o Leste europeu. Nas suas
conclusões ressaltava-se que a conservação dos mesmos extrapolava a neces-
VLGDGHGRWUDEDOKRGRVKLVWRULDGRUHVFRORFDYDVHWDPEpPDMXVWLÀFDWLYDGR
fator pedagógico sobre o passado recente e, sobretudo, do fator administra-
tivo, básico na recuperação dos direitos democráticos (anistia, indenização,
etc.).41HVVDSHUVSHFWLYDHQWmRpSRVVtYHOGHÀQLURVVHJXLQWHVXVRVEDVLODUHV
da documentação dos Arquivos Repressivos em cenários democráticos:
1- Uso administrativo: sua existência, originalmente gerada para acusar
e punir, possibilita, no presente, uma ação oposta, ou seja, a comprovação dos
crimes de Estado contra cidadãos perseguidos (efeito bumerangue).
2- Uso político: sua disponibilização permite utilizá-la como prova na
responsabilização direta e indireta de agentes envolvidos em crimes de tortu-
ra, execução, seqüestro, desaparecimento.
3- Uso histórico: sua preservação se traduz em fontes para a pesquisa
histórica.
4- Uso pedagógico: sua difusão gera ações pedagógicas que conscienti-
zam quanto à intolerância, à tortura, ao autoritarismo, etc.
5- Uso conectivo generacional: sua conservação, como legado para as
novas gerações, permite transmitir o conhecimento sobre experiências trau-
máticas que devem ser contrapostas com uma consciência política e uma pos-
WXUDGHUHDÀUPDomRGHPRFUiWLFD3RUWDQWRFRQWULEXLUSDUDHYLWDUDGHVFRQH-
xão entre gerações quanto a experiências traumáticas sofridas.5
É nessa combinação de possibilidades concretas de interpelação que se
HQFRQWUDDHVSHFLÀFLGDGHGRVGHQRPLQDGRV$UTXLYRV5HSUHVVLYRVDTXLORTXH
os torna paradigmáticos no mundo dos arquivos. Por um lado, porque afetam
os protagonistas das sociedades onde foram recuperados: Estado e funcio-
nários públicos repressivos (ditadores, ministros, forças de segurança, juízes,
médicos forenses, carcereiros, etc.); vítimas (militantes políticos, sindicais, co-
munitários, estudantis, etc., considerados “inimigos internos”); familiares e
seu entorno; organizações de direitos humanos; comunidade (atingida pela
cultura do medo).6
$/%(5&+)8*8(5$65DPyQ&58=081'(7-RVp5DPyQ£$UFKtYHVH/RVGRFXPHQWRVGHOSRGHU(OSRGHUGH
los documentos. Madrid: Alianza Editorial, 1999. p. 163.
5 DA SILVA CATELA. Op. cit., p. 213.
6 Um elemento de tensão, de disputas e discordâncias é a delicada delimitação da fronteira entre a atitude de preservar a
vida privada do indivíduo e o direito cidadão à informação. É o caso de traumas e medos que persistem como seqüelas,
por exemplo, da tortura ou de prisão prolongada. Cabe mencionar, ainda, que há sobreviventes que questionam a preser-
YDomRGHVVDGRFXPHQWDomRSRLVWHPHPTXHIXWXUDPHQWHSRVVDVHUUHXWLOL]DGDFRPÀQVUHSUHVVLYRVFRQWUDHOHVHPFDVR
de reversão autoritária.
381
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
C
RPRUHVXOWDGRGDUHYROXomRWpFQLFRFLHQWtÀFDHVSHFLDOPHQWH
no que se relaciona com o mundo da informática e das tele-
comunicações, o desenvolvimento de uma dimensão digital
se insere como elemento vital no complexo e contraditório processo de inte-
gração global. Novas linguagens e sistemas de comunicação promovem e su-
peralimentam a distribuição de informação, palavras, imagens, códigos, sons
e documentos. As redes interativas de computadores criam novos canais de
comunicação possibilitando a facilitação da disponibilização de informação
para públicos em escala anteriormente inimagináveis.10
A junção dos meios eletrônicos (em constante evolução) com a tradi-
omR DUTXLYtVWLFD WHP VRÀVWLFDGR H PXOWLSOLFDGR R SURFHVVR GH LGHQWLÀFDomR
registro e consulta de fontes através de redes. Dentro desta perspectiva é que
se produz a criação de bibliotecas e acervos virtuais, fato de extrema impor-
+iVHWRUHVTXHSURFXUDPGLÀFXOWDURDFHVVRDWDLVUHJLVWURVSRLVFRQVLGHUDPSUHMXGLFLDODVHXVLQWHUHVVHVGLYXOJDULQIRU-
mações comprometedoras quanto a atitudes tomadas naquelas circunstâncias. São repressores, empresas (caso Mercedes
Benz, na Argentina), delatores e políticos, entre outros, que temem responsabilidades contra si.
8 Fazem parte dessas exigências o direito a conhecer o local dos familiares desaparecidos, dados existentes sobre qualquer
pessoa e responsabilização dos crimes contra os direitos humanos. Também o direito à anistia para perseguidos e presos
SROtWLFRVjFRPSHQVDomRHUHSDUDomRGRVGDQRVVRIULGRVSHODVYtWLPDVHjUHVWLWXLomRGRVEHQVFRQÀVFDGRV*21=É-
LEZ QUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidos regímenes represivos. Paris:
UNESCO.
9 Idem. Também: ARCHIVOS Y DERECHOS HUMANOS. Entrevista com Perrine Canavaggio. Brecha. Montevideo,
3 de diciembre de 2004, p. 22.
10 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 22.
382
tância no sentido da democratização da informação e do conhecimento. Efe-
tivamente, a digitalização total ou parcial dos fundos de centros de documen-
tação ou de arquivos e a difusão dos mesmos através da colocação na rede
PXQGLDOWrPVLJQLÀFDGRHVWUDWpJLFRQDDJLOL]DomRDGPLQLVWUDWLYDUHVSRVWDjV
necessidades cidadãs), na circulação desse conhecimento e na abertura de no-
vas possibilidades em termos de pesquisas (dentro do espírito de perspectivas
globalizadoras).
Geralmente, os arquivos virtuais correspondem a arquivos que digi-
talizam seus fundos, ou parte deles, para consulta on-line. Este é o caso do
National Security Archive. Mas há, em menor número, aqueles (assim como bi-
bliotecas) que podem ter uma existência exclusivamente digital, contribuindo
WDPEpPSDUDDGLIXVmRVLVWHPiWLFDGHIRQWHVVREUHWHPDVHVSHFtÀFRV
Pioneiramente, na América Latina, a digitalização de documentos as-
sociados a regimes repressivos ocorreu na Argentina, a partir da ascensão de
Nestor Kirchner. Em dezembro de 2003, a Secretaria de Direitos Humanos
do Ministério de Justiça, Segurança e Direitos Humanos, responsável pela
custódia dos Arquivos da Comisión Nacional Sobre la Desaparición de Perso-
nas (CONADEP), reconhecendo o peso político do debate sobre o passado
recente, em concordância com o programa Memória do Mundo (UNESCO,
1992), criou o Archivo Nacional de la Memória, mola propulsora de uma mu-
dança de paradigma no tratamento estatal de documentação gerada a partir
das experiências repressivas. Entre as atividades fundamentais que lhe foram
DWULEXtGDVREWHUDQDOLVDUFODVVLÀFDUGXSOLFDUHDUTXLYDULQIRUPDo}HVWHVWH-
munhos e documentos sobre violação dos direitos humanos), apontava-se
SDUDDGLJLWDOL]DomRGHVVDPDVVDGHLQIRUPDomR(VSHFLÀFDPHQWHQRLQFLVR(
do artigo terceiro do Decreto 1259 do Poder Executivo constava:
Desenvolver os métodos adequados, incluída a duplicação e digitaliza-
ção dos arquivos e a criação de uma base de dados, para analisar, clas-
VLÀFDUHDUTXLYDULQIRUPDo}HVWHVWHPXQKRVHGRFXPHQWRVGHIRUPD
que possam ser consultados pelos titulares de um interesse legítimo
dentro do Estado e da sociedade civil, conforme a Constituição, os
instrumentos internacionais de direitos humanos e as leis e regula-
mentos em vigência.
3DUDWDQWRRGHFUHWRDXWRUL]DYDDDTXLVLomRGHHTXLSDPHQWRHVSHFtÀFR
(hardward e software), a formação e o aperfeiçoamento de pessoal técnico
e o estabelecimento de métodos adequados para carga de informação. Com
HVVHÀPIRLRUJDQL]DGRQDHVWUXWXUDDGPLQLVWUDWLYDGR$UTXLYRXPDÉUHDGH
Digitalização e Banco de Dados.
383
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
11 CONADEP: Comisión Nacional Sobre la Desaparición de Personas (criada em 1983); REDEFA: Registro de Desapa-
recidos y Fallecidos (criado em 1999); CONADI: Comisión Nacional por el Derecho a la Identidad (criada em 1992).
12 http://www.derhuman.jus.gov.ar/anm/
13 No presente ano, a Unesco incorporou como Patrimônio Documental sobre Direitos Humanos “Memória do Mundo”
um conjunto de quase vinte arquivos sobre a repressão na Argentina (período 1976-1983).
14 A Secretaria de Direitos Humanos tem realizado convênios institucionais com ONGs argentinas detentoras de acervos
de direitos humanos repassando infra-estrutura para viabilizar a digitalização dos mesmos. Também tem realizado acordos
semelhantes com outros governos da região com o intuito de gerar uma rede de documentação integrando os países atin-
gidos pelo terrorismo de Estado e pela Operação Condor. Em 2005, inclusive, foi assinado um convênio com a Comissão
do Acervo da Luta contra a Ditadura/RS para transmissão dessa experiência.
384
NATIONAL SECURY ARCHIVE: A DESCLASSIFICAÇAÕ
DE DOCUMENTOS NOS EUA
E
m 2002, o Departamento de Estado dos EUA, sob as diretrizes
da Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act/
FOIA),1 GHVFODVVLÀFRX GRFXPHQWRV UHIHUHQWHV j GLWDGX-
ra Argentina, entre o período 1973 e 1985. Desses, 866 referem-se a acon-
tecimentos que envolvem o Uruguai e cidadãos uruguaios perseguidos na
Argentina. O governo estadunidense indicou, no momento da liberação da
documentação, que com essa ação pretendia contribuir na investigação e nos
esclarecimentos dos acontecimentos de violência praticados durante o men-
cionado período.2
O National Security Archive (NSA) é uma fundação composta por um
centro de pesquisa de temas internacionais, uma biblioteca e um arquivo de
GRFXPHQWRVGHVFODVVLÀFDGRVGRV(8$REWLGRVDWUDYpVGDPHQFLRQDGD/HLGH
Liberdade de Informação) e um serviço de indexação e de edição de docu-
PHQWRVHPOLYURVPLFURÀFKDVHIRUPDWRVHOHWU{QLFRV)XQGDGRHPSRU
jornalistas e acadêmicos que haviam obtido documentação governamental
através da FOIA, constituiu-se em um acervo que, ao longo dos anos, cresceu
de tal forma que se converteu no arquivo não-governamental de documen-
WDomR GHVFODVVLÀFDGD GH PDLRU UHOHYkQFLD PXQGLDO3 $ORFDGR ÀVLFDPHQWH QD
George Washington University, o NSA recebeu avançada tecnologia de inde-
xação informática para organizar essa documentação, torná-la acessível aos
SHVTXLVDGRUHVHDRS~EOLFRHHODERUDUVpULHVGRFXPHQWDLVHVSHFtÀFDVFURQR-
ORJLDVELRJUDÀDVHQVDLRVLQWURGXWyULRVVREUHRVFRQMXQWRVGHVFODVVLÀFDGRV
etc.4 Deve-se destacar, ainda, que a digitalização do NSA, mesmo que parcial,
não só disponibiliza aos pesquisadores do mundo inteiro o acesso à valiosa
documentação produzida pela superpotência (considerada ultra-secreta até
bem pouco tempo atrás), como facilita a pesquisa ao diminuir o impacto de
custos, deslocamentos e tempo dispensado.
15 A Lei de Liberdade de Informação foi aprovada em 1966. Trata-se de poderosa ferramenta legislativa que visa garantir
o rápido acesso dos cidadãos aos documentos públicos em poder dos organismos administrativos, sem necessidade de jus-
WLÀFDULQWHUHVVHDOJXP2~QLFRUHTXLVLWRpDGHTXHDVROLFLWDomRVHMDDFRPSDQKDGDGHXPDEUHYHGHVFULomRGRGRFXPHQWR
SUHWHQGLGR$$GPLQLVWUDomRpREULJDGDDIRUQHFHUWRGDLQIRUPDomRSDUDTXHRVFLGDGmRVSRVVDPLGHQWLÀFDUFRPH[DWLGmR
RTXHSURFXUDPRXRTXHVHMDGRVHXLQWHUHVVH7RGRVRVGRFXPHQWRVRÀFLDLVVmRDFHVVtYHLVPHQRVRVFDVRVUHVWULWRVSRU
FULWpULRVEHPGHÀQLGRV3DUDGHFODUDUDOJRFRPRVHFUHWRH[LVWHGLVSRVLomROHJDOH[SUHVVDHSRUSUD]RGHWHPSROLPLWDGR
QmRVXSHULRUDDQRV1HVWHVFDVRVD$GPLQLVWUDomRSUHFLVDGHPRQVWUDUTXHDLQWHUGLomRGRGRFXPHQWRVHMXVWLÀFDSRU
afetar a segurança do Estado, a intimidade das pessoas ou a investigação sobre delitos.
&$3(/É1$QGUpV'HVFODVLÀFDQGRFXPHQWRVVREUHODGLFWDGXUDXUXJXD\D5HEHOLyQGHDJRVWRGHO
17 BRESCIANO, Juan Andrés. La investigación histórica y las nuevas tecnologías. Montevideo: Librería de la Facultad de
Humanidades y Ciencia de la Educación, 2000. p. 108.
18 Idem.
385
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
386
Efetivamente, o teor das informações entregues explicita que os sucessivos
governos dos EUA estiveram sempre informados das violações aos direitos
humanos na região, desde o momento em que os informantes de Washington
enviavam até dois documentos diários relativos a estas questões.
2SHUÀOGDVLQIRUPDo}HVFRQVWDQWHQRVGRFXPHQWRVGLVFRUUHVREUHD
forma operacional da luta contra-insurgente enfatizando os casos de tortura
em centros clandestinos de detenção, seqüestro de opositores, assassinatos
e desaparecimentos. Mostram a orquestração de campanhas de difamação,
junto à opinião pública internacional, das comunidades exiladas, da oposição
interna e das organizações de direitos humanos enquanto, ao mesmo tempo,
persistem na divulgação de novos atores subversivos (reais ou imaginários),
ampliando permanentemente o leque dos “inimigos internos” focados nos
manuais da Doutrina de Segurança Nacional.
2VGHVFODVVLÀFDGRVRIHUHFHPDLQGDLQGtFLRVWDPEpPGDVPRGDOLGD-
des de cooperação entre as forças de segurança local, a logística utilizada, a
reciprocidade e complementaridade das ações coordenadas além fronteiras,
o funcionamento dos sistemas de inteligência e a circulação e o intercâmbio
das informações processadas entre todos os países da região, mesmo antes da
formalização da Operação Condor.
Cabe mencionar, também, que esses documentos foram produzidos
por funcionários da rede de embaixadas e consulados instalados na região.
Não só produziram e alimentaram o Pentágono com notícias e informes de
FDGDSDtVHVSHFtÀFRFRPRFRRUGHQDGRVSHOR'HSDUWDPHQWRGH(VWDGRFR-
nectaram as sedes diplomáticas entre si e transmitiram a diversos órgãos de
cada governo as orientações que mandavam os EUA. Dessa forma, as in-
formações e denúncias feitas pela comunidade exilada eram conhecidas das
ditaduras através da correia de transmissão organizada pelos EUA.
No caso da documentação envolvendo a ditadura uruguaia merecem
menção as orientações do embaixador estadunidense Ernest Siracusa, em
agosto de 1976, aos generais Queirolo e Vadora, diretamente envolvidos no
comando repressivo dentro e fora do país (inclusive no assassinato do senador
Michelini e do deputado Gutierrez Ruiz em Buenos Aires), para que diminu-
tVVHPDWRUWXUDSRLVDSUHVVmRQRH[WHULRUHVWDYDÀFDQGRTXDVHLQVXVWHQWiYHO
Também deve registrar-se a série de documentos que mostram as conversa-
ções entre as ditaduras argentina e brasileira com o governo dos EUA, através
da rede de embaixadas, relacionadas às futuras eleições uruguaias (1971); entre
outras avaliações, esboçava-se a concordância com uma invasão do Uruguai
caso a esquerda fosse vitoriosa no pleito eleitoral daquele ano.
19 Nixon: “Brazil helped rig the Uruguayan elections”,1971. Ver: http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB71
387
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
CONCLUSÕES
A
pressão internacional sobre a questão dos direitos humanos,
a normatização internacional e o entendimento de que certos
crimes são crimes de Lessa humanidade, puníveis em Cortes In-
ternacionais, vem impactando as sociedades nas quais os traumas produzidos
por experiências repressivas ainda são visíveis. Há países, como os atuais ca-
sos do Uruguai, Argentina e Chile, nos quais, aqueles setores que apostaram
na impunidade futura como garantia de imunidade perpétua hoje se encon-
tram sob tensão diante da pressão cidadã por justiça em relação aos crimes
cometidos pelo terrorismo de Estado décadas atrás. Os processos em anda-
mento geram expectativas de punição, pelo menos de alguns responsáveis
por aqueles crimes. Diante desse quadro, se renova a importância da procura,
divulgação e acesso da documentação originada pelos órgãos repressivos. Ex-
trapolando sua importância histórica, ainda precisa corresponder às urgentes
demandas de uso administrativo e político a que a sociedade tem direito. Os
arquivos virtuais e o processo de digitalização de documentos repressivos
são o resultado das condições tecnológicas do tempo presente, mas também
podem ser mecanismos compensadores na agilização de processos, demandas
reparatórias e de produção de conhecimento histórico após décadas de entra-
ves e paralisia político-sociais.
A pergunta permanece a mesma. Por que abrir os Arquivos Repressi-
YRV"3RUTXHVmRLPSUHVFLQGtYHLVSDUDUHFXSHUDUHOHPHQWRVTXHUHDÀUPHP
processos democráticos. Porque é de fundamental importância democratizar
o acesso à informação. Porque permitem combater o esquecimento induzido/
imposto. Porque a sociedade precisa conhecer, na maior dimensão possível,
sua história recente. Porque é necessário instrumentalizar as novas gerações
com o aprendizado de toda experiência passada, particularmente aquelas que
foram traumáticas para as gerações anteriores. Mais do que quaisquer outros
arquivos, os Arquivos Repressivos (físicos e virtuais), enquanto persistirem as
seqüelas desse passado recente, sintetizam uma dupla inteligibilidade política
pois, apropriando-me das palavras de Alberch Fugueras e Cruz Mundet, eles
são Os Arquivos do Poder, mas também expressam O Poder dos Arquivos, o qual
muito pode contribuir na superação daquelas seqüelas.
388
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOCCIA, A., LÓPEZ, M. H., PECCI, A. V.; JIMÉNEZ, G. En los sótanos de los
generales. Los documentos ocultos del Operativo Cóndor. Asunción: Expolibro /
Servilibro, 2002.
&$3(/É1$QGUpV'HVFODVLÀFDQGRFXPHQWRVVREUHODGLFWDGXUDXUXJXD\DRebelión,
24 de agosto del 2002.
389
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público
5(3Ó%/,&$$5*(17,1$'HFUHWRGHO3RGHU(MHFXWLYR1DFLRQDO1
[Instaura o Archivo Nacional de la Memoria].
REY PIUMA, Daniel. Um marino acusa. Informe sobre la violación de los derechos
humanos en el Uruguay. Montevideo: TAE, 1988.
390