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Turguêniev e Dostoiévski fontes de Nietzsche: o niilismo russo como

instrumento para a exumação da modernidade

João Paulo Simões Vilas Bôas∗

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo apresentar as linhas gerais de um panorama da


influência exercida pela leitura das obras de F. Dostoievski e I. Turguêniev nas
reflexões pioneiras de Friedrich Nietzsche sobre o niilismo, visto que a recepção deste
conceito pelo pensador alemão esteve diretamente ligada com o contexto das
agitações políticas e sociais ocorridas na Rússia durante a segunda metade do século
XIX, fenômeno que ficou conhecido como “niilismo russo”. Inicialmente procuraremos
mostrar, a título de contextualização, as circunstâncias nas quais Nietzsche travou
contato pela primeira vez com estes romances, para então apresentarmos de maneira
resumida aquelas que consideramos como sendo as ideias essenciais que estão
presentes nas narrativas. Em seguida, através de uma análise minuciosa dos
fragmentos nos quais o termo niilismo é empregado por Nietzsche pela primeira vez,
buscaremos mostrar de que modo este pensador alemão se apropriou desta temática,
reconstruindo a partir destes fragmentos qual seria o seu conceito de niilismo nesta
época. Por fim, queremos também deixar indicado o modo como alguns dentre os
temas abordados por Nietzsche nestes primeiros fragmentos virão a se transformar,
em anos posteriores, em linhas de reflexão originais e profundas sobre os diferentes
desdobramentos – sejam eles políticos, psicológicos, religiosos ou sociais – do niilismo,
os quais constituem tópicos de fundamental importância em sua obra tardia.

PALAVRAS-CHAVE: Niilismo. Política. Turguêniev. Pais e Filhos.

I
Quando se procura investigar a dimensão e a natureza das bases a partir das
quais Nietzsche desenvolveu sua reflexão acerca do niilismo, a obra de Paul Bourget
Essais de psychologie contemporaine é considerada por vários estudiosos como a fonte
mais significativa.1 De fato, é indiscutível que o desenvolvimento que o escritor francês
fez da “teoria da décadence”, bem como seu diagnóstico da presença do “espírito


Doutorando pelo programa de pós-graduação em filosofia da UNICAMP. E-mail:
jpsvboas@yahoo.com.br
1
Cf. ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée: la dernière philosophie de Nietzsche, p. 266. e
também MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche, seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze
seiner Philosophie. Berlin/ New York: Walter de Gruyter, 1971.

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crescente de negação da vida”2 na literatura de sua época tiveram importância
fundamental no desenvolvimento que o pensador alemão fez da idéia do niilismo
enquanto negação da vida.
Todavia, vale ressaltar que as primeiras menções diretas do termo “niilista”
nos textos do filósofo ocorrem em dois fragmentos do verão de 1880 — ou seja, três
anos antes do lançamento do primeiro volume da obra de Bourget na França —
constituindo uma reflexão que se relaciona diretamente com o niilismo russo, em
especial com o contexto do romance Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev.
Sem ignorar, portanto, a importância que Bourget teve no desenvolvimento
nietzscheano do niilismo, buscaremos com este texto nos ater à reflexão presente
nestes dois primeiros fragmentos com vistas a explicitar a dimensão da importância
que a leitura de Turguêniev desempenhou na produção teórica de Nietzsche.
Tendo sua escrita iniciada em 1860 e publicado primeiramente no início de
1862 na revista “O mensageiro russo”,3 o romance Pais e Filhos tem como foco
principal um conflito de gerações na Rússia na segunda metade do século XIX. Os
senhores da chamada “geração de 40” — representada no livro pelos irmãos Nikolai e
Pável Petróvitch, oriundos de um modo de vida aristocrático e fortemente
influenciados pelos valores culturais humanistas — confrontam-se com jovens da
chamada “geração de 60”, conhecidos como “homens novos” ou “niilistas” — os quais,
rejeitando em bloco todos os princípios sobre os quais se fundava a sociedade,
defendiam a destruição de todas as instituições existentes —, representados no livro
pelo jovem médico Bazárov e seu colega Arkádi, este último filho de Nikolai.
É sabido que o termo niilismo já existia muito antes de este romance vir a
público4, mas seu primeiro desenvolvimento caracteristicamente filosófico remonta ao
século XVIII, em uma carta de F. H. Jacobi para J. G. Fichte, em 1799, na qual Jacobi, em

2
ARALDI, Clademir. A radicalização do niilismo na obra de Nietzsche: acerca da posição de um novo
sentido de criação e aniquilamento. Tese de doutorado. São Paulo, 2002. p. 34.
3
TURGUÊNIEV, Ivan. Pais e Filhos. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac e Naify, 2004. p. 7-8.
4
Muito embora a origem etimológica do niilismo remonte ao conceito de nada (nihil), sendo com isso
possível remontar sua presença na tradição filosófica já a partir do diálogo Górgias de Platão, o primeiro
uso da designação “niilista” ocorre apenas na Revolução Francesa, quando eram assim denominados
aqueles que não eram nem a favor nem contra a revolução. Cf. PECORARO, Rossano. Niilismo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. 2007. p. 8.

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uma crítica ao subjetivismo radical do pensamento de Fichte, chamou seu idealismo de
“niilismo”, dizendo que este tenderia a dissolver “não só o universo dos valores
consolidados, como também a própria natural certeza da realidade que se reduziria a
um invólucro, a um espaço vazio a mercê de uma onipotência subjetiva”.5
No entanto, Wolfgang Müller-Lauter, no texto Nihilismus als Konsequenz des
Idealismus,6 afirma que esta discussão sobre o niilismo introduzida por Jacobi “caiu no
esquecimento” a tal ponto que o próprio Turguêniev chegou a afirmar que ele teria
‘inventado’ o termo niilismo em seu romance. De fato, a partir da análise dos
primeiros fragmentos nos quais Nietzsche fez referência explícita ao niilismo, é
possível perceber que seu primeiro contato com este termo de fato não pareceu
mesmo ter se dado a partir de um horizonte de crítica ao idealismo alemão,7 mas sim
através da obra de Turguêniev, sendo inclusive que o filósofo parece mesmo ter
considerado que o escritor russo teria cunhado o termo.
Não é possível precisar com certeza quando o pensador alemão leu Pais e
Filhos pela primeira vez. Mazzino Montinari, na crônica sobre a vida de Nietzsche
publicada na KSA, situou a data da leitura entre a metade de abril e a metade de junho
(ou seja, na primavera) de 1873,8 em um período que seria muito próximo ao da
composição da primeira Consideração Extemporânea e também de Sobre Verdade e
Mentira no sentido Extramoral. Já Elisabeth Kuhn, no texto Nietzsches Quelle des
Nihilismus-Begriffs9, afirmou que não é possível precisar a data, mas que o filósofo
deve ter lido o romance em algum momento entre 1876 até 1880.
Independente da data da leitura, é certo, no entanto, que ela seguramente
aconteceu antes de 1880 e se deu a partir de uma edição francesa, publicada em 1863
que trazia como prefácio um texto do escritor francês Prosper Mérimée intitulado

5
PECORARO, Rossano. op.cit., p. 11-12.
6
Cf. ARALDI, Clademir. op. cit., p. 29-30.
7
Apesar desta ressalva, vale ressaltar que já nesta época Nietzsche, ao seu próprio modo, também
desenvolve uma crítica ao idealismo alemão, que pode ser encontrada por exemplo nos aforismos 490
de Humano, demasiado humano e 190 de Aurora.
8
NIETZSCHE, F. Kritische Studienausgabe. Org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin/New York:
Walter de Gruyter, 1988. Vol 15: Chronik zu Nietzsches Leben vom 19. April 1969 bis 9. Januar 1889. p.
50. Doravante, KSA.
9
KUHN, Elisabeth. op.cit., p. 274.

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“carta ao editor”, contendo comentários ao romance que muito provavelmente
também foram lidos por Nietzsche.
O pano de fundo da narrativa é o retorno do filho à propriedade rural paterna
em 1859 após o término dos seus estudos superiores em São Petersburgo. É neste
ambiente de paisagens idílicas dos meses mais quentes do hemisfério norte, em
diálogos que ocorrem entre passeios ao longo da propriedade ou durante o chá, que
se dão os choques entre as idéias dos jovens niilistas, diretamente saídos da
fervilhante agitação metropolitana, com o pensamento dos aristocratas liberais.
No capítulo V, ao ser inquirido pela primeira vez acerca do significado do
termo “niilista”, Arkádi define-o como aquele indivíduo que “considera tudo de um
ponto de vista crítico (...) uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade,
que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com base na fé, por mais que
esse princípio esteja cercado de respeito”.10 Logo em seguida Bazárov, perguntado por
Pável se de fato rejeitava tudo, até mesmo a ciência, responde que não acreditava em
coisa alguma.11
Todavia, é apenas em um diálogo no capítulo X que se dá o ponto alto do
texto, quando enfim se torna claro como os niilistas justificam e fundamentam as
próprias ações e também o seu modo de avaliar a conduta alheia e as instituições
sociais. Inicialmente a personagem Pável Petróvitch, defendendo a importância de
princípios que fundamentem a sociedade,12 faz o elogio da aristocracia e afirma que
apenas indivíduos imorais ou fúteis vivem sem princípios.13
Em resposta, Bazárov põe em questão a atitude do próprio Pável, o qual,
apesar de enunciar com orgulho que sua conduta se pauta por princípios que seriam
úteis à sociedade, não faz absolutamente nada de útil.14 Para Bazárov, “princípios” e
“aristocracia” seriam apenas palavras estrangeiras sem nenhuma utilidade para o
autêntico russo.15

10
TURGUÊNIEV, Ivan. op.cit., p. 46-47
11
Idem, p. 52.
12
Idem, p. 83.
13
Idem, p. 84.
14
Idem, p. 83.
15
Idem, p. 84.

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Neste diálogo, torna-se perceptível que a suposta negação radical e a
descrença em todo e qualquer princípio enunciadas anteriormente por Bazárov não
ocorrem de fato, pois os niilistas, quando perguntados sobre o que fundamenta suas
ações, assumem a utilidade como critério de valoração e ação, de modo que é tão-
somente com base nela que eles se arrogam o direito de destruir todas as instituições.
Eles recusam-se a assumir a responsabilidade para com as conseqüências futuras de
suas ações (incluída aí a própria reestruturação da sociedade) usando como
argumento o fato de considerarem a utilidade apenas na conjuntura do momento
presente.16
Bazárov também critica o funcionalismo público e a postura dos intelectuais,
que não fazem mais do que tagarelar e discutir inutilmente. Os niilistas recusam-se a
envolver-se em debates sobre eventuais possibilidades de melhoria ou de reforma da
sociedade, pois vêem na ação destruidora e revolucionária a única saída possível para
os problemas da Rússia do século XIX.17
A conclusão deste diálogo suscita a dúvida se a ironia que Pável faz sobre a
postura dos niilistas — quando ele afirma que o niilismo parece ser a solução para
todos os problemas da humanidade e que os niilistas seriam por isso os “grandes
heróis” e salvadores do mundo — seria apenas fruto da aversão pessoal que ele sente
por Bazárov ou se de fato esta alegação dos niilistas de que apenas a ação destruidora
seria capaz de gerar algum resultado não é apenas uma pseudo-justificativa para uma
destruição irresponsável e sem preocupação real com qualquer causa social.18
Esta dúvida ganha ainda mais força quando se leva em consideração que, na
opinião de Bazárov, até mesmo a vontade do próprio povo russo deve ser rejeitada em
nome da revolução.19

II
As primeiras ocorrências explícitas do termo “niilista” na obra de Nietzsche
ocorrem em dois fragmentos póstumo do verão de 1880. Recém-aposentado, o
16
Idem, p. 84-85.
17
Idem, p. 87-88
18
Idem, p. 88-89.
19
Idem, p. 86.

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filósofo esteve nesta época inicialmente em Veneza, onde ditou a seu amigo Peter
Gast o conjunto de fragmentos chamado L’Ombra di Venezia, passando em seguida a
maior parte do verão em uma pousada em Marienbad, onde se sabe que ele leu
Prosper Mérimée. Acreditamos que a retomada de Mérimée após a leitura original de
Pais e Filhos pode ter motivado Nietzsche a refletir mais detidamente acerca da
condição dos niilistas russos, tema do primeiro fragmento:

O consolo de Lutero quando a causa não foi adiante, “decadência do


mundo”. Os niilistas tinham Schopenhauer como filósofo. Todos os
ativos extremos querem deixar o mundo em pedaços, quando eles
reconhecem sua vontade como impossível (Wotan). (NIETZSCHE,
1880, KSA IX, 4(103). p. 125).20

Apesar deste fragmento ser de difícil compreensão quando considerado


isoladamente, se tomarmos como base a análise proposta por Elisabeth Kuhn21, aquilo
que aparentava à primeira vista ser apenas uma sobreposição de notas aparentemente
desconexas revela-se como uma notável associação entre a figura de Lutero e os
niilistas russos.
Kuhn afirma que, apesar de Lutero e os niilistas russos se diferenciarem em
seus fundamentos teóricos e nos objetivos práticos, Nietzsche subsumiu ambos neste
fragmento sob a rubrica de “ativos extremos”, pois o filósofo considerava que o
motivo que levou ambos a quererem a destruição era o mesmo, qual seja: o ódio
diante da impossibilidade da realização da própria vontade, o qual ele associa com a
figura de Wotan.
Um outro desenvolvimento que explica a transformação da insatisfação em
vontade de destruição pode ser também encontrado em um escrito cuja publicação se
deu em um período muito próximo ao da composição deste fragmento, o aforismo 304
de Aurora:

Os aniquiladores do mundo. ― Este não consegue realizar algo;


termina por gritar enraivecido: “Que o mundo inteiro se acabe!”. Este
sentimento abominável é o cúmulo da inveja, que raciocina: “porque
eu não posso ter algo, o mundo não deve ter nada! O mundo não
deve ser nada”! (NIETZSCHE, 1880, p. 224).

20
A tradução de todas as citações é de minha autoria.
21
CF. KUHN, Elisabeth. op.cit., p. 256-257.

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Dada a notória proximidade de temas e de datação entre os dois escritos,
acreditamos poder compreender que ambos estejam intimamente relacionados,
sendo perfeitamente possível, portanto, considerar a partir disso que a vontade de
“deixar o mundo em pedaços”, associada com a figura de Wotan, a qual Nietzsche
aponta como estando presente tanto em Lutero como nos niilistas russos, surge na
verdade como um “consolo”, como uma derradeira manifestação de um sentimento
original de ódio e inveja profundos, decorrentes do fracasso em atingir um
determinado objetivo.
Retomando a análise do fragmento, Kuhn afirma em seguida que, enquanto
os niilistas russos fundamentavam-se no pensamento de Schopenhauer e tinham por
objetivo a realização de uma reforma social capaz de pôr fim às injustiças, Lutero,
embora isto não esteja explícito no texto, tomava a Bíblia por fundamento e aspirava à
realização da Reforma.
No caso dos niilistas russos, entendemos que o diagnóstico nietzscheano
haurido a partir da leitura conjunta do fragmento póstumo e do aforismo publicado
estrutura-se como uma resposta à afirmação de Bazárov. Quando o jovem médico diz
que no passado, os niilistas esperavam atingir o objetivo de uma sociedade mais justa
através de debates e discussões sobre os problemas sociais, mas que, como isto não
ocorreu, eles então perceberam a inutilidade do diálogo e decidiram-se pela ação
destruidora porque consideravam-na como única possibilidade real de mudança,
Nietzsche responde que o motivo que leva os niilistas a agirem de forma destrutiva,
antes de ser qualquer preocupação diante das injustiças sofridas pelo povo russo ou
então o resultado de algum julgamento que se pautaria pelo critério da utilidade, é na
verdade um ódio egoísta causado pela frustração da sua própria vontade diante da
impossibilidade de realizar seus intentos.
Todavia, levando adiante esta interpretação, se é razoável considerar que o
mesmo ocorreria com Lutero, uma vez que ele também é mencionado no fragmento,
então discordamos da proposta de leitura de Kuhn quando ela afirma que se poderia
considerar que Nietzsche estaria implicitamente remetendo-se à Reforma enquanto
objetivo de Lutero.

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Acreditamos que há um problema nesta interpretação na medida em que,
utilizando o mesmo raciocínio, ela levaria necessariamente à conclusão que Lutero, a
partir da impossibilidade da realização da Reforma, teria encontrado seu “consolo” na
vontade de destruição direcionada contra a fonte de sua insatisfação, de modo que ele
acabaria por apoiar o levante destruidor realizado pelos camponeses de sua época
contra a autoridade da nobreza. Ora, como é sabido, historicamente a Reforma de fato
efetivou-se e a postura de Lutero com relação ao levante camponês de sua época foi
exatamente a oposta, ou seja, Lutero condenou a insurreição camponesa.
Nesse sentido, buscaremos aqui propor uma outra chave de leitura que toma
por base alguns escritos onde Nietzsche tece considerações em torno da condição de
Lutero e que foram publicados nesta mesma época: os aforismos 68 e 88 de Aurora.

Lutero, o grande benfeitor. — A mais significativa realização de


Lutero foi a desconfiança que despertou pelos santos e toda a vita
contemplativa cristã: só a partir de então se abriu novamente o
caminho para a vita contemplativa não-cristã na Europa, e pôs-se um
limite ao desprezo da atividade mundana e dos leigos. Lutero, que
continuou sendo um bravo filho de mineiro quando o encerraram
num monastério, e que ali, na ausência de outras profundidades e
“cavidades”, desceu em si mesmo e perfurou horrendas galerias
escuras — notou, enfim, que uma vida santa e contemplativa lhe era
impossível, e que sua inata “atividade” de corpo e de alma o
destruiria. Por tempo demais buscou achar o caminho para o sagrado
com mortificações — afinal tomou sua decisão e pensou: “Não existe
verdadeira vita contemplativa! Fomos enganados! Os santos não
valiam mais do que nós todos”. — Esta foi sem dúvida, uma forma
camponesa de ter razão — mas, para os alemães daquele tempo, a
forma reta e única: “Fora dos Dez Mandamentos não há obra que
possa agradar ao Senhor — as célebres obras espirituais dos santos
foram imaginadas por eles”. (NIETZSCHE, 1880, p. 82).

[Nietzsche discute neste aforismo a relação do apóstolo Paulo com a


Lei judaica] [...] Lutero pode ter sentido algo semelhante, quando
quis tornar-se, em seu monastério, o homem perfeito do ideal
eclesiástico: e, de modo semelhante a Lutero, que um dia começou a
odiar o ideal eclesiástico, o papa, os santos e toda a clericalha, com
ódio verdadeiramente mortal, tanto maior quanto menos podia
reconhecê-lo — de modo semelhante sucedeu com Paulo. A Lei era a
cruz a que se sentia pregado: como a odiava! como lhe guardava
rancor! como olhava em torno, a buscar um meio de destruí-la — não
mais de cumpri-la em sua pessoa! (NIETZSCHE, 1880, p. 64).

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A partir destes aforismos, consideramos que Nietzsche estava implicitamente
referindo-se ao objetivo de Lutero como o ideal de “vita contemplativa” e que, de
modo análogo ao que se deu com os niilistas russos, Lutero, diante da impossibilidade
de concretizar este ideal, também foi tomado pelo ódio e por uma pulsão destruidora,
o que trouxe como conseqüência a sua rejeição do culto aos santos.
Entretanto, resta ainda uma diferença significativa entre Lutero e os niilistas
russos, pois de um lado a destruição do primeiro se restringiu ao âmbito de tópicos
referentes a doutrinas religiosas e foi vista em geral como um “avanço” na história da
humanidade; por outro lado a destruição dos jovens russos teve conseqüências
julgadas como teríveis, como por exemplo os incêndios criminosos e o assassinato do
tsar em 1881. Como então entender que Nietzsche, apesar desta diferença inegável,
ainda subsuma os dois sob uma mesma denominação de “extremos ativos”? A
resposta encontra-se no fragmento 4 [108], no qual ocorre a segunda menção direta
ao termo niilismo.

Estima-se àqueles indivíduos que, em pensamento, romperam com a


autoridade do costume. Mas àqueles que o fizeram pela ação,
calunia-se e atribuem-se motivos ruins. Isto é injusto. Ao menos
dever-se-ia atribuir aos livres-pensadores os mesmos motivos ruins.
— No criminoso é ocultado o fato de que muito de coragem e
originalidade de espírito, bem como independência, poderiam ser
demonstradas. O “tirano” muitas vezes é um espírito livre e corajoso,
e seu ser não é pior que o dos homens medrosos, mas
freqüentemente melhor, porque ele é mais sincero. Responde-se
agora em geral à pergunta se os niilistas russos seriam mais imorais
que os funcionários públicos russos em favor dos niilistas. — Há
incontáveis costumes que sucumbiram aos ataques dos livres-
pensadores e dos livres agentes: nosso modo individual de pensar
atual é o resultado do mais ruidoso crime contra a eticidade. Todo
aquele que ataca o existente é tido como “homem mau”; a história
trata somente desses homens maus! (NIETZSCHE, 1880, KSA IX,
4(108). p. 127)

Dado o fato de que ambos os fragmentos póstumos são extremamente


próximos, estando este último localizado quase em seguida ao primeiro, além de
estarem tematicamente ligados, somos levados a considerar que este segundo
fragmento é uma clara continuação do desenvolvimento das idéias do fragmento
anterior.

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Acreditamos que, de modo geral, este fragmento expõe três idéias principais:
a primeira é a crítica de Nietzsche à diferenciação entre as valorações aplicadas aos
indivíduos que rompem com os costumes da tradição, conforme o âmbito no qual este
rompimento tenha se dado. A esse respeito, ele argumenta que tanto a ruptura teórica
como a prática têm como móbil os mesmos “motivos ruins”, quais sejam: o ódio
egoísta, a inveja e a frustração diante do fracasso.
Em seguida, o filósofo mostra as conseqüências deste julgamento errôneo. Na
medida em que se insiste em julgar os livres agentes e os livre-pensadores com dois
pesos e duas medidas diferentes, deixa-se de perceber que a postura do tirano (que é
igual à do livre agente ou à de um criminoso) não é pior que a do livre-pensador, mas
que o tirano inclusive encontra-se em circunstâncias consideravelmente melhores,
pois não se comporta como um “homem medroso” e é mais sincero consigo mesmo.
O autor então se posiciona favoravelmente aos niilistas, quando comparados
com os funcionários públicos (os quais são aqui tomados como exemplo de homens
passivos; indivíduos que acatam obedientes todos os costumes e tradições de seu
tempo). O filósofo fundamenta seu posicionamento no fato de que foram as diversas
rupturas com os costumes, tanto teóricas quanto práticas, que determinaram o curso
da história e possibilitaram as condições de pensamento hodiernas, e afirma em
seguida que todas as pessoas que de algum modo marcaram seu nome na história da
humanidade, acabaram por romper com algum costume, de modo que a história da
humanidade trata então apenas destes “homens maus”.
Respondendo então à pergunta suscitada na análise do primeiro fragmento
(dada a diferença de valoração entre a destruição prática dos niilistas e a destruição
teórica de Lutero, o que autoriza Nietzsche a subsumi-los na mesma denominação de
“extremos ativos”?), vemos que já a partir da primeira parte deste segundo fragmento
é possível encontrar a resposta: esta diferença de julgamento desconsidera o fato de
que ambas as destruições são frutos de um único e mesmo sentimento.
Com vistas agora a esclarecer a equiparação que Nietzsche deixa implícita
neste segundo fragmento entre o tirano e o criminoso, destacamos que, de modo
análogo ao que ocorre com o primeiro fragmento analisado, também este segundo

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pode ter seu sentido complementado com um texto publicado, o aforismo 20 de
Aurora:

Livres agentes e livres-pensadores. ― Os livres agentes se acham em


desvantagem frente aos livre-pensadores, porque os homens sofrem
mais visivelmente com as conseqüências dos atos do que dos
pensamentos. Levando-se em conta, porém, que tanto uns como
outros buscam a satisfação, e que já o pensar e enunciar coisas
proibidas dá satisfação aos livres-pensadores, todos se equivalem
quanto aos motivos: e, no tocante às conseqüências, a balança
penderá mesmo contra o livre-pensador, desde que não se julgue a
partir da primeira e mais tosca evidência ― ou seja: como todo o
mundo julga. Há que retirar boa parte da calúnia lançada sobre os
homens que romperam através de uma ação a autoridade de um
costume ― geralmente são chamados de criminosos. Todo aquele
que subverteu a lei de costume existente foi tido inicialmente como
homem mau: mas se, como sucedeu, depois não se conseguia
restabelecê-la e as pessoas acomodavam-se a isso, o predicado
mudava gradualmente; ― a história trata quase exclusivamente
desses homens maus, que depois foram abonados, considerados
bons! (NIETZSCHE, 1880, p. 32).

Além de corroborar muito do que é dito no fragmento anterior, este aforismo


também esclarece que, a partir do que foi dito no fragmento póstumo (que todo
indivíduo que busca destruir um costume é julgado como “homem mau”), então a
diferença entre os “grandes nomes da história” e os criminosos é o fato de que os
primeiros levaram sua destruição dos costumes a tal ponto que conseguiram alterar
permanentemente as leis e a própria sociedade, de tal modo que as pessoas acabaram
por se acostumar com isso e passaram a julgá-los como bons.
Por fim, respondendo a um possível questionamento acerca de como
Nietzsche poderia considerar que os livres agentes estariam em “melhores condições”
e seriam “mais sinceros” do que os livre-pensadores, podemos afirmar que a chave
para se entender esta diferença reside na capacidade de se desprender totalmente dos
costumes do seu próprio tempo, a qual só pode existir a partir da compreensão de que
estes valores são passíveis de serem totalmente mudados.
Enquanto que o livre-pensador (referido no próprio fragmento póstumo como
um “homem medroso”) ainda estaria de certa forma vinculado e dependente dos
costumes de seu tempo e, por não ser suficientemente capaz, contentaria-se então
apenas com a satisfação intelectual de enunciar e pensar coisas proibidas; o tirano

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assume e demonstra publicamente sua vontade de destruição porque compreende
que o julgamento negativo que ele recebe da sociedade por haver rompido com os
valores tradicionais é passível de ser modificado, bastando que para isso ele consiga
levar a destruição dos costumes a tal ponto que as pessoas passem a aceitar esta nova
visão de mundo como normal.
Nesse sentido, acreditamos que a resposta que Nietzsche formularia a
Bazárov poderia ser acrescida de uma significativa complementação, na medida em
que ela não se restringiria apenas ao desmascaramento das reais intenções que
estariam por trás de sua opção deliberada pela ação (como foi mostrado
anteriormente), mas também conteria um elogio ao jovem médico, pois ele, ao
contrário dos intelectuais e dos “homens inteligentes” do seu tempo que só fazem
tagarelar e criticar as falhas do governo — sem coragem para levar seu rompimento
com os costumes além do âmbito teórico, portanto — desconsidera a opinião do povo
russo enquanto obstáculo para a sua ação destruidora, porque compreende
justamente que qualquer julgamento pode ser mudado.
Quanto a mim, estarei pronto a concordar com o senhor ― disse ele,
levantando-se ― quando me apresentar uma insetuição
contemporânea, seja familiar ou social, que não seja digna de uma
negação cabal e inapelável. (TURGUÊNIEV, 2004, p. 90).

A partir desta fala, percebemos claramente que, para Bazárov, não existem
instituições imutáveis e indestrutíveis que estejam assentadas sobre fundamentos
eternos e inquestionáveis. Ora, o mesmo pode ser dito acerca de Nietzsche com
relação aos valores, sobre os quais estas mesmas instituições encontrariam seu apoio.
Diante do que foi visto, acreditamos então ser possível concluir que, na
medida em que os dois primeiros fragmentos sobre o niilismo podem ser entendidos
como um diálogo com a postura defendida pela personagem Bazárov, é inegável a
afirmação de que a leitura do romance de Turguêniev tenha influenciado diretamente
as primeiras reflexões do filósofo alemão acerca do niilismo.
Como uma última ressalva, vale destacar que, apesar destes dois fragmentos
constituírem uma espécie de “reflexão isolada” acerca deste tema dentro do conjunto
da obra de Nietzsche dos anos 80 até 82, podemos perceber que diversos temas

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presentes aqui serão objeto de elaborações posteriores, como é o caso da pulsão
destruidora direcionada contra os valores e tradições, a qual será caracterizada no
futuro como uma das possíveis formas de manifestação do niilismo, chamada de
“niilismo ativo” e também da satisfação do “homem medroso” que se contenta com o
próprio pensamento, que irá se desenvolver na idéia da vingança imaginária do
homem ressentido.

Referências Bibliográficas

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Paris: Gallimard, 1931.

ARALDI, Clademir. A radicalização do niilismo na obra de Nietzsche: acerca da posição


de um novo sentido de criação e aniquilamento. Tese de doutorado. São Paulo, 2002.

KUHN, Elisabeth. Nietzsches Quelle des Nihilismus-Begriffs. In: Nietzsche-Studien 13.


Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1984. p. 253-278.

MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche, seine Philosophie der Gegensätze und die


Gegenzätze seiner Philosophie. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1971.

NIETZSCHE, F. Kritische Studienausgabe. Org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari.


Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1988. (15 vols).

PECORARO, Rossano. Niilismo. RJ: Jorge Zahar. 2007. (Coleção Filosofia Passo-a-passo).

TURGUÊNIEV, Ivan. Pais e Filhos. Trad. Rubens Figueiredo. SP: Cosac e Naify, 2004.
(Coleção Prosa do Mundo).

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