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Natalino da Silva de Oliveira

A estética da dissimulação na literatura de Machado


de Assis

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


PUC MINAS
2015
Natalino da Silva de Oliveira

A estética da dissimulação na literatura de Machado


de Assis

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Letras: Literatura de Língua Portuguesa, da
Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor em Literaturas
de Língua Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Nazareth Soares


Fonseca

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


PUC MINAS
2015
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Oliveira, Natalino da Silva de


O49E A estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis / Natalino da
Silva de Oliveira, Belo Horizonte, 2015.
199 f.

Orientadora: Maria Nazareth Soares Fonseca


Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Assis, Machado de, 1839-1908, Ressurreição, A mão e a luva, Helena,


Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas - Crítica e interpretação. 2.
Literatura brasileira. 3. Estética na literatura. 4. Romance brasileiro. 5. Narrativa
(Retórica). I. Fonseca, Maria Nazareth Soares. II. Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)-3
Natalino da Silva de Oliveira

A estética da dissimulação na literatura de Machado


de Assis

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras: Literatura de Língua
Portuguesa, da Faculdade de Letras da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Literaturas
de Língua Portuguesa.

______________________________________________________________
Prof. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC MINAS) - Orientadora

______________________________________________
Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG)

________________________________________
Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre (UFMG)

__________________________________________________
Prof. Dra. Melânia Silva de Aguiar (UFMG/PUC MINAS)

SUPLENTES:

____________________________________
Prof. Dra. Maria Zilda Cury (UFMG)

_______________________________________
Prof. Dr. Antônio Geraldo Cantarela (UFMG)

Belo Horizonte, 05 de março de 2015


DEDICATÓRIA

Ao senhor da encruzilhada

Que se acenda uma vela


Ao senhor da encruzilhada
Para que eu enfim possa ver
Aonde me leva esta estrada
Pois, o que começa termina
Mantenha firme minha passada
Que os caminhos se abram
Com golpes de punho ou de espada
E que até no oco do mundo
Encontre minha morada
(Poema de Natalino em homenagem a Exu)

A Deus e aos meus Orixás.


Dedico à Joelma, Mariana e Natalino
Minha mãe Maria, meu pai
Antônio, meu irmão Nelson,
minha avó Odila que me ensinou
o caminho do mensageiro
Dedico à Maria Nazareth Soares Fonseca
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus e aos Orixás que estão presentes em tudo que faço.

A São Jorge, a Ogum, a Oxaguiã que me guiaram e me deram força na caminhada.

À Oxum pelas minhas vestes.

Aos meus Eguns, meus ancestrais que carrego comigo nesta performance/vida.

Aos meus pais pelo apoio incondicional a tudo o que faço.

À minha companheira Joelma por me mostrar o que era realmente importante, por

incentivar-me, por amar-me.

À minha filha Mariana por alimentar minha alma, pelos abraços apertados em

momentos de dor, por seu amor incondicional.

Ao meu filho Natalino por conversar comigo.

Ao meu irmão Nelson pelo incentivo.

À Maria Nazareth Soares Fonseca por incentivar-me e por corrigir-me com elegância e
humildade sempre.

A Marcos Alexandre pela amizade e por servir de exemplo em minha caminhada.

Ao professor Audemaro pelos constantes incentivos ao meu trabalho.

Ao professor Eduardo Assis Duarte por inspirar-me a escrever esta tese.

Aos membros da banca examinadora pelas críticas, elogios e sugestões.

À minha família.

Aos amigos.

Aos membros do GEED (Grupo de Estudos em Estéticas Diaspóricas) – amigos que me


acompanharam em minha defesa.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras PUC Minas.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Letras PUC Minas.

À Berenice e Rosária pelo auxílio nos incontornáveis procedimentos burocráticos do


meio acadêmico.
RESUMO

O objetivo desta tese é discutir o conceito de Estética da dissimulação que é proposto


como ferramenta teórica para a análise da literatura de Machado de Assis. O estudo
abordará com maior atenção a obra narrativa do autor, particularmente os romances:
Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás
Cubas, os quais serão investigados a partir da provocação do texto de Spivak “Pode o
subalterno falar?” que encaminhará a discussão de perspectivas estéticas dissimuladoras
e de subterfúgios textuais utilizados pelo escritor para dar voz aos indivíduos em
situação de subalternidade. Na análise dos romances de Machado de Assis, com o
auxílio de fundamentação teórica apropriada, serão discutidos episódios e situações que
embasem a defesa de que, na obra do escritor brasileiro, é possível perceber um viés
estético que se apropria da dissimulação para propiciar o afloramento de vozes
subalternas.

Palavras-chave: Literatura, Machado de Assis, Estética da dissimulação,


Subalternidade, Narrativa.
RESUMEN

El objetivo de esta tesis es trabajar con el concepto de Estética de la disimulación que


es propuesto como herramienta teórica para el análisis de la literatura de Machado de
Assis. El estudio abordará con más atención la obra narrativa del autor, en especial las
novelas: Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Dom Casmurro e Memórias Póstumas
de Brás Cubas que serán analizados partiendo de la provocación del texto de Spivak
“Pode o subalterno falar?” que propiciará la discusión de perspectivas estéticas
disimuladoras y de subterfugios utilizados por el escritor para dar voz a los individuos
en situación de subordinación. En el análisis de las novelas de Machado de Assis, con la
ayuda de la fundamentación teórica apropiada, serán discutidas escenas y situaciones
que embacen la defensa de que, en la obra del escritor brasileño, es posible percibir una
perspectiva estética que se apropie de la disimulación para provocar el afloramiento de
voces subordinadas.

Palabras-clave: Literatura, Machado de Assis, Estética de la disimulación,


Subordinación, Narrativa.
Sumário
INTRODUÇÃO ...................................................................................... ......10
Reflexões sobre o conceito de Estética ............................................................. 18
O olhar exterior e a necessidade de se repensar a estética .............................. 35
Estética da dissimulação ................................................................................. 37
O cuidado de si ou a arte da existência ........................................................ 49
A voz subalterna ....................................................................................... 54
Estratégias de dissimulação: literatura brasileira e literatura afrodescendente ..... 62
Machado de Assis: cinismo, ironia, sarcasmo e dissimulação ............................ 67
As estratégias do caramujo ......................................................................... 82
A subalternidade e suas peculiaridades nas personagens machadianas ............... 90
Ressurreição............................................................................................. 94
Dom Casmurro ....................................................................................... 118
Espelhos: o calculismo em A mão e a luva e Helena ......................................... 136
Belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres ...................................................... 138
INCLASSIFICÁVEL ................................................................................ 150
O espelho quebrado ................................................................................ 155
Brás Cubas e o riso irônico....................................................................... 168
Prudêncio: o simulador ............................................................................. 177
É bem, e o resto? ....................................................................................... 184
Referências ................................................................................................ 193
Introdução

Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente


penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza. É preciso um
desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante
talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para
escapar ao controle. (DELEUZE, 2010, p.221)

A grande questão proposta pela tese está relacionada à linguagem e à língua em


seu sentido mais amplo. Pergunta-se, desde o início, sobre o que é preciso para que
indivíduos, colocados em situação de subalternidade, possuam suas próprias vozes ou
que possam se apropriar deste recurso que deveria ser condição de existência de
qualquer ser humano? Que condições sociais e culturais legitimam o direito à voz, à
palavra? O que é a voz? Que condições legitimam ter voz ou não ter voz? E como a
literatura encena a questão?

Pensar a língua, pensar a voz é refletir sobre identidades, subjetividades e sobre


as possibilidades de ser. É pensar também no que faz com que o subalterno perca a sua
capacidade de fala, porque, embora tenha sua própria língua, não tem direito a utilizá-la
em todas as demandas sociais. Como exercer o poder da fala se sua cultura é
desvalorizada? Neste cenário, configura-se um espaço marcado pela existência de dois
tipos de indivíduos: um que é sujeito e outro que é sujeitado. Ser desprovido de sua
própria voz é a maior violência que pode ser exercida para com o outro, pois, em
situação de opressão não há lugar para que “cada indivíduo, como ser único e distinto,
apareça e confirme-se no discurso e na ação” (ARENDT, 2001, p. 220).

É procurando pensar nessa voz emudecida, encenada pela ficção literária, que
esta tese buscará investigar as condições de enunciação do subalterno e os meios
empregados por ele para sobreviver e manterem suas identidades em situações extremas
e até mesmo desumanas. Esta estratégia é o que nesta pesquisa denominaremos estética
da dissimulação que compreende um conjunto de subterfúgios apropriados para que os
indivíduos sujeitados possam assumir, ainda que por artifícios de natureza estética, suas
subjetividades, suas culturas e suas línguas1.

1
O termo “língua” está sendo utilizado de forma abrangente para compreender elementos dos campos
10
A estética da dissimulação toma por base as discussões propostas por Eduardo
de Assis Duarte (2005, 2007), nas quais a expressão poética da dissimulação encaminha
novos pontos de vista sobre a obra de Machado de Assis, a partir do conceito de
afrodescendência. Apropriei-me de muitas das ideias do estudioso que me ajudaram a
pensar na situação dos subalternos na obra de Machado de Assis. Às considerações de
Duarte foram se agregando as reflexões de Octavio Paz (2000) e seus estudos sobre as
máscaras mexicanas, as elucubrações de Roberto Fernández Retamar (2005 [1971]) e
sua análise da personagem Caliban de Shakespeare. Somados a estes pensadores foram
conclamados outros, particularmente os que constroem teorizações sobre a
subalternidade, sobre o direito à voz, como Gayatri Chakravorty Spivak (1988) e Hugo
Achugar (2006).

A proposta de uma estética representada pela atitude dissimuladora é aqui


apresentada como posição alternativa à estética hegemônica, configurada por expressões
artísticas valorizadas pela elite e pelo que vem sendo legitimado em arte e em literatura
como um cânone europeu. A estética da dissimulação é pensada como um recurso
ideológico e estratégico utilizado por sujeitos “subalternos” para propiciar a expansão
de suas vozes. Retoma-se uma discussão sobre a noção de estética, tanto a apresentada a
partir de uma visão universalizante e europeizante, sempre com referência a cânones
artísticos e literários europeus, quanto a que defende a possibilidade de serem
consideradas expressões artísticas de culturas que não ocupam o espaço geográfico da
Europa, ainda que a análise dessa produção, por vezes, se utilize de recursos analíticos
legitimados como Ocidentais.

A questão crucial ao pensamento de Spivak, exposta no texto, “Pode o


subalterno falar?” é também proposta por Hugo Achugar, ensaísta uruguaio, quando,
fazendo eco à pergunta da teórica indiana, indaga se “Podem os bárbaros latino-
americanos, falar, teorizar?" (ACHUGAR, 2006, p. 43). Respondendo à pergunta, o
teórico uruguaio apresenta outras interrogações: “(...) Existe somente uma forma de
teorizar? Eu tenho, apesar de bárbaro, o direito ao meu próprio discurso?” (ACHUGAR,
2006, p. 43). Retomo as questões de Spivak ao analisar o indivíduo subalterno e recorro

linguísticos, sociológicos e culturais.


11
a Achugar para pensar também como estas questões e suas possíveis respostas poderiam
estar presentes na literatura machadiana, quando abordada pela perspectiva da estética
da dissimulação.

Achugar recorre à reflexão sobre o conceito de subalternidade desenvolvido por


Spivak para pensar a situação do latino-americano e sua relação com outros países da
Europa ou da América do Norte no que diz respeito ao desenvolvimento de um
pensamento próprio da América Latina. O ensaísta uruguaio questiona: “Qual é a língua
do discurso latino-americano elaborado na América Latina? É uma língua maior ou
menor? É um discurso minoritário ou maior? É obvio que há mais de um discurso e
mais de uma língua na América Latina” (ACHUGAR, 2006, p. 35). Se Achugar reflete
sobre a possibilidade do discurso latino-americano ser considerado uma língua menor,
porque é construído pelo indivíduo em situação de subalternidade e sujeitado aos
desmandos da elite, a situação permite a ele interrogar se, nessa situação concreta de
produção, esse discurso seria ainda menor ou simplesmente não existiria. Aprofundando
um pouco mais as reflexões de Achugar, este trabalho defende a possibilidade de
alternativas. Uma das saídas seria propiciada pela arte e pela literatura que se nutrem da
estética da dissimulação, surgindo como uma das formas de discursos balbuciantes de
que trata Hugo Achugar:

O balbucio é nosso orgulho, nosso capital cultural, nosso discurso raro, nosso
discurso queer. O orgulho daqueles raros que, supostamente, não têm boca
como os planetas de Lacan e, portanto, carecem de discurso. Ou, seguindo
alguns, pior ainda, pois falam ou produzem um discurso antigo, nativo,
criollo, moderno, imitativo, derivado, carente de valor. (ACHUGAR, 2006,
p. 14)

É nesse sentido que a epígrafe de Deleuze, escolhida para figurar no início desta
Introdução, pode ser vista em estreita relação com o conceito de estética da
dissimulação que sustentará as discussões teóricas e as análises literárias encaminhadas
por esta tese. O conceito de estética da dissimulação é proposto como um desvio
caracterizado por transgressões, por tessituras escorregadias e, mais concretamente, por
construções irônicas e intertextuais que se apropriam livremente de um processo que

12
vem sendo chamado por vários teóricos de canibalização2.

A palavra canibal, como se sabe, está carregada de significações construídas


pelas diversas formas culturais de compreensão do outro. A primeira utilização do
vocábulo é atribuída a Cristovão Colombo e está presente em seu Diário de navegação3.
A palavra já é empregada como maneira de nomear o outro – um europeu nomeando os
índios caraíbas ou caribes, povos indígenas das Pequenas Antilhas que lutaram
bravamente contra a dominação imposta pelo grupo dos colonizadores. Há indícios de
que os caribes praticavam o canibalismo como ritual de guerra e com o objetivo de
absorver dos guerreiros inimigos características importantes para o guerreiro vitorioso.
Deste primeiro momento, é necessário saltar para a menção do termo caliban
(transliteração da palavra canibal) que surge na obra de Shakespeare A tempestade.
Caliban é apresentado como um selvagem escravo de Próspero. Ele é o oposto de Ariel,
outro servo de Próspero. Enquanto Ariel aprende os costumes de seu senhor, Caliban
preserva sua identidade primitiva e instintiva. Conforme esclarece Felipe Gomez, o
termo caliban foi empregado como conceito por muitos intelectuais, tais como “Renan
(1878), Groussac (1898) e Rodó (1900), e dele derivam os sentidos construídos pela
expressão “canibalismo cultural”, proposta por Oswald de Andrade e o modernismo
brasileiro, e por intelectuais como Césaire, Brathwaite e Fernandez Retamar”4
(GOMEZ, 2007, p. 125).

Este trabalho encontra nas reflexões de Retamar o porto mais seguro para
abordar este personagem-conceito ou conceito-metáfora, para utilizar os próprios termos
que ele cria. Assumir uma postura canibal diante da criação estética é, de acordo com
Retamar: “Assumir nossa condição de Caliban”, “(...) repensar nossa história a partir de

2
De acordo com José Jorge de Carvalho (2010), a canibalização tem sido concebida de diferentes modos:
a) O canibal devora o que alimenta e não está interessado com a comunidade do ser devorado; b) A
canibalização é uma forma de manter vivo (dentro das entranhas do canibal) o que foi devorado; c)
Canibalismo como incorporação ou re-contextualização, ressignificando o que foi devorado com o
objetivo de dar-lhe mais prestígio; d) O quarto e último tipo é o que mais se adequa à proposta aqui
defendida, ele ocorre quando há uma metamorfose antropofágica e o canibal passa a utilizar a pele do ser
devorado, apropriando-se de seus traços e passando até mesmo a assumir o papel do outro (passa a
performar o outro).

3 COLÓN, C. Diario de Colón. Gregorio Marañón, Madrid: Cultura Hispánica, 1968.


4
“(…) Renán (1878), Groussac (1898) y Rodó (1900), así como al canibalismo cultural propuesto
por Oswald de Andrade y el modernismo brasileño, y a intelectuales caribeños como Césaire, Brathwaite
y Fernández Retamar”.
13
outro lado, a partir de outro protagonista” (Retamar, 2005 [1971], p. 37)5. É crucial
compreender que a metáfora continua viva, pungente e que, como afirma o teórico
cubano:

Nosso símbolo não é, pois Ariel, tal como pensou Rodó, mas Caliban. Isto é
algo que vemos com particular nitidez os mestiços que habitamos estas
mesmas ilhas onde viveu Caliban: Próspero invadiu as ilhas, matou a nossos
ancestrais, escravizou Caliban e o ensinou seu idioma para entender-se com
ele: Que outra coisa poderia fazer Caliban que não fosse utilizar esse mesmo
idioma para maldizer, para desejar que caísse sobre ele a “terrível praga”?
Não conheço outra metáfora mais correta para aludir a nossa situação
6
cultural, a nossa realidade. (Retamar, 2005 [1971], p. 33-34)

Este é o desvio que este trabalho almeja perseguir, o mesmo encontrado por
Caliban/canibal/caraíba para enfrentar as imposições de Próspero. O ancestral que se
procura defender nesta tese é o mesmo defendido por Retamar: o rude, instintivo e
guerreiro Caliban e não o refinado Ariel. Por mais que Ariel absorva os conhecimentos
de Próspero, ele sempre será o outro, mas jamais será o protagonista de sua própria
história. Assumir a postura estética canibal é, portanto, agir como Caliban estabelecendo
um posicionamento desviante diante de outras ideias prósperas.

As antigas separações de escritores e obras por “escolas literárias” ou as que


defendiam formas e organizações do fazer artístico levavam em consideração,
sobretudo, as estéticas europeias. Elas legitimavam sua adequação para abranger, com
tranquilidade, todos os pressupostos artísticos, todas as realidades culturais e as
manifestações artísticas de diferentes espaços, ainda que deixando um enorme grupo de
manifestações estéticas à margem. O advento de tendências voltadas à compreensão de
manifestações artísticas desviantes que se valem de novas estratégias, como a proposta
neste trabalho, proporcionará repensar a organização canônica tradicional deixando
visível a necessidade de reformular a recepção crítica dos objetos artísticos.

5
“Asumir nuestra condición de Caliban”, “(…) repensar nuestra historia desde el otro lado, desde
el otro protagonista”.
6
“Nuestro símbolo no es pues Ariel, como pensó Rodó, sino Caliban. Esto es algo que vemos con
particular nitidez los mestizos que habitamos estas mismas islas donde vivió Caliban: Próspero invadió
las islas, mató a nuestros ancestros, esclavizó a Caliban y le enseñó su idioma para entenderse con él:
¿Qué otra cosa puede hacer Caliban sino utilizar ese mismo idioma para maldecir, para desear que caiga
sobre él la «roja plaga»? No conozco otra metáfora más acertada de nuestra situación cultural, de nuestra
realidad”.

14
O direcionamento estético com o qual esta tese buscará uma aproximação não
surge, contudo, somente de um posicionamento estilístico e sim de uma necessidade que
não se localiza apenas no fazer artístico. Há de se ter em mente que a dissimulação foi
(e em alguns casos ainda é) uma forma de sobrevivência e fora apresentada, na arte,
como forma do indivíduo manifestar sua real existência. A voz dos atores subalternos
somente se tornou possível com o desvio da fala com objetivo de fugir do controle. Este
desvio no texto machadiano estaria marcado pelo uso da ironia, ambiguidades e por
negaças que dão ao texto uma feição e sentidos escorregadios (tal como será
demonstrado nas páginas que seguem).

A proposta empreendida nesta tese é a de ler a contrapelo a reflexão estética a


partir do ponto de vista de questões e indagações que vêm sendo propostas pelos
Estudos subalternos (como mencionarei e explicitarei posteriormente). Contudo, não
almejo aqui formular um conceito que signifique uma oposição a posturas canônicas
com relação ao estético, mas, sim, como uma expressão que se caracteriza pela abertura
necessária para reler os autores contemporâneos, os que foram marginalizados e até
mesmo os que são considerados cânones, tal como Machado de Assis – corpus eleito
por esta tese.

Machado de Assis será apresentado nesta pesquisa como um motivador das


formulações teóricas que estruturam a argumentação desta tese. Não poderia ser outro o
motivo da escolha, posto que todos os argumentos que serão apresentados surgem da
leitura de suas crônicas, contos, poesias, romances, bem como de artigos e análises
desses textos. Para apresentar a visão analítica das estratégias de dissimulação utilizadas
por Machado de Assis, será prudente refazer, ainda que de forma resumida, o caminho
estético traçado por filósofos e estudiosos que ajudam a melhor compreender a urgência
de novas estéticas, ainda que seja necessário reconhecer que já existiam, nas propostas
tradicionais, aberturas para as perspectivas estéticas mais atuais. Também será
importante demonstrar que os procedimentos de análise que se baseiam em
determinações estéticas mais tradicionais não satisfazem de forma plena as expressões
estéticas que fogem destes modelos e que apresentam propostas desviantes.

15
Retornando à citação que inicia esta introdução, há nela um impulso ao desvio,
algo que também é possível encontrar no conceito-metáfora Caliban, de Retamar e que
estará presente no decorrer desta tese como um eco. Expressões estéticas caracterizadas
pelo desvio serão cruciais para repensar a participação de indivíduos em situações de
subalternidade como personagens ou como autores. Os subalternos foram e são
caracterizados, na maioria das abordagens, como incapazes de se apropriarem da fala.
Partindo desta premissa, buscar-se-á até mesmo refletir sobre o silêncio como uma
realidade ambígua, ou seja, ao mesmo tempo em que é imposto, serve também como
malícia para escapar do controle. Buscando o desvio caracterizado por uma voz
subalterna audível, a estética da dissimulação, aqui proposta, se configura. Porém, esta
perspectiva estética não surge separada das demais; por sua natureza dissimulada, ela se
apropria de outras linguagens mais tradicionais para se fortalecer e tornar-se voz.

É pertinente esclarecer que o projeto inicial de tese se configurava pela tentativa


de levar a cabo o estudo sistemático e exaustivo de toda a literatura machadiana.
Contudo, estudos posteriores revelaram a impossibilidade de realização desta
empreitada no espaço de tempo em que está compreendido o doutorado. Porém, ainda
assim, a leitura da obra completa de Machado de Assis possibilitou a estruturação dos
capítulos que compõem a tese.

O primeiro capítulo se configura como uma revisão da bibliografia relacionada


aos estudos de estética tradicional, passando por Aristóteles e as primeiras reflexões
sobre arte e a mimese, por Kant e todo o trabalho filosófico desenvolvido para defender
a subjetividade do juízo estético e por outros filósofos. Diferentes perspectivas teóricas
constroem, no primeiro capítulo, um percurso que procura alcançar os estudos de
reciclagem cultural, presente nos trabalhos de Klucinskas & Moser (2007). Refletir
sobre os estudos do juízo do gosto auxiliam pensar a estética da dissimulação. Esta
perspectiva surge da necessidade de encontrar saídas para um balbucio, uma voz
subalterna através de uma reflexão que utiliza os textos de Deleuze (1987, 2010),
Spivak (1988) e Achugar (2006).

O segundo capítulo é motivado por reflexões sobre as manifestações da voz


caracterizada pela subalternidade, pontuadas por cenas e aspectos do texto machadiano,
16
muitas vezes retomando perspectivas apontadas por leituras críticas do texto do escritor
como as de Mário de Andrade (1972), Araripe Júnior (1895), Magalhães Júnior (1957,
1958), Chalhoub (1998, 2003), Assis Duarte (2005, 2007), Schwarz (1977, 1989, 1997,
2000). A revisão desta bibliografia se deu com o objetivo de repensar aspectos da vida
do escritor e de sua obra como representação da realidade social, cultural, política e
econômica brasileira. Assim, são elencadas críticas que são favoráveis à tese aqui
defendida e outras que são dissonantes, mas que funcionam como impulso para refletir.

Após a revisão dos estudos estéticos e da reflexão do conceito de Estética da


dissimulação, resta associá-lo a uma representação artística específica. Neste capítulo,
O romance Ressurreição será analisado juntamente com Dom Casmurro para pensar o
mote shakespeareano ou o Otelo às avessas.

No terceiro capítulo, serão analisadas as personagens femininas e seus recursos


de dissimulação nos romances A mão e a luva e Helena. Sendo que será dada mais
atenção à segunda por sua importância para a proposta desenvolvida nesta pesquisa. No
mesmo capítulo, serão analisadas personagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas,
procurando refletir sobre representantes da elite e suas estratégias de simulação em
diferentes perspectivas: embustes utilizados por um narrador de primeira pessoa, um
narrador defunto.

As páginas que seguem surgem do desafio hercúleo de ler Machado de Assis e se


configura como um exercício de leitura e concomitantemente como busca de uma
interpretação inovadora. As análises interpretativas da literatura machadiana são
incontáveis e escrever algo novo é uma tarefa muito complexa. Partindo desta premissa,
este trabalho reconhece que a leitura inovadora aqui apresentada não apresentará um
novo Machado de Assis, não apresentará uma chave interpretativa e sim uma visão, por
outro viés, por outro foco. O caminho encontrado por este trabalho para ler as narrativas
do autor foi o da Estética da dissimulação que será paulatinamente apresentada e
desenvolvida nas páginas seguintes.

17
Reflexões sobre o conceito de Estética

O terror e a piedade podem surgir por efeito do espetáculo cênico, mas


também podem derivar da íntima conexão dos atos, e este é o procedimento
preferível e o mais digno do poeta. Porque o Mito deve ser composto de tal
maneira que quem ouvir as coisas que vão acontecendo, ainda que nada veja,
só pelos sucessos trema e se apiede, com experimentará quem ouça contar a
história de Édipo. (ARISTÓTELES, 1993, p. 73)

A estética nasce da necessidade de se pensar, de delimitar, esquematizar de


forma lógica o belo e o feio (atitude agônica já de início por tentar controlar algo que
está acima dos limites da razão). Entretanto, apesar deste impulso de logicidade, a
análise do objeto estético jamais deixará de ter como elemento importante o lado
subjetivo. Porém, a estética (ainda que não fuja totalmente dos pareceres individuais e
subjetivos) visa trabalhar com um consenso7 (sempre relativo) sobre o que se considera
belo ou não (as fronteiras dos objetos passíveis de serem analisados e, por conseguinte,
a delimitação do próprio campo de estudo). Para isso, são designados modelos
avaliativos, objetos artísticos que compõem o panteão estético denominado cânone
(belas artes8). É claro que o conjunto de elementos que compõem o cânone não é
escolhido de forma aleatória, há uma série de pontos que são levados em consideração e
que por vezes são exteriores ao objeto artístico em si. Assim, a recepção de um objeto
artístico levará em consideração (dando maior ou menor grau de importância) os
elementos exteriores, tais como: política, religião, cultura, ideologia. Por isso, haverá
sempre modelos valorizados e outros que fogem às características demarcadas serão
marginalizados. Estes modelos costumam mudar com o tempo, porém eles sempre
acolherão algumas manifestações e rejeitarão outras.

7
“O juízo de gosto ou estético é universalizável: o seu objeto provoca a adesão de outros sujeitos
conscientes, na medida em que o prazer desinteressado não é uma satisfação confinada ao que
particulariza como indivíduo, mas depende da capacidade de sentir e de pensar, comum a todos os
homens” (NUNES, 2002, p.49).
8
O termo é utilizado nesta tese como um repetir irônico. Vários termos já foram utilizados para descrever
a artes de prestígio (Poética, Belo, Belas Artes, Cânone).
18
Desta forma, fica evidente que todas as vezes que houver mudanças nestes
parâmetros haverá ou deveria haver alteração nos modelos estéticos. Pois, os critérios
de valores são as diretrizes basilares que determinam a construção do limiar entre os
grupos ou as categorizações. Portanto, repensar parâmetros estéticos não é um mero
capricho de teóricos ou críticos, é sim uma necessidade diante de mudanças ocorridas
no mundo e que evidentemente afetam de forma decisiva a produção e recepção
artística.

Em estudos de datas anteriores a 1735, ainda não podemos falar com


propriedade de estética, pois o termo fora cunhado por Baumgarten. Porém, estudos da
arte sempre existiram e possuem a idade do homem, a idade da própria percepção de
objetos artísticos. Contudo, a estética (a Poética ou o Belo) somente é apresentada na
filosofia ocidental por Platão e Aristóteles. Portanto, o nascimento do discurso
propriamente estético (com o nome de estética, pois cabe lembrar que já existiam
esforços anteriores de categorizar e de pensar o belo) na segunda metade do século
XVIII, surge da necessidade, de desejo de conceituar, de criar uma teoria, uma
metodologia, princípios que facilitassem o contato, a recepção e a seleção do belo
artístico. O objetivo era estabelecer as fronteiras específicas deste campo.

É assim que Baumgarten, numa tentativa de construir uma ciência, uma lógica
do sensível (durante muito tempo fora empregado este termo para descrever a arte e
entre 1750 e 1800 desenvolveu-se uma teoria do belo relacionada à percepção sensorial)
determina o termo próprio para especificar o campo de estudos do belo artístico e inicia
a sua delimitação. Assim, o campo de estudos artísticos, a estética, passa a compor o
grande conjunto de estudos filosóficos.

O distanciamento mais evidente dos trabalhos desenvolvidos por Baumgarten é


apresentado por Kant em sua Crítica do juízo (que seria a crítica da crítica). A partir
deste momento há uma série de oscilações no campo da estética (as fronteiras são
reformuladas): o belo deixa de ser a perfeição do sensível, há a percepção de que o
julgamento estético não produz conhecimento sobre o objeto (a recepção sensível do
objeto por ser intensamente subjetiva não é do primado da razão), problematização das
noções de percepção estética e julgamento estético. Kant coloca definitivamente a
19
terceira crítica9 (ou crítica do juízo) no campo específico da filosofia, delimita o campo
e o objeto da estética e defende a tese de que a obra de arte seja um objeto sem
finalidade (tese que virá a ser questionada em muitos momentos), produzida sem uma
função definida (proposição mais aceitável). Além disso, há a percepção do filósofo do
papel reflexivo da arte que passa a funcionar como um espelho refletindo o âmago do
ser que a observa. Por isso, a crítica da arte é algo que depende de um juízo, de uma
subjetividade que apresenta seus próprios critérios de valor.

A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como


contido no universal. No caso de este (a regra, o princípio, a lei) ser dado, a
faculdade do juízo, que nele subsume o particular, é determinante [...].
Porém, se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal,
então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva (KANT, 2008, p. 23).

Quase sempre são utilizados os textos de A crítica do juízo (1980) para abordar
os estudos de Kant sobre a beleza, porém as primeiras observações kantianas sobre o
problema de definição da estética e do belo estão presentes em Observações sobre o
sentimento do belo e do sublime e em Ensaio sobre as doenças mentais ambos
publicados em 1764. Nestes trabalhos há grandes avanços no entendimento do objeto da
estética separando o sentimento do belo e do sublime (“O sublime comove [rührt], o
belo estimula [reizt]” [KANT, 1993, p. 21]) e relacionando questões de natureza estética
com sentimentos humanos (sentimentos que deveriam ser evitados e outros que
deveriam ser admirados). Desde já é possível perceber a relação entre estética e ética
que será o mote do trabalho desenvolvido por Schiller em suas cartas que serão
formuladas somente em 1794. Entretanto, nem tudo pode ser encarado positivamente
nas reflexões kantianas quando as retomarmos para fortalecer o nosso objetivo de
estudo da estética. É o caso do fragmento abaixo:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento, por


natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume
desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha
demonstrado talentos (KANT, 1993, p. 75, grifo do autor).

9
A terceira crítica é o livro do Kant mais maduro. Neste trabalho Kant abordará a capacidade de julgar e,
portanto, a estética será o assunto principal. A crítica da faculdade de juízo é denominada terceira, pois
Kant já havia escrito anteriormente duas outras críticas: Crítica da razão pura e Crítica da razão prática.
20
Nas observações do comportamento humano em Observações sobre o
sentimento do belo e do sublime, de Kant há o emprego de critérios de valor, portanto
não estão isentas de preconceitos ou de elementos que são exteriores ao próprio objeto
analisado. Kant apresenta um caminho que deveria ser percorrido por todas as pessoas
na sociedade para que alcançassem o status de seres estéticos: Liberdade e civilidade
reforçam-se mutuamente, pois a ordem pública pressupõe o polimento das inclinações
que movem os agentes. O sentimento, aí, é a faculdade pela qual os valores se
estabilizam e se tornam compartilháveis (KANT, 1993, p. 15). Após estas conquistas, os
vícios individuais seriam sublimados pelas virtudes coletivas – refinamento popular.

(...) O constrangimento artificial e a opulência do estado civil produzem


indivíduos engenhosos e sutis, mas ocasionalmente, também estultos e
impostores, forjando uma aparência sábia ou uma aparência moral que
permite prescindir do entendimento e da integridade, conquanto que seja
espessa a urdidura do belo véu com que o decoro cobre a fraqueza secreta da
mente ou do coração. À medida que a arte se eleva, razão e virtude enfim se
tornam a senha comum, mas de tal forma que o zelo em falar de ambas
dispensa pessoas instruídas e educadas de se esforçarem em possuí-las
(KANT, 1993, p. 81).

Mesmo que seja possível reconhecer alguns equívocos na proposta de Kant com
relação aos estudos das personalidades ou até mesmo dos perfis de povos (equívocos
compartilhados e que não eram nem considerados pensamentos equivocados em sua
época - o preconceito contra a África e seus diferentes povos, por exemplo, era algo
comum, verdade, é só lembrar-se de Hume), cabe ressaltar que em seus estudos já havia
uma necessidade de relacionar estética, ética e cultura – tal como hoje se almeja fazer
com os Estudos Culturais.

Em teorias estéticas anteriores a Kant (Platão, Aristóteles, Plotino, Santo


Agostinho), a beleza era algo inerente ao objeto. A beleza se apresentava em duas
categorias distintas: a beleza natural e a beleza da criação artística (tanto em Platão
quanto em Aristóteles). A teoria da estética defendida por Platão está presente nos
diálogos O banquete, Fedro e no Discurso de Sócrates. Nestes textos é possível tomar
consciência que toda a arte construída no mundo real é fruto de lembranças,
reminiscências de outra vida, da qual vivemos desterrados. O idealismo de Platão
considera que o verdadeiro belo seria o presente no mundo ideal (inalcançável) e o belo
21
artístico seria uma mera cópia imperfeita daquele. Aristóteles, por sua vez, não
abandona totalmente o idealismo, porém acrescenta a ideia de harmonia, de ordenação
harmônica dos elementos como característica essencial do belo (assim, as três grandezas
fundamentais da arte seriam: a harmonia, a grandeza e a proporção)10. Tanto em
Aristóteles quanto em Platão há o esforço em encontrar as fronteiras da beleza sendo
esta determinada pela unidade na variedade, a união entre o aprazível e o bem. Em
Platão é possível perceber a distinção entre o que seria Belo e o que seria o Feio e já se
faz presente a ideia de uma didática, de uma formação para a apreciação artística.

Uma vez que o belo é o oposto do feio, trata-se de dois conceitos. Como não?
Se são dois, cada um constitui uma unidade. Isso também. [...] Nessa base,
continuei, estabeleço a seguinte distinção: de um lado coloco os que há
momentos denominaste amadores de espetáculos, os amigos das artes e os
homens práticos, e num grupo à parte os que a que nos referimos, os únicos
que fazem jus à denominação de filósofos. Em que consiste a distinção?
Perguntou. Os amadores de sons e de espetáculos, continuei, deleitam-se com
as belas vozes, as cores e as formas belas e todas as obras trabalhadas com
perfeição; porém, são de entendimento incapaz de perceber e de amar a
natureza do belo em si. É realmente o que se dá, observou. E os que são
capazes de elevar-se até ao belo e de contemplá-lo, não serão extremamente
raros? Sem dúvida. (PLATÃO, 2000, p. 267-268).

A estética com a filosofia platônica e aristotélica estava fundada na lógica e na


ética. O belo era difundido em uma tríade juntamente com o bom e o verdadeiro. A
condição para a existência do belo se fundamentava na conduta, na ética e na
moralidade. Contudo, para Platão o real era dividido em duas dimensões: a dimensão
inteligível e a dimensão sensível. A primeira seria a origem de todas as coisas, a
essência. A segunda, por sua vez, seria um mero reflexo, uma imagem, um simulacro do
original e, portanto, uma cópia imperfeita do real. Sendo assim, o belo seria
inalcançável e distante de qualquer intervenção do intelecto e do juízo humano.

Ao passo que Platão observava na mimese a imitação, a cópia imperfeita, em


Aristóteles o ato de imitar abriria espaço para a semelhança, o lugar do como, da

10
“O belo, num ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas
partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o Belo tem por condições uma certa
grandeza e a ordem. Pelo qual motivo, um ser vivente não pode ser (do) belo, se for excessivamente
pequeno... nem desmedidamente grande...” (ARISTÓTELES, s. d., cap.VII, p.250)

22
verossimilhança, do reconhecimento catártico, da representação e da experiência. O ato
de recriação da essência ou da origem que ocorre com a mimese não é privilegio do
campo das artes e sim uma representação linguística da escolha do signo que melhor
represente a coisa significada.

A crítica à poesia presente na República e propagada pela boca de Sócrates não é


simplesmente uma forma de desvalorizar a arte poética e sim uma alternativa utilizada
para equiparar esta a outras expressões artísticas. O poeta ocupa um lugar privilegiado
na polis, o mesmo status vivenciado pelos sacerdotes. Expressões artísticas como a
pintura ou a escultura são consideradas menores enquanto a poesia é, de certa forma,
divinizada. Assim, o objetivo do discurso da República é a equiparação da arte em geral,
seja sua matéria a palavra, seja o barro ou a tinta. Todas utilizam elementos miméticos
para representar o sensível. E neste sentido, talvez a poesia seja a que mais se distancia
da forma ideal, por contar apenas com a palavra em suas representações. O poeta é um
artesão das palavras, um pintor de signos e, portanto, um representador que utiliza um
objeto de matéria inferior pelos moldes miméticos platônicos.

Aristóteles, portanto, abandona completamente o idealismo platônico no que se


refere ao belo, pois para ele a beleza de um objeto não depende de uma participação
maior ou menor numa beleza suprema. Decorre apenas de certa harmonia, entre as
partes do objeto e sua relação com o todo. O belo exigiria ainda, uma característica
importante que seria a grandeza ou imponência, e ao mesmo tempo proporção e medida
nesse todo. As características essenciais da estética aristotélica seriam a ordem, ou
harmonia, assim como a grandeza. Aristóteles se preocupa com as medidas e suas
proporções. A célebre fórmula aristotélica seria que a beleza consiste em unidade na
variedade.

Os gregos identificavam a beleza com o belo clássico, mas Aristóteles parece ter
pressentido que ela apreendia outras categorias além do belo. Para ele o mundo após o
caos, passou a ser regido por uma harmonia. Uma luta entre a harmonia desejada os
destroços do caos ainda aqui existentes é fundamental em seus pensamentos. Ele inclui
o Feio no campo estético, sendo de fato não mais o objeto que ele estuda, e sim a
repercussão no espírito do contemplador. Isto é, a beleza como objeto que agrada ao
23
contemplador como simples fruído. Assim, o campo do belo é ampliado agregando
outras categorias. O belo é único por sua capacidade de proporcionar conhecimento pelo
choque e a unidade na variedade também pode ser alcançada com o feio. Na filosofia
aristotélica o universo viveria como um todo harmônico que seria alcançado pelo
equilíbrio entre os destroços do caos e a ordem. Portanto, a arte também teria seus
elementos de ordem e seus elementos caóticos.

Assim, Aristóteles avança no campo dos estudos do belo quando percebe que o
modelo platônico seria inalcançável e, por conseguinte, impraticável. A realidade para
Aristóteles é o sensível que passa por uma série de abstrações inteligíveis até que
alcance o ideal universal de arte. Deste modo, a imitação não só é benéfica como passa
a ser fundamental para o processo de apreensão do belo. A experiência catártica produz
no receptor a possibilidade de experimentar e de enriquecer-se com seu caráter
pedagógico. A beleza, então, deixa de curvar-se a uma Beleza superior, ideal,
inalcançável, suprassensível. A estética aristotélica toma a imitação como representação
superior do sensível e não como reprodução imperfeita do absoluto, como fazia Platão.
O belo aristotélico é algo material palpável coordenado pelos valores de grandeza,
proporção, harmonia.

Na “Retórica”, Aristóteles avalia a fruição da obra de arte e as características da


beleza de acordo com o ponto de vista do sujeito. Chegando a conclusão que o prazer
decorre da gratuita apreensão e sem esforço, pelo espírito do sujeito. O advento da
subjetividade será crucial para formulações posteriores dos estudos estéticos.

Estes primeiros limites do campo estético foram definidos sempre levando em


consideração o objeto (teorias objetivas) e não o sujeito na produção ou na recepção.
Somente com o idealismo germânico (Kant e Hegel para nomear de forma mais básica)
é que surge a percepção de que o belo pode não seja inerente ao objeto e sim uma
atribuição do sujeito (ou seja, o belo não estaria nas propriedades de um objeto e sim
nas sensações que este provoca em seu contemplador). Machado de Assis
estrategicamente lança mão da importância do receptor em seu célebre conto A chinela
turca. Na provocação machadiana cabe refletir: se o espectador pode transformar um
drama tedioso em algo emocionante, o inverso também é válido (ou seja, uma literatura
24
de qualidade superior também pode padecer de olhos não capacitados ou preparados
para recebê-la).

Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça
com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom
negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que
o melhor drama está no espectador e não no palco. (ASSIS, 2008, II volume,
p.282).

A reflexão kantiana sobre a beleza tem como grande contribuição a noção de que
a atribuição de valor estético a um objeto surge da relação complexa entre intelecção e
sensibilidade. É por esta relação que ao analisar esteticamente um objeto é impossível
fugir de valores subjetivos, parciais e tão efêmeros quanto a própria vivência. Para
corroborar com esta afirmação cito de forma mais esclarecedora o fragmento de Charles
Lalo:

(...) é nossa maneira de pensá-los que faz a beleza dos objetos ou das pessoas,
assim como também sua feiúra. Porque em si eles não são belos nem feios:
são o que são, e qualquer outra qualificação lhes é extrínseca e vem-lhes
exclusivamente de nós. (...) a beleza de uma coisa não se liga à natureza desta
coisa, mas ao livre jogo da imaginação e do entendimento, que pode se
produzir num contemplador por causa desta coisa, qualquer que seja a
natureza dela fora dele (LALO, 1952, p.2-3 apud: SUASSUNA, 1972, p.32-
33).

É após Kant que surge a subdivisão do campo estético e o belo passa a ser uma
das categorias do campo juntamente com o sublime. Nesta nova categorização que
surge também a questão do que seria belo, já que a mesma palavra abriga elementos tão
distintos. De acordo com Bruyne: “A arte não produz unicamente o belo, mas também o
feio, o horrível, o monstruoso. Existem obras-primas que representam assuntos
horríveis, máscaras terrificantes, pesadelos que enlouquecem.” (BRUYNE, 1930, p.41
apud: SUASSUNA, 1972, p.23). Kant já percebera a necessidade de se repensar a noção
de belo ampliando o conceito e incluindo o feio em sua concepção.

Em suas Lições sobre a analítica do sublime (KANT, 1980, 1951), o filósofo


questiona: o que nos inclina para o belo? Desejamos o que é bom? Nada disso. Nada
nos move, pois o belo só pode assim ser chamado quando ocorre de forma gratuita.
Tentamos controlar as nossas ausências (e seguimos acumulando ausências). Contudo, o
vazio existencial jamais será possível preenchê-lo, a arte pode sim amenizar a dor ou ao
25
menos pode facilitar o entendimento do nada, mas este sempre existirá.

Para Kant, o belo é como o bem. Porém, as duas categorias não podem ser
fundidas, não são a mesma coisa e nem uma decorre da outra. O sentimento do belo é
desinteressado, é partilhável, é livre (ou deveria ser). O belo pode proporcionar fruição
por sua simples forma, mas o prazer verdadeiro surge na recepção, na capacidade de
compreensão, apreensão, na construção de um conhecimento. O sublime não provoca
fruição, ele oprime, aprisiona. Diante de uma sublime beleza contempla-se calado, o
espírito emudece-se. A arte, por sua vez, estimula, liberta. Este poder didático do belo
também pode ser encontrado na filosofia estética de Hume – o caminho da educação do
espírito livre para a apreciação do objeto artístico.

O gosto não consegue perceber as várias excelências do objeto, e muito


menos consegue distinguir o caráter particular de cada excelência e
determinar sua qualidade e seu grau. O máximo que pode esperar-se é que
declare de maneira geral que o conjunto é belo ou disforme, e é natural que
mesmo esta opinião só seja formulada, por uma pessoa com tanta falta de
prática, com maior hesitação ou reserva. Mas se a deixarem adquirir
experiência desses objetos seu sentimento se tornará mais exato e mais sutil.
(...) Numa palavra, a mesma competência e destreza que a prática dá a
execução de qualquer trabalho é também adquirida pelos mesmos meios, para
sua apreciação. (HUME, 1992, p.266).

O trabalho com a filosofia estética presente em Hume apresenta pontos


concordantes com o que é apresentado em Kant e que posteriormente será
incansavelmente repensado em Schiller – a educação estética. Claro que o leitor atento
de cada proposta estética perceberá que ao mesmo tempo que uma completa a outra,
uma amplia a outra em alguns elementos e uma contradiz a outra em outros pontos.
Sendo assim, nenhuma pode ser considerada desprezível. Contudo, a estrutura kantiana
é, sem dúvida, algo que apresenta um virtuosismo e uma obsessão admiráveis. O
modelo estético kantiano chega ao ponto de instaurar ou revelar a aporia do próprio
sistema filosófico nos estudos da arte. A filosofia não está livre de suas próprias armas
críticas – a crítica da crítica – pois, nenhum sistema filosófico ou de pensamento estará
absolutamente neutro.

Schiller, por sua vez, busca inspiração em Kant principalmente na doutrina dos
26
costumes, ou seja, nas elucubrações de Kant sobre a relação entre moral e razão
objetivando encontrar uma relação entre virtude e gosto, sensibilidade e moral, estética
e valores. Contudo, o prazer livre e desinteressado presente em Kant é motivo de crítica
em Schiller. A beleza schilleriana precisa ser virtuosa e não há juízo sem pré-juízo, ou
seja, julgar é consequentemente tomar partido, expor-se. E, por isso, Schiller não
distingue eticidade (die Sittlichkeit), o ético (das Sittliche) e a moralidade (Moralität),
ou o sentimento estético (Schönheitsgefühl) e o gosto (Geschmack).

Contudo, é preciso refletir sobre o significado do sem interesse kantiano. Esta


forma desinteressada de apreciação artística não significaria um posicionamento
passivo. Qualquer espírito que se submete ao ato de observação carrega em si certo
nevoeiro em seu olhar, uma névoa gerada por suas convicções e por seus mais íntimos
impulsos. Não há como se desvencilhar de uma vontade de representação, de um poder
em potencial que age na subjetividade sem que necessariamente o indivíduo perceba. A
questão do interesse já intrigou Nietzsche na crítica que faz da análise feita por
Schopenhauer do pensamento kantiano.

Schopenhauer valeu-se da visão kantiana do problema estético (...). “Belo,


disse Kant, é aquilo que apraz sem interesse” (...). O caso é bastante
admirável: ele interpretou, por si mesmo, o dito “sem interesse” do modo
mais pessoal possível, a partir de uma experiência (...) nunca se fatigou de
glorificar esse desvencilhamento da “vontade” como a grande preeminência e
utilidade do estado estético (...). E não se poderia, em última análise, objetar
ao próprio Schopenhauer que aqui ele foi bastante injusto ao se imaginar
kantiano, que não entendeu, em absoluto, a definição kantiana do belo de
maneira kantiana – que o belo lhe apraz, também a ele, por conta de um
“interesse” (...) o do torturador (Torturirten) que se desvencilha de sua tortura
(Tortur)? (NIETZSCHE, 1999c, p. 347-349 – grifo nosso).

Para Schiller, a estética seria uma forma efetiva de se alcançar a ética. Sendo
assim, o conhecimento do belo poderia mudar o homem em sua essência, transmutar
vícios em virtudes, pois o objeto artístico teria o poder de afetar as sensações humanas
tornando-se perceptível pela inteligência e, portanto, afetando as emoções (patética).
Todo este processo de experiência estética é mediado pela linguagem que se constitui
como o verdadeiro exercício de apreciação artística por não haver outro meio de
apreender e/ou dividir a consciência daquilo que é belo. Kant defende que por meio da
27
percepção estética, há a possibilidade de libertação das prisões conceituais. Isto se dá,
pois na filosofia kantiana a maioridade da razão também pode ser alcançada por meio da
apreciação estética. Por isso, a filosofia kantiana é tão importante para o
desenvolvimento da estética schilleriana. A apreciação estética não exige que o
contemplador possua conhecimento técnico, portanto possui capacidade abrangente e
possui caráter formador. Schiller compreende esta característica da estética e se apropria
desta para construir sua filosofia pedagógica da estética. É possível perceber, então, que
Schiller buscou refletir bastante sobre os trabalhos kantianos, em particular os
desenvolvimentos sobre estética e sobre razão prática. A divergência se dá quando Kant
defende a liberdade, a fruição livre. É sobre estes pontos divergentes que ele alerta
quando aborda a utilidade da moral nos costumes estéticos e quanto menciona os
perigos dos costumes estéticos.

Schiller vê na apreciação, no juízo, no gosto do belo um importante caminho


para o virtuoso. Isto se dá, pois o gosto possui a capacidade de selecionar ações que lhe
sejam oportunas. O belo é essencial à moralidade por auxiliar os indivíduos no processo
de afastamento de inclinações relacionadas puramente aos hábitos, a ações
condicionadas. O caminho para a moralidade passa necessariamente pela maioridade
kantiana, porque somente um sujeito livre poderá escolher; e moral é escolha. O gosto
previne ações que estejam ligadas a impulsos naturais humanizando, assim, nossas
atitudes.

É claro que nem todos buscarão o caminho da virtude. As necessidades do corpo


físico são bem distintas daquelas advindas do corpo moral, ético, estético. O que
Schiller busca, de forma bem realista, é uma harmonia entre as diferentes necessidades.
A virtude básica estaria na minimização dos riscos. Por isso, a conveniência de uma
educação estética poderia servir como um peso a mais na balança da moralidade e do
virtuosismo.

Hegel em seu Curso de estética assume a problemática do termo estética


considerando este inadequado11, pois é um conceito marcado e vinculado à língua alemã

11
“Foi Baumgarten quem denominou de estética a ciência das sensações, esta teoria do belo. Só aos
alemães esta palavra é familiar. Os franceses dizem théorie des arts ou des belles lettres. Os ingleses
incluem-na na critic. Os principais críticos de Home gozaram de grande voga no tempo em que este autor
publicou sua obra. Na verdade, o termo estética não é o que mais propriamente convém” (Hegel, 2000,
28
e às reflexões sobre o belo de origem alemã. Também faz uma inversão interessante se
comparadas à estética hegeliana e a kantiana: Hegel diante da dicotomia entre o belo da
natureza e o belo artístico considera o último superior. Porém, segue defendendo a ideia
kantiana de que a estética é tarefa da filosofia e denomina a reflexão sobre o belo como
filosofia das belas artes.

A arte e suas obras, decorrentes do espírito e geradas por ele, são elas
próprias de natureza espiritual, mesmo que sua exposição acolha em si
mesma a aparência da sensibilidade e impregne de espírito o sensível. Neste
sentido, a arte já está mais próxima do espírito e de seu pensar do que da
natureza apenas exterior e destituída de espírito (...). No entanto, se as obras
de arte não são pensamento e conceito, mas um desenvolvimento do conceito
a partir de si mesmo, um estranhamento na direção do sensível, então a força
do espírito pensante reside no fato de não apenas apreender a si mesmo em
sua Forma peculiar como pensamento, mas em reconhecer-se igualmente em
sua alienação no sentimento e na sensibilidade. (HEGEL, 2001, p. 36-37 –
grifo nosso).

Hegel, embora possa parecer, não retoma o idealismo platônico. Platão pensava
em um mundo ideal, o das ideias, onde residia a estética. Hegel, por sua vez, defende
que o belo é de ordem espiritual. Contudo, este belo espiritual está relacionado ao
campo subjetivo e, portanto, não é inerente ao objeto, não e de ordem material. Há na
estética hegeliana um esforço que vai além da matéria, pois, em sua filosofia, o
fenômeno estético e verdadeiro conteúdo do belo seria o espírito. E neste ponto estaria a
superação do objeto estético que consegue ultrapassar sua materialidade e alcançar o
sensível: o campo subjetivo da existência humana.

Na segunda metade do século XIX ocorre a expansão do termo estética com a


respectiva ampliação dos campos de atuação da disciplina (interdisciplinaridade). O
campo do estético deixa de ser privativo da filosofia e acaba sendo abordado por outras
disciplinas, tais como: a psicologia, a sociologia e a antropologia.

No fim do século XIX há o desenvolvimento de novas conceitualizações


estéticas, algumas até mesmo de correntes contrárias. Neste momento, ocorre a luta de
negação e de reação contra a herança idealista.

34).
29
No século XX a questão torna-se mais complexa com as releituras e valorização
das reflexões nietzschianas sobre a crítica da metafísica. Assim, os teóricos nutrem uma
verdadeira aversão contra os essencialistas que se mantiveram durante muito tempo
como norma, modelo, e leitura obrigatória para o estudo do objeto artístico. A
complexidade e as desavenças apresentadas neste período fazem com que seja
desencadeada uma crise (abalos nas bases do pensamento) na forma de pensar a estética,
crise esta que é fruto de alterações no próprio fazer artístico fruto de elaborações
artísticas desencadeadas pelas vanguardas.

Já no final de 1980 surge como proposta de pensamento das ciências humanas:


os estudos culturais. A partir daí é reconhecida a importância de outros parâmetros na
construção do objeto estético e que devem ser levados em consideração, pois,
consequentemente, influenciará em sua análise. Ou seja, os objetos que compõem o
conjunto denominado belas artes são determinados pelo valor, sendo que este leva em
consideração critérios de natureza exterior à própria obra de arte. Assim, é necessário
reconhecer que a análise puramente metafísica ou filosófica que visava orientar a
eleição do cânone jamais fora pura. Deste modo, os critérios analíticos foram
considerados simplistas pelos seguidores dos estudos culturais. Em decorrência desta
constatação, a crise estética fora intensificada e surge a necessidade de se pensar
politicamente a estética e de sua redefinição - repensar sua função e seu objeto.

A crise pode ser comprovada pela presença massiva, em trabalhos atuais sobre
estética, da defesa da necessidade pungente de se repensar a disciplina (talvez o termo
que nomeia o campo já nem seja adequado, tal como já afirmara Hegel). Atualmente, a
denominação é considerada inadequada, pois é muito limitada levando-se em
consideração que, no conceito de estética, há uma variedade de saberes, intenções e de
mídias. Também há a controversa aparição das mais variadas discussões e estudos que
analisados profundamente objetivam o retorno aos estudos iniciais de Baumgarten, ou
seja, a estética enquanto percepção sensorial.

O advento das novas mídias e da revolução tecnológica problematiza ainda mais


a questão da conceitualização estética. A notoriedade do espaço-tempo do objeto
30
artístico, agora, apresenta uma complexidade maior. Surgem discussões em torno à
questão do original e da cópia (BENJAMIN, 1987) ocasionada pela capacidade de
reprodução de obras autênticas (o que acaba provocando até mesmo questionamentos
sobre a autenticidade da obra de arte) e a sua reprodução em cópias idênticas. Este foi
mais um e talvez o mais forte golpe à noção de belas artes e à característica aurática
destas produções (BENJAMIN, 1987, p. 28). Estes fatores foram os que influenciaram a
transformação da experiência estética pelas novas mídias, novas tecnologias de
produção e reprodução, mudanças políticas que alteraram a forma de ver o mundo,
reorganização das classes sociais, industrialização/reprodutibilidade técnica, tipografia,
desauratização da matéria artística e consequentemente de seu criador, tensão entre
originalidade e multiplicidade – processo de reprodução que acaba por ocasionar a
desmaterialização do objeto artístico. O objeto artístico passa a ser um signo vazio – o
que impele o artista a improvisações performáticas/valorização e demanda do corpo do
artista como parte importante na recepção de seu trabalho, direitos humanos/imposição
de posicionamentos denominados politicamente corretos). Estas alterações
acompanhadas de outras não mencionadas impeliram que fosse criada uma nova
configuração nas estratégias de recepção e nos parâmetros de apreciação do objeto
artístico (novos métodos de análise e critérios de valor estético).

Se se olha do lado da arte (objetos e experiências), observa-se uma incerteza


categorial, pelo fato de que se torna cada vez mais difícil traçar os contornos
do campo que ela presumidamente ocupa. Suas linhas de demarcação
tornaram-se cada vez mais porosas (...). (KLUCINSKAS & MOSER, 2007,
p. 20)

As mudanças na percepção dos sujeitos produtores da cultura, a abertura de


espaços e possibilidades mais amplas de divulgação de vozes antes emudecidas, a
politização de grupos marginalizados, a luta pelos direitos humanos, a relativização dos
valores de produção e de recepção de elementos artísticos, todas estas mudanças
desaguadas no fim do século XIX e na primeira década do século XX (e outras não
mencionadas aqui) propiciaram a ampliação do campo de categorização do belo. Esta
reconfiguração impele a necessidade de se recuperar a estética canonizada. Por
conseguinte, ocasiona uma mudança de valores estéticos que provocará a mudança de
elementos canônicos tanto aqueles que por hora estão sendo produzidos, quanto os que

31
ainda serão e até mesmo os que já foram produzidos.

Deste modo, é possível concluir que uma reconfiguração da estética provocará a


mudança dos parâmetros tanto de produção quanto de recepção do objeto estético. O
deslocamento proporcionado (como ocorre com qualquer processo de reciclagem12) é
cronotrópico, ou seja, espaço-temporal. Por vezes o simples deslocamento físico do
objeto estético provoca uma ruptura e um fenômeno de reciclagem, ou seja, um objeto
de prestígio que ocupa o espaço do museu é transportado para outro espaço ou um
objeto comum é ressignificado somente pelo fato de vir a ocupar um espaço prestigioso
de um museu, por exemplo, (tal como a estratégia procedida nos ready made de
Duchamp ou como a apropriação da cultura Pop pela arte, atitude que gerou
reformulações estéticas interessantes e posturas críticas agrupadas sob o paradigma da
Pop Art)13. Todavia, o deslocamento também pode dar-se no âmbito teórico ou da
recepção, relacionado profundamente a uma alteração do foco. O deslocamento também
pode ocasionar alterações ideológicas quando altera o foco.

As mudanças que são geradas não são de forma alguma gratuitas ainda que não
sejam aplicadas conscientemente pelos respectivos criadores. Porém, ainda que sejam
necessárias e naturais, surgem problemas no que tange à avaliação deste produto. Como
avaliar, como armazenar, como manipular, como interpretar e hierarquizar estes novos
processos de apresentação e os novos produtos artísticos? Novos procedimentos e
abordagens são essenciais para lidar com as reconfigurações do campo estético. E o que
se observa é a reação contrária à mudança de posicionamentos conservadores que
tentam impor barreiras desqualificando e desvalorizando novas investidas artísticas.

A constatação é negativa; fala-se de banalização, de degradação, de diluição,


pelo menos numa perspectiva pessimista. Os otimistas descrevem a mesma
situação em termos de abertura, de disponibilidade e de livre circulação dos
materiais culturais e dos artefatos. Regozija-se, então, com as mudanças
acrescidas no domínio cultural, mudanças que comportariam uma

12
Entendo reciclagem a partir da conceitualização feita por Klucinskas & Moser: Caracterizariam a
reciclagem deslocamentos espaciais e temporais de objetos estético-culturais, abarcando um processo que
consiste em várias fases de um gesto que comporta ao mesmo tempo repetição e transformação.
(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, P. 17)
13
Mencionar estes fatos é só uma forma de ilustrar os questionamentos que sofreu a arte na época das
manifestações mencionadas acima. Contudo, estes golpes não conseguiram abolir os critérios de valor
presentes em qualquer tempo. Mas, deixou claro que estes critérios podem ser alterados e que o que
define a arte é a intenção e em alguns casos o projeto (principalmente se o foco é a arte contemporânea).
32
oportunidade de revitalização e de redefinição do mundo da arte.
(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, P. 21)

Os teóricos mais saudosistas podem seguir pensando que o que há hoje não é
arte. Podem continuar buscando a verdadeira arte de nossos dias, embora,
provavelmente só pense encontrá-la no passado. Sendo assim, possivelmente, poderá
não encontrar o que busca. Enquanto não reconhecer no “novo” algo complexo e que
mereça ser analisado de forma reflexiva, não encontrará “novos” parâmetros analíticos,
estará perdido num lapso temporal, num tempo do já-não-é-mais, viverá num castelo de
ar almejando encontrar os alicerces basilares de uma arte que se apresenta em sua forma
gasosa.

A faculdade de sentir não legisla sobre objetos; [...] o senso comum estético
não representa um acordo objectivo das faculdades (isto é: uma submissão de
objectos a uma faculdade dominante, a qual determinaria ao mesmo tempo o
papel das outras faculdades relativamente a estes objectos), mas uma pura
harmonia subjectiva onde a imaginação e o entendimento se exercem
espontaneamente, cada qual por sua conta. Por conseguinte, o senso comum
estético não completa os outros dois [o senso comum lógico e o senso
comum moral]; funda-os ou torna-os possíveis (DELEUZE, 1987, p. 56-57,
grifo do autor).

Com a ampliação e redefinição do conceito de beleza, os filósofos pós-kantianos


começam a questionar outro problema complexo da filiação da estética: eles oscilam
entre o campo filosófico e o científico. Porém, ainda que seja feito um esforço não há
como filiar a estética ao campo meramente científico (ao menos que a ciência também
seja encarada como filosofia, trabalhando mais com proposições e menos com fatos). O
embate, então, deixa de ser produtivo. Porém, sempre haverá impasses e os estetas na
atualidade não apresentam um denominador comum em suas propostas teóricas. Assim,
já não se pode falar em estética, ou a estética, e sim estéticas.

Deste modo, chegar-se-á a nada simples conclusão de que por mais que os
estudos de estética e filosofia se afastem de seus umbigos sempre acabará retornando
àquela eterna maldição de morder a própria cauda, como se expressa na simbologia
alquímica do oroboro. A construção de conteúdos tautológicos é viciosa e mesmo
parecendo sem sentido, é sim produtiva, destarte absurda (como a tarefa de Sísifo).

Mas toda a ciência desta Terra não me dirá nada que me assegure que este
33
mundo me pertence. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-lo. Vocês
enumeram suas leis e, na minha sede de saber, aceito que elas são
verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e minha esperança aumenta.
Por fim, vocês me ensinam que este universo prestigioso e multicor se reduz
ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao elétron. Tudo isto é bom e espero
que vocês continuem. Mas, me falam de um sistema planetário invisível no
qual os elétrons gravitam ao redor de um núcleo. Então percebo que vocês
chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. (CAMUS, 2010, p.33)

E o exercício empreendido nesta pesquisa será o de afastar-se do tautológico e


encontrar no objeto a teoria, a reflexão estética que melhor estará apropriada para sua
análise. Parte-se da defesa de que o texto literário por si só já é uma proposta de análise
estética de outros textos e que pode servir não somente para o deleite e prazer, mas
também para as especulações de cunho filosófico.

34
O olhar exterior e a necessidade de se repensar a estética

É grande o número de críticos que produzem análises críticas ou teóricas


simplificadoras e, constantemente, generalizantes sobre determinada realidade que não
conhecem. Consequentemente, ainda que bem intencionadas, estas propostas de análise
acabam chegando a um lugar comum caracterizado por construções teóricas que se
apresentam com teor preconceituoso.

Mesmo que não queiram, a divisão simplista entre primeiro e terceiro mundos
extrapola o âmbito da relação econômica e contamina as relações estéticas e culturais.
As antigas oposições entre metrópole e colônia, centro e periferia, ressurgem,
sorrateiramente, comprometendo até mesmo as mais, aparentemente, ousadas
produções. Isto pode ser percebido na tentativa de colocar expressões culturais e
artísticas tão díspares e até mesmo contraditórias a mesma etiqueta: artes e expressões
do terceiro mundo ou periféricas.

As miradas europeias sobre o diferente que seria buscado em culturas


“periféricas” são em sua maioria representadas por duas sensações distintas:
vislumbramento e pavor. O vislumbramento é tão antigo que pode ser encontrado na
carta de Pero Vaz de Caminha ao descrever o contato com indígenas marcado pela
defesa da inocência e do bom selvagem; ou contaminado pela ideia do “selvagem
cruel”. As reações de resistência a estas formas de mirar constrangedoras podem ser
declaradamente ativas ou dissimuladas.

É possível ampliar indefinidamente as possibilidades de olhares constrangedores e


limitadores. Entretanto, a priori, qualquer ponto de vista sobre um objeto de análise
(ainda que com as melhores das intenções) é a interpretação do “não eu” do “diferente”.
Mas, estas diferenças são mais expressivas, limitadoras e preconceituosas quando o
outro apresenta um gênero, uma raça ou uma cultura que não é prestigiada pelo modelo
dominante. Ou seja, quando este “outro” é representado pelas denominadas “minorias”
(negro, índio, mulher, homossexual).

35
Politicamente alguns países assumem o discurso da ausência de diferenças.
Entretanto, na prática não é isto que observamos no cotidiano, nas ruas, em situações
corriqueiras e comuns. Reconheço que ser negro-mulher-homossexual-indígena14 em
determinados países seja diferente de negro-mulher-homossexual-indígena em outros e
ainda que se perceba que ser negro-mulher-homossexual-indígena pobre ou analfabeto
seja diferente de ser negro-mulher-homossexual-indígena rico ou com formação
acadêmica. Ainda assim estas relações de diferença existem, a discriminação existe em
variados níveis, disfarçada ou descaradamente assumida em diversas partes do globo.

Partindo deste ponto de vista, o conceito de “Estética da Dissimulação” torna-se


mais amplo e mais complexo. Para abordá-lo a contento seria necessário um estudo
mais aprofundado. É nesse sentido que este trabalho pretende levantar a poeira que
encobre a questão, tocar a ferida que está fechada, mas que ainda não está cicatrizada.
Para isso serão utilizados a título de exemplo um contexto e expressões artístico-
culturais específicas.

14
O termo apresentado com traços indica uma crítica irônica à visão preconceituosa que coloca
indivíduos com características e histórias de luta tão diferentes numa única designação: minorias. Ao
mesmo tempo me aproprio da designação de forma positiva unindo este grupo não por suas características
tão particulares, mas sim pelo preconceito sofrido.
36
Estética da dissimulação

Olá! Negro

Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos


e a quarta e quinta gerações de teu sangue sofredor
tentarão apagar a tua cor!

E as gerações dessas gerações quando apagarem


a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!
Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde
negro cabinda, negro congo, negro ioruba,
negro que foste para o algodão de U.S.A.,
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a canga
de todos os senhores do mundo;
eu melhor compreendo agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá, Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!


E és tu que a alegras ainda com os teus jazzes,
com os teus songs, com os teus lundus!
Os poetas, os libertadores, os que derramaram
babosas torrentes de falsa piedade
não compreenderiam que tu ias rir!
E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a tua
bondade
mudariam a alma branca cansada de todas as
ferocidades!

Olá, Negro!

Pai-João, Mãe-Negra, Fulô, Zumbi


que traíste as Sinhás nas Casas-Grandes,
que cantaste para o Sinhô dormir,
que te revoltaste também contra o Sinhô;
quantos séculos há passado
e quantos passarão sobre a tua noite,
sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre
tuas alegrias!

Olá, Negro!

Negro que foste para o algodão de U.S.A.


ou que foste para os canaviais do Brasil,
quantas vezes as carapinhas hão de embranquecer
para que os canaviais possam dar mais doçura à alma
humana?
Olá, Negro!
Negro, ó antigo proletário sem perdão,
proletário bom,
proletário bom!
Blues,

37
Jazzes,
songs,
lundus...
Apanhavas com vontade de cantar,
choravas com vontade de sorrir,
com vontade de fazer mandinga para o branco ficar
bom,
para o chicote doer menos,
para o dia acabar e negro dormir!
Não basta iluminares hoje as noites dos brancos com
teus jazzes,
com tuas danças, com tuas gargalhadas!
Olá, Negro! O dia está nascendo!
O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem
vindo?

Olá, Negro!
Olá, Negro!
(LIMA, 1958, p.180)15

Estes versos ácidos de Jorge de Lima iniciam este subcapítulo e apresentam em


seus temas e posicionamentos característicos do que esta tese defende como estética da
dissimulação. Primeiramente, há a questão da resistência, pois a estética da
dissimulação não nasce nos grandes salões. Ela nasce dentro dos navios negreiros, nas
senzalas, nos morros cariocas, nos quartinhos e nunca nos salões, nas regiões marginais
e nunca no centro. Contudo, sua capacidade de penetrar estes lugares é surpreendente,
pois dissimuladamente esta expressão estética não é contundente. É por meio de
subterfúgios e de posturas controladas que ela domina os espaços que ocupa. Os versos
de Lima falam de uma cultura que fora mantida entre grilhões para que agonizasse e
morresse. Entretanto, os dominantes não conheciam a capacidade desta cultura de
silenciosamente apropriar-se dos elementos culturais utilizados pelos dominantes e de
convertê-los, e os transformar e os absorver. A cultura europeia foi constantemente
nutrida pela cultura que sofrera e que fora escravizada, assim como as mães negras
amamentaram e alimentaram os filhos dos senhores. E assim, por meio da simulação e
dissimulação esta cultura segregada se agarrou da forma que pôde e sobreviveu e
preparou o negro para novos dias: O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem

15
O poema foi utilizado apenas para retratar a ideia de dissimulação e foi apropriado e interpretado nesta
tese com um foco irônico ("com vontade de fazer mandinga para o branco ficar bom"). Ainda assim,
há que se reconhecer que Jorge de Lima em outros poemas retrata o negro de forma bem distante da
defendida neste trabalho.
38
vindo? Antes de tentar responder esta pergunta, este trabalho se concentrará na reflexão
sobre uma nova conceitualização estética: a Estética da Dissimulação.

O conceito de estética presente na Crítica da razão prática (KANT, 1951) leva


em consideração a coletividade, não basta definir o que é belo, é preciso que um grupo
de pessoas compartilhe os mesmos modelos de beleza. Sendo assim, a arte, o belo,
alcança uma dimensão social que passa a ser definida por ideais do grupo (sejam estes
ideais políticos, religiosos, etc). Deste modo o conceito kantiano de estética apresenta
nas definições de arte e de belo alguns determinantes, tais como: a) Liberdade (de quem
produz o objeto e também do apreciador) e b) Coletividade (o belo deve ser
compartilhado).

É principalmente por causa dos determinantes mencionados no parágrafo


anterior que surge a incompatibilidade da proposta estética defendida neste trabalho e as
definições de estéticas mais tradicionais. Fica, então, evidente a necessidade de se
repensar o conceito e seus determinantes básicos. A estética da dissimulação se origina
em situações extremas, de necessidade, de luta pela sobrevivência e de manutenção de
individualidade, existência, subjetividade. Portanto, os indivíduos que comungam das
formas de produção e de recepção definidas pela vertente estética adotada por esta tese
possuem uma liberdade limitada, posto que nem sempre possam fazer uso de suas vozes
(já que estamos abordando, na maioria das vezes, pessoas que vivem em situações de
subalternidade). Até mesmo a coletividade, elemento imprescindível ao conceito de
estética, deverá ser repensada, pois seria esta categorizada pelo número de pessoas ou
pela representatividade destas no meio social.

Nesta tese assume-se a expressão Estética da dissimulação talvez com intenção


próxima da que leva o pesquisador Dr. Eduardo de Assis Duarte, que inspirou este
trabalho, utilizar o conceito de Poética da dissimulação. Para discutir o uso da
expressão que estimula a reflexão proposta por este trabalho, é necessário definir os
pontos de aproximação e distanciamento entre os dois conceitos.

O termo poética da dissimulação estaria associado à capacidade dissimuladora


expressa por variadas estratégias de Machado de Assis, muitas delas já analisadas por

39
outros pesquisadores de forma isolada ou sem a conexão que estabeleceu o pesquisador
Eduardo Duarte. É certo que muitos trabalhos críticos sobre Machado de Assis apontam
a ironia, o sarcasmo, as litotes, os binarismo e a preterição como recursos de
dissimulação habilmente utilizados pelo escritor em seus textos. Porém, a grande
contribuição de Eduardo Duarte está no reconhecimento da relação entre o estilo
machadiano e sua afro-descendência, entre estilística e a ética autoral (o que esta tese
denomina como performance autoral) que os textos machadianos exibem. Poder-se-ia
nomear o uso desses recursos como uma “poética” ou também percebê-los como
estratégias próprias de uma estética que assumiria os sentidos (e as estratégias) de uma
experiência artística de efeitos poderosos alcançados com o uso de determinados
recursos como os já assinalados.

O Dicionário de Estética (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003) define


o termo poética como: "(...) um termo utilizado no século XX sobretudo para evidenciar
a importância de uma análise concreta dos produtos literários ou artísticos em geral.
Neste sentido, foi usado em contraposição às teorias estéticas de orientação mais
filosófica." (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.283). O termo poética
também está associado à ideia de gênio, de genialidade, de talento individual, de uma
expressão única e rara: "Um dos princípios fundamentais da determinação moderna da
estética é a teoria do GÊNIO, a qual deve ser também inserida no contexto mais global
do processo de redescoberta da individualidade do sujeito. (CARCHIA, Gianni,
D’ANGELO Paolo, 2003, p.111)". Porém, a simples ideia do gênio também pode
apresentar aspectos generalizantes e excludentes.

Talvez, a utilização do termo tenha sido uma saída utilizada por ASSIS
DUARTE para abordar a literatura machadiana sem usar o conceito de estética. A
estética enquanto filosofia do belo está carregada de categorias que podem ser
interpretadas como desgastadas ou limitadas pela própria utilização. Contudo, é
prudente reiterar que o termo poética também apresenta suas limitações interpretativas
provenientes da solidificação de sua utilização e nestas condições, ele: "(...) não só
tende a ser intérprete das necessidades espirituais e dos movimentos culturais de uma
época, como também se revela particularmente sensível às condicionantes do poder e da
ideologia dominantes". (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p. 283). O uso

40
de poética também pode estar relacionado à intenção de apresentar a literatura de
Machado de Assis como algo único. O termo, portanto, também pode ser apresentado
como alusivo a elementos da obra de um escritor ou de objetos artísticos de
determinado autor.

Sendo assim, esta tese defende a utilização do termo estética por sua
abrangência e por ser muito mais pungente do que as suas próprias limitações. A sua
utilização, porém, deve concretizar-se: "numa acepção generalizada, indicando a
filosofia do belo e da arte independentemente das circunstâncias de tempo e lugar, é
uma operação que prescinde da natureza determinadamente histórica do conceito."
(CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.110). Portanto, as utilizações da
denominação estética nesta tese levarão em consideração esta acepção generalizada do
termo.

Além disso, ao se estudar a história da disciplina Estética percebe-se que sua


concepção é fruto de uma necessidade de afastar o estudo do belo do campo dogmático:
"A estética nasce, precisamente, a partir do momento em que a crítica do “gosto”, ou
seja, a reflexão sobre as condições que permitem avaliar algo como sendo belo, substitui
qualquer dogmática ou doutrina metafísica do belo." (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO
Paolo, 2003, p.110). Assim, observando esta caracterização das disciplina, é possível
encontrar bases para a defesa de uma estética dissimuladora, antidogmática que fuja de
delimitações europeizantes, até mesmo pelo fato de o conceito absorver contribuições
de cada época. Após a perda da aura e das poéticas dogmáticas, a Estética acabou
sofrendo críticas desestruturantes e adquiriu novos significados que circulam livremente
pelo campo da arte e da literatura, como se mostrará em outro momento.

O fenômeno de perda da aura, apresentado por Benjamin, propicia novas


possibilidade de pensar a estética. O valor intrínseco e imutável da obra de arte passa a
ser questionado e as crises do conceito de estética tornam-se importantes para a
dilatação do sentido antigo do termo e de suas possibilidades de aplicação. Pensar na
estética como um conceito capaz de abordar a literatura machadiana pelo aspecto da
dissimulação e pelo viés político dos Estudos da Subalternidade seria impensável em
contextos anteriores.

41
Para Walter Benjamin, a perda da AURA que a arte sofre na moderna
sociedade de massas desloca o seu centro de gravidade da dimensão do
"culto" e do "ritual" para a dimensão da prática "política". Nesta passagem, a
estética intervém a dois níveis: adquirindo um carácter político, acentuando,
portanto, a sua função crítica em relação aos poderes estabelecidos mesmo
não tendo intenções programáticas específicas; ou então, fazendo com que a
política renuncie às suas prerrogativas críticas e amplie as formas de
"exposição" do poder até se tornar pressuposto indispensável aos mecanismos
que, historicamente, deram vida a fenómenos como o fascismo (Opera).
(CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.114)

Ainda assim, após a perda da aura, assumir a postura de apropriar-se do termo


Estética é no mínimo uma tarefa arriscada. O nome já está carregado de elementos
definidores que o caracterizam como uma conceitualização que somente se aplica às
expressões artísticas europeias. Porém, utilizar a mesma denominação é uma estratégia
que permite apropriar-se do conceito dilatando sua abrangência. Afinal, utilizar outro
nome poderia mudar a coisa significada? E, utilizar o mesmo termo para um objeto que
antes não entraria no âmbito do estético poderia deturpar o conceito?

Toda estética que pretende considerar-se enquanto disciplina apresenta suas


categorizações e instâncias que limitam os seus campos de estudo. Todavia "A beleza
não é uma objetividade com maiores garantias nem dada antecipadamente, e também
não é uma perfeição baseada em cânones pŕe-construídos." (CARCHIA, Gianni,
D’ANGELO Paolo, 2003, p.111). A subjetividade estética talvez seja um dos elementos
que mais dificultem sua estruturação enquanto conceito.

O mundo do feliz e do infeliz, o mundo do bom e do malvado contêm


os mesmos estados de coisas, são, quanto ao ser-assim, perfeitamente
idênticos. O justo não vive noutro mundo. O eleito e o condenado tem
os mesmos membros. O corpo glorioso só pode ser o próprio corpo
mortal. O que muda não são as coisas, mas os seus limites. É como se
sobre elas estivesse agora suspensa qualquer coisa como uma auréola,
uma glória. (AGAMBEN, 1993, p. 73).

Deste modo, a Estética da dissimulação não difere muito de outras estéticas


tanto na apresentação dos elementos que categorizam uma estética quanto pelos limites
postos pela ideologia presente. Contudo, ela também apresenta um critério de valor
estético, aspectos que definam um objeto estético, uma definição de cânone. Enfim, os
nomes são os mesmos, a terminologia é a mesma, porém o lugar de enunciação é
diferente. E partindo desta premissa, todos os elementos e suas delimitações acabam

42
sofrendo alterações. Por isso, serão apresentadas as categorizações e aspectos do
significado que estão relacionados com as ideias defendidas neste trabalho sobre valor
estético, objeto estético, cânone.

Considera-se que o valor de um objeto não é um atributo presente na dimensão


material, na condição física do objeto, pois há sempre uma “variabilidade dos gostos e
das escalas de valor utilizadas nas diferentes épocas e por diferentes orientações
críticas” (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.61). O conteúdo valorizado é
um corpo sutil, incorpóreo, algo que se faz presença sem se materializar. Por isso, este
elemento sutil está carregado de subjetividade, mas de uma subjetividade controlada,
limitada pelo mainstream cultural e por forças que fogem do âmbito estético (forças
econômicas ou políticas).

(...) Geralmente, o objecto estético é o referente da experiência e da


percepção estética e deve ser entendido quer como produto da arte, quer
como objecto comum ou fenómeno natural, simplesmente abordado na
perspectiva estética. Deste modo, o objecto estético fica isolado do contexto
que o rodeia, abstraído de outras modalidades possíveis de juízo e
reconduzido a um único ponto de vista, o da estética, que pode mudar
significativamente o seu estatuto como acontece nas correntes de arte
figurativa do século XX que trabalham com objectos de uso comum, não
destinados a priori à fruição estética(...). (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO
Paolo, 2003, p.260)

Neste trabalho, em momentos de discussão do conceito de cânone, optou-se por utilizar


o termo canonizado (-a, -os, -as) para apresentar no próprio termo uma crítica à ideia de
canône como algo de valor estético cristalizado. Porém, é possível utilizar a palavra
cânone apropriando-se de sua significação menos tradicional. Isto se dá, porque “o
cânone não tem bases estéticas mas sim ideológicas (…)" (CARCHIA, Gianni,
D’ANGELO Paolo, 2003, p.61). Contudo, é necessário refletir que todo e qualquer
cânone ou reconhecimento de valor possui um critério ideológico. O Dicionário de
Estética de Gianni Carchia e Paolo D'angelo apresenta os seguintes significados para a
palavra cânone:

1) Na estética antiga, medieval e renascentista, chama-se cânone à norma ou


regra que prescreve determinadas medidas e proporções (…). 2) Em filologia,

43
fala-se de cânone para indicar um corpus de obras reconhecidas como
autênticas. 3) (…) cânone entendido como o conjunto das obras (literárias,
artísticas) a que determinada tradição reconhece um valor particular (…).
(…) o cânone não tem bases estéticas, mas sim ideológicas (…). (CARCHIA,
Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.60)

Sendo assim, é possível enquadrar qualquer livro dentro da terminologia do


canônico, sem a necessidade do politicamente correto “canonizado”, em todas as
conceitualizações apresentadas anteriormente. Como proporção posto que qualquer
poética ou estilo apresenta uma estrutura particular; como algo autêntico ou como
conjunto de obras de reconhecido valor.

O valor e as categorias constituintes da disciplina estética, nomeados neste


trabalho, apresentam uma condição variável, efêmera. A estética antidogmática se funda
na provisoriedade de seu elemento. A Estética da dissimulação se configura como uma
estética antidogmática e por isso, já forçaria o conceito de cânone a assumir a
característica intrínseca da transitoriedade, da hibridez, da efemeridade.

Ao pensar em estética, defende-se que as estratégias dissimuladoras não estão


concentradas apenas na literatura de Machado de Assis. Nesse sentido, o próprio título
desta tese, A estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis, não parte da
premissa de um nascimento da estética dissimuladora com o advento da literatura
machadiana. Antes deste trabalho foram escritos outros que se abordaram os mesmos
recursos constituintes da “estética da dissimulação”em outras obras literárias,
defendendo sua pertinência16.

16
"Simulação e/ou dissimulação: reflexão sobre a estética em Memórias póstumas de Brás
Cubas e As visitas do Dr. Valdez" (OLIVEIRA in Scripta, V. 16, n. 31, p. 119-138, 2º Semestre 2012) e
"Maldito Tango: Disimulación y traición en Boquitas pintadas de Manuel Puig" (OLIVEIRA in
Literatura: teoría, historia, crítica. Vol. 14, n. º 2, julio - diciembre de 2012 ISSN (impreso) 0123-5931 -
(en línea) 2256-5450 www.literaturathc.unal.edu.co). No primeiro artigo há uma análise dos romances
Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis e As visitas do Dr. Valdez de João Paulo Borges
Coelho com a distinção entre o que seria a simulação e a dissimulação comparando as personagens
Prudêncio de Machado de Assis e Vicente de Coelho; No segundo há a abordagem do romance Boquitas
pintadas de Manuel Puig tentando demonstrar os processos dissimuladores desenvolvidos pelo autor na
intenção de aproximar cultura popular e cultura letrada relacionando as canções de tango e a literatura.

44
A estética da dissimulação, portanto, não se encontra presa aos objetos ditos
estéticos, ela também se faz presente enquanto estética da existência em vivências
performáticas, nos posicionamentos, nas posturas corporais, no pacto social, na História
e nos testemunhos, nas máscaras utilizadas para simular e dissimular. Por isso, o termo
poética limitaria as incursões feitas por esta pesquisa. E, ainda que, ao se propor uma
Estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis, filiada às discussões
propostas pelo trabalho de Eduardo Duarte, o caminho percorrido nesta tese é outro,
diferente, mas com o mesmo teor político herdado do primeiro.

A proposta de uma estética da dissimulação, em minhas reflexões iniciais, estava


relacionada às imagens propagadas que tentavam retratar a situação dos negros trazidos
na condição de escravizados para o Brasil. Porém, o objeto de estudo deste trabalho
exigia maior complexidade reflexiva, pois não se trata somente de indivíduos
escravizados e sim de indivíduos que por algum motivo são impedidos ou limitados no
uso de suas próprias vozes. Como exemplo é possível mencionar os livros de Machado
de Assis. Em situações encenadas em trechos dos romances selecionados estão
presentes outras situações de subalternidade e não só aquela entre senhor e escravizado.
Há a presença de outros indivíduos em situação de dependência – os que formam a
grande massa de agregados (pobres, mulheres, filhos bastardos, etc.). Neste contexto de
definição do belo, cabe pensar como se comportaria a estética da dissimulação. Esta
variante estética se apresenta como marginal. Ela possui uma coletividade que
compartilha dos mesmos ideais, que possui o mesmo modelo, porém, este contingente
não possui voz. É justamente nesta aparente impossibilidade de ocorrer que as pressões
externas impelem que a criatividade produza alternativas para driblar os controles
impostos. A liberdade que não existe no meio social encontra uma possibilidade no
artístico, ainda que dissimulado.

Portanto, a formulação do conceito de estética, aqui defendido, certamente


retoma a elementos apresentados nas propostas estéticas tradicionais, contudo se
apresenta como uma expressão transgressora. É assim que o conceito de estética da
dissimulação vai ao encontro (no sentido em que encontra um aliado e o complementa)
do conceito de Reciclagem cultural empreendido por Klucinskas e Moser (2007).

45
A abordagem da reciclagem artístico-cultural, aqui almejada, leva em
consideração alguns aspectos, no campo de análise crítica concernente aos romances de
Machado de Assis e coloca em evidência a dimensão recicladora de ressignificação de
elementos estilísticos e temáticos canonizados e de matriz europeia na construção
literária do autor brasileiro; já no campo teórico observa-se no que tange às estratégias
de revalorização17, de montagem e de sampling18 da teoria estética tradicional.

Relacionando a perspectiva da reciclagem cultural com a questão do vazio do


objeto artístico defendida em parágrafos anteriores, surge o performático presente tanto
na produção quanto na recepção crítica da arte. Em Machado de Assis buscar-se-á
trabalhar com a performance de negritude: a afrodescendência do autor. A performance,
defendida neste trabalho, é composta por traços, gestos, idiossincrasias que estão
apresentadas no corpo do texto e que acabam representando o corpo do autor. São links,
sinapses, do texto literário e do escritor ao escrever representando a ligação nada
simples entre literatura e vida com a forma de hipertextos. O desenvolvimento da tese
de uma performance de negritude está relacionado com a performance autoral, com a
função autor e com a terceira voz presente em seus romances. Com o trabalho com estes
termos buscarei demonstrar que há uma coerência entre produção artística e
posicionamento político por parte do autor (coerência que denomino performance
autoral ou função autor). Contudo não se deve confundir esta função autoral como uma
forma de biografismo, não é relacionar vida e produção artística puramente. A relação
que estabeleço é entre discurso artístico e discurso político.

A performance pode ser encontrada em recursos textuais que permitem que se


ouça a voz do autor em expressão (tom ou atitude). Afinal, quem está falando em
determinada passagem, principalmente nas mais emblemáticas? Narrador, personagem,
autor? Depois da morte do autor proposta por Barthes, não se almeja aqui buscar a voz
autoral como se fosse uma leitura autobiográfica dos textos literários.

17
Refere-se à alteração de critérios de valores.
18
Sampling é uma técnica desenvolvida a partir de novas tecnologias digitais que permite utilizar uma
base de qualquer música para criar uma nova. Os elementos da música anterior são mantidos e novos
elementos são acrescentados gerando alterações que em alguns casos provocam uma mudança tão radical
que a nova música acaba fazendo apenas uma alusão à primeira. Desta forma me aproprio do termo tal
como fez Klucinskas & Moser, para pensar a estética.
46
O “verdadeiro” Machado de Assis, sua subjetividade, jamais será encontrada
escancarada em seus textos. Ele se encontra submerso sob seus disfarces, o mais
encolhido dos caramujos. Em seus textos, nem mesmo as suas personagens são
conhecidas em profundidade pelo leitor – são personas, pessoas de papel, por isso são
tão complexas – e esta complexidade afasta os que leem de suas intimidades, pois elas
também atuam no grande palco da existência.

A terceira voz19 (que esta tese objetiva encontrar) apresentada em seus romances
não é a voz autoral (da pessoa do autor) – é a voz do autor-função que representa muito
mais do que só uma personalidade. Esta função está marcada pelo local ocupado
(enunciação), modo em que vive, recepção dos textos e sensibilidade dos leitores. Esta
sim é possível ser buscada na rede estrutural e semântica da escrita.

Trabalhando com vozes é possível verificar que a denominada polifonia


bakhtiniana é presença marcante nos romances. Porém, estas vozes estão quase sempre
em desigualdade de manifestação. Desta forma, elas lutam, algumas são anuladas, se
chocam, se encontram, algumas sobressaem. Sendo assim, é necessário levar em
consideração que a presença de várias vozes não necessariamente significa espaço,
ocorrência e peso igual para todas. O estudo aprofundado da literatura machadiana
propiciou a verificação prática desta realidade, principalmente observada em seus
romances pelo controle maior estabelecido pela recepção da obra machadiana e pela
própria sociedade perante as funções prestigiosas que o autor ocupava. É preciso
reconhecer que há um impulso realista (não gostaria de utilizar a palavra estilo ou, ainda
pior, estilo de época por acreditar que a literatura de Machado de Assis fuja dos
modismos ou das gavetas empregadas e até mesmo impostas na organização do cânone
brasileiro) nos textos do bruxo do Cosme Velho. Portanto, não poderia ele de forma
romântica criar personagens subalternos fazendo uso da voz de modo similar ao dos
representantes da elite.

Estas vozes não conseguiriam sobreviver se não fosse o desejo íntimo dos
sujeitos que tiveram podados seus direitos de existir. A arte nestes momentos passa a
assumir a trágica função de estética da existência propiciando para os subalternos uma

19
Assunto a ser tratado em capítulo específico.
47
alternativa: fazer de suas vidas uma expressão artística, uma performance da
sobrevivência. Por isso, a seção posterior abordará de modo particular a estética da
existência como subterfúgio empregado com objetivo de manter vivas as vozes
subalternas.

48
O cuidado de si ou a arte da existência

Se não tivéssemos declarado boas as artes e inventado essa espécie de culto


do não-verdadeiro: a compreensão da universal inverdade e mendacidade,
que agora nos é dada pela ciência – a compreensão da ilusão e do erro como
uma condição da existência que conhece e que sente -, não teria podido ser
tolerada. (...) Como fenômeno estético, a existência é sempre, para nós,
suportável ainda, e pela arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa
consciência para, de nós próprios, podermos fazer um tal fenômeno.
(NIETZSCHE, 1983, p. 197-198)

É nos momentos de grande crise, períodos em que as liberdades individuais são


ameaçadas de forma tão extrema e violenta que se faz necessário o posicionamento da
arte diante da situação que se configura ao seu redor. Um destes momentos devastadores
da história da humanidade pode ser situado no período da escravidão. Neste meio tão
devastador que amedronta tanto a existência, faz-se urgente repensar coisas mais básicas
e tidas como elementares como o próprio ato de existir, de reconhecer a própria
existência. A Estética da Dissimulação defendida nesta tese se configura como uma
alternativa para que indivíduos resilientes mantenham suas identidades. A arte precisa
deixar, então, de ser algo exterior ao indivíduo e passar a constituir sua forma, passa a
sustentar sua subjetividade – o ser torna-se mídia e objeto de sua própria. Esta obra que
se consolida no próprio ato de viver é que se estrutura por meio do cuidado de si.

(...) estas devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas
quais os homens não apenas determinam para si mesmo regras de conduta,
como também buscam transformar-se. Modificar-se em seu ser singular, e
fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e
que corresponda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 2004, p. 198-199).

A construção de uma estética ética apoiada na noção do cuidado de si se


distancia da estetização da ética. A segunda é fruto da sociedade do espetáculo e,
portanto, está relacionada a este momento de estetização banal do mundo. O cuidado de
si se relaciona com o objetivo ético da estética quando o ser faz de sua própria vida uma

49
obra artística. É exatamente este o esforço de Foucault, reativar os traços antigos da arte
clássica para amenizar o vazio existencial presente: “Eis o que tentei reconstituir: a
formação e o desenvolvimento de uma prática de si que tem como objetivo constituir a
si mesmo como o artesão da beleza de sua própria vida” (FOUCAULT, 2004, p. 244).

Os estudos do cuidado de si na obra de Foucault se iniciaram no livro A


hermenêutica do sujeito. Neste livro, o autor abordará a situação em que o Estado passa
a ser o senhor, o suserano, que possui o direito de decidir sobre as formas de o vassalo
viver e de morrer. Este direito sobre a existência não só do corpo físico, mas também do
corpo enquanto materialidade da subjetividade é denominado biopoder. O conjunto de
manobras executadas pelos indivíduos na tentativa de resistir à estatização do direito de
si é o que é denominado cuidado de si e que compõe a biopolítica. O termo cuidado de
si é proveniente dos gregos e constitui uma prática de extrema complexidade que
agrupava um grupo de prática que estavam relacionadas aos cuidados consigo mesmo –
epiméleia heautoû em grego ou em latim cura sui inventado por Sócrates (470 a.c – 399
a.c). Este cuidado almeja principalmente tomar as rédeas da existência, assumir o
controle da própria vida, encontrar sua própria identidade, é estar ciente das
transformações e mutações e ainda assim ser, existir, autenticamente. A alteridade surge
no momento em que o ser relaciona-se com o outro, com o mundo exterior, sem anular-
se, sem deixar de ser, sem deixar-se dominar e sem buscar assumir o biopoder do
outro: "o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais precisamente
de uma subjetividade, que evidentemente não passa de uma das possibilidades dadas de
organização de uma consciência de si" (FOUCAULT, 2004, p. 262).

Em primeiro lugar, penso efetivamente que não há um sujeito soberano,


fundador, uma forma universal de sujeito que poderíamos encontrar em todos
os lugares. Sou muito cético e hostil em relação a essa concepção do sujeito.
Penso, pelo contrário, que o sujeito se constitui através de práticas de
sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de libertação, de
liberdade, como na Antiguidade - a partir, obviamente, de um certo número
de regras, de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural.
(FOUCAULT, 2004, p. 291)

A prática do cuidado de si apresenta-se primeiramente no Alcebíades de Platão


(428/427 a.c – 347/346 a.c) e reaparece nos textos helenistas e romanos posteriores, nas
50
Confissões de Santo Agostinho (354-430 d.c), nas Meditações de Descartes (1596-1650)
e nas Confissões de Rousseau (1712-1778). Em Foucault, há o esforço em aproximar
dois modelos de práticas de si: a moderna e a grega:

De um ponto de vista filosófico estrito, a moral da Antiguidade grega e a


moral contemporânea nada têm em comum. Em contrapartida, se tomamos o
que estas morais prescrevem, impõem e aconselham, elas são
extraordinariamente próximas. É preciso fazer aparecer a proximidade e a
diferença e, através de seu jogo, mostrar de que modo o mesmo conselho
dado pela moral antiga pode funcionar de modo diverso em um estilo
contemporâneo de moral. (FOUCAULT, 2004, p. 257)

A prática-de-si que almejo desenvolver está mais relacionada com a bioética e o


poder de controlar o próprio corpo perante a tirania do Estado que insiste em controlar
as liberdades corporais dos sujeitos, está relacionada com a techne tou biou ou arte da
existência. Este estudo tardio de Foucault configura-se complexo no momento de
relacionar o cuidado-de-si com o cuidado-dos-outros, a possível ou impossível relação
entre o governo de si próprio e o governo dos outros. A complexidade também se
configura na reflexão ética sobre a individualidade, a verdade e o exercício do poder. A
questão foi tratada por Foucault por meio de uma investigação histórico-filosófica sobre
as práticas-de-si:

O problema das relações entre o sujeito e os jogos de verdade havia sido até
então examinado por mim a partir seja de práticas coercitivas..., seja nas
formas de jogos teóricos ou científicos... em meus cursos no Collège de
France, procurei considerá-lo através do que se pode chamar de uma prática
de si, que é, acredito, um fenômeno bastante importante em nossas
sociedades desde a era greco-romana, embora não tenha sido muito estudado.
Essas práticas de si tiveram, nas civilizações grega e romana, uma
importância e, sobretudo, uma autonomia muito maior do que tiveram a
seguir, quando foram até certo ponto investidas pelas instituições religiosas,
pedagógicas ou do tipo médico e psiquiátrico. (FOUCAULT, 2004, p. 264-
265)

Mais e mais a sociedade foi se afastando deste conhecimento de si e buscando


algo exterior, um conhecimento exterior, uma hermenêutica do exterior. Algo que se faz
muito constante na obra machadiana, uma crítica à supervalorização do exterior em
51
detrimento do interior. Os livros do autor, de forma mais intensa em alguns, apresentam
a questão da simulação e da dissimulação que contrapõem a ideia de existência no
sentido mais amplo do termo. Contudo, a narrativa que realmente aborda uma teoria
sobre o assunto é a do conto “O espelho”20. Ali fica nítida a divisão entre a alma interior
e a exterior: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro
para fora, outra que olha de fora para dentro...” (ASSIS, 2008, p.323). Por vezes, as
personagens machadianas que representam a elite patriarcal brasileira valorizam mais a
alma de fora e acabam por aniquilar a interior. As personagens que foram tomadas por
um forte impulso simulador (fingem ser o que não são ou que fingem possuir o que não
possuem) dificilmente conseguiriam alcançar a estética da existência, mas aquelas que
dissimulam (fingem não ser o que verdadeiramente são ou fingem não ter aquilo que
possuem) conseguem manter íntegras suas identidades. Sendo assim, o que aqui se
denomina Estética da Dissimulação se aproxima do conjunto de estratégias
relacionadas ao cuidado de si.

Segundo Foucault o conhecimento de si mesmo surge três formas


hermenêuticas: o método platônico, o cristão e o helenístico. O último modelo
hermenêutico foi obliterado pelos dois primeiros, o objetivo de Foucault, então, é
retomar este modelo por meio da releitura dos estoicos, epicuristas e cínicos.

O cuidado de si, uma noção importante durante os áureos tempos do


pensamento helenístico e romano na antiguidade, até o limiar do
Cristianismo, tendo inspirando a filosofia antiga e em especial o filósofo
Sócrates foi perdendo força, sobretudo a partir da filosofia cartesiana. Parece-
me que o ‘momento cartesiano’ [...] atuou de duas maneiras seja
requalificando filosoficamente o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo), seja
desqualificando, em contrapartida, a epiméleia heautoû (cuidado de si).
(FOUCAULT, 2004, p. 18).

20
O conto "Espelho" está acompanhando de um subtítulo: "Esboço de uma nova teoria da alma humana".
O subtítulo não poderia ser o mais apropriado. Nesta narrativa, Machado de Assis apresenta sua
teoria, sua análise da sociedade de aparências. O narrador afirma que temos duas almas e que há casos
em que a perda da alma exterior (máscara) implica a perda da existência. Há indivíduos, portanto, que
possuem em sua essência apenas a máscara e perdendo esta, perdem tudo. As pessoas que possuem
apenas a máscara representam a simulação e aquelas que possuem máscara ou alma exterior e
conseguem manter a alma interior são as que dissimulam. Outro conto do autor que pode facilitar o
entendimento destas duas almas é "Teoria do medalhão", não por acaso os dois contos carregam em
seus títulos o termo "teoria". Em "Teoria do medalhão", um pai dá conselhos ao filho e o tenta
persuadir a seguir a carreira de "medalhão" e de "medalhão completo", ou seja, viver de aparências.
52
A queda nas práticas dos cuidados-de-si foi drástica para a filosofia e
principalmente para as relações do sujeito consigo mesmo e com o outro. O conhece-te
a ti mesmo cartesiano não foi uma prática-de-si e se configurou mais como um
individualismo do ser que se isola ao passo que a epiméleia heatoû necessita da
alteridade para produzir conhecimento. O cristianismo também corroborou para a
defasagem da busca do conhecimento de si, pois no método cristão prevalece a auto-
anulação e um retorno à menoridade, posto que o indivíduo coloca toda a
responsabilidade de sua vida em Deus ou em Cristo.

(...) em nossas sociedades, a partir de um certo momento – e é muito difícil


saber quando isso aconteceu –, o cuidado de si se tornou alguma coisa um
tanto suspeita. Ocupar-se de si foi, a partir de um certo momento, denunciado
de boa vontade como uma forma de amor a si mesmo, uma forma de egoísmo
ou de interesse individual em contradição com o interesse que é necessário
ter em relação aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Tudo
isso ocorreu durante o cristianismo, mas não diria que foi pura e
simplesmente fruto do cristianismo. A questão é muito mais complexa, pois
no cristianismo buscar sua salvação é também uma maneira de cuidar de si.
Mas a salvação no cristianismo é realizada através da renúncia a si mesmo.
Há um paradoxo no cuidado de si no cristianismo... (FOUCAULT, 2004, p.
268)

Pensar uma estética da existência na literatura machadiana é uma forma de


explicar o uso da arte, da performance e da dissimulação como ferramentas para
sobreviver em um ambiente tão hostil. Quando se pensa em indivíduos subjugados
sejam os escravizados, os dependentes, os que vivem de favor; a primeira impressão
seria a de imaginar que não se poderia abordar uma arte da existência posto que estes
sujeitos não existem em suas individualidades. Contudo, é o que este trabalho visa
provar: a existência de uma voz, ainda que subalterna no âmbito de espaços tão
limitadores.

53
A voz subalterna

Y es tanta la tiranía
De esta disimulación
Que aunque de raros anhelos
Se me hincha el corazón,
Tengo miradas de reto
Y voz de resignación.
21
(ALFONSO REYES, 1959, p. 68)

A pesquisa do conceito de subalterno parte de uma provocação proveniente da


leitura do ensaio Pode o subalterno falar? [Can the subaltern speak?] (SPIVAK, 1988).
Neste livro, Spivak levanta a questão da existência de uma voz subalterna e da
possibilidade desta ser ouvida. Até hoje, a resposta passa por formulações complexas.
Neste momento, não refletirei muito sobre a questão formulada por Spivak (algo que
definirei com maior especificidade em capítulos posteriores). Acelerarei a resposta,
resumindo minha tese e afirmando que “sim, é possível para o subalterno falar e
também é possível que sua voz seja ouvida”. Entretanto, o caminho para que isto ocorra
passa necessariamente pela arte, pela estética e principalmente pela subversão. Porém, a
ação subversiva que pretendo discutir não se dá de forma direta. Ela ocorre de forma
sutil – é o que estou denominando como Estética da dissimulação.

O termo subalterno está carregado pela situação da dependência. A


complexidade surge quando se aprofunda nas reflexões sobre o que é ser dependente. As
relações de dependência podem ser de origem econômica, cultural, de gênero, étnicas,
contudo há algo que é comum a todas: a presença de uma estrutura dominante (que
nomearei nesta tese de várias formas diferentes tais como: elite ou metrópole) que
subjuga o grupo dependente estabelecendo os limites e as peculiaridades de sua
existência.

A inspiração para iniciar esta pesquisa surgiu do texto de Spivak, entretanto é

21
“E é tamanha a tirania / Desta dissimulação/Que ainda que as raras lembranças/ Façam palpitar meu
coração/ Tenho olhar desafiador/ E voz de resignação.”
54
necessário deixar claro que os Estudos Subalternos já possuem uma gama bem
diversificada de pensadores de renome e que devem ser mencionados. Para isso é
importante mencionar que há dois grupos mais importantes: 1) Grupo Latino em que os
pensadores mais influentes são os críticos: John Beverly, Robert Carr, Jose Rabasa,
Ileana Rodriguez, Javier Sanjines (fundadores do grupo em 1992); 2) Grupo Sul-
Asiático que possui como pesquisadores mais conhecidos os nomes de: Ranajit Guha,
Gayatry Spivak e Dipesh Chakrabarty.

Subalternidade, da forma que a entendo, já se distancia um pouco do conceito de


subalterno puro e simples. Enquanto o segundo determina um grupo de pessoas, o
primeiro denomina um comportamento que no primeiro momento é imposto e que
posteriormente pode vir a fazer parte da própria subjetividade. Subalternidade, por ser
caracterizada por um espaço e tempo definido, acaba gerando valores culturais distintos
dos empregados pela elite.

Estabelecidos os termos volto à questão inicial recolhida do título do livro de


Spivak Pode o subalterno falar?. A questão parte da principal barreira que impede ou
limita a voz do subalterno – a representatividade. Por estarem em uma condição de
dependência, os subalternos não conseguem (ou são forçados a isso) expor suas vozes
de forma autônoma e dependem de um representante, este pode falar por como ocorre
em âmbito político ou pode re-presentar como ocorre na filosofia, na arte, na literatura.

[...] representação estão correndo juntos: representação como “falar por”,


como na política e representação como “re-presentar” como na arte ou
filosofia. Uma vez que a teoria também é apenas ação, o teórico não
representa o (falar por) dos grupos oprimidos. […] Este dois sentidos de
representação dentro do estado de formação e da lei, por um lado, e a
predição do sujeito, por outro lado, estão relacionados, mas irredutivelmente
descontínuas. (SPIVAK. Can the subaltern speak? p.275)22

Estou mais interessado na segunda acepção de representação: re-presentar.

22
Two senses of representation are being run together: representation as “speaking for”, as politics, and
representation as “re-presentation” as in art or philosophy. Since theory is also only “action”, the
theoretician does not represent (speak for) the oppressed group. [… ] These two senses of representation-
within state formation and the law, on the one hand, and in subject-predication, on the other-are related
but irreducibly discontinuous (SPIVAK. Can the subaltern speak? p.275).
55
Como o subalterno é representado na literatura? Seria possível ouvir sua voz23? (o
subalterno que é objeto desta tese é aquele representado na obra de Machado de Assis (e
que pode ser representativo de um contingente de indivíduos que viveram no Rio de
Janeiro do século XIX em situações de subalternidade): negro [escravizado ou o
alforriado dependente], o agregado, a mulher). Respondi, de forma ligeira, o
questionamento da voz em parágrafo acima. Sim, é possível o subalterno falar. Só que
para isso é necessária toda uma série de instrumentos que são mais facilmente
empregados no meio artístico e literário. A este conjunto de recursos que possibilitam
que a voz subalterna seja ouvida denomino: Estética da dissimulação.

A Estética da dissimulação está profundamente relacionada com os conceitos de


subalternidade e subalterno, pois ela também ocorre em contextos bem específicos de
dominação. Nestas situações a estética não funciona somente como um meio de
sensibilizar e humanizar as pessoas, ela funciona mesmo como meio de sobreviver e de
existir. O silêncio provocado pelo não poder falar que é característico em situações de
subalternidade gera um viver sem existir.

Desta forma ela se aproxima muito da Estética da existência (pensada por


Foucault no livro História da Sexualidade: o uso dos prazeres, 2006). A também
nomeada Estilística existencial deveria ser empregada no plural para exprimir
corretamente sua multiplicidade de formas (sendo assim, estou associando a
dissimulação a uma destas formas). Foucault utiliza juntamente com ela os conceitos de
forma, estilo, arte, beleza. Esta denominação estética aparece na Introdução ao segundo
volume de História da Sexualidade: o uso dos prazeres (2006) em momento em que seu
autor se preocupa com a problematização da moral. Diante desta questão complexa, ele
(assim como o fez anteriormente Nietzsche) vai buscar nas características da cultura
Greco-latina, nos escritos epicuristas e estóicos, o caminho que deveria seguir. Assim,
ele chega à interessante constatação de que a arte estava profundamente ligada à
existência (artes da existência) e proporcionava ao indivíduo o controle, a
governabilidade de si:

23
A relação de dependência é caracterizada pelo silêncio. A voz que menciono não é o puro som emitido
pelas cordas vocais, é algo mais complexo. Voz e fala são categorias políticas que estão relacionadas ao
poder de autonomia do sujeito em manifestar seus pensamentos.
56
(...) à luz dos temas antigos relacionados ao cuidado de si, ao trabalho de si
sobre si, Foucault propõe uma arte de viver, uma estética da existência, um
estilo de vida, que não reproduziria, evidentemente, os exercícios espirituais
da Antiguidade, mas que abriria ao sujeito a possibilidade de se constituir na
liberdade, em oposição aos poderes exteriores. (...) O que caracteriza mais
particularmente a noção que Foucault tem do cuidado de si é, talvez, a
introdução da perspectiva estética, a de uma existência que se cria como um
objeto de arte (HADOT, 1996, p. 22).

Há todo um processo em que o que é mais comum de ocorrer é passagem da


simulação para a dissimulação. Sem apropriar-se dos meios de dominação utilizados
pela elite se tornaria impossível superar as limitações impostas. Por isso é necessário
simular, aprender simulando, repetir. É preciso dominar todo um conjunto de códigos e
de seus significados e só há uma forma de apreendê-los: repetindo, repetindo – até que
ocorra a assimilação. E afinal, o que é prestígio/ou poder, senão o domínio aceitável de
um conjunto de códigos que façam com que o indivíduo seja respeitado ou tenha sua
voz ouvida.

É desta forma que Octavio Paz observará a realidade cultural mexicana. O povo
mexicano, assim como todos os povos das Américas, foi formado pelo processo
traumático da colonização. Neste processo, o povo indígena (povo autóctone) sofreu
demasiadamente com as mais variadas formas de violência. Este fato histórico marcará
profundamente o modo de ser e de agir deste povo. A dissimulação fará parte das
estratégias de existência utilizadas por eles durante todo o processo de colonização e até
mesmo posteriormente:

Quizá el disimulo nació durante La Colonia. Indios y mestizos tenían, como


en el poema de Reyes, que cantar quedo, pues “entre dientes mal se oyen
palabras de rebelión”. El mundo colonial ha desaparecido, pero no el temor,
la desconfianza y el recelo. Y ahora no solamente disimulamos nuestra cólera
sino nuestra ternura. Cuando pide disculpas, la gente del campo suele decir:
24
“Disimule usted, señor”. (OCTAVIO PAZ, 2000, P. 47)

Entretanto, como foi afirmado no início, o primeiro processo de defesa que se

24
Talvez a dissimulação tenha nascido durante A Colonização. Índios e mestiços tinham, como no poema
de Reyes, que cantar quieto, pois “entre dentes mal se escutam palavras de rebelião”. O mundo colonial
desapareceu, mas não o temor, a desconfiança e o receio. E agora não somente dissimulamos nossa
cólera, mas também nossa ternura. Quando pede desculpas, a gente do campo costuma dizer: “Dissimule
senhor”. (OCTAVIO PAZ, 2000, P. 47)

57
passa é o de simulação, o de imitação dos modelos considerados de prestígio. Assim, o
indivíduo na condição de subalterno passa a ser um espelho que reflete as atitudes de
classes dominantes. Em muitos casos ela se torna um hábito tão arraigado culturalmente
que passa a fazer parte da própria identidade. Nestes casos, fica complicada a passagem
do estágio simulador para o estágio dissimulador.

La simulación, que no acude a nuestra pasividad, sino que exige una


invención activa y que se recrea a sí misma a cada instante, es una de
nuestras formas de conducta habituales. Mentimos por placer y fantasía, sí,
como todos los pueblos imaginativos, pero también para ocultarnos y
25
ponernos al abrigo de intrusos. (OCTAVIO PAZ, 2000, P. 44)

Este processo exige o dinamismo constante para que se dê de forma efetiva. O


simulador deve atualizar-se constantemente para que não se apresente equivocadamente
e seja ridicularizado. Este estágio é importante para que o processo evolua para algo
superior. Toda esta evolução evoca elementos artísticos atrelados a valores culturais.
Nesta busca por ser o que verdadeiramente não é, o simulador passa a fazer arte – uma
arte de sobrevivência, necessária, indispensável. O improvisar constante exige uma ação
performativa incansável – um constante desafio de sobrevivência.

El simulador pretende ser lo que no es. Su actividad reclama una constante


improvisación, un ir hacia adelante siempre, entre arenas movedizas. A cada
minuto hay que rehacer, recrear, modificar el personaje que fingimos, hasta
que llega un momento en que realidad y apariencia, mentira y verdad, se
confunden. De tejido de invenciones para deslumbrar al prójimo, la
simulación se trueca en una forma superior, por artística, de la realidad.
Nuestras mentiras reflejan, simultáneamente, nuestras carencias y nuestros
apetitos, lo que no somos y lo que deseamos ser. Simulando, nos acercamos a
nuestro modelo y a veces el gesticulador, como ha visto con hondura Usigli,
26
se funde con sus gestos, los hace auténticos. (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 44)

25
A simulação, que não vem de nossa passividade, mas ao contrário exige uma invenção ativa e que se
recria a si mesma a cada instante, é uma de nossas formas de conduta habituais. Mentimos por prazer e
fantasia, sim, como todos os povos imaginativos, mas também, para ocultar-nos e colocar-nos ao abrigo
de intrusos. (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 44)
26
O simulador pretende ser o que não é. Sua atividade reclama uma constante improvisação, um ir
adiante sempre, entre areias movediças. A cada minuto é precisa refazer, recriar, modificar o personagem
que fingimos, até que chega um momento em que realidade e aparência, mentira e verdade, se
confundem. De tecido de invenções para deslumbrar ao próximo, a simulação se transforma numa forma
superior, por artística, da realidade. Nossas mentiras refletem, simultaneamente, nossas carências e nossos
apetites, o que não somos e o que desejamos ser. Simulando, nos aproximamos de nosso modelo e às
vezes o gesticulador, com já observou com profundidade Usigli, se funde com seus gestos, os faz
autênticos. (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 44)
58
E, como acentua Paz, “Esclavos, siervos y razas sometidas se presentan siempre
recubiertos por una máscara, sonriente o adusta27” (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 78). Só
que em algumas situações, a simulação precisa ocorrer de forma muito intensa. Para que
o individuo seja realmente ator de suas ações, ele precisa atuar. O sofrimento surge no
momento em que o simulador alcança o auge do processo (momento em que ele pode
avançar para o estágio de dissimulação ou não) e a máscara quase que se funde em seu
ser – a observação e repetição o levaram a aperfeiçoar tanto suas atitudes que já é
possível improvisar – o estágio do “ser como”. Ainda neste momento, o simulador
possui real consciência de sua situação, de sua condição e de suas identidades. Ele,
ainda que mimetizando todos os gestos, reconhece sua condição de espelho.

La simulación es una actividad parecida a la de los actores y puede expresar-


se en tantas formas como personajes fingimos. Pero el actor, si lo es de veras,
se entrega a su personaje y lo encarna plenamente, aunque después,
terminada la representación, lo abandone como su piel la serpiente. El
simulador jamás se entrega y se olvida de sí, pues dejaría de simular si se
fundiera con su imagen. Al mismo tiempo, esa ficción se convierte en una
parte inseparable – y espuria – de su ser: está condenado a representar toda su
vida, porque entre su personaje y él se ha establecido una complicidad que
nada puede romper, excepto la muerte o el sacrificio. La mentira se instala en
su ser y se convierte en el fondo último de su personalidad. (OCTAVIO PAZ,
2000, P. 46)28

Simular está relacionado à capacidade do indivíduo em esquivar-se de sua


condição utilizando para isso somente sua astúcia. É uma arte de engano. É dominando
esta arte que o indivíduo alcança a governabilidade de si, suas ações, seu pensar, a
possibilidade de sobreviver, ainda que seja necessário para isso mascarar suas

27
Escravos, servos e raças subjugadas se apresentam sempre cobertos por uma máscara, sorridente ou
séria (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 78).
28
A simulação é uma atividade parecida com a dos atores e pode expressar-se em tantas formas conforme
o número de personagens que fingimos. Mas, o ator, se é realmente um ator, se entrega a sua personagem
e a encarna completamente, ainda que depois, terminada a representação, a abandone como a serpente
abandona sua pele anterior. O simulador jamais se entrega e se esquece de si, pois deixaria de simular
caso viesse a fundir-se com a imagem. Ao mesmo tempo, essa ficção se converte em uma parte
inseparável – e espúria – do seu ser: está condenado a representar toda sua vida, porque entre sua
personagem e ele se estabeleceu uma cumplicidade que nada é capaz de romper, exceto a morte ou o
sacrifício. A mentira se instala em seu ser e se converte no fundo último de sua personalidade (OCTAVIO
PAZ, 2000, P. 46).

59
identidades. Assim, ele passa para o segundo estágio: a dissimulação (o termo não está
sendo utilizado aqui com sua carga de negatividade, dissimular é sobreviver sem deixar
de ser). A dissimulação é o estágio posterior à simulação. Dissimular é não chamar a
atenção, é não chocar. Deste modo, é possível ocupar lugares, assumir posições. Isso só
ocorre, pois o dissimulador (aparentemente) não coloca em perigo o status quo social.

Simular es inventar o, mejor, aparentar y así eludir nuestra condición. La


disimulación exige mayor sutileza: el que disimula no representa, sino que
quiere hacerse invisible, pasar inadvertido – sin renunciar a su ser - . El
mexicano excede en el disimulo de sus pasiones y de sí mismo. Temeroso de
la mirada ajena, se contrae, se reduce, se vuelve sombra y fantasma, eco. No
camina, se desliza; no propone, insinúa; no replica, rezonga; no se queja,
sonríe; hasta cuando canta – si no estalla y se abre el pecho – lo hace entre
dientes y a media voz, disimulando su cantar (…) (OCTAVIO PAZ, 2000,
29
p.46-47)

É adaptando-se a este modo de viver que surge a Estética da dissimulação. Ela


se organiza como uma guerrilha. Apropria-se das matrizes culturais de prestígio
(matrizes europeias), aquelas que são de uso da classe dominante. Esta armadilha
funciona como um cavalo de Tróia. O dissimulado reconhece que a única forma de
sobreviver à dominação alheia é aprendendo a língua daquele que o subjuga. E passa a
utilizar a língua do dominador com tamanha desenvoltura que a subverte e a altera. É no
interior da própria língua, é seguindo suas regras de funcionamento que surge o brilho
da criatividade do oprimido que domina a língua de seu opressor encontrando
subterfúgios para que sua própria voz seja ouvida. Ele também reconhece que a luta
direta só trará mais dor e sofrimento. Por isso, alguns escolhem caminhar pelo sensível,
pela arte de dissimular. Quanto mais aprofunda em sua arte, mais complexa esta se torna
e também mais dissimuladora. A arte de apossar-se das armas dos outros para ter
condições de lutar. Semelhante à tática do jabuti, referido em texto de Antônio Callado:
"O jabuti que só possuía uma casca branca e mole deixou-se morder pela onça que o
atacava. Morder tão fundo que a onça ficou pregada no jabuti e acabou por morrer. Do

29
Simular é inventar, ou melhor, aparentar e assim iludir nossa condição. A dissimulação exige maior
sutileza: o que dissimula não representa, mas quer fazer-se invisível, passar inadvertido – sem renunciar
seu ser. O mexicano excede na dissimulação de seus sentimentos e de si mesmo. Temeroso do olhar
alheio, se contrai, se reduz, se converte em sombra e fantasma, eco. Não caminha, se desliza; não propõe,
insinua; não replica, resmunga; não se queixa, sorri; até mesmo quando canta – se é sincero e abre o
coração – o faz entre os dentes e com voz trêmula, dissimulando seu cantar.
60
crânio da onça o jabuti fez seu escudo" (CALLADO, 1977, p.287).

Esta capacidade de fazer uso da máscara alheia constitui uma técnica de


dissimulação. Apropriar-se do modo de vida da elite, no primeiro momento para repetir
(simulação), no segundo momento para transgredir (dissimulação). Desta forma, seria
possível fazer uso de sua própria voz de forma sorrateira, sem alardes. E apropriando-se
desta e de outros ardis que Machado de Assis estrutura seu texto, como poderá ser
observado em toda a tese e enquanto introdução no tópico a seguir.

61
Estratégias de dissimulação: literatura brasileira e literatura
afrodescendente

Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a
lei, que a Regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí, eu, o
mais encolhido dos caramujos, também entrei no préstito, em carruagem
aberta (...). Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra
30
ter visto. (ASSIS, “A semana” 14/02/1893).

A literatura brasileira não é formada por um bloco fechado, homogêneo, linear31.


Ela constitui um mosaico, um imenso rio donde se emergem vertentes. E uma dessas
vertentes “recentemente” pesquisada é a da literatura afro-brasileira. Mas, o que faz de
Machado de Assis um escritor dessa vertente? Para pensar um autor como afro-
brasileiro faz-se necessário o preenchimento de alguns requisitos: o escritor deve ser
negro ou mulato, deve assumir-se nesta condição e em sua escritura deve abordar temas
que permeiam o universo afrodescendente. Sendo assim concluímos por razões lógicas
que Machado preenche todas as condições.

Como se sabe, Machado foi identificado, pelo crítico Harold Bloom, como o
maior escritor negro de todos os tempos (declaração que chocou muitos críticos
brasileiros – a afrodescendência do fundador da Academia Brasileira de Letras

30
O pequenino fragmento apresentado acima (da ilustre obra de Machado de Assis) é uma mônada do
trabalho desenvolvido nesta tese, pois dele nasceram as reformulações que serão defendidas ao longo
deste trabalho. A crônica acima me foi apresentada em época já distante, quando iniciei meu curso de
Letras na Universidade Federal de Minas Gerais, pelo professor Eduardo Assis Duarte.
31
Tomando posição explicitamente benjaminiana, Zila Berndt defende a necessidade de “pentear o pelo
no sentido inverso ao do seu crescimento (...): ler a história literária não como uma totalidade fechada,
mas como possibilidade. Percebe-la permanentemente inacabada deverá permitir que autores ou
movimentos possam transitar da esfera da sombra para a esfera da consagração”. (BERND, 1988, p.16)
Posição assumida também por Eduardo Assis Duarte: “A conformação teórica da literatura “afro-
brasileira” ou “afrodescendente” passa necessariamente pelo abalo da noção de uma identidade nacional
una e coesa. E, também, pela descrença na infalibilidade dos critérios de consagração crítica presentes nos
manuais que nos guiam pela história das letras aqui produzidas”. (DUARTE, Literatura e
afrodescendência in:
www.acaocomunitaria.org.br/discussoes_tematicas/literatura_e_afro_descendencia.pdf
acesso em 20 de abril de 2012).

62
reconhecida por um renomado professor e crítico literário norte-americano). Mas cabe
ressaltar que de suas produções literárias, são em suas crônicas e contos que
encontramos de forma mais evidente a presença de sua negritude.

Alguns pesquisadores e biógrafos acusam o autor com teses de “aburguesamento”,


branqueamento32 e total passividade política33 perante os dramas sociais de seu tempo
(como a escravidão). Entretanto, estes estudiosos assumem esta postura justamente
porque baseiam suas pesquisas na presença pouco expressiva de negros em seus
romances.

Na condição de mulato, funcionário público e escritor, não seria prudente


apresentar uma crítica direta à elite, principalmente em um grande relato como os
romances. É impossível saber ao certo qual seria o seu público leitor, mas de forma
hipotética é possível que fossem membros da classe elitista, escravocrata, branca e
senhorial. E por isso é necessário que busquemos em suas obras, e não fora delas, a
preocupação do escritor com a situação econômica e política brasileira.

O teor crítico surge principalmente na imprensa, nos jornais, sendo que o autor se
apresentava através de pseudônimos (o escritor assumiu vários pseudônimos em seu
fazer jornalístico: Lélio, na seção “balas de estalo”; João das Regras, em A+B;
Malvólio, na “Gazeta de Holanda”; Boas Noites, na seção “Bons Dias”; Policarpo, em
“Crônicas do Relojoeiro”; Dr. Semana, na “Semana Ilustrada”, e outros). Geralmente
utilizando, em seus contos, a voz de narradores brancos, como Coutinho do conto
“Mariana”, o autor desmascara o universo escravocrata brasileiro.

A reificação por parte da elite, do outro (negro, mulato), a hipocrisia, o falso


liberalismo34. O contexto social da época não era muito propício para o negro. Na
segunda metade do séc. XIX a hierarquia das raças era tida como verdade científica

32
“[Machado] exprimia-se como um escritor branco que não sentisse o mínimo de sangue negro correndo
em seu coração. É o patrono da Academia Brasileira de Letras, numa prova de sua branquitude de
inspiração, ficando à margem e pouco se preocupando com movimentos sociais do seu tempo, com a
Abolição e a República”. (RODRIGUES, 1997, p.256).
33
Em um ensaio intitulado Instinto de Nacionalidade, Machado de Assis diz que "o que se deve exigir do
escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo que o torne homem de seu tempo e país, ainda quando
trate de assuntos remotos e no espaço".
34
O falso liberalismo ou liberalismo de fachada é posição defendia por Roberto Schwarz em suas obras.
63
incontestável e entronizava a cultura branca, ocidental e cristã. A tese da inferioridade
genética de negros e mestiços estava presente até mesmo num texto que tinha como
objetivo fazer a propaganda brasileira na Europa (o texto de Arthur Gobineau,
representante diplomático do governo francês que residiu na Corte na época de
Machado e se tornou amigo de D. Pedro II – defendia a ideia de que os mulatos não
conseguiam se reproduzir além de certo número de gerações – tese da esterilidade).

O homem das letras, assumindo cargo estatal necessita intimamente assumir sua
Negritude35 e ironicamente confrontar a sociedade e o próprio Estado brasileiro neste
momento tão triste de nossa história. A escravidão era a base da ordem imperial,
chegando a ser defendida e admitida por alguns intelectuais, situação que revela a
hipocrisia da classe pensante do país.

No ramo do discurso literário de sua época, a depreciação da cultura africana era


apresentada em autores que supostamente defendiam a abolição da escravatura36. O
negro era constantemente apresentado de forma estereotipada: vingativo, assassino,
feiticeiro deformado física e moralmente, a mucama pervertida presentes em Vítimas e
algozes, de Joaquim Macedo; ou a mulata assanhada de “O cortiço” de Aluízio
Azevedo; e em outro extremo o negro de alma branca, o “cão” fiel do senhor, desenhado
na figura do preto Domingos, personagem de José do Patrocínio em Motta Coqueiro37.

A originalidade de Machado se faz presente em sua consciência crítica


apresentada com argumentos irônicos e metafóricos. O autor assume utiliza uma tática
original, fazendo uso da ironia e da metáfora como armas de um sábio guerrilheiro, que

35
Negritude (Négritude em francês) foi o nome dado a uma corrente literária que agregou escritores
negros francófonos e também uma ideologia de valorização da cultura negra em países africanos ou com
populações afrodescendentes expressivas que foram vítimas da opressão colonialista. A posição de
negritude é totalmente diferente da posição negrista. Enquanto a primeira é uma atitude de valorização do
povo negro enquanto ser humano e individuo, a segunda assume uma visão estereotipada. A negritude foi,
no início, conscientização da originalidade do pensamento africano.
36
No ramo do discurso político abolicionista o negro era constantemente tratado como um símbolo e não
em sua dimensão humana. A ideia era acabar com a escravidão e motivos econômicos também estavam
em jogo, além da pressão vinda de outros países.
37
Os autores citados apresentavam uma postura puramente negrista em relação ao negro e sua cultura. O
negrismo, enquanto manifestação especificamente literária, não é sinônimo de negritude, termo que
engloba aqueles movimentos, surgidos nos anos 30, que reivindicam os direitos dos negros. O negrismo
está acompanhado do exotismo, a introdução de uma estética ancorada nas máscaras, nos fetiches
africanos ou das máscaras polinésias e o retorno aos elementos primitivos da cultura.

64
ataca e se esconde, técnica apurada do “mais encolhido dos caramujos”. As sutilezas e
os incessantes deslizamentos de sentido caracterizam uma solução encontrada pelo
autor-caramujo para criticar o sistema de dentro. O “Bruxo do Cosme Velho” faz uso de
disfarces de toda ordem, sendo que estes constituem uma forma de sobrevivência.
Outra célebre arma utilizada pelo escritor é a poética da dissimulação. As personagens
afrodescendentes, caracterizadas por sua real situação de fragilidade econômica e social
frente a todo um sistema, na condição de escravizado ou dependente, só possuem uma
arma para lutarem – um posicionamento dissimulado. É por isso que para ler os livros
de Machado o leitor precisa ter quatro estômagos38 para digerir o texto. São nas
entrelinhas, em palavras utilizadas com a precisão de um bisturi que encontramos as
marcas da “pena da galhofa”, sarcástica e ácida de seus argumentos.

Em seu conto “Virginius” o autor equipara o afrodescendente “trigueirinho” Julião


a um ícone da literatura ocidental, da tragédia grega. Em uma de suas crônicas, ele torna
a situação do escravizado semelhante à da classe camponesa russa caracterizada e
descrita no romance “Almas Mortas” de Nikolai Gogol. Também consegue quebrar
estereótipos da mulata como objeto de prazer (representada quase sempre como figura
sensual) quando cria Mariana e quando esta se posiciona “acima das veleidades” de
Coutinho, não permitindo ser usada. Afirma também que o negro é senhor de seu
próprio destino, possuidor de livre arbítrio, quando em seu poema Sabina, a
protagonista decide viver e ter seu filho quando todos, até mesmo o estilo literário da
época (romantismo), diziam que ela devia morrer.

Machado cria escola, quando em seus contos e crônicas aborda de forma original,
o negro sob uma visão não de negrismo, mas de negritude. O negro passa a ser
protagonista como também os valores negros, suas angústias, sofrimentos, se tornam
temas centrais. Enquanto o branco surge como pano de fundo. Este é a conclusão que
defendo depois da leitura de sua obra e depois de percorrer um caminho de revisão

38
O termo stomachus também pode ser definido como: ―resignação, ―paciência (cf. Saraiva, 1993,
p.1131). A expressão quatro estômagos se faz presente em Esaú e Jacó: "O leitor atento, verdadeiramente
ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que
deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida" (ASSIS, 2008, p. 1148). A utilização da metáfora
orgânica do sistema digestivo pode ser uma referência a Quintiliano quando este afirma que o texto, tal
como os alimentos, não pode entrar totalmente cru em nosso espírito, precisa ser mastigado e triturado
(QUINTILIANO, S.D).
65
crítica da recepção desta por parte de um grande leque de críticos (caminho este que
será apresentado no próximo tópico).

66
Machado de Assis: cinismo, ironia, sarcasmo e dissimulação

Há dois tipos de cinismo: o cinismo amargo dos oprimidos que desmascara a


hipocrisia dos que estão no poder, e o cinismo dos próprios opressores que
violam abertamente os seus próprios proclamados princípios. Slavoj Žižek,
publicado em Dangerous Minds

Os bons livros possuem uma característica comum: são construídos,


desconstruídos e reconstruídos de acordo com o tempo. Assim são os livros de Machado
de Assis que possuem críticas tão díspares. Qual estaria correta, qual estaria
equivocada? Esta parte da tese não visa o julgamento das críticas lidas e sim a reflexão.
A leitura da reflexão crítica machadiana é importantíssima para este trabalho para
auxiliar na fundamentação de uma dicção própria. Ainda que em vários momentos,
levando em consideração o crítico que sou (pois não a atividade crítica não está livre da
pessoa, da subjetividade daquele que a exerce), venha a discordar dos posicionamentos
alheios, o caminho aqui percorrido foi no mínimo necessário.

O trajeto que farei está organizado da seguinte forma: dos críticos que mais se
distanciam de minhas ideias até àqueles que vão ao encontro destas com mais
frequência. Sendo assim, há uma manipulação estratégica dos dados encontrados com o
objetivo de convencer o possível leitor de que os argumentos levantados são plausíveis.
A seleção de críticos também foi manipulada, entretanto busquei os mais
representativos (os nomes que geralmente se repetem na maioria dos trabalhos). A
ordem cronológica de aparecimento das críticas selecionadas é seguida, mas não foi
organizada com este objetivo inicial (porém, os críticos que são contemporâneos
acabam por defender análises que estão concatenadas com as minhas). Deste modo,
parto dos críticos que veem um Machado de Assis alheio às questões mais pungentes de
seu tempo (tese da passividade – Pedro Couto, Mário Matos, Sílvio Romero, Raimundo
Faoro, Mário de Andrade, Luiza Lobo [1993], Domício Proença Filho [1998], Afonso
Romano de Sant’Anna [1994]) para chegar ao entendimento de que o escritor
mencionado não só estava atento a estas questões como também participou ativamente e
defendeu (talvez não de forma direta) seus posicionamentos (Machado de Assis como
historiador – Schwarz [2000], Sidney Chalhoub [2003], John Gledson [2007]).
67
A razão de toda esta disparidade quando tratamos da interpretação do texto
machadiano é decorrente da ironia presente em toda sua obra. O jogo entre o raso e o
profundo, entre o simples e o complexo, entre a essência e a aparência acaba por
dissimular a crítica do autor à realidade social e às principais questões de seu tempo. As
interpretações que julgam um Machado passivo acabam perdendo-se nas aparências de
seus textos. Procuram nos salões, nas presenças e se esquecem das entrelinhas e que até
mesmo no que aparentemente está ausente há reflexões sobre a situação social em que o
autor vivia. Outra dificuldade que surge na abordagem da obra machadiana é a
necessidade de se encarar sua produção como um todo lógico e interdependente. Não se
pode perder de vista que sua obra é feita de crônicas, contos, poemas, textos dramáticos
e romances (sendo estes os que mais sofrem com críticas ao absenteísmo autoral).

As primeiras críticas levantadas aqui estão relacionadas ao estilo que era


comumente utilizado na época da escrita dos textos de Machado de Assis e que exigiam
a representação da cor local. É o caso de Pedro Couto que assinala não encontrar no
escritor carioca sinais do tempo em que vivera:

Ora, quando é sabido como a Literatura, as Artes refletem o estádio de


civilização; quando é sabido que pelas obras deste se pode até certo ponto
reconstituir um período social, não se deve admitir que um escritor da
nomeada de Machado de Assis não deixe entrever em sua vasta obra nenhum
sinal do momento em que viveu. Os fatos sociais são postos à margem, nem
indiretamente, mesmo, eles se fazem sentir (Pedro Couto apud BROCA,
1983, p. 27-28).

Cobrando a mesma presença das cousas nacionais está a crítica desenvolvida


por Emílio Moura de 1926. O crítico assume a perspectiva de leitura que será comum,
de um Machado alheio aos eventos sociais e de defensor de uma estética puramente de
Arte pela Arte:

(...) vivendo numa época que foi talvez a dos maiores surtos da
nacionalidade, ele [Machado de Assis] ficou indiferente a todas idéias vitais e
tumultuosas da época. Ninguém praticou entre nós, em grau tão elevado, a
Arte pela Arte. Nos seus livros ele nunca nos revelou o homem nas suas
relações com o meio físico e social (apud BROCA, 1983, p. 28).

68
As críticas de Emílio Moura já caminham para a questão da passividade, o que
também é possível observar em Mário Matos que no capítulo de 1939 com o título já
polêmico de “O meio e o temperamento apolítico de Machado de Assis” em que afirma
que o autor fora: “espectador imparcial e desinteressado do espetáculo em que foi ator
de somenos ou quase de nenhuma importância” (MOURA, 1939, p.42). Este tipo de
crítica será comum em críticos posteriores. Assim como a questão da passividade
surgirá também relacionada à negação da identidade e mais especificamente a não
representação do negro ou a não menção do drama da escravidão por parte de Machado
em suas obras. É o caso, por exemplo, de Mário de Andrade de quem destaco a seguinte
posição:

A escravaria, por culpa do branco e dos seus interesses, ficou entre nós como
expressão do amor ilegítimo. Não só relativamente à casa grande, mas dentro
da própria senzala. Machado de Assis nem por sombra quer evocar tais
imagens do sangue que também tinha. Ele simboliza o conceito do amor
burguês, do amor familiar, e o sagra magnificamente (MÁRIO DE
ANDRADE, s/d, p. 94).

Mário de Andrade defende a tese de que o autor carioca teria renegado suas
próprias origens e representado em suas páginas apenas o modo de vida burguês (o
crítico se esqueceu das duras críticas feitas na obra de Machado a este mesmo modo de
vida). Deste modo, de acordo com Andrade, Machado teria conseguido vencer as
barreiras impostas contra sua condição social anulando sua verdadeira identidade para
assumir a de um burguês comum:

Assim, vitorioso na vida, ele o foi mais prodigiosamente no combate que, na


obra, travou consigo mesmo. Venceu as próprias origens, venceu na língua,
venceu as tendências gerais da nacionalidade, venceu o mestiço. É certo que
pra tantas vitórias, ele traiu bastante a sua e a nossa realidade. Foi o
antimulato, no conceito que então se fazia de mulatismo. Foi intelectualmente
anti-proletário, no sentido em que principalmente hoje concebemos o
intelectual. Uma ausência de si mesmo, um meticuloso ocultamento de tudo
quanto podia ocultar conscientemente. E na vitória contra isso tudo, Machado
de Assis se fez o mais perfeito exemplo de “arianização” e de civilização da
nossa gente (MÁRIO DE ANDRADE, s/d, p. 104).

A posição de Mário de Andrade é a de contundentemente criticar não só os


livros, os textos, mas também o próprio autor e os posicionamentos tomados em sua

69
vida, o acusando de antimulato, anti-proletário, exemplo de arianização. Isso, pois
estamos falando de autor que escreve Instinto de nacionalidade defendendo a
necessidade de que o escritor seja homem de seu tempo e de seu país39. O crítico
também faz críticas ao estilo machadiano afirmando que o autor copiava os exemplos
de escrita europeus: “Machado de Assis continua insolitamente na literatura aquela
macaqueação com que a nossa Carta e o nosso parlamentarismo imperial foram na
América uma coisa desgarrada” (MÁRIO DE ANDRADE, s/d, p. 104). Não contente
com estes ataques, ele segue questionando até mesmo os que defendem Machado de
Assis como um escritor representante da tradição brasileira “é que esses brasileiros não
se acomodam passivamente com a pequena contribuição de alma brasileira existente no
homem Machado de Assis” (MÁRIO DE ANDRADE, s/d, p.105). Critica também os
pesquisadores que consideram o escritor carioca como um autor político ou como uma
mentalidade intelectual avançada: “Machado de Assis não profetizou nada, não
combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo” (MÁRIO DE ANDRADE,
s/d, p.107).

As pesquisas já avançaram bastante e já não são poucos os pesquisadores que


reconhecem a força política dos textos do bruxo do Cosme Velho e até mesmo sua
atitude ativa e dissimulada na luta pelo fim da escravidão e pelos direitos dos negros.
Contudo, ainda existem os que mantêm a tese da passividade. É o que se observa em
textos de Luiza Lobo (1993) e Domício Proença Filho (1998) ao tratarem
especificamente da literatura negra. Lobo ainda tenta eximir-se da polêmica defendendo
a posição contrária ao biografismo, porém acaba repetindo posicionamentos que
defendem a passividade do escritor para com a causa abolicionista:

Não caberá à literatura a análise do perverso como expressão do recalcado,


nem o julgamento ideológico do autor em função da sua classe social ou
biografia – mas fica explícita aqui a indiferença de Machado pelo tema
abolicionista, à diferença de tantos outros do mesmo período, como Luís
Gama, José do Patrocínio e Cruz e Sousa, que não se isentaram do problema
(LOBO, 1993, p.173).

39
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se
dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a
empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço
(ASSIS, 1997, p.804).

70
Domício Proença Filho até reconhece na literatura machadiana temas que
abordam a questão da escravidão no Brasil, porém de acordo com o crítico a presença
desta temática na obra do escritor carioca não o exime da atitude passiva diante dos
dramas sociais de seu tempo. Pois, segundo Proença Filho, em contos como “O caso da
vara” ou “Pai contra mãe”, o autor estaria mais preocupado com a análise do caráter das
personagens do que com a situação do negro. Sendo assim, o crítico aguça ainda mais a
tese da passividade, pois reconhece a presença de negros na obra machadiana, contudo
assume a defesa de que estes estão presentes somente para servirem de argumento ou
exemplos para o desenvolvimento de outras questões. Ou seja, os negros são simples
objetos com os quais o autor articula sua narrativa:

Da minha parte, entendo que a literatura machadiana é indiferente à


problemática do negro e dos descendentes de negro, como ele. Mesmo os
dois contos que envolvem escravos, “O caso da vara” e “Pai contra mãe”, não
se centralizam na questão do negro, mas no problema do egoísmo humano e
da tibieza do caráter. Os demais tipos negros ou mestiços participam como
figurantes em histórias que, no nível do conteúdo manifesto ou do realismo
de detalhe, constituem reflexo da realidade social que pretendem retratar
(PROENÇA FILHO, 1988, p.92).

Até mesmo em obras de autores consagrados e que trabalham em uma


perspectiva histórica como Raymundo Faoro, há a tentativa de defender a posição
passiva do escritor. Em Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, livro que em muitos
aspectos é essencial para a pesquisa que objetivo desenvolver, o crítico apresenta uma
visão que não é compartilhada por esta tese acerca do posicionamento de Machado
perante a causa abolicionista:

Cético com respeito à abolição e às alforrias, a escravidão existe, na obra de


Machado de Assis, independente de sentimentos. O entusiasmo abolicionista,
a piedade com a sorte do escravo, o protesto contra o mau trato, não
encontrarão nenhum eco na palavra do escritor, senão em expressões
palidamente convencionais (FAORO, 1974, p.333).

Caracterizar como palidamente convencionais as expressões machadianas pode


71
ser uma referência a apenas alguns textos do autor ou uma leitura que não levou em
consideração o caráter dissimulado da literatura machadiana repleta de desvios, ironia,
estratégias de dissimulação. Porém, só para citar duas das crônicas que considero mais
contundentes quando o tema é a causa abolicionista e que o posicionamento do escritor
não é nada convencional e até mesmo eufórico (01/06/1877 e outra de 14/05/1893).

E para terminar a parte dedicada às críticas ao homem Machado de Assis e sua


produção, apresento as observações de Afonso Romano de Sant’Anna em texto de
época recente datado de 1994. Em título também polêmico denominado A escravidão:
um quase silêncio, o crítico se refere somente a crônica publicada em 19/05/1888 e a
alguns fragmentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Esaú e Jacó. Citando
apenas estes textos Sant’Anna afirma que:

(...) temos de convir que é muito pouco, diante da gravidade da questão e do


espaço que ela ocupava na história da época. Esse quase silêncio só tem
paralelo no distanciamento que também suas crônicas mantêm em relação à
proclamação da República (AFONSO ROMANO DE SANT’ANNA, 1994,
p.10).

Um dos mais importantes críticos que interpretam Machado de Assis pelo viés
histórico e que servirá de base para defender a atitude dissimulada e a presença da voz
subalterna na obra do autor é Schwarz. Foi por meio das leituras de seus livros que me
dei conta da presença tão importante (ainda que velada) de uma grande variedade de
indivíduos em situação de subalternidade (seja de gênero, de cor ou de situação social e
que são classificados como agregados – os que vivem do favor). E é Schwarz quem no
capítulo “A sorte dos pobres” (2000) de livro já considerado um clássico pela crítica
machadiana (Um mestre na periferia do capitalismo) afirma que a presença do negro e
da questão abolicionista nos livros de Machado de Assis é apresentada de forma
contundente e extremamente calculada:

A presença do escravismo é determinante, conforme tratei de mostrar, embora


as figuras de escravo sejam raras. Umas poucas anedotas esparsas bastam
para fixar as perspectivas essenciais. A parcimônia nas alusões, calculada
para repercutir, é enfática à sua maneira: um recurso caro ao humorismo
machadiano, mais amigo da insinuação venenosa que da denúncia
(SCHWARZ, 2000, p.112).

Chalhoub que também aborda uma perspectiva histórica colocaria um enfoque


72
bem diferente em seu trabalho e que poderia até mesmo ser considerado um contraponto
do exercício crítico empreendido por Schwarz. Ao passo que Schwarz dá ênfase aos
romances em suas pesquisas, Chalhoub trabalhará com as crônicas, amparado sempre
com dados históricos e com interpretação dos arquivos do funcionário público Machado
responsável pela Segunda Seção da Diretoria da Agricultura do Ministério da
Agricultura (1870-1880). O trabalho de Chalhoub servirá não só para iluminar leituras
posteriores da obra do autor carioca como também para esclarecer alguns pontos
polêmicos da atuação do cidadão Machado de Assis perante o maior drama de seu
tempo: a escravidão.

Iluminado também pelas leituras de Schwarz que Gledson desenvolverá a


percepção da literatura dúbia produzida pela linguagem machadiana. Gledson
encontrará em Schwarz a questão da dependência. Analisando como os dependentes
vivem - suas condições de sobrevivência -, ele analisará a conduta de Machado de Assis.
Assim, perceberá que a ironia, o sarcasmo, o cinismo funcionam como embustes que
despistam o leitor o levando a caminhos distintos dos reais efeitos de sentidos do texto.

As especulações políticas e históricas de Machado muitas vezes são assim


ocultas e implícitas. Mas podem ser desvendadas e compõem, com muito
mais freqüência do que suspeitavam os críticos, um aspecto essencial de suas
intenções como escritor. John Gledson, em Machado de Assis: ficção e
história (CHALHOUB, 2003, p. 28).

Esta forma peculiar de abordar os fatos e de fazer críticas de forma velada


caracterizam o que se nomeia como a escrita capoeirista de Machado de Assis. A
capoeira literária de Machado de Assis foi estudada por Costa Lima e também por Assis
Duarte. A estratégia de ginga pode ser observada em recursos que a crítica tradicional
apontou e analisou nos textos machadianos: o uso da ironia, os embustes, e a presença
de figuras de estilo que reforçam os sentidos presentes nos dois primeiros. Textos da
crítica tradicional apontam as características aludidas e os textos de Costa Lima e Assis
Duarte estabelecem a relação entre os recursos estilísticos utilizados pelo autor com
aspectos do que se denomina, nesta tese, de performance autoral. Os constantes
mascaramentos fazem com que torne-se difícil encontrar o autor em seus textos. As
distorções funcionam também como disfarces, como acentua Costa Lima:

73
Diríamos, não conheces nem o homem Machado, que ginga e dribla, que faz da
capoeira um estilema, nem muito menos aquele a que Machado se refere – este
homem, poço de iniquidades e incertezas, torturante e torturado, mais
precisamente: cada um de nós. (COSTA LIMA, 2002, p. 337).

Afinal, este estilo caracterizado pelas esquivas, pela capoeira verbal, pela
escrita constelacional, apontados por Costa Lima como auditividade e por Roberto
Schwarz como versatilidade do narrador, estão relacionados com o que, nesta tese,
denomina-se Estética da dissimulação. A auditividade, o tom conversacional é algo
intencional na obra de Machado de Assis. Esta também é uma de suas bruxarias, a
capacidade de tornar-se íntimo do leitor, um confidente, uma voz ao ouvido, uma
espécie de consciência.

A mesma pergunta feita por Costa Lima faz eco nas linhas deste trabalho:
“Pergunto-me então: Como se caracteriza a capoeira da palavra em Machado? Ou
melhor: pode-se entender a capoeira como princípio de individuação de uma forma de
escrita?” (COSTA LIMA, 2002, p. 331). Seria esta capoeira literária o que está
denominado nas pesquisas de Assis Duarte como uma poética da dissimulação? Seria,
então, um princípio de individuação que torna a literatura machadiana algo único? A
premissa pode ser defendida por alguns aspectos que se fazem presente apenas na
estilística do autor. Porém, a dissimulação surge em outros autores e em outras
estratégias de sobrevivência, tal como, a desenvolvida pelos negros escravizados nos
golpes e na ginga da capoeira. A capoeira só é dança para os que não são iniciados em
sua prática. Os que foram batizados em seu jogo conhecem suas malícias, suas negaças
e suas mandingas. E Machado mimetiza este jogo em seu estilo-estilete: “O estilete se
disfarçava em estilema para, como se fosse tão só palavra, graça e jogo, exprimir
posições, e convicções. (COSTA LIMA, 2002, p.329). A capoeira literária de Machado
de Assis é a técnica que assume sua maestria na escrita de um mandingueiro.

A “versatilidade do narrador” já seria em si uma fecundação por Machado do


princípio de estilo que começara a exercitar na crônica. A “capoeira” consistiria em (a)
desprezar uma lógica estritamente fundada em moldes escriturais, i.e., baseada em uma
construção linearmente proposicional. Há muitos anos, veio-me à cabeça que a demora
na introdução dos processos de impressão no Brasil fizera com que, entre nós, se fixasse
o que eu então chamava linguagem auditiva (COSTA LIMA, L.:, 1981, 15-20). Queria
74
dizer: que se se adotava uma forma de composição que, mantendo alguns dos hábitos da
oralidade – menos sua mnemotécnica, seus esquemas rítmicos, sua estudada
gestualidade do que suas repetições, seus tiques verbais, sua altissonância - , agora os
moldava sob a aparência de um curso escritural. Daí, de um ponto de vista estritamente
discursivo, uma prosa pobre, fácil, de ideias ralas, salteada ou contraditória, cuja única
riqueza era lexical ou de citações de autoridade. A auditividade, em suma, mantinha os
hábitos mais banais da oralidade dentro de um molde de aparência escritural. (COSTA
LIMA, 2002, p.334).

(…) a auditividade machadiana é consciente e experimentalmente pratica. O


encadeamento proposicional, embora sintaticamente bem estabelecido, é
propositalmente solto. Mas, por isso mesmo, seu texto não tem nada de
frouxo. Ao contrário, a leitura atenta mostra-o conduzido por um princípio
que chamaríamos constelacional, radicalmente distinto de uma argumentação
linear – cujo modelo seria “se a, b, c, então d”. Por princípio constelacional
entendemos a conexão de blocos proposicionais diversos, que, entretanto, se
interligam por um motivo comum; este motivo os “ilumina” por uma luz
diversa da que seria apropriada a cada bloco. (COSTA LIMA, 2002, p. 335).

Esta auditividade, esta desestruturação linguística no interior da linguagem, esta


fala que se faz presente na escrita machadiana é o que denomino nesta tese de distorcer
a língua em seu interior. “Já chamado por mim mesmo um mestre de palimpsestos,
continuamos sem desconfiar de seus escavados abismos.” (COSTA LIMA, 2002,
p.328). O encadeamento proposicional estabelece uma coesão diferenciada que só pode
ser preenchida pelo leitor.

O encadeamento proposicional, embora sintaticamente bem estabelecido, é


propositalmente solto. Mas, por isso mesmo, seu texto não tem nada de
frouxo. Ao contrário, a leitura atenta mostra-o conduzido por um princípio
que chamaríamos constelacional, radicalmente distinto de uma argumentação
de cunho linear – cujo modelo seria “se a, b, c, então d”. Por princípio
constelacional entendemos a conexão de blocos proposicionais diversos, que,
entretanto, se interligam por um motivo comum; este motivo os “ilumina”
por uma luz diversa da que seria apropriada a cada bloco25 [grifo do autor].
(COSTA LIMA, 2002, p.335)

Além da escrita lacunar, o estilo machadiano se apresenta carregado de expressões


que afirmam X quando querem dizer Y. O gaguejar e o tartamudear apontados por
Romero (ROMERO, 1936) deixam de ser vistos nesta tese como um defeito e passam a
significar um desvio consciente buscando as esquivas, o gingado, o ziquezaguear, o

75
drible. Por isso, Machado de Assis busca um leitor com quatro estômagos. O leitor
machadiano é um desconfiado. O autor abusa de recursos estilísticos dissimuladores:

a) Adjetivação compensatória – um recurso irônico utilizado por Machado de Assis


no sentido de amenizar uma dura crítica ou para ocultar adjetivos negativos,
defeitos apontados. Tal como em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Tinha
então 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína.” (ASSIS, 2008, p. 628) – ao
descrever Virgília, Brás utiliza uma adjetivação perversa (ruína) e logo depois,
tenta amenizar o adjetivo anterior (imponente). A adjetivação compensatória é o
famoso morde e assopra em que a máscara escapa, a dissimulação é revelada e
logo é ocultado novamente: “(...) morde e sopra, levanta a máscara e logo a
afivela de novo.” (BOSI, 2002, p. 14).

b) Preterição – Recurso dissimulador em que o narrador finge que não sabe alguma
coisa ou finge ocultar um fato quando, na verdade, o expõe e realça. O narrador
chama a atenção do leitor para um fato quando finge tentar ocultá-lo. O autor
esconde o lixo para debaixo do tapete perante os olhos atentos do leitor. Como
em Memórias Póstumas de Brás Cubas quando o narrador afirma que não dirá
alguma coisa e diz: “Não, não direi que assisti às alvoradas do romantismo, que
também eu fui fazer poesia efetiva no regaço da Itália; não direi coisa nenhuma.”
(ASSIS, 2008, p. 655). Machado de Assis utiliza a preterição para alfinetar o
Romantismo: “Ah! como eu sinto não ser um poeta romântico para dizer que isto
era um duelo de ironias! Contaria os meus botes e os dela, a graça de um e a
prontidão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu golpe
final (...)”. (ASSIS, 2008, p.981). Há também uma crítica feroz à hipocrisia da
elite brasileira: “Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus
serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi,
nada, não digo absolutamente nada.” (ASSIS, 2008, p. 756). Brás Cubas afirma
que não falará de serviço prestado aos pobres, mas não perde a oportunidade de
vangloriar-se de seus feitos.

76
c) Sarcasmo e Ironia – o significa de ironia é a própria dissimulação. Sendo assim,
este é o recurso que possui mais importância para este trabalho. Até mesmo pelo
fato dela estar presente nos outros recursos analisados. Ela é um dos estilemas
mais utilizados pelo autor com objetivo de ocultar as reais intenções de seus
textos. O Sarcasmo, por sua vez, apresenta as críticas de forma mais direta.
Contudo, ele vem acompanhado do recurso do humor que acaba mascarando a
malícia. O riso surge nos sarcasmos como forma de mascaramento. A diferença
entre sarcasmo e ironia na literatura machadiana pode ser bem sútil. Afinal, as
sutilezas e os mascaramentos constituem o alicerce das narrativas do bruxo do
Cosme Velho. O próprio autor utiliza sua narrativa para didaticamente alertar o
leitor onde há sarcasmo em seus textos: “— Quem sabe onde é que há de morar
amanhã? disse ela com um tom leve de melancolia; mas, tornando logo ao
sarcasmo: E você no altar, metido na alva, com a capa de ouro por cima,
cantando... Pater noster...” (ASSIS, 2008, p. 756). Um bom exemplo de ironia é:
“Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, -
uma pérola. (ASSIS, 2008, p. 645). Refletindo sobre o caráter de Marcela é
possível descobrir o tom irônico do narrador e o fato de um sujeito abastado e
tísico ser considerado uma pérola. O sarcasmo, por sua vez, disfarçado em riso
se apresenta de forma ácida, tal como o utiliza Brás Cubas ao resumir sua
relação com Marcela: “(...) Marcela amou-me durante quinze meses e onze
contos de réis; nada menos.” (ASSIS, 2008, p. 648). O sarcasmo utilizado em
Machado de Assis se apresenta de forma dissimulada na voz de um
representante da elite, tal como ocorre em Brás Cubas: “Ao contemplar tanta
calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora
escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu
que me pus a rir, – de um riso descompassado e idiota”(ASSIS, 2008, p.635).
Este riso descompassado e idiota fruto do sarcasmo se apresenta na voz do
ventríloquo Brás como uma crítica do próprio autor a toda uma série de
hipocrisias presente nos costumes da elite brasileira.

d) Litotes – recurso utilizado pelo autor para ampliar a qualidade polissêmica da


frase. A retórica dissimuladora de Machado de Assis afirma negando, oculta
quando expõe e expõe quando oculta. Bentinho ao afirmar: “Como bem e não
77
durmo mal” (ASSIS, 2008, p. 932) – utiliza a litotes para despistar a monotonia
da sua vida e as angústias de uma existência vazia. O recurso também é
utilizado em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não era a frescura da
primeira idade, ao contrário; mas ainda estava formosa, de uma formosura
outoniça, realçada pela noite” (ASSIS, 2008, p.740). Mais uma vez o narrador
utiliza-se de recursos retóricos para adjetivar Virgília. Aqui ele utiliza a litotes
para afirmar que sua amante da juventude já não apresenta mais a beleza jovial e
sim uma formosura outoniça, marcada pelo tempo e que, agora, pode beneficiar-
se com a ocultação da noite. Uma metáfora apresentada pelo autor para
representar a litotes e a retórica dissimuladora em suas narrativas pode ser
encontrada na seguinte situação:

Eram seis damas de Constantinopla, — modernas, — em trajos de rua, cara


tapada, não com um espesso pano que as cobrisse deveras, mas com um véu
tenuíssimo, que simulava descobrir somente os olhos, e na realidade
descobria a cara inteira. E eu achei graça a essa esperteza da faceirice
muçulmana, que assim esconde o rosto, — e cumpre o uso, — mas não o
esconde, — e divulga a beleza. Aparentemente, nada há entre as damas turcas
e o Damasceno; mas se tu és um espírito profundo e penetrante (e duvido
muito que me negues isso), compreenderás que, tanto num como noutro caso,
surge aí a orelha de uma rígida e meiga companheira do homem social...
(ASSIS, 2008, p.739)

O levantamento de questões relacionadas à linguagem machadiana também é


feito com perspicácia na leitura interpretativa feita por Silviano Santiago em seu ensaio
“Retórica da verossimilhança”. Extremamente importante é a observação de Silviano no
que tange à leitura dos textos de Machado como se estes formassem um conjunto
coerente em que um texto está em profunda relação com o outro (interdependência). É
por isso que a leitura isolada acabaria por gerar análises errôneas, incompletas e
facilmente tendenciosas ou até mesmo ingênuas.

Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como


um todo coerentemente organizado, percebendo que à medida que seus textos
se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se
desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais
complexas e mais sofisticadas. (SILVIANO SANTIAGO, 2000, p.28)

De acordo com o crítico, o desgaste interpretativo dos sentidos do texto

78
machadiano surge exatamente da leitura exaustiva de fragmentos isolados. Com certeza
este tipo de exercício repetitivo de leitores de sua obra acaba por dificultar ainda mais a
observação de outros pontos de vistas, de outros focos interpretativos. A análise da
literatura produzida pelo bruxo do Cosme Velho exigia a ação lenta, a vagarosa digestão
proporcionada pelos quatro estômagos. Pois, há em seus textos o constante e forte
direcionamento do leitor para sentidos que na maioria das vezes provam serem os mais
inadequados.
A busca – seja da originalidade a cada passo, seja da excitação intelectual em
base puramente emocional, a leitura dirigida para os “melhores momentos”
do romancista – dificultou a descoberta daquela que talvez seja a qualidade
essencial de Machado de Assis: a busca, lenta e medida do esforço criador em
favor de uma profundidade que não é criada pelo talento inato, mas pelo
exercício consciente e duplo, da imaginação e dos meios de expressão de que
dispõe todo e qualquer romancista. (SILVIANO SANTIAGO, 2000, p.28)

A leitura dos textos formando uma rede em que a interpretação de um


dependente da leitura de outro facilita a percepção por parte do leitor experiente das
artimanhas desenvolvidas pelo autor visando à criação de armadilhas. Contra as críticas
que consideram o texto machadiano quase escasso de referências locais utilizo o
fragmento de artigo de Leyla Perrone-Moisés (2001) em que ela reflete sobre o
nacionalismo em Borges e no escritor carioca:

Enquanto os escritores menores cedem ao provincianismo ou, inversamente,


à imitação e à influência, os maiores tecem um texto irônico, em que os
elementos estrangeiros e os locais produzem uma combinação inédita, que
engrandece tanto a literatura nacional como a internacional (PERRONE-
MOISÉS, 2001, p.113).

Quanto à crítica a não euforia de Machado diante do que viria a ser a libertação
de seus semelhantes e que viria a ser utilizado como uma forma de provar a alienação
diante da situação dos negros no Brasil utilizarei os ensaios de Octávio Ianni (1988) e
Raimundo Faoro (1988) em que há nitidamente nos dois a observação do ceticismo do
autor diante de uma abolição que não iria significar liberdade. Esta mesma postura
cética poderia ser observada diante outros fatos cruciais da história brasileira.

(...) o ceticismo essencial de Machado de Assis lhe permitia visualizar o


escravo e o livre no contexto da miséria social inerente à sociedade. Para
muitos, a alforria poderia significar uma calamidade, quanto às condições de

79
vida e trabalho que teriam de enfrentar (IANNI, 1988, p.22).

Havia alguma coisa diferente no seu modo de sentir a realidade do Rio de


Janeiro, sem o véu culto, ilustrado, falsamente livresco dos seus
contemporâneos, embriagados de fórmulas. Somente ele, isolado na multidão
que aclama, ousou manifestar a inanidade do 13 de maio. Livre o escravo,
estará na rua, sem emprego, ou receberá do senhor a esmola do salário, em
troca de igual trabalho, com as antigas pancadas e injúrias (FAORO, 1988,
p.323).

Portanto mais uma vez a retórica da verossimilhança (SILVIANO SANTIAGO,


2000 [1969], p. 27) está presente e impera na sociedade brasileira e Machado observa
criticamente os acontecimentos e os falsos ideais de libertação do negro. Ele percebe
que esta dita abolição não libertaria o negro da opressão e se limitaria a demonstrar de
forma definitiva a realidade cruel da dependência. Liberto o negro viveria na miséria até
o momento em que assumiria mais uma vez o papel subserviente diante do senhor
branco para poder sobreviver. Ao colocar em condições de igualdade os escravizados, os
libertos, as mulheres e os agregados de toda classe, Machado de Assis vai além do que
esperavam os críticos que o acusam de passividade, ele não só retratou a situação de seu
tempo como também já levanta a questão de que a dependência é o motor da
desigualdade.

Esta pesquisa dialoga com uma variedade enorme de trabalhos que propiciaram
a reflexão que empreenderei nas próximas páginas. Contudo, grande parte do caminho
que será seguido teve como impulso inicial, como centelha, o trabalho do pesquisador
Eduardo de Assis Duarte. Ele faz todas as leituras que mencionei anteriormente e as
relacionando destaca as ciladas linguísticas utilizadas por Machado de Assis para
criticar duramente a sociedade senhorial e branca de sua época. É também no trabalho
de Assis Duarte que encontro o termo dissimulação e a defesa de uma postura
afrodescendente por parte do autor carioca.

(...) o tratamento enviesado, indireto; os negaceios verbais e as alfinetadas


ligeiras, mas cortantes; o discurso irônico substituindo a fala explícita ou
peremptória; o enfoque universalizante de questões nacionais; a paródia de
mitos e narrativas fundadoras de hegemonias; o desmascaramento da classe
senhorial pela sátira dos detentores do poder; e tudo isto vazado numa
linguagem marcada por disfarces de toda ordem, aí incluso o do próprio foco
narrativo (Duarte, 2007, p.272-73).

Este discurso marcado pelo cinismo, sarcasmo, negaceios verbais, enviesado e

80
carregado de dissimulação não ocorre simplesmente por uma questão de estilo ou de
escolha gerada pela busca da arte pela arte. A linguagem indireta é em Machado antes
de qualquer coisa um plano de defesa. Suas condições de vida o impeliam à ação contra
as doenças sociais de seu tempo. Todavia, até mesmo os seus posicionamentos pessoais
deveriam ser velados. Diante do dilema de sobreviver (negro, funcionário público,
dependente do sistema) versus existir (crítico, reconhecendo as injustiças,
afrodescendente), o bruxo do Cosme Velho escolhera os dois. Para resolver uma
equação tão perigosa, a saída encontrada por ele fora sua literatura. Pode o subalterno
falar? Pode. Só que a opção por existir e por exercer sua fala é perigosa e exige uma
técnica cautelosa, a existência com arte, por meio da arte e pela arte, velada, de
guerrilha, enviesada – a estética da dissimulação.

81
As estratégias do caramujo40

O que nos salvou do que a gente viveu nas ruas (e você sabe do que estou
falando) foi a nossa completa ignorância e falta de habilidade em se adequar
ao está posto. (Criolo em entrevista concedida ao Programa Espelho em
04/04/2013).

Muitos críticos acusam Machado de Assis de não ter assumido um


posicionamento político em seus romances, certamente baseando-se naquilo que ele não
escreveu. Uma pergunta se repete constantemente nessas críticas ao autor, como um
eco: “Por que Machado de Assis não destaca o negro em seus romances?”. Esta
pergunta e a elaboração de possíveis respostas se fazem presentes principalmente em
obras críticas publicadas antes dos estudos de Chalhoub 1998 e 2003; Gledson 1986,
1991, 1996; Schwarz 1977, 1989, 1997, 2000 e Duarte 2005.

Gledson apresenta em seus estudos um Machado preocupado com a situação dos


negros e, principalmente, atento às diversas mudanças sociais e econômicas ocorridas
no país. Suas análises desconstroem a percepção de que as ideias críticas e o
posicionamento do escritor podem indicar uma atitude passiva do escritor diante dos
problemas da sociedade em que viveu. A reflexão de Gledson permite constatar que
Machado foi capaz de presumir que a abolição da escravidão não mudaria muito a
situação do negro.

A abolição não é um movimento da escuridão para a luz, mas a simples passagem de um


relacionamento econômico e social opressivo para outro. (...) libertando os escravos, não se
faz mais do que libertá-los para o mercado de trabalho, no qual serão contratados e
demitidos e, sem dúvida, receberão salários miseráveis. (Gledson, 1986, p.124)

O ceticismo do escritor se faz presente, principalmente, em seus textos


jornalísticos em que ele aborda a questão. Machado já percebera que a abolição da
escravatura e outros eventos históricos do Brasil apresentam muitas faces. Com certeza
um acontecimento importante como esse, comemorado até mesmo pelo escritor como
festa não encobriria a indagação sobre qual posição assumiria o negro na sociedade,

40
Ao retomar a metáfora do caramujo, faço alusão emprego desta no livro de Assis Duarte:
Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo (2005).
82
após os festejos da libertação dos então escravizados. Essa pergunta está em
Nascimento (2002, p.61), quando acentua: “Passando ao longo dos movimentos
abolicionistas que fervilhavam na época em que as obras foram escritas, Machado deixa
patente, como a marcar o momento, sua descrença numa real inserção do negro nos
quadros representativos da sociedade brasileira”.

Por outro lado, as críticas a Machado de Assis não se resumem ao aspecto político
de sua obra ou à pretensa passividade do escritor diante de fatos marcantes da sociedade
em que viveu. Silvio Romero, por exemplo, irá criticar o estilo machadiano de escrever.
Em passagem conhecida dos estudiosos, o crítico centra sua observação em aspectos
relacionados ao estilo do escritor, comparando-o com o de escritores portugueses e
mesmo com o de Alencar:

(...) o estilo de Machado de Assis não se distingue pelo colorido, pela força imaginativa da
representação sensível, pela movimentação, pela abundância, ou pela variedade de
vocabulário. Suas qualidades mais eminentes são a correção gramatical, a propriedade dos
termos, a singeleza da forma. (...) Machado de Assis como já ficou acidentalmente dito, não
tem grande fantasia representativa, ou antes, não possui quase essa faculdade. Em seus
livros de prosa, como nos de verso, falta completamente a paisagem, falham as descrições,
as cenas da natureza, tão abundantes em Alencar, e as da história e da vida humana, tão
notáveis em Herculano e no próprio Eça de Queirós. (Romero, 1992, p.121-122).

Romero não se prende somente à questão das imagens, suas farpas também são
lançadas com objetivo de atingir a linguagem do autor. O crítico fala da escrita pouco
grandiosa ou eloquente, da psicologia indecisa do autor que reflete em sua obra.
Contudo, considero que é neste tropeçar, neste gaguejar do estilo que se apresenta a
grandiosidade do gênio machadiano. Essas qualidades configuram uma estética da
dissimulação da qual fazem parte aspectos criticados por Romero como a fala
escorregadia, a personalidade indecisa, a ausência de vivacidade e a presença de certa
melancolia irônica.

(...) [o estilo de Machado de Assis] é a fotografia exata de seu espírito, de sua índole
psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútilo, nem grandioso, nem
eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe
profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça,
que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta.
Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada (...).
(Romero, 1992, p.122)

83
A escrita de Machado, repleta de subterfúgios, escorregadia, gaguejante, foi a
causa principal de sua ascensão social. Ainda que seus textos trouxessem uma crítica
cruel à sociedade brasileira de sua época, seus livros eram lidos por membros dessa
mesma sociedade. É pertinente destacar que são exatamente as características apontadas
por Romero como uma dicção gaguejante que serão valorizadas por Haroldo de
Campos:

(...) em Machado, o tartamudeio estilístico era uma forma voluntária de metalinguagem.


Uma maneira dialógica (bakhtiniana) implícita de desdizer o dito no mesmo passo em que
este se dizia. O ‘perpétuo tartamudear’ da arte pobre machadiana é uma forma de dizer o
outro e de dizer outra coisa abrindo lacunas entre as reiterações do mesmo, do ‘igual’, por
onde se insinua o distanciamento irônico da diferença. (Campos, 1992, p.223-224)

A obra de Machado procurava mostrar que a inconsistência entre a ideologia


defendida e o que acontecia na prática. O que se faz presente em seus textos é uma
sociedade que vivia de aparências. A arma eficaz do escritor era o espelho, na verdade
não um espelho comum e sim um prisma, que mostrava o indivíduo sob sua máscara. A
técnica utilizada por ele assemelha-se à de um guerrilheiro: atacar e esconder-se, atacar
utilizando as armas do inimigo, disfarçar-se, ficar camuflado. Machado de Assis sabia
desenvolver todas estas estratégias com maestria, tal como ressalta Nascimento (2002,
p.53-54), quando diz:

Com maestria e coerência. Maestria porque não é nas linhas que se deve
buscar esta questão. O que está escrito não conta. Conta o que não foi dito
nem visto com os olhos de fora. (...) Coerência porque seu compromisso era
retratar a sociedade tal qual se lhe apresentava, e aí, o negro não constituía
uma representação significativa, melhor dizendo, nem mesmo como ser
social era reconhecido. Na ordem das representações, a lente do retratista não
poderia alcançar o que nem sequer era cogitado.

O recurso de deixar, aparentemente, um vazio e lacunas que indicam a não


presença do negro em seus romances pode ser considerado como uma faceta do bruxo
que o escritor foi. Sobre esse aspecto, Nascimento dirá: “Machado também não pondera
e desfere golpes profundos contra o sistema; e se omite o negro enquanto ser social de
seu universo ficcional (que tem na representação social o núcleo para suas críticas) é
para melhor denunciar o modelo social vigente” (Nascimento, 2002, p.61).

84
Essa é uma das chaves para entender a obra do autor, observar os detalhes, é
preciso ficar atento às entrelinhas, aos espaços, pois é nesses espaços que se percebe o
seu objetivo: utilizar a máscara ficcional para apresentar a verdadeira face da realidade
brasileira do século XIX, tal como afirma Merquior: “Machado é um escritor em quem
o aspecto fortemente retórico do estilo, longe de lesar, reforça a energia mimética da
linguagem, o seu poder de fingir (ficção) efetivamente a variedade concreta da vida”
(Merquior, 1977, p.174). Portanto, há em Machado uma coerência entre o que afirmam
seus textos e sua visão crítica, a reflexão na forma literária dos mandos e desmandos
presentes na sociedade burguesa. Contudo, como vimos afirmando, o posicionamento
crítico do autor se dá de forma indireta, pelo despistamento, pelos mascaramentos.

A ousadia de sua forma literária, onde lucidez social, insolência e


despistamento vão de par, define-se nos termos drásticos da denominação de
classe no Brasil: por estratagema artístico, o Autor adota a respeito uma
posição insustentável, que entretanto é de aceitação comum. Ora, a despeito
de toda mudança havida, uma parte substancial daqueles termos de
dominação permanece em vigor cento e dez anos depois, com o sentimento
de normalidade correlato, o que talvez explique a obnubilação coletiva dos
leitores, que o romance machadiano, mais atual e oblíquo do que nunca,
continua a derrotar (Schwarz, 2000, p. 12).

Reitere-se que, para se compreender a crítica feita pelo autor em seus textos é
preciso estar atento às entrelinhas. Machado consegue apropriar-se da linguagem
observada em seu convívio com a elite brasileira e transpor para suas narrativas o
mesmo estilo simulador visualizado. A estrutura da sociedade brasileira serve de modelo
para que o autor crie seu próprio estilo servindo de base para a construção estrutural de
seus livros. E como observa Schwarz, há coerência entre estrutura do romance e os
valores defendidos pelo autor, pois: “(...) a fórmula narrativa de Machado consiste na
alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista
produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira” (Schwarz, 2000, p.11).
Tais aspectos estão defendidos em Instinto de nacionalidade, texto em que Machado
defende que o escritor deve ser homem de seu tempo, o que de certa forma explicaria a
literatura do autor. É o que considera Schwarz quando afirma:

O dispositivo literário capta e dramatiza a estrutura do país, transformada em


regra da escrita. E com efeito, a prosa narrativa machadiana é das raríssimas

85
que pelo seu mero movimento constituem um espetáculo histórico-social
complexo, do mais alto interesse, importando pouco o assunto do primeiro
plano (SCHWARZ, 2000, p.11).

Machado não apresenta qualquer preconceito em abordar em seus livros fatos


contingenciais, corriqueiros. Crônicas, contos, poesia, crítica e romances se apresentam
como um todo crítico, cínico e irônico. Esta capacidade de lidar de forma dissimulada
com as contingências gera certo desconforto em alguns críticos que analisam sua obra,
como os que ressaltam a postura passiva do autor como Pedro Couto, Mário Matos,
Sílvio Romero, Raimundo Faoro, Mário de Andrade, Luiza Lobo [1993], Domício
Proença Filho [1998], Afonso Romano de Sant’Anna [1994]. Ainda que apresente fatos
contingenciais, sua literatura não fica aprisionada a fatos históricos. Machado foi um
grande cronista e escrever crônicas é, reduzindo bastante, como fazer uma fotografia,
captar algo da cotidianidade de tal forma que passe para a posteridade. Escrever sobre
as mazelas sociais constitui uma característica do texto machadiano.

Ao transpor para o estilo as relações sociais que observava, ou seja, ao


interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão da
sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação muito
particular, em parte inconfessável, nos antípodas da pátria romântica
(SCHWARZ, 2000, p. 11).

É fácil constatar que o julgamento de críticos como Silvio Romero está baseado
na estética naturalista que ele defendia. É possível que em termos naturalistas o texto de
Machado realmente não apresentava o recurso do detalhismo de paisagens, ambiente e
personagens. Machado, contudo, era um exímio retratista, mas não se definia por longas
descrições de cenas ou de paisagens exibidas em detalhes, tal como defende Campos
(1992).

Muitos teóricos o criticaram por não apresentar imagens de monumentos, da fauna


e da flora tipicamente brasileiras, o que, para alguns, significaria uma postura
antinacional. Entretanto, era para o homem e para a mulher de seu tempo que a sua
objetiva estava posicionada. E fica claro, o porquê do negro não estar no centro de
algumas de suas narrativas longas e em outros gêneros ter sua presença excluída ou uma
presença elíptica. Numa sociedade paternalista, senhorial e escravocrata na qual

86
predominava a voz do senhor patriarcal, onde deveria estar o negro? Em qualquer
espaço que fosse distante da casa grande, das salas e dos salões, dos grandes eventos da
corte. Porém o retrato dessa sociedade pintado por Machado não poupa o “senhor”,
expõe seus defeitos e imperfeições do mesmo modo indica as bexigas que leva no rosto.
A imagem de fachada é corroída pelo verme, como um cupim que corrompe a madeira.
É de dentro desta sociedade, de seus salões e das casas burguesas que o narrador
machadiano decompõe as bases de todo um sistema escravocrata. Ao focalizar sua lente
no senhor, o escritor acabaria por comprovar a invisibilidade do negro na sociedade
brasileira do século XIX.

Estão na obra de Machado as principais características da sociedade, da elite


brasileira de sua época, vista por ele pelo prisma da simulação e dos mascaramentos.
Tais armadilhas ficcionais permitem que perceba a questão posta por seus escritos: neste
ambiente elitista, onde estariam os subalternos? Na resposta a este ponto é possível
refletir sobre as principais críticas feitas por críticos como Romero à construção de
cenários e personagens de seus romances.

Nascimento faz um levantamento das personagens machadianas elaboradas em


concordância com o espaço ocupado por elas: “(...) em termos de espaços ocupados por
seus personagens, as salas, varandas e salões são os mais frequentados
(NASCIMENTO, 2002, p.54). Estas personagens que ocupam os grandes salões
representam componentes da elite brasileira. Marcados pela simulação, não querem ser
vistos sem suas máscaras. Por isso é “Difícil surpreendê-los na intimidade de um quarto
ou qualquer outro espaço que lhes possibilitem um desnudamento, um encontro consigo
mesmos”. (NASCIMENTO, 2002, p.54)

Talvez o objetivo do autor fosse o de mostrar as máscaras que se exibem em


espaços onde a falsidade se faz presente, em ambientes em que a imagem criada é o que
conta, como observa Nascimento:

(...) é impossível aos personagens de Machado despirem-se de suas máscaras quando,


comprometidos sempre com o prestígio, social e a consideração pública, configuram-se
mais como atores do que como indivíduos; intérpretes aplicadíssimos de suas próprias
histórias. A opinião pública passa a ser, então, seu principal parâmetro e sua justa medida.
Quanto mais justa e aderente, mais perfeita a máscara. A máscara, sua própria pele.
(NASCIMENTO, 2002, p.24)
87
Na obra de Machado, personagens, narrador e até mesmo as imagens de autor
estão representadas como se estivessem num grande teatro, expondo suas máscaras
como um mis-en-scene do mundo, ou seja, suas personagens dissimulam através dos
vários papéis que assumem. É ainda Nascimento quem observa que as personagens da
vida pública, comprometidas com determinadas posições de prestígio na sociedade,
precisam participar do jogo social onde quem melhor souber jogar receberá as melhores
recompensas (Nascimento, 2002, p.54).

Pode-se dizer que o narrador, estrategicamente, descreve personagens que não


conhece, pois faz parte do jogo não conhecer a verdadeira face dos que atuam no
cenário social levado para a ficção. Neste grande palco, o negro é apenas parte do
cenário, não atua, pois só assume os papéis permitidos pela sociedade, só pode atuar em
papéis indicadores de sua subalternidade. Para ser ator é necessário deixar de ser objeto,
para conseguir um papel é necessário ser pessoa.

É possível dizer que a escrita de Machado também joga com as possibilidades da


representação, nos engana, é sedutora e venenosa dissimulando na tessitura da ficção a
crítica a uma sociedade marcada pelo paternalismo, pela política do favor, pelas idéias
fora-de-lugar, por um liberalismo de fachada. Seus textos são armadilhas para o leitor
desavisado, uma cilada, uma verdadeira lição de crítica incisiva apresentada de forma
indireta. Por isso, a crítica do tempo do escritor não conseguiu perceber as estratégias
escolhidas pelo escritor e a sua capacidade de tratar criticamente a sociedade de sua
época, tal como afirma Camargo:

Seus textos eram, então, consumidos rapidamente, e as análises, além de


apressadas, eram, muitas vezes, superficiais, sem permitir um tempo maior para a
apreciação do grande trabalho de elaboração feito para se chegar àquele ponto. A
escrita em palimpsesto nem sempre foi bem reconhecida, tanto pelos leitores
comuns quanto pela crítica, ao tempo do escritor. (CAMARGO, 2005, p.144)

Somente a crítica publicada no decorrer do século XX, após a releitura cuidadosa

88
de sua obra, conseguiu descortinar alguns enigmas do texto machadiano. As várias
retomadas de sua obra puderam esclarecer que, ao contar suas histórias, Machado de
Assis, de certa forma reescreveu a história do Brasil no século XIX. Esta é a posição de
Chalhoub quando considera: “Essa é a hipótese que vem sendo defendida, a meu ver de
forma bastante convincente, por críticos literários como Roberto Schwarz e John
Gledson (...)” (CHALHOUB, 2003, p.17). Longe de ser um intelectual
descompromissado com a situação política e econômica do Brasil, Machado foi
“homem de seu tempo e de seu país”. Para destacar essa característica do escritor,
Chahoub irá considerar que, “se a pena de Gledson revela um Machado empenhado em
interpretar o sentido da história, também mostra que tal esforço é acompanhado de um
processo não menos intenso de “dissimulação” e “despistamento” do leitor (...)”.
(CHALHOUB, 2003, p.18, grifo nosso). As considerações de Chalhoub são importantes
para se entenderem as questões que serão postas no item que se segue.

89
A subalternidade e suas peculiaridades nas personagens machadianas

Mal Secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora


N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora


Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo


Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,


Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
(RAIMUNDO CORREIA in ASSIS,
2008, p. 1291)

O soneto de Raimundo Correia, citado acima, integra o prefácio escrito por


Machado de Assis ao livro Sinfonias, do poeta maranhense, tendo sido publicado em
1883. Entretanto, qual seria o motivo do bruxo do Cosme Velho transcrever em sua
totalidade os versos do poema acima? Coincidência? Considere-se que o escritor carioca
não trabalha com o acaso, sua literatura é detalhista e sua crítica não poderia ser
diferente. Há algo no soneto que chamou a atenção do autor para a escrita de Raimundo
Correia.

Mas para os leitores maliciosos é que se fizeram os prefácios astutos, desses


que trocam todas as voltas, e vão guardar o leitor onde este não espera por
eles. É o nosso caso. Em vez de lhe dizer, desde logo, o que penso do poeta,
com palavras que a incredulidade pode converter em puro obséquio literário,
antecipo uma página do livro; e, com essa outra malícia, dou-lhe a melhor
das opiniões, porque é impossível que o leitor não sinta a beleza destes versos
de Raimundo Correia (...). (ASSIS, 2008, p.1291)

O soneto de Raimundo Correia, de estrutura fixa, parnasiano, foi escrito em


1898. Estruturalmente o texto apresenta a estrutura do gênero textual soneto, mas é a

90
sua temática que é interessante para Machado de Assis. O poema apresenta uma dura
crítica à sociedade que vive de ilusão, soterrada pelas aparências. A capacidade de usar
as máscaras de forma tão perfeita que a identidade passa a ser algo inexistente é o que,
nesta tese, estamos chamando de simulação. Simular é no primeiro nível fingir e neste
jogo de fingimento não há distinção de classe social. Enquanto os cidadãos da elite
encontram na simulação o meio de demonstrar sucesso, os subalternos utilizam o
fingimento como forma de sobrevivência. O favor pode exigir que o subalterno faça de
tudo para manter a satisfação de quem o sustenta.

Os elementos trabalhados no primeiro capítulo desta tese servirão de base para


que se desenvolvam as reflexões deste capítulo. A defesa de uma perspectiva estética
alternativa à defendida pelos posicionamentos artístico-literários mais tradicionais, a
reflexão sobre a subalternidade, a estética da dissimulação e da reciclagem são pontos
de vista utilizados para deixar evidente a defesa de que na narrativa machadiana se faz
presente uma postura ideológica dissimulada, resiliente e que as características que são
apontadas no estilo do autor surgem como forma de coadunar com os objetivos
camuflados.

No capítulo anterior menciono também a presença de uma terceira voz que


diverge das apresentadas pelo narrador, pelas personagens. Esta voz seria a utilizada
pelo autor enquanto função, tal como defende Foucault. É esta perspectiva autoral que o
segundo capítulo objetiva alcançar, a voz ideológica, política, de posicionamento,
enquanto performance do sujeito, que constrói as armadilhas narrativas, que dissimula
intenções, que utiliza de várias personagens como marionetes, ao passo que amplia as
atitudes de outras. Algumas personagens, ainda que passem a ideia de presença pouco
marcante, demonstram a capacidade de mover o conteúdo narrativo dissimulando a real
importância.

Estas personas subalternas são de vital importância para o entendimento da


construção narrativa machadiana conforme pretendo defender. Considero que os
subalternos, pela pena realista de Machado, são representados de acordo com os lugares
que ocupam na sociedade. Por isso, em seus romances, surgem em contextos pré-

91
determinados ou são apenas mencionados, in absentia, revelando a situação de cada um
no contexto sócio-histórico em que vivem. Ainda que o status ocupado por estas pessoas
na sociedade as impossibilite de surgir em ambientes de prestígio, nos romances de
Machado elas são cruciais para o entendimento da narrativa e para a percepção da
dissimulação instaurada em seus textos.

A característica comum observada nas personagens em condições de


subalternidade é a resiliência. Este conceito advindo da física representa a capacidade
que possuem determinados materiais de alterar significativamente suas características,
sofrendo uma deformação momentânea quando expostos à pressão ou temperaturas
elevadas. Pois bem, este conceito físico foi apropriado pela psicologia para designar as
pessoas que, em situações limites e de estresse, são obrigadas a alterar suas
personalidades de forma drástica. Contudo, cessada a situação, estas pessoas retomam
suas identidades e subjetividades, momentaneamente alteradas.

O negro escravizado, os dependentes, as mulheres e demais personagens


históricos que viviam do favor patriarcal assumiam a condição de subalternidade. Os
subalternos constantemente são obrigados a assumir a postura do fingir como alternativa
de sobrevivência. Há os que fingem não ser o que são e há os que fingem ser o que,
verdadeiramente, não são. Sendo assim, há os que escolhem o caminho da simulação e
na maioria das vezes perdem suas identidades e há os que dissimulam, que utilizam
máscaras, mas que guardam dentro de si mesmos, longe de olhos estranhos, suas
personalidades. A discussão deste comportamento das personagens pode se valer do
termo resiliência trazido do campo da física para o da teoria literária. Todavia, a
resiliência que me interessa é aquela caracterizada pela malemolência, pela capacidade
de dobrar-se sem perder suas características marcantes, a sabedoria de curvar-se, mas de
não anular-se perante as dificuldades. A habilidade de dissimular as emoções, de
controlar os impulsos e escolher o momento correto e a técnica adequada para fazer
valer sua vontade e de não permitir qualquer forma de assujeitamento. São estas as
qualidades que serão exploradas nas personagens machadianas com o objetivo de
demonstrar o contraponto entre as características observadas nas personagens que
representam a elite brasileira e aquelas apresentadas pelas personagens subalternas, no
contexto em que os romances foram escritos.
92
É com esta intenção que serão discutidas no romance Ressurreição a construção
das personagens Félix e Lívia como o objetivo de demonstrar como cada uma delas
representa papéis sociais claramente definidos na sociedade apresentada no contexto do
livro. No romance Dom Casmurro serão destacadas as características do narrador que
utiliza de meios simuladores para construir a narrativa.

93
Ressurreição

Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-
nos apenas o que é indispensável a todo o homem, e dissipando a outra, a
confiança pérfida e cega. Com o tempo; adquire a reflexão o seu império, e
eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espírito fica em
perpétua infância. (ASSIS, 2008, p. 235).

Ressurreição é o primeiro romance de Machado de Assis publicado pela


elogiada editora da época, Livraria Garnier, em 1872. Já neste primeiro texto romanesco
é possível perceber o jogo que o bruxo do Cosme Velho empreende com o leitor. Há
uma constante geração de elementos de cunho romântico, que ficam claros em
expressões como: “encontros e desencontros amorosos”, “casamentos postergados”,
“carta anônima”, “vilão dissimulado e insidioso” (GUIMARÃES, 2004, p.127) que
sugerem ao leitor um possível desenlace do tipo “final feliz”.

Em Ressurreição, não falta nem mesmo a inveja de outros pelo amor dos
amantes apaixonados, pois, a mulher amada deve ser o alvo de outros cavaleiros que
também a desejam. Lívia era desejada por Luís Batista, por Meneses e por vários
homens do salão de baile da casa do coronel. A simples aproximação entre Lívia e Félix
já era causadora de olhares de despeito de outros: “Não passou isto sem que notassem
alguns lábios despeitados” (ASSIS, 2008, p. 249). E tanto ela quanto ele eram
invejados, pois assim é o amor romântico, causa a ira alheia: “Um cavaleiro disse a uma
senhora: – Não lhe parece que dona Lívia tem um gosto deplorável? A senhora
arregaçou levemente a ponta esquerda do lábio superior, e respondeu: - O Félix não o
tem melhor” (ASSIS, 2008, p. 249).

Contudo, a recepção é frustrada por um final inesperado, fato que gera a


desconfiança e a sensação de estranheza expressada pela crítica. Consciente do choque
que causaria um romance tão peculiar em um estilo que foge aos moldes já
cristalizados, o narrador, assumindo pontos de vista do autor, constantemente parece
pedir desculpas ao leitor por ser repetidamente frustrado:

94
Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente casando-se
dois pares de corações e indo desfrutar a sua lua-de-mel em algum canto
ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessário que a
filha do coronel e o Dr. Meneses se amassem, e eles não se amavam, nem se
dispunham a isso. Uma das razões que desviavam da gentil menina os olhos
de Meneses era que este os trazia namorados da viúva. De admiração ou de
amor? Foi de admiração primeiro, e depois foi de amor; coisa de que nem ele,
nem o autor do livro temos culpa. Que quer? Ela era formosa e moça, ele era
rapaz e amorável, e de mais a mais inexperiente ou cego, que não adivinhava
a situação anterior da viúva e do médico ainda por entre os véus com que lha
ocultavam (ASSIS, 2008, p. 278).

O autor revela já no início, na advertência feita à primeira edição, o seu interesse


em não criar um romance de costumes. Há um exercício em fugir do impulso
regionalista tão característico do Romantismo brasileiro dos anos 1870. “A extrema
flexibilidade do seu talento permite-lhe casar perfeitamente a verdade geral e superior
da natureza humana, com a verdade particular do temperamento nacional.”
(VERISSIMO in ASSIS, 2008, p. 26). O objetivo do autor era, então, criar uma
narrativa em que o enredo estivesse pautado na psicologia das personagens
principalmente baseado na relação de Lívia e Félix marcada pelas constantes separações
provocadas pela desconfiança. Por isso, em sua narração não há exploração da natureza
com descrições primorosas, o enredo emocional e carregado de aventuras, nem mesmo a
cor local determinada pela presença de vocabulário e expressões regionais.

A sua literatura não é, de intenção, descritiva; no mundo só lhe interessa de


fato o homem com os seus sentimentos, as suas paixões, os seus móveis de
ação; na sua terra, o puro drama, humano, talvez ele preferisse dizer comédia,
sem lhe dar da decoração, da paisagem, dos costumes, de que apenas se
servirá para criar aos seus personagens e aos seus feitos o ambiente
indispensável, porque sendo entes vivos não podem viver sem ele.
(VERISSIMO in ASSIS, 2008, p. 26)

Ressurreição apresenta quase ausência de ações exteriores e até mesmo quando


estas surgem são provenientes de sentimentos ou pensamentos. O interesse do narrador
neste romance é o interior das personagens, as particularidades de caráter, o contraste de
temperamentos entre o médico e a viúva. Na narrativa, toda atenção está voltada para o
pequeno universo das personagens. O mundo gira em torno da vida de duas

95
personagens: Félix e Lívia. Todo o cenário social, político e geográfico surge dos olhos
deles e da perspectiva narrativa. O psicologismo linear do romance realista do século
XIX também é desprezado pelo autor, pois só conhecemos as personagens, suas
angústias e sentimentos ao final da narrativa. Suas personalidades vão sendo construídas
por suas ações e pensamentos.

Por elaborar um enredo demasiadamente conciso, Machado se expõe às duras


observações dos críticos que buscavam, talvez, um teor mais romântico. Uma das
críticas publicadas no Correio do Brazil, possivelmente escrita pelo poeta e dramaturgo
Carlos Ferreira (vide GUIMARÃES, 2004, p.302) destaca a artificialidade do romance
mais preocupado com a “inteligência do que com o coração” fruto de uma “imaginação
fria e positiva”. Quanto às características de concisão e frieza da razão serem superiores
aos impulsos da emoção, é possível encontrar lógica em seu posicionamento. Contudo
considerar que estas sejam qualidades negativas é incongruente, pois pensando no estilo
machadiano estas devem ser encaradas de forma positiva. Há em Machado de Assis uma
economia quando se trata de fatores como enredo e descrições ao passo que há extrema
engenhosidade no vasculhamento da alma humana, das suas vicissitudes e dos recursos
utilizados para construção de suas imbricadas estruturas narrativas.

O romance “(...) pertence à primeira fase da minha vida literária”. (ASSIS, 2008
[1905], p.235), contudo o autor expõe seus motivos que em muito se contrastam com os
defendidos naquele momento literário: “Não quis fazer romance de costumes; tentei o
esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos
busquei o interesse do livro” (ASSIS, 2008, p.236). Há no romance a abordagem de
estereótipos comuns dos burgueses do século XIX: Félix representando o homem
ciumento, atormentado pela aguda dúvida e que só se preocupa consigo mesmo e com
as aparências: “Não me parece provável que houvesse lido Sá de Miranda; todavia,
punha em prática aquela máxima de um personagem do poeta: ‘Boa cara, bom barrete e
boas palavras custam pouco e valem muito’...” (ASSIS, 2008, p.239); Lívia, a mulher
que busca uma paixão intensa, romântica; Raquel e Meneses, os que vivem o amor. Isto
deixa claro que Silviano Santiago estava correto em afirmar: “O romance de Machado é
antes de tudo um romance ético (...).” (Silviano Santiago em ASSIS, 2008, p. 127). Esta
bem poderia ter sido uma novela que aborda as dicotomias entre razão e sensibilidade.

96
Contudo, ainda que fosse possível enquadrar a viúva no âmbito da sensibilidade seria
impossível aplicar à personagem masculina a moldura da razão sem as necessárias
adequações. Félix não era simplesmente um homem racional, também era frio,
calculista, egoísta e simulador. Somente se deixava envolver em relações em que tivesse
a certeza de lucro.

Há desta forma, tal como afirmara o próprio autor, “o contraste de dois


caracteres”. De um lado Lívia e sua crença abnegada na capacidade de renovação
proporcionada pelo amor romântico e Félix, o eterno cético e infeliz, atormentado por
fantasmas do passado – até mesmo por isso o título irônico, ressurreição, que pode ao
mesmo tempo caracterizar o posicionamento das duas personagens principais diante da
vida, uma que acredita no poder regenerador do amor e outra que sofre com os efeitos
do passado que o impede de seguir em frente.

Tal era o contraste desses dois caracteres, que a estrela da viúva, não sei se
boa ou má estrela, reuniu a seus pés. Um, se viesse a adorar um rosto
hipócrita, desceria na escala das degradações, com os olhos fitos na quimera
da sua felicidade; outro, ardendo pela mais angélica das criaturas humanas,
quebraria com as próprias mãos a escada que o levaria ao céu. (ASSIS, 2008,
p. 278)

Nesta narrativa inaugural de M. de Assis no gênero romance, já é possível


perceber os traços que acompanharão seu estilo e que serão aprimorados em textos
narrativos posteriores: a ironia, a crítica severa aos costumes defendidos pela elite
carioca do século XIX, a análise psicológica das personagens. As ideias aqui defendidas
reverberam e estão afinadas com as já defendidas por José Verissimo no momento em
que este afirma que: “Todo o Sr. Machado de Assis está efetivamente nas suas primeiras
obras; de fato ele não mudou apenas evolveu” (VERÍSSIMO, 1976, p.157). Ou seja, cai
por terra a ideia de um Machado ingênuo na primeira fase, pois a “máxima
virtuosidade” apresentada em livros posteriores, a “segunda maneira” “não é senão o
desenvolvimento lógico, natural, espontâneo da primeira, ou não e senão a primeira com
romanesco de menos e as tendências críticas de mais” (VERÍSSIMO, 1976, p.157). Há
um processo e o conjunto deve ser analisado como um todo coerente, coeso e relacional
como também defende Lúcia Miguel-Pereira:

97
O autor das Memórias póstumas de Brás Cubas existia no de Ressurreição
como a Capitu da Glória estava na de Matacavalos – em germe; de vez em
quando, por uma frase, por uma indicação, por uma ideia apenas esboçada e
que mais tarde seria desenvolvida, parece aflorar, querer surgir das
profundezas em que mergulhava; mal se deixa surpreender, porém, e logo
some, abafado pelo narrador amante das conveniências, respeitador das
etiquetas sociais e literárias. (Miguel Pereira in ASSIS, 2008, p. 61).

Se aos primeiros críticos os livros de Machado eram considerados frios, o que


diriam então os posteriores? Com o passar dos anos, o grande “mestre tempo” sem o
qual “o espírito fica em perpétua infância” faz com que o escritor aguce ainda mais a
“inteligência” tornando a ironia mais fina e a crítica mais pontual. Tal como afirma
Veríssimo, “Nos livros que se seguiram é fácil notar como a emoção é, diríeis,
sistematicamente recalcada pela ironia dolorosa de um desabusado” (VERÍSSIMO,
1976, p.157).

Alfredo Pujol, acentuando ainda mais a divisão entre um primeiro e um segundo


Machado, defende que a primeira fase estaria caracterizada por um “humorismo faceto”
ao passo eu a segunda seria a fase de humor mais amargo. Segundo o crítico o primeiro
humor “não fere sequer a epiderme e que apenas faz sorrir” enquanto na segunda “A
tristeza da sua visão e o amargor da sua análise virão mais tarde, com o aparecimento da
nevrose que gerou seu doloroso pessimismo (PUJOL, 2007, p. 70). Contudo, penso que
a divisão de Pujol, ainda que lógica e bem amparada teoricamente, se apresenta de
forma exagerada, pois há no Machado de Assis dos primeiros romances alguns traços de
romantismo que, entretanto, são transfigurados pelo pessimismo manifestado pelo autor.
Discordo parcialmente também da análise que Pujol faz das quatro personagens
femininas principais das primeiras narrativas, caracterizadas pelo crítico como
românticas. As mulheres machadianas estão longe de ser as donzelas indefesas, pois
tanto Lívia, quanto Guiomar, Helena e Estela são mulheres fortes, decisivas e que
frustram o ideal romântico de mulher (tal como o que se faz presente na literatura de
José de Alencar).

Os principais problemas das críticas feitas aos primeiros romances machadianos,


talvez pudessem ser resumidos em duas questões:

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1 - As críticas que foram escritas na época de publicação dos livros estão
preocupadas em comparar o autor com outros autores românticos nascidos no Brasil ou
no exterior. Especialmente, o teor da crítica se volta para a observação e busca de
encontrar na narrativa machadiana elementos do romantismo;
2 – Os críticos posteriores que escreveram suas observações após a publicação
de livros da denominada “segunda fase” do autor, comparam-no consigo mesmo. Há
uma visão maniqueísta comum entre um Machado ingênuo e aprendiz dos primeiros
livros e o bruxo do Cosme Velho de suas narrativas de madurez;

Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova
edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dois ou três
vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que
vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase
da minha vida literária. (ASSIS, 2008, p. 235)

Na citação acima se percebe que a divisão entre primeira fase e segunda também
é induzida pelo próprio Machado que utiliza de armadilhas ficcionais levando o crítico
a acreditar em dois autores distintos. Na tentativa já irônica de abrandar as possíveis
críticas, o autor escreve a advertência abaixo. Designar seu romance como um ensaio é
uma forma de minimizar os ataques. Machado de Assis já previa que a boa e sisuda
crítica iria levantar os pontos negativos que seriam as divergências entre sua literatura e
o romantismo da época.

Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo o que pensará dele o
leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de contos e novelas,
que há dois anos publiquei, me animou a escrevê-lo. É um ensaio. Vai
despretensiosamente às mãos da crítica e do público, que o tratarão com a
justiça que merecer. (ASSIS, 2008, p. 235).

No meu ponto de vista, a literatura machadiana não deveria ser dividida em duas
fases (primeira e segunda). A ideia de amadurecimento é interessante por demonstrar
que o espírito evolui com o tempo. E com o bruxo do Cosme Velho não seria diferente.
Pode-se perceber que o amadurecimento carrega junto um agravo do pessimismo e
maior liberdade para abordar assuntos polêmicos e fazer críticas mais contundentes. O
espírito que caminha e evolui para fugir da perpétua infância traz inspirações kantianas
para a advertência de Machado. A diminuição da confiança é um eufemismo para o que
99
virá a proceder no futuro com a forma de refletir sobre a sociedade e sobre a vida que se
encontra nos romances da denominada segunda fase.

Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-
nos apenas o que é indispensável a todo o homem, e dissipando a outra, a
confiança pérfida e cega. Com o tempo; adquire a reflexão o seu império, e
eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espírito fica em
perpétua infância. (ASSIS, 2008, p. 235)

Os posicionamentos críticos relatados acima desconhecem na literatura


machadiana a construção de um todo artístico constituído por textos interdependentes.
Há em sua literatura a criação de uma obra harmônica caracterizada por narrativas,
contos, poesias, teatro, crítica e crônicas que giram sobre uma mesma questão. Em
Machado há sempre a crítica ao modo de vida da sociedade, a qual surge de forma mais
direta ou indireta. Por isso, não faz sentido pensar em narrativas totalmente autônomas e
separadas.
Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado como um todo
coerentemente organizado, percebendo que certas estruturas primárias e
secundárias se desarticulam e rearticulam sob forma de estruturas diferentes,
mais complexas e mais sofisticadas à medida que seus textos se sucedem
cronologicamente. (GLEDSON apud SANTIAGO, 2000, p. 429).

É necessário assumir que por vezes o trabalho aqui desenvolvido não conseguirá
fugir totalmente ao segundo modo apresentado de fazer crítica machadiana, contudo há
a tentativa de amenizar e evitar comparações que prejudiquem a reflexão sobre seus
livros tentando abordá-los sem levar em conta uma visão progressista sobre o estilo de
escrita machadiano, relacionando os textos de acordo com o contexto de cada época.

Ainda assim, admitindo a importância das contingências de seu tempo e de seu


país, causam-me assombro as relações extremadas entre vida e obra tal como as
consideradas por Lúcia Miguel Pereira em alguns pontos. A crítica afirma que o
realismo de M. de Assis é prejudicado por seu escasso conhecimento dos costumes da
elite burguesa em representações das personagens desta classe em seus primeiros
romances. Segundo a crítica, a tentativa de análise psicológica por parte do autor de
personagens fora frustrada por desconhecimento da personalidade dos membros dessa
faixa social: “(...) em Ressurreição, essas paixões e esses temperamentos não são ainda
os da vida real, mas os que idealizava um mulato pobre e de talento quando sonhava

100
com a gente elegante, que via passar de carro” (PEREIRA, 1988, p. 141).

Não é difícil notar que as críticas de Alfredo Pujol, de Lúcia Miguel Pereira e de
José Veríssimo somente são possíveis, pois, os críticos conhecem a obra de M. de Assis
tanto da “primeira fase” quanto da “segunda”. Estão, por conseguinte, amparadas num
perspectivismo comparativo e sincrônico. Nesta visão também não é um absurdo lógico
deduzir que para eles há um M. de Assis melhor e, consequentemente, um pior, ou que
há o início do projeto e uma conclusão dele.

Já mencionei a dificuldade encontrada para que esta tese fuja da tendência


perspectivista e comparativa dos textos machadianos, porém, também há um esforço
empreendido que objetiva fugir da comparação entre um Machado crítico e um ingênuo,
entre um humor faceiro e um humor irônico. O que defendo é que há condições
externas, contingenciais, contextos que influenciam a produção de qualquer objeto
artístico. Desta forma, não desprezo o trabalho comparativo, mas tento também analisar
a narrativa e as condições de produção do texto.

Com Schwarz é possível perceber, já nas primeiras páginas romanescas de M. de


Assis, o descompasso que há entre o comportamento e as ideologias defendidas em solo
brasileiro: o liberalismo econômico versus o sistema patriarcal do século XIX; o
discurso das igualdades entre os homens versus as condições de vida do subalterno.
Ainda de acordo com o crítico já há nestes romances iniciais a presença da realidade das
diferenças e desigualdades sociais. Contudo, este fato se apresenta individualmente
representado nas figuras das personagens e ainda não se apresenta como uma mazela
social. Todavia, a retratação destas personagens surge como um plano micro que já
possibilita a percepção da crítica ao plano macrossocial.

Em Ressurreição o amor entre Félix e Lívia sofre obstáculos que não são
produzidos por elementos externos ao casal. O maior obstáculo do romance advém do
ciúme extremo manifestado por Félix: “A vida solitária e austera da viúva não pôde
evitar o espírito suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum tempo depois
duvidou de que fosse puramente um refúgio; acreditou que seria antes uma
dissimulação” (ASSIS, 2008, p. 314). Assim, como veremos em Dom Casmurro, há o
101
mote shakespeareano em Ressurreição. Entretanto, no Otelo de Shakespeare a
personagem masculina, que é ciumenta ao extremo, mata a própria mulher por acreditar
que esta o tinha traído. No drama, a personagem principal, o mouro de Veneza ocupava
no passado uma posição subalterna e por doentio ciúme destrói todas suas conquistas.

A tragédia de Shakespeare foi publicada em meados de 1622. Mas, em sua


composição há a data de 1604. Na peça, Otelo era mouro e, portanto, apresentava a
subalternidade por sua origem. Porém, por meio de seus méritos de exímio soldado
consegue alcançar o posto de general e respeito no reino de Veneza. Esta ascensão
provoca a inveja de Iago diante do sucesso do mouro. Iago planeja dois planos contra
Otelo. No primeiro, descobre que Otelo era amante de Desdêmona (descendente da
nobreza) e acusa o mouro de utilizar de meios espúrios (bruxaria) na sedução da jovem.
Otelo consegue defender-se da acusação provando que o amor dos dois era genuíno. O
segundo golpe, contudo, fora mais grave. Otelo se casa com Desdêmona e parte para a
Ilha de Chipre para defender os domínios do reino de Veneza. Iago aproveita a
oportunidade para gerar em Otelo a desconfiança da fidelidade de sua esposa, alegando
que esta teria um caso com seu tenente Cássio. As tramas de Iago levam Otelo a
assassinar a esposa e depois, percebendo seu erro encerrar o trágico final com sua
própria morte.

O impulso shakespeariano se faz presente na dúvida carregada como estandarte


pela protagonista, característica que é repetidamente lembrada pelo narrador onisciente.
O foco narrativo atento as duas personas emblemáticas do livro não poupa esforços em
descrever a incerteza de Félix como elemento dominante de seu caráter. O Otelo às
avessas fica claro quando o escritor coloca em seu romance a inspiração contida nos
versos do autor inglês.

Minha ideia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele pensamento de
Shakespeare:
Our doubts are traitors,
And make us lose the good we oft might win,
By fearing to attempt. (ASSIS, 2008, p. 236)

Porém, e por isso denomino Otelo às avessas, é exatamente com a caracterização


e a ação dos personagens que a tragédia se distancia do romance de Machado de Assis.
102
O mouro, que seria a personagem principal do texto shakespeariano, representa o
indivíduo discriminado, ocupante da base da escala social e que consegue espaço na
hierarquia e que depois, perde tudo o que conquistou. Já no texto machadiano, a
personagem principal tanto de Ressurreição quanto de Dom Casmurro representa o
homem da elite da sociedade brasileira de sua época. Quase sempre estas personagens
que representam o poder são apresentadas nas obras de Machado como indivíduos
problemáticos: tomados de ignorância, pelo egoísmo, de caráter duvidoso, tolos.

Por detrás dessa superfície unida e lisa, os dramas se contorcem. Cada


criatura é um mundo fechado, impenetrável aos outros, que abalroa se os
encontra no caminho. O egoísmo, ora cínico, ora hipócrita, ora ingênuo, é um
dos móveis mais frequente das ações. O universo de Machado de Assis é, em
grande parte, uma expressão do egoísmo. Egoísmo da natureza, que sacrifica
o indivíduo à espécie; egoísmo da sociedade que, para manter os seus
estatutos, não hesita em acorrentar as criaturas a situações desgraçadas;
egoísmos da família, tudo subordinado às suas conveniências; egoísmo de
cada ser, exigindo sempre dos outros muito mais do que lhes dá. (Lúcia
Miguel-Pereira in ASSIS, 2008, p. 65).

Em Ressurreição não poderia ser diferente. No romance, há o desenlace desta


situação desigual entre um homem frio e uma mulher apaixonada (ASSIS, 2008, p.
262). Félix representa a sociedade que vive das aparências e considera banal a
demonstração dos sentimentos. O romance se passa a partir do novelo da vida das
personagens. Da crença no amor de Lívia e na constante dúvida de Félix. A personagem
masculina apresenta caráter duvidoso caracterizado por ações incoerentes e confusas. O
enredo é simples. As personagens protagonistas se encontraram pela primeira vez em
um baile, mas é no reencontro que eles se apaixonam. Um dos amigos de Félix,
Meneses, também se apaixona pela viúva. Raquel, no auge de seus 17 anos se apaixona
por Félix por acreditar que este a salvara de uma enfermidade. Além destas personagens
que giram em torno das duas protagonistas há outras, como Luís Batista, homem casado
que também se apaixona por Lívia e Cecília que é abandonada pelo protagonista no
início da narrativa.

O narrador deixa a personalidade de Félix clara a todo o momento, por exemplo,


quando afirma: “não se trata aqui de nenhum caráter inteiriço, nem de um espírito
lógico e igual a si mesmo” (ASSIS, 2008, p. 237). De caráter incoerente, complexo e
caprichoso. Sua principal característica é a duplicidade de caráter: “Duas faces tinha o
103
seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram, todavia diversas entre si, uma
natural e espontânea, outra calculada e sistemática.” (ASSIS, 2008, p. 237). Desde as
primeiras páginas a narrativa descreve Félix a partir de suas ações frias e calculistas
próprias de quem não poupa esforços para fazer valer seus desejos.

O coração de Félix não era dado às relações duradouras, pois ele facilmente se
enojava de seus novos amores, que se tornavam velhos após uma fugaz passagem de
tempo. E assim no ano novo resolve dar cabo às suas velhas ilusões: “Naquele dia,
aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para ocaso de seus velhos amores. Não eram
velhos; tinham apenas seis meses de idade” (ASSIS, 2008, p. 237). E assim, lentamente,
o narrador revela para o leitor traços de sua personalidade, afirmando, ironicamente, ser
Félix um herói, não um romântico, mas um que escolhe um lindo dia de começo de ano
para terminar antigos amores de seis meses de idade.

(...) os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram
duas estações. Para o meu coração um ano é a eternidade. Não há ternura que
vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara as malas e deixa
o coração como um viajante deixa o hotel; entra depois o aborrecimento, mau
hóspede. (ASSIS, 2008, p. 242).

É com essas estratégias que ele termina seu relacionamento com Cecília que fora
para ele um puro cálculo, um passatempo: “(...) o que faço agora não é novidade;
ouviste-me dizer muita vez que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias então de
mim; fazias mal, porque era alimentar uma esperança vã.” (ASSIS, 2008, p. 241). Ele
justifica o término do relacionamento deslocando a situação a seu favor e defendendo
que todo amor é ilusão e de pouca duração.

Naquele homem feito de sinceridade e afetação tudo se confundia e


baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo, costumava compará-lo ao
escudo de Aquiles, - mescla de estanho e ouro, - “muito menos sólido”,
acrescentava ele. (ASSIS, 2008, p.237)

No momento em que se perde e se vê frágil e apaixonado, a personagem se abre


e o leitor acostumado com obras de cunho romântico vislumbra a possibilidade de um
amor, de uma tragédia, de uma mudança de caráter. Todavia, não é isto o que ocorre,
pois: “Nem tudo era bom, como acontece nesses livros, que são às vezes verdadeiros

104
asilos de inválidos do Parnaso, onde as musas reumáticas e manetas vão soltar os seus
gemidos” (ASSIS, 2008, p. 262).

A espontaneidade não faz parte de suas ações, a frieza e o planejamento prévio


de todas as coisas é o que lhe proporciona felicidade. Ele queria Lívia, contudo desejava
provas concretas de seu amor. Para ele não há espaço para a dúvida, para a pureza ou
para as surpresas de um sentimento. O ceticismo para a vida é a atitude cética perante as
emoções: “Eu amar? Pôr a existência toda nas mãos de uma criatura estranha [...]”. O
viver cético também contamina sua análise das personalidades alheias e assim ele age
quando reflete sobre a mulher “[...] não basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso
ouvi-la também; ainda que muitas vezes basta ouvi-la para a não conhecer jamais”
(ASSIS, 2008, p.249). Para Félix a confiança era a condição necessária para que vivesse
o amor. E além de sentir-se seguro era preciso que existisse serenidade e constância.

Fizeste brotar dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido
terreno do meu coração. Não basta; é preciso agora um raio que a anime e lhe
conserve o perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de
todos os dias, a que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros
tempos. Sem ela, o meu amor será um largo e inútil martírio (ASSIS, 2008, p.
275).

Outro traço do caráter de Félix que poderia ajudar a entender a sociedade da


época é a intensa preocupação com as aparências, ou seja, simulando a todo tempo um
falso equilíbrio. O posicionamento de Félix perante a situação representa de certa forma
o comportamento esperado, desejado, adequado da elite brasileira. Félix não consegue
ser feliz por seu egoísmo. A vida do protagonista é uma mentira verossímil em que
todos acreditam. A sociedade em que vive coloca a veracidade como um bem de menor
valor, afinal o que vale é a publicidade dos atos e o que eles aparentam e significam no
meio social, vale mais a verossimilhança do que a verdade. Os mascaramentos não
constituem, para esta elite, apenas estratégias, subterfúgios, mas fazem parte da própria
identidade. A simulação alcançou tal nível que se transformou em um traço da
personalidade, em uma filosofia de vida. Esta questão da verossimilhança surge
constantemente na literatura machadiana, é só observar o caso de Bentinho e Capitolina.

Nesta sociedade mais vale o engodo que a verdade. O que importa é o que as
105
outras pessoas afirmam como verdade e não o que ocorreu de fato. Assim se dá com o
caso de amor entre Lívia e Félix. Ele descobre elementos que comprovariam a inocência
de Lívia, contudo mantém sua postura fria diante da situação. O amor entre os dois não
deu frutos e morreu antes mesmo de florescer pela incapacidade de Félix em assumir
seus sentimentos e de lutar por eles. Sua fraqueza estava justamente na impossibilidade
de colocar-se acima das conveniências sociais.

A veracidade da carta que impedira o casamento, com o andar dos anos, não
só lhe pareceu possível, mas até provável. Meneses disse-lhe um dia ter prova
cabal de que Luís Batista fora o autor da carta; Félix não recusou o
testemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormente pensava era que
suprimida a vilania de Luís Batista, não estava excluída a verossimilhança do
fato, e bastava ela para lhe dar razão. (ASSIS, 2008, p. 314)

As aparências eram para Félix a mais absoluta verdade, ou a única que ele
seguia. Não significa que ele não sofria com a situação, aliás, o único sentimento que
ele carregava com intensidade desastrosa era o sofrimento. Esta dor era causada
principalmente por sua consciência amarga, repleta de ceticismo e o egoísmo próprio
dos que não se envolvem por não suportarem a possibilidade de decepção. Qualquer
gesto, as mínimas variações do olhar amado causavam-lhe suspeitas ameaçadoras que
terminavam por turvar-lhe o espírito.

O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar um pouco
os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas brancas, finas e transparentes
se destacavam no azul do céu. Chilreavam na chácara vizinha à casa do
doutor algumas aves afeitas à vida (...). Parecia que toda a natureza
colaborava na inauguração do ano. (ASSIS, 2008, p. 236).

Ao que tudo indica este fragmento poderia bem ser o início de um tradicional
romance romântico: o dia esplêndido, o sol, a brisa do mar que abrandava o estio, as
doces e transparentes nuvens. Os pássaros que cantavam como que homenageando o
novo dia de um novo ano. Porém, como é comum neste romance, as expectativas são
quebradas e o aparente pacto com o leitor é rompido. Na passagem a seguir, as rabugens
de Félix ficam claras e, aliás, o diálogo direto entre narrador e leitor também serviria
com um alerta para as frustrações que seriam provocadas no decorrer da narrativa.

106
Tudo nos parece melhor e mais belo, - fruto da nossa ilusão, - e alegres com
vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para
a morte. Teria esta última idéia entrado no espírito de Félix, ao contemplar a
magnificência do céu e os esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira
pareceu toldar-lhe a fronte. Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo
tempo imóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o
passado. Depois, fez um gesto de tédio, e, parecendo envergonhado de se ter
entregue à contemplação interior de alguma quimera, desceu rapidamente à
prosa, acendeu um charuto, e esperou tranquilamente a hora do almoço.
(ASSIS, 2008, p.236-237).

Está bem nítida a impossibilidade de Félix se deixar levar pelo amor ou pelas
ilusões. O romantismo era, para ele, apenas uma ideia vaga, uma nuvem ligeira a toldar-
lhe a fronte, nada que não pudesse ser destruído pelo tédio. Tamanha era sua frieza que
chegava a envergonhar-se destes pequenos momentos de contemplação da
magnificência do céu e dos esplendores da luz. Sua invencível quimera interior não
permitia o livre divagar e ele voltava para a personalidade inquisidora de sempre. Nem
mesmo os pensamentos mais íntimos da amada escapavam ao seu mirar conservador e
investigativo. O narrador que pode desvendar as intimidades da personagem permite
que o leitor conheça os elementos próprios do caráter de Félix. Esta seria a principal
diferença entre os romances Ressurreição e Dom Casmurro. Enquanto no primeiro há
um narrador onisciente, no segundo, o narrador é também personagem da trama, repleto
de segundas intenções a controlar a narração. O foco narrativo de Ressurreição indica
uma maior intromissão no capítulo IX e o leitor passa a conhecer a intranquilidade de
Félix perante o possível amor:

O amor de Félix era um gosto amargo, travado de dúvidas e suspeitas.


Melindroso lhe chamara ela, e com razão; a mais leve folha de rosa o
magoava. Um sorriso, um olhar, um gesto, qualquer coisa bastava para lhe
turbar o espírito. O próprio pensamento da moça não escapava às suas
suspeitas: se alguma vez lhe descobria no olhar a atonia da reflexão, entrava a
conjeturar as causas dela, recordava um gesto da véspera, um olhar mal
explicado, uma frase obscura e ambígua, e tudo isto se amalgamava no ânimo
do pobre namorado, e de tudo isto brotava, autêntica e luminosa, a perfídia da
moça. (ASSIS, 2008, p. 264-265).

Afinal, o que realmente Félix via em Lívia que o deixara apaixonado? Será que
conseguia ver Lívia como ela realmente era ou percebia somente aquela que estava em
seu íntimo, em seu ideal padronizado de mulher. Ele queria aquela que observava à
distância e não a que estava ao seu lado. Tudo indica que o medo do protagonista era
provocado pela possível frustração ao conhecer a mulher real. Talvez, essa mulher
107
pudesse destruir a estátua passiva que ele criara mentalmente.

O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e


graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido
pelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela
alvura sobre a cor sombria do vestido, como um fragmento de estátua sobre o
musgo de ruína. Félix recompôs na imaginação a estátua toda, e estremeceu.
(ASSIS, 2008, p. 249).

Enfim, Félix significava o homem comum, o trivial. Era o herói representativo, o


homem da elite brasileira do século XIX encarado pelos olhos críticos do escritor.
Aquele que preferia a comodidade de um casamento arranjado ao amor e seus riscos. A
segurança era para Félix o manter as aparências. A confiança não seria fruto do amor,
mas do tempo. Lívia seria constantemente observada, vigiada e ao primeiro traço
obscuro ou de desconfiança deveria ser descartada.

A obra não está completa – continuou Félix -; metade apenas. Fizeste brotar
dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido terreno do meu
coração. Não basta; é preciso agora um raio que anime e lhe conserve o
perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias a
que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros tempos. Sem
ela, o meu amor será um largo e inútil martírio. (ASSIS, 2008, p. 275)

É interessante observar a atitude de Félix perante a vida, sua incapacidade de seguir seu
coração e sua inescrupulosa capacidade de trair a todos e a si mesmo e depois conseguir
dormir o sono tranquilo dos justos e esquecer-se de tudo: “Uma hora depois do baile, a
viúva, a dança, tudo se lhe desvaneceu do espírito, graças a um sono tranquilo e
profundo, como essas nuvens douradas do ocaso que a noite absorve ou dissipa”
(ASSIS, 2008, p. 249). O seu amor por Lívia representava apenas uma simples nuvem
dourada do ocaso dissipada pela obscuridade de sua personalidade incerta. Seu amor era
sustentado pela presença, a simples distância servira para apagar de seu coração a
existência de Lívia em sua vida.

Félix é que não iria parar no claustro. A dolorosa impressão dos


acontecimentos a que o leitor assistiu, se profundamente o abateu,
rapidamente se lhe apagou. O amor extinguiu-se como lâmpada que faltou
óleo. Era a convivência da moça que lhe nutria a chama. Quando ela
desapareceu, a chama exausta expirou. (ASSIS, 2008, p. 313).

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Nem mesmo o claustro vivenciado pela viúva após as seguidas frustrações
vividas conseguiu amolecer o coração de Félix. Ele não sentira remorsos pela tristeza
que causara a ambos. Como sempre o som de seu coração é abafado por uma lógica
dominada pelas aparências e por um ceticismo sórdido: “A vida solitária e austera da
viúva não pôde evitar o espírito suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum
tempo depois duvidou de que fosse puramente um refúgio: acreditou que seria antes
uma dissimulação” (Machado de Assis, 2008, p. 314). Assim, ele cumpre sua existência
como um cidadão que possuía todos os elementos considerados pela sociedade como
essenciais para encontrar a felicidade. Todavia, era um espírito infeliz como muitas
personagens masculinas machadianas. Desistira do amor antes mesmo de se entregar,
antes mesmo de amar e termina seu relacionamento com Lívia por meio de uma carta
que também expressa a sua covardia:

Lívia
O que vou dizer é indigno, bem o sei; mas é ainda mais cruel do que indigno.
O nosso casamento é fatalmente impossível. Não tens nenhuma culpa direta
nem indireta na minha resolução. Esta carta, que me condena, será a tua cabal
defesa. Adeus (ASSIS, 2008, p. 303).

Todas estas personagens, estes homens pusilânimes não conseguem alcançar a


felicidade pelo comodismo de se submeter às conveniências sociais, pelo medo da
infelicidade, padecem pelo receio de lutar. O coração de Félix reavivado pela sedutora e
bela heroína sentira tão somente um impulso, ressuscitara sem levar consigo, contudo, o
sentimento de confiança próprio dos amantes.

Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a


sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa classe de
homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do poeta: “perdem
o bom pelo receio de o buscar”. Não se contentando com a felicidade exterior
que o rodeia que haver essa outra das afeições íntimas, duráveis e
consoladoras. Não a há de alcançar nunca, porque o seu coração, se ressurgiu
por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a
memória das ilusões. (ASSIS, 2008, p. 314).

Toda esta exposição do caráter de Félix pode parecer uma construção


maniqueísta da personagem. Porém, quem conhece os textos machadianos acaba por

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perceber que suas personagens são psicologicamente complexas. Em alguns momentos,
é possível vislumbrar em Félix um esforço para fugir de sua própria condição e viver
um amor livre, louco e feliz. Contudo, as amarras sociais e as marcas profundas que
formaram sua identidade o impedem de seguir os impulsos pulsantes de seu coração.

As narrativas de Machado deixam claro o ideal da sociedade que relaciona êxito


social com felicidade. É possível observar a angústia e tensão em que vivem as
personagens na tentativa de aliar os dois ideais e neste ponto as que mais sofrem são as
personagens femininas. A ambição é característica comum exigida em maior ou menor
grau em diferentes situações. As que ambicionam a elevação na classe social são as que
mais são cobradas. Elas vivem o dilema entre o amor e a elevação social e sempre são
impulsionadas para a simulação. Por vezes, retirando alguns casos específicos como o
de Lívia, estas mulheres são colocadas em situações de favor e abrigadas por famílias
abastadas e para estas quase sempre há a complexa dúvida entre ter que decidir entre a
felicidade advinda do amor e a de passar a ocupar um espaço mais elevado na hierarquia
social. Isto se dá, pois, na sociedade de aparências, o melhor meio de elevação social
está justamente no matrimônio, tal como se observa nos romances A mão e a luva,
Helena e Iaiá Garcia.

Por outro lado, para se passar do amor ao casamento, o homem e a mulher se


entregam a diversos jogos sociais. As várias formas do jogo são baseadas em
posições opostas e complementares, que definem sua posição dentro da
sociedade: a liberdade e a prisão, o sentimento e a razão. À multiplicidade de
experiências que o homem pode ter, por ser livre, corresponderá na jovem
solteira ao uso, caso queira a liberdade, de múltiplas máscaras. A aceitação de
qualquer experiência por parte da mulher, aliás, requer obrigatoriamente a
dissimulação; esconder é a sua atitude habitual, mesmo porque o próprio
recato que namorado/noivo/marido exige dela já é um véu que cobre seus
legítimos sentimentos. (ASSIS, 2008, p. 128)

Lívia, conforme é possível constatar em passagens esparsas no romance, tinha se


casado por amor. Contudo, este amor teria sido, de certa forma, uma decepção, pois ela
buscava intensidade e o marido serenidade. Seu marido também seguia o ideal social da
simulação dos sentimentos, da reclusão das manifestações românticas. Lívia buscava o
êxtase emocional provocado por um amor intenso “um êxtase divino, uma espécie de
sonho em ação, uma transfusão absoluta de alma para alma;”. O casamento, naquela

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época, significava controle, tranquilidade e passividade de uma união estável em todos
os sentidos: “um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal sem ardores, sem
asas, sem ilusões...” (ASSIS, 2008, p.273).

Estou explicando a situação da minha alma – continuou ela. – foi aflitiva e


triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Era um homem apático e frio; honesto,
é verdade, e bom coração, mas falávamos língua diversa e não nos podíamos
entender. Confiei todavia na influência do amor. (...) Tinha feito da nossa
vida conjugal um deserto; e se a minha alma clamava contra o destino, minha
consciência me acusava de um erro, o erro de haver perturbado a paz
doméstica a troco de um sonho que não veio. Não me faço melhor do que
sou, bem vês; mas uma parte da culpa não será da natureza que me fez tão
pueril? Tal é o meu receio agora – continuou Lívia depois de alguns segundos
de silêncio -; às vezes cuido que não vim ao mundo para ser feliz nem para
dar a felicidade a ninguém. Nasci defeituosa, parece. Serás tu capaz de
desfazer a apreensão ou corrigir o defeito? (ASSIS, 2008, p. 274)

Lívia é o verdadeiro estereótipo de uma heroína romântica com sua pureza e


impulsividade para encarar os desafios e frustrações do amor. E o protesto não foi só
com os lábios, foi também com os olhos – uns olhos aveludados e brilhantes, feitos para
os desmaios do amor. (ASSIS, 2008, p. 248). O leitor fica conhecendo a personagem
pelos olhos ora do narrador ora de Félix. Os olhares coincidem em admirar seus dotes
físicos que recordam as donzelas, aparentemente indefesas, dos livros de cavalaria. Era
um modelo de graça antiga, bela, não lhe faltava nem mesmo a languidez do olhar que
seduzira os olhos de Félix e de tantos outros.

Félix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelo de graça antiga.


A tez, levemente amorenada, tinha aquele macio que os olhos percebem antes
do cantacto as mãos. Na testa lisa e larga, parecia que nunca se forma a ruga
da reflexão; não obstante, quem examinasse naquele momento o rosto da
moça veria que ela não era estranha às lutas interiores do pensamento: os
olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez; naquela ocasião não
eram vivos nem lânguidos; estavam parados. (ASSIS, 2008, p. 248-249).

O relacionamento entre Félix e Lívia fora marcado pelas vontades de Félix. Por
três vezes seguidas ele termina sua relação com Lívia: a primeira pela semente da
discórdia lançada por Luís Batista, a segunda por ciúmes de Meneses e a terceira por
causa de uma carta falsa e anônima que lançava suspeitas sobre a fidelidade de Lívia
111
pelo primeiro marido. Félix não dá direito de defesa para Lívia. O tratamento dado à
mulher é o de submissão e ela deveria demonstrar total passividade diante das
determinações. Contudo, a última palavra na ligação dos dois quem dá é ela,
demonstrando que não seguira o ideal social de passividade feminina:

O destino ou a natureza não nos fez um para o outro. O casamento entre nós
seria uma cerimônia apenas. Seria mais; seria o nosso infortúnio, e mais vale
sonhar com a felicidade que poderíamos ter do que chorar aquela que
houvéssemos perdido. (ASSIS, 2008, p. 311).

E assim, o último e derradeiro golpe nas ilusões do leitor romântico. Talvez, este
leitor fosse verdadeiramente o leitor idealizado por Machado de Assis, o que ele
desejava frustrar com sua literatura. O desenlace desta situação desigual poderia
terminar feliz ou trágica, mas não tediosa como terminou. O leitor romântico poderia
imaginar a queda de Lívia e imaginar que ela viesse a cometer algum tipo de sacrifício,
mas não foi o que aconteceu. Ao contrário visualiza a queda de Félix que pela primeira
vez se vê atônito perante a atitude de Lívia.

O desenlace desta situação desigual entre um homem frio e uma mulher


apaixonada parece que devera ser a queda da mulher: foi a queda do homem.
(...) Ironia da sorte chamará o leitor a este desfecho de uma situação que,
algumas semanas antes, tão outra se lhe afigurava. Chame-lhe antes lógica da
natureza, porque o coração de Félix, que aparentava ser de mármore, era
simplesmente da nossa comum argila. (ASSIS, 2008, p. 262).

Enquanto Félix é o homem de duas faces e representante fiel da sociedade


simuladora, Lívia apresenta a solidez de caráter marcada por uma personalidade forte.
“A alegria tornou a florir no rosto e no peito da viúva. Ela possuía a memória da
felicidade, não a das tristezas. O que eram reminiscências de infortúnio apagou-se com
o tempo; a serenidade dos primeiros dias foi só o que lhe ficou.” (ASSI, 2008, p. 295).
Fica visível que enquanto os senhores simulados carregam o peso, o remorso de uma
vida de aparência (é o que ocorre com Félix e com Bento Santiago); a viúva carrega
apenas as memórias felizes de sua existência autêntica. Ela não simula nem dissimula e
deixa que suas emoções sejam facilmente percebidas. Talvez esta leveza em
transparecer seus sentimentos tenha causado a confusão de Félix tão acostumado a viver
numa sociedade em que a transparência de caráter é considerada negativa. Todavia,
Lívia não se esconde, pois ela acredita no amor, no sentimento verdadeiro que está

112
acima das conveniências sociais:

Lívia, porém, não dissimulava nem hesitava; deixava transparecer no rosto o


que sentia no coração. Jogava com as cartas na mesa sem previsão nem
cálculo. Expansiva e discreta, enérgica e delicada, entusiasta e refletida, Lívia
possuía esses contrastes aparentes, que não eram mais que as harmonias do
seu caráter. Os próprios defeitos dela nasciam de suas qualidades. (ASSIS,
2008, p. 261).

O tempo marca fisicamente a todos no romance, mas a Lívia ele afeta de forma
desigual possivelmente contando com o aliado da tristeza. Ainda assim havia encanto e
feitiço em sua figura. A beleza de Lívia não estava em sua tez tal como pensava o
materialista Félix. Lívia era bela em seu interior e este não envelhecia e nem sofria a
decadência provocada pelo tempo. Sua alma não perdera o encanto, a integridade jovial
de seu ser estava acima de qualquer vaidade e por isso a velhice não lhe causava medo.
Ela não vivia das aparências.

Talvez o tempo lhe respeitasse a beleza, a não ser a catástrofe que lhe enlutou
a vida. Já na meiga e serena fisionomia vão apontando sinais de decadência
próxima. Os poucos que lhe frequentam a casa não reparam nisso, porque a
alma não perdeu o encanto, e é ainda hoje a mesma feiticeira amável de outro
tempo. Ela, sim, ela vê que a flor inclina o colo, e que não tarda o vento da
noite a dispersá-la no chão. Mas do mesmo modo que a beleza lhe não
acordara vaidades, assim a decadência lhe não inspira terror. (ASSIS, 2008,
p. 313).

Um aspecto bem característico da ficção machadiana é o julgamento das


personagens por parte do narrador. Este, conhecendo os mais íntimos traços das
personalidades presentes na trama, descreve mais minuciosamente os vícios do que as
virtudes. É deste modo que o leitor conhece Cecília caracterizada pela natureza volúvel
de seu caráter perante o amor. Ela se assemelha a uma versão feminina de Félix no que
se refere à curta duração de suas paixões.

Cecília não era hipócrita quando dizia gostar de um homem; qualquer que
fosse a natureza dos seus afetos, ela os sentia sinceramente; mas era raro que
sobrevivessem vinte e quatro horas à causa que lhos inspirara. Não se lhe
desmentira a constância durante os seis meses de intimidade com Félix; mas
se ela era amante para querer a um só homem, era independente para o
esquecer depressa (ASSIS, 2008, p.250).

Cecília é personagem secundária na narrativa. Na patriarcal sociedade do século


113
XIX, seu comportamento não é visto com bons olhos. Contudo, o interesse deste estudo
em abordar sua presença no livro se justifica pelo lugar social ocupado, por sua
fragilidade e pela luta pela sobrevivência empreendida por ela. Cecília é sustentada por
seus amantes, ora por um ora por outro. Ela simula seus próprios sentimentos para
conseguir meios para viver. E a simulação era tão forte que suas identidades acabam
tornando-se volúveis.

Outra personagem que sofre com as críticas morais do narrador é Viana. Ele
também é personagem secundária na narrativa. O interesse por ela se justifica pelas
marcas da subalternidade que a caracteriza e por exemplificar a política do favor tão
presente na literatura machadiana. Viana, o irmão de Lívia, decide aproximar os dois já
pensando numa forma de receber favores do futuro cunhado: “O parasita, que parecia
empenhando em preparar uma aliança de família com o médico (...)” (ASSIS, 2008, p.
260). O próprio narrador descreve Viana como um parasita consumado. Ele tinha mais
capacidade que preconceitos, ou seja, conseguia facilmente simular suas emoções em
busca de um único objetivo: a sobrevivência. Viana, apesar da aparente insignificância
na narrativa, é a personagem que representa a epistemologia da classe dominante do
país no século XIX, a sociedade das aparências. Haja vista que, conforme diz o
narrador, ele parecia seguir a máxima do autor português, Sá de Miranda, que diz do
valor das aparências numa sociedade que as valoriza e um tipo de elite para a qual o
bem mais valioso era o que fisicamente podia ser visto.

Viana era um parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que
preconceitos, menos sensibilidade que disposições. Não se suponha, porém,
que a pobreza o obrigasse ao ofício; possuía alguma coisa que herdara da
mãe, e conservara religiosamente intacto (...). Mas esses contrastes entre a
fortuna e o caráter não são raros. Viana era um exemplo disso. Nasceu
parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino. Não me
parece provável que houvesse lido Sá de Miranda; todavia, punha em prática
aquela máxima de um personagem do poeta: “Boa cara, bom barrete e boas
palavras custam pouco e valem muito...” (ASSIS, 2008, p. 239).

Assim, Viana não possuía personalidade definida, conseguia mudar de opinião se


necessário fosse com intenção de agradar àqueles que poderiam favorecê-lo de alguma
forma. E Félix se apresentava como uma oportunidade que não poderia ser
desperdiçada. O que mais chama a atenção em Viana é que sua situação não exigiria
dele este tipo de atitude. Aparentemente, o personagem possuía alguns bens que herdara
114
de sua mãe. Contudo, não considerava a opção de viver destes bens. Era um parasita
desde que tinha nascido. Sua natureza era a subalternidade41 e a simulação, sua forma de
sustento. Com suas habilidades conseguia moldar-se com objetivo de agradar, de
simular e de seduzir. Reconhecia o valor do dinheiro e não se abalava com o
temperamento de Félix.

Como Félix não lhe animasse a conversa no terreno em que ele a pôs. Viana
entrou a elogiar-lhe os vinhos.
— Onde acha o senhor vinhos tão bons? Perguntou depois de esvaziar um
cálix.
— Na minha algibeira.
— Tem razão; o dinheiro compra tudo, inclusive os bons vinhos. (ASSIS,
2008, p. 20).

Aparentemente, as personagens de Machado de Assis apresentam caráter


duvidoso e passam toda a narrativa vivendo de ilusões e simulações. Esta situação
poderia parecer uma apropriação por parte do autor de personagem que funcionem
como joguetes, entretanto, ainda que assim sejam quem os torna meros títeres é a
sociedade e não o escritor. Machado de Assis apenas encena na literatura o que estava
escancarado perante seus olhos e fruto da exigência contingencial que ele observava.

O grande choque provocado no leitor não é somente um recurso estilístico


empregado pelo autor. Ao analisar Ressurreição, a pesquisa procurou alcançar uma
guinada epistemológica. A escolha por trabalhar com esse romance e com ele pensar a
questão da subalternidade pode, a princípio, parecer incongruente. As personagens
principais com que esta tese trabalha não podem ser consideradas tout court subalternas.
Talvez, Lívia possa ser considerada uma subalterna por sua condição de viúva e de
mulher na sociedade patriarcal do século XIX. Contudo, ainda assim, como pensar em
Lívia como uma subalterna dissimulada? Por isso, é importante esclarecer alguns
pontos:

1 – a dissimulação não é a única arma do subalterno. Buscando a sobrevivência em um


41
Esta tese utiliza o termo subalterno ou subalternidade em seu sentido mais amplo tal como o
define Spivak: “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão
dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no
estrato social dominante” (SPIVAK, 2010, p.12). Neste sentido, há uma gama de personagens subalternas
na literatura machadiana, o negro tanto escravizado quando o liberto, “mulher como subalterna, não pode
falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir” (SPIVAK, 2010, p.15).
115
regime de privações, o indivíduo em situação de subalternidade pode utilizar-se de
outras armas: pode lutar, pode esconder-se, pode dissimular e simular sua condição.42

2 – o trabalho com a análise de dois personagens, Félix e Lívia, proporcionou uma


reflexão sobre a complexidade existente na realidade de uma sociedade fundada sob o
signo do favor e sob a ótica da verossimilhança. O romance Ressurreição sempre
apresentava, nas análises feitas, motivos para que estivesse no conjunto de textos que
deveria estar presente na tese. Contudo, como abordar um romance em que as
personagens principais são representantes da elite brasileira? É neste ponto que se
observa uma nova guinada. Lívia não é dissimulada, tal como é definido pelo narrador:

Lívia, porém, não dissimulava nem hesitava; deixava transparecer no rosto o


que sentia no coração. Jogava com as cartas na mesa sem previsão nem
cálculo. Expansiva e discreta, enérgica e delicada, entusiasta e refletida, Lívia
possuía esses contrastes aparentes, que não eram mais que as harmonias do
seu caráter. Os próprios defeitos dela nasciam de suas qualidades. Era crédula
à força de ser confiante, ríspida com tudo o que lhe parecia baixo ou fútil.
Tinha a imaginação quimérica, às vezes – o coração supersticioso, a
inteligência austera, mas compensava esses defeitos, se o eram, por
qualidades capitais e raras. (ASSIS, 2008, p.261)

Contudo, ela é subalterna e como tal, assume o posicionamento combativo de,


perigosamente, enfrentar a sociedade patriarcal de frente. Claro, que esta atitude tem um
preço e para Lívia é a solidão e em determinados momentos o ostracismo. E por este
motivo, Lívia seria crucial para entender um processo de reação subalterna que ainda
que não seja o desenvolvido reflexivamente neste trabalho, merece ser apresentado. E
no caso de Félix fica ainda mais fácil defender sua presença como elemento de análise.
Ele representa o reverso da dissimulação. Félix é o representante da elite e que ainda
assim não é senhor de suas vontades. Vive simulando sua existência, vivendo da
verossimilhança e das fachadas. Ele prefere perder o amor genuíno de Lívia a sofrer
qualquer tipo de censura social.
42
Neste sentido, poder-se-ia assinalar que algumas personagens machadianas em situação subalterna (um
bom exemplo seria José Dias) se apresentam com características semelhantes às personagens picarescas.
Os pícaros se apresentam de forma tradicional em romances picarescos de língua espanhola, tais como:
La vida de Lazarillo de Tormes, y de sus fortunas y adversidades (1554) de autor anônimo, La vida del
Buscón llamado Pablos (1626) de Quevedo, e La Pícara Justina (1605) de F. López de Úbeda.
Geralmente, estas narrativas apresentam um personagem principal que narra suas experiências e
peripécias valorizando a astúcia como estratégia de sobrevivência. O pícaro é, costumeiramente,
caracterizado pela ingenuidade inicial que aos poucos, de acordo com as dificuldades existentes, vai
assumindo uma postura dissimulada.

116
Estamos salientando este episódio do romance porque é ele que nos pode
conduzir ao problema ético da conduta do homem ciumento no universo
romanesco de Machado. A carta – pressente acertadamente Félix – deve ter
sido escrita por Luís Batista, também pretendente aos favores de Lívia e
preterido, e portanto não merecia crédito ou confiança, escrita que foi pela
pena da inveja ou do orgulho ferido. Mas isso não tinha importância para
Félix, porque para ele contava mais a verossimilhança da situação criada pela
carta do que a verdade proporcionada pelo exame detido dos fatos.
(SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 128)

O esforço empreendido para analisar as complexas personagens criadas pelo


escritor esteve o tempo todo atravessado por demandas sociais, contingenciais e
políticas. A verossimilhança defendida por Silviano Santiago descreve uma forma de
vida, uma cultura propagada pela elite patriarcal brasileira e que acaba afetando, em
uma espécie de efeito cascata, todos os espaços e âmbitos sociais. A aparência acaba por
influenciar também o sensível, os amores, as relações sentimentais. Félix é simulado e
Lívia, representando uma figura subalterna, deveria se subordinar aos mandos e
desmandos sociais. Porém, ela se nega a viver a simulação. Lívia deseja o autêntico, o
verdadeiro, o amor.

O que será apresentado a seguir é uma leitura de Dom Casmurro que tenta
perceber no texto literário aspectos da sociedade brasileira do século XIX abordando a
tensão entre a elite e a classe dos subalternos composta, sobretudo, por agregados,
escravos, alforriados e mulheres e a relação entre o narrador e personagens. Neste
contexto, o leitor será guiado por um narrador amargurado que narra as negatividades e
mazelas resultantes de uma vida simulada em que verossimilhança vale mais do que
verdade. Sendo assim, Dom Casmurro é uma geografia das simulações presentes na
sociedade narrada pelo livro.

117
Dom Casmurro

O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma.


Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho,
desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de
plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes. (MIA COUTO, 1987, p.
19)

Dom Casmurro foi publicado em 1899 e se destaca pela abordagem de um


narrador de primeira pessoa, de posicionamento duvidoso, que termina por manipular
toda a narrativa. Já no início o leitor se depara com o narrador-personagem na sua
madurez, tomado pelo tédio e pela amargura de uma existência vazia: o filho morrera e
a mulher que ele amara também falece, após um longo exílio distante do protagonista.
Neste primeiro momento ocorre a cena em que o protagonista e narrador recebe a
alcunha de Dom Casmurro.

O livro é publicado na segunda metade do século XIX, numa época de euforia


gerada pelo cientificismo. Neste período também ocorrem transformações que
marcariam profundamente o cenário nacional, tais como: a abolição da escravatura
(1888), a proclamação da república (1889), a necessidade da vinda de imigrantes. Era
um momento de importação de ideias principalmente advindas da Europa. O
liberalismo, o socialismo, as teorias científicas se desenvolveriam no Brasil e sofreriam
mutações com o clima dos trópicos. O cenário do romance é a cidade do Rio de Janeiro
com referências aos costumes, às ruas e personagens da cidade.

No caso específico de Dom Casmurro a ambição de Machado de Assis é retirar o


leitor de um lugar tranquilo e de passividade e o convidar a ser partícipe do relato,
punindo ou inocentando Capitu. Quando escreve Ressurreição o autor, diferentemente
do que ocorre em Dom Casmurro, coloca as incertezas no coração de Félix, que se
apresenta como um infeliz representante do homem da elite social do século XIX. Em
Dom Casmurro a ousadia é maior, o interesse do escritor é inserir a dúvida no leitor.
Machado almeja retirar o leitor do aparente estado de letargia alterando sua condição
psicológica pelas constantes provocações do texto. Porém, a arquitetura do texto se dá
118
de tal forma que nada é evidente, todo o processo de assimilação e interpretação é de tal
complexidade que exige muito da recepção.

Considere uma passagem curiosa do romance Dom Casmurro, geralmente


deslocada no romance e, por isso, acaba sendo considerada de pouca importância. No
capítulo intitulado Os vermes, o escritor apresenta sua percepção do estado letárgico do
receptor. Os vermes do romance apenas roem e roem livros sem darem a devida atenção
ao que estão roendo. Devoram palavras, frases e livros inteiros sem qualquer deferência.
Impossível não comparar esta passagem com o papel do leitor e com o comportamento
deste diante dos livros, o qual é ironicamente explicado pela metáfora do “verme
gordo”:
Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos
textos roídos por eles.
- Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos
absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos,
nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.
Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado
palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os
textos roídos, fosse ainda um modo de roer o roído (ASSIS, 2008, p. 948-
949).

O autor mostra possuir uma imagem totalmente singular de seus leitores. Em


diversos momentos ele se dirige ao receptor ora com cumplicidade, ora com ironia, ora
com um tom de sarcasmo. Porém, um traço é similar em todas suas narrativas: nada é
dado de graça a quem almeja ler seus romances. Há intensas estratégias de dissimulação
que induzem o leitor a acabar se perdendo em muitas de suas armadilhas narrativas já
que se sente num labirinto.

De forma jocosa podemos perceber a referência que faz ao leitor em crônica de


1888 em que, ao relatar um fato do cotidiano, um diálogo entre trabalhadores dos
bondes, utiliza dessa situação fugaz e comum para apropriar-se do vocábulo “carapicu”
para referir-se a seu leitor: "Que te dizia eu? Fiz uma viagem à toa; apenas pude apanhar
um carapicu ... " (ASSIS, 2008, p.829). A estratégia se faz com o sentido objetivo de
dizer que eram poucos os seus leitores. Porém, cabe refletir se eram poucos os leitores
reais ou se eram poucos os que cumpriam as exigências ideais do escritor? "Aí está o
que é o leitor: um carapicu este se criado; carapicus os nossos amigos e inimigos”
(ASSIS, 2008, p. 829).
119
Os leitores pensam com razão que são apenas filhos de Deus, pessoas,
indivíduos, meus irmãos (nas prédicas), almas (nas estatísticas), membros
(nas sociedades), praças (no exército), e nada mais. Pois são ainda uma certa
cousa,- uma cousa nova, metafórica, original (ASSIS, 2008, p. 828)

O narrador é o próprio Bentinho e por isso a narrativa está direcionada por suas
memórias, logo por construções, talvez, filtradas pela imaginação e pela incapacidade
de a memória ser fiel ao realmente acontecido. O velho e amargurado Dom Casmurro é
quem narra toda a história e é a própria personagem que deixa isto claro quando insere a
dúvida nas expectativas do leitor.

No caso de Machado, a reconstituição do passado obedece a um plano


predeterminado (cujo exemplo concreto dentro do tecido narrativo seria a
reconstrução real da casa de Matacavalos, que mostra em si toda a
artificialidade do processo machadiano) e sobretudo a um arranjo
convincente e intelectual de sua vida. Frisemos os dois últimos adjetivos:
convincente, porque pretende persuadir alguém, o leitor, de alguma coisa;
intelectual, porque depende da reflexão constante do narrador, e não trai um
desejo de se deixar invadir passivamente pelo passado, por impressões
fugidias e passageiras, delicadas. O narrador machadiano, ao contrário do
narrador proustiano, é um ressentido, medroso do passado: 'Aí vindes de
novo, inquietas sombras’, citando Goethe logo no início. (SILVIANO
SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 131)

O foco narrativo em primeira pessoa já apresenta questões problemáticas como a


subjetividade que afeta o narrado e a incapacidade da memória em recordar tudo como
realmente ocorrera. De certa forma, Bentinho se constrói enquanto instância narrativa
apresentando a todo tempo pistas de sua inconsistência enquanto narrador,
demonstrando-se um verdadeiro articulista na tentativa de justificar suas atitudes. “Mas
eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina hás de
reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.” (ASSIS,
2008, p. 130). Neste ponto, observamos como o narrador de Dom Casmurro se
comporta. Com o recurso da Retórica, ele se apropria de tudo e de todos para convencer
os outros e a si próprio de suas razões. Analisando a fundo, é possível perceber que não
é Capitu que está no banco dos réus e sim o próprio Casmurro. E para escapar ele se
vale de qualquer recurso de argumentação. Contudo, observando o texto machadiano
percebe-se que não só o narrador faz uso de elementos retóricos em sua narrativa.
Machado de Assis também utiliza as citações com maestria como argumentos que
120
fundamentem suas posições. O uso das citações é uma forma encontrada por Machado
para produzir a sua estética dissimuladora. Se por um lado, a narrativa ganha
argumentos de autoridade; por outro, o autor rebaixa, usa e abusa do discurso alheio a
seu favor e em busca de seus interesses. É uma estratégia de embustes que direciona os
sentidos do leitor para que encontre somente o que o autor deseja.

(...) gostaria de chamar a atenção para o procedimento, recorrente na ficção


de Machado de Assis, ao qual já me referi: desenraizar determinada passagem
de seu contexto habitual, às vezes mutilando-a, às vezes citando-a na íntegra,
e aplicá-la a uma situação que a rebaixa. (MARTA DE SENA, 2008, p. 144).

Muito mais do que apenas rebaixar, Machado se apropria de outras vozes e as


utiliza como estratégia de rebaixamento e de engrandecimento do seu próprio texto e de
outras vozes, subalternas, que não se faziam ouvir. A mesma estratégia é mimetizada em
sua protagonista, todavia com objetivo diverso. Bentinho faz uso de argumentos
retóricos para justificar os seus posicionamentos do passado. Tal comportamento pode
ser encontrado em outra personagem: Félix é a fruta dentro da casca, é Bentinho em
outra narrativa. Contudo, a característica de uma personagem manipuladora é
intensificada em Dom Casmurro, pois o narrador é o próprio interessado em articular os
fatos.

Duas atitudes, entre outras, são típicas de Dom Casmurro, quando analisa os
que o rodeiam: a) joga a culpa de toda calúnia nos outros, isentando-se
aparentemente de qualquer responsabilidade, colocando-se ainda na
qualidade de vítima; b) empresta aos outros contradições entre o que
chamaremos por enquanto de interior e exterior. (SILVIANO SANTIAGO in
ASSIS, 2008, p. 132)

O protagonista do romance é uma das personagens e um dos narradores mais


complexos da literatura machadiana. Há outros narradores em primeira pessoa, mas
nenhum que se compare a Bento Santiago. Sua personalidade é mutante. Na infância há
um Bentinho caracterizado pela leveza do menino peralta que viverá intensos dramas
desde a adolescência. Uma de suas grandes dificuldades é consequência de uma
promessa de sua mãe: o menino deveria fazer seminário e se ordenar padre. Porém, já
nesta época ele nutria um amor infantil por sua vizinha Capitu. Assim, a promessa da
mãe transforma-se em sacrifício para o filho.

Já neste começo, na mais tenra infância, o pequeno Bentinho apresenta


121
característica que serão amadurecidas no sisudo e melancólico Casmurro: o ciúme e a
dúvida plantados em sua pele pelo agregado José Dias. Quando sua mãe adoece, o leitor
se depara com um Bentinho egoísta que deseja, ainda que seja por pouquíssimo tempo,
a morte de Dona Glória para que pudesse ficar livre da promessa e do seminário: “(...) o
Terror me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com as
palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por elas: “mamãe defunta, acaba
seminário”” (ASSIS, 2008, p. 1003).

Por vezes, o leitor pode observar em Bentinho um comportamento colérico,


podendo agir por impulso em determinadas situações: como quando deseja a morte da
mãe ou quando planeja matar prima Justina só pelo fato desta a fazer duvidar das
intenções de Capitolina: “(...) não a matei por não ter a mão ferro nem corda, pistola
nem punhal; mas os olhos que lhe deitei; se pudessem matar, teriam suprido tudo (...)”
(Assis, 2008, p. 1016). Mas, também é facilmente verificável a sua capacidade de agir
com frieza.

Como intelectual consciente e probo, espírito crítico dos mais afilados,


perscrutador impiedoso da alma cultural brasileira, Machado de Assis
assinala ironicamente nossos defeitos. Mas este é um engajamento bem mais
profundo e responsável do que o que se pediu arbitrariamente a Machado de
Assis. E pensar que se pode falar da filosofia de Machado acreditando que a
base de suas ideias se encontrava no ‘ressentimento mulato’ ... (SILVIANO
SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 139)

A insegurança de Bentinho é alimentada por uma série de fatos que ele interpreta
como provas. O seu discurso vai construindo uma Capitu adúltera. Os fatos descritos
pelo narrador nada provam, mas em sua imaginação são provas irrefutáveis da traição.
Esta dúvida gera em Bentinho um bloqueio no que diz respeito ao relacionamento com
o filho e com a esposa e até mesmo com seu grande amigo Escobar. Quais seriam as
provas do adultério de Capitu? Todos os argumentos do narrador são questionáveis, pois
não se baseiam em provas. Bentinho só conta com o recurso da argumentação para
buscar convencer o leitor. Um fato considerado evidência de que a esposa o tinha traído
é apresentada pelo narrador durante o velório do amigo: “(...) A confusão era geral. No
meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente
fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas (...)” (ASSIS,

122
2008, p. 1054).

Nas personagens masculinas de Machado de Assis há sempre o desejo extremo


de marcar a passagem pela vida com algum grande feito. E com Bentinho não era
diferente. Por isso, ele resolve escrever um livro. O desejo que o protagonista tem de
escrever um livro revela ao leitor mais um traço irônico da pena da galhofa do autor.
Isto, porque a princípio ele desejara escrever uma história dos subúrbios, contudo
desiste pelas dificuldades e opta por escrever sua própria biografia. Os subúrbios não
eram tão importantes. Deste modo, escrevendo sobre si ele queria unir as duas pontas de
sua vida.
As inspirações para escrever um livro autobiográfico surgem das leituras que
Bentinho faz. No segundo capítulo surge uma frase que vai se repetir ao longo do livro e
que está relacionada aos motivos que levaram o protagonista ao desafio da escrita:
“Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao
poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?”
(ASSIS, 2008, p. 933). Foram estas inquietas sombras que atormentaram Bentinho e o
levaram a buscar meios de unir as duas pontas de sua vida, o presente senil e
melancólico com o passado pueril e feliz. E foram as personagens históricas
representadas pelas imagens em que sugeriram que o melancólico Bento Santiago
escrevesse um livro sobre sua própria vida.

Cabe mencionar que em Machado de Assis, nenhum detalhe é apenas uma


figuração, todas as descrições possuem função específica na narrativa. Sendo assim,
uma leitura atenta e curiosa levaria o leitor a perceber que a referência a Nero, Augusto,
Massinissa e César remete a histórias de figuras históricas marcadas pelo estigma da
traição. “Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os
medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não
alcanço a razão de tais personagens” (ASSIS, 2008, p. 932). O narrador fingidor assume
uma aparente inocência ao dizer desconhecer a razão dos medalhões. Contudo, para quem está
atento às armadilhas propostas pelo texto machadiano, funciona como mais uma forma de
guiar a recepção pelos caminhos criados pelo narrador.

Construído como texto autobiográfico e como uma narrativa intencional, no


123
livro há inúmeros momentos em que o leitor pode perceber que o narrador não é
confiável. Primeiramente, Dom Casmurro assim como Memórias Póstumas de Brás
Cubas e Memorial de Aires podem ser lidos como ficções que se apropriam de recursos
das autobiografias para mimetizar estratégias destas literaturas. Sendo assim, narrativas
autobiográficas, ficcionais (como as mencionadas) ou não, trabalham com a memória e
esta não assume fielmente dos fatos acontecidos. Essa função da memória é assumida
pelo narrador quando confessa: “Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares;
mas a saudade é isso mesmo: é o passar e repassar das memórias antigas.” (ASSIS,
2008, p.968). Esta saudade carregada de melancolia marca a vida do protagonista que
tenta reconstruir o que fora com a escrita de sua própria história. Deste modo, fica claro
que sua memória é repleta de imaginação: "A imaginação foi a companheira de toda a
minha existência” (ASSIS, 2008, p. 975). Pois, em alguns momentos não consegue
lembrar-se de detalhes importantes de sua própria vida, sem mencionar que as memórias
são carregadas de subjetividade.

Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que
vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram
amarelas por que execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido ou
confusão. E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda
bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu,
quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço em
chegando ao fim é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele.
[...] É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho
as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. (ASSIS, 2008,
p. 994)

Por tratar-se de uma espécie de autobiografia (levando em consideração que o


autor ficcional é quem conta a história e quem ficcionalmente a escreve) que se realiza
inteiramente no plano da ficção, já que o escritor Machado de Assis leva o narrador a
retomar a sua vida para recontá-la, acentua-se em Dom Casmurro o processo de
dissimulação que se estabelece com a confusão gerada pela criação de um autor fictício.
Quem assina o livro é o autor empírico, mas quem escreve e narra é a personagem
principal do romance. Sendo assim, o texto é marcadamente subjetivo e direcionado por
esta única voz que cria as personagens e que fala por elas. O narrador, que é quem
aciona as memórias, é autoritário e comanda outras vozes presentes na narrativa. Neste
sentido, o livro revela uma mis-em-scene da situação dos subalternos. As personagens
que não possuem voz própria no romance representam grupos que também não possuem

124
voz na realidade brasileira do século XIX.

Seu problema ético-moral é óbvio, sua reconstituição do passado é egoísta e


interesseira, medrosa, complacente para consigo mesmo, pois visa a liberá-lo
dessas ‘inquietas sombras’ e das graves decisões de que é responsável. O
remorso (outro vocábulo constante na pena de Machado crítico) deve rondar
suas últimas horas. (SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 134)

Pelas razões expressas nos parágrafos acima, a análise das personagens


subalternas em romances de Machado de Assis encontra em Dom Casmurro uma
espécie de empecilho, afinal, como analisar personagens que são construídas por um
narrador que as molda de acordo com suas conveniências. Até Dom Casmurro, a análise
conseguia encontrar fagulhas de vozes que eram intensificadas pelo recurso da
dissimulação que possibilitava a estas personagens a manutenção de suas identidades.
Porém, numa narrativa em primeira pessoa em que o narrador é ao mesmo tempo
protagonista e autor, ainda que ficcional, do texto fica complicado encontrar espaços
mínimos de abordagem da dissimulação e da subalternidade. Por isso, o caminho aqui
empreendido é outro: analisar a personagem Bentinho e partindo desta observar e
refletir sobre as possibilidades de, ainda neste espaço opressor protagonizado por uma
única voz, encontrar elementos que confirmem estratégias dissimuladoras que
propiciem o balbuciar de outras vozes.

O narrador apresenta sua versão da história como verdade, além disso, é a única
versão que o leitor conhecerá. É impossível para quem lê encontrar a versão da história
contada por Capitu. Este narrador manipulador tenta com todos os esforços conduzir a
leitura do livro utilizando para isto suas artimanhas pelo viés da simulação. Por vezes
ele é incisivo e utiliza estratégias de convencimento que fogem do simples recurso da
bajulação ou da sensibilização. Um dos recursos de efeito mais direto é o da repetição
de fatos numa tentativa de incutir no leitor o que o narrador-protagonista considera
como verdade: “Há conceitos que devem incutir na alma do leitor à forca de repetição”.
(ASSIS, 2008, p.963). O objetivo do narrador é ocupar todos os espaços até que não
sobre nenhuma brecha para que a imaginação do leitor possa intervir no texto, que sabe
que, como observa o narrador: “tudo se pode meter nos livros omissos”. (ASSIS, 2008,
p.994).

125
Capitu, apesar de todas as suas estratégias de dissimulação, permanece em
posição de submissão a Bentinho. O leitor não pode esquecer o fato do narrador ser o
próprio protagonista do romance. Ficamos sabemos da história de Capitu pela voz de
Bento Santiago. E afinal, quem é Bento Santiago? A personagem poderia ser
interpretada como a voz patriarcal da elite brasileira do século XIX. Neste espaço, o
lugar ocupado por Capitu é o da subalterna. Esta posição trazia muita dor para a
personagem e isto fica claro quando o leitor observa seu aborrecimento ao ouvir o
pregão do preto que vende cocadas: “(...) o pregão que o preto foi cantando, o pregão
das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância (...) lhe deixara uma
impressão aborrecida.” (ASSIS, 2008, p.950). E este singelo pregão dizia: “Chora,
menina, chora, \Chora, porque não tem vintém.” (ASSIS, 2008, p.950). Não ter vintém é
uma transnominação que simboliza o fato da menina não fazer parte da elite. Esta toada
representava sua triste realidade que deveria ser repetida como forma de deixar clara a
sua posição na sociedade, por isso a canção era conhecida: “(...) ela a sabia de cor e de
longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, trocando os papéis
comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente.” (ASSIS, 2008, p. 951). Até
este momento, a brincadeira era só uma brincadeira. Era divertido até que ela percebe
que o jogo não era um simples fazer de conta infantil. O jogo de puerícia refletia sua
real condição e a realidade era ainda mais cruel, pois não havia troca de papéis. Ela se
dá conta do significado da letra da canção: “Creio que a letra, destinada a picar a
vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse: — Se eu
fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.” (ASSIS, 2008, p. 951).
Claro que Capitu luta contra as amarras sociais. A arma utilizada é a dissimulação. Ela é
bem sucedida em seu jogo, porém o narrador insiste em colocar Capitu em seu lugar. A
astúcia de Capitu em perceber suas condições e ficar incomodada é logo condenada
pelo narrador:

Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos
que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática
faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de
salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção
grande executada por meios pequenos.

É assim que Bentinho descreverá Capitu ao longo de 148 capítulos. O leitor não

126
pode desconsiderar o fato de que todas as características de Capitu e até mesmo seus
mais recônditos sentimentos são revelados na narrativa pelo narrador casmurro. Como
forma de manter a subalternidade de Capitu, após um longo tempo, vinte e dois
capítulos depois de contar o ocorrido, Bentinho volta a mencionar o pregão do preto das
cocadas e afirma que procurou um músico para escrever a partitura: “Justamente,
quando contei o pregão das cocadas, fiquei tão curtido de saudades que me lembrou
fazê-lo escrever por um amigo, mestre de música, e grudá-lo às pernas do capítulo.”
(ASSIS, 2008, p. 995). Porém, Bentinho reflete sobre o pregão e percebe que a canção
somente se torna lembrança para os que a viveram. Por isso, é necessário ter padecido e
vivenciar as repetidas ações de humilhação, tal como Capitu, para que o apregoado faça
sentido: “Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de
seminário, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha
conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor.” (ASSI, 2008, p.
995). Ele volta a falar sobre o pregão outras vezes, como na ocasião resgatada de uma
reunião familiar:

Gostava de música, não menos que de doce, e eu disse a Capitu que lhe
tirasse ao piano o pregão do preto das cocadas de Mata-cavalos... — Não me
lembra. — Não diga isso; você não se lembra daquele preto que vendia doce,
às tardes... — Lembra-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da
toada. — Nem das palavras? — Nem das palavras. A leitora, que ainda se
lembrará das palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada
de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da
sua infância e adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na
cabeça. Assim me replicou Capitu, e não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela
não esperava; corri aos meus papéis velhos. Em São Paulo, quando estudante,
pedi a um professor de música que me transcrevesse a toada do pregão; ele o
fez com prazer (bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o
papelzinho; fui procurá-lo. Daí a pouco interrompi um romance que ela
tocava, com o pedacinho de papel na mão. Expliquei-lho; ela teclou as
dezesseis notas. (ASSIS, 2008, p. 1024)

E desta vez, após a insistência do protagonista, Capitu não só toca e canta a


canção como também revela haver nela um sabor particular: “Capitu achou à toada um
sabor particular, quase delicioso; contou ao filho a história do pregão, e assim o cantava
e teclava.” (ASSIS, 2008, p. 1042).

A lembrança do pregão é importante para o livro, por isso aparece em momentos


diferentes da narrativa. Ainda que o próprio narrador afirme que o tema não seria assim

127
tão importante: “Em si, a matéria é chocha, e não vale a pena de um capítulo, quanto
mais dois (...).” (ASSIS, 2008, p. 1046), é preciso perceber que a repetição em um livro
de Machado de Assis não ocorre por mero acaso. Em outro momento, Bentinho retoma
o assunto: “Capitu e eu tínhamos jurado não esquecer mais aquele pregão; foi em
momento de grande ternura, e o tabelião divino sabe as coisas que se juram em tais
momentos, ele que as registra nos livros eternos.” (ASSIS, 2008, p. 1046). Havia então
um juramento entre os dois para que não se esquecessem do pregão. Qual seria o motivo
de manter na lembrança um episódio tão banal. Fato é que os dois se esquecem. Capitu
assume o esquecimento e Bentinho simula lembrar-se: “Mas hás de crer que, quando
corri aos papéis velhos, naquela noite da Glória, também não me lembrava já da toada
nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o meu pecado; esquecer,
qualquer esquece.” (ASSIS, 2008, p. 1046). Então, a escrita da música e da partitura
servia como memória auxiliar, como uma forma de manter o juramento e a
subalternidade de Capitu.

A narrativa também coloca Capitu em seu lugar de submissa quando a


desconfiança de Bentinho chega ao auge. Após a morte de Escobar, Bento Santiago
começa a desconfiar fortemente da paternidade de Ezequiel. As semelhanças do menino
com o amigo ou a paranoia desse narrador chegaram ao ponto em que torna insuportável
o convívio familiar entre Betinho e Capitu. Tudo piora no momento em que o
protagonista tenta envenenar o filho. Após a tentativa fracassada, ele acusa Capitu de
adultério. Ela fica profundamente magoada e chega a cogitar uma separação: “– Confiei
a Deus todas as minhas amarguras – disse-me Capitu ao voltar da igreja -; ouvi dentro
de mim que a nossa separação é indispensável, e estou às suas ordens”. (ASSIS, 2008,
p. 1066). Capitu disse tudo isso com uma tristeza no olhar, era o último intento de
provocar uma reação contrária no marido: “Os olhos com que me disse isto eram
embuçados, como espreitando um gesto de recusa ou de espera”. (ASSIS, 2008, p.
1066, grifo meu). O adjetivo embuçado significa disfarçado e mais uma vez, talvez a
última, o leitor observa Capitu apresentada pelo narrador como uma dissimulada. O
desfecho seria óbvio, a separação. Seria o mais plausível depois da humilhação sofrida.
Porém, Bento Santiago prefere as aparências e no capítulo intitulado “A solução” ele
planeja uma viagem familiar para a Europa: “Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós
e fomos para Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suíça”.

128
(ASSIS, 2008, p. 1067). Note que o narrador utiliza a primeira pessoa do plural para
reger os verbos que utiliza. Assim, ele falsamente apresenta a ideia da viagem ter sido
uma decisão conjunta. Porém, ao chegar na Suíça, o Dom Casmurro deixa a mulher e o
filho e parte de volta para o Brasil. Capitu ainda tenta manter uma relação amorosa com
o homem que amava: “Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com
brevidade e sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim
saudosas; pedia-me que a fosse ver.” (ASSIS, 2008, p. 1067). Bentinho nunca mais
procurou a esposa e para manter a imagem do casamento viajava para a Europa apenas
de fachada: “Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o
mesmo resultado.” (ASSIS, 2008, p. 1067). Quando os conhecidos perguntavam por
Capitu ele simulava que tinha estado com ela: “Na volta, os que se lembravam dela,
queriam notícias, e eu dava-lhas, como se acabasse de viver com ela; naturalmente as
viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião.” (ASSIS,
2008, p. 1067). A simulação permanece e o casamento segue à distância. Até o
momento de sua morte, Capitu continua valorizando a imagem do marido que a
abandonou: “A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o
homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.” (ASSIS, 2008, p. 1070)43.
A posição de submissão da esposa permanece por toda a narrativa.

O narrador de Dom Casmurro utiliza as personagens como peças de um


arquitetado jogo de xadrez, armando seu discurso de forma a provar o valor de sua
própria existência e ao mesmo tempo comprovar sua tese da culpabilidade de Escobar e
Capitu. Este narrador que assume o lugar do escritor é o organizador dos modos de
interação entre leitor e texto. Para manter sua versão da história Bentinho assume
posicionamentos autoritários. O narrador se vale de argumentos retóricos como
estratégia de convencimento do leitor.

43
A voz que fala no fragmento anterior é a de Ezequiel. Um dos fatos interessantes é que ao visitar o pai
Ezequiel fica admirando um dos bustos pintados na parede. Não era qualquer busto, era o de
Massinissa: “Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado
na parede” (ASSIS, 2008, p. 1070). Estaria esta alusão repetida ao rei da Numídia figurando na
narrativa como uma mera coincidência? (Ver nota 43). Tratando-se de Machado de Assis, nada do que
ocorre em seus textos se dá por mero acaso ou por descuido. A repetida alusão ao Rei da Numídia,
agora pelos olhos de Ezequiel, necessita ser observada. O objetivo de Machado de Assis é chamar a
atenção do leitor atento para este personagem histórico e para o que ele simboliza na narrativa. O
envenenamento de um(a) inocente? A falsa acusação de traição? Ou a acusação sem provas? Cabe ao
leitor decidir se buscará ou não uma interpretação do fato.
129
Machado de Assis – podemos concluir – quis com Dom Casmurro
desmascarar certos hábitos de raciocínio, certos mecanismos de pensamento,
certa benevolência retórica – hábitos, mecanismos e benevolência que estão
para sempre enraizados na cultura brasileira, na medida em que foi ela
balizada pelo ‘bacharelismo’, que nada mais é, segundo Fernando de
Azevedo, do que ‘um mecanismo de pensamento a que nos acostumara a
forma retórica e livresca do ensino colonial’, e pelo ensino religioso.
(SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p.138)

Retórica é, pois, basicamente um método de persuasão, de cujo uso o homem se


vale para convencer um grupo de pessoas da sua opinião. Não seria este um dos
principais interesses da prosa de Dom Casmurro como vimos mostrando? E de que
outra maneira se poderia justificar sua constante necessidade de trazer para a arena de
discussão o leitor? Por um momento, é possível detectar uma ponta de remorso na fala
de Bentinho: “Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a
primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca,
nem os de cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2008, p. 1072). Percebe-se o
sentimento de perda, a solidão eterna da protagonista. Ele até mesmo chega a apresentar
a dúvida que existe em seu coração: “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já
estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum
caso incidente” (ASSIS, 2008, p.1072). Este possível incidente poderia ser o gerador do
remorso de Dom Casmurro, seu ciúme incorrigível, improvável, mas verossímil: “Jesus,
filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX,
vers. I: ‘Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te a ti com
a malícia que aprender de ti’”. Mais uma vez a verossimilhança vence a batalha, possui
mais valor a aparência. Ainda que tenha em seu foro íntimo a suposta certeza da traição,
Bentinho não se vinga de Capitu: “Não se vingou de Capitu, apenas defendeu sua honra.
Não mentiu a seus amigos, apenas lhe escondia o deslize da esposa. Talvez se sentisse
até generoso.” (SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 138). Assim, ele consegue
dar uma satisfação para sociedade sem demonstrar a fraqueza de um comportamento
autêntico; ele prefere manter a falsidade:

Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o


mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu
dava-lhes, como se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram
feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião. (ASSIS,
2008, p. 138)

Uma vida caracterizada pela simulação e, portanto, desperdiçada. A redenção do


130
narrador só é possível com a parceria do leitor, por isso os embustes, as negaças –
estratégias de convencimento. Até mesmo esta hipotética dúvida pode ser um
instrumento retórico, pois logo depois, o advogado retorna com a tese da infidelidade de
Capitu utilizando a metáfora da fruta dentro da casca.

Contudo, mesmo nestas condições de manipulação do narrador, as personagens


subalternas e sem voz conseguem expressar suas subjetividades a ponto de provocar no
leitor a dúvida. Há personagens, como José Dias, que exploram a simulação para
conseguirem sobreviver e que por isso desconhecem a situação de miséria em que
vivem, tal como aponta a epígrafe retirada do texto de Mia Couto. Contudo, há também
os que, como Capitu, sofrem com a situação de subalternidade em que vivem, por não
aceitarem as condições que são a eles impostas pela sociedade, por não estarem
dispostos a ocupar passivamente os espaços que a eles foram relegados.

É interessante observar a importância desprendida pelo autor a José Dias, uma


personagem subalterna. Ele é o simulado que manipula todos. Já começa com a própria
entrada dele na família de Bentinho. Fingia que era uma coisa que não era. Ele se
passava por médico homeopata quando na verdade era um impostor. Conseguiu,
ninguém sabe como, curar o feitor e uma mulher escravizada. Após o feito, o pai de
Bentinho pede que ele fique, contudo ele resolve partir. A partida, porém, era apenas um
golpe. Disse que voltaria dali a três meses, porém retorna após duas semanas.

Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga
fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se
por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um
andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber
nenhuma remuneração. Então meu pai propôs ficar ali vivendo, com pequeno
ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de
sapé do pobre. (ASSIS, 2008, p. 935).

A importância de José Dias é tamanha que a personagem surge antes do


romance. “Dom Casmurro começou na imprensa com José Dias” é o título de artigo de
Letícia Malard (MALARD, 2006). Neste artigo, a pesquisadora apresentará a
informação da publicação de um texto de Machado de Assis intitulado O agregado e
que sendo anterior à publicação do romance Dom Casmurro traz alguns capítulos do

131
livro elevando ao papel de protagonista o agregado José Dias. Nesta tese, defende-se
que o indivíduo subalternizado de maior importância no romance Dom Casmurro é José
Dias. Muito mais do que Capitu, José Dias move as peças que articularão toda a
narrativa. Assim, a informação do artigo de Malard corrobora com a importância da
personagem nesta pesquisa e no romance de Machado de Assis.

Aos 15 de novembro de 1896, no número 1 do periódico República, Rio de


Janeiro, Machado de Assis publicava o texto “Um agregado”, acrescentando,
entre parênteses: “Capítulo de um livro inédito” (ASSIS, 1969, p. 251). A
publicação corresponde – com muitas modificações, cortes e acréscimos – a
trechos dos capítulos III, VII, III, IV, V, II, IV, nessa ordem, de Dom
Casmurro, ou seja: partes dos capítulos “A denúncia”, “D. Glória”, “Um
dever amaríssimo” e “O agregado” propriamente dito. Quase todos os
romances de Machado antes foram publicados na íntegra em revistas ou
jornais, por capítulos. Excetuam-se o primeiro, Ressurreição, Esaú e Jacó e o
último, Memorial de Aires. Quincas Borba, por exemplo, teve duas versões
integrais, com profundas alterações. (MALARD, 2006, p. 157)

A primeira vez em que o leitor fica sabendo da existência de José Dias no


romance é quando este reaviva a memória de Dona Glória sobre a promessa que fizera:
Bentinho deveria ir para o seminário e ordenar-se padre. Além disso, o leitor o conhece
como aquele que primeiramente acusa Capitu e que planta no coração do protagonista a
semente da desconfiança. A primeira acusação contra Capitu foi feita por ele – ‘Olhos
de cigana oblíqua e dissimulada’ -, e é o mesmo José Dias, à semelhança de Luís Batista
em Ressurreição, que inspira a primeira crise de ciúme, afirmando que Capitu não ficará
quieta ‘enquanto não pegar um peralta da vizinhança, que case com ela’. Também é o
agregado que, de certa forma, alerta para o leitor atento sobre o significado dos
medalhões presentes na casa de Matacavalos. É algo já citado pela crítica a importância
de compreender os medalhões da residência de Bentinho: “Nos quatro cantos do teto as
figuras das estações e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e
Massinissa44, com os nomes por baixo...” (ASSIS, 2008, p. 932). Esta informação

44
A professora Marta de Senna alerta para uma figura destoante no grupo de medalhões:
Massinissa. “Junto a César, Augusto e Nero, porém, o narrador introduz a figura menos conhecida do rei
Massinissa da Numídia. Aliado dos romanos, Massinissa é casado com Sofonisba, cartaginesa irmã de
Aníbal, educada para odiar Roma. Compelido pelo vitorioso Cipião a entregar a mulher para ser
submetida à vergonha pública em Roma, Massinissa dela se compadece e, para poupá-la do que seria um
ultraje bem pior que a morte, manda-lhe uma taça de veneno, que ela toma de bom grado. O episódio está
em Tito Lívio e foi retomado em várias tragédias (por Corneille, entre outros) e em várias óperas. É
possível que numa dessas versões Massinissa envenene a mulher por ter ela participado de uma
solenidade em honra de Cipião.” (SENNA, 2008, p. 62). Ainda que exista a versão da história que afirme
132
poderia passar sem que despertasse o receptor para o sentido dela. O próprio narrador
despista qualquer suspeita afirmando: “Não alcanço a razão de tais personagens.”
(ASSIS, 2008, p. 932). Todavia, nada no texto machadiano é por acaso. E o agregado é
quem chama novamente a atenção do leitor para os medalhões quando vai explicar para
Capitu quem eram aquelas figuras. Ao narrar a vida das personagens, ele só apresenta
César e o faz contando a história da pérola que o imperador presenteara sua amada:
“Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de
sestércios!” (ASSIS, 2008, p.964). O narrador se aproveita deste fato para chamar a
atenção para a ambição de Capitu: “A pérola de César acendia os olhos de Capitu.”
(ASSIS, 2008, p. 964). Uma frase de José Dias indica para o leitor o tema da traição:
“Tu quoque brute?” (Assis, 2008, p. 964 – grifo do autor). Esta frase faz referência ao
fato de César ter sido traído até mesmo por aquele em quem mais confiava.

No segundo momento em que o narrador fala sobre José Dias, o leitor descobre
que ele adora os superlativos, uma maneira para dar mais importância às suas ideias e na
ausência destas, uma forma de prolongar as frases. Além disso, há um capítulo
específico para ele intitulado “O agregado”. É personagem de extrema importância na
narrativa. Uma das características mais marcantes dele era o cálculo, a capacidade de
ludibriar, de fazer valer sua vontade sem, contudo, levantar suspeitas.

Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao


menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não
direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma
subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole.
(ASSIS, 2008, p.936).

Todas as ações do agregado são calculadas. O narrador conta um feito em que


ele afirmara que tinha amigos na Europa e que só não partia, pois a família abaixo de
Deus era tudo. Tio Cosme o provoca e pergunta: - Abaixo ou acima. José Dias responde
que abaixo e agrada à dona Glória, matriarca da casa. Tal comportamento também pode
ser observado quando, após ouvir sobre o casamento de Bento Santiago e Capitu, ele se

que Massinissa tenha assassinado a esposa por ela ter participado da solenidade em honra de Cipião, o
fato não justificara sua morte e nem representava em si uma traição. O autor, neste momento, implanta a
dúvida no entendimento do leitor. Seria Capitu vítima de uma injustiça, assim como Sofonisba e
Desdêmona?

133
arrepende de seu parecer sobre a noiva e passa a vê-la como um anjo, um anjíssimo:
“Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e
não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era flor caprichosa de um fruto
sadio e doce...” (ASSIS, 2008, p. 133). Contudo, posteriormente, ele muda sua
percepção não por uma correção de análise, mas sim por perceber que Capitu adulta
tornar-se-ia esposa de seu ‘senhor’. Bentinho já percebera esta capacidade de simular
que ele possuía: “E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham
antes do cálculo que da índole” (ASSIS, 2008, p. 936). O narrador carrega na tinta ao
descrever o agregado como uma personagem que molda seu caráter à situação em que
se encontra e que utiliza muito bem a linguagem a seu favor.

Era magro, chupado, com um princípio de calva; terias os seus cinquenta e


cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar
arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo
completo, a premissa antes da consequência, a consequência antes da
conclusão. Um dever amaríssimo. (ASSIS, 2008, p. 935).

É também o próprio José Dias que afirma que Bentinho será feliz: “‘Tu serás rei,
Macbeth!' — 'Tu serás feliz, Bentinho!'. O problema está na comparação com Macbeth.
É de conhecimento do leitor atento que esta é uma alusão às três bruxas que dialogam
com Macbeth. Uma delas afirma que professa que ele será rei, porém nenhuma delas
afirma que será feliz. O regicida Macbeth vive sob a constante ameaça.

Por muito tempo a tese que prevaleceu foi a da certeza do adultério e da


inocência de Bentinho. Isto se dá, pois os modos de leitura são alterados com o tempo.
As leituras são marcadas pelas ideologias determinadas pelos contextos históricos,
sociais e políticos e, como afirma Zilberman, “a flexibilidade de cada texto decorre da
habilidade em responder de modo distinto a cada leitor ou aos segmentos variados de
público; decorre igualmente da propriedade de o destinatário intervir na obra.”
(ZILBERMAN, 2001, P.91). De acordo com a estudiosa do texto machadiano, o leitor
possui papel fundamental na construção semântica do texto, posto que “despertado o
imaginário por força da leitura, nada mais pode contê-lo ou domá-lo.” (ZILBERMAN,
2001, P. 27).

134
A construção da personagem Bentinho é a elaboração de um ser inocente e
constantemente enganado e manipulado por todos na narrativa. O discurso de Bentinho
caracteriza-se por argumentos, comprovações e sugestões próprias do discurso do
advogado e do promotor. Do advogado que quer absolver de culpa o seu cliente e do
promotor que quer provar a culpabilidade de Capitu. Deste modo, o discurso utilizado
por Bentinho coloca o leitor na condição de juiz. Marcado por essa astúcia, o romance
passa a refletir sobre o próprio julgamento e sobre a própria lei. Motivada por essas
artimanhas, a recepção crítica do romance considerava inquestionável a culpa de Capitu.
Este fato leva a reflexão sobre o porquê desta certeza. A dúvida só se tornou mais forte
no momento em que os subalternos passam a ocupar algum espaço e a ter alguma voz.

Pelos motivos apresentados até aqui, é possível perceber que Dom Casmurro é
muito mais do que a história de personagens subalternas, de um narrador suspeito ou de
uma história de amor, desilusão e dor. Analisando o processo de recepção do romance, é
perceptível que se trata também da história do leitor e de suas inúmeras formas de ler
um livro.

As mudanças que ocorreram nas interpretações possíveis do romance podem


servir de possibilidade de análise da sociedade e de seus costumes em cada época.
Embora não seja foco deste estudo fazer uma pesquisa do real empírico ou do leitor
ideal do romance de Machado de Assis, é interessante refletir sobre como o leitor é
transformado em personagem, em cúmplice no livro. O cuidado com que o narrador
aborda o leitor em determinadas passagens e a ironia aplicada em outras.

É pertinente observar que o escritor busca um tipo de leitor, que o narrador


procura outro e que o livro possui uma infinidade de leitores possíveis. Neste aspecto
reside a riqueza da literatura machadiana: o leitor ideal de Machado está sempre em
processo de construção e se enriquece pelas múltiplas leituras que são feitas de tempo a
tempo. A narrativa machadiana está sempre em busca de um leitor com a capacidade
adequada de digerir suas letras, pois sempre há mais e mais interpretações que podem
ser feitas de seus livros. Esta que está sendo empreendida neste trabalho é apenas mais
uma que visa a abordagem da subalternidade e da Estética da dissimulação.
135
Espelhos: o calculismo em A mão e a luva e Helena

É isto, vamos, é isto... Ideia só! Ideia sem pernas! As outras pernas não
queriam correr nem andar. (ASSIS, 2008, p.971).

O fragmento acima foi retirado do capítulo do livro Dom Casmurro denominado


“Ideia sem pernas e ideia sem braços”. O título escolhido pelo autor resume bem o
raciocínio de Schwarz ao elaborar o tema de As ideias fora de lugar, que fora criticado
posteriormente, não estava fundado na realidade brasileira e sim nesta mesma realidade
vista pelos olhos machadianos. Pode-se dizer que Machado, bem antes de Schwarz, vira
na sociedade brasileira uma absorção de ideias importadas da Europa de forma
inadvertida. O escritor observara o grande falseamento e impostura com que as
ideologias liberais europeias eram acolhidas em solo brasileiro pela elite escravocrata e
paternalista da época. Esta noção de ideias fora de lugar expressa uma visão que
poderia explicar o comportamento habitual das autoridades políticas brasileiras, ou seja,
a imensa distância que há entre determinadas formações discursivas sobre o Brasil (com
dimensões quase ficcionais) e a prática. Este tipo de mascaramento perverso impera no
Brasil até mesmo nos dias de hoje.

Era este senso crítico que impedia Machado de se alegrar com euforia diante de
grandes fatos da história oficial do Brasil, por isso não se sentira eufórico diante do
episódio da abolição da escravatura ou diante da alteração de regime político: da
monarquia para a república. Já podiam ser identificadas no autor as posições críticas que
constantemente são vistas como pessimismo ou até mesmo, em algumas análises, como
passividade.

Mais tarde, quando vem a escrever os seus primeiros romances, estes se


alimentam da ideologia antiliberal. Para Machado, portanto, já não se tratava
aqui de uma posição inicial e irrefletida, mas do resultado da experiência,
com a parte de realismo – se não de verdade – que acompanha as desilusões.
(SCHWARZ, 2012, p. 85)
136
Alguns críticos poderiam levantar a hipótese do pouco espaço ocupado pelos
negros e subalternos na obra de Machado de Assis. Poderiam também questionar a total
ausência dessas personagens nos grandes salões da casa grande. Contudo, nenhuma
alternativa anterior conseguiria desmerecer a capacidade crítica do autor na construção
de seus romances. A construção ficcional machadiana não fugia completamente à
realidade que o autor observava com atenção. O que ele criticamente observava era
complexamente elaborado e apresentado em seus livros, sem perder a oportunidade de
lançar duras críticas à sociedade elitista, escravocrata e paternalista da época
apropriando-se de seus representantes e os lançando em sua ficção quase sempre com
pena de galhofa. Basta que o leitor observe o desfilar de tipos que surgem como
personagens cruciais em sua trama. A maioria delas como personagens principais ou de
grande importância nos eventos narrados. Schwarz (2008, p. 85) faz menção a esse fato,
quando diz: “Sirvam de exemplo o byronismo debiloide de Estevão, o infeliz namorador
de A mão e a luva, ou o patriotismo repentino de certa dama, que manda o filho à guerra
do Paraguai, a fim de lhe evitar um casamento inferior (Iaiá Garcia)”.

O objetivo deste tópico é abordar romances que são considerados românticos e,


por isso, são menos valorizados por alguns críticos. O primeiro romance a ser analisado
será A mão e a luva, tentando pensar como nele o escritor faz do calculismo a arma
utilizada pelo subalterno para alcançar seus objetivos. No caso específico desse
romance, o comportamento calculista da protagonista funcionou perfeitamente para
manter sua subjetividade e sua existência. Já no caso do segundo romance a ser
analisado, Helena, a vida de dissimulações sufoca a protagonista e acaba levando-a à
morte.

137
Belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres

O romance A mão e a luva, publicado em 1874, não poderia ser classificado


como complexo quando analisado pela riqueza de elementos, posto que o detalhamento
de ambientes e o enredo da narrativa não são suas características mais interessantes. A
princípio é a história de Guiomar, uma jovem que, em determinado momento de sua
vida, depara-se com o dilema proposto pela aparente indecisão entre três opções de
pretendentes: Jorge, Estêvão e Luís Alves. Estevão é o romântico que ama Guiomar
com total entrega. Jorge, sobrinho da madrinha de Guiomar, é um rapaz ambicioso que
assim como a protagonista busca ascensão social. Luís e Jorge são amigos e se
distanciam por determinado tempo.

O tempo passa e os amigos se reencontram já formados. Luís Alves, buscando as


facilidades de uma carreira política, abriga em sua casa o amigo Estevão que ainda
estava iniciando na carreira de advogado. Para surpresa do amigo, a casa de Luís é
vizinha à de Guiomar. Estevão e Guiomar se reaproximam e o rapaz nutre esperanças de
um romance, de um namoro e de um casamento. A mãe de Guiomar havia morrido e a
baronesa, sua madrinha, acolhe a afilhada e a protege como a uma filha. Dos três
pretendentes, porém, Estevão era o que tinha menos pontos a favor e o que nutria o
sentimento mais forte e mais arrebatador pela protagonista. Jorge, por outro lado, era
sobrinho da baronesa, estava mais próximo de Guiomar e ainda tinha o apoio influente
de Mrs. Oswald. Luís, contudo, era o mais esperto, o mais dissimulado. Amigo de
Estevão, percebera os erros deste e observara os erros de Jorge e preservava seus
sentimentos em segredo. E foi dissimulando e de maneira secreta que Luís se
aproximou de Guiomar e equilibradamente revelou a ela seu amor.

Considere-se que Estêvão jamais poderia agradar à protagonista. Havia nele o


romantismo exacerbado que poderia ser agradável em um romance, em uma historieta.
Desde o início do romance, ele é apresentado como aquele que busca morrer por dor de
138
amor, por um namoro gorado. Por vezes, é possível inferir que a postura do rapaz
funciona como uma metáfora do leitor ou leitora de Machado de Assis.

As referências, embora negativas e associadas a uma visão de mundo e a um


gosto manifestadamente retrógrados, são apresentadas de modo bastante
simpático, fazendo de Estevão o principal foco de identificação do leitor e
quem sabe da própria crítica que, diante de Ressurreição, cobrara de
Machado um romance mais ortodoxo (GUIMARÃES, 2004, p. 143-144).

Em sua primeira incursão na escrita de romances, o autor sofrera algumas


críticas que foram direcionadas à forma e ao tema de suas narrativas. Não havia em
Machado, todavia, os puros ares do Romantismo então vigente. Sua prosa fugia às
convenções do estilo e era fiel aos seus próprios interesses. Estêvão é a personagem que
agrada ao leitor que na época de publicação do livro estava ávido por um herói pintado
nos moldes legitimados do Romantismo, contudo, é também aquele que apresentava a
frouxidão de ânimo que o impossibilitava de lutar dignamente por qualquer objetivo.

Estêvão era mais ou menos o mesmo homem de dois anos antes. Vinha
cheirando ainda aos cueiros da academia, meio estudante e meio doutor,
aliando em si, como em idade de transição, o estouvamento de um com a
dignidade do outro. As mesmas quimeras tinha, e a mesma simpleza de
coração (...). (ASSIS, 2008, p. 323).

A mão e a luva nasce com o objetivo de abrandar a expectativa frustrada que


fora o romance Ressurreição. Na época em que escreveu o livro, Machado de Assis já
possuía reconhecimento e status, pois, em 1867, recebera a Ordem da Rosa, no grau de
cavaleiro; era primeiro-oficial e chefe da seção da Secretaria de Agricultura e assumira
o posto de auxiliar do diretor do Diário Oficial. Porém, ainda assim, buscava a empatia
com os que o liam.

A forma de tratamento utilizada pelo autor, na advertência de 1874, é uma


estratégia para tentar convencer o leitor da falsa leveza da obra: “O que aí vai são umas
poucas páginas que o leitor esgotará de um trago, se elas lhe aguçarem a curiosidade ou
se lhe sobrar alguma hora que absolutamente não possa empregar em outra coisa – mais
bela ou mais útil.” (ASSIS, 2008, p. 317). Contudo, o autor não consegue escrever um
romance de costumes e utiliza uma de suas personagens para alertar quem folheia suas

139
páginas. Como Estêvão representa o leitor, aquele que criticara o autor pela ausência de
romantismo em suas obras, Machado o utiliza para enviar suas farpas aos seus
receptores não idealizados. O leitor que ele buscava deveria ser crítico e atento. O leitor
ávido, devorador de páginas, não conseguiria entender as densas laudas da narrativa
machadiana.

Tinha leitura de uma e outra coisa, mas leitura veloz e à flor das páginas.
Estêvão não compreenderia nunca esse axioma de lorde Macaulay – que mais
aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. Não digeria nada; e daí
vinha o seu nenhum apego às ciências que estudara. Venceu a repugnância
por amor-próprio; mas, uma vez dobrado o cabo das Tormentas disciplinares,
deixou a outros o cuidado de aproar à Índia. (ASSIS, 2008, p. 323).

Guiomar era prática e também se aliava a uma ética pragmática. O


posicionamento da protagonista a desvia do ideal romântico de heroína. Vista pelos
olhos de Estêvão, ela era exatamente como as donzelas que ele idealizava: “Via-lhe o
perfil, em cada aberta que deixavam as árvores, um perfil correto e puro, como de
escultura antiga” (ASSIS, 2008, p. 325). A idealização de Estêvão chega ao ponto de
comparar Guiomar a um “(...) serafim de Klopstock, a uma fada de Shakespeare, a tudo
quanto na memória dele havia mais aéreo, transparente, ideal” (ASSIS, 2008, p. 326).
Parece que Machado de Assis gostava desse tipo de remissão a obras dos grandes
autores. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o protagonista faz uso do mesmo
recurso, sendo que desta vez a homenageada é a cândida Marcela:

(...) cândida – cândida e outra coisa, que eu nesse tempo não entendia muito
bem; mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso misto, como
devia ter a criatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare
com um serafim de Klopstock. Não sei se me explico. (ASSIS, 2008, p.647).

Explica, pois a fada de Shakespeare também está presente em Dom Casmurro


quando Bentinho ouve uma voz que determina que ele seria feliz em referência ao seu
casamento: “Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz”. Ao ouvir esta voz, Bentinho
comenta com José Dias que logo relaciona a frase com a que está presente no Macbeth
de Shakespeare. Contudo, nesse caso, a voz não é bem de uma fada e sim de uma
feiticeira. E as bruxas da obra de Shakespeare enganam Macbeth, assim como Marcela
engana Brás Cubas, como Bentinho se sente enganado por Capitu e tal como dissimula

140
Guiomar.

Por ter o espírito tão cândido, Guiomar percebe logo no início que seria
impossível escolher Estêvão como marido. Faltava nele o impulso necessário para adiar
a virtude em busca de um ideal. Ele não simulava, não dissimulava. Deste modo, ele
não poderia ser o amado de uma mulher que tão alto mirava:

Suas aspirações políticas deviam naturalmente morrer em gérmen, não só


porque lhe minguava o apoio necessário para as arvorecer e frutificar, mas
ainda porque ele não tinha em si a força indispensável a todo o homem que
põe a mira acima do estado em que nasceu. Eram aspirações vagas,
intermitentes, vaporosas, umas visões legislativas e ministeriais, que tão
depressa lhe namoravam a imaginação, como logo se esvaneciam, ao resvalar
dos primeiros olhos bonitos, que esses, sim, amava-os ele deveras. Opiniões,
não as tinha; alguns escritos que publicara durante a quadra acadêmica eram
um complexo de doutrinas de toda a casta, que lhe flutuavam no espírito, sem
se fixarem nunca, indo e vindo, alçando-se ou descendo, conforme a recente
leitura ou a atual disposição de espírito (ASSIS, 2008, p. 323).

O segundo pretendente de Guiomar é Jorge. Esse é um pouco mais incisivo que


Estêvão. Possuía a simulação necessária para viver sem precisar trabalhar. Personagem
calculista que conhecia as palavras e fazia delas um bom uso retórico. Ele também
contava com o apoio de sua tia (a baronesa e madrinha de Guiomar) e de Mrs. Oswald,
que era viúva e dama de companhia da baronesa: “Tal era a pessoa cujos interesses
defendia Mrs. Oswald, por amor da baronesa, e não menos de si própria. A baronesa
também tinha os seus sonhos, como ela mesma disse, e esses eram deixar felizes
aquelas duas crianças.” (ASSIS, 2008, p. 341).

Assim, Jorge possuía as melhores aliadas, pois a influência da madrinha sobre as


decisões da sobrinha era quase decisiva. Guiomar se sentia na obrigação de agradar sua
benfeitora que lhe propiciara as melhores condições de vida e afeto, assumindo, então,
um papel que poderia ser comparado ao de uma mãe. Jorge possui um nome, a maior
das heranças que seu pai deixou para o filho. Por isso, poderia seguir a carreira política
e contar com o apoio da tia, porém ele prefere seguir suas pequenas ambições e
continuar vivendo dos espólios do pai.

141
O terceiro pretendente, Luís Alves, representava a melhor materialização do
ideal almejado por Guiomar. Era objetivo, obstinado, dissimulado e, por vezes, frio. Ele
é advogado e ambiciona o acesso à carreira pública e, além disso, soube ser habilidoso
no jogo da conquista e seduziu a protagonista por, aparentemente, jogar seu próprio jogo
com segurança de seus atos. Guiomar “(...) queria um homem que, ao pé de um coração
juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a força bastante para subi-la aonde a
vissem todos os olhos.” (ASSIS, 2008, p. 365-366). O objetivo da protagonista,
portanto, era unir duas qualidades essenciais a uma união promissora, o amor e a
comodidade. A felicidade para ela não poderia vir carregada de infortúnios, pois não
poderia viver uma vida de privação por causa do amor: “Pedia amor, mas não o quisera
fruir na vida obscura; a maior das felicidades da Terra seria para ela o máximo dos
infortúnios, se lha pusessem num ermo.” (ASSIS, 2008, p. 365). Luís Alves seria o
parceiro ideal, pois possuía o nome e a ambição necessária para alçar voos mais altos.

O proceder de Luís Alves, sóbrio, direto, resoluto, sem desfalecimentos, nem


demasias ociosas, fazia perceber à moça que ele nascera para vencer e que a
sua ambição tinha verdadeiramente asas, ao mesmo tempo que as tinha ou
parecia tê-las o coração. Demais, o primeiro passo do homem público estava
dado; ele ia entrar em cheio na estrada que leva os fortes à glória. Em torno
dele ia fazer-se aquela luz, que era a ambição da moça, a atmosfera, que ela
almejava respirar. Estêvão dera-lhe a vida sentimental, - Jorge a vida
vegetativa; em Luís Alves via ela combinadas as afeições domésticas com o
ruído exterior. (ASSIS, 2008, p. 371).

O casamento de Guiomar não caberia nos padrões românticos de escolha. Uma


relação tão importante quanto esta não poderia ser fruto apenas de sentimentos, de
emoções ou idealizações romantizadas. Guiomar é uma subalterna, uma agregada na
casa da baronesa; contudo, não era uma agregada qualquer, pois havia nela a ambição, o
talento e a inteligência. Portanto, o casamento era, antes de qualquer coisa, um cálculo.
Guiomar, representando outras mulheres da época, percebia na troca de alianças uma
troca de situação, uma oportunidade de ascensão política e econômica. Claro que esta
visão calculista do amor não era privilégio dos agregados e não se dava apenas entre
cônjuges de classes diferentes, mas também e, principalmente, entre os que ocupavam a
mesma classe: a elite brasileira. O casamento também funcionava como uma forma de
manutenção do status quo da sociedade, uma forma de prevenir a alteração de posições,
uma espécie de dança das cadeiras. Porém, neste caso específico, casar-se era a
oportunidade de ter status social, de possuir um nome e de sair da condição de
142
agregada.

Guiomar queria sair da condição do favor. Estêvão não poderia fornecer meios
para que a protagonista alcançasse todos os sonhos que sua ambição produzia; Jorge,
por sua vez, era sobrinho da baronesa e como era um bon vivant, não ofereceria a ela
possibilidade de mudança de situação já que continuaria vivendo de favor; Luís com sua
ambição seria o que a levaria no ponto mais alto de seus sonhos. Contudo, apesar de sua
afeição por Luís, ela precisava manter sua discrição e dissimular seus sentimentos –
qualidade tão valorizada na época.

Guiomar, no meio das afeições que a cercavam, sabia manter-se superior às


esperanças de uns e às suspeitas de outros. Igualmente cortês, mas
igualmente impassível para todos, movia os olhos com a serenidade de
isenção, não namorados, nem sequer namoradores. Ela teria, se quisesse, a
arte de Armida; saberia refrear ou aguilhoar os corações, conforme eles
fossem impacientes ou tíbios; faltava-lhe porém o gosto, — ou melhor,
sobrava-lhe o sentimento do que ela achava que era a sua dignidade pessoal.
(ASSIS, 2008, p. 342)

Antes de tomar sua decisão, ela precisava dissimular para manter em suas rédeas
os três pretendentes. O narrador destaca sua capacidade de utilizar a arte de Armida, ou
seja, a arte de encantar e ao mesmo tempo esconder suas reais intenções. A dissimulação
é tática utilizada por pessoas da elite, contudo, nos fragilizados, a técnica adquire o
patamar de arte. Guiomar dissimula para conseguir tempo. A escolha deveria passar pelo
cálculo, pois deveria conciliar uma gama de interesses: o de ser amada, o de conseguir
alcançar a posição social desejada e o de não desagradar a madrinha – o que, de certa
forma, não deixa de caracterizar uma das amarras do favor. Por isso, a necessidade de
refletir. A decisão a ser tomada pode ser a solução para a realização de seus sonhos ou
uma forma de intensificar seus infortúnios. Sua reflexão a leva a imaginar. Mas, engana-
se o leitor que vir nesses devaneios aspectos de uma heroína romântica: “Nada disso era
nem fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da
terra” (ASSIS, 2008, p. 351). Ela velejava pelo mar da imaginação sem deixar de mirar
a terra firme.

Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só, devaneou também,
soltando o pano todo a essa veleira escuna da imaginação, em que todos

143
navegamos alguma vez na vida, quando nos cansa a terra firme e dura, e
chama-nos o mar vasto e sem praias. A imaginação dela porém não era
doentia, nem romântica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher flores em
regiões selváticas ou adormecer à beira de lagos azuis. (ASSIS, 2008, p. 351)

Luís Alves, por sua vez, admira Guiomar e com o tempo passa a amá-la,
contudo é o que apresenta maior controle dos sentimentos. Estevão e Luís se tornaram
amigos na época de faculdade, o primeiro de origem mais humilde e o segundo de
família mais abastada. Desde o início Estevão confessara para Luís o seu dilema por
amar tanto a protagonista que o desprezara. O amor era tão forte que em alguns
momentos Estevão desejara a morte, o suicídio.

(...) é pelos olhos do personagem (Estevão) que o leitor assiste à vitória de


Guiomar e Luís Alves, assim como é o seu sofrimento que apela à simpatia
do leitor, ainda que se dê em registro cômico. A comicidade associada ao
personagem tem um objetivo: despertar a identificação do leitor com Estevão
para corrigir, pelo riso, as ideias que o leitor eventualmente compartilhe com
o personagem, caracterizado por Machado como quintessência do
romantismo (GUIMARÃES, 2005, p. 143, grifo nosso).

Guiomar passou a amar Luís, a sua serenidade e a capacidade de controlar os


sentimentos. Estas qualidades tão admiradas na sociedade de elite da época
impressionaram a protagonista que entrega seu coração a quem ela considerou mais
capacitado a proporcionar-lhe um lar seguro e as flores do amor em vasos de Sèvres.
Contudo, havia o fato de Guiomar ser uma subalterna vivendo às dispensas da baronesa
e, portanto e ter de acatar as vontades da dona da casa, para quem a felicidade estava no
matrimonio de sua afilhada com seu sobrinho. E ainda havia Mrs. Oswald que, mesmo
vivendo de favor na casa, era muito influente e também desejava que a protagonista se
casasse com Jorge.

Todavia, é por desejo da baronesa que Guiomar se casa com Luís. Prevendo os
sentimentos da afilhada e o possível sofrimento de um casamento sem amor, a dona da
casa, que recebera os pedidos de Luís e de seu sobrinho, escolhe o que mais agradava à
sua protegida. Com isso, o ambicioso Jorge logo se recupera da perda e segue sua vida
enquanto o apaixonado Estevão se agarra ainda mais à ideia do suicídio. Após o
casamento, a protagonista revela os motivos de sua escolha:

144
Vi que você era homem resoluto, disse a moça a Luís Alves, que, assentado, a
escutava. Resoluto e ambicioso, ampliou Luís Alves sorrindo; você deve ter percebido
que sou uma e outra coisa. A ambição não é defeito. Pelo contrário, é virtude; eu sinto
que a tenho, e que hei de fazê-la vingar. Não me fio só na mocidade e na força moral;
fio-me também em você, que há de ser para mim uma força nova. Oh! sim! exclamou
Guiomar. E com um modo gracioso continuou: Mas que me dá você em paga? Um
lugar na câmara? Uma pasta de ministro? O lustre do meu nome, respondeu ele.
Guiomar, que estava de pé defronte dele, com as mãos presas nas suas, deixou-se cair
lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas ambições trocaram o ósculo
fraternal. Ajustavam-se ambas, como se aquela luva tivesse sido feita para aquela mão
(ASSIS, 2008, p. 387).

Em Guiomar podemos ver a adaptabilidade e resiliência da protagonista que


consegue manipular seus sentimentos e sua vida em benefício próprio para conseguir
alcançar a ascensão de classe. Para conseguir este feito são necessários os cálculos, até
mesmo os insensíveis. Contudo, é necessário pontuar a necessidade de lutar por sua
própria sobrevivência e, assim, Guiomar consegue tomar as rédeas de sua própria
existência, utilizando de sua aparente fragilidade para vencer. Como pondera
SCHWARZ (2012, p. 88), “Guiomar, em A mão e a luva, adapta-se com sagacidade
louvável aos sentimentos de uma baronesa, a quem preza grandemente e que a acabaria
por adotar. São os cálculos e a maleabilidade da moça a razão de ser do romance”
(SCHWARZ, 2012, p. 88).

O plano de A mão e a luva, a princípio, não atrai leitores mais exigentes. A


história gira em torno da vida de Guiomar e seus pretendentes, conforme diz o próprio
autor: “(...) o desenho de tais caracteres – o de Guiomar, sobretudo – foi o meu objeto
principal, senão exclusivo, servindo-me a ação apenas de tela em que lancei os
contornos dos perfis. Incompletos embora, terão eles saído naturais e verdadeiros?”
(ASSIS, 2008, p.317). Guiomar analisa os pretendentes e escolhe aquele que melhor lhe
convém para casar-se. Até este ponto seria uma narrativa interessante somente pelo fato
de assemelhar-se a uma obra que funciona como um novelo em que as ações vão se
desvelando com o tempo. Poderia atrair a atenção de leitores que se interessam por este
tipo de literatura repleto de enlaces.

A julgar pelo seu plano, A mão e a luva é um passatempo ligeiro e indulgente


– da indulgência que têm consigo mesmo as boas famílias. Uma menina de
origem humilde, que será adotada pela madrinha rica, hesita entre seus três
pretendentes: o primeiro é romântico e fraco, o segundo é sem graça e
sobrinho da baronesa, à qual a menina deve a posição em sociedade, e o
145
terceiro é forte, além de conquistar o coração à sua amada (SCHWARZ,
2012, p. 95).

Poderia, inclusive, parecer certo conformismo por parte do autor em retratar uma
situação demasiadamente burguesa. Os enlaces e desenlaces, as conquistas e frustrações
amorosas só possuem a função de manter as coisas da forma como estão. “Resulta uma
espécie de conformismo insolente, expedito, antepassado da modernização reacionária
de nossos dias, em que inteligência, vitalidade e antipatia se dão as mãos” (SCHWARZ,
2012, p. 95). Tudo não passaria de um enredo romântico se a protagonista não fosse
Guiomar uma personagem subalterna, mas forte e que, por sua situação de fragilidade
econômica e social, precisa usar de todos os subterfúgios para conseguir a tal almeja
ascensão de classe. É assim que a inteligência e a dissimulação imperam na
personalidade da personagem que “Usando de “tino e sagacidade”, (...) procura
substituir-se junto à madrinha à filha que esta perdeu. Sai bem da empresa, e deixa de
ser “a simples herdeira da pobreza de seus pais”” (SCHWARZ, 2012, p. 96).

O que é valorizado na sociedade brasileira narrada nos romances machadianos?


Há sempre a valorização da falsa moral, dos valores e costumes que estão acima dos
sentimentos, das aparências, das máscaras tratadas como etiqueta social. Os valores
estão ligados à capacidade de fingir e de simular. O ambiente, portanto, é propício e
exige dos indivíduos em situação de subalternidade a capacidade de simulação e de, por
meio desta, alcançarem a dissimulação preservando assim sua identidade. É por isso,
que todo o processo de dissimulação não obscurece as qualidades de Guiomar como
heroína do romance machadiano.

É justamente neste processo que se encontra a grande capacidade de persuasão


da protagonista que seduz até mesmo o narrador que a descreve com tamanha maestria
que torna sua descrição uma das mais admiradas pelos leitores de Machado de Assis. A
personalidade mesclada da protagonista que busca o amor, mas que visa encontrá-lo não
em qualquer senda e o fato de pensar o amor como decorrente de um cálculo, um frio
cálculo. Este paradoxo estava presente na personalidade da heroína: o amor poderia vir
desde que acompanhado de refinamento; que fosse fruto da etiqueta e não do
arrebatamento dos apaixonados românticos. As flores representativas da sensibilidade
do coração de Guiomar e de suas emoções deveriam, por isso, estarem plantadas em
146
vaso de Sèvres, ou seja, na mais refinada cerâmica francesa e não na natureza sem o
abrigo e o conforto de uma bela casa burguesa. Flores belas e viçosas, mas sobre um
móvel raro, próximas a cortinas de caxemira.

Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele
sentimento? Era-o até o ponto de lhe não desbotar à nossa heroína a castidade
do coração, de lhe não diminuirmos a força de suas faculdades afetivas. Até
aí só; daí por diante entrava a fria eleição do espírito. Eu não a quero dar
como uma alma que a paixão desatina e cega, nem fazê-la morrer de um amor
silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria. Sua natureza exigia e amava
essas flores do coração, mas não havia esperar que as fosse colher em sítios
agrestes e nus, nem nos ramos do arbusto modesto plantado em frente de
janela rústica. Ela queria-as belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres, posto
sobre móvel raro, entre duas janelas urbanas, flanqueado o dito vaso e as
ditas flores pelas cortinas de caxemira, que deviam arrastar as pontas na
alcatifa do chão. Machado (ASSIS, 2008, p. 165)

Não se pode deduzir a personalidade da personagem buscando apenas elementos


extratextuais. Só conhecemos a subjetividade de Guiomar por aquilo que está descrito
na voz do narrador que exibe ao leitor o interior da personagem. Por esse artifício, é
possível conhecer seus anseios, seus sentimentos, suas intenções. Todavia, nem mesmo
o narrador onisciente conhece ao certo todas as peculiaridades de uma subjetividade tão
dissimulada. Sendo assim, não se pode determinar com certeza os sentimentos de
Guiomar ou a intensidade destes mesmos sentimentos. É detectável a capacidade da
protagonista em aliar os ponteiros de acordo com suas necessidades, pois ela sabe que o
amor, ainda que verdadeiro, é fruto também de um cálculo. Guiomar não gosta de
surpresas, prefere o amor seguro explicitado na figura de um bom matrimonio,
financeira e representativamente representado na escolha de um membro de família
tradicional.

Paixão desatinada e cega, sentimento involuntário, amor silencioso e tímido,


são expressões que trazem à cena o ponto de vista do Romantismo, para o
qual o afeto (natureza) se não é incondicional está degradado (pela coação
das conveniências). Ora, Guiomar amava deveras, mas sem desatino,
cegueira ou timidez, e o seu sentimento é involuntário só em parte
(SCHWARZ, 2012, p. 103).

A ambição desmedida é constantemente valorizada na elite brasileira descrita


nas obras de Machado de Assis. Contudo, esta ambição não é bem vista no coração do

147
subalterno. Sendo assim, é preciso deixá-la escondida dos olhos dos membros de
famílias abastadas, pois este sentimento, em pessoas que são seus dependentes, os
amedronta. É preciso ser ambicioso e ao mesmo tempo simular a ausência deste
sentimento. A ambição funciona como um segredo de combate, pois deve-se manter a
sensação de segurança daqueles que estão em posição hierárquica superior no sistema. A
personagem feminina que vive do favor não deve de forma alguma ambicionar o amor
de membros da família que a acolhe. Porém, pode viver o amor em um casamento
arranjado. É assim que a frieza e a ambição de Guiomar deixam de ser vistas como
defeitos e passam a ser reconhecidas como qualidades.

A nota picante vem na reabilitação perversa de noções muito marcadas:


espírito frio, desdém pela vida modesta e rústica, anseio por conforto e
riqueza convertem-se em qualidades, com o prestígio extra de saírem de um
combate em que representavam a clareza, contra a imitação acrílica
(SCHWARZ, 2012, p. 103).

Mas, como revelar suas verdadeiras intenções e emoções numa sociedade de


aparências? Além disso, há o fato da personagem ser uma subalterna, uma agregada
numa família de elite tradicional. Desta condição surge a necessidade da postura
dissimulada de Guiomar na busca de conseguir a tão sonhada ascensão de classe. O que
caracteriza a personagem não simplesmente valer-se do cálculo nem sempre
perfeitamente bem sucedido. Nos momentos em que o cálculo falha é que nos
deparamos com a humanidade de Guiomar: suas emoções que podem ser dissimuladas,
todavia existem.

Machado, por meio do narrador, permite-nos perceber os dilemas internos da


personagem. Nesse sentido, a densidade na construção das personagens machadianas
assusta, em especial, aquelas em condição de subalternidade.

Nas obras de Machado de Assis as mulheres são piores que os homens, mais
perversas. Não que os homens sejam bons, está claro, mas são mais animais,
se posso me exprimir assim, mais espontâneos. As mulheres não: há em
quase todas elas uma inteligência mais ativa, mais calculista; há uma dobrez,
uma perversidade e uma perversão em disponibilidade, prontas sempre a
entrar em ação. Talvez nisto se possa ver ainda uma boa prova da forte
sensualidade (ANDRADE, apud ASSIS, 2008, p. 48).

Considere-se que o calculismo quase sempre está reservado aos subalternos. No


148
jogo das simulações, as personagens dependentes necessitam manter uma postura de
quase completa assimilação e anulação. Na citação tirada de texto de posicionamento de
Mario de Andrade, essa postura fica evidente. Contudo, avaliando a estratégia comum
em textos críticos, o que Andrade percebe na criação machadiana, decorre da intenção
de interpretar, talvez com outro ponto de vista, o texto citado. No trecho de Andrade, há
um julgamento de valor: “as mulheres são piores que os homens”. Afinal, o que seria
pior? No entanto, concordo com Mario de Andrade quando afirma haver, nas
personagens femininas machadiana, uma dobrez mais refinada que a apresentada pelas
personagens masculinas, pois penso que esta poderia ser caracterizada pela própria
dissimulação. Contudo, esta mesma capacidade de dissimular o caráter pode ser
encontrada em personagens que representam a elite patriarcal brasileira. Aliás, este
caráter dúbio é observado em Bentinho, em Brás Cubas, em Félix e em quase todas as
personagens masculinas de Machado de Assis.

Quando se analisa com critério as personagens subalternas do autor é preciso


observar que estas apresentam personalidades de complexidade extrema. É quase
impossível determinar com precisão suas ações. Elas vivem, existem e agem de forma
paradoxal e daí surge a riqueza de suas participações nas narrativas. Por mais que
muitos estudiosos apresentem argumentos que defendam a pouca presença destas
personagens em condição de subalternidade na obra machadiana, o que interessa
ressaltar, nesta tese, é a qualidade destas aparições. Afinal, o realismo e o senso crítico
de Machado o impediam de colocar estas personagens em locais que não ocupavam fora
da ficção.

A capacidade de dissimular até mesmo o amor que verdadeiramente nela existia


tornava Guiomar uma personagem forte. A análise do enredo sem levar em consideração
a posição subalterna da protagonista levaria o leitor à percepção de um romance sem
muita complexidade. Contudo, o brilhantismo de Machado está em apresentar uma
subalterna como protagonista e com personalidade forte. A força de Guiomar estava
justamente na capacidade de utilizar o cálculo, no calculismo que surgira até em
situações de tensão extrema. A capacidade de dissimular até mesmo no momento em
que necessitava manter sua personalidade, defender seus interesses e suas emoções foi o
que a proporcionou alcançar o desenlace vitorioso e satisfatório. Esta situação, contudo,
não se repetirá na construção da personagem Helena, do romance de mesmo nome.
149
Inclassificável

Não classificarei como realista antirromântico ‘o romancista e contista


Machado de Assis, ironista sutil e perscrutador fundamente [sic] pessimista
das almas, em que se descobriram elementos de Swift, Maupassant, e
Thomas Mann. É um inclassificável ‘fora das tendências de sua época,
embora seus personagens e ambientes sejam brasileiros e da época. Já foi
muito traduzido. Sua intemporalidade ‘será, um dia, problema difícil para os
teóricos da crítica literária (CARPEAUX, 1977, p.159).

Ao pensar em realismo na obra literária de Machado de Assis é necessário


sempre repensar, refletir e defender por meio de argumentos convincentes a afirmativa.
O que é essencial nesta etapa é também relativizar o conceito de real. Este processo de
relativização já está sendo feito desde o início desta etapa da pesquisa. A diferenciação
entre o real imediato e o real possível, entre o Realismo e os Novos Realismos ou de
forma particular o realismo machadiano como algo a ser conquistado. Todas estas
relativizações e processos de reconceitualização se fazem necessários pela própria
peculiaridade presente na literatura machadiana. Cabe lembrar também que, para
Machado de Assis, as caracterizações e rótulos não conseguiam abarcar o todo vivo que
é a literatura. Após todas as tentativas de categorizações, a narrativa do autor segue seu
caminho inclassificável.

Tem-se acusado Machado de Assis de ser pouco brasileiro. Acusação gratuita


e superficial, já que a sua obra, quer pela língua, quer pelo ambiente, quer
pela índole das personagens, reflete – sem copiar servilmente – o meio social
do Império e dos primeiros anos da República. Mas acusação que, a ser feita
de boa-fé, se origina talvez num engano explicável; se se enquadra
perfeitamente em sua terra, o romancista destoa da paisagem literária. Dentro
do desenvolvimento da ficção é que é difícil situá-lo. Não teve predecessores
que o explicassem, como não teve, rigorosamente, continuadores que se
mantivessem no alto plano em que tão à vontade se instalou; (LÚCIA
MIGUEL-PEREIRA in ASSIS, 2008, p. 58)

O próprio autor fornece falsas pistas para o leitor quando afirma no início do
romance sua passageira verve romântica. O maior desafio encontrado pelo leitor no
processo de interpretação da literatura de Machado de Assis advém da dificuldade de
150
definir os elementos irônicos de seu texto. A ironia machadiana se faz presente até
mesmo na apresentação do livro. Quando revela o ar romanesco da narrativa, ele o faz
de forma irônica. Esta declaração se apresenta como mais um dos despistes do autor, um
embuste, uma bruxaria, uma negaça de capoeirista que quando diz que vai não vai.

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras,
que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que compus e
imprimi, diverso do que o tempo me fez, correspondendo assim ao capítulo
da história do meu espírito naquele ano de 1876. (ASSIS, 2008, p. 391).

A tentativa de relacionar a reflexão sobre Novos Realismos e Estética da


dissimulação visa alcançar um aprofundamento da complexa questão da voz subalterna.
Afinal, qual seria o objetivo do autor ao escrever um livro que não seguisse os
parâmetros estéticos vigentes para a produção artística e literária da época? Não
poderia, se tratando de Machado de Assis, refletir somente um mero capricho. Até
mesmo por isso a crítica ferrenha do autor perante o Realismo que se apresentava diante
de seus olhos como algo insonso e inerte.

Resta-me concluir, e concluir aconselhando aos jovens talentos de ambas as


terras da nossa língua, que não se deixem seduzir por uma doutrina caduca,
embora no verdor dos anos. Este messianismo literário não tem a força da
universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude. Influi, decerto,
em bom sentido e até certo ponto, não para substituir as doutrinas aceitas,
mas corrigir o excesso de sua aplicação. Nada mais. Voltemos os olhos para a
realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade
estética. [...] Ora, o realismo dos Srs. Zola e Eça de Queirós, apesar de tudo,
ainda não esgotou todos os aspectos da realidade. Há atos íntimos e ínfimos,
vícios ocultos, secreções sociais que não podem ser preteridas nessa
exposição de todas as coisas (ASSIS, 2008, p. 1242).

Entre o que era e o que poderia ser, Machado de Assis observava no momento de
transição de paradigmas uma possibilidade, uma dádiva. O problema é que as dádivas
quando caem em mãos desavisadas acabam por perder o valor perante àqueles que não
as enxergam. Por isso, o ceticismo em alguns momentos toma conta das reflexões do
autor. Mas, no fragmento apresentado é possível vislumbrar um certo ar de otimismo:

Finalmente, a geração atual tem nas mãos o futuro, contanto que lhe não
afrouxe o entusiasmo. Pode adquirir o que lhe falta, e perder o que a
deslustra; pode afirmar-se e seguir avante. Se não tem por ora uma expressão
151
clara e definitiva, há de alcançá-la com o tempo; hão de alcançá-la os idôneos
(MACHADO DE ASSIS, 2008, vol. 3, p.1242).

Mesmo que apresente entusiasmo com a ideia de uma novidade, Machado de


Assis observa com certo desdém os novos tempos. O novo paradigma apresenta novas
roupagens para elementos antigos. O problema do autor está justamente neste ponto: o
novo não seria verdadeiramente novo, pois, ainda que o conceito tenha mudado e
apresentado novos elementos formais, os indivíduos eram os mesmos com as mesmas
limitações. “É desenganar. Gente que mamou o leite romântico pode meter dente no
rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o melhor pedaço
de carne para correr à bebida da infância. Oh! Meu doce leite romântico!” (ASSIS,
2008, vol. 4, p. 946). O problema do autor é com os exageros e com as limitações
impostas à arte pelos próprios literatos que acabam se encantando com novas posturas.

Não peço, decerto, os estafados retratos do Romantismo decadente, pelo


contrário, alguma coisa há no Realismo que pode ser colhido em proveito da
imaginação e da arte. Mas sair de um excesso para cair em outro, não é
regenerar nada; é trocar o agente da corrupção. (MACHADO DE ASSIS,
2008, vol. 4, p.1241).

O Realismo criticado por Machado de Assis e que se faz presente de forma


pungente na literatura de Eça de Queirós é aquele exagerado, que almeja levar a
literatura para outro patamar – o da simples fotografia mecânica do Real imediato. Sua
pena vai de encontro às práticas estéticas que utilizam o literário como “reprodução
fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis” (ASSIS, 2008, vol.3, p. 1233). A
forma, o estilo, não deve escravizar as personagens. A máxima de Machado é que o
escritor seja homem de seu tempo e de seu país e isto não é, necessariamente, descrever
paisagens. Por isso, a paisagem social e psicológica são elementos essenciais em sua
literatura.

Outros escritores terão mostrado mais paisagem brasileira; nenhum mostrou


mais paisagem brasileira; nenhum mostrou mais profundamente o homem
brasileiro. Na sua obra, melhor do que em qualquer outra, encontramos uma
imagem de conjunto mais expressiva do fenômeno brasileiro normal, isto é,
da gente e da terra em suas manifestações normais, quotidianas, corrente. O
seu regionalismo carioca não o limita, pelo contrário: porque a capital do país
sempre foi o ponto de convergência, a súmula, o índice de todo o país.
(PEREIRA, apud ASSIS, 2008, p. 31).

152
É por baixo da cortina do melodrama que se observa a real intenção do autor. A
contradição tão comum ao Romantismo, os fracassos, as tragédias, os dramas
acompanhados da morte – todos estes elementos não funcionam em Helena como um
recurso meramente estilístico. Há em Machado de Assis um ideal maior relacionado
com questões que se inserem numa revisão da subalternidade ou do espaço relegado
àqueles que se encontram nesta condição. A morte da protagonista, neste contexto,
funciona como uma vontade, um poder e um dos poderes mais nobres – o poder de
decidir-se pela própria vida. É este direito que não é dado à heroína criada por Eça de
Queirós. Ao passo que Helena contraria o paradigma romântico, Luísa é apenas uma
escrava das circunstâncias e das regras do Realismo. Machado chega até mesmo a
afirmar que a personagem não passa de um títere: “(...) a Luísa é um caráter negativo, e
no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral” (ASSIS,
2008, p. 1234). Fica claro que este maniqueísmo na construção das personagens
incomoda o bruxo do Cosme Velho. Afinal, Luísa é o ponto mais frágil da narrativa de
Eça, podendo inclusive ser considerada uma presença subalterna. Luísa é a mulher
burguesa que sofre com a monotonia de um casamento por conveniência e que vê no
adultério a possibilidade de realizar em sua vida o que observava na literatura que lia:
“Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo
outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência” (ASSIS
2008, p. 1234). Luísa é um títere, pois não morre com o peso de sua própria consciência
ou por remorso. Ela morre para atender a uma moralidade externa, um desejo do autor.
É desta ausência de poder no processo de decisão que descende “a inanidade de caráter
da heroína” (ASSIS, 2008, p. 1234).

Tomando por base as críticas citadas acima e refletindo sobre a presença da


realidade na obra machadiana, esta pesquisa se vê obrigada a discordar dos pontos de
vista presentes na análise de Afrânio Coutinho quando observa no autor uma primazia
dos valores estéticos. Enquanto para COUTINHO (2004) a realidade funcionaria para
Machado de Assis como mais um elemento utilizado com objetivo estilístico, a reflexão
aqui empreendida observa em suas obras uma relação intrínseca entre estética e política.

Sua obra é dominada pelo senso estético, pelos valores estéticos. O que nela
predomina não é a preocupação social, sem embargo de estar presente a
153
imagem do social, a sociedade do seu tempo (...). Mas, a realidade, o meio,
para ele, constituíam apenas a base, a matéria-prima que, à imagem de todos
os grandes artistas, ele transfigurava e transformava em arte. Para ele, a
verdade histórica existia para ser transmutada em verdade estética.
(COUTINHO, 2004, p. 24)

Uma das críticas mais recorrentes aos romances de Machado de Assis é a


afirmação da ausência ou quase ausência de personagens subalternas em posição de
prestígio em suas narrativas. Contudo, quem seria Helena? Reitero que é nas sutilezas
da dobra que se estabelece o poder de derrisão da literatura machadiana. É visando
pensar quem seria Helena e sua representatividade nas linhas do romance que se propõe
empreender uma análise específica da personagem.

154
O espelho quebrado
(…) apesar do perigo constante de invasão e rapina por seus algozes, e
certamente por isso mesmo, o desafio de Helena, Luís Garcia, Capitu e outros
tantos era afirmar a diferença no centro mesmo dos rituais da dominação
senhorial. (CHALHOUB, 1998, p.99)

Podemos enquadrar didaticamente Helena na primeira fase da produção de


Machado. É o terceiro romance escrito pelo autor que: “(...) ainda aprendiz de feiticeiro,
não explicitava com tanta acidez o seu ceticismo e suas críticas corrosivas”
(NASCIMENTO, 2002, p.55). Mas, Segundo Camargo: “De fato, essa distinção o
obriga a ser dois: o ingênuo escritor da ‘primeira fase’, e o cínico e irônico escritor da
‘segunda fase’ (CAMARGO, 2005, p.29)”. A tese aqui defendida é obrigada a concordar
com o tom de ironia na afirmação de Camargo: seria uma reflexão simplista considerar
os romances da chamada primeira fase como ingênuos. Estão sendo considerados livros
de uma época em que o modelo estético seria o Romantismo. Mas, creio que para o
bruxo do Cosme Velho estas divisões seriam meras trocas de tabuletas. Por isso, alguns
críticos são forçados a tentar enquadrar o autor em determinada escola literária ou o
consideram romântico, naturalista, realista, todos os termos seguidos da expressão avant
la lettre.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Das que então fiz, este me
era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e
diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé
ingênua. É claro que em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra
pertence ao seu tempo. (ASSIS, 2008, p.391)

Pode ser que os que considerem esta fase do autor como “ingênua”, levem em
consideração a advertência acima. Mas, antes de tomar conclusões apressadas, o leitor,
tal como já mencionei anteriormente, deve levar em consideração o tom ambíguo da
orientação do autor, pois não significa que Helena estivesse determinado a ser lido
somente com os princípios estéticos mais marcantes de uma época, a do Romantismo,
mas sim que determinadas leituras do romance só poderiam ocorrer anos mais tarde
definindo, assim, o caráter atemporal da obra literária.

155
Helena é um romance que apresenta ao leitor a história do Brasil em meados do
século XIX, descrevendo sua situação política, social e econômica. Os fatos
apresentados na narrativa se dão durante a década de 1850. Entretanto, como assinala
Chalhoub, há na obra duas temporalidades ou historicidades: “Machado escreveu tal
romance em 1876, evocando práticas sociais e o ‘clima’ vigentes na década de 1850”.
Por isso o autor teve possibilidade de analisar e fazer a “(...) denúncia, dos
antagonismos e da violência inerentes às relações sociais vigentes durante ‘o tempo
saquarema’”. Segundo Chalhoub (2003): “Os capítulos iniciais do romance, e
especialmente o segundo, são uma cuidadosa descrição da ideologia senhorial”. É
possível perceber nestes capítulos a situação da classe senhorial e seus valores. Entre
estes, talvez o mais valorizado seja a chave para que possamos entender o paternalismo
em Helena: a vontade do chefe de família, sim “a vontade do chefe de família, do
senhor proprietário, é inviolável e é essa vontade que organiza e dá sentido às relações
sociais que a circundam (...)”. A vontade do senhor é tão forte que a família de Estácio,
filho do Conselheiro Vale, é obrigada a aceitar Helena; não seria só uma simples divisão
de herança, não, a “filha” bastarda viveria em comunhão com os demais membros da
família e todos deveriam tratá-la “com desvelo e carinho, como se de seu matrimônio
fosse”45.

A narrativa se inicia com a morte do conselheiro Vale “O conselheiro Vale


morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu de apoplexia fulminante,
pouco depois de cochilar a sesta” (ASSIS, 2008, p.391). Qual seria o motivo de iniciar o
romance com uma morte? Nada em Machado ocorre por acaso. O conselheiro morto
continuar a fazer valer sua voz, sua vontade: “a vontade senhorial carrega tamanha
inércia que continua a governar aos vivos postumamente”46. Isto revela uma sociedade
que vive de glórias passadas, de uma tradição que valoriza o que foi. O regime
patriarcal é caracterizado pela inércia, por lugares sociais que são sempre ocupados
pelos mesmos grupos. É possível perceber isto no momento em que o narrador
apresenta ao leitor o conselheiro. Ele inicia falando do grande número de pessoas
presentes no enterro “(...) cerca de duzentas pessoas acompanharam o finado até a
morada última, achando-se representadas entre elas as primeiras classes da sociedade”

45
As citações apresentadas neste parágrafo estão presentes em CHALHOUB, 2003, p.37.
46
As citações apresentadas neste parágrafo estão presentes em CHALHOUB, 2003, p.37
156
(ASSIS, 2008, p. 391). A presença das primeiras fileiras da hierarquia social no funeral
não está relacionada à importância do morto que não fizera grandes coisas em vida e
sim à representatividade de sua família pelas relações e manutenção da imagem passada
“O conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava
elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de
família” (ASSIS, 2008, p. 391). O conselheiro representa uma parcela significativa da
sociedade patriarcal que, assim como Brás Cubas, passara inerte e ainda assim
conseguira manter o status social.

Em Helena, o cenário desenhado em torno da abertura do testamento do


conselheiro do Vale é descrição exemplar, se bem que levada às fronteiras do
absurdo, de um ritual de afirmação da vontade senhorial: o conselheiro é tão
conhecedor de suas prerrogativas – “a estrita justiça é a vontade de meu pai”,
diria Estácio [H278] – que resolve não só legar seus bens, mas também seus
sentimentos em relação a Helena. (CHALHOUB, 1998, p. 95).

A palavra do pater familias é apoiada pelas instituições que compõem o cenário


social e político da época. Uma instituição forte que se utiliza de diversos elementos
para manter os lugares definidos e para que não sejam alterados os status é a religião. O
catolicismo fortalecia o ethos do paternalismo vigente e estabelecia os lugares
subalternos (o lugar do negro, da mulher, dos agregados era estabelecido fisicamente e
ideologicamente). O posicionamento inferiorizado do subalterno era reforçado por
instituições que deveriam atuar em sua defesa: “(...) a ambiência católica faz ressaltar no
paternalismo os aspectos que, segundo Machado, ela deveria coibir: a opressão, o
desrespeito, a venalidade a desconfiança, a permanente disposição à violência etc.”
(SCHWARZ, 2012, p. 118).

Helena é apenas um dos exemplos de presença feminina na obra ficcional de


Machado de Assis. Contudo, seguindo o pensamento expressado por Lúcia Miguel
Pereira de que os tipos femininos do autor são representações autobiográficas, é
possível defender a tese de que, entre estas, Helena seria a mais importante.

A heroína representa a figura de mulher que vive através do favor numa


sociedade arquitetada para tornar sua presença nula, uma simples sombra. Contudo,
“(...) a vigência do enredo da dominação paternalista não significava que os
157
subordinados estavam passivos, incapazes de perseguir objetivos próprios,
impossibilitados de afirmar a diferença” (CAMARGO, 2005, p.48). E é esta a postura
que a protagonista assume, a de quem não se submete facilmente à ordem que a oprime.
Sendo assim, ela se expõe ao risco de “afirmar a diferença no centro mesmo dos rituais
da dominação senhorial”. (CAMARGO, 2005, p.48). Helena agia de tal forma que
armava os elementos da equação de um modo que parecesse que as outras personagens
(em particular Estácio) controlavam os resultados. Na verdade a moça já conhecia
previamente os cálculos e resultados. Assim ela agiu quando queria cavalgar e deveria
pedir autorização a seu “irmão”. Helena inverte o jogo e quebra as regras, mentindo ao
afirmar que não sabia montar e que desejava aprender.

De acordo com Camargo: “A personagem, que se mostrava bondosa e


compassiva, cheia de virtudes, como espelho de boa moça e boa filha, de acordo com os
padrões morais românticos, irá mostrar-se mais ambiciosa, e até mesmo mentirosa, falsa
e dissimulada (...)” (CAMARGO, 2005, p.38). Porém, o posicionamento do crítico
deixa de levar em consideração que, ainda que as atitudes da protagonista sejam
marcadas pela mentira, cabe repensar se estaria Helena somente cumprindo um papel.
Não seriam as mentiras, a falsidade, a dissimulação, valores da sociedade e da época
apresentada na narrativa? Camargo também afirma que:

Assim, Helena, por exemplo, entra em uma família que não é a sua e, uma
vez instalada, faz de tudo para tornar-se membro dessa família, mimetizando
os gostos e caprichos de cada um dos outros membros, agradando a todos,
disfarçando-se em algo que não é senão a fabricação de um outro eu”.
(CAMARGO, 2005, p. 31)

A análise da personagem apresentada por Camargo está correta. Helena fabricara


outro eu, vivera um engano, uma máscara, um espelho. Contudo, cabe refletir sobre a
razão deste processo. Vivendo em uma sociedade paternalista e opressora, a heroína
encontrara uma forma de sobreviver ao regime sem expor-se de forma direta. Por isso,
ela mimetiza o próprio funcionamento social da época, a sociedade da simulação e da
verossimilhança, em que o parecer é superior ao ser.

Além das qualidades naturais, possuía Helena algumas prendas de sociedade,


que a tornavam aceita a todos, e mudaram em parte o teor da vida da família.
Não falo da magnífica voz de contralto, nem da correção com que sabia usar
dela, porque ainda então, estando fresca a memória do conselheiro, não tivera
158
ocasião de fazer-se ouvir. Era pianista distinta, sabia desenho, falava
corretamente a língua francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de
costura e bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça
e lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciência, arte e
resignação – não humilde, mas digna -, conseguia polir os ásperos, atrair os
indiferentes e domar os hostis. (ASSIS, 2008, p. 403).

As qualidades apresentadas acima poderiam ser facilmente interpretadas como


as requeridas de uma heroína romântica. Todas estão relacionadas ao ideal de mulher
buscado pelo romantismo. Porém, este recurso nada mais é que um ardil utilizado pelo
autor para anuviar o leitor das reais características de Helena. As que mais interessam
nesta tese são as que estão relacionadas com a dissimulação, são os “(...) predicados
próprios a captar a confiança e a afeição da família” (ASSIS, 2008, p. 403). Ela era
“frívola com os frívolos, grave com o que o eram” (ASSIS, 2008, p. 403), mas “O que a
tornava superior (...) era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda a
casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres”
(ASSIS, 2008, p. 403). Esta arte não faz estimáveis os homens, pois estes já gozam de
prestígio social próprio de uma sociedade que coloca a mulher em situação de
subalternidade. Contudo, a capacidade de acomodar-se é um requisito para a
sobrevivência pacífica do subalterno em um meio social que o submete. E assim, ela
“conseguia polir os ásperos, atrair os indiferentes e domar os hostis” (ASSIS, 2008, p.
403).

No início, havia certa resistência por parte dos servos, estes viam com receio a
chegada de uma parenta desconhecida. Afinal, neste cenário tão delimitado, a inclusão
de um diferente poderia alterar toda a configuração da casa e dificultar ainda mais a
vida dos dependentes. Contudo, o posicionamento da filha bastarda do conselheiro
conquista a todos. Sua simplicidade era mesmo gratuita e desinteressada.

(…) Dos próprios escravos não obteve Helena desde logo a simpatia e boa
vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de D. Úrsula. Servos de uma
família, viam com desafeto e ciúme a parenta nova, ali trazida por um ato de
generosidade. Mas também a esses venceu o tempo. Um só de tantos pareceu
vê-la desde princípio com olhos amigos; era um rapaz de dezesseis anos,
chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado do conselheiro.
Talvez esta última circunstância o ligou desde logo à família do seu senhor.
Despida de interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era
precária e remota, a afeição de Vicente não era menos viva e sincera;

159
faltando-lhe os gozos próprios do afeto, — a familiaridade e o contato, —
condenado a viver da contemplação e da memória, a não beijar sequer a mão
que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos
instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado
convicto nos julgamentos da senzala. (ASSIS, 2008, p.404)

O leitor conhecerá as características mais íntimas de Helena quando passar a


observar o seu comportamento. A descrição feita pelo narrador é importante, mas quase
sempre passa pelo filtro romântico. As ações é que revelam uma mulher que foge dos
moldes dos romantismos e até mesmo do ideal feminino da época. Ela se coloca fora
dos padrões, dos estereótipos de mulher e até mesmo do que era esperado de um
subalterno, de um agregado. Helena consegue por meio da dissimulação se desprender
por vários momentos das amarras do favor. Ela possui opinião própria, rompe com o
tradicionalismo, condena a falsa moral da elite brasileira e demonstra o seu
descontentamento para com o regime escravista e patriarcal.

Em uma das passagens mais interessantes da narrativa, Helena faz um passeio a


cavalo com Estácio e durante a cavalgada encontram um preto dividindo uma laranja
com duas mulas. Pela cena, o narrador admite a possibilidade de que o homem seja uma
pessoa escravizada pela simplicidade de suas vestimentas. Aparentemente, seria uma
cena comum, todavia passa a ser focalizada por Estácio.

O preto de quem Estácio falara, estava sentado no capim, descascando uma


laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava
filosoficamente para ele. O preto não atendia aos dois cavaleiros que se
aproximavam. Ia esburgando a fruta e deitando os pedaços de casca ao
focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, com o que
parecia alegrá-lo infinitamente. Era homem de cerca de quarenta anos; ao
parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapéu que lhe cobria a cabeça,
tinha já uma cor inverossímil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da
satisfação; em todo o caso, a serenidade do espírito. (ASSIS, 2008, p. 413-
414).

Estácio logo utiliza a cena para fazer um discurso didático para a irmã sobre a
superioridade dos valores da riqueza. O rapaz deixa clara sua visão elitista e patriarcal
da vida: “(…) A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugidio bem que
nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de
gastar, a pé, mais uma hora ou quase.” (ASSIS, 1997, p.18). Por meio da cena descrita e
160
das atitudes de Estácio é possível percebê-lo como representação dos homens da elite
patriarcal brasileira que pode ser caracterizada pela visão utilitária da vida.

— Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a maior felicidade
da Terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a necessidade;
mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns apetites ou
desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral que
submete o homem aos outros homens. (ASSIS, 2008, p. 413).

A atitude esperada de uma mulher passiva em uma sociedade patriarcal seria a


de calar-se ou de concordar com os posicionamentos do irmão, porém Helena não é o
que se espera do estereótipo feminino. Ela se aproveita deste discurso de Estácio para
também utilizar a cena e analisá-la sob outro ponto de vista. Ela defende um
pensamento complexo sobre o tempo e ainda reafirma a dignidade do indivíduo
escravizado. Há uma humanização daquele indivíduo que era considerado um animal
pela elite escravocrata. Ela se vale de argumento sobre o modo de aproveitamento do
tempo. Discute que a questão não é fazer do tempo algo que se possa dominar. O tempo
do senhor é o mesmo tempo daquele que possui o escravizado; a forma de seu
aproveitamento é que pode ser diferente. O narrador evidencia a serenidade e satisfação
de que desfruta o escravizado naquele raro momento de um dia em que vive sua
liberdade.

A reflexão feita pela protagonista sobre a relatividade do tempo e seu uso


provoca um choque em Estácio que a compara a um homem. Naquela sociedade
patriarcal, somente um homem poderia expressar-se desta forma.

— Tem razão, disse Helena: aquele homem gastará muito mais tempo do que
nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A
rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o
economizemos. O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer
muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez,
esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o
cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade. (ASSIS, 2008, p. 414).

As ações da protagonista revelam uma personalidade contestadora e


demasiadamente crítica que se concilia com uma postura doce e educada. Essas

161
qualidades impressionam Estácio. No momento em que Dr. Camargo sugere que Estácio
entre para o ramo da política, este chega ao ponto de afirmar que iria consultar Helena
sobre o assunto, pois “há nela muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa
harmonia com as suas outras qualidades feminis” (ASSIS, 2008, p.420). O
posicionamento de Estácio causa certo desconforto em Dr. Camargo que chega a
questionar: “Helena! – disse ele com alguma hesitação. – Que vem fazer sua irmã neste
negócio?” (ASSIS, 2008, p. 420). O que assusta Dr. Camargo é o fato de Estácio dar
tanta importância aos conselhos de uma mulher, ainda mais em se tratando de política –
assunto que naquela época era do âmbito e de interesses específicos do gênero
masculino.

No livro fica evidente a forma como Helena manipula as pessoas dissimulando


suas emoções. Com seu comportamento doce, ela consegue realizar seus desejos, expor
seus argumentos e convencer as pessoas. Uma das ações mais interessante da
protagonista, como já acentuado, é quando ela resolve cavalgar. Helena usa o cálculo
para fazer valer sua vontade. Ela queria cavalgar, mas não seria prudente ir sozinha, por
isso diz que queria aprender a cavalgar e logo seu irmão se coloca à disposição para
ensiná-la. Estácio explica para a irmã a necessidade de dominar, no primeiro momento,
o medo e esta responde com uma explicação filosófica: “— O medo? O medo é um
preconceito dos nervos. E um preconceito desfaz-se; basta a simples reflexão.” (ASSIS,
2008, p. 411). Ele questiona a irmã de onde tirava aquelas ideias e ela responde: “Não
são ideias, são sentimentos. Não se aprendem; trazem-se no coração.” (ASSIS, 2008, p.
411). Este conjunto de ações é necessário pelo fato de Helena estar localizada em
posição não muito diferente da que possuía o escravizado na hierarquia social.

Segundo Chalhoub existiriam na hierarquia da classe senhorial brasileira duas


posições de base: uma seria a escravidão assegurada pela força e a outra seria a dos
dependentes, “que viviam de favores” e que “viam-se envolvidos na teia complexa do
favor, que garantia a subordinação da pessoa por meio de mecanismos de proteção com
contraprestação de serviços e obediência”. (CHALHOUB, 2003, p. 48) Helena, como já
dito, é uma representante da classe dos dependentes. “(...) Conselheiro Vale, que lega a
seus herdeiros a moça Helena, logo revelada à família como filha natural do morto. Esse
capítulo marca a construção da personagem feminina como uma mulher escrita”
162
(CAMARGO, 2005, p. 37). Antes da morte e do respectivo testamento do Conselheiro
Vale, Helena não existia, era uma anônima representando diversos outros anônimos. O
gesto do seu protetor proporciona à protagonista a ascensão social marcada pelo
recebimento de um título e um nome. E até mesmo por isso, a protagonista vive um
conflito que Chalhoub descreve:

Enfim, uma metade de Helena estava na posição de compreender


inteiramente o sofrimento de um dependente – papai Salvador -, ao passo que
a outra metade não podia deixar de reconhecer e se sentir grata pela proteção
oferecida por um senhor/proprietário – papai Vale, o Conselheiro. Num
momento, o próprio Salvador, ao descrever a situação, afirma que ‘o pai
lutava com o pai’. (CHALHOUB, 2003, p. 37).

Talvez o conflito fosse ainda mais profundo e complicado. Afinal era Helena que
lutava contra Helena. A pobreza financeira da verdadeira e a pobreza de espírito a que
deveria se submeter aceitando a máscara da segunda. O conflito vivido pela
protagonista é provocado pela necessidade de viver simulando para continuar
desfrutando das benesses do sistema paternalista. Contudo, os benefícios não surgem
sem uma contrapartida e o preço a ser pago seria o de seguir com o processo de
simulação. Helena, todavia, não consegue se submeter por muito tempo à situação. Em
grande parte, o que a faz desistir da simulação é a aproximação de seu pai verdadeiro.
Ainda a propósito do pai de Helena, Camargo afirma: “E é lá que mora o pai, chamado
Salvador, mais uma ironia machadiana, já que o pai é sua perdição” (CAMARGO,
3005, p.). Tal como afirma Camargo, há uma ironia no nome do pai, mas há também um
paradoxo. Salvador é a perdição para a mascarada e simulada Helena, mas, por outro
lado, é a salvação da verdadeira Helena e a morte da máscara com que tentara exercer
com artifícios que lhe causavam imensa dor.

Outro ponto da narrativa que gera discussão é a morte da heroína. Seria possível
partir da tese de que a morte de Helena seria um recurso romântico? Porém, seguindo a
linha de pensamento da reflexão aqui empreendida, pode-se pensar que a morte da
protagonista funcionaria como um trunfo apresentado pelo autor: para que a
personagem fizesse parte daquela sociedade, era preciso que a verdadeira Helena
morresse e ficasse a simulada. Há várias personagens que representam esta grande
163
parcela da sociedade escravocrata e paternalista que consegue viver a verossimilhança,
mas a máscara não ficava bem em Helena, não se encaixava, assim como também não
se encaixou em Prudêncio47, personagem do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Na primeira, o ato de tentar ser o que não era causou-lhe dor, desespero, aflição
e humilhação; no segundo, tornou-o motivo de chacota.

Mesmo não sendo possível a Helena redimir-se do mal causado, ela


permanecerá como ferida cravada e gravada na memória de todos. A
imortalidade viria através da morte. (...) Helena é quem permanecerá na
memória das pessoas da família e será ‘canonizada’ pela crítica literária como
aquela que morreu envergonhada pelos atos que cometeu. (CAMARGO,
2005, p.65)

Na citação acima é possível perceber uma crítica às ações da protagonista


enquanto atuava com face dissimulada. Em vida, Helena consegue manipular todas as
outras personagens utilizando para isto a linguagem das sutilezas. O romance ressalta
um conjunto de hábitos na protagonista que dão a ela condição de agradar até mesmo
àqueles que lhe têm aversão. Porém, ao morrer, ela consegue frustrar o leitor fugindo
dos frames românticos e mantendo sua postura, já que prefere morrer a negar sua
origem e continuar seguindo a vontade paternalista da família abastada. Talvez esse ato
extremo não fosse necessário para que fosse redimida. Até mesmo seguindo a tradição
de muitas narrativas românticas seria possível que ela conseguisse o perdão e tivesse um
amor correspondido pela total ausência da sombra de uma relação incestuosa.

Todas as descrições da personagem Helena estão carregadas de elementos


românticos, contudo, ao mesmo tempo, sempre estão acompanhadas de críticas ao
Romantismo. A cena da morte de Helena é a representação da genialidade machadiana
na descrição e na utilização das tintas valorizadas pelos autores românticos. Os
elementos da cena apresentam vários loci communis que caracterizariam a morte de uma
heroína romântica. Há o desespero de Estácio que, ainda que não fosse religioso, faz
uma prece para Deus pela vida de Helena, uma prece genuína “sem hipocrisia nem
dúvida”.

47
Helena, por inadequação ao sistema e por não conseguir usar a máscara, acaba se anulando e
sofrendo de tal forma que a morte foi a solução encontrada. Prudêncio, por sua vez, não consegue
utilizar a máscara de senhor e assume até o fim da narrativa a posição de subalternizado.
164
Estácio saiu dali, para ir, longe, desabafar o desespero; desceu à chácara,
vagou por ela delirante, a soluçar como uma criança, ora abraçado a uma
árvore, ora ajoelhado e pedindo a Deus a vida de Helena. O coração do moço
não conhecia o fervor religioso; mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida
lhe levara, e ele rezou, rezou sozinho, sem hipocrisia nem dúvida. (ASSIS,
2008, p. 504)

Há o choro de todas as personagens. A presença do capelão, a subida trôpega de


Estevão pelas escadas e o beijo derradeiro e único dos dois apaixonados. A pena de
Machado possui a capacidade de construir uma cena do mainstream Romântico como
poucos. O quadro pintado apresenta o estereótipo de uma morte romântica com
maestria.

Um escravo veio chamar Estácio à pressa; ele subiu trôpego as escadas,


atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cair de joelhos, quase
de bruços, junto ao leito de Helena. Os olhos desta, já volvidos para a
eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e foi Estácio que o
recebeu, — olhar de amor, de saudade e de promessa. (ASSIS, 2008, p. 505).

Porém, a crítica de Machado de Assis se faz presente nas entrelinhas, nos


detalhes. O último beijo daquela cena não foi o dos apaixonados e sim o de um pai em
uma filha. Talvez, a cena da morte de Helena seja a mais linda das descrições
românticas construídas por Machado de Assis. Todas as cores do romantismo pintadas
em tons carregado, porém o frame final desconstrói todo o quadro. Helena morre com
direito ao último suspiro: Adeus! — suspirou a alma de Helena, rompendo o invólucro
gentil. Era defunta. (ASSIS, 2008, p. 505). Estácio fica consternado como um bom
protagonista romântico: “— Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estácio.” (ASSIS, 2008,
p. 505). Mas, enquanto o noivo está transtornado, a futura noiva e seu pai já aguardam o
casamento futuro: “(...) a noiva de Estácio, consternada com a morte de Helena, e
aturdida com a lúgubre cerimônia, recolhia-se tristemente ao quarto de dormir, e recebia
à porta o terceiro beijo do pai.” (ASSIS, 2008, p. 505). Dr. Camargo beija a filha
Eugênia no momento em que Helena é sepultada. Este derradeiro beijo desconstrói toda
a cena detalhista anterior. Os nomes na literatura machadiana não são escolhidos de
forma aleatória. Eugênia é a bem nascida.

A derrota de Helena, a sua morte, é a única solução possível – não apenas


para resolver uma situação sentimental impossível, mas para demonstrar que
apenas triunfam os privilegiados da sorte, os bem dotados de nome e situação
social. (...) Os vencedores são os que se lançam para o futuro, sem remorsos
ou compromissos. Helena não se liberta do passado, por isto condena a si
própria. Não se submete inteiramente às regras que seus parceiros
165
estabelecem para que ela entre no jogo cínico do mundo a que ascende. O
dinheiro do pai adotivo garantiria sua vitória, um casamento oportuno.
(ALMEIDA, apud Assis, 1998, p. 5)

Eugênia é o oposto de Helena. A protagonista não consegue fingir, não consegue


dissimular e por isso, não poderia ser bem sucedida no casamento com um senhor da
elite. Já Eugênia é a representante feminina da elite brasileira. Helena não apresentava
sinais de doença alguma. Porém, quando percebe sua situação e as dificuldades que
enfrentaria ao viver naquela sociedade da verossimilhança, ela adoece, desmaia e, logo
depois, morre.

— Não posso ser outra coisa a seus olhos, prosseguiu a moça, tristemente.
Quem o convencerá de que a declaração de seu pai não foi obtida por
artifícios de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que, cedendo aos rogos
de meu pai, não fiz mais do que executar um plano preparado já? São dúvidas
que lhe hão de envenenar o sentimento e tornar-me suspeita a seus olhos.
Resista quem puder; é-me impossível encarar semelhante futuro! (...) Ela
fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas fraquearam, e o corpo
esmorecido iria a terra, se lho não sustivessem as mãos de Estácio. (ASSIS,
2008, p. 503)

Ela não pertence àquele espaço, seria sempre um estorvo para a família Vale48.
Por isso, a solução mais centrada na situação real de uma mulher em situação de
subalternidade, que se apaixona pelo senhor patriarcal e que não consegue dissimular é
a morte. Eugênia é a personagem que merece triunfar naquela sociedade, é a que merece
os beijos do pai e, portanto, merece as benesses do poder patriarcal. Assim, a mais bela
cena romântica se transforma em uma severa crítica à sociedade de aparências e aos
modus operandi da elite patriarcal brasileira do século XIX.

A morte de Helena pode ser entendida como um recurso utilizado pelo autor para
demonstrar que não existem para o subalterno apenas os caminhos da simulação ou da
dissimulação, porque é possível manter as suas identidades. Mas, para isso, há um preço
e nem todos estão dispostos a pagar.

A construção da personagem Helena revela grande importância quando analisada

48
O título inicial do livro seria Helena do Vale e isto evidenciaria de forma mais forte a presença da voz
patriarcal no romance. Contudo, a mudança para Helena reforça o estudo do caráter da protagonista.

166
a partir dos estudos da subalternidade, primeiro, porque o romance de Assis coloca uma
subalterna como protagonista; segundo, por deixar clara a condição de similaridade
entre o agregado e o escravizado. Esta relação de similaridade é constatada até mesmo
no modo como a protagonista se comporta em relação aos escravizados. Helena não se
coloca de forma alguma em uma posição de superioridade. Entre a heroína e Vicente há
uma amizade sincera, coisa difícil de ser encontrada em cenário carregado de interesses.
Tal como alerta Chalhoub: “Escravidão e paternalismo, cativeiro e dependência pessoal,
pareciam duas faces de uma mesma moeda” (CHALHOUB, 2003, p. 135).

A questão da escravidão, nos textos machadianos, está presente em dimensões


que se inserem em um plano maior a questão do subalterno, tal como ocorre quando
Helena se iguala ao escravizado. Como subalterna, buscando sobreviver em um meio
hostil e opressor, a protagonista acaba também utilizando “as negociações pelas quais os
subalternos, sejam eles escravos ou negros e mulatos forros, sejam agregados de uma
forma geral, conciliam seus desejos e necessidades sem infringir a ‘lei’ senhorial (...)”
(VITAL, 2012, p.24).

167
Brás Cubas e o riso irônico

A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus (ASSIS, 2008, p. 626).

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se
poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. (...)Moisés, que também
contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o
Pentateuco. (ASSIS, 2008, p. 626)

Assim começa o romance e já no início do livro percebemos o tom debochado e


impudico da obra e seus alvos: primeiro, ataca o leitor (e quem seria esse leitor?),
segundo, a religião – a classe senhorial e suas tradições. Machado cria “um narrador
voluntariamente importuno e sem credibilidade” (SCHWARZ, 2000, p. 19), entretanto o
mune de pompa e de linguagem requintada. Não é um homem qualquer que toma a
palavra e sim um cidadão (ainda que morto), um representante da alta sociedade
brasileira.

O riso é característica presente em Memórias Póstumas de Brás Cubas e tem o


poder de rebaixar os valores considerados altos: “(...) trata-se da satisfação maligna de
rebaixar e vexar, de anunciar que os desplantes do narrador não vão se deter diante de
nada, que não ficará pedra sobre pedra (...)” (Camargos, 2005, p.21).O riso destruidor
de Brás (e de Machado) é tão bem dissimulado que faz com que seu leitor (ou leitora),
da época, de sua própria futilidade, risse de si enquanto acreditava estar rindo do outro.
Sendo assim, como acentua Nascimento (2002), “somente rasgando a cortina é que se
percebe a peça que o autor nos prepara. Seu humor (para além de negro) é um corte que
ri. Um riso ainda e sempre a esvair-se das chagas do corpo social brasileiro” (p.62).

A técnica do narrador machadiano utilizada para narrar a história de Brás Cubas é


a afronta demolidora da elite brasileira e do próprio narrador, pois é possível dizer que o
desrespeito por si mesmo é similar ao que ele tem pelos outros. Machado de Assis,
através do seu texto, faz tremer as bases da infra-estrutura da classe senhorial,
168
paternalista e escravocrata, brasileira. Chalhoub lembra em seu livro o tratamento que o
narrador machadiano em Memórias Póstumas de Brás Cubas dá ao leitor e ao crítico de
sua obra. No capítulo LXXII, é descrito o leitor como um sujeito magro, amarelo,
grisalho, estrábico, míope, calvo e corcunda. Ironicamente, descreve o crítico como
aquele que “vira e revira as palavras, examina-as por dentro e por fora, e finalmente
desanima de tentar entender os seus significados”. O teórico afirma que o romance
machadiano é de difícil leitura e compreensão, pois “(...) é marcado pelo tom ambíguo
de suas frases, termos e intenções.” (Chalhoub, 2003, p.48)

A volubilidade do narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas revela uma


elite brasileira do século XIX também volúvel e inconstante. Esse narrador que é ao
mesmo tempo um representante da classe mais alta na hierarquia social e um morto
demonstra a mais fina capacidade irônica de Machado de Assis. A “mobilidade
camaleônica do narrador” (SCHWARZ, 1997, p. 187) possibilita duras críticas ao grupo
de que ele faz parte. Mas essa atitude só lhe é possível por fazer parte do grupo que
critica e por estar morto. O defunto-autor traz para a narrativa um aspecto inusitado e
faz um pacto com o leitor de não representação da realidade. No entanto, o romance
poderia ser caracterizado como um dos mais realistas e críticos da carreira literária
machadiana. Seguindo esta pista, Ronaldes de Melo e Souza vê o romance como uma
expressão tragicômica e analisa o narrador como um mímico-dramático “que difere
sempre de si mesmo, que se despersonaliza a fim de personificar cada um dos papéis
disponibilizados pela diversidade qualitativa da atuação histórica dos homens”.
(SOUZA, 2006, p.10). Por vezes, é possível encontrar em Brás Cubas uma espécie de
bobo da corte que imbuído de sua máscara a utiliza para desferir duros golpes em seu
público. Cabe, neste momento, questionar quem é o sujeito que fala no decorrer da
narrativa. De quem é a voz que fala no romance?

‘Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho
que fazer; e, realmente, expedir magros capítulos para esse mundo sempre é
tarefa que distrai um pouco da eternidade...’ Fala Brás Cubas? Fala um
homem que morreu para a vida e só conservou a paixão de analisar ou a
mania de escrever, como o Trigorin de Tchekhov, sujeito dúbio que é ao
mesmo tempo Brás Cubas e Machado de Assis. E esse homem escrevia livros
como só um morto poderia escrever, porque vivia fora do mundo, no seu
subterrâneo eterno. (AUGUSTO MEYER IN ASSIS, 2008, p. 30)

169
Os bobos, os loucos, as crianças e os que estão no limiar entre vida e morte
gozam de certa liberdade para falar o que pensam. O que dizer então de um bobo que é
ao mesmo tempo um defunto-autor? A voz narrativa pertence a um “poeta camaleônico”
(SOUZA, 2006, p. 10) que tal como na cena do delírio se converte em uma infinidade
de papéis sempre com o mesmo objetivo: destruir todos os valores, tradições e
ideologias da elite patriarcal e escravocrata brasileira. Talvez por isso possa se
considerar o nome Brás como uma forma onomatopaica de representar a destruição
empreendida pelo autor.

Brás se despersonaliza no momento em que passa a ser a representação de seu


próprio caráter em falsidade: “pressupõe-se uma pessoa, particularmente uma pessoa
sem personalidade” (SOUZA, 2006, p. 70). Ele passa a representar uma persona ao
mesmo tempo que se mostra como um “fingidor de toda persona correspondente a
qualquer posição ideológica” (SOUZA, 2006: 70). Assumindo um complexo recurso de
simulação, o narrador deixa de ser o que conduz a história para que sua máscara ocupe
esta função. O protagonista é assim, nas mãos do autor, um títere que serve para expor a
falsidade reinante no meio social. Nas mãos do autor, ele se faz porta-voz do cinismo
machadiano.

Tamanho é o processo de simulação nesta obra de Machado de Assis que Bosi


chega ao ponto de discordar do termo máscara: “eu considero problemática a utilização
da noção de máscara porque naturalmente supõe que atrás dela exista a cara
propriamente dita. E uma das grandes novidades do Machado de Assis é a ausência de
uma cara atrás da máscara” (BOSI, 1982, p. 334). Quando o simulador alcança por
completo o seu ideal de representação, fica impossível retornar ao que era. Esta
impossibilidade também se mostra em Bentinho e seu desejo de retornar a ser o que
fora. Os simuladores passam a ser a máscara e o que representavam passa a ser a
subjetividade destes entes.

Roberto Schwarz (1997) também alerta para o caráter volúvel do narrador: “O


que vemos é que, quase que de frase a frase, o narrador vai mudando de personagem.
Quer dizer, num momento ele é metódico e esclarecido, noutro ele está na moda, noutro
ele é irreverente...” (SCHWARZ 1997, p. 43). Se Macunaíma é o herói sem nenhum
caráter da literatura brasileira, Brás Cubas é o herói que possui várias subjetividades e

170
que muda de máscaras conforme a situação. Schwarz relaciona a volubilidade do
protagonista com a realidade sociopolítica da sociedade brasileira do século XIX. O
Brasil vivia a agonia do sistema escravocrata e do governo monárquico. Há uma
mudança no caráter nacional no que seria a identidade brasileira. Além disso, a
intelectualidade brasileira importava as ideias modernizantes da Europa e as tentava
adaptar à cor e geografia local. Isto tudo tentando manter a elite patriarcal, as amarras
do favor e das relações governadas por interesses.

No que diz respeito ao ideário liberal, encontramos uma variação de


apreciações correlata. Necessário à organização e à identidade do novo
Estado e das elites, ele representa progresso. Por outro lado não expressa
nada das relações de trabalho efetivas, as quais recusa ou desconhece por
princípio, sem prejuízo de conviver familiarmente com elas. Daí um
funcionamento especial, sem compromisso com as obrigações cognitiva e
crítica do Liberalismo, o que abala a credibilidade deste último e lhe
imprime, a par da feição esclarecida, um quê de gratuidade, incongruente e
iníquo. Esta complementaridade entre instituições burguesas e coloniais
esteve na origem da nacionalidade e até hoje não desapareceu por completo
(SCHWARZ, 1997: 37-38).

Rindo de si era ao mesmo tempo rir de toda uma classe. Assim, Brás Cubas se
converte em “retrato de um personagem que se revela em seu próprio ser a natureza
ambígua e reticente da condição humana” (SOUZA, 2006, p. 118). Ao rebaixar todos,
parte do seu próprio autorebaixamento para atacar o bacharelismo: “Bacharelo-me”.
Sua formação era de fachada tal como ocorria com outros que viviam em Portugal uma
vida boêmia e voltavam com o diploma do curso de Direito: “estudei-as muito
mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel” (ASSIS, 2008, p. 654). Os
rapazolas da elite brasileira faziam a formação em Portugal, entretanto este processo
não era, sob o ponto de vista do narrador, em disciplinas relacionadas à prática jurídica:

Tinha conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um


acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras,
fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos
olhos pretos e das constituições escritas. (ASSIS, 2008, p. 654).

Brás Cubas ri de si mesmo com tamanha naturalidade que parece até mesmo
171
estar rindo de outro. De certa forma, esse outro de que ele ri pode ser caracterizado
como ele mesmo no passado, enquanto estava vivo, o “eu de outrora” chega ele a
afirmar. Mas pode ser também o eu que ele representa, ou seja, o estereótipo de um
homem da elite patriarcal. Essa estratégia é vista por Souza quando diz que “a ironia
suprema do narrador machadiano decorre do reconhecimento de que o ser do mundo e
do homem se manifesta como duplicidade originária, e não como unicidade
ontoteológica” (SOUZA, 2006, 35). O riso da personagem é um diagnóstico da doença
social que assolava a realidade nacional.

Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que


Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de
transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, – de um riso descompassado e
idiota (ASSIS, 1996, p. 28).

Isto tudo só é possível por se valer de sua autoridade de defunto: “talvez espante
ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a
franqueza é a primeira virtude de um defunto” (ASSIS, 1997: 94). A morte para Brás
Cubas caracteriza a liberdade assim como a morte de Helena, embora de forma
diferente. O protagonista se vê livre das amarras sociais e da necessidade de simular o
tempo todo. Durante a vida é preciso seguir o protocolo, o trato social:

Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente
pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se,
despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de
ser! (ASSIS, 2008, p. 658).

Este pensamento corrobora a tese desenvolvida por Schwarz (1997, p.58) de


“universalização da volubilidade”. Machado deixa claro que ninguém escapa do
processo de fingimento vivido pela sociedade, seja senhor ou escravizado, senhor ou
subalterno, todos fingem ser o que não são e fingem sentir o que não sentem. A
volubilidade corrompe todas as esferas, a filosofia sem prática, o discurso que destoa da
ação. No âmbito humano e pessoal, todos estão corrompidos e, conforme afirma
Schwarz, a volubilidade “é o pendor permanente de todos; designaria, neste caso, uma
insuficiência metafísica do ser humano. Por outro lado, não lhe faltam também as
conotações de cor local, mais genéricas do que uma propensão de fulano ou sicrano,

172
mas nem por isso universais” (p. 59).

Brás Cubas não possui um corpo, é só uma voz e, portanto, a personagem se


constitui enquanto discurso. Ele não existe como uma entidade viva, visível e física. A
única coisa que a personagem possui na narrativa é a possibilidade de falar. A lógica que
estrutura o texto é a razão cínica e debochada do narrador. A voz patriarcal, a voz do
senhor morto permanece, possuindo o poder de sua palavra, assim como ocorre em
Helena com a voz do conselheiro Vale. Porém, ainda que seja ressaltada a força do
discurso patriarcal, é interessante a forma utilizada por Machado de Assis para guerrear
contra a situação opressora em que vive. Ele não ataca diretamente o sistema de
hierarquias fixas da sociedade brasileira do século XIX, assim como não constrói heróis
subalternos no sentido clássico do termo. Contudo, ele faz uso de todo artifício para
desmoralizar ou para revelar os defeitos da elite e, particularmente, do senhor patriarcal.
Retorno ao questionamento que já fiz anteriormente para interrogar sobre a voz que se
ouve no romance. O romance é, realmente, um monólogo dominado pelo narrador que
representa a elite brasileira. A análise de Augusto Meyer, inserida na edição do romance
publicada em 2008, no romance discute aspectos da questão levantada:

‘Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração


cadavérica...’ Sempre me pareceu uma confissão esta frase. Poder ser que, ao
escrevê-la, apenas pensasse em falar pela boca de Brás Cubas,
desenvolvendo a lógica moral da personagem. Mas assim mesmo, seria uma
confissão indireta ou inconsciente. Caso normativo dos escritores de ficção;
eles se confessam através de encarnações imaginárias, indiretamente, com
uma sinceridade mais honesta do que na correspondência ou nos cadernos
íntimos. O verdadeiro Dostoiévski, por exemplo, se revela muito mais na
obra literária do que no Journal d’un écrivain. (AUGUSTO MEYER IN,
ASSIS, 2008, p. 30).

E quem seria melhor para ocupar este papel de narrador que um morto
representante do próprio grupo que critica. Se fosse o caso de se buscar um títere na
obra machadiana, seria possível encontrá-lo ocupando o papel de um representante da
elite patriarcal e em um dos pontos mais altos da hierarquia social. A voz do senhor na
obra de Machado somente funciona como uma artimanha para desmontá-la com a pena
da galhofa e a tinta da melancolia de uma vida artificial e vazia. Se cobravam de
Machado de Assis a presença da cor local em seus romances, poderia ser questionado se
há algo mais peculiarmente brasileiro no século XIX que o processo de fingimento, do
que o regime simulação social a que todos estavam sujeitos:
173
(...) no escravismo para a produção interna e no liberalismo para a
comercialização externa do produto do mercado liberal. O disfarce é uma
exigência do comércio exterior. Dissimulando o que é e simulando o que não
é, a elite brasileira do século XIX detém lucro duplicado, não gastando para
produzir nem se desgastando para vender. No jogo cínico da dissimulação e
da simulação, a oligarquia nacional nada tem de volúvel, porque se mantém
sempre na mesma e única posição ideológica de dominação (Souza 2006:
27).

A maior referência à cor local surge do escancaramento de uma sociedade que


visava apresentar o progresso por meio da absorção de ideias avançadas, mas que seguia
mantendo um sistema escravocrata.

A imagem do escravizado na narrativa é representada por Prudêncio, e é através


deste que Brás aprende a ser “senhor”.

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as


mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe
ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro
lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer
palavra, ou, quando muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: - "Cala a
boca, besta!" (ASSIS, 2008, p. 696).

A cena é uma das mais tristes da narrativa machadiana, exatamente porque o uso
do humor (ou falso humor) permite que leiamos traços da realidade perversa referida. A
escrita assume claramente o recurso da dissimulação que faz da descrição da brincadeira
do menino Brás um recurso hábil para leitura do contexto social vigente:

Prudêncio não era apenas um brinquedo; era um brinquedo que era um


cavalo. E o menino Brás reproduz, antecipando, o esquema social no qual
está inserido. O menino é realmente o “pai do homem”: Eis Brás Cubas a
fazer os primeiros ensaios de sua cavalgada no universo da ordem
escravocrata”. (NASCIMENTO, 2002, p.57).

Em cena anterior, observamos o menino Brás fazendo suas pilhérias infantis como
quando quebra a cabeça de uma escravizada, porque essa lhe negara uma colher do doce
de coco que estava fazendo, e, não contente com a maldade, ainda estraga o doce que
ela estava fazendo, culpando-a por isso. Os atos praticados pelo menino Brás reiteram o
ditado: “Onde há criança, adulto não leva a culpa”. E onde há escravizados?

Outra cena do romance que chama atenção é quando Brás observa seu antigo

174
“cavalo”, o alforriado Prudêncio, a bater com chicote em outro negro. Nesta situação,
mais uma vez o autor revela sua maestria, pois, se Machado colocasse na cena um
branco chicoteando um negro, a situação não causaria qualquer estranhamento; se
colocasse um negro chicoteando um branco, a cena seria inverossímil.

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo
depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um
preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia
somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor,
perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com
uma vergalhada nova. (ASSIS, 2008, p.696).

A grande contradição para o protagonista está no fato de ser “um preto que
vergalhava outro”. A maestria está em colocar um negro chicoteando outro negro, pois a
cena instiga a pergunta: por que esta cena não é aceita pela sociedade? Por que choca
tanto? Por que a cena de um escravizado sendo chicoteado por um senhor branco não
choca tanto? O mais interessante é que, mesmo na posição de homem livre e
proprietário de escravizado, Prudêncio é um mero repetidor, um títere. E pior, como
títere, continua na posição de subalternizado em relação ao senhor. Ao ser interpelado
por seu antigo senhor, o que Prudêncio faz? Como senhor deveria assumir seu
posicionamento e a postura senhorial. Contudo, além de obedecer, ele ainda chama Brás
Cubas de nhonhô: “— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede.” (ASSIS, 2008,
p.696). Assim, fica claro que Prudêncio simplesmente imita um papel, o de opressor:
“Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, —
transmitindo-as a outro.” (ASSIS, 2008, p. 696). O que era oprimido, ao experimentar a
liberdade e a capacidade de também escravizar, acaba repetindo ações e simulando
posições: “(...) comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de
mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!”. (ASSIS, 2008, p. 696). Porém, perante a
sociedade patriarcal representada na personagem Brás Cubas, Prudêncio continuava
sendo o moleque da casa, maroto na tentativa de imitar o senhor. Prudêncio possui o
chicote, a carta de alforria e ainda é proprietário de pessoas escravizadas, porém isto o
torna senhor? Ele apenas repete o que vivenciou como escravizado e quando o
verdadeiro senhor aparece, esse toma dele o chicote e o coloca em seu lugar de
subalternizado.

Brás Cubas, na condição de morto, possui uma posição privilegiada para narrar e
175
para distribuir suas farpas. Segundo Walter Benjamin, “(...) é no momento da morte que
o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida – (...) assumem pela
primeira vez uma forma transmissível” (BENJAMIN, 1987, p.207). Por isso, o
protagonista sabiamente afirma que sua campa foi o berço. Machado reconhece com
satisfação o posicionamento interessante de seu narrador e já afirma com um tom
sarcástico os objetivos de Brás “Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto,
que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo” (ASSIS, 2008,
p.625). A pena da galhofa e a tinta da melancolia aliadas às “rabugens do pessimismo”
fazem da narrativa um turbilhão de ataques à classe senhorial. Porém, é possível ler em
suas páginas um tom provocativo de quem acredita na arte literária, no poder do
sensível em alterar estados negativos da alma humana ou tal como defende Schiller,
uma crença no poder pedagógico da arte: “Ao martelar semanalmente nas páginas da
Revista brasileira, oito anos antes da abolição, as corrosivas memórias do cadáver
insepulto de Brás Cubas” (ASSIS DUARTE in BERNARDO, G., MICHAEL, J.,
SCHÄFFAUER, M.[Org.], 2010).

Há em Machado de Assis o interesse em criticar de forma tão incisiva a elite


brasileira que por vezes suas literaturas se apresentam com tons melancólicos ou de
decepção. A falsidade do texto, a dissimulação está no humor, na condição de morto,
condição aparentemente impossível, que mascara os piparotes aplicados contra o leitor.

176
Prudêncio: o simulador

O olhar que o colonizado lança sobre a cidade do colono é um olhar de luxúria, um


olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do
colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O colonizado é
um invejoso. (FANON, 1979, p. 29)

Memórias Póstumas de Brás Cubas foi escrito no primeiro momento como


folhetim e saiu na Revista Brasileira de março a dezembro de 1880. Foi publicado como
livro no ano seguinte pela Tipografia Nacional. É marcado por temas fortes como a
escravidão, as relações entre classes sociais, o cientificismo e o positivismo. A filosofia
surge com a apresentação de uma nova corrente filosófica, o humanitismo que faz
referência à dialética do senhor e do escravo de Hegel, à lei do mais forte. “Ao
vencedor as batatas” pode ser considerada a síntese do humanitismo, criado por
Joaquim Borba dos Santos, e que será aprofundado em romance posterior Quincas
Borba, de 1891.

O caráter fortemente crítico da obra para com a sociedade patriarcal e


escravocrata se apresenta na estratégia de fazer de Brás Cubas, metaforicamente, um
espelho da elite brasileira da época. Para este grupo de “senhores” do século XVIII (o
seleto grupo de leitores e leitoras de Machado de Assis) – rir de Brás Cubas é rir da
própria desgraça, rir-se de si mesmo. Ainda que tenha um capítulo com especial menção
à condição da personagem principal, que pode ser ampliada para o que esta personagem
representa, a elite escravocrata, o capítulo “Das negativas” pode ser visto como uma
síntese de todo o livro porque composto de negativas e de não realizações.

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do


emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade
é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão
com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a
semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer
pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que
saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do

177
mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste
capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o
legado da nossa miséria. (ASSIS, 2008, p. 758)

O vazio, a monotonia e a melancolia estão presentes em cada linha do livro. Até


mesmo a busca de Brás Cubas por um emplasto capaz de acabar com a melancolia é
vazia, pois é impulsionada por um desejo não de simplesmente ajudar as pessoas que
sofrem deste mal, mas sim de engrandecer a figura do próprio Brás e da família Cubas.
O nome e a aparência para esta família são sempre valores, pois são considerados como
o que há de mais importante. Essa visão está presente em vários textos do autor e está
trabalhado de forma mais explícita no conto “Teoria do medalhão”.

A vida de caprichos do jovem Brás Cubas e a de vazio melancólico do velho Brás


estão presentes tanto no enredo da obra quanto em sua proposta literária. A própria
forma narrativa é conduzida de forma que o leitor fique à mercê deste narrador
rabugento e cheio de vontades, como ele mesmo indica no capítulo “Ao leitor: “A obra
em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus” (ASSIS, 2008, p.626).

A concretização de desejos sórdidos e de muitas vontades é o motor que move a


narrativa e é também a engrenagem mestra das ações da personagem principal,
representante metonímica da classe senhorial. Assim, Brás usa e abusa de sua condição
para ter tudo o que deseja e submete ainda submetidos às suas vontades as pessoas de
classes “inferiores”, seus dependentes, economicamente ou culturalmente.

Com sarcasmo o narrador cria uma situação fantasiosa e faz a suposição que se
Dona Plácida falasse no momento de seu nascimento diria:

- Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristia naturalmente lhe


responderiam: - Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura,
comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com
o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã
resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na
lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia. (ASSIS,
2008, p. 701)

A situação de D. Plácida não é diferente da vivida por qualquer agregado porque

178
pode ser comparada até mesmo à condição do escravizado. O lema viver para servir e
servir para viver revela-se um círculo vicioso que se repete como uma espécie de
herança de geração para geração. Brás Cubas usa Dona Plácida para acobertar a relação
com Virgília, sua amante. O protagonista suborna a velha beata pobre com cinco contos
de réis para que esta assuma o papel de moradora de uma pequena casa na Gamboa,
casa que era utilizada pelos amantes em seus encontros. O mesmo se repete no uso que
faz do moleque Prudêncio, tornando-o cavalo e brinquedo durante a infância. Na idade
adulta sendo considerado “homem livre”, o ex-escravizado continua seguindo, como já
dito, as ordens do senhor. Se esta e outras cenas aparecem em romances e contos de
Machado de Assis, como negar que em sua literatura haja evidentes provas do seu
interesse pela situação do negro no Brasil do século XIX? A narrativa machadiana
atualiza, de forma irônica, os processos de formação da sociedade brasileira e do país,
indicando contradições e desmandos que persistem ainda. A pena do escritor desfere
duros golpes na sociedade escravocrata, embora faça isso de forma dissimulada e
indireta, disfarçando suas reais intenções.

Pode ser dito que sua obra está marcada pela originalidade da pela incompletude,
pelo estilo fragmentário, pela dubiedade e veia cômico-trágica-irônica do narrador e
pela intervenção direta com o leitor (quase sempre invasiva). Com estas características o
estilo machadiano rompe com o realismo de Flaubert, marcado pela tentativa de
neutralidade do narrador, e com o naturalismo de Zola, que buscava retratar a realidade
de forma objetiva e com uma visão minuciosa de dados da realidade. Tal como explica o
autor:
Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e
áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É taça que pode ter lavores de
igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica
de um defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e
mais certo. (ASSIS, 2008, p. 625).

Feitas as observações necessárias sobre as características do romance, é


necessário voltar os olhos para o objetivo primordial da discussão que vimos
empreendendo: as personagens em situações de subalternidade e de modo particular
neste capítulo, da personagem Prudêncio. Ele é um simples objeto, um joguete que
aparece apenas em cenas esparsas ao longo da obra nos capítulos XI, XXV, XLVI e
LXVII. Por sua vez, a última aparição, como já comentado, é a mais cômica e

179
significativa de todas as outras.

Prudêncio é personagem secundária do romance até mesmo por sua condição


subalterna. Entretanto, para o que se pretende como discussão, é personagem de maior
interesse e isto se dá exatamente pelo fato de estar submetido a todo tempo à voz
senhorial: no início da narrativa, por sua condição de escravizado e, posteriormente, por
seu comportamento já como “homem livre”. Prudêncio também pode representar uma
projeção irônica, crítica e sarcástica - porém bastante realista - da situação do negro na
condição futura de ex-escravizado. Nessa situação em que não está condição de
escravizado, mas muito menos senhor, ainda viveria por muito tempo à sombra do
senhor, tentando em vão imitá-lo e continuando a obedecê-lo por força da repetição e da
tradição.

Neste tópico do trabalho, a tentativa empreendida será a de comprovar, por meio


de observação de ações e características apresentadas pelo narrador, que Prudêncio
assume o papel de simulador. Como já mencionado anteriormente, a simulação é o
processo que se dá no primeiro estágio das artes da sobrevivência e da de se fazer ouvir
utilizadas pelo indivíduo subalterno. Ocorre que a personagem aqui analisada não
consegue ultrapassar esta condição por força de ações tantas vezes repetidas que acabam
gerando uma tradição de subserviência.

No capítulo intitulado “O menino é pai do homem”, Brás, ainda criança, aprende


as primeiras lições de fidúcias de homem representante da elite. É neste momento que
conhecemos Prudêncio. É exatamente neste capítulo que é possível observar a
importância do subalterno no processo de formação da elite. No trato com a escrava ,
Brás usa e abusa de suas vontades e por mero capricho foge de suas responsabilidades e
culpa justamente aquela que seria a sua vítima. Já no trato com Prudêncio, o
protagonista vai além de aprender a ser senhor. Ensina ao escravizado a tradição de
servir por meio da mera repetição de ações. Quebrando a cabeça da escravizada,
agredindo o escravizado e reduzindo-o à condição de animal, Brás acaba por receber a
alcunha de “menino diabo”. Entretando, observa-se a total passividade dos pais que
consideram as traquinagens do menino como atitudes normais.

180
A aprendizagem do menino prossegue por meio da observação. É em um jantar
em que estava reunida a seleta sociedade da época (“o juiz-de-fora, três ou quatro
oficiais militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração”
[ASSIS, 2008, p.641] ) o ensino prossegue. Em clima de total descontração, Brás ouve a
conversa dos adultos que falam sobre banalidades e entre elas surge o assunto de
compra e negociação de escravizados, tratado como cotidianidade, efemérides sem
nenhuma importância – ou com mera importância financeira.

Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia recente dos negros novos que estavam a vir,
segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já
negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Trazia-as justamente na
algibeira mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só
nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. (ASSIS, 2008, p. 642)

Assim, por meio da repetição de atitudes e da observação do protagonista, a cena


se mostra como um déja-vu. Agora, o menino fez-se homem e na condição de senhor, as
traquinagens executadas enquanto menino se tornam coisas sérias – atos de adulto. Por
isso, observa as conversas sobre a negociação da divisão de herança, envolvendo a
posse de um escravizado que se fazem com a maior naturalidade. O ser humano é
negociado pelos herdeiros da mesma forma como são divididos objetos quaisquer.

- Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos arranjar
tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, o Cotrim não aceita os pretos, quer só o
boleeiro de papai e o Paulo...
- O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.
- Bem, fico com o Paulo e o Prudêncio.
- O Prudêncio está livre.
- Livre?
- Há dois anos.
- Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está
direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata? (ASSIS, 2008, p.676)

É também por meio da repetição e da observação que o ex-escravizado assume a


posição de “homem livre” (livre da escravidão formal, mas não da servidão cultural e da
situação de subalternidade). É macaqueando que Prudêncio repete quase que
literalmente as ações do menino Brás, enquanto este o fazia de cavalo. Brás observa
uma cena e, no primeiro momento, se sente surpreso com um acontecimento tão bizarro.
Porém, logo depois, reconhece na cena um reflexo de suas próprias ações do passado:
Prudêncio, já na condição de homem livre e senhor de escravos, estava repetindo as

181
ações que sofrera com Brás no passado.

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e
ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na
praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras:
- "Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia cada súplica,
respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
Cala a boca, besta! replicava o vergalho. (ASSIS, 2008, p. 696)

Brás percebe que o vergalho era o seu cavalo, o moleque da casa, seu joguete de
infância, que agora, na condição de senhor, repete suas ações. Prudêncio simula ser
aquilo que verdadeiramente não é. Esta simulação é tão forte que ele sem ao menos
perceber, repete inconscientemente as mesma ações que ocorreram no passado – só que
agora ele passa da condição de vítima para a de algoz, da condição de escravizado para
a de “senhor”. Um senhor, porém, ao avesso que na condição de “homem livre”
continua pedindo bênção a seu nhonhô do passado e seguindo suas ordens.

- É sim, nhonhô.
- Fez-te alguma cousa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia
lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. (ASSIS, 2008, p.696)

Limitado a simular, imitar, Prudêncio não alcança o estágio da dissimulação. Na


condição de senhor ele está fadado a repetir as ações que observava e de que fora vítima
no passado. Perante a lógica da discriminação e diante do sofrimento de formas de visão
estereotipantes, pode surgir no negro um insuportável desejo de também ser branco.
Assim, Prudêncio mimetiza comportamentos, discursos e ideologias. Ele já não é negro,
no sentido cunhado pela dinâmica escravagista, tampouco é branco. O que acontece nos
processos de assimilação é o deslocamento de lugares e condições sociais fragilizadas
encenadas com um sarcasmo ácido e extremamente crítico de uma situação que é
dramática, pois é real.

(…) era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir,
desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e
ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do
maroto! (ASSIS, 2008, p. 696).

182
Repetindo a ação e a violência recebida do antigo dono, Prudêncio reforça
elementos da relação senhor/escravizado e da sociedade escravocrata, apresentando-se
como um ridículo repetidor de uma fantasia desconjuntada de senhor. Brás Cubas é
extremamente cínico ao narrar o episódio: “(...), aliás, seria matéria para um bom
capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco." (ASSIS, 2008,
p. 696). Onde estaria a alegria deste capítulo? O próprio narrador alerta para a
complexidade da cena: “Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só
exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio, achei-lhe um miolo
gaiato, fino, e até profundo”. (ASSIS, 2008, p. 696). A ação revela muito mais do que
está sendo apresentado. Superficialmente, seria um capítulo alegre; mas só
superficialmente. Prudêncio toma a atitude de senhor com todas os aspectos negativos
deste tipo de caráter, desta máscara. Exteriormente, ele seria uma espécie de traidor,
desumano e sórdido. Porém, o autor utiliza de negaças que fazem com que o leitor sinta
compaixão desta personagem que se constrói como um simples títere, macaqueando
comportamentos do branco. Esta é só uma das sutilezas do bruxo e sua crítica alcança a
todos. Sua visão não maniqueísta do mundo instaura uma poderosa razão cética e cínica
diante dos fatos mais pungentes da realidade brasileira.

183
É bem, e o resto?

‘Mas eu não sou flautista! ’, dirias tu. Tu o és, infinitamente mais


maravilhoso do que aquele homem de quem tratamos. Ele tinha necessidade
de instrumentos para encantar os homens pela virtude que emanava de sua
boca (...) Quanto a tu, tu não diferes dele, salvo no que, sem instrumentos
(áneu orgánon), com palavras sem acompanhamento (psiloîs lógois),
produzes esse mesmo efeito... (Derrida, 1997, p.66)

No romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, Brás Cubas morre buscando


encontrar um emplasto que levaria seu nome e de sua família à glória. A sua obsessão é
levada ao extremo na tentativa de fabricar o anti-hipocondríaco destinado a aliviar a
melancólica humanidade. A personagem de Machado fracassa, mas o seu criador é
glorificado pela sociedade leitora que era tão criticada em seus romances. Cabe, então
perguntar: por que o leitor de Machado não se reconhecera nas duras críticas
apresentadas pelo autor em suas narrativas? Talvez pelo fato de o Bruxo do Cosme
Velho ter encontrado a fórmula de um remédio, o Phármakon (escritura) que Platão
almejava destilar em seu Fedro. O Phármakon era uma oferenda oferecida por Theuth
ao Rei egípcio Thamous. Theuth afirma que o Phármakon (escritura) seria um
conhecimento (tò máthema) que tornaria os egípcios mais instruídos, possuindo assim
um remédio para a memória (mnéme) e a instrução (sophía). Entretanto, o Rei percebeu
a ambiguidade do presente, pois o Pharmákon (escritura) tornaria as almas esquecidas,
pois já não utilizariam a memória espontânea. Desta forma, o Phármakon não auxiliaria
a memória e sim a rememoração; também não produziria instrução (sophías dè) e sim a
aparência (alétheian), pois ele era, ao mesmo tempo, remédio e o veneno, a verdade e a
falsidade.

Machado, mestre no jogo de manejar as ambiguidades elementares da escritura, a


utiliza a seu favor fazendo transparecer o que ele quer que transpareça e para esconder o
que ele quer que fique escondido. Derrida afirma que: “Um texto só é um texto se ele
oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu
jogo” (DERRIDA, 1997, p.7). A escrita machadiana cumpre seu papel textual ocultando
a regra de sua composição através das dissimulações. Como observa Derrida (1997, p.
7), “A dissimulação da textura pode, em todo caso, levar séculos para desfazer o seu
pano. O pano envolvendo o pano. Séculos para desfazer o pano. Reconstituindo-o,

184
também, como um organismo”. É nesse jogo de camada em camadas, de pano em pano,
desfazendo e reconstruindo, como um organismo vivo, que a obra machadiana deixa o
leitor, que não possui os quatro estômagos, impossibilitado de digerir sua obra, perdido
em meio aos palimpsestos que são formados constantemente. O bruxo, na condição de
Pharmakeús, sem utilizar de nenhum subterfúgio que não fosse a linguagem, enfeitiça,
encanta, e cega impossibilitando a visão plena de seus objetivos. Consequentemente, o
fio da narrativa não se rompe, mas envolve como um casulo e movimenta, indica o
caminho e conduz aquele que participa do jogo da leitura à sua armadilha, à sua teia.

O trabalho que agora é apresentado para avaliação começou já em minhas


primeiras leituras de Machado de Assis ainda na adolescência. Naquela época, já tentava
progredir na minha formação, tateando o texto machadiano com certa dificuldade. O
léxico empregado pelo escritor era para mim um grande desafio e o primeiro trabalho
foi o de entender o texto, compreendê-lo no sentido mais raso do termo. A cada leitura,
um glossário; a cada glossário, um mundo de significados. Já na Faculdade de Letras,
uma disciplina me proporcionou mais um dos quatro estômagos apontados por Machado
de Assis e necessários para a interpretação de sua obra. O nome da disciplina não
poderia ser mais intrigante, Machado de Assis afrodescendente, ministrada pelo
professor Eduardo Assis Duarte. Descobri a existência de um novo Machado, mais
parecido comigo, mais próximo da minha realidade, mais palpável. Antes desta época,
já havia buscado os livros do escritor em inúmeros lugares e eles me provocavam
assombro e prazer. Havia entrado num grupo seleto de leitores. Participava de qualquer
conversa em que aparecesse o nome do escritor, tentava ler o que surgia sobre ele e
sempre relia as fontes literárias. Porém, nada me causara mais surpresa que o próprio
autor que me fora revelado nas aulas daquele curso. Primeiramente me ative à sua
imagem física e depois à sua postura profissional, política e intelectual. Onde estava
este autor desconhecido que não encontrara antes? É certo que o Machado desconhecido
estava nas entrelinhas de seus textos, por isso, ler seus livros é sempre para mim um
estímulo à descoberta. Exatamente como ocorre com outros leitores:

(...) venho descobrindo para mim e revelando aos leitores um novo e


diferente Machado de Assis. Enfatizo a palavra ‘descobrindo’ – não se trata
de invenção, uma criação deliberada de um Machado de alguma maneira
mais adequado ao nosso próprio tempo, mas uma descoberta de algo, de
alguém que já está ali. Claro que as constantes mudanças do nosso tempo me
ajudaram a encontrar este novo Machado – isto é óbvio (...). Isto é parte da
185
sua grandeza como escritor, do seu constante fascínio. (GLEDSON, 2006, p.
10)

Buscava encontrar evidências de uma estética desenvolvida na literatura


machadiana que estivesse relacionada a origem do escritor. Durante a leitura e seguindo
este foco, ficou evidente as razões do processo dissimulador presente nas narrativas. A
partir daí, fui conseguindo provas suficientes para contestar a tese de absenteísmo, de
antimulatismo e de passividade que alguns críticos tentam atribuir ao autor. Os mesmos
artifícios de dissimulação que Machado retratava em suas personagens subalternas eram
empregados na construção de suas obras. A crítica machadiana está marcada por alguns
vícios de leitura que levam anos para que sejam alterados, como se para cada época
fosse dada a dádiva de se observar um número determinado de aspectos. Na verdade, a
crítica machadiana revela a seus leitores muito mais do que características presentes nos
livros. Revela também, em forma de reflexo, o caráter de cada época que se propõe
analisar o autor.

Porém, além da leitura viciada de diferentes eras da crítica machadiana, a grande


dificuldade em ver em Machado de Assis a figura de um subalterno que alcança o
sucesso surge da luta do autor em posicionar-se fora da margem do poder. O epíteto de
bruxo do Cosme Velho não poderia fazer dele um marginalizado, algo que ele realmente
não foi apesar de sua origem humilde ser sempre muito destacada. No entanto, o
escritor, assim como suas personagens, conseguiu vencer as resistências de uma
sociedade caracterizada pelo regime escravocrata e patriarcal em que qualquer mudança
de classe era um empreendimento quase impossível. Um momento em que as ideias
externas eram maquiavelicamente apropriadas desde que servissem à ideologia da elite
brasileira do século XIX.

Uma das apropriações de pensamentos e ideias exteriores que menos se


adaptaram ao nosso contexto foi a do liberalismo spenceriano, porque precisa ser
considerada a distância abismal entre o discurso e as práticas sociais em fins do século
XIX. Expressões do sociólogo inglês, tais como “luta pela existência” e “sobrevivência
do mais apto” que indicam ecos do darwinismo social são ridicularizadas pela literatura
machadiana na apresentação da filosofia criada por Quincas Borba – o humanitismo. A
ideia de que “vença o mais forte” não funciona em solo brasileiro, posto que os
186
indivíduos não lutavam com as mesmas armas. A sobrevivência dos mais aptos, trazida
principalmente pelo evolucionismo de Darwin, talvez não pudesse ser aplicada ao ser
humano e, principalmente, aos membros de uma sociedade tão hierarquicamente
marcada como a brasileira do século XIX.

(...) Por conseguinte, a reprodução biológica “higiênica” tornara-se crucial


para o futuro da espécie humana. Além disso, outros significados haviam
aderido aos narizes. (...) Difundia-se a ideia de que a aparência e o tamanho
dos narizes marcavam superioridade ou inferioridade racial. (...) Naquele
início da década de 1880, de fato, Machado parecia perplexo com o esforço
de políticos e intelectuais brasileiros para enfatizar em solo pátrio tais
derivações racistas do darwinismo social (...). (CHALHOUB, 2003, pp. 129)

Machado observava com agudez crítica e ácida as novas ciências,


principalmente quando estas carregavam em seu cerne teorias preconceituosas e
discriminatórias como verdades comprovadas. Quando sua inteligência apontava o
perigo das novas ideias cientificistas, ele se valia da ironia e do riso para combatê-las.
Sua arma era o veneno destilado em suas narrativas que chegavam em doses de conta-
gotas aos olhos do leitor.

Onde os deslumbrados enxergavam a redenção, ele tomava recuo e anotava a


existência de um problema específico. (...). O ensaio sobre “A nova geração”,
de 1879, insistia justamente na maneira pouco apropriada pela qual os poetas
vinham assimilando a tendência europeia recente. Aqui e ali, procurando
explicitar impropriedades, Machado encontrava fórmulas para a comicidade
objetiva deste processo. O conjunto das anotações esboça uma problemática
de muito alcance, e compõe, ou abstrai, no que diz respeito ao funcionamento
da vida intelectual, a matéria literária das Memórias (SCHWARZ, 2000, p.
152).

Muitas das novas ideias apresentadas somente serviam para justificar atitudes de
exploração e apagamentos de alguns grupos sociais. E era contra estas ideias que
Machado se servia da pena que, na maioria das vezes, era a da galhofa para que seu riso
destronante abalasse algumas verdades ideologicamente construídas. O autor, como um
cidadão de origem subalterna, não admitia o fato da não existência e utilizava a
insistência e a dissimulação para alcançar os postos de mais destaque da hierarquia
patriarcal. Tal como defende Slavoj Zizek, o não existir não pode significar passividade
e nem sempre apresenta um significado que é antônimo de existência: “o contrário da
existência não é a inexistência, mas insistência, o que não existe continua a insistir,
lutando para existir” (ZIZEK, 2003, p.37-38). Por vezes, o não existir pode sim assumir
o papel de oposição ao existir ou de oposição àqueles que existem. Os marginalizados
187
de qualquer espécie insistem e resistem apesar daqueles que querem minar suas
identidades. E uma das formas mais interessantes de resistência consiste no conjunto de
estratagemas presentes em uma forma particular de uma Estética da existência, a
Estética da Dissimulação.

Os conceitos estéticos, só começaram a me interessar no momento em que


percebi suas raízes existenciais; pois no decorrer da vida, as pessoas – sejam
simples ou sofisticadas, inteligentes ou tolas – são constantemente
confrontadas com o belo, o feio, o sublime, o cômico, o trágico, o lírico, o
dramático, a ação, as peripécias, a catarse, ou, para falar de conceitos menos
filosóficos, com a agelastia, o kitsch ou o vulgar; todos esses conceitos são
pistas que conduzem a diversos aspectos da existência inacessíveis por
qualquer outro meio. (KUNDERA, 2006, p. 98 – grifo do autor).

Falar em estética pode ser um ato que remete ao passado e que acaba
delimitando muito o campo de estudos. Não que a disciplina seja em si limitada, mas
sua utilização ficou marcada pelas abordagens quase sempre europeizantes que foram
feitas dela. Todavia, como se vem demonstrando, muitos questionamentos podem ser
levantados sobre a estética e sobre a utilidade do conceito. De acordo com Klucinskas e
Moser, a estética sofreu nos últimos tempos uma dura crise sobre a aplicabilidade do
comceito: "Esses livros lançam um olhar crítico sobre a estética enquanto disciplina de
pesquisa. Eles preconizam a necessidade de renovar a estética ou anunciam seu fim.”
(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, p. 24). A crise da estética enquanto disciplina
filosófica surge da história do conceito e de suas abordagens mais tradicionais e,
portanto, mais excludentes.

Voltemo-nos agora para a estética propriamente dita. Dada a instabilidade de


seu objeto privilegiado, quase exclusivo, ela é levada a se colocar questões
desestabilizantes. Poderia ela continuar a se conceber e a se legitimar antes
de tudo como uma teoria (filosófica) da arte (obras e experiências)? Sua
existência de disciplina acadêmica e, sobretudo, de subdisciplina filosófica
estaria ainda assegurada? (KLUCINSKAS & MOSER, 2007, p. 21)

A tese aqui desenvolvida escolheu o caminho de repensar o conceito


reafirmando a sua aplicabilidade. A pesquisa também explorou a autonomia da estética
em relação à filosofia. A abordagem aqui empreendida tenta ampliar os limites do
pensamento estético e a aproximação deste com estratégias de existência e de
manutenção de identidades. Fugir dos espaços limitados, das fronteiras criadas em

188
busca de novos significados: “lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de
certo modo, a apaga-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como que contraespaços”.
(FOUCAULT, 2013, p.20 – grifo do autor). O esforço desenvolvido nesta tese se
assemelha, portanto, ao que empreendeu Machado de Assis: fundar espaços
impensáveis para indivíduos em situação de subalternidade.

Pois bem, sonho com uma ciência – digo mesmo uma ciência – que teria por
objeto esses espaços diferentes, esses outros lugares, essas contestações
míticas e reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as
utopias, pois é preciso reservar esse nome para o que verdadeiramente não
tem lugar algum, mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros; e,
forçosamente, a ciência em questão se chamaria, se chamará, já se chama
“heterotopologia”. (FOUCAULT, 2013, p.20-21 – grifo do autor)

A intenção desta pesquisa foi a desenvolver a heterotopologia, pois a ciência que


se pretendeu estudar, a estética escolhida se constitui enquanto um heterotopo. Sendo
assim, ela se configura como um lugar outro, um contraespaço, marginal, periférico e,
por isso, inexistente. Todavia, este lugar só inexiste aos olhos de quem não quer ver, de
quem não pode ver. Deste modo, uma pesquisa que se aninha no contraespaço e que
ambiciona estudar o heterotopo acaba sendo contaminada pelo objeto estudado. O texto
acadêmico nem sempre consegue abrigar de forma satisfatória a heterotopologia. As
narrativas machadianas se encontram também neste lugar por apresentarem estratégias
de ocupação de espaços, lugares delimitados, classificados.

Na literatura de Machado, os subalternos estão ali, sorrateiramente impregnando


as páginas com suas faces, suas passagens quase sempre em momentos cruciais da
narrativa. Embora suas existências não alterem definitivamente os fatos, eles se fazem
presentes. Até mesmo as ausências revelam a existência sofrida dos que ocupam lugares
de pouco ou nenhum destaque nas narrativas e, de forma ainda mais sofrida, em suas
próprias vidas.

Os senhores, nas narrativas machadianas, também são tratados como não


existências. Dom Casmurro que desperdiça a vida por ciúme; Félix que com suas
artificialidades não sabe amar; Jacobina que não existe além ou aquém da farda que
veste; Brás Cubas que está morto e apresenta um discurso vazio que é ao mesmo tempo
tudo o que resta de seu autor. O jogo de Machado é perigoso mas muito interessante,

189
ainda que apresente o subalterno em lugar de destaque, ele transforma o senhor em
personagens vazias e as ridiculariza quando não as mata.

Essas considerações finais retomam o título do capítulo final do livro Dom


Casmurro: “É bem, e o resto?”. O título demonstra a habilidade de Machado de Assis
em colocar a oralidade na boca do narrador almejando uma aproximação íntima com o
leitor. Neste capítulo, Bento Santiago termina a narrativa com a seguinte frase: “Vamos
à História dos subúrbios” (ASSIS, 2008, p. 1072). O leitor atento, ao ler esta frase final,
se lembrará do começo do livro em que o narrador no capítulo II ao justificar as razões
que o levaram a escrever afirma que desejava escrever uma História dos subúrbios:

Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência,


filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram forças
necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos
subúrbios, menos seca que as memórias do padre Luís
Gonçalves dos Santos49, relativas à cidade; era obra modesta,
mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e
longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a
falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam
reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse
alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras
viessem perpassar ligeiras (...). (ASSIS, 2008, p. 933).

O narrador de Dom Casmurro e protagonista da narrativa não deu muita


importância ao trabalho árido e longo que seria a realização desta empreitada. Por isso,
Bentinho desiste de escrever e resolve, por sugestão dos bustos, escrever a própria
biografia. Magistralmente, Machado de Assis coloca na voz de um representante da elite
o profundo descaso pelos subúrbios. Ao passo que sua personagem despreza o tema,
Machado de Assis acaba por escrever uma história dos subúrbios e a insere nas
entrelinhas de suas narrativas. O bruxo do Cosme Velho não só escreve uma história
dos subúrbios cariocas como também escreve uma história dos subúrbios e das
inúmeras periferias do Brasil.

49
Esta nota não é do autor e sim desta tese para explicar que o livro mencionado na narrativa é: Memórias
para servir à História do Reino do Brasil. O livro escrito por Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844) que
também era conhecido como Padre Perereca é composto por dois volumes. O livro apresenta fatos
históricos e se inicia com a transladação da corte imperial para o Rio de Janeiro. Há um teor
propagandístico da Regência de D. João no Brasil.

190
Machado de Assis era um cidadão que se destacava no meio da classe social que
ocupava. Nas fotos dele que não foram alteradas, é possível perceber que sua
afrodescendência estava marcada na pele. Mesmo assim, muitos críticos acabam criando
um mito do “antimulatismo” do autor. Eles caracterizam sua postura cética com um
posicionamento passivo perante os problemas sociais de seu tempo, principalmente os
relacionados à questão da escravidão. Todavia, se ele não pode ser considerado um
abolicionista tout court, é impossível caracterizá-lo em qualquer forma de
agrupamentos. A sua severidade crítica o levara ao limite do pessimismo, porém, este
caráter não significava passividade. Machado de Assis criticou a escravidão sobretudo
no âmbito literário, lutou contra a escravidão em seu posto no Ministério da Agricultura.
Também se emocionou com a abolição e logo percebeu que era só mais uma troca de
tabuletas. A abolição não significaria igualdade de condições, a tradição da
inferioridade do negro ainda permaneceria por muitos anos. Como cobrar a consciência
da negritude de um subalterno que, empoderado, conseguira chegar a uma posição
privilegiada após duras penas?

Nossa intelectualidade e, principalmente as ideias de um autor negro, estavam


confinadas e eram financiadas pela elite brasileira. Os autores e pensadores brasileiros
viviam, de certa forma, nas amarras de um mecenas e, no caso específico de Machado
de Assis, até tornar-se um autor de sucesso, o seu sustento vinha do cargo público que
ocupava. Ainda que conseguisse, por seu brilhantismo, utilizar artifícios dissimuladores,
esta condição de dependente marca sua trajetória como escritor, crítico e pensador.

Finalmente, é preciso que se ressalte a ligação empreendida nesta tese com a


questão da identidade narrativa. Há na literatura machadiana e até mesmo em fatos de
sua tão rara e controversa biografia alguns pontos que estão sensivelmente ligados com
o autor desta pesquisa. Esta afirmativa pode parecer um pouco absurda, posto que o que
está diante dos olhos do leitor é um trabalho acadêmico. Porém, se explica quando se
assume o compromisso de fazer da tese um exercício criativo. Escrever é sempre um
processo que envolve um sujeito, ainda mais quando essa escrita conclama elementos da
teoria e crítica literárias.

191
Uma tese, mais que qualquer outro gênero textual, é um fazer caracterizado pela
multiplicidade de vozes, em discurso entrecortado por citações e alusões conscientes ou
inconscientes. Há sempre embate, diálogo e, por vezes, apropriação. Muitos embates
foram estabelecidos na realização desta pesquisa, mas também diálogos frutificantes e
essenciais surgiram. Durante o percurso, o grande risco foi o de se perder perante
trabalhos já cristalizados na crítica machadiana e ser anulado por presenças tão
marcantes. Talvez, a maior descoberta durante o longo período de análise empreendido
não seja a do autor ou a de elementos presentes na narrativa. O que melhor se descobre
num trabalho desta envergadura é a si mesmo. A literatura é instrumento primordial para
o autoconhecimento.

O escritor costuma dizer: “meu leitor” apenas pelo hábito contraído na


linguagem artificial dos prefácios e dedicatórias. Na verdade, cada leitor é,
quando lê, o leitor de si mesmo. A obra do autor não passa de uma espécie de
instrumento ótico que ele oferece ao leitor para permitir-lhe que consiga
discernir o que, sem tal obra, provavelmente não teria visto dentro de si. A
conformidade entre o íntimo do leitor e o que diz a obra constitui a prova da
verdade desta, e vice-versa... (PROUST, 1970, p. 184)

Muitos conhecimentos me foram revelados no embate com a narrativa de


Machado de Assis, entre estes o mais importante foi encontrar-me em suas entrelinhas
ou em traços de caráter de narradores, personagens e até mesmo do próprio autor.

192
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