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EDUCAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO
EM “O CASTELO BRANCO”, DE ORHAN PAMUK
Curso de Pedagogia
SÃO PAULO
2019
Quem poderá dizer, afinal, por que cada
homem é o que é?
Orhan Pamuk, O castelo branco.
De acordo com Émile Durkheim, em Educação e sociologia, “em cada um de nós
existem dois seres” sendo um, o ser individual, constituído de nossos estados mentais que
apenas se relacionam conosco e, o outro, o ser social, construído através da relação com
o grupo – ou grupos - ao qual fazemos parte, isto é, moldado pelas crenças religiosas,
práticas morais, tradições nacionais ou profissionais e opiniões coletivas de toda espécie.
Para o autor, a finalidade da educação é constituir em nós este segundo ser, e a este
processo denomina-se socialização. Assim, “a educação é, acima de tudo o meio pelo
qual a sociedade renova perpetuamente as condições de sua própria existência.”
(DURKHEIM, 1967, p. 82)
Este pensamento opõe-se aos de pedagogos tradicionais como Johann Friedrich Herbart
que defende ser a “força moral do caráter” o fim supremo da educação. No perfil do
educador alemão, traçado por Norbert Hilgenheger, encontra-se a distinção entre
educação e instrução:
A visão apresentada parece incompleta, pois tem caráter individual não levando em
consideração a educação como parte de condições históricas e sociais; adiante tal conceito
voltará a ser abordado no trabalho.
Na obra O castelo branco, de Orhan Pamuk, percebe-se o processo de educação
enquanto socialização, ou seja, como um movimento integrador à sociedade a que se
pertence, pois acompanha-se a transformação de um veneziano em turco depois de longos
anos de contato com tal comunidade. No entanto, por tratar-se de um adulto é necessário
distinguir entre socialização primária e secundária.
Conforme Peter Berger e Thomas Luckmann em sua obra A construção social da
realidade, a socialização primária está em consonância com o termo previamente
cunhado por Durkheim, isto é, “a primeira socialização é o que o indivíduo experimenta
na infância, e em virtude da qual torna-se membro da sociedade”. Já a socialização
secundária é “qualquer processo subsequente que introduz um indivíduo já socializado
em novos setores (...)”. (BERGER & LUCKMANN, 1973, p. 175). Ainda para estes
autores:
Depois de passar algum tempo sendo bem-sucedido nas curas, usando mais o “bom
senso do que qualquer conhecimento de anatomia” (p.18), o veneziano conhece o paxá
Sadik e por meio deste, outra figura central do romance: o turco conhecido como Hoja.
Ainda que esta palavra seja escrita com letra maiúscula durante toda a narrativa, Hoja não
é seu nome, mas sim uma palavra que remete a sua profissão como docente (hodja, em
turco), dado que sugere certa volubilidade em sua identidade, mas não de maneira
explícita.
Apesar da plasticidade ao assumir diversas características de acordo com a situação,
algo que se destaca no início da obra é a certeza do veneziano a respeito de sua fé -
adquirida no contexto de sua socialização primária - pois se recusa em várias passagens
a negar a religião cristã e converter-se ao Islamismo. Em um momento de tensão em que,
por vários dias, o paxá lhe pergunta se mudara de opinião em relação às crenças religiosas,
ele afirma veemente que não aceitará as leis do Islã mesmo sob ameaça de decapitação.
O paxá, no entanto, esperava este comportamento e logo após este evento “Explicou que
fizera uma promessa a alguém [...] declarou que me dera de presente a Hoja.” (p.37). O
protagonista faz aqui uma analogia sobre sua situação atual:
Olhava pra mim com o prazer de um camponês que alimenta um belo cavalo
recém-adquirido no bazar e pensa satisfeito em todo o trabalho que o animal
fará por ele. (PAMUK, 2007, p.38)
Voltar a Veneza? Mas para quê? Ao cabo daqueles quinze anos, já aceitaria havia
muito que minha mãe tinha morrido e que eu perdera minha noiva, a qual devia estar
casada e ser mãe de família, não queria mais pensar nelas, e cada vez elas apareciam
menos nos meus sonhos. Além disso, já não me via reunido a elas em Veneza como
nos primeiros anos. Agora, sonhava que elas é que vinham viver em Istambul, junto
a nós. (PAMUK, 2007, p.126)
Na verdade, é possível notar este sentimento desde o início do livro em que após ser
capturado, o personagem rememora seu passado referindo-se a si mesmo em terceira
pessoa do singular: “Essa pessoa que hoje me lembra...” (PAMUK, 2007, p.16), causando
desta forma um distanciamento de si mesmo e da pessoa que fora no outro país.
Em outros momentos, depreende-se que há uma fusão das identidades de Hoja e do
veneziano. Isto decorre em razão da semelhança física de ambos, mas também por uma
identificação psicológica – em vários momentos, o italiano declara que gostaria de ser
como Hoja e quando este escolhe aquele para seu escravo deve-se, possivelmente, à
identificação por seu gosto pela ciência e por sua condição estrangeira. Tal afirmação é
vista em recursos linguísticos como o uso da primeira pessoa do plural para referir-se aos
desejos de ambos: “Queríamos que o soberano se interessasse por nosso saber depois de
assumir plenamente as rédeas do governo e, para tanto, chegamos a explorar seus
pesadelos” (PAMUK, 2007, p.128, grifos meus) e também na descrição dos sentimentos
do narrador
Sentia como se suas tristezas e suas derrotas fossem minhas também. [...]
Amava sua raiva e sua melancolia, que me recordavam meus primeiros anos
de escravidão, e queria ser igual a ele. (PAMUK, 2007, p.132)
“Por que sou o que sou?”, mas em seguida, a cada manhã, só escrevia falando
das razões por que “eles” eram tão inferiores e estúpidos. [...] Ele ainda
escreveu algumas páginas reunidas sob o título “Os idiotas que conheci de
perto”, onde tentava classificar as várias categorias de imbecis, mas logo foi
tomado por um novo acesso de fúria: todo aquele esforço para escrever não
levara a nada; ele não descobrira nada de novo, e continuava sem saber por
que ele era quem era. (PAMUK, 2007, pp. 79-80)
Hoja disse que devíamos nos sentar cada um numa extremidade da mesa e
escrever nossas memórias um diante do outro [...] eu sabia que ele tinha medo
de se ver sozinho, de sentir sua própria solidão enquanto pensava [...] desejava
minha aprovação prévia para o que pretendia escrever. (PAMUK, 2007, p. 77)
As atitudes de Hoja, fazem entrar em confluência os dois seres sociais sugeridos por
Durkheim como responsáveis por sermos quem somos: o intelectual que tange a nossos
pensamentos íntimos – também nossas falhas – e o que a sociedade espera de nós
enquanto seres sociais. Para o sociólogo francês, estes dois seres estão longe da oposição
e são ideias dependentes uma da outra.
O tema dos pecados retorna já ao final da narrativa quando, em meio a guerra, Hoja e o
exército invadem vilas camponesas e, em sua ânsia ainda não saciada de descobrir quem
era e de testemunhar as fraquezas dos “outros”, o agora ex-professor interroga à exaustão
os vilões em busca de suas transgressões.
Eles deviam ter cometido pecados bem mais graves e mais reais, que
marcavam a diferença entre “eles” e “nós”. A fim de descobrir essas verdades,
que poderiam nos ajudar a convencer o sultão, para podermos provar que tipo
de homens eram “eles” e, consequentemente, quem éramos “nós”, Hoja estava
disposto a usar a violência, se necessário... (PAMUK, 2007, p.166)
______________
1. CASAGRANDE, C.A. Interacionismo simbólico, formação do self e educação: uma
aproximação ao pensamento de G. H. Mead. In: Educação e Filosofia, v.30, n.59, p.375-403,
jan./jun. 2016.
notícias que vem de um viajante. Acerca do veneziano, sabe-se que viveu por sete anos
ainda sob os serviços do sultão, tolerando provocações a respeito de sua identidade até
que se retira para Gebze onde constitui família.
Com a visita do viajante mencionado, o italiano descobre que Hoja agora é escritor e
que fala sobre a vida exótica que tivera na Turquia, mas que não era um amigo sincero
dos turcos:
Neste trecho fica ainda mais claro como o “veneziano” encontra-se totalmente
socializado à realidade turca, pois distingue entre “nós” e “eles”, sendo nós os turcos e
eles os europeus. É o fim de seu processo de educação enquanto socialização iniciado
após sua captura na condição de escravo. Fica também averiguado o inverso em relação
a Hoja que vive a mesma experiência na Europa.
Há ainda uma passagem final sobre a suposta superioridade do Velho Continente com a
fala do viajante que afirma não ver semelhança física, nem psicológica entre os
protagonistas.
“E o mais espantoso”, disse-me ele depois “é que o senhor não foi nada
influenciado por Ele” [...] como é que dois homens que viveram lado a lado
tantos anos podiam ser tão pouco parecidos, tão diferentes um do outro? Ele
não conseguia entender. (PAMUK, 2007, p.198)
De tanto escrevermos histórias desse tipo, de tanto buscar o que era estranho
em nós mesmos, nós também correríamos o risco de nos transformar noutras
pessoas e – Deus nos livre! – nossos leitores também. (PAMUK, 2007, p.192,
grifos meus)
Com a citação, percebe-se que a leitura também faz parte de um processo de educação
e socialização – dado que ler é de certa forma, apropriar-se de novos mundos – podendo
assim, perigosamente, transformar-nos em outras pessoas.
Referências bibliográficas