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Sem brincadeira, você quer mesmo saber o que eu fiz no verão passado?
Está bem; vou contar pra você. Foi legal!
Foi o verão da fazenda e de todos os animais. Foi o verão da grande baleia, da
maravilhosa baleia do vovô, chamada Leviatã.
Você sabe alguma coisa sobre baleias? Eu não sabia. Quer dizer, antes desse
verão eu quase nem pensava a respeito de baleias.
Ah, sim, este também foi o verão da casa mal-assombrada perto do lago. Você
acha que a ideia de uma casa mal-assombrada é assustadora? Eu achava que sim, mas
isso foi antes da gente visitar a casa mal-assombrada perto do lago, no meio da noite.
O que mais aconteceu no verão passado? Deixa eu pensar.
Ah, já sei: foi no verão passado que conheci a Guga.
Eu já falei um pouco; agora deixa a Guga falar...
Issao! Você não falou como é a história da gente, nem o que é que você vai
contar e o que é que eu vou contar.
Eu vou contar como finjo que sou o Belé, gato do Issao, e como faço de conta
que sou vagalume, um tatu ou um morcego. Será que você já pensou como é ser um
morcego?
Não consigo deixar de imaginar como é ser a Leviatã. Ou ser o avô do Issao.
Até fico pensando se alguém já pensou como seria entender tudo. Sei que eu
não ia gostar! O que ia sobrar pra gente ficar pensando?
CAPÍTULO UM
II
Estou passando o verão aqui na fazenda com meu avô e minha avó. E minha
irmã Satie. Meu pai teve que fazer uma viagem de negócios. Ele faz móveis.
Guga mora na casa vizinha à fazenda. Ela tem um cavalo. O nome dele é Vivaldi.
Meu avô parece D. Pedro II. Ele está sentado na cadeira de balanço. (Quero
dizer meu avô, não D. Pedro.) O xale da vovó está no encosto da cadeira. Sempre me
pergunto por que a cadeira veste o xale, em vez dela.
Subo no colo do vovô e olho as mãos dele. Ele tem mãos grandes! E a pele na
palma das mãos é tão dura! Acho que isso acontece quando se trabalha tão duro quanto
ele.
– Vô, conta de quando você era marinheiro.
– Não consigo lembrar, já faz muito tempo...
– Claro que você consegue, vô. Se você quiser, você consegue!
– Sabe, Issao, já faz tanto tempo que parece que aconteceu com outra pessoa.
– O que parece que aconteceu com outra pessoa, vô?
– Por que eu iria contar a história de uma outra pessoa? – ele fala.
– Por favor, vô!
Vovô faz uma carranca pra mim. Depois suspira. Aí então diz:
– Estávamos navegando de Santos a Bombaim, ladeando a costa da África. Era
de tardinha e estávamos tão perto da margem que dava pra ver as árvores e as praias.
O sol fez a areia brilhar como se ela estivesse misturada com ouro. Aí então eu vi os
leões.
– Leões?
– Isso mesmo, leões. Já eram bem grandes, mas estavam brincando como se
fossem gatinhos: rolando de costas, lutando uns com os outros, rastejando, saltando e
fingindo morder e arranhar uns aos outros...
– Queria que o Belé pudesse ter brincado com eles! Aqui na fazenda, ele não
tem amigos! A única coisa que ele tem vontade de fazer é caçar passarinhos.
– Como eu estava dizendo, Issao, os leões tinham olhos dourados, patas
douradas e tufos dourados na ponta do rabo. Era isso o que nós víamos do navio.
– E depois, o que aconteceu, vô? Não tem mais?
– Não – diz vovô com um sorriso num lado da boca (o lado que funciona
melhor). – Esse é o fim da minha história, e é hora de você ir pra cama.
– Não posso ir pra cama antes de dizer boa noite ao Belé e eu não sei onde ele
está.
– Você não tem que dizer boa noite ao Belé. Vá pra cama!
Começo a ficar com os olhos cheios de lágrimas. Bem nessa hora, vovó sai da
cozinha. Ela está segurando Belé por baixo das patas da frente. As patas traseiras estão
penduradas:
– Aqui está seu gato, Issao. Ele estava procurando queijo outra vez!
Beijo o Belé e esfrego minha cara na dele:
– Boa noite, Belé. Fique bonzinho agora.
Belé retorna. Corro escada acima pra cama. Mas corro de novo pra baixo.
– Boa noite, vô! Boa noite, vó!
– Tenha bons sonhos, Issao.
– Já sei o que vou sonhar, vó. Leões numa praia com um sol dourado, árvores
douradas e areia dourada. Só a água é diferente. É verde e um pouco azul, como os olhos
do Belé. Os leões vão estar rolando na areia e...
Vovô resmunga:
– Já pra cama!
E subo depressa a escada, com o Belé.
III
Estou na banheira. Ela é antiga, grande, e está apoiada em quatro pernas. Mas
as pernas não têm joelhos. Então, imagino que são apenas pés na realidade. Parecem
pés de leão. Você já viu uma banheira que tem pés?
A água está super quente e o banheiro fica cheio de vapor.
Deixo a água correr. A banheira fica cheia até o buraquinho por onde a água
entra quando está transbordando. Gosto do barulho que ela faz quando entra por esse
buraco. (Será que a água entra ou sai por esse buraco?)
Tampo o nariz e afundo completamente embaixo d’água. Agora o som do
gorgolejar está ainda mais alto. Tudo soa mais alto embaixo d’água. Acho que a água faz
com os sons o que a lente de aumento da vovó faz com as palavras que ela lê.
Sou um submarino. Estou me movendo sob o Polo Sul. Devagar! Cuidado!
Preste atenção! Montanha de gelo à vista! Quase batemos no iceberg... Agora estamos
presos no gelo! Vamos ter que sair dessa! Devagar... Um pouco mais pra esquerda.
Pronto, assim está bom! Ótimo, agora podemos voltar à superfície. Obrigado, capitão.
Boio de costas. Sou uma ilha no oceano. Há água por todos os lados em volta
de mim. Até o ar está enevoado.
Vapor é água. Gelo é água. Água é água. Tudo é feito de água. Sou um peixe.
Minha irmã é um peixe. Meu pai é um peixe. Minha mãe era... é um peixe.
Mergulho até o fundo do oceano. Descanso na areia. Rolo na areia. Sou um
peixe na areia. Grãos de areia. Grãos de ouro. Sou um peixe na areia dourada.
Tudo é molhado. No mundo todo, em todo o mundo, só existe água... Nada
mais, apenas água.
Me ensaboo. Sou uma foca escorregadia. Tento equilibrar o sabonete no meu
nariz. Ele fica caindo.
Detesto as sobras de sabonete. Os sabonetes deviam ser ocos pra não sobrar
nada.
Deixo a água escorrer e me seco com a toalha. É gostoso. Penso no Vivaldi.
Gosto de ajudar a esfregá-lo.
Não vou pensar na casa do lago. Aqueles meninos que moram na fazenda
vizinha me falaram dela. Lá, alguém anda pelo sótão durante a noite e me dá uns
gemidos. Eu não vou pensar nela!
Vou pensar um pouco mais no Vivaldi... Como ele fuça quando eu faço carinho
no seu nariz! E como ele fica contente quando corre no curral! Algumas vezes ele corre
tão depressa que os quatro pés ficam fora do chão, quase como se ele estivesse voando.
Seria fantástico se existisse um cavalo voador. Deque tamanho teriam que ser as asas
de um cavalo?
Se Vivaldi tivesse asas, alguém teria coragem de montar nele? Puxa vida, que
passeio ia ser esse!
CAPÍTULO DOIS
II
III
– Issao, meus pais me deram argila de verdade, não barro, mas argila mesmo,
de verdade. Já fiz um gato como o Belé. Você quer experimentar, Issao?
– Claro!
Vamos até meu quarto e dou meu gato para ele:
– Faz alguma coisa!
– O que posso fazer? Ah! Já sei! Vou fazer uma manga.
Ele rola um pouco de argila nas mãos até ter uma bola oval e entrega para mim.
– Aí está! Uma manga.
– Ah, Issao, tem dó! Olha só, eu vou mostrar.
Pego um pouco de argila e faço uma bola média e alongada.
– Esse é o caroço.
Ponho mais argila em volta dele.
– Essa é a parte que se come – e então enrolo outra camada de argila em volta
da coisa toda. – E isso é a casca!
– Eu só vejo a casca, Guga!
– Certo, talvez seja só isso o que você vê. Mas você sabe que a minha é
realmente uma manga e a sua não é. O que eu fiz é uma manga de “cabo a rabo”
Issao não responde imediatamente. Pega um pouco de argila e me entrega:
– Faz uma cabeça.
Enquanto faço a tal da cabeça, explico para ele enquanto trabalho:
– Veja, primeiro faço o interior da garganta e a boca. Aí ponho uma língua nela.
Depois acrescento os dentes em toda a volta da gengiva. E então ponho os lábios sobre
os dentes. Ponho a parte de cima da cabeça, alargo o nariz de dentro para fora e faço os
olhos com as minhas unhas. Depois, coloco o cabelo e pronto.
– Ah! Gussi... Eu começo por fora e você começa por dentro.
– Mas você nunca chega dentro! Você só fica na parte de fora! Essa não é a
maneira de se fazer uma cabeça!
– É a única maneira que eu sei – diz Issao.
– Era a única maneira que você sabia. Agora você sabe duas maneiras – falo.
IV
É fim da tarde. Estou ficando com sono. À noitinha, preciso de uma história.
Você sabe como é isso, não sabe?
– Vô, o que você era antes de ser marinheiro?
– Cresci numa fazenda e não aguentava esperar a hora de ir viver no mar. Mais
tarde, não conseguia esperar para voltar à fazenda.
– Quando você era marinheiro, você caiu na água alguma vez?
Vovô dá um de seus sorrisos tortos, um lado pra cima e um lado pra baixo, e
conta:
– Mais de uma vez. Mas só uma vez realmente escapei por pouco. Foi num
verão, quando estava num barco a motor na costa do Nordeste. – Conta pra mim, vô!
Conta!
– Então, escute só. Bati em alguma coisa. Não sei o que foi, não cheguei a ver o
que era. Talvez fosse um barco meio naufragado. Com a batida, fui jogado contra a roda
do leme e quebrei o braço. Aí então o barco virou, não de todo, mas o suficiente para
me jogar na água.
– Com um braço quebrado você não podia nadar! Você podia ter se afogado!
– É, mas isso não foi o pior. O leme do barco emperrou, e o barco começou a
andar em círculos. Ele chegava cada vez mais perto e eu não conseguia sair dali. Pensei
que a qualquer minuto eu seria puxado pra baixo do barco e pra dentro da hélice do
motor.
– O que aconteceu? A gasolina do barco acabou?
– Não, não foi isso, Issao... De repente, ouvi um estrondo, como um trem se
aproximando. E então ela interrompeu com um grande esguicho, como uma locomotiva
subindo do fundo do mar.
– Era uma baleia! Aposto que era isso!
– Você está certo. Era exatamente isso. Ela me olhou, e eu olhei de volta.
Parecia uma baleia nova mas, certamente, era uma baleia grande!
– Era branca, azul ou cinza? De que cor era a baleia, vô?
– Era cinza e tinha uma marca engraçada, acho que era uma marca de nascença,
perto do olho.
Vovô pega um bloco e uma caneta.
– Ela era assim:
Guga vem e eu a levo até o pasto, onde há um lago. Fiz uma ponte de madeira,
pra ir até o meio do lago. Lá, eu fiz uma ilha com alguns tambores vazios e uma porta
deitada de atravessado em cima deles. Ajudo Guga a atravessar a ponte e depois
sentamos naquilo que era uma porta.
Depois de algum tempo, falo a ela sobre Leviatã. Até explico a marca de
nascença, desenhando com um pauzinho nas costas da mão dela.
– Onde você acha que ela está agora? – Guga pergunta.
– Não tinha pensado nisso! Você acha que ela ainda está viva?
– Pode estar. As baleias vivem muito tempo. Onde foi que seu avô viu essa
baleia?
– Num lugar chamado Nordeste.
Por um bom tempo, Guga não fala nada. Então ela diz:
– Issao, seu avô acha que Leviatã ainda vive.
Não consigo imaginar como Guga pode saber o que vovô pensa. Só consigo
dizer:
– É mesmo?
– É. E é por isso que ele está tão triste. Ele acha que deve ir procura-la.
– Vovô não pode ir procurar Leviatã! Ele não é capaz de fazer uma coisa dessas!
– Se quiser, ele pode – diz Guga.
– Mesmo se quisesse, ele não ia admitir isso.
– Issao, não deixe de fazer isto! Converse mais com ele sobre as baleias. Talvez
ele mesmo decida que quer ir vê-las.
– Não é fácil, pra mim, falar com o vovô. E eu não posso obriga-lo a fazer uma
coisa que ele não quer.
IV
Estou sentado na cozinha com Guga, lendo os quadrinhos para ela. Belé pula
na mesa e deita no jornal, bem na minha frente.
– “Belé”, você está vendo que estou tentando ler?!
– Rrrrr... O que é ler?
– As palavras são impressas na página, “Belé”. Eu olho pra elas e tento
descobrir o que significam. Isso é ler.
– Palavras? Rrrrr... O que são palavras? – Pergunta Guga.
– Essas pequenas manchas pretas no jornal.
– E com o que você lê?
– Com os olhos. Ponho os olhos sobre elas.
– E eu ponho as “patas” nelas.
– “Belé”, quer fazer o favor de sair dos meus quadrinhos?
– Estou lendo! – diz Guga calmamente. Por favor, não grite, você me
atrapalha.
– Ei, vocês dois – diz Satie –, o que vocês acham de fazermos um piquenique
na semana que vem? Eu posso fazer alguns sanduíches.
– Oba! Essa é uma grande ideia! Aonde vamos?
– Ao lago, Issao. Assim podemos nadar.
– Não quero ir ao lago.
Satie ri e me diz:
– Não me diga que você acredita nessas histórias sobre a casa mal-
assombrada? Não respondo, mas Guga diz:
– Seu medroso!
Ela também sacode a m]ao como que dizendo “sai pra lá”.
Acho que vamos fazer um piquenique no lago.
CAPÍTULO QUATRO
Adivinhe quem vem pro jantar! Eu sabia que você não ia adivinhar nunca! A
Satie e o Issao! Eles vão chegar daqui a pouco.
Quando perguntei à mamãe se podia convidá-los, tinha certeza de que ela ia
dizer “não”. Isso só prova que a gente nunca sabe o que os pais vão dizer. Você já
reparou isso?
Vamos ser seis pessoas: minha mãe, meu pai, Satie, Issao, eu e meu irmão Beto,
que está de férias da faculdade. Beto passou o dia dizendo que não ia sair do quarto. Às
vezes, ele fica tão chato!
São eles! São eles! Estão no portão!
Meus pais conhecem o Issao porque ele veio bastante aqui.
Mas essa é a primeira vez que eles veem a Satie. Mamãe diz:
– Guga, suba e chame o Beto.
Corro pra cima e bato na porta:
– A mamãe disse pra você descer pra jantar.
Não vem nenhuma resposta. Tenho medo de gritar alto porque não quero que
Issao e Satie escutem. Falo pelo buraco da fechadura:
– Por favor! Beto!
– Não enche, Guga!
– Beto, Issao veio com a irmã dele!...
Sabe o que acontece? De repente a porta se abre. É o Beto que está descendo
pra surpresa da mamãe:
– Beto! Por que é que você não está bancando o Dom Casmurro hoje? E o que
foi que Guga falou pra fazer você mudar de ideia... e de camisa?
– Beto – diz papai –, quero que você conheça Satie, a irmã do Issao.
Satie olha pro Beto descendo a escada e diz:
– É você!
Beto olha pra ela de um jeito engraçado e fala:
– Você que é a Satie?
– Vocês já se conhecem? – pergunta papai.
– Tenho o costume de ir nadar na enseada do outro lado da ilha. Nunca
ninguém ia lá, mas nos últimos dias não tenho sido a única...
– Ela não quis me dizer o nome dela, então eu também não falei o meu! – diz
Beto.
Meu pai vai até a cozinha e traz uns salgadinhos. Satie e Beto pegam alguns e
saem para a varanda. Issao está comendo tanto que tenho que avisar pra ele deixar um
lugarzinho pro jantar. Enquanto ele e papai estão falando de como o Issao gosta da
fazenda, dou uma escapada até a cozinha.
– Mãe, me diz uma coisa?...
– Vou tentar. O que você quer saber?
– Se o Beto casar com Satie, eu ainda poso casar com Issao?
Minha mãe prova a comida que ela estava preparando e, depois de um tempo
diz:
– Claro, se isso for o que vocês dois quiserem, quando crescerem.
– E por que a gente não ia querer?
– Gussi, você está sempre perguntando, fazendo perguntas!
– E o que mais eu podia perguntar?
II
Eu sempre tinha que estar em casa pro jantar, mas agora posso ficar na casa do
Issao se eu for convidada. Posso ficar até as nove horas, porque o Beto vem e me pega.
Acho que ele gosta mais de mim do que ele gostava.
Depois do jantar Issao e eu brincamos de ver quem planta bananeira mais
tempo: eu conto alto enquanto ele planta bananeira, e ele conta enquanto eu fico de
ponta-cabeça. Depois a gente se reveza girando até cair. Depois rolamos, rolamos e
rolamos no gramado do jardim.
O avô do Issao está sentado numa cadeira de balanço, com o Belé no colo. De
repente, tudo está muito quieto na fazenda porque todas as galinhas foram dormir.
Issao diz:
– Vô, o senhor mata as galinhas, né?
– Eu, pessoalmente, não mato, Issao. Mando as galinhas para o mercado e lá
eles matam.
– O senhor mandaria o Belé pra lá?
– Um gato? Quem iria comer um gato?
– Bom, quer dizer, se as pessoas gostassem de comer gatos, você mandava o
Belé?
– Não, claro que não. O Belé é um gato que nós conhecemos.
– Não entendo.
– O Belé tem um nome, o nome dele. Ele é o Belé. Ele não é um gato qualquer.
Ele é alguém da família.
– Ah, então se a gente der nomes pra todas as galinhas, você não manda mais
nenhuma galinha pro mercado, é isso?
– Acho que isso não seria suficiente pra que elas fizessem parte da família. Mas
se tiver alguma galinha da qual você goste muito, se você lhe der um nome, prometo
que não vou me desfazer dela.
– Aposto que, todo dia, no mundo todo, milhões de pessoas comem galinhas.
– Isso é verdade. Mas não há perigo de matarmos todas as galinhas. O que me
preocupa são os animais que estão sendo mortos e que não podem ser substituídos.
– Que animais são esses, vô?
– Que animais? Os rinocerontes, as baleias. E veja quantos bebês-focas
matamos todos os anos!
Satie diz:
– Salvaram o cisne-selvagem. Durante um tempo, só havia alguns deles, mas
agora há milhares outra vez.
O avô de Issao faz como Vivaldi quando ele bufa, e diz:
– Se matassem todos os cisnes-selvagens, ainda haveria outras espécies de
cisnes. Mas não estão matando só uma espécie de rinoceronte ou uma espécie de
baleia! Estão matando todas!
– Ainda não é tarde demais pra salvá-las, vô! – diz Satie.
– Mas o tempo passa rápido!
– Mesmo assim, não são as baleias que correm mais perigo – fala a avó de Issao.
– Ah, não? – diz o avô de Issao. – Que animal pode correr maior perigo de
extinção do que a baleia?
A avó de Issao responde:
– Os homens. Basta mais uma guerra pra quase tudo desaparecer. Não vai
sobrar ninguém.
E ela me dá um abraço, como que dizendo que não é pra eu me preocupar.
– Nossa! A gente está ainda pior do que as galinhas. – é o que eu consigo dizer.
III
É a vez do Issao vir à minha casa à noite e a gente vai brincar no jardim. Ele está
com uma jarra e eu pergunto o que ele está fazendo com ela.
– Pegando vagalumes.
Eu não entendo muito de vagalumes. Você entende?
Issao me fala deles. Ele pega um e deixa eu segurar. Estranho que ele não é
quente como lâmpada. Seguro o vagalume na palma da mão e cochicho pra ele:
– Eu também sou vagalume. Não preciso da luz do sol. Tenho minha própria luz.
Então, de repente, a gente escuta um ruído e Issao grita:
– Um morcego! Um morcego!
Issao começa a correr atrás dele, e depois de um tempo o morcego vai embora.
– Morcego é um rato com asas de passarinho ou é um passarinho com corpo
de rato?
Papai me explica o que ele sabe sobre morcegos. Ele não enxergam, mas sabem
onde estão voando porque emitem sons estridentes e depois escutam o eco. Junto com
as mãos em concha e cochicho lá dentro, imitando um morcego.
– Ei, você aí, eu também sou um morcego! Venha me visitar de novo algum dia!
Quando acabo minha conversa de morcego, ouço um barulho engraçado do
lado da casa, como se alguém tivesse atirado um coquinho contra a vidraça. Mamãe
quer saber:
O que é isso?
Issao grita:
– Eu sei! Foi um passarinho que bateu no vidro da janela! Ele está aqui! Está
morto!
Issao pega o passarinho. É um pardal pequenininho!
Deixa eu segurar, Issao; me deixa!
Seguro o pardal entre as minhas mãos. Ele é levinho e não está se mexendo.
Também parece que ele não está respirando. Papai diz:
– Pode ser que ele só esteja tonto.
Cochicho pro pardal:
– Vamos lá, seu dorminhoco, é hora de acordar!
E sabe o que mais? Sinto que ele levanta a cabeça e, logo depois, quando abro
as mãos, ele voa.
– Como é que você não virou um pardal, Gussi?
Não sei explicar pra mamãe que eu podia ser um pardal, mas não esse pardal.
Esse pardal tinha voado uma vez e ia voar de novo, mas durante um tempinho, ele não
sabia o que estava acontecendo em volta dele. Isso não acontece comigo, de jeito
nenhum!
Issao fala:
– Num minuto ele parecia morto e, no minuto seguinte, voou como se nada
tivesse acontecido. Gozado, achei que não havia mais esperança pra ele.
Sei que vou chorar, então corro pra dentro de casa e me escondo atrás do sofá.
Queria saber por que estou chorando.
Beto vem e me levanta. Jogo os braços em volta do pescoço dele e molho todo
o ombro da camisa que ele está vestindo. Ele diz:
– Vamos dar uma volta.
Ele me põe na frente do carro, ao lado dele, e sai pela estradinha. As rodas do
carro fazem os coquinhos estalarem no chão.
Vamos pelo bosque e depois ladeamos o lago. Dá pra sentir o cheiro da água
. Estou começando a me sentir melhor e, quando escuto o coaxar dos sapos, não consigo
deixar de imitar “co-ax, co-ax” com a voz mais grave que consigo. Mas é claro que minha
voz não é nem de longe tão grave quanto devia ser.
Adoro o som da cigarra. Beto diz que é um grilo. Papai acha que grilo e cigarra
são só dois nomes diferentes para a mesma coisa. Beto diz que o som parece o de “uma
orquestra afinando”.
Não sei o que isso quer dizer.
Chego mais perto e me encosto no Beto.
– Existem aves que não voam, Beto?
– Claro, avestruzes.
– O que eles fazem?
Andam e, se precisarem, correm.
– Eles vivem por aqui?
– Não, acho que não.
Ele faz um cafuné e diz:
– Sabe o que? Vou mostrar pra você uma coisa ainda melhor. Vamos na casa
mal-assombrada!
– Pensei que a gente ia lá quando fizesse o piquenique com Issao e Satie.
– Não, isso não vai ser um piquenique. A gente vai lá no meio da noite.
– Não sou um gato medroso, Beto. Você é?
Ele só responde “Rrrrr...”
CAPÍTULO CINCO
Satie põe uma cesta de frutas na frente de Guga, e Guga escolhe uma laranja e
começa a descascar.
– A laranja é mesmo cor de laranja?
– Claro, é uma cor brilhante, assim como o sabor é brilhante.
– Rrrrr... Mente brilhante.
II