Sie sind auf Seite 1von 26

INTRODUÇÃO

Sem brincadeira, você quer mesmo saber o que eu fiz no verão passado?
Está bem; vou contar pra você. Foi legal!
Foi o verão da fazenda e de todos os animais. Foi o verão da grande baleia, da
maravilhosa baleia do vovô, chamada Leviatã.
Você sabe alguma coisa sobre baleias? Eu não sabia. Quer dizer, antes desse
verão eu quase nem pensava a respeito de baleias.
Ah, sim, este também foi o verão da casa mal-assombrada perto do lago. Você
acha que a ideia de uma casa mal-assombrada é assustadora? Eu achava que sim, mas
isso foi antes da gente visitar a casa mal-assombrada perto do lago, no meio da noite.
O que mais aconteceu no verão passado? Deixa eu pensar.
Ah, já sei: foi no verão passado que conheci a Guga.
Eu já falei um pouco; agora deixa a Guga falar...

Issao! Você não falou como é a história da gente, nem o que é que você vai
contar e o que é que eu vou contar.
Eu vou contar como finjo que sou o Belé, gato do Issao, e como faço de conta
que sou vagalume, um tatu ou um morcego. Será que você já pensou como é ser um
morcego?
Não consigo deixar de imaginar como é ser a Leviatã. Ou ser o avô do Issao.
Até fico pensando se alguém já pensou como seria entender tudo. Sei que eu
não ia gostar! O que ia sobrar pra gente ficar pensando?

CAPÍTULO UM

– Issao, onde está o Belé?


Como a Guga disse, Belé é o meu gato.
– Não sei, provavelmente está se escondendo em algum lugar, Guga.
– Por que ele está se escondendo? Ele fez alguma coisa errada?
– Não, ele está só brincando. Ele brinca assim sozinho.
Guga é a minha vizinha. O nome verdadeiro dela é Augusta. Ela detesta esse
nome. Sua mãe a chama de Gussi. Ela também não gosta desse nome. Seu pai a chama
de Guga. Esse é o nome que ela mais gosta.
O pai dela é mesmo muito alto, muito mais alto do que o meu. Quando ele
chega em casa, à noite, Guga levanta o rosto pra ele e diz bem alto:
– “Alto lá”, pai!
E ele desce o olhar pra ela, bem lá do alto e diz, bem baixinho, com sua voz de
baixo:
– Oi, Guga!
Guga rola no chão e faz de conta que está afiando as unhas no tapete.
– Rrrrr... – ela rosna, imitando o gato. – Eu sou o Belé.
– Belé, onde você estava?
Mas, depois que eu pergunto isso, quem aparece é a Guga:
– Rrrrr... Estava embaixo do sofá.
– Você é mesmo um animal de aparência muito engraçada. – digo para Guga.
– Que cara cheia de pelos você tem! E um rabo que fica de pé, esticado, quando você
anda! E você anda nas quatro pernas ao mesmo tempo! Realmente, Belé, isso, em você,
é tão bobo!
– Quem é bobo de verdade é você! – reage Guga. – Você tem a cara cheia de
pele. O que pode ser mais bobo do que isso? E você não tem rabo! Como você não tem
rabo?! Só as coisas com rabo é que têm orgulho! Do que é que você pode se orgulhar?
– De muita coisa. Olha como eu fico esticado quando fico de pé! Você precisa
de quatro pernas para andar, e eu ando só com duas!
– Grande vantagem! Você só tem duas pernas!
– Você diz que só as coisas com rabo têm do que se orgulhar. Mas isso não é
verdade. Não é preciso ter rabo pra poder se orgulhar do que a gente é. Pessoas podem
se orgulhar tanto quanto os gatos.
Mas Guga fala:
– Pavões têm rabo e se orgulham. Gatos têm rabo e se orgulham. Você não é
pavão. Você não é gato. E você não tem rabo. Então você não pode se orgulhar! Rrrrr...

II

Estou passando o verão aqui na fazenda com meu avô e minha avó. E minha
irmã Satie. Meu pai teve que fazer uma viagem de negócios. Ele faz móveis.
Guga mora na casa vizinha à fazenda. Ela tem um cavalo. O nome dele é Vivaldi.
Meu avô parece D. Pedro II. Ele está sentado na cadeira de balanço. (Quero
dizer meu avô, não D. Pedro.) O xale da vovó está no encosto da cadeira. Sempre me
pergunto por que a cadeira veste o xale, em vez dela.
Subo no colo do vovô e olho as mãos dele. Ele tem mãos grandes! E a pele na
palma das mãos é tão dura! Acho que isso acontece quando se trabalha tão duro quanto
ele.
– Vô, conta de quando você era marinheiro.
– Não consigo lembrar, já faz muito tempo...
– Claro que você consegue, vô. Se você quiser, você consegue!
– Sabe, Issao, já faz tanto tempo que parece que aconteceu com outra pessoa.
– O que parece que aconteceu com outra pessoa, vô?
– Por que eu iria contar a história de uma outra pessoa? – ele fala.
– Por favor, vô!
Vovô faz uma carranca pra mim. Depois suspira. Aí então diz:
– Estávamos navegando de Santos a Bombaim, ladeando a costa da África. Era
de tardinha e estávamos tão perto da margem que dava pra ver as árvores e as praias.
O sol fez a areia brilhar como se ela estivesse misturada com ouro. Aí então eu vi os
leões.
– Leões?
– Isso mesmo, leões. Já eram bem grandes, mas estavam brincando como se
fossem gatinhos: rolando de costas, lutando uns com os outros, rastejando, saltando e
fingindo morder e arranhar uns aos outros...
– Queria que o Belé pudesse ter brincado com eles! Aqui na fazenda, ele não
tem amigos! A única coisa que ele tem vontade de fazer é caçar passarinhos.
– Como eu estava dizendo, Issao, os leões tinham olhos dourados, patas
douradas e tufos dourados na ponta do rabo. Era isso o que nós víamos do navio.
– E depois, o que aconteceu, vô? Não tem mais?
– Não – diz vovô com um sorriso num lado da boca (o lado que funciona
melhor). – Esse é o fim da minha história, e é hora de você ir pra cama.
– Não posso ir pra cama antes de dizer boa noite ao Belé e eu não sei onde ele
está.
– Você não tem que dizer boa noite ao Belé. Vá pra cama!
Começo a ficar com os olhos cheios de lágrimas. Bem nessa hora, vovó sai da
cozinha. Ela está segurando Belé por baixo das patas da frente. As patas traseiras estão
penduradas:
– Aqui está seu gato, Issao. Ele estava procurando queijo outra vez!
Beijo o Belé e esfrego minha cara na dele:
– Boa noite, Belé. Fique bonzinho agora.
Belé retorna. Corro escada acima pra cama. Mas corro de novo pra baixo.
– Boa noite, vô! Boa noite, vó!
– Tenha bons sonhos, Issao.
– Já sei o que vou sonhar, vó. Leões numa praia com um sol dourado, árvores
douradas e areia dourada. Só a água é diferente. É verde e um pouco azul, como os olhos
do Belé. Os leões vão estar rolando na areia e...
Vovô resmunga:
– Já pra cama!
E subo depressa a escada, com o Belé.

III

Satie tem 16 anos. Eu tenho 7. O nome do meu pai é Li e o da minha mãe é


Esperança. Só que eu não tenho mãe.
IV

Estou na banheira. Ela é antiga, grande, e está apoiada em quatro pernas. Mas
as pernas não têm joelhos. Então, imagino que são apenas pés na realidade. Parecem
pés de leão. Você já viu uma banheira que tem pés?
A água está super quente e o banheiro fica cheio de vapor.
Deixo a água correr. A banheira fica cheia até o buraquinho por onde a água
entra quando está transbordando. Gosto do barulho que ela faz quando entra por esse
buraco. (Será que a água entra ou sai por esse buraco?)
Tampo o nariz e afundo completamente embaixo d’água. Agora o som do
gorgolejar está ainda mais alto. Tudo soa mais alto embaixo d’água. Acho que a água faz
com os sons o que a lente de aumento da vovó faz com as palavras que ela lê.
Sou um submarino. Estou me movendo sob o Polo Sul. Devagar! Cuidado!
Preste atenção! Montanha de gelo à vista! Quase batemos no iceberg... Agora estamos
presos no gelo! Vamos ter que sair dessa! Devagar... Um pouco mais pra esquerda.
Pronto, assim está bom! Ótimo, agora podemos voltar à superfície. Obrigado, capitão.
Boio de costas. Sou uma ilha no oceano. Há água por todos os lados em volta
de mim. Até o ar está enevoado.
Vapor é água. Gelo é água. Água é água. Tudo é feito de água. Sou um peixe.
Minha irmã é um peixe. Meu pai é um peixe. Minha mãe era... é um peixe.
Mergulho até o fundo do oceano. Descanso na areia. Rolo na areia. Sou um
peixe na areia. Grãos de areia. Grãos de ouro. Sou um peixe na areia dourada.
Tudo é molhado. No mundo todo, em todo o mundo, só existe água... Nada
mais, apenas água.
Me ensaboo. Sou uma foca escorregadia. Tento equilibrar o sabonete no meu
nariz. Ele fica caindo.
Detesto as sobras de sabonete. Os sabonetes deviam ser ocos pra não sobrar
nada.
Deixo a água escorrer e me seco com a toalha. É gostoso. Penso no Vivaldi.
Gosto de ajudar a esfregá-lo.
Não vou pensar na casa do lago. Aqueles meninos que moram na fazenda
vizinha me falaram dela. Lá, alguém anda pelo sótão durante a noite e me dá uns
gemidos. Eu não vou pensar nela!
Vou pensar um pouco mais no Vivaldi... Como ele fuça quando eu faço carinho
no seu nariz! E como ele fica contente quando corre no curral! Algumas vezes ele corre
tão depressa que os quatro pés ficam fora do chão, quase como se ele estivesse voando.
Seria fantástico se existisse um cavalo voador. Deque tamanho teriam que ser as asas
de um cavalo?
Se Vivaldi tivesse asas, alguém teria coragem de montar nele? Puxa vida, que
passeio ia ser esse!

CAPÍTULO DOIS

– Mãe, algumas pessoas podem ouvir melhor do que outras?


– Sim, Gussi.
– E existem pessoas que não conseguem ouvir nada?
– Acho que sim.
– Eu escuto bem, não escuto, mãe?
– Ah, escuta sim! Muitas vezes você ouve coisas que eu não consigo escutar.
Ela abaixa, me dá um beijo de boa noite e diz:
– Agora, vê se dorme.
Ainda não estou pronta pra dormir.
– Também tenho bom tato e consigo cheirar e sentir o gosto bem, né?
– Claro, querida! Você faz essas coisas tão bem! Algumas pessoas não
conseguem fazer essas coisas tão bem quanto você, nem de longe.
– Mãe, além de ver, tem mais alguma coisa que eu não consigo fazer?
– Não, Gussi.
– Mamãe, tem coisas que eu faço bem de verdade?
– Deixe-me ver... Você se dá bem com as pessoas, você pensa bem. E tenho a
impressão de que só posso dizer que você é simplesmente uma criança linda.
– Todas as mães dizem que seus filhos são lindos, mãe?
– Acredito que sim.
– Ah!...
– O que foi?
– Então você ia dizer isso mesmo se eu não fosse?
– Não, Gussi, não! Isso não é verdade!
– É verdade, sim. E não é justo! Você sabe que eu mesma não posso ver como
eu sou!
– Se você não acredita em mim, Gussi, em que você acreditaria? – diz mamãe.
Não respondo porque posso sentir as lágrimas começando a encher meus olhos
e não quero começar a chorar.
– Você acreditaria no papai?
– Se todas as mães dizem aos filhos que eles são bonitos, então todos os pais
também fazem isso. Então, o que é que adianta se for o papai?
– Bom Gussi, existe alguém em que você acreditaria?
Fico chateada e não respondo.
– Por favor, Gussi, diga, já que isso parece significar muito para você: em quem
você acreditaria?
– No Issao, talvez – falo, quase num murmúrio.
– Issao?! – mamãe parece um pouco chocada.
– Isso mesmo, talvez se o Issao disser eu acredite – falo.
Mamãe faz carinho no meu cabelo e fala:
– Sempre tento lhe dizer a verdade, Gussi.
– Não adianta se não é realmente a verdade!
Mamãe tenta me enlaçar com os braços em volta de mim mas eu não deixo.
Escondo a cara no travesseiro.

II

Subo no colo do meu pai, e pergunto:


– Eu sou bonita?
– Você sabe que eu acho você a coisa mais preciosa do mundo e você é tão
bonita quanto preciosa. Sendo assim, você vai me dizer se você é ou não bonita!
– Ah, pai, não me amola com todas essas palavras!
Ele não diz nada, então eu o sacudo e digo:
– Papai, você não respondeu minha pergunta!
– Qual é a melhor sobremesa em que você pode pensar?
– A melhor? A melhor de todas? Torta de banana com creme e tudo!
– Bom, você parece com o sabor que tem a torta de banana.
Sorrio e digo:
– Que mais? Fala! Que mais? Me diz! – sacudo o papai pelo ombro.
– No mundo todo, qual o cheiro que você mais gosta? E não venha me dizer
que é de gasolina ou de sabão em pó.
Dou risada
– Não, pai, mas também não é cheiro de flor. É daquela coisa que a mamãe põe
atrás da orelha quando você e ela saem juntos.
– Está bem! Você parece com o cheiro do perfume da mamãe. E, já que você
gosta tanto de música, diga mais uma coisa: qual é a música mais bonita do mundo?
Penso nisso por um bom tempo e depois respondo:
– A mamãe cantando pra eu dormir, como ela às vezes faz. Cada nota que ela
canta é tão simples, clara e redonda!
– Certo, é com isso que você parece... Com o som da música que a sua mãe
canta para você dormir. É assim que o seu rosto é: simples, claro e redondo.
– Papai, será que alguma vez o Issao vai me dizer com o que eu pareço? –
pergunto.
– Não sei. Mas talvez você não devesse perguntar.
Ponho minha cabeça no ombro dele e falo:
– Eu sei disso! Puxa, eu não sou burra, você sabe!

III

– Issao, meus pais me deram argila de verdade, não barro, mas argila mesmo,
de verdade. Já fiz um gato como o Belé. Você quer experimentar, Issao?
– Claro!
Vamos até meu quarto e dou meu gato para ele:
– Faz alguma coisa!
– O que posso fazer? Ah! Já sei! Vou fazer uma manga.
Ele rola um pouco de argila nas mãos até ter uma bola oval e entrega para mim.
– Aí está! Uma manga.
– Ah, Issao, tem dó! Olha só, eu vou mostrar.
Pego um pouco de argila e faço uma bola média e alongada.
– Esse é o caroço.
Ponho mais argila em volta dele.
– Essa é a parte que se come – e então enrolo outra camada de argila em volta
da coisa toda. – E isso é a casca!
– Eu só vejo a casca, Guga!
– Certo, talvez seja só isso o que você vê. Mas você sabe que a minha é
realmente uma manga e a sua não é. O que eu fiz é uma manga de “cabo a rabo”
Issao não responde imediatamente. Pega um pouco de argila e me entrega:
– Faz uma cabeça.
Enquanto faço a tal da cabeça, explico para ele enquanto trabalho:
– Veja, primeiro faço o interior da garganta e a boca. Aí ponho uma língua nela.
Depois acrescento os dentes em toda a volta da gengiva. E então ponho os lábios sobre
os dentes. Ponho a parte de cima da cabeça, alargo o nariz de dentro para fora e faço os
olhos com as minhas unhas. Depois, coloco o cabelo e pronto.
– Ah! Gussi... Eu começo por fora e você começa por dentro.
– Mas você nunca chega dentro! Você só fica na parte de fora! Essa não é a
maneira de se fazer uma cabeça!
– É a única maneira que eu sei – diz Issao.
– Era a única maneira que você sabia. Agora você sabe duas maneiras – falo.

IV

Issao me conta a história do seu avô sobre os leões na praia.


– Não entendo a cor dourada.
– Ouro. É como... Amarelo! – diz Issao.
– Também não entendo amarelo.
– Ah, é mesmo! Bom, deixe-me pensar. Você sabe como é o sabor do mel, não
sabe?
– Sei.
– Bom, o mel parece com o seu sabor: o sabor do mel é como a cor do ouro.
– Eu sei de onde vem o mel, Issao!
– Quem não sabe isso? Mel vem das abelhas.
Não vem, não. Vem das flores.
Como Issao tenta discutir comigo, vou com ele até o nosso quintal, onde temos
margaridas, jasmins, girassóis. Mostro como ele deve morder a ponta do jasmim-estrela
e chupar o líquido doce para fora.
– Então é por isso que existe mel de laranja, mel de flores silvestres e mel de
outros nomes mais! Não sabia que era por isso!
Quase falo “Há muitas coisas que você não sabe, Issao” mas, ao invés disso,
digo:
– Quem pode saber tudo?
Descemos até o curral. O feno tem um cheiro tão gostoso! Vivaldi me deixa
segurar sua cabeça.
Sempre que eu seguro alguma coisa – seja o Vivaldi, um coquinho ou um livro
– não consigo eixar de ficar imaginando: de onde será que isso veio antes de chegar
aqui? E pra onde irá depois que sair daqui? Simplesmente não consigo deixar de ficar
tentando entender por que as coisas acontecem da maneira como acontecem e não de
outra maneira.
Fico fazendo perguntas até que finalmente a mamãe diz:
– Gussi, você precisa saber tudo?
– Claro que preciso, mãe, mas não faz mal se você não me contar tudo de uma
vez.
CAPÍTULO TRÊS

É fim da tarde. Estou ficando com sono. À noitinha, preciso de uma história.
Você sabe como é isso, não sabe?
– Vô, o que você era antes de ser marinheiro?
– Cresci numa fazenda e não aguentava esperar a hora de ir viver no mar. Mais
tarde, não conseguia esperar para voltar à fazenda.
– Quando você era marinheiro, você caiu na água alguma vez?
Vovô dá um de seus sorrisos tortos, um lado pra cima e um lado pra baixo, e
conta:
– Mais de uma vez. Mas só uma vez realmente escapei por pouco. Foi num
verão, quando estava num barco a motor na costa do Nordeste. – Conta pra mim, vô!
Conta!
– Então, escute só. Bati em alguma coisa. Não sei o que foi, não cheguei a ver o
que era. Talvez fosse um barco meio naufragado. Com a batida, fui jogado contra a roda
do leme e quebrei o braço. Aí então o barco virou, não de todo, mas o suficiente para
me jogar na água.
– Com um braço quebrado você não podia nadar! Você podia ter se afogado!
– É, mas isso não foi o pior. O leme do barco emperrou, e o barco começou a
andar em círculos. Ele chegava cada vez mais perto e eu não conseguia sair dali. Pensei
que a qualquer minuto eu seria puxado pra baixo do barco e pra dentro da hélice do
motor.
– O que aconteceu? A gasolina do barco acabou?
– Não, não foi isso, Issao... De repente, ouvi um estrondo, como um trem se
aproximando. E então ela interrompeu com um grande esguicho, como uma locomotiva
subindo do fundo do mar.
– Era uma baleia! Aposto que era isso!
– Você está certo. Era exatamente isso. Ela me olhou, e eu olhei de volta.
Parecia uma baleia nova mas, certamente, era uma baleia grande!
– Era branca, azul ou cinza? De que cor era a baleia, vô?
– Era cinza e tinha uma marca engraçada, acho que era uma marca de nascença,
perto do olho.
Vovô pega um bloco e uma caneta.
– Ela era assim:

– O que ela fez depois, vô? Conta pra mim...


– Nadou direto para o barco e, com um estalo do rabo, fez o barco em pedaços.
– Ela salvou sua vida.
– Isso mesmo.
– Mas ela não sabia disso, vô. Provavelmente, ela só estava assustada com o
barco ou brava com ele. Ela não tinha a intenção de salvar sua vida.
– Ela me olhou no olho.
– Foi um acidente. Ela veio à tona e aconteceu de você estar ali.
– Quando chegou à tona, ela viu tudo.
– Mas ela não podia saber...
– Como você sabe o que uma baleia pode ou não saber, Issao? Esse é o final da
história. Hora de ir pra cama.
Ele fecha os olhos como se estivesse muito cansado. Quando estou subindo a
escada, chamo:
– Vô!
– O que é?
– Você deu um nome pra ela?
– Dei.
– Que nome você deu?
Vovô diz o nome, pronunciando bem as sílabas:
– Le-vi-a-tã.
No dia seguinte, Guga vem até aqui. Sentamos na mangueira. É fácil subir na
mangueira porque os galhos começam logo embaixo, bem perto do chão. Vovó e Satie
não estão longe. De lá de cima dos galhos, olho pro céu:
– Olha só! Tem quatro nuvens no céu...
– E daí? – pergunta Guga.
– ...e nós somos quatro..
– E daí?
– ...e há quatro galinhas atravessando a estrada! Não é estranho? Hoje, tudo é
quatro!
– Coisas não têm números – diz Guga – talvez elas tenham nomes, como Belé
e Vivaldi. Mas os números são apenas o que a gente imagina quando contamos.
– Por que a gente conta, Guga?
– Não sei. Acho que é pra saber quantas coisas diferentes existem. Se tudo fosse
igual, a gente não precisava de números.
– Nem de nomes!
Bem nessa hora, a vovó põe os dedos nos lábios e aponta pra chaminé da casa.
Já sabíamos que uma pomba estava morando lá. Mas agora vemos que é uma mamãe-
pomba e ela está ensinando os filhotes a voar. Leva um a um, até a pedra grande perto
da paineira. Depois, fica voando pra lá e pra cá, como se estivesse meio louca.
– Vó, o que há com ela?
Vovó cochicha de volta:
– Ela não tem certeza se trouxe todos os filhotes.
Por um minuto ninguém diz nada, mas eu continuo, falando baixinho:
– Vó! Ela não sabe contar!
Como se estivesse falando para si mesma, Satie diz:
– Coitada... – e virando-se pra pomba – Você nunca terá certeza, né?
Então Guga cutuca o meu braço:
– O que está acontecendo? Conta pra mim.
III

Ao invés de estar no galinheiro, vovô está sentado na cadeira de balanço.


Entro na cozinha. Vovó está ocupada cozinhando.
– Vó – cochicho – o que é que o vovô tem?
– Nada – ela diz – ele está só cismado.
– Por que ele está cismado?
– Porque é o aniversário dele. Ele não quer que ninguém se lembre, mas, ao
mesmo tempo, ele teme que todo mundo tenha esquecido. Assim, ele só fica lá,
sentado, se preocupando.
Um pouco mais tarde, vovó me pede pra ir chamar o vovô. Ele entra e encontra
a mesa arrumada pra festa, com um bolo grande e uns presentes.
– O que é isso? – vovô pergunta, como se não estivesse conseguindo entender
o que acontecia.
Ele senta na cabeceira da mesa. Há um cartão no prato dele.
Foi vovó quem pôs o cartão ali.
Satie e eu falamos ao mesmo tempo:
– O que está escrito, vô? Lê alto!
Ele lê em voz alta: “Sou um homem velho e tenho tido muitos problemas, e a
maioria deles nunca existiu.”
Nós todos rimos. Ele se levanta e abraça a vovó. Satie enxuga os olhos. Vovó
também.
Depois da festa, ele não sai para trabalhar. Ele volta para a cadeira de balanço.
Fico matutando o que ele estará pensando, mas tenho medo de perguntar.

Guga vem e eu a levo até o pasto, onde há um lago. Fiz uma ponte de madeira,
pra ir até o meio do lago. Lá, eu fiz uma ilha com alguns tambores vazios e uma porta
deitada de atravessado em cima deles. Ajudo Guga a atravessar a ponte e depois
sentamos naquilo que era uma porta.
Depois de algum tempo, falo a ela sobre Leviatã. Até explico a marca de
nascença, desenhando com um pauzinho nas costas da mão dela.
– Onde você acha que ela está agora? – Guga pergunta.
– Não tinha pensado nisso! Você acha que ela ainda está viva?
– Pode estar. As baleias vivem muito tempo. Onde foi que seu avô viu essa
baleia?
– Num lugar chamado Nordeste.
Por um bom tempo, Guga não fala nada. Então ela diz:
– Issao, seu avô acha que Leviatã ainda vive.
Não consigo imaginar como Guga pode saber o que vovô pensa. Só consigo
dizer:
– É mesmo?
– É. E é por isso que ele está tão triste. Ele acha que deve ir procura-la.
– Vovô não pode ir procurar Leviatã! Ele não é capaz de fazer uma coisa dessas!
– Se quiser, ele pode – diz Guga.
– Mesmo se quisesse, ele não ia admitir isso.
– Issao, não deixe de fazer isto! Converse mais com ele sobre as baleias. Talvez
ele mesmo decida que quer ir vê-las.
– Não é fácil, pra mim, falar com o vovô. E eu não posso obriga-lo a fazer uma
coisa que ele não quer.

– Quando tiver uma chance, Issao, fale com ele.


Ficamos sentados ali um tempão, depois levo a Guga pela mão e voltamos à
casa da fazenda

IV

Estou sentado na cozinha com Guga, lendo os quadrinhos para ela. Belé pula
na mesa e deita no jornal, bem na minha frente.
– “Belé”, você está vendo que estou tentando ler?!
– Rrrrr... O que é ler?
– As palavras são impressas na página, “Belé”. Eu olho pra elas e tento
descobrir o que significam. Isso é ler.
– Palavras? Rrrrr... O que são palavras? – Pergunta Guga.
– Essas pequenas manchas pretas no jornal.
– E com o que você lê?
– Com os olhos. Ponho os olhos sobre elas.
– E eu ponho as “patas” nelas.
– “Belé”, quer fazer o favor de sair dos meus quadrinhos?
– Estou lendo! – diz Guga calmamente. Por favor, não grite, você me
atrapalha.
– Ei, vocês dois – diz Satie –, o que vocês acham de fazermos um piquenique
na semana que vem? Eu posso fazer alguns sanduíches.
– Oba! Essa é uma grande ideia! Aonde vamos?
– Ao lago, Issao. Assim podemos nadar.
– Não quero ir ao lago.
Satie ri e me diz:
– Não me diga que você acredita nessas histórias sobre a casa mal-
assombrada? Não respondo, mas Guga diz:
– Seu medroso!
Ela também sacode a m]ao como que dizendo “sai pra lá”.
Acho que vamos fazer um piquenique no lago.

CAPÍTULO QUATRO

Adivinhe quem vem pro jantar! Eu sabia que você não ia adivinhar nunca! A
Satie e o Issao! Eles vão chegar daqui a pouco.
Quando perguntei à mamãe se podia convidá-los, tinha certeza de que ela ia
dizer “não”. Isso só prova que a gente nunca sabe o que os pais vão dizer. Você já
reparou isso?
Vamos ser seis pessoas: minha mãe, meu pai, Satie, Issao, eu e meu irmão Beto,
que está de férias da faculdade. Beto passou o dia dizendo que não ia sair do quarto. Às
vezes, ele fica tão chato!
São eles! São eles! Estão no portão!
Meus pais conhecem o Issao porque ele veio bastante aqui.
Mas essa é a primeira vez que eles veem a Satie. Mamãe diz:
– Guga, suba e chame o Beto.
Corro pra cima e bato na porta:
– A mamãe disse pra você descer pra jantar.
Não vem nenhuma resposta. Tenho medo de gritar alto porque não quero que
Issao e Satie escutem. Falo pelo buraco da fechadura:
– Por favor! Beto!
– Não enche, Guga!
– Beto, Issao veio com a irmã dele!...
Sabe o que acontece? De repente a porta se abre. É o Beto que está descendo
pra surpresa da mamãe:
– Beto! Por que é que você não está bancando o Dom Casmurro hoje? E o que
foi que Guga falou pra fazer você mudar de ideia... e de camisa?
– Beto – diz papai –, quero que você conheça Satie, a irmã do Issao.
Satie olha pro Beto descendo a escada e diz:
– É você!
Beto olha pra ela de um jeito engraçado e fala:
– Você que é a Satie?
– Vocês já se conhecem? – pergunta papai.
– Tenho o costume de ir nadar na enseada do outro lado da ilha. Nunca
ninguém ia lá, mas nos últimos dias não tenho sido a única...
– Ela não quis me dizer o nome dela, então eu também não falei o meu! – diz
Beto.
Meu pai vai até a cozinha e traz uns salgadinhos. Satie e Beto pegam alguns e
saem para a varanda. Issao está comendo tanto que tenho que avisar pra ele deixar um
lugarzinho pro jantar. Enquanto ele e papai estão falando de como o Issao gosta da
fazenda, dou uma escapada até a cozinha.
– Mãe, me diz uma coisa?...
– Vou tentar. O que você quer saber?
– Se o Beto casar com Satie, eu ainda poso casar com Issao?
Minha mãe prova a comida que ela estava preparando e, depois de um tempo
diz:
– Claro, se isso for o que vocês dois quiserem, quando crescerem.
– E por que a gente não ia querer?
– Gussi, você está sempre perguntando, fazendo perguntas!
– E o que mais eu podia perguntar?

II

Eu sempre tinha que estar em casa pro jantar, mas agora posso ficar na casa do
Issao se eu for convidada. Posso ficar até as nove horas, porque o Beto vem e me pega.
Acho que ele gosta mais de mim do que ele gostava.
Depois do jantar Issao e eu brincamos de ver quem planta bananeira mais
tempo: eu conto alto enquanto ele planta bananeira, e ele conta enquanto eu fico de
ponta-cabeça. Depois a gente se reveza girando até cair. Depois rolamos, rolamos e
rolamos no gramado do jardim.
O avô do Issao está sentado numa cadeira de balanço, com o Belé no colo. De
repente, tudo está muito quieto na fazenda porque todas as galinhas foram dormir.
Issao diz:
– Vô, o senhor mata as galinhas, né?
– Eu, pessoalmente, não mato, Issao. Mando as galinhas para o mercado e lá
eles matam.
– O senhor mandaria o Belé pra lá?
– Um gato? Quem iria comer um gato?
– Bom, quer dizer, se as pessoas gostassem de comer gatos, você mandava o
Belé?
– Não, claro que não. O Belé é um gato que nós conhecemos.
– Não entendo.
– O Belé tem um nome, o nome dele. Ele é o Belé. Ele não é um gato qualquer.
Ele é alguém da família.
– Ah, então se a gente der nomes pra todas as galinhas, você não manda mais
nenhuma galinha pro mercado, é isso?
– Acho que isso não seria suficiente pra que elas fizessem parte da família. Mas
se tiver alguma galinha da qual você goste muito, se você lhe der um nome, prometo
que não vou me desfazer dela.
– Aposto que, todo dia, no mundo todo, milhões de pessoas comem galinhas.
– Isso é verdade. Mas não há perigo de matarmos todas as galinhas. O que me
preocupa são os animais que estão sendo mortos e que não podem ser substituídos.
– Que animais são esses, vô?
– Que animais? Os rinocerontes, as baleias. E veja quantos bebês-focas
matamos todos os anos!
Satie diz:
– Salvaram o cisne-selvagem. Durante um tempo, só havia alguns deles, mas
agora há milhares outra vez.
O avô de Issao faz como Vivaldi quando ele bufa, e diz:
– Se matassem todos os cisnes-selvagens, ainda haveria outras espécies de
cisnes. Mas não estão matando só uma espécie de rinoceronte ou uma espécie de
baleia! Estão matando todas!
– Ainda não é tarde demais pra salvá-las, vô! – diz Satie.
– Mas o tempo passa rápido!
– Mesmo assim, não são as baleias que correm mais perigo – fala a avó de Issao.
– Ah, não? – diz o avô de Issao. – Que animal pode correr maior perigo de
extinção do que a baleia?
A avó de Issao responde:
– Os homens. Basta mais uma guerra pra quase tudo desaparecer. Não vai
sobrar ninguém.
E ela me dá um abraço, como que dizendo que não é pra eu me preocupar.
– Nossa! A gente está ainda pior do que as galinhas. – é o que eu consigo dizer.

III

É a vez do Issao vir à minha casa à noite e a gente vai brincar no jardim. Ele está
com uma jarra e eu pergunto o que ele está fazendo com ela.
– Pegando vagalumes.
Eu não entendo muito de vagalumes. Você entende?
Issao me fala deles. Ele pega um e deixa eu segurar. Estranho que ele não é
quente como lâmpada. Seguro o vagalume na palma da mão e cochicho pra ele:
– Eu também sou vagalume. Não preciso da luz do sol. Tenho minha própria luz.
Então, de repente, a gente escuta um ruído e Issao grita:
– Um morcego! Um morcego!
Issao começa a correr atrás dele, e depois de um tempo o morcego vai embora.
– Morcego é um rato com asas de passarinho ou é um passarinho com corpo
de rato?
Papai me explica o que ele sabe sobre morcegos. Ele não enxergam, mas sabem
onde estão voando porque emitem sons estridentes e depois escutam o eco. Junto com
as mãos em concha e cochicho lá dentro, imitando um morcego.
– Ei, você aí, eu também sou um morcego! Venha me visitar de novo algum dia!
Quando acabo minha conversa de morcego, ouço um barulho engraçado do
lado da casa, como se alguém tivesse atirado um coquinho contra a vidraça. Mamãe
quer saber:
O que é isso?
Issao grita:
– Eu sei! Foi um passarinho que bateu no vidro da janela! Ele está aqui! Está
morto!
Issao pega o passarinho. É um pardal pequenininho!
Deixa eu segurar, Issao; me deixa!

Seguro o pardal entre as minhas mãos. Ele é levinho e não está se mexendo.
Também parece que ele não está respirando. Papai diz:
– Pode ser que ele só esteja tonto.
Cochicho pro pardal:
– Vamos lá, seu dorminhoco, é hora de acordar!
E sabe o que mais? Sinto que ele levanta a cabeça e, logo depois, quando abro
as mãos, ele voa.
– Como é que você não virou um pardal, Gussi?
Não sei explicar pra mamãe que eu podia ser um pardal, mas não esse pardal.
Esse pardal tinha voado uma vez e ia voar de novo, mas durante um tempinho, ele não
sabia o que estava acontecendo em volta dele. Isso não acontece comigo, de jeito
nenhum!
Issao fala:
– Num minuto ele parecia morto e, no minuto seguinte, voou como se nada
tivesse acontecido. Gozado, achei que não havia mais esperança pra ele.
Sei que vou chorar, então corro pra dentro de casa e me escondo atrás do sofá.
Queria saber por que estou chorando.
Beto vem e me levanta. Jogo os braços em volta do pescoço dele e molho todo
o ombro da camisa que ele está vestindo. Ele diz:
– Vamos dar uma volta.
Ele me põe na frente do carro, ao lado dele, e sai pela estradinha. As rodas do
carro fazem os coquinhos estalarem no chão.
Vamos pelo bosque e depois ladeamos o lago. Dá pra sentir o cheiro da água
. Estou começando a me sentir melhor e, quando escuto o coaxar dos sapos, não consigo
deixar de imitar “co-ax, co-ax” com a voz mais grave que consigo. Mas é claro que minha
voz não é nem de longe tão grave quanto devia ser.
Adoro o som da cigarra. Beto diz que é um grilo. Papai acha que grilo e cigarra
são só dois nomes diferentes para a mesma coisa. Beto diz que o som parece o de “uma
orquestra afinando”.
Não sei o que isso quer dizer.
Chego mais perto e me encosto no Beto.
– Existem aves que não voam, Beto?
– Claro, avestruzes.
– O que eles fazem?
Andam e, se precisarem, correm.
– Eles vivem por aqui?
– Não, acho que não.
Ele faz um cafuné e diz:
– Sabe o que? Vou mostrar pra você uma coisa ainda melhor. Vamos na casa
mal-assombrada!
– Pensei que a gente ia lá quando fizesse o piquenique com Issao e Satie.
– Não, isso não vai ser um piquenique. A gente vai lá no meio da noite.
– Não sou um gato medroso, Beto. Você é?
Ele só responde “Rrrrr...”

CAPÍTULO CINCO

Estou sentado perto da janela, olhando pra casa da Guga e pensando na


vontade que eu tenho de montar o Vivaldi.
Lembro de ontem, quando vovô me levou pra cidade e nós fomos almoçar.
Vovô não podia acreditar na quantidade de molho que eu pus na salada! Ele cisma com
cada coisa! Fico pensando se todos os adultos são assim: ficam espantados com coisas
que são naturais pra qualquer criança.
Eu adoro molho. E você?
Perto da mesa onde estávamos sentados tinha um porta-guarda-chuvas. Ele
tinha uma placa que dizia: “Olhe o seu guarda-chuva”. O porta-guarda-chuvas estava
vazio, porque o dia estava bonito.
Como a placa estava me incomodando, falei:
– Vô, por que está escrito ‘Olhe o seu guarda-chuva”?
– Porque ele pode desaparecer.
Por isso acho que tem coisas no mundo que desaparecem se a gente não ficar
olhando. Isso não é esquisito?
Satie me chama da cozinha e interrompe os meus pensamentos. Me levanto da
cadeira perto da janela, onde eu estava sentado de pernas cruzadas, e começo a correr
pela sala. Mas tropeço no tapete e esbarro numa das plantas da vovó.
Satie entra, vê a sujeira e fala:
– Vou pegar a vassoura. – Satie vai até o armário, mas a vassoura não está lá.
– Não entendo. Ela sempre está aqui. Onde será que ela está? Não pode ter
simplesmente desaparecido!
Ou será que pode? E aqueles guarda-chuvas? E se vassouras são do mesmo
jeito e só ficam no lugar enquanto tem alguém olhando? Conto pra Satie o que estou
pensando.
– Ah, não faz diferença se tem alguém olhando ou não! A vassoura não pode
sair andando. Ela fica onde foi colocada.
– Mas, Satie, como a gente pode ter certeza disso? Pelo que eu penso, talvez o
mundo todo desapareça quando ninguém estiver olhando.
Satie dá um suspiro e diz:
– Issao, se não tinha ninguém olhando quando o mundo desapareceu, ninguém
ia saber a diferença, né?
Então ela dá uma risada e acrescenta:
– Olha só, a vassoura está aqui, entre a parede e a geladeira!
– Acho melhor a gente ficar de olho nela. Da próxima vez que ela sumir, pode
ser que não volte, seja onde for que a gente procure.
Guga entra. Conto pra ela a estória do porta-guarda-chuvas e da vassoura. Ela
bate palmas e diz:
– Ah, eu sei o que você quer dizer! Isso acontece comigo o tempo todo! Quando
não posso pôr a mão nas coisas, não posso ter certeza se ainda estão aí. É por isso que
eu sempre adoro sentir o chão embaixo dos meus pés, e pôr a mão nas mesas e cadeiras
e todos os outros tipos de móveis que há no mundo. Fico sempre tão apavorada quando
não tenho nada pra pôr a mão, porque tenho medo de que o mundo tenha
simplesmente saído andando.
Satie parece um pouco preocupada e diz:
– Mesmo assim, Guga, você sabe que ele está aí, não sabe?
Você não acredita, realmente, que ele desaparece? Acredita?
Guga ri e fala:
– Ele não desaparece porque, pra mim, ele nunca apareceu. Ele só aparece pras
pessoas que podem ver.
Belé entra e senta no colo de Guga.
– Ei, Belé, você está aqui! Sei que você estava lá fora caçando passarinhos outra
vez!
– Você não vê o Belé caçando passarinhos. Mas você sabe que ele caça, Guga.
– Bom, é isso que você e Satie me dizem que ele faz e, se vocês dizem, eu
acredito. Mas isso não impede que eu fique pensando para onde a noite vai quando é
dia, ou para onde vai o frio quando um sorvete derrete, ou de onde vem o sabor quando
sua avó faz o pão. Vocês me dizem que a grama é verde, mas ela é verde durante toda
a noite ou deixa de ser verde à noitinha e volta a ser verde de manhã?
Satie senta no chão ao lado da cadeira em que Guga está sentada:
– É assim que você entende as coisas, Guga? Que as cores que não vemos, os
sons que não ouvimos e os sabores que não sentimos estão todos fora, em algum lugar,
esperando sua vez?
Guga sorri e passa os dedos pela risca do cabelo de Satie, pelas sobrancelhas,
pelos olhos, nariz, bochechas e pela boca. Então ela abana a cabeça:
– Você faz como se estivéssemos num grande teatro, e os atores que não estão
no palco estão todos fora do palco esperando sua vez de entrar
Ela mexe nas orelhas de Belé e ele se sacode. Ela mexe nas costas dele e, então,
ele se encurva. Ela continua:
– Gostaria de acreditar nisso porque são os bons atores e atrizes que são
chamados de volta, e talvez seja assim também com os bons cheiros e sabores... E
sentimentos e pensamentos também.

Satie passa a mão pelo cabelo de Guga e diz meigamente:


– Pessoas que enxergam geralmente não pensam no que é tocar. Assim que
eles veem uma fruta, logo comem. Nunca chegam a sentir o peso dela em suas mãos,
ou perceber a redondeza delas, ou a tocar a pele macia da casca. No entanto, mesmo
que fosse só uma pedra, já seria maravilhoso segurar. E misterioso também: o que é
mais silencioso do que uma pedra?
Guga se abaixa e encosta, de leve, o seu rosto, no rosto de Satie. Aí então ela
senta direito na cadeira e diz:
– Eu gostaria de ver os olhos vermelhos brilhantes e os amarelos reluzentes, os
verdes e dourados de que todo mundo fala. Eu não costumava pensar muito nisso, mas
agora às vezes eu penso. Eu me pego dizendo a mim mesma “Quero estar em contato
com o mundo do mesmo jeito que todas as pessoas estão em contato com ele”. Mas daí
eu percebo que não posso querer isso só pra mim e quero que todas as pessoas saibam
o que só eu sei. De outra forma não seria justo. Não tenho o direito de guardar tudo o
que sei só pra mim.

Satie põe uma cesta de frutas na frente de Guga, e Guga escolhe uma laranja e
começa a descascar.
– A laranja é mesmo cor de laranja?
– Claro, é uma cor brilhante, assim como o sabor é brilhante.
– Rrrrr... Mente brilhante.

II

Desço pela escadinha de terra até a caixa do correio. Bento e Toninho, os


meninos da fazenda vizinha, estão lá. Toninho está atirando pedras numa tartaruga.
Bento fala:
– Ei, para com isso! O que a tartaruga está fazendo para você?
Toninho não responde. Ele se vira e diz:
– Issao, você já foi na casa perto do lago?
– Não, ainda não fui.
Não digo nada pra ele do meu medo. Toninho fala:
– A gente já foi muitas vezes. Já subimos no sótão durante o dia mas não
achamos nada.
– Mas seja o que for que estava andando por lá à noite – acrescenta Bento –,
ainda está andando.
Engulo em seco e dou um jeito de conseguir dizer:
– Ah, é?
– Toninho diz:
– É. A coisa como que arrasta os pés pelo chão.
Bento fala:
– Isso mesmo! Parece que está rastejando. Quer dizer, parece que geme.
– A gente estava pensando que podia ser um fantasma... – completa Toninho.
Bento Fala:
– É, mas como um fantasma pode fazer um chão de tábuas ranger? Fantasma
não tem peso!
Falo pra eles:
Fantasmas não existem.
– Ah, então, nesse caso eles pesam ainda menos... – é Toninho quem observa.
Ele olha para o Bento com um sorriso amarelo. Tiro as cartas da caixa do
correio. AS palmas das minhas mãos estão molhadas de suor. Digo a mim mesmo que é
imbecil ter medo de uma coisa que nem existe. Mas minhas mãos continuam suando.
Elas não devem acreditar em mim.

Das könnte Ihnen auch gefallen