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Diogo Mainardi
Ivan Lessa é o maior escritor brasileiro. Só que o Brasil é tão desgraçado que nosso
maior escritor nunca se interessou em escrever um livro. Preferiu dedicar‐se a não
escrever. É muito mais difícil não escrever do que escrever. Qualquer um pode
escrever um livro. Qualquer um pode publicá‐lo. Duro mesmo é ficar deitado no sofá,
sem escrever nada. Requer uma aceitação filosófica da própria transitoriedade. Requer
o desprendimento de um sufi. Ivan Lessa resumiu sua determinação de não escrever
da seguinte maneira: "Que nossa presença seja leve aos outros, ocupados com seus
mistérios e empombações. Falemos baixo".
Eu escrevi livros. Um monte de livros. Cheios de mistérios e empombações.
Quem melhor definiu minha carreira literária foram os humoristas do Casseta e
Planeta. Alguns anos atrás, contaram que um assassino, fugindo da polícia, escondeu‐
se dentro de um dos meus romances, o único lugar que ninguém jamais abriria. No
domingo passado, o mesmo Casseta e Planeta voltou ao assunto e retratou‐me nos
fundos de uma van, a caminho de um festival de literatura em Parati, amolando o
tempo todo meus companheiros de viagem, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor e
Marilena Chaui. Acontece que agora eu não escrevo mais. Desci da van literária. Como
um alcoólatra numa reunião do AA, um dia me levantei da cadeira e jurei que nunca
mais escreveria um romance. Há seis anos, quatro meses e duas semanas não faço
uma linha de literatura. De tempos em tempos, sou tentado a retomar o hábito,
sobretudo depois da noite de autógrafos de algum amigo. Ivan Lessa já disse que o
único bom motivo para escrever um livro é irritar os amigos. Ele disse também que
amigos custam um dinheirão e, ao contrário de liquidificador, não vêm com garantia.
Bem melhor que ter um amigo é ter um conhecido no pub.
Conheci Ivan Lessa em Londres, em 1981. Todas as quartas‐feiras almoçava
com ele num restaurante chinês no centro da cidade. Ele sempre me levava três livros,
dentro de um saco de supermercado. Eu lia tudo e devolvia na semana seguinte. Para
ler os livros que ele me emprestava, fui negligenciando os estudos universitários na
London School of Economics, até largá‐los definitivamente, no fim do 1º ano. Em sua
recente passagem por Londres, Lula recebeu uma homenagem da London School of
Economics. O reitor chegou a chorar. Eu já era grato a Ivan Lessa por ter sabotado
minha carreira estudantil. Depois da homenagem a Lula, fiquei duplamente grato.
Embora eu não devesse falar desse jeito. Era divertido debochar do Lula nas primeiras
semanas de governo, quando ninguém debochava dele. Agora todo mundo debocha,
até o Casseta e Planeta.
Aprendi muitas coisas com Ivan Lessa. Algumas delas, só entendi
recentemente. Isso de não sair escrevendo um romance atrás do outro, para mim, foi
uma conquista difícil, que precisou de muito esforço e muita autoflagelação. Como
nem todo mundo teve a sorte de ter um tutor como Ivan Lessa, estou passando
adiante suas lições aqui, agora, de graça. Lição número 1: não escreva. Lição número 2:
se realmente tiver de escrever, "trate o resto da humanidade aos tapas e pontapés".
Veja, 13 de agosto de 2003