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PESQUISA EM
ARTES CÊNICAS
Textos e Temas
P564
Pesquisa em artes cênicas : textos e temas / Narciso Telles, orga-
nizador. - Rio de Janeiro : E-papers, 2012.
138p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-358-3
1. Artes cênicas - Pesquisa - Brasil. 2. Artes cênicas - Estudo e ensino
- Brasil. I. Telles, Narciso, 1970-
12-6656. CDD: 792.0981
CDU: 792(81)
SUMÁRIO
5 Prefácio
Fernando Aleixo
13 Apresentação
Narciso Telles
15 Pesquisa como construção do teatro
André Carreira
35 Ter experiência da arte: para uma revisão das
relações teoria/prática no contexto da nova
teatrologia
Marco de Marinis
45 Paragens de um artista-docente-pesquisador
Narciso Telles
59 As artes circenses e a pesquisa no Brasil
Mario Fernando Bolognesi
69 A pesquisa em teatro: a questão da palavra e da voz
Silvia Davini
111 A pesquisa nas artes do corpo: método, linguagem e
intencionalidade
Milton de Andrade
123 A pesquisa qualitativa em artes cênicas: romper os
fios, desarmar as tramas
Adilson Florentino
Prefácio
Fernando Aleixo
Ator e Professor do Programa de
Pós-graduação em Artes da UFU
Prefácio 7
fundamental ponto para o pesquisador: a liberdade de ocupar
uma espécie de “não-lugar” (melhor definido como lugar-expan-
dido) permite o rompimento de fronteiras e, consequentemente,
o trânsito em diferentes campos do conhecimento e em distintas
experiências da vida humana. A bem dizer, não falei aqui ainda
do aspecto processual e coletivo da pesquisa em artes cênicas.
Uma maneira significativa de problematizarmos a pesquisa é
instalar parâmetros que permitam a análise da criação no con-
texto da própria criação, ou seja, sem comparações com parâ-
metros outros que não os próprios determinados pela obra ou
processo.
O campo da pesquisa aqui abordado permaneceu sob muitos
aspectos em meio às lutas conceituais e disputas de visões de
mundo (acadêmica, científica, artística etc.). Para melhor com-
preendermos o divórcio gerador de certas dicotomias, André
Carreira apresenta em seu artigo que compõe este livro uma me-
táfora do casamento “para se refletir sobre o lugar e os sentidos
da pesquisa em artes cênicas no âmbito acadêmico”. Esta área de
pesquisa em consolidação põe em jogo, por exemplo, a aptidão
do teatro de dar conta de colocar diferentes princípios e proce-
dimentos de construção de pensamentos e conhecimentos em
uma mesma experiência, em um mesmo processo criativo. Neste
sentido, considerando a definição de Carreira, pesquisar passa
ser a criação de “espaços de diálogo com as diferentes tramas do
fazer teatral, construindo olhares que inquiram e que reflitam
desde uma posição cuja especificidade contribui para a produ-
ção de uma tensão transversal ao eixo criação – fruição”.
Antes mesmo da visão dicotômica entre criação e investiga-
ção acadêmica está o “dualismo” entre teoria e prática. Sobre
este ponto De Marinis nos proporciona uma reflexão sobre a
aproximação ciência-teatro, chamando-nos a atenção para a ne-
cessidade de fuga das armadilhas dos conceitos estabelecidos e,
ainda, para uma revisão “radical das relações entre a teoria e a
prática e, antes ainda, das noções mesmas de teoria e de prática
no caso do teatro”.
Do mesmo modo, Milton Andrade em seu artigo sobre a pes-
quisa nas artes do corpo apresenta questões atuais sobre o con-
Prefácio 9
Contudo, caso o foco se volte para aspectos quantitativos e
qualitativos das pesquisas em artes cênicas, verifica-se clara-
mente um significativo incremento da produção que impacta
tanto nas reflexões prático-teóricas, como nos trabalhos de es-
tudos de linguagens, de composição e criação. A esse propósito,
cabe destacar as frentes abertas com o aumento significativo e
recente dos cursos de graduação nas universidades brasileiras e,
sobretudo, dos programas de Pós-graduação em artes. Conside-
rando as palavras do artigo sobre A pesquisa qualitativa em artes
cênicas, de Adilson Florentino:
Prefácio 11
Apresentação
Narciso Telles
André Carreira1
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. Ensayos críticos. Buenos Aires: Seix Barral, 2003.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
CARREIRA, André et al. (Org.). Metodologias de pesquisa em artes cêni-
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de las relaciones teoria/prácitica en el marco de la nueva teatrologia. In:
PELLETTIERI, Osvaldo; ROVNER, Eduardo (Org.). La Puesta en Escena
en Latinoamérica: teoría y práctica teatral. Buenos Aires: Galerna/GE-
TEA, 1995.
FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: F. Alves, 1997.
PELLETTIERI, Osvaldo (Org.). Buenos Aires: Galerna, 1995. p. 56-62.
GLEISER, Marcelo. Criação Imperfeita: cosmo, vida e o código oculto da
natureza. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Marco de Marinis2
Tradução: André Carreira
Devo advertir que faz algum tempo que já não me interesso qua-
se pela semiótica do teatro no sentido estritamente disciplinar
do termo (se tal sentido existe verdadeiramente, por outro lado).
Meus interesses atuais se dirigem para uma nova teatrologia
que se esforça por ser multidisciplinar e experimental ao mes-
4. Grifo de De Marinis.
5. Grifo de Barba.
Referências bibliográficas
BARBA, Eugenio. La canoa de carta. Trattato di antropología teatrale.
Bologna, Il Mulino, 1993.
BARBA, Eugenio e DE MARINIS, Marco. “Due lettere sul pre-espressivo
dell’atore. Il mimo e I rappoti fra pratica e teoria”. In: Teatro e Stoira, p.
16, 1994.
BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. The secret art of the performance. A
Dictionary of Theatre Anthropology. London, Routledge, 1991.
Narciso Telles1
Primeira Paragem:
o [não] lugar da pesquisa
Os projetos de pesquisa que desenvolvo estão localizados no
Curso de Teatro (bacharelado e licenciatura) e no Programa de
Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia.
Este último, criado em 2007, constitui-se na classificação da CA-
PES como um programa misto, pois congrega pesquisadores das
áreas de Artes Cênicas (teatro e dança), Música e Artes Visuais.
Possui uma única área de concentração ARTES e duas linhas de
pesquisas: processos e práticas em Artes & Fundamentos e refle-
xões em Artes.
A linha de processos e práticas em Artes, à qual estou vincula-
do, congrega pesquisas ligadas à visualidade, à plástica, ao corpo,
à atuação, ao texto e à música, articulando reflexão, processos de
criação, ensino e aprendizagem.
A minha trajetória como pesquisador em Teatro, passou de
investigações sobre a história do espetáculo e da atuação para
pesquisas centradas em dois eixos: a) improvisação: procedi-
mentos e conceitos e b) relações de [trans]formação do artista
cênico em vários espaços e práticas. Assim, meus projetos são:
Paragens de um artista-docente-pesquisador 47
ção à arte. Daí que os primeiros estudos estavam centrados nas
áreas de história e crítica literária. Estes pesquisadores tiveram
decisivo papel para o início e consolidação dos estudos teatrais
nas Universidades Brasileiras e na criação dos programas de Pós-
graduação em Artes [Cênicas].
Porém, os cânones da pesquisa científica e suas estruturas
metodológicas determinaram a forma de compreensão do fenô-
meno artístico aceito no “mundo acadêmico”, seguindo modelos
hegemônicos que balizam o sistema de produção do conheci-
mento. Paralelamente, a própria ciência, ao longo do século XX,
também começou a discutir os seus parâmetros de construção do
conhecimento. A ciência pós-moderma ao colocar “em xeque” al-
guns elementos constituintes da ciência clássica, oferece ao cam-
po das Artes uma ampliação de modos de pesquisa “acadêmica”.
Boaventura Souza Santos em seus escritos tem discutido a
constituição de um novo paradigma em relação à ciência mo-
derna; segundo o autor, o paradigma emergente recoloca novas
bases para o conhecimento científico, que não pode ser apenas
um paradigma científico, tem de ser um paradigma social.
Nesta “nova” perspectiva epistemológica, as principais carac-
terísticas são:
a) Todo o conhecimento científico-natural e científico-so-
cial: perde-se o sentido da oposição entre real e construí-
do. Assim como, a distinção entre sujeito/objeto sofre uma
transformação;
b) Todo o conhecimento é local e total: a ciência pós-moderna
trabalha, não sobre a ótica da especialização e disciplinari-
zação, mas na perspectiva de pluralidade/transgressão meto-
dológica, na qual os acervos metodológicos são recolocados
em diversos contextos de pesquisa;
c) Todo conhecimento é autoconhecimento: ressalta-se a im-
portância do sujeito-pesquisador na produção do conheci-
mento. A presença/voz – situação/posição do pesquisador é
algo significativo para o conhecimento científico;
Segunda Paragem:
a Prática Pensamento na pesquisa
em Artes [Cênicas]
Nesta paragem focalizo meu olhar para o que tenho chamado
de Prática Pensamento do pesquisador em Artes [Cênicas]. Tal
ideia pode ser vista por dois aspectos: um da intrínseca relação
Paragens de um artista-docente-pesquisador 49
entre o pesquisador e o material de análise, sem distanciamento
científico e de outro modo pelas pesquisas que tem na prática
artística seu início e fim, muitas vezes, sem alusões explícitas ao
campo teórico acionado.
O primeiro aspecto já foi por mim mencionado em texto
anterior sob o título “A experiência como atitude metodológi-
ca” (TELLES, 2008, p. 19). Cito aqui alguns pontos do texto que
considero relevantes para a compreensão do meu [não] lugar de
artista-pesquisador.
A experiência como atitude de pesquisa poderá proporcionar
ao pesquisador e pesquisados a possibilidade de pertencer-se uns
aos outros e ao mesmo tempo poder-ouvir-se-uns-aos-outros.
O pedagogo Jorge Larrossa Bondía define o termo experiên-
cia como, “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca”. E continua:
“a cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece” (2002, p. 21). Para ele o sujeito moder-
no encontra-se submerso no mundo da informação, o excesso
de opinião, da falta de tempo e excesso de trabalho.
Por sua vez, o sujeito da experiência
Paragens de um artista-docente-pesquisador 51
atenção para o fato de que frequentemente juntamos o explicar
com a experiência que queremos explicar: “explicar é sempre
propor uma reformulação da experiência a ser explicada de uma
forma aceitável para o observador” (2001, p. 40). Assim, a experi-
ência para ser explicada necessita de uma reformulação que ga-
ranta sua aceitação como tal. Para explicar a experiência, Matu-
rana observa dois caminhos: o da objetividade-sem-parênteses
e o da objetividade-entre-parênteses.
No primeiro caminho explicativo agimos como se fosse váli-
do em função de uma referência a algo que existe independente
de nós. Aceitamos que “existe uma realidade transcendente que
valida nosso conhecer e nosso explicar, e que a universalidade do
conhecimento se funda em tal objetividade” (p. 46).
O segundo caminho é defendido pelo autor como o mais indi-
cado para explicar a experiência, pois “colocando a objetividade-
entre-parênteses, eu dou conta de que não posso pretender que
eu tenha a capacidade de fazer referência a uma realidade inde-
pendente de mim” (p. 47). Este percurso explicativo não traba-
lha com a existência de uma verdade absoluta nem de verdades
relativas, mas com a existência de muitas verdades em campos
distintos.
A explicação da experiência sempre se ancora em práticas
experienciais, na observação de um dado fenômeno e na nos-
sa leitura deste ato, pois a experiência ocorre no fazer. “O que se
faz, simplesmente acontece” (p. 57). Nesta explicação, múltiplos
domínios de realidade são acionados, construindo um caminho
explicativo a partir das coerências das práticas experienciais do
observador, ou seja, a análise de um processo no qual estamos
inseridos como partícipes é demarcada pelo conjunto de ativi-
dades vivenciadas por nós na experiência. Esta vivência é única
para cada pessoa e possibilita que cada um possa fazer uma ex-
plicação diferenciada sobre uma dada experiência.
Se ampliarmos esta ideia, podemos admitir que a experiência
constitui um caminho viável para a pesquisa teatral a que nos
propomos, na medida em que viabiliza a aquisição corpóreo-
sensorial dos procedimentos de atuação propostos pelos grupos
investigados. Pretendemos, ao procurar explicar um conjunto de
Terceira Paragem:
o processo colaborativo na pesquisa em Teatro
No percurso como artista-pesquisador fiz a opção por desen-
volver minhas pesquisas no âmbito de um grupo de pesquisa.
Esta escolha definiu os procedimentos de trabalho e a rotina de
pesquisa de que participo. Ao concluir meu doutoramento em
Teatro (2007) e retornar, depois de quatro anos, para minhas ati-
vidades docentes, resolvi criar um grupo de pesquisa a partir do
Paragens de um artista-docente-pesquisador 53
Projeto docente. Naquele momento 11 alunos de graduação em
Teatro e um das Artes Visuais mostraram interesse em partici-
par de encontros semanais práticos-teóricos sobre os temas em
questão. Surge aí o Coletivo Teatro da Margem, grupo que agora
abriga também estudantes de Pós-graduação no exercício cole-
tivo de pesquisa.
Nossa estrutura de trabalho está organizada em dois mo-
mentos: os ateliês de criação, no qual as atividades práticas da
pesquisa são colocadas, resultando espetáculos, demonstrações
de trabalho e exercícios abertos de improvisação & encontros de
discussão bibliográfica, nos quais os textos (produzidos ou não
pelos pesquisadores) são colocados em discussão e dialogam
com as questões levantadas nos ateliês. Cada pesquisador tem
seu projeto próprio de pesquisa que estão articulados ao projeto
“guarda-chuva” do professor orientador.
Nos ateliês, muitas vezes, a coordenação fica a cargo de um
aluno de graduação ou Pós-graduação e, eu, participo na con-
dição de artista das atividades propostas. Tal postura – ética,
política e estética – me coloca também em questão, pois todo
o processo de criação ou ensino/aprendizagem é composto por
inúmeras variáveis que tanto o artista quanto o professor não
determina a priori. Aqui aparece um outro ponto fundamental
para minha trajetória: a não dissociabilidade entre criação, en-
sino e pesquisa em teatro. Se colocar como pesquisador, neste
caso, é correr riscos e não pretender buscar a “verdade científi-
ca”, ou mesmo comprovar hipóteses. Nossas pesquisas partem
de questões que podem ser resolvidas en-cena ou não, nossas
fontes são estes encontros, nosso repertório.
Paragens de um artista-docente-pesquisador 55
pos de conhecimento, abarcando “o ‘significado’ que as pessoas
dão às coisas e à sua vida.” (LÜDKE & ANDRÉ, 1986, p. 12)
Na pesquisa que desenvolvi analisando as práticas pedagó-
gicas teatrais, acompanhei ativamente oficinas de teatro de rua
ministradas por cada agrupamento. Minha atividade não foi
constituída apenas de observação de uma determinada relação
de ensino-aprendizagem; tive uma participação efetiva, na me-
dida em que me coloquei na condição de aluno em atividade,
vivenciando com/em meu corpo os exercícios e atividades pro-
postas em cada coletivo teatral para a formação de atores. (TEL-
LES, 2008)
Após a conclusão desta etapa de pesquisa, iniciei minhas ati-
vidades no Programa de Pós-graduação em Artes da UFU, orien-
tando dissertações cujo percurso metodológico se dava pela
prática artística do discente-pesquisador. Ali propunha que a ex-
periência como atitude metodológica e a escrita etnográfica con-
duzissem o olhar sobre o objeto ou sujeitos investigados. Nesse
percurso de orientação, ainda em andamento, tenho percebido
que as relações entre teoria e prática estão sendo revistas, ao in-
véz de serem campos separados e incomunicáveis na produção
do conhecimento em artes cênicas, tornam-se momentos corre-
latos no movimento da pesquisa. Ora a teoria mobiliza a prática,
ora a prática rever a teoria e assim sucessivamente.
Paragens de um artista-docente-pesquisador 57
Referências bibliográficas
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1996.
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CARREIRA, André; CABRAL, Biange; RAMOS, Luiz Fernando; FARIAS,
Sérgio Coelho (Org.). Metodologias de pesquisa em Artes Cênicas. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2006.
FLORENTINO, Adilson. A problematicidade epistemológica do saber
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do ensino do teatro. Uberlândia: EDUFU, 2009, p. 09-16.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
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MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na políti-
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MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.) Pesquisa Social. Teoria, método
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SA, Ana Mae (Org.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2008, p.
144-158.
TAYLOR, Diana. From the Archive and the Repertoire: performing cultur-
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Durham: Duke University Press, 2003.
TELLES, Narciso. Pedagogia do teatro e teatro de rua. Porto Alegre: Me-
diação, 2008.
Silvia Davini1
1. Ph.D. em Teatro pela University of London, Queen Mary College (2000), e gra-
duada em Música pelo Conservatório Municipal de Buenos Aires. Foi professora
do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília.
e metodológicas, que considerem o treinamento para a perfor-
mance no campo das artes como uma instância de flexibilização
do corpo para a produção de sentidos em cena. Nosso campo de
pesquisa começa no primeiro contato com o texto teatral e nos
processos de preparação e treinamento vocal para a cena, man-
tendo o foco de interesse ao longo dos processos de montagem.
Situados no campo da estética, apontamos à definição de uma
posição que, longe de procurar legitimação no discurso científi-
co, seja capaz de estabelecer uma relação dialógica com ele.
Nossa consideração da cena como performance teatral acen-
tua uma mudança de foco na abordagem conceitual do corpo
de quem atua e a incidência das tecnologias sobre ele. Falar de
performance teatral afina nossa ideia de atuação no sentido de
apresentar, fazer presente, atualizar. Essa aproximação ao per-
formativo/não representacional da cena nos afasta das noções
de interpretação ou representação. Pretendemos assim afastar
nosso campo da “literalização” operada pelos Estudos Teatrais
com relação à palavra no teatro, aproximando-nos da noção de
palavra enquanto ato.
A função reprodutora que tem adquirido o treinamento vocal
para a cena, e a indefinição entre as dimensões técnica, meto-
dológica e estética na formação de atores e cantores tampouco
têm contribuído para a consideração da voz e a palavra em per-
formance como campo de pesquisa conceitual e estética espe-
cífico. Não pretendo neste escrito expor questões referentes aos
nossos projetos de encenação. O ainda escasso desenvolvimen-
to das pesquisas na área me convoca para apresentar algumas
questões, interesses e resultados vinculados a pesquisas em an-
damento sobre as vocalidades na cena contemporânea. Porém,
antes de entrar no tema, creio necessário propor algumas refle-
xões preliminares.
A pesquisa em teatro 71
Assim, questioná-los pode vir a explicitar o valor ideológico de
discursos que, de outro modo, continuariam articulando-se “au-
tomaticamente”. Os questionamentos abrem a possibilidade de
alguma definição. Afastando-nos do preconceito, o exercício de
definir nos aproxima do conceito. Identificar e descrever uma
realidade dada, contemplando seus diversos aspectos e mani-
festações, envolve a necessidade de assumir posições, simbó-
lica, ideológica e politicamente. Inclusive, trabalhar no sentido
de uma definição pode revelar que o arcabouço conceitual que
sustenta um dado pressuposto pouco ou nada tem a ver com o
que ele parece querer indicar. A dominância que tem adquirido
nas últimas décadas, no campo das Artes Cênicas, essas “mecâ-
nicas de pensamento” ou “discursos automáticos”, tem estendi-
do os pressupostos até questões cruciais como, por exemplo, a
voz, o corpo, a personagem. Tal situação sugere a necessidade de
revisar nossos referentes conceituais e metodológicos e expõe o
valor político da prática conceitual.
Porém, para formular questionamentos produtivos precisa-
mos de dados que somente podem surgir de uma experiência
adequadamente conduzida e registrada. Assim, realizar análises
de discurso dos textos de maior influência no teatro contempo-
râneo pode constituir-se em um bom ponto de partida para pro-
duzir esse tipo de dados, ao revelar o arcabouço conceitual que
sustenta a produção artística e acadêmica no campo das Artes
Cênicas. Como falamos indica como pensamos. Revelar os argu-
mentos que sustentam as “mecânicas de sentidos” dominantes
pode contribuir para dissipar elementos ingênuos, mágicos ou
místicos, do discurso teatral contemporâneo e, em consequên-
cia, restaurar muito da potência simbólica e política do teatro.
Uma análise de discurso pode ser realizada para comprovar
uma hipótese ou para produzir dados que, mais tarde, podem
contribuir para a formulação de problemas e/ou hipóteses. Da
mesma forma que o trabalho sobre uma hipótese, um procedi-
mento que produza dados se enquadra no campo da pesquisa
e requer, portanto, a aplicação rigorosa de procedimentos siste-
máticos. Podemos afirmar então que, como qualquer pesquisa,
a pesquisa em Artes Cênicas requer de rigor; não de “rigor cientí-
A pesquisa em teatro 73
ter incidência sobre a voz, Sundberg demonstra que a terminolo-
gia aplicada é insuficiente para nomear a voz em performance. Se
bem é verdade que a falta de código terminológico impossibilita
a pesquisa no campo da voz em performance, também é verda-
de que a transferência terminológica proposta por Sundberg re-
sultará na abordagem da voz como uma máquina. Afinal, repito,
como falamos é como pensamos.
Diferentemente de Sundberg, que opera uma transferência
terminológica intensiva e extensiva, nos textos que se ocupam
da preparação vocal de atores, é frequente que o discurso cientí-
fico apareça sinteticamente, e orientado para o campo das ciên-
cias da saúde. Os textos que se seguem a este primeiro momento
não apresentam pontos em comum com a breve exposição sobre
fisiologia da voz, de acordo com a medicina Ocidental. Tal ope-
ração sugere que o papel do discurso da ciência nesses textos é o
de legitimar o próprio discurso com os argumentos de autorida-
de da medicina, neste caso. Entre muitas outras, as publicações
de Berry e Linklater ilustram esta outra atitude com relação às
ciências. Nesses casos, o científico exerce uma função de outor-
gar autoridade a textos que, explicitando um desejo de perma-
necer próximos da prática, apresentam indefinição conceitual.
Tal imprecisão resulta na prevalência, implícita nesses textos, de
ideologias dominantes.
O Teatro Antropológico realiza um outro tipo de esforço: o de
procurar uma legitimação da cena outorgando-lhe status cien-
tífico recorrendo a discursos vinculados a disciplinas do campo
das ciências sociais, como é o caso da antropologia, a semiótica
e os estudos da performance. Tal operação discursiva, à qual me
referirei abaixo de forma um pouco mais pontual, tenta colocar-
se além da legitimação, procurando uma aproximação da cena
à ciência. Porém, nesse esforço, perde-se o foco no que entendo
que seja o genuíno interesse das Artes Cênicas: o discurso e o
fato estético. Colocar as Artes Cênicas em diálogo com o discurso
das Ciências, exatas, da saúde, humanas ou sociais, requer, em
primeiro lugar de situá-las solidamente em seu próprio campo.
Uma posição dialógica requer de dois polos bem definidos de in-
terlocução. A ciência, no seu campo bem definido, avança hoje a
A pesquisa em teatro 75
para nos servir dos recursos disponíveis precisamos, em princí-
pio, conhecê-los ao ponto de sermos capazes de redesenhá-los e,
inclusive, de propor estratégias de linguagem que deem conta de
abordar os problemas que a Arte coloca.
Porém, a pragmática de Deleuze e Guattari é frequentemente
entendida como a legitimação de uma liberdade sem restrições.
Um artista adquire liberdade na medida em que controla os sen-
tidos que produz. Portanto, o difundido ideal de uma liberdade
irrestrita não passa de uma ilusão improdutiva. Consolidar um
discurso envolve a necessidade de rigor e definição, seja no cam-
po das Artes ou das Ciências. Em lugar de legitimar o discurso
das Artes a partir dos pressupostos da Ciência, seria interessante
caracterizar melhor ambos os universos, no sentido de propiciar
uma relação dialógica entre as Artes e o discurso científico con-
temporâneo de ponta, objetivo para o qual é preciso abandonar
o terreno do pensamento ingênuo. De fato, um artista é capaz de
enunciar algo de novo não porque a ciência legitime seu discur-
so, mas porque está em posse dos saberes, do conhecimento e
das tecnologias disponíveis no seu próprio tempo e lugar.
Pesquisar e pensar são, enfim, práticas conceituais e, por tan-
to, como qualquer prática, requerem de rigor e método. Assim,
qualquer processo que implique alguma permanência em torno
de uma atividade, qualquer procura “estética”, não abriga neces-
sariamente a possibilidade de constituir-se em pesquisa. Transi-
tar por terrenos desconhecidos, sem mapas nem bússolas, pode
nos levar a andar em círculos. Da mesma forma, sem definição
de constantes que permitam a percepção das variáveis surgidas
no processo, as propostas experimentais em Artes Cênicas mui-
tas vezes resultam novas somente em aparência, limitando as-
sim as possibilidades de caminhos, em lugar de multiplicá-las.
Para que o exploratório sirva a um processo de treinamento ou
de produção artística é preciso considerar algum referencial de
base, tendo em vista os resultados desejados em performance, ou
seja, é preciso que se constitua em pesquisa.
Para constituir-se em dados de pesquisa, as sensações e per-
cepções dos atores em treinamento e performance precisam dei-
xar de ser trânsitos mais ou menos erráticos pelo próprio corpo.
Um pouco de história
De aparência inovadora, o discurso das tendências de laboratório
no teatro da segunda metade do século XX se apoia numa base
conceitual “eclética”, que frequentemente atualiza um repertó-
A pesquisa em teatro 77
rio de ideias de raiz essencialista, vinculáveis ao que Deleuze e
Guattari identificam como “pensamento cansado” no marco da
tradição ocidental, fato este que expõe sua fragilidade epistemo-
lógica. Traduzidos em diversas línguas, os livros de Brook e Barba
têm exercido enorme influência no campo dos estudos teatrais e
da cena contemporânea, estendendo seu ideário, como veremos
adiante, para âmbito da preparação vocal de atores.
Os trabalhos de Brook e Barba se vinculam a uma estética de
uma presença imanente, que busca transcender a história e es-
capar à determinação cultural e temporal. Para Marvin Carlson,
estas, como todas as propostas que clamam por uma abordagem
fenomenológica não semiótica do teatro, se manifestam na bus-
ca de um sentido de plenitude e de liberação de valores externos,
na ênfase na presença e nas sensações físicas, e em sua rejeição à
teatralidade (qualidade narrativa, discursiva e mimética do teatro
tradicional/ocidental). Vinculáveis ao modelo moderno de pre-
sença, tendências como as propostas por Brook e Barba, continua
Carlson, têm se tornado cada vez mais problemáticas no contexto
das teorias pós-estruturalistas (CARLSON, 1996, p. 134).
Porém, diferentemente do repertório mais fenomenológi-
co da atitude moderna, as noções de presença pura em Brook e
Barba compartilham com a noção clássica de presença suas su-
posições a respeito de uma verdade primária, universal e “auten-
ticante”, situadas para além dos parâmetros de tempo e espaço
e, portanto, a-histórica. Tal ideia de presença implica represen-
tar em lugar de apresentar, contrariando as demandas do teatro
contemporâneo, propostas inclusive pelo mesmo Barba, sobre o
corpo performativo do ator, e sua ênfase no processo em lugar
de nos resultados.
Brook e Barba compartilham dessa abordagem imanentis-
ta do ator e de sua presença vocal, patente nas noções sobre a
natureza dominantes em ambos, no ideal de um ator invisível
em Brook, e na proposta das ações vocais e nas noções do pré-
expressivo e o pré-cultural em Barba, por exemplo. Enquanto
que em Barba o treinamento contempla, em sua primeira fase,
a aquisição de habilidades, aproximando-se a uma ideia clássi-
ca da técnica, em Brook, o treinamento se define como um pro-
A pesquisa em teatro 79
o pré-expressivo, o pré-cultural ou o transcultural? É produtiva
uma reflexão a respeito da formação de atores no século XXI sem
consideração alguma sobre a incidência da evolução da tecnolo-
gia no corpo humano e os seus sistemas perceptivos? Se, como
afirma Richard Knowles, espaços vazios são espaços ótimos para
serem ocupados por ideologias dominantes, a quais demandas
responde a proposta de pensar no teatro como uma arena vazia
para um ator invisível? Essas são somente algumas das pergun-
tas que surgem do exame das propostas de Brook e Barba. (KNO-
WLES in BULMAN, 2005, p. 92-112)
Sob promessas de subversão, ruptura e superação dos mode-
los estabelecidos no teatro, as propostas surgidas das tendências
vinculadas ao teatro de pesquisa ou laboratório da segunda me-
tade do século XX, diversas em aparência, confluem conceitual-
mente em diversos pontos. Partindo de uma estrutura conceitual
radicalmente binária, desenvolvem uma ideia do ator como enti-
dade individual e a-histórica. Seus pressupostos de uma verdade
ou uma presença universal vinculáveis, em um primeiro momen-
to, às tendências modernas e fenomenológicas ressoam, como já
foi indicado, com ecos etnocêntricos e conservadores. Assim, o
caso do teatro de pesquisa ilustra como a fragilidade conceitual
redunda no descontrole ideológico e conceitual dos discursos.
No desejo de liberar o teatro europeu da segunda metade do sé-
culo XX da saturação de convenções que nele detectam, Brook e
Barba operam, alternativamente, por saturação ou por negação.
Em todos os casos, o resultado é a falta de código que resulta em,
por exemplo, confundir uma sequência vocal ou de movimento
com uma “partitura”, e na fuga da palavra em performance.
Voice and the Actor, de Cicely Berry, publicado em 1973, foi o
primeiro livro de uma serie que influiria profundamente a atua-
ção contemporânea em língua inglesa do repertorio Shakespea-
reano a partir de uma nova abordagem em relação à voz e a pala-
vra em cena. Naquele momento o treinamento vocal para atores
concentrava-se na adequação de acentos e estilos. Os textos de
Berry indicaram alternativas para esta abordagem. Questionan-
do seu suposto elitismo, as propostas de Berry refletem as ten-
dências que, desde a década de 1960, procuraram uma democra-
A pesquisa em teatro 81
estes resultados podem vincular-se à produção de voz em altas
intensidades, ao domínio da diversidade tímbrica, às habilidades
musicais, prosódicas, discursivas ou narrativas. A técnica formu-
la-se em relação ao material, interfere nele. Cantores e atores
incorporam técnicas, interferindo diretamente sobre o material
(neste caso o próprio corpo) com o fim de produzir resultados
desejados. Com base no Princípio Dinâmico dos Três Apoios,
configuramos uma rede de técnicas para a produção de voz em
altas intensidades, aplicável ao processo de treinamento para
cena. Nessa proposta, certos fundamentos de diversas técnicas
corporais se articulam a outros, vinculados a técnicas tradicio-
nais de canto. Já no campo da performance do texto, meios de
reprodução de som e imagem integram-se ao processo de ensaio
com dispositivos de análise estilística, constituindo o que chamo
a técnica de Micro-Atuação.
Se bem que em suas origens os procedimentos introspectivos
configuraram estratégias eficazes no sentido de superar estilos
extremadamente representativos, ingênuos ou caricaturais de
atuação, a prolongada reincidência neles nutre hoje uma intensa
confusão entre a pessoa, o ator ou a atriz, e a personagem, cujas
marcas se deixam sentir na performance do texto e também no
marcado estreitamento do imaginário que resulta do cotidiano
dos atores e diretores como referência principal e iniludível, para
além do alcance do imaginário dos autores e das personagens
por eles propostas. Procedimentos de improvisação ou paráfra-
se, que apontam à apropriação do texto por parte do ator, têm
contribuído também para outorgar uma progressiva opacidade
ao autor no teatro contemporâneo.
A personagem como entidade fixa, surgida de uma biografia
unívoca, trabalhada a partir de tudo o que nunca será concreta-
mente apresentado em cena, a literalização/desvocalização do
texto teatral, resultam também da ideia da personagem como
um “sentir” que, sem âncoras técnicas, se confunde na pessoa.
Liberado da ideia de uma identidade taxonômica, o “corpo resso-
ante”, o mais humano dos corpos, não naufraga nas profundezas
do sentido enquanto conteúdo; ele é capaz da fluidez necessária
A pesquisa em teatro 83
em toda sua complexidade, potência e sutileza o trabalho foi de-
senvolvido a partir de três grandes eixos conceituais: a Produção,
a Reprodução e a Representação de voz e palavra.
O foco dessas cartografias se dá na economia vocal-verbal-
auditiva, uma economia de experiência, que escapa aos meca-
nismos de controle do visual. Proponho abordar os textos tea-
trais como mapas instáveis e sempre efêmeros da experiência da
vocalidade em performance, considerando a “performatividade”
da produção, reprodução e representação de voz e palavra em
suas dimensões estéticas e políticas. Estas cartografias não su-
põem descrições ou medições. Tampouco se vinculam a estrutu-
ras que, com a finalidade de prevenir a fuga, sempre constituem
sistemas fechados. Uma cartografia não leva em conta elemen-
tos ou agregados, sujeitos, relações ou estruturas; mas se ocupa
de detectar lineamentos, sentidos atravessando grupos e indiví-
duos. Uma cartografia inclui o desejo, é imediata, prática e po-
lítica. Uma cartografia não persegue um problema ou procura
uma aplicação: as linhas que dela surgem podem ser linhas de
vida, de uma obra artística, de uma sociedade, dependendo do
sistema referencial do qual se parta. Como a esquizoanálise, para
Deleuze e Guattari, una cartografia é “a arte do novo” (DELEUZE
e GUATTARI, 1996, p. 204).
Um território de vocalidade não é somente um lugar onde
uma mesma linguagem é compartilhada. É um lugar onde exis-
tem códigos comuns, onde elementos individuais ou coletivos
de singularização são compartilhados; um lugar onde podemos
falar de um eros de grupo (GUATTARI, 1996, p. 63-64). Pensar em
indivíduos como discursos remete a um controle ético; pensá-
los como fluxos de desejo os remete a uma ética do ato. Essa
instância performativa de singularização transforma um para-
digma ético em estético. O corpo em performance, entendido
como lugar, dá conta desse paradigma estético, dessa ética do
ato. Aos lugares, contrapõem-se os não-lugares que, de acordo
com Marc Augè, são espaços onde não é possível reconhecer
singularidades, relações ou histórias comuns, espaços novos no
planeta, atravessados por indivíduos solitários e silenciosos. Nos
não-lugares, os códigos e as regras remetem ao seu uso imedia-
A pesquisa em teatro 85
gares e não-lugares de vocalidades nos palcos e para além deles.
Estas cartografias das vocalidades na performance teatral pre-
tendem revelar lugares peculiares de vocalidades que nos palcos
de Buenos Aires fazem, ou não, rizoma com a cidade.
A um estilo original, definido e coeso, vinculado à tragédia, à
poesia e, mais particularmente, ao repertório de Federico Garcia
Lorca, foram se sobrepondo através do tempo camadas códigos.
Rastros de vocalidades surgidas de outros repertórios, estilos de
épocas diversas foram estabelecendo estratos vocais que sedi-
mentaram ao longo da segunda metade do século XX o estilo,
saturado e estabilizado, que identifico como “sobre código eu-
ropeu”, que se impõe como padrão do bom uso da palavra no
teatro em Buenos Aires.
Os meios de comunicação de massas operam uma decodifi-
cação nas vocalidades, um processo de desincorporação, carac-
terizando em termos de estilo uma vocalidade lânguida, que se
reproduz como que por inércia. Estes estilos vocais que identifi-
co como “decodificação capitalista” se impõem hoje como para-
digma, como resultado imediato do papel central dos meios na
cultura contemporânea, ao tempo que constituem um problema
específico no teatro. A frequente presença nos palcos de dispo-
sitivos tecnológicos, como é o caso dos microfones, acentua a
reproduzir de vocalidades em cena de acordo com esse padrão
vocal dominante.
No teatro do final do século XX, em Buenos Aires, o proces-
so de sobreposição e sedimentação de estratos, que resulta no
mencionado sobre-código europeu, e o processo de erosão esti-
lística, que resulta no estilo vocal em performance que chamei
de decodificação capitalista, que surge da imposição dos estilos
de fala gerados pela mídia e os meios de comunicação de mas-
sas em geral, dominantemente coloquiais e altamente restritos
nos seus parâmetros de intensidade, timbre, frequência e articu-
lação, serviram de coordenadas para as minhas cartografias da
voz e da palavra nos palcos portenhos. Em relação a esses eixos
dominantes fui localizando todos os estilos que encontrei vigen-
tes nos palcos da última metade da década de 1990, em Buenos
Aires. Certamente, um estudo similar em outro lugar requereria
A pesquisa em teatro 87
o material gráfico considerados nessa pesquisa foram apresen-
tados e publicados, respectivamente, nos mesmos períodos e
cidades em que se realizaram as entrevistas. Alguns dados surgi-
dos das entrevistas e de fontes bibliográficas foram organizados
e cruzados em três Quadros de Dupla Entrada que permitiram
caracterizar os papéis profissionais de diretores, autores e prepa-
radores vocais na Europa e na Argentina.
O questionário aplicado foi desenhado para abordar a pers-
pectiva dos estudantes de teatro com relação à voz e à palavra
nos processos de formação e na performance teatral. Duzentos
questionários foram aplicados em duas das escolas de teatro
mais importantes de Buenos Aires: a então Escuela Nacional
de Arte Dramático (ENAD) e a Escuela Teatral de Buenos Aires
(ETBA). Hoje integrada ao Instituto Universitario de Arte (IUNA),
a então chamada Escuela Nacional de Arte Dramático (ENAD) é
una instituição pública, que oferece cursos de quatro anos de
duração em Atuação, Dramaturgia e Pedagogia Teatral, em regi-
me de jornada integral. A Escuela Teatral de Buenos Aires (ETBA),
fundada e dirigida desde sua inauguração pelo diretor Raúl Ser-
rano, é uma das escolas privadas de teatro mais tradicionais de
Buenos Aires, e oferece cursos de atuação de três anos de dura-
ção, em regime de jornada parcial (turno noturno). Cada uma
dessas escolas tem uma matrícula de aproximadamente 200 alu-
nos e oferecem diplomas oficiais. Os dados surgidos da amostra
de 139 questionários que foram efetivamente respondidos por
estudantes de teatro em 1999 somaram-se também às fontes
desse estudo. Um Quadro de Variáveis ordenou os cruzamentos
que geraram 12 Tabelas que, por sua vez, informaram 22 Qua-
dros de Dupla Entrada. Longe de contrariar o perfil cartográfico
da pesquisa em questão, os dados assim produzidos (quantitati-
va e qualitativamente) e, posteriormente, organizados permiti-
ram explicitar as principais tendências na preparação vocal nas
instituições consideradas e na produção teatral dos últimos anos
do século XX na Europa e em Buenos Aires.
A definição das vocalidades dos atores como territórios a se-
rem cartografados, nos coloca perante uma situação onde não
há distância entre voz e corpo, ou entre palavra e ação, situação
A pesquisa em teatro 89
um lugar determinados, define vetores, direções, intensidades.
Assim, da relação estabelecida entre os papéis fundamentais que
colaboram na prática teatral (diretores, mestres e preparadores,
autores e atores) surgem as tendências dominantes na produção
teatral ocidental contemporânea. Os papéis do diretor e do pre-
parador vocal surgem da prática teatral do século XX. Nessa cir-
cunstância específica, os diretores frequentemente desenvolvem
funções de autoria, enquanto que o papel do preparador vocal
fica, na maioria das vezes, restrito a um treinamento situado fora
do âmbito de qualquer processo criativo.
De um modo geral, os atores desenvolvem seu trabalho em
diversos âmbitos e, em consequência, o perfil de sua produção
muda de acordo com as demandas de cada circuito. As diversas
contingências em que desenvolvem sua experiência profissional
se materializam em marcas inequívocas nos corpos dos atores.
Porém, os mecanismos de produtividade ou improdutividade
com relação à vocalidade na performance teatral contemporânea
excedem os limites de um circuito, uma instituição em particu-
lar ou um movimento determinado. Para entender o lugar da vo-
calidade na prática teatral contemporânea ocidental, examinei
publicações relevantes sobre o trabalho de alguns dos diretores
e mestres mais influentes no final do século XX. Delas, surgem
algumas informações gerais que refletem o papel idiossincráti-
co de diretores e preparadores. Knowles indica que a forma em
que são hierarquizados os papéis profissionais na prática teatral
contemporânea responde a uma lógica de gênero. Do seu ponto
de vista, a preparação vocal tendeu a ser definida no século XX
como uma posição secundária e dependente da posição de li-
derança, independente e criativa, do diretor (KNOWLES in BUL-
MAN, 2005, p. 92-112).
Os atores reformulam e redefinem seus estilos em interação
com outros atores e com suas audiências. O problema se coloca
quando essa interação se debilita e, consequentemente, a dinâ-
mica de negociação que estabelece a cena se fragiliza, fixando
estilos. Em uma situação onde operam diversas camadas de có-
digos simultaneamente nas vocalidades dos atores, é difícil che-
gar a ouvir a potência vital da voz ou o significado sedimentado
A pesquisa em teatro 91
entanto, tendemos a fazer um vínculo direto entre a “visão” e o
olho, desconsiderando que a imagem não é um fenômeno ex-
clusivamente visual, mas também acústico. Longe de entendê-lo
como “lugar onde se vai para ver”, creio que Nietzsche se refere
ao teatro como “lugar de visões transfiguradoras”, cuja origem se
dá na música. De acordo com esse argumento, são essas “visões”,
em princípio, acústicas, as que provocam comoção e compaixão
entre público e atores. Se considerarmos que esse movimento
e essa paixão coletiva é o objetivo último e múltiplo do teatro,
poderemos melhor compreender as implicações estéticas, sim-
bólicas e políticas de restaurar o espaço da Dimensão Acústica
da cena, sobre o qual tem avançado a Dimensão Visual. As evi-
dências fornecidas pelos remanescentes arquitetônicos dos tea-
tros gregos e pelo pensamento de Nietzsche nos permitem argu-
mentar no sentido de restaurar a intensidade acústica do teatro.
Para tal fim, nosso ponto de partida nos processos de encenação
é sempre tudo aquilo que soa em cena. Isto não significa que o
visual não seja também intensamente trabalhado, mas que co-
meçar pelo que “soa” garante o espaço requeridos pelo conjunto
dos fenômenos acústicos em performance.
A performance teatral se situa na confluência das dimensões
visual e acústica da cena, atravessadas de forma mais ou menos
variável por diversos tipos de estímulos, sinestésicos, olfativos
ou tácteis, que contribuem para acentuar ou completar certos
processos de significação. A esfera da voz e da palavra, do en-
torno acústico e da música constituem a Dimensão Acústica da
Cena, que se define numa superfície de 360° composta em di-
versos planos fixos e móveis. Da articulação da ampla rede de
relações estabelecidas pelos comportamentos acústicos nessas
três grandes esferas surge o desenho acústico de cada peça, cuja
definição sempre se dá em relação à percepção humana. Pela
sua capacidade de produzir voz, palavra e movimento, o corpo
em performance torna-se o “palco” primeiro; lugar de intersec-
ção entre as duas grandes dimensões da cena, a visual e a acústi-
ca (Davini, 2006, p. 309).
Consideramos a voz como uma produção do corpo capaz de
gerar sentidos complexos, controláveis em cena. Nessa perspec-
A pesquisa em teatro 93
Para abordar a Dimensão Acústica da cena é preciso consi-
derar as fontes sonoras disponíveis em cada caso. Instrumentos
musicais acústicos ou eletrônicos, meios de reprodução de áu-
dio ou dispositivos digitais oferecem diversos modos de produ-
ção de som; da mesma forma que os atores podem ser conside-
rados também em sua função de fontes sonoras móveis ou fixas,
de acordo com a resolução de cada cena. Em sua dissertação de
mestrado “A Produção de Sentido a partir da Dimensão Acústica
da Cena”, César Lignelli aborda amplamente a questão, a partir
de duas experiências de montagem cênica realizadas pelo Grupo
V&C: O Naufrágio4 e Santa Croce5. Nesse trabalho, Lignelli con-
tribui também com uma análise dos Problemas de Aristóteles
que elucida várias questões cruciais para compreender o papel
do som, da letra e da palavra no teatro ocidental.
De um modo geral, os deslocamentos acústicos em perfor-
mance se concretizam de três modos. O “mecânico”, que envolve
o deslocamento da fonte sonora no espaço cênico, por exem-
plo, no deslocamento dos atores enquanto falam ou cantam em
cena. O deslocamento “técnico” do som se dá pelo tipo de emis-
são vocal ou definição tímbrica das vozes ou instrumentos, mo-
dificados através de diversas técnicas que, trabalhando sobre a
frequência, intensidade, articulação, timbre, vibrato etc. do som
produzido, produzem diversos efeitos de espaço e tempo na per-
cepção do público. Por último, os deslocamentos “virtuais” são
produzidos através de meios digitais quando o som (que surge
da mesa de som, ou das vozes transferidas à mesa de som através
de microfones), descreve trajetórias no espaço cênico de acordo
com software especificamente desenhado para esse fim. Alguns
destes deslocamentos acústicos ou “espacializações” operam-se
em tempo deferido (pré-gravados) e outros em tempo real, ou
seja, pela operação do equipamento no momento da cena.
Considerando inclusive os espaços posteriores e superiores
em relação ao público, a abordagem da Dimensão Acústica da
Cena atenua a ideia de um centro hegemônico de atenção, fre-
O corpo ressoante e as
novas vocalidades em performance
A continuidade e a relativa distância dos mercados que promo-
ve o ambiente acadêmico tem pautado o trabalho do Grupo de
Pesquisa Vocalidade & Cena6 – V&C desde o ano 2000. Para além
da lógica binária “objeto/sujeito”, nosso interesse é cartografar e
constituir territórios de vocalidade no campo das Artes Cênicas.
A produção artística e conceitual do Grupo V&C se concentra na
A pesquisa em teatro 95
configuração de sentidos, no processo que vai da abordagem do
texto até sua concretização na voz e na palavra em performance.
As pesquisas articuladas pelo Grupo se plasmam no Programa O
Corpo Ressoante, que sustenta nossa formulação de uma pro-
posta conceitual e técnica para a formação de atores. No início
desse processo colocamos questões para as quais já ensaiamos
algumas respostas possíveis:
A pesquisa em teatro 97
cais, de canto e de recitado. Assim, podemos afirmar que Saint-
Dennis pretendia atingir seu ideal de all round actors a partir da
adição de modalidades e estilos no processo formativo.
Porém, conceitualmente falando, Deleuze e Guattari notam
que a multiplicidade não resulta da adição de unidades, mas da
eliminação no pensamento do conceito de unidade. Assim, con-
tinuam, pode-se expressar a multiplicidade através de fórmula
(n-1). Consequentemente, a procura de Saint-Dennis não trilhou
um caminho adequado. Apontando a flexibilizar o corpo e pro-
piciar a coordenação e controle na produção de voz, palavra e
movimento, o Princípio Dinâmico dos Três Apoios configura um
coeficiente comum que poderia conduzir à formação de atores
de perfil estético múltiplo. Capazes de optar por um caminho
estético, tais atores seriam também capazes de produzir novas
vocalidades em performance. É sobre essa hipótese que se es-
tabelece o Projeto “O Treinamento de Atores: a procura de um
lugar de autonomia entre a técnica e a estética no teatro contem-
porâneo” através do qual vem desenvolvendo Sulian Vieira sua
pesquisa de doutorado na Universidade de Brasília.
A peculiaridade das propostas apresentadas neste Progra-
ma O Corpo Ressoante consiste em retirar da preparação para a
cena tudo aquilo que implique reproduzir estilos consolidados
em performance, no desejo de configurar novos modos de atua-
ção. As estratégias apresentadas possibilitam a abordagem tanto
de trabalhos inéditos, quanto de peças do repertório teatral dos
mais diversos períodos, gêneros e estilos.
Dessa maneira, propomos uma via de superação para o im-
passe gerado pelos modelos vigentes no campo da produção tea-
tral contemporânea, desenvolvidos no período pré-industrial no
século XX. No desejo de configurar estilos de atuação que não
contrariem a sutileza e a precisão requeridas para que a voz e a
palavra retomem sua potência afetiva, tantas vezes plasmada na
história do teatro ocidental.
O grupo aborda a atuação como um tornar presente/atuali-
zar/produzir, distanciando-se da perspectiva do atuar como re-
presentar/interpretar/reproduzir. Esta abordagem corresponde
à ideia das personagens como “lugares de fala”, de forma que a
A pesquisa em teatro 99
projeto foi desenvolvido a partir da consideração de três perso-
nagens femininas na obra de William Shakespeare: Lavigna, de
Titus Adronicus; Rosalinda, de Como Gostais; e Marina, de Péri-
cles, Príncipe de Tiro.
O sistema de representação da palavra pela escrita e a proli-
feração dos meios de reprodução audiovisual são considerados
como instâncias que informam a percepção e a subjetividade
contemporâneas e, portanto, a produção de vocalidade em suas
diversas manifestações. Neste contexto, o Grupo V&C vem de-
senvolvendo os dois projetos de pesquisa em nível de Iniciação
Científica a seguir. Dalcroze: Evidências de uma Tradição Inter-
rompida objetiva o levantamento de dados a respeito da obra de
Jacques Dalcroze, com a finalidade de estabelecer algumas hi-
póteses a respeito da influência do seu método na formação de
atores, cantores e músicos em geral, e das causas que interrom-
peram essas propostas, estabelecendo assim um diálogo com a
pesquisa em andamento desenvolvida por Sulian Vieira. Levan-
tando dados sobre o sistema de notação formulado por Dalcroze,
este projeto dialoga com o Projeto Códigos Escriturais e Perfor-
mance, cujo objetivo é levantar dados a respeito da evolução da
notação musical e da letra a partir do século XX com a finalidade
de estabelecer uma comparação entre ambos os processos que,
por sua vez, sirva à argumentação sobre a necessidade de pautar
um código de notação mais abrangente do que a letra, código
representacional da literatura, capaz de dar conta das dimensões
acústica e visual da cena.
Eixos transversais
Referências
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1993.
Milton de Andrade7
3. É curioso lembrar que talvez o primeiro a utilizar tal termo tenha sido o fi-
lósofo e dramaturgo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) no auge do
iluminismo alemão, quando se discutia a necessidade de se rever os padrões lite-
rários e o papel do gesto corporal no teatro burguês. Sobre este argumento vide
nossa pesquisa de doutoramento Affetto e azione espressiva nell’arte dell’attore:
studio sul rapporto corpo-anima nelle teorie di J. Jakob Engel, François Delsarte
e Rudolf Laban. Dipartimento di Musica e Spettacolo (DAMS), Università degli
studi di Bologna, 2002.
4. Surge aí talvez uma curiosa perspectiva metodológica de extração do sentido
que seguiria analogicamente a forma de revezamento doc.fiction (documento +
ficção), que já há tempos foi apropriada pela área do documentário audiovisual e
da própria literatura documental.
Adilson Florentino6
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