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Narciso Telles

organizador

PESQUISA EM
ARTES CÊNICAS

Textos e Temas

Rio de Janeiro, 2012


© Narciso Telles (Org.)/E-papers Projeto gráfico, diagramação
Serviços Editoriais Ltda., 2012. e capa
Todos os direitos reservados a Sheila Neves do Rêgo
Narciso Telles (Org.)/E-papers
Serviços Editoriais Ltda. É proibida Imagem da capa
a reprodução ou transmissão desta Memorial de Silêncios e Margaridas.
obra, ou parte dela, por qualquer Dramaturgia: Luiz Carlos Leite e
meio, sem a prévia autorização dos Narciso Telles
editores. Atuação: Narciso Telles
Impresso no Brasil. Direção: Mara Leal
Foto: Luana Diniz (Magrela)
ISBN 978-85-7650-358-3
Revisão
Comitê Editorial – Publicações Nancy Soares
GEAC
Prof. Dr. André Luiz Carreira Produção Editorial
(UDESC) Thaís Garcez
Prof. Dr. Arão Paranaguá de Santana
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site da E-papers Serviços Editoriais.
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(UFU)
CIP-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

P564
Pesquisa em artes cênicas : textos e temas / Narciso Telles, orga-
nizador. - Rio de Janeiro : E-papers, 2012.
138p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-358-3
1. Artes cênicas - Pesquisa - Brasil. 2. Artes cênicas - Estudo e ensino
- Brasil. I. Telles, Narciso, 1970-
12-6656. CDD: 792.0981
CDU: 792(81)
SUMÁRIO

5 Prefácio
Fernando Aleixo
13 Apresentação
Narciso Telles
15 Pesquisa como construção do teatro
André Carreira
35 Ter experiência da arte: para uma revisão das
relações teoria/prática no contexto da nova
teatrologia
Marco de Marinis
45 Paragens de um artista-docente-pesquisador
Narciso Telles
59 As artes circenses e a pesquisa no Brasil
Mario Fernando Bolognesi
69 A pesquisa em teatro: a questão da palavra e da voz
Silvia Davini
111 A pesquisa nas artes do corpo: método, linguagem e
intencionalidade
Milton de Andrade
123 A pesquisa qualitativa em artes cênicas: romper os
fios, desarmar as tramas
Adilson Florentino
Prefácio

Fernando Aleixo
Ator e Professor do Programa de
Pós-graduação em Artes da UFU

Este livro apresenta um conjunto de artigos que constitui uma


importante contribuição para pensarmos a pesquisa em ar-
tes cênicas na contemporaneidade. Cada texto desenvolve um
ponto de vista específico e, ao mesmo tempo, constitui um todo
ancorado nas experiências fundadoras dos conceitos-pesquisas
aqui apresentados. Neste sentido, para a apresentação de alguns
pontos sobre a pesquisa em artes cênicas, levantados neste li-
vro, farei o uso provisório de um “entre parênteses”. Penso ser
importante proceder assim: recentemente muitas foram as su-
perações conceituais e práticas envolvendo confrontos entre a
arte e a ciência e entre a pesquisa acadêmica e a criação artís-
tica. E, portanto, acredito que qualquer abordagem generalista
poderá desconsiderar problematizações importantes para o en-
tendimento de conquistas e, também, de novos enfrentamentos
necessários.
Segundo as palavras de Teixeira Coelho, “um conceito rara-
mente surge à luz do dia “tal qual”, pronto, definido e acabado”
(apresentação do livro “Sobre Performatividade”, publicado pela
Letras Contemporâneas no ano de 2009). Acredito que o conceito
de “pesquisa em artes” está situado exatamente nesta definição
de inacabado, indefinido e em constante movimento de constru-
ção. Me ocorre neste ponto (da difícil tarefa de definição sobre a
pesquisa nesta área) a metáfora da liquidez apontada por Lucia
Santaella na abordagem sobre as linguagens líquidas. Assim, ob-
servo que muitas tentativas de formulação de conceitos acabam
escapando das mãos, escorrem líquidas e caem em transforma-
ção: “os líquidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, es-
vaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam,
pingam, são filtrados, destilados,…” (Bauman. Modernidade Lí-
quida). Observamos o que considera Lucia Santaella:

“Já não há lugar, nenhum ponto de gravidade de


antemão garantido para qualquer linguagem, pois
todas entram na dança das instabilidades. Tex-
to, imagem, e som já não são o que costumavam
ser. Deslizam uns para os outros, sobrepõem-se,
complementam-se, confraternizam-se, unem-se,
separam-se e entrecruzam-se. Tornaram-se leves,
perambulantes. Perderam a estabilidade que a for-
ça de gravidade dos suportes fixos lhe empresta-
vam.” (SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na
era da mobilidade, 2007. p. 24)1

Esta mobilidade do conceito e do entendimento sobre o que


é a pesquisa em arte surge, dentre outras possibilidades, de um
acúmulo histórico paradoxal: as experiências constituintes de
uma espécie de contorno conceitual chegaram até nós carregadas
de estreitas comparações com referências, parâmetros e estrutu-
ras de pesquisas de outros campos do conhecimento como, por
exemplo, os das ciências exatas, sociais e das tecnologias. Observa-
se, ainda hoje, um certo desconforto nestas comparações quando
estas se debruçam sobre a concepção – que muitas vezes se pre-
tendem definitivas – de princípios, metodologias de investigação

1. As referências citadas no prefácio são de fontes de obras já publicadas e dos


artigos que compõem este livro.

6 Pesquisa em artes cênicas


e análise, delimitação de hipóteses e objetivos e, ainda, divulgação
e aplicação direta de resultados alcançados, além, é claro, das con-
dições de distribuição de recursos e investimentos.
No entanto, cabe um destaque sobre a experiência de traba-
lhos artísticos no âmbito da academia e das práticas criativas de
artistas e coletivos. Estes reivindicaram, no percurso já constru-
ído, especificidades próprias do campo das artes cênicas e atin-
giram, assim, importantes ganhos que possibilitam uma com-
preensão, se não mais confortável, mais delimitada e capaz de
evidenciar as diferenças, as tensões e as aproximações entre os
distintos campos do conhecimento. Ou melhor, o acúmulo des-
tas pesquisas colaborou com uma certa mudança no padrão do
olhar para este campo de pesquisa. Consideremos as palavras de
Maffesoli:

“É indispensável recuar um pouco para circuns-


crever, com a maior lucidez possível, a socialidade
que emerge sob nossos olhos. Esta, por mais estra-
nha que seja, não pode deixar ninguém indiferente
[…] Mas resta ainda saber apreciá-la em seu justo
valor. E isso não poderá ser feito se o que está em
estado nascente for medido com base no padrão
daquilo que já está estabelecido.” (MAFFESOLI,
Michel. Elogio da Razão Sensível. 1998. p. 11)

A especificidade da pesquisa em artes cênicas em relação a


outros campos do conhecimento é ainda esclarecida por outra
distinção: entre a arte e a ciência, considerando aqui o sentido
metodológico e não de relevância. O teatro não é uma manifes-
tação lacônica, fechada no “em-si-mesmo”. Sua prática é, essen-
cialmente, complexa e transdisciplinar. A questão apresentada,
com efeito, no âmbito da pesquisa é que a análise necessária não
poderá ser regrada na quantidade, tampouco na classificação
pautada na compartimentação de estilos, formas, gêneros e ca-
racterísticas técnicas e estéticas. A questão será melhor aborda-
da pelo procedimento do relativismo e da subjetividade, o que
impõe outras muitas dificuldades de dimensionamento e preci-
são. Mas acredito que é justamente nesta dificuldade que está o

Prefácio 7
fundamental ponto para o pesquisador: a liberdade de ocupar
uma espécie de “não-lugar” (melhor definido como lugar-expan-
dido) permite o rompimento de fronteiras e, consequentemente,
o trânsito em diferentes campos do conhecimento e em distintas
experiências da vida humana. A bem dizer, não falei aqui ainda
do aspecto processual e coletivo da pesquisa em artes cênicas.
Uma maneira significativa de problematizarmos a pesquisa é
instalar parâmetros que permitam a análise da criação no con-
texto da própria criação, ou seja, sem comparações com parâ-
metros outros que não os próprios determinados pela obra ou
processo.
O campo da pesquisa aqui abordado permaneceu sob muitos
aspectos em meio às lutas conceituais e disputas de visões de
mundo (acadêmica, científica, artística etc.). Para melhor com-
preendermos o divórcio gerador de certas dicotomias, André
Carreira apresenta em seu artigo que compõe este livro uma me-
táfora do casamento “para se refletir sobre o lugar e os sentidos
da pesquisa em artes cênicas no âmbito acadêmico”. Esta área de
pesquisa em consolidação põe em jogo, por exemplo, a aptidão
do teatro de dar conta de colocar diferentes princípios e proce-
dimentos de construção de pensamentos e conhecimentos em
uma mesma experiência, em um mesmo processo criativo. Neste
sentido, considerando a definição de Carreira, pesquisar passa
ser a criação de “espaços de diálogo com as diferentes tramas do
fazer teatral, construindo olhares que inquiram e que reflitam
desde uma posição cuja especificidade contribui para a produ-
ção de uma tensão transversal ao eixo criação – fruição”.
Antes mesmo da visão dicotômica entre criação e investiga-
ção acadêmica está o “dualismo” entre teoria e prática. Sobre
este ponto De Marinis nos proporciona uma reflexão sobre a
aproximação ciência-teatro, chamando-nos a atenção para a ne-
cessidade de fuga das armadilhas dos conceitos estabelecidos e,
ainda, para uma revisão “radical das relações entre a teoria e a
prática e, antes ainda, das noções mesmas de teoria e de prática
no caso do teatro”.
Do mesmo modo, Milton Andrade em seu artigo sobre a pes-
quisa nas artes do corpo apresenta questões atuais sobre o con-

8 Pesquisa em artes cênicas


texto da pesquisa que nos permite retornar, assim, ao mesmo
nível que se situavam os questionamentos sobre a cisão entre ci-
ência e arte, objetivo e intuição, mente e corpo, inteligível e sen-
sível, acadêmico e artístico: “como lidar com o logos acadêmico
científico (comunicante), quando se trabalha com uma forma de
produção simbólica ambivalente, como a linguagem do corpo
(que, por natureza, “corrompe” o próprio discurso)”.
Com efeito, certas hegemonias ou “padrões do olhar” são co-
locadas em discussão. Sobretudo, como nos adverte Jorge Du-
batti em seu livro “Filosofía del teatro II: cuerpo poético y fun-
cíon ontológica”, é a partir da prática do teatro que podemos
pensar a pesquisa e o conhecimento sobre o teatro: “‘regresar el
teatro al teatro’ […] el teatro es un ente complejo que se define
como acontecimiento, un ente que se constituye historicamen-
te en el acontecer”. É justamente no compartilhamento reflexivo
de uma prática que o pesquisador Narciso Telles nos apresenta
suas “paragens”: detalhamento de um percurso de construção
ativa da pesquisa em artes cênicas, onde podemos observar re-
levantes problematizações que nos permitem compreender que
os “cânones da pesquisa científica e suas estruturas metodológi-
cas determinaram a forma compreensão do fenômeno artístico
aceito no “mundo acadêmico”, seguindo modelos hegemônicos
que balizam o sistema de produção do conhecimento”.
Deste modo, para uma visão mais concreta e ativa dos mo-
vimentos construídos a partir dos embates destas indagações e
questionamentos, ou, para a “encarnação” dos amplos sistemas
e conceitos envolvidos na pesquisa, a experiência prática, ma-
terial, concreta, palpável, corporificada, faz-se necessária. Nes-
te sentido, a apresentação do mapeamento da pesquisa sobre o
circo e suas especificidades no âmbito nacional, realizado por
Mário Bolognesi e, ainda, a cartografia das vocalidades em per-
formance realizada por Silvia Davini, nos fornece subsídios para
dimensionarmos a pesquisa enquanto vivência e experiência
sensível. Nas palavras de Michel Maffesoli no seu livro “Elogio da
Razão Sensível” compreendemos que a “encarnação” é a possibi-
lidade de “enriquecer o saber, de mostrar que um conhecimento
digno deste nome só pode estar ligado ao objeto que é seu”.

Prefácio 9
Contudo, caso o foco se volte para aspectos quantitativos e
qualitativos das pesquisas em artes cênicas, verifica-se clara-
mente um significativo incremento da produção que impacta
tanto nas reflexões prático-teóricas, como nos trabalhos de es-
tudos de linguagens, de composição e criação. A esse propósito,
cabe destacar as frentes abertas com o aumento significativo e
recente dos cursos de graduação nas universidades brasileiras e,
sobretudo, dos programas de Pós-graduação em artes. Conside-
rando as palavras do artigo sobre A pesquisa qualitativa em artes
cênicas, de Adilson Florentino:

“Há um considerável universo teórico e metodo-


lógico para desenvolver a pesquisa qualitativa no
campo das artes cênicas a partir da diversidade de
tradições analíticas ancoradas, principalmente,
nas ciências sociais. Na tensa relação entre ciên-
cias sociais e artes cênicas se dá a gestação de um
espaço inter e transdisciplinar que ainda não está
suficientemente explorado, mas que permite sus-
citar diversas reflexões.”

O aspecto qualitativo, no entanto, em acordo com o autor aci-


ma citado, merece um exame atento, pois concentra interferên-
cias de questões variadas a serem consideradas: epistemologias;
metodologias (por vezes aplicadas na avaliação de resultados
e impactos sociais das pesquisas em arte); definição de metas
quantitativas que, muitas vezes, se dá de modo comparativo en-
tre diferentes realidades e condições de investimento; critérios
de aplicação de recursos e de condições de execução de projetos;
visibilidade das conquistas alcançadas e aproximação dos resul-
tados ao cotidiano do cidadão etc.
Como já apontado, a questão da quantidade e da qualidade
na pesquisa em arte, quando diagnosticada no contexto atual da
área, fornece um pano de fundo sobre o qual se destaca o amplo
crescimento dos trabalhos artísticos-acadêmicos. Mas a amplia-
ção da quantidade não é um simples movimento de reacomoda-
ção das prioridades e dos – já apontados acima – investimentos;
ela precede uma mudança radical na dinâmica do pensamento

10 Pesquisa em artes cênicas


contemporâneo, cuja remodelagem nas diferentes áreas reivin-
dica interdisciplinaridades, porosidades, subjetivações, reinven-
ções, holismos, entre outras tendências presentes.
Mas essa característica não pode dissimular o fato de que o
rigor metodológico recai sobre os trabalhos nas áreas das artes
cênicas, a saber, a de certas categorias constituintes do que te-
nho denominado saber sensível: intuição, impressão, sensações,
imaginação etc. Não apenas a definição destes termos não são
fechados, mas a ampliação dos parâmetros, a flexibilização dos
conceitos e dos padrões que estabelecem uma mudança de pla-
no: o que está em questão é a complexidade que envolve a pes-
quisa em artes cênicas e o modo pelo qual os próprios procedi-
mentos se referem uns aos outros na construção das dinâmicas
da criação. Digo com isso que o processo de criação estabelece
seus próprios procedimentos e sentidos abordados; ou seja, por
exemplo, os conceitos de corporeidade e de jogo poderão ser de-
finidos no próprio contexto em que são aplicados e, consequen-
temente, adquirirem outras definições em outros processos.
Especificamente, destaca-se o que aponta Narciso Telles em seu
artigo Paragens de um artista-docente-pesquisador: “A experiên-
cia como atitude metodológica do pesquisador EM artes, se con-
figura como uma posição do sujeito-pesquisador frente ao fenô-
meno artístico que determina um olhar/escrita específica sobre
seu objeto de estudo, no qual elementos de subjetividade estão
presentes na própria estruturação da pesquisa e também no pro-
cesso de análise do material”.
Deste modo, além da contribuição para um mapeamento de
ações sobre a pesquisa em artes cênicas, além do acréscimo de
novos conceitos, dinâmicas e experiências, além da possibilidade
de reflexão sobre o tema à luz de práticas de importantes pesqui-
sadores da área, este livro tem ainda por tarefa situar este campo
da pesquisa em relação ao conjunto das áreas de pesquisa no Bra-
sil, considerando a sua especificidade, pois certamente uma reali-
dade permanece aberta: ainda há muito caminho a ser percorrido
na luta por políticas de investimentos mais justas e equilibradas
entre as pesquisas dos diferentes campos do conhecimento.

Prefácio 11
Apresentação

Narciso Telles

A pesquisa em Artes Cênicas no Brasil vem, nos últimos anos, em


pleno processo de expansão e consolidação. Os diversos Progra-
mas de Pós-graduação na área espalhados pelo país possibilitam
a ampliação e a diversificação de estudos em investigações no
campo das artes cênicas (teatro, dança, e circo, especialmente).
O mundo da pesquisa em Artes, das ideias e das práticas, tor-
na-se cada vez mais complexo e as classificações em eixos temá-
ticos são essencialmente controvertidas.
Neste livro optamos por um desfile de textos e temas que po-
dem orientar o leitor nas discussões metodológicas e epistemo-
lógicas da pesquisa em artes cênicas. O eixo norteador de nossa
proposta para o leitor é contribuir com o debate sobre as múlti-
plas possibilidades de entendimento das teorias e práticas de in-
vestigação que têm se ampliado nos últimos tempos nos contex-
tos nacional e internacional. Desafiamos o leitor para a seguinte
provocação: exercitar a crítica e a reconceptualização das ten-
dências e perspectivas que atravessam os textos aqui reunidos.
Os fios condutores que conectam o conjunto da obra têm
como espaço de interseção a preocupação com a pesquisa e,
mais diretamente, com a formação do artista-professor-pesqui-
sador de artes cênicas no Brasil. Portanto, diante da diversidade
temática que a produção do conhecimento está submetida atu-
almente, nos cabe como pesquisadores, professores e profissio-
nais de teatro a tentativa de elaborar um mapeamento, pelo me-
nos provisório, das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
pelos “atores acadêmicos” que atuam no espaço das universida-
des, investigando o fenômeno teatral.
A reunião de textos de pesquisadores brasileiros e estrangei-
ros pretende oferecer ao leitor a utilização de um caleidoscópio
para o qual confluem diferentes teorias e práticas que têm como
foco a pesquisa em Artes Cênicas em suas nuances e matizes.

14 Pesquisa em artes cênicas


Pesquisa como construção do teatro

André Carreira1

Apesar de que atualmente na pesquisa em artes cênicas o pro-


blema da relação entre a abordagem artística e a investigação
científica parece superado, ainda persistem no âmbito acadêmi-
co tensões entre o fazer e o pesquisar2. Essa questão impulsio-
nou a escritura deste texto, que tem como objetivo discutir quais
as reais possibilidades de relação entre pesquisa acadêmica e os
processos criativos das artes cênicas.

1. Professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, pesquisador CNPq,


diretor do Grupo Experiência Subterrânea. Autor dos livros Teatro de Rua (HUCI-
TEC) desenvolve pesquisa sobre o teatro de grupo e procedimentos de interpre-
tação teatral. carreira@udesc.br
2. Alguns autores apontam a distinção entre o que seria uma pesquisa e a pura
especulação. Neste sentido, é interessante observar o que Silvio Zamboni afirma
no livro A pesquisa em Arte, opõe a pesquisa ao que ele considera especulação:
“o indivíduo que faz especulação está consciente da vacuidade de sua proposta,
está solto e descompromissado com qualquer situação que exija uma resposta;
ele tenta sem saber o que conseguirá, e ele mesmo não sabe firmemente o que
pretende conseguir (...) Por não considerar a especulação como método de pes-
quisa, não quero dizer que ela não tenha validade no processo global de produ-
ção artística. (...) Na ciência, esse tipo de procedimento especulativo e casual tem
participação muito mais reduzida do que na arte”. (2006, p. 54)
Essa união é um casamento que seria possível somente como
resultado de um compromisso matrimonial carente de paixão? Ou
como desejamos, isso poderia representar um vínculo estreito en-
tre dois conhecimentos que muitas vezes parecem divergentes?
A metáfora do casamento parece apropriada para se refletir so-
bre o lugar e os sentidos da pesquisa em artes cênicas no âmbito
acadêmico, pois a mesma tem sido incrementada e tem estreitado
vínculos com a criação artística que circula pelo país. Aprofundar
nossas reflexões sobre isso é importante para o desenvolvimento
do campo da investigação, e é particularmente significativo para
a consolidação de referências que contribuam com as trocas aca-
dêmicas nas quais tomamos parte cotidianamente.
A premissa que orienta este texto é que a criação e a inves-
tigação são atividades inseparáveis e complementares no fazer
artístico, pois como afirma o pesquisador espanhol José Antonio
Sanchez, “não existe pesquisa sem criação, e a criação sem pes-
quisa não é arte”3.
Ambas são construções de conhecimento, mas, quais as fron-
teiras de cada uma dessas ações? Como reconhecer na pesquisa
do artista em sua sala de ensaio elementos que sejam comuns
aos da formulação de campos conceituais? Como relacionar o
rigor que se busca com os estudos teóricos, e a livre construção
de discursos que caracteriza a arte?
Para oferecer uma resposta a tais questões devemos negar a
existência de uma divisão taxativa, e certamente simplória, en-
tre artistas e pesquisadores. Não se pode supor que os primei-
ros fariam a arte, e os outros produziriam os conhecimentos que
seriam organizados e estruturados segundo os cânones da pes-
quisa científica. Na arte estas fronteiras são bastante frágeis, e
ambos os lados se interferem mutuamente.
No entanto, é preciso reconhecer que o lugar dos pesquisado-
res, que não está divorciado dos criadores, tem suas particulari-
dades, dado que a função fundamental da pesquisa acadêmica

3. Afirmação realizada em sessão do Seminário Internacional Las artes escénicas


como práctica de investigación (la transformación de los espacios acadêmicos y
artísticos – 1990/2010)

16 Pesquisa em artes cênicas


é produzir novos olhares sobre os objetos artísticos, sobre suas
histórias, seus procedimentos e, finalmente, sobre suas cone-
xões com outras práticas culturais.
Pesquisar é criar espaços de diálogo com as diferentes tramas
do fazer teatral, construindo olhares que inquiram e que reflitam
desde uma posição cuja especificidade contribui para a produção
de uma tensão transversal ao eixo criação – fruição. Esta pesquisa
deve ser encarada como parte dos mecanismos de construção da
arte enquanto campo, pois representa um instrumento que esta-
belece relações múltiplas entre o fazer e o fruir, impulsionando
tanto os processos de criação como a contextualização das obras
e dos procedimentos. Mas nas ocasiões nas quais a pesquisa em
arte é investida de uma formalidade que a aproxima dos modos
operatórios da ciência, quando esta é qualificada como acadê-
mica, ambas as atividades parecem distanciar-se.
Nossa reflexão deve considerar que o contexto imediato da
pesquisa em artes cênicas no Brasil é o de uma universidade
inserida em uma “tradição” acadêmica que reivindica, a partir
da segunda metade do século XX, os procedimentos de ensino
e pesquisa “homologados” principalmente pelos padrões dos
campi norte-americanos, segundo um modelo baseado em es-
tudos de graduação, mestrado e doutorado, e na quantificação
da produção intelectual como instrumento básico da avaliação.
Esta universidade incorporou – a exemplo de um fenômeno que
vemos atualmente em vários sistemas de ensino da Europa e da
América Latina –, a arte nos seus bancos, o que exigiu uma arti-
culação de formas de construção de saberes que até então esta-
vam bastante separadas do nosso cotidiano imediato.
Abandonando o modelo dos conservatórios, no Brasil se in-
vestiu, desde os anos 1970, na formação artística no âmbito das
universidades. Isso representou uma relativa democratização do
conhecimento – pois ampliou a oferta de cursos –, e, ainda que
de uma forma oblíqua, também significou um reconhecimento
dos valores do saber artístico como algo digno do ensino supe-
rior. Neste sentido, deve-se considerar que a formação univer-
sitária não só incrementa o status do profissional, como amplia
as possibilidades de que o trabalho deste profissional encontre

Pesquisa como construção do teatro 17


espaços laborais em escolas, e em outras instituições, além do
próprio fazer criador. Posteriormente, houve o investimento em
cursos de Pós-graduação e o incremento da pesquisa em artes
cênicas. O aumento do fluxo de artistas que se fizeram professo-
res universitários, e o crescimento do número de estudantes de
Pós-graduação em artes cênicas4, também fez com que as nossas
reflexões sobre questões metodológicas se ampliassem, ocupan-
do nossa atenção como um problema fundamental para o de-
senvolvimento do campo da pesquisa ao que pertencemos.
Mas esse processo não se deu sem explicitar contradições en-
tre o fazer artístico e os procedimentos acadêmicos tradicionais.
Isso fica mais evidente quando refletimos sobre a pesquisa em
arte e, em particular, quando nosso assunto é a pesquisa em artes
cênicas, uma arte do momento, uma arte que tem a efemeridade
como “substância”. Basta observar o debate sobre procedimen-
tos de avaliação da produção acadêmica levado a cabo no país
nos últimos anos, para se perceber como as duas tradições têm
pontos de atrito. Outro signo dessa tensão é o fato de que ain-
da não temos na universidade brasileira um claro consenso de
como instrumentalizar e avaliar trabalhos de conclusão de curso
que tenham a forma de objeto artístico. Ainda predomina entre
os programas de Pós-graduação a valorização do texto escrito
como matéria de avaliação. Assim, mesmo quando se aceita o
espetáculo como alternativa da dissertação ou da tese, aparece
a demanda de um “memorial descritivo” como documento um
tanto mais “sólido”. Mas isso ainda carece de um maior desenvol-
vimento sobre as funções tanto do produto artístico quanto do
documento escrito.
Sabemos que a pesquisa em artes cênicas é herdeira das pes-
quisas do campo da literatura e da linguística, dado que antes
de ser abordado em sua dimensão espetacular o teatro foi con-
siderado centralmente como texto dramatúrgico. Por isso, uma
“ciência do teatro” foi inicialmente estruturada como leitura do

4. Na metade da década de 90 existiam três programas de Pós-graduação na área,


hoje são seis cursos de mestrado e quatro de doutorado em artes cênicas e teatro,
um mestrado em dança, oito mestrados e três doutorados em artes com linhas de
pesquisa relacionadas às artes cênicas.

18 Pesquisa em artes cênicas


texto, para depois ser entendida como estudo do texto espetacu-
lar e de seu funcionamento. Com isso, as abordagens da semióti-
ca ganharam valor entre nossas pesquisas dando relevo às obras
de autores como Roland Barthes, Anne Ubersfeld, Patrice Pavis.
A possibilidade de se construir teorias para as operações da cena
contribuíram para uma significativa transformação dos estudos
teatrais. Isso deve ser relacionado também com os estudos socio-
lógicos, onde podemos destacar o trabalho de Jean Duvignaud, e
com as propostas da antropologia de onde provém a produção de
Victor Turner.
As atuais abordagens da pesquisa em artes cênicas se relacio-
nam de diferentes maneiras com o fenômeno da polifonia que
Barthes atribuía à “máquina cibernética em funcionamento” que
seria o teatro. Esta polifonia deve ser associada à noção de teatra-
lidade proposta por Josette Feràl, que afirma que somente existe
o acontecimento da teatralidade a partir do posicionamento do
olhar de quem observa desde a condição de “espectador”. O lugar
da produção é então definido pelo espaço que se estabelece “en-
tre” o espetáculo e o espectador. O acontecimento é o objeto con-
creto de nosso estudo, e isso demanda a construção de modos de
aproximação que considerem as diferentes dimensões do fenô-
meno cênico. Consequentemente, as formulações teóricas sobre
o teatro têm buscado instrumentos de pesquisa que possam dar
conta dessas dinâmicas. E isso implica visitar campos muito di-
versos de conhecimento, inclusive o território da ciência.
Exatamente por isso, ao situarmos os horizontes de uma pes-
quisa em artes cênicas que se reconhece como partícipe no cam-
po científico é muito importante evitar um discurso generalista
que considere científico tudo aquilo que se faz sob os auspícios
da universidade. O simples uso dos elementos do código acadê-
mico não confere a nenhum discurso a categoria de científico,
pois considerar científico aquilo que se arma do formalismo e das
normas é realizar uma simulação, cuja consequência última não
pode ser mais que o mero cumprimento de regras institucionais.
Em tempos onde o próprio conceito de ciência se remodela
de forma intensa, e as certezas mais firmes são colocadas em dú-
vida, é apropriado considerar essas questões como um impulso

Pesquisa como construção do teatro 19


para ampliar o novo universo de estudo das artes da cena, espe-
cialmente no momento em que buscamos uma integração entre
os dois polos já mencionados. A revisão da noção de ciência en-
contra em Paul Feyerabend, autor do conhecido Tratado contra
o método, um olhar questionador que considera que “a ciência
está muito próxima ao mito do que qualquer filosofia científi-
ca se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de
pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente
a melhor” (1997, p. 447). “A ciência é uma construção humana,
uma narrativa que criamos para explicar o mundo a nossa volta”,
e neste sentido nunca esteve totalmente separada do pensamen-
to mítico (GLEISAR, 2010, p. 25). Podemos perceber que a busca
de uma teoria do campo unificado na Física – uma teoria que ex-
plique ao mesmo tempo o funcionamento da mecânica clássica
de Newton e da mecânica quântica, isto é, uma “teoria do tudo”
como a chama o físico Marcelo Gleiser –, está profundamente
relacionado com nossas arraigadas certezas unificadoras. Acre-
ditamos, miticamente, em uma verdade a ser desvendada e isso
não deixa de contaminar nossa ciência (2010).
Se até no terreno da ciência uma verdade única está em dúvi-
da, o que dizer de objetos artísticos e seus processos? Devemos
estar atentos então ao perigo da associação a um cientificismo
que procure fazer desse objeto volátil algo mais durável, por
meio de identificações forçadas, que utilizam ferramentas cien-
tíficas que estão além das necessidades do próprio teatro. Antes
de buscar parâmetros que possam ser horizontalizados como
norma, seria acertado tomarmos alguns referentes que permi-
tam o aprofundamento dos intercâmbios de procedimentos en-
tre os campos.
A volatilidade e multiplicidade dos objetos cênicos faz com que
os mesmos resistam às generalizações teóricas. Toda abordagem
que busque tais generalizações encontrará dificuldade de funcio-
nar plenamente neste contexto de diversidade de formas e modos,
que é próprio do teatro da contemporaneidade. A especificidade
de cada espetáculo propõe um diálogo carregado de subjetividade
em um ambiente onde os cânones não funcionam mais.

20 Pesquisa em artes cênicas


De todos os modos, ainda que no terreno da arte não pos-
samos trabalhar estritamente com os princípios metodológicos
básicos das ciências, isto é, que não possamos articular olhares
solidamente estruturados a partir do trinômio: hipótese – verifi-
cação – confirmação, não significa afirmar que a arte não produ-
za conhecimentos compartilháveis. Como afirma Silvio Zambo-
ni “tanto a arte como a ciência acabam sempre por assumir certo
aspecto didático na nossa compreensão de mundo, embora o fa-
çam de modo diverso: a arte não contradiz a ciência, todavia nos
faz entender certos aspectos que a ciência não consegue fazer”
(2006). As práticas artísticas formulam conhecimento porque
são pensamento sobre o mundo, são construções de mundos.
Como afirma Zayas de Lima

David Locke em seu estudo A ciência como escri-


tura, defende a afinidade entre ciência e litera-
tura. Situando a linguagem científica dentro da
linguagem, com seus modelos que substituem
ou formulam o real como concepção “atua meta-
foricamente”; a linguagem literária funciona pro-
duzindo o exemplo particular da regra geral “atua
metonimicamente”. Consequentemente, “ciência e
literatura comporiam um sistema biaxial de coor-
denadas, uma estrutura mediante a qual situaría-
mos o real da experiência” (1997, p. 260). Neste sis-
tema, a literatura não teria um “controle exclusivo
da imaginação, a expressividade, a persuasão ou a
criatividade”; e a ciência “patente sobre a verdade,
a fiabilidade ou a funcionalidade” (264).

Fazer arte é construir novos saberes sobre o Real e, portanto,


é frequentar territórios que costumam pertencer unicamente ao
pensamento das ciências. É importante discutir quais os canais
que conectam os polos do fazer artístico e dos procedimentos
acadêmicos, e delimitar como estas dinâmicas diversas podem
se relacionar. Perguntar sobre procedimentos de pesquisa em
artes cênicas é buscar vias a partir das quais ambas as práticas
possam se interferir mutuamente. Neste sentido é oportuno ob-
servar que as abordagens de ordem filosófica contribuem para

Pesquisa como construção do teatro 21


aproximações ontológicas, que ajudam a compreender as matri-
zes do fazer teatral, ao mesmo tempo em que sugerem “formas
de trabalho que propõem um compromisso vinculante, estrei-
tando a distância entre objeto e pesquisador” (CARREIRA/CA-
BRAL, 2006, p. 16).
Essa discussão se fez mais relevante nas últimas duas décadas
devido a que o crescimento desta área de conhecimento fez mais
complexas nossas formas de abordar a pesquisa, ampliando o
horizonte de trabalho e diversificando as ações institucionais.
Se em algum momento “pesquisa no teatro” se referia, ma-
joritariamente, a projetos de releitura de textos dramáticos e de
suas circunstâncias de produção, saltamos do campo da literatu-
ra para o campo da cena como prática. A história que escrevemos
hoje em dia é principalmente a história dos fenômenos da cena
como experiência compartilhada entre artistas e espectadores. A
diversificação do campo se deu a partir da relação com áreas do
conhecimento tão variadas como a sociologia, linguística, antro-
pologia, e até mesmo a física. O reconhecimento do espetáculo
como objeto obrigou a pesquisa em artes cênicas transpassar a
fronteira da literatura de forma tão radical, que até mesmo pes-
quisas que têm como foco a literatura dramática estão obriga-
das a encontrarem relações de significação com as operações da
cena como elemento central.
Cada vez mais, temos uma relação estreita entre os que en-
sinam nas universidades e os que fazem teatro nos palcos e nas
ruas. A arte tem tomado os espaços da universidade o que impli-
ca na visita aos modos do pensamento universitário como forma
de expandir os territórios do saber artístico.
No âmbito da pesquisa universitária os artistas se encontram
tensionados entre o impulso da criação – considerada como
pesquisa de linguagem –, e os procedimentos “científicos” que
caracterizam as normas da academia. O mandato da teorização
exerce uma pressão contraditória com as dinâmicas mais fortes
dos processos de criação artística. Neste contexto, o criar, regi-
do apenas pelos processos de construção de saberes que se re-
lacionam ao próprio objeto artístico, deve atender à demanda
da estruturação de um pensamento organizado que proponha

22 Pesquisa em artes cênicas


um campo teórico, e estabeleça relações para além do próprio
objeto artístico.
O problema estaria colocado então em como ocupar esses
espaços universitários e produzir pesquisa no campo das artes
cênicas preservando os elementos estruturais do saber artístico?
Como realizar uma tarefa que nos coloca, inevitavelmente, em
dois lugares de forma simultânea, sem esquivar essa contradi-
ção? Os artistas que habitam o território da universidade estão
obrigados a formular respostas para essas questões, pois é ne-
cessário descobrir, ou inventar formas de trabalho contamina-
das por elementos de ambos os referentes. Não seria possível
ignorar o discurso científico – organizador de um paradigma ló-
gico –, para reforçar apenas procedimentos subjetivados do fazer
artístico, nem tampouco seria operacional adaptar forçadamen-
te a pesquisa em arte ao molde cientificista.
A aproximação do teatro à universidade trouxe para o primei-
ro a possibilidade de aprofundar o registro das experiências de
criação, e assim poder ampliar as reflexões técnicas. A prática
da sistematização representa para os criadores um instrumento
que permite revisitar experiências próprias e alheias. As pesqui-
sas têm cumprido um papel fundamental na releitura da história
do espetáculo, e desta forma têm ampliado as possibilidades de
análise de procedimentos de criação espetacular. Essas práticas
de pesquisa permitem que o fazer artístico adquira novas pers-
pectivas e que, sobretudo, veja dilatada sua relação com diferen-
tes interlocutores.
Mas, o mais importante neste processo foi a convocatória à
reflexão filosófica sobre o teatro. A pesquisa universitária propõe
o aprofundamento da discussão sobre lugar do teatro na cultura,
e as correspondentes repercussões estéticas dessas abordagens.
Essa pesquisa produz reflexões que vão além dos espaços ocupa-
dos tradicionalmente pela reflexão ocasional dos criadores, em
particular dos renovadores da cena contemporânea, e mesmo
pela crítica jornalística. Desta forma, se amplia o circuito dedi-
cado ao debate sobre os fenômenos do teatro com a criação de
dois ambientes que operam simultaneamente.

Pesquisa como construção do teatro 23


É exatamente essa simultaneidade que nos obriga a repen-
sar o lugar da pesquisa teatral relacionada com o pensamento
científico, no que diz respeito aos seus vínculos com a própria
produção criativa em artes cênicas. Talvez, em lugar de supor um
quadro definido de uma ciência das artes cênicas seria necessá-
rio situar nossa tarefa em relação ao pensamento dos criadores
(atores, diretores e público), para, a partir disso, articular nossos
olhares com essas múltiplas formas de ver o teatro.
O que importa nesta reflexão levada a cabo na universidade é
o teatro ou a dança como coisa, como experiência cujo testemu-
nho coincide com o viver o espetáculo como artista ou especta-
dor. A produção do objeto artístico deve ser considerada o ele-
mento axial ao redor do qual se articulam as diferentes práticas
de pesquisa. Isso implica afirmar que se pesquisamos estamos
realizando o campo da arte, estamos definindo a arte como co-
nhecimento que tem diversas facetas entre as quais se incluem
tanto o criar como o refletir.
Conceituar é outra dimensão do ato criativo. Deve-se lembrar
de que por mais que o artista não esteja obrigado a produzir um
esforço teórico, e por mais caótico que seja seu processo criati-
vo, ele sempre articula um pensamento que sustenta e justifica
sua obra artística. Quando a academia dirige seu olhar para os
trabalhos dos artistas do teatro se cria um diálogo com essa zona
de produção intelectual que vai além da obra como objeto de
fruição. Esse é então um elemento a ser explorado quando refle-
timos sobre as metodologias de pesquisa em artes cênicas.
Como afirmado anteriormente, o teatro é um “entre”, é um
acontecimento que se dá entre os artistas e os espectadores, é
uma prática compartilhada. Ele existe como uma experiência –
no sentido que dá a este termo Bergson –, que sempre será da
ordem do experimentado e do lembrado. Algo que ocorre como
intercâmbio cultural, e se inscreve na memória, e desde ali con-
tinua funcionando (1990).
Pesquisar esse objeto será, direta ou indiretamente, construir
condições para a produção deste evento como acontecimento,
e também será buscar registros da memória. Os produtos que
resultam das pesquisas (artigos, livros, palestras e até espetácu-

24 Pesquisa em artes cênicas


los) devem ser compreendidos como parte desse processo de
construção de olhares que adquirem significado dentro desse
ambiente da experiência da produção, e recepção do espetáculo,
que de algum modo comporão o olhar que se enfrenta à cena.
A pesquisa em arte não tem a capacidade de produzir resul-
tados quantificáveis. Seu objeto de trabalho tem como suporte a
experiência subjetiva – o que acontece no processo de trabalho
do ator, e no fenômeno da recepção não é repetível. Pode ser es-
tudado e até compreendido, mas não pode gerar leis que sejam
aplicáveis com vistas a alcançar resultados específicos. Não é
isso que pretende a arte. Seu mandato é a construção de proces-
sos intersubjetivos para a criação de novos objetos da cultura,
novas falas sobre o mundo, e a geração de territórios estéticos.
A arte pode ser compreendida como uma fala que nos lembra
quem somos. Merleau-Ponty diz que: “o artista é aquele que fixa
o drama no qual todos somos ativos, ainda quando não temos
noção disso” (1990, p. 108).
É preciso estar alerta para perceber que quando nossa pes-
quisa se vincula somente ao campo da própria pesquisa, isto é,
quando produzimos objetos que apenas encontram espaços de
circulação entre os próprios pesquisadores, podemos estar nos
divorciando daquilo que é fundamental na nossa atividade.
Nestas circunstâncias, esta ruptura seria resultado de uma
autorreferência de um modelo de academia que se alimenta de
seus próprios produtos, o que nos conduz de forma quase ime-
diata ao território da mercadoria da produtividade universitária.
Enfraquecem-se então os vínculos sociais dessa produção, que
seria originalmente da ordem do pensamento sobre a criação, o
que reforçaria a dicotomia pensar-fazer. Nestas condições, im-
peraria a lógica simplificadora segundo a qual os artistas fariam,
e os pesquisadores universitários teorizariam, e se abriria uma
brecha irremediável entre os dois polos do fazer artístico.
Ainda que seja arriscado afirmar quais deveriam ser os sen-
tidos da pesquisa, dado que um elemento fundamental do de-
senvolvimento científico é a liberdade de trabalho dos investiga-
dores, é lícito discutir esse assunto. Consciente do risco de toda
norma que estabelece limites, cabe refletir se uma teoria que não

Pesquisa como construção do teatro 25


encontre ressonância no fazer criativo, não cumpriria apenas a
simples função de existir, transformando-se somente em uma
peça no mecanismo burocrático das universidades, das agências
de fomento, e de um funcionalismo que representa a morte da
pedagogia e do questionamento.
As dissertações e as teses ganham uma dimensão mais com-
plexa quando sua realização representa um espaço de formação
para seu autor e um instrumento de diálogo com práticas e ex-
periências dos outros. Ainda que isso se dê de forma capilar com
o terreno da criação.
Pela especificidade de se tratar de uma pesquisa em artes da
cena, nossa produção deveria ter a ambição, como o teatro ar-
taudiano, de “contaminar como uma peste” aqueles que fazem a
arte, já sejam como espectadores ou como artistas.
Por essas razões, quando refletimos sobre metodologia de
pesquisa devemos considerar em primeiro lugar as conexões
existentes entre o pesquisar e as falas da cena, as tensões e apro-
ximações do investigar com o criar. Ao mesmo tempo, devemos
abordar a pesquisa como um ato de criação artística, construin-
do nosso olhar de investigação com um olhar de alguém que cria
a própria noção de teatro. Devemos ter a ambição de intervir no
curso das experiências criativas, e compartilhar com estas, pro-
cedimentos e visadas. É necessário aprender com quem reali-
za, e dividir com estes, formas de leitura do objeto criativo. Isso
pode ser muito importante limitando olhares autoritários, que
têm a vocação para encontrar nos objetos estudados aquilo que
se procura previamente.
No entanto, assumir tal atitude não deveria implicar um
servilismo ao fazer artístico. A pesquisa não precisa adquirir a
forma de uma investigação aplicada para estar conectada com
o ambiente da prática. O elemento central é evitar que a mes-
ma só proponha interface com a própria produção de objetos
de pesquisa se deslocando irremediavelmente do território da
arte. Discutir isso é uma tarefa para os pesquisadores na hora de
delimitar seus objetos de estudo. É preciso identificar os tecidos
de inter-relação com as diferentes formas do fazer teatral, ainda
que seja fundamental não restringir essa reflexão a um pragma-

26 Pesquisa em artes cênicas


tismo funcionalista que situe os projetos de estudo ao formato
da pesquisa aplicada. A preocupação por discutir as operações
da pesquisa em artes cênicas, suas relações com as práticas ar-
tísticas não precisa nos conduzir a um ponto extremo de um co-
nhecimento servil ao registro da história, ou à contextualização
das obras criativas.
Retomando o problema da identificação de quais são os pos-
síveis caminhos que relacionam o ambiente da pesquisa como o
território da criação, vemos que no caso das artes cênicas, este
tipo de conexão pode-se dar de forma direta. Uma boa parte dos
objetos de pesquisa prática está tão intrinsecamente relaciona-
da com o grupo humano diretamente comprometido com o pro-
cesso laboratorial, que os resultados obtidos repercutem quase
que exclusivamente na produção artística daquele grupo. Isso,
no entanto, não invalida a investigação, pois no nosso campo se
trata de realizar pesquisas experimentais que têm como princi-
pal foco a gestação de novas poéticas. Esse é nosso lugar prefe-
rencial, ainda que não exclusivo.
No campo das ciências médicas, ou da física, é difícil que um
objeto de pesquisa se circunscreva ad infinitum nos quadros
da própria fala acadêmica, que circule e repercuta apenas entre
pesquisadores. Os desdobramentos em áreas aplicadas é quase
uma decorrência do próprio processo de produção de novos co-
nhecimentos, e das dinâmicas de associação com questões não
respondidas no terreno concreto do dia a dia. Um procedimento
experimentado por uma equipe de um laboratório poderá não
ter aplicação prática imediata, mas certamente cruzará com as
inquietações de outro time de pesquisa podendo vir a responder
uma pergunta ignorada pela primeira equipe. Isso é uma prática
comum em campos de pesquisa nos quais as conexões entre di-
ferentes investigações promovem a elaboração de respostas para
problemas socializados no ambiente dos pesquisadores. Entre
aqueles que pesquisam o teatro esses processos se dão de forma
muito diferente. Apesar de compartilharmos referências teóri-
cas, fontes e objetos, entre nós do teatro e da dança, não existem
práticas de compartilhamento de problemas de pesquisa de for-
ma tão estendida. Nossos objetos costumam ser mais particula-

Pesquisa como construção do teatro 27


res. Nossas práticas de intercâmbio de pesquisa costumam não
explicitar problemas comuns a serem abordados por diferentes
equipes de pesquisadores com o fim de se alcançar uma solução
coletiva, e uma validação compartilhada.
Um exemplo que podemos tomar é o caso das reflexões sobre
o teatro contemporâneo. A delimitação de formas de um teatro
que se define por procedimentos diversos do drama moderno
ganhou uma nomenclatura proposta nos últimos anos pelo pes-
quisador Hans Thiers Lehman – “teatro pós-dramático”. O livro
homônimo do professor alemão instalou entre os pesquisadores
brasileiros a discussão sobre o campo conceitual que delimitaria
aquele teatro que se formula como uma cena contemporânea. A
partir dessa proposta teórica nosso ambiente fez escolhas concei-
tuais, e até desenvolveu projetos de pesquisa, mas isso nada tem
a ver com a circulação de um problema teórico compartilhado,
explicitamente proposto junto à comunidade de pesquisadores,
ao redor do qual diferentes grupos se estruturam para respon-
der teoricamente e experimentalmente, buscando formalmente
a validação das hipóteses, pois não há respostas comuns a serem
alcançadas.
Na nossa área as proposições conceituais funcionam muito
mais como provocações que promovem discussões, estimulam a
reflexão ao redor de ideias que não têm a vocação de se transfor-
marem em axiomas para futuras pesquisas. Usamos conceitos
como balizas para novas abordagens. Como afirmam Fernando
Pinheiro Villar e José Da Costa, no texto “Operando nas frontei-
ras: três apontamentos sobre perspectivas metodológicas” refe-
rindo-se ao objeto de estudo das artes cênicas:

[A] amplitude de objetos de estudo implica tam-


bém numa multiplicidade de possibilidades de
abordagens metodológicas que se movimentem
nesse terreno em permanente expansão, que é
a arte contemporânea e seus conceitos, hipóte-
ses, teses e anti-teses relacionadas. (...) Tanto nas
poéticas quanto nas teorias, a transformação da

28 Pesquisa em artes cênicas


linguagem cênica em permanente devir desafiam
taxonomias seguras. (p. 131)5

A função fundamental da pesquisa é fabricar o Teatro. É de-


sarticular e reconstruir nossa noção do que é o Teatro. Pesquisa-
mos para fazer o Teatro, não para conservá-lo, ainda que pesqui-
sando-o, nós o preservamos. Mas mesmo quando se faz pesquisa
histórica o que predomina é a fabricação de novas ideias e possi-
bilidades para o Teatro, pois o que se dá são processos de releitu-
ras, reescrituras do Teatro como fala.
O que é construir uma noção de Teatro? É, basicamente, ler
as diversas experiências criativas descobrindo como a própria
linguagem da cena reformula seus princípios e suas articula-
ções, tanto com as outras linguagens artísticas quanto com os
processos gerais da cultura. Essa é a esfera onde o pesquisador
pode representar um papel central, dado que a especificidade de
sua tarefa permite a intervenção direta na formulação de noções,
conceitos e hipóteses que constituem uma “fala” particular sobre
o Teatro. Essa fala é especial porque sistematiza o pensamento
que circula ao redor do discurso artístico, contextualizando-o e
criando tensões com os projetos dos criadores. A sistematização
que os estudos teatrais propõem, além de estabelecer uma his-
tória das artes cênicas, permite que os realizadores percebam
possíveis relações com a trama dos processos de criação e a for-
mulação de projetos técnico-estéticos.
Por isso, toda pesquisa implica experimentar um atrito com
a tradição. Ainda que a pesquisa constitua parte da tradição, ela
se caracteriza por fazer com que aquela se desloque em novas
direções. Só nessa perspectiva podemos entender a prática in-
vestigativa como algo central na produção do Teatro como fe-
nômeno cultural complexo. Cada nova versão sobre o Teatro
que nasce das pesquisas exige reposicionamento tanto da cena
quanto dos olhares dos espectadores e dos críticos. As interven-
ções no sistema de ideias e formas que compõem o Teatro – já

5. PINHEIRO VILLAR, Fernando e DA COSTA, José. In CARREIRA, André e outros


(Org.). Metodologias de pesquisa em Artes Cênicas (Memória ABRACE IX). Rio de
Janeiro: Ed. 7 Letras. 2006.

Pesquisa como construção do teatro 29


venham da criação, como da pesquisa –, determinam ajustes na
nossa compreensão dos significados dessa arte, bem como suas
relações com os outros fenômenos da cultura. Por isso, pode-se
dizer que pesquisar é produzir espaços de interação nos quais
operam criadores, pesquisadores, acadêmicos e o público mais
ou menos especializado.
O universo da pesquisa teatral oriunda das universidades é
complexo e múltiplo. Entre os milhares de livros, e entre as cen-
tenas de teses e dissertações que se produzem sobre o Teatro na
atualidade, muitos estão fadados ao completo esquecimento
como produtos – talvez alguns sobrevivam na estante de alguma
mãe cuidadosa. Mas mesmo, frente à hipótese do esquecimento,
deve-se reconhecer que certamente todos esses trabalhos tive-
ram alguma importância em seu processo de produção, consti-
tuíram momentos de intercâmbio, geraram falas sobre o Teatro,
e representam traços de algum processo de formação. Estes tex-
tos foram parte de experiências, que com suas diferentes pers-
pectivas e contextos, implicaram na fabricação do nosso saber
teatral.
O ato de realizar o esforço de pesquisa, a prática de constru-
ção desse conhecimento, tem um valor intrínseco que vai além
do produto final. Isso não implica dizer que os produtos não te-
nham importância, mas sim reconhecer e valorizar o ato da pes-
quisa como prática cultural. De outra maneira, seria impossível
considerar os processos de criação como investigação. É neces-
sário aprimorar nosso olhar para poder contemplar como a cria-
ção também pode contribuir modulando os procedimentos de
pesquisa.
Muitos são os procedimentos empregados na busca da com-
preensão do objeto artístico; muitas são as abordagens meto-
dológicas utilizadas. As opções são variadas, mas pode-se dizer
que apesar dessa diversidade uma premissa básica que devemos
considerar é que é importante se pesquisar criando espaços de
diálogo. Investigar estabelecendo processos de compartilha-
mento aproxima a pesquisa do fazer teatral.
Deixando de lado a pretensão de encarar a pesquisa em artes
cênicas como uma possibilidade real de elucidar novos proble-

30 Pesquisa em artes cênicas


mas e completar de forma cabal lacunas do conhecimento or-
ganizado, poderemos compreender melhor o próprio processo
de investigação como objeto de estudo. Isso é assim, porque no
nosso campo a pesquisa interfere – como processo e como pro-
duto – nos rumos criativos da cena.
Considero importante encarar a pesquisa como processo co-
letivo. Ainda que não se possa afirmar que o trabalho com coleti-
vos é essencial para a produção de uma pesquisa em teatro, dado
que se podem ver muitas produções relevantes que resultam do
mergulho individual de um pesquisador sobre um tema, o exer-
cício com o coletivo tem características que redimensionam o
próprio saber produzido.
O trabalho compartilhado traz para a pesquisa tanto a am-
pliação das possibilidades de questionamento do objeto abor-
dado quanto a intensificação do processo de aprendizagem da-
queles envolvidos no projeto investigativo. O cruzamento das
experiências faz com que a ação dos investigadores dialogue de
modo polivalente com um objeto multifacetado. Assim, pode-se
supor uma replicação do modo de recepção do espetáculo tea-
tral dentro do projeto de pesquisa.
Ainda é interessante dizer que sempre que pesquisamos
considerando uma perspectiva dialógica entre a investigação
e a criação, poderemos relacionar melhor as diversas falas que
constituem o sistema das artes cênicas. Considerar o processo
de criação de um elemento central de estudo, e entender o fazer
artístico também como pesquisa, supõe intensificar nossa per-
cepção dos processos individuais e subjetivos. A arte é sempre
uma promessa de conexão entre o individual e o coletivo, e esse
é o território ao qual nossa pesquisa pertence, ou deveria perten-
cer para sermos fiéis ao nosso objeto de estudo.
Ainda que nosso modelo de Pós-graduação enfatize a relação
de tutoria na qual os pares orientadores/orientandos são fun-
damentais nos projetos de pesquisa, vários desenvolvimentos
mostram que a interferência de diferentes vozes propõe tensões
criativas que não somente multiplicam as possibilidades dos
projetos como definem os processos como eixo e foco da inves-

Pesquisa como construção do teatro 31


tigação. Assim, esta recuperaria aquilo que é basal no teatro, isto
é, a experiência, o compartilhar, viver o entre.
Trabalhar no contexto de grupos de pesquisa é articular tra-
mas de intercâmbio nas quais devem interferir todos os partici-
pantes como igualdade de oportunidades. Quando se trabalha
com um grupo onde um estudante de iniciação científica pode
dialogar diretamente com mestrandos, doutorandos e doutores
experientes se ampliam as possibilidades de que o objeto de es-
tudo seja permanentemente redimensionado. As facetas de um
objeto de pesquisa são definidas pelos olhares que se depositam
sobre o mesmo, e só a diversidade de perspectivas pode produzir
as tensões necessárias para que o objeto seja o suficiente estimu-
lante para gerar falas que animem novos processos de pesquisa
(acadêmica ou artística).
Finalmente, cabe reafirmar a noção de que a pesquisa é ele-
mento fundamental da fabricação da arte teatral, mesmo quan-
do saibamos que não podemos pretender chegar a verdades
absolutas.

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Pesquisa como construção do teatro 33


Ter experiência da arte:
para uma revisão das relações teoria/prática
no contexto da nova teatrologia1

Marco de Marinis2
Tradução: André Carreira

Devo advertir que faz algum tempo que já não me interesso qua-
se pela semiótica do teatro no sentido estritamente disciplinar
do termo (se tal sentido existe verdadeiramente, por outro lado).
Meus interesses atuais se dirigem para uma nova teatrologia
que se esforça por ser multidisciplinar e experimental ao mes-

1. Este texto reproduz comunicação apresentada em uma mesa redonda sobre


o futuro da semiótica do teatro que teve lugar em Atenas em janeiro de 1994. Al-
guns fragmentos desta comunicação foram, no entanto, utilizadas em uma carta
aberta a Eugenio Barba em resposta a uma sua. (Barba De Marinis, 1994). Tradu-
ção do espanhol por André Carreira. Texto também publicado no livro La Puesta
en Escena en Latinoamérica: teoría y práctica teatral, organizado por Osvaldo Pe-
llettieri e Eduardo Rovner, Galerna/GETEA, Buenos Aires, 1995.
2. Professor de História da Cenografia e História do Teatro e do Espetáculo no De-
partamento de Música e Espetáculo da Faculdade de Letras e Filosofia da Universi-
dade de Bolonha. É autor de diversos livros, entre os quais Teatro e Comunicazione
(1977), Semiotica del Teatro - L‘Analisi Testuale dello Spettacolo (1982), Il Nuovo Te-
atro 1947-1970 (1987) e Mimo e Teatro del Novecento (1993).
mo tempo (De Marinis, 1988). Nesta nova teatrologia a semióti-
ca representa simplesmente um componente, ainda que muito
importante, porque é ela, enquanto ciência da significação e da
comunicação, a quem se confia a tarefa de proporcionar o marco
teórico geral e, consequentemente, funcionar como epistemolo-
gia metadisciplinar dos estudos teatrais. A reflexão que eu quero
propor nesta ocasião se inscreve no centro dos meus interesses
teóricos atuais e – ainda que ela não seja explicitamente semióti-
ca – aborda nada menos que as questões que, segundo creio, de-
veriam ser importantes para quem se ocupa da análise semiótica
do teatro no sentido estrito do termo.
Tomo como ponto de partida uma carta muito importante es-
crita por Constantin Stanislavski em fevereiro de 1937, um ano an-
tes de sua morte. A carta está dirigida a Aleksej Ivanovic Angarov,
membro da Cheka, polícia política, que havia reclamado – a pro-
pósito do seu livro O trabalho do ator sobre si mesmo – a obscuri-
dade de termos como “intuição”, “inconsciente” etc. exigindo que
Stanislavski respondesse “concretamente às pessoas sobre o sig-
nificado do sentimento artístico”. Aqui estão os fragmentos mais
importantes da resposta do grande ator e diretor russo:

Meu livro não tem pretensões científicas. Meu


fim é exclusivamente prático. Quero ensinar aos
atores principiantes uma correta aproximação à
arte. A terminologia que eu adotei neste livro não
foi inventada por mim, mas sim pela prática, pela
linguagem dos formados e dos principiantes. Eles
mesmos, no transcurso do trabalho, encontraram
as definições de suas sensações artísticas. Sua ter-
minologia é válida em porque é compreensível
para todos os que entram em contato com a arte.
(Stanislavski, 1988, p. XV)3

Quero deter minha atenção (e a do leitor) sobre a pequena


frase final de Stanislavski: “para todos os que entram em contato
com a arte”. De certa forma, meu artigo pode ser enfocado como
um ensaio de interpretação dessa expressão.

3. Texto traduzido por Fausto Malcovati.

36 Pesquisa em artes cênicas


Sobre a carta de Stanislavski, e em particular sobre a pequena
frase que acabo de assinalar, Eugenio Barba já dirigiu sua aten-
ção no seu livro A Canoa de Papel, no centro de uma reflexão
sobre a natureza particular da linguagem dos artistas-teóricos.
A tradução que ele propõe da frase em questão é ligeiramente
diferente daquela que eu encontrei na edição italiana do livro do
grande diretor: “Sua terminologia é válida porque ela é compre-
ensível para todos aqueles que têm experiência na arte” (Barba,
1993: 208)4. Eu não tenho ainda a possibilidade de revisar o texto
em russo, mas proponho adotar a versão de Barba porque é mais
válida e mais ambígua (e pode resultar útil à discussão, como se
verá posteriormente).
Em todo caso, o objetivo que Stanislaviski se propõe ao escre-
ver esta carta a Angarov é muito claro: defender seu trabalho da
acusação de misticismo (acusação perigosa naqueles tempos...),
precisando que os termos que ele utiliza não têm nenhuma pre-
tensão científica, se trata de jargão de trabalho que emprega às
vezes expressões obscuras, inclusive esotéricas, mas para se refe-
rir a coisas muito concretas e muito precisas – assim sendo bem
compreensíveis “para todos que têm experiência da arte”. Sem
nenhuma dúvida Stanislaviski pensa aqui nas pessoas do teatro,
em todos aqueles que trabalham em nível prático no teatro, e em
primeiro lugar nos atores.
Este episódio, junto a outros semelhantes que concernem
a Meyerhold, Artaud e Grotowski, serve a Barba para abordar a
espinhosa questão dos equívocos e mal-entendidos que a lin-
guagem dos artistas-teóricos não cessa nunca de provocar nos
historiadores do teatro e nos teatrólogos. A principal razão deste
mal-entendidos lhe parece muito clara:

Quando Stanislaviski fala de “inconsciente”,


Meyerhold (a propósito de palavras) do “bordado
sobre a trama dos movimentos” ou Craig da “Über-
Marionette”, os equívocos não nascem da falta de
precisão ou do caráter metafórico da expressão,
mas do fato de que somente algumas poucas pes-

4. Grifo de De Marinis.

Ter experiência da arte 37


soas, entre as que escutam ou lêem, têm experiên-
cia da arte5. (Ibid, 209)

Nestes casos – escreve Barba então – “se torna mais difícil


compreender a referência técnica, concreta, circunstanciada,
dessas expressões que se tornam metáforas volúveis”. Mas, o que
Barba entende por “ter experiência da arte”? No seu livro há ou-
tro momento no qual a questão se coloca de uma forma mais
precisa: se trata da conclusão do capítulo II, intitulado Definição.
Aqui, propondo justamente a definição de “Antropologia Teatral”,
afirma que uma das vantagens dessa nova aproximação ao teatro
reside no fato de permitir superar esse tipo particular de etno-
centrismo “que observa o teatro sob o ponto de vista somente
do espectador, isto é, do resultado”, e negando assim o ponto de
vista complementar do processo criativo dos atores e dos outros
práticos (ibid., 25). Segundo o diretor ítalo-dinamarquês, fun-
dador do Odin Theatret, esse tipo de etnocentrismo tem muitos
condicionamentos, e além disso condiciona a pesquisa histórica
sobre o teatro:

A compreensão histórica do teatro está normal-


mente bloqueada e esgotada pelo feito de ignorar a
lógica do processo criativo, e pela incompreensão
para com o pensamento empírico dos atores, isto
é, a causa da incapacidade de superar os limites
estabelecidos pelo espectador. (...) Comumente
(...) que escreve a história do teatro enfrenta com
os testemunhos que surgem de improviso, sem ter
uma experiência suficiente dos processos artesa-
nais dos espetáculos. Consequentemente, corre o
risco de não fazer da história mais que amontoado
de deformações da memória. (Ibid., p. 26)

Está totalmente claro que neste texto, o sintagma “ter experi-


ência suficiente dos processos artesanais do espetáculo” não re-
presenta nada mais que o equivalente da fórmula stanislaviskia-
na “ter experiência da arte”.

5. Grifo de Barba.

38 Pesquisa em artes cênicas


Então, para Barba, o historiador do teatro, e, em geral, o tea-
trólogo, deve “ter experiência da arte”: o que significa, segundo
ele ter uma experiência profunda do trabalho da criação teatral
e em primeiro lugar do trabalho do ator, indo além dos resulta-
dos, os espetáculos, aos quais se limita necessariamente a expe-
riência do espectador comum, para referir-se aos processos que
os produzem. No entanto, não fica claro à primeira vista, qual é
a natureza, quais são os caracteres dessa experiência direta dos
processos artesanais da criação teatral que o historiador do tea-
tro deveria adquirir. Se trata somente de uma experiência pas-
siva, enquanto “observador participante” (segundo a fórmula
elaborada sobre o campo da antropologia cultural), ou se trata
também de uma experiência ativa prática? Ou ainda mais, do
conjunto de uma e da outra?
É difícil encontrar uma resposta precisa a respeito no livro
de Barba. Não obstante, conhecendo-o desde faz muito tempo,
e trabalhando com ele desde muitos anos para a ISTA (Interna-
tional School of Theatre Anthropology), posso afirmar com certo
grau de segurança que ele pensa nos dois tipos de experiência ao
mesmo tempo.
No entanto, agora, eu gostaria de abordar esta questão de
uma maneira um pouco mais sistemática, partindo do ponto de
vista que fixamos com a ajuda de Barba (e de Stanislavski): não se
pode ser um bom ator historiador ou um teórico do teatro, sem
ter, ou haver tido, também uma experiência técnica (artesanal)
dessa arte. A questão a ser colocada é então a seguinte: que tipo
de experiência técnica? Dito de outro modo é possível compre-
ender uma técnica teatral, e em particular a técnica do ator, sem
exercer ou sem havê-la exercido diretamente, isto é, sem haver
tido também, de alguma maneira, uma experiência ativa?
A comparação com outros campos artísticos poderia nos aju-
dar, possivelmente:
■ Alguém pode compreender um afresco de Miguelangelo ou
um quadro de Picasso sem ser pintor ou, ao menos, sem ha-
ver feito uma experiência ativa das técnicas?

Ter experiência da arte 39


■ Alguém pode compreender a técnica ária-recitado na ópera
italiana sem ser cantor ou músico?
■ Alguém pode compreender a montagem cinematográfica
sem ser diretor ou técnico de montagem?
■ Alguém pode compreender a técnica narrativa de Joyce
(Ulisses) sem ser escritor?

Generalizando mais, eu me pergunto: é possível compreen-


der uma arte, falar e escrever sobre ela, estudar o ponto de vista
histórico e teórico, sem ser também um produtor ou ao menos,
um praticante aficionado dessa arte?
Colocada assim a questão, segundo eu creio, não pode ter,
em primeira instância, mais que uma resposta afirmativa, cuja
razão teórica repousa sobre a distinção entre o conhecimento-
compreensão, por um lado, e o uso, por outro lado; dito de outro
modo, entre saber e saber fazer, e entre competência passiva (co-
nhecimento sem uso) e competência ativa (conhecimento com
uso). Ou desde um ponto de vista teórico, enquanto que o saber-
fazer implica o conhecer, o conhecer não implica no saber-fazer.
Por outra parte, a experiência cotidiana nos mostra normalmen-
te a dissociação entre conhecimento e uso, entre saber e saber-
fazer, sobretudo no caso de códigos e convenções especializa-
das, muito técnicas, muito difíceis, como são geralmente aquelas
que pertencem à arte do ator (para todas estas distinções, ver De
Marinis (1982, 160-196).
Uma primeira conclusão já se apresenta. Não existe um único
tipo de experiência e de compreensão do teatro, existem vários,
e ao menos, três tipos:
1. a experiência-compreensão do artista de teatro, e, em parti-
cular, do ator, fundada sobre uma competência ativa, mais ou
menos explícita;
2. a experiência-compreensão do espectador comum, fundada
sobre uma competência passiva e quase implícita, intuitiva
(dito de outra maneira não teórica, em termos teóricos);

40 Pesquisa em artes cênicas


3. a experiência-compreensão do teatrólogo, fundada princi-
palmente sobre uma competência passiva mas fortemente
explícita (teórica).

Antes de precisar os traços específicos da experiência-compre-


ensão do teatrólogo, gostaria de propor uma advertência. As expe-
riências-compreensões que acabo de definir representam as três
maneiras diferentes de fazer teatro. Se trata aqui de uma questão
muito importante. Pode-se fazer teatro não somente produzindo
espetáculos, senão também vendo-os, estudando-os, escreven-
do sobre o tema, analisando seus contextos, investigando seus
processos etc. O que se disse também a propósito de uma certa
subestimação do espectador (comum) na antropologia teatral de
Barba e no trabalho de alguns historiadores que se remetem a ele
(por exemplo, cf. Barba-Savarese (Eds.) 1991). O espectador não
é um ator fracassado, mas sim um dos protagonistas da relação
teatral (da mesma maneira em que não se pode evidentemente
considerar ao leitor como um escritor fracassado).
Mas se ver teatro é um dos muitos modos de fazê-lo, então “ter
experiência de arte” não significará unicamente praticá-la direta-
mente, de maneira ativa, senão também, justamente contemplá-
la, estudá-la etc. Posso então voltar à experiência-compreensão
do teatrólogo e a seu propium, que consiste fundamentalmente
no fato de dever dar conta dos outros dois tipos de experiência-
compreensão: aquela do artista de teatro, e em particular do ator,
e aquela do espectador comum. Como? Essencialmente fazendo
sua história, isto é, inserindo-os em um contexto mais amplo,
seja horizontal (sincrônico), seja vertical (diacrônico).
Voltando à questão da qual partimos (o que significa para o
historiador-teórico do teatro, para o teatrólogo, “ter experiência
da arte”, se pode responder em seguida de uma maneira mais
analítica. Para ele, “ter experiência da arte” significa ao mesmo
tempo:
1. ter experiência do processo teatral: o que por sua vez implica:
a) conhecer e seguir o trabalho do ator (e de outros práticos);

Ter experiência da arte 41


b) ter experiência também de práticas diretas do trabalho do
ator (e de outros práticos);
2. ter experiência do resultado teatral, isto é:
a) experimentar espetáculos enquanto espectador;
b) ter experiência da recepção dos espetáculos, estudando os
espectadores comuns.

Para concluir com esse tema, estou de acordo com Barba e


com os teatrólogos que se valem da antropologia teatral sobre o
fato de sublinhar a importância, para o historiador e o teórico do
teatro, de uma experiência (inclusive prática) dos processos tea-
trais, e em particular do trabalho do ator, mas recuso uma certa
subestimação de sua parte, da experiência do produto espetacu-
lar e da recepção do espectador (comum). Generalizando, não
estou de acordo (e já disse várias ocasiões: ver por exemplo, De
Marinis, 1988, p. 120-121; 1992, p. 189) com respeito à separação
demasiado rígida, dicotômica, que Barba e outros parecem pos-
tular entre processos e produto e suas lógicas respectivas.
5. Em minha opinião, as possibilidades atuais de propor uma
aproximação científica ao teatro, que possa escapar das armadi-
lhas e dos atoleiros das aproximações propostas anteriormente,
estão ligadas em grande medida a uma revisão radical das rela-
ções entre a teoria e a prática e, antes ainda, das noções mesmas
de teoria e de prática no caso do teatro. É aqui onde reside, se-
gundo meu ponto de vista, a contribuição mais fecunda da ISTA,
alcançada em sua oitava sessão (v. Vários, 1994).
Em um artigo publicado faz quatro anos na revista Teatro e
Storia com o muito sugestivo título de Carta sobre uma ciência
dos teatros, Ferdinando Taviani (um dos colaboradores mais pró-
ximos de Barba e a ISTA) afirmava:

uma ciência dos teatros, para transformar de ideia


em trabalho, deve poder agrupar a análise teórica
com a experiência daqueles que fazem teatro. (....)
Toda ambiguidade de uma ciência possível dos te-
atros resulta do fato de recusar a combinação da
pesquisa sobre as técnicas com a pesquisa histórica,

42 Pesquisa em artes cênicas


sem se contentar com escapatória oferecida por uma
“história das técnicas” (Taviani, 1990, p. 172-173)

Dois anos depois, outro membro da ISTA, Nicola Savarese, re-


tormou à proposição de Taviani agregando as seguintes palavras:

Não é suficiente relatar os fatos se os fatos não res-


pondem às questões e às dúvidas e às dúvidas pro-
fissionais que propõem e propuseram aqueles que
praticam o teatro (Savarese, 1992, p. 451)

Combinar a pesquisa sobre as técnicas com a pesquisa histó-


rica: esse programa poderia ser adotado como uma das divisas (e
dos desafios) para a nova teatrologia, mas é absolutamente evi-
dente que será possível unicamente sob a condição de proceder
a uma revisão radical não somente das relações teoria/prática,
mas também, e imediatamente, dos próprios conceitos de teo-
ria e de prática no terreno do teatro. Dito de outro modo, esta
revisão não poderá se limitar a empurrar os teóricos para as ex-
periências práticas diretas e, vice-versa, a incitar os práticos (os
artistas) a adquirir uma maior consciência teórica e cultural.
Pelo contrário, esta dupla revisão deverá implicar também, e
especialmente, no esclarecimento da dimensão prática do fazer
que é próprio da teoria teatral enquanto tal, e reciprocamente da
dimensão que é própria, ao menos implicitamente, do trabalho
prático ao menos de uma maneira implícita.

Referências bibliográficas
BARBA, Eugenio. La canoa de carta. Trattato di antropología teatrale.
Bologna, Il Mulino, 1993.
BARBA, Eugenio e DE MARINIS, Marco. “Due lettere sul pre-espressivo
dell’atore. Il mimo e I rappoti fra pratica e teoria”. In: Teatro e Stoira, p.
16, 1994.
BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. The secret art of the performance. A
Dictionary of Theatre Anthropology. London, Routledge, 1991.

Ter experiência da arte 43


DE MARINIS, Marco. Semiotica del teatro. L’analisis testuale dello spetta-
colo. Milano, Bompiani, 1982.
__. Catire il teatro. Lineamenti di una nuova teatrologia. Firenze, La Casa
Usher, 1982.
__. A scuola di teatro con Faust. In: Techniche della representazione e sto-
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SAVARESE, Nicola. Teatro e Spettacolo fra Oriente a Occidente. Bari, La-
terza, 1992.
STANISLAVISKI, Constantin. Il Lavoro dell’attore sul personaggio. Bari.
Laterza, 1988.
TAVIANI, Ferdinando. Letterza su uma scienza del teatri. In: Teatro e Sto-
ria, 9. 1990. VARIOS. The Tradition of ISTA. FILO. Londrina, 1994.

44 Pesquisa em artes cênicas


Paragens de um artista-docente-pesquisador

Narciso Telles1

todo texto é um prólogo (ou um esboço) no mo-


mento em que se escreve, e uma máscara mortu-
ária alguns anos depois, quando não é outra coisa
a não ser a figura já sem vida desta tensão que o
animava. (LARROSA, 2002, p. 133)

Como pesquisamos? Para quem escrevemos? Como escrevemos?


Estas questões e outras tantas que podem surgir ao longo de uma
prática de pesquisa foi e têm sido objeto de reflexão em vários
Congressos e reuniões científicas da Associação de Pesquisa e
Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE). Preocupados em
construir um diálogo entre experiências diversas na pesquisa em
Artes Cênicas como possibilidade de compreender melhor nos-

1. Ator e professor do Curso de Teatro e do Programa de Pós-graduação em


Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pesquisador do Núcleo de
Criação e Pesquisa Teatral e membro do Coletivo Teatro da Margem. Dirigiu re-
centemente o espetáculo “A Saga no Sertão da Farinha Podre” (2010). Autor do
livro Pedagogia do teatro e o teatro de rua (Mediação, 2008) e organizador (com
Adilson Florentino) do livro Cartografia do Ensino do Teatro (EDUFU, 2009). Pes-
quisador Pq-CNPq.
so compromisso intelectual e político, os pesquisadores laçaram
seu olhar para as pesquisas realizadas nas universidades e a re-
cepção destas pelo seu público-alvo, artistas e professores. Re-
tomo aqui tal questão como uma preocupação que tenho como
artista-docente-pesquisador, especialmente quando o objeto
de minhas investigações se situa na área da pedagogia do tea-
tro e processos criativos, num constante processo de pesquisa [e
orientação] em que a relação entre prática e teoria é recolocada
e problematizada.

Primeira Paragem:
o [não] lugar da pesquisa
Os projetos de pesquisa que desenvolvo estão localizados no
Curso de Teatro (bacharelado e licenciatura) e no Programa de
Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia.
Este último, criado em 2007, constitui-se na classificação da CA-
PES como um programa misto, pois congrega pesquisadores das
áreas de Artes Cênicas (teatro e dança), Música e Artes Visuais.
Possui uma única área de concentração ARTES e duas linhas de
pesquisas: processos e práticas em Artes & Fundamentos e refle-
xões em Artes.
A linha de processos e práticas em Artes, à qual estou vincula-
do, congrega pesquisas ligadas à visualidade, à plástica, ao corpo,
à atuação, ao texto e à música, articulando reflexão, processos de
criação, ensino e aprendizagem.
A minha trajetória como pesquisador em Teatro, passou de
investigações sobre a história do espetáculo e da atuação para
pesquisas centradas em dois eixos: a) improvisação: procedi-
mentos e conceitos e b) relações de [trans]formação do artista
cênico em vários espaços e práticas. Assim, meus projetos são:

Aprender a aprender: os viewpoints como


procedimentos de atuação e jogo

Os viewpoints como procedimentos de criação foram desenvol-


vidos pela diretora norte-americana Anne Bogart, compostos

46 Pesquisa em artes cênicas


por Pontos de Vista (Viewpoints), divididos em duas categorias
(tempo e espaço), que o performer aciona para desenvolver seu
trabalho. O presente projeto de pesquisa visa verificar e analisar
a utilização destes procedimentos no jogo atorial e sua viabilida-
de no processo de aquisição de repertório para a criação de es-
petáculos e performances e para as práticas de ensino do teatro.
A investigação envolve processos teórico-práticos por meio de
estudo de fontes bibliográficas e de experimentação prática de-
senvolvida através de exercícios de improvisação e composição
com alunos do Curso de Teatro (Licenciatura e Bacharelado) e
em espetáculos do Coletivo Teatro da Margem.

Artista-Docente: modos de formar, maneiras de agir

Parte I: Práticas Latino Americanas


O objeto desta investigação são as práticas de ensino do teatro
desenvolvidas por artistas e professores nos diversos espaços de
formação formal e [in]formal. Nessa primeira etapa, a pesquisa
estará centrada em experiências realizadas na América Latina na
busca de compreender o processo de formação do artista cênico
latino americano a partir da experiência da Escola Internacio-
nal da América Latina e Caribe (EITALC) e seus desdobramentos
contemporâneos no campo da pedagogia do teatro.
Estes projetos abrigam um coletivo de pesquisadores em
vários níveis de formação: pesquisadores PIBIC-Junior (ensino
médio); PIBIC (CNPq e FAPEMIG), PINA/PROEX (Iniciação Ar-
tística) e mestrandos junto ao Programa de Pós-graduação em
Artes da UFU.
A questão que alimenta estas pesquisas gira em torno do que
podemos considerar Pesquisa EM Artes, seus modos de escrita
e registro, suas possíveis fontes, seus métodos e teorias. Neste
percurso podemos já tecer alguns apontamentos: um primeiro
seria um campo de tensão entre [ou diálogo] arte e ciência. Na
área de artes, especialmente artes cênicas, uma primeira gera-
ção de pesquisadores veio de outros campos do conhecimento,
ciências humanas, letras, filosofia entre outros. O olhar sobre o
fenômeno artístico era formulado por estes campos em observa-

Paragens de um artista-docente-pesquisador 47
ção à arte. Daí que os primeiros estudos estavam centrados nas
áreas de história e crítica literária. Estes pesquisadores tiveram
decisivo papel para o início e consolidação dos estudos teatrais
nas Universidades Brasileiras e na criação dos programas de Pós-
graduação em Artes [Cênicas].
Porém, os cânones da pesquisa científica e suas estruturas
metodológicas determinaram a forma de compreensão do fenô-
meno artístico aceito no “mundo acadêmico”, seguindo modelos
hegemônicos que balizam o sistema de produção do conheci-
mento. Paralelamente, a própria ciência, ao longo do século XX,
também começou a discutir os seus parâmetros de construção do
conhecimento. A ciência pós-moderma ao colocar “em xeque” al-
guns elementos constituintes da ciência clássica, oferece ao cam-
po das Artes uma ampliação de modos de pesquisa “acadêmica”.
Boaventura Souza Santos em seus escritos tem discutido a
constituição de um novo paradigma em relação à ciência mo-
derna; segundo o autor, o paradigma emergente recoloca novas
bases para o conhecimento científico, que não pode ser apenas
um paradigma científico, tem de ser um paradigma social.
Nesta “nova” perspectiva epistemológica, as principais carac-
terísticas são:
a) Todo o conhecimento científico-natural e científico-so-
cial: perde-se o sentido da oposição entre real e construí-
do. Assim como, a distinção entre sujeito/objeto sofre uma
transformação;
b) Todo o conhecimento é local e total: a ciência pós-moderna
trabalha, não sobre a ótica da especialização e disciplinari-
zação, mas na perspectiva de pluralidade/transgressão meto-
dológica, na qual os acervos metodológicos são recolocados
em diversos contextos de pesquisa;
c) Todo conhecimento é autoconhecimento: ressalta-se a im-
portância do sujeito-pesquisador na produção do conheci-
mento. A presença/voz – situação/posição do pesquisador é
algo significativo para o conhecimento científico;

48 Pesquisa em artes cênicas


d) Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso
comum: a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de
conhecimento é, em si mesma, racional: só sua configuração.
Assim, entende que existe um diálogo entre os saberes (coti-
diano/prático e o científico/analítico).

As características do paradigma emergente apontadas por


Souza Santos (1998) podem nos auxiliar na discussão da pesqui-
sa EM Artes, pois permitem um alargamento da compreensão e
das qualidades da pesquisa artística fundada no sujeito-criador-
pesquisador, muitas vezes ancoradas nas suas questões éticas,
estéticas e técnicas, mas também nas relações entre a produção
artística de outros sujeitos, como é o caso das pesquisas em tea-
tro aplicado.
Florentino ao considerar o teatro “como objeto de conheci-
mento” dá a este campo artístico um estatuto epistemológico
não cientificista, mas na pluralidade de olhares/práticas/escri-
tas que os pesquisadores podem ter.

O discurso teatral, a função teatral e a prática teatral


se relacionam de modos diferentes em cada uma
das questões acima, porque as respostas produzem
distintas visões sobre o teatro, ou seja, produzem
diferentes concepções de teatro. (2009, p. 10)

Esta pluralidade de temas, métodos e enfoques pode ser ve-


rificada nas publicações da Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE) e já apresentam o
alargamento da pesquisa em Artes Cênicas e seus diálogos e ten-
sionamentos com a pesquisa científica.

Segunda Paragem:
a Prática Pensamento na pesquisa
em Artes [Cênicas]
Nesta paragem focalizo meu olhar para o que tenho chamado
de Prática Pensamento do pesquisador em Artes [Cênicas]. Tal
ideia pode ser vista por dois aspectos: um da intrínseca relação

Paragens de um artista-docente-pesquisador 49
entre o pesquisador e o material de análise, sem distanciamento
científico e de outro modo pelas pesquisas que tem na prática
artística seu início e fim, muitas vezes, sem alusões explícitas ao
campo teórico acionado.
O primeiro aspecto já foi por mim mencionado em texto
anterior sob o título “A experiência como atitude metodológi-
ca” (TELLES, 2008, p. 19). Cito aqui alguns pontos do texto que
considero relevantes para a compreensão do meu [não] lugar de
artista-pesquisador.
A experiência como atitude de pesquisa poderá proporcionar
ao pesquisador e pesquisados a possibilidade de pertencer-se uns
aos outros e ao mesmo tempo poder-ouvir-se-uns-aos-outros.
O pedagogo Jorge Larrossa Bondía define o termo experiên-
cia como, “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca”. E continua:
“a cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece” (2002, p. 21). Para ele o sujeito moder-
no encontra-se submerso no mundo da informação, o excesso
de opinião, da falta de tempo e excesso de trabalho.
Por sua vez, o sujeito da experiência

[...] se define não por sua atividade, mas por sua


passividade, por sua recepção, por sua disponibili-
dade, por sua abertura. Trata-se [...] de uma passi-
vidade feita de paixão, de padecimento, de paciên-
cia, de atenção, como uma receptividade primeira,
como uma disponibilidade fundamental, como
uma abertura essencial. (BONDÍA, 2002, p. 24)

Neste sentido, este sujeito se expõe à vulnerabilidade e ao ris-


co na construção de seu saber.
Para Larrosa, o saber da experiência é aquele que se dá entre
o conhecimento e a vida humana, ou seja, é o que adquirimos na
medida em que respondemos ao que nos acontece ao longo da
vida. Diz ele:

O saber da experiência tem a ver com a elaboração


do sentido ou sem-sentido do que nos acontece,

50 Pesquisa em artes cênicas


trata-se de um saber finito, ligado à existência de
um indivíduo ou de uma comunidade humana
particular [...] Por isso, o saber da experiência é
um saber particular, subjetivo, relativo, contingen-
te, pessoal. [...] O saber da experiência é um saber
que não pode separar-se do indivíduo concreto em
quem encarna. Não está como o saber científico,
fora de nós, mas somente tem sentido no modo
como configura uma personalidade, um caráter,
uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma
humana singular de estar no mundo, que é por sua
vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma es-
tética (um estilo). (Ibidem, p. 27)

Esta noção também está presente nas reflexões do teatrólogo


Marco De Marinis. De Marinis enuncia, pelo menos, três tipos de
experiência-compreensão no campo teatral:
1. a experiência-compreensão do artista de teatro, e em particu-
lar do ator, fundada sobre a competência ativa;
2. a experiência-compreensão do espectador comum, fundada
sobre uma competência passiva e quase implícita, intuitiva;
3. a experiência-compreensão do teatrólogo, fundada princi-
palmente sobre uma competência passiva mas fortemente
explícita (teórica). (MARINIS, 1995, p. 60)

A tipologia da experiência-compreensão, apresentada pelo


teatrólogo Marco De Marinis, apresenta-se como uma perspec-
tiva de trabalho investigativo na área da pedagogia do teatro,
tomando-se como referência a experiência-compreensão do ar-
tista-docente fundada sobre a competência ativa, ou seja, pelos
meandros do saber-fazer-ensinar teatro e suas dinâmicas. Nes-
te trabalho, nosso objeto de investigação se localiza no lugar da
prática, pois todos os processos de ensino-aprendizagem aqui
analisados estão focados no trabalho prático e técnico do ator.
A experiência e o seu explicar são conceitos também aciona-
dos pelo biólogo do conhecimento Humberto Maturana em seus
estudos sobre o conhecimento e a linguagem. Maturana chama

Paragens de um artista-docente-pesquisador 51
atenção para o fato de que frequentemente juntamos o explicar
com a experiência que queremos explicar: “explicar é sempre
propor uma reformulação da experiência a ser explicada de uma
forma aceitável para o observador” (2001, p. 40). Assim, a experi-
ência para ser explicada necessita de uma reformulação que ga-
ranta sua aceitação como tal. Para explicar a experiência, Matu-
rana observa dois caminhos: o da objetividade-sem-parênteses
e o da objetividade-entre-parênteses.
No primeiro caminho explicativo agimos como se fosse váli-
do em função de uma referência a algo que existe independente
de nós. Aceitamos que “existe uma realidade transcendente que
valida nosso conhecer e nosso explicar, e que a universalidade do
conhecimento se funda em tal objetividade” (p. 46).
O segundo caminho é defendido pelo autor como o mais indi-
cado para explicar a experiência, pois “colocando a objetividade-
entre-parênteses, eu dou conta de que não posso pretender que
eu tenha a capacidade de fazer referência a uma realidade inde-
pendente de mim” (p. 47). Este percurso explicativo não traba-
lha com a existência de uma verdade absoluta nem de verdades
relativas, mas com a existência de muitas verdades em campos
distintos.
A explicação da experiência sempre se ancora em práticas
experienciais, na observação de um dado fenômeno e na nos-
sa leitura deste ato, pois a experiência ocorre no fazer. “O que se
faz, simplesmente acontece” (p. 57). Nesta explicação, múltiplos
domínios de realidade são acionados, construindo um caminho
explicativo a partir das coerências das práticas experienciais do
observador, ou seja, a análise de um processo no qual estamos
inseridos como partícipes é demarcada pelo conjunto de ativi-
dades vivenciadas por nós na experiência. Esta vivência é única
para cada pessoa e possibilita que cada um possa fazer uma ex-
plicação diferenciada sobre uma dada experiência.
Se ampliarmos esta ideia, podemos admitir que a experiência
constitui um caminho viável para a pesquisa teatral a que nos
propomos, na medida em que viabiliza a aquisição corpóreo-
sensorial dos procedimentos de atuação propostos pelos grupos
investigados. Pretendemos, ao procurar explicar um conjunto de

52 Pesquisa em artes cênicas


experiências vividas pelo pesquisador, contribuir com os pro-
cessos de investigação teatral no qual o pesquisador se encontra
corporalmente envolvido e cujos objetivos estejam vinculados à
análise das ações cotidianas existentes em processos de criação
e/ou de ensino-aprendizagem.
Cientes deste campo de tensão, operamos o conceito de ex-
periência, na perspectiva de um trajeto de indissociabilidade en-
tre pesquisa acadêmica, prática pedagógica e prática artística.
Esta noção possibilita a compreensão e a percepção das di-
nâmicas cotidianas engendradas nestes objetos de análise, pois
focalizam as relações existentes entre um experimentador/agen-
te e as zonas de experiência/ação, em seus aspectos espaciais,
organizativos e de vivência corpóreo-sensorial.
A experiência como atitude metodológica do pesquisador EM
Artes, se configura como uma posição do sujeito-pesquisador
frente ao fenômeno artístico que determina um olhar/escrita
específica sobre seu objeto de estudo, no qual elementos de sub-
jetividade estão presentes na própria estruturação da pesquisa e
também no processo de análise do material. A [IM] parcialidade
do pesquisador é explícita durante o curso da pesquisa. São as
escolhas do artista-pesquisador que vão configurá-lo como su-
jeito da pesquisa. Não defendo, com isto, que nas pesquisas EM
Artes que objetivam a criação de um objeto artístico (espetáculo,
figurino, cenário etc.), como dissertação ou tese, não dialoguem
com outros campos e/ou artistas, não correndo o risco de ficar
no ensimesmamento.

Terceira Paragem:
o processo colaborativo na pesquisa em Teatro
No percurso como artista-pesquisador fiz a opção por desen-
volver minhas pesquisas no âmbito de um grupo de pesquisa.
Esta escolha definiu os procedimentos de trabalho e a rotina de
pesquisa de que participo. Ao concluir meu doutoramento em
Teatro (2007) e retornar, depois de quatro anos, para minhas ati-
vidades docentes, resolvi criar um grupo de pesquisa a partir do

Paragens de um artista-docente-pesquisador 53
Projeto docente. Naquele momento 11 alunos de graduação em
Teatro e um das Artes Visuais mostraram interesse em partici-
par de encontros semanais práticos-teóricos sobre os temas em
questão. Surge aí o Coletivo Teatro da Margem, grupo que agora
abriga também estudantes de Pós-graduação no exercício cole-
tivo de pesquisa.
Nossa estrutura de trabalho está organizada em dois mo-
mentos: os ateliês de criação, no qual as atividades práticas da
pesquisa são colocadas, resultando espetáculos, demonstrações
de trabalho e exercícios abertos de improvisação & encontros de
discussão bibliográfica, nos quais os textos (produzidos ou não
pelos pesquisadores) são colocados em discussão e dialogam
com as questões levantadas nos ateliês. Cada pesquisador tem
seu projeto próprio de pesquisa que estão articulados ao projeto
“guarda-chuva” do professor orientador.
Nos ateliês, muitas vezes, a coordenação fica a cargo de um
aluno de graduação ou Pós-graduação e, eu, participo na con-
dição de artista das atividades propostas. Tal postura – ética,
política e estética – me coloca também em questão, pois todo
o processo de criação ou ensino/aprendizagem é composto por
inúmeras variáveis que tanto o artista quanto o professor não
determina a priori. Aqui aparece um outro ponto fundamental
para minha trajetória: a não dissociabilidade entre criação, en-
sino e pesquisa em teatro. Se colocar como pesquisador, neste
caso, é correr riscos e não pretender buscar a “verdade científi-
ca”, ou mesmo comprovar hipóteses. Nossas pesquisas partem
de questões que podem ser resolvidas en-cena ou não, nossas
fontes são estes encontros, nosso repertório.

El repertorio, por otro lado, tiene que ver com la


memória corporal que circula a través de perfor-
mances, gestos, narración oral, movimiento, dan-
za, canto – em suma, a través de aquellos actos que
se consideran com un saber efímero y no reprodu-
cible. (TAYLOR, 2003, p. 3)

Do processo de coleta e seleção do material até a organiza-


ção dos próximos encontros e leituras passamos por um pro-

54 Pesquisa em artes cênicas


cesso de “seleción, memorización o intenalización, y transmisi-
ón” (TAYLOR, 2003, p. 4). O exercício do ser/estar na pesquisa
realizada nos ateliês é feita pelo pesquisador, quando este traz à
consciência as vivências corpóreo-vocais, que acontecem ape-
nas no momento presente, em que este se encontra envolvido no
fazer/ensinar do grupo de pesquisa.
Mas como registrar EM TEXTO, este tipo de pesquisa? Esta é
a questão para os pesquisadores que têm a [sua] prática artística
como lócus de investigação. Como bem nos lembra Lévi-Strauss
“[...] onde o observador é da mesma natureza que o objeto, o ob-
servador, ele mesmo, é uma parte de sua observação” (In: MI-
NAYO, p. 14).
A pesquisa etnográfica tem como característica principal o
contato direto e prolongado do pesquisador com as pessoas ou
grupos selecionados para estudo. Tal metodologia coloca o pes-
quisador como o principal instrumento de coleta e análise dos
dados.
Uma outra característica importante é a preocupação do et-
nógrafo em dar ênfase ao processo, àquilo que está ocorrendo,
e não ao produto. Assim, o pesquisador deverá apreender este
movimento por meio de um trabalho de campo intenso, minu-
cioso e atento.
A chamada etnografia pós-moderna aciona estes mesmos
pressupostos re-formulando a escrita etnográfica clássica numa
gradativa diluição das fronteiras que separam o “sujeito” do “ob-
jeto” de pesquisa, o que possibilita a construção de um discurso
dialógico e polifônico na análise do objeto em questão, assim
como uma mistura entre a escrita científica e literária ou a pró-
pria dissolução entre eles. (GONÇALVES, 2008, p. 155)
Nessa perspectiva a prática etnográfica se aproxima dos pro-
cessos de criação artística, pois torna-se possível a análise de
processos nos quais o pesquisador em artes pode se colocar ao
mesmo tempo como artista e como investigador. Para Gonçalves
o texto etnográfico faz “com que reflitam também a sombra das
inúmeras mãos que não os escrevem, mas participam, em vários
níveis, da sua construção (p. 157). Daí seu uso por diversos cam-

Paragens de um artista-docente-pesquisador 55
pos de conhecimento, abarcando “o ‘significado’ que as pessoas
dão às coisas e à sua vida.” (LÜDKE & ANDRÉ, 1986, p. 12)
Na pesquisa que desenvolvi analisando as práticas pedagó-
gicas teatrais, acompanhei ativamente oficinas de teatro de rua
ministradas por cada agrupamento. Minha atividade não foi
constituída apenas de observação de uma determinada relação
de ensino-aprendizagem; tive uma participação efetiva, na me-
dida em que me coloquei na condição de aluno em atividade,
vivenciando com/em meu corpo os exercícios e atividades pro-
postas em cada coletivo teatral para a formação de atores. (TEL-
LES, 2008)
Após a conclusão desta etapa de pesquisa, iniciei minhas ati-
vidades no Programa de Pós-graduação em Artes da UFU, orien-
tando dissertações cujo percurso metodológico se dava pela
prática artística do discente-pesquisador. Ali propunha que a ex-
periência como atitude metodológica e a escrita etnográfica con-
duzissem o olhar sobre o objeto ou sujeitos investigados. Nesse
percurso de orientação, ainda em andamento, tenho percebido
que as relações entre teoria e prática estão sendo revistas, ao in-
véz de serem campos separados e incomunicáveis na produção
do conhecimento em artes cênicas, tornam-se momentos corre-
latos no movimento da pesquisa. Ora a teoria mobiliza a prática,
ora a prática rever a teoria e assim sucessivamente.

Paragem Final: [in]conclusões


O percurso que faço como pesquisador e orientador tem me co-
locado questões em torno da construção do conhecimento na
área de Artes Cênicas, especialmente em Teatro, me levando a
propor re-visões nos métodos mais clássicos da pesquisa acadê-
mica e também entendendo este processo como um exercício
criativo em diálogo com o objeto de investigação. Uma delas é o
processo de escrita.
Michel Foucault em A Ordem do Discurso levanta a hipótese
que a produção discursiva é engendrada por uma gama de proce-
dimentos que a localizam dentro de um corpo social e que torna
esta produção algo mediado por estratégias e táticas de poder.

56 Pesquisa em artes cênicas


Nos procedimentos de exclusão são destacados: a interdição
que impede que o discurso seja “libertário” em seu enunciado,
pois não podemos dizer de tudo em qualquer circunstância; a
separação e a rejeição que localiza os discursos em suas auto-
rias garantindo ou não sua legitimidade perante o ouvinte. Te-
mos ainda a vontade de verdade que “apoiada sobre um suporte
e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros
discursos uma espécie de pressão e como que um poder de co-
erção” (FOUCAULT, 1996, p. 18). O discurso verdadeiro deve se
libertar do desejo e do poder não podendo reconhecer esta von-
tade de verdade que o atravessa.
Nos procedimentos internos ao discurso, são mencionados: o
comentário que dá visibilidade ao que estava escondido no texto
primeiro, o autor e a organização das disciplinas cria os limites
para a criação do discurso de forma em que estes e suas regras
sejam sempre reatualizadas.
Foucault aponta ainda um terceiro grupo de procedimentos
que possibilitam o controle dos discursos, que “determinam as
condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que
os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir
que todo mundo tenha acesso a eles” (p. 36). Ou seja, só com-
preenderá o discurso aquele que dominar seus mecanismos de
decifração. A própria escrita já determina tais mecanismos, pois
estrutura-se com base em sistemas de coerção, no qual cada in-
divíduo deverá ser instrumentalizado para adentrar na ordem do
discurso. Tal papel em nossa sociedade é realizado pelo sistema
educacional que se fundamenta na “política de manter ou de
modificar a apropriação dos discursos, com saberes e os poderes
que eles trazem consigo.” (p. 44).
Mais do que levantar hipóteses para uma possível comprova-
ção, me proponho a levantar problemas, perguntas que possam
nortear minha pesquisa artístico-acadêmica e colocar os pres-
supostos teóricos que utilizo nas análises empreendidas. Assim
que re-conheço o meu trajeto artístico e de pesquisador. Proble-
matizando as práticas e formas da Pesquisa EM Artes, podemos
apresentar tanto as especificidades deste campo quanto suas
aproximações com outras áreas do conhecimento.

Paragens de um artista-docente-pesquisador 57
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Durham: Duke University Press, 2003.
TELLES, Narciso. Pedagogia do teatro e teatro de rua. Porto Alegre: Me-
diação, 2008.

58 Pesquisa em artes cênicas


As artes circenses e a pesquisa no Brasil

Mario Fernando Bolognesi2

Abordar o tema das pesquisas em artes circenses, no Brasil, re-


quer atenção a dois universos específicos e complementares:
o primeiro deles diz respeito à prática artística, que envolve o
ensino e a pesquisa de números e habilidades circenses; depois,
os estudos que tematizam o circo, que têm por base a própria
prática artística, presente ou passada, de natureza reflexiva, pe-
dagógica, histórica, teórica etc.
Muitas companhias circenses, tanto as empresariais quanto
as familiares, ainda desenvolvem em seu ambiente interno a pes-
quisa de novos números, bem como o ensino do ofício circense
aos mais jovens. A prática cotidiana e o convívio grupal e familiar
ainda permitem a manutenção de um modelo de formação (toda
formação envolve ensino e pesquisa) que se fundamenta na ex-

2. Bolsista em Produtividade e Pesquisa, nível 2, do CNPq. Professor Titular


do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação
do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,
Campus de São Paulo (SP). Tem experiência na área de Artes/Teatro/Circo, com
ênfase em estética, encenação, interpretação e dramaturgia, atuando principal-
mente nos seguintes segmentos: circo brasileiro, palhaços, comédia e cômico
circenses.
periência concreta da profissão. A empiria predominante nesta
modalidade permite um aprendizado minucioso que é constan-
temente testado, desde tenra idade, no próprio espetáculo. O
momento espetacular se transforma em experiência e aprendi-
zado, provocando a incorporação e/ou a rejeição de gestos, mo-
vimentos, posturas, evoluções, sonoridades etc.
Fora do ambiente do circo itinerante se desenvolve igualmen-
te uma gama significativa de pesquisas artísticas, espontâneas e/
ou incentivadas por organismos públicos. Os praticantes, apren-
dizes e pesquisadores que a elas se dedicam não são, no geral,
oriundos do meio circense. Originários majoritariamente do te-
atro ou da dança, a procura pelas artes circenses amplia o leque
de possibilidades cênicas. As pesquisas artísticas investem, em
sua maioria, na aproximação da técnica e da habilidade circen-
se com os recursos cênicos que compõem a prática do teatro e
da dança contemporâneos. Os recursos conhecidos e praticados
recebem novas concepções cenográficas, coreográficas, drama-
túrgicas e de encenação. O foco, portanto, está centrado em uma
maneira diferenciada de se conceber e construir um espetáculo
circense, propício a ocupar tanto os picadeiros dos circos quan-
to os palcos dos teatros, ou mesmo o espaço público das ruas e
praças. No geral, esses artistas procuraram a formação circense
um pouco tardiamente, o que dificulta, em parte, o avanço no
aprendizado das técnicas e habilidades circenses as mais sofisti-
cadas, que são intrinsecamente ligadas e condicionadas ao físico
e, também, à idade. Nesse aspecto, as escolas de ensino das artes
circenses, que se tornaram realidade, no Brasil, a partir da déca-
da de 1980, têm papel de destaque no incentivo a novas formas
de concepções espetaculares, bem como na pesquisa e no ensi-
no de técnicas arrojadas, que claramente aludem ao avanço da
arte circense.
As iniciativas educacionais das escolas e dos próprios artistas
circenses procuram avançar os limites técnicos e artísticos co-
nhecidos e praticados em sua modalidade e resultam em núme-
ros e espetáculos que se disponibilizam ao público apreciador,
por meio de apresentações e temporadas diversas, em ambien-
tes variados. Quando os números criados se voltam ao picadeiro,

60 Pesquisa em artes cênicas


eles tanto podem se inserir em espetáculos já existentes, levados
adiante por companhias constituídas, quanto podem propor
espetáculos novos, com olhares diferenciados acerca das artes
circenses. Basta um mínimo esforço de historicidade para reco-
nhecer que as artes circenses na atualidade avançaram e recon-
quistaram os seus liames com as outras artes.
As pesquisas que se enquadram na segunda modalidade, a
saber, aquelas de natureza escrita, no Brasil, estão em franca ex-
pansão. Elas se desenvolvem, fundamentalmente, a partir de três
instâncias promotoras: universidades, programas governamen-
tais e espontâneas. As primeiras vinculam-se a instituições uni-
versitárias de ensino e pesquisa e envolvem professores, pesqui-
sadores, alunos de graduação, de mestrado e de doutorado. As
segundas decorrem de programas vinculados a políticas públi-
cas, oriundas, portanto, da iniciativa governamental, acionadas
nacionalmente por intermédio da Fundação Nacional de Artes
– Funarte, ou pelas secretarias, departamentos e outros organis-
mos de cultura, nos âmbitos estadual e municipal. Iniciativas
particulares de admiradores e/ou praticantes das artes circenses
se encaixam na terceira vertente. Em todas essas três instâncias,
no entanto, encontram-se pesquisas de teor prático-artístico,
didático-pedagógicas e histórico-teóricas, quando não, todas,
ou duas delas, conjugadamente. Ou seja, no rol das pesquisas
encontram-se aquelas diretamente vinculadas à investigação de
linguagem artística, que resultam na montagem de novos núme-
ros e atrações, às vezes resultando em descrições técnicas, as pe-
dagógicas, voltadas para a sistematização do ensino das artes do
circo, e as de natureza histórico-teóricas, destinadas ao registro
e à reflexão das habilidades circenses no âmbito maior das artes
e da cultura.
Os trabalhos investigativos, oriundos das universidades e ou-
tras instituições de pesquisa, transformam-se em dissertações,
teses, trabalhos de conclusão de curso e são disponibilizados ao
público por intermédio das bibliotecas das instituições que as
incentivam, ou então se tornam acessíveis através da internet.
Nem todos os trabalhos estão disponibilizados na rede mundial
de computadores, quer seja porque a universidade não se asso-

As artes circenses e a pesquisa no Brasil 61


ciou a programas dessa natureza, quer seja porque o autor não
autorizou tal forma de publicação. Algumas pesquisas acadêmi-
cas se transformam em livros, ou capítulos de livros, disponíveis
no formato papel, ou, mais recentemente, no formato digital.
Outras resultam em artigos, que são publicados em revistas es-
pecializadas de difusão científica e cultural.
As pesquisas fomentadas por programas de governo nem
sempre encontram formas apropriadas de se tornarem públicas.
Delas resultam trabalhos monográficos que ampliam o acervo
bibliográfico e arquivístico das instituições promotoras. Nesse
aspecto, o acesso a elas torna-se um tanto quanto dificultado,
uma vez que nem ao menos passam a compor qualquer base de
banco de dados bibliográfico que oferecem diretrizes de busca
mais apropriadas. Algumas das pesquisas fomentadas por orga-
nismos governamentais, contudo, nos últimos anos, receberam
publicação no formato papel e, com isso, alcançam um público
leitor mais amplo.
Quanto às pesquisas próprias da terceira vertente, ou seja,
aquelas de iniciativa pessoal, advindas de um envolvimento par-
ticular do pesquisador com o circo, só são possíveis de se conhe-
cer quando se transformam em livros, algumas vezes financia-
das por organismos públicos, ou por exclusivo investimento de
seus autores ou de colaboradores. Mas, se as edições de livros e
revistas inviabilizam a difusão desses estudos, os meios digitais
vieram a suprir essa dificuldade. A organização e manutenção de
endereços eletrônicos na rede de computadores, que se voltam
exclusivamente ao circo, tornaram-se uma realidade e oferecem
informações acerca do estágio atual da arte no país.
De qualquer forma, o mercado editorial privado ainda não
despertou maior interesse para o potencial crescente da temáti-
ca circense, não obstante o resultado positivo de algumas publi-
cações resultantes de incentivos públicos, universitários e/ou de
outros órgãos governamentais.
No que tange ao perfil dos pesquisadores, de um modo geral,
dado o tom memorialista predominante (mas não exclusivo), as
pesquisas espontâneas são efetivadas por artistas, técnicos, em-
presários ou admiradores das artes circenses, cuja dedicação e

62 Pesquisa em artes cênicas


envolvimento com a arte demandaram a necessidade de fazer
conhecer, ao público externo, saberes específicos das artes do
picadeiro. Os pesquisadores incentivados por programas públi-
cos de fomento e os vinculados às universidades apresentam um
perfil misto e envolvem tanto artistas praticantes quanto estu-
diosos da arte circense, quando não as duas situações a um só
tempo.
Quanto aos assuntos abordados no interior dos grandes te-
mas (o circo e as artes circenses) os estudos realizados no âmbito
acadêmico se voltam – majoritária, mas não exclusivamente – às
abordagens dos palhaços. Algumas razões podem ser apontadas
para isso: a) o palhaço se aproxima das investigações próprias
das artes cênicas – campo de investigação relativamente sólido
no país; b) a personagem cômica que se consolidou no espetácu-
lo circense é objeto constante de apropriação pelos mais diversos
interesses sociais e culturais, desde a absorção comercial do tipo,
com vistas à propaganda e difusão de marcas e produtos, até sua
adoção como elemento de humanização de relações frias, obje-
tivadas e distanciadas, como as do ambiente hospitalar, dentre
tantas outras; c) a presença crescente do palhaço em espetácu-
los teatrais, notadamente os de ruas e praças, mas também os
de palco em ambientes fechados, também serve de estímulo ao
estudo. Muitas dessas pesquisas, no entanto, se voltam a experi-
ências particulares de atores-pesquisadores, que desenvolvem a
personagem com vistas à criação teatral. Nelas, o tom pessoal da
descoberta termina por prevalecer.
No âmbito universitário, contudo, diversos outros temas cir-
censes ganharam interesse. A inserção do circo na comunidade e
seu entorno, transformando-se, ainda que temporariamente, em
casa de difusão cultural e de lazer é tema relevante para pesqui-
sas nas áreas da sociologia e da antropologia. O circo-teatro vem
recebendo destaque em dissertações e teses, abrangendo des-
de o levantamento dramatúrgico e modos de encenação, como
também estudos dedicados a artistas que se consagraram na
modalidade. O circo, como motivo maior de programas de ação
social, também recebe a atenção dos estudos acadêmicos e trafe-
ga em áreas fronteiriças de investigação, recorrendo, portanto, à

As artes circenses e a pesquisa no Brasil 63


pedagogia, à antropologia, à sociologia, à política e às artes. Ou-
tra área que desperta interesse de pesquisadores universitários é
aquela voltada ao estudo das especificidades técnicas e artísticas
das habilidades circenses e, nesse caso, a interface dos estudos
em artes com os do corpo e da educação física são evidentes.
Boa parte das pesquisas desenvolvidas por praticantes e sim-
patizantes do circo, desprovidas de incentivo público, se voltam
à narrativa de saberes específicos, construídos, preservados e
ampliados no ambiente exclusivo da vida artística itinerante.
Constituem-se, predominantemente, de exposição escrita de
uma cultura oral e mnemônica, cuja prática é sedimentada no
convívio grupal. As memórias circenses se associam à explana-
ção pública de termos e conhecimentos técnicos específicos,
que dizem respeito a números artísticos, a aparelhos e instru-
mentos de execução de números, à casa de espetáculo, à mora-
dia, ao contato e convívio com a sociedade externa, às relações
com os poderes constituídos etc.
As pesquisas incentivadas por organismos e programas go-
vernamentais, no geral, são aprovadas por comissões julgadoras
que atestam a importância e a capacidade do proponente em
desenvolvê-las. Neste âmbito, os assuntos se proliferam e tem-se
desde levantamentos estatísticos de circos itinerantes (parciais,
é verdade, pois falta fôlego e vontade política suficientes para um
amplo senso no setor), até consolidação de centros de memórias
e pesquisas, passando por estudos que se dedicam a descrições
pormenorizadas de técnicas circenses específicas, ou mesmo es-
tudos históricos de grupos, companhias e trupes etc.
Dado o quadro heterogêneo que se apresenta, é mais do que
natural que haja disparidades entre essas três grandes modalida-
des estruturantes das pesquisas. Mas, desde já se deve assegurar
a validação delas, bem como apontar, a despeito da expansão,
para a ainda reduzida produção na área, tanto porque as univer-
sidades e instituições de pesquisa brasileiras estão longe de aten-
der a toda a demanda que lhes bate à porta, ou porque as verbas
alocadas nos programas de incentivo público não são suficientes
para cobrir a contento a pluralidade da arte circense que anseia
por investigação, ou então porque os custos para edição de obras

64 Pesquisa em artes cênicas


particulares restringem ainda mais a atuação dos pesquisadores
espontâneos.
As disparidades, no entanto, acionam o terreno fértil do di-
verso, na medida em que os conteúdos e suas respectivas formas
de abordagem apresentam diferenças notáveis. É claro que um
olhar ortodoxo imediatamente passaria ao julgamento de va-
lores e apresentaria um quadro de trabalhos aceitáveis e outro
descartável. Esse julgamento se centraria em valores que, dados
como sólidos pelo avaliador, se converteriam em ponto de par-
tida para selecionar, ao seu juízo, o joio do trigo, quase sempre
norteado por paradigmas que são alçados à condição de normas
e regras. Antes de tudo, configura-se em idiossincrasia o avaliar
comparativamente pesquisas forjadas em condições de desi-
gualdade estrutural, formal, metodológica, de formação e in-
formação dos pesquisadores, dos objetivos propostos para cada
uma delas etc.
Contudo, se para os casos incentivados e para os espontâne-
os não cabe a cobrança do rigor metodológico e teórico, mesmo
porque nem sempre seus pesquisadores têm formação episte-
mológica para seguir o perfil acadêmico – o que não seria de-
sejável, na medida em que induz a certa padronização das for-
mas de saberes –, o mesmo não se aplica às pesquisas forjadas
no âmbito das universidades e institutos de pesquisa. Nestas, o
rigor metodológico e teórico necessitam de realce, uma vez que
pretendem ocupar lugar de destaque no conhecimento consoli-
dado acerca do assunto.
As pesquisas desenvolvidas no âmbito universitário, que se
transformam em monografias, teses e trabalhos de conclusão
de curso, recebem a orientação de um profissional experien-
te, portador de título de mestrado ou doutorado e, ao final do
processo, passam pelo crivo de uma banca avaliadora. Nos dois
primeiros casos – teses e monografias – pesquisadores externos
à unidade geradora da pesquisa necessariamente participam da
constituição das bancas. Os trabalhos de conclusão de curso são
avaliados por professores da própria instituição. Os critérios de
análise, em todos os casos, realçam a importância do assunto, as
formas de tratamento, envolvendo aporte teórico e metodológi-

As artes circenses e a pesquisa no Brasil 65


co, bem como a contribuição da pesquisa, nos diversos níveis,
para o avanço do conhecimento acumulado. Aquelas que não
são submetidas a bancas (artigos, capítulos e livros), no geral re-
cebem avaliação por parte do conselho editor da revista e/ou da
editora promotora da publicação, depois de um parecer externo
ao conselho, que aponta as qualidades e os problemas do traba-
lho e indica (ou não) a publicação.
Nos organismos governamentais que incentivam a pesquisa
em artes circenses o procedimento é inverso: é constituída uma
comissão de avaliação dos projetos apresentados. Depois de
aprovado, o resultado final – a pesquisa desenvolvida e finalizada
– não recebe nenhuma espécie de avaliação. O julgamento dos
projetos leva em conta, sobretudo, a pertinência da proposta e a
capacidade do proponente em desenvolvê-lo. Critérios teóricos
e metodológicos não são relevantes para a aprovação ou rejeição
das propostas.
Tais diferenças são significativas, pois partem de pressupos-
tos diversos e almejam resultados cujo interesse nem sempre são
convergentes. O poder público tem o anseio quase que imediato
de visibilidade de suas ações. Ele contribui para o registro das
artes circenses sem se ater à solidez histórica, teórica e metodo-
lógica do trabalho incentivado. As instituições de pesquisa, por
seu lado, não se atêm a uma política de visibilidade e evidência
política e buscam a consolidação e o avanço do conhecimento
na área. Para tanto, o tratamento do material empírico, a atuali-
zação bibliográfica, a base histórica de sustentação da análise e o
suporte teórico são requisitos fundamentais para a consolidação
da pesquisa.
Assim, portanto, delineia-se a diversidade antes apontada. Evi-
dentemente, no que diz respeito às formas de validação das pes-
quisas, não foram abordadas aquelas de cunho prático-artístico,
mas tão somente as didático-pedagógicas e as histórico-teóricas,
em duas das modalidades incentivadoras: programas públicos
de incentivo à pesquisa em circo e as iniciativas levadas a cabo
no interior das universidades e demais instituições de pesquisa.
Aquelas oriundas da terceira instância, as espontâneas, não pas-
sam por qualquer instância de avaliação formal. Sua validação

66 Pesquisa em artes cênicas


(ou rejeição) acontece na vivência prática, na adoção (ou não) do
conhecimento produzido para nortear novas investigações.
Uma avaliação geral das pesquisas circenses, no Brasil, apon-
ta para a fragilidade do conhecimento histórico. A investiga-
ção de natureza histórica, absolutamente necessária – porque
se transforma em base para os demais estudos – tem recebido
atenção dos pesquisadores (em maior quantidade no ambiente
universitário, mas também nos programas institucionais), mas
ainda há muito a se avançar. A sua carência se manifesta no co-
nhecimento precário do circo universal, bem como do brasileiro.
A tendência atual em estabelecer uma polaridade entre o “circo
tradicional” e o “circo contemporâneo”, por exemplo, necessi-
ta de uma sedimentação conceitual e ela só se consolidará na
medida em que os conhecimentos históricos se tornem sólidos
e diversificados. O mesmo problema se estende à tentativa de
se diferenciar, no campo das teatralidades, a dicotomia entre
“clowns” e “palhaços”, vigente entre muitos praticantes e pes-
quisadores atuais. Assim, sem uma história consolidada (nem ao
menos uma história de tom positivista se consolidou, dedicada a
descrever, de forma abrangente, artistas, companhias, números,
atrações variadas etc.) os estudos acadêmicos avançam e certa-
mente apontarão para tal lacuna. Se a história de fatos e autores
não se efetivou, o que dizer de uma história do circo fundada em
matrizes artísticas e estéticas, que procura ampliar o sentido do
fazer circense e, portanto, inseri-lo contextualmente na articula-
ção com as outras artes, com a política, com a educação e com
as formas sociais de prática da cultura e do lazer? Eis um grande
desafio a ser enfrentado.

As artes circenses e a pesquisa no Brasil 67


A pesquisa em teatro:
a questão da palavra e da voz

Silvia Davini1

A saúde vocal é um pré-requisito indispensável para o trabalho


de atuação. É nessa base que se sustenta o trabalho intensivo
que os atores desenvolvem ao longo de sua formação e carreira
profissional. Porém, no caso das Artes Cênicas, é indispensável a
consideração da saúde vocal para além do coloquial, situando-
a no contexto da produção de voz em altas intensidades e com
flexibilidade tímbrica que a cena demanda. É importante notar
também que, enquanto pré-requisito, a saúde vocal não neces-
sariamente se estabelece no foco de pesquisa no campo das Ar-
tes Cênicas.
Muitas são as dimensões conceituais e metodológicas que
se abrem ao nos aproximarmos dos problemas que gravitam no
campo da produção da voz e da palavra em cena. Nesse contexto,
o Grupo V&C trabalha na definição de redes conceituais, técnicas

1. Ph.D. em Teatro pela University of London, Queen Mary College (2000), e gra-
duada em Música pelo Conservatório Municipal de Buenos Aires. Foi professora
do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília.
e metodológicas, que considerem o treinamento para a perfor-
mance no campo das artes como uma instância de flexibilização
do corpo para a produção de sentidos em cena. Nosso campo de
pesquisa começa no primeiro contato com o texto teatral e nos
processos de preparação e treinamento vocal para a cena, man-
tendo o foco de interesse ao longo dos processos de montagem.
Situados no campo da estética, apontamos à definição de uma
posição que, longe de procurar legitimação no discurso científi-
co, seja capaz de estabelecer uma relação dialógica com ele.
Nossa consideração da cena como performance teatral acen-
tua uma mudança de foco na abordagem conceitual do corpo
de quem atua e a incidência das tecnologias sobre ele. Falar de
performance teatral afina nossa ideia de atuação no sentido de
apresentar, fazer presente, atualizar. Essa aproximação ao per-
formativo/não representacional da cena nos afasta das noções
de interpretação ou representação. Pretendemos assim afastar
nosso campo da “literalização” operada pelos Estudos Teatrais
com relação à palavra no teatro, aproximando-nos da noção de
palavra enquanto ato.
A função reprodutora que tem adquirido o treinamento vocal
para a cena, e a indefinição entre as dimensões técnica, meto-
dológica e estética na formação de atores e cantores tampouco
têm contribuído para a consideração da voz e a palavra em per-
formance como campo de pesquisa conceitual e estética espe-
cífico. Não pretendo neste escrito expor questões referentes aos
nossos projetos de encenação. O ainda escasso desenvolvimen-
to das pesquisas na área me convoca para apresentar algumas
questões, interesses e resultados vinculados a pesquisas em an-
damento sobre as vocalidades na cena contemporânea. Porém,
antes de entrar no tema, creio necessário propor algumas refle-
xões preliminares.

Conceito, pré-conceito e “discursos automáticos”


A experiência permite questionar uma prática dada. Os questio-
namentos possibilitam a formulação de problemas e certa capa-
cidade de predição a respeito deles, habilitando a formulação de

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hipóteses. Basicamente, uma teoria surge de uma hipótese com-
provada com bons resultados. Formular uma hipótese implica
poder predizer e/ou explicar com exatidão algum problema,
suas causas e consequências. Por isso, o tempo verbal de uma
hipótese é sempre um condicional. Quando verificado, o tempo
será o presente e a formulação condicional da hipótese se tor-
nará afirmativa; então poderemos falar de teoria. A pesquisa é o
processo de verificação de uma hipótese. Se afirmarmos que sem
hipótese não há pesquisa nem teoria, podemos pensar a prática
metodológica e a prática conceitual como fases indissociáveis de
um mesmo processo de pesquisa.
Porém, os preceitos que sustentam boa parte do que cha-
mamos de “teoria” no campo do teatro não se vinculam expli-
citamente a hipóteses. De fato, frequentemente, argumentamos
com base em pressupostos cujo aparente consenso universal é
dissipado ao primeiro questionamento que, além de transmutar
em incerteza aquilo que parecia certo, tende a multiplicar as per-
guntas. No caso das vocalidades em performance, podemos co-
meçar perguntado: O que é a voz? E a palavra? Onde elas se dão?
Essa primeira série de perguntas se multiplicará em, por exem-
plo: O que é o corpo de quem atua e o que significa no contexto
da cena? Quais os limites entre a personagem, a pessoa, e quem
atua? O que é uma personagem? Entre outras, nos levando, em
última instância, a explicitar o que entendemos por teatro.
De um modo geral, associamos o pré-conceito a diversos tipos
de intolerância e discriminação, religiosa, racial ou de gênero,
por exemplo. Manifestando-se em atitudes hostis e irreflexivas,
o pré-conceito se apoia em argumentos superficiais e insuficien-
tes. Leva à generalização precipitada de experiências pessoais ou
sociais que, de acordo com os exemplos acima, se traduzem em
ofensas de diversos graus contra grupos religiosos, étnicos ou
categorias de gênero respectivamente. Mas, enquanto ideias ou
opiniões mais ou menos vagas, concebidos a priori, sem maior
conhecimento ou ponderação, o que são nossos “pressupostos”
senão “pré-conceitos”?
Enquanto pressuposto, o preconceito elude questionamen-
tos e argumentos, circunscrevendo-se ao domínio das crenças.

A pesquisa em teatro 71
Assim, questioná-los pode vir a explicitar o valor ideológico de
discursos que, de outro modo, continuariam articulando-se “au-
tomaticamente”. Os questionamentos abrem a possibilidade de
alguma definição. Afastando-nos do preconceito, o exercício de
definir nos aproxima do conceito. Identificar e descrever uma
realidade dada, contemplando seus diversos aspectos e mani-
festações, envolve a necessidade de assumir posições, simbó-
lica, ideológica e politicamente. Inclusive, trabalhar no sentido
de uma definição pode revelar que o arcabouço conceitual que
sustenta um dado pressuposto pouco ou nada tem a ver com o
que ele parece querer indicar. A dominância que tem adquirido
nas últimas décadas, no campo das Artes Cênicas, essas “mecâ-
nicas de pensamento” ou “discursos automáticos”, tem estendi-
do os pressupostos até questões cruciais como, por exemplo, a
voz, o corpo, a personagem. Tal situação sugere a necessidade de
revisar nossos referentes conceituais e metodológicos e expõe o
valor político da prática conceitual.
Porém, para formular questionamentos produtivos precisa-
mos de dados que somente podem surgir de uma experiência
adequadamente conduzida e registrada. Assim, realizar análises
de discurso dos textos de maior influência no teatro contempo-
râneo pode constituir-se em um bom ponto de partida para pro-
duzir esse tipo de dados, ao revelar o arcabouço conceitual que
sustenta a produção artística e acadêmica no campo das Artes
Cênicas. Como falamos indica como pensamos. Revelar os argu-
mentos que sustentam as “mecânicas de sentidos” dominantes
pode contribuir para dissipar elementos ingênuos, mágicos ou
místicos, do discurso teatral contemporâneo e, em consequên-
cia, restaurar muito da potência simbólica e política do teatro.
Uma análise de discurso pode ser realizada para comprovar
uma hipótese ou para produzir dados que, mais tarde, podem
contribuir para a formulação de problemas e/ou hipóteses. Da
mesma forma que o trabalho sobre uma hipótese, um procedi-
mento que produza dados se enquadra no campo da pesquisa
e requer, portanto, a aplicação rigorosa de procedimentos siste-
máticos. Podemos afirmar então que, como qualquer pesquisa,
a pesquisa em Artes Cênicas requer de rigor; não de “rigor cientí-

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fico”, mas da produção de um pensamento situado a partir de re-
ferências que definam o que entendemos por Artes Cênicas. Não
existem métodos ou procedimentos intrinsecamente adequados
ou inadequados para abordar um problema dado. Em cada caso,
a definição da metodologia a ser implementada responde às op-
ções conceituais consideradas como referência; daí a impossibi-
lidade de dissociar conceito e método.
Regular a pesquisa em Artes Cênicas pela lógica da ciência
constitui uma transferência discursiva direta; a importação de
uma gramática constituída de acordo com referenciais aceitos
socialmente como válidos, com a finalidade de legitimar o pró-
prio discurso. Longe de dar conta das peculiaridades das ques-
tões que nos ocupam, tal operação contribui para apagar os
contornos, já difusos, do lugar das Artes na contemporaneidade.
No meu livro, Cartografias de la Voz en el Teatro Contemporaneo,
exponho os resultados de minha análise de discurso dos textos
de Johan Sundberg1, Cicely Berry2, Kristin Linklater3, dedica-
dos à voz em performance, oferecendo dados para, entre outras
questões, detectar limites e articulações entre os universos das
Artes e das Ciências.
Situado no universo do canto, Sundberg parte da constatação
de que no campo da voz um único fenômeno pode ser nomeado
de diversas formas, para concluir que se trata de um problema
terminológico. Sua hipótese é que, portanto, a aplicação rigorosa
e sistemática da terminologia referente aos campos da engenha-
ria mecânica e eletrônica e às ciências exatas deveria ser sufi-
ciente para superá-lo. Porém, ao admitir que as emoções possam

1. Sundberg (1936) é Ph.D. em Musicologia e professor de Acústica Aplicada à


Musica no Department of Speech, Music and Hearing do Royal Institute of Tec-
nology, em Estocolmo. A voz cantada e a interpretação musical têm sido seus
objetos de pesquisa desde 1970. Sua abordagem da voz é a mais cientificista.
2. Formada na Central School of Speech and Drama de Londres, onde também
deu aulas, Berry tem dirigido o Departamento de Voz da Royal Shakespeare Com-
pany desde sua criação. Muito próxima profissionalmente de Peter Brook, seu
trabalho inaugura uma abordagem na preparação vocal para atores.
3. Linklater é formada em Interpretação Teatral na London Academy of Music
and Dramatic Art – LAMDA. Desde 1963 reside nos Estados Unidos e, desde 1997,
leciona Artes Teatrais na Columbia University, New York. Seu trabalho se aproxi-
ma das tendências vinculadas às novas terapias nos Estados Unidos.

A pesquisa em teatro 73
ter incidência sobre a voz, Sundberg demonstra que a terminolo-
gia aplicada é insuficiente para nomear a voz em performance. Se
bem é verdade que a falta de código terminológico impossibilita
a pesquisa no campo da voz em performance, também é verda-
de que a transferência terminológica proposta por Sundberg re-
sultará na abordagem da voz como uma máquina. Afinal, repito,
como falamos é como pensamos.
Diferentemente de Sundberg, que opera uma transferência
terminológica intensiva e extensiva, nos textos que se ocupam
da preparação vocal de atores, é frequente que o discurso cientí-
fico apareça sinteticamente, e orientado para o campo das ciên-
cias da saúde. Os textos que se seguem a este primeiro momento
não apresentam pontos em comum com a breve exposição sobre
fisiologia da voz, de acordo com a medicina Ocidental. Tal ope-
ração sugere que o papel do discurso da ciência nesses textos é o
de legitimar o próprio discurso com os argumentos de autorida-
de da medicina, neste caso. Entre muitas outras, as publicações
de Berry e Linklater ilustram esta outra atitude com relação às
ciências. Nesses casos, o científico exerce uma função de outor-
gar autoridade a textos que, explicitando um desejo de perma-
necer próximos da prática, apresentam indefinição conceitual.
Tal imprecisão resulta na prevalência, implícita nesses textos, de
ideologias dominantes.
O Teatro Antropológico realiza um outro tipo de esforço: o de
procurar uma legitimação da cena outorgando-lhe status cien-
tífico recorrendo a discursos vinculados a disciplinas do campo
das ciências sociais, como é o caso da antropologia, a semiótica
e os estudos da performance. Tal operação discursiva, à qual me
referirei abaixo de forma um pouco mais pontual, tenta colocar-
se além da legitimação, procurando uma aproximação da cena
à ciência. Porém, nesse esforço, perde-se o foco no que entendo
que seja o genuíno interesse das Artes Cênicas: o discurso e o
fato estético. Colocar as Artes Cênicas em diálogo com o discurso
das Ciências, exatas, da saúde, humanas ou sociais, requer, em
primeiro lugar de situá-las solidamente em seu próprio campo.
Uma posição dialógica requer de dois polos bem definidos de in-
terlocução. A ciência, no seu campo bem definido, avança hoje a

74 Pesquisa em artes cênicas


lugares que vêm inclusive a reafirmar certas correntes de pensa-
mento filosófico. Na década de 1960, enquanto nas Artes Cênicas
o foco se voltava para o teatro de laboratório e sua procura últi-
ma por raízes ancestrais e transcendência, os desenvolvimentos
da física quântica operavam um diálogo intenso com diversos
campos da ciência e com a filosofia.
Hoje, o trabalho de António Damásio sobre as emoções vem
a confirmar, da perspectiva da neurociência, a filosofia de Baru-
ch Spinoza, provando simultaneamente duas questões que creio
relevantes. Em primeiro lugar que, pelas suas características, o
pensamento filosófico pode se antecipar cronologicamente em
muito ao científico. Em seguida, que para estabelecer qualquer
tipo de relação entre diversos campos de conhecimento se re-
querem de posições sólidas situadas em campos bem definidos.
Não se abarca o fato estético nem a partir da ciência nem a par-
tir do pensamento ingênuo. Em sua potência e sutileza, o fato
estético define o lugar e o interesse, o problema e o assunto das
Artes.
O pensamento ingênuo tende a tomar como literal o que é
metafórico e como metáfora o que é literal e, finalmente, trans-
formá-lo todo em slogan. A recente apropriação de certos temas
no pensamento de Deleuze e Guattari no campo da pesquisa em
Artes Cênicas ilustra essa mecânica. Para Deleuze, um conceito
é como um tijolo. Para além do que “essencialmente” possa “ser”,
um tijolo pode, de acordo com como seja usado, contribuir com
a construção do castelo da razão ou quebrar alguma de suas ja-
nelas. Um conceito se define não pelo que “é”, mas pelo “como é”
implementado, e será útil enquanto mantenha sua produtivida-
de no contexto de um discurso dado. Conceitual e metodologica-
mente, o pensamento de Deleuze e Guattari é pragmático. Assim,
o marco conceitual e metodológico de uma pesquisa é definido
como uma “caixa de ferramentas”. A vigência de conceitos, pro-
cedimentos e métodos será mantida enquanto eles se mostrem
produtivos. Tal postura implica na necessidade de um intenso
contato com o conceitual e metodológico, que nos habilite a re-
desenhar ou roteirizar conceitos e métodos de acordo ao “como”
desejamos argumentar a respeito de uma hipótese dada. Assim,

A pesquisa em teatro 75
para nos servir dos recursos disponíveis precisamos, em princí-
pio, conhecê-los ao ponto de sermos capazes de redesenhá-los e,
inclusive, de propor estratégias de linguagem que deem conta de
abordar os problemas que a Arte coloca.
Porém, a pragmática de Deleuze e Guattari é frequentemente
entendida como a legitimação de uma liberdade sem restrições.
Um artista adquire liberdade na medida em que controla os sen-
tidos que produz. Portanto, o difundido ideal de uma liberdade
irrestrita não passa de uma ilusão improdutiva. Consolidar um
discurso envolve a necessidade de rigor e definição, seja no cam-
po das Artes ou das Ciências. Em lugar de legitimar o discurso
das Artes a partir dos pressupostos da Ciência, seria interessante
caracterizar melhor ambos os universos, no sentido de propiciar
uma relação dialógica entre as Artes e o discurso científico con-
temporâneo de ponta, objetivo para o qual é preciso abandonar
o terreno do pensamento ingênuo. De fato, um artista é capaz de
enunciar algo de novo não porque a ciência legitime seu discur-
so, mas porque está em posse dos saberes, do conhecimento e
das tecnologias disponíveis no seu próprio tempo e lugar.
Pesquisar e pensar são, enfim, práticas conceituais e, por tan-
to, como qualquer prática, requerem de rigor e método. Assim,
qualquer processo que implique alguma permanência em torno
de uma atividade, qualquer procura “estética”, não abriga neces-
sariamente a possibilidade de constituir-se em pesquisa. Transi-
tar por terrenos desconhecidos, sem mapas nem bússolas, pode
nos levar a andar em círculos. Da mesma forma, sem definição
de constantes que permitam a percepção das variáveis surgidas
no processo, as propostas experimentais em Artes Cênicas mui-
tas vezes resultam novas somente em aparência, limitando as-
sim as possibilidades de caminhos, em lugar de multiplicá-las.
Para que o exploratório sirva a um processo de treinamento ou
de produção artística é preciso considerar algum referencial de
base, tendo em vista os resultados desejados em performance, ou
seja, é preciso que se constitua em pesquisa.
Para constituir-se em dados de pesquisa, as sensações e per-
cepções dos atores em treinamento e performance precisam dei-
xar de ser trânsitos mais ou menos erráticos pelo próprio corpo.

76 Pesquisa em artes cênicas


Adequadamente formulados e definidos, dessas experiências
podem surgir os dados, pontos de partida de qualquer pesquisa,
e não em um fim em si mesmos. Da combinação desses dados
primários surgem os primeiros questionamentos. A potência e
produtividade dessas perguntas definirá a formulação do pro-
blema a ser abordado a ser abordado em pesquisa. Assim, com
a formulação de perguntas, começa a prática conceitual que na
hora de se tornar pesquisa se estruturará metodologicamente.
Examinados em sua perspectiva histórica, os problemas sugerem
possíveis hipóteses, mais tarde afirmadas ou não com relação
aos dados, fatos e/ou argumentos. Em princípio, nenhum proce-
dimento ou instrumento é descartável enquanto seja produtivo
às hipóteses consideradas numa pesquisa dada. A consolidação
de uma prática conceitual e metodológica pode contribuir para
a superação do esgotamento das vertentes experimentais do sé-
culo passado no campo das Artes Cênicas e nutrir uma produção
teatral original.
Em qualquer campo das artes, um trabalho de composição
não necessariamente se constitui em obra de arte. Se bem os ar-
tistas também compõem, o fazem a partir de um lugar no qual
se apropriaram das tecnologias, conhecimentos e saberes que
circulam em sua época e, desde ali, bem instalados no próprio
tempo e espaço, enunciam algo de novo. Materializados em
obras, esses discursos promovem sentidos e afetos para além da
situação existencial dos seus autores. Um trabalho artístico não
está destinado exclusivamente a “entendidos”, mas é capaz de
promover relações dialógicas com os públicos em diversos ní-
veis e ao longo do tempo. Assim, a obra de arte promove redes
de sentidos que serão tecidos pelo público, proporcionalmente
com a densidade do referencial que cada pessoa ou grupo seja
capaz de disponibilizar.

Um pouco de história
De aparência inovadora, o discurso das tendências de laboratório
no teatro da segunda metade do século XX se apoia numa base
conceitual “eclética”, que frequentemente atualiza um repertó-

A pesquisa em teatro 77
rio de ideias de raiz essencialista, vinculáveis ao que Deleuze e
Guattari identificam como “pensamento cansado” no marco da
tradição ocidental, fato este que expõe sua fragilidade epistemo-
lógica. Traduzidos em diversas línguas, os livros de Brook e Barba
têm exercido enorme influência no campo dos estudos teatrais e
da cena contemporânea, estendendo seu ideário, como veremos
adiante, para âmbito da preparação vocal de atores.
Os trabalhos de Brook e Barba se vinculam a uma estética de
uma presença imanente, que busca transcender a história e es-
capar à determinação cultural e temporal. Para Marvin Carlson,
estas, como todas as propostas que clamam por uma abordagem
fenomenológica não semiótica do teatro, se manifestam na bus-
ca de um sentido de plenitude e de liberação de valores externos,
na ênfase na presença e nas sensações físicas, e em sua rejeição à
teatralidade (qualidade narrativa, discursiva e mimética do teatro
tradicional/ocidental). Vinculáveis ao modelo moderno de pre-
sença, tendências como as propostas por Brook e Barba, continua
Carlson, têm se tornado cada vez mais problemáticas no contexto
das teorias pós-estruturalistas (CARLSON, 1996, p. 134).
Porém, diferentemente do repertório mais fenomenológi-
co da atitude moderna, as noções de presença pura em Brook e
Barba compartilham com a noção clássica de presença suas su-
posições a respeito de uma verdade primária, universal e “auten-
ticante”, situadas para além dos parâmetros de tempo e espaço
e, portanto, a-histórica. Tal ideia de presença implica represen-
tar em lugar de apresentar, contrariando as demandas do teatro
contemporâneo, propostas inclusive pelo mesmo Barba, sobre o
corpo performativo do ator, e sua ênfase no processo em lugar
de nos resultados.
Brook e Barba compartilham dessa abordagem imanentis-
ta do ator e de sua presença vocal, patente nas noções sobre a
natureza dominantes em ambos, no ideal de um ator invisível
em Brook, e na proposta das ações vocais e nas noções do pré-
expressivo e o pré-cultural em Barba, por exemplo. Enquanto
que em Barba o treinamento contempla, em sua primeira fase,
a aquisição de habilidades, aproximando-se a uma ideia clássi-
ca da técnica, em Brook, o treinamento se define como um pro-

78 Pesquisa em artes cênicas


cesso hermenêutico, cuja finalidade é desvelar a presença ima-
nente/natural do ator, coincidindo basicamente com a segunda
fase na evolução do treinamento do Odín, dirigido à presença do
ator. Como veremos adiante, em diversos graus, Berry e Linklater
compartilham do discurso de Brook e Barba.
O ideal de Brook de um teatro que transcenda as culturas na
procura de uma condição humana universal, para além de qual-
quer divisão de raça ou classe, é definido por Patrice Pavis como
transcultural. Barba pretende alcançar universalidade através
do pré-expressivo, que aponta a um suposto território corporal
comum, ainda não modelado no âmbito das tradições culturais;
proposta esta definida por Pavis como pré-cultural (PAVIS, 1992,
p. 20). Ambas as buscas coincidem na procura de uma essência
humana “universal” (invisível, em Brook; anatômica, em Barba),
objetivo este que, pelo seu nível de abstração, permanece ina-
preensível no trabalho de ambos. Considerando ainda que tanto
Brook quanto Barba elaboraram suas propostas a partir do tra-
balho que desenvolveram com atores, no caso de Brook, ou com
grupos treinados em diversas modalidades cênicas, no caso de
Barba, cabe questionar a validade do transcultural e do pré-cul-
tural na formação integral de atores.
Barba concentra-se nos “comportamentos sócio-culturais e
fisiológicos” dos atores, examinados através das diversas cultu-
ras (BARBA e SAVARESE, 1991, p. 8). Ele localiza os fundamen-
tos da performance não na situação de sua atuação, ou seja, seu
marco cultural e histórico, senão na busca de um nível básico de
organização no corpo do ator, que designa com o nome de nível
pré-expressivo. Essa operação resulta no reconhecimento, por
parte da audiência, de qualquer comportamento como perfor-
mance. De acordo com Barba, a resposta dos espectadores ante
a performance se dá, não porque atores e audiências comparti-
lham referências culturais, senão como resultado a estímulos “fi-
siológicos, pré-culturais e universais”, tais como o equilíbrio e as
tensões dirigidas (CARLSON, 1996, p. 19).
Esse grande esforço no sentido de abrir um espaço à parte da
cultura, não aspira a conduzir o teatro aos limites, tanto ou mais
estritos, do fisiológico? É possível concretizar em performance

A pesquisa em teatro 79
o pré-expressivo, o pré-cultural ou o transcultural? É produtiva
uma reflexão a respeito da formação de atores no século XXI sem
consideração alguma sobre a incidência da evolução da tecnolo-
gia no corpo humano e os seus sistemas perceptivos? Se, como
afirma Richard Knowles, espaços vazios são espaços ótimos para
serem ocupados por ideologias dominantes, a quais demandas
responde a proposta de pensar no teatro como uma arena vazia
para um ator invisível? Essas são somente algumas das pergun-
tas que surgem do exame das propostas de Brook e Barba. (KNO-
WLES in BULMAN, 2005, p. 92-112)
Sob promessas de subversão, ruptura e superação dos mode-
los estabelecidos no teatro, as propostas surgidas das tendências
vinculadas ao teatro de pesquisa ou laboratório da segunda me-
tade do século XX, diversas em aparência, confluem conceitual-
mente em diversos pontos. Partindo de uma estrutura conceitual
radicalmente binária, desenvolvem uma ideia do ator como enti-
dade individual e a-histórica. Seus pressupostos de uma verdade
ou uma presença universal vinculáveis, em um primeiro momen-
to, às tendências modernas e fenomenológicas ressoam, como já
foi indicado, com ecos etnocêntricos e conservadores. Assim, o
caso do teatro de pesquisa ilustra como a fragilidade conceitual
redunda no descontrole ideológico e conceitual dos discursos.
No desejo de liberar o teatro europeu da segunda metade do sé-
culo XX da saturação de convenções que nele detectam, Brook e
Barba operam, alternativamente, por saturação ou por negação.
Em todos os casos, o resultado é a falta de código que resulta em,
por exemplo, confundir uma sequência vocal ou de movimento
com uma “partitura”, e na fuga da palavra em performance.
Voice and the Actor, de Cicely Berry, publicado em 1973, foi o
primeiro livro de uma serie que influiria profundamente a atua-
ção contemporânea em língua inglesa do repertorio Shakespea-
reano a partir de uma nova abordagem em relação à voz e a pala-
vra em cena. Naquele momento o treinamento vocal para atores
concentrava-se na adequação de acentos e estilos. Os textos de
Berry indicaram alternativas para esta abordagem. Questionan-
do seu suposto elitismo, as propostas de Berry refletem as ten-
dências que, desde a década de 1960, procuraram uma democra-

80 Pesquisa em artes cênicas


tização do teatro. Richard Knowles nota que os textos de Berry
operaram uma mudança crucial na atuação contemporânea em
língua inglesa. Influenciando, mais ou menos diretamente, do-
centes e estudantes de teatro, preparadores vocais e atores, en-
contram sua motivação inicial na encenação realizada por Peter
Brook de Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare
(KNOWLES. In: BULMAN, 2005, p. 92).
Voice and the Actor pode ser visto como um texto fundacional
em relação às abordagens de trabalho vocal em inglês para ato-
res que podemos identificar como pós-Brook. E é através do ide-
ário de Brook que tais abordagens passam a influenciar o fazer
teatral na América Latina. Porém, se a gravitação das propostas
consideradas é intensa, a dominância de Constantin Stanislavski
no campo da formação de atores e da atuação é reconhecida cri-
ticamente pelas preparadoras vocais vinculadas à abordagem
pós-Brook.
Os atores hoje ainda são formados, treinados, de acordo com
os estilos de atuação produzidos a partir do sistema Stanislavski.
Apesar de sua extensiva utilização desde os inícios do século XX,
a proposta de Stanislavski corresponde a um momento, a uma
época, a um lugar determinado no mapa da nossa cultura Oci-
dental. A transferência direta dos conceitos formulados por Sta-
nislavski aos processos de treinamento e ensaio de hoje sugerem
que eles tenham algum valor prescritivo. Porém, a percepção de
atores e audiências articula-se a partir de noções de corpo, de
sujeito, de tempo e espaço que têm sofrido alterações profundas
desde os inícios do século XX até hoje. Esta incidência de diver-
sas propostas vinculadas mais ou menos diretamente ao sistema
Stanislavski na formação contemporânea, aponta a reproduzir
uma estética de atuação, cristalizando estilos. A esses cânones
de estilo, cristalizados no tempo, resultantes de modos de treina-
mento formulados em tempos e lugares outros, denomino “his-
tóricos”. Enquanto reprodução de estilo não poderíamos chamar
a tais propostas de técnicas (DAVINI, 2002, p. 59-73).
A técnica está diretamente vinculada a princípios que, atua-
lizados em performance, se manifestam sempre que se atingem
resultados desejados. No âmbito da produção de vocalidades,

A pesquisa em teatro 81
estes resultados podem vincular-se à produção de voz em altas
intensidades, ao domínio da diversidade tímbrica, às habilidades
musicais, prosódicas, discursivas ou narrativas. A técnica formu-
la-se em relação ao material, interfere nele. Cantores e atores
incorporam técnicas, interferindo diretamente sobre o material
(neste caso o próprio corpo) com o fim de produzir resultados
desejados. Com base no Princípio Dinâmico dos Três Apoios,
configuramos uma rede de técnicas para a produção de voz em
altas intensidades, aplicável ao processo de treinamento para
cena. Nessa proposta, certos fundamentos de diversas técnicas
corporais se articulam a outros, vinculados a técnicas tradicio-
nais de canto. Já no campo da performance do texto, meios de
reprodução de som e imagem integram-se ao processo de ensaio
com dispositivos de análise estilística, constituindo o que chamo
a técnica de Micro-Atuação.
Se bem que em suas origens os procedimentos introspectivos
configuraram estratégias eficazes no sentido de superar estilos
extremadamente representativos, ingênuos ou caricaturais de
atuação, a prolongada reincidência neles nutre hoje uma intensa
confusão entre a pessoa, o ator ou a atriz, e a personagem, cujas
marcas se deixam sentir na performance do texto e também no
marcado estreitamento do imaginário que resulta do cotidiano
dos atores e diretores como referência principal e iniludível, para
além do alcance do imaginário dos autores e das personagens
por eles propostas. Procedimentos de improvisação ou paráfra-
se, que apontam à apropriação do texto por parte do ator, têm
contribuído também para outorgar uma progressiva opacidade
ao autor no teatro contemporâneo.
A personagem como entidade fixa, surgida de uma biografia
unívoca, trabalhada a partir de tudo o que nunca será concreta-
mente apresentado em cena, a literalização/desvocalização do
texto teatral, resultam também da ideia da personagem como
um “sentir” que, sem âncoras técnicas, se confunde na pessoa.
Liberado da ideia de uma identidade taxonômica, o “corpo resso-
ante”, o mais humano dos corpos, não naufraga nas profundezas
do sentido enquanto conteúdo; ele é capaz da fluidez necessária

82 Pesquisa em artes cênicas


para deslizar-se na superfície do texto, dessa geografia que “dá”
forma, e nela, sedimenta múltiplos sentidos.

O cartográfico na abordagem das vocalidades


na cena contemporânea
Em Deleuze e Guattari, uma cartografia, assim como um mapa ou
um plano de consistência, refere-se ao corpo sem órgãos (CsO),
objeto da esquizoanálise. Assim, cartografias supõem questões
tais como: qual é o plano de consistência, o CsO da vocalidade
no teatro produzido em um tempo e lugar determinados? Com
quais linhas se fusiona? Quais são suas linhas? Em torno de quais
mapas as vocalidades estão em processo de ordenar-se ou de
re-ordenar-se? Que linhas abstratas desenharão essas vocali-
dades, e a que preço para todos e para cada um dos envolvidos
nos processos abordados? Qual é sua linha de fuga? Que linhas
atravessam, cortam, se estendem ou se resumem nelas? Estão
rasgando-se? Podem se quebrar? Estão territorializando-se ou
desterritorializando-se? (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 203).
A diferenciar da pesquisa etnográfica, centrada na descrição,
o cartográfico supõe a consideração das percepções e sensações
que o campo explorado desata no corpo dos cartógrafos, supe-
rando assim a distância objeto/sujeito. Nosso referente para a
proposta de cartografar vocalidades em performance se dá nas
pesquisas realizadas entre 1996 e 2000. Essas cartografias sur-
gem de minha intensa exposição à produção teatral apresenta-
da na Grã-Bretanha e Espanha, entre 1996 e 1997, e em Buenos
Aires, entre 1998 e 1999, particularmente de março a julho e de
outubro a dezembro de 1998. Essa imersão intensa e cotidiana
na produção teatral, que frequentemente me levou ao teatro
mais de uma vez por dia e/ou várias vezes na mesma peça, me
permitiu definir os dois grandes vetores em relação aos quais se
ordenavam as cartografias das vocalidades em performance nos
palcos portenhos no final do século XX: o sobre-código europeu
e a decodificação capitalista, sobre os quais voltarei mais adian-
te. No desejo de delimitar um campo que permitisse abordar a
questão das vocalidades na performance teatral contemporânea

A pesquisa em teatro 83
em toda sua complexidade, potência e sutileza o trabalho foi de-
senvolvido a partir de três grandes eixos conceituais: a Produção,
a Reprodução e a Representação de voz e palavra.
O foco dessas cartografias se dá na economia vocal-verbal-
auditiva, uma economia de experiência, que escapa aos meca-
nismos de controle do visual. Proponho abordar os textos tea-
trais como mapas instáveis e sempre efêmeros da experiência da
vocalidade em performance, considerando a “performatividade”
da produção, reprodução e representação de voz e palavra em
suas dimensões estéticas e políticas. Estas cartografias não su-
põem descrições ou medições. Tampouco se vinculam a estrutu-
ras que, com a finalidade de prevenir a fuga, sempre constituem
sistemas fechados. Uma cartografia não leva em conta elemen-
tos ou agregados, sujeitos, relações ou estruturas; mas se ocupa
de detectar lineamentos, sentidos atravessando grupos e indiví-
duos. Uma cartografia inclui o desejo, é imediata, prática e po-
lítica. Uma cartografia não persegue um problema ou procura
uma aplicação: as linhas que dela surgem podem ser linhas de
vida, de uma obra artística, de uma sociedade, dependendo do
sistema referencial do qual se parta. Como a esquizoanálise, para
Deleuze e Guattari, una cartografia é “a arte do novo” (DELEUZE
e GUATTARI, 1996, p. 204).
Um território de vocalidade não é somente um lugar onde
uma mesma linguagem é compartilhada. É um lugar onde exis-
tem códigos comuns, onde elementos individuais ou coletivos
de singularização são compartilhados; um lugar onde podemos
falar de um eros de grupo (GUATTARI, 1996, p. 63-64). Pensar em
indivíduos como discursos remete a um controle ético; pensá-
los como fluxos de desejo os remete a uma ética do ato. Essa
instância performativa de singularização transforma um para-
digma ético em estético. O corpo em performance, entendido
como lugar, dá conta desse paradigma estético, dessa ética do
ato. Aos lugares, contrapõem-se os não-lugares que, de acordo
com Marc Augè, são espaços onde não é possível reconhecer
singularidades, relações ou histórias comuns, espaços novos no
planeta, atravessados por indivíduos solitários e silenciosos. Nos
não-lugares, os códigos e as regras remetem ao seu uso imedia-

84 Pesquisa em artes cênicas


to. Em sua antropologia da supermodernidade, Augè declara que
lugares e não-lugares são definidos de acordo com suas contin-
gências sociais e históricas. Um lugar pode devir um não-lugar,
e vice-versa; assim como um aeroporto não é o mesmo para um
passageiro que para alguém que trabalha nele. Os não-lugares
são a expressão de três fenômenos: “[…] a aceleração da historia,
o encolhimento do planeta e a individualização dos destinos”
(AUGÈ, 1998, p. 87-88 e 36).
Os não-lugares apresentam modos peculiares de produção
de voz e palavra. Em um aeroporto, uma voz desincorporada e
maquínica reproduz o estilo das vozes produzidas por computa-
dores, dando instruções ou informações aos passageiros, deixa
pouco espaço para a ambiguidade. Nos supermercados não há
oportunidade de conversar sobre a qualidade de algum produ-
to ou para negociar seu preço, como acontece numa feira, por
exemplo. A informação indispensável tomou o lugar das dimen-
sões existenciais da voz e da palavra (GUATTARI, 1993, p. 113-
114). Os não-lugares de vocalidade são territórios de informação
ou instrução, uniformizadas sob a forma de um continuum ou
um vacuum vocal. Os lugares de vocalidade são territórios de ne-
gociação, conversação e ambiguidade, que propiciam platôs de
intensidades vocais. Para Deleuze e Guattari, se atinge um platô
quando as circunstâncias se combinam para levar uma ativida-
de a uma intensidade culminante que não é imediatamente dis-
sipada após um clímax. A intensidade é sustentada o suficiente
como para deixar uma imagem perdurável de seu dinamismo,
que pode ser reativada ou injetada em outras atividades (DE-
LEUZE e GUATTARI, 1996, p. xiv).
As cartografias das vocalidades no teatro, realizadas em Bue-
nos Aires nos dois últimos anos do século XX, podem servir para
ilustrar alguns pontos importantes para compreender o traba-
lho realizado, metodológica e conceitualmente. O “sobre-código
europeu” e a recente expansão da “de-codificação capitalista”
estabelecem vetores referenciais que definem um mapa cultu-
ral mutante das vocalidades no início do século XXI, nutrido e
“performado” em seu território urbano e em seus palcos teatrais.
Esses vetores estabelecem direções, sentidos, que constituem lu-

A pesquisa em teatro 85
gares e não-lugares de vocalidades nos palcos e para além deles.
Estas cartografias das vocalidades na performance teatral pre-
tendem revelar lugares peculiares de vocalidades que nos palcos
de Buenos Aires fazem, ou não, rizoma com a cidade.
A um estilo original, definido e coeso, vinculado à tragédia, à
poesia e, mais particularmente, ao repertório de Federico Garcia
Lorca, foram se sobrepondo através do tempo camadas códigos.
Rastros de vocalidades surgidas de outros repertórios, estilos de
épocas diversas foram estabelecendo estratos vocais que sedi-
mentaram ao longo da segunda metade do século XX o estilo,
saturado e estabilizado, que identifico como “sobre código eu-
ropeu”, que se impõe como padrão do bom uso da palavra no
teatro em Buenos Aires.
Os meios de comunicação de massas operam uma decodifi-
cação nas vocalidades, um processo de desincorporação, carac-
terizando em termos de estilo uma vocalidade lânguida, que se
reproduz como que por inércia. Estes estilos vocais que identifi-
co como “decodificação capitalista” se impõem hoje como para-
digma, como resultado imediato do papel central dos meios na
cultura contemporânea, ao tempo que constituem um problema
específico no teatro. A frequente presença nos palcos de dispo-
sitivos tecnológicos, como é o caso dos microfones, acentua a
reproduzir de vocalidades em cena de acordo com esse padrão
vocal dominante.
No teatro do final do século XX, em Buenos Aires, o proces-
so de sobreposição e sedimentação de estratos, que resulta no
mencionado sobre-código europeu, e o processo de erosão esti-
lística, que resulta no estilo vocal em performance que chamei
de decodificação capitalista, que surge da imposição dos estilos
de fala gerados pela mídia e os meios de comunicação de mas-
sas em geral, dominantemente coloquiais e altamente restritos
nos seus parâmetros de intensidade, timbre, frequência e articu-
lação, serviram de coordenadas para as minhas cartografias da
voz e da palavra nos palcos portenhos. Em relação a esses eixos
dominantes fui localizando todos os estilos que encontrei vigen-
tes nos palcos da última metade da década de 1990, em Buenos
Aires. Certamente, um estudo similar em outro lugar requereria

86 Pesquisa em artes cênicas


da definição de outras dimensões como referenciais, distintas
daquelas estilísticas dominantes em Buenos Aires.
Ressaltando a eficácia política das pragmáticas, Deleuze e
Guattari definem a teoria como uma “caixa de ferramentas” onde
“o que interessa são as circunstâncias” (DELEUZE e GUATTARI,
1988, p. xiii-xv). Para além dos “universalismos”, essa postura
pragmática a respeito da teoria tem sido produtiva para superar
as situações surgidas destas cartografias; no entanto, no desejo
de superar o binarismo teoria/prática, prefiro falar de prática
conceitual. De fato, qualquer pesquisa demanda a produção de
dados que possam fundamentar argumentações e futuras ações
que ofereçam alternativas para algumas contingências que con-
sidero chave com relação à produção de voz e palavra em perfor-
mance, expandindo suas ressonâncias éticas e estéticas, e defi-
nindo seus relativos desenhos conceituais. Assim, entendo que,
longe de sugerir que em pesquisa tudo é válido, Deleuze e Guat-
tari sugerem que não há por que se ater a modelos, recorrendo
aos instrumentos e procedimentos que nos permitam gerar os
dados desejados.
Focalizando na performatividade da produção de voz e pala-
vra no teatro contemporâneo, as cartografias da vocalidade dos
atores na performance teatral se nutrem do desejo de iluminar
um lugar que foi se tornando ignorado, como resultado das es-
tratégias totalizantes da visibilidade. Diversos espetáculos, assim
como os dados surgidos de um vasto material de imprensa, arti-
gos críticos e publicações especializadas, das entrevistas realiza-
das a 55 profissionais vinculados à produção teatral e à formação
de atores e do questionário aplicado a um total de 200 estudan-
tes de teatro, constituíram as fontes desta pesquisa.
As entrevistas foram realizadas em Paris, Londres e Manches-
ter no período de abril de 1996 a setembro de 1997, Rio de Janei-
ro, nos meses de novembro e dezembro de 1997, e Buenos Aires,
entre janeiro de 1998 e julho de 1999. Delas surgiu a amostra de
19 entrevistas que apoiaram diretamente a tese de Ph.D. que re-
sultou dessa pesquisa, que mais tarde foi publicada em Buenos
Aires sob o título Cartografias de la Voz en el Teatro Contempora-
neo: el caso de Buenos Aires a fines del siglo XX. Os espetáculos e

A pesquisa em teatro 87
o material gráfico considerados nessa pesquisa foram apresen-
tados e publicados, respectivamente, nos mesmos períodos e
cidades em que se realizaram as entrevistas. Alguns dados surgi-
dos das entrevistas e de fontes bibliográficas foram organizados
e cruzados em três Quadros de Dupla Entrada que permitiram
caracterizar os papéis profissionais de diretores, autores e prepa-
radores vocais na Europa e na Argentina.
O questionário aplicado foi desenhado para abordar a pers-
pectiva dos estudantes de teatro com relação à voz e à palavra
nos processos de formação e na performance teatral. Duzentos
questionários foram aplicados em duas das escolas de teatro
mais importantes de Buenos Aires: a então Escuela Nacional
de Arte Dramático (ENAD) e a Escuela Teatral de Buenos Aires
(ETBA). Hoje integrada ao Instituto Universitario de Arte (IUNA),
a então chamada Escuela Nacional de Arte Dramático (ENAD) é
una instituição pública, que oferece cursos de quatro anos de
duração em Atuação, Dramaturgia e Pedagogia Teatral, em regi-
me de jornada integral. A Escuela Teatral de Buenos Aires (ETBA),
fundada e dirigida desde sua inauguração pelo diretor Raúl Ser-
rano, é uma das escolas privadas de teatro mais tradicionais de
Buenos Aires, e oferece cursos de atuação de três anos de dura-
ção, em regime de jornada parcial (turno noturno). Cada uma
dessas escolas tem uma matrícula de aproximadamente 200 alu-
nos e oferecem diplomas oficiais. Os dados surgidos da amostra
de 139 questionários que foram efetivamente respondidos por
estudantes de teatro em 1999 somaram-se também às fontes
desse estudo. Um Quadro de Variáveis ordenou os cruzamentos
que geraram 12 Tabelas que, por sua vez, informaram 22 Qua-
dros de Dupla Entrada. Longe de contrariar o perfil cartográfico
da pesquisa em questão, os dados assim produzidos (quantitati-
va e qualitativamente) e, posteriormente, organizados permiti-
ram explicitar as principais tendências na preparação vocal nas
instituições consideradas e na produção teatral dos últimos anos
do século XX na Europa e em Buenos Aires.
A definição das vocalidades dos atores como territórios a se-
rem cartografados, nos coloca perante uma situação onde não
há distância entre voz e corpo, ou entre palavra e ação, situação

88 Pesquisa em artes cênicas


esta que desencoraja todo tipo de binarismo conceitual, supri-
mindo inclusive a distância sujeito/objeto. Desde o início do
processo de ensaio, os corpos dos atores afetam e são afetados
ao serem expostos a um texto e a toda a rede de relações esta-
belecidas através das mecânicas da produção teatral. Os corpos
dos atores constituem um plano de consistência, um palco para
esses múltiplos afetos, fonte de devir em performance. Desse
ponto de vista, podemos afirmar que há muitas cenas, virtuais e
concretas, em cada cena apresentada. Porém, a cena ocorre, em
primeiro lugar, no corpo de quem atua.
No marco de nosso trabalho, o corpo em performance é con-
siderado o primeiro lugar de produção de significado no teatro.
O trabalho efêmero dos atores em cena é, a cada momento, re-
sultado de um processo contínuo, no qual seus corpos são afe-
tados pela intervenção de mestres e diretores, em seu papel de
mediadores na formação e na produção teatral, respectivamen-
te. Os corpos dos atores operam resistências a essas mediações,
que também afetam as relações entre os distintos papéis profis-
sionais que colaboram na produção teatral. O texto em si mes-
mo, que somente é completamente realizado em performance,
também opera resistências e serve como terreno para as inter-
venções de atores, diretores e mestres. A relevância desses papéis
profissionais e dos textos teatrais se dá em uma relação estrita
com a autonomia de cada ator e seus resultados em cena.
A produção teatral é, basicamente, uma prática colaborativa,
que envolve a interação de diversos papéis profissionais. Esses
papéis não permanecem necessariamente iguais, em termos de
poder, através do processo de produção, manifestando também
mudanças em diversos momentos sociais e históricos. Locali-
zar esses papéis profissionais, cruciais para a produção teatral
no atual contexto cultural, oferece informação valiosa que nos
permite entender o tratamento dado à vocalidade na cena con-
temporânea, servindo também como base para discriminar as
tendências que são peculiares a cada caso abordado.
Cartografar as vocalidades em performance implica definir,
em princípio, os sujeitos de agenciamento, cujo trânsito pelo pla-
no de consistência da cena contemporânea, em um momento e

A pesquisa em teatro 89
um lugar determinados, define vetores, direções, intensidades.
Assim, da relação estabelecida entre os papéis fundamentais que
colaboram na prática teatral (diretores, mestres e preparadores,
autores e atores) surgem as tendências dominantes na produção
teatral ocidental contemporânea. Os papéis do diretor e do pre-
parador vocal surgem da prática teatral do século XX. Nessa cir-
cunstância específica, os diretores frequentemente desenvolvem
funções de autoria, enquanto que o papel do preparador vocal
fica, na maioria das vezes, restrito a um treinamento situado fora
do âmbito de qualquer processo criativo.
De um modo geral, os atores desenvolvem seu trabalho em
diversos âmbitos e, em consequência, o perfil de sua produção
muda de acordo com as demandas de cada circuito. As diversas
contingências em que desenvolvem sua experiência profissional
se materializam em marcas inequívocas nos corpos dos atores.
Porém, os mecanismos de produtividade ou improdutividade
com relação à vocalidade na performance teatral contemporânea
excedem os limites de um circuito, uma instituição em particu-
lar ou um movimento determinado. Para entender o lugar da vo-
calidade na prática teatral contemporânea ocidental, examinei
publicações relevantes sobre o trabalho de alguns dos diretores
e mestres mais influentes no final do século XX. Delas, surgem
algumas informações gerais que refletem o papel idiossincráti-
co de diretores e preparadores. Knowles indica que a forma em
que são hierarquizados os papéis profissionais na prática teatral
contemporânea responde a uma lógica de gênero. Do seu ponto
de vista, a preparação vocal tendeu a ser definida no século XX
como uma posição secundária e dependente da posição de li-
derança, independente e criativa, do diretor (KNOWLES in BUL-
MAN, 2005, p. 92-112).
Os atores reformulam e redefinem seus estilos em interação
com outros atores e com suas audiências. O problema se coloca
quando essa interação se debilita e, consequentemente, a dinâ-
mica de negociação que estabelece a cena se fragiliza, fixando
estilos. Em uma situação onde operam diversas camadas de có-
digos simultaneamente nas vocalidades dos atores, é difícil che-
gar a ouvir a potência vital da voz ou o significado sedimentado

90 Pesquisa em artes cênicas


na forma dos textos teatrais. Não existem estilos inquestionáveis,
existem estilos eficazes. Se a performance perde sua eficácia, o
problema não estará nos meios de comunicação massivos, no
público, no mercado ou na indústria cultural; o problema se lo-
calizará, sem dúvida, entre os atores e o seu público.
Novos estilos vocais emergem da interação, da exploração dos
estilos, a ressonância, o timbre e a linguagem, que cada socie-
dade produz, não da reprodução de modelos vocais prefixados
ou cristalizados no tempo. Hoje, parece mais urgente desvelar
por que os principais fluxos de vocalidades em cena quase não
são percebidos inclusive pelos profissionais vinculados ao tea-
tro. Assim, a problemática da voz e da palavra se expande para a
dimensão acústica da cena como um todo.

A dimensão acústica e as origens do teatro


O termo grego théatron ( ) refere-se ao lugar físico do es-
pectador e, comumente, é traduzido como “lugar onde se vai
para ver”. Porém, existem algumas evidências que podem levar
a inferir que tal tradução possa estar limitando a noção de te-
atro no Ocidente. Com capacidade para abrigar um público de
até 40 mil espectadores, os anfiteatros gregos encontram um si-
milar, enquanto a suas proporções, na cultura contemporânea
nos estádios de futebol. Apesar de suas dimensões e de tratar-se
de anfiteatros a céu aberto, até hoje é possível constatar que de
qualquer lugar das arquibancadas é possível escutar com fideli-
dade qualquer som produzido no palco, até os de intensidades
mais baixas. Mesmo com uma estrutura arquitetônica capaz de
garantir uma resposta acústica perfeita, jarros com água eram
distribuídos em diversos lugares das arquibancadas para contro-
lar ainda, mais e melhor, a definição sonora na recepção do pú-
blico. Porém, não acontece o mesmo com a qualidade da visão,
que é alterada proporcionalmente à distância dos lugares nas
arquibancadas com relação ao palco.
Em sua obra de juventude, A Origem da Tragédia na Música,
Friedrich Nietzsche argumenta a respeito do teatro como “lugar
de visões”. Nietzsche situa a origem de tais visões na música. No

A pesquisa em teatro 91
entanto, tendemos a fazer um vínculo direto entre a “visão” e o
olho, desconsiderando que a imagem não é um fenômeno ex-
clusivamente visual, mas também acústico. Longe de entendê-lo
como “lugar onde se vai para ver”, creio que Nietzsche se refere
ao teatro como “lugar de visões transfiguradoras”, cuja origem se
dá na música. De acordo com esse argumento, são essas “visões”,
em princípio, acústicas, as que provocam comoção e compaixão
entre público e atores. Se considerarmos que esse movimento
e essa paixão coletiva é o objetivo último e múltiplo do teatro,
poderemos melhor compreender as implicações estéticas, sim-
bólicas e políticas de restaurar o espaço da Dimensão Acústica
da cena, sobre o qual tem avançado a Dimensão Visual. As evi-
dências fornecidas pelos remanescentes arquitetônicos dos tea-
tros gregos e pelo pensamento de Nietzsche nos permitem argu-
mentar no sentido de restaurar a intensidade acústica do teatro.
Para tal fim, nosso ponto de partida nos processos de encenação
é sempre tudo aquilo que soa em cena. Isto não significa que o
visual não seja também intensamente trabalhado, mas que co-
meçar pelo que “soa” garante o espaço requeridos pelo conjunto
dos fenômenos acústicos em performance.
A performance teatral se situa na confluência das dimensões
visual e acústica da cena, atravessadas de forma mais ou menos
variável por diversos tipos de estímulos, sinestésicos, olfativos
ou tácteis, que contribuem para acentuar ou completar certos
processos de significação. A esfera da voz e da palavra, do en-
torno acústico e da música constituem a Dimensão Acústica da
Cena, que se define numa superfície de 360° composta em di-
versos planos fixos e móveis. Da articulação da ampla rede de
relações estabelecidas pelos comportamentos acústicos nessas
três grandes esferas surge o desenho acústico de cada peça, cuja
definição sempre se dá em relação à percepção humana. Pela
sua capacidade de produzir voz, palavra e movimento, o corpo
em performance torna-se o “palco” primeiro; lugar de intersec-
ção entre as duas grandes dimensões da cena, a visual e a acústi-
ca (Davini, 2006, p. 309).
Consideramos a voz como uma produção do corpo capaz de
gerar sentidos complexos, controláveis em cena. Nessa perspec-

92 Pesquisa em artes cênicas


tiva, a voz é equiparável com o que entendemos por movimen-
to. Porém, por permitir a articulação da palavra, a voz alcança
maior definição de sentidos do que o movimento. Já a vocalidade
em performance é compreendida como resultado da produção
de voz e palavra por parte de um grupo dado, em um tempo e
lugar determinados, ou seja, em um contexto coletivo e em sua
contingência social e histórica. Nesse contexto, a “palavra” é
entendida como “palavra proferida”, e a “palavra escrita” como
“letra”, ou seja, a representação gráfica/visual da palavra, que é,
em primeira instância, um fenômeno acústico de sentidos. Tais
definições resultam em uma abordagem que aproxima a cena da
pragmática, e a distância da literatura, diferenciando-se assim
das posturas conceituais predominantes no universo dos estu-
dos teatrais. Assim, o campo das vocalidades surge da perfor-
matividade das línguas, na produção de voz e palavra por parte
de um grupo humano dado em um tempo e lugar determinados
(Davini, 2007, p. 9).
No âmbito da Dimensão Acústica da Cena, a música com-
preende tudo o que se constitui em diversas formas de discurso
musical em performance, organizado de modos mais ou menos
tradicionais, através de parâmetros de frequência, intensidade,
timbre e volume mais ou menos definidos, e considerando in-
clusive a ausência de som ou ruído.
Todos aqueles fenômenos acústicos em uma performance te-
atral que, afetando diretamente a produção de sentido da cena,
não pertencem à esfera da voz e da palavra nem se constituem
em discurso musical, mesmo respondendo aos parâmetros do
som ou do ruído, constituem a esfera do entorno acústico. Paisa-
gens sonoras mais ou menos figurativas, diversos tipos de sons
referencias, tais como a campainha de um telefone ou os sinos
de uma igreja, ou sequências incidentais que vêm acentuar um
ponto específico da cena, tais como um som de pratos percuti-
dos, ou alguma intervenção sonora que remeta a certo estilo, cli-
ma, época ou obra, são intervenções acústicas no entorno acús-
tico da cena. Da definição específica dessas três esferas surge o
desenho acústico peculiar de cada performance.

A pesquisa em teatro 93
Para abordar a Dimensão Acústica da cena é preciso consi-
derar as fontes sonoras disponíveis em cada caso. Instrumentos
musicais acústicos ou eletrônicos, meios de reprodução de áu-
dio ou dispositivos digitais oferecem diversos modos de produ-
ção de som; da mesma forma que os atores podem ser conside-
rados também em sua função de fontes sonoras móveis ou fixas,
de acordo com a resolução de cada cena. Em sua dissertação de
mestrado “A Produção de Sentido a partir da Dimensão Acústica
da Cena”, César Lignelli aborda amplamente a questão, a partir
de duas experiências de montagem cênica realizadas pelo Grupo
V&C: O Naufrágio4 e Santa Croce5. Nesse trabalho, Lignelli con-
tribui também com uma análise dos Problemas de Aristóteles
que elucida várias questões cruciais para compreender o papel
do som, da letra e da palavra no teatro ocidental.
De um modo geral, os deslocamentos acústicos em perfor-
mance se concretizam de três modos. O “mecânico”, que envolve
o deslocamento da fonte sonora no espaço cênico, por exem-
plo, no deslocamento dos atores enquanto falam ou cantam em
cena. O deslocamento “técnico” do som se dá pelo tipo de emis-
são vocal ou definição tímbrica das vozes ou instrumentos, mo-
dificados através de diversas técnicas que, trabalhando sobre a
frequência, intensidade, articulação, timbre, vibrato etc. do som
produzido, produzem diversos efeitos de espaço e tempo na per-
cepção do público. Por último, os deslocamentos “virtuais” são
produzidos através de meios digitais quando o som (que surge
da mesa de som, ou das vozes transferidas à mesa de som através
de microfones), descreve trajetórias no espaço cênico de acordo
com software especificamente desenhado para esse fim. Alguns
destes deslocamentos acústicos ou “espacializações” operam-se
em tempo deferido (pré-gravados) e outros em tempo real, ou
seja, pela operação do equipamento no momento da cena.
Considerando inclusive os espaços posteriores e superiores
em relação ao público, a abordagem da Dimensão Acústica da
Cena atenua a ideia de um centro hegemônico de atenção, fre-

4. Instalação cênica a partir do texto de teatro estático de Fernando Pessoa “O Mari-


nheiro”, em versão integral e trechos de “A Tempestade”, de William Shakespeare.
5. Peça surgida da modulação de sete contos de Luigi Pirandello.

94 Pesquisa em artes cênicas


quente hoje no teatro, e permite considerar a dinâmica da voz e
a palavra em performance para além da letra e do olho. A noção
clássica do espaço físico, dominante na preparação vocal para
atores, é assim superada; sendo as definições específicas do som,
da voz e da palavra em performance as instâncias que definem o
espaço de performance na percepção da audiência, ao invés de
considerar o espaço físico como principal determinante do tipo
de emissão vocal possível para aquela situação de performance
(Davini, 2000, p. 262-3).
A consideração do acústico como ponto de partida para a
produção de sentido em performance abrange um espectro de
questões que vão da materialidade do som até a sua percepção
por parte da audiência. Esta abordagem do som em performan-
ce pretende explicitar uma região da cena frequentemente pre-
terida no teatro contemporâneo, “modelando” a personagem a
partir da “topologia” do som, da voz e da palavra em cena, e, em
seguida, de sua definição visual, de forma que o visual não “atro-
pele” sua existência acústica. Nesse processo, o texto teatral se
constitui no mapa instável da cena, que contém as pistas para a
encenação. Restaurar em performance a experiência de tempo e
espaço indicada no texto requer procedimentos que partam da
consideração da Dimensão Acústica da Cena, o que por sua vez
define o tratamento visual de cada peça.

O corpo ressoante e as
novas vocalidades em performance
A continuidade e a relativa distância dos mercados que promo-
ve o ambiente acadêmico tem pautado o trabalho do Grupo de
Pesquisa Vocalidade & Cena6 – V&C desde o ano 2000. Para além
da lógica binária “objeto/sujeito”, nosso interesse é cartografar e
constituir territórios de vocalidade no campo das Artes Cênicas.
A produção artística e conceitual do Grupo V&C se concentra na

6. Endereço para consulta sobre o Grupo V&C na Plataforma Lattes do CNPq


http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=0441547558844838
www.vocalidadecena.blogspot.com

A pesquisa em teatro 95
configuração de sentidos, no processo que vai da abordagem do
texto até sua concretização na voz e na palavra em performance.
As pesquisas articuladas pelo Grupo se plasmam no Programa O
Corpo Ressoante, que sustenta nossa formulação de uma pro-
posta conceitual e técnica para a formação de atores. No início
desse processo colocamos questões para as quais já ensaiamos
algumas respostas possíveis:

Desde sua criação, em 1989, estudantes e profes-


sores do Departamento de Artes Cênicas da UNB,
declaram, de forma unânime, que a preparação
vocal é uma instância primordial e iniludível na
formação de atores. Porém, o espaço destinado
aos assuntos vinculados à voz nos planos de estu-
do dos cursos de formação em Artes Cênicas é, até
então, muito restrito. A falta de profissionais atu-
ando nesse campo específico assim como o escas-
so material bibliográfico disponível sobre o tema
eram as razões apresentadas quando se questiona-
va essa parca presença da preparação vocal na for-
mação dos atores. Quais seriam os fatores deter-
minantes de semelhante falta de profissionais, de
produção e de visibilidade na formação dos atores
numa área considerada tão significativa? (DAVINI,
2007, p. 13).

Hoje, podemos afirmar que aquilo que, no campo do teatro


contemporâneo, é identificado com frequência como a “crise da
palavra”, nada mais é do que a falta de propostas objetivas e con-
cretas de trabalho, que abordem o corpo em performance como
produtor não somente de movimento, mas de “voz e palavra em
movimento”. Assim, envolve uma ideia ampliada de gestualida-
de que considera as produções de sentido acústicas e visuais no
corpo dos atores em cena.
Diferentemente da técnica, um “procedimento” é uma ins-
tância processual que consiste na aplicação das técnicas sobre
um material dado, tendo sempre em vista o resultado desejado.
O procedimento situa-se então entre a técnica e a enunciação
estética, ou entre a técnica e a verificação de uma hipótese. A

96 Pesquisa em artes cênicas


técnica disponibiliza os meios para interferir em um material.
Aqueles atores e cantores que disponham de um maior núme-
ro de meios eficientes e os apliquem adequadamente terão, em
princípio, mais possibilidades de produzir um discurso estético
em performance, capaz de distanciar-se da reprodução de estilos
e, no caso da voz e da palavra, abrindo possibilidades de produ-
zir novas vocalidades em cena.
Se a técnica aponta à produção de novas vocalidades em per-
formance, é indispensável que mantenha independência em re-
lação ao discurso estético ao qual se aplica. Pelo contrário, pro-
porcionalmente à proximidade que se estabeleça entre técnica
e estética, os estilos vocais se tornarão mais reprodutivos e mi-
méticos. Já os procedimentos implementados em processos de
ensaio apresentam um vínculo claro com o discurso estético da
cena. A definição e diferenciação clara das dimensões técnica,
metodológica e estética, possibilita a formulação de um treina-
mento capaz de multiplicar as possibilidades de processamento
dos materiais. No caso de atores e cantores, não há distância en-
tre material e discurso, entre atores e pessoas, constituindo-se
todas essas instâncias no próprio corpo em performance.
Na segunda metade do século XX, o teatro de pesquisa e labo-
ratório reage aos estilos consolidados em cena e as convenções
resultantes dos mesmos. Longe de indicar saídas produtivas em
termos estéticos e estilísticos, tal atitude se define como uma “re-
ação exploratória” onde estética e técnica se mimetizam. A base
técnica na formação de atores deve prepará-los para fazer diver-
sas opções estéticas ao longo de suas carreiras. Servindo exclu-
sivamente a uma proposta estética, as tendências de laboratório
não se constituem em propostas produtivas para a formação de
atores na contemporaneidade. As notícias remanescentes de um
projeto artístico que aponte à formação de atores capazes de se
desempenhar em diversos estilos estéticos surgem da trajetória
de Michel Saint-Dennis. A proposta de Saint-Dennis consistia
em uma formação intensiva nas mais diversas modalidades. Em
suas escolas ensinava-se a esgrima e distintas modalidades de
luta conjuntamente com técnicas corporais e de dança, enquan-
to que a voz e palavra eram abordadas a partir de técnicas vo-

A pesquisa em teatro 97
cais, de canto e de recitado. Assim, podemos afirmar que Saint-
Dennis pretendia atingir seu ideal de all round actors a partir da
adição de modalidades e estilos no processo formativo.
Porém, conceitualmente falando, Deleuze e Guattari notam
que a multiplicidade não resulta da adição de unidades, mas da
eliminação no pensamento do conceito de unidade. Assim, con-
tinuam, pode-se expressar a multiplicidade através de fórmula
(n-1). Consequentemente, a procura de Saint-Dennis não trilhou
um caminho adequado. Apontando a flexibilizar o corpo e pro-
piciar a coordenação e controle na produção de voz, palavra e
movimento, o Princípio Dinâmico dos Três Apoios configura um
coeficiente comum que poderia conduzir à formação de atores
de perfil estético múltiplo. Capazes de optar por um caminho
estético, tais atores seriam também capazes de produzir novas
vocalidades em performance. É sobre essa hipótese que se es-
tabelece o Projeto “O Treinamento de Atores: a procura de um
lugar de autonomia entre a técnica e a estética no teatro contem-
porâneo” através do qual vem desenvolvendo Sulian Vieira sua
pesquisa de doutorado na Universidade de Brasília.
A peculiaridade das propostas apresentadas neste Progra-
ma O Corpo Ressoante consiste em retirar da preparação para a
cena tudo aquilo que implique reproduzir estilos consolidados
em performance, no desejo de configurar novos modos de atua-
ção. As estratégias apresentadas possibilitam a abordagem tanto
de trabalhos inéditos, quanto de peças do repertório teatral dos
mais diversos períodos, gêneros e estilos.
Dessa maneira, propomos uma via de superação para o im-
passe gerado pelos modelos vigentes no campo da produção tea-
tral contemporânea, desenvolvidos no período pré-industrial no
século XX. No desejo de configurar estilos de atuação que não
contrariem a sutileza e a precisão requeridas para que a voz e a
palavra retomem sua potência afetiva, tantas vezes plasmada na
história do teatro ocidental.
O grupo aborda a atuação como um tornar presente/atuali-
zar/produzir, distanciando-se da perspectiva do atuar como re-
presentar/interpretar/reproduzir. Esta abordagem corresponde
à ideia das personagens como “lugares de fala”, de forma que a

98 Pesquisa em artes cênicas


existência delas se dá não somente pelo que dizem, senão por
“como” dizem o que dizem.
Ao definir as personagens como “lugares de fala” nos afasta-
mos das abordagens introspectivas e psicologistas, para poten-
cializar suas possibilidades dinâmicas nutrindo o lugar da voz e
da palavra em cena. Tal abordagem pede por um trabalho con-
ceitual prévio que permita uma reconsideração das ideias domi-
nantes de sujeito, de tempo e de espaço e, portanto, de persona-
gem, no teatro de um modo geral.
Com o objetivo de produzir e organizar dados que contribu-
am com nossa argumentação a respeito da personagem como
“lugares de fala”, Fernando Martins está desenvolvendo, como
parte do seu projeto de pesquisa de Mestrado “Teatro, Técnica
e Desejo – Roteiros Conceituais para a configuração da cena te-
atral” um “roteiro conceitual” a respeito das noções de persona-
gem nas obras de Constantin Stanislavski e Jerzy Grotowski. Se
a análise de discurso permite explicitar o arcabouço conceitual,
por vezes implícito, em um discurso dado, os roteiros conceituais
são procedimentos de pesquisa que buscam explicitar as defini-
ções com relação a um conceito dado através da obra de diversos
autores ou historicamente, propiciando assim a produção, orga-
nização e cruzamento de dados de pesquisa. O roteiro conceitual
que vem sendo desenvolvido por Martins possibilita um contato
intenso com os conceitos de corpo, voz, palavra e texto. A rede
conceitual que se estabelece a partir de um percurso dessas ca-
racterísticas habilita um território favorável de contato com as
dimensões técnicas e estéticas da atuação e, em consequência,
com as propostas de treinamento de atores difundidas através
das publicações desses autores traduzidas ao português, cujos
discursos ecoam hoje, de alguma forma, em diversas propostas
de encenação e preparação de atores.
Também com referência ao conceito de personagens como
“lugares de fala”, Ana Terra Leme da Silva desenvolveu sua pes-
quisa de mestrado através do Projeto “Lugares de Fala e Escuta
no Teatro de William Shakespeare: Ressonâncias de um Percurso
Feminino”, cujo objetivo foi revelar como as pistas para a per-
formance da personagem estão na forma do texto teatral. Esse

A pesquisa em teatro 99
projeto foi desenvolvido a partir da consideração de três perso-
nagens femininas na obra de William Shakespeare: Lavigna, de
Titus Adronicus; Rosalinda, de Como Gostais; e Marina, de Péri-
cles, Príncipe de Tiro.
O sistema de representação da palavra pela escrita e a proli-
feração dos meios de reprodução audiovisual são considerados
como instâncias que informam a percepção e a subjetividade
contemporâneas e, portanto, a produção de vocalidade em suas
diversas manifestações. Neste contexto, o Grupo V&C vem de-
senvolvendo os dois projetos de pesquisa em nível de Iniciação
Científica a seguir. Dalcroze: Evidências de uma Tradição Inter-
rompida objetiva o levantamento de dados a respeito da obra de
Jacques Dalcroze, com a finalidade de estabelecer algumas hi-
póteses a respeito da influência do seu método na formação de
atores, cantores e músicos em geral, e das causas que interrom-
peram essas propostas, estabelecendo assim um diálogo com a
pesquisa em andamento desenvolvida por Sulian Vieira. Levan-
tando dados sobre o sistema de notação formulado por Dalcroze,
este projeto dialoga com o Projeto Códigos Escriturais e Perfor-
mance, cujo objetivo é levantar dados a respeito da evolução da
notação musical e da letra a partir do século XX com a finalidade
de estabelecer uma comparação entre ambos os processos que,
por sua vez, sirva à argumentação sobre a necessidade de pautar
um código de notação mais abrangente do que a letra, código
representacional da literatura, capaz de dar conta das dimensões
acústica e visual da cena.

Eixos transversais

Corpo e subjetividades contemporâneas

Aborda o universo conceitual em relação ao “corpo humano” no


campo dos estudos da performance, com ênfase na relação hu-
mano/não humano, para consideração das correntes de subje-
tividades e os seus resultados no campo da performance teatral
contemporânea.

100 Pesquisa em artes cênicas


Novas vocalidades em performance

Considera a incidência do treinamento de atores em relação à


estabilização e/ou formulação de estilos de atuação, assim como
o papel desses estilos na consolidação e/ou configuração de no-
vos gêneros em performance e a incidência da técnica nesses
processos. Detectar novos estilos de atuação na performance
contemporânea, com foco na produção de voz e palavra e na
apropriação de meios tecnológicos, e estudar os problemas e
possibilidades surgidos de sua implementação em cena.

Técnicas, métodos e procedimentos

Define recursos metodológicos e procedimentos adequados ao


referencial conceitual do Programa para subsidiar as pesquisas
realizadas no âmbito do Grupo.

1 - A Letra: representação visual da palavra

Apropriação e Flexibilização: A partir de nossa definição da


“palavra escrita” como “letra” e da “palavra proferida” como “pa-
lavra”, podemos identificar uma série de fenômenos na fala dos
atores que se configuram a partir do contato deles com o texto te-
atral. Como resultado desse contato dos atores com o texto atra-
vés da leitura, as leis gramaticais da escrita tendem a colonizar
a fala, reduzindo suas capacidades afetivas e sua configuração
de sentidos em cena. Assim, propomos estratégias que tendam
a superar a restrição operada pelos códigos escriturais sobre a
palavra, restaurando o seu espaço em performance, e os sentidos
configurados em sua geografia e, enquanto evento acústico, dis-
sociando os diversos parâmetros de som na voz e na palavra.
Leitura: Procuramos uma intensa aderência à proposta do
autor através da leitura, com o objetivo de revelar na voz e na
palavra os sentidos sedimentados na forma do texto. A aborda-
gem pragmática do texto permite identificar as “cenas-chave” e,
nelas, os “blocos de sentidos” e, por sua vez, neles, as “palavras-
chave”. Tais referências permitem detectar os “gestos vocais” su-
geridos pelo autor e o “mapa de tempo” da peça e de cada perso-

A pesquisa em teatro 101


nagem. Chamo de “cenas-chave” aquelas cenas nas quais, uma
personagem determinada se manifesta em toda sua magnitude,
ou opera uma transformação decisiva com relação a uma “cena-
chave” anterior. Para identificar “cenas-chave” é preciso conside-
rar o texto teatral completo, e a personagem como um todo no
contexto da peça, contribuindo assim para aproximar o ator da
proposta do autor. Os “blocos de sentidos” são aqueles trechos
onde se conclui uma ideia. As “palavras-chave” são aquelas cuja
recepção por parte do público deve ser garantida. A localização
das “palavras-chave” define o desenho dos gestos vocais de cada
“cena-chave”.
Modulação: Inspirados em procedimentos originados no
campo da música modal e tonal, chamamos de modulação
ao processo, através do qual, mudamos a dominância de um
“modo” de enunciação sobre outro. A modulação do texto não
é uma adaptação, mas um mecanismo através do qual, a partir
de um texto dado, explicitamos e valorizamos um modo, antes
implícito ou em potencial. Este procedimento inicia-se em uma
intensa aproximação ao texto do qual se parte, seja este de autor
ou originado na tradição oral, para fixá-lo, em última instância,
em uma nova organização.

2- A Voz: as altas intensidades vocais e o Princípio Dinâmico


dos Três Apoios

Atores são fontes sonoras em movimento; assim, passamos a for-


mular uma técnica que, apontando a atingir as altas intensida-
des vocais, dê conta das demandas da produção de voz, palavra
e movimento simultaneamente, uma vez que as técnicas tradi-
cionais não contemplam estas três instâncias.
De acordo com o Princípio Dinâmico dos Três Apoios, a pro-
dução voz em altas intensidades, em toda a extensão dos regis-
tros e com alguma flexibilidade tímbrica, se dá a partir da coor-
denação dos apoios dos pés sobre o chão, do ar sobre a região
pélvica e da voz na região da epiglote. Essa atividade é estimu-
lada quando organizamos o corpo ao longo de seus Eixos Longi-
tudinal e Transversal expandidos. Isso demanda flexibilidade de

102 Pesquisa em artes cênicas


tônus muscular, além de uma técnica respiratória para sustentar
as altas intensidades vocais e, simultaneamente, a produção de
movimento. O objetivo desta técnica é definir o lugar no nosso
corpo onde somos capazes de produzir todos os sons: do mais
grave ao mais agudo, do mais ao menos intenso, e a mais ampla
gama de vogais. Baseada no Princípio Dinâmico dos Três Apoios,
nossa proposta estabelece um diferencial decisivo em relação
às técnicas vocais tradicionais, que se restringem a dois desses
apoios, e às de movimento já que, ao considerar também a pro-
dução de voz, a qualidade dos apoios no chão também se otimi-
za ao minimizar o atrito.

3- A Palavra: Micro-Atuação e modulação de textos teatrais

A personagem como “lugar de fala” se define não só pelo que


diz, senão por como diz o que diz em cena. A técnica da Micro-
Atuação surge da hipótese de que trabalhando intensivamente
sobre cenas-chave de qualquer texto teatral é possível resolver a
performance da personagem em toda sua extensão. A Micro-Atu-
ação se vincula assim à nossa abordagem pragmática do texto
teatral e à noção de personagem como “lugar de fala”. A Micro-
Atuação aponta a destacar as diversas “camadas” de produção
de sentidos no corpo dos atores na hora de performar um texto.
Uma vez memorizada e flexibilizada a cena chave, e definida a
gestualidade vocal nela, o processo se dá nas seguintes etapas:
■ Ensaio da cena;
■ Registro em Áudio do texto;
■ Zoom, que consiste na realização de três registros audiovisu-
ais da cena que apontam a separar a
■ atividade fonatória da performance;
■ Crítica, dos registros audiovisuais realizados;
■ Registro Final.

A pesquisa em teatro 103


4- A Performance: processos de encenação a partir da
Dimensão Acústica da Cena

Na tradição do teatro ocidental, o espaço físico da cena define


a produção acústica em performance. Diferentemente, trabalha-
mos com a ideia de que é a produção acústica em performance
que define o espaço acústico na percepção da audiência. Assim,
desenvolvemos e aplicamos recursos mecânicos, técnicos e tec-
nológicos que funcionam como referenciais da encenação, em
suas dimensões acústica e visual.
Em diversos planos, fixos e móveis, se estabelecem relações
de sentidos entre as esferas da voz e a palavra, do ambiente acús-
tico e da música em performance, definindo o que chamamos a
Dimensão Acústica da Cena. Neste momento, desenvolvem-se
as propostas que objetivam a aplicação de resultados de pesqui-
sa em contextos institucionais, como é o caso do sistema educa-
cional, presencial e a distância, e em contextos urbanos contem-
porâneos, como é o caso do projeto de pesquisa de doutorado
“O Som, a sala e a cena: uma cartografia de contextos escolares”,
que César Lignelli está atualmente desenvolvendo atualmente
na Universidade de Brasília.
§

Certamente, a arte precisa de artistas. Situados no próprio


tempo e espaço, os artistas, enquanto enunciadores, desvendam
o lugar do novo, do original. Porém, não só de artistas vive a arte.
Desenvolvendo uma ampla gama de papéis, os profissionais vin-
culados, neste caso, às Artes Cênicas, são tão responsáveis pela
dinâmica dos processos históricos ao longo dos quais se produ-
zem os discursos estéticos. Nesse contexto, a pesquisa em Artes
Cênicas tem hoje o desafio de abrir espaços de reflexão coletiva
em áreas que têm sido pouco consideradas ao longo das últimas
décadas, como é o caso das vocalidades em performance. É a
partir da prática de pesquisa que pode ser restabelecida e esti-
mulada a circulação de conhecimento e saberes e a exposição
aos mais diversos dispositivos tecnológicos. Dessa circulação,
poderemos promover propostas que restaurem à voz e à palavra,
enquanto ato, seu complexo lugar de potência e sutileza.

104 Pesquisa em artes cênicas


Referências bibliográficas
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Teses de doutorado (em andamento)


Profª Sulian Vieira Pacheco (CEN/UnB). O treinamento de atores: à pro-
cura de um lugar de autonomia entre a técnica e a estética no teatro
contemporânea. 2008. Tese (Programa de Pós-graduação em Arte) –
Universidade de Brasília.
Teses de doutorado (concluída)
Profª Paula Cristina Vilas.(CEN/UnB). Vozes entre festas. Vocalidades en-
tre o trabalho de campo e a produção vocal em cena. 2007. Tese (Pro-
grama de Pós-graduação em Artes Cênicas) – Universidade Federal da
Bahia.

Dissertações de mestrado (em andamento)


Diego Pizarro. Contact Improvisation na Formação de Atores. 2008. PPG
– Arte – Universidade de Brasília.
Fernando da Silva Martins. Teatro, Estética e Desejo: roteiro conceitual.
2008. PPG – Arte – Universidade de Brasília.
Elisa Teixeira. Técnica e Educação Somática. 2008. PPG – Arte – Univer-
sidade de Brasília.

A pesquisa em teatro 107


Dissertações de mestrado (concluídas)
Ana Terra Leme da Silva. Lugares de fala e de escuta no teatro de William
Shakespeare: ressonâncias de um percurso feminino. 2009. Dissertação
(mestrado em Artes) – Universidade de Brasília.
Prof. César Lignelli (UFU). A produção de sentido a partir da dimensão
acústica da cena. 2007. Dissertação (Artes) – Universidade de Brasília.
Profª Ana Cristina Filgueira Galvão (CEN/UnB). O corpo do ator contem-
porâneo: aproximações cartográficas das noções de corpo presentes no
universo de atores brasilienses. 2005. Dissertação (Artes Cênicas) – Uni-
versidade Federal da Bahia.
Profª Rose Mary Martins de Abreu (UFPE). A voz e a palavra na cena do
Recife hoje: um estudo de caso sobre a preparação vocal do ator e seus
resultados em Performance no teatro para a criança. 2003. Dissertação
(Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia.
Profª Mariza Vargas Mendes Campos (CEN/UnB). Jogo, inconsciente e
atuação: uma perspectiva composicional a partir da Multiplicação Dra-
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A pesquisa em teatro 109


A pesquisa nas artes do corpo:
método, linguagem e intencionalidade

Milton de Andrade7

As metodologias de pesquisa no campo das artes do corpo tra-


zem frequentemente para o campo da epistemologia questões
fundamentais sobre atitudes e procedimentos envoltos na pro-
blemática da linguagem e da intencionalidade.
A fusão e a sobreposição de campos interpretativos na dialéti-
ca vital corpo-mundo, que podem parecer óbvias a alguns e que
na prática acadêmica parece ser negada por muitos, estão na raiz
da problemática entorno das metodologias aplicáveis à pesquisa
na dança, nas artes do movimento, e no teatro (pelo menos àque-
le teatro que tem o corpo como principal projeto semântico). É
através desta dialética que a ação do pesquisador se carrega de
intenção e sentido, e que são colocadas sobre um mesmo plano

7. Milton de Andrade é docente do Departamento de Artes Cênicas e do Pro-


grama de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catari-
na (UDESC), formado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), com
Mestrado e Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de Bolonha (Itália).
E-mail: deandrademilton@hotmail.com.
a atitude ativa do olhar de quem pesquisa e a prática artística de
um corpo sujeito/objeto de conhecimento.
Nas artes do corpo, o pesquisador somente tem acesso ao
mundo da ação e dos “comportamentos cênicos” através de um
espaço que se desdobra a partir de si como realidade material
dotada de intencionalidades, já que o corpo humano é abertura
original e intencional ao mundo:

A intencionalidade do corpo humano, a sua origi-


nária abertura ao mundo, o seu ex-por-se, e espe-
rar indicações do mundo para si, é atestado, acima
de tudo, pela sua estrutura anatômica. Nós somos
eretos não pela mecânica do esqueleto ou pela re-
gulação nervosa do tônus (estas são consequên-
cias, não causas), mas porque estamos empenha-
dos no mundo. Quando este empenho se reduz,
quando diminui a apreensão ao mundo, o corpo
se abandona, cotidianamente no sono e, no final,
na morte, quando se torna objeto puro, coisa entre
coisas, imobilidade, não gesto, silêncio, não pala-
vra, corpo como o concebe a anatomia da ciência.
Não é a alma que se foi, mas é o mundo que não
existe mais, ou existe somente como terra que o
acolhe e o sela (GALIMBERTI, 1996, p. 65).

O corpo da ciência clássica é “corpo morto”, corpo/coisa em


repouso de intencionalidades; um objeto perfeito, idealmente
estável, propício ao distanciamento intelectual e à estabilização
de campos de análise e à comprovação de hipóteses de presen-
ça. É o corpo do teatro anatômico1. “No cadáver a mão revela si
mesma, enquanto que no corpo [vivo] revela os objetos que toca,
a resistência, a adversidade das coisas.” (GALIMBERTI, 1996, p.
66). É o empenho intencional no mundo que oferece o diferen-

1. Os teatros anatômicos foram anfiteatros construídos nas universidades euro-


péias a partir do século XVI para as lições científicas de medicina. Eram consti-
tuídos por uma cátedra, onde se instalava o docente, uma mesa central, na qual
o cadáver era dissecado, circundada esta por uma platéia em degraus circulares,
elípticos ou octogonais com parapeitos, dos quais os estudantes podiam obser-
var os procedimentos e as demonstrações das aulas de anatomia.

112 Pesquisa em artes cênicas


cial anímico do corpo humano, o sentido gestual, o logos profun-
do e o verbo corporal.
Apesar do corpo humano também ser, no campo das artes
(em vertentes ideologicamente afins com um abstracionismo
extemporâneo), objeto ou “vítima” de negação da organicidade
e de aniquilamento ficcional da subjetividade, a intencionalida-
de parece ser um ponto estável e constante na problematização
da pesquisa artística, tanto no que diz respeito aos estudos da
linguagem nas práticas compositivas, quanto aos exercícios pe-
dagógicos e historiográficos.
Não existe no campo da pesquisa nas artes do corpo “objeto
não-intencionado”; e, se não existe “objeto não-intencionado”,
não existe “objeto” de estudo vazio de ordem representativa psi-
cofísica, de desígnio e de desejo. Esta é uma primeira plenitude,
que deve ser necessariamente aceita pelo pesquisador2. Os atos
do pesquisador e do pesquisado se entrelaçam na lógica do de-
sejo. E se a falta está na base do desejo (não posso desejar o que
não me falta, se quisermos seguir as pistas de Lacan), tal falta
(a ausência do objeto que completa o meu corpo) gera um es-
paço potencial no qual ocorre a constituição do mundo criati-
vo, simbólico e representacional. O corpo do pesquisador e seus
“objetos” de estudo se encontram juntos neste espaço potencial
e compartilhado, que Winnicott (2000) chama de espaço transi-
cional. É neste espaço virtual, intersubjetivo, área compartilhada
entre o eu-não-eu-Outro que se dá a prática da pesquisa.
O desejo faz a história por rupturas (não por aceitação ou
comprovação das verdades ou falsidades), é núcleo de resistên-
cia, de contradição e estranhamento, e na linguagem do cor-
po porta o eros, a fecundidade e o rumor da língua (BARTHES,
1988). O desejo corrompe, é também pulsão criadora, forma-
dora e deformadora, leva a atos criativos de uma língua volta-
da à diferença, à alteridade (outro-ser), à multiplicidade. Como
significante incontrolado, que irrompe na ordem do significado
estabelecido, torna impossível qualquer adequação a um mode-
lo. E, no ato da pesquisa metódica e da sistematização criteriosa

2. E esta obviamente não é uma particularidade exclusiva à área das artes.

A pesquisa nas artes do corpo 113


acadêmica, esta source language – nascida do desejo e da autên-
tica e originária necessidade de propagar-se – deve se render, ao
menos em parte, à exigência unitária e à disposição hierárquica
das palavras, à concisão redutiva da forma discursiva, à tentativa
de reconduzir o diverso ao idêntico, podendo aí recair-se num
estado de dead language, no qual uma simbólica rica e articulada
é transformada numa lógica pobre, porém comunicante.
Esta parece ser a mais elementar das questões de método na
pesquisa em artes: como lidar com o logos acadêmico científico
(comunicante), quando se trabalha com uma forma de produção
simbólica ambivalente, como a linguagem do corpo (que, por
natureza, “corrompe” o próprio discurso). Tal questão nos leva a
uma aporia, uma dificuldade em parte insolúvel, que a fenome-
nologia procura amenizar, ao vincular sujeito psicológico, lógica
da linguagem e ontologia (aquilo que dá os atributos essenciais
ao “ser”, vivência, no existencialismo de Heidegger, o Dasein – ser
num certo lugar).
A problemática de método, que tange o onipresente desejo e
a intencionalidade do corpo, tem se deslocado de sua origem on-
tológica (o ser em si), para se traduzir num dilema de linguagem
(fora de si), ou se preferirem, de metalinguagem. Como “escrever”
e descrever uma linguagem (a do corpo e a do movimento), fa-
zendo jus ao jogo simbólico de intencionalidade e ambivalência
presente no cerne dos fenômenos estudados? Como manter a fer-
tilidade da língua originária e não ceder à iconoclastia científica?
As respostas vêm sendo dadas pelas inovações que, bem ou
mal, as artes trazem ao “discurso científico” na segunda metade
do século passado e na virada ao século XXI. Nascem práticas e
linguagens de mediação, através de uma espécie de restauro da
literatura científica, na qual a imagem e a vida dos símbolos pas-
sam a fazer a ponte entre o incognoscível da arte e o discurso da
ciência, dando conta das ambivalências dos processos dinâmi-
cos do corpo, do movimento e das artes em geral. Teses e disser-
tações são elaboradas com critérios e linguagens que, sem perder
o necessário rigor de método e a propriedade autoral, mantêm a
aderência à essência e à vida do fenômeno estudado.

114 Pesquisa em artes cênicas


E o que significaria tal aderência? Em quais níveis de “sobre-
vida” do fenômeno o pesquisador caminha? Quais os modos de
manter-se numa relação contemporânea de mediação cultural,
cientificidade e pertinência à vida?
Numa perspectiva fenomenológica, os procedimentos e a
linguagem do pesquisador deveriam fazer do documento (seu
“objeto de desejo” e de análise) um corpus dinâmico e circuns-
tanciado. O sentido documental é restaurado não como indício
de um tempo passado, mas como um fenômeno presencial cujas
relações ainda não foram estabelecidas, ou percebidas.
E, neste sentido, o pesquisador cria, através da restauração
documental, o movimento necessário ao liame (vínculo) com a
vida do fenômeno estudado. Ele vive e “presentifica” os movi-
mentos que descreve. Sem esta atualização concreta do sentido,
a pesquisa e a linguagem do pesquisador podem se tornar es-
téreis, burocráticas, catalogadoras e, quando presas nas crono-
logias epocais, permanecem paradoxalmente sem lugar no seu
tempo: não nos faltam exemplos de “histórias universais” das ar-
tes, que ao pretenderem traçar a cadeia da verdade cronológica
dos fatos, perdem a essência do sentido, que se dá sempre pelo
movimento de re-presentificação descritiva do fenômeno.
Neste processo de re-presentificação fenomenológica cria-se
sempre uma fenda subjetiva (o que pode parecer extremamente
provocador para alguns e para outros, angustiante) na qual a rea-
lidade histórica dos fatos se mistura com um campo que somen-
te pode ser entendido como ficcional, pois é também terreno de
criação imaginária.
A forma ficcional sempre permaneceu excluída ou margina-
lizada do mundo “adulto” da ciência por uma questão em parte
ideológica e em parte semântica. Ideológica, pois o discurso da
ciência pretende-se asséptico a qualquer intervenção do imagi-
nário. Semântica, pois, numa visão estreita e redutora, se enten-
de ficção como simulação, aquilo que não é verdadeiro ou não
corresponde à “realidade”. Porém, sabemos (e temos que admi-
tir) que o ato ficcional é também um ato engenhoso e imagina-
tivo fundamental para que se dê força de verdade e “eloquência

A pesquisa nas artes do corpo 115


corporal” (körperliche Beredsamkeit)3 ao método e ao discurso.
Nesta direção, a pesquisa em artes, em particular a historiográ-
fica, necessitaria do despojamento discursivo e da assimilação
inventiva própria de um manejo original e próximo da técnica
literária e audiovisual, com um grau de detalhamento imagético
que confira e restitua a tridimensionalidade própria do fenôme-
no. É esta descrição a posteriori imagética e pormenorizada (este
relato de fatos memoráveis) que conduz o ato de se compreen-
der o que se descreve, para assim descobrir o sentido e garantir a
validade da extração e da interpretação do pesquisador4.
Na pedagogia do movimento os problemas de linguagem e in-
tencionalidade se tornam fatos de interação e assimilação, já que
a ação educativa é um fenômeno de interação corporal mediado
pela prática da troca e das leituras que são feitas dos corpos em
relação de reciprocidade e de conhecimento mútuo.
O corpo se carrega de intenções, aprende e apreende, por
“empiria circunstanciada”, por imersão no mundo. São os ob-
jetos do mundo que indicam ao corpo suas possibilidades. “As
possibilidades do meu olhar não me são indicadas pelas leis da
ótica, mas pela proximidade ou pela distância das coisas, pela
sua beleza ou pela sua repugnância.” (GALIMBERTI, 1996, p.
70). Assim como ter as regras do jogo não garante o saber jogar,
conhecer leis anatômicas e fisiológicas, obviamente, não é sufi-
ciente para se mover. Há que se ter um campo de experimenta-
ção através do qual os objetos do mundo liberam a potência ope-
rativa do corpo. Não posso querer entrar no mar somente depois
de, em teoria, “aprender” a nadar: a água é o mundo em relação
ao qual o meu corpo se sente e se torna potência operativa. Este

3. É curioso lembrar que talvez o primeiro a utilizar tal termo tenha sido o fi-
lósofo e dramaturgo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) no auge do
iluminismo alemão, quando se discutia a necessidade de se rever os padrões lite-
rários e o papel do gesto corporal no teatro burguês. Sobre este argumento vide
nossa pesquisa de doutoramento Affetto e azione espressiva nell’arte dell’attore:
studio sul rapporto corpo-anima nelle teorie di J. Jakob Engel, François Delsarte
e Rudolf Laban. Dipartimento di Musica e Spettacolo (DAMS), Università degli
studi di Bologna, 2002.
4. Surge aí talvez uma curiosa perspectiva metodológica de extração do sentido
que seguiria analogicamente a forma de revezamento doc.fiction (documento +
ficção), que já há tempos foi apropriada pela área do documentário audiovisual e
da própria literatura documental.

116 Pesquisa em artes cênicas


é um princípio óbvio e cotidiano, que nem sempre é respeitado
na pesquisa acadêmica.
O ato interpretativo segue um princípio similar de operati-
vidade intencional no mundo do sentir, do agir e do conhecer:
“No plano do conhecer, a primeira característica do objeto é a de
aparecer. O homem não cria o real. Ele o recebe como uma pre-
sença. Sua percepção se abre ao mundo. Percepção finita. Toda
visão é um ponto de vista.” (JAPIASSU, 2008, p. 9). E todo ponto
de vista é a vista de um ponto: “Ler significa reler e compreender,
interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a par-
tir de onde os pés pisam.” (BOFF, 1998, p. 3). Querer ver somente
segundo as leis da ótica, querer nadar sem que seja banhado o
corpo, trabalhar sem que sejam moldadas as mãos, interpretar
sem deixar pistas do caminhar e entender o homem não por
aquilo que o constitui homem são vícios comuns na prática aca-
dêmica: especulações do ego cogito sem um fundo de operativi-
dade motivada.
Deve-se, portanto, admitir a empiria primária como base do
conhecimento corporal e, portanto, ponto de partida ou de tran-
sição a qualquer aprendizado gerado por uma pesquisa ou busca
de conhecimento sistemático sobre o corpo. Este é um argumen-
to que tange diretamente a questão e o dilema do dualismo – que
se eterniza não somente no campo da metodologia da pesqui-
sa científica, mas em quase todos os movimentos da história da
mentalidade da cultura ocidental – o dualismo entre “teoria” e
“prática”, “corpo” e “mente” (binômios de antinomia que, em úl-
tima consequência, se equivalem).
No modelo científico cartesiano, que, por mais que seja deba-
tido e criticado, continua a prevalecer na cultura acadêmica oci-
dental, toda produção de sentido não é mais buscada na relação
do corpo com o mundo. O corpo e o mundo é que recebem o seu
sentido das cogitações do ego. “Nascida do homem no mundo, a
ciência é assim levada, com Descartes, a esquecer a própria ori-
gem, e, por efeito de seu embasamento metodológico, a colocar-
se como aquele equivalente geral capaz de fixar o sentido exato
daqueles objetos que eram para ela o corpo e o mundo.” (GA-
LIMBERTI, 1996, p. 40). Substitui-se a ambivalência do símbolo

A pesquisa nas artes do corpo 117


pela equivalência do signo, separa-se o sujeito cognoscitivo e o
mundo a ser conhecido, o conhecimento é visto como represen-
tação de um sujeito-sem-mundo, e o corpo passa a ser o “servo
mudo”, uma plataforma de aplicação, sobre a qual se procuram
as leis “genuínas” deste objeto silencioso da ciência.
O texto Os intelectuais e o poder – publicado na Microfísica do
Poder como diálogo de Foucault e Deleuze –, apesar de ser data-
do e percorrido por questões ideológicas de um tempo de revisão
da dialética marxista, continua sendo talvez um dos instrumen-
tos mais eficazes na elucidação de tal relação (teoria-prática). O
que Deleuze propunha, nos idos anos 70, é que, na crítica à ci-
ência como equivalente geral, não seria justo considerar a práti-
ca como uma aplicação de uma teoria totalizadora (assim como
não é justo entender o corpo como instrumento comandado por
uma mente soberana).
Segundo Deleuze, seria mais adequado conceber-se a prática
como um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra; da
mesma forma que a teoria seria desenvolvida através de alter-
nâncias entre práticas. Tais processos dialéticos se dariam, sem-
pre de forma parcial e fragmentada, por meio de “lateralidades”
entre teorias e práticas, que permitiriam a descoberta de zonas
de contato e a localização (em oposição à totalização) de conteú-
dos e formas interpretativas significativas. Ou seja, seria descabi-
do pretender um corpus teórico coeso e totalizante (a Teoria com
letra maiúscula) para que seja justificada ou explicada uma prá-
tica (minúscula e singular) que é sempre local (ação num campo
determinado de tensões espaço-temporais). O mesmo se apli-
caria à dialética corpo-mente. Não seria justo acreditar que um
processo de interações corporais (sempre singular e localizado)
seja gerado ou explicado por um projeto totalizador de amplifi-
cação simbólica, intelectual e teórica.
Tais sugestões epistemológicas nos fazem entender que o
pesquisador em artes pode tornar o próprio exercício de compo-
sição artística a base analógica do movimento de pesquisa e de
escritura acadêmica, tanto por motivo de semelhança (quando
o método e o texto acadêmico assemelham-se, contaminam-se
e, em parte, confundem-se com a própria linguagem artística),

118 Pesquisa em artes cênicas


quanto por motivo de dependência causal (quando a produção
acadêmica não pode existir sem o próprio ato de composição
artística). Existe aí (e isto vai somente depender da qualidade e
do comprometimento do pesquisador com a arte e a vida) uma
dimensão analógica, um modo contínuo e gradual, entre a práti-
ca da composição artística e o discurso da proposição científica.
Além da analogia com o próprio ato de compor, o método do
pesquisador se sobrepõe de lateralidades com as quais compara,
mede e confere sua experiência com a prática e os procedimen-
tos de composição de Outros-autores ou ainda com os processos
de recepção de um Outro-espectador.
Cumpre ainda ressaltarmos, a título de síntese e conclusão
aos propósitos deste capítulo, uma fundamental tríade à ação
da pesquisa nas artes do corpo, tríade pela qual, como hipótese,
tem nos guiado e dado “positividade” ao nosso raciocínio e mo-
dus operandi de autor-pesquisador: historiar, educar e compor
são ações que podem conviver num ato de pesquisa sincrético,
formando um plano fundamental de constituição da subjetivi-
dade e da identidade do artista pesquisador.
Tal plano se estende além das questões de ferramentas e
métodos de pesquisa para instalar-se no território da consci-
ência e do espírito crítico. “Recuperar a dimensão histórica do
homem exige muito mais do que uma reforma metodológica.”
(RICOEUR, 2008, p. 117).
A historicidade (a qualidade do que existe, não na instanta-
neidade do momento ou na eternidade das ideias, mas no com-
prometimento com o tempo histórico) garante ao pesquisador a
necessária transversalidade espaço-temporal do fenômeno cor-
poral. Permite que não sejam “reinventadas as rodas”; que não se
busque a funcionalidade do novo, sem que se conheçam as traje-
tórias comuns, as parábolas cíclicas e as formas divergentes das
funções históricas. Permite-nos entender o tempo, o percurso e
os motivos pelos quais o corpo ofereceu-se ou resistiu a inserir-se
na economia política como força-trabalho, à economia da libido
como fonte do prazer5, à economia médica como organismo a

5. Vide Lyotard, J. F., Economie libidinale, Paris: Ed. De Minuit, 1974.

A pesquisa nas artes do corpo 119


ser curado, à economia religiosa como carne a ser redimida, à
economia dos signos como suporte de significação (GALIMBER-
TI, 1996, p. 291). Entender que, num momento incerto de nossa
civilização, o corpo passa a ser desejado não pelo que é, mas pelo
que indica (e aqui se instaura a cultura do espetáculo).
O ato de educar é verificador da concretude e da validade do
conhecimento corporal em relação a um real interesse, percebi-
do e sentido como retorno à situação plena e originária do de-
sejo pelo novo, pelo Outro-desconhecido. É, em última análise,
a revitalização do “impulso epistemofílico”, conforme teorizam
os psicanalistas, como sede pulsional de saber e compreender
(cujo primeiro objeto, segundo Melanie Klein, seria a mãe, e, a
partir daí, o próprio corpo, o interior do próprio corpo). Educar
é recuperar o mundo, a morada do corpo, é sair da neutralidade
afetiva (que deixa sempre o corpo isolado, na angústia), para po-
voar o corpo de sensações íntimas, secretas e, ao mesmo tempo,
decodificadas e compartilhadas. É transformar ideias em coisas,
coisas em materiais, materiais de trabalho e retrabalho, cujo sig-
nificado dissolve a opacidade solitária da carne.
O ato de compor é para o pesquisador o exercício pleno de
habilidades que lidam com a instabilidade gestual, a incerteza
e a precariedade improvisacionais, a lógica da linguagem e a
ilogicidade do sentido, os excessos semânticos do corpo e sua
resistência à codificação; é também ato de verificação da soli-
dez da forma e da concretude de sua intencionalidade. Permite
a verificação da interação e da contaminação entre a intenção
perceptiva e os parâmetros das convenções da percepção. A re-
lação especular, implícita em todo processo de composição, que
oferece sempre uma imagem reflexa/refletida do corpo, mostra
no processo de composição que o corpo está sempre além, em
realidade, é sempre diverso, da imagem sígnica produzida: reve-
la ao pesquisador o drama narcísico da impossibilidade de se ver
e se conhecer nos reflexos dos espelhos. “Olhos contra os olhos.
Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imu-
táveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem,
para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava perma-
nentemente.” (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 67).

120 Pesquisa em artes cênicas


Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição huma-
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1979.
GALIMBERTI, Umberto. Il corpo. Milão: Feltrinelli,1996.
GUIMARÃES ROSA, João. O espelho. In: Primeiras Estórias. Rio de Janei-
ro: Nova Fronteira, 2001.
JAPIASSU, Hilton. Paul Ricoeur: filósofo do sentido. In: RICOEUR, Paul.
Hermenêutica e ideologias. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão – e outros trabalhos 1946-1963. Rio de
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LACAN, Jacques. A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1995.
LYOTARD, Jean-François. Economie libidinale. Paris: Ed. De Minuit,
1974.
RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
WINNICOTT, Donald. Objetos transicionais e fenômenos transicionais.
In: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

A pesquisa nas artes do corpo 121


A pesquisa qualitativa em artes cênicas:
romper os fios, desarmar as tramas

Adilson Florentino6

Há um considerável universo teórico e metodológico para desen-


volver a pesquisa qualitativa no campo das artes cênicas a partir
da diversidade de tradições analíticas ancoradas, principalmen-
te, nas ciências sociais. Na tensa relação entre ciências sociais e
artes cênicas se dá a gestação de um espaço inter e transdisci-
plinar que ainda não está suficientemente explorado, mas que
permite suscitar diversas reflexões.
Neste ensaio reflexivo apresento uma visão panorâmica dos
principais paradigmas, metodologias e orientações teóricas que
inspiram a investigação qualitativa no campo das artes cênicas.
A pesquisa qualitativa abre um espaço nos diferentes modos
de análise dos problemas relativos ao campo das artes cênicas

6. Professor, pesquisador, mestre em Educação (1992) pela Uerj e doutor em


Teatro (2006) pela Unirio. É professor no Departamento de Interpretação Teatral
da Escola de Teatro e do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Uni-
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
numa perspectiva social e cultural e pela adoção de diversos pro-
cedimentos como a análise de conteúdo e a análise do discurso.
A abordagem qualitativa em artes cênicas parte do pressu-
posto básico de que o universo cênico é construído de símbolos
e significados. Nesse sentido, a intersubjetividade constitui uma
peça chave na investigação qualitativa e o ponto de partida para
captar de forma reflexiva os diferentes significados estéticos e
sociais.
A realidade estética das artes cênicas pode ser percebida
como estando repleta de significados compartilhados de modo
intersubjetivo. O destaque é atribuído ao sentido intersubjetivo.
A pesquisa qualitativa pode ser encarada com a intenção de ob-
ter uma profunda compreensão dos significados e das definições
das situações-problemas apresentadas pelos sujeitos, mais do
que a produção de uma medida quantitativa de suas caracterís-
ticas básicas.
Por esse motivo, a pesquisa qualitativa é interpretativa. Con-
siste no estudo interpretativo de uma situação-problema no qual
o pesquisador é responsável pela produção de sentidos.
Todavia, há de se levar em consideração que o problema prin-
cipal enfrentado contemporaneamente pela pesquisa no campo
das ciências sociais e das ciências humanas em geral e de suas
metodologias têm sua gênese na dimensão epistemológica, pois
gravita em torno do conceito de “conhecimento” e de “ciência”,
bem como da confiabilidade científica de seus produtos, ou seja,
o conhecimento da verdade.
Historicamente, essa situação produziu, sobretudo na segun-
da metade do século XX, o aparecimento das correntes pós-mo-
dernas, pós-estruturalistas, o construcionismo, o desconstru-
cionismo, a teoria crítica, a análise do discurso e as análises que
formulam a teoria do conhecimento.
Essa heterogênea riqueza de perspectivas exige do pesquisa-
dor uma imensa sensibilidade quanto ao uso de procedimentos
metodológicos aliada à perspicácia para poder captá-los, bem
como exige um profundo rigor, sistematicidade e criticidade,
entendidos como critérios básicos da cientificidade exigida no
campo acadêmico.

124 Pesquisa em artes cênicas


Seguindo as pegadas reflexivas de Gadamer (2007), no contex-
to de circunscrição da experiência humana total, uma vivência
com certeza imediata, como a experiência da arte, do teatro e até
mesmo da história, expressa uma verdade que não pode ser cons-
tatada pelos meios disponíveis da metodologia científica tradicio-
nal que requer o uso da racionalidade lógica. Em contraposição, a
experiência total requer o uso de um processo afetivo.
Do ponto de vista da psicologia das inteligências (Gardner,
1994), o sistema cognitivo e afetivo não constitui dois sistemas
totalmente distintos, eles formam um único sistema, a estru-
tura cognitivo-afetiva. Por isso, torna-se compreensível a união
da estrutura lógica e estética que são responsáveis pela vivência
total da realidade experienciada. Às vezes pode ocorrer a predo-
minância de uma estrutura sobre a outra conforme pode ser ve-
rificado no cotidiano e no comportamento das pessoas.
Os pressupostos fundamentais para a exitosa solução desse
problema se dá em Aristóteles (2005), na sua obra Metafísica,
quando exorta que o ser nunca se dá a ninguém em sua totalida-
de, senão somente segundo determinados aspectos e categorias.
Portanto, todas as realidades, incluindo as realidades humanas,
são poliédricas e multifacetadas e algumas delas só podem ser
capturadas em um dado momento específico.
O problema radical que aqui está em debate reside no fato de
que o aparato conceitual clássico da racionalidade científica de
viés rigoroso pela sua objetividade, determinismo, lógica formal e
verificação (Popper, 2000), resulta insuficiente e não consegue dar
conta das realidades, principalmente, surgidas ao longo do século
XX, como o mundo subatômico da física, as ciências da vida e as
ciências humanas. Para enfrentar os problemas produzidos por
essas realidades há que se trabalhar com conceitos inter-relacio-
nados e capazes de gerar explicações globais e unificadas.
Essa nova sensibilidade também se revela nas metodologias
qualitativas de pesquisa e viria a significar o estado da cultura
após as transformações que atingiram as regras do jogo da ciên-
cia, da literatura e das artes que predominaram durante a deno-
minada “modernidade”, nos três últimos séculos (Santos, 2000).

A pesquisa qualitativa em artes cênicas 125


Os principais autores dessa nova sensibilidade no campo do
conhecimento, tais como Foucault (2007) e Habermas (2002),
diferem entre si em alguns eixos, porém, podem ser perspecti-
vados nesses autores certos pontos de interseção como a rup-
tura com a hierarquia e valores tradicionais, o baixo apreço pela
formação de um sentido universal, a desvalorização pela ideia
de modelo e sua valorização, em troca, à racionalidade crítica, à
verdade “local”, ao uso dos fragmentos e à ênfase no primado da
subjetividade e na experiência estética como modo de produção
de saberes.
Faz-se mister, amiúde, a internalização de um pensamento
sistêmico-ecológico (Bertalanffy, 2008), ou seja, pensar em ter-
mos de relações, processos e contextos, pensar em termos de um
enfoque dialético, inter e transdisciplinar no qual a rede de rela-
ções do conhecimento interatua com tudo e se define por aqui-
lo que é em troca de um modo linear, causal e unidirecional de
pensar.
A natureza constitui um todo polissêmico que se revolta
quando é reduzida a seus elementos estruturantes no modo
de pensamento científico tradicional. Essa revolta é produzida
precisamente porque na redução ocorre a perda das qualidades
emergentes do todo e da sua ação sobre cada uma das partes.
O todo polissêmico que constitui a natureza global impõe ao
pesquisador contemporâneo a adotar uma metodologia inter e
transdisciplinar a fim de investigar a riqueza das interações esta-
belecidas entre os diferentes subsistemas estudados pelos diver-
sos campos disciplinares.
A perspectiva inter e transdisciplinar exige o respeito da inte-
ração entre os sujeitos/objetos de estudo das diferentes discipli-
nas e exige lograr na interlocução de seus campos a configuração
de um espaço de interseção lógico e coerente. Isso implica para
cada campo disciplinar a revisão, reformulação e redefinição de
suas próprias estruturas lógicas. Esse itinerário já está sendo per-
corrido pelas metodologias que adotam um enfoque hermenêu-
tico, etnográfico e porque não dizer qualitativo, cujo eixo frontei-
riço é o do tipo estrutural-sistêmico.

126 Pesquisa em artes cênicas


A pesquisa qualitativa em artes cênicas trata de investigar a
natureza profunda dos fenômenos que constituem esse campo
de estudos, a sua estrutura dinâmica e suas diversas práticas de
atuação e de reflexão.
Não obstante, o conjunto de vertentes metodológicas e de
pressupostos filosóficos que constitui o escopo da pesquisa qua-
litativa atualmente não é suficiente para fazer frente à afirmativa
de que essa abordagem investigativa está atravessando uma cri-
se de legitimidade e de respeitabilidade e, por isso, exige que os
seus pesquisadores estejam submersos numa tarefa de autorre-
flexão permanentemente.
Motivado pela tarefa de vir a contribuir com essa crítica re-
flexiva, problematizo no presente ensaio as questões relativas à
pesquisa qualitativa em sua dimensão polissêmica. A pesquisa
qualitativa não constitui uma unidade monolítica porque seu
estatuto é resultante da construção de diferentes matrizes filosó-
ficas e epistemológicas.
Assim sendo, sinto a necessidade de interrogar sobre os diver-
sos modos com os quais a pesquisa qualitativa se manifesta nos
diferentes campos das ciências humanas e sociais com o objeti-
vo de tentar situar o espaço que ela ocupa nas artes cênicas.
Para Bogdan & Biklen (2006), as divergências operadas nas
perspectivas da pesquisa qualitativa ou investigação qualitativa
podem estar situadas em diferentes níveis de análise, entre os
quais:
1. Nível epistemológico: nesse nível se inserem as diferenças e
contradições existentes entre as correntes utilizadas e os mo-
dos pelos quais os pesquisadores assumem a sua relação com
a realidade investigada;
2. Nível filosófico: esse nível abrange as diferentes concepções
que os pesquisadores sustentam em relação aos critérios de
verdade, objetividade e validade;
3. Nível metodológico: aqui tomam lugar as polêmicas produzidas
em relação aos procedimentos de coleta e análise de dados;

A pesquisa qualitativa em artes cênicas 127


4. Nível conceptual: refere-se aos diversos modos de conceber o
problema da pesquisa;
5. Nível teleológico: aqui se acenam as discrepâncias relativas às
decisões tomadas sobre os objetivos da pesquisa.

Diante das divergências apresentadas, por que se torna perti-


nente problematizar o enfoque qualitativo da pesquisa no campo
das artes cênicas? Entre as razões argumentativas que poderiam
defender a emergência da abordagem qualitativa no campo das
artes cênicas se encontra o pressuposto da insuficiência do mé-
todo experimental clássico (hipotético-dedutivo), apropriado às
ciências físicas e naturais, ao estudo do contexto específico tanto
das ciências sociais quanto das artes em geral.
A constituição dos campos das ciências sociais e das artes cê-
nicas possui múltiplas dimensões que não conseguem ser explo-
radas pelo modelo clássico de pesquisa científica. Já a abordagem
qualitativa é capaz de refletir tanto a realidade social como a rea-
lidade cênico-dramatúrgica na extensão de sua complexidade.
Independentemente do modo de sua abordagem (qualitativa
ou quantitativa), toda pesquisa gravita em torno de dois pontos
básicos de atividades e que estão relacionados com a consecu-
ção de seus objetivos; consistem:
1. coletar toda a informação necessária e suficiente para alcan-
çar os objetivos ou solucionar o problema em questão;
2. estruturar toda a informação em um todo coerente e lógico,
ou seja, construir uma estrutura lógica, uma perspectiva ou
uma teoria que organize a informação.

Uma questão de grande relevância se destaca nessa conside-


ração, a saber, esses dois pontos básicos de (1) coletar dados e (2)
categorizá-los e interpretá-los não acontecem sempre de modo
sucessivo, mas se entrelaçam continuamente no tempo de sua
produção.
Com efeito, o método básico de toda ciência consiste na ob-
servação dos dados ou fatos e a interpretação de seus significados.
Todavia, a observação e a interpretação são procedimentos inse-

128 Pesquisa em artes cênicas


paráveis; torna-se inconcebível que um procedimento ocorra sem
o outro de maneira isolada. Toda investigação científica trata de
produzir um conjunto específico de métodos e técnicas para efe-
tuar observações sistemáticas e garantir a sua interpretação.
Geralmente, no começo de todo processo investigativo há o
predomínio da coleta de dados sobre os procedimentos de catego-
rização e interpretação; porém, à medida que esse processo atin-
ge um determinado estágio, os procedimentos de categorização
e interpretação ganham força e a coleta de dados se torna mais
escassa por ter atingido o seu objetivo no contexto da pesquisa.
A abordagem qualitativa da pesquisa caracteriza-se por um
enfoque dialético e sistêmico, bem como está fundamentado em
um marco epistemológico. A existência de um pressuposto epis-
temológico constitui uma exigência necessária à proporção que
atribui sentido ao uso da metodologia, das técnicas e dos crité-
rios de interpretação.
A abordagem qualitativa de pesquisa está, portanto, funda-
mentada na teoria do conhecimento e na filosofia da ciência que
refuta o modelo especulativo de investigação, de cunho positi-
vista, no qual o sujeito cognoscente é visto como um espelho e
totalmente passivo, assim com uma câmera fotográfica.
Em contraposição, a abordagem qualitativa está apontada
para a perspectiva dialética que considera o conhecimento como
resultante entre o sujeito (interesses, valores, crenças) e o objeto
de investigação. Se não fosse desse modo inexistiria a questão da
objetividade da pesquisa.
O objeto de estudo, especificamente no campo das artes cê-
nicas, é visto e avaliado pelo nível de complexidade estrutural ou
sistêmica produzido pelo conjunto de variáveis estéticas que lhe
dão configuração.
No entanto, torna-se importante a observação de que a pre-
sença do marco epistemológico não deve delimitar a busca do
investigador; ele constitui apenas um referencial cujo objetivo é
demonstrar até o presente momento tudo o que se tem feito para
tornar nítido o fenômeno que é o objeto da pesquisa. A existên-
cia do marco epistemológico na pesquisa qualitativa serve para

A pesquisa qualitativa em artes cênicas 129


evidenciar o estado da arte do objeto de estudo no campo ou na
área de conhecimento a ser investigado.
Assim sendo, a circunscrição do marco epistemológico deve
fazer referência ao estatuto da pesquisa no campo das artes cê-
nicas e de seus principais modos de produção de conhecimento,
tais como autores, teóricos, perspectivas conceituais, métodos
empregados, conclusões, recomendações, interpretações, práti-
cas e reflexões a que chegaram.
Os usos do marco epistemológico na pesquisa qualitativa
não devem ser determinantes e nem devem impor ou definir, a
princípio, uma visão teórica, conceitual e interpretativa que sir-
va para enquadrar o objeto de estudo em questão. Seu uso deve
servir para estabelecer um conjunto de possíveis interpretações
que fundem as bases para a construção de um saber elaborado
e relacionado às necessidades, interesses e valores em jogo no
espaço-tempo da pesquisa.
Segundo a perspectiva de Geertz (1997), no entrecruzamento
das culturas se verifica toda a construção de um saber local cujo
marco epistemológico orienta o percurso etnográfico no sentido
do entendimento das diferenças pelo uso de uma hermenêutica
da cultura.
Nessa mesma perspectiva, a noção de conhecimento emanci-
patório em Habermas (1987), que contrapõe a investigação-ação
ao conhecimento instrumental de cunho dominador, coincide
com o ponto de vista que estou a afirmar de que os usos do mar-
co epistemológico na pesquisa qualitativa devem emergir sob a
forma de conhecimento crítico-reflexivo e não como teoria da
ciência.
A perspectiva do conhecimento emancipatório visa estabele-
cer uma relação interativa, crítica e socialmente construída entre
sujeito-objeto, bem como produzir uma profunda reflexão arti-
culada com a práxis e com a negociação coletiva que tecem as
malhas da pesquisa.
Moscovici (1978), ao considerar o estudo das representações
sociais como um modo de conhecimento social específico, na-
tural, de sentido comum e prático que se constitui a partir de

130 Pesquisa em artes cênicas


nossas experiências, saberes e formas de pensar que recebemos
e transmitimos pela tradição (processos de educação e comuni-
cação social), lhe dá uma dimensão epistemológica em oposição
ao conhecimento científico clássico.
Corroborando a afirmativa de que todo processo investiga-
tivo (quantitativo ou qualitativo) é constituído por duas etapas
básicas: “a coleta de dados” e “a estruturação das informações”,
no que diz respeito à pesquisa qualitativa, a sua primeira parte é
orientada por vários conceitos que passarei a examinar adiante.
No que concerne aos objetivos da pesquisa, alguns podem ser
gerais e outros específicos, mas todos eles devem ser importantes
para o estudo em questão. Às vezes torna-se mais conveniente
formular somente objetivos gerais e formular os mais específicos
durante a démarche investigativa. Os objetivos hão de determi-
nar, em parte, as escolhas das estratégias e dos procedimentos
metodológicos.
Na abordagem qualitativa de pesquisa a hipótese assume uma
certa especificidade. Não há necessidade de se formular uma
única hipótese, porque esse tipo de investigação está aberto a
todas as hipóteses potenciais e a expectativa é a de que a melhor
hipótese emerja do próprio estudo dos dados e naturalmente vai
impondo sua força persuasiva.
Há necessidade de uma ampla adesão a todas as hipóteses
que vão ganhando consistência no percurso da investigação. As
hipóteses assumem um caráter provisório e vão se transforman-
do durante o processo da pesquisa para não estreitar o campo de
visão do estudo em análise.
Todavia, diante do desiderato conceitual até aqui problema-
tizado em torno da pesquisa qualitativa, uma indagação se faz
mister: “Qual seria a unidade de análise ou o objeto específico de
estudo de uma investigação qualitativa?”
Seria a nova realidade emergente da interação das partes
constituintes de um dado fenômeno? Ou seria a busca dessa es-
trutura com sua função e significado?
A resposta estaria enredada no pressuposto que defende que
não seria lógico estudar as variáveis de um fenômeno isolada-

A pesquisa qualitativa em artes cênicas 131


mente, definindo-as inicialmente e tratando logo de encontrá-las.
Na investigação qualitativa há necessidade de compreender ini-
cialmente e ao mesmo tempo o sistema de relações no qual as va-
riáveis ou propriedades se encontram inseridas, circunscritas ou
encaixadas e da qual produzem o seu próprio sentido e função.
Por isso, se considera improcedente definir as variáveis de
modo operacional, pois as ações em si dos fenômenos, fora de
seus contextos, não teriam significado algum ou poderiam ter
muitos significados. As variáveis necessitam estar situadas em
seus contextos históricos e culturais específicos.
As atividades em si podem não ser fenômenos humanos. O
que as torna atividades humanas é a intenção que as animam,
inspiram e orientam, é o significado que possui para o ator, é o
propósito que abriga, a meta que persegue.
Desse modo, na investigação qualitativa não há categorias
prévias, nem dimensões, variáveis ou indicadores a priori. Se o
pesquisador possui essas categorias em sua mente é porque ele as
formulou da transposição de outros estudos investigativos. Já as
verdadeiras categorias dos estudos sob a abordagem qualitativa
emergem no próprio processo de recolhimento das informações.
O trabalho de campo da pesquisa qualitativa é trilhado por
alguns critérios que merecem ser sublinhados porque diferem
notadamente de outros modos de investigação.
1. O primeiro critério se refere ao lugar no qual o pesquisador há
de buscar a informação e os dados de que necessita; os dados
necessitam ser capturados no seu ambiente natural e deve
ser nesse lugar que o pesquisador toma a decisão de escolher
com quem há de falar, por exemplo.
2. O segundo critério exorta que a observação não deve defor-
mar, distorcer ou perturbar a verdadeira realidade do fenô-
meno investigado. Também não deve descontextualizar as
informações e os dados coletados a fim de isolá-los de seu
contorno natural. Há aqui a exigência de que a informação
seja coletada de modo mais completo possível com ênfase
nos detalhes, matizes e aspectos peculiares sobre linguagens,
costumes, rotinas etc. Uma questão importante que aqui se

132 Pesquisa em artes cênicas


deslinda é o fato do pesquisador qualitativo não entrar no es-
tudo de campo possuindo um conjunto explícito de hipóteses
para serem verificadas; essa situação o coloca na posição de
não saber previamente quais os dados que serão mais impor-
tantes daqueles que não serão.
3. Como terceiro critério está a ênfase de que os procedimentos
utilizados necessitam ser repetidos frequente e sistematica-
mente. Todo esse processo necessita ser minuciosamente re-
gistrado pelo uso de diferentes recursos que garantam a pre-
cisão no registro dos dados.
4. Em quarto lugar está a ênfase de que como a pesquisa qua-
litativa trabalha com diversos tipos de informação, cabe ao
pesquisador selecionar aquela informação que maior relação
estabelece com o problema em questão e que possa contri-
buir para a construção das estruturas significativas que moti-
vam as condutas dos sujeitos da pesquisa.
5. Finalmente, convém assinalar que o observador interage com
o contexto observado e, portanto, afeta a realidade observada,
diminuindo sua apreciação objetiva. O pesquisador qualitati-
vo não tem medo de ser parte integrante da situação estuda-
da e de que sua presença possa “contaminar” os dados, pois
ele considera impossível recolher dados absolutos ou neu-
tros. Ele é consciente de que constitui um dos atores da cena;
ele não segue o modelo científico das ciências naturais clás-
sicas, mas sim o modelo da física moderna que leva em conta
a relatividade dos fenômenos e o princípio da incerteza, nos
quais o efeito perturbador da observação sobre aquilo que é
observado se integra no processo de investigação, estudo e na
reflexão teórica que é produzida.

Na abordagem qualitativa, o método específico a ser escolhi-


do e empregado depende da estrutura do que vai ser estudado.
Há nessa abordagem a existência de diversos métodos. No que
concerne ao campo das artes cênicas, o levantamento feito na
pesquisa, sob a minha coordenação, intitulada “O conhecimento
teatral em cena – a análise de dissertações de mestrado e teses

A pesquisa qualitativa em artes cênicas 133


de doutorado (2004-2006)”, revelou que no Programa de Pós-
graduação em Artes Cênicas (PPGAC), da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), quase todas as pesquisas de
vertente qualitativa empregaram dois tipos de método, o méto-
do etnográfico e o método de investigação-ação.
O método etnográfico é o preferido pelos pesquisadores que
querem conhecer um grupo específico cuja visão de mundo está
dotada de um significado peculiar.
O método de investigação-ação é aquele indicado quando o
pesquisador quer conhecer uma determinada realidade, mas,
sobretudo, quer intervir, participando como coinvestigador em
todas as etapas do processo da pesquisa.
Ainda fazendo referencia à pesquisa acima mencionada, os
instrumentos mais utilizados da pesquisa qualitativa nas disser-
tações e teses de doutorado do PPGAC da Unirio gravitam em
torno da observação participante e da entrevista semiestrutura-
da. Eu pude analisar que a maioria desses estudos levaram em
conta duas técnicas muito valiosas: a triangulação de diferentes
fontes de dados, de diversas perspectivas teóricas, de vários ob-
servadores e de diferentes procedimentos metodológicos, bem
como, as gravações de vídeo e de áudio. O uso dessas técnicas
permitiu observar e analisar os dados repetidas vezes e com a
colaboração de diferentes sujeitos da pesquisa.
O que concretamente o pesquisador deve fazer para submer-
gir e fazer revelar em um processo de observação participante? A
resposta a essa indagação pode ser assim sintetizada: o pesqui-
sador qualitativo deve tratar de responder as perguntas “quem”,
“o que”, “onde”, “quando”, “como” e “por quê” alguém realiza algo.
Esse conjunto de indagações converge suas atividades para situ-
arem os dados mais significativos que fornecerão a interpretação
dos fatos e acontecimentos circunscritos no estudo investigado.
A análise dos fatos e acontecimentos revela e anuncia a estru-
tura ou padrão sociocultural de um sistema mais amplo no qual
se insere porque podem ser considerados como imagens que re-
fletem as estruturas dos grupos, como permanecem existindo e
porque perpetuam a sua existência.

134 Pesquisa em artes cênicas


Como as anotações de campo nunca conseguem ser porme-
norizadas, elas devem ser abreviadas e esquematizadas. Portan-
to, convém aplicar o detalhe e a ampliação no mesmo dia ou no
dia seguinte a fim de que não perca a sua capacidade informati-
va. Um modo prático desse fazer consiste em gravar um amplo
comentário, bem pensado, das anotações feitas. Essas anotações
concretas e situacionais se converterão em um testemunho real
da honestidade e objetividade do estudo pesquisado.
Assim sendo, a observação constitui um procedimento empí-
rico por excelência; consiste basicamente em fazer uso dos sen-
tidos para observar os fatos, a realidade social e as pessoas nos
seus referidos contextos cotidianos.
Para que a observação tenha validez no processo de pesquisa,
há necessidade de que tenha uma intenção precisa, seja ilustra-
da com um objetivo determinado e seja orientada por um corpo
de conhecimento.
Todavia, também há limites que podem comprometer a ob-
servação e são decorrentes da própria projeção do pesquisador
observador, principalmente em três situações:
1. quando o observador confunde os fatos observados com a in-
terpretação desses fatos;
2. quando há influência do observador sobre a situação obser-
vada;
3. quando há o perigo do observador elaborar generalizações
não válidas a partir de observações parciais.

No que diz respeito à entrevista na abordagem qualitativa,


ela deve adotar o modo de um diálogo coloquial ou entrevista
semiestruturada e deve ser complementada com outros proce-
dimentos escolhidos em função da especificidade do objeto in-
vestigado.
A grande relevância, as possibilidades e a significação do di-
álogo como método de conhecimento dos sujeitos da pesquisa
estão fundamentadas, principalmente, na natureza e qualidade
do processo de investigação. À medida que o encontro avança, a
estrutura da personalidade do interlocutor começa a tomar for-

A pesquisa qualitativa em artes cênicas 135


ma na mente do investigador; adquirem-se as primeiras impres-
sões com a observação de seus movimentos; segue a audição de
sua voz e depois a comunicação não verbal que é direta, imedia-
ta e de grande vigor na interação face a face.
Tudo isso conduz a uma ampla gama de contextos verbais por
meio dos quais é possível tornar nítido os termos, descobrir as
ambiguidades, definir os problemas, evidenciar a irracionalida-
de de uma proposição, eleger os critérios de juízo e recordar os
fatos necessários.
O contexto verbal permite motivar o interlocutor, elevar o
seu nível de interesse e colaboração, reduzir os formalismos, os
exageros e as distorções da realidade, estimular a sua memória e
dar-lhe a ajuda necessária para explorar, reconhecer e aceitar as
suas próprias vivências inconscientes.
Em cada uma dessas possíveis interações pode se tomar a
decisão da amplitude ou do estreitamento de como o problema
deve ser pontuado; se uma questão de estudo deve estar estrutu-
rada na sua totalidade ou permanecer aberta, bem como até que
ponto uma possível resposta ou solução há de ser insinuada.
Nessa perspectiva, a entrevista passa a ser uma arte; logica-
mente, as atitudes que intervêm nessa arte que constitui a entre-
vista são suscetíveis de serem aprendidas e ensinadas.
O propósito da entrevista, na abordagem qualitativa, é obter
descrições do mundo vivido pelas pessoas entrevistadas a fim
de se chegar a lograr interpretações fidedignas do significado
que os fenômenos descritos assumem no contexto em que estão
inscritos.
Retomando uma questão reflexiva, a epistemologia qualitati-
va está fundamentada em um conjunto de princípios que se arti-
cula com as seguintes consequências metodológicas:
1. O conhecimento é resultante de uma produção construtiva e
interpretativa e não constitui um somatório de fatos defini-
dos pela verificação imediata do momento empírico. O seu
caráter interpretativo é produzido pela necessidade de atri-
buir sentido às expressões do sujeito estudado. A interpreta-
ção é um processo no qual o pesquisador integra, reconstrói e

136 Pesquisa em artes cênicas


apresenta em construções interpretativas vários indicadores
obtidos durante a investigação que não teriam sentido se fos-
sem vistos apenas de modo isolado como simples constatação
empírica. A interpretação é um processo diferenciado que dá
sentido às manifestações do objeto de estudo e as relaciona
com momentos específicos do processo geral orientado para
a construção teórica.
2. O processo de produção do conhecimento nas ciências hu-
manas e sociais é interativo. As relações investigador-inves-
tigado em um determinado contexto são a condição para o
desenvolvimento do processo de pesquisa. A interação é uma
dimensão relevante para a efetivação dos processos de pro-
dução de conhecimentos. A consideração da interação na
produção de conhecimentos autentica valor especial aos diá-
logos nos quais eles se estabelecem e nos quais os sujeitos da
pesquisa se implicam emocionalmente e compromentem a
reflexão em direção a um processo que produz informações
de grande significado para a investigação.
3. A significação da singularidade assume um caráter legítimo
na produção de conhecimentos. O conhecimento científico
na abordagem qualitativa não se legitima pela quantidade de
sujeitos pesquisados, mas pela qualidade de sua expressão. A
informação dita por um sujeito concreto pode converter-se
em um momento significativo para a produção de conheci-
mento, sem que tenha de repetir necessariamente em outro
sujeito. O número de casos a ser considerado na pesquisa
qualitativa tem a ver, sobretudo, com as necessidades de in-
formação que vão sendo definidas no curso da investigação.

Esses três pontos podem ser sintetizados em um único ponto


que diz respeito à centralidade da ética na pesquisa que conver-
ge para o sujeito. O sujeito é dimensionado como o eixo central
da ação investigadora. Esse é o ponto que sintetiza a complexi-
dade particular da pesquisa qualitativa.
Se o campo do teatro e das artes cênicas constitui um campo
de formação de profissionais, de professores e de pesquisadores,
e, portanto, envida esforços em produzir os seus próprios conhe-

A pesquisa qualitativa em artes cênicas 137


cimentos pela intervenção do processo de pesquisa, bem como
construir uma realidade a partir de seu próprio ponto de vista,
torna-se imprescindível a mediação de um tipo de investigação
cuja visão há de permitir a aproximação de um modo mais sig-
nificativo da compreensão e explicação da relação sujeito-objeto
que esteja na centralidade e fronteira de seu interesse.

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