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iniciação científica
fupam - Fundo de Amparo à Pesquisa Ambiental
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Universidade de São Paulo
Santos, B. K. D.
Cinema como arte do espaço
[ou educação espacial através dos filmes]
São Paulo, 2010.
78 p., il.
bhakrpa@gmail.com
índice
resumo 9
introdução 13
glossário 16
2. 0 espaço no filme 41
2.1. Montagem 42
2.1.1. ·Eisenstein, Encouraçado Pomtekin (1925) 45
2.1.2. ·Resnais, O Ano passado em Marienband (1961) 47
2.2. Plano-sequência 50
2.2.1. ·Tarkovski, O Espelho (1974) 53
2.2.2. ·Bela Tárr, Werckmeister Harmóniák (2000) 55
2.2.3. ·Alfonso Cuarón, Filhos da Esperança (2006) 58
2.3. Profundidade de campo 59
2.3.1. ·Yasujiro Ozu, Bakushun (1951) 62
2.3.2 ·John Frankenheimer, Seconds (1966) 63
2.4. Movimento de câmera 63
2.4.1. ·Alan Schneider, Film (1965) (roteiro de Samuel Beckett) 67
2.4.2. ·Carl Theodore Dreyer, Vampyr (1932) 69
2.4.3. ·Abel Gance, Napoléon (1924) 69
2.4.4. ·A ótica cinemática nos filmes de ação estadunidenses 70
3. considerações finais 73
bibliografia 76
resumo
14
15
Duane Michals, Things Are Queer, 1971, série de fotografias. glossário
16
realizada ou mal concebida (insuficientemente contínua), uma mudança de
plano que escapa a lógica da transparencia que atua na articulação.
fotograma . imagem unitária de filme, tal como registrada sobre a película.
misè-en-scene . 0 primeiro sentido do termo permaneceu por muito tempo
ligado a sua origem teatral, designando o controle dos atores, regulando
suas entradas, suas saídas e seus diálogos. Na língua francesa é comumente
utilizado para designar a função do diretor de cinema.
montagem . ordenação dos planos de modo a formar uma sequência, utili-
zando para isso recursos de elipse, sucessão, contraste etc.
plano . substituto aproximativo de “quadro” ou “enquadramento”, é mais en-
tendido no sentido de uma imagem fílmica unitária tal como percebida no
filme projetado caracterizando a imagem por sua continuidade.
plano-sequência . plano longo e suficientemente articulado para representar
uma sequência.
profundidade de campo . corresponde a zona situada entre uma distância
mínima e uma distância máxima da objetiva da câmera.
raccord . tipo de montagem na qual as mudanças de planos são tanto quanto
possível, apagadas como tais para que 0 espectador possa concentrar sua
atenção na continuidade da narrativa visual.
travelling . deslocamento da câmera no espaço.
fusão . termo técnico que designa 0 aparecimento ou 0 desaparecimento de
uma imagem, obtida por uma variação da exposição.
trucagem . refere-se a toda manipulação na produção de um filme que acaba
mostrando na tela alguma coisa que não existiu na realidade.
17
As imagens artificiais não apresentam a realidade com precisão,
visam à imagem e não ao objeto, à percepção visual e não ao cam-
po da experiência mental. Por exemplo, elas não mostram todos
os lados de um objeto, embora saibamos por experiência que
eles existem. A câmera só vê três lados de um cubo e, no entanto,
nossas mãos nos dizem que os outros três lados também existem.
18
1. sobre o tempo e o espaço no cinema e nas artes
23
0 cinema reproduz 0 passar cronológico tempo. O tempo é o que passa,
mas é também 0 que se mantém na passagem, ou a passagem daquilo
que se mantém. A passagem do tempo não e um simples deixar para
trás, como todos sabemos e experimentamos, não e um processo linear,
não se trata de uma simples sucessão. E é em primeiro lugar por essa
reprodução que 0 cinema se vai converter numa prodigiosa máquina
de transformação do tempo, e, por isso, numa inédita apresentação de
outras dimensões do tempo. Haveria, pois, 0 Movimento e 0 Tempo e
eles haveriam de defrontar-se de uma maneira inaudita nessas imagens
do cinema, reconfigurando 0 campo de batalha consoante um ou outro
assumisse a supremacia: imagem-movimento e imagem-tempo. (Cor-
deiro, 2003, p. 6-7)
→ 13-17. fotogramas de Nosferatu Um cineasta que teorizou sobre o espaço fílmico, em uma rara
(1929) de F.W. Murnau postura de predominância sobre o tempo, foi Eric Rohmer, no-
24
tadamente em seu ensaio sobre Friedrich W. Murnau4. Rohmer
define três categorias de expressão plástica do filme. Conforme ele
aponta: há o espaço pictórico, concentrado no tratamento das ilumi-
nações e que consiste em revelar a beleza das formas do mundo; o
espaço arquitetônico, organizado em virtude da filmagem e no qual
se desenrola a ação do filme; o espaço fílmico, que se define como
o espaço do movimento, completamente distinto dos anteriores e
que pertence unicamente ao cinema. (Aumont, 2008, pp. 61-62)
A teoria de Rohmer se detém mais na correspondência plástica
do cinema com a pintura do que na exploração de suas possibi-
lidades de expressão do espaço. O substancial nesse caso é sua
observação de que há um espaço que é próprio do filme, o espaço
do movimento. Muito além da questão de predominância da decu-
pagem-tempo sobre a decupagem-espaço, como resultado de algum
tipo de conflito, o cinema é compreendido como um complexo
espaço-temporal. Usando o termo de Deleuze o cinema é composto
assim de blocos de espaço-tempo, cujo elemento chave é o movimento. 18. o espaço sintético reproduzido no grande período da montagem russa, foto-
O espaço fílmico então se afigura tal “um espaço vivo, figurati- grama de Um homem com uma câmera/Chelovek s kinoapparatom (1929) de Dziga Vertov.
vo, tridimensional, dotado de temporalidade como 0 espaço real e
que a câmera experimenta e explora como nós 0 fazemos com
este último” (Martin, 1990, p. 209), como uma experiência fixa e
inalterável, como se o espectador enxerga pelos olhos de outro.
Também V. Pudovkin, em A técnica do cinema, constrói seu pen-
samento nesses termos ao dizer que a ação cinematográfica ocorre
não somente no tempo mas no espaço. Ele vincula essas idéias à
noção de montagem, afirmando que o espaço fílmico depende
exclusivamente do que está gravado no celulóide segundo a von-
tade do diretor (Xavier, 1983, p. 69). Assim o diretor cria o espaço
fílmico como uma espécie de síntese de espaços reais, através da 4
Rohmer. L’organisation de l’espace dans Ie”Faust” de Murnau. UGE, col. “10/18”,
possibilidade de eliminação dos momentos de passagem e dos Ed. de l’Etoile, 2000
25
intervalos.
Vale reproduzir aqui o experimento de Kuleshov, muito útil
para compreensão dessa idéia de espaço e que consiste na seguinte
sequência: um jovem caminha da esquerda para direita (1); uma
mulher caminha da direita para esquerda (2); eles se encontram
e se cumprimentam com um aperto de mãos (3); mostra-se um
grande edifício branco, com ampla escadaria (4); os dois sobem
as escadas (5). O que essa sequência tem de especial é o fato de que
cada trecho foi filmado em um local completamente diferente do
outro (o grande edifício branco por exemplo foi retirado de um
filme americano e era a própria Casa Branca) e, mesmo assim, pro-
duziram uma sequência coerente e ininterrupta, temporalmente
e espacialmente (Xavier, 1983, p. 69).
Martin vê esse modo de tratar o espaço fílmico como método
de produção, que nada mais é que a criação um espaço sintético,
através da sucessão e justaposição de espaços fragmentários que
19. ênfase no espaço dramático – a valorização dos planos em O gosto de saquê/ não precisam necessariamente ter alguma relação material entre si.
Sanma no Aji (1962), de Yasujiro Ozu. Há nesse caso uma ênfase no espaço plástico (o fragmento espaço
construído na imagem e submetido a leis puramente estéticas). A
→ 20-21. página seguinte, fotogramas de Deserto vermelho/Deserto Rosso (1961) de montagem, assim, sugere um espaço que o espectador organiza
Michelangello Antonioni.
mentalmente. É o que Kulechov denominou da geografia criadora.
Seu contraposto é modo de reprodução, que enfatiza o espaço
dramático (o espaço do mundo representado onde se desenrola a
ação fílmica) é contemplado, sobretudo, pelo emprego do plano-
-sequência, como nos filmes de Michelangelo Antonioni, Béla Tarr,
Theo Angelopoulos e antes destes em Iasujiro Ozu.
5
Espaço do campo comparável ao espaço pictórico.
Em um sentido diverso ao que identifica o espaço fílmico em
6
Espaço mais abstrato onde as definições de um “espaço fílmico” misturam noções
termos claros relacionados à antítese estrutural da montagem e
perceptivas e psicológicas – considera-se aí a narrativa, sendo 0 espaço definido do plano, temos, por exemplo, o trabalho de André Gardies onde
pelos acontecimentos que nele tomam lugar (Aumont, 2006, p.105). predomina a valorização do espaço narrativo, comum à literatura
26
e ao cinema e que possuem sistemas semelhantes de signos. Gar-
dies faz uso uma distinção conhecida de Saussurre, entre linguagem
e palavra, para diferenciar espaço de lugar. Afirma a superioridade
do espaço sobre o tempo argumentando que a busca de Proust
pelo tempo perdido é de fato uma busca pelo espaço, deduzindo
isso sobretudo pela ênfase do espaço na narrativa (Xavier, 1983).
Sua noção de espaço narrativo deste modo “opõe 0 espaço die-
gético e 0 espaço representado, e propõe uma topografia e uma
função actancial do espaço em relação com 0 espectador e seus
saberes”(Aumont, 2006, p.105).
Aumont enquadra a concepção de Gardies, entre as concepções
que são formuladas a partir de formas complexas de montagem.
Para ele, a noção de espaço fílmico será diferente conforme se
considere diferentes elementos da linguagem fílmica, como a
cena5, o plano ou a sequência6.
Há ainda alguns conceitos pouco explorados, como os que
existem em Mary Ann Doane, que identifica a partir das relações
com o som, a produção espaços distintos. Assim, segundo sua
teoria há: o espaço da diegese, que é um epaço virtual produzido pelo
filme e que é incomensurável; o espaço visível da tela, que contém os
significantes visíveis do filme e que é mensurável; o espaço acústi-
co da sala de projeção, que pode ser considerável também como
visível , nele o som não está emoldurado (como a imagem), pelo
contrário, ele envolve o espectador. Dos três, somente o primeiro
é admitido pelos personagens do filme enquanto que todos eles
existem para o espectador.
Além da visão de Doane também há que se considerar o espaço
não-descritivo, mas dramático, como dado metafórico. Conforme
aponta Martin é uma característica do cinema de Atonioni, onde
o espaço não tem uma significação propriamente simbólica, mas
27
puramente psicológica. Essa relação do dado plástico e figurativo
do espaço, com a interioridade dos indivíduos fica clara sobretu-
do no deserto de Profissão Repórter/Profissione: Reporter (1975) ou a
paisagem lunar de A aventura/L'avventura (1960).
A noção que mais se repete entre estes autores é a de um espaço
real contraposto à um espaço fílmico, emoldurado pela tela. Se
faz útil aqui a observação de Martin de que a tela do cinema não
é uma superfície, mas uma abertura. Assim diferente da super-
fície pictórica, onde é possível distinguir um espaço organizado
(a tela) e um espaço representado, o cinema é uma profundidade,
onde espaço organizado deve sempre permanecer virtual (Martin,
1990, p.200).
Embora a concepção visual do espaço seja dominante, as ima-
gens que só oferecem um equivalente visual de seu referente irão
representar o espaço imperfeita e incompletamente. Mesmo que
a percepção visual desempenhe um papel nessa apercepção a
maioria das teorias insiste no fato de que a vista só pode apreciar
o espaço indiretamente, com referencia a deslocamentos virtuais
do corpo, e que essas referências podem ser tanto visuais, como
sonoras, ou táteis.
37
38
39
O pintor, no seu trabalho, observa uma distância natural re-
lativamente à realidade, o operador de câmara, pelo contrário,
intervém profundamente na textura da realidade. Há uma enorme
diferença entre as imagens que obtêm. A do pintor é total, enquan-
to a do operador de câmara consiste em fragmentos múltiplos,
reunidos devido a uma lei nova.
40
2. o espaço no filme
41
prosseguir com a análise de alguns casos particulares, de difícil
classificação mas de grande expressão para cada um dos termos.
2.1. montagem
43
produzir outros efeitos: efeitos sintáticos ou de pontuação para, por
exemplo, marcar e uma ligação ou uma disjunção; efeitos figurais,
nos quais a montagem pode estabelecer uma relação de metáfo-
ra; efeitos rítmicos, pois fixando duração dos planos a montagem
é capaz de induzir a ritmos fundados ou na rapidez (como em
muitos filmes soviéticos da década de 1920) ou na lentidão, com
planos pouco numerosos e lentos (como em Andrei Tarkovski);
efeitos plásticos, entre outros; (Aumont, 2006, pp. 195-196)
Esses efeitos foram menos ou mais frequentemente utilizados
conforme esta ou aquela escola – citando por exemplo o cinema
clássico hollywoodiano no qual a montagem narrativa predomina
ao passo que os efeitos figurais ou rítmicos são pouco frequentes.
Dentre os cineastas, as teorias de montagem de Eisenstein são
talvez as mais importantes, sobretudo no sentido de construção
de uma tipologia da montagem. Ele faz a distinção de cinco tipos
de montagem cada qual mais complexa que anterior, no sentido
de dar forma sensível a formas abstratas:
49
montagem sem cortes, um plano-sequência que monta as ima-
gens através de mise en scène – o plano tem assim seu movimento
interno encurtado e portanto virtualiza o espaço que permanece
e deforma-se com salto no tempo.
Assim como Eisenstein, as experiências de Resnais já são tam-
bém parte do vocabulário comum do cineasta e seus outros filmes
tem uma linguagem com qualidades próprias a este – Hiroshima
Mon Amour /Hiroshima meu amor (1959) e Muriel ou le Temps d'un Re-
tour/Muriel (1963), que facilmente poderiam ser mencionados aqui,
não só pela contribuição quanto a montagem mas em exemplos
valiosos no uso do travelling e do plano-sequência, os quais serão
tratados a seguir.
2.2. plano-sequência
51
total ao público, impondo-lhe sua própria atitude diante do que está
acontecendo. (Tarkovski, 1990, p. 140)
52
como parceiros e colaboradoes do diretor. Em todos os seus filmes
Tarkovski considerou o cameraman um co-autor (Tarkovski, 1990,
p. 162). De fato o trabalho de câmera em Tarkovski tem um papel
de grande valor que só o plano-sequência pode atribuir.
Sokurov certamente deve muito a Tarkovski pelo plano único
de 87 minutos em Russkiy Kovcheg/Arca Russa onde, afinal de con-
tas, o que o espectador assiste é basicamente o desempenho do
cameraman alemão Tilman Buettner, possível graças assimilação da
tecnologia digital para o cinema. O trabalho do montador neste
filme desaparece, embora tenha havido um grande trabalho de
pós-produção após as filmagens.
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identifica as coordenadas e é capaz de localizar onde estão as
coisas uma em relação com a outra.
Não se pode, contudo, dizer que esta seja uma intenção deli-
berada do diretor. Mas sabe-se que Tarkovski sempre teve uma
forte crença na necessidade de fazer suas imagens parecerem
verossímeis, sem traços teatrais na atuação, ou uma cenografia de
museu, distantes da vida. Talvez esse naturalismo, mesmo em um
filme cuja única lógica narrativa possível seja a lógica das lembran-
ças, sem nenhuma cronologia evidente, a materialização da casa
materna, descoberta gradativamente pelo excelente trabalho do
cameraman Georgi Rerberg, é capaz de criar uma espécie de ponto
fixo para o espectador. Nesse mesmo sentido é mesmo possível
dizer que o espaço cenográfico se amplia além do campo de visão
na constituição de um pequeno mundo.
Por outro lado, ainda em Tarkovski, é curioso lembrar que em
Stalker, os longos planos tem um efeito completamente diferentes
para o espectador. Os planos na Zona pouco orientam o especta-
dor, já que a exemplo do que é vivenciado pelos protagonistas, o
espaço a ser descoberto ali é o de um labirinto, onde as referências
espaciais e temporais são perdidas.
55
56
baleia empalhada e do príncipe (espécie de messias niilista) em
meio a um rigoroso inverno incitará a desordem em uma pequena
cidade húngara.
Talvez o plano mais exemplar neste filme (entre uma dúzia de
outros tão significativamente fortes) seja o da invasão do hospital
pelos insurgentes. A disposição dos populares à barbarie culmina
na vandalização de um hospital. A cena nos vai revelando cada
cômodo do ambiente que se organiza ao longo de um grande cor-
redor enquanto, em um plano de 8 minutos, os invasores seguem
destruindo o hospital. Há aí um grande trabalho de coreografia
da câmera que, assumindo o ponto de vista de um homem (1,7m
do solo) participa da ação como um narrador oculto, que se di-
ferencia da multidão sobretudo por avançar em um tempo dife-
rente. Esta humanização da câmera se evidencia no final do plano,
com um close no rosto do protagonista, que até então não havia
se revelado como participante da ação. O close, pode-se especular
neste caso, tal qual um espelho faz o espectador se dar conta de
que observava toda a ação pelos olhos do protagonista/narrador.
De fato, o protagonista é mais uma testemunha das ações que se
passam no filme do que um participante ativo delas.
Este plano, assim como o exemplo anterior tem, em primeiro
lugar, essa aproximação com um realismo da imagem fílmica.
Além disso, é visível nas tomadas de Werckmeister harmóniák o in-
teresse do diretor em mostrar a desorientação e o espanto do pro- ←127-150. página anterior,
tagonista derivados em alguns momentos de impressões acima de plano-sequência de
tudo espaciais, como por exemplo a chegada do gigantesco cami- Werckmeister harmóniák, de
Bela Tárr
nhão com o circo – 0 veículo que avança lentamente pela escuridão
só dá ao espectador a medida colossal do que se aproxima pelo 151-156. plano-sequência
tempo esticado do plano e mais ainda quando todo o campo de de Werckmeister harmóniák,
visão é tomado totalmente pela superfície metálica do contâiner. de Bela Tárr
57
2.2.3 Alfonso Cuarón, Children of Men (2006)
Cuarón tem o mérito de produzir, dentro de um gênero muito
fadado aos clichês narrativos, planos-sequência longos e planos
abertos – dispensando as tomadas fechadas e ultradinâmicas tão
caras ao cinema de ação estadounidense. A impressão forte que o
este filme causa reside em grande parte na tensão que seus planos-
-sequência produzem no espectador.
Se em Tarkovski, o plano vai construindo o espaço fílmico,
neste filme de Cuarón, em essência baseado no suspense da
perseguição, a totalidade do espaço que rodeia o personagem
impressiona o espectador na medida em que o protagonista se
revela cada vez mais encurralado e o espaço em que ele transita vai
aproximando-se do palpável. O plano-sequência longo funciona
como agente de uma ação sem subterfúgios – espectador sabe
que as situações-limite não serão resolvidas neste filme com uma
simples sequência de cortes e no espaço. Dois planos-sequência
são especialmente significativos neste filme: a sequência da en-
curralada no interior do automóvel e o longo plano-sequência em
que o protagonista avança em uma zona de guerra. A câmera aqui
assume, mais que nos casos anteriores, uma inserção completa
na ação fílmica. Se em Tárr a câmera algumas vezes admite certa
humanização, esta é sempre feita em um tempo diferente da ação
filmada separando ação e narrador (câmera). De modo semelhan-
te, Tarkovski tratava essa questão, considerando essencial ao seu
filmes que a câmera nunca fosse percebida como tal, pois caso
fosse, o cinema cairia na artificialidade perdendo seu potencial de
revelação do mundo (Tarkovski, 1990). Ao contrário, é vista neste
filme de Cuarón uma certa desmistificação do trabalho de câmera,
que aqui atua no filme e cuja presença é escancarada, quando por
dois ou mais minutos do plano-sequência mantém sua lente suja
58
de sangue. Trata-se de demonstrar que a câmera está ali sujeita ←157-170. página anterior, plano-sequência de Filhos da Esperança, de Alfonso Cuarón.
aos efeitos da ação em que está inserida.
Na forma narrativa é onde se distingue mais imediatamente
Cuarón. Retomando um pouco o que já foi dito acerca de Ta-
rkovski e Tárr, estes possuem um postura semelhante no uso do
plano-sequência para o registro da realidade onde a câmera é en-
tendida como suporte e elemento organizador para a composição
da misè-en-scene (como o pintor em relação à tela de pintura). Nos
planos-sequência exemplificados aqui, a exemplo da literatura a
câmera assemelha-se a um narrador onisciente.
Cuarón de outro modo tem a câmera atuante, que se desorienta
e que se esquiva de obstáculos (em alguns momentos a câmera
anda baixa como que para se proteger) é assim, tal qual na litera-
tura, um narrador em primeira pessoa.
171. fotograma de Cidadão Kane de Orson Welles
62
2.3.2. John Frankenheimer, Seconds (1966)
63
– grua, dolly, steadycam, louma entre os mais tradicionais. Quando a
câmera se tornou mais leve a ponto de que pudesse ser carregada
nos ombros, o cinema ganhou muito no sentido de aproximar
o espectador de uma sensação forte de realidade e imersão no
filme. Em alguns casos, como em Godard, pode ser dito que a
movimentação de câmera assume inclusive um caráter rítmico:
65
66
2.4.1 Alan Schneider, Film (1965) (roteiro de Samuel Beckett)
67
68
2.4.2 Carl Theodore Dreyer, Vampyr (1932)
Este filme está situado em uma fase de transição entre o cinema ←215-239. página anterior, sequência de Vampyr, de Calr T. Dreyer
mudo e o cinema sonoro e assume devido a esse fato uma feição
muito particular, ainda atrelada ao potencial expressivo da ima-
gem descolada do som, mas potencializada por este sem cons-
trangimentos. Se em A Paixão de Joana d’Arc/La Passion de Jeana d’Arc
(1928) Dreyer leva o grande plano ao paroxismo, aqui a atitude é
mais centrada no uso da câmera nas montagens em paralelo que
não prezam pela continuidade narrativa mas por inserir o espec-
tador em um ambiente onde as coisas são mais sugeridas do que
mostradas. Um dos trechos mais significativos e originais é onde o
protagonista Allan Grey, encerrado em um caixão é transportado
carregado e transportado por uma carruagem. Através de uma
sequência de travellings o espectador a câmera assume o ponto de
vista do protagonista no caixão, integrando-o ao terror da história.
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